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Series & Trilogias Literarias
Quando se escreve sobre a Armada Real Inglesa do século XVIII e princípios do século XIX, é difícil abarcar toda a realidade, correndo o autor o risco de descuidar este ou aquele aspecto; e é difícil fazer justiça ao tema escolhido, visto que a realidade, por inverosímil que seja, muitas vezes supera a ficção. Nem mesmo um imaginação invulgarmente viva e engenhosa conseguiria criar a figura do comodoro Nelson, saltando do seu Captain, um navio de setenta e quatro canhões, para a janela da galeria da quadra da popa do San Nicolás, de oitenta canhões, apresando-o e atravessando rapidamente a sua coberta para abordar o imponente San José, de cento e doze canhões, de tal modo que "na coberta de um navio espanhol de primeira grandeza, por muito extravagante que a história possa parecer, os espanhóis, vencidos, entregaram-me as suas espadas; e, à medida que as ia recebendo, passava-as a William Fearney, um dos meus bateleiros, o qual, com o maior sang-froid, as punha debaixo do braço".
As páginas de Beatson, de James e as de The Naval Chronicle, bem como os documentos do Almirantado que constam dos Arquivos Nacionais ou as biografias de Marshall e OByrne, estão cheias de acções que poderão ser um pouco menos espectaculares (Nelson, houve só um), mas que, por certo, não serão menos intrépidas - acções que poucos homens seriam capazes de inventar e que, muito provavelmente, nenhum conseguiria expor com absoluta convicção. Foi por isso que, no que toca à descrição das batalhas, decidi ir directamente às fontes. Entre os inumeráveis combates brilhantemente travados e singelamente relatados, escolhi alguns pelos quais sinto uma admiração muito especial; por isso, quando descrevo uma batalha, disponho de diários de bordo, de cartas oficiais, de relatos da época ou das próprias memórias dos protagonistas, para poder fundamentar todo e qualquer confronto. Em contrapartida, porém, não me senti obrigado a obedecer a uma sequência cronológica precisa; um historiador naval dar-se-á conta, por exemplo, de que a acção protagonizada por Sir James Saumarez no estreito de Gibraltar foi postergada, surgindo após as vindimas, tal como verá que pelo menos uma das batalhas do Sophie foi travada, na realidade, por outra corveta, ainda que com idêntica intensidade. É evidente que me permiti grandes liberdades; recorri a documentos, poemas, cartas; em suma, jaipris mon bien lá oúje lai trouvé e, num contexto geral de factos históricos, alterei nomes, lugares e acontecimentos menores, de forma a adaptá-los ao meu relato.
Defendo eu que os admiráveis homens desses tempos, os Cochranes, Byrons, Falconers, Seymours, Boscawens, e os muitos e menos famosos marinheiros a partir dos quais criei, até certo ponto, as minhas personagens, serão mais adequadamente celebrados se os integrarmos nas suas próprias e esplêndidas acções e não em confrontos imaginários; defendo ainda que a autenticidade é uma jóia sem preço; e que o eco das palavras desses homens possui um valor que não se extingue.
Gostaria de expressar o meu reconhecimento aos eruditos e pacientes funcionários do Public Record Office e do National Maritime Museum of Greenwich, bem como ao comandante do Victory, navio de Sua Majestade: não poderiam ter sido mais amáveis e prestáveis.
CAPÍTULO UM
A sala de música da casa do governador, em Mahón, uma elegante divisão octogonal de paredes altas, sustentada por colunas, viu-se inundada pelos sons do triunfante
primeiro movimento do Quarteto em dó maior de Locatelli. Os músicos italianos, encostados à parede em várias filas de cadeiras douradas, pequenas e redondas, tocavam
com apaixonada convicção, agora que se aproximavam o penúltimo crescendo, a grande pausa e o profundo e libertador acorde final. E, sentados nas pequenas cadeiras
douradas, pelo menos alguns dos membros do público seguiam o movimento ascendente da melodia com igual intensidade: mais exactamente, dois homens que se encontravam
na terceira fila do lado esquerdo e que, por um mero acaso, tinham ficado juntos. O da esquerda era um homem que aparentava ter entre vinte e trinta anos, tão corpulento
que o seu corpo transbordava do assento, e que só de quando em quando deixava ver um veiozito de dourado. Envergava o seu melhor uniforme: casaca azul com lapelas
brancas, colete branco, calções e meias de tenente da Armada Real Inglesa, com a medalha de prata do Nilo na botoeira; e marcava o compasso com a mão, agitando o
alvíssimo punho da camisa de botões dourados, enquanto os seus luminosos olhos azuis, num rosto que seria branco e rosado não fosse estar tão bronzeado, seguiam
fixamente os movimentos do arco do primeiro violino. Chegou por fim o agudo, a pausa, o acorde final; e, com o acorde final, o marinheiro deu uma forte punhada no
joelho. Encostou-se para trás na cadeira, ocultando-a por completo, suspirou feliz e virou-se para o vizinho com um sorriso. As palavras "Uma interpretação magnífica,
o senhor não acha?" insinuavam-se já na sua garganta, senão mesmo na boca, quando reparou no olhar glacial e obviamente hostil do vizinho, que lhe sussurrou: - Se
tem mesmo de marcar
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o compasso, então faça-me o obséquio de o marcar correctamente, e não meia batida adiantado.
A expressão de Jack Aubrey alterou-se num ápice: num semblante que traduzia um desejo de comunicação amistosamente ingénuo, passou a ler-se frustração e hostilidade.
Não podia negar que estivera a marcar o compasso; e embora o tivesse marcado com total precisão - quanto a isso não havia dúvida -, o certo é que marcar o compasso
num concerto era coisa que não se fazia. Corou; fixou por um momento os olhos inexpressivos do vizinho e mais não disse do que um "Creio...", pois as primeiras notas
do movimento lento interromperam-no bruscamente.
O meditabundo violoncelo executou duas frases solo e logo deu início ao seu diálogo com a viola. A atenção de Jack estava positivamente dividida; uma parte ia para
a música, a outra não largava o vizinho. Mirou-o de soslaio e reparou que era um indivíduo de baixa estatura, moreno, com uma tez palidamente doentia, envergando
uma casaca escura desbotada - um civil. Era difícil decifrar a sua idade, não só porque possuía aquele género de rosto que nada trai ou denuncia, mas também porque
usava uma peruca, uma peruca grisalha que parecia feita de arame e que quase não fora empoada: podia ter qualquer idade entre os vinte e os sessenta anos. "Na realidade,
deve ter mais ou menos a minha idade", disse Jack para os seus botões. "O filho da mãe do mal-encarado! A dar-se ares de superioridade!". E com este pensamento,
quase toda a sua atenção se concentrou na música; reconheceu a passagem que estavam a tocar e acompanhou as convoluções e os encantadores arabescos da melodia até
à sua conclusão lógica e satisfatória. Não voltou a pensar no vizinho antes do final do movimento e, mesmo então, evitou olhar na sua direcção.
O minuete fez com que Jack desatasse a marcar o compasso com insistentes sacudidelas da cabeça, mas a verdade é que não tinha a menor consciência de que o estava
a fazer; e quando se deu conta de que a sua mão andava em razoável agitação por alturas da perna, ameaçando afeiçoar-se à melodia, não esteve com meias medidas e
encaixou-a na curva do joelho. Era um minuete espirituoso e agradável, não mais que isso; contudo, sucedeu-lhe um último movimento especialmente difícil, quase agreste,
uma peça que, a todo o momento, parecia estar prestes a dizer algo da maior importância. O volume de som esbateu-se, dando lugar ao solitário sussurro de um violino,
de tal forma que o constante murmúrio de cochichos ao fundo da sala, que nunca cessara, ameaçava afogá-lo: um soldado explodiu numa gargalhada sufocada e Jack olhou
furioso à sua volta. Depois, o resto do quarteto juntou-se ao violino e todos percorreram o caminho que os levava de volta ao ponto
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em que o tema ressurgiria: era essencial que o ouvinte se deixasse levar de novo pela corrente, de tal forma que, quando o violoncelo entrou com a sua previsível
e necessária contribuição - pom, pom-pom-pom, poom -, Jack baixou muito o queixo e, em uníssono com o violoncelo, não se conteve e desatou rmmpom, pom-pom-pom, poom.
