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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CANÇÃO DO RIO - P.2 / Sue Harrison
CANÇÃO DO RIO - P.2 / Sue Harrison

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

CANÇÃO DO RIO

Segunda Parte

 

                   ALDEIA DE RIO PRÓXIMO

Ghaden ouviu o ruído das botas do assassino, o tilintar dos chocalhos de casco de caribu como aqueles que as bailarinas usavam nas festas. Abriu a boca para gritar, mas não teve palavras, nada lhe saiu a não ser um gemido silencioso que mais parecia o vento do que a sua voz. De repente, um cão ladrou, foi no encalço daquele que tinha a faca e, em vez do tilintar, Ghaden ouviu a voz de Água Castanha, alta e irritada.

Yaa, põe esse cão lá fora.

Ghaden respirou fundo. Estivera sonhando. Estava a salvo na cabana de Água Castanha. Yaa desembaraçou-se dos seus cobertores de pele de lebre. Ghaden sentiu o calor do corpo dela afastando-se do seu e ouviu-a ralhando em voz baixa com Mordedor quando abriu a aba para deixá-lo sair. Pouco depois, sentiu o cão voltar. Yaa aconchegou-se a seu lado nas esteiras da cama, trazendo com ela uma corrente de ar frio, o cheiro fresco lá de fora e o zumbir dos mosquitos.

Mordedor deixou-se cair aos pés de Ghaden. O rapaz sentou-se e acariciou a cabeça do animal, deixando que ele lhe lambesse a mão com a língua quente. Durante muito tempo, Ghaden ficou sentado às escuras, afagando a cabeça do cão. Quando por fim se deitou, adormeceu facilmente e, nessa noite, não voltou a sonhar.

Ghaden abanou a fiada de contas de osso e depois bateu no chão da cabana com um pau até Mordedor começar a latir.

O rapaz latiu também, fazendo a expressão mais feroz de que foi capaz e tentando mostrar a Mordedor que tinha de se preparar para a luta.

Abanou as contas mais uma vez e depois atirou-as para o chão, rosnou-lhes e bateu-lhes com o pau. Mordedor saltou sobre as contas, abocanhou-as, atirou-as para trás da cabeça e latiu.

Parecia um latido feroz, mas Mordedor não tinha um aspecto ameaçador. Era como se estivesse brincando. Era um cão que parecia estar sorrindo, se é que os cães sabiam sorrir. Latir seria suficiente para assustar o assassino se ele voltasse outra vez, fazendo tilintar os chocalhos de osso?

Ghaden e Mordedor faziam tanto barulho que o rapaz nem ouviu Água Castanha entrar na cabana, nem reparou que ela estava atrás dele senão quando a mulher o agarrou pelo ombro. Ficou tão assustado que a princípio julgou tratar-se do assassino. Gritou e voltou-se, com o pau na mão, pronto a bater. Ao mesmo tempo, Mordedor atirou-se a Água Castanha, de dentes arreganhados. De repente, Yaa aproximou-se, com as mãos no pescoço de Mordedor, com os dedos enfiados no pêlo do cão, afastando-o de Água Castanha.

Quando Ghaden percebeu que fora Água Castanha que o agarrara, deixou cair o pau e agachou-se, protegendo a cabeça com as mãos.

O que estavas fazendo? perguntou ela, levantando a mão, mas sem lhe bater.

Ensinando o Mordedor respondeu Ghaden com uma voz débil, tentando sufocar um soluço que ameaçava entrecortar-lhe as palavras.

Estás fazendo tanto barulho que Neve Preguiçosa veio ver o que se passava. Ela tem o nariz comprido. Não precisamos dele cá dentro da nossa cabana. Brinca sem fazeres barulho disse Água Castanha, baixando a mão.

A mulher olhou para Yaa.

Onde estavas?

Disseste-me para ir buscar madeira.

Bem, onde está ela?

Lá fora.

Traz para dentro, disse ela a Yaa. Quando acabares, leva o rapaz e vai fazer qualquer coisa com ele. Creio que já tem forças para passar mais tempo lá fora. Leva também o cão.

Yaa saiu e Ghaden encolheu-se para fugir da mão pesada de Água Castanha, mas ela limitou-se a apontar com o queixo para as esteiras enroladas da cama e ordenou:

Senta-te até Yaa acabar o que tem para fazer. Ghaden aproximou-se do cobertor da sua cama e sentou-se. Estava tão bem enrolado que parecia um toro grosso e felpudo. Mordedor sentou-se ao lado dele e Ghaden começou a acariciar as orelhas do cão. Ia a colocar o dedo na boca, mas depois arrependeu-se. Porque havia de dar a Água Castanha motivos para gritar?

Yaa levou tempo buscando a madeira. Sabia que Água Castanha iria para as lareiras da comida dentro de pouco tempo e então ela e Ghaden poderiam ficar com a cabana só para eles. Mas Água Castanha também parecia não estar com pressa. Yaa já levara quase toda a lenha para dentro quando a mulher saiu. Pegou outra mão-cheia e viu Água Castanha desaparecer na direção das lareiras da comida. Depois entrou.

Ghaden estava sentado com um braço por cima de Mordedor. O cão já atingira quase todo o seu tamanho, apesar de ter ainda a flacidez de um filhote. Yaa reparou que, assim que Água Castanha saíra da cabana, Ghaden colocara o dedo na boca.

Então, Ghaden, Água Castanha diz que podes sair. Há muito tempo que não brincas com os teus amigos. Não queres ir à procura de Peixe Pequeno e de Lança?

Não.

Porquê?

Ghaden encostou a cabeça em Mordedor.

O Mordedor também pode ir?

Se ele se afastar dos outros cães.

Ele afasta-se.

Porque vocês estavam fazendo tanto barulho? Ghaden tirou o dedo da boca e sorriu.

Eu estava ensinando o Mordedor a ser feroz.

Com isto?

Yaa apanhou a fiada de contas do chão. Agitou-as e Mordedor rosnou.

Ghaden riu e abraçou o cão.

O velho dos ossos não nos apanhará, declarou ele.

Quem é o velho dos ossos? Ghaden enfiou o dedo na boca.

É segredo disse ele, quase imperceptivelmente. Não posso dizer-te.

Ghaden sentiu-se pequeno ao chegar lá fora. Mais pequeno do que era dentro da cabana. E a aldeia parecia-lhe estranha, demasiado silenciosa. Quase todas as pessoas estavam no pesqueiro, mas Água Castanha resolvera não ir nesse ano. Dizia que era uma longa caminhada para ela. Ele ainda não tinha forças e ela obrigava-o quase sempre a ficar lá dentro. O Verão não fora bom.

Até Yaa o tratava como se ele fosse um bebê. Quando saíam, ela besuntava-lhe a cara com gordura de ganso para afastar os insetos e obrigava-o a calçar as botas de pele de caribu, apesar de ele querer ir descalço como ela.

Ghaden foi atrás dela até aos limites da aldeia. Pararam numa clareira junto da margem íngreme que descia até ao rio. Os rapazes mais velhos estavam jogando com uma bexiga de caribu que passavam uns aos outros, tentando evitar que ela tocasse no chão. Ghaden observava-os, extasiado. Tanto ele como Yaa tinham que segurar Mordedor para ele não se intrometer no jogo.

Vários dos rapazes mais pequenos foram ao encontro de Ghaden, tentando convencê-lo a ir brincar, mas Yaa não podia deixá-lo ir. Ghaden virou-lhes as costas e Primeiros Pés, um rapaz com cerca de cinco Verões, começou a chamar-lhe nomes.

Olha que o meu cão te morde! gritou Ghaden Mordedor arreganhou os dentes, mas Yaa tapou-lhe o focinho com a mão. Depois, levou Ghaden e o cão para as lareiras da comida, onde a mãe deu a ambos um pedaço de carne.

Queres voltar para a cabana? perguntou Yaa a Ghaden.

Não.

Queres ficar vendo os rapazes?

Não.

Yaa ajoelhou-se em frente de Ghaden. Às vezes, quando ela queria que ele lhe respondesse, tinha mais sorte se o olhasse bem de frente.

Diz-me o que queres fazer. Ele virou a cara para o lado.

Está bem. Vamos para a cabana. Tu podes ficar lá com Mordedor. Eu vou encontrar as minhas amigas. Tu podes ficar sozinho.

Ele agarrou-lhe a mão.

Não, Yaa. Fica comigo.

Já sei o que faremos, disse Yaa, pensando em voz alta. Há um lugar onde eu te quero levar.

O Mordedor pode ir?

Se se portar bem.

Ele porta-se sempre bem.

Ghaden, este local é secreto. Não podes dizer a ninguém, declarou ela devagar.

Ghaden olhou-a fixamente.

Não direi.

Como a maior parte das crianças estava no acampamento de pesca, era uma boa oportunidade para ela ir mostrar a sua toca a Ghaden. Não queria que pessoas como Dança-no-Gelo descobrissem o seu esconderijo. O rapaz poderia destruí-lo. Além disso, a grande vantagem de ter uma toca era ninguém saber que ela existia.

Yaa pegou a mão de Ghaden e saiu da aldeia com ele, na direção da latrina das mulheres, e depois virou para um carreiro que ia dar na toca. Levou um dedo aos lábios, ajoelhou-se em frente dos abetos-negros e meteu-se debaixo dos ramos inferiores. Ghaden e Mordedor foram atrás dela. Yaa pegou o pau e enfiou-o na toca. Depois entrou lá dentro de quatro. Adorava a escuridão e o cheiro adocicado da terra. Recuou e empurrou Ghaden lá para dentro. As duas crianças riram ao ver Mordedor rastejando.

Somos raposas? perguntou Ghaden. A idéia fez Yaa sorrir.

Sim, somos raposas. Eu sou a mãe. Tu és o pai e o Mordedor é o bebê.

Ele é o cão disse Ghaden com um ar solene.

As raposas não têm cães disse Yaa.

Nós temos.

Está bem, Mordedor é o cão. Gostas disto aqui? perguntou ela, apontando para o teto da toca. Olha, aposto que quase cabias aqui de pé.

Ele levantou-se mas teve que inclinar a cabeça para o lado.

Quase, disse Yaa.

Gosto respondeu Ghaden em voz baixa. O que fazes quando estás aqui?

Às vezes trago comida.

Tenho fome, Yaa.

Yaa arregalou os olhos, apesar de saber que a escuridão talvez não o deixasse ver.

Acabaste de comer. Ghaden não respondeu.

Às vezes gosto de me sentar pensando em coisas disse ela.

Em que pensas?

Hum, às vezes penso em ti. No que te aconteceu. Yaa sentiu que Ghaden ficara rígido.

Aqui estás bem disse ela. A melhor coisa deste esconderijo é estarmos seguros aqui. Ninguém sabe que ele existe exceto nós. Se alguém tentar apanhar-te, podes vir para cá e estarás em segurança. Digas o que disseres, aqui ninguém pode ouvir-te. É um bom lugar para contar segredos.

Ghaden manteve-se calado durante muito tempo. Por fim, disse:

Eu tenho segredos.

Tens?

Não dizes a ninguém?

Não.

Yaa susteve a respiração, esperando que ele falasse da noite em que Daes fora assassinada.

Ontem à noite tirei comida da panela.

Yaa ficou desapontada, mas lembrou-se de que os grandes segredos não se contavam com facilidade. Era melhor começar pelos pequenos. Riu.

Eu também, disse ela. Ghaden deu uma gargalhada.

Não faças barulho segredou Yaa, mas teve o cuidado de não deixar de sorrir, para Ghaden perceber que ela não estava zangada.

Tens mais segredos? perguntou Yaa.

De repente, Ghaden ficou muito quieto, e Yaa esperou que ele lhe contasse qualquer coisa. Todos os dias, quando ia buscar lenha, mexia as panelas e fazia esteiras, e todas as noites, quando tentava adormecer, pensava no assassino, e perguntava a si própria se ele tentaria atacar Ghaden outra vez. Pensou em Daes e nas pessoas da aldeia que a odiavam ao ponto de a matarem.

Ainda não chegara a nenhuma conclusão. As mulheres da aldeia não tinham sido simpáticas para Daes, exceto talvez a mãe de Yaa, mas só Água Castanha fora ostensivamente má, e Água Castanha encontrava-se na cabana naquela noite; pelo menos estava lá quando Yaa adormecera, e ainda lá estava quando ela acordara de manhã. Por outro lado, porque havia Água Castanha de querer matar Daes? Sem ela, todas as mulheres da cabana teriam mais trabalho para fazer.

Quando Ghaden falou, foi tão baixinho que Yaa quase nem ouviu as suas palavras.

Eu tenho segredos, afirmou ele outra vez. Eu e o Mordedor temos segredos.

E vais contar-me esses segredos? perguntou Yaa.

Hoje não, disse ele.

Eu não conto a ninguém. Prometo.

Hoje não. Um dia destes. Hoje não.

Não me podes dizer quem é o velho dos ossos?

Não.

Não sabes quem ele é?

Não, não sei, disse Ghaden. Depois, acrescentou em voz baixa: Ele tinha uma faca cheia de sangue.

 

                   MAR DE BERING

Durante os primeiros dias de viagem, Aqamdax perguntou a si própria se teria aceitado vir se soubesse do frio, do medo e da fome que iria passar. O chigdax mantinha-a seca, mas, mesmo com um sax quente por baixo, o frio que vinha do mar chegava-lhe aos ossos até lhe doerem os dentes.

Antes de chegarem à aldeia dos Primeiros Homens, Cantador mostrou a Sok como podia alargar o convés do seu iqyax para Aqamdax e ele se sentarem lá dentro, costas com costas. Pelo menos o corpo de Sok protegia-a em parte do vento e as costas dele, encostadas às suas, aqueciam-na.

As ondas eram piores do que o frio. Irrompiam do mar, por baixo do iqyax, e às vezes eram tão grandes que Aqamdax nem via os outros homens, e parecia que Sok e ela viviam sozinhos num mundo de água, sem esperança de chegar a terra. Aqamdax nem se permitia pensar como eram finas as paredes do iqyax, e ignorava histórias de animais marinhos que vinham dos abismos e abriam buracos nos iqyan.

No segundo dia, verificou que os homens não tinham comido antes de saírem das praias de manhã. Talvez tivessem comido um pouco de peixe seco, e bebiam sempre água, mas não comiam mais nada até acostar todas as noites. Aqamdax fazia o mesmo, apesar de o estômago lhe doer com fome ao fim do dia.

Os comerciantes dos Caçadores de Morsas cantavam enquanto remavam, e às vezes o irmão de Sok cantava canções do Povo Rio, mas as palavras, que lhe pareciam estranhas e sem sentido, só aumentavam o seu desespero. Como iria ela viver com um povo que não compreendia?

Tinha a pele caindo e a estalando, e o rosto e as mãos doíam-lhe e estavam vermelhos. Sok deu-lhe gordura de ganso para servir de bálsamo, mas a água do mar atravessava a gordura e a pele e abria-lhe feridas nos lábios, no canto dos olhos e na ponta das narinas.

À medida que os dias passavam e o seu terror diminuía. Aqamdax chorava a sua aldeia, o seu povo e o som das palavras que entendia. Uma manhã, ao acordar para o terror que antecedia cada dia, ouviu uma voz como se Qung falasse com ela.

Era uma voz de censura, de avó para neta. ”Tu és uma contadora de histórias, mas passas os dias lamentando-te. As canções do irmão do teu marido enquanto rema chegam aos teus ouvidos, mas tu não as ouves. Chegou o momento de aprenderes algumas palavras. Como serás contadora de histórias junto do Povo Rio se não falares a sua língua? Esperas que sejam eles a aprender a tua?”

Então, depois de Aqamdax desmontar a tenda de pele de caribu e enrolar os pés nas meias quentes de pele de lebre que o marido lhe dera no segundo dia da viagem, quando vestiu o seu chigdax, agarrou num bocado de peixe seco e levantou-o. Disse a Sok qual a palavra que significava ”peixe” na língua dos Primeiros Homens, erguendo a voz para ele perceber que ela estava perguntando qual era o termo do Povo Rio correspondente, mas ele limitou-se a abanar a cabeça. Ela pegou em várias coisas na sua bota de pele de foca, numa faca e por fim numa pedra mas ele olhava para ela no meio de um silêncio confuso. Por fim, ele perdeu a paciência, apontou para o trabalho que ela deixara por fazer e para a água, para ela perceber que eles tinham que partir, caso contrário seriam obrigados a esperar naquela praia rochosa que a maré voltasse a subir.

Aqamdax encheu o iqyax de Sok, tentando esconder a sua desilusão. Qual o marido que quer uma mulher cuja boca está cheia de suspiros e cujos lábios nunca sorriem? Então Chakliux aproximou-se dela, cautelosamente, com o seu pé de lontra. Pegou numa pedra do tamanho de um punho cerrado, branca e com manchas, que parecia o ovo de um papagaio-do-mar.

Ts ’es, disse ele, e repetiu a palavra. Aqamdax fez o possível para dobrar a língua em volta dos sons desconhecidos, e ele sorriu, com um aceno de cabeça.

Ts ’es, pronunciou ela. Depois, apontou com o queixo para as pedras que tinha debaixo dos pés. Ts’es, ts’es, ts’es.

Ele riu e, por qualquer motivo, o riso dele aliviou a tristeza de Aqamdax. Passou o dia repetindo a palavra para si própria até que, quando a luz difusa do Sol por baixo das nuvens lhe indicou que dentro de pouco tempo abandonariam os seus iqyan para passar a noite, ela percebeu que, de todas as palavras que escolhera, ts ’es era das que menos falta lhe fazia. Ao virarem os iqyan para a praia, Aqamdax deu consigo rindo da sua estupidez e escolheu as coisas cujo nome iria perguntar nessa noite: peixe seco, tenda de pele de caribu, água, marido, olhos, nariz e boca. Todos os dias aprenderia mais até conseguir entender o que uma esposa do Povo Rio devia entender, e falar como uma contadora de histórias devia falar.

Chegaram à aldeia dos Caçadores de Morsas no meio do dia. Sok foi o primeiro a reparar na mudança de cor do mar e depois nas faixas de algas que traziam à superfície folhas acastanhadas, as quais se agarravam aos remos de tal modo que o roçagar do seu chigdax quando ele se mexia já não acompanhava as canções dos comerciantes. Sok levantou a voz e chamou Aqamdax, tratando-a por esposa, uma palavra do Povo Rio que ela já compreendia. Serviu-se do remo para apontar para as algas, indicando-lhe a palavra dos Caçadores de Morsas, visto que o seu povo não tinha nenhuma. Tentou lembrar-se das poucas palavras do Povo Rio que ela sabia e por fim disse:

Aldeia dos Morsas, ali. Pouco tempo.

Não soube ao certo se ela o entendera, mas enquanto ele remava, acelerando o ritmo o melhor que podia no meio das algas, ela encostou-se às suas costas como se também ela fizesse força para a frente, para terra, para a aldeia dos Caçadores de Morsas.

No Verão, apesar de alguns Caçadores de Morsas irem para acampamentos de pesca junto dos rios e de pequenos lagos interiores, a maior parte ficava em tendas à beira-mar. Era uma boa hora para caçar leões-marinhos e focas, e os caçadores também se juntavam para caçar as poucas morsas que acorriam àquelas águas.

Sok não sabia o que o xamã dos Morsas iria pensar de Aqamdax. A viagem, apesar de não ser longa, fora dura para ela. A pele do seu rosto já não estava macia mas cheia de feridas, e os seios e a barriga já não estavam cheios e roliços como dantes. De noite, quando a abraçava, sentia-lhe os ossos das costelas em vez da pele lustrosa e macia. Nos primeiros dias de viagem, arrependera-se de a ter trazido, mas depois ela começara a aprender palavras do Povo Rio e parecia sentir-se mais feliz. Durante a viagem, repetia as palavras que aprendera, misturando-as às vezes de tal maneira que Sok era obrigado a sorrir.

Nem queria pensar no dia em que ela percebesse que ele a dera ao xamã dos Morsas. Iria sentir a falta dela. Era boa na cama, muito melhor que Folha Vermelha, mas com a máscara do xamã, os amuletos e o sax de penas que ele daria por ela, era quase certo que Lobo-e-Corvo lhe entregaria Neve-no-Cabelo. O que havia de melhor do que ter finalmente aquela que vivia no seu coração desde menina?

A aldeia de Caçadores de Morsas era como Aqamdax imaginara. Como todas as crianças da sua aldeia, ouvira as histórias dos comerciantes e acabara por aprender algumas palavras dos Morsas para que um adulto como ela pudesse negociar ou mesmo elogiar um homem dos Morsas que a escolhesse para a sua cama.

Quando ela e Sok puxaram o iqyax para a praia, mulheres e crianças, e alguns caçadores, foram ajudá-los. As crianças aproximaram-se para ver Aqamdax, e as mulheres observaram-na pelo canto do olho, falando umas com as outras com a mão sobre a boca e dizendo coisas que ela não conseguia ouvir.

Por fim, Sok aproximou-se dela, desatou-lhe a fita do capuz do chigdax e ajudou-a a despi-lo pela cabeça. Depois, agarrando-lhe os cabelos compridos com as duas mãos. tirou-os do sax e alisou-os nas costas. Aqamdax ficou satisfeita com a ternura do seu gesto e com o orgulho com que ele a virou de frente para as pessoas.

Aqamdax disse ele, dando ao nome dela a entoação da língua do Povo Rio.

Ela olhou para ele, para o seu marido alto e forte, e disse em voz baixa a palavra do Povo Rio que significava ”marido”; em seguida, disse-a também na língua dos Morsas. De súbito, os dias passados no iqyax valiam a alegria que a inundava.

Então Sok gritou:

Onde está Yehl?

E embora as palavras que se seguiram fossem uma mistura entrecortada das línguas do Povo Rio e dos Morsas, Aqamdax entendeu e, horrorizada, não conseguiu mexer-se nem falar.

Digam a Yehl que eu trouxe Aqamdax. Digam-lhe que eu tenho a esposa dele.

Chakliux virou-se e fixou o olhar no horizonte. Não conseguia suportar a expressão de Aqamdax ao perceber o que estava acontecendo. Quando Sok lhe comunicou que a entregaria a Yehl na presença de todos, Chakliux dissera-lhe que era preferível ele falar com Aqamdax em particular. Mas Sok respondera: ”Qual a mulher que gosta de ser desonrada diante de toda a aldeia? Se eu anunciar a minha intenção para que toda a gente ouça, ela não poderá deixar de comportar-se como se já soubesse que ia ser a esposa do xamã.”

E Chakliux concluiu que não podia discordar. Como esposa do xamã, ela ocuparia um lugar de honra na aldeia. Vivendo ali, estaria mais perto do seu povo, e talvez conseguisse fazer o que Tut fizera depois de envelhecer: voltar a aldeia dos Primeiros Homens. Também teria oportunidade de se encontrar com comerciantes dos Primeiros Homens, os poucos que iam à aldeia dos Caçadores de Morsas todos os anos, e assim ouvir falar a sua própria língua.

Nos dias seguintes, depois de Sok ter feito o seu último negócio, ele e Chakliux partiriam para a aldeia de Rio Próximo e, se Chakliux fosse bem recebido, não voltariam aos Caçadores de Morsas. Se verificassem que o povo de Rio Primo continuava procurando vingança, Chakliux voltaria. De qualquer modo, Aqamdax não teria que ver Sok outra vez. Não teria o rosto dele a alimentar o seu ódio nem a voz dele avivando recordações de tempos partilhados como marido e mulher.

Chakliux subiu à praia, direito às armações dos iqyan. Precisava olear o seu iqyax e de consertar algumas costuras. Sok tencionava voltar a pé para a aldeia de Rio Próximo, mas Chakliux iria por mar. Sok rira dele e perguntara-lhe como é que o iqyax o ajudaria a caçar ursos ou caribus, mas Chakliux lembrara-lhe que os poucos comerciantes dos Primeiros Homens que iam às aldeias do Povo Rio subiam o rio nos seus iqyan e deslocavam-se muito mais depressa do que se fossem a pé.

Além disso, o seu iqyax era mais do que madeira e pele de morsa. Permitia-lhe tornar-se uma verdadeira lontra. No seu iqyax, ele sentia-se íntegro e forte. Como podia ele explicar tal coisa a Sok? Como é que Sok podia perceber que o iqyax de Chakliux era como outro irmão para ele?

Uma súbita gargalhada geral obrigou Chakliux a virar-se e a voltar por onde viera. Abriu caminho entre um grupo de Caçadores de Morsas. Uma luta, pensou. Alguém começara uma luta. Talvez fossem dois jovens, mas depois percebeu que não eram dois jovens que lutavam mas sim Aqamdax.

Conseguiu chegar ao meio do grupo e viu que ela atirara Sok ao chão e estava escarranchada nos ombros dele, agarrando-lhe nos cabelos com uma mão e encostando-lhe ao pescoço uma faca de mulher de lâmina curva com a outra. Um dos comerciantes dos Morsas agarrara-a pela cintura e encostara-lhe uma faca no pescoço. Gritou-lhe qualquer coisa na língua dos Primeiros Homens, qualquer coisa que Chakliux não entendeu, e Aqamdax respondeu-lhe aos gritos, com mãos-cheias de palavras, plenas de ódio. Ele viu o desespero no olhar da mulher e percebeu que ela não se importava que o comerciante lhe cortasse o pescoço.

Sok deu um berro e, com um movimento forte, atirou ao chão o comerciante dos Morsas e Aqamdax. Chakliux pôs-se entre a mulher e o irmão. Pisou a mão dela, encostando-a ao chão, enquanto um dos homens dos Morsas lhe tirava a faca dos dedos e outro lhe verificava as mangas do sax à procura de outras armas. Foram precisos vários homens para a neutralizar; por fim, um trouxe uma corda para lhe atar as mãos e os pés.

Durante a viagem por mar, Chakliux começara a perceber a força e a determinação de Aqamdax mas, ainda assim, não pensara que ela reagisse com raiva, mas sim mais à maneira de K’os que assumisse uma postura altiva, como se sempre tivesse sabido o que iria acontecer na aldeia dos Caçadores de Morsas. A sua mãe de Rio Próximo, Mulher Diurna, poderia ter feito ouvir os seus lamentos, mas quantas mulheres teriam tentado matar o homem que as traíra?

Sok pôs a mão no pescoço, tentando estancar o sangue de um pequeno golpe.

Como está isso? perguntou Chakliux.

Não é nada disse Sok, resmungando. Arreganhou os dentes e acrescentou: Qual o homem que queria uma mulher assim? Ela é pior do que um cão.

Chakliux ia concordando, mas sabia que não estaria sendo sincero e por isso guardou as palavras para si próprio e não disse ao irmão que Aqamdax não era um cão mas sim uma mulher aguerrida.

Atiraram-na em uma tenda dos Morsas vazia. Ela gritou nas palavras dos Morsas que sabia, misturadas com a língua dos Primeiros Homens:

Julgam que conseguem manter-me aqui? Eu consigo rasgar estas paredes de pele com os dentes. O vosso mau cheiro chega para me afastar desta aldeia. Nem posso olhar para vocês. Vocês são como peixes mortos, brancos e podres na praia. Vocês são vômito de cão. As vossas mulheres são as fezes das focas.

Aqamdax tinha as mãos atadas, mas à frente do corpo, e por isso conseguiu desfazer os nós com os dentes e soltar-se. Desenrolou a corda que tinha nos tornozelos e começou a rasgar as peles, empoleirando-se nos estrados das camas. Pisou cestos de pele de peixe, abriu uma bexiga de leão-marinho e entornou o óleo nas peles das camas. Os seus insultos transformaram-se em gritos que pareciam rebentar-lhe o coração e tirar-lhe o ar dos pulmões.

Porque confiara nele? Não aprendera nada com Nasce-o-Dia? Qual o homem que fora honesto com ela? Qual o homem que cumprira o que prometera?

Durante muito tempo, Aqamdax não cedeu às lágrimas, mas por fim a sua raiva foi diminuindo lentamente, como o latejar de uma ferida, e ela deu consigo pensando no xamã dos Morsas.

Vira-o numa ponta da multidão, vira o seu horror quando ela atacara Sok. Usava muitos amuletos e talismãs, peles de animais que ela não conhecia. Julgaria ele que a impressionava?

Era um velho, mas isso não tinha importância, sobretudo se, com os seus conhecimentos de xamã, lhe desse um filho. Depois, Aqamdax percebeu que não era o fato de pensar nele como seu marido que alimentava a sua fúria, mas sim a traição de Sok.

É claro que, da primeira vez que Sok fora ao seu encontro, ele pedira-lhe para ir com ele para a aldeia dos Caçadores de Morsas para ser esposa do xamã. Na sua estupidez, acreditara que conseguira fazê-lo mudar de opinião.

Negociara o suficiente com comerciantes para saber que eles não se enganavam a si próprios, e provavelmente o xamã dera muito a Sok para ele a levar para ali. E ela acrescentara-se a essas mercadorias, proporcionando a Sok noites de prazer nos seus cobertores.

Pensou no irmão de Sok, Chakliux. Não era tão grande nem tão forte como Sok, mas tinha uma força de espírito que lhe agradava. Saberia ele do plano de Sok? Como podia não saber? O que lhes oferecera o xamã para eles a enganarem daquela maneira?

Olhou para os estragos que fizera. Depois, enxugou os olhos com as pontas das mãos e aspirou as lágrimas que lhe corriam pelo nariz. Portara-se como uma criança. Como pudera ser tão estúpida? Todos os Verões apareciam comerciantes dos Primeiros Homens naquela aldeia. Ela voltaria para junto do seu povo. Com certeza Qung a receberia bem.

Entretanto, se não quisesse passar a vida sozinha numa tenda dos Morsas, teria de comportar-se como uma boa esposa.

Talvez antes de ela sair daquela aldeia, o xamã lhe pusesse um filho na barriga. Talvez ela conseguisse aprender a falar a língua dos Morsas suficientemente bem para aprender algumas das histórias deles.

Começou a apanhar as peles das camas e a limpar o óleo daquelas que tinha sujado. Em seguida, limpou o cabelo, os braços e as pernas.

Quando foram buscá-la, encontraram a tenda em ordem e Aqamdax pronta para se apresentar ao xamã como esposa, mas, se Sok voltasse àquela aldeia, ela arranjaria uma maneira de se vingar. Arranjaria uma maneira de o fazer arrepender-se do que lhe fizera.

 

                   ALDEIA DOS PRIMEIROS HOMENS

Cen puxou o seu iqyax para além do alcance das ondas e depois começou a desfazer os seus fardos. Gostava daquela aldeia. As pessoas eram fortes e saudáveis; riam muito e sabiam negociar. Com o pulso esquerdo ainda fraco, levara quase uma lua remando para ir da povoação dos Caçadores de Morsas mais próxima até a Praia dos Comerciantes, mas, se tudo corresse como ele planejara, o seu esforço seria recompensado.

Os Primeiros Homens tinham escolhido bem aquele local para a sua aldeia, porque assim podiam caçar tanto em terra como no mar e pescar na baía e nos rios que a alimentavam. Mas todos os Invernos o gelo trazia novos baixios e novas rochas. Era preciso ter cuidado, estar sempre atento quando remava.

Se um dos caçadores da aldeia visse um comerciante chegando, faria as vezes de guia, mas dessa vez não estava ninguém na praia. Cen chegara sozinho. A maré alta ajudara-o a evitar estragos provocados por rochas ou bancos de areia e permitira que ele desembarcasse com facilidade. Ouviu vozes e levantou a cabeça. Avistou vários velhos que iam saudá-lo. Cen recebeu-os de mãos erguidas, assegurando-lhes que vinha em paz. A língua deles não assentava facilmente na sua, mas ele sabia que um dia na aldeia seria suficiente para lhe recordar o essencial. Os seus anos de visitas a Daes tinham-lhe dado mais do que o calor de uma mulher na sua cama.

Vieste negociar? perguntou um dos velhos.

Cen respondeu ao homem com delicadeza, enumerando alguns dos produtos que tinha para negociar - peles de morsa, parkas de pele de lobo, cestos de casca de salgueiro e grandes anzóis de madeira para linguados. Não tinha tanto como era habitual - abandonara o Povo Rio apenas com algumas facas.

Estava convencido de que a sorte o abandonara, tinha certeza de que o depósito que conservava nos arredores de uma das duas aldeias dos Morsas onde costumava negociar fora descoberto por homens ou por animais, mas o local estava intacto. As parkas de pele de lobo, as peles de caribu, um sael de gordura, peles de foca cheias de óleo e, o que era mais importante, o seu iqyax, estavam à espera dele.

Cen dirigiu-se à aldeia dos Primeiros Homens, não só para negociar como para ir ao encontro da família de Daes. Ela dissera-lhe que o pai tinha morrido e que não tinha irmãos, mas com certeza que tinha primos, e uma filha, evidentemente, que agora já devia ter marido. Quando Cen explicasse o que acontecera a Daes, decerto iriam com ele para se vingarem. O ajudariam a trazer de volta o filho, Ghaden.

Endireitou-se, aliviando a dor das feridas recém-cicatrizadas e esfregou o nariz. Agora estava torto, largo e achatado. Uma cicatriz arrepanhava-lhe a boca de um lado, mas nesta aldeia até era bom que ele tivesse mudado de aspecto. Devia haver caçadores dos Primeiros Homens que não estavam satisfeitos por ele ter levado Daes, aqueles que a queriam para si próprios. Se reconhecessem Cen, podiam enfurecer-se antes de ele ter oportunidade de explicar porque viera.

Cen mostrara-se particularmente cauteloso quando estava com Daes, ciente dos tabus do luto que a obrigavam a afastar-se dos homens. Talvez fosse por isso que ela parecia tão irresistível, por causa dos tabus. Ele poderia ter escolhido outras mulheres dos Primeiros Homens, mas ficara deslumbrado com Daes.

Fora um erro ter ido mais para oeste quando regressava dos seus negócios, depois de ter se deitado com ela. Mas como podia esquecê-la? Daes continuava a povoar os seus sonhos. Cen devia ter ficado com ela na aldeia do Povo Rio. O que lhe interessava a aldeia em que vivia? A mãe pertencera ao Povo Caribu, o pai era dos Morsas e ele passara diversos Verões em aldeias do Povo Rio enquanto os pais andavam de um lado para o outro. Crescera falando três línguas e compreendia bem a língua dos Primeiros Homens.

Ele devia ter vivido com Daes, adotado o filho dela, o rapaz cujo rosto era tão parecido com o do avô que pertencia aos Morsas e cuja voz tinha o timbre claro e cantante do Povo Caribu. Mas Cen sabia que, sempre que Daes olhava para ele, desejava que ele fosse o seu marido dos Primeiros Homens. Por outro lado, qual o comerciante que precisa do estorvo que uma mulher e um bebê constituem? Cen arranjara-lhe um velho do Povo Rio que ainda era um caçador robusto e que seria um bom pai para a criança e um bom marido para Daes.

Apesar de a ter deixado ficar para trás, no Inverno seguinte os seus pensamentos haviam permanecido com Daes. Por muitas mulheres dos Tundra que lhe aquecessem a cama, a pele morena e macia que ele sentia nas mãos era sempre a de Daes. Por isso ia visitá-la todos os anos, e por fim ela aceitara ir com ele. Depois, Cen ousara acreditar que ela já não desejava que ele fosse o marido morto, que ela aprendera a cuidar dele por causa dos seus próprios dotes.

Tudo parecia tão bem. Doía-lhe a garganta só de pensar nisso. Mas se vingaria, e aquele Povo Rio os poucos que ele deixasse vivos nunca mais o esqueceria.

 

                   ALDEIA DOS MORSAS

Aqamdax esperava que eles viessem à noite, e por isso ficou à espera, mantendo-se acordada com canções e histórias, mas por fim adormeceu onde estava sentada, encostada ao espaldar da cama. Acordou ao romper do dia com o pescoço rijo e as pernas presas. A entrada ainda estava fechada e Aqamdax, que precisava fazer as suas necessidades, procurou na cabana um balde de urina ou um cesto do lixo. Por fim, agachou-se sobre um recipiente de pele de peixe, esperando que ele não vertesse e que ela não estivesse quebrando algum tabu dos Morsas.

A lamparina continha pouco óleo e já se tinham consumido vários pavios. Havia um resto de óleo na barriga de foca, e ela colocou uma parte na lamparina. A chama aumentou de intensidade, mas mesmo assim ela tinha frio. Procurou uma despensa no meio dos cestos e das peles e junto das paredes, mas não encontrou nada. Por histórias que ouvira contar, lembrou-se que os Morsas guardavam a comida em despensas ao ar livre, mas não tinha certeza. Comera na véspera. Não morreria de fome e havia bexigas cheias de água penduradas nos postes da cabana.

Ah, Tut, porque não te fiz mais perguntas sobre este povo?, pensou Aqamdax. Devia ter insultado a aldeia toda ao recusar o xamã. Esperaria mais um dia e depois, na breve escuridão da noite, sairia da cabana com o auxílio da pequena faca de esfolar que trazia no cinto, debaixo do sax. Eles não tinham descoberto aquela faca e, apesar de a lâmina ser curta, era afiada. Se tivesse cuidado e trabalhasse devagar, talvez conseguisse furar a pele de morsa.

E depois? Sem comida, sem a sua faca de mulher, o que podia ela fazer? Teria de encontrar Sok e o irmão, suplicar-lhes que a levassem com eles, ou que fossem falar com o xamã, pedir-lhe desculpa e implorar que a dessem a qualquer dos Caçadores de Morsas como esposa. Sentou-se na beira do estrado da cama e acariciou as penas macias do sax.

Não, não voltaria para Sok. Porque confiaria no homem? Era melhor ficar naquela aldeia, mais perto do seu povo. Iria oferecer-se ao xamã. Se ele já não a quisesse, pediria para ser esposa de um caçador, segunda esposa, se necessário.

Hii, como fora estúpida! Mas agora seria sensata, e se conseguisse não fazer mais disparates, conseguiria voltar ao seu povo.

Chakliux atravessou a aldeia na direção das armações dos iqyan. Durante a viagem por mar, passara muito tempo pensando nos iqyan dos Primeiros Homens, sem saber se modificaria o seu para ficar mais parecido com os deles mais estreito para ser mais veloz e com uma sobrequilha feita de três pedaços de madeira em vez de um, para dar mais força ao iqyax e mais flexibilidade nas ondas.

Talvez fizesse outro, em vez de alterar o iqyax que tinha. Para quê destruir uma coisa que funcionava bem? Depois, compararia os dois, veria como cada um se deslocava nas ondas, como respondia ao remo em correntes e marés, em redemoinhos e na rebentação.

Passou pela pequena tenda em que haviam fechado Aqamdax. Tinha pena da mulher. Ela mostrara-se tão interessada em Sok e esforçara-se tanto por ser uma boa esposa.

Com um afluxo de calor, lembrou-se como fora bom ter Gguzaakk como esposa e recordou o horror da sua morte. O filho de ambos morrera no dia seguinte e, com o desgosto, Chakliux perdera a vontade de viver. Mas qual o dzuuggi que podia dar-se ao luxo de morrer?

Continuava trabalhando pela paz, apesar de saber que K’os estava contra ele. Só quando o desgosto o levou a ir visitar a armação fúnebre de Gguzaakk é que percebeu a extensão do ódio de K’os. Ao aproximar-se do local sagrado, viu que K’os estava lá e ficou à espera, pensando que ela também fora chorar. K’os inclinou-se e colocou qualquer coisa no chão. Quando ele se aproximou, viu que era um ramo de flores roxas e percebeu, como qualquer criança, do veneno mortal da planta e das suas flores encapuzadas.

O meu filho também? perguntara-lhe ele.

As crianças morrem com facilidade respondera ela e levantara a mão para tapar a boca e o nariz.

Ele devia tê-la matado nesse momento, mas não conseguiu se mexer, como se também o seu corpo tivesse sido atacado por aquele veneno que imobiliza os músculos e faz parar o coração. Foi falar com os velhos, os caçadores e até com o pai, mas ninguém acreditou nele. Vingar-se equivaleria à sua própria morte, à aldeia inteira contra ele. Depois, que oportunidade teria de trabalhar pela paz?

Às vezes, era muito difícil ser dzuuggi. As luas passadas com os Morsas e os Primeiros Homens, um período em que ele era apenas caçador, tinham sido boas.

Chakliux invejava Sok. O que mais podia um homem desejar do que uma mulher que o respeitasse? Folha Vermelha e Aqamdax eram duas boas mulheres. Era triste que Sok não pudesse ficar com Aqamdax. No entanto, todos os homens tinham que dar valor à sua vida, e, se Sok não a tivesse oferecido ao xamã dos Morsas, este poderia tê-lo matado ou amaldiçoado com doenças.

É claro que, quando Aqamdax se recusara a acompanhá-los, exceto se fosse mulher de Sok, ele podia tê-la deixado com o seu povo. Mas se eles não a tivessem trazido, o xamã dos Morsas teria autorizado Chakliux a ficar na aldeia se ele não pudesse voltar para junto do povo de Rio Próximo? Portanto, embora Sok tivesse lucrado com isso, também ajudara Chakliux.

Quando Chakliux passou pela tenda de Aqamdax, ouviu o som suave de uma canção, algo que ela cantara quando iam nos iqyan. Sentiu um aperto no coração como se a tristeza dela o comovesse, mas pensou que em breve ela se sentiria feliz por ser esposa do xamã da aldeia e alegre por descobrir novas histórias.

Só quando chegou à praia é que ouviu os primeiros choros das mulheres.

 

                     ALDEIA DOS PRIMEIROS HOMENS

Eu te conheço disse a velha.

Inclinou-se para a frente e, devido à grande corcunda que lhe deformava as costas, Cen julgou que ela ia cair-lhe aos pés, mas a velha virou a cabeça para olhar para cima, com os olhos semicerrados. O coração dele deu um pulo, mas depois Cen recriminou-se. Estava com medo de uma velha?

Já estive aqui, afirmou ele com um ar de desafio. Vês alguma coisa que queiras?

Cen apontou para as mercadorias que expusera junto do seu iqyax.

Por instantes, ela ficou olhando para baixo, e ele julgou que a distraíra, mas a velha virou de novo a cabeça para o examinar e repetiu:

Eu te conheço. Estiveste aqui.. Fez uma pausa. Há quatro Verões. Não, cinco.

Avó, estive em muitas aldeias há cinco Verões. Não posso dizer ao certo se estive aqui. Talvez. Vim para estes lados nessa época, apesar de só agora ter voltado.

Ela não deu mostras de o ouvir e começou a falar sozinha, em voz baixa. Passou os dedos pelas mercadorias de Cen e depois largou-as. Em seguida, as mulheres mais jovens começaram a olhar, todas falando ao mesmo tempo, fitando-o com os seus olhos escuros, para o insultar, mas também para ver se ele percebia a impertinência delas. Aquelas mulheres dos Primeiros Homens não eram pessoas que se atirassem para a cama de um homem, mas em geral, na maioria das aldeias dos Primeiros Homens, havia uma ou duas que estavam dispostas a oferecer os seus favores a um comerciante. Ele contava encontrar uma dessas nessa aldeia. Na privacidade da cama dela, Cen perguntaria por Aqamdax, diria que outro comerciante afirmara que ela era boa na cama de um homem. A jovem, na sua ânsia de mostrar a Cen que podia dar-lhe mais prazer do que Aqamdax, talvez respondesse a todas as suas perguntas e satisfizesse todas as suas necessidades.

Ao longo do dia, Cen fez negócio, trocando os seus artigos por outros dos Primeiros Homens que lhe renderiam mais junto dos povos Caribu e Tundra, mas nenhuma mulher lhe deu quaisquer indícios de o receber na sua cama.

Mais tarde, quando os caçadores estavam negociando, Cen aventurou-se a perguntar se alguma mulher da aldeia lhe dava hospitalidade.

Um dos caçadores sorriu-lhe, mostrando um dente da frente partido e umas grandes gengivas rosadas.

Chegaste tarde demais disse ele. Havia uma, mas apareceu um comerciante do Povo Rio que a aceitou como esposa.

Cen abanou a cabeça. Um comerciante do Povo Rio? Eles raramente iam tão longe. Apesar de as suas jangadas de madeira lhes permitirem navegar nos rios mais calmos, eles não conseguiam enfrentar os ventos fortes e as ondas alterosas do mar do Norte. É claro que um homem podia vir por terra, mas porque ele perderia tantas luas para visitar algumas aldeias dos Primeiros Homens? No mesmo período de tempo, podia fazer os seus negócios em muitos locais dos povos Rio e Caribu, e talvez atravessar os grandes rios até chegar ao território do povo da Tundra do Norte, aqueles caçadores que não tinham propriamente aldeias e que viviam em tendas frágeis, seguindo o vento.

Porém, Cen lembrou-se de que os Primeiros Homens consideravam que, quem não pertencesse aos Morsas nem aos Primeiros Homens, era do Povo Rio. Não o consideravam também um comerciante do Povo Rio?

Então não há nenhuma? perguntou Cen.

O caçador dos Primeiros Homens encolheu os ombros, estendeu as mãos e depois pegou vários dardos com ponta de osso de pássaro e pousou-os de novo. Talvez fosse melhor ir perguntar, pensou Cen, embora muitas vezes, quando se falava no nome de alguém, as pessoas reagissem com desconfiança e se recusassem a dizer fosse o que fosse. Cen não se lembrava muito bem do seu aspecto, apesar de ter pensado muito nela durante a viagem. Observara todas as jovens da aldeia, procurando uma que fosse parecida com Daes, mas não encontrara nenhuma. É claro que as filhas nem sempre eram parecidas com as mães. Talvez, depois de crescida, ela se parecesse mais com o pai que morrera afogado, ou com uma das avós.

Cen inclinou-se para o caçador que voltara a interessar-se pelos dardos de osso.

Dois por uma mão-cheia de pedras de boleadeira disse Cen ao homem.

O caçador olhou para ele com um ar admirado.

Mas não digas aos outros caçadores senão depois de eu partir. Não posso fazer isso a todos. Ficaria sem nada para negociar nas outras aldeias.

O homem levantou a mão, com a palma virada para fora.

Guarda-os. Eu volto.

Escolhe os que quiseres disse Cen.

O caçador escolheu os dardos, todos eles guarnecidos de penas de cagarra em branco-prateado. Cen colocou-os debaixo do seu iqyan virado ao contrário. Depois ficou esperando, propôs outros negócios a outros caçadores, picando e desafiando, sempre tentando fazê-los sentir que o tinham superado, que os seus talentos eram superiores aos dele.

Por fim, o caçador voltou, com duas mãos-cheias de boleadeiras de andesito bem aguçadas num quadrado de pele de foca. Cen examinou-as e pegou várias na mão. Sem dizer nada, tirou os dardos do iqyax e entregou-os ao homem. Depois, inclinou-se para a frente e disse em voz baixa:

Há uma mulher de que me falaram. Chamam-lhe Aqamdax.

O caçador começou a rir.

Falaram-te dela, disse ele. Sim, tenho certeza de que te falaram dela. O homem riu outra vez. Não há nenhum homem nesta aldeia que não sinta a falta dela.

Ela já não está aqui? perguntou Cen.

Foi ela que partiu com o comerciante do Povo Rio. Ele disse que a queria pelas suas histórias, mas ninguém desta aldeia acreditou nisso.

Então ela não tinha um marido dos Primeiros Homens?

Não.

Nem irmãos ou tios?

Ninguém. O chefe dos caçadores levou-a para o ulax dele durante um tempo, mas ela acabou por ficar com a velha Qung.

O homem apontou com a cabeça para um grupo de mulheres que se tinham instalado numa pequena colina relvada sobre a praia.

É a velha que está no meio do grupo.

Era a corcunda que quisera conhecê-lo. Estava de cócoras, com a cabeça tão inclinada que parecia encostada aos joelhos levantados. Apesar de não conseguir ouvir o que ela dizia, Cen percebeu que a velha estava falando.

Ela é a contadora de histórias da nossa aldeia. Aqamdax foi viver com ela para aprender. As mulheres não ficaram muito satisfeitas com isso, mas ela saiu-se bem. As histórias dela eram agradáveis de ouvir.

O homem continuou falando, contando a Cen os talentos de Aqamdax nas histórias e na cama mas, naquele momento, Cen já não o ouvia. Para quê? Aqamdax não podia ajudá-lo. Ele perdera o seu tempo vindo àquela aldeia e agora não era compensado, arriscando de novo a vida no mar do Norte. Pior do que isso, tinha que fazer um novo plano, de arranjar maneira de se vingar do Povo Rio, e de levar Ghaden, porque qual o pai que consentiria que o seu filho fosse criado como um inimigo?

 

                   ALDEIA DOS MORSAS

A lança do caçador tinha uma ponta de osso e de concha manchada de sangue antigo. O homem encostou-a no pescoço de Aqamdax, por baixo do queixo, com a ponta virada para a pele.

Vários Caçadores de Morsas tinham ido buscá-la na tenda de Verão. Saíram com ela da aldeia e disseram-lhe, num misto de língua dos Morsas e dos Primeiros Homens, que ficasse junto da praia. Depois, foram todos embora exceto um. Esse estava naquele momento entre ela e a aldeia, como se Aqamdax constituísse um perigo para os que lá viviam, como se ela tivesse de ser mantida à distância com ameaças e armas.

As mulheres juntaram-se atrás do caçador e começaram a gritar, furiosas, mas Aqamdax também ouvia choros vindos da aldeia. Seriam lamentos fúnebres?

Morrera alguém? Seriam os Morsas um povo que matava para expressar a sua tristeza? Ela sabia de esposas que morriam chorando a perda de um marido ou de um filho, e de velhos que, ao perderem um filho, iam para a cama e aí ficavam à espera da morte. Mas porquê matar? Por vingança, sim, mas por desgosto?

O coração de Aqamdax batia tão depressa que lhe tremiam as mãos e os braços. Respirou fundo, tentou avistar Chakliux ou mesmo Sok, mas viu apenas as mulheres dos Morsas, aglomeradas num pequeno círculo.

Lembrou-se da morte do pai e recordou como o sorriso de outra pessoa qualquer a enfurecia. Como podia alguém sorrir quando o pai dela estava morto? Eles não sentiam o desgosto que lhe consumia o coração, até este não ser mais do que um monte de cinzas endurecidas e escuras?

Portanto, se aqueles Morsas estavam chorando a morte de alguém, talvez ficassem um pouco mais calmos se ela partilhasse a sua dor.

Então, apesar da lança apontada à garganta, apesar das velhas que se debruçavam para lhe cuspir, Aqamdax levantou a voz no ulular que era o cântico fúnebre dos Primeiros Homens.

Quando avistou Chakliux, a lança fora retirada e as mulheres choravam com ela.

Aqamdax estava sentada entre eles sem falar, sem olhar para ninguém. Chakliux sentia a sua raiva, e a de Sok. Dente Velho fora escolhido para os vigiar. Levara-os para uma faixa de praia aberta, a pouca distância da aldeia dos Caçadores de Morsas. Ameaçara atá-los de pés e mãos, mas deixara os atilhos de couro a seus pés. Apesar de não os ter amarrado, fazia movimentos rápidos com a lança na direção deles, se eles tentavam falar.

Dente Velho não olhava para Chakliux, mas de vez em quando fazia alguns comentários em voz baixa sobre o vento e as marés, como se eles fossem caçadores que estivessem observando o mar.

Durante algum tempo, Chakliux ouviu-o, mas por fim perguntou:

Quem morreu?

Dente Velho levantou a lança e assobiou, mas respondeu:

Quem julgas que foi? Aquele com quem ela ia casar.

O xamã? perguntou Sok.

Dente Velho baixou a ponta da sua lança até esta ficar apenas a um palmo de distância do pescoço de Sok.

Não podes falar disse Dente Velho. Depois, olhando para Chakliux, acrescentou: Eles julgam que foi a mulher que o matou.

Como é que ela podia fazer uma coisa dessas? Passou a noite inteira na cabana salientou Chakliux.

Dente Velho baixou a lança.

Uns dizem que ela é xamã. Outros julgam que ela traz maus espíritos.

O xamã estava velho. Morreu naturalmente, declarou Sok.

Dente Velho encolheu os ombros.

Uns dizem que isso é verdade.

Então os velhos é que vão decidir se foi ela ou não que o matou? perguntou Chakliux.

Eles é que vão decidir.

E depois o que acontece?

Podem deixar-vos partir. Podem matar-vos. Talvez matem só a mulher.

Não podes fazer nada?

Como posso deixar-vos partir se vocês mataram o nosso xamã?

Nós não matamos ninguém! exclamou Sok, quase gritando.

Dente Velho voltou a apontar a lança ao pescoço de Sok.

Fique calado. Não podes falar, disse ele.

Era de novo o guarda, não o amigo, que os vigiava cuidadosamente, apontando a lança a um e depois a outro, e olhando de vez em quando para o extremo da aldeia, onde os velhos tinham se reunido para tomar a decisão.

Aqamdax tinha sede; o vento secara-lhe a garganta e até os olhos. Seria bom beber um pouco de água antes de morrer.

Nessa manhã, antes de a terem ido buscar, sentira fome, mas agora não lhe parecia que conseguisse comer.

Não devia ter chorado. Devia ter deixado que o homem dos Morsas a matasse. Havia piores maneiras de morrer do que ser trespassada por uma lança.

Como fora estúpida ao deixar a sua aldeia! Até os anos que passara no ulax de Cantador tinham sido melhores do que a sua vida desde então.

Havia melhor professora do que Qung? Quem tinha mais paciência? Se os Morsas matassem Aqamdax, todo aquele conhecimento se perderia. Qung estava velha. Viveria o suficiente para treinar outra contadora de histórias? Talvez ao pensar que Aqamdax ainda tinha uma longa vida para viver, Qung não tivesse pressa de ensinar mais alguém. Talvez ela esperasse demais e muitas das histórias do seu povo se perdessem.

Aqamdax olhou para o homem dos Morsas que os guardava. Era um jovem, com o rosto enegrecido por uma série de tatuagens no nariz e na face. Empurrara o capuz da parka para trás, e Aqamdax reparou que ele tinha o cabelo untado e penteado em duas tranças apertadas, uma de cada lado da cabeça.

Começou a falar, sabendo que as suas palavras poderiam fazer aproximar a lança, mas talvez a levassem também para a sua aldeia, para Qung perceber que tinha que ensinar outra contadora de histórias.

Estou aqui, Qung declarou Aqamdax, falando na língua dos Primeiros Homens. Talvez daqui a pouco tempo se possa dizer que os Morsas me mataram. Talvez daqui a pouco tempo se possa dizer nos ulaxs que eu morri.

O guarda dos Caçadores de Morsas resmungou, furioso, mas Aqamdax levantou a voz, e, quando acabou de enviar a sua mensagem a Qung, começou a contar histórias. Se tinha que morrer, porque não seria como contadora de histórias?

Pelo canto do olho, viu o homem aproximando a lança do seu rosto, mas não deixou de falar. As suas palavras foram pronunciadas na sua própria voz, depois na voz das lontras-marinhas e do vento, na voz de crianças e caçadores. Aqamdax fechou os olhos para não ver a lança, fechou os olhos para não deixar de falar quando a concha lhe cortasse o pescoço, para que as suas palavras fluíssem mesmo depois do seu sangue derramado

 

Escuto Sok, este homem a que tenho outra vez que chamar marido. A sua face está coberta por uma espessa camada de gordura. Ele diz que detesta mosquitos, apesar de não haver tantos assim. Uma pessoa pode passar a mão à frente dos olhos e abrir caminho para ver. Quem precisa de mais do que isso?

Os mosquitos colam-se à cara como nós de cabelo preto, e eu odeio ouvi-lo chamar-me para a sua cama.

Tento vê-lo como ele era na minha aldeia, com o cabelo liso e brilhante, os braços flexíveis e musculados, as pernas grossas e fortes como o poste de madeira por onde saímos do ulax de Qung.

Na viagem para a aldeia dos Morsas, dormimos debaixo                  de um molusco, lustrosa e molhada dos baixios.

Mas agora imagino-me uma concha, que alguém tirou da areia e que aguarda. As mãos dele abrem caminho entre as penas e as peles do meu sax, por baixo de costuras meticulosas e de pequenos pontos, até chegarem às minhas pernas. Ele entra em mim, devora-me, e depois adormece, com a cabeça encostada à minha e os mosquitos mortos pela gordura colados ao meu cabelo.

 

                   ALDEIA DE RIO PRÓXIMO

Chakliux subira Rio Próximo no seu iqyax e esperara duas mãos-cheias de dias por Sok e Aqamdax, que tinham vindo a pé com os cães desde a aldeia dos Caçadores de Morsas. Tinham acampado com ele na última noite. Nessa manhã, depois de Chakliux ter escondido o iqyax no alto dos ramos de um abeto-negro frondoso e de o ter coberto com casca de árvore, partiram para a aldeia de Rio Próximo. Tinham menos de um dia de caminho à sua frente, a maior parte do qual ao longo de um trilho que o povo de Rio Próximo fizera no meio da vegetação que crescia à beira do rio.

Sok disse-lhe que Aqamdax não levantara problemas e que, apesar de a princípio ter medo dos cães, depressa aprendera a atar os fardos e a prendê-los bem para que os animais não roessem as cordas e a alimentá-los para que não se mostrassem preguiçosos no dia seguinte. Além disso, já sabia todas as palavras da língua do Povo Rio que todos os cães entendiam. Mas embora Sok elogiasse a mulher, Chakliux não precisava se esforçar muito para ver o desprezo no olhar de Aqamdax. Quando ela aceitava qualquer coisa das mãos de Sok ou o seguia, submissa, para a cama, Chakliux percebia que ela troçava do irmão com um esgar.

Que outra coisa Sok podia esperar?, perguntou Chakliux a si próprio. Aqamdax fora enganada ao tornar-se esposa, fora entregue a um povo que ia matá-la e, mesmo assim, Sok não fizera nada para salvá-la.

Apesar de o escárnio dela desagradar a Chakliux, ele também tinha motivos para elogiá-la. Quantas mulheres e quantos caçadores teriam se lembrado de se juntar ao cântico das carpideiras se a sua vida estivesse ameaçada? Quando ela fora acusada de causar a morte daquele velho a quem chamavam xamã, não o negara, mas servira-se de várias vozes ao contar as suas histórias para mostrar ao povo os seus poderes.

Como é que os Caçadores de Morsas se arriscariam a matá-la se ela poderia vingar-se? Sem o xamã para os orientar, como eles poderiam proteger-se?

Chakliux vira o homem morto. Fora enrolado como se fosse uma criança, com as mãos fechadas sobre o peito. Não havia marcas de fogo nem de faca, nem sinais de medo nos seus olhos abertos. Era um velho. Os velhos morrem. Porque pensaria que fora Aqamdax? Chakliux dissera-o a Sok quando este não queria levar Aqamdax com eles, e lembrara-lhe que, se a mulher tivesse verdadeiramente poderes, o mais provável era que os matasse a ambos e não o xamã. Por isso, para salvarem a vida dela, e talvez a deles, concordaram em partir, levando todas as suas mercadorias, incluindo Falcão da Neve e Cinzento, os cães que tinham trazido da aldeia de Rio Próximo.

Dente Velho disse a Chakliux que eles depositariam o cadáver do xamã na cabana onde Aqamdax ficara e que depois queimariam aquele local quando terminasse o período de luto. Se uma mulher conseguia matar um xamã, que esperança podia ter alguém de ir contra os seus poderes? Ela não pisara o chão daquela cabana, largando o seu poder a cada passo? Era melhor expulsar esse poder através do fogo para o afastar dos Caçadores de Morsas, que sempre tinham tentado viver com respeito.

Yaa foi a primeira pessoa da aldeia a vê-los. Estava verificando as armadilhas de lebres da mãe, que ela própria montara na margem do rio. Ghaden arrastava-se atrás dela, com Mordedor a seu lado. O rapaz ia silencioso como uma sombra, aproximando-se sempre que ela parava e mantendo-se três passos atrás quando ela andava. Yaa acabara de encontrar a segunda lebre o animal fora estrangulado pelo laço de tendão bem feito da armadilha quando ouviu a vegetação estalando. A primeira coisa de que se lembrou foi de ursos. Puxou Ghaden para junto dela, agachou-se, agarrou o pelo do pescoço de Mordedor e tapou-lhe o focinho com uma mão.

Depois, as folhas afastaram-se e ela reconheceu Sok. O homem de Rio Primo, Chakliux, vinha com ele, e atrás de ambos vinha uma mulher, alta e morena, que usava um estranho adorno de penas. Yaa ia chamá-los, ia saudá-los, mas não o fez. Não conhecia a mulher. Com aquela parka de penas escuras, talvez fosse uma parenta de Corvo. Para quê chamar a atenção de alguém tão poderoso? Yaa deixou-os passar.

Depois que eles se afastarem, Yaa teve vontade de desatar a correr e ir contar o que vira a toda a gente da aldeia, mas sabia que Água Castanha lhe ralharia por sair dali sem verificar e voltar a montar as armadilhas. Até a mãe se zangaria com ela. Só faltavam três. Yaa olhou para trás para ver se Ghaden vinha atrás dela. Ele seguia-a com uma mão enrolada no pelo de Mordedor e a outra esfregando os olhos. Ela parou e ajoelhou-se à frente dele.

Ghaden, te machucaste?

Ele baixou o olhar e abanou a cabeça.

O que se passa?

Nada, respondeu ele em voz baixa e com um suspiro trêmulo.

Ela conhecia-o muito bem para saber que de nada serviria fazer-lhe mais perguntas. Qual o rapaz que admitia que estava chorando? Yaa pegou-lhe as mãos, virou-as, afastou-lhe o cabelo da testa e depois passou-lhe os dedos pelas perneiras até chegar aos pés. Não havia sangue. Talvez ele tivesse machucado um pé com um pau ou alguma pedra escondida nas ervas da margem. Yaa abrandou o passo, mas aproximou-se da armadilha seguinte. Na última, descansariam, mas até um rapazinho tinha que aprender a acabar o seu trabalho. Se os caçadores ficassem em casa sempre que estavam feridos, quem daria de comer às pessoas?

 

Aqamdax ficou satisfeita quando o caminho desembocou numa clareira. Ali, as árvores eram mais altas do que no local em que vivia o seu povo. Apesar de os ramos a ultrapassarem bastante em altura, era como se se encostassem aos ombros dela com os pensamentos e os poderes que as árvores tinham. Algumas eram tão grandes que nem deixavam ver o céu. Quando Aqamdax olhava para cima, era como se elas lhe puxassem o espírito através dos olhos e o levassem para a escuridão dos seus ramos.

As clareiras eram melhores. Apesar de haver pouco vento e um rio em vez do mar, a paisagem era mais parecida com a da sua terra. Como podia alguém saber o que se passava no mundo se o céu estava coberto pelas árvores? Como alguém poderia saber se se aproximavam tempestades ou se ia chover? Nevar ou fazer sol?

Os homens tinham parado, e Aqamdax, ao vê-los, parou também. Pôs as mãos no dorso dos cães para se certificar de que eles não desatavam a correr à sua frente. Os animais tinham aprendido a obedecer-lhe, mas às vezes parecia que viravam selvagens e até rosnavam a Sok. Aqamdax não podia censurá-los. Havia momentos em que também lhe dava vontade de desatar a correr, deixar os fardos que levava e esquecer os muitos tabus do Povo Rio que Chakliux lhe ensinara.

Os tabus dos Primeiros Homens faziam sentido, mas os que ela era obrigada a seguir agora que tinha um marido do Povo Rio maneiras de cortar a carne, palavras que deviam ser ditas quando ela tirava água ou qualquer coisa da terra eram um disparate. As suas próprias palavras não seriam melhores? Agora que ela era uma esposa do Povo Rio, agora que estava ali no local em que vivia aquele povo, isso significava que os tabus dos Primeiros Homens, a sabedoria dos Primeiros Homens, já não deviam ser seguidos? Aqamdax entoava cânticos dos Primeiros Homens e cânticos do Povo Rio, seguia tabus dos Primeiros Homens e tabus do Povo Rio, mas parecia-lhe que levava às costas os ramos das árvores em peso, e deu consigo a observar os pássaros, a seguir o seu vôo, e a desejar que ela também fosse capaz de planar acima das árvores e da terra, levando consigo apenas uma capa de penas e o vento.

Aqamdax! Anda.

Era Sok. Fez-lhe sinal para que se aproximasse deles, e ela pôs-se a seu lado. Ele estendeu o braço, com os dedos esticados, e ela viu que ele apontava para uma aldeia, cujos ulaxs se acumulavam num vale com o formato de uma tigela. Aqamdax não pôde esconder a sua curiosidade. Quem podia acreditar que havia tantas maneiras diferentes de fazer ulaxs?

Escuta! Consegues ouvir os cães? indagou Sok. Aqamdax fez um sinal afirmativo. Olhando para Falcão da Neve e para Cinzento, reparou que os animais tinham as orelhas espetadas e o corpo rígido.

É a tua aldeia? perguntou Aqamdax, reparando que falara na língua dos Primeiros Homens.

Procurou encontrar palavras do Povo Rio e apontou para a aldeia com o queixo. Depois apertou-lhe o braço com as pontas dos dedos e perguntou:

Tua?

Sim, respondeu ele.

Chakliux avançou, disse-lhe a palavra do Povo Rio que significava ”aldeia” e corrigiu-lhe a pronúncia quando ela a repetiu.

Recomeçaram a andar. Sok ia tão depressa que Chakliux tinha dificuldade em acompanhá-lo. Por fim, Chakliux deixou-se ficar para trás e caminhou ao lado dela, e Aqamdax abrandou o passo. O que interessava que Sok chegasse primeiro? Ela tinha tantos dias para viver naquela aldeia, tanto tempo para aprender a língua deles e depois para procurar a mãe, tanto tempo para arranjar maneira de voltar para o seu povo! Pensou em Tut, que envelhecera antes de regressar aos Primeiros Homens, e perguntou a si própria se também ela envelheceria antes de voltar para a sua terra.

Dirigiram-se primeiro à cabana dos velhos. Pousaram os fardos pesados à entrada e deixaram Aqamdax e os cães lá fora.

Treina-Cães saudou-os, e quando os olhos de Chakliux se habituaram à luz fumarenta da lareira, viram que Lobo-e-Corvo, Pato-de-Cabeça-Azul, Raposa-Que-Ladra, Dorminhoco e Faz-Tendas estavam sentados na parte de trás da cabana. Raposa-Que-Ladra levantou-se e fez um grande alarido, como se revisse a mulher e os filhos, mas depois das suas saudações Chakliux sentiu a ganância do homem quando ele fez perguntas subtis acerca dos cães e das mercadorias.

Por fim, Sok interrompeu-o:

Sim, trazemos mercadorias, mas o mais importante é saber se o meu irmão é bem-vindo nesta aldeia disse ele.

São ambos bem-vindos respondeu Pato-de-Cabeça-Azul. Nesta cabana e nesta aldeia. Sentem-se, que vos conto o que aconteceu.

Sentaram-se e pouco depois entrou a mulher de Pato-de-Cabeça-Azul com uma panela de guisado espesso e fumegante. Comeram antes de falar. A comida quente encheu Chakliux de satisfação, que esperava que Pato-de-Cabeça-Azul não estivesse apenas sendo delicado quando afirmara que eles eram bem-vindos na aldeia.

Por fim, depois de esvaziar a tigela, Pato-de-Cabeça-Azul contou:

Depois de vocês partirem, chegou uma mulher com o marido e dois jovens caçadores da aldeia de Rio Primo.

O homem olhou para Chakliux.

Ela disse que era tua mãe e o homem disse que era teu pai. Trouxeram cães de olhos dourados para te ajudar nos negócios. Nós dissemos-lhes que nunca tinhas chegado aqui, que devias ter ido negociar com os Caçadores de Morsas, ou talvez com a gente de outras aldeias Rio.

Eles não procuraram vingar-se? perguntou Sok.

Só se mostraram preocupados com a segurança de Chakliux respondeu Pato-de-Cabeça-Azul.

A minha mãe? K’os? perguntou Chakliux.

Sim afirmou Pato-de-Cabeça-Azul. Não foi fácil fingir que tu nunca tinhas voltado à aldeia. Ela temia por ti, que tivesses morrido. Foi um período duro para ela. Sofreu muito enquanto esteve aqui.

Raposa-Que-Ladra inclinou-se para a frente e serviu-se da tigela para apontar para Chakliux.

Agora só tens um homem a quem chamar pai. Dá graças por a tua mãe, Mulher Diurna, ter um marido comentou ele.

A princípio, Chakliux não percebeu as palavras de Raposa-Que-Ladra, mas, à medida que ia compreendendo, o fôlego parecia abandoná-lo, e não conseguiu falar.

Estão a dizer-nos que o pai de Chakliux morreu? perguntou Sok.

