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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CAMINHO DAS BORBOLETAS / Adriane Galisteu
CAMINHO DAS BORBOLETAS / Adriane Galisteu

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

 

   

Este livro é resultado de trinta horas de depoimentos, gravados em Sintra, Portugal. E de um mergulho num baú repleto de cartas, bilhetes, papéis rascunhados, agendas profusamente anotadas - sim, Adriane Galisteu ainda conserva aquela doce mania de transformar suas agendas em diários teen, engordados com recortes e fotografias e recheados de divagações.

     Como editor, tentei ser absolutamente fiel a sua narrativa. As mesmas palavras. O mesmo tom de voz - dolorido e emocionado, como vocês irão ver. Conservar o olhar diante do mundo que se  abriu para aquela menina que saiu de uma tarde de trabalho num autódromo - a propósito, ela não gostava de automobilismo - para uma vida de princesa ao lado do príncipe das pistas.

   Duas ou três coisas me emocionam particularmente neste livro. Primeiro, a candura juvenil de quem, nos melhores e nos piores momentos desta love story, sempre se perguntava, perplexa: por que eu? Creio que até hoje Adriane Galisteu não sabe responder a essa pergunta.

     Há, depois, um detalhezinho que pode parecer superficial, mas que me deu a verdadeira dimensão do que ela viveu nesses últimos meses vertiginosos de sua vida. Repassando as fitas das entrevistas, percebi que muitas vezes Adriane Galisteu se refere a seu namorado no presente. Ayrton é, Ayrton faz, Ayrton quer. Inconscientemente, ela continua a se debater contra a realidade injusta, cruel e dramática da morte do amado.

     Essa resistência se manifestou de outra forma, mais explícita. Adriane Galisteu foi deixando o final para o final - quero dizer, a morte, o desfecho inesperado, a tragédia, o funeral, a perda definitiva, a incerteza sobre o futuro. Quando, enfim, se decidiu a falar, pediu para gravar sozinha, sem a presença do entrevistador. Com certeza, por pudor - o pudor de ter um espectador para as suas lágrimas.

   Conhecia Adriane Galisteu tanto quanto vocês a conhecem antes de ingressar nestas páginas. De fotos, das imagens de seu sentido luto no velório e no enterro do herói de todos nós. Agora, posso dizer que a conheço. Por isso, eu a respeito. Por isso, admiro seu caráter e sua força e respeito sua dor.

 

 

 

 

 - Ai, que bom! Ele vai voltar mais cedo para casa. Foi um relâmpago na minha cabeça - um pensamento egoísta, com certeza estúpido, talvez inconseqüente. Mas, por um segundo, tive este flash de esperança: ele arrancaria luvas e capacete, sairia do carro carregando aquela cara de garoto ofendido tão familiar por ocasião das derrotas, se recomporia, fugiria às carreiras do autódromo e das entrevistas, já encontraria o comandante Mahonney esperando por ele no aeroporto, com a turbina ligada, e em questão de horas estaria se jogando nos meus braços, em outro país, em nossa casa, no Algarve, em Portugal.

     O impacto do carro no muro ganhava bis e mais bis na tevê. Curva Tamburello, o nome do lugar, repisavam os comentaristas. Era uma tomada a distância - e a distância o que dava para ver era a lateral direita do Williams azul razoavelmente amassada, uma roda perdida, nada que sugerisse alguma coisa mais grave do que batidas parecidas com aquelas das quais ele já tinha se livrado, são e salvo. Outra imagem da tevê mostrava com clareza o momento em que o Williams se desgarrou da pista, em alta velocidade, e sumiu do campo de visão da câmera acoplada ao carro que o seguia, o do alemão Schumacher.

     Dei um salto do sofá, ainda segurando o prato do almoço na mão - franguinho diet, legumes, para manter a forma. Minha única companhia, naquele casarão enorme, era Juraci, a caseira. Expectativa: mas por que demorava tanto o socorro? Bandeiras amarelas agitavam-se nas proximidades, mas ninguém acudia o piloto acidentado. As câmeras da televisão italiana, mal localizadas, também pareciam manter um distante desinteresse pelo que tinha acontecido.

     Minutos de espera - na verdade, me pareceram horas. Minha taxa de adrenalina foi subindo, mas confesso que não me desesperei de cara. Tinha certeza de vê-lo, de repente, desatando o cinto de segurança e saltando, lépido, para fora daquela carcaça meio estropiada, capacete verde-amarelo debaixo do braço, enfezado, a caminho dos boxes.

     Nada. O primeiro carro de socorro enfim se aproxima. Nada. A narrativa do locutor da televisão inglesa começa a dar sinais de ansiedade. Nada. Eu só gritava: - Mas o que eles estão esperando?

     Perdi a fome. Colei os olhos no telão, enquanto o helicóptero com um cinegrafista a bordo tentava, enfim, buscar uma imagem mais próxima. A coisa tinha sido pior do que eu imaginara. Mas eu nunca teria imaginado o pior - e ainda me recusava a imaginar.

       - Deve ter quebrado os braços, ou uma perna - comentei, não sei mais se para mim mesma ou em voz alta. Buscava a única explicação possível, um consolo, para a cena inesperada. O Béco que eu conhecia tinha pavor de se machucar. Era cair de um jet-ski, em Angra, ou escorregar na quadra de tênis, em Sintra, para ele parar tudo, checar músculos e articulações, pedir uma massagem rapidinha - meticuloso em seu preparo invejável, ele não tinha a menor vontade ou vocação para entrar em contato físico com a dor.

- Sai do carro, sai - tinha ímpetos de gritar, e gritava. Ele não saía. Pensei: desmaiou. Mas o ligeiro movimento de cabeça, meio para a esquerda, que a câmera captou, deu força a minha teoria: ele pedia ajuda, implorava para que o retirassem dali. O amontoado de gente sobre ele, as frestas de imagem mostradas em meio ao atendimento, a aflitiva movimentação dos paramédicos, os comentários nervosos dos locutores foram desenhando na minha alma, lenta, lentíssima, muito lentamente, o painel do pânico. Eu continuava de pé, na sala de tevê, imóvel, em silêncio, quando começou a me subir do estômago, ou de um lugar qualquer situado entre o estômago e o esôfago, uma coisa esquisita, entre um grito e um soluço. Vi os pés dele. Sem movimento. Era a revelação fatal. Sou expert na linguagem dos pés. Eles me dizem tudo. O que os pés dele me diziam, naquela hora, era a mais terrível de todas as coisas. Soltei meu desespero, pranto, berro, medo, inconformidade - mas ainda um quê de esperança, por que não? Aí, pela reação em torno, é que percebi que já não estava sozinha naquela sala, que a Juraci berrava, que os vizinhos tinham acorrido, que cães latiam assustados, que o telefone tocava. Uma sinfonia fúnebre se instalava na casa em que eu, na minha santa ingenuidade, pensava vê-lo chegar aquela noite, mais cedo, com aquele sorriso lindo, pronto para um reencontro que já demorava quase um mês.

Jamais passou pela minha cabeça a idéia de que o palco onde ele foi três vezes rei poderia ser ó mesmo de sua morte. Nunca se pensou que Ayrton Sena morreria numa pista de corrida. Nem eu nem ninguém. Ele vivia do risco da velocidade extrema, mas o seu talento incomparável parecia ter eliminado, da cabeça de todos os seus adeptos do mundo inteiro, essa sinistra possibilidade. Ele até que talvez pudesse pensar. Mas essa era a natureza de seu trabalho - que ele conhecia melhor do que ninguém.

Depositaram o corpo dele, inerte, sobre a pista de Ímola - e eu continuava ignorando a hipótese do pior. Uma mancha vermelha no chão, da cor do sangue, me apavorou. Mas uma alma piedosa me enganou:

- Não é nada, não. É uma espuma nova que estão usando, contra incêndio.

Acreditei. Mas um telefonema me chamava à razão. De Sintra, da quinta onde mora com seu marido, o banqueiro Antônio Carlos de Almeida Braga, e com Joana e Maria, suas duas filhas adolescentes, minha amiga Luiza exibia uma voz preocupada:

- Braga ligou de Ímola. É grave. É gravíssimo. Você tem de ir pra lá imediatamente.

- Luiza, vem comigo, por favor. Não me deixe sozinha. Ela, então, alugaria um jatinho em Lisboa. Até o Faro, meia hora. De lá, direto para Bolonha. Pedi para a Clara, uma amiga de lá e decoradora da casa, que me fizesse uma maleta de mão, imaginando dois, três dias de estada ao lado dele, num hospital qualquer. Esqueci a televisão, as imagens repetidas, apaguei da memória o rosto assustado daquela improvisada platéia que apareceu na casa da Quinta do Lago e tentei me fixar na idéia do encontro próximo, ainda que doloroso. Machucado que estivesse, eu queria pegá-lo. Tocar seu peito. Acariciar seus pés. Sonhava com o contato físico, pele na pele. Queria sussurrar-lhe ao ouvido coisas bonitas e encorajadoras.

Notícias entram e saem, desencontradas, assim como os visitantes. Luís, amigo da casa, vem dizer que, no rádio, informam que Senna recobrou a consciência. Não é tão desesperador assim. Agora, é minha mãe ao telefone, do Brasil:

- Filha, que coisa que aconteceu!? - Ela está chorando. Tento consolar:

- Não, mãe. Acabou de dar uma notícia de que ele voltou...

- Dri, cai na real - disse minha mãe. - Só um milagre. Senti alguém me dar um copo de água e colocar uma pílula na minha boca. Com certeza um calmante. Esparramada sobre o sofá, chorando muito, os intestinos em ebulição, tive a idéia de ligar para a mãe dele, que estava na fazenda de Tatuí:

- Zaza, Zaza... - Eu não tinha muito o que dizer.  - Fala, menina.

- Acabou de dar aqui uma notícia de que ele recobrou os sentidos, ele vai ficar bom.

- Estou pegando um avião às 14h30 para Bolonha - ela me avisou.

- Então a gente se encontra lá.

No aeroporto do Algarve, a tarde começava a cair. Teríamos três horas até Bolonha, anunciou o piloto, tão logo desembarcou. Luiza estava muito nervosa, mas argumentava:

- Ele é forte, Adriane, ele é um touro.

- Mais notícias do Braga? - eu quis saber.  - Nada - disse ela. - Mas é muito grave.

Aquele ombro maternal, ou fraterno, sei lá, ajudava a tornar as coisas menos difíceis. O comandante levou o jatinho até a cabeceira da pista e pediu autorização para decolagem. Demorou um, dois minutos. Estranho. Desacelerou e começou a refazer o caminho de volta:

- Não tenho autorização da torre. Há um chamado para dona Luiza, ou para dona Adriane.

Quando a porta do jatinho se abriu e Luiza e eu descemos, senti que toda e qualquer palavra tinha perdido a razão de ser. Os funcionários do aeroporto, os carregadores de bagagem, os turistas, os amigos que tinham me dado carona, os visitantes de cara fechada - eu diria até as pedras, os bichos vadios, as primeiras estrelas do céu, o clarão da lua nascente, as fachadas das casas, os estalos da noite, tudo, rigorosamente tudo, e todos, rigorosamente todos, me davam, em seu silêncio aterrador, a notícia definitiva. Eu tremia dos pés à cabeça.

Luiza voltou pálida. Sentou do meu lado. Pegou na minha mão:

- Adriane... - quis se controlar.

- Luiza, só não me fala que ele morreu.  - Ele morreu.

Abraçou-me soluçando. De outra sala do aeroporto, veio a musiquinha: tãtãtã... Aquela da Globo, que a SIC, em Portugal, tinha adotado. O fundo musical de tantas vitórias dele. Seria uma alucinação ou eu ouvi mesmo? Eu estava surda, muda, cega, prostrada. Na sala de comando do aeroporto, fiquei paralisada como uma estátua. Chorava sem parar - chorávamos sem parar, a Lu e eu. Alguém me contou depois que vivemos ali uns quarenta minutos de absoluto desespero.

- Vamos pra casa - me abraçou, enfim, a Luiza. - Não há mais nada a fazer.

-Vou preparar o jantar para ele. O combinado é buscá-lo às 20h30 no aeroporto, não foi isso, Luís?

Luís, amigo da casa e do Béco, não respondia. Juraci, a caseira do Algarve, entrou em delírio. Lágrimas grossas rolavam do seu rosto, palavras confusas enrolavam-se na língua áspera de quem tinha tomado algum medicamento forte, mas seu desespero não batia com o que ela falava, meio desconjuntado:

- Sei que o Béco vem pro jantar, não vem? Tínhamos combinado aquela galinha grelhada, com legumes no vapor... Você fez a sobremesa de nata, não fez, Dri? O meu menino, o meu menino...

Eu, logo eu, fraquinha como estava, me irritei com aquilo:

- Ele não vem, não, Juraci. O Béco está morto.

- Luís, fala a verdade pra mim - ela o sacudia. - Ele não morreu, morreu?

Sei lá o que o Luís fez para convencer a Juraci. Como todas as pessoas que trabalhavam para o Ayrton, a caseira do Algarve também o tratava como um filho. Aquilo que ela exprimia era uma autêntica aflição de mãe. De minha parte, entreguei os pontos: estiquei-me na cama e fiquei horas ali, entorpecida, sem nenhuma reação. Luiza achava melhor desistir de Bolonha, irmos juntas para a casa dela em Sintra. Entre um telefonema e outro para o Braga, que velava o herói morto, ela me deu um tempinho para me refazer. Pedi ajuda a Clara, uma amiga da família, a decoradora daquela bela casa do Algarve que eu não veria mais - e o que eu pedia a Clara, naquele momento, já tinha o som de um adeus.

- Junta o que eu trouxe do Brasil. A malona, tudo.

Os três volumes que eu tinha acabado de desfazer menos de 24 horas antes, com toda uma equipagem para passar cinco meses de temporada européia ao lado dele. A temporada acabou antes de começar.

Mais um favorzinho, pedi: atrás da porta do banheiro nosso, tem lá um short e uma sweat shirt dele, que eu tinha usado naquela manhã, enquanto corria. Naqueles dias em São Paulo, percebi que seria capaz de acompanhar o Béco na sua corrida matinal em torno do condomínio do Algarve. Um progresso e tanto. Calção Sweater ainda estavam suarentos. Queria levá-los comigo. A Clara sentiu que a hora era de despedida: - Mais nada de lembrança? - perguntou.

Tinha, sim: uma visita solitária ao gramado, à piscina, à Lua, ao silêncio da rua, ao escritório onde o fax emudecera, às fotos dele, aos troféus de uma carreira brusca e incompreensivelmente interrompida. Vi o som, tremendo aparelho que ele trouxe da Suíça. Por curiosidade, quis saber qual teria sido o último CD que ele ouviu na vida. Phil Collins - tudo a ver. Isso, eu tinha direito de partilhar com ele. Guardei o CD. Caminhei, com minhas lágrimas, em torno da casa.

Uma escuridão baixou sobre mim. Senti que minhas pernas não reagiam ao comando do meu cérebro. Meus braços, meu corpo - estava tudo amortecido. Fui despejada, por assim dizer, dentro de um automóvel e da noite que se seguiu, eu só me lembro de que a Luiza guiava, e chorava, que o carro trepidava por uma estrada que tanto podia dar no infinito quanto na Lua, que os ruídos calaram, que o mundo parou, que meus pensamentos chegaram próximo daquilo que os budistas devem chamar de grau zero de percepção. Era como se estivesse dopada. Não sei quanto durou a viagem do Algarve a Sintra. Passava da meia-noite. Despertei à vista daquela que todos chamavam de "Casa do Ayrton". Bati de cara na realidade:

- Não posso acreditar, Luiza. Ele não me deixou. Ele não fez isso comigo. Ele sabe que não pode fazer. Sabe que não tem por que me deixar aqui sozinha. Sabe que é muito especial para mim.

- Eu sei, eu sei - ela chorava e me consolava.  - Então, não me põe naquele quarto.

O nosso quarto, eu queria dizer. Luiza, solícita:

- Não, Adriane, você vai dormir na casa grande, aqui em cima, bem ao meu lado.  Mas nem assim: tudo me fazia lembrá-lo. Ainda outro dia, tínhamos jantado naquela sala. Tínhamos rido, conversado, feito planos com nossos adoráveis anfitriões. Minha cabeça rodava. Agora que eu topava de frente com a tragédia, fazia questão de encará-la. Ayrton me disse, uma vez: "Dri, o fraco não vai a lugar nenhum". A propósito de não sei o quê, qualquer bobagem. Mas o pensamento me voltou exatamente àquela hora e eu me sentia era fraca, completamente fraca. Tomei uma decisão:

- Luiza, quero assistir a tudo sobre o acidente, tudo.  - Tem certeza?

- Absoluta. Me dá o telefone da SIC, da televisão. Vou ligar e pedir para que eles me mandem os vídeos da corrida.

- Faço isso por você.

O telefone não parava, àquela hora da madrugada. Luiza ia dispensando, um por um:

- Respeitem a menina. Por favor.

A tevê repetia e repetia a carnificina que tinha sido Ímola. Vi e revi o acidente do Ayrton. Tentava compreender o incompreensível, explicar o inexplicável. Passei a noite em claro, feito assombração. A Luiza velou minha dor. Tentou me acomodar para um ligeiro descanso, umas horinhas de sono. Foi inútil. Como eu estava absolutamente fora de controle, passo a narrar o que escreveu uma gentil repórter de um jornal brasileiro, por conta própria, é claro:

- Ela (no caso, eu) vagava de camisola pela casa sombria, como um zumbi, e gritava, amparando a cabeça com as mãos: "Ayrton, Ayrton".

Camisola? Casa sombria? Berros na madrugada? Nem forças para isso eu tinha.

Pela tela de uma tevê, eu experimentei a irrealidade da perda brusca de meu príncipe encantado, de meu amor, da razão de minha vida. Dos abismos de minha precária consciência, eu tentava me apegar a qualquer coisa que fosse, para escapar à impressão de estar vivendo um pesadelo. Insisti: queria ir a Bolonha. Aquilo mesmo que eu buscava em vida, queria agora na morte: o toque nos pêlos do peito, os pés, o rosto, a máscara fria da morte. Só vendo, para acreditar. Essa idéia de pluft, tchau, não me conformava.

     - Estou indo, Braga - eu implorava àquele que tinha sido o paizão do Ayrton e, agora, tinha de manter a frieza para zelar da triste realidade da burocracia, da papelada, da autópsia, do embarque do corpo.

     - Não vem. Ninguém entra na morgue - ele desconversava. - Tem cinco mil pessoas se acotovelando lá fora. Soube depois que Joseph, o fiel massagista do Ayrton, entrou. Que Gerhard Berger, o parceiro definitivo, também. Celso, diretor do escritório em São Paulo, assinou o reconhecimento. Leonardo, não - alguém lhe sugeriu que o rosto do irmão estava deformado demais pela batida. De fato, num telefonema posterior, o Syd Walkins, médico de plantão da Fórmula 1, contou que Senna não tinha como sobreviver quando ele lhe retirou o capacete, ainda na pista de ímola. O sangue esguichou. Perdeu quatro litros de sangue na pista. A traqueotomia feita ainda no asfalto era uma desesperada tentativa de fazê-lo respirar, engasgado em sua própria massa encefálica. Massagem cardíaca, tudo isso era jogo de cena. Só um idiota poderia acreditar na chance de ele estar vivo. Senna morreu na pista. Mas o circo não podia parar.

Pode parecer mórbido, mas fiquei sabendo que um fotógrafo da revista italiana AutoSprint estava na curva do acidente e fizera a foto do campeão em seu frio repouso. Liguei de Portugal para a revista. Apresentei-me: era a namorada do Ayrton, queria uma cópia da foto. Na minha aflição extrema, exigia o único atestado concreto de sua morte. O resto era a fumaça de um pesadelo que me perseguia.

Estava às portas da loucura. Não acreditava em nada, não via nada, não sentia nada. Devo a Luiza o meu precário mas salvador vínculo com a lucidez, naquele acolhimento amoroso e solidário de Sintra.

Hoje, dispenso o testemunho medonho da foto. Tenho ao meu redor, ainda em Sintra, o rosto puro, inteiro e singelo do meu herói, reproduzido em dezenas de fotos e pôsteres. Tenho meus sonhos cotidianos, em que a visão do meu amado é nítida e, talvez confirmando o meu fetiche, os pés quase sempre aparecem. Sonhei com ele todos os dias seguintes - em Portugal, na fazenda de Campinas, em São Paulo, no Rio. Nunca eram sonhos apavorantes, mas nem sempre eu conseguia roubar daquele personagem fugidio, como é da natureza dos personagens dos sonhos, um beijo e um abraço.

Tenho hoje a companhia impiedosa dos meus fantasmas, dos meus medos, da minha solidão, das minhas lágrimas - mas recompensa-me, de manhã, a chegada do carteiro, com todas aquelas cartas, remetidas dos mais remotos cantos do mundo, que vêm, às vezes muito cerimoniosas, pedir licença a mim, a namorada, la fiancée, la nobia, o direito de compartilhar a enorme saudade dele. Teve dias em que chegaram duzentas cartas, até mais. Ora, que o amor de vocês seja um bálsamo para a minha alma ferida.

Uma noite dessas, eu me detive numa frase, escrita por  uma dessas amigas que nem conheço: "A eternidade não cabe em nossas frágeis concepções de espaço e  tempo".

Poderia ser um salmo da Bíblia, a palavra anotada pela  mão divina no livro sagrado que, assim como ele fazia, às  vésperas de corrida, leio hoje todas as noites, em busca de  uma compreensão que ultrapasse o meu desespero. Estou  fraca. Mas sinto que não estou sozinha.

“A viúva vai se dirigir à imprensa.” Entendam como  quiserem entender essa frase, com direito ao sarcasmo que  ela possa ter. Pois imprensa e sarcasmo costumam - que  me desculpem alguns jornalistas de respeito e compaixão -  andar de mãos dadas. Eu ia dar uma coletiva, na casa dos Braga, sobre aquilo em que eu me recusava a acreditar. Não tinha jeito. Era segunda-feira, eu não dormira um minuto, mas a Quinta da Penalva corria o risco de ser  invadida por um enxame de repórteres, fotógrafos e cinegrafistas de todo o mundo. No domingo, Ayrton tinha  sido a vítima. Agora, era minha vez.

Pedi a Luiza:

- Não tenho nem condições de escolher uma roupa para  vestir.

Ela foi ao armário dela e me emprestou uma. A coletiva saiu meio aos solavancos, eu ligada no automático, mas como não me lembrar da senhora que me açoitava com uma única e insistente pergunta:

   - Você tem bilhete de volta para o Brasil? Quem vai lhe pagar a passagem?

Não estava em condições de captar o sentido do dramalhão mexicano que ela queria promover, à minha custa. Na verdade, não sei de onde tirei tanta força e tanta serenidade. Não me esqueci, ao final, de fazer um pedido a Miriam Dutra, correspondente da TV Globo:

- Me mande todas as fitas, todos os vídeos que você  tiver sobre o acidente.

Mandou na terça-feira, depois de mais uma noite em que só tive insônia, pânico e recordações. Eu me debrucei no sofá e vi, revi, parei quadro a quadro, fiz slow motion, usei todos os recursos do telão em busca de uma única  expressão do rosto do Ayrton, naquela fração de segundo da escapada e do choque. Fita por fita, detalhe por detalhe. Quinhentas vezes, e nada para explicar.

Ele teve tempo de pensar?

De início, minha impressão era de que ele tinha virado contra a curva - como se fosse bater de propósito. Não podia ser. Luiza e Joana, a filha dela, eventualmente me acompanhavam na minha investigação obcecada. Não via sinal de breque, nem de derrapagem (a resposta estava na caixa preta do Williams, analisada depois: ele tirou completamente o pé do acelerador, a direção estava virada no sentido contrário, de quem tentava desesperadamente desviar do muro, e ele pisou no freio no ponto máximo, 4G, como dizem os experts). Queria saber, naqueles quatro dias posteriores que pareceram quatro anos: foi falha do carro ou o piloto forçou a barra? Queria  me conscientizar, embora não houvesse nada a fazer.

Flashback de uma conversa nossa, antiga e eu diria mesmo rara, a respeito do perigo numa corrida:

- Dri, quando eu vou bater o carro, eu sei que vou bater  - Béco me disse uma vez. - Não fico cego. Tem piloto que diz que apaga tudo, mas eu sinto o que vai acontecer.

Ele deve ter assistido, portanto, com aquela sua clareza de mente, à cena final. Pensei: queria ser um neurônio dele para compartilhar esse fio de consciência, sentir o que se passou, na cabeça dele naquele minúsculo momento. Queria estar com ele não apenas naquela hora, queria estar com ele - só isso. Pensei em morrer. Queria que me matassem. Perdi completamente o medo da morte. Aproximava-me daquelas ameias que separam o gramado da quinta do Braga das pedras do abismo, lá embaixo, e pensava em me atirar. Não me conformava: não, ele não. Ele tinha 34 anos, era inteligente, vitorioso, um coração desse tamanho, um ser humano daquele jeito... Por que não eu? Passaram-se quatro meses, daquele dia a este aqui, em que registro minhas memórias, e não me sinto bem em lugar algum. Disfarço, tento reagir. Mas tudo foi por água abaixo. Não quero tirar de ninguém, da família, dos amigos, dos fãs, o direito à dor. Mas o que perdi era o que eu  tinha de mais importante na minha vida. Não é pouco.

     Eu tive 405 dias de Ayrton Senna para mim. Os pais dele o tiveram por 34 anos. Se eu estava daquele jeito, imagina eles. Não era uma questão de aritmética, mas de justiça e de piedade. Todos aqueles dias tentei desesperadamente estar junto da Zaza, mãe, do seu Milton, o pai, dos irmãos, Viviane e Léo. Ligava para a família. A empregada da fazenda atendia:

- Dona Neide, como está? - perguntava eu, com certa  formalidade.

- Ela foi medicada, está deitada - resumia a Ednéia.  

- E o senhor Milton?

- Também medicado e dormindo.

Liguei várias vezes, sempre era a mesma coisa. Queria estar próxima, fosse como fosse. Impossível. Até  que um dia perguntei:

- E quem mais está  aí?

- O Cristiano e o  Jacir.

Dois amigos do Ayrton (Jacir era o Gordinho, como o chamavam; Cristiano tinha o apelido de Criminoso, por causa de um acidente em Angra, brincadeira deles). Dois amigos nossos, pensei.

- Deixa eu falar com eles - pedi.  

- Eles não estão aqui agora.

- Pede então para eles me ligarem, no Braga, em  Portugal - falei, com naturalidade.

Nada, nenhum telefonema, silêncio total. Comecei a estranhar: talvez eu seja uma lembrança muito viva do Ayrton, uma imagem fortemente ligada à dele, eles queiram evitar.

Luiza me desencorajava:

- Pára de ligar pra lá, Adriane.

No dia seguinte, ainda tentei o Lalli (Flávio Lalli,  marido da Viviane). Deixei recado. Ele me ligou.

- Como está todo mundo, Lalli? - perguntei,  inocentemente.

- Pô, Adriane, como está todo mundo?! Todo  mundo está um horror!

Ele estava nervoso, agitado, mas eu insisti:

- Fala qualquer coisa. Da Zaza, do senhor Milton, da Viviane... Qualquer coisa...

Ele me contou que a situação estava difícil, mesmo para ele, impossível estabelecer qualquer conversa com os pais.

Totalmente por impulso, eu me decidi:

- Já sei. Vou para aí já, ficar com eles.

Lalli foi reticente:

- A gente não sabe ainda o que fazer. Talvez leve a  Zaza e o senhor Milton de volta para a fazenda, talvez  não...

No dia seguinte, quarta-feira, passei a ligar para a fazenda de Tatuí. Estavam todos lá. E a mesma história: medicados, sedados, ninguém podia atender. Braga, sim, lá de Bolonha, dava notícias de cinco em cinco minutos. O corpo só seria liberado após a autópsia. Norma italiana. Parece que a Viviane, em nome da família, tinha tentado evitar, com o argumento "Já mataram uma vez, querem matar duas". Paciência. Percebendo que eu estava ansiosa e meio xarope, Luiza soube que a Juraci estava voltando para o Brasil, aquela noite, e me perguntou se eu não queria acompanhá-la:

- De jeito nenhum, eu vim com ele, vou com ele. E com vocês.

Minha sorte foi que o Braga apareceu, finalmente. Sorte minha, azar dele - que, moído, exausto, arrebentado em mil caquinhos física e emocionalmente, ainda teve de se submeter ao meu detalhado interrogatório:

- Qual era o estado de ânimo do Béco antes da prova?

-  Excelente, ótimo humor. Fomos juntos para a pista. Conversou muito com o Nick Lauda. Até com o Prost ele  brincou. E me falou de você.

- Mas, os outros, como estava todo mundo?

-  O  clima da Fórmula 1 naquele dia estava pesado admitiu o Braga, do alto de seus anos e anos de janela. - Mas você sabe como é: o piloto está lá, o que ele tem de fazer é correr.

Comentei com o Braga a longa conversa que o Béco e eu tínhamos tido, na madrugada de sábado, depois da morte do austríaco Roland Ratzenbergen De seu desânimo, de seu choro convulsivo:

- Sei de tudo, garotinha.

E de muito mais. Senna tinha no Braga um amigão do peito. Os dois estiveram juntos, poucos dias antes, 20 de abril, em Paris, noite em que a Seleção Brasileira disputou uma partida com o Paris Saint-Germain, o time do Raí. Senna foi convidado a dar o chute inicial. Em pleno Parc des Princes. Os franceses aplaudiram em delírio. Tanto que ele, com o Braga, esticou depois do jogo - coisa rara na vida dele - até o La Coupole, feliz de ter sido festejado por um público que em princípio ele julgava pertencer, de corpo e alma, ao seu rival Alain Prost.

Braga conhecia o Béco e sabia o que se passava no fundo de seu coração. O ídolo é um alvo fácil para a intriga, o veneno, a inveja, o medo dos que gravitam em torno dele, a insegurança de quem tenta inutilmente controlá-lo. Braga sabia que Ayrton estava sob pressão - e que a Benetton e Michael Schumacher não eram as únicas coisas do mundo a atormentarem seu sono. Mas sabia da integridade do amigo, da força de sua determinação e da sinceridade de seus sentimentos.

Posto o que, encerrado o interrogatório, ele me botou sob sua generosa asa:

- Vamos nos arrumar para viajar amanhã para o Brasil, e você vai desembarcar conosco, garotinha.

Você pode aprender muitas coisas, de uma hora para  outra - para o bem ou para o mal. Até nunca mais ver, inocência! Naquele momento, eu gostaria de já ter em mãos a frase que uma amiga desconhecida, porém amiga, me mandou depois, numa carta afetuosa: "Sossega, meu coração: já enfrentaste coisa pior do que  isso".

Citação de um poeta grego, não me lembro mais quem. Se esta frase atravessou tantos séculos, é porque ela traz  a essência de uma sabedoria. Isso mesmo: o pior, para  mim, tinha sido a perda definitiva do meu amado. Os  tormentos posteriores, o enterro, a despedida, até mesmo as incompreensões, eu cheguei disposta a enfrentar sem o menor medo.

Morte. A ironia cruel é que ele estava, mais do que nunca, comprometido com a vida. A lenta cena da preparação de Ayrton Senna, em Ímola, repisada pela televisão ao som de uma música suave, como se ele prenunciasse o desastre, não é nada disso. Eu vi, revi, aposto com vocês. A cena representava reflexão, sim; temor, talvez; responsabilidade, com certeza. Mas está aí o Nuno Cobra para me lembrar aquele último momento em que estivemos os três juntos, março de 1994, na pista da Universidade de São Paulo.

- A vida está passando a sua frente - disse-lhe Nuno, filosófico. - Pega ela, pega ela.

Nuno tinha sido testemunha de um momento em que Senna esteve por um fio: a espetacular seqüência de  capotagens no GP do México, na perigosíssima curva da Peraltada, em que o McLaren acabou emborcado na proteção de brita, Ayrton também de cabeça para baixo. Levantou-se, tirou a poeira do macacão e fingiu que nada tinha acontecido. O intelectual disfarçado em preparador  físico, que em dez anos fez de um Ayrton Senna menino raquítico um homem de músculo e postura rijos, ouviu Nigel Mansell, que vinha na cola de Ayrton naquele dia, comentar:

- O cara deu cinco piruetas no ar, mais cinco na terra. Só um milagre explica.

Lembre-se de que Mansell não era dos espíritos mais esclarecidos da terra. Mas, por tudo e por todas, se havia alguém por perto que conhecia as fronteiras do perigo, esse alguém era o próprio Ayrton. O assunto, aliás, tirava seu humor. Certa noite, no restaurante Rodeio, contrariando o seu hábito de não comer carne vermelha e de dormir cedo, ele, eu e um grande amigo, o Marquinhos Magalhães Pinto, caímos na armadilha de sentar perto de uma daquelas mesas só de homens já devidamente alterados pela bebida. O ritual do reconhecimento era ameno: olhares tímidos, sussurros, de vez em quando a ousadia de um aceno de cabeça e só depois o autógrafo. Mas, nessa noite, um deles exagerou:

- Pô, cara, trezentos quilômetros por hora! Você não sabe que pode morrer?

Sorriso amarelo o dele. Mas o sujeito estava naquele meio-termo entre o alma-de-ouro e o chato-meloso:

- Pára com isso, Ayrton! A gente o adora. Você é um cara maravilhoso, um triatleta. Pára de se expor, pára.... Fórmula 1 é uma máquina mortífera.

O maitre previu o desfecho, mas foi tarde. Béco, de pé, se indignava:

- Mas isso é assunto para falar aqui? Me respeite, por favor. Estou jantando...

A morte era um assunto que ele guardava no segredo de seu cofre íntimo. A morte era a fatalidade, o erro, o acidente, o gratuito - estou hoje convencida de que, na cabeça dele, não tinha nada a ver, por exemplo, com o desempenho e a velocidade. Passamos por poucas e boas, em Angra, naquele helicóptero que ele guiava meio amalucado. Uma vez, foi a porta do meu lado, co-piloto, que abriu, bem na hora em que passávamos entre os dois cocorutos dos morros que formam a cidade. Ventou, o helicóptero deu de banda, ele gritava "fecha, fecha", eu puxava, mas a porta resistia ao vento. Ele me ajudou e pousamos em Portogallo empapados de suor. Pior ainda foi aquele sábado em que ele absolutamente tinha de voltar a São Paulo e as nuvens negras desceram sobre o litoral como naquelas tardes de outras tragédias ilustres.

   Soube depois que ele consultou seu piloto em São Paulo:

   - Não vem que não dá - aconselhou nosso bom Nelson.

- Mas tenho de ir.

E foi. Pior: comigo. Não se enxergavam cinco metros à frente da perigosa serra do Mar, entre Parati, Ubatuba e Caraguatatuba. Nuvens espessas e negras. Ele por assim dizer engatou uma primeira - jogou tudo. Se passasse, ótimo: se não passasse, a ver. O helicóptero ganhou altitude, ganhou altitude, foi subindo até que clac, um estranho barulho e um mergulho para baixo. Ele ficou lívido. Agarrou-se no controle e trouxe o aparelho até muito perto do mar, enquanto eu, sem tempo sequer de invocar minha santa padroeira, só lembrava, em silêncio, daquele acidente recente:

- Ulysses, não. Ulysses, não.

Ele disfarçou bem. Voando baixo, explorou as brechas desenhadas entre as nuvens e acabou atravessando, sem sobressalto, em direção a São Paulo, porto seguro. Desligou as hélices e teve a reação mais natural de quem tinha passado por um aperto daqueles:

- Me espera aqui que vou fazer pipi.

Na verdade, o campeão quase tinha feito nas calças. Eu também.

 

Olá me chamo Adriane Galisteu, tenho 21 anos e sou modelo - sou? Era? Ainda vou ser? Só o futuro dirá. Nasci e cresci na Lapa, um bairro de classe média para baixa de São Paulo, estudei em escola pública, tenho mãe, irmão casado, um adorável avô materno de 80 anos, um Fiat Uno 1993 e uma história que gostaria de contar. Há  de parecer, a alguns, um conto de fadas - e a mim mesma me ocorre muitas vezes, depois que tudo aconteceu, a pergunta persistente se este mundo em que nós vivemos  não é só um sonho, se o que chamamos de realidade não é uma sombra projetada numa parede. Disseram-me que alguém muito importante já pensou assim, mas acho que faltei à aula, naquele dia. Não sou mística, não vejo duendes, mas posso passar horas de noites de insônia - insônia é uma das novidades que os vertiginosos últimos meses  de minha vida me introduziram - lendo a Bíblia. Já disputei concursos de beleza, mas nunca li O Pequeno Príncipe. Gosto de Paulo Coelho e, no momento em que remexo nos arquivos de minha memória, aqui e agora, enevoada pela bruma da serra de Sintra, em Portugal, planejo refazer o caminho  de Santiago de Compostela - aquele do Diário do Mago.

Perdi aos 15 anos meu pai, um espanhol da Castela, mal entrado nos 50, numa noite em que eu disse que ia com uma amiga para o Guarujá e fui com um namorado para Arujá. Freud explica, talvez - mas não consola o meu arrependimento boboca e infantil. Fiquei sabendo que meu pai, que já tivera um problema cardíaco, chegou andando ao hospital e saiu no dia seguinte num caixão lacrado, com toda a família desesperadamente à minha procura. Imaginem meu trauma. Desde então, minha mãe sabe rigorosamente tudo o que se passa em minha vida. Não sei mentir. Meu relato pode ser emoldurado de dureza, tristeza, decepção, alegria, ilusão, arrependimento, franqueza, imprecisões, rancor, exagero, mas a verdade, fiquem certos, será preservada como um tesouro tão precioso como aquele de que vai falar esta história: o amor.

Mães contam coisas exageradas dos filhos, mas desta eu me recordo: aos 9 anos, me descobri bonita. Ganhei um biquíni novo dela e tão apetitosa me senti - será apetitosa palavra do vocabulário de uma menina de 9 anos? - que  vesti a peça de baixo, fiquei me apreciando no espelho, horas a fio. De repente, simulei um mergulho. Queria apreciar a perfeição do meu corpo em todos os ângulos. O espelho se espatifou em mil pedaços e as escoriações generalizadas tiveram de adiar meu show aquático por alguns dias.

Encanei:

- Mãe, quero aparecer na televisão.

(Imaginem, após a morte do Ayrton, tive de dizer não a pessoas gentis e influentes que me convidaram para ser atriz numa das novelas da Globo. Mas agradeço seu gesto de amizade, Roberto Irineu.)

Minha mãe argumentou que não seria fácil, mas, como sempre, foi à luta. Por intermédio de uma vizinha que tinha uma filha adolescente no teatro, juntou endereços de agências e me produziu um book. Ainda me lembro do nome da fotógrafa: Teresa Pinheiro. Fotos sem muita produção nem maquiagem, em preto-e-branco. Dali, procuramos  uma agência especializada em crianças, a Pritty, que ainda existe, em São Caetano. Meu pai tinha sido dono de uma gráfica que chegou a ter duzentos empregados. Passara sua parte e se aposentara. Tínhamos uma vida normal, sem carências e sem luxos. Não era tanto o dinheiro que me movia. Era o sonho de ficar famosa.

Casting para o primeiro comercial. Aprovada. Vocês vão perceber uma predestinação aí. Sabem quem era o anunciante? O McDonald's. Que abria sua loja da Avenida Rebouças com Henrique Schaumann. Eu tinha de dizer aquilo:

- Dois hambúrgueres, alface, queijo, molho especial, cebola, picles e pão com gergelim.

A fórmula do Big Mac. A campanha era essa: quem cantasse rapidinho, sem errar, no balcão da nova loja, levava de graça. O sanduíche era ótimo, mas a vida de artista uma dureza, eu percebi. Filmamos e refilmamos um milhão de vezes. Praticamente passamos, mamãe e eu, dois dias e duas noites no McDonald's.

Minha mãe, sempre ao lado - mas sem aquela atitude chata de mãe de miss. Entregava o cachê para ela, ela o administrava. Aí eu deslanchei: outros filmes, passarela, desfiles - com a ajuda de um coreógrafo amigo, Joacir Dallas, eu praticamente reaprendi a andar. Teatro, nem pensar - supus que não tinha talento. Mas teria, por vários anos, uma outra inesperada experiência de palco. Via música. Atenção, Chacrinha, Gugu, Trapalhões, Silvio Santos, Xou da Xuxa, Sérgio Mallandro, Bolinha - aqui vou eu.

Um sucesso, a novela Chispita, na TVS. Só que era mexicana. Marco Antônio Gálvão, um produtor que trabalhava lá, percebeu a chance de um LP do tipo trilha, em português. Fez o casting, a música estava pronta - era só dublar. Tinha de ter cara e ginga, voz era o de menos. Acabou a novela, acabou o conjunto. Estava com 11 anos. Aos 12, dei um estirão - virei uma mulher. Meu primeiro sutiã foi da Monizac, uma campanha que foi um estouro e bem sugestiva do que se passava comigo. "Menina ou mulher?",  dizia o anúncio. Continuava o trabalho de modelo, logo iria para a Jet-Set, enfim uma agência de porte. Mas a música me chamou de volta: um conjunto de quatro garotas - Débora, Kalu, Cinthia e eu -, com melodias açucaradas que lembravam os anos 60. O nome, escolhido pela empresária Amélia Romão, não poderia ser mais adequado: Meia Soquete. Tem muita gente da minha idade que ainda se lembra do nosso estilo Lolita.

Dos 13 anos em diante, vivi um turbilhão de muito trabalho, muita viagem, muita experiência inesperada - como cantar ao ar livre para milhares e milhares de pessoas em Tucuruí, no Pará. A música não era meu barato, assim como as drogas, o álcool e a badalação nunca foram. Mas tínhamos gravadora de prestígio - primeiro a RGE, depois a Som Livre. Chegamos a ganhar mais de um disco de ouro e isso dá orgulho a qualquer um. Era dona de uma voz afinadinha, mas no palco vivi situações de desastre, como o show em que desabei como uma abóbora, quando a gente  se dava as mãos numa roda. As viagens constantes disputavam com as aulas, nas quais eu dormia de cansaço, e com o ano letivo. No terceiro colegial, finalmente, a escola perdeu. Aliás, eu perdi - o ano. Antes, já havia perdido meu pai e minha vontade de cantar.