Sentiu uma cotovelada nas costelas e um "Chiu!" zumbido ao seu ouvido. Apercebeu-se de que tinha a mão no ar marcando o compasso; baixou-a, fechou a boca bem fechada
e decidiu olhar para os pés até que a música acabasse. Escutou o nobre final e reconheceu que se tratava de um desfecho muito mais elaborado do que havia previsto;
contudo, foi-lhe impossível fruí-lo. No meio dos aplausos e do alvoroço geral, o vizinho observou-o com um olhar que era menos de desafio do que de total e muito
sentida reprovação: não trocaram palavra, mas mantiveram-se rigidamente atentos um ao outro, enquanto Mrs Harte, a esposa do comandante, interpretava uma peça para
harpa que, além de longa, apresentava muitas dificuldades técnicas. Jack Aubrey achou melhor apreciar a noite através das grandes e elegantes janelas: Saturno erguia-se
a sudoeste, uma bola brilhante no céu de Minorca. Uma cotovelada, uma investida daquelas, tão mal-intencionada e deliberada, era como um murro. O seu temperamento
e o seu código profissional não lhe permitiam reagir passivamente a uma tal afronta: e haveria afronta mais grave do que um murro?
Como não podia exteriorizá-la ainda, a sua fúria ganhou os contornos da melancolia: pensou na sua situação de marinheiro sem navio, em todas as promessas, por vezes
firmes, outras vezes nem tanto, que lhe haviam feito e que não se cumpriram, e nos muitos planos que havia construído sobre alicerces de fantasia. Devia cento e
vinte libras ao agente que se ocupava dos despojos que conseguia e de todos os seus negócios; e os juros dessa dívida, no valor de quinze por cento, estavam prestes
a vencer; e o seu salário mensal era de cinco libras e doze xelins. Pensou em homens que conhecia, mais novos do que ele, mas com mais sorte ou benefícios, que eram
agora tenentes comandando brigues ou cúteres, ou que tinham sido mesmo promovidos a capitães de corvetas: e todos eles fartos de capturar trahaccolli no Adriático,
tartanas2 no golfo de Léon, xebecs e settees4 ao longo de toda a costa espanhola. Em suma: glória, promoção profissional e o dinheiro dos despojos.
1 Trabaccolo: trata-se de um pequeno barco costeiro italiano. (N. do T.)
2 Tartana: barco comprido, de um só mastro, mediterrânico. (N. do T.)
3 Xebec (do catalão xabec, em castelhano jabeque): pequena embarcação mediterrânica de três mastros. (N. do T.)
4 Settee (do italiano saettia): embarcação mediterrânica de proa aguçada e duas velas latinas e dois ou três mastros. (N. do T.)
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O estrondo dos aplausos indicou-lhe que a actuação tinha terminado e tratou de aplaudir com entusiasmo e um sorriso imenso que era a expressão de um extasiado deleite.
Molly Harte fez uma vénia e sorriu, procurou o olhar dele e sorriu de novo; ele aplaudiu com mais força; mas ela compreendeu que ele não tinha gostado ou não havia
assistido à sua actuação, e o seu prazer esbateu-se. Contudo, continuou a agradecer os cumprimentos da audiência com um sorriso radioso, muito elegante no seu vestido
de cetim azul-claro e com um colar de pérolas de duas voltas que tinham vindo do Santa Brígida.
Jack Aubrey e o vizinho da casaca escura desbotada levantaram-se ao mesmo tempo e olharam um para o outro. Jack deixou que o seu rosto retomasse uma expressão de
fria antipatia - os últimos vestígios do seu falso entusiasmo, agora que se desvaneciam, tornavam-se extraordinariamente desagradáveis - e disse em voz baixa:
- O meu nome é Aubrey. Estou hospedado no Crown.
- O meu é Maturin. De manhã, costumo estar no Café Joselito. Agradecia que me deixasse passar.
Por um momento, Jack sentiu uma irresistível vontade de pegar na sua pequena cadeira dourada e de a enfiar na cabeça daquele mal-encarado; porém, dando mostras de
uma civilidade minimamente razoável, deixou-o passar - não tinha outra alternativa, a não ser que quisesse que o outro chocasse com ele - e, pouco tempo depois,
abriu caminho por entre a multidão apinhada de casacas azuis ou vermelhas, e algumas escuras de civis, até chegar ao círculo que rodeava Mrs Harte, gritando-lhe,
por cima de várias filas de cabeças: - Maravilhoso, excelente, uma bela interpretação! -, após o que lhe disse adeus e abandonou a sala. Ao passar pela entrada,
saudou dois outros oficiais da Marinha, um deles um antigo companheiro de rancho nos aposentos dos cadetes do Agamemnon, que lhe disse "Pareces muito abatido, Jack",
e também um guarda-marinha muito alto, todo esticado, como exigiam tanto a ocasião como a violência da sua camisa engomada e com folhos, e que, ainda cadete, pertencera
à sua equipa de quarto no Thunderer; e, por fim, saudou o secretário do comandante, que respondeu à sua vénia com um sorriso, um erguer de sobrancelhas e uma expressão
muito significativa.
"Dava tudo para saber o que é que aquele infame animal estará a tramar agora", pensou Jack enquanto se encaminhava em direcção ao porto. Pelo caminho vieram-lhe
à ideia recordações muito claras da duplicidade do secretário e do seu próprio e ignóbil servilismo face àquela influente personagem. Quase lhe tinham prometido
o cargo de comandante de um pequeno e gracioso
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navio corsário francês recentemente capturado e reparado; contudo, o irmão do secretário acabara de chegar de Gibraltar e... adieu, lá se foi o navio!
- Filhos da mãe! - disse Jack em voz alta, recordando a diplomática docilidade com que recebera a notícia, bem como os renovados protestos de boa vontade e melhores
ofícios, ainda que não especificados e guardados para as calendas, manifestados pelo secretário. Depois recordou o seu próprio comportamento naquela noite, em particular
o facto de se ter desviado para deixar passar aquele indivíduo baixinho e mal-encarado, e a sua incapacidade para achar uma resposta, uma réplica que tivesse o mérito
de ser simultaneamente contundente e refinada. Sentia-se profundamente desgostoso consigo mesmo, e também com o homem da casaca escura, e também com a Marinha. E
também com a suavidade aveludada daquela noite de Abril, mais o coro de rouxinóis nas laranjeiras, mais a multidão de estrelas, tão baixas que quase pareciam roçar
as palmeiras.
O Crown, onde Jack estava hospedado, apresentava algumas semelhanças com o seu famoso homónimo de Portsmouth: tinha o mesmo letreiro enorme, dourado e escarlate,
dependurado na fachada, uma relíquia de anteriores ocupações britânicas, além de que o edifício havia sido construído por volta de 1750 no mais puro estilo inglês,
sem a menor concessão ao gosto mediterrânico, exceptuando o pormenor das telhas; mas as semelhanças terminavam aí. O proprietário era de Gibraltar e o pessoal era
espanhol, ou melhor, minorquino; a estalagem cheirava a azeite, sardinhas e vinho; e o cliente nunca veria na mesa uma empada de carne de Bakewell, nem um bolo de
Eccles5, tão pouco um suet puãding6 decente. Em contrapartida, nenhuma estalagem inglesa seria capaz de oferecer uma camareira tão bonita e morena como Mercedes.
Nesse preciso momento, Mercedes correu até ao sombrio patamar, enchendo-o de vida e de uma espécie de luz, e gritou escadas acima:
- Uma carta, teniente. Levo...?". - Um momento depois, estava já ao lado dele, sorrindo com inocente deleite. Mas Jack estava ciente de que qualquer carta que lhe
enviassem não traria boas novas e não reagiu à notícia senão com uma jocosidade maquinal e um vago relance de olhos pelos seios da criada.
- E o capitão Allen veio cá à sua procura - acrescentou ela.