Pato-de-Cabeça-Azul olhou para Raposa-que-Ladra.

Há maneiras melhores de dizer uma coisa dessas disse ele, agarrando no braço de Chakliux. Lamento. Das poucas vezes que fiz negócio com ele, tive sempre o teu pai na conta de um homem honrado.

Chakliux recuperou a voz e perguntou baixinho:

Como ele morreu?

Num incêndio informou Pato-de-Cabeça-Azul. A tua mãe e o teu pai estavam na cabana de um velho, com a mulher dele, aquela que estava sempre cantando. A cabana peou fogo durante a noite. O teu pai e os dois velhos morreram. A tua mãe passou aqui alguns dias de luto e depois voltou à sua aldeia.

Ela não ficou ferida? perguntou Chakliux.

Não. Só ela é que sobreviveu.

Chakliux ficou impassível, sem mostrar nem raiva nem desgosto. É claro que a mãe sobrevivera. Evidentemente. E os dois velhos que tinham morrido... Ele lembrava-se da mulher, Canção. E o marido era... Gaio Azul. Sim. Havia muitas razões para que seu pai, Bate-no-Chão, morresse, muitas maneiras de ele desagradar a K’os. Mas porquê matar os dois velhos? Talvez só para disfarçar a intervenção de K’os na morte de Bate-no-Chão. Talvez só para isso.

Irmão, partilho o teu desgosto disse Sok. Chakliux fitou o irmão e a tristeza apertou-lhe de tal modo a garganta que ele só conseguiu reagir às palavras do irmão com um gesto de cabeça.

Pato-de-Cabeça-Azul, não veio mais ninguém da aldeia de Rio Primo? perguntou Sok. À procura de vingança? Ninguém que perguntasse por Chakliux nem para onde ele fora?

Ninguém.

Quem eram os dois jovens caçadores que vinham com o pai e a mãe de Chakliux?

Tikaani e Quebra-Neve respondeu Pato-de-Cabeça-Azul. O homem olhou para Sok. Conhece-los?

Não respondeu Sok.

Eu conheço-os disse Chakliux em voz baixa.

Sim, pensou ele, e se eram os dois que vinham com a mãe, vinham à procura de vingança. Mas talvez acreditassem no que os velhos lhes tinham dito, que Chakliux não voltara à aldeia. Mas havia muita gente numa aldeia, velhos, esposas e filhos. Alguém lhes podia ter dito que ele passara por ali e que depois fora para os Caçadores de Morsas. De qualquer modo, aparentemente os velhos não estavam convencidos de que o povo de Rio Primo planejasse qualquer ato de vingança.

Era melhor ficar durante algum tempo, concluiu Chakliux, pelo menos até ver o que acontecia a Aqamdax. Além disso, alguém tinha que estar atento. Quem sabia quais eram os planos de K’os? Devia haver alguém na aldeia com os olhos abertos.

És bem-vindo se quiseres ficar aqui conosco. Precisamos de um bom contador de histórias nesta aldeia disse Pato-de-Cabeça-Azul a Chakliux.

Os outros concordaram em surdina, e Faz Tendas acrescentou:

Tens que saber que a tua mãe deixou as ossadas do teu pai no nosso cemitério.

As palavras do homem confortaram-no. As ossadas do pai... Outro laço que o ligava àquela aldeia.

Ficarei, afirmou Chakliux.

Yaa puxou Ghaden para o túnel de entrada. Estava quase perdendo a paciência com ele. Ele mantivera-se perto dela enquanto verificavam as armadilhas mas, no regresso à aldeia, ficara para trás até ela se ver obrigada a pegar-lhe no colo. O rapaz ia no seu quarto Verão era grande demais para andar no colo e crescido demais para se portar como um bebê. Yaa enfiou a cabeça no túnel. Água Castanha estava sentada no interior da cabana fazendo buracos numa pele de caribu com um furador de osso de pássaro.

Yaa virou-se e tirou o dedo da boca de Ghaden. Depois entrou na cabana de cócoras. Ghaden foi atrás dela, de joelhos, e depois atirou-se para cima das esteiras enroladas da cama. Enroscou-se, de costas para Água Castanha, e Mordedor deixou-se cair a seu lado.

Yaa mostrou as duas lebres, mas Água Castanha ignorou-a, dizendo:

Os caçadores não amaldiçoam as suas armas com dedos molhados.

Ghaden ficou imóvel e Água Castanha suspirou, virando-se depois para Yaa. Olhou para as lebres e perguntou:

Voltaste a montar as armadilhas?

A pergunta era um insulto. É claro que ela voltara a montar as armadilhas. Até Ghaden sabia uma coisa dessas.

Sim, respondeu Yaa.

Tira as tripas das lebres e esfola-as, disse-lhe Água Castanha. Depois leva-as para as lareiras. Sok e o irmão voltaram e trouxeram uma mulher dos Caçadores Marinhos. Lobo-e-Corvo resolveu mostrar-lhe que somos uma aldeia forte. Sok diz que ela era contadora de histórias quando vivia com o seu povo.

Yaa arregalou os olhos e olhou para Ghaden. Ambos adoravam serões de histórias, mas Ghaden ficou imóvel, como se estivesse dormindo.

Ela é mulher de Chakliux? perguntou Yaa.

Alguém disse que ela é mulher de Sok.

Mas Sok já tem uma mulher, e Chakliux não tem nenhuma.

Água Castanha encolheu os ombros e depois respondeu:

Falas demais. Faz o teu trabalho. Se todas as mulheres desta aldeia fossem como tu, nunca teríamos nada para comer.

Chakliux e Aqamdax ficaram esperando no exterior da cabana de Folha Vermelha. Os sobrinhos tinham vindo correndo recebê-lo, o mais novo com um esbracejar desordenado e uma tagarelice bem-disposta. O mais velho cumprimentara Chakliux com um sorriso tímido e depois fizera perguntas, muitas perguntas sobre os Primeiros Homens, como caçavam, sobre os seus iqyan, as suas armas. Entretanto, Aqamdax aguardava, de cócoras ao lado dos cães, com um olhar atento. Não dizia nada, embora pouco depois uma multidão de pessoas da aldeia, sobretudo mulheres, se tivesse reunido e apontasse para ela com esgares e queixos empinados, falando dela como se a mulher não estivesse ali ouvindo as suas palavras.

É claro que ela entendia pouco, pensou Chakliux, o que era bom, visto que nem sempre eles eram amáveis, apesar de todos falarem com admiração do sax de penas de Aqamdax.

Por fim, quando Sok saiu, várias mulheres fizeram perguntas sem olhar a delicadeza, mas ele não respondeu. Inclinou-se para pegar o braço de Aqamdax e fez sinal a Chakliux para que entrasse com eles.

Chakliux não sabia o que esperar de Folha Vermelha. Algumas primeiras esposas ficavam zangadas quando uma segunda esposa vinha para a cabana delas, mas outras, em especial as que acolhiam irmãs ou primas como segundas esposas, ficavam satisfeitas era mais uma pessoa para ajudar a costurar e a cozinhar, para preparar as peles e para tomar conta das armadilhas. Mas como podia qualquer mulher do Povo Rio reagir ao ver que a segunda esposa do marido era uma mulher dos Primeiros Homens que mal sabia falar a língua do Povo Rio?

Chakliux deu uma olhadela a Folha Vermelha e viu-lhe os olhos inchados e as lágrimas.

Serás sempre minha esposa, disse-lhe Sok, mas Folha Vermelha desviou o olhar.

Mesmo que ela te dê muitos filhos? perguntou a mulher por fim, em voz baixa.

Que melhor filho há do que Leva-Muito? respondeu Sok. Que filho me poderia dar mais alegria do que Chora-Alto?

Sok tentou rir, mas o som era estranho, como se o riso não fosse dele.

Folha Vermelha fez beicinho e depois aproximou-se de Sok quando este trouxe vários cestos de erva finamente tecidos e um agulheiro de pele de morsa do tamanho da sua mão e cheio de pedaços de pele de foca atravessados por muitas agulhas de todos os tamanhos e feitios.

Também trouxe carne de morsa para os nossos filhos, e um odre de óleo de baleia disse ele. O que lhes dá mais força do que o óleo e a carne de animais tão possantes como as baleias e as morsas?

Esta mulher não presta na cama de um homem declarou Sok, apontando com o queixo para Aqamdax. Mas é boa a fazer cestos e esteiras. Pode fazer as coisas que tu não quiseres. Pode tomar conta dos nossos cães e ir apanhar lenha. Pode arranjar o peixe e manter a neve empilhada à volta da nossa cabana no Inverno. Pensei que, de todos os presentes que eu te trouxe, seria ela o que mais te agradaria. Folha Vermelha levantou a cabeça e observou Aqamdax. Esta enfrentou o olhar da mulher.

Aqui está. Também trouxe isto para ti disse Sok, tirando uma pele de lontra-marinha de um dos seus fardos.

Folha Vermelha pegou a pele, passou a mão pelo pelo espesso e macio, virou-a ao contrário e cheirou-a.

É bonita observou ela. Olhou de novo para Aqamdax. Ela não entende a nossa língua?

Só algumas palavras, respondeu Sok.

Não tenho tempo para me preocupar com ela, disse Folha Vermelha. Não lhe posso ensinar a falar a verdadeira língua e costurar ao mesmo tempo.

Eu não a trouxe para te dar mais trabalho, disse Sok à mulher. Olhando por cima do ombro para Chakliux, acrescentou: Chakliux ensina-a. O que quiseres que ela faça, diz a Chakliux.

Fica aqui, então! gritou Yaa, e deixou Ghaden sozinho na cabana. Vou para as lareiras da comida.

Levava as lebres, sem tripas e esfoladas, na mão, com o braço estendido para não encostarem na parka.

Não era fácil ser mãe, em especial agora que a ferida de Ghaden sarara. Quanto mais forte ele estava, mais lhe desobedecia. Bem, ela não ia faltar à festa. Além disso, queria contar às amigas que vira a mulher dos Primeiros Homens antes de todo mundo.

Gostaria de ter largado as armadilhas e ido correndo contar a todos que Sok e Chakliux vinham chegando. Agora as amigas podiam dizer que ela inventara a história, apesar de saberem que não dizia mentiras.

Tinha a mente tão cheia do que iria contar às amigas que nem viu Dança-no-Gelo senão quando ele estava a seu lado.

Sok e o irmão de Rio Primo estão de volta disse ele. Vi-os quando iam a chegar à aldeia.

Eu já os vi disse Yaa, arrependendo-se de ter falado.

Mentirosa!

Dança-no-Gelo fez um esgar e, de súbito, Yaa lembrou-se da alegria que sentira ao dar-lhe um murro e do sangue que ele deitara pelo nariz. O rapaz era grande e mais velho do que ela, mas não era tão corajoso como fingia ser.

Desta vez, ela não lhe respondeu. Limitou-se a encolher os ombros. Quando ele percebeu que ela não iria fazer perguntas, atirou a cabeça para trás e desatou a correr, deixando-a sozinha. Yaa suspirou e abrandou o passo para não ter que apanhá-lo. Quando passou pela cabana de Folha Vermelha, andou ainda mais devagar, esperando ver a mulher dos Primeiros Homens, Sok ou Chakliux, mas até os cães estavam calados, exceto um de olhos dourados do povo de Rio Primo, que Yaa reconheceu. Ficou admirada ao ver que o cão voltara para a aldeia. Uma das amigas dissera-lhe que os velhos não o queriam ali, embora ela não soubesse ao certo porquê.

Em seguida, aproximou-se da cabana de Flor Malhada. A mãe estava lá fora e disse a Yaa que a filha já estava nas lareiras da comida. Yaa apressou o passo e quando chegou às lareiras, examinou o grupo de crianças e levou as lebres para a panela mais distante do local em que Dança-no-Gelo se encontrava. Já se formara à volta dele um grupo de rapazes mais pequenos, e Dança-no-Gelo estava falando-lhes da mulher dos Caçadores Marinhos.

A avó Serve-se-Sozinha tirou-lhe as lebres da mão. Como eram muito grandes, Yaa lembrara-se de as assar no espeto, mas Serve-se-Sozinha pôs as lebres numa prancha de madeira e começou a cortá-las em pedaços com a sua faca de mulher.

Como se adivinhasse os pensamentos de Yaa, levantou a cabeça e disse:

Elas são boas demais para que a gordura caia no fogo.

É claro que todos sabiam que a gordura caída no fogo não se perdia. As ervas, os frutos e as árvores serviam-se dela para crescer. Os espíritos cheiravam-na na fumaça e evitavam fazer as patifarias que tinham combinado. Mas as pessoas também precisavam de gordura, e Yaa sentia-se orgulhosa por as suas lebres darem alegria às barrigas e força aos braços e às pernas. Lambeu o sangue da lebre crua que tinha na mão e nos dedos e depois avistou Flor Malhada com um grupo de amigas. Tinham escolhido um local para o qual o vento empurrava o fumo das lareiras, afastando os mosquitos.

Yaa foi juntar-se ao grupo e ficou escutando durante algum tempo, antes de falar, rindo quando Bom Punho descreveu a luta que travara com o irmão e depois levantando-se para ver o novo pente que Corta-Lenha-Depressa trazia no alto da cabeça, um presente do jovem caçador que estava destinado a ser seu marido assim que ela começasse os seus períodos lunares.

Corta-Lenha-Depressa era dois anos mais velha do que Yaa, mas era estranho pensar nela como esposa de alguém. Apesar de ser mais velha, estava, em certos aspectos, mais longe de ser uma mulher do que Yaa, como todas aquelas amigas. Nenhuma delas era mãe como Yaa. Risca Verde levava o irmão mais novo atado às costas numa prancha de embalar, mas cuidar de um irmão ou de uma irmã, de um primo ou de um sobrinho, não era a mesma coisa que ser mãe. Às vezes, quando estava com as amigas, Yaa sentia-se uma velha junto das crianças; no entanto, ainda não tinha os olhos abertos para as coisas duras da vida.

Por fim, a conversa enveredou por Sok e Chakliux. Várias meninas riram por a mulher nova ser esposa de Sok e não de Chakliux. Ah, Chakliux, diziam, que não conseguia encontrar alegria, apesar de Mirtilo ter sido estúpida ao escolher Caça-Raízes, e Neve-no-Cabelo... Puseram a mão na boca e riram. Algumas das mais velhas lembravam-se do tempo em que Neve-no-Cabelo brincava com elas, antes de o sangue lunar a separar das brincadeiras e das crianças. Parva! Agora não tinha marido, e qual o homem que a queria se ela não respeitava uma pessoa cujo pé de lontra lhe dava tanto poder?

Dizem que a mulher dos Primeiros Homens é feia, cochichou Risca Verde.

As meninas inclinaram a cabeça e Corta-Lenha-Depressa acrescentou:

O meu pai disse-me que não olhasse para ela, porque a feiúra dela pode passar para a minha cara e depois Rato Almiscarado não me quer.

Yaa abanou a cabeça. Corta-Lenha-Depressa tentava sempre desviar a conversa para poder falar de Rato-Almiscarado. O rapaz era filho da irmã do pai dela e estava-lhe prometido desde bebê. As tias de Yaa não tinham filhos, e a tia de Flor Malhada era velha; todos os seus filhos tinham esposas. O mesmo se passava com as outras meninas. As tias tinham morrido, e ou não tinham filhos ou estes eram novos ou velhos demais. Corta-Lenha-Depressa não tinha verdadeiramente um motivo para se considerar melhor do que as outras pelo fato de já estar prometida. Não era a mesma coisa que um caçador a ter pedido por ela ser bela ou hábil na costura.

Estás enganada, disse Yaa.

As meninas olharam para ela, admiradas. Até a irmã de três anos de Bom Punho, Rede, que estava entretida com uma mão-cheia de seixos coloridos, levantou a cabeça. Rede enfiou um dos seixos na boca e Bom Punho, sem desviar o olhar de Yaa, meteu um dedo na boca da irmã e retirou a pedra.

Como sabes? perguntou Flor Malhada.

Vi.

As perguntas surgiram depressa demais para que Yaa pudesse responder, até que uma das meninas mais velhas, Colar Azul cujas queixas de dores nos seios davam a saber a todas que, dentro de pouco tempo, ela abandonaria o círculo das crianças para ocupar um lugar entre as mulheres mandou-as calar e ordenou a Yaa que se explicasse.

Yaa sentiu-se eufórica de entusiasmo. Não era muito freqüente ser alvo da atenção de Colar Azul. Falou depressa, contando que ela e Ghaden andavam verificando as armadilhas. Disse que a mulher não era feia, que as roupas dela eram diferentes, como aquelas que a mãe de Ghaden usava quando era viva. Não mencionou o nome de Daes; não se ia arriscar a fazer tal coisa mas, mesmo assim, as meninas viraram a cara para o lado quando ela falou na mulher morta.

Depois de Yaa ter contado a sua história, elas fizeram-lhe perguntas até a menina não ter mais nada para lhes contar. Concentraram-se então noutros assuntos, e daí a pouco Corta-Lenha-Depressa começou de novo a gabar-se de Rato Almiscarado.

Durante algum tempo, Yaa esteve sentada ao pé delas, mas depois começou a sentir-se inquieta, lembrando-se de repente que deixara Ghaden sozinho na cabana. Quem sabia o que podia fazer uma criança, sozinha, sem ninguém a olhar por ela? Yaa aceitara ser mãe dele; não era uma coisa de que se pudesse esquecer quando estava cansada do excesso de trabalho.

Levantou-se e, apontando com o queixo para a irmãzinha de Bom Punho, disse:

Tenho que ir tomar conta de Ghaden. Eu volto.

A maior parte das meninas, porém, estava conversando sobre outra coisa qualquer, e Colar Azul já abandonara o grupo, dirigindo-se, rebolando, para o grupo dos rapazes e inclinando-se para um dos jovens caçadores a fim de lhe dizer qualquer coisa ao ouvido.

Aquela não tarda a estar casada, pensou Yaa. Mas quando as meninas mais velhas partiam para se tornarem esposas, os bebês cresciam e iam ocupando o lugar delas, o que era bom, era assim que as coisas deviam ser.

Pouco faltava para que Ghaden fosse se juntar aos rapazes. Parecia ter decorrido tanto tempo desde o último Inverno, quando ele fora esfaqueado. Com Mordedor vivendo na cabana deles, Yaa começara a sentir-se segura. Mas, se o assassino fosse alguém da aldeia, talvez estivesse à espera que eles se esquecessem, que Yaa estivesse tão ocupada com a sua própria vida que deixasse de se preocupar com Ghaden.

Quando Yaa chegou à cabana, entrou de cócoras, chamando Ghaden. Mordedor deu um salto rápido e começou a lamber-lhe o rosto antes que ela conseguisse levantar-se e afastá-lo. Ghaden sentou-se, esfregando os olhos. Yaa respirou fundo e riu das suas preocupações exageradas.

Venho buscar-te para ires comigo às lareiras arranjar comida disse ela.

Não tenho fome.

Ghaden, tu tens sempre fome!

Não.

Ghaden, tens de vir.

Ele desatou a chorar, mas Yaa agarrou a parka dele e enfiou-lhe pela cabeça. Depois, esfregou-lhe o rosto com gordura para o proteger dos insetos. A princípio, ele ofereceu resistência, mas por fim deixou-se ir, coxeando. Yaa teve a sensação de que estava tratando de um bebê.

Podemos levar Mordedor!

Bem sabes que Mordedor rouba comida se o levarmos.

Ghaden enfiou o dedo na boca. Em geral, Yaa tirava-o, mas dessa vez não lhe tocou. Pegou as tigelas da comida, atou uma corda entrançada ao pescoço de Mordedor e prendeu-o lá fora. Ghaden abraçou o cão e foi atrás de Yaa. Andava devagar, mas sem se lamentar nem chorar.

Quando chegaram às lareiras, Dança-no-Gelo e três outros rapazes passaram por eles. Dança-no-Gelo parou e encostou a cara à de Yaa.

Mentirosa disse ele. Eu sei o que disseste a Colar Azul e às meninas.

Yaa pegou a mão de Ghaden e apertou o passo, mas Dança-no-Gelo agarrou o capuz da parka de Ghaden, agachou-se e disse:

A tua irmã é uma mentirosa. Sabias?

Ghaden enfiou o dedo na boca e Dança-no-Gelo deu uma gargalhada. Pegou a mão de Ghaden, abriu a boca e meteu o dedo do rapazinho lá dentro.

Eu devia arrancá-lo à dentada, para não ficares um bebê para toda a vida.

O meu cão te mataria disse Ghaden. Dois dos outros rapazes riram.

É assim mesmo! Aperta ele! disse Primeira Árvore a Ghaden.

Dança-no-Gelo levantou-se e agarrou Primeira Árvore. Yaa puxou Ghaden. Dança-no-Gelo disse qualquer coisa à menina que ela não ouviu. Yaa viu a mãe mexendo numa panela e aproximou-se dela. Apesar das suas fanfarronices, Dança-no-Gelo não causava problemas quando os adultos pudessem vê-lo.

Os outros homens já tinham comido quando Sok, Chakliux, Folha Vermelha e a mulher dos Primeiros Homens chegaram às lareiras. Assim que Ghaden os viu, desatou a chorar. Por fim, Boca Feliz disse a Yaa que o levasse para casa.

Quando chegaram à cabana, Yaa pôs mais lenha na lareira e tirou a parka de Ghaden, limpou-lhe os restos de comida da boca e embrulhou-o nos cobertores. Mordedor deitou-se ao lado dele mascando um pedaço de carne seca que Yaa roubara para ele de um cesto de comida.

A menina afagou o cabelo de Ghaden e cantou até o choro dele se resumir a um ou outro soluço. Depois, inclinou-se sobre ele e disse em voz baixa:

Tens que me explicar porque estás chorando, Ghaden. Tens medo de Sok? Tens medo de Chakliux?

Ghaden não respondeu. Fechou os olhos e aproximou-se mais de Mordedor. Levantou a cabeça e escondeu o rosto no pelo macio do pescoço do cão.

 

Era mais difícil do que o desgosto que ele sofrera da última vez que estivera na aldeia de Rio Próximo, pior do que descobrir que Aqamdax saíra da aldeia dos Primeiros Homens. As mãos de Cen agarraram-se ao remo, e os músculos das pernas crisparam-se, como se pudessem tirá-lo do iqyax que navegava nas águas sombrias do rio e levá-lo para a cabana onde Ghaden dormia.

Passara propositadamente vários dias sem fazer nada com a tenda montada à beira de um regato de águas vagarosas à espera daquela noite de lua nova, escura e silenciosa. Agora passava pela aldeia, afagando a margem distante do rio, e, apesar de não ver nada na escuridão, não pôde deixar de olhar para aquelas cabanas nem de pensar no filho.

Por duas vezes atravessara aquele rio, quase decidido a ir à aldeia, mas, ao mudar o remo para o lado esquerdo do iqyax para dar a curva, lembrou-se das acusações dos aldeões, da sua raiva, e recordou a si próprio que nunca conseguiria ir buscar o filho se ele próprio morresse. E embora, como espírito, pudesse ter alguma oportunidade de se vingar, era melhor continuar vivo, procurar vingança como guerreiro e ter a satisfação de ensinar o filho a caçar e a negociar.

As pessoas da aldeia de Rio Primo iriam recebê-lo bem. Era sempre assim. Como o Verão ainda não acabara, talvez ainda estivessem nos seus acampamentos de pesca à beira do rio.

A raiva parecia alimentar escaramuças freqüentes entre as duas aldeias, apesar de ambas terem antepassados comuns com o povo de Rio Próximo. Talvez ele encontrasse homens de Rio Primo que o ajudassem a recuperar o filho e a vingar-se. Visitara aquela aldeia há dois ou três Verões. K’os recebera-o na sua cabana. Era curandeira e o marido era o chefe dos caçadores, apesar de estar velho e perdendo o respeito dos jovens.

Se K’os ainda estivesse lá, iria visitá-la em primeiro lugar. Ela estava sempre ansiosa por mercadorias, e ele tinha muitas coisas dos Primeiros Homens que a mulher iria apreciar.

Ouviu vários cães da aldeia começarem a latir. Talvez o sentissem remando, mas o rio era tão largo que não devia ser por isso. O mais provável era que tivessem visto um porco-espinho ou um mocho, mas Cen remou mais depressa, para o caso de o barulho chamar a atenção de algum caçador.

Remou com força até se afastar bastante da aldeia. Só pararia de manhã, e apenas para repousar um pouco e comer um pedaço de peixe seco. Não queria que nenhum caçador de Rio Próximo o visse, caso ele resolvesse vingar-se outra vez da morte de Tsaani e de Daes.

 

Cães. Lutavam, mordendo os braços de Aqamdax, atirando os corpos pesados contra as pernas dela para a derrubar e morder.

Acordou sobressaltada, com a respiração ofegante, até que o sonho a abandonou. Deixou-se ficar quieta e por fim percebeu que tinha o braço de Sok em cima da barriga. Gostaria de não dormir com ele até ter a sua própria cabana. Não podia suportar o olhar triste de Folha Vermelha sempre que Sok lhe tocava.

Tentara explicar a Folha Vermelha que não sentia nada por ele, que nada faria para ganhar os seus favores, mas Folha Vermelha começara a desfiar as virtudes de Sok, enumerando, tanto quanto Aqamdax conseguira perceber, os dotes e os poderes do marido, até encher a cabana com os seus gritos e obrigar Aqamdax a sair. Juntara-se ali um grupo de mulheres, com a mão na boca, mas ela estava habituada a ser alvo de troça; por isso, empinou a cabeça e encaminhou-se para as lareiras da aldeia, começando a mexer nas panelas como se nada tivesse acontecido.

Do outro lado da cabana, Folha Vermelha suspirou e disse qualquer coisa dormindo. Sok gemeu e tirou o braço de cima da barriga de Aqamdax. Ela afastou-se dele. Desde que chegara àquela aldeia que não dormia bem. Acordava no meio da noite, e as preocupações embrenhavam-se nos seus pensamentos até chegar a hora de acender o fogo da manhã e ir buscar lenha.

Perdera a conta aos dias que passara ali. Mais de dez, disso ela tinha certeza, mas ainda não de uma lua cheia a outra.

Todos os dias Chakliux lhe ensinava mais alguma coisa da língua dele. Parecia adivinhar as palavras que ela devia aprender em primeiro lugar, mas mesmo assim Aqamdax tinha que pensar cada frase na sua própria língua antes de se lembrar da palavra na língua do Povo Rio, o que lhe retardava os pensamentos e lhe embaralhava a fala. Folha Vermelha não a ajudava e parecia divertir-se atrapalhando o seu esforço de aprendizagem. Sok não tinha paciência, mas os dois filhos começavam a tratá-la como amiga, rindo dos seus erros, mas ajudando-a também a corrigi-los. Aqamdax já começara a fazer um impermeável de tripa de caribu para cada um deles, embora Sok tivesse duvidado da utilidade de tal peça de vestuário para um rapaz do Povo Rio e Folha Vermelha tivesse reagido com fúria.

Também fizera um cesto para Folha Vermelha, mas a mulher jogara-o fora e pisara-o com desdém.

Aqamdax dizia a si própria que as coisas haviam de melhorar. Dentro de pouco tempo, saberia falar a língua do Povo Rio suficientemente bem para contar histórias, e Sok já lhe dera as peles de caribu que eram necessárias para construir uma cabana, apesar de ela não saber ao certo como se fazia tal coisa. Esperava que algumas mulheres da aldeia a ensinassem.

Elas pareciam tratá-la bem quando Aqamdax fazia o seu turno nas lareiras da comida. Uma mulher chamada Boca Feliz até a abordara e mantivera uma conversa animada que ela percebera vagamente. Mesmo assim, a aceitação de Boca Feliz dera-lhe esperança de que outras mulheres viessem também a considerá-la uma amiga.

Aqamdax virou a cabeça para ver o orifício da fumaça. Estava muito escuro. Era noite de lua nova, mas faltava pouco para o céu clarear e ela poder se levantar. Lembra-te que não ficarás aqui para sempre, pensou ela. Um dia, alguém dos Primeiros Homens virá aqui fazer negócio.

Então ela iria com ele, regressaria ao seu povo, à sua aldeia, e voltaria a ser contadora de histórias.

O latir dos cães acordou-o. Ghaden procurou Yaa, apalpando os cabelos escuros e macios da menina e enfiou o dedo na boca. Sentiu Mordedor mexer-se a seu lado e ouviu-o começar a rosnar. Pôs-lhe a mão no dorso, mas Mordedor levantou-se, com as pernas esticadas, e dirigiu-se para a porta. Ghaden ficou à espera, sustendo a respiração.

Talvez fosse ela. Ghaden sabia que ela viria buscá-lo. Poderia Mordedor protegê-lo das pessoas, e dos fantasmas? O que faziam os fantasmas? Transformavam as pessoas em fantasmas? Se ele fosse um fantasma, ainda viveria naquela cabana com Yaa, Água Castanha e Boca Feliz? Poderia brincar com os outros meninos ou teria de pairar como a fumaça? Pior, o fantasma mataria Mordedor!

Ouviu o cão rosnar outra vez e abanou o braço de Yaa até ela acordar.

O que foi? perguntou ela com uma voz sonolenta. Pareceu-lhe que Yaa estava zangada com ele, apesar de não lhe ver a cara no escuro.

Algo está lá fora, disse Ghaden em voz baixa.

São só os cães latindo. Dorme.

Yaa deixou-se cair de novo nos cobertores, mas Ghaden debruçou-se sobre ela e insistiu:

Talvez seja o fantasma. Yaa sentou-se.

Que fantasma?

Aquele que veio com os caçadores. Aquele que vive com o homem-lontra.

A mulher dos Primeiros Homens?

Ela é um fantasma.

Ghaden! Ela é uma mulher. Tal como nós. Bem, quase como nós.

Ghaden sentiu as lágrimas sufocando-o. Yaa não gostava que ele chorasse, por isso fechou os olhos com força e tentou conter as lágrimas.

Ghaden, porque achas que ela é um fantasma? perguntou Yaa baixinho.

Ela é a minha outra mãe respondeu Ghaden, mas, quando ele falou, as suas palavras foram acompanhadas de um soluço. Fechou a boca, amargurado por Yaa ter percebido que ele estava chorando.

Chiu, disse ela.

Yaa sentou-se e pegou-lhe no colo. Mordedor foi para junto deles, enfiou o nariz no rosto de Ghaden e lambeu-lhe as lágrimas.

Não te aflijas, Ghaden disse-lhe Yaa. Ela não é um fantasma mas, mesmo que fosse, estás em segurança conosco.

De manhã, Yaa deixou Ghaden na cabana e foi às lareiras. Passou pelo local em que a mulher dos Caçadores Marinhos de Sok estava construindo a sua nova cabana, esperando vê-la ali trabalhando. Vários velhos cavavam um círculo na terra com grandes lâminas de ardósia. Em geral, eram as mulheres que faziam aquilo, mas muitas ainda estavam nos pesqueiros de Verão com as suas famílias, embora voltassem àquela aldeia de Inverno antes de partir para a caça ao caribu.

Yaa mal se lembrava da última vez que estivera numa caçada ao caribu. Fora quando o pai ainda tinha forças para caçar, mas depois ele envelhecera e agora, sem um homem na cabana, dependiam do filho casado de Água Castanha para lhes trazer carne de caribu, apesar de ela, a mãe e Água Castanha terem participado na pesca e na seca do salmão para o Inverno.

Passou devagar pelo local da cabana, arranjando um pretexto para parar e apertando os atilhos de couro cru das botas desde o peito do pé até aos tornozelos. Começou pelo pé esquerdo e depois passou ao direito, mas a mulher dos Caçadores Marinhos não apareceu. Yaa ficou olhando para os velhos, até que Pato-de-Cabeça-Azul parou de cavar e ralhou com ela, chamando-lhe preguiçosa. Yaa desatou a correr para as lareiras, escolheu uma panela e despejou a magra contribuição de Água Castanha constituída por salmão seco e uma mão-cheia de vacínios frescos. Colocou mais lenha numa das fogueiras e depois serviu-se de um cabo de madeira de salgueiro para tirar uma pedra das brasas. Levou-a para junto da panela, atirou-a lá para dentro e ouviu-a assobiar, transmitindo o seu calor à carne e ao caldo.

Ficou desapontada por a mulher dos Caçadores Marinhos não estar trabalhando na sua cabana. Devia estar quase sempre lá dentro, pensou Yaa, porque era raro mostrar-se. Bem, como segunda esposa, a mulher dos Caçadores Marinhos teria que fazer o que Folha Vermelha lhe mandasse, tal como a mãe de Yaa tinha que fazer o que Água Castanha mandava.

Yaa mexeu a panela outra vez e olhou para o céu. Água Castanha dissera-lhe para ficar ali até que o Sol tivesse passado dois palmos do cimo das árvores, a nordeste. Ela levantou a mão na direção da copa das árvores. Um e meio. Pôs mais lenha em duas fogueiras, nos lugares em que abafava menos as brasas. Não se importava de ir apanhar lenha nem de alimentar o fogo ou mexer a comida, mas não gostava de ir buscar pedras quentes nem de as deixar cair dentro das panelas. Até as pedras escolhidas com mais cuidado lisas e redondas às vezes se partiam aos pedacinhos quando as juntavam à carne. Havia sempre a possibilidade de saltar uma lasca que lhe cortasse as mãos ou o rosto. Bom Punho tinha uma cicatriz por cima da sobrancelha esquerda causada pelo golpe de uma pedra feito no ano anterior. Depois, evidentemente, alguém tinha que procurar todas as lascas da pedra e tirá-las da comida. Yaa já nem se lembrava quantas vezes tivera que fazer isso. Mesmo assim, apesar de ser cuidadosa, uma vez Treina-Cães partira um dente numa lasca que ela não encontrara.

Yaa passou para a panela do lado. Naquele momento, estava sozinha nas lareiras, embora percebesse que as outras mulheres tinham saído dali pouco tempo antes, visto o fogo estar ardendo muito bem, e não tardariam a voltar. Mexeu a carne, sentiu o calor subindo, mas sabia que era preciso mais uma pedra. Estava apanhando a pedra com o cabo de salgueiro quando viu a mulher dos Caçadores Marinhos caminhando na sua direção. Por muito que quisesse vê-la, Yaa não desviou olhar da pedra até conseguir puxá-la para junto da panela. Deixou-a cair lá dentro, levantou a cabeça e cumprimentou a mulher.

A mulher dos Caçadores Marinhos sorriu a Yaa e levantou uma pele de caribu. Apontou para as panelas com o queixo e depois para a pele, a fim de que Yaa percebesse que ela queria levar carne para a cabana de Folha Vermelha.

Folha Vermelha dizer... Vir... Buscar.

Era como se a fala entrecortada da mulher tivesse roubado as palavras a Yaa, que se limitou a fazer um gesto com a cabeça. A mulher levou-lhe a pele e ela encheu-a.

A mulher dos Caçadores Marinhos agradeceu-lhe e Yaa inclinou a cabeça. Depois, recomeçou a mexer a comida. Quando a mulher ia a afastar-se, Yaa gritou-lhe:

Sou Yaa. A minha mãe é Boca Feliz. O meu irmão é Ghaden.

A mulher virou-se

Não falar, disse ela.

Yaa pôs a mão no peito e pronunciou:

Yaa.

Aqamdax. Yaa levantou o queixo na direção da mulher.

Aqamdax? perguntou ela.

Sim. A mulher afastou-se. Aqamdax, pensou Yaa. Era uma palavra que ela não conhecia. Uma palavra dos Caçadores Marinhos, sem dúvida, e difícil de pronunciar. A última parte parecia mais uma engasgadela do que um som. Não era de admirar que as pessoas não a tratassem pelo nome.

Daes tinha um nome do Povo Rio. Talvez aquela mulher, depois de viver há algum tempo na aldeia, adotasse um nome que todos conseguissem pronunciar. Em seguida, pensando em Daes, Yaa percebeu que aquela nova mulher era muito parecida com ela. Era sempre a mesma coisa se havia muita gente. Os caçadores da aldeia de Rio Primo, quando iam ali negociar, pareciam ser todos iguais.

Daes conservara os cabelos compridos, e era raro apanhá-los e afastá-los da cara. Cortava uma franja de um lado ao outro da testa, como aquela nova mulher dos Primeiros Homens. De repente, Yaa deixou de mexer a comida. Não era de admirar que Ghaden não quisesse sair. Aqamdax era mesmo parecida com Daes. Talvez ele julgasse que ela era o fantasma da mãe.

 

                   ACAMPAMENTO DE PESCA DE RIO PRIMO

K’os enrolou as esteiras da cama e atou-as com uma tira de couro cru entrançado. Detestava os três longos dias de caminho até à aldeia de Inverno. Ficariam ali apenas uma lua e depois partiriam para a caça ao caribu, e o que era pior do que isso? Empilhar pedras e reconstruir sebes de ramos para encaminhar os caribus para os caçadores. Depois, esquartejar e transportar a carne, um trabalho quase todo feito pelas mulheres.

Nos últimos anos, K’os resolvera ficar na aldeia de Inverno e encontrara uma jovem disposta a acompanhar o marido e a fazer o trabalho dele na esperança de vir a ser segunda esposa. K’os não se importava de ter outra mulher na cama de Bate-no-Chão durante a caça ao caribu, mas uma segunda esposa? Não. Para quê arriscar-se a que Bate-no-Chão fosse influenciado pelas necessidades de outra mulher, pelos desejos dela ou pelas idéias do pai dela? K’os reparava sempre que elas eram bem pagas em carne, e recebiam até alguns colares, mas encontravam sempre motivos para regressarem às cabanas das mães.

Nesse ano, porém, K’os não tinha marido, e isso implicava que ela tinha que voltar a ir à caça. Faria a sua parte do trabalho construir sebes, esquartejar e esfolar mas mesmo assim estaria atenta.

Nesse ano, os jovens caçadores tinham resolvido romper com outra tradição e ela receava que, na sua ausência, eles se deixassem convencer pelos velhos e voltassem às suas lanças e aos seus lançadores, sem terem oportunidade de provar que os seus arcos e as suas setas curtas também funcionavam, talvez ainda melhor.

Juntou o rolo dos cobertores ao monte dos seus pertences. Os seus dois cães levariam a tenda de pele de caribu, a cama e os utensílios de cozinha. Ela levaria a bolsa dos remédios, as plantas que colhera e secara e as poucas armas que possuía.

Protegeu os olhos do sol e observou o acampamento. Tinham ficado poucas famílias, e portanto era fácil ver que a tenda de Tikaani ainda estava de pé. A irmã dele era vagarosa. K’os retirou dois peixes secos de um sael e deu um a cada cão. Quase todos os velhos julgavam que os cães trabalhavam melhor com o estômago vazio, mas ela sempre os alimentara bem e nunca tivera problemas com eles.

Cães e homens eram muito parecidos: maus quando tinham a barriga vazia. K’os riu e sentou-se no rolo da cama. Tirou um peixe e começou a comer, de costas para o acampamento de Verão, para poder ver o caminho que vinha do rio.

A princípio, julgou tratar-se de uma visão o corpo de um urso com a cabeça e o bico de uma águia gigante. Quando vários velhos encontraram coragem para avançar e ir ao encontro do estranho animal, ela percebeu que se tratava apenas de um homem transportando um grande fardo e um barco coberto por uma pele. Um comerciante dos Caçadores Marinhos tão longe do mar?

Nunca fora pessoa para correr a cumprimentar comerciantes ou caçadores sem perceber que tipo de homens eles eram. Uma vez, essa imprudência custara-lhe muito caro. Não repetiria o erro. Agachou-se no meio dos cães, com um braço à volta do pescoço de cada animal, e falou-lhes numa voz firme até o ladrar dos animais se transformar em ganidos fracos e agudos.

Quando o homem se aproximou o suficiente para ela lhe ver a cara, recordou-se dele, lembrou-se de o ter convidado para a sua cama. Fora apressado demais para o gosto dela, mas mostrara-se generoso na recompensa. O seu rosto mudara mais do que seria de esperar da passagem dos anos. Partira o nariz e tinha uma cicatriz que lhe repuxava a boca, mas os malares e os ossos das faces eram os mesmos

O xamã Falador levantou-se, endireitou os ombros e encolheu a barriga flácida. Aproximou-se do homem e pouco depois discutia com ele, afirmando que ele nunca estivera naquela aldeia. K’os fez um sorriso trocista. O que sabia Falador?

K’os levantou-se e encaminhou-se lentamente para o comerciante. O homem pousara o barco e K’os reparou que ele trazia um chapéu em bico. Parecia ser de madeira, esguio e abaulado como o seio de uma mulher, mas suficientemente grande para assentar na cabeça de um caçador. Fora impermeabilizado com tiras de intestino. K’os percebia a razão de ser de tal objeto, sobretudo no mar. Protegia os olhos do sol e até da chuva. Um caçador poderia usá-lo, ou um xamã. De qualquer modo, devia ter poder. Ela queria aquele chapéu e, quando o comerciante partisse, ficaria com ele.

Ele já esteve aqui disse K’os a Falador. Falador virou-se para ela, e K’os reparou no olhar sombrio e enraivecido do homem. Falador não gostava dela. Era uma mulher, e mais nova do que ele, mas o seu poder era grande. Tinha medo dela. Fora o primeiro a acusá-la da morte de Gguzaakk, e o primeiro a retirar tais acusações depois de três noites de dores de estômago e de fezes soltas e sanguinolentas. Nem sequer tivera a decência de lhe agradecer os remédios que ela lhe dera e que o aliviaram das dores quase tão depressa como tinham começado.

Ele já esteve aqui, repetiu ela. Esteve hospedado na minha cabana do acampamento de pesca, como convidado e amigo do meu falecido marido.

Esta referência a Bate-no-Chão seria suficiente para convencer os poucos que ainda duvidassem. Quem se arriscaria a mencionar um morto, a menos que essa menção tivesse grande importância?

K’os avançou e examinou o rosto do comerciante, tão perto que o bico do chapéu quase lhe tapou a cabeça. Sim, era a mesma pessoa. Ela não estava enganada. Ah, como se chamava ele? Qualquer coisa ligada à terra. Sim, tundra, Cen.

O que aconteceu ao teu rosto, Cen? perguntou ela, sorrindo do seu próprio atrevimento.

A pergunta dela surpreendeu-o. A mulher não era nova, mas um homem teria dificuldade em perceber isso. O seu rosto era belo, mas quem conseguia acumular a sabedoria fria presente naquele olhar sem viver há muitos anos? O homem ia respondendo-lhe com um gracejo, mas, por qualquer motivo, as palavras que lhe saíram da boca foram ríspidas, irritadas. Palavras que diziam a verdade.

O povo de Rio Próximo matou a minha mulher e por pouco não me matou também, respondeu ele. Eles ainda têm o meu filho, a menos que também o tenham matado.

Juntara-se mais gente, e os caçadores aproximaram-se tanto que o apertavam por todos os lados. Falavam uns com os outros em voz baixa, e as suas vozes lembravam um ronco surdo na garganta de um cão. O homem arregaçou a manga para eles verem o seu punho ferido.

O ronco transformou-se num bramido de fúria, mas a mulher que estava à frente dele levantou a voz e gritou:

Temos um inimigo comum. Eles matam o nosso peixe e amaldiçoam a nossa caça. Eles viraram o meu próprio filho contra nós.

Cen viu diversos velhos recuando e empurrando os jovens que se encontravam no meio da multidão, mas os caçadores afastaram-nos.

Tencionas vingar-te? perguntou ela de chofre, com uma voz sibilante.

Sim. E quero o meu filho, respondeu o homem. Ela virou-se, de braços abertos, alargando assim o círculo das pessoas.

Como vêem, não somos os únicos que o povo de Rio Próximo amaldiçoou, disse ela, olhando para Cen por cima do ombro. Aqueles que têm os mesmos inimigos deviam unir as suas forças. A nossa aldeia de Inverno fica a três dias de caminho. Vens conosco?

O homem olhou para ela. A pergunta ultrapassava a simples expectativa de fazer negócio.

Há alguma cabana de comerciantes onde eu possa ficar? Já não tenho os meus postes.

Há uma cabana onde podes ficar afirmou ela. Depois, obrigou-o a fechar a mão esquerda, arregaçou-lhe a manga e a sua mão pairou por instantes sobre o cabo da faca que o homem usava naquele local. Passou-lhe os dedos fortes pelo pulso, apalpando-lhe o inchaço que lhe apanhava o braço.

Ele reparou que as mãos dela eram as mãos de uma velha, com a pele manchada e grandes veias arroxeadas. Perguntou a si próprio até onde iria aquela velhice até aos seios, à barriga? Ou o corpo dela seria jovem como o seu rosto?

Tenho uma coisa que te alivia as dores no pulso disse ela.

Consigo suportar a dor, mas preciso de recuperar a minha força.

Talvez eu possa ajudar-te insistiu ela, encolhendo os ombros. Ou talvez não, mas as dores enfraquecem a vontade.

Eu vou contigo, respondeu Cen.

A mulher afastou-se e os caçadores voltaram a fechar o círculo, fazendo perguntas sobre o chapéu dos Primeiros Homens e as botas de barbatana de foca que ele usava.

Fora sensato ao vir encontrar com aquele povo. Pelo menos, porque faria bons negócios. Olhou para o local em que a mulher estivera sentada. Mas podia ganhar mais do que isso. Talvez muito mais do que isso.

 

                   ALDEIA DE RIO PRÓXIMO

Risca Verde riu e Bom Punho pronunciou: Dats ’eni.

Dats’eni, repetiu Aqamdax, corrigindo a pronúncia.

Estás melhorando disse Bom Punho. Aqamdax sorriu.

Porque tu me ajudaste retorquiu. Bom Punho, uma moça que não fora abençoada com um rosto atraente nem com a rapidez das mãos, endireitou as costas e ergueu as sobrancelhas a Aqamdax, e esta continuou a sua história. Era acerca de um pato e de um corvo, uma das poucas que as crianças do Povo Rio tinham lhe contado. Adotara-a, juntando-lhe algumas vozes e dando ao pato uma boa dose de sabedoria para fazer frente à astúcia do corvo.

Quando acabou a história, uma das crianças pediu-lhe que contasse outra.

É a última, disse-lhes Aqamdax, apesar de gostar muito de contar histórias e de a língua não lhe entorpecer os dedos, pois estava fazendo uma parka de pele de caribu para o filho mais novo de Folha Vermelha.

Nesse dia, tinham-se juntado mais de duas dezenas de crianças para ouvir as suas histórias. Até alguns dos rapazes mais crescidos haviam se aproximado do grupo, cada um com uma lança ou uma boleadeira na mão, como se tivessem parado ali por pouco tempo.

Primeiro, as crianças tinham se limitado a observá-la quando ela estava sentada junto da sua nova cabana costurando ou raspando peles. Aqamdax tentara falar com elas, mas as crianças afastavam-se quando ela as olhava. Então, um dia, não tirou os olhos da costura e começou a cantar servindo-se das poucas palavras do Povo Rio que conhecia. Um dia, começou a contar histórias, coisas simples acerca de animais ou plantas, como se falasse sozinha.

Por fim, as crianças ganharam confiança e foram sentar-se junto dela, contando-lhe também histórias, corrigindo-a e respondendo às suas perguntas sobre o modo como certas coisas se faziam na aldeia.

Aqamdax descobriu que eles eram professores admiráveis. Há duas luas que vivia na aldeia e já aprendera uma boa parte da língua. Também era bom ter as crianças como amigas. Agora que possuía a sua própria cabana, estava muitas vezes sozinha, apesar de Sok passar algumas noites na sua cama e de Folha Vermelha lhe levar mais trabalho para fazer todos os dias.

Em geral, Chakliux ia lá todas as manhãs, a princípio para lhe ensinar novas palavras do Povo Rio e partilhar uma tigela de comida, mas agora eram amigos. Ela falava-lhe do seu povo e se fazia também de professora, ensinando-lhe palavras dos Primeiros Homens quando Chakliux partilhava a sua língua com ela.

Nos últimos quatro dias, Chakliux fora à caça ao urso e, pouco depois, partiria para a caça ao caribu. Folha Vermelha dissera-lhe que ela não participaria nessa caçada, apesar de Folha Vermelha acompanhar Sok e os filhos. Alguém tinha de ficar com os cães. Alguém tinha que ficar vigiando as cabanas. Isso não tinha importância para Aqamdax. Como nunca fora à caça ao caribu, seria como uma criança, sempre atrapalhando os outros.

Aqamdax ficou satisfeita com o afastamento de Folha Vermelha, mas iria sentir a falta de Chakliux. Já agora, com ele ausente na caça ao urso, sentia uma dorzinha debaixo das costelas sempre que pensava nele. Chakliux ensinara-lhe não só palavras do Povo Rio como alguns dos enigmas usados na aldeia de Rio Primo, a aldeia em que ele fora criado, apesar de ser irmão de Sok.

Aqamdax terminou a sua história e levantou-se, arrancando gemidos e suspiros das crianças.

Venham amanhã, que haverá mais histórias prometeu ela.

Um enigma antes de irmos embora pediu Yaa, uma menina cujo irmãozinho escondia sempre o rosto no peito dela.

Olhem! disse Aqamdax, começando como Chakliux lhe ensinara. Estou vendo alguma coisa.

Um pássaro, gritou um dos rapazes antes de ela terminar a frase.

Uma nuvem, disse Bom Punho.

Um animal morto, cheirando mal, disse Dança-no-Gelo, um rapaz que Aqamdax aprendera a ignorar.

Traz um banquete, disse alguém atrás dela. Aqamdax virou-se ao ouvir aquela voz, subitamente alvoroçada.

É um enigma simples, afirmou ela. Trazes carne?

Ele parecia mais magro do que antes de partir, a sua parka precisava de ser escovada e uma das mangas estava descosturada na costura, mas tinha os olhos brilhantes e vinha sorrindo.

Os caçadores já voltaram? perguntaram várias crianças, que desataram a correr para ir dar a notícia. Ainda bem que a minha cabana fica aqui no extremo da aldeia disse Aqamdax. Sou a primeira a saber as notícias agradáveis.

Falas bem, Aqamdax observou Chakliux. Durante estes dias em que eu não estive aqui, aprendeste mais, apesar de ainda pronunciares as palavras como os Primeiros Homens.

Eu sou dos Primeiros Homens afirmou ela em voz baixa. Serei sempre dos Primeiros Homens. Não mudarei. Aprenderei, mas não mudarei. Tu, Pé-de-Lontra, devias compreender isto melhor do que ninguém.

Ele sorriu e, quando ela o olhou, foi obrigada a desviar o olhar. Era bom sentir o coração aos pulos por causa de Chakliux, quando não se sentia assim com Sok.

Aqamdax virou-se como se fosse a entrar na cabana. mas olhou para Chakliux por cima do ombro e perguntou-lhe se estava com fome.

Passamos o último dia comendo, para venerar os animais que apanhamos e, esta noite, estou certo de que as mulheres irão preparar outro banquete, embora só com a carne em que elas podem tocar.

Aqamdax abanou a cabeça. Aquele povo tinha tabus esquisitos. Alguns eram o que qualquer pessoa esperaria o enterramento dos ossos, a veneração dos animais. Outros, como a ingestão e a preparação da carne de urso, o uso de certas aves e outros animais, pareciam estranhos e sem sentido. Mas quem era ela para comentar? Era uma mulher dos Primeiros Homens, e os Caçadores Marinhos raramente apanhavam um urso.

Elas vão cozinhar a carne nas lareiras? perguntou ela.

Vão.

E há alguns tabus que eu deva conhecer?

Tens uma concha ou um pau para mexer a comida?

Posso arranjar um pau, respondeu ela.

Ótimo. Arranja. Eu já te disse que as mulheres não devem pronunciar o nome do animal?

Já.

Lembra-te disso e não comas antes de Folha Vermelha ter comido.

Aqamdax ficou admirada.

Isso é um tabu?

É um hábito de delicadeza.

Aqamdax sentiu uma ponta de raiva, como sentira tantas vezes quando vivia com as esposas de Cantador e as suas estúpidas regras.

Talvez eu não vá. Tenho aqui boa comida. Apontou para a despensa junto da sua cabana. Era um estrado alto que sustentava um pequeno quadrado feito de toros, onde ela guardava carne e peixe seco, frutos conservados em óleo e os poucos odres de gordura de foca que trouxera da sua aldeia.

Também tenho carne de morsa acrescentou ela, apesar de ter sido o próprio Chakliux que lhe dera.

Chakliux desviou o olhar e ela sentiu o seu desapontamento.

Não, não julgues que ele se interessa por ti, pensou. Tu tens um marido. Ele ofereceu-te a tua própria cabana. Talvez um dia tenhas a sorte de gerar filhos.

Mas, ao afastar-se, Chakliux disse em voz baixa:

Dois dos animais são meus.

Talvez eu tenha a honra de preparar a carne deles para ti, gritou-lhe Aqamdax.

 

                   ALDEIA DE RIO PRIMO

Cen susteve a respiração, puxou a corda para trás e largou a seta. Esta voou na direção da árvore e foi espetar-se na pele de ganso recheada de gordura que os caçadores tinham pendurado num ramo baixo.

Tikaani soltou um grito de aprovação.

Dentro de pouco tempo serás tão bom quanto nós, afirmou ele, mas Cen sabia que as palavras do homem eram um exagero.

Apesar de os seus primeiros lances acertarem no alvo quase sempre, quanto mais ele praticava, mais piorava. Por fim, o pulso esquerdo começava a latejar com a força que fazia para segurar o arco e os olhos já não conseguiam acompanhar a trajetória da seta até ao alvo.

Atirou outra vez, mas a seta desviou-se bastante para a esquerda e o pulso estalou assim que ele largou a corda.

Basta, disse ele, sem deixar de reparar no sorriso malicioso de Tikaani.

Porque censuraria o homem? Ambos partilhavam uma paz incômoda, unidos pela necessidade de vingança, ele por Daes, e Tikaani por dois irmãos que tinham morrido e por outro que talvez não sobrevivesse, com um braço aleijado e o corpo enfraquecido por um espírito qualquer que se infiltrara na ferida infectada.

Também partilhavam a cama de K’os. A mulher não pertencia a nenhum deles, mas Cen não sabia ao certo se Tikaani compreendia isso.

Cen não sentia por K’os o mesmo que sentira por Daes, mas, como lhe doía o pulso, os seus pensamentos fugiam sempre para os dedos da mulher que lhe aliviavam as dores, aplicando-lhe tiras de pele de esquilo úmidas e quentes na mão e no pulso e inundando a cabana com o aroma intenso da matricária.

Estás pronto para ir comigo, disse Tikaani.

Aonde vais?

K’os não te disse? perguntou ele.

K’os dissera-lhe, mas ele era suficientemente cauteloso para se fingir surpreendido.

Não me disse o quê?

Que os caçadores estão quase prontos, que querem que nós vamos primeiro, para fazer o reconhecimento do melhor sítio para o ataque. Talvez consigamos trazer o teu filho.

Quando partimos?

Amanhã, cedo, antes do nascer do Sol, respondeu Tikaani.

Levamos cães?

Nada de cães. Só armas de caça e, se os nossos velhos fizerem perguntas, diremos que vamos ver se os nossos arcos são honrados pelos ursos.

Achas que não dará azar dizer uma coisa que não é verdade, que isso talvez leve os ursos a pensar que não temos respeito por eles?

Achas que não conseguimos encontrar o teu filho nem caçar?

Cen ficou pensando e depois disse:

E talvez negociar também.

Negociar?

Trocar a vida pela vida.

A vida pela vida, repetiu Tikaani.

 

                   ALDEIA DE RIO PRÓXIMO

Eu mexo por ti, disse Yaa, levantando a voz acima da tagarelice das mulheres que se encontravam junto das lareiras da comida. O Sol pusera-se e quase todo mundo já tinha comido. Dali a pouco começariam as danças e as histórias.

Aqamdax entregou a Yaa o pau de mexer a comida.

É novo? perguntou Yaa.

É.

Existe o mesmo costume na tua aldeia?

Nós não temos muitos...

Aqamdax calou-se, tapando a boca com a mão antes de pronunciar a palavra ”urso”.

O que comem?

Sobretudo peixe e carne de foca. Leão-marinho.

E de caribu?

Alguma.

Podes sentar-te aqui.

Yaa apontou com o queixo para um monte de cobertores de pele de lebre.

O teu irmão?

Está dormindo. Não o vês?

Na escuridão, cortada apenas pelas chamas amareladas das lareiras da comida, Aqamdax não dera pela sombra da cabeça do rapaz projetada na pele.

Ele não gosta de mim. E se acorda?

Ele gosta de ti, mas tem medo. Julga que és um fantasma.

Um fantasma? Porquê?

A mãe dele morreu.

Yaa baixou a voz e Aqamdax foi obrigada a inclinar-se para a ouvir.

Ele ficou ferido.

Quando Aqamdax chegara à aldeia, Chakliux contara-lhe a história de uma mulher que fora morta e cujo filho ficara ferido, mas isso fora antes de ela aprender a língua do Povo Rio. Não entendera tudo o que ele dissera, nunca soubera ao certo a que rapaz é que ele se referia.

Então é ele, disse Aqamdax. Mas a tua mãe...

Era a esposa-irmã da mãe dele.

Ah!

Agora a mãe de Ghaden sou eu, declarou Yaa, cujo sorriso parecia o de uma mulher muito mais velha que falasse do filho com orgulho. Ele julga que tu és um fantasma porque és um pouco parecida com a mãe.

Vou sentar-me junto de Ghaden, mas, se ele acordar. volto para aqui. Não quero que se assuste.

Aqamdax deu o pau a Yaa e depois agachou-se com um suspiro, sentando-se à maneira dos Primeiros Homens, com os pés plantados no chão e os braços em volta dos joelhos levantados. O Povo Rio gastava muitas peles porque preferia sentar-se de pernas cruzadas, cobrindo o chão com cobertores de pele de lebre e tapetes de pele de caribu. Qualquer pele enfraquecia quando se molhava. Quem é que não sabia uma coisa dessas?

Aqamdax fechou os olhos por instantes, desejando que alguém fosse embora para ela poder também afastar-se sem receio de quebrar tabus ou de ser indelicada. Apesar de desejar a presença dela naquele banquete, Chakliux não lhe dirigira a palavra, embora se aproximasse da lareira dela sempre que queria a tigela cheia.

Aqamdax olhou para o rapaz que dormia a seu lado. O seu coração teve um sobressalto. Sempre que ela o via, era como se estivesse a olhar para uma criança da sua própria aldeia. Era como se ele pertencesse aos Primeiros Homens. Tinha a cara larga e o nariz, embora adunco, era pequeno, ao contrário dos narizes grandes do Povo Rio. Mas Aqamdax lembrou-se de que os olhos dele eram como os do Povo Rio, inclinados aos cantos e mais estreitos que os do seu povo. Também tinha a pele mais clara. Ainda assim, ao olhar para ele, imaginava-se na sua terra, talvez num ulax, festejando com um banquete e histórias. Era como se ouvisse os tambores do seu povo a rufar com força, ao ritmo do coração.

Aqamdax fechou os olhos. Os sonhos chamaram-na e ela quase se deixou levar por eles, mas depois ouviu-se um grito, a voz de um caçador. Os olhos de Aqamdax abriram-se e ela pôs-se em pé de um salto, ouvindo o riso das mulheres que estavam sentadas à sua volta. Uma, ainda rindo, inclinou-se e empurrou-a, dizendo-lhe em surdina que os homens iriam contar histórias das suas caçadas.

Aqamdax sorriu, percebendo de que o riso delas não era de desprezo. Em seguida, instalou-se junto de Ghaden, que continuava dormindo, e abriu muito os olhos para não adormecer. Dois velhos encaminharam-se para o círculo formado pelas lareiras, um lugar vago mas iluminado pelo que restava do lume.

Aqamdax teve facilidade em seguir as histórias deles porque as palavras eram acompanhadas por atos, para que todos compreendessem como é que um caçador perseguia um urso; todos o observavam enquanto ele explicava como punha uma lança no seu lançador e matava o animal.

Aqamdax observava atentamente, tentando lembrar-se das palavras que eles usavam para começar e acabar as suas histórias. Essas coisas tinham importância, na medida em que faziam parte da tradição de uma aldeia e talvez estivessem também aliadas à boa sorte e ao respeito. Aqamdax tentou recordar-se dos movimentos das mãos deles, pequenas coisas que poderia adaptar à sua narrativa, maneiras de criar imagens na mente de quem ouvia. Porque o que era contar histórias senão dar corpo a idéias que os olhos interiores daqueles que a escutavam pudessem ver?

Depois dos velhos, surgiram dois homens, um deles com uma máscara que lhe chegava aos joelhos; tinha a boca escancarada e cheia de dentes de urso. Os outros homens estavam vestidos de caçadores e traziam armas. A sua história foi contada sem palavras, só com atos representados ao ritmo dos tambores. Quando terminaram, apareceu Sok. A princípio estava sozinho, sem máscara e sem armas. Os belos desenhos da parka e das botas atraíam a luz, enaltecendo o trabalho manual de Folha Vermelha, e ouviu-se um murmúrio entre as mulheres.

Aqamdax virou-se para o local em que se encontrava a sua esposa-irmã e reparou na cabeça erguida e na expressão determinada e altiva de Folha Vermelha. Nesse momento, embora fosse difícil chamar irmã a Folha Vermelha, Aqamdax sentiu-se orgulhosa, como se ela própria fosse alvo de respeito. As mulheres começaram a ulular, alternando a intensidade dos seus gritos, e Aqamdax juntou-se a elas, virando a cabeça propositadamente para Folha Vermelha a fim de que todos soubessem que ela apreciava a sua esposa-irmã.

Folha Vermelha viu Aqamdax. Os olhares de ambas cruzaram-se e, nesse instante, Aqamdax percebeu a surpresa da mulher e depois da sua compreensão.

Sok começou a dançar, ajustando o seu ritmo ao tilintar dos chocalhos de osso cosidos nos canos das botas. Fazia movimentos fortes e bruscos. Aqamdax percebia que cada passo devia ter um significado, embora esse fosse diferente para o Povo Rio do que ela aprendera com os Primeiros Homens. Aqamdax reparou que, enquanto dançava, Sok olhava muitas vezes numa direção. A princípio, julgou que ele observava Folha Vermelha, mas depois percebeu que ele olhava para o local em que se encontravam as mulheres mais novas da aldeia, e por fim compreendeu que ele estava de olhos pregados numa mulher chamada Neve-no-Cabelo. Aqamdax cruzara-se com ela algumas vezes nas lareiras da comida, apesar de Neve-no-Cabelo a ignorar quando estavam as duas sozinhas e virar indelicadamente a cara para o lado se havia outras mulheres nas redondezas.

Aqamdax deitou um olhar rápido a Folha Vermelha, mas a mulher não deu mostras de ter reparado, de olhos postos no marido e mexendo os lábios como se contasse os passos dele, tentando ajudá-lo a manter o ritmo. Aqamdax sentiu-se inquieta, subitamente apreensiva, mas depois censurou-se pela sua estupidez. Qual o homem que não queria impressionar as jovens, em especial uma mulher tão bonita como Neve-no-Cabelo? Mas Sok tinha duas esposas. Não era chefe dos caçadores para ter três ou quatro como Cantador e, no Povo Rio, a maioria dos homens tinha só uma esposa.

Por fim, entrou outro caçador mascarado no círculo de dança. Também usava uma máscara de urso, embora esta lhe cobrisse apenas o rosto e estivesse pintada de cores vivas. O bailarino estava descalço, e portanto não era difícil ver que se tratava de Chakliux. Mexia-se com graciosidade, como se tivesse os pés normais num homem, e Aqamdax estava tão embrenhada na dança que a princípio não ouviu a lamúria que crescia a seu lado. Quando esta se transformou num choro, percebeu que era Ghaden. A criança olhava para os bailarinos, de boca aberta e olhos arregalados.

Aqamdax pegou-lhe ao colo e, quando Ghaden olhou para ela, desatou a gritar:

O fantasma! O fantasma! Ela está aqui! Yaa, não deixes que ela me apanhe!

Yaa tirou o rapaz do colo de Aqamdax e acalmou-o, cantando baixinho. A mãe de Yaa e Água Castanha aproximaram-se, afastaram as duas crianças do círculo de dança e levaram-nas para o conforto da cabana de Água Castanha.

Aqamdax viu-os desaparecer na escuridão e depois agachou-se e pegou os cobertores do rapaz para os devolver quando a dança acabasse. Durante algum tempo, as mulheres à sua volta continuaram a murmurar, mas Aqamdax voltou a concentrar-se em Sok e Chakliux. Quase perdeu aquela palavra, aquele nome, pronunciado em surdina e depois silenciado com um assobio de medo, coberto por uma série de palavras sagradas e um alvoroçar de mãos para evitar uma maldição.

De súbito, muitas coisas se clarificaram. De súbito, ela não se sentiu uma filha traída, mas uma filha amada. Depois, encarou o marido não com orgulho mas com raiva, encarou o irmão dele não com amizade mas com repugnância, e só porque não queria envergonhar Folha Vermelha é que ficou até a dança terminar. Em seguida, levantou-se e, antes que as mulheres reconhecessem o seu lugar de segunda esposa, de esposa-irmã, com um gesto de cabeça, antes que Sok ou Chakliux olhassem para ela na expectativa de um elogio, ela afastou-se e, levando o molho de cobertores de Ghaden, encaminhou-se para a cabana de Água Castanha.

Ouviu Yaa cantando através das paredes da cabana e arranhou as peles de caribu que a revestiam até Água Castanha lhe gritar que entrasse. Agachou-se e entrou no túnel.

Yaa arregalou os olhos ao vê-la e puxou o irmão para si, virando-lhe a cabeça para o seu peito.

Escolhendo as palavras devagar e com cuidado, Aqamdax disse a Água Castanha:

Não sou do teu povo. Não conheço todos os tabus, mas tenho que perguntar uma coisa.

Então, anda comigo ordenou Água Castanha, saindo da cabana.

Aqamdax foi atrás dela. Sabia que Água Castanha devia ser uma mulher forte. Mantivera o seu lugar respeitável mesmo depois da morte do marido e agora vivia sozinha, como viúva, ela, a sua esposa-irmã e as duas crianças. Eram estranhos os hábitos daquele Povo Rio. Para os Primeiros Homens, quando o luto terminava, a mulher ia viver com outro caçador, ou com um irmão, na pior das hipóteses, para o ulax dele. Como é que aquelas mulheres viviam sem um caçador na sua cabana?

Água Castanha afastou-se um pouco da cabana. Depois virou-se e perguntou a Aqamdax:

O que queres saber?

Essa tua esposa-irmã, a mãe de Ghaden, como é que morreu? perguntou Aqamdax.

Água Castanha pôs os braços à volta do corpo.

Não é bom falar nesse assunto, respondeu ela.

Quebra algum tabu?

A mulher não olhou para Aqamdax. Olhou para a cabana, depois para o chão e por fim para o céu.

Ninguém sabe, disse por fim.

Ela era dos Primeiros Homens... Dos Caçadores Marinhos proferiu Aqamdax.

Sim. Conheceste-a?

Aqamdax suspirou.

Conheci-a. Alguém me disse que havia uma faca. Água Castanha fez um sinal afirmativo.

Havia uma faca. Mas Lobo-e-Corvo diz que foi um espírito que a matou.

Com uma faca?

Quem sabe o que um espírito pode fazer? Quem sabe os espíritos que ela pode ter ofendido? Não, ela não devia estar aqui.

Água Castanha fixou Aqamdax, que não desviou o olhar. Água Castanha levantou uma mão e apontou rudemente com um dedo grosso para o peito de Aqamdax.

Tu não devias estar aqui. Uma coisa é o teu povo vir negociar, mas, quando os caçadores aceitam esposas, muitas coisas podem acontecer.

Essa mulher tinha inimigos?

Eu não gostava dela, declarou Água Castanha. Eu não a queria na minha cabana. Se ela tinha uma inimiga, era eu, mas eu não quis desonrar o meu marido. Não fui eu que a matei. Ela foi morta por um espírito. Teve o que merecia.

Durante muito tempo, Aqamdax ficou olhando para a mulher, agarrada ao seu amuleto e passando os dedos pelas espirais do dente de baleia que usava na cintura. Acreditava em Água Castanha, mas havia ali qualquer coisa má que ela não entendia.

Achas que o rapaz, Ghaden, está seguro?

Tão seguro quanto isso dependa de Lobo-e-Corvo. Tão seguro quanto isso dependa de mim. Por quê?

Diz-lhe que eu não sou o fantasma da mãe, proferiu Aqamdax em voz baixa. Diz-lhe que eu sou parecida com a morta porque ela também era minha mãe.

