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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CANÇÃO DO EXILIO - P.2 / Marion Zimmer Bradley
CANÇÃO DO EXILIO - P.2 / Marion Zimmer Bradley

                                                                                                                                               

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

CANÇÃO DO EXILIO

Segunda Parte

 

Ela despertou subitamente. Num momento flutuava numa paisagem branca, no instante seguinte se descobriu na cama. Abriu os olhos, ficou observando as cortinas. Havia silêncio no quarto, quebrado apenas pelo crepitar na lareira, um som suave e agradável. Seu primeiro pensamento foi o de que não sentia dor, o segundo de que tinha muita sede.

O quarto estava escuro, e ela concluiu que devia ser de noite. Que noite não dava para determinar, pois não tinha noção de quanto tempo passara com a doença. Não parecia ser importante. Nada era importante, exceto não ser uma massa de dor. E medo.

O simples pensamento fê-la gritar, o que trouxe o som de passos através do quarto. Istvana Ridenow surgiu das sombras em torno da enorme cama, parecendo exausta. Na semi-escuridão, sua semelhança com Diotima era ainda maior. Margaret sentiu um aperto no coração. Não percebera até aquele momento o quanto ansiava pela presença de sua madrasta.

- Sede.

Ela tinha vontade de falar mais, só que estava com a garganta muito ressequida. Istvana encostou a mão na testa de Margaret. Era um gesto tão parecido com o que Dio costumava fazer que Margaret teve vontade de chorar. Seus olhos se encheram de lágrimas, enquanto a leronis se inclinava para a frente e ajudava-a a sentar. Depois, Istvana encostou um copo em seus lábios. Ela bebeu um gole, depois outro.

- Não beba demais a princípio. Eu sei, eu sei, sua vontade é tomar toda a água do Kadarin. O que foi? Por que estremeceu desse jeito?

Kadarin!

Istvana recuou, mesmo contra a vontade.

- Não precisa gritar, chiya. Sei que não tive muito tato ao usar esse rio como referência. Confesso que não estou no melhor de mim neste momento. Agora, trate de se recostar. Eu lhe darei mais água daqui a alguns minutos, quando tivermos certeza de que não vai mais vomitar. A febre passou, os olhos estão claros. Você nos deu um tremendo susto.

- Sinto muito.

O cérebro de Margaret ainda não se encontrava em condições de formular frases longas, embora compreendesse muito bem tudo o que Istvana dizia.

- Não precisa se desculpar, pois sei que não fez isso para nos causar problemas. Tenho a impressão de que já passou pelo pior, embora ainda possa haver uma recaída antes de se recuperar por completo.

- Não!

- É tão teimosa quanto seu pai, o que é ótimo. Acho que teria morrido se fosse diferente. - Ela afagou a mão de Margaret. - Não tenho palavras para dizer o quanto me sinto grata por você ter se lembrado do kit médico, e indicar o que precisava ali. Esse emplastro mudou tudo. Creio que já pode tomar mais um pouco de líquido agora.

Margaret compreendeu o quanto estava fraca, quando o esforço para beber deixou-a esgotada. Mas podia sentir que a água aliviava a garganta e seu corpo parecia apreciar. Embora soubesse que era impossível, imaginou as células individuais absorvendo a água... ou o que quer que as células fizessem.

Istvana manteve uma conversa amena, enquanto continuava a dar mais água para Margaret, um pouco de cada vez, até que a sede foi saciada. Margaret mal ouvia o que a leronis dizia, concentrando a mente em seu corpo.

Podia sentir o terror ainda à espreita, pronto para aflorar e envolvê-la. Se ao menos não estivesse tão fraca... Como podia lutar contra seus medos agora?

- Ashara!

Istvana fitou-a em silêncio, pensativa, por um longo momento.

- Ela se foi.

- Tenho medo.

- Sei que tem... e continuará a ter por algum tempo. Não vou enganá-la sobre esse ponto. Mas agora precisa recuperar sua força. Preparei um chá de galinha bem forte, e agora vou lhe servir uma caneca.

Não se pode fazer chá de uma galinha! Diga isso à galinha.

Margaret não se lembrou de ter dormido depois do chá. Mas pegou no sono logo em seguida. Acordou revigorada e tranqüila. o dia estava claro. A julgar pela inclinação do sol, devia ser de tarde. Sentia-se impaciente, ansiosa em se levantar, mas fraca demais para fazê-lo. Rafaella sentava numa cadeira ao lado da cama. Parecia cansada, mas sorriu para Margaret.

- Como se sente, sua preguiçosa?

- Acho que estou com fome.

- Domna Istvana avisou que teria fome. Ah, Marguerida, você me deu o maior susto! Nunca me senti tão impotente em toda a minha vida!

A Renunciante franziu as sobrancelhas, formando sulcos profundos entre elas. Os cantos da boca se contraíram para baixo.

- Eu também não - murmurou Margaret. - Mas estou bem agora. Pare de franzir o rosto! Faz com que pareça uma fruta seca, e Rafe...

Ela parou de falar abruptamente, sentindo as faces ficarem vermelhas no embaraço. o rosto de Rafaella refletiu o seu, também todo vermelho.

- O que você sabe sobre ele?

- Juro que não tinha a intenção de bisbilhotar. Acontece que duas ou três vezes senti você pensando nele. Como Rafe é meu tio, eu sabia de quem se tratava.

- Seu tio? Mas é claro! Por que não fiz a ligação antes?

Rafaella quase pulou da cadeira. Afastou-se da cama, murmurando para si mesma, quase feliz. Ao voltar, trazia uma tigela de sopa e uma fatia de pão numa bandeja.

- Tento não pensar muito nele, mas não consigo evitar.

Ela ajeitou a bandeja no colo de Margaret, depois começou a alimentá-la, como se fosse um bebê. A disposição para protestar foi abafada pela primeira colherada de sopa. Margaret decidiu que ainda não tinha condições de comer sozinha.

- Não importa, pois é bem provável que nada aconteça entre nós - comentou Rafaella.

Margaret engoliu a sopa.

- Por que não? Se você gosta dele e ele gosta de você... qual é o problema? Não poderiam ser companheiros livres?

- Não sei - murmurou Rafaella, hesitante. - Ainda não chegamos a esse ponto.

A porta do quarto foi aberta. As duas tiveram um sobressalto. Trocaram um olhar, como se tivessem sido interrompidas em alguma conversa indecorosa. A expressão de Rafaella era tão engraçada que Margaret quase engasgou com a sopa, ao conter o riso. Ei! As costelas estavam bastante doloridas e doíam quando ela ria.

Istvana Ridenow aproximou-se da cama, o resto sereno e quase descansado. Sorriu e inclinou-se para Margaret pelo outro lado da cama. Estudou seus olhos, encostou a mão em sua testa.

- Muito bem, chiya, acordou de novo. Como se sente?

- Estou ótima, considerando tudo o que aconteceu. Gostaria de tomar um banho assim que fosse possível. Sei que me sentirei muito melhor quando estiver limpa.

- Veremos... - A leronis percebeu o rosto franzido de Margaret, e acrescentou: - Talvez esta tarde. Não quero que tenha uma recaída de tentar coisas demais, depressa demais. Esteve muito mais doente do que pode imaginar.

- É possível. Acontece que jamais gostei de ficar sem fazer nada. E acho que dormi o suficiente para passar algumas semanas acordada.

E ainda não quero dormir, entende? Quem era Ashara?

- Pode deixar que eu fico com ela agora, Rafaella. Vá descansar um pouco.

- Está bem, domna.

- Acho que não vou conseguir comer mais nada agora - informou Margaret a Rafaella.

A Renunciante pegou a bandeja e se retirou. Assim que a porta foi fechada, Istvana sentou na cadeira ao lado da cama. Ficou olhando em silêncio para Margaret por um longo momento.

- Você tem muitas perguntas a fazer. Posso responder algumas, outras não. Mas creio que precisa saber o máximo que for possível.

- Não será outra ocasião em que só ouço fragmentos, sem um relato coerente, não é mesmo? Porque se fizer isso, provavelmente terei uma febre alta de novo!

- Ah, ameaças! Um sinal seguro de recuperação. - A leronis parecia quase satisfeita. - Tentarei responder a todas as suas perguntas, mas o problema é que não sei as respostas para muitas. Há uma época na história de Darkover que nossos historiadores chamam de Era do Caos... um nome bem apropriado. Perdemos muitos dos registros desse tempo, por causa das guerras que ocorreram. Alguns relatos sobre esse período estão mais próximos do mito que da história. É difícil distinguir uma coisa de outra.

- Isso acontece em muitos planetas, Istvana. Já ouvi histórias, durante minhas viagens, em que algum homem mortal se transformou no deus-sol porque fez coisas extraordinárias... coisas que não pareciam possíveis para um mero mortal.

- Perdoe-me. Sempre esqueço que você é instruída de maneira que não posso entender. Muito bem. Eu lhe direi o que sei sobre Ashara Alton... e não é muita coisa.

- Alton? Está querendo dizer que ela é uma ancestral minha?        

Por algum motivo, Margaret não gostou nem um pouco de ouvir isso.

- Você descende de membros de sua família. Mas como Ashara era uma Guardiã, não se relaciona com ela diretamente.

- Por que não?

- Na época em que ela viveu, as Guardiãs não casavam, nem tinham filhos. Julgava-se que a virgindade era necessária para a função. Só recentemente é que isso foi refutado... num episódio doloroso em nossa história.

Istvana parecia perturbada, como se a lembrança dessa época a angustiasse.

- Mas pensei que as mulheres, para preservar os Dons, deviam casar e ter filhos... ou pelo menos ter filhos.

- Era essa a regra, mas as Guardiãs constituíam a exceção à regra. -Istvana limpou a garganta. - Ashara Alton era a Guardiã em Hali, que era na ocasião a principal torre de Darkover. Por tudo o que sabemos, foi a mais poderosa leronis de sua época... ou de qualquer outra. Em circunstâncias normais, uma Guardiã permanece na Torre pelo resto de sua vida. Mesmo quando se tornam velhas, não estão mais em seu juízo perfeito, continuam na Torre. Mas Ashara não ficou em Hali. Não conheço os detalhes... ninguém conhece. Mas ela foi expulsa de Hali.

- Ei, espere um instante! Se ela era tão poderosa, como a obrigaram a ir embora?

- Não sei, Marguerida. Meu palpite é de que ela foi desalojada com o esforço concentrado de vários telepatas... mas é apenas um palpite. Os registros da época foram destruídos. Temos apenas alguns relatos e fragmentos de histórias. É certo que não a mataram, porque sabemos que ela se retirou para Thendara. Tornou-se uma reclusa numa torre que ela mesma construiu. Foi na ocasião em que começaram a construir o Castelo do Comyn... não o que você visitou, mas um prédio anterior, oculto agora dentro do atual.

- O Labirinto!

- Como? - balbuciou Istvana, espantada.

- Quando o Capitão Scott levou-me para ver Regis Hastur, e entramos no pátio do Castelo do Comyn, senti que podia "ver" um padrão de... um padrão de luz, é a melhor descrição, estendendo-se por todo o prédio. Havia lugares em que esbarrava em paredes, mas a luz seguia em frente. Achei que era uma loucura na ocasião. Havia num lado uma torre alta, que me deixou toda arrepiada. A luz parecia começar ali. Só posso dizer que naquele momento tive certeza de que poderia encontrar o caminho pelo castelo com os olhos vendados... se fosse capaz de atravessar algumas paredes.

- Entendo. Há de fato uma lenda de que existe um labirinto dentro do Castelo do Comyn, embora eu nunca tenha ouvido falar de alguém que soubesse como parecia.

- Se essa... essa ancestral minha estava lá quando o primeiro castelo foi construído, e era tão poderosa quanto você diz, então não poderia... não poderia influenciar os arquitetos?

Margaret podia sentir seu terror, mas era uma emoção distante, porque estava muito interessada na história. Tudo se encontrava no passado... e o passado era seguro. Não, não era! Ela podia sentir sua agitação recomeçar. Engoliu em seco. Istvana soltou uma risada que carecia de qualquer divertimento, um som de desconforto.

- Com o Dom de Alton, chiya, influenciar outras pessoas não é difícil. Está na própria natureza do contato forçado ser capaz de fazer isso. E o pouco que sabemos sobre Ashara Alton nos diz que ela nunca hesitou em usar o Dom como desejasse.

- Mas o que aconteceu com ela?

- Sendo mortal, Ashara acabou morrendo. Isto é, seu corpo morreu. o resto dela persistiu em sua torre em Thendara. Sabemos que ofuscou várias Guardiães, de vez em quando.

- Ofuscou? Não sei exatamente o que isso significa.

Não era toda a verdade, porque Margaret tinha uma boa idéia do que significava... e não gostava nem um pouco. Mas a pesquisadora nela assumira o comando, e queria dados, dados concretos, se fosse possível obtê-los.

- É difícil descrever, mas significa que a personalidade de uma pessoa é... engarrafada, digamos assim, passando a ser dominada por outra.

- Foi o que ela fez comigo?

- Exatamente. Não posso imaginar o motivo. Afinal, você era apenas uma criança.

- Que coisa terrível! Estou contente... por tê-la matado!

A respiração de Margaret saía em pequenos ofegos. Istvana ficou alarmada. Inclinou-se e tocou na mão direita de Margaret. A calma começou a voltar. Dio fazia isso de vez em quando, apenas tocava-a e fazia com que seus medos se dissipassem. Devia ser uma habilidade empática.

- As Guardiãs podem ver o futuro?

- Uma estranha pergunta. Há algumas que podem, mas não é um atributo de Alton. Por que quer saber?

- Pode não ser nada, mas tive um sonho ou algo parecido. Seria capaz de jurar que ouvi sua voz dizendo que não me deixaria destruí-la... como se soubesse que eu tentaria. Provavelmente é apenas a minha imaginação outra vez. Já passou muito tempo, não é?

- Centenas de anos, Marguerida. - Istvana pensou por um momento. - Há menção de uma serva que veio de Hali com ela... da linhagem de Aldaran, cujo Dom é prever o futuro.

- Mas ela agora desapareceu para sempre, não é?

Margaret descobriu que se sentia desesperada por uma garantia, que tinha medo de que Ashara pudesse voltar e recapturá-la.

- Ela não existe no mundo material há séculos, Marguerida, mas apenas no mundo superior. E quando você tirou a pedra de sua Torre ali, destruiu o lugar em que seu espírito habitava. Ashara não pode mais lhe fazer mal. Mas eu me pergunto o quanto de sua memória permanece em você.

- Eu gostaria de poder acreditar no que você diz, que ela desapareceu para sempre. Quanto ao resto, nada posso dizer. Não tenho como separar minhas memórias das memórias de Ashara, se é que as tenho. Pelo menos neste momento, quando penso a respeito, descubro que não tenho nenhuma. Por isso, vou presumir que não há qualquer memória. Mas há outra coisa. Quando mencionou Kadarin... é um rio, não é mesmo?... fiquei apavorada. E verdade que foi um medo diferente do que Ashara me incutiu. Mas por que esse pavor?

- Robert Kadarin participou da Rebelião de Sharra - respondeu Istvana, comprimindo os lábios. - Era o amante de sua mãe.

- Como ele parecia?

- Era bastante alto, pelo que me contaram, tinha cabelos prateados e olhos reluzentes.

- Ah... então é isso! - Margaret experimentou um profundo alívio.

- Ele morreu, não é mesmo?

- Morreu, sim. Mas por que isso a perturba?

- Ele sempre apareceu em meus sonhos, junto com Thyra. Havia algo diferente nesse homem. Ele era como um pesadelo. Mostrava-se gentil comigo, como se gostasse de mim, mas também me usava. Levou-me para o orfanato...

- Pare! Começa a ficar transtornada, o que não pode acontecer. Margaret arriou nos travesseiros, compreendendo que havia o maior bom senso na recomendação de Istvana. Olhou para sua mão esquerda, com linhas azuis na palma. Fora coberta por uma bandagem, que se soltara, deixando à mostra as estranhas marcas. Ela ergueu a mão na direção de Istvana.

- O que é isto?

- É um enigma que terá de ser tratado em outra ocasião, chiya. Já conversamos demais por enquanto... e talvez você tenha ouvido mais do que deveria.

Margaret retirou a bandagem, ergueu a palma diante de seus olhos, examinou as linhas atentamente. Sentiu que ficava tonta. Toda a sua força começou a ser drenada, como se estivesse sendo sugada para a figura em sua mão. As linhas pareciam quentes e vivas. Ela tentou desviar os olhos, mas não conseguiu.

Istvana sacudiu-a pelos ombros, mas Margaret continuou a olhar para sua mão, tornando-se mais e mais fraca a cada momento. Ao final, a leronis pegou uma toalha úmida na mesinha ao lado da cama e estendeu-a sobre a cabeça de Margaret. o pano molhado atingiu suas faces com um certo impacto, fazendo com que a energia retornasse ao corpo.

Ela baixou a mão e meteu-a por baixo das cobertas, depois tirou a toalha do rosto com a outra mão. Deparou com Istvana de pé ao lado da cama, tensa e alarmada, inclinada em sua direção.

- Precisamos levá-la para a Torre o mais depressa possível. Não tenho capacidade para tratar desse problema sozinha.

- Não é necessário. Basta me arrumar uma luva ou algo parecido para cobrir a mão, e acho que poderei dar um jeito. o que quer que seja, é muito... poderosa, mas apenas se você der atenção. Acho que é a última armadilha dela, mas não a deixarei vencer de jeito nenhum!

 

15

Alguns dias depois, Margaret já estava se movimentando por toda parte, cansada de ser tratada pelas outras. Podia comer e se vestir sozinha, subir e descer a escada, sem ficar exausta. Mas todas insistiam em atendê-la como se fosse uma inválida, até que se sentia um pintinho com todo um bando de galinhas a segui-la, cacarejando. Precisava de privacidade... e uma privacidade total. Era extraordinário como isso era difícil de conseguir, até mesmo numa construção tão grande quanto o Castelo de Ardais.

Parte do problema era a sua independência. Passara muitos anos cuidando de si mesma, no máximo sendo assistente de Ivor, para aceitar com facilidade que lhe mandassem fazer isso ou aquilo. A outra parte era o fato de que todas pareciam presumir que ela as deixaria tomar as decisões, que seria uma mulher obediente. Istvana e Marilla queriam que ela fosse para a Torre de Neskaya. Nada do que ela dizia em protesto podia convencê-las de que não iria. Olhava de vez em quando para sua mão, agora coberta por uma luva de couro macio, e tentava pensar por que se mantinha tão intransigente. Era como se simplesmente soubesse que não iria para Neskaya ou qualquer outra Torre. Também não conseguia imaginar para onde mais poderia ir, exceto voltar a Thendara e deixar Darkover. E esse, ela sabia lá no fundo de si mesma, também não era o seu caminho.

Explorou o andar térreo do castelo, tentando encontrar um canto em que pudesse ficar sozinha. Acabou encontrando a sala que servia como biblioteca. A existência de um lugar assim no Castelo de Ardais lhe proporcionou uma imensa satisfação, pois os livros ainda eram seus companheiros prediletos. Embora a maior parte de suas leituras na universidade fosse em discos no computador, ela crescera com volumes encadernados. Os habitantes de Thetis fabricavam um excelente papel de algas marinhas: havia uma pequena indústria devotada à produção de lindos livros para colecionadores. Margaret sempre apreciara a sensação de um livro em sua mão. Afinal, os livros, ao contrário das pessoas, eram seguros.

Em matéria de bibliotecas, aquela era lamentável. Mas ela sentiu-se contente pelo silêncio na pequena sala, o ligeiro cheiro de mofo dos livros encadernados em couro. Era um ambiente aconchegante, seguro e familiar. Ela descobriu ali que podia se concentrar em seus próprios pensamentos, em vez de refletir sobre o mundo superior e o terror que ainda lhe reservava.

Numa parede havia uma pequena lareira, onde se acendia o fogo. Uma única estante se destacava na parede em frente, com outra menor ao lado da lareira. Além das duas estantes, a sala quase não era mobiliada, sugerindo que era pouco usada pelos moradores. Havia uma cadeira grande e confortável, onde ela sentava agora, com uma manta estendida sobre as pernas. o único outro lugar para sentar era um banco ao longo da janela, coberto por almofadas. Dava para os fundos do castelo. Podia-se contemplar um pequeno jardim, cheio de flores e passarinhos barulhentos. Era maravilhoso poder ouvir de novo o canto dos passarinhos sem qualquer desconforto. Margaret passava muitas horas sentada naquele banco, admirando as flores, sem pensar em nada em particular. As paredes estavam vazias, exceto por uma tapeçaria meio comida por traças pendurada por cima da lareira, tão escura da fuligem do fogo que as figuras eram quase invisíveis.

Pela quantidade de poeira nas prateleiras e nos quarenta e tantos volumes guardados ali, Margaret deduziu que os Ardais não eram muito afeiçoados à leitura. Ainda assim, ficou feliz por aquele material de leitura, porque aqueles eram os primeiros livros que encontrava desde que chegara a Darkover. Quando conferiu os títulos, ela compreendeu por que os livros não eram muito usados. Quase todos eram traduções de manuais técnicos escritos em Padrão Terráqueo. Era sem dúvida uma biblioteca de trabalho, não devotada ao prazer. Ela tentou imaginar o jovem Dyan Ardais deliciando-se com a leitura de Substituição de Fertilizantes por Nitrogênio em Climas Temperados, de C.J. Bandarjee; ou Lady Marilla lendo as quatrocentas páginas de o Trabalho de Parteira: Uma Pesquisa. Não pôde deixar de sorrir. Só olhar para os livros já a deixava sonolenta. Mas ela encontrou um livro que parecia ser de reminiscências, e concluiu que daria uma leitura agradável.

o que realmente queria, Margaret sabia, era uma história concisa de Darkover... ou melhor, uma obra em vários volumes, com muitas notas de rodapé. Não podia entender por que um livro assim não existia; se houvesse, tinha certeza, Istvana já teria lhe falado a respeito. Não se podia dizer que os darkovianos não tinham senso de história, pois era evidente que tinham; apenas ainda não a haviam escrito. Ou talvez houvesse registros no tal mosteiro, São Valentine das Neves, sobre o qual já ouvira falar várias vezes. Onde ficava mesmo? Ah, sim, Nevarsin, onde quer que isso fosse. Havia mapas em sua bagagem, mas ela sentia-se cansada demais para consultá-los. Mas lembrou a si mesma que deveria fazer isso em breve.

Margaret flexionou a mão esquerda, agora coberta pela luva de couro que Rafaella lhe dera, sentindo as linhas na pele. Istvana e Lady Marilla achavam aquelas linhas intrigantes, mas também inquietantes. Ambas concordavam que as estranhas marcas deviam permanecer cobertas, que as linhas se relacionavam com os cristais de matriz que elas usavam, embora nenhuma das duas quisesse arriscar qualquer palpite sobre o que podiam significar.

Ela não queria pensar nas linhas em sua mão, nem na estranha aventura que as produzira, mas encontrava a maior dificuldade para se concentrar em qualquer outra coisa. Baixou os olhos agora e por um instante pôde "ver" as linhas, através do couro macio. Era desconcertante. Margaret especulou se haveria algum material que impedisse isso. o couro não era a solução, embora lhe permitisse tocar em coisas sem perturbação. A palma parecia quente e coceguenta, a pele ainda era muito sensível.

Ela forçou-se a ignorar a mão. Olhou para a página do livro que finalmente escolhera. Era Memórias de uma Estudiosa Itinerante, de Paula Lazarus. Parecera promissor, mas se mostrou muito chato, a tal ponto que ela ainda estava na página sete depois de mais de uma hora. Olhava fixamente para um parágrafo que já lera várias vezes, sem qualquer prazer ou compreensão. Desviou os olhos para a pequena fogueira na lareira. Largou o livro no colo. Os olhos comichavam, apesar de todo o sono que tivera nos últimos dias. Margaret fechou-os, cansada. Perguntou-se se algum dia voltaria a se sentir descansada. E resvalou para um leve cochilo.

Passos pesados no corredor despertaram-na abruptamente. A porta ficava por trás da cadeira. Ela ouviu-a sendo aberta. Uma aragem fria atingiu-a, quando se inclinou para ver quem era. Esperava Dyan, ou talvez Mikhail, pois os dois já haviam-na visitado na pequena biblioteca; ou então Julian Monterey, embora seus passos nunca fossem tão pesados.

Três homens entraram na sala, dois em uniforme cinza e verde. Eram típicos policiais, pois esquadrinharam todos os cantos, empertigados em determinação e vigilância. o terceiro homem era corpulento, ombros largos, musculoso, queixo quadrado, com a aparência de quem estava acostumado a impor sua vontade a todo mundo. Margaret especulou se os guardas tinham vindo prendê-la por praticar a telepatia sem licença ou por causar a maior confusão no mundo superior. Teria achado graça dessa especulação, se os três homens não se mantivessem tão sérios.

O corpulento postou-se na sua frente e estudou-a por um momento. Tinha cabelos vermelhos, com fios brancos nas têmporas, uma barba bem aparada. Os olhos eram azuis, frios e penetrantes. Fitou-a diretamente, de tal maneira que Margaret sabia que era grosseira, pelos padrões darkovianos. Ela teve de fazer um esforço para resistir ao impulso de detestá-lo à primeira vista. Não fitou-o nos olhos. Em vez disso, observou o bordado em seus punhos.

- Domna...

Ele fez uma meia reverência, um movimento relutante. Olhe só para ela... uma mulher arrogante. Igual ao pai! Recende a laran, e nem sabe disso!

Arrogante? Margaret não podia entender por que ele a julgava assim, mas a comparação com o pai parecia estar na raiz do problema. Muito estranho. Ela pensara em muitas coisas pouco lisonjeiras de Lewis Alton, mas arrogância nunca fora uma delas.

- Vai dom...

Margaret respondeu tão suavemente quanto podia, copiando as maneiras de Lady Marilla, ao mesmo tempo em que procurava ignorar os pensamentos agitados do homem. Podia sentir que ele tinha um pouco de medo dela, por algum motivo que ignorava. Medo e hostilidade. Pior ainda, ela desconfiou que o riso não fazia parte da personalidade daquele homem.

- Seu pai não está aqui? O que ele quer? Mandou-a para tomar seu lugar?

Não vou admitir! Mantenho Armida há vinte anos e não serei expulso por uma mulher, não importa quem ela seja!

Como acontecia com freqüência quando se sentia ameaçada, Margaret refugiou-se no escárnio.

- Ele não está escondido debaixo de minha saia, com certeza. - Ela ficou satisfeita com a expressão chocada de um dos guardas. Acenou com a mão para as prateleiras. - Pode procurá-lo entre os volumes empoeirados ali, se quiser.

- Afinal, seu pai a mandou para tomar seu lugar?

- Não posso imaginar alguma pessoa tomando o lugar de meu pai, muito menos eu.

Ela estava alerta agora, sem qualquer resquício de sono na mente, sentindo-se mais e mais irritada, a cada segundo que passava.

Arrogante e de fala macia ainda por cima! Por que Javanne me enviou nessa missão inútil? Malditas sejam todas as mulheres!

- Sou seu tio... seu único tio vivo... Gabriel Lanart-Alton. Quero saber o que tenciona fazer com Armida?

Ele falava com evidente esforço, dominado por emoções poderosas. Margaret concluiu que era um homem de ação, não de palavras, e que se sentia tão constrangido quanto ela.

Ah, sim, era o pai de Mikhail, o homem idoso que ele presumira que Margaret tencionava expulsar para a neve das montanhas. Só que não era tão idoso assim, obviamente, muito menos fraco. Por que ela tivera a impressão de que os pais de Mikhail eram idosos? Sua resistência a detestá-lo enfraqueceu.

- Seria ótimo para você, mas creio que Rafe Scott contestaria sua alegação de que é o meu único tio vivo.

- Ele não conta. - o tom de Gabriel era quase desdenhoso. - É um Terranan.

Ela está tentando me confundir... a conversa não está acontecendo como planejei! E bem provável que ela seja tão esperta quanto o pai, e eu nunca fui desse tipo!

- E mesmo? Como irmão de minha mãe, ele conta muito para mim. Quanto a Armida, por que eu deveria fazer alguma coisa a respeito? Sem qualquer motivo que eu possa descobrir, metade das pessoas que encontro em Darkover presume que vou correr para lá... onde quer que fique... e exigir que me entreguem imediatamente a chave da despensa.

Por trás de Gabriel, um guarda tinha dificuldade para conter o riso.

- Por que outro motivo você viria para Darkover... e, antes que eu me esqueça, o que está fazendo aqui em Ardais?

Gabriel tinha a expressão atormentada de um homem levado ao limite da resistência por coisas além de seu controle. Javanne vai comer meu fígado no almoço, se ela casar com Dyan Ardais!

- Vim para Darkover como pesquisadora da universidade, a fim de coletar músicas folclóricas, sem saber que era uma herdeira. Quanto à minha presença no Castelo de Ardais, acho que é uma questão que só a mim interessa. Não é da sua conta.

Margaret começava a avaliar aquele novo tio. Já desconfiava que não era um homem ponderado, mas alguém que queria resolver todos os problemas na força bruta. Também tinha a impressão de que ele acalentava um ressentimento contra seu pai, embora não pudesse imaginar por quê.

O rosto de Gabriel ficou vermelho, os olhos esbugalharam na frustração reprimida a custo. Não sabia que era uma herdeira? Acreditarei nisso quando os infernos de Zandru derreterem! Qual será a manobra de Lewis? Ele sempre tramou alguma insídia. Até mesmo quando éramos jovens e amigos. Mas por que ele não veio pessoalmente?

- Como minha parenta, domna, tudo o que fizer é da minha conta. Não posso permitir que se aventure pelas Hellers...

- Não tenho me aventurado por lugar nenhum, Dom Gabriel. Vim para o Castelo de Ardais porque estava doente e precisava de atenção médica. Era o lugar mais próximo. Lady Marilla tem cuidado de mim muito bem, e sempre terei uma dívida de gratidão com ela.

Aposto que sim. Ela ajuda, enquanto promove a causa daquele seu filho desfibrado. Não há nenhuma mãe nos Domínios que não queira esta jovem para seu filho, por mais malnascida que ela tenha sido. Se eu não ficasse de cama com a febre, tudo isso poderia ter sido evitado.

- Vim até aqui para levá-la a Armida, imediatamente.

- Dom Gabriel - começou Margaret, tentando ser conciliadora com o homem que dava a impressão de que sofreria um derrame, se ficasse um pouco mais furioso -, compreendo que está acostumado a dar ordens e vê-las obedecidas, mas não sou uma pessoa que pode intimidar a fazer tudo o que mandar. Não planejei visitar Armida e não vejo qualquer motivo para me fazer mudar de idéia.

A perspectiva de montar num cavalo e partir era insuportável, pois ainda sentia dores em todos os músculos e ossos. o guarda por trás dele quase perdeu o controle e se desgraçou nesse instante. Jamais conheci alguém que pudesse enfrentar o Dom, com exceção de Lady Javanne! Se eu contar isso nos alojamentos, ninguém vai acreditar!

- Tem de me escutar, mocinha! Você está aqui, e seu pai não, o que significa que fará exatamente o que eu mandar, sem protestar! Sou o seu guardião legal na ausência de Lew Alton!

Os dois se fitaram furiosos por um momento.

- Como exatamente somos parentes? - perguntou Margaret, a voz suave.

- Minha mãe era irmã de seu avô Kennard Alton. Mas o que isso tem a ver com qualquer coisa?

- Eu estava apenas curiosa. Desde que cheguei a Darkover que venho encontrando parentes que nem sabia que tinha, uma família que nunca imaginei. Mas duvido que você seja meu guardião, legal ou de qualquer outro tipo. Quando me encontrei com Lorde Hastur, ele não fez nenhuma menção a respeito. Por isso, acho que está querendo assumir uma coisa a que não tem direito.

- Sou o detentor do Domínio de Alton, o que me dá esse direito.

- Entra aqui e quer saber se eu vou reivindicar Armida, expulsando-o de sua casa. Não quer que isso aconteça... ninguém poderia gostar. Não acredita em mim quando lhe digo que não tenho a menor intenção de apresentar qualquer reivindicação. Pede que eu o acompanhe até lá, mas não deseja minha presença em Armida. Em suma, está se comportando muito mal, e estamos no lado errado...

- Cale-se!

Ele ficou vermelho outra vez, parecia à beira de um ataque. Margaret tentou sentir pena, mas não conseguiu.

- Não sou uma criança, nem sou sua escrava. Talvez possa dar ordens à sua esposa e filhas, mas não sou sua esposa, nem sua filha.

Ela sentiu os ombros tensos na fúria que ainda não explodira. O homem era irritante, e Margaret se perguntou como "Javanne" podia aturá-lo.

Ela é Kennard outra vez, tão teimosa quanto uma mula. Mais qualquer coisa que herdou daquela desgraçada que foi sua mãe. Por que ela tinha de voltar?

- Como é minha sobrinha, domna, é como se fosse minha filha. Desculparei sua grosseria porque compreendo que não conhece nossos costumes. Aqui em Darkover ainda é considerada uma criança, porque não é casada. Assim, passa a ser como uma filha para mim, enquanto eu mantiver o Domínio.

- Não diga bobagem. Ou sou uma herdeira e o Domínio de Alton é meu por direito, ou não sou, mas sua dependente é que jamais serei. Agora, trate de se retirar. Acaba de chegar, deve estar tão cansado quanto eu. Não acha melhor continuarmos a conversa mais tarde?

Margaret surpreendeu-se pela veemência com que falou, uma qualidade de voz que não sabia que possuía. Não parecia sua própria voz, mas sim a de outra pessoa. Ela tremeu um pouco. Torcia para que fosse sua imaginação, não algum resquício de Ashara, pois não queria que qualquer coisa daquela terrível mulher permanecesse nela. Para seu espanto, Gabriel moderou um pouco o seu tom.

- Não pode permanecer aqui em Ardais.

- Assim que estiver em condições de viajar, tenciono voltar a Thendara e deixar Darkover.

Era uma mentira clamorosa, mas ela não se importava mais.

- Deixar Darkover? Não pode fazer isso!

Resolveria meu problema por enquanto, mas seria a coisa errada. Lew Alton tinha de criar essa confusão e me deixar para endireitar tudo! Onde ele está? Renunciou a seu cargo sem pedir autorização a ninguém e...

- Pois então espere para ver! - exclamou Margaret, agressiva. Gabriel fez um esforço para se controlar, respirando fundo e empinando os ombros.

- Você não compreende. Deve ir para Armida. Há pessoas que precisa conhecer.

Estraguei tudo. Javanne e Jeff ficarão furiosos. Por que ela não podia ser uma doce menina, em vez dessa megera indomável?

- Devo?

Dom Gabriel Lanart virou-se e saiu da biblioteca, batendo a porta com toda a força. Deixou seus guardas para trás. Um deles foi abrir a porta e seguiu-o. o outro fitou Margaret por um momento, exibindo um sorriso tão grande que quase rachava o rosto. Depois também saiu, deixando-a sozinha e exausta.

Talvez uma hora depois houve uma batida na porta.

- Entre - disse Margaret.

Esperava que fosse Rafaella ou Lady Marilla. Mas quem entrou na sala foi Mikhail Lanart-Hastur, parecendo desesperado. o coração de Margaret palpitou de forma inesperada ao contemplá-lo. Ela censurou a si mesma. Estava velha demais para se comover com um rosto bonito.

- Soube que meu velho chegou para levá-la para Armida - disse ele. Margaret piscou, aturdida.

- Velho? Está se referindo a Dom Gabriel? É engraçado, porque também chamo meu pai de Velho. Não na sua frente, é claro.

Mikhail soltou uma risada. A expressão angustiada desapareceu. o que foi terrível, porque o riso o tornava ainda mais bonito... e fez com que Margaret se sentisse ainda mais atraída. Ela tinha a sensação de que já o conhecia, embora soubesse que isso era impossível. Sentiu a frieza familiar dentro dela, um desejo de não ficar próxima de ninguém, de se manter apartada. Istvana lhe dissera que isso era parte do encantamento feito por Ashara Alton, quando ofuscara a criança Margaret. Ela mordeu o lábio, porque detestava o sentimento de separação. Ao mesmo tempo, era seguro, e a esta altura já estava acostumada.

Mikhail fazia um bom trabalho de perturbar o sossego de sua mente, sem ter a menor idéia dos sentimentos dela, como Margaret desconfiava. Ainda bem que era assim, concluiu ela. Provavelmente Mikhail não era nem um pouco parecido com o homem que ela imaginava, o homem que sentia que já conhecia. Ela desejou poder descartar esse sentimento, pois deixava-a desequilibrada.

- Nunca na frente, é claro. Meu pai detesta envelhecer. Era capaz de cavalgar por três dias seguidos, sem parar para comer ou dormir, ou qualquer outra coisa... a se acreditar em suas histórias. Agora, um dia na sela deixa-o exausto e irritado. E tem estado doente. Como era um homem que nunca tinha uma doença, fica furioso com a recusa do corpo em obedecer às suas ordens. Já teria vindo para cá há dias, se não fosse por isso.

- Está explicado o comportamento dele. E devo dizer que me sinto grata por seu pai não ter vindo antes, porque acho que invadiria meu quarto e exigiria que eu me levantasse e o seguisse para Armida, como uma boa menina.

Mikhail balançou a cabeça, com um ar de tristeza.

- Ele foi muito grosseiro?

- Tive a impressão de que está acostumado a impor sua vontade.

- Ele é sempre assim, quer esteja ou não viajando.

Mikhail cruzou as mãos nas costas e olhou para o fogo. Tenho de fazer o maior esforço para não fitá-la! Nunca me senti tão atraído por alguém em toda a minha vida! Ela me conquistou com um olhar, e a segui por toda parte.

- Ele era o Capitão da Guarda até o ano passado. Adquiriu o hábito de dar ordens. Ou talvez sempre tenha sido assim. Não somos muito ligados, pois fui o herdeiro de Lorde Regis durante muito tempo. Fui criado no Castelo do Comyn. Passei muitos anos ali. Depois que Lady Linnea teve seu filho, o jovem Danilo, deixei de ser o primeiro na linha de sucessão, e voltei a Armida. Mas como me tornei o paxman de Dyan, não passo muito tempo lá. Acho que, no fundo, ele gosta de mim... à sua maneira.

Se gosta, eu não sei. Ele sempre me olha como se tivesse vontade de me estrangular.

- Quando você vai embora? - acrescentou Mikhail.

Margaret estava tão absorvida a definir os sentimentos que a alcançavam de uma forma espontânea, a atração que ele sentia e seu distanciamento do pai, que não respondeu de imediato. Quando o fez, disse apenas:

- Não vou.

- Como? - Mikhail fitou-a diretamente por um instante, mas logo baixou os olhos. O olhar dele fez Margaret tremer com um anseio que nunca experimentara antes. - Está querendo dizer que o desafiou de verdade? Deve ter provocado uma explosão.

- Ele bateu a porta com tanta força que quase quebrou as dobradiças. Parecia pensar que eu faria automaticamente tudo o que mandasse. Declarou que era meu guardião legal na ausência de meu pai. Tentei explicar que não era mais uma criança, mas ele não me ouviu.

- O pai é um bom homem, mas não gosta de ouvir. Toma uma decisão e segue em frente de qualquer maneira. Sinto muito.

- Não precisa se desculpar. Não podemos controlar o modo como nossos pais se comportam. Pode fazer o favor, se souber, de me explicar por que ele quer que eu vá para Armida? Ele receia que eu reivindique a propriedade. Então por que deseja a minha presença ali? E quem é Jeff? E Javanne? Tenho a sensação de que me meti no meio de um romance russo.

- O que é isso?

- Um romance russo? Uma história em que há milhares de personagens, e todos eles têm pelo menos quatro nomes diferentes.

Mikhail riu de novo.

- Parece bastante confuso.

- Pode ter certeza de que não é mais desconcertante do que tentar entender as linhagens darkovianas.

- Como convivi com isso durante toda a minha vida, não me parecem confusas. Mas posso entender como deve ser difícil para você. Javanne é minha mãe... Javanne Hastur, irmã de Lorde Regis.

- Ah, isso explica alguma coisa. Sabia que ela era sua mãe, mas esqueci que era irmã de Lorde Regis. Você me deu a impressão de que ela era velha... e seu pai também, naquele jantar que nunca terminei. Já se passaram muitos dias, não é mesmo? Meu cérebro ainda está um pouco atordoado... e não ajuda nem um pouco conhecer tantos parentes que nem sequer sabia que existiam.

Uma tênue lembrança aflorou em sua mente. Margaret acrescentou:

- Acho que meu pai falou sobre ela uma ocasião... alguma coisa relacionada com uma festa e uma briga de arranhão... não, de mordida. Ele tem uma pequena cicatriz num braço. Quando perguntei o que acontecera, ele me disse que Javanne o mordera. É a mesma pessoa?

Mikhail soltou outra risada.

- A mãe adora contar essa história. Tinha nove anos na ocasião, e já era estourada. Ela e Lew tiveram alguma discussão infantil. Minha mãe exigiu que ele se retratasse. Como Lew se recusasse, ela jogou-o no chão, sentou em cima de seu peito, e mordeu seu braço quando ele tentou derrubá-la. Não era a atitude de uma dama, mas a mãe sempre foi impetuosa, a julgar pelos relatos de Lorde Regis. Ele até comentou uma vez que era uma pena que ela tivesse nascido mulher e ele homem. Como estava um pouco embriagado, não lhe dei crédito.

- Sua mãe parece formidável. Ou será que os anos a abrandaram? Mikhail sorriu.

- Se isso aconteceu, não dá para notar. É uma mulher maravilhosa, mas determinada.

- Posso imaginar. E como seu pai é tão obstinado, presumo que se dão muito bem.

- Se gritar um com o outro e dar socos na mesa são sinais de amor e harmonia, então eles formam um casal perfeito.

Margaret ficou surpresa ao constatar como se sentia à vontade agora na companhia de Mikhail. Era como se pudesse lhe dizer qualquer coisa. Tratava-se de uma experiência nova, que lhe permitia relaxar. E de repente o calafrio voltou, aquele sentimento de que devia se manter apartada, nunca permitir que alguém se aproximasse. Fazia com que se sentisse puxada em direções opostas, dividida por desejos conflitantes. Sempre fora capaz de dizer qualquer coisa a Ivor ou Ida Davidson, mas agora era diferente. Afinal, estava com um homem atraente, de sua idade, uma circunstância em que nunca se sentira à vontade antes.

Foi então que ela sentiu, mais do que ouviu, uma emoção na reação de Mikhail, como se ele também se sentisse mais à vontade em sua companhia do que com qualquer outra pessoa que conhecera antes. Era uma sensação maravilhosa, mas inquietante para os dois. Ele poderia ser meu amigo! Nunca tive um amigo homem antes, exceto Ivor, mas ele era diferente. Só que não devo. Alguma coisa vai acontecer, uma coisa terrível, se eu me permitir ser atraída para ele.

Por um momento, ela ficou tensa, à espera de algo. E depois compreendeu que a voz em sua cabeça, que sempre a isolara das outras pessoas, não se manifestara agora. A profunda importância de seu trabalho com Istvana Ridenow, durante a lenta recuperação, começou a se definir em sua mente consciente. Não era uma percepção tranqüila. Ao contrário, ela sentia raiva, porque algo na presença de Ashara dentro dela a levara a não fazer amizades, como as outras pessoas. Para se distrair desses pensamentos desconcertantes, ela perguntou:

- E quem é Jeff?

Mikhail pôs-se a andar de um lado para outro, na frente do fogo.

- Jeff é Lorde Damon Ridenow - informou ele, como se isso explicasse tudo.

- Ridenow? Outro tio?

- Isso mesmo. Mas tendemos a considerar tios e tias as pessoas da geração imediatamente anterior. Jeff é da outra geração. E é seu parente duas vezes, porque descende de Ellemir Lanart, que é da linha de Alton, e de Arnad Ridenow, que tem parentesco com a esposa de seu pai.

- Quer saber de uma coisa? Estou começando a lamentar não ser o tipo de pessoa que tem um acesso histérico a todo instante. Todos esses novos parentes estão me levando à loucura. Mas se ele é Lorde Damon, por que é chamado de Jeff?

Por mais confusa que estivesse, Margaret ainda era extremamente curiosa. E queria que Mikhail continuasse a conversar com ela, porque desejava a sua proximidade por mais algum tempo. Ao mesmo tempo, outra parte dela preferia ficar sozinha, a fim de não se sentir atraída por aquele homem.

- Ninguém jamais lhe falou sobre a Torre Proibida?

- Istvana pode ter comentado alguma coisa, quando respondia às minhas perguntas.

- O que ela contou?

- Deixe-me pensar... Aconteceu há cerca de setenta ou setenta e cinco anos, não é mesmo? Ei, foi quando ouvi antes o nome de Damon Ridenow! Sabia que já o conhecia. Mas esse Jeff não pode ser o mesmo homem... teria mais de cem anos agora!

- Não, não são a mesma pessoa. É uma história antiga, e não muito feliz. - Mikhail soltou um pequeno suspiro. - Durante séculos só houve mulheres como Guardiães, todas celibatárias. Damon Ridenow foi o primeiro homem que se tornou Guardião desde a Era do Caos. Era casado com Ellemir Lanart, mas tinha uma filha de outra mulher, Jaelle n'ha Melora.

- N'ha Melora? Quer dizer que ela era uma Renunciante, como Rafaella?

- Isso mesmo. Por favor, não me interrompa, porque a história já é bastante complicada sem isso.

- Sinto muito.

Margaret não se lamentava, porque Mikhail não estava nem um pouco aborrecido com ela. o que lhe proporcionava uma intensa satisfação.

- Leonie Hastur, que era leronis na Torre de Arilinn, onde seu pai foi treinado, ficou consternada, porque ela e Damon eram muito ligados. Sentiu-se traída, tanto por ele se tornar um Guardião quanto por gerar filhos. As Guardiãs exerciam um tremendo poder, praticamente o único poder que as mulheres tinham na ocasião. Por isso, eram muito zelosas da prerrogativa.

- Posso compreender essa posição, considerando como as mulheres são arrastadas para o casamento tão jovens.

Mikhail sorriu para ela, depois sacudiu um dedo, como um professor censurando uma aluna travessa.

- Não quero entrar numa discussão com você sobre a maneira como tratamos nossas mulheres, Marguerida.

Ela pensou que seu nome nunca soara tão bonito na voz de qualquer outra pessoa.

- Nem eu quero. Não tive a intenção de criticar.

Pelo que Rafaella me disse na trilha, há muito para criticar, mas não é da minha conta. Ninguém vai me pressionar para o casamento!

- Vamos voltar à história. Damon Ridenow criou uma Torre em funcionamento em Armida, com sua esposa, a irmã gêmea dela, Callista, e um Terranan chamado Ann'dra Carr. Não foi bem aceita, mas não havia muita coisa que se pudesse fazer para evitá-la, sem muito derramamento de sangue. A filha de Damon e Jaelle recebeu o nome de Cleindori. Dizem que foi uma das mulheres mais lindas que já viveram em Darkover. Se o único retrato dela que existe hoje serve como base para julgamento, então é a pura verdade. Ela foi para Arilinn e tornou-se uma leronis. Começou a criar uma ciência formal usando as matrizes, o que não fazíamos há séculos. - Ele suspirou. - Perdemos muita coisa durante a Era do Caos, muito conhecimento, e ainda não recuperamos tudo.

- Por quê? Não compreendo essas matrizes, para começar, embora saiba que funcionam como focos. Se os darkovianos as usam há séculos, era de se esperar que já tivessem desenvolvido uma ciência formal há muito tempo.

- Tem toda a razão. Mas a destruição que ocorreu durante a Era do

Caos fez com que todos nos tornássemos cautelosos... houve muitos usos errados, e ficamos com medo de voltar aos costumes de nossos ancestrais.

- Mas o que aconteceu com Cleindori?

- Ela violou as regras. Acho que saiu ao pai. Casou com Arnad Ridenow... o que era sem precedentes, uma Guardiã casar. Como se isso já não fosse bastante ruim, ainda por cima ela manteve seu laran. O que também não foi aceito, porque há muito tempo já se decidira que só uma mulher virginal podia ter o laran de uma Guardiã. Ela continuou tão poderosa quanto antes, o que perturbava todas as convicções antigas.

- Dá para perceber que você se sente embaraçado ao falar sobre isso.

Não entendo o motivo.

- Nunca discuti a virgindade com uma mulher da minha idade. Parece muito estranho. Não se sente embaraçada?

- Por que deveria? Não posso dizer que nada sei sobre sexo, Mikhail. - Ela fez uma pausa, antes de acrescentar, jovial: - Afinal, estive na universidade.

Ele soltou uma risada, a cabeça se inclinando para trás, de tal forma que o fogo cintilava contra os cabelos dourados.

- Mas é claro! Você é uma mulher sofisticada, enquanto eu não passo de um matuto ignorante!

- Não diga bobagem. Você é muito inteligente, e é isso que importa. Mikhail sorriu e soltou um pequeno suspiro.

- É verdade, sou o mais esperto na família. Talvez seja por isso que o pai e eu não nos damos bem. o velho é muito desconfiado das pessoas inteligentes.

- Pessoas como meu pai.

- Exatamente!

- Por quê? Pelo que imagino, seu pai e o meu já foram amigos, há muito tempo.

- É verdade. Mas meu pai vivia à sombra de Lewis Alton, o que o deixava ressentido. Isso é apenas um palpite meu, não uma coisa de que tenho certeza. Meu pai nunca imaginou que ficaria com o Domínio de Alton. Só aconteceu porque seu pai deixou Darkover. O velho sempre teve a sensação de que era apenas secundário. E sua volta deixou-o um pouco transtornado.

Por favor, tente ser paciente com ele. É um bom homem, mas muito teimoso e antiquado.

Margaret não entendia muito bem o que podia significar antiquado, mas descobria agora que queria agradar Mikhail. Era um sentimento surpreendente, porque ela jamais quisera agradar a qualquer pessoa, a não ser com seus conhecimentos de música, desde que era criança e se sentira rejeitada em casa.

- Farei o melhor que puder. Mas você ainda não acabou de explicar esse tal de Jeff, que é meu tio distante, ou meu primo... ou as duas coisas. Todas as famílias darkovianas são complicadas assim?

- A maioria. Lembre-se de que casamos entre nós há gerações. Por isso, todos os Domínios estão interligados pelo sangue, tanto quanto pelas leal-dades. Agradeço por se mostrar disposta a ser paciente com meu pai. Sei como ele pode ser exasperante, mas sua devoção a Darkover é tão profunda que às vezes o torna intolerante.

Mikhail ofereceu um sorriso insinuante, como se fossem cúmplices, antes de perguntar:

- Onde era mesmo que eu estava?

- Falava de Cleindori e Arnad.

- Tiveram uma criança, outro Damon Ridenow, em homenagem ao avô, mais tarde adotado e levado para a Terra, onde recebeu o nome de Jeff Kerwin Jr. Isso aconteceu depois que Cleindori e Arnad foram assassinados por alguns fanáticos, que não eram capazes de compreender que não tinha a menor importância se uma Guardiã permanecia virgem ou não.

- Uma história muito triste.

- Foi pior do que triste... um evento estúpido e trágico! Ele estava indignado, como se o caso tivesse acabado de ocorrer.

- Tem razão.

- Jeff voltou a Darkover há alguns anos e descobriu quem era. Tinha um laran muito forte e foi para Arilinn, a fim de receber o treinamento necessário. Mas manteve o nome com que cresceu. Como descendente do Damon anterior, ele era o herdeiro legal do Domínio de Alton. Renunciou a esse direito em favor de seu pai, porque queria permanecer em Arilinn. Depois da Rebelião de Sharra, quando deixou Darkover para se tornar nosso Senador, seu pai também renunciou a seu direito sobre o Domínio, porque nossas leis determinam que o chefe de um Domínio deve residir aqui. Foi assim que meu pai acabou com Armida. E tem sido um bom administrador. Adora a propriedade. Seu retorno deixou-o angustiado. Em termos técnicos, Jeff pode reclamar seu direito outra vez, embora não queira fazê-lo. No fundo, é uma situação muito complicada, e a sua presença aqui a torna ainda pior.

- Eu gostava mais antes da sua explicação. Não acha que há pessoas demais com direito ao Domínio de Alton? É tanta gente que me deixa confusa. - Margaret franziu o rosto. - De onde vem o nome Lanart?

Ela tentava encontrar algum sentido em toda aquela genealogia, mas não conseguia.

- Os Lanarts formam um ramo menor da linhagem de Alton.

- Então por isso seu pai é um Lanart-Alton?

- Exatamente.

- Mas parece que esse Jeff não está relacionado com todo mundo... é o neto de Jaelle e do Damon Ridenow mais antigo, mas não de sua esposa, Ellemir Lanart. É isso?

- Mais ou menos. Acontece que Marcella Ridenow casou com Esteban Lanart, e suas filhas foram Callista, Ellemir e...

- Pare! - protestou Margaret, com um súbito cansaço. - Meu cérebro não será capaz de absorver mais nenhum fato! Aceitarei apenas que esse Jeff... Lorde Damon Ridenow... é uma espécie de tio, só que ele não é de fato. Se eu não conhecesse os padrões de parentesco em algumas outras culturas, diria que vocês são todos loucos!

- Eu jamais havia percebido que era tão complicado até tentar explicar para você. - Mikhail fez uma pausa. - Uma pena que só haja uma cadeira aqui. Minhas pernas começam a ficar cansadas.

Se ela fosse qualquer outra pessoa, eu sentaria no chão. Mas não seria uma demonstração de boas maneiras. É curioso. Só nos encontramos pela primeira vez há poucos dias, mas tenho a impressão de que sempre a conheci.

- Posso compreender. Não é uma sala estranha... com tão poucos móveis? Mas ainda não compreendo por que seu pai acha que preciso conhecer Lorde Damon. Por falar nisso, não compreendo a metade do que aconteceu desde a minha chegada.

Margaret ignorou o fluxo de pensamentos de Mikhail, tão desconcertante quanto sua explicação sobre as complexidades da família. Por que ele não devia sentar no chão?

- Meu velho insiste no protocolo certo, quando lhe convém. Por isso, é bem provável que ele tenha convidado Jeff para vir de Arilinn a fim de cumprir todas as convenções, como um disfarce para sua verdadeira intenção.

- E qual seria?

- Casar você com um dos meus irmãos o mais depressa possível.

- Seus irmãos? Não com você?

- Meu pai tenta não pensar em mim sempre que possível, a não ser quando me dá ordens para fazer alguma coisa que eu não quero. Como eu já disse, não temos sido muito ligados desde que Lorde Regis designou-me para seu herdeiro. Por isso, ele e a mãe devem querer você para Gabriel ou Rafael.

Não sou sequer considerado. Tratam-me como um forasteiro. Se Regis não tivesse me criado, talvez a situação fosse diferente. o velho não confia em mim.

- Por quê?

Margaret podia compreender a lógica na iniciativa de Regis Hastur designar um dos filhos da irmã para seu herdeiro, até que tivesse seus próprios filhos. Com a obsessão darkoviana por manter os Domínios intactos, qualquer outra coisa seria considerada um absurdo.

- Sou o mais jovem.

- Mas é mais ou menos da minha idade. Ou seja, seus irmãos são mais velhos e continuam solteiros? Não é um tanto estranho?

Mikhail quase amarrou a cara, o que tornou seu rosto forte e interessante, não o contrário.

- É quase um escândalo, se quer saber. Cada vez que vou a Thendara, Lady Linnea me apresenta uma jovem de boa família ansiosa para me conhecer. Ou Regis sugere, com todo o tato, que eu deveria conhecer essa ou aquela moça. Tenho sido caçado por mulheres durante a maior parte de minha vida, desde que me tornei herdeiro de Regis, por minha posição ou pelo potencial que tinha. o que me deixou com uma péssima opinião sobre as mulheres, porque nunca sei se estou sendo procurado pelo que sou ou pelo que represento. Afinal, se alguma coisa acontecesse com Gabe e Rafael, eu também herdaria o Domínio de Alton. Mas agora que você está aqui, tudo mudou.

- Você quer o Domínio? Mikhail deu de ombros.

- Sei que é difícil para você compreender, porque nossos costumes são extremamente complexos... até mesmo para mim, que conheço essas histórias desde que comecei a andar. Regis prometeu que legaria sua regência para um dos filhos de Javanne. Fui escolhido em detrimento dos meus irmãos mais velhos. Tio Regis instruiu-me na arte do estadista e em muito mais.

- Como assim?

- Regis obteve a regência quase que por acaso. Aconteceram muitas coisas que ninguém previa. Quando a poeira assentou, ele era tudo o que restava. Não estava preparado para exercer o cargo, e não quis que isso também acontecesse comigo. Meu pai não ficou nem um pouco satisfeito, pois Regis me fez aprender muita coisa que não era darkoviana. Li muito da história e filosofia terráquea, porque Regis achava que era importante. Na opinião de meu pai, não passava de besteira.

- Mas nada adiantou.

Mikhail balançou a cabeça, deslocando o peso do corpo de um pé para o outro.

- Regis conheceu Linnea. Casaram e tiveram filhos. Em termos técnicos, ainda sou o herdeiro, porque tio Regis não indicou oficialmente seu filho mais velho, Danilo, até agora. Seja como for, o fato puro e simples é que fui preparado para reinar, mas não tenho um reino. E minha vida é uma chatice. Há um grande poder em potencial nas minhas mãos, o que deixa as pessoas... não apenas meu pai... bastante apreensivas.

- Mas por que Regis Hastur ainda não acertou a situação... designando seu filho para herdeiro? Parece que há um certo relaxamento.

Mikhail soltou uma risada.

- É uma boa palavra para descrever o problema. Não sei por que Regis ainda não designou Dani para seu herdeiro. Não me consultou a respeito, e seria impolido de minha parte perguntar. Meu tio não é um homem que tome decisões rápidas. Mas se alguma coisa acontecesse com ele, eu me tornaria o regente; e se alguma coisa acontecesse com meu pai e irmãos, eu poderia reclamar o Domínio de Alton. Isto é, antes de você aparecer. É uma questão de equilíbrio de poder, Marguerida. Não quero a regência, e nunca pensei no Domínio de Alton, porque sempre foi uma possibilidade remota. Mas ninguém acredita nisso, especialmente meu pai. Todos imaginam que estou ansioso por subir ao trono ou tomar posse do Domínio. Ninguém tem a menor idéia do que realmente desejo.

Margaret gostava de sua franqueza e senso de humor, da maneira como ele guardava seus pensamentos para si mesmo, a não ser quando alguma coisa vazava. E podia sentir sua paixão por Darkover. Era um homem disciplinado e admirável, concluiu ela, completamente diferente de todos os outros que conhecera antes.

- E qual é o seu sonho?

- Viajar para as estrelas e conhecer outros lugares. Regis prometeu que me ajudaria, depois que o jovem Danilo se tornasse seu herdeiro oficial. Ele compreendia, porque sempre desejou também voar para as estrelas, mas nunca pôde. Não quero ficar aqui e casar com uma boa moça, ser pai de um bando de crianças... embora saiba que é esse o meu dever. Faz com que eu me sinta...

- Um animal reprodutor?

Mikhail corou. Margaret compreendeu que acertara em cheio.

- Isso resume muito bem a situação. Li alguns livros terráqueos, conheço histórias românticas. o problema é que não há romance em Darkover, pelo menos entre as famílias dos Domínios. Não casamos por amor. Muitas vezes nem conhecemos nossos cônjuges até o dia do casamento. Houve algumas exceções, é claro, mas tornam tudo pior, porque tendem a confundir o problema. Seu pai e Marjorie Scott, por exemplo, são apresentados como um mau exemplo do que acontece quando as pessoas deixam de cumprir seu dever.

- Foi um casamento romântico? Não sei nada a respeito. Meu pai nunca fala sobre ela, muito menos minha madrasta.

- Não sei direito o que aconteceu, mas parece que foi bastante dramático. o costume habitual, até minha geração, foi o de os pais arrumarem um bom casamento, e ponto final. A mãe casou com o pai quando tinha quinze anos... e só o tinha visto duas vezes antes do casamento! Ela não fez nenhum protesto. Às vezes o amor acontece... sei que Jeff realmente amava Elorie, sua esposa. Ela morreu e nenhuma de suas crianças sobreviveu. Toda a idéia do amor romântico é considerada aqui como... uma coisa esquisita. As crianças são o que mais importam.

- Tudo isso me parece muito impessoal. Não que eu seja fascinada por romance... li alguns livros românticos e achei-os um tanto tolos. E Darkover não é tão diferente assim de vários outros mundos, porque os casamentos arrumados são comuns em muitos lugares. Mas não pelas crianças, eu acho. Pelo poder e propriedade.

- Isso também. Os Domínios controlam Darkover há gerações, e não vêem qualquer motivo para mudar.

Margaret permaneceu em silêncio por um momento.

- Será que eu gostaria de seus irmãos?

- Gabe é uma cópia do velho, firme e decidido, seguro de si. - Mikhail fez uma careta. - Tentamos evitar um ao outro.

- E Rafael?

- Ele adora caçar e se dedica à criação de cavalos.

- Tenho a impressão de que nenhum dos dois seria conveniente para mim.

- Não está pensando a sério...

- Que importância isso tem para você?

Mikhail pensou sobre a pergunta, com uma expressão um pouco perturbada.

- Eu não gostaria que você fosse infeliz. Parece com... hum... é diferente de todas as pessoas que já conheci. É inteligente, e não esconde isso. É instruída e conhece "romances russos", laços de parentesco e lugares de que nunca ouvi falar antes. Acho que casar com Gabe ou Rafael seria terrível para você. Gabe não suportaria ter uma mulher mais inteligente do que ele, e Rafael não é muito de conversar.

E você é muito independente, muito parecida comigo. Por que não podia ser feia e estúpida? Tornaria tudo muito mais fácil!

Margaret sentiu um ímpeto malicioso dominá-la.

- Então por que não você?

Antes que ele pudesse pensar numa resposta, os dois ficaram tensos, como se houvesse uma presença estranha na biblioteca. Margaret pôde sentir alguma coisa se agitando. Depois de um momento, concluiu que não se encontrava na sala, mas em algum local próximo do castelo. As paredes impediam que ouvisse vozes, mas ela sabia que estava ocorrendo uma discussão. .. e das mais veementes.

- Droga!

- O que foi? - perguntou Margaret.

Acho que o velho e a leronis estão brigando aos gritos. Por que será? O velho idiota! Por que se meter numa briga com Istvana?

- Desconfio que sou a causa, Mikhail. - Ela deixou escapar um suspiro profundo. - Seu pai quer que eu vá para Armida, e Istvana insiste que devo fazer um treinamento na Torre... e ninguém se importa com o que eu quero!

- E o que você quer, parenta?

Margaret podia senti-lo se distanciar, o que a deixou mais sozinha do que jamais se sentira antes.

- Com toda a sinceridade, não sei mais. As coisas estão muito confusas. Parte de mim quer partir imediatamente, mas outra parte quer permanecer em Darkover. Não tenho nenhuma habilidade para viver aqui. O que eu poderia fazer... virar fazendeira ou estalajadeira? Ninguém em Darkover precisa de uma estudiosa de música, não é mesmo? Também não quero casar, o que parece ser a principal ocupação das mulheres aqui... a menos que se tornem Renunciantes.

- Pode experimentar a cultura de cogumelos - sugeriu Mikhail, com um brilho nos olhos azuis que Margaret percebeu no mesmo instante. -Não creio que haja necessidade de qualquer habilidade especial.

- É uma idéia.

Margaret fez uma pausa, para depois acrescentar, ansiosa por entrar no espírito de humor, a fim de evitar uma conversa sobre assuntos mais sérios:

- E excelente, diga-se de passagem! Mas não tenho qualquer habilidade com plantas. Confesso que nunca pensei em cogumelos antes... de onde vêm e de que maneira crescem. Limito-me a comê-los, sempre que tenho a oportunidade. Para ser franca, sou até gulosa em matéria de cogumelos. Mas sempre pensei que cresciam... ora, cresciam como os cogumelos devem crescer.

Ela falava sem parar porque não queria que Mikhail interrompesse a conversa. Estava ansiosa para retornar ao clima de camaradagem anterior.

Ele ficara perturbado com a discussão distante, mas também se retraíra um pouco.

- Há várias fazendas de cogumelos nas Kilghards. Eu poderia provavelmente conseguir para você uma que tenha sido abandonada. Acho que é muito simples... você encontra uma árvore morta e colhe os cogumelos que encontra ali. Nunca soube de alguém que os plantasse. Portanto, devem crescer naturalmente. Você espera que fiquem maduros... ou o que acontece com os cogumelos... e faz a colheita. Ponto final. Não há mato crescendo para ser arrancado, não há passarinhos para espantar.

Havia um tom incisivo e sarcástico na voz de Mikhail, como se ele lutasse consigo mesmo por algum motivo. Margaret sentiu-se quase tentada a usar o seu recém-encontrado laran para descobrir o que era, mas resistiu. Especulou como os darkovianos conseguiam se manter fora das mentes uns dos outros. Devia se lembrar de perguntar a Istvana.

- E também não precisa correr para o estábulo no meio da noite para ajudar uma égua a parir.

- Exatamente! Vai precisar de uma faca afiada, alguns cestos e... Os dois desataram a rir tanto que se formaram lágrimas em seus olhos.

A porta da biblioteca foi aberta nesse instante. Gabriel Lanart-Hastur e Istvana Ridenow entraram, ambos com o rosto vermelho. Olharam para os dois. Margaret teve a sensação de que fora surpreendida em alguma travessura. Mikhail ficou vermelho até as raízes dos cabelos dourados. Trocaram um rápido olhar, o que foi um erro, pois quase que voltaram a cair na gargalhada.

- O que está fazendo aqui? - perguntou Gabriel, ríspido, ao filho mais jovem.

- Contava para minha parenta as maravilhas de Armida - respondeu Mikhail, a voz ríspida, o humor desaparecido.

- Isso não é da sua conta! Eu direi tudo o que ela precisa saber! E agora saia daqui!

Mikhail empertigou-se com essa rude dispensa. Lançou para o pai um olhar em que não havia a menor afeição, e depois deixou a biblioteca. Não vou discutir com ele! Mesmo que isso me mate!

Margaret ouviu o pensamento e sentiu a raiva fervilhando por trás. Queria tomar uma iniciativa, pular em defesa de Mikhail, dizer ao velho tirano que fizesse uma coisa que seria impossível em termos anatômicos. A força de sua emoção a surpreendeu. Era quase como se ela e Mikhail fossem aliados. Era mais do que mera simpatia, refletiu Margaret, sentindo um frio interior se avolumar, em reação a um senso de afinidade que nada tinha a ver com sangue. A intensidade do anseio em defender Mikhail conflitava com a atitude habitual de se manter sempre apartada. Nenhum dos dois impulsos prevaleceu. Ela mordeu o lábio, fitou o tio com uma expressão furiosa. Ficou sentada em silêncio, as mãos cruzadas no colo, até que Gabriel começou a se remexer, em nervosismo.

- Quero que vá comigo para Armida, Marguerida, o mais depressa possível.

Ele iniciou com uma voz calma, que logo se transformou num urro autoritário.

- Acho que seria uma péssima idéia - protestou Istvana. - Você precisa muito ir para a Torre, a fim de aprender a usar alguns de seus talentos. É verdade que removemos a maior parte da obstrução para seu Dom, mas sem treinamento você ainda é tão impotente quanto uma recém-nascida. E perigosa ainda por cima. Já lhe expliquei isso. Pensei que havia compreendido. Mas agora Dom Alton diz que você vai partir imediatamente para Armida e...