Uma síndrome de pânico, ou pelo menos um sério sintoma disso, quase me enlouqueceu, pouco tempo antes de conhecer o Ayrton. Estava num lugar qualquer e, de repente, o coração disparava, as mãos começavam a suar, perdia o equilíbrio, chegava a desmaiar. Fiz exames, tomei tudo o que me indicaram, de antidepressivos a simpatias, conversei com outras pessoas - nada. Um dia, a caminho de casa, dirigindo o carro, meus joelhos tremiam como chocalhos. Vi uma igreja e entrei. No meu pânico, rezei por mais de meia hora - em voz alta, quase aos gritos:

- Meu Deus, me dê forças.

Eu não freqüentava igreja, não era mística, menos ainda esotérica, mas mantinha em mim uma reserva de fé. Ela me ajudaria naquilo - e depois. Nesta idade de 21  anos em que muitos mal começam a vida, já passei por quase tudo. Tive o sucesso mas provei da parte dura da realidade. Aprendi muito - inclusive no curto tempo em que tive de ensinar. Sim, isso mesmo: também dei aula, para o 1° Grau, naquele ano em que fui reprovada. Queria o diploma e passei para o curso de magistério - o  normal. Entrava na sala e havia um menino sempre dormindo. Tentava mantê-lo acordado e nada. Um dia, chamei-o para conversar.

- Sabe o que é, tia? - explicou. - Lavo carro quando saio da escola e à noite entrego pizza.

Era um garoto de 10 anos e levava para casa o pão de cada dia. Que ele dormisse o quanto quisesse. Depois, foi  uma menina cujos cabelos tinham sido tomados por piolhos. Quis ajudá-la:

- Vou avisar a sua mãe.

- Que mãe? - respondeu, candidamente.

Para a missa de trinta dias da morte do Ayrton, que assisti no Rio, no aconchego da família Magalhães Pinto, ganhei de dona Maria José uma consoladora Bíblia. Pouco antes, recebera um livro e uma dedicatória encorajante, presentes das irmãs Marilda, Marecilda e Marilene, de Curitiba. O título me deixou curiosa - Quando Coisas Ruins Acontecem às Pessoas Boas. Obra de um judeu americano chamado Harold S. Kushner, com prefácio do rabino Henry Sobel. Traz toda uma reflexão filosófica profunda, a partir da perplexidade de Kushner, na época um jovem estudante de teologia, com a mensagem do Livro de Jó e a essência do sofrimento humano.

Evidente que tinha tudo á ver com o momento que eu vivia e o resultado foi que mergulhei no livro. Eu tinha me perguntado muitas vezes: por que Deus tirou o Béco de mim? Por que ele haveria de morrer fazendo aquilo que mais sabia fazer? Por que naquele momento tão especial para nós dois? Por que Deus permite que uma criança contraia um câncer? Por que Deus deixa imperar o mal? O livro propõe a idéia de que Deus é um mistério que a mente humana não pode alcançar. A divindade, como Ela for chamada: Jeová, Buda, Maomé, Oxalá, qualquer que seja o nome de seu Deus. Portanto, Deus não é dos males do mundo, assim como não tem a ver com a nossa felicidade. O que acontece sobre a Terra é resultado das leis da natureza: nascer, crescer, morrer.

   O senhor Kushner está a uma distância enorme do meu invencível sentimento de perda, mas me ajudou, sem saber, a dar um pouco de ordem aos meus desesperados porquês, porquês e porquês. Sem fatalismo, mas também sem resignação. Amém.

Vida de modelo é assim - testes, aeróbica, testes, musculação, testes, alguns convites que podem ser aceitos, mais testes, propostas que devem ser recusadas, testes... Eis que, lá, perdida numa página qualquer de minha agenda, escondida no emaranhado de coisas a fazer, contas a pagar, telefonemas a dar, está rabiscada, sem destaque, aquela anotação que iria mudar o rumo de minha vida:

"15 de março - Teste na Elite. Quatro da tarde".

Pode ser que vocês não acreditem em destino. Mas vão perceber que eu tenho de acreditar - ainda que esse destino possa vir a ser, de repente, cruel, muito cruel.

Na verdade, eu quase não fui ao encontro dele, o destino. Quando Karen, a booker da minha agência, me ligou, alguns dias antes, eu quis recusar. Ela me explicou: recepcionista no Grande Prêmio Brasil, "uma grana bem legal". Mas, sinceramente, aquela palavra - recepcionista - não me soou bem. Não que eu já não tivesse feito trabalho desse tipo, não é isso. Nada de preconceito. É que eu estava vivendo um ótimo momento profissional - e me sentia em condições de escolher o meu trabalho. De mais a mais, não tinha a menor intimidade com a Fórmula 1. Achava que era um mundo fechado, masculino demais. Jamais trocaria o cheiro de meu perfume Roma, da Laura Biaggiot, pelo da gasolina.

Automobilismo, até aquele dia, era tão distante de mim quanto rúgbi ou beisebol. Tinha visto uma única prova, ao vivo - em 1989, no Estoril, em Portugal, mais por farra, com um grupo de amigos, aproveitando a folga numa bateria de fotos de moda. Na televisão, não tinha muita paciência: via a largada, as primeiras voltas e, dependendo do resultado, as últimas. Eu estaria mentindo se dissesse que era uma fã de Ayrton Senna. Nunca fui fã de ninguém. As meninas da minha rua lambiam o asfalto pelos Menudos, por exemplo. Eu, não - ao contrário de minha avó húngara, que torcia pelo Ayrton e não perdia jogo do Palmeiras na tevê, nunca entrei nessa de ter ídolo. Na Fórmula 1, confesso que no máximo tinha certa simpatia pelo Nigel Mansell - quer dizer, por ele ser um cara engraçado, meio maluco e trapalhão. Adorava quando ele se metia em alguma briga com aquele nosso garoto Senna. Aliás, Mansell ganhou em Estoril naquele ano e eu vibrei.

Voltando a março de 1993. Karen insistiu muito para que eu aceitasse o convite da Shell. Seriam só dez modelos, meninas bonitas e conhecidas, para ficarem na sala vip, sem essa de desfilar pelas arquibancadas, sem confraternização com a galera, coisa séria. Citou o nome de duas  ou três que eu conhecia - a Nara Pinto, a Patrícia Teixeira, a Laura Gutierrez... Tudo bem, vamos ver como é. Nem perguntei pelo dinheiro.

Na hora marcada, mais uma tramóia do destino: tinha de vestir maiô. Ameacei uma meia-volta: "Estou fora".

Mas os três diretores da Shell que estavam lá imploraram: "Não é o que você está pensando..:" O uniforme da prova era curtinho, só isso. Perguntei sobre o que teria de fazer no Autódromo de Interlagos, eles me perguntaram sobre minha carreira - e, sem mais, um deles me surpreendeu:

- Você está aprovada.

Mil dólares por quatro dias de trabalho, de quinta a domingo, era tudo o que eu esperava ganhar, naquele fim de semana de GP Brasil. Jamais passou pela minha cabeça que eu iria ganhar o amor de minha vida.

Quinta-feira, 18 de março, coletiva de imprensa com os pilotos da McLaren, que a Shell patrocinava. Eu fora -  tinha agendado um trabalho anterior. Mas, às seis da manhã de sexta, lá estava eu, a bordo de um táxi e de muitos bocejos, a caminho da Elite, ponto de encontro para Interlagos. No autódromo, tivemos um mobral rapidinho de Fórmula 1. Para que nós, modelos, não ficássemos ali apenas com nossos rostinhos - e corpinhos - bonitos, eles nos introduziram na linguagem do circo: cockpit, pitwalk, pitlane...

Sábado, de novo. Madrugada, segundo treino oficial. Os motores voltam a roncar. O Dudu, da Shell, vem, de repente, com a bomba: dali a alguns minutos, sabe quem é que iria visitar, em pessoa, o hospitality center da Shell? Isso mesmo - ele, Ayrton Senna. Frenesi nas meninas, disparada para o banheiro - cada uma delas, descabeladas, correndo em busca do espelho e de um providencial retoque na maquiagem. Todas, menos eu - tudo bem, não era o caso de esnobar nosso tricampeão do mundo. Simplesmente, eu não o conhecia. Até aquele dia, ele não era meu ídolo. Passaria a ser - para toda a eternidade.

Ele chegou. Uma cena que iria rever infinitas vezes: uma multidão compacta, ansiosa, e, navegando no meio daquele mar, o solitário bonezinho do Banco Nacional, anunciando a aproximação do ídolo. Empurra-empurra, confusão, quase histeria - e ele, sem perder a calma, o timing e o comando da situação, saía cumprimentando as pessoas, enquanto saciava seus olhinhos curiosos e vivos com a busca de alguma novidade. Eu não saí do lugar. Observava, apenas - afinal, estava ali a trabalho, não a passeio. Ele subiu num pequeno palanque e começou a dizer algumas palavras. Senti que ele me olhou. Mas era para mim ou para a Nara, que estava atrás de mim? Ou teria sido um olhar vago, para um ponto indefinido e qualquer que acolhesse a timidez dele?

Novo alvoroço: caminhada pelos boxes. A cada uma das meninas correspondiam dez convidados. Todas querendo se escalar para a McLaren. Eu, me fazendo de modesta: "Para mim, tanto faz". Knockdown: ganho exatamente a McLaren. A caminhada me provoca um sentimento de compaixão para com aquele moço, cara de menino, que fica zanzando pelo boxe, visivelmente tenso pela responsabilidade de disputar um Grand Prix em casa - e ele, ali, indefeso em meio ao assédio dos fãs e dos pedidos de autógrafo, sem desfrutar da mais remota privacidade. Dura é a vida de um Ayrton Senna, pensei comigo mesma. Sua expressão carregada confirmava minha apreensão.

- Olhou pra você - provocou a Nara.

- Foi pra você - devolvi.

Pra mim, pra você.

Era o domingo da corrida e houve esse novo passeio pelos boxes, com os convidados, entre o warm up e a largada. Dia comprido para mim. Às cinco da manhã já estava acordada, às 6h30 desembarcava no autódromo. Trabalho difícil: muita gente, muita correria. Mas houve o tal pitwalk, como de praxe, e, nas vizinhanças do boxe da  McLaren, um gordinho simpático, de cara bonitinha, me abordou:

- Sou o assessor para assuntos particulares do Ayrton Senna - apresentou-se. - Ele me pediu pra pegar o seu telefone.

Achei que era gaiatice, mas dei. O da minha casa, o do trabalho. Incrédula, vi aproximar-se um senhor, que repetiu:

- Dá o fax também.

Eu, silenciosa.

- É isso mesmo, garotinha. O cara está paradão em você.

(Guardo no baú de minhas melhores lembranças a primeira vez em que o ouvi pronunciar a palavra garotinha. Eu amo o Braga, doutor Braga, o Braguinha, o Bragota; eu amo ouvi-lo dizer garotinha, eu amo a Luiza, mulher dele, eu amo a Joana e a Maria, as duas filhas do casal, tenho uma gratidão que jamais poderei exprimir em palavras. O outro, o tal "assessor para assuntos particulares" do Ayrton, era, eu logo ficaria sabendo, o Jacir, ou Jaça, amigo de longa data do Béco, que tinha, e só ele  tinha, autoridade para chamá-lo, sem represália, pelo apelido de Baleia.)

Logo notei que "o assessor" se encarregou eficientemente de colher outros telefones das meninas da Elite e desencanei. Ficou apenas a expectativa de uma nova visita do piloto, anunciada pelos diretores da Shell - e uma nova, aflita, corrida ao banheiro, batom, maquiagem, uma geral nas meninas. Eu apenas esperei. Nara ainda brincou  comigo:

- Está se fazendo de difícil, boneca?

- Olha, ele até que me atrai - respondi, moleque.

- Você reparou naquela bundinha?

Estávamos nos divertindo. E olha lá de novo aquele bonezinho azul do Banco Nacional aproximando-se, engolfado no mar de tietes. Dessa vez, ele ficou um pouco mais. Meio encabulado, subiu ao palco e falou sobre o que esperava da corrida. Dá pra vencer, disse, sem aparentar muita convicção. "Não posso garantir que vou ganhar, mas é o que eu mais quero", despistou. Nós, as dez meninas da Elite, com nossos macacõezinhos que deixavam boa parte das pernas de fora, ficamos bem diante do palco, como se formássemos um cordão de segurança entre ele e a platéia de convidados. Estacionei na frente dele, olhando para cima, fila do gargarejo. Ele falou pausadamente, remoendo cada palavra que pronunciava. Falava e olhava para baixo. Quer dizer: olhava para mim. Será? Coincidência. À saída, entre cotoveladas e pedidos de autógrafo, aí, sim, uma olhada nítida e um largo e lindo sorriso para mim. Para mim? Olho para trás e eis que vejo, de novo, a Nara - aquele um metro e setenta e muitos centímetros de pura beleza morena. Então é isso: o negócio dele, definitivamente, é a Nara.

- É com você - eu entrego os pontos. - Ele gosta é de louras - brinca Nara.

Mas alguma coisa tinha tocado em mim. Meu desinteresse pela corrida transformou-se, de repente, numa enorme ansiedade. Sinal de largada e eu, como todo mundo, passo a me revezar entre a televisão e a amurada do hospitality center. Só tenho olhos para o carro vermelho e branco da McLaren. Descubro-me torcendo freneticamente por ele. Alain Prost na frente. Um milagre: uma nuvem negra, única em todo o céu de São Paulo, sobrevoa o autódromo. Caía a chuvarada. Prost roda e sai da corrida. A torcida vem abaixo.

A chuva pára. Ayrton Senna é o vencedor.

Tempo de comemoração: os diretores da Shell anunciam uma festa-surpresa em homenagem ao campeão. Depois das dez da noite, no Limelight, uma boate da moda em São  Paulo. Todas as modelos estão convidadas, aliás, convocadas a comparecer. Arrastando-me de cansaço, sonho com minha caminha, para retemperar as energias gastas no trabalho e na surpreendente ansiedade que tomou conta de mim durante a prova.

Não gosto de boate, nem tenho saído à noite. Mas ligo no automático: tenho de ir. Não iria me arrepender. A noite ainda me traria muitas surpresas - ou, pelo menos, uma. Aquela pela qual, ainda que meio inconscientemente, eu começava a me interessar.

Ele deu uma de Cinderela às avessas: ao som das doze badaladas, apareceu. O Limelight regurgitava de gente, música e dança, à espera da estrela da tarde e do convidado da noite - o campeão. O sorriso dos garçons abria a passagem que o empurra-empurra dos tietes insistia em bloquear. Medi minha impaciência, senti o drama e consultei o staff da Shell: iria cumprimentar o Ayrton e me  retirar estrategicamente. Eu vestia jeans, miniblusa preta  - o calor estava diabólico -, usava um sapato de plataforma preto, nenhum traço de maquiagem. Era a própria  working girl. Uma bandana vermelha no pescoço foi o  máximo de futilidade que me permiti.

No que busquei, de novo, com o olhar, nosso convidado, eis que já o vejo muito bem instalado num camarote, sendo abraçado por outro herói nacional - Pelé. Mais o tal gordinho da corrida e o irmão dele, Leonardo, que eu conhecia de fotografia e de histórias, muitas contadas pelas modelos da Elite. E todo esse belo quadro emoldurado por pelo menos duas dezenas de mulheres bem bonitas e aparentemente bem disponíveis. Suspirei de alívio: diante daquilo, estava dispensada de qualquer figuração.

Antes de sair, quis apenas cumprir o protocolo. Abri caminho com os cotovelos até o camarote e fui dar meu alô. Mas o próprio Ayrton pediu ao segurança para dar passagem. Segurei na mão dele para um rápido parabéns. Senti que ele estava eufórico com tudo aquilo - a vitória, a comemoração, o paparico. Ele manteve a minha  mão na dele. Eu desconversei:

- Você foi o máximo. Estou aqui em nome da Shell...

Nada de soltar minha mão. Só para, de repente, pegar uma taça de champanhe e me oferecer:

- Comemore comigo.

- Obrigada, mas não bebo - disse.

- Mas é um dia especial. Eu ganhei. Não bebe nadinha?

- Nadinha, desculpa.

- Então, fica aqui com a gente.

- Mais uma vez, desculpa. Mas eu não estou gostando desse clima de camarote número 1.

Senti uma certa decepção no rosto dele, mas fiquei firme. Só me permiti um escorregão mais pessoal, antes de virar as costas:

- De qualquer modo, você tem meu telefone...

O gordinho amigo do Ayrton, o tal "assessor", ainda quis me segurar pelo braço:

- Espera aí, a gente vai dar um churrasco em Angra, no fim de semana, não quer ir?

Escapei com o clássico "a gente se fala".

Levei comigo aquela mistura de sentimento que vai desde "pô, ele me tocou" até o "isso é tudo um grande absurdo". Mas absurdo mesmo foi quando, às nove da manhã  do dia seguinte, a empregada veio me chamar, para o desespero de quem odeia ser despertada cedinho:

- Telefone. É um tal de Ayrton.

Aquele gordinho folgado - pensei, imaginando ouvir a voz do tal "assessor". Fui malcriada:

- E aí?

A voz serena e doce que ouvi foi uma ducha na minha irritação:

- A gente vai dar uma churrascada em Angra. Você não quer ir?

Vacilei. Disse que tinha muito trabalho pela frente, precisava de um tempo para responder. Pela primeira vez tomei contato com o estilo daquele que, não por  acaso, era o rei da velocidade.

- Agora... O que você vai fazer agora?

- Agora? Tenho um teste para um comercial.

Teste para um comercial. É a desculpa mais manjada no mundo das modelos. Só que, no caso, era a mais pura verdade. Eu diria até: uma irônica verdade. Teste para um comercial da Arisco - para figurar ao lado de ninguém menos do que Nelson Piquet. Até eu, até as pedras sabiam que Piquet era o maior inimigo de Ayrton Senna. Preferi guardar esse segredo dele.

Ele não desistiu:

- Então, depois do teste, me liga.

E me deu aquele telefone direto que faria o fascínio de tantas fãs e de tantos jornalistas. Celebrei, lá no estúdio, as virtudes do molho Tarantella, senti que agradei e não resisti à idéia do prometido telefonema. Não sei bem qual era a minha intenção, mas, por via das dúvidas, comprei quinze  fichas de telefone e me dirigi para o orelhão mais próximo. Nervosa, porque não sabia nem com que nome chamá-lo. Ayrton? Ayrton Senna? Quase desliguei quando a secretária sacou do "quem gostaria?”

- Adriane... - respondi, desenxabida, me culpando pela certeza de que ele jamais viria ao telefone.

Veio, interessado:

- E o teste, como foi?

- Legal, fui bem, eu acho.  

- Mas que teste é esse?  

Pensei: me pegou. Ou quase:

- Sou modelo da Elite... É um comercial de tevê... - desviei.

Cara minucioso, esse:

- Mas que comercial?

- Com seu amigo Nelson Piquet - entreguei (se o conhecesse naquele momento como vim a conhecê-lo depois, nem por brincadeira mencionaria o tal nome).

Ele engoliu seco, silenciou por um minuto e mudou de  assunto:

- Mas e a churrascada em Angra, você vem?

Senti que não daria para despistar mais. No nervosismo, escapei para o horóscopo:

- Escuta, de que signo você é?

- Do nada - ele brincou. - Sou de Áries.  

- Eu também - comemorei.

- Sou meio tímido, você me entende, não é?

- Tímida e confusa, eu...

- Meio difícil dizer as coisas... Mas queria convidá-la... - Entendo... Mas, me desculpa: não o conheço.

- Como não me conhece?! - ele reagiu, com ímpeto ariano. - Todo mundo me conhece.

- De matéria de jornal, de entrevista na tevê... Mas, como homem, como pessoa, não o conheço. Não tenho a menor idéia de quem você é.

Cabeça dura de ariano:

- Então, vai ter hoje uma boa chance de conhecer. Estou dando um jantar às nove da noite no The Place. Você está convidada.

Sei lá, nem registrei. Chovia em São Paulo, deu aquela preguiça, ainda estava cansada das emoções do GP - enfim, não apareci. Na manhã seguinte, já estava estacionada no meu lugar habitual na Elite, ali na região da Avenida Faria Lima, quando olhei para a janela e tive um sobressalto:

- Tô alucinando! - pensei comigo mesma.

O que eu via, na porta da agência, era um Honda negro, reluzente de tão novinho, e dentro dele, pilotando, quem, quem? Ayrton Senna. Como eu jamais bebo, menos ainda àquela hora da manhã, me assustei: delírio, loucura. Aquele cara estava me fazendo mal.

Logo, logo, notei que tinha domínio perfeito de minhas faculdades mentais. A aceleração que fez o carro - zzzuuuummmmmmmm - sumir na esquina reforçava a idéia de que era mesmo ele, em pessoa, e não um fantasma. De mais a mais, era inconfundivelmente de felicidade o sorriso que exibia no rosto a Daniela, uma das meninas da  Elite - que eu acabara de ver desembarcando do carrão.

Daniela estava radiante:

- Vocês viram quem acabou de me deixar aqui na porta?

- Não, não. Quem? - a mulherada, curiosa, aglomerou.

- O Ayrton Senna. Meu novo namorado.

- Hummm... (dúvida, ciúme e jeito de pedir "conta mais!")

- Pode acreditar. Ele é o máximo. Estou apaixonada.

Eu, com os meus botões: ela foi ao jantar que eu não fui.

A moça não era das mais discretas. Diante daquela platéia alvoroçada, contou detalhes da noite íntima. Massagens nos pés, nas mãos, no pescoço. E por aí vai. Minúcias das quais eu gravei, sei lá por que, um detalhezinho:

- Gente, ele até botou pasta de dente na minha escova. (No nosso primeiro encontro, quis fazer a mesma coisa comigo. Reagi na base do "essa eu já manjo, cara".)

Loira de olhão azul. Mulheraço lindo. Gaúcha, a Daniela. O carinha tinha bom gosto. E, de repente, estava todo mundo comentando que ia haver uma churrascada em Angra. Relaxei: então, é uma festa. O convite é geral. Peguei o telefone e disquei para ele.

- Pô, garotinha, você não apareceu - repreendeu, carinhosamente. - E a Angra, você vem ou vai furar outra vez?

Tentei desconversar, louca, porém, para dizer sim:

- Não deu pra ir. Sobre Angra, eu já disse que preciso conhecê-lo melhor.

Contra-ataque arisco, o dele:

- Estou querendo ir amanhã. Por que, antes disso, você não passa pelo meu apartamento e a gente conversa?

Fiquei de posse daquele valioso tesouro. Escrito num pedacinho de papel, o endereço - Rua Paraguai, 64, décimo sétimo andar. Prédio de tijolinho, ele me explicou. O único da rua. Disse como chegar lá.

A aventura me atraía e me repelia. Eu, que durmo como uma teenager, tive sobressaltos aquela noite, remoendo as idéias mais estapafúrdias e regressando sempre para  o mesmo ponto de interrogação:

- Mas por que eu?

(Agora que tudo passou, é a mesma pergunta que volta, impiedosa.)

Não sabia aonde aquilo ia chegar. Mas foi alguma coisa além de curiosidade feminina que me empurrou até o apartamento dele, no final da manhã seguinte, quinta-feira, 10 de abril - foi alguma coisa que não sei bem o que é. Ele me esperava com naturalidade e aquela carinha de menino indefeso. Calça creme social, de preguinhas. Sem camisa - tórax rijo. Os pés descalços deslizando pelo carpete alto, daqueles em que fica impossível encontrar a tarracha de um brinco. Tudo muito respeitoso: ele se sentou numa poltrona a uma distância razoável - bem razoável, eu me recordo - do sofá de couro onde me instalei. Na sua mão, um copo de vitamina C efervescente.

Meu olhar de mulher passeou rapidamente pelo apartamento, que ele dividia com o irmão, Léo - flat típico de solteiro, mas com móveis de qualidade e um toque de muito bom gosto na decoração.

- E aí?

Ele se sentia tão inibido quanto eu. Dava para cortar o ar com uma faca. Ele tomou a tímida iniciativa de quebrar o gelo:

- Muito prazer. Eu me chamo Ayrton Senna da Silva. Tenho 33 anos, não tenho namorada...

- Como não? Eu conheço sua namorada!

A perplexidade dele parecia sincera:

- Eu?

- Você, sim.

- Mas quem é ela?

- A Daniela (dei o nome completo).

- Como ela é, hein?

Por uma fração de segundo, achei que estava diante de um cafajeste clássico. Descrevi: loira, olho azul, alta...

- Então é esse o nome dela? Ah, os efeitos perversos da bebida. Logo eu que não bebo, penitenciava-se ele. Mas de vez em quando acontece, de pura euforia. Ele foi enumerando: ao final do GP do Japão, em 1990, quando se sagrou bicampeão do mundo, um porre dos diabos; agora, naquelas comemorações do GP do Brasil, dias atrás... Ele podia contar nos dedos as situações em que perdera o controle.

Conversamos uma hora e meia. Em nenhum momento, eu enxergava naquele ser humano descalço, que tomava vitamina C, o mitológico personagem de macacão e capacete que enfeitiçava os fãs do automobilismo do mundo inteiro. Para mim, era um momento especial e imprevisto. Falamos de tudo. De corrida, um pouquinho. De vida, trabalho e sentimento, muito. Eu queria saber dele, mas ele também queria saber de mim - e ouviu, com a maior paciência. Até reparou na minha blusa, "linda" - rosashocking, de manga comprida, embora fizesse um calor africano lá fora. Voltou, enfim, ao assunto Angra: iam muitas pessoas, seria uma festa, nada de formalidades.

- Não sou do tipo de arrancar pedaço - brincou.

Na verdade, eu já estava decidida. Deixara a mala, prontinha, prontinha, no meu carro. Guardei o carro na garagem do prédio, entrei no Honda negro que eu tanto tinha invejado a distância, antes, e segui em frente. Naquele fim de semana prolongado, eu, Adriane Galisteu, modelo, 19 aninhos, iria experimentar o doce prazer ambicionado por milhares e milhares de mulheres de todo o planeta. O Ayrton Senna homem ia se apresentar, por inteiro, a mim. Numa noite de céu estrelado, como recomendaria  um conto de fadas.

Tive quatro namorados em meus 21 anos. Sinto muito decepcionar aqueles que imaginam a vida de modelo como uma fatigante liquidação de cama e mesa. Se há conselho que já posso dar a alguém, em minha pouca idade, é o de não se deixar levar pelas aparências. Por exemplo: beleza e glamour podem servir de fachada a uma inconsolável  solidão.

Quando conheci o Ayrton, estava vivendo os últimos momentos de uma relação em crise. Não é você quem determina quando a paixão se vai - a coisa simplesmente acontece. Tive poucos amores, mas de cada um deles guardo um sentimento bom, de calor e respeito - e isso vale especialmente para o César, com quem dividi por um ano inteiro casa e o dia-a-dia até que as tais incompatibilidades de gênio se manifestaram. Foi bom enquanto durou. E foi ótimo que a vida tenha me dado o alento de trocar os espinhos de uma separação pelo buquê de um novo amor amor que, aconteça o que vier a acontecer na minha vida, estará gravado como aqueles corações trespassados por setas que você vê nos troncos das árvores dos parques  municipais.

Angra, lá vou eu. Pela primeira vez, eu saía de casa a passeio, não a trabalho. Na minha confusão momentânea, embaralhava-se a crise conjugal com delírios profissionais - ir para Hong Kong, por exemplo, de onde um amigo meu, também modelo, Sérgio Finetto, me acenava com perspectivas de um mercado em expansão. Dei até um passo concreto: indicada pela Elite, posei para a Playboy. No Guarujá - uma marina e um barco maravilhosos. O cachê pagaria a passagem e os primeiros tempos de adaptação no Oriente. Cheguei a comentar com o Ayrton, a caminho do heliporto. A reviravolta que aquela viagem nem bem iniciada produziria na minha vida impediu que as fotos de Playboy  fossem publicadas.

O helicóptero esperava por nós no heliporto do prédio de escritórios dos Senna, no bairro de Santana. Como eu sinceramente queria desanuviar, na viagem, sem nenhuma outra intenção além disso, foi um alívio perceber que já esperavam por nós Norio Koike, um incansável japonês freqüentador do circo da Fórmula 1 mas que acabou fotógrafo particular do Ayrton, e duas meninas da Elite, duas outras Danielas, ou congêneres - a Daniela Carvalho e a Danielle Aguiar. Alívio para mim, choque para elas, que não esperavam me ver ali, chegando com o ídolo.

Primeira viagem de helicóptero, e logo com quem. Ele levava ao pé da letra a palavra piloto. Carro, helicóptero, avião, lancha, jet-ski - tinha a mania de estar sempre no comando das operações. Norio, ao lado dele. Nós três atrás.

Eu, sem graça, me contorcendo para não roer as unhas de ansiedade e condenada a servir de Cristo dele:

- Não se preocupe, não. Eu tive uma aulinha de direção antes de a gente vir pra cá.

Tentei me distrair dividindo minha atenção com a paisagem e minha curiosidade com o Norio. Como modelo, eu estava acostumada a filmes e a equipamento fotográfico, mas o japonês extrapolava. Pendurava-se de incontáveis máquinas e lentes, pequenas, médias, grandes, zooms, teleobjetivas, grandes-angulares, etc. Carregava uma caixa com quinhentos filmes - isso mesmo, quinhentos. Fiquei sabendo que, com aquela desconfiança que tinha da imprensa, Ayrton só se deixava fotografar  pelo Norio.

Sob o sol magnífico de Angra, um oriental da cor do tomate era visto, clique, clique, perseguindo, empapado de suor, o seu cobiçado alvo. Depois, revelava pessoalmente os filmes, colocava cromo por cromo nas cartelas e destinava todo o material ao patrão - o qual, minucioso, cauteloso com sua imagem, selecionava dali meia dúzia de fotos, nunca mais do que isso. Norio tinha no sangue aquela elegante discrição que caracteriza sua gente. Só falava inglês - pouco e, penso eu, propositalmente  mal. Tenho certeza de que ele entendia tudo o que nós dizíamos em português. De vez em quando, eu surpreendia um brilho maroto em seus olhinhos vivos e inteligentes. Ele  tratava de despistar.

Ali no helicóptero, entre nervosa e ansiosa, observando o japonês Norio, eu começava a tomar contato com uma parte  importante da vida de Ayrton Senna: aquele clubinho fechado, o Clube dos Amigos do Béco. Uma dezena de pessoas, por aí, que tinha acesso à resguardada senha dessa intimidade: o apelido de família. Gente como o Gordinho, que eu tinha conhecido na pista, o Cristiano, o Júnior, companheiros de rua da Zona Norte de São Paulo.

Aquela coisa: diga com quem andas e eu te direi quem és. Se aqueles dias em Angra foram a chance de conhecer a intimidade do maravilhoso ser humano Ayrton Senna, muito desse conhecimento foi revelado pelo contato travado com os amigos dele. Pois a vitória do GP do Brasil abriu a temporada de festas. Maria e Mateus, os encantadores caseiros, paixão do Béco (que eu acabaria por assumir também como minha paixão), estavam eufóricos. Mas recepção barulhenta mesmo, com direito a muito rabinho balançado e pulinhos de alegria, quem propiciou ao helicóptero foi a Quinda. Alegria logo transformada em agressiva ciumeira, ao notar que seu herói chegava acompanhado de  três mocinhas bonitinhas:

- Liga não - tranqüilizou o piloto, enquanto descia o helicóptero sobre o gramado daquele condomínio na praia de Portogallo. - Ela é muito possessiva.

Despudorada, a Quinda se jogou nos braços do Béco. Agarrei minha mala e fui me refugiar dentro de casa, deixando atrás de mim o som de rosnados ameaçadores. Pensei comigo mesma:

- Concorrer com essa aí, não vai ser fácil.

Quem não conhece Angra num dia de sol não tem idéia o que é a experiência mais próxima do paraíso na Terra. Béco e eu teríamos, mais tarde, a oportunidade de uma inesquecível viagem a Bora-Bora, com clima de lua-de-mel e cenografia pintada pelo Gauguin, mas Angra continuará tendo a precedência sobre todos os lugares no meu álbum íntimo.

Em noites atribuladas, reproduzo mentalmente a arquitetura sóbria do casarão, o barulho das ondas que vinham morrer aos pés de nossa janela, a explosão das estrelas no céu, as gargalhadas dos convidados, o ronco dos motores dos jet-skis e das lanchas, o vôo nervoso do helicóptero, os latidos apaixonados da Quinda - e, na contraluz do luar que banhava nosso ninho de amor, aquele rosto esculpido por um artista, as feições delicadas, os olhos úmidos de carinho, a boca sempre ameaçando um sorriso lindamente tímido ou, sei lá, timidamente lindo.

Ele recrutou todos os elementos, e mais alguns, para compor o cenário de nossa primeira noite de amor - que, na verdade, foi a última noite de todas as que passei naquele meu maravilhoso fim de semana em Angra. Sou capaz de jurar que Béco chamou os grilos, encomendou o pio das aves noturnas, solicitou a presença das ondas, convidou a Lua e todas as estrelas do zodíaco para servirem de testemunha daquele momento mágico. Orquestra e iluminação, som e luz - a natureza de Angra, em festa, colheu os primeiros sussurros de dois enamorados.

Não estava nos meus planos, mas aconteceu, na pureza de um encontro não programado. Senti, é claro, que ele me dedicou, desde nossa chegada, as suas melhores atenções. Eu o observava. Vi que ele também me observava. Nem bem tínhamos chegado, mal refeitos de um almoço principesco - a portuguesa Maria é uma cozinheira de mão cheia -, ele foi me buscar na praia onde eu tinha esticado minha canga para tomar sol, a uma estratégica distância da indócil e ainda rancorosa Quinda - uma schnauzer preta fanática por calcanhares e que, soube depois, deixara uma irmã, a Mouse, na casa em que nasceu, no Algarve, em Portugal. Ayrton tomou-me pelas mãos e me convidou para o mar.

- Acabei de comer - hesitei.

Sempre ouvi histórias tétricas de congestão, essas coisas. Ele me gozou:

- Está com medo de morrer, é?

- Sei lá.

Sem prestar muita atenção, foi lá dentro buscar um enorme colchão de ar, tão grande que cabiam nele as duas Danielas, ele, eu - e a Quinda. Todos para o mar. Mas, desconfiada de ter como companheira de viagem a melindrada cachorrinha, eu não tirei os olhos dela. De repente, sinto um safanão e caio n'água, tchbum. Meus olhos abrem-se, após o mergulho sem querer, sobre duas expressões de genuína felicidade: a da Quinda, que abana o rabo, radiante em sua silenciosa vingança, e a do meu anfitrião, que gargalha:

- Morreu? Não morreu.

E, de repente, também se joga:

- Vou morrer com você!

Da praia, Norio disparava seus cliques incansáveis. Uma multidão aportou por lá, à noite. Gente para ficar, gente só de passagem. O proverbial estilo recatado de Ayrton não economizava gentileza quando se tratava de receber os amigos. O QG da animação era o salão de jogos, que ficava num plano um pouco mais alto em relação ao casarão principal. Sinuca, pebolim, pingue-pongue, um telão magnífico, com videolaser, sofás tão aconchegantes como colo de mãe, mesas para a gente escorar o pé -  muito conforto numa atmosfera de descontração praiana. Eu cheguei num vestidinho branco, tênis branco, cabelo molhado do banho, cara limpa. Estava queimada de sol. Estava feliz e me sentia bonita. Fazia tempo que eu não me dava o direito de viver impunemente, de um jeito tão leve, tão gostoso, esse sentimento.

- Você toma o quê? - ele se achegou, gentil. - Não bebo nada. Coca-Cola, talvez.

- Eu a acompanho.

Não só na bebida. Foi me conduzindo pelo salão, apresentando-me um a um de seus amigos. "Meu irmão, Leonardo" - e ele me estendeu a mão. "Esse aqui é o Jaça"  - e eu, meio sem graça, "já conheço". Galera animadinha, divertida. Jogamos pebolim, eu e ele. Vi que não era meu esporte. Ele se divertia à minha custa. Vamos dançar, vamos dançar. Dançamos. Horas a fio. Carinho nos gestos e nas palavras. Beijinho de tchau. Até amanhã.

Tínhamos um passeio de lancha programado para o Saco do Céu. Água calma, céu azul, montanha verde - só de olhar e de sentir você já é abençoado pelo criador dessas maravilhas. Ayrton, todo speedy. Desamarra a lancha, entra na lancha, acelera a lancha. Aí, pára. Mergulha. Volta à lancha. Desembarca o jet-ski. Monta no jet-ski. Acelera o jetski. Some na linha do horizonte, ou atrás de uma ilha próxima. Regressa a mil por hora. Convida-me para uma volta:

- Quer pilotar?

- Não, não sou do ramo.

Ele dirige, eu sinto o contato do corpo dele. Piloto, ele é. Acelera o jet-ski, faz uma curva fechada e levanta na crista do mar uma onda inesperada. Medrosa, eu:

- Vai devagar, por favor!

Inútil apelo, quando você está falando com um Ayrton Senna.

O tempo ali não significava jamais um desperdício - era uma soma. Sol, mar, carinho. Eu senti que a cada minuto a temperatura entre nós crescia. Entre nós, quer dizer: confesso que também começava a gostar daquilo. Desceu a noite, comemos rapidamente e mais um sarau de dança, vídeo e jogos ia começar. Eu, toda relax, me vi sentada num sofá, tomando a invariável Coca-Cola e vendo e ouvindo o Genesis no telão. O Genesis era uma das bandas favoritas dele; a Coca-Cola era o meu hit do coração. Ele acabaria por me converter, mais tarde, ao credo musical dele; eu não consegui convertê-lo a minha bebidinha.

(Naquela época, eu era do tipo connaisseur. Degustava Coca-Cola como se fosse um vinho raro e precioso, ao natural, às vezes sem gelo, para não comprometer o paladar. Coca coca, coca clássica - nada de diet, essas coisas. No almoço, um litro; à noite, outro; e mais uma latinha aqui, no lanche, outra antes de deitar... Ele conseguiu curar essa minha obsessão. Um dia, me perguntou, meio enciumado: "É disso que você mais gosta na vida, não é?" Eu lhe confessei que tinha outra coisa da qual eu gostava mais. E desde então passei a chamá-lo de Big Coke.)

Eu ali, com minha Coca-Cola, e ele se achegando. "Gosto muito do Genesis" - como quem puxa conversa. Em tudo da vida, em música também, ele gostava de umas poucas coisas. Mas de todo coração. Genesis, Phil Collins, Roxette, Tina Turner, Fred Mercury. "E você?" - perguntou. Eu estava embevecida com o telão e com a música.

Nunca tinha visto um videolaser. "Bonito, bonito", repetia eu, meio idiota. Muitos dos convidados estavam fora da sala - ou passeando, ou na piscina -, o que permitia uma certa intimidade, com aquela música ao fundo.

   Ele se sentou a meu lado. Um brilho iluminava seu rosto bronzeado e seu sorriso adolescente. Senti pela primeira vez o calor de uma aproximação - real, espontânea. Ele tinha a óbvia dificuldade em dar o primeiro passo. Eu, mesmo querendo muito, nunca dou o primeiro passo. Mas entre nós havia algo mais: uma conversa longa, um olhar, um toque. Ele tentou me beijar. Eu me esquivei - bateu na trave. Fomos salvos, os dois, em nossa timidez, pela chegada da galera ruidosa e alvoroçada.

- E aí, Nono, vamos jogar?

Era o Criminoso, azucrinando.

Escapei para o banheiro, mas ouvi, através da porta, uma conversa do Gordinho com o Ayrton:

- Nada?

- Nada - a entonação do Ayrton era chocha.

- Mas você não pode se queixar. Sua agenda está lotada, não está?

Antes que eu ouvisse a resposta dele, abri a porta e passei entre os dois. Um sinal de alerta piscou na minha cabeça: tudo contra, nada a favor. Afinal, ele era o Ayrton Senna. E quem era eu?

Ainda com um sorriso amarelo, ele me seguiu. Não esperou que eu me sentasse de novo. De pé, ele me beijou. O primeiro beijo. Um beijo de verdade. E mais um, outro, outro mais. Beijos, beijos e beijos. Parece que a noite estacionara em cima de nossas cabeças - tudo parou: a noite, o tempo, os ruídos, o mar, o vento. Beijos e carícias. Não mais do que isso. "Fique sabendo que isso, para mim, é muito sério", interrompi. "Pra mim também", disse ele. Os convidados e o sono puseram um ponto final no nosso primeiro momento de paixão explícita.

Constrangimento absoluto na manhã seguinte - constrangimento e dúvida. Aquela história de agenda lotada me incomodava. Não estava a fim de ser apenas mais uma aventura de verão. Lá mesmo, ele tinha outras meninas disponíveis, pensei comigo. Tomei uma distância proposital. Juntei-me à moçada. Mas não tinha como não observá-lo, de esguelha. E, toda vez que eu olhava, lá estavam os olhos dele, mais meigos do que gulosos, cravados em mim.

Desconcertada, eu não sabia nem como me dirigir a ele. Ayrton? Soava estranho, nenhum de seus amigos o chamava assim (minha mãe, quando me chamava de "Adriane" é  porque vinha bronca certa). Senna? Institucional demais. Senna era o piloto campeão, não aquele menino lindo que pouco a pouco se revelava para mim. Béco? Era o apelido da família, dos amigos de infância. Eu ainda não me sentia assim tão íntima. Ficou meio ridículo, mas o que fiz, aquele dia, e continuei fazendo, nos seguintes,  era ir até ele e puxá-lo pela camisa, ou pelo braço, assim sem jeito:

- Ô, olha aqui...

O sol e o calor nos brindaram, naquele sábado, com um dia apoteótico, desses recomendados a corações de repente enamorados. O que me lembro dele são imagens, gestos, sons que nem sempre se encaixam coerentemente. Vejo-o ainda agora acelerando a lancha Joanna II (comprada, como a casa de Angra, do Braguinha, que a batizou com o nome de uma de suas filhas, hoje minha amiga), com Tina Turner esgoelando furiosamente no toca-fitas, enquanto a Quinda, esbaforida, tenta estabelecer, com seus latidos, uma competição. Cabelos ao vento, sol de rachar, céu sem uma única nuvem. Um dia de encomenda - aquele que seria o meu último dia ali. Domingo - já tinha avisado a todos - eu teria de embarcar de volta para São Paulo, onde um compromisso profissional me esperava.