 

Cen afastou o capuz da parka da cara. O pelo misturava-se com os tons cinzentos e os amarelos das folhas de Outono, mas ele tinha muito calor. Tikaani insistira para que eles levassem parkas de pele de lebre, mas estas faziam Cen transpirar, exceto à noite, quando o calor era bem-vindo. Era preferível ter trazido roupa de pele de esquilo, que aconchegava mas não era quente, e que era leve. Mas talvez a sugestão de Tikaani fosse boa, pensou Cen. Todas as manhãs, as pequenas poças de água estavam cobertas por uma fina crosta de gelo nos cantos. Talvez houvesse um dia em que o calor da pele de lebre lhe agradasse.

Não tinham trazido os cães, e graças a uma magia qualquer que ainda fazia Cen encolher-se de medo quando via a sua cara refletida na água, K’os fizera uma pomada para escurecer e encarquilhar a cara dos homens. Com a sua agulha hábil, costurara tufos brancos de pele de caribu às tranças para eles ficarem com aspecto de velhos e não de caçadores nem de guerreiros. Mostrara-lhes como deviam encher o fundo das botas de ervas para andarem como os velhos, apesar de eles não terem usado tal estratagema senão quando estavam a dia e meio de caminho da aldeia de Rio Próximo. K’os também lhes dera uma coisa para beberem que lhes queimara a garganta e os deixara roucos e quase sem voz.

A mulher transformara-os em velhos e garantira-lhes que tinha o poder de os fazer rejuvenescer outra vez. Cen não duvidava que ela tivesse esse poder. O que o preocupava era se ela voltaria a devolver-lhes a juventude. E o que pediria em troca?

Agora estavam escondidos na floresta sombria nos limites da aldeia, debaixo dos ramos dos abetos-negros. Com folhas espetadas nas roupas, encontravam-se nas bordas da tigela de terra que abrigava a aldeia de Rio Próximo. Viam passar mulheres e crianças e contavam os guerreiros como K’os os aconselhara a fazer. Durante a noite, haviam examinado todas as despensas para ver a quantidade de peixe que as pessoas tinham para o Inverno, mas não tiraram nada, nem fizeram nada para que alguém percebesse que eles estavam à espreita.

Durante dois dias, Aqamdax não falou com Sok e evitou Chakliux. Entretanto, conquistou Ghaden como irmão, deu uma explicação cuidadosa a Água Castanha, a Boca Feliz e a Yaa, e tentou não acusar o marido de a ter enganado. Afinal, talvez ela não lhe tivesse dito o nome da mãe, embora julgasse que o fizera.

Nos cinco anos posteriores à partida de Daes da aldeia dos Primeiros Homens, Aqamdax sentira uma grande raiva contra a mãe. A mulher abandonara-a, obrigara-a a viver com aqueles que não a queriam. Agora, pelo menos, entendia o que acontecera.

Os Primeiros Homens choravam os seus mortos durante quatro dezenas de dias, e depois disso uma viúva devia manter-se afastada dos outros homens, para mostrar respeito pelo marido, durante quatro luas. Os comerciantes tinham chegado duas luas depois da morte do pai de Aqamdax, e a mãe, tal como ela própria, não conseguira suportar o vazio das noites solitárias. Entregara-se a um comerciante, engravidara e depois partira com ele para proteger a aldeia da maldição dos tabus quebrados. Para proteger Aqamdax.

Ela falava muito de ti, afirmou Boca Feliz. Queria voltar para junto de ti e do seu povo.

Aqamdax olhou para Água Castanha e viu a surpresa no olhar da mulher, apesar de tentar disfarçá-la com os olhos semicerrados e um gesto de cabeça. Sim, pensou Aqamdax. também ela confiaria em Boca Feliz, mas nunca em Água Castanha. Quem podia confiar na boca fina e dura da mulher, nas suas palavras coléricas?

No dia em que Aqamdax disse a Ghaden que era irmã dele, o rapaz limitou-se a olhar para ela do colo seguro de Yaa, mas a pouco e pouco começou a observá-la sem medo. Nessa manhã, três dias depois, quando ela entrou na cabana, ele correu para ela e mostrou-lhe uma bola de tiras de couro cru do tamanho de um punho fechado que Yaa lhe fizera.

Mordedor, agarra! disse ele, atirando a bola e obrigando o cão a procurá-la numa pilha de cestos.

É melhor ires brincar lá para fora avisou Yaa, olhando para o local em que Água Castanha costumava estar sentada.

Aqamdax elogiou o cão e a bola e depois levou Ghaden e Mordedor para os limites da aldeia, onde ficaram brincando até Yaa chegar e levar Ghaden para ele a ajudar a carregar lenha. Em seguida, Aqamdax dirigiu-se à cabana de Folha Vermelha. Ensaiara o que ia dizer e ganhara coragem para falar com Sok, e tencionava fazê-lo não deixando passar nem mais um dia. Foi encontrá-lo sozinho e ainda embrulhado nos cobertores.

Folha Vermelha está nas lareiras da comida informou ele, de olhos fechados.

Vim para te ver e ao teu irmão disse ela.

Daqui a três ou quatro dias, partimos para a caça ao caribu. Não podes deixar-me dormir sabendo que eu pouco descansarei durante a próxima lua?

Como se ele não lhe tivesse dito nada, Aqamdax perguntou:

Porque me deixaste pensar que eu encontraria a minha mãe se viesse contigo?

Sok abriu os olhos devagar.

Tu e Chakliux sabiam que a minha mãe tinha morrido. Ele sentou-se.

Quem te disse que ela morreu? perguntou ele.

Ghaden, o meu irmão.

Sok resmungou, levantou-se e deu um pontapé nas peles, atirando-as para cima dos rolos impecavelmente empilhados nas traseiras da cabana.

Agora não posso falar contigo declarou ele.

Onde está Chakliux?

Ele não sabia disse Sok. Pelo menos, eu nunca lhe falei na tua mãe. E tu?

Não.

Então guarda a tua raiva para mim, e não para ele. Por qualquer motivo, as palavras dele acalmaram-na.

Porque não me disseste?

Terias vindo comigo se soubesses que a tua mãe morrera?

Talvez não. Mas se eu soubesse que tinha um irmão... Sok encolheu os ombros.

Às vezes, os irmãos são coisas boas; outras vezes não são. Como é que eu poderia saber o que sentirias por ele? Ghaden é uma criança.

Sabias com certeza que eu descobriria que a minha mãe morrera quando chegasse aqui.

Eu não tencionava trazer-te para cá. Eu trouxe-te para o xamã dos Morsas.

Não fui eu que o matei, disse Aqamdax.

Achas que eu te aceitaria como minha esposa se pensasse que o tinhas feito?

Nesse caso, o que o xamã te ofereceu para te obrigar a ires à minha aldeia? Porque ele me queria ele?

Não finjas que ignoras os teus poderes. Que melhor esposa para um xamã do que uma contadora de histórias?

Talvez, proferiu ela em voz baixa. Sok voltou a encolher os ombros.

Ele queria-te e ofereceu-me coisas úteis.

O quê?

Muitas coisas. Muitas mercadorias.

E por isso foste ao mar, um homem que tinha pouca experiência num iqyax?

Eu desvencilho-me bem num iqyax.

Para quem caça caribus exclamou ela.

Não queres ser minha esposa? perguntou ele. Ela respirou fundo.

Não.

E se outro homem oferecesse alguma coisa por ti?

Quem?

Alguém que é respeitado nesta aldeia. Alguém cujos poderes são grandes, talvez maiores do que os teus.

Aqamdax susteve a respiração. Por pouco não pronunciou o nome do irmão dele. Por pouco não denunciou as suas esperanças em voz alta, mas já sofrera muitas desilusões. Era mais fácil desistir de um sonho que mais ninguém conhecia.

Quem? perguntou ela outra vez.

O xamã, Lobo-e-Corvo.

De repente, ela percebeu. Neve-no-Cabelo. Por que outro motivo arriscaria Sok a vida a troco de mercadorias? Ele precisava pagar o dote.

Com que então, agora que o xamã dos Morsas morreu, eu sirvo para pagar o dote de Neve-no-Cabelo?

Não queres ser esposa de um xamã?

Não sou uma pessoa que queira poder nem que pense que o poder sobre os espíritos é desejável. É muitas vezes mal utilizado.

Lobo-e-Corvo não é desses. É um homem respeitável.

É forte? É bom caçador?

O suficiente.

Se ele fosse um homem com tal poder, porque estaria interessado nas minhas pobres histórias? Eu não pertenço ao teu povo. Porque um xamã quereria uma esposa que não é totalmente humana?

Sok começou a andar rapidamente de um lado para o outro, e Aqamdax perguntou a si própria se ele já teria falado com Lobo-e-Corvo, se já a teria oferecido ao homem.

No meu povo, uma mulher escolhe o homem que quer para marido, disse Aqamdax. O pai ou um tio podem prometê-la, mas, se ela não quiser, ninguém a obriga. E se o marido não for bom para ela nem para os filhos, a mulher pode deixá-lo e escolher outro.

Eu não esperava outra coisa de pessoas que não são totalmente humanas, retorquiu Sok, parando e olhando-a de frente. Tu não estás com o teu povo. Estás aqui. És minha esposa. Farás o que eu mandar.

Se me deres a outro, dá-me ao teu irmão. Aqamdax falou depressa, antes de perder a coragem.

Chakliux?

Sim.

Sok atirou a cabeça para trás e deu uma gargalhada.

Ele não te quer. Além disso não tem com que pagar o dote.

Ele tem cães e um iqyax.

Estás louca se julgas que ele trocaria essas coisas por ti! As palavras feriram-na, e Aqamdax amaldiçoou-se pela sua estupidez. Quando alguém conhecia os interesses de outra pessoa, sabia como magoá-la.

Tu és como a tua mãe, sem respeito, sem honra. Ela desonrou o marido e partiu com o comerciante Cen. O que lhe deu ele em troca? Uma faca, a morte. Se não tiveres cuidado, pode acontecer-te a mesma coisa.

Foi um comerciante que a matou? perguntou Aqamdax.

Alguns dizem que foi.

Água Castanha diz que foram os espíritos que a mataram.

Não sei quem a matou. Quem quer que fosse, também matou o meu avô. Se eu soubesse quem foi, tal pessoa, já não estaria viva neste momento.

Sok apalpou um monte de roupas e tirou um par de perneiras de pele de caribu.

O que tens de saber é que, se não tiveres marido, ninguém desta aldeia te protegerá declarou ele, olhando para Aqamdax. E se eu te recusar? O que farás?

Aqamdax reconheceu que ele tinha razão. Ela devia proteger-se encontrando um bom marido, gerando filhos e reforçando os laços com Ghaden, mas tudo isso levaria muitos anos. Agora não tinha ninguém, nem nada para trocar exceto a sua vontade de ajudar Sok a conseguir o que ele queria.

O que queres que eu faça? perguntou ela em voz baixa.

Quero que as pessoas ouçam as tuas histórias, que vejam os teus poderes.

Combinas uma sessão de histórias, então?

Chakliux e eu trataremos de combinar um desses serões, uma maneira de mostrar respeito e alcançar a honra antes de partirmos para a caça ao caribu.

E eu também contarei histórias?

Sim.

Quando Lobo-e-Corvo ouvir as minhas histórias, achas que me quererá?

Ele verá os teus poderes, e depois eu falarei com ele acerca do preço de Neve-no-Cabelo.

E se eu fizer isso?

Terás um novo marido.

Eu quero mais do que um novo marido.

O que queres mais?

Quero ficar com a minha cabana.

Não. Prometi-a a Neve-no-Cabelo.

Ela que construa outra.

Que alternativa tens?

Contar histórias ou nada dizer.

A alternativa de viveres ou morreres.

Eu quero a minha cabana.

Talvez Lobo-e-Corvo queira que tu fiques na cabana de Flor Azul.

Ele só tem uma esposa?

Sim.

Achas que ele se arrisca a desagradar-lhe?

Acho que ela vai perceber os poderes que ele pode vir a ter se te aceitar como segunda esposa. Penso que ela vai ficar satisfeita por ter outra mulher que faça uma parte do trabalho.

E se eu disser a Lobo-e-Corvo que não serei mulher dele se não ficar com a minha própria cabana?

Sok inclinou a cabeça e olhou para o orifício da fumaça.

Não é fácil te ter como esposa, disse ele. Por pouco, Aqamdax não sorriu.

Se Neve-no-Cabelo quiser a tua cabana, tens que sair, mas eu dou-te peles de caribu suficientes para construíres outra prometeu ele.

E tu e Chakliux ajudam-me a cortar os postes?

Ajudamos. Aqamdax riu.

Prometes a ajuda do teu irmão sem o consultares?

Eu dei três, quatro luas da minha vida para o salvar dos Caçadores de Morsas até sabermos que o povo de Rio Primo não tentaria matá-lo. Ele pode dar-me alguns dias.

Eu contarei histórias prometeu Aqamdax. Eu mostrarei a este povo os poderes de uma mulher dos Primeiros Homens. Deixa-os pensar nisso e alegra-te por eles não chamarem o inimigo dos Primeiros Homens.

 

No terceiro dia de vigilância, Cen viu-o. Era Ghaden, mais alto e mais magro do que ele julgava, mas era Ghaden. Ao ver o rapaz, foi como se tivesse levado um murro no estômago. Ficou sem fôlego e, a princípio, nem conseguiu dizer nada a Tikaani. Limitou-se a observar o filho, acariciando-o com os olhos. Nunca acreditara totalmente que o rapaz estivesse vivo, e naquele momento receava que a faca tivesse provocado alguma deformidade a Ghaden. Mas verificou que o rapaz não coxeava e que, apesar de ser difícil fazer tal afirmação àquela distância, parecia não ter qualquer cicatriz no rosto. Tinha um cão e atirava uma bola muito alto, rindo quando o cão a apanhava e ralhando com ele se o animal não a largava quando ele mandava.

Cen abriu a boca para dizer a Tikaani, mas as lágrimas impediram-no de falar. Foi obrigado a engoli-las e, quando falou, foi tremendo como um velho. Era o chá de K’os que lhe queimara a garganta, pensou, e não admitiu que eram as lágrimas que lhe faziam arder os olhos.

O meu filho, proferiu ele, estendendo o braço. Tu disseste que ele foi ferido disse Tikaani. Observou o rapaz durante algum tempo e depois acrescentou: Ele parece forte.

Repara. Ele atira a bola com a mão esquerda, indicou Cen. O ombro direito é mais alto do que o outro, e às vezes ele empurra o braço direito para o lado.

Ele nem sempre foi canhoto? Cen abanou a cabeça.

Um guerreiro deve caçar com a mão direita. É assim que deve ser.

Ghaden apanhou a bola e atirou-a com a mão direita. O lance não foi muito forte e a bola não subiu tanto no ar, mas foi um bom lance.

Ele precisa de um homem que o ensine, insistiu Cen. Sabes quem é a mulher que está com ele? Não é nenhuma das esposas-irmãs da mãe.

Tikaani manteve-se em silêncio, mas por fim disse:

Eu estive na aldeia com K’os no fim do Inverno passado, mas não a reconheço.

Talvez um dos homens a tenha trazido de outra aldeia do Povo Rio.

Ela tem uma parka estranha.

Estas palavras tiveram o efeito de uma revelação súbita na mente de Cen, mas o comerciante não disse nada a Tikaani senão depois de observar a mulher durante algum tempo e ver, com o coração alvoroçado pelo desgosto, como ela era parecida com Daes, até no andar e no modo como afastava o cabelo dos olhos. Então segredou-lhe:

É um sax dos Primeiros Homens, feito de penas. Eu conheço-a, apesar de ela ter mudado em quatro anos. É Aqamdax, a irmã de Ghaden.

Uma mulher dos Primeiros Homens? A tua... Da morta...

Filha.

Não é tua filha?

Não.

Como é que ela veio parar aqui?

Não sei. Talvez tivesse vindo à procura da mãe. Disseram-me que o marido dela é um comerciante do Povo Rio.

Pelo menos, toma conta do teu filho.

Como eu posso deixá-lo crescer com as pessoas que lhe mataram a mãe?

Tikaani olhou para ele e sorriu lentamente.

Temos que partir depressa, amanhã, ou no dia seguinte. Queres trazê-lo conosco?

Cen desembainhou a faca que trazia na manga e atirou-a ao solo coberto de grama em que se encontravam.

Sim respondeu ele. Quero. Seria capaz de matar todos os homens daquela aldeia só para o recuperar.

 

Ele quer uma sessão de histórias esta noite? Aqamdax fez um sinal afirmativo.

Devo oferecer comida? Não tenho muita na minha despensa. As pessoas comem óleo de foca?

Nada de comida, respondeu Folha Vermelha. Deixa-as comer junto das lareiras. Não é uma festa propriamente dita, apenas uma oportunidade de as pessoas se reunirem antes de as famílias partirem para a caça ao caribu. Além disso, em geral as mulheres também vão. Como poderemos preparar-nos para partir se tivermos que dar uma festa? Deixaremos a festa para mais tarde, quando trouxermos a carne.

Aqamdax observava cautelosamente Folha Vermelha enquanto ela falava. Gostaria de conhecer melhor a mulher. Era difícil estar numa aldeia nova. Não percebera a quantidade de conhecimentos que uma pessoa acumulava durante a infância. Na sua aldeia, conseguia adivinhar os verdadeiros pensamentos de uma mulher pelo tom da sua voz ou pela expressão do seu rosto. Aqui, no seio do Povo Rio, era difícil saber. Só há alguns dias é que reparara que eles exprimiam a sua concordância não por palavras mas levantando a sobrancelha.

Agora, ao ouvir Folha Vermelha, Aqamdax lembrava-se de que a mulher não gostava dela, que talvez lhe desagradasse a existência de uma esposa-irmã. Por isso, estaria a dizer a verdade acerca da comida, ou esperaria envergonhar Aqamdax dizendo-lhe para fazer uma coisa que não estava de acordo com as tradições da aldeia?

Para ficar descansada, quando Folha Vermelha saísse, Aqamdax iria à procura de Chakliux para lhe fazer a pergunta.

Desde que soubera que a mãe morrera, sentia-se confusa. Fizera o seu próprio luto, entoando os cânticos fúnebres dos Primeiros Homens quando estava sozinha na sua cabana, e Boca Feliz dissera-lhe que ela e Água Castanha tinham cantado durante quatro dias depois da morte de Daes. Mesmo assim, era como se os pensamentos de Aqamdax fossem linhas de tendão velhas e desfiadas.

Mesmo que ela conhecesse melhor Folha Vermelha, o momento não era adequado para confiar na sua própria análise. Sim, iria perguntar a Chakliux.

Não quero envergonhar o teu marido disse Aqamdax, sabendo que Folha Vermelha fazia tudo o que podia para respeitar Sok. Ainda falo com dificuldade. Tenho muito que aprender.

Tentarei ajudar-te, disse Folha Vermelha e, mais uma vez, apesar de a mulher olhar bem de frente para ela enquanto falava, Aqamdax não tinha certeza se podia confiar nela. Se não souberes alguma palavra, eu digo-a por ti.

Obrigada respondeu Aqamdax, mas perguntou a si própria se Folha Vermelha se arriscaria a ridicularizar Sok para a humilhar. Talvez não. Ela parecia apreciar a ordem e não ria nem gracejava muito. Seguia Sok com o olhar quando ele estava perto e falava muito dele quando conversava com outras mulheres.

As mãos de Folha Vermelha estavam sempre ocupadas, e naquele momento, apesar de ela ter ido à cabana de Aqamdax só para lhe levar algumas peles de lebre para raspar, também trouxera a sua costura. Estava fazendo um par de botas de dança para Sok, embora as outras ainda estivessem novas e bonitas. Enrolou a parte de cima das peles, enfiou a agulha num pedaço de pele e guardou-a no seu agulheiro. Conservou-o na mão para Aqamdax o ver, mas esta, sabendo o orgulho que a mulher tinha dele, comentou com admiração o desenho formado por linhas e círculos.

Agora vou embora disse ela a Aqamdax. Vejo-te esta noite. E ajudo, se puder. Parou no túnel de entrada. Devias ter água. Quantos odres tens?

Quatro.

Folha Vermelha inclinou a cabeça para o lado e fez um esgar.

Eu trago mais três. Devem chegar.

Saiu e Aqamdax ficou pensando na conversa. Aparentemente, Folha Vermelha não queria que Aqamdax falhasse nas histórias. Talvez ela se tivesse habituado à idéia de que teria de partilhar Sok, se não com Aqamdax, com outra mulher qualquer. É melhor ele conservar-me, pensou Aqamdax. Como mulher dos Primeiros Homens, eu nunca terei o mesmo estatuto que teria uma nascida aqui.

Tirou dois odres dos postes. Iria ao rio enchê-los de água fresca. Também iria apanhar lenha, faria uma boa pilha junto da porta, pronta a levá-la para dentro se a chuva ameaçasse, ou a pegar-lhe fogo se os insetos ou o frio perturbassem as suas histórias.

Atravessou a aldeia, perguntando a si própria se Ghaden e a irmã, Yaa, andariam por ali. Se assim fosse, a veriam e iriam com ela. Na véspera, Ghaden sentara-se ao seu colo enquanto ela lhe contava histórias. Aqamdax adorava sentir o peso dele no peito, o cheiro do seu cabelo macio, o som do seu riso quando ela contava uma anedota. Também começava a encarar Yaa como irmã. A menina era uma pessoa invulgar uma adulta num corpo de criança sempre ocupada, sempre séria. Se Aqamdax escolhesse uma irmã mais nova, seria Yaa.

Havia outras pessoas no rio, algumas pescando com linhas finas de tendão enrolado. Aqamdax continuava a usando a sua linha de algas, embora algumas mulheres rissem dela. Deixa rir; as algas eram fortes. Não tinha que se preocupar com uma linha partida se apanhasse um peixe grande.

Aqamdax dirigiu-se para o local em que as mulheres enchiam os odres de água. A margem fazia um declive suave até ao rio e uma faixa curva de areia formava uma praia com largura suficiente para lançar barcos na água, um bom lugar para estar sentado e reparar redes ou entrar na água pouco profunda.

Quando ela ouviu a voz de Chakliux, virou-se e sorriu-lhe. Ele agachou-se à maneira dos Primeiros Homens e ofereceu-lhe uma tira de peixe seco. Ela acabou de encher os odres. Em seguida, aproximou-se dele, pegou o peixe e ofereceu-lhe um odre de água. Ele bebeu e colocou um pouco de água sobre o peixe para o amolecer.

Aqamdax agachou-se ao lado dele e comeu sem falar. Quando ele acabou de comer, bebeu mais um gole e devolveu-lhe o odre. Ela bebeu, pôs a tampa no odre e guardou-o aos seus pés.

Vais contar histórias esta noite, disse Chakliux.

Sim, mas ainda é muito cedo, respondeu ela.

Todos os dias contas histórias às crianças. Aqamdax riu.

Elas contam-me tantas histórias como eu a elas. Elas ensinam-me.

Ensinaram-te bem.

Há muita coisa que eu não sei disse ela. Muitas vezes escolhia a palavra errada e tinha que repetir.

Terás que falar devagar. Alguns dos velhos que não ouvem bem vão ficar atrapalhados com o som da tua voz dos Primeiros Homens e podem perder as palavras do Povo Rio.

Falarei devagar afirmou Aqamdax. Estava desapontada. Tivera esperança de que ele a ajudasse tentando convencer Sok a esperar. Tu és um contador de histórias como eu. Não preciso te explicar a magia das palavras. Mas como posso ter certeza de que as minhas histórias dos Primeiros Homens saem fortes e inteiras se usar palavras do Povo Rio para as contar?

Durante muito tempo, Chakliux ficou olhando para o rio. Por fim, tirou um longo fio de tendão de uma bolsa que trazia à cintura. Enrolou-o nos dedos até Aqamdax ver os contornos de uma lontra-marinha feitos com voltas e nós.

Os Caçadores de Morsas servem-se de fios para os ajudarem a contar histórias, explicou-lhe Chakliux. Ouvi dizer que as mulheres de Tundra desenham as suas histórias na neve com facas de madeira e de marfim.

Pegou a mão esquerda de Aqamdax, enrolou-lhe o fio no pulso e atou-o.

Aqamdax susteve a respiração e, por alguns momentos, esqueceu tudo menos o calor do contato de Chakliux.

Quando as tuas palavras te parecerem fracas, lembra-te da pulseira de tendão disse ele, envolvendo-lhe o pulso com os dedos. Lembra-te de que isso é mais forte do que parece. Lembra-te de que eu estou aqui contigo.

Chakliux largou-lhe a mão e levantou-se.

Ainda tenho muitas perguntas a fazer, disse Aqamdax. Tens tempo para me ajudar?

Sabia que parecia uma criança, incomodando os outros, mas queria mantê-lo junto dela, mesmo que fosse por pouco tempo.

Ele olhou para o Sol.

Sim, tenho armas para preparar, mas tenho tempo.

Leva as tuas armas para a minha cabana. Podes trabalhar lá disse Aqamdax.

Aqamdax sabia que ele iria falar-lhe em algum tabu. Era raro ele entrar na sua cabana. Mas, quando o fazia, em geral levava um dos sobrinhos.

Traz o Leva-Muito ou o Chora-Alto, se quiseres, disse ela, adiantando-se.

Irei, prometeu ele.

Em seguida, foi-se embora, afastando-se a passos largos em direção à aldeia.

 

Um homem como tu devia ter mais do que uma esposa, disse Sok, apontando para a tigela meio cheia que ele tinha na mão direita. O velho xamã da aldeia dos Morsas tinha três esposas.

A minha mulher não ficaria contente respondeu Lobo-e-Corvo.

Sok levou a tigela à boca e engoliu um pouco de caldo. Lobo-e-Corvo não era um homem que mudasse de idéia com facilidade. Mesmo quando repetia cânticos e preces, era melhor que alguém lhe dissesse o que era preciso.

Tal como a maioria dos caçadores da aldeia, Sok cansava-se muito com o vozeirão da velha Ligige’ a mulher devia ter sido homem; gostava tanto de tomar decisões mas naquele momento desejava que a tia estivesse ali. Se ele soubesse que ela estava de acordo com ele, a teria trazido, como acontecera no passado, muita coisa seria diferente na vida de Sok. Sim, muita, muita coisa.

A tua filha precisa de um bom marido, alguém que um dia seja o chefe dos caçadores desta aldeia, afirmou Sok.

Lobo-e-Corvo sorveu ruidosamente o caldo e depois olhou para Sok por cima da borda.

Também é o que me diz a minha mulher.

Eu serei um bom marido para ela.

Ela seria uma segunda esposa.

Eu a respeitaria como se ela fosse primeira esposa.

Tivemos esta mesma conversa antes da morte do teu avô. Eu disse-te então que te daria Neve-no-Cabelo, mas só como primeira esposa.

Desde que ela recusou Chakliux os caçadores a receiam. Têm medo que ela lhes dê azar.

Lobo-e-Corvo levantou a sobrancelha.

E tu não tens medo dela, apesar de ter recusado o teu irmão?

Porque eu teria medo de alguém que recusou o meu irmão? Julgas que ele me amaldiçoaria? Somos companheiros de caça. Ele vive na cabana da minha mulher.

Isso é verdade. Isso é verdade, assentiu Lobo-e-Corvo.

Como sabes, tenho muito para dar por ela, mais do que pela mulher dos Primeiros Homens, tanto quanto a filha de alguém pode render.

Porque julgas que eu queria a mulher dos Caçadores Marinhos?

Tens que ouvi-la contando histórias. Ela tem poderes que nem imaginas. Quando as palavras lhe saem da boca, transportam-te para outros sítios, outras épocas. Ela é dotada.

Durante muito tempo, Lobo-e-Corvo não falou. Durante muito tempo, Sok ficou esperando. Estava quase resolvido a levantar-se, a sair e a dizer a Aqamdax que não haveria histórias ao serão, mas então Lobo-e-Corvo falou, lenta, tranqüilamente.

Não digas nada à tua mulher, Folha Vermelha. Não quero que a minha mulher saiba por enquanto.

As palavras fizeram nascer a esperança no coração de Sok, que se debruçou, pegando a tigela de madeira com tal força que ela chiou nas suas mãos.

Dizes que essa mulher dos Caçadores Marinhos vai contar histórias esta noite? perguntou Lobo-e-Corvo.

Sim.

Estarei lá para a ouvir. Se ela me agradar, faremos negócio. Amanhã, me dás como segunda esposa, mas a minha filha fica comigo durante a caça ao caribu. Podes reclamá-la quando a caçada acabar.

Não era burro... aquele, pensou Sok. Teria duas esposas e uma filha para o ajudar a esquartejar a sua carne e a preparar as suas peles. Teria menos ajuda da mulher dos Primeiros Homens, mas pelo menos ela aprenderia e estaria preparada para o ano seguinte. Talvez Flor Azul estivesse mais disposta a ensiná-la do que Folha Vermelha.

Está bem, respondeu Sok.

Saiu da cabana às pressas, antes que Lobo-e-Corvo mudasse de idéia.

Aqamdax espalhou ervas frescas e flores secas de erva-do-fogo pelo chão. O Povo Rio cobria o chão com peles de caribu, mas ela usava plantas, como lhe tinham ensinado. O que cheirava melhor do que as ervas e as flores secas? Trouxera esteiras entrançadas e pendurara-as nas paredes. Os desenhos da tecelagem desviavam os olhares das cinzas da lareira e dirigiam-nos para a beleza das paredes da cabana. A primeira vez que Folha Vermelha vira a cabana de Aqamdax, tapara a boca com a mão, escondendo a surpresa ou o riso, Aqamdax não sabia, mas quem podia esperar que aquelas mulheres do Povo Rio compreendessem o que era belo se faziam os seus cestos com pele de peixe?

Aqamdax ouviu raspar à porta e inclinou-se para mandar entrar quem estava lá fora, esperando que fosse Chakliux.

Quando vivia com os Primeiros Homens no ulax do chefe dos caçadores, ficava sempre satisfeita quando os homens iam vê-la, por saber que não enfrentaria sozinha a escuridão da noite. Com Chakliux, sentia uma alegria diferente. Queria olhá-lo nos olhos quando o confrontava com um enigma. Queria ouvir a sua voz quando ele falava com ela. Nem com Rompe-o-Dia ela sentira aquilo.

Não sabia ao certo por que motivo Chakliux lhe agradava. Não era um homem grande, apesar de ter uns braços fortes. Talvez fosse o poder do seu pé de lontra. Talvez fosse a sua rapidez de espírito. Muitas vezes, antes de adormecer, os pensamentos de Aqamdax viravam-se para ele, e muitas vezes ela dizia a si própria que não devia pensar tanto no irmão do marido. Mas, mesmo em sonhos, ele vinha encontrá-la, e quem podia controlar os sonhos?

Sorriu, mas o seu sorriso deu lugar a uma boca aberta de admiração ao ver que quem entrara na cabana não fora Chakliux mas sim uma das velhas da aldeia, uma das tias de Chakliux, apesar de Aqamdax não se lembrar do nome dela.

B... bem... vinda, tia gaguejou Aqamdax.

A mulher inclinou a cabeça, como se meditasse na relação que Aqamdax assumira com tanta facilidade.

Tia do teu marido, isso é verdade disse ela por fim.

Havia uma rispidez na sua voz que irritou Aqamdax, e as palavras vieram-lhe depressa demais à língua:

Não tens certeza se queres ser tia de alguém que não é totalmente humano. Segundo as histórias do meu povo, somos irmãos das lontras-marinhas. Considerando o teu sobrinho Chakliux, talvez sejamos mais chegadas do que tu julgas.

A velha semicerrou os olhos e abriu a boca, e nesse momento Chakliux entrou na cabana. Hiii, pensou Aqamdax, que boa maneira de começar as minhas histórias, insultando uma das velhas, tia do meu marido. Porque falo eu sempre antes de pensar?

Então, para surpresa de Aqamdax, a velha desatou a rir. Era um riso profundo e ressonante, que poderia sair da boca de uma jovem, e Chakliux, que observava a cena, começou também a rir, até que Aqamdax deu consigo a sorrir.

A velha sentou-se perto do centro da cabana, junto do lume, e Chakliux sentou-se ao lado dela, de pernas cruzadas. Aqamdax levou-lhes tigelas de sopa de peixe e um odre de água.

A velha limpou os olhos na manga e aceitou a sopa das mãos de Aqamdax.

Folha Vermelha disse-te que não era preciso preparares comida para as pessoas? perguntou Chakliux.

Sim, respondeu Aqamdax, agradecida por verificar que a mulher lhe dissera a verdade. Mas ainda não chegou a hora das histórias, e vocês são da família.

Aqamdax olhou para a velha e reparou que ela erguera ligeiramente a testa. Era um bom sinal.

Esta mulher de Sok tem o marido errado comentou a velha, virando-se para Chakliux, como se Aqamdax tivesse saído da cabana.

De repente, as mãos de Aqamdax imobilizaram-se. Saberia ela dos planos de Sok para a vender a Lobo-e-Corvo?

Chakliux abriu a boca e voltou a fechá-la, como se não soubesse o que dizer. Por fim, olhou fixamente para Aqamdax.

O meu irmão disse-me que tenciona vendê-la. Talvez a Lobo-e-Corvo.

Lobo-e-Corvo faria pior, mas tu és o único que podes salvá-la observou a velha.

Sim, sou concordou Chakliux, sem tirar os olhos do rosto de Aqamdax.

 

Sok vestiu a sua melhor parka. Fora Folha Vermelha que a fizera com pele de lobo e de marta. As peles de lobo mais leves e com o pelo mais comprido eram trabalhadas em diagonal e alternavam com as peles de marta castanho-escuras e fofas. No meio das costas, fizera o desenho do Sol com pedaços de uma pele amarela e branca que Sok comprara. A parka era tão grossa e dura que Folha Vermelha machucara as mãos ao costurá-la. Enfeitara-lhe as mangas com intestino de caribu raspado, gelado e seco de tal maneira que adquirira uma brancura imaculada, alternando com tiras que ela tingira de vermelho e de preto. À frente viam-se dentes de peixe pendurados, furados e costurados de modo a oscilarem em duas longas filas que iam dos ombros até à cintura, e, por trás de cada dente, a mulher pendurara uma pena escura e iridescente de pescoço de cormorão.

Era uma parka que dava nas vistas e, quando Sok entrou na cabana, todos olharam para ele. Ocupou o lugar de honra nos fundos da cabana, falando em voz alta e gracejando. Aqamdax sentou-se junto da entrada, com dois odres de água em cada mão. Resolvera vestir-se como era costume quando contava histórias ao seu povo, com as tangas tecidas atadas à cintura e, como a cabana não estava quente pelo menos não tão quente como ela estava habituada, vestia também o seu sax de penas de cormorão-preto. Vestira-o com as penas viradas para dentro durante a longa viagem no mar do Norte, e algumas estavam partidas. Aqamdax fora obrigada a reforçar várias costuras, mas a parka continuava a ser muito bonita e tão boa como qualquer outra usada pelas mulheres do Povo Rio. Sok empinou o queixo para ela e depois fez-lhe sinal para que ocupasse o seu lugar de contadora de histórias. Ela colocara uma almofada de peles de lontra-marinha de um dos lados da lareira e sentou-se ali, quase sem perceber que Folha Vermelha se aproximara dela, lhe tirara os odres de água e ficara com eles na mão.

De repente, Aqamdax esqueceu-se das palavras do Povo Rio, lembrando-se apenas da língua do seu povo. Arregalou os olhos de medo e fitou Chakliux, que lhe sorriu. Sim, devia ser mulher dele, pensou Aqamdax. Se assim fosse, não estaria tentando contar histórias antes de estar preparada para isso, tentando conquistar o seu lugar na cabana de um homem que ela não desejava.

Eles estavam à espera, os homens, as mulheres e as crianças que se acumulavam na sua pequena cabana; outros espiavam do túnel de entrada. Se ela começasse a falar na língua dos Primeiros Homens, talvez conseguisse mudar mais facilmente para as palavras do Povo Rio, mas quem podia dizer ao certo? O Povo Rio podia ofender-se.

Por fim, Chakliux levantou-se, olhando fixamente para Sok, como se lhe dissesse para estar calado e esperar.

Começo as histórias segundo a tradição que aprendi em criança disse ele, e com as suas palavras, pronunciadas com tanta clareza na língua do Povo Rio, Aqamdax voltou a lembrar-se da língua. Primeiro, um enigma.

Ouviu-se um murmúrio vindo da assistência, de ansiedade ou de descontentamento, Aqamdax não sabia ao certo, mas só pôde sentir gratidão.

Olhem, vejo alguma coisa, disse Chakliux.

O quê? perguntou uma das crianças, um rapazinho com cerca de três Verões.

A pergunta provocou uma gargalhada geral, e Chakliux também riu.

Crescem juntos, são sagrados e ajudam as pessoas proferiu ele.

Houve muitos palpites: as árvores e os animais, os peixes e as aves, até que por fim a velha, a tia, levantou a cabeça e disse:

O que é mais sagrado para o nosso povo, das coisas que crescem, do que as plantas que nos dão frutos? Elas vivem perto da terra, vão buscar força ao solo e transmitem-na através dos seus frutos.

Ligige’, tu és inteligente disse Lobo-e-Corvo. Quem sabe responder ao enigma de Chakliux?

Ligige’, pensou Aqamdax. Não se podia esquecer do nome da velha. Aqamdax podia fazer-lhe perguntas, e talvez um dia... Mas não. Não podia entregar-se ao desejo de vir a ser esposa de Chakliux. Estava prometida a Lobo-e-Corvo. E ainda pertencia a Sok.

Os empetros e as amoras-da-silva-salmão crescem juntos disse Leva-Muito, um dos filhos de Sok.

Aqamdax viu Sok erguer as sobrancelhas e olhar para Chakliux. Este fez um sinal afirmativo ao sobrinho e Sok exprimiu a sua satisfação com a resposta do filho.

Tu és inteligente, comentou Chakliux.

As pessoas concordaram com um murmúrio, e Aqamdax percebeu que o seu medo desaparecera. Mesmo assim, a tarefa seria difícil, e ela não reclamaria o lugar de contadora de histórias. Naquela aldeia, esse lugar pertencia a Chakliux. Contentava-se em contar histórias às crianças, mas nessa noite ajudaria Sok a conquistar a mulher que ele desejava. Talvez um dia, em troca, ele a ajudasse a encontrar uma maneira de ser esposa de Chakliux.

Aqamdax instalou-se nas almofadas de pele de lontra, agachando-se como o seu povo fazia.

Para o meu povo, eu sou uma contadora de histórias, ensinada por outra contadora de histórias anunciou ela, sem tropeçar nas palavras.

Todos vocês conhecem as histórias de Rio melhor do que eu, por isso não tentarei contá-las. É preferível que sejam vocês a me contá-las.

Eles abanaram a cabeça, de sobrancelhas erguidas. Era um bom começo.

Portanto, esta noite o meu marido oferece a sua hospitalidade na esperança de que vocês gostem de ouvir novas histórias do povo a que chamam Caçadores Marinhos. Há muito que eles são vossos parceiros de negócios, e por vezes nós também negociamos esposas.

Aqamdax sorriu e ouviu-se uma gargalhada geral.

Por isso vou começar por vos falar das lontras-marinhas, nossas irmãs, e do modo como elas nasceram.

Aqamdax falou desse irmão e dessa irmã, que se descobrira serem amantes, e que por isso tinham caído em desgraça junto do seu povo. Como continuavam precisando um do outro, atiraram-se ao mar e tornaram-se as primeiras lontras-marinhas. Quando Aqamdax acabou a história, contou outra, do grande entalhador Shuganan, e depois começou a contar a história de Chagak. Embora as palavras da língua do Povo Rio não lhe saíssem da boca com a mesma fluência da sua própria língua, ela sabia que o povo começava a vivê-las, a transformar-se naqueles de quem ela falava. Às vezes, tinha que fazer uma pausa e procurar uma palavra, mas se não se lembrava do que precisava de saber, olhava para Chakliux. De cada vez, ele mexia os lábios para ela ver a palavra antes de a pronunciar, e era como se ela se servisse do seu próprio fôlego para dar vida ao que ele dizia.

Quando chegou à parte da história em que falava das lontras, mudou a voz como fizera no seio do seu povo, como se fosse uma lontra a falar em vez de uma mulher.

Apertou a garganta, e foi buscar a voz na escuridão que naquele momento se fechava em volta do orifício do fumo. O primeiro som depois da voz da lontra foi a vozearia deliciada das crianças. Aqamdax já se servira das vozes delas, e as crianças já estavam à espera disso. Mas com um ruído semelhante ao ranger da terra quando esta se mexe debaixo de uma aldeia, os caçadores começaram a murmurar e Aqamdax ouviu as mulheres levantarem a voz num tom lamuriento, como se elas próprias tivessem se tornado crianças de repente.

Em seguida, Lobo-e-Corvo levantou-se, gritando-lhe e brandindo o seu cajado, cantarolando palavras que pareciam ser maldições. Aqamdax olhou para Chakliux, mas ele estava de costas, com as mãos já fincadas nos braços de Lobo-e-Corvo. Depois, Sok aproximou-se dela, gritando às pessoas que abriam caminho para sair da cabana.

Aqui não há nada a temer. Ela não invoca os espíritos. É a voz dela. É ela que faz as vozes. Ela é uma contadora de histórias. Porque vocês têm medo?

Mas eles não pararam, e por fim só Sok, Chakliux, Ligige’ e Lobo-e-Corvo ficaram com Aqamdax na cabana.

Esperas vender uma pessoa que não tem respeito pelos poderes de um xamã? Julgas que a aceito em troca da minha filha? gritou Lobo-e-Corvo a Sok. Só um xamã tem direito de usar as vozes dos espíritos.

Sok levantou-se, boquiaberto. Aqamdax esperou que ele falasse para dar as suas explicações a Lobo-e-Corvo, mas. como ele não o fez, ela disse:

Eu não desrespeito ninguém. Sou uma contadora de histórias. Sou eu que faço as vozes. Posso fazê-lo agora, se quiseres. Muitas vozes. É assim que os Primeiros Homens contam histórias.

Não ouvirei mais histórias tuas declarou ele. Lobo-e-Corvo saiu da cabana e Sok foi atrás dele.

 

Colar Azul acha que ela é uma bruxa, mas eu não acho. Ela não invoca espíritos. Só conta histórias.

Yaa afastou o cabelo dos olhos. Este prendera-se numa raiz caída do teto da toca que lhe soltara uma madeixa das tranças. Na penumbra, ela não via bem o rosto de Ghaden mas ouvia-o comer.

Ela é minha irmã disse ele, com a voz embaralhada pelo peixe que tinha na boca.

Sim, e é contadora de histórias.

Tu és minha irmã

Somos ambas tuas irmãs disse Yaa com paciência. Era uma ladainha em que, aparentemente, ambos tinham que participar todos os dias, para garantir que Aqamdax era irmã de Ghaden.

Tu também és irmã dela? perguntou ele.

Yaa franziu a testa. Ghaden nunca fizera esta pergunta.

Não, bem, talvez, visto que a mãe dela e a minha eram esposas-irmãs.

As relações entre as pessoas eram complicadas. Às vezes, os primos também eram marido e mulher. Depois, os filhos eram irmãos uns dos outros ou eram primos? Bom Punho dizia que eram as duas coisas, mas às vezes Bom Punho tinha idéias esquisitas. Havia muitas regras acerca daqueles com quem era possível casar ou ter relações de parentesco. Yaa estava aprendendo-as. Eram complicadas demais para Ghaden compreendê-las.

Como Yaa tinha levado Ghaden à toca, varrera o chão e retirara o lixo. Até se lembrara de transportar um cobertor, mas algum animal podia cheirá-lo e levá-lo ou rasgá-lo, ou até mudar-se para ali, apesar de Yaa ter urinado num dos cantos para deixar o seu odor, assinalando aquele local como seu.

Lobo-e-Corvo estava zangado com ela, não estava, Yaa?

Estava apenas irritado. Bem sabes que ele se irrita de vez em quando. Como Água Castanha.

Sim, disse Ghaden, e Yaa não percebeu se se tratara de uma expressão de agrado ou desagrado.

Deu uma dentada no seu peixe e mastigou-o devagar, tentando fazê-lo durar muito. Era um truque que aprendera uma vez na Primavera, quando tinha a idade de Ghaden. Se comesse devagar, a boca lembrava-se do sabor e depois, quando a comida escasseasse, ela podia fechar os olhos e fingir que estava comendo.

Agora, até as despensas de Água Castanha estavam cheias, atulhadas de peixe seco e de ovas, de pequenos pássaros inteiros e de frutos secos conservados em óleo. Tinham empilhado as cabeças de peixe em poços, fermentando, e dali a pouco tempo, se os caçadores tivessem sorte, teriam carne de caribu defumada e seca.

Ele está zangado com o homem grande, afirmou Ghaden, interrompendo os pensamentos de Yaa.

Quem é que está zangado?

Lobo-e-Corvo.

Oh! Yaa gostaria de ter tido o bom senso suficiente para levar Ghaden para casa depois das primeiras histórias. Antes de Aqamdax ter imitado as vozes. Aparentemente, ele não conseguia deixar de pensar no que acontecera.

Já te disse que ele ficou apenas irritado disse ela.

Com o homem grande, também?

Quem é o... Ah, Sok.

Sim, concordou Ghaden outra vez. Lobo-e-Corvo estava irritado com Sok.

Às vezes isso acontece, mas em geral eles são amigos.

A minha irmã vai voltar para a aldeia dela?

Yaa inclinou a cabeça e olhou para a parte mais escura da toca. Ainda não pensara no assunto, mas talvez alguém obrigasse Aqamdax a voltar para os Caçadores Marinhos. Ela esperava que não. Era bom ter uma pessoa crescida que era como uma irmã, e não uma mãe. Era bom ter outra cabana para onde ir quando Água Castanha estava zangada.

Ela tem marido, portanto pode ficar aqui, disse Yaa a Ghaden, mas perguntou a si própria o que faria Aqamdax se Sok a rejeitasse.

Yaa esperava que, quando tivesse idade para ser esposa, arranjasse um marido da sua aldeia. Era mais fácil. Uma coisa era certa: ela nunca aceitaria ir para tão longe como a aldeia de Caçadores Marinhos.

 

E a menina? perguntou Tikaani.

Deixa-a.

Ela vai dizer à mãe, e depois os caçadores vêm atrás de nós.

Cen rosnou, mas sabia que Tikaani tinha razão. Eles precisavam apanhar o rapaz sozinho, mas era raro a irmã abandoná-lo.

Poderíamos matá-la, sugeriu Tikaani.

Não era prudente matar uma criança. Qual o pai que não procuraria vingar-se?

Levamo-la também, afirmou por fim Cen. Alguém a comprará, se não na vossa aldeia, noutra qualquer. Ela ainda não tem idade para ser esposa, mas parece forte. Alguém a quererá como escrava, ou para trocar por uma esposa, daqui a uns Verões.

Achas que o rapaz se lembra de ti?

Acho que sim, mas não desta maneira. Cen apontou para a cara, enrugada e suja, e para os tufos de pele branca nas tranças. Mas tenho coisas de que um rapaz gostaria. Uma seta pequena, anzóis e uma linha de pesca.

Se não o apanharmos o quanto antes, teremos que ir embora. Julguei que já o teríamos há três ou quatro dias.

Às vezes ele fica sozinho quando a menina está nas lareiras.

O cão.

Cen tirou uma coxa de uma lebre recém morta de uma bolsa que trazia pendurada à cintura.

Então, esperamos, disse Tikaani. K’os também pode esperar. Teremos boas coisas para lhe contar quando voltarmos.

Cen pensou em K’os. Ela não era uma pessoa que gostasse de esperar, mas ele não se importava com aquilo de que ela gostava. Queria Ghaden.

 

Chakliux estava sentado numa rocha à beira da floresta. Descobrira aquele lugar quando fora pela primeira vez à aldeia de Rio Próximo, quando Sok era mais um inimigo do que um irmão e Folha Vermelha se queixara em voz alta do acréscimo de trabalho que ele representava. Há muito tempo que ele não ia ali. Agora era bem recebido por Sok e Folha Vermelha, o tio verdadeiro de Leva-Mais e Chora-Alto. Folha Vermelha não tinha irmãos que ajudassem os filhos a manejar as armas e a caçar, que lhes ensinassem aquilo que um homem devia saber, e por isso Chakliux tentava ensiná-los, à maneira dos caçadores quer de Rio Próximo quer de Rio Primo.

Quando Sok ofereceu a Aqamdax uma cabana só para ela, a mulher começou a costurar para Chakliux, com belos pontos em costuras duplas, segundo a tradição dos Primeiros Homens. Já lhe fizera um chigdax novo e estava trabalhando numa parka de pele de pássaro, não tão quente como as parkas de pele de caribu ou de lobo, mas boa para o Verão e para o abrigar da chuva.

Às vezes, quase parecia que eles eram casados, e uma vez, quando Sok sugeriu que ele partilhasse a cama de Aqamdax, uma situação concedida a um irmão que não tinha mulher, Chakliux quase concordou. Mas não sabia ao certo se Aqamdax queria e por isso não fora passar a noite com ela.

Naquele momento, ainda não sabia o que era melhor. Talvez, antes de lhe pedir para ser sua esposa, ele se oferecesse para a levar para a aldeia dela. Uma viagem até a aldeia dos Primeiros Homens seria perigosa naquela época do ano, mas ele podia prometer-lhe que a levaria no Verão seguinte. Talvez ela quisesse ser sua esposa durante o Inverno... Mas depois como poderia ele suportar deixá-la partir?

Estava fazendo pesos de pedra-sabão para as boleadeiras, esculpindo em cada um a cabeça de um corvo. As boleadeiras seriam uma oferenda para depor junto das ossadas do pai, um sinal do luto que Chakliux fazia por ele no seu coração. Chakliux não era um bom entalhador, mas o trabalho em pedra-sabão macia em contato com a lâmina de sílex da faca que trazia na manga descontraía-o. Apesar da geada que endurecia o chão todas as noites, o sol da manhã estava quente, e as árvores que rodeavam três dos lados da rocha protegiam-no do vento.

Chakliux ouviu um ruído e levantou a cabeça, vendo Dorminhoco, o companheiro de caça de Raposa-Que-Ladra, o marido da mãe. O homem tinha o rosto crispado, embora geralmente andasse de boca aberta, como se o fato de a fechar lhe exigisse um enorme esforço.

Chakliux acenou ao homem e Dorminhoco disse: O teu pai pediu-me que viesse falar contigo.

O que deseja Raposa-Que-Ladra? perguntou Chakliux, tentando não mostrar através da voz que nunca considerara Raposa-Que-Ladra como um pai, que nunca conseguira conceder tal honra ao homem.

Morreram mais dois cães.

Os cães dele?

Não, os de Pato-de-Cabeça-Azul. Um era uma cadela com a barriga cheia de filhotes.

Chakliux abanou a cabeça. Com os cães de olhos dourados que havia agora na aldeia, ele tinha esperança de que aquela conversa dos cães amaldiçoados tivesse acabado.

Como é que eles morreram?

Ninguém sabe.

Não estavam doentes?

Não.

O que espera Raposa-Que-Ladra que eu faça? Não tenho mais cães de olhos dourados para oferecer.

Ele quer que saibas que alguns caçadores julgam que a maldição voltou. Ele quer que saibas que eles julgam que tu trouxeste de novo o azar à nossa aldeia.

Diz-lhe que os cães morrem. Lembra-lhe que eles morreram antes de eu chegar e que morrerão depois de eu partir. Eu trouxe cães fortes da aldeia de Rio Primo e dos Caçadores de Morsas. É tudo o que posso fazer. Com exceção dos cães do meu avô, não fiquei com um único para mim. Só depois que Nariz Preto parir outra ninhada é que poderei oferecer a Pato-de-Cabeça-Azul um cão para substituir os que ele perdeu. Diz a Raposa-Que-Ladra que, se ele quiser que se faça alguma coisa agora, tem de oferecer um dos seus cães a Pato-de-Cabeça-Azul.

Dorminhoco proferiu qualquer coisa entre dentes, mas Chakliux não quis saber o que o homem dissera e não lhe pediu que repetisse. Regressou ao seu trabalho, e por fim Dorminhoco afastou-se.

Não, não podia fazer nada pelos cães, mas podia fazer outra coisa. Podia ir falar com Sok e dizer-lhe que queria Aqamdax. Talvez Sok ficasse zangado, mas que lhe importava isso? Na noite da véspera, ele afirmara que não queria Aqamdax como esposa. Esperava o irmão que a mulher passasse o Inverno na aldeia de Rio Próximo sem marido?

Aqamdax ficara a manhã toda na cabana. Tinha a certeza de que Sok viria dizer-lhe que a rejeitava. Esperava que ele aparecesse cedo, antes de a maior parte das mulheres acordar. Não sabia os costumes do Povo Rio. Se ele a rejeitasse, isso significaria que ela tinha de abandonar a cabana? Ou até a aldeia? Haveria alguma família disposta a aceitá-la até ela arranjar maneira de voltar para os Primeiros Homens?

Gostaria que Chakliux fosse falar com ela. Os conselhos dele eram sempre bons, sempre acertados, e o melhor que lhe podia acontecer era que ele a aceitasse como esposa. Mas, se ele a quisesse, não devia já ter aparecido? Talvez tivesse mudado de idéia. Talvez, também ele, quisesse que ela abandonasse a aldeia.

Aqamdax pegou um cesto que começara a fazer há uns dias. Tentara entretecê-lo à maneira de Qung, dando laçadas frágeis com pedaços de erva. Estava quase a acabando o círculo do fundo, mas nesse dia tinha os dedos tremendo e não conseguia fazer nada. Largou o trabalho e começou a andar de um lado para o outro na cabana. Ouviu um som à entrada do túnel e ficou à espera, com o coração apertado e a bater com força debaixo das costelas. Reconheceu o cimo da cabeça de Sok e afastou-se quando ele se pôs de pé.

Sok demorou-se a olhar para ela. Tinha um olhar frio.

Desculpa... ela ia dizendo, mas ele interrompeu-a.

Cala-te ordenou ele. Não quero voltar a ouvir a tua voz.

Ela fechou a boca e cruzou as mãos, obrigando-se a manter os dedos imóveis.

Sok vestia a mesma parka cerimonial da noite da véspera, mas as perneiras e as botas eram as de todos os dias, sem chocalhos de casco de caribu nem bordados de pelo pintado.

Tu já não és minha esposa declarou ele, e as suas palavras foram como uma bofetada na face de Aqamdax. Rejeito-te. Não foste minha esposa tempo suficiente para ficares com esta cabana. Se não arranjares um marido que me pague as peles de caribu, também tens que partir.

Mais uma vez, Aqamdax abriu a boca para falar, mas ele encostou-lhe um dedo espetado à cara.

Não fales comigo insistiu ele, enfiando-se no túnel.

Aqamdax ficou imóvel durante muito tempo, pressionada pelas palavras até sentir que não conseguia respirar. Em seguida, enfiou as perneiras, calçou as botas e vestiu a parka que fizera à maneira do Povo Rio.

Um cão, pensou. Tenho que arranjar um cão. Talvez conseguisse ir a pé para a aldeia do seu povo se tivesse o cão para a proteger e para transportar as suas coisas e mantimentos. Possuía coisas para trocar, um chigdax... Mas não, e se ela encontrasse um comerciante disposto a levá-la de barco? Precisaria do chigdax.

Possuía cestos. Eles haviam de render alguma coisa. Ela tinha pouca comida de reserva. Talvez pudesse ceder uma parte do óleo de foca.

Primeiro, iria falar com a velha Ligige’. Talvez ela conhecesse alguém que quisesse vender um cão. Talvez ela soubesse se Chakliux também estava zangado com ela.

Não, primeiro iria falar com Ghaden e Yaa, despedir-se deles. Talvez, quando fosse crescido, Ghaden quisesse ser comerciante como o pai. Um dia, ele iria à aldeia de Aqamdax e ela poderia voltar a vê-lo. Mas o fato de saber que isso talvez nunca viesse a acontecer fê-la sentir um nó na garganta e as lágrimas prestes a saltarem-lhe dos olhos.

Lembrou-se de que poderia nunca ter vindo para ali, de que poderia nunca ter sabido que tinha um irmão. Só o fato de saber, de o ter conhecido, valia muito, mesmo que fosse obrigada a partir.

Embalou o que lhe pertencia, enrolou as esteiras e os cobertores, depois parou e percorreu a cabana com o olhar. Sorriu, um sorriso rápido, recordando que desejara ter a sua própria cabana quando vivia com os Primeiros Homens. Agora que tinha uma, ia deixá-la. Tirou um odre meio cheio de água dos postes e o pôs a tiracolo. Depois pegou um fardo que preparara com os objetos para trocar e saiu da cabana.

Sok entrou na cabana de Folha Vermelha arrastando uma lufada de ar frio saturado do cheiro de fumaça e a folhas secas. Olhou para Chakliux.

Ela é tua, mas não é bem-vinda nesta cabana. Tu és, disse ele, apontando com o queixo para o irmão.

Darei peles de caribu a Folha Vermelha, metade da parte que me cabe da nossa caçada, em troca da cabana de Aqamdax.

Sok encolheu os ombros e desviou o olhar. Chakliux pegou a parka, mas Folha Vermelha impediu-o.

Espera disse ela. Ainda não podes ir.

Sok semicerrou os olhos à mulher, disparou algumas palavras, furioso, e saiu da cabana. Folha Vermelha sorriu.

Não podes ir falar com uma noiva sem te preparares. Eu tenho óleo. Tenho erva-do-fogo seca para te amaciar o cabelo. Tens algum presente para ela?

Chakliux sentiu-se corar. Passara a noite pensando num presente, mas não queria dizer isso a Folha Vermelha. Por fim, resolvera-se pelo colar de conchas e jaspe que usava nas cerimônias.

Eu tenho um colar disse ele.

Ainda bem. Toma.

A mulher deu-lhe um sael de gordura de ganso, que adquirira um tom amarelo-claro. Ele tirou um bocadinho e passou-o pelo cabelo. Depois, sentiu-se descontraído quando Folha Vermelha lho penteou com os dedos.

Esposa. Da última vez que se preparara para aceitar uma esposa, a mulher era Mirtilo e ele só sentira tristeza. Agora, conhecia Aqamdax e sabia o que era a alegria, tão fervilhante e cheia como no dia em que ele aceitara Gguzaakk.

Ah, minha Gguzaakk, alegra-te por mim, pensou ele. Encontra um bom caçador para ti nesse mundo dos espíritos e um dia estaremos todos juntos, tu, eu e o nosso filhinho, o teu caçador e a minha Aqamdax, e talvez outros filhos e filhas.

Não quero que as pessoas te vejam aqui, declarou-lhe Água Castanha. Não és bem-vinda na minha cabana. Não entres. Deixa-nos.

Os olhos da mulher eram duros e negros como pedra, mas Aqamdax não se virou.

Preciso ver o meu irmão disse ela.

Ele não é teu irmão.

Daes é minha mãe. Ghaden é meu irmão.

Água Castanha ficou sem fôlego quando Aqamdax pronunciou o nome de Daes em voz alta, e Aqamdax viu-lhe o medo no olhar.

Julgas que eu não sou humana para pronunciar o nome de uma morta? Estás enganada. Mas não tenho medo da minha própria mãe, e o que mais tenho a perder, agora que perdi tudo? Quero ver o meu irmão.

Ele saiu. Não sei onde está. Deve estar com Yaa. Aqamdax não sabia se Água Castanha estava dizendo-lhe a verdade. Talvez fosse melhor fingir que acreditava nela. Encontraria Ligige’ e depois voltaria para perguntar se podia falar com Ghaden.

Eu volto, afirmou Aqamdax a Água Castanha, sorrindo-lhe como se fossem duas amigas cumprimentando-se.

Encaminhou-se para a cabana de Ligige’ de cabeça erguida. Com certeza que algumas mulheres já sabiam que Sok a rejeitara, mas isso seria pior do que o ridículo a que ela estivera sujeita na sua própria aldeia?

Ligige’ deixara um pau espetado à entrada da cabana. Aqamdax pegou-o e raspou as peles de caribu já gastas.

Estou aqui! gritou Ligige’, com a voz rouca de uma velha, mas mais alto do que Aqamdax esperava.

Aqamdax enfiou a cabeça na entrada. O cheiro agradável a carne cozida impregnava o ambiente. Ligige’ estava mexendo algo numa pele pendurada num tripé.

Estou velha demais para ir sempre às lareiras da aldeia, disse ela a Aqamdax. Tens fome?

Aqamdax ia recusando a comida tinha o estômago pequeno demais e encolhido de preocupação mas não sabia ao certo se era delicado recusar para o Povo Rio.

Tenho disse ela. Isso cheira bem. Ligige’ apontou com o queixo saliente para um amontoado de tigelas de madeira que se encontravam numa rede pendurada do outro lado da cabana. Aqamdax pegou numa.

Também queres? perguntou ela.

Sim respondeu Ligige’, que encheu as duas tigelas e estendeu uma a Aqamdax.

A velha sentou-se numa esteira perto da lareira e começou a comer. Aqamdax agachou-se ao lado dela. Ligige’ parou de comer e apontou com a tigela para as pernas de Aqamdax, perguntando:

Não te cansas de estares sentada assim?

Sempre me sentei assim respondeu ela. Para quê molhar um sax de penas sentando-me em cima dele?

Às vezes, acho que os Caçadores Marinhos são mais humanos do que nós.

Aqamdax levantou a sobrancelha, admirada com o comentário. E depois lembrou-se de que, para o Povo Rio, erguer o sobrancelha significava concordância; por isso baixou a cabeça depressa, esperando que Ligige’ não tivesse visto.

Creio que todos somos humanos, afirmou Aqamdax em voz baixa. Somos apenas diferentes, mais nada.

Talvez, disse Ligige’, com a boca cheia de comida. Quando Aqamdax esvaziou a tigela, Ligige’ ofereceu-lhe mais, mas ela disse-lhe que estava cheia. A velha lançou um olhar ávido à panela e tirou um pouco mais.

Comer parece ser o único prazer que me resta, observou ela.

Aqamdax sorriu.

Chakliux disse-me que tu aprecias um bom enigma.

Ah, também isso, concordou Ligige’, batendo com a mão no joelho. Também isso. É bom ter Chakliux na nossa aldeia. Ele e os seus enigmas fazem boa companhia.

Também sou dessa opinião, disse Aqamdax.

Algumas das mulheres andam falando comentou Ligige’. Vejo que trazes um fardo. Vais deixar-nos?

Não tenho alternativa. O meu marido rejeitou-me.

E não há outros homens para ti nesta aldeia? perguntou Ligige’.

Nenhum que me aceite.

Acho que estás enganada.

Quem me quer depois de ter assistido à fúria de Lobo-e-Corvo?

Não tenhas medo que Lobo-e-Corvo te amaldiçoe. Ele não é pessoa para fazer uma coisa dessas.

Ele julga que eu não respeito os seus poderes de xamã.

No seu íntimo, ele sabe que tu não quiseste mostrar desrespeito, mas, às vezes, Lobo-e-Corvo demora um certo tempo a ser honesto consigo próprio. Ele é meu primo, e eu conheço-o desde que ele nasceu. Eu tinha treze Verões nessa altura, e passei muito tempo com ele ao colo, limpando-o e a mudando-lhe o musgo que lhe almofadava o espaldar. É difícil tomar um homem muito a sério quando nos lembramos de que lhe limpávamos o traseiro em pequeno. A velha empinou o queixo e disse a Aqamdax: Tu só o conheceste como xamã. Eu vejo-o também como um bebê chorando e como uma criança. Compreendo-o melhor, também.

Ligige’ inclinou-se para Aqamdax, tirou-lhe a tigela das mãos e largou também a sua.

Sinto a falta do meu irmão, Tsaani disse ela. Aqamdax não se lembrava de ninguém na aldeia que se chamasse Tsaani.

Ele vive noutra aldeia? perguntou ela.

Não. Vivia aqui. Morreu antes de tu chegares. Não te preocupes que eu pronuncie o seu nome. Estás a salvo comigo.

Eu não me preocupo, disse Aqamdax. Ele morreu há muito tempo?

Não há muito. Há tanto como a tua mãe. Só isso.

Sabes que ela era minha mãe?

Pronuncia o nome dela se quiseres, a menos que seja tabu para ti. Eu estou velha. Não a receio. Soube que ela era tua mãe assim que te vi. És parecida com ela. Outros diziam que era por tu seres dos Caçadores Marinhos, mas eu sabia. Algumas pessoas são tolas, julgam que os Caçadores Marinhos deviam ser todos parecidos. Vou dizer-te uma coisa que tu devias saber. A velha inclinou-se para Aqamdax, baixou a voz e proferiu com uma voz rouca: O meu irmão e a tua mãe foram mortos com a mesma faca.

Ele era o avô de Chakliux?

Era.

Foi ele que morreu na mesma noite da minha mãe?

Sim. Os dois. Na mesma noite. Foi Chakliux que te contou?

Água Castanha.

Ah! Estou admirada por Sok não te ter dito.

Descobri que há muita coisa que Sok não me disse.

Ele não é um homem bom nas palavras, mas é um ótimo caçador.

Por instantes, Aqamdax sentiu-se irritada, mas depois os seus pensamentos abandonaram Sok e viraram-se para a noite em que a mãe morrera. Se Daes fora assassinada por ser dos Primeiros Homens, porque Tsaani fora morto? Se o comerciante tinha algum motivo para matar Daes, porque matara também Tsaani? Porque tentara matar o próprio filho e depois deixara uma faca que quase todas as pessoas sabiam pertencer-lhe? Os comerciantes não eram tolos. Os tolos não sobreviviam a longas viagens de aldeia em aldeia, negociando com muita gente.

Eles estiveram juntos nessa noite, o teu irmão e a minha mãe? perguntou ela a Ligige’.

Não. O meu irmão estava na cabana da mulher. A tua mãe e o teu irmão foram encontrados à porta da cabana de Água Castanha.

Chakliux contou-me umas coisas, prosseguiu Aqamdax. Que encontrou o meu irmão e que ele ainda tinha a faca espetada nas costas.

Sim. Fui eu que ajudei Lobo-e-Corvo a tratar do rapaz.

Então eu devo-te muito, disse Aqamdax.

O que deve alguém a uma velha que trata de uma pessoa que um dia virá a caçar?

Quem era a mulher do teu irmão?

Mirtilo.

Aquela que é agora mulher de Caça-Raízes?

Sim.

Ela é nova.

Foi uma boa esposa para o meu irmão. Ele mandou-a para a cabana dos pais nessa noite porque Lobo-e-Corvo fora falar com ele.

Acerca de quê?

Ligige’ franziu a testa e Aqamdax levantou uma mão.

Desculpa. Eu não queria ser indelicada. Ligige’ encolheu os ombros.

Os costumes variam de aldeia para aldeia e de povos para povos.

Na minha aldeia isto também seria uma indelicadeza, declarou Aqamdax.

A velha sorriu.

Compreendo que queiras saber o que aconteceu. Não posso dizer-te muito; só que Mirtilo disse que estava na cabana da mãe e que até o irmão mais novo, que só tinha quatro Verões, te dirá o mesmo. Ela não sabia do que queria falar Lobo-e-Corvo... Como vês, eu também perguntei... E por isso eu fui falar com ele e perguntei-lhe.

E ele disse-te?

Começou a resmungar, mas sim, disse-me. Disse que queria comunicar a Tsaani que Sok não ficaria com Neve-no-Cabelo, que a filha dele não seria segunda esposa de nenhum caçador.

Há muito tempo que Sok tenta conquistar Neve-no-Cabelo?

Sim, há muito tempo. Sabes que foi essa a razão da sessão de histórias desta noite?

Sei.

Lobo-e-Corvo não é mau homem, mas é muito cioso dos seus poderes de xamã. Se ele fosse mais forte, mais seguro de si, não creio que tivesse ficado tão zangado. Preocupa-o que haja outros que mereçam mais tal poder do que ele.

Eu compreendo, afirmou Aqamdax.

Tu és uma criança. Como é que podes compreender?

Eu era contadora de histórias na nossa aldeia, mas antes disso... Aqamdax fez uma pausa, ponderando cuidadosamente as palavras. Antes disso eu não era uma mulher que um homem quisesse ter como esposa.

Mas Sok quis-te.

Não. O xamã dos Morsas é que me queria. Sok entregou-me a ele para conseguir mercadorias que lhe permitissem comprar Neve-no-Cabelo.

Então, porque estás aqui?

O xamã dos Morsas morreu antes de eu me tornar mulher dele.

Ligige’ arregalou os olhos e de súbito Aqamdax desejou não ter contado nada à mulher.

Eu não o matei disse ela. Eu não tive nada a ver com a morte dele.