Margaret olhou de um para o outro. Gostava da leronis; e mais do que isso, depois dos dias e noites juntos, confiava nela. Sentia-se quase segura na presença de Istvana, tão segura quanto se sentia com Dio. Não gostava nem um pouco de Gabriel Lanart-Alton, embora achasse possível que ele tivesse algumas virtudes escondidas dentro do vasto peito. Estava propensa a concordar com a sugestão de Istvana, mas apenas para contrariar seu arrogante parente. Ao mesmo tempo, sabia que tal decisão seria uma tremenda estupidez, porque um conhecimento interior lhe dizia que seu caminho não passava por Neskaya. Se ao menos tivesse uma pessoa imparcial para conversar... se Ivor ainda estivesse vivo! Qual seria a conclusão de seu amado mentor?

Ela pensou em discutir o problema com Rafaella. Confiava na Renunciante agora, além de apreciar sua companhia. Intuitivamente, sabia que Rafaella a acompanharia até o fim do mundo. Mas Margaret também sabia que sua amiga era jovem e voluntariosa. Quase tão voluntariosa quanto eu, pensou ela, irônica.

- Marguerida não precisa ir para a Torre de Neskaya - declarou Gabriel à leronis, mais uma vez indignado porque sua vontade era contrariada.

- Minha filha Liriel e meu parente Lorde Damon Ridenow podem cuidar dela. Marguerida já passou pela doença do limiar, e não vejo motivo para mimá-la como se fosse...

- Tenho o maior respeito por nosso parente - interrompeu Istvana, enfatizando o seu próprio relacionamento com Lorde Damon, - mas ele sozinho não é um círculo de Torre completo. Nem com Liriel, apesar de ser uma excelente técnica.

Istvana fez uma pausa, depois acrescentou:

- Você não pode imaginar o que Marguerida passou. Também não sabe de que tipo de cuidados e treinamento ela precisa. - Istvana lançou um olhar maternal e sorridente para Margaret. - Tenho certeza de que até você pode compreender que faz sentido a sua ida para Neskaya, Lorde Lanart.

Margaret compreendeu o insulto velado. Ao usar um título menor, não Dom Alton, Istvana sutilmente punha o homem em seu lugar. Insinuava que Gabriel não tinha sequer o bom senso para sair da chuva. Ele ficou furioso.

- O lugar de Marguerida é com sua família! Ela tem de aprender nossos costumes e cumprir seu dever como uma Alton!

- Os dois se mostram tão ocupados a planejar meu futuro que parecem nem se importar com o que eu quero. - A voz de Margaret era suave. Eles fitaram-na espantados, como se ela tivesse de repente criado uma segunda cabeça. - A impressão é que nunca lhes ocorreu que tenho minha própria vida, meus planos e ambições, que podem não incluir nem Armida nem Neskaya.

- Não me venha outra vez com esse absurdo de deixar Darkover! Não vou permitir! Seu lugar é aqui, e você vai ficar aqui!

Mandarei meus homens prendê-la, se for necessário! Não quero que ela parta com essa bruxa - o laran é uma maldição! - e não ouso deixá-la aqui!

Margaret compreendeu que seu parente fazia o que acreditava ser o melhor, que ele não podia entender por que ela resistia. Gabriel não era um idiota, apenas um homem determinado a impor sua vontade, com base em sua noção do certo e errado. Com um pequeno choque, Margaret chegou à conclusão de que ele tinha boas intenções, que queria fazer o melhor que pudesse. Uma ligeira e relutante admiração pelo homem começou a se formar, pois ela sabia que não era fácil para ele se opor à vontade de Istvana.

A leronis, por outro lado, estava preocupada com a possibilidade de Margaret criar problemas, agora que fora removido o bloqueio a seu potencial, em decorrência de sua vasta ignorância. o pobre Gabriel acreditava sinceramente que ela pertencia a Armida, casada com um dos seus filhos, gerando tantas crianças quanto pudesse. Ele não conhecia qualquer outro modo para uma mulher viver. Margaret podia sentir que Gabriel considerava anormal qualquer outra opção que não fosse o casamento e a maternidade.

O que ela queria, então? Mikhail lhe perguntara isso. Era uma pergunta de extrema importância. Não tinha quase noção do que podia ser a vida numa Torre, mas não parecia nem um pouco atraente. Sabia que envolvia o uso de matrizes, e descobria que o simples fato de pensar nelas já a deixava angustiada.

As Renunciantes eram uma alternativa. Mas ela sabia que não era nenhuma Magda Lorne, que a vida restrita de uma Amazona Livre não era o caminho que gostaria de seguir. Quanto a casamento e filhos, nunca pensara realmente a respeito até agora, mas achava que não lhe convinham. Com o homem certo, podia ser maravilhoso, mas jamais conhecera alguém que parecesse o parceiro ideal. Gostaria de alguém culto como Ivor, forte como o pai, mas que também soubesse rir com freqüência. Poderoso e divertido pareciam ser uma combinação impossível. Já viajara muito, e tinha certeza de que nunca poderia ser completamente feliz em Darkover.

Marja!

Seu apelido parecia ressoar em sua mente. Por um momento, achou que Gabriel ou Istvana havia pensado no nome. Mas depois refletiu que nenhum dos dois a trataria assim; era íntimo demais para dois quase estranhos, apesar do parentesco. Dio a chamava assim, como também o Senador de vez em quando. Mas não fora uma voz de mulher que ouvira.

Pela primeira vez em muitos anos, ao que podia se lembrar, Margaret desejou a presença do pai. Descobriu-se a pensar numa ocasião, quando era muito pequena, em que sentara no seu colo, encostara a cabeça em seu peito, e escutara as batidas firmes de seu coração, com absoluta confiança. Lew Alton tinha um certo cheiro que era confortador.

Havia um vazio interior que ela ansiava em preencher, não com o homem que conhecera em Thetis, mas com o outro Lew Alton, o que existira quando ela era criança. Sabia que nunca mais poderia ser uma menininha, aconchegando-se nos braços do pai, mas isso não significava que não gostaria. E Margaret desejou que ele estivesse ao seu lado, não a anos-luz de distância. Embora não tivesse experiência direta de sua força e sabedoria, tinha certeza de que o pai poderia lhe indicar o que fazer.

O tempo pareceu parar por um instante. Ela esqueceu a presença na biblioteca de Gabriel e da leronis. Recordou um episódio que ocorrera durante a doença. Tivera a sensação de que Lew se encontrava no quarto, conversando com ela. Pensara que fora um sonho induzido pela febre, mas agora não tinha certeza. Talvez o pai não estivesse no outro lado da galáxia.

Margaret recordou a surpresa que mais de uma pessoa experimentara ao saber que Lew não se encontrava em Darkover, como era esperado. Havia coisas acontecendo que ela ignorava. E o senso da presença do pai era muito forte. Ela não precisava de laran para senti-lo. Quase que podia farejar o pai!

Marja! Vá para Armida! Tudo vai dar certo, chiya! Finalmente, tudo vai dar certo!

O efeito dessas palavras foi quase opressivo, pois foram acompanhadas por tamanho fluxo de sentimentos, de anseio e afeição, que Margaret até pensou que seu coração ia se partir. Não acreditava que os pensamentos do Senador viessem de muito longe. A lógica, sua fiel servidora, sugeria que ele estava em Darkover. Mas, com toda a certeza, Gabriel e Istvana saberiam se ele estivesse.

Não importava. Ela tinha certeza de que era de Lew Alton a voz que ouvira. Pedira por orientação, e ele dera, como um pai devia fazer com uma filha, por mais teimosa e insubmissa que ela fosse. Por um instante, Margaret ressentiu-se por lhe ser dito de novo o que fazer... o fato de que outra pessoa decidia o que era melhor. o pai quisera que ela saísse de casa quando crescia para se tornar uma mulher. Agora, queria que ela fosse para Armida. Mas, de alguma forma, tudo parecia fazer sentido. Margaret não tinha palavras para descrever a certeza que sentia naquele momento.

Gabriel Lanart preparava-se para outra de suas tiradas autoritárias, enquanto Istvana fazia um esforço para conter sua profunda irritação. Antes que ele pudesse falar, Margaret acenou com a cabeça.

- Irei para Armida. Tenho certeza de que Rafaella poderá me escoltar até lá.

- Não diga bobagem. Vai me acompanhar.

- Irei quando eu quiser, tio.

- Mas... ora, está bem!

Gabriel parecia disposto a tirar o melhor proveito. Ela ficou satisfeita ao constatar que ele não tripudiava por sua vitória.

- Fico feliz por você ter demonstrado pelo menos o bom senso de fazer o que mandam - acrescentou ele. - Ainda bem que desistiu de falar que vai deixar Darkover, ir para uma Torre ou qualquer outra idéia tola que pudesse acalentar.

O corpo vigoroso relaxou. Pela primeira vez, Margaret percebeu a semelhança com Mikhail. Gabriel devia ter sido muito bonito quando era jovem.

- Cuidaremos para que esteja assentada antes do Solstício do Inverno. Margaret sorriu.

- Não estou fazendo isso porque me mandou, Dom Gabriel, e duvido muito que me veja assentada, no Solstício do Inverno ou em qualquer outra ocasião. Não tem nenhuma autoridade sobre mim. Espero que tire da cabeça a idéia de que tem.

- Tiraremos de você todas essas idéias de Terranan, e passará a fazer tudo o que mandarem.

- Por favor, não faça com que eu me arrependa da minha decisão - respondeu Margaret, com mais suavidade do que sentia, cansada demais para continuar a discutir. - Farei o que eu quiser, não importa o que você possa pensar.

Gabriel Lanart se entregou a um acesso de raiva silencioso por um momento, depois tornou a sair furioso da biblioteca. Istvana olhou para Margaret.

- Tome muito cuidado. Gabriel pode parecer um velho tolo e pomposo, mas é astuto e poderoso, Marguerida.

- Sei disso. Acontece que o comportamento dele me irrita. Não estou acostumada a ser mansa e submissa, a fazer o que me mandam, como ele espera.

Istvana soltou uma risada.

- Dom Gabriel é da velha guarda. Recusa-se a admitir que Darkover mudou bastante desde que seu pai foi embora. Também não me sinto muito feliz com as mudanças, mas sei que são inevitáveis, por mais que desejemos o contrário. E pode ter certeza de que muitas vezes eu desejo o contrário.

- Por quê?

- Metade dos jovens que iniciam o treinamento nas Torres tem uma porção de idéias sobre deixar Darkover, enquanto os outros esperam por um retorno ao passado. É uma situação muito difícil para todos nós.

- Posso entender. Acha que fiz a opção certa? Istvana hesitou.

- Também o ouvi. Desconfio que muitas leroni em Darkover também o ouviram. - Ela esfregou a testa, como se quisesse aliviar uma dor súbita. - Estou preocupada, mas acho que você vai fazer o que é certo. Confio que Jeff dará um jeito para que nada de mal lhe aconteça. Pode confiar nele.

- Obrigada por tudo.

- Fiz o melhor de que era capaz, meu dever, mas confesso que gostei. Quando eu for uma velha, já senil, pode ter certeza de que vou aborrecer os jovens contando a história de Marguerida Alton e a Torre dos Espelhos. -Istvana estremeceu. - E precisarei de todo o tempo até a senilidade para me recuperar da experiência!

Depois ela riu, parecendo anos mais jovem, e arrematou:

- Eu lhe desejo tudo de bom, chiya. Você merece.

 

 

16

Margaret concluiu que sentar para jantar com Dom Gabriel Alton e Istvana Ridenow lançando olhares furiosos um para o outro não seria bom para sua digestão. Alegou cansaço e retirou-se para seu quarto, para onde um servo levou uma bandeja. A luva de couro dificultava o ato de comer, e por isso ela tirou-a. Não podia ouvir as vozes no andar inferior, mas podia sentir duas energias conflitantes. Ficou contente por ter optado pela solidão em vez da companhia. Além do mais, tinha muito em que pensar.

Seus primeiros pensamentos foram para Mikhail. Censurou-se por ter bancado a idiota. Parecia que não era capaz de se controlar. O homem conseguia passar por suas defesas. Era ao mesmo tempo charmoso e inteligente. Era mais do que evidente que ele tinha alguns dos mesmos sentimentos, mas havia algum motivo pelo qual não podia segui-los.

O que ele dissera? Um comentário sobre manter intacto o equilíbrio do poder? Mas era isso mesmo! Se ela era a herdeira do Domínio de Alton, e ele ainda estivesse na fila para tomar o lugar de Regis, então os dois juntos teriam uma posição excepcional. Por um momento, Margaret entregou-se à fantasia de governar Darkover, criando escolas, hospitais e outros aspectos da civilização terráquea. O único problema é que ela não queria esse tipo de vida... e sabia disso.

O que aconteceria se simplesmente renunciasse a seu direito? Agradaria a Dom Gabriel. E também a Lady Javanne, pela impressão da mulher que obtivera através da mente de Mikhail. No final das contas, sabia muito pouco sobre Darkover, e não tinha condições de comandar um Domínio, apesar do que todos presumiam. É verdade que o Velho seria diferente, e naquele instante ela se achava mais interessada em agradá-lo do que àqueles estranhos. Não tinha informações suficientes; e como pesquisadora, conhecia o perigo de teorizar sem os dados necessários. Além do mais, só porque Mikhail gostava dela não era motivo para acreditar que queria casar com ela, não é mesmo?

Alguma outra coisa assediava sua mente. Era algo que Mikhail dissera... não, um pensamento solto. Margaret tinha a maior dificuldade para distinguir o que ouvira com os ouvidos e o que ouvira na mente. Algo sobre segui-la a toda parte. O que ele queria dizer com isso?

E depois ela se lembrou dos momentos finais no mundo superior, quando lutara com a pedra cujas linhas agora marcavam sua mão. Havia alguém ali, alguém que não era Istvana nem Ashara... um homem. Poderia ter sido Mikhail? Ela teve vontade de perguntar, mas para isso teria de descer e participar do jantar, em vez de permanecer em seu quarto. Não parecia muito provável, porém... por que ele a ajudaria, e como entrara no mundo superior? Era tudo muito confuso, e não tão importante assim, não é mesmo?

Relutante, ela se obrigou a parar de pensar em Mikhail. Era um homem muito simpático, mas devia ter péssimos hábitos, que ela acharia insuportáveis quando o conhecesse melhor. Então por que sentia aquela estranha ânsia no peito? Pare com isso!

Margaret tratou de se concentrar na mensagem mental que recebera do pai, ainda um pouco cautelosa. Por que Lew queria que ela fosse para Armida? Havia urgência nas palavras, e por trás alguma tensão, um estresse que a perturbava. Outra vez, não tinha informações suficientes. Começava a se sentir frustrada com sua própria ignorância, e pela maneira como as pessoas se esquivavam a dar respostas diretas às suas perguntas.

Queria saber mais sobre os Dons, o seu e o dos outros. Istvana fora irritantemente indireta e vaga no assunto, limitando-se a explicar a natureza do Dom de Alton. Mesmo assim, ela não dera muitas informações úteis, como Margaret podia compreender agora. Estivera muito doente para perceber que suas perguntas só eram parcialmente respondidas, ou adiadas para outra ocasião. Istvana insistira em dizer que Margaret saberia mais quando fosse para a Torre.

Sabia que o Dom de Alton era o contato forçado, mas isso não passava de palavras. o que realmente significava? Margaret sabia agora que o Dom de Ardais era da telepatia catalisadora... isso se tornara evidente em algum momento. Era a capacidade de fazer com que outra pessoa despertasse para o seu potencial telepático. Mas o jovem Dyan Ardais não o tinha, até onde ela podia saber, e Lady Marilla era uma Aillard, não uma Ardais. Margaret ignorava os Dons que sua anfitriã possuía, exceto que ela sabia monitorar. Parecia ser uma coisa que as pessoas treinadas nas Torres aprendiam. Mas Istvana explicara que seus sentimentos de apreensão na presença de Danilo Syrtis-Ardais estavam provavelmente relacionados com sua capacidade de catalisar talentos ainda não despertos. Ela dissera que Danilo era o mais poderoso telepata catalisador vivo em Darkover.

E o Dom de Ridenow era a empatia, que ela vira bem demonstrada durante sua recuperação, sob o olhar vigilante da leronis. Compreendia um pouco melhor agora por que era tão difícil para ela e Dio permanecerem juntas por qualquer período mais prolongado. Devia ser extenuante para Dio conviver com uma jovem revoltada, com um bloqueio mental que a tornava fria e hostil.

Amanhã ela tornaria a interrogar Istvana sobre os Dons. Com essa decisão, Margaret sentiu-se melhor, terminou de jantar e bocejou. E amanhã encontraria Mikhail para conversarem de novo!

Os planos meticulosos de Margaret não se concretizaram. Primeiro, ela dormiu até tarde, cansada do dia anterior. Quando finalmente acordou, tomou um banho, vestiu-se e desceu, encontrou o vestíbulo do castelo cheio de bagagem e atividade. Tanto Istvana quanto Gabriel preparavam-se para partir. A leronis adiantou-se para falar com ela, com um sorriso gentil.

- Devo voltar para Neskaya e meus deveres ali, chiya, mas estou contente por você ter despertado antes da minha partida.

- Quer dizer que iria embora sem se despedir?

Margaret ficou atordoada, mais do que um pouco magoada. Istvana deu de ombros.

- Já dissemos tudo o que era necessário dizer, por enquanto. Havia um ligeiro tremor em sua voz, como se ela não se sentisse muito satisfeita em partir. Como se eu pudesse usar minha influência sobre ela! Dom Gabriel não passa de um velho tolo, desconfiado e pomposo. Mas ele a teria levado à força, se eu não concordasse em partir também. Sei como ele é, um homem que não respeita opiniões além da sua. Terei de contar com Mari para cuidar bem dela, e rezar para que não haja problemas adicionais.

Isso explicava algumas coisas. Margaret lançou um olhar furioso para as costas largas de Dom Gabriel. Sentia-se abandonada por Istvana, desapontada ao constatar que a mulher carecia da força necessária para resistir a seu tio. Mas, de certa forma, podia compreender. E ainda contava com Rafaella, Mikhail e até o jovem Dyan, se assim quisesse. Portanto, não ficaria totalmente sozinha. Então por que tinha vontade de chorar?

- Mas ainda tenho muitas perguntas! - protestou Margaret.

- Terão de esperar, chiya.

Istvana virou-se e deixou a mente vazia. Margaret teve de tomar a decisão consciente de não se enfurecer. Estava sendo descartada, como acontecera quando fora deixada no orfanato. Era apenas um instrumento, um peão nas manobras dos outros, não uma pessoa de qualquer importância, por mais Domínios de que pudesse ser herdeira. Era tudo "venha para cá, vá para lá, faça isso, faça aquilo". Seria uma boa lição para todos se ela voltasse para Thendara e embarcasse na primeira espaçonave indo para qualquer lugar.

Furiosa e frustrada, ela virou-se para voltar a seu quarto. Antes que pudesse escapar, Dom Gabriel interpôs-se em seu caminho. Fitou-a, seus olhos azuis se encontrando com os dourados de Margaret.

- Está com uma aparência muito melhor hoje, Marguerida. Talvez seja melhor eu adiar minha volta para Armida e escoltá-la pessoalmente amanhã.

- Duvido que eu venha a ter condições para viajar amanhã, Dom Gabriel. Ainda me canso com muita facilidade.

- Mas tenho certeza de que se você quiser...

Volte logo para Armida, seu velho intrometido! Não quero que me escolte! Basta me deixar em paz! Margaret passou por ele, recusando-se a notar sua expressão chocada. Subiu a escada, batendo com os pés nos degraus. Havia um gosto de ferro em sua boca, tanta era a raiva que sentia. Perdurou por todo o percurso até o alto da escada. Lá em cima, ela virou-se e olhou para baixo.

Gabriel e Istvana observavam-na, os rostos pálidos. Margaret odiou-os naquele instante. Não, não voltaria para Thendara. Em vez disso, iria para Armida, despejaria Gabriel e Javanne... era uma pena que estivessem no verão e não no inverno, pois ela gostaria que a neve caísse quando isso acontecesse. Mas Mikhail não a perdoaria... e ela sabia, no fundo de seu coração, que jamais tomaria uma atitude tão precipitada. Bem que gostaria, até ansiava por isso. Estava realmente cansada de ser pressionada.

Naquela tarde, depois que se recuperou um pouco do ressentimento, Margaret tornou a descer, à procura de Mikhail. Verificou no salão de jantar vazio, na biblioteca, em várias salas cuja utilidade ignorava. Parou na porta da sala de visitas, onde mais de uma semana antes saíra de seu corpo para subir ao mundo superior, a fim de travar uma batalha com uma Guardiã há muito morta. Pensar em Ashara ainda lhe provocava calafrios. Ela sentiu que a sala estava ocupada. Por isso, bateu na porta. Uma voz suave disse:

- Entre.

Lady Marilla estava inclinada sobre uma armação de bordado. Sorriu quando a viu.

- E uma agradável interrupção, Marguerida. Entre, entre...

- Estou à procura de Mikhail. Quero conversar mais sobre Armida.

Não era toda a verdade, mas servia.

- Ele partiu.

- Partiu? Para onde?

- Não tenho a menor idéia. Foi embora de repente, antes do jantar de ontem. Creio que queria evitar novas confrontações com o pai. - Marilla suspirou e largou a agulha. - Os dois não conseguem ficar na mesma sala por mais de cinco minutos sem começarem a brigar. Por isso, fiquei bastante aliviada, para ser sincera. o jantar se torna muito mais digestível sem uma briga, não concorda?

- Ele simplesmente partiu? Não disse para onde ia, ou quando poderia voltar?

Margaret tentou resistir ao sentimento de perda, pelo abandono tão recente da partida de Istvana, e da raiva que sempre aflorava quando alguém ia embora.

- Ele pode ter informado a Dyan sobre seu destino, mas meu filho foi visitar algumas de nossas fazendas. Estamos com um problema de felinos atacando o gado.

- No verão? - Margaret não pôde conter a incredulidade em sua voz. - Pensei que os felinos só atacavam o gado no inverno, quando a caça se torna escassa.

Onde fora mesmo que ela adquirira essa informação? Ah, sim, com Rafaella. Quase que tinha medo de perguntar onde estava a Renunciante, pois ela podia ter partido também, sem se despedir. Mas podia sentir sua companheira em algum lugar nas proximidades... no estábulo, conversando com os cavalos. O que era mais tranqüilizador do que ela julgaria ser possível. Lady Marilla deu de ombros, como se soubesse que fora apanhada numa mentira leve, mas não se importasse.

- Teremos de nos contentar com a companhia uma da outra, chiya. Sente. Esteve tão doente desde que chegou que mal tive a oportunidade de conhecê-la melhor.

- Eu gostaria que todos parassem de partir correndo pela manhã - resmungou Margaret, com mais veemência do que tencionava.

Ela sentou num pequeno sofá, não na poltrona em que enfrentara Ashara. Não havia poder no mundo que pudesse obrigá-la a sentar ali de novo.

- Já lhe agradeci por sua hospitalidade? - indagou ela, no esforço de se corrigir pelo mau humor.

- Várias vezes, Marguerida. Você é muito cautelosa. Sabia que encara tudo com desconfiança, como se pudesse mordê-la?

- Não, não sabia, mas acho que tenho bons motivos para isso. Sempre pensei que a vigilância fosse uma boa característica de sobrevivência. E houve algumas ocasiões em que veio a calhar. Como aconteceu em Relegan. Houve uma guerra intertribal; se eu não estivesse vigilante, teríamos entrado no meio. Ivor e eu não viveríamos para contar a história.

- E muito difícil para mim imaginar como seu pai permitiu que viajasse em circunstâncias tão perigosas, Marguerida. Se fosse um homem, tudo bem, mas uma filha precisa ser protegida, resguardada de qualquer mal.

Ela cortou uma linha com os dentes pequenos e começou a enfiá-la na agulha.

- Ninguém pensa que uma musicóloga pode correr algum perigo. Parece uma ocupação muito segura... e é mesmo, a menos que você faça trabalho de campo. Mas é o que sempre gostei, e meu pai nunca pensou em interferir.

E se ele tentasse, eu não permitiria!.

- Assim que estiver assentada em Darkover, ficará segura. Margaret queria argumentar, mas decidiu não fazê-lo.

- Pode responder a algumas das minhas perguntas... as que Istvana deixou de lado?

No mesmo instante, Lady Marilla mostrou-se cautelosa e apreensiva.

- Talvez.

- Sei um pouco sobre os Dons... sobre os de Alton, Ardais e Ridenow. Ah, sim, os Aldarans podem prever o futuro, não é mesmo? Mas eu gostaria de saber mais. Há algum livro que eu poderia ler?

- Há alguns textos escritos, mas são guardados nas Torres. Não é o tipo de coisa que se pode deixar ao acesso de qualquer pessoa, entende?

- Não, não entendo.

- Se a verdadeira extensão dos nossos poderes fosse conhecida pelos Terranan...

- Eles iam querer explorá-los. Entendo isso. Qual é a natureza do Dom de Hastur?

- Quando plenamente realizado, um Hastur pode trabalhar sem matriz, como se seu corpo fosse tudo de que precisa.

- Como... como esta coisa em minha mão?

- Não. Isso é inteiramente novo, além do nosso conhecimento. Nem Istvana nem eu sabemos o que pensar a respeito.

Lady Marilla tornava-se mais e mais agitada a cada segundo. Margaret captou seu desconforto. Sentiu pena da mulher mais velha. Devia ser terrível ter em casa uma hóspede com um poder desconhecido e destreinado. Margaret decidiu que queria mais informações do que se preocupava em perturbar sua anfitriã. Por isso, voltou ao assunto anterior.

- Há mais alguma coisa no Dom de Hastur? Marilla mostrou-se bastante aliviada.

- Em alguns casos, eles podem manipular mentes... embora isso seja antiético, é claro. É parecido com o Dom de Alton, sob alguns aspectos, mas muito diferente em outros. E como não possuo nenhum dos dois, não posso lhe dizer mais nada.

Margaret digeriu tudo o que ouvira até agora. Recordou seu senso de inquietação ao andar no jardim do Castelo do Comyn em companhia de Lorde Regis Hastur. Lembrou também como sentira que devia ser muito cuidadosa, pois ele tentava manipulá-la. Isso teria mesmo acontecido, ou apenas ela fora cautelosa demais? Suspirou baixinho e seguiu adiante.

- o que me diz dos Aldarans? Cada vez que os menciono, as pessoas reagem como se eu tivesse dito algo... sórdido.

- É uma boa palavra para descrever. Não merecem confiança, nenhum deles!

- Mas eles constituem um dos Domínios?

- Não são mais! Podem ficar sentados lá em cima e apodrecerem, por tudo o que nos importamos!

Mas o que estou dizendo? Por que Istvana foi embora e me deixou sozinha com esta mulher extraordinária? Ela, me assusta... e não gosto de me sentir assustada! Não sei o que dizer e o que não dizer a ela ! lsty tem razão... sou uma mulher volúvel, embora administre Ardais tão bem quanto qualquer homem!Mas pensar nos Aldarans sempre me deixa nervosa... e ela é uma Aldaran pelo lado da mãe!

Margaret tentou ignorar os pensamentos que ouvia, sabendo que deixara Lady Marilla perturbada, mesmo sem ter essa intenção. Gostava de sua anfitriã, que em geral se mostrava muito calma. Por trás de toda a agitação, Margaret teve a vaga impressão de um tremendo castelo, com picos nevados ao redor, homens e mulheres fortes, de cabelos vermelhos. o assunto era obviamente delicado, como tantos outros. Ela fez um esforço para não se sentir frustrada com a resposta indireta de Marilla, enquanto lamentava mais uma vez a ausência inexplicada de Mikhail. Desconfiava que ele responderia às suas perguntas muito melhor, com menos aflição.

Ela recostou-se na cadeira. Como exatamente relacionava-se com os Aldarans? E por que todos se mostravam hostis à mera menção do nome deles? Considerando o índice de casamentos entre os Domínios, ela devia ter um parentesco no mínimo distante com todos os sete, de alguma maneira.

- Não tive a intenção de afligi-la, Lady Marilla. Tente compreender que sou uma pesquisadora treinada, e que fazer perguntas é minha ocupação.

- Sei disso. E tenho certeza de que sua curiosidade continua insatisfeita. - Lady Marilla recuperava a calma, como se sentisse que o perigo passara. - Mas terá de esperar um pouco mais pelas respostas. Talvez, quando for para Armida, Lorde Damon lhe explique tudo.

E quanto mais cedo, melhor! Nunca me senti tão embaraçada com uma hóspede em toda a minha vida!

Mais dois dias passaram, cada um parecendo um pouco mais longo que o anterior. Margaret comia e dormia. Recuperou um pouco do peso que perdera. Fazia curtas caminhadas pelos jardins com Rafaella, visitava os cavalos no estábulo, foi à fábrica de porcelana com Lady Marilla. Ainda se cansava com facilidade, mas o sono era tranqüilo, e não teve qualquer recorrência da doença do limiar.

Na terceira noite o jovem Dyan voltou do lugar em que estivera. o jantar foi bastante festivo, como se ele tivesse se ausentado por um mês, não por três dias. Era evidente que Lady Marilla o mimava. Assim que a refeição terminou, a anfitriã perguntou se Margaret não gostaria de cantar. Como sua garganta não era mais uma massa em carne viva, ela concordou, contente por ter alguma coisa para retribuir a hospitalidade.

Enquanto seguiam para o grande salão, Margaret avaliou mentalmente as músicas de Darkover que conhecia. Escolheu uma balada que ouvira Jerana cantar; como escutara a gravação naquela tarde, ainda estava fresca em sua memória. Dyan pegou uma guitarra maravilhosa, que pertencera a seu avô, Kyril - Valentine Ardais. Margaret começou a afiná-la com a maior cautela, lembrando a ryll Mas o instrumento não era encantado, apenas uma boa guitarra, que precisava ser tocada. Rafaella foi pegar sua guitarra, e acompanhou Margaret muito bem. Quando instada a cantar também, a Renunciante não hesitou, apresentando-se com uma voz mezzo, destreinada mas firme. Depois foi a vez de Dyan, com uma canção maliciosa, para consternação da mãe. Ao final, Julian Monterey, o coridom, apresentou o que parecia ser um canto fúnebre, num basso profundo. Foi uma noite agradável, mas Margaret descobriu que sentia falta de Mikhail, pois tinha certeza de que ele também cantaria.

Na manhã seguinte ela anunciou que já tinha condições para viajar, que se sentia quase como era antes. Rafaella suspirou, aliviada.

- Já aceitamos a hospitalidade aqui por mais tempo do que seria razoável, Marguerida, embora Lady Marilla seja capaz de morder a língua para não admiti-lo.

- Há dias que deveríamos ter partido. Ela ficará contente em nos ver pelas costas, não é mesmo? E, para ser franca, embora me sinta contente por sua hospitalidade, acho que prefiro dormir sob as estrelas... ou até mesmo sob as nuvens... do que me deitar de novo naquele quarto. Acho que rosa é uma cor depressiva.

Rafaella foi cuidar da bagagem e dos cavalos, enquanto Margaret procurava Lady Marilla para comunicar sua decisão. Foi aceita com um alívio indisfarçado, e com o oferecimento de ajuda para arrumar tudo. Margaret agradeceu, mas disse que não havia muita coisa a providenciar. Depois, ela foi vestir seu traje de viagem, com mais satisfação do que imaginaria que fosse possível.

Ao descer a escada pela última vez, Margaret avistou Mikhail entrando no vestíbulo. Dava para perceber, mesmo à distância, que sua túnica estava suja e amarrotada. A impressão era a de que ele não dormia há vários dias. Ao alcançá-lo, ela sentiu o cheiro de cerveja exalando das roupas e pele. Torceu o nariz.

- O que andou fazendo?

- Como? Ah, sim, devo estar fedendo... Tinha de escapar, antes de fazer uma coisa imperdoável com o velho. Acabei perdendo a noção do tempo.

- Onde esteve?

Margaret tinha vontade de repreendê-lo, mas decidiu que não era da sua conta.

- Há uma estalagem a uma manha de viagem daqui. Fui para lá.

- Sobrou alguma cerveja para os freqüentadores habituais? Mikhail sorriu... e o coração de Margaret disparou.

- Não muita... nem vinho. Dyan me contou que o velho convenceu-a a ir para Armida.

Ele afastou da testa uma mecha de cabelos dourados, num gesto que seria casual se não estivesse tão agitado. Trocaram um olhar agressivo por um instante.

- Dom Gabriel não me convenceu a fazer nada- respondeu Margaret, ríspida. - Foi outra coisa que me levou a tomar essa decisão.

-Não faz diferença - murmurou Mikhail, consternado. - Você acabará fazendo o que meu pai quer. Ele sempre vence.

- Não diga bobagem. Ninguém vence sempre.

Margaret estava irritada com ele por fugir e se embriagar, pois isso a lembrava do comportamento do pai. Ao mesmo tempo, não suportava vê-lo tão desanimado.

- Você não o conhece tão bem quanto eu!

- Pelo que sou extremamente grata, Mikhail, pois não posso imaginar a possibilidade de ficarmos na mesma sala por mais de dez segundos sem brigarmos. Com o tempo, posso passar a respeitar seu pai, mas nunca gostarei dele.

Esse comentário pareceu animar Mikhail.

- Ele é insuportável, não acha?

- Acho que os pais são sempre insuportáveis, até mesmo os melhores.

- Devo adverti-la que, se ele não submetê-la à sua vontade, minha mãe o fará. Ela sempre consegue o que quer.

- Ainda pensa que eles vão querer me casar com um dos seus irmãos?

- Será a maior alegria na vida de minha mãe, depois de mimar as crianças de Ariel. Ela costuma dizer que é muito feliz no casamento com meu pai, embora não se possa acreditar quando eles começam a gritar um com o outro.

- Devo presumir que você costuma tentar beber toda a cerveja da cidade?

- Claro que não. Na verdade, sou abstêmio. Você pode não acreditar, mas é o primeiro porre que tomo em toda a minha vida.

- Fico aliviada em saber disso. Agora, antes de minha partida, pode me falar um pouco sobre sua mãe?

- Ela é uma força que não se pode ignorar. - Mikhail baixou os olhos para as botas sujas por um momento. - Se meu pai não for capaz de persuadi-la, ela vai conseguir, pois nunca permite que sua vontade seja frustrada. Ela sempre consegue o que quer. Por isso, é de espantar que só Ariel, entre todos os irmãos, seja a única casada e com filhos.

- Como são suas irmãs?

- Mal posso dizer, porque não mais as conheço direito. Ela casou Ariel assim que pôde. Quando Ari protestou que não podia casar com um homem que não conhecia, a mãe limitou-se a dizer "vai conhecê-lo em breve". Acho que ela realmente sabia o que estava fazendo, porque Ari é tão feliz com Piedro que até se pode pensar que foi ela mesma quem o escolheu.

Mikhail suspirou. Margaret podia sentir que ele gostava muito da irmã Ariel, apesar de sua alegação de não conhecê-la direito.

- Mas Ariel é um pouco nervosa e prefere que os outros tomem decisões por ela. Não tem mais que um resquício de laran, ainda menos do que Gabe, o que significa muito.

- E Liriel?

- Ah, Liri! Ela é como minha mãe, sob muitos aspectos. Eu fazia uma brincadeira ocasional com Ariel, mas nunca ousei com Liri. A mãe tentou casá-la também, mas ela é muito determinada, e insistiu que preferia ir para a Torre de Tramontana. Acho que ela é mais parecida com você, embora isso não tenha me ocorrido antes. Mas pode ter certeza de que Javanne vai dominá-la antes que possa...

Margaret sacudiu a cabeça.

- Se ela tentar arrumar um parceiro para mim, terei o maior prazer em lhe informar que não sinto a menor disposição para casar. Sou uma adulta, não uma garota de quinze anos. Imagino que ela teria dificuldade em encontrar um homem em Darkover disposto a casar com uma mulher tão velha.

Ela não acreditava no que dizia, mas queria animá-lo, fazer com que sorrisse de novo. Mikhail ofereceu-lhe um sorriso meio desanimado, o que já foi recompensa suficiente para sua tentativa de jovialidade.

- Não sei, não... Posso pensar em dois ou três. E, se tiver Armida como seu dote, muitos outros estarão dispostos a ignorar sua idade e a maneira como olha diretamente para as pessoas.

Seus olhos são como os de uma águia, e vão direto para o meu coração!

- Sei que é um erro aqui. Não tenho a intenção de ser grosseira, mas é um hábito difícil de romper.

- Não me importo. Acho até revigorante, depois de todas as moças de boa família que baixam os olhos para o chão sempre que nos encontramos. Muitas pessoas, no entanto, acharão constrangedor. Por isso, deve tomar cuidado. Pensarão que você tenta ler suas mentes, mesmo que seja inocente.

- Tentarei me comportar melhor.

Margaret teve de reprimir um súbito impulso para rir. Não dava para entender, mas cada vez que se encontrava com Mikhail um riso espontâneo subia por sua garganta.

- Se não estou enganado, querem que você case com meu irmão Gabriel.

Mikhail franziu o rosto.

- Pelo que você me disse na biblioteca, acho que não fomos feitos um para o outro.

- É verdade, mas isso é irrelevante, prima. A harmonia não entra nos cálculos. Mas se você realmente quer Armida...

Margaret apressou-se em interrompê-lo:

- Não quero! Não aceitaria todas as Colinas Kilghard se me oferecessem. E por que presume que seus pais vão querer me casar com um dos seus irmãos? Por que não você?

- Não gosto desse tipo de brincadeira. Ele ficara tão sério, tão sombrio e determinado, que Margaret não pôde deixar de provocá-lo.

- Por que acha que estou brincando?

Mikhail empertigou-se.

- Não estou sendo considerado, domna. Não posso ser. - Ele irradiava suas emoções, intensas e confusas, de tal maneira que Margaret não podia deixar de captar. - Se é Armida que você quer...

- Por que não consegue meter nessa cabeça dura que não estou interessada em Armida?

O homem estava sendo deliberadamente obtuso, e ela não podia compreender.

- ...Seria melhor escolher o velho Damon - continuou Mikhail, como se ela não tivesse falado. - Ele nunca mais tornou a casar depois da morte de Elorie, mas ainda não é bastante velho para ser incapaz de gerar algumas crianças. Isso deixaria o velho furioso.

Mikhail sorriu, com uma brutal satisfação, antes de acrescentar:

- Ele renunciou ao seu direito ao Domínio, mas creio que pode conseguir uma reintegração.

- É possível, mas não parece que ele queira uma esposa. Chamou-o de "velho"... que idade ele tem?

- Velho bastante para ser seu pai... não, seu avô! - exclamou Mikhail, furioso.

É obsceno até pensar a respeito! Mas não tão obsceno quanto Rafael ou Gabe!Margaret não podia entender a fúria de Mikhail, mas sentiu que o assunto era um tabu, não se podia discutir. Tinha experiência suficiente para saber que os costumes locais quase nunca faziam sentido para as pessoas que não haviam crescido naquela cultura.

- Por que está com tanta pressa de me ver casada?

- Tem de casar com alguém. Não há opção.

Ela mal podia suportar as emoções poderosas que Mikhail experimentava.

- Mikhail, não estou interessada no velho Jeff... ou Damon, ou qualquer outro homem que você possa imaginar. Posso lhe garantir que não casaria com ele mesmo que fosse o último homem solteiro em todo o universo civilizado. Mesmo que fosse tão rico quanto Creso, ou qualquer que seja a expressão que vocês usam em Darkover para indicar o homem mais rico do mundo.

- Dizemos "rico como o lorde de Carthon" - informou ele. - Se não quer casar com Jeff, então deve se resignar a um dos meus irmãos.

- Não vou me resignar a coisa nenhuma!

Um brilho que parecia de esperança surgiu nos olhos azuis.

- Pois então prometa que não vai deixar meu pai... ou minha mãe... casá-la com quem eles quiserem.

- Nada poderia ser mais fácil. Vou a Armida por motivos pessoais, e não estou pensando em casamento.

- Não me importo com o que esteja pensando - disse Mikhail. Apenas não case com o homem que eles escolherem!

 

17

Depois de quatro dias de uma viagem tranqüila, Margaret e Rafaella chegaram às terras do Domínio de Alton. Margaret não percebeu que haviam cruzado uma fronteira invisível, pois a paisagem continuava igual ao território que tinham percorrido nos dias anteriores. Havia pequenas aldeias, onde as crianças corriam para olhar as estranhas, até que eram afugentadas de volta para suas casas pelas mães. Existiam comunidades maiores, com estalagens para os viajantes ocasionais, ou casas de fazenda isoladas, com galinhas ciscando no terreiro e chervines pastando. Mas, quando Rafaella informou-a que se encontravam agora nas terras de Alton, ela olhou ao redor com um renovado interesse.

Era uma região de colinas, com muita vegetação crescendo por toda parte. Tudo estava verde agora, mas Rafaella informou-a que tudo estaria ressequido no auge do verão. Havia plantações bem cuidadas, pomares arrumados. Por mais ignorante que fosse da vida rural, Margaret percebeu que os galhos mais baixos das árvores haviam sido cortados, os arbustos ao redor removidos. Seu tio Gabriel podia ser pomposo e arrogante, mas parecia ser um bom administrador. Ela já estivera em mundos que tinham um sistema social não muito diferente do que prevalecia em Darkover, mas onde os latifundiários não se preocupavam com os recursos da terra. Limitavam-se a cobrar taxas altas dos camponeses ou deixavam por fazer as coisas que preservariam a terra. Ela ficou feliz ao constatar que a propriedade da família era bem cuidada. Não podia pensar na terra como sua, por mais que insistissem que lhe pertencia.

- Lá está Armida! - anunciou Rafaella subitamente, erguendo-se na sela e apontando para a distância.

Margaret contraiu os olhos por causa da intensa claridade do sol. Avistou uma vasta estrutura de pedra cinzenta e madeira, numa dobra das Colinas Kilghard, como um ovo num ninho. Era muito menor que o Castelo de Ardais... menor, mais feio e carecendo de qualquer pretensão. Havia vários piquetes, com cavalos pastando. Ela contou cerca de vinte: éguas com cria, e vários animais mais velhos, ali pastando ou esperando para serem montados. Subiram pelo largo caminho de terra entre as cercas, observando os animais mais jovens correrem de um lado para outro.

Era um lugar muito bonito. A princípio, Margaret nada sentiu além de curiosidade e um interesse geral. Nunca estivera ali antes, até onde sabia, e por isso nenhuma lembrança a perturbava. Mas o formato da casa parecia familiar. Ela calculou que captara impressões do lugar de seu pai, quando era muito pequena, antes de ser bloqueada. Lew adorava aquele lugar, e um pouco de sua emoção antiga se agitou na filha. Uma ligeira ardência nos olhos indicou-lhe que se sentia mais comovida do que imaginava. Desviou os olhos da casa, sabendo que ainda não era capaz de lidar com emoções fortes.

Em vez disso, olhou para os cavalos, que davam voltas num piquete ao lado da estrada. Um garanhão cinzento, enorme, o focinho branco da idade, esticou a cabeça pela cerca e observou as mulheres. Margaret olhou para ele, e o cavalo relinchou. Ela inclinou-se e estendeu a mão, na qual o cavalo resfolegou. Depois virou-se e saiu correndo pelo campo, de tal maneira que contestava sua idade.

- Acho que devo ter um cheiro errado ou outra coisa parecida - comentou ela.

Rafaella soltou uma risada.

- Não é o caso, Marguerida. Acho que você tem o cheiro certo. o velho castrado ficou contente em vê-la. Olhe só para ele.

A Renunciante já não usava mais qualquer título. o relacionamento entre as duas era de intimidade. o que deixava Margaret satisfeita, porque ser tratada como "Domna Alton" ainda fazia com que se sentisse muito estranha.

Mas Margaret não prestava atenção. Avistara no outro lado do campo uma égua graciosa, cinza escura da cor do pewter, com a crina e o rabo negros como a noite. Não era grande, como o castrado, mas de tamanho médio, com uma excepcional agilidade. Os cascos quase dançavam sobre a pastagem enquanto corria. Aproximou-se da cerca e ergueu as orelhas para Margaret. Bateu com as patas na terra, impaciente, olhando para ela e bufando. Margaret nunca vira um animal tão bonito e não pôde deixar de se perguntar a quem pertencia. Teve vontade de cavalgá-la, apesar de seu cansaço. Sabia que a pequena égua correria como o vento, que seus cascos mal tocariam no solo. Mas era um absurdo. Afinal, ela já estava velha demais para ansiar ter uma égua.

Mas, subitamente, Margaret compreendeu que a égua seria sua, se fosse a herdeira do Domínio de Alton. Por um momento, até considerou a possibilidade de aceitar o Domínio só para ficar com a égua. Mas logo riu, divertida. Não era uma coisa que alguém pudesse compreender, refletiu. Além do mais, cavalos eram viajantes espaciais ainda piores do que os Altons. Fora por isso que só haviam sido transportados para uns poucos planetas da Federação. E não ia ficar em Darkover, não é mesmo?

- O que é tão engraçado? - perguntou Rafaella.

- Acabo de me apaixonar por aquela égua. Não é ridículo? - Margaret gesticulou para a égua cinzenta, que relinchou. - Desculpe, querida, mas estou sem cenouras.

Rafaella balançou a cabeça.

- Todo mundo cobiça os cavalos de Alton, domna. São os melhores dos Domínios, talvez com exceção apenas dos cavalos de Serrais.

Margaret lançou um olhar afetuoso para sua companheira. Serrais? Istvana o mencionara... era o lugar em que os Ridenows tinham seu Domínio. Ainda havia muita coisa que ela não sabia.

- O que aconteceu? Pensei que havíamos combinado que você me chamaria de Marguerida.

A Renunciante fez uma careta.

- Não creio que Lady Javanne gostaria de me ouvir...

- Respeitarei os costumes darkovianos enquanto for capaz, Rafaella. Mas se você começar a me fazer reverências ficarei magoada. Com toda a franqueza, não me importo com o que Javanne possa pensar... ou qualquer outra pessoa, diga-se de passagem. Ela parece muito intrometida, e não gosto de ninguém interferindo em minha vida. Cuido apenas do que me diz respeito e espero que os outros se comportem com a mesma cortesia.

Rafaella sorriu.

- Sei disso. Mas é melhor se preparar para vários aborrecimentos, porque acho que todos na casa tentarão se meter na sua vida, quer você goste ou não. Eles acham que têm esse direito.

- Infelizmente, creio que você tem razão. Mas eu não preciso gostar, não é mesmo?

- Não, não precisa.

Pobre Marguerida. Não tem idéia do comportamento de uma dama, mas é o que todos esperam dela.

Elas chegaram ao pátio na frente da casa e desmontaram. Dois garotos vieram correndo para pegar os cavalos e ajudar a descarregar a bagagem da mula, sorrindo enquanto trabalhavam. Margaret deu outra olhada na casa em que seu pai nascera e vivera durante a juventude. Agora que estava bem perto, podia verificar que algumas pedras eram translúcidas, de uma cor clara maravilhosa, quase prateada.

No momento em que os garotos levavam os animais, um homem corpulento desceu os degraus da frente. Tinha os cabelos escuros, mas afora isso era uma versão mais jovem de Gabriel Lanart. Margaret calculou que ele devia ter trinta e poucos anos. Só podia ser o irmão de Mikhail, um dos Anjos Lanart. Se era um anjo, era um anjo moreno. Margaret presumiu que o louro Mikhail saíra à mãe. Avançou para ela, muito sério e sóbrio.

- Seja bem-vinda a Armida. - Ele tinha uma voz agradável, profunda e ressonante. - Sou Rafael Lanart, e você deve ser minha prima Marguerida.

Ele fez uma reverência. Ignorou a Renunciante, mas Rafaella não deu a menor importância.

- O pai nos disse para esperá-la.

- Obrigada pela recepção - respondeu Margaret, formalmente.

- Estamos contentes em vê-la. Meu irmão Gabriel saiu a cavalo pela propriedade, mas deve voltar em breve. Vai conhecê-lo esta noite. E Mikhail foi chamado... mas já o conheceu em Ardais, não é mesmo?

- Conheci. - Margaret pensou que não deveria dizer, por uma questão de boas maneiras, que Mikhail não viria. - Ele teve a gentileza de tentar explicar todas as ramificações da família Alton, mas não tenho certeza se entendi.

- Ele procurou explicar? Nunca soube que Mikhail se interessava por essas coisas.

Rafael ficou um pouco tenso. Mikhail deve estar tentando nos passar para trás, a mim e a Gabe! Mas não importa. O pai não vai permitir. Ele finalmente percebeu que ignorara Rafaella. Ofereceu-lhe uma pequena reverência.

- Mestra, seja bem-vinda a Armida. Tenho certeza de que se sente contente por ver minha prima no seio de sua família, aliviando-a da responsabilidade de guardá-la.

Margaret sentiu-se indignada pela maneira como sua amiga e companheira era quase descartada, mas depois achou graça da arrogância do primo. Ele não chegava a ser tão grosseiro quanto o pai, mas eram obviamente vinho da mesma pipa.

- Guardar-me? Contra o quê? - indagou ela, rindo. - Rafaella foi minha guia e ainda cuidou de mim quando caí doente.

Apesar da jovialidade em sua voz, Margaret deixava bem claro que não gostava da interferência de Rafael. A Renunciante acompanhou o diálogo com os olhos brilhando, reprimindo a custo um sorriso. Margaret desconfiou que ela adorara ver Rafael Lanart ser posto em seu lugar, embora fosse muito bem educada para deixar transparecer. Depois, Rafaella fitou-a e piscou um olho. Tome cuidado, Marguerida. Os dragões muitas vezes sorriem antes de jantar.

Margaret teve de fazer um esforço para evitar que sua surpresa transparecesse. Era a primeira vez que Rafaella lhe falava mentalmente de uma forma deliberada. A sugestão de afeto e lealdade deixou-a comovida.

A salvação de Rafael veio por intermédio de uma atraente mulher de meia-idade. Não era alta, mas movimentava-se com o jeito de uma pessoa acostumada a impor sua autoridade. Os cabelos outrora escuros haviam desbotado para uma tonalidade castanho-avermelhada. Estavam penteados com o maior esmero, como se ela tivesse passado muito tempo empenhada nisso. A gola do vestido era toda franzida, e por isso não se podia perceber de imediato o queixo quadrado, que insinuava uma personalidade forte. Ela estendeu a mão bem branca para Margaret. Tinha seis dedos.

A semelhança com Regis Hastur era inconfundível. Margaret refletiu que reconheceria Javanne Hastur Lanart-Alton como irmã dele onde quer que a encontrasse. Olhos cinzas determinados fitaram os seus por um instante. No momento seguinte, Margaret foi envolvida por um abraço perfumado, um beijo de leve roçando suas faces, os ombros apertados com extrema gentileza. o perfume era inebriante, quase sufocante. Ela soltou Margaret, deu um passo para trás, contemplou-a de alto a baixo, como se examinasse um cavalo antes de comprá-lo.

- Seja bem-vinda a Armida. Sou Javanne. Meu Gabriel já falou muito a seu respeito.

Aposto que sim, e nada me foi favorável, pensou Margaret, irônica. Ela avaliou a tia antes de falar, notando como Mikhail era ao mesmo tempo parecido e diferente. Já Rafael herdara o rosto forte da mãe, mas os olhos porcinos do pai.

- Obrigada por me convidar.

- Não precisa ser tão formal. Está com sua família agora, o lugar a que pertence. Mal posso esperar para que conheça minhas filhas... elas são mais ou menos da sua idade. Será maravilhoso.

Não havia afeto nem entusiasmo em sua voz. Margaret desconfiou que ela não se sentia muito satisfeita por sua presença ali. O conflito interior era bem contido, mas vazava o suficiente para deixá-la cautelosa. A tranqüilidade que ela experimentara na viagem se dissipou, permitindo que a tensão voltasse.

- Vamos entrar. Deve estar exausta da viagem. Rafael, não fique parado aí como uma estátua. Pegue as coisas de Marguerida.

Margaret fez menção de protestar, mas depois viu que Rafaella pendurara em seu ombro a preciosa harpa, além de pegar a bolsa com o equipamento de gravação, deixando o desventurado filho do meio para cuidar do resto da bagagem. Ela sorriu para a Renunciante, pelas costas de Javanne, recebendo um aceno de cabeça em resposta.

Além da porta, havia um vestíbulo grande, com bancos nos lados. Javanne levou-as para uma sala grande e confortável, onde havia um fogo aceso. A lareira era bastante grande para assar um boi. Depois do dia ameno lá fora, a sala estava bastante quente. Era até um pouco desagradável, com o corpo aquecido da cavalgada, mas Margaret tentou ignorar.

Havia vários sofás ao longo das paredes, estofados em tons de cinza e verde-escuro. Ela contemplou as tapeçarias penduradas nas paredes. Desejou ter se lembrado de falar com Lady Manila sobre as duas em seu salão de jantar. Pelo menos seria um assunto que não deixaria Marilla transtornada, como acontecera com a conversa sobre os Dons. Havia também quatro ou cinco poltronas grandes. As pernas de alguém se destacavam em uma, os pés estendidos na direção do fogo, o resto do corpo oculto.

Ela observou as pernas serem recolhidas, enquanto o som de passos deixava a madeira dura do assoalho do vestíbulo e entrava no tapete grosso. Mãos fortes se apoiaram nos braços da poltrona para levantar o corpo. Um momento depois, Margaret deparou com um homem extraordinariamente alto, corpulento e grisalho. Os cabelos outrora vermelhos estavam quase que brancos por completo, mas os olhos eram brilhantes e alertas. Ele se adiantou um pouco devagar, embora não devesse ter mais de sessenta anos, e pegou a mão de Margaret, com extrema gentileza.

Ficaram se olhando. Ela sentiu um incrível fluxo de emoções ao contato. Havia alguma coisa naquele homem que a lembrava de seu pai, não a aparência, mas alguma qualidade que não podia definir. Ao entrelaçar os dedos com ele, Margaret sentiu todo o seu anseio reprimindo pelo Velho subir por sua garganta. Engoliu em seco e disse a si mesma para não bancar a idiota. Era apenas o fato de estar na casa do pai que a deixava assim emocionada.

Era uma experiência de afinidade, como a que experimentara com Mikhail, mas muito diferente na qualidade, ela concluiu. Não havia pressão sobre o coração naquele contato, apenas a sensação de força e de absoluta confiança.

- Como vai? Sou seu parente, Jeff Kerwin... ou Damon Ridenow, se preferir. Seja bem-vinda a Armida, Marguerida Alton. - Ele estudou-a atentamente, como se procurasse alguma semelhança com o pai. - Você tem o bico-de-viúva de Lew, mas afora isso não parece muito com ele. E como nunca conheci sua mãe, não sei se parece com ela.

- Tento parecer comigo mesma - declarou Margaret, mais incisiva do que tencionava, ainda dominada pelas emoções. Ofereceu um sorriso tímido a Jeff. - Lady Marilla achou que eu parecia com minha avó, Felicia Darriell, mas não posso ter certeza. Nunca vi um retrato de minha mãe, e a memória não é confiável, não é mesmo?

Jeff acenou com a cabeça e suspirou.

- Não, não é. As pessoas que lembro como altas são com freqüência mais baixas quando torno a vê-las. - E Elorie se torna mais linda a cada ano que passa. - Lew não voltou com você, não é?

Margaret já não agüentava mais as pessoas pensarem que trouxera o pai escondido em uma de suas bolsas. Quase desejou que isso tivesse acontecido... embora a idéia do pai enorme metido numa das mochilas de lona fosse absurda. Mas desde que ouvira a voz de Lew em sua mente, no Castelo de Ardais, ela também passara a ficar na expectativa de sua presença. Assim, a ausência era quase irritante. Por onde ele andava? Parecia bem próximo quando lhe dissera que devia ir para Armida, mas ninguém sabia de seu paradeiro. E Margaret não deixaria transparecer para ninguém que isso era importante para ela.

- Ele estava no meu bolso, mas caiu quando atravessamos o rio, e agora não tenho idéia de onde se encontra.

O velho riu, enquanto Javanne parecia um pouco escandalizada.

- Você é uma garota desrespeitosa - disse ele, em Padrão Terráqueo, -, bem a filha de seu pai.

Jeff passou um dedo comprido pelo queixo de Margaret. Ela gostou do som de sua risada. Por um momento, desejou que o pai fosse menos sóbrio e mais jovial. Teria gostado de ter alguém como Jeff para pai. Sentiu-se desleal por esse pensamento. Especulou por que se sentia assim, e chegou à conclusão de que era porque Jeff parecia ser o tipo de homem com quem poderia conversar, o que jamais conseguira com o Senador.

Ela ignorou o ligeiro turbilhão que partia de Javanne. Em vez disso, sentiu a presença firme de Rafaella. Era tranqüilizador contar com pelo menos uma pessoa em quem podia confiar. Talvez pudesse confiar também naquele novo parente. Sentia-se apreensiva, ao contrário do que ocorrera em Ardais. Havia ali sentimentos e impulsos que sabia que não podia compreender, o que frustrava todo o seu treinamento. Não apenas era ignorante de tudo, mas também não sabia quais eram as perguntas certas. É isso mesmo, você pode conversar comigo, se quiser. Em voz alta, Jeff disse, em Padrão Terráqueo, em vez de casta:

- Tente não ser muito dura com Lew. Ele nunca foi bom em conversar com os outros, muito menos com mulheres.

Tenho certeza de que você é uma boa filha... se qualquer das minhas tivesse sobrevivido, eu gostaria que fosse tão forte e independente como desconfio que você é. Havia um certo pesar no pensamento, além de profunda afeição. Margaret ficou embaraçada, inquieta com a afeição que sentia que não merecia.

Foi então que ela ouviu Javanne limpar a garganta, e compreendeu que era falta de educação continuar a falar em Padrão Terráqueo, embora desconfiasse que a tia entendia muito bem. Apenas era mais agradável falar em Padrão Terráqueo, uma língua em que não tinha a preocupação de dizer alguma coisa impolida. Seu casta era bastante fluente agora, mas havia sutilezas que se esquivavam, de vez em quando. Ela se perguntava se algum dia seria capaz de falar sem pensar antes no que dizia.

Podia sentir de novo sua crescente ambivalência. Parte dela desejava ter um bom começo com os parentes recém-descobertos, enquanto outra queria se livrar das formalidades, ser a mulher que chegara a Darkover com Ivor poucas semanas antes. Sabia que isso era impossível, o que não a impedia de sonhar com a simplicidade que desfrutara com seu mentor e amigo.

- Sei que é meu parente, mas é um tio ou um primo? Mikhail tentou me explicar, mas não fazia muito sentido, para ser sincera.

Margaret pôde sentir a tia entristecer ao ouvir o nome do filho mais jovem, junto com uma profunda afeição. Era desconcertante. O que havia de errado com Mikhail para que os pais se irritassem quando alguém o mencionava?

- Em termos estritos, sou seu primo. - Jeff seguiu sua indicação, e Margaret sentiu que Javanne relaxava. - Ambos descendemos de Esteban Lanart, que era o tataravô de Lew. Mas estamos distanciados por quase duas gerações, o que me torna mais um tio.

- Por que essa distinção?

- Os primos em Darkover podem casar, o que em geral não acontece com tios e sobrinhas.

- E eu que pensava que o parentesco arturiano era complexo!

- Esteve lá?

Ele parecia sinceramente interessado, indiferente à crescente inquietação de Javanne.

- Não, mas li alguns ensaios a respeito.

Por que será que tios e sobrinhas não podem casar aqui? No passado, chiya, qualquer homem com idade suficiente para ser seu pai podia!

Era uma resposta surpreendente, porque Margaret tinha a noção de que as mulheres em Darkover eram muito bem protegidas, que a obsessão pela genealogia tornava impossível a permissividade sexual que Jeff acabara de insinuar. No passado, dissera ele. Isso devia explicar. Ela se lembrou do que Mikhail dissera a respeito da Torre Proibida. Percebeu que as coisas ali não eram tão organizadas quanto imaginara. O sexo entre as gerações era tabu. Convencida de que compreendia o problema, ela achou que entendia por que Mikhail reagira com tanta veemência à sua sugestão jovial de que resolveria a questão do Domínio se casasse com o homem alto à sua frente. Não, era mais do que isso. Mikhail achava-a atraente, mas, por algum motivo que ela não podia entender, não queria se sentir assim. É verdade que ele quase se comportava como se estivesse com ciúme. Mas como não tinha experiência direta do ciúme, Margaret não podia ter certeza. E, de qualquer maneira, não havia nada que ela pudesse fazer a respeito.

Forçou seus pensamentos a se afastarem de Mikhail, do enigma da atração mútua entre os dois. Não era uma boa idéia acalentar tais pensamentos na companhia de telepatas. Javanne já se mostrava hostil, predisposta para uma briga. Ficaria contrariada se descobrisse que Margaret pensava afetuosamente no filho mais jovem. E Margaret não tinha a menor idéia da extensão em que seus pensamentos eram audíveis para os outros, embora Istvana tivesse dito que não irradiava demais.

Tinha de torcer para que estivesse mantendo a mente bastante opaca, a fim de preservar sua privacidade. Por uma vez em sua vida, o hábito de se manter apartada, o terrível legado de Ashara, parecia um trunfo. Mas re-moer os problemas não ia ajudar. Em vez disso, ela procurou desfrutar o senso de segurança que experimentava na presença de Jeff. Sentia-se tão segura com ele quanto na companhia de Ivor Davidson.

- Não devo monopolizá-la, Marguerida. Javanne deseja vê-la assentada - murmurou ele, soltando a mão de Margaret quase com relutância.

Aposto que é isso mesmo o que ela quer... assentada com um dos seus filhos! Margaret tinha certeza de que a tia podia ter ouvido isso, mas de repente sentia-se cansada demais para se importar. Não seria pressionada a fazer qualquer coisa, se pudesse evitar.

- Claro. Haverá muito tempo para conversarmos mais tarde. Jeff inclinou-se e beijou-a no rosto. Ela sentiu a fragrância de sua pele lavada.

- E até que seu pai chegue, serei como um pai para você - acrescentou Jeff, em voz baixa, perto do ouvido de Margaret. - Pode me procurar para fazer suas perguntas. Combinado?

Margaret ficou tão surpresa que se limitou a acenar com a cabeça, em silêncio. Sentiu a irritação de Javanne e ouviu-a pensar: Velho intrometido! Gabriel foi um tolo ao convidá-lo! Eu poderia ter feito tudo sozinha, pois ele ficará do lado dela!

- Ficaria feliz se assumisse o lugar do Senador. Tenho certeza de que ele também gostaria, se soubesse.

Por que o Velho mandou que eu viesse para cá? É tudo muito confuso. Por que vim para este planeta de loucos? Puxa, como estou cansada!

Margaret virou-se e seguiu Javanne Hastur. Deixaram a sala e se encaminharam para a escada. Ela não precisava ser telepata para saber que sua anfitriã fervia de raiva por dentro. Um olhar para os ombros empinados de Javanne era tudo de que precisava. Enquanto subia a escada, atrás da mulher mais velha, Margaret compreendeu que ao estabelecer o relacionamento filha/pai com o velho Jeff, cujo direito ao Domínio de Alton era tão válido quanto o seu, escapara para todos os efeitos ao controle de Gabriel Lanart. Não era o que Javanne tencionava. Sua nova tia tramara alguma coisa... ou será que não? Margaret tentou dizer a si mesma que era apenas um caso de paranóia desnecessária, que seus parentes só se preocupavam com os interesses dela, mas não foi capaz de acreditar nessas palavras. Ao chegarem à porta do quarto, Javanne já se acalmara o suficiente para tentar ser graciosa:

- Espero que não se importe de partilhar o quarto. Sei que os Terranan estão acostumados a ficar sozinhos em pequenos quartos, o que eu acho muito esquisito.

Margaret correu os olhos pelo enorme quarto. Havia uma cama grande para quatro pessoas, um armário enorme e um lavatório. Duas cadeiras de encosto reto estavam encostadas na parede, com duas poltronas junto da pequena lareira. O vermelho das poltronas não combinava com o azul do quarto, o que a levou a pensar que deviam ter vindo de outro cômodo.

A cama tinha cortinas de linho azul, bordadas com figuras estilizadas que podiam representar montanhas. Havia várias mantas em cima, sobre uma colcha de folhas prateadas. A janela era grande, dando para os pastos na frente da casa. Em tudo e por tudo, era um quarto agradável. Margaret não sabia se Rafaella partilharia de novo a sua cama. Sentia-se ambivalente diante da perspectiva. Não achara desconfortável dormir ao lado da Renunciante na casa de Jerana, e a cama era bastante grande para as duas.

Quando Rafaella abaixou-se e puxou uma cama de rodinhas de baixo da outra, largando em cima o equipamento de gravação, Margaret sentiu-se aliviada. A Renunciante se tornara como uma irmã para ela durante a viagem, uma irmã que nunca tivera e pela qual sempre ansiara. Mas ainda mantinha um estado de espírito que exigia a privacidade. Era sempre incômodo ficar muito perto de uma pessoa, em termos físicos ou outros. Era parte também do legado de Ashara, como Istvana explicara. Embora uma parcela de Margaret se ressentisse, ainda havia um forte impulso para se manter apartada das outras pessoas, até mesmo daquelas que amava e nas quais confiava.

- Rafaella e eu já partilhamos o mesmo quarto, Lady Lanart, e estamos acostumadas aos hábitos uma da outra. Quando estive em Relegan e diversos outros planetas com meu mentor, Ivor Davidson, muitas vezes partilhamos alojamentos que eram bem menos confortáveis do que este quarto.

No momento mesmo em que acabou de falar, Margaret percebeu que dissera uma coisa chocante. Javanne ficou vermelha, enquanto Rafaella se ocupava em arrumar o resto da bagagem. A criada que subira com as bolsas, gorda, na casa dos sessenta anos, parecia muito interessada. Margaret não duvidou que ela contaria tudo para os outros assim que descesse.

- Que tipo de alojamentos, Marja?

Javanne conteve sua indignação, a curiosidade prevalecendo sobre o pressentimento de um escândalo. Não se interessava pelos detalhes, mas era evidente que queria saber mais. Provavelmente especulava se Ivor fora seu amante, além de mentor. Nas circunstâncias, compreendeu ela, ninguém em Darkover seria capaz de compreender que uma jovem podia viajar por toda a Federação com um homem na maior inocência.

Margaret ficou distraída por um momento pelo uso do nome de sua infância, mas depois se perguntou se deveria dizer a verdade ou dissimular.

- Cabanas de um só cômodo, feitas de palha, lugares assim - respondeu ela, decidindo ser provocante.

Se caísse em desgraça aos olhos dos outros, refletiu ela, talvez Javanne abandonasse o plano de casá-la com um dos seus filhos, o que faria com que a visita se tornasse menos desagradável. A criada soltou um murmúrio de espanto. Javanne virou-se para ela, furiosa.

- Largue essas coisas e vá cuidar do seu trabalho! E não quero que conte histórias para ninguém! Não admito comentários sobre a domna!

Javanne voltou a fitar Margaret, com um olhar frio, e acrescentou:

- Não sei como você se comportava em outras planetas, mas espero que se lembre do seu lugar e aja como uma dama, enquanto estiver sob o meu teto.

- Ivor era um velho, na casa dos noventa anos, mal podia...

- Já chega! Posso desculpar suas maneiras, porque ainda não conhece nossos costumes, mas isso vai mudar imediatamente. Está me entendendo?

O cansaço de Margaret era tão grande que ela acabou perdendo o controle. Aquilo era mais do que podia suportar.

- Pode me dizer, tia, se todo mundo em Darkover tem a mesma mente suja?

