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CAMPOS DA MORTE - 3
CAMPOS DA MORTE - 3

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

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CAMPOS DA MORTE - Parte III

 

 

 

 

Capítulo 41
Napoleão
Dresden, 26 de julho de 1813
Napoleão recebeu o ministro dos negócios estrangeiros austríaco num dos salões mais pequenos do palácio Residenzschloss na noite em que Metternich chegou de Viena.
Apesar da altura do ano, o imperador estava com frio e na grelha ardia um lume, criando um espaço confortável na sala, ampliado pelo tom rosado lançado pelas chamas
firmes que brilhavam nos candelabros. Desde que voltara da Rússia, Napoleão apercebera-se de que estava mais sensível do que nunca ao frio e desenvolvera um prazer
especial por estar em ambientes quentes. As marcas dessa campanha atravessavam todas as esferas da vida de França. Dos seiscentos mil homens que liderara na Rússia
no verão anterior, nem noventa mil tinham regressado e, de entre esses, muitos tinham ficado incapacitados pelas queimaduras do gelo. Outros tinham ficado destroçados
psicologicamente, sendo incapazes de enfrentar os rigores de uma nova campanha. Só os mais fortes e corajosos tinham aguentado e, durante algum tempo, eram tudo
o que se encontrava entre as forças do czar e os territórios alemães de França.
Nos meses após o seu regresso a Paris, Napoleão fora obrigado a aproveitar cada homem disponível para reconstruir as suas forças, com o objetivo de enfrentar a ameaça
vinda de leste. Os oitenta mil homens da Guarda Nacional tinham sido anexados ao exército por decreto imperial, a par de dezenas de milhares de jovens que só deveriam
ter idade para o serviço militar dali a mais dois anos. Os veteranos na reserva foram chamados para servir outra vez pelas águias, e os marinheiros e artilheiros
da marinha foram destacados para preencher as necessidades da artilharia do exército. Independentemente da sua qualidade, chegada a primavera, Napoleão conseguira
reunir um exército de um quarto de milhão de soldados.
Todavia, era mais difícil encontrar montadas novas. À campanha russa só tinham sobrevivido alguns milhares de cavalos, e assim que Frederico Guilherme mudou de lados
e se juntou ao czar, a França viu-se privada das propriedades de criação de cavalos do Norte da Prússia. Napoleão sentira imediatamente a sua falta aquando do início
da campanha do ano. As forças de Murat não tinham conseguido providenciar proteção suficiente para as movimentações do exército francês. Também não realizavam batidas
adequadas, deixando muitas vezes Napoleão sem saber o paradeiro do inimigo. Pior ainda, não eram em número suficiente para impedir que unidades de cossacos atacassem
as linhas de fornecimento francesas.
Consequentemente, e apesar de terem vencido duas batalhas, os franceses não tinham conseguido um resultado decisivo. Após dois meses de marchas cansativas pelas
planícies e colinas dos Estados alemães e dos territórios da Prússia Ocidental, Napoleão ficou aliviado quando o czar propôs um armistício no final de junho. Fora
acordado que o cessar-fogo duraria até ao fim de julho, enquanto se conduziriam negociações para os termos do tratado de paz. Francisco, o imperador da Áustria,
oferecera-se como mediador, pelo que o príncipe Metternich passara as últimas três semanas a viajar entre o quartel-general de Napoleão, em Dresden, e o czar e Frederico
Guilherme, em Berlim.
Napoleão fitava o lume, de mãos agarradas atrás das costas, quando uma batida forte à porta lhe interrompeu os pensamentos. Ergueu o olhar no momento em que Berthier
entrou na sala.
- O príncipe Metternich chegou, sire.
- Ótimo. Ele que entre.
Berthier descreveu uma vénia com a cabeça e saiu do salão, deixando a porta aberta. Regressou momentos depois e levou o diplomata austríaco à presença do imperador.
Metternich fazia-se acompanhar por dois membros do seu estado-maior, que permaneceram a uma distância respeitosa atrás do seu mestre quando este se aproximou de
Napoleão e agarrou a mão que o imperador lhe estendera.
- É um prazer vê-lo novamente. - Napoleão ofereceu um sorriso caloroso. - Espero que as suas acomodações e as da sua comitiva sejam do vosso agrado.
- Agradeço-lhe, sire, são muito confortáveis. Claro que seria agradável ter tido a oportunidade de tomar alguma coisa e de descansar antes de prosseguirmos os nossos
assuntos.
- Lamento, mas a paz da Europa está antes do conforto dos pacificadores, tal como decerto concorda.
Metternich esboçou um sorriso.
- Com certeza, sire.
- Excelente. Talvez goste de saber que a imperatriz me escreveu. Ela transmite o seu maior afeto ao pai, e espera que continue a considerar a França como boa amiga
e aliada.
- Transmitirei as palavras dela ao imperador Francisco - replicou Metternich num tom átono. - Ele vai gostar de ter notícias da filha.
- Imagino. - Napoleão sorriu. - E certifique-se de que sua majestade imperial saiba que o genro reflete os sentimentos da esposa.
- É claro.
- Vamos, sentemo-nos. - Napoleão apontou aos convidados a mesa oval que fora instalada no centro do salão. Os austríacos esperaram que o imperador se sentasse primeiro,
após o que ocuparam os seus lugares. Depois, Napoleão fez sinal a Berthier para que se sentasse a seu lado. Assim que todos se instalaram, Napoleão cruzou as mãos
e dirigiu-se a Metternich.
- Muito bem, meu caro príncipe, quais os termos que Alexandre e Frederico decidiram oferecer-me?
Napoleão percebeu que Metternich ficara incomodado com a questão tão direta, desconfortável, sem dúvida, com a ausência das amabilidades prolongadas características
das negociações diplomáticas da altura em que Talleyrand servira como ministro dos negócios estrangeiros de Napoleão. Metternich dirigiu-se a um dos adidos.
- A pasta dos documentos, por favor.
O adido pegou numa pequena sacola de cabedal, soltou a presilha e abriu-a sobre a mesa, antes de a empurrar na direção de Metternich. O ministro dos negócios estrangeiros
pegou na primeira folha de papel e olhou para Napoleão.
- Como está determinado a tratar diretamente dos assuntos, irei apresentar-lhe um resumo das condições.
Napoleão assentiu.
Metternich aproximou o documento dos olhos e começou a ler.
- Um: acordo para desmantelar o Ducado de Varsóvia e divisão dos territórios existentes entre os poderes centrais da Europa. Dois: acordo para eliminação da Confederação
do Reno. Três: a Prússia terá as fronteiras de 1805 restauradas. Quatro: o Bloqueio Continental será levantado e a França respeitará o comércio das nações neutras.
Cinco: todas as tropas francesas serão retiradas para além do Reno. - Baixou o documento e ergueu o olhar. - Existem outros termos, mas são secundários e podem ser
negociados após a aceitação dos pontos principais.
Napoleão manteve-se imóvel e silencioso por um momento, enquanto fitava o príncipe Metternich. Depois soltou uma gargalhada de desprezo.
- É só isso que me pedem? Não exigem que abdique dos meus territórios em Itália, ou que abandone o meu irmão em Espanha?
- O czar e o rei estão dispostos a deixá-lo manter as posses em Itália - retorquiu Metternich, ao que se permitiu esboçar um sorriso. - Quanto a Espanha, imagino
que a Península Ibérica não vá ficar muito mais tempo nas suas mãos, sire.
- A sério? E o que o leva a ter tanta certeza, se é que me permite questioná-lo?
- Os mais recentes relatórios da guerra indicam que os seus exércitos estão exaustos e desmoralizados, e a população está quase toda contra o reinado do seu irmão.
E agora, o general Wellington marcha sobre Espanha com impunidade.
- O que me interessa o Wellington? - disse Napoleão bruscamente. - Não passa de mais um general inglês demasiado cauteloso que será empurrado para o mar assim que
me dignar a liderar pessoalmente os meus exércitos contra ele. Por enquanto limito-me a manter o que pode ser defendido naquele país, mas, a seu tempo, os espanhóis
serão domados e Wellington e a ralé de soldados britânicos, espanhóis e portugueses vão ser esmagados. Pelo menos disso, a Europa pode ter a certeza.
Metternich encolheu os ombros.
- Não posso deixar de admirar a sua confiança formidável, sire. Contudo, a Espanha não está em causa neste momento. Estamos aqui para discutir o armistício. Preciso
de saber se aceita os termos apresentados pela Rússia e pela Prússia, e se tem contrapropostas a apresentar.
Napoleão fitou as mãos.
- Imagino que tenha noção de que não tenho como aceitar as condições nesses termos. A França seria humilhada aos olhos do mundo. Eu ficaria humilhado. Quanto tempo
julga que seria preciso para que o povo francês se revoltasse e me depusesse, tal como fizeram com Luís? E se houvesse outra revolução? Tudo seria devastado e as
potências da Europa ficariam a braços com mais uma tirania popular disposta a destruir as instituições dos antigos regimes. Sou o único entre os tronos da Europa
e a anarquia. Seria bom que Alexandre e Frederico Guilherme se lembrassem disso, antes de me tentarem depor.
- Ninguém disse que era esse o objetivo deles - respondeu Metternich cuidadosamente.
- É claro que não. Eles só querem paz - troçou Napoleão.
Metternich não mordeu o isco e deixou-se ficar sentado em silêncio. Napoleão ergueu o olhar e fitou friamente o austríaco. Apercebeu-se do nariz comprido e do rosto
estreito, além do mesmo ar arrogante de superioridade e de condescendência que Metternich partilhava com Talleyrand, algo que o enfurecia prontamente. Nenhuma dessas
pessoas, nenhum desses monarcas e aristocratas que dominavam as massas devido a um acaso de nascimento, nenhum deles descansaria enquanto um homem que criara o seu
próprio destino governasse a França. Mexeu-se lentamente na cadeira e inclinou-se na direção de Metternich.
- O que espera a Áustria ganhar com isto?
- Sire?
- Imaginemos por um momento que não sou um simplório ingénuo que se dispõe a acreditar que a Áustria está a agir como um intermediário honesto. O que espera a Áustria
vir a ganhar?
Metternich sorriu.
- Esta conversa está a encaminhar-se para temas que é melhor serem discutidos em privado, sire.
Napoleão aquiesceu.
- Muito bem. Berthier, vocês, saiam. Já.
Berthier levantou-se imediatamente, juntou os apontamentos e dirigiu-se à porta. Após um olhar inquiridor a Metternich e o assentimento deste, os adidos seguiram
o oficial, fechando a porta atrás deles.
- Assim está melhor, sire. Muito bem, quer saber qual a posição da Áustria? Eu digo-lhe. Mas primeiro quero que saiba que esta é a minha opinião, e mesmo não podendo
falar pelo imperador Francisco, nem pelo seu círculo restrito, sei que eles partilham da minha visão. Fora isso, eles estão, como direi? - Esboçou um sorriso. -
Estão suscetíveis a um argumento fundamentado.
- Tal como o senhor é suscetível a um estímulo financeiro - atalhou Napoleão. - Ou será melhor falarmos sem rodeios, príncipe Metternich? Vai aceitar um suborno.
- Pretende subornar-me? - Metternich levou a mão ao peito e envergou uma expressão magoada. - Sire, quero que saiba que não sou o Talleyrand, que elevou a corrupção
a uma forma de arte. Não sou, nem de longe, tão versado nessa arte. - Prosseguiu apressadamente quando viu as sobrancelhas de Napoleão começarem a juntar-se. - Pretende
saber o que a Áustria deseja da presente situação. É simples. Queremos estabilidade. Tanto dentro da Europa, como entre a Europa e a Rússia. Precisamos de um verdadeiro
equilíbrio de poder na Europa. A França terá de ceder alguma da sua influência à Áustria e à Prússia. Se conseguirmos atrair a Prússia para uma causa que nos seja
comum, Frederico Guilherme não terá necessidade de uma aliança com a Rússia. A cada ano, o czar empurra as suas fronteiras para mais perto da Europa.
- Para mais perto dos territórios austríacos, quer o senhor dizer.
Metternich assentiu.
- Assim é. Por esse motivo, seria melhor que a Áustria fosse aliada de França e não da Rússia. Contudo, isso só será aceitável para o meu imperador caso a França
abdique de grande parte do território que controla neste momento.
- Não farei isso.
Metternich suspirou e fechou os olhos por um momento, antes de prosseguir.
- Sire, permita-me que seja brutalmente franco consigo. Não tem como vencer uma guerra contra as forças combinadas da Rússia, da Prússia, da Suécia e da Grã-Bretanha.
Desde que este armistício foi estabelecido, os seus inimigos acrescentaram bastante poder aos seus exércitos. Está em desvantagem e as probabilidades contra si crescem
a cada dia que passa. Os nossos espiões garantem-nos que os seus homens estão exaustos, que a Saxónia não será capaz de financiar o seu exército durante muito mais
tempo, e que as suas reservas de munições vão exaurir-se no espaço de um mês de campanha. Salve o seu exército, salve o seu trono e aceite a paz. Se não o fizer,
terei de o alertar para o facto de ser bem provável que a Áustria venha a juntar-se às potências aliadas contra o senhor.
- Porquê? - Napoleão semicerrou os olhos. - Porque haveria Francisco de fazer tal coisa? Foi o senhor que o disse, ele tem mais a recear do czar do que de mim. A
Áustria deveria estar a lutar ao lado de França.
- Isso é verdade, sire. Mas pense no nosso ponto de vista. Há muitos em Viena que continuam magoados com as duras condições de paz que nos foram impostas após Wagram.
Eles, entre outros, também recordam o desastre em que nos envolveu, na Rússia. Agora, as nações europeias estão a juntar as forças contra França. Se for derrotado,
e se nós formos derrotados consigo, a Áustria bem pode esperar que a Rússia nos imponha condições de paz ainda mais desagradáveis do que as que foram apresentadas
por vossa majestade imperial. Por isso... - Metternich sorriu. - Uma aliança com França acarreta os seus riscos. Se permanecermos neutros e a França for derrotada,
algo que parece o resultado mais provável, ficaremos impotentes para intervir quando os termos de paz forem impostos. Essa vantagem pertencerá ao czar. Assim sendo,
tal como argumentam alguns dos meus compatriotas, seria melhor que a Áustria estivesse do lado vencedor da guerra, mesmo que isso nos obrigue a ser um aliado a contragosto
da Rússia. É esse o verdadeiro risco que vossa majestade corre. A sua posição ficará ainda mais vulnerável com quaisquer reveses que venha a sofrer em outros pontos
do império. Se pretende evitar um desastre, sugiro com veemência que aceite a paz.
- Compreendo. - Napoleão juntou as pontas dos dedos e fixou Metternich com um olhar penetrante. - Foi convincente nas suas palavras, mas esqueceu-se de referir uma
coisa: o facto de a Inglaterra se ter oferecido para pagar à Áustria meio milhão de libras em ouro, caso nos declarassem guerra, e outros dois milhões para financiar
o vosso esforço de guerra posterior. - Sorriu. - Como vê, também disponho de espiões.
- Que estão deveras bem informados, sire - admitiu Metternich. - Sim, isso é verdade, mas acredito que o imperador Francisco prefere ter paz a aceitar um suborno
para declarar guerra. Contudo, se vossa majestade imperial se recusar a aceitar estas condições, a Áustria ver-se-á obrigada a agir.
- Devo aceitar isso como sendo um ultimato?
- Sim, meu imperador.
As sobrancelhas de Napoleão estremeceram.
- Estou a ver. Tem uma cópia dos pormenores das exigências?
- É claro, sire.
- Então deixe-a comigo. Preciso de tempo para as analisar.
- Com certeza, sire. O czar autorizou-me a conceder-lhe uma extensão de duas semanas ao armistício.
- Mas que generoso. Transmita-lhe a minha gratidão. - Napoleão levantou-se repentinamente. - Muito bem, irei discutir as condições com os meus conselheiros e juntos
compilaremos os nossos termos a apresentar a Alexandre e a Frederico Guilherme. Visto que já é tarde, sugiro que demos por encerrada a nossa reunião.
- Com certeza, sire. - Metternich tirou rapidamente uma cópia das condições de paz e deixou-a em cima da mesa, arrumando depois os restantes documentos e apontamentos
na sacola, que fechou. Napoleão acompanhou-o até à porta do salão, onde trocaram uma vénia formal antes de Metternich se afastar, chamando os adidos a si ao percorrer
o corredor até às escadas de acesso ao átrio principal do palácio.
Napoleão observou-o por um instante e depois fungou, desdenhoso. Voltou à mesa e levou uma das cadeiras para junto do lume, onde se sentou, inclinado para a frente
e com o queixo apoiado nos nós dos dedos. Passado um instante, levou a mão ao colete, em busca do medalhão que trazia sempre consigo. Abriu-o e olhou para as miniaturas
da imperatriz e do filho pequeno, acariciando-os aos dois com o polegar. Esperara que o casamento com uma integrante da família real austríaca lhe desse a ligação
necessária para impedir que as duas nações voltassem a travar outra guerra entre elas. Agora parecia que a sangria era mais forte do que o sangue, meditou. Fechou
o medalhão e devolveu-o ao bolso. Pouco depois, Berthier entrou no salão.
- O príncipe Metternich deixou o palácio, sire.
- Ótimo. - Napoleão acenou com a cabeça na direção da pequena porta oculta na parede do salão, a qual dava acesso a um corredor de serviço. - Ouviu tudo?
- Sim, sire.
- O que lhe parece?
Berthier ponderou cuidadosamente a resposta.
- Sire, as condições propostas são inaceitáveis. Os nossos inimigos deverão sabê-lo. Sugiro que façamos o possível por prolongar as negociações e ver as concessões
que lhes conseguimos arrancar. Quem sabe, talvez até consigamos um acordo de paz.
- Paz? Julga mesmo que o czar quer paz? Não vai ficar satisfeito até que a França, o derradeiro obstáculo às ambições europeias dele, seja derrubada. Não pode haver
paz entre nós.
- Então temos de usar as negociações para conseguir tanto tempo quanto possível. O Metternich está a par de alguma da verdade quanto às condições do nosso exército,
mas não toda. - Berthier acenou com a mão, num gesto de impotência. - Mais de metade do exército não está em condições de lutar. Temos demasiados jovens. Esta manhã
inspecionei alguns dos últimos reforços. Receberam duas semanas de formação antes de marcharem para a Alemanha. Quando saíram de França, só metade tinha mosquetes
e, durante a recruta, só dispararam duas salvas de pólvora seca. Não lhes foi dado o equipamento completo e não fazem ideia de como viver da terra. - Abanou a cabeça,
exasperado. - Sire, estamos a enviar cordeiros para o matadouro.
- Disparates! Os rapazes transformam-se em homens assim que experimentam o combate. Além disso, há muitos veteranos no Grande Exército que lhes vão ensinar o que
precisam de saber para sobreviver enquanto em campanha. - Fez uma pausa para observar com atenção o chefe do estado-maior. - Talvez o problema seja que está a ficar
muito velho para isto, meu amigo.
- Sire?
- Há muitos anos que trabalha sem parar, Berthier. Há demasiados anos. Está a perder o ânimo. É uma consequência natural.
Berthier obrigou-se a manter-se hirto e abanou a cabeça.
- Estou perfeitamente apto a cumprir o meu dever, sire. Só pretendia frisar que Metternich tinha razão. Esta pode ser uma guerra que não seremos capazes de vencer.
- Não seremos capazes de vencer? - Napoleão estava espantado. - Não podemos vencer! É um derrotista, marechal Berthier. Nunca lhe tinha visto essa faceta. E está
errado. Nós podemos vencer. O que falta aos nossos homens em experiência e equipamento será mais do que compensado pelo seu patriotismo e pela dedicação ao imperador.
É por isso que iremos vencer.
- Sire, e se a Áustria se juntar à aliança? Se tal acontecer, os nossos inimigos podem dispor de mais de meio milhão de soldados contra nós. Teremos de os enfrentar
com pouco mais de metade desse número.
- Já antes estivemos em desvantagem numérica e vencemos.
- Desta vez não, sire.
Napoleão franziu o cenho. Interrogou-se o que poderia ter acontecido a Berthier. Perscrutou a expressão angustiado do marechal e viu, como se pela primeira vez,
que o mais leal e eficiente dos seus oficiais estava perto da exaustão. Napoleão levantou-se da cadeira e acercou-se dele, tocando-lhe gentilmente nos ombros.
- Meu amigo, está cansado. Estamos todos. Mesmo assim, temos de fazer mais um esforço. Se derrotarmos o inimigo, a aliança vai cair. Esta guerra já não tem a ver
com homens, cavalos e canhões. Tem a ver com o espírito, e com a vontade de prosseguir. É nessas qualidades que se encontra o segredo do nosso êxito. Peço-lhe este
derradeiro esforço a si e a todos os meus soldados. Depois teremos uma grande vitória e poderemos descansar. Juro-lho.
Berthier mirou-o, com uma ténue faúlha de esperança a brilhar-lhe nos olhos.
- Jura?
Napoleão assentiu.
- Nesse caso, sire, sou o homem indicado.
Napoleão ofereceu-lhe um sorriso caloroso.
- Seria incapaz de travar as minhas batalhas sem si, meu velho amigo. Agora vá descansar.
Berthier descreveu uma vénia com a cabeça e deu meia-volta para deixar o salão. Quando saiu, Napoleão regressou ao lume, juntando as brasas e acrescentando mais
lenha antes de voltar à cadeira. Enquanto a madeira fresca estalava e silvava, refletiu sobre tudo o que fora dito ao longo do serão. Tinha a certeza de que seria
capaz de derrotar os exércitos de Frederico e de Guilherme, mas se a Áustria entrasse na guerra ao lado dos seus inimigos, teria pela frente o maior teste militar
da carreira. Não duvidava de que estivesse à altura do desafio, mas a questão que mais o atormentava era se os oficiais e os soldados do exército o equiparariam
na busca pela glória.
A manhã seguinte surgiu limpa e brilhante, sem uma única nuvem no céu, com Dresden a acordar para um belo dia de verão. Depois de tomar o pequeno-almoço, Napoleão
foi dar um passeio pelo Grande Jardim que se estendia para sudeste da cidade velha onde se situava o palácio. Alguns dos habitantes andavam na rua, seguindo os carreiros
de saibro que dividiam as roseiras ornamentadas, os canteiros de flores e os aglomerados de árvores. Os guardas que protegiam o imperador certificavam-se de que
ninguém chegava ao alcance de um tiro de pistola, pelo que Napoleão caminhava de cabeça baixa, embrenhado em pensamentos, alheio aos rostos curiosos que o observavam
à distância.
Chegou ao extremo do jardim e voltou para trás, regressando por onde viera, consumido com o planeamento de qualquer eventualidade que surgisse aquando do final do
armistício.
- Sire!
Napoleão levantou a cabeça e viu Berthier a percorrer o carreiro na sua direção. Obrigou-se a sorrir e levantou a mão num cumprimento.
- Dormiu bem, tal como lhe ordenei?
O marechal não sorria e falou num tom baixo.
- Sire, recebemos um despacho do marechal Jourdan. Sua majestade, o rei de Espanha, foi derrotado há um mês, numa batalha nos arredores de Vitoria.
- Outra derrota? - Napoleão abanou a cabeça com amargura. - Será que não há marechal capaz de ensinar uma lição ao Wellington? - Inspirou fundo. - Sem dúvida, o
exército do José terá de recuar para poder reagrupar-se.
- Sire, não há exército para reagrupar. Duas divisões fugiram à batalha e recuaram para França; o resto foi derrotado. Só se salvaram duas peças de artilharia e
o exército perdeu todo o comboio de bagagens.
Napoleão fitou-o, com um aperto ansioso nas entranhas.
- E o meu irmão?
- Ele fugiu, sire.
- Onde está?
- Em Bayonne.
- Bayonne - repetiu Napoleão, entorpecido. Pigarreou e olhou para Berthier com uma expressão severa. - Nesse caso abandonou o trono. A partir de agora, os nossos
assuntos em Espanha são responsabilidade militar. O Soult está em Paris. Vou enviá-lo para que assuma o comando. O José terá de ficar afastado de Paris, fora de
vista, para que não me envergonhe.
- Sim, sire.
Napoleão franziu os lábios por um instante, mergulhado nas implicações da notícia que Berthier lhe trouxera.
- Foi um rude golpe para todos nós, Berthier. Vai endurecer a determinação dos nossos inimigos. Agora, o imperador Francisco vai querer ficar do lado dos grandes
batalhões. - Esboçou um sorriso triste. - Parece que não vai haver grande descanso para nós, não é?
- Imagino que assim seja, sire.
- Nesse caso, é melhor reunirmos os meus marechais e traçarmos os planos de batalha. É uma questão de semanas, talvez de dias, até que a Áustria nos declare guerra.
Capítulo 42
Dresden, 26 de agosto de 1813
À medida que Napoleão avançava rumo à cidade, acenou a sua aprovação ao ver as defesas que o marechal St-Cyr tinha vindo a erguer desde o final do armistício. Napoleão
apressara-se a assumir o comando das tropas acossadas de MacDonald quando as notícias de uma ameaça a Dresden o tinham forçado a voltar à capital da Saxónia. Várias
baterias de artilharia tinham sido entrincheiradas nas encostas da margem direita do Elba, cobrindo as aproximações a partir de sudeste à cidade velha, na margem
oposta. O centro da cidade estava protegido por um fosso e muralhas, e os acessos aos subúrbios tinham sido bloqueados e as casas convertidas em redutos. Cinco enormes
fortificações tinham sido edificadas num arco alargado a sul da cidade, sendo dotadas de artilharia de campanha. Qualquer tentativa de assalto à cidade a partir
de sul teria de atravessar um fogo cruzado devastador mesmo antes de chegar às defesas dos subúrbios. Os preparativos de St-Cyr seriam testados muito em breve, refletiu
Napoleão.
O inimigo estava já a alcançar os destacamentos franceses e pequenos grupos de homens envolviam-se em escaramuças com a infantaria ligeira e a cavalaria inimiga,
à medida que recuavam para as defesas da cidade velha. Além dos acessos a Dresden, densas colunas de infantaria e cavalaria, a par de comboios de artilharia, aproximavam-se
da cidade num raio de seis milhas.
Napoleão franziu o cenho ao olhar para o inimigo. A amarga sensação de traição perante o oportunismo cínico da Áustria ainda lhe gelava o coração. Assim que a Áustria
se juntara à coligação contra a França, as negociações de paz tinham cessado repentinamente. Agora, mais de um quarto de milhão de soldados enfrentava o Grande Exército.
Quando a campanha tivesse terminado, e os seus inimigos fossem derrotados, Napoleão decidiu-se a impor condições tão severas que nem a Áustria nem a Prússia seriam
capazes de voltar a declarar-lhe guerra. O marechal Oudinot estava já a avançar sobre Berlim para tomar a cidade e se isso não levasse o inimigo a pedir a paz, Oudinot
tinha ordens para arrasar a cidade pelo fogo. Quanto à Rússia, Napoleão sabia agora que o czar apenas poderia ser contido. A escala imensa dos domínios de Alexandre
tornavam a conquista impossível.
Como sempre, os austríacos tinham avançado lentamente, através das colinas da Boémia em direção a Dresden. St-Cyr já tinha debelado a vanguarda, mas agora era o
grosso do exército austríaco, com destacamentos de tropas russas e prussianas, que avançava sobre a base francesa em Dresden. A alguma distância de Napoleão, marchavam
o marechal Ney e a Guarda Imperial, e atrás deles os corpos de exército de Victor e Marmont - recém-chegado de Espanha -, mesmo que não fossem capazes de chegar
a Dresden até final do dia. St-Cyr e as suas tropas tinham de manter a posição por doze horas, refletiu Napoleão.
Os guardas ao portão principal reconheceram Napoleão ao longe à medida que o grupo se acercava a galope pela estrada e exclamaram: - Viva o Imperador! - O grito
ecoou pela cidade e quando atravessou os portões e avançou pelas principais avenidas rumo à ponte sobre o Elba, foi envolvido pelos homens do corpo de St-Cyr, entusiasmados
e aliviados. Napoleão retribuiu os sorrisos, erguendo ocasionalmente o chapéu à laia de saudação, o que estimulou um crescendo de aclamações. Quando entrou na cidade
velha, Napoleão ordenou ao primeiro-oficial que encontrou que o conduzisse ao quartel-general do marechal.
St-Cyr tinha ocupado a catedral, cujas torres proporcionavam uma excelente vista geral das defesas da cidade, bem como da paisagem para sul. A nave tinha sido despojada
para se instalar uma mesa de mapas e as secretárias dos ajudantes e adidos do marechal. Todos se puseram de imediato em sentido quando o imperador entrou no edifício,
atirando com a chibata e luvas de montar para Berthier, antes de tirar o chapéu e lho entregar também.
- Sire, não imagina como estou contente por vê-lo. - St-Cyr sorriu e descreveu uma vénia.
- Não há tempo para cortesias - atalhou Napoleão bruscamente. - Qual é a sua força neste momento?
St-Cyr engoliu em seco enquanto raciocinava apressadamente.
- Pouco mais de vinte mil homens, sire. Dezasseis mil nas defesas da cidade velha e o resto na parte nova da cidade.
- Nesse caso retire todos os homens da cidade nova de imediato. São todos necessários aqui.
- Com certeza, sire.
Napoleão acercou-se da mesa dos mapas enquanto desabotoava o casaco. Inclinou-se para diante para examinar o mapa.
- Os seus homens vão ter de nos ganhar tempo, St-Cyr. A Guarda vai chegar à cidade daqui a mais ou menos uma hora. Vai levar mais umas duas horas até que todos eles
assumam as suas posições na cidade velha. Victor e Marmont não chegam a Dresden antes do final do dia, portanto teremos de aguentar até lá. Entenda bem isto: se
Dresden cair, nesse caso a campanha está terminada e perderemos tudo a leste do Elba.
- Compreendo, sire.
- Então deixe-me inspecionar as suas defesas.
St-Cyr não conseguiu esconder a surpresa.
- Agora, sire?
- Sim. Vamos. - Napoleão deu meia-volta e avançou a passo largo para a porta, estalando os dedos para Berthier lhe dar o chapéu, luvas e pingalim, os quais tinha
acabado de pousar em cima de um grande baú. St-Cyr ordenou apressadamente a um dos seus adidos que transferisse a totalidade do corpo de exército para a cidade velha
e apressou-se a seguir o imperador.
O grupo de oficiais superiores seguiu Napoleão durante a rápida visita às defesas. O último dos destacamentos tinha sido retirado e a calma instalara-se sobre o
campo de batalha ao sul, enquanto o inimigo formava alas para um ataque em massa. Centenas de canhões foram trazidos para a frente e desatrelados para formar grandes
baterias que tinham como objetivo bombardear os defensores antes de a infantaria ser mandada avançar para assaltar as muralhas e redutos improvisados dos subúrbios.
Os homens do corpo de exército de St-Cyr observaram os preparativos com um ar apreensivo enquanto guarneciam as defesas, espreitando por cima dos muros e das seteiras.
O grupo imperial terminou a inspeção às defesas na edificação mais próxima da margem do Elba, um grande forte rodeado por um fosso profundo. O lado voltado para
o inimigo formava um ângulo para que os canhões pudessem varrer o terreno diante da cidade, cruzando fogo com peças da construção vizinha. St-Cyr tinha colocado
trinta canhões em cada um dos fortes e havia montes de bolas junto a cada peça, com os paióis principais escavados em abrigos cobertos para os proteger de morteiros
inimigos.
Napoleão apeou-se e subiu a um caixote para poder ser visto com facilidade pelos seus homens. Em seu redor acotovelavam-se ansiosos os artilheiros e um batalhão
de infantaria a quem ele se dirigiu.
- O inimigo decidiu tentar a sorte no ataque a Dresden, apesar de saber que estou aqui convosco, já que anunciaram a minha presença a plenos pulmões!
Os soldados riram-se e sorriram, e Napoleão ergueu a mão para os silenciar.
- Apesar de estarmos em desvantagem de dez para um, os reforços estão a caminho. Ao final do dia, estaremos ao nível do inimigo em força e prontos para levar a luta
até ele amanhã. Esta é a batalha de que eu tenho andado à procura. Até agora, os nossos inimigos têm-me negado a oportunidade de lutar, e agora compreendo a sua
estratégia. Pretendem evitar um confronto com Napoleão até terem juntado homens suficientes para os tornar confiantes a ponto de arriscar uma batalha. Portanto,
ainda que nos ultrapassem em dez para um, não se espantem se eles perderem a coragem e fugirem para a Boémia, em vez de me fazer frente.
Os homens riram-se outra vez e alguém gritou: - Viva Napoleão! Viva a França! - O brado foi imediatamente repetido.
Napoleão ergueu os braços e vociferou, com uma raiva simulada.
- Calados, seus tolos, ou ainda os assustam! É isso que pretendem? Ou querem mostrar a estes cobardes como lutam os franceses? - Parou um instante até todas as bocas
se silenciarem. - A grande prova da campanha está diante de nós.
Estava prestes a continuar quando troou um canhão no meio das formações do exército aliado. Instantes depois houve um ribombar terrível quando as armas inimigas
abriram fogo e a onda de choque rompeu o ar. Pedaços de terra foram levantados e um tiro passou-lhes por cima das cabeças com um assobio estridente.
Napoleão fez uma concha com as mãos em torno da boca e gritou: - Às armas! Às armas!
Os artilheiros e a infantaria correram para as suas posições e, pouco depois, o primeiro canhão francês respondeu, recuando quando o fumo saiu pela abertura na muralha.
Napoleão desceu do caixote e apressou-se a chegar à muralha, a partir de onde observou cuidadosamente através de uma fresta protegida com madeira. Uma coluna inimiga
estava a avançar rapidamente pela lateral do Grande Jardim, a caminho da fortificação. Napoleão chamou o capitão da bateria mais próxima e apontou para os austríacos.
- Está a vê-los? Dê-lhes alguma metralha.
- Com certeza, sire. - O capitão sorriu, regressando para dar a ordem aos subordinados. Os artilheiros ajustaram a elevação das peças com espigões e carregaram as
finas latas de estanho repletas de bolas de ferro. Quando os sargentos indicaram que as peças estavam prontas, o oficial levantou a mão, baixando-a ao mesmo tempo
que gritava a ordem para fazer fogo. As armas saltaram com o recuo e as aberturas na muralha foram momentaneamente iluminadas pelos jatos de fogo que escapavam da
boca das armas. Então a visão ficou obstruída. Napoleão correu para uma abertura onde conseguia ver, através de um véu de fumo, o dano infligido pela bateria. Nos
primeiros vinte passos da coluna, quase nenhum soldado ficara de pé. O resto fora ceifado e estava morto ou moribundo, coberto de sangue. Um oficial num dos lados
fez sinal aos homens seguintes para que avançassem através dos corpos mutilados e a coluna ultrapassou-os enquanto continuava a avançar rumo às defesas. O fumo ainda
pairava sobre a bateria, pelo que os tiros seguintes foram disparados às cegas, mas apesar de uma peça apenas ter conseguido rebentar os ramos de algumas árvores
no Grande Jardim numa chuva de fragmentos, as outras bocas-de-fogo acertaram em cheio, abrindo mais brechas na coluna que se aproximava.
- Sire!
Napoleão voltou-se e viu Berthier aproximar-se. Afastou-se da abertura e correu para o seu adido.
- O que se passa?
- A Guarda chegou, senhor. Estão agora a marchar pela cidade.
- Onde está o Ney?
- Também está cá, com os marechais Mortier e Murat, sire.
- Murat? O que está o Murat a fazer aqui?
- Tem a cavalaria na estrada para Dresden, sire. Veio à frente para pedir ordens, sire.
- Muito bem. - Napoleão caminhou pelo interior do forte até à porta, voltada para a cidade, onde os cavalos estavam guardados para o imperador e o seu grupo. Os
três comandantes recém-chegados esperavam com St-Cyr.
- Cavalheiros, preparem-se para algum trabalho complicado - anunciou Napoleão. - O inimigo lançou um ataque determinado. St-Cyr, vai tomar conta das defesas. Aguente-os.
Ney, Mortier, Murat, quero que cada um de vós assuma um terço da Guarda Imperial e que formem uma reserva, Mortier à esquerda, Ney ao centro e Murat à direita. Tenham
os vossos homens prontos para avançar a qualquer momento. Mas não devem agir sem ordens, a menos que o inimigo rompa a linha nos subúrbios. Nessa eventualidade,
podem usar a vossa iniciativa. Mas não se entusiasmem. Expulsem-nos da cidade e recuem para a posição inicial. Não podemos dar-nos ao luxo de desperdiçar um homem
que seja sem necessidade. Podem ir.
Quando os três homens montaram e galoparam de volta à cidade, Napoleão deu uma última olhadela à maior das fortificações e depois, convencido de que manteria o inimigo
à distância, ele e St-Cyr lideraram o grupo de regresso ao quartel-general na catedral. O som da artilharia e o crepitar mais ligeiro dos tiros ecoava em toda a
extensão da cidade velha e Napoleão apontou para a torre da catedral.
- Tenho de ver o que se está a passar. Onde são as escadas?
St-Cyr indicou-lhe uma pequena passagem no canto da nave e, de telescópios na mão, começaram a subir as íngremes escadas em espiral que se embrenhavam no interior
sombrio de pedra. Com a respiração pesada e o coração acelerado, emergiram no campanário de janelas altas que lhes garantiam boa visibilidade em todas as direções.
A sul, a cidade estava rodeada de nuvens de fumo, cuspido à medida que as peças de ambos os lados iam disparando entre si. No meio das baterias inimigas, e em cada
flanco, as colunas de infantaria inimiga marchavam sobre as defesas cobertas pelos escaramuceiros, que se esforçavam para fazer suficiente fogo de cobertura que
mantivesse os defensores abrigados e incapazes de disparar. Enquanto percorria demoradamente a linha com o telescópio, Napoleão ficou satisfeito ao ver que os homens
de St-Cyr estavam a aguentar-se.
Ao observar o ataque ao forte que visitara pouco antes, viu os restos da coluna dizimada pelo fogo de metralha a lutar para entrar pelas aberturas. A vala estava
coberta de corpos e os que tinham alcançado a muralha não dispunham de escadas, pelo que se esforçavam por trepar por cima dos cadáveres. Outra coluna contornava
o flanco esquerdo do forte, esperando tirar partido da distração criada pelos camaradas. Um rasgo de fogo vindo das armas francesas do outro lado do Elba anunciou
a sua entrada na batalha e as bolas esventraram a coluna.
O assalto atingiu o auge pouco depois do meio-dia, quando os austríacos trouxeram os canhões para mais perto da cidade e tentaram abrir brechas nas defesas dos subúrbios.
Os homens nos fortes tiraram o máximo partido da oportunidade para descarregar um fogo devastador sobre as baterias inimigas, rebentando com equipas inteiras e esmagando-lhes
os carros. O inimigo aguentou uma hora de castigo intenso antes de fazer recuar os canhões e prosseguir o assalto com a infantaria. Contudo, sem equipamento de escalada,
toda a sua disciplina e coragem eram vãs, já que foram detidos em frente às linhas francesas. Os homens de St-Cyr aguentaram-se com dificuldade toda a tarde e quando
o relógio da catedral anunciou as cinco horas, Napoleão decidiu que chegara a altura de lançar o seu contra-ataque.
Descendo da torre, saiu para a nave e chamou Berthier.
- Chegou a hora da Guarda Imperial. Diga a Murat e a Ney para rechaçarem o inimigo. Mas eles que não percam a cabeça. A Guarda não deve avançar mais de um quilómetro
além das fortificações e depois tem de recuar. Certifique-se de que eles entendem isso.
- Com certeza, sire. E quanto a Mortier? Deve ficar como reserva?
- E arriscar a ira dos seus guardas? - Napoleão riu-se. - Acho melhor ser eu próprio a lidar com eles e pôr cobro aos resmungos.
- Tome cuidado, sire - alertou Berthier quando se separaram, enquanto Napoleão saía da catedral para montar a cavalo. Cavalgou para leste através das ruas, cujas
paredes ecoavam o troar dos canhões e abanavam com os estrondos da artilharia de ambos os lados. Mortier esperava à frente dos seus homens, formados à entrada de
uma grande praça de mercado próxima do limite dos subúrbios orientais. Os soldados, muitos deles com grandes bigodes farfalhudos e com os brincos dourados que se
tinham tornado uma espécie de moda no seio do corpo de elite, puseram-se em sentido quando o imperador apareceu. Napoleão abrandou o cavalo para passo à medida que
avançava diante da primeira fila, perscrutando os rostos silenciosos que olhavam em frente, os mosquetes seguros pela coronha, e as barretinas de pelo de urso a
fazê-los parecer gigantes.
- Os seus homens estão formidáveis como sempre, marechal Mortier - elogiou Napoleão quando se aproximou do comandante. - Seria uma pena sujar um tão soberbo grupo
ao enviá-lo para a ação.
- Não se atreva a impedir-nos! - gritou uma voz da retaguarda do batalhão principal. - Conquistámos uma oportunidade de glória.
- E vão tê-la! - respondeu Napoleão. O sorriso desvaneceu-se quando se voltou para Mortier. - O ataque austríaco falhou. Está na altura de os repelir. A Guarda tem
de reconquistar o Grande Jardim.
- Sim, meu imperador.
- Vou-me juntar a vós para o ataque.
Mortier sabia que não devia questionar a decisão do imperador e assentiu.
- Será uma honra estar ao vosso lado, sire.
- Então vamos lá - replicou Napoleão. - A Guarda vai avançar.
Mortier bradou a ordem e os tambores começaram a fazer soar o avanço, um matraquear rítmico grave que ecoou nos edifícios circundantes. Então, ao som da ordem, a
Guarda começou a marchar para fora da praça, pela grande avenida que conduzia à estrada de Dresden para Pirna. Quando se aproximavam do limite da cidade velha, passaram
pelos feridos que estavam a ser tratados nas ruas secundárias e os homens aclamaram a Guarda em marcha. Ouviam-se agora tiros pelo ar, com um som agudo. Os vidros
nos andares superiores das casas estavam estilhaçados e as pedras picadas por balas de mosquete. Havia também grandes buracos nas paredes e telhados atingidos pelas
bolas de canhão austríacas.
Onde a avenida curvava ligeiramente para a direita, Napoleão viu que tinham chegado aos limites da cidade. Numa barricada que atravessava a rua, uma linha de infantaria,
com três soldados de profundidade, disparava à vez e recolhia-se para carregar. Vários corpos tinham sido arrastados para o lado da estrada, para não atrapalharem
os camaradas. Uma névoa densa pairava sobre o espaço aberto à sua frente, mas pequenos raios de luz marcavam as posições dos austríacos a uma curta distância quando
eles respondiam ao fogo. Um tiro passou de raspão pelo cavalo de Napoleão e um dos guardas dobrou-se para diante com o impacto, tombando depois para o lado da coluna,
largando o mosquete e agarrando-se à barriga.
- Abram alas para a Guarda! - gritou Mortier, voltando-se depois para Napoleão. - Sire, por favor, espere aqui pelos estandartes. Será o lugar óbvio para os homens
o procurarem.
- E para me manter seguro, não?
- Sim, sire. - Mortier assentiu com uma expressão severa.
- Muito bem. - Napoleão puxou as rédeas e conduziu a montada para um dos lados da avenida. Mais à frente, o tenente ao comando da companhia na barricada ordenou
aos seus homens que cessassem fogo e limpassem o caminho. O inimigo, ignorando o novo perigo, continuava a disparar, fazendo mais umas quantas baixas, e o caminho
ficou então livre, no momento em que os primeiros guardas apareceram a marchar. Passaram através do fumo da pólvora e surgiram do outro lado, dispostos em linha.
Ripostaram ao fogo com duas salvas, baixaram então as baionetas e marcharam em frente.
Imediatamente atrás do primeiro batalhão vinha o grupo das insígnias. Napoleão encostou o cavalo aos estandartes e avançou para fora da cidade, através da nuvem
de fumo acre. Do outro lado, a coluna passou por duas linhas de corpos tombados, uma francesa, a outra com as fardas brancas dos austríacos. Adiante, dois batalhões
de infantaria austríaca estavam alinhados, um de cada lado de um par de peças de campanha, mas os guardas não vacilaram um segundo enquanto trepavam pelos destroços
e reordenavam as fileiras. Instantes depois, os canhões ribombaram e uma chuva de metralha assobiou pelas folhas e abateu vários guardas com uma sequência de impactos
bruscos. Napoleão observou enquanto cerravam fileiras e avançavam para o inimigo. Por duas vezes as armas dispararam, abatendo mais guardas. Depois, quando chegaram
ao alcance dos mosquetes, a Guarda parou, preparou as armas, apontou e descarregou uma salva. O coronel gritou a ordem para carregar e Napoleão observou-os a desaparecer
no fumo enquanto varriam os austríacos.
Tendo suportado horas de fogo dos defensores e sido incapaz de penetrar na cidade, o inimigo tinha pouca vontade de lutar, retirando apressadamente perante a carnificina
levada a cabo pela Guarda Imperial. Quando anoiteceu, o inimigo tinha sido repelido para lá das aldeias onde St-Cyr estabelecera os postos avançados originais. Napoleão
regressara ao quartel-general, satisfeito com o trabalho dessa tarde. Aí, Berthier relatou que os primeiros elementos dos corpos de exército de Marmont e de Victor
estavam a entrar na cidade pelo outro lado do Elba. Napoleão deixou instruções para que os oficiais superiores se lhe juntassem às dez horas, a fim de receber ordens
para a batalha do dia seguinte, e ordenou que lhe trouxessem uma refeição rápida. Antes de a luz desaparecer por completo, subiu à torre uma vez mais para observar
as posições inimigas. As fogueiras dos acampamentos tremeluziam num arco vasto em redor do sul da cidade, mas era claro que a maior concentração era na linha de
colinas que os locais designavam Räcknitz. Napoleão olhou para as nuvens sobre as colinas durante algum tempo, após o que abanou a cabeça para consigo.
- Acredito que o inimigo irá lançar outro ataque a Dresden amanhã - anunciou Napoleão aos marechais e generais mais importantes enquanto estes se sentavam nos bancos
dispostos em torno da mesa dos mapas de St-Cyr. - Ainda nos superam em número, mas não sabem ao certo a nossa força. O grosso dos dois corpos que chegaram ao anoitecer
não terá sido visto, portanto estarão confiantes de que nos vão esmagar. Contudo, seremos nós a atacar primeiro, assim que haja luz. Uma vez que é no centro que
se encontra a força deles, vamos fazer aí uma diversão e atacar pelos flancos. Todos os homens disponíveis seguirão amanhã para a nossa linha de batalha. Murat vai
comandar a ala direita, Ney a esquerda, e St-Cyr e Marmont vão segurar o centro. O centro e o flanco esquerdo do inimigo estão separados por um afluente do Elba,
aqui. - Apontou para o mapa. - O rio Weisseritz. Há apenas uma ponte que cruza o rio no espaço de vários quilómetros, na aldeia de Plauen. Murat, se tomar essa ponte,
a ala esquerda do inimigo não poderá ser reforçada e vai ficar à sua mercê.
Murat debruçou-se e olhou para a aldeia.
- Plauen será minha numa hora, sire.
- Ótimo. Certifique-se apenas de que consegue manter a ponte. - Napoleão fez uma pausa breve. - Pretendo empurrar o inimigo pela estrada até Pirna.
- Pirna? - espantou-se Ney. - Porquê Pirna?
- Porque esta manhã o corpo de exército do marechal Vandamme atravessou o rio em Pirna. Cortou as linhas de comunicação do inimigo e vai bloquear-lhe a retirada.
À exceção de Berthier, que já estava a par, os restantes oficiais agitaram-se com a notícia e Napoleão deliciou-se ao ver o entusiasmo que voltara a brilhar nos
rostos cansados.
- Se amanhã formos bem-sucedidos, e se Vandamme desempenhar bem o seu papel, o Exército da Boémia será eliminado da campanha. Isso deixará apenas Blücher e o nosso
amigo, o marechal Bernadotte, para nos fazer frente. Bernadotte foi encarregue da defesa de Berlim e neste preciso momento, o marechal Oudinot está a avançar para
lidar com ele. Blücher não pode esperar derrotar-nos sozinho. Estamos a poucos dias de terminar esta campanha e de vencer esta guerra, meus amigos. - Napoleão ostentou
um sorriso caloroso e levantou de repente o dedo. - Há mais uma informação que pretendo partilhar convosco. Ao início desta noite, as nossas sentinelas ouviram os
canhões inimigos fazer três salvas de saudação. Parece que fomos agraciados com a presença não apenas do imperador Francisco, como também do czar Alexandre e do
rei Frederico Guilherme. Se eles caírem na nossa armadilha, a coligação estará acabada de um golpe só. Perguntas?
Seguiu-se uma pausa antes de Mortier fazer sinal com a cabeça.
- O plano é sólido, sire. Mas há um detalhe que me preocupa.
- E então?
- O marechal Vandamme, sire. Será um corpo de exército suficiente para bloquear o caminho do inimigo?
- Julgo que seja suficiente - respondeu Napoleão com brevidade. - Se amanhã fizermos bem o nosso trabalho, os aliados serão uma força exaurida e irão render-se assim
que perceberem que lhes cortámos a retirada. Mais alguém? - Olhou em redor da mesa. - Então está decidido. Sabem o que têm a fazer, cavalheiros. Agora preparem os
vossos homens para a vitória.
Capítulo 43
Choveu bastante durante a noite, acalmando somente antes da madrugada, enquanto os soldados do Grande Exército, enrolados nos sobretudos compridos e com oleados
presos aos chapéus emplumados, ocupavam os seus lugares nas fileiras para o início da batalha que se aproximava. O solo estava escorregadio por causa da lama e a
corrente do Weisseritz tornara-o demasiado perigoso para vadear. Os últimos elementos da cavalaria terminavam a formação quando os primeiros raios da madrugada brilharam,
esbatidos e cinzentos, sobre os montes a leste.
Napoleão subira à torre da catedral, onde se encontrava com Berthier e um punhado de outros oficiais do estado-maior para observar a abertura das hostilidades. Tal
como esperara, a luz débil revelou que o inimigo não fora lesto a preparar-se para a batalha. Ao contrário dos franceses, aboletados na cidade e em condições quentes
e secas, as forças austríacas e prussianas tinham acampado ao ar livre e a chuva forte ensopara-os até aos ossos, fazendo com que fosse quase impossível dormir.
Consequentemente, movimentavam-se com lentidão e formaram os batalhões com pouco ânimo e cansados.
Quando o relógio da catedral soou as seis horas, a peça de sinalização disparou e os homens que formavam a grande massa dos flancos franceses ondularam em frente.
Do lado esquerdo, a oposição era feita pelas tropas austríacas, que na véspera tinham sido bastante maltratadas na tentativa de assalto à cidade. Duas divisões da
Guarda Jovem lideravam, marchando com firmeza pelo solo macio, parando para disparar salvas contra qualquer unidade inimiga que tentasse ocupar o seu espaço. À distância,
no extremo das linhas francesas, a cavalaria avançou pelos campos enlameados em direção à floresta que delineava as margens do Elba e afugentou a infantaria que
tinha tentado encontrar abrigo entre as árvores durante a noite.
Virando-se para o outro flanco, Napoleão observou as colunas das corporações de Victor a atacarem para oeste, o flanco esquerdo no Weisseritz, enquanto à sua direita
a cavalaria de Murat formava em linha e esperava pela ordem para dar início à perseguição, assim que a infantaria quebrasse as formações do inimigo.
Em menos de uma hora, a ponte de Plauen tinha sido capturada e coberta com uma bateria de cavalos e canhões, cortando a ligação entre a esquerda aliada e o seu centro.
Milhares de inimigos, presos na lama e sem possibilidade de fugir a tempo, foram obrigados a recuar contra o soberbo rio e ficaram encurralados. Cerca de uma centena
tentou atravessar a corrente, mas perderam o pé e foram arrastados, gritando debilmente por ajuda antes de desaparecerem de vista e serem engolidos pelo Elba.
Ao centro, St-Cyr e Marmont enfrentavam a maior dificuldade, pois estavam prestes a ficar em minoria e o inimigo fortificara todas as aldeias e quintas que se encontravam
à frente do centro do exército aliado. Tal como esperado, pelas oito horas a luta tinha-os levado a um impasse e um grosso rasto de fumo de pólvora expandia-se preguiçosamente
ao longo de três quilómetros, enquanto um assassino fogo de artilharia era trocado à queima-roupa.
Ao meio-dia, a chuva começou novamente a cair e assistiu-se a uma breve pausa na luta, enquanto os soldados de ambos os lados recuavam uma pequena distância para
voltar a formar alas, preparando-se para o ataque seguinte. St-Cyr aproveitou a pausa para fazer avançar as suas armas, deixando-as prontas a abrir caminho através
da linha frontal do inimigo.
Napoleão apoiou os cotovelos no parapeito enquanto observava o campo de batalha. Sentiu uma estranha sensação de desapego e apercebeu-se de que isso estava associado
à natureza da batalha. À exceção de uma pequena força da Velha Guarda, todos os homens tinham sido colocados na linha e não havia reservas que pudesse mandar avançar,
caso fossem necessárias. Os subordinados tinham ordens claras e faltava ao inimigo iniciativa e vontade para fazer algo mais do que aguentar a defesa, pelo que não
havia nada que Napoleão pudesse fazer, salvo assistir enquanto os marechais se introduziam nos flancos aliados e lhes tentavam quebrar o centro.
Um oficial do estado-maior trouxe-lhe um cesto de frango frio e algumas fatias de pão escuro alemão, o qual Napoleão abominava. Enquanto comia, as armas do inimigo
começaram a abrir fogo contra as baterias de St-Cyr, quando estas se preparavam para a ação, e, em pouco tempo, teve início um duelo de artilharia em larga escala,
ouvindo-se o troar profundo através do campo de batalha.
- Não tem havido muito progresso no centro - comentou Berthier. - Receio que o ataque seja obrigado a parar, sire.
- Talvez. - Napoleão acenou com a cabeça em sinal de concordância, depois atirou violentamente uma perna de galinha meio comida para a estrada de Pirna. - Até Vandamme
lhes ameaçar a retaguarda. Nessa altura, o centro vai quebrar.
- Acredito que sim, sire.
- Vai ser assim. - Napoleão deu outra dentada, mastigou rapidamente e engoliu. - Alguma notícia do Vandamme?
- O último relatório foi enviado às duas da manhã, sire. Ele deparara-se com os postos avançados do inimigo.
- Nesse caso esperemos que tenha tido a sensatez de atravessar por eles e marchado até ao som das armas aqui em Dresden.
Enquanto a chuva continuava a cair, o som de fogo dos mosquetes e dos canhões começou a diminuir. No flanco esquerdo, a batalha chegara a um impasse, mas do lado
direito, Napoleão viu que Murat fizera avançar a cavalaria. O solo molhado dificultava os movimentos e Napoleão bateu na coxa, deliciado ao ver grandes grupos de
soldados inimigos encurralados nos campos cheios de lama, rodeados pela cavalaria francesa e obrigados a renderem-se. Ao meio da tarde, o flanco esquerdo do inimigo
já não existia de todo. Todavia, o centro continuava a aguentar, impenetrável aos frequentes ataques que os soldados franceses faziam à força das baionetas.
Ao fim de algum tempo, Napoleão soltou um longo suspiro.
- O exército já fez tudo o que podia por hoje, Berthier. Esta chuva está a entorpecer-nos. Dê ordem para cessar o ataque. Fará bem aos homens passarem mais uma noite
abrigados, e os inimigos ao ar livre. Depois veremos quanto tempo demorará o moral deles a quebrar amanhã.
- Com certeza, sire.
- E quero relatórios de todas as divisões. O número de mortos e o número de inimigos capturados, e o estado das baixas deles. Ao cair da noite. Há mais um dia de
batalha para preparar - concluiu, com irritação. - Amanhã vamos acabar com isto.
A chuva parou por fim enquanto o anoitecer escurecia o campo de batalha e escondia misericordiosamente os corpos e os membros cravados nos amontoados de lama, agitados
pela passagem de muitos milhares de homens, cavalos e pesadas rodas de madeira. Os homens do Grande Exército marcharam de regresso aos seus aboletamentos, esgotados
e molhados, mas ainda cheios de ânimo, ao contrário da longa coluna de prisioneiros que foi escoltada sobre o Elba para passarem ainda mais uma noite ao relento.
Berthier conferiu os relatórios da batalha que iam chegando de todas as partes do exército e apresentou a sua avaliação final ao imperador, que estava sentado, enrolado
num cobertor, perto de um braseiro instalado na nave. Tinham-se passado vários dias desde que Napoleão dormira bem e a exaustão, a par das condições húmidas, tinham-se
combinado e provocado uma febre ligeira. Tremia enquanto se aconchegava junto ao fogo.
- Sire, deseja que mande chamar o seu médico? - perguntou Berthier ansiosamente.
- Não. Isto já passa. Além disso, posso descansar depois de amanhã. - O rosto de Napoleão contorceu-se por um momento e depois o imperador espirrou.
- Peço-lhe uma sopa, sire?
Napoleão abanou a cabeça. Sentia o estômago revoltado e o simples facto de pensar em comida dava-lhe náuseas. Olhou de soslaio para Berthier e meneou a cabeça na
direção dos papéis que este trazia na mão. - São os relatórios?
- Sim, sire.
- Faça-me um resumo.
- Fizemos cerca de doze mil prisioneiros e, após a contagem dos corpos, e tendo em conta a habitual percentagem de feridos, o inimigo terá sofrido uma perda total
de mais de trinta e cinco mil homens. Além disso, arrecadámos vinte e seis armas e trinta carros de munições.
- E as nossas baixas?
- Não ultrapassam as dez mil, sire.
- Bom... bom. - Napoleão concentrou-se por um momento. - Se o Vandamme puder continuar a pressioná-los em direção a Pirna, então eles vão ceder quando renovarmos
o ataque amanhã. - Espirrou outra vez e depois dispensou Berthier com um gesto. - Vou tentar descansar. Pode acordar-me se houver notícias importantes ou qualquer
sinal de movimento por parte do inimigo.
- Com certeza, sire.
Depois de Berthier o deixar sozinho, Napoleão esticou-se para alcançar mais lenha para o braseiro e, em seguida, apertou o cobertor à sua volta e fechou os olhos.
Sentia-se absolutamente miserável, com o corpo tenso além da tolerância. Sentia-se fraco, muito mais fraco do que alguma vez estivera nos primeiros gloriosos anos,
quando o corpo era ágil e firme, e a falta de sono e as longas caminhadas nada representavam. Os anos tinham-no marcado, tal como os fardos da governação. Enquanto
se inclinava para junto do fogo, sentiu a pressão do estômago nas coxas e foi assaltado por uma súbita sensação de náusea devido ao estado físico lastimável. O rosto
magro e amarelado do jovem general tornara-se quase esférico, com um despropositado cilindro de carne a formar-se por baixo do queixo. Cansava-se com demasiada facilidade
e o esforço de subir à torre da catedral deixava-o sem fôlego ao chegar ao topo. A presente campanha tinha de terminar em breve, refletiu, antes que a sua saúde
degradada o incapacitasse. Caso contrário, seria ele a falhar ao seu exército, que dependia dele para ser guiado até à vitória.
Se alguma vez existira um tirano implacável neste mundo, meditou, sentindo-se miserável, era o tempo. O exército sem remorsos do tempo, nas suas patentes seriadas
de horas, dias e anos, desfilou à sua frente. O maior dos generais ficava tão impotente como o mais inexperiente recruta face a tal inimigo, e todos os homens estavam
condenados à derrota.
Napoleão estava a mentalizar-se para subir mais uma vez à torre quando lhe chegou uma mensagem de uma das vigias montadas. O exército aliado retirara-se. Apenas
permanecera uma pequena linha de defesa, a dar cobertura à retirada.
- Malditos! - resmungou Napoleão. - Ultrapassam-me em número e mesmo assim fogem. Cobardes. - Afastou-se das escadas da torre e dirigiu-se à mesa dos mapas. - Sabemos
em que direção se movimentam?
- Sim, sire. Para sul, em direção à Boémia.
- Nesse caso temos de dar início a uma perseguição imediatamente. Têm várias horas de vantagem em relação a nós. O Grande Exército tem de estar pronto para avançar
esta manhã. Murat pode levar a cavalaria à frente para os incomodar e tentar demorá-los. - Napoleão analisou rapidamente o mapa. - É preciso enviar notícias a Vandamme.
Se ele conseguir alcançar Teplitz antes de os aliados emergirem das montanhas, serão apanhados entre nós e Vandamme. Ainda podemos vencer esta campanha.
Berthier colocou o pessoal do quartel-general a trabalhar enquanto delineavam as ordens para a perseguição. A cavalaria de Murat foi a primeira a avançar, trotando
para sul em direção às colinas. Atrás deles, a infantaria das corporações de Victor estava a formar no exterior da cidade, pronta a marchar, quando uma nova mensagem
chegou ao quartel-general. A comunicação foi entregue a Berthier por um dos seus adidos e o marechal leu-a rapidamente antes de erguer ansiosamente o olhar e sair
a correr ao encontro de Napoleão.
- Sire, o marechal Oudinot recuou para Wittenberg.
- O quê? - Napoleão virou-se rapidamente. - O que é que ele lá está a fazer? Garantiu-me que estaria em Berlim há quatro dias. Porque retrocedeu?
- Diz que foi derrotado por uma força superior às portas de Berlim, a 23.
- E fugiu para Wittenberg em vez de aguentar o nosso flanco a norte. - Napoleão cerrou os dentes. - O idiota deixou o caminho aberto para os prussianos marcharem
sobre Dresden. Maldito! Maldito!
Todos na nave ficaram imóveis enquanto Napoleão gritava. Observaram-no nervosamente a tentar controlar a fúria, fitando o mapa e contorcendo as mãos com os punhos
cerrados. Berthier manteve-se em silêncio durante algum tempo, depois engoliu em seco e pigarreou.
- Sire, quais são as suas ordens?
- Só um momento. Tenho de pensar. - Napoleão fechou os olhos e obrigou-se a concentrar-se. Aquela notícia mudava tudo. A grande vantagem conquistada sobre o maior
exército aliado não valeria de nada, caso o Grande Exército fosse obrigado a abandonar a perseguição, de modo a poder virar-se e enfrentar a nova ameaça. Por outro
lado, Napoleão podia deixar Dresden guarnecida e continuar a perseguição, mas se a cidade caísse, ele perderia a sua base de suprimentos e ficaria cortado de França.
Ferveu de fúria pela incompetência de Oudinot.
- O exército vai continuar a perseguição. Ainda há uma hipótese de encurralar o Exército da Boémia nas montanhas. Ficarei aqui com a Guarda Imperial, à espera de
mais notícias de Oudinot.
Berthier assentiu. Quando Napoleão olhou à volta da nave, tomou consciência do silêncio e da imobilidade dos oficiais do estado-maior e dos adidos.
- E então, do que é que estão à espera? Preparem as ordens!
Os homens enfiaram de imediato a cabeça nos seus blocos de apontamentos e nas comunicações e prosseguiram com as suas tarefas, sem se atreverem a desviar a atenção,
não fossem cruzar o olhar com o do imperador. Napoleão ficou parado, com os braços cruzados, olhando fixamente para eles durante algum tempo até voltar para o mapa.
Pedaços de madeira colorida indicavam os três maiores exércitos inimigos, a norte, leste e sul de Dresden. Napoleão sabia que poderia derrotar qualquer um deles.
Contudo, não podia estar em mais de um sítio ao mesmo tempo e isso significava que seria obrigado a delegar o seu comando das formações dispersas nos seus subordinados.
Tinham-lhe falhado naquela campanha. Talvez também estivessem a perder a capacidade, pensou. Vítimas, tal como ele, da pressão da idade e do cansaço.
A perseguição continuou durante dois dias e depois, na tarde do dia treze, um soldado de cavalaria enlameado chegou ao quartel-general com notícias de que Vandamme
fora derrotado em Kulm. Calmamente, Napoleão acenou com a cabeça e exortou o oficial a expressar o relatório na íntegra. Aparentemente, Vandamme cumprira as ordens
com diligência, conduzindo as tropas com entusiasmo, enquanto marchavam à volta dos montes para impedir a fuga do inimigo. No dia 29, tinham encontrado a linha de
defesa no estreito vale de Kulm e travado uma batalha inconclusiva. Nessa noite, outra coluna inimiga, numa tentativa de fuga às corporações de St-Cyr, tinha aparecido
na retaguarda dos homens de Vandamme, encurralando-os, assim, no vale. Perto de dez mil homens tinham conseguido libertar-se, mas os restantes estavam mortos ou
tinham sido feitos prisioneiros, tal como o próprio Vandamme.
Napoleão ouviu as novidades sem interrupção e depois, educadamente, dispensou o oficial antes de se virar para Berthier e para os outros oficiais do estado-maior.
- Parece que a perseguição falhou. Convoquem o exército de volta a Dresden.
- Sim, sire. - Berthier anuiu. - Quais são os seus planos agora, sire?
Napoleão ostentou uma expressão de desagrado e abanou a cabeça.
- Planos?
Durante um momento de pânico, não conseguiu pensar em nada. Tinha a mente entorpecida pela falta de sono e, bem vistas as coisas, todos os esquemas que delineara
para derrotar o inimigo tinham falhado. Começava a ficar claro para Napoleão qual a estratégia de campanha do inimigo. Contentavam-se com o facto de lutarem contra
os seus marechais onde e quando podiam, mas tinham decidido não enfrentar Napoleão em pessoa, sempre que possível.
- Inteligente, muito inteligente - meditou, revelando cansaço. Não havia dúvidas de que os aliados tinham finalmente encontrado um meio eficaz de o combater. Pior
ainda, a fraqueza fatal que eles tinham descoberto no Grande Exército era criação sua. Durante anos, Napoleão exercera autoridade pessoal sobre todos os aspetos
do seu exército. Os oficiais e os soldados tinham-se habituado a depender absolutamente dele, perdendo a capacidade de se servir de iniciativa própria e de confiar
no próprio julgamento. Por isso, era agora obrigado a estar em todo o lado ou a concentrar todos os seus homens numa multidão incontrolável tão grande, que não era
possível sobreviver durante muito tempo da terra, enquanto tentava encurralar um inimigo sempre disposto a negociar tempo por espaço.
- Ah, sim... - resmungou Napoleão, em voz baixa. - Muito inteligente, de facto.
Capítulo 44
No princípio de setembro, Napoleão ordenou ao marechal Ney que fizesse uma derradeira tentativa de capturar Berlim. Ney apenas conseguiu avançar até Dennewitz antes
de ser derrotado e rechaçado de volta ao sul. Entretanto, Napoleão levara consigo a Guarda Imperial para se juntar ao exército de MacDonald e esmagar Blücher, o
qual esperava viesse a mostrar-se demasiado impetuoso para recusar uma batalha. Todavia, fiel à estratégia aliada, Blücher recuou e, ao mesmo tempo, o Exército da
Boémia avançou mais uma vez sobre Dresden, forçando Napoleão a regressar à pressa.
Durante o resto do mês, o inimigo continuou a pressionar Ney e MacDonald, e, de cada vez, Napoleão era obrigado a despachar reforços para fazer frente à ameaça,
apenas para ver o inimigo retirar novamente no momento em que detetava a sua presença. Napoleão estava ciente de que a Saxónia já não podia alimentar o seu exército.
Os mantimentos que tinha acumulado em Dresden estavam lentamente a esgotar-se, com a ração diária dos soldados a ser reduzida uma e outra vez, a ponto de estes receberem
menos de um quarto da sua porção habitual de pão. A forragem para os cavalos estava também a escassear e o relatório diário de Berthier quanto ao estado das forças
revelava um gradual declínio dos números do exército.
- O que fazemos, cavalheiros? - perguntou Napoleão aos seus marechais numa reunião em Dresden, em meados do mês. - Não dispomos de homens suficientes para cobrir
todo o território que somos obrigados a ocupar. Os soldados que temos estão fracos e cansados e perderam o zelo que mostravam quando aqui lutaram no mês passado.
E agora os nossos espiões informam-nos que os russos enviaram um novo Exército da Polónia para se juntar à campanha contra nós.
- Temos de reduzir a nossa frente, sire - aventou Murat. - Recuar para uma posição mais central, atrás do Elba, concentrar as nossas forças e esperar pela oportunidade
para atacar nos nossos termos.
- Isso é tudo muito bonito, mas o que fazemos com Dresden? Não podemos deixar a cidade exposta ao Exército da Boémia. Terá de ser defendida, pelo menos por um corpo
de exército.
- Porquê, sire? - Murat ergueu as sobrancelhas. - Dresden deixou de ter qualquer valor militar. Está praticamente sem mantimentos e os paióis estão quase vazios.
Seria preferível juntar a guarnição ao exército principal a tê-la isolada em Dresden e incapaz de afetar o desenrolar da campanha.
Napoleão fitou Murat pacientemente.
- O Joachim é um soldado excelente, mas tem pouco sentido político. Dresden é a capital do único aliado germânico que nos resta, agora que se espera a qualquer momento
que a Baviera declare o seu apoio à coligação. Se abandonarmos Dresden, perdemos a legitimidade para ter soldados franceses instalados em solo alemão. Deixamos de
ser aliados, protegendo os interesses dos nossos amigos, e passamos a ser ocupantes. Invasores. Neste momento não concebo nada mais perigoso para os nossos interesses.
A ideia de ter os camponeses alemães com armas a rebelar-se contra as nossas linhas de abastecimento é uma perspetiva alarmante.
- Não, se houver represálias, sire. Se fuzilarmos camponeses suficientes, estou certo que não teremos problemas.
Marmont soltou uma gargalhada seca.
- Já se esqueceu do tempo que passou em Espanha? Por cada homem que fuzilávamos, havia cinco a tomar o seu lugar, sedentos por vingança.
- Lembro-me bem de Espanha - replicou Murat. - O meu único arrependimento é não ter fuzilado ainda mais.
- Cavalheiros, basta - interrompeu Napoleão. - Já tomei a minha decisão. Iremos deixar uma guarnição em Dresden. St-Cyr é a escolha óbvia. Vou deixar-lhe também
a divisão de Lobau. Terá de resistir a todo o custo.
St-Cyr anuiu.
- Isso deixa-nos a questão de onde estabelecer o nosso novo centro de operações.
- Que seja o Elba - aventou Murat.
Napoleão pensou por instantes e abanou a cabeça.
- É um risco demasiado grande. Uma frente muito longa. Temos de partir do princípio de que o inimigo é capaz de atravessar o Elba. Se eles conseguirem atravessar
em mais de um lugar, então a frente entra em colapso. O que precisamos é de uma base a partir da qual possamos concentrar as nossas forças e atacar em qualquer direção.
- Debruçou-se sobre o mapa e apontou. - Leipzig. É uma cidade grande, ligada a boas estradas, e vai dar-nos a vantagem das linhas interiores, caso o inimigo avance
vindo de mais de uma direção. Pensamentos, cavalheiros?
Nenhum dos marechais disse nada e Napoleão assentiu, com a decisão tomada.
- Muito bem, então o exército terá ordem para se concentrar em Leipzig.
À medida que o ano avançava para outubro, a posição do Grande Exército foi ficando gradualmente pior. Blücher e Bernadotte agiam em sintonia ao norte, ao passo que
o Exército da Polónia do general Bennigsen avançava vindo de leste. O Exército da Boémia tinha contornado Dresden e estava a pressionar Murat de regresso a Leipzig.
Quando Napoleão lia os relatórios, não podia deixar de se maravilhar perante a escala da luta que se aproximava. Um quarto de milhão de franceses e uma mancheia
de contingentes aliados enfrentavam agora quase quatrocentas mil tropas russas, austríacas e prussianas.