Então tu querias ficar com o xamã dos Morsas?

Nesse tempo, eu queria ser mulher de Sok. Depois descobri que ele só me aceitara para me vender ao xamã dos Morsas.

Mas tu vieste para cá com ele.

Os Morsas não me deixariam ficar com eles, e depois de eu estar aqui...

Tu ficaste por causa de Chakliux afirmou Ligige’ por fim.

Não... disse Aqamdax. De repente, percebeu que Ligige’ tinha razão. Ela ficara por causa de Chakliux. Sim.

Não partas antes de falares com ele.

Tenho outras coisas a fazer primeiro. Conheces alguém que tenha um cão para vender?

Ligige’ abanou a cabeça.

Vai às lareiras e pergunta às mulheres que lá estão.

Também tenho que encontrar o meu irmão, Ghaden, e a irmã, Yaa. Eles não estavam na cabana de Água Castanha.

As crianças brincam disse Ligige’. Há uma bela toca de raposa no caminho para a latrina das mulheres, perto da saída da aldeia. Lembras-te do velho abeto, do mais alto, na curva do caminho?

Aqamdax fez um sinal afirmativo.

É debaixo dessa árvore. Procura aí se não conseguires encontrá-los na aldeia.

Obrigada. Seria bom chamar-te tia.

Então, chama. A velha levantou-se. Não partas sem falares com Chakliux.

Aqamdax sorriu e fitou a mulher.

Falarei com Chakliux prometeu ela.

 

O meu pai nunca me deixará ir contigo agora, disse Neve-no-Cabelo.

Sok pousou-lhe a mão no ombro, mas ela afastou-se e virou-lhe as costas. Os cabelos espessos e soltos chegavam-lhe quase à cintura. A mulher despira a parka no ambiente morno da cabana de Folha Vermelha e vestia apenas uma camisa de pele de caribu com longas fendas debaixo dos braços. Quando se mexia, ele via-lhe a pele escura do lado dos seios.

Tenho o suficiente para comprar três esposas afirmou Sok, olhando para o teto da cabana para não se perder de desejo por ela.

Ainda há uma maneira disse Neve-no-Cabelo, e falou tão baixinho que Sok teve que se debruçar para ouvir as palavras dela.

Ela fitou-o e ele sentiu uma tremura na barriga, como se andasse caçando, de lança e lançador em riste, espreitando um animal.

Se rejeitares Folha Vermelha...

Ele desviou o olhar.

Não posso. Como posso suportar ver os meus filhos junto de outro homem?

Ela encostou-se às costas dele, abraçou-o pela cintura e colou-se a ele para Sok lhe sentir os seios e os ossos duros e salientes que lhe guardavam as pregas macias da vulva.

Posso dar-te filhos declarou ela em voz baixa.

Muitos filhos. Tantos filhos que teremos de construir duas cabanas. Neve-no-Cabelo riu, um som alegre que ele adorava. Tantos filhos que terás de casar com outra mulher só para ela ajudar a tratar deles.

Ele não podia mexer-se. A alegria e o horror daquilo que ela queria que ele fizesse levavam-no a sentir-se como se tivesse uma corda atada ao pescoço. Depois, ouviu-a arfar, soltando-o. Levantou a cabeça e viu Folha Vermelha.

Folha Vermelha era uma mulher alta, quase tão alta como Sok, e nesse momento parecia maior, mais alta ainda. Sok julgou que ela desataria a gritar de fúria, mas ela limitou-se a levantar a cabeça e a empinar o queixo.

Dois filhos fortes são melhores do que promessas de filhos afirmou ela, dirigindo as suas palavras a Neve-no-Cabelo. Depois, olhou para Sok e acrescentou: Não é preciso rejeitares-me. Eu sei como podes convencer Lobo-e-Corvo a conseguir esta moça que desejas. É fácil. É uma coisa que uma mulher pode fazer. Que eu posso fazer. E se o fizer, nem sequer terás que lhe pagar nada por ela.

A mulher inclinou a cabeça e olhou de esguelha para Neve-no-Cabelo.

Mas as peles que não deres a Lobo-e-Corvo serão para mim declarou ela.

Serão para ti concordou Sok.

 

Yaa?

Aqamdax agachou-se em frente do abeto e gritou na direção dos ramos. Devia ser aquela a árvore a que Ligige’ se referia. Era a única árvore grande que havia na curva do caminho.

Ghaden? É a tua irmã Aqamdax.

Aqamdax ouviu um restolhar nos ramos e recuou. Não sabia nada acerca dos animais que viviam perto da aldeia de Rio Próximo, nem sabia ao certo o que havia de fazer se apanhasse um pela frente.

Então Ghaden espreitou, com um rostinho pálido, redondo e sorridente.

Ghaden!

O grito foi em surdina, mas Aqamdax reconheceu a voz de Yaa. De repente, alguém afastou Ghaden, cujo rosto desapareceu debaixo dos ramos do abeto. Aqamdax foi atrás dele, de rastos.

É tarde demais. Sei que estás aí, Yaa. Foi a Ligige’ que me disse.

A Ligige’!

Yaa saiu, corada e aborrecida.

A Ligige’ disse que nós estávamos aqui?

Disse.

Como é que ela sabia? Ninguém sabe deste lugar exceto eu e Ghaden. E agora tu acrescentou Yaa fazendo beicinho.

Os velhos sabem muitas coisas, mas não me parece que tenhas motivos para te preocupares. Ela não dirá a ninguém, nem eu. Esse continuará a ser o vosso esconderijo. Eu não voltarei aqui.

Yaa suspirou.

Acho que podes vir se nós te convidarmos. Mas não muitas vezes.

Aqamdax sorriu e abanou a cabeça lentamente.

Não, Yaa, eu não voltarei a vir aqui. Venham comigo. Preciso falar contigo e com Ghaden.

Chakliux foi primeiro à cabana de Aqamdax. Quase todas as coisas dela estavam embaladas. Até as esteiras que ela pendurara nas paredes estavam enroladas junto de um odre de óleo de foca. Resolvera ela sair da aldeia? Sok não lhe dissera que Chakliux a queria como esposa? Ela sabia com certeza que ele viria à sua procura.

Devia estar com Ghaden ou com Ligige’. Evidentemente. Mas, apesar de Chakliux saber que ela ainda devia estar na aldeia, sentiu um medo súbito. Ela era dos Primeiros Homens e não tinha a proteção de um marido. Quem sabia o que os espíritos poderiam fazer-lhe?

Chakliux dirigiu-se à cabana de Água Castanha, e encontrou a mulher cá fora a raspar uma pele de raposa que pusera em cima de um tronco. O raspador era o osso da perna de um caribu, e, quando ele lhe dirigiu a palavra, ela ergueu o raspador como se fosse uma arma, agarrando-o como um homem agarrava numa lança.

Não pronuncies o nome dela, declarou Água Castanha quando ele lhe perguntou por Aqamdax. Ela é como a mãe, sempre encontrando maneira de mostrar desrespeito, de arranjar problemas. Não fiquei admirada quando os espíritos lhe mataram a mãe, e não ficarei admirada se acontecer o mesmo a Aqamdax.

Chakliux enfrentou a mulher como se esta fosse um guerreiro, cruzando os braços e levando a mão à faca embainhada que trazia à cintura.

Tu viste-a. Para onde foi ela? perguntou ele, confrontado com um gesto relutante de Água Castanha.

Ela queria ver Ghaden. É tudo o que sei.

Onde está ele?

Foi com ela, espero, respondeu Água Castanha. Apontou o furador ao centro do peito de Chakliux. Ela faz bem em sair desta aldeia. Isso é uma coisa que eu diria. Ela não devia estar aqui. Ela não é dos nossos.

Por fim, Chakliux virou-lhe as costas, mas continuou a ouvir a voz de Água Castanha ralhando e lamentando-se.

Encaminhou-se para a cabana de Ligige’ e encontrou-a lá dentro, sentada, sem fazer nada. Esperava que ela desse alguma desculpa pela sua inatividade, mas a velha disse apenas, como se houvesse motivos suficientes para tudo o que fora ou não feito:

Sou uma velha.

Chakliux não tinha palavras amáveis na ponta da língua e por isso tartamudeou durante alguns momentos, tentando lembrar-se se estava ou não sol ou frio lá fora.

Por fim, Ligige’ perguntou:

Procuras Aqamdax?

Ele fechou a boca e engoliu em seco.

Sim, disse.

Eu sabia que isso iria acontecer. Ela está com Ghaden.

Onde está Ghaden?

Ah, isso não posso dizer-te. É um esconderijo que só ele e as irmãs conhecem.

Ligige’, ela vai-se embora. Tenho que encontrá-la.

Não posso dizer onde é o esconderijo, mas talvez consigas descobri-lo disse ela, fazendo-lhe sinal para que ele se aproximasse.

 

Estás pronto?

Cen fez um sinal afirmativo.

E a mulher?

Não a matem disse Cen.

Com que então queres poupar a vida a alguém que nem sequer é humano.

Cen virou-se e fitou Tikaani. Acreditaria ele verdadeiramente que uma pessoa que não fosse do Povo Rio não era humana?

Ela é irmã do meu filho. Não a matem.

Mas a menina... Não te preocupas com ela?

Eu não a matarei. Façam o que quiserem. Tikaani começou a descer para o vale de Rio Próximo, com cuidado, pousando primeiro os dedos dos pés e depois o calcanhar. De repente, desatou a correr, sem fazer barulho. Cen teve dificuldade em apanhá-lo, pousando os pés nos mesmos locais que Tikaani pisara.

Surgiram tão depressa que só a menina mais nova é que teve tempo de gritar. Cen agarrou Ghaden pela barriga e tapou-lhe a boca com a mão. Pegou ele no colo e desatou a correr pelo caminho por onde tinham chegado.

Só quando voltaram ao abrigo nas árvores é que ele percebeu que a menina mais nova fora atrás dele. Sentiu o pau nas pernas e depois na nuca. Parou, e ela atirou-se a ele, ao soco e ao pontapé, enquanto Ghaden, ainda nos braços de Cen, abria a boca e lhe dava uma dentada na mão.

Cen tirou a mão da boca de Ghaden e deu uma bofetada à menina. Atingiu-a na têmpora. Por instantes, ela fitou-o com os seus olhos escuros. Depois, caiu em peso e ficou imóvel.

A minha irmã! A minha mãe! gritou Ghaden.

Ela está bem. Está dormindo, mais nada. Está apenas dormindo. Olha para mim, Ghaden. Lembras-te? Sou Cen, o comerciante. Sou o teu pai. Vim tirar-te desta aldeia. Houve aqui alguém que matou a tua mãe. Também podem matar-te. Vou levar-te para um local seguro. Quero que venhas comigo.

Ghaden olhou para a irmã e depois lentamente para Cen.

Ela está dormindo? perguntou ele.

Está.

Eu preciso do Mordedor.

Quem é o Mordedor?

É o meu cão. Ele está na cabana de Água Castanha. Preciso dele.

Teremos que vir buscá-lo mais tarde disse Cen. Ghaden fez uma careta tão grande que Cen julgou que o rapaz ia desatar a chorar, mas ele enfiou o dedo na boca e fechou os olhos.

Cen passou-o para o outro braço e embrenhou-se mais no arvoredo. Não podiam correr o risco de seguir os caminhos que iam dar no rio durante o dia, mas tinham assinalado uma trilha na floresta, dobrando caules e cortando pedacinhos de casca de árvore, sinais em que ninguém reparava a menos que andasse à procura deles.

O peso do rapaz nos seus braços provocou-lhe uma alegria súbita, e Cen nem quis pensar na menina que deixara caída no chão. Por fim, Tikaani aproximou-se dele, com a mulher dos Primeiros Homens num ombro e o fardo dela no outro.

Caminharam durante muito tempo sem parar, mas de vez em quando Tikaani gemia, agachava-se e deixava a mulher cair no chão.

Cen pousou Ghaden e endireitou o braço para aliviar as cãibras nos músculos. Ghaden ajoelhou-se ao lado de Aqamdax, encostou o seu rosto ao dela e agarrou-se aos cabelos dela. Cen abanou a cabeça. Ela era muito parecida com Daes. Arranjara maneira de descobrir para onde é que ele levara a mãe e viera para aquela aldeia. Cen não sabia se conseguiria convencê-la a ir com ele. Ela podia tomar conta de Ghaden e ajudá-lo a transportar os fardos. Em tempos, julgara que uma mulher era um estorvo, mas desde a morte de Daes que estava obcecado com a idéia de arranjar outra. Ajoelhou-se ao lado dela, pôs-lhe a mão no pescoço e sentiu-lhe a pulsação forte debaixo dos dedos.

O que lhe fizeste? perguntou ele a Tikaani.

É melhor perguntares o que ela me fez.

Sangue seco assinalava quatro golpes que lhe iam da testa até ao queixo. Tikaani estendeu a mão e Cen viu as marcas dos dentes.

Bati-lhe.

O homem inclinou-se para a frente e apontou para uma nódoa negra no queixo de Aqamdax.

Ali. Levou a mão à boca. Sugou-a, cuspiu uma golfada de sangue e depois disse: Agora amarra-a.

Ela vai lembrar-se de mim. Não oferecerá resistência, disse Cen.

No entanto, levantou-lhe o sax e tirou a faca de mulher do embrulho que ela atara à cintura. Em seguida, apalpou-lhe as mangas para ver se ela tinha facas embainhadas nos braços.

Toma conta dela. Eu vou comer e depois dormir. Será mais fácil se não a levarmos.

E fazemos o quê?

Matamo-la ou amarramo-la e deixamo-la aqui.

Ela não viverá muito tempo se a amarrarmos.

Ela não merece viver muito tempo.

Então tu não lutarias se alguém te agarrasse e ao teu irmão? A vingança está certa para ti mas não para ela?

Tikaani resmungou qualquer coisa em voz baixa e depois encaminhou-se para um montículo de musgo debaixo de uma árvore e sentou-se. Abriu o fardo que a mulher dos Primeiros Homens trazia e descobriu um sael de peixe seco. Atirou um bocado a Cen.

É um fardo pesado para uma mulher observou ele, com a boca cheia de peixe. Há aqui muita comida.

Ela ia embora, disse Ghaden, com a sua vozinha. Ia para a terra dela. Disse que eu podia ir vê-la quando fosse comerciante.

Venha cá, Ghaden chamou Cen.

O rapaz ficou ao lado da mulher por um momento, mas, quando Cen lhe estendeu os braços, ele aproximou-se. Cen pegou-lhe no colo e deu-lhe uma parte do peixe.

Quando é que podemos ir buscar o Mordedor? perguntou Ghaden.

É o cão dele, explicou Cen a Tikaani.

O homem fez um sorriso trocista e depois, debruçando-se sobre o fardo de Aqamdax, tirou mais mantimentos.

Hoje não, disse Cen.

Eu disse à Yaa que devíamos trazê-lo, mas ela disse que ele fazia muito barulho. Que alguém o ouviria. Yaa já acordou?

A menina pequena chama-se Yaa? perguntou Cen.

Sim.

Ela está acordada neste momento.

Água Castanha vai ficar furiosa.

Porquê?

Porque eu não estou em casa. Tenho trabalho para fazer.

Deixa-a lá. Tu estás comigo, e eu não estou zangado.

Ela pode não dar de comer ao Mordedor.

Yaa dará de comer ao Mordedor.

Yaa dá?

Yaa dá.

Ghaden meteu o dedo na boca e encostou-se a Cen.

Faz com que Aqamdax acorde, pediu ele.

É melhor ela estar dormindo.

A erva estava pisada. Havia sangue. O fio partido de um colar. Chakliux apanhou-o e viu que pertencia a Aqamdax. O coração começou a bater-lhe com força. Eram palpitações intensas e violentas que lhe faziam eco na garganta. O que acontecera ali? Ela e Sok tinham lutado? O irmão ferira-a, ou matara-a? Ele era homem para ser levado pela ira, sem pensar nas conseqüências. Chakliux pegou as contas do colar que tinham ficado ali e começou a bater a área. Percorreu o caminho quase até à latrina das mulheres e depois até à aldeia. Havia pegadas, algumas tão grandes que pareciam ser de um homem, mas o trilho era utilizado sobretudo pelas mulheres, e era impossível distinguir qualquer rasto com clareza.

Chakliux dirigiu-se à cabana de Folha Vermelha e encontrou Sok, olhando para as chamas da lareira.

Onde está Aqamdax? perguntou Chakliux.

Como queres que eu saiba? Rejeitei-a.

Não lhe fizeste nada?

O quê?

Onde é que ela estava da última vez que a viste?

Na cabana dela. Já te disse que a rejeitei. Talvez ela lá esteja agora.

Depois disso, onde foste?

Chakliux, o que aconteceu?

Onde foste?

Fui falar com Neve-no-Cabelo. Passei o dia com ela e com Folha Vermelha. Pergunta-lhes.

Chakliux saiu da cabana. Como podia ele saber se o irmão estava dizendo a verdade? Como podia ele confiar em alguém naquela aldeia de Rio Próximo? Talvez o seu próprio povo tivesse razão. Se eles fossem boas pessoas, permitiriam que homens como Raposa-Que-Ladra e Dorminhoco ficassem na aldeia? Mas depois Chakliux lembrou-se de Pato-de-Cabeça-Azul e de Tsaani. De Faz-Tendas e Treina-Cães. Todos boas pessoas. Até Lobo-e-Corvo era bom homem, apesar de ser fraco.

No povo de Rio Próximo não havia também gente boa e má? Porquê julgar uma aldeia inteira por uma ou duas pessoas?

Voltaria ao caminho em que encontrara o colar. Enfiou a cabeça na cabana de Aqamdax ao passar. Continuava vazia. Embora não quisesse, voltou a atravessar a aldeia, parou na cabana de Água Castanha e arranhou no túnel de entrada.

Yaa? exclamou uma voz aguda. Água Castanha gritou:

Onde estiveram, tu e Ghaden? É quase noite.

A mulher veio espreitar ao túnel. Fez um ar carrancudo ao ver Chakliux.

Não encontraste a mulher? perguntou ela.

Não.

É melhor que a encontres. Ela levou Ghaden e Yaa.

Ela não levaria os teus filhos.

Conhece-la assim tão bem? Ela é má. Se essas crianças não voltarem depressa, peço aos caçadores que vão atrás dela. Digo ao meu filho que a mate.

Água Castanha voltou a entrar na cabana, mas, quando Chakliux ia afastando-se, um cão ganiu e apareceu no túnel de entrada, com a cauda entre as pernas. O cão acovardou-se ao ver Chakliux, mas este ajoelhou-se e deu-lhe a mão para cheirar. Já vira o animal, sempre ao lado de Ghaden. Tinha as pernas compridas e desajeitadas e o peito ainda era estreito, mas já crescera bastante. Como lhe chamava o rapaz? Era um nome estranho para um cão.

Mordedor. Era isso. Chakliux já ouvira alguém dizer que, quando o cão caçava, trazia a presa ao rapaz. Qual o cão que fazia uma coisa dessas?

Mordedor, disse Chakliux em voz baixa. Mordedor. Ajudas-me a encontrar Ghaden?

Chakliux teve que obrigar o cão a afastar-se da cabana de Água Castanha, mas por fim conseguiu que ele o acompanhasse.

Lindo menino. Vamos encontrar Ghaden, Yaa e Aqamdax disse Chakliux ao cão, uma promessa que fazia a Mordedor e a si próprio.

 

A princípio, Ghaden não acreditou que o homem que o levava no colo fosse Cen, o comerciante. Cen, aquele que tinha sempre coisas boas para lhe dar, que tinha sempre boa comida. Como podia Cen estar tão velho? Cen era um comerciante, não era um velho. Como podia ele ter cabelos brancos? Como podia ele ter uma cara tão cheia de rugas e de manchas?

Contudo, quando eles pararam para descansar, o velho abriu um fardo e tirou algumas das mesmas coisas com que Ghaden brincara da última vez que estivera na cabana de Cen, na cabana do comerciante com a sua primeira mãe. Ghaden espiou o rosto do velho. O nariz não era o de Cen. E havia uma cicatriz, cor-de-rosa e brilhante. Cen não tinha nenhuma cicatriz. Mas os olhos pareciam os de Cen, e o cabelo...

Ghaden estendeu o braço e tocou num tufo de cabelos brancos. O velho riu-se, pegou os cabelos brancos, arrancou-os da cabeça e deu-os a Ghaden. O rapaz não quis tocar-lhes. Havia neles uma magia qualquer, tinha certeza disso. De outro modo, não teriam saído da cabeça do velho com tanta facilidade, mas o homem lhe dera. Como se fosse um presente. Não se jogavam presentes fora, nem se mostrava que não os queríamos. Ghaden recebeu os cabelos mas não os agarrou.

O homem riu e esfregou os cabelos nos dedos.

Olha. É pelo de caribu, estás vendo? disse ele.

Ghaden inclinou-se, observou-os com atenção e depois esfregou os cabelos como o velho fizera. Era mesmo pelo de caribu. Ele tinha ouvido histórias de homens que se transformavam em animais, e de animais que se transformavam em homens.

Tu és um caribu? perguntou ele em voz baixa. O velho riu.

Não. Já te disse que sou Cen, o teu pai, Cen respondeu ele.

O pai dele? Não, o pai dele tinha morrido. Tinha morrido quando Ghaden estava na cabana do xamã, quando ele estava curando-se da ferida provocada pela faca.

O meu pai morreu, disse Ghaden.

Um dos teus pais, explicou o homem. Eu sou o teu outro pai. O teu primeiro pai. Quando a tua mãe resolveu ficar com o Povo Rio, arranjaste outro pai.

Ghaden inclinou a cabeça e olhou fixamente para o homem. Ele parecia-se um bocadinho com Cen. Só um bocadinho, e a voz era a de Cen. Quando Ghaden fechava os olhos e escutava, parecia Cen falando. Trazia os fardos de Cen. Até as botas que calçava eram de Cen, ou talvez não fossem exatamente iguais.

Porque tens cabelos de caribu? perguntou Ghaden por fim.

Para me fazerem mais velho.

Porquê?

Para me aproximar da aldeia às escondidas e te trazer comigo.

Porquê?

Porque sou o teu pai.

Água Castanha vai ficar furiosa.

Não te preocupes com Água Castanha. Eu protejo-te dela. Como podia eu deixar-te crescer com Água Castanha se quero ensinar-te a ser um comerciante como eu, a caçar e a remar um barco de comerciante?

Ghaden enfiou o dedo na boca.

Quero o Mordedor. Quero a minha Yaa exclamou.

Eu arranjo-te um cão. Um cão melhor do que o Mordedor, maior e melhor.

Ghaden abanou a cabeça devagar.

Não, disse ele.

Em seguida, levantou-se e aproximou-se do local onde os homens tinham deixado Aqamdax. Sentou-se ao lado dela, de costas, para não ver o velho que afirmava ser Cen. Enrolou a mão nos cabelos de Aqamdax. Esperaria que ela acordasse e depois abandonaria aqueles homens e voltaria para a sua aldeia. Quando Yaa voltasse a dizer que o Mordedor não podia ir com eles para a toca, ele também não iria.

Deixa a mulher.

Era uma voz de homem. Falava a língua do Povo Rio.

Aqamdax deixou-se ficar de olhos fechados. Sabia que Ghaden estava ao lado dela, sentia as mãozinhas dele a acariciarem-lhe a cabeça, a agarrarem-lhe os cabelos. Ele estremecia de vez em quando, como se tentasse conter as lágrimas.

Não a abandonarei, disse outro homem. Apesar de falar na língua do Povo Rio, a sua voz tinha sotaque de comerciante, de um homem que falava muitas línguas, cada uma das quais deixava um pouco de si, como uma pedra que conserva as cores das sementes e dos frutos secos moídos por ela. É a filha da minha mulher. Não a abandonarei.

Ao ouvir aquelas palavras, Aqamdax por pouco não abriu os olhos. A filha da mulher? Os seus primeiros pensamentos foram para o pai, que morrera afogado no mar do Norte. Teria ela deixado a terra para ir viver no mundo dos espíritos? Depois percebeu a sua estupidez. O homem era o comerciante. Talvez fosse aquele que levara a mãe para a aldeia do Povo Rio. Talvez fosse o pai de Ghaden.

Pouco a pouco, entreabriu os olhos e tentou ver alguma coisa entre as pestanas. Sim, eram dois homens. Estavam agachados junto dos seus fardos. O fardo dela também estava ali. Apesar de lhe ser difícil vê-los com clareza, parecia que ambos tinham cabelos brancos de velhos, mas os seus corpos eram direitos como os de jovens caçadores. Quem seriam? Porque a teriam atacado, e a Ghaden e Yaa?

Yaa! Onde estava ela? A teriam matado?

Como é que a levas? Ela é muito pesada para levar nas costas. Só servirá para nos atrasar. Eles encontram a outra e vêm atrás de nós. Um bom batedor depressa verá os sinais que deixamos para nos orientarmos na volta.

Se eu ficar quieta, eles deixam-me aqui, pensou Aqamdax. Depois poderei ir procurar ajuda. Mas eles levarão Ghaden, e se os nossos caçadores não conseguirem encontrá-los?

Virou a cabeça, abriu os olhos e sorriu a Ghaden. O rapaz correspondeu-lhe com um sorriso aberto.

Aqamdax levantou a cabeça, cerrou os dentes ao sentir a dor e sentou-se. Todo o lado do rosto lhe doía.

Eu vou com vocês, disse ela.

As palavras eram embaralhadas, e Aqamdax levou a mão à boca. Tinha os lábios inchados e cobertos de sangue seco.

Os dois homens assustaram-se. Um levantou-se e aproximou-se dela. Mesmo na penumbra da floresta, Aqamdax viu que os cabelos brancos dele tinham sido costurados, como se fossem bordados, mas que eram... pelos de caribu. O rosto era engelhado e escuro, e tinha cicatrizes, mas os olhos eram os de um jovem, com os dentes brancos e os lábios ainda não carcomidos pela idade.

Sou Cen, informou ele, falando na língua dos Primeiros Homens. Não tenho faca.

O homem abriu as mãos e afastou os dedos, num cumprimento que Aqamdax vira muitas vezes. As palavras, na língua dela, eram como uma dádiva, mas Aqamdax ficou na defensiva. Lá porque um homem falava a sua língua, isso não queria dizer que ele fosse amigo.

Irei contigo e com o meu irmão, disse ela, puxando Ghaden para o colo.

Consegues andar? perguntou o outro homem. Nós não podemos levar-te nas costas. Assim que anoitecer, partiremos.

Para onde vão?

O homem semicerrou os olhos e Aqamdax arrependeu-se de ter feito a pergunta.

Para muito longe respondeu ele. Em seguida, dirigindo-se ao que se chamava Cen, disse: Tu já sabes a escolha que fazes. Se a levares, és responsável por ela.

Eu quero os dois disse o homem. Depois, aproximou-se do seu fardo, abriu um odre de água e tirou peixes secos. Atirou-os a Aqamdax. Come e obriga o teu irmão a fazer o mesmo. Só paramos de manhã.

Pensar em comida enjoava-a, mas fez o possível por dar uma dentada e depois deu os peixes a Ghaden.

Come pediu ela, rezando para que ele não recusasse.

Quero Yaa. Quero o Mordedor, proferiu ele em voz baixa.

Ghaden, tens de comer.

O rapaz olhou para ela, viu-a dar mais uma dentada e depois comeu também.

 

Como é que o cão podia ter desaparecido? Ia com ele, um pouco mais à frente, e depois desaparecera na curva do caminho.

Como é que um animal desaparecia?, perguntou Chakliux a si próprio. Os esquilos, as raposas e até as ptármigas na neve? Tinham buracos, lugares seguros, tocas escondidas.

Ao contrário da maior parte dos abetos-negros que cresciam nos limites da aldeia, os ramos daqueles que ladeavam o caminho chegavam ao chão. Chakliux pôs-se de quatro, afastou as ervas e os galhos e espiou as reentrâncias escuras por baixo dos galhos. A árvore do canto, no local em que o caminho virava para a latrina das mulheres, era a maior. Os seus ramos formavam um círculo irregular cujo raio tinha quase o comprimento do corpo de um homem. Chakliux levantou o ramo maior. Havia outro, mais pequeno, por baixo. Chakliux levantou-o também e depois ficou sem fôlego quando qualquer coisa saiu, como uma seta, de baixo das árvores.

Chakliux pegou a faca da manga, desembainhou-a e depois viu que o animal era um cão. Deixou cair a faca antes que Mordedor, na sua avidez, se espetasse nela.

Onde te meteste? perguntou Chakliux.

Em seguida, levantou o ramo outra vez e segurou-o enquanto o cão voltava a enfiar-se debaixo da árvore e entrava num buraco escuro que parecia afundar-se por baixo das raízes.

Chakliux foi atrás do cão, aproximando-se do buraco. Ficou preso pelos ombros. A terra era como mãos que o agarravam. Deu um pontapé com a perna direita, a mais forte, uma, duas vezes, e viu-se dentro de uma toca, com os cabelos presos num emaranhado de raízes. Pouco a pouco, os seus olhos adaptaram-se à escuridão, até que distinguiu Mordedor e alguma coisa amontoada ao lado do animal. Aquilo mexeu-se, e Chakliux ouviu uma vozinha, a voz de Yaa:

Mordedor, agora todo mundo sabe onde fica o nosso esconderijo. Cão maroto.

Chakliux levou-a ao colo como em tempos levara Ghaden, mas desta vez Mordedor acompanhava-o, mordendo quem se aproximasse demais. Quando chegaram à cabana de Água Castanha, levava um grupo de crianças atrás dele, os rapazes mais velhos fazendo perguntas e uma das meninas chorando. Gritou à porta da cabana e depois entrou. Quando o viu, Boca Feliz soltou um grito e começou a fazer uma lamúria que Água Castanha interrompeu rapidamente, tapando-lhe a boca com a mão.

Não atraias a morte, disse Água Castanha, encostando as pontas dos dedos ao pescoço da menina. Ela está viva.

Boca Feliz desenrolou os cobertores e Chakliux deitou a menina. Afastou Mordedor do rosto dela enquanto Água Castanha e Boca Feliz lhe verificavam as pernas e os braços, lhe levantavam a parka e lhe apalpavam a barriga e o peito e por fim lhe passavam as mãos pela cabeça.

Aqui proferiu Água Castanha, tateando a orelha esquerda de Yaa.

Chakliux viu-a pestanejar.

Dói? perguntou Boca Feliz à menina.

Sim, respondeu Yaa com uma voz fraca. Chakliux, ajoelhado atrás das mulheres, sentiu uma mão no ombro. Levantou a cabeça e viu Ligige’.

Bom Punho foi chamar-me segredou-lhe ela. Onde encontraste Yaa?

À saída da aldeia, junto do caminho das mulheres, onde há um grande abeto. Debaixo do...

Eu sei onde é. Sabes o que lhe aconteceu? perguntou a velha.

Não.

Yaa levantou a cabeça, fazendo o possível para ver além da mãe e de Água Castanha, procurando Chakliux com o olhar.

Ghaden? perguntou ela.

Não está aqui. Yaa deixou-se cair nos cobertores e fechou os olhos.

Eu devia ter... Ele queria levar o Mordedor. Eles levaram-no.

Quem é que o levou? - perguntou Chakliux.

E a Aqamdax, acrescentou ela.

Foi aquela mulher. Aquela mulher levou-o. Eu sabia que ela o faria. Temos que mandar caçadores atrás deles. Ela não pode estar muito longe, uma mulher com uma criança.

Não, exclamou Yaa, mas Água Castanha levantara a voz e dizia a Chakliux que fosse falar com os velhos e pedia a Ligige’ que encontrasse caçadores jovens.

Não! gritou Yaa outra vez. De repente, sentou-se, tapou a boca com as mãos e começou a vomitar.

Boca Feliz agarrou um sael de casca de árvore e o pôs debaixo do queixo da filha, mas Água Castanha virou-se para Chakliux.

Conheces aquela mulher dos Caçadores Marinhos tão bem como outra pessoa qualquer. O que achas?

Não sei, disse ele em voz baixa.

O marido rejeitou-a esta manhã acrescentou Ligige’. Ela veio falar comigo depois disso. Levava um fardo de coisas para negociar e andava à procura de Ghaden e de Yaa.

Onde disseste que eles estavam? guinchou Água Castanha, estendendo um braço e apontando para a cama de Yaa. Olhem o que ela fez à nossa filhinha.

Talvez ela tivesse resolvido sair da aldeia, disse Ligige’, ignorando Água Castanha. Talvez ela quisesse regressar ao seu povo, mas não acredito que fizesse mal a ninguém, em especial a uma criança.

Água Castanha encostou o dedo ao peito de Chakliux.

A culpa é tua, tua e do teu irmão. Vai à procura dela e traz Ghaden.

Chakliux ignorou Água Castanha e olhou para Ligige’.

Ela não disse para onde ia?

Não.

Eu a encontrarei, declarou Chakliux. Tomem conta da menina.

Tirou um fio de tendão com conchas que trazia ao pescoço. Era um dos presentes que tencionava oferecer a Aqamdax. Estendeu-o a Boca Feliz.

É para Yaa, quando ela se sentir melhor disse ele. Em seguida, saiu da cabana.

 

Fui eu que o encontrei. É meu disse Dança-no-Gelo.

Todos nós o encontramos. Tem que pertencer a todos nós. afirmou Lua Preta.

Os quatro rapazes rodearam o iqyax. Este estava guardado no interior de um esconderijo de cortiça empoleirado numa árvore.

Talvez seja do meu tio disse Leva-Muito aos outros, que troçaram dele.

Leva-Muito encolheu os ombros.

O teu tio disse que tinha um iqyax!

Ele nunca falou nisso. Mas sabe construí-los. Tal como o meu pai insistiu Leva-Muito.

Vês alguma marca deles? perguntou Lua Preta. Leva-Muito passou a mão pela cobertura macia de pele de morsa.

Talvez seja isto disse ele, apontando com o queixo para uma série de círculos brancos junto da proa pontiaguda.

Talvez seja isto, repetiu Dança-no-Gelo, com uma voz esganiçada, imitando Leva-Muito.

Dança-no-Gelo era o mais velho dos rapazes, muito mais velho do que Leva-Muito e muito maior do que todos eles.

É meu, disse ele outra vez. Vou ficar com ele. De repente, avançou, agarrou na parte da frente da parka de Leva-Muito e torceu a pele até Leva-Muito começar a sufocar.

E se alguém for contar ao tio dele, ou a outro tio qualquer, pode dar-se por muito feliz se morrer.

Dança-no-Gelo largou Leva-Muito tão de repente que o rapaz caiu no chão.

Os outros rapazes deram uma gargalhada nervosa, e depois Lua Preta inclinou-se e ofereceu a mão a Leva-Muito.

Acho que vou colocá-lo noutro local, declarou Dança-no-Gelo.

Se encontrarmos uma árvore com uns ramos de bom tamanho, talvez eles o agüentem. Só para não ficar no chão.

O rapaz pôs o ombro direito debaixo do iqyax e levantou-o.

Ajudem-me aqui. Lua Preta, vai do outro lado. Atira-Pedras, pega-lhe por trás. Leva-Muito, vai para casa. Talvez precises mamar nas tetas da tua mãe.

Ela não partiria sem falar com ele, pensou Chakliux. A amizade de ambos fora profunda demais... Mas talvez só para ele. Era irmão do marido dela. Porque havia ela de pensar que Chakliux a queria depois de Sok a ter rejeitado num momento de fúria?

Talvez ela apenas se fingisse amiga dele. Como contador de histórias, ele tinha algo para lhe oferecer. Contara-lhe histórias dos comerciantes de Caribu, e partilhara mesmo outras que os homens da Tundra do Norte afirmavam serem de pessoas que viviam tão perto do sol-nascente que acendiam as lareiras com o seu calor.

Mas fosse o que fosse que tivesse existido entre ambos, fosse ou não verdadeiro, se Aqamdax resolvera voltar para o seu próprio povo e levar o irmão com ela, como iria? Teria que seguir o rio até ao mar e depois caminhar ao longo da costa. Podia apanhar pássaros com redes e pescar à linha, mas o irmão a obrigaria a andar mais devagar. A criança era crescida demais para ir no colo e pequena demais para percorrer a pé uma grande distância. Ela sabia com certeza que o Inverno estava muito próximo para fazer uma tal viagem. Ela sabia com certeza que alguém iria atrás dela, pelo menos para recuperar o rapaz.

Depois, Chakliux lembrou-se de uma coisa que o deixou sem fôlego, como se alguém lhe tivesse aplicado um soco no estômago. Ela podia ter levado o seu iqyax.

Com o iqyax, o irmão não seria um estorvo, e ela poderia remar ao largo da aldeia dos Caçadores de Morsas, onde as pessoas talvez ainda quisessem matá-la. Então, ficas aqui sentado a pensar ou vais ver se o teu iqyax ainda lá está?, perguntou ele a si próprio.

Passou pela cabana de Folha Vermelha, pegou a lança e a prancha de arremesso, outra faca e um odre de óleo. Era um disparate pensar que Aqamdax lhe levara o iqyax, mas iria verificar e olear a cobertura, tirá-lo dali e guardá-lo num sítio seco durante o Inverno. Quando chegou ao esconderijo, era quase noite.

Subiu à árvore e se entregou à sua angústia, soltando um grito de guerra.

 

Eles não acreditaram nela. Nem Água Castanha. Nem os mais velhos. Nem sequer a mãe. A princípio, isso não teve importância. Yaa ficara tão machucada que só conseguia pensar nas dores, mas agora que estava melhor, agora que conseguia fixar a vista outra vez, irritava-se sempre que tentava falar com eles. Por fim, concluiu que não podia ficar na cabana de Água Castanha sem fazer nada. Já era mau que Chakliux tivesse ficado na cabana de Aqamdax, que não fosse procurá-los. Algumas mulheres diziam que ele nem sequer comia.

Havia muita gente zangada na aldeia: os mais velhos furiosos por Aqamdax ter roubado Ghaden; Chakliux furioso por ela ter levado o seu iqyax: Água Castanha furiosa por Yaa estar ferida. Todos estavam furiosos por Lobo-e-Corvo não ter o poder de deter Aqamdax, e Lobo-e-Corvo estava furioso com tudo.

Agora, segundo lhe contara Bom Punho nessa manhã, Lobo-e-Corvo tinha um novo motivo para estar zangado. As mulheres andavam dizendo que a filha, Neve-no-Cabelo, dormia com muitos homens da aldeia, tentando ficar com um bebê na barriga para que um deles concluísse que valia a pena ficar com ela.

A mãe de Yaa e Água Castanha passavam muito tempo nas lareiras da aldeia, falando, falando. Outras famílias começavam a partir para a caça ao caribu. Água Castanha dizia que Sok e Chakliux partiriam dentro de pouco tempo, e que Dança-no-Gelo e a família já tinham ido. Talvez fosse uma boa hora para ela partir também, pensou Yaa. Como todos pensavam noutras coisas, talvez levassem mais tempo a dar pela falta dela. Precisava de comida e de mais um par de botas, de água e de uma faca de mulher. Talvez conseguisse tirar uma das lanças do pai, uma das poucas que não ficara junto do seu cadáver na armação fúnebre. Yaa diria que ia visitar Bom Punho, que iria passar o dia ensinando-lhe a fazer cestos de erva. Depois partiria com Mordedor.

Seria difícil seguir aqueles dois homens depois de tantos dias, mas Mordedor tinha um bom faro.

Além disso, Yaa sabia de onde eram aqueles homens. A última coisa que vira antes de a escuridão chegar e a levar, fora a bota velha do homem, com costuras feitas à maneira estúpida do povo de Rio Primo.

 

Chakliux tinha a língua inchada e o corpo doía-lhe. O suor colara-lhe o cabelo no pescoço e nos ombros. Era o seu terceiro dia de jejum, o seu terceiro dia de preces, e passara quase sempre sem água. Deixara as suas preces entregues apenas ao sonho, e agora os seus sonhos eram visões de guerra em que os povos de Rio Primo e de Rio Próximo se destruíam um ao outro.

Chakliux também combatia, deslocando-se em sonhos para atacar primeiro um grupo e depois outro, mas, fosse qual fosse a aldeia que ele atacava, a pessoa que estava sempre do outro lado da sua faca, na ponta da sua lança, era Aqamdax, com os cabelos soltos e ao vento e Ghaden pendurado na anca. Sempre que ele a atirava ao chão, com a lança apontada ao coração, parava, subitamente incapaz de se mexer. No seu sonho, eles combatiam dos iqyan e, quando ele erguia a lança para a atirar ao coração dela, ela projetava a lança primeiro, não ao corpo dele mas à cobertura esticada do seu iqyax, trespassando a coberta e o casco, e Chakliux sentia a água fria inundando o seu barco e puxando-o para o mar.

Deu um grito e, de súbito, encontrou-se na cabana de Aqamdax, o local que ele escolhera para o seu jejum, longe dos gritos e das conversas de Leva-Muito e de Chora-Alto, das birras e das preocupações de Folha Vermelha e dos planos astutos de Sok para fazer de Neve-no-Cabelo a sua segunda esposa.

As paredes da cabana estavam próximas e exalavam o odor penetrante da fumaça da lareira. Chakliux tinha o corpo pesado e as pernas e os braços lentos e vagarosos, como se se tivesse esquecido de como usá-los. Levantou-se e sentiu a cabeça rodar. Tirou um odre de um poste. A água estava tépida e ganhara o sabor do recipiente, mas ele engoliu-a e os seus pensamentos clarificaram-se. Viu duas caras, não aquelas que esperava de Aqamdax, de K’os, ou da sua Gguzaakk mas de Yaa e do seu sobrinho Leva-Muito. Abanou a cabeça, bebeu mais um gole, mas as caras continuavam ali.

Serviu-se da água que ficara no odre para limpar a fuligem da cara, depois vestiu a parka e saiu da cabana de Aqamdax.

Yaa contou a sua história devagar, dessa vez com esperança, ao mesmo tempo que esfregava as orelhas de Mordedor. Chakliux escutava-a, sentado, e parecia ignorar os suspiros e os protestos de Água Castanha, a sua indelicadeza quando percebera que ele tencionava dar ouvidos a Yaa.

Yaa levantou a voz para se sobrepor à súbita decisão de Água Castanha de cantar, ao ruído dos pratos de madeira da mulher e a uma conversa em voz alta que ela tinha consigo própria acerca da tolice das meninas. Contou a sua história o melhor que a sua memória lhe permitiu, desde o momento em que ela e Ghaden haviam ouvido Aqamdax à porta do seu esconderijo até levar a última pancada na cabeça. Não disse a Chakliux que, na sua opinião, os homens eram de Rio Primo. Para quê insultá-lo? Afinal, não era ele também da aldeia de Rio Primo? Mas disse-lhe que eles eram velhos e que o mais baixo fora buscar Aqamdax, que tinha muitos cabelos brancos e que o outro homem usava um colar de dentes de leão-marinho.

Susteve a respiração quando acabou de falar, esperando que ele acreditasse nela, e que fosse atrás de Ghaden e de Aqamdax. Mas ele não disse nada, limitando-se a fazer um ou outro gesto de cabeça enquanto ela falava. Quando ela, acabou de falar, ele agradeceu-lhe e saiu da cabana.

Yaa ficou desapontada, mas Chakliux sempre lhe parecera um pouco estranho, com os olhos fixos acima da testa dela, o rosto abatido e pálido, o cabelo sem vida e despenteado, como se ele não o oleasse há muitos dias.

Depois de ele sair, Água Castanha ralhou com ela e disse-lhe que fosse buscar lenha. Era a primeira vez que Água Castanha lhe dizia para fazer alguma coisa desde que Yaa fora ferida, mas a menina ficou satisfeita por ir até lá fora e sentir o vento no rosto. Até os pedaços mais toscos de lenha lhe eram agradáveis ao tato. Quando a mãe a viu trabalhando, aproximou-se, com um ar preocupado, mas Yaa disse-lhe que se sentia com forças. Depois, perguntou-lhe se podia ir passar o dia seguinte na cabana de Bom Punho.

Boca Feliz, olhando para a pesada carga que a filha tinha nos braços e para a sua palidez, afirmou que era uma boa idéia ela ir passar o dia na cabana de Bom Punho.

 

Chakliux dormiu uma noite, um dia inteiro e mais uma noite, acordando só para beber água. O sono parecia não ser tanto uma oportunidade para descansar como para pensar no que Yaa lhe contara e para recordar todas as conversas que tivera com Aqamdax.

Acordou esfomeado, e com a certeza de que sabia o que acontecera. Yaa afirmara que um dos assaltantes usava um colar de dentes de leão-marinho. Quem mais além dos Primeiros Homens e dos Caçadores de Morsas usava dentes de leão-marinho? Daqueles dois povos, qual o que procurava vingar-se de Aqamdax? Quem enviaria velhos para vingar a morte de um xamã a não ser os Caçadores de Morsas? Se eles se perdessem, as pessoas não sofreriam com a sua morte como sofreriam com o desaparecimento de caçadores jovens.

Chakliux sentou-se, afastou os cobertores e depois verificou que não estava sozinho na cabana de Aqamdax, que Leva-Muito também estava lá.

As palavras vieram-lhe à boca antes de Chakliux pensar nelas:

Tens algo para me dizer.

Sim respondeu Leva-Muito, sem se mostrar admirado por Chakliux saber.

Quando Leva-Muito começou a falar, foi tão baixinho que Chakliux mal o ouvia, mas, quanto mais falava, mais parecia ganhar coragem e, ao terminar, a sua voz era forte como a de um homem.

Então Chakliux dirigiu-se a ele como a um adulto, da mesma maneira que falaria com Sok.

Tenho que fazer uma viagem e preciso do meu iqyax. Chakliux sentiu um aperto no coração ao pensar que Aqamdax poderia já ter morrido, mas a dor não foi tão grande como fora quando ele julgara que ela partira de livre vontade, roubando o que era dele, algo que ela sabia que ele apreciava mais do que outra coisa qualquer.

Chakliux levantou-se e fez sinal a Leva-Muito para que fizesse o mesmo.

Então me mostra onde é que Dança-no-Gelo pôs o meu iqyax!

Leva-Muito fez um sinal afirmativo.

Ótimo. Depois me ajuda a levar a comida e os mantimentos de que eu preciso. Em seguida, vais dizer ao teu pai que eu fui à aldeia dos Caçadores de Morsas. Diz-lhe que os velhos vieram aqui e levaram a Aqamdax e, como Ghaden estava com ela, levaram-no também. Diz-lhe que tentarei trazer os dois de volta. E, daqui em diante, não faças o que Dança-no-Gelo te disser para fazer.

Não, não farei.

Chakliux pôs a mão no ombro do sobrinho.

Ótimo disse ele. É uma lição que todos os homens têm que aprender. Há muitos Dança-no-Gelo neste mundo. Pelo menos um para cada um de nós, ao que parece.

Chakliux fitou o sobrinho até que o rapaz acabou por sorrir.

 

                   Inverno, 6459 a. C.

Às vezes, sonho que estou outra vez com o meu povo, na nossa aldeia na baía. Ouço as gaivotas. Vejo as ervas dobradas pelo vento. Quando acordo, deixo-me ficar deitada, muito quieta, e apesar de a minha cama ser dura, e eu dormir no frio no túnel de entrada; quase me convenço de que estou em casa, que dentro de pouco tempo ouvirei as palavras sábias e tranqüilas de Qung ou as vozes de censura das esposas de Cantador.

Quando cheguei a esta aldeia, tinha sempre sonhos maus, mas depois o Mordedor trouxe Yaa até nós. Quando ela chegou, só conseguia andar agarrada ao seu pelo, mas conseguiu sobreviver à viagem. Ela e Ghaden foram adotados por uma mulher jovem. Chamam-lhe Estrela e dizem que a mãe dela tem vivido no limiar da loucura desde que o pai de Estrela morreu. Segundo K'os me explicou, foi assassinado pelo seu filho, Chakliux, mas eu já conheço K’os, sendo ela a patroa e eu a escrava. É um tipo peculiar de conhecimento, e obriga-me a ser cautelosa naquilo em que acredito. Não creio que Chakliux tivesse assassinado o homem sem um bom motivo.

Nas noites frias, Yaa manda Mordedor para dormir comigo. O corpo do cão aquece o meu, e tenho certeza de que o seu pelo grosso impede a passagem dos sonhos maus, porque ainda não tive nenhum desde que ele dorme ao meu lado.

K’os me dá muito trabalho para fazer e o pior é que me empresta a caçadores e a comerciantes para eu aquecer as suas camas. Em outros tempos, eu não me importava de fazer tal coisa, mas é diferente receber homens na condição de escrava. Apesar de tudo isto ser mau, também há uma coisa boa. K’os reconhece o meu mérito como contadora de histórias. Durante este longo Inverno, tenho tido muitas oportunidades de pôr em prática os meus dotes, e nesta aldeia nenhum xamã protesta quando eu falo com outras vozes. Qung ensinou-me bem. Nunca poderei recompensá-la, nem sequer transmitir-lhe a minha gratidão. Mas não lhe devo só as histórias. Enquanto Qung viveu sozinha na nossa aldeia, usando as suas histórias tal como um caçador usa o seu arpão para arranjar carne, aprendeu a viver como vive um caçador, atraindo a boa sorte com respeito, com tranqüilidade e com perícia.

Agora ponho em prática o que ela me ensinou: não falo do meu descontentamento, observo, sobrevivo.

 

                   ALDEIA DE RIO PRIMO

Aqamdax levantou a cabeça e olhou para K’os.

Vai buscar lenha, disse-lhe K’os. Não nos montes que estão na entrada da cabana, mas na floresta. A mulher sorriu. Deixa-a no túnel para secar.

Aqamdax ficou impávida e não abriu a boca. Chegara à conclusão de que K’os fazia a maior parte das coisas para exibir o seu poder, para se congratular com aquilo que podia obrigar Aqamdax a fazer, e Aqamdax tinha cicatrizes que lhe lembravam os tempos em que tentara desafiar a mulher.

O vento descobrira o orifício do fumo da cabana delas e empurrava a fuligem lá para dentro, espevitando as brasas da lareira. Uma camada de cristais de gelo soltou-se do túnel de entrada. K’os só lhe cedera um cobertor de pele de lebre entrançada, tão velho que fazia esquecer o calor dos animais de que era feito. Cen tinha um dos cobertores dela, feito de pele de lontra-marinha, espesso e pesado. Usava-o na sua própria cama mas, nas noites mais frias, dava-o a Aqamdax. Ela tinha o cuidado de o esconder debaixo do cobertor de pele de lebre para K’os não ver.

Aqamdax puxou o capuz da parka, aconchegou-o bem em volta do rosto e calçou as botas que Cen lhe oferecera, umas botas boas e quentes de pele de caribu e de foca. K’os já recompensara Cen por ele ter oferecido as botas a Aqamdax, uma refeição que o deixara a contorcer-se, agarrado à barriga durante dois dias. Durante muito tempo, depois da doença de Cen, Aqamdax não aceitara comida das mãos de K’os. Uma escrava que adoecesse podia ser morta. Quem tinha tempo para tratar dela?

Aqamdax calçou as raquetes e atravessou o túnel de entrada, abrindo caminho através do monte de neve que bloqueava a porta e soltando a aba gelada de pele de caribu com cuidado para não estalar com o frio. Fizera umas luvas com as peles dos esquilos que matara no Outono, quando andara apanhando lenha na floresta na saída da aldeia. Escondera a carne dos animais e comera-a crua para K’os não notar. As peles davam luvas quentes com pequenas bolsas para os polegares e punhos altos que lhe chegavam quase aos cotovelos.

O vento era tão forte e a neve tão espessa que Aqamdax nem via a cabana ao lado. Já seria muito difícil tirar a lenha das pilhas que ela guardara em volta da cabana, quanto mais ir buscá-la na floresta.

No entanto, o pedido de K’os não a surpreendera. Cen partira há vários dias para uma viagem de negócios à aldeia de Rio Preto e, desde então, Tikaani não aparecera na cabana de K’os como era habitual quando Cen estava ausente. Por fim, K’os fora visitar Tikaani na cabana dos caçadores, a única mulher da aldeia a fazer tal coisa, segundo Aqamdax ouvia as mulheres nas lareiras da comida dizer.

Nesse dia, K’os voltara para a cabana tão furiosa que Aqamdax arranjara uma desculpa às pressas para sair, dizendo a K’os que um dos velhos lhe pedira que ela lhe levasse um pouco do seu chá de casca de salgueiro.

K’os atirara um pacote de casca de salgueiro a Aqamdax, que pegara a parka e as botas e fugira para o túnel de entrada, onde se vestira e calçara. Levara a casca de salgueiro à cabana da velha Caule Torto e dissera à mulher que vinha da parte de K’os e que o chá aliviaria as dores que o marido tinha nas ancas e nos joelhos.

Em troca, Caule Torto presenteara-a com uma tigela de carne e de caldo, mais do que Aqamdax costumava comer num dia, e, quando ela acabou de comer, deu-lhe uma esteira para o chão, muito imperfeita, para ela levar a K’os.

Aqamdax andara pela aldeia na esperança de ver Ghaden ou Yaa antes de voltar para a cabana de K’os mas, apesar de algumas crianças andarem escorregando em peles de caribu numa colina coberta de neve, Ghaden e Yaa não estavam entre elas. Aqamdax ficara olhando para as crianças durante algum tempo, pensando como as mães de Rio Primo eram espertas, permitindo que os filhos as substituíssem num trabalho tão duro, gastar o pêlo das peles servindo-se delas para escorregar.

Por fim, regressara à cabana de K’os, à cólera da mulher, à sua língua afiada e à sua mão pesada. K’os cortou a esteira de Caule Torto em tiras e disse a Aqamdax que as jogasse no lume, mas ela guardou uma parte e escondeu-a no túnel para mais tarde almofadar a sua própria cama.

Nesse dia, não haveria crianças lá fora. Até os cães estavam enroscados junto das cabanas, com o nariz debaixo da cauda, e a neve amontoando-se em cima deles. Aqamdax ia de cabana em cabana, recordando as histórias que algumas mulheres tinham lhe contado sobre pessoas perdidas nas tempestades e que só foram encontradas na Primavera. Naquela aldeia, quem é que daria pela falta dela se lhe acontecesse tal coisa?

Estrela não permitia que Ghaden e Yaa estivessem com Aqamdax e tapava-lhes os olhos com a mão quando eles passavam por ela ou a encontravam nas lareiras da comida. Nem sequer estavam autorizados a comparecer quando havia uma sessão de histórias organizada por K’os. Estrela dizia que era por Aqamdax ser escrava, mas, na opinião de Aqamdax, era mais provável que a mulher receasse que ela roubasse as crianças e as levasse de novo para a aldeia de Rio Próximo.

Mas porque ela voltaria para a aldeia de Rio Próximo? Ninguém a queria lá. Nem Sok, nem Folha Vermelha; talvez Chakliux, mas, se ele se interessava por ela, porque não viera à sua procura?

Aqamdax virou-se e continuou a andar de costas para o vento. Correu para a cabana seguinte, tropeçando num monte de lenha. Ao cair, a neve entrou-lhe pelas costas da parka. Estava frio demais para fazer uma tal asneira, pensou ela, ao levantar-se e sacudir a neve antes que esta derretesse. Atravessou a aldeia a custo e encaminhou-se para a árvore que ficava do outro lado da última cabana. Parou ali, na esperança de descobrir um galho partido pelo vento, mas não viu nenhum, e os ramos que antes se encontravam ao seu alcance tinham sido levados por outras mãos para alimentar as lareiras.

O caminho que fora fácil de encontrar de manhã estava agora enterrado mas, apesar da neve e do vento, Aqamdax julgou ver a orla escura da floresta. Seguiu nessa direção, apertando de tal maneira o capuz à volta do rosto que só se viam os olhos. Os dedos dos pés pareciam pedaços de madeira e os das mãos doíam-lhe com o frio.

Ao entrar na floresta, o vento arrancou uma estranha canção das árvores, e Aqamdax envolveu o corpo com os braços. Os Primeiros Homens não eram um povo de florestas. Quem sabia o que escondiam os espíritos naqueles ramos torcidos? Quem sabia quais os amuletos e as canções que os acalmariam?

Aqamdax abriu a boca e cantarolou o seu agradecimento, um cântico de louvor às árvores, improvisado. Depois, ouviu um estalido por cima da cabeça, um som que fez vibrar a terra. Encostou-se ao tronco de uma árvore e olhou para cima, espiando através dos ramos. O topo da árvore inclinou-se e caiu, partindo os ramos mais baixos, movendo-se lentamente como num sonho e salpicando de neve o rosto de Aqamdax ao atingir o solo.

 

Mordedor arranhou a parte lateral da cabana e Yaa fez-lhe uma careta. O animal não saíra durante todo o dia e ela tinha certeza de que ele precisava de ir lá fora, mas a fúria da tempestade era enorme, e por qualquer motivo o vento parecia assustar Ghaden. Estrela ignorou o cão, como sempre, desde que ela e Ghaden tinham gritado um com o outro acerca do direito de o animal ficar na cabana em vez de estar preso lá fora como os outros cães. Muitas vezes, Yaa sentia-se mãe de Estrela e de Ghaden, apesar de Estrela ter o rosto e o corpo de um adulto.

Havia dias bons em que Estrela tomava conta de Ghaden, lhe dava comida e lhe fazia roupas. Ensinava Yaa a fazer aplicações de pelo de caribu em forma de folhas e de flores na sua roupa. Depois, de repente, ficava lamurienta e mal-humorada como uma criança, discutindo por coisas insignificantes e dando beliscões quando não conseguia fazer a sua vontade.

Olhos Grandes, a mãe de Estrela, era pior do que a filha. Passava o dia inteiro sentada, balançando-se de um lado para o outro e cantando com palavras que Yaa não entendia. Olhos Grandes só saía da cabana duas vezes por dia para ir à latrina, e uma vez por mês para ir passar quatro ou cinco dias na cabana do sangue lunar. Esses eram os melhores períodos, se Estrela também estivesse bem-disposta. Os piores momentos eram como este, quando as duas mulheres estavam na cabana e Estrela se portava como uma criança, fazendo os seus pedidos aos gritos e às vezes tentando mesmo enroscar-se no colo da mãe. Aquilo era uma maldição, dissera-lhe Trepa-Caminhos. Acontecera alguma coisa à mãe quando o marido fora morto pelo filho de K’os. Esse filho partira, abandonara a aldeia coberto de vergonha, e todos estavam proibidos de pronunciar sequer o seu nome, mas os caçadores da aldeia estavam preparando-se para a vingança e iam atacar a aldeia onde ele vivia.

Tinham até armas novas, segundo Trepa-Caminhos lhe dissera, segredando-lhe que ela não podia dizer nada a ninguém, nem sequer a Ghaden. Yaa prometera não o fazer e depois perguntara a Trepa-Caminhos se Estrela também se transformara nesta estranha mulher-criança depois da morte do pai. Trepa-Caminhos dissera-lhe que Estrela sempre fora assim, estragada com mimos e esperando receber mais do que os outros, mas que piorara depois de o pai morrer.

Nos períodos difíceis, Yaa lembrava-se das três mãos-cheias de dias que ela e Mordedor tinham levado encontrando a aldeia de Rio Primo. Lembrava-se do uivo dos lobos, das pegadas dos ursos. Não sabia que o céu noturno era tão grande e que a luz das estrelas era tão fraca na escuridão. Quando a comida se acabara, haviam comido frutos tão enjoativos que ela mal conseguia andar sem descansar de vez em quando, e quando Mordedor apanhara uma ptármiga, ela nem sequer tivera forças para fazer uma fogueira. Ela e Mordedor tinham comido o pássaro cru, adormecido e recomeçado a caminhar. Chegaram à aldeia de Rio Primo ao fim desse dia. Yaa estava tão fraca que tinha de se encostar a Mordedor para andar.

Sempre que Yaa se lembrava disto, sentia-se reconhecida a Estrela e a Olhos Grandes pela cabana quente que partilhavam com ela e com Ghaden, sobretudo em dias de tempestade como este.

Estrela, tenho que deixar o Mordedor sair, disse Yaa ao ver que o cão arranhava as paredes da cabana cada vez com mais frenesi.

Estrela fitou Yaa com um olhar vago, mas Ghaden agarrou-se ao pelo de Mordedor.

Ele não pode usar a bacia como tu lembrou-lhe Yaa. Se ele for lá para dentro, Estrela zanga-se e prende-o lá fora.

Yaa não queria lembrar-lhe que era freqüente o povo de Rio Primo comer cães, mais do que o povo de Rio Próximo, em especial cães que não tivessem olhos dourados. Pela cara de Ghaden, viu que ele lhe adivinhara o pensamento. O rapaz largou o animal e Yaa disse-lhe em voz baixa:

Vai para junto de Estrela. Sobe para o colo dela. Talvez consigas distraí-la para eu levar o Mordedor lá fora.

Ele volta? perguntou Ghaden, olhando para a crosta de neve que se formara por cima do orifício da fumaça.

Yaa também levantou a cabeça e pensou que teria que afastar a neve naquele momento, e também durante a noite, se a tempestade não amainasse.

O Mordedor é esperto demais para ficar lá fora com esta tempestade, disse Yaa a Ghaden.

Esperou que o rapaz trepasse para o colo de Estrela e se servisse dos dedos como de um pente para lhe afagar o cabelo. Yaa entrou no túnel, abriu a aba para o cão passar, foi atrás dele até a aba exterior, partiu a neve que se formara nos cantos e deixou-o sair. Esperou um pouco e depois chamou-o. Espiou lá para fora e viu que ele estava de nariz empinado, como se cheirasse o vento. Em seguida, virou-se e entrou com ela.

Afasta-te do túnel. Não vás lá para fora disse Estrela quando Yaa voltou.

Ghaden estava sentado em frente dela e penteara-lhe o cabelo para a cara. Yaa tirou um dente de concha de um dos cestos de Estrela e agachou-se ao lado dela. Apontou para Mordedor, e Ghaden aproximou-se do cão e sacudiu-lhe a neve do pêlo.

Yaa passou o pente pelos cabelos compridos e grossos de Estrela.

Estou aqui disse ela a Estrela. Não te preocupes. Não iremos lá para fora.

 

Os homens estavam reunidos na cabana dos caçadores. Os que tinham esposas resmungavam por causa do muito tempo que passavam ouvindo o choro das crianças e a lamúria das mulheres.

Tikaani olhou para o irmão, Homem Noturno. Parecia estar um pouco mais forte, capaz de se levantar e andar pela cabana se se amparasse a um cajado. Apesar de não ter sido ferido nas pernas, a ferida do ombro ainda não sarara e espalhara o seu veneno pelo corpo, deixando-lhe gânglios dolorosos nas virilhas, atrás dos joelhos e debaixo dos braços.

Era um veneno que nem K’os conseguia suster, atribuindo o seu poder ao povo de Rio Próximo, dizendo aos homens que tinham que destruir aquela aldeia, caso contrário, o veneno passaria de Homem Noturno para todos os caçadores de Rio Primo. No Outono, com fartura de comida e de lenha, era uma coisa a ponderar, matar aquela gente de Rio Próximo. Os guerreiros aperfeiçoavam os seus dotes com lanças e lançadores, com facas e também com a nova arma sagrada que K’os conseguira arranjar-lhes com a sua astúcia.

Mas agora havia mais em que pensar do que na vingança. Agora as despensas da aldeia estavam quase vazias. Com a escassez de salmões, não tinham comida suficiente até a Primavera, apesar de a caça ao caribu lhes ter trazido mais carne do que era habitual. A cabana dos caçadores também estava quase sem lenha, apesar de Tikaani saber que K’os tinha uma grande reserva feita por aquela diligente mulher dos Primeiros Homens que ele e Cen tinham trazido à força da aldeia de Rio Próximo. Ela não seria escrava por muito tempo. As crianças já ansiavam por ouvir as suas histórias e os velhos também davam uma ou outra desculpa para escutá-la.

Contar histórias era um bom divertimento para as crianças, mas os jovens caçadores perdiam a paciência ao ouvir os velhos. De que serviam as histórias deles? Enchiam as barrigas ou aqueciam as cabanas?

Caribu Preto estava falando, contando uma história comprida e desconexa, mas por fim terminou e, antes que outro velho começasse a falar, Tikaani interrompeu-o com um enigma.

Caribu Preto semicerrou os olhos, mas Tikaani ignorou-o.

Olhem! O que vejo eu? disse Tikaani. Olhou para os velhos que o fitaram, surpreendidos. Estranhavam que um jovem caçador falasse? A necessidade aguçava o engenho.

Olhem! O que vejo eu? repetiu Tikaani. Não há pegadas por baixo dela.

Os velhos nem olharam para ele. Alguns mexeram os queixos como se tivessem que mastigar as suas palavras, fazê-las em pedaços para compreender o seu significado.

Por fim, Homem Noturno falou, atraindo os olhares dos homens.

Uma despensa vazia, disse ele.

Uma despensa vazia, repetiu Tikaani, muito orgulhoso do raciocínio rápido do irmão.

Eu tenho comida suficiente, disse Caribu Preto.

Para ti e para toda a aldeia? perguntou Tikaani. Porque se tens apenas comida para ti, isso não basta.

Para mim e para a minha mulher, respondeu Caribu Preto, mais baixo e com uma voz menos fanfarrona.

É por causa do peixe, disse outro dos velhos.

Os de Rio Próximo e a sua maldição. Esse tal Chakliux, proferiu um dos jovens.

Uns concordaram; outros ergueram a sua voz em desacordo; e ainda que Tikaani tivesse apreciado a discussão noutra hora, naquele dia havia coisas mais importantes a tratar.

Como nos vingaremos se morrermos antes do Verão? perguntou ele.

Os homens ficaram em silêncio. Por fim, Caribu Preto disse:

Tikaani tem razão.

Então vocês vão caçar no meio desta tempestade? perguntou Homem Noturno, e apontou para o topo da cabana, onde o vento lutava com o calor do fogo. Até a nossa reserva de lenha está diminuindo.

As mulheres são preguiçosas. Homem Noturno encolheu os ombros.

Elas preocupam-se com as cabanas em primeiro lugar. O que esperavam vocês? Elas pensam nos filhos.

O que julgam elas que alimenta os filhos?

Eu vou caçar. Assim que acabar esta tempestade, disse Tikaani.

Esperas encontrar algo mais do que lebres?

Não tenho problema em comer lebres.

Tikaani olhou para a cara manchada de fuligem de Caribu Preto e para os outros caçadores que se encontravam na cabana. Estavam magros, mas ainda não famintos, naquela fase em que a fome provocava irritação e não letargia. Mesmo assim, era um período difícil para convencer os homens a caçar. As armadilhas das mulheres haviam aproximado todas as pequenas presas da aldeia e os caribus haviam ido para o Sul, para os seus pastos de Inverno abrigados. Qual o caçador que queria passar vários dias na neve só para trazer carne de mulheres? Lebres e ptármigas?

Então, quem vem comigo? perguntou Tikaani. Ficou à espera, mas ninguém falou.

Por fim, Homem Noturno disse:

Eu vou.

Tikaani ia recusar a oferta, mas depois viu o orgulho no olhar do irmão.

Ótimo disse ele. Eu e Homem Noturno vamos.

Ficou outra vez à espera, certo de que a oferta de Homem Noturno envergonharia outros caçadores e os obrigaria a juntar-se a eles, mas os homens mantiveram-se cabisbaixos, desviando o olhar.

Não há nada para caçar, disse alguém.

As palavras foram pronunciadas em surdina e Tikaani nem percebeu quem tinha falado. De que servia o orgulho de um homem se o impedia de apanhar lebres num período de escassez de alimento? E quem sabia? Mesmo que um homem andasse à procura de lebres, podia encontrar um caribu.

Quando o vento amainar, quando deixar de nevar, Homem Noturno e eu partiremos, afirmou Tikaani. É bom para as nossas mulheres que haja dois caçadores nesta aldeia.

 

A lenha era pesada e as mãos dela estavam dormentes; por isso às vezes Aqamdax não percebia que ia a largar os ramos senão quando eles lhe caíam aos pés. Arrastava a copa da árvore e levava os ramos partidos mais pequenos no braço esquerdo. Quando chegou à orla da floresta, parou e olhou para a brancura da tempestade. Sem árvores que fizessem frente ao vento e à neve, ela via apenas o passo seguinte. Até as pegadas das raquetas tinham sido preenchidas, como se ela não tivesse ido à floresta, como se ela tivesse ficado no calor e na segurança da cabana de K’os.

As cabanas da aldeia de Rio Primo estavam mais afastadas umas das outras do que as do povo de Rio Próximo, e ela receava ter o azar de passar entre elas, atravessar a aldeia e voltar a sair. Devia ter contado os passos que separavam a última cabana da orla da floresta.