Eu passava por um período de grande confusão na minha vida. Aquele dia magnífico em Angra, o sol, o mar, o cenário, as pessoas, tudo aquilo me fazia esquecer passado, presente, futuro. Vivia o momento - era o que importava. Escorrendo de suor, branquelo que só ele, de short e carregado de máquinas, Norio fotografava sem parar. Ouvi um clique quando, no final da tarde, na lancha, voltando do Saco do Céu, Ayrton me surpreendeu com uma prolongada carícia no cabelo - e, logo, um beijo. É possível que, sensível que é, Norio tenha retratado também a felicidade que minha alma buscava inutilmente esconder.

A temida Quinda nos esperava no píer, abanando o rabo. Aproximou-se de mim, quase rebolando, e lambeu minha mão, carinhosa. Foi a primeira a entender.

Sabe quando ele arriscava tudo, numa daquelas ultrapassagens impossíveis? Pois foi assim comigo:

- Você está num quarto sozinha, com duas camas - começou. - Vou ter de mudá-la.

Despistei:

- Tudo bem, durmo na sala.

- Probleminha: a sala também está ocupada - continuou. - Aliás, não sei se é um problema ou uma solução.

- Onde é que eu fico? - me fiz de boba.

- Eu lhe mostro.

Subiu comigo até meu quarto - eu envergonhadíssima daquela bagunça de praia, roupa jogada aqui e ali - e pegou as malas. Abriu uma porta e apresentou:

- É o meu quarto. Agora também é o seu. Fique à vontade.

Tentei prestar atenção em alguma coisa, além da minha própria estranheza, e me detive no closet, onde brilhavam, branquinhos, uns quarenta, cinqüenta pares de tênis. Sapatos. Cintos - centenas. E roupa, muita roupa. Arrumadinha, passadinha, dobradinha. Ele tinha o suficiente para morar naquela casa o ano inteiro.

- Sou meio maníaco - disse ele, sem graça diante do meu espanto.

Reparei até num duende, pousado numa mesinha. Eu o peguei e observei. Fanático por arrumação, ele me tomou das mãos e o colocou no lugar (tempos depois, a mãe dele me pediu para jogar fora o duende; joguei; sei lá, talvez não devesse ter jogado).

- Também tenho minhas manias - disse eu.

- Quais?

- Cremes e perfumes.

- Pois então venha cá ver uma coisa - ele me puxou pela mão até o seu banheiro.

Só em Angra, ele tinha mais creminhos e perfumes que eu jamais tinha tido em toda a minha vida. Bom, pelo menos já havia entre nós alguma coisa em comum, além do Genesis e da Quinda. Dali a poucas horas, estaríamos repartindo algo muito mais importante.

O amor fluiu natural - sem pressa, gostoso e espontâneo. Sem falso moralismo: dormir no quarto dele não significava, para mim, obrigatoriamente, uma noite de sexo e intimidade. Havia um clima, uma aproximação, um desejo. Mas eu teria pudor de embarcar numa aventura pela aventura - e, no dia seguinte, literalmente, tchau e até mais. Dormir com um mito, um ídolo, uma celebridade internacional. Um homem que produzia manchetes no mundo inteiro. De mais a mais, eu tinha adorado aquele  paraíso e queria voltar lá, namorada ou amiga, o que fosse.

Televisão ligada. Eu, metida num pijamão quase blindado. Cama king-size - chance de rolar para o lado, em fuga estratégica. Beijinhos, carinhos, "até amanhã". Não tive tempo de contar até cinco - com aquele meu sono juvenil, despenquei. Sei lá quanto tempo depois - a vaga recordação de uma claridade me vem aos olhos -, levei um cutucão.

- Não estou entendendo nada - disse ele, acendendo a luz e se apoiando no travesseiro. - O que você quer? Quer casar comigo? Tem uma igrejinha aqui na praia da Jipóia, é só juntar as testemunhas e ir lá.

Continuou a falar: a dizer que era tudo muito especial, que existia uma magia entre nós, que isso não era sentimento que ele tivesse assim, assim, em qualquer momento, que ele, por muitas razões, tinha sido uma muralha emocional, mas que eu, em apenas dois dias, tinha feito um furo nessa muralha.

Falava e acariciava o meu pé.

- Ah, o pé não! - eu pensava. Chegou ao ponto fraco, ao calcanhar-de-aquiles.

De repente, me beijou os pés, com enorme delicadeza.

- Você é a primeira mulher, de três anos pra cá, que me provoca esse desejo. De beijar os pés, não só. De beijar o corpo inteiro.

Queria guardar esse momento só para mim - e para ele. As estrelas piscavam, em quente cumplicidade. Quando acordei, já sol alto, depois que tudo aconteceu, eu estiquei meu braço para o lado, tateando onde ele deveria estar, e não havia ninguém. Pânico. Paranóia do tipo "tá vendo? Ele já se encheu". Corri à procura dele. Descobri-o no píer, sem camisa, descalço, olhando para o infinito, assobiando uns acordezinhos que nem chegavam a compor uma música. Um tralalá, só isso. Ele parecia feliz. Eu estava feliz, imensamente feliz.

Saí dali, no começo da tarde, no helicóptero dele até o aeroporto de Angra. De lá, peguei o avião. Tinha um desfile em São Paulo. Não importava o que aconteceria a partir dali. Importava o que tinha acontecido.

Angra passou a ser minha casa - nossa casa. Compartilhei com ele vários lares. Moramos juntos no apartamento da Rua Paraguai, em São Paulo. Dividimos, certas noites, quarto e cama na casa dos pais dele, no Pacaembu, onde a Zaza me acolhia como uma filha e dava colo a muitas das minhas ingênuas confidências de menina de 20 anos. Estivemos juntos no apartamento de Mônaco, antes do GP de 1993. Viajamos pela Europa e pelo Oriente. Freqüentamos por longos períodos a fazenda Dois Lagos, em Tatuí, no interior de São Paulo, com toda a família, senhor Milton, a Zaza - ela já não me perdoaria a formalidade de um "dona Neide" -, o Leozinho, a Viviane, o marido dela, Lalli, os sobrinhos Bia, Paulinha e Bruno, o Fábio Machado, primo como se fosse um irmão, com a mulher, Nice, e os filhos Fábio, Fabiana e Fábia. Em Portugal, vivemos na casa do Algarve assim como passamos momentos inesquecíveis nesta quinta de Sintra, neste anexo que passará à posteridade como "Casa do Ayrton" - aqui onde hoje cada detalhe me dá conta de sua ausência, no silêncio de nosso quarto fechado, isso mesmo,  trancado a sete chaves, já que eu, covarde, nunca mais quis olhar o cenário de tão doloridas recordações.

Confesso: dia desses, entrei, não por valentia e sim por pura emoção. Na noite da final da Copa, o Brasil vencendo mas nos fazendo sofrer até o último momento naquela agonia dos pênaltis. Uma amiga me trouxe um vídeo em que os craques brasileiros dedicavam a vitória ao Ayrton. Cumpriram com a palavra. Abri a porta e desabei num choro incontrolável. Era o melhor lugar para comemorar um tetracampeonato que, afinal, era também dele.

Ayrton era um cigano caseiro. Pode parecer uma contradição, mas digo cigano por ofício, caseiro por opção. Obrigado a ser cigano pela vida profissional, não perdia o hábito de ser metódico, deixando à mão, em cada lugar onde pousava, suas roupas arrumadinhas, seus pares de tênis, suas camisas impecáveis, seus cintos - centenas  de cintos -, suas restritas predileções musicais, seus hábitos alimentares, suas manias.

Mas se alguém pede para eu contar qual era a nossa casa, o nosso lugar, o que me vem automaticamente à cabeça é aquele deck de Angra, a varanda, a piscina, os jet-skis (eram seis, pelas minhas contas), a zoeira dos camaradas, as visitas dos amigos, as confidências com minha amiga Maria, as caminhadas com a Xana, filha dela, a comida deslumbrante que punha em risco meu regime, a simpatia e o cuidado extremo do Mateus, artesão de mão cheia, as duas lanchas, o sol, o calor, a impenitente Quinda mergulhando na água atrás de algum desavisado que se aproximasse, o pôr-do-sol de aquarela, a Lua, as estrelas, a mais perfeita configuração do paraíso.

Angra, sim - porque era ali que eu tinha um Béco só meu, a milhas e milhas de distância da instituição mitológica Ayrton Senna da Silva. Sem egoísmo: era ali também que ele se tinha só para si mesmo, homem, amigo, moleque, palhaço, inquieto, preguiçoso, esperto, bobo, frágil, mas forte naquilo em que era verdadeiramente fundamental para um ser humano ser forte. Imaginem um tricampeão do mundo, reverenciado como um semideus, descendo para o café da manhã com aquela cara amarfanhada de sono, só de calção e chinelo, sem camisa, barba por fazer, brigando com o amigo que lhe rouba a torrada com requeijão, ou, depois, no almoço, com o cotovelo esquerdo apoiado na mesa enquanto a mão direita, armada de um garfo e operando como se fosse uma pá, escavava um pratão de talharim com muito molho de tomate - al dente, exigia ele. Ele era, também na hora de comer, o rei da massa.

- O Nuno manda comer pasta, para recuperar energia - tentava desculpar ele a sua voracidade, convocando o distante testemunho de seu histórico amigo e preparador  físico.

(Fiquei sabendo que, de fato, um piloto como ele perde de três a quatro quilos numa prova. Tagliatelle nele!)

Angra era isso: ele brincando, ele rindo, ele correndo, ele dançando, ele jogando, ele ouvindo música, ele amando - ele, todo sentimento, afetuoso, relax, terno, brando, tão à vontade que conseguia até dormir um sono juvenil, com uma auréola de paz emoldurando seu rosto, coisa impensável nos dias em que vestia o macacão do Senna piloto ou nos ambientes em que botava, a contragosto, o figurino do Senna businessman.

Um refúgio, um exílio - de repente, ele me catava em São Paulo, acionava as hélices do helicóptero e lá íamos nós, a sós, para uma escapadela que podia durar apenas um dia, ou mesmo algumas horas. A magia do paraíso soprava para longe quando a pressão das provas, dos resultados e das decepções subia o termômetro de nossa ansiedade. Angra tinha um poder curativo sobre ele. Angra, grau zero de adrenalina.

Numa dessas fugas estratégicas, a dois, fomos de jet ski até a praia dos Macacos. Caminhamos de mãos dadas, acobertados pela natureza selvagem. Foi sempre assim o nosso amor: algumas palavras essenciais e muito silêncio. Os gestos, os toques, os olhares tinham a equivalência carinhosa de um dicionário de verbetes românticos. Ele continuou a caminhar, enquanto eu me esticava numa canga preta, com estampas de Bali. Ele parou e veio deitar-se a meu lado. Espremidinhos naquele pedaço de pano, sem trocar palavras, adormecemos. Se alguém passasse por perto não haveria de acreditar que um sono plácido embalava, numa tarde de sol, o tricampeão de velocidade - um homem sobressaltado pela obrigação do desempenho e da vitória. Ele dormiu, eu dormi - duas, três horas. Quando despertamos, Vênus já brilhava e a noite começava  a dominar o céu.

Ele abriu o olho:

- Viajei... Você me fez viajar, com seu peso-pena em cima de mim.

Pode haver imagem mais bonita para guardar na memória? Dias atrás, fui à praia no Estoril, com minha mãe. Levei comigo, por acaso, a canga indonésia. Não tive coragem de esticá-la na areia. Enrolei-a como se fosse um travesseiro, recostei minha cabeça e torci, de olhos fechados, para que o sono viesse - trazendo de volta  aquele momento encantado de Angra, a esperança de que a realidade fosse o pesadelo e que o sonho virasse verdade. Em vão. Chorei. Minha mãe chorou comigo.

Houve outra vez em que ele me mostrou um poema em forma de oração, guardado, dobradinho, na sua carteira. Tinha o título Pegadas na Areia. E tinha uma história. Contou que passava por um momento difícil da vida - pessoal, emocional, profissional. Estava em Angra e saiu sozinho para correr numa praia deserta, pilotando o helicóptero. Sozinho, não - a Quinda o acompanhava. Desceram, ele calçou o tênis e foi correr. Quinda, discretíssima, ficou sentada na areia, observando o mar. O silêncio era absoluto - ele só ouvia os seus próprios passos no piso duro da praia. Foi correndo até o canto da praia e voltou. Viu as marcas de seus pés na areia  - nada mais do que aquilo indicava a presença de algum tipo de vida naquela imensidão. Foi um momento mágico - de revelação. Ele refletiu sobre sua solidão. Ela lhe doía no peito, lhe parecia enorme. Mas, pensou, aquelas suas pegadas na praia eram uma migalha na amplidão do universo. Ele se sentiu vivo, e minúsculo, diante do mistério da criação. Levantou vôo no helicóptero e ficou sobrevoando a trilha na areia.

Infinitas são as maneiras de Deus se revelar aos homens. Para o Béco, bastaram umas marcas de areia, num dia de sol, na vasta solidão de Angra dos Reis.

 

PEGADAS NA AREIA 

Uma noite eu tive um sonho...

Sonhei que estava na praia com o Senhor e, através do céu, passavam cenas da minha vida! Para cada cena que passava, percebi que eram deixados dois pares de pegadas na areia.

Quando a última cena da minha vida passou diante de nós, olhei para trás, para as pegadas na areia, e notei que, muitas vezes, no caminho da minha vida, havia apenas um par de pegadas na areia. Notei, também, que isso aconteceu nos momentos mais difíceis e angustiantes da minha vida.

Isso aborreceu-me, deveras. Perguntei, então, ao Senhor.

"Senhor, tu me disseste que, uma vez que eu resolvi te seguir, tu andarias sempre comigo, todo o caminho, mas notei que, durante as maiores tribulações do meu viver, havia, na areia dos caminhos da minha vida, apenas um par de pegadas. Não compreendo por que, nas horas em que eu mais precisava de ti, tu me deixaste ".

O Senhor me respondeu:

"Meu precioso filho: eu te amo e jamais te deixaria nas horas de tua prova e do teu sofrimento! Quando viste na areia apenas um par de pegadas, foi exatamente aí que eu te carreguei nos braços".

 

Ao deixar Angra, naquele domingo de verão e do primeiro encontro, minha alma era um grão de areia. Depois daqueles quatro dias de idílio, ia voltar a minha praia. Trampo duro. Duas da tarde, desfile da griffe Australian Downsound, no AeroAnta - que eu tinha de coordenar. Estilo som reggae, moçada parafinada, meninas de penugens douradas nas pernas, calções rasgadinhos de lado, camisetas estampadas, pranchas que sonhavam com os tubos do Hawaii (pronunciava-se, na tribo, Rauai). Até o dia  em que voei para Angra, essa era, de certo modo, a minha tribo. Agora que eu voava de volta, sentia que não pertencia mais a ela.

Os quarenta e pouco minutos de viagem no King Air dele, um avião azul e branco que ficava permanentemente estacionado no aeroporto de Angra, me pareceram milhares de horas. Olhava da janela, aflita:

- Será que verei isso de novo? Numa tradução mais verdadeira: - Será que verei ele de novo?

A tal história da agenda lotada me atormentava. Mas outros pensamentos vinham em meu socorro, esperançosos, e eu me apegava a eles: a insistência dele para que eu ficasse até quarta-feira; os momentos de carinho vividos intensamente; ele me levando de helicóptero até o aeroporto e se despedindo com um prolongado beijo. As certezas brigavam, porém, com as dúvidas e eu me debatia com aquele burocrático "a gente se vê" que ele me disse, como despedida. "A gente se vê", eu remoía. "Ele não teria uma frase menos óbvia para dizer?" O avião rompia a serra do Mar e eu já não olhava para nada, tomada pelo pânico de ter vivido apenas o sonho de  uma noite de verão. Mas, aí, me lembrava daquela tarde em que ele me seqüestrou para um passeio de jet-ski e foi se distanciando de todos, da lancha, dos convidados, até que a gente aportou numa praia  deserta e ele, depois de me roubar um beijo, avançou:

- Tem duas coisas que eu ainda quero na vida. Uma  delas é fazer amor na praia. A outra... (pensei assim: correr na Ferrari, ser dono de uma escuderia, morar em Portugal) ...a outra - continuou ele - é fazer amor na praia  com você.

Não rolou naquele dia. Mas, se eram as duas coisas que queria mesmo fazer na vida, nós as realizamos juntos.

Não me arrependo de nada que fiz. Arrependo-me de coisas que não fiz. Como não ter me jogado ao pescoço dele, depois da primeira madrugada de amor, cobrir seu rosto de beijos e dizer, com todas as letras, o que se passava no meu coração:

- Você me acendeu. Você é o homem da minha vida. Por pudor, por medo do ridículo, receosa de desmoronar o encanto, eu me contive. Mas nem preciso dizer como São Paulo e o trabalho me encontraram. A cabeça era uma massaroca. "Se eu pudesse voltar atrás, não faria de novo" - era a culpa que chegava. "Foi lindo, por que me culpar?" - eu me absolvia no tribunal de minha consciência. Felizmente, tenho uma pessoa de absoluta confiança, a quem nunca tive vergonha de consultar sobre meus segredos, todos eles. Liguei para minha mãe - isso mesmo, minha mãe, sócia de todas as agruras e felicidades de minha vida, desde sempre, desde criancinha. Ela quase  teve um chilique. Perguntei:

- Ele vai me ligar?

- Vai, minha filha. Vai.

A voz dela, ainda que surpresa, não era de quem consolava uma filha ansiosa e confusa. Era a voz do conhecimento e da razão.

Passei a segunda-feira em plantão telefônico. Nada. Corri para pedir colo a minha mãe. Ela insistiu: "Vai telefonar". Terça-feira - espera.

Telefonou. Meio tímido:

- Perdeu um festão.

- Ah, é? - eu, travadona.

- Tem mais: você esqueceu seu relógio. Pensei comigo: Freud explica.

- Aqui pra nós, relógio horrível, hein? Pesadão,  meio masculino... Achei que era de algum amigo meu -  provocou.

Modelito surfista: relógião de mergulho. Mas eu gostava. Sugeri que ele entregasse para a dupla Daniela-Danielle, com quem eu acabaria me encontrando na agência. Encontrei-as, na quarta-feira, mas nada de relógio.

- Ele quer entregar pessoalmente - disseram as  duas. - E olha, não falou de outra coisa a não ser de você.  

Tive que me conter para não sair, em plena Elite, dando socos no ar, como um jogador de futebol após o gol. Mas  meus olhos devem ter me denunciado quando elas contaram a reação dele, quando o Gordinho sacaneou:

- Você ficou amarradão na loura, cara! Eu também.

Ayrton fechou a cara:

- Não brinca com isso, não.

Meu entusiasmo me fez jogar para o alto todos os compromissos do dia. Saí para comprar roupa - queria ficar bonitinha para ele. Corri para o colo da mamãe - para saborear com ela as novidades. Voltei para casa, irrequieta  - e o telefone tocou, com um convite: jantar com ele, aquela noite, para poder me devolver o que eu tinha esquecido. Lembro-me de ter devorado, heresia suprema para uma modelo, um beirute daqueles gigantes do Frevinho. Fast food, sei lá quais eram as intenções dele. As minhas  eram claras: só pensava em estar ao lado dele. Levou-me logo para sua casa. Papo vai, papo vem, queria porque queria que eu passasse a noite lá. Não fiquei. Ele relutou, mas compreendeu. Não escondi dele um detalhe da minha vida  pessoal - faço questão de ser leal em tudo, em termos de relacionamento. Mas uma urgência me pressionava. Com ou sem Ayrton Senna (essa mística ainda me apavorava), era hora de pôr um ponto final nos dramas e vaivéns do meu passado amoroso.

Fiz minha trouxa e comecei a me mudar - gradualmente, de forma a não produzir feridas e mágoas, mas com convicção, a cada momento que se seguia a uma daquelas  típicas discussões que não levam a nada. Estiquei um colchão na casa de minha madrinha - ela e meu tio me acolheram com enorme carinho. Para agravar, os imprevistos externos: notinhas da imprensa, falando da "amiga secreta  de Ayrton Senna" e ilustradas com fotos de Angra.

Fomos nós, meninas da Elite, distribuir ovinhos de Páscoa na Avenida Paulista, uma promoção pré-Páscoa da Amor aos Pedaços. Fotógrafos e repórteres nos cercam. De repente, uma jornalista mais atilada dá o alarme:

- Mas você não é a namorada do Ayrton?

No dia seguinte, esta coelhinha que vos fala estava na primeira página de todos os jornais. Fato consumado, capítulo novo na história de minha vida.

Pra os jornais, eu era a nova "loira misteriosa" na vida de Ayrton Senna. Não tinha a menor idéia do que vinha a ser diferencial e achava que suspensão era quando o diretor da escola proibia um aluno mais atrevidinho de assistir às aulas por alguns dias. Mas me importava saber daquela adorável criança de 33 anos que, ao me  ver levá-la até a escada do avião, para a viagem até Donington, o GP da Inglaterra, a ser disputado no domingo seguinte, ainda tinha olhos para meu vestido branco, de flores pretas:

- Nossa, como você está bonita! - ele me cortejou, antes do beijo de despedida.

Eu não me ligava no ás das pistas - perdão, não tinha me ligado até aquele dia. Pois, no domingo de Páscoa, 11 de abril, eis-me colada na telinha, unindo minha  torcida à da minha avó fanzoca, roendo as unhas, chutando a mesinha de centro - e, depois, festejando aos berros, com o Brasil inteiro, a vitória do meu Ayrton, depois de arriscadíssimas ultrapassagens na chuva. Senti que era o Béco, no pódio, brincalhão como nunca, abraçando aquele que eu descobri semanas depois ser o Jô Ramirez, chefe da escuderia McLaren, dando um banho de champanhe no Giorgio Ascanelli, engenheiro-projetista, que seria rival no ano seguinte mas não deixou de ser amigo até os últimos dias. Cheguei a pensar, com egoísmo:

- Quem sabe eu não tenho a ver também com um pouco da felicidade dele?

Giorgio Ascanelli era o irmão de Senna no mundo da graxa e dos parafusos. Tinham uma enorme confiança recíproca. Com ele cometi uma gafe enorme. Às vésperas do GP da Austrália, o último da temporada 1993, fomos jantar - Béco, ele e eu. Restaurante italiano, clima mediterrâneo. Béco foi gentil:

- Você prefere que a gente fale inglês ou italiano? - Inglês, disse eu.

- Mas você só sabe "I am". Italiano você adivinha. Ayrton falava um italiano perfeito e a conversa fluiu, enquanto eu saía na captura de uns raros sons que me botassem dentro da conversa. Mas era uma conversa técnica e eu desencanei. Percebi a repetição da palavra "Domenica", "Domenica", e arrisquei:

- Domenica é a sua mulher, Giorgio?

Giorgio gargalhou, Ayrton coçou a cabeça. Mas eu não deixei cair:

- Tá vendo? Se fosse em inglês, eu saberia que sunday é domingo e não sorvete.

O domingo seguinte ao do encontro em Angra, 18 de abril, seria meu aniversário, 20 anos, data redonda. Não tinha a menor idéia de onde andaria, naquela dia, o homem que preenchia os meus pensamentos, os meus minutos, os meus sonhos. Mas, naquela mesma noite do GP da Inglaterra, uma voz triunfante me encontrava na casa  de minha mãe:

- Gostou?

- Maravilha - respondi, surpresa.

- Estou ligando para desejar boa Páscoa.

Se até aquele momento eu não sabia se a vitória dele tinha a ver comigo, agora não podia duvidar. Eu me soltei: - Estou morrendo de saudade.

- Volto amanhã pra vê-la. Também estou com muita saudade.

Dia seguinte da corrida, final da tarde, nova ligação:

- Desculpa, não deu para ir.

Só pensava no domingo, no meu aniversário, mas não quis adiantar nenhuma pergunta:

- Pena...

Silêncio do outro lado da linha. E uma gargalhada:

- Sua boba. Estou aqui no escritório. Trabalhando. Mas com uma enorme vontade de vê-la. Vamos para Angra amanhã?

Meu primeiro contato com o clássico conflito entre prazer e dever. Tinha uma vida profissional a zelar e contas a pagar. Tinha um homem maravilhoso me convidando para um mergulho no paraíso. Pedi um tempo até quarta, para acertar minha agenda. Vibrei ao saber que o tal comercial da Arisco, com Nelson Piquet, tinha dançado - a agência queria uma morena. Discreto que era, Ayrton vibrou do seu jeito. Mas havia um teste para um anúncio do drope Halls, bom dinheiro, três mil dólares, locação no Caribe, o tipo da esbórnia que faria a cobiça de uma modelo. Mas eu não sabia mais se era uma. As páginas de minha agenda estão cobertas de balõezinhos vazios, pensamentos sem palavras, como nos gibis - representando tanto minhas dúvidas quanto coisas que, por mais que pensasse, eu deveria calar. A única certeza se chamava amor.

O prazer triunfou. Angra, a Quinda, as guloseimas da Maria, litros e litros de Coca-Cola e o afeto do dono da casa. No banco traseiro do carro que nos levou ao helicóptero, notei um pacotinho quadrado, embrulhado para presente. O pacotinho sumiu, para reaparecer, um dia, em cima do meu travesseiro - um perfume Samsara. Ele acertou. O travesseiro, diga-se, ficava na cama dele - agora, já sem nenhum subterfúgio, na nossa cama. De surpresa, ele preparou uma linda festa de aniversário para mim, de sábado para domingo. Os amigos foram, apareceu o Leonardo com sua nova namorada, a Sonaly, uma meninona de 1,80 metro também da Elite, os ilhéus de Angra aportaram seus barcos, elegantíssimos. Béco me apresentou, um a um. Era meu namorado. Embora tenha hoje 21 anos, sou da época em que se dizia assim: meu namorado.

O melhor presente que recebi, naquele dia, naquela noite, além do perfume francês, além do relógio Tag Heuer que ele me deu, com uma picada de ironia, além do bolo com velas da Maria, além do banho de piscina de roupa e tudo, provocado pelos amigos - passaporte oficial de meu ingresso na turma -, foi a certeza de um amor que desabrochava, sem medo e sem limite. Nós dois tínhamos futuro, pensei. A festa enluarada em Angra atropelou minha cautela. Estava tão eufórica que pensava: nada, mas nada mesmo, iria interromper nossa felicidade.

A Adriane Galisteu modelo, profissional da beleza, andava meio avoada, esquecia os compromissos, a cabeça no ar. Tomava grandes broncas da Ina, diretora da Elite e grande amiga. Mas eu não deixava de ter meus lampejos de responsabilidade. O comercial do Halls tinha saído: cinco dias no Caribe, embarque já naquela terça-feira, 20 de abril, dois dias depois do meu aniversário. Sabe como faz um namorado típico? Ele pergunta: como é o  filme? Quem vai com você? Onde vão ficar todos? Pois é: o Béco perguntou, igualzinho. E decretou:

- Levo você no aeroporto. Odeio aeroporto, mas vou com você.

Não queria deixar dúvida. Não tinha mais o menor receio em se expor numa situação daquelas. E imaginem vocês a cena de um atleta consagrado mundialmente, reconhecido  e saudado por uma a uma das pessoas ali no saguão de Cumbica, carregando pessoalmente a mala da mocinha ao lado. Dirigiu-se ao balcão da companhia e fez o check in, diante do olhar embevecido dos funcionários.

Mas um deles estranhou:

- Aruba? O vôo só sai daqui à uma da manhã.

A booker da Elite tinha me falado dez horas. Outra coisa não combinava: era um vôo da Transbrasil, tinham me informado. O balcão da Transbrasil desconhecia qualquer vôo para Aruba. Béco era descoladíssimo em situações enroladas: despachou a mala e propôs um jantar de despedida. Chamou um táxi e, para pasmo do motorista, perguntou se ele conhecia um restaurante simpático ali por perto. O pasmo do motorista não era nada diante da reação do dono do restaurante e da mulher dele. Não era possível acreditar que, àquela hora da noite, numa insossa terça-feira, sem aviso e sem fanfarras, alojasse ali numa de suas mesinhas de madeira e toalhas quadriculadas, o legendário campeão.

Ele adora essas situações. É como se se visse de novo, menino da Vila Maria, sonhando com o magnânimo filé com batata frita do boteco da esquina. Fizemos nosso pedido: filé com batata frita. Mesmo descontando a circunstância, o puro encanto que envolvia aquele encontro romântico num cantinho obscuro de Guarulhos, juro que foi dos melhores que eu comi na vida.

Voltamos sem pressa, mas o alto-falante do aeroporto estava ligeiramente histérico:

- Atenção, senhorita Adriane Galisteu. A senhora está sendo aguardada no balcão da companhia... (Não me lembro bem, só sei que não era a Transbrasil.) Esta é  a última chamada.

Como naqueles filmes de aeroporto, um homem e uma mulher saíram em disparada até a outra ala. A equipe de filmagens, nervosa, arquitetava as mais maliciosas interpretações para nosso ingênuo atraso. Pura distração minha, típica daqueles dias de emoções nada brandas. Quem disse que era Aruba? Era: Bahamas.

Mas cadê a mala? Estará, a essa hora, a caminho de Aruba?

- Esquece a mala, que eu me viro - acalmou-me Ayrton, senhor da situação.

Novo check in, em velocidade de Fórmula l. Nova trombada: Bahamas com escala em Miami. Falta o visto de entrada nos Estados Unidos. O diretor do comercial se descabelou: meteu-se no tubo do avião, na base do "deu, deu, não deu, não deu". Mas, como aqueles reis que curavam tudo, Ayrton Senna me pôs no vôo e recomendou  à produtora, que, essa sim, ainda me esperara:

- Cuida dela, tá? Por mim.

Não teve um gesto de impaciência diante daquela namorada trapalhona. Demos um beijão amoroso e ele foi tragado pelo mundaréu que já se formava, indócil, em torno - implorando um toque no braço, um autógrafo para o filhinho, uma palavrinha de atenção em troca da invariável  introdução "desculpa, mas sou seu fã..." Ayrton Senna é um rapaz reservado, às vezes até "macambúzio" - era essa a expressão com que Nuno Cobra, seu treinador, pegava no seu pé. Mas, justiça se faça: eu jamais o vi economizar simpatia e gentileza com seus nem sempre recatados fãs. Por essas e por outras é que ele é um ser humano tão especial.

Fiquei de castigo no avião, na escala em Miami. Mas a chegada me impressionou. Bahamas é um lugar lindo, de águas cristalinas, pessoas charmosíssimas, hotéis deslumbrantes, como o Cristal Palace, em que nos hospedamos, e restaurantes divinos, como o Piccadilly, que virou nosso point. Mas estávamos ali a trabalho, não a passeio - e trabalho que exigia a mais infinita paciência. Subíamos num veleiro e saímos sacudindo pelo mar. Eu, escolada, prevendo o inevitável enjôo, sabia do truque de pregar um esparadrapo especial atrás da orelha. Mas faltava vento e passávamos horas à deriva. Não posso, porém, me queixar do resultado - o filme saiu deslumbrante.

Difícil foi, no domingo, descobrir uma televisão nas Bahamas que pegasse a corrida de Fórmula 1, a segunda da temporada européia - GP de San Marino, em Ímola (ah, a dor que esse nome me traz hoje, a vontade de riscá-lo do meu mapa). Nas Bahamas, só se quer saber de Fórmula Indy. Depois de muito peregrinar, instalei-me diante de uma parabólica, com a Piera e a Juliana Soares - que ficavam me atazanando:

- Tãtãtã... (O fundo musical da Globo.)

Ele não terminou a prova, como não terminaria a do ano seguinte. Até então, as nossas conversas sobre automobilismo eram igual a zero. Mas eu podia sentir o que ele  sentia. Disposta a lhe dar um consolo, liguei para a secretária dele, em São Paulo, e avisei que queria falar com ele. Era uma hora da manhã quando o telefone tocou. A Piera, que dormia comigo no quarto, atendeu:

- Alfredo? É você, Alfredo?

Pela resposta, ela deu um pulo da cama:  

- Ah, desculpa. É você, Ayrton?

E me passou o telefone:

- Mas que diabo de Alfredo é esse? - ele queria  saber, com aquele tom brincalhão de quem esconde um  ciumezinho.

- Alfredo? É o caseiro da Piera. Ela está esperando uma chamada.

Falamos uma hora e meia. Não disse uma palavra sobre a prova. Disse mil palavras sobre saudade, pressa de voltar, planos de me encontrar. Imaginem: eu estava num paraíso mas só pensava no meu amor. Vontade de  voltar rápido, rápido. E, de fato, dois dias depois nos encontramos no apartamento dele, da Paraguai, dispostos a recuperar o tempo perdido naquela semana de separação. Estávamos em clima total de namorados e, para isso,  nada melhor do que o escurinho de um cinema. Ele escolheu: Dustin Hoffman, paixão total do meu moço. Filme:  Herói por Acidente.

Meia dúzia de espectadores, no Cal Center - maravilha para um filme a dois. A saída, esperava por nós o inferno. Ayrton é dono de uma paciência oriental para com os fãs mais ansiosos. Mas não tolera o jeitão trêfego e insolente de uma certa imprensa. Fomos, de repente, sitiados. Ouvimos o primeiro clique - e ele segurou com força minha mão. Outro flash. Ele quis dialogar:

- Olha, eu vim aqui em busca de tranqüilidade. Podemos ir todos embora agora, não podemos?

Enquanto ele argumentava, novo flash. E a perigosa aproximação de um rapazinho, de bloco e Bic na mão, trazendo na ponta da língua aquele veneno que só as cascavéis e alguns jornalistas conseguem destilar:

- Essa história da gravidez da Marcella Prado... Afinal, a filha é sua ou não é?

Tipo da pergunta elegante para um sujeito que tinha uma namorada ao lado. Pela primeira vez, pressenti que ele ia dar vazão ao seu pedaço Incrível Hulk:

- Pergunte ao seu pai. - E, antes que o repórter puxasse o argumento "é meu trabalho", já levou um safanão que o derrubou. Ao fotógrafo, ele lascou um tapa na orelha que até hoje deve lhe soar como um telefone ocupado. Arrancou-lhe a máquina e a arremessou contra o vidro do cinema. Juntou gente e eu não sabia o que fazer. Segurei-lhe na mão, gelada, que tremia, e tentei arrastá-lo. Mas ele estava transtornado. Voltou atrás sobre seus passos:

- Me dá o filme.

Fotógrafo e repórter gaguejavam. Passaram-lhe um rolo, que ele puxou e expôs à claridade. Arremessou contra uma cesta de lixo. Caminhamos para a porta e ele ameaçou voltar:

- Cachorro! Tenho certeza de que o filme é outro. Era outro.

Um homem capaz de percorrer uma pista tortuosa a 350 quilômetros por hora caminhou até o carro com o rosto respingado de lágrimas, e ele chorava, chorava, até seu apartamento - chorava de raiva, chorava pela impossibilidade de ser um mero mortal como os outros, chorava com a indelicadeza daqueles que fazem de uma profissão bonita um ofício de abutres, chorava por ser indefeso, chorava por me expor, chorava pelo controle perdido, arrependido de entrar no jogo dos achacadores de novidades. Mais de uma vez eu o vi chorar. Nunca de medo. Sempre de raiva. Ele se metia nas brigas e, depois, se envergonhava. Mas, num mundo de má-fé, a lei dos punhos acaba tendo de se impor, às vezes. Chorei com ele. Percebi, ali, que já vivia plenamente a vida dele.

Hoje entendo mais do que nunca. No dia seguinte ao tetra do Brasil, fui festejar com um grupo de amigos na Praça Luís de Camões, em Cascais, aqui pertinho de onde me hospedei. Ninguém tanto como eu torceu e se contorceu pela vitória. Num vídeo gravado pela Globo, os futuros tetracampeões dedicavam a Copa a Senna. Eu festejei. Uma jornalista rancorosa, com quem eu já tinha tido um bate-boca, me chamou de "viúva alegre". Um jornal carioca que já foi sério reproduziu, sem me ouvir. Enfim, mais uma lição de bom jornalismo e de integridade de caráter. Às tantas, dizia a reportagem que eu usava um short cavado e mostrava uma felicidade excessiva.

A abaixo-assinada "viúva alegre" usava jeans e casaco de moletom. Era tarde da noite e o verão de Sintra tem seus momentos de Alasca. E, aos 21 anos, sinto-me dona do direito de me vestir como quiser. As aparências nem sempre exprimem o que se passa nas profundezas do espírito. Se tem coisa que exijo, hoje, é que respeitem  a minha dor.

Ele escolheu a dedo o lugar para me introduzir nos bastidores da Fórmula 1. Um principado. Onde ele era, fazia tempo, o verdadeiro príncipe. Convidava-me para ser,  por uma semana, sua princesa. Pode parecer engraçado que eu, aos 20 anos, surpresa com aquela homenagem carregada do mais nobre simbolismo, tenha pedido um tempo para "consultar a mamãe".

- Pedir licença a sua mãe? - ele ficou perplexo.

- Não é moralismo, não - tive de explicar. - É que sempre conto tudo a ela. E confio no seu sexto sentido: quando diz não, sei que é melhor não.

Viagem inesquecível: regada a sangue, glamour e amor, muito amor. Deixa que eu conto.

17 de maio, uma segunda-feira, lá estava eu, no aeroporto, malas prontas - obrigada, mãe, pela ajuda -,  razoavelmente ansiosa com a perspectiva de competir com as pérolas, as tiaras, os diamantes, os vestidos assinados com que eu haveria de cruzar, nos périplos de  Mônaco e Monte Carlo. Tinha dado um reforço no figurino, para a ocasião. Mas meu estilo era Forum, Zoomp, Viva a Vida, Bicho da Seda - compatível com minha idade, identificado com meu gosto. Relaxei: vou ser o que eu sou. Por via das dúvidas, pensei: já que me faltam jóias, vou compensar nos creminhos. E embalei todos. Pois foi sentar no avião e pedir à aeromoça uma Coca-Cola para o Béco me adular com aquele empurrão de segurança que poderia me faltar:

- Você sabe do que eu mais gosto em você? É desse seu jeitão garoto de quem está sempre curtindo a novidade. Ele odiava a rotina das viagens aéreas. Cumpria um ritual automático, meio blasé: retirava da pasta um mole CAMINHO DAS BORBOLETAS tom azul-bebê, clarinho, uma t-shirt branca, trocava-se no toalete, já voltava com os ouvidos protegidos por um ear-plug, recostava a cadeira e tentava pegar no sono. Não se interessava pela comida, muito menos pela bebida ou pelo filme - a viagem de avião ele queria que fosse a distância mais rápida e imperceptível entre dois pontos. A tensão de vez em quando se transformava em insônia. Mas a minha companhia, daquele dia em diante, o acalmava.

Aos 5 anos de idade, eu tanto infernizei minha mãe que ela conseguiu que minha tia me levasse para conhecer aquilo que eu cobrava, dia após dia. Queria porque queria subir até o pico do Jaraguá, o ponto culminante da  minha  cidade de São Paulo. Pico do Jaraguá pra cá, pico do Jaraguá pra lá. Até que um dia eu fui. Cheguei no alto,  depois de uma subida longa e atribulada, e reclamei:

- Que pocaria de pito!

Não sei porque essa história de infância, contada com afeto especial por minha madrinha, me veio à cabeça  quando, depois do longo vôo até Nice, via Paris, mais o trajeto de helicóptero até o principado, eu me dei de cara com aquela cidadezinha acanhada cuja lenda e cujo fascínio não transpareciam à primeira vista. Ao longo dos dias, e especialmente das noites, quando via senhoras vestidas de Dior e com sapatos Gucci pelas elegantes alamedas, conduzindo seus poodles para um último pipi, como quem se dirigisse para uma ceia com o sultão de Brunei, percebi que se tratava de um gueto - de privilégio, bom gosto, preços astronômicos, acesso fechado, narizes empinados. Tem sua graça. Sobretudo se a pessoa que você ama vai ser a estrela principal daquela festa.

Ele tinha um apartamento em Mônaco - pequeno, muito bem decorado, na medida para quem passava ali apenas uma semana por ano, a semana do GR Diferente de outros tempos, em que chegou a ser proprietário de um apartamento enorme, praticamente seu QG europeu até o dia em que se converteu às delícias de Portugal, de Sintra e do Algarve; passou-o nos dólares e partiu em direção ao sol. De uma coisa, porém, ele fazia questão, fosse o lugar grande ou pequeno, freqüentasse-o ele muito ou pouco tempo. A casa tinha de estar funcionando, à sua chegada. E, em Mônaco, a perfeição tinha um nome: Isabel, a cozinheira-arrumadeira-faz-tudo portuguesa. Ela  me conquistou de cara:

- Bem que a Maria (caseira de Angra) me disse que você é linda.

Naquele momento, tomei contato com o circuito casamenteiro que operava aos sussuros entre as várias casas do Ayrton, a Isabel, a Maria (de Sintra), a Maria (de Angra), a Juraci (do Algarve), todas mobilizadas em sua missão de Santo Antônio: uma mulher faria muito bem ao campeão. Percebi que as alegres alcoviteiras começavam a botar suas fichas - e, desconfio, até suas rezas - em mim.

- Você faz bem ao garoto - diria, na despedida, a Isabel. Quantas vezes mais eu não ouviria essa mesma frase, dita pelas pessoas mais diferentes, dita até por ele mesmo? Bom que tenha sido assim; pena que não seja mais. Paredes com cheiro de tinta nova e o carpete imaculado sugeriam o capricho para a recepção  anual ao príncipe Ayrton. Para mim, marinheira de primeira viagem, tudo significava uma descoberta - menos o que eu lhe oferecer. Retirei-me para uma ducha quente. Liguei a torneira, lambuzei-me de sabão, cantarolava alegremente quando ouvi um insistente tac, tac - como se um pedreiro martelasse do outro lado da parede. Tac, tac, tac, tac... De repente, o boxe desabou - o boxe, não, os azulejos, todos eles,  um após outro, espatifando-se no chão, riscando na queda  as minhas costas, cortando meus pés com seus caquinhos. Enrolei-me numa toalha e corri para nosso quarto, em  pânico. O sangue descrevia uma trilha no carpete branquinho, branquinho. Ayrton estava ao telefone. Desligou,  assustado, e correu para me acudir.

Só tive tempo de balbuciar:

- É que tenho um probleminha... Não posso ver sangue que...

Desabei do alto do meu 1,74 metro. Menos mal: nos  braços dele. Quando despertei, ele tinha me colocado na cama e enrolava um carinhoso Band-Aid no meu dedinho.  Nos dias seguintes, brincava comigo diante dos mais chegados: "Sua pamonha!" Estávamos no principado de Mônaco, era minha primeira viagem internacional com ele e logo aquele vexame!

- Achei lindo - me acalmou. - Nunca mulher nenhuma desmaiou nos meus braços.