Napoleão entrou em Leipzig ao início da tarde. O som de tiros de canhão para sul dizia-lhe que Murat estava a repelir a vanguarda do Exército da Boémia. Os habitantes
da cidade tinham-se apercebido da iminência de uma grande batalha e apressavam-se a fugir de casa, levando consigo todos os pertences de valor que conseguiam. Alguns
foram para leste, mas Napoleão reparou que a maior parte rumava a oeste. Julgavam claramente que ele iria vencer e não queriam ver-se apanhados no lado errado de
uma perseguição assim que terminasse a batalha.
A escolta abriu caminho para a carruagem através dos refugiados, alguns dos quais se detiveram para se maravilhar perante o vislumbre do grande imperador de França.
A carruagem e o esquadrão de hussardos avançaram a trote pela cidade, ultrapassando soldados que arrombavam lojas em busca de comida e um alojamento confortável,
e em breve alcançaram o quartel-general do Grande Exército na câmara de deputados de Leipzig. Berthier e a sua equipa tinham chegado de madrugada e ocupado o salão
dos amanuenses, instalando-se imediatamente para trabalhar e assegurar que as comunicações do exército fluiriam com eficiência assim que a batalha estivesse em curso.
Napoleão saudou Berthier e sentou-se pesadamente numa cadeira ao lado da secretária do seu chefe do estado-maior.
- As patrulhas de cavalaria já localizaram Blücher e Bernadotte?
- Ainda não, sire.
- Mesmo que eles tenham juntado forças, estão a pelo menos três dias de marcha daqui. Isso vai dar-nos uma hipótese de enfrentar o Exército da Boémia antes de poderem
intervir. Pretendo iniciar a batalha em dois dias. A linha de colinas ao sul da cidade é ideal para a artilharia. Será onde nós tomaremos posição. O plano vai ser
o mesmo que usámos em Dresden. Bloquear o centro inimigo enquanto envolvemos os flancos. O exército vai usar o dia de amanhã para assumir posições, para que o ataque
se inicie na manhã seguinte.
- Muito bem, sire. E quanto ao nosso flanco norte?
- O que tem?
- Se porventura Blücher aparecer, vamos precisar de o bloquear, caso contrário ele corta a estrada para oeste e cai-nos sobre a retaguarda.
- Estamos a salvo de Blücher. Só nos vai alcançar depois da batalha - asseverou Napoleão, num tom desdenhoso. - Mas tem razão em ser cuidadoso. O corpo de exército
de Marmont pode guardar os acessos de norte até que a batalha esteja em curso. Se não houver sinais de Blücher, ele pode marchar para sul e juntar-se ao nosso flanco
direito.
- Com certeza, sire - assentiu Berthier, aliviado. - Vou transmitir as ordens de imediato.
Dois dias mais tarde, o amanhecer foi frio e enevoado e os soldados do Grande Exército assumiram em silêncio as suas posições ao longo das colinas de cada lado da
vila de Wachau. À sua frente, do outro lado do campo a sul de Leipzig, o Exército da Boémia estava espalhado numa frente alargada. Ainda antes de Napoleão e a sua
escolta terem alcançado o posto de comando avançado, ouviu-se um grande rugido de canhões, quando o inimigo abriu fogo.
- Parece que eles atacaram primeiro - comentou Napoleão. - Muito bem, isso encaixa-se no nosso objetivo. Deixemo-los esbanjar o seu esforço e depois vamos enfrentá-los
com um contra-ataque.
O ponto mais alto na linha de colinas chamava-se Galgenburg e tinha sido aí que o estado-maior preparara o posto de comando do imperador. O chão sob as botas tremeu
com a troca de salvas de artilharia durante a primeira meia hora e depois as baterias inimigas começaram a silenciar-se, à medida que as primeiras vagas de infantaria
avançavam sobre as linhas francesas. Vastas colunas de homens marcharam em frente sob as cores nacionais da Áustria, Prússia e Rússia, diretamente para a chuva de
metralha proveniente dos canhões do Grande Exército. Foram aparecendo quebras nos batalhões da vanguarda inimiga à medida que os homens eram esmagados, mas as fileiras
cerraram-se e os batalhões continuaram sem falhar a passada. Pouco antes da infantaria francesa que os aguardava, pararam para formar em linha, ainda sob fogo dos
canhões, e começaram então a mortífera troca de salvas de mosquete, quando os dois exércitos se dedicaram por inteiro um ao outro.
Da sua posição elevada, Napoleão seguia a batalha com satisfação, enquanto o ataque inimigo fazia escassos progressos. Aqui e ali, os aliados rompiam batalhões franceses
isolados, mas no resto da frente as suas unidades desmoronavam-se sob o peso do fogo francês e retiravam em desordem. O inimigo tomou às dez horas a aldeia de Wachau
que foi a seguir reconquistada pela infantaria francesa, após uma luta corpo a corpo sangrenta nas ruas estreitas que ficaram pejadas de corpos, as paredes caiadas
salpicadas e manchadas de sangue.
À medida que o meio-dia se aproximava, tornou-se óbvio que o ataque inimigo estava exaurido e a batalha passara a ser um lento processo de desgaste.
Napoleão não vira sinais da aproximação do corpo de exército de Marmont para assumir o seu lugar à direita da linha francesa, onde seria necessário para alterar
o equilíbrio a seu favor assim que chegasse o momento de lançar o contra-ataque.
- Berthier!
- Sire?
- Já houve alguma mensagem de Marmont?
Berthier verificou o registo de ocorrências.
- Nenhuma, sire.
- Então onde está ele? Devia ter chegado à sua posição há uma hora. Descubra. Diga-lhe que o quero aqui, ou ele pode custar-nos a batalha.
- Imediatamente, sire.
Ao meio-dia, o ataque francês teve início quando o general Druot, o comandante da artilharia, deu a ordem para se abrir fogo sobre o centro inimigo. A distância
era grande e os artilheiros usaram balas pesadas, mas ainda assim as sólidas bolas de ferro esmagaram-se em profundidade sobre os regimentos inimigos alinhados à
frente do Galgenburg. De cada lado da bateria, o exército francês começou a avançar, com a infantaria a deter-se para disparar salvas a curta distância antes de
carregar com baionetas. Por todo o campo de batalha, Napoleão via que o inimigo estava lentamente a ser forçado a recuar, cedendo todos os seus ganhos anteriores
e ainda mais terreno, à medida que era pressionado contra as suas reservas. Na margem esquerda, Murat fez avançar a cavalaria num grande arco de varrimento com a
intenção de cortar a linha inimiga pela retaguarda.
Enquanto o ataque francês avançava, Napoleão escutou mais fogo de canhão, desta feita vindo do norte. Ficou preocupado quando se intensificou rapidamente. Abandonando
o posto de comando, montou a cavalo e galopou pela outra encosta do Galgenburg e através dos subúrbios de Leipzig, na direção do som das armas. Três quilómetros
a norte da cidade ficava a aldeia de Möckern, onde o fumo de centenas de armas se elevava no ar parado. Esporeando o cavalo, Napoleão deparou-se com os primeiros
feridos, cambaleando vindos da batalha que tinha lugar a norte de Leipzig. Era Blücher, apercebeu-se Napoleão. Chegara mais rapidamente do que Napoleão calculara.
Quando Napoleão o encontrou, Marmont estava a liderar o seu corpo a partir de uma colina a curta distância de Möckern. Os franceses ainda detinham a aldeia, mas
o resto da linha tinha sido obrigado a recuar. A norte, Napoleão podia ver grandes colunas de infantaria e cavalaria a marchar para se juntar à vanguarda de Blücher.
- Por que diabo não relatou isto? - bradou Napoleão em resposta à continência de Marmont. - Não julgou que a chegada de Blücher fosse assunto de alguma importância?
- Sire, recebi ordens para aguentar firme vindas do marechal Ney. Presumi que ele vos informasse que eu tinha sido atacado.
- Ney? - Napoleão abanou a cabeça, frustrado. - Deixe lá. Consegue aguentar Blücher até esta noite? Preciso que me ganhe tempo.
Marmont espreitou sobre a sua linha.
- Consigo aguentá-los por duas, talvez três horas, sire, mas eles estão a ficar cada vez mais fortes.
- Faça o que puder para atrasar o Blücher. Depois recue para as defesas exteriores da cidade.
Marmont assentiu. Napoleão ficou com ele mais meia hora, até ter a certeza de que os homens de Marmont não mostravam indícios de rutura, após o que virou a montada
para sul e regressou à batalha principal. Já passava das cinco horas quando chegou ao posto de comando. Berthier saudou-o com uma expressão preocupada e apresentou
o seu relatório.
- O ataque está a fraquejar. O inimigo tem mais reservas do que pensávamos. Já o repelimos mais de um quilómetro, mas não mais do que isso. Não conseguimos rompê-los
e as nossas próprias reservas estão esgotadas. Só resta a Guarda Imperial.
- Nesse caso, porque não receberam ordem para avançar?
- Não tinha a sua autorização para dar a ordem, sire. Estava nas ordens da batalha que eles só poderiam ser movimentados por vós.
Napoleão suspirou, exasperado por se ter deixado distrair pelos acontecimentos em Möckern na altura crítica da batalha. Já era demasiado tarde para fazer o que quer
que fosse. A luz começava a esbater-se e a noite chegaria dali a pouco mais de uma hora. Agarrou as mãos firmemente atrás das costas e controlou a frustração antes
de conseguir dar as ordens necessárias a Berthier.
- Cancele o ataque. Ordene a todos os comandantes que retirem. Assim que rompam contacto, devem retirar-se para Leipzig.
O Grande Exército recuou para Leipzig a coberto da escuridão, formando um perímetro defensivo em torno dos limites da cidade. Os relatórios enviados para o quartel-general
indicavam que o dia de luta tinha custado vinte e cinco mil homens, e era provável que as perdas do inimigo tivessem sido maiores, em especial devido ao fracasso
sangrento do primeiro ataque. Isso serviu de fraco consolo para Napoleão, agora que os exércitos inimigos se acercavam de Leipzig. Não restava a possibilidade de
lutar contra um de cada vez, e não havia esperança de os derrotar em massa. A retirada para o Reno era agora a única opção aberta perante Napoleão, e essa noção
pesava-lhe na mente cansada.
No dia seguinte houve apenas escaramuças, enquanto os exércitos aliados se movimentavam para as suas posições, preparando-se para um ataque simultâneo à cidade.
Napoleão tirou partido da demora para enviar as suas bagagens para o outro lado do rio que corria a oeste de Leipzig. O terreno na margem oposta era formado por
um pântano, atravessado por uma estrada em aterro, e era óbvio que havia o risco de o exército ser apanhado num afunilamento se cedesse perante a investida que aí
vinha. Nessa noite, Napoleão revelou aos seus marechais a sua decisão de se retirar.
- Parece que temos outra Berezina, cavalheiros. - Napoleão esboçava um sorriso. - Estamos em inferioridade de dois para um. As nossas munições escasseiam. Temos
de evacuar a cidade. Vamos começar a retirar homens da linha a partir da meia-noite. MacDonald, Lauriston e Poniatowski vão formar a retaguarda e manter o inimigo
à distância enquanto o resto do exército atravessa, e depois recuam eles. Para que a evacuação seja bem-sucedida, é essencial que os homens atravessem o rio e o
aterro em boa ordem. A retaguarda será coberta pelas nossas armas na margem oposta e quando os últimos homens tiverem atravessado, a ponte será demolida. Berthier
vai enviar-vos ordens quando for a vossa vez de atravessar o rio. - Napoleão encolheu os ombros. - É tudo o que há para dizer, cavalheiros, a não ser, boa sorte.
Começou a cair uma chuva ligeira durante a noite, que ajudou a abafar o som da retirada que os cavalos, canhões e homens do Grande Exército faziam ao avançar em
fila através do rio Elster. Quando rompeu o dia, metade do exército estava ainda na cidade e, para ganhar mais tempo, Napoleão enviou um oficial ao inimigo para
oferecer um armistício, atrasando as negociações o máximo que pudesse. Os aliados acabaram por se aperceber do expediente e despacharam de volta o oficial, dando
pouco depois início ao ataque. Havia pouco a ganhar em permanecer em Leipzig e Napoleão montou e abriu caminho pelas ruas rumo aos apinhados acessos à ponte.
Assim que chegou ao aterro, Napoleão apeou-se para observar a fase final da evacuação, enquanto os soldados se apressavam ansiosos, apesar dos gritos zangados dos
oficiais de engenharia que tentavam certificar-se de que os homens não sobrelotavam perigosamente a ponte. Napoleão acercou-se do oficial encarregue da demolição
da ponte enquanto este supervisionava a colocação dos pavios.
- Tem a certeza de que as cargas são suficientes para destruir a ponte, coronel...
- Montfort, sire. - O oficial sorriu com nervosismo. - Coronel Montfort. Sim, de facto, sire. Há pólvora suficiente por baixo dos arcos da ponte para a mandar pelos
ares um par de vezes.
Napoleão assentiu.
- Isso é bom. Entendeu as suas ordens?
- Sim, sire. Acendemos os rastilhos no momento em que atravessar a última unidade da retaguarda.
- Isso mesmo. - Napoleão olhou cuidadosamente para o homem. A mão de Montfort tremia-lhe ao lado do corpo. Napoleão deu-lhe uma pancadinha no ombro e sorriu confiante.
- Limite-se a cumprir o seu dever, coronel, e seremos capazes de troçar do inimigo, hã?
Os soldados continuaram a atravessar a ponte em fila enquanto se passavam as últimas horas da manhã, até que apenas a retaguarda, cerca de vinte mil homens, permanecia
na margem oriental. Os sons de luta aproximaram-se gradualmente da ponte, mas Poniatowski relatou que a retaguarda estava a recuar em boa ordem. Então, pouco antes
da uma hora, um grupo de soldados austríacos apareceu nas janelas de uma casa que dava para o rio. De imediato abriram fogo sobre os homens que atravessavam a ponte.
A distância era grande e a maior parte dos tiros acertou na cantaria, ou passou por cima das cabeças dos alvos. Apenas uma mancheia de homens foi atingida, mas ainda
assim foi o suficiente para lançar o pânico entre os que se acotovelavam na ponte.
Napoleão apercebeu-se de imediato do perigo e correu para o canhão mais próximo que cobria a ponte, perto da posição na qual os engenheiros aguardavam com o rastilho.
- Sargento! Está a ver aquela casa ali? - Napoleão apontou para lá do rio e um instante depois houve um clarão e uma baforada de fumo vindos de uma das janelas.
- Já os vi. - O sargento aquiesceu.
- Então volte a sua peça para ali e enfie alguma metralha pelas janelas - ordenou Napoleão.
- Com todo o gosto, sire.
Assim que o canhão foi apontado e a elevação ajustada, o sargento ordenou à equipa que recuasse e acendeu o rastilho. O canhão de campanha escoiceou quando um jato
de chamas se projetou contra a casa. O vidro partiu-se e o estuque da parede explodiu, caindo no rio em baixo. Tal como Napoleão esperara, o tiroteio de mosquetes
inimigos cessou por uns instantes, mas então apareceu um cano de mosquete à janela e foi disparado um tiro. A bala acertou na ponte junto ao coronel Montfort, que
gritou quando um estilhaço de pedra lhe raspou na cara.
- Jesus! - gritou, com os olhos arregalados de medo. - O inimigo está em cima de nós! - Voltou-se rapidamente para um dos seus homens, não mais do que um garoto,
que segurava a mecha incandescente. - Acenda o rastilho! Faça-o agora!
Voltou-se então e precipitou-se margem acima, passando por Napoleão enquanto corria pelo aterro. Mais um tiro acertou na superfície do rio, perto do jovem sapador,
que se encolheu e depois acendeu o rastilho.
- Não! Não faça isso! - gritou Napoleão, levantando as mãos.
Viu-se um clarão brilhante e depois as faíscas percorreram o rastilho, assobiando e cuspindo como um demónio enquanto seguia as voltas de pavio a caminho dos arcos
centrais da ponte. Um dos guardas que escoltava Napoleão agarrou-lhe na manga e puxou-o para longe.
- Abrigue-se, sire!
Cambalearam pela margem do rio, procurando o abrigo de um murete de pedra. O guarda empurrou Napoleão sobre o muro e depois atirou-se atrás dele, no momento em que
se fez um clarão ofuscante que disparou jatos de chamas e fumo pelo ar. A onda de choque atingiu-os com um estrondo ensurdecedor. Napoleão espreitou e viu pedaços
de cantaria, homens e membros a voar pelos ares, onde se sustiveram um instante antes de cair. Uma laje da estrada esmagou-se contra o telhado da casa ao lado do
murete.
Por instantes, Napoleão apoiou-se de gatas, aturdido pela ferocidade do rebentamento. Depois ergueu-se e olhou sobre o muro. Os arcos centrais da ponte tinham desaparecido
e a água por baixo estava a ser salpicada pelos detritos. Uma brecha de uns cem pés de largura tinha sido aberta na ponte e de cada lado a cantaria estava manchada
de negro. Mais atrás, os corpos dos homens estavam empilhados na calçada. Aqui e ali, um sobrevivente aturdido esforçava-se por se libertar da carnificina. Na margem
oposta estava parada uma multidão de homens que olhavam, atónitos. A única escapatória de Leipzig tinha desaparecido. Um lamento coletivo chegou aos ouvidos de Napoleão
vindo da outra margem do rio.
- Ah, merda - murmurou o guarda. - Estão tramados.
Napoleão abanou a cabeça. Já conseguia ouvir o som da fuzilaria a aumentar em intensidade à medida que o inimigo avançava para a retaguarda francesa. Alguns dos
homens na margem oposta olhavam ansiosamente em redor e então o primeiro largou o mosquete e debateu-se para se livrar da mochila. Despido até à camisa, calças e
botas, atirou-se à corrente e nadou para a margem oposta. Mais o seguiram, alguns agarrando-se a pequenos barris e outros artigos que lhes dessem flutuabilidade.
A maioria conseguiu atravessar, empilhando-se na margem relvada de um e outro lado de Napoleão. Alguns, maus nadadores ou feridos, foram arrastados pela corrente
e debateram-se um instante antes de serem arrastados para baixo da superfície pelo peso das fardas e do equipamento.
- Veja! - O guarda apontou o braço. - Olhe ali, sire. É o marechal Poniatowski!
Napoleão perscrutou a margem oposta e rapidamente deu com o marechal, o braço numa funda, apressando o cavalo através da turba, acompanhado por um punhado de elementos
do estado-maior. A toda a volta, os soldados franceses depunham os mosquetes, à espera de serem feitos prisioneiros. Poniatowski alcançou a margem do rio e puxou
as rédeas, olhando para os homens que tentavam nadar através da corrente. Olhou para cima, na direção de Napoleão. Por um instante, Napoleão devolveu o olhar, com
o impulso inicial de amargura por assistir à captura de tão excelente oficial. Logo agora que a França precisava de todos os homens válidos, para a salvarem dos
seus inimigos.
Napoleão fez concha com as mãos em redor da boca e gritou:
- Nade!
Viu Poniatowski acenar e voltar-se para os oficiais. O mais próximo abanou a cabeça e houve uma troca acalorada antes de Poniatowski abanar a mão que não estava
ferida, agarrar as rédeas e esporear o cavalo pela margem abaixo. O cavalo deslizou os últimos pés e depois entrou na água, nadando para a margem oposta. Poniatowski
debruçou-se, impelindo-o enquanto se agarrava às rédeas com a mão em bom estado. Napoleão observava, encorajando-os. Soldados inimigos mais adiante na margem do
rio estavam ocupados a disparar contra as centenas de franceses na corrente, lutando para escapar ao cativeiro. Salpicos de água elevavam-se no ar no meio de braços
e pernas que se debatiam. Assim que o marechal atingiu o meio do rio, o cavalo foi atingido no pescoço. Surgiu uma mancha de sangue e o animal debateu-se descontroladamente,
empinando-se na água. Poniatowski foi atirado da sela e Napoleão observou impotente quando a cabeça do homem emergiu a curta distância do cavalo abatido. O polaco
conseguiu dar umas braçadas desesperadas com o braço bom, após o que deslizou sob os remoinhos e salpicos da superfície e desapareceu.
Napoleão procurou desesperadamente por mais algum sinal dele, sem êxito, e depois respirou fundo. Poniatowski estava perdido, juntamente com dezenas dos seus mais
experientes generais e mais de vinte mil homens e todos os seus canhões, equipamento e mantimentos.
A campanha estava perdida. A ideia atingiu-o como um golpe físico, atordoando-o por momentos. Era este o tipo de derrota esmagadora que no passado infligira aos
seus inimigos. Fora humilhado. Napoleão sentiu-se doente com a constatação. Não havia mais nada que pudesse fazer para salvar o seu império a leste do Reno. O Grande
Exército teria de retirar, deixando para trás dezenas de milhares de homens que ainda resistiam em cidades e fortalezas da Prússia e outros Estados alemães.
Precisava de tempo para se preparar para o que estava para vir. A guerra para manter o império francês estava perdida. Em breve, muito em breve, Napoleão e os seus
homens desgastados e cansados seriam obrigados a combater pela própria sobrevivência da França.
Capítulo 45
Arthur
St-Jean-de-Luz, 10 de novembro de 1813
Nessa noite, ao cavalgar pelo acampamento da Divisão Ligeira, Arthur viu o bom humor nas expressões dos soldados, quentes e coloridas pelo brilho das fogueiras.
Os combates da semana tinham corrido bem e a linha de fortes de Soult que barravam a entrada em França tinha sido tomada com um misto de coragem e de audácia que
alegrava o coração de Arthur. O exército aliado atravessara os rios Bidasoa e Nivelle, e cruzara a fronteira do inimigo. Acomodavam-se agora para passar a noite
em solo francês e essa noção enchia Arthur de orgulho. Mesmo assim, estava já a planear a próxima fase da campanha. Era pouco provável que Bonaparte tolerasse os
danos ao seu prestígio devido à incursão além da fronteira com Espanha. De certeza que o imperador francês iria ordenar às suas forças que expulsassem Arthur e os
seus soldados para o outro lado da fronteira.
Arthur sorriu para consigo. Aquilo que Bonaparte poderia ordenar e o que a realidade traria eram duas coisas completamente diferentes. Através dos prisioneiros franceses,
os oficiais de espionagem tinham sabido que o imperador sofrera um grave revés às mãos dos aliados europeus de Inglaterra. Como os boatos eram obtidos através de
cartas recebidas pelos soldados que se opunham a Arthur, era difícil saber quanta fé lhes depositar. Os censores do inimigo tinham experiência em ocultar do povo
as más notícias e os jornais franceses que tinham chegado às mãos dos oficiais de Arthur não mostravam sinais de reveses. Pelo contrário, os boletins informativos
de impressão reles só referiam o domínio de Bonaparte sobre as hordas do czar e dos seus aliados incompetentes. Arthur já se habituara às mentiras, tal como todos
os franceses, pensou com um sorriso. Chegara mesmo a tornar-se um estribilho entre os franceses - mentir como um boletim.
Se Bonaparte tivesse deveras sofrido uma derrota grave, sentir-se-ia obrigado a reforçar o exército comandado pelo marechal Soult que estava a enfrentar Arthur.
Algo que pouca diferença faria, uma vez que Soult já tinha praticamente tantos homens como Arthur, e mais peças de artilharia e cavalaria. Anos antes, Arthur teria
sido bem mais cauteloso quanto a levar a guerra ao solo inimigo antes que as suas linhas de comunicação estivessem bem seguras. Naquele momento, o inimigo continuava
na posse de Pamplona e o marechal Suchet e respetivo exército ainda se encontravam em campo na região de Valência. Contudo, Suchet mostrava poucos sinais de querer
sair daquilo que se tornara o seu feudo pessoal, e a guarnição de Pamplona estava cercada por um exército espanhol. Assim sendo, Arthur sentia que os riscos eram
aceitáveis. Fosse como fosse, os líderes políticos de Londres tinham permitido que o rápido avanço do exército aliado e a sua série de vitórias lhes subisse à cabeça,
e tinham insistido com Arthur para que procedesse à invasão de França.
Assim tinha sido durante a guerra na Península Ibérica, suspirou enquanto cruzava a ponte e entrava pelos portões da vila de St-Jean-de-Luz, levando a mão à aba
do oleado que lhe cobria o chapéu, em resposta às saudações das sentinelas. Até então, a sua cautela e o planeamento cuidadoso tinham garantido o êxito britânico.
O país estava-lhe grato e o exército confiava nele, sendo esta situação a que Arthur mais valorizava. Não havia títulos, despojos de guerra e agradecimentos parlamentares
que tornassem um general melhor homem, nem um homem melhor general, refletiu.
Deteve um civil para perguntar o caminho até à mairie para onde Somerset fora enviado para estabelecer o quartel-general do exército. O homem esboçou brevemente
uma expressão de surpresa quando Arthur se lhe dirigiu em francês, mas parecia quase tranquilo quanto à presença de tantos soldados ingleses na sua terra. Virou-se
e apontou para o final da rua, que parecia abrir-se para uma pequena praça. Arthur agradeceu-lhe e incitou o cavalo em frente. Ao entrar com estrépito na praça,
notou, satisfeito, que uma série de polícias militares patrulhavam a zona, atentos aos soldados, para garantir que as ordens de Arthur quanto ao tratamento respeitoso
dos civis franceses e sua propriedade não eram quebradas. Mais do que nunca, dependia da boa vontade dos habitantes. O exército aliado já não estava a libertar um
povo de um invasor. Agora, os invasores eram os aliados e Arthur sabia que era essencial que os seus homens não fizessem nada que provocasse os civis franceses.
Arthur entrou na sala de receção do presidente da câmara e entregou o sobretudo e o chapéu a um cabo de guarda à porta. Assim que deu pela chegada do comandante,
Somerset levantou-se da secretária e apressou-se a recebê-lo.
- Os relatórios de batalha indicam que cumprimos todos os nossos objetivos, milorde. As primeiras notícias das nossas patrulhas de cavalaria dão conta da retirada
de Soult em direção a Bayonne.
- Quer dizer que temos uma posição segura em França. - Arthur aquiesceu. - E ainda bem. O exército não seria capaz de sobreviver nos Pirenéus. Agora vamos ter um
aquartelamento confortável para o inverno, não é verdade?
- Sim, milorde. - Somerset não foi capaz de reprimir um breve sorriso. - Isto é, a menos que dê ordens para prosseguirmos com o avanço.
- Assim o faria, mas primeiro os homens têm de descansar. Além disso, não sabemos ao certo o que anda o Bonaparte a fazer. Para todos os efeitos, pode ter derrotado
os inimigos e estar a marchar contra nós neste preciso momento.
Somerset franziu os lábios e abanou a cabeça.
- Não é isso que os nossos agentes dizem. Há muitos boatos e dezenas de cartas dos prisioneiros, ou encontradas nos mortos inimigos, que referem uma derrota massiva.
- Boatos, nada mais. Pretende que aposte o resultado desta campanha nos boatos que me traz? E então?
- Não, milorde.
- Não. Nesse caso, até estarmos na posse de provas mais concretas, teremos de partir do princípio de que o exército terá de combater, ou de recuar, a qualquer momento.
Não podemos permitir que os homens fiquem demasiado confortáveis.
Somerset sentiu a repreensão, mas fez uma última tentativa.
- E quanto aos relatórios dos jornais?
Arthur abanou a cabeça.
- Mais depressa confio nas palavras que leio num jornal inglês do que num pasquim francês. É esse o valor que dou aos relatos dos jornais, Somerset. Precisamos de
informações vindas de uma fonte mais fidedigna. Por falar nisso, temos alguns prisioneiros importantes?
- Sim, milorde. Vários coronéis e o comandante de uma brigada, o general Lapessière.
- Ótimo. - Arthur bateu ao de leve com os dedos nos lábios por um instante e depois aquiesceu. - Muito bem, esta noite vamos receber aqui o Lapessière. Quero que
o Beresford, o Hill e o Picton se juntem a nós. O melhor cozinheiro do porto que prepare a refeição, e certifique-se de que há bastante vinho.
- Sim, milorde - assentiu Somerset. - É tudo?
- Por agora. - Arthur endureceu a expressão. - Assim que puder, traga-me a conta do talhante e o relatório com as perdas do inimigo.
- Com certeza, milorde. Onde o poderei encontrar?
- Na suite do presidente da câmara. Imagino que ele tenha uma banheira.
- É verdade, milorde.
- Nesse caso, irei tomar um banho. - Arthur coçou a face. - E barbear-me. Não vou apresentar ao general Lapessière um exemplo medíocre de um cavalheiro inglês. Temos
padrões a manter, Somerset. Tanto perante o inimigo, como perante os nossos próprios homens. Deus me livre de ter um maldito franciú a olhar-me com desprezo!
Somerset ergueu o olhar quando Arthur entrou no gabinete, ao final do serão.
- Como correram as coisas com o nosso hóspede, milorde?
- Depois de ter bebido um pouco, mostrou-se aberto a uma abordagem um tanto ou quanto indireta - respondeu Arthur. - Disse-nos aquilo de que precisávamos de saber.
Parece que os boatos estão corretos. Bonaparte sofreu alguns reveses e temo-lo em fuga. E o que é melhor, sabemos que não vai interferir com as nossas operações
aqui no Sul de França. Com efeito, é provável que venha a requisitar as forças do marechal Soult para reforçar um exército com que enfrentar o avanço dos russos,
dos austríacos e dos prussianos. Isso deixa-nos rédea livre contra Soult. E ainda bem, já que temos apenas uma pequena vantagem numérica contra ele. Se Soult continuar
a levar a cabo batalhas defensivas, é bem provável que as nossas baixas cresçam muito mais depressa do que as francesas. - Arthur pensou por um momento e abanou
a cabeça. - Não pretendo deixar-me arrastar para tal processo de desgaste.
- Nesse caso, o que propõe, milorde?
- Acima de tudo, mantemo-nos firmes e aproveitamos todas as pequenas vitórias até à primavera. Se pudermos fazer coincidir o nosso avanço com a dos nossos aliados
setentrionais, o que sobrar das forças de Bonaparte vai dispersar-se até ao limite.
Ouviu-se bater à porta, após o que um oficial entrou no gabinete. Parecia nervoso e dirigiu-se rapidamente à secretária. À luz das velas que tremeluziam nos candelabros,
Arthur viu que se tratava do coronel Whitely, comandante da polícia militar do exército. Whitely era um oficial robusto, um dos raros homens que tinham subido à
custa de promoções merecidas. Tossicou e dirigiu-se a Arthur.
- Com a sua licença, milorde, mas acho que é melhor vir comigo.
- Porquê, o que aconteceu? Desembuche, homem.
- Sim, milorde. São as tropas espanholas. Estão a saquear uma das povoações locais. Os oficiais deles não estão a fazer nada para os deter e não disponho de homens
suficientes para restaurar a ordem. As coisas estão a ficar feias, milorde, é o que é.
Arthur suspirou profundamente. Fechou brevemente os olhos e depois levantou-se.
- Vamos, Whitely, é melhor levar-me lá imediatamente.
As ruas de Ascain estavam cheias de soldados espanhóis quando Arthur entrou na vila, acompanhado por Whitely e por vinte dos homens do coronel. Várias das casas
estavam em chamas e quase todas as restantes tinham sido arrombadas e pilhadas. Os espanhóis desgrenhados tinham aproveitado a oportunidade para se empanturrarem
de comida e de vinho, e agora serviam-se de ouro, prata e quaisquer objetos de valor que encontrassem. Alguns dos locais tinham claramente tentado resistir e havia
vários corpos espalhados pelas ruas empedradas, espancados ou mortos com baionetas. Quando o pequeno grupo de ingleses entrou na praça da vila, Arthur viu um bando
agitado reunido a um dos lados. Um grito agudo trespassou o ar frio da noite e Arthur avistou uma mulher que tentava fugir aos soldados que a rodeavam. Um deles
agarrou no vestido rasgado que ela apertava contra o peito e puxou-o, desvelando-lhe os seios. Ouviu-se uma aclamação cruel e alguém derrubou a mulher ao chão, para
fora da vista.
- É como lhe disse, milorde - resmungou Whitely. - Eles estão descontrolados.
Arthur parou o cavalo e olhou para os espanhóis ali espalhados.
- Seria de esperar. Depois de tantos anos a aguentar as humilhações provocadas pelos invasores franceses, eles agora têm a oportunidade de virar o jogo. O facto
de os locais não terem culpa é para eles irrelevante. Além disso, o governo deles raramente lhes paga, ou lhes dá de comer. Sem dúvida que encaram isto como um direito
adquirido.
O coronel Whitely lançou um olhar circunspecto ao comandante.
- Mesmo assim, milorde, as suas ordens estabelecem que não será permitido o saque, nem qualquer ato de violência contra os locais.
- Eu sei. - Arthur respirou fundo. - Onde está o comandante de divisão, o general Longa?
- Instalou-se, a par do estado-maior, no hotel local, milorde. - Whitely levantou a mão e apontou para um grande edifício caiado defronte da praça. - Ali.
Percorreram a praça e desmontaram. Deixando os cavalos a cargo dos homens de Whitely, Arthur e o coronel entraram no hotel. Dois soldados guardavam a entrada. Um
já estava a dormir, a cabeça debruçada sobre o peito, encostado a um canto ao lado da porta. O outro homem ergueu o mosquete para apresentar a saudação, cambaleando
ao de leve enquanto se esforçava por ficar de pé. Fedia a vinho, grande parte do qual fora entornado sobre a frente branca da casaca. Dentro do hall de entrada viram
os restos rasgados de uma bandeira francesa no chão, e um grande quadro do imperador francês, pendurado sobre o balcão, fora estraçalhado à espadeirada. Ouviram-se
gritos vindos de uma das portas que saíam do hall e dirigiram-se para aí, entrando numa grande sala de jantar. As mesas tinham sido reunidas de um dos lados da sala
e o general Longa e os seus oficiais regalavam-se com travessas de carnes frias e enchidos, acompanhadas por vinho servido em canecas de cerveja. Alguns já tinham
perdido os sentidos, com a cabeça tombada sobre a mesa à frente, mas Longa, um homem alto e elegante com cabelo grisalho ralo, dominava as festividades. Exibiu um
sorriso radiante ao ver Arthur e levantou-se para executar uma vénia elegante.
- Meu caro duque, vai juntar-se a nós?
- Infelizmente não - replicou Arthur num tom calmo. - De momento, os meus deveres não me permitem divertir-me. Posso falar consigo a sós?
- A sós? - Longa franziu o cenho antes de assentir. - Mas é claro.
Arthur fez sinal a Whitely para que ficasse onde estava e levou o espanhol até ao outro lado da sala de jantar, onde tinham uma janela sobranceira à praça. Arthur
apontou para os homens no exterior, as expressões alcoolizadas iluminadas pelas fogueiras improvisadas que tinham feito com as mobílias retiradas aos habitantes.
- Os seus homens estão descontrolados, general Longa.
- Estão a festejar a nossa vitória, milorde.
- Estão a roubar, a violar e a assassinar.
Longa fitou-os e encolheu os ombros.
- Despojos de guerra.
- Dei ordens para que os civis franceses não fossem maltratados. Porque deixa que os seus homens pratiquem estas atrocidades?
- Eles não obedecem aos oficiais, milorde. Não vou pôr a vida dos meus oficiais em risco pedindo-lhes que enfrentem a turba. - Longa virou-se para Arthur com uma
expressão gelada. - Além disso, os meus homens têm direito a vingar-se daquilo que os franceses fizeram ao nosso povo.
- É verdade, mas terão de vingar-se no campo de batalha. Os civis não têm culpa. General, vai ter de os controlar. Use força se tal for necessário, mas acabe com
este espetáculo ultrajante.
- Tal como o senhor fez em Badajoz? - Longa abanou a cabeça e não fez qualquer esforço para ocultar o tom de desprezo na voz. - Pois aí, os seus soldados trataram
o meu povo como se fosse um inimigo conquistado. Como despojos de guerra. Não me parece que precise de um sermão seu acerca da maneira como os meus homens se devem
comportar, milorde.
Arthur sentiu uma onda de raiva contra o espanhol. Não iria tolerar tamanha insubordinação de um dos seus oficiais, e a vontade de colocar o indivíduo no seu lugar
era quase estarrecedora. Reprimiu a fúria e respirou fundo para se acalmar, antes de responder.
- Escute, general Longa, de pouco nos vale discutir acontecimentos passados, por mais lamentáveis que os consideremos. Temos de olhar em frente. Cada batalha que
travámos, cada sacrifício que fizemos foi para chegarmos até aqui. Estamos prestes a derrotar o inimigo. Esse inimigo não é a França, mas sim Bonaparte. Estamos
aqui para libertar a França da tirania, a mesma tirania que ameaça o resto da Europa. Se permitir que os seus homens maltratem o povo francês, vai empurrá-los para
os braços de Bonaparte. É por isso que tem de acabar com esta situação, antes que o senhor e os seus soldados nos arruínem a todos.
Longa fitou-o, depois olhou pela janela e acenou com a mão, num gesto de impotência.
- Milorde, compreendo o que me diz, mas duvido que eles compreendam.
- Nesse caso, serei obrigado a ordenar a um oficial da polícia militar que restaure a ordem à força.
- Faria mesmo tal coisa? E arriscava-se a ficar com um exército dividido?
Arthur cerrou os dentes. O general Longa tinha uma certa razão. Tal divisão seria uma ameaça ainda maior para o exército aliado do que a antipatia do povo francês.
Encontrava-se encurralado entre duas situações impossíveis. Pensar nisso atormentava-o. Ali, no momento da sua imposição sobre Bonaparte, depois de tamanhas vitórias,
o exército aliado poderia ser a causa da sua queda. Não por falta de coragem, ou de perseverança, mas por falta de disciplina suficiente quando longe do campo de
batalha. Enquanto pensava na terrível situação em que os soldados de Longa o tinham deixado, ocorreu a Arthur uma terceira via. Aquiesceu. Não tinha dúvidas quanto
ao que fazer, por pior que fosse a desvantagem que isso impusesse ao exército aliado. Pigarreou e dirigiu-se a Longa.
- Tem razão. Não há nada que possamos fazer para o impedir. Contudo, ao nascer da alvorada, quero que a sua divisão se retire de Ascain e que espere novas ordens.
- Sim, milorde - respondeu Longa com uma expressão aliviada. - Será pelo melhor.
- Sim, imagino que seja. - Arthur virou-se para a porta e fez sinal ao coronel Whitely. - Vamos, temos de sair daqui.
- De certeza que não há outra forma, milorde? - perguntou Somerset ao baixar o rascunho da ordem que Arthur redigira.
- Já tomei a minha decisão - retorquiu Arthur com firmeza. - A única divisão espanhola em que podemos confiar é a de Morillo. O resto será enviado de volta ao outro
lado da fronteira. Se o governo espanhol se recusa a garantir o sustento dos seus próprios soldados, diabos me levem se vou fazer o trabalho deles.
- Mas, milorde, isso vai reduzir o exército em vinte mil homens.
- Assim é - concedeu Arthur. - Mas preciso de homens em que possa confiar. Homens que façam aquilo que ordeno. Caso contrário, seremos a nossa própria desgraça,
Somerset. Se pelo menos tivesse assistido às cenas em Ascain, não teria dúvida de que não podemos ter homens desses a marchar ao nosso lado. Têm de ser mandados
de volta. Imediatamente.
Somerset tufou as faces.
- Como desejar, milorde.
Sozinho no gabinete do presidente da câmara, Arthur virou-se e olhou pela janela. Lá fora, o céu estava coberto de nuvens cinzentas e uma chuva gelada caía no porto.
Num abrir e fechar de olhos, reduzira a sua vantagem numérica sobre o marechal Soult, e a luta seria muito dura, até que os franceses fossem obrigados a render-se.
Capítulo 46
Villefranque, 10 de dezembro de 1813
O flanco direito do exército aliado tivera pouca dificuldade em atravessar para a margem leste do rio Nive, em Ustaritz, afastando uma pequena força de infantaria.
Na sequência de uma breve troca de tiros, o inimigo recuara apressadamente para norte, em direção ao corpo principal do exército de Soult, acampado nas redondezas
de Bayonne. Ao cair da noite, cinco divisões tinham atravessado o rio por uma ponte reparada à pressa e avançado seis quilómetros rio abaixo, ao encontro do inimigo.
Após uma análise pormenorizada às defesas francesas a sul e a oeste de Bayonne nos últimos dias de novembro, Arthur apercebera-se rapidamente de que um ataque frontal
à povoação teria um custo demasiado elevado. Em vez disso, decidira levar a força principal sobre o Nive e tentar encurralar Soult contra o mar. Havia o risco de
o inimigo poder atacar os aliados quando estes cruzassem o rio, pelo que Arthur encarregara as restantes três divisões de criar uma diversão ao longo da margem ocidental,
para enganar Soult.
Arthur entregara o comando do flanco direito ao general Hill e juntara-se a este ao pôr-do-sol para analisar as posições inimigas à frente de Bayonne. Chovera bastante
nos primeiros dias de dezembro e o terreno estava ensopado, transformando-se rapidamente em lama à medida que as colunas aliadas percorriam a massa glutinosa que
cobria a superfície das estradas e dos carreiros que percorriam os campos entre o mar e o Nive.
O general Hill apertou o fecho do topo do sobretudo quando uma nova chuvada começou a cair à volta deles.
- Este terreno é péssimo para manobras com um exército.
- É verdade - concedeu Arthur. - Mas isso serve para ambos os lados. O Soult e os homens dele estão tão atolados nisto como nós. Não vai haver grande hipótese de
surpresas. Se o conseguirmos fazer recuar e contê-lo em Bayonne, o exército pode aquartelar-se para o inverno enquanto os franceses estão cercados. Mesmo que não
os consigamos matar à fome, estarão em muito mau estado quando chegar a primavera.
- Imagino que tenha razão - admitiu Hill calmamente, ao que se dirigiu a um dos ajudantes de campo. - Passe palavra às formações da frente. Vamos parar aqui e acampar
durante a noite. Envie destacamentos para vigiar o inimigo. - Voltou-se outra vez para Arthur. - Com a sua licença, milorde, tenho providências a tomar para estabelecer
o meu quartel-general.
- Com certeza - assentiu Arthur.
Os dois homens tocaram nas abas dos chapéus e depois Hill e o seu estado-maior afastaram-se em direção a um aglomerado de edifícios agrícolas a pouca distância dali.
Arthur deixou-se ficar sentado um pouco, observando as colunas de Hill a começarem a dispersar pelo campo. A menos de um quilómetro à frente deles, estava a retaguarda
do exército francês, formado e pronto a repelir quaisquer ataques levados a cabo pelo inimigo antes de a noite cair por completo. Uma tossidela a seu lado chamou
a atenção de Arthur.
- O que foi, Somerset?
- Importa-se que lhe pergunte quais os seus planos para esta noite, milorde? Vamos ficar com Hill, ou regressamos para o lado do rio do general Hope?
Arthur pensou por um instante. O general Hope tinha acabado de chegar de Inglaterra e Arthur ainda não formara a sua opinião quanto às competências do general enquanto
comandante de campo. Desde que Hope levasse a cabo as suas ordens e não fosse demasiado longe com a diversão, retirando-se em seguida e entrincheirando-se, ele e
os seus homens não deveriam ter quaisquer dissabores na outra margem do Nive. Ainda por cima, os mais recentes relatórios das patrulhas montadas de Arthur indicavam
que o grosso das forças de Soult estava a leste do rio, perante Hill.
- Vamos ficar aqui esta noite. Pretendo observar o ataque de Hill contra Bayonne pela manhã. - Arthur virou-se para Somerset e, à luz que se ia desvanecendo, viu
que o ajudante de campo estava a tremer. - Se precisar de abrigo, sugiro que nos encontre alojamento para esta noite no quartel-general de Hill.
- Sim, milorde. Vou tratar pessoalmente de tudo. - Somerset afastou o cavalo e partiu em direção a Hill e respetivo estado-maior. Arthur virou-se para norte e observou
o inimigo até que este começou a acender as fogueiras do acampamento. A retaguarda francesa instalara-se no cume de uma pequena colina e deixara algumas sentinelas
a vigiar as movimentações do inimigo. Não deveria haver combates durante o pouco que restava do dia, nem ao longo da noite. Depois de meses de campanha, os homens
de ambos os lados estavam cansados e as condições desconfortáveis dos meses de inverno eliminavam qualquer vontade de combate.
Satisfeito por o exército estar em segurança para a noite, Arthur puxou as rédeas e levou o cavalo a trote em direção à casa principal da quinta. Em seu redor, à
luz débil do crepúsculo, muitos dos elementos do exército procuravam lenha, enquanto os camaradas buscavam abrigos, ou erguiam tendas onde o terreno estava suficientemente
seco para aguentar um espigão. A chuva caía agora com força, com os grossos pingos plúmbeos a tombar do ventre inchado das nuvens escuras no firmamento. Os carros
e as equipas de artilharia já começavam a estacar na lama espessa, apesar de todas as chicotadas e pragas dos condutores.
Assim que chegou aos edifícios agrícolas, Arthur desmontou e entregou as rédeas a um palafreneiro, dizendo-lhe para alimentar o cavalo e encontrar um celeiro seco
para a noite. Depois, Arthur subiu os poucos degraus até à porta e entrou. Lá dentro foi recebido por uma onda acolhedora de calor e luz, e viu um pequeno grupo
de oficiais reunido à volta de uma grande lareira, onde o agricultor acendera um lume vivo. Quando Arthur entrou, o camponês oferecia aos hóspedes a possibilidade
de comprar vinho e comida a preços elevados.
Depois de tirar o sobretudo e o chapéu, e de raspar as botas, Arthur juntou-se aos outros para um jantar à base de guisado, após o que se retirou para o melhor quarto
do agricultor para passar a noite, dando ordens a Somerset para que o acordasse caso houvesse notícias importantes ou, caso contrário, uma hora antes da alvorada.
Quando se instalou por baixo dos cobertores quentes, deixou que a mente divagasse pela perspetiva reconfortante de que a derrota de Soult e a queda de Bayonne representariam
o final dos longos anos de campanha que tinham começado em Portugal e Espanha, antes de finalmente entrarem nos territórios do inimigo.
- Milorde. - Uma voz interrompeu-lhe o sono e Arthur resmungou e virou-se, até que uma mão lhe abanou gentilmente o ombro. - Milorde, é o Somerset. Pediu-me que
o acordasse.
Arthur pestanejou e depois virou-se sobre um cotovelo, encarando o ajudante de campo.
- O que foi? O que aconteceu?
- Os nossos postos avançados dizem que os franceses desapareceram, milorde.
- Desapareceram?
- As sentinelas deles recuaram e quando alguns dos nossos rapazes as seguiram, viram que não havia ninguém à volta das fogueiras do acampamento. Não havia sinais
de carros, nem de canhões.
Arthur sentou-se na cama e pegou nas botas, dando as suas ordens enquanto se debatia para as calçar.
- Diga ao Hill que envie patrulhas montadas para encontrar o inimigo. O Soult deve ter recuado para Bayonne, ou então está a tentar contornar-nos para nos cortar
o acesso às pontes sobre o Nive.
- Sim, milorde.
- Há mais alguma coisa?
- Dou a conhecer os relatórios ao general Hope?
Arthur pensou por um momento e depois abanou a cabeça.
- Não, não vale a pena. Seja o que for que o Soult está a tentar fazer, de certeza que está concentrado nas divisões do Hill. São eles a principal ameaça. Podemos
informar o Hope assim que tivermos uma melhor noção das intenções de Soult.
- Sim, milorde.
Assim que Somerset o deixou, Arthur levantou-se, vestiu a casaca azul-escura e abotoou-a. O raspar da barba na gola recordou-o de que precisava de se escanhoar,
mas decidiu que não poderia perder tempo a tentar descobrir o que Soult andava a tramar. Pegou no chapéu, saiu do quarto e desceu para se juntar a Hill e ao seu
estado-maior na sala de receções principal. Os oficiais estavam reunidos em torno de uma mesa com mapas, iluminada por velas, já que no exterior ainda estava escuro.
- Qual é a situação?
Hill ergueu o olhar do mapa e saudou o comandante com um aceno de cabeça enquanto respondia:
- Não há sinais dos franciús, exceto algumas patrulhas a pouca distância de Bayonne.
- Alguma atividade no interior da povoação?
- É difícil dizer. Ficaremos a saber mais assim que amanheça. - Hill afagou ansiosamente o queixo. - Sinceramente, milorde, não estou a gostar disto. Perdemos contacto
com o inimigo e o nosso exército está dividido por um rio. Pode ser uma situação arriscada.
Arthur assentiu. Sentiu o receio na boca do estômago. Soult fugira e Arthur amaldiçoou-se por não ter forçado os homens de Hill a avançar na véspera, apesar das
condições lamacentas da estrada, do frio e do cansaço dos soldados. O exército aliado podia vir a pagar um preço bem alto pela sua complacência, pensou Arthur.
Quando a primeira luz se fez ver no céu, Arthur ficou à espera de notícias de Soult. Uma a uma, as patrulhas montadas regressaram e confirmaram que o inimigo conseguira
cortar todo e qualquer contacto. A única indicação da direção que Soult tomara era a lama revirada na estrada para Bayonne.
- Porque haveria de regressar a Bayonne? - interrogou-se Hill. - Isso dar-nos-ia rédea livre em toda a margem sul do Adour. Porquê desistir de tentar conter-nos?
Antes que Arthur pudesse responder, ouviu-se um ronco surdo a ocidente. Alguns oficiais entreolharam-se, preocupados.
- Canhões? - sugeriu alguém.
- É claro que sim - retorquiu Arthur com uma calma forçada quando se apercebeu do que acontecera. - Parece que acabámos de descobrir para onde o marechal Soult levou
o exército, cavalheiros.
- Por Deus! - exclamou Hill. - Ele foi atrás do general Hope.
Arthur anuiu.
- Faz sentido. Subestimei o Soult. Mesmo assim, o general Hope deverá ser capaz de se manter firme até voltarmos a cruzar o rio. - Arthur falou calmamente, ocultando
a fúria que sentia consigo próprio por ter permitido a Soult a oportunidade de atacar o exército aliado dividido. - Hill, deixe aqui duas das nossas divisões para
proteger Bayonne. Envie o resto para reforçar Hope. Vou imediatamente para lá para assumir o comando.
- Sim, milorde.
Arthur olhou para os outros oficiais, apercebendo-se das expressões nervosas.
- Cavalheiros, o Soult está a tentar dar-nos a volta e agora temos de apanhar a velha raposa e torcer-lhe o pescoço. Tudo vai correr bem se mantivermos o sangue-frio
e nos deslocarmos com celeridade. Entendido? Ótimo. Somerset, venha comigo.
Os clarins tocavam a reunir os homens pelos campos circundantes quando Arthur e Somerset saíram de Villefranque e galoparam para sul, ao longo da margem do Nive,
em direção às pontes de Ustaritz. À direita, os sons do fogo de canhão aumentavam de intensidade e agora ouvia-se o ténue crepitar de mosquetes que dava conta de
uma batalha a cerca de quilómetro e meio a ocidente. Graças ao reconhecimento que fizera pessoalmente da zona a sudoeste de Bayonne, Arthur sabia que havia muitas
depressões e ravinas a quebrar a paisagem. Tendo em conta o terreno ensopado, Soult seria obrigado a avançar pelas duas estradas que partiam para sul de Bayonne.
Arthur esperava sinceramente que a ala esquerda do seu exército tivesse obedecido às ordens dadas e fortificado as posições em Barroilhet e Bassussarry, bloqueando
as estradas. As pequenas matas e sebes espalhadas pela região serviriam de boa cobertura para ocultar um avanço e Arthur não duvidava que o inimigo tivesse conseguido
um certo nível de surpresa contra as divisões de Hope. Contudo, se fossem capazes de aguentar até serem reforçados, talvez a situação pudesse ser recuperada.
Atravessaram a ponte reparada, passando com estrépito sobre o empedrado. Um grupo de engenheiros reconheceu o comandante, mas Arthur já se afastara a galopar antes
que eles conseguissem saudá-lo. Chegados à outra margem, tomaram a estrada para norte, em direção a Bassussarry, com os sons de batalha a ficarem mais altos à medida
que se aproximavam. A alguns quilómetros da aldeia, depararam-se com uma pequena coluna de carros que corria para sul. Arthur parou e falou com um oficial de abastecimentos.
- O que se passa?
- Os franceses atacaram ao raiar da aurora, milorde. Milhares deles. O general Alten deu ordens para que todos os carros seguissem para a retaguarda.
- Onde está a Divisão Ligeira?
O oficial virou-se e apontou estrada abaixo.
- Ouvi dizer que estão firmes em Arcangues, milorde.
Arthur puxou as rédeas e incitou o cavalo em frente, ao longo da coluna de carruagens e depois de volta à estrada, aumentando o ritmo para um galope, com os flancos
da montada a tremer em cada inspiração forçada. Mais à frente, o som das peças de artilharia estrondeava e quando a estrada saiu de uma mata, Arthur viu uma pequena
elevação, talvez com uns mil passos de extensão. De um dos lados erguia-se uma igreja pequena, mas de aspeto sólido, do outro, uma casa de campo. Ambas as estruturas
tinham sido guarnecidas. Entre elas, o resto da Divisão Ligeira estava formada, com duas linhas de homens à frente e uma linha de reserva na encosta oposta. Quando
Arthur e Somerset subiram a encosta, depararam-se com os primeiros feridos, sentados na erva húmida enquanto tratavam dos ferimentos, tendo os mais gravemente atingidos
de esperar que um elemento dos músicos do exército lhes tratasse das lesões.
Um coronel da Quinquagésima Segunda de Infantaria indicou-lhes apressadamente o posto de comando do general Alten, na torre da igreja, antes de devolver a atenção
aos batalhões, no momento em que novos disparos esmagavam dois dos seus homens, antes de abrir uma depressão lamacenta no terreno pouco à frente do cavalo do coronel.
A partir da sua posição no alto da elevação, Arthur pôde ver toda a extensão do campo de batalha da Divisão Ligeira. À frente da primeira fila, o terreno descia
durante quatrocentos ou quinhentos passos, antes de se tornar plano. Linhas irregulares de corpos de farda azul marcavam até onde tinham chegado os primeiros ataques
franceses, enquanto algumas dezenas de soldados da Divisão Ligeira estavam espraiados na erva pisada e enlameada. As colunas francesas tinham feito alto na base
da encosta, enquanto, atrás delas, uma dúzia de peças continuava a disparar contra os defensores na encosta. A elevação só tinha duas peças britânicas, bocas-de-fogo
de montanha leves, cujos estampidos diminutos desapareciam com o troar constante das baterias inimigas.
O general Alten encontrava-se no campanário, observando calmamente a troca de fogo, quando Arthur e Somerset subiram, ofegantes, a estreita escadaria em espiral
até ao cimo.
- Como vão as coisas? - perguntou Arthur, endireitando-se e esfregando discretamente as nádegas, dormentes depois da cavalgada.
Alten franziu os lábios.
- Apanharam-nos a dormir. Aproximaram-se aos pares e depois atacaram-nos os piquetes. Mandei os meus rapazes recuar logo para esta posição.
Arthur olhou para toda a extensão da cumeada e reparou no terreno lodoso que protegia cada extremidade. Acenou a sua aprovação.
- Uma bela escolha. Não lhes vai ser fácil chegar à Divisão Ligeira.
- Imagino que não - retorquiu Alten, num tom severo. - Seja como for, tal como pode ver, já repelimos um ataque. Desde então, os franciús têm recorrido aos canhões,
acima de tudo para nos tentar reduzir as fortificações. - Alten deu uma palmadinha na alvenaria. - Não têm grandes hipóteses de destruir isto. Embora as bolas deles
tenham andado a fazer grandes estragos nas pedras do cemitério.
Arthur chegou-se à frente e espreitou. Várias lápides tinham ficado desfeitas. Ao olhar para cima, viu movimentos na retaguarda das formações francesas alinhadas
à frente da elevação. Três colunas tinham-se afastado da força e marchavam para oeste, a caminho da outra estrada. Apontou para elas.
- Está a ver? Já que não conseguiu passar por aqui, imagino que o Soult tenha decidido tentar a sorte contra a nossa esquerda. Mas é uma pena que tenha sido obrigado
a abandonar as suas fortificações e a recuar, Alten.
O general olhou-o com uma expressão confusa.
- Fortificações?
- Eram essas as suas ordens. Simular o avanço contra Bayonne, parar e fortificar.
- Não recebi tais ordens, milorde - contrapôs Alten. - Só me disseram para fazer os franciús recuar e mantê-los ocupados. Mais nada.
- Estou a ver. Por acaso sabe onde posso encontrar o general Hope?
- Sim, milorde. Ele está aquartelado em Bidart, com uma brigada portuguesa.
- E onde está a Primeira Divisão?
- Segundo a última informação que tive, estavam aboletados em St-Jean-de-Luz.
Somerset ficou consternado.
- Mas isso fica a mais de quinze quilómetros de Barroilhet! Por Deus, o que estão eles a fazer tão atrás?
O general Alten encolheu os ombros.
- Será melhor perguntar ao Hope, não?
Arthur sentiu a ansiedade gelada na nuca. O flanco esquerdo do exército estava demasiado estendido. Se Soult ordenasse aos seus homens que atacassem, iriam cilindrar
as formações aliadas e depois pressionariam a Divisão Ligeira, despedaçando o flanco esquerdo de Arthur antes que Hill pudesse intervir. Tal derrota abafaria os
êxitos conseguidos por Arthur desde o início da campanha. Dirigiu-se rapidamente a Somerset.
- Vá até St-Jean-de-Luz. Se a Primeira Divisão ainda não estiver a caminho de Bayonne, dê-lhes ordens expressas para que avancem. Se já estiverem a caminho, apresse-os.
Têm de chegar a Barroilhet antes que as nossas posições cedam. Vamos.
Somerset assentiu e desceu a correr o campanário enquanto Arthur dava ordens a Alten.
- Mantenha a sua posição aqui. Se o Soult chegar à sua esquerda, nesse caso pode recuar até ao Hill. Mantenha os seus homens em formação cerrada, em quadrado, se
for preciso. Informe-me de imediato se for obrigado a mudar de posição.
- Sim, milorde. Onde posso encontrá-lo se precisar de entrar em contacto consigo?
Arthur respirou fundo.
- Vou à procura do general Hope.
Chegou à elevação atrás da pequena aldeia de Barroilhet ao meio-dia, no momento em que uma brigada isolada de casacas-vermelhas formava uma linha para reforçar os
soldados portugueses que tinham passado a manhã a repelir uma série de ataques franceses. O inimigo já se apoderara da aldeia e começava a avançar, pronto a assaltar
a elevação. Arthur encontrou o general Hope sentado num banco à porta de uma estalagem, a dar ordens para a defesa da nova posição. Tinha a canela esquerda enfaixada,
e o casaco da farda e o chapéu tinham sido trespassados por bolas de mosquete. Pôs-se rigidamente de pé e cumprimentou Arthur quando este desmontou.
- É um prazer vê-lo, milorde.
- Digamos antes que é uma sorte. - Arthur apontou para a perna ferida.
- Assim é, milorde. Avancei para Barroilhet assim que soube que os franceses tinham atacado. Caíram em cima de nós num abrir e fechar de olhos. O meu estado-maior
e eu tivemos de abrir caminho à força.
Arthur sentiu-se tentado a comentar que tal fuga não teria sido necessária, caso Hope tivesse obedecido às ordens que lhe tinham sido dadas. Todavia, não havia tempo
para recriminações, e pelo menos Hope tinha-se lançado na refrega assim que reconhecera o perigo.
- Que forças tem disponíveis para se opor ao Soult?
- O que resta de duas brigadas portuguesas a defender a aldeia e a brigada de Aylmer. Chamei de imediato a Primeira Divisão. Devem chegar antes das duas da tarde.
- Ótimo. - Arthur aquiesceu. - Até lá temos de usar o que está disponível. Pelo menos, o terreno favorece-nos.
Tal como em Arcangues, os franceses foram obrigados a atacar com uma frente estreita. Ao longo de oitocentos metros de cada lado da estrada enlameada viam-se dois
pequenos lagos, cercados por lodaçais. Se a linha pudesse ser mantida tempo suficiente até que a Primeira Divisão chegasse, Soult poderia ser detido e o seu plano
sairia gorado. Durante um momento, Arthur sentiu uma certa simpatia pelo marechal inimigo. De certeza que fora tentador levar a cabo um ataque contra a metade mais
forte do exército aliado quando este cruzava o Nive. No entanto, Soult vira que os inimigos estavam a dispersar o exército ao longo do rio. Em vez de lutar, atraíra
a coluna de Hill para longe da travessia, tendo depois levado as suas forças através das pontes de Bayonne para conseguir uma vantagem esmagadora contra os soldados
aliados que permaneciam na margem ocidental do Nive.
- Inteligente - resmungou Arthur entre dentes. - Muito inteligente. O Soult é um homem que sabe esperar.
Depois Arthur ignorou o adversário e analisou a cena à sua frente. A chegada da brigada de Aylmer dera novo ânimo às tropas portuguesas, que tinham passado a manhã
a combater valorosamente, mas que quase tinham sido esmagadas. Cerravam agora formações à frente das suas cores e preparavam-se para um novo massacre francês. A
infantaria inimiga afastara-se para permitir a passagem de uma brigada de cavalaria: dragões, de sobretudos pesados com plumas a encimar os elmos cintilantes. Fizeram
avançar os cavalos e espalharam-se lentamente pelo terreno enlameado à frente da elevação. Arthur ficou aliviado por não ver sinais das bocas-de-fogo inimigas, por
certo ainda presas na lama além de Barroilhet.
- Não são as melhores condições para a cavalaria - comentou Hope.
- E não há necessidade por parte dos seus homens de formarem quadrados - retorquiu Arthur. - Duvido que aqueles dragões consigam ganhar velocidade na lama. Algumas
salvas vão afastá-los muito antes de representarem perigo para a nossa linha.
Hope fitou o terreno e assentiu antes de se dirigir a um dos seus oficiais.
- Campbell, vá ter com a nossa linha. Diga aos coronéis para ficarem onde estão.
O oficial fez continência e depois afastou-se a cavalgar para transmitir a ordem.
A cavalaria francesa precisou de mais de meia hora para se colocar em posição e quando finalmente se fez soar o avanço, as montadas pesadas debateram-se para percorrer
a lama enquanto avançavam em direção à base da encosta.
- O que eu não dava por uma bateria de peças de nove libras - comentou Hope, amargurado. - A metralha desfazia-os.
Arthur afastou o olhar dos dragões, dirigindo-o aos homens mais próximos. Os soldados mantiveram-se firmes e esperaram, sem olhar para trás. Tal como Arthur esperara,
o terreno lastimável fez a cavalaria abrandar para passo e continuavam sem acelerar quando se fez ouvir a ordem para preparar fogo. Os mosquetes foram empunhados
e seguiu-se uma breve pausa até que a ordem para engatilhar foi bradada e um clique leve encheu o ar.
- Apontar!
Os mosquetes levantaram-se e cada homem pressionou a coronha contra o ombro, antecipando o coice brutal quando a arma fosse disparada. Arthur viu que os dragões
se encontravam talvez a setenta ou oitenta metros. Era mais longe do que gostaria, mas os alvos grandes seriam fáceis de atingir quando a salva fosse disparada.
- Fogo!
As salvas de cada companhia de tropas portuguesas e britânicas fizeram-se ouvir ao longo da linha, cuspindo mais de mil bolas de mosquete contra a formação que se
aproximava.
- Recarregar! - bradou um sargento. - Recarreguem as armas, malditos!
Quando o fumo começou lentamente a dispersar, alguns dos homens tinham feito uma pausa para ver os danos provocados, mas agora já baixavam as armas, pegavam num
cartucho novo e começavam a recarregar. Da sua posição na cumeada, Arthur viu que dezenas de dragões e as suas montadas tinham desaparecido, com alguns dos animais
a espernear com terríveis dores e sofrimento. Os camaradas passaram por eles, aproximando-se da estreita linha de homens que defendiam a elevação.
Uma segunda salva cuspiu chamas e chumbo contra os dragões a menos de trinta metros, à queima-roupa, e desta vez caíram ainda mais cavaleiros, tombando na lama,
onde ficaram presos como vespas em doce, debatendo-se em vão.
- Assim é que é! - celebrou Hope, ostentando um sorriso rasgado à medida que os seus homens castigavam o inimigo.
Uma terceira salva derrubou ainda mais cavaleiros que tinham conseguido passar por entre os cadáveres, juntando-se ao emaranhado de homens e cavalos, mortos e feridos,
presos na lama. Os dragões imobilizaram-se e a quarta salva decidiu a questão. As notas estridentes dos clarins fizeram soar a retirada e os cavaleiros deram meia-volta
às montadas, com alguma dificuldade, e voltaram a descer a encosta, com mais velocidade e menos ordem do que quando a tinham subido. As brigadas portuguesas, reduzidas
a um punhado de salvas, sustiveram o fogo, mas os homens de Aylmer dispararam mais duas salvas antes que a ordem de cessar-fogo fosse bradada.
Arthur imaginou que mais de um quarto da brigada inimiga tivesse sido abatida e agora os sobreviventes recuavam para a retaguarda por entre as linhas de infantaria.
Seguiu-se uma breve pausa enquanto os feridos que ainda conseguiam andar saíram do lodaçal e desceram a encosta, dando mais tempo aos defensores. Arthur virou-se
e perscrutou os terrenos em busca de reforços. Avistou então o vermelho de uma coluna de soldados britânicos a surgir entre duas matas e a descer a estrada na sua
direção, ainda a dois quilómetros dali. Arthur teve noção de que a pequena linha de homens na encosta teria de manter a posição durante mais algum tempo.
O rufar dos tambores voltou a chamar-lhe a atenção para o inimigo. Os escaramuceiros franceses avançavam já em pares, deslocando-se cuidadosamente sobre a extensão
aberta de lama revolvida. Não teriam abrigos na sua aproximação à infantaria portuguesa e britânica que os aguardavam. Através deles avançavam três brigadas de infantaria
em coluna, incitadas pelos oficiais e pelo ritmo insistente dos tambores. Hope já chamara a infantaria ligeira e os seus homens mantiveram-se firmes enquanto os
atiradores franceses estacavam e abriam fogo. À medida que os aliados caíam, mortos ou feridos, os camaradas cerravam fileiras para a direita e aguentavam a posição.
Não teriam de se sujeitar muito mais tempo aos escaramuceiros, já que as colunas francesas subiam a ligeira encosta, as botas pesadas com a lama a elas agarrada.
À medida que as colunas se aproximavam da linha aliada, os escaramuceiros começaram a recuar e, por um instante, o som dos disparos cessou. Os franceses fizeram
alto e dispararam uma salva irregular, atingindo cerca de uma vintena de aliados. Momentos depois, os homens de Hope devolveram fogo numa salva massiva. Como estavam
próximos e quase todos os mosquetes puderam ser usados contra a frente das colunas francesas, o resultado foi devastador. Por todas as primeiras filas das colunas,
homens tombaram e cambalearam. Seguiu-se uma pausa, acompanhada pelo retinir apressado das varetas, enquanto cada lado recarregava.
- Interessante - meditou Arthur em voz alta. - Está a ver como os franceses se mantêm em coluna, em vez de criarem uma linha de fogo? É óbvio que aqueles soldados
tiveram uma formação medíocre. Os oficiais não os põem a fazer manobras de batalha.
- Enquanto estiverem em superioridade numérica, não precisam de o fazer - retorquiu Hope.
- Mas não por muito tempo. - Arthur indicou a aproximação da Primeira Divisão. - Seja como for, julgo que será a qualidade e não a quantidade a sair vitoriosa.
Devolveu a atenção à batalha a tempo de ver os seus homens a disparar a segunda salva alguns segundos antes do inimigo, tendo mais homens caído de ambos os lados.
O fumo encheu o ar entre a linha e as colunas, fundindo lentamente tudo numa única massa, iluminada a partir do interior pelo clarão alaranjado de cada salva, à
medida que os soldados disparavam às cegas. Era este o teste derradeiro a cada exército, pensou Arthur. O lado que aguentasse tal tormento durante mais tempo seria
o vencedor. Enquanto observava, notou com uma satisfação fria que os seus homens disparavam três salvas por cada duas do inimigo. Em breve os franceses deixavam
de disparar salvas, passando a fazer soar constantemente os mosquetes, à medida que cada homem recarregava e disparava a um ritmo diferente dos outros.
Ouviu-se o estrondo de cascos quando Somerset chegou a galopar. Parou e desmontou, as faces afogueadas pelo esforço no ar frio. Tocou no chapéu, numa saudação a
Arthur e ao general Hope.
- A Primeira Divisão já tinha saído de St-Jean-de-Luz quando lá cheguei, milorde - relatou. - Alcancei-os na estrada e tenho estado a incentivá-los desde então.
- Virou-se e observou as linhas de batalha, e depois as formações reunidas do exército de Soult, a menos de um quilómetro a norte. - Bom Deus, não temos hipótese.
- Acha que não? - Arthur ostentou um sorriso de esguelha. - Veremos.
As figuras dos feridos ligeiros recuavam ao lado das colunas francesas e os que se encontravam nas colunas, que avançavam para tomar o lugar dos abatidos, olharam-nos
com nervosismo. Depois, Arthur viu um dos homens na retaguarda da coluna mais próxima virar-se e afastar-se da formação. Outros seguiram-se, passando por um sargento
furioso que lhes gritava para regressarem às posições. Os homens à cabeça da coluna começavam a recuar, deixando de preencher os espaços deixados pelos mortos. Lentamente,
as colunas francesas recuaram, afastando-se da nuvem espessa de fumo, deixando na sua esteira os mortos e feridos deitados na lama. Durante algum tempo, os oficiais
e os sargentos tentaram detê-los, mas não havia qualquer vontade de voltar a avançar contra o fogo devastador das tropas aliadas.
Assim que os oficiais britânicos e portugueses se aperceberam de que já não havia fogo inimigo, ordenaram aos seus homens que cessassem fogo, que levassem as baixas
para a retaguarda e que voltassem a formar as alas. Enquanto o fumo se desvanecia, Arthur observou as brigadas francesas fustigadas voltarem a formar-se na base
da encosta. Uma figura a cavalo, com a casaca ricamente ornamentada com cordões de ouro, percorreu a linha, a arengar para os homens e a apontar o braço para a elevação.
Arthur sorriu para consigo. Imaginava a fúria de Soult. O dia começara bem para os franceses, mas o terreno alagado, os bloqueios naturais ao longo das estradas
pelas quais decidira avançar e a coragem das tropas aliadas tinham-lhe detido os ataques.
O som dos tambores voltou a fazer-se ouvir e, desta vez, Soult avançou com os seus homens, bradando palavras de encorajamento enquanto desembainhava o sabre e o
brandia em frente. A encosta lamacenta, já revirada pela cavalaria e pela infantaria nos ataques anteriores, era agora um paul brilhante e os homens tinham dificuldade
em manter o equilíbrio, enquanto se esforçavam por avançar. Atrás de Arthur, a primeira brigada da Primeira Divisão chegara à elevação e assumia a sua posição na
encosta oposta. As formações seguintes já saíam da estrada para formar nos flancos.
Arthur dirigiu-se ao general Hope.
- Eles que avancem para a elevação. Estarão em segurança, pois não há artilharia inimiga em campo. Os homens do Soult que os vejam.
- Sim, milorde.
O frágil ataque francês debateu-se mais um pouco encosta acima, enquanto outras tropas britânicas surgiam no cimo da elevação. Soult parou, embainhou a espada e
observou o número crescente de defensores. Depois deu meia-volta e regressou para junto do exército, gritando uma ordem para os oficiais por quem passava. Momentos
depois, os tambores silenciaram-se e as brigadas francesas fizeram alto. Arthur e os outros oficiais observaram e aguardaram, num silêncio tenso. Depois, os franceses
começaram a dar meia-volta e a regressar encosta abaixo.
Um coro de assobios e troças fez-se ouvir entre os homens na elevação e Hope falou bruscamente para um dos ajudantes de campo:
- Não vou tolerar tal indisciplina! Vá lá e dê ordens para que fiquem em silêncio.
- Não - interrompeu Arthur. - Deixe que se divirtam. Eles merecem. Além disso, os gritos servem para aumentar o desconforto do inimigo. Deixe que os seus homens
se divirtam, Hope.