Dez dezenas, pensou. Não devia ser mais do que isso. Agarrou-se mais aos ramos, enfiou a cabeça contra o vento e começou a contar. De dez em dez passos parava, mas via sempre uma cortina branca. O vento parecia sugar-lhe o ar dos pulmões, mas Aqamdax continuou até contar dez passos dez vezes. Não via nada. Apenas branco, neve e vento.

Não estás muito longe proferiu ela em voz alta, pensando que o som da sua voz lhe daria coragem, mas o vento levou-lhe as palavras antes que elas lhe chegassem aos ouvidos.

Não percebeu que se enterrara até aos joelhos senão quando se inclinou para a frente e sentiu a neve na cara. Fechou os olhos. Talvez se descansasse um pouco...

Não. Já se esquecera das muitas histórias do Povo Rio em que as pessoas perdidas na tempestade adormeciam e acabavam morrendo? Levantou uma perna, plantou o pé no chão, deixou cair a lenha para se pôr de pé, com a mão no joelho, depois apanhou a lenha e continuou a andar.

Concentrou-se nos pés, mexendo um de cada vez. Com certeza já passara pela aldeia. Era possível abrir grutas na neve para fazer um abrigo. Chakliux contara-lhe uma história de uma gruta na neve...

A sua mente raciocinava tão devagar que os seus pensamentos pareciam tão inconsistentes e tolos como os sonhos. Cavavam, paravam, voltavam a cavar e... Mas eles tinham cães nas histórias. Não tinham cães? Para os ajudar a cavar? Não, talvez não. Lobos? Ursos? Que disparate, quem partilharia uma toca com um urso?

De repente, o vento e a neve escureceram, duros como a terra. Aqamdax embateu nessa escuridão, depois escorregou, e as lascas dos ramos atravessaram a luva e espetaram-se na palma da sua mão. Em seguida, a neve cobriu-a, escorrendo-lhe pela cabeça como água, protegendo-a do vento mas tirando-lhe o fôlego. Aqamdax engoliu uma boa quantidade dela e sentiu-a queimar-lhe os pulmões. Levantou-se a custo e percebeu que tinha chocado com uma cabana.

Desatou a rir, um riso agudo e tonto. Juntaram-se pessoas à sua volta. Aqamdax viu os rostos dos caçadores de Rio Primo. Tikaani, Caribu Preto, Corredor e Fala-Primeiro. Fora parar na cabana dos caçadores.

Não estás ferida? perguntou Tikaani, debruçando-se sobre ela.

Então, os pensamentos de Aqamdax tornaram-se nítidos, como se ela não tivesse feito aquela árdua caminhada para ir buscar lenha, como se fosse um dia sem vento, neve e frio, muito frio.

Virou-se para a copa da árvore que arrastara desde a floresta.

Pensei em vocês disse ela aos homens. Sei que têm de passar muito tempo caçando. Achei que devia trazer-vos lenha.

 

Bem sabes que Estrela não toma conta de Homem Noturno, e a minha mãe... Tikaani levantou as mãos. Para quê dizer mais alguma coisa? A mãe perdera muito, e muito depressa.

Aqamdax é uma escrava. Não tem uma cabana, nada. Onde eles irão viver? perguntou Caribu Preto.

Com a minha mãe e Estrela.

Quem caçará para eles? Homem Noturno mal tem força para atravessar a aldeia. Não basta já que tu tragas carne para a tua mãe, para Estrela e para aquelas crianças! que ela resolveu adotar?

Já sou eu que alimento Aqamdax, afirmou Tikaani, e pouco depois Caribu Preto concordou com ele, apesar de não se referir a K’os nem ao fato de Tikaani fornecer uma grande parte da carne que ia para a cabana dessa mulher.

Então, se pensas que podes ficar com ela, faz o que for melhor. Ela é trabalhadora. Ainda não sei como é que conseguiu trazer esta lenha para a cabana dos caçadores. Sabes que ela voltou mais tarde para a cortar e empilhar?

Homem Noturno me disse.

Caribu Preto semicerrou os olhos, como se tivesse acabado de pensar numa coisa.

Homem Noturno quer uma esposa? perguntou ele.

Qual o homem que não quer uma esposa? retorquiu Tikaani.

Não se referiu à discussão que tivera com Homem Noturno a respeito da escrava de K’os. Quando Homem Noturno recuperasse as forças para voltar a caçar, poderia rejeitá-la e arranjar outra mulher ou, se ela lhe agradasse, poderia mantê-la e arranjar uma segunda esposa. Homem Noturno acabara por concordar, mas continuava inquieto pelo fato de ser uma mulher dos Caçadores Marinhos a mudar a sua sorte.

Que pensamento disparatado! Seria bom que ela o fizesse. A família dele só tivera azar desde que Chakliux convencera Topa-Nuvens a oferecer alguns dos seus cães aos de Rio Próximo.

Tikaani e Caribu Preto saíram da cabana dos caçadores e encaminharam-se para a cabana de Caribu Preto.

A tempestade durara três dias, mas agora o céu estava límpido e tinha aquele tom azul-forte que às vezes surge no meio do Inverno, um dia frio em que a respiração encarquilhava o interior do nariz e fazia doer os pulmões.

Vais falar com K’os agora? perguntou Caribu Preto assim que entrou no túnel.

Vou.

Caribu Preto abanou a cabeça e pigarreou.

Tikaani não disse nada, mas percebeu as idéias do homem. Pedir a K’os seria a parte mais difícil, porque há muitos dias que ele não a visitava. Andava ocupado demais, tinha muita gente para quem caçar, preocupações demais. Além disso, enchera-lhe a despensa no Outono, ainda antes de encher a sua parte na despensa dos caçadores e de oferecer carne à mãe e à irmã. Que razões de queixa tinha K’os se ele lhe dera tanto? Mas perguntou a si próprio o que iria custar-lhe conseguir uma esposa para o irmão.

K’os atirou o pedaço de pele de caribu a Aqamdax e soltou um grito de frustração. Doíam-lhe tanto as mãos que nem sequer conseguia pegar a agulha. Pior, os dedos tinham começado a entortar-se e agora ela não conseguia endireitá-los. Pareciam garras, curvas e deformadas. Ela tentara todos os remédios que conhecia, mas o Inverno limitava-a. Havia raízes e folhas que deviam ser usadas frescas, e ela não conseguiria arranjá-las senão na Primavera.

K’os julgava que o Inverno seria ameno. Depois da morte do marido, Bate-no-Chão, convencera-se de que era mais provável que outros caçadores a visitassem, mas eles não tinham aparecido, nem sequer Tikaani, apesar de lhe ter levado carne. Os poucos homens que costumavam visitá-la perguntavam por Aqamdax. E se fingiam desejar K’os, os seus olhos continuavam a vaguear à procura da mulher dos Caçadores Marinhos. Seriam parvos? Aqamdax não tinha poder para lhes dar. Era apenas uma mulher dos Caçadores Marinhos, era apenas uma escrava.

Alguém raspou no exterior da cabana. K’os ouviu a voz de um caçador. Tikaani. Escondeu as mãos num cobertor de pele de lebre e convidou-o a entrar.

Ele apareceu à sua frente e ela baixou as pálpebras, fitou-o e depois desviou o olhar às pressas, um insulto que a maioria das mulheres aprendia quando ainda eram novas. Que mais podia ele esperar? Não a fora visitar durante uma lua ou mais. K’os empinou o queixo e olhou para ele, mas não se levantou para lhe oferecer comida nem água, nem lhe indicou um lugar junto da lareira.

Sabia que Aqamdax estava observando-a e viu a indecisão no olhar da mulher. Devia ser ela a oferecer comida? A ir buscar água?

Vim falar contigo acerca de um assunto importante, K’os, disse Tikaani.

K’os fez um sorriso forçado, bem escondido atrás dos dentes. Obrigara-o a falar em primeiro lugar, a cometer a indelicadeza de ser ele a quebrar o silêncio, dando-lhe assim a vantagem do seu desrespeito.

Não disse nada durante algum tempo, gozando o mal-estar que via nos olhos de Tikaani e a confusão que sentia na sua escrava, que aguardava as suas ordens. Por fim, K’os apontou com a cabeça para a panela de pele de caribu em que fervia uma espessa sopa de carne e frutos secos.

K’os e Tikaani comeram em silêncio, e Aqamdax ficou atrás deles. K’os sabia que a mulher saltaria ao estalar dos seus dedos, para trazer água ou mais comida, ou mesmo para ir buscar lenha lá fora. A cólera e a pancada não resultavam com ela, e K’os passara alguns dias de frustração até perceber isso, mas desde então que tudo era fácil. Muito fácil.

Então o que tens para me dizer? perguntou por fim K’os, fazendo a pergunta no momento exato em que Tikaani pegara a tigela e enchera a boca.

Mais uma vez, conteve o sorriso enquanto observava a luta de Tikaani para engolir depressa, o que o levou quase a engasgar-se com a carne.

Venho procurar uma esposa para o meu irmão, Homem Noturno.

Julgas que casarei com um aleijado, um homem que não pode caçar nem sequer ir pescar no Verão com os velhos?

Assim que as palavras lhe saíram da boca, K’os percebeu que Tikaani não se referia a ela mas à escrava Aqamdax. Horrorizada, viu os cantos da boca dele a torcerem-se e os ombros a tremerem com um riso silencioso. Quando as pessoas deixariam de rir dela? Desde pequena que isso acontecia. Tikaani era estúpido ao ponto de ignorar o seu poder? Esquecera-se da arma sagrada que ela roubara do velho Gaio Azul? Esquecera-se do preço que ela estava disposta a pagar por isso?

Ensinaste-me muito bem, K’os, afirmou Tikaani. Não há um homem nesta aldeia que se atreva a pedir-te em casamento.

As palavras dele eram macias como óleo.

K’os semicerrou os olhos, tentando descortinar o que estava além daquelas palavras, discernir outras intenções subjacentes ao que ele dizia.

Nem sequer tu? perguntou ela.

O que tenho eu para dar? Tenho uma irmã e uma mãe, dois filhos e um irmão para alimentar. É provável que também tenha que sustentar a mulher do meu irmão. Como posso aspirar a uma mulher como tu se tenho tão pouco a oferecer?

K’os cerrou os lábios. Seria bom acreditar nele. Talvez ela acreditasse, mas seria preferível que ele não o soubesse.

Cruzou os braços sobre o peito, escondeu as mãos nas mangas e riu. Depois, ainda a sorrir, declarou:

A mulher já me apanhou lenha suficiente para todo o Inverno, e eu estou cansada de a sustentar. O que me ofereces em troca?

O que pretendes?

O que eu verdadeiramente desejo não pode acontecer antes da Primavera. Calculo que o teu irmão queira a mulher antes disso.

Sim.

Ah, muito bem! exclamou ela, olhando para Aqamdax e não deixando de reparar no brilho nos olhos da mulher. Há várias coisas. Diz-lhe que me faça mais três cestos. Já viste os cestos de erva que ela faz?

Já os vi.

Três desses, dos grandes. Quero peles de lobo. Duas. Bem raspadas. E encherás a minha despensa na próxima Primavera, quando os caribus voltarem a passar.

Tikaani fez um sinal afirmativo e olhou para Aqamdax.

Farás os cestos?

Sim, farei.

Depressa, disse K’os.

Depressa, repetiu Aqamdax.

Encho-te a despensa na próxima Primavera. Tenho uma pele de lobo. Preta. Arranjarei outra.

A preta está bem disse K’os.

Se eu te trouxer agora, posso levar a mulher?

K’os virou-se e olhou para Aqamdax, detendo-se no rosto da mulher. Era uma boa escrava, trabalhadora, mas K’os não gostava dela. Fazia o que lhe ordenavam, levava os homens que K’os lhe mandava para a sua cama e até enfrentara uma tempestade para ir buscar lenha.

Além disso, era uma bela mulher, embora a sua beleza fosse estranha demais. Quando os olhos se habituavam a ela, verificava-se que era aparente.

Porém, o seu espírito não era o de uma escrava. Isso era o pior, e nada do que K’os lhe fizera alterara a situação. Talvez fosse preferível deixá-la ter um marido enfermo. Deixá-la descobrir como era difícil tratar de alguém que nunca poderia caçar nem protegê-la, que não poderia oferecer-lhe um estatuto à altura dos atos do marido.

É claro, ainda havia uma coisa que K’os podia fazer, uma pequena coisa, por sinal; nada que se comparasse às ameaças que ela fizera àquelas crianças do Povo Rio, Yaa e Ghaden.

Bem, se ela aceitar, podes levá-la. K’os levantou-se e virou-se para Aqamdax.

Já viste Homem Noturno? indagou ela.

Sim, respondeu Aqamdax em voz baixa, mas o brilho do seu olhar desafiava a tranqüilidade da sua resposta.

Ele não recuperou de um ferimento no ombro, uma coisa que o meu próprio filho lhe fez e que parece uma pedra no meu coração. Talvez, ao oferecer-te, eu compense em parte o ato do meu filho. Mas, como todas as mulheres, és tu que escolhes. Ficas aqui comigo, ou vais, como quiseres. Seja qual for a tua escolha, eu ficarei satisfeita.

Aqamdax esperou antes de dar a resposta. Já vivia com K’os há muito tempo para saber que a mulher não oferecia boas coisas sem motivo, e quase sempre esse motivo era congratular-se com o desapontamento alheio quando essa dádiva era retirada. Ser esposa? Sim, para sair daquela cabana seria esposa de qualquer homem, velho ou novo, doente ou são. Pelo que Tikaani dissera, ao tornar-se mulher de Homem Noturno passaria a viver na mesma cabana de Ghaden e Yaa. Com certeza que K’os via o desejo no seu olhar, a esperança. E o que dava mais prazer a K’os do que destruir a esperança?

Por fim, declarou:

Serei esposa de Homem Noturno.

A imagem do rosto magro e pálido do homem veio-lhe à mente.

Por qualquer motivo, ao mesmo tempo, viu também o rosto de Chakliux, mas fez o possível por afastar tal imagem. Se o homem se interessasse por ela, teria vindo à sua procura, há muito tempo.

Quando é que me queres?

Leva-a já, ordenou K’os, cortando a resposta de Tikaani, fosse ela qual fosse. Julgas que estou disposta a alimentá-la por mais tempo do que devo?

Posso levar-te já, disse Tikaani, mas Aqamdax percebeu pela expressão do homem que ele não tencionava levá-la consigo naquele momento, e perguntou a si própria se ele já falara com Homem Noturno. Vai para a cabana dos caçadores quando estiveres pronta, mas não entres. Grita, que eu vou te encontrar lá fora.

Tikaani já enfiara a cabeça no túnel quando K’os pigarreou e disse:

Há mais uma coisa que eu peço. A mulher fez uma pausa e sorriu a Aqamdax. Há um cão que às vezes aparece na minha cabana, de noite. Creio que ele até dorme no meu túnel. Não o quero aqui. Traga-o para a minha panela. Juntarei a sua carne ao meu guisado de caribu.

Aqamdax abriu a boca mas não encontrou palavras. De que serviriam, aliás? O que K’os dizia era verdade. O cão dormia no túnel, uma coisa que os cães não deviam fazer.

Sabes de quem é ele? perguntou Tikaani.

Ele veio com aquela menina de Rio Próximo.

Ah, o cão de Ghaden, disse Tikaani. Ele não quer que o cão morra. O animal está treinado para o proteger. Tens certeza de que é esse? É um cão que obedece às ordens. Parece que se Ghaden quisesse que ele ficasse em casa, ele... Tikaani calou-se e olhou para Aqamdax. Esse cão protege outras pessoas além de Ghaden.

Aqamdax tentou pensar numa maneira de salvar Mordedor. Talvez a única coisa a fazer fosse recusar-se a ir como esposa. Não, K’os usaria a sua recusa contra ela, tal como estava agora usando a sua aceitação. De qualquer modo, alguma coisa aconteceria ao cão ou o que era pior a Ghaden ou a Yaa.

Traz-me o cão e uma pele de lobo, e ela é tua... Ou do teu irmão disse K’os.

Trarei os dois esta noite prometeu Tikaani, mas Aqamdax avançou e estendeu a mão na direção do homem, tendo o cuidado de não lhe tocar.

Esta noite, não, disse ela tranqüilamente. Quando chegaste a esta cabana, eu ia dizer a K’os que tenho de ir para a cabana do sangue lunar.

K’os assobiou.

Podias tê-lo amaldiçoado se ele trouxesse uma arma. Como pudeste ser tão descuidada?

No meu povo, só nos separamos durante a primeira menstruação.

Vai-te embora, então, ordenou K’os, agitando os dedos na direção de Aqamdax.

Aqamdax vestiu a parka e pegou o cesto que estava fazendo. Os dias que passaria na cabana das mulheres lhe dariam tempo de sobra para o acabar.

Tikaani saiu da cabana de K’os atrás dela e chamou-a. Aproximou-se mais do que ela esperava, o suficiente para ela o ouvir dizer em surdina:

Tu não estás sangrando, disse ele. Ela abanou a cabeça.

Mas isto me dá cinco dias. Talvez eu consiga arranjar uma maneira de salvar o Mordedor.

Ele encolheu os ombros.

Que importância tem um cão? Eu ofereço outro ao rapaz, um de olhos dourados.

Por favor, deixa-me tentar. Tikaani voltou a encolher os ombros.

Faz o que quiseres. Vou dizer ao meu irmão que irás te encontrar com ele daqui a cinco dias. No nosso povo, é costume uma noiva fazer alguma coisa para o marido. Talvez umas botas.

Não tenho nada para fazê-las.

Eu levo-te qualquer coisa.

Aqamdax viu-o afastar-se e depois foi para a cabana do sangue lunar. Era um bom lugar, tranqüilo, e, apesar de as mulheres raramente lhe dirigirem a palavra, ela não se importava. Assim podia estar longe de K’os.

Acabaria o cesto e veria o que podia fazer para salvar Mordedor. Também faria umas botas para Homem Noturno. Fizera vários pares à moda do Povo Rio. Enfeitaria as de Homem Noturno, mostrando-lhe assim que estava satisfeita por ser mulher dele. Os enfeites teriam que seguir os do seu povo. Uma mulher não copiava os desenhos de outra. Os modelos eram passados pela mãe ou pela avó, como presente, e ela não tinha desenhos do Povo Rio, mas talvez Homem Noturno concluísse que havia força nos desenhos dos Primeiros Homens, um poder que evocasse a energia dos mamíferos marinhos, que passavam longos dias nadando em busca do calor do Verão.

 

                   ALDEIA DOS PRIMEIROS HOMENS

Chakliux fechou os olhos e ficou escutando enquanto a velha começava a contar a sua história. Apesar dos meses que passara na aldeia dos Primeiros Homens, fora a única vez que Qung o autorizara a entrar no seu ulax.

A viagem fora longa até a aldeia dos Primeiros Homens. Depois de ouvir a história de Yaa, tinha certeza de que os Caçadores de Morsas tinham levado Aqamdax, e por isso passara primeiro pela aldeia dos Caçadores de Morsas. Acalentava pouca esperança de chegar a tempo de os demover da vingança, mas, se não conseguisse salvar Aqamdax, talvez conseguisse encontrar Ghaden. Além disso, como podia ele ficar esperando sem fazer nada?

Os Morsas não o tinham recebido bem, mas nenhum deles parecia acusá-lo do que acontecera com Aqamdax. Chakliux passara três dias com eles, perguntando por Aqamdax e Ghaden aos caçadores, às mulheres e até às crianças. Todos eles afirmaram nada saber, mas uma noite, Bate-no-Sol, um filho do falecido xamã, foi falar com ele e contou dos caçadores dos Primeiros Homens que tinham passado pela aldeia uns dias antes da chegada de Chakliux.

Não tinham parado para fazer negócio, assegurou Bate-no-Sol, o que era invulgar nos Primeiros Homens, e por isso ele fora atrás deles no seu iqyax. Não se aproximara, mas julgou ter visto uma mulher num dos iqyan, talvez uma mulher em cada um. Não tinha certeza.

Pouco depois, Chakliux regressara à sua aldeia. Se o povo de Aqamdax viera buscá-la, como ela o quereria? Mas já que ele chegara à aldeia dos Primeiros Homens, porque não continuar? Porque não ir ver se ela estava disposta a ser sua mulher? Se ela não voltasse com ele para a aldeia de Rio Próximo, talvez os Primeiros Homens o deixassem viver na aldeia deles. Tinham-no recebido bem como comerciante. Porque não como marido?

Se Chakliux não encontrasse Aqamdax, ou se ela o recusasse, poderia pelo menos passar o Inverno com eles e trocar peles de caribu das caçadas de Verão por carne e por um lugar num ulax dos Primeiros Homens. Enfrentara tempestades de Outono, passara dias agachado debaixo do iqyax, tentando escapar da chuva e do vento, mas por fim chegara à enseada que ia dar na aldeia dos Primeiros Homens. Tinham-no recebido bem como comerciante e ficaram admirados por ele chegar tão perto do Inverno. As suas perguntas acerca de Aqamdax tinham-no obrigado a falar com Qung e com várias outras mulheres no primeiro dia.

Qung perguntara por Aqamdax e ficara sabendo que Sok a rejeitara e que Chakliux andava à procura dela. As outras mulheres tinham iniciado um cântico fúnebre, mas Qung calara-as com olhares sombrios e palavras indignadas. Também nesse primeiro dia, Tut cumprimentara Chakliux como amigo e convidara-o para ir viver com a família dela.

Durante quase todo o Inverno, Qung evitara-o e, por intermédio de Tut, fizera saber que ele não era bem-vindo no ulax dela, nem sequer durante os serões de histórias.

Nessa noite, havia uma festa na aldeia em memória de antigos guerreiros e caçadores, de gente que morrera há muito tempo. Para surpresa de Chakliux, Qung pedira-lhe que comparecesse. Como contador de histórias, Chakliux aceitara o convite, apesar de Tut o ter avisado que talvez Qung tentasse embaraçá-lo.

Já tenho estado embaraçado, tia dissera-lhe Chakliux, falando na língua dos Primeiros Homens, o que lhe valeu um sorriso da velha.

Como sabes, não podes sentar-te junto aos homens. Não és um Caçador Marinho.

Tia, ficas embaraçada se eu me sentar junto de ti?

Não, respondera Tut, e agora estavam sentados na fila das mulheres do ulax de Qung.

O poste de Qung estava cheio de bexigas de foca repletas de ar e bem atadas a cada degrau. Chakliux sabia o que o esperava quando viu uma multidão de crianças reunidas no telhado, escondendo o riso atrás das mãos. Aqamdax falara-lhe daquela história, e o melhor que ele tinha a fazer era rir também e participar na brincadeira, mesmo que o fizesse cair.

Olhou lá para baixo, fingiu-se admirado e começou a falar numa mistura das línguas do Povo Rio e dos Primeiros Homens. Por fim, perguntou às crianças o que deveria fazer.

Elas responderam-lhe que ele tinha que descer. Ele apoiou firmemente o pé e rebentou duas bexigas antes de resolver escorregar pelo poste até o chão. Ouviu as vozes das crianças ao aterrar, virado para cima, ileso e impecável, depois de recobrar o fôlego, e riu com elas. Deu uma olhadela a Qung, cujo rosto ficou impassível, quase rígido, mas depois a velha ergueu ligeiramente o queixo na sua direção, reconhecendo a sua presença.

Quando Qung começou a contar histórias, a sua voz, forte como a de uma jovem, encheu o ulax, e agora, muito mais tarde, ela continuava falando, descansando de vez em quando para permitir que o chefe dos caçadores falasse de caçadas, umas recentes e outras passadas.

Qung não dissera nada depreciativo acerca de Chakliux, nem se mostrara irritada com o Povo Rio, embora uma história aludisse a uma criança do Povo Rio criada pelos Primeiros Homens, que os ensinara a caçar animais terrestres, uma técnica que eles tinham esquecido ao viver em ilhas muito distantes, lá para oeste.

De súbito, Qung olhou para ele e, mesmo na penumbra do ulax, Chakliux viu-lhe o fogo nos olhos.

Está aqui outro contador de histórias, apesar de ele se considerar um comerciante anunciou ela. Os contadores de histórias reconhecem-se sempre uns aos outros. Somos um povo de muitas palavras. Vivemos do roubo, tirando idéias de todos aqueles que nos rodeiam, tirando histórias das vidas de outros povos. Admites esse roubo, homem do Povo Rio? perguntou ela.

Não, respondeu Chakliux. Eu sou um contador de histórias, como disseste, mas não sou um ladrão. Sou comerciante, troco umas histórias por outras, e sou um tecelão, que transforma pedaços e restos de palavras em cestos inteiros capazes de guardar idéias e a recordação de vidas muito antigas.

Os olhos de Qung, minúsculos num rosto cheio de rugas, pestanejaram, e Chakliux julgou vê-la sorrir. A velha não o fez, mas ele sentiu-lhe o riso formando-se na garganta quando ela indagou:

Tens alguma dessas histórias que possas trocar?

Aqamdax contara-lhe muitas histórias dos Primeiros Homens, histórias que Qung, apesar do muito que falava, ainda não contara. Chakliux podia contar histórias do Povo Rio ou lendas que ele aprendera com outros povos, Caribu, Morsa e Tundra do Norte, mas resolveu contar-lhes outra uma história que eles tinham que saber se Aqamdax alguma vez voltasse e levasse com ela o irmão, Ghaden.

Olhem! O que vejo eu! disse ele, e explicou que, na sua aldeia, os velhos se serviam de enigmas para ensinar as crianças e para dizer certas coisas que não podiam ser ditas com delicadeza de outra maneira. De longe, parece preta. De perto, vê-se através dela.

Não estava à espera de uma resposta, mas Qung disse:

Uma pena. Uma pena de cormorão.

Em seguida, arrancando uma pena da parte da frente do seu sax, aproximou-a do rosto, lembrando àqueles que a questionavam que tanto era possível ver através de uma pena como dos cílios.

Chakliux fez um gesto de cabeça aprovando a resposta dela e depois prosseguiu:

É então que vemos como os outros vivem as suas vidas. Vemos com mais clareza quando vemos mais de perto.

Depois, começou a contar a história de Daes, tal como a ouvira de Aqamdax.

Quando acabou, ouviu-se um murmúrio de aprovação e, mais tarde, já de madrugada, quando as histórias haviam acabado e as pessoas iam saindo, Qung pegou-lhe na mão, puxou-o para os fundos do ulax e perguntou:

Sabes quem matou a mulher?

Não sei, respondeu Chakliux.

Essa gente do Povo Rio, não matará Aqamdax?

Ela já não está com eles.

Tut diz que tu não sabes onde ela está. Porque andas à procura dela?

Quero que ela seja minha mulher.

Então, partes na Primavera e continuas procurando-a?

Sim, regressarei ao Povo Rio e tentarei encontrá-la.

Ela pode estar morta.

Pode.

Qung suspirou e virou-lhe as costas, resmungando:

Eu lhe disse que não fosse,

Chakliux ia a meio caminho do poste quando Qung lhe gritou:

Se a encontrares, volta para cá. Precisamos de bons contadores de histórias nesta aldeia.

Voltarei, tia. Tenho muito a aprender respondeu Chakliux.

 

                   ALDEIA DE RIO PRIMO

Aqamdax esperava ter oportunidade de se esgueirar da cabana do sangue lunar à noite, ir às escuras até à cabana de Estrela e contar o seu plano a Yaa. Todas as noites as mulheres faziam turnos para ir buscar lenha e alimentar a lareira. Na segunda noite, foi a vez de Aqamdax. Quem reparava se ela fosse mais longe do que era preciso para arranjar um punhado de madeira?

Depois chegara Terceira Filha, com o bebê. Não era raro que uma mãe que amamentava tivesse períodos menstruais. Em geral, um bebê impedia que o sangue corresse, para que o filho seguinte que estava à espera soubesse que não podia vir senão quando o outro fosse desmamado. Mas, apesar de o bebê de Terceira Filha ainda ser pequeno, o leite da mãe quase secara e os períodos menstruais tinham recomeçado. Algum tabu que fora quebrado, disseram-lhe as outras mulheres que estavam na cabana.

Terceira Filha embalou o bebê, dando-lhe o peito para tentar que ele não chorasse, mas a criança chorou durante todo o dia e quase toda a noite. Como podia Aqamdax sair sem ser vista se o bebê de Terceira Filha as mantinha acordadas?

Aqamdax passou o tempo fazendo um cesto, mas os seus pensamentos estavam sempre em Mordedor, e o seu peito estava cheio do desgosto de Ghaden.

Lembrou-se de que o cão tinha sorte em estar vivo.

O Inverno estava sendo duro, e dali a pouco começariam a matar cães para comer. Optariam por matar primeiro um dos que lhes pertenciam, antes de Mordedor. Se ela pudesse afastar-se da cabana, mesmo por pouco tempo, se ela pudesse falar com Yaa...

A aba da porta abriu-se; uma lufada de ar frio entrou na cabana. O bebê de Terceira Filha calou-se, sustendo a respiração com o frio e, no meio daquele silêncio súbito, Aqamdax levantou a cabeça e viu Estrela com Yaa atrás dela, deixando entrar o ar invernoso até largar a aba da porta que, com o peso das pedras, voltou ao seu lugar.

Estrela dirigiu-se para os fundos da cabana e Yaa foi atrás dela, levando comida e utensílios de costura. Aqamdax regressou ao seu trabalho de tecelagem, mantendo-se debruçada sobre o cesto, mas espiando Estrela pelo canto do olho. Quando a mulher se instalou e mandou Yaa embora, Aqamdax levantou-se e disse:

Vou buscar lenha.

Não se deu ao trabalho de vestir a parka. Tinha medo que Yaa fosse embora antes de ela conseguir apanhá-la. Mas foi encontrar a menina à sua espera, agachada, de costas para o vento.

Tu e Ghaden estão bem? perguntou Aqamdax.

É um bom período para nós, quando Estrela está na cabana das mulheres, respondeu Yaa.

Não é muito difícil tomar conta da mãe de Estrela?

Ela está quase sempre sentada. Umas vezes, costura, outras, pega Ghaden no colo. Come quando eu lhe dou comida e vai comigo quando eu vou à latrina das mulheres. Estrela não é tão fácil.

Yaa, tenho uma coisa importante a dizer-te começou Aqamdax. Tikaani pediu a K’os que me deixasse ser esposa de Homem Noturno.

Yaa arregalou os olhos. Bateu as palmas com as mãos enluvadas e perguntou:

Irias viver conosco?

Sim.

Yaa abriu a boca para exprimir a sua alegria, mas Aqamdax mandou-a calar.

Há um problema. K’os pediu um preço. Ela quer o Mordedor.

Ela aceitaria o Mordedor! Ela tem cães. Aqamdax cerrou os lábios e mordeu o interior da face.

Ela quer matar o Mordedor. Pediu que lhe levem para ela o comer.

O Mordedor! Não! Ghaden não suportaria tal coisa.

Escuta, Yaa, Mesmo que eu recuse a oferta de Tikaani...

Podes fazer isso?

Cala-te e ouve. Tenho que voltar depressa. Eles vão transformar o Mordedor em comida, não por enquanto mas dentro de pouco tempo. As despensas estão ficando vazias e o Inverno tem sido duro. Temos que lhes mostrar que ele é um cão que vale a pena conservar.

”Tenho um plano que talvez resulte, mas tens que fazer uma coisa. Será mais fácil agora que Estrela está ali. Aqamdax apontou para a cabana das mulheres.

Amanhã, sairei da cabana das mulheres. No dia seguinte, Tikaani quer a minha resposta. Nessa manhã, quero que vás dar comida ao Mordedor e que o alimentes bem, que depois o leves para junto das armadilhas de K’os e que o deixes lá. Em seguida, voltas, agasalhas bem Ghaden e obriga-lo a brincar lá fora. O mantém lá fora até o Mordedor voltar. Podes fazer isso?

Posso.

A voz de Estrela ergueu-se num lamento e chegou até elas através das paredes da cabana.

Tenho que ir para dentro disse Aqamdax. Não te esqueças. Daqui a dois dias. De manhã.

Prometo.

Aqamdax apanhou uma braçada de lenha e depois entrou na cabana. Pôs a lenha junto da porta e ficou ouvindo as lamentações de Estrela por causa da neve que ela trouxera para dentro, o frio e a preguiça daquele povo que se chamava Caçadores Marinhos.

Quando Aqamdax saiu da cabana do sangue lunar e regressou à de K’os, a mulher mal lhe falou. Aqamdax foi buscar lenha, derreteu a neve para fazer água, deu comida aos cães de K’os e depois ofereceu-se para ir verificar as armadilhas.

Tu só queres é roubar o meu alimento para dares ao teu marido disse K’os.

Aqamdax baixou a cabeça e calçou as botas. A mulher tinha razão. Ela tencionava roubar comida, mas apenas uma lebre. Sentiu uma volta no estômago ao pensar de repente que as armadilhas poderiam estar vazias.

Trago-te o que encontrar prometeu Aqamdax, vestindo a parka.

Tirou um par de raquetes da entrada e levou-as. Encaminhou-se para a cabana de Estrela. Yaa estava lá fora.

Levo o Mordedor agora? segredou Yaa quando Aqamdax passou por ela.

Só quando eu sair da aldeia afirmou Aqamdax inclinando-se para calçar as raquetes. Leva-o para as armadilhas de K’os e fica junto dele até ele seguir as minhas pegadas. Depois, volta e prepara Ghaden.

Endireitou-se e continuou a andar.

A primeira armadilha estava vazia. O fio ainda se encontrava atado no seu laço com finas tiras de erva. A seguinte tinha uma lebre, hirta e gelada. Aqamdax suspirou de alívio, soltou-a, sacudiu a neve e enfiou-a debaixo da parka para descongelar. As outras armadilhas estavam vazias.

Aqamdax iniciou o regresso à aldeia e, no meio do caminho, parou à espera de Mordedor. Yaa já o devia ter soltado.

Aqamdax esperou até que o frio começou a entranhar-se-lhe nos pés. Por fim, aproximou-se da armadilha seguinte, e depois de outra. Mordedor continuava a não aparecer. Teria Yaa se esquecido? Não, Yaa era digna de confiança como qualquer mulher adulta. Muito provavelmente, Mordedor distraíra-se com um animal qualquer.

Aqamdax resolveu ir ver se encontrava pegadas de Mordedor. Se ele tivesse ido atrás de algum animal para a floresta, talvez ela ainda o encontrasse. Na orla da floresta, descobriu as pegadas do cão e depois reparou que havia uma fila de pegadas um pouco à sua esquerda. Eram de Mordedor. Ele virara-se e voltara para trás.

Estúpida!, pensou Aqamdax. Julgavas que o teu plano resultava? Alguém teria percebido que a lebre fora morta por uma armadilha e não por um cão, apesar de a descongelares o suficiente para que ela parecesse ter sido apanhada há pouco tempo.

Quando Mordedor era pequeno, Aqamdax ensinara-o a caçar animais pequenos e a levá-los a ela ou a Ghaden, mas naquela aldeia o animal estava quase sempre preso. Não caçava há muito tempo. Mesmo que ela conseguisse dar-lhe a lebre para ele a levar a Ghaden, uma velha poderia acusar o cão de lhe ter roubado das armadilhas.

Tirou a lebre da parka e pendurou-a na corda que trazia à cintura. Em seguida, encaminhou-se para a aldeia. Contornou o caminho que ia dar na cabana de Estrela e depois parou. À entrada da cabana, via-se um pequeno grupo de mulheres. Foi então que Aqamdax avistou Mordedor. O cão estava sentado, de cabeça levantada e com a língua de fora. Uma lebre enorme, com o pescoço ensangüentado, jazia no chão ao lado dele, que a deixara à entrada da cabana, tal como um caçador deixava uma presa à mulher.

Algumas das mulheres mais velhas viraram-se, avistaram Aqamdax e desviaram o olhar, mas ela ouviu o que diziam umas às outras e conseguiu perceber que Mordedor levara a lebre a Ghaden, que estava sentado lá fora, fazendo uma cova na neve, brincando como qualquer criança.

Por fim, uma das mulheres mais novas voltou-se para Aqamdax e perguntou-lhe:

Este cão veio da aldeia de Rio Próximo?

Veio. Foi um dos velhos que o ofereceu a Ghaden.

Em seguida, muitas mulheres começaram a fazer perguntas: Que idade tinha Mordedor? Quem o ensinara a caçar? Alguma vez o animal comera o que caçara recusando-se a dar a sua presa a Ghaden?

Aqamdax respondeu às perguntas o melhor que pôde, escondendo um sorriso ao pensar que algumas das mulheres mais velhas falavam com ela pela primeira vez. Eram mulheres que nunca pensariam em dirigir a palavra a uma escrava, e muito menos à de K’os.

Por fim, quando o grupo engrossou, juntaram-se vários homens que também começaram a fazer perguntas. Aqamdax ouviu a voz de Tikaani, que abriu caminho entre a multidão até se aproximar do cão. As suas palavras foram para Mordedor, um elogio rápido, algo que um caçador poderia dizer a outro. Inclinou-se e estendeu o braço para pegar a lebre.

Mordedor arreganhou os dentes, rosnou e pôs uma pata em cima do animal; depois abocanhou-o, arrastou-o para junto de Ghaden e deixou-o cair.

Tikaani inclinou a cabeça e deu uma gargalhada.

Quem ensinou o cão a caçar desta maneira? perguntou ele.

Yaa, que estava de pé ao lado de Ghaden, com uma mão no ombro do irmão, apontou com o queixo pequeno para Aqamdax e, com uma voz clara, respondeu:

A nossa irmã, Aqamdax.

Na noite seguinte, Aqamdax já não era escrava, mas sim esposa. Ignorando os olhares mal humorados de K’os, levou os seus poucos pertences para a cabana de Estrela e depois ajudou Homem Noturno a trazer as coisas dele da cabana dos caçadores. Até Olhos Grandes, a mãe de Estrela, parecia ter saído do estranho mundo de sonho em que vivia e preparou a comida, embora tratasse Ghaden pelo nome de um dos filhos mortos. Parecia não ver Aqamdax. Chocou mesmo com ela várias vezes e depois recuou, assustada mas como se não a visse, como se Aqamdax fosse transparente como a água.

Nessa noite, depois de Tikaani ter saído da cabana e de Ghaden e Yaa terem adormecido, Mordedor, com o seu novo estatuto de caçador, estava agora autorizado a dormir na cama de Ghaden. Aqamdax estendeu as suas esteiras ao lado das do marido.

Apesar de viver com o Povo Rio há cerca de um ano, nunca se habituara a dormir como eles, todos no mesmo local, sem cortinas que isolassem a zona das camas, que separassem maridos e mulheres dos outros membros da família. Reparou que, por delicadeza, Estrela e Olhos Grandes estavam de costas para eles, ao contrário de K’os, que parecia sentir um estranho prazer em observar quando Aqamdax era obrigada a satisfazer um homem. Mas porquê julgar o Povo Rio através de K’os?

Aqamdax sentou-se ao lado de Homem Noturno. O homem deitara-se, encostado a um espaldar de salgueiro, com o ombro doente aconchegado numa pele de lobo macia. Estava magro e pálido. Era alto e tinha um grande nariz adunco que nascia direito da testa e se inclinava para baixo no meio, fazendo lembrar a Aqamdax um cotovelo. Os seus olhos eram do castanho mais claro que havia no Povo Rio, da mesma cor dos de Chakliux, e estavam bem enterrados nas órbitas. A boca era cheia e larga e às vezes fugia um pouco para cima num sorriso curto e silencioso. Aqamdax reparara que, quando as dores no ombro eram mais violentas, ele cerrava os lábios com força.

Ao contrário dos Primeiros Homens, o Povo Rio fazia uma cerimônia de casamento, que era mais do que um pai ou um tio empurrando o caçador e a mulher para a cama no meio de risadas. Os noivos tinham sido abençoados com palavras e seguira-se um banquete. Como Homem Noturno não podia suportar os empurrões próprios das aglomerações, ele e Aqamdax tinham ficado na cabana, à espera que o povo da aldeia fosse para junto deles.

Aqamdax não possuía roupas novas para a festa, embora Estrela lhe tivesse oferecido um cinto estreito de pele de caribu bordado com pelo de caribu tingido de vermelho e com pequenas contas feitas de conchas, em forma de disco. Aqamdax soltara os cabelos, vestira a parka interior sem capuz, com a pele de esquilo para fora, e pusera o cinto. A mãe de Estrela ficara na cabana com eles, cantarolando uma estranha canção que parecia o uivo do vento.

Homem Noturno, como a maioria dos caçadores, só falava quando era necessário. Quando ficaram sozinhos na cabana com Olhos Grandes, Aqamdax encostara-se ao seu novo marido e segredara:

Obrigada por me fazeres tua esposa.

Todavia, mesmo assim, ele limitara-se a soltar um grunhido, a acenar com a cabeça e a desviar o olhar.

Por um breve momento, Aqamdax pensou em Chakliux, um homem com quem conversara sobre muitas coisas, discutira, gracejara e construíra enigmas. Acariciou a fita enrolada de tendão que ainda trazia no pulso. K’os não a considerara digna de ficar com ela, ao contrário dos colares de Aqamdax. A saudade súbita que Aqamdax teve de Chakliux, da sua inteligência terna e das suas histórias era afiada como uma faca, mas ela lembrou-se da sua vida com K’os, das noites em que fora obrigada a aceitar homens na sua cama e dos dias frios em que era forçada a ir levar recados sem sentido. Depois disso, só conseguia encarar Homem Noturno com gratidão, só podia sentir-se satisfeita por já não ser escrava

Yaa virou-se na cama e fechou os olhos com força. Não queria que Aqamdax nem Homem Noturno pensassem que ela estava observando-os, apesar de ter curiosidade quanto ao que eles fariam na sua primeira noite juntos. Quando era muito pequena, vira o pai na cama com a mãe, vira-os mexerem-se juntos e às vezes ouvia-os gemer de satisfação. Perguntou a si própria se aconteceria o mesmo com Aqamdax e Homem Noturno.

Homem Noturno não tinha um aspecto forte como a maioria dos caçadores. Andava devagar e usava um cajado como o pai de Yaa. Era novo, mas não parecia novo. Fora ferido, segundo uma das meninas de Rio Primo contara a Yaa, apesar de poucas brincarem com ela e raramente lhe dirigirem a palavra. Não tinha importância. Havia sempre muito que fazer, tentando agradar a Estrela e tomar conta de Ghaden, além de se preocupar com Aqamdax, até esse dia. Agora seria melhor, embora tivesse pena que Aqamdax fosse esposa de um homem que talvez estivesse doente demais para caçar e que tinha um cheiro esquisito, quase de carne podre.

Ouviu os dois falando em voz baixa. Depois, Aqamdax ajoelhou-se em frente de Homem Noturno e ajudou-o a despir a camisa. Yaa esqueceu-se de manter os olhos fechados e arregalou-os ao ouvir Homem Noturno dar um grito quando a camisa lhe tocou no ombro. Uma onda do cheiro de carne podre varreu a cabana. Depois, Aqamdax ajudou Homem Noturno a instalar-se de novo no espaldar.

De repente, Yaa lembrou-se de que devia estar dormindo. Fechou os olhos e ficou escutando, abrandando mesmo o ritmo da respiração para que esta não cobrisse o som das vozes do casal.

Ouviu um roçar junto da cama e percebeu que Aqamdax estava a seu lado.

Sei que estás fingindo, irmã sussurrou Aqamdax, com uma voz terna. Abre os olhos e me ajuda.

Yaa abriu os olhos devagarinho.

Onde é que Estrela guarda os remédios? Onde é que ela tem as peles raspadas? perguntou Aqamdax.

Yaa desembrulhou-se dos cobertores e levou a Aqamdax um monte de peles, com e sem pelo. Aqamdax escolheu algumas das mais pequenas, bem raspadas dos dois lados.

Yaa levantou-se e observou Aqamdax enquanto esta encostava algumas pedras de cozinha nas brasas e avivava o fogo.

O meu marido está doente e eu não quero esperar pela manhã para ajudá-lo, disse ela a Yaa, jogando água numa panela vazia e pronta para receber as pedras quando estivessem quentes.

Ele vai morrer? perguntou Yaa.

Não, ele não vai morrer, respondeu Aqamdax. Eu não deixarei.

 

K’os não fora à festa. Por que celebrar? Que respeito poderia vir do fato de permitirem que uma mulher que nem sequer era humana fosse esposa?

Além disso, quem podia responder pela lealdade de Aqamdax? Ela vivera com os de Rio Próximo. Se ela soubesse dos planos de K’os, arranjaria maneira de os avisar? Não havia um grande risco de que ela o fizesse agora, quando os habitantes das duas aldeias se encontravam nos acampamentos de Inverno, e se os jovens caçadores concluíssem que, depois de um Inverno tão duro, não tinham forças suficientes para combater? Depois teriam que esperar pelo fim do Verão. De que serviria atacarem quando havia tantas famílias espalhadas pelos vários acampamentos de pesca? Mas, durante o Verão, havia períodos em que os povos de Rio Próximo e Rio Primo estavam separados por menos de meio dia de caminho. O que impediria Aqamdax de escapulir para ir avisá-los?

É claro que talvez K’os conseguisse convencer os caçadores a atacarem antes de as famílias da aldeia partirem para os seus pesqueiros. Caso contrário, seria obrigada a matar a mulher dos Caçadores Marinhos. Isso seria difícil, sobretudo agora que Aqamdax vivia numa cabana com tanta gente. Se a comida fosse envenenada, morreriam muitos; e outras pessoas da aldeia poderiam desconfiar. K’os tinha que ser mais cautelosa dali em diante. Quando era nova, usara veneno com inteira liberdade. Mas descobrira que às vezes havia métodos melhores de se vingar do que matar, e muitas vezes melhores maneiras de matar do que usando as suas próprias mãos.

 

Aqamdax serviu-se de cataplasmas quentes para extrair o veneno do ombro de Homem Noturno. A ferida gangrenara e atingira o músculo do braço. O homem tinha gânglios dolorosos no pescoço e nas axilas, e até na articulação entre a perna esquerda e a virilha. Ela conseguiu expurgar uma parte do veneno e, de manhã, ele tinha menos dores. Até o seu olhar era mais límpido.

Tu és curandeira segredara-lhe ele durante a noite, mas ela respondera que era apenas uma esposa.

Ao amanhecer, Homem Noturno adormeceu e Aqamdax também concedeu a si própria uns momentos de sono, escutando, mesmo em sonhos, a respiração do marido.

Acordou com Estrela junto deles, de nariz torcido ao ver a tigela de madeira cheia de sangue coagulado e de pus. Estrela tocou-lhe com um dedo do pé e perguntou:

O que lhe fizeste?

Limpei-lhe a ferida, respondeu Aqamdax, sentando-se.

Dormira com a sua parka de pele de esquilo e sem cobertores, satisfeita por se encontrar numa cabana quente.

Não quero que Ghaden veja essa porcaria, avisou Estrela.

Aqamdax concordou, com um gesto de cabeça. Estrela tinha razão. Não seria uma boa coisa. Vestiu a parka exterior e levou a tigela e os pedaços de pele piores para a lixeira que ficava mesmo ao lado da latrina das mulheres.

Quando regressou à cabana, Homem Noturno estava acordado. Os olhos dele brilharam ao vê-la, e ele estendeu-lhe a mão.

Mulher, proferiu ele, e esta palavra aqueceu o coração de Aqamdax. Tenho fome.

Sabes onde fica a nossa despensa? perguntou-lhe Estrela.

Sei.

Ainda bem. Vai buscar o que precisares para ele e para ti. Ontem à noite, comemos quase tudo o que havia na cabana.

A despensa ficava perto da de K’os. Era um estrado quadrado assente em quatro pernas feitas de troncos. Uma maneira esquisita de conservar a comida, pensou Aqamdax, mas o Povo Rio fazia quase tudo de uma forma muito estranha. Os barcos deles eram jangadas feitas de troncos de árvores atados uns aos outros. Eram tão pesados que seriam necessários vários homens para afastar só um dos rápidos e dos baixios.

Cada despensa tinha uma escada dois longos postes unidos um ao outro por traves feitas de ramos grossos. Eram fáceis de subir, mesmo com os braços ocupados, e podiam ser retiradas com facilidade para os animais não irem lá acima. Aqamdax subiu, desatou o fio da porta e abriu a despensa. Ainda estava pelo menos meio cheia. Nem K’os tinha tanta carne, apesar de exigir que cada homem que dormisse com Aqamdax lhe pagasse em carne de caribu ou em peixe.

Aqamdax pegou um recipiente de pele de caribu, abriu-o e retirou um naco de carne congelada. Junto da porta havia fardos de peixe seco e congelado. Aqamdax tirou vários peixes para dar a Mordedor.

Parou no topo da despensa e olhou cuidadosamente à sua volta, à procura de nuvens de bafo gelado que pudessem denunciar lobos ou algum cão solto que a tivesse seguido e esperasse que ela descesse com a carne, mas não viu nada exceto a fumaça acumulada que saía dos orifícios dos telhados das cabanas e a luz acinzentada da manhã. Fechou a porta e desceu.

Ao voltar para a cabana, cruzou-se com outras mulheres. Baixou a cabeça, preparada para escutar palavras ofensivas, como acontecia todas as manhãs, em que ouvia comentar como eram estranhos os que não pertenciam ao Povo Rio. Nesse dia, porém, as mulheres saudaram-na como faziam umas às outras. Uma até parou para perguntar como estava Homem Noturno. Então Aqamdax avistou K’os. A mulher encaminhava-se na sua direção, de olhar fixo, como se ninguém fosse digno da sua atenção.

Uma das crianças dissera a Aqamdax que K’os era velha, e devia ser, para ser mãe de Chakliux, mas o seu rosto não parecia o de uma velha. Só as mãos, deformadas e escuras, denunciavam a sua idade. Aqamdax levantou bem a cabeça, enfrentando uma mulher como uma esposa enfrentava uma viúva. Esperava que K’os passasse por ela tal como passara pelas outras mulheres, sem falar, sem um clarão no olhar que mostrasse que a reconhecera, mas ela parou, estendendo uma mão enluvada.

Tikaani disse-me que o teu marido tem muitas dores.

A ferida nunca sarou, disse Aqamdax, esperando que as suas palavras não fossem um insulto para alguém que era considerada uma curandeira.

Como K’os não disse nada, Aqamdax, desejosa de quebrar o silêncio entre ambas, perguntou:

Esta aldeia não tem um xamã que saiba os cânticos e as preces que afastam os maus espíritos?

K’os fez um ar carrancudo.

Ele morreu no Outono, disse ela. Pouco depois de voltarmos do nosso pesqueiro de Verão. Estava velho, mas não era muito sábio. Eu tenho plantas que podem ajudar Homem Noturno. Dei algumas à mãe dele antes de começar o Inverno. Se eu soubesse que ele não estava melhor, teria levado mais.

A mulher entendia com certeza que era pior dar coisas à mãe de Homem Noturno do que a uma criança, pensou Aqamdax. Além disso, não confiava em K’os. A mulher podia resolver dar-lhe veneno em vez de remédios.

Eu levo-te algumas.

Aqamdax fez um gesto de agradecimento e continuou a andar na direção da cabana de Estrela. Aceitaria as plantas de K’os mas não as daria a Homem Noturno. Talvez as suas cataplasmas fossem suficientes para ele recuperar as forças. Aqamdax entrou na cabana e viu que o marido estava sentado, de boca fechada, concentrado, enquanto ele e Ghaden entrançavam tiras de couro cru numa raquete.

É bom ser esposa, pensou Aqamdax. Alguma vez desejara mais do que isso?

 

                   ALDEIA DE RIO PRÓXIMO

Sok pegou o corpo do cão. Levantou-se sem dizer nada e Dorminhoco cuspiu-lhe em cheio na cara.

Isto é o que eu penso dos cães do teu irmão. Isto é o que eu penso de ti. Se o teu irmão voltar a esta aldeia, diz-lhe que me deve duas mãos-cheias de peles de caribu, as suficientes para pagar três bons cães.

Sok conteve a fúria.

Julgas que eu também não perdi alguns cães?

Sei que perdeste. Os teus foram dos primeiros a morrer. Mas agora a insensatez do teu irmão... tentar ligar-nos, pela amizade ao povo de Rio Primo... matou não só os teus cães como a maioria dos cães da aldeia. Não tenho mais nada a dizer-te, Sok.

Sok ficou com o cão nos braços, sem saber o que fazer. Tinha perdido a conta aos cães que haviam morrido no último ano quatro mão-cheias? Cinco? Tinha que ir falar com Lobo-e-Corvo. Um xamã saberia como afastar uma maldição da aldeia, mas Lobo-e-Corvo ainda estava zangado por Sok ter levado Neve-no-Cabelo como segunda esposa.

A sua fúria não tinha razão de ser. Neve-no-Cabelo era feliz. Sok não a obrigara a deitar-se na sua cama. Ela fora de livre vontade e ele aceitara-a como esposa quando ela engravidara. Ele pagara o mesmo preço por ela como se fosse uma primeira esposa. Agora ela vivia na cabana de Aqamdax e Sok passava lá a maior parte das noites, apesar de não a possuir durante a gravidez.

Os boatos que circulavam na aldeia que Neve-no-Cabelo dormira com muitos caçadores para engravidar e ser aceite como esposa não eram verdadeiros. Ela dormira apenas com Sok. Os boatos faziam parte do plano de Folha Vermelha para obrigar Lobo-e-Corvo a autorizar o casamento da filha. De que outra maneira podia ele dá-la a Sok, a menos que acreditasse que, na sua desgraça, ela nunca arranjaria um marido?

Lobo-e-Corvo devia estar agradecido. O velho xamã julgava que tinha poder suficiente para fabricar um marido para a filha com pedras, gravetos ou lama? Os muitos dias que ele passara falando com os espíritos pareciam ter-lhe turvado a mente e ninguém o compreendia verdadeiramente.

Porque Sok levaria o cão morto a Lobo-e-Corvo? Ele só repreenderia Sok e rogaria pragas a Chakliux.

Era preferível ir falar com Pato-de-Cabeça-Azul. Sok encaminhou-se para a cabana do velho, com o cão nos braços, olhando em frente e ignorando aqueles que paravam no caminho, encarando. Não raspou na aba da porta. Como podia fazê-lo, com os braços ocupados? A velha esposa de Pato-de-Cabeça-Azul pigarreou quando ele entrou e pôs o cão morto no chão.

Pato-de-Cabeça-Azul estava sentado ao pé da lareira e levava uma tigela de comida à boca. Largou a tigela, mas ficou de boca aberta.

Não falou, e Sok disse por fim:

Primeiro, acusaram o meu irmão. Agora é a mim que acusam. Dizem que não tenho os dons do meu avô, que todos os nossos cães morrerão e que depois acontecerá o pior. Talvez as nossas crianças...

Cala a boca! exclamou Pato-de-Cabeça-Azul. Não abras os ouvidos dos espíritos com tais palavras.

Estas palavras já foram ditas, retorquiu Sok. Segredadas de cabana em cabana por velhas que não têm mais nada que fazer.

De quem é o cão?

Foi Dorminhoco que me trouxe.

Ele sempre se orgulhou dos seus cães. O que ele te aconselha a fazer?

Não me deu conselhos. Só acusa, como todos na aldeia.

Foi ele que disse que devias vir aqui?

Não.

Então porque vieste? Entendo pouco de cães. Só tenho aquele de que preciso para ajudar a minha mulher a levar a bagagem quando vamos para o acampamento de pesca na Primavera. Já não caço ursos nem vou atrás de caribus. Sou um velho. Para que preciso de cães?

Sok escolheu cuidadosamente as palavras:

És o caçador mais velho da nossa aldeia. Conheces as preces e os cânticos que acalmam os espíritos quase tão bem como Lobo-e-Corvo. Peço-te que juntes as tuas preces e os teus cânticos aos meus e aos de Lobo-e-Corvo para eles protegerem os nossos cães. Se alguma atitude desrespeitosa irritou os espíritos, talvez isso ajude. Nós parecemos crianças, não sabemos o que fazer.

Enquanto Sok falava, Pato-de-Cabeça-Azul endireitou-se e por fim levantou-se, de olhar fixo em Sok.

Deixa o cão. Eu rezarei até decidir o que faremos.

 

Ao anoitecer, Ligige’ saiu da cabana. Doíam-lhe os braços e as articulações dos dedos. Só conseguia costurar um pouco e depois era obrigada a parar. Pouco mais fazia do que comer e dormir. Que préstimo tinha para a aldeia uma mulher que recebia uma ração de comida mas que não tinha nada para dar em troca?

Resolvera ir para as lareiras e fazer um turno mexendo as panelas para que algumas das mulheres mais novas pudessem voltar para as suas cabanas e também para poder tirar a gordura quente e macia que ficava no topo das panelas em que o líquido fervera. A esfregaria nas mãos para aliviar as dores nas articulações, e mais tarde serviria para lamber.

Por pouco não se chocou com Rato Silvestre, a mulher de Pato-de-Cabeça-Azul, que estava tirando um cão morto da cabana.

É o teu cão? perguntou Ligige’, sem perceber por que motivo Rato Silvestre não o esquartejara para comer.

Não, respondeu a mulher, com a voz abafada pela parte da frente da parka quando se inclinou para pôr o cão lá fora.

Ligige’ viu o cão de Pato-de-Cabeça-Azul levantar-se de um salto no local em que estava preso, nos fundos da cabana. Esticou a corda, atirou-se ao cão morto e começou a ganir.

Foi Sok que o trouxe.

Outro cão morto?

Sim. O meu marido disse para eu te dar. Ele livrou-o da maldição e disse que podes ficar com ele.

De quem é o cão?

Foi Dorminhoco que o deu a Sok.

Ele não o quer?

Ele disse ao meu marido que o oferecesse a alguém que precisasse da carne.

Ligige’ debruçou-se para ajudar Rato Silvestre a puxar o cão para a sua cabana. Agradeceu à mulher, disse-lhe que transmitisse também os seus agradecimentos a Pato-de-Cabeça-Azul e a Dorminhoco mas, depois de Rato Silvestre se afastar, Ligige’ sentou-se e ficou olhando para a carcaça. Se a carne estava livre de maldições, por que motivo é que Pato-de-Cabeça-Azul ou Dorminhoco não a queriam? Se era tão seguro comê-la, porque havia Rato Silvestre de oferecê-la de tão boa vontade, conhecida que era a sua predileção por carne de cão?

Ligige’ ficou sentada ao lado do cão morto até a noite; levou o dia a pensar nos cães que tinham morrido. Só haviam começado a morrer quando Chakliux chegara à aldeia. As pessoas tinham-no acusado, mas agora ele partira.

Segundo Boca Feliz afirmara, ele fora aos Caçadores de Morsas à procura de Ghaden e de Yaa, mas quem podia acreditar numa coisa dessas? Porque iria ele à procura de crianças que não lhe pertenciam, que nem sequer eram irmãos ou primos? Boca Feliz só esperava que ele tivesse ido, e a esperança levara-a a acreditar numa coisa que não era verdade. Além disso, quem podia duvidar que Aqamdax levara Ghaden? É claro que ela tinha poucas chances de sobreviver na viagem de regresso ao seu povo.

Folha Vermelha assegurara que ela levara o iqyax de Chakliux. Quem sabia que Chakliux tinha um iqyax? Estava escondido na floresta, segundo dissera Sok, mas porque ele o escondera? Estaria mais seguro na aldeia.

Alguns dias depois, Folha Vermelha alterara a sua história.

Os Caçadores de Morsas tinham levado Aqamdax para se vingarem de qualquer coisa que ela fizera. Se isso fosse verdade, que oportunidade tinha Aqamdax de sobreviver? Se isso fosse verdade, porque teriam eles levado também Ghaden, e o que acontecera a Yaa?

Água Castanha dizia que Yaa não ficara boa da cabeça desde que Chakliux a encontrara, e que ninguém sabia como é que ela se ferira. A maior parte das mulheres pensava que ela fora atingida pela queda de um ramo e que, depois de Chakliux sair da aldeia, talvez andasse vagando sem destino. Um dia, um caçador encontraria os seus ossos.

Depois de Chakliux partir, os velhos tinham dito que já não havia motivo para se preocuparem com os cães. Eles estavam em segurança. No entanto, mesmo sem Chakliux na aldeia, os animais tinham recomeçado a morrer. Agora as pessoas acusavam Sok. Diziam que ele não era tão poderoso como o avô, que não sabia proteger os cães. Ela ouvira alguns dos homens falarem contra a cadela de Rio Primo, Falcão da Neve, e os quatro filhotes que Chakliux trouxera dessa aldeia. Uns diziam que aqueles cães tinham que ser mortos, mas os animais eram saudáveis e os donos queriam mantê-los. Dois já haviam parido ninhadas de cachorros fortes, alguns dos quais tinham olhos dourados, segundo Ligige’ ouvira dizer.

Por outro lado, aqueles velhos esqueciam que os primeiros cães haviam morrido quando Tsaani ainda era vivo? Talvez ela devesse lembrar isso a Pato-de-Cabeça-Azul. Ele parecia ser o velho que melhor se fazia ouvir e, em geral, o mais sensato dos homens cuja idade lhes valera o respeito da aldeia.

Era estranho que todos os animais tivessem morrido com o tempo frio. Também era estranho que a maior parte deles parecesse saudável. Os que tinham morrido eram muitas vezes os favoritos dos donos. Se houvesse alguma maldição, mesmo que fosse algo que os espíritos tivessem enviado como castigo por qualquer ato de desrespeito, seria natural que os animais velhos e fracos fossem os primeiros a morrer.

Os pensamentos de Ligige’ começaram a andar à roda, gerando a confusão. Ardiam-lhe os olhos de ter passado o dia inteiro no meio da fumaça da sua cabana.

Bem, velha, tens que fazer qualquer coisa com este cão proferiu ela em voz alta.

Parecia-lhe que os outros cães que tinham morrido não haviam sido comidos. Uns foram queimados e as crias foram enterradas. Talvez Pato-de-Cabeça-Azul receasse que o desperdício de carne tivesse enfurecido os espíritos. Talvez fosse por isso que lhe oferecera o cão.

Se ela o comesse e os espíritos ficassem satisfeitos, talvez as mortes parassem. Se ela o comesse e os espíritos ficassem zangados, seria ela a sofrer, ela e não um caçador ou uma mulher jovem que ainda pudesse ter filhos. O pensamento irritou-a, mas depois Ligige’ lembrou-se de que essa era uma maneira de ajudar alguém. Porquê lamentar-se?

Foi buscar uma faca com uma lâmina de pedra afiada e retocada há pouco tempo. Não tinha forças para levantar a carcaça e pendurá-la no ramo de uma árvore; além disso, já estava muito frio e escuro para ela trabalhar lá fora. Pôs umas esteiras velhas debaixo do cão, depois deitou-o de costas e fez o primeiro corte, da garganta ao ânus. Comeria o fígado e os rins, o pâncreas e o coração, mas poria de lado os intestinos e o estômago para limpar lá fora. De outro modo, o cheiro nunca mais sairia da cabana.

Ignorando as dores nas articulações, conseguiu separar as vísceras e levou o estômago e os intestinos para o túnel de entrada. Ficariam ali ao frio até ela estar disposta a arrumá-los. Deu-lhes um último empurrão para soltar a aba da porta, mas perdeu o equilíbrio e caiu para a frente.

Aterrou com o rosto em cima das vísceras e soltou um grito de repugnância ao sentir o cheiro pastoso das fezes que enchia o túnel de entrada.

Estúpida, estúpida, estúpida! gritou ela. Devias ter esperado pela manhã. Há muitas moças que te teriam ajudado.

Levantou-se a custo e assustou-se. Caíra em cima de um objeto afiado que lhe fizera um golpe na mão esquerda. Recuou para o interior da cabana, pegou um odre de água e limpou as fezes. Tinha uma ferida na mão que sangrava. Pegou numa faca limpa e fez um corte maior. Já vivera o suficiente para saber que aquelas feridas infectavam, sobretudo quando sangravam pouco. Lavou a mão outra vez e depois chupou a ferida, puxando mais sangue. Aqueceu água, fez uma cataplasma de gordura e folhas secas de violeta e aplicou-a na mão com uma almofada de pele de caribu.

Puxou os despojos do cão para o túnel e deixou-os ali. Já chega, pensou. Já eram horas de uma velha ir dormir. Resolveria o que faria ao cão na manhã seguinte.

 

                   ALDEIA DE RIO PRIMO

Tinham passado duas dezenas de dias desde que Homem Noturno recebera Aqamdax como esposa. Entretanto, ela só fora uma vez para a cama dele, três dias depois da cerimônia. Durante esses três dias, Homem Noturno ganhara forças e Aqamdax ficara à espera que ele lhe pedisse para ir para a sua cama, mas quando anoitecia ele não dizia nada e ela ia para a zona das mulheres da cabana e enrolava-se nos cobertores ao lado de Estrela e de Olhos Grandes.

No terceiro dia, ela acabara de ir buscar lenha. Sacudiu a neve da parka e pendurou-a num poste da cabana. Tinha frio e aproximou as mãos do fogo. Ghaden e Yaa estavam brincando lá fora e Estrela também saíra; só Olhos Grandes estava sentada, entoando a sua estranha canção, e olhando fixamente para as paredes da cabana.

Homem Noturno chamou Aqamdax e ela lamentou afastar-se do calor da lareira.

Queres comer ou beber? perguntou ela.

Nem comer nem beber, respondeu ele em voz baixa, estendendo a mão sã.

Ela ajoelhou-se a seu lado e ele acariciou-lhe o rosto.

Tens frio? perguntou ele baixinho. Aqui está quente, nesta cama.

Homem Noturno levantou as peles que o cobriam e olhou fixamente para Aqamdax. Ela deitou-se ao lado dele e sentiu-se descontrair quando o calor do corpo do marido a envolveu. Deixou-se ficar quieta, à espera, sem saber se ele queria o seu corpo ou apenas o conforto de a ter a seu lado.

Ele virou-se para poder olhar para ela, e Aqamdax percebeu as dores que o esforço dele lhe custava. Apoiou-se num cotovelo, reclinou-o nos cobertores e começou a acariciar-lhe o braço são e depois o ombro, passando a pouco e pouco as mãos para o resto do corpo. Afastou os cobertores e viu que ele estava pronto para ela, ainda antes de ela lhe tocar. Aqamdax tirou a camisa e as perneiras e ele levou-lhe a mão aos seios, descendo depois ao ventre.

As carícias de ambos ganharam ritmo e pouco depois ela mexia-se por cima dele, com murmúrios de prazer, rezando para que a alegria daquela união afastasse o mal da doença do marido.

Durante dois dias, ela convenceu-se de que tal iria acontecer. Durante dois dias, pareceu-lhe que ele ganhara forças. Passava a maior parte do tempo sentado e uma vez, com a ajuda de Tikaani, fora até a cabana dos caçadores.

Aqamdax, ansiosa, ficou esperando que ele voltasse a convidá-la para a sua cama. Sentou-se mesmo debaixo das peles dele e iniciou as carícias que antecediam o amor, mas ele limitou-se a sorrir, sem fazer qualquer movimento para a estimular e, a fim de esconder o seu embaraço perante a muda rejeição do marido, Aqamdax pôs-se atrás dele, massageou-lhe os músculos das costas e do pescoço, e depois regressou à zona das mulheres.

Seis dias depois da cerimônia do casamento, Aqamdax acordou e encontrou Homem Noturno num frenesi provocado por sonhos estranhos. Estava ardendo em febre e tinha os lábios gretados e cheios de sangue seco. Estrela, que também acordara com os gritos de Homem Noturno, juntou algumas peles e comida que tinham sobrado da festa do casamento e, apesar dos protestos de Aqamdax, levou-as para a cabana de K’os.

K’os apareceu nessa noite. Trouxe uma das suas bolsas de remédios uma pele de uma lontra do rio, ainda com os ossos do crânio, os olhos vazados com as órbitas cheias de pedras negras e reluzentes e a barriga repleta de pacotes de raízes e de plantas secas.

Tens-lhe dado os remédios que eu mandei? perguntou ela a Aqamdax.

Antes que Aqamdax pudesse responder, Estrela disse:

Eu tenho. Ela estava jogando-os fora. Eu vi-a levá-los para a lixeira, fui atrás dela e trouxe o pacote. Fiz chás quentes para o meu irmão sempre que Aqamdax saía.

K’os fitou Aqamdax com os olhos semicerrados e esboçou um sorriso de troça.

Não confias em mim? perguntou ela. Bem sabes que sou curandeira. Não faria mal a ninguém.

Esqueceste que eu vivi contigo, K’os. Não tocarás no meu marido respondeu Aqamdax.

Estrela? disse K’os, estendendo os braços.