Javanne ficou vermelha por baixo dos cosméticos. Tremeu da cabeça aos pés. Bateu a porta ao sair. Que garota mais atrevida! Como pode vir para cá e se comportar como uma prostituta vulgar?

- Não posso deixar de me perguntar se ainda há portas no lugar em Armida, com Dom Gabriel e Domna Javanne gostando tanto de batê-las - comentou Margaret, adorando sua tola vitória.

Rafaella caiu na gargalhada, tentando abafar o som na manga, mas não conseguindo muito bem. Pequenas lágrimas escorreram de seus olhos.

- Acho que foi uma impertinência provocá-la desse jeito - murmurou a Renunciante, assim que recuperou o fôlego.

- Ela me põe num quarto com uma cama bastante grande para uma orgia, e espera que eu não pense em sexo. Não faz o menor sentido.

- Javanne é muito respeitável, Marguerida, e não quer que as pessoas falem. No passado...

- Não faça isso! Vou gritar se me disser alguma coisa que não for relevante para a conversa. Por que ela é tão sensível?

Rafaella soltou um longo suspiro, depois deu de ombros.

- Quando a Torre Proibida operava aqui, em Armida, aconteceram coisas que foram chocantes.

- Refere-se a Damon Ridenow gerar uma criança numa mulher que não era sua esposa? Mikhail me falou a respeito. o que há de tão horrível nisso? Os homens geram crianças em suas amantes desde tempos imemoriais, Rafaella. Até mesmo homens bons e decentes.

Inclusive meu pai.

- Tem razão. Mas você precisa compreender que é um assunto muito sensível para ela.

- Por quê? Acho melhor me explicar, para que eu não cometa erros maiores do que já cometi.

A Renunciante pensou por um longo momento, parecendo dividida, sem saber se devia ou não contar.

- Está bem. Dom Gabriel descende de Ellemir Lanart, que era a esposa de Damon Ridenow, e de Ann'dra Carr, o Terranan que era parte da Torre Proibida. o que é muito impróprio.

- Por quê? Porque o pai de Gabriel era nedestro, ou porque ele é em parte terráqueo?

Margaret não podia deixar de recordar a hostilidade expressa do tio contra os terráqueos. Talvez fosse esse o motivo. Explicaria muitas coisas.

- As duas coisas, se não me engano. Mas creio que Lady Javanne sabe que as ocorrências em Armida foram muito chocantes.

- Não vamos exagerar. Isso aconteceu há muitos e muitos anos. Dom Gabriel é um descendente legítimo dos Lanarts, ou pelo menos tanto quanto eu própria sou legítima. Será que todos têm medo de que genes do mau comportamento sexual estejam à espreita?

A Renunciante abriu uma de suas bolsas e começou a tirar as roupas.

- Não, mas... é muito difícil explicar. o problema, no fundo, relaciona-se com o laran. Por anos incontáveis, centenas e centenas, o laran só existia nas famílias do Comyn. o que era ótimo para o Comyn, e não de todo ruim para os outros. o Comyn passou a casar entre si, para manter o laran forte e preservar os Dons dos Sete Domínios. Alguns desses costumes mudaram um pouco desde que os Terranan chegaram a Darkover, há cerca de cem anos. Mas ainda não é apropriado que uma mulher casada gere uma criança de outro homem que não seu marido. É muito... irregular.

- Posso imaginar. Mas se os lordes do Comyn saem por aí fazendo filhos nedestro nesta ou naquela mulher, é de se esperar que o laran se espalhe pela população em geral. Como aconteceu com sua irmã.

- Tem razão. Mas ainda assim não é considerado certo.

- Certo? Parece conveniente para os homens, mas terrível para as mulheres.

Rafaella deu de ombros, como se dissesse que era essa a situação. Depois, foi até a janela e deu uma espiada.

- Lá vem o jovem Gabriel, a galope. E Mikhail o acompanha.

- É mesmo?

Margaret correu até a janela. Ele devia ter partido no mesmo dia que as duas, ou então viajara mais depressa. Provavelmente a segunda opção, já que elas não forçaram a marcha, por causa de sua tendência a ficar exausta com qualquer esforço maior. Margaret observou os cachos dourados, os ombros empinados, a maneira como Mikhail controlava o cavalo. Ele é bom de montaria. Ela corou no mesmo instante, ao perceber que não pensava em Mikhail montado num cavalo.

Ele dissera que não voltaria a Armida, ao se despedirem em Ardais, mas lá estava. Margaret lembrou que Rafael dissera que o irmão fora "chamado", o que a deixou um pouco desapontada. Talvez Mikhail não fosse o homem que ela presumia, se vinha correndo quando era chamado. Devia estar mais sob o controle do pai do que alegava.

Margaret refletiu, no entanto, que não devia ser precipitada em seu julgamento. Sentia-se contente pela presença de Mikhail, qualquer que fosse o motivo. Permitiu-se um momento de especulação, admitindo que seu retorno a Armida podia não ter qualquer relação com obediência ou dever. Talvez Mikhail não conseguisse se manter longe dela. o pensamento chocou-a mais do que um pouco. Ela sacudiu a cabeça. Mas até que gostava da idéia. Não podia deixar de agradá-la, não é mesmo?

Mas não tinha importância, não é mesmo? Ela apenas fazia uma visita de cortesia à propriedade da família... e só porque o Senador lhe dissera. Não se encontrava ali por sua livre e espontânea vontade, não é mesmo?

Enquanto observava, ela viu a égua cor de pewter atravessar o pasto em disparada, relinchando alto. Empinou ao chegar à cerca. Margaret viu Mikhail acenar para a égua. Devia ser dele, ou então corria para saudar todas as pessoas. Ela observou o sol faiscar na crina escura. Era sem dúvida uma linda égua. E admirá-la evitou que Margaret especulasse sobre Mikhail.

Os dois cavaleiros desapareceram no lado da casa. Margaret arriou na cama. Que se danassem o Velho, Mikhail e todos os homens, em toda parte, pensou ela. Ou queriam dar ordens a você, ou mentiam, ou morriam. Por que as mulheres aturavam criaturas em quem não se podia confiar? Ela pensou em Dio, e como ela suportara paciente todos os momentos de depressão do Senador, suas bebedeiras. Chegou à conclusão de que devia haver alguma falha no caráter feminino.

Quando desceram a escada, na hora do jantar, Margaret e Rafaella encontraram a maior parte da família reunida na sala grande em que ela se reunira com Jeff Kerwin, naquela tarde. Javanne trocara de roupa, e usava agora um vestido menos modesto. Ainda tinha uma gola franzida cobrindo o pescoço. Margaret decidiu que sua tia era muito vaidosa. Mas só porque ela própria não era vaidosa, não havia razão para julgá-la por isso, disse Margaret a si mesma. E pensou que estava procurando motivos para não gostar de Javanne. Não era uma admissão agradável, e Margaret sentiu-se constrangida.

Javanne levantou-se quando elas entraram, sorrindo com muitos dentes. Estudou Margaret com olhos frios.

- Espero que esteja descansada e revigorada, Marja-chiya. Tem tudo de que precisa?

De banho tomado e vestindo o primeiro traje que comprara de MacEwan, Margaret sentia-se mais à vontade do que na chegada. Mesmo assim, ainda mantinha uma certa cautela em relação a todos ali. Jeff Kerwin cochilava ao lado da lareira, Mikhail e Rafael discutiam alguma coisa com a maior veemência. Ela percebeu logo que Mikhail fazia um esforço para não olhar em sua direção, prestando uma atenção quase desesperada ao que o irmão dizia. Muito bem... duas pessoas podiam fazer aquele jogo.

Dom Gabriel estava junto do filho mais velho, ambos em silêncio. Eram tão parecidos que podiam passar por irmãos. Era evidente que se sentiam contrafeitos, talvez achando que os trajes formais eram muito apertados.

Num dos sofás sentava uma mulher, baixa e esguia, cercada pelo que parecia ser um rebanho de crianças pequenas, todas clamando por sua atenção. Ela podia ter sido bonita no passado, mas agora tinha o rosto tenso, a pele seca e pálida, os cabelos vermelhos opacos e desarrumados. Margaret calculou que a mulher devia ter mais ou menos a sua idade, embora parecesse estar com cinqüenta anos.

Outra mulher levantou-se de uma poltrona, usando um vestido verde que se projetava ao seu redor como uma barraca. Era tão alta quanto Margaret, ossos grandes, sob uma carne firme. A impressão de grandeza, força e dignidade era enorme. Carregava pelo menos vinte quilos extras, na rápida avaliação de Margaret, mas ficavam muito bem nela. Os olhos que faiscavam no rosto redondo eram inteligentes, irrequietos no interesse, com uma insinuação do mesmo humor que ela encontrara em Mikhail. Os cabelos vermelhos eram grossos, não finos como os de Margaret. Caíam além dos ombros, presos na nuca por um ornamento em forma de borboleta. Javanne acompanhou seu olhar.

- Marguerida, quero apresentá-la às suas primas. Creio que já conheceu Mikhail, e também meu filho Rafael. - Ela levou Margaret para o sofá. - Esta é milha filha Ariel, e meus netos. Ariel, pare de brigar com Kennard e cumprimente sua prima.

Relutante, Ariel desviou a atenção das necessidades das crianças e estendeu a mão para Margaret. Mal fitou-a, com olhos sem brilho, e tornou a se concentrar nas crianças, que brigavam, se empurravam e gritavam. Margaret constatou que a mão da prima era flácida e seca. o contato transmitiu uma ansiedade tão intensa que ela quase sufocou.

- Seja bem-vinda a Armida - murmurou Ariel, para depois retirar a mão e se virar para as crianças irrequietas.

Nas sombras por trás do sofá, Margaret percebeu um homem de pé, vestindo roupas tão escuras que era quase invisível. Ele também pairava em torno das crianças com uma expressão apreensiva, como se esperasse que Margaret seqüestrasse uma, ou fizesse alguma outra coisa altamente improvável.

- Este é meu genro, Piedro Alar.

o homem fez uma reverência formal, mas não tomou a iniciativa de nenhum outro gesto para cumprimentá-la. Margaret não pôde deixar de se

perguntar como duas pessoas tão ansiosas conseguiam sair da cama pela manhã. Mas não fez qualquer comentário a respeito. Era insensato julgar pelas aparências; e, por outro lado, era bem possível que eles se mostrassem mais joviais e animados longe da vista de Javanne.

- E agora, Marguerida - disse Javanne, afastando-a do casal depressivo -, esta é sua prima Liriel. Ela e Ariel são gêmeas, embora muitas pessoas se recusem a acreditar.

- Então você é Marguerida Alton! - A mulher grande sorriu, o rosto radiante. - Onde a mãe a pôs? Espero que não tenha sido no quarto azul... o teto tem um vazamento, a menos que tenha sido consertado desde a última vez em que estive aqui. É lá que a mãe instala as pessoas que não quer por muito tempo na casa.

Javanne lançou um olhar furioso para a filha. Margaret compreendeu no mesmo instante que as duas não se davam muito bem. Lembrou que Mikhail descrevera aquela irmã como a decidida, a que se recusara a casar com o homem escolhido pela mãe. Por esse motivo apenas, Margaret já se sentia propensa a gostar dela. Liriel parecia feliz e animada... e cordial ainda por cima.

- Não sei qual é o quarto, mas parece confortável - respondeu Margaret, muito polida. o quarto tinha paredes azuis, a mesma cor das cortinas da cama. Ela olhou para Javanne, assim como Liriel. A mulher mais velha corou, embaraçada. - Eu não sabia que Armida era tão grande.

- Já fez uma excursão pela casa? - disse Liriel. - Tive a impressão de que foi direto para o quarto ao chegar.

- E fui mesmo, mas a casa parece grande por fora.

Margaret sentia-se atraída por aquela prima. As duas trocaram um olhar divertido. Havia malícia também nos olhos azuis, além de uma grande inteligência. Ela comprimiu os lábios numa expressão mais sóbria, como se reprimisse uma pilhéria secreta.

- As aparências muitas vezes enganam - declarou Liriel, com uma irônica solenidade.

Javanne quase que arrastou Margaret para longe da filha.

- Marguerida, este é meu filho Gabriel.

O homem ao lado de Dom Gabriel fez uma reverência formal. Margaret teve certeza de que o filho mais velho era o predileto de Javanne. Ele era corpulento como o pai, os olhos um pouco esbugalhados. Ela desconfiou que também tinha a mesma disposição colérica.

- Seja bem-vinda à minha casa - disse ele, a voz rouca.

- Saudações, primo Gabriel. Fico contente por finalmente conhecê-lo.

Margaret sabia que não parecia nem um pouco contente, mas torceu para que ninguém notasse. Javanne parecia exausta de seus deveres como anfitriã. Afastou-se, deixando Margaret e Gabriel a olharem um para o outro. Ela tentou pensar em algum tópico de conversa que pudesse ser interessante para ambos, mas nada lhe ocorreu. Dom Gabriel olhou de um para o outro, esperando que se mostrassem sociáveis. Como o silêncio persistisse, ele soltou um grunhido e anunciou, com a expressão de quem oferece um grande privilégio:

- Convidei alguns cantores para depois do jantar.

- Isso é ótimo.

Margaret tinha dúvidas se conseguiria suportar pela noite inteira uma não-conversa polida. Gostaria de ter a desfaçatez necessária para alegar uma dor de cabeça e se retirar. Mikhail apareceu ao seu lado nesse instante, com um sorriso jovial.

- E então, prima, o que achou de Armida até agora? Agradecida por ser salva da obrigação de tentar conversar com Dom

Gabriel e seu filho mais velho, Margaret virou-se para ele, feliz.

- Achei adorável tudo o que já vi. Os cavalos são maravilhosos. Gostei muito de uma égua que tem um pêlo cinza-escuro.

- É Dorilys. Uma boa égua, mas um pouco arisca.

- Um lindo nome.

Margaret pensou que sua língua abriria um buraco no céu da boca antes de chegar à mesa do jantar, se continuasse a emitir ruídos sem sentido. Era o que Dio tinha de suportar nos jantares oficiais? Sua admiração pela madrasta aumentou ainda mais.

- Ela nasceu durante a mãe de todas as tempestades - explicou Mikhail. - Sei disso porque estava no estábulo, à sua espera. Não é um nome apropriado, porque significa "dourada". Mas há muito tempo existiu uma mulher chamada Dorilys que era capaz de invocar as tempestades, pelo que dizem. Como ajudei no parto da égua, tive o privilégio de escolher seu nome. Por isso, é Dorilys. Fico contente que você tenha gostado dela.

- É mais do que gostar. Apaixonei-me por ela. Poderia montá-la, durante minha estada aqui?

- Dorilys não é um animal para uma moça - protestou Dom Gabriel.

- Mas não sou mais uma moça, tio - murmurou Margaret, tão doce quanto podia. - E há muitos anos que ando a cavalo.

Por sorte, o coridom anunciou o jantar, antes que o homem mais velho tentasse dizer a Margaret o que fazer. Todos foram para o salão de jantar, que parecia bastante grande para abrigar um exército. Margaret hesitou, sem saber onde sentar. Percebeu que Javanne e Dom Gabriel também estavam inseguros. Pelo costume, os lugares à cabeceira e no outro lado da mesa pertenciam aos dois. Mas com a presença de Jeff Kerwin, o membro mais velho do clã de Alton, a situação não era normal. Antes que todos hesitassem até a carne esfriar, Jeff resolveu o problema, pegando Margaret pelo cotovelo e conduzindo-a à cabeceira da mesa.

- Este é o seu lugar, chiya.

- Mas Lady Javanne... - Ela deve ceder. Margaret reprimiu o riso.

- Não posso imaginá-la jamais fazendo isso, tio Jeff - sussurrou Margaret.

- Então tem de aprender agora. Todos devem ceder de vez em quando. Nunca é agradável, mas é uma lição de vida necessária.

Jeff puxou a cadeira e ajudou-a a sentar. Depois, sentou à direita de Margaret, enquanto o resto da família observava num fascínio horrorizado. Houve um barulho de cadeiras arrastadas quando todos se acomodaram. A comida foi servida.

A presença das crianças Alar tornou o jantar ruidoso. A comida era simples e saborosa, um pouco menos formal do que as refeições que ela fizera em Ardais. O barulho dos talheres e louça parecia ensurdecedor depois do silêncio da viagem. Margaret trocou um olhar com Rafaella. A Renunciante acenou com a cabeça, depois voltou a se absorver em sua conversa com Liriel Lanart.

o jantar finalmente acabou, os criados tiraram a mesa. Ariel conduziu seu rebanho de crianças para a cama. Piedro foi atrás, sombrio e ansioso. A saída deles animou o clima da reunião. Poucos minutos depois o coro chegou. Eram quatro irmãs, tão parecidas que poderiam passar por quadrigêmeas, e um irmão que claudicava bastante.

Afinaram seus instrumentos, uma ryll e uma coisa que parecia ser uma mistura de harpa e guitarra, e começaram a cantar. Várias canções eram agora conhecidas de Margaret, mas outras não. Ela lamentou não ter descido com o equipamento de gravação. Depois compreendeu que todos ficariam chocados se o tivesse feito. Sorriu para si mesma. Podia ser uma herdeira, mas nunca perderia os hábitos de pesquisadora que adquirira durante o tempo todo na universidade.

Os irmãos iniciaram outra canção, e Margaret sentiu que seus braços se arrepiavam.

- Como surgiu esse sangue em sua mão direita, irmão, conte-me, conte-me...

Ela cantara essa música em seu segundo dia em Darkover, ao pegar na ryll encantada que pertencera à mãe que ela nunca conhecera. Quase não pensara em Thyra desde que deixara o Castelo de Ardais. Descobriu agora que a balada deixava-a angustiada.

- Não é uma boa canção para se apresentar a irmãos e irmãs - resmungou Dom Gabriel, deixando claro que sentia-se contente por ter alguma coisa em que descarregar sua crescente frustração. - Sempre dá azar.

- Não somos supersticiosos, pai - protestou Liriel. - Ou pelo menos eu não sou... Ariel já se retirou.

O tolo se sobressalta com folhas caindo.                                                     ,

Uma das irmãs cantoras deu de ombros, e o irmão apressou-se em dizer:

- Cantaremos outra coisa se assim desejar, vai dom. Margaret olhou para Liriel.

- Já ouvi essa canção antes... até a cantei. Há alguma história ligada a ela?

Seu instinto de pesquisadora fora despertado, e ela ignorou o olhar de Javanne. Liriel Lanart soltou uma risada efusiva.

- Conta a história de uma maldição de família, aqui nas Colinas Kilghard. Alguns dizem que dá azar para uma irmã cantá-la na presença de um irmão. Temos muitas superstições nas montanhas. Mas onde aprendeu a canção? Tenho certeza de que não a cantam em Ardais. Margaret franziu o rosto.

- Quando eu estava na casa de Mestre Everard, na Rua da Música, ele me mostrou uma velha ryll, dizendo que ninguém conseguia tocá-la. É um lindo instrumento, feito por um luthier famoso, segundo ele. Peguei a ryll... com minha curiosidade habitual. A canção foi saindo, como se tivesse sido deixada nas cordas pela última pessoa a tocá-las. - Ela hesitou por um instante. - Descobri mais tarde que a ryll havia pertencido a Thyra Darriell, minha mãe.

Dom Gabriel amarrou a cara e Javanne ficou furiosa, enquanto Jeff assumia uma expressão pensativa. Um silêncio opressivo persistiu por um longo momento.

- Cantarei uma canção ainda mais proibida - anunciou Mikhail, levantando-se de repente. - Guerras foram desencadeadas em Darkover por menos do que isso, mas não sou supersticioso.

Ele respirou fundo, empinou os ombros e começou a cantar:

- Meu pai foi Guardião da Torre de Arilinn, Seduziu uma chieri com a flor do kireseth, Dessa união três nasceram, Dois eram o Comyn e o outro fui eu...

Mikhail tinha uma boa voz, destreinada, mas firme e profunda. Margaret sentiu-se grata por ele distrair os outros da referência à sua mãe. Era evidente pela expressão de Javanne que Thyra era um assunto proibido. O que era ótimo para Margaret, porque ela também não queria falar sobre a mãe. Por que mencionara a ryll encantada?

Liriel soltou uma risada.

- Está atrasado, irmão. Nada mais é proibido, exceto o mau gosto. Também aprendi essa canção, em Arilinn, quando fazia meu treinamento. - Ela olhou para Jeff. - E imagino que você também aprendeu, primo.

- Claro. Começamos a aprender a rir de nós mesmos, o que é uma coisa muito saudável.

- Seu pai alguma vez cantou isso para você, Marguerida? Ele é lembrado em Arilinn como um dos melhores técnicos que já passaram por lá... o que todo mundo faz questão de me recordar. - Liriel fez uma careta. - É sempre deprimente ser comparada com alguém que você nunca conheceu.

- Jamais ouvi o Senador cantar essa canção. Ele vivia ocupado com seus deveres para me contar muita coisa. - Quanto à Torre de Arilinn ou qualquer outra, o mero pensamento deixava Margaret toda arrepiada, depois de sua aventura na Torre dos Espelhos. - Para ser franca, eu nem sabia que ele havia sido treinado numa Torre.

Ele deixou de me informar sobre uma porção de coisas. Estou ansiosa por cobrar tudo... o que farei muito em breve, eu espero!

- Quer dizer que seu pai nunca lhe contou... - Liriel parecia chocada e furiosa, como acontecera com Istvana Ridenow. - Passou todos esses anos com o Dom de Alton, com laran quase escorrendo de seus ouvidos, se me permite ser tão brusca...

- Não quero falar sobre isso! - declarou Margaret, rispidamente. Ela podia criticar Lew Alton, mas não admitiria que pessoas que nunca o haviam conhecido falassem mal de seu pai. A reação surpreendeu-a, porque não sabia até aquele momento que, apesar do abandono e rejeição, apesar de tudo, tinha uma lealdade profunda e persistente pelo pai. Se ao menos tivesse a afeição para acompanhar essa lealdade, pensou ela, poderia se sentir satisfeita.

- Perdoe-me, prima - murmurou Liriel. - Tenho a típica falta de tato dos Altons.

Margaret sabia que ela era sincera. Gostou ainda mais de Liriel por saber que ela era capaz de admitir um erro. Concluiu que o tato era uma característica ausente em Armida, que se usava uma polidez rígida porque todos eram instáveis e agressivos. Dom Gabriel e Javanne pareciam ser pessoas que diziam o que pensavam, mesmo que pudessem magoar os outros.

- Não está um pouco abafado aqui dentro? - interveio Javanne, como se quisesse afastar a conversa de Lew Alton o mais depressa possível. - Você parece sentir muito calor, Marja. Rafael, por que não leva sua prima ao jardim dos perfumes?

A sugestão foi recebida com uma expressão contrariada do filho do meio... e com um brilho nos olhos de Mikhail.

- Claro, mãe. Talvez precise de um agasalho... está um pouco frio lá fora.

Margaret levantou-se tão depressa que nem houve tempo para Jeff ajudá-la com a cadeira.

- Acho que é uma ótima idéia.

Ela queria sair logo dali, com ou sem um xale. Rafaella sorriu-lhe, e Margaret acenou com a cabeça em resposta. Podia contar com Rafaella para mantê-la de bom humor.

Uma criada trouxe um xale todo bordado. Rafael conduziu-a por um corredor e saíram para a noite nublada. Havia no ar o cheiro de chuva por cair, junto com uma fragrância que quase dominava todos os sentidos.

- Estou tão acostumada a ver as estrelas que não sei se algum dia me acostumaria com tantas nuvens durante a maior parte do tempo - comentou Margaret na escuridão, consciente da proximidade do primo.

- Já ouvi um Terranan dizer isso antes. Como devo tratá-la... prima, Marguerida ou Marja?

- Qualquer coisa que quiser, mas creio que estou um pouco velha para ser tratada por Marja. Prima parece mais seguro, não concorda?

- Está certo.

Ele parecia meio desorientado, sem saber o que dizer.

- Que perfume maravilhoso é esse? - indagou Margaret, aconchegando-se no xale.

- Ê o jardim dos perfumes da mãe. Há muitos antes, antes dos Terranan chegarem a Darkover, havia uma Guardiã em Arilinn que era cega. Ela fez um jardim de flores perfumadas, que exalavam sua fragrância tanto de dia quanto de noite, pois era sempre noite para Fiora. A mãe gostou tanto desse jardim, quando era treinada ali, que resolveu fazer outro igual aqui.

- É maravilhoso. - As nuvens se entreabriram e uma das luas surgiu no céu. - Eu gostaria de ver as quatro luas no céu ao mesmo tempo.

Uma tênue lembrança surgiu em sua mente. Podia ouvir o pai e Dio rindo sobre as coisas que acontecem sob as quatro luas. Por sua perspectiva adulta atual, o tom das palavras era sexual. Por isso, ela compreendeu que o comentário fora impróprio. Para ocultar seu embaraço, apressou-se em acrescentar:

- Deve ser uma ocorrência astronômica rara.

- Tem razão. - Rafael balançou para a frente e para trás. - Aqui em Darkover não falamos sobre isso... Mas que droga! Não saímos para conversar sobre o tempo, as luas, ou se a chuva vai estragar as colheitas!

- É verdade.

Margaret podia sentir o desconforto do primo, mas não podia pensar em nada para atenuá-lo. Rafael respirou fundo e soprou, como um homem sob um pesado fardo.

- A mãe não é muito sutil, não é mesmo?

- Nem um pouco. Mas eu diria...

- Prima, sou solteiro e saudável - interrompeu-a Rafael, como se tivesse de continuar a falar. - Portanto, sou livre. Seria uma grande honra para mim se quisesse reunir nossos ramos da família ao casar comigo.

Margaret virou-se para fitá-lo, aturdida.

- Não pode estar falando sério - murmurou ela. - Nunca nos vimos até esta tarde.

- Em Darkover, isso não é importante. A mãe e o pai casaram um dia depois de se conhecerem. Seria uma boa coisa e...

Ele não foi capaz de continuar. Margaret declarou, sem rodeios:

- Jamais me passou pela cabeça casar com você. Não me importa quais são os costumes aqui. o casamento é uma decisão muito importante para ser tomada por outras pessoas que não o homem e a mulher que vão casar.

E a maneira como seus pais maltratam as portas não é uma indicação favorável ao fato de só se conhecerem no dia anterior ao casamento!

Tem toda razão, não é mesmo. Rafael soltou uma risada, um pouco inquieto.

- Muito obrigado. Prometi à minha mãe que tentaria. Creio que não seria tão terrível assim, mas você é... um tanto determinada, como minha mãe, e desconfio que não se daria bem comigo. Mas podemos ser amigos?

- Sua mãe é uma mulher muito intrometida - respondeu Margaret, gostando de Rafael por sua franqueza, e ainda mais ressentida contra a tia.

- É possível. Ela cumpre o seu dever, da maneira como o considera. E quer muito que os Altons voltem a ser uma só família, como antes.

- Ela terá de conseguir isso sem a minha participação. Está esfriando cada vez mais. Vamos entrar... ou você prefere escapar sem enfrentar sua mãe?

- Não vai fazer a menor diferença. Bastará um olhar para o seu rosto, e ela saberá que me recusou.

Neste caso, irei direto para o meu quarto. Não tenho a energia necessária para passar mais uma hora tomando cuidado com minhas palavras... e com minha expressão!

- Como quiser, prima.

 

18

Margaret acordou à primeira claridade da manhã. Virou-se na cama imensa. o som suave e firme dos roncos de Rafaella, na cama de rodinhas, era um ruído normal, tranqüilizador. Não dava para imaginar como ela poderia dormir sem isso. O pensamento fê-la rir silenciosamente. Não podia levar a Renunciante para fora de Darkover. Que idéia! Ela especulou como Rafaella se comportaria. Decidiu que a amiga era bastante adaptável para enfrentar quase que qualquer coisa. Como haviam se tornado tão íntimas, tão depressa? Margaret não sabia direito, mas com certeza gostava de ter ao seu lado uma mulher em quem podia confiar, com quem se sentia segura. Ao contrário de seus novos parentes, que faziam com que se sentisse ameaçada, apesar das boas intenções óbvias. E se, por acaso, Rafaella se tornasse companheira livre do Capitão Rafe Scott, então seria também tia de Margaret! Ela não pôde evitar uma risada. Torceu para que aquilo acontecesse, a fim de poderem se divertir com o absurdo da situação. Pelo menos seriam felizes.

Margaret comparou Rafaella com o clã de Alton. Concluiu que a diferença era o fato de que a Renunciante não tinha planos ou ambições para ela. Não queria nada de Margaret, o que lhe proporcionava uma certa segurança. Ela se descobriu um pouco perdida, e disse a si mesma, com firmeza, para não entrar em depressão.

Olhou para o teto e notou uma enorme mancha escura num canto. Era de umidade, embora não estivesse pingando. Parecia evidente que o vazamento a que Liriel se referira não fora consertado. Margaret começou a se sentir um pouco irritada. Seu tio Gabriel andava tão ocupado a se meter na vida de outras pessoas que deixava Armida no abandono. Sua casa! Não, não sua casa... mas ainda assim sentia um certo apego. Que coisa terrível! A veemência do pensamento surpreendeu-a, e ela exclamou:

- Mas que droga! - Hem? O que foi?

- Desculpe, Rafaella. Eu não queria acordá-la.

- Não importa. Minha bexiga teria me acordado de qualquer maneira.

A Renunciante empurrou as cobertas para o lado, levantou e saiu do quarto. Quando voltou, poucos minutos depois, Margaret estava sentada no lado da cama, tentando definir seus sentimentos. Ela remexeu os dedos dos pés no ar frio da manhã, enrolou uma mecha de cabelos num dedo.

- Pensando ou remoendo? - indagou Rafaella.

- As duas coisas, eu suponho. Rafael pediu-me em casamento ontem à noite, quando saímos para o jardim. Calculo que hoje, em algum momento, o jovem Gabriel fará a mesma coisa.

- O que você respondeu?

- Disse que não, é claro. o que pensou que eu diria?

- Ele não seria o pior marido do mundo, e pensei que talvez optasse pelo menor de muitos males. - Rafaella soltou uma risada. - Desde que você mencionou Rafe Scott, lá em Ardais, venho pensando que poderia ter um companheiro livre, se quisesse.

E talvez eu tenha mesmo.

- Nunca considerei realmente a possibilidade até agora, Marguerida. Não sei se daria certo. Mas você teria de casar di catenas, e não sei se seria capaz de suportar.

- Não estou entendendo.

- Notou aquela pulseira que Javanne usa? E a de Lady Ariel?

- Notei a de Javanne, mas não a de Ariel. O que significa?

- Foi posta em seu braço quando casou com Dom Gabriel. Nunca mais será removida, nem mesmo na morte. Ele também usa uma pulseira, mas é menor. Não dá para notar porque os homens costumam esconder por baixo da manga. Di catenas é para sempre. É só assim que o Comyn casa. Significa que uma mulher pertence a um homem, não a si mesma.

Margaret fez uma careta.

- Ou seja, Dom Gabriel pode sair por aí gerando filhos nedestro por toda parte... embora eu tenha a maior dificuldade para imaginá-lo... mas Lady Javanne tem de ser uma boa esposa e manter as saias arriadas?

A Renunciante caiu na gargalhada. o som parecia ressoar pelas vigas do teto e iluminar todo o quarto.

- É mais ou menos isso - murmurou ela, quando conseguiu recuperar o fôlego.

- Tem toda a razão, isso não me conviria nem um pouco. Meu pai e Dio são bem casados, até onde eu sei, fiéis um ao outro. Mas Dio nunca pertenceu a ninguém, a não ser a si mesma. Como uma mulher pode "pertencer" a um homem? Afinal, ela não é uma propriedade, como terras e cavalos.

- É quase isso. Muitas mulheres do Comyn... e nas outras classes também, diga-se de passagem... não passam de propriedade, só existem para gerar filhos. É um dos motivos pelos quais o Juramento da Renunciante proíbe qualquer forma de casamento, exceto a união como companheiros livres... porque não queremos ser propriedade de nenhum homem.

- Isso não tem nada a ver comigo. Você tem toda a razão. Eu não suportaria ser a égua reprodutora de algum homem. Por falar em éguas, eu bem que gostaria de ter uma oportunidade de montar Dorilys, aquela égua cinza-escura, enquanto estou aqui.

Margaret mudou de assunto porque se sentia bastante contrafeita com a conversa sobre casamento. Parecia assomar à sua frente, como um monstro no armário, pronto para saltar e agarrá-la pela garganta. E nesse instante ela sentiu de novo o calafrio que desaparecera por vários dias. Experimentou um eco de Ashara, que fazia o monstro do armário parecer simpático na comparação. Mesmo com todas as garantias de Istvana de que liquidara a antiga Guardiã, ela ainda não tinha certeza de que as manipulações de Ashara não a influenciavam mais, por qualquer forma... e detestava essa possibilidade.

- Se permanecer em Darkover, Marguerida, acabará sendo casada, quer deseje ou não. E mudar de assunto não vai alterar as circunstâncias. Para uma mulher inteligente, você pode às vezes ser muito tola!

Havia impaciência na voz de Rafaella, mas também afeição. Margaret sentiu que seu medo de Ashara tornava a se desvanecer.

- É por isso que não ficarei aqui. É bem provável que renuncie a meu direito ao Domínio de Alton. E depois voltarei para a universidade, que é o lugar a que pertenço.

Margaret tentava permanecer otimista diante das condições mais adversas. Sabia disso. Mas estava determinada a não se envolver mais na estranheza da vida em Darkover, a não usar uma pulseira que convertia uma mulher numa escrava. Ainda não sabia o que faria com o problema de ser uma telepata funcional. Se ao menos pudesse ir embora imediatamente!

- Tem certeza?

Não, não tenho, e você não devia perceber!

- Vamos nos vestir e procurar alguma coisa para comer. Estou faminta.

Liriel era a única pessoa na sala de jantar. Tinha uma tigela vazia à sua frente, e dava a impressão de que considerava a possibilidade de se servir de mais. Levantou os olhos e sorriu quando Margaret e Rafaella entraram.

- Bom dia. Dormiram bem?

- Muito bem, obrigada, mas acho que aquele vazamento no teto continua.

Liriel soltou uma risada.

- A mãe quis me matar por essa referência. Aliás, volta e meia ela quer me matar. Foi um dos motivos pelos quais preferi a vida na Torre. Podemos assim nos manter à distância uma da outra. Ariel vive a cerca de trinta quilômetros daqui. Ela e a mãe estão sempre se visitando. Mas Ariel se dá bem com a mãe, o que nunca foi o meu caso. Somos muito parecidas, a mãe e eu, e duas mulheres determinadas sob o mesmo teto é a receita para a desgraça, não concordam?

- Nunca pensei a respeito, mas tem razão - respondeu Margaret. Ela gostava cada vez mais da prima. Pensou que poderiam se tornar amigas, se permanecesse em Darkover. E até encontrar algum meio de conviver com sua telepatia teria de continuar ali, por mais que quisesse partir. As duas sentaram e uma serva trouxe cereais e frutas. Liriel estendeu sua tigela para uma segunda porção.

- Eu esperava a oportunidade de conversar com você a sós - anunciou Liriel, depois de esvaziar a tigela em tempo recorde. Ela lançou um olhar rápido para a Renunciante, que também a fitou. - Deve permanecer, Rafaella... quando falei a sós, referia-me à minha família intrometida.

- Conseguiu agora - comentou Margaret, cautelosa.

Espero que ela não tente promover a causa de um dos seus irmãos, porque acho que não poderia suportar.

- Nem pensei nisso - declarou Liriel, obviamente captando seu pensamento. - Tenho certeza de que vai ouvir muito isso antes do dia terminar.

o tom era seco, mas a expressão com que fitava Margaret era de simpatia.

- Fui para a Torre a fim de evitar um casamento forçado... com o jovem Dyan Ardais, o amigo de Mikhail. Deve tê-lo conhecido no Castelo de Ardais.

- Conheci, e acho que foi sensata por não aceitá-lo. Ele parece... não estar à altura de seu caráter forte. Mas também é possível que eu o tenha julgado errado, já que conversamos pouco... e mesmo assim apenas sobre coisas triviais.

- É uma maneira gentil de dizer que eu poderia devorá-lo no café da manhã, e ainda pedir um pedaço de carne para completar a refeição.

Todas riram. Um pouco do cereal desceu pelo lado errado da garganta de Rafaella. Margaret bateu vigorosamente entre os ombros, contente por ter uma vazão para suas emoções conflitantes.

- Você está bem? - perguntou Margaret.

- Estou, sim... mas, por favor, não tentem ser engraçadas quando eu estiver de boca cheia.

- Sei que é muito difícil para você compreender nossos costumes - continuou Liriel. - Mas há séculos que funcionam. Considera minha mãe uma inimiga. Não deve pensar assim. Ela cumpre seu dever, conforme o vê. o que nem sempre convém a mim ou a meu irmão Mikhail. Apesar de eu estar absorvida no trabalho de técnica em Tramontana, ela não pára de sugerir que nunca é tarde demais para casar e ter crianças adoráveis.

- Todos em Darkover parecem preocupados demais com o casamento - comentou Margaret. - Fico pensando que a qualquer momento um sacerdote pode pular de um canto escuro e me casar sem pedir licença.

- É uma apreensão equivocada. Temos bons motivos, por nossa história, por nossos costumes, Marguerida. Muitos do Comyn, inclusive meu pai, recusam-se a compreender que os tempos mudaram, que Darkover é diferente do que era no passado. Mas não quero falar sobre nossa movimentada história... embora possa perceber que é um assunto que a interessa. Tive uma longa conversa com tio Jeff ontem à noite, depois que todos se retiraram. Ambos sabemos que você possui o Dom de Alton, em alto grau.

- Como sabem disso?

Margaret sentia-se inquieta, como se alguém a tivesse visto sem a proteção das roupas.

- Chiya, para qualquer telepata é tão óbvio quanto a cor dos seus cabelos. Jeff e Istvana Ridenow já conversaram a respeito. Por isso, sabíamos antes de sua chegada aqui que tinha o Dom.

Mas que coisa! Falam pelas minhas costas, e não há nada que eu possa fazer para evitar! Portanto, há mais do que Armida no desejo de Javanne de me casar com um dos seus filhos... querem ter certeza de que esse maldito Dom não se perderá no turbilhão genético. Eu me sinto como uma vaca premiada, como aconteceu em Mantenon, quando aquele chefe ofereceu a Ivor uma manada por mim. Foi divertido naquela ocasião, mas agora tenho vontade de gritar de raiva!

Margaret conseguiu controlar suas emoções com um esforço que a privou do resto do apetite.

- Sei que você tem razão, mas não acho que isso seja da sua conta - respondeu ela, incisiva, os sentimentos anteriores de cordialidade desaparecendo.

Liriel tinha uma expressão firme, o que proporcionava a seu rosto uma surpreendente grandeza.

- O laran é da conta de todo mundo em Darkover que o possui. Não é igual a outros talentos, como pintar ou compor música, que a pessoa pode aceitar ou ignorar. Se você tem, deve lidar com isso e aprender a usar da maneira apropriada. Caso contrário passará a ser um perigo para si mesma e para todas as outras pessoas que encontrar. Isso acontece ainda mais com o Dom de Alton, porque a capacidade de forçar um contato com outro é como andar com uma flecha na besta. Se alguma coisa a surpreende, você pode disparar sem perceber que não é um cervo, mas a sua própria espécie.

- Compreendo essa situação, e prometo que terei muito cuidado. Mas aonde está querendo chegar?

- Jeff acha que seria sensato se eu a monitorasse. Istvana já a testou, mas sente que seus canais ainda não estão completamente desobstruídos. Ela acredita que você abria novos canais durante sua doença... uma teoria extraordinária. Istvana chegou ao máximo que podia ousar no tempo que passou com você.

- Sei disso. Ela queria que eu fosse para a Torre em sua companhia, mas não posso ir. E não sei explicar por quê.

- Não há necessidade de explicar, prima. - Liriel soltou um suspiro profundo. - Pessoalmente, eu gostaria que você tivesse ido para Neskaya, como ela sugeriu, porque tenho o maior respeito pelas habilidades de Istvana como leronis. Jeff pode fazer o que é necessário, é claro, mas não seria apropriado.

Ela soltou uma risada que era nervosa demais para ser de humor.

- E que os céus nos livrem de fazer qualquer coisa imprópria! Margaret sentia-se sufocada, como se não houvesse ar suficiente na sala para respirar direito. Todos queriam que ela casasse com qualquer homem que tivesse duas pernas, ou encerrá-la numa Torre, a fim de evitar que causasse algum mal. Liriel corou e disse:

- Nossos costumes podem lhe parecer estranhos, Marguerida, porque nunca viveu numa comunidade telepática como a nossa. Temos muitas regras que só fazem sentido em Darkover. Monitorar é uma atividade de intensa intimidade, e não é uma coisa que um homem deva fazer com uma mulher que poderia ser sua filha.

- Está querendo dizer que só fala com seu pai vocalmente?

- Claro que não. Temos muitas discussões em que nenhuma palavra é pronunciada. Mas ele morreria de embaraço antes de me monitorar. Mente a mente não é muito diferente de cara a cara, mas monitorar é muito mais.

- Começo a entender agora. Pensei que Istvana tivesse pedido a Lady Marilla para me monitorar, naquela noite em Ardais, porque já haviam trabalhado juntas antes. Ou talvez eu tenha presumido que não havia mais ninguém na casa que pudesse realizar a tarefa. Mas Mikhail também poderia fazê-lo, não é mesmo?

- Meu irmão é um bom telepata, mas não a teria monitorado, nas circunstâncias, assim como também não a teria despido em seu quarto. Numa Torre é diferente, pois muitas dessas regras não se aplicam, quando se trabalha num Círculo por muito tempo. Jeff é como um pai para fazer o trabalho, e Mikhail... ora, ele tem um problema.

Margaret corou até as raízes dos cabelos. Lembrou outra vez da súbita intervenção de um homem, quando lutava com a pedra da torre de Ashara, como sentira que a segurava, os braços em torno de sua cintura. Desconfiava que fora Mikhail, embora não pudesse imaginar como ele ingressara no mundo superior ou por quê. E era cautelosa demais para perguntar. Ela e Mikhail haviam trocado pensamentos, mas com uma certa prudência, algum constrangimento. Embora tivessem chegado perto da intimidade algumas vezes, não entraram em nada particular. Os dois se encontravam, logo se separavam, como se ambos tivessem medo dos sentimentos que acalentavam.

Ela se perguntou como seria a intimidade com alguém que era capaz de ler seus pensamentos. Como Dom Gabriel escondia sua irritação de Javanne? E como Javanne ocultava sua raiva do marido? Ela concluiu que devia haver um autocomedimento. Refletiu que seu pai e Dio deviam ter muito essa virtude.

Finalmente ela tinha noção do motivo pelo qual o pai parecera se afastar, quando ela se tornara uma moça. Doera, e ela descobria que ainda doía. Quando era pequena, ela adorava Lew. De repente, sem qualquer razão aparente, o pai se tornara frio e remoto. Ficara com medo de tê-lo desagradado de alguma maneira. Por que ele não lhe contara o que estava acontecendo? Por que Dio não dissera nada?

Dio, não podemos cuidar disso sem um Círculo! Não posso me intrometer em sua mente, não quando ela está fechada desse jeito. Nós dois sozinhos não temos condições. E não podemos voltar para Darkover. Aceitei o cargo e vou continuar até o fim, não importa o que aconteça. Pelo menos terei feito alguma coisa certa em minha vida!

O som da voz do Senador ressoou por seus nervos. Liriel também ouviu, pois acenou com a cabeça.

- Você devia captar fragmentos.

- Como era possível? Tive a impressão, pelo que Istvana disse, que eu estava completamente fechada.

- Até mesmo pessoas sem laran captam pensamentos enunciados com uma forte emoção. Achamos agora que é uma característica humana normal, talvez anterior à época em que adquirimos uma linguagem formal. Os Terranan se mostram céticos, mas temos mais compreensão do que eles. - Liriel soltou uma pequena risada, que transmitia com muita clareza seu desdém pelos terráqueos. - É verdade que por gerações acreditamos que o laran era uma coisa especial, limitada ao Comyn. Mas descobrimos nos últimos cem anos que muitas outras pessoas possuem esses talentos em algum grau.

- Mas ainda não entendo por que quer me monitorar.

Rafaella quase que se contorcia em desconforto ao seu lado. Margaret ofereceu-lhe um pequeno aceno de cabeça, e a Renunciante apressou-se em deixar a mesa. Não se sentia muito feliz em ver a amiga se retirar, mas compreendia que Rafaella devia pensar que estava se intrometendo.

- Você foi ofuscada quando era muito pequena. Alguns dos canais foram desobstruídos, mas o dano persiste. Jeff e eu achamos que é muito importante ficar atenta a você, ter certeza de que está curando.

- Curando? Fui deixada no orfanato até que pudesse ser útil. Depois, fui mantida na ignorância de tudo, porque o Senador decidiu que era mais importante cuidar de Darkover do que de mim. E de repente o Destino me traz para cá, sou a mulher mais desejada para o casamento no planeta, e você quer ter certeza... ora, que se danem todos!

Para surpresa de Margaret, Liriel não ficou nem um pouco consternada com sua explosão.

- E por essas razões, exatamente por essas razões, que eu quero monitorá-la, Marguerida. Fica furiosa, e tem motivos para isso. Mas não é capaz de perceber que essa raiva é perigosa, não apenas para você, mas com qualquer pessoa para a qual possa liberar esses sentimentos, por uma palavra ou um olhar. Sou treinada e por isso bem protegida, mas o mesmo não acontece com outras pessoas, como sua amiga Rafaella. Você pode literalmente matá-la com sua raiva.

- Eu nunca faria mal a Rafaella. Ela é minha amiga... como a irmã que eu sempre desejei. - Margaret respirou fundo, meio trêmula. - Desculpe. Não quis demonstrar autocompaixão. Sei que ninguém quis me magoar... não intencionalmente.

- Marguerida, sabe o que acontece quando alguém põe água num caldeirão fechado e mete no fogo?

- Conheço o suficiente de física para saber que, se não houver um meio para o vapor escapar, o caldeirão vai explodir.

- Eu não a chamaria de caldeirão. É mais como um alambique refinado, transparente e frágil, mas também forte. Mas, se você pára de abrir um alambique, também acaba explodindo.

- E, para continuar sua metáfora, vai atingir todas as pessoas que estiverem nas proximidades. Eu gostaria de nunca ter vindo para Darkover.

- Mas, como você disse, era seu destino. E gosta daqui, embora nos ache esquisitos.

Margaret suspirou. Permaneceu em silêncio por um longo momento.

- Tem razão. Sempre desejei alguma coisa que não podia definir. Mas quando vi o sol se pondo por trás da cidade e senti o aroma da comida, descobri do que se tratava. Era Darkover. Passei a maior parte da minha vida no exílio, e agora voltei para casa. Se eu soubesse, poderia ter voltado há muito tempo, mas... mas Liriel, não quero ser uma telepata!

- Não é mais uma coisa que você possa querer ou não querer. É o que você é. E para o seu próprio bem... e dos outros... vai precisar de um monitoramento constante. Porque agora que o Dom foi despertado, vai crescer, aumentar e mudar. E você vai mudar. Sinto muito, mas será mesmo assim.

- Não sente tanto quanto eu. Muito bem... faça o que for necessário. Serei uma boa menina.

Margaret não se sentia nem um pouco como uma boa menina. Era mais como uma tempestade prestes a desabar.

- Vamos para o meu gabinete. A mãe me reserva uma sala, embora relutante, para que eu possa ficar sozinha. Ninguém vai nos interromper ali.

- Nem precisam. Podem muito bem meter o nariz sem...

- Não diga bobagem, Marguerida. - A mulher enorme levantou-se, com uma agitação do tecido verde. - Meu pai, que é muito rigoroso e correto, nem ficará dentro de casa enquanto trabalhamos, e Jeff não é nem um pouco bisbilhoteiro.

- E sua mãe?

Margaret sentia-se repelida pela perspectiva de Javanne tomar conhecimento de seus pensamentos. Liriel sorriu.

- Ela ficará curiosa, porque é a sua natureza, mas não vai se intrometer.

- Por que não? Boas maneiras?

- Em parte. Mas é mais bom senso. Você é tão forte que poderia quase abater qualquer pessoa nos próximos dias, se por acaso se sentir ameaçada.

- Eu poderia?

Margaret seguiu a prima pelo vestíbulo, considerando essa possibilidade. A idéia de que tinha o poder de fazer mal às pessoas sem levantar um dedo sequer era ainda mais aterradora do que ser uma telepata.

A sala em que as duas entraram um instante depois era pequena, dando para um pátio aberto, diferente do que havia na frente da casa. As pedras estavam dispostas num padrão circular, em vez de retangular. Mas, antes que Margaret pudesse dar uma boa olhada, Liriel fechou a cortina. Ela correu os olhos pela sala. Havia almofadas que pareciam macias sobre um grosso tapete verde. Ao longo de duas paredes havia prateleiras com livros. As paredes revestidas de madeira refletiam a luz dos lampiões. Margaret foi ver os livros.

- É a sua biblioteca pessoal?

- Isso mesmo. Comecei com os livros que haviam sido deixados na casa, alguns de seu pai, outros do avô Kennard, embora ele não fosse um leitor habitual. Há livros que Ann'dra Carr importou quando viveu aqui, em Padrão Terráqueo, e outros que mandei trazer de Thendara. A mãe sempre disse que eu estragaria a vista com a leitura, mas até agora isso não aconteceu.

Era uma coleção eclética, de volumes de histórias para crianças a trabalhos de mapeamento e levantamento topográfico, além de romances de toda a Federação. Margaret viu uma coleção de poesias, como um livro da Terra na era pré-espacial, de Rupert Brooke, e outro de Gala Montaral, que vivera e morrera em Tau Ceti V duzentos anos antes. Como amava os versos de Gala, ela pensou muito bem de Liriel por encontrar um espaço para aquele volume em sua biblioteca. o brilho da lombada indicava que era lido com freqüência; já a ausência de poeira revelava que fora manuseado há pouco tempo.

- Eu já começava a pensar que não havia ninguém em Darkover que gostasse de ler.

- De um modo geral, não é um passatempo tão comum como cantar, costurar ou caçar, mas nem todos nós somos caipiras ignorantes.

- Nunca imaginei que fossem, mas me surpreendi ao encontrar tão poucos livros aqui. Havia alguns no Castelo de Ardais, mas estes são muito mais interessantes. Isso é tudo.

- Vamos sentar ao lado do braseiro.

Margaret obedeceu, ignorando sua apreensão. Tinha a sensação de que consultava um médico; seria sondada, medida e examinada. Era uma sensação que não lhe agradava nem um pouco. Ela acomodou-se numa almofada grande e observou Liriel jogar um punhado do que parecia ser ervas daninhas no pequeno braseiro. Irromperam em chamas assim que encostaram nas brasas, projetando uma nuvem de fumaça clara. Um cheiro agradável espalhou-se pela sala, uma fragrância que induzia à sonolência, como ervas sob um sol quente de verão. Ela notou que um pouco de sua inquietação começou a se desvanecer. Perguntou a Liriel:

- O que está queimando?

- Apenas algumas flores secas. Têm um efeito calmante, um pouco parecido com o incenso. E uma criação minha, e admito que me sinto um pouco orgulhosa. Um dos livros aqui é um herbário, o Koolpipper, e me deu a idéia. Colhi algumas ervas, consultei algumas velhas que costumavam usá-las, e experimentei até obter o efeito que queria.

- Koolpipper? Ah, sim, está falando do Culpepper.

- É assim que vocês dizem? Conhece o livro?

Ela sorria, parecendo bastante satisfeita. Margaret estava surpresa. A rima era uma incessante fonte de surpresas. Nunca esperara encontrar alguém como ela em Darkover.

- Conheço. Fiz um curso de botânica exótica quando estava na universidade, para obter parte dos créditos em ciências. O Culpepper era parte das leituras opcionais. É um livro antigo, anterior à época em que os terráqueos se aventuraram pelo espaço. Por algum motivo, continua a ser republicado e traduzido. Devo sentir que meu corpo se torna leve como uma pluma?

- Deve se sentir relaxada - respondeu Liriel, um pouco preocupada. Margaret soltou uma risada.

- Se eu ficar mais um pouco relaxada, acabarei dormindo. Já me sinto sonolenta, mas não demais. Com a sensação de que nada no mundo importa. É bastante relaxado para você?

- Está ótimo. Você é muito tensa, Marguerida. - Liriel fez uma pausa.     Vigilante talvez seja uma palavra melhor. Ou superalerta? Sabe por que isso acontece?

- Posso adivinhar. Quando eu era Marguerida Kadarin...

- Quando você era o quê!

Liriel teve um sobressalto, depois assumiu uma expressão estranha. Margaret não respondeu de imediato, dominada por estranhos sentimentos, todos remotos.

- Era chamada assim no orfanato. Estranho... Não me lembrei até que você perguntou por que estou sempre ansiosa. Havia uma garota ali, da minha idade, mas maior do que eu, que gostava de beliscar, arranhar e morder. E parecia adorar me beliscar. Mais tarde, quando deixei o orfanato, estava. .. estava com minha mãe, ela se mostrava alegre num momento, desatou a chorar no instante seguinte. Eu tentava me fazer bem pequena, para que ela não me visse. - Margaret soltou uma risada trêmula. - Acreditava que podia me tornar invisível, se tentasse com todo o empenho.

E ele era ao mesmo tempo gentil e indiferente... Robert Kadarin.

- Entendo. Foi o que tentou no jantar ontem à noite, não é mesmo... se tornar invisível?

- Acho que sim. Sua família parecia de repente um tanto opressiva.

- Nossa família, Marguerida. E você tem toda a razão, ainda mais quando Ariel se acha presente com todas as crianças. Ela não suporta deixar as crianças longe de sua vista. Não sei o que minha irmã fará quando elas crescerem e quiserem sair de casa. Ela e Piedro Alar vigiam as crianças como se tivessem medo de que algum falcão possa levá-las. Somos gêmeas, mas muito diferentes na disposição. Ariel está sempre desanimada e preocupada, enquanto eu vivo alegre. Sempre foi assim.

- Sei que há um alto índice de mortalidade infantil em Darkover. Ariel perdeu algumas crianças... é por isso que ela vive tão preocupada?

Liriel sacudiu a cabeça, o que fez os cabelos compridos esvoaçarem.

- Minha irmã tem sido extremamente afortunada. Todas as suas crianças sobreviveram. Jamais vi um bando de pirralhos tão saudável. Mas ela considera que não tem nenhum valor pessoal, exceto como mãe. Não creio que saiba o quanto Piedro a adora. Minha mãe pode ter promovido a união, mas escolheu bem para Ariel. Ela está grávida de novo, embora ainda não dê para perceber. Uma menina, finalmente. Espero que ela pare depois disso, pois está se matando, tendo uma criança a cada dois anos.

- Como sabe que é uma menina?

- Sou uma técnica, Marguerida. Além disso, Ariel e eu passamos meses juntas na barriga da mãe, antes de respirarmos o ar de Darkover. Sempre sei quando Ariel concebeu, e também conheço o sexo da criança. É parte do meu laran.

- Não entendo direito toda essa história de laran. É mais do que apenas telepatia, não é mesmo? Istvana Ridenow me disse que o seu dom era o da empatia. Embora compreenda do que se trata, em termos intelectuais, não tenho a menor noção emocional. E passava muito mal para prestar mais atenção a qualquer coisa que ela dizia, a não ser que se referisse diretamente a mim. Que egoísmo!

Margaret teria querido sumir de vergonha, mas o incenso fazia com que todas as suas emoções parecessem vagas e distantes.

- Tem razão, prima, é mais do que telepatia. Cada família dos Domínios possui um Dom, isto é, um talento que está no sangue. O Dom de Alton é o do contato forçado, o que significa a capacidade de entrar na mente de alguém, quer seja ou não telepata. Por esse motivo, os outros Domínios sempre desconfiaram de nós. O contato forçado pode matar, e é por isso que Jeff e eu achamos tão importante monitorá-la. Os Ardais são catalisadores, e podem despertar o laran dos outros. Os Aldarans possuem o Dom da precognição... e você pode tê-lo também.

- Ah, assim é demais! Já não basta poder me intrometer nas mentes das outras pessoas quer elas queiram ou não. Agora, sou capaz também de prever o futuro. Mas espere um pouco... por que eu teria o Dom de Aldaran? Lady Marilla pensou alguma coisa, quando lhe perguntei sobre os Dons. Não me disse muito, e ficou nervosa quando falei sobre os Aldarans.

- O pai de Thyra Darriell foi Kermiac Aldaran. A mãe de seu pai foi Yllana Aldaran, que era meio Terranan. Portanto, você tem a linhagem de Aldaran pelos dois lados.

- Já entendi. Mas acho que não tenho o Dom de Aldaran. Se tivesse alguma precognição, nunca teria vindo para Darkover.

Mesmo enquanto falava, Margaret já sabia que não era bem assim.

- A capacidade de prever o futuro não é a mesma coisa que ser capaz de evitá-lo, Marguerida. Agora, vamos começar.

Liriel tirou um cordão de baixo da túnica. Margaret viu uma pequena bolsa, parecida com a que Istvana usava. Ela tirou alguma coisa lá de dentro. Removeu várias camadas de invólucro até o cristal aparecer.

Margaret teve de fazer um esforço para reprimir o impulso de se levantar e sair correndo da sala, tão grande era o seu terror da pedra reluzente nas mãos da prima. Contraiu os ombros e comprimiu os dentes, à espera da voz odiada e familiar que a dominara em Ardais. Como a voz não se manifestasse depois de vários minutos, ela relaxou um pouco.

- Tenho de lhe dizer, Liriel, que não gosto dessas coisas.

- Sei disso. Mas basta olhar calmamente. Não tente tocar. Nunca deve tocar na matriz sintonizada de outra pessoa. Pode lançá-la num choque profundo, até mesmo causar sua morte.

Em vez de olhar para o cristal, Margaret abriu a mão esquerda e lentamente removeu a luva. Estudou sua palma. Sentiu a surpresa de Liriel por sua ação... surpresa, mas não alarme.

As linhas azuis em sua pele pareciam um pouco esmaecidas agora, mas ainda dava para divisar o padrão. Se ao menos ela pudesse entender o que aquelas linhas significavam... Sentiu uma tênue pulsação por baixo da pele, como o movimento de alguma energia que não era exclusivamente de seu corpo. Margaret estremeceu quando as linhas começaram a escurecer, num azul cada vez mais intenso.

A sala ao seu redor tornou-se vaga, um lugar de sombras. A técnica sentada à sua frente não parecia com Liriel. Era mais uma imagem de luz, sem muita definição, linhas de energia sem qualquer carne ao redor. Abruptamente, até mesmo isso desapareceu. Margaret mergulhou em sua própria mente, uma visão escura.

Um corredor sinuoso estendia-se à sua frente. Uma mulher gritou em algum lugar. Foi um som terrível. Ela sabia que a fonte era aquela mulher, a desconhecida que se chamava Thyra Darriel, sua mãe. Havia uma certa loucura no grito. Ela sentiu que encolhia, tornava-se pequena e ansiosa, cada vez mais cautelosa. Uma voz, uma voz de homem, ressoou em sua mente:

- Ela está louca... perdeu o controle!

Soaram mais gritos. Ela reconheceu a voz de Lew Alton e uma outra... o homem prateado. Conhecia-o agora, sabia que era Robert Kadarin, que lhe dera seu nome por algum tempo e a levara para o orfanato, afim de protegê-la da instabilidade de Thyra. Ela lembrou a travessia do rio que se chamava Kadarin, como se tornara assustada. Agora sabia por quê.

E se eu ficar louca como minha mãe?

Abruptamente, a escuridão de sua mente se dissipou. Ela voltou à sala aconchegante, com um cheiro agradável e cheia de livros, na companhia da prima Liriel. O crânio ainda latejou por um minuto, mas a dor de cabeça logo cessou, como se nunca tivesse existido. Descobriu que ofegava um pouco, como se tivesse corrido. Num esforço deliberado, normalizou a respiração, o treinamento como cantora ajudando mais uma vez.

A questão da loucura persistia em sua mente, ainda mais assustadora do que o medo do fantasma de Ashara. Ela estremeceu e.encolheu os ombros, olhando para a mão sem luva com ódio e raiva. Se ao menos não tivesse arrancado aquela pedra da Torre dos Espelhos! Nada disso estaria acontecendo, se não tivesse mexido na pedra. Mas, se ela não o fizesse, então Ashara ainda continuaria presente, ordenando que ela se mantivesse apartada, impedindo-a de ser tocada ou tocar as outras pessoas.

Quando finalmente olhou para Liriel, descobriu que a técnica estava guardando a matriz. Percebeu um brilho de suor na testa larga de Liriel. Os ombros vergados indicavam um extremo cansaço.

- Você é muito forte para mim, Marguerida.

- Não tive a intenção de esgotá-la.

Margaret sentia-se envergonhada, mas tão envolvida por emoções conflitantes que sua manifestação de pesar foi mais em tom gracioso do que qualquer outra coisa. Sua vontade era fugir, se esconder, morrer. o que lhe permitisse escapar de tantos sentimentos, nenhum dos quais era agradável, e todos se opondo uns aos outros. Era uma sensação terrível ser apanhada no turbilhão de sentimentos que não podia controlar nem reprimir.

- Não me esgotou. Estarei bem daqui a pouco. Mas você é muito poderosa. .. deve ir para uma Torre, receber algum treinamento.

A perspectiva fez com que o ar ficasse retido nos pulmões, Margaret sentiu que sufocava.

- Não posso!

Se as pessoas não pararem de me dizer o que devo fazer, vou acabar enlouquecendo. .. e não haverá mais nenhuma dúvida de que sou mesmo parecida com Thyra! Como se ela não tivesse falado, Liriel continuou:

- Acho que Arilinn é a melhor opção. Jeff trabalha ali, e tenho certeza de que eu poderia obter permissão para...

- Não vou para nenhuma Torre!

- Seu pai esteve em Arilinn.

- Não ouviu o que eu disse? - gritou Margaret. - Não sou meu pai, e não vou para nenhuma Torre! Não quero ser Rapunzel!

Liriel fitou-a impávida por um momento, antes que um sorriso se espalhasse por seu rosto.

- Rapunzel! Há anos que li essa história. Tinha esquecido que ela ficou presa numa torre. Não, Marguerida... não é nem um pouco parecido. Não estou sugerindo que seja trancafiada, deixando crescer os cabelos para escapar. Precisa ser treinada, aprender a usar seus talentos.

Margaret não pôde mais conter as lágrimas.

- Sei disso, mas não consigo suportar a idéia de ficar trancada de novo!

Ela sentiu que seu coração liberava alguma coisa, uma estranha partícula de energia, um fragmento congelado que nem sabia que existia até o momento em que desapareceu. A tensão diminuiu um pouco, e ela fez um esforço para não relaxar por completo. Só mantinha o controle pela contração do corpo, a tensão da mente e dos músculos!

- De novo?

A Torre dos Espelhos se destacava na Planície, fria sob o céu sem estrelas. Mais uma vez inclinou-se em sua direção, mais uma vez espatifou-se em incontáveis fragmentos.

- Não voltarei para lá!

- Esse lugar desapareceu, Marguerida. Só existe em sua memória... embora eu tenha a impressão, pelo volume com que transmitia, que todo telepata em Darkover tem a mesma imagem agora. Você destruiu essa construção. Não precisa mais temê-la.

Margaret ergueu a mão esquerda e virou a palma para Liriel.           i

- Pode ver as linhas?

- Vejo alguns traços azuis quase apagados. o que é isso... uma tatuagem? Fez em outro mundo? Notei a luva que usava na noite passada, e não pude deixar de especular. Parecia deslocada, com seu lindo vestido.

- Adquiri as marcas aqui. Descobri que estavam gravadas em minha mão, quando voltei do mundo superior. Eram mais intensas antes. Têm os contornos exatos da pedra que arranquei da Torre dos Espelhos. Istvana não contou nada?

Liriel afastou uma mecha de cabelos do rosto, com uma expressão pensativa.

- É muito mais do que eu imaginava. Entendi errado. Claro que Istvana informou, mas não disse que a coisa tinha uma forma física. Talvez ela não tivesse certeza do que era na ocasião.

A técnica ficou em silêncio. Margaret teve certeza de que ela conferenciava com alguém fora da sala.

- Você fez uma coisa extraordinária, prima - comentou ela, depois de um longo momento. - Trouxe uma matriz de sombra do mundo superior.

Margaret removeu as lágrimas do rosto com a manga.

- o que eu sempre desejei... uma matriz de sombra. Como se já não fosse bastante ruim o fato de minha mãe ser uma lunática e meu pai não suportar me ver, também tenho o Dom de Alton, e agora, ainda por cima... Como posso me livrar desta coisa?

- Acho que não pode. Tem de aprender a conviver e usar. Se não me engano, a marca em sua mão é o que resta de Ashara Alton.

- Istvana falou-me um pouco sobre ela em Ardais. Não o suficiente para satisfazer minha curiosidade... mas nada jamais a satisfaz. Passei anos com essa Ashara dentro de mim. Agora você diz que posso tê-la destruída, mas ela ainda persiste, gravada para sempre em minha mão. Pois cortarei minha mão!

Margaret sentiu que a histeria subia por sua garganta. Ela acrescentou, amargurada:

Afinal, não ter uma das mãos é quase uma tradição na família, não é mesmo?

- Pare com isso!

- Não quero uma matriz de sombra! Não quero qualquer tipo de matriz! Detesto todas essas coisas! Não quero ser uma telepata ou todo o resto exceto Margaret Alton, uma pesquisadora!

- Pode ter certeza, Marguerida, que eu compreendo sua posição. É tudo muito novo para você. Ainda não pode perceber que não é um fardo, mas algo...

- Não tente me convencer de que é uma dádiva! É uma maldição, como você sabe muito bem!

Ela podia sentir que a raiva fazia seu sangue ferver. Ficou surpresa e um pouco satisfeita ao constatar que não perturbava Liriel nem um pouco. Margaret sempre temera sua própria raiva. Era uma experiência nova encontrar alguém que podia aturá-la sem mandar que se calasse ou ordenar que se retirasse imediatamente.

- Não, chiya, não é uma maldição, embora talvez passe algum tempo antes de você compreender que não é. Mas é uma coisa de que não pode se livrar. E melhor começar a aceitar isso, para sua paz de espírito.

- Paz de espírito? Esqueci por completo o que é isso... se é que algum dia eu soube!

O cheiro persistente do incenso e a calma de Liriel fizeram com que as emoções de Margaret começassem a se dissipar, como se fossem a fumaça que se elevava do braseiro. Um resquício de serenidade insinuou-se em sua mente, contra a sua vontade.

- Pode pelo menos me falar mais sobre Ashara. Creio que eu poderia lidar melhor com o problema se soubesse mais... minha mente de pesquisadora quer dados, o máximo que puder.

- Lamento, mas não sei muito mais do que Istvana já contou. Temos poucos registros daquela época. Ela foi uma Guardiã, há muitos séculos, na época em que as leroni eram virgens. Foi exilada de Hali... os motivos se perderam... e despachada para Thendara. Morreu, mas de alguma forma conseguiu continuar... permaneceu depois que seu corpo desapareceu, passando a ofuscar outras Guardiãs. Pensávamos que Callina Aillard tivesse sido o último recipiente.

- Quem foi ela?

- A Guardiã de Neskaya durante a Rebelião de Sharra - respondeu Liriel, sem prestar muita atenção. - Não consigo entender. Jeff terá de levá-la para Arilinn imediatamente.