Se não estivesse deitada, eu desmaiaria outra vez. Naquele mesmo dia, ao tentar fazer um furo extra num cinto novo - sempre às voltas com cintos, vocês já repararam, né? -, ele espetou o dedo. Senti que tratou de esconder de mim.

A primavera na Riviera, com suas noites límpidas e o vento aconchegante que o Mediterrâneo traz da África, é  para ser passada a dois, agarradinhos. Foi assim naquela noite de chegada - e em todas as outras. Ele me pegou pela mão e disse:

- Quero mostrar-lhe uma coisa.

Caminhamos até a entrada da pista - na verdade, até um portão onde guardas velavam para que nenhum veículo trafegasse naquele circuito de rua, já então fechado, por onde voam as máquinas da Fórmula 1. Ayrton Senna - apresentou-se ele. As portas se abriram para nós e ele foi me mostrando, a pé, calmamente, minuciosamente, cada um dos ziguezagues daquela pista onde ele era o professor. Uma aula, para uma - não me envergonho de confessar - leiga no assunto:

- Aqui, eu freio (e deitava-se no asfalto, em busca de alguma marca de pneu). A velocidade vai para 80... Nessa reta, piso embaixo... Agora, repara bem no traçado: você entraria nessa curva de que lado? Pois é, eu entro do outro lado. É mais seguro e ganho tempo.

Senti seu orgulho em dividir comigo os valiosos segredos de sua mestria. Senti seu desejo de me ter a seu lado, naquele mundo que era sua vocação e seu business. Tanto que, raro freqüentador da noite, ele, terminada a caminhada, se animou:

- Quero mostrar-lhe o cassino.

- Mas como? Você não joga, eu não jogo.

- Só hoje, só hoje.

Fiquei nas moedinhas e no jackpot. Fracasso total. Ele propôs um sete e meio. Trocou 300 dólares em fichas, só para brincar, e o dinheiro foi escorrendo rapidamente  pelo ralo. Um amigo dele, que jogava na mesa ao lado, veio se juntar a nós. Perdeu tudo. Brincou com Ayrton:

- Lá, eu estava ganhando uma fortuna. Vim pra perto de vocês, naufraguei. Acho que esse não é mesmo seu esporte.

A felicidade estava estampada no rosto do Béco. Garçons, croupiers, recepcionistas, convidados inclinavam-se à nossa, passagem como se ele fosse o mais ilustre  membro da casa dos Grimaldi. Mas se permitiam a intimidade plebéia da saudação alegre "Senná, Senná". O amigo mandou vir um presente: uma caixa de trufas suíças. As mais deliciosas trufas que jamais saboreei na vida. De volta ao apartamento, não restava uma única trufa para contar a história.

O GP de Mônaco, em Monte Carlo, não só era uma prova do calendário automobilístico. Era também um tremendo acontecimento social. Atrizes, modelos, colunáveis, arrivistas acorriam para ganhar uma foto ao lado das cabeças coroadas do principado e dos ídolos da velocidade. Vocês vão se surpreender quando, logo, logo, eu contar quem é que apareceu numa dessas badalações - felizmente, e aqui eu já dou uma pista, com a devida roupa de baixo.

Compromisso obrigatório, nós teríamos um - jantar de gala para os pilotos da Marlboro. Talvez dois - a festa da vitória, desde que, é claro, fosse ele o vencedor. Como Senna e o circuito de Mônaco mantinham desde 1987 uma tórrida relação de amor (pentacampeão, nada menos do que isso), achei melhor me preparar para a segunda eventualidade. Tinha à mão três vestidos de noite - quatro se contasse outro, curtíssimo, da Forum, vermelho e preto, fechado por um zíper na frente, figurino um tanto ousado se você vai se sentar ao lado do príncipe Rainier.

Na carona de sua Ducati 900 (ele tinha uma igual, descobri depois, na sua fazenda Dois-Lagos no interior de São Paulo), com o capacete de reserva dele, as mesmas cores, verde-amarelo, o nome Nacional em destaque, tomei meu primeiro contato com o nervoso burburinho dos boxes e dos motor homes - aquele aflito mundo que as câmeras  de tevê não captam, durante os treinos ou nas provas da Fórmula 1. Era véspera do primeiro treino oficial e ele tinha todo um dia de trabalho pela frente - reuniões com os mecânicos, checagem do motor, encontros de negócio com patrocinadores. Mas quis me deixar à vontade: conduziu-me pela mão até o motor home da Tag Heuer e me apresentou a um por um, do mais graduado técnico da McLaren ao mecânico que troca os pneus. Depois, troquei o primeiro alô com aquele que, viria eu a descobrir depois, era, entre todos os malucos do volante, aquele de quem Ayrton se podia dizer amigo - amigão, incondicional, com todas as letras.

Seu ex-parceiro de escuderia, Gerhard Berger. Se esse austríaco molecão e de alma de manteiga ainda tinha até hoje dúvida sobre esse sentimento muito especial do Ayrton, que fique sabendo por mim, agora, que comemore, ou que chore - mas posso dar o testemunho de dez, vinte, cem vezes que o Ayrton me disse isso.

Eu me dava conta de outras pessoas que emprestavam brilho ao lado oculto da festa. Não bastasse nada, conheci, enfim, de verdade, o Bragota - o banqueiro Antônio  Carlos de Almeida Braga, aquele senhor que, no GP do Brasil, me dera o toque meio brincalhão sobre o Ayrton. Era uma delícia:

- Não lhe falei, garotinha? - brincou aquele gozador e esportista full time, capaz de sair de uma final de Wimbledon no sábado para assistir a um torneio de golfe no Havaí no domingo. - Disse que ia rolar namoro, pápum. Agora digo que vai pintar casamento.

Os protagonistas da Fórmula 1 iam se revelando, assim como os figurantes. Com o Braguinha, fui ser apresentada ao Rubinho Barrichello. Aí apareceu a Betise Assumpção, assessora de imprensa do Ayrton. Sensacional, muito divertida, depois amicíssima - de quem guardo tanta saudade. Chegaram Oscar Guerra e Marquinhos Magalhães Pinto, amigos de velha data e patrocinadores, via Banco Nacional. De cinco em cinco minutos, um preocupado Ayrton botava a cara para fora do motor home. Queria me  ver:

- Tudo bem?

- Tudo bem - eu também estava louca para vê-lo a cada segundo.

Fiquei ali quatro horas, me pareceram quatro minutos. Ao lado ele, o tempo parava. No dia seguinte, ele quis me poupar: treino oficial, levantar às sete da manhã, era melhor que eu ficasse em casa, descansando. Alguém se encarregaria de me levar ao circuito. Mas era como se o circuito de rua atravessasse a minha cama. Pulei  fora. Vivi aquela eterna dúvida das mulheres sobre que roupa usar. Fui ao quarto do Marquinhos consultá-lo.

- Tá boa a roupa?

Ia acender a luz, mas ele:

- Só não acende a luz.

Acendi. Ele, desesperado, cortando a conversa:

- Tá bem, tá bem. Agora apaga.

Fui acompanhar os treinos. Encontrei o Béco animado, otimista. E, como ele, o risonho Braga. Incorporara-se à trupe o Papagaio - tio Papagaio, eu preferi em sinal de respeito. Na vida civil, Galvão Bueno. Locutor da Globo para a temporada de Fórmula l, assim como para os outros triunfos canarinhos no futebol, no vôlei, no basquete, no tênis, etc, etc. Simpatia à primeira vista: ele me convidou para assistir à prova da cabine da emissora.

Em Mônaco, estreei também o lado speed das pistas. Perseguição implacável dos paparazzi. Era desfilar de mãos dadas com o Ayrton diante das arquibancadas e a galera ia literalmente à loucura. Gritava elogios para nós. Curiosamente, para mim em italiano. Penso em Marcello Mastroianni e me convenço de que o italiano talvez seja a língua da sedução. Ayrton apertava ainda mais minha mão. Era o enésimo atestado de amor. É sempre gratificante para uma mulher ser admirada. Em especial se, de repente, o elogio traz o nome Giorgio Armani e uma pergunta meio exploratória sobre se uma moça tão bonita não estaria interessada em desfilar tal coleção. Uma  pergunta dessas na Elite teria o efeito de um maremoto.

Conheci, em Mônaco, um outro mundo. Descobri, em Mônaco, um outro Ayrton.

O que eu tinha em mãos e sob os olhos até então era o namorado de Angra, o provocador da Quinda, o apressadinho do jet-ski, o maluquinho do helicóptero, o companheiro das noites de São Paulo, o amante carinhoso, o amigo de todas as horas e de todas as brincadeiras. Percebi a metamorfose - lenta, gradual, inconsciente talvez. À  medida que a hora do desafio nas pistas se aproximava, quando ele se defrontava com o dilema do vamos-ver e do tudo-ou-nada, sua personalidade ia se reconstituindo, em nome  do dever e da performance: S-E-N-N-A. Assim, letra a letra, no ritmo lento de um soletrar infantil. SENNA, o astro - convicto, pronto para extrapolar todos os limites.

Sumiu o Béco de pés descalços e riso franco. Surgiu o Senna de uniforme e rosto duro. Era uma surpresa para mim - mas eu tinha um coração transbordante de ternura  para entender o que se passava.

Seria sempre assim: sexta, sábado, véspera de GP, estivesse ele com o carro na ponta dos cascos ou vivesse ele um enorme pessimismo, Ayrton ia botando o capacete e vestindo o macacão de Senna.

"Fechar o zíper", foi a expressão que eu usei, mais de uma vez. Ele concordava, cabisbaixo:

- Não tem outro jeito.

Ele era uma usina de carinhos. Não troco seus toques afetivos nem por uma vitrine inteira do Amor Aos Pedaços. Seus beijos deixam na boca o sabor de mil queijadinhas de Sintra, um milhão de toicinhos do céu, um milhão de cheese-cakes como os da Bebel, de Portugal. Mas quem é capaz de se derreter de doçura às vésperas de entrar no asfalto esfolando uma máquina a 350 quilômetros por hora e tendo na sua cola um francês rabugento e um chatíssimo alemão?

Tensão, concentração, reflexão - mas nunca, e eu passo declaração em cartório, com firma reconhecida, nunca senti naqueles momentos o mais remoto sinal de estrelismo. Naquele sábado que antecedeu o GP de Mônaco, 23 de maio de 1993, ele vestiu o pijama - dormia de pijama, curto ou longo, dependendo da estação -, recolheu-se cedo, abriu a Bíblia que carregava na pasta de mão - ler a Bíblia era outro de seus hábitos pré-corrida -, botou a mão sobre um determinado capítulo, fechou os olhos. Orava em silêncio. Olhou-me com uma expressão estranha:

- Preciso ganhar... Tenho de ganhar...

Freud de novo me denunciou. Eu também estava tensa. Tive um tal acesso de tosse, escandaloso, incontrolável, que me refugiei na sala, para dar um tempo, mas esse tempo foi, sei lá, meia hora, parecia uma eternidade, e quando voltei  ele me esperava, carinhoso, querendo saber como eu estava  - e novo acesso explodiu, sintomaticamente. Quando me refiz, ele me deu um terno "boa-noite" e apagou a luz.

Tive o ímpeto de rezar. Do meu jeito, com as falas de meu próprio catecismo - eu que nunca fui de freqüentar muito igreja, já que meu pai não ligava, minha mãe tinha sido batizada numa igreja protestante húngara, minha avó paterna era católica e eu, no máximo, ia a uma igreja batista da Lapa, para as farras da escola dominical. Mas, naquela noite, eu me apeguei a todos os santos e expressei um desejo, do fundo do coração. Pedi muito para que ele ganhasse. E, para mim, um desejo especial:

- Por favor, não tirem esse homem da minha vida, jamais!

Nem ali nem nunca eu cogitei que a morte pudesse buscá-lo. Tinha medo de perdê-lo para a vida.

 

- O Ayrton teve um acidente.

A notícia me recebeu na porta do autódromo. Eu tinha sido despertada pelo vrum-vrum das máquinas, o warm up já rolando, meti uma roupa, rapidinha, peguei carona com o Marquinhos Magalhães Pinto e cheguei descabelada. Mais descabelada ainda fiquei ao saber dele.

Corri para o boxe da McLaren, nada. Tentei o motor home. Olha lá ele, bem ao lado, já dentro do carro reserva, uniformizado dos pés à cabeça, pronto para voltar à pista. Alívio. E o acidente?

- Nada, nada - despistou.

Um mecânico me socorreu: machucou a mão, mordeu a língua, saiu um pouco de sangue da boca.

- Ainda bem que você não estava aqui, pra desmaiar - brincou ele, mostrando que estava com o astral lá em cima.

Entre os preparativos e a largada, ele ficou entregue a outro de seus anjos da guarda, que eu vim a conhecer também naquele dia: o Joseph, um austríaco que trabalhava na infra da McLaren e que, além de servir como uma espécie de escudeiro dos pilotos, é um expert em massagens curativas e em poções mágicas.

Os sessenta minutos que precedem a largada são aquele corre-corre entre os boxes e os motor homes, não há quem não tenha ímpetos de comer as unhas ou arrancar os cabelos. Posso dizer que conheci, naqueles minutos, o verdadeiro sentido da palavra nervosismo. Curiosamente, minha melhor terapia era quem mais devia estar ansioso: Béco surgiu sei lá de onde, faltando vinte minutos para a bandeirada, pegou-me pela mão e me convidou a ir para o boxe da McLaren com ele.

- Pro boxe? - estranhei.

Nem respondeu. Saiu me arrastando diante da arquibancada, que explodia de entusiasmo. O boxe da McLaren era um ovo, onde mal cabiam meia dúzia de mecânicos e os pilotos. Como se fosse um ato proibido de dois meninos, ele me fez esconder com ele atrás de um tapume de papelão e me sapecou um beijo:

- É hoje!

- É hoje! - eu não conseguia encontrar nada senão o óbvio para empurrá-lo para a vitória.

Com o polegar direito do tamanho de uma bola de tênis, mas devidamente enfaixado, Ayrton entrou na pista para vencer. Joseph, o massagista, ajudou; o carro, também; mas eu gostaria de reivindicar o meu modesto mérito. Na minha estréia na Fórmula 1 como namorada dele, dei sorte. Eu e o Oscar Guerra rezamos mais do que o papa. Mas, aí, ao final, corrida cabine da Globo para o pódio, disparada mesmo, sem fôlego. Ouvi ainda ao longe os acordes do Hino Nacional Brasileiro, lágrimas rolavam pelo meu rosto enquanto eu continuava tentando me aproximar do pódio, mas só pude vê-lo depois, na reprodução daquela cena típica da vida dele, a multidão compacta que caminha e empurra, lá no meio, o impávido boné azul. Ao me ver, ele abriu passagem com os cotovelos e me confidenciou ao ouvido coisas muito mais doces do que aquelas trufas suíças:

- Foi muito bom... Você sabe que foi pra você, não sabe?

Diante do Club Sporting, a passadeira vermelha, o público igual ao do Oscar e as câmeras fotográficas esperavam pelos príncipes de Mônaco. Os que dão expediente o ano todo. E o que pontifica no dia do GP - nesse, acompanhado da sua princesa, "a misteriosa loira brasileira". Claro que, na correria do banho e da escolha da roupa, sofri a típica doença feminina: achei que não tinha roupa. Ele, elegante com seu smoking, mostrou como uma vitória produz homens pacientes e tolerantes. Pois ele se encarregou:

- Eu decido.

E decidiu-se por aquele tal vestido bem pouco protocolar, com salto alto e meia preta grossa.

- Mas... - ainda tentei argumentar.

- Está linda.

O auditório estava apinhado. Ficamos bem no centro da mesa principal. Eu olhava para o lado e via o príncipe Albert. Virava para o outro, Michael Douglas. E aquela  menina bonita? Ah, a Cindy Crawford, com seu namoradão grisalho e charmosérrimo, Richard Gere. De repente, quem está olhando para mim, quase em frente? A princesa Carolina. Faço um aceno protocolar com a cabeça e abaixo os olhos, morta de inibição. Nunca se viu tanta concentração per capita de beleza e fama. É que, naquele ano, o GP de Mônaco coincidiu com o Festival de Cinema de Cannes e todo mundo acorreu para a boca-livre. Sem falar das estrelas do próprio circo: Nick Lauda, Jackie Stewart, Ron Dennis.

O garçom veio nos servir:

- Champagne, mademoiselle?

- Merci, Coca-Colá.

Outro homem teria me dado um beliscão por baixo da mesa, mas o meu Béco foi solidário com a minha criancice:

- Então, duas Coca-Colás.

Galvão Bueno, subitamente, ameaçou um piripaque. Afrouxou a gravata, botou a mão no coração, saiu para tomar ar fresco. Ayrton se preocupou, assim como nós, da turma dos brasileiros. Mas logo se percebeu que ia passar. Por isso mesmo, Béco se permitiu uma molecagem. Chamou uma ambulância e obrigou o constrangido Galvão a entrar, com suas próprias pernas, na barulhenta ambulância. Jurou vingança. Menos de uma hora depois, estava de volta, inteiro, na boate onde a festa se estendeu.

Depois da entrega de prêmios, a esticada foi no Jimmy's, o night club da moda. Novas homenagens - e uma platéia bem mais informal e eclética. Muitos dos pilotos  - Prost, lá do outro lado, na reta oposta, Berger, Patrese -, figurões do big business do automobilismo, como o Mansour Ojjeh, sócio majoritário da McLaren, e algumas roadies do circuito, como a Sylvia Piquet, ex-mulher do Nelson.

Tínhamos uma mesa de pista e senti que o Ayrton, que não fazia exatamente o tipo rei da noite, começou a se remexer, inquieto, e a afrouxar o laço da gravata-borboleta  à medida que um elenco de mulheres muito desinibidas veio exibir suas, digamos assim, virtudes, sem o menor constrangimento, bem diante dele. Eu não hei de me esquecer especialmente de uma mulher lindíssima, que tinha corpo e ritmo de bailarina mas cujo vestido de noite consistia numa pecinha menor do que uma blusa. Ela olhava para o Ayrton e lançava vigorosamente as pernas até a altura da cabeça. Detalhezinho: a moça estava exatamente como Lílian Ramos no Carnaval carioca de 1994.

- Estou fingindo que não vejo - me cutucou ele, rindo.

A noitada foi ficando para os que tinham bebido demais e para os que tinham se vestido de menos. Não era o nosso caso. Felizes como duas crianças, Béco e eu ainda resolvemos pregar uma última peça. Os amigos diziam que ele era um irremediável pão-duro. Naquela boate onde a dose do scotch custava quase 100 dólares e onde litros e litros de champanhe tinham enchido os copos na nossa mesa, o suposto mão fechada Ayrton tomou a iniciativa de ir sorrateiramente até o caixa, acertar a conta, mas combinar com o garçom um susto no Marquinhos Magalhães Pinto, banqueiro, filho de mineiro e outro que não por acaso carregava a mesma reputação. Galvão e Oscar eram nossos cúmplices na cilada:

- Estamos indo. Tchau.

O garçom fingiria que a conta não tinha sido paga. Mais do que isso: multiplicaria por cinco as despesas. Assim foi feito: quarenta minutos depois, Marquinhos, que era nosso hóspede no apartamento, apareceu lívido, com uma expressão de puro desespero. Alguns milhares de dólares por uma noite - até um banqueiro é capaz de  baquear.

- Acho que vou ter de trabalhar o resto da vida.

Uma gargalhada, a enésima daquele dia de vitórias e alegrias, acompanhou o hexacampeão de Mônaco até a cama, abraçado a mim. Sou dona de um sono adolescente: é entrar nos lençóis, fechar os olhos e apagar. Ele, ao contrário, é do tipo que custa a pegar no sono. Naquela noite, depois de tudo, eu tinha o corpo moída mas  a cabeça ligada:

- É um sonho? É verdade?

Já não me importava fazer essa distinção. Queria viver aquilo, em que esfera se passasse. Realidade e ilusão valem a pena, quando uma ou outra coisa aquece o coração.

Aqueles homens de fibra e de aço chorarem como criancinhas. Alguns deles recostavam seu rosto no meu ombro - pediam socorro logo a quem? A morte do companheiro de pista expunha a fragilidade deles. Poderia ter acontecido comigo - é o que com certeza passava pela cabeça de cada um. Pois bem, naquele dia de luto e de dor, ficou provado que circula vida nas veias dos super-heróis da quilometragem. Eles vibram, amam, choram. Têm outros sentimentos, além da ânsia da velocidade, com cara  de quem não está nem aí para o perigo. Estão, sim.

Em Mônaco, em maio de 1993, comecei a travar contato com esses moços e com suas histórias arriscadas e atrapalhadas. Ayrton, que adorava atazanar os amigos, era um coroinha diante de outros pilotos. Dizia, por exemplo, com toda a seriedade:

- Eu tenho um amigo louco (pronunciava a palavra louco como a pronunciaria um médico psiquiatra). - O nome dele é Gerhard Berger.

Companheiro de escuderia na McLaren, o grandalhão austríaco conviveu com Senna, numa certa época, mais do que os outros pilotos. Senna o conhecia bem. Gostava um bocado dele. O sentimento era recíproco. Quando tudo aconteceu, Berger tomou um avião na Europa, desembarcou em São Paulo para o velório e o enterro, voltou na mesma noite para a Europa porque não queria perder o velório e o enterro de seu compatriota Roland Ratzenberger, a outra vítima do massacre de Ímola. Nessa, acabou esquecendo a mala no hotel.

Béco tinha pânico das brincadeiras de Berger. Sistemático que só ele, Ayrton não largava uma pasta tipo agente 007 em que guardava suas pequenas preciosidades, tipo agenda, passaporte, caneta, uma mini-nécessaire, um suéter e um exemplar da Bíblia. A fé de Ayrton era uma crença íntima, não uma exibição pública, mas a leitura dos salmos e dos versículos sagrados era um hábito de todas as noites, um relax espiritual para facilitar um sono que, antes das corridas, quase sempre custava a chegar.

   À melhor história com Berger, eu não assisti. Mas conheço bem. Os dois deixavam, de helicóptero, o Hotel Villa d'Este, às margens do deslumbrante lago de Como, antes de um GP em Monza. O Ayrton com sua indefectível pastinha, o Berger simulando um certo interesse pela paisagem. Ayrton se distraiu, o austríaco lhe arrancou  a pasta da mão, abriu a porta do helicóptero já em movimento e arremessou o precioso objeto para as águas do lago. Errou por pouco: a pasta 007 esborrachou no gramado,  quase no lago.

Ayrton guardou a vingança na geladeira. Esperou até o GP da Austrália. Nesse dia, quem dividia o quarto com ele era seu primo Fábio Machado. A dupla surrupiou da camareira uma chave mestra, invadiu o quarto de Berger e de Ana, a simpática portuguesinha que é namorada dele há muito tempo, derrubou na banheira as roupas dos dois, encheu de água até em cima, entornou xampu, enfeitou o ventilador de pás com peças íntimas do casal e sumiu, antes que Ana e Berger reaparecessem.

Berger pode ser louco mas não é idiota. E Ayrton e Fábio não duvidavam de que vinha troco a caminho. Aparentemente, não veio. Os quatro tinham combinado de jantar  naquela noite. Ayrton e Fábio trocaram um olhar cúmplice quando viram que tanto Berger quanto Ana, não por acaso, vestiam as mesmas roupas da tarde. Ficaram firmes. O jantar transcorreu sem uma queixa, um pio sobre  roupa, banheira, quarto - nada, nada. Ficaram elas por elas, imaginou Ayrton.

Dias depois, passada a prova, Ayrton desembarca a negócios em Buenos Aires. Não havia lugar no mundo em  que um porteiro, um motorista, um policial não o reconhecesse e não lhe manifestasse seu entusiasmo - além do  tradicional pedido de autógrafo, é claro. Surpresa: o guarda da imigração Argentina fecha a cara, irritado, pede licença e tranca-se numa sala, com outros oficiais. Demorada conferência. Volta um senhor severo, visivelmente mais graduado:

- Temos todo o respeito pelo señor Ayrton Senna -  começou o oficial. - Pero hay un problemita.

O passaporte. Constrangimento. Passou-lhe o documento. No lugar em que deveria estar aquela foto 5 x 7, colorida e, se possível, sorridente, estava uma donzela nua, sem um só trapinho a vesti-la e, pior, em posição ginecológica.

- Berger... Berger... - espumou Senna.  Desfazendo-se em desculpas, o piloto brasileiro explicou às autoridades argentinas que aquela grosseira colagem era vingança de "um austríaco maluco".

Nossa convivência com Berger era íntima e social. Aliás, se havia alguma coisa que Ayrton sabia separar era a relação gostosa que rolava num jantar, numa viagem ou  num passeio e uma conversa embebida em gasolina e cheia de palavrões técnicos que o Senna - aí, sim, o Senna -  tinha de ter, às vezes, com um ou outro parceiro de pista.

Trabalho e prazer - nada a ver. Do Rubinho Barrichello, por exemplo, ele dizia coisas ótimas:

- Com um carro melhor, vai longe - previa.

Na verdade, ele se sentia padrinho dos nossos calouros, da jovem guarda brasileira do volante, o próprio Rubinho, Christian Fittipaldi, mas também do português Pedro Lamy e do escocês David Coulthard, que por ironia viria substituí-lo na Williams. Eles lhe davam uma espécie de flashback de sua própria iniciação. E a eles dedicava a torcida de um agora experiente veterano.

Thierry e Patricia Boutsen também eram do time dos nossos amigos do peito. Sem esquecer o Kevin, filho deles, que deve ter hoje uns 5 anos. Uns encantos - foram hóspedes nossos em Angra e no Algarve. Marido e mulher tinham um preparo excepcional, a ponto de acompanharem o Ayrton naquela sua corrida diária em volta do condomínio da Quinta do Lago, em Portugal. Uma hora e meia, duas horas - os dois pilotos e ela. Eu, sob vaias gerais, os acompanhava. De bicicleta.

Um dia, prometi ao Béco que ainda iria cumprir com ele todo aquele longo e cansativo percurso. Treinei como uma louca, às sete da manhã, todos os dias, no Ibirapuera, entre março e abril de 1993. Nuno Cobra, preparador do Ayrton, me assessorava. Eu ia lhe fazer uma surpresa, no dia em que ele voltasse de Ímola para a casa do Algarve. Fiquei lhe devendo essa.

Damon Hill, Michael Andretti - que durou pouco na Fórmula 1. Para eles também Ayrton tinha palavras de amizade. Até onde eu saiba, pelo alemão Michael Schumacher ele mantinha, de início, só indiferença. Por uma única vez, recordo-me, estivemos lado a lado, Ayrton, eu, Schumacher e a mulher dele, uma alemã loira e bonita. Num show da Tina Turner - outra paixão do Béco -, na Austrália, logo depois do GP de Adelaide, em 1993. Trocamos uma apresentação rápida e meia dúzia de palavras. Não havia intimidade possível com um sujeito que passou um show trepidante como quem estivesse assistindo a um concerto de câmera em Salzburgo. Na temporada de 1994, quando o Benetton de Schumacher começou a dar um suor no Williams de Senna, nem assim Ayrton falava dele. Preocupava-o apenas o desempenho de sua própria máquina, e ponto final. Jamais se importou com aquele que chamava, secamente, de "o alemão" ou, ao pé da letra, "o sapateiro".

Alain Prost, sim, era uma pedra no sapato, ou na sapatilha. A crônica de seus duelos com Ayrton nas pistas vai permanecer na história do automobilismo. De parte a parte, ficaram ressentimentos, queixas, acusações de jogo sujo - e Senna, que odiava perder, teve de amargar o tetracampeonato do rival logo naquela temporada em que vivi intensamente ao seu lado. Com Prost, chegou a ser uma relação de tipo mudar de calçada, quando um via o outro. Mesas distantes em restaurantes, nos anos  negros da hostilidade. Até os garçons tremiam. Mas o tempo foi curando as feridas. Num magnífico restaurante em que jantávamos em Milão, setembro de 1993, antes do GP de Monza, com o Braga, o tio Papagaio, aliás, Galvão Bueno, e esposa, a tenista Monica Selles e a mãe, o Julian Jakobi e sua adorável mulher, Fiona, de repente  Prost em pessoa veio a nossa mesa. Ayrton gelou, mas o pior já tinha passado. Prost estava, isso sim, mais à vontade: afinal, naquele ano o campeão foi ele, não o seu eterno rival.

Meu sexto sentido indica, porém, que a rivalidade dos dois tinha o tempero de um enorme respeito. Haviam dividido, não sem algumas farpas, o mesmo boxe, o mesmo  team, o mesmo staff da McLaren por dois anos. Alain Prost era alguém - quando "o francês" vinha à baila, numa conversa entre amigos, uma certa cerimônia se impunha, a não ser quando Ayrton queria gozar a incompatibilidade dele com as chuvas e pistas molhadas. Prost desafiava Senna, Senna desafiava Prost, e foi essa estimulante competição, interrompida na temporada de 1994 com a aposentadoria do francês, que produziu aquele diálogo entre os dois, incrível, às vésperas do desastre de Imola. Quem assistiu ao abraço, como o Braguinha, custou a acreditar. Senna foi além:

- Estou sentindo a sua falta - disse ele a Prost, em inglês.

A parte francesa dessa linda reconciliação entre as duas feras se traduziu no choro sincero de Alain Prost, diante do esquife do ex-rival. Falou-me, após o funeral, que ele também tinha morrido um pouco, junto com Ayrton Senna. Parecia meio deslocado naquele ambiente soturno e distante do Cemitério do Morumbi. Com a mão no meu braço, disse um comovido "conte comigo".

Houve um adversário de verdade na vida e na carreira de Ayrton Senna. Não se pode esperar palavras de rancor e ódio de quem lia a Bíblia como ele, mas acontecem situações de saia-justa que dizem tudo. Às vésperas do Grande Prêmio no Estoril, fomos num grupo grande experimentar aquela maravilha da cozinha portuguesa que é  o restaurante Porto Santa Maria, na praia do Guincho, diante daquelas escarpas do cabo da Roca, o ponto mais ocidental da Europa. Coisa dos deuses. Encomendado com antecedência pelo nosso anfitrião, o Braga, um linguado ao forno, cozido dentro de uma casca de sal grosso.

Chegamos e o maitrê nos levou a uma mesa voltada para aquele mar e para aquele horizonte de onde, séculos atrás, uns malucos portugueses, a bordo de casquinhas tão frágeis quanto os carros de Fórmula 1, foram descobrir novos mundos. De repente, o Ayrton, sempre ligadíssimo, parou:

- Aqui, não. Vamos para outra mesa, bem longe. Fincou pé, os outros convidados perplexos. Mas me sussurrou ao ouvido:

- O indivíduo está aí.

A palavra, aqui entre nós, não foi propriamente indivíduo. Imaginei que era o Prost. Nada disso: o indivíduo atendia pelo nome de Nelson Piquet. Aí a coisa ficava de fato feia. É inútil voltar a esse assunto, depois do que se passou. Mas o silêncio de Piquet, no dia do enterro, foi significativo - por mais que amigos seus  tentem me convencer de que a melhor manifestação de dignidade dele seria a ausência. Um dia, quem sabe, eu me convença disso. Hoje, não.

Tenho, a propósito, uma bela lembrança gravada na memória. Conheci, no circuito da Fórmula 1, um garotinho lindo, de uns 5 anos, acredito, que tinha uma especial veneração pelo Ayrton - e a amizade era recíproca. Circulava pelos boxes, antes das provas, levado pelas mãos de sua mãe, Sylvia, uma holandesa habituée dos pitlanes. O garoto se chama Nelsinho. Nelson Piquet Júnior.

Mulheres são figurantes. Já na minha primeira viagem aos bastidores do circuito, em Mônaco, a Fórmula 1 me ensinou essa lição. Sem meias palavras. O jogo é viril, o combustível fede e as estrelas fazem xixi em pé. Mulheres, namoradas, amantes enfeitam o cenário com seus rostinhos bonitinhos e corpinhos apetitosos. Se quiserem um papel menos subalterno, que tratem bem de seus companheiros - em casa:

Digo sem ressentimento, porque do meu namorado eu tinha o que queria: amor, atenção, carinho, mãos dadas, acesso a setores proibidos, beijos roubados atrás dos boxes. Éramos o casal in love por excelência. Mas que é diferente da Fórmula Indy, por exemplo - pelo menos da Fórmula Indy como se vê na TV -, não há a menor dúvida. Na  Indy, mulheres permanecem nos boxes, cronometram o tempo, torcem, vibram e pulam no pescoço de seus heróis vitoriosos. Vão vestidas para a festa, naquele estilo  faroeste: botas, chapelões e cabelos de mechas.

Na Fórmula l, o figurino é jeans, camiseta e tênis. E os primeiros roncos dos motores espaventam as companheiras. Elas se metem nos motor homes, para assistirem pelos monitores, somem nos camarotes dos patrocinadores, recolhem-se ao decorativo dever de coadjuvantes, como aqueles grã-finos falsos das novelas do Gilberto Braga. Algumas, cansadas de fazer a bonequinha de luxo, nem comparecem aos autódromos.

Vi o chefão da McLaren, Ron Dennis, cortar um dia as asinhas da mulher de Michael Andretti, a Sandy, por sinal bela figura. Acostumada aos hábitos da Indy, ela achou que poderia extravasar sua emoção perto da pista. Em compensação, a Fórmula 1, quando as máquinas se calam, é um dos lugares de maior densidade erótica do planeta - paqueras e tietagens explícitas. Não por acaso, alguns pilotos de GP trocam de mulheres como trocam de pneus. Eu  disse: alguns.

Mônaco é um principado. Nada combina melhor com um conto de fadas. E, para não perder a atmosfera de sonho e nobreza, ainda demos, depois, ele e eu, uma rápida  esticada em Londres, para compras e business. Braga, que conhece tudo, me jurara:

- Você vai amar. É uma cidade adorável.

É. Só que pegamos Londres naqueles seus dias mais característicos: frio e chuvinha miúda. Achei os ingleses com uma cara amarga. Era só uma primeira e enganosa impressão, pude descobrir depois. Ficamos no Berkeley, bem no centro, perto de Knightsbridge. Tentamos assistir ao Fantasma da Ópera - era o som ambiente de todos os vôos, no nosso avião. Estava esgotado. Esgotadíssimo. Nem um piloto da McLaren conseguiria ingresso. Nem um Ayrton Senna. Comprar, com meu namorado, era uma maravilha. Rápido e rasteiro. Sabia o que comprar e onde comprar. Cintos e sapatos. No Bruno Magli. Programa gastronômico, com Adriane Galisteu, era uma maravilha. Rápido e  rasteiro. Sabia o que comer e onde comer. Resultado é que acabamos arrastando a resignada Betise até o McDonald's, para que ela pudesse escrever uma matéria com ele. Ayrton falava e comia. O gerente o reconheceu: "Mr. Senna, one more". Oferta da casa. Ele agradeceu e esticou rapidinho para mim.

Nossa primeira viagem internacional incluiu uma vitória, muita alegria e muito amor. Era hora de voltar à realidade - e, por mais que eu tivesse certeza de meu amor, não tinha a menor certeza de que realidade seria essa. Mas o próprio Béco - eu já podia chamá-lo assim, sem medo de parecer abusadamente íntima - me deu uma dica e uma lustrada na vaidade:

- Quero você sempre assim como você é.

- O que você quer dizer com isso? - vacilei.

- Por favor, não mude jamais. Se eu tivesse que lhe pedir alguma coisa, seria ser exatamente o que você é. Só não precisa tomar tanta Coca-Cola, freqüentar tanto McDonald's e, agora, falando sério, acho que você deveria estudar inglês.

Senti que estava implícito, ali, o convite para acompanhá-lo no circuito internacional. Foi o avião tocar o chão em Cumbica, dia 26 de maio, e eu corri para festejar com a minha melhor e mais incondicional confidente, minha mãe: - Foi um sonho!

Olhando com os olhos de hoje, entendo que houve uma conjunção favorável: meu primeiro giro no exterior com ele seria o mais gostoso de todos. Porque depois  as coisas se complicaram na pista, surgiram problemas na McLaren, as vitórias escassearam, a tensão cresceu e por mais que ele me pedisse, me implorasse, "me ajuda a separar minha vida profissional da minha vida pessoal", você sabe que nem sempre isso é possível.

- Quando estou com você, eu me esqueço dos problemas - recostava-se ele em mim. Da mesma forma, com ele eu me esquecia de meus problemas.

Minha carreira de modelo eu não tinha como abandonar. Contas a pagar, um reforcinho aqui e ali no orçamento doméstico da mamãe... Reapresentei-me na Elite e voltei à ciranda dos testes. Mas uma transformação tinha acontecido na minha vida. Definitivamente, mudei de turma.

Mesmo quando o Béco viajava sozinho, a negócio ou para correr, como aconteceu logo depois, no GP do Canadá, dia 13 de junho, era com o Leozinho Senna que eu ia jantar, com a patota de Angra, sob a estrita vigilância dos amigos dele, da velha camaradagem de Santana e da Vila Maria. Ao Léo, por exemplo, quantas vezes eu não emprestei meu ombro, para ele chorar suas dúvidas. Gosto ou não gosto da Luciana? (Luciana Sargologos, uma morenona imponente, tinha sido namorada dele por muitos anos.) Sentia-o completamente diferente do irmão. Mas gostava dele. E da Sonaly, outra modelo da Elite, um metro e oitenta de mulher que passou a acompanhá-lo em nossas jornadas de Angra. Era eu que fazia o supermercado, que ia ao Santa Luzia fazer as compras do apartamento da Paraguai. Léo e eu éramos confidentes. Para mim, nada melhor para definir uma genuína amizade. Aos 21 anos, já aprendi da vida que amizade é um produto muito mais raro do que parece ser.

Para nós, o que Angra era no Brasil, o Algarve era na Europa. Há dois anos e meio Ayrton fazia daquele cantinho ensolarado do sul de Portugal o seu mix de refúgio e escritório ao longo de toda a temporada européia - que, com uma ou outra alteração de calendário, coincidia com o período mais agradável de final de primavera, verão e comecinho de outono. De mais a mais, as férias escolares brasileiras, em julho, sempre davam chance para que a família, ou parte dela, se achegasse - como aconteceu em 1993. Pude curtir meus primeiros momentos de verdadeira  intimidade com a Zaza, mãe dele - a quem eu ainda tratava pelo cerimonioso "dona Neide". Intimidade é isso: café da manhã juntas, preparar na cozinha uma comidinha especial para o filho, sair às compras com ela e a Juraci, a caseira. Viver essas coisas banais do cotidiano. Viviane, a irmã mais velha de Ayrton, apareceu com as meninas, Bia e Paulinha. Bruno ficou com o avô na fazenda de Tatuí, treinando no seu kart.

Pude sentir, nas palavras trocadas à mesa ou à beira da piscina, o que o Béco significava para eles: o xodó, o filho vitorioso, o arrimo, o eixo, quase a motivação de cada uma daquelas vidas. Uma mulher a mais, uma namorada, seria sempre uma ameaça à ordem natural da rotina familiar, um perigo. Namoradinha, que fosse - mas  que não passasse daí. Isso eu vejo agora. Não pela cabeça naqueles dias, naquelas semanas. Eu só sabia repartir com eles, o Béco e a família, coisas boas.

Por exemplo, a vontade súbita de fazer umas comprinhas em outras cidades da Europa. O jato do Béco estava quase sempre disponível, nos intervalos entre as provas e lá fomos nós, a mãe, a irmã e as crianças para uma temporada de aquisições em Londres. Sendo que, uma tarde, saindo só nós duas, Bia e eu, ela simplesmente evaporou, dentro da Harrods. Eu, desesperada, descabelada, procurando. Nada. Perguntei por ela, no meu inglês estropiado. Nada. Fui até a porta. Nada. Meu desespero me obrigou  a uma última saída:

- Biiiiaaaaaa!

Dei um berro que toda a gigantesca loja de departamentos ouviu.

Inclusive ela, ainda bem. Calmamente, experimentava roupa num daqueles provadores.

Próxima escala: Paris. Desembarcamos no hotel e saímos em disparada, à procura de um táxi. Estava tudo estranhamente calmo. O porteiro nos deteve:

- Mesdames, vocês sabem que dia é hoje?

14 de julho, feriado nacional. Tudo fechado. E só tínhamos mais um dia. Saímos assim mesmo, lambendo as vitrines. Conseguimos descobrir duas lojinhas antipatrióticas: uma de perfumes, outra de cristais.

Béco foi nos encontrar lá, já a caminho dos testes do GP da Alemanha. Abriu nossos quartos e quase desmaiou:

- Vocês estão malucas?

Teve a pachorra de contar: 38 malas, para quatro mulheres. O paciente Mahonney conseguiu acomodá-las, todas, no avião. Posou, antes, para uma foto que mostrasse toda aquela bagagem. Simpaticíssimo personagem, do qual sentirei falta, o Mahonney. Lembro-me de que ele reclamava apenas de uma coisa: de tão próximo do Béco, nunca ninguém se lembrara de fotografá-los juntos, piloto e piloto. Soube, aliviada, que às vésperas do acidente fatal em Ímola a foto foi feita.

Mas o convívio em Mônaco, a sós, tinha feito tão bem que não nos cansávamos de planejar novas viagens, apenas os dois. Dentro da temporada de Fórmula 1, eu tinha um sonho pessoal: Hungria. Pátria dos meus avós maternos, Alexander e Agnes, emigrados para o Brasil durante a guerra - uma terra de referências reais e mitológicas cujas histórias e cuja língua freqüentavam os almoços domingueiros em nossa casa. Minha mãe, minhas tias, todas falavam húngaro à mesa, mas não me dei ao trabalho de aprender aquela língua arrevezada, tão diferente de qualquer outra falada na Europa. Só de molecagem, extraí de meu avô dois ou três palavrões horríveis. Lembro-me também de minha avó, atrapalhada ao me ver queimar a língua numa daquelas sopas típicas e escaldantes, gritando para mim "fujjal, fujjal" (soava como fuió, fuió). Tradução: "sopra, sopra".

Devo com certeza a essas domingueiras húngaras na Lapa minha paixão por doces, que até hoje tenho de compensar com quatro horas diárias de ginástica e não me  deixam tirar o olho da balança.. Mas também quem haveria de resistir àquelas panquecas folheadas de maçã que aterrissavam à mesa após o gulash? Pelas minhas melhores lembranças familiares, por minha avó, especialmente por minha mãe é que acabei desembarcando em 12 de agosto de 1993, uma quinta-feira, no aeroporto de Budapeste, tendo a meu lado um homem a quem todos se dirigiam com um afetuoso sorriso e palavras incompreensíveis.