Não vás embora. Eu vou chamar Tikaani. Estrela dirigiu-se à cabana dos caçadores e, entretanto, Aqamdax debruçou-se sobre Homem Noturno, para o proteger.

Quando Tikaani chegou, pediu a K’os que desse um remédio a Homem Noturno. Aqamdax ajoelhou-se e suplicou, enquanto K’os se atarefava fazendo chás de pós, misturando raízes com gordura, afastando o calor da pele de Homem Noturno com o seu leque de penas de corvo e dirigindo-o para a fumaça da lareira para que este saísse da cabana.

No dia seguinte, Homem Noturno parecia mais forte e a febre baixara, mas deixou de falar e era raro abrir os olhos. Às vezes, ao vê-lo tão quieto, Aqamdax debruçava-se sobre ele para lhe sentir a respiração na sua face e certificar-se de que ainda estava vivo.

 

                 ALDEIA DE RIO PRÓXIMO

Ligige’ despertou de um sonho com cães mortos. De olhos vidrados e línguas inchadas, os animais executavam uma das danças do povo para apaziguar os espíritos que roubavam as almas. Não usavam as grandes máscaras de madeira dos bailarinos fúnebres. Pelo contrário, os seus focinhos estavam bem visíveis, tanto os dos vivos como os dos mortos, e as patas enterravam-se no solo a cada passo, como se extraíssem poder da terra.

Ligige’ acordou sem fôlego, e aquela dança burlesca do sonho turvou-lhe a visão da cabana e das suas paredes de pele de caribu.

Estremeceu e obrigou-se a sair da cama, assobiando quando se apoiou na palma da mão esquerda. Retirou os pelos das tiras de pele de caribu com que cobrira a ferida. Começara a formar-se uma crosta escura que unia as pontas e não havia sinais de veneno que tentasse chegar-lhe ao coração.

Tinha que tirar o cão morto da cabana. Fora um disparate deixá-lo ali durante a noite. Quem sabia quais os espíritos que ele atraíra, ali deitado no túnel? Ligige’ suspirou e apalpou o estômago para ver se sentia inchaços ou dores que não estivessem lá na véspera.

Não sentiu nada, só as ancas, as mãos, os joelhos e o pescoço doloridos, aquelas dores que todo mundo tinha com a idade, e com as quais ela aprendera a viver. Estava cada vez mais furiosa com Pato-de-Cabeça-Azul. Que disparate ter lhe oferecido o cão!

Calçou as perneiras e as botas, vestiu a parka e as luvas e encaminhou-se para o túnel. Arrastou a carcaça lá para fora. Dorminhoco que a tirasse dali. Ele era forte. Ela não passava de uma velha. Foi buscar as vísceras.

Estas estavam inchadas e quando ela saiu, escorregou na neve. Caiu de joelhos e depois de borco. Tinha os olhos fechados quando caiu e, ao abri-los, viu uma tira comprida que lhe pareceu ser marfim saindo da barriga do cão.

Ligige’ puxou-a e ela saiu com facilidade. Tinha quase o tamanho do antebraço dela, era fina como um dedo da mão e afiada dos dois lados. Uma das extremidades era curva, como se tivesse sido fortemente enrolada. Ligige’ voltou a entrar na cabana, pegou uma faca de lâmina comprida, saiu e fez um corte na barriga do cão.

Encontrou três tiras como a primeira, uma delas enrolada numa bola de gordura endurecida. Tirou as luvas, meteu as mãos na barriga do animal e encontrou quatro bolas, qualquer delas não maior do que o punho cerrado de uma criança. Pousou-as na neve e depois chamou a primeira mulher que ia passando.

Vai chamar Pato-de-Cabeça-Azul. Diz que Ligige’ precisa dele. Diz-lhe que venha imediatamente!

O cão não morrera por causa dos espíritos nem da doença. Os espíritos faziam uma maldade daquelas? Enfiar tiras de marfim em gordura e as pôr junto dos cães para eles as engolirem? A doença fazia tal coisa?

Pato-de-Cabeça-Azul aproximou-se, resmungando por o obrigarem a sair do calor da cabana logo de manhã.

Cala a boca e olha para isto gritou-lhe Ligige’. Ainda resmungando, o velho agachou-se junto dela.

Olha. Foi isto que matou o cão.

Ligige’ pegou uma das bolas de gordura e ele tirou-a e virou-a nas mãos.

Isto? Isto é veneno?

Abre-a.

O homem tirou uma luva e enfiou a unha do polegar na

gordura. Deu um salto quando o marfim enrolado se endireitou de repente, salpicando-lhe a cara com pedaços de gordura e o conteúdo putrefato do estômago do cão.

Já viste uma coisa destas? perguntou-lhe Ligige’.

Já tenho ouvido falar disto. Os caçadores de Tundra do Norte servem-se disto para matar lobos. Os lobos engolem como os cães. Engolem sem mastigar. O calor do estômago derrete a gordura e solta a tira de marfim. Eles sangram até a morte, se tiverem sorte. Às vezes, a ferida infecta...

Ligige’ fez um sinal afirmativo.

Então não era um espírito mau que andava matando os cães declarou ela.

Pato-de-Cabeça-Azul examinou o marfim e arrancou a ponta aguçada com a unha do polegar.

Conto isto aos velhos? perguntou ele por fim.

Se contares aos velhos, daqui a pouco quem fez isto ficará sabendo que tu sabes.

Pato-de-Cabeça-Azul concordou.

Talvez seja melhor eu esperar, embora isso possa custar a vida a mais alguns cães da nossa aldeia. Guardas o marfim e isto?

O velho apontou para as bolas de gordura ainda intactas.

Eu guardo-as.

Num local frio.

Eu não sou idiota.

Não, disse ele, sorrindo. Tu não és idiota. O homem levantou-se e mexeu no cão com o pé.

Vou chamar o marido da minha filha para tirar isto da aldeia... A menos que tu queiras a carne.

Não, respondeu Ligige’. Eu não quero a carne. Diz à tua filha que pode ficar com ela. Ela está esperando de um filho. Eu só preciso de comida para mim mesma.

Quando Pato-de-Cabeça-Azul se afastou, Ligige’ guardou as tiras de marfim e as bolas de gordura num velho cesto de pele de peixe. Pôs o cesto na entrada do túnel, amontoou um pouco de neve em volta dele e entrou na cabana.

Ligige’ estava com fome e a bexiga muito cheia causava-lhe mal-estar, mas ficou junto da lareira durante muito tempo, olhando para as chamas.

 

                   MAR DO NORTE

Partira antes de o aconselharem a fazê-lo. O gelo da baía desaparecera, empurrado para o mar do Norte por fortes ventos de tempestade, mas, quando os caçadores saíram da enseada nos seus iqyan, verificaram que ele continuava boiando em pedaços do tamanho do telhado de um ulax. Disseram a Chakliux que havia um espaço entre as massas de gelo flutuante por onde um homem podia passar com o seu iqyax, mas o vento inesperado e na direção errada podia unir o gelo e esmagar o iqyax como se este fosse um ouriço-do-mar.

Disseram-lhe que ele deveria partir dentro de uma lua, ou talvez mais, mas Chakliux foi atrás deles e aprendeu a manobrar o iqyax entre as placas de gelo flutuante.

Queria verificar as praias e passar de novo pela aldeia dos Caçadores de Morsas, para ver se Aqamdax chegara durante o Inverno. Todas as noites, o seu sono era perturbado por sonhos em que as ossadas dela jaziam sem honra em algum entre a aldeia de Rio Próximo e aquela que era a sua terra natal. Como podia ele esperar?

Entre a lua cheia e a lua nova três mãos-cheias de dias ele remara sem problemas, auxiliado por um forte vento do Sul, que afastava o gelo da costa. Todas as noites encontrara uma boa praia e dormira debaixo do iqyax, abrigado do vento pela pele esticada. Mas depois o vento mudara, empurrando de novo o gelo para as praias e transformando as massas flutuantes numa placa dura e sólida e obrigando Chakliux a afastar-se da costa.

Os dias e as noites sucediam-se. O corpo doía-lhe de cansaço, mas Chakliux receava que, se adormecesse, o iqyax se virasse com as ondas e o atirasse ao mar. Sob a orientação de Rompe-o-Dia, aprendera a endireitar-se se virasse, mas ainda não se sentia à vontade. Era melhor ficar acordado. De vigia.

Os Primeiros Homens o tinham ensinado a fazer um tubo de escoamento, mais fácil de manejar do que a tigela de madeira que ele costumava usar. O tubo era mais comprido do que o seu braço, do punho ao cotovelo, estreito nas pontas e mais largo no meio. Chakliux podia pôr dentro do iqyax, colocar a boca numa extremidade e sugar, enchendo o tubo de água. Aprendera a levantar o tubo agarrando-o com os dentes e virando a cabeça para cima, para depois despejar a água. Nos últimos dias passados no iqyax, a água entrava constantemente, e o tubo de escoamento fora-lhe muito útil, mas Chakliux estava sempre com medo que um bloco de gelo lhe rasgasse as partes laterais do iqyax, amolecidas pela água.

No fim do dia seguinte, os ventos diminuíram e Chakliux descobriu uma passagem no gelo tão larga quanto o comprimento do seu iqyax. Estendia-se na direção da costa, tanto quanto ele podia ver, e o gelo dos dois lados era suficientemente fino para se partir com o remo. Chakliux ouvira contar histórias dos Primeiros Homens de caçadores apanhados nas passagens no gelo, cujos iqyan tinham sido esmagados quando o vento mudara, mas afastou esses pensamentos e começou a remar o mais depressa que podia para chegar à terra antes de terminar a calmaria. Pouco depois, o gelo ganhou espessura, a passagem estreitou-se, e Chakliux foi obrigado a servir-se de um machado para abrir espaço suficiente para dar a volta. Encaminhou-se para o mar e, em águas calmas, rumou para leste, convencendo-se de que não precisava dormir.

Por fim, já sem conseguir levantar os braços, percebeu que tinha que prender o remo ao convés do iqyax e ir atrás dos sonhos que o chamavam.

 

                   ALDEIA DE RIO PRIMO

K’os escondeu-se bem para eles não saberem que ela estava a espiando-os. Para que lembrar-lhes que ela tinha o poder da vida e da morte sobre cada homem, mulher e criança? Para que arriscar-se a que o seu poder sombreasse o deles e consumisse as capacidades deles com a nova arma que ela lhes oferecera?

Já eram poucos os que falavam da origem dos arcos. Com certeza que não fora ela que lhes dera. Eles não os tinham feito com as suas próprias mãos? Não haviam sido eles trabalhando a madeira e reforçando-a com tiras de pele de caribu? Não tinham sido eles enrolando as fitas de tendão e fazendo as pequenas setas nodosas que aqueles arcos atiravam tão longe e tão depressa?

Deixava-os viver na ilusão. Ela sabia quem levara o arco para a aldeia. Isso bastava. Pelo menos por agora. Pelo menos até eles fazerem o que ela queria.

K’os observava enquanto os homens praticavam. As setas espetavam-se no centro da pele de caribu almofadada que eles usavam como alvo. Ela observava-os e refreava a alegria. Eles estavam prontos, e dali a pouco tempo ela lhes daria mais do que simples peles de caribu para eles mirarem.

Tikaani baixou o arco e inclinou a cabeça em sinal de assentimento para Três Peles. Estas novas pontas de setas eram mesmo aquilo de que eles precisavam. Sentiu o peito encher-se de orgulho, como se a idéia tivesse sido dele e não do irmão, Homem Noturno.

As primeiras pontas eram de pedra. Tinham menos de metade do tamanho das que eles faziam para as lanças, mas mesmo assim o seu peso obrigava as setas a descreverem uma trajetória curva no ar e a caírem a pouca distância da maioria dos alvos.

Homem Noturno passara muitos dias de Inverno esculpindo pontas de setas de pedra. Nenhuma era suficientemente leve. Por fim, fizera várias de osso, que eram leves mas frágeis.

Que não se preocupasse com isso, dissera-lhe Tikaani. Eles podiam usar pontas de pedra para alvos próximos e de osso para outros mais distantes e para presas mais pequenas, como gansos. Mas Homem Noturno continuara trabalhando, e Tikaani não o desencorajara, na esperança de que o homem esquecesse as dores, enquanto passava os dias sombrios do Inverno pensando em pedras afiadas, em osso e em sangue.

Agora Tikaani examinava a ponta de seta que o irmão fizera e tentava não se lembrar de que, na lua passada, Homem Noturno parecia ter perdido as poucas forças que ainda lhe restavam. Aqamdax tratava do marido como se ele fosse um bebê: limpava-o, virava-o e obrigava-o a beber água. Quase todos os dias, K’os ia levar-lhe remédios. Umas vezes, estes pareciam ajudar; outras não.

Ao pensar em K’os, Tikaani sentiu-se pouco à vontade. Tinha que ir visitá-la mais vezes. Desde a morte de Bate-no-Chão que ele deixara de gozar como antes na cama dela. Talvez porque agora era reconhecido como chefe dos caçadores, não tinha de provar a si próprio que era digno dessa honra possuindo a mulher do antigo chefe. Além disso, havia muitas mães ansiosas por que ele conhecesse as filhas. No Verão, tinha que arranjar uma esposa. Para quê escolher K’os? Tinha que escolher uma jovem que lhe desse filhos robustos. E podia continuar a passar as noites que quisesse na cabana de K’os. Talvez mesmo nessa noite...

Voltou a examinar a ponta de seta que tinha na mão. Homem Noturno transformara uma haste de caribu numa seta tão comprida e quase tão larga como o seu dedo mindinho. Afiara-a numa ponta e afunilara-a na outra para a amarrar ao cabo. Fizera duas ranhuras verticais no meio da haste, começando pela ponta, uma de cada lado da seta, e depois enfiara uma fina lâmina de pedra em cada ranhura.

A ponta da seta era leve e forte e mais fácil de fazer do que as de sílex ou de obsidiana.

Tikaani observava enquanto Três Peles atirava várias setas no alvo. O homem tinha pontaria, as novas pontas de seta enterravam-se com facilidade na pele de caribu. Tikaani suspirou. Três Peles era um bom caçador, mas devia ser Homem Noturno ali com ele, experimentando as novas pontas. Homem Noturno era o tipo de caçador de que qualquer aldeia precisava. Forte e leal, com uma boa mente. Merecia melhor do que aquilo que tinha, uma morte em vida e uma mulher dos Caçadores Marinhos.

Há pouco mais de um ano, eles possuíam tanta coisa. O pai, Topa-Nuvens, era vivo e são, respeitado pela aldeia. A irmã, Estrela, tinha dois jovens que a queriam como esposa. A mãe era uma mulher alegre. Os irmãos, Caribu e Silencioso, eram ambos caçadores promissores. Agora só ele ficara inteiro e como antes.

Não, não como antes.

Um dia, encontraria Chakliux. Teria o prazer de matá-lo. Chakliux morreria na desonra, e ele, Estrela e K’os dançariam sobre os seus ossos.

 

                   MAR DO NORTE

Chakliux acordou com a água salgada queimando-lhe o nariz. Inalou antes de poder evitá-lo, engasgou-se e entrou em pânico. Quando percebeu que estava de cabeça para baixo, começou a rasgar a saia que o prendia ao iqyax e depois conseguiu ter a presença de espírito suficiente para puxar o fio que soltava o remo. Ainda estava engasgado, com os pulmões precisando de ar, mas agitou o remo para baixo e para trás, virando o corpo para ganhar impulso. O iqyax estremeceu mas continuou virado ao contrário.

Chakliux voltou a debater-se na saia, mas depois perguntou a si próprio quanto tempo conseguiria sobreviver sem o seu iqyax nas águas frias do mar do Norte, mesmo que conseguisse libertar-se e nadar. Era preferível morrer agora, era melhor engolir a próxima golfada de água.

Sentiu um peso no peito e a escuridão começou a escurecer-lhe a visão. Depois viu Aqamdax, não os seus ossos, mas o seu rosto. Ela abriu a boca para falar e a sua voz chegou até ele tão nitidamente como se ela estivesse ali, na água, no frio.

Olha, vejo alguma coisa.

Ela levantou a mão e ele viu o tendão enrolado no pulso dela, uma cabeça de lontra feita de nós.

Como uma lontra, Chakliux virou o corpo, atirou-se para trás e depois para a frente, com o seu remo. Sentiu o iqyax virando-se, erguendo-se debaixo dele, reagindo aos seus movimentos, afastando-o do mar. Respirou fundo, aspirando um tanto de ar e outro de água que lhe escorria da cabeça e do rosto. Provocou o vômito e engasgou-se. Vomitou água. Engasgou-se outra vez. Inalou. Encheu os pulmões de ar. Estava vivo.

 

                   ALDEIA DE RIO PRIMO

K’os chamou-o e o rapaz foi falar com ela. Era novo, com oito Verões, talvez nove. Era um rapaz bonito e forte, o único filho de Come-Fogo o único filho numa cabana de meninas. Ela agitou o amuleto diante dele.

É uma coisa que eu fiz para ti disse ela.

Ele semicerrou os olhos. Era esperto, aquele rapaz, e fora por isso que ela o escolhera. Era uma promessa para toda a aldeia. Um rapaz como ele poderia vir a ser o chefe dos caçadores. Já participara de uma caçada ao urso, uma honra rara para uma pessoa tão nova. A sua primeira presa não fora um pássaro de pernas amarelas, como fora para tantos rapazes. Ele e a irmã tinham sido perseguidos por um lince, e o rapaz matara-o, conquistando um novo nome.

Mata-Linces disse ela com uma voz aduladora, a mesma com que se dirigia aos homens. Mata-Linces, eu tive uma visão. Tu serás o próximo chefe dos caçadores, depois do teu primo Tikaani. Os espíritos disseram-me que fizesse este amuleto para ti.

Ele inclinou a cabeça e estendeu o braço para a bolsa de pele de caribu que balançava nos dedos de K’os.

Ela puxou-a antes que ele lhe tocasse, sorriu e soltou uma gargalhada que lhe iluminou as palavras.

Isto tem que ser conquistado afirmou ela.

Como?

Mata-Linces tinha uma voz dura, desrespeitadora, e K’os ficou irritada. Era uma pena que o rapaz não vivesse o suficiente para ficar sabendo quais eram os seus verdadeiros poderes, embora talvez ele começasse a compreender na hora da morte. Quando o espírito se separasse do corpo, com certeza ele saberia quem o matara. K’os fez um sorriso terno, como se fosse uma mãe sorrindo a um filho.

Conheces o grupo de abetos-negros a que os caçadores chamam Sete Irmãs?

K’os viu que o rapaz ficara admirado.

Não entendes como é que eu sei uma coisa dessas, uma coisa que só os homens sabem, disse ela. Eu sou a curandeira desta aldeia. Há certas coisas que uma curandeira tem que saber para ter o poder de que necessita para fazer remédios. Não te preocupes. Isto não é um tabu para mim. Eu sou diferente. Pergunta ao teu primo Tikaani. Ele te dirá.

O rapaz concordou, devagar, mas não tirou os olhos do rosto dela.

Eu conheço as Sete Irmãs, disse ele.

Vai lá. Não deves dizer a ninguém onde vais nem porquê. Vai lá, se és corajoso. Depois senta-te e fecha os olhos. Espera, e os espíritos te dirão o que tens a fazer. Leva água contigo, mas não comida. Leva a tua faca e as tuas lanças. Quando saíres da aldeia, se vires alguém e te perguntarem onde vais, limita-te a erguer as lanças e a dizer: ”Vou caçar.”

O meu pai não me deixa ir lá sozinho.

Tu não estás sozinho. Ninguém está sozinho quando vai numa busca como esta. Aliás, o teu pai já sabe que tu vais. Já te deu a sua bênção. Agora parte, sem demora. Pega as tuas armas e parte.

K’os viu o rapaz atravessar a aldeia correndo na direção da cabana da mãe. A mulher estava junto das lareiras da comida. K’os vira-a lá há pouco, e ele não teria problemas com o pai. K’os voltou para a aldeia e passou pela mãe de Mata-Linces. A cabeça escura da mulher inclinava-se para a que estava a seu lado. Ambas taparam a boca com a mão e cochicharam quando K’os retirou uma tigela de carne de uma das panelas.

Assim que K’os chegou à sua cabana, tirou o capuz da parka antes de se abaixar para entrar no túnel; depois levantou-se e sorriu a Come-Fogo. O homem estava deitado, nu, na sua cama. Ela largou a tigela de carne que trouxera das lareiras, riu e disse:

Talvez queiras comer mais tarde.

K’os despiu a parka e as perneiras, descalçou as botas, ajoelhou-se por cima dele, levou-lhe as mãos aos seios e depois largou-se nele.

Vi o teu filho. Disse-me que ia caçar afirmou ela. Uma sombra pairou no olhar de Come-Fogo, mas ela levantou-se e estendeu-se sobre ele.

Eu disse-lhe que não se afastasse, disse ela.

 

Ghaden dispôs os seixos entre as duas linhas que escavara na neve. Mata-Linces passou por ele correndo.

Mata-Linces! chamou Ghaden, mas o rapaz não parou, nem sequer olhou para ele.

O desapontamento de Ghaden deixou-o à beira das lágrimas. Mata-Linces era o único rapaz da aldeia que lhe falava quase sempre, apesar de ter quase idade para ser caçador. Ghaden baixou a cabeça sobre os seus seixos. Esfregou os olhos com os punhos. O que pensaria Mata-Linces se visse Ghaden chorando por uma coisa tão insignificante? Conteve as lágrimas e engoliu-as. Eram como sal na sua boca; faziam-lhe arder a garganta.

Voltou à sua brincadeira. Cada seixo era um caribu. Iam atravessando um rio e em breve cairiam na armadilha dos caçadores. Ele não sabia bem como é que os caçadores apanhavam os caribus, mas os rapazes de Rio Primo estavam sempre falando na caça ao caribu. Aqamdax dizia que, se Homem Noturno ganhasse mais forças, eles próprios iriam caçar caribus, mas Ghaden não acreditava que Homem Noturno estivesse ganhando forças.

Ghaden!

Ghaden olhou para cima. Era Mata-Linces. O rapaz tinha várias lanças na mão esquerda e uma faca de caça embainhada na perna direita, dardos para pássaros e um atirador de dardos na mão direita.

Vou caçar. Foi por isso que não pude ficar brincando. Desculpa.

As suas palavras foram rápidas, pronunciadas como se ele estivesse sem fôlego. Ghaden ajoelhou-se e viu o rapaz atravessar a aldeia correndo até desaparecer no meio das cabanas.

Era um bom lugar aquela aldeia de Rio Primo, pensou Ghaden. Sobretudo desde que Aqamdax fora viver com eles. O velho dos ossos não podia apanhá-los ali. Nem sequer sabia onde eles estavam.

Ghaden olhou para o seu jogo e ficou sem fôlego. Um dardo para pássaros estava no meio dos seixos. Mata-Linces devia tê-lo deixado cair. Se Ghaden se apressasse, talvez ainda o alcançasse antes de ele sair da aldeia.

Levantou-se de um salto e olhou para a cabana. Tinha que avisar Yaa, mas ela estava nas lareiras da comida, assim como Estrela. A velha avó, Olhos Grandes, estava lá dentro com Aqamdax e Homem Noturno, mas ele não queria incomodar o homem. Iria correndo e voltaria à cabana antes de eles darem pela sua falta. Ghaden soltou Mordedor, e o cão foi atrás dele.

 

                   MAR DO NORTE

Apesar de o chigdax o ter protegido da água, Chakliux tinha frio, as mãos enregeladas e os dedos dormentes. Desamarrou um saco de peixe seco que trazia no convés do iqyax e comeu. A comida fortaleceu-o e ele olhou de novo para além do gelo, primeiro para leste e depois para sul. Piscou duas vezes antes de se permitir acreditar no que via. Apesar de o gelo ainda lhe bloquear o caminho, a costa estava perto. Se tivesse paciência, encontraria uma passagem aberta que lhe permitiria puxar o seu iqyax para a praia.

O Inverno dera novas formas às enseadas e às praias, mas Chakliux julgou reconhecer as colinas que ficavam a sul da aldeia dos Caçadores de Morsas. Não demoraria a regressar à aldeia de Rio Próximo.

 

                   ALDEIA DE RIO PRIMO

Mordedor! Seu cão sapeca!

Ghaden atravessara a aldeia correndo, com Mordedor atrás, mas ao passarem pela última cabana, ignorando a risada das filhas de Mergulhão, uma lebre atravessara-se no caminho. Mordedor saltou sobre ela, desaparecendo no meio da vegetação, antes de Ghaden poder reagir.

O rapaz, que seguia o cão a uma pequena distância, chamou-o, mas Mordedor não se virou. Por fim, Ghaden voltou ao caminho, para diversão das filhas de Mergulhão. Mostrou-lhes o dardo de caça de Mata-Linces e perguntou se elas o tinham visto. A mais nova disse que ele fora para norte da aldeia e desaparecera na floresta de abetos precisamente antes de Ghaden e Mordedor chegarem. A menina continuava rindo.

Ghaden desceu o caminho correndo, na direção dos abetos sombrios. Ele e Aqamdax tinham atravessado uma série de florestas quando vinham da aldeia de Rio Próximo, mas que eram essencialmente de salgueiros e de bétulas sem folhas, a vegetação rasteira que crescia à beira do rio.

Ali era diferente. As árvores eram tão grandes que não deixavam passar a luz. O solo estava esponjoso com a neve derretendo-se, e ele sentia o estalar das agulhas dos abetos debaixo dos pés. Até onde devia ir? Olhava constantemente para trás. Por fim, o caminho resumia-se a uma pequena claridade na escuridão das árvores.

Pôs-se à escuta, na esperança de ouvir Mata-Linces andando, mas o único som que ouviu foi o do vento balançando os ramos dos abetos, as vozes das árvores falando baixinho, como velhas costurando em volta de uma lareira de inverno.

Era melhor voltar. Nunca encontraria Mata-Linces e, além disso, Mordedor podia apanhar aquela lebre e levá-la para a cabana. Gostaria de lá estar quando o cão fizesse uma coisa dessas. Afinal, Mordedor era o seu cão e, quando ele levava carne, Estrela mostrava-se sempre um pouco mais simpática, não tão pronta a fazer as coisas mesquinhas que estragavam os dias de Ghaden, dar beliscões, rasteiras, dizer palavras desagradáveis sobre coisas que Ghaden não entendia e, o pior de tudo, dar-lhe pancadas rápidas e fortes com um pau de salgueiro no rosto e nas mãos, uma coisa que ela também fazia a Yaa, apesar de Yaa ser mais capaz de conter as lágrimas do que ele.

Essas coisas não aconteciam quando Aqamdax se encontrava na cabana, mas ela não podia estar lá sempre e, evidentemente, havia aqueles períodos que ela tinha que passar na cabana das mulheres, cinco longos dias de maus tratos de Estrela e de várias mulheres que iam ajudar a tratar de Homem Noturno. Às vezes, até aparecia K’os, aquela mulher alta e estranha. Quando Ghaden a via, tentava sempre esconder-se.

Ele sabia que ela era boa, apesar de não ter aspecto de boa pessoa. Trazia remédios para Homem Noturno. Também tinha remédios para Estrela. Depois de Estrela tomar os remédios de K’os, ficava calada e sorria muito, embora se esquecesse de dar comida a Ghaden quando estava assim, e depois dormia durante muito tempo.

Ghaden deu meia volta e começou a descer o caminho, andou um pouco e parou. Se as filhas de Mergulhão ainda estivessem lá, perceberiam que ele não fora muito longe. Talvez fosse melhor ele sentar-se e ficar esperando. Talvez Mata-Linces voltasse por ali ou Mordedor descobrisse Ghaden pelo faro se ele estivesse quieto e deixasse que o seu cheiro ficasse no mesmo local durante algum tempo.

Ghaden agachou-se. Imaginou como seria ser crescido para ir caçar como Mata-Linces, ter as suas próprias lanças e dardos para pássaros e uma faca de caça. Começava a doer-lhe a perna direita. Ele e Mordedor tinham lutado na véspera e Mordedor saltara por cima dele, fazendo-lhe duas nódoas negras na coxa. Ghaden levantou-se, esticou a perna e depois viu uma árvore com um ramo largo e baixo. Subiu para o ramo e encostou-se ao tronco. Fechou os olhos. Ainda estava muito frio para aparecerem mosquitos e moscas, e o solo ainda não estava ensopado com a água do degelo. Era uma boa época do ano.

Na lua anterior, tinham passado uma certa fome, mas ninguém estava morrendo, e talvez Mordedor apanhasse aquela lebre. Se assim fosse, teriam carne fresca no guisado... E na Primavera iriam à caça do caribu. Seria bom. Depois, comeriam até ficarem com a barriga quase rebentando. Fora o que Mata-Linces lhe dissera. Comeriam, comeriam, e não teriam fome durante muito, muito tempo...

 

O estalar de um ramo acordou-o. Ghaden esfregou os olhos e abanou a cabeça. Onde estava? Por instantes, teve medo, mas depois lembrou-se de que seguira Mata-Linces até a floresta. Tinha o dardo para pássaros em cima do estômago. Pegou-o e olhou para o ponto de luz que assinalava o caminho para a aldeia. Estava escurecendo. Yaa devia estar preocupada. Desceu da árvore, abriu caminho entre os ramos mais baixos e depois ouviu outro estalo.

Ouviu o som outra vez e depois um grito rápido e abafado. Seria Mata-Linces? Olhou para o dardo que tinha na mão. Era a única arma que possuía. Que disparate ter ido para a floresta só com um dardo para pássaros. E se algum animal os perseguisse? De que servia um dardo para pássaros? Voltou a enfiar-se nos ramos do abeto, na esperança de que o cheiro intenso da árvore disfarçasse o seu.

Ouviu passos e susteve a respiração. Esforçou-se por ver através dos ramos, mas estes eram tão grossos que Ghaden distinguiu apenas uma mancha de pêlo escuro. Depois percebeu que não era um animal, mas uma pessoa. Mata-Linces... Não... Uma mulher.

A parka tinha riscas brancas nos ombros e caudas fulvas de raposa penduradas nas costas. Era K’os, a curandeira. Levava um cesto enfiado no braço. Ghaden suspirou de alívio e saiu do seu refúgio na árvore. Abriu a boca para a chamar mas, com a pressa, deixou cair o dardo de Mata-Linces. Era difícil ver na escuridão, debaixo dos ramos do abeto. Apalpou o chão às pressas, mas levou muito tempo para encontrar o dardo. Conseguiu sair do meio dos ramos e viu que K’os ia saindo da floresta.

Pelo menos, tinha o dardo. Além disso, não precisava que uma velha o levasse para a aldeia. Já tinha quase idade para ser caçador.

 

Os gritos fúnebres atravessaram o céu escuro e silencioso. Estrela foi a primeira a sair da sua cabana; Yaa e Aqamdax vinham atrás dela. Até Olhos Grandes foi para fora e levantou a voz. Ghaden esfregou os olhos sonolentos e olhou para Homem Noturno. Ele devia ter morrido. Ghaden sentiu-se triste por Aqamdax e assustado com as mulheres que correriam à cabana deles. O empurrariam para um canto, xingariam Mordedor e contariam desagradáveis histórias de mortos.

Mordedor tocou em Ghaden com o nariz, tentando tirá-lo do meio dos cobertores. Na véspera, o cão voltara antes de Ghaden, com uma lebre na boca. Devia ter andado de cabana em cabana, à procura de Ghaden. O rapaz não ouvira os elogios que as mulheres da aldeia tinham tecido ao cão, mas pelo menos conseguira saborear a carne fresca no guisado e o belo caldo que tornara o peixe do ano anterior quase saboroso. Mas agora Homem Noturno...

Ghaden olhou para a cama de Homem Noturno e pestanejou para que o espírito do homem não o visse. Depois, Homem Noturno gemeu, mexeu-se e voltou a gemer. Ghaden saltou da cama. Só com a tanga em cima do corpo, correu lá para fora e pegou na mão de Yaa.

Ele está vivo, Yaa. Entra. Ele não morreu. Eu o vi mexer-se.

Quem? perguntou Yaa, olhando para ele e fazendo uma careta.

Homem Noturno.

Homem Noturno não morreu.

Eu sei. Eu vi-o mexer-se. Ele... Não morreu?

Não.

Quem é que morreu?

Ghaden viu as lágrimas nos olhos de Yaa. De repente, assustou-se.

Quem é que morreu, Yaa?

Ela inclinou-se e segredou o nome ao ouvido de Ghaden para o espírito do morto não ouvir nem pensar que eles falavam por desrespeito.

Mata-Linces murmurou ela.

Ghaden sorriu. Era uma brincadeira. Ela estava enganando-o. Às vezes, Yaa brincava com ele, dizia-lhes coisas que não eram verdade. Às vezes, ela fazia isso.

Não, disse Ghaden.

Ela fez um sinal afirmativo e ele viu-lhe os olhos marejados de lágrimas.

Não, insistiu Ghaden outra vez. Eu tenho o dardo para pássaros dele. Tenho que lhe entregar.

Aqamdax abraçou-o.

Tenho muita pena, irmãozinho disse ela em voz baixa.

Então Ghaden percebeu que era verdade.

Ontem ele foi caçar. Eu o vi informou Ghaden. O vi ir. Ele deixou cair um dardo para pássaros. Eu fui atrás dele, para lho dar, mas não consegui encontrá-lo.

Ghaden sentiu um calafrio na espinha. Ele fora atrás de Mata-Linces. O rapaz fora apanhado por algum animal?

Foi um urso? perguntou Ghaden. Aqamdax encostou-se mais a ele.

Dizem que foi uma lança, uma lança de Rio Próximo. Então o medo surgiu outra vez e engoliu Ghaden como um lobo engolia carne. Eles eram de Rio Próximo, ele e Yaa. Julgariam os velhos que tinham sido eles?

Quem é que o encontrou? perguntou Estrela a um dos homens que ia passando pela cabana.

K’os, respondeu o caçador, apertando o passo na direção da cabana dos caçadores. Ela foi colher plantas esta manhã, gritou ele por cima do ombro. Ela encontrou-o na floresta de abetos, perto da aldeia. A lança estava espetada no coração.

K’os, pensou Ghaden. Ela fora apanhar plantas na véspera... N floresta de abetos. Fora uma sorte o povo de Rio Próximo não apanhá-la também.

Nessa noite, Tikaani foi se encontrar com K’os. Ela não o recebeu na sua cama. Porquê receber um homem que a ignorara durante quase todo o Inverno? Porquê fingir que não estava zangada?

Tikaani entrou na cabana dela. K’os já não se lembrava como ele era grande e forte e, de repente, embora só por um momento, sentiu que os anos lhe dobravam a espinha, sentiu o seu peso nos ombros. Mas levantou a cabeça, endireitou-se e sentiu que o seu próprio poder se dirigia a ele e o moldava, transformando-o no jovem que ela recordava, impetuoso e às vezes imprudente.

Lamento o que aconteceu ao teu priminho, disse K’os.

Ele semicerrou os olhos, como se tentasse ver além das palavras dela. K’os virou-lhe as costas e sentou-se, pegou uma parka que estava a costurando e levantou-a para ele ver as finas riscas de pêlo de caribu que formavam um desenho multicor nos ombros, nos punhos e no topo do capuz. No passado, não havia muito tempo, ela teria feito uma parka para ele. Aquela era para Espreita-o-Céu, um homem mais novo do que Tikaani, mas que prometia ser um grande caçador e um guerreiro hábil. Ela viu Tikaani olhando para a parka e percebeu que ele reparara nos símbolos sagrados que ela bordara: a asa escura e pontiaguda que era o corvo, os círculos que eram o Sol e as linhas que representavam os animais apanhados. Qual o homem que não gostaria de ter uma coisa daquelas, de ter o poder que ela dava a quem a vestia?

Esta é para Espreita-o-Céu disse ela, disfarçando um sorriso ao ver o ar carrancudo de Tikaani.

Tikaani agachou-se do outro lado da lareira, na frente dela.

Eles vão lutar, afirmou ele em voz alta e num tom ríspido. Eles concluíram que os arcos são vantajosos.

Ela tentou manter-se impassível, não dar sinais de alegria, mas não conseguiu. Sorriu.

Quando? perguntou ela.

Agora, antes do degelo do rio, antes de partirem para a caça ao caribu. Antes das nossas caçadas.

Têm algum plano? perguntou K’os.

Era muito freqüente os homens daquela aldeia fazerem coisas sem pensar, sem decidirem como deviam agir. Muitas vezes, cada um seguia as suas próprias idéias, julgando que todos os outros pensavam como ele. Muitas vezes, eles guardavam as palavras para si próprios até ser tarde demais para fazer qualquer coisa, exceto para sobreviver. Ela dissera-o muitas vezes a Tikaani ao longo dos anos. Desde que ele era pouco mais do que uma criança que ela lhe dissera que as caçadas e as lutas corriam melhor quando se faziam planos, quando as idéias eram partilhadas com sabedoria e sem lutas pelo poder ou pela honra.

Nós temos um plano. Tu ensinaste-me bem, disse ele.

Desta vez, ela não tentou esconder o sorriso, mas levantou a parka que tinha no colo.

Podia ser para ti. Posso fazer outra para Espreita-o-Céu.

A mulher levantou a saia de pele de caribu que trazia vestida e abriu as pernas. Ele abanou a cabeça.

O único presente que eu quero é para o meu irmão declarou ele, olhando-a fixamente. Ela sentiu a fúria, o ódio dele. A minha esperança é que, um dia, o meu irmão recupere as forças.

Tikaani saiu da cabana. K’os cerrou os dentes. Sim, ela ensinara-o bem. Muito bem. Como podia ela controlá-lo se não conseguisse atraí-lo de novo para a sua cama?

Ficou sentada durante muito tempo, quase até o fogo da lareira se apagar e o frio da noite se infiltrar na sua cabana. De repente, atirou a cabeça para trás e deu uma gargalhada, espevitou o lume e pegou na sua bolsa dos remédios. Tikaani julgava que era um homem mas ainda era uma criança. Um menino com um brinquedo novo. Que disparate ela não ter percebido isso!

 

                   ALDEIA DE RIO PRÓXIMO

As crianças mais pequenas chegaram primeiro, aos gritos, assustadas. Estava aproximando-se algo terrível, diziam elas, chorando pelas mães. Era um gigante, enorme, com uma cabeça tão grande que chocava com as árvores quando se virava, diziam elas. Apontaram para a floresta, para o caminho que acompanhava o rio.

Sok ignorou-as e esperou pelos rapazes mais velhos, entre os quais vinha o filho, Leva-Muito.

Também eles vinham ofegantes, mas disseram aos homens que era um caçador com alguma coisa na cabeça.

Um iqyax. Como o do meu tio, disse Leva-Muito.

Talvez fosse um comerciante, pensou Sok, mas era mais provável que fosse Chakliux, que regressava finalmente, depois de ter ido procurar aquela inútil da Aqamdax. Regressava sozinho, evidentemente.

Chakliux era imprudente ao levar o iqyax para a aldeia. Quem sabia como poderiam reagir os velhos? Diriam que ele quebrava os tabus do Povo Rio? E se os rapazes novos não se mostrassem respeitadores? E se as mulheres julgassem que podiam tocar no iqyax, usá-lo como usavam as suas jangadas? Era melhor preparar primeiro as pessoas com histórias e depois, no fim do Verão, mostrar-lhes o iqyax, ensinar os homens a construí-los e lembrar às mulheres e às crianças que aqueles barcos tinham de ser tratados com respeito.

Sok viu o homem a sair da floresta, reparou que ele coxeava e percebeu que se tratava do irmão. Correu ao encontro dele e tirou-lhe o iqyax dos ombros. O revestimento do iqyax estava muito gasto e Sok percebeu que Chakliux passara longos dias no mar do Norte. Reparou nas botas do irmão, agora esfarrapadas e com manchas escuras de sangue, e concluiu que o irmão fizera uma longa caminhada. Sok levou o iqyax para um dos estrados de seca que tinham sobrevivido ao Inverno, virou-o de barriga para baixo e recomendou às mulheres e às crianças que não tocassem nele. Depois, ficou ali para afastar as mãos dos mais pequenos. Chakliux aproximou-se dele, desapertou o fardo e o pôs no chão. Sok, ao ver o olhar do irmão, não perguntou por Aqamdax.

Reuniram-se na cabana de Folha Vermelha. Até Neve-no-Cabelo viera, com o filho de Sok na barriga. Chakliux quis perguntar para quando esperavam o nascimento da criança, mas não era uma coisa que um caçador perguntasse a outro. Se Aqamdax ali estivesse, ele perguntava-lhe, mas não queria fazer a pergunta a Folha Vermelha. Embora ela sorrisse e se mostrasse cordial com Chakliux, e meiga com os filhos de Sok, ficava rígida e fazia uma careta quando tinha que falar com Neve-no-Cabelo.

A mulher dos Caçadores Marinhos não voltou a esta aldeia, disse Sok. Todos sabem que ela morreu. Chakliux não conseguiu encontrar palavras para responder ao irmão. Talvez Sok tivesse razão e, se ela não tivesse morrido, era porque partira de livre vontade e não levada pelos Caçadores de Morsas sedentos de vingança ou por algum caçador dos Primeiros Homens que a queria como esposa. Deveria deixá-la ir, pensou ele. Há outras mulheres. Julgavas que nunca encontrarias nenhuma que se comparasse a Gguzaakk, e no entanto Aqamdax conquistou um lugar no teu coração. Chakliux pensara o mesmo a cada passo quando atravessara o rio gelado que o levava à aldeia do irmão. Fora buscar recordações dela e deixara-as espalhadas atrás de si, nos ramos das árvores e nas ervas espalmadas pelo Inverno. Nessa noite, deitado na cabana de Folha Vermelha, nas peles macias e nas esteiras limpas, Chakliux não pensou em Aqamdax, não levou a imagem dela para os seus sonhos,

mas, quando o sono estava prestes a engoli-lo, ouviu a voz de Folha Vermelha, que estava deitada com Sok.

Então, talvez a filha pequena de Boca Feliz tenha falado a verdade antes de desaparecer. Talvez dois velhos de Rio Primo tenham levado Aqamdax e o rapaz.

Na manhã seguinte, depois de comer, Chakliux foi à cabana de Ligige’. Ela mandou-o entrar e recebeu-o como se ele fosse uma criança.

Ficas aí, com a boca vazia de boas palavras, quando viajaste tanto? Ficas aí sem uma saudação para uma velha cujas preces te acompanharam?

Ele sentou-se numa almofada de pele que ela lhe arranjou, e esperou em silêncio que ela enchesse as tigelas e lhe oferecesse água e caldo de peixe. Ele aceitou o caldo, bebeu-o e disse:

Tia, senti a falta da tua sabedoria.

Era uma frase amável que ele aprendera quando vivia com os Primeiros Homens.

Ela esboçou um sorriso. Ele viu-lhe o rosto a tremer e percebeu que ela ficara satisfeita.

Então voltaste para nós com óleo na língua disse ela. As tuas palavras brilham como os cabelos de uma mulher nova.

Ele riu e ela o seguiu. Em seguida, perguntou:

Foste aos Primeiros Homens? Encontraste a mulher dos Caçadores Marinhos?

Chakliux abanou a cabeça.

Não a encontrei mas, sim, fui falar com o povo dela. Foi um bom Inverno. Aprendi muito. Eles são sábios. Sobretudo as mulheres.

E dirás aos nossos caçadores que os homens é que eram sábios?

Talvez, e não seria mentira, nem eu te menti, respondeu ele.

Então porque vieste à minha cabana? Com certeza Folha Vermelha tinha comida melhor e um fogo mais quente.

Tenho uma pergunta a fazer acerca da filha de Boca Feliz disse Chakliux.

Ninguém a encontrou informou Ligige’.

Eles acham que ela morreu?

Lobo-e-Corvo acha, e os velhos.

E tu?

Ligige’ levantou a sobrancelha e depois bebeu um bom gole da tigela de caldo que tinha nas mãos. Largou-a e perguntou:

Ouviste a história da menina a respeito dos dois velhos?

Sim. Achas que ela disse a verdade?

Acho que ela disse o que julgava ser a verdade. Tu falaste com ela antes de partires, no Outono passado. O que te disse ela sobre os que a tinham atacado?

Que eram velhos e que um deles usava um colar de dentes de leão-marinho.

Não te disse nada da aldeia de Rio Primo?

Nada.

Boca Feliz diz que ela garantiu que eles eram da aldeia de Rio Primo.

Ela tinha um motivo para pensar tal coisa? Ligige’ apontou para os pés.

As botas deles.

Bebeu outro gole da tigela e, quando acabou, Chakliux perguntou-lhe:

Alguém foi à procura dela?

Alguns caçadores. Encontraram pegadas de lobo, restos de ossos, e concluíram que ela tinha morrido.

Acredito que aqueles de quem a menina falou fossem Morsas, disse Chakliux, encostando uma mão ao peito. Por causa do colar. Como não os encontrei na aldeia dos Caçadores de Morsas, segui viagem no meu iqyax e fui ao encontro dos Caçadores Marinhos, na esperança de que o povo da mulher a tivesse levado. Quando cheguei aqui, Folha Vermelha disse que a menina fora embora, que desaparecera, como a mulher dos Caçadores Marinhos e o irmão.

Então agora o que vais fazer?

Vou à minha aldeia. Se os encontrar, trago-os para cá.

Arriscas-te a encontrar-te com aqueles caçadores que tentaram matar-te?

Eu irei sem fazer barulho. Verei sem ser visto. Ligige’ passou uma mão pelo rosto, como se afastasse a fumaça, e disse:

Há mais uma coisa da qual quero te falar, que preciso de te mostrar.

A velha entrou no túnel e trouxe um cesto de pele de peixe. Meteu a mão lá dentro, tirou uma bola de gordura e deixou-a cair na mão de Chakliux.

 

                   ALDEIA DE RIO PRIMO

Era o segundo dia de lua nova. Aqamdax foi lá fora, olhou o céu e gozou o sol revigorante. Pôs uma mão na barriga e sentiu o calor do corpo através do pelo da parka.

Da cabana dos caçadores vinha o som dos tambores e dos cânticos. Aqamdax ouvira as mulheres cochichando nas lareiras. A lança encontrada no peito de Mata-Linces tinha as marcas do povo de Rio Próximo uma risca negra encimada por um círculo branco e agora que tinham acabado os dias de luto, haveria vingança. Alguém iria morrer pelo rapaz que fora assassinado.

Ela não podia deixar de pensar em quem poderia ser. Talvez fosse um rapaz que tivesse se juntado ao círculo de histórias na sua cabana de Rio Próximo. Um jovem que nunca fosse caçador, que nunca conhecesse a alegria de dormir com a mulher nem de ver os filhos crescer e ganhar forças. Mas quem era ela para protestar? Algum caçador estúpido, talvez um jovem que ainda não fosse suficientemente sábio para ver além do momento que estava vivendo e que tirara a vida a um rapaz de Rio Primo, de um jovem promissor. Que outra coisa poderiam fazer os caçadores senão pagar na mesma moeda?

Voltou para a cabana. Homem Noturno mexia-se e remexia-se na cama. Nessa manhã, no meio da vozearia dos cânticos, K’os levara-lhe um novo remédio e até fora chamar Tikaani, o irmão de Homem Noturno, à cabana dos caçadores para ele ver o resultado. Aqamdax agachara-se em silêncio ao canto, junto da mãe do marido, pegara as mãos frias e imóveis da velha e esperara que K’os saísse da cabana.

Pensara que Tikaani iria atrás de K’os, como fazia a maioria dos homens da aldeia, mas ele não fora. Ficara à espera com Aqamdax, vira-a esticar a cama do marido, dar-lhe papas de aveia a comer, penteá-lo e esfregar-lhe o rosto. Depois, Tikaani também saíra e Aqamdax conseguira convencer Olhos Grandes a levantar-se. Apoiara-a quando ela se dirigia, com passos pequenos e arrastados, para a latrina das mulheres a fim de fazer as suas necessidades, e depois trouxera-a de novo para a cabana. Deu-lhe comida e, apesar de ter que lembrar à velha que comesse de vez em quando, Olhos Grandes engoliu tudo e levantou a tigela, pedindo mais uma porção.

Durante todo esse tempo, Aqamdax separara os pensamentos das esperanças, mas agora permitia-se refletir no peso que trazia no ventre, e sabia que estava gerando o filho de Homem Noturno.

Agachou-se ao lado do marido e chamou-o em voz baixa. Ele abriu os olhos, mas estes estavam turvos, como se ele não visse nada, como se o seu corpo vivesse sem o espírito. Ela ajeitou-lhe o espaldar até lhe parecer que o marido estava confortável e depois pôs-lhe as mãos nas virilhas para apalpar a almofada de musgo que lhe aparava a urina. Estava seca. Aqamdax levantou-se, tirou um estômago de caribu cheio de água de um dos postes da cabana, ajoelhou-se ao lado dele e deu-lhe bebida. Por fim, ele virou a cabeça para o outro lado. Aqamdax pôs de novo a tampa de marfim no gargalo do recipiente, voltou a pendurá-lo e sentou-se outra vez ao lado do marido.

Em geral, ficava junto dele, a costurando ou tecendo, suficientemente perto para encostar a perna à sua coxa. Falava muitas vezes com ele, apesar dos olhares gozadores de Estrela, mas naquele momento estava apenas observando-o, esperando algum sinal de que ele soubesse que ela estava ali. Fechou-lhe a mão e julgou senti-lo apertando os dedos. Inclinou-se e disse-lhe ao ouvido:

Marido, meu marido, trago o teu filho no meu ventre. Pegou-lhe a mão esquerda com as suas e pousou-a na barriga. Um filho.

Ela vira o mais pequeno lampejo de compreensão nos olhos dele? Talvez o filho, à medida que se tornava maior e mais forte, tivesse o poder de obrigar o espírito do pai a voltar e de o devolver ao corpo de Homem Noturno.

 

                     ALDEIA DE RIO PRÓXIMO

Já viste uma coisa destas? perguntou Ligige’, voltando a pôr a bola de gordura no cesto.

Por instantes, Chakliux não disse nada. Havia algo no fundo das suas recordações. Uma história que ele ouvira contar...

O povo de Tundra do Norte usa-as para matar lobos, respondeu ele por fim.

Elas são venenosas, disse então Ligige’, mas algo nas suas palavras deu a entender a Chakliux que ela sabia que não eram.

Chakliux desembainhou a faca que trazia no punho e abriu a bola com um corte, estendendo a mão por precaução quando Ligige’ se aproximou demais.

Protege os olhos disse ele, virando a cara para o lado.

Ele não precisava se preocupar. O rolo de marfim afiado endireitou-se lentamente na sua mão.

Isto fura o estômago do lobo depois de a gordura se derreter com o calor do corpo do animal. Em geral, eles morrem, apesar de um caçador de Tundra do Norte ter me contado que encontrou um lobo com uma na barriga, que ficou enrolada.

Como é que isso pôde acontecer? Chakliux encolheu os ombros.

Não sei, mas ele trazia-a como se fosse um objeto sagrado na sua bolsa de amuletos, e os outros caçadores diziam que ele tinha sempre boa sorte na caça aos lobos.

Ligige’ rosnou:

O povo de Tundra do Norte diz-te sempre alguma coisa. Eles não são bem humanos, como sabes.

Ligige’, eles são muito parecidos conosco afirmou Chakliux em voz baixa.

Ela franziu a sobrancelha e Chakliux perguntou:

Onde encontraste isto?

No estômago de um cão.

Os de Rio Próximo usam isto para matar lobos? perguntou Chakliux, dando-lhe a tira de marfim.

Não.

Ligige’, há quanto tempo começaram a morrer cães nesta aldeia? Cães saudáveis, não cachorros nem cães velhos.

Desde que tu chegaste respondeu ela.

Nenhum morreu antes de eu chegar?

Talvez alguns cães velhos. E sempre alguns filhotes. Nada em que as pessoas reparassem.

E no Inverno passado, quantos morreram?

Quatro mãos-cheias, talvez mais. Cães adultos. Nem velhos nem doentes.

E filhotes?

Sim, alguns. Quase todos pertenciam aos velhos.

Eram doentes ou deformados?

Dois nasceram sem o maxilar inferior. Isso foi antes. Com a cadela escura de Faz-Tendas. Alguns dos filhotes dela são assim.

E os outros? Eram doentes?

Não sei. Devias falar com Treina-Cães. Ele sabe essas coisas.

Chakliux suspirou. Tinha que partir, de iniciar a sua viagem à aldeia de Rio Primo, mas aquilo também era importante. Se Aqamdax e Ghaden tivessem sido levados para a aldeia de Rio Primo, tinham passado lá o Inverno. Que importância tinha mais um dia?

Vou falar com Treina-Cães afirmou Chakliux. Quantas dessas bolas estavam no estômago do cão?

Uma mão-cheia ou mais. Quatro ainda enroladas.

Guardaste-as?

Guardei.

Tens gordura suficiente para fazer as bolas outra vez? Ela encolheu os ombros.

A despensa de uma velha não tem muita gordura no fim de um Inverno longo.

Eu trago-te gordura.

Isso seria bom disse ela, lambendo-se.

Mais alguém sabe como é que o cão morreu?

Só Pato-de-Cabeça-Azul.

Por agora, não digas a mais ninguém.

Ninguém saberá, prometeu ela. Chakliux saiu da cabana de Ligige’ e dirigiu-se para a cabana dos velhos. Raspou à entrada e gritou. Depois, ficou esperando que alguém o mandasse entrar.

Ouviu-se a voz de Pato-de-Cabeça-Azul e depois a de Treina-Cães. Eram os únicos que estavam lá, e ambos resmungando porque as mulheres não tinham voltado a encher-lhes o saco da comida. Lançaram um olhar circunspeto a Chakliux. Ele era novo demais para ir à cabana só para conversar ou contar histórias, pelo menos sem ser convidado. Por que outro motivo iam os jovens lá senão para pedir favores?

Preciso de falar com vocês a respeito dos cães, disse Chakliux, que foi olhado com desagrado.

Chakliux lembrou-se que devia ter falado de outras coisas. Qual o homem que é indelicado ao ponto de esquecer os elogios e a honra devidos a um velho?

Ambos são dotados de sabedoria proferiu ele, na esperança de que o elogio os levasse a ignorar a sua indelicadeza. Nesta aldeia e mesmo naquela em que fui criado, as pessoas conhecem os vossos nomes. Considero que é uma honra pedir conselho a homens que são mais sabedores do que eu.

Os dois velhos endireitaram os ombros, e Chakliux percebeu que pronunciara finalmente as palavras certas. As perguntas acumulavam-se na sua boca de tal modo que ele mal conseguia respirar, mas esperou que Pato-de-Cabeça-Azul dissesse:

Se precisas de conselhos sobre cães, deves falar com Treina-Cães. Ele sabe muito mais do que eu, mas eu ajudo-te se puder.

Treina-Cães inclinou a cabeça e Chakliux perguntou:

Perdeste alguns cães neste Inverno?

Nenhum, respondeu Treina Cães.

E tu? perguntou Chakliux a Pato-de-Cabeça-Azul.

Três cães saudáveis e quatro filhotes.

Não estavam doentes?

Só no momento de morrer. Ganiam, mordiam a barriga e cuspiam sangue. Alguns dias depois, morreram.

E os filhotes também?

Não, encontrei-os mortos de manhã. Os quatro.

Um cachorro pode morrer de muitas maneiras, disse Treina-Cães.

E houve outros cães adultos da aldeia que morreram depois de cuspirem sangue? perguntou Chakliux.

Sim, respondeu Treina-Cães. Mais de duas mãos-cheias, e outros no Inverno passado. Como sabes, a maior parte dos cães do teu irmão morreu o ano passado. Ele disse-te que só um dos cães do teu avô é que ainda está vivo?

Não, respondeu Chakliux, sentindo um súbito remorso por não ter ficado na aldeia tratando dos cães que o avô lhe confiara. Qual deles é que está vivo?

A fêmea.

Nariz Preto disse ele, com um aceno de cabeça. Dos três, ela era a mais forte. Chakliux passaria a vigiá-la melhor. Se oferecesse carne ou óleo a Ligige’, talvez ela deixasse a cadela ficar no túnel da entrada da sua cabana.

Morreram alguns no Verão? perguntou Chakliux.

Nós não perdemos nenhum, exceto um filhote de vez em quando ou um cão velho.

Mas esses cães que morreram da maneira que vocês me contaram... Isso só aconteceu no Inverno? perguntou Chakliux.

Sim. Pato-de-Cabeça-Azul olhou para ele.

Alguns caçadores estão convencidos de que tu amaldiçoaste os nossos cães. Mas, neste último Inverno, tu não estavas aqui e os cães continuaram morrendo. Talvez não sejas tu.

Talvez não, repetiu Chakliux em voz baixa.

 

                   ALDEIA DE RIO PRIMO

Cen viu a fina camada de fumaça no céu e percebeu que estava aproximando-se da aldeia. O Inverno fora muito bom para os negócios. Apesar de ter começado com pouco, conseguira acumular muito. Antevia o brilho no olhar de K’os quando ela visse a pele de urso-branco que ele conseguira comprar de um velho de uma aldeia no Grande Rio.

O seu fardo era pesado, mas Cen apertou o passo e pouco depois foi recebido pelos gritos das crianças nos limites da aldeia. Elas lembravam-se do seu nome, e era bom ter um lugar que ele pudesse considerar como sua casa. Atrás do grupo, avistou Ghaden. Pousou o fardo, abriu os braços e chamou-o pelo nome.

A princípio, Ghaden ficou envergonhado, mas as outras crianças empurraram-no para a frente até que Cen conseguiu pegar-lhe no colo e levantá-lo à altura dos olhos. Cen riu o pôs no chão e viu o rapaz esboçar um sorriso.

Cresceste! exclamou Cen com uma voz sonora e rouca, como acontecia sempre que pronunciava as primeiras palavras depois de longos dias de caminho. Vem aqui, disse ele.

Pegou o fardo e tirou uma mão-cheia de apitos de madeira feitos de ramos de salgueiro. Pôs um na boca e apitou, rindo dos guinchos das crianças.

Não tenho que cheguem para todos, mas se vocês os mostrarem aos vossos tios eles fazem apitos para todos disse ele.

Deu um a Ghaden e atirou os outros ao grupo de crianças, rindo quando elas se puseram de quatro para apanhá-los. Pouco depois, as crianças corriam para casa com os seus tesouros.

Vai mostrar à tua irmã, disse ele a Ghaden, dando uma palmada no ombro ao rapaz.

Ghaden crescera. Tinha a constituição física robusta dos Primeiros Homens, que já se notava na largura dos ombros. Os velhos podiam tê-lo oferecido a Estrela, mas não impediriam Cen de levar o rapaz quando este tivesse idade para viajar como comerciante.

Além disso, o fato de Ghaden estar na cabana de Estrela não era de todo mau. Dava tempo a Cen para ficar sozinho com K’os.

Atravessou a aldeia a passos largos na direção da cabana de K’os, largou o fardo à porta e desatou a pele de urso. Era pesada e dura, mas ele conseguira enrolá-la e atá-la do lado esquerdo do fardo. Puxou o fardo para o túnel de entrada, pegou a pele de urso e entrou na cabana de quatro.

Na penumbra, ouviu os gemidos ainda antes de vê-los. O rapaz, Espreita-o-Céu, estava por cima, com o corpo nu e viscoso de suor. K’os, também nua e contorcendo-se, estava debaixo dele.

Era uma mulher que tinha muitos homens, ele sabia isso. Não deitara ele com outras mulheres durante a viagem? Não devia esperar um comportamento diferente da parte dela, mas ao vê-los fora como se lhe tivessem espetado uma faca na barriga. Não era Daes com um pobre e velho caçador, um homem bondoso e capaz de criar Ghaden como se fosse seu filho, um homem que não se podia comparar a Cen. Espreita-o-Céu era jovem e já um bom caçador.

K’os sorriu, afastou o rapaz do seu ventre e foi falar com Cen, de mãos abertas.

Ele ia tocando nela, mas depois, como se fosse outro homem ditando os seus atos, virou-lhe as costas e saiu da cabana, arrastando o fardo e com a pele de urso ainda nos braços.

 

                   ALDEIA DE RIO PRÓXIMO

Dizes aos outros, então? perguntou Chakliux a Pato-de-Cabeça-Azul.

Esta noite, à porta da cabana dos velhos. Eu aviso-os respondeu Pato-de-Cabeça-Azul.

Chakliux fez um gesto de concordância e, depois de uma troca de palavras delicada, saiu da cabana dos velhos e foi à despensa que partilhava com Sok. Tirou um fardo de gordura de caribu endurecida. Era preciosa, sobretudo naquela época do ano, e não lhe pertencia verdadeiramente, mas ele oferecera a Sok vários estômagos de foca cheios de óleo. Com certeza valiam mais do que um fardo de gordura de caribu. Levou a gordura para a cabana de Ligige’, raspou e esperou que ela gritasse.

A velha pareceu-lhe distraída e irritada com a interrupção, mas ele entrou mesmo assim. Quando ela viu que era ele, sorriu.

Achei que era Tece-Folhas. Aquela velha vem todos os dias servir-se da minha comida e encher-me os ouvidos com os seus disparates.

Chakliux largou o fardo no chão ao lado dela, e Ligige’ sorriu-lhe, mostrando os dentes gastos quase até às grandes gengivas rosadas.

Que bom, disse ela. Eu só tinha gordura suficiente para fazer duas bolas. Não é fácil, sabes? A primeira demorou muito tempo. Não está frio suficiente para endurecer as bolas, e portanto a gordura não mantém o marfim enrolado.

Como é que conseguiste? perguntou Chakliux. Ela estendeu-lhe uma bola de gordura, e ele viu que ela estava enrolada em vários locais com tiras finas de tendão.

Esta noite, quando o tempo esfriar, elas congelam, e depois podes tirar o tendão. De súbito, apertou os olhos e olhou para ele. Não deixes que os teus cães as comam, disse ela.

Não as darei aos cães de ninguém, prometeu ele.

Se as puseres lá fora para os lobos, algum cão pode apanhá-las.

Nem sequer as darei aos lobos. Chakliux agachou-se e olhou-a bem de frente.

Tu sabias o que isto queria dizer quando encontraste a primeira tira de marfim no estômago daquele cão.

Eu sabia, disse ela baixinho.

Não é uma maldição. Não é uma doença, insistiu Chakliux.

Alguém anda matando os nossos cães disse Ligige’.

Sabes quem é? perguntou Chakliux.

Ela olhou-o de novo, e Chakliux ficou admirado ao ver-lhe os olhos marejados de lágrimas.

Sei, respondeu ela em voz baixa.

 

                   ALDEIA DE RIO PRIMO

Aqamdax ficara com Homem Noturno durante vários dias em que ele nem se mexera e ela o julgara morto, ou em que os braços e as pernas do homem se debatiam em agonia no mundo em que ele então vivia. Por isso, nem levantou a cabeça do seu trabalho quando o braço dele se mexeu, quando o corpo dele se virou nas esteiras da cama. Nem olhou para ele senão quando um pequeno gemido lhe saiu da garganta e, no meio dele, o som do nome dela.

Então, deu um grito, largou o que estava fazendo e foi chamar Estrela, Olhos Grandes, Ghaden e Yaa. Foi buscar um odre de água para Homem Noturno beber e afastou-o depois de ele ter bebido vários goles.

Deixa-o beber, disse Estrela.

Ele vai adoecer, afirmou Aqamdax, lembrando-se de caçadores que tinham regressado de longas viagens por mar sem água doce para beber. Bebiam devagar, uns goles a princípio e depois mais alguns. Se não o fizessem, o estômago endurecia provocando-lhes espasmos e vômitos.

Estrela ia contestando, mas Aqamdax desviou o olhar. Não queria discutir precisamente no momento em que o espírito de Homem Noturno regressara. Aproximou-se da panela que estava pendurada junto da lareira e tirou uma tigela de caldo. Levou-a ao marido e ajoelhou-se ao lado dele, alimentando-o devagar. Estrela afastou-se deles e levou Ghaden e Yaa. Sentou a menina nos joelhos e começou a penteá-la com o pente de concha de Aqamdax, que ela considerava um tesouro por o ter trazido da sua aldeia natal. Aqamdax ignorou-a, falando em voz baixa com Homem Noturno. Por fim, ele levantou a mão para indicar que já comera o suficiente. Ela voltou a dar-lhe água e ele bebeu, desta vez lentamente. Em seguida, perguntou:

Quanto tempo dormi?

Duas luas, quase três gritou Estrela, e Aqamdax reparou que até Olhos Grandes se virara para ver o filho, com uma expressão radiosa, como se compreendesse em parte o que estava se passando.

Homem Noturno deitou-se de novo na cama.

Não te preocupes, marido, disse Aqamdax em voz baixa, para Estrela não ouvir. Era uma boa época do ano para dormir.

Ele olhou-a de sobrancelhas erguidas e fez um esforço para rir, mas o riso terminou num ataque de tosse que o debilitou. Fechou os olhos, e Aqamdax teve vontade de chamá-lo, com medo de que ele fugisse de novo para o mundo em que andara perdido durante tanto tempo.

Mas, como se lhe adivinhasse os pensamentos, ele disse:

Minha mulher, não te preocupes. Eu estou apenas dormindo.

Aqamdax inclinou-se e encostou a face na testa do marido. Este tinha a pele seca mas fria, e o seu hálito parecia ter perdido o cheiro acre.

De repente, Homem Noturno arregalou os olhos e virou-se para ela.

Tive um sonho... proferiu ele, mas as suas palavras foram interrompidas por alguém raspando no túnel de entrada. Era Cen.

Aqamdax ficou sem fôlego. Ele e Tikaani é que a tinham trazido para a aldeia. Tikaani, preocupado com Homem Noturno, há muito que conquistara a amizade de Aqamdax, mas ela só sentia raiva e ódio por Cen. Ele podia ter adotado Ghaden, um bom irmãozinho, mas exigira-lhe demais em troca.

Quando Estrela o viu, começou a saltar, a bater as palmas e a dançar como uma criança. Cen deixou cair uma pele branca e pesada no chão da cabana.

Isto é para mim? guinchou Estrela, agarrando a pele enrolada.

Cen ficou olhando para ela, abriu a boca e depois fechou-a outra vez.

Não. Isso é a minha cama, disse ele por fim. As palavras dele não pareceram incomodar Estrela.

A mulher chamou Yaa para junto de si e, juntas, desataram o fio de couro cru que segurava a pele, desenrolando-a. Estrela deitou-se em cima da pele e olhou para Cen, lambendo o lábio superior.

Aqamdax desviou o olhar, enojada, e debruçou-se sobre Homem Noturno.

É Cen? perguntou ele em voz baixa e rouca.

Ele voltou, respondeu ela.

Homem Noturno fez um aceno de cabeça e voltou a fechar os olhos.

Tiveste um sonho? perguntou Aqamdax, esperando que ele ficasse acordado mais um pouco, mas Homem Noturno suspirou e adormeceu.

Nessa noite, Cen ficou na cabana deles e, apesar de Estrela ter se oferecido ostensivamente ao homem, ele instalou a sua cama perto de Homem Noturno e disse a Estrela que estava muito cansado dos longos dias de caminhada para fazer outra coisa que não fosse dormir. Ela emburrou mas depois, como se a presença de Cen lhe lembrasse que era uma mulher, começou a fazer o papel de irmã e de mãe, vendo se Homem Noturno se sentia confortável e se Ghaden e Yaa tinham comida.

Aqamdax ficou acordada muito depois de os outros adormecerem. Durante a noite, os tambores continuaram a rufar na cabana dos caçadores. Ela não perguntara a Cen se ele fora ao encontro dos homens antes de ir à cabana de Estrela. Ele não pertencia verdadeiramente ao povo de Rio Primo, e portanto podia não ser bem recebido num momento em que os homens planejavam ataques de vingança.

Por fim, adormeceu também e só acordou de repente ao amanhecer. O seu primeiro pensamento foi para Homem Noturno. Acontecera-lhe alguma coisa, alguma súbita passagem do seu espírito? Levou-lhe as mãos ao rosto e ele murmurou alguma coisa e afastou-lhe a mão, sonolento, fazendo-a sorrir. Então, ela percebeu que fora o silêncio que acordou-a.

Os tambores calaram-se, segredou Estrela do outro lado da cabana.

Até os guerreiros têm que dormir, murmurou Aqamdax. Virou-se de lado e puxou o cobertor de pele de lebre até ao ombro.

Só reparou que Tikaani entrara na cabana quando ele estava a seu lado, debruçado sobre Homem Noturno e com a mão na testa do irmão.

Aqamdax apoiou-se num cotovelo e disse:

Ele voltou para nós ontem à noite. Agora está a dormindo.

Estou acordado proferiu Homem Noturno, e Aqamdax, admirada, levou a mão à boca.