Chiya, não deixe que a mandem embora as pressas! Permaneça em Armida. E não tenha medo, minha Marja. Não tenha medo.

A intromissão repentina de Lew Alton em sua mente surpreendeu-a, pois ele parecia muito próximo, mas ao mesmo tempo distante. Foi um gesto tão confortador, tão tranqüilizador, que Margaret sentiu um profundo alívio depois da surpresa inicial. Era como se ele estivesse na sala, ou nas proximidades. Ela acreditou no pai e sentiu-se protegida. Sem qualquer motivo tinha certeza de que ele acertaria tudo de novo. Mas logo se criticou por suas ilusões. Lew Alton nunca cuidara dela antes. Por que deveria confiar nele agora?

Margaret considerou todas as suas opções, com toda a objetividade possível, apesar do coração disparado e da mente repleta de conflitos. Podia deixar Darkover e assumir o risco do contato forçado com algum estranho que a aborrecesse... o que parecia ser uma possibilidade bem palpável, sem qualquer treinamento real. Compreendia a necessidade de disciplina formal. Afinal, não aprendera música em um dia ou um mês.

Podia ir para uma Torre e se arriscar a lesionar alguém como Liriel com as energias que agora possuía, mesmo contra a sua vontade. Sabia que Liriel não fazia idéia do poder latente na palma de sua mão. Margaret também não sabia, mas calculava que havia um tremendo potencial. Podia casar com um homem apropriado de Darkover e torcer para que seu laran desaparecesse com a virgindade, como parecia ter ocorrido no passado. Ou podia confiar no Velho.

Entre todas essas possibilidades igualmente repelentes, confiar no pai parecia ser a menos desagradável. Lew podia não ter sido um bom pai, mas Margaret tinha certeza de que ele sempre se preocupara com os melhores interesses da filha. Nunca a encarara como um meio para alcançar o poder, um trunfo a ser possuído e usado. No momento, era o melhor que ela podia fazer. Depois de decidir esse problema, Margaret teve um senso de lucidez. Havia coisas além do seu controle, o que detestava, mas não tinha como evitar. Teria de tirar o melhor proveito de uma situação terrível.

Não vou argumentar com você, Liriel. Já chegou a uma conclusão, e eu também... só que nossas posições não combinam. A menos que você planeje pedir aos guardas de seu pai que me levem à força para Arilinn...

Nunca faríamos isso, Marguerida. - Liriel estava chocada e consternada, além de magoada. - Como pode pensar numa medida tão absurda?

Margaret soltou uma súbita risada e sentiu que a pressão em seu peito se abrandava.

- Chega de discutir. Já li muitos romances ordinários, e neste momento minha opinião sobre a humanidade é a pior possível. Vamos sair daqui antes que eu perca o controle de novo, está bem?

Ela tornou a pôr a luva de couro na mão, enquanto levantava.

- Você tem razão, Marguerida. Não podemos fazer mais nada. Liriel se mostrava triste, com uma expressão de pesar nos olhos azuis.

Nós, Altons, somos sempre obstinados. Não posso imaginar por que pensei que ela concordaria sem hesitar. Terei de torcer para que Jeff possa persuadi-la afazer a coisa certa.

 

19

Ao saírem da sala, Margaret descobriu que sentia muita fome e sede. Não queria vinho, chá de ervas ou cerveja. Acima de qualquer outra coisa, queria naquele momento um bule de café bem forte, com creme e muito açúcar. Ela riu de si mesma. Liriel lançou-lhe um olhar inquisitivo, sem entender a causa daquela erupção divertida. A fonte mais próxima de café era Thendara, uma viagem e tanto.

- Vocês não têm condições de teleportar para mim um quilo do café Montanha Negra de Aldebaran, não é mesmo? Ninguém jamais mencionou um Dom assim... mas também não conheço todos, não é mesmo?

- Não, não conhece. Mas talvez Jeff tenha trazido um café. Ele jamais perdeu o fascínio pelo café... uma bebida horrível, na minha opinião, mas não há como explicar as preferências pessoais. Tenho certeza de que ele ficaria contente em partilhar com você.

Liriel não respondeu à pergunta sobre teleportação. Margaret decidiu não insistir, pelo menos por enquanto. Não era importante, desde que ela não tivesse de começar a fazer. Ergueu os braços acima da cabeça e esticou-os. Ouviu o estalo na coluna.

- Não quero ir para Arilinn, prima, mas poderia até considerar a possibilidade por uma xícara de café.

Liriel fitou-a, os olhos faiscando.

- Muito estranho. Nunca me passou pela cabeça que você poderia ser subornada.

- E porque nunca ninguém tentou me subornar antes.

As duas desceram pelo corredor, rindo juntas, na harmonia da experiência partilhada e do respeito mútuo. Margaret gostava daquela prima quase tanto quanto gostava de Rafaella, o que era muito. Ao se aproximarem da sala de jantar, foram recebidas pelo cheiro de café fresco. Margaret sorriu.

Diversas vozes soavam na sala de estar, várias estridentes. Margaret compreendeu que sua prima Ariel se encontrava ali, com as crianças. Ela suspirou e deu de ombros. Gostaria de se sentir tão amiga de Ariel Lanart-Alar quanto era de Liriel, mas nada podia fazer. A desanimada prima deixava-a arrepiada, enquanto as crianças eram enigmas para ela.

A mesa fora posta para a refeição. As crianças comiam e falavam de boca cheia. Margaret notou a ausência de Dom Gabriel e seus filhos à mesa. Especulou onde eles estariam. Sentiu uma pontada de desapontamento por não encontrar Mikhail ali. Talvez ele tivesse partido de novo, mas Margaret torcia para que não.

Logo, no entanto, as exigências de seu corpo prevaleceram sobre todos os pensamentos. Ela examinou a mesa. Ficou muito satisfeita com a seleção. Havia bandejas com carnes frias, travessas com frutas, vários tipos de pão. Tudo aquilo, combinando com o aroma do café, deixou-a com água na boca. Javanne presidia da cabeceira da mesa. Assim que avistou Margaret, fez menção de levantar. Margaret sacudiu a cabeça para a tia, que tornou a sentar.

Ela ocupou uma cadeira vazia entre Javanne e um dos meninos pequenos. Ele parecia ter sete ou oito anos de idade, com os mesmos cabelos escuros do pai. Foi logo anunciando, com a boca cheia de fruta:

- Sou Donal Alar.

- Não fale de boca cheia, Donal - repreendeu Javanne.

A voz era tão suave que Margaret ficou espantada. Nunca desconfiara que a tia pudesse ser tão terna. o menino engoliu depressa.

- Tenho quase sete anos - informou ele, com o maior orgulho. - E já sei montar a cavalo... isto é, num pônei.

- Isso é ótimo.

Margaret não sabia como conversar com o menino. Tivera contato com inúmeras crianças, em muitos mundos, mas nunca aprendera a se sentir à vontade com elas. Perguntou-se agora por que isso acontecia. Desconfiava que alguma coisa na maneira como Ashara a ofuscara era a causa. Tinha uma longa lista de ressentimentos para cobrar da antiga Guardiã. Sentiu-se melhor ao se imaginar sacudindo um dedo para aquela monstruosa criatura, equanto lhe passava uma descompostura. Talvez algum dia ela deixasse de ter medo.

Jeff entrou na sala com uma bandeja nas mãos. Javanne fitou-o com uma expressão infeliz. Uma serva o acompanhava, tentando pegar a bandeja mas Jeff ignorou-a. Pôs uma caneca na frente de Margaret. O aroma do café envolveu-a. Ele também largou na mesa um pote com creme e outro com mel, sorrindo.

- Lamento, mas não é Montanha Negra... você já bebeu esse café? Às vezes penso que não passa de um mito, de tão fantásticas que são as histórias a seu respeito. Este é o Novo Queniano, e acho que vai agradar a seu paladar. Não temos açúcar, infelizmente, mas o mel de tomilho é um bom substituto.

- Obrigada, tio Jeff. Adoro o Novo Queniano.

- Então providenciarei para que haja sempre um suprimento aqui em Armida à sua disposição.

- É muita gentileza sua, mas a oferta presume que continuarei aqui, não é mesmo? - Margaret fitou-o com uma expressão dura, e ele teve a cortesia de desviar os olhos. - Já tomei o Montanha Negra... uma vez. Houve uma grande recepção formal na universidade, com um jantar que se prolongou por horas. Serviram depois da refeição. É de fato tão extraordinário quanto dizem as histórias a seu respeito. É diferente de todos os outros cafés que já experimentei. Faz a pessoa se sentir... Não dá para descrever. Quando serviram o café, todos no salão ficaram em silêncio. Um velho professor emérito, Doctoran Hildegard, famoso por seu agnosticismo, tomou um gole e declarou que tinha agora uma prova concreta da Divindade.

Margaret riu, ao se lembrar.

Era tão saboroso assim? - Jeff também riu. - Fico contente por ter alguém na família que partilha meu prazer por um bom café. Em Arilinn, todos se comportam como se eu tivesse um vício secreto por gostar de café.

Margaret despejou creme e mel em sua caneca, mexeu bastante. E bebeu. Estava delicioso, feito com perfeição.

- Faz um excelente café, tio.

Ela começou a empilhar carne em seu prato. A fome era enorme, embora tivesse comido o desjejum há menos de três horas.

- Obrigado, Marguerida.

Donal puxou a manga de Margaret.

- Sabe montar a cavalo?

- Sei, sim, Donal.

- Não perturbe sua prima, enquanto ela estiver comendo - protestou Ariel, balançando um bebê nos joelhos. - Kennard, você já comeu demais! Vai passar mal se comer outro pedaço de bolo, e eu ficarei muito zangada!

O menino em seu colo parecia ter dois ou três anos. Lançou um olhar desdenhoso para a mãe, depois estendeu a mão roliça para a bandeja com os pedaços de bolo.

- Como consegue se arrumar com tantas crianças? - perguntou Margaret, tentando encontrar um terreno comum para conversar com Ariel.

- Tantas? - Ela contemplou sua prole com uma expressão ao mesmo tempo presunçosa e ansiosa. - São apenas cinco... Kennard aqui, com dois anos. Lewis, que recebeu esse nome em homenagem a seu pai, tem agora quatro anos.

Ela apontou para um menino corpulento ao seu lado, enquanto tentava evitar que o caçula pegasse outro pedaço de bolo.

- Há ainda Donal, ao seu lado, mais Domenic e Damon. Estão com oito e dez anos. Espero que a próxima criança seja uma menina. Ou talvez duas. É muito triste para você chegar à minha idade sem ter filhos. Deveria casar o mais depressa possível. Não há nada mais importante para uma mulher do que ter filhos.

Margaret não pôde pensar em nenhuma resposta que não fosse grosseira. Por isso, apenas comeu mais um pouco de carne e tomou mais café. Sentia-se cansada do tempo que passara com Liriel na sala de estar. o café servia para revigorá-la. Não podia imaginar que uma mulher com cinco crianças desejasse mais, mesmo que dispusesse de babás e criadas para ajudar a cuidar dos filhos. Mas, pela maneira como Ariel se devotava aos meninos, Margaret desconfiou que ela recusava qualquer ajuda, preferindo se consumir no trabalho.

- Qual dos meus irmãos vai escolher... Rafael ou Gabriel?

Ariel fez a pergunta na mais completa inocência, aparentemente sem saber que Margaret já recusara o pedido de Rafael. Ela notou a ausência do nome de Mikhail e experimentou uma pontada de raiva. Todos tratavam-no como se ele não existisse. Margaret perguntou-se por que Mikhail os aturava Era evidente que Mikhail era mais submisso do que ela. Irritava-a que ninguém jamais o mencionasse como um possível marido para ela. Embora compreendesse vagamente os motivos, ainda assim ela os considerava estúpidos.

- São bons homens, firmes e confiáveis - continuou Ariel, com a intenção óbvia de enaltecer as virtudes dos irmãos.

- Tenho certeza de que ambos são extremamente virtuosos, Ariel, mas não estou pensando em casamento.

Ariel ficou chocada.

- Mas seu dever é claro! Deve casar, o mais depressa possível, pois senão estará muito velha para ter crianças saudáveis!

Javanne, ao lado de Margaret, parecia prestes a explodir. Lançou um olhar furioso para a filha, mas Ariel parecia alheia à ira da mãe.

- Dever? - repetiu Margaret, contendo seus sentimentos tão bem quanto podia.

- Exatamente! Lewis, não belisque Kennard! A mãe diz que você tem o Dom de Alton, e precisa ter filhos para que não se perca. E agora me diga: qual dos meus irmãos você gostou mais? Admito que Gabe não é muito de falar. Mas, como você fala demais, talvez um homem quieto seja o mais conveniente.

Aquilo já passara dos limites. Margaret disse, um tanto ríspida:

- Será que ninguém em Darkover pensa em outra coisa que não conservar o laran? Vocês parecem obcecados por isso.

Ariel inclinou-se para trás, como se tivesse sido agredida. Margaret sentiu-se estúpida e mal-educada. Claro que a prima era irritante, mas isso não era motivo para ser grosseira.

- Não tive a intenção de ofendê-la, prima. Mas, com toda a sinceridade, não consigo entender seu comportamento.

Obcecados por laran? Como ela ousa dizer isso? Está zombando de mim porque tenho tão pouco? Eu seria capaz de matá-la por sentar aí, com seus olhos dourados, fitando-me como se eu fosse um inseto! Por que todos são contra mim?

Ariel falou com mais veemência do que Margaret julgava que ela fosse capaz, as faces pálidas se tornando vermelhas no arrebatamento. Parecia quase transformada, uma mulher muito diferente. Havia um brilho em seus olhos que fez Margaret ter vontade de se encolher em apreensão, pois não era de absoluta sanidade. Mas logo as faces voltaram a ficar pálidas, e Ariel acrescentou:

- Suponho que você é apenas egoísta, como seu pai. Deve ser seu sangue Terranan. Se fosse criada direito, já teria casado e gerado várias crianças... e saberia qual é o seu lugar.

- Ariel!

Javanne falou em tom brusco. A pele entre o queixo saliente e a gola de rufos amarelada tremeu em fúria. Eu não deveria tê-la convidado para ficar aqui! Ninguém pode controlá-la quando ela está assim!

- O que foi? Estou cansada de ver todo mundo pisando em ovos e tratando Marguerida como se fosse uma princesa. Se ninguém mais vai lhe explicar suas obrigações, então eu o farei. Ela é um pouco melhor do que uma criança mimada. É tempo de Marguerida começar a se comportar direito, em vez de passear pelas colinas com uma Renunciante e ouvir velhas cantarem. Não é uma ocupação apropriada para uma mulher. Jeff diz que ela é uma estudiosa. Mas o que isso representa? Ler livros e ter pensamentos sem a menor importância!

Margaret podia sentir a indignação da prima, embora não fosse capaz de imaginar por que Ariel sentia-se tão provocada por sua presença. Depois de um momento, compreendeu que provavelmente não tinha nada a ver com ela o que perturbava sua nova prima. Margaret correu os olhos pela mesa, tentando encontrar alguma solução para o enigma. Jeff parecia aflito, Javanne dava a impressão de que se encontrava prestes a matar alguém, embora Margaret não pudesse determinar se a vítima visada era ela ou Ariel. As crianças ficaram imóveis e preocupadas com a estridência na voz da mãe. Só Liriel se mantinha inabalável, comendo sem parar.

Mamãe está tendo outros dos seus ataques. Margaret teve a impressão de que o pensamento vinha de Donal, mas também podia ser de qualquer dos outros meninos.

A culpa é minha! Não havia qualquer equívoco de que essa voz mental era de Javanne. O profundo pesar também não deixava qualquer margem para dúvidas. Nunca deveria tentar confortá-la por ser quase desprovida de laran ao insistir na nobreza de gerar crianças. Acredito sinceramente nisso, mas acontece que a mente de Ariel é muito frágil. Tentei ser uma boa mãe, mas...

Margaret daria qualquer coisa para não captar esses fragmentos de pensamentos. Mas as emoções da tia eram muito poderosas, e ela não sabia o suficiente de telepatia para erguer os bloqueios necessários. Ao mesmo tempo, descobriu-se a recair em seus hábitos acadêmicos, avaliando as informações que recebia. Lamentava por Ariel. Devia ser terrível carecer de um talento tão apreciado, e presente nas outras pessoas da família.

Ninguém me compreende! Todos pensam que sou estúpida e imprestável! Mas tenho filhos, e no fundo isso é tudo o que importa. Se alguma coisa acontecer com minhas crianças...

Esse medo era tão forte que deixou Margaret atordoada. Sabia que era uma coisa que atormentava Ariel em cada momento de vigília, talvez no sono também. Não era de admirar que ela parecesse tão velha e consumida. Não era ter filhos que acarretara a velhice prematura. Era o medo. Isso, pelo menos, era uma coisa que Margaret compreendia, com a qual tinha alguma empada.

Mas por quê? Os meninos pareciam bastante vigorosos... apenas crianças normais, do tipo que ela vira em muitos planetas. E num planeta com elevado índice de mortalidade infantil, cinco meninos saudáveis era uma realização maravilhosa. E Liriel dissera que a irmã estava grávida de novo, desta vez com a menina com que sempre sonhara. Por que ela se preocupava por antecipação?

Os olhos de Margaret deslocaram-se de um menino para outro. Fixaram-se no rosto de Domenic Alar. Ele tinha a pele pálida e olhos grandes, com os cabelos escuros do pai. Devia ter herdado alguma coisa da ansiedade dos pais, porque olhava para a mãe com uma expressão angustiada. Não podia ser fácil para os meninos, concluiu Margaret, ter uma mãe que grudava neles durante todo o tempo.

Sem ter uma consciência real do que fazia, Margaret olhou dele para seu irmão Damon. Soube nesse instante que Domenic nunca alcançaria a idade adulta. Foi uma sensação chocante, não muito diferente da maneira como ela se sentira quando olhara para Ivor no dia de sua morte. Margaret ficou perturbada com o sentimento. Quando se transformou numa visão, abruptamente, ela teve vontade de sair correndo da sala. A impressão era a de que Domenic murchava diante de seus olhos. Por um momento, ela viu a pele pálida manchada de sangue; e depois, enquanto Margaret continuava a olhar, horrorizada, ele se tornou um esqueleto, as mãos pequenas virando ossos, sem qualquer pele para cobri-las.

Ela ouviu o súbito ofego de Liriel, no outro lado da mesa, ao mesmo tempo em que Javanne falava:

- Ariel, não cabe a você falar sobre essas coisas. Seu pai é que decidirá tudo.

- Lady Javanne, Dom Gabriel não vai decidir a minha vida!

Margaret ficou contente em focalizar a declaração da tia, a fim de se desviar da terrível visão. Se fosse necessário, decidiu ela, provocaria uma briga com a formidável tia, apenas para não pensar mais no que imaginara. Porque só podia ter sido imaginação, não é mesmo? Claro que fora! A ansiedade de Ariel a levara a ver alguma coisa, o que desencadeara uma lembrança de Ivor, com todo o pesar que ainda sentia por sua morte.

- Liriel! Marguerida viu alguma coisa, não é? Quero que me conte tudo agora mesmo! - A voz de Ariel prevaleceu sobre a de Margaret e Javanne. - Quero que me conte imediatamente o que viu, sua... você não passa de um monstro! Tem o Dom de Aldaran, não é? Não é?E vai fazer mal aos meus filhos, porque sou a única que tenho coragem para lhe dizer...

- Pare! - A voz de Liriel era profunda e autoritária. - Está se tornando histérica, Ariel.

- Não estou, não! Ela viu alguma coisa! Obrigue-a a dizer! Margaret suspirou. Ansiava pelo sossego da estrada, em companhia de Rafaella. Ali, pelo menos, as refeições não eram abaladas pelas tensões dos relacionamentos.

- Prima, eu não faria mal a seus filhos por nada neste mundo. Liriel! Eu apenas imaginei aquilo, não foi? Diga que eu apenas imaginei... por favor!

Não, você não imaginou. Posso lhe garantir que percebo a diferença entre predição e imaginação. Marguerida, você possui o Dom de Aldaran. Já desconfiávamos que você poderia ter, é claro. Você realmente viu. Agradeço por tentar acalmar minha irmã. Domenic não viverá para gerar crianças. E agora deixe-me cuidar disso, por favor.

Obrigada, Liriel. Estou fora da minha área aqui... o Dom de Aldaran, além do Dom de Alton! Prima, é mais do que posso suportar. Trocaria tudo isso por uma espaçonave rápida para qualquer destino. Devo deixara casa? Isso ajudaria?

Não há nada que possa ajudar Ariel agora. Quando ela fica transtornada, perde o pouco bom senso que ainda possui. Sempre foi assim. A mãe esperava que ela se tornasse um pouco mais calma depois que assentasse com Piedro e as crianças. Pensávamos que ela se livraria desses ataques.

Poderia se livrar... já conheço essas histórias muito bem!

Sei disso, prima.

Margaret surpreendeu-se com a facilidade com que ela e Liriel conversavam. Encontrava um grande conforto na prima. Parecia ser uma pessoa firme e sensata, ao contrário de sua irmã gêmea. Agradava-lhe muito, mesmo com a crescente agitação das emoções que partiam de Ariel, que houvesse alguém em Darkover capaz de responder a algumas de suas perguntas, alguém que poderia até compreender seus sentimentos. Ariel, ignorando o diálogo entre as duas, gritou:

- Acha que posso dispensar um filho porque tenho muitos? Piedro! Onde está Piedro? Não vou passar mais um momento sequer sob o mesmo teto com essa mulher!

- Pare de se comportar como uma camponesa supersticiosa! - exclamou Liriel.

- Ariel, você sabe muito bem que as primeiras experiências de laran não são confiáveis.

Foi Jeff quem falou, com a serena autoridade da idade e experiência. Mas Ariel não estava escutando.

- Não, não sei! Liriel ficou com todo o laran de nós duas!

Ela roubou tudo no útero! Não é justo! Estabeleceu-se pelo resto da vida, em Tramontana, enquanto eu sou a única da família sem laran! Mas tenho filhos, e ninguém vai amaldiçoar meus bebês. É tudo culpa de Marguerida. Ela deveria ter morrido. Sei que Piedro só gosta de mim porque lhe dou filhos, e tenho de cuidar muito bem de todos...

- Pare de bancar a tola, irmã.

Pode me jurar que a visão dela é falsa? Ela tem a marca da maldade, trouxe para cá as idéias dos Terranan e toda a sua maldade.

Ariel levantou-se de um pulo, quase jogando no chão a criança em seu colo. Javanne segurou o neto mais novo, enquanto Ariel se punha a bater com o punho na mesa. o prato cheio da comida que ela não comera caiu no chão, logo seguido pela taça.

- Sente-se, Ariel.

Javanne falou em tom incisivo. Tinha os olhos arregalados, com um profundo desespero, como se só mantivesse o controle pela força de vontade. Não posso detê-la! Nunca pude! Sempre tive pavor dela, quando ficava transtornada. Agora me sinto velha demais para controlá-la. E ela foi uma criança tão meiga!

Piedro entrou correndo na sala de jantar nesse momento, angustiado e preocupado.

- o que aconteceu, minha querida?

- Marguerida previu uma coisa terrível, e não quer me contar o que foi! Arrume tudo. Vamos partir agora mesmo. Os meninos irão comigo, para que eu possa cuidar deles.

Ariel inclinou-se para a mãe. Arrancou Kennard dos braços de Javanne com uma expressão furiosa. Depois, virou-se para Liriel, o rosto pálido e furioso.

- Quem ela viu, Domenic ou Damon? Diga-me!

- Minha amada... - murmurou Piedro, segurando o braço da esposa. - Uma tempestade aproxima-se sobre as colinas. Não devemos partir agora. E você não deve ficar tão excitada. Pense na criança dentro de você.

- Arrume a carruagem imediatamente! - Ariel estava desesperada agora. - Não ficarei sentada aqui esperando que Marguerida preveja outra coisa, ou se digne a escolher um dos meus irmãos. Vocês todos estão conspirando contra mim.

Piedro compreendeu a inutilidade de tentar argumentar com a esposa. Apertou o braço de Ariel com mais firmeza, balançando a cabeça.

- Ninguém está conspirando contra você, chiya - interveio Jeff. Eu não fazia idéia de que o problema ainda era tão grave. Pobre mulher!

Seus medos serão a morte para ela.

- Sei o que vocês pensam de mim, que sou uma estúpida que só serve para gerar crianças. Não preciso de laran para saber que todos me desprezam.

Javanne se mostrou profundamente chocada com essas palavras, além de magoada.

- Isso não é verdade, Ariel. Como pode pensar numa coisa tão horrível?

- Nunca se importou nem um pouco comigo. Portanto, não finja agora Mal podia esperar para me mandar embora de Armida. E você! - Ela virou-se para Jeff. - Não estou surpresa que tenha tomado o partido dela. Apesar de todos os anos em que viveu em Darkover, ainda é apaixonado pelos Terranan. Se ela previsse a morte de uma das crianças de Elorie, você continuaria tão calmo? Pode jurar para mim que a visão dela é falsa?

Jeff tinha uma expressão triste, idosa e cansada.

- Só Deus conhece o nosso destino, Ariel.

Os olhos de Ariel se contraíram, cheios de ódio e desespero.

- Nunca saberão o quanto desprezo todos vocês!

Ela apertou o pequeno Kennard contra seu peito. Depois, com a mão livre, agarrou Lewis. Desvencilhou-se do abraço do marido e encaminhou-se para a porta, levando os filhos. O som de seus gritos, enquanto subia a escada, ressoou na sala de jantar, onde Margaret, Javanne, Jeff e Liriel permaneciam num silêncio atordoado.

- Jamais percebi o quanto ela se ressentia de não ter laran - murmurou Javanne, depois de um longo momento. Ela parecia anos mais velha, bastante abatida. - Só agora compreendi. Marguerida, peço desculpas pelo tolo comportamento de minha filha. Ela foi uma criança nervosa. Pensei que casar e ter filhos poderiam consolidar um equilíbrio. Nunca desejei livrar-me dela, apesar do que ela possa imaginar.

Não havia a menor insinceridade no pedido de desculpas. Pela primeira vez, Marguerida quase que gostou da tia.

- Não há nada de que se desculpar, tia. Eu deveria ter mantido meu rosto sob um controle melhor.

- Não, Marguerida, não foi seu rosto que revelou tudo, mas o meu e o de Liriel. Seu único erro foi o de não ser capaz de resguardar melhor seus pensamentos. - Javanne deu de ombros. - Vou subir e tentar acalmá-la. Mas acho que não conseguirei. Ariel é muito teimosa, depois que toma uma decisão.

Ela se retirou. Margaret desejou estar a anos-luz de distância, em algum planeta no qual o laran fosse desconhecido. Se ao menos Ivor não tivesse morrido! Se ao menos ela nunca tivesse vindo para Darkover! Se ao menos o

Senador não tivesse lhe dito que deveria ir para Armida! Não havia como evitar seus sentimentos. Teria de suportar até o momento de poder ir embora. .. conquanto não tivesse a menor idéia do lugar para onde iria. Se ao menos houvesse alguém com quem pudesse conversar, alguém para aconselhá-la...

Margaret olhou para Liriel e balançou a cabeça. Depois, fitou o velho Jeff. Descobriu que ele a observava, com os olhos tristes. Ela sentiu o impulso de confiar naquele homem, conversar com ele. Mas os hábitos de sua vida inteira prevaleceram. Ela tratou de recuar, voltou a ser fria e distante. Continuaria a se manter apartada, de forma a não prejudicar ninguém. Mas por que seu coração doía tanto? E por que sentia tanta vontade de chorar?

 

20

Em apenas uma hora, Ariel, com uma extraordinária demonstração de Organização para uma mulher que quase parecia fora do seu juízo normal de tanta preocupação, mobilizara todos os servos e arrumara a bagagem. Levou as crianças para a porta da frente, seguida por Piedro, que tinha uma expressão desesperada. Lá fora esperava uma carruagem de um tipo estranho, que Margaret só vira em museus. Era alta e quadrada, sobre seis rodas, puxada por quatro cavalos fortes. Os meninos embarcaram com evidente relutância, os mais velhos olhando para trás, os menores choramingando em protesto.

Bagagens de todas as espécies foram empilhadas no alto da carruagem. Aos olhos destreinados de Margaret, a arrumação não parecia muito estável. Dois homens sentaram num banco na frente, olhando apreensivos para as nuvens que se acumulavam por cima das colinas. Margaret não sabia o suficiente sobre o tempo em Darkover para calcular quanto tempo ainda levaria para a tempestade desabar, mas achou que seria muito antes de a família Alar percorrer os trinta quilômetros até sua casa. Ela suspirou, balançando a cabeça, enquanto ouvia Javanne suplicar a Ariel que reconsiderasse seu comportamento precipitado. Mas Ariel simplesmente bateu com a porta da carruagem na cara da mãe. Piedro Alar, com uma expressão ainda mais desanimada do que a habitual, montou num belo cavalo. Margaret achou que ele não era um bom cavaleiro, porque sua postura era ruim. Se ao menos ela não tivesse aquela visão!

Javanne, angustiada, ficou parada nos degraus, enquanto a carruagem se afastava. Balançava de um lado para outro, sob a pesada carga no teto. Desequilibrada, pensou Margaret, como sua ocupante. No mesmo instante ela se repreendeu por fazer um julgamento, e torceu para que ninguém a tivesse ouvido. A carruagem foi descendo pelo caminho, levantando poeira.

Num movimento abrupto, Javanne virou-se e começou a subir a escada. Avistou Margaret parada logo depois da porta aberta. Parou na frente dela.

- Não deve se culpar por isso, Marguerida. Mas vai se culpar, é claro, sendo a filha de seu pai.

Lew sempre se imaginou muito mais importante do que era. E tentava ser alguém que não era! Kennard nunca deveria tê-lo imposto ao Conselho! Deveria ter feito com que meu Gabriel fosse seu herdeiro, e assim não teríamos agora todo esse problema! Sei que não era culpa sua, mas não posso evitar como me sinto! Ele foi um menino mórbido e orgulhoso, e você é igual!

A mulher mais velha seguiu adiante, deixando Margaret atordoada e magoada por esse comentário agressivo. Não entendia o ressentimento da tia. Embora dissesse a si mesma que nada tinha a ver com ela, ainda se sentia magoada. Não era culpa sua o fato de Lew ser insuportável, não é mesmo?

Margaret ficou observando Javanne Hastur subir para o segundo andar, como se fosse uma deusa secundária. Dava para perceber o orgulho na maneira como a tia se empertigava, mas também podia-se sentir seu desespero e raiva. Javanne estava preocupada com Ariel, além de frustrada por sua incapacidade de controlar a filha. Margaret refletiu que a tia era uma mulher que não gostava de ver sua vontade contestada por qualquer pessoa. Talvez isso explicasse em parte o modo como ela encarava Lew Alton. Independente dos outros defeitos que ele pudesse ter, Margaret sabia que o pai sempre fazia o que julgava certo. Desconfiou que ele e Javanne deviam ter discordado em diversas questões que ela ignorava.

Ela já ia subir a escada, em busca da segurança de seu próprio quarto, quando ouviu o barulho de botas se aproximando dos fundos da casa. Mikhail saiu da sombra da escada assoviando alegremente, recendendo um pouco ao estábulo. Seu rosto se iluminou quando a viu, e o coração de Margaret disparou. Por mais que argumentasse consigo mesma, por mais que formulasse razões lógicas e convincentes, ainda assim não podia deixar de exultar com a visão de Mikhail Lanart-Hastur.

- Marja! Você era justamente a pessoa que eu procurava!

- Não me chame assim. - o apelido com que o pai a tratava se tornava inquietante nos lábios de Mikhail. - Faz com que eu me sinta uma criança.

- Perdoe-me, prima, por presumir. Como devo chamá-la, então?

Marguerida é muito comprido. - Ele sorriu, os olhos azuis faiscando. - Sempre me sinto como uma criança nesta casa. Então por que você deveria ser diferente?

- Desculpe. Eu não deveria ter gritado com você. Foi uma manhã infernal. Primeiro, Liriel quis me monitorar, depois disse que eu deveria ir para Arilinn. Pouco depois, surgiu um problema na sala de jantar. Ariel pegou os meninos e foi embora, com medo de que eu pusesse um mau olhado neles.

Margaret suspirou.

- Ouvi a história enquanto Piedro aprontava a carruagem. o pobre coitado está desesperado. Lamento que minha irmã seja tão tola... sem laran e com emoção suficiente para seis pessoas... assim é Ariel. Mas vim procurá-la para perguntar se não quer dar uma volta a cavalo por Armida. Posso até deixá-la montar Dorilys.

Margaret pensou na égua cinza-escura. o princípio de um sorriso se insinuou em seus lábios.

- Eu adoraria. Para ser franca, um bom passeio a cavalo ajudaria a me livrar do sentimento que tenho... Fiz uma coisa horrível. Mas Dom Gabriel acha que Dorilys não é uma montaria apropriada para uma "simples" mulher. Além disso, uma tempestade se aproxima.

Ela experimentava algum prazer pela mera idéia de fazer uma coisa que o tio não aprovava... e ainda por cima na companhia de Mikhail.

- Sei disso. Mas não vamos demorar. E meu pai acha que todas as mulheres, inclusive minha mãe, só deveriam montar velhos matungos cansados, incapazes de galopar, mesmo que sua vida dependesse disso. Mas ele não está aqui. Por isso, vamos aproveitar sua ausência e fazer uma travessura.

Mikhail sorriu. Ela é linda, e acho que não sabe disso! Pensar a respeito evitou que Margaret especulasse onde Dom Gabriel estava. Ninguém jamais a chamara de linda antes. É verdade que enquanto trabalhava com Ivor Davidson quase nunca pensava em sua aparência, a não ser para se manter limpa e arrumada. Sua aversão a espelhos a impedira de passar muito tempo na frente deles. Além disso, sempre pensara que Dio era a epítome da beleza, não ela.

- Durante a ausência do gato, acho que um pouco de ar fresco me faria muito bem. Vou trocar de roupa. Onde nos encontraremos?

- Vá para os fundos da casa, passe pelo covil de Liriel, e encontrará uma porta dando para o pátio do estábulo. Ficarei esperando ali.

Esperei durante toda a minha vida... uns poucos minutos a mais não farão diferença.

Margaret não se permitiu refletir sobre os pensamentos de Mikhail. Eram inquietantes demais, pois ela sabia que sentia uma emoção intensa em resposta, um desejo terno e recente pelo primo. Que confusão! A situação já era bastante complicada sem, acrescentar esse novo problema!

Quando entrou no quarto, Margaret encontrou Rafaella sentada na cama de rodinhas, os olhos remelentos, o nariz brilhante e vermelho.

- O que aconteceu?

A Renunciante fungou.

- Acho que peguei um, tremendo resfriado.

- Pois então trate de se despir e fique na cama. Vou dar um passeio a cavalo com o primo Mikhail, mas não devo demorar.

- Tudo indica que começará a chover em breve, Marguerida. Quer mesmo sair?

Passear a cavalo com Mikhail? É como saltar o gato no meio dos pombos! Ah, eu deveria ir junto! Lady Javanne vai querer minha cabeça numa bandeja se descobrir. Mas sinto a corpo todo dolorido. Margaret tirou a saia de montaria do armário.

- Tenho certeza de que acabarei enlouquecendo, se continuar dentro desta casa por mais um momento sequer. Sair me fará bem. E sinto falta da estrada. Um pouco de chuva não vai me fazer mal, e pode até esfriar minha raiva. Que manhã!

Enquanto vestia a saia, Margaret começou a rir.

- Nunca pensei que renunciaria de bom grado aos confortos de telhados e banheiros apropriados pela vida ao ar livre. Neste momento, porém, eu ficaria muito satisfeita se nós duas pudéssemos continuar a viajar, como fizemos antes do início da doença. Você é uma companhia maravilhosa, Rafaella. E agora trate de deitar.

- Sou mesmo? Ninguém j amais me disse isso antes. - A Renunciante espirrou. - Tenho a sensação de que a cabeça está três vezes maior.

- Vou procurar uma criada e pedir que lhe traga um chá antes de sair.

- Obrigada. Você também é uma boa companhia, Marguerida.

Por favor, tome cuidado! Ignorando o risco de contágio, Margaret inclinou-se e deu um longo abraço em Rafaella. Afastou uma mecha de cabelos do rosto da amiga, apertou seu ombro num gesto tranqüilizador, e deixou o quarto apressada.                                                               .

*     *     *

Ao chegar ao pátio do estábulo, Margaret constatou que era o lugar que vira da janela da sala de Liriel. Como fora mesmo que Mikhail chamara a sala? o covil de Liriel? Um bom nome. Margaret podia sentir o cheiro agradável de cavalos, estrume e pedras molhadas, enquanto atravessava a área aberta. Havia vários cavalariços ocupados em suas tarefas, limpando cavalos com rascadeiras, verificando cascos. Era um profundo alívio, depois da tensão na casa, das exigências de sua nova família e do que todos esperavam dela.

Um rapaz numa túnica avermelhada saiu do estábulo com Dorilys, acompanhado por Mikhail. A égua quase que dançava sobre as pedras, obviamente ansiosa pela expedição, tanto quanto a própria Margaret. Ela se adiantou e deixou Dorilys sentir seu cheiro. Falou em voz baixa. A égua ergueu as orelhas e bufou, escarvou o pátio com as patas, impaciente.

Outro cavalariço trouxe o cavalo de Mikhail, um lindo baio, com uma estrela branca entre os olhos e meias brancas nas patas dianteiras. o primo aproximou-se para ajudar Margaret a montar. Quando ele estendeu a mão, Gabriel veio do interior do estábulo, com uma expressão taciturna. Empurrou Mikhail para o lado, segurou o braço de Margaret e disse:

- Caia fora, Mik. Não cabe a você mostrar a propriedade a Marguerida.

Ele não vai tomar meu lugar! Margaret desvencilhou-se do braço de Gabriel.

- Obrigada, mas prefiro montar sozinha - disse ela, friamente. - E meu plano era passear a cavalo com Mikhail, não com você.

Ela pôde sentir Mikhail fervendo de raiva, antes que descartasse o irmão de forma tão brusca. Compreendeu que havia algo mais acontecendo que não podia saber o que era. Captou um fragmento de pensamento do homem mais jovem. Nunca pensei que poderia gostar tanto de alguém. Nenhuma mulher jamais. .. mas é como desejar as luas! Nunca poderei ter o que quero, nem mulher, nem reino. É verdade que neste momento eu renunciaria ao reino por... ora, nem adianta pensar!

- Não me importa quais são os seus planos, prima. Eu é que vou lhe mostrar Armida, mais ninguém. Asa, leve Dorilys para o pasto. Deve estar louco, Mik, ao entregar uma égua como Dorilys a uma simples mulher. Ela é muito...

- Gabe, suas maneiras são vergonhosas.

Mikhail falou em tom contido, mas sua voz ecoou contra as pedras. Havia uma certa autoridade, uma segurança que Margaret nunca ouvira antes, algo da mãe ou do tio Regis. Ela ficou surpresa e satisfeita. Começava a desconfiar que Mikhail Hastur era muito mais independente do que qualquer um imaginava. Refletiu que era uma pena que ele fosse o filho caçula, não o mais velho.

- Quero montar Dorilys - declarou Margaret, antes que qualquer dos dois irmãos tivesse a oportunidade de falar. Os dois pareciam dispostos a uma briga, se ela não fizesse alguma coisa para evitar. Já tivera temperamentos exaltados em demasia por um dia. Era incrível como aquela família conseguia conviver, com todos sempre sensíveis durante todo o tempo. -Mikhail disse que eu posso... e, se bem compreendi, Dorilys é dele.

Gabriel lançou um olhar furioso para o irmão.

- É uma égua arisca demais para qualquer um, ainda mais para uma mulher delicada como você, prima. Eu sei o que é melhor. Deve confiar em meu julgamento. E Mikhail está se intrometendo no que não é da sua conta.

- Não sabe nada a meu respeito, Gabriel, absolutamente nada.

Com isso, Margaret pôs o pé no estribo e montou em Dorilys, que dançava de um lado para outro. Ela olhou para os dois irmãos. A égua relinchou de satisfação e sacudiu a cabeça, numa alegria evidente. Gabriel parecia prestes a explodir. Em vez disso, deu um empurrão em Mikhail, derrubando-o nas pedras do pátio, e montou no cavalo baio.

- É melhor aprender a fazer o que mandam, prima! - berrou ele, com raiva.

Margaret pôde sentir as emoções agitadas de Gabriel, enquanto virava sua égua. Ela tinha tanta raiva que sua vontade era gritar. Por que não podiam deixá-la em paz e sossego? Ansiara por conhecer Armida na companhia de Mikhail, mas Gabriel estragara tudo. Foi nesse instante que ela sentiu a égua reagir às suas emoções e decidiu que era melhor se acalmar. Respirou fundo e devagar, deixou Dorilys conduzi-la por um momento. A égua desatou num trote, relinchando de alegria. A crina preta ondulava.

Ela podia ouvir o barulho dos cascos do cavalo que a seguia, mas tratou de ignorá-lo. Gabriel gritava com sua montaria. Margaret olhou para trás. O baio resistia a seu cavaleiro, parecia relutante em alcançá-la. O laran também existia em animais? Ou o enorme baio simplesmente detestava seu cavaleiro?

Margaret entrou numa trilha entre pastos largos, subindo pelas colinas. Podia ver as nuvens se concentrando lá em cima. Era um lindo espetáculo. O ar era puro e fresco. Nem mesmo a ameaça distante das trovoadas diminuía seu prazer pela liberdade do espaço aberto. Dava para divisar os bosques densos mais além, depois das pastagens e campos cultivados. Era uma terra rica e fértil, bem cuidada por seu tio Gabriel. Ele podia ser formal e pomposo demais para seu gosto, mas sabia como administrar a terra. Era óbvio que levava suas responsabilidades muito a sério.

Margaret chegou a uma trilha mais larga e seguiu por ali, ainda ignorando a companhia de Gabriel em seu encalço. Descobriu o ritmo da égua, e levou-a num meio galope. Dorilys tinha uma boa andadura, obedecia com facilidade ao comando mais leve, embora Margaret percebesse que a égua também tinha sua determinação. Moviam-se como uma só entidade. Depois dos horrores da manhã, aquilo era tudo que Margaret desejava.

Ela estava tão absorvida no prazer do passeio que teve um sobressalto, quando uma mão forte segurou as rédeas e deu um puxão. Ouviu o protesto da égua e acrescentou o seu:

- Pare com isso!

Dorilys empinou um pouco. Ela virou-se para Gabriel.

- Se você cortou a boca da égua, eu vou...

- Vai o quê? - Ele tinha a respiração pesada, um brilho furioso nos olhos. - O que pensa que pode fazer comigo, sua gata selvagem?

- Tire a mão das rédeas!

- E melhor se acostumar a fazer o que eu mandar, prima. Tornará nosso casamento muito menos difícil.

- Casamento? Mesmo que fosse o último homem no universo conhecido, eu não casaria com você!

- Não tem opção - insistiu Gabriel, presunçoso. - A mãe e o pai decidiram que você vai casar comigo. Para ser franco, não posso dizer que a idéia me agrada mais do que a você. Não quero uma mulher que não obedeça a ordens. Mas conheço meu dever, e você aprenderá o seu!

É o único jeito de manter Armida! Margaret arrancou as rédeas da mão de Gabriel. A égua pulou para longe, com um relincho nervoso. Ela bateu com os calcanhares nos flancos. Dorilys disparou para a frente como uma flecha. Partiram a galope pela trilha de terra batida, a caminho do bosque mais próximo. Margaret inclinou-se pelo pescoço da égua, sentindo seu cheiro. Podia ouvir, não muito atrás, Gabriel praguejando e gritando, no esforço para acompanhar os cascos voando da égua cor de pewter.

Ela entrou pelas árvores. Percebeu logo que Dorilys conhecia o caminho. Os galhos eram bastante altos para que passasse por baixo. A égua ia se desviando para um lado e outro. Era evidente que pensava que era um jogo, e estava determinada a aproveitar o máximo.

A claridade entre as árvores passou de repente de dourado para prateado. Margaret olhou para o céu. As nuvens que avistara sobre as colinas haviam se deslocado. o céu estava escuro e ameaçador. Ela podia sentir a eletricidade no ar. Um momento depois, ouviu o estrondo sinistro de uma trovoada. Ficaria encharcada, mas naquele momento não se importava. Se pegasse o resfriado de Rafaella, poderia ir para a cama e evitar a família inteira!

Um raio iluminou o céu por um instante. Margaret ouviu o barulho próximo do cavalo de Gabriel. Dorilys relinchou e ergueu as orelhas pontudas, mas não parecia muito perturbada pela tempestade. Ainda assim, diminuiu a velocidade para um trote. Margaret afagou seu pescoço. Que égua maravilhosa! Gabriel, ofegante, alcançou-a.

- Foi uma estupidez o que você fez! Poderia ter quebrado o pescoço!

- O que seria muito conveniente para todos, não é mesmo?

- É isso o que você pensa de mim... de mim e de meus pais? Deve ser tão louca quanto seu pai! Para não mencionar sua mãe!

- Deixe o Senador fora disso! E não ponha as mãos na minha égua. Não receberei ordens suas, Gabriel. E muito menos casarei com você.

Ela ignorou a referência a Thyra, mas transtornou-a mais do que um pouco. Não tinha a menor intenção de discutir com aquele idiota. Como ele ousava?

- Você não compreende. Tem de casar comigo. Não tem opção.

- Não, é você que não compreende. Não sou um bem material com que pode fazer o que bem quiser. Pertenço a mim mesma, não a você, ou seus pais estúpidos, ou Armida, ou qualquer outra coisa.

Por um instante, Margaret teve uma visão de união com Gabriel. Foi tão repulsivo que ela quase deu um puxão nas rédeas. Melhor morrer virgem do que ser tocada por um homem assim. Gabriel apertou seu braço, quase como se ouvisse seus pensamentos. Comprimiu os dedos fortes contra os músculos. Margaret soltou/um grito.

- Está vendo? - disse ele, exultante. - Você não tem o poder para me rejeitar!

E finalmente conseguirei o que quero! Levarei a melhor sobre meu insidioso irmãozinho e terei Armida só para mim Margaret virou-se para fitar a expressão triunfante do primo com a maior incredulidade, enquanto a chuva os encharcava.

- O que está planejando? Vai tentar me estuprar?

Ela não conseguiu evitar que o desdém transparecesse em sua voz. Nem a raiva. Se estivesse a pé, teria usado as técnicas de autodefesa que aprendera na universidade. Mas não tinha como usá-las a cavalo. E fez um esforço para controlar suas emoções. Dorilys sacudiu a cabeça e se movimentou, de uma forma tão brusca que Gabriel teve de largar o braço de Margaret. Ele respirou fundo, toda a cor se esvaindo de seu rosto.

- Claro que não!

Gabriel parecia horrorizado, como se tivesse acabado de perceber que suas ações podiam ser interpretadas dessa forma.

- Ainda bem, porque eu não gostaria de testar meu laran com você. Ele tornou a se empertigar.

- Está querendo dizer que você poderia mesmo... mas isso é demais! Sua vaca idiota... sua vaca bastarda! Vou acabar com você, e vou adorar fazer isso!

Eu seria capaz de matá-la!

Margaret não tinha a menor idéia do que impelia o homem, que forças em seu passado o levavam a perder o controle daquele jeito. Ela tentou pensar em alguma maneira de acalmá-lo, mas nada lhe ocorreu. A tensão em seu peito era quase insuportável. Só encontrou alguma descarga no riso, para seu grande espanto e vergonha.

- É mesmo? Você é um idiota, Gabriel. Tenho certeza de que uma tele-pata bem-educada nunca pensaria em se defender com seu Dom, mas eu não sou constrangida por suas regras. Acha que pode me vencer, me forçar à submissão? Será que é mesmo tão cego que imagina que seria capaz?

Gabriel inclinou-se e deu um tapa em seu rosto. A pele ardeu. Margaret sentiu alguma coisa aflorar dentro dela, algo forte, antes desconhecido. As têmporas latejaram, a trovoada distante parecia ressoar por seus ossos. Tinha vontade de matar Gabriel por tocá-la, por agredi-la.

Um rosto de mulher, contorcido pela raiva, assomava à sua frente. Mãos pequenas e fortes davam tapas em seu rosto, num lado e no outro. Alguém arrastou a mulher aos berros. Ela viu o homem de olhos prateados segurando-a. Thyra e Robert Kadarin estavam engalfinhados, o homem tentando controlar a mulher sem machucá-la. Ela podia ouvir seus próprios soluços, sentir sua raiva infantil. Tivera vontade de matar a mulher.

Houve um relâmpago e a imagem desapareceu. Uma raiva antiga guerreou dentro dela por um segundo. Depois, Margaret virou Dorilys de lado, pondo um pouco de distância entre os dois. A chuva caía ruidosa, uma trovoada ressoou pelas colinas.

- Se alguma vez me tocar de novo, vou queimar seu cérebro!

Ela não sabia se podia mesmo fazer uma coisa tão terrível, mas sentia-se tão furiosa que quase imaginou que podia. Gabriel recuou.

- Sinto muito, Marguerida. Eu devia estar louco. - A chuva grudava seus cabelos no crânio, e ele parecia totalmente angustiado. - Eu pretendia ser simpático, pedir com toda a gentileza que casasse comigo. Não sei o que deu em mim.

Mikhail! É tudo culpa dele, o desgraçado! Querendo se meter onde não deve! Tenho de resolver esse problema de qualquer maneira, se não a mãe ficará furiosa comigo! Ela tem de me escolher, porque já rejeitou Rafael e não há mais ninguém!

- Não adiantaria nada, Gabriel. Você podia ser o homem mais simpático de Darkover, e ainda assim eu diria não.

E você não é nem um pouco simpático, pensou Margaret.

- Por que está sendo tão teimosa? Não percebe que já me pertence, por direito? Por que não pode parar de ser tão... acha mesmo que vamos deixá-la fazer o que bem quiser? Se for necessário, meu pai irá à Corte do Comyn e pedirá que você seja declarada sua tutelada. Descobrirá então que não pode fazer o que quiser, mas apenas o que lhe mandarem. É independente demais, não sabe o que é bom para você. Eu sei. Sou mais velho e mais sensato. Será muito mais fácil se fizer o que mandarem, e parar de tentar evitar seu dever.

Margaret especulou se ele poderia estar certo nesse ponto. As leis de Darkover poderiam obrigá-la ao casamento, mesmo contra a sua vontade.

- Você não tem sabedoria suficiente para encher um dedal, Gabriel. Não pode me ameaçar num instante, para no seguinte dizer que sabe o que é melhor para mim.

Outro clarão de um raio iluminou o rosto de Gabriel nesse momento. Margaret compreendeu que era assim mesmo que ele pensava. Havia em seus olhos uma expressão diferente, um olhar interior, sugerindo que raramente escutava outra pessoa que não fosse ele próprio. Ela já vira esse tipo de solipsismo antes, em acadêmicos apaixonados por uma ou outra teoria. Mas nunca num homem adulto, forte e saudável. Havia também algo mais. Margaret sentia uma certa instabilidade, uma determinação de negar qualquer coisa que não combinasse com o que ele imaginava que era correto. Gabriel não era tão estúpido quanto ela pensara, mas havia algo errado nele, como também acontecia com sua irmã Ariel. Não dava para definir se fora um excesso de endogamia ao longo dos séculos, ou apenas um lamentável narcisismo. Ela só podia ter certeza de que Gabriel não era o tipo de homem que pudesse aceitar sua rejeição de bom grado. Montada em Dorilys, sob a chuva, Margaret pressentiu um sopro de loucura desesperada em Gabriel. Era patente em seus olhos, na maneira como se inclinava em sua direção, como se nada tivesse acontecido, como se ele não a tivesse ameaçado e Margaret nem tivesse falado.

- Preste atenção, Marguerida. - A voz soava mais alta que o rugido da tempestade. - Serei seu marido de qualquer maneira, e é melhor você aceitar esse fato. Terei você e Armida, e ponto final!

O baio remexeu-se, inquieto.

- Verei você no inferno antes!

Um raio atingiu uma árvore, a menos de cem metros de distância. Dorilys decidiu que já era demais. Empinou um pouco, depois disparou entre as árvores, espirrando lama em todas as direções. Margaret segurou firme as rédeas com a mão direita, enquanto a esquerda agarrava a crina. Inclinou-se para a frente, contra o pescoço da égua. Dorilys tornou-se ainda mais veloz, quando as árvores se tornaram mais esparsas. Margaret manteve-se firme na sela, comprimindo os joelhos enregelados contra a égua. Não teve mais nenhum pensamento sobre o desafortunado primo. Tinha de se concentrar em continuar montada. Passou sob um galho baixo que quase a derrubou, e depois se descobriu em terreno aberto.

Ali, Dorilys alongou ainda mais as passadas, de tal maneira que seus cascos mal pareciam tocar no solo. O vento lançava a chuva contra as costas de Margaret como um látego, deixando-a completamente encharcada. Era assustador e emocionante ao mesmo tempo. Margaret torcia para que a égua conhecesse o caminho e não pisasse em nenhum buraco. No instante em que o pensamento surgiu em sua mente atordoada, ela sentiu uma segurança presunçosa por baixo, como a dizer "Sei exatamente o que estou fazendo".

Houve uma pausa momentânea entre as trovoadas. Ela ouviu o barulho de outros cascos. Devia ser Gabriel em sua perseguição. Margaret descobriu que estava com medo. Sabia que podia se proteger, mas também sabia que era um perigo para o homem obstinado que vinha em seu encalço. Desconfiava que seria mesmo capaz de queimar seu cérebro, mas não queria fazer isso. E Gabe ficara furioso demais para perceber o perigo que ela representava.

Meu pai foi um desgraçado por me manter na ignorância, Liriel, Jeff e Istvana por estarem certos. Não quero ir para uma Torre... qualquer Torre! Não quero ser uma herdeira. Não quero ser uma telepata... mas sou. Não é culpa de mais ninguém. Apenas minha, por ser o que sou. Tenho de encontrar um meio de me impedir de fazer mal aos outros. Não posso continuar assim. Poderia tê-lo matado, lá atrás, e Gabriel é obtuso demais para compreender isso. Tenho de deixar Darkover imediatamente, ou aprender alguma maneira de controlar meu Dom. 0 que significa que talvez deva ir para uma Torre.

Dorilys bufou, levando Margaret de volta ao momento. As nuvens eram baixas, com a neblina ao redor tão densa que não dava para ver mais que uns poucos passos à frente. A égua hesitava. Leve-me para casa, disse-lhe Margaret. Dorilys avançou pela neblina num ritmo mais moderado.

Com as trovoadas e a neblina densa, os outros sons se tornaram distantes e difusos. Era um crepúsculo ao redor. Margaret tremia de frio e medo. Se Gabriel a alcançasse, ela não saberia o que fazer.

Um vulto a cavalo surgiu à sua frente. o coração de Margaret disparou, dominado pelo terror. Torceu para que a neblina a ocultasse. Foi nesse instante que Dorilys soltou um relincho estridente, o tipo de som que os cavalos fazem para cumprimentar os amigos. Margaret compreendeu que o baio de Gabriel era companheiro de estábulo da égua. Sentiu um aperto no coração. Os cavalos eram maravilhosos, mas não eram bastante inteligentes para distinguir amigos de inimigos no caso dos cavaleiros.

Ela apertou as rédeas, agora escorregadias e traiçoeiras da chuva, preparou-se para correr mais do que Gabriel. Queria evitar uma nova confrontação com o primo obstinado, mesmo que tivesse de cavalgar durante a noite inteira. o cavaleiro aproximou-se. Margaret divisou seus contornos, envoltos por um manto, uma aparência um tanto sinistra. o clarão de um raio ofuscou seus olhos, mas não antes que percebesse os cabelos louros do cavaleiro. Experimentou um profundo alívio ao compreender que o homem que surgia da neblina era Mikhail, não Gabriel.

Nunca me senti tão contente em ver alguém em toda a minha vida! Diria a mesma coisa se estivesse seca?

Margaret ouviu a risada agradável, ainda mais alta do que a tempestade. Sentiu que relaxava um pouco. O coração batia forte, no fluxo de adrenalina pela corrente sangüínea. Mikhail emparelhou.

- Como demorasse a voltar, comecei a ficar preocupado.

- Por quanto tempo me ausentei?

- Não muito... uma hora, no máximo... mas com esta chuva... Não posso imaginar o que Gabriel pensava. Ele é muito sensato em geral.

- Tivemos uma discussão.

- Ahn... - Mikhail virou seu cavalo, um enorme animai preto, quase invisível na tempestade, na direção da qual viera. Dorilys foi junto. - Imagino que ele informou que você seria sua esposa, e que teve o mau gosto de protestar.

- É uma descrição bastante acurada. Ameacei transformar seu cérebro em cinzas, se me tocasse de novo. Não sei quem mais me assustou, se ele ou eu mesma. Todos me dizem há dias que uma telepata destreinada é perigosa, mas eu não compreendia a extensão do perigo até esse momento. Fiz com que hesitasse, mas... Lá vem ele! Creio que não consegui convencê-lo de que não vou casar com ele. Gabriel parece pensar que lhe pertenço por direito, ou algo parecido. Eu sabia que deveria ter aceitado a oferta do chefe de Amhax.

Margaret estava determinada a ignorar o barulho dos cascos do cavalo que se aproximava. Sentia-se segura na presença de Mikhail.

- Como assim?

Ela riu, apesar de tudo, descarregando um pouco a tensão no corpo.

- Há alguns anos, fui com meu mentor, Ivor, para Mantenon. Eu fingia ser a filha de Ivor. Dependendo dos costumes locais, eu me apresentava como sua esposa, irmã ou filha. Uma ocasião, numa tribo em que os homens contavam muito pouco, fui sua dona. Estudávamos em Mantenon o sistema musical de Amhax, que é extraordinariamente complexo para uma cultura tão primitiva. o chefe ofereceu a Ivor quarenta cabeças de gado... os animais eram azuis, com dois rabos e chifres enrascados... por mim. Era um preço excelente para comprar uma esposa. Todas as mulheres da tribo ficaram com inveja.

- Está inventando essa história, não é?

- Eu nunca mentiria para você, Mikhail.

Assim que as palavras saíram, Margaret compreendeu que era a pura verdade. Foi uma sensação estranha, ter certeza de que sempre tentaria dizer a verdade para aquele homem. Ela não sabia direito o que isso significava. Mas era uma descoberta confortadora, e naquele instante ela precisava de todos os confortos que pudesse obter.

Gabriel alcançou-os. Parou o baio com um puxão violento. Lançou um olhar furioso para o irmão. Respirava com dificuldade, como se tivesse acabado de lutar com o cavalo. Amarrou a cara para Margaret, e estendeu a mão para as rédeas de sua égua.

- O que está fazendo aqui, Mik? Eu sabia que Dorilys era égua demais para Marguerida. Partiu em disparada, sem que Marguerida conseguisse contê-la.

Ele estava totalmente encharcado, de mau humor, os pensamentos caóticos. Por isso, Margaret não teve impressões precisas, apenas uma porção de emoções confusas.

- Por favor, primo, pare com isso. Dorilys e eu galopamos juntas... e por bons motivos. - Margaret puxou a cabeça da égua para o lado, fora do alcance de Gabriel. - E este não é o lugar para termos outra discussão. Vamos voltar para casa.

- Não tivemos uma discussão! - berrou Gabriel, como se pensasse que podia desfazer o malfeito.

- E também não está chovendo muito - murmurou Margaret.

- Mikhail, eu lhe ordeno que nos deixe! Levarei Marguerida de volta para Armida.

- Não é possível, Gabe. Parece que nossa parenta não deseja sua companhia.

- Desgraçados... os dois!

Gabriel chutou com toda a força os flancos do baio. O animal partiu em disparada.

- Ele vai acabar quebrando o pescoço, se não tomar cuidado - disse Mikhail, fazendo seu cavalo seguir o irmão.

- Eu ficaria espantada se isso acontecesse - comentou Margaret, também indo atrás do primo. - Homens como Gabriel raramente têm o fim que merecem.

A chuva diminuíra um pouco, quando os três entraram no pátio do estábulo. Era óbvio, no entanto, que não passava de uma pausa na tempestade. As trovoadas ressoavam pelas colinas, enquanto os cavalariços pegavam os cavalos encharcados, levando-os para serem escovados e cuidados. Ao desmontar, Margaret pisou numa poça funda. Parecia um final apropriado para um dia angustiante.

Ainda não acabou. Há mais uma coisa para acontecer... e não é apenas a tempestade. Algo está chegando... uma coisa terrível! Não houve raciocínio que pudesse livrá-la desse senso de desastre iminente que se aproximava de todos eles, uma tragédia que ela não tinha poder para controlar ou alterar.

Entraram pelos fundos da casa, a água escorrendo dos cabelos e roupas. Mikhail abaixou-se e tirou as botas encharcadas. Margaret decidiu seguir o exemplo. Gabriel, empertigado em sua indignação, avançou pelo corredor, deixando pegadas molhadas em sua esteira. Dartan, o coridom, apareceu como se tivesse sido chamado. Olhou para as roupas molhadas de Margaret e Mikhail, balançando a cabeça.

- Eu me pergunto se Liriel se incomodaria se eu ficasse em sua sala - murmurou Margaret para o primo. - Não sinto a menor disposição de enfrentar a família neste momento.

- Acho que ela concordaria, Marguerida. Mas deve perguntar antes, porque ninguém entra lá sem convite.

- Perguntar a ela?

Margaret fitou-o aturdida por um momento, antes de compreender que a técnica não precisava estar presente para que pudesse se comunicar. Ainda não se acostumara à telepatia. Perguntou-se, cansada, se um dia isso aconteceria. E como se falava com uma pessoa específica? Era irritante ter uma capacidade e não saber como usá-la. Se ao menos houvesse um manual, um livro de instruções!

Antes que ela pudesse organizar seus pensamentos, no entanto, Javanne apareceu, com uma expressão mais preocupada do que zangada.

- Venha comigo, Marja. Precisa trocar de roupa imediatamente, ou vai pegar um resfriado. - Ela acrescentou para Mikhail: - Não deveria tê-la levado para um passeio com esse tempo.

- Não fui eu. E, se o tivesse feito, voltaríamos antes da tempestade. -Ele fitou a mãe nos olhos. - Receio que Gabriel tenha feito uma besteira, à sua maneira desastrada habitual.

- Como assim?

A preocupação de Javanne se desvaneceu com a súbita irritação. Olhou de um para o outro, as sobrancelhas claras franzidas.

- Ele está querendo dizer que Gabriel derrubou-o no pátio do estábulo e tentou me apresentar uma proposta de casamento... se é que se pode chamar de proposta a declaração de que eu casaria com ele de qualquer maneira, quer eu quisesse ou não... num passeio a cavalo. Ele é sempre tão estúpido assim, ou apenas quando o tempo é ruim?

Javanne soltou um suspiro.

- Gabriel faz o seu próprio tempo - respondeu ela, numa voz que não pressagiava nada de bom para o filho mais velho. - Lamento muito, chiya.

- Lamenta que ele tenha me pedido em casamento, ou lamenta que ele tenha fracassado? Não importa, tia. Já agüentei o suficiente de minha afetuosa família para durar por muito tempo. Voltarei para Thendara assim que o tempo melhorar.

- Mas sua companheira está doente!

Margaret esquecera por completo que Rafaella caíra de cama, com um tremendo resfriado. Mas ergueu o queixo, determinada a não permanecer em Armida além da manhã, mesmo que tivesse de partir sozinha. Não era longe, ela sabia, e tinha certeza de que poderia fazer a viagem sem qualquer ajuda. Um dia de viagem, ou pouco mais, e estaria de novo no Setor Terráqueo, onde ninguém a assediaria com exigências conjugais, ou insistindo para que se metesse numa Torre.

- Darei um jeito de voltar sozinha - resmungou ela, frustrada, sentindo-se mais acuada do que em qualquer outra ocasião.

Javanne contemplou-a com uma expressão de profunda aversão. Depois, deu de ombros.

- Este não é o momento para tomar decisões. Venha comigo. Precisa trocar de roupa, tomar uma xícara de chá.

- Não vai me fazer mudar de idéia!

- Veremos.

Espero que Gabriel já tenha chegado a Thendara a esta altura e que Regis tenha concordado em fazer com que essa garota seja nossa tutelada. Não podemos permitir que ela saia andando por aí sem alguém para acompanhá-la. Por que ela é tão difícil? E por que meu filho tem de ser tão idiota? Preciso fazer tudo sozinha, como sempre.

Margaret ouviu esses pensamentos. Ficou furiosa. Então Gabriel não estava inventando quando lhe dissera que um juiz darkoviano poderia transforma-la numa tutelada, entregando-a àqueles parentes que só a queriam pelas crianças que poderia gerar. Haviam agido pelas suas costas, todos eles.

Nunca se sentira tão traída em toda a sua vida. Liriel a distraíra, enquanto o pai partia ao encontro de Regis Hastur... que quase com certeza a entregaria a Gabriel, como se não passasse de um saco de roupa suja.

Ela seguiu Javanne pelo corredor, mordendo o lábio. Podia sentir Mikhail logo atrás, fervendo de raiva. Compreendeu que ele estava quase tão indignado quanto ela. Mais do que isso, sentia-se envergonhado pela maneira como seu pai e sua mãe se comportavam.

- Javanne! - o grito de Margaret fez com que a mulher mais velha parasse no mesmo instante. - Não pense que pode me obrigar a fazer qualquer coisa com seus juizes. Sou uma cidadã terráquea, e se tentar me deter contra a minha vontade...

A mulher virou-se para fitá-la.

- Estamos em Darkover, não na Terra. Você fará o que mandarem. Não tem direitos aqui, exceto...

- Acho que os terráqueos não vão gostar nem um pouco se uma de suas cidadãs for detida contra a vontade - insistiu Margaret.

Os lábios de Javanne se contraíram, desdenhosos, o rosto ficou vermelho sob os cosméticos.

- Nem mesmo os Terranan seriam tão estúpidos a ponto de começarem uma guerra por causa de uma mulher.

- Pode pensar de maneira diferente, quando deparar com uma companhia de Fuzileiros Imperiais acampada em seu pasto.

Margaret blefava apenas em parte. Já haviam ocorrido alguns raros incidentes em que a Federação entrara em ação para proteger um de seus cidadãos, com força suficiente para derrubar um governo planetário. Era quase sempre no interesse da Federação, quando essas coisas ocorriam. Depois, sempre se abafava o incidente. Margaret não sabia se a Federação procurava um meio de mudar a posição de Darkover; mas, se era esse o caso, aquela seria uma oportunidade perfeita.

- Não acredito em você! Está bancando a mimada e voluntariosa, e não vou admitir! Esta é a minha casa, você é a minha sobrinha, e fará o que mandarmos!

Com isso, Javanne virou-se e continuou pelo corredor, furiosa. Margaret foi atrás. Ao chegarem ao vestíbulo, ela gritou, também com raiva:

- Não, esta casa não é sua, mas minha! Seus próprios pensamentos e

ações confirmam essa verdade. Meu pai renunciou a seu direito a Armida, mas não podia renunciar ao meu direito. Por que outro motivo você estaria tão ansiosa para me casar com um dos seus filhos?

Margaret tinha consciência de uma energia vibrando em seus nervos, uma raiva terrível, perigosa demais. Tentou diminuir a ira, respirando fundo, enquanto Javanne limitava-se a fitá-la... chocada para um silêncio atônito. Margaret sentia medo do que podia fazer, mas a tia sentia um medo ainda maior.