- Allen? Allen? Que diabo quererá ele de mim? - O capitão Allen era
5 Bolo particularmente suculento, com recheio de geleia de frutas, em particular groselha. (N. do T.)
6 Pudim confeccionado com banha, farinha, migalhas de pão, passas e especiarias. (N, do T.)
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um pacífico ancião; Jack sabia unicamente que Allen havia lutado contra os revolucionários americanos e que era considerado um homem de hábitos muito firmes, um
homem que, invariavelmente, mudava de rumo virando a sotavento com um giro repentino do leme, para além de usar sempre um colete de abas longas. - Ah, só pode ser
por causa do funeral - disse Jack.
- Deve ser uma subscrição.
- Triste, teniente, triste? - disse Mercedes, afastando-se na direcção do corredor. - Pobre teniente.
Jack pegou na vela que estava na mesa e foi direito para o seu quarto. Não se preocupou com a carta enquanto não despiu a casaca e não desfez o laçarote que lhe
apertava o pescoço; então, examinou-a com um ar desconfiado. Reparou que a carta fora endereçada, com uma letra que não conhecia, ao capitão Aubrey da Armada Real
Inglesa: franziu muito o sobrolho, disse "Mas que estúpido que eu sou...", e virou a carta ao contrário. O selo preto estava algo borrado e, embora o aproximasse
muito da vela, fazendo incidir obliquamente a luz sobre a carta, a verdade é que não conseguia identificá-lo.
- É impossível reconhecê-lo - disse. - Mas pelo menos não é do velho Hunks. Ele sela sempre com lacre. - Hunks era o seu agente, o seu abutre, o seu credor.
Por fim, decidiu-se a abrir a carta, que rezava o seguinte:
Sua Excelência Lorde Keith, Cavaleiro de Bath, Admiral of the Blue7 e Comandante-Chefe da frota de Sua Majestade em serviço, presente ou futuro, no Mediterrâneo,
etc. etc. etc.
Considerando que o capitão Samuel Allen, do navio Sophie, corveta de Sua Majestade, foi transferido para o Palias, em consequência, do falecimento do capitão James
Bradby:
Deverá o destinatário desta carta apresentar-se a bordo do navio Sophie e assumir o cargo de capitão e o comando do mesmo navio; com a obrigação de ordenar a todos
os oficiais e tripulação da referida corveta que cumpram as respectivas tarefas com o respeito e obediência que lhe devem como seu capitão; do mesmo modo, deverá
o senhor observar as instruções gerais impressas, tal como as ordens e instruções de Sua Majestade que ocasionalmente receba através de
7 Admirai ofthe Blue: Almirante da Esquadra Azul. (N. do T.)
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qualquer oficial superior, tendo em vista o serviço de Sua Majestade. De tais normas, nem o senhor, nem qualquer homem sob o seu comando, se deverá apartar, pois,
em apartando-se delas, responderá por sua conta e risco.
Esta é a ordem que deverá cumprir.
A bordo do Foudroyant
1 de Abril de 1800.
Para John Aubrey,
por esta via nomeado comandante
do navio Sophie, corveta de Sua Majestade.
Por ordem do almirante Thomas Walker.
Os seus olhos percorreram todo o texto num instante, embora a sua mente se recusasse tanto a lê-lo como a acreditar nele: ficou de súbito muito vermelho e, com uma
expressão singularmente dura e severa, obrigou-se a lê-la linha a linha. A segunda leitura avançava cada vez mais rapidamente e o seu coração vibrava já de uma alegria
e de um prazer imensos. Ficou ainda mais vermelho e a boca abriu-se-lhe num sorriso espontâneo. Desatou a rir e a afagar a carta, depois dobrou-a, desdobrou-a, e
leu-a ainda com mais atenção, pois tinha-se esquecido por completo do belo fraseado do parágrafo central. Ficou gelado quando o seu olhar se fixou na infortunada
data; por um breve momento sentiu que iam desabar os alicerces desse novo mundo que enchera a sua vida de expectativas. Ergueu a carta à luz da vela, e aí, tão firme,
reconfortante e inamovível como o rochedo de Gibraltar, pôde ver a filigrana do Almirantado, essa âncora de esperança eminentemente respeitável.
Não conseguia estar quieto. Passeando nervoso pelo quarto, vestiu a casaca e voltou a despi-la, e rompeu numa série de comentários desconexos, acompanhados de risinhos.
- E eu todo preocupado... Ah! Ah!... Um navio que é um encanto, uma graça de navio, conheço-o bem... Ah! Ah!... Ter-me-ia sentido o mais feliz dos homens mesmo que
me tivessem dado um monstro, ou o mais pequeno e lento dos navios, como o Vulture... Qualquer navio servia... Sim senhor, uma caligrafia admirável... os traços finos
e grossos, muito contrastados, perfeitos... papel de excelente qualidade... É um dos poucos navios da Armada com castelo de popa: uma cabina esplêndida, sem dúvida...
Um tempo estupendo, um calor tão agradável... Ah! Ah!... Se ao menos conseguisse arranjar bons tripulantes, isso é o mais importante...
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Não podia estar mais cheio de fome e sede: correu para a sineta e fê-la soar com toda a força; porém, antes que a corda deixasse de balouçar, já ele estava no corredor,
chamando pela criada.
- Mercy! Mercy! Ah, cá está, minha querida. Pode trazer-me qualquer coisa para comer... manger... mangiaret Talvez pollo... Pollo assado frio? E uma garrafa de vinho
também, sim, vino... duas garrafas de vino. E... Mercy, podia fazer-me um favor? Queria... désirer... que me fizesse um favor, está bem? Coser, cosare um botão.
Pode ser?
- Sim, teniente - respondeu Mercedes, os olhos num desassossego, os dentes brancos brilhando à luz da vela.
- Teniente, não! - exclamou Jack, deixando-a sem fôlego ao estreitar o seu corpo roliço e maleável. - Capitão! Capitano! Ah! Ah! Ah!
Acordou pela manhã, depois de um sono profundo, muito profundo; estava completamente desperto e, ainda antes de abrir os olhos, lembrando-se de que fora promovido,
exibia já uma expressão radiante.
"Não é propriamente um navio de primeira grandeza, claro que não... Mas quem é que quer um navio de primeira, enorme, pesadão, sem a menor possibilidade de fazer
uns cruzeiros por conta própria? Onde é que ele está atracado? Ah sim, para lá do cais do arsenal, no atracadouro a seguir ao do Rattler. vou para lá imediatamente,
quero vê-lo já, não vou perder nem mais um minuto. Não, não, isso não cairia bem. Tenho de os avisar primeiro, é mais correcto. Não: a primeira coisa que tenho de
fazer é ir agradecer a quem devo e encontrar-me com o Allen, o bom velho Allen, quero desejar-lhe as maiores felicidades".
A primeira coisa que fez, para dizer a verdade, foi atravessar a rua e entrar no armazém de artigos navais e recorrer ao seu crédito, agora elástico, para adquirir
uma nobre, pesada e maciça dragona, o distintivo da sua actual posição hierárquica - um símbolo que o vendedor lhe colocou imediatamente no ombro esquerdo, após
o que ambos se plantaram radiantes em frente do espelho de corpo inteiro, o vendedor espreitando por detrás do ombro de Jack com uma expressão de sincera satisfação.
Logo que a porta do armazém se fechou atrás de si, Jack viu o homem da casaca escura no passeio do outro lado, perto do café. Veio-lhe imediatamente
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à ideia o que se passara na noite anterior: não admira por isso que tenha atravessado a rua a correr, chamando pelo homem:
- Mr... Mr Maturin! - Mal se abeirou dele, foi direito ao assunto:
- Devo-lhe mil desculpas, Mr Maturin. Receio bem que na noite passada eu tenha sido para si o mais desagradável dos maçadores e espero que me perdoe. Nós, os marinheiros,
temos tão poucas oportunidades de assistir a concertos, e estamos tão pouco acostumados a companhias distintas, que nos deixamos entusiasmar, e excedemo-nos com
a maior facilidade. Queira aceitar as minhas mais sinceras desculpas.