- Sim, milorde - retorquiu o general, com relutância.
Quando o resto da Primeira Divisão se formou na cumeada, os franceses começaram a recuar para lá de Barroilhet, deixando um grupo de escaramuceiros a defender a
aldeia. Arthur ordenou a Hope que fizesse avançar piquetes e que depois dispersasse os homens.
- Talvez desta vez seja melhor fortificar a sua posição - acrescentou, num tom seco. - Não me importo de perdoar os erros a um homem, conquanto ele aprenda de imediato
com eles. Imagino que tenha sido bem claro.
- Perfeitamente. Farei tudo o que for necessário, milorde - redarguiu Hope. Depois tossicou e prosseguiu, num tom fanfarrão: - Foi por pouco. O Soult é um belo comandante.
Quase ao seu nível, milorde.
- Se o diz - replicou Arthur, desdenhoso. Ficou irritado com a comparação, e com a tentativa de Hope de passar a culpa da sua incompetência ao comandante. Mesmo
assim, Arthur acalmou-se. O corajoso exemplo de Hope acalmara os homens no momento decisivo. - Mas deixe-me que lhe explique a grande diferença entre o Soult e eu.
Quando ele fica em dificuldades, as tropas dele não o salvam. As minhas salvam-me sempre. - Fez uma pausa e prosseguiu, entre dentes: - Mesmo que os oficiais não
o façam.
O general Hope anuiu, satisfeito, grato por ter salvado a reputação. Depois virou-se para dar ordens ao estado-maior. Somerset olhou para as últimas tropas francesas
que passavam pela aldeia mais além.
- Tenciona perseguir Soult?
Arthur ficou em silêncio por um instante.
- Não. Não nos vai servir de nada. Pouco se vai conseguir com este tempo. O Soult vai retirar para Bayonne e instalar-se nos quartéis de inverno. Os nossos homens
estão cansados e precisam de tempo para descansar e para se reequiparem. A questão vai ficar resolvida no próximo ano. Tanto aqui, como no Norte. - Esboçou um sorriso.
- Os dias de Bonaparte estão contados, Somerset. Não duvide.
Capítulo 47
Arthur fez deslizar sobre a secretária as duas moedas de cinco francos em direção a Somerset e depois recostou-se outra vez na cadeira.
- Diga-me qual é a falsificação.
Somerset cerrou os lábios enquanto olhava fixamente para as duas moedas de prata, depois pegou em ambas, uma em cada mão, e examinou-as de perto, sopesando-as enquanto
o fazia. Ambas continham a marca de cunhagem de cinco anos antes. A única diferença era que uma parecia ligeiramente menos usada do que a sua companheira. Somerset
baixou a outra moeda e levantou a mais brilhante.
- Esta.
Arthur bateu com a mão na mesa e riu-se.
- Errado!
Estava deliciado com o erro de Somerset. Antes nesse dia, Wilkins, um sargento dos fuzileiros, anteriormente residente na prisão de Newgate e responsável por uma
pequena equipa de falsificadores, tinha-lhe mostrado as duas moedas. Wilkins pedira-lhe que escolhesse entre as duas moedas e Arthur, tal como o seu ajudante, tinha
errado na escolha da falsa e divertia-se agora a reproduzir a Somerset a explicação de Wilkins para o engano.
- Está a ver, a moeda foi manchada com café. Dá a ilusão de ter sido usada, ilusão que dura o tempo suficiente para passar a moeda através de várias mãos antes de
levantar suspeitas.
Somerset pegou na moeda e voltou a examiná-la.
- Muito inteligente. O sargento Wilkins e o seu pessoal fizeram um belo trabalho. Temos muita sorte em ter homens assim connosco.
- Sorte? - Arthur ergueu a sobrancelha. - Neste caso, sim, mas nunca me convenceram quanto à vontade do exército de recrutar pessoal entre a escumalha que nos infesta
as prisões.
Somerset sorriu.
- A perda de Newgate é o nosso ganho, milorde.
- É certo, mas tremo só de pensar nos usos que podem ser dados a tão exímias competências em tempo de paz. Seja como for, o Wilkins relata que ele e os seus homens
cunharam moedas francesas suficientes para nos assegurar a compra de mantimentos durante pelo menos um mês. Por essa altura, espero que o tão prometido ouro chegue
de Inglaterra.
Somerset tufou as faces, revelando a sua dúvida. O seu ceticismo era, provavelmente, justificado, refletiu Arthur. Quase todas as promessas que lhe haviam sido feitas
pelo governo nos últimos anos tinham sido sujeitas a alterações, atrasos ou recusas. A falta de ouro representava, de momento, a ameaça mais séria à sua campanha.
Os condutores das mulas que carregavam a maior parte dos mantimentos do exército não eram pagos há três meses e os soldados ainda há mais tempo.
O marechal Soult tinha os seus próprios problemas, descobrira Arthur graças aos locais. Sem capacidade para alimentar o seu exército de sessenta mil homens e a população
de Bayonne, Soult vira-se obrigado a deixar uma guarnição e a deslocar o grosso do exército mais para o interior. Quando os dois exércitos se instalaram nos seus
quartéis de inverno, os civis circulavam livremente entre eles, transportando vinho, pão, carne e queijo de Bayonne e regressando com açúcar e café, que chegavam
nos primeiros navios mercantes ingleses a entrar no porto de St-Jean-de-Luz. Ainda assim, era um mercado de venda e os elevados preços praticados pelos camponeses
eram ainda mais agravados pela sua recusa em aceitar os dólares de prata que o exército usara em Espanha. Fora por isso que surgira a pequena empresa de falsificação
que Arthur tinha montado num armazém bem guardado no porto, onde Wilkins e os seus homens derretiam a moeda espanhola, adicionavam uma pequena quantidade de metais
de base e depois forjavam, terminavam e envelheciam as moedas francesas. Assim que se misturavam com as outras moedas francesas no cofre de guerra do exército, estavam
prontas para entrar em circulação. Arthur conseguira ampliar o seu abastecimento de moeda francesa trocando moedas por notas do Tesouro britânicas em alguns bancos
em Bayonne. Tinha ficado satisfeito com a vontade que os banqueiros mostravam em participar nestes negócios com uma potência inimiga, mas, a bem da verdade, a corrupção
dos banqueiros ultrapassava consideravelmente o seu sentido de patriotismo.
Guardou as moedas na gaveta e dirigiu a atenção para o ponto seguinte na lista de tarefas administrativas em que ele e Somerset estavam a trabalhar.
- Fardas. Então? Como decorre o programa de substituição?
- Lentamente. Foram poucos os carregamentos que já chegaram ao porto. As marés de inverno estão a atrasar os envios de Southampton. Até agora, conseguimos juntar
um conjunto de equipamento novo para duas divisões do Hope. Ele enviou um regimento de cada vez ao porto para levantarem as novas fardas. A que eles deixam é lavada
e atribuída aos homens de Hill para servir de remendos.
- Ótimo. - Arthur acenou a cabeça afirmativamente. Os homens de Hill, sendo os que se encontravam posicionados mais longe do porto, eram os últimos a obter qualquer
tipo de suprimentos, uma vez que as estradas ao longo do país estavam em grande medida intransitáveis. As mulas utilizadas para carregar os mantimentos tinham pouca
forragem e rapidamente se cansavam devido ao esforço que tinham de despender para atravessar a lama e chegar à ala certa do exército aliado.
- Certifique-se de que algumas das formações de reserva do Hill são chamadas ao porto para virem buscar o novo equipamento. É melhor não deixarmos que os homens
tenham a triste ideia de que uma formação está a ser favorecida em relação a outra.
- Sim, milorde. - Somerset baixou a cabeça para escrever uma nota rápida.
- Avancemos então para a requisição de embarcações mercantes para a travessia do Adour. Como se está a dar o major Simpson?
O oficial de engenharia tinha sido encarregue de assegurar navios suficientes para auxiliar a construção de uma ponte marítima através da embocadura do rio Adour.
Assim que a ponte estivesse pronta, os homens do general Hope poderiam contornar Bayonne quando voltasse o bom tempo e a campanha continuaria, enquanto a coluna
principal do exército aliado levava Soult para leste.
- O Simpson enviou requisições para todos os portos até Santander e para alguns dos portos franceses mais próximos. Os donos dos barcos não perderam o interesse.
A única dificuldade é que querem pagamento em ouro ou prata.
- Não me surpreende de todo - replicou Arthur, num tom melancólico. - Diga ao Simpson que lhes podemos oferecer um terço agora, um terço na chegada e um terço quando
a ponte estiver completa.
Somerset ergueu o olhar e inspirou.
- Podemos dar-nos a esse luxo, milorde?
- Temos como assegurar o pagamento inicial. Será suficiente para os levar até lá. Depois terão de esperar na fila pela vez deles de receber, como todos nós. Seja
como for, quando os barcos estiverem ao alcance da nossa artilharia, há pouca coisa que eles possam fazer para mudar a situação. Não é muito ético, bem sei, mas
é o que tem de ser. - Arthur abanou a cabeça, revelando o cansaço que sentia. - É tudo por esta manhã?
- Sim, milorde.
- Então vamos terminar. Pode ir. Diga ao Wilkins que peça aos seus homens que terminem o trabalho o mais rapidamente possível. O exército precisa de ser aprovisionado.
Pode não faltar muito para começarmos a marchar, dependendo dos acontecimentos.
- Acontecimentos, milorde?
Arthur apontou com a cabeça para alguns jornais franceses que tinham chegado ao quartel-general nessa manhã.
- Até os boletins de Bonaparte admitem que ele está a recuar para a fronteira francesa. Se nos estamos a aproximar da fase final, nesse caso é vital que cumpramos
o nosso dever aqui no Sul da França, evitando que Bonaparte retire quaisquer reforços a Soult. - Arthur olhou fixamente para o ajudante de campo com uma expressão
determinada. - O fim aproxima-se, Somerset. Bonaparte não consegue manter à distância os exércitos combinados dos seus inimigos. A guerra vai terminar antes do final
do ano.
- E depois, milorde?
- Depois? Depois vamos para casa. - Arthur acenou com a mão. - Bom, agora vá-se embora.
Quando a porta se fechou atrás de Somerset, Arthur levantou-se e caminhou até à janela. Olhou à distância, para os desembarcadouros varridos pela chuva e pelo vento,
agora a abarrotar de embarcações, a maioria britânicas, livres para irem e virem graças ao domínio da costa francesa por parte da Marinha Real.
O que aconteceria a Bonaparte quando a guerra acabasse? Arthur sabia que o seu exército, quase sem exceção, ficaria satisfeito por ver o imperador destronado e "descapitalizado",
como eles diziam. Por seu lado, Arthur sabia que havia pouco interesse pelo regresso dos Bourbons entre o povo francês e, por isso mesmo, estava disposto a permitir
a continuação de Bonaparte no poder, desde que o seu exército e as suas ambições pudessem ser contidos em segurança. Arthur sorriu para consigo. Independentemente
do que ele próprio estivesse disposto a aceitar, duvidava que os aliados orientais da Inglaterra fossem tão misericordiosos.
O tempo húmido continuou pelo resto de dezembro até ao Ano Novo. A maioria dos soldados aliados estava aboletada em casas particulares junto ao porto e nas pequenas
aldeias a sul de Bayonne e do rio Adour. Alguns batalhões não tiveram tanta sorte e tiveram de se desenvencilhar com celeiros e quaisquer abrigos que pudessem encontrar.
Os restantes dormiam nas suas tendas, agora puídas e a deixar entrar água após meses de campanha. Contudo, se o conforto era parco, os seus dias eram, pelo contrário,
repletos de um conjunto de prazeres familiares. Existiam várias mulheres recetivas entre aquelas que seguiam os acampamentos, prontas a servir os seus apetites carnais,
jogos grosseiros de futebol para serem jogados em campos enlameados, e para os mais letrados havia ainda a oportunidade de ler o que conseguissem encontrar e de
escrever para casa, para as suas famílias, e para as famílias dos analfabetos, em nome deles, por uma pequena remuneração. Os oficiais organizavam peças e recitais
e promoviam refeições, com cada uma das brigadas a tentar superar a anterior quando lhes cabia a vez de ser a anfitriã. O Natal foi celebrado com o fervoroso entusiasmo
dos homens que sabiam bem que podiam não voltar a ver-se e os cânticos entoados à beira das fogueiras nos acampamentos transportavam até aos ouvidos de Arthur uma
espécie de melancolia acolhedora, enquanto ele circulava pelo exército a apresentar cumprimentos natalícios aos soldados.
Enquanto os homens aproveitavam ao máximo o tempo de pausa da campanha, Arthur trabalhava horas a fio à secretária, incitando os oficiais de mantimentos para assegurar
que preparavam o exército para a campanha de guerra que se avizinhava, e que ele esperava pudesse ser a última. Além desse fardo, também tinha de enviar mensagens
cada vez mais concisas para o governo em Londres, explicando porque fora obrigado a parar. Os políticos pareciam não ter qualquer compreensão pelos problemas logísticos
provocados pela lama numa guerra. Para eles, a lama era pouco mais do que uma inestética acumulação no calçado, que os obrigava a entregar as botas ao empregado
para limpar.
Nos inícios de janeiro, estava Arthur atarefado a esboçar ainda mais uma resposta para os governantes políticos, quando lhe chegou uma mensagem através do correio
regular de Southampton. O comandante do navio, um jovem tenente muito excitado, trouxe-lhe a missiva em mão. Depois de lhe entregar a mensagem oficial selada, não
conseguiu ficar calado.
- Fantásticas notícias, milorde. Já se sabe na Europa inteira e não se fala de outra coisa.
- A sério? - respondeu Arthur num tom seco, ao que tamborilou com os dedos na mensagem. - Importa-se?
- O quê? Ah, claro. Peço desculpa, milorde.
O tenente estacou, a morder a língua, enquanto Arthur, casualmente, quebrou o selo, desdobrou o documento e começou a ler. Somerset, sentado a uma secretária mais
pequena num canto da sala, mal podia conter a curiosidade. Quando Arthur acabou de ler, ergueu o olhar.
- De facto, são boas notícias. - Dirigiu-se a Somerset. - Parece que os nossos aliados orientais atravessaram o Reno três dias antes do Natal. Começaram a invasão
da França. Bonaparte não tem homens suficientes para fazer mais do que uma retirada defensiva. - Arthur baixou a carta. - Está na altura de agir e os nossos aliados
urgem-nos a renovar a ofensiva. Contudo, não podemos avançar enquanto o tempo e o terreno estiverem contra nós. Entretanto, temos de preparar o exército para levantar
acampamento e marchar contra os franceses. Nunca depois de meados de fevereiro.
- E as estradas, milorde? E se continuarem intransitáveis?
Arthur considerou a possibilidade por um momento.
- Quando a última linha estiver à vista, nessa altura que se dane a lama! Teremos de avançar de qualquer maneira.
No mês seguinte, as corporações de Hill deixaram os acampamentos de inverno e avançaram para monitorizar as atividades do resto do exército. Ao mesmo tempo, a flotilha
de barcos contratados e de pequenos navios começou a subir a costa de St-Jean-de-Luz até à foz do Adour. O tempo estava moderado, limpando o céu e contribuindo para
o bom humor de Arthur, agora que a campanha estava de novo em movimento. Sob a proteção da artilharia de uma fragata e de uma bateria no sul do rio Adour, os engenheiros
começaram a ancorar as embarcações lado a lado no estuário, montando através dos conveses uma estrada de madeira. A margem mais afastada estava mal defendida e o
inimigo recuou assim que a primeira ronda de tiros caiu sobre eles.
No final do primeiro dia, a ponte estava quase completa e a brigada portuguesa tinha desembarcado na costa mais afastada com uma mancheia de armas e uma bateria
de morteiros. Arthur cruzara o rio para supervisionar a montagem da cabeça da ponte, quando se deu uma troca de fogo de mosquetes na estrada de Bayonne. Pouco depois,
um soldado regressou a trote para dar conta da aproximação de uma coluna inimiga. O coronel Wilson, comandante da brigada, formou imediatamente os seus homens ao
longo da estrada para defender o pequeno grupo de engenheiros na plataforma de desembarque da margem norte. A artilharia e os mosquetes estavam a postos numa pequena
colina sobre o rio e Arthur fez um gesto a Somerset para que o seguisse, dirigindo-se às duas baterias para terem uma melhor visão.
A leste, a estrada curvava-se como uma serpente ao longo do solo ondulante e Arthur podia ver pequenas plumas de fumo onde os combatentes portugueses trocavam fogo
com a infantaria ligeira que avançava em linha à frente da principal coluna francesa.
- Uma divisão, segundo me parece.
- E cavalaria, ali, mais para a retaguarda, milorde - indicou Somerset tranquilamente. - Pode causar-nos alguns problemas.
Arthur olhou para a ponte de barcos. Ainda havia um buraco de uns cem metros entre os barcos ancorados e a margem do rio. A última das embarcações teria ainda de
ser colocada em posição e depois a ponte seria instalada sobre os conveses. Demoraria pelo menos mais umas três horas antes de as primeiras tropas poderem marchar
através do Adour. Isso queria dizer que tinham de aguentar e lutar ou dar a ordem para abandonar a cabeça da ponte até que uma força maior pudesse desembarcar para
afastar os franceses. Se perdessem a margem norte do Adour, talvez levassem dias para a reconquistar. Arthur viu o coronel Wilson olhar de relance para si e compôs
a expressão do rosto, ficando parado para dar oportunidade a Wilson de tomar a decisão certa. Seguiu-se uma pausa, ao que Wilson se voltou para o inimigo e ordenou
aos homens que avançassem para onde o terreno estava mais aberto e onde teriam oportunidade de formar uma linha suficientemente longa para utilizar todos os mosquetes
em resposta ao inimigo que se aproximava.
Não passaram mais de dez minutos até que os soldados portugueses regressaram a trote estrada abaixo, ocupando a sua posição do lado esquerdo da linha. De onde se
encontrava, Arthur conseguia agora ver os escaramuceiros franceses, avançando decididamente através do campo, até estarem ao alcance da linha portuguesa. Tiveram
pouco tempo para incomodar os homens de Wilson antes da chegada do resto da coluna francesa, marchando agilmente. O comandante da primeira brigada mandou a coluna
fazer alto e começou a posicionar-se à frente dos portugueses.
- Isto vai ser interessante - comentou Somerset. - Esperemos que os nossos aliados consigam aguentar sozinhos.
- Vão conseguir - garantiu Arthur com firmeza. - São homens experientes, tão bons quanto a nossa própria linha de infantaria. Além disso, não estão completamente
sozinhos. - Indicou a artilharia e os morteiros. Pouco depois, a bateria de artilharia começava a disparar os primeiros tiros. O alcance era curto e o solo estava
suficientemente molhado para absorver a maior parte da energia, enquanto as sólidas bolas de ferro embatiam na terra, levantando pelo ar bocados de erva até pararem
finalmente bem perto do inimigo. O capitão responsável pela bateria, Mosse, deu ordem às equipas para aumentar a elevação e os disparos seguintes acertaram no alvo,
abrindo caminho através da linha francesa.
Arthur dirigiu a atenção à bateria de morteiros. Os canais de lançamento eram apoiados por uma simples estrutura em A de ferro, que podia rapidamente ser levantada
ou baixada através de um perno corrediço para mudar o ângulo de disparo. As equipas tinham carregado os primeiros morteiros e estavam agora recuadas, com os sargentos
a segurar os cordões que acionavam os sistemas de disparo com pederneira.
Voltando-se novamente para as linhas de batalha, Arthur viu que os franceses ainda não tinham feito qualquer tentativa de avanço.
- Do que estarão à espera? - interrogou-se Somerset.
- Da cavalaria. Quando alcançarem a cabeça da coluna, imagino que vão tentar contornar o flanco esquerdo de Wilson. Se isso acontecer, nesse caso a brigada vai ser
obrigada a formar em quadrado. Aí, a infantaria deles avançará. Isto poderá dar a vantagem ao inimigo, a menos que se faça alguma coisa. - Puxou as rédeas e levou
a montada até ao comandante da bateria de morteiros.
- Hughes, não é?
- Sim, milorde.
- Os seus morteiros têm um alcance de duas milhas, segundo creio.
- Está correto, milorde. Claro que a essa distância não têm grande precisão.
- Não têm precisão a nenhuma distância - redarguiu Arthur laconicamente. - Por isso, fiquemos satisfeitos por o inimigo nos proporcionar um alvo tão grande. Bom,
está a ver a cavalaria inimiga?
O tenente Hughes olhou para leste e assentiu.
- Nesse caso, aponte-lhes as armas, por obséquio. Vejamos o que conseguem esses mecanismos.
O oficial riu-se e levou a mão à aba do chapéu antes de se afastar para ordenar aos seus homens que alinhassem os tubos para um alvo distante. Quando tudo estava
pronto, deu ordem para lançar o primeiro morteiro. O sargento deu um forte puxão no cordão de disparo, a fecharia da pederneira estalou com um clarão e uma pequena
espoleta cuspiu faíscas por segundos antes de a carga se incendiar. Com um rugido áspero e sibilante, o morteiro saltou do tubo com um jato brilhante de fogo e uma
nuvem de fumo. Arthur observou a trajetória espiralada do morteiro, enquanto este atingia o ponto mais alto do arco, para em seguida começar a descer em direção
à coluna francesa. Explodiu com um clarão e uma baforada branca alguma distância acima do inimigo. Arthur viu vários soldados caírem com os estilhaços, enquanto
outros se baixavam, obrigando a coluna a parar.
- Muito bem! - Arthur riu-se para Hughes. - Isso travou-os. Queira prosseguir o bom trabalho.
- Com prazer, milorde.
O segundo morteiro perdeu-se sobre o rio, onde embateu na água perto da ponte dos barcos. Hughes pareceu atrapalhado antes de se virar para supervisionar o morteiro
seguinte. Teve melhor sorte com os dois que se seguiram, com o segundo a cair mesmo no meio do regimento de cavalaria, derrubando pelo menos uma dúzia de cavaleiros
e dispersando outras centenas quando os cavalos se afastaram da arma desconhecida. Ao mesmo tempo, a bateria de artilharia continuava a fustigar a linha francesa,
que ainda não se movera, à espera da cavalaria. Um estrondo distante desviou a atenção de Arthur para a margem sul do Adour, onde mais baterias aliadas estavam posicionadas.
A distância era grande, mas o fogo cruzado rapidamente causou danos enquanto cada tiro abria caminho pelo flanco esquerdo do inimigo.
Somerset apreciava o espetáculo e batia na coxa com alegria cada vez que um dos morteiros explodia acima ou entre os inimigos. O efeito no espírito do inimigo era
bastante superior aos danos provocados e em breve a coluna parava, enquanto os homens e os cavalos se espalhavam ao compasso dos morteiros que iam espiralando na
sua direção com um silvo agudo.
Arthur levou a mão ao alforge para tirar o telescópio e observar as fileiras desfeitas da coluna francesa. Procurou o general inimigo e não pôde deixar de sorrir
ao vê-lo cerrar os punhos e gritar com os seus homens. Cada vez que começava a retomar o controlo, um novo morteiro gorava-lhe o trabalho e, por fim, tirou o chapéu
e atirou-o para o chão em sinal de frustração. Depois de aguentar meia hora de bombardeamento, ele finalmente cedeu e a coluna deu meia-volta e apressou-se a recuar
pela estrada de Bayonne. As tropas portuguesas só conseguiam ver a linha de homens à sua frente e soltaram uma longa aclamação assim que o inimigo voltou a formar
as colunas e seguiu os companheiros.
Arthur baixou o telescópio com um sorriso de satisfação.
- E pronto. Acho que não vamos ter mais problemas com a cabeça da ponte. Diga ao general Hope que o bloqueio de Bayonne pode começar assim que as suas corporações
acabarem de rodear a cidade.
- Sim, milorde.
- Quanto a nós, regressemos para junto de Hill. - O sorriso de Arthur desvaneceu-se enquanto pensava na fase seguinte da campanha. - Depois, de volta à dura marcha.
Desta vez, vamos cair sobre Soult e derrotá-lo de uma vez por todas. Com o Sul da França nas nossas mãos e o Norte a ceder aos aliados, o nosso amigo Bonaparte vai
ser apanhado no meio. Esperemos que o homem tenha o bom senso de admitir a derrota. - Arthur olhou fixamente para os cadáveres franceses amontoados na estrada de
Bayonne e prosseguiu em voz baixa: - Acredite, Somerset, não há nada que eu mais queira do que ver o fim do massacre que tem acontecido em nome dele.
Capítulo 48
Napoleão
Paris, 24 de janeiro de 1814
Um tom azul frio cobriu a cidade à medida que a escuridão foi caindo. Napoleão afastou-se da janela do gabinete nas Tulherias e olhou sobre a praça pública à frente
dos portões. Apenas uma mancheia de pessoas ainda deambulava pela vastidão empedrada, sozinhas ou aos pares, agasalhadas nos seus casacos enquanto um vento frio
soprava pela cidade. Alguns pedintes acumulavam-se no exterior dos portões, esperando conseguir algumas moedas de quem passava, tentando vislumbrar o imperador.
Havia poucas hipóteses disso, pensou amargamente Napoleão. O risco de algum louco o tentar alvejar era demasiado grande. Depois do seu regresso a Paris, três semanas
após o desastre de Leipzig, o ministro da polícia de Napoleão, o general Savary, relatou a descoberta de várias conspirações.
A maior parte era suficientemente inócua - grupos de aristocratas ressabiados que enviavam cartas a denunciar Napoleão e a declarar a sua lealdade à causa Bourbon.
Esses eram mantidos sob vigilância e quaisquer contactos que tivessem eram prontamente anotados. Outras conspirações eram mais perigosas. Grupos de oficiais do exército
que planeavam coagir o imperador a pedir a paz, ou que planeavam derrubá-lo. Os agentes do ministro estavam ocupados a compilar provas contra estes, preparando as
detenções. Tais oficiais estavam destinados a uma cela escura numa prisão remota, ou a ser encostados a uma parede na fria luz da madrugada e fuzilados. Havia ainda
uma minoria de traidores que planeava matar Napoleão, e o seu herdeiro também, se possível. Havia poucos interesses comuns entre os grupos. Alguns pretendiam a restauração
da monarquia Bourbon, outros pretendiam um regresso aos valores e instituições dos primeiros anos da Revolução. E havia aqueles que simplesmente pretendiam vingança
por um agravo passado.
Quaisquer que fossem as suas causas, Napoleão fazia o possível para se assegurar de que estava protegido contra todos e não se expunha a mais perigos do que o necessário.
Desde o seu regresso, tinha-se aventurado poucas vezes fora das Tulherias, não contando as visitas a St-Cloud para ver a imperatriz e o seu filho. O palácio tinha
um ar acossado, e os parisienses já não se aglomeravam em multidões para aclamar o imperador. A maior parte deles estava já a preparar o futuro, certificando-se
de que não apoiavam um regime que poderia cair a qualquer momento. Ainda assim, a atração exercida pela reputação de Napoleão, e os pronunciamentos otimistas dos
jornais, asseguravam-se de que o povo não se atrevia a questionar abertamente se os dias do imperador estavam contados.
Voltou-se lentamente, afastando-se da janela e atravessando a sala para se sentar à secretária. No dia seguinte teria de abandonar a capital para regressar ao exército,
ou ao que restava dele, pensou amargamente. Depois de Leipzig, os soldados exaustos tinham sido obrigados a fazer uma retirada a seguir a outra, acossados pelos
exércitos aliados que lhes mordiam os calcanhares como sabujos farejando a caça. No final do ano, a França dispunha de uns meros oitenta mil homens para contrariar
quase o quádruplo desse número numa frente que se prolongava desde o Mar do Norte aos Alpes. Em Itália, o príncipe Eugénio, também em inferioridade, estava a aguentar.
No Sul, Soult debatia-se para conter o recém-promovido marechal de campo Wellington, que tinha já atravessado a fronteira francesa.
Napoleão sorriu um instante. Em breve Wellington seria enfrentado. Dois meses antes assinara um tratado com o príncipe Fernando, devolvendo-lhe a coroa espanhola
em troca de uma aliança contra a Grã-Bretanha. Assim que Fernando tivesse recuperado o poder, então os seus soldados voltar-se-iam contra os britânicos e Wellington
seria forçado a retirar. Isso libertaria Soult e o seu exército para marchar para norte.
Ainda assim, eram precisos mais homens para preencher as fileiras do Grande Exército e Napoleão emitira um decreto para mobilizar mais de novecentos mil homens para
defender a pátria. Nem um décimo desse número tinha respondido à chamada, irritou-se Napoleão.
- O que querem eles? - resmungou. - Um anafado rei Bourbon no trono? Aristocratas que lhes suguem o sangue? Os padres de Roma a reclamar os dízimos? Porque não lutam
eles para se salvarem? - Bateu com o punho fechado contra a secretária e repetiu em voz alta: - Porquê?
Os que se tinham juntado ao exército estavam mal equipados devido à escassez de mosquetes e fardas. Os regimentos de cavalaria eram os mais afetados, uma vez que
havia tão poucas montadas em França.
A porta do escritório foi aberta e um amanuense espreitou com nervosismo.
- O que foi? - bradou Napoleão.
- Eu... eu pensei que o ouvi chamar por mim, sire.
- Não. Estava só a pensar em voz alta. Saia... não! Espere. O meu irmão e os generais Savary e Berthier já chegaram?
- Não, sire.
Napoleão carregou a expressão.
- Bem, mande-os entrar assim que chegarem ao palácio. Entendido?
O amanuense inclinou a cabeça e saiu do gabinete, fechando a porta silenciosamente atrás de si.
Ainda que José e o general Savary soubessem a razão pela qual tinham sido convocados, Napoleão pretendia assegurar-se de que eles compreendiam integralmente as suas
intenções para o governo de França, no caso de lhe acontecer alguma coisa. Berthier assumiria a tarefa de gerir a guerra na ausência do imperador. Os anos de guerra
constante e a tarefa exaustiva de traduzir as disposições do imperador em ordens e de lhe proporcionar os detalhes mais minuciosos da força e localização de cada
unidade no Grande Exército tinham custado o seu preço a Berthier. Depois de Leipzig, voltara a França um homem arrasado e apenas desempenhara tarefas ligeiras. Alguns
dos outros marechais ainda estavam a recuperar de ferimentos sofridos em Leipzig. Os que ainda serviam no exército estavam cansados da guerra e alguns tinham incentivado
abertamente Napoleão a pedir a paz. Murat retirara-se para o seu reino de Nápoles e mantinha um silêncio sinistro, não tendo respondido a um único pedido do seu
senhor imperial para o ajudar na defesa da França.
A porta do gabinete abriu-se novamente e o amanuense entrou.
- O general Savary, o marechal Berthier e sua alteza José estão aqui, sire.
Napoleão olhou-o.
- Chegaram juntos?
- Sim, sire.
- Na mesma carruagem?
- Não sei, sire. Estavam juntos quando entraram na antecâmara.
- Entendo. - Napoleão sentiu uma desconfiança súbita. Se tinham chegado juntos, nesse caso era óbvio que tinham viajado juntos para o palácio. Porquê? Que razão
teriam para se encontrarem antes de acorrer ao imperador? Napoleão expirou devagar. Corria o perigo de ver conspirações em todo o lado.
- Sire?
Napoleão apercebeu-se de que o amanuense tinha ficado à espera da sua resposta. Acenou.
- Faça-os entrar.
O amanuense desapareceu e pouco depois ouviu-se o som de passos. José vinha à frente. Savary vestia um casaco liso, tal como vinha fazendo desde que assumira o posto
de ministro da polícia. Berthier vinha também com roupas civis. Napoleão tinha-se acostumado de tal maneira a vê-lo de uniforme que ficou de certo modo surpreendido.
Berthier parecia pálido e magro e o cabelo estava tingido de cinzento. Napoleão fez-lhes sinal para as cadeiras a um lado da sala.
- Tragam-nas e sentem-se.
Esperou até que os três homens se tivessem sentado antes de prosseguir.
- Fiz tudo o que estava ao meu alcance para preparar o exército para esta campanha. A França deu-me tudo o que tem para defender o seu solo sagrado, e eu vou encontrar
e derrotar os seus inimigos, e enviá-los de volta para lá do Reno. Que nenhum homem duvide disso. - Fitou cada um deles, atrevendo-os a desafiar a sua vontade. -
Amanhã, ao romper do dia, irei juntar-me ao exército. Enquanto eu estiver fora, tu, meu irmão, serás nomeado vice-governador dos meus domínios. Foi por isso que
te chamei a Paris.
José assentiu prontamente.
- Podeis confiar em mim, sire.
- Tal como fiz em Espanha?
José enrubesceu, mas manteve a boca fechada para impedir qualquer expressão da sua mágoa e raiva. Napoleão não sentia qualquer desejo de confortar o irmão. A situação
era demasiado arriscada para o perdão.
- Desta feita, vais limitar-te aos assuntos civis. O general Savary irá ser os teus olhos e ouvidos nos salões públicos e privados de Paris. Se houver alguma dissidência,
ou oposição aberta contra o regime, então o general irá lidar com ela, recorrendo a qualquer poder e força que sejam necessários. A autoridade do general Savary
na manutenção da ordem e no esmagamento dos meus inimigos é absoluta, está compreendido?
José assentiu.
- Ótimo. - Napoleão voltou-se para Berthier. - Quero que se encarregue do recrutamento de soldados para a campanha, e que se assegure de que eles estão equipados.
Aceita?
- Com certeza, sire - respondeu Berthier calmamente. - Nunca falhei no meu dever para com o meu país. No entanto...
Napoleão ergueu a sobrancelha.
- No entanto?
Houve uma curta pausa antes de Berthier pigarrear e se debruçar ligeiramente.
- Sire, tenho seguido os acontecimentos tanto quanto possível durante a minha convalescença. A guerra está a correr mal para a França. Há dois dias ouvi que Ney,
Victor e Marmont tinham sido forçados a retirar para cá do Meuse.
- Está correto - admitiu Napoleão. - Foi imperativo fazê-lo. Estão a retirar pelas linhas de abastecimento, enquanto o inimigo está a prolongar as suas a cada passo
que avança. Eu teria preferido tomar a ofensiva, mas as exigências estratégicas impedem-no. Por conseguinte, atraímo-los para uma armadilha. Neste momento, eles
dividiram-se em três exércitos, cada um dos quais poderá ser derrotado, conquanto os consiga manter separados e lidar com um de cada vez.
Berthier fechou os olhos e abanou ao de leve a cabeça antes de responder.
- Mas, sire, irá sofrer desgaste a cada batalha, e as probabilidades de vitória ficarão cada vez mais desfavoráveis. Além disso, muitos dos regimentos do exército
estão aquém da sua força. Para ter uma hipótese de defender a França, terá de encontrar muitos mais homens.
- Que é o que estou neste momento a fazer - retorquiu Napoleão, num tom de desafio. - Assim que o rei Fernando ratificar o tratado de paz entre a Espanha e a França,
nessa altura dezenas de milhares de homens ficarão disponíveis. E mais ainda, assim que Murat enviar reforços de Nápoles. Entretanto, estão a formar-se duas divisões
em Lyon. Elas irão marchar para norte e reforçar-me assim que eu ordenar.
- São apenas garotos e velhos, sire. Muitos deles ainda nem sequer têm fardas, nem mosquetes. Não podem ser consideradas unidades de linha.
- Estamos todos na linha, Berthier. Cada alma em França tem estado na linha da frente a partir do momento em que o inimigo atravessou a nossa fronteira. Mas fique
tranquilo, eu apenas irei combater ações de retardamento até ao momento em que possa atacar cada um dos seus exércitos com vantagem.
- Mesmo que isso signifique retirar até Paris, sire?
- Mesmo assim - concedeu Napoleão.
Berthier voltou a recostar-se na cadeira. Suspirou.
- Nesse caso temos de preparar as defesas da capital, sire. O povo tem de estar preparado para o pior. Temos de juntar rações para alimentar a população e a guarnição,
e de instalar todos os canhões disponíveis nas muralhas e nos fortes.
- Não. - Napoleão abanou a cabeça. - Se as pessoas pensarem que Paris vai ser atacada, então isso apenas vai redundar em pânico e fortalecer a mão desses traidores
que procuram rebaixar a França. Não haverá qualquer tentativa para preparar defesas. No tocante às pessoas, elas estão a salvo do inimigo. Isso está perfeitamente
entendido?
- Sim, sire - respondeu pacientemente Berthier. - Mas se, apenas como hipótese, o inimigo for capaz de avançar o suficiente para atacar Paris, o que faremos então?
- Nessa eventualidade, não haverá qualquer tentativa de abandonar a cidade. A guarnição e o povo resistirão ao invasor até ao último fôlego, e, se necessário, devemos
ser enterrados sob as ruínas.
Fez-se silêncio na sala enquanto Berthier mirava o imperador, e depois trocou olhadelas rápidas com os outros. Pigarreou.
- Sire, isso não é uma estratégia. Não há honra, ou propósito, num governante que arrasta uma civilização para a sua destruição. Depois do que aconteceu a Moscovo,
podeis estar certo de que o czar irá destruir alegremente Paris por vingança. Não podemos arriscar a capital, ou o seu povo, desta forma. Ou dá a ordem para preparar
Paris para um cerco, ou, se decidir que não pode ser defendida, ela tem de ser declarada uma cidade aberta.
Napoleão fitou o subordinado, surpreendido naquele momento com o seu arrojo. Se Berthier, de todas as pessoas, se atrevia a falar-lhe desta forma, então o seu poder
sobre os seguidores não era assim tão firme como supunha. Seria melhor procurar uma solução conciliatória, concluiu.
- É possível que o inimigo consiga avançar até Paris - concedeu. - Talvez seja prudente evitar batalhas nas ruas, caso haja vantagem em agir de outra forma. Mas
tem razão, meu caro Berthier, será melhor evitar baixas civis desnecessárias. Afinal de contas, todos pagam impostos. - Soltou uma gargalhada e os outros esboçaram
sorrisos em resposta. - Tendes as vossas instruções, cavalheiros. Deposito em vós a minha absoluta confiança para que mantenham a ordem durante a minha ausência.
Savary, Berthier, podem sair.
Os dois oficiais levantaram-se das cadeiras e saíram. Ao abandonarem a sala, Napoleão descontraiu-se com um suspiro e sorriu então para o irmão mais velho. José
devolveu o sorriso, hesitante.
- Reconforta-me saber que posso confiar em ti, José. Posso confiar-te o meu império enquanto vou combater os inimigos da França. Também posso confiar que tomes conta
da minha mulher e filho?
- Claro.
Napoleão perscrutou o irmão.
- Somos tão diferentes, em tantos aspetos. És um homem de opinião ponderada, e de gentileza. Errei ao obrigar-te a ficar com a coroa de Espanha. Era um fardo demasiado
pesado. Agora percebo isso. Deveria ter usado os teus talentos de forma mais sensata.
- Servi-te o melhor que pude, em tudo o que me pediste.
- Eu sei. Sempre te fui grato por isso.
- Mesmo quando não o mostraste?
Napoleão sorriu com tristeza.
- Mesmo então.
O tom de mágoa na voz de José era claro e, por momentos, Napoleão não foi capaz de encarar o irmão. Em vez disso, pegou no decantador de vinho e encheu dois copos,
fazendo o primeiro deslizar cuidadosamente sobre a mesa na direção do irmão.
- Diz-me sinceramente, o que me aconselhas a fazer?
José fitou-o um instante e depois encolheu os ombros.
- A guerra está perdida. Os aliados propuseram-te condições... generosas, dadas as circunstâncias. Porque não as aceitas, enquanto há tempo para salvar o trono?
Napoleão ergueu as sobrancelhas. Era verdade que pelo menos alguns dos seus inimigos estavam preparados para discutir a paz em termos justos. Tanto a Inglaterra
como a Áustria se tinham oferecido para acabar com a guerra se a França aceitasse as fronteiras que tinha no dealbar da Revolução. Napoleão poderia manter o trono,
mas teria de renunciar à autoridade sobre a Confederação do Reno, bem como a todos os territórios em Itália. Abanou a cabeça.
- Não. Se eu aceitar essa paz, o povo de França nunca me irá perdoar. Além disso, o czar e o rei da Prússia não aceitariam a paz nesses termos. Eles querem a minha
cabeça. Seja como for, estamos a passar ao lado do ponto fulcral.
- Sim?
- Os aliados estão divididos em dois campos: os interesses da Inglaterra e da Áustria são incompatíveis com os da Rússia e da Prússia. É por isso que estão tão dispostos
a oferecer a paz. Precisam da França - precisam de mim - para manter o equilíbrio de poder na Europa. Essa é a sua fraqueza, aquilo que eu pretendo explorar. Não
percebes, José? Se eu conseguir manter a guerra por tempo suficiente, então a aliança contra mim irá quebrar-se. Eles voltar-se-ão uns contra os outros e nós seremos
salvos. Nessa altura poderei fazer a paz com quem bem entender. Nas minhas condições. - Sorriu com frieza. - Quando eu ganhar, a História irá dar-me razão.
José abanou a cabeça.
- Temo que estejas enganado. Estás a apostar tudo na esperança, na débil esperança, de que os nossos inimigos se irão virar uns contra os outros antes de te derrotar.
É loucura correr esse risco quando te oferecem a paz.
O fardo dos últimos meses de atividade frenética pesava bastante sobre Napoleão, e a perspetiva de uma discussão amarga com o irmão fazia-o sentir-se bastante cansado
e pesaroso. Suspirou.
- Tomei a minha decisão. Delineei os meus planos. Não os vou alterar agora. Não nego que podem correr mal, mas ainda não sinto que o destino me tenha abandonado.
Portanto, meu irmão, irei para a guerra e tu e os outros vão governar a França em meu lugar. Posso contar contigo?
José assentiu sem entusiasmo.
- Nesse caso, o assunto está resolvido. Salvo por uma pequena tarefa que tenho para te pedir.
Os olhos de José semicerraram-se.
- O que é?
- É possível que eu seja derrotado. Que eu venha mesmo a ser morto no campo de batalha. Em qualquer dos casos, não suportaria a ideia de o meu filho vir a ser criado
como príncipe austríaco. Preferiria que lhe cortassem a garganta. Compreendes? Em nenhuma circunstância deverá ele, ou a sua mãe, chegar vivo às mãos do inimigo.
José não conseguiu ocultar a repulsa que instintivamente sentiu perante o pedido.
- Não sou um assassino.
- Não é assassínio. É misericórdia que te peço. Se o pior acontecer, então poupa o meu filho, a minha carne e o meu sangue à indignidade de negar a sua verdadeira
identidade. Peço-te que me prometas isso. Jura-me que darás a ordem. Pela tua honra.
- Não! - José levantou as mãos. - Pede-me o que quiseres, mas isso não.
Napoleão fitou-o um pouco e depois afundou-se na cadeira.
- Muito bem. Terei de pedir a outro. Mas custa-me que tu, de todas as pessoas, me negues este sossego antes de eu ir para a guerra.
- Custa-me que o meu irmão, de entre todas as pessoas, me peça para cometer um ato tão monstruoso. - José levantou-se repentinamente. - Agora, se a minha presença
não é mais necessária, sire, eu saio.
Napoleão olhou-o com frieza.
- Então sai.
O irmão voltou-se e avançou para a porta, abrindo-a de rompante e batendo-a com estrondo atrás de si, sem sequer olhar para Napoleão. A sala ficou silenciosa, salvo
o murmúrio cavo do vento no exterior enquanto soprava sobre a cidade escurecida.
Capítulo 49
Arcis-sur-Aube, 20 de março de 1814
O oficial de engenharia aproximou-se de Napoleão e do marechal Ney e fez continência.
- A ponte está reparada, sire. O exército pode atravessar assim que dê ordem.
- Muito bem, capitão. O senhor e os seus homens deram-me uma grande satisfação. Transmita-lhes os meus agradecimentos.
- Com certeza, sire. - A satisfação do engenheiro com o elogio espelhava-se-lhe no rosto. Engoliu nervosamente em seco. - E... e estou certo de que eles lhe desejam
uma rápida vitória, sire.
- Isso pode demorar um pouco mais a conseguir. - Napoleão esboçou um sorriso. Virou-se para Ney, banindo instantaneamente o outro homem dos seus pensamentos. - Mande
o Sebastiani e a sua cavalaria primeiro. Têm de pressionar o avanço e proteger a cabeça da ponte. A Guarda pode passar a seguir.
Ney fez uma saudação com a cabeça para acatar a ordem e depois respondeu:
- Ainda não temos a certeza da força que enfrentamos a leste, sire. O que eu não daria para ter Murat e os seus homens connosco agora. Que excelente cavalaria...
- Ney olhou rapidamente de soslaio para o imperador e a expressão negra deste paralisou-lhe de imediato a língua.
- Nesse caso é uma vergonha para ambos que Murat nos tenha negado os seus bons serviços - replicou Napoleão com amargura. Só tinham passado duas semanas depois da
chegada das notícias de Itália. O marechal Murat, cunhado do imperador, a quem Napoleão oferecera o reino de Nápoles, tinha desertado para os aliados. Tinha-se visto
pouca da raiva que Napoleão em tempos teria soltado ao ouvir as notícias da traição de Murat. A raiva rapidamente tinha dado lugar ao desprezo e à repulsa. Napoleão
esperava com ardor viver tempo suficiente para ter a sua vingança. Não apenas contra Murat, mas também contra o recém-coroado Fernando de Espanha. Apesar do tratado
que assinara com Napoleão em Valençay, Fernando não mantivera uma das promessas que tão levianamente fizera e a Espanha ainda estava em guerra com França.
A vingança teria de esperar, refletiu. Era um luxo que teria de se negar até que os invasores tivessem sido expulsos do solo francês. Os exércitos aliados continuavam
divididos, avançando corajosamente através das zonas norte e leste de França, confiantes na força dos seus números. Como consequência, Napoleão tinha tido a oportunidade
de atacar várias vezes as colunas demasiado extensas desde que assumira o comando das suas forças, no final de janeiro. Apesar de a neve, e de a lama consequente,
ter atrasado os movimentos em ambos os lados, Napoleão tinha a vantagem do apoio do povo francês que, sempre que podia, tinha vindo ajudar a empurrar as armas através
da lama ou tinha sabotado pontes e obstruído estradas para atrasar o inimigo. Ainda que já não mostrassem alegria e lealdade incondicionais na sua presença, ele
podia continuar a contar com o ódio e a resistência aos inimigos.
De momento, Napoleão necessitava de qualquer fragmento de ajuda que pudesse contribuir para encobrir a clara minoria dos seus soldados. Enquanto marchava com Ney
contra os austríacos do general Schwarzenberg, Marmont tentava travar as aproximações a Paris, lutando contra dois exércitos prussianos. Napoleão contemplava a hipótese
de abandonar a capital à sua sorte e concentrar todas as forças para um ousado ataque massivo que percorresse as linhas de comunicação dos inimigos. Seria uma medida
desesperada, mas não havia esperança em nenhuma outra estratégia - militar ou diplomática - se Paris caísse em mãos inimigas. Os aliados tinham acabado de anunciar
que estavam dispostos a aceitar simplesmente a paz com a França e já não se colocava a questão de reverter para as fronteiras pré-revolução, sob o domínio de Napoleão.
O seu reino seria confiscado e os aliados ditariam os termos a França, caso se saíssem vitoriosos.
Napoleão tossiu para limpar a garganta e dirigiu-se a Ney calmamente.
- As patrulhas de Sebastiani relatam que a principal coluna austríaca está cinquenta quilómetros a norte. Enfrentamos a retaguarda. Se conseguirmos avançar suficientemente
depressa para forçar uma batalha, nesse caso será possível subjugá-los. Não há nada com que se preocupar.
- Não estou preocupado por mim, sire - respondeu Ney impacientemente e gesticulou na direção das colunas de soldados à espera da ordem para avançar. - Mas não podemos
dar-nos ao luxo de perder os poucos homens que temos enfrentando o inimigo.
- Perderemos alguns. - Napoleão encolheu os ombros. - O truque é garantir que eles perdem mais, muitos mais, do que nós.
- Eles podem dar-se a esse luxo, sire.
- Mas não indefinidamente. Enquanto estivermos decididos a lutar contra o invasor, temos a vantagem de linhas internas de fornecimento e uma unidade de decisão e
propósito, algo que uma aliança nunca tem verdadeiramente. Por isso, continuaremos a enfiar-nos no meio deles, até que a aliança se fragmente.
- E se tal não acontecer?
Napoleão obrigou-se a sorrir.
- Então, meu caro Michel, certamente o mais bravo de entre os bravos não perdeu a vontade de lutar?
- Não duvideis da minha coragem, sire. Mas também sou um homem de julgamento racional e pergunto-me o que estamos a fazer aqui. - Fez uma pausa e depois, com uma
expressão cansada, abanou a cabeça. - Devia ter aceitado a oferta de paz.
Napoleão fitou-o com um olhar gelado.
- É demasiado tarde para isso. Temos de fazer o que podemos com as ferramentas que temos. Agora, ordene aos seus homens que atravessem o rio.
Os lábios de Ney comprimiram-se e olhou fixamente para o imperador antes de puxar as rédeas e dirigir o cavalo em direção à formação de soldados de Friant que liderava.
Bem cedo durante a tarde, Napoleão atravessou a ponte e reuniu-se com Ney e a Guarda quando se aproximavam da aldeia de Torcy-le-Grand, aninhada nos campos de cultura
ligeiramente acidentados. À sua frente, a paisagem campestre estava pontilhada com as patrulhas de cavalaria, sempre atentas a um sinal do inimigo. Vindo de leste,
um crepitar distante de pequenas armas acompanhava a brisa gelada e Napoleão apontou na direção do som.
- Mande investigar isto imediatamente. É suposto o inimigo estar a sul.
- Sim, sire.
Enquanto Ney enviava uma ordem para Sebastiani na linha da frente, Napoleão desviou a atenção para os homens da brigada com os quais estava a cavalgar. Eram soldados
de uma das unidades recentemente formadas. Havia uns quantos veteranos, tal como denotavam as divisas nas mangas, mas a maioria eram novos recrutas, selecionados
nos campos de treino para se juntarem diretamente à Guarda Imperial. A única experiência de batalha que tinham eram as poucas últimas semanas de campanha. Um punhado
de homens gritou uma saudação ao imperador quando o cavalo passou a trote, mas a maioria limitou-se a ficar pasmada a olhar para ele, ou a fitar o chão à sua frente
conforme o iam pisando, curvados sob o fardo dos mosquetes e das mochilas. O esforço das marchas forçadas durante os dias e noites frios de inverno era evidente
nas suas expressões sombrias e dormentes. Estes homens teriam de aguentar as agruras de campanha melhor que os inimigos, caso quisessem vencer e salvar a França
e o trono do imperador.
Nunca as probabilidades lhe tinham sido tão contrárias, refletiu Napoleão. E, ainda assim, sentia entusiasmo da convicção de que tinha de ganhar de alguma forma.
A pura força de vontade tinha-o levado a dominar a Europa e ele preferia morrer a ter de se rebaixar a homens menores.
O som de disparos aumentou e Napoleão olhou para leste, onde um regimento de hussardos de Sebastiani galopava por uma série de pequenas elevações em direção ao som
das armas. Além deles, recortadas contra o céu nublado, estavam as patrulhas de sentinelas que tinham ficado para trás. Uma dor aguda de ansiedade instalou-se na
boca do estômago de Napoleão. Segundo os relatórios, não era suposto haver ameaça de leste. No entanto, alguma coisa fizera com que a cavalaria ficasse para trás
e levara Sebastiani a concentrar as suas forças.
Com um bater de cascos abafado, Ney subiu a trote e estacou.
- Parece que as patrulhas deixaram escapar uma coluna inimiga, sire. Já era de esperar, tendo em conta a pouca cavalaria de que dispomos para ocupar os campos.
- Não arranje desculpas para os seus oficiais - repreendeu Napoleão. - Alguém vai ter de responder por esta incompetência.
Ney olhou-o com azedume.
- Nesse caso que seja eu, sire. Os homens só valem aquilo que vale o seu comandante.
- Não seja dissimulado comigo, Ney. Se pensarmos bem, e seguindo a sua lógica de argumentação, chegaremos à conclusão de que eu sou, afinal de contas, o homem responsável.
Ney nada disse por um instante, depois olhou para trás em direção às elevações de terreno e falou calmamente:
- Os responsáveis serão sempre chamados a responder, de uma maneira ou de outra.
Antes de Napoleão poder responder, o som de cornetas cortou o ar gelado. Quando as últimas sentinelas e patrulhas francesas regressaram para trás a trote em direção
à coluna principal, os primeiros inimigos começaram a aparecer. Usavam os capacetes emplumados dos couraceiros e os pesados casacos que cobriam as armaduras faziam-nos
parecer enormes e formidáveis. Esquadrão após esquadrão, foram aparecendo no cume, onde pararam.
O marechal Ney deteve imediatamente a sua coluna e virou as tropas para enfrentarem a ameaça, enquanto a cavalaria de Sebastiani se retirava para os lados da linha
de infantaria. A artilharia ainda estava presa na lama, na margem longínqua do rio, e Napoleão maldisse a oportunidade perdida de infligir aos cavaleiros austríacos
uma derrota esmagadora. O seu mau humor aumentou quando uma bateria de artilharia a cavalo se juntou ao inimigo no cume e, rapidamente, os canos atarracados dos
obuses foram apresentados aos franceses.
- Chegou o momento - resmungou Ney, e passou uma vista de olhos pela linha. - Rezo para que os homens aguentem firmes.
Pouco depois viu-se uma breve série de clarões e baforadas de fumo e, após um breve instante de atraso, o som dos obuses do inimigo foi transportado encosta abaixo,
mais agudo do que o urro do canhão. Houve uma explosão de laranja e vermelho mesmo sobre as cabeças da companhia de infantaria, cerca de cem passos à esquerda de
Napoleão, e vários homens caíram, como se tivessem sido esbofeteados por uma mão invisível. Mais munições rebentaram por cima dos homens ou embateram no solo enlameado,
com espoletas emitindo faíscas antes de detonarem, lançando salpicos de lama e fragmentos de ferro contra os homens colocados na área. Enquanto os artilheiros austríacos
recarregavam e disparavam o mais depressa que podiam, as baixas foram-se amontoando na linha francesa e Napoleão reparou que os homens eram lentos a moverem-se e
a fecharem as brechas que se abriam, fitando, horrorizados, os obuses.
- Eles não vão aguentar muito mais - constatou Ney, enquanto observava os homens do batalhão mais próximo a desmoronarem-se, alguns já mesmo a afastarem-se para
a periferia.
Ouviu-se um baque muito próximo e Napoleão olhou atentamente na direção do som. Uma munição tinha caído mesmo em frente dos homens mais próximos, a companhia de
granadeiros. Os homens tiveram um momento de hesitação, com terror nas expressões, e tentaram afastar-se da feroz e efervescente espoleta que ardia no topo do invólucro
esférico de metal. Napoleão esporeou com os calcanhares e sacudiu as rédeas selvaticamente. Com um relinchar agudo, o cavalo virou-se para a munição e galopou em
frente. Passaram-se alguns segundos até alcançar a granada, mas Napoleão apenas teve consciência de uma serena tranquilidade da mente, que parecia tornar mais vagarosa
a passagem do tempo, enquanto se apercebia de inúmeros pormenores da linha de soldados vacilantes mais atrás, impressões das botas e dos cascos no solo macio, e
finalmente a horrível protuberância de metal negro e as faíscas.
- Sire! - gritou Ney, alarmado. - Mas que raios está o senhor...
Nesse momento o cavalo de Napoleão ficou diretamente sobre a granada e seguiu-se um clarão e um ribombar que ele sentiu como uma pancada, transmitida através do
corpo do cavalo por baixo de si. Tinha fumo nos olhos e na boca, e os ouvidos ficaram dormentes, e a sela começou a desaparecer debaixo de si enquanto o cavalo sucumbia,
morto instantaneamente pela explosão. Napoleão largou as rédeas e esforçou-se por se levantar da sela. Mãos agarraram-lhe os braços e puxaram-no de cima do cavalo,
levantando-o. Ney fitava-lhe ansiosamente o rosto.
- Sire? Sire, está ferido?
Ainda atordoado e com os ouvidos a zumbir, Napoleão olhou à volta e viu que a explosão tinha desfeito a barriga e as pernas do cavalo. Intestinos, órgãos e sangue
estavam espalhados de ambos os lados do corpo do animal. Todavia, o desgraçado animal tinha absorvido a força completa da explosão e mais ninguém tinha ficado ferido.
Napoleão sacudiu as mãos que o apoiavam e ajeitou o chapéu.
- Estou bem - anunciou. - Não estou ferido.
Ney olhou por cima dele e abanou a cabeça.
- O que é que lhe passou pela cabeça, sire?
Napoleão teve de se concentrar antes de conseguir ordenar uma resposta.
- Os homens estavam a ceder. Além disso, se não o tivesse feito, ambos estaríamos mortos. Era a coisa mais lógica a fazer. Agora, arranje-me outro cavalo.
- Lógica? - Ney ostentou uma expressão de desagrado e depois rebentou numa gargalhada. - Sire, pela minha saúde, o senhor tem uns tomates de aço!
Os homens a quem Napoleão acabara de salvar a vida juntaram-se à gargalhada, ao que um gritou: - Viva Napoleão! Viva o Imperador!
O grito ecoou pela linha, enquanto os homens gritavam ao ver que ele estava vivo. Napoleão subiu para a sela da montada que um dos oficiais de Ney rapidamente lhe
dispensou e ergueu o chapéu bem alto, acenando com ele na direção das elevações.
- Aquele é o vosso inimigo! Este é o vosso imperador! A providência divina está connosco! Avancem e obriguem-nos a recuar!
Ney berrou a ordem, que instantes depois foi difundida ao longo da linha, e a infantaria francesa começou a avançar em direção às colinas, gritando o nome de Napoleão
o mais alto que conseguiam. A cavalaria austríaca tinha formado em linhas, pronta a carregar, e as suas armas ainda cuspiam munições contra os franceses que se aproximavam,
causando mais baixas. Mas o ânimo dos homens estava agora alto e eles continuaram a avançar, com as baionetas empunhadas contra o inimigo, soltando os seus gritos
de batalha, sem prestarem qualquer atenção aos violentos clarões de fogo, enquanto as munições rebentavam por cima ou entre eles. À medida que os seus homens se
aproximavam do inimigo, Napoleão viu os artilheiros rapidamente a engatar os obuses e a recuar pelo lado oposto das elevações. A cavalaria permaneceu, como se o
comandante inimigo não se conseguisse decidir quanto ao que fazer a seguir. Por fim, a coragem venceu a precaução. Quando os dois lados não estavam a mais de duas
centenas de passos de distância, as cornetas austríacas soaram a ordem de avançar.
Os cavalos deram um passo em frente e depois moveram-se agilmente, passando do trote para o meio galope, os freios a tinir e os cascos retumbando, sentindo-se a
vibração no solo. Ney parou a sua linha e deu ordem de preparação para receber a carga da cavalaria. A linha da frente colocou um joelho no chão, segurando as coronhas
dos mosquetes firmemente contra o solo, deixando as pontas das baionetas apontadas para a cavalaria que se aproximava, formando um aglomerado de aço pontiagudo.
As fileiras da retaguarda ajustaram os percutores e fizeram pontaria.
- Fogo! - bradou Ney e a ordem foi repetida imediatamente, enquanto chamas e fumo atingiam o inimigo. Da sua sela, Napoleão viu dezenas caírem de cima das selas
e tombarem no chão. Os restantes continuaram a esporear em frente, empurrando as lâminas pesadas e afiadas contra os franceses, enquanto estes tentavam atacar, arrastando-se
no solo enlameado. A segunda e a terceira fileiras trocaram de posição e mais uma rajada de fogo rebentou com a aproximação dos austríacos a cinquenta passos dos
homens de Napoleão. Cavalos e homens tombavam, forçando outros a terem de os contornar ou encontrar outras posições, criando ainda mais confusão, quando o ataque
foi forçado a parar a uns meros vinte passos dos expectantes homens de infantaria.
- É isso mesmo, rapazes! - vociferou Ney, enquanto dava murros no ar. Deem-lhes com força!
Dispararam mais uma salva. Desta feita, o alcance era tão curto que foi difícil falhar e mais de uma centena de cavaleiros inimigos foi eliminada. Napoleão cavalgou
em frente para se juntar aos seus homens e viu que os austríacos das fileiras mais atrás já começavam a dispersar, apressando as montadas de volta à elevação. O
pânico passava de homem para homem e em breve todos os elementos sobreviventes da cavalaria estavam a recuar. Um punhado de oficiais, com as bandeiras de regimento,
tentavam reunir os homens no cume, mas estes passavam por eles e continuavam.
A linha francesa continuou a avançar, atravessando os amontoados de cadáveres de homens e cavalos, disparando alguns tiros de misericórdia para acabar com o sofrimento
de alguns cavalos feridos que esperneavam, em agonia e terror, evitando assim também que provocassem mais ferimentos com os cascos reforçados com ferro.
Ney freou para ficar ao lado de Napoleão, a expressão marcada pela excitação.
- Viu-os? Ah! Fugiram como coelhos. Isto vai fazer muito bem ao moral dos nossos rapazes.
Napoleão respondeu-lhe também com uma risada. Sentia o coração a bater depressa e a excitação familiar com a possibilidade da vitória e, acima de tudo, com a esperança
de que ainda poderia vir a vencer os inimigos.
- Aumente o ataque, enquanto a cavalaria deles está desordenada.
- Sim, sire.
- Esta será uma coluna inimiga a menos com que teremos de lidar.
A expressão de Ney tornou-se mais sóbria.
- Uma, sim. Mas quantas mais haverá?
- Fique ciente de uma coisa, meu amigo, independentemente do número que houver, enquanto as forem enviando uma a uma para nós, no final a vitória será nossa.
- E se eles não forem imprudentes ao ponto de fazerem isso?
Napoleão afastou-se e não lhe deu resposta, mantendo o olhar em frente. Ney tinha razão em temer que o inimigo aprendesse com os erros e concentrasse as forças.
Napoleão tinha esperança de conseguir infligir danos suficientes para forçar uma pausa e uma possível retirada. Se tal acontecesse, poderia apresentar-se ao povo
francês como seu salvador e poderia até ganhar tempo suficiente para reorganizar o exército, de modo a encarar o inimigo em maior igualdade de circunstâncias no
ano seguinte.
A parte racional da sua mente troçava dele por tais esperanças. Havia muito na sua estratégia que dependia de o inimigo ser absolutamente imbecil e de os seus homens
terem um desempenho comparável ao dos mais impecáveis soldados que alguma vez comandara. Não tinha nem sequer uma hipótese em dez de vencer esta campanha, disse
para consigo. E ainda assim... o que poderia ele fazer?
Os pensamentos de Napoleão foram interrompidos por Ney, que avançara um pouco mais e chegara ao cume da elevação. De ambos os lados, a linha tinha estacado e os
homens olhavam em frente em silêncio. Napoleão esporeou a montada e a meio galope juntou-se a Ney, pronto para repreender imediatamente os soldados por estarem a
desperdiçar a hipótese de atacar um inimigo desordenado.
Em vez disso, as palavras morreram-lhe na boca ao deparar-se com a paisagem à sua frente. Milhares de soldados da infantaria inimiga e cavaleiros estavam a avançar
pelo campo em direção à delgada linha francesa. Densas colunas ondulavam em caminhos e pelos campos. Longos comboios de armamento de campo e caravanas rodavam entre
eles. Não tinham encontrado uma linha de defesa da retaguarda, mas a vanguarda principal do exército austríaco.
- Meu Deus - murmurou Ney. - Devem ser uns sessenta mil. Pelo menos.
Napoleão assentiu.
Ney escrutinou a horda que se aproximava por um momento. De cada lado, soldados franceses, que gritavam de alegria momentos antes, estavam agora em silêncio, perplexos
com as tropas que marchavam na sua direção. A cavalaria que tinham derrotado já se estava a reunir no sopé da encosta e mais colunas de cavaleiros avançavam a meio
galope para reforçar as fileiras.
- Sire, não podemos ficar e lutar. Temos de recuar, e já.
Napoleão virou-se para inspecionar a colina. A encosta era mais escarpada no lado mais distante. Pensou alto.
- Temos aqui uma boa posição. Se conseguíssemos trazer a artilharia aqui para cima, então...
- Não, sire - disse Ney com firmeza. - Não podemos ficar aqui. Vamos recuar subindo o rio até Arcis e rebentar a ponte.
Napoleão olhou-o fixamente.
- Ousa dar ordens?
- Sou o comandante destes homens - replicou Ney numa atitude de desafio. - Não vou ordenar-lhes que caminhem para uma morte sem sentido.
- São soldados. Farão o que o imperador lhes ordenar. Tal como o senhor.
- Não, não o farei. Sou eu que estou no comando e a minha ordem é de retirada. Pode ficar e lutar se quiser.
Sem esperar pela resposta de Napoleão, Ney puxou as rédeas e fez avançar a montada até aos oficiais do estado-maior.
- Recuem! Formar coluna e marchar para a ponte de Arcis. Ordenadamente. Não quero que isto se transforme numa confusão.
Napoleão olhou-o, furioso e sem palavras. Tinha o coração repleto de amarga indignação por Ney o desafiar daquela forma, mesmo à sua frente. Depois sentiu uma pontada
de medo e ansiedade. O que acontecera à sua autoridade? Porque é que a sua presença não parecia surtir já o efeito de comandar sem esforço a opinião dos outros?
Observou Ney de esguelha e perguntou-se o quanto poderia ainda confiar nos seus marechais. Sentiu um estranho formigueiro no braço e olhou para baixo, vendo que
a mão que segurava as rédeas estava a tremer. Olhou fixamente para ela por instantes e depois virou a montada para Ney.
- Assuma o comando - ordenou, num tom átono. - Vou regressar ao quartel-general.
- Sim, sire - respondeu Ney, com um breve aceno da cabeça.
- Mais tarde apresente-me o relatório. - Napoleão virou o cavalo e esporeou num galope, descendo a encosta em direção ao rio.
Napoleão permaneceu no quartel-general nos quatro dias seguintes, lendo ansiosamente os relatórios das patrulhas e dos comandantes dos exércitos em dificuldade,
lutando para travar o avanço dos aliados. Depois do combate perto de Arcis, não tinha havido mais nenhuma informação de colunas aliadas isoladas suficientemente
pequenas para Napoleão arriscar um ataque. O inimigo adaptara a estratégia, apercebeu-se sombriamente. Na tarde do quarto dia chegou uma mensagem de Marmont, informando
o imperador de que não tinha como evitar que os aliados tomassem Paris. Napoleão convocou imediatamente o marechal Ney e atirou-lhe a comunicação.
- Leia.
Instalou-se na sua cadeira à beira do fogo e esperou enquanto Ney se concentrava na mensagem. Depois de algum tempo, o marechal devolveu-a a Napoleão, que a atirou
para o fogo.
- Quero o mínimo de pessoas a par desta situação. Fui claro?
- Sim, sire. O que pretende fazer?
- Não há nada que eu possa fazer para salvar Paris. Os prussianos chegarão à capital pelo menos três dias antes de nós. - Napoleão fez uma breve pausa e depois encolheu
os ombros. - Paris vai cair. Logo, faz sentido ordenar a Marmont que reúna os homens que possa e que abandone Paris e venha combinar as suas forças com as nossas.
- E depois?
- Marchamos para leste e abrimos caminho até ao Reno. Se cortarmos as linhas de fornecimento do inimigo, então ainda teremos oportunidade de forçar um armistício
e ganhar algum tempo.
- Para quê?
Napoleão olhou-o, surpreendido. - Ora essa, para continuar a luta, claro.
Ney suspirou.
- Sire, a guerra está perdida. Foi derrotado. A França tem de negociar as condições.
- Que se dane a França! - Napoleão bateu com a mão no peito. - Eu sou a França. Eu. E não me vou render. Não enquanto respirar.
Ney devolveu-lhe o olhar fixo com uma expressão de calma, quase de pena.
- Se Paris cair, nesse caso eu vou conduzir as minhas próprias negociações com os austríacos.
- Como se atreve?
- Porque vou fazer aquilo que está certo, sire. - Ney endireitou as costas e fez uma vénia com a cabeça. - Mais alguma coisa, sire?
Os lábios de Napoleão cerraram-se numa linha fina enquanto observava o subordinado. Depois, quando se acalmou um pouco, abanou a cabeça.
- Isto é traição.
- Não, sire. A traição é cometida quando um homem trai os interesses da sua nação. Qualquer homem.
- Estou a ver. - Napoleão olhou-o com desprezo. - Nesse caso, é melhor partir e encontrar um comandante que ainda tenha a coragem de lutar.
Se Ney sentiu qualquer raiva em relação a esta desconsideração da sua bravura, não o demonstrou. Napoleão apontou para a porta.
- Agora, desapareça da minha vista.
Depois de Ney ter saído, Napoleão deixou-se cair na cadeira e fitou a lareira. Observou as lânguidas chamas a morrerem calmamente, perdendo o brilho enquanto a noite
avançava e, finalmente, à meia-noite ordenou que lhe selassem a montada e que preparassem uma escolta de cavalaria pronta a partir em menos de uma hora.
Deixando Ney e os seus homens para trás, Napoleão e a escolta cavalgaram para sudeste, para garantir que não se cruzavam com nenhuma coluna inimiga perscrutando
o interior de França. Pararam brevemente para descansar na noite seguinte e depois atravessaram o Sena e viraram para noroeste, em direção à capital. Aldeões e habitantes
da cidade pararam surpreendidos por ver o imperador a passar e, apesar de alguns o terem saudado, Napoleão continuou a cavalgar sem parar. Não se atrevia a parar
agora, não quando qualquer monarquista, encorajado pela aproximação dos aliados, se poderia atrever a atentar contra a sua vida.
Enquanto a tarde se transformava na última noite do mês, Napoleão chegou a Essonnes, a trinta quilómetros de Paris, e mandou chamar o comandante da guarnição para
que fornecesse alimento e forragem para a escolta antes de começarem a última parte da jornada. Um oficial corpulento de cabelo ralo dirigiu-se a Napoleão quando
este entrava no quartel-general da guarnição e descreveu uma vénia exagerada.
- Sire, é uma honra recebê-lo.
- Depois. Os meus homens e os cavalos precisam de ser alimentados antes de tomarmos a estrada para Paris.
- Paris? - O coronel fez uma expressão de desagrado. - Então ainda não sabe?
- Não sei o quê?
O coronel humedeceu os lábios nervosamente.
- Paris foi tomada, sire.
Napoleão olhou-o fixamente e depois abanou a cabeça.
- Não. Ainda não. Marmont disse que conseguia aguentar mais uns dias.
- Sire, o marechal Marmont rendeu-se na capital às primeiras horas da manhã. Paris está nas mãos dos prussianos. - O coronel apercebeu-se da expressão chocada do
imperador e baixou o olhar, recusando-se a cruzá-lo com o de Napoleão. - Tenho uma cópia da proclamação oficial, sire. Deseja que a vá buscar?
- Não... não. Não é necessário. Se é como diz, nesse caso nada tenho a fazer em Paris. Só existe um sítio para onde ainda posso ir. - Napoleão obrigou-se a endurecer.
- Apenas um sítio a partir de onde posso convocar os meus homens e marcar uma posição.
Capítulo 50
Fontainebleau, 4 de abril de 1814
Os pátios do palácio, outrora reservados à corte imperial, estavam cobertos de tendas. A maioria eram abrigos improvisados cosidos à pressa por veteranos que sabiam
bem a importância de qualquer espécie de abrigo contra os elementos. As outras pertenciam a oficiais e variavam em tamanho, de acordo com a patente. Por sorte, o
inverno tinha terminado e os primeiros dias da primavera trouxeram céus limpos e temperaturas amenas para confortar os homens exaustos do exército francês. Dentro
do palácio, o esplendor da decoração era completamente ignorado pelos oficiais do estado-maior e pelos correios, que iam e vinham, deixando rastos de lama nos soalhos
bem revestidos e sobre os tapetes caros. A disposição era sombria e um silêncio sinistro tomava os homens sempre que o imperador emergia do seu gabinete.