Como se não percebesse que estava ocupando a cama de Aqamdax, Tikaani aproximou-se mais do irmão, sentou-se de pernas cruzadas e aproximou a cabeça da cara de Homem Noturno.

Estás acordado? perguntou Tikaani.

Como é que eu posso dormir se tu não te calas? respondeu o irmão.

Tikaani riu e olhou para Aqamdax, com a alegria dançando-lhe nos olhos.

Está certo o que fazemos, disse ele. Eu disse aos velhos que estava. Falei-lhes das mortes, dos salmões; disse-lhes que tudo isto acontecera por não termos acalmado os nossos mortos com a vingança. Assim que fizermos os nossos planos, tu vens conosco.

Talvez não tenha forças suficientes para lutar disse Homem Noturno, tentando sorrir.

Eu lutarei pelos dois.

Qual é o plano dos caçadores?

Temos uma nova arma. Lembras-te?

O arco.

Sim. Em vez de alguns homens tentarem matar um ou dois caçadores dos deles pelo que nos fizeram, desta vez iremos todos, caçadores e velhos, e até os rapazes mais crescidos.

Tikaani juntou as mãos, formando um círculo. Lembras-te que a aldeia deles está instalada numa cova do feitio de uma tigela, com árvores em volta?

Lembro.

Com os arcos, podemos sentar-nos nas árvores e disparar para a aldeia, atingindo os homens à distância, para que eles nem sequer saibam quem é que foi atingido.

Homem Noturno levantou a mão saudável e Tikaani fechou-a na sua. Em seguida saiu, ao encontro da aurora, deixando o irmão dormindo e Aqamdax olhando para a luz tênue da manhã com horror, imaginando os rostos das pessoas de Rio Próximo. Mulheres e crianças, velhos e caçadores. Chakliux.

 

                   ALDEIA DE RIO PRÓXIMO

Só te digo isto. A minha filha quer ser a tua primeira esposa disse Lobo-e-Corvo a Sok.

Sok passara a noite inteira de pé devido ao trabalho de parto de Neve-no-Cabelo, aos gritos da mulher. Chegara a recear que ela estivesse morrendo. Qual a mulher que gritava, a menos que os espíritos a afastassem do marido e do novo filho?

Os seus pensamentos recuaram até aquela primeira noite que tinham passado juntos, à alegria de a ter na sua cama. Ela mostrara-se tímida, desviando a cabeça quando ele começara por lhe acariciar os seios e ofegando de surpresa quando ele fizera deslizar os dedos para o seu sexo úmido e quente de mulher.

Sok guardava essas recordações como se elas pudessem conservar Neve-no-Cabelo junto dele, mesmo durante o parto. Combatera os seus medos com preces e cânticos.

Quando a tia da mulher foi falar com ele antes do amanhecer, teve tanto medo que julgou não conseguir ouvir o que ela tinha para lhe dizer, mas a mulher disse que o nascimento fora fácil. Que o filho de ambos era forte, que Neve-no-Cabelo estava tão bem como seria de esperar de qualquer mulher que tivesse acabado de dar à luz e que gritara tanto que não deixara dormir ninguém na aldeia.

Agora, o pai dela encontrava-se na cabana da filha e insistia com Sok para que ele rejeitasse a sua boa primeira esposa, uma mulher que lhe dera dois filhos robustos, dois rapazes que já davam mostras de vir a ser bons caçadores uma mulher que não gritara uma única vez ao dar à luz os filhos. Estavam a sós, Sok e Lobo-e-Corvo. Sok permanecera na cabana da mulher durante a noite, um hábito na aldeia, uma maneira de dar força a Neve-no-Cabelo durante o parto. Não estava ansioso por enfrentar os outros homens da aldeia, nem as mulheres, com os seus olhares furtivos de desdém, fingindo ocultar o riso atrás das mãos. Era melhor ficar lá dentro por enquanto, mas entretanto chegara Lobo-e-Corvo.

Ela é segunda esposa. Continuará a ser segunda esposa, declarou Sok, com voz de guerreiro.

Então Lobo-e-Corvo levantou-se, como se não tivesse vindo por outro motivo, e disse:

O teu irmão pediu que houvesse uma reunião com todas as pessoas da aldeia, esta noite.

Chakliux?

Sim. Lobo-e-Corvo empinou o queixo para Sok. Poucos caçadores irão. O que tem Chakliux a dizer-nos de tão importante?

Estarei lá, afirmou Sok.

Lobo-e-Corvo saiu da cabana, e Sok reclinou-se no cobertor de pele de lebre que Neve-no-Cabelo lhe fizera. Era ralo e imperfeito. Os cobertores de Folha Vermelha eram tão bem tecidos que nem o mais pequeno raio de luz passava através deles.

Ouviu raspar na parede da cabana.

Entre! exclamou ele, com uma voz rude. Talvez fosse Lobo-e-Corvo com outro disparate qualquer.

Folha Vermelha entrou com uma panela na mão.

Meu marido, disse ela com uma voz tranqüila. Estou contente por saber do teu novo filho.

Saiu da cabana sem olhar para ele.

 

Chakliux sentia a hostilidade dos homens. Quem era ele para convocar todas as pessoas da aldeia, para lhes pedir que o escutassem ao serão? Havia tanta coisa para fazer naquela época do ano redes para remendar, facas para esculpir, lâminas para retocar. Eles não tinham tempo para as palermices de um homem de Rio Primo.

Mas foram. Resmungando, franzindo a sobrancelha, mas foram. Até as crianças pareciam sentir a irritação dos pais; começavam brigas entre elas, que tinham que ser apaziguadas pelos pais; os bebês choravam. Chakliux fechou os olhos, procurando a tranqüilidade que sentia sempre que estava no seu iqyax e os únicos sons eram os da água, dos pássaros e do vento.

Ligige’ preparara as bolas de gordura, enrolara osso ou marfim dentro de cada uma, duas mãos-cheias ao todo. Envolvera-as em pedaços de tripa seca e amolecida e depois colocara-as num cesto de pele de peixe. Chakliux teve o cuidado de manter o cesto a seu lado, mas não perto demais. Não queria que o calor do seu corpo derretesse a gordura e os rolos se soltassem.

Reuniram-se ao ar livre, junto da cabana dos velhos. Os jovens tinham feito uma grande fogueira e os velhos sentaram-se em círculo mais perto das chamas. Seguiam-se os caçadores, por idades, depois as avós, as mulheres com bebês e, por fim, as mulheres solteiras e as crianças. As mulheres tinham levado comida, mas os velhos haviam-na recusado, tal como a maioria dos caçadores. As crianças pediram os restos e algumas avós cederam, aumentando a confusão quando começaram brigas entre as crianças que tinham comida e as que não tinham.

Chakliux, sentado com os caçadores, esperou que Lobo-e-Corvo se levantasse e dissesse às crianças que deixassem de lutar. Quando o ruído diminuiu, o homem olhou para Chakliux e falou:

Diz-nos agora o que tens a dizer. Chakliux dirigiu-se para o meio do círculo, de costas para a cabana dos velhos e de frente para as pessoas. A noite primaveril ainda não caíra por completo, o céu tinha um tom azul-forte e havia longas faixas de sombra. O clarão da fogueira iluminava o rosto das pessoas, e Chakliux reconheceu Ligige’, Raposa-Que-Ladra, Olhos Grandes, Pato-de-Cabeça-Azul, Treina-Cães, Busca-Raízes e Sok.

Pedi-vos que viessem para podermos falar dos vossos cães, disse Chakliux.

Ouviu-se um murmúrio vindo dos caçadores, e Chakliux ouviu Ligige’ dizer:

Fiquem calados. Escutem.

O murmúrio terminou e Chakliux continuou falando.

Como sabem, morreu mais um cão. Morreu da mesma doença que matou muitos dos nossos cães. Era uma doença que nenhum de nós conhecia até que Ligige’ descobriu o que se passava.

Muitos voltaram-se para Ligige’. Ela empinou o queixo e manteve-se de olhos postos em Chakliux.

Ligige’ pediu-me que vos falasse nisso.

Fez-se imediatamente silêncio. Até as crianças se calaram. Chakliux pegou o cesto que tinha a seu lado. Tirou uma das bolas de gordura.

Busca-Raízes! gritou ele.

O homem olhou para ele e Chakliux atirou-lhe a bola. Busca-Raízes apanhou-a e levou-a à boca para lhe dar uma dentada.

Ligige’ gritou:

Não. Não a comas. Espera.

É veneno? perguntou Sok.

Não, respondeu Chakliux. Não é veneno. Atirou bolas de gordura a Raposa-Que-Ladra, a Dorminhoco, a Treina-Cães e até ao jovem Dança-no-Gelo. Eles enfiaram os dedos nas bolas e cheiraram-nas.

Por fim, restavam duas e Chakliux ainda não encontrara a reação que esperava. Olhou para Ligige’. Ela lançou-lhe um olhar claro e firme, levantou as mãos e juntou-as. Ele atirou-lhe uma das bolas e ela apanhou-a com facilidade. Em seguida, apoiando-se no ombro da mulher que estava a seu lado, levantou-se e atirou a bola a Lobo-e-Corvo.

Ele agitou-a, deixou-a cair ao chão e não a apanhou.

Pega ela, priminho, disse Ligige’, e as pessoas sorriram, contendo o riso ao ouvirem o diminutivo que ela usara para se dirigir a ele.

Ele pegou a bola, mostrou-a aos outros e voltou a largá-la no chão.

Ela não mata senão quando está lá dentro, priminho, disse Ligige’, e Chakliux percebeu da enorme tristeza na voz dela.

De repente, Busca-Raízes deu um grito. O calor da sua mão derretera um dos lados da bola de gordura e uma ponta do rolo cortara-lhe o polegar.

O que é isto? gritou ele, deixando cair a bola ao chão e chupando a ferida.

Pato-de-Cabeça-Azul teve pena de uma velha, disse Ligige’. Ofereceu-me um cão morto. Quando eu esquartejei o animal, encontrei isto. A velha mostrou uma tira de marfim. Estava no estômago do cão. Havia muitas, mais do que uma mão-cheia.

Chakliux reparou que os outros tinham posto as suas bolas de gordura no chão tal como Lobo-e-Corvo. Estendeu o cesto de pele de peixe a uma das mulheres.

Peguem elas e voltem a me dar. Virou-se para Lobo-e-Corvo e perguntou: Não pegaste a bola de gordura. Porquê?

Não confio num homem da aldeia de Rio Primo, é por isso respondeu Lobo-e-Corvo.

Chakliux virou-se para os velhos.

Não acuso ninguém disse ele. Concluam vocês quem matou os cães. Vocês viram o que o rolo de osso fez à mão de Busca-Raízes. Imaginem o que ela faz no estômago de um cão.

Ouviu-se um burburinho, um murmúrio de raiva, dos homens e das mulheres.

Porquê? perguntou um dos caçadores. Porquê matar os nossos cães? Precisamos deles para caçar e para comer. Porque alguém faria uma coisa destas?

Uma mulher que se encontrava na parte de trás do círculo levantou-se. Chakliux só percebeu que se tratava da mulher de Lobo-e-Corvo quando ela falou.

Pelo poder, exclamou Flor Azul. Só pelo poder. Para poder acusar outros de provocar esta maldição, e depois dizer que seria capaz de lhe pôr fim.

Eu rejeito-te! gritou Lobo-e-Corvo, pondo-se em pé e atirando o cajado à mulher.

Não, respondeu ela. Eu é que te rejeito. Tira as coisas da minha cabana. Não quero voltar a te ver.

Então, todos começaram a falar, a gritar, a discutir. A maioria soltava imprecações contra Lobo-e-Corvo. Uns gritavam com Chakliux e outros com Ligige’. Lobo-e-Corvo levara a sua máscara de xamã repleta de contas e de bicos de corvo. Tirou-a e estendeu-a a quem se aproximava, abrindo caminho entre as pessoas para se afastar. Alguns homens gritavam em desacordo com Chakliux. Outros davam-lhe palmadas nas costas, agradeciam-lhe, espreitavam as bolas dentro do cesto e depois, apertando-lhe a mão, afastavam-se.

Pouco depois, todos tinham ido embora, exceto Chakliux e Ligige’. A velha estava encolhida no chão, com o cobertor por cima da cabeça. Chakliux ajoelhou-se a seu lado.

Tia, queres ficar na cabana de Folha Vermelha esta noite? perguntou ele em voz baixa.

Não creio que Sok me queira lá, respondeu ela, com a voz trêmula. Eu destruí o pai da mulher dele.

Lobo-e-Corvo é que destruiu a si mesmo, disse Chakliux, ajudando-a a levantar-se.

Acho que vou para a minha cabana afirmou Ligige’. Acho que esta aldeia está farta de ouvir a minha voz.

Então posso ficar contigo? perguntou-lhe Chakliux.

Sim, vem e fica comigo. Ligige’ afastou as lágrimas e fez um sorriso maroto. As velhas dizem que tens mais óleo de foca. Dizem que é muito bom com peixe seco.

Chakliux sorriu também.

Sim, tia, é muito bom, como vais ver.


                   ALDEIA DE RIO PRIMO

Cen não queria ir com eles. Ainda não dominava aquelas armas, os arcos. Além disso, era comerciante. Qual o comerciante que desejava fomentar a luta? Mas fora o povo de Rio Próximo que assassinara Daes. E que quase o havia matado. As costelas ainda lhe doíam nos dias frios e o pulso esquerdo nunca mais voltaria a ter a força que tinha.

Pensara nas palavras de Aqamdax. Ela fora de cabana em cabana, argumentando com os caçadores, dizendo-lhes que as pessoas de Rio Próximo eram boas, pedindo-lhes que roubassem apenas uma vida em troca do rapaz que fora morto. Mas até Ghaden cerrara os dentes, erguera um punho fechado e manifestara a sua raiva pelas pessoas de Rio Próximo por terem morto um rapaz que era seu amigo.

Não levaram cães. Só fardos de comida e apetrechos. Só armas. Arcos, lanças, dardos e facas.

Cen tinha um arco, mas o pulso esquerdo ainda ficava preso quando ele puxava o fio para trás. Era preferível usar uma lança. Pelo menos, o pulso direito era forte e o seu lance era rigoroso e de longo alcance.

Em geral, eram necessários três dias para fazer a viagem da aldeia de Inverno do povo de Rio Próximo para o acampamento de Inverno do povo de Rio Primo, e isso era com cães que transportassem os fardos. Mas a raiva parecia emprestar força às pernas dos homens, e no fim do primeiro dia, estavam quase em Rio Próximo. A noite foi de vento e de neve, a última dentada do Inverno, à medida que era derrotado pela força do novo Sol.

Na segunda manhã, fizeram-se a caminho cedo, e cerca de meio-dia saíram do rio gelado e entraram na floresta. Acamparam perto da aldeia. Agora, restava-lhes esperar pela manhã seguinte, na esperança de que algum caçador saísse da aldeia e fosse a primeira vítima.

Começava a anoitecer quando ele apareceu, um homem sozinho, sem um cão a seu lado. Trazia um grande fardo, como se fosse um comerciante. Servia-se da lança como se fosse um cajado.

Cen estava sentado numa árvore derrubada, sacudira a neve do tronco e almofadara a casca molhada com uma pele de caribu. Os seus pensamentos não se concentravam na luta, no ataque que Tikaani e os outros tinham resolvido iniciar logo de manhã. Pensava em K’os. Ela era uma mulher, como Daes, que parecia roubar-lhe a inteligência, que o fazia agir sem pensar, sem ponderar as conseqüências. Agora que estava longe dela, que o rosto dela não lhe turvava o raciocínio, era um bom momento para decidir o que fazer.

Mesmo que ela se tornasse sua esposa, seria provável que continuasse a convidar muitos homens para a cama. Cen ouvira as histórias a respeito dos seus dois maridos. Ambos tinham morrido de uma forma terrível. O primeiro fora consumido por uma doença que parecia devorar-lhe as entranhas até começar a vomitar sangue. O outro morrera num incêndio do qual escapara a própria K’os. Com certeza que K’os era perseguida por qualquer espírito de azar que não tardava a atacar quem quer que ela escolhesse como marido. Alguns caçadores afirmavam que K’os estava velha, velha demais para gerar filhos. Isso era difícil de acreditar. O seu rosto mostrava que ela era jovem, mas parecia ser estéril.

Cen estava agradecido pela existência de Ghaden, mas queria mais filhos, e até uma filha. O que havia de melhor para um velho do que uma filha para cuidar dele nos últimos anos da vida?

Ele podia casar com Estrela, mas não queria uma mulher que chorava e fazia birras como uma criança. Também havia Aqamdax. Era muito mais parecida com Daes e muito trabalhadora. Os Primeiros Homens afirmavam que ela era uma contadora de histórias. Era esposa de Homem Noturno, mas quem esperava que ele vivesse muito? Na noite em que Cen ficara na cabana de Estrela, fora obrigado a virar a cara quando Aqamdax mudara a cataplasma do ombro de Homem Noturno, tal era o cheiro de carne podre.

Quando Homem Noturno morresse, o que faria Aqamdax? Talvez Tikaani a aceitasse, mas agora era o chefe dos caçadores. Não seria aconselhável que o chefe dos caçadores aceitasse uma mulher de outra aldeia para primeira esposa. Quem queria acarretar com os problemas que tal situação causaria?

Cen foi afastado dos seus pensamentos por um assobio suave que passou de uns caçadores para os outros. Agachou-se ao lado do tronco, pegou a lança e encostou-a ao ombro, de ponta em riste.

De repente, as setas começaram a voar, algumas fazendo ricochete nas árvores, outras seguindo a sua trajetória, com vozes mais altas e agudas do que as vozes da lança e do lançador.

Cen ouviu gritos, e depois a vozearia dos homens de Rio Primo como se tivessem feito uma caçada bem sucedida. Levantou-se, sempre agarrado à lança, e foi ver os resultados da matança. Um animal, pensou ele, talvez um urso que vinha a sair da sua toca de Inverno. Que melhor sinal de favor?

Não, era um homem. Levava às costas um fardo pesado crivado de setas, e as pernas e os braços sangravam na neve. Depois Cen reparou na bolsa dos remédios, numa pele de lontra do rio e noutra de carcaju. Levava uma asa de pica-pau pendurada no fardo, e uma máscara de contas.

Lobo-e-Corvo, disse ele.

Alguns dos homens que o acompanhavam ficaram sem fôlego; outros, os mais novos, estavam confusos.

Um xamã, esclareceu Tikaani.

Alguns olharam para Cen, aguardando a confirmação.

Sim, um xamã respondeu ele.

Cortem-lhe as articulações, depressa disse um dos jovens.

Tikaani olhou para o homem, que ainda era um rapaz, e estendeu-lhe a sua faca. Agarrado ao seu amuleto, Tikaani afastou-se, entoando um cântico em voz baixa. Os outros fizeram o mesmo, deixando o rapaz ali sozinho. Por fim, ele deixou cair a faca, recuou, levantou as mãos como quem pedia proteção, e ergueu o amuleto bem acima da cabeça.

Mais tarde, enquanto os outros dormiam, Cen embrenhou-se na floresta. Caminhou sobre o gelo do rio durante toda a noite e todo o dia seguinte. Depois, continuou para norte, na direção do Grande Rio, e para leste, na direção das aldeias do Povo Caribu.

 

ALDEIA DE RIO PRÓXIMO

Chakliux julgou que o som fazia parte do seu sonho, mas depois ouviu uma voz e acordou. Sentou-se e recordou-se que resolvera passar a noite na cabana de Ligige’.

As brasas estavam reduzidas a pedacinhos incandescentes, mas ele percebeu que Ligige’ também estava sentada.

É Lobo-e-Corvo. Conheço a voz dele, disse ela.

Ele saiu da aldeia, lembrou-lhe Chakliux. Fora a própria Flor Azul que viera avisá-los.

É Lobo-e-Corvo, insistiu Ligige’.

Chakliux embrulhou-se num cobertor de pele de lebre e atravessou o túnel de entrada. Não havia lua e as nuvens não deixavam ver as estrelas. Na escuridão, não se via nada.

Quem está aí? perguntou ele em voz baixa. Para quê acordar os outros por algo que não passava talvez do sonho de uma velha?

Não havia nada, nem um som. Nem sequer o latir dos cães ou o choro de um bebê. Chakliux ia entrando outra vez quando ouviu o gemido. Ficou escutando, ouviu de novo um gemido e depois seguiu, cauteloso, na direção do som. Às escuras, tropeçou em alguma coisa, e então percebeu que estava um homem estendido na neve. Chamou Ligige’ e disse-lhe que trouxesse brasas para dar luz. A velha saiu, já embrulhada na parka, com uma tigela cheia de brasas.

Ajoelhou-se ao lado de Chakliux, pousou a tigela na neve para impedir que as brasas se incendiassem e depois, com a voz entrecortada pelas lágrimas, falou:

É Lobo-e-Corvo. Eu disse-te. Alguém o matou.

Ajuda-me, pediu Chakliux.

Agarrou o homem e, juntos, levaram-no para o interior da cabana.

O que é isto? perguntou Ligige’, abanando a cabeça, chorando.

Apontou para lascas de madeira cobertas de penas, uma no ombro de Lobo-e-Corvo, duas no braço esquerdo, uma na perna e outra na barriga.

Não é uma arma que o Povo Rio use, declarou Chakliux.

Inclinou-se mais e viu uma risca vermelha, negra e branca numa das setas, que era sua conhecida.

Depois, ouviu outro gemido. Ligige’ choramingou e começou a embalar Lobo-e-Corvo. Ele abriu os olhos, mas não deu mostras de vê-la.

Como é que isto aconteceu? perguntou Chakliux, falando devagar, mas suficientemente alto para que o espírito de Lobo-e-Corvo o ouvisse antes de se afastar e abandonar o corpo.

Lobo-e-Corvo abriu a boca e disse o que Chakliux já sabia.

Os de Rio Primo... Estão chegando...

Tiraste isto da perna do xamã? perguntou Sok, virando a seta nas mãos.

Chakliux fez um sinal afirmativo. Estavam na cabana dos velhos, com quase todos os caçadores de Rio Próximo.

Parece uma das setas que o velho comerciante tinha na sua cabana, afirmou Sok. Ele disse-nos que era o grande arco de fogo que as atirava. Olhou para Chakliux. Esse comerciante morreu no mesmo incêndio que matou o teu pai.

O comerciante nunca usava a arma, disse um dos velhos. Guardava-a para dar sorte.

O meu pai ficou nessa cabana? perguntou Chakliux. Pato-de-Cabeça-Azul confirmou com um gesto de cabeça.

E a mulher.

K’os?

Sim.

Então já sabemos como é que eles conseguiram a arma, observou Sok.

E porque é que os velhos morreram, acrescentou Chakliux.

Essa mulher faria uma coisa dessas? perguntou Treina-Cães.

Faria, respondeu Raposa-Que-Ladra. Admirado, Chakliux olhou para o padrasto.

Eu a conheci, há muito tempo, disse Raposa-Que-Ladra.

Ao recordar os muitos homens que freqüentavam a cabana da mãe, Chakliux não duvidou que Raposa-Que-Ladra falasse a verdade.

Então o nosso xamã disse que os caçadores de Rio Primo vêm aí? perguntou Pato-de-Cabeça-Azul.

Deixa-os vir, disse um dos homens mais novos. Estou cansado dos disparates deles. Apontou para a seta que Sok tinha na mão. As nossas lanças são mais fortes do que isso. Vamos matá-los todos. Depois, iremos à aldeia deles e traremos as mulheres e a comida que eles têm nas despensas.

Um dos velhos, Primeiro Rio, levantou-se. Não era tão velho como Pato-de-Cabeça-Azul, mas era mais fraco e estivera quase morrendo no Inverno. Usava um cajado para dar força às pernas e olhava em frente. As cataratas brancas que lhe cobriam os olhos roubavam-lhe a maior parte da visão.

Em tempos, fui comerciante disse ele, com uma voz tão débil que Chakliux mal o ouviu.

Alguns dos caçadores mais novos nem perceberam que ele estava falando e continuaram a conversar entre si, até que Pato-de-Cabeça-Azul levantou o cajado e tocou no ombro de um deles.

Em tempos, fui comerciante, repetiu Primeiro Rio. Depois parou e tossiu, com o esforço provocado pela fala. Era parceiro daquele que morreu no incêndio. Éramos companheiros de caça e de negócio. A minha primeira esposa era irmã da mulher dele.

O homem calou-se e inclinou-se sobre o cajado. Um dos jovens levantou-se e aproximou-se de Primeiro Rio, agarrou o velho pelos ombros e ajudou-o a manter-se de pé, respirando fundo como se pudesse dar-lhe forças com a sua própria respiração.

Uma vez fomos longe. Para lá das montanhas do Sul. Andamos por lá dois anos. As nossas mulheres achavam que tínhamos morrido. A mulher do morto até arranjou outro marido. O velho riu e lançou um olhar penetrante a Pato-de-Cabeça-Azul. Mas deixou-o quando o marido voltou.

Vimos gente que usava estas pequenas setas. Os seus lançadores pareciam arcos de fogo, mas eram mais compridos. Alguns de vocês viram uma coisa parecida pendurada na parede da cabana desse morto. São pequenas, essas setas, mas atravessam a pele de um animal quase como se fossem uma lança grande, e um caçador consegue atirar depressa, mais depressa do que uma lança, e sem se cansar tanto. As setas pequenas também chegam mais longe. Por isso, um caçador não tem de se aproximar tanto dos animais que tenta matar.

O velho calou-se, e durante muito tempo mais ninguém falou. Por fim, Chakliux disse:

Primeiro Rio, se atacasses esta aldeia com essas armas, como farias?

Os outros homens ficaram admirados com a pergunta de Chakliux, mas Primeiro Rio apressou-se a responder, como se já tivesse pensado nisso.

Da cumeeira afirmou ele. Como sabes, construímos as nossas cabanas neste local por ele estar perto do rio e porque o terreno, em forma de tigela, nos protege dos ventos. No entanto, os inimigos podem cercar-nos por todos os lados, sentar-se nas árvores e atirar aqui para baixo, sabendo que as nossas lanças não podem atingi-los.

Não, estas pequenas setas não chegam tão longe exclamou um dos caçadores mais novos.

Chegam, disse Primeiro Rio. Eu as vi. É possível. E qual de nós é que tem força para atirar esta lança a essa distância? Talvez só Sok.

Sok fez um sinal afirmativo, mas acrescentou:

E poucas vezes. Se não, ficaria sem forças.

Essas pequenas setas, mesmo que atinjam um homem, não o matam disse Dança-no-Gelo.

Era uma afirmação disparatada, e a maior parte dos homens nem sequer se deu ao trabalho de responder, deixando Dança-no-Gelo todo inchado, pensando que dissera qualquer coisa importante, mas Primeiro Rio respondeu:

Elas mataram o xamã.

Conseguem atravessar as paredes das nossas cabanas? perguntou Sok.

Talvez não, porque as nossas cabanas são feitas com duas camadas, respondeu Pato-de-Cabeça-Azul. Talvez seja melhor ficarmos aqui dentro, à espera que eles se aproximem, e depois os matamos.

Mas durante quanto tempo até eles pensarem em fogo? perguntou Primeiro Rio. Estava fortemente apoiado no jovem ao lado dele. Esses caçadores de terras distantes atavam musgo ensopado em óleo nas pontas das setas, pegavam-lhes fogo e atiravam-nas nas cabanas. As pessoas que sobreviviam às setas morriam no incêndio.

O que faremos? perguntou Sok.

Partimos agora, disse Chakliux. Podemos subir às cumeeiras e ir ao encontro deles com as nossas lanças.

Primeiro Rio, num espaço fechado, quais são as melhores armas, as nossas lanças ou as deles?

As nossas, respondeu Primeiro Rio.

Alguns dos mais jovens começaram a comemorar, mas Pato-de-Cabeça-Azul mandou-os calar.

Lembrem-se do nosso xamã. Lembrem-se de que, mesmo na sua desgraça, ele desafiou a morte para nos ajudar. Agora vão, peguem as vossas armas e saiam da aldeia sem fazer barulho. Esperem no meio dos salgueiros, à beira da cumeeira, e quando os caçadores de Rio Primo chegarem, verão que somos mais fortes do que eles julgam.

Alguns dos homens de Rio Primo não queriam lutar. Viram que o xamã desaparecera, deixando apenas o seu fardo para assinalar o local em que morrera. Tinham medo que o espírito dele tivesse levado o seu corpo e lutasse contra eles ao lado dos de Rio Próximo.

Foram os lobos que o levaram, disse Homem Risonho, e Tikaani concordou, mas nem tentou explicar a si próprio como é que os lobos haviam arrastado o homem sem tocar no fardo.

Receava que a sorte tivesse começado a abandoná-los, por isso disse aos homens que corressem para a cumeeira que rodeava a aldeia, que fossem enquanto ainda estava escuro, antes que perdessem toda a boa sorte. Quando os primeiros caçadores de Rio Próximo saíssem das suas cabanas de manhã, as setas silenciosas e rápidas dos guerreiros de Rio Primo estariam à espera deles.

Todos os guerreiros de Rio Primo haviam atirado paus para determinar o seu lugar na luta. O maior tinha quatro lados, um que assinalava o Norte e os outros o Sul, o Este e o Oeste. O pau de Tikaani caíra virado para norte, o lado da aldeia que estava virado para o rio. Era um bom local, pensara Tikaani, o melhor para fugir se a sorte não os acompanhasse como eles esperavam. O segundo pau tinha oito lados, e o seu caíra do lado que indicava uma das posições centrais. Quem podia saber se isso era bom ou mau? O terceiro pau era achatado, só com dois lados, um para ficar de pé e outro para subir numa árvore. Cada caçador que tivesse atirado para o Norte, tinha que ficar de pé.

O velho Leva-Mais disse aos homens do lado norte que voltassem a atirar, mas mais uma vez o pau lhes disse que ficassem de pé. Então, Leva-Mais disse que os espíritos estavam falando com eles, que todos os que se encontravam do lado do rio deviam ficar de pé, embora, nos outros lados, os caçadores devessem ficar de pé e subir às árvores.

Talvez fosse melhor assim, pensou Tikaani, mas nunca soubera ao certo até onde chegava a sabedoria de Leva-Mais. Ficaria de pé a princípio, mas depois, se a luta não estivesse correndo bem, subiria numa árvore. Era melhor ver, atirar as suas setas para longe.

Ocupou o seu lugar, tirou uma seta da sua aljava e ficou esperando. Estava escuro demais para ver o que se passava na aldeia, exceto o clarão daquelas cabanas em que a lareira estava acesa, e nesse momento, mesmo antes do nascer do Sol, a luz era escassa. De repente, viu uma luz forte numa das cabanas, depois noutra e mais outra. As mulheres de Rio Próximo levantavam-se tão cedo?

Um movimento chamou-lhe a atenção. Ouviu um som sibilante, como se todos os homens que se encontravam na cumeeira fossem um só, vigiassem e respirassem em conjunto. As pessoas deslocavam-se no meio das cabanas. Tikaani via-lhes as sombras das cabeças.

Eles têm lanças, segredou alguém à sua esquerda.

Tikaani pestanejou e mexeu a cabeça, tentando ver melhor na escuridão. Depois veio a ordem, de um dos homens perto dele ou do meio.

Atirar!

Tikaani puxou o arco para trás e soltou a seta.

 

Chakliux rastejou no meio das cabanas. Alguns dos homens tinham visto Lobo-e-Corvo saindo da aldeia. Afirmaram que ele seguira para leste, em direção à floresta e, portanto, também eles seguiram para leste, esperando tomar posição entre os homens de Rio Primo e as suas famílias.

Chakliux gostaria de ter mais tempo. Mais uns dias e a situação seria diferente. Primeiro Rio poderia ter-lhes dado uma idéia melhor daquilo que enfrentavam com o arco de fogo. Até onde levaria uma coisa dessas as suas setas? Conseguiriam elas atravessar as paredes das cabanas? Com uns dias de aviso, eles poderiam ter tirado as mulheres e as crianças da aldeia ou armado uma emboscada aos homens de Rio Primo na floresta.

O topo da cabana à direita de Chakliux iluminou-se de repente. Depois, outra mais à frente. As mulheres estavam acordadas. Quem poderia censurá-las? Os seus homens tinham voltado só para ir buscar as armas e os amuletos de proteção. Chakliux não queria lutar. O medo no seu peito era tão grande que parecia dificultar-lhe o bater do coração, mas ele estava satisfeito por não ser mulher, por não ficar esperando.

O som veio por cima dele, um silvo que o obrigou a baixar-se. Seguiu-se um estrondo, um grito, e Chakliux viu Doninha Pequena, um dos caçadores mais jovens, colado à cabana mesmo à frente, com uma seta atravessando-lhe a carne tenra do flanco e a ponta espetada na pele de caribu da cabana.

Chakliux correu para ele. Doninha Pequena tentava libertar-se da seta, espumando de raiva.

Fica calado, fica quieto, ordenou-lhe Chakliux. Serviu-se da faca que trazia na manga para cortar o cabo acima da ponta da seta e depois arrancou-a da ferida. Doninha Pequena caiu-lhe aos pés e Chakliux pegou-o. Escaparam por pouco de outra seta que atravessou a cabana junto da qual eles se encontravam. Chakliux não parou para ver a quem pertencia a cabana. Limitou-se a arrastar Doninha Pequena para a entrada, pediu ajuda às mulheres lá dentro e foi-se embora.

Qual a magia que dava aos caçadores de Rio Primo o poder de ver na escuridão?, interrogou-se ele, baixando-se de novo quando outra seta se espetou no chão, à sua frente. Puxou a seta e atirou-a para a sua aljava. Talvez a magia estivesse na própria seta. Se ela se encontrasse junto das suas lanças, talvez elas também vissem na escuridão. Levantou a cabeça. Busca-Raízes estava na sua frente, e a sombra do seu corpo sobressaía junto de uma cabana. Antes que Chakliux conseguisse reagir, uma seta de Rio Primo atingiu Busca-Raízes na garganta. Horrorizado, Chakliux correu para ele; horrorizado, viu o corpo de Busca-Raízes devastado pelos espasmos da morte. Quando o jovem se imobilizou, Chakliux levantou-se, mas baixou-se de novo no momento em que uma seta se espetou na cabana, por cima da sua cabeça.

Então, entendeu. Não havia magia nenhuma; eram apenas as silhuetas dos homens de Rio Próximo que se destacavam das cabanas iluminadas. Quando as mulheres atiçavam o lume das lareiras, a luz permitia que os caçadores de Rio Primo vissem os caçadores que saíam da aldeia.

Baixem-se, gritou ele. Eles conseguem ver-nos quando passamos pelas cabanas.

Chakliux colou-se ao chão. Se os homens de Rio Primo cercavam a aldeia, havia poucos lugares onde pudessem esconder-se das suas setas. A cumeeira era como a borda de uma tigela, interrompida apenas pelos degraus de pedra que iam dar no rio. Se alguns dos homens conseguissem chegar ali antes de o Sol nascer, talvez pudessem abrir caminho atrás dos homens de Rio Primo e atacá-los pela retaguarda.

Chakliux olhou para a sua esquerda; depois esperou até ver um movimento e agarrou a perna de Pato-de-Cabeça-Azul, que se arrastava de barriga para baixo. O velho virou-se, de faca em riste.

Sou Chakliux.

Ias morrer, observou o velho.

Vem comigo para o rio disse Chakliux. Não te levantes.

As nossas mulheres são estúpidas, segredou Pato-de-Cabeça-Azul.

Levantou a mão, bateu na parede da cabana mais próxima e gritou:

Apaguem o fogo. Os homens de Rio Primo podem ver-vos. Vocês estão dando luz aos olhos deles para nos encontrarem.

Chakliux ouviu vozes abafadas no interior da cabana e depois, de súbito, a luz apagou-se. Continuou a rastejar para a cabana seguinte, meteu a cabeça no túnel e disse a mesma coisa. Ao longo do caminho que bordejava a aldeia, foram avisando as mulheres e, quando encontravam um caçador, diziam-lhe que os seguisse. Assim que reuniram mais homens, separaram-se em grupos de três e de quatro, com receio que um grupo numeroso chamasse a atenção dos caçadores de Rio Primo, mesmo na escuridão.

Chakliux, Pato-de-Cabeça-Azul e Leva-muito foram os primeiros caçadores a chegar ao caminho para o rio. As sombras eram densas e, por instantes, Chakliux pensou em levantar-se e atirar uma lança aos caçadores de Rio Primo que estavam mais perto deles na cumeeira. Mas não via suficientemente bem para saber se acertaria o alvo. Além disso, se falhasse, os caçadores mais próximos dele poderiam alvejar o caminho, que se bifurcava na cumeeira.

Chakliux agarrou o pulso de Pato-de-Cabeça-Azul e ordenou em voz baixa:

Não atires a tua lança. Assim eles saberão que estamos aqui.

Em seguida, disse o mesmo a Leva-mais. Sentiu que o rapaz ficara sem fôlego e percebeu que ele já tinha uma lança pronta a atirar.

Vão para o rio, disse-lhes Chakliux. No lugar em que a margem é baixa, subam para a floresta. Coloquem-se atrás dos homens de Rio Primo, escolham o vosso alvo, mas não atirem a vossa lança senão quando me ouvirem gritar. Apertou o ombro de Leva-muito e sentiu o rapaz tremendo. Agora vai. Não faças barulho.

Pato-de-Cabeça-Azul e Leva-Muito afastaram-se, e Chakliux ficou à espera do grupo seguinte. Este chegou, conduzido por Sok. Chakliux nem teve palavras para exprimir a sua alegria por o irmão ainda estar vivo, e disse-lhes apenas o que dissera aos outros, mandando-os também para o rio. Continuou esperando.

Apareceram cinco grupos de homens, cada um com três ou quatro caçadores. Por fim, Chakliux dirigiu-se também para o rio e seguiu o seu curso até chegar ao local em que a margem era mais baixa. Subiu-a e desapareceu na floresta de abetos. Encontrou os homens de Rio Próximo na entrada da floresta, à espera, a alguns passos das árvores em que se escondiam os caçadores de Rio Primo.

Muitos dos caçadores de Rio Primo encontravam-se na saliência rochosa. Uns riam, gritando insultos, ao mesmo tempo que atiravam as suas setas para a aldeia. Eram homens que tinham crescido com Chakliux, e ele não pôde deixar de pensar no tempo que haviam passado juntos nem de imaginar a destruição que atingiria as duas aldeias, fosse qual fosse o vencedor. Avançou, gritou e atirou a sua lança. Esta atingiu um caçador de Rio Primo em cheio na omoplata. O homem caiu e o caçador que se encontrava a seu lado virou-se para ver o que acontecera. A sua exclamação de surpresa deu lugar a uma golfada de sangue quando também ele foi atingido.

Em seguida, os homens de Rio Próximo clamaram vitória. Vários caçadores surgiram na cumeeira para exprimir o seu contentamento e foram atingidos pelas setas, mas os outros, a maioria dos caçadores de Rio Próximo voltaram para a floresta, esconderam-se e esperaram pela luz, esperaram que os homens de Rio Primo fossem ao seu encontro.

Eles não foram. Ao amanhecer, desceram das árvores e entraram na aldeia, onde começaram a lutar, cabana a cabana. Chakliux conduziu os homens de Rio Próximo para a aldeia, e eles combateram corpo a corpo, com as suas facas. Os braços possantes de Chakliux permitiram-lhe matar dois homens, mas as pernas fraquejaram e os músculos foram atacados por câimbras. Chakliux entrou numa cabana, rastejando, e depositou a faca nas mãos de uma mulher de Rio Próximo. Ela desatou a chorar, deu-lhe água e ofereceu-lhe comida. Ele aceitou a água, mas não lhe pareceu que fosse capaz de comer. Tinha o estômago crispado pela raiva e pelo medo.

Quando voltou a sair, agarrou por trás um caçador de Rio Primo que lutava com Raposa-Que-Ladra. Matou o homem de Rio Primo com a sua faca de lâmina comprida, e depois aniquilou da mesma maneira um caçador que lutava com Sok.

Chakliux lutou com vários homens até perder o rastro do sol e não sentir as dores. Por fim, quando já não havia mais ninguém para combater, ouviu os gritos de vitória, o ulular das mulheres e as afirmações de que os caçadores de Rio Primo tinham fugido.

Quando as mulheres encontraram os maridos e os filhos mortos, os cânticos fúnebres abafaram os gritos de vitória, mas o cansaço de Chakliux era tão grande que, a princípio, eles não lhe trespassaram o coração. Olhou para o céu e reparou que o Sol ainda ia alto. Como era possível que tivesse acontecido tanta coisa num tão curto espaço de tempo? Com certeza que ele combatera por vários anos. Com certeza tinham levado mais de uma manhã destruindo-se a si próprios.

 

K’os contou os dias pelos dedos. Três para chegar à aldeia de Rio Próximo, apesar de os homens levarem menos tempo, porque eram caçadores e não tinham mulheres nem crianças atrasando-os. Mais um dia para preparar as armas e concluir os planos. Um dia para combater. Talvez dois? K’os contou com dois. Outro dia para celebrar e saquear, dividir as mulheres e as crianças. E depois, quatro dias para regressar a casa? Com mulheres e crianças a estorvá-los, com os feridos, sim, talvez quatro dias. O que dava mais de duas mãos-cheias. Ainda era cedo para se preocupar. Ainda só tinha decorrido uma mão-cheia e mais três.

Agachou-se ao pé do lume e avivou as brasas. A aldeia parecia muito vazia sem os homens, e, por qualquer motivo, K’os não conseguia aquecer-se. Era como se o vento, sabendo que as mulheres e os velhos estavam sozinhos, soprasse com mais força. Meteu as mãos no molho de peles que guardava para fazer botas, perneiras e parkas e encontrou uma grande pele de lobo, virou o pelo para dentro e a pôs em volta dos ombros.

Tencionava fazer uma parka durante a ausência dos homens. Estaria mais bonita para comemorar a vitória. A vestiria para honrar a sua vingança contra Raposa-Que-Ladra e Dorminhoco. Eles mereciam morrer, assim como as mulheres e os filhos. E aquela mulher que abandonara Chakliux no Rochedo do Avô e levara K’os a criar uma criança amaldiçoada? Ela também tinha que morrer.

Todavia, apesar dos seus planos, os dedos de K’os estavam nervosos demais. Deixavam cair furadores e agulhas e emaranhavam as linhas de tendão. Ela cortara a parka e até tingira o pelo de caribu com que bordaria um desenho nos ombros, nos pulsos e no peito, mas não fizera mais nada.

Ouviu um grito mesmo na saída da cabana e levantou a cabeça. Era uma voz de mulher. Talvez alguma criança tivesse se machucado. Ou uma mulher tivesse entornado caldo quente no corpo. K’os deixou cair a pele de lobo que tinha aos ombros e foi buscar a sua bolsa dos remédios. Possuía gálio-boreal para as queimaduras, apesar de os caules secos não serem tão bons como a seiva fresca de uma planta esmagada. Possuía folhas de violeta-amarela misturadas com gordura de ganso para os arranhões, cortes e nódoas negras, e sabia fazer talas de casca de bétula para os ossos partidos.

Mais gritos e alguém chorando. K’os suspirou e depois sorriu. Conseguia um bom preço pelo seu trabalho em geral, um amuleto muito apreciado pela pessoa doente ou ferida. Mais tarde, K’os usava-o muitas vezes ou, melhor ainda, destruía-o e deixava os restos bem à vista no monte de entulho na saída da aldeia.

Tirou várias fiadas de contas e atou-as ao pescoço. Em seguida, pegou a bolsa dos remédios. Porque os obrigaria a ir buscá-la? Porque não sair já? As pessoas que viviam na mesma aldeia deviam ajudar-se umas às outras.

Escutem! disse Homem Noturno. Endireitou-se no espaldar e encolheu-se com o solavanco no ombro.

Tinha bom ouvido, muito melhor que o de Aqamdax. Ela arrastou-se até a entrada e ouviu o som agudo das vozes, das mulheres chorando.

Não saias daqui, ordenou ela a Ghaden, que fora atrás dela. Depois, saiu.

Não conseguia ver nada, mas voltou a ouvir as vozes. Pareciam vir do lado sul da aldeia. Voltou para a cabana.

Aconteceu alguma coisa, disse ela a Homem Noturno.

Calçou as botas e vestiu as perneiras e a parka de sair. Ghaden começou a tentar vestir a parka, mas Homem Noturno abanou a cabeça.

Fica, ordenou ele. Se fores, o Mordedor também irá, e causará problemas se alguém estiver ferido.

Achas que os homens voltaram? perguntou Yaa.

Se tivessem voltado, Estrela teria vindo avisar-nos, disse Aqamdax, mas não deixou de reparar na expressão de terror de Homem Noturno. Se os homens tinham voltado, a coisa não correra bem. Não havia gritos de celebração.

Já venho, disse Aqamdax, saindo às pressas. Atravessou a aldeia correndo, juntou-se a outras mulheres que também corriam e, quando viu o grupo dos homens, ergueu a sua voz num lamento.

Só haviam voltado seis caçadores: Pescador, Corredor, Espreita-o-Céu, Leva-Mais, Homem Risonho e Tikaani. Todos eles tinham algum ferimento. Tikaani vinha deitado num trenó; estava tão pálido que Aqamdax o julgou morto. Estrela e K’os acotovelavam-se atrás dele. K’os olhou por cima do ombro e viu Aqamdax.

Temos que levar este homem para a minha cabana, disse K’os. Levantou a voz e dirigiu-se às mulheres: Levem os outros, cada um para uma cabana. Vejam se eles têm queimaduras provocadas pelo gelo nas mãos ou nos pés, dêem-lhes água e comida, lavem-lhes as feridas e deixem-nos dormir. Eu irei levar remédios mais tarde.

Virou-se e olhou para os homens que estavam junto do trenó de Tikaani.

Algum de vocês tem força para o levar para a minha cabana?

Eu tenho afirmou Espreita-o-Céu. Leva-mais, um velho, caiu de joelhos.

Tragam-no também, disse K’os, apontando com o queixo para o velho.

Aqamdax inclinou-se junto de Estrela e ajudou-a a levantar Leva-Mais. No caminho para a cabana de K’os, Aqamdax viu uma das amigas de Yaa e pediu-lhe que fosse avisar quem estava na cabana de Estrela de que os homens haviam regressado.

Diz-lhes que eu estou na cabana de K’os com o Tikaani e que irei para casa quando puder.

A menina afastou-se correndo, e Aqamdax desejou ser ela a ir. Como iria Homem Noturno reagir, sabendo que o irmão estava ferido? Tinha que ir falar com o marido, mas não queria deixar Tikaani sozinho com K’os.

Aqamdax ajudou Estrela a instalar Leva-Mais nas peles que K’os estendera no chão. Em seguida, despiram-lhe a parka e tiraram-lhe as perneiras e as botas. O homem tinha várias feridas profundas nos braços e uma na testa, mas nenhuma parecia infectada. Abriu os olhos, olhou para as duas mulheres e pediu água a custo. Aqamdax foi buscar um odre de água e pegou-lhe de modo a que só uma gota caísse na boca de Leva-Mais.

O homem protestou, e Aqamdax disse a Estrela:

Este está apenas cansado.

Não consigo ver bem. Vejo tudo em dobro, avisou ele em voz baixa.

Apesar de K’os estar tratando de Tikaani, perguntou:

Alguém te bateu na cara ou na cabeça?

Na nuca, respondeu Leva-Mais. Durante um dia inteiro, não dei por nada. Puseram-me num trenó com Tikaani.

K’os empinou o queixo para Aqamdax.

Põe-lhe as mãos na nuca. Toca-lhe com as pontas dos dedos.

Aqamdax fez o que K’os lhe dissera.

Sentes algum inchaço ou alguma zona encovada?

Um inchaço, respondeu Aqamdax, descrevendo um círculo com o polegar e o indicador para mostrar a K’os como o inchaço era grande.

Verás melhor amanhã, ou pelo menos daqui a dois dias, disse K’os a Leva-Mais. Fica comigo esta noite. Aqamdax vai fazer-te um chá.

A mulher enfiou a mão na bolsa dos remédios, tirou um pacote e atirou-o a Aqamdax.

Só uma pitada. Deixa-o levantar fervura e depois esfriar. Obriga-o a bebê-lo todo.

Retirou várias folhas de vara-de-ouro em pó e disse a Aqamdax e a Estrela que tirassem gordura da panela, que a misturassem com o pó e que a espalhassem nos golpes de Leva-Mais.

Virou-se de novo para Tikaani e cuidou dele durante algum tempo, apalpando-o e limpando-lhe as feridas. Por fim, levantou a cabeça. Um sorriso na face deu esperança a Aqamdax, mas K’os declarou:

Ele está morto. Uma ferida na barriga não é uma boa maneira de morrer, pelo menos nos primeiros dias. K’os olhou para Espreita-o-Céu. Devias tê-lo deixado, devias ter poupado as tuas forças.

Ele era primo da minha mãe, respondeu o jovem. Lutou bem. Eu não podia abandoná-lo.

Não voltou mais nenhum dos nossos caçadores? perguntou-lhe K’os.

Não. Só ficamos nós.

Ao ouvir aquelas palavras, Estrela começou a chorar em voz alta.

K’os virou-se para ela e gritou:

Cala a boca! Depois, perguntou ao jovem: E quantos de Rio Próximo morreram?

Muitos, respondeu ele.

K’os inclinou a cabeça para trás e entoou um cântico, feito de estranhas palavras e de riso.

Conhecias algum? perguntou ela. Um homem chamado Raposa-Que-Ladra e outro chamado Dorminhoco... Morreram?

Não sei, respondeu ele.

Eu lutei com Raposa-Que-Ladra. disse Leva-Mais. Ele ainda está vivo, mas tem um corte aqui. O homem fez deslizar um dedo desde a testa até ao queixo, passando por cima de um olho. Dorminhoco morreu. Fui eu que o matei.

Ah! exclamou K’os. Vou recompensar a tua coragem. Meteu a mão na bolsa dos remédios. Põe isto no chá que estás fazendo disse ela a Aqamdax. Lhe dará melhor sabor e aliviará as dores de Leva-Mais.

Aproximou-se de Leva-Mais, começou a examinar-lhe as feridas e por fim fez um gesto de cabeça como se estivesse satisfeita.

Não temos aqui nada de grave, observou ela, carregando-lhe na nuca. Mesmo isto. Tenho visto pior. O meu filho Chakliux. Viste-o? perguntou ela a Espreita-o-Céu.

Está vivo, disse ele. Vi-o quando vínhamos embora. Julguei que ele nos mataria, mas ele afastou os caçadores, apesar de alguns ficarem irritados. Eu ouvia os gritos deles. Mesmo assim, fizeram o que ele disse.

K’os assobiou, não disse nada durante muito tempo e, quando voltou a falar, Aqamdax viu-lhe sangue nos cantos da boca.

Não te importas de levar este para casa? disse ela, tocando no corpo de Tikaani com o pé. Não te importas de o levar para a cabana dela? K’os apontou para Estrela. A mãe e a irmã que o preparem para o funeral. Eu não tenho tempo. O meu trabalho é com os vivos. Além disso, se algum dos nossos homens merecia a morte, era ele. Foi ele que planejou o ataque aos de Rio Próximo.

Eu sei quem planejou o ataque afirmou, Espreita-o-Céu. Depois, levantou a cabeça e cuspiu no rosto de K’os.

Ela começou a gritar e a praguejar, mas o homem ignorou-a. Ele pôs o corpo de Tikaani no ombro e saiu da cabana atrás de Estrela e de Aqamdax.

 

                   ALDEIA DE RIO PRÓXIMO

Pato-de-Cabeça-Azul estava morrendo. As feridas no corpo eram superficiais e não bastavam para o matar mas, em algum lugar durante a luta, alguém amaldiçoara o coração do homem, e ele tombara como que atingido por uma seta, agarrando-se ao peito com dores, onde não tinha sangue.

Agora, tens que ser tu conduzindo esta aldeia, disse ele a Chakliux. Não há mais ninguém. Tsaani morreu. Lobo-e-Corvo morreu.

O velho enumerava os nomes como se também ele tivesse morrido e não se preocupasse com aquilo que os espíritos lhe poderiam fazer.

Sok não tem inteligência para isso.

Pato-de-Cabeça-Azul fez uma pausa, respirou fundo, levou a mão ao peito e estremeceu, e Chakliux desejou poder partilhar as dores do homem.

Não queremos Raposa-Que-Ladra. Um homem que é tão preguiçoso que não consegue sustentar as suas mulheres não deve conduzir uma aldeia. Não queremos Treina-Cães.

Uma lua antes, Chakliux teria sorrido ao ouvir as palavras de Pato-de-Cabeça-Azul. Todos sabiam a rivalidade que existia entre Pato-de-Cabeça-Azul e Treina-Cães. Treina-Cães teria sido um bom chefe, suficientemente sensato e forte para defender o que considerava estar certo. Mas Treina-Cães morrera. Chakliux desviou o olhar para que Pato-de-Cabeça-Azul não percebesse o conhecimento dessa morte. Em breve o saberia. O deixaria rivalizar um com o outro no mundo dos espíritos.

Pedi às pessoas que se reúnam esta noite. Estarei lá. Elas me darão ouvidos.

Chakliux fez um gesto afirmativo e não exprimiu a sua dúvida. Por que elas dariam ouvidos a um homem que estava morrendo? Quase todos os homens reconheciam que Chakliux ajudara a salvar a aldeia da destruição total, mas muitos caçadores e a maioria dos velhos tinham morrido. Quando os homens de Rio Primo viram que estavam perdendo, incendiaram algumas cabanas, matando duas velhas e várias outras mulheres: Flor Azul e Sem-Dentes, Erva Nova e o seu bebê e as esposas-irmãs Água Castanha e Boca Feliz. Metade dos jovens caçadores tinham morrido na batalha, assim como a maioria dos rapazes, incluindo Leva-Muito, o filho de Sok.

Chakliux não queria lembrar-se do rosto do sobrinho. Quando o recordava, a sua tristeza era como uma ferida no coração, e só conseguia chorar para exprimir a sua angústia.

Tinham caçadores suficientes para manter a aldeia forte, para fornecer comida para o Inverno e para pescar, mas só sobrevivera uma mão-cheia de homens de Rio Primo, e, desses, Tikaani e Leva-Mais tinham sido levados num trenó.

Chakliux convencera os homens de Rio Próximo a deixá-los partir. Talvez isso fosse um disparate, mas como poderiam as mulheres deles sobreviver se não tivessem homens para caçar?

Chakliux saiu da cabana de Pato-de-Cabeça-Azul e dirigiu-se para a floresta, passando por um grupo de jovens que experimentavam arcos e flechas apresados na batalha. Descobriu um rochedo junto de um grande abeto, sentou-se, e levantou os pés, protegendo-se do frio que vinha do solo ainda gelado.

Relembrou todos os rostos dos homens de Rio Primo que conhecera. Embora tivessem sido eles a começar a luta, lamentava tanto a sua morte como a do povo de Rio Próximo. Era provável que tivesse sido um caçador de Rio Primo a matar Tsaani e Daes. Porque é que as pessoas faziam coisas tão estúpidas?

Encostou a cabeça ao tronco da árvore e pensou em todas as histórias que tinham lhe contado: as histórias de Rio Primo e de Rio Próximo, Tundra do Norte e Caribu, e as histórias dos Primeiros Homens que ouvira Aqamdax e Qung contar. Ouviu-as de novo como se fosse uma criança e aprendesse tudo pela primeira vez. Escutou-as, e as palavras eram como um bálsamo quer para as feridas do seu corpo quer para as outras, maiores e mais profundas, que lhe dilaceravam a alma.

Sok ocupou o seu lugar no meio dos caçadores. Com tantos mortos na batalha, o círculo de homens era pequeno, mas essa pequenez fazia-o sentir-se maior, mais importante. Nessa noite iriam escolher um chefe. Quem mais poderia ser, senão ele? Pato-de-Cabeça-Azul estava morrendo, fora o próprio Chakliux que o dissera a Folha Vermelha. Dorminhoco e Treina-Cães tinham morrido. Chakliux não seria escolhido. Como podia um homem com só uma perna boa conduzir o seu povo? Como podia uma pessoa criada na aldeia de Rio Primo contar com o respeito dos caçadores de Rio Próximo? Ninguém queria Raposa-Que-Ladra. Quem podia confiar no homem? A pessoa mais velha da aldeia devia ser Ligige’. Quem lhe daria ouvidos?

Sok vestira a sua melhor parka e levara as suas duas esposas, assim como Chora-Alto e o filho recém-nascido de Neve-no-Cabelo. Folha Vermelha besuntara a face com carvão e cortara o cabelo curto em sinal de luto. Também Sok sofria com a morte do filho, mas este morrera com bravura, e qual o pai que não encontrava nisso consolação? Poria o nome de Leva-Muito no filho de Neve-no-Cabelo, chamando assim de novo o rapaz a viver com eles. Talvez Folha Vermelha encontrasse conforto nisso, embora as duas mulheres discutissem muitas vezes, usando as palavras como os homens usavam as armas.

Quatro caçadores trouxeram Pato-de-Cabeça-Azul da sua cabana num cobertor de pele de caribu, cada um segurando num canto. A velha esposa corria ao lado dele, acariciando-lhe os cabelos e as roupas, exagerando, até que Sok foi obrigado a desviar o olhar para não criticar o destempero da mulher.

Pousaram-no numa almofada de peles macias, junto da lareira. Os três outros velhos instalaram-se perto dele, mas Sok ficou com os caçadores mais jovens e esperou que a mulher de Pato-de-Cabeça-Azul se afastasse do marido e ocupasse o seu lugar no meio das mulheres. Então, aproximou-se de Neve-no-Cabelo, tirou-lhe o filho dos braços e levou-o com Chora-Alto a Pato-de-Cabeça-Azul. Ajoelhou-se ao lado do homem e disse:

Trago os meus filhos para prestarem homenagem aos velhos desta aldeia. Trago-os para que eles compreendam aquilo que é sagrado e respeitem o que estes homens dão ao povo de Rio Próximo.

Aguardou, na esperança de que Pato-de-Cabeça-Azul abrisse os olhos e dissesse qualquer coisa, mas o velho parecia já estar morto, apesar de Sok ver os movimentos penosos da respiração no seu peito. Por fim, Sok começou a cantar em voz baixa, um cântico de caça que aprendera com o avô. Devolveu o bebê e Chora-Alto às mães e retomou o seu lugar no meio dos caçadores. Acalmou a sua fúria esperando que, mesmo sem o reconhecimento de Pato-de-Cabeça-Azul, o seu ato tivesse sido suficiente para conquistar o favor das pessoas, para as fazer compreender quem devia ser o chefe dos caçadores.

Esperou, no meio de um silêncio desconfortável, sem saber quem seria o primeiro a falar. Dos velhos que ainda eram vivos, Pato-de-Cabeça-Azul estava perto demais do mundo dos espíritos para saber o que se passava na aldeia. Raposa-Que-Ladra não tinha o respeito de ninguém. Chama-o-Sol era um homem gago e de poucas palavras, e Dá-Carne retirara-se há muito para um mundo inatingível. Passava o tempo sentado, babando-se, e com as perneiras manchadas de urina.

Então Pato-de-Cabeça-Azul levantou a mão, fez um pedido em surdina, e Chama-o-Sol puxou-o para cima até ele ficar quase sentado.

Estou morrendo, disse ele, tão de repente que todos os murmúrios, todos os movimentos cessaram, e era como se até o vento se tivesse calado. Há mais de um ano, vivemos sem o nosso chefe dos caçadores. Uns dizem que a sua vida foi levada pelos espíritos; outros afirmam que foi por aqueles inimigos que acabamos de derrotar. Agora perdemos o nosso xamã. A nossa curandeira é uma velha.

Pato-de-Cabeça-Azul virou-se lentamente para Ligige’. Os olhos dela, que se destacavam da face enegrecida pelo luto, encontraram-se com os dele.

Alguns chamaram-me chefe, disse Pato-de-Cabeça-Azul. No meio dos velhos, eu fui muitas vezes o primeiro a falar.

O velho engasgou-se, respirou fundo várias vezes e, quando voltou a falar, foi com uma voz mais sonora, mais forte.

Vocês têm que escolher um novo chefe. Não digo que escolham um novo xamã, que isso é impossível, mas que escolham alguém que oriente os velhos, alguém que seja chefe dos caçadores, talvez um homem, ou dois. Fez uma pausa. A minha escolha seria...

Sok susteve o fôlego e esperou com impaciência que o olhar de Pato-de-Cabeça-Azul pousasse nele, mas tal não aconteceu. Sok inclinou-se para a frente e verificou que o velho olhava fixamente para Chakliux.

Chakliux, proferiu Pato-de-Cabeça-Azul. Para chefe dos velhos e dos caçadores.

Sok abriu a boca para protestar, mas as palavras sufocaram-no e, antes que conseguisse dizer alguma coisa, Pato-de-Cabeça-Azul arfou, agarrou-se ao peito, contorcendo-se como se quisesse fugir das dores. Soltou um grito e depois imobilizou-se, com a boca e os olhos abertos.

Mulheres e homens rodearam-no, e por fim a velha Ligige’ levantou a voz para anunciar a toda a gente que ele estava morto.

Ninguém entoou um cântico fúnebre, e Sok perguntou a si próprio se a tristeza se acumulara de tal modo nas pessoas que estas já não tinham mais nada para cantar.

De repente, Raposa-Que-Ladra começou a falar, levantando-se, no meio dos velhos.

Este homem era bom, inteligente e forte. Vamos sentir a sua falta. Eu gostava de lhe chamar amigo, mas agora que só restam três velhos, tenho que falar. Como podemos aceitar um homem que é novo, e que, embora seja meu filho, foi criado no seio daqueles a que chamamos inimigos? Ele combateu por nós, e eu orgulho-me da sua força, mas afirmo que nós, que somos velhos, nos conduziremos a nós próprios. Vocês, os jovens, vão, cacem e protejam as nossas mulheres, dêem-lhes filhos e filhas, ensinem os vossos sobrinhos a caçar. Quando os anos vos tiverem dado sabedoria, juntem-se a nós, os velhos, mas não antes.

Chakliux, não quero desrespeitar-te declarou ele, sorrindo. Tu és um contador de histórias. Orgulha-te disso, mas deixa que os velhos se conduzam a si próprios.

Sok olhou para Chama-o-Sol e para Dá-Carne, ciente de que tudo seria resolvido por Raposa-Que-Ladra.

Por isso, ergo a minha voz para venerar o nosso contador de histórias.

O homem iniciou um cântico de louvor e outros fizeram o mesmo, mas Sok manteve-se sentado e em silêncio, assim como Chakliux, de olhos postos em Pato-de-Cabeça-Azul, um homem bom que jazia morto sem a homenagem dos cânticos fúnebres.

Quando o cântico de louvor terminou, uma mulher começou a entoar um cântico fúnebre, mas Raposa-Que-Ladra falou de novo.

Apesar desta homenagem prestada ao meu filho Chakliux, não posso pedir que ele seja também chefe dos caçadores. Há outros que trazem mais carne. Agora, depois desta batalha com os nossos inimigos, temos que arranjar um chefe dos caçadores cuja boa sorte se estenda a todos os homens da aldeia.

Vários caçadores gritaram o nome de Sok, e mais uma vez ele sentiu a esperança a crescer no seu coração. Raposa-Que-Ladra tinha razão. Chakliux fora criado como dzuuggi pelo povo de Rio Primo, e devia ser contador de histórias. Mas a perna fraca impedia-o de ser chefe dos caçadores.

Raposa-Que-Ladra levantou as mãos, olhou para Sok e sorriu.

Mais uma vez, tenho a honra de ouvir o nome de um dos meus filhos. Qual o caçador que é melhor do que Sok? Até o avô sabia que ele era hábil no manejo da lança e do lançador, mas Sok tem uma maldição. Ele é meu filho, e eu não queria dizer-vos isto, mas tenho essa obrigação. Já morreu muita gente.

Sok olhou para o padrasto. A que se referia ele? A que maldição? Olhou à sua volta e procurou Chakliux. Muitas vezes, o irmão compreendia coisas que escapavam ao seu entendimento, mas viu a mesma confusão no rosto do irmão. Em seguida, viu Folha Vermelha estendendo os braços para Raposa-Que-Ladra, como se pudesse impedi-lo de pronunciar aquelas palavras.

Olhem! O que vejo eu? A neve é vermelha, como o chão de uma cabana, declarou Raposa-Que-Ladra, dirigindo-se a Chakliux. Aprendi a apreciar os teus enigmas. Depois, virou-se para Sok. Olhem, o que vejo eu? Ela receia ter que construir uma cabana na lixeira e deixar de ver o Sol.

Sok olhou para Chakliux e viu a compreensão, depois a tristeza e a alvorada nos olhos do irmão.

 

Raposa-Que-Ladra semicerrou os olhos. A ferida que lhe rasgava a cara da testa até o queixo estava escura como o sangue.

Não compreendes? disse ele a Sok. Pergunta ao teu irmão. Com a mente dele e os teus pés, ambos dariam um bom guerreiro. Em seguida, estendendo os braços para o círculo de pessoas, Raposa-Que-Ladra disse: Temos que esperar antes de decidirmos quem será o chefe dos caçadores. Depois da caça ao caribu, saberemos e tomaremos uma decisão acertada. Até lá, os velhos resolverão quando iremos à caça e onde. Nós os três, indicou ele. apontando para Chama-o-Sol e Dá-Carne.

Ouviu-se um murmúrio de desaprovação, e por fim um dos jovens falou.

Sok é o nosso melhor caçador, e Chakliux entende de caça no mar. Sok tem muitos cães fortes e Chakliux trouxe-nos os filhotes de olhos dourados. Acho que estás enganado quanto a essa maldição.

Eu sei coisas que tu não sabes, disse Raposa-Que-Ladra. Lembra-te de que Chakliux só tem um cão neste momento, e a maior parte dos cães de Sok morreu.

O homem ficou esperando, mas ninguém falou.

Não me interpretem mal. Talvez seja Chakliux ou Sok a conduzir-nos. O que eu digo é que devemos esperar Depois do que caçamos na Primavera e no Verão, quando o Inverno se aproximar, resolveremos quem será o nosso chefe dos caçadores. Quem sabe o que acontecerá então? Muitas coisas podem mudar.

Levantou a sobrancelha a Chakliux, mas este fingiu que não via. Talvez o enigma de Raposa-Que-Ladra não estivesse certo. O homem mentia com freqüência, sobretudo em seu próprio benefício.

Agora, o que é mais importante é este morto, respeitado como velho durante tanto tempo. Temos que chorá-lo, como choramos todos os homens e mulheres que morreram nesta batalha.

Algumas mulheres levantaram a voz para começar a chorar, mas os homens ergueram facas e lanças.

Raposa-Que-Ladra fez sinal aos homens para que baixassem as armas.

Quando acabarmos o nosso luto, falaremos de vingança exclamou ele. Seis caçadores dos deles saíram vivos desta aldeia. Alguns dos nossos homens disseram que não devíamos ir atrás deles. Eu digo que fizemos mal em deixá-los viver. Não, eles não podem atacar a nossa aldeia como fizeram uma vez, mas o que os impedirá de perseguirem os nossos caçadores e de os matarem um a um? O que os impedirá de atacarem as nossas mulheres e os nossos filhos quando eles forem montar armadilhas?

Os caçadores começaram a falar em voz alta e vários homens levantaram-se, entoando um cântico de vitória. Chakliux também se levantou, aproximou-se do irmão e afastou-o do círculo.

Qual o significado dos enigmas? perguntou Sok, arfando como se tivesse vindo correndo. Compreendes o que ele acabou de nos fazer? Juntos, poderíamos ser os chefes da nossa aldeia, eu o chefe dos caçadores e tu o chefe dos velhos.

Ele quer poder para si próprio, afirmou Chakliux.

Julgas que eu não sei que ele quer todo o poder para si próprio, só porque não entendo os seus enigmas?

Chakliux sentiu o medo nas palavras do irmão.

Sok, agora há coisas mais importantes a resolver. A cabana de Folha Vermelha está vazia?

Está.

Vamos para lá.

Ligige’ viu Sok e Chakliux saírem do círculo. Ouvia Raposa-Que-Ladra, que continuava falando, e matutava nos enigmas, virando-os e sacudindo-os como uma mulher limpando as esteiras do chão. Os enigmas eram um disparate, pensou ela. Porque gostaria tanto deles o povo de Rio Primo? A sua irritação aumentava à medida que Raposa-Que-Ladra falava. As pessoas acreditavam nele? As suas palavras eram como redes prontas a apanhá-los a todos. Embora ele elogiasse Pato-de-Cabeça-Azul naquele momento, os outros já teriam se esquecido das anedotas que Raposa-Que-Ladra inventava a respeito do homem, das mentiras que contava dos seus filhos e até dos seus cães? Julgariam que ele era digno de confiança só porque vertera umas lágrimas?