- Por favor, o que eles estão dizendo? - implorava Ayrton.

- Não tenho a menor idéia.

- Mas nem muito obrigado você fala?

- Nada, nadinha.

No Hotel Kempinski, uma magnífica construção ainda com cheiro de novo, confessei-lhe meu verdadeiro conhecimento de húngaro. As tais palavras. Não é que ele  passou horas treinando, para o caso de ter de usá-las?

- Se o Prost me aprontar uma, eu tasco o palavrão nele - brincou.

Quem estava em Budapeste era o Senna, a trabalho, às voltas com as dificuldades de seu carro e a força de seus rivais. Mas, ainda assim, teve comigo, em vários momentos,  o doce Béco, comportando-se de forma a deixar claro que aquela viagem era uma homenagem a mim - aliás, ao nosso amor. Desdobrou-se para passear a meu lado, mãos dadas como dois namorados, às margens do Danúbio, que separa o pedaço Buda da parte Peste da capital. Depois, deixou-me entregue aos cuidados de dois amigos extraordinários, Christian Schues e a mulher dele, Birgit, filha do ex-presidente da Volkswagen brasileira, Wolfgang Sauer. Os dois levavam com eles os filhos Patrick e Oliver, bem  pequenininhos.

Budapeste foi uma temporada de alegria, mas foi essa mesma Birgit quem me acudiria no pior momento de minha infelicidade, menos de um ano depois. Sua mão forte, agarrada à minha, evitou que, por muitas, muitas vezes, eu desabasse por terra, numa sinistra quinta-feira de maio de 1994, diante de uma cova rasa do Cemitério  do Morumbi.

Christian e Birgit me mostraram Budapeste, lindíssima, e arredores, enquanto Senna sujava suas mãos de graxa em Hungaroring. O casal tinha, na verdade, uma concepção tão generosa de hospitalidade que aceitou revirar a cidade dos pés à cabeça até que eu encontrasse, finalmente, numa pequena feira livre de rua, as sementes de papoula - mak - que minha mãe havia encomendado, para seus confeitos. Juntas, Birgit e eu conseguimos achar um McDonald's em Budapeste. Com Chicken McNuggets no cardápio, batata frita e torta de maçã. Christian, o marido de Birgit, me olhava com aquela paciência que sugere "meu Deus, um dia isso passa". Compensei o McDonald's, que seria uma decepção para minha mãe, na noite de sábado, véspera do GP: fomos todos jantar num restaurante típico, uma casinha simpática, amarela, cuja dona era uma velhinha, conhecida do Béco. À sobremesa, um palacinta (pronuncia-se pólotchintó), uma panqueca de cereja, deu  ao meu paladar um sabor de saudade.

   A McLaren do Ayrton quebrou, no domingo, eu tive o ensejo de extravasar meu limitado vocabulário húngaro, aquele, em voz alta, mas, se o Senna era o tipo do cara que odiava perder, o Béco até que estava bem descontraído no jantar solene oferecido pelas autoridades do GP após a prova. E a melhor testemunha é aquela foto nossa, juntinhos, ele com seu sorriso lindo, ouvindo, os dois, embevecidos, o violino cigano à entrada de um restaurante. Foto de dois namorados. Éramos dois namorados.

Ele era um viajante capaz de ganhar em milhagem do executivo de uma grande multinacional. No entanto, chegou a me dizer, certa vez, com alguma amargura, que não conhecia nada do mundo:

- No fundo, sou um homem caseiro.

Conhecia pouco de Londres. Mas sabia de cada curva de Silverstone e Brands Hatch. Frankfurt, só de passagem. Hockenheim, em detalhes. Era capaz de se perder em Milão, mesmo se o deixassem ali perto do Duomo. Mas de Monza tinha um mapa completíssimo em sua cabeça.

Seu universo era circunscrito dentro das milhas onde máquinas voavam desafiando os limites da velocidade. Ayrton Senna, desde pequenininho, não veio ao mundo a passeio. Sua rotina era chegar sempre quatro ou cinco dias antes da prova, mergulhar numa saraivada de reuniões, meter-se debaixo do carro, como se fosse um mecânico iniciante e não uma estrela, e buscar, nos testes, na pista, sua própria superação. Por isso, ele foi o melhor. Mas, aí, de repente, ele era capaz de surpreender:

- Que lugar você gostaria de conhecer agora? - me perguntou ele, de volta da Hungria.

Tive uma certa vergonha de confessar:

- A Disneyworld.

- Puxa, você sabe que eu também?

Que uma meninona de 20 anos que se amarrava em Coca-Cola e Big Mac tivesse uma fantasia juvenil, era compreensível. Mas não pude deixar de rir da imagem de um tricampeão do mundo de automobilismo caindo nos braços da Minnie e do Pateta. Combinamos de ir, este ano de 1994. Infelizmente, a Minnie e o Pateta não terão a chance de conhecer o homem mais adorável do mundo.

- O que você ganhou dele ninguém mais vai ganhar: seu amor.

Assim me tenta dar coragem, em suas cartas e bilhetes, a Bebel, amiga nova dessa fase pós-trauma, mas como se fosse amiga desde criancinha. - Levanta a cabeça,  menina.

É o que me bastaria. Mas, no inventário dos bens me deixado por ele, eu declaro aqui, publicamente, que ganhei muito mais. Um montão de coisas subjetivas, impalpáveis e adoráveis. Um dia, ele me surpreendeu com um presente. Tem gente que vai rir. Eu chorei - de felicidade.

Voltei da Hungria para a casa de minha tia. As coisas na minha vida ainda andavam desorganizadas: casa, trabalho, planos para o futuro imediato, tudo meio embaralhado. Um plano, eu tinha, bem banal: comprar um carro. Tenho anotado na minha agenda, dia 17 de agosto de 1993, um elenco de nomes de concessionárias. Fui à luta. Vi um Uno Mille prata, 1991, usado portanto, mas bonitinho, inteirinho. Tinha dinheiro para pagar. Coisa de macho: Ayrton achava que eu não tinha competência para saber se o carro estava mesmo no ponto. Eu batia pé: está tudo em cima. Ele despistou:

- O Alfredo, que trabalha aqui comigo, também andou vendo um carro, dá um tempinho.

Não podia dar tempo algum. Tinha ânsia de sair dali já no meu carro. Só que, vendo que havia um Ayrton Senna nas proximidades, o dono do Uno fez a gentileza: eu dava uma parte do preço, ele me dava dois dias de prazo. Só então a gente fechava definitivamente o negócio. Olhe só o que dizia o meu horóscopo do mês de agosto, recortado de uma dessas revistas: "A vontade de independência será tão grande que vai se irritar com as pessoas que têm maior poder de decisão sobre sua vida. Aproveite este mês para baixar a cabeça de vez em quando, mesmo que seja para fazer valer sua vontade. Você pode perder uma batalha mas pode ganhar a guerra".

Dia 19, prazo vencido. Ayrton me convida para passar no escritório. Às seis e meia da tarde. Subi direto para a sala dele, o Alfredo não estava. Ele, "calma, calma". Alfredo, enfim, aparece, decepcionado:

- Desculpa, Adriane, mas não deu certo. Trouxe um outro, mais velhinho, mas garanto que está bom de motor.

- Bela proposta - ironizei.

Descemos. Esperava por mim um Uno Mille Electronic zero, prata, igualzinho ao que eu queria comprar. Com um buquê de rosas no capô e o detalhe da chapa: DRI 7770. Só faltava laçarote e papel celofane.

- Isso é um presente de agosto.

- Mas por que agosto? - estranhei. - Não é Dia dos Namorados, não é nada...

- Por isso mesmo: não tem data nenhuma. É um presente de agosto.

Enchi o Béco de beijos. Fiquei sem palavras. Entrei como louca no carro e corri para mostrar a minha mãe. Liguei também para a mãe dele:

- Ganhei um carro novinho.

- Ele me contou - disse a Zaza. - Vem cá que eu quero dar uma volta.

Zaza, Bia, a sobrinha mais velha, e eu, lá fomos nós - depois, jantamos todos no apartamento do Pacaembu. Nosso convívio na Europa me dava a idéia de fazer parte da família. A Bia - Bix, eu a chamava - era como uma irmã mais novinha. Passamos aquele fim de semana na fazenda de Tatuí e, na volta, acompanhei a Zaza ao shopping. Éramos confidentes de copa e cozinha, do tipo de ficar conversando enquanto se fazem as unhas. Tanto que, depois de levar o Béco ao aeroporto, no Mercedes dele, naquela noite de terça-feira, 24 de agosto, para Frankfurt e, de lá, para o GP da Bélgica, fiz o que achei mais natural: Eu fui dormir na casa dos pais dele, na cama dele.

Ayrton voltou do circuito de Spa-Francorchamps bufando com o seu quarto lugar, sentindo o campeonato  escorrer-lhe por entre os dedos. No aeroporto, me, perguntou meio brusco:

- E a chave da lata de sardinha, onde está?

- Lata de sardinha é a vó - respondi.

Ele literalmente fugiu da imprensa, no meu Fiat. Uma dessas repórteres ainda quis persegui-lo na Marginal, mas alguém se esqueceu de que o nome dele era Ayrton Senna.

Meu carro padecia nas mãos dele. Ele tomou gosto em pilotá-lo na cidade. Acelerava fundo, só para me provocar. Na verdade, ele não era Ayrton Senna no trânsito, no sentido de que respeitava os sinais e sabia onde dava para correr e onde definitivamente não dava. Só de vez em quando tinha a tentação de entrar por aquela pista exclusiva para ônibus, vazia, duas da manhã, na Avenida 9 de Julho, e pisar como se estivesse na sua McLaren. Era vrrummmmmmmm - sumia.

De vez em quando, a booker da Elite ainda saía à minha captura, em desalentados DDI. Mas até que, um dia, deu certo. Surgiu uma campanha da Iódice, uma griffe de jeans. Só outdoors, quatro fotos diferentes, com a garantia do padrão Cláudio Elizabetsky. De uma das fotos, eu me  lembro: a mulher, no caso eu, com cara de tédio, dizendo: "Homens, eu não tenho saco". Ao primeiro outdoor que vi, até parei o carro: eu estava irreconhecível.

Era apenas uma pausa para o comercial. Dia 3 de setembro de 1993, uma sexta-feira, o vôo 702 da Varig, rota São Paulo-Lisboa, esperava pelo casal Ayrton Senna Adriane Galisteu, outra vez. Só que a escala em Portugal ia me preencher uma saudável curiosidade, reforçada pelas caronas que eu costumava pegar nos longos telefonemas trocados pelo Béco com seu paizão de adoção, o Braguinha.

- Luiza está louca pra conhecê-la, garotinha - dizia o Braga.

Ele, eu vivia vendo, nas curvas e retas dos curcuitos. Mas, conhecendo-o como o conhecia, sabia que a Luiza só podia ser o amor que é. Desembarcamos em Lisboa e seguimos para esse meu esperado encontro na Quinta da Penalva, onde mais uma vez nos instalamos, escala estratégica e afetiva antes de mais um GP, o de Monza. Na  "Casa do Ayrton", como a apelidara o Braga, ficamos ele e eu, e Galvão Bueno e mulher, a Lúcia. Meu tchans com a Luiza foi imediato. Enquanto isso, os homens discutiam coisas seriíssimas, como o desejo de Ayrton Senna, já declarado entre quatro paredes, de deixar a McLaren. Como ainda era verão e mesmo ali no alto da aldeia de São Pedro de Sintra o sol costuma dar o ar de sua graça, as conversações podiam prosseguir, de repente, num relaxante mergulho e numa hilariante sucessão de piadas, sempre puxadas pelo tio Papagaio.

Luiza não nos acompanhou a Monza, à prova, mas a Milão, sim - assim como não nos acompanhara antes e assim como não tinha a menor intenção de nos acompanhar em qualquer outra corrida, nem ao Estoril, a seis quilômetros de sua quinta, tão perto que dá para ouvir de lá os roncos dos motores. Explicava:

- Fico nervosa demais. Pela televisão é mais tranqüilo. Sabia o que ela estava falando. Eu tinha assistido ao que se pode chamar de stress de corrida em Hockenheim, em agosto. A mãe do Béco assistiu a toda a prova de pé no auge de sua tensão, não se sentou um minuto sequer. Murmurava rezas sem parar. Viviane se segurou numa cadeira. Fechava os olhos e também orava. Respeitava a fé de ambas, embora evitasse participar das cerimônias de bênçãos, que podiam demorar vinte, trinta minutos, a que a irmã submetia o Béco, às vésperas de algumas provas. Uma coisa de culto, meio êxtase, meio oração. Parecido com o que o pai do Lalli, pastor evangélico, ministrou na manhã do velório - de novo, sem minha presença.

Foi aquele GP da Alemanha de 1993, aliás, que o Ayrton perdeu porque calculou mal o abastecimento de combustível. Frustração e nervosismo tão grandes para a família que, a partir daí, a Zaza e a Viviane aderiram também totalmente à telinha.

Do GP em Monza ficaram coisas para não se esquecer. O magnífico hotel às margens do lago Como. A torcida inesperada da Monica Selles, isso aí, a tenista, uma gracinha, ainda traumatizada com a violência que tinha sofrido na quadra, uma punhalada pelas costas. Ela e a mãe foram dar uma força ao Ayrton no motor home - encontro de  fã com fã, diga-se, já que o Ayrton, que batia um bolão no tênis, admirava o estilo desabusado dela. Lembro-me também da nuvem negra que o Ayrton saiu carregando sobre a cabeça, ao final de uma prova que abandonou. Olhem que eu conhecia o mau humor do moço, hein?! Mas naquele dia, já noite, ele se superou. Foi do autódromo  ao hotel sem dizer uma única palavra. Subiu direto para o quarto. Requisitou o room service. Não me perguntou nada - simplesmente escolheu um jantar para nós dois. Mas o hotel estava em festa e, apesar de tudo, lá de baixo gritavam: "Senna, Senna".

Ele se derreteu como um sorvete fora da geladeira:

- Mas eu perdi! Como são loucos esses italianos.

- Loucos por você, disse.

Uma história posterior, de Ferrari, aposentadoria, sei lá, pode ter se consolidado naquele momento contraditório de raiva e paixão.

- Tá difícil de me agüentar? - ele finalmente quebrou o gelo. - Prometo que assim que sairmos da Itália eu deixo a tromba aqui no quarto.

Involuntariamente, ele me dava uma bela idéia para um presente: um elefante de pelúcia. Um dia, eu o encontraria. Ele adorou a brincadeira. Naquela noite, levantei-me pé ante pé quando ele já dormia, fui ao banheiro e escrevi no espelho, com batom:

- Bom-dia! Sorria!

Desenhei uma boca sorridente, cheia de dentes. Assim como ele fazia campanha junto a mim contra a Coca-Cola e o McDonald's, eu também tinha meus palanques. Convencê-lo de que, rindo, ele ficava mais bonito. De que cabelo um pouco mais compridinho lhe caía bem. De que de quando em quando valia a pena comprar uma roupa diferente daquelas que ele recebia no automático, por mais bonitas que fossem, presentes da Hugo Boss, sua patrocinadora.

O que eu não suspeitava é de que havia mais coisas entre o céu e a terra do que poderia ser solucionado com uma carinha risonha. Ayrton Senna, o piloto, estava numa encruzilhada profissional. As duas semanas de intervalo entre o GP da Itália e o GP de Portugal, dia 26 de setembro, significavam dias de agradável convivência com os amigos de Sintra, do Algarve e os camaradas brasileiros desgarrados por lá, mas sempre fiéis. Marquinhos Magalhães Pinto, que cuidava do patrocínio do Banco Nacional, iria aparecer. Braga prometia também o tenista Cássio  Motta. Nuno Cobra apareceria, para dar um suporte de corpo e alma. A temporada européia chegava ao final. Mas, ansioso porque decisões importantes estavam sendo ruminadas na sua cabeça, Ayrton entregava-se a exercícios como o de ficar pendurado três minutos seguidos, pelos braços, no galho de uma árvore na casa do Algarve. Ele, aquela fortaleza, gemia e tremia. Apertava o passo nas suas corridas. Mas as idéias estavam distantes.

Imaginem o clima em casa depois da prova em Portugal - Ayrton fora, decepção total. O jornalista português Francisco Santos, habitué das pistas e amigo de longa data do Ayrton, me recordou que, ao chegar ao autódromo do Estoril, naquele 26 de setembro, Senna trazia a tiracolo sua 007. Aquela maleta escondia o resultado de  duas negociações que iriam abalar a Fórmula 1. Primeiro, o contrato já acertado do piloto brasileiro com a Williams. Segundo, e quase como conseqüência, a despedida de Alain Prost - que saía das pistas com as honras de um tetracampeonato.

San Marino, Canadá, Magny-Cours, Hockenheim, Hungaroring, Spa-Francorchamps, Monza, Estoril... A temporada 1993 foi uma frustração para mim e para meu namorado,  já que ele se acostumara a andar sempre na frente. Ayrton, que saboreava no início a ilusão de que estaria no páreo, foi vendo o campeonato escapar-lhe das mãos. Aí era a tal história. Percorria vários verbetes daquele que poderia ser um dicionário do mau humor: ranzinza, rabugento, cara amarrada, ele chegava a ficar horas sem dizer a alguém que estivesse por perto nada que não fosse um implicante sim ou não. Nuno Cobra, que conviveu com ele dez anos e apareceu no Algarve em setembro de 1993, com aquele sexto sentido de quem sentiu a tempestade e queria ajudar, foi quem me consolou, didático:

- Já foi muito pior. Acho que você está fazendo bem a ele.

Se era assim, que fosse. E era vê-lo voltar de sua corrida diária de uma hora e meia, às vezes mais - uma rotina religiosa que ele, naquele momento, parecia praticar por dever e não por prazer -, que eu brincava com o Nuno:

- Ataca de lá que eu ataco de cá.

Batata: o rosto dele desanuviava e não era raro a gente encerrar a brincadeira rolando pelo gramado ou jogando-se na piscina (até a Zaza, a mãe dele, o Ayrton teve coragem de empurrar para dentro d'água, num dia glorioso de verão).

Olho para trás e entendo que não podia ser diferente: ele tinha um problemaço pela frente. Ficar na McLaren, ele não podia. Tanto ele quanto o patrão, Ron Dennis, em seu silêncio enigmático, sabiam que não dava mais. Seu timing lá estava esgotado. E o futuro? Benetton? Ferrari? (No início da temporada de 1994, ele me disse que as duas escuderias lhe dariam trabalho e a história confirmou suas previsões.) Fórmula Indy? Ele odiava aqueles circuitos ovais, embora tivesse recebido um convite de Roger Penske e pilotado, com a devida licença de Dennis, um protótipo em Phoenix, Arizona. Confessou ao Braga que era uma besteira. Parar por um ano, dar um tempo? Na verdade, correu o risco concreto, objetivo do desemprego.

Imaginem: tricampeão do mundo encostado no INPS da Fórmula 1.

Lembro-me bem: foram seis dias e cinco noites dificílimas, de tensões quase permanentes que concediam, às vezes, um ou outro intervalo de relax. Nossos adversários principais eram o fax, que não parava de vomitar uma  papelada que ele lia e relia com a expressão carregada; o telefone, que sempre cobrava conversas de uma hora, duas horas, às vezes com seu pai, o senhor Milton, e com o Fábio Machado, no escritório de São Paulo, mas quase sempre com o Julian Jakobi, que cuidava dos interesses profissionais dele na Inglaterra; e o tempo - a dúvida, a espera, a indefinição o exasperavam mais até do que as derrotas que lhe surrupiavam o tetracampeonato.

Marquei no relógio um desses telefonemas DDI. Cinco horas e quarenta minutos. Ele estava tenso e o que eu  ouvia, de passagem, era:

- Mas, Frank... Veja bem, Frank...

Ele não comia. Tentava beliscar uma saladinha, mas batia com o garfo na mesa, com fúria inexplicável:

- Deve ser o francês... O francês...

Nem perguntava nada - sozinha ali com ele, não queria botar lenha na fogueira. Dormir, então, nem pensar. Ele vestia o pijama e, sem mais delongas, começava a distribuir as cartas para um jogo de tranca que, pressentia eu, iria varar a madrugada. Quando a família estava no Algarve, costumávamos jogar, ele e eu em dupla, contra a Zaza e a Bia, a sobrinha mais velha. Adorávamos trapacear. Agora, só os dois, ele casmurro, sem dizer nada, eu tentava desanuviar o clima - roubava pra valer. Ele estava tão entretido em suas próprias encucações que não percebia. Íamos dormir com o canto dos primeiros galos.

Mas tínhamos um aliado nessa briga contra o profissional que não tirava o uniforme, um único e solitário aliado, que, por estranho que pareça, era ele mesmo - ele em seus doces momentos de Béco, acordado subitamente do ronco dos motores para os sons da vida que desfilava, convidativa, à sua frente, comigo, diante daquele paraíso que era a casa do Algarve.

- Não liga, não - pedia-me ele, como gentil penitência. - Espera por mim, fica por perto, me serve de travesseiro, que eu preciso de você.

- Então me dá um único sorriso - pedia eu.

Ele ria da criançona que eu não conseguia disfarçar. Aquele sorriso me bastava. Eu tinha a paciência do mundo para esperar que o Béco triunfasse sobre o Senna. Nunca fui daquelas mulheres impertinentes que, ao ver o marido amuado, perguntam: "Benhê, em que que você tá pensando?" O amor que prevalece é aquele em que há uma troca desinteressada e espontânea. Se houve, aliás, segredo numa relação que durou catorze meses e duraria a eternidade - eu não estou brincando com isso - foi que eu  pude lhe emprestar muito da minha jovialidade molecona e ele me ensinou virtudes como o respeito à privacidade, a dedicação incondicional e o silêncio providencial,  coisas que só a maturidade conhece.

Bom, tudo isso aí é uma teoria, mas não passaria de uma linda explicação se também não rolasse entre nós roçar de pele, toques, beijos, pêlos, músculos rijos, tesão, amor e sexo - desculpem o súbito e indiscreto entusiasmo dessa revelação, mas éramos um casal de qualidade e de quantidade, vocês me entendem, não entendem?

Então, merecíamos uma lua-de-mel, não merecíamos? Não conheço caso de mulher nenhuma que tenha dormido tanto, antes de uma lua-de-mel. Mas, o durante, fora um pequeno incidente gástrico do noivo, foi daquelas coisas para não se esquecer nunca mais. Do lugar à conta do hotel - esta, também, literalmente inesquecível.

Para culminar, tiramos nossas férias só de amor entre o GP do Japão, em Suzuka, e o GP da Austrália, a última corrida da temporada de 1993. Tudo, ou quase tudo, até então, dera errado para o Ayrton. Pois não é que, no embalo da lua-de-mel, antes e depois, a maré virou? Lua-de-mel em dose dupla. Vitória em Suzuka, apesar de um probleminha com um iniciante que logo vou contar. E, em Adelaide, último GP em que Ayrton vestiu as cores vermelha e branca da McLaren, ele foi de novo o primeiro do pódio. Fim de temporada, vice-campeão do mundo, 73 pontos. Cinco vitórias. Para meu namorado, era pouco.

Em outubro, porém, ele já parecia estar de novo de bem com a vida. São Paulo, amigos, festas, fazenda. Propôs até que eu tirasse meu visto para os Estados Unidos,  porque, quem sabe, um dia, aquela história da Disneyworld... Estávamos tão próximos que fui levando gradativamente minhas coisas, da casa de minha tia para o apartamento da Rua Paraguai. Tipo mudança mesmo. Levei-o e o busquei de uma rápida viagem de negócios a Miami. Eu o recebi com um brinquedo-papagaio, desses que repetem o que  você diz. Presente do Dia das Crianças.

Próxima parada, Japão. Saí de São Paulo sozinha, via Los Angeles, no sábado, 22 de outubro. Desembarquei em Tóquio na manhã de segunda, 24, horário local. Botei aí, de propósito, a palavra sozinha porque o Japão já tinha ameaçado entrar na minha vida aos 14 anos. Modelo, um convite, aquelas coisas. Minha mãe foi decidida: "Muito menina. Não vai, e ponto final".

Enquanto eu voava, agora nas asas da Varig, ele voava dentro de seu McLaren. Ficaria mais alguns dias, por compromissos de negócios e para saborear a repercussão da vitória. Sua carreira no automobilismo sempre fora salpicada de griffes japonesas e pontuada por profissionais japoneses. Só um exemplo: a Honda. De 1987, na  Lotus, a 1992, na McLaren, os motores Honda foram seus parceiros nas inúmeras vezes em que subiu ao pódio - sem falar de seus três campeonatos mundiais, em 1988,  1990 e 1991. Osamu Goto, inspirador do vitorioso projeto Honda F1, ganhara do difícil Senna um total respeito por sua competência. Soichiro Honda, o boss da companhia,  gostava de marcar presença nos eventos sociais da Fórmula 1. Quando Akimasa Yasuoka anunciou ao final da temporada de 1992 que a Honda não queria mais gastar milhões  de dólares na Fórmula 1 - Ayrton me contou que foi um dos que choraram, junto com tantos mecânicos japoneses.

Continuou em 1993 recebendo toneladas de cartas de fãs japoneses - tinha uma enorme legião de adeptos, torcedores, amigos no país. Escrevia uma coluna no Tokyo Chunichi  Sports, o jornal esportivo de maior tiragem. Sem se esquecer de que a admiração sempre foi recíproca. Muitas vezes, quando nos aventurávamos por ilhas desconhecidas da baía de Angra, trilhávamos caminhos arborizados quase selvagens, atravessávamos inesperados riachos, Béco gostava de dizer:

- Bonito, né? Pois é, me lembra o Japão.

Angra é um dos poucos santuários da mata atlântica.

Um botânico diria que não tem nada a ver, absolutamente nada, com qualquer paisagem do Japão, talvez apenas um ou outro lugar bem ao sul do arquipélago japonês. Ainda assim, Ayrton gostava de comparar. Depois de minha viagem, consegui entender por quê, para ele, uma coisa lembrava a outra. Ele não comparava cenários. É que beleza chama beleza. Assim era o Japão para ele.

Ao se antecipar a mim, em Tóquio, em outubro, ele me poupava de formalíssimos jantares de negócio, mas eu ainda cheguei a tempo de recolher o calor humano que o Japão lhe dedicava.

Ainda em Cumbica, mal tinha embarcado, a aeromoça me ofereceu uma taça de champanhe - escolhi um copo d'água -, comecei a ouvir, já entorpecida, aqueles avisos de afivelar os cintos, esperei apenas que a aeronave se estabilizasse na sua altura de cruzeiro, inclinei a poltrona para trás, fechei os olhos e despertei com o anúncio de que, em poucas horas, estaríamos pousando em nossa escala em Los Angeles. Desci a contragosto. Encostei numa daquelas cadeiras de aeroporto e voltei a ferrar no sono - tão profundamente que uma comissária veio me despertar. Novo embarque, novo desmaio. A bem da verdade, em 28 horas de viagem, devo ter aberto os olhos e trocado o travesseiro de lado uma meia dúzia de vezes, mas foi um sono só, impregnado de imagens, um entorpecimento de drogado. Ou talvez eu apenas estivesse muito  bem com a vida.

A realidade, a rigor, só bateu no meu rosto quando, já na confusão do aeroporto de Narita, sem perder de vista aquele chapeuzinho do cantor Fagner, que eu vira no vôo, um guarda da alfândega resolveu pegar no meu pé. Eu já estava nervosa. Minhas malas, cheias de creminhos, custaram a aparecer. Agora, o guarda queria ver tudo. Falou em japonês - eu, nada. "Speak English?" "No, no." Abriu um livro, enorme, com várias perguntas em espanhol:

- Você tem drogas? Tem roupas para vender?

Pediu para abrir minha bolsa - aquela Louis Vuitton, enorme, que o Ayrton me deu e que depois foi roubada em Lisboa. Ah, o guarda tinha o pretexto: uma caixa  de bombons de cereja, da Kopenhagen, que Béco adorava. Criada a confusão: pode, não pode. Um brasileiro veio me ajudar da forma mais objetiva possível, em português mesmo:

- Namorada do Ayrton Senna. Senna, Senna. Williams, Williams.

O implicante me devolveu logo a caixa de bombons e saiu correndo para comentar com os outros coisas incompreensíveis, das quais eu entendia apenas "Senna" ou "Brasil". A definitiva salvaguarda estava assegurada por um sorriso familiar e um cabelinho espetado que me aguardava do lado de fora. Norio, o fotógrafo particular do Ayrton, fora me esperar. Animado, sacudia uns jornais japoneses que para mim eram grego. Mas deu para sacar que Ayrton tinha vencido. Cumprimentei o Norio com  um abraço e com a meia dúzia de palavras em inglês que ele e eu podíamos trocar. Entrei no táxi, senti o acalanto daquela pista sem trepidações e dormi mais uma horinha. Era manhã de segunda-feira quando o Norio me deixou no hotel Hilton Tokyo Bay. Bem diante da Disneylândia de Tóquio. Era maravilhoso, dava para ver o castelo.

O manager do hotel chamou dois valeis para me conduzirem à suíte, o que me levou a crer que, em vez de encontrar o Ayrton, encontraria no máximo um bilhetinho carinhoso dele, "tive compromissos, me espere", por aí.

Abri a porta e meu coração veio à garganta. Essa coisa de adolescente. Ele correu para mim, me apertou num abraço e me deu um beijo escandaloso. Ficamos conversando na cama, gigantesca e convidativa, até que, quando percebi, estava sendo despertada por ele:

- Ei, Dri, pedi uma comidinha pra nós dois... Acreditem: eu tinha apagado de novo.

Já não sabia se era dia ou se era noite, recordo-me apenas de umas pessoas que subiram à suíte para levar uns presentes para o Ayrton. Percebi que todos estavam sorridentes, ele especialmente, com a vitória. Quando saíram, ele me surpreendeu:

- Pô, fiz uma besteira.

- Besteira?

- É, discuti com um irlandês louco.

Em qualquer lugar do mundo, será sempre uma besteira discutir com um irlandês louco.

- Esse, quem é?

- Um novato, um moleque. Sem cabeça, não sabe o que faz.

Pedi, excitada:

- Me conta, vai! Ele desconversou:

- Lindo esse seu sapato.

Era apenas um dockside, comprado no Brasil, na Side Walk. Ele definitivamente não estava a fim de voltar a falar da corrida. Foi ótimo porque pudemos nos entregar  aos assuntos do amor.

Dormimos, dormimos - quando acordei, ele já estava de pé, ao telefone. Comentou do meu sono:

- Nunca vi, é um milagre. Você não tem fuso horário?

- Não, meu fuso horário é você - respondi.

Pena que o meu Japão, fora aquelas intermináveis horas de sono, tenha durado apenas um dia. Abri as janelas, vi a paisagem, linda, imaginei as cenas típicas de cidades que eu só tinha visto em cartões-postais e me fiz a promessa solene, naquele momento, de voltar. Ayrton ainda tinha um encontro de negócios, do qual ele voltou com uma lata de biscoitos de morango, com estampa do Mickey e a inscrição "Disneyworld de Tóquio". Redobrei minha promessa de voltar ali, um dia.

Passamos o resto do dia juntos, preparando-nos para um jantar formal e importante que teríamos aquela noite. Eu me preocupei porque sabia que teria de enfrentar o desafio dos hashi - ou seja, comer com pauzinhos. Rosa, minha cabeleireira de São Paulo, a única pessoa que mexe nos meus cabelos, é nissei e várias vezes tentou me doutrinar em favor do sushi e do sashimi e me ensinar a comer com pauzinhos. Inútil. Houve uma época em que cheguei a pensar em trabalhar profissionalmente em Tóquio, ela teve a gentileza de me dar uma agenda cheia de endereços, inclusive de um irmão dela: "Fica hospedada lá, vai ser mais fácil para você".

Acabei me saindo razoavelmente com os hashi, naquele restaurante maravilhoso, do próprio hotel, mas ao ar livre, perfumado pelos aromas de jardim japonês, com acesso entre pontezinhas charmosas e tortuosos caminhos de pedra. Não tive coragem de experimentar peixe cru, mas me deliciei com um camarão feito na chapa - capturado vivo, enorme, ali mesmo num aquário. Eu pensava: "Coitadinhos dos bichinhos". Mas foi a refeição mais deliciosa de que me lembro em toda a minha vida - disparada na frente até dos meus maníacos Big Macs, posso confessar. Nossos quatro anfitriões, todos homens, curvando-se e recurvando-se em gentilezas, trouxeram de presente uma câmera fotográfica. Estavam todos muito formais, de terno escuro e gravata. Todos, inclusive o Ayrton. Quando nos despedimos e subimos para nossa última noite japonesa, a primeira coisa que Béco fez foi arrancar a gravata, com força:

- Tenho ódio de terno e gravata - disse.

Não é esse, com certeza, em meio a um cenário de sutilezas japonesas e lembranças bonitas, o melhor momento para protestar contra um pequeno detalhe do triste dia do enterro de meu Béco. Mas vá lá: achei um absurdo, fiquei horrorizada, quando soube que o vestiram com terno e gravata. Quem sou eu para conhecer - e mesmo para acreditar - alguns mistérios do universo, mas pensei, com ternura, comigo mesma:

- Se daqui do esquife ele tiver que se apresentar em algum outro lugar, alguma outra dimensão, outra esfera, vai ficar furioso em se ver nesses trajes.

Por favor, que me venham agora só as boas imagens de uma inesquecível lua-de-mel. A bem da verdade, a Fórmula 1 tem a esperteza de deixar para o final da temporada dois grandes prêmios no Oriente e, entre eles, duas semanas que acabam virando uma espécie de deliciosas férias antecipadas para aqueles pobres-diabos que passam o ano inteiro se ralando no asfalto das pistas. Até lá, o campeonato costuma já estar mais ou menos decidido - como foi o caso do de 1993, com a vitória do Alain Prost. Aí, é escolher no mapa um daqueles pedacinhos do paraíso sobre a terra, relaxar e desfrutar.

Antes, Ayrton preferia Bali, na Indonésia - point escolhido pelos pilotos e por alguns descolados do jet set internacional. Sei até que houve vezes em que não foi desacompanhado. A conselho de Luiza e Braga e em homenagem a mim, mudou de rota. Bora-Bora, um recanto delicioso no Taiti. Iríamos com o Christian Fittipaldi e a Mariana, namorada dele, mas à última hora eles seguiram a trilha mais próxima para Bali. Quando digo homenagem a mim, é para valer. Béco odeia esse entra-e-sai de aroportos e era o que esperava por nós. Tóquio-Wellington, na Nova Zelândia. Wellington-Papetee, no Taiti. Dali, num aviãozinho até Bora-Bora. Enfim, um barco até o hotel que tínhamos reservado e que ficava numa ilhota isolada. Milhas e milhas de vôo. Bota sacrifício nisso. Mas estávamos felizes:

- Nós dois sozinhos. É uma loucura.

A saída dele de Tóquio indicava também que se refugiaria, por alguns dias, de um problema. Aquele "discuti com um irlandês louco" ao qual ele tinha se referido, rapidamente, na verdade foi bem além daquilo. Irritado porque o Eddie Irvine, da Jordan, lhe fechava a porta para ultrapassagem, em Suzuka, contrariando o acordo de cavalheiros de que quem está muito atrás deve deixar passar os primeiros. Mais do que isso, com a arriscada manobra que o próprio Irvine fez, depois da ultrapassagem de Senna, de retomar a dianteira, o nosso conhecido esquentadinho só esperou o final da prova para ir ao boxe da Jordan e encher a cara do irlandês de pancada. "Você  não é um piloto, é um idiota", disse Senna, depois de engolir algumas provocações de péssimo gosto do próprio idiota.

Eu conseguia imaginar a cena direitinho, tão familiar ela era para mim - a fúria, o direto de direita e as lágrimas posteriores, misturando raiva e arrependimento. Quando Ayrton me contou em detalhes, muito depois, calminho, ele acrescentou uma única novidade, a que mostrava como era verdadeiro o que ele dizia de Irvine.

- Ele bateu em mim... O Senna me agrediu... O Senna - repetia o pateta da Jordan, como se o soco fosse um valioso troféu para ele.

O problema é que a FIA resolveu punir "o agressor" e até no Taiti; à nossa chegada - enquanto éramos festivamente recepcionados com aqueles típicos colares de flores, mulheres a caráter, com seus vestidos estampados e ibiscos nos cabelos, e uma orquestra de cítaras e atabaques -, jornalistas esperavam por ele para falar do assunto. Não sei se por causa dos jornalistas, do colar de flores ou do probleminha com o passaporte dele - ele mostrou o do principado de Mônaco, vermelho, que  eventualmente usava, e achou que não precisava de visto -, o fato é que deu uma crise de espirros nele, de pura alergia. Pediu desculpas para retirar o colar, pediu desculpas por desconhecer o tema Irvine-FIA e foi se explicar sobre o passaporte - mas não há burocracia que não se resolva imediatamente à simples menção do nome Senna.

Entramos no clima. Sarongues, homens e mulheres descalços e uma delas, lindíssima, só para nos recepcionar e levar ao hotel. Mais um colar, só que desta vez de conchas. À chegada, mais música, a surpresa de encontrar, do outro lado do mundo, um gerente brasileiro, o Bernard, e o deslumbramento de um quarto tipo bangalô falsamente rústico, na verdade uma palafita fincada no mar, chão de madeira, móveis de vime, varanda e, bem no meio do quarto, um enorme quadrado de vidro mostrando que você dormia sobre a água do mar. Um sonho. Bingo: Luiza e Braga acertaram de novo.

Quando acordamos no dia seguinte, ele já tinha virado e revirado a programação do hotel, mas, é claro, elegeu de cara uma. Foi eu acordar e ele já estava preparado:

- Tem aí um jet-ski pra nós. Vamos?

Sumimos naquela imensidão dos mares do sul. Estacionamos numa ilha de areia branquíssima, estranha, com a água que mudava de tom - azul-claro, azul-turquesa, turmalina. Dava para ver o fundo do mar. Peixinhos e estrelas-do-mar. De volta ao jet-ski, escutamos, de repente, um barulho esquisito, de impacto - e ele parou,  assustado:

- Meu Deus, que será?

Conseguimos parar numa pedra. Simplesmente a gente estava no meio de uma barreira de coral. Não tinha como tirar o jet-ski dali. Ele achou melhor ir em frente:

- Vamos tentar passar a barreira de coral.

- Mas e depois? Pra voltar?

- Se a gente passar, a gente volta.

Fomos indo devagar, explorando minuciosamente as brechas, a água já não era tão cristalina, o céu começava a fechar, com uma garoinha chata. Resumindo: estávamos em alto-mar. Vocês têm idéia do tamanho do oceano Pacífico? Bom, era do tamanho do meu pânico. O jet-ski seguia em alguma direção, mas novas emoções teriam de haver, como aquela mancha negra, enorme, que de repente escureceu todo o mar, abaixo de nós. Ele me tranqüilizou: era uma arraia gigante, como jamais eu podia imaginar existir, mas bichinho inofensivo. Com o jet-ski, começou a perseguir a arraia, que, nervosa, dava rabadas na água. Aquela mania dele de acelerar. Rodamos, rodamos, rodamos, e alguma mão invisível e misteriosa nos fez voltar direitinho para nosso hotel, sem antes a repetição daquela experiência raspa-aqui, engancha-ali da barreira de coral. A mesma mão invisível e misteriosa nos poupou de outro probleminha: a cinco metros do píer, acabou a gasolina do jet-ski. Felizmente, estávamos em casa. Em alto-mar, não tínhamos cruzado com vivalma. Talvez estivéssemos até hoje, náufragos, em andrajos, cabeludos, vivendo em alguma ilhota da Polinésia - o que, para mim, seria o máximo.

Praia, piscina, vôlei, quadra de tênis, restaurante típico com deliciosos pratos de frutos do mar e outro, de fast food, butiques de roupas carésimas - o hotel tinha muitas atrações para os hóspedes, quase todos japoneses, e, naqueles dias, a julgar pela quantidade de flashes e pelos pedidos de autógrafo, um forte chamariz a mais: Ayrton Senna. Como estava ali a passeio e não a negócios, Béco, arisco, me puxou pelo braço e nos exilamos no nosso delicioso quarto. Encomendamos uma montanha de vídeos. A pedido dele, fãzoca do Dustin Hoffman, vimos Hook (no Brasil, A Volta do Capitão Gancho). Por capricho meu, botei Thelma & Louise. Digo capricho porque já tinha  visto e agora queria ver a reação dele. Senti-o revirar demais na cama:

- Você está gostando? - me perguntou.

- Adorando.

Volta e meia, ele deixava escapar:

- Mulherzinha safada... Que mulher...

E eu me fazendo de desentendida.

O programa do dia seguinte era imperdível: dar comida aos tubarões. Era o hit do hotel. Quem acordou primeiro, excitadíssima, fui eu:

- Vamos?

- Não estou muito bem - queixou-se ele.

Armei-me de um óleo de coco especial, que queima legal, de tom avermelhado, bronze mesmo, da máquina fotográfica ganha no Japão, e nos metemos num barco, com outros hóspedes. Só falar em dar de comer a tubarões já era uma descarga de adrenalina total, mas senti que o Ayrton estava num outro clima. Três nativos, com aqueles calções da linha fio-dental, amarraram o barco numa pedra, com uma corda que ficava boiando na superfície da água. Cada um de nós ganhou um snorkel e máscara e a  idéia era que ficássemos ali, agarrados na corda, mas com a cabeça mergulhada na água. A emoção ia começar.

Os nativos mergulham e jogam um determinado tipo de líquido na água. Junta um monte de peixes - de cores, tipos e tamanhos diferentes. Aí, nos dão um pouco de carne e o que acontece é que os peixes vêm comer, na nossa mão. O Ayrton tinha comprado uma máquina para fotos submarinas e se esbaldava. Mas perguntava a toda hora:

- Cadê o bichão? Cadê o bichão?

Logo, o bichão apareceu. Foram os nativos acenarem com uns nacões de carne crua, como aquelas picanhas mal-passadas de restaurante, que alguns espectros enormes, escuros, despontaram na água. Quem é que disse que os hóspedes ficaram lá, segurando na cordinha? Subiu todo mundo às pressas no barco. Mas dava para ver os tubarões arrancando das mãos dos nativos os nacos de carne pingando sangue. Os nativos não demonstravam medo. Chegavam a afagar aquelas feras. Um deles pegou um bichão pela barbatana, montou nele e saiu navegando, como se fosse  um golfinho. O tubarão não estava feliz, visivelmente, mas o nativo nos confessou seu truque: agarrando só uma das barbatanas laterais, ele tem como virar a boca e morder; mas, prendendo-o tanto pela barbatana do lado como pela de cima, ele fica seguro e você consegue até dirigi-lo para onde quiser. Coisa do tipo festa do peão de boiadeiro num mar de tubarões.