Olhando para eles, Napoleão podia ver que muitos já tinham aceitado a derrota e estavam a desempenhar as suas tarefas apenas por força do hábito, à espera da ordem
para finalmente parar. Não era capaz de os recriminar, ainda que eles estivessem no centro de um exército de sessenta mil homens. Todos os soldados e canhões disponíveis
tinham sido concentrados em redor do palácio e os engenheiros tinham erguido fortificações para cobrir os acessos ao acampamento. Ainda assim, os aliados tinham
o triplo desse número só em Paris, e outro exército estava a avançar lentamente vindo de leste. O marechal Marmont, tendo concordado com o armistício, estava ainda
acampado algumas milhas a sul de Paris, mas tinha-se recusado a responder à ordem de Napoleão para se lhe juntar em Fontainebleau.
Depois de um pequeno-almoço apressado em que comeu pouco, Napoleão pedira aos marechais que se reunissem com ele no palácio. Da janela da sala de jantar preparada
para o encontro, Napoleão observou-os a chegar, notando a sua postura pesarosa à medida que iam desmontando e subindo as escadas, guarnecidas com homens da Velha
Guarda em sentido. Pelo menos ainda havia garra entre os praças, refletiu Napoleão. Quando visitara o acampamento nas duas tardes anteriores tinham-no aclamado com
o mesmo entusiasmo de sempre, como que encorajados pela perspetiva de fazerem um derradeiro esforço contra o invasor. MacDonald foi o último dos marechais a chegar
e, assim que atravessou a entrada, Napoleão enviou um amanuense para os chamar à sua presença.
Entraram em fila, silenciosamente, e tomaram os seus lugares. Napoleão fitou-os um a um, avaliando as expressões e aparência. Pareciam tão cansados como os seus
homens. Alguns tinham encontrado fardas limpas para vestir neste encontro, mas a maioria estava salpicada de lama e Victor tinha o braço ao peito devido a um ferimento
que sofrera algumas semanas antes. Napoleão pigarreou e esticou as mãos na mesa.
- Não há necessidade de introdução, meus amigos, vocês conhecem a situação. A pergunta é, o que devemos fazer agora? O exército ainda existe, o moral dos homens
mantém-se elevado, e o povo de França não irá suportar a presença de um exército ocupante por muito tempo. Ainda sobra tudo para lutar. Preciso de decidir se arrisco
uma batalha nas ruas de Paris, ou se tento uma manobra estratégica mais ampla e envolvo o flanco inimigo. Portanto, cavalheiros, preciso do vosso conselho quanto
ao curso de ação que melhor nos serve.
Ninguém respondeu. Alguns trocaram olhares, enquanto outros olharam para baixo ou fixamente para um qualquer ponto da sala.
- Vamos lá, cavalheiros, falem livremente.
- Então muito bem, sire - respondeu Ney, rodando na cadeira para conseguir encarar o imperador diretamente. - Falo pela maioria dos marechais aqui presentes, incluindo
os que não estavam... - os lábios franziram-se num esgar de desprezo antes de continuar - ...preparados para enfrentar a verdade e o que precisa de ser dito.
- E o que é isso? - perguntou Napoleão.
- Que a França caiu. Os seus exércitos estão derrotados. O seu tesouro está exaurido. O povo quer paz. Não há esperança de vencer os aliados. Está à vista de todos.
Até vós, sire, tendes de reconhecer o desespero da situação.
- Não é desesperada - contrapôs Napoleão, obrigando-se a manter a voz tranquila. - A sua memória está a atraiçoá-lo? A nossa posição era bem pior em Marengo, e não
obstante acabámos por roubar a vitória ao inimigo.
- Marengo foi há muito tempo, sire. Éramos homens diferentes, lutando em solo estrangeiro. Se tivéssemos perdido a batalha, ainda teríamos tido oportunidade de ganhar
a campanha. Agora? Paris está perdida. Não sobra nada para proteger. Não há razão para prosseguir a guerra.
- Há todas as razões! Enquanto o exército existir e nós dois vivermos. Enquanto qualquer um de nós conseguir pegar numa espada e cuspir em desafio para os nossos
inimigos, há todas as razões para continuar a lutar!
Napoleão fitou-o, de olhos arregalados e enraivecido, mas Ney não cedeu e devolveu-lhe a mirada com segurança.
- Isso, sire, é a opinião de um homem que já não vê a guerra como um meio para atingir um fim, mas que a quer apenas para benefício próprio.
Napoleão estava espantado. Ney já o tinha desafiado antes, em privado, onde tais palavras podiam ser perdoadas e com o tempo até esquecidas. Mas isto? À frente dos
seus pares, os oficiais de maior patente do império? O que ele se tinha atrevido a dizer jamais poderia ser retratado.
- Marechal Ney, está demitido. A sua patente e títulos são-lhe retirados, e está banido da nossa presença para sempre. Deixe-nos agora, e não regresse nunca.
Ney foi incapaz de reprimir um sorriso.
- Não.
- Não?
- Não. A guerra terminou. Falo por todos nós. - Fez um gesto com a mão que abarcou os restantes oficiais sentados em torno da mesa. - Algum homem o nega?
Não houve resposta. Napoleão debruçou-se e apontou para MacDonald.
- O senhor jurou obedecer-me. Trair-me-ia agora, na hora em que mais preciso de si?
MacDonald relanceou o olhar para Ney e recebeu um aceno de encorajamento antes de responder.
- Sire, eu também jurei servir e proteger a França. Não posso honrar ambos os juramentos. O meu dever para com o meu país supera o meu dever para consigo, sire.
- Bah! - Napoleão dirigiu-se a Victor. - E o senhor?
- Partilho a opinião do marechal Ney, sire.
Napoleão olhou em seu redor.
- Não há aqui nenhum homem com honra? Então?
As palavras ficaram suspensas no silêncio que se seguiu, e depois Napoleão escarneceu.
- São todos uns cobardes. Se não me vão obedecer, então danem-se. Convocarei Marmont para liderar o exército às minhas ordens.
Ney abanou a cabeça e levou a mão ao casaco, puxando um papel dobrado.
- Tenho estado em contacto com Marmont desde que cheguei a Fontainebleau. Ele partilha do meu ponto de vista, sire. Na verdade, vai ainda mais longe. Recebi isto
ao amanhecer. Marmont passou-se para os aliados com os seus homens. Talleyrand estabeleceu um governo provisório e emitiu um decreto para terminar o seu reinado.
- Dê-me isso!
Ney fez deslizar a mensagem pela mesa e Napoleão agarrou-a, desdobrou-a e analisou o conteúdo. Os lábios cerraram-se-lhe enquanto lia os pormenores. Atirou-a de
volta e mirou os generais com desprezo.
- Então, nem um de entre os meus generais está disposto a lutar. Muito bem, terei de me desenvencilhar sozinho e promover mais homens valorosos de entre os oficiais
que ainda conhecem o valor da lealdade e do patriotismo. Pelo menos não duvido que as fileiras ainda me irão obedecer.
- Não, sire. Eles irão obedecer aos seus marechais. Julgava que nós o viríamos confrontar sem antes ter conversado sobre isto com os nossos subordinados? Sire, se
forçar o assunto, o exército vai virar-se contra si próprio - os oficiais contra os soldados. É assim que quer que isto acabe?
Napoleão cerrou os dentes. Sentia-se encurralado, e cerrou os punhos no colo enquanto lançava um olhar de desafio aos oficiais. Depois afundou-se novamente na cadeira
e pigarreou.
- Então o que querem que eu faça?
- Abdique - respondeu Ney prontamente. - Vá para o exílio.
- O quê?
- Abdique, na condição de o fazer apenas a favor do seu filho. Pelo menos dessa forma poupamos a França ao regresso dos Bourbons.
Napoleão considerou a ideia, ainda que o atingisse fundo na alma. A derrota era uma coisa, mas a humilhação era outra completamente diferente. A perspetiva de ser
reduzido ao estatuto de prisioneiro, exilado para um qualquer fim de mundo europeu até ao fim da vida, era insuportável. Seria alvo da troça dos inimigos e da pena
dos antigos amigos e súbditos, condenado a uma vida de insignificância prolongada. A noção indispô-lo. Por outro lado, enquanto um Bonaparte estivesse no trono,
haveria como Napoleão exercer a sua influência e um dia retomar o poder. Olhou para Ney, tentando imaginar se o homem compreendia que uma tal abdicação apenas lhe
iria limitar o poder temporariamente. Assumiu um ar resignado e acenou lentamente com a cabeça.
- Tem razão, meu caro Michel. Tenho de sacrificar o meu trono para o bem do meu povo. Ele não esperaria menos de mim.
A onda de alívio que percorreu os oficiais era palpável. Até a postura rígida de Ney se descontraiu por instantes, visto que não pôde deixar de sorrir perante o
resultado do confronto entre os marechais e o seu imperador.
- Sire, o vosso povo ficar-vos-á eternamente grato por isto.
- E devem ficá-lo - respondeu Napoleão. - É melhor que preparemos uma proposta para os nossos inimigos.
- Já foi feito, sire - admitiu Ney. - Fiz com que Caulaincourt a redigisse assim que tive notícias de Marmont. Apenas precisa da vossa assinatura e depois o ministro
dos estrangeiros e o marechal MacDonald partem para Paris.
Napoleão sorriu friamente.
- Quer-me parecer que planearam bem isto.
- Se o fiz, foi porque aprendi com um bom mestre.
O elogio foi um paliativo insuficiente que não enganou ninguém naquela sala. Napoleão ergueu-se da cadeira.
- Então está feito. Faça a sua proposta aos aliados e dê-me a conhecer o resultado. Permanecerei no palácio. Vocês, cavalheiros, estão dispensados. - Olhou em redor.
- Apenas espero que tenham tomado a decisão certa. Caso contrário, França nunca vos perdoará. Pensem nisso.
Voltou-se e apressou-se para a porta, deixando Ney e os outros marechais a acertar os detalhes das negociações com o inimigo.
Ao fim dessa manhã, Caulaincourt e MacDonald cavalgaram na direção dos postos avançados dos aliados. Durante dois dias negociaram com os comandantes dos exércitos
que haviam conquistado Paris e estavam agora a aproximar-se dos restos do Grande Exército. Então reportaram a Napoleão, informando-o de que os aliados apenas aceitariam
uma abdicação incondicional. A decisão sobre quem lhe haveria de suceder seria apenas deles.
Nos dias que se seguiram, à medida que os detalhes do seu destino iam sendo discutidos em Paris, Napoleão foi tomado por um desespero profundo. Não conseguia comer
e sentou-se numa cadeira ao pé de uma pequena lareira, matutando em silêncio à medida que os criados iam e vinham sem fazer barulho, servindo e retirando refeições
que arrefeciam, intocadas, nos tabuleiros.
De vez em quando, a mão de Napoleão deslizava por baixo da camisa e agarrava a pequena bolsa com beladona e heléboro que mantinha ao pescoço desde a retirada de
Moscovo, quando tinha por tão pouco escapado às mãos dos cossacos. Os dedos envolveram suavemente a bolsa e pressionou o couro macio, sentindo o pó mortal contido
no interior. Não havia grande deliberação na decisão. A sua morte iria privar os aliados do seu troféu, e havia satisfação a retirar dessa pequena vitória.
Fazendo passar o fino cordão de seda por cima da cabeça, Napoleão retirou a bolsa e desapertou-a com firmeza. Abriu o saco e olhou por um momento para o pó, branco
como ossos moídos. Depois esvaziou-o num copo, com cuidado para não entornar nada, antes de nele verter algum do vinho aguado que tinha sido deixado no tabuleiro
da refeição. Mexeu a mistura com um garfo e levantou o copo. Evitou cheirá-lo, não fosse isso fazê-lo hesitar e dar-lhe uma última desculpa para reconsiderar a decisão.
Levou o copo aos lábios e bebeu de um trago, batendo com o copo na mesa quando terminou. Sentou-se então quieto, olhando fixamente para o vazio, chocado com a enormidade
do ato. Sorriu ao recordar-se da sua coroação, de como tinha tirado a coroa imperial das mãos do papa e a tinha colocado sobre a própria cabeça, anunciando ao mundo
que apenas Napoleão era digno de coroar Napoleão. Agora o mesmo princípio de grandeza se aplicava à sua morte. Apenas a sua mão era digna do ato. Esse pensamento
acalmou-lhe o medo do esquecimento em que a sua mente seria lançada, não fosse a sua fama. Tossiu e depois chamou o criado.
- Vá buscar Caulaincourt. Traga-mo cá imediatamente.
- Sim, sire.
- Ele que traga papel e pena.
O criado fez uma vénia e afastou-se, deixando Napoleão a compor mentalmente o seu testamento.
Quando Caulaincourt apareceu, Napoleão já conseguia sentir o veneno a fazer efeito. Apesar da lareira, sentia frio e tremia. A pele começou a ficar húmida e o suor
escorria-lhe da testa. No interior, as entranhas contorciam-se dolorosamente e uma náusea dolorosa apertava-lhe a garganta.
- Sire, estais doente - disse Caulaincourt no momento em que se sentou à frente do imperador. - Deixai-me convocar o vosso médico.
- Não. Não é preciso. É demasiado tarde para isso. Estou a morrer.
- Sire! Vou buscar ajuda.
- Não! - O esforço de levantar a voz provocou-lhe um espasmo de dor e os traços de Napoleão torceram-se uns instantes, até ter passado o pior. O suor escorria-lhe
pelas faces. - Tomei veneno. É o fim.
O ministro dos negócios estrangeiros olhou-o, horrorizado. Napoleão tocou-lhe na mão.
- Quero que escreva a minha declaração final. Não sei quanto tempo me resta. Portanto temos de começar. Depressa, Caulaincourt.
- Sim, sire. - Agitou a cabeça e sacou prontamente do bloco de apontamentos, apoiando-o sobre os joelhos e colocando a ponta do lápis no papel.
- Vou dar-lhe as linhas gerais e depois prepare o texto para consumo geral. Seja fiel à minha vontade, mas certifique-se de que o que fica está expresso com clareza
e está bem redigido.
Caulaincourt assentiu.
- Muito bem. Quero que se saiba que nunca fui o incitador de guerras que os meus inimigos pintam. Tudo o que eu desejei foi paz e ordem entre os povos da Europa,
mesmo se isso só se conseguisse atingir ao subordinar a sua vontade à minha. Acredito que os meus inimigos sejam tão magnânimos na vitória como eu fui quando triunfei
sobre eles. Por conseguinte, todos os que enriqueceram sob o meu reinado não deverão cair em desgraça ou ser castigados a pretexto de qualquer lei que venha a ser
imposta doravante. Isso inclui a minha família, o meu herdeiro, e aqueles galantes oficiais que tanto sacrificaram pela França. A sua glória não deve ser negada,
por muito que a minha fama seja impugnada e denegrida. Eles prestaram bons serviços à França e a França deve honrá-los concomitantemente. - Fez uma pausa para ter
a certeza de que Caulaincourt estava a acompanhá-lo e depois, reunindo as ideias, prosseguiu: - Se o meu filho, o ser mais querido desta terra, não vier a reinar
depois de mim, então desejo que venha pelo menos a ser educado como francês e que lhe seja dada a oportunidade de conhecer os feitos do seu pai, sem rancor. A sua
mãe, a minha amada esposa, imperatriz Maria Luísa, é livre de regressar à sua Áustria materna...
Um súbito afluxo de náusea percorreu Napoleão, que se inclinou de lado na cadeira para vomitar. Caulaincourt soergueu-se, mas Napoleão fez-lhe sinal para ficar sentado.
Vomitou outra vez, e outra. A cada vez era como se um punho de ferro lhe estivesse a apertar as entranhas como um torno. Então, quando o estômago ficou vazio, continuou
com convulsões, deixando escapar gemidos enquanto a cabeça pendia sobre o fedor acre que se elevava da poça gelatinosa no chão. Por fim, o espasmo cessou e Napoleão
recostou-se, tremendo violentamente. Os seus olhos abriram-se e ele encarou Caulaincourt.
- Não consigo dizer mais. Deixo consigo a tarefa de redigir o meu testemunho de forma tão elegante quanto possível.
Caulaincourt engoliu ansiosamente.
- Não o desapontarei, sire.
- Ótimo. - Napoleão endireitou-se e levantou-se cambaleante. - Agora ajude-me a ir para esse sofá.
Caulaincourt pôs de lado o bloco e apoiou o imperador em peso o melhor que pôde, enquanto se encaminhavam para o sofá. Napoleão deixou-se cair com um suspiro.
- O meu agradecimento. Por isto, e por todos os serviços que me prestou.
- Sire... eu...
- Não diga nada. Agora deixe-me estar. Diga aos criados que ninguém deve entrar no quarto, sob qualquer pretexto. Você pode voltar amanhã e ver... o que se passou.
- Sim, sire. Compreendo.
Napoleão tomou-lhe a mão e apertou-a.
- Então adeus. Agora vá.
Caulaincourt hesitou por um momento, depois regressou à cadeira para pegar no seu bloco antes de se encaminhar com firmeza para a porta e abandonar o quarto. Assim
que saiu, Napoleão deixou escapar um gemido e levou as mãos à barriga. Uma dor penetrante espalhava-se pelas suas entranhas e todo o corpo parecia como que tomado
por uma qualquer febre. O médico que lhe tinha preparado o veneno dissera-lhe que seria rápido e relativamente indolor. Napoleão amaldiçoou-o pela mentira enquanto
se aninhava de lado e aguardava pelo fim, com o tiquetaque do relógio e o crepitar da lareira a marcar a lenta e agonizante passagem do tempo que lhe sobrava. O
tormento do veneno privou-o do calmo estado de graça que tinha esperado que o acompanhasse na sua morte. Ocorreu-lhe que tivera sido assim para Lannes, e todos aqueles
outros que tinham ido para as suas mortes lentamente e em agonia. Não havia glória nesta morte, nenhum sentido de destino, apenas o definhar macabro de um animal
no seu estertor final, implorando pelo fim de tudo.
As horas passaram-se e a morte não chegou, apenas mais dor. À medida que a noite foi dando lugar ao dia, e a luz pálida foi aparecendo pelas frinchas das cortinas
do gabinete, Napoleão deu-se conta de que afinal não ia morrer. O veneno, após dois anos guardado na bolsa, tinha perdido a sua potência e apenas tinha servido para
aprofundar a humilhação à qual tinha sido condenado. Gradualmente, a febre foi baixando, ele parou de transpirar e a agonia no estômago acalmou-se, deixando-o em
desespero.
À oitava hora, a porta rangeu e Caulaincourt entrou silenciosamente no gabinete, fazendo com que Napoleão se agitasse.
- Sire, graças a Deus! - exclamou Caulaincourt, que correu até ele. - Vive!
- Assim parece - murmurou Napoleão, amargurado.
- Vou chamar o médico.
Napoleão não argumentou. Se não era para morrer, qual o objetivo de prolongar aquele sofrimento?
- Chame-o, então.
- Sim, sire. - Caulaincourt ergueu-se de um salto, e sentindo depois o desapontamento do seu amo, deteve-se. - Sire, ainda viveis por uma razão. O destino ainda
deve ter algum propósito para vós.
- Deveras? - Napoleão abanou a cabeça. Já não queria saber. Estava demasiado cansado. Ficou deitado de costas e fitou o teto enquanto as passadas de Caulaincourt
se afastavam. Se ele tinha enganado a morte, então a morte também o tinha enganado a ele.
- Estas são as condições definitivas, sire - relatou Caulaincourt ao imperador três dias mais tarde, entregando-lhe um documento selado. - Os aliados irão permitir-vos
manter o título de imperador. Ireis receber a ilha de Elba como domínio. O Tesouro francês irá proporcionar-vos uma renda de dois milhões de francos anuais. Ser-vos-á
permitido ficar com um milhar de soldados, e todos os criados adicionais que possais querer. A família Bonaparte deverá renunciar a todas as suas demais coroas em
troca de pensões atribuídas pelo governo francês, e a imperatriz receberá o ducado de Parma.
Napoleão fixou o documento que tinha nas mãos, mas não o abriu. A pele pálida ainda parecia vagamente reluzente, como que esticada sobre o seu crânio. O veneno tinha-o
deixado fraco e apático e apenas conseguia comer as refeições mais ligeiras. Estava reclinado, envolvido num grosso cobertor, numa chaise-longue no seu gabinete.
Olhou para cima.
- Em troca da minha abdicação incondicional?
- Sim, sire - assentiu Caulaincourt. - Foi o melhor que consegui. Os prussianos estavam a pressionar para o vosso fuzilamento. Joguei com o que sobrou da estima
que o czar outrora teve por vós depois do tratado de Tilsit. Foi o czar que vos ofereceu Elba.
- Não obstante, serei exilado.
- Sim, sire. Ser-vos-á exigido que permaneçais na ilha até à vossa morte. Não vos será permitido firmar tratados com qualquer outro reino e ireis aceitar um residente
nomeado pelas potências aliadas, através do qual comunicareis com elas.
- Enquanto o residente me espia.
Caulaincourt anuiu.
- Compreendo. - Napoleão apoiou a testa na mão enquanto continuava a olhar para o documento. - Quanto tempo me deram para considerar esta oferta?
- Devereis assiná-la de imediato para que eu regresse a Paris. Se não tiverem o vosso acordo até à meia-noite de amanhã, então a oferta será retirada e uma recompensa
oferecida pela vossa captura.
Os lábios de Napoleão franziram-se perante a perspetiva insultuosa de ser tratado como um criminoso, mas não havia nem tempo nem escolha na matéria. Tinha de aceitar.
- Muito bem - suspirou, desanimado. - Agradeço-lhe os seus esforços, Caulaincourt. Agora chegue-me aquele tinteiro e pena que ali estão.
Enquanto Caulaincourt atravessava o escritório até à secretária do imperador, Napoleão quebrou o selo e abriu o documento do tratado. As cláusulas eram simples e
diretas e tinha sido deixado um espaço no final para a sua assinatura. Caulaincourt regressou e segurou a pena, depois tirou a tampa do tinteiro e estendeu-o a Napoleão.
- Sire?
Napoleão fitou o tratado com má vontade. Cada ponto tinha sido estudado para diminuir a sua glória e de toda a sua família. Era estranho, pensou, que apesar de se
sentir ofendido como sentia, não lhe restasse qualquer vontade de continuar a lutar naquele momento. A exaustão e a sua recuperação do veneno conspiravam para o
privar do ímpeto em resistir aos inimigos. Alisando o papel na superfície do sofá, Napoleão molhou a pena na tinta e sacudiu o excesso. Hesitou por instantes antes
de garatujar apressadamente a sua assinatura e devolver a caneta a Caulaincourt.
- Aí tem.
- Sim, sire. - O embaixador pegou delicadamente no tratado e abanou-o ao ar para acelerar a secagem da tinta. - Parto para Paris imediatamente. Quando receberdes
confirmação de que eles têm o tratado, deveis partir para Elba.
- Tão depressa? - Napoleão recostou-se novamente e puxou os cobertores sobre o peito. Elba? Lembrava-se da ilha, uma não-entidade miserável na costa italiana. Os
aliados tinham-lhe encontrado o mais pequeno de todos os reinos para governar. Mas nem uma pessoa em toda a Europa deixaria de ver que na verdade Elba não passava
de uma prisão. Napoleão fechou os olhos e Caulaincourt abandonou o quarto em silêncio.
- Que seja Elba, então - murmurou Napoleão. - Por agora.
Capítulo 51
Arthur
Toulouse, 13 de abril de 1814
- Julga que pode ser um truque, milorde? - indagou Somerset, que se encontrava ao lado de Arthur, espreitando pelo telescópio na direção dos portões da zona oriental
da povoação. Tinham sido abertos cerca de vinte minutos antes e agora um pequeno grupo encontrava-se a pouca distância à frente das defesas. Pelo telescópio, Arthur
viu que eram, na sua maioria, civis, reunidos sob uma bandeira branca.
- Não creio. Parece que desejam negociar - respondeu Arthur. - Afinal de contas, o Soult abandonou-os. Não têm nada a ganhar com a defesa da vila.
Antes da alvorada, as patrulhas montadas de Arthur tinham encontrado a coluna francesa, que se encaminhava para sudeste ao abrigo da escuridão. O general Hill dera
imediatamente início à perseguição, com ordens para observar Soult, sem o atacar. Toulouse era um prémio valioso e o exército precisava de descansar e de recuperar
da batalha de véspera pelas colinas de Calvinet, que dominavam a vila.
- Mmm. - Somerset percorreu lentamente as muralhas com o telescópio. - Ainda há muitos canhões nas muralhas, e consigo ver soldados.
- Talvez seja - resmungou Arthur, ao que fechou o telescópio. - Mesmo assim, não há mal em recebê-los. Vá até lá abaixo e veja o que querem.
Somerset baixou o telescópio e assentiu.
- E se quiserem discutir condições, milorde? O que lhes digo?
- Terão de se render, incondicionalmente, caso contrário iremos saquear a povoação. - Arthur fez uma pausa e esboçou um sorriso. - Pode dizer-lhes que estamos acompanhados
por uma divisão de espanhóis que não têm vontade de mostrar misericórdia para com os franceses.
Somerset pareceu chocado.
- Isso não me parece justo, milorde. Os homens de Morillo são tão disciplinados como quaisquer outros do exército.
- Pois são, mas eles não o sabem - retorquiu Arthur pacientemente, enquanto acenava com a cabeça na direção dos franceses que aguardavam. - Vamos lá, Somerset, não
demore.
Arthur observou o ajudante de campo montar a cavalo e descer a encosta até ao canal que separava a colina da vila. As tropas espanholas e as duas divisões de Beresford
estavam espalhadas pelas colinas, de ambos os lados do posto de comando de Arthur, e o estado de espírito sombrio era notório na lentidão com que despertavam pela
madrugada e davam início à construção das fortificações que Arthur ordenara que fossem erigidas, para o caso de um contra-ataque por parte de Soult. Mesmo parecendo
que o exército francês tinha abandonado Toulouse, Arthur considerou prudente continuar com o trabalho. Serviria, pelo menos, para que os homens não pensassem no
confronto horrível da véspera. A tomada das colinas custara mais de quatro mil homens aos aliados e espalhadas pelas encostas, fustigadas pelas bolas e pela metralha,
viam-se sepulturas recentes. Arthur sentia cada vez mais essas perdas, agora que a guerra se aproximava do final. Mesmo assim, todas as informações chegadas de norte
eram animadoras. Paris caíra e Bonaparte, a par do que lhe restasse do exército, seria, por certo, obrigado a render-se em breve.
A figura distante de Somerset parara à frente do pequeno grupo junto aos portões e conversava com um homem que se destacara como seu porta-voz. Arthur voltara a
erguer o telescópio para acompanhar com mais atenção a troca de palavras. Momentos depois, Somerset desmontou e o francês avançou para o abraçar, beijando-o em ambas
as faces. Uma brisa leve enfunara a bandeira atrás deles e agora Arthur pôde distinguir o desenho que estivera oculto nas pregas, uma flor-de-lis azul, o emblema
dos Bourbons.
Então era aquilo que se passava, pensou Arthur com alívio: os realistas tinham tomado a povoação. Momentos depois, Somerset voltara à sela e galopava de regresso
pelo canal e encosta acima, a caminho de Arthur. Tinha o rosto afogueado com o entusiasmo quando parou e desceu da montada.
- Milorde, tenho a honra de relatar que Toulouse é nossa.
- Sim, já tinha percebido.
- O presidente da câmara pede-me para lhe transmitir os seus cumprimentos fraternais.
- Acredito que seja muito simpático da parte dele.
- Pergunta se lhe dará a honra de falar com ele, e com os outros dignitários, antes de entrar na vila.
- Por enquanto não. - Arthur abanou a cabeça, cansado. - Haverá tempo para isso. Diga ao presidente que lhe ficaria grato se me permitisse estabelecer o meu quartel-general
no gabinete dele. Depois disso, terei todo o gosto em celebrar a libertação de Toulouse.
- Com certeza, milorde - replicou o ajudante de campo, um tanto ou quanto descoroçoado. - Como desejar.
Arthur mirou-o com severidade.
- Então, Somerset, a guerra ainda não acabou. O exército tem de ser comandado e as suas necessidades supridas. Fui claro?
- Sim, milorde.
- Ótimo. Depois de cumprirmos o nosso dever, poderá desfrutar da hospitalidade de Toulouse.
- Claro, milorde. - Somerset olhou para os franceses que aguardavam ao portão. - E quanto a eles? Parecem ansiosos por cumprimentar os libertadores, sir.
- Mas que raios, então envie-lhes o Beresford. Ele que chafurde na adulação da multidão, se assim o desejar.
- Com certeza, milorde.
Arthur fitou o pequeno grupo às portas da vila.
- Se isso lhe agrada, Somerset, a minha vez chegará em Paris, a seu tempo.
- Agrada sim, milorde. - O ajudante de campo ofereceu-lhe um sorriso caloroso.
Enquanto o general Beresford e os seus oficiais, acompanhados por várias companhias de granadeiros, se compraziam na adulação dos habitantes da vila francesa, Arthur
e os oficiais do estado-maior entraram por um portão mais pequeno na muralha. Somerset pedira a um dos funcionários do presidente da edilidade que os guiasse pelas
ruas traseiras, até à praça da vila. De vez em quando, o jovem francês magro virava-se com um sorriso e gritava, Vive le Roi et vivent les anglais!, ao que rostos
curiosos surgiam às janelas e portas das casas por onde o pequeno grupo passava.
- Se o indivíduo continuar com isto, vamos atrair uma multidão só nossa - silvou Arthur, irritado.
- Não o pode censurar, milorde - lembrou Somerset. - Não com a perspetiva de Napoleão vir a ser obrigado a fazer a paz a qualquer momento.
O homem voltou a gritar e Arthur lançou-lhe um olhar furioso, sem qualquer efeito, após o que libertou um suspiro exasperado. Os oficiais aperceberam-se da expressão
e mantiveram-se em silêncio durante o resto da breve viagem até à mairie. Quando foram levados aos gabinetes que lhes tinham sido atribuídos, começaram a dispor
as secretárias enquanto esperavam pela chegada do carro com os registos do exército. O som dos vivas chegou ao centro da vila e, a espaços, pequenos grupos de civis
entusiasmados acorriam às celebrações.
Ao início da tarde, o edil apareceu, um pouco embriagado, para convidar Arthur e os oficiais para um espetáculo especial de canções e recitais patrióticos que nessa
noite teria lugar no teatro da povoação, seguido de um banquete. Com o objetivo de cimentar a amizade dos habitantes de Toulouse, Arthur aceitou e, a contragosto,
ordenou que lhe preparassem um banho enquanto a bagagem era recolhida no acampamento. Estava à frente de um espelho, com o rosto ensaboado e a navalha da barba junto
ao pescoço, quando a porta dos lavabos foi aberta sem cerimónias e Somerset entrou a correr, acompanhado por outro oficial que Arthur reconheceu como sendo o coronel
Ponsonby, do exército às portas de Bayonne.
- Mas que raios - barafustou Arthur, baixando a lâmina. - Continua a surpreender-me dessa maneira e não vai ser uma bala inimiga a abater-me. Ainda morro às minhas
próprias mãos!
- Lamento, milorde. - Somerset empurrou Ponsonby para a frente. - Mas tem de saber das novidades.
- Ponsonby? - Arthur franziu o cenho. - O que está aqui a fazer?
- Mandaram-me vir ter consigo. O general Hope recebeu os oficiais vindos de Paris.
- Oficiais? Quais oficiais?
- O coronel Cooke e o coronel St-Simon, do exército francês, milorde.
- E então?
- Milorde, tenho notícias extraordinárias.
Não havia dúvida quanto ao que o homem lhe diria. Arthur levantou a mão para silenciar o coronel.
- É a paz. Sabia que a teríamos.
- Exato, milorde, todos esperávamos por isso. Mas há mais. Napoleão abdicou.
- Abdicou? Já não era sem tempo - replicou Arthur sem pensar. Foi então que se deu conta da profundidade da notícia. Napoleão estava acabado. Sem trono, não poderia
voltar a ameaçar a paz na Europa. A expressão severa foi de imediato substituída por um sorriso rasgado. Largou a navalha para dentro do lavatório e agarrou as mãos
de Ponsonby. - Abdicou! Não me diga!
- Digo-lhe, pois, milorde.
- Por Deus... por Deus, isso é uma maravilha! - Dirigiu-se a Somerset e não pôde reprimir uma gargalhada. Sentia-se feliz de corpo e alma. - Hurra! Hurra! - Libertou
as mãos de Ponsonby, estalou os dedos e saltitou alegremente de um lado para o outro. - Ah, poder viver para ver isto!
- Era o que estava a pensar. - Somerset riu-se, observando a invulgar mostra de júbilo do superior.
O banquete dessa noite foi festivo, com os oficiais britânicos, espanhóis e portugueses a celebrar com os homólogos franceses da guarnição da vila. Quando o prato
principal foi levantado, chegaram dois coronéis vindos de Paris, trazendo consigo o despacho oficial. Arthur leu-o e depois levantou-se para declarar à audiência
silenciada que, antes do final do mês, Bonaparte deixaria França para sempre. Luís, irmão do rei anterior, regressaria ao trono. Enquanto os vivas se faziam ouvir
pelo salão de banquetes, pediu champanhe para brindar ao rei Luís. Quando os copos foram servidos novamente, o general Alava, que se juntara outra vez ao exército
vindo de Madrid, levantou-se e ergueu o copo na direção de Arthur.
- Ao Marechal de Campo, o Marquês de Wellington, el liberador de España!
Um rugido de aprovação fez-se ouvir dos oficiais ali reunidos, que engoliram o champanhe. Depois, um dos comandantes portugueses fez um novo brinde.
- El Douro - salvador de Portugal! - Ouviu-se mais um viva, antes de o edil de Toulouse se levantar com dificuldade e apresentar mais um brinde a Arthur, num inglês
macarrónico. - A monsieur Wellington. Ele salva França!
Dessa vez a ovação não terminou. Os oficiais bateram com os punhos na mesa num ritmo ensurdecedor que estremeceu os talheres e os copos. Arthur ergueu-se lentamente
ante a aclamação que recebia. Curvou a cabeça para ambos os lados e tentou agradecer, mas era impossível. Naquele momento, ao olhar para os seus homens, sentia o
coração repleto. Não de alegria, nem de triunfo, mas de gratidão, e de um afeto quase paternal por todos aqueles que se tinham tornado mais chegados do que a família.
Lentamente, a ovação desvaneceu-se, seguida por um silêncio respeitoso, mas expectante, enquanto aguardavam que o comandante falasse. Arthur exibiu um sorriso nervoso,
depois baixou a cabeça e abanou-a ao de leve, receando que a voz traísse as emoções que o assolavam. Somerset apercebeu-se da dificuldade e levantou-se apressadamente,
inclinando-se na direção do seu comandante.
- Tomamos café, milorde?
- Como diz? - resmungou Arthur.
- Bebeu-se muito champanhe esta noite. Alguns dos oficiais terão de ficar sóbrios antes de regressar ao serviço.
- Sim. Café. - Arthur aquiesceu. Levantou a cabeça e pigarreou. - Eu, aaa, agradeço-lhes humildemente a todos. E por mais que me custe interromper a celebração desta
noite, é altura de um café.
Houve quem resmungasse ao ouvir as palavras, mas a maioria ficou divertida e aplaudiu alegremente a sugestão.
Ao sentar-se, Arthur virou-se para o coronel Cooke e o seu companheiro francês.
- Tem um exemplar do despacho para o marechal Soult?
- Sim, milorde.
- Nesse caso terá de o encontrar imediatamente. Siga para sudeste. Não terá mais de um dia de avanço.
- Esta noite, milorde? - retorquiu Cooke, surpreendido.
- Sim, esta noite. Os homens do Hill estão a persegui-lo e não quero mais vidas perdidas devido a um atraso evitável a levar a notícia a Soult. Parta imediatamente.
- Sim, milorde - respondeu Cooke, fazendo sinal ao coronel St-Simon para que o seguisse enquanto saía do salão de banquetes.
A maior parte dos soldados franceses a sul estava ansiosa por acreditar na notícia, mas Soult recusou-se a aceitar que o seu senhor tivesse caído até receber a confirmação
por parte de Berthier. Depois de permitir que os seus homens celebrassem a vitória, Arthur começou rapidamente a distribuir ordens para a retirada para Bordéus,
a partir de onde seriam, a seu tempo, enviados para a Grã-Bretanha. Embora os soldados estivessem entusiasmados com a perspetiva de regressar a casa, os oficiais
mostraram-se menos satisfeitos assim que a felicidade inicial pela grande vitória se desvaneceu. Para muitos, isso implicava metade do soldo e a ausência de oportunidades
de promoção.
Com o exército a adaptar-se à perspetiva de paz após duas décadas de guerra, Arthur dirigiu-se a Paris para assumir o seu lugar entre os vitoriosos à frente da parada
pelas ruas até às Tulherias. Aí, o novo rei de França passaria em revista os soldados e mostraria a sua gratidão pelos sacrifícios feitos pelos aliados para livrar
a Europa do Tirano Corso.
A 3 de maio, na véspera da parada, Somerset entregou a Arthur uma carta do Príncipe Regente. Arthur estava a tomar o pequeno-almoço nos aposentos que lhe foram atribuídos
e aos oficiais do estado-maior, nas Tulherias. Baixou os talheres e acabou de mastigar uma garfada de costeleta de borrego enquanto quebrava o selo e lia o conteúdo.
Acabou por pousar a carta sobre a mesa e pegou nos talheres para continuar a refeição. Somerset suspirou de frustração.
- E então, milorde?
Arthur cortou mais um pedaço de borrego e ergueu o olhar.
- Ofereceram-me a embaixada de Paris. Ah, e está confirmado que sou oficialmente Duque de Wellington.
Somerset ficou radiante.
- E já não era sem tempo. Posso ser o primeiro a felicitar vossa senhoria?
- Obrigado, Somerset. Tal como diz, já não era sem tempo, pois honra todos os que serviram comigo ao longo de todos estes anos.
Talvez soasse a palavras vazias, se vindas de outro homem, mas Somerset conhecia bem o seu comandante para saber que eram sentidas. Por seu lado, Arthur sentia-se
ressentido por o reconhecimento das conquistas do exército ter sido atrasado pelos inimigos da família no parlamento. A maldade das intrigas políticas mesquinhas
sempre ameaçara miná-lo e aos seus homens ao longo das campanhas na Península Ibérica. Pois bem, mais valia que a recompensa chegasse tarde do que nunca.
Somerset olhou pela janela, para a praça pública no exterior do palácio, e viu que a multidão já começara a juntar-se ao longo do caminho do desfile.
- Vossa senhoria vai ter bastante público. Vieram todos ver o general que esmagou os marechais de Bonaparte. - Somerset fez uma pausa. - É uma pena que não tivesse
chegado a ter a oportunidade de o enfrentar em combate.
Arthur abanou a cabeça.
- Não. Fico satisfeito por isso não ter acontecido. Sempre preferi saber que o exército dele tinha recebido um reforço de quarenta mil homens a ter a notícia de
que ele chegara para assumir o comando.
- Seja como for, estou certo de que vossa senhoria o teria derrotado. O senhor é o melhor dos generais.
- Bem, nunca o iremos pôr à prova. Seja como for, não me vou apresentar a Paris como soldado. A guerra está a acabar e como serei embaixador, irei vestir-me como
diplomata. Creio que um casaco simples, gravata e calções brancos, e chapéu redondo vão garantir a imagem correta. Muito bem, será que agora posso terminar o meu
pequeno-almoço em paz?
- Como vossa senhoria desejar. - Somerset baixou a cabeça e saiu da sala.
Arthur enfiou mais um pedaço de borrego na boca e mastigou rapidamente. Era peculiar que enquanto ele derrotara a nata dos marechais de Bonaparte e este esmagara
a maioria dos melhores comandantes aliados, os dois nunca se tinham enfrentado. Seria inevitável que os apologistas do corso dissessem que o herói deles teria vencido
o comandante britânico, caso se tivessem encontrado, meditou Arthur.
O desfile de líderes aliados e dos seus soldados foi recebido pelos vivas alegres da vasta maioria da populaça. Apenas um punhado observou com um ressentimento sombrio.
Arthur reparou nisso enquanto seguia ao lado de Castlereagh, retribuindo a aclamação do povo com um breve aceno de cabeça, ou com um gesto rápido da mão enluvada.
Castlereagh inclinou-se para ele.
- É estranho, não acha? Combatemos os franceses durante mais de vinte anos e depois eles recebem-nos como heróis.
- A paz e a libertação da tirania conseguem deixar-nos satisfeitos - retorquiu Arthur num tom seco.
- Com efeito. - Castlereagh acenou para a multidão e arrancou uma nova ovação, com as pessoas a agitarem chapéus e faixas coloridas de tecido num frenesim policromático.
Endureceu brevemente a expressão. - Nesse caso, é uma pena que o novo rei de Espanha não tenha aprendido a lição. Imagino que esteja a par da situação problemática
em Espanha.
Arthur assentiu. Ao regressar do exílio em Valençay, Fernando impusera de imediato a sua autoridade de um modo severo. Todas as reformas instituídas pelas Cortes
tinham sido rejeitadas e quem se opôs foi preso. Não era fácil para o povo espanhol, que durante tanto tempo combatera um tirano, sofrer a imposição de um novo.
- Ora muito bem - prosseguiu Castlereagh. - Preciso que vá a Madrid assim que possível e que tente meter algum juízo na cabeça do rei.
- Eu?
- E porque não? Afinal de contas, foi vossa senhoria que os libertou dos franceses. Tem mais autoridade moral do que qualquer outro homem que eu pudesse enviar e,
atrevo-me a dizê-lo, até mesmo do que o novo rei. - Castlereagh fez uma pausa para oferecer um sorriso encantador a uma senhora de aspeto distinto que observava
o desfile de uma varanda. - Madame de Staël. Tem uma mente brilhante, aquela mulher. Aconselho-o a visitá-la quando regressar para assumir a embaixada. Por falar
em mulheres, deve estar ansioso por rever aquela sua esposa e os filhos, não? A primeira vez em anos. Por Deus, os seus miúdos deviam ser bebés quando partiu. -
Castlereagh olhou-o com uma expressão afetuosa. - Receio que vá parecer um estranho a todos eles.
Arthur pensou por um momento. A ideia de regressar a Kitty incomodava-o. Era soldado há muito mais tempo do que marido e receava que a paz tornasse inevitável a
tensão no casamento. Pigarreou.
- Primeiro vou cuidar dos meus homens em Bordéus. Devo-lhes o meu agradecimento e tenho de me certificar de que regressam a Inglaterra o mais depressa possível.
Depois voltarei à minha família.
Castlereagh pareceu surpreendido e depois encolheu os ombros.
- Como queira. Embora deva dizer-lhe que a sua nação vai querer tê-lo antes de lhe permitir alguma privacidade com a família. Imagino que saiba que toda a Inglaterra
o tem em maior conta do que estas pessoas. - Apontou para a multidão ululante. - É melhor habituar-se a ser o menino bonito do público, Wellington.
Arthur aquiesceu, mas no íntimo sentia-se perturbado. O afeto da populaça era tão volátil como o vento e igualmente insubstancial. Acontecera tanta coisa no espaço
de um mês, refletiu. Era difícil ter noção da passagem do tempo quando os dias estavam tão repletos de acontecimentos. O ritmo fora alucinante, mas Arthur sabia
que tinha a obrigação de garantir aos seus soldados poderem aproveitar dos frutos da paz assim que possível.
Assim que as celebrações em Paris terminaram, Arthur regressou ao novo quartel-general do exército em Bordéus para supervisionar a dispensa dos soldados que o tinham
servido, e a Inglaterra, tão bem durante a guerra na Península Ibérica e no Sul de França. Os regimentos britânicos tinham os mais variados destinos. A maioria regressaria
à Grã-Bretanha, mas alguns partiam para a Irlanda, para as Índias Ocidentais e para a guerra que decorria nas colónias americanas.
As primeiras formações a deixar o exército foram as restantes tropas espanholas, e depois os portugueses, que partiram em direção aos Pirenéus, ovacionando Arthur
à medida que iam passando por ele. O único problema de monta seria o que fazer ao pequeno exército de seguidores do acampamento, em especial as "esposas dos soldados"
- as mulheres que se tinham ligado a muitos dos soldados britânicos e que lhes tinham dado filhos. Poucas foram as que tiveram autorização de acompanhar os seus
homens até Inglaterra, e grande parte dos soldados recusou-se, pura e simplesmente, a aceitar a responsabilidade por elas. Foi por isso que Arthur observou uma terceira
coluna, oprimida pela miséria e pelo receio quanto ao futuro incerto, afastar-se em direção à fronteira com um conjunto heterogéneo de mulas e de carretas.
Só restava a Arthur redigir as últimas Ordens Gerais para que o exército fosse dispersado. Ao escrever, já tarde na última noite com os seus soldados, Arthur tinha
noção de que criara o melhor exército da Europa e que os seus homens marchariam para onde quer que fosse, e fariam tudo o que lhes pedisse se estivessem sob o seu
comando. Pesasse embora todo o desejo de paz que lhe ardia no coração, era incapaz de conseguir não lamentar a perda de tão formidável corpo de soldados. Em breve
só lhes restaria as recordações das campanhas, a memória que se desvaneceria lentamente das batalhas que tinham modelado a História. Seriam as narrativas contadas
uma e outra vez pelos veteranos curvados a gerações ainda por nascer, poucas das quais entenderiam a importância do que fora conseguido pelos homens de Arthur, em
desvantagem e longe de casa.
Embora tivesse a certeza de ter conquistado um lugar na memória da nação, Arthur sentia-se triste por pensar que os homens de menor patente que tinham combatido
a seu lado estavam destinados a cair no esquecimento. Fez uma pausa para ordenar as ideias antes de redigir o último parágrafo.
Embora as circunstâncias possam ter alterado a relação tida entre o Marechal de Campo e os seus homens, é para sua grande satisfação que lhes garante que nunca deixará
de se preocupar sinceramente com o seu bem-estar e honra; e que terá sempre o prazer de estar à disposição daqueles a quem o país tanto deve pela sua conduta, disciplina
e coragem.
Arthur baixou a pena e leu outra vez a ordem. As palavras pareciam um veículo medíocre para transmitir a afeição e o sentido de obrigação que lhe enchiam o íntimo.
Só esperava que os homens o compreendessem o suficiente para serem capazes de ver além das palavras. Chamou Somerset para que levasse a ordem a ser copiada e distribuída
pelo exército. Depois dirigiu-se aos aposentos. Era tarde, já passava da meia-noite e à primeira luz da alvorada deixaria os seus homens, os seus camaradas, e regressaria
a casa.
Capítulo 52
Londres, 24 de junho de 1814
- Por Deus, já estou farto disto - resmungou Arthur agastado quando a carruagem e escolta montada se detiveram mais uma vez ao serem bloqueadas no seu caminho pela
multidão. Desde que desembarcara em Dover, na véspera, Arthur estivera sempre rodeado pelos seus compatriotas. As notícias do regresso tinham-se espalhado pela estrada
de Londres bem antes da passagem da carruagem, e multidões excitadas de homens, mulheres e crianças, de todas as condições sociais, aguardavam para poderem ter um
vislumbre do homem que os tinha livrado, a eles e à Europa, das garras do imperador francês. Ao início, Arthur mostrara-se satisfeito por se erguer e debruçar pela
janela para devolver as saudações, mas como cada ocasião provocava um atraso adicional, recostou-se no assento e simplesmente movia a cabeça ou acenava à medida
que se iam aproximando da capital.
Agora estavam bloqueados numa rua a escassa distância da ponte de Westminster. Lá fora, os rostos alegres das pessoas contrastavam com a fachada soturna de tijolo
de uns curtumes a partir de onde se libertavam fumo e maus cheiros para o ar morno de um dia de verão. Voltando-se para espreitar através da pequena janela por baixo
do banco do cocheiro, Arthur conseguiu ver que um homem grande tinha parado a carruagem e estava a gesticular aos companheiros para que tomassem as rédeas dos seis
cavalos da muda que os tinham transportado desde a estação anterior.
- Que diabo está ele a fazer? - resmungou Arthur.
- Vossa senhoria deseja que vá ver? - perguntou Somerset.
- Com certeza. Diga ao fulano para desimpedir o caminho e deixar-nos passar.
Somerset assentiu, e abriu a porta da carruagem. Logo depois ouviu-se uma aclamação ensurdecedora vinda do exterior, que de imediato se calou assim que Somerset
olhou para cima e as pessoas puderam ver que não era o seu herói. Desceu para a estrada, batendo a porta atrás de si.
- Deixem passar! Saiam da frente!
Arthur recostou-se outra vez no seu lugar e olhou pela parte de trás da carruagem, ignorando as caras que se comprimiam em redor das pequenas janelas de cada porta.
Lá fora ouviu uma voz a chamar, sobrepondo-se ao burburinho da multidão.
- Desculpai, sir, não queremos fazer mal algum. Eu e os outros estamos só à espera para puxar a carruagem de vossa graça para casa. De volta para os braços da sua
boa senhora esposa.
Arthur suspirou. Esta era a forma tradicional de a multidão mostrar o seu apreço aos heróis ingleses. Tinham-no feito a Pitt e a Nelson, e agora a si. Cinco anos
antes, durante o inquérito de Sintra, eles tinham gritado pela sua cabeça. Não pretendia satisfazer-lhes uma vontade tão volátil. Além do mais, o espetáculo de ser
arrastado através de Londres por esta turba seria degradante. Enquanto Somerset procurava chamar os homens à razão, Arthur bateu com a mão na coxa.
- Diacho! - resmungou. - Não admito isto.
Levantou-se do lugar e abriu a porta, saltando de uma vez para o chão. Os que lhe estavam mais próximos ficaram num silêncio aturdido quando ele apareceu abruptamente
e Arthur abriu caminho através deles até aos seis homens da Guarda que tinham sido enviados de Dover como sua escolta. Estalou os dedos para chamar a atenção do
cavaleiro mais próximo.
- Preciso do seu cavalo.
- Vossa senhoria? - O cavaleiro olhou-o, surpreendido.
- Queira ter a bondade de se apear - ofereceu Arthur sem mudar o tom. - Preciso do seu cavalo. Vou assegurar-me de que ele lhe seja devolvido assim que eu acabe.
Assim que o homem deslizou da sela, Arthur tomou o seu lugar e logo pegou nas rédeas. As pessoas mais próximas na multidão observaram com curiosidade, enquanto mais
adiante outros continuavam a desatrelar a carruagem, ignorando o que se estava a passar atrás dela.
- A escolta pode regressar ao quartel - transmitiu Arthur ao sargento que comandava os seis homens. Não pretendia atrair atenções enquanto atravessava Londres rumo
à casa em Hamilton Place. Quando o sargento fez continência, Arthur voltou o cavalo para uma rua lateral e acenou com a mão.
- Abram alas!
O cavalo precipitou-se em frente e a multidão afastou-se. Arthur trotou para uma rua lateral pejada de lojinhas. Muitas das janelas estavam decoradas com fitas coloridas
e várias tinham cartazes toscos de um soldado cujo uniforme estava engalanado com medalhas e estrelas. De repente, Arthur apercebeu-se de que eram representações
de si próprio e deu graças por estar vestido com o sobretudo azul. Esforçando-se por evitar os olhos de quem passava, Arthur percorreu a rua e depois voltou à direita
em direção ao Tamisa e apareceu na sua margem. Olhando para jusante, na direção da ponte de Westminster, conseguiu ver que a ponte e os seus acessos estavam lotados
de gente, pelo que se afastou para procurar outra travessia.
Era estranho estar de regresso a Inglaterra, depois de quatro anos de campanha em terras estrangeiras. Durante quase todo esse tempo, a sua companhia tinha sido
a de soldados. Agora que estava rodeado de civis que tinham prosseguido com as suas vidas, em grande medida intocados pela guerra que tinha sido travada no mar e
em terras estrangeiras, Arthur não tinha a certeza do que lhe parecia mais real, se o mundo do qual tinha acabado de sair, se aquele ao qual estava a regressar.
Passou por locais familiares, e no entanto não tão familiares quanto isso, com uma crescente sensação de entusiasmo ao entrar em Piccadilly. O coração começou a
bater-lhe mais depressa e ele abrandou o cavalo quando se aproximou de Hamilton Place. Aí parou, olhando para as casas que ladeavam a rua ampla na direção da porta
na qual Kitty e os filhos o aguardavam. As notícias do seu regresso a Inglaterra certamente já lhes teriam chegado aos ouvidos, e Arthur interrogava-se se eles estariam
à espera no interior, olhando para a rua em busca dos primeiros sinais dele. Foi incentivando a sua montada para a esquina, para se manter oculto.
O que o estaria a deixar tão relutante?, interrogou-se. Era quase como se não se atrevesse a continuar. Por instantes foi tentado a prosseguir, e a reportar a sua
chegada à Guarda, e talvez visitar Richard. Tudo menos enfrentar Kitty e dois filhos que mal conhecia.
- Diacho de idiota! - resmungou entre dentes. Era assim que as guerras terminavam. Nenhum homem podia ou devia lutar toda a vida. A guerra era um mal necessário,
como Arthur tinha frequentemente assinalado aos seus oficiais, e o seu único propósito era o de restituir a paz e devolver os soldados aos braços das famílias. E
no entanto ali estava ele, no limiar do seu regresso, relutante em atravessá-lo.
Com um rápido bater de calcanhares e um puxão das rédeas, Arthur voltou o cavalo para Hamilton Place e trotou por entre as fileiras de degraus alinhados que se erguiam
para entradas com colunatas. Abrandou à porta de casa e deixou-se escorregar da sela. Amarrando as rédeas ao gradeamento, respirou fundo para se acalmar e subiu
as escadas da porta da frente. Antes de a conseguir alcançar, a porta abriu-se, e aí estava Kitty, num vestido de musselina liso, apertado por baixo do busto como
se fosse ainda uma rapariga na corte do vice-rei, em Dublin. Ela olhou-o e o lábio inferior tremeu-lhe, até ela o morder ao de leve.
- Arthur? - Levou a mão ao rosto. - Arthur.
Ele ficou quieto e fitou-a por um instante, ao que anuiu.
- Voltei para casa.
Sentiu-se um tolo assim que disse isto, e em seguida subiu e tomou as mãos de Kitty nas dele. Quaisquer outras palavras que ele pudesse ter dito secaram-se-lhe na
garganta enquanto a olhava do alto. Parecia mais velha do que imaginara. Havia rugas leves em torno dos olhos e os próprios olhos tinham perdido o brilho de que
ele se recordava sempre que pensara nela na Península Ibérica. E, contudo, ainda lá estava o mesmo nariz pequeno e os lábios finos que primeiro lhe tinham chamado
a atenção.
Então ela sorriu, envergonhada, e Arthur não conseguiu conter uma gargalhada nervosa, aliviado por a sua satisfação por a ver parecer genuína.
- Por Deus! Cheguei a casa! - Riu-se e agarrou-a, beijando-a na testa, depois novamente na face e por fim nos lábios, até ela se libertar com um ar surpreendido.
- Arthur! As pessoas estão a olhar.
- Que estejam. - Tomou-lhe as faces nas mãos e beijou-a novamente nos lábios. Kitty ria-se então e puxou-lhe pela manga até estar dentro da porta. Um criado estava
num dos lados, olhando a parede oposta quando se esticou para a porta e começou a fechá-la.
- Espere - interveio Arthur. - Esse cavalo tem de ser devolvido ao dono. - Virou-se para o criado. - Posso saber o seu nome?
- Jenkins, vossa graça.
- Pois então, Jenkins, tenho uma tarefa para si. O cavalo pertence a um soldado da Guarda. Ficaria grato se lho fosse devolver de imediato.
O criado espreitou o animal com pouco entusiasmo, e depois fez uma vénia com a cabeça.
- Como vossa senhoria desejar.
O criado saiu da casa, fechando a porta atrás de si. Estavam sozinhos e voltou a beijar Kitty, fechando os olhos e inspirando o seu aroma, como que pela primeira
vez. Então recuou e ergueu a sobrancelha.
- Creio ter dois filhos algures por aí, não é?
Kitty sorriu e fez um gesto na direção da porta aberta do salão da frente. Arthur caminhou lentamente nessa direção, vendo uma imagem mental dos dois bebés que tinha
deixado para trás anos antes. A luz do Sol invadia as janelas altas e sentados num banco da janela, olhando para a rua, estavam Arthur e Charles. Olharam em volta
quando ele entrou e os fitou.
- Então, vamos lá! - incentivou Kitty. - Vocês sabem que este é o vosso pai. Ele regressou a casa.
As crianças levantaram-se obedientemente e atravessaram a sala, parando a dois passos de Arthur e fazendo vénias com a cabeça com algum nervosismo.
- Como está, pai? - cumprimentou com formalidade o rapaz mais velho, tal como fora ensinado a fazer.
Arthur olhou-os, com o seu coração tomado por uma dor profundamente melancólica. Eram os seus filhos. A sua carne e o seu sangue, que ele tinha passado a amar no
abstrato. Sentia que lhes devia mostrar algum afeto. Ele deveria fazer o que qualquer pai faria nas mesmas circunstâncias. E, contudo, alguma coisa o inibia. Ambos
os garotos eram incapazes de esconder o seu nervosismo enquanto o olhavam. Seguiu-se uma pausa, e então Kitty tocou na manga de Arthur.
- Fizeste uma longa viagem. Imagino que queiras tomar algo.
- Sim. Sim, quero. Um chá, por favor, Kitty.
Ela sorriu calorosamente quando ele lhe pronunciou o nome. Então olhou para ele e ergueu uma sobrancelha.
- Não tens bagagem?
- Está na carruagem. Deve aparecer não tarda.
- Bom. - Voltou a sorrir. - Vou deixar-te com os nossos meninos.
Arthur sentiu um assomo de pânico mas antes de conseguir responder, Kitty abandonou a sala. Virou-se novamente para os filhos e pigarreou.
- Ah. Hum. Então...
Olharam-no fixamente sem dizer palavra, e o silêncio foi estranho e doloroso. Então o mais novo, Charles, olhou para os pés e disse calmamente:
- Deu mesmo cabo do tirano francês, pai?
- Sim, dei. - Arthur meneou a cabeça. - Quer dizer, derrotei-lhe os esbirros. Lamentavelmente, não tive a oportunidade de derrotar o tirano em pessoa.
- Oh... - O rapaz pareceu tão surpreso e desapontado que Arthur não foi capaz de reprimir uma gargalhada.
- Mas a guerra acabou, não foi, pai?
- Sim, acabou. Bonaparte foi derrotado e teremos paz, e com sorte vocês os dois nunca terão de ir lutar contra um inimigo enquanto viverem.
- Mas eu quero ser um soldado - afirmou o mais velho. - Tal como o senhor.
Arthur olhou-o com ternura.
- Podes ser um soldado, mas rezo para que nunca venhas a ter de lutar numa guerra como a que eu tive. Venham. - Deu-lhes as mãos e eles retribuíram, hesitantes.
Arthur apertou-as ao de leve. - Vamos até ao banco da janela e falamos disso tudo.
Os festejos que tinham começado em Paris continuaram em Londres com igual extravagância. O czar Alexandre e o rei Frederico Guilherme, a par das suas cortes, juntaram-se
ao grande festejo. Mais uma vez, a atenção recaía sobre Arthur como o mais destacado dos homens que se tinham oposto a Bonaparte. O fluxo de recompensas e honras
que correu a seus pés parecia infindável. Entrou na Câmara dos Lordes com os títulos de Visconde, Conde, Marquês e Duque. Foi feito cidadão de várias cidades por
toda a Inglaterra, e Oxford atribuiu-lhe um doutoramento honorário. Na missa de ação de graças na catedral de São Paulo, Arthur levou a espada de Estado. Os políticos
destacados, tanto dos Whigs como dos Tories, fizeram-lhe uma corte cerrada, estimulando-o a pedir qualquer cargo político em troca da sua fidelidade. Arthur recusou
com toda a educação que foi capaz de reunir.
Enquanto Arthur era o menino bonito do mundo social, a situação doméstica perturbava-o. Poucas semanas depois do regresso, as imperfeições de Kitty, ignoradas no
primeiro assomo de prazer ao estarem reunidos, voltaram ao de cima. Apesar do seu empenho em assumir o papel de esposa do herói da nação, Kitty carecia da sofisticação,
e até da beleza, de muitas das mulheres que Arthur tinha conhecido na sociedade. Pesava-lhe no coração fazer comparações tão injustas. A sua miopia condenava-a a
olhar de relance ou fitar o vazio em bailes e jantares, e rapidamente desconfiava estar a ser alvo de falatório ou de troça por aqueles que não conseguia ver. Ficava
calada, encerrada na segurança proporcionada pelo silêncio, enquanto o mundo prestava tributo ao marido.
Nem era tampouco fácil assumir o papel de pai. Tudo o que Arthur e Charles sabiam acerca dele era distorcido pela adulação pública que tinha saudado as suas vitórias.
Portanto, os rapazes tinham ficado a conhecê-lo como um herói distante e estavam predispostos a olhar para ele com reverência, achando difícil aceitá-lo simplesmente
como pai. Arthur procurava passar tanto tempo quanto possível com eles, mas nesse verão a sua vida pública foi praticamente esgotada todos os dias, e eles tornaram-se
apenas mais uma parte da sua audiência, olhando à distância.
Aos poucos, os festejos foram cessando. Os dignitários estrangeiros regressaram ao continente e as mentes dedicaram-se à adaptação do mundo à paz. Menos de um mês
depois, Arthur e Somerset estavam em Bruxelas para inspecionar o exército britânico sob o seu comando antes de ele assumir a embaixada em Paris. Uma mancheia dos
oficiais ou soldados eram veteranos e o exército era demasiado pequeno para qualquer tipo de intervenção em França. O rei dos Países Baixos, ainda que aliado, estava
relutante em mostrar demasiada cumplicidade com as tropas estrangeiras no seu território. Os seus recém-adquiridos súbditos belgas eram ainda leais à França, e muitos
deles tinham servido fielmente Bonaparte durante as últimas campanhas. Por conseguinte, os soldados britânicos não tinham acesso aos fortes e cidades ao longo da
fronteira e permaneciam acampados em redor de Bruxelas.
Fiel ao seu treino militar, Arthur assegurou-se de que os seus oficiais estavam cientes da necessidade de estar prontos para marchar sem pré-aviso. Também passava
vários dias a cavalgar pelo campo, observando os usos potenciais para o seu exército. No último dia antes de abandonar a Bélgica rumo a Paris, Arthur e Somerset
trotaram pela estrada de Bruxelas que passava pela floresta de Signes, antes de se dirigir à fronteira. Detiveram-se numa ravina baixa que se sobrepunha ao terreno
a sul. Atrás deles, a floresta abria-se a escassa distância da encosta oposta.
- Veja ali, Somerset. - Arthur indicou o terreno atrás deles. - Ocultação que chegue para um pequeno exército.
Somerset olhou em redor e assentiu.
- E ali, na encosta: umas quantas quintas muradas que poderiam facilmente ser fortificadas para quebrar ataques feitos contra a ravina. - Arthur perscrutou a paisagem
mais algum tempo e estalou os dedos. - Assinale este lugar.
- Sim, milorde. - Somerset remexeu no alforge e tirou a pasta dos mapas. Abrindo-a, pegou no mapa e encontrou a localização, depois dobrou o mapa e apoiou-o sobre
a pasta de cabedal. Pegou num lápis e segurou-o. - Ali está. Mont-St-Jean, vossa senhoria.
- Mont-St-Jean - repetiu Arthur calmamente. - E aquela aldeia, a cerca de um quilómetro lá atrás, como se chamava?
- Waterloo, milorde.
- Muito bem, tome nota. Bom terreno para lutar - declarou, com um tom de aprovação. - Que belo sítio. Se alguma vez vier a ser preciso.
Impeliu o cavalo em frente e Somerset apressou-se a guardar os materiais antes de esporear o cavalo atrás do comandante, que trotava estrada fora. De cada lado cresciam
campos de trigo à altura do peito, e uma ligeira brisa fazia com que as espigas abanassem num suave ondular. Por um momento, Arthur sentiu o espírito a erguer-se,
enquanto afastava as preocupações e mirava a paisagem pacífica.
Capítulo 53
Paris, novembro de 1814
Uma chuva miudinha caía, quando os homens da guarda pessoal do rei desfilaram no grande pátio das Tulherias. Arthur estava ao lado do duque de Angoulême, a passar
revista aos soldados, enquanto estes marchavam para lá da plataforma. Muitos deles ostentavam as suíças que tinham sido moda na anterior Guarda Imperial e havia
qualquer coisa nos seus olhos que gelava Arthur mais do que o clima frio de final de outono.
- Quantos destes homens são veteranos da Velha Guarda? - perguntou tranquilamente.
O aristocrata francês sorriu.
- Convocámos mais de metade.
- Obrigaram-nos?
- Não foi necessário. Ficaram satisfeitos por terem hipótese de continuar a usar a farda. Era isto ou ir para as ruas e passar fome.
- E confia neles?
- Porque não? Não seriam nada sem o novo regime. O imperador deles desapareceu, a guerra acabou. Tiveram de se adaptar, tal como o resto do povo.
Arthur observou a companhia seguinte a marchar à sua frente antes de responder.
- Espero que tenha razão.
- É claro que tenho. O tirano corso já não é um perigo para a Europa. Tanto quanto sei, anda todo ocupado em Elba a melhorar o grupo dos seus novos súbditos. Mas,
vendo bem, tenho a certeza de que está mais bem informado sobre as atividades dele do que eu.
- O nosso residente envia relatórios regulares das atividades de Bonaparte - admitiu Arthur. Como parte do tratado que permitira ao imperador o exílio, o governo
britânico nomeara um residente em Elba, o coronel Campbell, para vigiar de perto Bonaparte e manter um registo de todos os que o visitassem na ilha, a grande maioria
antigos admiradores e alguns curiosos que queriam ver este grande homem na sua gaiola dourada. Evidentemente, os antigos comandantes estavam proibidos de falar com
ele, mas não havia maneira de evitar que terceiros transportassem mensagens.
- O que diz o vosso residente nos seus relatórios?
- Que Bonaparte lê avidamente os jornais e está obcecado com a escrita das suas memórias, e que obedece aos termos do tratado. Tal como diz, não representa qualquer
ameaça para a paz na Europa.
- Talvez - refletiu o aristocrata francês. - Seja como for, é uma pena que não tenha sido morto. Se assim fosse, talvez tivéssemos acabado de vez com o sentimentalismo
bonapartista em França.
- Se ele tivesse sido morto, temo que as ruas de Paris se tivessem enchido de sangue com os apoiantes dele e os seus a cortarem o pescoço uns aos outros.
O duque de Angoulême olhou de soslaio para Arthur.
- Por vezes, o sangue é o preço da paz e da segurança.
- E às vezes não tem de ser - redarguiu Arthur com firmeza. - Já se derramou sangue mais do que suficiente.
O francês virou-se para observar os soldados com um ronco de desprezo. Após um instante, Arthur ajeitou a estola para evitar ao máximo que os chuviscos lhe molhassem
o pescoço.
Enquanto a inspeção continuava, a mente de Arthur divagou para a situação geral de Paris. Tinha tomado posse do seu cargo como embaixador havia quase três meses
e, ao início, ficara satisfeito com a sua receção na sociedade parisiense. O governo britânico tinha comprado a casa de Paulina Bonaparte para servir de embaixada
e os aposentos eram tão confortáveis como qualquer coisa que Arthur pudesse desejar; também tinham agradado a Kitty, quando ela se lhe juntara em outubro. Desde
a sua chegada, Arthur tinha sido bem recebido nos salões parisienses e Madame de Staël tinha-se revelado uma útil aliada, prestando-lhe apoio na promoção da causa
governamental pela abolição do comércio de escravos em França. Até tinha conhecido muitos dos marechais e generais que antes tinham servido Bonaparte e ficara agradado
com a forma cordial, e muitas vezes amistosa, que tinham acompanhado as suas discussões das experiências da guerra recém-terminada.
Todavia, conforme as semanas iam passando e Arthur conhecia melhor o ambiente geral da capital francesa, ficava cada vez mais preocupado. Os Bourbons até podiam
estar de volta ao poder, mas o entusiasmo do público pelo regresso à paz e à restauração da monarquia tinha-se rapidamente transformado em descontentamento. Em várias
ocasiões, Arthur testemunhara pequenos grupos de homens em cafés a brindar ao antigo imperador. Depois, apenas um dia antes da inspeção da Guarda Real, tinham sido
atiradas pedras às janelas da embaixada.
As notícias de Viena também não eram as mais encorajadoras. As comunicações codificadas de Castlereagh revelaram que uma aliança formal entre a Rússia, a Prússia
e a Áustria ainda era um perigo bem real. Tanto ele como Talleyrand estavam empenhados em afastar a Áustria dos outros para manter um equilíbrio na Europa. Caso
contrário, uma nova guerra poderia vir a ser inevitável.
O duque de Angoulême aproximou-se dele.
- Chegou a altura do encerramento, meu caro Wellington. Olhe ali.
Apontou para o fundo do pátio, para onde a Guarda estava a formar uma linha dupla de frente para onde se encontravam os inspetores. O francês lançou um olhar a Arthur
e sorriu.
- E agora um pouco de teatro. Vamos ver como é que a audiência reage?
Gesticulou discretamente para os oficiais, os aristocratas e suas esposas que estavam a ver a inspeção na plataforma atrás deles. Na zona da parada, o coronel responsável
tinha desembainhado a espada e gritava agora a ordem de preparação para abrir fogo. Os mosquetes foram empunhados.
Ouviu-se um murmúrio ansioso por trás de Arthur, que olhou em volta e viu que os amigos do duque de Angoulême se agitavam incomodados, esquecendo o desconforto causado
por estarem em pé a apanhar frio e humidade. O duque riu-se alegremente enquanto dizia baixinho para Arthur:
- Não há qualquer motivo para preocupação. Estão a disparar cartuchos vazios. Pensei que seria divertido dar aos nossos convidados uma ideia do que seria estar do
lado de quem recebe uma rajada de tiros do início de guerra.
- A sério? - redarguiu Arthur sem expressão. - Posso garantir-lhe que existe um mundo de diferença entre o simples fumo e barulho, e a realidade.
O duque encolheu os ombros e centrou a atenção na linha de soldados, enquanto estes faziam pontaria através da parada em direção à plataforma de inspeção. O coronel
gritou uma ordem e um instante depois explodiam fogo e fumo, obscurecendo a linha de soldados, um momento antes de o embate ensurdecedor ecoar nas paredes do palácio.
Arthur, mais do que ouvir, sentiu a quase impercetível chicotada através do ar, quase perdida no barulho da rajada de tiros. Um estalo estridente ouviu-se atrás
dele e virou-se rapidamente. Duas vidraças das janelas do palácio tinham-se despedaçado, mesmo por cima das cabeças da audiência, alinhadas com Arthur e o duque.
Alguns dos convidados viraram-se para ver e arquejaram, alarmados, instintivamente chegando-se para as escadas de ambos os lados da plataforma. Outros ficaram perplexos
a olhar para cima, após o que se viraram ansiosamente para os soldados. O coronel continuava a dar ordens, sem prestar atenção a quem estava na plataforma, e os
soldados colocaram os mosquetes ao ombro e começaram a marchar para sair, através de um arco, e regressar ao quartel.
Arthur virou-se para o duque de Angoulême, que estava rigidamente imóvel, com as mãos apertadas em punhos de cada lado do corpo.
- Traição - murmurou. - Traição. Vou exigir que encontrem os culpados e os fuzilem com as próprias armas.
Tinha o queixo a tremer quando acabou de falar, se de medo ou raiva, Arthur não conseguia dizer. Arthur abanou a cabeça.
- Não me parece que haja muita esperança de encontrar os responsáveis. Mesmo que alguém soubesse quem disparou os tiros, o mais certo é que se fechem em copas e
mantenham as bocas fechadas.