Ariel tinha razão... ela é um monstro. o que vou fazer? Nunca vi um laran tão poderoso e sem controle. E ela sabe disso! Quando Gabriel voltar, devemos obrigá-la a ir para uma Torre... é a única maneira de ficarmos a salvo dela!

As duas mulheres continuaram a se fitar, agressivas, em silêncio, até que ouviram cavalos entrando no pátio. Por um momento, Javanne mostrou-se aliviada. Margaret especulou se Dom Gabriel já conseguira voltar de Thendara. Não podia ser, pois ficava longe demais. Javanne murchou ao compreender que não era o marido vindo em seu socorro.

O barulho de homens gritando e cavalos relinchando em terror passaram pela porta fechada. Acima de tudo, podiam-se ouvir os gritos de uma mulher, estridentes e histéricos. Golpes pesados foram desferidos contra a porta, fazendo-a tremer, até que Dartan correu para abri-la.

Ariel estava parada ali, segurando alguma coisa e chorando. Entrou no vestíbulo. Margaret divisou o corpo inerte do pequeno Domenic nos braços da prima. Por trás dela, os rostos dos outros meninos estavam pálidos de terror, os olhos arregalados.

- Você tentou matar meu filho! - gritou Ariel.

 

21

Um terrível silêncio se sucedeu às palavras de Ariel. Todos no vestíbulo pareceram ficar paralisados por um momento. A criança no colo se mexeu, flexionando um braço. E depois todos se puseram a falar ao mesmo tempo, criando um caos. Ariel tremia, desatou a gritar em histeria, enquanto Javanne e Piedro tentavam acalmá-la. Margaret tinha a sensação de estar com os pés enraizados no chão, até que Mikhail pôs a mão em seu cotovelo. Ela sentia-se mortificada; e mais do que isso, tinha raiva. Naquele momento teria o maior prazer em despachar todo o clã de Lanart para os cantos mais distantes do inferno, sem o menor arrependimento.

- Fiquem todos quietos!

O velho Jeff veio da sala de estar e berrou essas palavras ao entrar no vestíbulo. Todos fitaram-no espantados, como se nele tivessem crescido chifres e um rabo.

- O que está acontecendo?

A irritação de Jeff era evidente. Margaret sentiu-se tão contente em ver o rosto decidido do tio que teve vontade de chorar. Tinha certeza de que tio Jeff daria um jeito de controlar a situação.

- Ela matou meu bebê! - berrou Ariel.

Ela comprimia contra o peito o corpo agora inerte de Domenic. Margaret ouviu um pequeno grito de protesto. Javanne tentou em vão arrancar o menino da filha, mas isso só serviu para deixar Ariel ainda mais histérica. Piedro tentou falar, mas as vozes da esposa e da sogra eram estridentes demais.

- O que aconteceu? - perguntou Jeff.

Piedro abandonou a tentativa de confortar a esposa. Sua voz tremia quando respondeu:

- A tempestade. Eu sabia que não deveríamos partir. A culpa é minha, não de Marguerida.

- Duvido que seja culpa de alguém, Piedro - comentou Mikhail.

- Seguíamos para casa quando começou a trovejar - continuou

Piedro, como se o cunhado não tivesse falado. - Um raio atingiu uma árvore no momento em que os cavalos passavam por baixo. Eles dispararam. Jedidiah tentou contê-los, mas foi derrubado do banco do cocheiro. Caiu sob as rodas. A carruagem virou, enquanto os cavalos continuavam a correr. Devem ter arrastado a carruagem por cem metros, antes de pararem. Ouvi Ariel e os meninos gritando, mas não podia fazer nada. Meu filho está ferido. Jed, o cocheiro, morreu.

As lágrimas escorriam pelo rosto de Piedro. Ele parou de falar, enquanto os ombros sacudiam nos soluços. Os meninos assustados olhavam para ele. Damon, o mais velho, enxugou as lágrimas e ergueu os ombros.

- Estávamos todos lá dentro com mamãe, quando a carruagem virou. Estava escuro e a chuva caía pela janela quebrada. Havia cacos de vidro por toda parte.

Ele ergueu a mão pequena. Margaret viu que tinha vários cortes.

- Parecia que tudo ficaria certo quando os cavalos pararam. o pai abriu a porta. Levantei Kennard para ele, depois Lewis. Donal saiu sozinho. Inclinei-me para pegar Domenic. o corpo ainda estava quente, mas tinha um jeito esquisito.

Pietro balançou a cabeça.

- Acho que o pescoço quebrou. Ele deve ter caído de maneira errada, quando a carruagem virou.

- Neste caso, devemos levá-lo imediatamente para a cama - declarou Jeff. - Se o pescoço está lesionado, o fato da mãe apertá-lo desse jeito será prejudicial.

Margaret teve vontade de se encolher nas sombras, escapar para longe daquele horror. Não sabia o que podia ser feito por um pescoço quebrado com a tecnologia médica primitiva de Darkover. Ervas e substâncias químicas simples eram ótimas para distúrbios estomacais, mas o problema aqui situava-se além desse tipo de remédio. Se ela pudesse pensar em alguma coisa para ajudar, poderia escapar ao sentimento sufocante de que era responsável pelo acidente.

E de repente ela se lembrou da tala de espuma de borracha no kit médico. Não vinha com instruções para imobilizar ossos fraturados? Claro que sim... os terráqueos tinham instruções para tudo. Era assim que faziam as coisas. Mas pareciam inexistentes as chances de transmitir essa informação no meio do tumulto, ou chegar bastante perto da criança lesionada para aplicar a tala.

Ariel ficara gemendo durante todo esse tempo. Agora, recomeçou a gritar.

- Caí por cima dele! Senti que ele ficou embaixo de mim! Mas a culpa não é minha! Adoro meus filhos! Foi você quem fez isso, sua...

Ela apontou um dedo acusador para Margaret, que se comprimiu contra a parede, arrasada. Liriel apareceu por trás do grupo no vestíbulo, esfregando os olhos, como se tivesse acabado de despertar de um cochilo. Avaliou a cena com um olhar. Enquanto a irmã gritava, ela adiantou-se e deu um tapa vigoroso em seu rosto.

- Já chega! Se você não tivesse saído de forma precipitada, mesmo sabendo que uma tempestade era iminente, nada disso teria acontecido.

- Ela me assustou - balbuciou Ariel. - Fiquei apavorada com Marguerida. A culpa é dela, não minha.

- Acidentes não são culpa de ninguém, Ariel - interveio Jeff, a voz firme. - Sabemos que você ama suas crianças, chiya, e que cuida muito bem delas. Isto é uma tragédia terrível para todos.

Em vez de se acalmar, Ariel ficou vermelha de fúria.

- O que você pode saber, velho? Está do lado dela. Todos se voltam contra mim. Todos acham que não passo de uma idiota. Mas sei de coisas que vocês nunca saberão. Sei que não podem compreender o que é ser mãe. - A explosão de Ariel terminou em soluços. - Meu filho... meu filho...

Liriel contraiu os lábios polpudos e fitou Jeff por um momento. Ela vai perder a criança em seu ventre se não se acalmar, e isso poderá liquidá-la. Temos de levá-la para a cama antes que ela comece a passar mal. Minha pobre irmã. Se ao menos eu tivesse percebido antes como ela era infeliz...

Margaret achou que sua presença era mais um estorvo do que uma ajuda. Fez menção de deixar o vestíbulo. A mão de Mikhail em suas costas deteve-a. Não saia ainda.

Por que não? Ariel fica transtornada só de olhar para mim.

Não é bem assim. Sei que ela a culpa, mas também sabe que o ferimento de Domenic é culpa sua tanto quanto de qualquer outra pessoa. Margaret podia sentir a força de Mikhail a seu lado... a força e a lucidez. Era maravilhoso... ou teria sido se ela não se sentisse tão abalada.

Liriel acha que ela vai abortar se não se acalmar. Não sei como minha presença aqui poderá ajudar, Mikhail. E, se eu subir, posso pegar meu kit médico, Há uma tala ali que talvez possa ajudar.

É mesmo? Sempre é bom saber que alguém está pensando em fazer alguma coisa... em vez de apenas ter um acesso de histeria. Vou buscar... tenho a imagem do kit em minha mente agora.

Mas eu posso encontrar mais depressa.

Não, prima. Posso voltar num instante. Você deve permanecer aqui... confie em mim. Liriel tem razão ao pensar que ela nunca mais voltará a ser sã se perder a criança em seu útero. Ariel se encontra à beira de um colapso. Pode dizer alguma coisa para ela... qualquer coisa?

Claro que posso... mas prevejo que só servirá para deixá-la ainda mais transtornada. Farei qualquer coisa para ajudar.

Mikhail virou-se e subiu a escada, de dois em dois degraus. Margaret engoliu em seco, tentando pensar em alguma coisa para dizer. Por que ela? Não conhecia Ariel direito. Ela ouviu os passos de Mikhail no assoalho de madeira do segundo andar. Sacudiu a cabeça para clarear os pensamentos.

Liriel tentou fazer com que a irmã largasse o corpo inerte. Domenic não emitiu nenhum protesto, mas Margaret sabia que o corpo não estava morto, pelo menos ainda não. Se a mãe não o largasse, porém, logo morreria. Ariel resistia, continuando a proclamar que a família a odiava, que ninguém a compreendia, e muitas outras coisas. Era patético, mas era também doloroso. Javanne parecia à beira das lágrimas, enquanto Jeff se mostrava impotente.

Margaret engoliu em seco, a boca ressequida, também próxima das lágrimas. Aproximou-se de Ariel, com o maior cuidado, para não assustá-la.

- Prima, você deve pensar na criança dentro de você. - As palavras saíram de algum lugar lá no fundo de Margaret, um lugar devotado, que ela nem sabia que existia. - Não vai querer fazer mal a ela, não é mesmo?

- Ela?

A voz de Ariel era fraca e rouca, a garganta dolorida de tanto gritar.

- Isso mesmo, a filha pela qual tanto tem ansiado.

- Como sabe?

Os olhos de Ariel estavam desfocados. Ela não parecia perceber que falava com a mulher que considerava a causa de todos os seus pesares.

- Liriel me contou.

- E verdade?

Ariel virou-se para a irmã, os braços começando a baixar. Liriel tratou de aproveitar a vantagem, estendendo os braços por baixo do corpo inerte do menino. O peito de Domenic ainda subia e descia, sem muita força.

- É, sim. Eu ia lhe dizer, mas você foi embora antes que eu pudesse falar.

Ela aconchegou o corpo do sobrinho contra seu peito generoso. Um momento depois, Jeff estendeu os braços compridos para pegar o menino, amparando sua cabeça com extremo cuidado.

- Uma menina. Finalmente terei uma menina para me amar. - Ariel parecia ter recuperado o controle. Pôs-se a afagar a barriga ainda lisa, em movimentos sensuais. - Sempre quis ter uma filha para me amar.

- E terá - murmurou Liriel, lançando um olhar de aprovação para Margaret. - Mas deve se manter calma por ela.

Subitamente, Margaret teve o mesmo senso de visão que experimentara à mesa de jantar poucas horas antes.

- E ela será linda - disse Margaret, sem pensar nas conseqüências de suas palavras.

Ariel, que estivera quase atordoada apenas um momento antes, fitou-a com a maior ansiedade.

- O que você vê? Conte-me!

- Não creio que seria sensato - respondeu Margaret, embora não houvesse nada de alarmante na visão.

- Não me importo com o que você pensa! - gritou Ariel. - Tem de me contar... e agora!

- Ela será linda e saudável... o que mais uma mãe pode pedir?

- Não tem importância para mim se ela for linda - sussurrou Ariel.

- Só quero que ela me ame.

Ao ouvir essas palavras, Margaret viu a criança por nascer da prima como uma jovem, alta, cabelos vermelhos, uma beleza extraordinária. Tinha alguma coisa de Javanne, o mesmo queixo forte e olhos determinados. Havia um imenso poder na expressão com que fitou os olhos interiores de Margaret.

- Claro que ela vai amá-la. É uma boa mãe, e sua filha não poderá deixar de amá-la.

Enquanto falava, Margaret sabia que mentia. Ariel estava fadada a se desapontar com a filha. Especulou se haveria algum meio de melhorar a situação, de evitar que aquela criança por nascer se tornasse a mulher impetuosa, arrebatada e perturbadora que previa.

- Vai chamá-la de Alanna, em homenagem à sua avó.

o que não será uma escolha das mais apropriadas. Ela deveria ser Deirdre, por todo o infortúnio que vai trazer para Darkover. Talvez ela estivesse enganada. Margaret torceu para que fosse isso mesmo, porque o futuro que podia contemplar agora falava de uma mulher que não podia amar a mãe como Ariel desejava ser amada.

Javanne lançou um olhar angustiado para a sobrinha. Eu lhe agradeço por ser tão gentil com minha filha. Espero que esteja enganada em sua visão. Nunca me senti tão... tão indesejada e desamada até hoje.

A culpa não é sua, mãe. A voz mental de Liriel era firme e clara. Fez o melhor que podia por ela. Sempre fez o melhor que podia por todos nós.

E muita gentileza sua dizer isso, Liriel, mas eu me culpo. Sou a mãe e deveria saber como ela se sentia por não ter laran. Ou talvez a culpa esteja em dar muito valor a isso. Para ser franca, não fiquei muito satisfeita ao ter gêmeas. Talvez não a quisesse bastante.

Pare de se censurar. A ordem mental de Jeff surpreendeu Javanne. É um total desperdício de tempo. Fez o melhor que podia, e não poderia ter feito mais. O pesar não vai mudar coisa alguma.

Detesto quando você tem razão, respondeu Javanne, com um pouco do seu vigor normal. Mas temos de cuidar do menino. Ele pode não estar tão ferido quanto imaginamos, mas o perigo agora é de que venha a ter uma inflamação nos pulmões.

Já o monitorei, mãe, tão bem quanto pude. Uma das vértebras, logo abaixo do pescoço, encontra-se em péssimo estado.

Pedi a Mikhail para buscar meu kit médico. Ele deve estar voltando. Há um dispositivo ali que pode ser útil. Margaret sentiu-se aflita por oferecer alguma esperança, mas sabia que era a coisa certa a fazer. Javanne fitou-a com uma expressão mais favorável do que em qualquer outra ocasião desde a sua chegada.

Piedro pegara as mãos da esposa e lhe falava em voz baixa, com tanta gentileza que Margaret sentiu alguma inveja. Enquanto ele levava Ariel para a escada, Margaret se perguntou se algum dia poderia despertar tanta ternura de outra pessoa. Observou-os subirem, sentindo-se exausta e angustiada. As roupas molhadas grudavam na pele, deixando-a enregelada. Notou que formara uma enorme poça no chão.

Mikhail quase esbarrou no casal ao descer correndo a escada, mas Ariel e Piedro nem o notaram. Ele trazia o kit médico, o rosto um pouco vermelho de embaraço. Claro... Rafaella estava dormindo no quarto! Se não estivesse tão cansada e transtornada, Margaret teria achado engraçado.

Jeff ajeitou Domenic no chão do vestíbulo, esticando seus braços e pernas. A cabeça estava torta por cima do pescoço fino.

- Este não é o melhor lugar para um hospital improvisado, mas não quero mexer no menino ainda mais - disse ele. - Quero que alguém vá buscar cobertores... ele entrou em estado de choque, o que não é nada bom. Mik, dê-me esse kit. Já faz muito tempo que não vejo um assim. Hum... acrescentaram algumas coisas.

Ele começou a separar o conteúdo. Margaret ajoelhou-se ao seu lado. Os outros meninos acompanhavam tudo com os olhos arregalados. Javanne parecia dividida entre a vontade de acompanhar a filha pela escada acima e a ansiedade para cuidar dos netos. Ao final, ela inclinou-se e apertou o ombro de Damon.

- Sua mãe ficará bem agora. Mas seu pai tem de cuidar dela. Por isso, espero que você nos ajude com seus irmãos.

A voz soou mais alta do que o barulho da tempestade lá fora. Por uma vez, Javanne não parecia muito segura. Damon estufou o peito, com uma expressão orgulhosa. Esse gesto admirável fez com que os outros adultos sorrissem, apesar das circunstâncias.

- Não se preocupe. - Ele virou-se para Donal. - Pegue Lewis. Eu levarei Kennard.

Donal fitou o irmão com um olhar momentâneo de rebelião, depois deu de ombros. Entre todos os meninos, ele parecia o menos perturbado. Margaret descobriu-se a invejá-lo por sua capacidade de recuperação.

- Vamos, Lewis. Você precisa trocar de roupa, ou vai ficar doente e terá de tomar um chá de kamfer.

Ele estendeu a mão para o irmão menor, que a pegou, com uma careta indicando que faria quase que qualquer coisa para evitar a ameaça do remédio. Agora sou o segundo. Aprenderei a ler, como Dom, e serei muito sábio, como Mikhail e Marguerida.

Javanne ficou chocada com essa demonstração de oportunismo infantil, mas Mikhail quase riu.

- Ele não pode evitar, mãe. Ser terceiro não é nem um pouco divertido.

Margaret tirara a tala de espuma do kit, e lia as instruções que a acompanhavam. Parecia bastante fácil, mas ela se sentia apavorada com a possibilidade de causar mais mal do que bem. Ah, se pudessem levar Domenic para um hospital de verdade! Se pudessem chamar um avião ou helicóptero para levá-lo ao QG Terráqueo! Sentia os dedos gelados. Deixou a tala cair em seu colo. Apressou-se em pegá-la de novo, praguejando.

Jeff, ao seu lado, mantinha-se calmo, o que a firmou. Mas persistia em sua mente uma espécie de trovoada, que nada tinha a ver com a tempestade lá fora. Era como os cascos de um enorme cavalo se aproximando mais e mais. Isso e mais o tumulto geral no vestíbulo tornavam difícil a concentração. Margaret desejou conhecer uma maneira de bloquear o transbordamento de pensamentos. Dartan, o coridom, voltou com uma pilha de cobertores. Ele e Jeff estenderam um sob o corpo do menino, enrolando-o em seguida.

Margaret achou que já compreendia as instruções agora. Enquanto Jeff levantava a cabeça do menino, ela ajeitou o dispositivo sob o pescoço de Domenic. Ele parecia tão pequeno e desamparado que Margaret sentiu um aperto no coração. Depois de posicionarem a tala da melhor forma possível, com a orientação de Jeff, que parecia usar o laran para determinar onde era a lesão, ela comprimiu o botão no lado. A tala foi se expandindo devagar, cercando o pescoço, sem qualquer pressão na garganta. A cabeça de Domenic ergueu-se do chão por alguns centímetros. Jeff pôs um cobertor enrolado por baixo da cabeça. Todos soltaram um suspiro de alívio. Agora pelo menos seria possível levar o menino para uma cama sem lesionar ainda mais a coluna. Era o máximo que Margaret podia fazer. Só que não parecia suficiente.

Subitamente, houve uma violenta batida na porta. Margaret ergueu os olhos, enquanto Dartan se levantava do outro lado do menino e corria para atender. Ela sentiu uma repentina pressão em seu coração, uma presença forte, maravilhosa e inesperada.

Antes que pudesse imaginar o que seria, Dartan abriu a imensa porta. Um vulto todo molhado entrou no vestíbulo. O vento soprava contra o manto e capuz, ocultando o rosto do estranho. No instante seguinte, um braço sem mão projetou-se além do manto. Margaret levantou-se de um pulo e correu pelo vestíbulo, indiferente às poças. Quase escorregou duas vezes, na curta distância até a porta. Abraçou o recém-chegado.

- Pai! - foi tudo o que ela conseguiu dizer, antes de desatar a chorar. Lew Alton empurrou o capuz para trás, fazendo com que uma chuva de gotas caísse sobre a cabeça da filha. Comprimiu-a contra seu peito com os dois braços. Margaret sentiu a tia se empertigar, irradiando uma onda de emoções conflitantes. Javanne estava zangada, chocada, insatisfeita e resignada ao mesmo tempo.

Pare de ser tão intransigente, Javanne. Não a vejo há mais de dez anos. Os costumes que se danem.

Está bem, mas ainda assim não me agrada. E continuo a não gostar de você, Lew.

Não foi então um ato de misericórdia que nunca tivéssemos casado? Javanne, apesar de sua indignação, não pôde evitar uma risada.

- Você ainda é um patife, Lew, e um corvo da tempestade.

- Ora, Javanne, não pode me culpar pelo clima darkoviano. Calma, Marja, calma. Sei que se sente contente por me ver... está contente, não é?... mas assim vai acabar me estrangulando. Uma linda recepção. Por que todos estão parados aqui, encharcados, no vestíbulo?

Margaret não entendia o homem a que se abraçava. Ele gracejava, e ela podia se lembrar que Lew Alton não tinha esse hábito. Também zombava de Javanne, que não era mulher de admitir essa atitude. Mais até: Javanne parecia estar gostando. O pai se mostrava diferente, quase jovial. E, no entanto, ela podia sentir lá no fundo um pesar profundo, não um antigo, mas recente.

- Claro que estou contente. Por que demorou tanto?

Lew riu e desmanchou os cabelos ainda úmidos da filha. Não fazia isso desde que ela era criança. O contato de seus dedos quase a deixou transtornada. Em vez disso, Margaret aconchegou-se contra seu ombro. O pai recendia a chuva e tecido darkoviano... mas, acima de tudo, tinha o cheiro certo. Ela não imaginara até aquele momento quanta saudade sentia do cheiro do pai, do som de sua voz forte, e da sensação de seu braço ao redor dos ombros.

- Se eu pudesse vir mais cedo, chiya, já estaria aqui.

- Sei disso. Falou que viria, mas não pude acreditar que era verdade. Tantas coisas estranhas aconteceram...

- Tenho sido um lamentável arremedo de pai, não é mesmo?

- Tem razão - sussurrou Margaret. - Mas sei que não podia evitar.

Lew Alton olhou para a cabeça da filha, encostada em seu ombro. Margaret pôde sentir a tristeza aflorar no peito do pai. Você tem um coração generoso, Marja. Não posso imaginar de onde o tirou. Não foi de mim nem de... Ele não podia se permitir pensar em Thyra.

Acho que foi de Dio, pai. Onde ela está?

Ficou em Thendara, com Regis e Linnea.

Margaret podia sentir que ele ocultava alguma coisa. O braço em torno de seus ombros se contraiu um pouco, até a voz mental parecia tensa. Depois de um momento, ela teve certeza de que era a fonte do pesar profundo que sentira pouco antes. Seu coração ficou gelado. Estremeceu com o calafrio físico e emocional. Qual é o problema? Ela está doente?

Está, sim, chiya, muito doente. Foi a última gota. Eu a trouxe de volta para casa, embora pensasse que nunca mais tornaria a ver o sol de Darkover.

A última gota?

Mais tarde, chiya. Eu não deveria chamá-la assim, porque é uma mulher agora, mas sempre será minha pequena Marja.

Eles romperam o contato, relutantes.

- Quero roupas secas, comida quente, e quero tudo agora.

Lew falou como se esperasse que tudo aparecesse no mesmo instante. Margaret viu-o como um monarca, acostumado a dar ordens. Nunca vira o pai se comportar daquele jeito antes.

- E depois podem me contar por que estão todos parados aqui, parecendo ratos encharcados - acrescentou Lew.

Dartan supervisionava dois criados que levantavam o corpo de Domenic do chão, usando os cantos do cobertor. Os movimentos eram cautelosos, a fim de não sacudirem o paciente. Lew avaliou a situação, enquanto tirava o casaco pingando e pendurava num gancho próximo. O que aconteceu?

Margaret relatou o acidente, informando quem era a criança, sem palavras e mais depressa do que julgaria possível. Confessou sua participação involuntária no caso. Lew deu um suspiro profundo. As coisas não têm sido fáceis para você, não é mesmo, criança? A culpa é minha, por não ter lhe falado sobre sua história, mais do que de qualquer outra pessoa. Devemos torcer para que a criança tenha uma plena recuperação.

Mas eles não têm a menor idéia de como reparar uma lesão na coluna. Há coisas na ciência da matriz que vão deixá-la espantada, Marguerida. Eu a conheci durante toda a minha vida, e continua a me surpreender.

- Mikhail, leve Lew para seus aposentos, por favor. Creio que suas roupas podem caber nele. - Javanne mostrava-se calma agora, quase resignada. - Encontrou Gabriel no caminho? Ele seguia a cavalo para Thendara. Lew revirou os olhos para Javanne.

- Não, não encontrei, e não posso dizer que lamento. Não nos vemos há muitos anos, embora outrora fôssemos amigos.

Ele foi pedir a Regis para me tornar sua tutelada, afim de poder me casar com seu filho do mesmo nome... que é um rematado idiota! O resmungo mental de Margaret continha toda a sua frustração e raiva pelos acontecimentos da tarde.

Neste caso, ele só vai ficar molhado e desapontado, respondeu Lew, calmamente. Ele parecia firme, de tal maneira que Margaret jamais conhecera. Embora soubesse que o pai estava preocupado com Dio, ela sentiu uma imensa tranqüilidade interior.

Meia hora depois os adultos se reuniram na sala de jantar. Era um grupo desolado. O aroma agradável das carnes cozidas e outros pratos não aliviava nem um pouco o clima depressivo.

Mais uma vez, houve um momento de hesitação, enquanto todos consideravam qual deveria ser o seu lugar. Lew, os cabelos prateados secos e um pouco encrespados, parecia à vontade quando sentou à cabeceira da mesa, como se nunca tivesse lhe ocorrido ocupar qualquer outro lugar. Usava uma túnica rosa, com montanhas prateadas bordadas nas mangas e gola, e uma calça azul. Olhou ao redor, com uma confiança absoluta. Margaret nunca o vira tão no comando de si mesmo e da situação. Sentiu ao mesmo tempo um vasto alívio e um pouco de raiva. Seu prazer anterior pela chegada do pai era agora atenuado por aquele ar de segurança. Como ele ousava se mostrar tão jovial?

Ela sentou na cadeira ao seu lado, Jeff ocupou o lugar à sua frente. Javanne sentou na outra extremidade da mesa, ladeada pelos filhos Gabriel e Rafael. Era como se a mesa fosse o campo de batalha de dois exércitos adversários, com Javanne como general num lado, e Lew Alton no outro. Quando Mikhail sentou ao lado de Jeff, aliando-se silenciosamente a esse lado do conflito sem palavras, Javanne fitou-o com uma expressão que falava em traição. Liriel entrou na sala um momento depois, os ombros um pouco ver- gados.

- Acalmei Ariel e mandei Piedro para a cama. Os outros meninos estão em seu quarto. Creio que ainda não absorveram direito o que aconteceu. Nossa velha babá está cuidando de Domenic por enquanto. Não posso pensar em outra pessoa melhor. Aquela coisa que você pôs nele parece ter aliviado a pressão, Marguerida. O maior perigo agora é uma pneumonia, não a coluna. Precisaremos levá-lo para Arilinn tão depressa quanto ele puder viajar.

Ela foi sentar ao lado de Mikhail, aparentemente alheia ao olhar hostil a mãe. Correu os olhos pela mesa, parou em Lew Alton. E arregalou os olhos. Virou-se para a mãe em seguida. As palavras que elas trocaram então foram mantidas em particular, mas ficou evidente para Margaret que Javanne estava mais preocupada com a filha e o neto do que com o repentino aparecimento do Velho, o que era compreensível. Apesar disso, Javanne mantinha-se hostil. Margaret teve certeza de que ela gostaria que Lew Alton estivesse em qualquer outro lugar do universo que não ali, sentado à sua frente, na outra extremidade da mesa. Donal apareceu na porta no instante em que Liriel sentou, usando o camisolão de dormir. Sentou na cadeira vazia ao lado de Margaret.

- Não quero mingau - anunciou ele, fitando-a com um sorriso cativante.

- Posso imaginar - respondeu Margaret. - Eu também não gostava de mingau no jantar, quando era pequena.

- Obrigam a gente a comer quando se fica doente. Não estou doente. A presença do menino pareceu atenuar um pouco a tensão ao redor da mesa. Os criados trouxeram a comida. Havia um miasma de preocupação que parecia preocupar a todos, exceto o menino. Por isso, em vez de conversar, todos concentraram sua atenção numa sopa grossa, seguida por uma carne assada e um prato de frutas secas com creme. Margaret surpreendeu-se com sua fome. Sentiu-se um pouco envergonhada. Não parecia certo ter tanta fome com uma criança lá em cima com uma fratura na coluna. Se Domenic sobrevivesse, provavelmente ficaria paralítico pelo resto da vida. Era uma perspectiva insuportável. Não dava para imaginar como seria a vida de um entrevado em Darkover.

Mas logo ela notou que todos, inclusive a tia, jantavam com um bom apetite. Sentiu-se um pouco menos culpada. Concluiu que não era porque estivessem indiferentes ao acidente... muito ao contrário. Apenas já haviam feito o que era possível por enquanto, e precisavam manter as forças para o que teriam de enfrentar depois. Jeff finalmente rompeu o silêncio:

- Nunca pensamos em vê-lo de volta a Darkover, Lew.

- Eu mesmo nunca pensei em voltar... mas nunca é uma palavra que costuma voltar para me atormentar. Desisti de ser um diplomata. Não era dos mais competentes, mesmo nas melhores circunstâncias, e se tornou insuportável agora que Dio ficou doente.

- Dio está doente?

A voz de Jeff expressava preocupação, mas Lew balançou a cabeça, indicando que o assunto não deveria ser discutido no momento.

- Mas quem vai nos representar agora no Senado, Lew?

Javanne fez a pergunta com um interesse genuíno. Depois, lançou um olhar para Mikhail, como se imaginasse que o filho poderia assumir o cargo.

Margaret quase engasgou com a comida. Podia imaginar a seqüência de pensamentos da tia sem precisar de telepatia. Isso resolveria o problema do que fazer com o terceiro filho, não é mesmo? Tirá-lo do planeta - como sabia que Mikhail gostaria- e de suas preocupações. Mas Margaret, por algum motivo, não gostou da idéia.

Ela demorou um pouco para decifrar sua confusão. Sabia agora que devia passar algum tempo estudando numa Torre, por mais que detestasse. Mas Mikhail era seu amigo, e queria que ele permanecesse em Darkover, enquanto ela tivesse de continuar no planeta. Era bastante simples... e ao mesmo tempo muito complicado.

- Herm Aldaran, que integra a Câmara dos Deputados há seis anos, vai tomar meu lugar. Ele é objetivo e experiente, sabe como lidar com os terráqueos melhor do que eu. Além disso, ainda é bastante jovem para realizar um trabalho eficiente. Eu me sentia cada vez mais cansado e frustrado.

- Um Aldaran no Senado? - Javanne parecia bastante alarmada, mas Margaret experimentou um enorme alívio. - Ele vai entregar Darkover aos Terranan numa bandeja! Vocês enlouqueceram?

- Ao contrário, Javanne. Herm pode ser o único homem na galáxia que pode nos salvar neste momento.

Margaret lançou um olhar de lado para o pai. Nunca ouvira falar de Herm Aldaran, mas calculava que ele devia ser um parente, como todos os outros. Sabia que os Aldarans não mereciam qualquer confiança dos Ardais e de seu tio e sua tia, mas ignorava o motivo.

- Salvar-nos... como assim?

- O Partido Expansionista conquistou o controle da Câmara dos Deputados na última eleição.

- O que é isso? - perguntou Rafael, antes que a mãe pudesse falar. Lew fitou o parente em silêncio por um momento.

- O governo da Federação segue uma antiga fórmula terráquea de um sistema com dois organismos. A Câmara dos Deputados formula as políticas, e o Senado cuida para que não haja distorções. Há diversos partidos políticos na Federação neste momento, mas os maiores são o Partido Expansionista e os Liberais. Nas últimas décadas, os Liberais, que acham que os planetas devem escolher o tipo de governo que desejarem, foram a maioria nos dois corpos legislativos. Mas agora isso mudou. Eles só contam com maioria mínima no Senado para impedir que os expansionistas mudem a orientação política. Se isso acontecer, as necessidades da Federação passarão a ter precedência sobre os desejos de qualquer planeta individual. Se os expansionistas prevalecerem, nenhum mundo ficará a salvo da ganância dos terráqueos.

- E você foi embora no meio dessa confusão! É um tolo maior do que imaginei, Lew! Deveria ter ficado para nos proteger, em vez de deixar tudo nas mãos de um Aldaran. Conheço Herm. Fui contra a sua indicação para a Câmara dos Deputados, quando Regis o escolheu, há seis anos. Embora quase não tenhamos qualquer contato com os Aldarans, precisamos ficar de olho neles. Ele parece ser bastante decente, para um Aldaran, mas mesmo assim não acredito...

Javanne quase engrolava a língua de tanta fúria. Lew interrompeu-a: - Independente do que você possa pensar de Herm, Javanne, ele defende com o maior empenho os interesses de Darkover. A atual situação vem se desenvolvendo há algum tempo, e Herm tem a vantagem de conhecer muitos homens e mulheres na Câmara dos Deputados. - Lew soltou uma risadinha. - Ele é melhor negociante de cavalos do que eu jamais fui.

- Essa não! Se é assim, é bem possível que ele negocie Darkover por um carro aéreo. Deve haver homens mais velhos, experientes e competentes nos Domínios. Não posso admitir que Regis tenha concordado com essa insanidade. Os Aldarans são covardes e trapaceiros!

- Mãe, acho que você não sabe do que está falando - interveio Mikhail. - Herm Aldaran é um dos melhores homens que já conheci.

Javanne não aceitou a censura de bom grado. Como tinha pavio curto, sua raiva explodiu, agora que tinha um alvo.

- o que você sabe a respeito? Só porque sabe ler a escrita dos Terranan não faz com que seja um conhecedor de qualquer coisa!

- Confio em Herm.

Mãe e filho trocaram olhares furiosos. Para surpresa de Margaret, foi Javanne quem baixou os olhos, não Mikhail. A tia fechou a mão sobre uma fatia de pão, passando a esmagá-la entre os dedos.

Donal, alheio às tensões em torno da mesa, empurrou seu prato para trás e soltou um pequeno arroto. Esfregou a barriga com a mão.

- O que tem de sobremesa?

Liriel olhou para o sobrinho.

- Ainda resta espaço para alguma coisa?

- Sempre guardo um lugar para a sobremesa - respondeu o menino,

|com toda a calma. - Eles têm boas sobremesas na Cidade Comercial?

- Não são muito boas - respondeu Margaret. - Por que pergunta?

- Porque se Domenic morrer, eu serei o segundo, aprenderei a ler e me tornarei instruído como tio Mikhail. Sempre desejei isso... pelo menos desde o último Solstício do Inverno. - Ele parecia pensar que seu lugar na família lhe proporcionava certos direitos, e estava determinado a obtê-los. - Quero ir para Thendara e aprender tudo!

Javanne sacudiu a cabeça.

- Em primeiro lugar, Donal, não admito que fale na morte de Domenic! Em segundo, sua mãe nunca permitiria que fosse para Thendara, não agora. Vai para Neskaya, assim que tiver idade suficiente, e até mesmo isso já será difícil para ela. Vai aprender ali tudo que precisa saber.

- Não vou, não! - Ele virou-se para Margaret. - Tia Liriel diz que você pode ler todos os livros em sua biblioteca. É verdade? Diz que você pode ler todos ali e muito mais.

- É verdade, sim. Já li muitos livros.

- Não precisa encorajar o menino, Marguerida - interveio Javanne, irritada. - Você não sabe nada sobre os nossos costumes, e não vou mais admitir sua interferência. Acho que já causou problemas suficientes por um dia.

Lew sempre nos traz problemas, e sua filha é igualzinha! Sei que estou certa. Devemos manter os Domínios como sempre foram. Nunca devemos permitir que os Terranan ampliem sua posição em Darkover. Se eu fosse Regis... Por que nasci mulher?

Eles pensam que não sei o que está acontecendo? Posso perceber como meu filho olha para Marguerida... só que não vai adiantar! Deve haver algum meio de tirar Herm Aldaran do Senado e pôr Mikhail em seu lugar. Seria a melhor solução. Falarei com meu irmão, e ele terá de me ouvir. Farei com que me ouça.

- Meu pai não sabe ler direito - comentou Donal, com a voz aguda de menino. - E minha mãe não sabe ler nada. Domenic queria ajuda com algumas palavras difíceis, e eles... eles não puderam ajudar. Dizem que ler não tem nenhuma utilidade. Mas Domenic me falou que é maravilhoso saber ler e aprender coisas.

A voz tremeu um pouco, quando ele falou do irmão ferido. Depois de uma pausa, Donal acrescentou:

- Eu sempre quis ser como Dom, e agora vou ser, quer ele melhore ou não!

Margaret ficou um pouco chocada. Sabia que a alfabetização era rara em Darkover, mas presumira que pelo menos os membros das famílias dos Domínios sabiam ler. Refletiu agora que sempre encarara a alfabetização como um fato corriqueiro, exceto nos planetas mais primitivos. Sentiu-se um pouco envergonhada, porque o lugar em que nascera parecia ter feito uma opção deliberada pela ignorância, em detrimento da educação formal. Era bem provável que Rafaella lesse melhor do que a maioria das pessoas à mesa. Gabriel decidiu dar seu palpite.

- Tenho ouvido todos os argumentos de Liriel, de que a leitura torna a pessoa mais sábia, e acho que não passam de bobagens. Não há motivo para que as pessoas confundam seu cérebro aprendendo o que nunca precisarão saber.

- E a voz de um homem que mal consegue assinar o próprio nome - murmurou Mikhail, bastante alto para que Margaret pudesse escutar, mas não o suficiente para ser ouvido no outro lado da mesa.

Jeff interveio na conversa, bastante sereno:

- Acho que estamos nos antecipando aos fatos. Primeiro, devemos torcer para que Domenic tenha uma recuperação completa, para que o pensamento rápido de Marguerida sobre a tala faça a diferença. Por outro lado, é óbvio que Donal tem uma grande agilidade mental e vai precisar de uma educação apropriada. Atende aos melhores interesses de Darkover que nossos filhos e filhas sejam instruídos. Ariel vai resistir, mas não podemos permitir que prenda os filhos com os cordões do avental. Não é saudável nem sensato.

As Torres têm nos servido muito bem, mas agora precisamos mais do que isso. Temos de mudar com os tempos ou perecer.

- Os melhores interesses? - repetiu Gabriel, desdenhoso. - Gosto disso! Metade dos homens sonha em partir para as estrelas... e algumas mulheres também. Os costumes antigos são suficientes para meu pai e para mim... e devem ser para Donal também. Ele é muito pequeno para saber do que está falando. Ficaria entediado até a morte em poucos dias, se começasse a ler.

- Eu não! - protestou o menino.

- Não sabe o que é bom para você - insistiu Gabriel, franzindo o rosto e contraindo os olhos.

Ele olhou para a mãe, em busca de apoio, mas Javanne estava absorvida em seus pensamentos.

- Gabriel - disse Margaret, um tanto ríspida -, você parece pensar que sabe o que é bom para todos... e não sabe!

Enquanto eles se fitavam, com raiva, Jeff tentou ser razoável:

- Não podemos mudar Darkover em um dia, nem mesmo em uma geração. Mas, se nossas crianças não forem instruídas, não poderão tomar decisões objetivas sobre o futuro de nosso mundo. - Ele suspirou. - Há muito que desejo que tivéssemos um plano, algum programa, para ensinar aos jovens mais do que podem aprender nas Torres ou entre os cristoforos.

Margaret olhou para o homem mais velho. Compreendeu que ele falava tanto para si mesmo quanto para ela. Jeff, como ela, era um homem de vários mundos. Amava Darkover, como ela também começava a amar. Ambos sabiam que sem instrução Darkover seria vulnerável a forças como o Partido Expansionista, que considerava os planetas além da Terra como fontes de recursos naturais a serem exploradas, não como lares de seres humanos diferentes, com seus próprios objetivos e ambições. Sabia o suficiente sobre os expansionistas, através de noticiários ocasionais, para compreender a ameaça que representavam, não apenas para Darkover, mas também para alguns dos outros planetas que ela visitara... como Relegan e Mantenon, para citar apenas dois.

O que significa, minha cara Marja, que gostaria de ficar aqui e criar escolas? Eu a "ouvi", quando me aproximava de Armida, desejando escapar, estarem qualquer outro lugar que não Darkover. Não a culpei nem um pouco por isso. Mas agora parece que mudou de idéia.

Não sei. Com Istvana Ridenow, Liriel e tio Jeff tentando me levar para uma lorre, com Javanne tentando me forçar a casar com um dos seus horríveis filhos, com a doença do limiar e a morte de Ivor, mal tive tempo para pensar. Ela sentiu que Mikhail se afligia mentalmente com seus pensamentos. Não seja idiota, Mik. Eu não me referia a você. E sabe disso muito bem!

Obrigado, prima. Eu já começava a temer que o lamentável comportamento de Gabriel tivesse me prejudicado também.

Não diga bobagem. Até que você é bastante sensato, para um Lanart. Ah, que elogio! Acho que é o máximo que posso esperar! Havia um quê de zombaria em sua mente. Por trás da jovialidade, no entanto, havia também um sentimento que era ao mesmo tempo atraente e assustador. O que ela faria se Javanne conseguisse despachar Mikhail para longe de Darkover? Margaret não suportava nem pensar a respeito.

O Senador acompanhou esse diálogo paralelo com um interesse que Margaret achou inquietante. Sentiu que suas faces ficavam vermelhas. Lew estudou Mikhail com evidente curiosidade. Alteou uma sobrancelha para o homem mais jovem. Depois fitou a filha, os olhos arregalando um pouco. Pai, não fique pensando que tenho qualquer intenção de casar!Já tive pessoas demais me sugerindo isso, o suficiente para durar duas vidas. Sabia que o jovem Dyan Ardais entrou em meu quarto querendo se tornar um pretendente? Rafaella ficou horrorizada. Ela sentia-se acuada, a respiração saía em ofegos curtos.

Quem?

A voz de Lew era de curiosidade. o pânico de Margaret começou a se desvanecer.

Rafaella nha Liriel, minha guia e grande amiga. Ela está lá em cima, com um tremendo resfriado.

Uma Renunciante? Você tem andado muito ocupada, não é mesmo, criança? Passou por mais aventuras do que eu imaginava. E saiba que não estou nem um pouco preocupado com casamento, já que fui um tanto infeliz com as mulheres em meus primeiros anos. Seja como for, qualquer pessoa pode ver que mantém um excelente relacionamento com seu primo, o que me surpreende, já que não gosta de sua tia Javanne. Lew deu de ombros. Quase não a conheço, não é mesmo?

Não, não me conhece, mas isso não importa agora. Só quero que não me entregue ao primeiro homem que se apresentar para pedir minha mão, porque sou muito exigente. Não quero passar os próximos trinta ou quarenta anos batendo as portas de Armida para arrancá-las das dobradiças, como fazem tia Javanne e tio Gabriel.

Lew Alton sorriu para a filha, um sorriso em que o rosto todo se desmanchou, tirando dez anos de sua idade. Margaret ficou aturdida, porque não podia se lembrar de jamais ter visto o pai exibir um sorriso assim. Não podemos, é claro, deixar de considerar as portas de Armida.

Ela ficou boquiaberta. Só podia ser caçoada do pai! Ele gracejava agora como se nunca tivesse sido um homem deprimido, que bebia muito, tinha terríveis acessos de cólera. Margaret se descobriu dividida entre o impulso para abraçá-lo e outro igualmente forte, de dar um tapa em seu rosto. Acha que eu poderia começar uma espécie de escola em Darkover? Venho pensando nisso de vez em quando, sempre que não estou empenhada numa batalha com Guardiãs há muito mortas ou vomitando.

Como?

Lew estava aturdido.

Contarei tudo mais tarde.

Espero que sim, porque agora fiquei muito curioso. Mas respondendo à sua pergunta, filha, creio que pode fazer tudo o que desejar. Nunca pude detê-la depois que toma uma decisão. Sabe disso.

Nunca pôde me deter? Eu não sabia.

Donal estava entediado com a súbita interrupção da conversa ao redor da mesa, além da ausência de sobremesa.

- Pode me ensinar a ler, Marguerida? Pensei em pedir a Liriel, mas ela logo terá de voltar para a Torre.

- Não sei, Donal. Nunca tentei ensinar alguém a ler antes. Não é tão fácil quanto você imagina.

- Tio Jeff disse que eu era inteligente. Assim, devo aprender depressa.

Donal ofereceu-lhe outro sorriso cativante. Ela pensou que o menino seria muito charmoso quando crescesse. Mas, antes que pudesse responder, Javanne interveio:

- Acho que já falamos demais sobre essa bobagem por uma noite. Gabriel tem razão... Donal é pequeno demais para saber o que quer. Ele apenas pensa que ler é emocionante porque Domenic aprendeu. Não sabe do que está falando.

Jeff balançou a cabeça.

- É inútil fechar a porta depois que o cavalo fugiu, Javanne. Nós em Darkover devemos escolher o nosso destino, talvez mais cedo do que você imagina. Vamos precisar que todos os jovens Donals sejam tão bem informados quanto for possível, para não sermos absorvidos pela política expansionista... ou algo pior.

Javanne Hastur tremia de raiva, mas por uma vez conteve a língua. Contentou-se em olhar furiosa para Jeff, Lew e Margaret. Depois de um momento, seu rosto desanuviou-se. Margaret teve certeza de que ela tramava alguma coisa de novo. Sua aversão pela tia era cada vez maior. Teve de se forçar a pensar em outra coisa, a fim de evitar que o rosto deixasse transparecer a raiva que sentia.

A sobremesa foi finalmente servida, um pudim vermelho em tigelas de vidro claro. Houve um silêncio tenso em torno da mesa. Margaret detestou aquela energia chiando um pouco aquém do ponto de fervura, pois podia captar os sentimentos de Javanne e Gabriel, não apenas os pensamentos dos dois. Ambos estavam furiosos, e ela concluiu que podiam se tornar perigosos. o pudim doce tinha um gosto ácido em sua boca. Ela empurrou a tigela para o lado sem comer tudo.

Depois, recostou-se na cadeira e refletiu sobre os dois lados de Darkover representados à mesa. Javanne, o filho mais velho e o marido ausente eram representantes do passado. Não tinha certeza se ela própria representava o futuro. Sentia-se pressionada por forças que não podia controlar. o calafrio, o desejo de se afastar de todo e qualquer contato humano, aumentou ainda mais. Podia sentir o resquício de Ashara cravando as garras em sua mente. o desespero começou a apertar sua garganta. Teve de fazer o maior esforço para reprimir as lágrimas que afloravam em seus olhos.

Ela olhou para o pai e constatou que ele estava muito cansado. Sabia que não era apenas por causa da longa viagem desde Thendara, mas principalmente pelos anos de exílio. Nunca pensara no pai como um homem corajoso, nunca o vira como outra coisa que não o Velho perturbado. Agora, no entanto, descobria que o pai era muitas coisas que ela jamais imaginara.

Mas os efeitos de um dia longo e cansativo começaram a se manifestar no corpo de Margaret. Ela descobriu que mal conseguia manter os olhos abertos. As pernas doíam da terrível cavalgada. Estremeceu toda, não de frio, de fadiga. Descobriu que não seria capaz de permanecer ali por mais um nuto sequer. Levantou-se, sem dizer nada, e saiu da sala. No meio da escada, Margaret percebeu que não estava sozinha. Virou-se, esperando deparar com o pai, talvez com Mikhail. Surpresa, viu que era Donal quem a seguia. Ele exibia uma expressão séria e determinada.

- O que é, Donal?

- A vovó me mandou ir para a cama.

- Pois vamos logo. A babá sabe que você desceu?

- Não. Ela dormiu na cadeira. Não é muito esperta.

Ele estendeu a mão um pouco suja e pegou a de Margaret, sorrindo.

- Sempre achei que minhas babás também não eram muito espertas.

- É mesmo? - o sorriso do menino desapareceu. -Não me importa o que diz a avó... nem Gabe, porque todo mundo sabe que ele é um tolo. Vou aprender a ler e escrever, a fazer tudo.

- É uma ótima ambição, Donal, mas não vamos mais pensar nisso esta noite. Você teve um dia muito cansativo... e eu também.

- Vou me cansar mais depressa, quando estiver velho como você?

- Não sei.

Ninguém jamais a chamara de velha antes, mas era como se sentia naquele momento. Entre ficar encharcada na chuva e o retorno do pai, tivera excitamento suficiente para durar vários anos. Ela acompanhou o menino até a porta de seus aposentos, depois foi para seu quarto, os pés quase se arrastando nas tábuas do assoalho.

 

22

Margaret aprontou-se para deitar, contente por Rafaella estar num sono profundo, porque não queria responder a nenhuma pergunta. Meteu-se sob as cobertas, levantou os joelhos, e ficou observando o fogo faiscar na lareira. o movimento das chamas era um pouco hipnótico. Ela descobriu-se a entrar num transe de luz, e sacudiu a cabeça para se livrar.

Apesar da exaustão, estava ligada demais para dormir logo. Pensou na chegada do pai, o que não a surpreendera. Não pôde deixar de sorrir. Como fora mesmo que tia Javanne o chamara? Corvo da tempestade? Especulou até que ponto seria grave a doença de Diotima. Ah, como ansiava por vê-la! Era um sentimento novo. Por tantos anos só quisera a companhia de Ivor Davidson que quase esquecera como era a sensação de saudade. Agora, queria ver Dio. Descobria que também queria a presença de Mikhail. Gostaria que ele fosse outro homem, mais comum, que pudesse ser seu amigo sem provocar a irritação dos pais.

Mas, acima de tudo, ela pensou em Lew Alton, o homem que controlara um jantar difícil, evitando que a água na chaleira fervesse. E todo o calor partira de Javanne, não dele. Margaret jamais respeitara o pai como diplomata antes, mas percebia agora que ele possuía habilidades que jamais imaginara. No dia seguinte, ela decidiu, haveria de se encontrar a sós com Lew, para uma longa conversa. E não o deixaria escapar até que todas as suas perguntas fossem respondidas! Satisfeita com esse plano, ela recostou-se nos travesseiros e mergulhou no sono.

Foi despertada de repente, ao luar. Por um momento, não sabia onde se encontrava. Sonhara com seus aposentos na universidade, onde procurava alguma coisa. Depois, ouviu um barulho no corredor. Pensou que era uma criada, e começou a fechar os olhos.

Um grito trêmulo fez com que ela sentasse na cama no mesmo instante, atordoada do sono. Avistou um vulto branco se erguendo ao pé da ama. Balançou ao luar, repetiu o grito assustador. À claridade difusa, o espectro era insubstancial e ameaçador ao mesmo tempo. o coração de Margaret disparou, enquanto ela especulava, vagamente, se Armida tinha fantasmas.

Mas, de repente, ela ouviu uma risadinha e compreendeu que não havia nenhum fantasma ao pé da cama. Era apenas um menino Alar tentando assustá-la. Ficou furiosa por ter sido acordada.

- Caia fora! Saia daqui agora mesmo!

A voz vibrava na garganta contraída. Margaret compreendeu que falara além da veemência. Era um eco da voz que ameaçara Istvana com a morte em Ardais. Ela estremeceu.

O pequeno vulto virou-se ao ouvir suas palavras e encaminhou-se para a porta. Avançava devagar, meio desajeitado, quase como uma máquina. Margaret sentiu que o medo ressurgia nos nervos tensos.

- Ela não gritou - disse uma voz fora do quarto.

Margaret reconheceu-a como sendo do pequeno Damon Alar. Ele parecia muito desapontado.

- Eu sabia que você não podia assustar a prima Marguerida! - Houve o som de um corpo batendo no chão. - Ui! Por que você me derrubou, Donal?

Ela ouviu passos no corredor, afastando-se do quarto.

- Ei, seu idiota, para onde está indo? Volte aqui!

As palavras aumentaram a sensação de que havia alguma coisa errada. Margaret empurrou as cobertas para o lado, levantou-se e saiu para o corredor. Estava escuro ali, iluminado apenas por dois pequenos lampiões nas paredes. Por um momento, ela não viu nada com que se preocupar. Depois, Damon saiu das sombras, no camisolão de dormir, esfregando o braço. Fitou-a aturdida, depois olhou para a escada.

- O que foi que disse, prima? Ele me empurrou... nunca soube que Donal era tão forte... e saiu correndo como se todos os demônios estivessem em seu encalço.

O som da porta da frente da casa sendo batida ressoou no silêncio.

- Eu disse a ele para sair - respondeu Margaret, confusa. - Acordei sobressaltada, e por isso gritei.

Ela se abaixou e pegou um lençol descartado.

- Brincando de fantasma! Não acha que está um pouco velho para esse tipo de brincadeira, Damon? Não foi nada engraçado.

- Teria sido se você soltasse um grito de medo, como deveria. -Damon remexia-se, apreensivo, enquanto falava. - Mas por que ele saiu de casa? Estava esquisito... como se não me conhecesse.

Soaram passos na extremidade do corredor, por trás deles. Margaret e Damon viraram-se para deparar com Jeff, também de camisolão.

- o que aconteceu? Será que um velho não consegue mais dormir em paz?

- Sinto muito, tio Jeff - disse Margaret. - Donal decidiu que seria engraçado brincar de fantasma no meu quarto. Mandei-o sair. Ele obedeceu, mas foi lá fora. Não sei por quê.

- Para fora? Fora da casa?

- Isso mesmo.

- o que você fez... usou a voz de comando com o menino?

Jeff não parecia muito alarmado, o que atenuou um pouco o medo de Margaret.

- Usei o quê?

- A voz de comando. - Jeff observou-a por um instante, percebeu sua confusão, e sacudiu a cabeça. - É parte do Dom de Alton, Marguerida. Impõe a quem escuta a compulsão de obedecer.

Ela ficou consternada.

- Está querendo dizer que posso obrigar as pessoas a fazerem coisas que não querem apenas com uma ordem? Mas isso é um absurdo! - Margaret podia ouvir, em sua mente, a voz de Ashara Alton dizendo-lhe para não deixar ninguém se aproximar e esquecer. Teve vontade de gritar. - Eu apenas disse "Saia daqui". Como isso pode ser uma compulsão?

- Chiya, você tem o Dom de Alton pleno e não sabe como fazer para não usá-lo. Não a culpo, já que foi arrancada do sono num sobressalto. Você e seu irmão não deveriam ter feito isso, Damon. Ambos sabem que é melhor não assustar as pessoas. Agora, é melhor eu ir atrás do menino, antes que ele caia no lago... ou coisa pior.

Jeff encaminhou-se para a escada. Mas parou e virou-se antes de chegar lá.

- Compreende agora por que deve ir para Arilinn e receber algum treinamento? E se dissesse a ele para cair morto?

Sei que ela não pôde evitar. Mas se acontecer alguma coisa com Donal, Ariel vai perder o juízo por completo. Não é culpa sua, mas o desgraçado do Lew deveria tê-la mandado de volta para cá há muitos anos! Não sei se o treinamento na Torre poderá ajudar a esta altura.

Margaret ficou consternada, depois furiosa. Nunca pedira para ter o Dom de Alton, e naquele momento o trocaria com o maior prazer por um doce, se fosse possível. A raiva fervilhava em seu peito. Ninguém, nem Istvana, Liriel ou Jeff, falara antes sobre vozes. O que era indesculpável. Claro que haviam lhe recomendado que fosse para uma Torre, mas não se referiram às coisas que ela precisava saber. Como seu pai!

Todas as suas antigas fúrias, mágoas e ressentimentos subiram pela garganta. Possuía a capacidade de impor sua vontade a qualquer pessoa, ouvir seus pensamentos ou ordenar que pulassem no lago, mas todos só se interessavam em encontrar um meio de evitar que suas capacidades fossem perdidas para a família. Darkover precisava mais de escolas e instrução, decidiu Margaret. O planeta inteiro precisava de uma injeção de bom senso! Os engenheiros genéticos podiam produzir dentes que nunca tinham cáries e artérias que nunca ficavam obstruídas, mas ela duvidava que alguém jamais tivesse descoberto uma maneira de reproduzir pelo bom senso.

Margaret desceu a escada atrás de Jeff, os pés descalços sentindo o frio nos degraus. A porta foi aberta no instante em que o velho a alcançou. O luar iluminou um homem que carregava alguma coisa nos braços. Era tão parecido com Ariel segurando o corpo lesionado de Domenic que Margaret quase gritou. Depois, o fardo se mexeu, e ela ficou aliviada ao constatar que Donal estava bem. Lew Alton mudou a posição do menino em seus braços, meio desajeitado.

- Vi o menino lá fora. Quando o alcancei, ele parecia não me conhecer. Pus a mão em seu ombro. Ele ficou inerte. Compreendi que estava em transe. Nunca tinha visto uma criança num transe tão profundo.

Ele parecia perplexo e cansado.

- Marguerida usou a voz de comando com ele, Lew, quando o menino arrancou-a do sono com um susto - explicou Jeff.

- O que você disse, Marja?

- Mandei que ele saísse. Só isso.

Como aquelas poucas palavras podiam ter tamanho efeito? Ela transferiu o peso do corpo de uma perna para outra, enquanto o frio da noite entrava pela porta aberta.

- Feche a porta, Jeff, antes que todos peguemos um resfriado. Acho que o mandou para fora do corpo, filha?

- Fora do corpo?

- Para o mundo superior.

Lew falou numa voz suave. Margaret sentiu o coração gelar. o mundo superior! Era incrível como essas duas palavras tinham o poder de transformar seus joelhos em gelatina e fazer desaparecer o resto de calor que persistia em seu corpo. Gostava de Donal, e a idéia de despachar o menino tão inteligente para aquele lugar terrível era quase mais do que ela podia suportar. Sabia que o mundo superior a assustava, mas até aquele momento não imaginara a extensão do medo. Istvana tentara explicar que o reino do mundo superior não era terrível, apenas um lugar diferente, mas Margaret não acreditara. Jamais quisera voltar, e era um dos motivos pelos quais resistia à sugestão de ir para uma Torre. Istvana informara que era uma parte normal do trabalho das pessoas nas Torres ingressar no mundo superior de vez em quando.

- Vamos levar Donal para algum lugar quente. Não está frio, para a época do ano, mas ele pode pegar um resfriado. Além disso, todos nós precisamos de uma sopa quente - disse Jeff. Ele parecia calmo, mas Margaret percebeu sua preocupação e estremeceu. - Damon, pode voltar para sua cama.

- Mas meu irmão...

- Donal será bem cuidado. Você não pode ajudar, e só vai nos atrapalhar. Agora, trate de subir.

Damon correu os olhos pelos rostos dos adultos, depois começou a subir, com evidente relutância. Margaret desejou poder subir também, refugiar-se em seu quarto, ouvir os roncos tranqüilizadores de Rafaella. Mas fora ela quem causara aquela confusão, e tinha de ajudar a resolvê-la. Parecia um clímax apropriado para o pior dia de sua vida.

Não diga bobagem! A voz de Lew, incisiva, soou em sua mente. Não sabe o que é pior, chiya.

Pare de tentar me animar!

Está bem. Vamos levar esse membro de Zandru para a sala de estar, antes que ele fique mortalmente doente. E não pense que a culpa é só sua, Marja. Passei boa parte da minha vida pensando que era o culpado por todos os males do mundo. Isso só me proporcionou algumas terríveis ressacas e muita autocompaixão. Dio tentava me dizer para não ser tão rigoroso comigo, mas nunca lhe dei atenção. E acho que você também não vai me escutar.

A amargura nos pensamentos do pai era estimulante. Margaret sentiu sua tensão, seu sentimento de responsabilidade por coisas sobre as quais não tinha qualquer controle. Havia pesar também, em grande parte por ela, como se distanciara da filha. Margaret sentiu-se ainda mais envergonhada por pensar em si mesma, por sua autocompaixão. Ela não era importante. Donal era importante, como Dio, como seu pai.

Pare de bancar a tola, Marja! Este não é o momento para um voto de altruísmo! O pensamento incisivo de Liriel a fez estremecer. Ela virou-se para ver a técnica descendo a escada. A prima usava apenas uma camisola de linho claro, mas não demonstrava a menor inibição. Apenas parecia um pouco aborrecida por ter sido despertada depois de um dia longo e cansativo. Também se mostrava disposta a enfrentar qualquer coisa. Que mulher! Margaret gostava e respeitava Istvana, mas Liriel tinha uma firmeza que não era evidente na Guardiã de Neskaya. Ela calculou que Jeff devia tê-la chamado, sem acordar o resto da casa. Refletiu que a telepatia tinha algumas vantagens em que ainda não pensara. Continuava a não gostar, mas podia compreender agora que era extremamente útil.

No momento em que Liriel chegava à base da escada, Mikhail apareceu lá em cima. Os cabelos claros estavam desgrenhados. Ele piscou aturdido, contemplando as pessoas lá embaixo, depois começou a descer.

- Ouvi vozes. O que aconteceu?

Margaret sentiu que relaxava à visão do primo Mikhail. Mais uma vez, ficava muito contente ao vê-lo, menos insegura. Era quase como se a presença de Mikhail lhe proporcionasse uma confiança que de outra forma carecia. Embora soubesse que isso era improvável, ainda assim gostava da sensação. E, como admitia para si mesma, havia mais do que contentamento pela presença do primo.

Ao mesmo tempo, o prazer por ver Mikhail deixava-a apreensiva. Os anos do domínio mental de Ashara haviam cobrado um tributo que só agora ela começava a entender. Era quase um reflexo manter-se apartada das outras pessoas, e ela descobria que tinha de fazer um esforço para superar o problema.

Jeff explicou tudo, enquanto Liriel se adiantava e tirava dos braços de Lew o corpo inerte de Donal. Foram para a grande sala de estar. Puseram o menino no sofá mais próximo da lareira. Liriel envolveu-o com o xale pendurado no encosto do sofá. Ajeitou-o numa posição confortável. Lew atiçou as brasas quase apagadas na lareira, enquanto Jeff acrescentava mais lenha, e Mikhail acendia os lampiões. Todos se mostravam eficientes e calmos, como se aquilo fosse uma ocorrência normal, não algo terrível ou assustador.

Margaret sabia que a aparência exterior de todos escondia uma profunda preocupação. Despachara Donal para o mundo superior com umas poucas palavras mal escolhidas. Jamais desconfiara que seria capaz de fazer isso, que não era nada trivial. Como o trariam de volta? Ela se perguntou o que poderia fazer para ajudar. Ainda se sentia meio tentada a voltar para seu quarto, já que carecia do treinamento para ser de alguma utilidade.

- Não, Marja. Você mandou Donal sair de seu corpo - declarou o pai. - Agora tem de ser a pessoa que vai chamá-lo de volta.

Pobre criança! Se eu a enviasse para cá, em vez de deixá-la ir para a universidade, tudo isso poderia ser evitado. Ou se eu a tivesse trazido de volta para casa... Ora, é tarde demais para lamentar o que passou. Agora, temos de fazer o melhor que pudermos.

- Devo chamá-lo de volta? Como?

- Devemos ir ao mundo superior, encontrar Donal e trazê-lo de volta - respondeu Liriel, como se estivesse sugerindo um piquenique à beira do lago. - Compreendo sua relutância, Marguerida. Mas a Torre dos Espelhos desapareceu, e não há nada no mundo superior que possa temer. Ainda bem que você tem um relacionamento pessoal com o menino, o que tornará tudo mais fácil.

- É fácil para você dizer isso, Liriel.

- Tio Lew, ainda é capaz de operar como um técnico?

- Estou bastante enferrujado, mas acho que sim. - o rosto cheio de cicatrizes abrandou. - Não esqueci meus anos em Arilinn... foi um período de felicidade para mim.

- Ótimo. Vou monitorar, enquanto você e Jeff evitam que Marguerida faça alguma besteira.

- Não me deixe de fora, irmã - murmurou Mikhail. - Não tenho todo o seu treinamento, mas também passei algum tempo em Arilinn, e sou competente.

- Sei que é, Mik, mas...

- Não é apropriada a minha participação, fora de uma Torre, mas Marguerida e eu somos grandes amigos, e tenho certeza de que posso ser útil.

Ela pode confiar em mim. Já confia, embora eu não possa dizer se sabe disso. É uma pena que eu seja o filho errado, mas nada se pode fazer para mudar essa situação. Somos amigos, e assim continuaremos, independente do que possa acontecer. Mas eu bem que gostaria que pudéssemos ser ainda mais.

Amigos? Margaret experimentou um imenso alívio ao ouvir essas palavras e os pensamentos de Mikhail. Um pouco do medo começou a se dissipar. Mas o frio interior, o medo da intimidade, ainda a afligia. Uma coisa era trocarem comentários incisivos, caçoarem um do outro, falarem sobre terceiros. Era algo que poderiam fazer sem telepatia, se tivesse um pouco de privacidade. Outra muito diferente era entrar naquele tipo de intimidade que tivera com Istvana Ridenow durante sua primeira incursão ao mundo superior. Embora soubesse que a Guardiã fora bastante discreta, Margaret também estava consciente de que não havia quase nada sobre ela que a Guardiã ignorasse, depois da batalha com Ashara.

A idéia de seu pai ou Jeff entrarem em sua cabeça, de maneira tão íntima, já era bastante difícil de cogitar. A idéia da presença de Mik ali era muito diferente. Era uma coisa ao mesmo tempo desejável e ameaçadora. Não queria que Mik soubesse como ela se sentia, como confiava nele, adorava o som sua voz, a maneira como os cabelos encaracolados caíam sobre a testa, como a boca se curvava quando sorria. Não queria especialmente que ele soubesse como seu corpo esquentava pela proximidade dos dois.

Depois da sessão com Liriel, ela sabia que podia ter uma confiança total na prima. Fora mesmo apenas naquela manhã? Jeff também merecia confiança, embora ela não o conhecesse direito; e seu pai era quase um estranho. Uma situação incrível. Conhecera Lew Alton por toda a sua vida, mas não tinha a menor idéia de seu caráter. Sentia-se mais segura com Mikhail, a quem conhecia há menos de um mês, mais do que com qualquer outra pessoa na sala, à exceção de Liriel. A presença de Mikhail seria tranqüilizadora, decidiu Margaret, lutando com suas emoções conflitantes.

Margaret percebeu que todos a fitavam, esperando que dissesse alguma coisa. Com o devido respeito, não escutavam seus pensamentos tumultuados. Dava para sentir a ambivalência na sala, como se fosse uma coisa palpável.

- Acho que ajudaria se Mikhail... Não sei como um círculo funciona. Istvana tentou me explicar, mas eu me sentia tão decidida a não ir com ela para Neskaya que... não prestei atenção! De qualquer forma, parece-me que mais pessoas é melhor do que menos.

Desde que mais não inclua tia Javanne, pensou ela.

Margaret sentiu a risada mental do pai. Pode ter certeza, Marja, que todos desejamos evitar que Javanne se junte a nós. Ela é muito competente, mas não gosta de você, e isso seria um problema.

Sei disso. Tentei me controlar, mas ela sempre me deixava na maior irritação.

Javanne pode fazer que até um cristoforo se irrite, chiya. Não me surpreenderia se soubesse que isso já aconteceu. Creio que você a faz lembrar de mim, e nunca nos demos bem.

Não, tio Lew, acho que está cometendo uma injustiça com minha mãe, interveio Mikhail. Apesar de seu forte senso de lealdade familiar e de seu desejo de acolher Marguerida como uma filha, ela não pode sentir afeto por minha prima. Nada tem a ver com você, Lew. o problema é ter outra mulher determinada sob o mesmo teto.

Chega de conversa!, declarou Liriel. Vamos começar logo a trabalhar!

- O que devo fazer? - perguntou Margaret. Istvana me deu kirian na outra vez em que estive no mundo superior. Prefiro não tomar de novo. Fez com que eu me sentisse muito estranha.

- Não tinha ainda pleno conhecimento do seu Dom, Marguerida -explicou Liriel, calmamente. - Pelo que pude verificar quando a monitorei hoje, tenho a impressão de que pode entrar em transe com bastante facilidade. o maior problema é seu medo.