Mais à frente, paramos para dar de comer às arraias. Monstros enormes, de mais de um metro de diâmetro. Mansinhas, inofensivas. O Ayrton passava a mão no peito delas, elas ficavam quase na vertical, como se curtissem aquele carinho. Ele teve uma recaída:

- Se soubesse que elas são assim, eu não teria assustado aquela, ontem.

Só de palhaçada, um dos nativos surrupiou meu precioso óleo e se lambuzou, ele que já tinha aquela cor de polinésio do Gauguin. O Ayrton riu, mas senti que ele fraquejava. Crise mesmo foi a que teve, ao chegar. Vômitos, corridas de dois em dois minutos ao banheiro. Chamei o Bernard, que chamou o médico. Ele veio no figurino local: roupa branca, mas pés descalços. Ayrton tentou amenizar:

- Deve ter sido o sol e mais alguma coisa que comi.

O fato é que, nos dois dias seguintes, tomamos um chá de cama - eu, no duplo papel de enfermeira e de mulher carinhosa, cuidadosa, preocupada - o tempo todo cuidando dele. Intuição feminina: disse a ele para tomar Coca-Cola. Ele me contrariou na hora:

- Coca-Cola?

Bem, antes de sair, o médico ministrou, além dos remédios, um conselho:

-... e tome uma Coca-Cola.

Ele ainda muito fraco, tomamos o caminho para a Austrália, onde o circo da Fórmula 1 ia fazer as despedidas da temporada de 1993. E onde Ayrton ia dar adeus a seus proveitosos e emocionantes seis anos de McLaren. Percebi que tinha voltado a ser ele na escala na Nova Zelândia. Enquanto esperávamos pela conexão, entrou numa loja do free shop. E comprou o quê? Chegou perto de mim com um cinto de couro. "Gostou?" "Gostei." Mandou embrulhar uma dúzia.

Uma bela massagem do Joseph, em Adelaide, colocou-o de vez no prumo. Uma hora e meia daquilo que parecia ser uma pura tortura. Mas era um craque, o Joseph. Eu bem que, certas vezes, tentei aliviar o Ayrton de uma ou outra dor, especialmente de torcicolo - seqüela de tantos anos de tensão e corrida, dizia ele, e argumento definitivo para jamais se imaginar naqueles circuitos ovais da Indy, em que seu pescoço fica sempre inclinado para o mesmo lado. Mas ele pedia:

- Aperta mais!

Até tive algumas aulas com o Joseph, mas senti que jamais chegaria lá.

É chover no molhado dizer que, naquele último dia de temporada, na Austrália, os olhares todos se convergiam para a McLaren. Um enxame. Acordei cedo, excepcionalmente, ainda passei para pegar as fotos reveladas de nossa viagem ao Taiti, mas cheguei a tempo de romper a barreira dos repórteres e entrar no boxe.

- E aí, o carro?

- Está bom, mas, de repente...

Ele era o pole-position. O seu futuro na Williams já estava acertado, em segredo. Mas, para a imprensa, ficava a dúvida: seria aquela a última corrida de Ayrton Senna? Nos bastidores da F1, nem sempre se sabe das coisas mais banais. Por exemplo, do regimental pipi dos pilotos. Por  ansiedade mas também por cautela, quando faltam ali uns dez minutos para a largada, saem todos correndo para se aliviar. Duas horas de prisão no cockpit, é melhor se prevenir. Béco viu aquele rio de repórteres de uma janelinha do motor home, desistiu:

- Não vou.

- Como não vai? Está maluco?

- Eu não vou, mas você vai me ajudar. Pega uns copinhos, quantos você encontrar.

Copinhos de plástico, saí eu gritando. Já todo vestido, com o macacão, ajeita aqui, ajeita ali, ele encheu três copinhos. Saí sorrateira, para dar o destino conveniente, quando o Joseph me flagrou:

- Beer?

- É, cerveja - brinquei.

Ele bem que ia atacar os copinhos. Arranquei-os da  mão dele. Voltei para dar um beijo de boa sorte no Béco e me vi, meio ridícula, fazendo a linha daqueles adesivos de carro, tipo "não corra, papai". Sei lá o que foi, é que todos aqueles dias tinham sido tão magníficos que não queria vê-lo correr muitos riscos. Eu mesma me senti mais nervosa do que nunca. Assisti da cabine da TV Globo, ao lado da Daniela, namorada do Rubinho Barrichello. Ele, na frente, lindo, tranqüilo. Nunca tinha visto uma cena de pódio de perto. Faltavam ainda algumas voltas. Chamei a Daniela e me armei de coragem:

- Vamos?

Eu estava no boxe da McLaren quando ele recebeu a bandeirada de chegada. É emocionante perceber no rosto daquela equipe cansada o sinal de um trabalho recompensado. Foi a primeira e a última vez que pude sentir isso de tão perto. O Jô Ramirez, chefe da equipe, me levantou nos braços. Ficamos na fila do gargarejo. Ele chegou ao pódio cansado mas feliz. Deu a mão ao Prost, segundo na corrida, primeiro no campeonato. E o puxou para o lado dele. Abraçou-o e levantou a mão do tetracampeão do mundo. Homenagem de craque para craque. Depois, os hinos, as fotos, o champanhe - que, aliás, sobrou para nós, pois ele nos reconheceu, lá embaixo. Jô Ramirez, "o Espanhol", como Ayrton o chamava, chorava, ensopado de Moët & Chandon.

- Obrigado, esta corrida era muito importante para mim e para minha equipe - foi a primeira coisa que ele disse ao Ayrton, de volta ao boxe.

Prost era o campeão do mundo. Mas, na soma dos pontos do campeonato, a McLaren conseguiu chegar em primeiro, entre as escuderias.

As despedidas haviam começado três dias antes - com um barbecue oferecido pela McLaren, na quinta-feira, ali mesmo perto da pista. Ao passarmos diante do boxe da Williams, Ayrton pediu para parar o carro. Desceu, cumprimentou o Frank Williams, conversaram por dois minutos. De novo, encontrou Prost e o cumprimentou. Na festa, o Ramirez fez um discurso comovido. Pediu que o Ayrton subisse ao palco. Entregou-lhe um quadro enorme, uma colagem de fotos pequenas com os melhores momentos dele na McLaren. Ayrton agradeceu, emocionado. Na verdade, todos nós chorávamos.

- Minha vida é de aventuras e lutas - disse ele. - Estou de mudança. Mas meu coração fica na McLaren. Quando parecia terminado, um videolaser com cenas da carreira dele, vitórias, sustos, a intimidade dos boxes, flagrantes, ultrapassagens, derrapagens, bandeiradas, pódio, bandeiras do Brasil, tudo - e a musiquinha-tema da Globo no fundo.

- Chega, vou ter um enfarte - ele implorava. Choradeira geral e irrestrita. Para mudar o humor, Ayrton avisou:

- Depois da corrida, o jantar será por minha conta. Para todos os que estão aqui.

Assim como eu continuava com minha mania de McDonald's - e em Adelaide consegui arrastá-lo até um -, ele era do mundo da massa. Domingo, no restaurante italiano La Trattorìa, em que todos comeram e beberam até de madrugada, Jô Ramirez, sempre o Espanhol, deu-lhe um último presente: um volante da McLaren.

Enquanto seguíamos para o hotel, a pé, ele segurando aquele volante como se fosse um fetiche de criança, eu o sentia dividido ao meio:

- É difícil para mim... Muito difícil.

O GP da Austrália foi no dia 7 de novembro. Demos a nós dois dias de descanso em Sydney, para um passeio de lancha no lago e uma bateria de fotos que eu guardo com amor. E já aquela aflição de encher as malas com presentes para o Natal. Adivinha que tipo de restaurante ele procurou, até cansar, para me levar? Um italiano, é claro. Adivinha para onde eu escapei, um dia, na hora do almoço? Bem, nem preciso falar, para não ficar parecendo um comercial.

A caminho do Brasil, ele me avisou que ainda tinha um compromisso beneficente a cumprir, em prol de uma fundação de crianças carentes, em Bercy, na França - início de dezembro. Íamos juntos. Uma prova de kart. Sabem contra quem? Além das feras da Fórmula 1 e de outras modalidades profissionais ou semi-profissionais, uma  fera especial: Alain Prost. Ayrton comportou-se como quando tinha 14 anos e se melecava com a graxa de seu kart. Mexeu e remexeu em tudo, deixando o mecânico enlouquecido. Aquela coisa competitiva dele. É um barato a barulheira do kart, mas tive de pedir emprestado um protetor de ouvidos especial, do cineasta e nosso amigão Waltinho Moreira Salles - ex-corredor e um dos raros torcedores canarinhos ali presente.

No final da brincadeira, Béco se queixou de dores nas costas:

- Acho que tô ficando velho...

(Dias depois, teríamos uma grata surpresa em Angra: um protetor de costas para kartistas. Presente do Waltinho.)

Claro que as duas baterias da corrida viraram um duelo Senna versus Prost. Mas aquele era, decididamente, o ano do francês. Talvez sirva de relativo consolo: 1993 foi o ano em que ele me ganhou.

Sentada displicentemente sobre um pneu esquecido por ali, num canto, enregelada pelo frio do inverno inglês, eu fui a única testemunha, no início de dezembro de 1993, do mais bem guardado segredo da Fórmula 1. O cenário era um galpão enorme que servia de oficina para a escuderia Williams/Renault, a algumas centenas de milhas de Londres. Um silencioso mas atento Frank Williams, o dono da casa, recepcionava, ao lado de não mais do que três ou quatro projetistas e engenheiros do mais alto escalão e da mais absoluta confiança, aquele que ele jamais escondera ser o seu filho dileto nas pistas.

Nada assinado, no papel, aparentemente - embora a imprensa já pressentisse a espetacular notícia e farejasse a novidade, em tocaia permanente. Depois de seis anos de McLaren, Ayrton Senna ia trocar de veículo, ia mudar de camisa. Ele me confidenciava, mas em doses de conta-gotas, os convites que recebera (Benetton, Ferrari, Williams, a própria McLaren) e comentava por alto o drama que vivia com a escolha provável - de trocar o certo da McLaren pelo desconhecido da Williams. De mais a mais, as más-línguas faziam esparramar o veneno de que a transferência perigava. Por ironia do destino, Ayrton estava nas mãos do "francês". Se ele decidisse continuar a correr, tchau Williams. Mas Alain Prost estava de saída da Williams e das pistas, parecia certo; supostamente, por uma cláusula contratual qualquer ou então por sua influência junto aos compatriotas da Renault, o fato é que o francês aceitaria a idéia de entregar sua máquina voadora a não importa que piloto, com exceção de seu arquirrival brasileiro. Por um momento, até o próprio Ayrton chegou a acreditar na versão venenosa.

A realidade, porém, é que, cercado de todo o sigilo possível, lá estava Ayrton, em pessoa, na fábrica da Williams, pronto para cumprir o primeiro e mais elementar dos ritos de iniciação de um novo piloto numa nova escuderia. Meticuloso que só ele, vestiu macacão, luva, capacete, sapatilha - e se meteu dentro do cockpit do seu futuro carro como se já fosse acelerar para a largada. Cockpit, ou em outras palavras, a carcaça, só aquela parte externa, com o banco mas sem motor, sem nada que pudesse botar em movimento o Williams por meio metro, que fosse. A partir do protótipo, aí sim, os engenheiros tratariam de construir o motor, a suspensão, os aerofólios, todos os componentes da aerodinâmica. Era só um teste, por assim dizer, ergométrico - se bem que de alto significado psicológico. Saber se Senna se sentia à vontade lá dentro.

Eu tremia de frio, e ele cumpriu, por quarenta minutos siberianos, os pré-requisitos com a paciência de um profissional do detalhe.

- Está me apertando aqui - reclamava ele, e vinha um projetista assinalar com giz o lugar onde a carcaça tinha de ser modificada.

- Isso aqui não está confortável - ressentia ele - e mais uma marca de giz.

Ao final, o cockpit estava todo riscado, enquanto Frank Williams, sempre em silêncio, em sua cadeira de rodas, só confirmava com a cabeça, dizendo sim ao que poderia parecer mero capricho de um menino mimado. Quando a sessão acabou, o Ayrton meio obcecado pôde se dar ao direito de uma piadinha típica de Béco, sussurrando em português  ao meu ouvido:

- Acho que estão acostumados com um cara mais baixinho - brincou, puxando-me pela mão. A vítima da perfídia vocês sabem quem é, não sabem?

Fizemos um tour pela nova casa: o galpão gigantesco, os laboratórios onde engenheiros simulavam exercícios de aerodinâmica e desempenho em seus mapas de computação gráfica, fomos até o escritório do chefão, Frank, para umas boas-vindas calorosas, ainda que extra-oficiais. Estava lá uma filha dele, lindíssima, a quem me apresentaram. Tive a melhor impressão do novo patrão. No seu jeitão observador e reservado, sabia ser cordial como ninguém. Um gentleman à inglesa.

Irrecusável a vontade de compará-lo com Ron Dennis, o chefe da McLaren, com aquela sua ciclotimia, sua postura imprevisível, seu temperamento irritadiço alternando-se, sem quê nem por quê, com súbitas gargalhadas. Ayrton e Ron tiveram muito tempo juntos para descobrirem uma forma de convivência entre eles. Eu, que o vi meia dúzia de vezes, por pouco mais de um ano, não conseguia entender, por exemplo, que Ron continuasse a sorrir em ocasiões em que o carro do Béco abandonava uma ou outra prova. Era demais para minha cabeça.

Quem fazia a diferença, porém, era um homem chamado Ayrton Senna. Isso eu pude sentir de perto - como ninguém. A diferença tinha um nome: talento. E o talento tinha uma conseqüência: respeito. Campeão do mundo, uma, duas, três vezes, ele se metia debaixo do carro para discutir com o menos graduado mecânico a posição correta da porca. Ia à loucura com os designers em debates do tipo "isso aqui tem de ser reto", e o outro dizendo "não, ondulado" - e não havia Cristo que fizesse Ayrton  mudar de idéia. Quantas vezes ele não implicou com a textura dos pneus? Como um gênio, quase nunca errava. Com o temperamental Ron Dennis, até 1993, ou com o plácido  Frank Williams, em 1994, ele impunha o conhecimento de anos e anos de mãos metidas na graxa e de dedos calejados pelas trepidações dos volantes.

Um documentário exibido pela televisão italiana, mostrando uma reunião de Frank, engenheiros e seu piloto número 1, às vésperas da tragédia de Ímola, ressaltava o estilo Senna. Ele batia pé firme, a propósito do que poderia parecer uma besteirinha qualquer, coisa de pneus, por aí: - Façam como ele quer - decretou o velho Frank. Posso testemunhar, porém, que a admiração e o respeito eram recíprocos:

- Frank é um verdadeiro chefe de equipe - disse-me ele, certa vez, dando toda ênfase à palavra chefe e suas implicações sobre toda a equipe.

Meu conhecimento sobre automobilismo ia pouco além da minha capacidade de trocar as marchas de meu carro, mas, nos bastidores dos GPs, assisti a muitas cenas como esta, assim como me surpreendi com o teor da adrenalina que circulava pelas artérias de protagonistas e coadjuvantes do grande show. Vi, certa vez, Ayrton quase pulando no pescoço do Giorgio Ascanelli, o projetista da McLaren a quem ele admirava profundamente e costumava chamar de gênio. No calor da prova, ou dos testes, podia acontecer de Ayrton querer pegar Giorgio a tapas, ou vice-versa, em meio a palavrões em italiano que faziam corar até a Cicciolina. No GP da Alemanha, em Hockenheim, Senna teimou que iria entrar na pista com menos gasolina do que sugeria Ascanelli. Vou. Não vai. Testemunhei mais um daqueles episódios de comédia napolitana. Ayrton insistiu e, a duas voltas do final, correndo na frente, o combustível acabou. Reconheceu, com humildade: ponto para o engenheiro. Pois bem, uma vez terminado o circuito, saíam ambos dali aos beijos e abraços. Preciso contar a vocês uma fofoca de bastidores: minha amiga Betise, conversando com Giorgio, certo dia, ouviu dele:

- Vou mandar flores para a Adriane. Depois que ela apareceu na vida dele, a conversa com nosso gênio está bem mais fácil.

A Betise ria, ao me contar isso.

A McLaren deu três títulos mundiais a Ayrton Senna. Ayrton Senna deu três títulos mundiais à McLaren. Impossível desvincular uma coisa da outra. Campeão, sim, estrela jamais, Ayrton reconhecia que a vitória era uma estrada de mão dupla. Devia tanto a Ascanelli que queria porque queria levar para a Williams o homem que construiu com ele o carro vencedor da McLaren. Lamentou muito que não fosse possível. Nas poucas provas de que participou em 1994, sempre foi levar seu abraço, no boxe "inimigo", ao seu craque de parceria.

Poucas semanas antes da welcome visit à Williams, Ayrton tinha chorado com a comovida despedida que o staff da McLaren preparou para ele, logo após o GP da Austrália  - o último da temporada de 1993, sua última vitória nas pistas. Agora, ele se ligava inteiramente no novo desafio. Do primeiro encontro secreto Ayrton-Williams, no inverno horroroso da Inglaterra, a mais nítida impressão que ficou na minha cabeça, porém, foi uma frase meio banal, solta ao vento, que ele me disse tão logo tomamos o caminho de Londres e, de lá, para a temporada tropical de férias e fim de ano no Brasil:

- Sei lá, Dri. Achei esse carro meio esquisito: mais fino e mais baixo.

No primeiro teste público, aí já em 1994, ele repetiria um sentimento ruim:

- Sinto que cheguei aqui com dois anos de atraso. O carro está virando o fio.

Tradução: aquela história do super-piloto com a super-máquina não seria bem assim como estavam falando. Mas, enfim, adeus à fria Londres. O avião embicou para o sul, o sol matinal do Rio veio nos receber, o Natal se aproximava e Angra estava à espera, para uma longa temporada em que eu tinha planos de arrombar o zíper do macacão do piloto Senna, arrancar-lhe a carranca do cenho franzido e testa enrugada, para lhe fazer uns afagos nos pés e mergulhar nas marés do amor do Big Coke, do Becão, do meu garotão de praia - com a devida licença da ciumenta Quinda, tenho de admitir.

Natal, para mim, é um convite à tristeza. Desde que meu pai morreu, em 1989, era como se a festa não existisse. Ele faleceu em outubro, como eu já contei, numa  situação inesperada, de repente - e nossa casa nunca mais foi a mesma. Minha avó materna, Agnes, que morava ao lado, tipo da mulher determinada, uma fortaleza, ainda tentava levantar nosso astral, naquele dia de má memória, recorrendo a velhas receitas de rabanadas e pães húngaros rabiscadas em cadernos antiquíssimos - e, num ano do qual não me lembro, mamãe, que sempre foi mais desanimada que vovó, bem que preparou um peru recheado com farofa e ameixas. Mas a gente não cultivava o ritual da ceia. Era um jantar comum, quem quisesse se servir que se servisse e nada de árvore enfeitada, os presentes ficando esparramados por aqui e por ali. Cada um de nós buscava, no Natal, um certo recolhimento para cicatrizar a nossa grande ferida na alma que era a ausência prematura de papai.

Agora, porém, era diferente. Béco e eu voltamos da Europa, vivíamos sob o mesmo teto no apartamento da Rua Paraguai, compartilhávamos os mesmos amigos, saíamos para jantar invariavelmente juntos, éramos dois namorados na plena acepção da palavra - se não havia aliança de noivado, sobravam intimidades do tipo dormir na mesma cama na casa da mãe e do pai dele, no Pacaembu. Sentia, no íntimo, que ele até gostava de me mostrar um pouquinho. Meu Natal, portanto, seria com ele. Zaza, pessoalmente, reiterou o convite. Quatro ou cinco dias antes,  toda a família se deslocaria para a fazenda de Tatuí, e a festa teria o duplo sentido de celebrar a ceia com filhos, sobrinhos, genros, noras e de inaugurar o casarão novo, todo restaurado.

Árvore de Natal, presentes que se acumulavam ao pé do pinheiro, a expectativa da criançada, os passeios a cavalo por aquele paraíso, as nossas pescarias, as competições de kart na pista particular construída segundo o traçado de quem começara sua carreira ali, a torcida pelo sobrinho Bruno, filho da Viviane e promessa de campeão - naquela preguiça dos compridos cafés da manhã, de almoços deliciosos e cheios de falatório e de tardes iluminadas como aquela em que um fotógrafo italiano, conhecido do Ayrton, fez nosso ensaio amoroso que correu o mundo, resgatei um  pouco da alegria da data do nascimento de Cristo.

Eu me sentia absolutamente em família, com a primazia do lugar de honra ao lado do príncipe da casa. Nem mesmo àquelas eventuais alfinetadas que cheguei a ouvir, em relação a antigas namoradas de Ayrton, especialmente a mais famosa delas, eu quis atribuir alguma intenção malévola. Iludia-me com a idéia de que, no fundo, o que eles - elas, seria mais correto dizer - queriam era me agradar.

O casarão tinha cheiro de novo, entulho das últimas obras e um quarto feito sob medida para nós. Nosso quarto tinha espaço suficiente para resguardar a intimidade recíproca tanto quanto para atulhar os armários de creminhos, loções e lavandas. Como sempre, não estranhei cama ou ambiente, mas fui despertada de madrugada por uma algazarra monumental e pela ausência dele, a meu lado, na cama. Corri para a janela e assisti a uma cena que faria a delícia daquelas câmeras indiscretas de programas como o do Faustão - que, todo domingo, era também, de uma certa maneira, um bem-vindo hóspede nosso.

Resumo rápido: de pijama, o piloto mais carismático e mais circunspecto do mundo perseguia um bando de pavões alvoroçados que, aparentemente (meu sono profundo não me deixou ouvir nada), tinham transferido seu footing e seus papos noturnos para debaixo de nossa janela. Botando fogo pelas narinas, Ayrton os atacava, arremessando-lhes seus chinelos. Em seguida, armou-se de uma vassoura. De um golpe, conseguiu derrubar um bicho, que se refugiara numa árvore. Os outros, pressentindo a arremetida, trataram de bater em retirada. Não sei, sinceramente, se a zoologia me confirma isso, mas a impressão que me ficou, vendo tudo da janela, às gargalhadas, é de que o QI das citadas aves não é dos mais privilegiados. Elas ficavam rodeando a piscina e Ayrton, cada vez mais nervoso, perseguindo-as. Agora, de moto. Ligou o motor e partiu para cima delas, mas os bichos espaventados só produziam ainda maior berreiro. Quando o dia clareou, o surpreendeu naquela inútil e frustrante batalha.

- Vou matar esses desgraçados! - prometeu, voltando para a cama.

Ele tinha o sono leve, levíssimo, e muitas vezes me olhava com o olhar suplicante como o daqueles penitentes que vão a Fátima ou a Aparecida do Norte:

- Me conta sua fórmula. Me empresta um pouquinho de seu sono.

- Se pudesse, eu trocava com você - dizia eu, e olha que a instabilidade das noites mal dormidas dele me preocupava tanto, de fato, que eu faria de verdade a troca. Ele, sim, precisava de descanso. Foi tê-lo, quem sabe, em outro lugar por mim desconhecido.

Ninguém é idiota de imaginar, porém, que um homem cujo trabalho é um risco pior do que o de um trapezista e que trafega pela vida a mais de 300 quilômetros por hora seria do tipo de recostar na cama, fechar os olhos e em dois segundos já estar embalado pelos anjinhos.

Podre de sono, ele implorou ao seu Milton, no café da manhã do dia seguinte, véspera de Natal:

- Pai, dá um jeito nesses pavões. Sei lá: dá de presente, manda embora.

O senhor Milton me dava a impressão de um homem seco, muito discreto, às vezes impenetrável, mas que não se deixava convencer com muita facilidade. Assim como foi ele quem fez de Ayrton um automobilista, era ele agora quem tentava manter a tradição dinástica da família, depositando todas as esperanças no neto Bruno. Aos 12 anos, Bruno corria de kart e já tinha alguns títulos no seu currículo. Assim como tinha também - e me confidenciou, a meia voz, naqueles dias por lá - certas dúvidas se sua vocação era de fato aquela. Mas, se for o avô a decidir que ele vai ser piloto ou, digamos, jogador de squash, eu não teria dúvidas em apostar que daqui a alguns anos Bruno Senna estará percorrendo, com seu nome poderoso, as pistas ou competindo nas quadras.

Fiquei com peninha dos pavões, mas, salvo um casal, que sobrou para contar a história, foram todos despachados para outra freguesia, especialmente depois que o Ayrton descobriu mais uma deles. Ficava num galpão uma motinha normal, 250 cilindradas. Os bichos entravam lá, viam-se refletidos no reservatório de gasolina e, de tão assustados, passavam a atacar. Resultado: as bicadas furaram o reservatório. Até o senhor Milton se deixou convencer. Hoje eu sou capaz de imaginar que, se não fosse por sua  beleza, os pavões teriam ficado do lado de fora da arca do bom Noé.

Aquele agito todo na casa, dia 24, Zaza animadíssima com o jantar, que, por causa das crianças, seria mais cedo, mas o Béco teve a sutil percepção de que a nuvem negra voltava a se formar em cima da minha cabeça:

- Dri, você não prefere passar a meia-noite com sua mãe?

Meu coração balançava entre estar ali, ao lado do meu amado, e estar em São Paulo, junto ao leito de minha avó. Pedi um tempo para pensar. De repente, me deu um estalo:

- Vou sim. Acho que devo ir.

Troquei de roupa, Zazá me emprestou seu carro, uma Quantum, e, de uma gentileza que só vendo, ainda mandou umas lembrancinhas para minha família. Ayrton me acompanhou, preocupado, até o carro. Pediu para eu ligar tão logo chegasse. Corri para o quarto de minha avó. Eu a amava intensamente. Vivia me cobrando casamento. "Quero ver tudo preto no branco", divertia-se. Vizinha de parede, sempre soube muito de minha vida e de meus amores - que foram poucos, diga-se. Encontrei-a inerte, no leito, incapaz de dizer palavras com os lábios, mas apta a expressar grandes sentimentos com os olhos. Foi assim meu Natal de 1993, na cabeceira de minha vó, nos seus 80 anos de idade. Não me arrependo. No dia 26 de janeiro, um mês e dois dias depois, vovó descansou  para sempre.

Perdi em 1994 duas pessoas que amo muito. O que reforça minha tristeza de Natal. Vou passar o próximo com a cabeça enfiada num travesseiro.

Nunca fui a terreiro de babalaô, não conheço meus orixás, não fiz despacho em encruzilhada e jamais sobrecarreguei Iemanjá, a mãe das águas, com muitos pedidos de fim de ano, mas, brasileira que sou, gosto de usar branco no réveillon, deposito uma rosa no mar, faço um desejo de coração e adoro aquela hora dos beijos, abraços e espoucar de fogos. A tristeza que me invade no Natal explode em pura euforia na virada do ano e, de 1993 para 1994, em especial, eu tinha tudo o que comemorar.  Tudo quer dizer: estava com o Ayrton em Angra. O resto era acessório.

Até mesmo o tempo, oscilando entre a chuva e o céu estrelado, não me importava. Sentia-me, mais do que em qualquer outro lugar, em casa. Viviane, o Lalli (Flávio é o primeiro nome do marido dela) e os filhos foram. O Leonardo. Os amigos da velha-guarda e de sempre: Israel Klabin, Luiza e o Braga, muitos outros. O Clube dos Amigos do Béco: Criminoso, com sua namorada, Magali, Júnior, Gordinho e a mulher, Gisela, Alfredo... Angra era um social só: muita gente se conhecia, os convites se entrecruzavam, as lanchas circulavam entre aquelas ilhas como as pessoas circulam entre as mesas dos bares da moda. O Ayrton sugeriu que fôssemos à festa do Alexandre (a gente o chamava de Xande Campineiro), depois que me viu arrumada. Queimada do sol dos dias anteriores, eu carreguei no branco: minissaia, meia, blusa tipo rede de pescador, tênis. O contraste, sem pretensão, me deixou bonita. Béco foi generoso:

- É um desperdício deixá-la em casa assim. Agarrei-me no pescoço dele, naquele horário da Cinderela. Lembrei-me de um casal amigo dele que nos visitou em casa, muitos meses atrás, com uma filhinha que devia ter seus 5, 6 anos no máximo. Na hora de se despedir do seu ídolo, ela cobriu-lhe o pescoço de beijos, mil, milhares - a menininha. Ainda desconcertado, Béco comentou tão logo eles partiram:

- Tanto beijo que eu casava com ela, agora, no ato. Meia-noite, e a beijoqueira agora era uma meninona de 20 anos; mil, milhares de beijos no pescoço, sem medo de repetir "eu te amo, eu te amo..." Uma rosa branca ao mar e um pedido em segredo. Segredo, já não é mais. Pedia que meu amor por ele não morresse, que ele continuasse sempre a meu lado. Quem sou eu para dizer que o pedido não se cumpriu?

Ainda não consigo acreditar no que aconteceu. Tudo tão repentino, tão horroroso, tão sem nexo. Olho as fotos dele, que me perseguem ao redor, e tudo perde o sentido. Mas, quando a noite cai, a solidão aperta e algumas páginas da Bíblia atenuam minha amargura. Eu me curvo ao destino da rosa branca arremessada ao mar de Angra. Seja como for, o amor por ele não morrerá. Seja como for, ele continuará perpetuamente a meu lado.

- Você sabe mergulhar?

Bem, convite é que não poderia ser, àquelas dez e tanto da noite. Talvez uma curiosidade saudável de quem, muito saudável aos seus 89 anos de idade, não se arriscava a pilotar um veículo a 300 quilômetros por hora mas era conhecido nas redondezas por se meter no mar até 15 pés de profundidade.

- Nunca tentei de verdade, doutor Roberto. Tive um problema no ouvido, não me sinto bem muito tempo debaixo d'água.

Como o doutor Roberto repetisse pelo menos mais umas cinco vezes a mesma pergunta ao Béco, naquela noite, das duas, uma: ou era de fato um desafio, quase uma inconformidade dele ao ver um jovem tão rijo de músculo e tão esbelto de postura não se maravilhar com um esporte que o põe em contato com os grandes mistérios e maravilhas do mar; ou então era o doutor Roberto que, por distração mesmo, estava repetindo a mesma pergunta.

Por via das dúvidas, Ayrton sempre foi delicado, declinando suas outras preferências esportivas. O verão de Angra era assim, uma espécie de open house para os que tinham condução própria - leia-se, iates, lanchas, barcos -, uma festa permanente sobre as águas e à beira dos píers. O doutor Roberto em questão tem o sobrenome Marinho, uma adorável mulher chamada Lily e um inegável prestígio dentro e além da baía de Angra. Ele era o anfitrião de um daqueles jantares tardios da alta temporada, em que a Lua quase dispensa os candelabros e os vaga-lumes competem em agilidade com a rapidez dos garçons.

Esportista, famoso, com boas histórias para contar, Ayrton era um convidado freqüente, e naquela noite mais uma vez fomos, tendo cometido o erro, eu e ele, de nos atrasarmos numa cena de amor numa praia quase deserta, propositalmente exagerada quando percebemos que um par de senhores idosos nos olhavam, saudosos e enlevados. Perdemos, desse modo, o almoço da Maria, trocamos de roupa em velocidade recorde e embarcamos em disparada, sem botar um único sanduichinho na boca, no Joanna II, em direção à casa de dona Lily do doutor Roberto.

Chegamos varados de fome. Havia um pequeno grupo de notáveis, mas foi a presença de Sylvia e Paulo Maluf que nos fez trocar um olhar de cúmplice interrogação.

Mais ou menos, o que eu dizia a ele, e o que ele dizia a mim, era o seguinte: doutor Paulo, para nós, é um amigo adorável, assim como dona Sylvia, duas pessoas que nos tratam como se fôssemos filhos delas, porém, ao mesmo tempo, a presença do prefeito de São Paulo era a quase garantia de que a conversa ia escorrer por horas e horas. E como ia ficar nosso condoído estômago?

A bisque de homard demorou, no entanto, estava uma delícia. Havia mariscos em profusão. Não provei os vinhos, mas a fisionomia dos convivas sugeria um néctar dos deuses. Despedimo-nos às pressas, cansados mas homenageados, quando ainda ouvi o doutor Roberto tocar, por uma derradeira vez, junto ao Ayrton, no assunto do mergulho submarino. O jantar foi superior, porém Ayrton era heavy metal em matéria de comida. Quando chegamos em casa, tenho a impressão de ter ouvido alguém fuçando alguma coisa na geladeira.

O mundo de Ayrton Senna era a casa de Ayrton Senna. Angra andava a mil, naquele mês de janeiro de 1994, com exposições náuticas e a ilha de Caras, mas o que ele queria era sol e água fresca. Explorávamos ilhas distantes e enroscávamos em praias desertas. Recordo-me, em êxtase, do dia em que os beijos ardentes que nós tínhamos só ensaiado sobre a areia prosseguiriam no sacolejo das ondas, dentro da lancha, nós dois sozinhos. Dos beijos e dos sacolejos  nasceu a ânsia do amor. Lembro-me também daquela urgência de peças de roupas arrancadas, braços entrelaça dos, unhas cravadas, leme abandonado, nau sem rumo. Brotou um amor selvagem, irresistível, incontrolável - taí, eu digo com todo o orgulho de mulher amada, um Ayrton que ninguém experimentou.

Um dia, um susto. Da praia, cochilando sobre minha canga, no aconchego daquele verão a mil, eu me esquecia da vida, enquanto ele dava vazão a sua inesgotável energia. Era um daqueles seus dias de speedy Béco - pensando bem, qual é que não era? Sempre no mar, sempre em busca de emoção e velocidade. Lancha, ski, o que fosse. Cauteloso, porém, com um colete salva-vidas, ele se divertia no slalom, saltando sobre as ondas, fazendo manobras radicais, enquanto era puxado pelo jet-ski. De repente, uma curva mais fechada, um rodopio forçado e várias piruetas no ar. A Quinda, ao meu lado, deu o alarme.

Socorrido, voltou para o píer com o tórax encurvado e uma expressão de muita dor no rosto:

- Ai, ai - gritava, enquanto se recostava na areia.

O impacto na água fora tão forte que lhe faltava ar. Eu corri para ele. Corre-corre para lhe trazer água, um suco, sei lá. Não é exagero meu: foi uma semana inteira de ais e quase total inatividade. Mandou buscar de helicóptero, em São Paulo, sua fisioterapeuta, a Elaine. Instalou-a no Clube Med, ali pertinho, e a partir  daí não houve um dia em que ele dispensasse seis horas, marcadas no relógio, de massagens, exercícios abdominais, ginásticas específicas para as costas e os ombros, choques frios e quentes. Parou com tudo, exceto com as corridas matinais, no píer da Petrobrás - mas, ainda assim, diminuiu o ritmo. Nos bons tempos, ele corria 20 quilômetros naquela pista improvisada, com a desvantagem posterior de que a notícia se espalhou por Angra e arredores e muito candidato a atleta passou a aparecer  para compartilhar daquele exercício matinal com o ídolo. Sorte dele é que ninguém, mesmo os mais fortões, conseguia acompanhá-lo.

- Já estou achando um pouco demais - comentou Maria, mesmo sabendo do seu conhecido medo de se machucar.

Eu tentava animá-lo:

- E aí, Béco, está melhor?

Senti que o susto tinha tido uma função terapêutica. O que aconteceu foi que, naquele paraíso tropical em que a gente se esbaldava, pleno janeiro, férias totais, o Senna piloto tinha subitamente acordado para as responsabilidades que o estariam esperando dali a algumas semanas.

- Preciso estar preparado - me disse. - Tem um carrão aí a minha frente, esperando por mim.

A temporada de Fórmula 1, que só se abriria no final de março, já se impregnara na sua cabeça. Por feliz coincidência, a abertura seria no Brasil - com tudo de bom que isso poderia trazer para o astro Senna. Mas, para azar do Béco, pessoa física, que ainda estava de férias, o Brasil significava antecipar a expectativa da  responsabilidade da estréia em casa.

Aquilo que eu poderia chamar de nosso réveillon se estendeu gloriosamente até 17 de janeiro, num tal clima de paixão e confidências mútuas que meu reservado namorado se permitiu a liberdade de comentar alguns de seus antigos romances - tipo do pré-requisito, imaginei eu, para que o passado ficasse definitivamente arquivado como passado e o presente pudesse ser plenamente vivido como presente.

Eu, que me sentia premiada pelos deuses, jamais quis perfurar aquela carcaça de silêncio e não perguntava nada. Ele não era pessoa de falar nem mesmo de sua infância  - tudo o que soube do garoto Ayrton me foi contado por sua mãe. A rigor, uma única vez antes de Angra, ele comentou comigo, naquele seu vocabulário de sim ou não,  uma notícia que os jornais divulgavam (senti que ele pretendia me tranqüilizar): aquela história de uma suposta filha dele com a modelo Marcella Prado, menina a  quem a mãe botou o expressivo nome de Vitória.

- Passamos um réveion juntos - me confirmou. - Mas não há hipótese de a filha ser minha.

Naquelas noites aconchegantes de Angra, em que o mar vinha praticamente beijar os nossos pés e os murmúrios dos bichos se calavam, ele me falou da Xuxa, do tchans que ela chegou a provocar nele, três anos atrás, da sensação de que o mesmo teria acontecido com ela, e o desfecho muito rápido, meio frustrante. Nunca mais se viram - daí a surpresa quando ela passou, de mãos dadas com a Viviane, diante do túmulo do Sena. Mas Béco me falou dela com carinho, e é por isso que eu me atrevo a reproduzir, aqui, sem a riqueza de detalhes que eu conheci, uma história de amor que não me pertence. Se for uma inconfidência indevida, eu me desculpo.

Ele também me perguntara de meus namorados e eu tinha visto fotos de outras namoradas dele na casa da Luiza e do Braga, em Sintra - algumas duradouras, outras quase sempre passageiras. Não contamos vantagem nem fizemos tabu do passado. Nuno brincava comigo, na frente dele: - Esse aí é um grande mulherengo.

Do tipo quietinho: parece que não é, mas é. Eram ocasiões descontraídas, em que um amigo dele de dez anos visivelmente prestava uma homenagem a mim. Como se dissesse "agora ele é só seu". Disse, uma vez, literalmente, ao fim de uma sessão de ginástica no campus da Universidade de São Paulo, debaixo de uma árvore torta aonde ele gostava de nos levar. "Essa menina dá equilíbrio para você", comentou com o Ayrton, para minha surpresa e acanhamento dele. Percebendo a timidez do discípulo,  Nuno brincou:

- Olha só o biotipo dela. Vocês terão filhos esculturais.

O preparador físico de Ayrton é uma figuraça, um filósofo do corpo e da mente, que tem gente que chama de louco, mas que compreendeu que a vida só pode ser vivida com equilíbrio. Entendo todo o desespero dele diante do caixão, naquele sombrio dia de maio. Quando voltei a falar com o Nuno, um dos poucos amigos do Ayrton que continuaram me procurando, ele me contou que passou dez dias sem comer, cinco dias sem dormir e que só voltou à vida normal porque a mulher e os filhos cobraram-lhe a responsabilidade com a família. Nuno disse mais: que a reação dele era a de um escultor, um Donatello, que de repente visse seu David despedaçado.

- O Ayrton foi minha obra-prima.

Aquele menino raquítico que, em 1984, não agüentava 25 minutos de exercício, mas que precisava de repente se sentar ao volante de um Toleman e resistir a duas horas de prova, que desmaiou ao final de uma corrida na África do Sul, que passou mal em Hockenheim, transformou-se num homem rijo, forte mas elástico, peitoral,  bíceps, tríceps flexíveis, o que faz a diferença desses mastodontes de academia. "O músculo tem de ser inteligente", resumia Nuno.

Privilégio meu sentir isso de perto, juntinha, agarradinha. Concordo com Nuno: um corpo que era uma escultura. Se era assim, por que ter ciúme? Um ídolo mundial, com milhões de mulheres sonhando em estar no meu lugar. E, no entanto, por alguma misteriosa razão, era eu. Seria impossível viver perseguida por um ciúme desse tamanho. Em janeiro de 1994, eu escrevi a ele: "Béco, não me importo de ser a sombra, quando você é a figura; ser a situação quando você é o assunto".

Não é meu, isso. É do marido da Glória Pires, Orlando Moraes, que compôs esta música para ela.

Toda vez que o Ayrton viajava, eu escondia um bilhetinho na sua carteira, ou em algum canto de sua mala. Esse, foi com ele numa daquelas viagens rápidas que ele fez no início do ano, para testes com o Williams novo, na Europa. Tenho anotado na minha agenda: 24 de janeiro, segunda-feira, 18h30, vôo 901 da Varig. Béco chega ao Rio. Dali, direto para Angra. Não pude esperá-lo, dessa vez. Minha avó fora operada cinco dias antes. Tinha um tumor cerebral do tamanho de uma laranja. Estava no hospital, em São Paulo. Fui visitá-la. Ela já não respondia a nenhum estímulo. Uma das pessoas mais vitais que eu conhecera - e, agora, jazia num quarto de hospital, inerte. Eu tinha trazido para ela, de Portugal, um terço de Nossa Senhora de Fátima, feito de pétalas de rosas. Pendurei-o acima da cama dela. Olhei mais uma vez para seu rosto e pensei: ela viveu, sofreu, foi feliz. Chorava e orava. Rezei a Deus, rezei muito. Com todas as minhas forças, pedia pela sua morte.

- Prece... sei lá... uma qualquer! Como é que você deixou que fizessem uma coisa dessas?

Era comigo - o mínimo que ele dizia. Gritava coisas horrorosas. Estava transtornado. Uma fera. Enrolou a revista e a atirou com raiva contra a parede de nosso apartamento na Rua Paraguai. Sentia-me péssima. Muda, paralisada. Tentava resmungar alguma desculpa, mas não saía do "mas... olha aqui...”

Seria inútil qualquer argumento. Calei.

Por uma dezena de vezes eu tomara contato com esse lado desgovernado do Ayrton, mas nunca na condição de vítima ou de pivô da tragédia. As coisas que o tiravam do sério eram adversários nas pistas, carros que quebravam, jornalistas inconvenientes, fãs sem desconfiômetro. Nunca pensei que ia chegar o meu dia.