- Nesse caso estarão todos envolvidos - prosseguiu o duque. - São todos traidores. Vou obrigá-los a dizer a verdade.
- Faça isso e todos se voltarão contra si - alertou-o Arthur. - Faça como quiser e encontre os culpados, mas discretamente e mais tarde. Por enquanto tem de agir
como se nada tivesse acontecido. - Indicou-lhe os convidados. - Caso contrário, vai alarmá-los.
- Sim. Sim, claro. - O duque aquiesceu enquanto se esforçava por acalmar os nervos. Pigarreou para clarear a garganta e obrigou-se a sorrir, enquanto acenava para
as portas que davam para o palácio. - Meus amigos, agora que a inspeção está completa, lá dentro esperam-vos refrescos!
Com Arthur a seu lado, indicou o caminho escadas abaixo, através do cascalho, até às portas, que rapidamente foram abertas por lacaios. Atrás deles, o resto da audiência
seguia, trocando palavras murmuradas, enquanto alguns davam uma última olhadela para o pátio, não fossem os soldados voltar.
- Nem uma palavra à minha mulher sobre isto, está a perceber? - disse Arthur a Somerset enquanto lhe relatava o atentado contra a sua vida nessa tarde na embaixada.
- Claro, milorde. Mas vossa senhoria tem a certeza de que era o alvo?
- Foram disparados dois tiros; pode ter havido mais. - Arthur recordou brevemente a cena. Estava de pé, a diversos passos de distância da janela do gabinete, e olhava
lá para baixo, para a avenida arborizada, onde uma constante corrente de parisienses andava com dificuldade no meio da chuva. Prosseguiu sombriamente: - Os disparos
foram dirigidos a mim e ao duque. Não tenho qualquer dúvida. A intenção era o assassínio. E não é a primeira vez que os inimigos da Inglaterra levam a cabo a tentativa.
Somerset concordou com um aceno de cabeça. Tinha havido outros relatórios de conjuras idênticas por parte de agentes locais, pagos pela embaixada. Estes tinham seguido
para Londres e o primeiro-ministro, lorde Liverpool, informara Arthur de que estavam a reconsiderar a nomeação como embaixador.
Arthur tufou as faces.
- Bem, agora temos de pensar nas implicações do atentado à minha vida levado a cabo esta tarde. Passe a palavra aos nossos agentes de que devem manter os olhos e
os ouvidos bem abertos à procura de qualquer indício da trama. Quero saber tudo. Também temos de informar os oficiais da embaixada desta ameaça. Terão de ser diligentes
quanto à sua segurança sempre que deixarem a embaixada. De hoje em diante, vou levar uma escolta comigo. Escolha quatro bons homens. Devem seguir atrás da minha
carruagem, vestir-se casualmente e manter as armas longe da vista. Entendido?
- Sim, milorde. E quanto aos passeios da sua esposa?
- A minha esposa? - Arthur esfregou o queixo. - Falo com ela primeiro. Ao jantar.
- Não compreendo, meu querido. - Kitty abanou a cabeça. - Se não há nada a temer, porque devo abreviar as minhas visitas sociais?
- É só uma precaução - explicou Arthur gentilmente. - Já viste como são as ruas. Os bonapartistas falam mais abertamente do seu descontentamento do que nunca. Esta
não é uma altura muito boa para se ser inglês em Paris. Mas vai passar. O novo regime não vai tolerá-los por muito mais tempo.
Kitty cortou descontraidamente o seu pedaço de bife enquanto respondia:
- Meu querido Arthur, nunca vi nada que me causasse desconforto desde que estou no estrangeiro. Mas se é o teu desejo que eu exerça prudência, nesse caso fá-lo-ei.
- Obrigado, Kitty.
Levou gentilmente o garfo à boca e mastigou a carne antes de voltar a falar.
- E em relação às crianças? Juntam-se a nós no Natal, como planeado?
Arthur já tinha pensado nisso e assentiu.
- Eles que venham. Tenho a certeza de que não há perigo. Além disso, se não viessem, os nossos anfitriões franceses talvez ficassem ofendidos.
- Sim?
- Kitty, temos de lhes mostrar que não estamos apavorados. Temos de agir normalmente.
- Disseste que não havia perigo.
- E não há. Não há perigo real.
Kitty fez uma pausa e semicerrou os olhos, enquanto fitava o marido do outro lado da mesa.
- Não me estás a dizer toda a verdade, pois não? O que aconteceu, Arthur?
- Nada com que tenhas de te preocupar, minha querida - respondeu Arthur, com o que esperava ser um sorriso reconfortante. - Talvez esteja a ser excessivamente cauteloso.
- E talvez estejas a pôr em perigo os nossos filhos.
Arthur olhou-a fixamente por um momento.
- Nunca faria isso. Acredita em mim. Eles estarão suficientemente seguros em Paris, dou-te a minha palavra.
- Suficientemente seguros?
- Por Deus, Kitty, estou a dizer-te que eles estarão seguros! - Arthur perdeu a paciência. - Arthur e Charles vão juntar-se aqui a nós. Está decidido.
Kitty baixou a faca e o garfo e recostou-se na cadeira com uma expressão nervosa.
- Não há necessidade de levantares a voz, meu querido. Eu vergo-me sempre à tua vontade. Sabes disso e acho que me tens em menor conta por causa disso. Não sou tão
tola como por vezes pensas.
- Kitty, eu nunca...
- Por favor. Eu sei que nunca mo dirias na cara. Mas pergunto-te, que tipo de pai coloca os filhos numa situação de menor segurança para garantir a reputação do
seu país?
Arthur fitou-a em silêncio por um momento antes de responder sem expressão.
- Fazemos o que temos de fazer pelo nosso país. Todos nós. É tão simples quanto isso. É o dever que está associado à nossa posição, até para os mais jovens.
Arthur e Charles chegaram em finais de dezembro, escoltados por uma ama e três criados, um deles um agente do governo com uma mensagem para Arthur. Depois de cumprimentar
as crianças, recolheu-se no gabinete para quebrar o selo da mensagem e ler o conteúdo. Lorde Liverpool tinha pensado bastante na deterioração da situação em Paris
e estava ansioso por assegurar que Arthur fosse preservado dos perigos de assassinato, uma vez que era bem possível que o seu país viesse novamente a precisar dos
seus préstimos como general. Por essa razão, Castlereagh seria chamado de volta de Viena e Arthur passaria a representar os interesses britânicos em seu lugar. Somerset
permaneceria em Paris para gerir a embaixada e Arthur foi aconselhado que Kitty e as crianças também deveriam permanecer, para assegurar ao rei Luís que Arthur tencionava
regressar a Paris, uma vez terminados os negócios do congresso.
Apesar de a situação diplomática ainda ser grave, havia boas notícias. Tinha sido acordada paz entre a Inglaterra e os Estados Unidos. Por isso, Arthur podia ficar
descansado, pois o governo agora podia centrar toda a sua atenção na Europa. Também significava que mais soldados estariam disponíveis para serem destacados para
o exército sob o comando de Arthur nos Países Baixos.
O Natal passou com tranquilidade e Arthur e Kitty esforçaram-se por entreter os dois rapazes, mostrando-lhes o que havia para ver na capital francesa. Mesmo quando
tentou ao máximo desempenhar o papel de pai extremoso, a mente de Arthur distraía-se com os afazeres mais grandiosos. Tinha pressionado o rei de França para ordenar
a Talleyrand que cooperasse com Castlereagh em Viena, vinculando a Grã-Bretanha, a França e a Áustria num pacto contra as outras duas potências, caso acontecesse
uma guerra.
Arthur deixou Paris na última semana de janeiro, viajando de carruagem para Viena, onde chegou na noite do dia 3 de fevereiro. Apesar do avançado da hora, procurou
Castlereagh na magnífica mansão que tinha sido atribuída aos representantes ingleses no congresso. Castlereagh parecia pálido e exausto quando Arthur foi conduzido
por um criado ao seu gabinete de trabalho. O outro homem levantou-se, sorriu com uma expressão de cansaço e atravessou a sala para apertar a mão a Arthur.
- É bom vê-lo novamente, Arthur. Como correu a viagem?
- Foi comprida e molhada.
- Loquaz como sempre - gracejou Castlereagh. - No entanto, uma certa reticência vai ser útil aqui em Viena. Apesar da aparência civilizada - parece haver um baile,
um banquete ou um bailado a decorrer a todas as horas do dia -, este sítio está cheio de víboras.
- Foi o que percebi pelas suas cartas.
- Talleyrand e Metternich são os mais dissimulados patifes que alguma vez encontrei, sempre a fazer a ronda dos salões privados e gabinetes, propondo acordos secretos
e vendendo confidências. Vendo bem, transformaram essas práticas numa autêntica indústria. Suponho que devo ficar feliz por serem patifes dos "nossos". Pelo menos
por enquanto.
- Imagino que teve de lhes oferecer alguma contrapartida para apoiarem a nossa posição - aventou Arthur enquanto se sentava. Castlereagh voltou a sentar-se e anuiu.
- Provavelmente não precisava de ter oferecido tantos pagamentos de persuasão, mas a situação é tal que não quis correr quaisquer riscos. Agora que temos o tratado
assinado e selado, espero que não tenha de lhes pagar nem mais um centavo. - Castlereagh esboçou um frágil sorriso. - Sei que tem uma profunda antipatia por subornos
e tramoias de bastidores.
- Assim é - garantiu Arthur. - Acredito que homens com honra podem alcançar um bem mais duradouro sendo pacientes e observadores do que fazendo politiquices.
- Nesse caso vai ser uma espécie estranha no congresso. - Castlereagh fez uma pausa e olhou para Arthur com argúcia. - Apesar de me parecer que este tipo de abordagem
pode ganhar muitos favores depois dos recentes meses de deslizes. Além disso, a sua reputação precede-o. O czar considera-o o maior herói desta geração, para desconsolo
dos seus próprios generais, claro.
- O czar Alexandre tem tendência para ser generoso nos seus elogios. - Arthur recordou os encontros com o czar em Londres, no verão anterior.
- Não se deixe enganar, Arthur. Alexandre é um governante tão absolutista quanto o foi Bonaparte e igualmente interessado em expandir os seus domínios. Conseguiu
ludibriar o rei da Prússia, levando-o a apoiar as suas pretensões e pagou-lhe com a promessa de alguns restos da Polónia, bem como liberdade de ação no que diz respeito
aos outros Estados alemães. Se tal for permitido, não conseguiremos um equilíbrio justo na Europa e a guerra será inevitável. É isso que deve evitar a todo o custo.
- Castlereagh fez uma breve pausa. - Pelo menos com o tratado, terá uma arma com que poderá combater, caso Alexandre e Frederico Guilherme continuem a pressionar
para obter mais vantagens no acordo final.
- É bom ter o tratado - concordou Arthur. - Mas só o devo utilizar como último recurso.
- Como queira. - Castlereagh fez uma ligeira vénia com a cabeça. - Será muito gratificante ver a razão prevalecer, em vez de ameaças veladas. Desejo-lhe a maior
das felicidades, Arthur. Fico satisfeito por abandonar este sítio.
Tal como Castlereagh o alertara, existiam dois mundos diferentes no congresso. Com a reunião de tantos governantes, homens de Estado e os séquitos tornava-se inevitável
que os eventos de alta sociedade obtivessem tamanha proeminência. Entre os eventos, as negociações prosseguiam na miríade de quartos nos vastos amontoados do palácio
de Schönbrunn. As lareiras eram constantemente alimentadas pelos criados e os delegados das grandes potências discutiam os termos do acordo europeu no meio de um
intenso calor. A desconfortável atmosfera era ainda mais agravada pelas dificuldades auditivas cada vez maiores do czar, que obrigavam os outros delegados a esforçar
as vozes, enquanto conversavam em francês, a língua comum à maioria das cortes reais do continente. A recusa de Arthur em participar de quaisquer encontros secretos
e a sua aberta discussão da necessidade de chegar a um acordo e dos perigos de não o fazer rapidamente fizeram-no ganhar o respeito das outras potências, tendo o
czar começado a ceder nas suas exigências.
Um mês após a sua chegada, o dia amanheceu limpo e fresco, e Arthur levantou-se cedo para se vestir para uma caçada que teria lugar no vasto parque que se estendia
pela paisagem a oeste do palácio. Tomou o pequeno-almoço e estava à espera que o seu cavalo fosse selado e trazido até ao pátio nas traseiras da mansão da delegação
britânica, quando se ouviu uma batida forte na porta da sala de jantar privada. Arthur baixou o café e exclamou: - Entre!
A porta abriu-se e um homem alto, de feições estreitas, entrou. Trazia um grosso casaco salpicado com lama. Estava desabotoado e deixava entrever a fita de ouro
sobre o casaco vermelho de oficial do exército britânico. Caminhou através da sala, parou à frente da mesa de pequeno-almoço e fez continência. Arthur ostentou uma
expressão de desagrado.
- Quem diabo é o senhor?
- Coronel Neil Campbell, milorde.
- Campbell? - repetiu Arthur, ao que arregalou os olhos. - O residente em Elba?
Campbell assentiu, revelando ansiedade.
- Sim, milorde.
- O que faz aqui?
- Vossa senhoria, tenho a relatar que Napoleão Bonaparte fugiu de Elba.
- Fugiu? Para onde?
- Não sei. Apenas sei que quando regressei à ilha, ele não estava lá.
- Abandonou a ilha? - Arthur ostentou mais uma expressão de desagrado. - Em nome de Deus, porquê?
- Eu... fui convidado para um baile em Florença, milorde. - Campbell desviou o olhar de Arthur. - Só me ausentei alguns dias. Nada parecia estar a passar-se quando
parti. Quando voltei, Bonaparte tinha desaparecido, juntamente com os seus homens. Fui imediatamente para Itália e enviei uma mensagem para Londres, e agora vim
a Viena informar as potências no congresso.
Arthur olhou furiosamente para o homem. O monstro da Europa estava outra vez à solta, graças à falta de diligência de Campbell.
- Fique aqui. Interrogá-lo-ei com mais pormenor assim que voltar.
- Sim, milorde.
Arthur levantou-se e caminhou até à porta. Andou rapidamente e encontrou um dos seus adidos à espera, junto à porta do hall, para se juntar a Arthur na caçada.
- Pode voltar a mandar os cavalos para o estábulo.
- Milorde?
- Surgiu outra coisa - respondeu Arthur. - Corra às outras delegações. Diga-lhes que temos de nos encontrar em Schönbrunn imediatamente; trata-se de um assunto da
maior urgência. Corra, homem, como se o próprio Diabo viesse na sua peugada!
- Fugiu? - Metternich meneou a cabeça e depois começou a rir-se. Os outros delegados na sala fizeram o mesmo, apesar de as suas gargalhadas serem mais nervosas do
que bem-dispostas, reparou Arthur.
- Onde é que ele julga poder esconder-se? - O rei da Prússia soprou. - Ele é a figura mais notória da Europa. Quem ousaria dar-lhe guarida?
- Não sei para onde se dirigiram os seus barcos, majestade - respondeu Arthur. - Mas imagino que o mais provável será ir para Itália.
- Porquê Itália? Porque não França?
Talleyrand abanou a cabeça.
- Seria preso ou assassinado assim que pusesse os pés em solo francês. Eu concordo, ele irá para Itália. Tem amigos lá e família. Napoleão vai procurar Murat.
- Apesar de Murat o ter traído no passado? - questionou-se Metternich.
- Imagino que vá pedir asilo ao cunhado - aventou Talleyrand. - Eu conheço-o, conheço a sua força de vontade. É difícil dizer-lhe que não. Murat vai aceitá-lo. Então,
quando o momento for adequado, Napoleão vai usurpar o poder. O reino de Nápoles será a sua nova base de operações.
Fazia algum sentido, refletiu Arthur. Os domínios de Murat providenciar-lhe-iam um exército suficientemente grande para ameaçar os restantes reinos de Itália.
O czar aclarou a garganta e chegou-se à frente na mesa da conferência.
- A questão, cavalheiros, é o que vamos fazer quanto a isto?
Talleyrand olhou-o com uma expressão ligeiramente surpreendida.
- Fazer, majestade? Ora essa, temos de organizar um exército para marchar sobre Napoleão e esmagá-lo, antes que ele tenha tempo de se preparar. Isso é óbvio. Entretanto,
o congresso tem de continuar. O acordo de paz é mais importante do que a perseguição de um criminoso, ainda que famoso.
Os outros delegados acenaram a sua concordância, mas Arthur não estava assim tão certo. Tinha testemunhado as fortes lealdades que Bonaparte ainda comandava em Paris.
Se Bonaparte hasteasse o seu estandarte em Nápoles, muitos milhares se juntariam à sua volta e os que ficassem causariam muitos problemas ao novo regime em França.
Nos dias seguintes, foram enviadas mensagens de Viena para mobilizar os exércitos aliados. A audácia da fuga de Bonaparte chocara os delegados, mas não parecia fazer
sentido que ele representasse um risco imediato para a Europa, pelo que as potências continuaram as suas deliberações, enquanto aguardavam por confirmação da sua
localização. Só quatro dias depois da chegada do coronel Campbell com as novidades do seu desaparecimento é que a verdade foi conhecida. Um dos ajudantes de Talleyrand
entrou na sala mesmo antes da pausa do meio-dia e sussurrou-lhe com urgência ao ouvido. Arthur observou o rosto do ministro dos negócios estrangeiros francês ficar
lívido. Metternich estava a falar, lendo diretamente das suas notas, e não tinha reparado no pequeno drama.
Talleyrand bateu com os nós dos dedos ruidosamente na mesa e o ministro austríaco olhou para cima, irritado, parando de falar a meio de uma frase.
- Perdoem-me a interrupção - disse Talleyrand enquanto olhava à volta da mesa, - mas acabei de ser informado de que Napoleão desembarcou na costa de França há seis
dias. Ele declarou que vem reclamar o trono e está a marchar para Paris.
Houve um momento de silêncio estupefacto, ao que Arthur falou:
- As autoridades locais fizeram-lhe frente?
- Pelo contrário. Dizem-me que foram ter com ele sem ser disparado qualquer tiro.
- Por Deus, isso são más notícias. Outros se seguirão. Se os for recolhendo a caminho de Paris, temo que nada o travará. - Arthur tossicou e falou tão claramente
quanto podia, para se certificar de que o czar entendia todas as palavras. - Vossas majestades, ministros, delegados, isto muda tudo. A paz na Europa está uma vez
mais ameaçada. Todos os soldados disponíveis devem preparar-se para a luta. Se Bonaparte conseguir o que reclama, então terá os exércitos da França de novo ao seu
serviço. Teremos de o enfrentar no campo de batalha outra vez.
- Temos de fazer mais do que isso - interrompeu Talleyrand. - Temos de nos assegurar de que ele não volta a trazer problemas à Europa. Peço que antes de suspendermos
o congresso para lidar com esta ameaça, façamos passar uma última resolução. Que Napoleão Bonaparte seja declarado um criminoso internacional. Na eventualidade de
ser detido, então os poderes aqui reunidos devem decretar em conjunto que ele está além da proteção da lei.
- Não posso concordar com isso - protestou Arthur. - Seria pura e simplesmente uma incitação ao assassinato. Assassinato. Independentemente das questões éticas,
é uma faca de dois gumes. Convido-os a refletir nisto.
- Contudo, é um passo que temos de tomar - contrapôs Talleyrand. - Falando pela França, eu proponho a resolução.
- E a Prússia apoia-a! - disparou sem pensar o rei Frederico Guilherme. - A morte é exatamente o que esse tirano merece.
- Muito bem. - Talleyrand virou-se para Metternich. O austríaco acenou afirmativamente e Talleyrand fixou o olhar no czar. - O que diz vossa majestade?
Alexandre não respondeu de imediato e levantou a mão para tocar na testa. Os lábios comprimiram-se numa linha estreita, após o que suspirou profundamente, acenando
com a cabeça.
- Apoio a resolução.
- Quatro contra um. - Talleyrand voltou-se de novo para Arthur. - A Grã-Bretanha juntar-se-á aos outros poderes ou ainda estenderão a proteção da lei a Bonaparte?
Arthur retribuiu o olhar friamente. Estava a ser obrigado a tomar uma posição na qual não queria estar. A deposição de Napoleão era do interesse de qualquer homem,
mulher e criança da Europa, mas Arthur não conseguia pôr de parte os valores civilizados que a Inglaterra tanto se esforçara por manter através dos longos anos de
luta para libertar a Europa da tirania. Acreditava que o governo britânico também não o faria. No entanto, Talleyrand tinha razão. Se a Grã-Bretanha não declarasse
Bonaparte criminoso, então ele certamente se serviria disso como forma de legitimação. Pior ainda, veria isso como uma divisão nas fileiras dos inimigos e iria explorá-la
para os separar. Com um suspiro de cansaço, Arthur, relutante, acenou afirmativamente com a cabeça.
- Muito bem, eu apoio a resolução.
Talleyrand virou-se imediatamente para um dos seus adidos.
- Peça que seja posto por escrito para os delegados assinarem. Agora, sugiro que o congresso faça um intervalo. Estamos de acordo? Sim?
Os delegados levantaram-se e começaram a esvaziar a sala. Arthur sentiu uma mão tocar-lhe no ombro quando estava a chegar à porta e virou-se, encontrando o czar
a olhá-lo seriamente.
- Majestade?
- O que fará, meu caro duque?
- Tenho de enviar uma mensagem para Paris para que a minha família saia de lá assim que possível. Depois concluirei os nossos assuntos aqui o mais rapidamente possível
e dirigir-me-ei a Bruxelas para assumir o meu comando.
- Ah. Então cabe-lhe a si, mais uma vez, salvar o mundo.
- Esse é o fardo que todos temos de carregar, majestade. O maior teste da nossa geração chegou.
- E se falharmos?
Arthur olhou-o fixamente por um momento e abanou a cabeça.
- Não nos atrevemos.
Capítulo 54
Napoleão
Laffrey, perto de Grenoble, 7 de março de 1815
- Porque é que os seus homens pararam? - quis saber Napoleão, quando a carruagem se deteve com alguns safanões provocados pela estrada em mau estado.
O general Cambronne, comandante da companhia de guardas que liderava o avanço, apontou pela estrada na direção de Grenoble.
- Encontrámos um batalhão de infantaria pouco depois de avançar logo pela manhã, sire.
- Não houve tiroteio, presumo? - indagou bruscamente Napoleão. Tinha avisado Cambronne que não queria derramar sangue francês quando lhe dera as suas ordens para
liderar a vanguarda da pequena força que Napoleão trouxera consigo de Elba. O antigo imperador tinha desembarcado perto de Antibes com pouco mais de um milhar de
soldados, um esquadrão de lanceiros e um par de canhões. Era um exército minúsculo para reclamar o seu trono, refletiu Napoleão, mas tinha feito progressos desde
a costa sem perder tempo. Dadas as inclinações realistas do povo da Provença, optara por evitar a estrada mais direta para Paris em proveito da estrada que atravessava
as colinas até Grenoble. Até então tinha vindo a ser recebido com entusiasmo contido nas vilas e aldeias que atravessara. Ainda que o entusiasmo pelos Bourbons se
tivesse desvanecido, o povo estava preocupado em evitar represálias no caso de a jogada arrojada de Napoleão ser mal sucedida. Por isso queriam esperar para ver
o resultado desta sua última aventura.
O general Cambronne abanou a cabeça.
- Não houve qualquer tipo de violência, sire. Assim que encontrámos a sua companhia avançada, disse aos nossos homens para os saudarem calorosamente e partilharem
algum vinho. Não obstante, o seu capitão não quis saber disso. Ordenou aos seus homens que recuassem e marchassem de regresso ao resto do batalhão. Foi-me dito que
não o seguisse, ou ele ordenaria aos homens que abrissem fogo.
- Muito bem - disse Napoleão, a coçar a barba mal aparada. Era o momento que temia. Até aí, ninguém se lhe tinha oposto. Agora via-se confrontado por homens armados,
cujos oficiais estavam claramente determinados em impedir a sua progressão. A questão que se punha era se os soldados seguiriam as suas ordens no momento crítico.
Napoleão sentou-se na carruagem e refletiu cuidadosamente sobre a situação. Durante os dez meses que permanecera em Elba, não tinha deixado de acompanhar de perto
os acontecimentos em França. Além do escrutínio habitual dos jornais, tinha vindo a receber relatórios secretos de simpatizantes, e até mesmo de Fouché, que tinha
sido suficientemente astuto para manter um pé em cada campo. Napoleão e a maioria dos franceses tinham ficado surpreendidos quando o rei Luís nomeara o intriguista
como ministro da polícia, o cargo que outrora desempenhara para Napoleão.
Havia sido Fouché que o informara que o Conde d'Artois, o seguinte na linha sucessória, pretendia revogar as liberdades ganhas pelo povo nos anos após a Revolução.
D'Artois estava também a planear revogar as reformas fundiárias que tinham transferido muitos dos domínios aristocráticos para o campesinato. O estado de espírito
em França era venenoso, escreveu Fouché ao seu anterior amo. O povo comum encarava os Bourbons e os seus seguidores com desconfiança. O sentimento tinha eco junto
dos soldados desmobilizados, que estavam a lutar para encontrar o seu lugar no seio do novo regime, e olhavam para trás, para os dias do império, com anelo crescente.
Quando Napoleão leu os relatórios, decidiu-se a abandonar o minúsculo reino de Elba na primeira oportunidade. Nenhuma ilha de doze mil habitantes poderia satisfazer
as suas ambições, ou mitigar o seu enfado, pelo que começou a fazer preparativos secretos. O seu pequeno exército era regularmente treinado e o navio de guerra,
um pequeno brigue, foi complementado por outros cinco navios mais pequenos, suficientes para transportar Napoleão e os seus homens até França. Tudo isto teve de
ser levado a cabo debaixo do nariz do residente britânico. O coronel Campbell era um oficial gentil, grande admirador do seu anfitrião, e Napoleão teve o cuidado
de falar com entusiasmo acerca dos planos para melhorar Elba sempre que os dois tinham ocasião de trocar ideias. Campbell pareceu convencido de que Napoleão tinha
aceitado a sua nova condição de vida mais modesta. Tal era a confiança de que Napoleão já não representava qualquer perigo que anunciou que faria uma breve visita
a Florença.
Napoleão escondeu a sua satisfação perante a notícia ao perguntar qual a data em que Campbell regressaria, sob pretexto de estar a preparar um baile e não querer
que o inglês perdesse o acontecimento. Assim que Campbell partira, Napoleão e os seus seguidores tinham carregado apressadamente mantimentos e equipamento a bordo
da flotilha de pequenos navios, e partiram apenas algumas horas antes do regresso do brigue da Marinha Real que levara Campbell até Itália.
A sorte, como sempre, foi-lhe madrinha, pensou Napoleão. Mas agora enfrentava o maior teste da sua nova aventura. A estrada à frente estava bloqueada por soldados
de linha, enviados pelos realistas para o confrontar e prender.
- Sire, quais são as vossas ordens? - Cambronne interrompeu os pensamentos de Napoleão. - Devo distribuir os homens?
- Não. Faça-os formar em coluna, lanceiros à frente. Nós dois vamos à frente da coluna. A que distância está a estrada bloqueada?
Cambronne voltou-se para olhar para a estrada. Esta inclinava-se suavemente para baixo, na direção de uma colina, e depois virava junto à margem de um pequeno lago,
cujo final ainda se conseguia vislumbrar. Para a esquerda erguiam-se abruptamente colinas íngremes, formando um desfiladeiro estreito através do qual Napoleão e
os seus homens teriam de marchar para alcançar Grenoble.
O veterano apontou na direção do lugar onde a estrada desaparecia em redor da colina.
- Mesmo para lá da colina, sire, perto da outra margem do lago.
- Muito bem, vamos prosseguir.
Cambronne hesitou.
- Devo movimentar os canhões para perto da frente da coluna, sire? Se houver sarilhos, eles podem limpar o caminho com alguns tiros de metralha.
- Não haverá sarilhos - disse secamente Napoleão. - Se houver, então a nossa causa está perdida. Agora, dê a ordem para que os homens se preparem para avançar. Certifique-se
de que cada homem compreende que não deve disparar um tiro sem a minha ordem expressa. Se alguma coisa me acontecer, devem depor imediatamente as armas. Compreendido?
Cambronne anuiu com relutância e depois afastou-se para junto dos homens que se tinham espalhado ao longo da estrada, gritando-lhes que voltassem a formar fileiras.
Minutos depois, a coluna começou a marchar estrada fora. Napoleão ia agora montado num cavalo branco e vestia o velho sobretudo cinzento e bicorne gasto que era
familiar a todos os soldados que tinham estado consigo em campanha ao longo dos anos. Quando a estrada curvou em redor da colina, sentiu o seu coração a acelerar.
À direita espraiava-se o pequeno lago, com as suas águas calmas a refletir a ravina arborizada da margem oposta. No extremo oposto do lago havia um campo aberto,
talvez com uns cem passos de largura, entre a encosta e a margem do lago. Um grupo de soldados estava à espera, formado em linha, com as baionetas caladas a cintilar
ao sol da tarde.
- Que unidade é aquela? - perguntou Napoleão.
- O primeiro batalhão do quinto regimento da linha, sire.
Napoleão acenou.
A coluna avançou em silêncio, marchando pela margem do lago. Napoleão espreitou para trás, através dos pendões dos lanceiros, e viu expressões apreensivas no rosto
dos guardas. Se houvesse luta, os veteranos não teriam trabalho com os homens que lhes faziam frente. Mas no momento em que se derramasse a primeira gota de sangue,
a França ficaria amargamente dividida. Mesmo que Napoleão sobrevivesse a essa luta, ver-se-ia obrigado a lidar com as outras potências europeias quase sem hipóteses
de êxito.
À medida que a abertura entre a encosta e a margem começava a alargar-se, Napoleão ergueu a mão para deter a coluna.
- Faça com que a Guarda forme uma linha. Devem ter as armas ao ombro. Os lanceiros devem recuar e desmontar.
Cambronne respirou fundo, mas fez continência e afastou-se para dar as ordens. Enquanto os guardas se dispunham de ambos os lados da estrada formando as fileiras,
Napoleão olhou para a linha de infantaria que lhe barrava o caminho. Os soldados aguardavam em silêncio enquanto o oficial no comando espreitava pelo telescópio,
sentado no cavalo.
Assim que os soldados ficaram em posição, Cambronne regressou ao seu lugar junto de Napoleão.
- E agora, sire?
- É chegado o momento de me anunciar - indicou Napoleão.
Cambronne esporeou o cavalo e trotou na direção dos soldados que aguardavam. O comandante baixou o telescópio e observou o cavaleiro solitário que se aproximava.
Quando Cambronne não distava mais de cinquenta passos, o outro oficial levou as mãos à boca e gritou:
- Quem vem lá faz alto!
Segurando as rédeas, Cambronne ergueu o chapéu e respondeu:
- Camaradas! O nosso imperador regressou! Juntem-se a nós!
- Silêncio! - gritou o oficial, ao que ordenou aos seus homens: - Avancem de mosquetes em riste!
As baionetas inclinaram-se para diante, com as pontas afiadas a brilhar na direção de Cambronne.
- O que significa isto? - irritou-se Cambronne. - Como se atreve a ameaçar-me? O que julga que está a fazer?
- Tenho ordens para o impedir de avançar - respondeu o oficial com firmeza. - Vai entregar o criminoso que ali está e dizer aos seus homens que deponham as armas.
- Não farei tal coisa!
- Se não se render em dez minutos, darei ordem para abrir fogo. - O oficial puxou do relógio e olhou para ele.
- Se disparar contra o imperador, vai ser responsável perante toda a França! - respondeu Cambronne. - Vamos lá, somos todos franceses.
Manteve-se sentado e aguardou por uma resposta. O oficial acabou por olhar para cima novamente.
- Nove minutos...
Deixando escapar uma maldição entre dentes, Cambronne deu meia-volta à montada e trotou de regresso na direção de Napoleão.
- Ouviu, sire?
- Sim.
- Julga que ele dará a ordem?
Napoleão fitou a linha de soldados por um momento.
- Só há uma maneira de descobrir. - Apeou-se e passou as suas rédeas a Cambronne. - Fique aqui. Se alguma coisa me acontecer, lembre-se das suas ordens.
- Sire, não vos podeis pôr em perigo. A França precisa de vós.
- Calado - atalhou Napoleão. Respirou fundo e começou a caminhar lentamente na direção dos soldados. À medida que o foi fazendo, foi também desapertando os botões
do sobretudo para deixar entrever a casaca verde de um coronel da Guarda. O coração batia-lhe depressa enquanto olhava para a fileira de baionetas inclinadas na
sua direção. Sabia que estava a jogar a sua reputação contra a disciplina daqueles soldados. Se estivesse enganado, então seria provável que estivesse morto nos
minutos seguintes. Apesar de já ser primavera, ele sentia frio e teve de fechar os punhos atrás das costas para não tremer. Eles não podem ver o meu medo, pensou
determinado.
Continuou a aproximar-se sem vacilar, reparando nos pormenores das expressões dos homens que lhe estavam mais próximos. Era impossível discernir se lhe queriam algum
mal. Atrás deles, o oficial a cavalo olhava em desafio para Napoleão quando ele se deteve, a não mais de vinte passos das baionetas.
- Soldados do Quinto! Não me reconhecem? Não sou o vosso velho general?
As suas palavras ecoaram na encosta e fez-se silêncio até ele falar novamente.
- Se houver entre vós um homem que queira matar o imperador... então aqui estou! - Abriu o sobretudo e expôs o peito.
- Apresentar armas! - bradou o oficial, e os homens na fileira da frente ergueram os mosquetes.
- Apontar!
Napoleão cerrou os lábios com força e semicerrou os olhos enquanto se mantinha firme, encarando as bocas dos mosquetes que lhe estavam apontados diretamente.
- Fogo!
Napoleão sentiu um instante de terror gélido e depois o momento passou. Não houve o estrondo de uma salva, nenhuma chama e nenhum fumo. Nada além de um silêncio
tenso.
- Fogo, malditos! - gritou irado o oficial. - Obedeçam à ordem!
Antes de o som das palavras deixar de se ouvir, outra voz gritou: - Viva o Imperador!
Os soldados baixaram os mosquetes e aclamaram-no a uma só voz, ao mesmo tempo que rompiam as fileiras e se aglomeravam em torno de Napoleão. Alguns agarravam-lhe
a mão, enquanto outros, mais impressionados, ficavam satisfeitos por lhe tocar no sobretudo. Mas todos eles gritaram uma e outra vez pelo seu nome. Cambronne e os
seus homens acercaram-se e saudaram os outros homens como camaradas. Napoleão sorriu para os que o rodeavam e depois começou a andar para a frente, com a turba a
afastar-se para o deixar passar. Deteve-se diante do oficial a cavalo, um jovem major.
- Qual é o seu nome?
- Lansard - respondeu o homem entre dentes. Tinha o rosto corado de vergonha por ter perdido a autoridade. Ignorava os homens enquanto fixava o olhar em Napoleão.
Pegou na espada, desembainhou-a e depois atirou-a ao chão aos pés de Napoleão. Este olhou para a espada e depois fez um gesto na direção de um dos soldados ao seu
lado.
- Pegue nisso e devolva-a ao major.
Enquanto o major voltava a embainhar a espada com relutância, Napoleão sorriu-lhe.
- Lansard, não é mais prisioneiro do que eu fui. Agora, os seus homens são meus e eu pergunto-lhe, quer juntar-se a mim?
O oficial ficou em silêncio um instante e depois anuiu discretamente. De imediato houve mais gritos de entusiasmo e Napoleão teve de elevar a voz para que Lansard
o conseguisse ouvir.
- Junte-se com os seus homens à minha coluna. Assuma posição entre a Guarda e os lanceiros. Entendido?
- Sim... sire. - Lansard fez continência e Napoleão virou-se e regressou para junto de Cambronne e da Guarda.
- Cambronne!
- Sire?
- Envie um dos seus oficiais, junto com um dos de Lansard, até Grenoble. Eles devem anunciar ao povo, e a todas as unidades que aí encontrem, o que acaba de se passar.
Diga-lhes para anunciarem a chegada do seu imperador.
- Com certeza, sire. - Cambronne sorriu de alegria e alívio.
Napoleão devolveu o sorriso.
- A crise passou, meu amigo. Assim que os outros receberem a notícia de que este primeiro batalhão se passou para o nosso lado sem disparar um tiro, então o resto
do exército vai seguir-se. Até este momento eu era apenas um aventureiro. Agora? Agora sou novamente um grande príncipe da Europa...
Capítulo 55
Tulherias, Paris, 8 de abril de 1815
Napoleão amarrotou lentamente a proclamação do Congresso de Viena e continuou a esmagá-la entre as mãos.
- Então é assim que me tratam - afirmou num tom baixo, quase impercetível para os restantes homens sentados à volta da mesa. - Condenam-me a fora-da-lei. - Suspirou
amargamente e atirou a pequena bola de papel. - Podem ter a certeza de que isto é obra de Talleyrand. Esta é a sua vingança pelas indignidades a que o sujeitei ao
longo dos anos. E então, qual é o problema? Ele mereceu cada pedacinho. Cada insulto.
O conselho de ministros e generais estava sentado em silêncio. Tinham sido convocados para ouvir o imperador ler a proclamação dos aliados e discutir a resposta
apropriada. Napoleão olhou em volta para eles. Existiam muitos rostos familiares, chamados de novo ao serviço depois de Napoleão ter regressado a Paris. Tinha sido
recebido por uma multidão histérica a saudá-lo, que o levantara do chão e carregara pelas ruas até ao palácio e à sala do trono, abandonada ainda na véspera pelo
rei Luís. Napoleão fechara os olhos ao ser transportado, saboreando a sensação de poder que tinha sobre o afeto de tantos. Não apenas o povo de Paris. Em cada fase
da sua marcha desde a costa, o povo tinha saído à rua para o saudar com entusiasmo. Os Bourbons tinham enviado soldados para o travar, depois exércitos e, apesar
das ordens que tinham, os soldados tinham-se juntado a ele. Até o marechal Ney, que se tinha vangloriado a Luís que traria Napoleão para Paris numa gaiola de ferro.
Apesar de o povo e o exército o terem aclamado e exigido que reclamasse o trono de volta, os mais influentes elementos da sociedade francesa tinham encarado o seu
regresso com precaução. Os deputados da Câmara, que no ano anterior tinham votado a sua deposição, rapidamente se retrataram da decisão e deram as boas-vindas ao
imperador, de regresso à capital, implorando-lhe que mantivesse a paz na Europa. Por muito que gostasse de lhes ter respondido ao volte-face com desprezo, Napoleão
compreendeu que precisava do apoio deles. Sem a sua cooperação, e a dos oficiais e assembleias menores por toda a nação, seria quase impossível edificar o apoio
de que o seu regime necessitava.
O imperador restabeleceu o reinado com precaução. Tinha respondido aos pedidos de paz enviando mensagens aos restantes governantes da Europa, assegurando-lhes o
desejo de evitar conflitos. Até tinha promulgado um édito que declarava o fim do envolvimento da França no mercado esclavagista. Pelo menos isso devia ter angariado
algumas boas opiniões na Grã-Bretanha. Contudo, as ofertas de paz tinham sido ignoradas ou brevemente recusadas. Agora, os aliados tinham assinado um tratado comprometendo-se
a enviar meio milhão de homens para derrotar Napoleão. Queriam separar o imperador do seu povo, declarando que a guerra não era contra a França, mas apenas contra
Bonaparte, a quem haviam pronunciado criminoso.
- Todos vós sois testemunhas dos meus esforços para evitar a guerra - declarou Napoleão ao conselho. - Ofereci-lhes a minha mão em amizade e, como resposta, cuspiram-me
na cara e ofereceram-me, a mim e à França, apenas ameaças. É claro para todos os bons pensadores que a Rússia, a Áustria, a Prússia e a Inglaterra são os agressores.
O marechal Davout, que aceitara o cargo de Ministro da Guerra, tomou a palavra.
- Sire, podem estar a fazer um jogo a nosso favor ao não declararem guerra à França. Coloca-os numa posição difícil. Se invadirem a França, dificilmente conseguirão
evitar a união da nação sob o seu comando, especialmente porque lhes haveis oferecido a paz. Consequentemente, terão de aguardar e esperar ser atacados, justificando
desse modo uma declaração de guerra contra si em pessoa.
- Isso é verdade. - Napoleão anuiu pensativamente. - E o que me aconselha a fazer?
- Aguardar, sire. Não fazer qualquer tentativa de provocação militar. Entretanto, podemos construir a nossa força e preparar-nos para defender as fronteiras, caso
os aliados fiquem impacientes e decidam invadir. Este é o meu conselho.
- Estou a ver. - Napoleão olhou-o por um momento e depois abanou a cabeça. - Não podemos arriscar essa estratégia, Davout.
- E porque não, sire?
- De momento existem dois exércitos nos Países Baixos, um sob o comando do marechal Blücher, o outro comandado por Wellington. Cada um deles tem mais de cem mil
homens. Schwarzenberg tem outros cinquenta mil preparados para atravessar o Reno e ainda mais cento e cinquenta mil russos estão a marchar para se juntarem a eles.
Estarão em posição de invadir a França no final de julho. E o que temos para lhes fazer frente? Luís deixou-nos com pouco mais de duzentos mil homens para guardar
as fronteiras. Ordenei que chamassem de volta ao exército mais setenta e cinco mil veteranos, bem como oitenta mil voluntários. Mesmo depois de treinados, ainda
estaremos em grande desvantagem numérica. A falta de capital humano não é o único problema. Temos poucos cavalos, equipamento, munições. - Fez uma pausa. - Por isso,
como vê, o tempo não joga a nosso favor.
- Nesse caso, o que propõe, sire?
Napoleão juntou as mãos enquanto refletia na resposta que já tinha preparado. Tinha noção de que afastaria qualquer hipótese de apresentar a França como vítima dos
agressores e, ainda assim, não conseguia conceber nenhuma outra linha de ação.
- Só existe uma hipótese de êxito, cavalheiros. Se der hoje a ordem para a França se mobilizar para a guerra, em junho posso formar um exército de, talvez, cento
e trinta mil homens na fronteira com a Bélgica. É onde estão posicionados os dois exércitos aliados mais fracos. Se os conseguirmos surpreender, antes de se concentrarem,
estou confiante de que poderemos derrotar um de cada vez. Se conseguirmos aniquilar Wellington e o seu exército, poderemos forçar a Inglaterra a sair da coligação.
Sem o ouro inglês, as outras potências ficarão com dificuldades económicas para manter os exércitos em campo contra nós. - Napoleão fez uma pausa, enquanto via a
incerteza nas expressões dos seus subordinados. - Cavalheiros, asseguro-lhes que analisei atentamente cada alternativa. Se esperarmos e permitirmos que o inimigo
concentre todos os seus exércitos, então certamente seremos derrotados. Se atacarmos enquanto as nossas tropas estão frescas e com o moral elevado, podemos destruir
um terço da força do inimigo com uma só estocada. Os restantes certamente hesitarão. O meu objetivo é obrigá-los a oferecerem-nos a paz. Esse é o limite da minha
ambição, garanto-vos. Os velhos dias de conquista já acabaram. Têm a minha palavra. Teremos paz, mas antes temos de lutar por ela. - Olhou à volta da mesa. - Alguém
deseja falar? Não? Nesse caso, parto do princípio de que estamos de acordo. - Fez uma nova pausa antes de prosseguir. - Marechal Davout.
- Sire?
- Quero que a ordem para mobilizar as nossas tropas seja proclamada antes do final do dia.
- Sim, sire.
No resto do mês, e durante maio, Napoleão trabalhou sem descanso para preparar o país para a guerra. Ao mesmo tempo, estava mais ciente do que nunca da necessidade
de assegurar a lealdade do povo cansado de guerra. As medidas repressivas impostas pelos Bourbons foram revogadas. Os presos políticos foram libertados e os oficiais
que tinham servido os Bourbons foram livremente perdoados e a muitos foram oferecidos comandos no seio do renovado exército imperial. Por vezes, isso causava fricções,
especialmente quando aos oficiais defensores da linha bonapartista eram negadas promoções a favor daqueles que tinham servido o rei Luís. Mas Napoleão sabia que
podia contar com a lealdade dos seus ardentes seguidores, enquanto a lealdade dos antigos oficiais de Bourbon tinha de ser comprada. Consequentemente, eles seriam
olhados com desconfiança pelos subordinados e sentir-se-iam compelidos a provar a sua recentemente adquirida lealdade a Napoleão.
Davout rapidamente organizou a produção e distribuição de equipamento para o exército em franca expansão. As tecelagens e as fábricas conseguiram produzir milhares
de fardas e dezenas de milhares de cartuchos. Novos canhões foram fundidos e adaptados à medida das carretas novinhas em folha. Requisitaram-se cavalos nos campos.
Durante todo este tempo, uma corrente constante de soldados marchou para norte em direção ao rio Sambre, onde acamparam numa larga margem, à espera da ordem para
se concentrarem. Napoleão permaneceu em Paris tanto tempo quanto possível. Tinha enviado uma mensagem privada ao imperador da Áustria, pedindo o regresso do filho
e da esposa. Contudo, não obteve resposta e o seu coração endureceu-se em relação aos austríacos e prometeu vingar-se deste cruel silêncio.
Apesar de demonstrar estar preocupado com as obrigações civis, na realidade a mente de Napoleão estava sempre concentrada no planeamento da campanha que se avizinhava,
selecionando os oficiais cuidadosamente. O pedido de Murat para servir sob o seu comando foi bruscamente declinado. Murat tinha levianamente declarado guerra à Áustria
assim que soubera da fuga de Napoleão de Elba e tinha sido derrotado pouco depois, sendo obrigado a fugir para França. Depois da traição anterior, Napoleão não podia
confiar nele.
Incerto quanto ao alcance do seu poder, Napoleão tinha de deixar Davout a controlar Paris na sua ausência. Berthier teria sido a sua primeira escolha como chefe
do estado-maior do novo Exército do Norte, mas no início de junho tinha chegado a notícia de que Berthier estava morto. Tinha caído de uma janela da sua casa em
Bamberg, mas não era claro se se tinha tratado de um acidente ou de algo mais sinistro. No seu lugar, Napoleão nomeou Soult, apesar dos protesto deste de que não
tinha a capacidade para gerir o comando geral do imperador e seria mais bem empregue no campo de batalha.
No dia 7 de junho, Napoleão ordenou que a fronteira com a Bélgica fosse encerrada. Como medida adicional de segurança, não era autorizado tráfego de correio ou civil
nas estradas, enquanto os soldados do Exército do Norte se começavam a concentrar em Philippeville, a menos de um dia de marcha da fronteira. Uma semana mais tarde,
a carruagem de Napoleão e a escolta de cavalaria trotaram pela pequena cidade de Beaumont, onde o quartel-general do exército tinha sido estabelecido. As ruas habitualmente
calmas da cidade estavam repletas de soldados, que se levantaram de imediato e saudaram ruidosamente assim que se aperceberam que o imperador se tinha juntado a
eles. Napoleão, apesar de exausto devido aos preparativos para a campanha, forçou um sorriso e acenou-lhes. Mesmo no meio da louca celebração, a sua mente estava
tranquilamente a avaliar o espírito dos homens e ficou satisfeito por ver que não havia qualquer indício do ânimo sombrio de resignação que caracterizara os soldados
que conduzira no ano anterior. Empurraram-se em volta da carruagem, acompanhando-a através das ruas, até que ela virou para o parque de carruagens da estalagem onde
Soult e o seu estado-maior o aguardavam.
Os oficiais tinham sido alertados da sua aproximação e já estavam em formação na pequena entrada da estalagem. Quando a carruagem estava a parar no pavimento de
pedra, Soult atravessou o quintal e fez uma vénia, enquanto um empregado ajudava o imperador a descer.
- Está tudo pronto? - perguntou Napoleão com brevidade.
- Sire, tenho a honra de relatar que o Exército do Norte aguarda as suas ordens.
- Muito bem, Soult. - Napoleão sorriu e deu uma palmadinha no ombro do marechal. - Então, só falta alinhavar os últimos pormenores do meu plano. - Fez um gesto em
direção à entrada. - Lá dentro.
Passaram pelas linhas de oficiais do estado-maior, que curvavam as cabeças à passagem do imperador. Napoleão reparou em alguns rostos familiares, mas a maioria era-lhe
desconhecida.
- Vejo que teve dificuldade em reunir o meu antigo estado-maior.
- Sem dúvida, sire. Alguns aceitaram servir os Bourbons, outros estão exilados, ou fora de França. Reuni os melhores homens que consegui em tão pouco tempo. Parecem
ser perfeitamente capazes.
- Soult. - Napoleão baixou a voz. - O destino de França vai ser decidido nos próximos dias, no máximo nas próximas semanas. Estou a contar consigo e com o seu estado-maior.
Não me falhará em nenhum pormenor, entendido?
- Claro, sire.
Entraram no edifício e continuaram por um pequeno hall até à sala de jantar. Todas as mesas tinham sido reunidas no centro para providenciar uma mesa de mapas para
Soult e o seu estado-maior. Pequenas mesas de campanha e bancos tinham sido montados ao longo das paredes e estavam de momento cheias de pilhas de papelada. Não
se assistia ao mesmo sentido de ordem que Berthier tinha imposto, refletiu Napoleão por um momento, enquanto tirava o casaco e o atirava para as costas de uma cadeira.
O tempo nos últimos dias tinha estado quente e a sala estava demasiado aquecida.
- Abram algumas janelas - ordenou Napoleão, ao mesmo tempo que colocava as mãos na mesa e se debruçava sobre ela para inspecionar o principal mapa de campanha. Enquanto
Soult soltava os trincos e abria as janelas, Napoleão inteirava-se dos pormenores do posicionamento estratégico do Exército do Norte, bem como das forças de Blücher
e Wellington.
- Quão exatas são as nossas informações quanto às posições inimigas?
Soult juntou-se a ele na mesa.
- Tanto quanto possível, sire. Temos muitos simpatizantes entre os belgas e eles têm-nos enviado relatórios regulares sobre o inimigo. Como pode ver, as forças deles
continuam bastante dispersas. Estimo que demorarão no mínimo três dias para reunir os exércitos depois de ter sido dada a ordem.
Napoleão analisou o mapa por um momento.
- Vamos assumir o pior e digamos um máximo de três dias. - Fez uma pausa por um instante e depois esboçou um sorriso. - Há outra coisa que funciona a nosso favor.
Vejam como as linhas de comunicação estão traçadas em direções opostas: a de Blücher a leste, em direção ao Reno, ao passo que a de Wellington se estende para a
costa, em Ostende. Vamos aproveitar isso. Reúna uma brigada de cavalaria do exército e simule um ataque às comunicações de Wellington. Isso vai distraí-lo. Quando
atacarmos, o impulso natural será dar toda a atenção à linha de fornecimento e isso criará um ponto fraco na junção dos exércitos, aqui. - Napoleão esticou-se e
bateu com o dedo no mapa, indicando a estrada de Charleroi da fronteira direta com Bruxelas. - É aqui que temos de atacar, Soult. O golpe principal do Exército do
Norte tem de ser ao longo desta estrada. Dividimo-los e esmagamos um de cada vez.
- Muito bem, sire. - Soult anuiu a sua aprovação. - Qual primeiro? Blücher ou Wellington?
Napoleão ficou por momentos em silêncio antes de responder.
- Blücher, creio eu. É o mais agressivo dos dois. Podemos contar com Wellington para se cingir à sua precaução habitual. Vai esperar que sejamos nós a ir ter com
ele. E enquanto espera, tratamos com Blücher.
Soult agitou-se desconfortavelmente.
- Não subestime Wellington, sire. É mais ousado do que pensa.
Napoleão olhou para o chefe do estado-maior e abanou a cabeça.
- Dá demasiado crédito às capacidades dele, porque ele já o derrotou, Soult. Tal como os outros marechais que ele humilhou em Espanha e Portugal. Caíram nas armadilhas
que ele montou, todos vós. Não me vou deixar enganar tão facilmente.
- Sire, está enganado. Se tivesse enfrentado Wellington no ano passado, então saberia. Ele é um homem para se ter em consideração e os seus soldados segui-lo-ão
até aos confins da Terra.
- É o Soult que está enganado. Eu sei como vencer Wellington. Além disso, ele já não comanda o mesmo exército. Wellington tem um pot-pourri de nacionalidades sob
o seu comando. Menos de metade dos seus homens são britânicos e ele não se atreve a confiar nas unidades belgas. Enquanto enfrentar estas dificuldades, não precisamos
de nos preocupar de modo desnecessário. Compreendido?
Soult olhou com ar de desafio para o imperador durante um momento, depois rangeu os dentes e acenou com a cabeça.
- É claro, sire.
- Ótimo. - Napoleão voltou a dirigir a atenção para o mapa e analisou a disposição do exército. - O marechal Grouchy foi notificado de que vai comandar a ala direita,
presumo.
- Sim, sire.
- Tenciono então nomear o marechal Ney para comandar a ala esquerda, enquanto eu acompanho e comando a reserva.
- O Ney?
- Questiona a minha decisão?
- Claro que não, sire - apressou-se Soult a responder. - Simplesmente, Ney era o chefe do estado-maior dos exércitos de França de Luís. Poderemos confiar nele?
- Posso-me dar ao luxo de não o fazer? - foi a resposta de Napoleão. - Conhece a reputação dele. Os soldados adoram-no. Ele tem grande influência sobre os oficiais
que serviram os Bourbons. Se Ney me servir, então podemos ter a certeza que esses oficiais seguirão o seu exemplo. Portanto, Ney comanda a ala esquerda.
- Muito bem, sire. Quando se juntará Ney ao exército?
- Mandei chamá-lo pouco antes de sair de Paris. Tragam-no à minha presença assim que ele chegar.
- Sim, sire.
Endireitando-se, Napoleão massajou as ancas, que lhe doíam depois da longa jornada de carruagem desde a capital.
- Qual é a força do exército?
- Nos relatórios de ontem à noite, contávamos com oitenta e nove mil soldados de infantaria, vinte e dois mil de cavalaria e trezentas e sessenta e seis armas.
Napoleão expressou desagrado.
- Contava com mais.
- Foi desviada uma divisão para Vendée, para suprimir os rebeldes nessa zona, sire. De acordo com as suas ordens.
- Ah, sim. Uma pena. Bem, estou certo de que temos homens suficientes para a tarefa. De qualquer modo, teremos a vantagem da surpresa e isso vale mais do que qualquer
divisão, certo?
- É claro, sire.
- Resta então apenas decidir a data e o local do ataque - refletiu Napoleão, enquanto dirigia a atenção para o mapa. - Vamos atacar aqui, em Charleroi, nas primeiras
horas da manhã de 15 de junho.
As sobrancelhas de Soult ergueram-se.
- Tão cedo?
- Nunca é demasiado cedo para atacar. Emita as ordens. A cavalaria deve proteger a nossa aproximação da fronteira esta noite. Não se podem acender fogueiras até
a campanha começar e todos os homens devem ficar o mais imóveis que conseguirem. O inimigo não pode adivinhar as nossas intenções. Agora, estou cansado. Preciso
de dormir. - Napoleão virou-se e dirigiu-se à porta. - Imagino que me tenha preparado aposentos.
- Claro, sire. - Soult apressou-se a segui-lo. - Vou pedir a um funcionário que lhe indique o caminho.
O quarto era espaçoso e uma confortável brisa arrefecia o ar quando Napoleão se deitou na cama, despido, só com a camisa e os calções. Apesar de estar exausto pela
frenética atividade dos últimos três meses, o sono não chegou. Manteve-se sossegado, fitando o teto, enquanto serventes e oficiais entravam e saíam dos quartos em
baixo. Além das paredes da estalagem, conseguia ouvir o débil tumulto do exército: ordens gritadas, as pancadas ocasionais provocadas por um rapaz do tambor recentemente
recrutado a treinar as batidas e as bem-humoradas saudações e risos dos homens à beira de uma grande aventura. A mente impaciente de Napoleão debatia-se com o supremo
desafio que esta mais recente campanha colocava. Apesar do que dissera a Soult, sabia que as probabilidades estavam contra ele. Cada um dos exércitos aliados era
comparável ao seu. Se não conseguisse interpor-se entre eles, tinha poucas hipóteses de vitória, e sem uma vitória decisiva, não havia qualquer esperança de conseguir
quebrar a vontade da enorme coligação que se juntava para o esmagar.
Uma grande abelha entrou no quarto, com o seu zunir hipnótico a subir de tom, enquanto se passeava de um lado para o outro, aproximando-se da cama. Os olhos de Napoleão
procuraram o inseto e ele esboçou um leve sorriso quando aquele pousou num dos pilares da cama a seus pés. Uma abelha, o símbolo que ele escolhera para o seu emblema.
Era um bom presságio.
Nessa noite, aproveitando a proteção da escuridão, o exército arrastou-se até ao local mais próximo da fronteira que ousaram. Os soldados na linha de sentinela patrulharam
a margem do Sambre, trocando insultos bem-humorados com os seus incautos pares austríacos do outro lado do rio, como já tinham feito durante tantas semanas. Assim
que cada formação alcançava a sua posição, era ordenado aos homens que se espalhassem e instalassem em silêncio. Tinham-lhes sido atribuídas rações para cinco dias
e, enquanto a madrugada nascia sobre os campos ondulados, os homens mastigavam pão com queijo, uma vez que tinham sido proibidos de fazer fogueiras para cozinhar
o guisado que geralmente comiam.
Apesar de se ter levantado com a primeira luz da manhã, Napoleão não saiu do quartel-general para cavalgar através do seu exército oferecendo encorajamento, como
tinha sido seu costume na véspera de batalha. Para todos os efeitos, ele ainda estava em Paris e seria disparatado arriscar-se a ser saudado com altos vivas, que
poderiam ser ouvidos pelas linhas de sentinela do inimigo.
O marechal Ney chegou ao final da tarde. Tinha o casaco coberto de poeira e as suas faces estavam vermelhas devido ao esforço de cavalgar desde a sua propriedade
nos arredores de Paris. Napoleão olhou-o fixamente, com frieza, quando o marechal se apresentou no pequeno escritório que fora o centro de operações do dono da estalagem.
- Está atrasado, Ney.
Ney engoliu uma inspiração profunda.
- Poderia ter sido avisado antes, sire. Vim imediatamente assim que recebi a convocatória. O que deseja de mim?
- Quero que comande a ala esquerda do Exército do Norte. Aceita?
- Claro, sire - respondeu Ney sem hesitar. - Quando espera ser atacado pelo inimigo?
Napoleão não conseguiu evitar um pequeno sorriso e uma olhadela rápida para o relógio montado na parede.
- Somos nós que vamos atacar, Ney, daqui a menos de doze horas.
Os olhos de Ney arregalaram-se.
- Sire, nada sei dos seus planos. Preciso de tempo para assumir o comando.
- Os seus oficiais já foram informados. O chefe do estado-maior pode fornecer-lhe todos os detalhes de que precisa. Ainda aceita o comando ou considera-se mal preparado
para aceitar o desafio?
Ney lançou-lhe um olhar furioso em resposta.
- Vou cumprir o meu dever, sire. Comandarei a ala esquerda do exército, aonde me mandar ir.
- Muito bem. - Napoleão levantou-se e estendeu-lhe a mão. - Meu caro Ney, nunca precisei tanto de si como neste momento. Não faz ideia a tranquilidade que me dá
saber que terei os meus mais bravos marechais a lutar a meu lado quando enfrentarmos o inimigo.
Ney tufou as faces ante tão descarada lisonja. No entanto, aceitou a mão do imperador e apertou-a com firmeza.
- Não consigo pensar em nenhuma honra maior, sire.
- Então está feito. - Napoleão soltou a mão de Ney. - Tendo em conta o tempo que nos resta antes de iniciar o avanço, sugiro que receba as suas ordens de Soult e
se vá juntar aos seus homens.
- Sim, sire! - Ney ficou hirto e fez uma vénia com a cabeça, depois virou-se e saiu do escritório.
Os soldados do Exército do Norte passaram o resto do dia e grande parte da noite a descansar nos campos e bosques perto da pacífica corrente do Sambre. Depois, à
meia-noite, os sargentos e cabos arrastaram-se silenciosamente entre as linhas de homens adormecidos e acordaram-nos. Na fresca brisa noturna, as figuras negras
formaram colunas e dirigiram-se às posições de início de marcha. Noutro local, nos campos de artilharia, os artilheiros armaram as equipas dos cavalos e engataram
as peças do canhão antes de, também eles, avançarem. Na dianteira da densa coluna de infantaria e artilharia, a cavalaria montou e deslizou ao longo da margem e
depois aguardaram as ordens para atravessar a fronteira. Às três da manhã, as sentinelas recuaram silenciosamente e, na margem distante, os prussianos ficaram surpreendidos
quando não houve resposta às habituais saudações gritadas sobre a água.
No quartel-general, Napoleão estava sentado com o seu estado-maior. Alguns dos oficiais falavam entre si em tom baixo, mas a maioria estava sentada em silêncio,
olhando para os ponteiros de um grande relógio empoleirado na abóbada sobre a lareira na sala dos mapas. As ordens tinham sido enviadas para todas as formações horas
antes e as mesas, bancos e baús de documentos tinham sido empacotados nas carroças preparadas para Soult e os seus oficiais. Houve uma acalmia na frenética agitação
dos últimos dias, enquanto todos esperavam que o exército fosse novamente lançado contra os aliados. O ponteiro das horas do relógio arrastou-se até às três e então,
finalmente, Napoleão levantou-se e os seus oficiais saltaram das cadeiras e encararam-no expectantes.
- Cavalheiros! O ataque começa. Se Deus quiser, por esta hora dentro de uma semana, estaremos a celebrar nas ruas de Bruxelas.
Soult levantou o seu punho e esmurrou o ar.
- Viva a França! Viva o Imperador!
Os oficiais repetiram o grito, vezes sem conta, enquanto lá fora, na noite, dezenas de milhares de homens e cavalos ondulavam em frente, avançando através da fronteira.
Capítulo 56
Arthur
Bruxelas, 15 de junho de 1815
- Isto é uma desgraça - resmungou Picton ao assumir o seu lugar à mesa. - O governo só nos enviou pouco mais de metade das tropas que vossa senhoria pediu. Além
disso, a maior parte dos soldados é inexperiente. Grande parte do exército é estrangeira e quase metade dos homens falam alemão.
- Verdade seja dita, é um exército infame - concordou Arthur calmamente. Convidara os oficiais superiores para um jantar, para que pudessem analisar os preparativos
para a guerra antes de participarem num baile, nesse serão. Arthur nem há dois meses assumira o comando e já ficara horrorizado pela falta de preparação tão evidente
nos Países Baixos. A falha por parte do governo britânico de lhe ceder soldados suficientes era apenas uma das dificuldades com que tinha de se haver.
Confrontado com a nova ameaça, Arthur procurara o serviço de tantos oficiais quanto possível de entre os que tinha comandado na Península Ibérica. A maioria tinha
aceitado o destacamento, mas outros tinham-lhe sido impostos, como por exemplo o comandante da cavalaria, o duque de Uxbridge. Verificava-se o mesmo em relação a
muitos dos oficiais do estado-maior, nomeados pelo duque de Iorque antes de Arthur chegar de Viena.
Depois havia a questão da qualidade, e lealdade, dúbia das tropas aliadas que compunham dois terços do exército. Ao início, o rei Guilherme da Holanda recusara-se
a ceder homens que fossem colocados sob o comando de Arthur e só o consentira com relutância depois de muita pressão diplomática por parte de Londres e do pagamento
de um avultado subsídio em ouro. Arthur decidira distribuir as tropas aliadas mais imprevisíveis pelos seus casacas-vermelhas, para minimizar o impacto de quaisquer
sentimentos traiçoeiros. Picton tinha razão para se queixar, refletiu Arthur, enquanto os outros oficiais se sentavam. Claro que era com isso que teriam de trabalhar
e Arthur daria o seu melhor.
Pelo menos Kitty e os filhos estavam em segurança. Somerset escoltara-os de regresso a Inglaterra antes de se juntar a Arthur em Bruxelas. Tinham deixado Paris poucos
dias antes da chegada de Napoleão e Somerset tomara a precaução louvável de queimar todos os registos da embaixada antes de partir. Infelizmente, os Bourbons não
tinham mostrado o mesmo sentido prático e Napoleão descobrira o tratado secreto assinado entre a Áustria, França e Inglaterra no início do ano. Quando os pormenores
foram publicados nos jornais franceses, os russos e os prussianos tinham ficado furiosos e, consequentemente, muitos dos oficiais do exército de Blücher mostravam-se
hostis e desconfiados em relação aos aliados ingleses.
Depois de a sopa ter sido servida, Arthur inclinou-se na direção de Uxbridge.
- Temos relatórios novos quanto à atividade inimiga no nosso flanco direito? - perguntou em voz baixa.
- Nada de novo. Tendo em conta o que nos mostram ao longo da fronteira, os franciús parecem lá estar em força. É claro que se tivesse autorização para enviar patrulhas
para o interior de França, teríamos uma imagem muito melhor.
- Está fora de questão. As minhas ordens são para manter o exército em alerta até que a guerra seja declarada. Se atravessarmos a fronteira, seremos nós os agressores.
- Nada mais do que uma amabilidade - desdenhou Uxbridge. - Nesta fase torna-se difícil de acreditar que a guerra possa ser evitada.
- Seja como for, temos as nossas ordens. Entretanto, preocupa-me a possibilidade de Bonaparte poder tentar um ataque a oeste de Bruxelas, isolando-nos do mar. O
exército tem de estar pronto a concentrar-se contra um ataque vindo dessa zona. Assim sendo, precisamos de uma resposta adequada por parte das suas patrulhas montadas,
Uxbridge. Eles têm de se manter alerta.
- Tenho-os controlados. Vossa senhoria será das primeiras a saber se o Boney se dirigir à costa, ou se tomar a Estrada de Mons para Bruxelas.
- Muito bem. - Arthur fez uma pausa. - O chefe do estado-maior de Blücher exige saber onde pretendo concentrar o meu exército na eventualidade de um ataque. Não
lho posso dizer até saber onde se vai posicionar o grosso do exército francês.
- Malditos prussianos - resmungou Uxbridge, antes de levar a colher à boca. Os olhos iluminaram-se-lhe. - Mas que bela sopa.
Arthur reprimiu um suspiro. Vinha a tentar manter o moral do seu exército, e o dos anfitriões belgas, insistindo para que a vida social de Bruxelas prosseguisse
como se não houvesse qualquer iminência de guerra. A principal dificuldade estava no facto de muitos dos seus oficiais representarem o papel com demasiada convicção,
parecendo estar pouco preocupados com a presença de um exército francês a reunir-se no outro lado da fronteira.
Obrigou-se a manter conversa de ocasião com Uxbridge até ao final do primeiro prato. Depois, quando a louça estava a ser levantada, um oficial do estado-maior entrou
na sala de jantar e apressou-se a chegar junto de Arthur, aproximando-se do seu ouvido.
- Vossa senhoria, está um oficial prussiano à espera no hall. Diz que tem um despacho urgente do quartel-general do marechal Blücher.
Arthur aquiesceu e sorriu apologeticamente para os convidados enquanto se levantava do seu lugar à cabeceira da mesa.
- Prossigam com a refeição, cavalheiros. Não demoro.
Seguiu o oficial até ao exterior, onde aguardava o prussiano salpicado de lama. Apesar da expressão ansiosa, o prussiano pôs-se em sentido e fez uma vénia rígida
antes de falar, num inglês com um sotaque bastante carregado.
- Vossa senhoria, venho da parte do general Gneisenau. O chefe do estado-maior manda informá-lo de que pelas oito horas da manhã, os franceses atacaram a nossa posição
em Thuin.
- Com que força?
- Suficiente para nos fazer recuar os postos avançados e para tomar a vila, vossa senhoria.
- Os franceses estão a atacar em mais alguma posição?
- Não sei.
- Muito bem. - Arthur agradeceu com um aceno de cabeça. - Diga ao general Gneisenau que estou a reunir o meu exército. Darei notícia da minha posição logo que possa.
O prussiano voltou a curvar a cabeça e deu meia-volta de regresso à entrada da casa que Arthur alugara no centro da cidade. Arthur dirigiu-se ao oficial do estado-maior.
- Vá imediatamente para o quartel-general. Diga ao Somerset que envie ordens a todas as formações. O exército vai formar e ficar pronto a marchar assim que receber
a ordem para isso.
- Sim, vossa senhoria. - O oficial virou-se e aumentou o ritmo da passada.
- Ande, meu rapaz, não corra! Temos de parecer calmos à frente dos locais.
- Sim, milorde - replicou o jovem oficial, repreendido.
Arthur regressou à sala de jantar e voltou a sentar-se. Pegou no garfo e bateu no copo.
- Silêncio, cavalheiros.
Os oficiais viraram-se para ele.
- Os franceses atravessaram a fronteira - anunciou. - Atacaram uma das formações de Blücher.
- Finalmente. - Uxbridge sorriu. - Onde foi?
- Em Thuin. A questão que se coloca é: será que isso constitui o grosso do ataque, ou não passa de uma diversão?
- Uma diversão? - resmungou Picton. - Está a dizer que o Boney nos quer atrair em direção aos prussianos? Para mim, isso não faz sentido a nível militar.
- Fará, caso pretenda atravessar pela nossa direita e cortar-nos as linhas de comunicação. - Arthur fez uma pausa. - Por enquanto, julgo que é essa a sua intenção.
Para salvaguardar essa possibilidade, o exército vai concentrar-se a oeste de Thuin. Se houver indicação de que não se trata de uma diversão, poderemos ajustar a
nossa posição concomitantemente. Dei ordens para que o exército se preparasse para marchar. Também vou enviar ordens ao general Dörnberg, em Mons, para procurar
sinais do inimigo na sua frente. Entretanto, vamos esperar que a situação se clarifique. Agora, cavalheiros, todos vós sabeis a minha política quanto aos locais
e aos nossos próprios civis. Vamos estar presentes no baile desta noite e não haverá referências ao ataque. Sugiro que aproveitem a diversão, pois poderá vir a ser
a última durante algum tempo.
Pouco depois das dez, Arthur falava com Uxbridge quando viu os convidados ficarem agitados com a entrada no salão de baile de uma figura de capa de montar, que perscrutou
a sala. Arthur reconheceu-o de imediato - o general Müffling, o oficial destacado para servir de ligação entre os quartéis-generais dos dois exércitos aliados. Assim
que viu Arthur, o prussiano percorreu rapidamente os convivas na sua direção.
- Receio que o disfarce tenha chegado ao fim - resmungou Arthur quando a dança parou e a orquestra se silenciou. Todos os olhares se viraram na sua direção.
- Assim parece - assentiu Uxbridge.
Müffling cavalgara bastante e tinha a capa e as botas sujas de lama.
- Milorde, fui enviado pelo marechal Blücher.
- Venha. - Arthur pousou a mão no ombro do homem. - Vamos conversar num local calmo, e peço que lhe tragam um refresco.
Levou Müffling por uma porta num dos lados do salão de baile. Entraram para uma pequena sala, iluminada com uma única vela, usada para guardar cadeiras. Arthur fez
sinal a Somerset e apontou para a orquestra antes de fechar a porta. Quando a música recomeçou, Arthur dirigiu-se a Müffling.
- Quais são as novidades?
- Blücher avançou até Ligny para enfrentar o exército francês. Manda perguntar se lhe dará apoio.
- Como pode o Blücher ter a certeza de que o exército francês está à frente dele?
- Passámos o dia a combater o inimigo, milorde. As nossas patrulhas montadas dão conta de grandes colunas a marchar por Charleroi. Chegaram a ouvir os soldados inimigos
a gritar vivas ao imperador. Não pode haver dúvida de que se trata do grosso da linha de avanço.
Arthur ficou em silêncio por um instante, enquanto ponderava nas palavras de Müffling. Depois aquiesceu lentamente.