Margaret soltou uma risada apreensiva.

- Esse sempre foi o problema. - Ela viu que o pai tinha uma expressão séria e angustiada. - Um pouco daquele incenso que você costuma fazer ajudaria muito... deixou-me bem calma esta manhã.

- Devo ter deixado minha inteligência no travesseiro.

Liriel deixou a sala numa agitação da camisola volumosa. Margaret estremeceu. Tinha os pés gelados. Ela olhou para Donal, estendido no sofá. Inclinou-se para ele. Pegou sua mão e constatou que também estava gelada. Teve vontade de pegá-lo no colo, comprimi-lo contra seu peito, esquentá-lo com o calor de seu corpo.

Ele parecia muito pequeno ali. Margaret sentiu-se impotente. Se não tivesse aquela terrível visão, se Domenic não ficasse ferido com tanta gravidade... Por que ninguém se dera ao trabalho de lhe explicar que seria capaz de compelir as pessoas a fazerem coisas só pela força de sua voz? Era uma cantora treinada; portanto, era lógico que tinha uma voz poderosa, não é mesmo? Todos insistiam em lhe dizer que era perigosa, mas ninguém parecia disposto a lhe relatar o que precisava saber sobre seus talentos recém-descobertos. Limitavam-se a afagar sua cabeça e garantir que poderia aprender o que precisava saber numa Torre! Jeff, ela se lembrou, manifestara a intenção de conversar a sós com ela, só que não tiveram tempo.

E se ela não conseguisse chamar Donal de volta? Sabia que nunca se perdoaria, se fosse esse o resultado de sua ignorância. Mas não tinha a culpa exclusiva, não é mesmo? Margaret lançou um olhar furioso para Jeff e seu pai, aquecendo-se junto ao fogo enquanto esperavam o retorno de Liriel. Gostava de Donal mais do que imaginara. Apreciava sua perspicácia e sua inteligência. Era um menino muito seguro para sua idade. Margaret imaginou se algum dia demonstrara tanta confiança em si mesma. Duvidou dessa possibilidade.

Lew sustentou o olhar da filha com uma expressão solene. Ela corou, furiosa, desejando não ter olhado para o pai daquela maneira. Sem perceber, Margaret tentou se fazer invisível, como acontecia quando era criança. Poderia ter conseguido, se não fosse pela presença de seu pai e de Mikhail. o homem mais jovem postava-se a alguns passos de distância, mas ela tinha a sensação de que ele se encontrava a seu lado, tão perto que podia sentir seu cheiro. Era uma sensação perturbadora. Sua pele parecia pequena demais para o corpo. Havia a impressão de que parecia prestes a explodir com a tensão.

Que tremenda confusão ela criara! Os Lanarts haviam-na acolhido em Armida da melhor forma possível, mas ela insistira em ser obstinada. Se ao menos pudesse ter gostado mais de Gabriel ou Rafael, ou se a família não estivesse tão empenhada em casá-la com um deles... Se Mikhail fosse seu pretendente, poderia ser diferente.

Margaret surpreendeu-se tanto com esse rumo de seus pensamentos que quase engasgou. Tinha certeza de que os Lanarts ficariam contentes agora que ela decidira não casar com um dos seus filhos. Javanne se sentiria feliz ao saber que nunca mais a veria. De qualquer forma, ter tia Javanne como sogra seria horrível.

Se você tivesse escolhido qualquer um dos meus irmãos, prima, ela teria abrandado. Mas não está acostumada a não impor sua vontade.

Ainda não entendo por que...

Por que não sou um dos seus ardentes pretendentes? Pode ter certeza de que eu seria, sem a menor hesitação, se pudesse. Somos capazes de rir juntos, o que é maravilhoso.

Então qual é o problema? Tenho certeza de que você não sente medo de seus pais.

Pense um pouco. Minha mãe é irmã de Regis Hastur. Se ela se decidisse contra uma união, acho que conseguiria prevalecer. E meu pai e irmãos provavelmente nunca me perdoariam. Sentem inveja de mim desde que Regis escolheu-me para seu herdeiro. Cresci sabendo que meu pai não gostava de mim, e que meus irmãos achavam que eu roubara alguma coisa que por direito lhes pertencia. É verdade que Rafael nem tanto, mas Gabe...

Eu sei. Ele é o tipo de homem que sempre acha que não tem o suficiente, por mais que tenha.

É uma justa avaliação. E agora que seu pai voltou, tudo se torna ainda mais difícil. Por direito, Armida é dele, o que leva meu pai de volta aposição de parente pobre que ocupava antes de Lew deixar Darkover. Não pode imaginar como ele invejou seu pai durante a vida inteira.

Mas meu pai nunca os expulsaria de Armida! Ele não é desse tipo. Margaret olhou para o pai, mas ele se achava absorvido numa conversa com Jeff, parecia não prestar qualquer atenção. Agora que pensava a respeito, ela não tinha certeza se Lew não despejaria Dom Gabriel e Lady Javanne. Não o conhecia; até onde podia saber, ele seria capaz de qualquer coisa.

Acho que você tem razão, Marguerida, mas meus pais desconfiam de Lew. Quando minha mãe o chama de corvo da tempestade, não está totalmente errada.

Ainda não entendo por que seria certo para mim casar com seus irmãos, mas não com você.

Pensei que não queria casar.

Sempre posso mudar de idéia. Sou uma mulher, no final das contas, e as mulheres...

Sei que é uma mulher, Marguerida. Esse fato não saiu de minha mente desde a primeira vez em que a vi... e compreendi que era o único homem em Darkover que nunca poderia tê-la. Meu pai quer Armida para Gabe, e minha mãe sempre o preferiu, em detrimento dos outros filhos.

Não diga bobagem. Gabe é como seu pai, e ela não gosta dele nem um pouco. Margaret hesitou, no momento em que Liriel voltava à sala com uma pequena bolsa. Suponho que também não poderia fugir comigo, não é? Ela sentiu as faces ficarem vermelhas com sua ousadia, mas não se arrependeu. Era a primeira vez em sua vida em que se sentia audaciosa diante de um homem. Saboreou a emoção.

Que idéia mais incrível! Eu concordaria sem a menor hesitação, se não fosse pelas conseqüências. Mikhail não parecia nem um pouco chocado, mas sim satisfeito pela sugestão. Mais do que isso, parecia até rir gentilmente. Margaret sentiu calor, apesar dos pés frios e do medo pelo que a aguardava.

Lew e Jeff pararam de conversar. Liriel mandou que todos sentassem. Jogou suas ervas na lareira. o cheiro forte e adocicado espalhou-se pela sala. Margaret começou a se sentir menos assustada. Também se sentia menos cansada, como se a fumaça lhe proporcionasse energia. Fechou os olhos e ouviu o sussurro de tecidos. Sem precisar abrir os olhos, sabia que as pedras estavam sendo desembrulhadas. o pequeno grupo foi se tornando mais e mais unido.

Era uma curiosa sensação, de aconchego e intimidade, como braços acolhedores. À medida que aumentava, Margaret compreendeu que sempre desejara essa união, que a ausência em sua vida fora um vazio que jamais conseguira preencher. Sentiu o pai, forte como um carvalho antigo, uma força que nunca desconfiara que ele possuía. Havia mais do que força em Lew. Como ela pudera ignorar que o pai era um homem apaixonado e dedicado? Nunca o conhecera! Por que haviam se mantido apartados durante tanto tempo? Pesar e perda a sufocaram, e ela quase chorou.

Eu sei, Marja, eu sei. Mas agora estou aqui, e devemos encontrar um meio de compensar o passado.

O cheiro do incenso abrandava suas emoções. Relutante, Margaret retirou a luva de couro da mão. A umidade fizera com que o couro se tornasse duro e ressequido. Os traços azuis quase invisíveis na palma começaram a esquentar. Não era uma sensação agradável, mas também não era dolorosa. Como Liriel dissera? Uma matriz de sombra. No momento em que Margaret pensou essas palavras, o padrão de linhas em sua mão flutuou em sua mente, de maneira um tanto nebulosa. Ela tentou se concentrar nisso. As linhas se tornaram mais sólidas, densas e fortes.

Nas facetas do padrão, ela "viu" o pai, Mikhail e o velho Jeff; não seus rostos, mas algo dinâmico, como uma luz sem qualquer fonte. A energia de Jeff era forte, mas um tanto avariada. A de Jeff era tão clara que quase doía em seu olho interior. Mas foi a luz de Mikhail que mais atraiu sua atenção.

A energia do primeiro era forte, tão forte quanto a de qualquer dos outros homens, mas anuviada pela dúvida e desapontamento, por tanta solidão, que ela teve vontade de chorar. Os vapores das ervas de Liriel haviam-na acalmado tanto que não houve lágrimas, mas o desejo de chorar deixou sua garganta com a sensação de fechada. Queria tocar a luz de Mikhail e deixá-la clara, mas sabia que não podia. Tinha de deixar como estava, por mais que ansiasse por curar todas as mágoas do primo.

Fora do padrão tremeluzindo em sua mente, Margaret teve consciência da presença de Liriel, guardando o grupo silencioso. Sua luz era suave, como a lua cujo nome recebera, mas tão clara e focalizada que Margaret se sentiu linda mais calma do que antes. Relaxou sob o controle seguro de Liriel. A percepção de seu corpo se desvaneceu. Por um momento, nada aconteceu. Depois, ela sentiu que subia... subia... para a planície do mundo superior. Num instante estava num sofá, no seguinte pairava sobre a vastidão além. o mundo superior estendia-se em todas as direções. Margaret divisou as reluzentes Torres de Darkover, refletidas na luz daquele outro lugar. Aqui e ali havia sonhadores em movimento, procurando seu caminho para objetivos desconhecidos. Era um lugar tão vasto que ela se perguntou como poderia encontrar alguém, ainda mais um menino pequeno, exilado de seu corpo.

Para onde Donal teria ido? O que significara "fora" para ele? Margaret esquadrinhou as Torres astrais, procurando o menino. Não encontrou o menor vestígio. Olhou para caminhantes sonhando, mas mesmo destreinada já sabia que não eram o que buscava.

O desespero começou a corroê-la. Desespero e culpa. Se tivesse ido para uma Torre, como Istvana insistira, nada daquilo teria acontecido. Se, se...

Acalme-se, Marja. Está indo muito bem.

A voz de Lew surpreendeu-a um pouco, porque esquecera que não se encontrava sozinha. Era uma sensação aterradora. Margaret passara tanto tempo sozinha que aquele senso de intimidade era estranho e ameaçador. E não apenas isso, porque era também a primeira vez em que se sentia em estreita união com o pai. Era o fim de um exílio que ela não sabia que sofria, e quase abalou seu precário equilíbrio emocional.

Eu sei, criança. Mas procure agora onde já esteve antes.

Como assim?

Esta não é a sua primeira visita ao mundo superior. Procure onde esteve antes.

Mas destruí a Torre de Espelhos!

No mundo superior, nada jamais é completamente destruído.

O medo, que ela mantivera à distância até então, veio correndo nesse momento, à idéia de que ainda pudesse existir algum resquício do terrível lugar em que, num certo sentido, estivera cativa durante tantos anos. A última coisa que Margaret queria era outro encontro com a sombra de Ashara Alton. Ela ficou paralisada, e o mundo superior também se imobilizou.

E nesse instante ela sentiu que alguma coisa dissipava seu medo, algo calmo e sereno. Compreendeu que não era o pai, mas Mikhail. Foi como o roçar de um beijo em seu rosto. Embora não houvesse nada de erótico no contato, havia tanta paixão que ela sentiu o coração disparar dentro do peito. E agora, ao sentir a energia do primo ao seu redor, teve certeza de que fora ele quem a acompanhara na outra ocasião, exortando-a a arrancar a pedra da Torre de Espelhos. Margaret soube que sempre se lembraria daquele momento, que fora a intimidade mais preciosa que já experimentara.

Sentiu a alegria disparar por seu sangue, o coração bater muito alto, muito depressa. Mas Liriel logo tornou a contê-lo, pelo que sentiu-se grata à prima. E ao primo também. Mikhail atenuara o fardo de seu terror, enquanto Liriel firmava sua pulsação.

Margaret mais uma vez esquadrinhou a planície. Ignorou os sonhadores e as Torres fantasmas. Procurou o único lugar para onde não queria ir. A princípio, foi uma busca inútil, porque a planície parecia vazia. Não havia um único fragmento de espelho. Isso dissipou mais um pouco seus medos ainda persistentes.

Maggie... Maggie... por aqui.

Ouvir o nome pelo qual Ivor a chamava, a única pessoa que a chamava assim, foi chocante. Margaret virou-se na direção do som, mas não havia nada para ver. Flutuou para lá. O mundo superior parecia passar por baixo como um borrão.

Ivor! Margaret chamou com uma voz que não era uma voz. Um ar que não era ar entrou em seus pulmões. Onde você está?

Não posso dizer com certeza. Acho que estou no limbo. Mas não me importo, porque a música é excelente.

Este não é o momento para brincadeiras, Ivor.

Sei disso. Mas nunca me permiti brincadeiras antes. Ah, você está perto agora!

Por que não posso vê-lo?

Não sei. Também não posso me ver. Portanto, talvez seja esse o problema. Tenho pairado aqui há bastante tempo, ouvindo as canção da estrela. Sempre soube que havia uma música das Esferas Celestes e agora a descobri.

Ivor, se você não pode ver a si mesmo, então não posso encontrá-lo. Margaret não entendia como sabia disso, mas tinha certeza absoluta. Pior ainda, queria desesperadamente "ver" seu mentor mais uma vez. Não se despedira de Ivor, e agora tinha a oportunidade de fazê-lo. Quase esqueceu Donal e o propósito de sua presença no mundo superior em sua ansiedade de rever Ivor.

Tem toda a razão, Maggie. Mas Ida sempre diz que mal posso ver minha mão diante do rosto, quando estou absorvido na música. Puxa, como isto é difícil! Sinto-me ainda mais vago do que o habitual. Ah, aqui está minha mão... estranho, parece que me livrei da artrite.

A mão brilhou na claridade do mundo superior. Um vulto começou a se delinear por trás. Ivor Davidson apareceu, um pouco indistinto, tremeluzindo. Não era o velho que morrera e fora enterrado no cemitério terráqueo em Thendara. Era um homem na casa dos trinta anos, cabelos escuros, empertigado e forte. Margaret nunca o vira nessa idade, mas não teve a menor dificuldade para reconhecê-lo. Ele sorria para ela, que retribuiu. Em algum lugar, bem distante, ela sentiu uma pontada de sentimento insidioso, inveja ou qualquer coisa parecida, mas tratou de ignorar.

Nunca pensei que você tivesse sido tão bonito, Ivor.

Como acha que conquistei um grande prêmio como Ida? Você está perdida? Eu estou perdido?]â tentei encontrar o caminho de volta para a casa de Everard, mas não consigo chegar lá. Gosto deste sonho, mas há coisas...

Ivor, estou procurando um menino. Por algum motivo, Margaret não foi capaz de dizer a seu amado que ele estava morto, não sonhando. Ele tem seis ou sete anos, cabelos escuros, veste um camisolão de dormir.

O que você quer com esse menino? Ora, não importa. Sempre esteve à procura de alguma coisa, durante todos os anos que passamos juntos. Eu sabia que você procurava algo, mas nunca imaginei que fosse um menino.

E uma criança perdida, Ivor. Se eu não o encontrar e levá-lo para casa, ele vai morrer.

Isso é diferente. Encontrou o que procurava... a outra coisa? Espero que sim, porque sempre desejei que você fosse feliz.

Serei feliz depois que levar Donal são e salvo para a cama.

Já falei que me sinto contente por vê-la, Maggie? E muito. Você foi uma luz em minha vida.

Oh, Ivor! Também me sinto contente em vê-lo.

Agora, vamos ver o que posso fazer. O nome é Donal? Ele sabe cantar?

Não que eu saiba. A obsessão de Ivor pela música podia ser irritante. Preciso muito encontrá-lo, Ivor.

Experimente naquela direção. A figura apontou. Há escombros ali, e acho que vi um movimento. E difícil ter certeza. A direção não faz muito sentido por aqui.

Ivor! Por um momento, as palavras faltaram a Margaret. Não sabia como expressar sua afeição e gratidão. Foi nesse instante que ela se sentiu amparada, voltou a ter segurança. Não teve a menor dúvida de que foi a presença de Mikhail. Você foi o melhor amigo que já tive, Ivor querido! Deu-me tanta coisa!

Ahn... entendi agora. É por isso que a artrite desapareceu... não estou mais em meu corpo. Que pena! Eu já pensava em escrever um ensaio sobre a música das Esferas Celestes. Estou achando muito interessante, porque não e o que se espera que a morte seja. Como está Ida?

Triste, é claro. Sente saudade... e eu também, mais do que tenho palavras para dizer. Sinto tanta a sua falta! Era o lamento de uma criança.

Não deve lamentar, Margaret. E uma perda de tempo. Agora, vá procurar seu Donal. As Esferas iniciaram outra música e quero ouvir. Não tem idéia da complexidade, não é mesmo? Uma pena, porque poderia escarnecer do velho Verlaine, ao voltar à universidade, se pudesse lhe falar a respeito. Mas ninguém jamais acreditaria que os mortos podem ouvir as estrelas em suas harmonias. Fico feliz em vê-la aqui, Maggie. A música é incrível.

Obrigada, Ivor. Obrigada por tudo. E adeus. Ele sumiu, e Margaret ficou outra vez sozinha. Sentiu a ausência de seu mentor como uma lâmina fria cravada em seu coração, mas apenas por um instante. Logo passou, e ela compreendeu que nunca mais tornaria a ver Ivor, a não ser em sua memória. Sentiu que seu pesar se dissipava, ao compreender que o mentor tinha uma vida posterior que era tão perfeita quanto qualquer coisa que ele poderia desejar. Ivor sentia-se contente. Lamentava apenas não ser capaz de publicar suas descobertas. Um autêntico acadêmico, sempre. Era uma conclusão confortadora. Ela sentiu que alguém a observava, divertido e comovido. Seu pai ou Jeff, calculou, porque não parecia nem um pouco com Mikhail.

Tratou de se concentrar de novo na missão que tinha ali. Seguiu na direção indicada. Tinha de concordar que o mundo superior era mesmo desconcertante. Depois do que podia ter sido um instante ou uma hora, avistou o que parecia ser um monte de pedras antigas, pedras de construção, dando a impressão de terem sido separadas pela mão de um gigante. Sua palma latejou, e ela compreendeu que fora sua própria mão. Não era um sentimento fácil. Margaret ficou tensa, apesar da influência de Liriel e do incenso.

Ao alcançar as ruínas, ela compreendeu que era o lugar que temia, mas também o lugar que procurava. Havia fragmentos de vidro entre as pedras, refletindo estrelas que não brilhavam lá em cima. Margaret evitou um olhar direto, pois tinha certeza de que os pedaços de espelho eram perigosos. Os restos da Torre astral de Ashara pareciam vazios, mas as linhas de matriz pulsaram sob a pele fantasma. Ela meio que esperou que o fantasma da mulher surgisse dos escombros e lhe falasse.

Donal! Donal Alar... venha até aqui imediatamente!

Estou com medo. A resposta era fraca. Margaret não pôde determinar de onde vinha.

Agora estou aqui. Não precisa mais ter medo, Donal. Ela desejou ter mais experiência em falar com meninos... e também não se sentir tão apavorada. Ainda está zangada comigo?

Não, Donal, não estou zangada com você. Apenas preocupada. Este não é um lugar apropriado para nós dois. Venha até aqui.

Desculpe ter dado um susto em você. O vulto do menino apareceu, como se tivesse se materializado de um caco de vidro. Parecia assustado.

Está tudo bem agora. Não houve nenhum mal, exceto que você veio parar aqui, em vez de ir para a cama, que é o seu lugar.

Eu não sabia para onde ir.

Nem podia saber. Pegue minha mão, Donal. Assim está bom. Margaret puxou-o. Um momento depois, comprimiu-o contra o peito com a mão que não tinha qualquer marca. Sentia que tocá-lo com a outra mão seria fatal. Seu coração batia forte, a exaustão corria pelas veias como um veneno insidioso. Como vou sair daqui?

Ela correu os olhos pela Planície e avistou as Torres. Por um momento, parecia não haver mais nada ali. Margaret sentia-se perdida e sozinha. Depois de um longo momento, no entanto, divisou uma coalescência que não era uma Torre, mas um aglomerado de luz. Compreendeu que era sua família em Armida, amparando-a, à sua espera.

Margaret flutuou na direção dessa luz, aumentando a velocidade, ao mesmo tempo em que quase não se mexia. Logo experimentou a sensação de que era puxada por mãos fortes, firmes e afetuosas. Sentiu a determinação de Jeff, a força de seu pai. Acima de tudo, porém, o que a atraiu foi o senso de Mikhail Lanart-Hastur. Carecia da força do pai e da segurança de Jeff, mas o que tinha em grande quantidade era o amor que ela não sabia que ansiara por tanto tempo.

 

23

O mundo superior desapareceu abruptamente, sem qualquer transição. Margaret descobriu-se arriada no sofá, ao lado de Donal. Os rostos preocupados de sua família a cercavam: o pai, solene e sério; Jeff, com uma aparência de extremo cansaço; Mikhail sorrindo e fitando-a nos olhos; e Liriel com uma expressão indecifrável. Quando ele sorri, pensou Margaret, parece mesmo com um anjo.

Margaret sentou, bem devagar. o rosto estava molhado de suor, as mãos e os pés pareciam pedras de gelo. A camisola grudava nos seios com a umidade fria, mas ela não teve pensamentos de recato. Havia um gosto horrível na boca. Ela estremeceu e desejou ter vestido um roupão antes de começar, mas agora era tarde demais para pensar nisso. Liriel desapareceu. Voltou logo em seguida com um xale de lã, recendendo a lavanda. Margaret ajeitou-o em torno dos ombros. Era um imenso conforto, como as pessoas ao redor.

Ela baixou os olhos para a mão esquerda, curiosa. As linhas estavam escuras, mas esmaecendo, como se recuassem para dentro da pele. Margaret detestava aquela matriz de sombra, embora lhe proporcionasse uma coisa que nunca tivera antes. Relutante, ela tornou a cobrir a mão com a luva repulsiva.

Donal também sentou no sofá. Olhou para os adultos, esfregando os olhos. Ao que tudo indicava, não fora afetado pela aventura. Como vim parar aqui? Estou morrendo de fome!

Isso fez com que todos rissem, inclusive Margaret.

Você está sempre com fome. Lembra o que aconteceu?

Ela flexionou a mão contra o couro enrijecido. Deve haver alguma coisa que eu possa usar que não seja tão horrível.

- Lembro que tentei dar um susto em você, e mais nada.

Ele tornou a esfregar os olhos. Depois, aproximou-se de Margaret, confiante, e aconchegou-se. Ela olhou para os cabelos despenteados e sentiu uma coisa que nunca experimentara antes. Donal parecia limpo e saudável, não havia qualquer indicação de que acabara de vaguear por aquele lugar. Que menino maravilhoso! Talvez a maternidade não fosse tão ruim quanto ela imaginara.

Quando levantou o rosto, Margaret descobriu que Mikhail a observava, indiretamente, com uma expressão indecifrável no rosto cansado. Toda a sua energia anterior desaparecera, ou fora abafada. Ela lembrou como Mikhail lhe parecera quando estava de olhos fechados, um homem extraordinário e ao mesmo tempo perturbado. E depois ela se perguntou que impressão causara, não o seu eu físico indecoroso, mas aquela outra Margaret que ainda mal conhecia.

Você foi esplêndida, prima! o pensamento em resposta de Mikhail animou-a, embora se censurasse pela vaidade, por precisar de aprovação. - Estou com fome! Posso comer alguma coisa? A voz estridente de Donal interrompeu os pensamentos de Margaret. Ela descobriu que também sentia muita fome. Perguntou-se se algum dia voltaria a ter um pensamento ou sentimento particular. Olhou para o pai. Lew ergueu os braços e esticou o corpo. Deu para ouvir os estalos na coluna. Ele parecia diferente. Só que não era a mesma diferença que ela notara durante o jantar. o que teria mudado?

Agora eu a conheço como nunca conheci antes. o pensamento em resposta era impregnado de uma afeição serena, com uma certeza que deixou Margaret exultante. Era uma sensação intensa, ao mesmo tempo íntima e profundamente respeitosa. Ela gostara da intimidade que experimentara no círculo de sua família, mas fora ao mesmo tempo um pouco opressiva. Havia se acostumado a ficar sozinha e apartada. Não sabia o que era ser conhecida, muito menos aceita. Algum dia me sentirei à vontade com isso?

- Entre as pessoas com o Dom de Alton, lamento dizer, o que você considera como privacidade é quase desconhecido - murmurou Jeff, em resposta à pergunta tácita. - Quando casei com Elorie, isso me deixava bastante ressentido. Não que adiantasse. As coisas são como são. Ou você se acostuma, ou não se acostuma. Mas tem de aprender a conviver com o fato.

E ponto final.

- Que maravilha! - resmungou Margaret, cansada demais para ser polida.

Jeff riu.

- A vida não é justa, Marguerida, e nunca é fácil. Pense como seria chata se fosse.

- Juro que neste momento eu ficaria muito contente com dez anos de chatice. Já tive aventuras em quantidade suficiente, desde que cheguei em Darkover, para durar pelo resto de minha vida. Até aprenderia a bordar, se pudesse ter certeza de que minha vida não seria mais emocionante.

Foi a vez de Liriel rir.

- Nunca ouvi ninguém ansiar tanto por uma vida insípida, Marguerida.

- Neste momento, eu trocaria Armida e o Dom de Alton por um bom banho quente e a promessa de constante tranqüilidade.

Lew fitou-a com um meio sorriso.

- o banho pode ter de graça, Marja, mas o resto... acho que não. Tenho um forte pressentimento de que suas aventuras mal começaram.

- Essa não! Eu lhe agradeceria se guardasse só para si todo e qualquer presságio de Aldaran, pai! Já causaram problemas demais por hoje. Vamos fazer uma excursão à cozinha, Donal, antes de desmaiarmos de fome.

Enquanto levantava-se com o menino e deixava a sala, Margaret teve certeza de que Liriel, Jeff e Lew falavam a seu respeito silenciosamente. Forçou-se a não "ouvir" a conversa, porque só serviria para deixá-la irritada naquele momento. Sabia muito bem que quase não tinha opção além de ir para uma Torre receber treinamento, quer quisesse ou não. Não sabia se seria uma boa técnica, como Liriel ou seu pai, e como seria trabalhar na intimidade de um círculo completo. A perspectiva a assustava. Conseguira se ajustar à família, mas não tinha certeza se aceitaria com a mesma facilidade os pensamentos de estranhos.

Mas Margaret logo riu para si mesma. Apenas um mês antes ela achava que toda aquela história de telepatia era absurda. Agora, tentava encontrar um meio de se ajustar.

Mikhail alcançou-a quando ela e Donal entraram na enorme cozinha. Era imensa, com duas lareiras, um forno que parecia uma colméia, e três mesas compridas estendidas no centro. Panelas brilhantes estavam penduradas nas paredes e empilhadas nos balcões. O lugar recendia a limpeza e os cheiros persistentes da comida ali preparada.

- Falou sério quando sugeriu que fugíssemos, prima, ou estava caçoando de mim outra vez?

A pergunta surpreendeu-a, mas foi uma surpresa agradável. Mikhail atravessou a cozinha e abriu um armário. Tirou uma travessa com carnes que sobrara do jantar e pôs numa mesa. Encheu um bule com água e pôs na lareira ainda quente. Donal sentou à mesa. Parecia ansioso quando tirou um pedaço de carne da travessa, pôs em seu prato e começou a devorar.

- Eu não estava caçoando de você, Mik, mas falava de brincadeira. Sei que criaria muitos problemas, e neste momento não tenho certeza do que quero fazer com a minha vida.

- Exceto aprender a bordar e ter uma existência insípida. Saiba que eu a invejo. Como já esteve em outros mundos, pode agora pensar em assentar.

Margaret sentiu-se um pouco alarmada pelo tom de suas palavras. Estava cansada demais para querer discutir o futuro, qualquer futuro. Seu único interesse no momento era comer e voltar a dormir. Seus olhos comichavam um pouco. Tentou focalizar alguma coisa que não tivesse maior importância, que não tivesse emoções inerentes. Não queria pensar na aparência de Mikhail no mundo superior, como ela própria devia ter parecido para ele. - Mikhail, se alguma vez me visse costurando, saberia que nunca seria capaz de aprender a bordar. Dio fez o melhor que podia para me ensinar, mas nunca consegui dar um ponto francês, e meus pontos cruzados nunca eram iguais.

A arte feminina do bordado era o assunto mais seguro que ela podia imaginar.

- Sei o que é um ponto cruzado, pois Liriel e Ariel costumavam fazê-lo quando eram mais jovens. Mas nunca ouvi falar de um ponto francês. o que é isso?

Margaret sentou ao lado de Donal e tentou lembrar. Ao que tudo indicava, Mikhail também preferia falar de um assunto neutro. Margaret fitou-o e compreendeu que ele não fizera a pergunta porque era segura, mas sim porque estava mesmo interessado. Mikhail daria um esplêndido pesquisador, se tivesse ido para a universidade. E que contraste com o pai e os irmãos, que pareciam não ter qualquer interesse além de criar cavalos e fazer filhos! Ocorreu-lhe que encontrara bem poucas pessoas em Darkover interessadas por coisas que ainda não sabiam. o analfabetismo de Ariel e Gabe não era uma questão de leitura, mas uma ausência de curiosidade.

- Você levanta a agulha, passa o fio em volta duas vezes, depois enfia a agulha bem perto do ponto por que passou antes. Só que eu sempre voltei para o primeiro buraco, e meus nós se desfazem. É uma coisa irritante.

- Ah, isso... Nós chamamos aqui de Ponto de Guardiã.

Mikhail meteu algumas folhas num bule para um chá. Pôs pratos vazios na mesa, pegou pão, mel e creme grosso.

- Liriel também detestava, mas Ariel adorava. Fez centenas desses pontos.

Foi nesse momento que Lew e Liriel entraram na cozinha, com Jeff logo atrás. Suas expressões eram solenes, um pouco conspiradoras. Margaret observou-os, enquanto cortava uma fatia de pão e passava mel.

- Decidiram o que pensam que vão fazer comigo?

Ela falou em tom de desafio, porque era verdade. Poderia ir para uma Torre, mas continuaria a mandar em sua vida, a fazer suas opções. Precisava ter o mínimo de controle que ainda restava em sua vida. Lew e Liriel trocaram um olhar, enquanto Jeff se mostrava contrafeito, como se tivesse sido surpreendido com a mão no pote de biscoitos. Lew esfregou a nuca com sua única mão.

- Não, mas discutimos o assunto.

- Um café a manteria acordada por mais algum tempo, Marguerida? - perguntou Jeff, antes que ela pudesse responder ao pai.

- Nada poderá me manter acordada, mas um café seria bem-vindo. E então, pai, devo casar com o jovem Gabriel, ou ir para uma Torre e ficar trancafiada ali?

Lew sentou ao lado da filha.

- Sua propensão para o dramático não diminuiu com o passar dos anos.

- Pelas histórias que eu ouvi desde que cheguei a Darkover, você também era dramático antes de partir.

Istvana fizera um relato da Rebelião de Sharra e a participação de seu pai, bastante censurado, ela desconfiava, mas ainda assim com detalhes suficientes para levá-la a pensar que Lew Alton devia ter sido uma figura e tanto na juventude. Ele suspirou, parecendo ter todos os seus anos no cansaço.

- E constato que ainda tem o hábito inquietante de dizer o que pensa. Não achamos que deve casar com Gabriel... para resguardar as portas de Armida.

Margaret riu, enquanto o pai continuava a falar:

- Pode fazer bastante café para que eu também possa tomar, Jeff? Eu gostaria que houvesse algum lugar no planeta em que se pudesse cultivar o café. Mas achamos que seria uma irresponsabilidade total se não a levássemos para treinamento em Arilinn.

- Concordo, mas não tenho certeza sobre Arilinn.

- Como?

Margaret não pôde determinar se o pai se surpreendia com sua repentina capitulação ou por sua relutância em considerar a Torre na qual ele fora treinado.

- Concordo que preciso ser treinada. Nunca, mas nunca mesmo, quis fazer com alguém qualquer coisa que a pessoa não quisesse. O mundo superior me apavora. Ser uma telepata me apavora. Preferia ter os cabelos crespos ou um busto maior, se pudesse escolher.

Esse comentário fez com que todos à mesa rissem, exceto Donal, absorvido em tentar comer toda a carne em seu prato com duas mordidas.

- Mas por que não Arilinn? E a principal Torre de Darkover. Todo mundo vai para lá.

- Foi o que me disseram. Mas tenho o pressentimento de que devo começar em Neskaya, com Istvana Ridenow. - Margaret fez uma pausa, franzindo o rosto. Não sabia disso até falar, mas agora tinha certeza. - É contra as regras?

Jeff virou-se do balcão em que mexia o café moído num filtro de papel.

- Não é contra nenhuma regra, Marguerida, embora eu deva dizer que rompe um pouco com a tradição. Para ser franco, nenhum de nós pensou a respeito. Tem alguma objeção a ser treinada por mim?

- Claro que não, tio Jeff. - Margaret mastigou o pão por um instante. .- Mas acho que o Dom de Alton é tão forte, tão poderoso, que trabalhar com uma pessoa que tem empatia o tornaria mais controlado.

E tenho um vínculo com Istvana que não existe com qualquer outra pessoa.

Houve um silêncio prolongado na cozinha. Jeff pegou a chaleira com água fervendo na lareira, foi despejar no bule de café. O aroma agradável impregnou o ar. Mikhail trouxe mais comida para a mesa, olhou para Margaret e ofereceu-lhe um maravilhoso sorriso de apoio. Neskaya não fica muito longe de Ardais. Posso ir até lá sempre que seus deveres permitirem.

Pode me ver até mesmo quando meus deveres não permitirem, seu bobalhão!

Como posso resistir a pensamentos tão ternos?

O que o faz pensar que quero que resista?

Esse diálogo secundário só despertou comentários de Liriel. Ela olhou do irmão para Margaret, franziu o rosto, depois deu de ombros. Então é assim que o vento sopra entre vocês, hem? Deveríamos ter percebido, adivinhado tudo, é claro. Confesso que me sinto satisfeita, mas também agoniada, porque nossos pais não demonstrarão a menor disposição para apoiar essa união, como sabe muito bem, Mik.

Sei, sim... mas o que posso fazer? Não é culpa se tanto potencial de poder se concentra em minhas mãos e nas de Marguerida.

Está sendo lógico, Mik, como costuma ocorrer com freqüência. A situação, porém, não tem nada de lógica. Liriel conseguia manter uma expressão severa. Nosso pai nunca permitiu que a lógica o guiasse, enquanto a mãe... ora, sabe muito bem que ela está determinada a manter Armida em suas mãos. É quase obcecada pela propriedade, como se fosse sua terra ancestral, não a de seu marido. Creio que posso explicar, interveio Lew. Javanne é ambiciosa. Já era ambiciosa quando era jovem. Queria comandar tudo, mesmo quando éramos crianças. Mas havendo muito pouca oportunidade para uma soberania feminina em Darkover, ela foi forçada a se contentar com casar na mais poderosa família que pôde conseguir. Mas trocaria Armida pelo Castelo do Comyn sem hesitar, se surgisse a chance. Não é bom, como descobri em meu tempo na Federação, manter um sexo confinado, deixando o outro fazer o que bem lhe aprouver.

Você fala como se ela quisesse a posição de Regis, o que é impossível! A voz mental de Liriel tinha uma certa rispidez.

Na imaginação, Ariel, qualquer coisa é possível... absolutamente qualquer coisa!

Houve silêncio na cozinha. Jeff serviu o café. Donal, empanturrado, soltou um sonoro arroto, sem a menor inibição. Limpou a boca com o dorso da mão. Esticou-se no banco, usou a coxa de Margaret como travesseiro, e caiu num sono profundo.

- Marguerida tem razão num certo sentido. - Liriel falou suavemente, como se tivesse posto de lado os pensamentos perturbadores a respeito da mãe, preferindo se concentrar em coisas que podia entender. - Istvana é a Guardiã mais inovadora que temos em muitos anos... desde Cleindori, para ser mais precisa. Sei que você tem tentado mudar as coisas, Jeff, mas vem nadando contra a correnteza. Qual é a sua opinião, tio Lew?

- Tenho a sensação de que fui sugado através de um ralo de volta ao passado, se quer saber a verdade. A viagem de Thendara demorou mais tempo do que eu imaginava. Há muitos anos que não passava um longo período num cavalo. Mas qual é a minha opinião sobre Neskaya em vez de Arilinn? Estive ausente durante muito tempo para ser capaz de julgar. E, para ser franco, ando tão angustiado pela preocupação com Diotima que não confio em meu julgamento mais do que o necessário. Gostaria de discutir o problema com Regis. - Ele apertou de leve o ombro da filha. - Mas Marja pode estar certa, e um Dom de Alton mais controlado e sábio me parece uma excelente idéia. Não sei por que ninguém pensou nisso mais cedo.

- Obrigada.

Margaret não podia se lembrar de qualquer elogio anterior do pai. Teve vontade de chorar de alegria. Afagou os cabelos de Donal, sentindo-se mais contente do que jamais imaginara que fosse possível.

- Marguerida pode partir para Neskaya... - começou Liriel.

- Não irei para lugar nenhum, enquanto não me encontrar com Dio! Agora que decidira seu curso de ação, ela queria adiar o início pelo máximo possível.

- Claro que deve se encontrar com Diotima, chiya. - Jeff acenou com a cabeça, como se aprovasse seus sentimentos. - Enquanto estiver em nossa companhia, creio que nada de mal poderá acontecer. Amanhã... ora, já é amanhã... depois que descansarmos partiremos para Thendara.

Jeff fez uma pausa, tomando um gole do café em sua caneca.

- Há mais alguma coisa perturbando-o, Lew, algo que não tem nada a r com a doença de Diotima.

- É verdade, mas terá de esperar. Estou tão acostumado à urgência do nado, em que o destino de mundos é decidido em horas, que esqueci mo o tempo passa devagar aqui onde nasci.

O lugar em que nasci! Voltei para casa, o exílio terminou, mas nada é como imaginei. Minha filha é uma mulher adulta, e é o futuro de Darkover, Eu sou o passado, mas finalmente estou em casa. Agora, quero voltar para Dio. E quanto mais cedo puder reunir Marja e Dio, depois de tanto tempo... minha família!

Já era o final da tarde quando Margaret finalmente abriu os olhos. Sentia muita fome. Esfregou os olhos, enquanto refletia que parecia comer muito mais em Darkover do que jamais ocorrera antes. Só que toda a comida não aparecia na cintura. Especulou sobre o que acontecia. Concluiu que os alimentos a mais deviam ser consumidos pelo laran. Ela procurou por Rafaella, mas não a encontrou no quarto. o que significava que a amiga devia ter melhorado do resfriado. Tentou ordenar as lembranças da noite anterior, mas acabou desistindo. Foi para o banheiro.

De banho tomado e vestida, Marguerida desceu. Ainda na escada, ouviu vozes furiosas lá embaixo. Reconheceu as vozes do pai e de Javanne, quase se engalfinhando, enquanto Jeff e Liriel tentavam apaziguar.

- Você prometeu que nunca voltaria, Lew, mas não cumpriu sua palavra! Não pode entrar aqui depois de vinte anos, pensando em recomeçar de onde parou!

Javanne parecia cansada, como se estivesse argumentando há muito tempo.

- A última coisa que eu gostaria, Javanne, seria recomeçar de onde parei. Lembro com mais intensidade do que você imagina os acontecimentos que precipitaram minha partida.

- Não era a isso que eu me referia, como sabe muito bem! Nem mesmo você é bastante tolo para promover outra rebelião em Darkover. Mas não pode reivindicar Armida. Não vou permitir. Temos cuidado da propriedade durante todos esses anos. E se quer mesmo saber, você não a merece.

- Não me lembro de ter pedido Armida de volta.

Lew falou num tom de voz que Margaret reconheceu como perigoso.

- Mãe, acho que está sendo irracional.

- Fique calada, Liriel. Não posso imaginar por que é tão desleal, mas não é mais do que eu esperava. Sempre foi voluntariosa.

Margaret entrou na sala de estar, o mesmo lugar em que poucas horas antes deixara seu corpo e fora para o mundo superior. Correu os olhos pela sala. Havia mais pessoas ali do que imaginara. Gabe postava-se diante do fogo, com uma expressão furiosa, enquanto Piedro Alar sentava numa das poltronas, cansado e angustiado. Depois ela divisou Mikhail, meio escondido nas sombras numa extremidade da sala, e seu coração disparou.

- Boa tarde - disse Margaret. - Parece que dormi o dia inteiro.

- Boa tarde, prima - respondeu Mikhail, sorrindo. - Espero que tenha descansado bastante.

Javanne fitou-a, irritada. Parecia que não sabia o que fazer.

- Não me parece pior por suas aventuras em minha casa, Marguerida.

- Um pouco de chuva não me incomoda - murmurou ela, oferecendo um sorriso provocante à tia.

O queixo quadrado de Javanne destacava-se por cima da gola de rufos.

- Eu não me referia a isso, e sabe muito bem.

- Tem razão. Sei também que não gosta de mim, que só me aceitaria como filha para manter Armida, e que acredita que sabe o que é melhor para todos. Pois não sabe. Ninguém sabe.

Houve um silêncio chocado a essa declaração tão franca. Margaret ficou um pouco vermelha. Não adiantava fingir, pensou ela, que estava tudo bem, que Javanne gostava dela. Percebeu que Mikhail ficava tenso. Lamentou deixá-lo perturbado, mas não tinha a menor intenção de se retratar.

- Soa tenho tratado com gentileza, Marguerida. Mas sua própria existência representa um problema... um problema que acho que pode ser resolvido por seu casamento com Gabriel, o mais depressa possível. Quando isso acontecer, o direito de seu pai a Armida está liquidado de vez.

- Os anos não diminuíram sua arrogância, Javanne - comentou Lew, rindo.

O mais terrível é que posso compreender sua posição. Sou o intruso, como também aconteceu quando éramos crianças. E ela nunca foi capaz de entender que o seu jeito não era o único jeito. Eu teria pena dela, se não tivesse vontade de torcer seu pescoço.

- Seria uma boa solução para você, tia, mas nunca serviria para mim... e também não favorável para Gabriel. Eu seria uma péssima esposa para ele, como sabe muito bem. Em menos de uma semana de casamento, já estaríamos com vontade de assassinar um ao outro.

- Tenho certeza de que, se tentasse, descobriria como meu filho é um homem bom.

- Posso falar por mim, mãe! - Gabriel franziu o rosto, deslocou o peso do corpo de um pé para outro. - Acho que Marguerida tem razão. E não creio que duraria sequer uma semana.

Javanne parecia prestes a contestar, mas o filho deu de ombros, e ela se conteve.

- Neste caso, talvez seja melhor todos partirmos para Thendara o mais depressa possível. Deixaremos que a Corte resolva os dois problemas, a propriedade de Armida e o casamento de Marguerida.

Ela exibiu uma súbita presunção, como se soubesse de alguma coisa que todos os outros ignoravam. Piedro Alar remexeu-se nesse instante, desesperado e constrangido, olheiras profundas da falta de sono.

- Vocês se mostram muito preocupados com a terra e o casamento, mas o que vai acontecer com meu filho? - Havia uma repentina determinação em seu queixo fraco, como se soubesse que falava fora de sua vez, mas estava decidido a dizer o que queria. - E minha esposa, cuja mente está quase transtornada?

Todos se mostraram embaraçados, com exceção de Gabe. Margaret mordeu com força o lábio inferior. Quase esquecera por completo o menino ferido e sua mãe perturbada lá em cima.

- Eu o monitorei antes de descer - anunciou Liriel, falando bem devagar. - Ele está descansando... e parece até dormir muito bem. Mas deve ser removido para Arilinn o mais depressa possível. Será seguro levá-lo amanhã.

Não gosto nem um pouco do som de sua respiração.

- Creio que será melhor a mãe e eu levarmos Domenic e Ariel para

Arilinn - acrescentou Liriel.

- Mas... - disse Javanne, em protesto, pois parecia pensar que uma vantagem lhe fora tirada.

- Ninguém pode controlar Ariel tão bem quando você, mãe - interrompeu-a Liriel. - E ela vai precisar do seu apoio. Sabe como Ariel fica ansiosa ao menor problema.

- Está resolvido - declarou Jeff, calmamente. - Amanhã, à primeira claridade do amanhecer, voltaremos para Thendara. Quero ver Diotima antes de seguir para Arilinn. Por isso, irei com vocês. Não vai se incomodar, Marguerida? E você, Lew? E você, Mikhail?

- Como? Não há a menor razão para que Mikhail vá com vocês! - Javanne estava indignada, mas Gabe ofereceu um pequeno aceno de cabeça ao irmão caçula, como se estivesse aliviado. - Não vou admitir! Mikhail tem de voltar para Ardais!

Margaret lançou um olhar rápido para Mikhail, porque não entendia o motivo para a súbita mudança de atitude de Gabe. Ele não era um homem propenso a aceitar a voz da razão. O que acontecera?

Falei a Gabe de nossa pequena aventura com Donal. Ressaltei que ele, se não a mantivesse amordaçada, teria de viver com medo da Voz pelo resto de sua vida. E considerando como vocês dois irritam um ao outro, seria uma vida breve. A voz de Mikhail na mente de Margaret tinha um tom de satisfação, como se ele tivesse acabado de saldar várias dívidas em um único momento. Mas eu não faria isso, Mikhail! Isto é, acho que não faria. Sei disso, e você também sabe, mas meu irmão não pode imaginar que alguém tenha uma vantagem sem usá-la. Ele aceitou minha sugestão como um fato incontestável.

Mik" Não se sente envergonhado?Margaret mal conseguia conter o riso. Nem um pouco. Fiz isso pelo bem de Gabe.

- Isso é inadmissível - insistiu Javanne, - e não vou...

- Mãe, pare de bancar a tola - interveio Liriel, com firmeza. - Os acontecimentos escaparam ao seu controle. A melhor coisa que pode fazer agora é aceitar isso. Passou a ser mais do que uma questão de terras e casamento. Muito mais.

Javanne fitou a filha, a boca entreaberta. Parecia tão furiosa e frustrada que Margaret quase sentiu pena.

- Não compreendo mais coisa alguma! Não sei o que vai acontecer com Darkover!

Não suporto ficar de lado e deixar que aconteça. Por que Ariel tinha de partir de maneira tão precipitada e ferir meu neto? Alguma mulher já enfrentou mais provações do que eu? Oh, não! Não devo perder o bom senso. Estou me comportando tão mal quanto Lew sempre se comportou. E ele sabe disso!

- Creio que Darkover está chegando a seu futuro, Javanne - murmurou Jeff. - E acho que será emocionante.

 

24

Era o dia mais quente que Margaret já vira desde que chegara a Darkover. Era como se a tempestade tivesse afugentado o frio, deixando um calor abençoado em sua esteira. Embora Jeff se queixasse um pouco do calor, ela estava gostando. E estar longe da influência amarga da tia ajudava muito. Javanne continuara a argumentar durante um longo jantar e pela noite afora, até que ninguém podia mais agüentar, inclusive o leal Gabe.

O céu estava claro, uma tigela rosa por cima de suas cabeças. Soprava uma brisa leve, desmanchando os cabelos de Margaret de maneira agradável. Rafaella seguia ao seu lado, satisfeita por estar de volta a Thendara. Lew e Jeff seguiam à frente, conversando.

Embora tivessem planejado sair todos de Armida ao mesmo tempo, Javanne e Liriel tiveram de ficar. Ariel se mostrara mais resistente do que qualquer um imaginara. Não queria deixar os meninos menores aos cuidados da babá. Várias horas passariam antes que seguissem para Arilinn. Margaret não ficara infeliz com essa mudança nos planos.

Lamentava, no entanto, que Mikhail não estivesse no grupo que viajava para Thendara. Javanne fora intransigente nesse ponto. Ordenara que ele voltasse imediatamente para Ardais. Dera a impressão de que desejava que ele nunca tivesse nascido. Mikhail, o rosto vermelho de raiva, pegara seu cavalo e deixara Armida antes mesmo da partida de Margaret. Ele não se despedira. Montara no enorme baio e saíra a galope, como se o demônio estivesse em seu encalço.

Em vez de remoer a ausência de Mikhail, porém, ela concentrou-se em desfrutar o dia quente, o prazer tranqüilo de se encontrar outra vez na estrada em companhia de Rafaella. A Renunciante ainda fungava de vez em quando, não parecia muito propensa a conversar. Mas de vez em quando sorria para Margaret, partilhando o bom ânimo, que era quase irresistível com aquele tempo, sob o céu aberto.

- Sente-se contente por voltar a Thendara, não é? – perguntou Margaret.

- Mas claro que sim! Já estive em algumas situações terríveis... enfrentando bandidos nas montanhas e avalanchas, um ou outro banshee à procura de uma refeição. Mas confesso que prefiro deparar com tudo isso ao mesmo tempo do que sentar para outra refeição à mesa de Domna Javanne. Nunca

I me senti tão constrangida em toda a minha vida! Margaret riu.

- Somos duas. Até meu pai, que é um formidável oponente, ficou um pouco...

O som de cascos de cavalo por trás fez com que Margaret parasse de falar e virasse a cabeça. Mikhail, as faces rosadas do galope, surgiu na trilha. Conteve o cavalo para um trote. Os olhos faiscavam divertidos, tinha os cabelos desgrenhados pela brisa. Ela se surpreendeu ao vê-lo, mas não muito. Mikhail tinha um talento para aparecer em momentos inesperados. Sorriu para Margaret, que retribuiu, como se partilhassem um prazer secreto... o que, ela decidiu, era o que de fato ocorria. Ela sentiu-se um pouco culpada por ser prazer, mas não muito. Mikhail parou o cavalo ao seu lado.

- Saudações, prima. E um prazer tornar a vê-la tão depressa. E você também, Mestra Rafaella. Espero que seu resfriado tenha melhorado.

- Saudações para você também - respondeu Margaret, adorando o jogo. - Tive a impressão de que você se mostraria um filho obediente e voltaria para o Castelo de Ardais.

- Nunca se deve julgar pelas aparências. - Mikhail forçou o rosto jovial a assumir uma expressão de seriedade que não iludia a ninguém. - Se dei a minha mãe a impressão equivocada de que voltaria para Ardais, como ela ordenou, então ela foi enganada. E sinto-me horrível por enganá-la, como não poderia deixar de ser.

Ele não parecia nem um pouco envergonhado. Ao contrário, dava a impressão de que estava se divertindo muito. Afagou o pescoço do cavalo, com um sorriso largo. Jeff e Lew notaram sua chegada e voltaram para cumprimentá-lo.

- Ela já deveria saber a esta altura que você sempre faz o que quer - comentou Jeff, calmamente, como se a presença de Mikhail ali não fosse nenhuma surpresa. - Depois de tantos anos, era de sé esperar que ela desistisse de tentar lhe incutir uma noção dos seus deveres, deixando-o seguir seu caminho.

- É uma triste reflexão sobre o meu caráter, tio Jeff, saber que sou considerado insubmisso e desobediente. Talvez ela me repudie, e terei de aprender a viver de minha inteligência.

Há sempre uma fazenda de cogumelos, como último recurso! Margaret quase caiu na gargalhada ao ouvir esse pensamento. Sentia-se contente por Mikhail ter força para resistir a Javanne, embora desconfiasse que isso causaria problemas no futuro. Sabia que não era a primeira vez que ele fazia isso. Tinha a impressão de que Mikhail sempre fora muito mais independente do que a família gostaria. Especulou de onde viria isso, a capacidade para se rebelar sem perder o controle. Refletiu que devia ser da exposição às idéias terráqueas. Não era de admirar que o pai e a mãe o desaprovassem tanto. Como ele devia se angustiar por ser o paxman de Dyan Ardais, quando lhe fora prometido muito mais... e sem perder a curiosidade e o senso de humor! Margaret decidiu que aprovava essas qualidades no primo, e desejou tê-las com mais intensidade. Depois, riu de si mesma. Mikhail não precisava de sua aprovação.

Não, não preciso, mas fico feliz ao recebê-la.                                       i,

Bisbilhoteiro!

Não foi assim. Você estava irradiando com muita força. Começo a me sentir como um satélite de comunicações, irradiando informações quer queira ou não.

Para quem não teve treinamento, Marguerida, até que você se sai muito bem em guardar seus pensamentos para si mesma. Creio que uns poucos meses numa Torre lhe mostrará como controlar o Dom. Estou um pouco enferrujado, como descobri quando procurávamos pelo garoto de Ariel. Acho que devo voltar e também estudar um pouco o laran.

Enferrujado? Pude sentir enquanto operava, e me pareceu muito bem.

Usar o laran exige uma vida inteira de estudo, Marguerida.

Espero que não. Não tenho a menor intenção de passar tantos anos trancada numa Torre.

O que você quer?

Era a terceira vez que ele lhe fazia essa pergunta. Margaret pensou a respeito mais uma vez. Na adolescência, só queria se afastar da casa em que se sentia desamada e indesejada. Na universidade, experimentara o jornalismo, pensando que queria se tornar uma escritora. Depois, encontrara Ivor Davidson e a música. Escolhera a música, mas sabia agora que nunca chegara a ser consumida por ela, não com a paixão que Ivor sentia por seu trabalho. Era uma coisa que podia fazer muito bem, que gostava de fazer, mas j apenas um trabalho, não uma vocação.

A interferência de Ashara em sua mente impedira-a de querer um marido ou uma família. Forçara-a a ficar sozinha, quer quisesse ou não. Agora que a restrição desaparecera, ficara um vazio, um espaço em branco no qual a poderosa personalidade da Guardiã há muito morta a mantivera cativa. Muitas coisas haviam acontecido para que ela tivesse tempo para pensar no que gostaria de fazer com a sua vida. E ainda era muito difícil deixar que qualquer pessoa se aproximasse, por mais que ansiasse por intimidade.

Com um pequeno sobressalto, Margaret compreendeu que a causa parcial de sua antipatia em relação à tia Javanne derivava dos sentimentos por Ashara. As duas não eram parecidas, é claro, mas ambas pensavam que podiam controlá-la e comandá-la para alcançar seus objetivos. Ela compreendeu que tinha muito pouca tolerância para ser dominada de novo. Por ninguém, nem mesmo por Mikhail.

Por um momento, ela sentiu que se encontrava num ponto crítico. Não podia mais negar seus sentimentos pelo primo, não podia mais negar que apenas gostava dele. Todos, inclusive Javanne, sabiam de seus verdadeiros sentimentos por Mikhail. Margaret sabia que o amava, mas será que o amava bastante para ser subserviente a ele? Não era o que se esperaria dela, se casasse com Mikhail ou qualquer outro homem darkoviano? Acabara de se livrar de Ashara, e não queria outro amo no lugar da Guardiã morta. Nem mesmo alguém tão bom quanto Mikhail.

Creio que devo permanecer em Darkover e estudar meu Dom.

Não parece muito animada com a perspectiva.

Você viveu numa sociedade telepática durante toda a sua vida, Mik, mas para mim é uma novidade... e não é maravilhosa. Tinha minha vida planejada, até Ivor morrer. Continuaria a ser sua assistente. Num futuro distante, haveria de me tornar uma catedrática, e continuaria a realizar pesquisas. E difícil para mim abandonar tudo isso e me transformar numa boa darkoviana que faz o que os outros mandam.

Não estou sugerindo nada disso, e você sabe muito bem! Nunca será mais obediente do que eu. Em que você é competente, além de música? Creio que sou muito competente em fugir das coisas. Seguir pelo caminho de menor resistência? Eu também faço isso. Nunca pressionei tio Regis a tomar uma decisão, porque tinha medo do resultado. Sei que ele espera para verificar se o jovem Dani possui ou não o Dom de Hastur. Por mais vergonhoso que seja, confesso que desejei algumas vezes que ele não tivesse... uma atitude lamentável!

Não, apenas muito humana. Acho que tive a idéia de que os telepatas deviam ser uma espécie de super-homens. Fico um pouco desapontada ao constatar que ainda são totalmente humanos, transbordando de paixões por poder e glória, como todas as outras pessoas.

Adoro o fato de que você é capaz de dizer coisas que ninguém mais diz, Marguerida!

Como assim?

Uma das características de viver com outros telepatas é um grau de repressão... uma espécie de desonestidade, afim de evitar que os conflitos terminem em brigas.

E mesmo? Pensei que todos tinham de ser totalmente honestos, durante todo o tempo, não importando o que acontecesse!

Se fosse assim, respondeu Mikhail, rindo na mente de Margaret, não haveria mais ninguém vivo hoje, pois já teríamos nos matado há vários séculos. o que quase aconteceu, com as nossas paixões exacerbadas, diga-se de passagem. Não queremos lembrar a Era do Caos, porque tivemos o pior comportamento possível, durante um longo período. Só enfrentando o problema é que encontramos meios de ser quem somos sem destruir uns aos outros.

Vejo que tenho muito para aprender... o que não faz com que meu coração bata mais depressa em alegria. Margaret fez uma pausa, refletindo sobre a tranqüila presença de Rafaella a seu lado. A Renunciante parecia imersa em seus pensamentos. o pai e Jeff haviam se adiantado de novo, como se quisessem deixá-la com um mínimo de privacidade, pelo que sentia-se grata. Acho que eu gostaria de fazer alguma coisa significativa, o que quer que seja.

Não é o que todos queremos?

Como assim?

Pensa que esperar pela morte de Regis ou ser paxman de Dyan Ardais tem alguma importância para mim?

Eu não havia pensado, mas creio que seria uma vida bastante vazia.

É uma boa palavra para descrever a situação. Não que eu estivesse consciente alguma vez de me sentir vazio. Apenas vivia descontente e era um pé no saco para a família.

Diga isso de novo! A voz mental de Jeff interrompeu a conversa, o pensamento jovial. Sua irmã Liriel foi a afortunada. Queria ir para uma Torreecon - seguiu... embora não sem muitos protestos de Javanne. Sempre achei que era uma pena que sua mãe não fosse uma telepata bastante poderosa para se tornar uma Guardiã, pois nada menos poderia satisfazer suas ambições.

Margaret ficou um pouco surpresa com a intromissão de Jeff. Também sentiu-se um pouco embaraçada ao descobrir que sua conversa com Mikhail, que julgava ser particular, fora ouvida por outra pessoa. Como não pensara nada excessivo, não havia problema. Mas tinha a impressão de que nunca se acostumaria com a telepatia, por mais tempo que fosse treinada numa Torre. Ela olhou para as costas do pai, largas e empertigadas, cavalgando ao lado de Jeff. Concluiu que se Lew podia ser um telepata, ela também era capaz. Como se a ouvisse, ele virou-se na sela e lhe ofereceu um sorriso tão encorajador que ela teve de fazer um esforço para não chorar. Por que o pai não fora assim, pensou Margaret, furiosa, quando ela era mais jovem?

Os viajantes pararam numa pequena estalagem ao meio-dia. O estalajadeiro, um homem gordo, na casa dos cinqüenta anos, cumprimentou Lew Alton com a maior alegria, mas com uma espécie de deferência que deixou Margaret embaraçada. Enquanto comia pão fresco, queijo e frutas, ela se perguntou se algum dia seria capaz de se sentir como uma aristocrata, uma comynara. Passara tanto tempo no ambiente relativamente democrático da universidade, onde a deferência era concedida por mérito, não como um direito hereditário, que achava toda aquela pompa mais do que um pouco desagradável. Com o passar do tempo, sem dúvida, acabaria se acostumando, talvez até esperasse, por mais que torcesse para que isso nunca acontecesse.

Continuaram a viagem depois do almoço. Margaret sentia-se mais relaxada quanto mais se afastavam de Armida. Rafaella apontou vários pontos interessantes do percurso, mas não a cansou com uma conversa interminável. Por isso, Margaret pôde apreciar a cavalgada e se concentrar em seus pensamentos. Era a primeira vez em dias que tinha uma certa tranqüilidade, o que estava adorando. Até mesmo Mikhail pareceu compreender que ela precisava de sossego, pois apressou seu cavalo para se juntar aos outros homens. Ela contemplou as três costas largas e fortes... três gerações de darkovianos. E, pela primeira vez em sua vida, descobriu-se orgulhosa de seu nascimento.

Depois de algum tempo, Jeff veio para o seu lado. Margaret podia sentir sua gentil proteção e sorriu. Ele acrescentava algum comentário ocasional às informações de Rafaella sobre os lugares por que passavam. Margaret escutava os dois trocando versões de histórias antigas. Parecia que cada palmo de Darkover tinha uma história. Em outra ocasião, ela ficaria fascinada. Mas o calor do dia provocava uma agradável falta de foco. Além disso, Margaret precisava pensar em sua conversa com Mikhail. Inesperadamente, sua mente acadêmica parecia ter saído de férias.

Perto do final da tarde chegaram a um lago, vasto e um pouco enevoado, ao sol suave. A neblina era insólita num dia tão bonito. Margaret ergueu-se nos estribos para ver melhor. Avistou à distância uma Torre reluzente, alta e branca, as pedras descoloridas pelo sol. Era muito parecida com as estruturas que ela vira no mundo superior, só que mais sólida e real do que qualquer coisa naquele estranho lugar.

- E Arilinn, tio Jeff? O lugar em que você vive?

Ela apontou para a construção. Jeff virou-se para ela, surpreso.

- Como? - Ele olhou na direção indicada. - o que você vê ali, Marguerida?

- Vejo uma Torre, como as que avistei no mundo superior. É Arilinn?

- Não, chiya. Este é o Lago Hali. Ali ficava a Torre de Hali.

- Ninguém mencionou isso antes. Não, espere um instante... Istvana disse que Ashara foi Guardiã na Torre de Hali. Não pode vê-la?

Margaret não conseguiu evitar um arrepio à menção do nome de sua algoz morta. Sentiu que sua respiração se tornava tensa e superficial. Jeff sacudiu a cabeça.

- A Torre de Hali foi destruída, há mil anos ou mais, numa guerra durante a Era do Caos. Nunca foi reconstruída, embora eu não possa entender o motivo.

- Posso vê-la com tanta nitidez quanto minha mão diante do rosto.

A voz de Margaret era estridente, o sangue correndo nas veias dava a impressão de estar gelado. Era uma Torre linda e parecia chamá-la. Mas era mais como um canto de sereia, deixando-a apavorada.

- Tenho certeza de que pode, mas lhe asseguro que não há mais nada ali, exceto algumas ruínas. E uma espécie de memorial daquela guerra. Pode dizer que é o fantasma de uma Torre.

Jeff fez o comentário final num tom jocoso, mas Margaret percebeu que ele ficara perturbado. Ela própria sentia o corpo todo gelado, apesar do sol quente em sua pele. Estremeceu. Via a Torre com absoluta nitidez, sólida e real.

- o que aconteceria se eu fosse até lá e batesse na porta? Jeff fitou-a, chocado, em silêncio, por um longo momento.

- Não sei, e acho que não quero descobrir. O fato de que você é capaz de ver Hali já é bastante perturbador, Marguerida, mesmo sem ir até lá e bater na porta. Eu não aconselharia.

- Mas o que aconteceria?

Por baixo da luva, Margaret sentiu que as linhas na mão esquerda começavam a pulsar. Foi dominada por uma curiosidade irresistível. Não, era mais do que isso. Era quase uma compulsão. Ela não pôde deixar de especular se Ashara, de alguma forma, lhe preparara outra armadilha.

- Ao que eu saiba, outras pessoas já viram Hali, de vez em quando, mas ninguém jamais tentou entrar na Torre fantasma. Portanto, não sei o que aconteceria. - Jeff estava preocupado, como se pensasse que ela podia sair correndo para tentar entrar no prédio ilusório. - Se você entrar, Marguerida, provavelmente não conseguiríamos acompanhá-la.

- Está me assustando, tio Jeff... é como se falasse sobre contos de fadas, duendes ou coisas assim.

Continuaram a andar. Jeff demorou um pouco para responder ao comentário.

- Não é má analogia - murmurou ele, enquanto virava o cavalo para longe do Lago Hali, seguindo pela trilha. - Não tenho pensado em duendes há muito tempo. Adorava suas histórias quando era pequeno e vivia na Terra. Os Kerwins eram de origem irlandesa, e a mãe de meu pai adotivo conhecia uma porção de histórias... sobre Oisin, Fionn mac Cool e o Rei Arthur, que ela insistira ter sido roubado dos irlandeses pelos ingleses. Eram histórias fascinantes.

O murmúrio da voz do velho acalmou-a. O medo começou a se desvanecer enquanto escutava. Conhecia algumas histórias mencionadas por Jeff, além de muitas outras. Onde quer que os humanos assentassem, ao que parecia, levavam histórias de outras raças, de fadas, duendes e anões. Muitas vezes se mantinham até mesmo em lugares onde tudo era diferente.

Margaret virou-se na sela e olhou para trás. A Torre sumira, como se nunca tivesse existido. Ela podia ver apenas as ruínas das pedras da fundação, não brancas como as vira antes, mas enegrecidas, como se tivessem sido atingidas por um raio. Não era a coisa mais absurda que já lhe acontecera desde que chegara em Darkover, mas era sem dúvida uma das mais inquietantes.

- Desapareceu agora - anunciou ela, com um profundo pesar. -Como se nunca tivesse existido. Mas tenho um estranho pressentimento em relação a este lugar.

- Que pressentimento? - perguntou Jeff, relutante.

- Não sei dizer... exceto que um dia ainda baterei na porta de Hali. Por que acha que posso vê-la, quando você não é capaz?

Apesar da ausência da Torre que vira poucos minutos antes, Margaret continuava a sentir uma tremenda atração, uma pressão que preenchia todo o seu peito. Especulou se encontraria Ashara ali, uma mulher ainda feita de carne e osso... ou apenas se veria numa sala vazia.

- Você tem uma parte forte do Dom de Alton, Marguerida, a precognição.

- Sei disso... e gostaria de não ter! Mas precognição é ver o futuro, enquanto eu olhava para o passado. É totalmente diferente.

- A metafísica nunca foi um dos meus interesses, e assim posso apenas tentar adivinhar. - Jeff pensou por um momento. - Só porque nós pensamos que o tempo é constituído por passado, presente e futuro, isso não significa que o tempo também pensa nesses termos. Mas posso confiar que não fará nada absurdo, chiya, como saltar do cavalo e sair correndo para lá?

- Não, não farei. Acho que já tive aventuras suficientes. Não preciso entrar em Torres fantasmas. Para alguém que alega não ser um metafísico, você tem uma boa noção do assunto. - Margaret soltou uma pequena risada, embora não se sentisse alegre. - o tempo como uma questão de ponto de vista da realidade... estudei um pouco o assunto na universidade... é um tema capaz de levar qualquer pessoa à loucura. Não há pontos de referência, nada faz sentido. Algum Aldaran já viu o passado?

- Agora que penso a respeito, lembro de uma ocorrência. Jeff parou de falar, um pouco perturbado.

- Vai contar logo ou me deixar morrer de suspense?

Margaret falou em tom jovial, sentindo a necessidade de romper o clima sombrio. Olhou para o pai, seguindo um pouco à frente, em companhia de Mikhail. Não sabia se algum dia poderia brincar com Lew Alton daquela maneira, como fazia às vezes com Ivor, como já fazia com freqüência com Mik. Descobriu que queria isso, que era uma maneira fácil de expressar afeição.