E dia pior não poderia haver. Bem na semana em que ele ia começar tudo de novo na sua carreira - a semana do GP do Brasil em Interlagos. A revista que ele folheava  raivosamente, dez, vinte vezes, até arremessar na parede, era a edição de Caras, que saiu na quarta-feira. Eu era a capa. Um longo ensaio fotográfico de doze páginas, fotos grandes, belíssimas, feitas pelo Fábio Cabral - eu já tinha tomado a cautela de trabalhar com um profissional da mais absoluta confiança. Às vésperas do GP do Brasil, Caras apresentava, em grande estilo, a namorada do maior  de  todos os ídolos nacionais.

Um ano antes, no dia em que fui pela primeira vez me encontrar com ele naquele mesmo apartamento dos Jardins e dali seguimos juntos para Angra, eu levara debaixo do braço o exemplar de uma revista espanhola chamada Man - ao contrário do que sugere o nome,  nada a ver com Playboy. Era uma revista de muitas fotos, viagens, aventuras. A agência Elite selecionou um time de dez meninas e passamos um par de dias na praia de Camburi, de maiô, ilustrando aquela que seria uma reportagem sobre o litoral brasileiro. Para minha surpresa, fui capa - eu, sozinha. Diante de todo aquele escrete de beldades, entendi a escolha como uma homenagem ao meu sobrenome espanhol. Essas coisas envaidecem uma modelo, é claro, enriquecem seu book e dão um empurrãozinho em sua carreira. Foi por isso que levei a revista até a casa do Ayrton e, orgulhosa, mostrei-a a ele, quando veio a inevitável pergunta: "Como é seu trabalho de modelo?”

Ele adorou. Agora, odiava.

Em um ano de convivência, alguma coisa tinha mudado - e talvez eu não tivesse dado a devida conta. Aquela briga, a primeira que tínhamos, de verdade, me punha diante de um problema de identidade dupla: namorada e modelo.

Esperei que ele serenasse - se e que era possível. Falei calmamente:

- Minha vida inteira, eu trabalhei assim. Não é nenhum mistério, para mim, chegar diante de um fotógrafo e posar, fazer caras e bocas. Trato meu trabalho de uma forma absolutamente profissional. Preciso de dinheiro e preciso trabalhar.

Mas ele voltava a revirar página por página de Caras, apontava aqui e ali, voltava a se sacudir de irritação, berrava:

- Você precisa entender que não é mais a mesma, Adriane (a coisa estava feia, ele jamais me chamava de Adriane, só de Dri, Drica). - Você hoje é a minha namorada.

- Sei disso. Abri mão de minha vida para isso e não estou aqui lhe cobrando; queria, ao contrário, que você entendesse que estou muito feliz pela escolha que  fiz.

Ele não se conformava, não ouvia, ou não queria ouvir. Ainda tentei ser razoável:

- Mas o que lhe desagradou? As fotos? O texto?

- A merda toda. As fotos, especialmente.

Ayrton não era do tipo de ter crises de ciúme. Recordo me que, uma vez, na fazenda, ao me ver descer do quarto com uma minissaia nova, perguntou:

- Ganhou quando tinha 13 anos?

Dos 9 anos até aquela noite em que achei que tudo estava acabado, eu sobrevivi como modelo, arcando com os preconceitos que a profissão provoca e administrando a maior dificuldade de um trabalho em que a beleza é o elemento primordial. Uma modelo parece ser muitas coisas que ela de fato não é. Mas para quanta gente a única coisa que vale no mundo não são as aparências? Pensando bem, isso ali na hora valia também para ele. Ayrton.

Minha lealdade para com aquele admirável ser humano que eu amo e conheço tão de perto era absoluta. Minha convicção e minha sinceridade me davam força para enfrentar o desafio. Mesmo que eu tivesse, naquela hora, de recuar taticamente. Em respeito ao momento que ele passava, a agonia que já invadia sua alma, a ansiedade que prenunciava o dia seguinte, o outro, o outro, até  o domingo da corrida.

Dei um passo atrás:

- Tá bem, eu errei. Não precisava ter me exposto. Se eu estivesse no seu lugar, talvez reagisse do mesmo modo. Peço desculpas. Mas, se você quiser terminar nossa relação por causa desse episódio, aproveita sua raiva e vai em frente. Termina...

Tinha um travo de choro na garganta, porém fiquei firme para não chorar. Propunha um fim no nosso namoro, mas meu coração estava do tamanho de uma ervilha, gritando "não, não". Sair dali seria mergulhar num abismo sem fundo, eu sabia disso. De repente, vi que caíam lágrimas dos olhos dele. Entendi aquilo como o seu constrangido jeito de dizer "sim, acabou, até mais...”

- Tivemos um relacionamento maravilhoso - continuei. - Nunca chegamos a uma discussão nesses termos. Fiquei chocada com o que se passou aqui. Você me mostrou um Ayrton que eu não conhecia.

Longe de mim irritá-lo. Eu já me lamentava previamente pelo desfecho esperado. A discussão havia avançado madrugada adentro. Ele apagava a luz, a raiva o vencia, acendia de novo, falava, falava. Quatro horas seguidas. Pensei no pior: "Amanhã, eu me levanto e vou embora". Não seria a reação de uma mulher vingativa ou ofendida. Seria a atitude correta de uma mulher vencida. Aí, foi ele quem interrompeu:

- Nunca duvidei do seu caráter, não é isso. Disse que não gostei e não gostei, é só isso.

Trocamos um olhar em que senti a faísca de um amor que, na verdade, nenhum de nós queria perder. As feridas estavam expostas, mas, em silêncio, com uma cumplicidade sem palavras, nos demos um tempo. Fomos deitar. Engraçado que naquela noite, sem nada combinado, trocamos de papel. Quem subiu o zíper do uniforme fui eu. Ele, que não dormia, dormiu; eu não preguei olhos. Eu o vi acordar cedo, pois a quinta-feira já era dia de muitos compromissos, e fazer a barba. Ele se aproximou da cama, me deu um beijo de tchau e disse:

- A gente se fala depois.

Foi ele pisar fora de casa para eu me dar, enfim, o direito de um choro franco, forte, sacudido. Desabei, literalmente. Chorar pode ser o melhor atalho para a compreensão das coisas. De repente, tudo se organizou na minha cabeça, tudo ficou muito simples:

- Acho que tenho razão; mas a minha razão que vá pro inferno!

Caras era a revista mais disputada nos fins de semana na fazenda. O senhor Milton comprava - ele chegava abraçado de jornais e revistas. O próprio Béco lia e gostava. Quando surgiu o convite para eu ser a capa, em fevereiro, nem cheguei a cogitar, mas, pouco a pouco, fui começando a gostar da idéia. Naturalmente, consultei-o. Só fiz porque ele disse sim. Na sua condição de empresário que aumentava seu portfolio de negócios, ele passou dez dias entre a Alemanha e a Inglaterra, no início de março - e foi lá, num dos vários telefonemas que trocávamos, dia após dia, que toquei no assunto. Eu faria do meu jeito, tranqüilizei-o. Com um fotógrafo de confiança.

- Quem? - ele quis logo saber. - Estou pensando no Fábio Cabral.

Cabral andava me rondando com a proposta de uma exposição de fotos só minhas. Gosto do trabalho dele.

- Confia? - ele insistiu.

- O estilo dele é bárbaro.

- E você? Está a fim de fazer?

- De repente, até estou. Faz tempo que não tiro foto posada.

- Então, vai - disse ele, sem meias palavras. Comentei que pensava em fotografar numa praia, três dias, com repórter, produtora, maquiador juntos.

- Que praia? - quis saber, meticuloso.

- Camburi.

- Mas por que Camburi?

- Porque é aqui perto, uma praia bonita, à qual faz muito tempo que eu não vou. Não tem sentido ir a Angra fazer isso. Lá é o nosso canto. Tenho milhões de  maravilhosas fotos minhas, com você, em Angra.

Ele quis saber mais: onde ficar, qual seria o esquema. Resumi:

- Aquele mesmo esquema de modelo, fica tranqüilo.

Fiz as fotos com o maior prazer e o maior cuidado. Mas foi uma trabalheira para todos. Saiu do jeito que eu queria. Tão logo as fotos foram reveladas, Cabral me ligou:

- Está o máximo.

Eu queria ver tudo antes mesmo de chegar à revista, mas ele argumentou:

- Da minha parte, seria antiético. Eles estão agindo com correção, não dá para preocupar.

Ainda assim, insisti: um cromo só, de cada série, aquele que estivesse pior, para eu ver como tinha ficado. Ele concordou. Peguei na portaria do ateliê dele e aquilo só me confirmou o que eu, modelo com mais de dez anos de janela, desconfiava: perfeito.

Guardei o pacote para fazer uma surpresa pro Béco, que estava de volta. Deixei para mostrar a ele no fim de semana, na fazenda, quando estivéssemos, só os dois, na cama. Dia 21 de março, a segunda-feira da semana do GP, era aniversário dele: 34 anos. No domingo, teve bolo, doce, parabéns, sob a batuta da Zaza. Descobri,  naquela noite, na fazenda, que ele tinha vocação de editor de fotografia. Olhou os cromos um a um, contra a luz, com rigor e atenção.

- Gostou? - eu estava ansiosa.

- Gostei. De uma em especial. Esta da bicicleta.

A minha predileta. Pensei de novo: se a Photo soubesse que um cara com esse olhar existe, quem sabe não ia lhe propor mudar de ramo? Fiquei tão encorajada que desci com o maço de fotos para o café da manhã. Queria que a Zaza compartilhasse de nosso segredo. A mãe viu:

- Lindo.

O Léo, os amigos que estavam na fazenda - enfim, os cromos passaram pelas mãos de todos. Comentários sempre elogiosos. E não se falou mais nisso. Como a reportagem de Caras sairia na semana do GP do Brasil, o jeito de eu descarregar minha adrenalina era esperar pela revista. A do Béco, ele aliviava correndo diariamente na USP - seu treino para aquela que, além de impor a incógnita de estréia de uma temporada com escuderia nova, carregava a responsabilidade de ser em São Paulo, sua terra. Eu o acompanhava na USP e ficava impressionada. Onde quer que ele fosse, paravam-no para a pergunta fatal: "E o carro, como está?" Ele era vago, mas a conversa sempre escorregava para o otimismo. "Já ganhou, você vai ser tetra", diziam todos. O GP do Brasil era o cardápio da semana. Pior para o já ansioso Ayrton. "Estou corroído por dentro" - confessou a mim naquela terça-feira, 22 de março. - "As pessoas estão enganadas: não vai ser esse passeio que elas imaginam.”

O primeiro contato dele com a pista de Interlagos, na quarta, ainda só para a gravação de um comercial da Nacional Seguros, coincidiu com o primeiro contato dele com a minha Caras, já impressa. Um assessor dele, Charles, sem maldade, fez a gentileza. Ele só deu uma folheada e foi trabalhar. Por coincidência, quem produzia o comercial da Nacional era Tina Krugg, a mesma que me acompanhou com Caras a Camburi. Ela pediu-lhe um autógrafo e, em troca, deu-lhe de presente uma cartela com sobras das minhas fotos. Mais fotos. Ele brincou:

- Então, você é a famosa Tina!

Tudo muito ameno, tudo muito cordial. Ainda me ligou para dizer que, à noite, jantaríamos na casa dos pais dele. Lá, ficou mais quieto do que nunca, mas vi no seu silêncio a expectativa do GP que chegava. Engano meu. Foi a gente se despedir dos pais, abrir a porta do elevador e apertar o botão 2S da garagem para ele fechar  de vez a cara:

- Você viu a Caras?

Claro: durante o almoço, no McDonald's da Avenida Rebouças, eu tinha passado e repassado as páginas. Confesso que, no final, me veio pela primeira vez um friozinho na barriga. Estava linda, a reportagem. O texto, corretíssimo. Mas, no fundo, no fundo, eu me perguntava: era preciso ter feito?

- Você gostou? - prosseguiu ele.

- Não sei, você não gostou?

- Não.

Só isso: não. O elevador chegara à garagem, cada um de nós tinha ido com seu próprio carro, o que me condenava a uns dez minutos de angústia até nos reencontrarmos no nosso apartamento da Paraguai.

- Me fala, me fala - implorei.

- Você estava muito sexy.

E em casa que aconteceu toda a explosão que narrei. Eu já o tinha visto emburrado, cabisbaixo - era o jeitão dele de mostrar sua contrariedade. Conhecera e aprendera a conviver com isso, respeitando o timing da crise dele, sem entrar na paranóia de que era eu a culpada, ou que era de mim que ele tinha se enchido. Mas, discutir daquela forma, nunca. Ainda assim, eu pensava primeiro nele:

- Meu Deus, ele vai ter corrida, não pode ficar assim. Foi uma experiência dramática mas muito educativa, como podem ser instrutivas algumas brigas entre casais que verdadeiramente se amam. No dia do enterro do ídolo Senna, pessoas do povo abriam as páginas de Caras, não só a do casal feliz, de uma edição seguinte, mas também aquelas mesmas que geraram tanto ódio. Elas me acenavam com a revista, não para me adular, eu sei, mas como uma forma de espontânea solidariedade com a mulher que  ele tinha.

Digo isso nunca por vaidade, e sim com o coração tão partido como naquela noite difícil e em outras que se seguiram. Olho para trás e vejo que muitas coisas se juntaram ali naquelas páginas de revista. Tirem fora a tensão da semana, muito compreensível. Mas havia a surpresa de ele me ver, de novo, como modelo - depois de uma sumida legal que eu tinha dado das páginas e dos outdoors. Talvez, inconscientemente, eu quisesse lembrar: tenho um trabalho, tenho uma profissão. O Béco, de  repente, já não se conformava.

- Você não precisa mostrar ao mundo que tem um corpo bonito, que tem esse outro lado Adriane Galisteu - foi uma de suas frases mais esclarecedoras.

Esse outro lado Adriane Galisteu quer dizer: a modelo, aquela que continuava, bem ou mal, no book da Elite. Ele, jamais disse com clareza, mas devia sonhar com outros rumos profissionais para mim. E tinha mais, aquilo que ele  não escondeu mesmo diante dos meus argumentos do-tipo "mas você sabia tudo", ou "você viu os negativos antes". Um sentimento bem humano chamado ciúme.

- Seu corpo bonito é para mostrar só pra mim.

Eu sou ciumenta, embora disfarce. Ele é ciumento, pensei. "Ciúme de namorado, isso passa", me acalmou mamãe, sempre discreta, quando liguei na manhã posterior à tempestade. "Normal, coisa de quem gosta da gente", reforçou Nádia, amiga do Rio, mulher do Oscar Guerra - outra a quem recorri, por telefone, pedindo colo e luz. O que ele próprio, de certo modo, me reconfirmou, antes de sair para o primeiro treino oficial, na sexta-feira, 25 de março, já aplacada a onda de fúria:

- Me faz só um favorzinho sobre aquilo. Vai na revista e pede os cromos. Todos. Quero guardar pra mim.

Nenhum problema. Ele ainda teve tempo de reconhecer, dias mais tarde, que ao promover todo o furacão o que mais o incomodava era o fotógrafo. Até onde tinha ido a ousadia dele? Exatamente até o ponto que as fotos revelavam. Mas há outro desconto que dou hoje ao descontrole do Béco, e uma lição que ele sempre quis me incutir, eu reconheço: o perigo que a celebridade acarreta. Não tem nada a ver com a revista, ou com a imprensa, mas tem a ver com a vida.

- Eu já estou calejado - dizia ele, alertando para as cascas de banana que invejosos e futriqueiros gostam de botar no caminho dos que ganham fama e respeito. -  Mas você, que é menina, preste atenção para não se machucar.

Foi um maravilhoso cidadão, que eu amo, de nome Ayrton, quem me falou essas coisas.

Melhor tempo na sexta, pole-position naquele sábado em que fomos, de manhãzinha, ele, eu, o Fábio, primo dele, e a esposa, Nice, além do piloto Nelson, os cinco no mesmo helicóptero, para Interlagos - ele ia chegando lá, segundo a segundo conquistado na pista, e eu, gemendo dentro de meu sentimento de culpa, silenciosa, com meu zíper lacrado. Jeito besta de comemorar um ano de convivência. Mas teve de ser assim. Muita gente queria falar comigo, eu fui avisando: nada de entrevista. Me escondi o mais que pude. Até os amigos estranharam. Braga, sempre o Braga, me alertou:

- O homem está uma fera, garotinha.

Só com o Cristiano eu me abri um pouco. Contei sobre a briga, o medo de tudo acabar ali. Ele não me socorreu nem um pouquinho:

- Gosto de você, mas, se fosse minha namorada, eu terminava.

Aí veio o domingo do GP e aquela realidade prevista por ele deu-lhe uma rasteira, a poucas voltas do final. Se é que eu o conheço, a rodopiada do Williams num ponto meio bobo foi até melhor. Seria um castigo subir ao pódio, no Brasil, em posição de inferioridade ante "o alemão". Cheguei em casa antes dele - Ayrton esperou horas para o autódromo esvaziar e sair em relativa liberdade. Na sala, triste com o resultado, estava também o Gordinho, reclamando:

- Mas o que é que o Béco tem? Ele não falou comigo.

- Não está falando com ninguém - disse eu.

- Vou conversar com ele - disse o Gordinho, com ares de ofendido.

- Fica quieto - pedi. - Senão vai estragar tudo. Não é nada com você.

Chega o Ayrton, ainda cansado, vem para junto do sofá e senta no meu colo. Meu coração esguichava de alegria. Ficou assim uns vinte minutos, conversando demoradamente com o Gordinho, falando da prova, de motores, da derrapagem. Já estava pensando em outra coisa: o lançamento, na terça-feira, da marca Audi, que passaria a representar no Brasil. Fomos para o quarto. Ele estava exausto. Como fazia em noite de corrida, tomava uma Coca-Cola e procurava descansar. Foi horrível dormir sem falar com ele. Pelo sim, pelo não, estava louca para acertar os nossos ponteiros.

- Mãe, preciso falar - lá estava eu, de novo, no dia seguinte, alugando os ouvidos de dona Emma.

- Seja forte, filha. Espera o que for preciso esperar. O momento é todo dele.

A frustração da derrota não tirou a animação de um único dos dois mil convidados da festança da Audi, num hangar do Aeroporto de Congonhas. Com direito a Jô Soares de mestre de cerimônias e a muita gente, entre os convidados, que eu não via havia séculos. Antes de me pegar em nossa casa, ele queria saber de minha roupa:

- Linda - eu quis ser vaga.

- Linda como? Quero ver.

Era um vestido preto, de veludo alemão, totalmente fechado. Quando ele me deixou na mesa, para circular e cumprir seus deveres de anfitrião, a Bianca, sobrinha dele, me alertou:

- Dri, tem uma irmã gêmea sua aqui. Naquela mesa, com o mesmo vestido.

Olho de mulher. O meu era, supostamente, um vestido exclusivo. Esperei apagar a luz e fui ver quem era. Birgit, a fiel amiga. Saia-justa total. Mas ela, solidária:

- Fica tranqüila, não vou me levantar daqui um minuto.

Não levantou. Eu levantei, eufórica, ao final do discurso do Ayrton. Ele subiu ao palco com a surpreendente tranqüilidade de um locutor. O meu timidozinho me espantava. O fato é que já fazia algum tempo que eu o sentia curtindo uma coisa nova: ver crescer o seu lado empresário. Ele, que sempre delegou o assunto dinheiro e investimento para o pai, para o primo Fábio, para o Léo, para o Julian, agora começava a tomar gosto. Mais um sinal de maturidade - e de sintonia com um futuro  mais cedo ou mais tarde distante da Fórmula l.

A última viagem antes de Interlagos, por exemplo, tinha sido de business puro: o acerto final com a Audi, uma conversa com a direção da Montblanc, a das canetas, a representação das motos Ducati e de uma excepcional bicicleta de fibra de carbono - Carraro, italiana - que custaria uns três mil dólares, por aí, cada uma. Preparava o lançamento de seu gibi: Senninha. Pelo roteiro, ele tinha uma namorada loira e de olhos verdes. O nome seria revelado no número 2: Dri. Não foi, mas ainda assim fico satisfeita em saber que a revista, sonho dele, continua a circular - com tiragem recorde.

Sem falar de seu empenho, eu diria mergulho pessoal na hora de acertar o contrato com a Williams. Ayrton era senhor de si mesmo. Isso devia incomodar a quem o queria sempre menino tímido e submisso.

Procurei, naquela semana, a mãe do Béco. Queria uma conversa a sós - sabia que o senhor Milton estava na fazenda. O assunto com dona Neide ainda era a revista Caras. Acabei dormindo lá, no quarto dele - que, às vezes, sem esconder de ninguém, era também quarto nosso. Tinha, com a Zaza, intimidade até para fazer aquilo que eu fui fazer:

- Posso pedir desculpas?

Sabia que a família, muito religiosa, poderia ter se chocado. Ela meio que desviou:

- Você não tem de pedir desculpas a mim. Só acho que você não foi nada elegante.

- Me fala sinceramente o que a senhora achou.

- Não sei, acho que você caiu em contradições no texto. Disse, por exemplo, que não admitia que a chamassem de lôraburra e, logo depois, admite que não fala inglês.

Não podia ser por um curso de inglês que eu perderia uma afeição quase maternal. Ela, na realidade, não estava disposta a aceitar a minha verdade.

- E, depois, se há alguém a quem você tem de pedir desculpas é ao Béco.

O que ela não sabia é que, assim como o inglês, assim como entre o Ayrton e eu, tudo estava acertado - zerinho em folha.

Naquela noite do lançamento do Audi, depois de nos trocarmos, depois daquela formalidade toda do "que tal a festa?", essas coisas, achei que era hora de falar sério. Ele apagou a luz, eu lhe pedi para acender.

- Tive pensando em tudo e preciso falar com você, de novo - iniciei, ponderada. - Vi onde errei e reconheci  meu erro. Mas e você? Você perdeu a razão. Por que você fez aquilo?

- Desculpa - ele, pela primeira vez, usou a palavra-chave. - Eu não precisava falar daquele jeito. Estava chateado, nervoso.

- Fui muito correta até agora - continuei. - Nosso  relacionamento ainda pode ser normal, daqui para a frente? Você coloca uma pedra em cima disso aí?

- Uma pedra, não. Coloco uma montanha. Esquece...  Adoro você.

E me sapecou um daqueles beijos que me levavam à Lua. Senti-me em família, como sempre, no fim de semana que passamos na fazenda de Tatuí - aquela que seria sua última visita à Dois Lagos. Dia 3 de abril, a roda-viva do circo entraria de novo em movimento: ele ia para o Japão, levando suas preocupações técnicas com o Williams e a  incerteza sobre um circuito que jamais entrara na temporada de Fórmula 1, Aida. Combinamos ali nossos próximos passos: eu ficaria, evitando uma viagem desgastante e um lugar incerto, e, aí sim, a partir de Ímola, 1° de maio, e para  toda a temporada européia, até o Estoril, em setembro, ele queria ter-me por perto.

Seria uma separação de quase um mês - nunca tinha acontecido isso conosco. Por uma boa razão: em São Paulo, eu ia cair de cabeça num curso de inglês, gênero imersão total, no Berlitz. Era um prêmio e uma responsabilidade. Ayrton visivelmente investia em mim, em meu futuro, em minha companhia. Lá do Japão, ele me ligava todos os dias, com a mesma pergunta: "E o inglês, como está?" Um fax meu diria mais do que minhas palavras. Dizia: "Minha vida está dura sem você, mas estou tentando canalizar todas as forças para meu curso de inglês. Por enquanto, entendo mais do que falo, mas com certeza  eu chego lá". Em inglês, tudinho.

Conversávamos todos os dias - sem exceção. Nos horários mais incríveis, culpa do fuso horário, mas também da nossa ansiedade em nos falar. Um dia, o telefone me despertou às seis da manhã - e ele tinha uma surpresa para mim:

- Você já foi à banca?

- Pô, a essa hora, Béco?

- Então, vai.

Era o sinal definitivo do sacode-a-poeira-e-dá-volta-porcima: na capa de Caras, nós dois, ele e eu, fotografados numa de nossas últimas temporadas na fazenda de Tatuí. Muitas fotos, os dois abraçadinhos ao pôr-do-sol, a cavalo, passeando de mãos dadas. Ele havia liberado as fotos para a mesma revista que tinha sido nosso drama. A mensagem era, no mínimo, mais um aceno de desculpas. Ele assumia, de público, sem nenhum constrangimento, seu idílio. Detalhe: o cenário do romance era a fazenda, propositalmente o lugar mais familiar de todos em que convivíamos. Tinha alguma coisa de simbólico aí, não tinha?

Aquele 3 de abril em que o vi pela última vez me encheu da certeza de que um relacionamento novo, maduro e feliz se instalara entre nós dois, depois daquele terremoto. Estávamos de bem com a vida. Fiz a mala dele e a deixei pronta, para a volta da fazenda. Tivemos a tarde toda para, no apartamento da Paraguai, falar, rir, relaxar, amar - como talvez nunca tivéssemos nos amado. Foi um dia especial - e nem ele nem eu haveríamos de desconfiar por quê. Levei-o a Cumbica no meu Fiat e ainda tínhamos meia hora para gastar. No carro. Papo delicioso. Abraços e beijos. Ele se despediu com aquele sorriso gostoso:

- Estou de olho em você, garota.

- Eu também estou de olho em você, garotinho. Já estou com saudade.

- Estou de olho em você, garotinha. Também com saudade.

Ele ainda repetiu, cheio de carinho. A despedida, mais os suspiros da longa tarde de amor que tivemos no dia de sua partida para o Japão, e mais aquele beijo de partida, caliente, de novela mexicana, aquele beijo que trocamos ainda dentro do carro, tudo aquilo me rodopiava na memória como uma mensagem enigmática que eu precisava decifrar - um quebra-cabeças cujas peças, justapostas, me indicariam a rota da minha futura relação com ele.

Este era o seu estilo de se relacionar com a vida e com a pessoas. Discreto por natureza, dizia o mínimo necessário; mas, determinado em tudo o que fosse do seu interesse, agia no sentido do fundamental.

Surpreendi-me, uma vez, com uma inconfidência, feita na cumplicidade dorminhoca do sol de Angra, ao final de um entardecer de pura alegria:

- Um dia, vou me casar com você - (e eu me vi imediatamente, sei lá por que, de véu e grinalda, naquela capelinha na Jipóia, ali pertinho, aquela mesma a que ele se referiu na nossa primeira noite de amor). - E um dia vou correr na Ferrari.

Sinceramente, fiquei honrada de estar em tão ilustre companhia. Ele acabara de assinar contrato com a Williams, por aqueles dias. Pensava em disputar duas temporadas na escuderia de seu querido Frank, a de 1994 e a de 1995. Era o melhor carro nas mãos do melhor piloto - ainda me lembro, como se fosse hoje, de ter lido isso num  jornal inglês insuspeito, o Sunday Times. Era o que todo mundo dizia: Senna-Williams, dupla invencível. É puro palpite meu, mas desconfio que ele sonhava em repetir,  graças à Williams, o feito de seu ídolo Juan Manuel Fangio - o argentino cinco vezes campeão naqueles tempos pioneiros do automobilismo, em que o talento do homem valia mais do que o desempenho da máquina. Repeti-lo, jamais superá-lo. Ayrton dizia que Fangio é insuperável. Mais duas temporadas lá, na Williams, e o obcecado Ayrton se daria por satisfeito, como três e dois são cinco.

Daí a inesperada história da Ferrari.

- Encerro minha carreira lá - me garantiu.

Dois anos mais, calculava ele, a escuderia do cavalinho rampante teria um carro mais competitivo (onde quer que ele esteja, deve ter vibrado com a primeira vitória da Ferrari, neste ano de 1994, no GP da Alemanha, ainda mais sabendo que o vencedor foi seu amigão Berger). Mas o fanático por resultados não queria o vermelho de Maranello para exibir sua performance técnica.

- Mesmo que o carro da Ferrari ande tanto quanto um fusquinha, eu quero estar lá na minha última largada, na minha última volta, na minha última bandeirada -  sonhava. - A Ferrari é a mística da Fórmula 1. A griffe, a história, a tradição, a alma, a paixão.

Além de tudo, ele tinha adoração pela torcida italiana. E vice-versa. Este é o Ayrton Senna que eu conheço: um homem capaz de fazer de sua aposentadoria uma gentileza. Já começava a pensar no futuro - e o futuro não comportava cofres de dinheiro abarrotados na Suíça, e sim o prazer de pequenas e significativas atitudes. São exemplos assim que fizeram dele uma figura excepcional - e que especialmente as pessoas que privaram com ele têm o dever de respeitar, para sempre.

Só que todos sabem que a infalível dobradinha Williams-Senna foi atropelada pelo inesperado. No GP do Brasil, por Michael Schumacher e uma derrapada meio esquisita. No GP de Aida, no Japão, no qual ele tinha tudo para vencer, por uma situação que faço questão de abrir aspas, para mostrar o grau de irritação dele quando me ligou:

- Você não sabe, Adriane, o que é fazer uma viagem longuíssima como esta, trabalhar feito louco em cima do carro, para vir um debilóide e bater na traseira de seu carro, antes mesmo de completar a primeira volta. Você não tem idéia de como eu fiquei.

Tinha sim. Eu sabia o que significava para ele perder. Sabia o que significava perder daquela forma - sem ter sequer a chance de se pôr à prova. Eu ficara acordada de madrugada, sofrendo com o fuso horário, porque sabia quanto aquela prova em Aida significava para ele. Minha mãe estava a meu lado, solidária, no apartamento da Rua Paraguai. Houve a cassetada do Mika Hakkinen. Desliguei a tevê. Respirei um pouco, liguei de novo. Ayrton estava tão louco de raiva que nem cumpriu aquele seu ritual de sempre - foi embora de capacete e tudo na cabeça.

A prova foi dia 17 de abril. Eu tinha um motivo a mais para torcer por uma vitória dele: queria-a de presente de aniversário. Dia 18, eu atingiria a minha maioridade. Pela primeira vez, o melhor motivo de minha alegria estava a milhares de quilômetros de distância. Distraí-me com as lembranças dos amigos. Recebi telegramas, os meus colegas do curso de inglês apareceram com um bolo de 21 velinhas e me cantaram o Happy Birthday, mas eu pedi para sair mais cedo, meio sem graça. Busquei o colo de mamãe, corri ao shopping para me dar presentes a mim mesma, fui para o apartamento na expectativa daquele telefonema.

Dez, onze horas, meia-noite - nada. Eu tinha aula no Berlitz de manhãzinha. Revirava na cama. Esquecer, ele não esqueceu: se não ligou é porque alguma coisa está errada. Foi o aniversário mais triste de minha vida.

Por algumas horas, quero dizer. Às seis da madrugada, o telefone da cabeceira tocou e aquela voz conhecida, aí já totalmente Béco, sem nenhum sinal de ressentimento do Senna, gritou:

- Parabéns! Como foi seu aniversário?

- Como você acha que foi, se a pessoa mais importante da minha vida não me ligou, não me deu notícia? - rebati.

Ele se desculpou: trabalho, preocupações, reuniões, fuso horário.

- Não pensa que esqueci. Vou te dar todos os presentes do mundo.

Quis saber como ele se sentia com os resultados adversos:

- Vinte pontos atrás, não há de ser nada. A próxima é minha.

Na próxima, na Europa, eu estaria com ele. Béco haveria de encontrar na Europa uma nova Adriane Galisteu. Seguindo as orientações do Nuno Cobra, seu preparador, aproveitei aquelas semanas de ausência dele para correr no Ibirapuera. Aos pouquinhos, gradativamente - até o pulsímetro, o sempre gentil Nuno me emprestava.

Seria uma surpresa para ele: acompanhá-lo, já não mais numa envergonhada bicicleta, mas no pique dele, uma hora e dez, uma hora e meia de corrida, o giro que ele dava em volta do condomínio do Algarve. Dali do Ibirapuera, um banho rapidinho e imersão total no inglês. Berlitz - sala de aula, almoço, caminhada, você só podia falar inglês. Eu era minoria na hora de votar no almoço no McDonald's. Mas tinha o Tatou ali perto e passei literalmente dias e dias comendo um delicioso sanduíche  de camarão.

Ansiosa, já que a viagem se aproximava, ainda pedi à Gabi, uma das professoras, aula extra em casa, à noite e até aos sábados. No dia 21 de abril, ele já em Portugal, feriado no Brasil, testei com ele meu progresso no inglês. Passei um fax pra lá de íntimo, com declaração explícita, eu diria mesmo apimentada, de amor. Confesso que a Gabi deu uma olhada, para corrigir - e ficou corada. Ele também, a julgar pelo que me disse ao telefone no dia seguinte. Estava tão empenhada que tive aula de inglês até a tarde de sexta, 29. O vôo Varig com destino a Lisboa partia às 22h10 daquela sexta-feira.

Olhando hoje para trás, sinto que havia uma sintonia inconsciente, ele e eu, eu e ele.

- Não vejo a hora de você chegar aqui - me dizia, ao telefone.

Na verdade, muitas outras coisas estavam sendo ditas e estavam para ser ditas, percebo agora. A distância tinha reforçado uma relação que chegava a seu turning point. Dali, seria impossível recuar. Perguntava eu para mim mesma, perguntava ele para si mesmo - com certeza -, nós nos queríamos perguntar a nós mesmos: por que essa atração? O que significavam, de fato, aqueles catorze, quinze meses de namoro? O que esperar do futuro? Podíamos nos considerar pessoas felizes? Já tínhamos vivido o idílio e o conflito. Nossa consciência apontava para a frente. Com os braços estendidos e o peito aberto, corri para a felicidade:

- Estou feliz, feliz - repetia para ele, ao telefone. Tinha perdido meu último medo. O de namorar um mito, uma instituição - e de ter de reparti-lo com o mundo. Na verdade, meu namorado era um homem; e esse eu o tinha só para mim.

Você pode imaginar o que é receber um telefonema do Ayrton Senna e, de repente, ele desabar a chorar? Soluçava, chorava - suas palavras, embora nítidas e claras, eram interrompidas por longos silêncios que prenunciavam lágrimas e desespero. Assustei: tinha-o visto chorar de raiva, como daquela vez em que voou no pescoço de um fotógrafo. Seu choro tinha sempre a ver com o sentimento de injustiça: um maluco que lhe atravessasse o caminho na pista, como o irlandês Eddie Irvine, um jornalista que ultrapassasse as boas maneiras da elegância e da privacidade.

Mas aquele era um choro convulsivo, infantil, que me deixava em pânico.

- Que que houve? Que que houve? - eu tentava entender.

Era sábado, 31 de abril de 1994. Tinha chegado à quinta da Luiza e do Braga em Sintra pouco depois do almoço. Nem me incomodei de desfazer as malas, porque meu destino era o Algarve. Naquela mesma noite, pegaria um avião para Faro e iria para a nossa casa do Condomínio da Quinta do Lago. Era uma bagagem e tanto. A idéia era essa: acompanhar com ele todos os cinco meses da temporada européia. Do GP de San Marino, aquele 1° de maio, até o GP de Portugal, 25 de setembro. Primavera e verão - de mais a mais, a casa do Algarve estava reformadinha, uma lindeza, havia aquele céu azul do Mediterrâneo contrastando com as paredes caiadas de branco e, quando era hora de trabalhar, bastava convocar o comandante Mahonney, um inglês engraçadíssimo, tirar o avião do hangar e nos deslocarmos para o local da próxima corrida.

Eu sonhava com a hora de envolvê-lo nos meus braços na noite de domingo, em nossa casa - depois da prova de Ímola. Cinco meses de ensolarada lua-de-mel. Na nossa relação, toques, olhares, expressões, até mesmo o silêncio sempre foram muito mais valiosos do que palavras. Mas que era isso mesmo que nos esperava, cinco meses de efervescente amor, era. Eu mal podia esperar.

Mas aí ele me surpreende com aquele seu profundo abatimento, na véspera, assim que eu cheguei a Sintra:

- Que bom escutar sua voz - ele tentou se consolar.

- Mas me conta: como estão as coisas aí?

- Está tudo uma merda!

Só então fiquei sabendo do acidente do Rubinho Barrichello (ele tinha acompanhado o companheiro ao hospital, ainda se sentia chocado, embora soubesse que o piloto brasileiro estava fora de perigo).

- Uma merda! Uma merda! - repetia e soluçava.

- O caso do Rubinho?

- Não, não, um austríaco. Menino. Segunda corrida dele. Bateu e morreu... Eu vi: morreu na minha frente... (o choro entrecortava a história...) E o pior é que estão dizendo que ele morreu no hospital. Ele morreu aqui... Eu vi...

De repente, de dentro de seu sincero descontrole, brota a maior de todas as surpresas:

- Sabe de uma coisa? Eu não vou correr.

Demorei a entender:

- O quê? Não vai ter corrida?

- Você não conhece eles?

Eu já tinha um razoável conhecimento para compreender aquilo que ele me dizia de modo meio enigmático. Quando ele desligou, corri para a televisão. Haviam sido quinze minutos de soluços, queixas, dúvidas, raivas de um homem que nunca se deixava levar na sua carreira senão por pensamentos positivos. Ele estava baqueado, de verdade. Comentei com Luiza, a minha anfitriã:

- Ele está ansioso, muito nervoso. Não vai correr. Estávamos todos ansiosos, nervosos. Fazia doze anos que a Fórmula 1 não provocava uma morte em plena pista. Nos telejornais, as entrevistas deixavam entrever a surpresa, a tensão e a possibilidade do cancelamento da prova. Mas na minha cabeça ecoava aquela frase foral do Ayrton, aquela: "Você não conhece eles?" O show tinha de prosseguir.

A apaziguante presença da Luiza me fez cochilar no quarto, o nosso, do anexo, da "Casa do Ayrton" - cansada que eu estava da viagem de São Paulo para Lisboa. Também me acalmava, definitivamente, saber que estava em San Marino, com o Ayrton, aquele que por dez anos, com o jeito meio brincalhão de quem está só se divertindo, na verdade deu a ele a força espiritual e afetiva de um paizão como daqueles que não se fazem mais no mundo. O Braga estava lá, com ele, como sempre esteve. Se o desespero ou a desilusão grudasse na alma daquele campeão da fibra e da coragem chamado Ayrton Senna, sempre haveria aquele paizão à  mão para trazê-lo de volta ao bom senso e à realidade.

Segundo pai, conselheiro - a amizade de Braga chegava a detalhes como o de ter de deixar na garagem da quinta de São Pedro de Sintra, para as esporádicas visitas de Ayrton, um Honda NSX metálico igualzinho ao que ele teve em São Paulo (depois de tudo o que aconteceu, o Honda continua na garagem, silencioso, de luto, coberto de pó, pois o doutor Braga avisou aos criados que não quer  que ninguém toque o dedo nele).

Peguei o avião para o Algarve às 20h30 com a alma bem mais leve. Juraci, a caseira, me buscou, cordial como sempre, quis me cobrir daqueles agrados tipicamente portugueses que desafiam os ponteiros da balança, conversamos demoradamente, fizemos planos para a recepção do dia seguinte e só então me recolhi. Sentia tanta falta física dele, depois desse mês de distância, que abri os armários do nosso quarto, o closet dele e afaguei-lhe as roupas, em busca de seu cheiro masculino. Sua presença se sentia também na mesa com o fax, os papéis arrumadinhos, na revista deixada no canto - sim, aquele Nova Gente que trazia nós dois na capa, mesma reportagem de Caras. Considerei  aquilo uma homenagem proposital dele.

Ao sair do banho, o telefone voltou a tocar. Atendi no banheiro, espreguiçando sobre o tapete branco e alto, fofo como o pêlo de um gato angorá:

- Becão, está se sentindo melhor?

Ele não chorava, mas sua voz era um fiapinho:

- Olha, minha cuca está no pé. O Braga, o Léo e o Galvão (Bueno, da TV Globo) estão aqui, graças a Deus. Saímos para jantar, conversamos, estou melhor.

Tradução: ele ia correr, e ia correr para vencer.

- Estou preparado para sentar no carro e acelerar fundo - disse.

Seu generoso coração preparava, em segredo, uma surpresa. Em vez da bandeira do Brasil que ele costumava acenar nos dias de vitória, já tinha encarregado um amigo de conseguir uma bandeira da Áustria. Seria sua homenagem ao infeliz Ratzenberger. Um iniciante na Fórmula l. Mas, para Ayrton, não existem hierarquias nem na vida nem na morte. Ele me confidenciou seu gesto. Juro que aí quem teve vontade de soluçar fui eu.

Disfarcei com uma certa irritação:

- Pô, quando morre alguém da família, pára tudo, não pára? As pessoas põem luto...

Soube depois, pelos amigos, pela imprensa, que a prova de Ímola esteve por um fio. Ayrton deu declarações públicas denunciando a insegurança do circuito e lamentando os acidentes. Mas ele era a última pessoa do mundo a poder comandar uma operação-boicote. Tinha perdido as duas primeiras provas, estava atrás de resultados, qualquer atitude sua poderia ser entendida como um pretexto para ganhar tempo, para não competir. E, se havia coisa no mundo que Ayrton não era, era frágil e covarde. Comigo, naquela noite, às vésperas da tragédia, ele só repetiu seu constrangimento sintomático:

- É assim mesmo, esse pessoal é assim mesmo - para logo mudar de assunto.

A caseira interrompeu para animá-lo com o cardápio que ela preparava para a chegada. Típico da simplicidade dele: galinha grelhada e legumes no vapor. Peguei de novo o telefone. Falamos de nós. De saudade e de amor. Trocamos juras apaixonadas.

- Preciso lhe dar umas palmadas - disse ele.

- Palmadas? Por quê?

- Tenho muito a lhe dizer. A lhe propor. A lhe oferecer - prosseguiu. - Devo estar aí às 20h30, por aí. Quero passar a noite em claro. Vamos conversar até o amanhecer. Quero convencê-la de que sou, disparado, o melhor homem de sua vida.

Ri, com aquele comentário inesperado.

- Você não conhece os outros... - brinquei.

- Vou provar-lhe que sou o melhor.

Meu Deus, ele é o melhor homem de minha vida. O único. Será que eu ainda não deixara isso claro para ele? Ele era uma dádiva, um presente, um paraíso. Na nossa conversa noturna e meio bobalhona de dois enamorados, nem de longe imaginei que houvesse espaço para a intriga ou o veneno. De nossa parte, não havia. A paixão era nosso único alimento...

- Tenho novidades para você - anunciei, ao me despedir.