- Muito bem, general. Espero que não se trate de uma diversão; continuo a achar que o ataque principal terá lugar algures na rota mais direta para Bruxelas. - Arthur
pegou na maçaneta da porta e acenou com a cabeça na direção do salão de baile. - Vamos?
Quando entraram no salão brilhante, Arthur viu que muitos dos oficiais já tinham saído e outros escusavam-se e dirigiam-se à porta. Não havia nada que pudesse fazer
para os impedir sem fazer uma cena. Müffling afastou-se e Arthur fez sinal a Uxbridge e aos outros oficiais superiores para que se juntassem a ele e lhes desse conta
da breve troca de palavras. À medida que os oficiais foram saindo para se juntarem aos seus comandos, Arthur viu que os restantes convidados se apressavam a deixar
o salão de baile, os olhos iluminados pelo receio.
As ruas de Bruxelas estavam cheias de soldados que deixavam os aboletamentos, dirigindo-se aos regimentos que se formavam no exterior da cidade. À medida que a carruagem
de Arthur percorria com estrépito o empedrado das ruas, viu os primeiros civis a carregar carroças e carretas com os seus valores, preparando-se para fugir. Pouco
antes da meia-noite, a carruagem chegou à casa do general Müffling e Arthur foi rapidamente levado ao estúdio onde o general aguardava.
- Dei ordens para que o exército seguisse para leste, para apoiar o marechal Blücher. Vamos marchar durante a noite e esperar chegar a ele, através de Quatre Bras,
amanhã à tarde. Pegue no cavalo e vá dizer-lhe.
- Assim farei, milorde. - Müffling pegou no sobretudo. - Só espero que não seja demasiado tarde.
Arthur aquiesceu. Cada hora contava. Se os franceses tomassem o importante cruzamento de Quatre Bras, haveria pouca hipótese de se juntar os exércitos aliados -
e tudo o que se encontrava entre Bonaparte e a posse do cruzamento eram duas brigadas holandesas.
Mapa
Capítulo 57
Fleurus, 8h00, 16 de junho de 1815
A ordem para que o marechal Ney tomasse o cruzamento de Quatre Bras tinha acabado de ser enviada quando chegou um relatório do marechal Grouchy, onde se anunciava
que os prussianos estavam a reunir as forças perto da aldeia de Ligny, na outra margem do ribeiro que dava o nome à povoação. Napoleão sentiu o coração bater mais
depressa quando se apercebeu da oportunidade que Blücher lhe apresentava de forma tão tola. Olhou para o oficial do estado-maior que lhe levara a mensagem.
- Tem a certeza de que se trata do grosso das forças prussianas?
- Sim, sire. Não há dúvida quanto a isso. Estão a formar no terreno inclinado da margem oposta, à vista de todos.
Napoleão sorriu e dirigiu-se rapidamente a Soult.
- Vamos atacar Blücher com a ala de Grouchy e com a reserva. Ordene-lhes que avancem imediatamente sobre Ligny.
- Com certeza, sire. E quanto ao marechal Ney? Envio-lhe ordens novas para que se junte a nós?
Napoleão avaliou rapidamente a posição das suas forças e abanou a cabeça.
- Não. Precisamos daquele cruzamento. Mas diga ao Ney que deverá fazer-me um relatório assim que assuma o controlo de Quatre Bras. - Napoleão levantou-se da cadeira
e dirigiu-se à porta do hotel ocupado pelo quartel-general de Soult. Fez sinal ao oficial que lhe levara a mensagem de Grouchy. - Vamos! Quero que me leve de imediato
até ao marechal.
O imperador e a sua escolta montaram rapidamente e, liderados pelo oficial do estado-maior de Grouchy, saíram a cavalgar da aldeia. À frente deles estendia-se a
retaguarda da ala direita do exército, batalhão após batalhão de infantaria, a par de colunas de artilharia. Quando o pequeno grupo galopou pela berma, os soldados
olharam para o lado e gritaram vivas à passagem de Napoleão, com as abas do casaco cinzento a adejar atrás dele.
Uma hora depois de ter saído do quartel-general, Napoleão chegou ao posto de comando do marechal Grouchy, situado num moinho numa pequena colina sobranceira ao riacho
e ao terreno elevado mais além. Os soldados e as peças de artilharia das tropas de Vandamme estavam já a dispor-se no lado francês do curso de água. Do outro lado
encontravam-se os prussianos: formações cerradas de infantaria, com as suas fardas azuis e pretas, espalhadas pela encosta. Napoleão desmontou e apressou-se a chegar
junto a Grouchy e respetivo estado-maior.
- Parece que a sorte está do nosso lado, cavalheiros - declarou, gesticulando na direção do inimigo. Os oficiais sorriram e depois Napoleão dirigiu a atenção a Grouchy.
- O que sabemos quanto à força e às disposições deles?
- São as tropas de Zieten que ali estão, sire. Os meus escaramuceiros fizeram alguns prisioneiros à primeira luz do dia. Mandei interrogá-los. Dizem que o inimigo
está a concentrar-se em Ligny. As nossas patrulhas montadas dizem que outras duas corporações prussianas se estão a aproximar vindas de norte. Não há dúvida. O Blücher
pretende lutar.
- Nesse caso talvez enfrentemos à volta de noventa mil homens - meditou Napoleão. - Muito bem, temos de alinhar todos os homens disponíveis o mais depressa possível.
Pode começar a dispor as suas peças à frente dos prussianos. Quando a batalha tiver início, vão ser um belo alvo.
- Com efeito, sire - assentiu Grouchy.
Napoleão sentiu uma onda de satisfação a percorrer-lhe o corpo. O seu plano exigia que o Exército do Norte avançasse entre os aliados e depois os procurasse e destruísse,
um de cada vez. Agora, parecia que Blücher lhe poupara esse trabalho. Bastaria reunir as suas forças mais depressa do que Blücher e atacar assim que estivesse em
vantagem.
À medida que as horas foram passando e o Sol subiu no céu, cada vez mais infantaria, cavalaria e artilharia engrossavam as alas dos dois lados. A infantaria prussiana
ocupou todos os edifícios na outra margem do Ligny e começou a fortificá-los, abrindo buracos nas paredes para incomodar os franceses quando estes iniciassem o ataque.
Enquanto ambos os lados se preparavam, Napoleão avançou com a escolta para inspecionar com mais atenção o campo de batalha. O terreno de ambos os lados do ribeiro
era pantanoso durante uma certa extensão e tornava-se óbvio que qualquer ataque seria obrigado a usar as pontes e os vaus espalhados ao longo do rio. Verificar-se-iam
baixas pesadas, apercebeu-se Napoleão ao regressar ao posto de comando para aguardar a chegada do resto das suas forças, e do quartel-general de Soult, ao campo
de batalha. Foi-se tornando evidente que o inimigo chegava em maior número do que os franceses e, perto do meio-dia, Napoleão enviou uma mensagem a Ney, ordenando-lhe
que atacasse a ala direita prussiana assim que Quatre Bras ficasse em mãos francesas.
Às duas da tarde, Napoleão traçara os seus planos. Debruçado sobre a mesa de mapas de Soult informou os oficiais.
- O inimigo dispersou as suas forças ao longo de uma distância considerável na margem do ribeiro. A situação não nos poderia ser mais favorável, cavalheiros. Enquanto
a nossa cavalaria contém o flanco esquerdo de Blücher, as bocas-de-fogo concentradas no centro do campo de batalha vão esmagar a linha inimiga, após o que atacaremos
frontalmente. Quando chegar a altura, a Guarda Imperial vai abrir caminho pela linha deles e dividir-lhes o exército em dois. Depois basta que a ala de Ney lhes
caia sobre o flanco direito e a retaguarda, e os prussianos serão desfeitos. Depois disso caímos sobre Wellington e damos por encerrada esta campanha. - Sorriu ao
olhar para os oficiais. - Daqui a alguns dias, França será triunfante e os nossos inimigos não terão alternativa que não pedir a paz.
Meia hora depois, um canhão anunciou a abertura das hostilidades e as baterias francesas começaram a disparar. Primeiro concentraram o fogo sobre os defensores nas
aldeias ao longo da margem do rio e depois, quando se deu ordens para o avanço da infantaria, mudaram a mira, começando a fustigar as alas das reservas prussianas
alinhadas à vista na encosta atrás do ribeiro. As bolas de canhão esmagaram as formações, deixando um rasto de corpos e membros à sua passagem. Apesar das baixas,
a disciplina férrea dos prussianos prevaleceu e os batalhões devastados fechavam alas e mantinham-se firmes.
Pelo telescópio, Napoleão observou o desenrolar dos ataques ao longo do ribeiro, à medida que os seus homens se esforçavam por controlar as aldeias que cobriam as
pontes e os vaus. O fogo inimigo era devastador e os soldados que seguiam as tricolores eram ceifados enquanto avançavam. Mesmo assim, o moral nunca fraquejou e
os vivas pelo país e pelo imperador chegavam ténues mas audíveis a Napoleão, que observava a refrega sangrenta.
- Os nossos homens estão a ser muito castigados, sire - murmurou Soult ao lado de Napoleão.
- O mesmo se passa com o inimigo - retorquiu Napoleão. - Só precisamos que Blücher empenhe toda a sua força na luta, e a Guarda e Ney vão desferir os golpes decisivos.
- Napoleão baixou o telescópio e concentrou-se mais uma vez na paisagem circundante. Mais valia incitar Ney, para garantir que os seus homens chegavam a tempo ao
campo de batalha para desferir um golpe tão forte quanto possível sobre o inimigo.
Dirigiu-se a Soult.
- Envie uma mensagem a Ney. Diga-lhe que a batalha está em pleno desenrolar. Ele que manobre de imediato de modo a contornar a direita de Blücher e a cair sobre
a retaguarda. Diga-lhe que o destino de França está nas mãos dele.
Soult aquiesceu enquanto acabava de escrever a mensagem no bloco e depois apressou-se a chegar juntos dos ajudantes de campo, para que a nota fosse reescrita numa
letra legível. Momentos depois, um mensageiro partiu a galope e dirigiu-se a oeste, em direção a Quatre Bras. Napoleão devolveu a atenção à luta furiosa ao longo
das margens do ribeiro e notou com satisfação que a primeira aldeia caíra nas mãos dos franceses, quando uma bandeira tricolor surgiu na torre da igreja.
- Sire! - chamou Soult, vindo de onde o estado-maior se debruçava sobre as mesas de campanha, tratando do constante fluxo de relatórios e ordens. Ergueu um pedaço
de papel. - Do Ney.
- E então?
- Ele diz que está a enfrentar Wellington em Quatre Bras. Avalia o número do inimigo em cerca de vinte mil homens, com mais a aproximarem-se do cruzamento.
- Raios. - Napoleão cerrou os lábios. Aquilo era inesperado. - Diga ao Ney que continue a lutar pelo controlo do cruzamento, mas que liberte as tropas de D'Erlon
para atacar o flanco do Blücher. Preciso de todos os homens aqui. De todos os homens.
- E quanto às tropas de Lobau? - perguntou Soult.
- Lobau?
- Em Charleroi, sire.
Napoleão virou-se para o chefe do estado-maior.
- Que raios estão eles a fazer em Charleroi?
- Eles não têm ordens, sire - explicou Soult. - Não os referiu, esta manhã.
- Não os referi? - O rosto de Napoleão ficou exangue com a fúria. - Soult, seu idiota! Seu idiota! De que me servem os dez mil soldados do Lobau em Charleroi? Mande
buscá-los. Imediatamente, está a ouvir? Agora desapareça-me da vista.
Afastou-se do chefe do estado-maior antes de ceder à tentação de o agredir. Uma corporação inteira do exército inutilmente à espera, enquanto se travava a batalha
decisiva da campanha. Lobau não tinha grandes hipóteses de chegar a tempo para fazer diferença. O resultado do dia estava nas mãos de Ney. Napoleão virou-se e olhou
para oeste por um instante, na direção de Quatre Bras. Se não pudesse ter Ney, pelo menos as tropas de D'Erlon poderiam fazer pender a balança a favor de Napoleão.
Ainda tinha a possibilidade de destruir Blücher e o seu exército.
Quatre Bras, 15h00
O príncipe de Orange cumprimentou Arthur e Somerset com um aceno alegre enquanto os dois oficiais galopavam em direção à linha. O "Jovem Sapo," tal como era conhecido
entre os oficiais de Arthur, devido aos olhos protuberantes e lábios grossos, reunira as suas duas brigadas numa elevação a menos de um quilómetro do cruzamento.
O terreno irregular que cercava Quatre Bras e as plantações de centeio alto ocultavam as tropas aliadas, além das francesas, a sul. Até então, isso fora favorável
aos aliados, já que o inimigo não teria noção do número de homens à sua frente. Caso contrário, pensou Arthur, teriam afastado as duas brigadas holandesas.
- Meu caro duque! - O príncipe exibiu um sorriso rasgado. - É um prazer vê-lo, milorde.
- E a vossa alteza também. - Arthur tocou na aba do chapéu. - Qual a situação por aqui?
- Calma quanto baste. Os franceses deixaram-nos em paz até há cerca de uma hora. Depois ouvimos os tambores deles. Desde então limitaram-se a fazer avançar alguns
escaramuceiros para tomar aquelas quintas. - O príncipe virou-se e indicou dois pequenos grupos de edifícios a sul. - Estão também a combater a minha infantaria
ligeira na mata, ali à direita.
Quando Arthur e Somerset seguiram a direção indicada, fez-se ouvir das árvores um novo crepitar abafado de fogo de mosquete. À distância ouvia-se o ronco grave da
artilharia em Ligny. O príncipe meneou a cabeça para leste.
- Imagino que seja o marechal Blücher a atacar o inimigo.
- Com efeito - confirmou Arthur. - Falei com ele há menos de duas horas, quando a batalha começou. A menos que sejamos atacados primeiro, tenciono levar este exército
para o apoiar.
- Bravo! - O príncipe aquiesceu. - Em breve o porco corso vai estar em fuga, hã?
- Assim o espero, alteza. Claro que primeiro temos de garantir o controlo do cruzamento.
Foram interrompidos por uma nova troca de tiros de mosquete na mata, agora mais próximo. Surgiram figuras vindas das árvores, correndo de volta à posição do príncipe
de Orange. Alguns tinham perdido os chapéus e outros abandonado os mosquetes. Desapareceram no centeio e só a agitação dos caules altos marcavam a sua passagem.
Atrás deles vinham os primeiros escaramuceiros franceses, avançando a partir da mata em direção à ala direita da brigada holandesa. A sul, aproximando-se por mais
cearas, Arthur distinguiu outra linha de escaramuceiros, e atrás deles uma massa cintilante de baionetas. Momentos depois, os elmos emplumados dos couraceiros apareceram
à esquerda, avançando em direção à crucial Estrada de Namur que unia os dois exércitos aliados.
- Estamos com algumas dificuldades, milorde - indicou Somerset, enquanto via o inimigo a aproximar-se.
- Eu tenho olhos - redarguiu Arthur com brusquidão. Virou-se na sela e olhou para a estrada que se encaminhava para Bruxelas. Aproximava-se uma coluna britânica,
tendo à cabeça a figura inconfundível do general Picton, com o seu casaco e chapéu alto pretos, para todos os efeitos com a aparência de um cangalheiro. - Vá ter
com o Picton. Diga-lhe que faça regressar um dos oficiais pela estrada. Ele que ordene a cada formação que encontre que marche para Quatre Bras o mais depressa possível!
Sem perder tempo a fazer continência, Somerset lançou-se a galope na direção dos soldados britânicos que se aproximavam. Quando regressou ao comandante, Arthur observava
o avanço firme dos franceses à medida que iam saindo da mata e faziam recuar a brigada holandesa à direita. À esquerda, a cavalaria francesa formava uma linha para
carregar. Arthur viu as primeiras das tropas holandesas começarem a vacilar ao ver o perigo. Alguns dos homens começaram a recuar, desordenando a linha, e depois
o primeiro deu repentinamente meia-volta e fugiu, largando o mosquete e tirando a mochila enquanto corria. Arthur olhou para trás e viu que o primeiro regimento
de Picton, a Nonagésima Segunda de Highlanders, estavam a formar uma linha algumas centenas de metros atrás da posição do príncipe de Orange. Outros regimentos avançavam
para prolongar a linha e, mais à esquerda, outra coluna, com as fardas pretas dos Brunswickers, corria para esse lado, para apoiar os holandeses que fraquejavam.
- Vai ser uma batalha cerrada - resmungou Arthur.
- Ah, não tem nada que recear, milorde - garantiu alegremente o príncipe de Orange. - Os meus homens vão manter-se firmes.
- Assim espero.
Fez-se ouvir o som agudo dos clarins e, momentos depois, a cavalaria francesa avançou, esmagando os caules de centeio à medida que se aproximava da brigada holandesa.
Soaram alguns tiros, quando um punhado de homens se mostrou demasiado nervoso para esperar pela ordem de fogo, seguidos por mais, ao que uma longa salva entrecortada
consumiu os soldados holandeses numa nuvem de fumo de pólvora. Deixaram de ver a cavalaria em aproximação por um instante, mas podiam ouvi-la, e sentir a vibração
dos cascos no terreno por baixo das botas. Isso revelou-se demasiado para os soldados inexperientes e a brigada dispersou, correndo de volta à encruzilhada.
Os clarins franceses fizeram soar a carga e os couraceiros soltaram um brado ao mesmo tempo que esporeavam as montadas pesadas em frente. Atravessaram o fumo que
se desvanecia, as espadas e as couraças a cintilar ao sol, e depois desferiram golpes para a esquerda e para a direita, enquanto abatiam os soldados holandeses em
fuga. Pouco mais à frente, Arthur viu os Brunswickers a parar e a tentar assumir posições, mas foram lançados em confusão quando os holandeses correram entre eles,
seguidos rapidamente pela cavalaria francesa, após o que também os Brunswickers começaram a fugir.
- Vossa senhoria! - Somerset gritou o alarme e apontou quando um dos esquadrões de couraceiros começou a carregar ao longo da brigada holandesa restante. Arthur
apercebeu-se do perigo e chamou o príncipe de Orange. - Alteza, siga-me!
Os três oficiais deram meia-volta às montadas e levaram-nas encosta acima, em direção à linha formada pela divisão de Picton. Apanhadas entre a infantaria que surgia
da mata e a cavalaria que lhes carregava sobre o flanco, as restantes tropas holandesas viraram-se e fugiram. O ar encheu-se com os gritos dos cavalos e com o crepitar
irregular dos mosquetes. Arthur incitava a montada em frente, em direção aos Highlanders, numa linha de dois homens, com a ala da frente ajoelhada e de baionetas
em riste para receber a carga da cavalaria. Sobre Arthur caiu a perceção de que ele e os outros corriam o risco imediato de serem empalados pelas baionetas.
Levando a mão em concha à boca, gritou tão alto quanto conseguiu:
- Nonagésima Segunda! Deitar!
Mesmo não estando a ordem em nenhum manual, os homens mais próximos mostraram presença de espírito suficiente para se deitarem, tendo os cavalos dos três oficiais
saltado por cima dos Highlanders. Quando Arthur puxou as rédeas e deu meia-volta à montada, os soldados levantaram-se para enfrentar os couraceiros que se aproximavam.
- Sustenham fogo até eu dar a ordem! - bradou Arthur, ignorando a expressão furiosa de Picton ante a presunção do comandante. - Aguardem... Aguardem...
Os homens seguraram os mosquetes com firmeza contra o ombro, sustendo a respiração em antecipação. Depois de terem abatido os holandeses, o inimigo cavalgava agora
contra os casacas-vermelhas, chegando tão perto que as expressões selvagens ficaram perfeitamente visíveis. Quando já não estavam nem a trinta metros, Arthur gritou
a ordem:
- Fogo!
A salva soou e, a partir da sela, Arthur viu os primeiros franceses e as suas montadas a serem atirados para a frente, num emaranhado de braços, pernas e carne de
cavalo. Os que estavam atrás tiveram de se desviar ou de refrear as montadas, e o ímpeto da carga perdeu-se. Uma segunda salva abateu mais uma série de couraceiros,
os quais deram meia-volta e afastaram-se de regresso à encosta onde as brigadas holandesas tinham estado.
Arthur olhou à sua volta e viu que a chegada de tropas novas tinha estabilizado a posição aliada, e que a cavalaria francesa estava a bater em retirada. Todavia,
um novo perigo tornava-se evidente quando as primeiras bocas-de-fogo francesas foram instaladas à sua frente. No espaço de quinze minutos, as primeiras bolas de
canhão fustigavam as linhas aliadas.
Ao longo das duas horas seguintes, os franceses levaram a cabo mais uma série de ataques. Contudo, mais unidades e peças de artilharia aliadas continuavam a chegar
vindas de Bruxelas, e a batalha acabou por pender a favor de Arthur. A linha aliada foi avançando com o cair da noite, voltando a tomar a cumeada e as casas agrícolas,
enquanto a infantaria ligeira eliminava os escaramuceiros franceses da mata. Quando a noite caiu, dispararam-se os derradeiros tiros e depois o campo de batalha
ficou em silêncio, salvo pelos gritos e gemidos dos feridos.
À medida que iam chegando mais formações, entre elas o estado-maior do quartel-general, Arthur foi ficando cada vez mais preocupado com a falta de notícias de Ligny.
O último relatório do quartel-general prussiano, recebido às cinco horas, dera-lhe conta de que os homens de Blücher mantinham a sua posição.
- Nesse caso - comentou Arthur para o ajudante de campo, - amanhã estaremos numa boa posição. Assim que nos juntarmos a Blücher, de certeza que iremos esmagar o
inimigo.
- Partindo do princípio que Blücher os manteve afastados.
- É claro. Mas temos de ter a certeza. - Arthur chamou um dos oficiais do estado-maior. - Coronel Gordon! Importa-se de chegar aqui?
O coronel aproximou-se enquanto Arthur revia mentalmente as ordens.
-Tem um cavalo descansado?
- Sim, milorde.
- Nesse caso, quero que vá até ao quartel-general do marechal Blücher em Sombreffe, a norte de Ligny. Diga-lhe que temos a encruzilhada e que, pela alvorada, o exército
estará com força suficiente para ir ao encontro dele. Agradeço também um relatório sobre as ações dele durante o dia.
- Sim, milorde.
- Então vá-se embora. Procure-me aqui quando regressar.
O coronel Gordon desapareceu na noite, galopando ao longo da estrada para Sombreffe, e Arthur espreguiçou os ombros por um instante, antes de se instalar junto a
uma das fogueiras da Nonagésima Segunda a aguardar o seu regresso. A longa noite passou sem incidentes, à medida que cada vez mais soldados iam chegando à encruzilhada
e eram levados para as suas posições pelos oficiais. Arthur começou por estar animado. A véspera fora renhida, mas os seus homens tinham ultrapassado o inimigo.
Mesmo que Blücher não tivesse vencido em Ligny, estaria perto o suficiente para que os exércitos se juntassem no dia seguinte. Contudo, não houvera sinais de Gordon
durante a noite, e quando a primeira luz surgiu no horizonte, uma sensação crescente de mau agouro começou a acumular-se no íntimo de Arthur. O Sol nasceu, banhando
a paisagem com um tom rosado caloroso. De sul ouviram-se os sons débeis dos clarins quando os franceses despertaram, mas não houve qualquer tentativa de renovar
os combates da véspera.
Por fim, às sete e meia, o coronel Gordon regressou. O cavalo estava exausto, com o freio coberto de espuma, e o rosto de Gordon parecia consumido quando desmontou
e se dirigiu a Arthur.
- E então?
- Se vossa senhoria não se importar, poderemos falar longe dos outros?
Arthur franziu o cenho, mas afastou-se um pouco dos oficiais do quartel-general, que trocaram um misto de expressões curiosas e ansiosas.
- O Blücher foi derrotado ontem, milorde. - Gordon falava num tom baixo. - Muitas das formações dele foram cercadas. Os restantes foram obrigados a recuar.
- Estou a ver. - Arthur sentiu um aperto no coração ao digerir a notícia. - Nesse caso imagino que já não esteja em Sombreffe.
- Não, milorde. Ele fez recuar o exército para Wavre. Foi por isso que demorei tanto a encontrá-lo.
- Wavre? - Arthur ficou momentaneamente siderado. - Mas isso fica quase a trinta quilómetros daqui. Por Deus, estamos acabados - prosseguiu, num tom murmurado, à
medida que as implicações da notícia se iam deixando ver. Blücher não seria capaz de intervir, caso os franceses atacassem o exército de Arthur em Quatre Bras. Arthur
respirou fundo e deu uma palmada no ombro de Gordon. - Os meus agradecimentos. Imagino que em Inglaterra digam que fomos derrotados. Não há nada que possamos fazer;
tal como os prussianos recuaram, também nós teremos de o fazer. -Abanou a cabeça, pesaroso. - Vá refrescar-se. Mas primeiro, diga ao general Müffling que venha ter
comigo.
- Com certeza, milorde.
Enquanto esperava pelo oficial de ligação prussiano, Arthur olhou para sul e para leste, como se esperasse ver as primeiras formações do exército francês a avançar
para o derradeiro ataque que lhes confirmasse a vitória.
Müffling apareceu, a abotoar apressadamente os botões da casaca.
- Mandou chamar-me?
-Sim. Parece que os seus conterrâneos foram derrotados ontem.
O queixo do prussiano descaiu, numa expressão de desânimo.
- Não sabia.
- Porque ainda não nos tinham dito - retorquiu friamente Arthur. - Blücher recuou para Wavre. Sim, Wavre. A mais de um dia de marcha daqui. E o chefe do estado-maior
dele nem sequer se lembrou de nos alertar para o seu revés em Ligny. E porquê, interrogo-me? Uma mente desconfiada concluiria que fomos aqui deixados, alheios a
tudo, para cobrir a retirada dos prussianos.
Müffling imobilizou-se e depois abanou a cabeça.
- Vossa senhoria sabe que se trata de uma sugestão ignóbil.
- Talvez. E lamento, caso esteja enganado - retorquiu Arthur num tom átono. - Mas o que interessa é que o meu exército se encontra exposto. Terei de recuar. Quero
que vá imediatamente ter com Blücher. Diga-lhe que vou recuar para uma posição paralela à dele em Wavre. - Arthur fechou os olhos e imaginou o mapa da paisagem circundante.
Aquiesceu. - Diga ao Blücher que ficarei em Mont-St-Jean, caso me prometa o apoio de pelo menos um dos batalhões do seu exército.
- Mont-St-Jean?
- A cumeada do outro lado da estrada para Bruxelas. Pouco antes da aldeia de Waterloo.
- Conheço-a.
Arthur apertou-lhe a mão.
- Se for derrotado por Bonaparte, receio que a Inglaterra possa nunca vir a perdoar a Prússia. Nesse caso, a coligação vai fracassar e a sombra de Bonaparte voltará
a cair sobre a Europa.
Müffling aquiesceu.
- Compreendo. Farei o que estiver ao meu alcance para convencer o marechal Blücher.
Capítulo 58
Ligny, 7h00, 17 de junho de 1815
Napoleão estava a tomar o pequeno-almoço, quando chegou o primeiro relatório do general Pajol. Tinha feito avançar a sua cavalaria à primeira luz da manhã para fazer
o reconhecimento dos prussianos e descobrir em que direção tinham recuado. O oficial de Pajol informou o imperador de que o principal corpo dos prussianos tinha
sido detetado na estrada para Liège. Havia sinais de que mais alguns inimigos se dirigiam a Wavre, mas Napoleão não ligou a isso. Se Blücher estava em retirada,
então de certeza que se aproximaria das suas linhas de fornecimento e acabaria por se dirigir a Liège.
Napoleão acenou afirmativamente com satisfação, enquanto dispensava o mensageiro e voltava a dirigir a sua atenção ao pequeno-almoço. Grouchy, Soult e alguns outros
oficiais do quartel-general tinham-se juntado a ele. Apesar das pesadas baixas, a vitória do dia anterior tinha deixado o imperador de bom humor e os subordinados
agradeciam a boa disposição.
- Tudo está a decorrer de acordo com o planeado - declarou Napoleão, enquanto cortava uma fatia de presunto. - Os prussianos estão a fugir e Ney controla a encruzilhada
de Quatre Bras. Wellington e a sua multidão vão recuar para Bruxelas. - Levou um grande bocado de carne à boca, mastigou rapidamente e engoliu. - Dividimos o inimigo
e só falta concluir a sua destruição. - Sorriu para os oficiais. - Esta campanha pode vir a ser lembrada na História como a mais rápida que alguma vez combati. Pensai
nisso, meus senhores. Nos anos vindouros, não se vão esquecer de contar a história aos vossos netos, hã?
Soult e alguns outros riram-se, mas a expressão de Grouchy permaneceu sombria.
- O que foi, Grouchy? - Napoleão ostentou uma expressão de desagrado. - Porquê essa cara?
- Sire, devíamos ter lançado a perseguição a Blücher ontem à noite. Se o tivéssemos feito, o exército dele estaria desordenado. Assim, perdemos o contacto com os
prussianos. Podem estar em qualquer lado, a reunir-se enquanto estamos aqui a comer.
- Ouviu o relatório. Pajol viu-os na estrada de Liège.
- Ele viu alguns prussianos. Podem ser desertores. Não estou convencido de que a nossa cavalaria tenha localizado o corpo principal do exército prussiano. Sire,
temos de os encontrar.
Uma nova batida na porta interrompeu Grouchy. Um oficial subalterno entrou e entregou a Soult uma tira de papel. O chefe do estado-maior leu-o e rapidamente aclarou
a garganta.
- É do Ney, sire.
- Sim?
- Ele, aaa, diz que não conseguiu completar a captura da encruzilhada, ontem. Wellington ainda detém essa posição.
Napoleão baixou a faca e o garfo e humedeceu os lábios, enquanto pensava nesta nova informação. Qual era a jogada de Wellington? Por certo tinha conhecimento de
que o aliado sofrera uma pesada derrota.
Soult chegou-se à frente com um lampejo excitado no olhar.
- Sire, a reserva podia alcançar Quatre Bras numa questão de horas. Se Ney conseguir manter Wellington na encruzilhada, podemos forçá-lo a combater-nos.
- Wellington não vai lutar. Vai bater em retirada. De facto, ficaria surpreendido se ele ainda não tivesse abandonado a sua posição. Não vai ser idiota a ponto de
tentar ficar, agora que Blücher não o pode apoiar. - Napoleão tamborilou suavemente com os dedos na mesa, enquanto considerava a situação. Depois ergueu o olhar.
- Segundo me parece, há duas linhas de ação possíveis. Primeiro, deixamos Ney a manter Wellington ocupado e avançamos com o resto do exército à procura de Blücher,
para terminarmos a destruição completa do seu exército. Segundo, Grouchy persegue Blücher com a ala direita do exército, enquanto Ney e a reserva enfrentam Wellington.
O que pensam disto?
Os oficiais ficaram em silêncio por um momento e então Soult falou: - Sire, uma vez que perdemos o contacto com os prussianos, qualquer perseguição que iniciemos
agora corre o risco de nos levar na direção errada. Se Blücher se dirige a Liège e o seguirmos, teremos de estender as nossas linhas de fornecimento. Se Wellington
conseguir iludir Ney, é possível que corte as nossas comunicações.
- Se. Se. Se! - Napoleão abanou a cabeça e prosseguiu, num tom severo: - Obrigado pelo seu conselho, Soult.
- Soult tem razão em apontar as incertezas, sire - interveio Grouchy. - Devíamos ter mantido contacto com os prussianos e tê-los destruído numa segunda investida.
Agora é tarde de mais. Sabemos onde está Wellington, por isso devemos atacá-lo o quanto antes.
Napoleão ficou irado com a desconsideração pelo seu julgamento, mas havia alguma verdade nas palavras de Grouchy. Fazia sentido atacar Wellington. Contudo, havia
outras coisas a considerar.
- O exército de Wellington ainda está intacto, ao passo que o de Blücher está maltratado e em retirada. Blücher sempre foi a maior ameaça. Se os prussianos forem
aniquilados, então só teremos de enfrentar o mais fraco dos dois exércitos aliados.
Napoleão olhou fixamente para Grouchy.
Grouchy cerrou os dentes e engoliu uma lufada de ar antes de responder o mais calmamente que conseguiu:
- Claro que tem razão, sire. Mas quanto mais tempo passarmos à procura de Blücher, maior a hipótese de ele reunir as suas tropas e coordenar os esforços com Wellington.
O que quer que seja que decidamos fazer, temos de o fazer rapidamente.
Napoleão ficou imóvel por um instante. Apesar das palavras de Grouchy, a ideia da destruição de Blücher era demasiado convidativa e valiosa para ser descartada.
- Vou dar um pouco mais de tempo ao general Pajol para confirmar a localização do corpo principal do exército de Blücher. Se não surgir nenhum avistamento definitivo,
nesse caso avançaremos para Wellington. O pequeno-almoço acabou, cavalheiros. Marechal Grouchy, nós dois vamos cavalgar juntos até ao seu comando. Quero felicitar
os seus homens pelo esforço de ontem, enquanto esperamos notícias de Blücher.
Nas três horas seguintes, Napoleão, Grouchy e uma escolta de cavalaria percorreram o campo de batalha. Ainda havia milhares de corpos amontoados pelo solo junto
às aldeias onde a luta tinha sido mais feroz. Nas encostas ainda se viam as linhas das unidades prussianas destroçadas pela artilharia francesa e, mais acima, os
cadáveres espalhados dos que tinham sido esquartejados pelas cargas de cavalaria que concluíra a batalha. Muitos dos regimentos franceses tinham sofrido miseravelmente
nos ataques a céu aberto e Napoleão foi inteligente ao presentear os sobreviventes com os seus elogios e ao atribuir promoções e a promessa de recompensas quando
a campanha terminasse. A seu lado, Grouchy fez o melhor que pôde para não se irritar e, discretamente, olhava para o relógio de bolso sempre que podia. Acabou por
não aguentar mais.
- Sire, são quase onze horas e não há notícias de Pajol. Tem de tomar uma decisão.
- Maldito Pajol - resmungou Napoleão. - O que é que ele anda a fazer? Porque é que não envia relatórios?
- Temos de partir do princípio que ele não encontrou os prussianos, sire. - Grouchy inclinou-se para mais perto dele e falou num tom baixo e urgente: - Pelo amor
de Deus, sire. Temos de agir.
Napoleão olhou-o por instantes e finalmente assentiu.
- Muito bem. Leve os seus homens e persiga Blücher. Mantenha-se junto a ele. Entretanto, vou usar Ney e a reserva para lidar com Wellington.
- Sim, sire. - Grouchy fez uma pequena vénia com uma expressão de alívio. - Vou partir imediatamente.
Napoleão acenou a cabeça em consentimento e, de repente, virou o cavalo na direção do quartel-general e esporeou a galope. A decisão estava tomada e agora era preciso
atacar Wellington o mais rapidamente possível, antes que o duque pudesse recuar para fora de perigo. Esteve com Soult apenas o tempo suficiente para dar ordens à
reserva para avançar para Quatre Bras e cavalgou até à encruzilhada para se juntar ao marechal Ney e aos seus homens.
O dia estava quente e o ar bastante parado. A leste, o céu estava obscurecido por uma fina neblina. Diretamente sobre ele, apenas um punhado de nuvens flutuava serenamente,
contrastando com a luxuriante paisagem verdejante do interior belga. Contudo, era todo esse pacifismo que preocupava Napoleão, enquanto incitava a sua montada a
avançar. Não havia qualquer som de tiros de canhão na direção de Quatre Bras. Se Wellington ainda lá se encontrava, não deveria estar a decorrer uma encarniçada
batalha com as forças de Ney?
Quando a estrada se elevou por uma ligeira inclinação, Napoleão viu a extensão do acampamento da ala esquerda do seu exército. Não havia sinal de nenhuma formação
pronta a avançar e combater. Mais à frente, espalhados pela encruzilhada, podia ver os pequenos obstáculos vermelhos do exército de Wellington, intercalados com
as baterias de artilharia prontas a defender a sua posição. Mais adiante, à distância, conseguia ver mais colunas a movimentarem-se na direção de Bruxelas. Napoleão
sentiu o estômago apertado de fúria enquanto contemplava a cena e esporeou com violência ao galopar em frente.
Um quilómetro mais à frente, a estrada passou junto a um regimento de infantaria. Os homens estavam calmamente sentados à volta das fogueiras, onde caldeirões de
guisado ferviam lentamente, suspensos nos tripés de ferro para cozinhar. O som dos cascos de cavalo chamou a atenção dos homens mais próximos, que se levantaram
rapidamente ao reconhecerem o imperador, mas as primeiras saudações morreram-lhes nas gargantas, enquanto Napoleão avançava e gritava:
- O que é que se passa aqui? O que estão aqui a fazer? Às armas, idiotas! Você aí! - Napoleão apontou o dedo ao sargento mais próximo. - Encontre o coronel. Diga-lhe
que o imperador quer este regimento em formação e pronto a marchar em dez minutos. Se não estiver pronto, mando-o fuzilar. E passe palavra às outras unidades!
- Sim, sire! - O sargento fez continência e virou-se para gritar ordens aos seus homens. Napoleão continuou em frente, ignorando os regimentos seguintes pelos quais
ia passando a galope, enquanto procurava o quartel-general de Ney. Quando alcançou a fazenda, quilómetro e meio a sul da encruzilhada, o cavalo estava esgotado,
com os flancos inflando-se como foles. Napoleão desceu da sela e caminhou hirto para confrontar o marechal Ney.
- Porque é que não está a atacar o inimigo? - repreendeu.
O rosto de Ney ficou muito vermelho e ele abriu a boca para responder enfurecido, mas controlou o temperamento o suficiente para resmungar em resposta: - Não recebi
ordens novas para atacar, sire. Nada desde que lhe enviei o meu relatório com as ações de ontem.
- Ordens? Não precisa de ordens quando pode ver por si próprio a necessidade de ação! - Napoleão apertou as mãos com força. - Por Deus, Wellington é tudo o que está
entre nós e a vitória, e fica aqui, de rabo sentado, a dar-lhe a oportunidade de escapar. Está louco, Ney?
- Não, sire.
- Então é um imbecil. - Antes de Ney poder responder ao insulto, Napoleão continuou amargamente: - Posicione os seus homens para atacar. Esperemos apanhar o Wellington
antes de ele conseguir escapar. Mãos à obra, Ney. Não há um momento a perder! - Napoleão virou-se de costas para o marechal e encarou com o general D'Erlon.
- França foi arruinada - queixou-se Napoleão. - Vá, general. Assuma o comando da sua cavalaria e prepare-se para perseguir a retaguarda do inimigo.
Demorou quase uma hora para que as forças de Ney estivessem preparadas para a batalha. Entretanto, a neblina espalhara-se pelo campo e agora nuvens escuras aproximavam-se
da encruzilhada. O ar estava quente e pegajoso, e piorava o humor de Napoleão. Apenas podia observar, impotente, os regimentos da linha de Wellington a recuarem
e a juntarem-se à retirada.
Quatre Bras, 14h30
- Parece que vem aí uma trovoada das grandes - comentou Uxbridge, enquanto olhava para as nuvens escuras a acumularem-se por cima de si.
Arthur acenou afirmativamente sem prestar atenção. Estava concentrado no campo a sul da encruzilhada. Tinha estado à espera que os franceses renovassem o ataque
toda a manhã, mas nada acontecera. O exército começara a retirar em direção a Mont-St-Jean muito antes do meio-dia e agora apenas a retaguarda permanecia. A cavalaria
de Uxbridge, a par da artilharia a cavalo de Mercer e das baterias de morteiros eram tudo o que restava entre a encruzilhada e o inimigo. Por fim, alguns minutos
antes, ouvira o som de cornetas vindo da direção dos franceses e os homens da retaguarda esperavam, tensos, pelo primeiro avistamento do inimigo.
Uma súbita brisa tinha começado a correr, redemoinhando entre as moitas nos campos de centeio que tinham sido espezinhados no dia anterior. O vento estava frio e
refrescava o ar, depois do tempo abafado que estivera de manhã e no início da tarde. Uma sombra envolveu a posição da retaguarda e engoliu-os na obscuridade. Então,
Arthur sentiu a primeira gota de chuva atingir-lhe a face.
- Agora é que é - murmurou Uxbridge. - Après ça, le déluge.
- Muito engraçado - comentou Arthur. - Mas imagino que tenhamos de nos preparar para uma tempestade de outro tipo a qualquer momento. - Um quilómetro a sul, o terreno
inclinava-se, onde a brigada do príncipe de Orange tinha sido fustigada. Nessa zona, e além dela, o solo ainda estava banhado pela brilhante luz do Sol. Enquanto
Arthur observava, uma figura solitária num cavalo branco galopou até ao cimo e estacou para inspecionar as posições britânicas. O casaco cinzento e o volumoso chapéu
de duas pontas eram inconfundíveis, e ouviu Uxbridge inspirar profundamente a seu lado.
- Por Deus, é ele! - exclamou Uxbridge. - É o Boney.
- Realmente - assentiu Arthur, afetado pela dramática visão à sua frente. Em contraluz, o imperador francês parecia muito mais próximo do que realmente estava. Arthur
observou Bonaparte a escrutinar a retaguarda e depois olhou, ao que parecia, diretamente para Arthur, apesar de saber que era virtualmente impossível distingui-lo
dos seus homens na obscuridade. Mais cavaleiros apareceram, em uniformes bordados a ouro, e pararam mesmo atrás de Bonaparte, perscrutando, também eles, os silenciosos
homens que defendiam a encruzilhada.
- Milorde! - chamou uma voz e Arthur virou-se para ver o capitão Mercer a acenar para lhe chamar a atenção.
- O que foi?
Mercer apontou para os cavaleiros à distância.
- Acho que eles são capazes de estar perto o suficiente para uma bomba de fragmentação, milorde. Tenho a sua permissão para disparar?
- Porque não? - aventou Uxbridge, ansioso. - Se o abatermos, é o mesmo que acabar com a guerra.
Arthur olhou demoradamente para o inimigo. Uxbridge tinha razão. Mas havia o perigo da morte de Napoleão o transformar num mártir e provocar nos seus homens fúria
e desejo de vingança. Abanou a cabeça.
- Guarde a pólvora para cobrir a retirada.
- Milorde?
- Faça o que lhe ordeno, capitão!
Mercer afastou-se do comandante com um encolher de ombros e ficou a olhar para o inimigo. Arthur apercebia-se do estrondo ribombante e viu o tremeluzir dos estandartes
vermelhos e brancos, quando um esquadrão de lanceiros inimigos surgiu a pouca distância à direita do imperador. Mais lanceiros apareceram e depois cavalaria couraçada,
enquanto a cumeada ia ficando repleta de cavaleiros. Nesse momento, uma ofuscante explosão branca, seguida imediatamente pelo troar metálico do trovão, assustou
os cavalos que se começaram a agitar em pânico. Gotas de chuva, pequenas e cortantes como tiros, caíram do céu como um chicote. A escuridão envolveu abruptamente
a cavalaria francesa e continuou a alastrar, à medida que a tempestade ia rebentando nos campos.
Arthur envolveu a boca com a mão.
- Isto é útil. Uxbridge, dê ordem de retirada. Primeiro a artilharia a cavalo, depois os morteiros e por fim a sua cavalaria.
- Sim, milorde.
- Vejo-vos mais tarde - disse Arthur. - Procurem-me em Waterloo.
Puxando as rédeas, Arthur virou o cavalo e apressou-se a meio galope até à encruzilhada para seguir a estrada para Bruxelas. A chuva já estava a inundar a superfície
da estrada e a cintilar na relva de ambos os lados. Se o aguaceiro continuasse durante algum tempo, Arthur apercebeu-se de que transformaria o solo num lamaçal pantanoso.
Tanto melhor, pois certamente iria atrasar qualquer perseguição que o inimigo tentasse. As pancadas secas da bateria de Mercer fizeram-no virar-se para trás uma
última vez e, pouco depois, os primeiros morteiros assobiaram pelos ares e explodiram sobre a cavalaria inimiga. Arthur ficou a observar um pouco mais e depois esporeou
o cavalo estrada abaixo e voltou a juntar-se ao seu exército.
Capítulo 59
Le Caillou, 21h00, 17 de junho de 1815
A tempestade continuou sem abrandar durante o resto da tarde e pela noite dentro, transformando prontamente a superfície de qualquer estrada e caminho num lamaçal
espesso que engolia as botas, cascos e rodados do Exército do Norte. Napoleão tinha continuado a sua perseguição do inimigo à frente da cavalaria de Ney. A tarde
fora gasta numa série de escaramuças em movimento, à medida que os britânicos levavam a cabo uma retirada escalonada para proteger os canhões e abrandar os franceses.
Quando escureceu, Napoleão tinha alcançado a fazenda e dado ordem para uma breve paragem enquanto a longa coluna do seu exército se debatia para recuperar terreno.
Quando os primeiros elementos do quartel-general imperial chegaram e começaram a preparar os aposentos do imperador, Napoleão reuniu alguma cavalaria e avançou mais
uma curta distância estrada fora. Para diante estava a massa escura de uma ravina baixa. Napoleão olhou de relance para a chuvada e voltou-se para o comandante de
cavalaria que o acompanhava.
- Milhaud. É imperativo que saibamos se Wellington fez alto esta noite, ou se está a usar a cobertura da escuridão para continuar a sua retirada. Leve os seus homens
para diante e veja o que consegue descobrir.
- Sim, sire. - O general Milhaud fez continência e deu ordem de avanço aos soldados. Napoleão e a escolta aguardaram na beira da estrada enquanto as figuras escuras
da coluna montada chapinharam ao passar e desapareceram na noite. Não houve qualquer som durante uns dez minutos. Depois, de repente, apareceu um clarão na ravina,
seguido pelo estrondo de um canhão. Mais uns quantos jatos de chamas romperam a escuridão ao longo de uma linha que acompanhava a estrada, e Napoleão acenou a cabeça
com uma satisfação sombria. Wellington estava ali, sem dúvida. Suficientemente perto para ser forçado a fincar o pé e lutar pela manhã. Napoleão deu-meia volta ao
cavalo e regressou à quinta. Os criados do quartel-general ainda estavam a preparar a sua acomodação, pelo que descansou sobre alguma palha espalhada num grande
nicho do celeiro enquanto aguardava.
A fúria contra Ney ainda estava ao rubro. A oportunidade para forçar uma batalha contra Wellington na encruzilhada tinha sido desperdiçada, e agora a chegada da
tempestade tinha prejudicado a tentativa do exército de se aproximar do inimigo. Os homens estavam exaustos, encontrando-se espalhados ao longo da estrada para Quatre
Bras. Viriam a passar-se muitas horas antes que eles conseguissem apanhar a vanguarda, pronta a continuar a perseguição assim que a tempestade amainasse.
Napoleão sabia que alguma da culpa também era sua. Tinham-se passado demasiadas horas nessa manhã antes de ele se ter dado conta da necessidade de avançar contra
o exército de Wellington. A exaustão tinha cobrado o seu preço. Já não dormia em condições há vários dias e o habitual estado de alerta da sua mente estava enfraquecido.
Mas havia mais qualquer coisa, refletiu. Estivera tão certo do pressuposto de que Blücher abandonara os seus aliados e de que Ney teria tomado Quatre Bras. Isso
fora um erro de julgamento. A velocidade alucinante com que recuperara o poder em França, a par da alegria histérica que tinha saudado o seu regresso, tinham-no
feito sentir-se invulnerável e infalível. Aquele dia fora uma rude lembrança da necessidade que um comandante tem de se adaptar permanentemente às circunstâncias.
Assim que a quinta ficou pronta para o imperador e o seu séquito, Napoleão convocou os oficiais superiores. Na hora seguinte, os marechais e generais de divisão
foram chegando, em sobretudos ensopados e salpicados de lama. Havia apenas uma sala na quinta que era suficientemente espaçosa para os acomodar a todos e a maioria
dos oficiais teve de ficar de pé enquanto rodeava o imperador, empoleirado num banquinho.
- Pretendo atacar Wellington amanhã. Ele escolheu a pior das posições para defender. Atrás dele está a floresta de Soignes. Se o seu exército falhar, não será capaz
de retirar e nós conseguiremos aniquilá-lo. A oportunidade que deixámos escapar será corrigida ainda hoje. - Lançou um olhar gelado a Ney e o marechal mexeu os lábios
com raiva. - É por isso vital que tantos dos vossos homens quanto possível estejam em posição ao romper do dia. Não tenho tempo para desculpas, cavalheiros. Farão
o que for preciso para assegurar que as vossas formações alcançam o campo a tempo. Perguntas?
- Sire. - D'Erlon levantou a mão. - Grouchy vai estar suficientemente perto para participar na batalha?
- Não sei. Ainda estou à espera que ele me relate o seu progresso. Temos de partir do princípio de que ele não chegará a tempo de intervir. Mas isso não tem de nos
preocupar. Temos força que chegue para vencer.
- E quanto aos prussianos? - quis saber o príncipe Jerónimo. - Existe o risco de eles poderem intervir, sire.
- Não, se Grouchy os contiver. Além disso, tanto quanto sei, a sua linha de retirada vai afastá-los de Wellington. Creio que podemos ignorar a possibilidade de os
prussianos nos virem a causar dificuldades.
Jerónimo abanou a cabeça.
- Não tenho assim tanta certeza, sire.
- Deveras? - Napoleão ergueu a sobrancelha ao olhar para o irmão mais novo. - Por que razão?
- Há duas horas tomei uma refeição numa estalagem em Genappe. Um criado contou-me uma história interessante. Ele alegou que Wellington e o seu séquito comeram lá
esta tarde. Ouviu um dos oficiais a dizer que Blücher estava em Wavre, e que poderia movimentar-se em apoio de Wellington amanhã.
Os outros oficiais agitaram-se com esta notícia. Napoleão ficou em silêncio até que voltassem a acalmar-se.
- Agradeço a informação, Jerónimo. Mas vamos aguardar pelo relatório de Grouchy. Nessa altura vamos ter a certeza.
- E se o criado tiver dito a verdade, sire? - insistiu Jerónimo.
- Não vejo maneira de Blücher representar qualquer perigo, conquanto Grouchy o consiga conter, afastado de Wellington. - Napoleão abanou a mão em jeito de desinteresse.
- Blücher não nos deve preocupar. Tudo o que importa é o exército que nos espera em Mont-St-Jean.
Waterloo, 22h00
O coronel Frazer estava em sentido à frente do seu comandante, procurando não mostrar qualquer expressão enquanto ouvia a repreensão.
- Já é mau que chegue ter de refrear a imprudência da minha cavalaria sem que a minha artilharia desate a disparar a cada sombra que vê na escuridão - queixou-se
Arthur.
- Vossa senhoria vai perdoar-me, mas os meus rapazes não dispararam contra sombras. Era cavalaria franciú.
- Não quero saber. É trabalho das vedetas e das patrulhas lidar com esse tipo de coisa. Não da maldita artilharia. Agora Bonaparte sabe onde estão instaladas as
nossas baterias, graças ao voluntarismo dos seus artilheiros. Estou com uma vontade tremenda de despromover todos os sargentos para soldados rasos à conta disto,
ouviu bem? - Arthur debruçou-se sobre a mesa, apoiando o peso nos punhos fechados, e procurou moderar o tom. - Muito bem, Frazer, vai ter de se certificar de que
os canhões são reposicionados. Talvez um pouco de trabalho à chuva e na lama possa contribuir para aclarar as ideias dos seus homens, hã?
- Sim, milorde. Darei a ordem imediatamente.
- Prefiro que supervisione o reposicionamento pessoalmente.
- Sim, milorde. É tudo?
Arthur assentiu e o oficial superior da artilharia virou-se prontamente e marchou para a porta da quinta. A sentinela abriu a porta para o deixar passar e Frazer
desapareceu na chuva. Uma vez fechada novamente a porta, Arthur recostou-se na cadeira e esfregou os olhos ao de leve. Restavam poucas dúvidas de que Bonaparte sabia
que o seu exército estava posicionado na crista. Os relatórios da cavalaria de Uxbridge informavam que havia mais tropas francesas a acumular-se à frente da crista
a cada hora. Não se punha a hipótese de haver mais retiradas. Mont-St-Jean era a última posição defensiva decente antes de Bruxelas, e era aí que Arthur tinha de
parar e lutar. Só esperava que Blücher respondesse ao seu pedido e enviasse uma parte do exército em apoio de Arthur. Até então não tinha havido resposta.
Le Caillou, 4h00, 18 de junho
Napoleão bateu com os pés para sacudir a lama das botas enquanto entregava a capa de oleado a um sargento. Tinha acabado de regressar de uma visita aos postos avançados
para tentar descortinar algum sinal de recuo do inimigo. A cumeada estava em silêncio e as sentinelas que patrulhavam adiante do exército aliado eram claramente
discerníveis na contraluz da miríade de fogueiras do acampamento aliado, acesas na encosta oposta. Convencido de que Wellington permanecia em posição, Napoleão regressara
ao seu posto de comando. Assim que entrou na sala de jantar da quinta, foi abordado por Soult.
- Sire, chegou uma mensagem de Grouchy.
- Ah, até que enfim. O que diz?
- Concluiu que o grosso do exército prussiano retirou na direção de Wavre, e não de Liège.
- Wavre? - Napoleão ergueu a sobrancelha enquanto se concentrava nas implicações da notícia. Afinal sempre parecia haver algum fundo de verdade na história contada
pelo criado em Genappe. Se Blücher estava em Wavre, nesse caso teria de ser cuidadosamente observado para se ter a certeza de que os prussianos não interviriam na
atividade do dia. - Grouchy diz quais as suas intenções?
- Sim, sire. Pretende segui-los para os impedir de chegar a Bruxelas e juntar-se a Wellington.
- Sim. Essa é a opção correta.
- Devo dar conta da receção da mensagem, sire?
- O quê? Não... não necessariamente. - Napoleão abanou a cabeça e depois atravessou a sala para se sentar num banco à janela em que a chuva escorria. Inclinou a
cabeça contra a parede rebocada e fechou os olhos.
A chuva finalmente parou mesmo antes do amanhecer e quando o primeiro raio de luz surgiu na paisagem, os homens enlameados do Exército do Norte agitaram-se por baixo
dos cobertores e sobretudos encharcados e atiçaram as fogueiras com a madeira que restava. Depois juntaram-se em volta das chamas enquanto se tentavam aquecer e
secar os uniformes, e comeram rapidamente algumas das rações que sobravam, antes de arrumar as coisas e seguir para a formatura das suas companhias.
No posto de comando do exército, Napoleão tomava o pequeno-almoço com o estado-maior. Apesar das dificuldades e da falta de sono nos dias anteriores, o estado de
espírito em redor do imperador era de boa disposição. Um dos exércitos aliados tinha sido repelido e agora outro teria o mesmo destino. A única questão que ensombrava
o humor de Napoleão nessa manhã era um relatório do general Drouot, segundo o qual o terreno estava demasiado húmido para que a artilharia pudesse avançar até uma
posição a partir da qual alcançasse o inimigo. O solo molhado também iria atenuar o impacto de qualquer fogo de artilharia, uma vez que a bola não seria capaz de
ressaltar no chão, limitando-se a enterrar-se na lama. Drouot pedia, por isso mesmo, que o ataque fosse adiado até ao final da manhã. Depois de ponderar rapidamente,
Napoleão assentiu. Ele tinha uma superioridade clara em artilharia e faria todo o sentido tirar o máximo partido dela.
- Muito bem - anunciou. - Parece que o exército vai ter folga esta manhã. - Um sino repicou ao longe. - Com certeza, sendo domingo, dia de descanso. Muito propícia,
esta chuva.
Os oficiais sorriram. Até Soult, cuja postura habitualmente enérgica tinha de certo modo ficado entorpecida pelo fardo da nova posição enquanto chefe do estado-maior,
se descontraiu um pouco. Esperou um momento e depois tossicou, antes de se dirigir ao imperador.
- Sire, uma vez que o início das hostilidades vai ser atrasado, podemos chamar Grouchy de regresso e eliminar qualquer dúvida quanto ao resultado da batalha?
- Dúvida? - Napoleão ficou surpreendido. - Duvida do resultado? Mas então, se temos noventa por cento de hipóteses a nosso favor, e nem dez contra. Não precisamos
de Grouchy. Soult, lá porque foi derrotado por Wellington, isso não faz dele um bom general. Se o fosse, certamente não teria escolhido um terreno tão fraco para
defender. As suas dificuldades são ampliadas pela fraca qualidade dos soldados. Digo-lhe, esta batalha vai ser rápida, pouco mais esforço para nós do que tomar este
pequeno-almoço.
- Com efeito, assim o espero, sire.
- E quanto a si, Reille? - Napoleão dirigiu-se a outro dos comandantes que enfrentara Wellington. - Partilha da ansiedade de Soult no que diz respeito à qualidade
dos seus adversários?
Reille apercebeu-se da mudança na disposição do seu amo e respondeu com cautela:
- Wellington sabe como defender, sire. Atacadas de frente, as tropas dele são praticamente impenetráveis. Contudo, nós temos a vantagem da cavalaria. Se conseguirmos
manobrar nos seus flancos, então ele será certamente derrotado.
- Disparate! - irritou-se Napoleão. - Um ataque frontal é quanto baste para lhe romper a linha. Vai ver. E isso nós conseguimos alcançar - virou-se para Soult -
sem Grouchy.
Soult fez uma vénia com a cabeça perante a vontade do seu amo.
- Muito bem, sire. Mas posso pelo menos comunicar a Grouchy o vosso desejo de que ele se deve acercar dos prussianos em Wavre?
- Como entender - respondeu Napoleão descuidadamente. - Diga-lhe que continue a empurrar os prussianos à sua frente. Agora - levantou-se da cadeira, - já que temos
tempo, vou inspecionar os meus soldados. Soult, estabeleça o posto de comando naquela estalagem... - Estalou os dedos.
- La Belle Alliance, sire?
Napoleão assentiu.
- Vai dar-nos uma visão excelente sobre a destruição do exército de Wellington.
Mont-St-Jean, 10h00
Arthur juntara-se ao exército pouco depois do amanhecer e percorrera a sua extensão, para ter a certeza de que os homens estavam posicionados e preparados para a
batalha que se avizinhava. Enquanto passava pelos soldados, ia sendo aclamado e Arthur, fiel à postura distante que impunha a si próprio desde há muitos anos, por
vezes agraciava-os com um ligeiro aceno. Ouvia-se o matraquear constante de mosquetes, à medida que os homens iam disparando para o ar para limpar os canos de qualquer
humidade ou poeira causada pelo dilúvio da noite anterior. A chuva tinha tido outro efeito peculiar que divertia os homens. A tinta vermelha dos casacos tinha manchado
os cinturões brancos. Arthur esperou que não fosse um presságio.
Decidira assegurar-se de que o flanco direito seria o mais forte, para o caso de Bonaparte tentar flanquear a posição. O esquerdo, na direção de Blücher, era bastante
menos impressionante, e Arthur sabia que estava a correr um risco quanto à chegada pontual do aliado. A artilharia tinha sido disposta ao longo da crista, de onde
podia massacrar as colunas francesas enquanto marchavam para o ataque. Atrás dela, abrigada pela encosta, esperava a infantaria numa linha escalonada, enquanto muita
da cavalaria estava acumulada atrás do centro. Uma mancheia de quintas estava dispersa à frente da linha aliada e estas tinham sido fortificadas, prontas a servir
de redutos para quebrar os assaltos inimigos. À direita estava a pequena quinta de Hougoumont, onde Arthur tinha posicionado os Foot Guards, a nata da sua infantaria,
e à frente do centro, na estrada para Bruxelas, estava a grande quinta de La Haye Sainte, defendida por um batalhão da Legião Alemã do Rei.
Arthur terminou a sua inspeção da linha de batalha e juntou-se aos oficiais superiores na crista, a curta distância do palacete de Hougoumont.
- Bom-dia, cavalheiros! - saudou bem-disposto.
Os oficiais retribuíram o cumprimento e levaram as mãos aos chapéus em jeito de continência. Uma figura na retaguarda do grupo de oficiais fez avançar a sua montada
e Arthur viu que era o general Müffling. Trotou até junto de Arthur.
- Milorde, tenho andado à vossa procura nesta última meia hora. Recebi uma mensagem do marechal Blücher, enviada às sete desta manhã.
Arthur assumiu uma postura formal antes de responder:
- E então?
- Ele promete apoiar-vos com pelo menos dois corpos do exército. E vem liderá-los pessoalmente.
Arthur sentiu o espírito ficar mais leve e permitiu-se um ligeiro sorriso ao falar com Müffling.
- Agradeço-lhe, meu amigo. Essa foi a melhor das novidades.
Arthur puxou as rédeas e Copenhagen, o seu cavalo preferido, virou-se para a frente para enfrentar o inimigo, a pouco mais de um quilómetro. Enquanto observava os
franceses, que se preparavam claramente para um ataque frontal, Arthur apercebeu-se de quão pequeno era o campo de batalha. Não mais de cinco quilómetros por três,
dentro dos quais se encontravam perto de duzentos mil homens preparados para disputar o terreno. Os franceses empurravam os últimos canhões para as suas posições,
no meio da linha de batalha.
- Vossa senhoria, vede, lá está Napoleão - gritou uma voz.
Arthur olhou para o lado.
- Conto consigo para não se deixar levar pelo entusiasmo, De Lancey.
O jovem general da intendência enrubesceu.
- Vossa senhoria me desculpe. - Arthur voltou-se para fitar além do vale que separava os dois exércitos. Napoleão estava claramente visível, montado uma vez mais
no seu cavalo branco como a neve, e escoltado por um esquadrão de lanceiros polacos. À medida que avançava decidido por entre as formações de infantaria, os soldados
aclamavam-no com entusiasmo, alguns erguendo as barretinas no ar na ponta dos mosquetes.
- Eles dão cá um espetáculo - escarneceu Uxbridge. - A este ritmo duvido que alguma vez comecemos a maldita batalha.
Arthur não disse nada enquanto continuava a olhar para o seu adversário. Estava bastante satisfeito com a perda de tempo dos franceses. Cada minuto que passava dava-lhe
mais tempo para a chegada dos soldados de Blücher ao campo de batalha. Bonaparte parecia totalmente despreocupado com a passagem do tempo à medida que se passeava
pelas formações do exército, tendo demorado mais de uma hora antes de regressar ao posto de comando ao lado da estrada de Bruxelas. Alguns minutos depois, uma arma
de sinalização foi disparada junto à posição do imperador.
Ouviu-se um ligeiro estalido quando Somerset abriu o relógio de bolso.
- São cerca de onze e trinta, milorde.
Arthur assentiu.
- Tome nota. - Pigarreou. - A batalha teve início, cavalheiros. Aos vossos postos!
Antes de o som das suas últimas palavras se ter dissipado, o ar foi fendido por um terrível rugido, quando as baterias da artilharia francesa abriram fogo.
Capítulo 60
Uma mistura de bolas e metralha caiu sobre as posições aliadas, e do seu posto de comando, Arthur percebeu que o fogo do inimigo se concentrava nos flancos do seu
exército. Hougoumont, acima de tudo, estava a ser bastante castigado. Ramos e folhas saltavam da pequena mata e do pomar que se encontravam a sul e a leste do castelo.
Telhas explodiram em fragmentos quando um punhado de peças francesas foi apontado demasiado por alto. Pelo telescópio, Arthur viu que os homens que defendiam o pomar
murado se agachavam para se proteger do bombardeamento. Mesmo assim, um disparo ocasional abriu um buraco no muro, lançando fragmentos letais de tijolo e de pederneira
pelos ares.
De ambos os lados de Arthur, as bocas-de-fogo aliadas respondiam ao inimigo. A artilharia tinha ordens precisas para não proceder a fogo contra as baterias e apontava
às formações de infantaria e de cavalaria. Como decidira seguir a tática habitual de manter o grosso do exército na encosta oposta, Arthur sabia que os canhões franceses
não seriam o maior perigo do dia. O verdadeiro teste chegaria quando Bonaparte lançasse os soldados e os cavalos contra a linha aliada.
Mesmo estando o grosso da artilharia francesa a fustigar os flancos, o resto da linha continuava sujeita ao fogo. Os escaramuceiros estavam dispersos por entre o
milho e o trigo de um verde pálido ao longo da frente aliada, erguendo-se para apontar e disparar contra os adversários antes de se voltarem a baixar para recarregar.
De vez em quando, as cearas à sua volta agitavam-se quando uma bola, ou uma lata de metralha, ceifava os caules, e um ou mais homens de Arthur desapareciam.
O assobio de um disparo mais próximo fez com que alguns dos oficiais do estado-maior se encolhessem, e Arthur olhou à sua volta.
- Firmes, cavalheiros.
Ao olhar para a direita, viu que um dos seus regimentos, o Quinquagésimo Quarto de Infantaria, estava mais perto do cimo do que seria aconselhável, e mesmo enquanto
os observava, uma bola caiu no terreno à frente da companhia de flanco, desfazendo dois homens com os ressaltos.
- Somerset, ordene àquele regimento que se baixe.
- Sim, milorde.
Quando Somerset se afastou a galopar, Arthur viu que os seus oficiais do estado-maior, mais de quarente ao todo, estavam reunidos nas suas costas.
- Uxbridge, parece-me que os nossos generais estão muito parados.
Uxbridge aquiesceu.
- Imagino que sejamos um alvo bastante tentador.
Dando meia-volta a Copenhagen, Arthur levou a mão em concha à boca para se dirigir aos oficiais.
- Agradecia que os cavalheiros se dispersassem. Irei ter convosco se tal for necessário.
Quando o estado-maior se dividiu em grupos mais pequenos, Arthur notou que mais regimentos seguiam o exemplo da Quinquagésima Primeira e se deitavam, ficando assim
menos expostos ao fogo inimigo. Dirigindo a atenção ao que se passava em torno de Hougoumont, avistou uma divisão francesa a formar-se à frente da mata, pronta a
atacar assim que a artilharia parasse com o bombardeamento ao castelo e ao seu jardim murado. Assim que a infantaria francesa avançasse, as peças aliadas na cumeada
não poderiam disparar sobre ela, com receio de atingir os soldados do seu próprio exército.
O fogo da artilharia inimiga sobre Hougoumont começou gradualmente a esmorecer e quando o último canhão cessou fogo, seguiu-se uma breve pausa antes que os tambores
franceses se fizessem ouvir, marcando um ritmo insistente que assinalava o avanço. Os primeiros batalhões da divisão posicionada à frente da mata do castelo começaram
a avançar.
- Há muito poucos homens a defender Hougoumont, milorde - comentou Somerset. - Deviam ser reforçados.
Arthur abanou a cabeça.
- São quanto bastem para a tarefa.
Somerset lançou-lhe um olhar ansioso, mas Arthur não reagiu e fixou o olhar na ação que tinha início ao fundo da encosta. As primeiras formações francesas desapareceram
de vista quando entraram nas árvores e seguiu-se o crepitar irregular dos mosquetes quando os escaramuceiros britânicos recuaram para o castelo. Momentos depois,
os primeiros inimigos chegaram ao jardim murado e começaram a trepar os muros. Os defensores, dispersos pelo muro, esforçaram-se por defender o perímetro, mas foram
obrigados a recuar à medida que os franceses saltavam, ou entravam pelas aberturas criadas nos muros pelo fogo da artilharia. Os atacantes de casaca azul espalharam-se
rapidamente pelos jardins e aproximaram-se do castelo e dos seus anexos. Faúlhas e plumas de fumo surgiram das janelas e das seteiras quando os defensores abriram
fogo contra a infantaria francesa, que pressionava a partir de dois lados.
O inimigo chegara ao castelo mais depressa do que Arthur imaginara e receou que talvez Somerset estivesse certo. Esporeou a montada e dirigiu-se ao comandante de
uma bateria de morteiros da Artilharia Montada Real que se encontrava pronta a deslocar-se.
- Major Bull, não é?
O comandante da bateria fez continência.
- Sim, milorde.
- Preciso dos serviços da sua bateria. Siga-me. - Arthur deu meia-volta e trotou encosta abaixo, em direção ao castelo. Foi seguido por Bull e pelos seus morteiros,
com as estruturas das peças a ressoar no terreno. Arthur parou a uma centena de metros do castelo. Vindo do outro lado, o estrépito da batalha desesperada enchia
o ar. - Os seus morteiros que disparem sobre o castelo. Temos de aliviar a pressão a que os defensores estão sujeitos. Mas certifique-se de que aponta devidamente,
major.
- Com certeza, milorde. Entendido.
Arthur observou os homens de Bull a prepararem rapidamente as armas e carregarem as esferas de ferro nos canos curtos e grossos. Bull certificou-se de que a elevação
de cada peça era ajustada de modo a que a trajetória das granadas passasse por cima do castelo a uma distância segura. A bateria abriu fogo e Arthur seguiu os rastos
esbatidos das granadas à medida que estas descreviam um arco sobre o castelo, em direção à mata mais adiante, rebentando entre os ramos e cuspindo pequenos fragmentos
de ferro contra os atacantes.
- Muito bem - gritou Arthur para o major Bull. - Continuem a apoiar o castelo o mais possível. - Virou-se e galopou de regresso ao seu ponto elevado para observar
o ataque. Centenas de soldados franceses juntavam-se à volta do castelo e do pátio murado, mas por aquilo que Arthur podia ver, nenhum conseguira ainda entrar. O
fogo incessante dos defensores abatia os invasores às dezenas e os corpos amontoavam-se constantemente em torno do edifício. Mais atrás, os que ainda se encontravam
na mata eram derrubados pelas granadas dos morteiros. O ataque durou mais dez minutos, até que Arthur viu o inimigo começar a recuar, desaparecendo nas árvores antes
de retirar pelo campo além da mata. Os disparos no castelo cessaram e, momentos depois, a bateria de Bull fez o mesmo.
Arthur aquiesceu com satisfação.
- Parece que o primeiro ponto é nosso.
La Belle Alliance, 13h00
- O que está o príncipe Jerónimo a fazer? - questionou Napoleão com brusquidão ao ver tropas novas de uma segunda divisão a avançar contra Hougoumont. - Ele só devia
estar a simular um ataque ao castelo. Quem devia estar a usar as reservas era Wellington e não eu.
- Sire, deseja que ordene ao príncipe que cesse o ataque?
Napoleão observou a nova onda de soldados começar a entrar na mata. Momentos depois, o ar acima deles ficava pontilhado com as nuvens brancas das granadas que rebentavam.
Abanou a cabeça.
- Não. Pode ser que o Jerónimo ainda consiga obrigar o Wellington a agir, e se o duque não morder o isco, tomaremos o castelo para o usar como base para importunar
a linha aliada.
Mais uma vez, Hougoumont ficou envolto em fumo de pólvora, à medida que os homens de Napoleão levavam a cabo o seu assalto. Observou a cumeada em busca de movimento
e depois apontou em triunfo, quando uma coluna de casacas-vermelhas surgiu encosta abaixo, em direção ao castelo.
- Ali! Sabia que o Wellington teria de enviar mais homens.
Soult olhou por um instante, após o que disse calmamente: - Não me parecem mais de quatro companhias, sire. Até agora, o príncipe Jerónimo já empregou quase duas
divisões.
Napoleão olhou-o furiosamente por um instante e depois voltou a dirigir a atenção ao campo de batalha. O fumo dos canhões de ambos os lados pairava sobre o terreno
em nuvens densas, ameaçando bloquear a visão da paisagem circundante. Uma ansiedade repentina fê-lo erguer o telescópio e percorrer o horizonte desde o sul em direção
a nordeste. Campos, casas agrícolas e pequenos bosques passaram pelo óculo, e depois uma pequena sombra à beira das árvores fez com que Napoleão parasse. Pestanejou
o olho e disse a um dos elementos do quartel-general que se colocasse à sua frente, para que usasse o ombro do homem como apoio para o telescópio. Soult e alguns
outros tinham reparado na expressão preocupada, virando-se na mesma direção e observando a linha escura que ia saindo das árvores.
- Está ali uma coluna de soldados - indicou Napoleão. Depois baixou o telescópio e correu para o mapa em cima de uma mesa no exterior da estalagem. Percorreu o mapa
e depois bateu com o dedo. - A mata perto de Chapelle-St-Lambert.