Raposa-Que-Ladra disse a várias velhas e dois sobrinhos de Pato-de-Cabeça-Azul que levassem o cadáver do homem para a cabana da mulher e, quando eles saíram, falou de novo em vingança, prometendo aos jovens que eles podiam fazer das mulheres de Rio Primo suas esposas e assegurando às mulheres que os seus homens trariam comida e peles das despensas de Rio Primo. Por fim, Ligige’ não conseguiu ouvi-lo mais.

Levantou-se com a ajuda da bengala e gritou para quem a quisesse ouvir:

Ele é um louco, um mentiroso. Se vocês o seguirem, não são melhores do que ele.

Virou-se para abandonar o círculo, ignorando os gritos que lhe eram dirigidos. Ao afastar-se, a sua fúria pareceu desanuviar-lhe a mente e, de repente, percebeu o que Raposa-Que-Ladra queria dizer com os enigmas.

Foi como se lhe tivessem dado um murro no estômago, e foi obrigada a parar, a recuperar o fôlego. Ia dirigindo-se para a cabana de Folha Vermelha, mas depois concluiu que tinha que pensar antes de falar com Sok.

Os seus pensamentos eram tênues como a fumaça, descrevendo círculos, desde a batalha. Quem podia acreditar que uma aldeia tivesse perdido tanto num dia? Quem podia acreditar que morrera tanta gente? E quem podia acreditar que o desgosto não a matara?

Sok espevitou as brasas da lareira, empurrou o capuz da parka para trás e aproximou as mãos abertas do fogo. Por fim, Chakliux declarou:

Não me parece que muita gente tenha compreendido os enigmas.

Talvez eu tenha compreendido o primeiro, respondeu Sok. Vermelho na neve e no chão de uma cabana significa sangue. Ele falava de duas mortes, a do nosso avô e a da mulher dos Caçadores Marinhos.

Chakliux concordou com um gesto de cabeça.

Mas não compreendo o segundo enigma.

Chakliux fechou os olhos e cerrou os punhos. Não queria dizer aquilo a Sok. Se não fosse verdade, porque o repetiria? Mas se fosse verdade e Raposa-Que-Ladra soubesse, tinham que estar preparados: deviam pensar antes de agir.

O que nós pomos nas lixeiras? perguntou ele em voz baixa.

Sok despiu a parka pela cabeça, a pôs no chão e depois resmungou:

Coisas para jogar fora, coisas que não queremos.

Quem é que vive em cabanas? perguntou Chakliux.

Nós. Todos nós, respondeu Sok com uma ponta de irritação na voz.

Pessoas, disse Chakliux. Nem animais, nem pedras, nem plantas. Pessoas.

Sim.

De quem são as nossas cabanas?

Das mulheres.

O segundo enigma era: "Ela receia ter que construir uma cabana na lixeira e deixar de ver o Sol.”

Uma mulher rejeitada. Ele refere-se a uma mulher rejeitada pelo marido, afirmou Sok, franzindo a testa. As únicas mulheres rejeitadas no ano passado foram Mirtilo e a mulher dos Caçadores Marinhos.

Chakliux abanou a cabeça.

Raposa-Que-Ladra falava de uma mulher que tinha medo de ser rejeitada.

Podia ser uma mulher qualquer.

Lembra-te de que ela tem medo de não voltar a ver o Sol.

Chakliux apontou para o motivo do Sol na parka de Sok e viu a compreensão e depois o horror no rosto do irmão.

Folha Vermelha? perguntou ele em voz baixa. Não foi Folha Vermelha. Ela preocupava-se tanto com o nosso avô. Ela não seria...

De repente, Sok levantou-se.

Raposa-Que-Ladra! gritou Sok. Ele está tentando destruir-nos. Ele quer que os outros nos expulsem da aldeia!

Abriu a aba da porta, depois parou e voltou a entrar na cabana, boquiaberto. Folha Vermelha entrou, de olhos postos nele.

Compreendes o enigma? perguntou ela.

Ele está mentindo. Não é verdade? disse Sok. Então, Raposa-Que-Ladra entrou também na cabana, com a boca escancarada num sorriso.

Conta-lhe, disse Raposa-Que-Ladra a Folha Vermelha.

A mulher falou em voz baixa, como que em segredo:

Eu matei o teu avô e a mulher dos Caçadores Marinhos.

Ela teria me matado, se pudesse, mas achou que eu guardaria o seu segredo, disse Raposa-Que-Ladra. Ela julgava que eu preferia manter a honra do meu filho. Foi o que fiz quase sempre, mas havia momentos...

O homem olhou para Sok e riu.

Folha Vermelha virou-se para ele e levantou as mãos.

Para que ficasses com os seus cães. Para que ficasses com as suas canções. Para que fosses chefe dos caçadores.

Sok enterrou a face nas mãos. Os seus ombros estremeceram, mas Chakliux não ouviu nenhum som. Por fim, Sok olhou para a mulher.

Nenhum homem quer ser chefe dos caçadores dessa maneira, declarou ele, falando em voz baixa como se se dirigisse a uma criança.

Eu tinha medo de que me rejeitasses para ficares com Neve-no-Cabelo como primeira esposa. Eu sabia que tu a desejavas ainda antes de me tornar tua mulher. Julguei que conseguiria fazer-te esquecê-la, e depois pensei que ela poderia ser segunda esposa, mas que Lobo-e-Corvo não te daria.

Pensei que ele poderia dar-te se fosses chefe dos caçadores. Então, não me rejeitarias. Eu não tencionava matar a mulher dos Caçadores Marinhos. Mas ela viu-me, ela e o filho. Julguei que o rapaz fosse dizer a outras pessoas, mas eu vesti-me de homem e ele não deve ter me reconhecido. Mas Raposa-Que-Ladra viu-me...

Eu acabara de sair da cabana do vosso avô, continuou Raposa-Que-Ladra. Vi-a das sombras, mas ela não me viu. Só no dia seguinte é que eu soube quem tinha morrido. Depois lembrei-me de que a tinha visto. Fui falar com Folha Vermelha e prometi-lhe que não contaria nada, que eu não queria que o meu filho fosse prejudicado por um ato cometido pela mulher. Mas às vezes um homem não consegue viver mais tempo com mentiras.

Sok virou as costas a Raposa-Que-Ladra e disse a Folha Vermelha:

Nós tínhamos dois filhos fortes. Eu não te rejeitaria, mas agora...

As suas palavras desvaneceram-se, e Sok agarrou a faca que trazia à cintura.

Sabes quantas vezes desejei matar a pessoa que tirou a vida ao meu avô?

Eu sairei da aldeia, declarou Folha Vermelha. Encontrarei outro local qualquer para criar o nosso filho.

Sok cerrou os dentes.

Se eu te deixar sair, não levarás Chora-Alto. Ele ficará comigo. Neve-no-Cabelo será a sua mãe.

Eu não estou falando de Chora-Alto, proferiu Folha Vermelha, pondo a mão na barriga. Falo deste filho que trago debaixo do coração.

Raposa-Que-Ladra riu.

Então, que alternativa tens? perguntou ele. Fica com ela. É uma mulher forte. Quem mais sabe fazer parkas como Folha Vermelha? Mas devo dizer-te que ela não é bem-vinda nesta aldeia. Tu podes ficar, mas ela não. Nem o filho. Qualquer filho.

O homem riu outra vez.

Sok deu meia volta, pegou a parka e atirou-a para o fogo. O pelo incendiou-se, enchendo a cabana de fumaça.

Sai! gritou ele a Raposa-Que-Ladra. Esta mulher, eu e os nossos filhos sairemos da aldeia amanhã de manhã. Até lá, não te quero ver.

Sok empurrou Raposa-Que-Ladra para o túnel de entrada.

Chakliux tirou os restos queimados da parka da lareira com um pau e foi colocá-los lá fora.

Sok agachou-se e depois sentou-se com a cabeça nas mãos. Chakliux sentou-se a seu lado.

Eu vou contigo, disse ele ao irmão. Ainda tenho esperança de encontrar Aqamdax.

Aqamdax morreu, disse Sok. Vi a morte dela em sonhos.

Eu não vi, respondeu Chakliux em voz baixa.

Para onde iremos?

Para a aldeia de Rio Primo.

Eles são nossos inimigos.

Eles são o meu povo. Não posso permitir que Raposa-Que-Ladra planeje um ataque de vingança sem eu avisá-los.

Porque eles acreditarão em ti? Porque te darão ouvidos? Eles sabem que lutaste contra eles.

Irei falar com a minha mãe, na calada da noite.

Achas que ela não te matará?

Talvez tente matar-me, mas me ouvirá primeiro.

De que lhes servirá saberem que os nossos caçadores vão a caminho? Só lhes resta uma mão-cheia de caçadores. Sok olhou fixamente para Chakliux. Não esperas que eu lute contra o meu próprio povo. Não o farei. Procurarei vingar-me de Raposa-Que-Ladra, mas não dos outros.

Então compreendes o que sinto pelo meu povo. Tenho poucos de que me queira vingar: Homem Noturno e Tikaani, embora ambos já possam ter morrido. Não vi Homem Noturno na luta nem entre os sobreviventes, e Tikaani foi levado de trenó. Resta apenas a minha mãe.

E, nesta aldeia, Folha Vermelha, disse Sok, olhando para a mulher até ela se encolher junto da parede da cabana e cobrir o rosto com as mãos.

Durante muito tempo, nenhum dos homens falou, mas, por fim, Sok quebrou o silêncio.

Levarei Folha Vermelha e Chora-Alto e partirei de manhã. Andarei pelos arredores da aldeia de Rio Primo. Se optares por vir comigo, vem. Fico à espera que vás visitar o povo de Rio Primo. Se não voltares, continuarei a viagem e tentarei encontrar uma aldeia de Rio que receba bem um caçador e a sua mulher. Ou talvez construa uma cabana perto do Lago do Avô e fique por lá. Sok fixou Chakliux.

Tem sido bom ter um irmão.

Desenrolaram as esteiras, mas Chakliux não conseguia dormir. Já tinham embalado muitos dos seus pertences, e de manhã esvaziariam as suas despensas. Embora Lobo-e-Corvo lhe tivesse matado a maior parte dos cães, Sok ainda possuía Falcão da Neve e mais dois. Chakliux tinha Nariz Preto. Com os cães e os quatro Chakliux, Sok, Folha Vermelha e Chora-Alto podiam levar muita coisa, e até a cobertura de pele de caribu da cabana de Folha Vermelha.

Chora-Alto fora falar com eles quando estavam preparando a bagagem, mas Sok recusara-se a responder às muitas perguntas do rapaz. Por fim, Folha Vermelha chamou-o de lado e falou com ele durante muito tempo. Então, o rapaz ajudou-os também, com o rosto sombrio e os olhos vermelhos e inchados, embora Chakliux não o tivesse visto chorar.

De madrugada, Chakliux ouviu alguém do lado de fora da cabana. Sentou-se e pegou a faca. Se os outros tivessem resolvido os enigmas de Raposa-Que-Ladra, poderiam querer vingar-se, mas depois Chakliux sentiu raspar na parede da cabana. Qual o inimigo que avisava antes de entrar? Atravessou o túnel. Neve-no-Cabelo estava lá fora, com o filho atado nas costas.

Preciso de falar com o meu marido.

Chakliux fez-lhe sinal para que entrasse e viu que Sok e Folha Vermelha estavam acordados. Sok sentou-se junto da lareira.

Chakliux embrulhou-se nos cobertores, deitou-se e virou-lhes as costas.

Raposa-Que-Ladra foi falar comigo, afirmou Neve-no-Cabelo. O que ele me contou é verdade?

É, respondeu Folha Vermelha tranqüilamente, aproximando-se de Sok.

Porque fizeste uma coisa dessas?

Para conservar o meu marido, respondeu Folha Vermelha.

Acho que posso compreender. Se eu for com vocês, eu e o meu filho estaremos seguros? perguntou Neve-no-Cabelo.

Estarão seguros, respondeu Sok, mais alto.

Não. Estou perguntando a Folha Vermelha, disse Neve-no-Cabelo.

Estarás segura, assim como qualquer dos teus filhos.

Quando partem?

De manhã, depois de tirarmos a cobertura da cabana respondeu Sok.

Me ajuda a tirar a cobertura da minha? perguntou ela.

Ajudo, disse Sok, e Chakliux percebeu a alegria na voz do irmão.

A mulher saiu e em seguida entrou a mãe, Mulher Diurna. As suas lágrimas e os seus soluços acordaram Chora-Alto. Iria com eles, disse ela, e nenhum argumento de Sok ou de Chakliux a conseguiu convencer do contrário. Já trouxera o seu fardo. Raposa-Que-Ladra estava zangado, mas não a impediria de partir. Qual o préstimo de uma mulher sem filhos na aldeia, uma mulher que já não tinha idade para conceber? Era provável que Raposa-Que-Ladra a rejeitasse no começo do Inverno. Preferia uma mulher mais nova.

O que podiam Sok e Chakliux fazer senão levá-la?

De manhã, quando enrolaram os cobertores, quando Folha Vermelha e Mulher Diurna foram esvaziar a despensa, enquanto Chora-Alto e Chakliux começavam a tirar a cobertura da cabana dos postes, Ligige’ foi falar com eles. Levava o cão de Lobo-e-Corvo e os seus pertences atados ao dorso do animal. Agachou-se e ficou vendo-os trabalhar, aconselhando-os de vez em quando.

Cerca de meio-dia, estavam prontos para sair da aldeia. Ignorando as pragas e reconhecendo os gritos que eram bênçãos, partiram: dois caçadores, duas mulheres, um rapaz, um bebê, cinco cães e duas velhas.

 

Pela terceira vez desde o regresso dos homens, os sonhos de K’os fizeram-na recuar ao dia no Rochedo do Avô. Pela terceira noite, ela não era K’os, curandeira, temida por todos, mas K’os, filha de Marta, uma moça sem poder. Acordou sobressaltada. Os cobertores estavam enrolados à sua volta, imobilizando-a, tal como Asa-de-Gaivota a imobilizara; a trança desfizera-se e os cabelos cobriam-lhe o rosto, abafando-a, tal como a parka a abafara.

Depois ouviu a voz do homem. Como ainda estava sonhando, julgou tratar-se de Asa-de-Gaivota. Abriu a boca para gritar mas, ao respirar, engoliu o próprio cabelo. Sentiu as mãos no rosto, mas eram ternas, afastando-lhe os cabelos, soltando-lhe os cobertores. Então a sua mente e os seus olhos desanuviaram-se, e ela percebeu que era Chakliux.

Afastou-lhe as mãos, levantou-se, desembaraçou-se dos cobertores e pôs um deles pela cintura. Mexeu as brasas da lareira, chegou um tripé em que estava pendurada uma pele de caribu cheia de guisado mais para junto das brasas, agachou-se e olhou para ele.

Ele era maior do que ela julgava, e o seu rosto mudara. De rapaz para homem? Não, isso acontecera muito antes. De contador de histórias para guerreiro. Talvez isso.

Então estás vivo, disse-lhe ela.

As palavras foram ríspidas, secas com a apatia do sono.

O silêncio dele recordou-lhe Bate-no-Chão, e K’os perguntou a si própria se o espírito do marido morto não teria passado para Chakliux, não reforçara nele uma necessidade de vingança.

Os nossos guerreiros dizem que os homens de Rio Próximo lutaram com bravura, comentou ela. Também me dizem que foste tu que os chefiaste.

Combatemos para proteger as mulheres e as crianças, e os velhos, disse Chakliux.

K’os levantou-se, pegou duas tigelas de madeira e encheu-as com carne que tirou da panela.

Comes? perguntou ela estendendo-lhe as duas tigelas.

Ele pegou uma, envolveu-a com as mãos e esperou que K’os desse a primeira dentada. Depois comeu.

Tens medo que eu te envenene? perguntou ela, gozando dele.

Ensinaste-me a ser cauteloso, respondeu ele.

E porque eu como, pensas que estás seguro? E se eu tiver resolvido morrer? E se eu tiver decidido sacrificar-me para matar aquele que matou tanta gente do meu povo?

Chakliux sorriu.

Tu não te importas com o teu povo. Porque morreras por ele?

Porque não? Um dia morrerei de qualquer maneira. Sou uma velha.

Chakliux examinou-a.

Sim, és uma velha, disse ele por fim.

As palavras dele enraiveceram-na, mas K’os conseguiu conter-se.

A sabedoria vem com a idade. A força, o poder e o respeito.

Para alguns.

A garganta de K’os ardia com pragas não verbalizadas, e a mulher agarrou-se com força à tigela para não dar uma bofetada em Chakliux.

Pois então vieste escarnecer da nossa derrota, aproveitar-te das mulheres? Só cinco é que têm marido, seis, se contares com Aqamdax, embora Homem Noturno esteja morrendo.

K’os ouviu-o arfar quando ela se referiu a Aqamdax.

Não sabias que a mulher estava aqui? perguntou ela, rindo. Foi-me oferecida por Tikaani e Cen. Foi minha escrava até Tikaani concluir que o irmão precisava de uma esposa. Usei-a bem.

A mulher riu outra vez e sentiu que o riso lhe devolvia uma parte do seu poder.

Pois então ela encontrou um lugar no teu coração. Julguei que não tinhas espaço senão para uma mulher morta e um filho morto.

Chakliux não respondeu e K’os continuou falando.

Sim, Cen e Tikaani apanharam-na e ao rapaz, o irmão. Ele também está aqui. Estrela recebeu-o como um filho, mas não te preocupes em vingar a captura deles. Tikaani morreu e, como Cen não regressou da batalha, creio que também morreu.

A mulher apertou os olhos e observou Chakliux. Este levou a tigela à boca e comeu até a esvaziar.

Perguntei porque estás aqui, disse K’os, sem voltar a encher-lhe a tigela e sem lhe oferecer água.

Ele levantou-se, tirou um odre de água do poste e bebeu. Limpou a boca com a mão e depois estendeu-lhe o odre. Ela abanou a cabeça.

Estou aqui para te dizer que os homens de Rio Próximo estão planejando um ataque para se vingarem.

Quantos são?

Não sei.

Eles sabem que vieste avisar-nos?

Não me parece.

Porque vieste? Porque não ficaste para lutar ao lado deles?

K’os viu-o hesitar e lembrou-se de que ele fazia o mesmo quando era pequeno, quando havia alguma coisa que ele não queria dizer-lhe. Chakliux podia ser um homem, um guerreiro, até um dzuuggi, mas continuava a ser uma criança, e ela conhecia bem essa criança.

Eles não te querem lá. Porquê?

Chakliux agachou-se de novo à beira do fogo.

Eu não os chefiei por escolha ou decisão, deles ou minha. Eu chefiei-os porque fui o primeiro a compreender o plano que os teus homens usaram para nos combater.

E arranjaste uma maneira de responder ao seu ataque. Ele apoiou as mãos nos joelhos.

Os velhos dizem que foste tu que deste os arcos aos homens de Rio Primo. Dizem que tiraste um arco a um dos nossos velhos.

K’os levantou a sobrancelha.

Um belo velho, disse ela. Talvez te lembres dele quando vinha à minha cabana. Era comerciante e às vezes aceitava a nossa hospitalidade. Teve uma morte triste.

Como Chakliux não disse nada, ela acabou de comer a carne que tinha na tigela, levantou-se e foi servir-se de novo, mas não lhe ofereceu nada.

Então porque vieste avisar-nos? perguntou ela, sentando-se outra vez. Com certeza que nos consideras teus inimigos.

Para dizer a verdade, só tenho um inimigo disse ele.

Achas? perguntou ela.

Acho.

Estás enganado. Estrela odeia-te por lhe teres matado os irmãos. Aqamdax odeia-te porque a deixaste aqui e não tentaste encontrá-la. Aqueles cinco guerreiros que sobreviveram também te odeiam.

Aviso-vos por causa das mulheres e das crianças. Aviso-vos para que possam sair da aldeia antes de os homens de Rio Próximo chegarem.

É o que julgas que faremos? Fugir? Esconder-nos? Julgas que estamos tão assustados com os de Rio Próximo que deixaremos os nossos feridos e os nossos velhos?

Acho que vocês têm três ou quatro dias para resolver o que vão fazer disse ele, devagar. Três ou quatro dias para levar os vossos filhos, feridos e velhos para um local mais seguro.

E tu lutarás ao lado deles? perguntou K’os.

Não. Eu luto para salvar vidas, não para as ceifar, respondeu ele.

Pôs o capuz em volta do rosto e virou-se para o túnel.

Chakliux, chamou K’os. Raposa-Que-Ladra e aquele a quem chamam Dorminhoco morreram na batalha?

Dorminhoco morreu.

E Raposa-Que-Ladra? perguntou ela.

É agora o chefe do povo de Rio Próximo.

Chakliux saiu da cabana, e só quando K’os levou a tigela à boca é que reparou que tinha enterrado os dentes no lábio inferior.

Chakliux atravessou as sombras escuras da aldeia em direção à cabana de Estrela. Esperava ouvir o uivo dos cães de Topa-Nuvens, mas, apesar de os animais terem levantado a cabeça à sua passagem, só um é que latiu dois latidos curtos. Os cães lembravam-se dele. Sabiam que ele pertencia à aldeia.

Aproximou-se da cabana e agachou-se junto do túnel de entrada. Não queria entrar, nem arriscar-se a acordar Estrela, a mãe ou o marido de Aqamdax, Homem Noturno. Mas como podia sair da aldeia sem ver Aqamdax?

Ficou imóvel durante muito tempo, até o frio lhe adormecer os pés e lhe chegar aos tornozelos. Por fim, afastou a aba da porta. Era um quadrado de pele de caribu com costuras duplas e pedras na parte inferior para que o peso destas não permitisse que o vento a abrisse. Ninguém falou, nenhum cão latiu e ele entrou, repôs a aba no seu lugar e ficou de novo esperando, escutando.

Por fim, afastou a aba interior. Ouviu um leve rosnar. Estrela também tinha um cão na cabana? Então, Chakliux percebeu que era Mordedor. Sorriu, estendeu a mão, chamou o cão em surdina, tirou uma tira de carne seca da manga e lhe deu. O animal aproximou-se devagar. À luz do braseiro da lareira, Chakliux viu que ele tinha o pelo eriçado. O animal cheirou a carne, tirou-a da mão com cuidado e depois abanou a cauda. Chakliux acariciou o peito amplo do cão e repetiu o nome dele em voz baixa. Mordedor levou a carne para uma esteira do lado das mulheres.

Ainda parcialmente escondido no túnel, Chakliux avistou Ghaden, deitado e de boca aberta. O rapaz mexeu-se, passou um braço por cima do cão, balbuciou qualquer coisa dormindo e depois calou-se. Alguém estava deitado ao lado dele. Seria Aqamdax? Ou Estrela? Chakliux, que se encontrava de joelhos, levantou-se um pouco. Não, era uma menina. Virou-se e ele viu-lhe o rosto. Era Yaa. Porque não? Se Mordedor estava ali, porque não Yaa? K’os dissera-lhe que ela e o cão tinham desaparecido poucos dias depois de ele sair da aldeia. Talvez Cen e Tikaani também a tivessem levado. Ou talvez ela os tivesse seguido. Chakliux tentou imaginar-se fazendo o mesmo em criança, mas não conseguiu.

Mexeu-se para poder ver o outro lado da cabana. Viu duas mulheres Estrela e outra de cabelos grisalhos. A mãe dela. Avançou mais um pouco e viu Homem Noturno, dormindo. Depois, viu o rosto da pessoa que estava sentada ao lado de Homem Noturno.

Aqamdax. Ela sorriu um sorriso triste e fez-lhe sinal para que voltasse para o túnel. Ele ficou esperando e ela foi ao seu encontro, embrulhada num cobertor que lhe cobria a cabeça e os ombros. Às escuras, ele tocou-lhe no rosto, que estava úmido. Aqamdax deitou a cabeça no ombro dele e, durante muito tempo, ficaram sentados sem dizer nada.

Rezei para que viesses falar comigo, disse ela em voz baixa.

Vem comigo agora incitou ele, enfiando a mão entre o cobertor e o cabelo dela.

Não posso abandonar o meu marido, disse ela. Não posso abandonar Ghaden nem Yaa.

Traga-os. Todos.

Homem Noturno está muito doente. Não posso deslocá-lo.

Aqamdax, os homens de Rio Próximo vêm atacar a aldeia. Tens três ou quatro dias, mais nada. Homem Noturno tem forças para chegar à floresta? Se conseguires fazê-lo chegar lá, eu posso levá-lo de trenó e tirá-lo da aldeia antes do ataque.

Deixa-me pensar, disse ela, encostando de novo a cabeça no ombro dele.

Ele abraçou-a com força. Era mulher de outro, mas tê-la encontrado depois de procurar tanto... Chakliux ainda não acreditava que era verdade.

Amanhã, quando o Sol estiver bem alto no céu, espera por nós na floresta disse Aqamdax. Conheces a rocha negra à beira do caminho?

Conheço.

Faremos o possível por chegar lá. Aviso os outros, os poucos homens que nos restam, que os guerreiros de Rio Próximo vêm a caminho?

Eu disse a K’os, respondeu Chakliux.

Não podes ficar aqui. Os homens te matam.

Não te preocupes. Eu vim com o meu irmão.

Sok está aí?

Ele está à minha espera, mas não sabe que estás aqui. Ele sentiu-a sorrir.

Ele não vai ficar satisfeito por me teres encontrado, observou ela.

Vai. Ele sabe há quanto tempo é que eu ando à tua procura, respondeu Chakliux.

Porque só vieste agora?

Primeiro, fui à tua aldeia disse ele. Ouviu-a ofegar.

Ao meu povo? perguntou ela.

Ao teu povo e aos Morsas.

Viste Qung e Cantador? Viste Tut?

Todos. Vivi com Tut e os irmãos.

Qung está bem?

Está.

Chakliux encostou a face em cima da cabeça dela, Aqamdax levou a mão ao rosto dele e Chakliux agarrou-lhe o pulso e sentiu o fio de tendão que ela usava como pulseira. Apalpou os nós e reconheceu o desenho da lontra.

Guardei-a disse ela.

Em seguida, afastou-se dele e procurou alguma coisa que trazia à cintura. Na escuridão do túnel, ele não viu o que era, mas ela depositou-lhe nas mãos um objeto frio e liso.

É uma concha feita de dente de baleia disse ela em surdina. Uma coisa que os contadores de histórias usam na minha aldeia. Foi Qung que me ofereceu. Ela te lembrará do laço que une os contadores de histórias, tal como o tendão no meu pulso me recorda que ambos descendemos das lontras.

Ouviu-se um gemido suave vindo do interior da cabana. Aqamdax encostou-se a Chakliux e segredou:

É o meu marido.

E, de súbito, desapareceu, tão depressa como viera.

Aqamdax adormeceu finalmente ao romper da aurora. Depois, foi arrancada aos seus sonhos por alguém falando alto. Era Pescador raspando na parede da cabana, até que o latir de Mordedor acordou a todos.

Pescador entrou sem Estrela o convidar e sentou-se ao lado de Homem Noturno, que também acordara com a falta de educação do homem.

Foi K’os que me mandou aqui, disse ele a Estrela. Ela diz que todo mundo da aldeia virá aqui daqui a pouco.

Estrela susteve a respiração.

Não precisas lhes dar comida. É só para nos reunirmos e debatermos uns planos. Ontem à noite, Chakliux esteve na aldeia e disse a K’os que os de Rio Próximo não tardarão a atacar-nos. Ela quer que discutamos a melhor maneira de os combatermos. Resolveu juntar-nos nesta cabana, sobretudo porque Homem Noturno não pode andar. Pescador virou-se para Homem Noturno. Ela quer a tua sabedoria.

O olhar de Homem Noturno desanuviou-se e o homem endireitou-se nas esteiras.

Aqamdax levantou-se da cama, vestiu as perneiras e uma camisa de pele de caribu, enrolou a cama e foi buscar comida. Estrela demorou muito vestindo-se e a penteando-se. Fez tudo em frente de Pescador, observando-o com um olhar lânguido. Aqamdax pediu a Yaa que a ajudasse a levar Olhos Grandes à latrina das mulheres. Yaa abriu a boca e Aqamdax percebeu que ela ia perguntar por que motivo a velha tinha que sair. À noite e de manhã, costumava urinar num balde de madeira. Mas Aqamdax franziu a testa à menina e abanou a cabeça. Em seguida, vestiu as perneiras e a parka em Olhos Grandes, calçou-lhe as botas e saíram as três.

Quando chegaram à latrina das mulheres, Aqamdax ajudou Olhos Grandes com as perneiras e a parka e segurou-a quando ela se agachou para urinar. Depois, enquanto a velha ajeitava as roupas, Aqamdax puxou Yaa para o lado e contou-lhe o plano de Chakliux.

Vai dizer-lhe que eu não posso ir, que K’os deve ter adivinhado o que nós faríamos e convocou uma reunião para a nossa cabana. Pegou o queixo da menina com as mãos. Leva Ghaden e o Mordedor e vai com ele. Não fiques na aldeia.

É só Chakliux? Ele vem sozinho? perguntou Yaa.

Ele e Sok, respondeu Aqamdax. Yaa abanou a cabeça e desviou o olhar.

Não podemos ir com ele, disse ela. Ghaden não pode. E eu não posso.

Yaa, isso é um disparate. Os homens de Rio Próximo...

Aqamdax, quando estávamos na aldeia de Rio Próximo, disseste-me para eu continuar falando com Ghaden, para tentar ajudá-lo a lembrar-se de quem matara... A mãe dele... A tua mãe.

Aqamdax ficou sem fôlego.

Sim, disse ela em voz baixa.

Durante a dança, quando os homens daqui se preparavam para atacar a nossa aldeia, lembras-te das botas que eles usavam, aquelas com os chocalhos?

Aqamdax fez um sinal afirmativo.

O ruído dessas botas ajudou Ghaden a lembrar-se. As botas do assassino tinham chocalhos e, dos lados, a pele estava cortada em forma de sol.

Sok, disse Aqamdax em voz baixa.

Nós ficaremos contigo, disse Yaa em voz alta. Lutaremos ao teu lado contra os de Rio Próximo. Se eles tentarem matar Homem Noturno, nós os mataremos.

Ajudaram Olhos Grandes a voltar para a cabana. Em seguida, afastaram as camas e as esteiras para arranjar espaço para as pessoas da aldeia. Aqamdax tentou não pensar que Chakliux estava esperando-a nem no que ele faria se ela não aparecesse.

Nessa manhã, K’os mandou os rapazes ficarem espiando em toda a volta da aldeia, os mais novos a norte, por onde seria menos provável que os de Rio Próximo chegassem, e os mais velhos a sul, escondidos na vegetação do Rio Primo. Quando a reunião começou e K’os disse às pessoas que Chakliux os fora avisar, elas gozaram, mas depois algumas das velhas que cuspiam em K’os tomaram o partido dela. Que asneira pensarem que eles não viriam, disse uma velha. Recordava-se de outras lutas. Quando numa aldeia só restavam mulheres e crianças, porque não ir roubar as despensas e buscar escravos?

Os homens falaram como se quisessem lutar, mas, pelo olhar deles, K’os percebeu que não o desejavam. Deixou-os falar durante muito tempo, mas de vez em quando fazia perguntas para lhes lembrar como fora a batalha. Por fim, apresentou o seu próprio plano.

Deixem as mulheres irem ao encontro deles, disse ela, ignorando a respiração ofegante e o terror dos velhos e das mulheres com filhos ao peito. Não iremos todas, só algumas. Eu vou. Finjo-me admirada por eles virem atacar-nos. Digo que nos preparávamos para irmos à aldeia de Rio Próximo. Iremos carregados com mantimentos das nossas despensas. Prometeremos ir com eles e diremos que não queremos lutar.

Julgas que isso os impedirá de atacar os que ficarem aqui? perguntou Espreita-o-Céu.

Não, é claro que não, respondeu K’os. Olhou para Pescador e perguntou: Se um grupo de mulheres fosse falar contigo, oferecendo-se para se render, o que farias?

Ele ficou pensando e depois disse:

Deixava um ou dois velhos com elas e levava o resto dos homens para lutar como tínhamos planejado.

Algum de vós agiria de modo diferente? perguntou K’os.

Ouviu-se um murmúrio de concordância.

E se as outras mulheres, os rapazes e os velhos da aldeia... quem conseguir sair da aldeia... fossem para a floresta, se escondessem até os homens atacarem e depois saíssem da floresta e atacassem de surpresa? Então, nós, que tínhamos ido ao encontro dos caçadores, voltaríamos também para lutar com as lanças e as facas que escondêramos nos nossos fardos.

As mulheres não sabem utilizar lanças nem facas, observou Leva-mais.

Temos um ou dois dias para aprender alguma coisa, disse Estrela, com os olhos brilhando e arreganhando os dentes. Eu gostaria de matar um deles.

Caule Torto levantou-se, cambaleando.

Os de Rio Próximo mataram o meu neto e dois dos meus filhos disse ela. Não me interessa saber se ganhamos. Eu só quero que apanhemos tantos quantos pudermos.

Começou a cantar, um cântico guerreiro. Durante algum tempo, cantou sozinha; depois um dos homens se juntou a ela, e vários rapazes. Então, todos cantaram, batendo com os pés e com os punhos no chão para que a força da terra os ajudasse na sua vingança.

K’os ficou sentada em silêncio, escolhendo quais as mulheres e os rapazes que levaria consigo ao encontro dos caçadores de Rio Próximo.

 

Eram doze, sem contar os bebês. Levavam cajados, como se fossem preparados para uma longa viagem. Tanto eles como os cães transportavam fardos pesados. K’os fizera uma escolha criteriosa, levando mulheres que eram dóceis mas fortes, com uma certa beleza no rosto ou no corpo. Três eram jovens mães, todas viúvas, todas com bebês; duas tinham filhos que já andavam. K’os incluiu três jovens solteiras, que já tinham tido a sua primeira menstruação. Uma das mães, Guarda-Peixe, insistira em acompanhar a filha, Filha-do-Sol, apesar de K’os não querer levá-la. Guarda-Peixe era uma mulher de vontade forte. K’os também levara dois rapazes, quase adultos, no caso de elas precisarem de proteção, mas que aceitavam ordens com facilidade.

Os três rapazes que vigiavam o caminho da floresta tinham ido falar com os caçadores na noite anterior, dizendo que haviam visto fogueiras e ouvido cânticos de guerra de um grupo de homens acampados a meio dia de caminho para o Sul. Na manhã seguinte, K’os pôs-se em marcha com o seu grupo.

Quando saíram da orla mais distante da floresta, um dos rapazes foi correndo à frente. Ao voltar, trazia a boca fechada e K’os percebeu o seu medo.

Eles estão perto, disse-lhe ele.

Ainda bem, respondeu K’os, ignorando a expressão de surpresa do rapaz. Os de Rio Próximo ainda não sabem, mas a luta já começou.

Chakliux observava a cena da floresta. Nesse dia, Aqamdax também não aparecera. Quando ele avistou K’os e os que a acompanhavam, foi atrás deles. Caminhando em silêncio, escondido nas moitas de amieiros e de bétulas, observava-os e perguntava a si próprio aonde iriam. Assim que eles desapareceram nos acidentes do terreno, ele seguiu na direção do rio e atravessou o mato até descobrir o grupo outra vez. Caminhavam devagar, com as mães e os filhos, e, apesar de o rio ainda estar gelado, ao meio-dia a terra amolecia e a lama se colava aos pés.

Chakliux viu o rapaz correndo para eles, ouviu a sua mensagem e a resposta de K’os.

Então a aldeia tinha um plano de luta. Queria ficar escondido, vendo o que acontecia, mas rastejou até o rio, caminhando cautelosamente por cima das pedras e do gelo, tentando não deixar rasto, e voltou para a floresta. Se ia travar-se uma batalha, ele ficaria junto de Aqamdax para lhe oferecer toda a proteção que fosse possível.

Eram conduzidos por Raposa-Que-Ladra, como Chakliux lhe dissera. O ódio fervilhava no coração de K’os. Seria difícil render-se a ele, mas essa seria apenas a primeira de muitas coisas difíceis. Teria que ser escrava durante algum tempo, mas sabia como agradar os homens. Pouco depois, seria esposa, talvez até de Raposa-Que-Ladra. Sim, muito provavelmente dele.

De repente, ficou satisfeita por ele ainda estar vivo. Gostaria de ser sua mulher, e ele ficaria agradecido por ela ser curandeira.

Encontraram-se em campo aberto. K’os tomou a dianteira do grupo e gritou:

Sou K’os, uma mulher da aldeia de Rio Primo, uma curandeira do Povo Rio. Eu e esta gente vamos ao encontro dos nossos irmãos na aldeia de Rio Próximo. Esperamos encontrar um lugar entre os vossos.

Raposa-Que-Ladra ficou de boca aberta como se fosse falar, mas não disse nada. Por fim, um homem mais pequeno que ia a seu lado, outro velho, falou. As palavras saíam-lhe da boca aos poucos, como se ele não estivesse habituado a exprimir o que sentia na presença de outras pessoas.

Quantos são... Na aldeia? perguntou ele.

Poucos, respondeu ela. Seis caçadores, um moribundo e dois feridos. Seis mãos-cheias de jovens. K’os encolheu os ombros. Mais quatro mãos-cheias de velhas. Crianças e bebês. Vários rapazes.

Por fim, Raposa-Que-Ladra recuperou a fala.

Esses outros estão na aldeia?

Alguns estão respondeu K’os. Vão lutar convosco, mas nós já estamos fartos de guerra. Não temos nada contra as pessoas da aldeia de Rio Próximo. Porque teríamos? Temos os mesmos antepassados. Deixem-nos ir para a aldeia de Rio Próximo. Ficaremos lá à vossa espera.

Raposa-Que-Ladra soltou uma gargalhada, e os homens que o seguiam riram também. Eram cerca de seis mãos-cheias, segundo os cálculos de K’os, o que queria dizer que os homens de Rio Primo tinham matado mais gente do que ela julgava, ou que alguns dos homens de Rio Próximo haviam resolvido não vir.

Nesse caso, os autorizo a irem sozinhos, disse Raposa-Que-Ladra. E se vocês resolverem ir para a aldeia de Rio Preto? E se resolverem juntar-se à luta e atacar-nos pela retaguarda?

O rapaz mais perto de K’os olhou para ela, mas a mulher ignorou-o.

Não o faremos, prometeu K’os.

Julgas que não me lembro de ti, K’os? perguntou Raposa-Que-Ladra. Julgas que os anos te mudaram tanto assim?

Ambos mudamos, respondeu K’os. Fazemos coisas que muitas vezes lamentamos. Eu tive a minha vingança. Procuro a paz.

Eu não tive a minha vingança, declarou Raposa-Que-Ladra. Ficarás aqui. Tu e o teu grupo. Construam abrigos e esperem que nós voltemos. Alguns de nós gostarão de ter escravas.

O homem apontou com o queixo para o velho a seu lado e para dois jovens que pouco mais eram do que meninos. Ambos rosnaram quando ele os escolheu.

Se se queixarem, não levarão nada, mas se mantiverem esta gente aqui até regressarmos, poderão receber a parte de vocês de escravas e dividir os pertences e os cães deles entre os dois e Chama-o-Sol. Depois, olhou de novo para K’os e prosseguiu: Todos exceto a curandeira K’os. Ela e os seus pertences serão para mim.

K’os cerrou os dentes para não sorrir.

Quando Raposa-Que-Ladra e os seus homens partiram, K’os e o seu grupo começaram a construir os abrigos. Fizeram alpendres de casca de árvore e peles de caribu, uns virados para os outros, e acenderam uma fogueira no meio. K’os construiu um alpendre só para ela e, enquanto trabalhava, os rapazes foram falar com ela, um por um, e perguntaram-lhe se podiam matar os homens que os vigiavam quando iniciassem o ataque a Raposa-Que-Ladra e aos seus homens.

Esta noite, quando estiver escuro, respondeu ela. Prometeu deitar um pó na carne dos homens para os deixar dormindo.

Quando acabou de construir o seu abrigo, sentou-se junto da fogueira e partilhou com Guarda-Peixe e a filha algumas tiras de carne de caribu enfiadas num pau aguçado e aproximou a carne das chamas para a amaciar. Quando a carne estava pronta, deu uma parte a um dos jovens de Rio Próximo e convidou-o a comer com ela.

Pouco depois, estavam os dois enrolados nos seus cobertores e K’os segredava-lhe ao ouvido que os rapazes tencionavam matá-los nessa noite. Disse-lhes que haveria algo no guisado que os faria dormir e que depois os rapazes os atacariam, que lhes cortariam a garganta.

O caçador fitou-a com a raiva no olhar e deu uma gargalhada.

Eles são rapazes. Não podem fazer nada contra nós, disse ele.

Então come só a carne que eu te der, aconselhou ela.

Porque confiaria em ti? perguntou ele.

Julgas que eu quero ser escrava de Raposa-Que-Ladra? Ao ajudar-te, talvez mostre o que valho. Talvez concluas que precisas de outra esposa.

Ele sorriu, orgulhoso, e possuiu-a às pressas, com movimentos fortes e gemidos ruidosos. Depois, ela ficou debaixo dele, cujo corpo inerte lhe pesava no peito. Tocou-lhe até ele se mexer e segredou:

Serias capaz de dormir depois do que eu te disse? Ele levantou-se, ela vestiu de novo as perneiras, calçou as botas, pôs a parka em volta das ancas e foi falar com o velho de Rio Próximo, Chama-o-Sol.

 

Aqamdax ficou sem fôlego quando Chakliux entrou de cócoras na cabana, mas ao ver o marido estender o braço para a lança pegou-lhe o pulso.

Espera, disse Aqamdax.

Ele matou os meus irmãos!

As palavras de Homem Noturno pareceram roubar-lhe o fôlego, e o homem teve que se recostar por uns instantes, mas fez uma careta, com os olhos muito abertos.

Estou aqui para ajudar, não para matar, declarou Chakliux. Os de Rio Próximo estão a menos de um dia de caminho. Como vocês não foram à floresta, eu voltei para lutar ao vosso lado.

Homem Noturno olhou para Aqamdax com um ar interrogador.

Bem sabes que Chakliux esteve nesta aldeia há três dias, disse-lhe ela. Também veio a esta cabana e ofereceu-se para nos ajudar a fugir para não estarmos aqui durante o ataque.

Tu não irias, disse Homem Noturno em voz baixa.

Eu não te abandonaria, proferiu ela, sem olhar para Chakliux. Teria sido mais fácil dizer-lhe aquelas palavras de noite, quando não lhe visse os olhos.

Devias ter mandado as crianças, disse Homem Noturno. Elas são de Rio Próximo.

Elas não iriam, retorquiu Aqamdax.

Elas conhecem-me, disse Chakliux. Ghaden, porque não irias? Eu e o meu irmão temos um acampamento a três dias daqui, para leste. Lá estarias seguro.

Ghaden escondeu o rosto no pelo denso de Mordedor.

Ele não iria por causa de Sok, disse Yaa. Aqui temos uma oportunidade, mesmo com uma batalha. Às vezes, não matam as crianças. Além disso, estamos perto de Rio Próximo. Se eles nos virem, deixam-nos em paz. Com Sok, não estamos seguros.

Os longos dias de espera, a preocupação e a frustração de não saber porque Aqamdax não aparecera despertaram a fúria de Chakliux. Olhou para Aqamdax:

Que disparate é este?

Ela falou devagar, de olhos baixos, como se tivesse dificuldade em pronunciar as palavras.

Na noite anterior àquela em que os homens de Rio Primo partiram para atacar a aldeia de Rio Próximo, dançaram e entoaram cânticos de guerra. Ouvimos o ruído das suas vozes e dos chocalhos de casco de caribu nos seus pés.

”Ghaden estava dormindo, mas acordou e falou a Yaa das botas daquele que matou a mãe, a nossa mãe. Tinham chocalhos de caribu e estavam enfeitadas com imagens do Sol dos lados. Aqamdax esticou os dedos como se fossem raios de sol. Só Sok é que usa botas como essas.

Não foi Sok, respondeu Chakliux tranqüilamente, virando-se para Ghaden. Não foste tu o único a ver o assassino. Raposa-Que-Ladra também viu. Ele tinha ido visitar o meu avô nessa noite e escondeu-se na sombra das cabanas. Viu o assassino saindo da cabana do meu avô.

E não fez nada para ajudar? perguntou Aqamdax.

Ele é um homem egoísta, respondeu Chakliux. Desde então, tem recebido muitos favores por causa do que sabe e por fim, quando lhe convinha revelar o nome do assassino, o fez, mas só a Sok e a mim, porque fomos escolhidos para chefiar o povo de Rio Próximo, Sok como chefe dos caçadores e eu como chefe dos velhos. Raposa-Que-Ladra queria todo o poder para si próprio.

Se Sok não é o assassino, então quem é?

Folha Vermelha.

Aqamdax não se mexeu. As palavras dele foram como uma facada no seu peito.

Ela levou as botas e a parka do marido para se disfarçar, informou Chakliux. Serviu-se de uma das facas dele.

Porquê? perguntou Aqamdax.

Folha Vermelha julgava que Sok a rejeitaria para aceitar Neve-no-Cabelo como esposa. Julgava que, se ele ficasse com os cães e as armas do avô, passaria a ser o chefe dos caçadores e seria suficientemente respeitado na aldeia para que o pai de Neve-no-Cabelo permitisse que a filha fosse segunda esposa de Sok.

E a minha mãe...

Viu-a, por acaso.

Então, Raposa-Que-Ladra expulsou vocês da aldeia, a ti e a Sok.

Sim. A nossa mãe também quis vir conosco, e Ligige’, Neve-no-Cabelo e o bebê, Chora-alto e...

Neve-no-Cabelo é mulher de Sok?

Sim. Está grávida do filho dele, e o pai deixou-a ser segunda esposa.

E tu trazes os filhos de Sok?

Só Chora-Alto. Aqamdax suspirou e calou-se.

O outro... Morreu? Chakliux fez um sinal afirmativo.

Também trazemos Folha Vermelha. Aqamdax perdeu o fôlego.

Ninguém a matou?

Ela traz o filho de Sok no ventre. Mas Ghaden não tem motivos para se preocupar. Ela não tem mais nada a esconder.

E quando nascer o bebê? perguntou Aqamdax.

Nessa hora, Sok e eu decidiremos o que faremos para vingar o nosso avô.

Nessa noite, Aqamdax e Chakliux fizeram turnos, sentados à porta. Estrela levara a mãe com as outras pessoas que aguardariam fora da aldeia e que depois usariam arcos e flechas contra os caçadores de Rio Próximo numa emboscada, enquanto que os poucos que tinham ficado nas cabanas combateriam lá de dentro.

Só ao amanhecer é que Aqamdax reparou no primeiro sinal de movimento. O seu coração acelerou-se, e ela piscou os olhos, tentando ver na penumbra. A melhor chance de sobreviver era deixar que os caçadores de Rio Próximo a vissem, percebessem que ela tinha também Ghaden e Yaa consigo. Por isso, ficou do lado de fora da cabana, à espera que chegassem os primeiros homens.

Chakliux pedira-lhe que o acordasse assim que ela visse alguma coisa. Com os dois, tinham mais probabilidades de que os de Rio Próximo poupassem a cabana, mas mesmo assim ela sabia que, com o frenesi da luta, isso poderia não acontecer.

Cantara e rezara ao acordar; seguindo a tradição dos Primeiros Homens, agradecera ao Criador a sua vida e dera as boas-vindas ao Sol. Apaziguara o seu coração com canções tranqüilas sempre que o medo da morte a avassalara.

Naquele momento, o horror do que estava vendo imobilizou-a por instantes, impedindo-a de se mexer. Os homens de Rio Próximo vinham de todos os lados da aldeia, cada um com uma lança e um lançador na mão. Na ponta de cada lança, o fogo brilhava.

O grito de Aqamdax acordou Chakliux, que se levantou de um salto, agarrando na lança. Homem Noturno estava sentado na cama, com uma faca em cada mão.

Aqamdax entrou na cabana correndo, pegando não em armas mas nos odres de água.

Fogo! gritou ela. Eles botaram fogo nas cabanas!

Fica aqui dentro! gritou-lhe Chakliux.

Em seguida, agarrou uma das peles de caribu que forravam o chão, levou-a consigo e esperou no túnel que uma das lanças de fogo atingisse o topo da cabana. Depois, saiu, atirou a pele em cima das labaredas e abafou-as antes que o fogo se propagasse.

Já havia outras cabanas ardendo. As pessoas combatiam o fogo com água e peles, mas pouco depois as chamas espalharam-se por toda a aldeia. Os de Rio Próximo levaram alguns dos rapazes e dos homens, mas a maioria dos caçadores ficaram junto das despensas da comida, apagando as chamas que alastravam na vegetação próxima, impedindo que o fogo a consumisse.

Quando o calor das chamas atingiu a sua pior fase, Chakliux percebeu que já não conseguia impedir por mais tempo que a cabana de Estrela ardesse.

Leva o que puderes gritou ele a Aqamdax. Leva as crianças lá para fora. Eu ajudo o teu marido.

A fumaça embrenhara-se de tal maneira na cabana que Chakliux quase nem via a cama de Homem Noturno. Ardiam-lhe os olhos, e o calor do fogo queimava-lhe a garganta e os pulmões, dificultando-lhe a respiração. O fumaça não era tão densa mais perto do chão; por isso ele quase dobrou o corpo ao meio para respirar o ar mais fresco.

Não via Aqamdax nem as crianças e, embora as chamasse, o ruído do fogo, tão forte como o barulho do mar ou do vento, abafava as suas palavras. Quando chegaram aos limites da aldeia, ele disse a Homem Noturno que voltaria atrás para ir buscar Yaa, Ghaden e Aqamdax, mas depois, como se lhe tivesse sido concedido um dom, eles apareceram a seu lado, pegaram a esteira de Homem Noturno e, os quatro, levaram-no para um local seguro.

Não combateram. Para quê morrerem sem motivo? Dois rapazes e uma mulher de Rio Primo que tinham tentado atacar foram mortos. Pescador também foi morto e Corredor foi atingido com uma lança nas costas. As velhas diziam que ele não sobreviveria. Na aldeia, ficaram apenas três caçadores e Homem Noturno.

Os de Rio Próximo partiram nesse dia, levando o que podiam das despensas, a maior parte das jovens e todos os cães, exceto Mordedor. Deixaram os velhos e os feridos nos restos carbonizados da aldeia, sem comida suficiente para os dias seguintes.

E K’os e aqueles que ela levara consigo? Porque ela não voltara?, perguntavam-se os poucos que ficaram na aldeia. Os de Rio Próximo tinham-na matado? O mais provável era que ela e os rapazes não tivessem conseguido dominar os guardas. Bem, sempre eram menos bocas a sustentar com a comida que ficara. Além disso, na opinião das velhas, eles não precisavam de uma curandeira. Morreriam antes do Inverno. Quase todos estariam mortos antes de o Verão chegar.

Assim que os homens de Rio Próximo chegaram ao local onde tinham deixado K’os, desataram aos gritos, como se ela rejubilasse com eles pela sua vitória. Mas ela empinou o queixo, desviou o olhar e respondeu-lhes de mau humor.

Quando as mulheres de Rio Primo que tinham vindo da aldeia perguntaram a K’os porque não se juntara ao ataque, ela apontou para os corpos dos dois rapazes e da mãe de Filha-do-Sol, os três que se tinham oferecido para cortar a garganta aos guardas de Rio Próximo. Então as pessoas de Rio Primo chegaram à aldeia de Rio Próximo de luto, com a cara, os braços e as roupas cobertos de fuligem para exprimir o seu desgosto.

O que mais entristeceu K’os foi o número de mulheres de Rio Primo que optou por ir para a aldeia de Rio Próximo. Ela contava que morressem mais na batalha, sobretudo depois de ter convencido os homens a deixarem as mulheres usar armas.

Quem havia de pensar que os caçadores de Rio Próximo incendiariam a aldeia de Rio Primo? Quem havia de pensar que Raposa-Que-Ladra teria uma idéia dessas?

Agora, com tantas mulheres da aldeia de Rio Primo, havia menos chances de que ela se tornasse esposa e maiores probabilidades de que viesse a ser escrava. Mas caminhava de cabeça erguida e nem se deu ao trabalho de recordar a última vez que lá estivera, com Bate-no-Chão, Tikaani e Quebra-Neve, agora todos mortos.

O que lhes acontecera não tinha importância, pensou K’os. Ela estava viva. Havia homens de Rio Próximo, feridos na batalha, a quem ela podia ser útil. Trouxera os seus remédios, e dali a pouco chegaria o Verão, a época de colher novas plantas. Se não houvesse feridos suficientes para ela tratar, tinha certeza de que outros adoeceriam. K’os acariciou as suas bolsas dos remédios. Também tinha certeza de que os curaria.

 

Dos que ficaram na aldeia de Rio Primo, cinco eram caçadores, incluindo Chakliux e Homem Noturno. Havia seis rapazes de sete Verões e mais velhos, uma mão-cheia de mulheres mais novas e três mãos-cheias de velhas. Cinco mãos-cheias de crianças e de bebês. Caule Torto escondera duas cadelinhas debaixo da parka, e uma jovem mãe que perdera o bebê há pouco tempo disse que as amamentaria. Por isso, contando com Mordedor, possuíam três cães.

Aqamdax suspirou e continuou a escolher o que restava da cabana queimada de K’os. Lâminas de facas, raspadores, pedras de cozinha e uma série de contas que tinham sobrevivido às chamas. Também encontrou um molho de peles de raposa, queimadas só nas pontas, alguns pedaços de esteiras e um odre de água.

Três velhas lutavam pelo recheio da cabana ao lado da de K’os. Aqamdax, exprimindo o seu desespero, levantou a voz e interrompeu a disputa.

Tias, tudo pertence a todos nós. Se lutarmos uns com os outros, que esperança nos resta?

As três mulheres calaram-se de repente e depois viraram-se para ela, cobrindo-a de insultos e escarnecendo dela. Aqamdax fechou os olhos para não chorar e em seguida abriu-os e viu Chakliux a seu lado.

Chakliux afastou-a das ruínas fumegantes. Desceram o caminho e entraram na calma refrescante da floresta.

Esta não é a tua gente, Aqamdax declarou ele.

Porque ficas? Vem comigo; traz Yaa e Ghaden. Vamos nos encontrar com Sok, passamos o Verão pescando e caçando juntos. As nossas cabanas estarão quentes no próximo Inverno e teremos comida que chegue. Durante as longas luas que antecedem a Primavera, eu construo um iqyax. No Verão, quando tivermos peixe suficiente para uma longa viagem, tu e eu poderemos regressar ao teu povo.

Chakliux, não posso deixar Ghaden retorquiu ela. Yaa talvez queira voltar para junto da mãe, mas...

A mãe de Yaa morreu na luta disse Chakliux em voz baixa. Tomou as mãos enluvadas de Aqamdax na sua. Vou construir dois iqyan. Esperamos que Ghaden seja crescido para levar um e depois partimos, mas, até lá, traz o teu irmão e Yaa e vem comigo.

Aqamdax retirou as mãos.

Não posso deixar o meu marido.

Há muitas mulheres nesta aldeia que precisam de um marido. Deixa-o ser marido de uma delas.

Chakliux, disse Aqamdax, começando a chorar e pondo a mão na barriga. Não posso deixar Homem Noturno. Trago o filho dele no ventre.

Construíram uma cabana, servindo-se de postes e de peles de caribu que tinham escapado às chamas. As mulheres com bebês e as crianças foram lá para dentro. As outras, mães com filhos mais velhos, os caçadores e as velhas fizeram abrigos. Dispuseram-nos em círculo, com as aberturas viradas para a cabana, como que para aproveitar o calor que vinha lá de dentro.

Entoaram cânticos fúnebres, e as palavras elevaram-se no céu noturno, conduzindo a fumaça que saía em espiral das lareiras.

Chakliux aproximou-se do abrigo de Homem Noturno. A irmã, Estrela, estava sentada de um lado das esteiras da cama, e Aqamdax do outro. Yaa e Ghaden estavam encostados um ao outro na parte de trás do abrigo, e a mãe de Estrela retorcia as mãos, olhando à distância, como se aguardasse os mortos que nunca mais voltariam.

Homem Noturno desviou propositadamente o olhar, mas Chakliux dirigiu-se a ele e pousou duas grandes lebres no chão, junto do lume.

Não precisamos da tua carne disse Homem Noturno.

Estrela olhou ansiosamente para o irmão e começou a morder o lábio inferior.

Precisamos das peles. Homem Noturno levantou a voz.

Nesta cabana há um caçador.

Vim pedir uma esposa disse Chakliux. Não é vergonha nenhuma aceitar carne de um homem que será marido da tua irmã.

Embora Aqamdax percebesse que Chakliux fazia aquilo por ela, as suas palavras pareciam facas no seu peito. Chakliux fora criado com Estrela. Sabia com certeza que ela não seria uma boa esposa.

Não seria fácil ficar vivendo na mesma cabana com ele, vê-lo partilhar a cama com Estrela de noite, mas ele era caçador. Traria carne. Aqamdax levantou a cabeça para olhar para Homem Noturno e viu que ele ficara dividido com a proposta de Chakliux. Chakliux fora um inimigo. Como poderia Homem Noturno recebê-lo como irmão? Mas, se não o fizesse, não estaria perdendo as vidas da mulher e do filho, da irmã e da mãe?

Aceitas este homem como marido? perguntou ele a Estrela.

Estrela levantou-se e aproximou-se lentamente de Chakliux.

Achas que consegues viver de novo como alguém de Rio Primo? perguntou ela.

Consigo viver como alguém de Rio Primo, afirmou ele.

Então serei tua esposa disse ela. Tens presentes para me oferecer?

Só a promessa do que eu caçar.

Estrela fez beicinho, mas Homem Noturno declarou:

Isso é suficiente. Levantou a mão saudável como que abrangendo as ruínas da aldeia para além do círculo formado pelos abrigos. O que podemos pedir mais?

Há uma coisa que eu tenho de fazer primeiro, disse Chakliux. O meu irmão Sok, as esposas e os filhos dele, a nossa mãe e uma tia fizeram um acampamento a três dias daqui. Eles estão à minha espera. Tenho que avisá-los que fico nesta aldeia.

Tenho ouvido falar do caçador Sok, disse Homem Noturno. Diz-lhe que é bem-vindo aqui.

Lhe direi.

Quando partes?

Se me deres um lugar junto da tua fogueira esta noite, partirei de manhã, e voltarei assim que puder, respondeu Chakliux.

Tens um lugar junto da minha fogueira afirmou Homem Noturno.

Chakliux pegou as duas lebres e deu-as a Estrela.

Isto não é um dote, disse ele. Um dia, ofereço-te uma coisa melhor.

Ela pegou as lebres, sentou-se, estendeu-as no colo e afagou-lhes o pelo. Mordedor afastou-se de Ghaden, com os olhos nas lebres, mas Yaa agarrou-o pelo pescoço e segurou-o.

Mulher, esfola-as disse Homem Noturno a Aqamdax. Precisamos de carne para esta noite.

Aqamdax tirou as lebres de Estrela, que começou a chorar como uma criança. A mãe olhou para ela, assustada, e depois começou a entoar um cântico fúnebre. Estrela olhou para Chakliux, deixou de chorar e começou também a cantar.

Passou-se uma mão-cheia de dias, duas, e Chakliux ainda não voltara. Estrela, furiosa, gritava com as velhas do acampamento e com as crianças, e por duas vezes Aqamdax teve que a segurá-la quando ela, de faca em punho, se preparava para golpear as paredes do abrigo.

Ele não voltaria, pensou Aqamdax. Com certeza, quando tivesse tempo para pensar, tempo para antever como seria difícil ter Estrela como esposa, ficaria com Sok, e Aqamdax não voltaria a vê-lo.

As pessoas tinham construído outra cabana, mais pequena, cuja cobertura era feita de restos de pele de caribu queimados e enfraquecidos pelo fogo, mas agora as velhas e algumas das crianças mais velhas já possuíam uma casa. Ghaden e Yaa passavam a noite nessa cabana, apesar de Ghaden não ter sido autorizado a levar Mordedor.

Nos primeiros dias depois da partida de Chakliux, Estrela fora montar armadilhas com Yaa e Aqamdax. Agora, não fazia nada, exceto vociferar ou agachar-se dentro do abrigo, recusando-se a comer e a falar.

Todas as manhãs, Homem Noturno se esforçava por estar mais tempo sentado, e por fim conseguiu levantar-se, ajoelhando-se primeiro, embora se mantivesse de pé por pouco tempo. O seu braço direito continuava inerte, e Aqamdax fez-lhe uma alça para o ligar ao corpo.

Várias velhas aproveitaram restos de cestos queimados e fizeram armadilhas de pesca. Os três homens com força para caçar prepararam lanças e armas para ir à caça do caribu. Os rapazes fizeram boleadeiras para apanhar os pássaros que voltariam do Sul dentro de pouco tempo.

No décimo segundo dia depois da partida de Chakliux, Aqamdax foi verificar as armadilhas e levou Mordedor. Parou junto de um folhado, apanhou alguns frutos mirrados e deu-os a Mordedor.

No próximo ano será melhor disse ela.

Mordedor, com o pelo áspero e o corpo magro, ganiu como se tivesse compreendido as suas palavras. De repente, deu um salto e desatou a correr. Ela foi atrás dele, mas depois percebeu que o cão perseguia uma lebre. Voltou às suas armadilhas. Estavam todas vazias.

Tais coisas aconteciam sempre naquela época do ano, pensou ela. As armadilhas de Inverno já tinham apanhado a maior parte dos pequenos animais que viviam perto da aldeia. Aqamdax teria que montar as armadilhas mais longe.

Quando Mordedor voltou, trazia a metade dianteira de uma lebre na boca. Aqamdax elogiou-o, admirada por o cão ter trazido alguma coisa, quando partilhavam tão pouco com ele.

Aquela lebre era um sinal que lembrava todas as coisas boas, pensou Aqamdax. Ela estava viva e trazia um filho no ventre, um filho que seria um caçador forte, ou uma filha que costuraria e teceria e que um dia lhe daria netos.

Sorriu, e olhou para o céu azul. Soprava um vento primaveril, enchendo a floresta de um calor que afastava o último frio do Inverno do solo castanho-acinzentado. Aqamdax entoou um cântico de louvor, de ação de graças pela sua vida, pela vida do filho de Homem Noturno, de Ghaden e de Yaa. Pelo marido e pela família dele.

De repente, Mordedor arrebitou as orelhas. Uivou, pousou a carcaça da lebre no chão, pôs uma das patas dianteiras em cima dela e começou a latir.

Aqamdax desembainhou a faca e agachou-se ao lado do cão, pondo-lhe a mão no focinho para o calar. Ficou à espera e depois ouviu alguém chamá-la.

Deixas-me levar isto? perguntou ela a Mordedor, estendendo o braço para pegar na lebre.

O cão levantou a pata e ela tirou-a devagar e enfiou-a no saco que trazia ao ombro. Mordedor olhou para ela e desatou a correr. Aqamdax foi atrás dele e depois viu-os todos, Chakliux, Sok, Folha Vermelha, Neve-no-Cabelo, Chora-Alto, Mulher Diurna e, por último, a velha Ligige’, cuja voz se sobrepunha à de todos os outros.

Viemos com o meu irmão, gritou Sok. Ouvimos dizer que há uma aldeia aqui perto que precisa de caçadores.

O olhar de Aqamdax cruzou-se com o de Chakliux, um longo olhar de alegria e boas-vindas. Aqamdax chamou Mordedor, esperou que os outros passassem e foi retribuindo os seus cumprimentos. Folha Vermelha não disse nada; passou por ela, de mãos na barriga.

Aqamdax foi juntar-se a Ligige’, na última da fila.

Ainda bem que resolveste vir, tia afirmou ela. Mesmo contando com Sok e Chakliux, temos apenas cinco homens fortes que cacem para nós.

Ah, filha, retorquiu-lhe Ligige’. Talvez tenhamos apenas cinco caçadores, mas quantas aldeias têm dois contadores de histórias? Tu e Chakliux nos ajudarão a esquecer a nossa barriga. As histórias de vocês nos darão forças para o que temos que suportar, e nos lembrarão de que a vida é sagrada e a terra é boa.

 

 

GLOSSÁRIO DE PALAVRAS NATIVAS AMERICANAS 

AQAMDAX: (aleúte) Amora-da-silva-salmão, Rubus chamaemorus. (Ver Lista de Plantas com Propriedades Medicinais.)

AYAGAX: (aleúte) Esposa.

BABICHE: (talvez um termo anglicizado da palavra cree assababish, um diminutivo de assabab, que significa ”linha”) Cordão feito de couro cru.

BITAALA’: (athabascan ahtna) Órgão do tamanho de um pé, situado entre o estômago e o fígado do urso-pardo. Para os Ahtna, é tabu alguém ingerir o bitaala’, exceto os velhos.

CEN: CET’AENI: (athabascan ahtna) Tundra. (athabascan ahtna) Seres da antiga mitologia ahtna. Têm cauda e vivem em árvores e grutas.

CHAGAR: (aleúte) Obsidiana, zimbro-da-virgínia.

CHAKLIUX: (athabascan ahtna, como Pinart registra em 1872) Lontra-marínha.

CHIGDAX: (aleúte) Parka impermeável e estanque feita do intestino do leão-marinho ou do urso, do esôfago do leão-marinho ou da pele da língua da baleia. O capuz tinha um atilho, e as mangas eram atadas nos pulsos para as viagens por mar. Muitas vezes, esta peça de roupa até ao joelho era enfeitada com penas e pedaços coloridos de esôfago.

CHUHNUSIX: (aleúte) Gerânio-silvestre, Geranium erianthum. (Ver Lista de Plantas com Propriedades Medicinais.)

CILT’OGHO: (athabascan ahtna) Recipiente escavado num tronco de bétula e utilizado para transportar água.

DAES: (athabascan ahtna) Pouco profundo, zona pouco funda de um lago ou ribeiro.

DATS’ENI: (athabascan ahtna) Ave aquática.

DZUUGGI: (athabascan ahtna) Criança favorecida, que recebe formação especial desde a infância, sobretudo no domínio das tradições orais.

GGUZAAKK: (athabascan Koyukon) Hylocichla minima, H. ustulata e H. guttata. Segundo a tradição do povo Koyukon, o belo e sofisticado canto destas aves indica a presença de uma pessoa ou de um espírito desconhecido.

GHADEN: (athabascan ahtna) Outra pessoa.

HII: (aleúte) Exclamação de surpresa ou de desagrado.

IITIKAALUX: (aleúte atkan) Canabrás, Heracleum lanatum. (Ver Lista de Plantas com Propriedades Medicinais.)

IQYAX, pi.: IQYAN: (aleúte) Embarcação com estrutura de madeira e revestimento de pele. Caiaque.

K’OS: (athabascan ahtna) Nuvem.

KUKAX: (aleúte) Avó.

LIGIGE’: (athabascan ahtna) Saboeiro, Shepherdia canadensis. (Ver Lista de Plantas com Propriedades Medicinais.)

NAYUX: (aleúte) Bóia feita de pele de foca ou bexiga de foca cheia de ar.

QIGNAX: (aleúte) Fogo ou luz resultante de uma fogueira.

QUNG: (aleúte) Bossa, corcunda.

SAEL: (athabascan ahtna) Recipiente feito de casca de árvore.

SAX: (aleúte) Parka comprida e sem capuz,! feita de pele de pássaro com penas.

SIXSIQAX: (aleúte) Artemísia unalaskensis. (Ver Lista de Plantas com Propriedades Medicinais.)

SHUGANAN: (palavra antiga de origem incerta) Não se sabe ao certo o seu significado, que está relacionado com um povo antigo,

SOK: (athabascan ahtna) Crucitar do corvo,

TIKAANI: (athabascan ahtna) Lobo.

TIKIYAASDE: (athabascan ahtna) Cabana da menstruação.

TSAANI: (athabascan ahtna) Urso-pardo, Ursus arctos.

TS’ES: (athabascan ahtna) Rocha, pedra,

TUTAQAGIISIX: (aleúte) Ouvido.

ULAX, pi.: ULAS: Habitação semi-subterrânea guarnecida com vigas de madeira flutuante e coberta de colmo e de grama cortada com terra e raízes.

YAA: (athabascan ahtna) Céu.

YAYKAAS: (athabascan ahtna) Literalmente ”céu, brilhante”. Aurora boreal.

YEHL: (tlingit) Corvo.

 

                                                                                Sue Harrison  

 

                      

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