- Meu caro senhor - disse o homem da casaca escura, enquanto a sua cara, de uma palidez cadavérica, ganhava um estranho rubor -, o seu, entusiasmo era inteiramente
justificado. Para dizer a verdade, nunca tinha ouvido, em toda a minha vida, um quarteto tão genial, uma unidade perfeita, enfim... Ah... e quanta paixão! Posso
oferecer-lhe uma taça de chocolate? Quem diz chocolate, diz café! Ficaria muito contente se aceitasse.
- É muito amável o seu convite, Mr Maturin. Nada me agradaria mais. Para dizer a verdade, estava tão eufórico que até me esqueci do pequeno-almoço. Acabo de ser
promovido - acrescentou, com um riso espontâneo.
- Ah sim? Pois desejo-lhe as maiores felicidades, do fundo do coração. Entre, por favor.
Ao ver Mr Maturin, o criado fez com o dedo indicador esse desencorajador gesto mediterrânico que significa um "Não!" rotundo - um movimento de pêndulo invertido.
Maturin encolheu os ombros e comentou para Jack:
- Os correios, hoje em dia, são tremendamente lentos... - e dirigiu-se ao criado, no catalão da ilha: - Chocolate para dois, Jep, mas muito bem batido, ouviste?
Ah, e natas também, mas uma coisa de nada.
- O senhor fala espanhol? - disse Jack, sentando-se e afastando as abas da sua casaca para deixar a espada bem à vista, num gesto largo que encheu de azul o sombrio
estabelecimento. - Deve ser uma coisa esplêndida, saber falar espanhol. Já tentei aprender espanhol muitas vezes, e quem diz espanhol diz italiano ou francês, mas
sem qualquer resultado. Normalmente as pessoas percebem o que eu digo; porém, quando são elas a falar, fazem-no com tal rapidez que acabo por me perder. O problema
está aqui, quer-me parecer - observou Jack, batendo na testa com o indicador. - Em rapaz, acontecia-me o mesmo com o latim: a quantidade de açoites que eu levei
do velho Pagan! - Tais evocações provocaram nele um riso tão franco que o criado, que acabava de chegar com o chocolate, desatou também a rir-se, comentando:
- Está um belo dia, capitão, um belo dia!
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- Um dia prodigiosamente belo! - exclamou Jack, contemplando a cara de rato do criado com extrema afabilidade. - Bello soleil, deveras. Devo dizer, porém - acrescentou,
curvando-se e espreitando pela parte superior da janela -, que não ficaria surpreendido se a tramontana começasse a soprar nestes dias mais próximos. - Virando-se
para Mr Maturin, acrescentou:
- Esta manhã, mal me levantei, reparei naquele tom esverdeado a nordeste e disse para mim mesmo: "Se a brisa marítima parar, é muito natural que venha
a tramontana".
- Não deixa de ser curioso que tenha dificuldade em aprender línguas estrangeiras - disse Mr Maturin, que não tinha o menor alvitre a oferecer no que tocava ao tempo
-, pois parece-me razoável supor que, a um bom ouvido para a música, deveria associar-se a facilidade na aprendizagem das línguas, ou seja, que essas duas tendências
deveriam necessariamente ir a par.
- Estou certo de que tem razão, de um ponto de vista filosófico - disse Jack. - Mas, no meu caso pessoal, é mesmo assim. No entanto, é muito possível que o meu ouvido
musical não seja assim tão famoso... ainda que ame muitíssimo a música. Só Deus sabe os tormentos por que passo para encontrar o tom certo, a afinação justa.
- O senhor toca?
- Enfim, arranho um pouco o violino... De vez em quando faço-lhe umas maldades...
- Também eu! Também eu! Sempre que tenho tempo livre, faço umas graças com o meu violoncelo.
- Um nobre instrumento - disse Jack, após o que desataram a falar de Boccherini, de arcos e resina, de copistas, dos cuidados a ter com as cordas, desfrutando da
mútua companhia até que um horrendo relógio de parede, com um pêndulo em forma de lira, se atreveu a dar as horas. Jack Aubrey esvaziou a sua taça e afastou a cadeira.
- Espero que me perdoe, mas tenho um infinidade de visitas oficiais a fazer, para além de uma entrevista com o meu antecessor. Mas seria para mim uma honra, uma
honra e um prazer, um grande prazer, poder contar com a sua companhia mais logo ao almoço.
- com todo o gosto - disse Maturin, com uma vénia. Estavam já à porta.
- Nesse caso... talvez pudéssemos encontrar-nos às três horas no Crown - sugeriu Jack. - Nós, na Marinha, não seguimos os horários das outras pessoas, de modo que,
a essa hora, costumo já estar morto de fome e com um humor péssimo. Peço-lhe desde já desculpa pelo mau humor.
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Molharemos o lambaz e, quando o lambaz já estiver generosamente molhado, talvez possamos praticar um pouco de música, se o senhor estiver de acordo.
- Está a ver aquela poupa? - exclamou o homem da casaca escura.
- O que é uma poupa? - perguntou Jack, olhando para todo o lado.
- É um pássaro. Aquele pássaro cor-de-canela com as asas listradas. UpKpa epops. Ali! Ali, em cima do telhado. Ali! Ali!
- Onde? Onde? Onde está?
- Desapareceu. Desde que cheguei que estava à espera de ver uma poupa. No centro da cidade! Bendita cidade que dá morada a tais viajantes! Mas peço-lhe desculpa,
o senhor estava a falar de... molhar o lambaz...
- Ah, sim. É uma expressão da gíria da Marinha8. O lambaz é isto disse Jack apontando para a dragona -, e a primeira vez que embarcamos como capitães, é costume
molhá-la, ou seja, bebemos uma ou duas garrafas de vinho.
- Ah sim? - disse Maturin com uma inclinação cortês da cabeça. É um belo adorno, sem dúvida, e também um símbolo hierárquico, não é verdade? Um adorno extremamente
elegante, palavra de honra! Mas, meu caro, não se esqueceu do outro ombro?
- bom - disse Jack, rindo-se -, é claro que mais logo porei o outro. Mas agora quero desejar-lhe um bom dia e agradecer-lhe o excelente chocolate. Alegra-me muito
que tenha podido ver a sua poupa.
A primeira visita que Jack tinha de fazer era ao decano dos capitães, o comandante naval de Mahón. O capitão Harte vivia numa casa enorme e de uma arquitectura não
muito canónica que pertencia a um tal Martinez, um comerciante espanhol, e que tinha uma série de divisões oficiais ao fundo do pátio. Ao atravessar o pátio, por
cujos muros banhados de sol ziguezagueavam já as osgas, Jack ouviu o som de uma harpa, reduzido a um mero tilintar pelas venezianas, que estavam fechadas para evitar
que o sol da manhã entrasse.
O capitão Harte era um homem de baixa estatura, com uma certa parecença com Lorde St Vincent, uma parecença que ele procurava acentuar encurvando a cabeça e os ombros,
tratando com extrema rudeza os seus subordinados e seguindo os princípios dos Whigs. Fosse porque Jack era
8 No original, a expressão é "wet the swab". "Swab", ou "lambaz.", vassoura de cordas usada nos navios, começou por significar, na gíria da Marinha, os galões de
um oficial, acabando por aplicar-se ao próprio oficial. (N. do T.)
9 O partido dos Whigs surgiu depois da revolução de 1688 e pretendia subordinar o poder da Coroa ao Parlamento. No século XIX, época em que se passa a acção do livro, a oposição ao conservadorismo aristocrático contribui para uma revitalização do partido, que em 1832 obtém a primeira grande reforma eleitoral. Em meados do século XIX, dará origem
ao partido liberal. (N. do T.)