Haviam se aproximado em Armida, mas os hábitos de uma vida inteira ainda os mantinham um pouco formais e distantes. Lew podia se mostrar jovial de vez em quando, mas logo recaía em seus silêncios pensativos. Margaret sabia que ele estava preocupado com Dio, transtornado porque não podia conversar com ela a respeito. Lembrou que Jeff comentara que seu pai tinha muita dificuldade para se abrir com outra pessoa. Sabia que o tio tinha razão. Apesar de tudo, porém, ainda ansiava por se sentir à vontade com o pai, e sentia-se impaciente em alcançar uma certa intimidade. Margaret tratou de se livrar desses pensamentos e concentrou-se no que Jeff dizia agora.

- Meu avô, o velho Damon Ridenow, cujo nome me orgulho de ter, realizou uma pesquisa do tempo durante a era da Torre Proibida. Teve algum êxito, mas era muito perigoso. Você vai precisar de muito treinamento para isso, mas torço para que nunca o faça.

Não quero pesquisar o tempo... quero ir para a Torre de Ha/i, não sei por quê. O que eu faria se Ashara estivesse lá? Talvez já tenha estado lá e encontrado Ashara. Talvez fosse por isso que ela estava determinada a me ofuscar. Gostaria de nunca ter visto aquele lugar.

Também vi, Marguerida. Nunca me aconteceu antes, e já passei pelo lago centenas de vezes. Espero que não esteja planejando fazer alguma coisa...

Mikhail vira a Torre de Hali? Ela ficou tão aturdida que não respondeu de imediato. Depois, sentiu-se irritada. Não ouse dizer "estúpida", Mikhail. Não irei correndo para lá... de qualquer forma, já desapareceu... mas algum dia ainda baterei na porta. Tenho certeza. Posso sentir nos ossos, o que me deixa apavorada.

Talvez eu vá com você... Mikhail parecia feliz, no seu jeito alegre habitual.

Margaret especulou sobre o que Mikhail e Lew haviam conversado, enquanto viajavam juntos. Pensei que queria deixar Darkover e conhecer as estrelas.

Queria... e continuo querendo. Mas Darkover hoje em dia me parece muito mais interessante do que era. Não posso imaginar por quê.

Margaret percebeu a insinuação em suas palavras. Sabia que Mikhail flertava com ela. Era uma estranha sensação. Gostaria de ter mais experiência com os homens. Dois ou três jovens na universidade haviam tentado atrair sua atenção, mas a presença de Ashara, como ela sabia agora, fizera com que se afastasse de maneira brusca. A maior parte do seu conhecimento de flerte vinha dos livros, e sempre lhe parecera uma coisa tola e um tanto embaraçosa quando lia. Agora, porém, provocava um estranho calor e excitamento. Talvez Mikhail fosse mesmo à Torre de Hali com ela um dia. Por trás de seu tom jovial, havia um elemento de seriedade. Eu a seguiria até o fim do mundo, Marguerida. Nunca duvide disso. Ela tinha sua resposta agora, e deixou-a emocionada de tal maneira que não podia descrever... e não tinha a menor idéia do que deveria fazer.

 

25

O grupo avistou Thendara na manhã seguinte, depois de uma noite agradável numa estalagem. Margaret divisou a ponta do enorme edifício no Setor Terráqueo, o que trouxe lembranças de seu tio Rafe Scott, o velho etnólogo Brigham Conover e Ivor Davidson. Especulou se ele continuava no mundo superior, ouvindo música, ou se já fora para outro lugar.

Era o meio do dia. O céu estava nublado, um vento gelado soprava das Kilghards. Margaret observou Jeff fazendo um esforço para esconder a dor das articulações, ansioso por um banho quente. Sentiu que Rafaella, ao seu lado, tornava-se mais e mais animada. A Renunciante também ficou em silêncio e tensa à medida que se aproximavam de Thendara. Margaret sentia falta de sua conversa jovial, mas sabia que a amiga pensava em Rafe Scott e como resolveria o que havia entre os dois, o que quer que fosse.

Ao chegarem aos portões da cidade, Rafaella se mostrou ainda mais ansiosa, os olhos faiscando. Era evidente que estava ansiosa por ir logo para a Casa de Thendara, e depois procurar o Capitão Scott. Margaret gostaria que sua situação fosse tão fácil de resolver. Afinal, Rafaella podia optar pela posição de companheira livre. Mas Margaret, se permanecesse em Darkover, não poderia fazer a mesma coisa, por causa das rígidas normas sociais do Comyn.

- Rafaella, como se faz a corte em Darkover?

- Hem? - A guia, absorta em seus pensamentos, ficou perplexa por um momento com a pergunta. - Quase que não existe, pelo menos no Comyn. Até os artesãos e mercadores costumam acertar casamentos pelo lucro, não por amor ou romance. É verdade que nos bailes e outras ocasiões similares há algum flerte, pelo que ouvi dizer, mas creio que não temos a corte e namoro como acontece em outros lugares.

- Eu deveria ter imaginado, com todos os casamentos sendo como são.

Margaret suspirou. Sabia agora o que queria, e também sabia o que Mikhail queria. Sabia ainda que Gabriel Lanart e Javanne Hastur se oporiam a seu casamento com o filho mais novo, e duvidava que seu pai tivesse poder suficiente para influenciar o resultado. A posição de Lew, pelo que ela podia compreender, era ambígua, já que há muito tempo ele tivera de renunciar a seu direito sobre o Domínio de Alton. Ela não conhecia a lei darkoviana para calcular o que podia acontecer. Portanto, era inútil especular a respeito.

A situação parecia desesperançada e um tanto irônica. Finalmente encontrara o homem que conquistara seu coração, mas parecia ser o único que não podia ter.

Ao passarem pelo portão largo da cidade, Margaret olhou para o pai, cavalgando à frente, imerso em seus pensamentos. Sabia que ele estava preocupado com Dio, ansioso por voltar para o seu lado. E ela bancava a egoísta, só pensando em Mikhail, quando Dio se achava doente. Sentiu raiva de si mesma.

Lew Alton mantivera-se calado sobre a doença de Dio, o que a deixava com medo. Até partir para a universidade, nunca houvera ninguém que ela amasse ou em quem confiasse mais do que a madrasta. Logo depois da morte de Ivor, a mera idéia de que Dio podia morrer também era inconcebível. Ela tentou se preparar, fazer-se forte para enfrentar qualquer coisa. Por dentro, porém, sua vontade era se entregar à angústia, começar a chorar.

Queria muito conversar com o pai. Mas depois daquele maravilhoso jantar em Armida, quando pareciam tão à vontade um com o outro, Lew tornara a se afastar. Não era tão ruim quanto no tempo de sua infância, mas lembrava tanto o passado que ela hesitava em lhe fazer as muitas perguntas que a atormentavam dia e noite. Só que seus problemas, naquele momento, não tinham muita importância em comparação com a doença de Diotima Ridenow Alton.

Margaret se acostumara a guardar tudo para si mesma. Compreendia agora que era um hábito que aprendera com o pai, ao mesmo tempo bom e mau. Tornava difícil pedir ajuda, fazer perguntas de caráter pessoal. Tinha a impressão de que o pai gostara muito de Mikhail. Embora ele tivesse indicado que compreendia os sentimentos da filha pelo primo, não demonstrara aprovação nem desaprovação. Talvez não gostasse da idéia mais do que kvanne, ou talvez sua indiferença fosse genuína.

Ela se repreendeu por pensar um absurdo. Lew Alton nunca era indiferente. Podia ser quase um estranho para ela agora, mas Margaret sabia que era um homem forte e impetuoso, que fazia o que fazia pelo que acreditava ser bons motivos. Teria de confiar no pai para ser seu defensor - ele lhe devia pelo menos isso - e parar de se afligir com coisas que não podia controlar. Margaret comprimiu os dentes. Era muito difícil confiar no pai... ou em qualquer outra pessoa, diga-se de passagem.

Foram avançando pelas ruas estreitas da cidade, a caminho do Castelo do Comyn. Margaret se achava agora num estado de sombrio desespero por seu futuro. Ficou tão absorvida em seus pensamentos que mal notou quando Rafaella parou seu cavalo.

- Acho que vou deixá-la agora e voltar para a Casa de Thendara. Irei pegar a mula no estábulo do Castelo mais tarde.

- Precisa mesmo ir?

Margaret sentia-se perdida sem a amiga. Subitamente, não queria que Rafaella a deixasse. Detestou a si mesma por ser tão estúpida e egoísta.

- Não tenho o que fazer no Castelo.

Tenho de resolver meu problema em outro lugar, e já protelei por tempo demais!

- Tem razão. Eu não estava pensando direito. Por favor, apresente meus cumprimentos a Mãe Adriana. Diga que eu mandei avisar que você foi uma excelente guia e companheira. Não sei o que teria feito sem você.

Margaret sentiu as lágrimas aflorarem em seus olhos. Sei o que me aconteceria. Morreria se não fosse por você, Rafaella. Ela piscou com força.

- Transmita também meus cumprimentos a Rafe Scott.

Ela forçou um arremedo de sorriso, mas doeu. Rafaella, conhecendo bem suas expressões àquela altura, não se deixou enganar.

- Não fique tão triste, Marguerida.

- Sentirei muita saudade!

Desejo a você toda a felicidade do mundo... e também desejo a mesma coisa para mim!

- Eu também... mas não vamos nos separar para sempre. Sempre pode me encontrar, deixando um aviso na Casa de Thendara.

Ela inclinou-se na sela e abraçou Margaret. Depois virou-se, bateu com os calcanhares nos flancos do cavalo e afastou-se por uma das estreitas ruas transversais.

Margaret ficou desconsolada com essa partida abrupta. Conteve seus sentimentos e empinou os ombros. Mikhail veio se postar ao seu lado, com um relincho do baio.

- Para onde ela foi?

- Para casa.

A resposta parecia expressar tudo o que Margaret jamais teria. Ela fez um esforço para se animar. Sentia-se cansada. A viagem fora agradável, mas ainda assim extenuante. Estava contente por Rafaella, independente de todo o resto. Nem por isso era menos angustiante.

- Acho que ela deseja muito ver uma certa pessoa.

- Ê mesmo? As pessoas dizem muitas coisas grosseiras sobre as Renunciantes, como se elas não fossem civilizadas. Esse misterioso amante tem um nome?

- É capaz de guardar um segredo?

- Claro.

- Creio que ela e meu tio, Rafe Scott, estão... gostando um do outro. - Margaret sabia que falava com alguma inconveniência. Era um assunto particular, e sentia-se estranhamente embaraçada ao falar a respeito, até mesmo com Mikhail. - Você o conhece?

- Rafe? Claro que sim. Tem certeza? Afinal, ele é muito mais velho do que Rafaella e... ora, parece improvável. Um estranho romance.

- Eu não tinha certeza no início. Comecei a perceber que havia alguma coisa, quando ele me levou à Casa de Thendara, para me encontrar com Mãe Adriana e contratar uma guia. Enquanto ele se afastava, ouvi-o pensar em alguém ali com muito... muito anseio. Não pensei mais a respeito na ocasião, porque não tinha certeza se estava mesmo captando pensamentos. Além do mais, ainda me encontrava angustiada pela morte de Ivor e todo o resto. Tanta coisa acontecera! Não imagina como é chegar a um planeta e descobrir que as pessoas fazem reverências para você, ou alguém anuncia que é um tio que nem sabia que tinha.

O senso de ultraje tornou a aflorar. Margaret franziu o rosto. Era bom ter um foco para isso, mesmo que fosse apenas por um momento.

- Alguém já disse que seus olhos ficam mais dourados, quando se zanga?

- Pare com isso!

Margaret perdia o controle, quando Mikhail começava a se comportar assim. Afinal, Mikhail sabia como flertar, o que não acontecia com ela. É bem provável que ele tenha muita prática, disse ela a si mesma, corando e tentando recuperar o comando de seus pensamentos. Sempre detestara seus olhos de cor estranha. Alguém elogiá-los era uma experiência nova. Até que agradável, mas provocava um desequilíbrio emocional... e ela já se encontrava um pouco perturbada. Sentia alguma coisa iminente - uma premonição - e não gostava nem um pouco da sensação.

- Perdoe-me, prima. Acontece que nunca vi nada parecido com a maneira com que seus olhos quase pegam fogo. Gostaria de saber qual é a causa. Seria talvez um fenômeno químico?

Assim era melhor. Os elementos químicos eram seguros. Ninguém podia flertar com a bioquímica.

- Eu diria que a adrenalina é o agente, mas não sei muita coisa sobre a química do corpo. Fiz os cursos básicos na universidade e memorizei o suficiente para passar nos exames. Mas, com toda a franqueza, esqueci a maior parte.

- Sabe mais do que eu.

Havia uma certa ansiedade nessa resposta, quase como se ele invejasse os conhecimentos de Margaret. Ela pensou que devia ser angustiante para um homem inteligente e curioso ficar limitado por uma cultura que não atribuía um alto valor à educação, como ela a compreendia. Mikhail recebera o melhor que Darkover tinha a oferecer, mas não era a mesma coisa que passar uma década nas salas de aula da universidade.

- Fale-me mais sobre esse romance de sua guia.

Margaret hesitou, mas o segredo já vazara. Refletiu que Rafaella não se importaria.

- Quando me encontrei com Rafaella, ela se mostrou aborrecida porque não poderia ver alguém antes de deixarmos a cidade. Somei dois mais dois e cheguei a cinco. Não lhe perguntei nada por algum tempo. Mas, quanto tive a doença do limiar, em Ardais, nós duas nos tornamos bastante íntimas. Finalmente perguntei, e ela admitiu que Rafe Scott não saía de seus pensamentos.

- Tenho de reconhecer que você tem mais controle do que eu num caso assim. Eu não resistiria a perguntar por mais que um dia. Tio Regis sempre disse que eu queria saber de tudo. Sempre o assediava com perguntas sobre os Terranan e a história de Darkover, enquanto ele se empenhava em ser um bom soberano. Deve ter ficado feliz ao se livrar de mim. Margaret surpreendeu-se com a amargura na voz de Mikhail. - Mas por quê? A curiosidade é uma característica saudável num jovem. Como você é muito inteligente, não é de surpreender que queira saber de tudo. Por que acha que ele queria se livrar de você?

Ela só estivera com Regis por pouco tempo, mas ele não lhe parecera uma pessoa que pudesse detestar a curiosidade em seu herdeiro. Talvez quisesse que Mikhail se interessasse apenas pelas coisas que precisava saber, não por tudo no universo.

- Eu... quando Regis e Linnea tiveram o jovem Danilo, resolvendo o problema da linhagem de Hastur... tornei-me desnecessário. Creio que era um pouco mimado, porque todos me dispensavam a maior atenção, como herdeiro de Regis. Ressenti-me de Danilo... o que foi uma atitude mesquinha. Ele era apenas um bebê, mas seu nascimento mudou tudo. Senti-me in-desejado, de certa forma, e absolutamente desnecessário.

Nunca contei isso a ninguém em toda a minha vida, nem mesmo a Dyan Ardais. O que ela vai pensar... que eu era uma criança lamurienta?

Margaret descobriu-se a pensar no tempo em que ainda era Marja Kadarin, no Orfanato John Reade. Sabia o que era se sentir indesejada, abandonada e sozinha. Embora soubesse agora que fora amada e desejada, isso não mudava a mágoa nem um pouco. Ela constatou que podia agora recordar esses eventos sem muita angústia, mas desconfiava que sempre a deixariam triste. Permitiu-se sentir uma suave aflição por Mikhail, e compreendeu que tinham muito mais em comum do que imaginara antes.

- Primo, acho que você pode ter julgado a situação de maneira incorreta.

Ela queria muito confortá-lo, atenuar seu senso de perda. Gostaria de estender a mão para Mikhail, mas ele seguia à sua esquerda, e ela não gostava de tocar em ninguém com a mão esquerda, mesmo quando estava coberta por uma luva.

- Por que pensa assim?

Ele fitou-a nos olhos por um instante. Margaret encontrou a necessidade em seus olhos, a necessidade de ser útil, de ter alguém se importando com ele. Mas Mikhail logo baixou os olhos para a crina do cavalo, e o momento passou.

- Sempre pensei que Lew não suportava me ver, mas agora descubro I que não era verdade. Estava enganada. Interpretava as coisas de um ponto de I vista adolescente. Passei anos pensando que meu pai nunca me amou. Que I idade você tinha quando Danilo Hastur nasceu?

- Hum... Cerca de quatorze anos, ou um pouco mais. Tento não pensar a respeito.

- Está vendo? A mesma coisa que eu... um adolescente rebelde! Começava a se tornar um homem, com os hormônios descontrolados, talvez I enfrentando a doença do limiar. Subitamente deixou de ser o centro das atenções. Tenho certeza de que Regis não mudou os sentimentos que tinha por você apenas porque passou a ter um herdeiro natural.

- É bem provável que você tenha razão. Acontece apenas que às vezes me sinto completamente inútil. Eu era jovem quando Danilo Hastur nasceu, mas não tão jovem que ainda não tivesse feito planos para o momento em que assumisse o lugar de Regis. E você tem razão sobre os hormônios... embora não seja polido falar dessas coisas. Aprendi a ser o paxman de Dyan Ardais, mas não posso dizer que me agrada. Não é um cargo que represente um desafio. Não é preciso muita inteligência para ser um companheiro, apenas uma infinita paciência.

- E você tem essa paciência?

Mikhail caiu na gargalhada. Lew virou-se na sela para olhar.

- Não. Sempre me irrito, como um cavalo meio domado, querendo minhas cenouras, mas relutando em suportar o peso de um cavaleiro. Sou dessas pessoas que exigem que os deuses lhe dêem paciência, e depois acrescentam: "E quero isso agora!"

Margaret não pôde deixar de rir. Mikhail ficou radiante. Mais uma vez, haviam conseguido dissipar a depressão um do outro. Era como se fossem duas metades de uma coisa, como se equilibrassem um ao outro com perfeição. Ela pensou de repente que Lew e Dio eram assim. O pensamento da madrasta ameaçou deixá-la deprimida de novo. Decidida, ela tratou de pôr de lado as conjeturas sobre a doença de Dio.

- É um pouco estranho. Tive a impressão, em Armida, de que você era bastante paciente. Eu tinha vontade de gritar com as pessoas na metade do tempo. Sempre detestei quando alguém me dizia que sabia o que era melhor para mim, quando não sabia de nada. Havia uma conselheira em meu primeiro trimestre na universidade que estava convencida de que eu deveria me dedicar ao estudo de economia. Era a sua especialidade, e ela gostava que outros se interessassem pela matéria. E é um curso muito popular, porque os terráqueos parecem ter uma constante necessidade de pessoas que possam provar, com números, que há uma necessidade de mais cereais dos produtores rurais... mesmo que os padeiros estejam deixando a farinha de trigo apodrecer, porque não há compradores para seu pão. E um assunto sombrio, e eu não queria nada que pudesse me deprimir. Ela olhou para Lew enquanto dizia isso.

- O que você fez?

- Disse a ela que não queria ser economista porque detestava matemática, e porque achava que a estatística não passava de um meio de mentir em larga escala. Ela ficou furiosa comigo e me transferiu para outra conselheira... o que foi um tremendo alívio para as duas.

- Eu gostaria de ter feito isso... declarado a alguém que não queria o que me era dado, pois preferia fazer outra coisa. Mas meu pai está convencido de que é o homem mais sábio do mundo, mesmo quando não é. Tive a maior parte do que passa por uma boa educação terráquea em Darkover. Fica muito aquém de sua educação, mas foi melhor do que muitos outros receberam. Só que não pude concluir os estudos, porque meus pais acharam que não havia necessidade, depois que o herdeiro de Regis nasceu. Despacharam-me para Ardais, como se não quisessem minha presença em Armida. Senti que ninguém me queria. Regis teria me despachado para fora do planeta, mas meu pai e minha mãe não permitiram. Se deixassem, eu poderia tê-la conhecido na universidade.

E agora não haveria toda esta confusão.

- Mas pensei que Regis era... o Rei de Darkover!

- Sim e não. Tecnicamente, ele apenas ocupa o lugar do rei. Pela tradição, nossos reis vêm do Domínio de Elhalyn, não de Hastur. É muito complicado, até mesmo para mim, que convivi com isso durante toda a minha vida.

- Elhalyn? Ainda existe algum? Creio que alguém mencionou o nome.

Desculpe, mas fico um pouco confusa com todas essas famílias.

- Ainda há Elhalyns, mas o último representante masculino da linhagem, Derik, morreu antes de assumir o cargo. Só resta agora sua irmã, Priscilla, e as crianças que teve. Todos sempre foram bastante instáveis. Pelo que dizem, Derik era mais do que apenas um pouco louco. Se ainda tivéssemos o Conselho do Comyn, Priscilla poderia participar, porque os Elhalyns permitem que suas mulheres tenham esse poder. Eu os conheço, é claro, conheci durante toda a minha vida, mas os Elhalyns se mantêm um pouco apartados. Priscilla sempre teve uma disposição retraída. E, depois de Derik, ninguém demonstrou qualquer entusiasmo em deixar que um Elhalyn tenha qualquer autoridade.

- Posso entender. Mas isso não explica por que seu tio não é o rei total. Fiquei confusa quando li o texto a respeito no disquete de história.

- Somos um planeta muito tradicional, Marguerida. Só abandona-|mos os nossos costumes com a maior relutância, se é que o fazemos. Tivemos reis Elhalyns durante séculos. São um ramo menor dos Hasturs, mas consagrados pela tradição. Regis teve de promover várias mudanças depois da Rebelião, e depois que os Destruidores de Mundos vieram para cá e assassinaram vários membros dos Domínios... Vários filhos de Regis foram mortos. Foi um período terrível... com bebês assassinados no berço, num esforço para provocar um grande desequilíbrio, a fim de que as pessoas gananciosas por trás dos Destruidores pudessem assumir o controle. Por isso, como me explicou, Regis assumiu a posição de regente, em vez de rei, a fim de preservar alguma coisa do passado, ao mesmo tempo em que continuava a nos levar para o futuro. Até isso é tradicional: os Hasturs serviram como regentes para os Elhalyns durante séculos.

- Você diz que conhece os filhos de Priscilla Elhalyn. Eles não são os herdeiros legítimos do trono? Mikhail deu de ombros.

- Não são descendentes diretos da linha masculina. Mas como o costume dos Elhalyns é conceder a situação de comynara às suas mulheres, eles podem se tornar. E uma questão legal complicada.

- E Regis está esperando, torcendo para que um de seus filhos tenha capacidade para assumir o trono?

- É o que tudo indica. Regis é esperto. Tem de manter as coisas em andamento. E não gosta de ser pressionado a tomar decisões. Prefere esperar até que a situação se resolva por si mesma... ao contrário de minha mãe, que gosta de fazer com que as coisas aconteçam. Os dois se amam, mas vivem brigando, porque minha mãe sempre pensa que pode obrigar Regis a fazer o que ela quer, como acontecia quando eram pequenos. E, com toda a certeza, ela teve bastante influência para me manter em Darkover.

- É mesmo? Não tive a impressão de que Regis Hastur podia ser influenciado com facilidade, a não ser talvez por sua consorte e pelo paxman.

Mas isso explica por que ela pensou que podia fazer com que Mikhail se tornasse o Senador, no lugar de Herm Aldaran, que todos parecem considerar um monstro, com exceção de meu pai. O que eu faria se isso acontecesse?

Mas que história é essa? De onde você tirou a idéia...

Quando meu pai anunciara que passara seu lugar para Herm, sua mãe ficou furiosa. Pude ouvir uma parte de seus pensamentos. Ela concluiu que todos os seus problemas poderiam ser resolvidos, se Regis o mandasse para o Senado. Ela pode fazer isso?

Então era por isso que ela parecia com um gato com penas na boca! Eu deveria ter imaginado, Ela é uma intrigante famosa, Marguerida. Em particular desde que todos nos tornamos adultos, e ela não tinha mais nada em que concentrar sua inteligência que não controlar nossas vidas. Pensando bem, é uma idéia muito hábil. Eu deixaria o planeta, algo com que venho sonhando há muito tempo, e poderia ser tentador demais para resistir. o único problema é que não tenho nem a mais remota noção do que um Senador deve fazer, enquanto Herm sabe de tudo. E, para ser franco, não quero mais viajar tanto pelas estrelas como acontecia antes. A menos...

Que eu fosse com você?

Isso mesmo.

Não posso. Sei disso agora. Tenho de ser treinada numa Torre. E me resignei a isso, embora a idéia me faça estremecer, sempre que penso a respeito. Não posso deixar Darkover até aprender a controlar meu Dom, e não imagino quanto tempo pode levar.

Anos! Mikhail parecia outra vez extremamente angustiado. E quando você acabar, vão dar um jeito de casá-la tão depressa que ficará com vertigem. Poriam o Domínio de Alton em suas costas, e nunca mais teria permissão para deixar o planeta!

Então é melhor torcermos para que meu pai tenha alguns trunfos escondidos na manga!

É possível. Gosto dele, Marguerida. Conversamos muito durante a viagem. Achei-o completamente diferente das histórias que se contam a seu respeito. Pelo que ouvi, era um homem teimoso impetuoso. Não é verdade. Ao contrário, é muito ponderado, e não creio que tenha entregue o cargo a Herm por algum capricho, embora tenha certeza de que Javanne discordaria de mim. O problema é que ela ainda pensa em seu pai como ele era há vinte ou trinta anos, como se nada tivesse acontecido durante esse tempo, como se nada mudasse em decorrência de seu trabalho com os Terranan por anos a fio. E, provavelmente, Lew ainda pensa nela como a garota mandona que conheceu quando era um jovem.

E uma boa análise, Mikhail. Meu pai não é mais o homem de que me lembro. .. e a todo instante tenho de me lembrar disso. É uma situação muito difícil! Mikhail soltou um breve suspiro.

- Quer saber de uma coisa? Durante toda a viagem tive o pressentimento de que aconteceria alguma coisa que seria... muito importante para mim. E para você e todos os outros. Foi se tornando mais e mais forte. Desde que você viu a Torre de Hali ontem, e eu também, ficou enorme. E como uma dor de cabeça que ainda não começou.

- Eu entendo. A presciência é uma coisa terrível. Não que eu tivesse qualquer impressão nítida, como aconteceu quando fiz Ariel partir às pressas, causando o ferimento no pobre Domenic.

- Não foi culpa sua. Pare de tentar assumir a responsabilidade por coisas que não são da sua conta. Ariel sempre foi histérica, e se torna ainda mais quando espera uma criança. O que é esquisito, porque a gravidez supostamente acalma a mulher. Mas nunca acontece com minha irmã. Se há alguma culpa, é de minha mãe, por não impedi-la de partir de maneira tão precipitada, como uma idiota. - Mikhail fez uma pausa. - Mas ainda penso que há alguma coisa além do horizonte, e torço para que seja para o bem de todos, não para o mal.

- Concordamos nesse ponto - comentou Margaret. - Se vou ter uma premonição, quero que seja clara e precisa, não essa sensação vaga de uma dor de cabeça iminente. O que é uma boa metáfora. E exatamente assim que me sinto.

- Tenho a impressão de que vamos descobrir o que é, quando chegarmos ao Castelo do Comyn. - Ele parecia impaciente e preocupado. - E torço para que não seja algo tramado por minha mãe.

- Como ela poderia fazer qualquer coisa? Neste momento se encontra a quilômetros de distância, em Arilinn, com Liriel e o pobre Domenic.

Mikhail exibiu uma expressão de surpresa.

- Ainda não entendeu realmente o que significa viver numa comunidade telepática, não é mesmo?

- Como assim?

- Se bem conheço minha mãe... e pode ter certeza de que a conheço muito bem... ela vem usando o sistema de transmissão para enviar mensagens a Regis. Não precisa da presença física, embora isso seja preferível. Pode se comunicar à vontade sem chegar perto de Thendara.

Margaret ficou quase desesperada ao ouvir isso. o que podia fazer? Nada! Era frustrante e assustador. Havia pessoas que decidiriam sua vida, e ela não podia opinar na questão.

Chiya, pare de se atormentar!

Como posso fazer isso, pai, quando tudo indica que...

Sei como se sente... muito mais do que pode imaginar. Mas Javanne não vai se intrometer em sua vida. Pode confiar em mim para fazer o que é certo por você?

Posso tentar... mas não é fácil.

Sei que não é. Mas tem de acreditar que Regis não será pressionado a tomar qualquer decisão que afete o reino sem uma cuidadosa consideração. Há anos que ele vem conseguindo manter Darkover em seu atual curso, e não será desviado de seu propósito pela irmã ou qualquer outra pessoa.

Por trás dessas palavras confortadoras, Margaret sentiu a preocupação de Lew Alton com a esposa. Lamentou por se preocupar tanto consigo mesma. Por que não podia pensar apenas em Dio, obrigando a mente a se afastar do homem que cavalgava ao seu lado? Onde estava sua disciplina? Se ao menos não soubesse quão bem ela e Mikhail ajustavam-se um ao outro! Não era justo! Mikhail balançou a cabeça.

- Fale-me, prima, se puder, sobre essa pequena preocupação no fundo de sua mente.

- Por quê?

- Sei que você tem alguma coisa do Dom de Aldaran. Há algo no passado que a perturba, e eu gostaria de saber o que é.

- Jamais desejei essas coisas. Por que não podia ser como Ariel, sem telepatia? Não compreendo por que tenho. Também não entendo por que Rafaella não tem, por exemplo, enquanto sua irmã tem o suficiente para ir trabalhar numa Torre.

Mikhail tornou-se pensativo.

- Temos especulado sobre isso há muitos anos... talvez há séculos. Sabe que precisamos, até certo ponto, controlar a reprodução para preservar os Dons.

- Sei disso, e acho que é lamentável, porque reduz os seres humanos a animais, como cavalos ou vacas.

- Mas não tem objeções à engenharia genética dos Terranan para promover dentes saudáveis ou uma boa vista?

- É um argumento. Mas não sou contra, porque acho que são coisas boas para toda a espécie, não apenas para uns poucos.

Mikhail soltou uma risadinha.

- Já entendi... nós, dos Domínios, somos egoístas. Não é a primeira vez que nos fazem essa acusação, e não será a última. Mas, apesar de nossos conhecimentos e esforços, nunca conseguimos determinar como o processo funciona. Tudo indica que a tendência é voltar a uma pessoa sem qualquer Dom. Por isso, os que têm os Dons passaram a ser valorizados, talvez demais, como pudemos observar no desespero de Ariel.

- Pobre mulher... Ela deve se sentir como uma surda para os tons numa família de músicos excepcionais. - Margaret balançou a cabeça. -Mas exceto pela súbita visão sobre Domenic e a outra...

- Que outra?

- Sobre Alanna Alar, sua futura sobrinha.

- Ahn... Achei que estava sendo apenas gentil com minha irmã, dizendo o que ela queria ouvir, com base no conhecimento de Liriel de que ela esperava uma menina. Não sabia que teve uma forte impressão sobre o futuro da menina.

- Tive e não gostei, porque... prefiro não dizer nada. Não me agrada a idéia de conhecer o futuro. Acho que sempre o imaginamos em termos do que sabemos. Depois, quando temos o futuro real, tentamos fazer com que se enquadre em nossa interpretação, em vez de lidar com a realidade. Já li muitas coisas que vários profetas escreveram. São repletas de ambigüidades e sujeitas ao tipo de crenças que levam a guerras. Não quero o Dom de Alton, mas detesto ainda mais a capacidade de espiar através do véu do futuro.

- Mas ainda ontem você se mostrava disposta a correr para a porta da Torre de Hali, e no fundo de seu coração sabe que algum dia entrará ali.

- Isso é diferente! - exclamou ela, tentando explicar. - É o meu futuro, e somente eu terei de enfrentá-lo... se algum dia chegar a esse ponto. Mas me recuso a fazer predições sobre a vida de uma criança por nascer! É errado! É cruel!

- Isso nada tem a ver com a filha de Ariel, não é mesmo?

- Não, não tem. - Margaret fez uma pausa, organizando seus pensamentos. - Creio que Ashara Alton me previu, não a mim em particular, mas a possibilidade de Marguerida Alton em algum futuro indefinido. Pelo menos, quando Istvana me contou que ela ofuscara outras mulheres, assumi a premissa de que antecipava minha existência... que sabia, de alguma forma, ser uma ameaça para a dela.

Ela estremeceu à menção do nome, mas recusou-se a deixar que os medos a dominassem. A massa do Castelo se encontrava mais perto agora, visível acima das casas na rua. Margaret tinha uma vista desimpedida da torre em que Ashara continuara a residir por muito tempo depois de sua morte.

Ela compreendeu agora o que a perturbava ao se aproximarem. Sacudiu, a cabeça, tentando desanuviar a mente. Recordou como a Torre lhe parecera, como provocara um calafrio, quando a vira na primeira visita. Fora uma linda estrutura de pedras brancas, como o resto do Castelo do Comyn. O que havia agora era uma ruína enegrecida, toda a parte superior derrubada, como se atingida por um raio. Nenhum dos telhados nas proximidades apresentava qualquer sinal de ter sido queimado ou danificado. O que acontecera?

Mikhail acompanhou seu olhar e se mostrou aturdido por um segundo.

- A Torre de Ashara...

- Parece que foi destruída num incêndio. Eu gostaria de saber o que aconteceu.

- Não sei. Mas posso especular. Quando você tirou a pedra fundamental da Torre no mundo superior, também destruiu a física que existia em Darkover. O que foi ótimo!

- Mas... alguém poderia ter morrido, Mikhail. Se eu adivinhasse o tipo de dano que poderia causar, não sei se estaria disposta a...

- Minha cara prima, você fez o que tinha de fazer. Ninguém a culpa por isso. - Ele sorriu para Margaret, que sentiu uma profunda ternura. -Há um momento, antes de vermos as ruínas da Torre Antiga, você dizia alguma coisa sobre Ashara. Sobre a interpretação do futuro. Continue, por favor.

Margaret apertou as rédeas com mais força.

- O nome dela ainda me deixa um pouco desamparada. Às vezes não tenho certeza se ela desapareceu para sempre, apesar do que dizem os outros.

Ela fez um esforço para respirar devagar, recuperar a calma.

- Ainda não sei exatamente o que aconteceu, mas tenho certeza de que ela fez Dyan Ardais me levar à sua presença. Tudo é bastante vago e indefinido em minha mente. Quando ela me viu, acho que soube que era a pessoa que devia temer. E tomou providências para que jamais soubesse que tinha o Dom de Alton. Deve ter sido uma mulher extraordinária... não admirável, mas muito poderosa.

Mikhail acenou com a cabeça.

- Por tudo o que dizem, ela foi isso e muito mais. Posso agora entender um pouco melhor suas objeções ao Dom de Aldaran. Fazem sentido. Mas você tem o suficiente para receber indicações ou algo assim.

- o que tenho agora é o mesmo sentimento de presságio que experimentei a caminho de Darkover. Talvez mais forte agora... é tudo subjetivo, e tenho uma imaginação muito ativa. Acho que é bem possível que não se possa realmente ver o futuro com nitidez. É isso que causa problemas... quando se tenta manipular as visões para atender aos interesses pessoais.

- Mas todo mundo tenta manipular as coisas em seu próprio benefício, Marguerida!

- Eu não!

- Claro que você também! Se não fosse assim, você e minha mãe não estariam em conflito. Sei o que você quer... e eu também quero. Nós dois faremos tudo o que pudermos para ter certeza de que tudo acabará como desejamos. Não pode negar isso.

Acuada de novo, Margaret sorriu.

- Não, não posso. Ou melhor, até que poderia, mas seria falso. E, embora haja várias para as quais eu poderia dissimular com a maior satisfação, você não é uma delas.

- Sei disso. Desde a primeira vez em que nos encontramos, compreendi que nunca poderíamos mentir um para o outro.

A voz era afetuosa e terna. Margaret sabia que ele falava em vez de usar a telepatia, porque a conversa agora era muito íntima. Sentiu-se grata por sua polidez, mas também comovida com a paixão contida.

- Que tipo de capacidade você possui?

- Tenho laran, é claro, mas nenhum dos Dons. Sou apenas um telepata comum, bastante bom para participar do Conselho Telepático, que tem sido nosso governo durante a maior parte da minha vida. Liriel tem uma capacidade maior, e é por isso que ela é uma excelente técnica. Minha mãe também tem laran, assim com Gabe e Rafael, embora o deles, como o de meu pai, seja bem modesto.

- Quando fomos ao mundo superior para buscar Donal, tive a impressão de que você era bastante competente, mas não conheço o suficiente para julgar. Todos falaram tanto sobre o Dom de Alton que não prestei muita atenção aos outros. Sei que há um Dom de Hastur... Lady Marilla tentou me explicar, mas não fazia muito sentido na ocasião. Você o tem?

- Claro que não! - Mikhail parecia chocado e um pouco transtornado. - Desculpe. Não queria ser ríspido com você. Admito que esperava tê-lo quando me tornasse mais velho. Fiquei um pouco desapontado por não acontecer. o Dom de Hastur é o da matriz viva... permitindo que a pessoa trabalhe sem necessidade de uma matriz física.

Margaret fitou-o em silêncio por um longo momento, depois olhou para sua mão esquerda.

- Mas não uso um cristal... e acho que nem poderia.

- Sei disso. Liriel tentou me explicar... sua matriz de sombra... mas apenas me deixou com dor de cabeça, porque a descrição era técnica demais. Mas ela disse que era diferente do Dom de Hastur. Ela e Jeff avisaram Arilinn. o arquivista ali, ao que parece, está ficando louco na tentativa de encontrar qualquer referência a isso no passado.

- Pode me falar mais sobre Conselho Telepático? Tio Rafe o mencionou, mas nunca ouvi uma explicação objetiva... ou pelo menos não entendi o que me disseram.

- Darkover foi governada durante séculos pelo Conselho do Comyn, formado por um membro de cada um dos Domínios, todos os homens, à exceção de Aillard, mais as leroni das Torres. O Domínio de Aldaran também integrava o Conselho, mas foi expulso. É uma longa história, com muitos atos de traição. Deixarei para contá-la em outra ocasião. O Conselho reunia-se no verão. Tomava decisões sobre o comércio com os Terranan e vários outros problemas. Mas, quando seu avô Kennard partiu, levando seu pai, o Conselho parou de funcionar. Poucos anos depois da Rebelião de Sharra, deixou de existir. Regis criou o Conselho Telepático para substituí-lo, mas na verdade essa solução não satisfez a ninguém. Ê menos exclusivo do que o Conselho do Comyn, mas realiza menos, porque há agora muitas vozes, quando antes havia poucas. Além disso, o povo não está feliz.

- o povo? - Margaret olhou para os artesãos em suas lojas ao longo da rua. Eram mulheres e homens envolvidos nas atividades cotidianas da vida. Não pensara muito neles, porque os poucos que conhecera até aquele momento pareciam contentes e em boa saúde. Não se viam mendigos em Thendara, nem qualquer evidência óbvia de abuso aristocrático, embora ela tivesse certeza de que havia alguns casos. A natureza humana ainda estava longe da perfeição. - Como sabe o que o povo pensa?

- Ouvindo. Como paxman de Dyan Ardais, ouço coisas que jamais chegariam a seus ouvidos. Como o filho caçula de meu pai, também tenho ouvido mais do que pode imaginar de camponeses, artesãos e outros. Muitos não têm interesse por qualquer coisa além de suas próprias vidas, é claro, mas há também os que consideram que o Conselho Telepático não mais serve a Darkover como deveria.

- O que eles querem em seu lugar?

- Não posso responder. Há uns poucos, com educação Terranan, entre as famílias dos Domínios, que acham que deveríamos ter um governo como o da Federação. Mas o que tenho ouvido das pessoas comuns é que preferem restaurar o Conselho do Comyn.

- Não seria voltar ao passado, Mikhail?

- É possível. Mas não somos a Terra e não temos a tradição de um sistema democrático. Não acha que eleições aqui, com uma população em grande parte analfabeta, seriam muito difíceis?

- Ainda não considerei o problema, mas dá para perceber que você pensou muito a respeito, Mik.

- É verdade. A princípio porque era meu dever, como herdeiro titular de Regis. Agora penso no assunto porque me interessa muito. E tenho muito tempo para pensar no futuro de Darkover, mesmo que não possa vê-lo.

- Não acha que talvez seja melhor assim... não ver o futuro?

- Acho que não preciso vê-lo... porque, como disse tio Jeff, estou a caminho do futuro, quer queira ou não.

 

26

O sol baixava por trás deles, matizando as pedras brancas do Castelo do Comyn com um rosa deslumbrante, quando finalmente deixaram as ruas estreitas e sinuosas de Thendara. Os guardas com as cores azul e prateada dos Hasturs, nos dois lados do portão, bateram continência para Lew, quando ele entrou no pátio externo. Era uma entrada diferente daquela por que passara com Rafe Scott, em sua visita anterior, e por isso Margaret olhou ao redor com interesse.

O cheiro agradável de cavalos impregnava o ar. Vários cavalariços se adiantaram. Havia num lado um enorme estábulo, e no outro o que ela desconfiou ser um alojamento. Na extremidade do pátio havia alguns degraus, onde um rapaz de treze ou quatorze anos esperava, vestindo uma túnica azul e calça cinza. Margaret especulou quem poderia ser o rapaz, pois não parecia um servo.

Um cavalariço ajudou-a a desmontar. Ela se sentiu muito contente ao pisar de novo em terra firme. Observou o cavalariço levar o animal, pensando como iria devolvê-lo a Rafaella. Pensou em seguida na adorável Dorilys, em Armida, e suspirou. Sentia-se cansada, e muitas coisas se sucediam em sua mente.

O rapaz de cabelos brilhantes e um tanto franzino desceu os degraus e fez uma reverência para Lew, outra para Margaret. Ofereceu um sorriso para Mikhail, e só depois se lembrou de que estava sendo formal.

- Sou Danilo Hastur, herdeiro de Hastur - anunciou ele, cortês, como se tivesse ensaiado enquanto esperava. - Meu pai envia saudações.

Lamenta não poder estar presente para recebê-los. Ele se acha ocupado no momento com questões de estado, mas convida-os a jantar conosco.

A voz se tornou estridente uma vez, enquanto ele falava, o que deixou seu rosto um pouco rosado.

Então aquele era o rapaz que tomara o lugar de Mikhail, pensou Margaret. Parecia inteligente, mas tenso e inseguro. Talvez o peso do fardo de Hastur fosse demasiado naqueles pequenos ombros.

Ela olhou para a Torre que observara à distância, o lugar em que Ashara mantivera sua presença em Darkover por tantos séculos. Estava em ruínas, como Hali, desmoronada e enegrecida. Margaret experimentou um fluxo de prazer culpado, uma alegria secreta por ter destruído a Torre... embora torcesse desesperadamente para que ninguém tivesse se ferido. De qualquer forma, outro dos vínculos de Ashara Alton com o mundo real fora cortado.

Antes que pudesse se estender em seus pensamentos, Margaret sentiu a mão do pai tocar de leve em seu cotovelo.

- Vamos embora, direto para a Suíte de Alton. Quero tomar um banho. .. e tenho certeza de que você também quer. E quero ver Dio agora mesmo!

Margaret sentiu um súbito cansaço e uma profunda ansiedade. Agora que tinha a oportunidade de ver a madrasta, descobria que relutava em procurá-la. Não queria ver Diotima doente! Não queria vê-la morrer, como Ivor!

Lew estava calado, pensativo, como era no passado. Margaret sabia que era a preocupação. Obediente, seguiu-o pelo castelo. Percorreram vários corredores e subiram três lances de escada. Lew se achava meio corredor à sua frente, quando finalmente alcançaram a suíte. Apesar de todas as voltas, ela não se sentia perdida ou desorientada. Nos recessos de sua mente ainda havia um mapa do labirinto que era o Castelo do Comyn. Margaret tinha certeza de que poderia encontrar o caminho para a Suíte de Alton mesmo vendada.

Lew Alton abriu a porta alta e entrou no cômodo além. Era o que Margaret passara a pensar como a sala de estar típica, com muitos tapetes, tapeçarias nas paredes, enormes sofás. Dio cochilava num deles, coberta por uma leve manta. A primeira visão da madrasta fez com que Margaret prendesse a respiração, a garganta quase fechando. Nada do que Lew dissera a preparara para a realidade.

Dio estava tão pálida que era quase incolor. Os cabelos dourados haviam se tornado frágeis e sem qualquer lustro. As mãos outrora bonitas pousavam no colo, inertes e murchas. Ela se mexeu um pouco quando os dois entraram, mas não acordou até que Lew foi se inclinar sobre o sofá e roçou os lábios pela face encovada.

- Eu sonhava com você - sussurrou Dio, através dos lábios rachados.

- Espero que tenha sido um sono agradável.

Lew tentou parecer jovial, mas se mostrava preocupado e cansado.

- Mais agradável do que muitos outros que já tive. Seus cabelos eram escuros, e você brilhava como Aldones.

- Ah, como você continua a ser romântica, depois de tantos anos, minha querida! Veja quem eu trouxe comigo!

Margaret reprimiu o terror frio em sua garganta e adiantou-se. Tocou nas mãos de Dio. Estavam geladas, a pele escamada e seca.

- Olá, Dio.

Ela sentia-se angustiada, como se fosse uma criança pequena, ao contemplar a única mãe que conhecera.

- Marja! - Um tênue sorriso surgiu no rosto de Dio. - E maravilhoso você ter vindo. Estava ansiosa para vê-la. Quando chegou?

Como ela está adorável agora! Minha linda filha, minha menina... uma mulher agora, não é?

- Há mais de um mês. Mas parece que foi uma vida inteira. O pai encontrou-me em Armida. Lady Javanne não ficou nada satisfeita, quando ele surgiu na tempestade.

- Tempestade? Andou tendo aventuras de novo sem que eu soubesse? - Dio falava como era no passado, dando a impressão de que tentava ocultar a doença. - Cada vez que eu a deixava sozinha, Marja, você se metia em alguma travessura. Lembra a ocasião em que construiu uma casa na árvore com as crianças de... não consigo recordar seus nomes... e você roubou madeira da serraria? - Lew disse:

- Que história é essa? Nunca ouvi falar de uma casa na árvore.

As feições de Lew mantinham-se firmes, como se ele combatesse o desespero com toda a sua tremenda força de vontade.

- Nem podia ouvir. Guardamos o segredo, não é, Marja? Foi divertido. E era uma casa na árvore muito bem feita!

Um espasmo de tosse interrompeu-a. Margaret olhou para o pai, apavorada. Sua pulsação disparou no medo. Mas Lew não parecia perturbado com a tosse de Dio.

- Ainda bem que fizemos uma casa resistente, porque você subiu para tomar chá conosco - respondeu Margaret, imprimindo à voz uma jovialidade que não sentia.

Como o pai conseguia agüentar? o respeito recém-descoberto pelo pai apartado aumentou ainda mais, quando ela observou-o se comportar como se tudo estivesse normal. Margaret mordeu o lábio e continuou:

- Fiquei espantada quando você levantou a saia e subiu para a plataforma, como se já tivesse feito aquilo uma centena de vezes. E as crianças Weevus acharam que era maravilhosa. Daren queria viver conosco, ter você como mãe. Ele tinha uma ótima mãe, mas não era do tipo que subia em árvores.

- o que mais aconteceu sem que eu tomasse conhecimento? - perguntou Lew, parecendo divertido, embora a filha percebesse uma certa angústia em sua voz.

- Muitas coisas. Não queríamos incomodá-lo. - Dio ofereceu um sorriso fraco ao marido. - Você se tornou linda desde que nos deixou, chiya. Era uma menina magricela, só pernas e olhos, e agora é uma mulher.

Esse discurso pareceu esgotá-la. A mão que Margaret segurava se tornou inerte.

- Na próxima vez em que construir uma casa na árvore, Marja, é melhor me convidar também para o chá. Creio que ainda consigo subir numa árvore.

Eu deveria tê-la preparado melhor para Dio. Como posso bancar o tolo idiota! Mas não fui capaz de dizer nada! Ainda assim, ela está se saindo muito bem. Como os deuses me favoreceram em minha filha! Como pude permitir que ela me deixasse... que se mantivesse distante por tantos anos?

Pare de se lamentar, pai. o passado é passado... e temos de cuidar do presente!

- Claro, pai. Vi uma árvore em Armida que seria perfeita. Não posso imaginar por que ainda não existe uma casa ali.                                  

Lew soltou uma risada.

- Mal posso esperar para ver a cara de Javanne. Como se sente hoje, minha querida?

- Quase a mesma coisa. Um dos curandeiros de Regis deu-me um medicamento que atenuou os espasmos, o que me permitiu descansar um pouco. Querem que eu me torne bastante forte para agüentar o transporte até Arilinn, onde será efetuado o tratamento.

- Então é o que faremos, Dio. Vamos torná-la forte para a viagem.

- Você sempre acha que pode dar um jeito em tudo. E por isso que o amo.

Margaret ficou embaraçada por essa demonstração ostensiva de profunda afeição. Sentiu-se excluída pela intimidade. Especulou se algum dia diria palavras tão ternas para um homem. Descobriu que queria isso mais do que poderia imaginar antes.

- Eu gostaria de tomar um banho e me aprontar para o jantar - murmurou ela, para ocultar seus sentimentos. - Regis convidou-nos para jantar com ele, o que parece bastante formal.

- É tão formal quanto qualquer outra coisa em Darkover, Marja. Mas não precisa se preocupar. - Lew balançava a cabeça enquanto falava. Apontou uma porta. - Seus aposentos são ali. Um dos servos já deve ter levado sua bagagem.

Margaret não pôde pensar em nada para dizer. Por isso, retirou-se em silêncio. Qual seria o problema de Dio? E por que ela não fora tratada com a tecnologia médica terráquea? Ou talvez recebesse o tratamento terráqueo, mas não adiantara. Ela precisava perguntar a alguém, mas não queria perturbar o pai.

Depois de vários minutos frustrantes, ela se lembrou da consorte de Regis Hastur, que se mostrara tão gentil e cordial em sua última visita. Lady Linnea?

Não precisa gritar! Não havia irritação no pensamento em resposta, apenas bom humor e uma agradável recepção. O que é, Marguerida?A serenidade nos pensamentos de Linnea atenuou um pouco os medos de Margaret.

Minha mãe, Dio, está muito doente. Eu gostaria de saber o que pode ser feito aqui em Darkover que não pode ser realizado pela medicina Terranan. Meu pai vai se desesperar se ela não melhorar.

Uma boa pergunta. Os terráqueos são muito eficientes com suas máquinas e todo o resto, mas uma boa leronis pode conseguir o que você acharia ser um milagre.

Como?

Lembra quando foi monitorada?

Como Linnea sabia disso? Não tinha importância. Claro que lembro.

Dio está sendo monitorada da mesma maneira, até as células. E o que pode ser percebido pode ser alterado, entende?

Mais ou menos. É um pouco difícil de acreditar.

Não precisa acreditar, Marguerida. E não deve se preocupar. Diotima está nas melhores mãos. E será feito tudo o que for possível.

O contato mental foi gentilmente interrompido. Margaret respirou fundo várias vezes, um pouco trêmula. Tentou ignorar o desespero que a dominava. Correu os olhos pelo quarto. Sua bagagem continuava fechada. Ela começou a abri-la, quando uma camareira gorducha entrou. Adiantou-se para ajudá-la, mas Margaret acenou com a mão para que ela se afastasse, ansiosa por ter alguma coisa com que ocupar a mente e as mãos.

Era fácil lhe dizer para não se preocupar, mas ela não podia evitar. A morte de Ivor ainda era recente em sua mente e coração. A idéia de que Dio poderia morrer também era mais do que ela podia suportar. Não conseguia deixar de pensar a respeito, por mais que tentasse. Durante a viagem, dera um jeito de repudiar seu medo. Mas, agora que vira Dio, isso era impossível. E o dever exigia que se comportasse exatamente assim. Era a coisa mais difícil que ela já tivera de fazer. A admiração pelo pai, que provavelmente tinha de fazer muitas coisas que não desejava, aumentou ainda mais. Ele não era mais o homem de que se lembrava. Sentia-se ansiosa para conhecer o Lew Alton como ele era agora. Mas ele também não a conhecia. Teriam de começar tudo de novo, ainda sobrecarregados pelo fardo do passado. Em seu ânimo atual, isso foi suficiente para deixar os olhos de Margaret cheios de lágrimas.

Ela piscou para reprimir as lágrimas, irritada por sua falta de controle. Concentrou-se em arrumar suas coisas. Por baixo do precioso equipamento de gravação, Margaret encontrou o vestido de seda verde que Manuella lhe enviara como um presente. Estava todo amarrotado, mas continuava lindo.

Esquecera-o por completo durante a viagem. Agora, ao sacudi-lo, especulou se seria apropriado para um jantar formal.

- Pode passar este vestido? - perguntou ela à criada.

- Claro, domna. Será um prazer. É lindo. - A criada levantou o vestido. - Trabalho de MacEwan?

- Como soube?

- Ninguém tem a mão igual com um tecido. Ele é o melhor mestre alfaiate de Thendara. Arrumarei o vestido enquanto toma banho.

Depois que se despiu, Margaret passou um longo momento contemplando a mão esquerda. Na maior parte do tempo, ela a ignorava, assim como a luva que cobria as marcas. Tentou determinar agora se as linhas estavam diferentes. Teria de usar uma luva de couro pelo resto de sua vida?

As linhas pareciam um pouco diferentes hoje. Ela se perguntou se isso tinha alguma relação com sua incursão ao mundo superior. Uma pedra de matriz era um foco para talentos inatos, pelo que Liriel e Istvana haviam explicado. Guardada num saco de seda, só funcionava quando tirada e usada. Portanto, era muito diferente de ter uma matriz de sombra gravada na própria carne. E era diferente de tudo o que as outras pessoas conheciam.

Se o pai não estivesse tão transtornado por causa de Dio, poderia conversar a respeito com ele. Mas não queria incomodá-lo agora. De qualquer forma, não poderia mesmo fazer coisa alguma naquele momento. Desviou a mente do assunto com alguma dificuldade. Passou a pensar em Mikhail. Concluiu que era algo ainda mais perigoso para a sua paz de espírito do que tentar decifrar a telepatia sem todas as informações necessárias.

Um banho quente e perfumado contribuiu em muito para restaurar a energia e acalmar a mente de Margaret. Foi com extrema relutância que ela saiu da banheira, enxugou o corpo com o maior cuidado, vestiu o roupão macio, pendurado à sua espera, e pôs a luva de couro. Estava tão rígida agora que ela detestou o contato com a pele, mas não ousava tocar em alguém sem sua cobertura protetora.

Quando voltou ao quarto, Margaret encontrou a criada cantando baixinho, enquanto alisava as roupas de cama e afofava o travesseiro. A canção distraiu-a da preocupação com Dio, os pensamentos sobre Mikhail e outras coisas com que sua mente hiperativa parecia determinada a assediá-la. - o que você está cantando... Desculpe. Nem perguntei seu nome.

- Sou Piedra, domna. Não é grande coisa... apenas um antigo acalanto que minha mãe sempre cantava para mim. Sempre canto quando arrumo a cama. É uma tolice, mas acho que as pessoas têm um sono mais profundo, quando deixo um acalanto no travesseiro.

- Parece-me uma boa idéia - comentou Margaret. - Pode cantar tudo para mim? Gostaria de conhecer a letra inteira.

Ela pegou o gravador. Verificou se as baterias ainda funcionavam e ligou-o. Queria uma coisa segura ao seu redor, e a música era a mais segura que conhecia. A música não mentia ou morria. A criada se mostrou um pouco surpresa, depois divertida.

- Como quiser, domna.

A jovem recomeçou a cantar, uma voz de soprano, sem treinamento, mas doce e simples, como a própria canção. A letra era encantadora, sobre diversos animais terrestres e aves que iam dormir. Margaret desconfiou que tinha uma quantidade interminável de versos. Já ouvira canções similares em outros mundos, mas nenhuma, ela concluiu, era tão bonita.

Margaret agradeceu quando Piedra terminou. Depois, vestiu as roupas de baixo, de algodão macio. Enfiou o vestido pela cabeça, deixando que se acomodasse nos ombros. Ajustava-se com perfeição. Os dedos ágeis de Piedra prenderam os muitos botões que se estendiam pela coluna. Ela fez Margaret sentar em seguida. Desfez o nó nos cabelos que Margaret fizera para o banho. Escovou-os com o maior cuidado. Margaret relaxou com os suaves movimentos e, por algum tempo, quase que esqueceu suas preocupações. A criada arrumou e prendeu os cabelos, ajeitou a travessa de borboleta, sorrindo.

- Tem lindos cabelos, domna.

- É mesmo? Nunca pensei assim... são muito lisos e finos, esvoaçam com a menor brisa.

Ela estudou a mulher no espelho. Era uma estranha. Margaret não era vaidosa. Quase nunca se contemplava no espelho por mais que o necessário para verificar se deixara pasta de dente nos lábios, ou se havia manchas de poeira nas faces. Detestara espelhos por tanto tempo quanto podia se lembrar. Embora nem mesmo Ashara estivesse mais ali para atormentá-la, ela ainda se sentia um tanto apreensiva ao ver sua imagem.

A pessoa no espelho era bem pálida, com olhos dourados que pareciam enormes e radiantes. Compreendeu que sua semelhança com Thyra Darriell era muito grande, embora os cabelos de Thyra fossem mais escuros, e os olhos cor de âmbar, não dourados como os de Margaret. Mas os ossos delicados por baixo da pele clara eram iguais aos de sua mãe. Ela sentiu que devia ser grata por não ter herdado também a assustadora instabilidade de Thyra.

Não conhecia a mulher bela e aristocrática no espelho. Ela olhou para a luva de couro, destacando-se contra a seda suave, e os pés metidos em meias, projetando-se por baixo da bainha bordada. Ia parecer muito estranha, comparecendo a um jantar formal com uma luva de couro e um dos seus dois pares de botas. Tinha ainda as suas amadas chinelas, tão surradas que deveriam ter sido substituídas há séculos. As botas eram aceitáveis em Armida, mas agora ela estava no Castelo do Comyn. Estranho... queria muito causar uma boa impressão em seu pai. Nunca desejara isso antes. Depois de pensar um pouco, decidiu que gostava da idéia.

- Não tenho nada para calçar. Piedra ficou radiante.

- Notei que não tinha quando guardei suas roupas. Por isso, fui buscar sapatos emprestados. Espero que não se importe.

- Se me importo? Claro que não! Mas onde encontrou os sapatos? Piedra balançou a cabeça, as faces um pouco rosadas.

- O Castelo do Comyn está cheio de coisas... como um sótão, domna... que são deixadas e esquecidas, ou simplesmente descartadas. É terrível. Os empregados devem manter tudo limpo e arrumado. Por isso, sei mais sobre armários do que gostaria. E na Suíte de Aillard há um armário inteiro cheio de sapatos e sandálias. Foram deixados por Jerana Aillard. Dizem que ela era muito vaidosa e adorava sapatos elegantes. Acho que estes vão caber nos seus pés.

Como uma conspiradora, a criada estendeu um par de sandálias prateadas, ornamentadas com penas. Couberam sem qualquer dificuldade, pois o couro macio se ajustava aos pés.

- Ela devia ser uma mulher muito alta para que seus sapatos coubessem nos meus pés.

-Não sei, domna. Apenas ouvi dizer que ela levava os criados à loucura com suas exigências quando estava aqui, o que era a maior parte do tempo, pois casou com Aran Elhalyn, que esquentava o trono naquela ocasião. Tudo isso aconteceu antes do meu tempo. Desculpa, domna, mas vai mesmo usar essa luva? Não combina com o vestido.

Foi dito com o devido tato, mas confirmou todas as dúvidas de Margaret.

- Preciso manter a mão coberta, e não disponho de qualquer outra coisa. Se eu soubesse que teria de comparecer a jantares formais, teria tomado as providências necessárias.

Ela se imaginou com uma vasta bagagem, contendo lindos vestidos, sapatos elegantes e todo o resto. A imagem era tão ridícula que não pôde evitar uma risada.

- Então vou procurar uma coisa mais bonita. Confesso que adoro um pretexto para vasculhar os armários... é muito mais divertido do que tirar o pó dos móveis. Ou varrer os tapetes... só de pensar me dá vontade de espirrar!

Piedra deixou o quarto. Margaret calçou os sapatos de uma mulher há muito morta. Uma rainha, ao que parecia. Era muito difícil entender direito as complexidades das famílias darkovianas. Os Elhalyns. Mikhail os mencionara como os verdadeiros reis de Darkover. Mas ela não queria pensar na história darkoviana naquele momento. Para se manter ocupada, guardou o equipamento de gravação.

A criada voltou com várias caixas nos braços. Sorria, obviamente feliz por ajudar Margaret a se preparar para o jantar. Largou as caixas e começou a tirar pares de luvas, compridas e curtas, de couro e de pano. Devia haver três dúzias de pares.

- Mais despojos da Suíte de Aillard?

- Despojos? Nunca pensei assim, mas acho que se pode falar nesses termos. Hum... Estas luvas de seda têm uma cor que combina muito bem, se couberem.

Margaret pegou as luvas estendidas. Experimentou na mão direita, para verificar se cabia. As luvas eram compridas, quase alcançando os cotovelos, feitas com a mesma seda delicada do vestido, mas com uma tecedura diferente, esticando nos dedos. Havia um lindo bordado e pequenas plumas prateadas na extremidade aberta. Ela quase que lamentou o fato de que as mangas do vestido esconderiam as luvas. o tamanho era perfeito. Margaret ficou feliz em remover a luva de couro da mão esquerda, substituindo-a pela de seda, mais leve.

Assim que a seda deslizou sobre as marcas em sua palma, Margaret sentiu uma mudança. O senso de energia em movimento na sua pele diminuiu. Ela compreendeu que a seda era um escudo melhor que o couro. Refletiu que estivera resistindo inconscientemente à energia, o que não precisava mais fazer. Era um alívio tão grande que ela quase chorou. Em vez disso, respirou fundo para se controlar, agradeceu outra vez a Piedra, e voltou à sala de estar para se encontrar com o pai.

Os cabelos de Lew ainda estavam um pouco úmidos do banho. Ele vestira uma túnica cor de bronze e calça marrom. Era um traje antigo, pensou Margaret. As roupas deviam ter permanecido guardadas ali durante todos aqueles anos. E ainda cabiam com perfeição! Margaret achou-o muito bonito, a não ser pelas rugas de preocupação entre as sobrancelhas. Lew fitou-a, naquele traje em que nunca a vira, e balançou a cabeça em aprovação.

- Está maravilhosa nesse vestido. Onde o conseguiu... num dos armários?

- Também me sinto maravilhosa, o que é estranho. Tenho sentido muitas coisas desde que cheguei, mas maravilhosa não era uma delas. E a história do vestido é curiosa... foi um presente de Manuella MacEwan quando deixei Thendara, o que parece ter acontecido há séculos. Ela insistiu que eu precisaria de uma roupa elegante para usar numa ocasião formal no Castelo. Pensei que ela era louca. Mas também tenho pensado que todos em Darkover são loucos de vez em quando.

- Quem é Manuella?

- E a esposa do mestre alfaiate Aaron MacEwan, da Rua da Agulha. Ela foi muito gentil comigo. Tenciono fazer todas as minhas roupas com eles... mesmo que os Altons sejam clientes de algum outro costureiro desde tempos imemoriais!

Lew soltou uma risada.

- É esse o espírito! Desafiar a tradição. o que eu sempre quis fazer, mas tive poucas oportunidades. Creio que meu pai, Kennard, fazia roupas com outro, quando precisava de alguma coisa que não era produzida em Armida. Mas não me lembro o nome agora.

o sofá em que Diotima deitara antes estava vazio.

- Onde está Dio?

- A Curandeira e eu a levamos para a cama. Ela dorme agora.

- o que exatamente ela tem, pai?

Margaret não queria fazer a pergunta, mas não podia mais evitá-la.

- É uma boa pergunta, Marja. Ela tem uma doença que no passado era chamada de "câncer". Costumava matar milhões de pessoas, todos os anos, na antiga Terra. Mas a engenharia genética resolveu o problema. Agora, ninguém sabe direito como tratar dele. No passado, usavam radiação, e até algumas coisas que eram venenosas, em quantidades mínimas, que podiam às vezes ser piores do que a doença em si. Hoje, não há praticamente mais ninguém que saiba como usar esses métodos, embora tenha tentado. Dio disse que, se a morte era inevitável, queria morrer sob o sol de Darkover, não em qualquer outro lugar. Foi por isso que eu a trouxe de volta. O que mais podia fazer?

Ela não deve morrer. Ainda não. Preciso tanto dela!

- Fico contente que tenha voltado, embora desconfie que preferiria permanecer no Senado, ou em algum outro cargo que demonstrasse sua abnegação.

Lew fitou-a em silêncio por um momento, depois riu.

- Você sempre foi capaz de me entender, como... Tenho uma coisa para você. - Ele virou-se para uma mesa e pegou uma caixa pequena. -Isto era de minha mãe, Yllana Aldaran. Dio nunca usou, pois não gosta de jóias. Acho que estava destinado a você.

Margaret pegou a caixa de jóia estendida, o veludo consumido pelo tempo. Continha uma enorme pérola, no formato de uma gota, uma lágrima negra sobre o cetim claro que forrava a caixa. Pendia de uma corrente de prata bem fina, formando um colar deslumbrante. Margaret prendeu a respiração por um instante, depois pegou o colar.

- Por que me estava destinado?

- Seu nome significa "pérola", como sabe. Deixe-me ajudá-la, antes que desmanche seu penteado.

Lew postou-se atrás dela, passou o colar por seus ombros, afastou os cabelos com todo o cuidado, e prendeu o fecho. Margaret sentiu a respiração contra seus cabelos e começou a compreender por que as darkovianas mantinham a nuca coberta.

Como se também estivesse consciente da proximidade física, Lew apressou-se em dar um passo para trás. Margaret ajeitou os cabelos e depois contemplou a enorme pérola negra, repousando um pouco acima da curva dos seios. Brilhava graciosa sobre o vestido verde, como se gostasse de ser usada de novo. Ela largou a caixa.

- Obrigada, pai. É a coisa mais linda que já vi.

- Parece ter sido feita de encomenda para você. Mas por que está usando as plumas de Aillard nos pés?

- É mesmo? Como não tinha sapatos, apenas botas, Piedra tomou estes emprestados de um armário. Ela diz que o Castelo do Comyn é como um enorme sótão. Estes sapatos pertenceram há muito tempo a uma mulher chamada Jerana. Estou usando suas luvas também... com penas bordadas, mas que não se podem ver por causa das mangas do vestido. Fiquei surpresa por encontrar sapatos bastante grandes para caber nos meus pés. Se não fosse por isso, teria de ir ao jantar só de meias ou com minhas velhas chinelas. Espero que não seja um problema tomar coisas emprestadas... ninguém vai se incomodar, não é?

- Usar os sapatos de uma rainha... - murmurou Lew. - Tem razão, ninguém vai se importar. E agora vamos para o jantar. Estou com fome. E quero descobrir o que Regis andou fazendo durante a minha ausência. Espero que sirvam coelho-de-chifre defumado. É uma carne que nunca exportam, e venho ansiando por comê-la há mais de vinte anos.

Margaret fitou o pai com alguma curiosidade. Nunca soubera que ele tinha qualquer interesse por comida, a não ser para encher o estômago. Lew comia as ostras de Thetis ou o pão de algas marinhas com a mesma indiferença. Não duvidava que ele estivesse sendo sincero. Mas era um lado de Lew que jamais conhecera, e que o tornava mais humano. Teria de saber quem ele realmente era. Seu coração se animou com a perspectiva. o pai ofereceu-lhe o braço. Margaret pôs a mão enluvada em sua manga. Sentia-se quase inebriada quando entraram no corredor.