Queria contar pessoalmente. Besteirinha à toa, mas que para mim significava suor e progresso. Ia desafiá-lo para uma corrida, tão logo ele estivesse recuperado da canseira de Ímola.

- Se for preciso, eu entro na fila, como qualquer fã. Na minha catatonia, as idéias se embaralhavam. Mas nessa idéia eu tentava me apegar, com todas as forças: a de estar preparada psicologicamente na chegada ao Brasil. Para o que desse e viesse.

Eu não falava, não comia, não reagia - simplesmente tinha me deixado ficar, na poltrona do avião, junto à Luiza e ao Braga. Uma das comissárias, preocupada, chegou  a me aconselhar:

- Vá pra cabine de comando. Talvez lá você se sinta melhor.

Menos de uma semana atrás, eu tinha ido a Portugal, carregada de planos e de felicidade, para me encontrar com ele. Agora, voltava a São Paulo para enterrá-lo. Será um exagero dizer que foi a mais longa, a mais angustiante, a pior viagem de minha vida?

De Lisboa, escala no Rio. Um tempinho a mais de agonia. Os comissários permitem, porém, que Luiza, Braga e eu fiquemos dentro do avião, enquanto ele é limpado e reabastecido. Aproveito para ir ao banheiro e me trocar. Aquele conjunto negro com que me fotografaram no dia. Não tinha tempo a perder, queria ir direto para o velório. O sentido oculto da minha pressa continuava sendo a agonia da irrealidade. Não entendia, não acreditava, não me conformava.

O avião com o corpo do tricampeão - para mim, apenas meu namorado - chegou vinte minutos antes do nosso. Imaginava que o caixão tivesse um vidro, uma tampa, qualquer coisa, que me fizesse vê-lo e senti-lo pela última vez. Estava completamente lacrado. Senti uma decepção, um frio na espinha. A bandeira do Brasil em cima. Solenidades marciais no aeroporto. Uma multidão enlouquecida. Para mim, a questão continuava a ser uma só: como tomar contato com a verdade de sua morte? O esquife partiu, eu fui seqüestrada, sem reação, pela Erica, funcionária do escritório do Ayrton. Ela passou pela casa dela, pegou o crachá que me dava acesso ao velório - verde, com a letra F, de família, em branco - e fomos para a Assembléia Legislativa.

Nunca houve nada comparável no Brasil. Não há de acontecer, tão cedo, nada parecido no mundo. O luto nas ruas. Os carros estacionados sobre parques e gramados. A cidade parada. As pessoas em pranto - garotos, adolescentes, velhos, todos entregues a um choro sem inibição, todos improvisando qualquer emblema que expressasse o luto coletivo: bandeiras nos ombros, cartazes de papelão com fotos do ídolo, faixas pretas em torno da testa, e por aí seguia a imaginação popular.

Não houve um único assalto, um único furto de automóvel, móvel, um único assassinato naquela que é uma das metrópoles mais sangrentas do mundo. A última homenagem ao herói irmanava o bem e o mal, pacificava os inimigos, impunha a unanimidade da tristeza. Quem dera ele soubesse disso! Comigo, era primeiro o espanto do reconhecimento, depois a gritaria desenfreada: "É ela, a namorada, a Adriane". Quando, escoltada por cinco seguranças, entrei no salão do velório, por onde desfilavam oito mil pessoas por hora, a minha dor mudou de qualidade. Percebi o tamanho que Ayrton tinha para toda aquela gente. Sabia que ele era amado, mas desconhecia o quanto. Ele era meu, mas era também de todos os outros.

Cumprimentei a mãe, o pai, a irmã. Fiquei a distância, com a minha dor. Vi Nuno Cobra, sempre calmo, agora dilacerado. Vi o prefeito Paulo Maluf. Vi quando Hebe Camargo depositou sobre o caixão o terço verde-amarelo que ela mandara fazer - e que, me contaram depois, e custo a crer, foi arremessado no chão pelo ato impensado de fanatismo de outra pessoa que não comunga da mesma fé. Hebe, chorosa, veio ao meu encontro para me abraçar: "Ó, menina, ó Adriane, que absurdo, que tragédia!”

Coroas de flores, soldados enfileirados, a bandeira sobre o caixão, o batalhão de fotógrafos - eu não conseguia fazer uma ligação entre meu namorado e o homem que recebia aquelas homenagens. Talvez meu estado catalético tenha me salvado de dores maiores. Imóvel, acompanhada apenas de minhas lágrimas ou de uma ou outra amiga que me vinha dar a mão, eu me mantive no mesmo lugar dia e noite. O pouco que saí foi para ver, lá fora, o espetáculo doloroso da multidão. Quando voltei, o capacete dele estava pousado no caixão. Olhava, e aquilo me machucava. Dias antes, o Celso, que trabalhava com ele, tinha me avisado: "Ele quer lhe fazer uma surpresa. Encomendou um, igualzinho, pra você". Ainda espero por ele. Ou será que não devo esperar?

O F, de família, me dava acesso ao - digamos assim - mais privilegiado de todos os lugares do velório, mas imaginei a dor que todos ali sentiam, avalio a sensação deles de dar de cara com aquela que era a imagem mais íntima do Béco dos últimos tempos. Zaza estava muito abalada. Viviane, mais ainda. O pai, senhor Milton, não vi derramar nenhuma lágrima, aproximar-se do caixão uma única vez, mas essa era sua forma de experimentar sua terrível dor. Léo vagava, meio a esmo. Identifiquei o Dito, um parente do senhor Milton com quem a gente costumava pescar na fazenda de Tatuí. Ele não tinha como me consolar, a não ser com aquela conversa meio estranha:

- Sei lá, se lhe der vontade vai ser um prazer recebê-la na minha fazenda para uma pescaria.

Luiza e Braga estavam no salão ao lado, o dos amigos. Senti que ali encontraria meu ponto de apoio. Eles conversavam com o Emerson Fittipaldi, experimentadíssimo, mas abaladíssimo. Passei pela outra sala, a dos convidados - tudo tinha sido organizado segundo um protocolo profissional. Circulei um pouco. Eu me sentia olhada, vigiada. Por sorte, estava muito desligada. Tinha muita conversa em volta, eu não ouvia nada. Foi duro me conter: diante do caixão, quantas vezes não senti vontade de perder a compostura, de me arremessar sobre ele, de gritar, berrar, espernear? Mas havia uma outra Adriane que me puxava para trás: aquela que, mesmo com uma enorme chaga latejando no coração, assistia a um teatro, da qual ela não fazia parte, não queria fazer, não tinha forças para fazer. Uma Adriane que não estava ali encenando a viúva. E que nem estava disposta a entrar num inútil campeonatinho de viuvez.

Mendigos, milionários, crianças, adolescentes, velhos, mulheres, deficientes, garotões, políticos, artistas, socialites - a fila era um democrático mostruário de um país chamado Brasil que se recusava a admitir a idéia de perder uma das poucas figuras que lhe passavam um sentimento positivo de vitória. Outros enterros épicos houve. Mas Ayrton Senna era o filho, o irmão, o namorado, o amigo que todo o Brasil queria ter. Era, talvez, o sentimento daqueles bilhetes arremessados sobre o caixão, pelos que passavam na vertiginosa fila. Com todas as letras, era pelo menos o que diziam os meus bilhetes - aqueles que as pessoas apressadas, pressionadas pelos guardas, ainda tinham tempo de me lançar.

Se fosse resumir todos eles num só, seria mais ou menos assim, um consolo oscilando entre o futuro e o passado:

- Fé, Adriane. Nós sofremos com você. E torcemos por você.

Identifiquei um aleijado que passou uma vez diante do caixão e fez o sinal-da-cruz. Passou uma segunda vez, a mesma coisa. Terceira vez - o mesmo. Fiquei pensando quanto tempo ele ficou na fila, arrastando-se no chão. Já era noite e a família Senna se retirara, para descansar. Alguém se aproximou de mim e propôs:

- Vai você também. Será um dia duro, amanhã.

- Descansar, hoje? Tenho o resto de meus dias para descansar.

De madrugada, não tenho idéia da hora (1h30? 2h00?), alguém tocou no meu ombro, cerimoniosamente. "Tem um senhor chamando você lá fora?" Um senhor? Sim, Frank Williams. Imóvel no meu canto, eu tinha visto quando, sempre amparado em sua cadeira de rodas, aquele que havia sido o último patrão de Ayrton chegou diante do caixão, guardou um silêncio comovido, alheio a tudo  que se passava ao lado, como se estivesse numa comunicação muito direta com a vítima de um infeliz acidente de trabalho - o seu trabalho. Afastou-se assim como chegou, sempre muito discreto, como se seu status pudesse ficar invisível diante da curiosidade dos que ali estavam. Agora, Frank me mandava chamar lá fora. Já se instalara no seu carro. Aproximei-me e ele me disse, como se sua alma falasse, não a sua boca:

- I'm very sorry, Adriane.

Repetiu, com sentimento. Na surpresa, não esbocei nenhuma resposta, a não ser um gesto qualquer de cabeça. O chefão de uma das usinas da Fórmula 1 pedindo desculpas a mim? Só no dia seguinte, ao vê-lo de novo, no enterro, é que fui até ele e o beijei no rosto, com um obrigado, obrigado. Ainda de madrugada, recostei num sofá escondido por um dos tapumes, atrás do caixão, enquanto a multidão continuava seguindo sua romaria. Entorpecida, depois de cinco noites insones, eu saboreei a primeira sensação de algum alívio espiritual. Não era sequer sono. Mas  as imagens que rodopiavam pela minha cabeça, na minha vigília sonolenta, evocavam um Ayrton vivo e emoções bonitas que tínhamos vivido. Um trailer de todos os sonhos  que eu viria a ter com ele, nos dias seguintes - e que até hoje enchem de ternura as noites em que eu rolo na cama, estendo o braço para alcançá-lo e não o alcanço.

Quando, de madrugada, alguém me arrastou para o Maksoud Plaza, onde estavam hospedados a Luiza e o Braga, com o argumento de um banho e recuperar as energias para o pior de todos os momentos, o do enterro, eu me deixei levar. Na portaria, rabiscado em papel timbrado do hotel, eu recebi essa mensagem. Leiam comigo, por  favor, porque é muito importante:

 

"Filha querida: sei que a sua dor é muito grande, mas você é também forte.

Eu daria tudo, um pedaço de mim, para não vê-la nesse estado.

Mas lembre-se de que eu a amo muito. Pode contar comigo para tudo.

Cuide-se, que Deus é bom e está sempre com você. Lembre-se também de que você foi muito feliz ao lado dele.

Agora, está doendo muito. Esta dor vai passar, mas a doce lembrança do amor você nunca vai esquecer.

Beijos de sua mãe que a adora.

Emma 5-5-94”

 

Quando eu estudava num ginásio público da Lapa, mal e porcamente freqüentando aula nas horas vagas de meus shows de música e de minha vida de modelo, os professores de português e de literatura gostavam de indicar livros complicados e cheios de sabedoria sobre a escrita, sobre a humanidade e sobre a vida. Duvido que, numa hora daquelas, alguém pudessse escrever algo tão forte, tão direto, tão verdadeiro como o que escreveu uma pessoa que teve de fazer da vida um trabalho e não um lazer  intelectual. Guardei o bilhetinho de minha mãe como se fosse uma oração de bolso. Ela entendia tudo - ela me entende. Por isso nunca escondi nada de meus sentimentos para ela. Por isso pedi sua mão e seu colo quando, aqui, distante do Brasil, ainda que em país hospitaleiro, comecei a escarafunchar essas minhas lembranças.

Por pudor e por reserva, minha mãe jamais esteve pessoalmente com Ayrton, ao longo de nosso namoro de mais de um ano. Falaram-se ao telefone, trocaram notícias  - mas a doce Emma sentia-se intimidada diante de uma celebridade. No entanto, está escrito, testemunhado, juramentado: ninguém conhecia mais de nós dois, Béco e eu, do que ela. E, assim como deixou a mensagem, assim se foi, sem querer me incomodar, antes que eu chegasse e antes que eu saísse para o funeral do herói que, por acaso, tinha sido meu namorado.

O funeral, então, seria para mim ainda mais chocante. Do ponto de vista da encenação e do cerimonial, a namorada poderia estar ali como poderia não estar. O que eu tinha, além daquele crachá F, de família, que me fazia ter uma importância a qual eu nem ligava, era o amparo dos amigos verdadeiros e a vontade de acompanhar o Béco em sua última viagem. Sem pretensão, acho que ele, se tivesse como, gostaria muito, mas muito mesmo, de me  ver por perto.

Minha sorte foi sentir, de volta ao velório, já à espera do enterro, o calor de uma mão firme e resoluta. Eu estava mais catatônica do que nunca e se não fosse a Birgit, aquela minha amiga de perambulações européias, talvez não conseguisse distinguir um pé do outro. Birgit tomou conta, literalmente. No atropelo da saída do cortejo, com helicópteros, ônibus, carros, bandas militares, honras marciais, ela me puxou resolutamente para dentro de um dos microônibus especiais, onde pude distinguir o rosto amarfanhado de um ou outro piloto: Berger, Prost, me parece, talvez o Christian. Com a Birgit e o marido, sentei ao fundo, refúgio tranqüilo. Mas o ônibus se pôs em movimento e não  resisti a entreabrir a cortina e olhar para fora.

Pessoas choravam, gritavam, acenavam. Sentia, no movimento dos lábios de alguns, a identificação imediata: "Adriane... namorada..." As fotos que tinham sido o pretexto de nossa briga eram exibidas a mim - que ironia -  como sinal de algo de que ele haveria de se orgulhar. A outra reportagem, do casal ao pôr-do-sol na fazenda de Tatuí, o atestado público do amor dele por mim, tramado por ele, presente-surpresa para o reencontro que não houve, virou pôster, virou símbolo, virou sei lá o quê - as pessoas queriam, à passagem do funeral, compensar o luto com a imagem de um homem feliz, bonito e vitorioso. Ele me reconhecia, eles me reconheciam, eu chorava.

Lento o cortejo, e no meio da massa uma figura da qual não vou me esquecer: um pretinho, adolescente, começou a correr ao lado do ônibus, bem abaixo de minha janela. Acenava para mim e chorava. Acenava, chorava e corria, no ritmo do ônibus. Tenho a impressão de tê-lo visto a primeira vez ali no final da Avenida Rebouças, quase na ponte que atravessa a Marginal de Pinheiros. Ao chegarmos ao ponto de desembarque no Cemitério do Morumbi, ele continuava ali, embaixo da janela, acenando, correndo e chorando. Tento adivinhar quantos quilômetros são: oito? Dez? A entrada que levava à tumba era restrita - mais uma vez, Leonardo tinha acionado um impecável cerimonial. Vi o crioulinho e pedi para que ele viesse também, em homenagem a seu esforço. Mas foi ele quem dispensou:

- Vim até aqui porque amava o Ayrton. Daqui pra frente, não tenho mais nada a fazer, não senhora.

Sábias palavras. Não era ele o único que estava dispensado de participar - me desculpem a sinceridade - da festa.

Comigo, muito respeito. E a mão da Birgit pousada no meu ombro, servindo de retaguarda. Lugares marcados, e lá estava para a Adriane Galisteu reservada uma cadeira na segunda fila, atrás da mãe, do pai, do irmão, da irmã, dos sobrinhos. Por um momento, recordo-me de ter acariciado o ombro do senhor Milton, de pé, bem a minha frente. Calado em seu sofrimento, ele cedeu a um leve tremor de susto, quem sabe de reconhecimento. Ao me aproximar do meu lugar, vi, ao lado, a Xuxa. O cerimonial achou por bem botar uma ao lado da outra. Ela estava muito bonita  - bonita como ela sempre é. Desde menina, eu a admirava. Cheguei a me apresentar no programa dela, com o Meia Soquete, anos atrás. Era como se fosse uma figura familiar  para mim.

No meu torpor, não senti um milímetro de estranheza ao reencontrar ali uma ex-namorada de Ayrton Senna. Estranhei, isso sim, quando a minha chegada provocou nela o imediato efeito gangorra. Foi eu sentar, ela se levantou. Buscou lugar do outro lado, num outro conjunto lateral de cadeiras.

Reconheço: talvez eu nem me desse conta de nada, absolutamente nada, se a imprensa não tivesse, nos dias seguintes, insistido na falsa questão da competição. Naquela história de ela chegar de helicóptero, eu de ônibus - ou a versão maluca de que um segurança me impediu de entrar no carro da família, na hora de ir embora. E de ela ter se hospedado com a Viviane, irmã do Ayrton, enquanto a família me ignorava. Sabem o que penso? Eu não estava ali para disputar o papel de viúva. Eu estava ali porque a única coisa que realmente me interessava eu perdera. Queixas, rancores, ciúme eram sentimentos que não cabiam no meu coração, onde só transbordava a  melancolia e a dor.

Quem sou eu para julgar? A correspondência que desabou sobre mim, nos dias e nas semanas seguintes, os telefonemas recebidos, as manifestações espontâneas, tudo, ou quase tudo, parecia trazer, além da marca do consolo pela perda, o sentido de uma solidariedade explicita  - coisa que eu nem entendia bem, na minha cabeça vazia de toda e qualquer noção de realidade. Detive-me, a princípio, num texto ditado pela própria mão de Deus e por Sua sabedoria. O salmo 81 veio sublinhado, num papel avulso da Bíblia:

Deus se levanta no conselho divino. Em meio aos deuses, ele julga:

 

"Até quando julgareis injustamente, sustentando a causa dos ímpios?

Pretejei o fraco e o órfão, 

Fazei justiça ao pobre e ao necessitado.

Libertai o fraco e o indigente

Livrai-os da mão dos ímpios.

Eles não sabem, não entendem,

Vagueiam em trevas:

Todos os fundamentos da Terra se abalam.

Eu declarei: Vós sois deuses, 

Todos vós sois filhos do Altíssimo.

Contudo, morrereis como homem qualquer,

Caireis como qualquer dos príncipes ".

Levanta-te, ó Deus, julga a Terra.

Pois as nações todas pertencem a ti.

 

Salmo 81. Coincidência? O dele, predileto.

O baú com os milhares de cartas que me chegaram, pelos caminhos mais transversais do mundo, são hoje o meu mais genuíno tesouro. Algumas nem cartas eram, os recortes de jornais, com rápidas anotações sobre fotos minhas e de outras figuras do adeus ao Béco. "Sempre só", escreveram a meu respeito sobre uma das fotos de jornal. Sobre outra, em que, à frente do Prost, eu olhava para cima, a mão tapando a boca, rabiscaram: "Linda! O Ayrton te olhará do céu". A atitude em meu favor dos deserdados de Senna - todo aquele mundão subitamente órfão - me aliviava. A atitude contra alguém, eventualmente, me era indiferente.

 

"Silêncio para injúria.

Olvido para o mal.

Perdão às ofensas (...).

Não te voltes contra ninguém.

E assim vencerás.”

 

Poema em forma de oração. Como em outros casos, com amor, mas sem assinatura. Sinceramente, não entendia por que tantos se preocupavam em falar em perdão e em inimigos. Eu nunca os tive, nunca os cultivei. Mas havia também cartas de pura dor e desespero, como a da francesinha de 15 anos, Julia, de um lugarejo da Provence, que, num cansativo esforço de se comunicar em inglês, me dizia que compartilhava comigo o amor por Ayrton Senna e que naquele 1° de maio também teve ímpetos de se  matar.

Da Inglaterra, de Portugal, do Japão, da Itália, da Suíça - e especialmente do Brasil, as páginas que eu ia lendo e catalogando, com paciência, revelavam às vezes histórias tenebrosas, na identificação com o meu sofrimento e na vã tentativa de dizer que, um dia, isso pode passar. Da Alemanha, uma linda carta enfeitada com trevos de quatro folhas e palavras de ânimo. Dentro de um envelope, flores secas colhidas dos buquês que, numa romaria que não pára nem há de parar, os fás depositam no túmulo dele (antes de viajar para Portugal, tentei passar despercebida, bem cedinho, de manhã, com a amiga Isabel, no cemitério, para lhe prestar uma homenagem silenciosa, mas é impressionante a peregrinação diária dos fãs inconsoláveis). Uma mocinha do Rio insistia no tema de "esquecer as mágoas" (que mágoas, me perguntava?) e "ser superior":

"PS: que você seja a eterna primeira-dama da Fórmula 1. Como Jacqueline Kennedy é a eterna primeira-dama dos Estados Unidos".

Adolescentes, velhos, homens, mulheres, empresários, amigas que tinham sumido de vista. Poetas que jamais tinham escrito poesia revelavam uma súbita vocação, como o Sandro, do Limelight - onde Béco e eu nos conhecemos. Místicos me acenavam com fórmulas de alívio rápido. Um número surpreendente de cartas psicografadas, assinadas Ayrton Senna da Silva, ou até A. S. da Silva, passavam, de algum lugar para outro lugar, a idéia de que o destino fora traçado, que o repouso do guerreiro era resultado de vontade superior e quanto ele sentia os efeitos da separação física. Gostaria de acreditar nessa possibilidade da comunicação com ele. De vê-lo,  nem que fosse por um segundo.

Ao amarrar no braço a correntinha mágica que minha amiga carioca Bebel me deu, antes da viagem para Sintra, eu tinha três desejos a fazer e este, de vê-lo de  novo, onde quer que seja, foi o terceiro, pela ordem, mas o mais importante, o mais aguardado e talvez o mais improvável deles.

Uma dessas cartas que recebi trazia o recorte de jornal anunciando que Senna ia virar nome de uma estrela. Homenagem de astrônomos da Europa. Estrela para sempre - nada mais perfeito. Assim será, remoia eu, recolhida pelos braços sempre estendidos da Luiza e do Braga, nos dias seguintes ao enterro, na fazenda Guariroba, a  poucos quilômetros de Campinas.

Ayrton Senna da Silva, não há quem duvide, foi o mais valente, o mais genial, o mais perfeito de todos os pilotos. Isso, a posteridade se encarregará de guardar. Para mim, quero ficar com a memória do Béco, um campeão da vida. A imagem que me fica, das últimas semanas, das conversas às vésperas da despedida, era a de um ser humano integral e completo. Ainda muito cauteloso no que dizia, ao contrário da ousadia que ele exibia nas pistas - medindo cada palavra com fita métrica, não havia outro jeito. Mas ele se abriu comigo como jamais. Eu mudei, com ele. Ele mudou, comigo. A carapaça tinha derretido. Ele era um homem, com as virtudes, as contradições,  a firmeza e, me permitam, as dúvidas que fazem dessa nossa espécie uma coisa tão especial na ordem da natureza.

Na nossa última viagem a Angra, na semana anterior ao GP do Brasil, ele assistiu, no telão, à transmissão completa da primeira prova da Fórmula Indy - na Austrália, eu acho. Porque a diferença de horário era tremenda e a prova começava de madrugada no Brasil. Ele via tudo o que tinha a ver com corrida em quatro rodas - às vezes, também em duas. Havia os amigos brasileiros na briga, Emerson, Raul Boesel e, é claro, Maurício Gugelmin, com quem ele dividiu casa quando os dois chegaram, com  a cara e a coragem, à Inglaterra, no início dos anos 80, sonhando com a glória no automobilismo. Mas, no caso dele, acompanhar a Indy era paixão pura pelo esporte em si - e o risco da velocidade.

Devastada por um dia de muito calor e esporte, eu me aninhei no colo dele, resignada em saber que ele ia até o fim, e tentei manter os olhos e os ouvidos abertos enquanto ele me dizia uma ou outra coisa que, de repente, me fizeram parar e pensar: espera aí, isso é uma confidência. Ele não diz essas coisas pra ninguém. Ainda mais para alguém que definitivamente não era do ramo.

- Está sendo difícil pra mim - dizia ele.

- Como?

- A Williams está sendo difícil pra mim - repetia.

Desde os primeiros testes oficiais no Estoril, em meados de janeiro, testes que o Braga acompanhou, já que ele ficou hospedado em Sintra, Ayrton andava se queixando ao travesseiro. Sentia-o cabisbaixo. Ele havia brigado muito por aquilo. A Williams era uma conquista.  .

- Lutei muito para sentar naquele carro, para estar ao lado do Frank Williams. Mas estou sentindo que vai me dar trabalho. Ou eu não me adaptei ao carro ou é o carro que não foi com a minha cara.

Eu o ouvia: no fundo, ele achou que ia sentar no Williams, encontrar um carro acertadinho, acelerar e partir para o abraço da galera. Mas vieram as mudanças no regulamento da FIA, uma tentativa de nivelar por baixo. Eu o ouvia e vinha com minhas opiniões de leiga:

- É uma imbecilidade mudar a regra. A Fórmula 1 vai andar para trás.

Palpite meu: se já existiam os computadores, a eletrônica em cima, o próprio sistema eletrônico garantindo uma segurança muito maior, controlando a aceleração e a aderência, por que voltar à era da manivela? Ele concordava e pegava especialmente num ponto: o reabastecimento em plena corrida.

- Quero ver só como vai ser - disse, com uma ponta de ironia e, como se viu depois, uma sabedoria profética. Design atualíssimo, motores poderosíssimos, modernidade absoluta na questão da aerodinâmica - e, do ponto de vista da segurança, muitos passos para trás. Vejam bem: isso a gente dizia bem antes de tudo acontecer. Naquele  primeiro dia que eu vi o Williams, secretamente, na Inglaterra, achei o carro lindo e ainda brinquei com o Béco:

- Pô, de azul você vai estraçalhar corações.

Mas, na minha intuição meio bobona, também achei a frente do carro fina demais - um palmo de bico, se tanto, enquanto a McLaren era mais parrudinha. Dava idéia de fragilidade. Ele estava convencido, porém, de que as mudanças na estrutura do veículo seriam compensadas por pneus mais largos. Comentou comigo. Não aconteceu nada daquilo e ele, às vésperas da estréia, se debatia com a dificuldade de um iniciante:

- Estou praticamente começando do zero - confessou, enquanto eu cabeceava no colo dele, esparramada no sofá. Ele se dividia entre olhar uma prova em Surfer's Paradise, Austrália (é o que penso, vagamente) - "olha só esse Mansell", gritava ele, de repente, "devia estar num circo" - e pensar na corrida que esperava por ele, dali a pouco mais de uma semana.

(As quatro da madrugada, ele me despertou com um beijo e me levou nos braços até a cama, ironizando: "Que bela companhia, eu arrumei".)

Feliz ele estava. Era um desafio. Mas a decepção inicial ele já não escondia.

- Vou pegar leve. É uma equipe nova, caras novas, quero ir mudando as coisas gradualmente. Melhor carro, melhor piloto? Sei não - ele me afirmou, com todas as letras, em Angra.

Interpretem vocês como quiserem essa frase do Ayrton, o determinado, o fanático, o obstinado, contestando o que, de boca em boca, só se proclamava nos bastidores do automobilismo mundial. Vou me dar o direito de interpretá-la assim: finalmente, o homem se colocava num plano superior à máquina. Espiritual e moralmente, ele a sobrepujava. Chamasse Williams, McLaren, Ferrari, Benetton, não importa o nome - Ayrton descobria que o material que o fazia ser humano era bem mais consistente do que o dos carros, que lhe davam títulos, dinheiro e glória.

A última vez que vi seu rosto, eu tive de repartir esse privilégio com milhões de espectadores. Vi e revi por uma centena de vezes aquele longo, longuíssimo momento de meditação e concentração no boxe da Williams antes da largada em Ímola. A tevê repisou insistentemente, eu acionei inúmeras vezes o replay, porque em tudo aquilo havia a indisfarçável expressão de um mistério. A cena acentuava o sentimento que ele me deixou, por telefone, na véspera: se pudesse, não corria. Ayrton Senna ia sair na frente, como pela 65° vez em sua carreira - pole position, sempre motivo de orgulho. Mas aquele choro infantil (me contaram, depois, que ele se escondeu no boxe, no sábado, para chorar em paz) me acendeu uma luz de alerta. E aí veio a imagem da tevê.

Dia de corrida, para ele, era pura adrenalina. Chegava sempre muito cedo ao boxe, energia a mil, brincando com os mecânicos. Braga não sentiu muita diferença à chegada, mas, depois do warm up, depois daquela sumida tradicional no motor home, ele voltou sisudo e circunspecto. Apoiou, meio desligado, as duas mãos no aerofólio traseiro. Ficou muito tempo concentrado, com o olhar vazando o que havia na frente. Aí, sim, demorou-se numa lentíssima inspeção do carro. Aquilo me chocou, porque percebia que havia um Ayrton que olhava atentamente e outro Ayrton que parecia totalmente alheio. Ficou assim, imóvel, um tempo intolerável. Idéias tinham tempo suficiente para se suceder em sua cabeça. Patrick Head, o diretor técnico, aproximou-se, como que para despertá-lo daquele momento de absoluta intimidade. Só então ele botou máscara, capacete e se meteu no cockpit, sem dizer uma só palavra. Apertou o cinto. Pela brecha da viseira, eu vi meu homem triste.

O circo não pode parar. As provas prosseguem, outros campeões virão, as gerações de homens de aço se sucederão. Certo dia, aqui em Portugal, enquanto botava em ordem minhas idéias, uma amiga ligou do Brasil contando o encontro dela com uma cigana. Sem mais nem menos, sem saber de qualquer ligação dela comigo, a cigana desvendou  na sua mão uma curiosa mensagem. Dizia assim:

- Estranho, estou vendo aqui alguém muito parecido com aquela namorada do Ayrton Senna, aquela loirinha.

- Adriane, aquela? - ela se fez de desentendida.

- É. Estou vendo ela se casando. Com um outro piloto. Um grandalhão.

Com todo o respeito à secular sabedoria das quiromantes, mas é de gargalhar.

Estou fora. Depois de depositar flores naquela maldita curva Tamburello, que ele não concluiu, faço minha despedida. Não pertenço mais a esse mundo da velocidade e do big business. A vertigem dos bilhões de dólares pode cegar as pessoas. Aprendi essa lição cedo, ao ver meu pai morto, aos 54 anos. Sejam dois mil dólares, sejam dois milhões, ou sejam trinta dinheiros, nada disso terá o valor de uma vida vivida com dignidade e coerência com você mesma.

Naquele telefonema arrepiante que Béco me deu, no sábado, ainda em Sintra, depois da morte do Ratzenberger, eu toquei nesse assunto:

- Mas, Béco, quanto vale continuar com tudo isso? Milhões de dólares? Bilhões de dólares?

Eu me referia aos senhores da Fórmula 1. Será que no peito deles não há espaço para o sentimento da compaixão? Eu insistia:

- Se a prova for adiada por uma semana, tenho certeza de que todo mundo que pagou ingresso paga de novo. As pessoas hão de entender...

Tchau Rubinho Barrichello, amigo fraternal. Tchau Christian Fittipaldi. Tchau outros pilotos que choraram seu amigo Senna. Boa sorte! Que as próximas temporadas não sejam marcadas, como a de 1994, pelo sombrio estigma da morte. Não me peçam para botar o pé num autódromo - nunca mais. Até na tevê, mudei definitivamente de canal.

Zaza me disse que, naquele último instante do filho no boxe, aquela longa preparação antes da tragédia, foi uma forma de oração. Ela me disse isso e outras coisas no dia seguinte ao enterro, quando foi à fazenda do Braga para conversar. Na véspera, depois do último adeus, eu também entrei na fila dos cumprimentos. A família enfileirada. Abracei a Viviane, que guardava o capacete do Béco debaixo do braço. Muitas vezes ela tinha repetido, em voz alta, abraçada àquele objeto que tanto lembrava o irmão chorado: "Valeu, Becão! Valeu!" Com o Leonardo, foi um abraço forte, muito forte, e um beijo. "Nada do que  a gente fez foi por acaso" - lembro de ele me dizer. O  pai se retirou, mas Zaza estava firme, beijei-a e ouvi dela:  "Quero muito falar com você". Respondi: "Eu também".  Mas não imaginei que no dia seguinte ela já batesse à minha porta. Depois, achei que nunca mais nos veríamos. Estava enganada.

Quando olhei pela última vez para a cova do Béco, eu  lhe disse em silêncio:

- Eu o amo, mas você me deixou, você me faz falta. Daqui para a frente, minha vida será um tormento.

No dia em que tomei coragem, enfim, de ir a nossa casa, na Rua Paraguai, para retirar as minhas coisas de lá, reencontrei a Zaza. Na fazenda do Braga, em Campinas, recebi o apoio de muitos amigos, uma longa e afetuosa visita da Betise, a Birgit, muitas amigas inesperadas e minha mãe, mas eu estava tão sem eixo, sem rumo, havia perdido tão completamente o fio da meada que me abaixei no carro quando fui a São Paulo pela primeira vez, com o motorista do Braga, depois do enterro. Só ver a cidade já me apavorava.

Fui direto ao apartamento, sem buscar minha mãe, como eu tinha prometido. Dona Neide me esperava. Dez dias depois de toda aquela tragédia. Respirei fundo para enfrentar os fantasmas da memória. Subi de elevador. A porta, entreaberta. Tudo igual - e ao mesmo tempo tudo tão diferente! Não havia nem sinal daquela baguncinha que nós dois produzíamos ali. Tudo no lugar. Não havia mais vida ali. Sentamos, a mãe do Béco e eu, no sofá e conversamos uns quarenta minutos. Ela me falou da Bíblia e, por coincidência, do salmo 81 - aquele que o Béco lia e relia. Ela não se conformava. Senti que ia desabar. Tratei de entrar no quarto. Atirava minhas coisas na mala de qualquer maneira, para poupar sofrimento. Quatro malas cheias, no final. Entrei no banheiro, estava do mesmo jeitinho: a escova de dentes dele no mesmo lugar.

Não resisti: pedi a Zaza para guardá-la. Beijei-a e guardei.

O armário dele, presentes que eu tinha dado, a gaveta com seu pijama predileto, o mais velhinho, tipo bermuda e camiseta de meia manga, azul-claro. Tinha tudo a  ver com a nossa vida. Fiquei com ele também. Mas o cartão que eu lhe tinha dado de aniversário e que ele pregou na porta, eu fiz questão de dar a dona Neide:

- É seu, fica com você - insistiu ela.

- Não, é dele, portanto fica com a senhora.

Dei as costas a um pedaço grande do meu mundo - e sabia que essa despedida seria também para sempre. Dona Neide me levou até a saída do prédio, nós nos abraçamos, eu chorei tanto, ela chorou tanto, uma no ombro da outra, que os dois porteiros que assistiam à cena também se emocionaram. Quis desanuviar:

- Se me pegarem na estrada, vão achar que sou uma sacoleira - disse eu.

Ela ainda falou sério:

- Adriane, obrigada por ter sido mulher dele e tê-lo deixado feliz. Ele foi muito feliz com você.

- Eu também fui muito feliz com ele.

- Vou rezar por você, vou torcer por você, gosto muito de você.

Peguei-lhe pela mão e disse:

- A senhora ainda vai me ver bem, pode ter certeza disso. De uma forma muito real, sincera, coerente, vou dar um jeito na minha vida.

Chovia muito, me recordo. Cada uma de nós entrou no seu carro. Até nunca mais. Uma página estava virada em minha vida.

Mas, que a Zaza me permita, eu conhecia seu filho e sabia quando é que ele tinha seus momentos de oração. Aquela cena que a tevê mostrou, pouco antes do desastre, não foi um deles. Béco rezava em casa, à noite, longe das pessoas - era dono de uma fé recatada e íntima, não fazia o estardalhaço de um militante de púlpito.

Para mim, naquela hora de rosto tenso e mãos cravadas no carro, ele apenas pensava. Pela primeira vez na sua carreira de piloto vitorioso, para quem o triunfo vinha primeiro que tudo, sentiu a fragilidade da máquina e a fragilidade do ser humano. Um homem tinha morrido à sua frente. Um amigo se estourara contra um muro. Até então, o piloto Ayrton Senna sentava no carro e andava no limite.

De repente, outros sentimentos tinham se intrometido na sua vida: susto, surpresa, medo. Medo - que palavra cruelmente realista! Em tantos meses de conhecimento íntimo e profundo, nunca o vi demonstrar qualquer coisa parecida. Ele passou por situações incríveis, bem diante do meu nariz. Nunca se inquietou. Ao contrário,  buscava o perigo. Mas eu falo agora com a sinceridade de quem ouviu, sentiu, viu - e de quem não tem nenhum compromisso a não ser com aquilo em que verdadeiramente acredita. Hoje, assisto de camarote aos que tentam dar a suas próprias mentiras um ar piedoso, quase religioso. Teorias e mais teorias, todas atribuindo a Ayrton  coisas que detestava fazer e negando-lhe aquilo que mais buscava, ou seja, a liberdade.

Ímola era a prova de fogo dele. O tudo-ou-nada da temporada 1994. Ele sabia que tinha de ultrapassar todos os limites, a começar pelos de sua máquina frágil e difícil de dominar. A minha verdade é a de que se viu, enfim, como uma criatura de carne e osso. Os super-heróis não têm medo. As pessoas têm. No dia em que Ayrton Senna pôde experimentar o mais humano dos sentimentos, no dia em que ele definitivamente se completou como ser, a insanidade dos mercadores do perigo veio golpeá-lo na cabeça. Meu Béco, amado e inesquecível, pagou com a vida a escolha de ser aquilo que ele era.

Era azul, todo azul, o meu quarto na fazenda Guariroba, para onde a Luiza e o Braga me levaram, quase pela mão, como se eu fosse uma criancinha desvalida. Azul - a cor preferida dele. Bateu, de cara, a desesperadora com preensão do que me esperava daí para a frente: viver plenamente Ayrton Senna sem ter Ayrton Senna. Tudo ia me fazer lembrar dele; nada eu iria ter em troca de sua ausência.

Um senhor que não me conhecia havia me colocado, na  véspera, depois do enterro, num gesto de simples generosidade, diante do meu day after. Almoçávamos - a Betise, Birgit e o marido, Christian, e eu - no Maksoud, quando esse senhor me reconheceu, levantou-se de sua mesa e,  pedindo mil desculpas, me deu uma coisinha embrulhada  num pacotinho.

- Não é nada, é só um símbolo - ele me disse.

Era um chaveiro em forma de coração, dourado.

- Você perdeu isso. Mas você vai se refazer - despediu-se.

O coraçãozinho ingênuo, o quarto azul da fazenda, a cama de casal e os sonhos de todos os dias - ah, os sonhos! Ele sempre vivo; muitas vezes em lugares que lembravam um quarto de hotel, malas empilhadas; ou naquela cena típica dele de falar ao telefone. De repente, ele ia sumindo e ia ficando difícil alcançá-lo. Ou  ele se atrasava. Sempre nós dois muito próximos, só que eu não conseguia nunca tocar nele. Ou então nós dois numa lagoa linda, com muito peixe, ele me chamando a atenção para as cores de um, a beleza de outro, e, sem mais nem menos, a água virava uma escada, que descia para um porão, onde ele me esperava, encostado nessa escada. E quando eu, eufórica, corria para mergulhar nos braços dele, despertei.

Acordava sempre com um travo de frustração e uma dor de saudade. Mas mesmo um sonho que eu não podia agarrar, ou parar no tempo, me trazia o consolo de sua imagem e de lembranças de coisas vividas por nós. O sonho da lagoa, por exemplo, me fez voltar a uma noite nossa no Algarve. Madrugada alta, desperto com uns gritos dele:

- Pega o peixe... Olha lá... Ali na frente... Pega o peixe!

Ele estava sentado na cama, berrando, mas com os olhos de um sonâmbulo. Tentei acalmá-lo. Abracei-o e disse:

- Tá bom, peguei o peixe.

Sempre de olho fechado, ele relaxou:

- Então, guarda o peixe.

E voltou a dormir.

Na fazenda, passei a ter medo das noites e dos sonhos. Trouxe minha mãe para perto de mim. Queria que ela ficasse acordada a meu lado, vendo um vídeo atrás do outro, até que as minhas forças cedessem. De dia, voltei a correr. Quarenta e cinco minutos. Falava em voz alta, enquanto  corria:

- Tá vendo? Fica aqui do meu lado. Era isso que eu queria mostrar para você: que podia correr com você...  Descobri um caminho que eu chamava de trilha das borboletas. Antes de ir embora, Braga fez um giro por toda a fazenda comigo e fiquei deslumbrada com aquele lugar, perto de uma cachoeira, muitas árvores serpenteando por  um caminho natural e uma quantidade incrível de borboletas, de todas as cores, de todos os tamanhos, de desenhos diferentes, tantas que você corria e elas vinham de encontro a você. No caminho das borboletas tinha uma pedra.

Grande e lisa. Não sei por que a escolhi entre tantos lugares tão bonitos da fazenda, mas era passar ali e me vinha à cabeça aquela idéia do reencontro: "Béco, você podia vir me ver um dia, aparecer por aqui".

Outra coincidência dava relevo àquela pedra. Toda vez  que eu entrava no carro, para uma volta em Campinas ou nas redondezas, tinha alguns CDs à mão. Simone, Phil Collins. Também deles eu tinha pânico - com certeza, iam me remeter para algumas situações muito especiais passadas com ele. Mas tinha um Milton Nascimento, velhíssimo, ou tipo os melhores momentos, não sei - só sei que era Milton direto, Milton, não, só aquela música dele, muito antiga, que me disseram chamar Travessia, que dizia coisas como "solto a voz nas estradas, eu não posso parar; meu caminho é de pedra..." Outro trecho impressionante: "Eu não quero mais a morte". Como aquilo me tocava. Não querer a morte era manter a memória dele viva - foi nesse exato momento que eu decidi deixar para a posteridade  as coisas que eu conto agora.

No dia da despedida da Guariroba, antes de seguir para o Rio e, depois, para Lisboa, voltei lá na pedra. Eram cinco da tarde, mais ou menos, de um dia muito frio; o sol já quase não se manifestava e eu quis passear, dar um adeus àquele lugar que tinha me dado um abrigo tão reconfortante. Com minha Bíblia na mão, me encaminhei quase automaticamente em direção à pedra. Abri o livro sagrado para ler, mas o fechei. Por mais de uma hora, eu falei. Sem parar, em voz alta - a minha própria e desesperada oração. Pedia para sair dali purificada de corpo e alma. Deixar para trás as mágoas, os maus sentimentos, revolta, dor, decepção, injustiça. Que a tempestade  me fortalecesse. Aí, sim, abri a Bíblia. Por acaso, juro, no Salmo do Perdão.

Béco não apareceu naquela pedra. Mas, não sei por quê, eu o sentia perto, muito perto. Continua pertinho, aqui, do meu lado. E do lado de todos os que o amaram verdadeiramente.

 

                                                                               Adriane Galisteu 

 

 

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