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alto e Harte francamente baixo, ou porque Harte suspeitava de algum secreto comércio entre Jack e Mrs Harte, a verdade é que o capitão não gostava nada de Jack,
sendo esse sentimento inteiramente correspondido. De facto, entre os dois homens havia uma arreigada e antiga antipatia. As suas primeiras palavras foram:
- bom, Mr Aubrey, onde diabo se meteu? Estive à sua espera toda a tarde de ontem. Allen esteve à sua espera toda a tarde de ontem. Fiquei espantado quando soube
que ele não conseguiu encontrá-lo. Desejo-lhe as maiores felicidades, evidentemente - disse ele com um sorriso. - Mas, francamente, asseguro-lhe que possui uma estranha
noção do que significa assumir um comando. A esta hora Allen já deve estar a vinte léguas daqui e sem dúvida que levou todos os bons marinheiros do Sophie, já para
não falar dos oficiais. E quanto aos livros, garantias, listas e o mais que havia a fazer, tivemos de atamancar tudo o melhor que pudemos. Uma coisa absolutamente
irregular! De uma irregularidade inaudita!
- O Palias já zarpou?! - exclamou Jack, estupefacto.
- À meia-noite, Mr Aubrey - retorquiu o capitão Harte com um ar satisfeito. - As exigências do serviço não se compadecem com os nossos prazeres, Mr Aubrey. E vi-me
obrigado a recrutar os marinheiros que Allen deixou, porque precisava deles para o serviço portuário.
- Só fui informado a noite passada, ou melhor, de madrugada, entre a uma e as duas.
- Deveras?! E surpreendente. Estou francamente espantado. A carta foi mandada a tempo e horas, quanto a isso não tenho a menor dúvida. A culpa só pode ser daquela
gente da estalagem. Não se pode confiar em estrangeiros. Desejo-lhe as maiores felicidades no desempenho do seu cargo, mas confesso que não sei como há-de fazer-se
ao mar sem tripulação para sair do porto. Allen levou o seu primeiro-oficial, bem como o cirurgião e os guarda-marinhas mais prometedores; e o mais certo é eu não
lhe poder ceder um único homem com as qualificações necessárias.
- bom - disse Jack -, creio que tenho de aproveitar ao máximo aquilo que me resta. - Era compreensível o que se passara: qualquer oficial que tivesse a oportunidade
de passar de um navio pequeno, lento e velho, para uma belíssima fragata, como era o caso do Palias, não pensaria duas
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vezes. Além disso, e segundo um costume imemorial, qualquer capitão que mudasse de navio levaria consigo o seu timoneiro e a tripulação, bem como alguns dos seus
criados; e se não houvesse uma vigilância apertada, esse capitão era muito capaz de cometer as maiores enormidades, ampliando os limites definidos tanto para a tripulação
como para os criados.
- Posso arranjar-lhe um capelão - disse o comandante, abrindo ainda mais a ferida.
- E esse capelão sabe ferrar e rizar as velas e manobrar o leme? - perguntou Jack, decidido a não denunciar o que se passava no seu íntimo. - Se não sabe, permita-me
que me retire.
- Nesse caso, bom dia, Mr Aubrey. Mandar-lhe-ei as suas ordens esta tarde.
- Um bom dia também para si, capitão. Espero que Mrs Harte esteja em casa. Desejaria apresentar-lhe os meus cumprimentos e felicitá-la. Gostaria muito de lhe agradecer
o prazer que nos proporcionou a todos ontem à noite.
- Ah... então esteve em casa do governador? - perguntou o capitão Harte, que sabia perfeitamente que Jack assistira ao concerto; mas, precisamente porque o sabia,
podia dar livre curso à sua maldade. - Se ontem não tivesse andado a... a pandegar, a esta hora já estaria por certo a bordo do seu navio, como compete a um oficial.
Raios me partam se o entendo! De facto, parece-me muito estranho e lamentável que um jovem como o senhor prefira a companhia de violinistas e eunucos italianos a
tomar posse do seu primeiro comando!
Quando Jack atravessou o pátio para fazer a sua visita a Mrs Harte, o sol parecia menos intenso; ainda assim, atravessar aquele pátio de casaco vestido implicava
necessariamente que sentisse muito calor; mal chegou às escadas, subiu-as a correr, com aquele peso encantador e pouco habitual saltitando sobre o ombro esquerdo.
Encontrou um tenente que não conhecia e o guarda-marinha todo esticado da noite anterior, já que, em Mahón, era de bom tom fazer uma visita matinal a Mrs Harte.
A esposa do comandante naval estava sentada junto à harpa, com um ar encantador, conversando com
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o tenente. Mas levantou-se logo que o viu entrar. E, dando-lhe ambas as mãos, exclamou:
- Capitão Aubrey, que alegria vê-lo! Muitos, muitos parabéns! Venha, temos de molhar o lambaz. Mr Parker, toque a sineta, por favor.
- Desejo-lhe muita sorte - disse o tenente, sinceramente satisfeito, pois via tornar-se realidade um sonho que também acalentava. O guarda-marinha hesitou por um
momento, pensando se deveria ou não falar, já que se encontrava em tão augusta companhia; então, no preciso instante em que Mrs Harte se preparava para fazer as
apresentações, atirou um "Muitas felicidades, capitão Aubrey" num bramido hesitante, e enrubesceu.
- Mr Stapleton, terceiro-oficial a bordo do Guerrier - disse Mrs Harte com um aceno da mão. - E Mr Burnet, do Isis. Carmen, traga o Madeiral Era uma mulher refinada
e vistosa que, não sendo bonita nem bela, dava a impressão de ser ambas as coisas, essencialmente devido ao seu esplêndido porte. Abominava a nulidade que lhe coubera
em sorte por marido, que se mostrava a mais submissa das criaturas perante a mulher; e adoptara a música como um meio de lhe escapar. Parecia porém que a música
não lhe bastava, pois enchera o seu cálice de Madeira e bebera-o de um só gole, com um ar de quem já tinha alguma experiência na matéria.
Um pouco mais tarde, Mr Stapleton despediu-se e, depois de cinco minutos de "Delicioso, não está demasiado calor nem mesmo ao meio-dia... O calor é temperado pela
brisa... sim, o vento norte é um tanto ou quanto maçador... mas saudável... Já estamos no Verão... preferível ao frio e à chuva de um Abril inglês... Sim, o calor
em geral é mais agradável que o frio...", Mrs Harte virou-se para o guarda-marinha e disse-lhe:
- Mr Burnet, posso pedir-lhe um grande favor? É que ontem deixei a minha bolsa em casa do governador...
- Que bem que tocou ontem, Molly! - disse-lhe Jack logo que a porta se fechou.
- Jack, sinto-me tão feliz por você ter finalmente um navio!
- Também eu, Molly. Creio que nunca me senti tão feliz em toda a minha vida. Ontem estava tão mal-humorado e tão sem coragem que, francamente, só me apetecia morrer.
Então voltei para o Crown e lá tinha a cana à minha espera. Não é maravilhoso? - Leram a carta juntos, em respeitoso silêncio.
- Responderá por sua conta e risco - repetiu Mrs Harte. -Jack, rogo-lhe, suplico-lhe, que não capture presas neutrais. O brigue de Ragusa que o pobre do Willoughby
apresou acabou por não ser confiscado e os proprietários tencionam processá-lo.
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- Não se preocupe, Molly - disse Jack Aubrey. - Asseguro-lhe que, por um longo período, não poderei capturar nenhuma presa. Esta carta chegou-me às mãos atrasada,
um atraso muito, muito estranho. Allen partiu já com o melhor da tripulação, com uma pressa nunca vista. Ordenaram-lhe que se fizesse ao mar antes que eu pudesse
vê-lo. Quanto aos tripulantes que ficaram, o comandante transferiu-os para serviços portuários: enfim, não há um único homem disponível. Parece, pois, que não podemos
deixar o porto. Assim sendo, atrevo-me a dizer que teremos de ficar plantados em terra durante muito tempo antes de sentirmos sequer o cheiro de uma presa.
- Deveras?! - exclamou Mrs Harte, enrubescendo. Nesse preciso instante entraram Lady Warren e o irmão, que era capitão de infantaria da Marinha.
-Minha querida Anne! - exclamou Molly Harte. - Venha, venha comigo, pois quero que me ajude a remediar uma revoltante injustiça. Apresento-lhe o capitão Aubrey.
Já se conheciam?