Soult trocou um olhar perturbado com os restantes oficiais em torno do mapa. Um deles engoliu em seco e indagou: - Poderá ser o Grouchy? A marchar para a origem
do som das armas?
Napoleão abanou a cabeça. A coluna distante vinha da direção de Wavre.
- Prussianos, de certeza.
Fez-se um silêncio breve enquanto os oficiais digeriam a informação, após o que Soult ergueu o telescópio na direção da mata distante e falou em voz baixa:
- Vejo mais colunas, sire.
Napoleão afagou o queixo.
- Os prussianos estão ainda a duas horas de marcha do campo de batalha. Ainda vão demorar até poderem apoiar o Wellington. Temos bastante tempo para vencer a batalha.
- E quanto ao Grouchy, sire? - quis saber Soult. - Mando chamá-lo?
- Faça favor. - Napoleão encolheu os ombros, enquanto considerava a última posição conhecida dos trinta mil homens de Grouchy: avançavam vindos de sul em direção
a Wavre. - Embora receie que esteja demasiado longe para intervir, mesmo que se dirigisse a nós de imediato.
Mesmo assim, Soult correu a redigir a ordem e enfiou-a na mão de um dos seus ajudantes de campo.
- Tome. Leve isto ao marechal Grouchy. Diga-lhe que o destino de França está em jogo.
Napoleão suspirou enquanto o oficial subia para a sela e se afastava.
- O destino de França será decidido por aqueles que já se encontram em campo, Soult. - Devolvendo a atenção à cumeada à frente da linha de batalha francesa, Napoleão
apontou para a extensão da encosta à direita da estrada para Bruxelas. - Não podemos adiar mais o ataque principal. Soult, diga a D'Erlon para preparar as tropas
dele para avançar. Chegou a altura de ver se esses ingleses que tanto teme conseguem resistir às nossas colunas.
Capítulo 61
Colinas de Mont-St-Jean, 13h30
As armas francesas tinham passado a última meia hora a disparar em massa, destroçando a barreira que percorria a cumeada. Os combatentes britânicos tinham-se deitado,
enquanto à sua volta as rajadas zuniam sobre as suas cabeças e os fragmentos de metralha assobiavam pelos caules de centeio como uma súbita ventania. Mesmo à frente
das colinas, dispostos numa linha através da encosta, estavam os soldados holandeses da brigada de Bylandt. Arthur não lhes tinha dado ordem de retirada para a ladeira
oposta, receando que Bonaparte pensasse que o centro dos aliados estava em retirada, atalhasse o bombardeamento e ordenasse o avanço da infantaria. A brigada teria
de ser sacrificada para ganhar tempo. Arthur tinha recebido notícias de que os prussianos tinham sido avistados, mas que não alcançariam o campo de batalha antes
de algumas horas. Arthur sentia o coração apertado, enquanto observava os holandeses mantendo a posição e aguentando o terrível castigo à medida que a artilharia
francesa lhes abria sangrentas brechas nas fileiras.
Ao lado dele, Somerset observava o massacre, até que se virou para o comandante.
- Milorde, peço-lhe, permita-me que chame Bylandt.
- Não. Têm de manter posição e aguentar.
Somerset abanou a cabeça.
- Não vão aguentar muito mais. Nenhum homem aguentaria.
- Eles têm de aguentar. Temos de aproveitar qualquer hipótese de ganhar tempo, até Blücher chegar.
O fogo francês começou a abrandar e, em menos de um minuto, as últimas armas silenciaram-se.
- E agora? - interrogou-se Somerset. - Cavalaria ou infantaria?
A pergunta foi respondida pelo distante rufar de tambores. Arthur trotou em frente até ao enorme ulmeiro que crescia na junção entre a larga estrada de Bruxelas
e a estrada secundária que se estendia pela montanha. Por baixo, talvez a seiscentos pés de distância, um denso aglomerado de fumo de pólvora obscurecia os franceses
do outro lado do vale. Os escaramuceiros britânicos sobreviventes estavam cautelosamente a levantar-se, espreitando entre o fumo. Atrás deles, os que restavam da
brigada de Bylandt aproximaram-se uns dos outros e avançaram dez passos para limpar a área dos corpos desfeitos e dos membros dos camaradas que não tinham sobrevivido.
Arthur concentrou-se, tentando olhar através do fumo, enquanto os sons dos tambores franceses se aproximavam. Depois viu os primeiros soldados, figuras difusas recortadas
contra o fumo, enquanto os escaramuceiros avançavam adiante das colunas principais. Quando emergiram no raio direto de visão, Arthur viu a linha estender-se desde
a parte da frente de La Haye Sainte até à sua direita por oitocentos metros através do campo de batalha em direção às quintas de La Haie e Papelotte, à esquerda.
- Isto não é uma diversão, Somerset - compreendeu Arthur. - Tencionam romper-nos o centro num só ataque. Tendo em conta a linha da frente, diria que Bonaparte vai
enviar três divisões contra nós. - Olhou para a esquerda, onde os homens da divisão de Picton se encontravam em colunas de batalhão na colina oposta. - Três para
uma. As probabilidades não são boas.
- Se Picton não aguentar, o inimigo vai dividir-nos o exército em dois, milorde.
Arthur assentiu e depois fez um gesto em direção à cavalaria de reserva.
- Vá ter com Uxbridge. Ele que prepare a cavalaria para o ataque.
Somerset deu meia-volta ao cavalo e afastou-se a galope e Arthur virou-se de novo para o inimigo. Ouviu-se o crepitar dos mosquetes, quando os escaramuceiros deram
início ao seu duelo unilateral. Os britânicos, em menor número, dispararam e recuaram perante o massacre. Aqui e ali, uma figura de casaca vermelha era abatida e
desaparecia do campo de visão. As colunas francesas continuavam o seu avanço inexorável: uma grande massa de homens que avançava pelo meio da ladeira enlameada em
direção à cumeada. Continuaram a surgir do meio do fumo, fileira após fileira, aparentemente sem fim, e Arthur fitou o espetáculo com o coração gelado. Era uma visão
magnífica, pensou, mais de dez mil homens avançando corajosamente para a batalha. Era magnífico, mas aqueles excelentes regimentos tinham de ser destruídos.
As equipas da artilharia britânica na montanha fizeram pontaria à linha francesa e abriram fogo, sobre a cabeça dos escaramuceiros, de modo a que as rajadas mergulhassem
entre as fileiras da retaguarda, varrendo filas de dez ou quinze homens de uma só vez. O ar estava cheio de explosões de canhão e o embate abalava o ar mesmo à volta
de Arthur. Enquanto observava, sentado na sela, os oficiais aliados chamaram de volta os escaramuceiros e os homens voltaram a subir a colina através dos intervalos
na barreira para se juntarem aos seus regimentos. Só a brigada de Bylandt fazia frente à massa que se aproximava. O insistente rufar de tambores era acompanhado
pelos gritos dos oficiais franceses, enquanto incitavam os seus homens em frente, e os soldados gritavam vivas ao imperador num ruído ensurdecedor.
As armas britânicas estavam agora a disparar metralha diretamente para a frente das colunas, derrubando grupos de homens num instante, mas os intervalos fechavam-se
e os soldados continuavam a avançar. Empunharam os mosquetes e, pouco depois, a ordem para disparar perdeu-se no estrondo da salva de artilharia. Diretamente à sua
frente, a fileira na liderança tremeu sob o impacto e os homens caíram ao solo. Os que se seguiam apressaram o passo, mas, antes de poderem encurtar a distância,
as tropas holandesas, abaladas pelas pesadas perdas que já tinham sofrido, cederam, dispersando pela encosta. Os oficiais esforçaram-se por os reunir do lado oposto
e, por um momento, a maioria não desistiu, começando a recarregar. Não houve qualquer tentativa de proceder a uma salva e os soldados dispararam individualmente
contra o inimigo assim que os mosquetes ficaram prontos e depois viraram-se e fugiram atrás dos seus companheiros.
Arthur ignorou-os quando passaram pela sua posição. Pouco depois, a última das equipas de artilharia à frente das colunas que se aproximavam disparou o canhão e
recuou a trote para uma zona segura pelo meio dos intervalos nos regimentos da divisão de Picton.
Somerset tinha passado a Uxbridge as ordens e voltara a galopar para junto do seu comandante.
- Milorde! Tem de recuar; os franceses estão quase em cima de nós.
Arthur concordou com um aceno de cabeça, virou Copenhagen e os dois cavaleiros trotaram em direção à retaguarda da divisão de Picton. A uma centena de pés, Picton
observava o comandante e levantou o chapéu em saudação antes de dirigir a atenção aos seus homens e gritar ordens aos seus escoceses.
- A Nonagésima Segunda vai avançar! Todos os que estavam à frente já abriram caminho. Coragem, meus rapazes! Em frente! - Desembainhou a sua espada e brandiu-a sobre
a cabeça.
As primeiras filas das colunas francesas tinham alcançado a encosta e alguns dos batalhões estavam agora a parar para disparar, enquanto outros continuavam pela
ladeira, parando a curta distância do outro lado. Arthur não pôde deixar de suster a respiração quando os mosquetes franceses ficaram em posição e se ouviu gritar:
- Tirez!
Clarões iluminaram a linha e a salva de artilharia rasgou os escoceses que avançavam a correr para enfrentar o inimigo. Enquanto grandes quantidades de figuras de
kilt tombavam, a linha titubeou e quase se deteve. Picton esporeou o cavalo em frente e gritou para os seus oficiais:
- Reunir! Reunir os escoceses!
Nesse momento, a cabeça tombou-lhe para trás. Os dedos tiveram um espasmo e a lâmina caiu para o chão. Enquanto o cavalo continuava a trote, Picton resvalou para
um dos lados e caiu da sela, rebolou pela relva espezinhada e quedou-se imóvel.
- Santo Deus - murmurou Arthur. - Coitado do Picton.
Um gemido atravessou as fileiras quando se aperceberam da morte do seu comandante e, então, os escoceses soltaram um urro de raiva e precipitaram-se contra os franceses
expectantes. Foi uma carga valorosa, mas Arthur sabia que o peso dos números estava do lado do inimigo e que os homens de Picton não podiam deixar o centro da linha
aliada sem assistência.
Por trás ouviu-se o chamamento de uma corneta, três sopros culminando num longo de tom mais agudo, vezes sem conta. Uxbridge dera ordem à cavalaria pesada para atacar.
Duas brigadas avançaram lentamente. Havia muito pouco espaço para se lançarem a galope e eles só podiam sair a trote através dos intervalos na divisão de Picton,
enquanto a infantaria rapidamente se encolheu para deixar passar os cavaleiros, saudando os camaradas montados quando passavam. Os cavaleiros avançaram a meio trote,
invadindo as fileiras massivas da infantaria francesa, picando e cortando com as pesadas lâminas. Por um momento, a coragem do inimigo manteve-se, mas à medida que
cada vez mais cavalaria britânica os inundava pelos flancos e iam caindo sobre eles como gigantes no fumo compacto, a coragem abandonou-os. As fileiras que lideravam
viraram-se e começaram a pressionar as que estavam atrás, desesperadas por escapar ao assobio das lâminas de espada, e o pânico espalhou-se por toda a formação em
poucos momentos. Centenas de soldados da infantaria viraram costas e correram encosta abaixo, tentando desesperadamente livrar-se do equipamento que os estorvava
enquanto tentavam fugir.
- Por Deus, foi em boa hora! - comentou Somerset, enquanto se levantava na sela e levava a mão em concha à boca. - Cavalguem, homens! Força! Espezinhem-nos bem!
Arthur virou-se para ele e fez uma expressão de desagrado, estando prestes a dizer ao seu subordinado para se controlar quando avistou Uxbridge a avançar com ímpeto,
a espada desembainhada a incentivar os homens a plenos pulmões. Em seguida, a montada de Uxbridge saltou um pequeno obstáculo e disparou colina abaixo em perseguição
dos inimigos.
Na cumeada, as maltratadas linhas da divisão de Picton estavam de novo a formar e Arthur soltou um pequeno suspiro. O centro tinha sobrevivido ao primeiro grande
teste da batalha.
La Belle Alliance, 14h30
Napoleão ficou a olhar em silêncio para a massa em fuga, vindo na sua direção como confetes. Surgindo por entre as figuras que fugiam, os dragões de Wellington continuavam
a avançar, aproximando-se da linha de canhões que se estendia pelo campo de batalha. Os artilheiros não se atreviam a disparar, receando massacrar os seus próprios
homens, e apenas olhavam, enquanto o perigo descia pela colina na sua direção. Quando os primeiros cavaleiros britânicos alcançaram as peças de artilharia, algumas
das equipas tentaram defender-se, utilizando as varetas das armas, alavancas e pequenas espadas. Foi uma luta breve e desigual e os artilheiros foram rapidamente
afugentados para longe dos canhões, apressando-se a recuar e a procurar abrigo entre as carretas da artilharia e das munições. Os cavaleiros perseguiram-nos, eliminando
com o sabre qualquer homem que estivesse ao seu alcance. Também cortaram os tendões dos cavalos de tração, inutilizando-os, e os impotentes animais caíram, presos
aos arreios, relinchando de agonia e terror.
À volta do imperador, os oficiais do estado-maior observaram, perplexos, o ataque da cavalaria. Apenas pouco tempo antes, parecia que nada podia impedir as corporações
de D'Erlon de esmagarem tudo a caminho do centro do exército aliado. Agora, todas as três divisões estavam desmanteladas e a colina estava coberta com milhares de
corpos.
- Sire, quais são as suas ordens? - indagou Soult. - Mudamos o quartel-general para um lugar mais seguro?
- Não há necessidade - respondeu Napoleão com um ar cansado. - O contra-ataque já está a caminho. Veja ali. - Apontou para a direita, onde a cavalaria do general
Jacquinot tinha emergido de uma zona preparada para cultivo, a leste do campo de batalha. A força era composta por couraceiros e lanceiros, que rapidamente assumiram
posições de ataque aos flancos da cavalaria britânica, muitos dos quais ainda estavam ocupados a destruir os homens de D'Erlon e o comboio de artilharia por trás
da grande bateria. Tão absortos estavam com a fúria de combate que não se aperceberam do perigo, nem responderam ao desesperado sinal de chamada de regresso que
soava no cimo da montanha.
Quando os homens ficaram prontos, Jacquinot liderou ele próprio o ataque, aumentando firmemente o passo, até soltar a cavalaria a pouca distância do inimigo. A carga
embateu nos cavaleiros britânicos, que iam sendo esquartejados, enquanto se esforçavam por entrar na batalha. Os cavalos ficaram ofegantes e muitos dos que desistiram
de lutar e fugiram em direção à colina foram alcançados e mortos.
Napoleão observou com uma satisfação sombria, enquanto a cavalaria vingava os camaradas, cavalgando e matando um inimigo atrás de outro, deixando os corpos na lama
ao lado dos cadáveres dos soldados de D'Erlon. Ambos os lados tinham sofrido uma reviravolta sangrenta, refletiu Napoleão, mas os aliados ainda detinham a encosta,
bem como os pontos estratégicos à sua frente.
- Só conseguimos vencer esta batalha se quebrarmos o centro de Wellington - declarou. Olhou para Hougoumont, obscurecido pelo fumo que não fora totalmente provocado
pela furiosa troca de fogo de mosquetes. Uma coluna crescente subia para o céu por entre os edifícios e as chamas brilhavam no teto de um celeiro. Com sorte, o fogo
iria espalhar-se e obrigaria os defensores a recuar. Restava a mais pequena fazenda de La Haye Sainte, mesmo à frente do centro de Wellington. Napoleão observara
o fogo devastador que fora derramado contra o flanco da divisão de D'Erlon pelos defensores da fazenda. Era óbvio que tinha de invadir La Haye Sainte, caso almejasse
à mais pequena hipótese de um ataque bem-sucedido à colina. Dirigiu-se a Soult.
- Diga ao Ney que temos de conquistar aquela fazenda se queremos ganhar a guerra. Tem de a tomar a qualquer custo. - Apontou para a nesga de montanha entre La Haye
Sainte e Hougoumont. O terreno ali parecia mais transitável do que de onde D'Erlon tentara fazer o seu avanço. Pelo menos estava menos enlameado e não se tornaria
um obstáculo a um ataque à encosta. - É ali que temos de atacar a seguir. Diga ao Ney que utilize todas as armas disponíveis para desgastar o centro aliado, antes
que comecem novo ataque.
Soult assentiu e tomou rapidamente notas. Enquanto escrevia, um mensageiro galopou até à estalagem e desmontou do cavalo exausto. Avistando Soult, apressou-se a
chegar junto a ele e entregou-lhe uma mensagem. Soult acabou rapidamente as suas ordens para Ney e leu o relatório. Então, com uma expressão sombria, aproximou-se
de Napoleão e falou em voz baixa, para que nenhum dos outros oficiais pudesse ouvi-lo.
- Uma mensagem de Grouchy, sire.
- Então?
- Ainda está a avançar para Wavre. Não conseguirá chegar até nós antes de noite cerrada.
Napoleão humedeceu os lábios.
- Nesse caso temos de esquecer Grouchy.
- E quanto aos prussianos, sire?
- Temos de os atrasar. Envie os hussardos de Marbot para Lasne e alerte o general Lobau para ter as suas corporações preparadas para marchar e proteger o nosso flanco
direito.
Soult acabou de tomar as suas notas e caminhou até aos oficiais sentados à mesa montada no exterior da estalagem, para que as ordens fossem copiadas por alguém com
boa caligrafia e enviadas. Entretanto, a atenção de Napoleão centrou-se em La Haye Sainte. Era bem mais pequena do que Hougoumont e teria menos homens a defendê-la.
Ney poderia ocupá-la com facilidade.
Capítulo 62
Houve uma breve pausa na maior parte do campo de batalha quando se dispuseram tantos canhões franceses quanto possível entre Hougoumont e La Haye Sainte. Durante
esse tempo, o assalto aos dois lugares prosseguiu. Napoleão conseguia ver os seus homens encostados aos muros da fazenda, agarrando os canos de qualquer mosquete
que se mostrasse pelas seteiras e procurando arrancá-los das mãos dos defensores. A porta do celeiro tinha desaparecido e uma feroz luta corpo a corpo decorria junto
à entrada. Ao pressionar numa tentativa desesperada de subjugar os defensores, mais inimigos disparavam sobre os franceses do muro junto ao celeiro. Alguns soldados
chegavam a atirar tijolos para as cabeças dos homens lá em baixo.
Mais uma vez, o ataque foi rechaçado e os franceses recuaram, passando através das árvores despedaçadas do pomar até estarem fora de alcance. Assim que retiraram
para uma distância segura, uma bateria de obuses retomou o bombardeamento da quinta e os projéteis rebentavam sobre as telhas com um clarão e uma nuvem branca, ou
caíam antes de rebentar e iluminavam fugazmente o interior da quinta murada com um brilho avermelhado.
À esquerda de Napoleão, ouviu-se o estrondear de cascos e ele voltou-se para ver as reservas da cavalaria a avançar para se formarem atrás da linha de canhões que
estava a ser apontada à crista. Regimento atrás de regimento de couraceiros, lanceiros e dragões avançaram, até o solo do estreito vale não ser mais do que uma massa
de cavaleiros, sentados silenciosamente nas selas enquanto aguardavam a ordem para atacar. Ney assumiu o seu lugar à cabeça e ergueu o chapéu emplumado para indicar
aos canhões que abrissem fogo. Com um rugido escalonado, o bombardeamento teve início. Cada canhão cuspia fogo e fumo ao escoicear com o recuo.
Os artilheiros de Wellington também se mantinham prontos, mas não retribuíram o fogo, e Napoleão apercebeu-se de que deviam estar a guardar as munições para a cavalaria
francesa, quando esta começasse o seu avanço. Napoleão viu um dos trens dos canhões britânicos a desintegrar-se acima de Hougoumont, ao ser atingido por uma bola.
Explodiram lascas em todas as direções, deitando por terra a equipa. O eixo tombou e o cano ficou voltado para o céu. Por toda a crista, colunas de terra elevavam-se
no ar, mas a linha de soldados estacionada na encosta e na própria cumeada mantinha-se firme na sua posição, mesmo sendo dizimada por bolas e metralha.
- Não podem aguentar este castigo muito mais tempo - comentou Soult.
Napoleão anuiu em concordância. Contudo, ainda que ficasse morbidamente satisfeito com a destruição que ia sendo infligida pelos canhões franceses, estava ciente
de que o tempo se esgotava. A cada minuto que passava, os prussianos iam-se aproximando do seu flanco direito. A batalha ainda podia ser ganha, calculou, mas as
probabilidades eram agora de apenas sessenta para quarenta a seu favor. A vitória dependia da rutura do centro da linha aliada. Napoleão procurou o relógio no bolso
e olhou para os ponteiros. Os soldados de Wellington, amalgamados a partir das forças das potências secundárias da Europa, já estavam a desafiá-lo há mais de quatro
horas.
- A determinação deles vai falhar a qualquer momento, Soult, tenho a certeza. - Napoleão indicou a cavalaria que aguardava. - E então nada restará entre Ney e as
ruas de Bruxelas.
O ulmeiro, 16h00
Apesar de Arthur ter dado a ordem para que os batalhões sobre a crista se deitassem, as baixas foram, mesmo assim, assustadoras. Munições pesadas, apontadas num
ângulo raso, tinham esmagado as figuras de bruços, deixando borrões sangrentos e corpos mutilados no rasto da sua passagem, e não havia abrigo para as granadas que
regularmente iam explodindo sobre as cabeças, espalhando fragmentos de ferro cortante pelos homens em baixo.
- Não aguentámos com nada assim em Espanha, milorde - comentou Somerset, ao verem o bombardeamento à direita. Ainda que as armas francesas tivessem por alvo o trecho
de crista entre os dois pontos fortes de Hougoumont e La Haye Sainte, um tiro ou outro acertava na encosta ou zumbia pelo ar perto de Arthur e do seu pequeno grupo
de oficiais. Uma vez ouviu-se um rugido seco atrás deles, e Arthur voltou-se para ver uma coluna de fumo a elevar-se no ar a partir dos restos esfrangalhados de
umas carroças de munições, agora em chamas, à medida que várias figuras aturdidas em seu redor se iam levantando e cambaleavam para longe das labaredas. Umas quantas
dezenas de homens e cavalos estavam no chão, imóveis.
- Tiro de corte com o obus - murmurou um dos adidos de Arthur.
- Sorte? - resmungou Somerset.
Os oficiais dirigiram novamente a atenção para o bombardeamento furioso. Parecia a Arthur que tinha atingido o auge. Voltou-se para olhar para os soldados do regimento
mais próximo, formado por novos recrutas acabados de chegar do batalhão de treino em Inglaterra. Não havia como negar o medo nas suas expressões. Arthur sabia que
eles tinham de ser recuados, antes de perderem a coragem.
- Somerset, passe a palavra. O centro da linha vai recuar cem passos.
- Cem passos? Sim, milorde.
O ajudante de campo esporeou o cavalo e transmitiu a ordem a todas as unidades que defendiam a posição sob bombardeamento dos canhões franceses. Um a um, os batalhões
levantaram-se e cerraram fileiras antes de se virarem e descerem a encosta, fora da visão dos artilheiros franceses. Num quarto de hora, os únicos homens ainda visíveis
para o inimigo eram os artilheiros. Algumas das baterias, vencidas pela exasperação de aguentar perdas sem resposta, ignoraram as ordens de Wellington para não contra-atacarem
e começaram a disparar.
Não havia tempo para alcançar os artilheiros e repreendê-los, uma vez que, nesse momento, Arthur apercebeu-se de que o bombardeamento inimigo estava a ceder. Os
últimos canhões dispararam e então as equipagens recarregaram-nos e aproximaram-se ao máximo das armas de modo a criar o máximo espaço possível entre canhões. A
razão para isto era evidente para Arthur, que esporeou o cavalo para diante, descendo a contraencosta na direção dos regimentos de infantaria que aí se abrigavam.
- Preparem-se para a cavalaria! A infantaria que forme em quadrado!
A ordem foi retransmitida de batalhão para batalhão e cada uma das linhas de infantaria manobrou prontamente em blocos, com três fileiras de profundidade. A fileira
da frente ajoelhou, com cada homem a fixar a coronha do mosquete contra a bota, de modo a que a sua baioneta formasse um ângulo, e apresentou assim uma linha lustrosa
de pontas afiadas em cada face da formação. Em pouco tempo, a encosta estava coberta numa manta de retalhos de retângulos vermelhos, escalonados sem grande rigor
como quadrados alongados de um tabuleiro de xadrez. Arthur e a sua comitiva tomaram lugar no meio de um batalhão próximo da crista e aguardaram. Acima deles, a artilharia
britânica disparou enquanto se atreveu contra a cavalaria que avançava, e depois as armas foram abandonadas quando os artilheiros correram para o abrigo do quadrado
mais próximo, passando de lado pelo meio das baionetas estendidas. Uma mancheia de equipas teve a presença de espírito para retirar uma roda dos seus canhões e correr
com ela encosta abaixo, deixando assim a arma imobilizada.
- Aí vêm eles - murmurou Somerset quando o chão tremeu sob o impacto de quatro mil cavaleiros que subiam a encosta. As notas agudas dos clarins marcaram um ritmo
crescente e então apareceram na crista os primeiros inimigos, envergando os capacetes emplumados dos dragões. Os cavaleiros avançaram, passando por entre os canhões
abandonados, com uma frente que se prolongava talvez por mil metros, carregando na direção dos quadrados numa onda mortífera de espadas brilhantes e lanças letais.
- Aguentem firmes! - gritou o coronel do batalhão para os seus homens. - Por Inglaterra!
Arthur observou um esquadrão de couraceiros rodar na direção do quadrado, com as couraças a brilhar enquanto as montadas esticavam os pescoços e galopavam descendo
a encosta suave.
- Fogo! - bradou o coronel, e a visão do inimigo ficou obstruída pelo fumo. Arthur ouviu o som grave das balas que batiam na carne dos cavalos, e o som metálico
que faziam ao acertar nas couraças. O fumo dissipou-se, revelando cavalos e homens espalhados sobre os cereais espezinhados.
- Fogo à vontade! - ordenou o coronel.
De todos os lados vinham agora salvas e a cavalaria inimiga foi derrubada. A seguir estavam entre os quadrados, deslizando entre fileiras de baionetas, como uma
onda que se esmaga contra rochas e é forçada a canalizar a sua força pelo meio de obstáculos inamovíveis. Os mais temerários dos cavaleiros levaram as montadas até
à linha de baionetas e tentaram então inclinar-se e desferir cutiladas em algum dos homens ajoelhados. Todavia, quase todos foram alvejados antes de conseguirem
atacar.
Enquanto Arthur observava, ia acenando com satisfação. Os seus homens estavam a aguentar firmes, e enquanto o fizessem, a cavalaria francesa estaria a ser sacrificada
sem propósito. A única preocupação de Arthur era que, enquanto a infantaria estava ocupada, Bonaparte podia estar a enviar encosta acima infantaria e artilharia
a fim de apoiar o ataque. Se isso acontecesse, pouco haveria a fazer para proteger o exército aliado. Ameaçado por cavalaria, ver-se-ia forçado a permanecer em quadrado,
e assim proporcionar alvos perfeitos para os canhões inimigos.
A sua sequência de pensamentos foi interrompida quando um dos seus adidos foi derrubado pelo impacto de uma bala. Com um gemido, o jovem oficial tombou da sela.
- Levem-no para o posto médico! - ordenou Somerset a um rapaz-tambor que estava a passar, e o oficial ferido foi arrastado na direção dos estandartes, onde outros
membros da banda do batalhão já estavam a cuidar dos feridos.
Alguns do franceses tinham-se apercebido da futilidade de tentar penetrar nos quadrados e tinham embainhado as espadas e sacado de pistolas para disparar contra
a infantaria que resistira à carga inicial. A última das salvas tinha sido disparada e agora o ar estava cheio com os estalidos que os soldados faziam ao recarregar
e disparar. O fumo que pairava sobre os quadrados estava pouco depois tão denso como o mais espesso nevoeiro londrino, e os cavaleiros inimigos eram pouco mais do
que sombras. O clarão dos disparos iluminava o fumo por todo o lado e, acima do tiroteio, Arthur conseguia ouvir os gritos desesperados dos oficiais dos dois lados
enquanto encorajavam os seus homens, bem como os gritos dos feridos e os relinchos aterrorizados dos cavalos estropiados.
Por uns bons vinte minutos, a cavalaria inimiga foi tentando penetrar nos quadrados, mas sempre que um dos homens de Wellington caía, o seu corpo era arrastado para
o interior e a brecha preenchida, mantendo-se a formação tão inexpugnável como antes. Então Arthur apercebeu-se de que o fogo estava a amainar, e uma voz gritou:
- Estão a ir-se! Os franceses estão a fugir, rapazes!
Fez-se ouvir um grande grito de alegria, que se propagava de quadrado em quadrado. Arthur gesticulou para que o estado-maior o seguisse, e trotou para fora do quadrado
que o tinha abrigado, com a infantaria a afastar-se para lhe dar passagem. Levou a mão à boca e gritou:
- Artilheiros, para as vossas peças!
Saindo da nuvem de fumo, cavalgou uma curta distância para avaliar a situação. Uma mancheia de inimigos estava ainda a retirar sobre a crista, e os que tinham perdido
as montadas debatiam-se para atravessar o campo revolvido, atrapalhados pelas suas pesadas botas e couraças desconfortáveis. Centenas mais estavam espalhados pelo
chão com as suas montadas, muitos definhando enquanto gemiam. As equipagens dos canhões não lhes ligaram ao avançar para diante e voltar aos seus postos junto dos
canhões. Nenhum deles parecia ter sido sabotado, notou Arthur surpreendido. Fora uma distração idiota da parte do inimigo, e uma pela qual pagariam bem caro. Dirigiu-se
pela encosta até junto da bateria do capitão Sandham. Os seus canhões de nove libras e o obus estavam em ação quando Arthur se acercou e retribuiu a continência.
- Dê cabo deles, Sandham.
- Com certeza, milorde. - O capitão sorriu.
A duzentos metros, os oficiais franceses esforçavam-se por reunir as suas tropas e Arthur reconheceu o marechal Ney a incentivar freneticamente os homens à sua frente.
Subitamente, o cavalo empinou-se quando um tiro se foi alojar no seu pescoço. O animal caiu por baixo de Ney, mas enquanto Arthur observava, ele levantou-se calmamente
da sela e avançou alguns passos até ao cavalo mais próximo, pegou nas rédeas e deu ordem ao cavaleiro para desmontar. Assim que se viu na sela da sua nova montada,
Ney continuou a dirigir-se com veemência às tropas.
- Eles vêm aí outra vez! - alertou Mercer.
- Voltem aos quadrados - ordenou Arthur. - O Somerset também.
As equipagens de Sandham dispararam a última salva e fugiram. Arthur aguardou mais um instante, depois pegou no telescópio e apontou-o para o fumo que se erguia
de uma aldeia a leste, a não mais de três quilómetros da posição em que se encontrava. Via lutas, e só podia haver uma explicação para isso - os prussianos tinham
acabado de chegar ao campo de batalha. Um clarim francês soou o avanço e Arthur fechou o telescópio num gesto, voltando Copenhagen para trás, rumo aos quadrados
que se entreviam pelo fumo que se ia dissipando.
A carga seguinte sofreu o mesmo destino da primeira e então os ataques foram ficando mais desorganizados, à medida que cada regimento inimigo ia sendo desbaratado,
se reunia e voltava à carga. Durante os intervalos entre ataques, a artilharia francesa abria fogo e os tiros voavam sobre a crista antes de mergulhar sobre os quadrados
compactos, causando bastantes mais baixas do que os ataques da cavalaria. Arthur cavalgou de um quadrado para outro para mostrar a sua presença e encorajar os soldados.
- Cabeças levantadas, rapazes, eles não nos vão deitar abaixo! Só mais um bocado, agora... Os prussianos estão a chegar!
Os homens ganharam ânimo com as palavras e gritaram o seu desprezo perante o inimigo que ia voltando uma e outra vez, detendo os cavalos cansados à distância de
um tiro de pistola e descarregando as armas antes de trotar para longe a fim de recarregar. Quando o fumo se dissipou da frente de um dos seus quadrados, Arthur
viu um oficial francês de pé, junto a um dos canhões abandonados, dando rédea solta à sua frustração ao desferir golpes de sabre no cano da arma.
Ao fim de algum tempo, Ney deve ter-se apercebido da futilidade de atacar sem apoio adequado. Pouco antes das seis da tarde, o som de tambores fez-se ouvir na contraencosta
e Arthur resmungou para Somerset:
- Isto era o que eu temia. Vamos, temos de nos apressar! - Galopou até às brigadas comandadas pelo general Maitland e pelo general Pack e apontou na direção da direita
da linha, na crista acima de Hougoumont.
- Preciso dos seus rapazes de imediato. Têm de formar em linha.
- Linha, milorde? - Maitland pareceu consternado. - Com cavalaria por perto?
- O perigo não vem agora da cavalaria. Conduza os seus homens diretamente para diante.
As duas brigadas correram encosta acima enquanto as equipas dos canhões se apressaram a chegar junto das armas e as recarregaram com metralha. A partir da crista,
Arthur não ficou surpreendido ao ver que a cavalaria inimiga tinha recuado para dar passagem ao avanço da sua infantaria. Esta avançou como antes, em formações densas
que depressa se fizeram alvo dos canhões aliados, os quais iam pejando a encosta de metralha, e os que se conseguiram aproximar da crista foram repentinamente apanhados
de flanco pelo fogo das duas brigadas que tinham recebido a ordem para subir. Deixando centenas dos seus camaradas para trás no meio dos corpos de cavalos e cavaleiros
resultantes das cargas de cavalaria, os outros recuaram na direção das linhas francesas.
Arthur tomou conta da situação. Os seus quadrados, ainda que tendo resistido, tinham sofrido pesadas baixas com a artilharia inimiga. Os batalhões dos seus aliados
holandeses estavam muito abalados e os oficiais e sargentos estavam agora à retaguarda prontos a espancar qualquer homem que abandonasse a sua posição na linha.
Uma das suas unidades de cavalaria, os hussardos de Cumberland, formada por cavaleiros inexperientes, tinha já dado meia-volta e desaparecia na direção de Bruxelas.
- Não vamos aguentar mais um ataque destes - resmungou Arthur num tom sóbrio. - Seja como for, olhe ali.
Apontou para La Haye Sainte e os adidos olharam na direção indicada. Uma mancheia de soldados, os sobreviventes da guarnição original, estava a recuar na direção
da cumeada acima da quinta. Por trás deles iam emergindo dos edifícios da quinta os primeiros soldados franceses, dando gritos de satisfação ao disparar sobre o
inimigo em retirada. Os soldados da Legião Alemã do Rei não pararam para responder ao fogo.
- Estão a fugir - constatou friamente um dos adidos.
- Devem ter ficado sem munições - aventou Somerset. - Tiveram de abandonar a quinta, ou morrer lá.
- Poderia ter sido melhor se o tivessem feito - respondeu Arthur. - Qualquer coisa para atrasar Bonaparte.
Os oficiais ficaram em silêncio por um instante enquanto olhavam para uma figura que apareceu no telhado do estábulo de La Haye Sainte, agitando uma bandeira tricolor
em gesto de triunfo. Enquanto Arthur olhava para o reduto perdido, e as forças francesas se reuniam atrás dele, teve noção de que Bonaparte se estava a preparar
para o último assalto à linha aliada. As reservas de Arthur já tinham sido lançadas na batalha. Os homens que sobravam tinham estado debaixo de fogo desde o meio-dia.
- O que fazemos agora, milorde? - perguntou Somerset. - Ordeno a uma brigada ainda fresca que retome La Haye Sainte?
- Sim, temos de fazer isso. Vai ser uma carnificina mas não podemos dar-nos ao luxo de perder a quinta. Se ela se mantiver em mãos francesas, tudo o que nos resta
é aguentar a cumeada, ou morrer onde estamos.
- Se não formos capazes de a retomar, quais são as vossas ordens?
- Não há mais ordens - replicou Arthur secamente. Olhou para leste, onde a escuridão começava a surgir no horizonte, ainda parcialmente obstruído pelo fumo da batalha
na direção da aldeia de Plancenoit. - A noite vai chegar - disse baixinho. - Ou então Blücher.
Capítulo 63
La Belle Alliance, 18h30
- Ney tomou a quinta! - exclamou Soult. - Sire, já temos La Haye Sainte. Olhai!
Soult apontou para a bandeira francesa que se agitava acima do celeiro. Ney já mandara avançar alguns canhões, que tinham começado a massacrar os casacas-vermelhas
na crista, a menos de trezentos passos. Soult pegou no relatório garatujado por Ney. - Ele pede reforços, sire. Wellington está derrotado. Mais um ataque e ganhamos
o dia, diz ele.
- Ney diz isso? - escarneceu Napoleão. O terreno em redor da quinta estava coberto de corpos franceses, bem como a encosta entre a quinta e o jardim murado de Hougoumont.
- A prova da sabedoria do marechal Ney está ali à vista de todos. Ele desperdiçou toda a nossa força de cavalaria nos seus ataques inúteis. E depois sacrificou a
divisão de Foy. Decerto entende, por isso, o que me pode levar a questionar as decisões do bom marechal.
Soult olhou do vale para a crista, onde montículos de terra saltavam no ar à medida que mais canhões franceses retomavam o fogo sobre a linha aliada.
- Talvez Ney tenha razão agora, sire. Ele precisa de mais homens.
- Mais homens? - Napoleão levantou as mãos em desespero. - E onde espera que eu vá desencantá-los? Quer que eu invente alguns?
Soult fechou a boca e olhou para baixo, vítima da ira do seu amo.
- Ney deitou-nos a perder. Tal como fez em Jena. Além disso, temos outros assuntos para tratar. - Napoleão virou-se para a mesa dos mapas e apontou para a metade
oriental do campo de batalha. O corpo de exército de Lobau tinha atacado a vanguarda da coluna prussiana e fora obrigado a recuar, abandonando a aldeia de Plancenoit.
Napoleão enviara imediatamente a Jovem Guarda para repelir os prussianos. Pouco antes de Ney tomar a quinta, tinham chegado notícias de que Plancenoit estava novamente
em mãos prussianas, a não mais de mil passos da estrada para Charleroi. A menos que os soldados de Blücher pudessem ser detidos, havia o perigo de o Exército do
Norte ficar cercado. Apenas os seis batalhões da Guarda Média e oito dos batalhões da Velha Guarda, uns oito mil homens ao todo, permaneciam como reserva do exército.
- Primeiro temos de deter os prussianos - anunciou Napoleão. - Deixe ficar dois batalhões da Guarda para trás como reserva final. Envie os outros para formar uma
linha em frente a Plancenoit. Faça-os formar quadrados no caso de os prussianos mandarem a cavalaria atacar. E depois ordene a dois batalhões da Velha Guarda que
reconquistem a aldeia.
- Dois batalhões? - Soult abanou a cabeça. - Duhesme estimou que houvesse mais de dez batalhões a enfrentá-lo na aldeia.
- Até pode ser, mas só tenho dois disponíveis. Eles sabem o que está em jogo e cumprirão o seu dever. Trate disso.
Soult anuiu com relutância e ditou as ordens a um dos seus ajudantes. Quando o oficial se afastou, na direção da estrada em que aguardavam os melhores soldados de
Napoleão, este examinou novamente o mapa. A reconquista de Plancenoit apenas lhe daria algum tempo. Se fosse feito, então talvez houvesse tempo para derrotar Wellington.
Se ele fosse posto em fuga, o que sobrasse do exército francês poderia rodar para leste e aguentar os prussianos à distância, enquanto Grouchy marchava sobre a retaguarda
durante a noite. Napoleão sentiu o nervosismo causado pelo grande perigo que ameaçava envolvê-lo. Tentou afastar a ideia da sua mente, desviando o olhar do mapa
e cruzando as mãos atrás das costas enquanto olhava para Plancenoit.
Cerca de meia hora depois, o som do tiroteio vindo da aldeia intensificou-se e Napoleão e o seu séquito aguardaram ansiosamente por notícias do resultado. Não tiveram
de esperar muito, visto que um dos oficiais de Duhesme se aproximou a galope. Puxou as rédeas e fez uma vénia a Napoleão.
- Sire, tenho a honra de informar que a Velha Guarda repeliu os prussianos. Plancenoit está de novo em nosso poder.
- Muito bem. - Napoleão voltou-se para Soult. - Mande regressar as reservas e faça-as formar à direita da estalagem. Temos mais uma hipótese para acabar com Wellington.
Ali. - Apontou para a crista, onde a cavalaria tinha atacado antes. A artilharia que Ney tinha feito avançar tinha aniquilado duas brigadas de soldados holandeses
que tentavam retomar a quinta de La Haye Sainte, e estavam agora a desbaratar as formações britânicas mais próximas.
- Mande avançar todos os soldados disponíveis - ordenou Napoleão. - Vire todas as armas para o inimigo.
Os homens abatidos do corpo de exército de D'Erlon e os do general Reille, que tinham reunido junto aos estandartes, aclamaram os nove batalhões da Guarda que tinham
sido mandados avançar. Os veteranos marchavam orgulhosamente ao som de tambores, com os granadeiros a abrir caminho com os seus grandes chapéus de pele de urso,
enquanto quatro baterias de canhões ligeiros vinham atrás da formação. Napoleão dirigiu-se ao cavalo e um criado ajudou-o a subir. Pegando nas rédeas, esporeou o
animal e trotou estrada fora antes de virar para assumir posição à frente da Guarda. Tinha o coração repleto de um orgulho desafiador quando se aproximou do fundo
do vale e começou a aproximar-se da crista.
Um ribombar de cascos à esquerda captou a atenção de Napoleão e viu Ney a galopar na sua direção, seguido pela mancheia de oficiais superiores que tinham sobrevivido
à carnificina das cargas anteriores.
- Sire, o que estais a fazer? - Ney ostentava um ar preocupado ao chegar junto do imperador.
- Estou a fazer o que devia ter feito logo ao início da batalha. A liderar os meus homens a partir da frente.
- Sereis morto, sire.
- É possível.
- Não deveis tombar aqui, sire. Pelo bem da França. Enquanto viverdes, há esperança.
- Esperança? Qual esperança? - questionou secamente Napoleão.
Ney debruçou-se e pegou-lhe nas rédeas. Por instantes, Napoleão sentiu-se tentado em tirar-lhas das mãos, mas hesitou. Então a sua determinação em conduzir o último
ataque do dia, talvez o último da sua vida, foi-se esvaindo.
- Levem o imperador de volta à estalagem - ordenou Ney, entregando as rédeas a um dos seus ajudantes, que puxou o cavalo de volta através do espaço entre dois batalhões
de guardas. Um dos veteranos bradou: - Viva Napoleão! - Os outros juntaram-se de imediato e continuaram até que ele acabou de passar pela formação. Então olharam
na direção da crista e ficaram silenciosos enquanto marchavam em frente.
- Alto - ordenou Napoleão ao ajudante de Ney. - Ordeno-lho.
O ajudante pausou, sem saber o que fazer, depois fez uma vénia e devolveu as rédeas. De imediato, Napoleão rodou o cavalo para observar a nata do exército a atravessar
o terreno do vale, desaparecendo lentamente na densa nuvem de fumo de pólvora que se tinha aglomerado como consequência do bombardeamento da crista pelas baterias
francesas ao longo do dia. Ney deteve a formação e ordenou-lhe que formasse em quadrado, depois a Guarda continuou o seu avanço, cinco batalhões à frente, e quatro
atrás, em reserva.
Soult tinha pegado num cavalo e galopava agora para junto do imperador. Apontou para a linha da cumeada no sítio em que esta virava para nordeste do campo de batalha.
A forma escura de uma coluna distante estava a aproximar-se do flanco esquerdo de Wellington, e era claramente visível para os homens do corpo de exército de D'Erlon.
- Sire, eis os prussianos.
- Calado, Soult! - disparou Napoleão. Olhando em redor, viu que nenhum dos soldados pareceu ter escutado. Virou-se para o seu chefe do estado-maior. - Eu sei quem
são. Mas vai percorrer a linha e dizer aos nossos homens que é Grouchy que se aproxima, para nos salvar.
- Sire?
- O nosso destino está por um fio, Soult. Os nossos homens precisam de acreditar que podem ganhar, ou então estamos perdidos. Agora, vá lá dizer-lhes isso!
Soult anuiu quando compreendeu a necessidade da mentira. Respirou fundo e esporeou o seu cavalo ao longo das fileiras da frente do corpo de D'Erlon. Tirando o chapéu,
agitou-o de um lado para o outro e depois usou-o para apontar a coluna distante.
- Homens! Olhai ali! É o marechal Grouchy! Grouchy está a chegar! Wellington está derrotado!
As suas palavras foram bem recebidas e os homens aclamaram com entusiasmo, ao que iniciaram o seu próprio avanço na direção de La Haye Sainte. O rugido das vozes
foi levado pelo vale até onde a Guarda Imperial continuava a sua implacável aproximação à crista. O marechal Ney parou à retaguarda da coluna. Olhou na direção de
Napoleão, acenou com a mão, e depois virou-se para a frente enquanto empunhava a espada e incentivava o cavalo em diante, desaparecendo no meio do fumo.
Centro Aliado, 19h30
- Atenção! - gritou um soldado da brigada de Halkett. - Aí vêm eles outra vez!
Arthur tinha acabado de conduzir dois batalhões de infantaria de Brunswick no seu avanço para a crista. Os jovens inexperientes olharam para a frente com nervosismo
ao ouvir o grito e adivinhar a sua importância. Ainda que os canhões franceses tivessem continuado a disparar sobre a crista, há quase uma hora que não havia ataques,
e Arthur tinha aproveitado a oportunidade para encolher os flancos e concentrar o que restava do seu exército sobre a estrada para Bruxelas. Detendo os soldados
de Brunswick, cavalgou com Somerset e Uxbridge até à sebe na cumeada e olhou para a encosta abaixo. O som de tambores fazia-se ouvir pelo meio do fumo.
- Infantaria outra vez - disse Uxbridge.
- Então temos de despachá-la. - Somerset forçou um sorriso. - Tal como fizemos antes.
Aguardaram mais um instante e depois vislumbraram o que pareciam ser as cabeças de cinco grandes colunas de infantaria. Não havia como confundir as fardas dos homens
que se aproximavam da crista.
- Credo, o Bonas está a mandar a Guarda - comentou Uxbridge. - Em quadrados. Bem, não se deviam ter incomodado. Não tenho homens que cheguem para lançar uma carga
decente.
Arthur voltou-se para Somerset.
- Quero todas as armas concentradas neles. Não podem ultrapassar a crista. Percorra a linha e diga isso a todos os comandantes de bateria.
- Sim, milorde.
Quando Somerset se afastou a galope, Arthur respirou fundo.
- Aqui está, Uxbridge, o momento decisivo.
Olhou ao longo da crista e viu o rosto coberto de fuligem dos seus homens cansados. A artilharia, que tinha estado exposta ao fogo inimigo há mais tempo do que qualquer
outra unidade, tinha sofrido bastante. Tudo o que restava de algumas baterias eram os fragmentos esmagados dos seus canhões, ao passo que outras tinham perdido armas,
homens e cavalos. Aqueles que ainda estavam de pé manuseavam as armas há oito horas e mexiam-se com o cambaleio de homens à beira do colapso. À medida que Somerset
seguia ao longo da crista, alertando para a aproximação do inimigo, as unidades que ainda estavam em quadrado rodaram rapidamente nos seus lados para formar uma
linha à frente da cumeada. As armas que resistiam dispararam, atirando com metralha para os lados dos quadrados franceses. Os veteranos de Napoleão fecharam imediatamente
as brechas, cerraram fileiras e continuaram a avançar, como se estivessem a manobrar numa parada. Com um rugido, algumas baterias de canhões ligeiros do inimigo
foram detidas e preparadas no meio dos quadrados. As suas equipas apontaram para a cumeada e prepararam-se para disparar em menos de um minuto.
- Nunca vi canhões movimentarem-se tão bem - maravilhou-se Arthur.
Abriram fogo, tomando por alvo os canhões ingleses com metralha e dizimando as suas equipagens. Os artilheiros de Arthur fizeram fogo sobre os guardas do exército
imperial enquanto foram capazes. Os dois batalhões à direita da linha francesa estavam ligeiramente adiantados em relação aos outros, e quando atingiram a cumeada,
Arthur e Uxbridge galoparam para a segurança da brigada de Halkett. A infantaria ainda não conseguia ver os franceses, mas o som dos tambores chegava-lhes aos ouvidos
e eles agarraram-se aos mosquetes e olharam firmemente para diante.
Os topos dos barretes de pele de urso apareceram em primeiro lugar, e acima deles o ouro de uma águia coroava o seu estandarte.
- Preparar para abrir fogo! - bradou Halkett, e os seus homens avançaram as armas e engatilharam-nas.
As fileiras da frente dos primeiros dois quadrados franceses fizeram alto, elevaram os mosquetes e dispararam rapidamente uma salva. Balas esvoaçaram em redor de
Arthur e Uxbridge, e cerca de uma dúzia dos soldados de Halkett tombou.
- Apontar! - Halkett empunhou a espada e depois desferiu um golpe no ar, gritando: - Fogo!
Da sua sela, Arthur conseguiu ver que a salva britânica fora bastante mais eficaz do que a do inimigo, e a primeira fileira dos dois quadrados pareceu cair em massa.
Voltou-se para Halkett e gritou-lhe:
- Carregue com a sua brigada! Agora!
Halkett acenou com a cabeça e repetiu a ordem num grito bem alto. Os seus homens deixaram escapar um rugido enquanto avançavam com as baionetas caladas e mergulhavam
no fumo. À sua frente, os guardas mantiveram-se firmes por um instante, inseguros e amedrontados, e depois recuaram.
- Estão a fugir! Atrás deles, rapazes! - berrou um sargento.
Uma mancheia de veteranos franceses aguentou firme e foi rapidamente esmagada pela infantaria de Halkett. Os casacas-vermelhas carregaram encosta abaixo, com os
guardas em fuga à sua frente. Arthur bateu com as esporas nos flancos de Copenhagen e galopou pela linha até à brigada de Maitland, deitada na contraencosta. Os
dois quadrados seguintes da Guarda Imperial estavam a aparecer sobre a cumeada e Arthur levou a mão à boca.
- Agora, Maitland! Agora é o momento!
Maitland anuiu e deu a ordem:
- Brigada, de pé!
Em breves segundos, cerca de mil e quatrocentos homens, em quatro fileiras, apareceram à frente dos guardas franceses, que apenas momentos antes tinham julgado que
nada se interpunha entre eles e a vitória. A surpresa e choque nos seus rostos eram inconfundíveis quando estacaram.
- Apontar! - ordenou Maitland. - Fogo!
Arthur viu o impacto mortífero da salva concentrada, e a carga dos homens de Maitland fez naqueles quadrados exatamente o mesmo que a dos homens de Halkett tinha
feito nos anteriores. A Guarda Imperial, o melhor corpo de soldados da Europa, rompeu fileiras e desceu a encosta em fuga. Maitland esporeou o cavalo atrás dos seus
homens e seguiu-os a curta distância pela encosta, até vislumbrar o último quadrado à sua direita. Voltando-se para as companhias mais próximas, ainda muito encavalitadas
enquanto desciam a encosta, deteve-as e formou uma linha voltada para o lado do último dos quadrados franceses diante da linha aliada. Os casacas-vermelhas recarregaram
rapidamente as armas e apontaram. À sua frente, e do outro lado do quadrado, outros soldados aliados fizeram o mesmo. Houve um momento de pausa e em seguida soou
a primeira das salvas. Seguiram-se outras, e os soldados franceses foram dizimados em ondas. Os sobreviventes olharam aterrorizados para os corpos à sua volta e
então fugiram.
Um grito coletivo fez-se ouvir de ponta a ponta na linha aliada perante a visão da infantaria francesa de elite a debandar pela encosta. Arthur contemplava essa
visão, sem acreditar nos seus olhos e não compreendendo de imediato o seu significado. Foi Uxbridge o primeiro a reagir.
- Batemos o Boney! Por Deus, está derrotado! - Agarrou o braço de Arthur. - Vossa senhoria!
Antes de Arthur poder responder, o som de uma bala de canhão passando perto encheu o ar com o seu zumbido, e ele sentiu os dedos de Uxbridge enterrar-se subitamente
na sua manga.
- Acertaram-me... - Uxbridge fitou-o, de olhos semicerrados. - Fui atingido.
Arthur esticou-se e agarrou-lhe o ombro para o segurar.
- Vocês aí! - Chamou alguns artilheiros que tinham retirado para a brigada de Maitland. - Ajudem-me. Levem este oficial para a retaguarda!
Os artilheiros retiraram Uxbridge da sela e estenderam-no no chão. Arthur viu que o seu joelho tinha sido esmagado por uma bala de canhão e era agora uma confusão
sangrenta de osso e músculo. Os artilheiros pegaram nele e Uxbridge deixou escapar um gemido cavo quando se retiraram. Arthur voltou-se novamente para a batalha
e olhou encosta abaixo. Ainda havia quatro batalhões de guardas em formação, mas estavam agora a recuar lentamente, cobrindo a retirada dos seus camaradas feridos.
Do lado direito, a guarnição de Hougoumont ainda se aguentava enquanto se debatia para conter o fogo que tinha deflagrado algum tempo antes. Do lado esquerdo, os
franceses estavam a abandonar La Haye Sainte e a retirar pela estrada de Charleroi. A leste, Arthur podia ver claramente as colunas de prussianos a empurrar os restos
da Jovem Guarda.
- Por Deus - murmurou entre dentes. - Conseguimos... ganhámos.
Somerset apareceu a cavalo, com o rosto iluminado pela excitação.
- Vossa senhoria viu? Os franceses foram desbaratados. Estão a retirar!
Arthur não conseguiu conter-se nem mais um instante. A tensão e a preocupação da terrível luta foram-lhe tiradas dos ombros e ele sentiu uma onda de satisfação percorrer-lhe
o corpo. Somerset sorria-lhe.
- Quais são as ordens, milorde?
Arthur tirou o chapéu e agitou-o sobre a cabeça, na direção do inimigo.
- Dê a ordem a todos os homens que encontrar - perseguição total.
Quando a ordem se espalhou pelas fileiras dos homens que tinham aguentado a cumeada durante todo o dia, o exército avançou, a infantaria e a cavalaria misturadas
enquanto perseguiam os franceses. Arthur cavalgou com eles e, à sua aproximação, os homens aclamavam-no com todo o entusiasmo. Os franceses foram desaparecendo da
paisagem enquanto procuravam desesperadamente fugir, deixando para trás canhões, caixotes e carruagens, juntamente com os feridos. Arthur procurou sinais de Bonaparte,
mas o inconfundível cavalo branco do imperador não era visível em lugar nenhum. Deu um salto rápido a La Belle Alliance, onde homens de um dos regimentos holandeses
de cavalaria estavam ocupados a saquear na escuridão o que sobrara do quartel-general francês. Uns cem metros estrada fora e deparou-se com os primeiros soldados
prussianos. Estavam ocupados a passar à baioneta soldados franceses feridos e olharam para ele com suspeição até se terem apercebido pelo seu sorriso radiante que
dificilmente poderia ser um inimigo. A curta distância viu um grupo de oficiais prussianos a cavalo. À sua frente vinha um homem idoso com costas rígidas e umas
fabulosas suíças prateadas.
- Marechal Blücher! - chamou Arthur sem hesitar, erguendo a mão.
Os oficiais prussianos voltaram-se para ele e quando se aproximou, Blücher reconheceu-o por sua vez, aproximou a montada e abraçou-o. Nenhum dos dois falava a língua
do outro, e Blücher exclamou: - Mein lieber Kamerad! - E depois, com um sotaque gutural: - Quelle affaire!
Arthur riu-se e deu uma palmada no ombro do outro.
- Bonaparte está derrotado. De uma vez por todas. - Parou e abanou a cabeça. - Mas a maldita coisa esteve por pouco!
A perseguição continuou depois do cair da noite. As tropas de Arthur estavam demasiado exaustas para conseguir ir longe e gradualmente deixaram a tarefa para os
prussianos. Uma Lua pálida apareceu sobre o campo de batalha e espalhou um brilho prateado fantasmagórico sobre os campos de morte onde estavam tombados os corpos
de dezenas de milhares de soldados, enrijecendo no ar frio. A cavalgada pela estrada de regresso a Waterloo encheu Arthur de uma sensação entorpecente de irrealidade.
O ar sobre este mesmo terreno tinha antes estado cheio com o ruído ensurdecedor dos canhões, o matraquear dos mosquetes, e os sinais ritmados de clarins e tambores.
Agora estava quieto, mas longe de silencioso. Muitos dos feridos gemiam, gritavam ou simplesmente falavam consigo mesmos. Alguns balbuciavam incoerentemente, levados
à loucura pela dor ou pelo trauma das experiências daquele dia. Aqui e ali havia pequenos grupos de soldados que procuravam feridos sobreviventes dos seus regimentos,
para os levar ao posto médico atrás da cumeada e na aldeia de Waterloo. Os defensores de Hougoumont tinham saído do seu reduto e deixado o fogo no celeiro esgotar-se
sozinho, com as chamas a espalhar um brilho sobre os corpos empilhados em redor da casa e do jardim.
Arthur tremeu ao chegar junto dos ramos estilhaçados do ulmeiro na crista. Olhou para trás sobre o campo de batalha uma última vez, e depois esporeou Copenhagen
para um trote ao encaminhar-se para a estalagem que lhe servia de quartel-general em Waterloo. Somerset tinha chegado pouco antes dele e não pôde esconder o alívio
ao ver o comandante ileso. A ceia tinha sido preparada pelo estalajadeiro e os criados do quartel-general tinham posto a mesa para Arthur e os seus oficiais com
a melhor porcelana e talheres de prata. Ele sentou-se à cabeceira, e Somerset tomou lugar à sua esquerda.
- Onde estão os outros? - quis saber Arthur. - Os meus adidos?
- Deverão ir chegando - respondeu Somerset, e depois franziu o cenho. - Pelo menos alguns, estou certo.
O desgaste tinha-se instalado em todo o corpo de Arthur e ele conseguiu comer pouco da carne fria e pão que lhe foram postos à frente. Os criados iam e vinham e
alguns oficiais foram chegando com mensagens, que Somerset foi lendo, passando apenas as mais importantes a Arthur. Chegou a meia-noite, mas mais nenhum dos oficiais
do seu séquito regressou ao quartel-general. Arthur voltou-se para Somerset.
- Graças a Deus que não sei o que é perder uma batalha, mas poucas coisas podem ser mais dolorosas do que ganhar à custa da perda de tantos bons oficiais, e amigos.
- Sim, milorde. - Somerset assentiu. - É algo difícil de aceitar.
- Tenho de dormir - disse Arthur tranquilamente. - Depois vou escrever o meu relatório. A Inglaterra tem de saber o resultado. Acorde-me às três.
Somerset aquiesceu.
Arthur levantou-se rigidamente da cadeira e estremeceu. Manteve-se de pé um momento, olhando para os lugares vazios em torno da mesa e sentindo um terrível vazio
dentro de si.
- Rezo para ter lutado a minha última batalha.
Sorriu então sombriamente para Somerset, e atravessou a sala até um dos estrados de madeira que tinham sido cobertos com colchões de palha a fim de servir como cama.
Estava demasiado cansado para tirar as botas e deixou-se cair, deitando-se de costas. Os olhos doíam-lhe imenso, e fechou-os por um momento, adormecendo pouco depois
e enchendo o ar com o seu ressonar.
- Milorde, acordai.
Arthur agitou-se, piscando os olhos para os abrir. Somerset estava debruçado sobre ele.
- Que horas são?
- Pouco passa da meia-noite, milorde.
Arthur suspirou.
- Eu devia ser acordado às três.
- Sim, mas temos um visitante, milorde. - Somerset voltou-se e gesticulou na direção de um vulto que estava de pé junto à porta da estalagem. À luz do candeeiro
que pendia por cima da mesa, Arthur viu que ele vestia o uniforme de um oficial francês. Arthur rodou as pernas por cima da cama e olhou para o homem. Era alto e
magro, alguns anos mais velho do que Arthur, e com tez escura. Tinha um trapo ensanguentado atado em redor da cabeça.
- Quem diabo é o senhor?
- Coronel Chaumert, da Guarda Imperial, milorde. - O francês fez uma vénia com a cabeça.
- O que está a fazer aqui?
- Trago uma mensagem para vossa senhoria. - Olhou para Somerset. - É privada.
Arthur cofiou o queixo.
- Deixe-nos.
Somerset hesitou.
- Vossa senhoria ficará em segurança?
- Que mal é que me poderia acontecer agora?
Somerset encolheu os ombros, e depois saiu da sala, deitando um olhar de aviso ao francês ao atravessar a porta e fechá-la atrás de si.
- Então. - Arthur fitou o coronel Chaumert. - Explique-se.
Capítulo 64
Na estrada de Charleroi, 4h00, 19 de junho de 1815
- Deverá compreender que este encontro terá de permanecer em segredo - lembrou Chaumert, enquanto passavam pela companhia de guardas que barrava a estrada.
- Se o encontro não servir nenhum propósito, não tenho qualquer intenção de alguma vez o admitir - respondeu Arthur friamente.
- Ótimo - assentiu, enquanto a pequena coluna de cavaleiros passava pelos campos iluminados pelo luar.
Apesar da derrota, um certo número de unidades do Exército do Norte tinha permanecido intacto e tinha sido evitado pela perseguição prussiana, que preferia alvos
mais fáceis. Arthur e a sua pequena escolta de guardas pessoais tinham cavalgado com Chaumert até à longínqua Genappe e, depois disso, Arthur continuara com o coronel
e um esquadrão de lanceiros até ao destino final, seguindo por estradas secundárias para evitar os soldados franceses que fugiam para a fronteira. Nesse momento,
saíram da estrada para um caminho mais estreito, no final do qual se encontrava uma pequena fazenda. Uma carruagem estava estacionada no pátio. Com a luz do luar,
Arthur conseguiu ver um perímetro de sentinelas a rodear o edifício. Chaumert apertou o freio e desceu da sela. Amarrou o cavalo a um poste do lado de fora da porta
e olhou para Arthur.
- Ele está à espera lá dentro.
Arthur hesitou. Questionou-se se deveria ter dado ouvidos ao conselho de Somerset de não abandonar o quartel-general com o coronel francês. Mas havia pouco a temer
e ainda se podia salvar alguma coisa para bem de todos com o facto de ter aceitado vir. Desmontou e entregou as rédeas a Chaumert. Depois abriu o trinco e entrou
na casa. Um pequeno fogo brilhava debilmente na lareira da sala principal e, com a leve luz tremeluzente que emanava, Arthur conseguiu ver a esbatida figura sentada
num banco de um dos lados. Virou-se ao som dos passos de Arthur.
- Boa-noite, meu caro duque - cumprimentou-o Napoleão sem sorrir. - Devo dizer que é uma noite mesmo muito boa para si. Dou-lhe os meus parabéns pela vitória.
Arthur olhou-o fixamente, envolto nas sombras junto à porta e respondeu em francês:
- Houve uma perda de vidas demasiado grande para que possa aceitar as suas felicitações.
- Por agora, sim. Mas com o tempo, os mortos serão esquecidos e uma vitória como esta será lembrada para sempre. - Napoleão esperou por uma resposta e, não obtendo
nenhuma, fez um gesto em direção à simples cadeira de madeira do lado oposto do fogo. - Venha, sente-se.
Arthur atravessou a sala e deixou-se cair na cadeira. Os traços de Napoleão eram levemente visíveis à luz da fogueira: papos pronunciados e olhos encovados por baixo
de largas sobrancelhas e cabelo escuro e curto.
- O seu oficial disse que queria discutir os termos da sua rendição.
- Foi isso que eu disse, mas tenho outros motivos. - Napoleão lançou a Arthur um breve olhar curioso.
- Não estou interessado neles - replicou Arthur. - Estou aqui para discutir a rendição. Caso contrário, parto imediatamente.
- Muito bem, discutamos a rendição. Mas primeiro deixe-me dizer-lhe o quanto os anos têm sido generosos consigo.
- O que quer dizer com isso? - perguntou Arthur, desconfiado.
- Não se recorda? - O sobrolho de Napoleão elevou-se um pouco. - Ah, mas eu lembro-me. Nunca me esqueço... Angers. A escola de equitação. Há vinte e nove anos. Tocava
violino.
Arthur sentiu o sangue a gelar. Apesar de a sua mente estar cansada, recordou o ano mais feliz da sua juventude, passado longe da mãe e dos irmãos, cuja competência
académica ultrapassava em muito a sua. Um ano em que fora libertado do fardo da sua família, para desfrutar da companhia de pares, sob o patrocínio real do diretor
aristocrático da escola. O Conde de Pignarole tinha morrido na Revolução. Arthur lembrou-se de um dia em que a escola se ocupou de alguns jovens oficiais de um regimento
de artilharia francês. À medida que a memória se ia instalando, olhou fixamente para Napoleão, examinando-o.
- Estou a ver que se recorda. - Um sorriso tremeluziu nas feições cansadas. - O mundo mudou tanto desde então, não é verdade? E nós mudámos com ele e tornámo-nos
grandes homens.
- Se bem me recordo, não tínhamos muito a ver um com o outro nessa altura - comentou Arthur. - Houve um desentendimento.
- É verdade. Defendia abertamente os direitos da aristocracia e eu argumentava pelos direitos do homem comum.
- E agora é um tirano e eu sou o que luta para restaurar a liberdade.
- Liberdade? - Napoleão olhou-o com desprezo. - Quer restaurar os Bourbons e eles querem restaurar a corrupção e os privilégios que foram a razão, desde o início,
que levou o povo à Revolução. Ouça bem as minhas palavras, os Bourbons não vão durar muito tempo. Nenhuma das casas governantes da Europa irá. A Revolução abriu
os olhos das pessoas. Algumas nações vão demorar mais do que outras, mas a Revolução chegará a todas.
- Não estou aqui para ouvir isto - interrompeu Arthur. - Vamos discutir a rendição, caso contrário parto imediatamente. Quais são as suas condições?
Napoleão olhou-o fixamente com frieza.
- Não estou habituado a que falem comigo dessa maneira.
Arthur encolheu os ombros.
- Independentemente do resultado da batalha de hoje, ainda sou imperador de França.
- O seu título já não significa nada. O seu exército está desfeito e o povo de França não lhe vai perdoar tê-lo conduzido novamente à derrota.
- Tenho outros exércitos. Grouchy ainda está no campo. Posso recuar para Paris, reunir os meus soldados e estabelecer uma defesa.
- Não há hipótese de resistir à coligação - afirmou Arthur, num tom cansado. - Acabou.
- Há sempre esperança - respondeu Napoleão com veemência. -Quando fui exilado em Elba, todos pensaram que eu estava acabado, admita-o! E, no entanto, regressei.
Demorei menos de um mês a ter França de novo sob o meu domínio. O que me impede de voltar a fazê-lo?
- Não vai haver Elba desta vez. Foi declarado criminoso. Se os prussianos o prenderem, será fuzilado. Tenho dúvidas que os austríacos ou os russos estejam inclinados
a ser mais misericordiosos.
- E Inglaterra? Será que o meu velho inimigo fará o mesmo?
- Não posso falar pelo meu governo, mas eu preferia não ver mais nenhum governante ser arrancado do trono e executado como um criminoso comum. Perturba a ordem natural
das coisas. Por isso, talvez eu deva apresentar os meus termos primeiro. - Arthur baixou a cabeça por um momento para ordenar os pensamentos. - Diga aos seus soldados
que se rendam. Todos os homens ao seu serviço. Depois declare a sua abdicação incondicional. Em troca, serei eu a detê-lo. Não lhe ofereço nenhuma garantia quanto
à sua proteção. Vou cumprir qualquer que seja a decisão do meu governo quanto ao seu destino. - Arthur ergueu o olhar. - São estas as minhas condições.
Napoleão ficou silencioso por um momento antes de responder.
- Essas condições não são dignas de um cão. O que posso eu fazer se não recusar e continuar a lutar?
- Com o quê? Não tem nada com que lutar, exceto um cada vez menor número de seguidores, que apenas procuram um fim glorioso. Já vi guerra que chegue para saber que
tem pouca glória. É uma coisa cruel e feia e o melhor seria esquecê-la o mais depressa possível.
- Contudo, não conheceu outra vida a não ser a de um soldado de guerra - retorquiu Napoleão astuciosamente. - Acha mesmo que se vai sentir confortável com a paz?
- Não sei - admitiu Arthur. - Mas sei que não quero viver mais em estado de guerra. Sinto isso do fundo do meu coração. Peço-lhe... Imploro-lhe, acabe com este conflito
agora. Poupe as vidas dos seus homens. Poupe as vidas dos seus inimigos. Aproveite esta oportunidade para ser lembrado como o homem que fez a coisa certa enquanto
ainda podia escolher. Se estiver de acordo com isto, farei tudo o que estiver ao meu alcance para lhe encontrar um local de exílio respeitável onde possa acabar
os seus dias. Não será Elba. Não se engane, será uma prisão e estará fortemente guardada. Se recusar, terá de arriscar as suas hipóteses com os aliados de Inglaterra.
Arthur olhou seriamente para o imperador, à espera de encontrar a compreensão da futilidade de resistência continuada.
Napoleão juntou as mãos e inclinou-se para a frente para nelas descansar o queixo. Retribuiu o olhar de Arthur, fixando-o da forma penetrante que tanto havia intimidado
os seus generais e ministros. O inglês nem pestanejou.
- Não posso aceitar esses termos. Sou Napoleão. O que dirá a História de mim se hesitar no último momento?
- Se continuar a lutar para lá de qualquer racionalidade, e provocar a morte de mais homens para nada, a História certamente o marcará como tirano... e monstro.
- Será? - Napoleão sorriu.
Arthur sentiu uma explosão de raiva devido à preocupação do outro homem com o seu lugar na História. Quantos mais homens teriam de ser enterrados nas fundações de
tal posteridade? Levantou-se e olhou do alto para Napoleão.
- Não há mais nada a dizer. Este encontro não aconteceu, no que me diz respeito. Esperei salvar as vidas dos meus homens, dos seus homens, até a sua. Mas estou a
ver que não vai deixar que isso aconteça.
Napoleão abanou a cabeça.
- Não lhe dei autorização para sair.
- Autorização? Eu não preciso da sua permissão.
- Posso ordenar aos meus homens que não o deixem partir.
- Deram-me a sua palavra de que teria livre salvo-conduto.
- Foi isso que lhe disse o coronel Chaumert? - Napoleão esboçou um sorriso.
Arthur sentiu-se amargamente triste que tivesse chegado a este ponto. Não havia fim para a falta de integridade de Bonaparte. Olhou diretamente para o outro homem.
- Que não se importe com a sua reputação é uma coisa, mas vai também desonrar o coronel Chaumert? E para que fim? Mesmo que se recuse a deixar-me partir, a sua derrota
está assegurada. E acrescentará o peso da vergonha eterna à sua continuada tirania. Será por isso que vai ser lembrado.
Napoleão inspirou profundamente e ficou silencioso por um momento.
- Vá então. Não voltaremos a encontrar-nos.
- Nem tenho qualquer desejo que tal aconteça - respondeu Arthur. Dirigiu-se à porta, abriu-a e saiu para o luar. O coronel Chaumert olhou-o cheio de expectativa.
- O meu cavalo, se não se importa.
Chaumert passou as rédeas a Arthur e ofereceu a mão para ajudar Arthur a subir para a sela. Arthur ignorou-o e subiu para a sela sem ajuda. Chaumert montou o seu
próprio cavalo e os dois homens cavalgaram para fora da fazenda, de novo pela estrada de Bruxelas acima. Quando alcançaram o local onde a escolta de Arthur esperava,
este virou-se para Chaumert.
- Antes de me ir embora, diga-me uma coisa.