A sala de jantar era confortável, com uma mesa comprida entre duas lareiras acesas. As cadeiras tinham encosto alto, com uma árvore alta esculpida, pintada de prateado contra a madeira escura. Um servo circulava com uma bandeja cheia de taças, oferecendo vinho às pessoas. Outro carregava uma bandeja com hors d'oeuvres, pequenos pastéis recheados com carne temperada.

Jeff se encontrava perto da porta quando eles entraram, conversando com Gabriel Lanart. o pai de Mikhail amarrou a cara ao ver Lew e Margaret. Ela desconfiou que os dois conversavam sobre o Domínio de Alton, e que Gabriel não gostara nem um pouco do que ouvira. Mas logo Lady Linnea se aproximou, cumprimentou Margaret com uma afeição sincera, ofereceu a Lew um dos seus sorrisos cativantes.

- Este é um momento maravilhoso para mim. Fico contente que você tenha voltado para Darkover, Lew, mesmo que as circunstâncias não sejam das mais felizes. Como está Diotima?

- Como dizem os curandeiros, descansa com todo o conforto. O que significa que caiu num sono profundo, induzido por drogas, e não sente qualquer dor neste momento.

- Ainda bem. Ela praticamente não dormia desde que você partiu para Armida, há quatro dias. Lew balançou a cabeça.

- Jamais desejei tanto estar em dois lugares ao mesmo tempo como nos últimos dias.

Ele olhou para a mesa, quase rangendo ao peso das travessas.

- Ele está querendo descobrir se tem coelho-de-chifre defumado - comentou Margaret, jovial.

- Claro que tem - respondeu Lady Linnea. - Regis me disse que você gostava muito.

Linnea também usava um vestido de seda, azul, todo bordado, o que deixou Margaret aliviada sobre o traje apropriado para a ocasião. Linnea não usava luvas, já que não precisava. Afora isso, porém, Margaret achava que estava vestida como a consorte, e por isso não se destacaria.

Ela ouviu um murmúrio aturdido às suas costas. Virou-se para deparar com Mikhail. Vestido no azul e prateado da casa de Hastur, ele a fitava fixamente, a boca entreaberta. Ela é bonita demais!

Antes que Margaret pudesse dizer qualquer coisa, Regis entrou na sala, acompanhado por Danilo Syrtis-Ardais e o jovem herdeiro Dani. O Regente se mostrava ao mesmo tempo preocupado e exultante, enquanto cumprimentava as pessoas com acenos de cabeça. Parecia diferente do que era no seu primeiro encontro com Margaret, como se algum fardo tivesse sido removido de seus ombros, e não soubesse como se comportar em sua ausência. Ele gesticulou com a mão e todos se encaminharam para a mesa. Estava um pouco quente na sala. Margaret sentiu-se contente por ter escolhido aquele lindo vestido, que era mais leve do que suas outras roupas. Regis aproximou-se e pegou sua mão, sorrindo.

- Parenta, eu lhe dou as boas-vindas em seu retorno ao Castelo do Comyn. Está adorável e menos confusa do que em sua visita anterior.

- Obrigada, Lorde Regis. Não estou menos confusa, mas apenas mais acostumada a estar confusa.

Ele riu.

- Isso é ótimo. A confusão é natural, mas se sentir à vontade com ela é difícil. E você, Lew, parece menos com um dos demônios de Zandru do que no momento em que voltou a Darkover, há poucos dias.

- Bredhu, tenho minha esposa e filha em segurança, tanto quanto é possível, e me sinto contente. Você também parece muito satisfeito. Andou visitando pote de creme outra vez?

Regis riu de novo. Margaret calculou que devia ser uma piada antiga, do tempo em que eram meninos e irmãos de adoção. O Regente não respondeu, mas ela pensou que se ele fosse um gato, estaria com a boca cheia de penas. Depois que todos sentaram, Regis sorriu e disse:

- Parece que a sorte nos sorri, pois Lew Alton finalmente voltou, embora as circunstâncias que o trouxeram para casa sejam muito tristes. Devemos todos torcer para que as nossas leroni possam fazer o que a medicina terráquea não conseguiu, Lew. Mas agora os Domínios são de novo como deveriam. Vamos nos reunir na Câmara de Cristal depois de amanhã, para reformar o Conselho do Comyn.

Esse anúncio fez com que Lew e Dom Gabriel levantassem a cabeça abruptamente. Margaret quase que pôde ouvir as engrenagens em movimento no cérebro do tio. o rosto de Lew, no entanto, permaneceu indecifrável. Ela refletiu que o pai devia ter uma longa prática de se manter impassível, adquirida durante seus anos no Senado.

- É estranho como o pesar muitas vezes nos reúne - continuou Regis, como se nada tivesse dito de momentoso. - Jeff me contou sobre o terrível acidente com o pequeno Domenic Alar. Já me comuniquei com minha irmã. Ela chegou sem problemas a Arilinn. Está se fazendo tudo o que é possível. Devemos torcer para que ele recupere a plena saúde. Regis fez uma pausa, soltou um suspiro.

- Pelo menos ele não está perdido, como aconteceu com meus filhos mais velhos, sem nenhuma chance, vítimas de assassinos, quando os Destruidores de Mundos vieram para Darkover. o tempo não atenuou minha tristeza, embora aquela época tenha me levado à união com a minha Linnea. Ele ofereceu um sorriso para a consorte, na outra extremidade da mesa. Linnea retribuiu. Pareciam dois jovens em sua afeição.

Margaret já testemunhara um olhar assim entre Dio e seu pai. Mais uma vez, sentiu a ausência de um vínculo mais forte em sua vida. Não tivera consciência do problema enquanto Ivor vivia, mas sua morte deixara um vazio no coração de Margaret. Ela sentia uma ânsia profunda, para a qual não tinha um nome. Isto é, tinha um nome, é claro, mas temia deixar que sua mente o expressasse. A julgar pela expressão furiosa de Dom Gabriel, era bem provável que ela acabasse desapontada e frustrada.

Foi nesse instante que ela percebeu que Mikhail a fitava fixamente, de uma forma grosseira pelos padrões darkovianos, como se tentasse atrair sua atenção. Eu não disse que ia acontecer? Há anos que não há uma reunião do Conselho do Comyn!

Se você é tão esperto, diga-me o que será tratado na reunião, respondeu Margaret. E eu pensei que você havia dito que existia agora um Conselho Telepático.

Não sei o que é, mas tio Regis parece mais excitado do que em qualquer outra ocasião anterior. Portanto, deve ser muito importante. O Conselho Telepático não se reúne, prima, apenas acontece.

Posso entender agora por que não é muito satisfatório. Ele está excitado? Não parece.

Não o conhece como eu. Pode ter certeza de que Regis está muito excitado, e que alguma coisa importante vai acontecer em breve.

Confio em você, Mikhail. Sem qualquer razão objetiva, confio totalmente em você.

Margaret notou nesse momento que Dom Gabriel a observava, furioso. Ele sentava ao lado de Lady Linnea, no outro lado da mesa. Ela corou até a raiz dos cabelos, como se tivesse feito alguma coisa errada. Gostava de Mikhail - mais do que gostava - mas não gostava de seu pai, por mais que quisesse.

- Uma reunião do Conselho? - perguntou Dom Gabriel, ríspido.

- Isso mesmo - respondeu Regis, calmamente. - Mas como esta é uma ocasião festiva, com a volta de Lew e a presença de sua filha, não vamos permitir que o assunto prejudique a nossa digestão. Sei que vai concordar, Gabriel.

O tom era jovial, mas não havia como se equivocar sobre a autoridade de Regis. Por um momento, Dom Gabriel deu a impressão de que ia protestar. Mas Linnea passou-lhe uma travessa de legumes nesse instante. Ele deu de ombros e serviu-se.

Margaret ficou aliviada, pois sentia-se cansada e a perspectiva de uma discussão era insuportável. Levantou os olhos, descobriu que Mikhail a observava discretamente, tornou a baixar os olhos para seu prato. Lady Linnea perguntou sobre sua pesquisa musical. Margaret falou sobre os cantores que conhecera nas colinas.

Como ela consegue se controlar, mesmo com a expressão furiosa de meu pai! O pensamento fez com que Margaret levantasse os olhos de novo. O sorriso de Mikhail era tão radiante que ela pensou que seu coração explodiria. Quase que engasgou com a comida.

Comporte-se... todos à mesa vão perceber que você está olhando para mim!

Como quiser, prima, mas não é fácil!

Margaret não pôde evitar um sorriso. Era maravilhoso sentir a admiração de Mikhail, captar os profundos sentimentos por ela. Mas também deixava-a apreensiva, com vontade de se retrair. Havia um conflito entre a tensão do comportamento a que se acostumara e o anseio recém-descoberto por intimidade. Sentiu um aperto na garganta. o apetite diminuiu. Ela notou que Lady Linnea a observava atentamente.

Respirou fundo várias vezes, impôs-se a disciplina, concentrou-se no excelente jantar. Tentou não pensar no homem bonito que a fitava de vez em quando, nem em qualquer outra coisa desconcertante. Regis levou a conversa para o tempo e as colheitas. Como Margaret nada sabia a respeito, pôde ouvir sem se sentir sufocada. Mas ficou contente quando o jantar terminou, e pôde voltar para seu quarto.

Despiu-se, com a ajuda de Piedra. Vestiu uma camisola fornecida pelo Castelo. Acomodou-se na enorme cama, exausta. Mas o sono não veio. Estava preocupada com Dio. Pensou no que poderia acontecer na reunião convocada por Regis. Mas, finalmente, seu corpo rendeu-se, e ela mergulhou num sono sem sonhos.

 

27

Quando acordou, na manhã seguinte, Margaret pôde sentir toda a intensa atividade no Castelo do Comyn. Compreendeu que dormira até tarde. Continuou deitada na enorme cama, tentando encontrar um sentido para os últimos dias, especialmente para o jantar na noite anterior. Sentira correntes e contracorrentes, mas estava cansada demais para analisar a maior parte. Além do mais, concentrava-se em tentar pensar direito com Mikhail sentado tão perto, enviando pensamentos ocasionais que perturbavam o pouco equilíbrio emocional que ainda lhe restava.

Era evidente que Dom Gabriel ficara surpreso com o anúncio de Regis, que parecia ter a maior importância para ele. Seu pai, por outro lado, não demonstrara muita surpresa, dando a impressão de que previa o movimento. Era tudo muito complexo. Embora soubesse que o evento provavelmente teria um impacto direto em sua vida, Margaret gostaria que nada acontecesse.

Ela se levantou, tomou um banho e vestiu-se. Verificou as caixas de luvas que Piedra trouxera na noite anterior, até encontrar um par de luvas de seda curtas. Depois, saiu à procura de Dio, mal notando que seu estômago roncava de fome.

A Suíte de Alton consistia em muitos agrupamentos de cômodos que se estendiam pelos dois lados da sala de estar por onde ela entrara na primeira vez. Margaret descobriu que conhecia a disposição dos cômodos sem precisar perguntar a ninguém. Foi batendo nas portas fechadas, abrindo-a se não havia resposta. Encontrou Diotima num quarto na outra extremidade da suíte. Ela cochilava no meio de uma enorme cama, o corpo pequeno parecendo ainda menor.

Margaret engoliu em seco. Sentia-se pequena, desamparada e assustada, o que não devia acontecer. Dio tinha empada, e qualquer sentimento seu poderia ser captado pela madrasta. O que seria bastante prejudicial. Ela duvidou da sensatez de sua visita.

Houve um movimento no canto do quarto. Uma mulher levantou-se das sombras. Tinha altura mediana, talvez sessenta anos de idade, com rugas nos cantos dos olhos e da boca. Encaminhou-se para Margaret sem fazer qualquer ruído no tapete grosso.

- Domna?- sussurrou ela.

- Vim ver como está minha mãe.

- No mesmo estado... não melhor, mas também não pior. Gostaria de sentar um pouco com ela? Tenho certeza de que seria um conforto.

Margaret não tinha certeza, pois seus medos angustiantes continuavam a atormentá-la.

- Gostaria, sim.

- Neste caso, vou deixá-las a sós. Estarei no quarto ao lado, se precisar de mim. Basta chamar.

- Mas qual é o seu nome?

- Sou Katerina di Asturien, uma Curandeira.

- Obrigada. Ficarei sentada com ela.

Margaret puxou uma cadeira para o lado da cama e sentou. Podia ouvir a respiração de Dio, suave, sem qualquer dificuldade, o que a tranqüilizou um pouco. Deixou a mente vaguear. Depois, decidiu que precisava se concentrar em coisas boas. Pensou em Thetis, no vento que soprava do mar, a fragrância das azurinas que cresciam na frente da casa. Com uma pontada de saudade, compreendeu que provavelmente nunca mais tornaria a ver aquela casa. Experimentou um profundo anseio pelo mar e o cheiro da maresia. Uma das canções que os ilhéus costumavam cantar voltou à sua mente, sobre a volta de uma longa viagem oceânica numa pequena canoa. Cantarolou-a baixinho, porque era agradável e confortadora. Dio mexeu-se na cama, abriu os olhos, murmurou irrequieta, puxando os lençóis sobre os seios:

- Sonhei que estava de novo em Thetis. Podia sentir o perfume das damas-da-noite e o cheiro da maresia.

- Eu estava pensando em nossa casa, Dio, e você deve ter me sentido.

- Marja! Você está mesmo aqui! Tive medo de ter apenas sonhado com você, embora Lew me assegurasse que sua presença aqui era real. Tenho a boca ressequida.

Havia um jarro com um líquido cor-de-rosa ao lado da cama, junto com um copo. Margaret encheu o copo pela metade. Ajoelhou-se na cama enorme com todo o cuidado, levantou a cabeça da mãe, e levou o copo aos seus lábios. Dio bebeu, sedenta, depois encostou a cabeça no ombro de Margaret.

- Por que usa luvas dentro de casa, Marja?

- É uma longa história. - Margaret pôs o copo na mesinha, mudando de posição para continuar a amparar Dio. Era estranho ter a mãe em seus braços, ser a confortadora, em vez da confortada. Margaret não queria largá-la. Mais do que isso, queria restaurar a saúde da madrasta pela força de sua vontade. - Eu a contarei em outra ocasião, quando você não estiver tão cansada.

- Posso não ter outra ocasião, chiya.

- Não diga isso! Você não pode morrer!

Todo mundo morre, Marguerida. E uma das poucas coisas certas na vida. E, pelo menos, você se reconciliou com seu pai, o que tem sido o desejo do meu coração por anos.

Diotima Ridenow- Alton, se você morrer, nunca mais falarei com você!

É o que vai acontecer mesmo, embora eu continue a falar com meu pai de vez em quando. Acho que ele pode me ouvir... onde quer que esteja agora. Mas fale-me de suas aventuras. Não quer me deixar morrer de curiosidade, não é?

O tom de brincadeira era tranqüilizador. Margaret acomodou-se numa posição mais confortável e passou a contar à mãe tudo o que acontecera desde que chegara a Darkover. Ainda não chegara ao meio da narrativa, quando Dio adormeceu em seus braços. Era um sono profundo e sereno, que parecia normal, muito melhor do que o estado em que Margaret a encontrara ao entrar no quarto. Seu braço ficou dormente, mas ela não se mexeu, para não perturbar a mãe. Pensou em todas as coisas boas de que podia se lembrar, na esperança de que fossem transmitidas para a mente de Dio e ajudassem-na a superar a doença.

Lew encontrou-as ali ao final da tarde. Margaret pôde sentir o fluxo de emoções do pai, a alegria e o terror, tudo misturado num caldeirão de sentimentos. Ela levantou a cabeça e fitou-o, ignorando as lágrimas no rosto do pai e também as que escorriam por suas faces.

Na manhã seguinte, Margaret foi com o pai para a Câmara de Cristal. Faltava pouco para o meio-dia, e a refeição comida pouco antes parecia pesar como chumbo em sua barriga. Não queria ir, e não podia entender por que sua presença era necessária. Ou melhor, achava que compreendia tudo muito bem, mas não queria sentar ali para ouvir um bando de quase estranhos tomar decisões sobre o seu futuro.

Apesar da agitação e da raiva em ebulição, ela quase soltou uma exclamação de espanto, quando entraram na sala. Nada em sua memória a preparara para aquele cenário. Era uma enorme sala circular, no alto do Castelo. Tinha enormes janelas de vidro colorido, dando a impressão de que estava em chamas. Havia uma mesa redonda no centro da sala. As cores dos vidros desenhavam padrões deslumbrantes sobre a madeira. Margaret sabia que nunca estivera ali antes, mas ainda assim a sala lhe parecia familiar. Lew informara que a sala fora construída muito depois da morte de Ashara. Por isso, ela achava que captara o senso de familiaridade do pai, não da Guardiã há muito falecida. De qualquer forma, a sensação de conhecer um lugar em que nunca estivera antes a perturbava, aumentando sua apreensão.

Havia alguma coisa fantástica na sala. Margaret ponderou sobre o que poderia ser. Olhou ao redor, para as cadeiras com as insígnias dos Domínios esculpidas, e nada encontrou ali que a perturbasse. Levantou os olhos para o teto abobadado, em que haviam sido pintadas as quatro luas e várias estrelas. Compreendeu que era mais do que um mero teto. Havia algo escondido por trás dos desenhos, o que a deixou toda arrepiada.

A sala inteira tinha um cheiro agradável, de cera de móveis e tapetes varridos. Pelo que Mikhail lhe dissera, Margaret sabia que não era usada para seu propósito original há muito tempo. Por que então se sentia tão apreensiva?

- Por que esta sala parece tão estranha? - sussurrou ela para o pai.

Ele fitou-a nos olhos por um instante.

- Há amortecedores telepáticos por toda parte. Por isso não é usada há anos. Foram instalados para impedir que todos os Altons, passados ou presentes, usassem seu Dom para impor uma concordância ao resto do Conselho.

- Entendi. Não se poderia usar esta sala para uma reunião de um Conselho Telepático porque não funcionaria. Não gosto daqui.

- Ninguém gosta, Marja. Não tenho lembranças felizes desta sala.

Dom Gabriel entrou nesse momento. Franziu o rosto para os dois, depois se encaminhou para a cadeira esculpida com a insígnia de Alton, o penhasco com uma águia em cima, que o pai dissera a Margaret ser o símbolo da família. Ele puxou a cadeira para trás com um movimento brusco, batendo-a em seus joelhos. Sentou e apoiou os braços na superfície reluzente da mesa, quase que os desafiando a questionar seu direito ao Domínio de Alton.

Era evidente que as cadeiras de encosto mais alto estavam reservadas aos chefes dos Domínios, mas havia muitas outras cadeiras menores. Margaret não sabia se deveria ocupar uma dessas, ou se afastar até as cadeiras comuns ao longo das paredes da vasta sala. Há tantos anos não experimentava esse sentimento de deslocamento que se descobriu a retomar o esquema da invisibilidade que costumava usar na infância. Lew percebeu seu retraimento. Apertou seu ombro, num gesto rápido e confortador, depois acenou com a cabeça para a mesa. Era óbvio que o pai conhecia o lugar da filha, mesmo que ela não soubesse, o que a tornou menos hesitante.

Margaret lembrou a tarde anterior, quando Lew a encontrara abraçando a madrasta, e as lágrimas escorreram pela cicatriz em seu rosto. Haviam deixado Dio aos cuidados da Curandeira logo depois, e passado para a sala de estar. Ali, pela primeira vez na vida adulta de Margaret, os dois conversaram, um pouco sem jeito a princípio, depois com mais facilidade. Fora um momento maravilhoso, ao mesmo tempo repleto de angústia e de cura. Enquanto falavam, alguma coisa dentro de Margaret começara a derreter, um lugar gelado em seu coração, que ela mal sabia que existia até que desapareceu. Independente do que acontecesse agora, Margaret sabia que o pai a amava, sempre a amara, que podia confiar nele como sempre desejara. Era uma estranha sensação, inquietante e nova. Ela a acalentava, ao mesmo tempo em que temia que fosse irreal.

Houve uma agitação na porta. Lady Javanne entrou na sala, usando suas roupas de viagem e parecendo um tanto irritada. Os cosméticos aplicados com o maior esmero haviam se tornado um pouco borrados. Os cabelos em geral bem arrumados estavam sujos e despenteados. Em vez de recender a perfumes, exalava um intenso odor de cavalos.

O jovem Dyan Ardais entrou logo em seguida, ao lado de Lady Marilla. Dyan parecia apreensivo, mas Marilla não parava de sorrir. Ela se aproximou de Margaret, envolveu-a num abraço gentil e murmurou:

- É bom vê-la de pé e em boas condições.

Ela cheirava a água de colônia, uma combinação floral de que Margaret gostou. Quando olhou por cima do ombro de Lady Marilla, ela avistou Mikhail, usando as cores de Hastur, muito bonito sob as janelas coloridas. O primo piscou para ela. Margaret sorriu. Gostaria que estivessem em qualquer outro lugar que não naquela sala, porque tornara-se um hábito terem pequenas conversas particulares, que ela muito apreciava.

Margaret queria saber quando Dyan e a mãe haviam chegado, pois não os vira na noite anterior, quando todos se reuniram para o jantar. Sabia que a viagem a cavalo de Ardais a Thendara levava vários dias, mesmo com o máximo de pressa. Por isso, concluiu que eles haviam sido convocados com bastante antecedência. Regis já devia ter planejado aquela reunião antes mesmo de sua partida de Armida. E Javanne viera direto da Torre de Arilinn assim que entregara o neto aos cuidados das curandeiras ali.

Depois, ela começou a ponderar por que haviam se reunido na Câmara de Cristal, em vez de usarem uma das muitas salas grandes que ela sabia existirem no Castelo do Comyn. Era evidente que havia um significado na escolha daquela sala em detrimento de todas as outras do Castelo. Tinha de haver uma razão para a presença de todos ali. Margaret tinha a sensação de que as peças do quebra-cabeças se encontravam embaralhadas à sua frente, mas ainda não conseguia encontrar algum sentido. Não compreendia como as coisas funcionavam, mas desconfiava de que estava prestes a descobrir mais sobre o governo de Darkover do que jamais quisera saber.

Margaret notou que a tia olhava fixamente para Dyan Ardais e Lady Marilla. Quase que desejou poder ouvir o que a mulher mais velha estava pensando. Havia suspeita em seu olhar, e mais alguma coisa. Ocorreu de repente a Margaret que Javanne não contava com o pessoal de Ardais, e que a presença deles a inquietava por algum motivo. Regis não devia ter avisado com antecedência à irmã que tencionava convocar o Conselho do Comyn. Ele jogava com as cartas junto do peito, concluiu Margaret, até mesmo com a irmã. Javanne, sem dúvida, viera a Thendara na expectativa de uma reunião familiar para decidir o destino de Margaret, e talvez para propor que Mikhail fosse designado o Senador de Darkover, no lugar de Herm Aldaran. Margaret reprimiu uma risada e percebeu que Mikhail fazia a mesma coisa.

Regis entrou na sala nesse instante, acompanhado por Lady Linnea. Ele olhou ao redor. Viu Gabriel sentado na cadeira de Alton, e uma expressão curiosa estampou-se em seu rosto. Não parecia zangado; em vez disso, dava a impressão de estar achando muito engraçado. Sua eterna sombra, Danilo Syrtis-Ardais, vinha logo atrás. Margaret especulou se Regis e Linnea conseguiam ter alguma privacidade, nem que fosse para fazer seus filhos. Que mente vulgar eu tenho!, pensou ela, contente porque ninguém podia ouvir seus pensamentos naquela sala.

Regis ocupou seu lugar, uma cadeira alta com a árvore prateada esculpida. Sua irmã Javanne sentou ao seu lado. Como a tia era uma Hastur, Margaret presumiu que era esse seu lugar correto. Olhou para o pai, em busca de uma indicação do lugar em que deveria sentar, já que era evidente que ele pretendia levá-la para um lugar junto da mesa, em vez de deixá-la ficar numa cadeira junto da parede.

Dyan, com alguma relutância, sentou na cadeira de Ardais. Mikhail puxou outra cadeira e ajudou Lady Marilla a sentar. Era uma das cadeiras mais altas, indicando-a como detentora de um Domínio. Margaret lembrou que Marilla se apresentara como Aillard, não Ardais, quando haviam se conhecido... séculos antes, assim parecia. Depois que a mulher sentou, Mikhail foi se postar atrás da cadeira de Dyan, imitando a postura de Danilo.

Lew, ao lado de Margaret, ficou imóvel por um momento, imerso em seus pensamentos. Depois, pegou o braço da filha e levou-a para um lugar a duas cadeiras de Dom Gabriel. Havia uma figura esculpida atrás da cadeira, mas ela não teve tempo de dar uma olhada. Lew sentou entre ela e o tio, pôs a única mão em cima da mesa, com um ar presunçoso.

Dom Gabriel abriu a boca para um protesto, mas um olhar da esposa silenciou-o. Em vez disso, ele resmungou baixinho, lançando olhares furiosos para todos. Era evidente que Gabriel também não entendia a situação... e Margaret teve certeza de que ele não estava gostando nem um pouco.

Regis limpou a garganta. Antes de começar a falar, olhou para a porta da sala, como se esperasse por mais alguém. Depois, deu de ombros.

- Quando Lew Alton deixou Darkover, o Comyn estava em ruína. As linhagens de Aillard e Elhalyn se encontravam quase extintas. Dyan Ardais morrera, e seu filho ainda era um bebê. Com isso, restaram os Aldarans, que há gerações não têm lugar aqui, os Hasturs e os Ridenows. O Domínio de Alton foi entregue a Dom Gabriel, pela decisão de Jeff Kerwin de permanecer em Arilinn.

Ele soltou um pequeno suspiro, como se pensar nesses acontecimentos lhe proporcionasse alguma angústia.

- Sofremos em seguida um período conturbado, quando os Destruidores de Mundos vieram para cá. Muitas pessoas foram assassinadas, apenas por serem percebidas como uma ameaça para seus objetivos. Meus próprios filhos foram mortos, assim como os de outras pessoas, de maneira furtiva e covarde, que nunca perdoei. Sobrevivemos, mas perdemos algumas pessoas excelentes, de que precisávamos para governar.

Regis suspirou de novo, mais longo desta vez. Linnea afagou sua mão. Em resposta, ele ofereceu à consorte um olhar de gratidão, com uma afeição tão profunda que Margaret sentiu-se ao mesmo tempo embaraçada e invejosa.

- Depois da derrota dos Destruidores de Mundos, tentamos reorganizar tudo. Usamos como veículo o Conselho Telepático. Era a melhor solução na ocasião. Os terráqueos não interferiram. E essa situação persistiu por uma geração. o Conselho Telepático não é perfeito, mas tem atendido às nossas necessidades de maneira adequada.

Javanne remexeu-se na cadeira ao seu lado, franziu as sobrancelhas, impaciente.

- Há dez dias, porém, recebi uma delegação, um grupo surpreendente de homens, representando as guildas das cidades e os habitantes rurais. Exigiam que o governo fosse entregue de novo ao que restava do Conselho do Comyn. Acham, com alguma determinação, que o Conselho Telepático não é bastante darkoviano, que é terráqueo demais e que não representa nossas necessidades. Foi uma ocasião extraordinária, talvez a mais extraordinária num reinado que não careceu de eventos de extrema importância. Regis fez uma pausa, como se refletisse sobre a reunião.

- Eles pensavam em si mesmos e em seus filhos. Não temos tradição de democracia em Darkover, mas parece que o contato com os Terranan tem levado as pessoas a acalentar algumas idéias insólitas.

- Eles exigiram de você? - o rosto de Dom Gabriel ficou vermelho de raiva. - Mas isso é um absurdo! Espero que os tenha despachado com...

- Mas o que restou do Conselho? - indagou Javanne, os olhos se contraindo, numa expressão pensativa, interrompendo o marido, antes que ele bancasse o idiota rematado. - O Príncipe Derik Elhalyn morreu sem deixar filhos.

- É verdade - respondeu Regis. - Derik não deixou herdeiros de seu corpo, e as crianças de sua irmã ainda eram bebês ou não haviam nascido. Priscilla Elhalyn é uma mulher retraída. Afastou-se de Thendara com seus filhos, pelo que foram certamente bons motivos, em sua opinião. Mas o filho mais velho é agora um pouco mais jovem do que Dyan. Embora não tenham o nome Elhalyn, mantêm a linhagem. E, como os Elhalyns sempre concederam a posição de comynara às suas mulheres, creio que é possível restaurar a dinastia através de uma dessas crianças... É claro que teremos de testá-las e verificar qual é a mais estável. Solicitei a Priscilla que participasse da reunião, mas ela se recusou.

Ele suspirou mais uma vez.

- Talvez eu não tenha sido bastante persuasivo. Mas creio que podemos continuar sem ela.

Isso criou uma comoção, com várias pessoas falando ao mesmo tempo. Margaret perguntou ao pai, em voz baixa:

- Qual é o problema dos Elhalyns? Por que eles não seriam estáveis?

- Uma endogamia em excesso acarreta inúmeros problemas - sussurrou o pai em resposta.

Ela acenou com a cabeça. No empenho em preservar o laran, as principais famílias de Darkover não haviam levado em consideração os efeitos a longo prazo de seus programas de reprodução. Margaret ainda não entendia por que os Elhalyns eram tão importantes, nem por que Regis se mostrava tão determinado a reviver essa linhagem em particular. Mas ela o avaliara nos últimos dois dias, e tinha o maior respeito por sua calma e sensibilidade. Darkover tivera a sorte de contar com aquele homem para guiá-lo depois da Rebelião de Sharra.

A porta da sala foi aberta nesse instante. Um estranho entrou. Era alto, cabelos vermelhos. Margaret concluiu que devia ser um Ridenow, por causa de seus olhos característicos. Era um tanto jovem para ser um dos irmãos de Diotima, mas talvez fosse relacionado, em vez disso, com Istvana.

- Perdoem meu atraso. Meu cavalo ficou manco, e demorei mais tempo do que deveria.

Ele fez uma reverência para Regis, que não parecia nem um pouco surpreso com sua chegada. Já Gabriel e Javanne estavam aturdidos. Se qualquer coisa, Regis parecia aliviado. Lady Javanne lançou um olhar de traição para o irmão. Margaret refletiu que ela devia ter vindo a Thendara na expectativa de presidir sua própria reunião.

Pela expressão do rosto do pai, ele também estava surpreso, mas não insatisfeito.

- Quem é ele? - sussurrou Margaret.

- Não sei, chiya. Só posso dizer que é um parente de Dio. Como é parecido com Lorde Edric Serrais, acho que pode ser um filho. Mas agora sei por que Regis percorria furtivo os corredores do Castelo do Comyn, como se tivesse creme no bigode. - Lew recostou-se na cadeira, divertido com a presença do recém-chegado. - o velho demônio é mais esperto do que eu pensava.

Dom Gabriel ouviu esse comentário. Lançou para Regis um olhar indecifrável. Depois, olhou através da mesa para a esposa. Margaret acompanhou o olhar. Viu o rosto da tia se contrair em cálculos. Regis levantou-se, sorrindo.

- Seja bem-vindo, Lorde Ridenow. Fico satisfeito que tenha chegado agora. Mal começamos a reunião. Lew, creio que você ainda não conhece Francisco Ridenow, sobre quem lhe escrevi algumas vezes.

- Mas é claro! Eu deveria ter imaginado! - Lew levantou-se e cumprimentou o recém-chegado, com uma satisfação evidente, como se já fossem amigos... ou talvez aliados. Levou Francisco para a mesa. - Esta é minha filha, Marguerida Alton.

Margaret empurrou sua cadeira para trás, meio sem jeito. Fez uma pequena reverência e sorriu para o homem. De perto, ele parecia um pouco mais jovem do que ela. Era muito bonito.

Houve uma pausa na reunião, enquanto Francisco sentava, e Lew e Marguerida voltavam para seus lugares. Ela olhou para Mikhail e descobriu-o com uma expressão severa. Só depois compreendeu que ele observava Dom Francisco com uma certa cautela. Pensou que talvez fosse ciúme. o que lhe proporcionou um estranho sentimento, um calor no peito que não era desagradável, mas uma novidade total. Ninguém jamais tivera ciúme dela antes, e não sabia como reagir.

- Eu falava sobre o nosso passado recente, Francisco, principalmente em benefício de Marguerida, que não conhece nossa história. - Regis lançou um olhar sugestivo para Lew, que ficou um pouco vermelho. - Depois da Rebelião de Sharra, eu era o único herdeiro adulto de Hastur ainda vivo. Depois de mim, vinham os filhos de minha irmã. Na ocasião, eu ainda não conhecia Linnea, e só tinha filhos nedestro. Por isso, designei Mikhail para meu herdeiro.

Regis tornou a limpar a garganta. Lady Linnea, ao seu lado, entrelaçou os dedos com os dele, num gesto tão terno e íntimo que foi quase chocante.

- A situação permaneceu assim por vinte anos. Embora eu não tivesse certeza de que era a melhor possível, também não me sentia impelido a tomar decisões precipitadas. Tem sido muito difícil para Mikhail, pois ainda não formalizei nada. Ele continua como meu herdeiro designado, embora eu tenha agora dois filhos para me sucederem. Só posso dizer que depois de perder meus filhos mais velhos para o destino, eu não me sentia ansioso para converter o pequeno Dani em meu herdeiro. Aprendi que a vida é muito mais arriscada do que eu imaginava, o que me deixou uma marca profunda.

- Portanto, vai designar Dani para seu herdeiro.

A expressão de Javanne era quase jovial. Regis lançou-lhe um olhar estranho, como se ela fosse uma estranha, e não muito simpática. A expressão de Javanne mudou. o prazer demonstrado um momento antes desapareceu por completo.

- Pensei muito sobre minha reunião com a delegação. Também pensei nas mudanças que estavam ocorrendo na Federação. Não eram um bom presságio para Darkover. Com os expansionistas no poder, era bem provável que tivéssemos de enfrentar o desafio de mais saqueadores, mais Destruidores de Mundos. Essa era a opinião de Lew, mas confirmava a minha, através de informações obtidas também de outras fontes. E me pareceu que a reconvocação do Conselho do Comyn neste momento seria um passo à frente, não um retrocesso. Mas uma das coisas em que a delegação dos comuns insistiu foi na restauração de um Elhalyn no trono. Como essa era uma idéia que eu já acalentava, estava propenso a concordar.

Ele sorriu, cativante. Margaret lembrou que os Hasturs supostamente possuíam, como parte de seu Dom, a capacidade de manipular as pessoas. Isso explicava por que Regis escolhera a Câmara de Cristal para a reunião; se os amortecedores impediam que o Dom de Alton fosse usado, também mantinha os Dons de Regis sob controle.

Ainda assim, ela continuava um pouco perplexa. Regis era rei em tudo, menos no nome, mas parecia querer abdicar de sua posição. Margaret não sabia muito sobre poder, além dos jogos insidiosos e triviais em que os acadêmicos se empenhavam, mas tinha certeza de que aquele movimento de Regis não tinha precedentes. Sua única satisfação era saber que todos na sala também estavam perplexos.

- Portanto, temos um Ardais, e tenho certeza de que o jovem Dyan servirá com a maior competência. Lady Manila é uma Lindir, e uma das últimas na linhagem de Aillard. Todos nós conhecemos sua capacidade. Espero que ela possa se afastar de seus fornos de vez em quando para se juntar a nós nas deliberações.

Ele ofereceu a Marilla um sorriso irresistível. Margaret observou-a relaxar em satisfação.

- Dom Francisco está disposto a representar os Ridenows. Encontraremos um Elhalyn para servir no Conselho, embora possa demorar um pouco.

- Mas qual é o seu propósito em tudo isso, Regis? - perguntou Dom Gabriel, apesar dos sinais de Javanne para que permanecesse calado, enquanto ela avaliava a nova situação.

- Meu propósito é oferecer a Darkover as melhores pessoas que temos aqui, a fim de guiar nosso mundo para o futuro. E esse futuro não está em minhas mãos ou nas suas, velho amigo, mas nas mãos desses jovens... nas mãos de Mikhail, Dyan, Francisco e Marguerida. Não viverei para sempre, nem Lew, Javanne ou você... e não podemos nos comportar como se fôssemos eternos. Esse foi o erro que cometi ao não resolver o problema antes.

- Mikhail? O que ele tem a ver com tudo isso? Afinal, não vai herdar Hastur. - A raiva de Dom Gabriel era evidente, como se a proposta daquelas mudanças fosse culpa do filho mais novo. - Mikhail é apenas o filho menor, paxman de Dyan Ardais... e mais nada!

- Acha então que devo desperdiçar todo o seu treinamento e inteligência?

- Treinamento? Refere-se à educação terráquea que lhe deu? Acho que isso o torna impróprio para qualquer coisa relacionada com o governo de Darkover... ele foi corrompido! - Dom Gabriel bateu com o punho na mesa enquanto falava. - É evidente que você tem planos para ele, mas quaisquer que sejam, saiba que não vou permitir!

- Cale-se, Gabriel! - interveio Javanne, ríspida. - Mikhail pode ser aproveitado de uma maneira, e sei qual é. Regis, quero que você mande Mikhail ocupar o lugar de Lew no Senado. Ele sempre desejou viajar pelas estrelas, e agora seria uma ocasião perfeita. Não podemos permitir que um Aldaran nos represente no Senado... eles não merecem a menor confiança, e você sabe disso. Tenho certeza de que Lew fez o que julgou melhor, mas estava enganado.

A expressão de Mikhail era uma combinação de alarme e raiva. Margaret não o culpava por isso. Falara com ele sobre o esquema de Javanne, mas nenhum dos dois dera maior credibilidade. E ele não queria deixar Darkover agora, como Margaret bem sabia. Era muito triste, refletiu ela, sonhar com a viagem pelas estrelas durante toda a sua vida, mas só ter a oportunidade quando não mais queria isso. Compreendia agora que Javanne e Gabriel achavam que haviam perdido Mikhail há muito tempo, para as idéias Terranan, assustadoras e perigosas, mas mesmo assim encorajadas por Regis. Ela tentou não se sentir assustada ou triste com a perspectiva. Mas conhecia-o bastante bem, a esta altura, para saber que ele partiria, se Regis assim quisesse. Mikhail poria Darkover à frente de sua felicidade pessoal, pois era esse tipo de homem. E ela o amava por isso, concluiu Margaret, mesmo sabendo que sua vida seria arruinada, no momento mesmo em que começava.

- Não! - Regis balançou a cabeça. - Isso não combina com meu plano. Mikhail não tem a experiência necessária para ser um Senador. Herm Aldaran continuará no cargo. Mandei-o para a Câmara dos Deputados há seis anos com a intenção de que ele um dia tomasse o lugar de Lew. É verdade que eu não esperava que fosse tão cedo.

- Mas isso é um absurdo! - protestou Dom Gabriel. - Nunca aprovei essa indicação, e continuo a não aprovar! Acho que você perdeu o juízo, Regis!

Regis manteve o controle e respondeu com toda a calma, numa atitude extraordinária:

- Não, não perdi. Tomei a decisão depois de muita consideração, porque Herm é um político hábil e compreende o que precisa ser feito para proteger nosso mundo. - Ele fez uma pausa, respirou fundo, e olhou para Lady Linnea, em busca de apoio. - E tem mais: é minha intenção convidar os Aldarans a voltar ao Conselho do Comyn num futuro próximo. Não podemos continuar divididos, quando precisamos de todos os nossos recursos para manter Darkover intacto!

Várias vozes se elevaram em protesto, a mais alta sendo a de Dom Gabriel:

- Ficou louco? Ninguém jamais sentará num Conselho ao lado de um maldito Aldaran... nem eu, nem ninguém!

- Não diga bobagem. o mal que os Aldarans causaram em Darkover aconteceu há várias gerações. Devemos curar a ferida, em vez de deixá-la aberta e sangrando. Já teremos inimigos suficientes entre as forças expansionistas para nos manter ocupados, sem precisar de outro espreitando em nossas costas! Com os Aldarans aqui, podemos ficar de olho neles!

- Se imagina que pode me forçar a participar dessa loucura, quero que saiba que está completamente enganado - declarou Dom Gabriel. - Você não tem mais condições de guiar Darkover, Regis. Dani é muito jovem para assumir suas responsabilidades... mas é preciso designar outro regente.

Ele empinou os ombros, estufou o peito e acrescentou:

- Com a orientação de homens mais velhos, como eu, tenho certeza... Dyan Ardais agitou-se em sua cadeira. Estendeu a mão para o cabo de sua pequena espada.

- Essas palavras parecem bem próximas da traição aos meus ouvidos, Dom Gabriel - disse o jovem, surpreendendo muitos dos presentes. – Sou leal a Regis, Hastur e Darkover. Não ficarei sentado aqui em silêncio, deixando-o falar desse jeito.

- Cale-se, garoto! Só está interessado nos interesses de Mikhail. Sei disso, mesmo que você não saiba. Ele o enfeitiçou, como faz com todo mundo. Sei que é um homem perigoso, não merece a menor confiança. Mikhail pensa demais!

- E é exatamente isso de que Darkover precisa... homens que pensam. o rosto de Regis estava vermelho de raiva, mas a voz continuava calma e controlada. Por trás dele, Danilo estava tenso, pronto para se adiantar em defesa de Regis. Os guardas na porta também se mantinham alerta. Margaret se perguntou se algum sangue já fora derramado antes naquela sala. Torceu para que o sangue do tio não fosse o primeiro. Um olhar para o rosto de Mikhail revelou que ele pensava a mesma coisa, que se angustiava ao ver o pai e o tio brigando daquela maneira. Se não fosse tão grave, se não houvesse tantas espadas e punhais na sala, seria ridícula a idéia de dois homens na casa dos cinqüenta anos se metendo numa briga. Mas o caso era sério, e ela sabia disso.

Mais ainda, Margaret sabia que se encontrava no meio da confusão. Como herdeira do Domínio de Alton, não era mera observadora, mas uma participante de um jogo que não entendia direito. E era um jogo mortal, a julgar pelas expressões dos homens. Ela não podia mais continuar sentada em silêncio, passiva. Lançou um rápido olhar para Lew, que acenou com a cabeça, como se estivesse acompanhando seus pensamentos, embora isso fosse impossível naquela sala.

- Sei que não me cabe falar, mas...

- Então fique calada! - disse Javanne, ríspida.

- Não, não vou ficar. Primeiro, como pesquisadora treinada na universidade, devo dizer que estou convencida de que Regis ainda não revelou todos os seus planos. Teorizar sobre dados incompletos é sempre uma insensatez.

- Olhem só como ela fala! - Dom Gabriel tinha o rosto tão vermelho que as orelhas estavam roxas. - Uma pesquisadora treinada na universidade! Essa mulher não conhece o seu lugar, que é o de fazer o que mandarem, e permanecer calada durante o resto do tempo. Ela não tem condições de herdar o Domínio de Alton! É muito Terranan, muito independente! Ora, ela é pouco melhor do que uma Renunciante!

Por algum motivo, esse último comentário, que Gabriel obviamente acrescentara como um supremo insulto, fez com que Margaret desatasse a rir. Todos a fitaram, até mesmo Mikhail, como se ela tivesse perdido o juízo.

- Eu me orgulharia de ser uma Renunciante, se não fosse pelo fato de que não desejo ser.

Ela compreendia melhor o tio agora. Gabriel tinha um tremendo sentimento de inferioridade, por razões que ela ignorava. Vivera durante décadas com uma mulher autoritária, que só raramente fazia o que ele queria. Margaret percebeu que ele achava o seu comportamento muito parecido com o da esposa. Por isso, mais do que qualquer outra coisa, queria controlá-la, quanto menos não fosse porque não podia controlar Javanne, nunca fora capaz. Isso explicava sua oposição imediata a qualquer união entre ela e Mikhail, pois ele também não podia controlar o filho mais novo.

- Não pode ter as duas coisas, tio - continuou ela, tão calma quanto podia. - Ou eu sou importante, ou não sou. Não posso ser importante apenas para atender a seus interesses, e ficar calada no resto do tempo.

Gabriel olhou para Lew.

- A culpa é sua! Lew sorriu.

- É bem provável. Não tentei fazê-la mansa e submissa... sempre houve muita coisa de mim e de sua mãe nela para que isso fosse possível. - Havia uma profunda emoção em sua voz, como se fosse capaz pela primeira vez de pensar em Thyra sem dor ou arrependimento, como se descobrisse que ela fora algo mais do que a mulher que lembrava. - Mas creio que ela tem razão. Regis tem mais alguma coisa a dizer. E confesso que estou ansioso por ouvir.

- Eu também - acrescentou Dyan, claramente disposto a ficar do lado de Lew Alton.

- Até agora, não ouvi nada que me perturbe - declarou Francisco Ridenow. - Sendo assim, espero que Lorde Regis continue em suas revelações.

Lady Marilla limpou a garganta.

- Como Dom Gabriel, não posso gostar da perspectiva de qualquer Aldaran sentado nesta sala. Mas também compreendo a sabedoria de mantê-los sob a nossa vista, em vez de permitir que façam o que bem quiserem em nossas costas. Tenho pensado muito a respeito, desde que Marguerida me perguntou sobre eles há algum tempo. Concluí que talvez eu tivesse um preconceito pelo passado... que não conheço essas pessoas, e que talvez não sejam os monstros que imaginamos.

- Este não é um Conselho pleno, e por isso nada do que dissermos terá importância. - Javanne fungou, lançando um olhar ostensivo de desprezo para Lady Marilla. - Há muita pompa, mas não vai dar em nada.

Ela parecia muito segura, acreditando que poderia influenciar o irmão em particular.

- É muita deslealdade de sua parte, Javanne - respondeu Regis, secamente. - Seria chocante, se eu não a conhecesse tão bem.

Ele fez uma pausa, suspirando.

- A decisão nunca foi o meu forte, pois sempre vejo muitas possibilidades. Mas tenho pensado nessas questões por muito tempo. Não creio que possa agora ser influenciado por argumentos. Até mesmo minha irmã vai admitir que levei muito tempo para me decidir. Mas, agora que o fiz, defenderei minhas opções.

Ele fez outra pausa, olhando para Linnea, em busca de apoio, antes de continuar:

- Ainda há vários problemas a serem resolvidos. Um deles é o que fazer com o Domínio de Alton, uma questão fundamental. o problema não é termos poucos pretendentes legítimos, mas o contrário, um excesso. Dom Gabriel acha que tem um direito legítimo, pois ocupa a posição há muitos anos. Não sei qual é a posição de Lew. Mas como ele voltou, sua pretensão é a mais válida.

- Não tenho o menor desejo de reivindicar o Domínio de Alton. Tenho uma esposa muito doente, e tudo que quero é ajudá-la a recuperar a saúde, não sentar em reuniões do Conselho até ficar com o traseiro dormente. Tive o suficiente disso quando servia no Senado, para durar várias vidas.

A mão única de Lew deslizava sobre a mesa, para a frente e para trás, como se ele tentasse pegar alguma coisa que se esquivava.

- E o direito de Marguerida?

- Ela é minha filha, minha única criança viva. E como não designei Gabriel como meu herdeiro antes de partir, considero que ela é a pessoa com mais legitimidade para assumir o Domínio.

- Ela não segue os nossos costumes! - berrou Gabriel. - Deve renunciar ao Domínio para que fique em minhas mãos, ou nas mãos de meus filhos! Não permitirei qualquer outra coisa!

Margaret virou-se para tia Javanne, deparando com um olhar firme e furioso. Devia ter sido difícil para ela, durante todos aqueles anos, estar casada com Gabriel, tentando ser uma darkoviana decente, quando tinha tanta determinação e ambição. Javanne devia ter odiado ser capaz apenas de manipular o marido, em vez de ocupar uma posição de poder. E Mikhail era muito parecido com a mãe sob certos aspectos, adivinhou Margaret. Ele também não podia ser manipulado, controlado ou pressionado a fazer qualquer coisa.

Ela olhou para Mikhail, que lhe sorriu, como se soubesse de seus pensamentos, apesar dos amortecedores na sala. Subitamente, a questão do Domínio de Alton parecia irrelevante. Tio Gabriel era um bom homem, à sua maneira lenta e obstinada, cuidava muito bem das terras. Por outro lado, ela compreendia que tinha uma responsabilidade, um dever a cumprir. o pai jamais lhe pedira qualquer coisa, mas era evidente que ele queria que a filha herdasse a propriedade. Margaret sabia que não o decepcionaria. Apenas tinha medo de que o custo fosse algo que não desejava pagar. Nunca imaginei que haveria algum homem que seria uma luz em minha vida, pensou ela. Agora que há, ele não pode me ter, nem eu a ele. A vida não é justai

- O ponto crucial é que o povo terá... como exige... um novo Conselho do Comyn. Por isso, a questão dos titulares dos Domínios deve ser acertada, definida com clareza. Caso contrário gastaremos toda a nossa energia discutindo quem é quem, enquanto os problemas são postos de lado. Deixaríamos de servir ao povo de Darkover tão bem quanto deveríamos. Posso ser o Regente, mas também sei que sou um servidor do povo que governo... e nunca me esqueço disso!

A voz de Regis ressoou pela sala, atraindo a atenção de todos. Houve um silêncio chocado. Dom Gabriel dava a impressão de que ficara sem fôlego. Javanne, por outro lado, assumiu uma expressão pensativa. Margaret não teve dúvidas de que ela procurava meios de tirar proveito da nova situação política.

- Servir o povo?

Gabriel dava a impressão de que havia uma armadilha nisso. Regis ignorou o cunhado.

- Primeiro entre os Domínios, temos o de Elhalyn de Hastur. Mas as pessoas nele são muito jovens para governar com sabedoria e não têm qualquer experiência. Vão precisar de orientação. Danilo, meu filho com Linnea, será o herdeiro de Hastur de Hastur, mas também ainda é muito jovem para integrar o Conselho.

Ele fez uma pausa. Margaret percebeu algo em seu rosto, uma sombra de dúvida ou preocupação. Lembrou o jovem tenso que os recebera no retorno a Thendara. Notou que Regis tomara o cuidado de não declarar que o filho mais velho era seu herdeiro, adiando isso para um futuro vago. Ela se perguntou se não haveria alguma coisa errada com Danilo Hastur.

- Mikhail é meu herdeiro seguinte, depois de Danilo. Tenciono designá-lo para a Regência do Domínio de Elhalyn. Seu bom senso e educação terráquea serão úteis nessa missão, Mikhail, até termos certeza de que o filho mais velho da irmã de Derik tem estabilidade mental. Não podemos correr o risco de ter outro Derik. Mais um ano e ele terá idade para governar. Não vamos, no entanto, falar em coroação por enquanto.

Javanne olhava aturdida e irritada para o irmão. Margaret não a culpava por isso. Parecia que ele estava disposto a abdicar de sua posição em favor de um jovem que nunca fora treinado para governar. Era um movimento ousado e perigoso, renunciar a seu poder de maneira tão repentina. Mikhail estava atordoado.

- Senhor da Luz! - balbuciou ele. - Eu, um Regente! Regis ouviu-o e sorriu.

- Nada mais apropriado. Sua avó foi Allana Elhalyn.

- Nunca pensei nisso - murmurou Mikhail.

- Por que Mikhail, e não Gabriel ou Rafael?

Javanne tinha as faces vermelhas. Olhou com a maior raiva para o irmão, depois para o filho, como se fossem dois monstros.

- Mikhail foi treinado para governar e pode dar a orientação correta.

Gabe e Rafael são bons homens, minha irmã, mas não são apropriados para a missão que tenho em mente.

Mikhail parecia aflito, quase tão transtornado quanto a mãe.

- Fiz um juramento de Hastur, Regis. Se assumir o Domínio de Elhalyn, isso altera tudo. Terei de transferir minha lealdade para eles e... - Mikhail tentou dar de ombros. - o filho de Priscilla, Alan, terá idade suficiente para ser coroado em breve. Mas, para ser franco, ele é um pouco esquisito. É o segundo filho, Vincent, que...

Como um sonâmbulo, Mikhail saiu de trás da cadeira de Dyan. Foi até uma cadeira quase na frente de Regis, com a árvore prateada de Hastur, mas com uma coroa por cima. Sentou ali.

- Agora que não quero mais a coroa que Regis me prometeu, tenho de assumir o fardo de uma coroa que nunca procurei - sussurrou ele.

Essa mudança da situação era desconcertante para Margaret. Ela não entendia por que Regis se mostrava tão empenhado em restaurar os reis tradicionais de Darkover. Afinal, o pouco que ouvira a respeito a levava a pensar que era uma família muito estranha. Também não sabia por que ele tinha de designar Mikhail, a não ser pelo fato de que sua avó fora uma Elhalyn. Por essa lógica, Javanne seria também uma candidata ao papel de Regente... e adoraria. Talvez houvesse algum costume que impedia uma mulher de se tornar Regente. Gabriel interveio:

- Isso é um absurdo! Mikhail vai encher a cabeça de Alan com uma porção de besteiras dos Terranan, se é que o garoto já não está corrompido!

- Gabriel, você ainda vive no passado - declarou Lew. - Temos que tentar nos adaptar, nós dois. O Darkover antigo em que crescemos desapareceu. Para sempre, eu desconfio. Nem mesmo a restauração da linhagem de Elhalyn no trono o. trará de volta. Regis apresentou várias propostas extraordinárias. Acho que precisamos de tempo para digeri-las. Sugiro que adiemos a reunião, dando tempo para que os ânimos se acalmem.

- Pode sugerir qualquer coisa que quiser, mas eu me oporei a tudo isso... Aldarans no Conselho do Comyn, Mikhail representando Elhalyn! Levarei o problema à Corte, e eles vão...

- Eu não recomendaria que se opusesse, Dom Gabriel - declarou Regis, em tom formal, lançando um olhar para Margaret. - Estou pensando apenas nos melhores interesses de Darkover, e qualquer oposição só servirá para nos deixar vulneráveis aos esquemas de nossos inimigos. E, se você fizer isso, vou afastá-lo do Conselho.

Não havia como se equivocar com o tom de Regis. Houve um prolongado silêncio na sala, enquanto todos digeriam sua ameaça. Margaret olhou de um rosto para outro, tentando avaliar a disposição de cada um. Mas, acima de tudo, seus olhos foram atraídos para Mikhail. Pelo menos ele não vai deixar Darkover, pensou ela.

28

Gabriel saiu furioso da Câmara de Cristal, quase derrubando um dos guardas ao passar pela porta. Javanne começou a segui-lo, mas o irmão segurou-a pelo pulso, com firmeza.

- Precisamos conversar, irmã - disse ele, muito sério. - Devemos falar sobre lealdade.

Javanne parecia surpresa agora, como se Regis fosse um estranho total.

- Lealdade?

- Isso mesmo. Venha comigo.

Regis levantou-se, passou o braço pelo de Javanne, e encaminhou-se para a porta. Danilo teve de dar um passo rápido para trás, a fim de não ser atingido pela cadeira. Foi atrás de Regis. Lady Linnea também se levantou, devagar, com uma expressão solene. Os quatro deixaram a sala.

- Não era bem o que eu esperava, quando Regis me convidou para vir até aqui - comentou Francisco Ridenow. - Pensei que seria uma reunião insípida.

Ele riu e virou-se para Lew.

- E sempre assim acalorada? Lew balançou a cabeça.

- Pode ter certeza de que esta foi até um tanto monótona em comparação com outras reuniões anteriores.

- Hum... - Ele olhou para Mikhail, que tinha a cabeça nas mãos, depois para Lady Marilla e Dyan Ardais. - Deu-me um enorme apetite. E muita coisa em que pensar. Os Aldarans na Câmara de Cristal? Quem poderia imaginar?

- Eu poderia - declarou Dyan Ardais. - E mesmo?

- Sei o que eles fizeram no passado, os acordos com os Terranan, mas sempre achei que era uma péssima idéia deixá-los tramarem novas insídias em nossas costas.

- Há uma certa sabedoria nesse argumento. - Francisco estudou Dyan e Lady Marilla, depois tornou a olhar para Mikhail. - Mas tenho muita fome para pensar direito. Nada mais será discutido hoje, não é mesmo? Sendo assim, eu diria que devemos sair e procurar comida e vinho... talvez muito vinho.

Apesar do clima de tensão e incerteza na sala, todos riram. Dyan ajudou a mãe a se levantar. Francisco também se levantou. Foram até a porta, pararam ali por um instante, para ver se os três últimos ocupantes os seguiriam, depois saíram.

- Ele parece ser do tipo jovial - comentou Margaret com o pai. -Podemos sair daqui? Esta sala me deixa arrepiada. Vamos, Mikhail... não continue sentado aí como se o fim do mundo tivesse chegado.

Ela falou com mais disposição do que sentia, pois não podia imaginar por que Mikhail ficara tão perturbado. Quando o conhecera, ele expressara sua frustração por ser apenas um paxman, embora tivesse sido treinado para ser um rei. Agora que se tornaria Regente de Alan Elhalyn, ou um de seus irmãos menores, ele não parecia nem um pouco satisfeito. Mikhail levantou os olhos e respirou fundo para se controlar.

- Você tem razão. O mundo não chegou ao fim... apenas virou pelo avesso! Regis nunca me deu qualquer indicação de seus planos. Isso muda tudo, e não tenho certeza... Ora, deixe para lá! A mãe nunca vai permitir...

Lew fitou Mikhail nos olhos.

- Acho que devemos nos retirar agora.

Ele lançou um olhar para os dois guardas, ainda parados na porta, tentando dar a impressão de que não ouviam nada, embora todos soubessem que as conversas ali seriam conhecidas nos alojamentos em poucas horas.

- Há um pequeno terraço de que eu gostava bastante, quando era mais jovem - acrescentou Lew. - Vamos sentar ali, apreciar o sol, e desanuviar nossas mentes.

- Está certo. - Mikhail levantou-se. Olhou para sua cadeira por um longo momento. Sacudiu a cabeça. - Meu pai nunca me perdoará por isso... mas nunca mesmo!

- Por quê? - Margaret foi até o primo. - Não sei por que isso deveria deixá-lo zangado... a não ser o fato de que ele fica transtornado com qualquer coisa em que não pensou. Um de vocês pode me explicar por que essa decisão é tão terrível? Você disse que queria algo mais importante do que ser um paxman, Mik... e me parece que é muito importante o que seu tio lhe pediu para fazer.

Os três deixaram a Câmara de Cristal. Lew seguiu na frente pelo corredor, até um pequeno terraço do qual se via a cidade de Thendara, brilhando avermelhada ao sol do final da tarde. Margaret esticou os braços por cima da cabeça, respirou fundo, contente por se encontrar ao ar livre.

- Regis reformulou tudo de uma maneira que nunca previ, nem Mikhail, o que nos deixou surpresos - comentou Lew. - Ela não é linda?

- Quem? - perguntou Margaret.

- Thendara. Já conheci muitas cidades, chiya, mas a vista de Thendara continua a ser a predileta. Nunca pensei que voltaria a me postar aqui para contemplá-la.

Mikhail inclinou-se sobre a balaustrada, um pouco da tensão se dissipando, o que se podia perceber pelo relaxamento dos ombros. Ainda não parecia feliz, mas dava a impressão a Margaret de estar menos angustiado, o que era suficiente, por enquanto.

- Não quero uma coroa ou um cetro, ir ao mercado para todos me fazerem reverência.

- E o que isso significa? - indagou Margaret.

- Regis me disse uma vez que, se eu desejasse ter minha própria vida, deveria ter nascido de outros pais. - Ele riu desse comentário irônico. -Não compreendi nessa ocasião. No fundo, ninguém escolhe sua vida. Não é mesmo, tio Lew?

- E possível. Não escolhi muitas coisas em que me tornei... ou pelo menos sempre me pareceu que fui forçado a situações que não eram exatamente o que eu teria escolhido. Isso, acredito, é uma visão posterior. Quando fiz as coisas, pareciam certas na ocasião. Mas sei como você se sente agora, Mikhail.

- Pois eu não sei! - declarou Margaret, ríspida, começando a perder a paciência.

Lew sorriu para ela.

- Os Elhalyns foram nossos reis por várias gerações, mas o poder por trás do trono sempre foi um Hastur. o que Regis fez, ao designar Mikhail para a Regência de Elhalyn, foi torná-lo fazedor de rei. o que significa, em minha opinião, que o jovem Danilo pode ser o herdeiro de Regis, mas o verdadeiro poder estará nas mãos de Mikhail. Ele não tem certeza se são mãos capazes, mas acredita que são. É uma manobra ousada, e tenho de confessar que a admiro muito.

Mikhail soltou uma risada estridente.

- É fácil para você dizer isso... não foi sua vida que acabou de ser desarrumada por completo! - Mikhail virou-se para Margaret. - Minha vida não mais me pertence. Portanto, não posso lhe dizer o que eu deveria ter dito antes... que gostaria que pudéssemos casar. Seria então uma rainha, embora eu deva dizer que para mim já é mais do que isso!

Margaret sentiu o rosto pegar fogo. Olhou para o pai, mas ele parecia a quilômetros de distância, absorto em seus pensamentos.

- Acho que eu não seria uma boa rainha, Mik. Violaria as regras durante todo o tempo. Mas gostaria que você tivesse falado, porque... seria muito importante para mim. Devo presumir que a Regência de Elhalyn faz uma diferença?

Ela reprimia seu desapontamento com a maior dificuldade.

- No passado teria feito - respondeu Lew. - Agora, não tenho certeza. Como a titular do Domínio de Alton, uma aliança com o Regente de Elhalyn seria uma combinação extremamente poderosa, que os outros Domínios encarariam com desconfiança.

- E se você reivindicasse o Domínio, deixando-me fora disso? Não quero nenhum Domínio!

- Isso, eu acho, não atenderia aos melhores interesses de Darkover.

- Estou entendendo. Devo pôr de lado minha felicidade pessoal pelo bem do planeta?

Margaret fervia de raiva e rebelião agora, sentindo-se como fora durante a adolescência. Lew riu, estendeu a mão, acariciou seu rosto, gentilmente.

- Não, chiya, eu não lhe pediria para fazer isso.

- Então o que é?

- Qualquer pessoa que não seja idiota pode perceber que você e Mikhail estão apaixonados, Marja. E quero que os dois sejam felizes, porque será melhor para Darkover também, não apenas para vocês.

- Minha mãe e meu pai nunca permitiriam - murmurou Mikhail.

- Hum... Se meu palpite é correto, Regis está neste momento usando todo o seu charme para persuadir Javanne de que suas idéias são corretas. o poder em Darkover está sendo redistribuído. Haverá muita resistência, como não poderia deixar de ser. Mas creio que, a longo prazo, será encontrada uma solução satisfatória para todos. Isto é, talvez não para Dom Gabriel.

- Está me dizendo para ser paciente, pai?

- Isso mesmo. Deve ir agora para uma Torre, Arilinn ou Neskaya, a fim de receber treinamento.

- Mik diz que isso leva anos e anos. Quando eu acabar, serei uma velha toda enrugada. E não é o que quero. Todos parecem empenhados em decidir minha vida sem me consultar. A única pessoa em Darkover que já me perguntou o que quero fazer foi Mikhail.

- Muito bem, Marja, o que você quer fazer?

Lew movimentou o braço sem mão num pequeno gesto de afeição.

- Quero... casar com Mikhail, se ele me aceitar.

Claro que aceito! Não há nada no mundo que eu queira mais do que isso! Então está decidido, não é?

Não é tão simples assim, Marguerida. Eu bem que gostaria que fosse. Por Aldones, como eu amo você!

- Mais nada? - insistiu Lew.

- Claro que quero mais coisas! o nível de analfabetismo em Darkover é imperdoável. Não é saudável, não é seguro. As pessoas aqui precisam ser mais informadas sobre a Federação, sobre o perigo de pessoas como os expansionistas. Enquanto o Comyn tomar todas as decisões por um povo desinformado, creio que haverá um risco para Darkover.

- Falou muito bem, filha. E está absolutamente certa. Gostaria de abrir escolas, ou apenas acabar de repente com o nosso sistema feudal?

Lew caçoava agora. Margaret sentiu-se dividida entre a vontade de se divertir e o desejo de sacudi-lo bruscamente.

- Não tenho a menor intenção de virar pelo avesso a cultura darkoviana. Mas, se sou mesmo herdeira de um Domínio, quero que Darkover tenha a posição mais forte possível diante da Federação. Não quero definhar num papel de mera esposa, ou terminar minha vida como uma intrigante envelhecida, que nem Javanne!

- Ela ficaria profundamente magoada com essa avaliação - comentou Lew, rindo. - E você tem toda a razão. Devemos preparar Darkover para o futuro... sem descartar nossos costumes de qualquer maneira. Tenho orgulho de você, filha, mais orgulho do que jamais pensei que poderia ter.

Margaret sentiu que todo o ar era expelido de seus pulmões com esse elogio. Olhou para Lew, as lágrimas se formando em seus olhos. Ele sorria.

- Obrigada. Esperei por muito tempo para ouvir isso. Nunca soube o quanto precisava ouvir até que você disse.

E eu nunca soube o quanto queria dizer que me orgulhava de você... portanto, nós dois estamos satisfeitos. Agora, vou conversar com Dio. Tente persuadir Mikhail a sair de sua depressão. Escolheu um bom homem, Marguerida... um homem que é quase bastante bom para você!

Com isso, Lew virou-se e deixou o terraço. Margaret aproximou-se do primo. Inclinou-se sobre a balaustrada. Os ombros quase encostavam. Gentilmente, ela pôs a mão direita sobre a esquerda de Mikhail, sentindo o calor de sua pele.

- Não se desespere, Mik.

- Estou bancando o tolo, não é?

- Não. Apenas se comporta como qualquer homem que teve o tapete arrancado debaixo de seus pés.

Ele riu.

- Acertou em cheio! Fiquei furioso com Regis por ter anunciado tudo de repente... sem me perguntar primeiro!

Mikhail entrelaçou os dedos com os dela, como Lady Linnea fizera com Regis na Câmara de Cristal, uma hora antes. Margaret lembrou como sentira inveja daquele pequeno gesto de ternura e intimidade. Não se sentia mais invejosa, apenas contente por ficar ao lado de Mikhail, contemplando a cidade. Ficaram em silêncio por um longo tempo, sem se mexer.

- Acha que essa confusão acabará sendo resolvida? - perguntou ele, ao final.

- Se meu pai puder ajeitar tudo, tenho certeza. Se ele nada puder fazer, sempre resta a fazenda de cogumelos.

Mikhail virou-se e abraçou-a, sua respiração esquentando o rosto de Margaret. Levantou a mão, enroscou num dedo uma mecha de cabelos vermelhos caída sobre a testa de Margaret.

- Quero que saiba que me sinto feliz por ter resistido a todas as moças atraentes de Darkover. Eu a amo muito.

Margaret sentiu-se sem fôlego outra vez, gelada por um instante. A intensidade dos sentimentos de Mikhail era assustadora, depois de uma vida inteira de isolamento deliberado. Ela olhou para as ruínas enegrecidas da Torre Velha, onde Ashara a capturara, vinte anos antes. Depois, tornou a olhar para Mikhail. o frio desapareceu, como se o último gelo em seu coração se derretesse sob o sol de Darkover. Estava em casa finalmente; o exílio que jamais soubera que sofria acabara para sempre.

- Também amo você.

Mikhail Hastur fitou-a nos olhos, depois inclinou-se e comprimiu seus lábios contra os dela. Foi um beijo terno, ardente mas gentil, atingindo o âmago de Margaret. Ela sabia que nunca teria outro momento tão maravilhoso quanto aquele. Independente do que pudesse acontecer, sempre teria aquele momento, o que a deixava contente.

 

                                                                                Marion Zimmer Bradley  

 

                      

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