- Um seu criado, minha senhora - disse Jack Aubrey, fazendo uma reverência especialmente respeitosa, pois Lady Warren era nada mais nada menos do que a esposa de
um almirante.
- Um galhardo oficial, tão digno, tão valente, um Tory10 dos quatro costados, filho do general Aubrey! Pois calcule que tem sido tratado da forma mais abominável!
O calor aumentara enquanto estivera em casa e, ao sair para a rua, sentiu de súbito aquele ar quente no seu rosto, como se fosse um outro elemento; não era contudo um calor sufocante, nem sequer pesado, e havia nele uma cintilação, um fulgor, que desde logo eliminava qualquer sensação de opressão. Depois de umas quantas voltas,
chegou à rua ladeada de árvores que ia dar à estrada de Ciudadela e à praça sobranceira ao porto, que mais parecia um miradouro, tal era a sua altura e a vista de
que se desfrutava. Atravessou
10 No início do século XIX, os Tories constituíam já um dos dois principais grupos políticos britânicos, associados de início aos Stuarts e posteriormente à própria
monarquia, à Igreja anglicana e à preservação da estrutura política tradicional. Os actuais conservadores são os seus herdeiros. (N. do T.)
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para o lado da sombra, onde se erguiam casas inglesas com janelas de guilhotina, clarabóias e átrios pavimentados, em inesperada harmonia com a igreja barroca dos
jesuítas e as mansões espanholas, menos expostas aos olhares dos transeuntes, com grandes brasões de pedra sobre as portas.
Um grupo de marinheiros passou no outro passeio, alguns deles envergando calças às riscas, muito largas, outros com grosseiras calças de lona; alguns tinham belos
coletes vermelhos, outros vulgares casacos azuis; uns usavam chapéus de pano alcatroado, apesar do calor, outros chapéus de palha muito largos, outros ainda lenços
pintalgados de manchas atados à cabeça; todos eles, porém, tinham longos rabos-de-cavalo que balouçavam ao sabor dos seus passos, e possuíam esse ar indefinível
de tripulantes de um navio de guerra. Pertenciam ao Belleropkon e Jack mirou-os avidamente enquanto passavam, rindo e conversando sonora e amenamente com os seus
amigos ingleses e espanhóis. Aproximava-se agora da praça e, através do viçoso verde das folhas ainda novas, pôde ver ao longe, do outro lado do porto, os sobrejoanetes
e joanetes do Généreux cintilando ao sol enquanto secavam. O bulício da rua, o verde das árvores e o azul do céu bastavam para que o coração de qualquer homem se
erguesse nos ares como uma cotovia - de facto, nesse momento três quartas partes de Jack voavam muito, muito alto. Contudo, a parte restante estava presa à terra,
matutando angustiada no problema da tripulação. Desde os seus primeiros tempos na Marinha que Jack Aubrey conhecia esse verdadeiro pesadelo que era a selecção de
tripulantes; aliás, o seu primeiro ferimento sério fora infligido por uma mulher de Deal, que o atingira com um ferro de engomar, porque, segundo ela, não estava
certo que recrutassem o seu marido; no entanto, nunca lhe passara pela cabeça que tivesse de enfrentá-lo e resolvê-lo tão cedo, nem daquela forma, e muito menos
no Mediterrâneo.
Encontrava-se agora na praça, com as suas nobres árvores e as grandes escadas gémeas que desciam serpeantes até ao porto e que, havia já um século, eram designadas
pelos marinheiros britânicos como Pigtail Steps11, e que eram a causa de muitas pernas partidas e mais cabeças rachadas. Atravessou a praça até chegar ao muro baixo que se estendia entre os patamares superiores das escadas e contemplou a vastidão das águas cercadas que à esquerda se estendiam até à longínqua ponta final do porto
e, à direita, até à estreita foz
11 Ou seja, "escadas dos rabos-de-cavalo", assim denominadas porque os marinheiros da época, seus principais utentes, usavam rabo-de-cavalo. (N. do T.)
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vigiada pelo castelo, para lá da ilha do hospital, a muitas milhas de distância. À sua esquerda viu os navios da Marinha Mercante: dezenas, ou mesmo centenas, de
faluchos, tartanas, xebecs, pingues, polacras, polacras-settees - todos os tipos de aparelhos do Mediterrâneo e também muitos dos mares do Norte:
bean-cods12, laúdes,
arenqueiros. À sua frente e à direita, estavam os navios de guerra: dois navios de linha, ambos de setenta e quatro canhões; uma bela fragata de vinte e oito canhões,
a Niobe, cujos tripulantes estavam a pintar uma faixa escarlate sob a faixa quadriculada das aberturas dos canhões e um pouco acima do delicado gio, numa imitação
de um navio espanhol que o seu capitão muito admirava; e numerosos navios de transporte e outras embarcações; entre eles e as escadas que conduziam ao cais passavam
entretanto inúmeros barcos: chalupas, barcaças dos navios de linha, lanchas, cúteres, esquifes e ioles, e até o escaler da bombarda Tartarus, que se arrastava apenas
dez centímetros acima da água, sob o peso tremendo do tesoureiro do navio. Ainda mais para a direita, o esplêndido cais fazia uma curva em direcção ao estaleiro,
ao serviço de material de guerra, ao armazém de abastecimentos e à ilha de quarentena, ocultando muitos outros navios. Jack subiu ao parapeito, na esperança de vislumbrar
a causa da sua felicidade; mas era impossível vê-la. Saiu relutantemente pelo lado esquerdo, na direcção do escritório de Mr Williams. Mr Williams era o representante
em Mahón do agente de Gibraltar que administrava as presas de Jack, a mui respeitável firma Johnstone Graham, e o seu escritório era o próximo porto onde Jack deveria
necessariamente abrigar-se pois, para além de se sentir ridículo por levar ouro no ombro mas nem uma moeda nos bolsos, precisava nesse momento de dinheiro fresco para uma série de despesas tão sérias quanto inevitáveis - os presentes do costume, ofertas simpáticas e outras coisas similares, que não poderiam ser compradas
a crédito.
Entrou no escritório animado da mais absoluta confiança, como se tivesse acabado de sair triunfante da batalha do Nilo, e a verdade é que foi muito bem recebido.
Quando terminou os assuntos que tinha a tratar, o agente perguntou-lhe:
- Suponho que já esteve com Mr Baldick, ou não?
- O primeiro-oficial do Sophie?
- Precisamente.
12 Bean-cod era um termo da gíria da Marinha da época que designava aquilo que os ingleses consideravam como o tipo caracteristicamente ibérico de pequenas embarcações com linhas bastante pronunciadas. (N. do T.)
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- Mas ele partiu com o capitão Allen... Neste momento está a bordo do Palias.
- Pois creia, capitão Aubrey, e perdoe-me a franqueza, que está equivocado quanto a esse particular. Mr Baldick encontra-se no hospital.
- No hospital?! Espanta-me que esteja.
O agente sorriu, erguendo os ombros e abrindo as mãos, num gesto que era sobretudo um pedido de desculpa: ele era o detentor da verdade e Jack tinha razões para
estar espantado; mas o agente pedia desculpa porque o seu interlocutor estava, socialmente, uns bons degraus acima dele.
- Mr Baldick desembarcou ao fim da tarde de ontem e foi transportado de imediato para o hospital com um pouco de febre, para o pequeno hospital que fica para lá dos Capuchinhos, não o hospital da ilha. A verdade - o agente colocou a palma da mão diante da boca como se fosse contar-lhe um segredo, e prosseguiu numa voz sumida
-, a verdade é que Mr Baldick e o cirurgião do Sophie não se podem ver, e a perspectiva de uma viagem nas mãos desse cirurgião era, para o primeiro-oficial do Sophie,
algo de absolutamente insuportável. Voltará por certo a embarcar em Gibraltar logo que esteja melhor. E agora, capitão Aubrey, se mo permite - disse o agente, com
um sorriso fabricado e um olhar matreiro -, vou cometer a ousadia de lhe pedir um favor. A minha esposa tem um primo, muito jovem ainda, cujo maior anseio é embarcar
e cujo sonho é chegar a tesoureiro. É um rapaz muito esperto e possui uma belíssima caligrafia; desde o Natal que trabalha no meu escritório e garanto-lhe que é
muito bom em números. Por isso, capitão Aubrey, se não tiver mais ninguém em mente para escriturário, ficar-lhe-ia imensamente grato... - O sorriso do agente aparecia
e desaparecia, aparecia e desaparecia: Mr Williams não estava habituado a pedir favores, e para mais a oficiais da Marinha, e considerava a eventualidade de uma
recusa como algo de extraordinariamente desagradável.