Chaumert encolheu os ombros.
- O que é?
- Parece-me ser um bom homem.
- Tentei sê-lo.
- Nesse caso, o que leva um bom homem a estar preparado para seguir um tirano até ao fim?
Chaumert pensou por um momento.
- Até os tiranos têm dentro de si as sementes da verdadeira grandiosidade neles. Um bom homem vê isso e coloca-se ao seu serviço, na esperança de que um dia essa
grandiosidade venha ao de cima.
- E se não vier? O que faz então?
- Nesse caso estou enganado e, assim sendo, mereço o esquecimento, por todos aqueles que sofrerão às mãos do tirano que servi tão fielmente.
- Então, porque fica a seu lado?
- Porque ainda há tempo para algumas medidas de redenção.
Arthur estendeu-lhe a mão.
- Receio que fique desapontado.
- E eu receio que tenha razão. - Chaumert sorriu enquanto apertava a mão de Arthur. - Milorde, noutra vida, teria gostado mais de encontrar um homem como vossa senhoria
para servir. Mas, vendo bem, que homem tem a oportunidade de realmente escolher o seu destino?
Arthur olhou-o fixamente e depois acenou com a cabeça em concordância, tristemente.
- Adeus, coronel.
- Boa viagem, milorde. Espero que o senhor e os seus homens vivam para apreciar os frutos da paz.
- Frutos da paz? - Arthur fez uma pausa, enquanto considerava o futuro. Casa. Kitty e os seus desconhecidos filhos. Um regresso à futilidade da vida social e ao
veneno da política. A guerra tinha-o construído, tinha-lhe fornecido os amigos mais próximos que alguma vez conhecera. Tinha-lhe mostrado as grandezas da empresa
humana, bem como os abismos da sua depravação. Sorriu. - Para homens como nós, os frutos da paz são a ausência de guerra. Pouco mais. Acabou. Acabou de vez.
Depois girou o seu cavalo na direção de Waterloo e galopou, enquanto os primeiros raios de uma nova madrugada penetravam no continente maltratado e desfeito.
Capítulo 65
Plymouth, 30 de julho de 1815
Quando Napoleão assomou do corredor, o tenente que o vigiava acenou brevemente para o grumete que estava junto da lousa. O rapaz pegou num trapo e apagou apressadamente
as palavras A almoçar, e depois escreveu com o giz, em letras garrafais, No convés, para conveniência dos milhares de espetadores a bordo do enxame de pequenos barcos
que ondulavam no mar em redor do navio de sua majestade Bellerophon. Quando os que estavam nos barcos se voltaram para ler o novo aviso, alguns levantaram-se e perscrutaram
o convés do vaso de guerra em busca dos primeiros sinais do grande homem. Na semana anterior o porto tinha estado apinhado com pessoas das redondezas e com os que
tinham viajado de longe apenas para ter um vislumbre do francês que tinha ameaçado humilhar a Grã-Bretanha nos últimos quinze anos.
Napoleão endireitou-se ao assomar no convés e cumprimentou o tenente com um aceno da cabeça. Atrás dele veio o seu pequeno séquito de oficiais do estado-maior, e
o grupo subiu o pequeno lanço de escadas até ao tombadilho da popa da fragata de setenta e quatro canhões. A princípio, o capitão Maitland tinha tentado insistir
que os oficiais franceses se mantivessem a bombordo, deixando o estibordo livre para o capitão e oficiais do navio. Contudo, Napoleão tinha ignorado essa instrução
e vagueado por onde queria, fazendo perguntas sem fim sobre a operação do navio aos oficiais que falavam francês. Maitland não estava a bordo nesse dia. Tinha ido
a terra e ficado alojado numa estalagem da preferência dos oficiais navais à espera de ordens sobre o seu prisioneiro. Desde que Napoleão tinha assomado no convés
do navio, entregando-se à proteção do seu mais inveterado inimigo, os britânicos tinham ficado sem saber o que fazer com ele. Maitland tinha informado o almirante-mor
da presença de Napoleão naquele destacamento, e dele tinha recebido ordem para regressar a Inglaterra e entregar o assunto à cadeia de comando. Agora o destino de
Napoleão estava a ser decidido pelo governo em Londres.
Passeando-se na amurada do navio, olhou para os milhares de espetadores que o tinham vindo ver. Sorriu e ergueu o chapéu em saudação, e ouviu-se um coro desafinado
de aclamações da parte da audiência.
De Las Casas, o secretário de Napoleão, abanou a cabeça.
- Os ingleses são inimigos estranhos, sire. Pareceis ser tão popular entre eles como o seu próprio monarca.
- Bem, tenho de me assegurar da sua continuada boa vontade - respondeu tranquilamente Napoleão ao erguer novamente o chapéu e acená-lo a um grupo de raparigas a
bordo de um pequeno iate, o qual de alguma forma se tinha esgueirado pelo meio dos barcos de guarda que agora remavam furiosamente para o intercetar. - Não tenho
qualquer desejo de ser entregue às mãos dos meus inimigos no continente.
Poucos duvidavam que seria executado se voltasse a França, o que deixava os seus captores ingleses perante um dilema. De todos os seus inimigos, Napoleão tinha calculado
que a Inglaterra o fosse tratar com maior brandura. Tinha sido por isso que se havia entregado ao capitão Maitland. Na realidade, tinha tido poucas opções na matéria.
Depois da derrota em Waterloo, ele tinha corrido de volta para Paris a fim de se encarregar da situação e reunir todas as forças disponíveis para deter o avanço
de Wellington e Blücher. Tal era a sua exaustão que se deixara ficar a descansar várias horas ao chegar às Tulherias. Quando acordou, os seus adversários tinham
feito a sua jogada. Encabeçada por Fouché, a câmara dos pares e a câmara dos deputados tinha aprovado moções declarando que não poderiam ser dissolvidas sem seu
acordo, e chamaram a Guarda Nacional para as defender. Fouché tinha depois apelado a Napoleão para que abdicasse pela segunda vez. Desgastado pela fadiga e desespero,
Napoleão tinha cedido. Como último favor ao seu antigo amo, Fouché tinha-lhe disponibilizado uma fragata francesa do esquadrão de Rochefort e solicitado que ele
abandonasse França definitivamente. Napoleão demorara-se em Paris alguns dias, oferecendo-se para servir o seu país como simples general a fim de deter a invasão
aliada. A sua oferta fora bruscamente recusada. Quando a primeira troca de tiros de canhão ecoou pelas ruas de Paris, Napoleão e um pequeno grupo de seguidores mais
próximos tinha fugido para Rochefort, apenas para descobrir que estava completamente bloqueado pela Marinha Real. Napoleão tinha esperado fugir para os Estados Unidos,
e aguardou no porto pela oportunidade para se escapar para o mar a coberto de uma noite sem luar.
Enquanto esperava, chegou um relatório de Paris informando que a capital se tinha rendido a Wellington e Blücher. Os Bourbons iriam ser restaurados novamente, e
tinham já emitido ordens para a prisão de Napoleão. Esperar mais tempo seria loucura, e, por isso mesmo, a 15 de julho, Napoleão tinha-se apoderado de um pequeno
lugre para o levar a si e ao seu grupo até ao navio britânico mais próximo.
- O que vai ser de nós agora, sire? - indagou De Las Casas. - Quero dizer, se os ingleses decidirem que não nos devolvem a França.
- Irão tratar-nos como convidados de honra - respondeu Napoleão com confiança. - É essa a sua natureza. Eles torcem o nariz a ações extremas e não querem ter o meu
sangue nas suas mãos. Imagino que lorde Liverpool e o seu governo estejam agora mesmo a decidir uma pequena propriedade, algures no coração do país, onde eu possa
ser mantido sob apertada vigilância.
- E a longo prazo, sire?
- Assim que sintam que já não represento uma ameaça para a paz, deverei ser livre de ir embora. - Napoleão voltou-se para o secretário com um brilho nos olhos. -
Estou acabado em França, mas estou certo de que os meus talentos possam ser bem aproveitados noutra esfera. Você vai ver. Talvez até me seja permitido retomar o
meu reinado em Elba.
- Assim o espero, sire.
- Entretanto, temos de causar boa impressão aos nossos anfitriões. Acene, homem. Mostre-lhes que não têm nada a temer da nossa parte.
O par retribuiu os acenos de alguns barcos mais próximos. Mesmo desempenhando um papel para os seus captores, o coração de Napoleão estava cheio de amargura. Afinal
de contas, tinha sido traído por Fouché e pelos seus marechais, que se haviam recusado a responder ao seu chamamento.
- Da próxima vez que eu tenha oportunidade de exercer algum poder, vou assegurar-me de que tenho mais cuidado em quem confio - resmungou. - Digo-lhe, se eu tivesse
enforcado apenas dois homens, Talleyrand e Fouché, estaria hoje sentado no trono.
- Atenção no convés! - gritou uma voz acima deles, e Napoleão voltou-se e ergueu a cabeça para ver um dos marinheiros apontando para a costa. - O capitão vem aí!
O tenente de vigia fez um gesto para assinalar que tinha ouvido e deu apressadamente ordens para que um dos marinheiros preparasse uma guarda de honra que saudasse
Maitland. Olhando para a água, Napoleão conseguiu ver a baleeira do Bellerophon, avançando com remadas ritmadas pela superfície calma, com Maitland sentado rigidamente
à popa e um civil a seu lado. A baleeira abriu caminho pela multidão de pequenos barcos e acostou ao navio. A curta distância, os marinheiros ergueram os remos e
o homem na proa agarrou as correntes do navio com um gancho, e aproximou a baleeira do costado. O capitão Maitland trepou os degraus suspensos da amurada, e quando
a sua cabeça ficou visível do convés, o imediato soprou o apito e a guarda de honra de fuzileiros e marinheiros ficou em sentido.
Napoleão acenou com aprovação.
- Estão todos bem treinados. Como relógios, tal como tudo mais no navio.
O civil ergueu-se cambaleante na popa da baleeira e teve de ser ajudado até ao costado por dois marinheiros. Quando se içou para o convés e se juntou a Maitland,
o capitão estava a falar com o tenente de vigia num tom baixo de urgência, e acenou rapidamente para Napoleão antes de se apressar para a entrada do seu camarote,
seguido pelo civil.
- Parece que ele tem notícias de Londres - aventou De Las Casas.
Napoleão concordou com um aceno, sentindo-se aliviado agora que o seu destino fora decidido. Quanto mais cedo saísse do navio e regressasse a terra firme, melhor,
decidiu. Maitland tinha atribuído o camarote do tenente-mor ao imperador e Napoleão achou-o apertado, bafiento e húmido. Ansiava pelo conforto de um salão aquecido
com uma boa lareira e pelo fim da dieta limitada de carne estufada com legumes que era servida a bordo do Bellerophon.
- Sire. - De Las Casas inclinou a cabeça na direção do tenente de vigia, que atravessava o convés. O oficial inglês deteve-se à frente de Napoleão e levou a mão
ao bicorne.
- Milorde, o capitão pretende vê-lo no seu camarote assim que lhe seja conveniente.
- Ah. - Napoleão sorriu. - Então recebeu notícias de Londres, não é verdade?
- Não sei dizer, milorde. - O tenente fez um gesto na direção da coberta. Napoleão voltou-se um instante para De Las Casas. - Fique aqui. Isto deve ser rápido.
Seguiu então o tenente para a coberta enquanto o grumete com a lousa a apagou e pegou novamente no giz.
O tenente parou à porta do camarote do capitão, à qual bateu, e depois abriu a porta e afastou-se para deixar passar Napoleão. Maitland estava sentado atrás da secretária
e levantou-se com cuidado para não bater com a cabeça no teto. Fez uma vénia com a cabeça.
- General Bonaparte, posso apresentar-lhe Jacob Waterman, do governo britânico? Ele veio diretamente do primeiro-ministro.
Napoleão tinha sido apanhado de surpresa pelo modo como o capitão se lhe dirigira. Até então tinha ficado satisfeito com o uso do título imperial, mas agora "General"?
Franziu o rosto por um instante antes de se forçar a sorrir em cumprimento e esticar a mão ao civil. Waterman não fez qualquer tentativa para devolver o gesto e
manteve-se, curvado por baixo de uma trave de madeira, com as mãos firmemente cerradas por trás das costas.
O capitão Maitland pigarreou desconfortavelmente.
- Hum, o Sr. Waterman está aqui para lhe transmitir a decisão no que toca ao seu destino, de acordo com o governo de sua majestade. - Fez um aceno de cabeça para
o companheiro. - Se quiser ter a bondade?
Sentou-se sem esperar pela resposta e o representante do governo dirigiu-se friamente a Napoleão.
- General Bonaparte, após cuidadosa ponderação das obrigações do governo e da nação britânica, o primeiro-ministro e o seu governo resolveram transportá-lo, a si
e a um número limitado dos seus seguidores, para um lugar suficientemente afastado da Europa para que não volte a perturbar a sua paz. Irá ser colocado sob vigilância,
e todas as suas comunicações com o exterior e visitantes terão de ter aval do governo.
Napoleão ergueu uma mão para deter Waterman.
- Deduzo que decidiram então não me enviar de regresso a Elba?
- Elba? - Waterman pareceu surpreendido. - Com certeza que não.
- Então para onde serei levado?
- O governo escolheu a ilha de Santa Helena.
- Santa Helena? Nunca ouvi falar.
- Não me surpreende, sir. É uma pequena colónia britânica no Oceano Atlântico Sul, a milhares de milhas de distância.
Napoleão sentiu o seu coração apertado perante a perspetiva de uma longa viagem marítima. Pior ainda era a ideia de ser mantido cativo num rochedo primitivo longe
da civilização decente.
- Quanto tempo se propõe o seu governo manter-me lá?
Waterman e Maitland trocaram um olhar rápido antes de o primeiro responder.
- Para o resto da sua vida, sir.
- O quê? - Napoleão sentiu uma pontada de desespero perante a ideia. - Decerto o primeiro-ministro não quer mesmo dizer isso? Deixe-me escrever-lhe. Melhor ainda,
deixe-me defender o meu ponto de vista pessoalmente. Juro que se me for dado um exílio confortável em Inglaterra, o seu povo não terá nunca mais de temer pelas minhas
ações.
- Lamento, sir - replicou Waterman abanando a cabeça. - Não há tempo para defender o seu caso. Uma fragata rápida, a Northumberland, irá transportá-lo para Santa
Helena assim que esteja pronta. Deverá escolher não mais de seis dos seus companheiros para se juntarem a si no exílio. Pode levar quaisquer posses que lhe restem.
Tem alguma pergunta, sir?
Napoleão ficou por momentos aturdido com a rapidez com que o seu destino tinha sido decidido. Não haveria nada que se parecesse com um reino para ele governar desta
vez. Apenas uma vida entediante encalhado num rochedo numa ilha-prisão longe da Europa.
Waterman fungou.
- Parece surpreendido, sir. O que esperava? É um inimigo da paz. Por sua causa, multidões sofreram. A Europa irá carregar as cicatrizes da sua influência durante
uma geração, ou mais. Provou ser demasiado perigoso para que lhe possa ser permitido permanecer na proximidade da Europa. Claro, se pretender regressar a França,
então estou certo de que o governo de sua majestade estará disposto a responder favoravelmente a esse pedido.
- Isso seria uma sentença de morte, e você sabe-o.
- Deveras. E no que me diz respeito, não é mais do que merecida. - Waterman fez uma pausa. - Contudo, a escolha é sua, general. Pode encontrar alguma satisfação
na morte de um mártir se regressar a França e enfrentar os seus inimigos. Ou pode viver o resto dos seus dias, e terminar a sua vida numa obscuridade total. Qual
vai ser?
Napoleão olhou amargamente para o funcionário. Por instantes foi acometido pelo fogo do desafio. Que o deixassem regressar a França. Que o deixassem enfrentar os
seus inimigos e mostrar-lhes como morre um soldado. Quem iria alguma vez esquecer o nome de Napoleão Bonaparte nesse caso? A sua imaginação delirante delineou o
cenário da execução. Pelotão de fuzilamento ou guilhotina, qualquer das perspetivas enchia-o de uma aversão gélida que nunca tinha sentido no campo de batalha. Um
fim glorioso ser-lhe-ia negado para sempre. Não pretendia ter a morte de um criminoso comum. Tinha medo disso, e a noção disso revoltava-o. Engoliu em seco e olhou
para o convés ao responder.
- Irei aceitar o exílio nas suas condições.
- Imaginei que sim - retorquiu Waterman com um toque de desprezo. - Muito bem então, o meu trabalho aqui está concluído. Bom-dia, general. Não nos voltaremos a ver.
Não esperou por uma resposta, dirigindo-se para fora do camarote. Maitland ficou quieto um momento, e depois levantou-se e saiu para preparar a transferência do
seu prisioneiro para a Northumberland. Napoleão ficou sozinho no camarote, olhando para o vazio lá fora através da grelha dos janelões da popa.
Paris, agosto de 1815
Arthur baixou a cópia do despacho que Somerset lhe trouxera minutos antes. Não respondeu de imediato, mas olhou para fora da janela do palácio das Tulherias na direção
dos jardins. Dúzias de parisienses estavam a passear pelas avenidas de gravilha que se espraiavam entre os canteiros e renques de árvores, tirando partido da frescura
da manhã. À tarde, Arthur sabia que os jardins ficariam quase desertos e decidiu fazer lá o seu exercício. Tinha tido poucas oportunidades para tirar uma folga dos
seus deveres desde que o exército aliado tinha aceitado a rendição de Paris no início de julho. Apesar da derrota em Waterloo, os franceses tinham oferecido uma
resistência tenaz em redor da capital antes de ceder. Em poucos dias, Luís estava de regresso ao trono, mas todos em Paris sabiam que o verdadeiro poder em França
era agora o duque de Wellington. A sua palavra era a lei. O recém-regressado rei não se tinha atrevido a protestar contra a instrução de Arthur para voltar a nomear
Fouché como ministro da polícia, ainda que Fouché tivesse aposto a sua assinatura na sentença de morte do monarca anterior. Não obstante, Arthur sabia que a sua
autoridade viria a ser posta à prova nos meses vindouros. Os realistas estavam a clamar abertamente por vingança contra os funcionários e oficiais do exército que
se tinham passado para o lado de Bonaparte durante a sua fugaz retomada do trono. Arthur estava decidido a fazer o que pudesse para impedir que a sede de vingança
provocasse derramamento de sangue desnecessariamente. A sua tarefa era complicada pelo desejo dos prussianos em fazer a França sofrer pelas indignidades que Bonaparte
tinha lançado sobre Frederico Guilherme ao longo dos anos. O general Müffling tinha solicitado mais um encontro com Arthur para afirmar as exigências de Blücher
e Gneisenau, e Arthur suspirou desgastado perante a perspetiva de enfrentar Müffling em menos de uma hora.
Esvaziou as faces e virou-se novamente para Somerset enquanto batia com um dedo no despacho.
- O Boney deve ficar confortável que chegue em Santa Helena, imagino. Já lá estive, sabia?
- A sério? - Somerset ergueu a sobrancelha.
Arthur assentiu.
- Na viagem de regresso da Índia, já lá vão quase quinze anos. Pelo que me lembro, o clima era agradável e as terras altas cativantes. Há prisões piores. - Parou
e ostentou uma expressão séria. - É uma pena que Bonaparte não tenha perecido no campo de batalha de modo a livrar-nos do fardo do seu encarceramento. Assim como
foi, ele jogou-nos uma cartada manhosa.
- Como assim, milorde?
- Enquanto ele viver, terá de ser vigiado de perto. O mundo não se pode dar ao luxo de o ter à solta novamente. Ao mesmo tempo, vai ser politicamente pouco inteligente
entregá-lo às mãos dos que na Europa clamam pelo seu sangue. Há demasiados Whigs e radicais ingleses entre os seus admiradores.
- É verdade - concordou Somerset amargamente.
- Ainda assim, enquanto estiver em Santa Helena, não pode fazer mal a ninguém - concluiu Arthur. - Pois agora receio que seja altura de enfrentar o general Müffling.
Somerset sorriu veladamente.
- Mando chamá-lo, milorde?
Arthur assentiu.
- Vamos lá despachar isto.
Quando Somerset abandonou o gabinete para ir chamar o emissário prussiano, Arthur olhou em redor da sala, refletindo com algum espanto que essa tinha sido a mesma
sala na qual Bonaparte tinha sonhado os seus planos para o destino da Europa menos de dois meses antes. Agora os sonhos tinham-se desmoronado e outras nações podiam
começar a esperar que uma paz duradoura tivesse finalmente chegado.
A porta deu um estalido ao abrir e Arthur apressou-se a organizar as ideias ao levantar-se e saudar com um aceno o oficial prussiano. Müffling sorriu enquanto Somerset
fechava a porta para os deixar a sós.
- É um prazer ver vossa senhoria novamente - começou Müffling.
- E a si também. Por favor, sente-se. - Arthur indicou as cadeiras do outro lado da secretária enquanto ele próprio se sentava. - Imagino que o marechal Blücher
o tenha enviado para exigir que Inglaterra entregue Bonaparte às mãos da justiça prussiana.
- Deveras, milorde. - Müffling sacou de uma cópia do The Times de dentro do casaco e pô-la na secretária. - Quer-me parecer que o vosso governo está a ponderar oferecer
abrigo ao tirano corso. Sem dúvida que isso será um desfecho agradável para os vossos compatriotas que ainda admiram o inimigo da paz. Os meus superiores desejam
que eu vos transmita o seu ultraje perante tal perspetiva.
- Eu partilharia essa impressão, se fosse verdade que a Inglaterra tivesse decidido abrigar Bonaparte. O primeiro-ministro decidiu, contudo, enviar Bonaparte para
a ilha de Santa Helena, a umas três mil milhas da Europa, onde será mantido sob apertada vigilância.
- Com que fim? - Müffling abanou a cabeça. - Para que possa ser usado pela Inglaterra, como se fosse uma moeda de troca diplomática?
- Não - afirmou Arthur. - É uma criatura demasiado perigosa para que possa ser usada em jogos. Bonaparte permanecerá na ilha, isolado do mundo, e aí irá viver o
resto dos seus dias.
- Por que razão lhe haveria de ser permitido um tal fim? Depois de toda a morte e destruição que ele infligiu aos povos da Europa? O marechal Blücher exige que ele
seja entregue, julgado e executado. Isto, ele merece.
- Oh, sem dúvida. - concordou Arthur. - Temos porém de considerar o contexto alargado, meu caro Müffling.
- Contexto alargado?
Arthur levou uns instantes para formular o seu argumento.
- Qual é o propósito de executar Napoleão agora? Que bem iria fazer? Apenas iria satisfazer o desejo de vingança, é tudo. Não há uma razão suficientemente boa para
derramar mais sangue. Não é... civilizado.
- Vossa senhoria vai perdoar-me, mas isso é algo fácil para os ingleses dizerem. Eles foram poupados à presença de soldados franceses no seu território. Imagino
quão reticentes os vossos compatriotas seriam se a Inglaterra não estivesse separada da Europa pelo mar.
Era um argumento válido, reconheceu Arthur. Tinha visto em primeira mão as crueldades infligidas pelo inimigo, e podia facilmente entender a raiva de todos os que
tinham sofrido sob a ocupação francesa. Aclarou a garganta para falar.
- Seja como for, a execução de Bonaparte não servirá a nenhum de nós assim que a vingança seja satisfeita. A sua morte às nossas mãos iria indignar muitos em França,
e fora dela. Atrevo-me a dizer que haverá pessoas a dizer que ele não merecia ter sido derrotado. Haverá outros que procurarão vingança. E então nem eu, nem o senhor,
nem o marechal Blücher, iríamos poder dormir tranquilos enquanto houvesse forças de ocupação aliadas em Paris. É bem mais fácil deixar que Bonaparte se desvaneça
na obscuridade. Então, quando ele morrer, isso não será um acontecimento digno de nota, mas apenas um pormenor, enquanto o resto do mundo vive em paz - concluiu
Arthur.
Müffling ficou calado por um momento enquanto fitava Arthur. Depois abanou levemente a cabeça.
- Obscuridade? Duvido que venha mesmo a ser esse o seu destino.
- Espero que sim. Tal como espero que a Europa aprenda a não suportar novamente o mesmo. - Arthur levou a mão ao queixo. - Se ele não for lançado na obscuridade,
então que seja pelo menos lembrado como o maior general no mundo.
Müffling pareceu surpreendido.
- Por certo que vós, ou Blücher, podem reclamar esse título com causa justa, no rescaldo de Waterloo?
- Talvez. É costume para os vencedores serem eles a escrever a História, e nesse dia eu superei Bonaparte. - Arthur voltou-se para olhar pela janela. - E no entanto,
não posso crer facilmente que um génio tão singular, e tão cruel na ambição, alguma vez venha a largar o seu lugar na posteridade... Pela minha parte, nem estou
certo de me importar. Cumpri o meu papel, servi o meu país, e agora chega de vida de soldado. O que quer que a História venha a dizer de mim, sei que conquistei
a minha paz.
Notas do Autor
Este tem sido um relato épico e, tendo seguido as vidas de duas das figuras mais importantes da História, imagino que muitos leitores possam querer saber o que foi
feito de Napoleão e de Wellington depois de a sua luta titânica ter chegado ao fim.
Para Napoleão, restaram menos de seis anos de vida. Passou-os em Longwood House, em Santa Helena, uma acomodação modesta para um antigo imperador. Napoleão continuou
ressentido com a sua detenção, queixando-se permanentemente ao governador da pequena colónia, e escrevendo cartas ao governo britânico para solicitar melhores condições
e realojamento para um lugar de exílio menos remoto. Quando não se estava a queixar do cativeiro, Napoleão começou a escrever, ou a ditar, as suas memórias. Estas
eram fabulosamente parciais e representavam Napoleão como uma figura heroica, moral e infalível. Atribuía a queda do seu império às traições e incompetência dos
subordinados. Os inimigos foram representados como venais e corruptos, e encarava Wellington com ressentimento crescente. Isto em parte porque culpava o duque pela
decisão de o enviar para Santa Helena (sem razão, uma vez que o local fora sugerido por um funcionário), mas principalmente porque Wellington tinha derrotado Napoleão,
tal como tinha derrotado os melhores marechais do imperador, e desse modo demolido a sua reputação de invencibilidade.
Quando punha de lado os seus protestos, e a sua reescrita da História, Napoleão caminhava em redor da pequena ilha, sempre sob a guarda atenta dos seus captores.
Comia demasiado e ganhou bastante peso. A sua saúde começou a fraquejar e em 1821 queixou-se de uma dor aguda no estômago, a qual foi piorando durante várias semanas.
Napoleão morreu a 5 de maio, e foi enterrado com honras militares quatro dias depois. O seu túmulo foi coberto por uma laje de cimento e o seu corpo aí se manteve
até 1840, quando foi devolvido a França e depositado em Les Invalides. O cortejo fúnebre contou com a presença dos veteranos do Grande Exército, seguindo chorosos
o seu antigo amo até ao seu último local de repouso.
Subsiste ainda o debate sobre a causa de morte de Napoleão. Na época foi dito que tinha sido cancro, o mesmo destino que tinha acometido Carlos Buona Parte, pai
de Napoleão. Exames mais recentes ao cabelo de Napoleão revelaram contudo a presença concentrada de arsénico, e por certo que os sintomas observados na época são
consistentes com esse envenenamento. É possível que o arsénico tivesse sido administrado em doses pequenas até dois anos antes da sua morte, e o efeito cumulativo
tenha sido fatal. A identidade de qualquer envenenador permanece desconhecida. Algumas pessoas defendem que teria sido um assassino agindo às ordens do governo britânico,
mas é igualmente provável que tivesse sido um agente no seio da casa de Napoleão, pago para isso pelos Bourbons.
A notícia da morte de Napoleão foi recebida com um certo grau de tranquilidade na Europa. Apesar de alguma histeria entre os que lhe permaneciam leais, é a resposta
típica de Talleyrand que melhor ilustra o real significado da sua morte. Diz-se que Talleyrand estava a jogar cartas quando a notícia chegou a casa da sua anfitriã.
A senhora teria ficado calada um instante, para depois exclamar: "Que acontecimento marcante!" Talleyrand abanou a cabeça e respondeu: "Não. São apenas notícias."
O principal vencedor de Waterloo (no tocante às recompensas, se não pela responsabilidade absoluta na derrota de Napoleão) viveu uma vida longa e próspera. Os prémios
monetários e as recompensas atribuídas pelo parlamento atingiram três quartos de milhão de libras - uma fortuna espantosa pelos padrões da época. Ao regressar a
Inglaterra, Arthur insistiu na criação da medalha de Waterloo - a primeira a ser atribuída a todas as patentes. Apesar de nunca mais voltar a ser chamado a servir
no campo de batalha, tornou-se por um curto período o chefe do estado-maior do exército, uma honra habitualmente reservada à família real. A seguir à morte do primeiro-ministro
Canning, em 1828, Arthur aceitou o cargo com relutância e viu-se imediatamente envolvido numa crise política. Havia muitos anos que os reformistas vinham pressionando
no sentido de se legislar para emancipar os católicos da legislação opressiva que ainda existia. Temendo que houvesse uma guerra civil a menos que as restrições
fossem levantadas, Arthur fez aprovar a legislação no parlamento e chegou mesmo a travar um duelo com um adversário visceral da emancipação católica. Por sorte,
ambos os homens foram sensatos a ponto de disparar para o ar e resolver a questão com uma dose de honra.
Tornado amargo pela experiência, Arthur opôs-se a mais reformas, desta feita para permitir o alargamento do direito de voto para o parlamento, e o seu governo caiu.
Depois de alguns anos na oposição, foi secretário dos estrangeiros antes de se reformar da política em 1846.
No seu regresso da guerra, o casamento de Arthur com Kitty foi ficando comprometido. Não sentia amor por ela, e estava constantemente frustrado com a sua falta de
sofisticação e de bom senso. Por seu lado, Kitty vivia na esperança de recuperar pelo menos algum do afeto que ele tinha outrora genuinamente sentido por ela nos
primeiros anos da sua relação, antes da Revolução Francesa. Ela morreu em 1831, nunca tendo conseguido esse objetivo. O desapontamento de Arthur com a esposa era
extensivo aos seus dois filhos, que ficaram para sempre sob a sombra do pai. O relacionamento de Arthur com os netos foi bastante mais feliz, e ele tirou grande
satisfação da sua companhia ao ficar velho e doente.
Arthur morreu em 1852 e o seu corpo foi depositado num túmulo na Catedral de S. Paulo, depois de um cortejo fúnebre espetacular. Dez mil soldados acompanharam o
caixão, juntamente com a rainha Vitória e os principais estadistas da época. Mais de um milhão de pessoas apareceu para se alinhar nas ruas e prestar homenagem ao
homem que lhes tinha dado duas décadas do melhor serviço para salvar o país de um ditador estrangeiro.
Para os leitores que pretendam aprofundar o seu interesse pelo duque de Wellington, há muitas histórias, bem como uma história interessante dos seus herdeiros, escritas
pela sua descendente Jane Wellesley. Também recomendo vivamente uma visita a Apsley House em Londres. Todavia, o nº 1 de Londres, que é o seu endereço singular,
não parece atrair tantos visitantes quanto seria de esperar. É uma experiência fascinante passear pelos corredores e salões da casa do duque em Londres. Aí se podem
encontrar alguns dos tesouros que lhe foram atribuídos pelos espanhóis gratos, depois da batalha de Vitoria. O melhor de todos é uma estátua enorme de Napoleão,
representado como um nu clássico, que é um troféu das guerras que moldaram o destino da Europa, e muito do resto do mundo em redor.
A minha nota de despedida passa por lembrar as palavras de um reputado historiador que ouvi quando respondia a uma pergunta de um estudante. Tinha-lhe sido perguntado
qual fora o principal significado da Revolução Francesa, e da ascensão de Napoleão. O historiador ficou um instante em silêncio antes de responder: "Julgo ser cedo
de mais para dizer."
Ele está certo. Ainda hoje há ecos do mundo pelo qual Napoleão e Wellington lutaram, e os seus nomes irão sem dúvida ressoar nas gerações que se nos seguirão.
Leia nas próximas páginas um excerto do livro
Espada e Cimitarra
Uma batalha entre dois continentes
No ano de 1565, a Europa ameaça desmoronar-se. Dividida, não consegue fazer frente a um implacável Império Otomano em expansão. Quando uma gigantesca frota turca
se aproxima, toda a esperança de um continente caído em desgraça está numa minúscula ilha no meio do Mediterrâneo: Malta. E para a defender apenas restam os Cavaleiros
da Ordem de Malta.
Um homem dividido
Entre os convocados para resistir e morrer está o veterano caído em desgraça, Sir Thomas Barrett. O instinto de honra força-o a colocar a Ordem acima de tudo, mas
o seu desejo secreto é o de voltar a ver a mulher que sempre amou. Para piorar tudo, é incumbido de uma missão secreta pela rainha Isabel, que vê nos Cavaleiros
uma ameaça ao seu reino.
Um dia para mudar a História
Enquanto sir Thomas confronta o passado que lhe custou a honra, um grandioso exército inimigo lança o cerco à ilha. No meio de gritos e morte tudo se decidirá: o
destino da fé cristã, o fim ou a glória dos Cavaleiros de Malta, e o futuro de uma Europa que nunca esteve tão próxima da aniquilação total.
Mais informações em
www.saidadeemergencia.com
1
Mar Mediterrâneo, julho de 1545
O mar era uma massa negra na escuridão da noite, e o navio dançava suavemente ao sabor da leve ondulação que se fazia sentir à entrada da baía. O Corça Veloz estava
à capa, a menos de duas milhas da costa, protegido por um promontório. No castelo da proa via-se um jovem cavaleiro, sozinho, firmando-se com uma mão agarrada a
um cabo que descia do cimo do mastro de vante. O ar estava húmido, desconfortável, e ele usou a outra mão para limpar as gotas de suor que lhe perlavam a testa.
Por trás dele estavam instalados dois compridos canhões, cujas bocas estavam tapadas para evitar que os salpicos das ondas os inundassem. Há muito que se habituara
ao balanço da galera, e naquele mar calmo não tinha verdadeira necessidade de se agarrar para manter o equilíbrio; ainda assim, mantinha a mão aperrada em volta
do cabo pegajoso, enquanto perscrutava a escuridão. Os ouvidos esforçavam-se por captar o menor dos sons que contrastasse com o contínuo marulhar das ondas contra
o costado. Já tinham passado mais de três horas desde que o capitão e três marinheiros tinham ido a terra num batel. Jean Parisot de La Valette tinha-lhe dado uma
palmada amigável no ombro e mostrara os dentes num sorriso reconfortante quando lhe dissera para assumir o comando do navio enquanto ele estivesse ausente.
- Senhor, quanto tempo ides demorar?
- Não mais do que umas horas, Thomas. Só o tempo necessário para ter a certeza que os nossos amigos se acomodaram para a noite.
Os dois homens tinham instintivamente lançado um olhar na direção da baía que se abria por detrás do promontório. Ali, a cerca de três milhas, um navio mercante
turco estava ancorado junto à praia, no local exato em que o pescador com que se tinham cruzado na véspera lhes dissera que o encontrariam. A maior parte da tripulação
devia estar na praia, a descansar à volta de fogueiras, e no galeão deviam ter ficado apenas uns quantos homens, atentos a qualquer perigo vindo do oceano. As águas
perto da costa africana eram frequentadas por corsários, mas não eram os perigosos piratas que os turcos mais temiam. Um decreto do sultão Solimão, em Istambul,
protegia o navio das depredações desses assaltantes do mar. Existia porém uma outra ameaça muito mais real para as embarcações muçulmanas que atravessavam o Mar
Branco, nome que os turcos davam ao Mediterrâneo. Provinha da Ordem de S. João, um pequeno bando de cavaleiros cristãos que travava uma incansável guerra sem quartel
contra todos os que seguiam os ensinamentos de Maomé. Aqueles cavaleiros eram tudo o que restava das grandes ordens religiosas que em tempos tinham dominado a Terra
Santa, até serem expulsas por Saladino. A Ordem estava agora instalada num rochedo inóspito, a ilha de Malta, que lhes fora oferecido pelo rei de Espanha. A partir
dali, os cavaleiros e as suas galeras aventuravam-se mar adentro para atacar os muçulmanos onde quer que os encontrassem. E era assim que, naquela noite sem luar,
uma das embarcações de combate da Ordem se estava a preparar para atacar a grande nave mercante ancorada ali tão perto.
- O saque será rico... - adiantara Thomas.
- É bem verdade, mas estamos aqui para, antes de mais, fazer o trabalho de Deus - relembrara-lhe o capitão, em tom austero. - Tudo o que conseguirmos será bem empregue
para prosseguir o combate aos que seguem a falsa fé.
- Sim, senhor. Sei-o bem - retorquira Thomas, apaziguador e envergonhado pela ideia de que o cavaleiro mais velho pudesse ter pensado que era o saque que lhe interessava.
La Valette soltara uma risada.
- Tende calma, Thomas. Já vos conheço bem. Não sois menos devoto do que eu ou outro qualquer membro da Ordem, e, como guerreiro, sois de igual calibre. A seu tempo
ser-vos-á atribuído o comando de uma galera. E quando chegar esse dia, nunca vos esqueceis do que um navio de combate é verdadeiramente: uma espada na mão direita
de Deus. A ele pertencem os despojos.
Thomas assentira, e La Valette saíra pela portinhola na amurada e descera para se juntar aos quatro homens no bote que subia e descia junto à proa da galera. O capitão
soltara uma breve ordem, e os marinheiros tinham começado a remar, fazendo o bote avançar. Depressa tinham sido engolidos pela escuridão, sob o olhar atento de Thomas.
Agora, horas depois - demasiadas horas, assim lhe parecia -, a cabeça de Thomas estava cheia de receios pela sorte do capitão. Havia já muito tempo que La Valette
saíra. A alvorada aproximava-se e, a menos que o capitão regressasse em breve, tornar-se-ia impossível aproveitar a cobertura da escuridão para lançar o ataque contra
os turcos. E se La Valette e os seus homens tivessem sido capturados? A ideia súbita provocou-lhe um calafrio que lhe arrefeceu o coração. Os turcos tinham particular
deleite em torturar lentamente e prolongar o estertor de qualquer cavaleiro da Ordem que lhes caísse nas mãos. Logo outro pensamento alarmante lhe tomou conta da
mente. Se La Valette tivesse sido aprisionado, o peso do comando cairia sobre os seus ombros; e nesse momento preciso tomou consciência de que não estava ainda preparado
para capitanear uma galera.
Adivinhou um movimento nas suas costas e espreitou sobre o ombro; um vulto alto subia as curtas escadas que levavam ao pequeno castelo da proa. O homem vinha de
cabeça descoberta, mas tinha o tronco protegido por um gibão acolchoado, por baixo de um casaco escuro onde uma cruz branca mal se via à luz das estrelas. Oliver
Stokely era um ano mais velho do que Thomas, mas tinha-se juntado à Ordem mais recentemente, o que fazia dele seu subordinado na hierarquia dos cavaleiros. Apesar
disso, tinham-se tornado amigos.
- Algum sinal do capitão?
Thomas não pôde evitar um pequeno sorriso perante a questão desnecessária. Não era o único cujos nervos estavam a ser postos à prova por aquela longa espera.
- Ainda não, Oliver - respondeu, tentando aparentar despreocupação.
- Se ele se demorar muito mais, teremos de desistir do ataque.
- Duvido que ele demore muito.
- Achais? - Stokely fungou. - Sem o elemento da surpresa, arriscamo-nos a perder mais homens do que é aceitável.
Era um ponto relevante, considerou Thomas. Havia menos de quinhentos cavaleiros ainda alistados na Ordem, em Malta. A interminável guerra contra os turcos cobrava
um elevado preço em sangue, e estava-se a tornar cada vez mais difícil preencher as fileiras. Os reinos europeus entretinham-se em guerras entre si, e havia regras
estritas para a entrada na Ordem, o que fazia com que o número de jovens nobres a apresentarem-se à seleção diminuísse sem parar. No passado, um veterano como La
Valette ter-se-ia feito ao mar com uma dúzia de jovens cavaleiros a bordo, todos eles desejosos de provar o seu valor. Naqueles tempos, tinha de se contentar com
cinco, e desses só Thomas já tinha enfrentado os turcos em combate.
Apesar disso, Thomas conhecia o capitão suficientemente bem para saber que ele não fugiria a uma batalha, a não ser que os números fossem extremamente desiguais.
O coração de La Valette ardia de zelo religioso, ainda mais encarniçado pela sede de vingança que o possuía devido ao sofrimento que tinha suportado havia muitos
anos, quando durante algum tempo não passara de um escravo agrilhoado a um estreito banco de madeira numa galera turca. La Valette tivera a boa fortuna de ter uma
família capaz de pagar o resgate e tirá-lo dessa situação. A maior parte dos que eram lançados às galés eram forçados a trabalhar até à morte, atormentados pela
sede, pela fome e pela agonia das feridas provocadas pelas pesadas argolas de ferro que eram usadas para os manter presos nos seus lugares. E por isso, refletiu
Thomas, La Valette combateria, mesmo que não conseguisse surpreender o inimigo.
- E se lhe aconteceu alguma coisa? - Stokely olhou em redor, para se certificar de que os homens no convés mais abaixo não o podiam escutar. - Se o capitão desaparecer,
alguém terá de assumir o comando.
Aí vem, pensou Thomas. Stokely preparava-se para proclamar o seu direito ao lugar. Tinha de se afirmar antes que o amigo o fizesse.
- Sendo o seu lugar-tenente, eu tomarei o seu lugar, no caso de morte ou captura. Sabeis bem disso.
- Mas eu sou um cavaleiro há mais tempo do que vós - ripostou Stokely, num murmúrio quase lamentoso. - Seria melhor se fosse eu a assumir o posto de capitão. Os
homens prefeririam ser comandados por alguém mais experiente. Meu amigo, apercebeis-vos disso, com toda a certeza?
Fosse o que fosse que ia na cabeça de Stokely, a verdade era que a capacidade de combate patenteada por Thomas tinha sido notada pelos seus superiores. Logo na sua
primeira ação, tinha comandado um ataque a uma povoação costeira perto de Argel, e capturara um galeão carregado de especiarias. Depois disso fora destacado para
servir sob La Valette, o mais ousado e bem-sucedido dos capitães da Ordem, para fazer a guerra aos turcos. Aquela era a sua terceira campanha em mar alto, e tinha
já forjado uma forte ligação com a tripulação e os soldados que guarneciam a galera de La Valette. Não tinha qualquer dúvida de que todos eles prefeririam vê-lo
assumir o comando, em vez de um cavaleiro que se tinha juntado a eles havia menos de um mês, vindo dos escritórios onde eram tratados os intrincados problemas da
logística da Ordem.
- Seja como for - replicou Thomas, tentando não ferir os sentimentos do amigo -, esse assunto não tem de nos preocupar. O capitão há de regressar e daqui a pouco,
não tenho qualquer dúvida.
- E se isso não suceder?
- Ele voltará - afirmou Thomas com firmeza. - E teremos de estar prontos para o combate no momento em que ele regressar. Dai ordens para os remadores serem amordaçados.
E os homens que preparem o armamento.
Stokely hesitou brevemente antes de anuir com um gesto de cabeça e voltar a descer os degraus para o convés, o qual se estendia por uns cinquenta passos ao longo
da parte central da esguia galera, antes de dar lugar a uma popa coberta, onde se situavam as acomodações de cavaleiros e oficiais. Acima do convés elevavam-se dois
mastros cujas vergas se dobravam sob o peso do pano recolhido das duas velas gémeas. Thomas ouviu as suas ordens a serem transmitidas, e um grupo de homens desceu
ao diminuto porão para ir buscar os tampões de cortiça e as correias guardadas numa arca. Pouco depois levantou-se um burburinho zangado dos homens acorrentados
aos bancos. O protesto foi silenciado por uma ameaça rosnada pelo oficial encarregado da coberta, e pelo estalido do cabedal seco na pele nua.
Thomas entendia perfeitamente os sentimentos das desafortunadas criaturas que manejavam os longos remos da galera. De forma a assegurar que nenhum deles lançava
um grito de aviso ao inimigo quando o navio acelerasse para se lançar contra uma presa, os capitães das galeras de ambos os lados do conflito tinham adotado o expediente
de colocar uma rolha de cortiça na boca de cada homem, mantida no lugar por tiras de cabedal apertadas num anel de ferro. Era terrivelmente desconfortável e sufocante,
especialmente quando era exigido aos homens que se esforçassem aos remos. Thomas já vira homens sufocar e até morrer nalgumas das batalhas em que entrara. Ainda
assim, considerou, era um mal necessário, naquela cruzada persistente contra os que seguiam uma falsa religião. Por cada homem que sufocava na sua mordaça, vidas
cristãs eram salvas pela ausência de aviso dado a um inimigo desprevenido. O outro único sinal da presença de uma galera era o fedor a excrementos e urina, que se
amontoavam sob os bancos e lá eram deixados a acumular-se até que o navio era tirado da água ao fim de uma época de campanha. Se não fosse a brisa que soprava de
terra, o terrível cheiro podia bem espalhar-se o suficiente para alertar o inimigo.
No convés acima da coberta, os soldados da Ordem - espanhóis, gregos, portugueses, venezianos e alguns franceses, todos eles mercenários - levantaram-se. Envergaram
a custo os seus uniformes acolchoados e apertaram as proteções que cobriam as articulações mais expostas.
O equipamento era difícil de colocar, e assim que o Sol se levantasse, tornar-se-ia um forno. Em condições normais, a ordem para se prepararem só seria dada quando
a galera começasse a aproximar-se da sua presa, mas Thomas apercebera-se da tensão que tomara conta dos homens, devido àquela espera ansiosa, e considerara ser preferível
dar-lhes alguma coisa com que se ocuparem enquanto aguardavam pelo regresso do capitão. Além disso, dera-lhe uma oportunidade para exercer a sua autoridade sobre
Stokely, e relembrar-lhe a posição que ocupava na cadeia de comando.
Os ouvidos de Thomas foram alertados pelo som de um chapinhar que vinha da direção do promontório. De imediato todos os outros pensamentos foram varridos da sua
mente, e ele esforçou os sentidos, perscrutando as sombras negras e ondulantes do mar, em busca de algum sinal de movimento. Avistou por fim a forma quase invisível
de um pequeno bote, no qual homens se esforçavam aos remos. Um tremor de alívio passou-lhe pelo coração quando viu a pequena embarcação a aproximar-se da galera,
ao sabor do movimento das pás dos remos.
- Parem... - ordenou La Valette em voz baixa, e no instante seguinte escutou-se um baque surdo, que marcou o choque do bote contra as sólidas madeiras do casco.
Uma corda serpenteou pelo ar e foi agarrada por um dos marinheiros. La Valette subiu rapidamente, enquanto Thomas descia do castelo da proa para se encontrar com
o capitão. Os outros cavaleiros e oficiais aglomeraram-se ao redor.
- O galeão ainda lá está, senhor? - indagou Stokely.
- Está, sim. Os turcos dormem como bebés - anunciou La Valette. - A tripulação do galeão não nos vai dar problemas.
Stokely fechou as mãos, palma com palma.
- Graças a Deus.
- De facto - assentiu o capitão. - O Senhor abençoou-nos com uma excelente oportunidade, e foi essa a razão por que me atrasei a regressar... - La Valette fez uma
pausa para se certificar de que todos os seus seguidores estavam atentos ao que anunciava. - O galeão não será a única presa a pertencer-nos quando este combate
estiver terminado. Duas galeras corsárias juntaram-se a ele. Estão ancoradas aqui perto. Meus senhores, temos uma rica recompensa à nossa espera.
Fez-se um momento de silêncio enquanto os outros homens tomavam consciência das novidades. Thomas olhou em redor para as faces dos companheiros, e reparou que alguns
trocavam olhares nervosos. O mestre da galera, responsável pelo velame, limpou a garganta e comentou:
- Senhor, isso põe-nos numa desproporção de três para um.
- Não. Dois para um. O galeão pouca importância tem nessas contas. Depois de termos tratado da saúde às galeras, cairá nas nossas mãos sem dificuldade.
- Ainda assim, seria temerário tentar um ataque - protestou outro. - Especialmente agora, que a aurora se aproxima velozmente. Teremos de nos retirar.
- Retirar? - La Valette soltou uma exclamação brusca. - Nunca. Qualquer homem ao serviço da Ordem vale pelo menos por uns cinco turcos. Além disso, Deus está connosco.
Por isso, são os turcos que têm menos gente. Mas não vamos exigir demasiado à providência divina, sim? Como dizeis, depressa a manhã se levanta. Portanto, senhores,
temos muito pouco tempo a perder. A galera está a postos?
- Sim, senhor - respondeu o mestre, com um aceno.
- E os homens?
- Sim, senhor - esclareceu Thomas. - Já mandei que se preparassem.
- Ótimo. - La Valette olhou em volta para os seus oficiais e ergueu um punho. - Vamos então fazer a obra do Senhor, e soltar a sua ira sobre o Turco infiel!
. . .
Já se notava alguma claridade no horizonte oriental quando o Corça Veloz começou a dobrar o promontório. Por trás da ponta rochosa, a baía abria-se num vasto crescente
com mais de cinco quilómetros de largura. As silhuetas do galeão e das duas galeras salientavam-se perfeitamente contra a faixa pálida da areia da praia, sobre a
qual se avistava um tímido brilho alaranjado, vindo dos restos de uma fogueira que aquecia ainda os que a rodeavam.
- Chegámos tarde de mais - comentou Stokely, ao lado de Thomas no convés. - O dia nascerá muito antes de os alcançarmos. Os turcos ver-nos-ão chegar, com toda a
certeza.
- Não. Vimos do poente, a escuridão ainda nos dará cobertura por mais algum tempo. - Thomas já vira La Valette utilizar aquela tática nos seus ataques ao inimigo,
e era uma forma comprovada de disfarçar a sua aproximação até ao último momento.
- Só se os turcos forem completamente cegos.
Thomas engoliu a irritação que começava a sentir. Aquela era a primeira "caravana" de Stokely, como a Ordem chamava às campanhas no mar. O jovem cavaleiro acabaria
por aprender a confiar na experiência dos capitães que combatiam os turcos havia muitos anos - desde que vivesse tempo suficiente para isso, refletiu. Havia muitas
formas de um cavaleiro ao serviço da Santa Fé partir ao encontro do Criador. Combate, doença, afogamento, todos eles cobravam a sua parte, sem cuidar de qual era
a ascendência de um homem, se provinha de uma das mais nobres famílias da Europa ou se nascera na sarjeta. O afogamento, em particular, era um perigo sempre presente.
A armadura metálica que protegia um cavaleiro na batalha, bem como o resto do seu equipamento, era suficientemente pesada para o enviar diretamente para o fundo
do oceano, se por acaso tivesse o azar de cair para a água.
Thomas olhou ao longo da galera, notando as posições dos grupos de soldados, alguns dos quais equipados com bestas, e avistou La Valette à popa, aprumado, rígido,
ao lado da seca figura do mestre da galera. Nenhum homem erguia a voz acima de um murmúrio, e o único som que se escutava era o das ondas a desabarem sobre os penedos
na base do promontório, além do ranger ritmado dos remos e do mergulho das pás na água. Depois de a galera ter rodeado o promontório, o timoneiro dirigiu o Corça
Veloz para a costa, apontando à mais próxima das galeras inimigas. Thomas tinha-se acostumado ao hábito do capitão, de guardar para si mesmo os seus planos, mas
ainda assim adivinhava-lhe as intenções. La Valette queria eliminar primeiro a mais próxima das galeras. Mesmo que o galeão conseguisse levantar âncora e deixar
a baía antes de as duas galeras serem dominadas, seria fácil para a ágil embarcação de combate da Ordem persegui-lo e capturá-lo.
A leste, a luz era já mais forte, e a silhueta da ponta rochosa do outro lado da baía recortava-se com nitidez contra o céu. O odor pestilento vindo das galeras
inimigas chegou ao convés do Corça Veloz, juntando-se ao não mais agradável cheiro que dominava o navio cristão.
A galera estava já a menos de meia milha do inimigo quando soou um toque estridente, um claro sinal de alarme. Thomas sentiu na nuca um arrepio gelado de ansiedade,
e agarrou com toda a força no pique que empunhava. Da ré da galera, a voz de La Valette soou com clareza, dirigindo-se aos homens.
- Batedor, velocidade de combate! Artilheiros, preparem os canhões!
À medida que o tambor começava a marcar um ritmo persistente na coberta, surgiu um brilho pálido na proa da galera: a luz de presença tinha sido retirada do seu
recipiente para fornecer lume aos mestres dos canhões, que logo se colocaram junto às suas armas, à espera de ordem para fazer fogo.
O coração de Thomas ia acelerando em compasso com o ritmo do tambor, e o convés estremecia debaixo dos seus pés a cada remada violenta. Olhando para bombordo, avistava
pequenos vultos a levantarem-se estremunhados em redor da fogueira na praia. Muitos ficavam atónitos a ver a galera avançar velozmente pela baía na sua direção.
Outros apressavam-se a correr para a margem e a entrar na água, começando a nadar na direção do galeão. Os que não sabiam nadar empurravam botes para as ondas e
apinhavam-se a bordo. Na amurada da mais próxima das galeras inimigas começavam a alinhar-se figuras escuras. Muitas usavam turbantes e gesticulavam contra a ameaça
que se aproximava, enquanto pegavam nas armas. Os gritos corriam livremente pelo espaço que separava os dois navios.
Entretanto, nem um homem na galera cristã desperdiçava tempo a falar; os únicos sons a bordo eram o do tambor, o marulhar da água ao longo do casco desenhado para
a velocidade, e os grunhidos abafados dos remadores. Thomas voltou a olhar ao longo do convés, e conseguiu, à luz ainda hesitante, divisar a expressão que preenchia
o semblante do capitão. La Valette mantinha-se imóvel, a mão esquerda apoiada no punho da espada, o rosto, envolto numa barba curta, sempre com ar sério e determinado.
Era seu costume conduzir os homens à batalha em silêncio, sabendo perfeitamente que essa atitude perturbava o inimigo. Só no último instante bradariam um formidável
urro coletivo, antes de se lançarem sobre os oponentes.
Um estrondo soou de repente, e Thomas encolheu-se sem pensar, enquanto estilhaços saltavam pelo ar. Uma pequena nuvem de fumo sobre a galera inimiga denunciava o
disparo de um arcabuz. O homem que atirara já tinha entretanto apoiado a longa arma no convés e recarregava-a. Thomas olhou para os dois lados, para verificar se
alguém tinha notado a sua reação, mas os homens à sua volta mantinham o olhar fixo em frente, e os lábios de Stokely moviam-se em silêncio, enquanto ele rezava para
si mesmo. O olhar do outro cavaleiro cruzou-se com o de Thomas, e ele parou de rezar e desviou a vista quando se apercebeu de que estava a ser observado.
Viram-se mais penachos de fumo, a que se seguiu o zunir das balas de chumbo por cima das cabeças, mas só um outro disparo atingiu a proa da galera. Thomas forçou-se
a manter-se imóvel enquanto via outros disparos a serem efetuados, cada um deles marcado por um rápido clarão avermelhado e uma nuvem de fumo que se desvanecia em
poucos segundos.
- Besteiros! - gritou La Valette. - Preparados!
Os soldados da Ordem ainda usavam aquela arma obsoleta. Não possuía o alcance e o poder das armas de fogo empregues pelos turcos, mas era mais fácil de manejar e
capaz de infligir feridas terríveis quando bem assestada. Um pequeno grupo de homens avançou e ocupou posições em ambos os lados da amurada à proa. Usando a engrenagem
localizada na base da arma, puxaram as cordas atrás antes de colocarem os projéteis no sulco que corria ao longo da sua parte superior.
- Disparem à vontade! - veio a clara ordem da popa da galera. Os estalos dos arcabuzes inimigos foram respondidos com os surdos baques das cordas libertadas de repente
da tensão acumulada, levando os dardos a descreverem arcos pouco pronunciados sobre as águas até desaparecerem pelo meio dos homens que ocupavam o convés do navio
corsário.
Já não havia mais do que uma centena de passos a separar as duas naves, calculou Thomas. Na amurada inimiga estavam dezenas de homens de turbante, soltando desafios
aos cristãos e brandindo cimitarras e piques. A meio do casco já começavam a sair os primeiros remos, enquanto a tripulação tentava desesperadamente colocar o navio
em movimento. Thomas preparou-se para a ordem de dar fogo aos canhões da galera, e viu um dos mestres a olhar sobre o ombro.
- Vá lá, vá lá - resmungava o homem.
La Valette aguardou ainda mais um momento, e só então levou as mãos em concha à boca e soltou a ordem.
- Fogo!
2
De imediato, os mestres das equipagens dos canhões levaram as pontas incandescentes das suas acendalhas aos cones de papel recheados de pólvora negra que estavam
aplicados aos cimos dos canos. Ao deflagrar, a pólvora soltou um assobio característico que foi imediatamente seguido por um ribombar quase capaz de estourar os
tímpanos e um salto, quando um jato de fogo e labaredas saltou da boca de cada canhão. O recuo das peças provocou um estremeção no convés, e Thomas cambaleou para
a frente, antes de recuperar o equilíbrio. Cada um dos canhões tinha sido cuidadosamente carregado com uma mistura de grandes pregos, correntes e metralha de chumbo,
capturada a um navio inimigo havia alguns meses. Havia uma satisfação especial ao utilizar contra o inimigo munições que ele próprio empregava, considerou Thomas.
O cone letal de fragmentos metálicos atingiu o flanco do navio corsário. Estilhaços de madeira saltaram em todas as direções quando a amurada foi destruída em dois
pontos distintos. Por trás dela, os guerreiros de turbante foram derrubados como se fossem bonecos, acumulando-se em pilhas ensanguentadas no convés.
- Por Deus e por S. João! - incentivou La Valette, e os seus homens fizeram eco do grito, lançando um urro coletivo que arranhou gargantas, escancarou bocas e arregalou
os olhos, tornando-os presas de uma excitação quase fanática.
- Por Deus e por S. João! - gritaram uma e outra vez, à medida que a galera deslizava a toda a velocidade, embalada contra o casco do navio inimigo.
- Aguentem-se! - avisou La Valette, a sua voz de trovão quase inaudível sobre o clamor dos homens. Thomas manteve a boca fechada e cerrou os dentes enquanto se agachava,
se agarrava à amurada com uma mão e plantava firmemente os pés, afastados um do outro. Os que o rodeavam, pelo menos os que ainda mantinham a calma suficiente para
se aperceberem do que se ia passar, seguiram-lhe o exemplo e esperaram pelo impacto. O convés pareceu dar um salto sob o seu corpo, e o soldado mais próximo foi
projetado contra o seu ombro antes de cair desamparado no convés, no que foi imitado por muitos outros. O mastro de vante rangeu em protesto, e ouviu-se um estalo
quando uma das enxárcias se partiu. Da coberta veio um coro abafado de gritos, lançados pelos aterrados remadores, que tinham sido projetados para fora dos seus
bancos mas travados dolorosamente pelas grilhetas que os prendiam. A proa do Corça Veloz tinha sido fortemente reforçada para aguentar o tremendo impacto de uma
colisão provocada, e agora erguia-se no ar enquanto desfazia, ao som de estilhaçar e ranger, o casco da galera dos corsários, que adornara com o choque. Os gritos
de terror do inimigo justificavam-se pela quantidade de gente que tinha escorregado pelo convés inclinado, empilhando-se em desalinho junto à amurada. Alguns não
tinham conseguido interromper a queda, e tinham mesmo tombado para a água.
- Jesus! - murmurou Stokely enquanto se punha de pé ao lado de Thomas.
O Corça Veloz tinha-se por fim detido, e deu-se um curto momento de calma enquanto as atordoadas tripulações recobravam os espíritos. Depressa porém se voltou a
ouvir o vozeirão de La Valette a cortar o ar frio da alvorada.
- Ganchos de abordagem! Apontem para o outro bordo, e não falhem!
- Vinde daí. - Thomas baixou a ponta do pique e fez um gesto a Stokely, incitando-o a segui-lo enquanto corria para a proa e pegava num dos pesados ganchos de ferro,
preso a um baraço de corda. Soltou um pequeno comprimento, fez rodar o gancho e lançou-o sobre a cabeça, antes de deixar correr a corda. O gancho descreveu um arco
sobre o convés inimigo e desapareceu por cima da amurada no bordo oposto. De imediato, Thomas pegou na corda e puxou com todas as forças. Enquanto se debruçava para
prender a corda num cunho, outros ganchos sobrevoaram o navio inimigo e prenderam-se ao casco.
- Recuar! - ordenou La Valette. - Depressa. Mestre, use o chicote!
Os remadores regressaram penosamente aos seus estreitos bancos e pegaram nos cabos dos remos, de superfícies polidas por anos de manuseamento por turnos e turnos
de desgraçados como eles. A ordem para ciar foi dada antes que todos os remadores estivessem prontos, e as pás chapinharam inconsequentemente e em desalinho. Depois
de prenderem as suas cordas, Thomas e Oliver regressaram à sua posição, à cabeça do bando de homens armados no convés. Durante um momento, o Corça Veloz não se mexeu,
e a proa continuou a pressionar o casco do navio corsário. Por fim, com um ligeiro estremeção, começou a recuar, e as cordas dos ganchos retesaram-se e ficaram em
tensão, atravessando o convés inimigo. Ouviu-se um grito de alarme vindo da popa, quando o capitão dos corsários se apercebeu do perigo. Alguns dos seus homens começaram
a tentar cortar as cordas que se estendiam por cima deles, mas com o convés tão inclinado como estava, só os que tinham conseguido trepar até ao bordo afastado conseguiam
atacar as cordas.
Mas já era demasiado tarde. O Corça Veloz começava a recuar, fazendo adornar o outro navio, preso por todos os ganchos cravados no casco. O bordo mais próximo mergulhou
sob a água e rapidamente, num movimento quase gracioso, a galera virou-se por completo, lançando a tripulação e o equipamento solto à água. Thomas apanhou num relance,
através das grelhas de ventilação da coberta, as expressões horrorizadas dos remadores do navio corsário; os homens continuavam acorrentados aos bancos. Depressa
desapareceram, tragados pelo mar, e só o casco da galera, revestido de cracas, ficou à vista nas águas agitadas, resplandecendo sob o Sol. Os cabos dos ganchos foram
cortados, fazendo as cordas cair para o mar. Em torno do casco, dúzias de homens lutavam para tentar manter-se à tona. Os que sabiam nadar tentavam alcançar a praia,
que ficava a uma distância relativamente curta. Outros agarravam-se a quaisquer destroços flutuantes que conseguissem encontrar, ou tentavam trepar para o casco.
Uma aclamação soltou-se dos homens na galera cristã, mas Thomas não se sentia com ânimo para se juntar a eles. Não conseguia libertar o espírito da imagem dos rostos
dos remadores quando a embarcação inimiga se tinha virado. A maior parte daqueles homens eram cristãos como ele, feitos prisioneiros e condenados às galés, apenas
para morrerem, lamentavelmente, às mãos de outros homens que partilhavam a sua fé. Naquele instante conseguia ainda imaginá-los presos sob a água, a debaterem-se
no frio e na escuridão, presos pelas correntes e destinados a um lento afogamento. Sentiu-se agoniado perante tais pensamentos.
Uma mão bateu-lhe no ombro. Olhou em volta e descobriu Stokely, de sorriso aberto, até que se apercebeu do ar sombrio de Thomas e franziu o sobrolho.
- Thomas, que se passa?
Tentou responder, mas não tinha palavras para descrever o horror que lhe arrefecia o coração. Tentou libertar-se daqueles sentimentos, e abanou a cabeça.
- Nada.
- Então juntai-vos a nós. - Stokely apontou para os outros homens no convés, que continuavam a celebrar vibrantemente.
Thomas observou-os com brevidade e virou a atenção para a outra galera inimiga, a menos de um quarto de milha de distância. Os corsários tinham cortado o cabo da
âncora e virado o navio, de forma a apontar diretamente ao Corça Veloz. Thomas acenou com a cabeça na direção do inimigo.
- Não vamos ter hipótese de surpreender aqueles da mesma maneira.
Um movimento atraiu-lhe o olhar, pelo que se virou; avistou a tripulação do galeão a trepar pelo cordame e a espalhar-se pelas vergas, preparando-se para soltar
todas as velas. Depressa se colocariam em movimento, mas perante a fraquíssima brisa que soprava, dificilmente conseguiriam sair da baía antes do fim da contenda
entre as duas galeras. Haveria tempo para se ocuparem daquela presa depois, decidiu Thomas enquanto voltava a dar atenção à galera corsária.
Depois de o Corça Veloz se libertar da sua primeira vítima, La Valette deu ordens para avançar, e os remadores voltaram a esforçar-se para impelir a galera. Devagar
a princípio, mas aumentando de velocidade a cada remada, a esguia embarcação progrediu. Ouviu-se um breve e estridente grito de terror quando um dos corsários ainda
na água percebeu que se encontrava no caminho dos remos, mas logo uma pá de grandes dimensões se abateu sobre o crânio do homem, fazendo-o imergir e calando-o para
sempre.
No castelo da proa, as equipagens de artilharia atarefavam-se a limpar os canos dos dois canhões e a recarregá-los, empurrando pelo tubo o saco que continha a carga
de pólvora, a que se seguia outro saco, este contendo as peças sortidas de metal que tanto estrago causavam quando disparadas a curta distância. No convés, junto
às duas amuradas, os besteiros retesavam as cordas das suas armas, preparando uma nova descarga de dardos letais. Thomas avistava os turbantes dos combatentes inimigos
por sobre a proa da galera corsária, que se aproximava velozmente; preparavam os arcabuzes para o combate. Por baixo deles, sobressaindo das portinholas aos dois
lados da proa, viam-se os canos de dois canhões, as suas bocas escuras como dois olhos negros que fitavam sem remorso a sua presa.
- Vai ser um combate sangrento - sussurrou um dos homens atrás de Thomas.
- Sim - respondeu-lhe um camarada. - Que o Senhor tenha piedade de nós.
Stokely virou-se para eles, furioso.
- Bico calado! O Senhor está connosco. A nossa causa é justa. São os infiéis que devem pedir piedade.
Os homens calaram-se ao sentirem o olhar feroz do cavaleiro, que se virou e se empertigou para confrontar o inimigo. Thomas aproximou-se e falou-lhe em surdina.
- Ainda não descobri nenhuma prece capaz de nos proteger de uma bala inimiga, ou da metralha dos seus canhões. Se fosse a vós, lembrar-me-ia disso quando eles abrirem
fogo.
- Isso é uma profanidade.
- Nada disso, é apenas experiência, e bem amarga. Guardai as vossas orações, e preparai a mente para a dura tarefa de matar ou ser morto.
Stokely pareceu preparar-se para responder, mas acabou por cerrar as mandíbulas e os lábios, optando por contemplar a galera inimiga que vogava pelas águas calmas,
aproximando-se a cada segundo. O horizonte a leste parecia estar em fogo com o brilho líquido do Sol, prestes a irromper por trás da massa escura do promontório
distante. No instante seguinte, os detalhes dos corsários ficaram recortados de forma evidente quando os primeiros raios de Sol se lançaram sobre o oceano, fazendo
com que Thomas e os outros se vissem forçados a semicerrar a vista. O inimigo estava tão próximo que o som das suas aclamações e o tilintar das suas espadas contra
as orlas dos escudos arredondados chegava com facilidade ao outro navio. O espaço entre as duas galeras fechava-se rapidamente, e depressa Thomas ouviu os primeiros
sons de disparos, quando os mais impacientes dos arcabuzeiros tentaram provocar estragos no navio cristão. Apesar da distância, que ainda era superior a duzentos
passos, um dos artilheiros foi atingido na cabeça; o crânio do homem explodiu, enquanto ele caía para trás, lançando sobre os companheiros uma chuva de gotículas
de sangue, miolos e osso.
- Porque é que La Valette não dá ordens para ripostar? - perguntou Stokely.
- O capitão sabe o que faz.
Outro disparo teve êxito, atingindo um dos soldados no estômago, provocando um som grave ao trespassar a placa peitoral e a proteção almofadada que a envolvia por
dentro. O homem largou o pique e caiu para o convés a rebolar, gemendo em agonia.
- Levem-no para baixo! - ordenou Thomas, e outro dos soldados pousou a arma e arrastou o homem até à escotilha por trás do castelo da proa, levando-o pelas escadas
abaixo até ao diminuto porão onde eram mantidas as reservas de comida e água. Ali ficaria até haver tempo para lhe tratar do ferimento, depois do combate. Se os
corsários triunfassem, ali se afogaria ou seria morto, se o navio fosse saqueado.
Quando o soldado regressou ao seu posto, a distância entre os navios estava reduzida a metade, mas os canhões ainda não tinham disparado, apesar das balas que zuniam
sobre as cabeças ou se alojavam nas madeiras do Corça Veloz. Thomas viu que o mestre artilheiro mais próximo se preparava para levar a acendalha ao rastilho de pólvora,
e lançou um brado imediato.
- Esperai pela ordem!
O outro olhou em volta com uma expressão amedrontada, no preciso momento em que se avistou um clarão na proa da galera inimiga. No momento seguinte, outro clarão.
Logo o ar em redor de Thomas se encheu com uma cacofonia de estalos, estrondos, e o retinir agreste de metal contra metal. Vários dos besteiros na proa foram derrubados,
bem como parte da equipagem de um dos canhões. Thomas foi sacudido quando algo fez ricochete contra a sua armadura, e cambaleou para o lado, tentando manter o equilíbrio.
Depois de um momento de espera, rebentou no convés um coro de gritos e gemidos vindos dos feridos. Thomas percorreu o corpo com o olhar, mas não viu sinais de qualquer
ferida. Olhou em redor e viu Stokely a levar uma mão à cara. O sangue golfava por baixo da manopla, e escorria pelo aço polido da armadura.
- Estou ferido... - disse, em choque. - Ferido.
Thomas puxou-lhe a mão para trás e verificou que lhe tinha sido arrancado um pedaço de carne da maçã do rosto.
- É uma ferida superficial. Haveis de sobreviver.
Virou-se para avaliar o que se passava no convés, e notou que vários homens, talvez uma dúzia, tinham sido abatidos. Nesse preciso momento, o mestre artilheiro sobrevivente
levou a acendalha ao pavio da sua arma, e de imediato se viu o clarão repentino, a nuvem de fumo e o estrondo que se propagou pelas madeiras da galera e pelos corpos
a bordo. Thomas avistou a outra acendalha ainda na mão sem vida do mestre abatido e correu para a proa para a apanhar. Ajoelhou-se ao lado do canhão e esperou um
momento até o fumo clarear e ele conseguir avistar o navio inimigo mesmo à sua frente. Mal teve tempo para se encolher e levar a chama ao pavio cheio de pólvora,
e a arma de imediato saltou violentamente ao descarregar metal sobre o inimigo próximo.
- Recolher remos! Leme todo para bombordo! - gritou La Valette, da popa.
Os remadores puseram o peso sobre os cabos para extrair as pás da água e começaram a recolher os remos, ao mesmo tempo que o leme rasgava a água e forçava a proa
a rodar de forma a passar ao longo do casco da embarcação inimiga. No momento seguinte sentiu-se um choque tremendo, seguido de um ranger profundo e duradouro enquanto
os dois cascos deslizavam um contra o outro. Alguns remos, tanto de um navio como de outro, não tinham sido recolhidos a tempo, e ouviu-se uma série de estalidos
fortes quando os longos cabos de madeira se estilhaçaram.
Antes que o Corça Veloz se imobilizasse, já La Valette, de espada na mão, tinha descido do castelo da popa e corrido para se juntar ao grupo de soldados que Thomas
e os outros cavaleiros lideravam. O capitão deitou uma olhadela em redor para ter a certeza que os seus homens estavam a postos e por fim levantou a espada, apontando-a
sobre a amurada, na direção do inimigo.
- Por Deus e por S. João!

 

 

                                                                  Simon Scarrow

 

 

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