- Bem - disse Jack, reflectindo. - De facto, não tenho ninguém em mente. Responsabiliza-se por ele, não é verdade, Mr Williams? Pois muito bem, façamos assim: o
senhor arranja-me um marinheiro experiente para me acompanhar nesta viagem e eu contrato o seu rapaz.
- Está a falar a sério, capitão?
- Sim... sim, claro. Claro que estou.
- Negócio feito, então - disse o agente estendendo a mão. - O senhor não se arrependerá, capitão, dou-lhe a minha palavra de honra.
- Estou certo disso, Mr Williams. Mas agora talvez fosse melhor eu ver o rapaz, não acha?
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David Richards era um jovem simples, vulgar, descolorido - literalmente descolorido, à excepção de algumas sardas cor-de-malva -, mas havia algo de comovedor na
sua intensa e reprimida excitação e na sua desesperada ânsia de agradar. Jack fitou-o com um olhar benevolente e disse-lhe:
- Mr Williams disse-me que possui uma belíssima caligrafia. Poderia escrever-me uma nota? É dirigida ao mestre do Sophie. Mr Williams, qual é o nome do mestre?
- Marshall, William Marshall. Um excelente navegador, segundo me disseram.
- Tanto melhor - disse Jack, recordando os seus problemas com as tábuas náuticas e as bizarras conclusões a que por vezes chegara. - "Para Mr William Marshall, mestre
do Sophie, corveta de Sua Majestade. O capitão Aubrey apresenta-lhe os seus melhores cumprimentos e informa-o de que subirá a bordo por volta da uma da tarde". bom,
creio que não poderia avisá-los de forma mais correcta... Muito bem escrito, sim senhor! Agradecia que tratasse de mandar alguém entregar a nota, está bem?
- Eu próprio a levo, capitão! Imediatamente! - exclamou o jovem, tão satisfeito que o seu rosto pálido ganhou mesmo um tom rosado.
"Meu Deus!", disse Jack para si mesmo, já a caminho do hospital, olhando à sua volta para a vastidão de terra agreste, estéril e despovoada, de ambos os lados de
um mar tão cheio de gente e actividade. "Meu Deus! Que maravilha poder interpretar o papel de grande senhor uma vez por outra!".
- Mr Baldick? - disse Jack. - O meu nome é Aubrey. Visto que por pouco não fomos camaradas de bordo, resolvi fazer-lhe uma visita para saber como está de saúde.
Faço votos para que esteja a recuperar da doença que o afectou.
- É muito amável da sua parte, capitão Aubrey, mais do que amável disse o primeiro-oficial, um homem que aparentava uns cinquenta anos e cujo rosto rubro estava
coberto por uma barba de poucos dias, uma penugem de uma cintilação prateada, ainda que o seu cabelo fosse negro. - Obrigado, capitão, muito obrigado. Estou muito
melhor, graças a Deus, agora que escapei às garras daquele magarefe casmurro. Imagine só, capitão: ao fim de trinta e sete anos de serviço, vinte e nove dos quais
como oficial, receitam-me dieta e águas! Dizem que os comprimidos e as gotas preventivas não prestam, que estão muito desacreditadas. Mas a verdade é que foram esses
remédios que me ajudaram a sair de apuros na última guerra, nas índias Ocidentais, quando perdemos dois terços dos vigias de bombordo em dez dias por causa da febre-amarela!
Pois foram esses remédios que me protegeram da febre-amarela,
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capitão, isto já para não falar do escorbuto, da ciática, do reumatismo e da diarreia com sangue. Que não servem para nada, dizem. Pois bem, eles que digam o que
lhes apetecer, esses rapazolas acabados de sair da Escola de Cirurgia, com a tinta ainda húmida nos certificados, mas que se julgam já as maiores sumidades, eles
que digam o que quiserem, que eu cá só confio nas gotas preventivas!
"E no taberneiro", acrescentou Jack para si mesmo, pois o quarto cheirava como a sala de bebidas de um navio de primeira classe. - Portanto, o Sophie perdeu o cirurgião
- disse ele em voz alta - e os seus melhores tripulantes, não é verdade?
- Posso assegurar-lhe que a perda não foi grande, capitão, ainda que, de facto, os marinheiros o tivessem em grande conta e confiassem inteiramente nele e nas suas
estúpidas mezinhas. Enfim, coitados, não passam de uns simplórios... Mas sim, é verdade que ficaram muito tristes com a partida do indivíduo. Não será fácil o senhor
arranjar um cirurgião no Mediterrâneo, pois cirurgiões são aves raras, e que aves raras! Mas a perda não é grande, digam o que disserem: um baú cheio de frascos
de gotas preventivas dá o mesmo resultado. O mesmo, não, melhor! E o carpinteiro lá está para as amputações. Aceita um copo, capitão? -Jack abanou a cabeça. - Quanto
aos restantes
- prosseguiu o primeiro-oficial -, devo dizer que fomos muito moderados. O Palias está praticamente com toda a tripulação que tinha. O capitão Allen só levou o sobrinho
e o filho de um amigo e um grupo de americanos, para além do seu timoneiro e do despenseiro. Ah, e também o capelão.
- São muitos, os americanos?
- Ah, não, não são mais que meia dúzia. Tudo gente da região do capitão Allen, para lá de Halifax.
- bom, sendo assim, garanto-lhe que fico muito mais descansado. Tinham-me dito que o navio ficara sem um único tripulante.
- Quem lhe disse isso, capitão?
- O capitão Harte.
Mr Baldick franziu muito os lábios e torceu o nariz. Hesitou um momento, mas lá acabou por beber mais um gole; só então se dispôs a falar:
- Nestes últimos trinta anos tive ocasião de conhecer a fundo o capitão Harte. Adora tramar as pessoas porque isso o diverte muito sem dúvida.
Enquanto reflectiam acerca da tortuosa noção de divertimento do capitão Harte, Mr Baldick esvaziou lentamente a caneca.
- Não - disse por fim, arrumando-a -, nós deixámos-lhe aquilo a que poderíamos chamar uma tripulação muito aceitável. Uma ou duas vintenas de
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marinheiros de primeira, e uma boa metade do pessoal é constituída por homens experientes na guerra, que é coisa que não se pode dizer da maior parte dos navios
de guerra actuais. Há alguns cabrões do piorio na outra metade, mas cabrões há-os em todas as tripulações. A propósito, o capitão Allen deixou-lhe uma nota sobre
um indivíduo chamado Isaac Wilson, marinheiro de segunda classe. bom, e pelo menos não tem gente dada a intrigas e brigas a bordo, que isso é que é uma praga maldita.
Além disso, na sua maior parte os oficiais são marinheiros do melhor, gente tesa, à moda antiga. Watt, o contramestre, conhece o seu ofício melhor que ninguém. E
Lamb, o carpinteiro, é um camarada bom e leal, embora talvez um pouco lento e tímido. George Day, o condestável, também é um bom homem, quer dizer, quando está bem;
por vezes tem uns modos um bocado estranhos, mas é por causa da sífilis. E o tesoureiro, Ricketts, também está bem para tesoureiro. Quanto aos ajudantes do mestre,
Pullings e o jovem Mowett, pode confiar-lhes à vontade um quarto: Pullings chegou a tenente há anos, mas nunca foi nomeado para nada. E quanto aos mais novos, só
lhe deixámos dois, o filho do Ricketts e Babbington. Estúpidos que nem umas portas, os dois; mas são bons tipos.
- E o mestre? Ouvi dizer que é um grande navegador.
- O Marshall? bom, lá isso é. - Mr Baldick voltou a franzir os lábios e a torcer o nariz. Mas já tinha bebido mais de meio litro de grogue, o que o animou a aventurar-se
por outras águas: - Não sei o que o senhor acha dessas histórias de pândegas sodomitas; mas, cá para mim, francamente acho que é antinatural.
- bom, talvez tenha razão, Mr Baldick - disse Jack. Depois, sentindo o peso da interpelação de que fora alvo, acrescentou: - Não, não gosto disso, Mr Baldick, é
algo que reprovo em absoluto. Mas devo confessar que não me agrada ver um homem enforcado por isso. Os grumetes do barco, suponho?
Mr Baldick abanou lentamente a cabeça por algum tempo.
- Não - disse por fim. - Não. Eu não vou acusá-lo de fazer o que quer que seja. Por ora não. Mas basta, eu não gosto de dizer mal das pessoas por trás das costas.
- É o que a Marinha tem de bom... - disse Jack com um gesto largo. Pouco depois despediu-se de Mr Baldick, pois o primeiro-oficial ficara de repente muito pálido
e coberto de suor; enfim, para além de não estar bem de saúde, bebera demasiado e dera-lhe para a melancolia.
A tramontana tinha refrescado e agora soprava uma brisa de dois rizes de gávea que agitava as copas das palmeiras; o céu estava limpo de uma ponta à outra; um mar
ríspido, picado, começava a levantar-se para lá do porto e
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agora havia no ar quente um aroma, um sabor, talvez a sal ou a vinho. com mãos firmes, ajeitou o chapéu na cabeça, encheu os pulmões de ar e disse em voz alta: - Meu Deus, que bom que é estar vivo!
Tinha calculado bem o tempo. Passaria pelo Crown, certificar-se-ia de que o almoço seria esplêndido, como mandava a ocasião, escovaria o seu casaco e talvez bebesse
um copo de vinho: não teria de ir buscar a sua nomeação, porque nunca se separara dela - a carta estava ali, contra o seu peito, produzindo um ruído suave, um muito
ligeiro crepitar ao sabor da sua respiração.
À uma menos um quarto, ao descer até à beira-mar, com o Crown atrás de si, sentiu uma estranha falta de ar; e ao sentar-se no bote do barqueiro apenas conseguiu
pronunciar a palavra "Sophie", pois o seu coração batia desalmadamente, além de que tinha uma singular dificuldade em engolir. "Estarei com medo?", perguntou-se.
Os seus olhos fixavam o punho da espada e nem se deu conta do suave deslizar do bote entre barcos e navios a abarrotar de gente, até que o costado do Sophie surgiu
diante de si e o barqueiro ergueu o bicheiro.
Uma vista de olhos instintiva e perscrutadora mostrou-lhe vergas perfeitamente alinhadas, o costado convenientemente polido, grumetes com luvas brancas descendo
a correr com cabos de amurada forrados com baeta, o circunspecto contramestre dando as suas ordens, a prata cintilando ao sol. O bote deteve-se e encostou à corveta
com um ligeiro rangido; Jack subiu pelo costado, acompanhado pela singular sonoridade das ordens. Mal pisou o portaló, ouviu-se uma voz rouca dando uma ordem e o
bater dos pés dos homens da infantaria apresentando armas; ao mesmo tempo, todos os oficiais se descobriram; e Jack, ao subir ao castelo da popa, descobriu-se também.
Os oficiais subalternos e guardas-marinhas envergavam os seus melhores uniformes, distribuindo uma mancha azul e branca pelo convés reluzente e formando um grupo
menos austero do que o rectângulo escarlate da infantaria. Todos os olhos se fixavam no novo capitão. Jack adoptou um ar circunspecto e, sem sombra de dúvida, particularmente
severo. Após uma pausa de segundos, durante a qual só se ouviu a voz do barqueiro que, no seu bote, murmurava qualquer coisa para si mesmo, Jack Aubrey ordenou:
- Mr Marshall, apresente-me os oficiais, se faz favor.
Cada um dos oficiais deu um passo em frente, o tesoureiro, os ajudantes do mestre, os guardas-marinhas, o condestável, o carpinteiro, o contramestre, e cada um deles
fez a reverência da praxe, sob o olhar atento da tripulação. O capitão Aubrey disse-lhes então:
- Meus senhores, apraz-me muito conhecê-los. Mr Marshall, todos à
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popa, por favor. Visto que neste navio não há um primeiro-oficial, eu próprio terei de ler a minha nomeação na presença da tripulação do navio.
Não havia necessidade de mandar subir ninguém: de facto, todos os homens estavam ali, impecáveis no asseio e no aprumo, atentos e expectantes. No entanto, durante
pelo menos meio minuto, as vozes do contramestre e dos seus ajudantes chamaram "Todos à popa!" através das escotilhas. Por fim, os gritos cessaram. Jack avançou
até à extremidade do castelo de popa e tirou a carta que o nomeava capitão. Mal pegou nela, ouviu-se a ordem "Descobrir-se!", e Jack deu início à leitura, numa voz
firme mas algo forçada e mecânica.
- "Sua Excelência Lorde Keith, Cavaleiro de Bath...".
Ao ler aquelas linhas que já conhecia tão bem, mas que agora ganhavam um significado infinitamente maior, sentiu que a felicidade regressava ao seu coração, brotando
impetuosa da gravidade da ocasião. Não admirava, pois, que tivesse concluído a leitura com extremo deleite:
- "De tais normas, nem o senhor, nem qualquer homem sob o seu comando, se deverá apartar, pois, em apartando-se delas, responderá por sua conta e risco". - Depois
dobrou o documento, saudou os homens e guardou-o no bolso. - Muito bem - disse. - Mr Marshall, os homens podem dispersar. De seguida, gostaria de dar uma vista de
olhos ao navio.
Na solene e silenciosa procissão que se seguiu, Jack viu exactamente aquilo que esperava ver: um navio preparado para a inspecção, por assim dizer de respiração
suspensa, não fosse haver alguma falha nos seus aprestos primorosamente tratados, nas suas aduchas geometricamente perfeitas, nas talhas de turco perpendiculares.
Aquele Sophie tinha tantas semelhanças com o Sophie de todos os dias quanto aquele contramestre (todo retesado e suado, enfiado num casaco que parecia ter sido cortado
com uma enxó) teria com o contramestre que, em mangas de camisa, calçava a verga da gávea no meio de alterosas vagas; no entanto, havia entre ambos uma relação essencial,
e a alvura da coberta, o brilho ofuscante dos dois canhões de quatro13 de bronze, no castelo de popa, a precisão com que os cilindros estavam colocados no paiol
onde eram guardados os cabos e os aprestos sobressalentes, a ordem e o asseio perfeitos das panelas e dos alguidares na cozinha, tudo isso tinha um significado.
Jack havia já servido gato por lebre muitas vezes e por isso não seria fácil enganarem-no; mas ficou contente com o que viu. Viu e apreciou
13 Canhões de quatro: canhões com projécteis de quatro libras, ou seja, cerca de dois quilos. (N. do T.)
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tudo o que esperavam que visse. E fechou os olhos às coisas que não esperavam que visse - o bocado de presunto que um gato arrastava pelo castelo de proa, as raparigas
que os oficiais subalternos tinham escondido no paiol de velas, e que não paravam de o espreitarem por detrás dos montes de lona. Não fez caso da cabra que se banqueteava
na manjedoura e que o fixava com um olhar insultuoso e diabólico, com as pupilas contraídas, enquanto defecava com toda a sua gana; nem do dúbio objecto, semelhante
a uma dose de pudim, que alguém, acometido de um pânico de última hora, havia escondido debaixo da trinca do gurupés.
No entanto, Jack Aubrey possuía um olho eminentemente profissional
- navegava de facto desde os nove anos, embora, oficialmente, apenas desde os doze - e esse olho não deixou de registar muitas outras impressões. O mestre não correspondia
minimamente à imagem que lhe havia sido transmitida: era um homem de meia-idade, corpulento, bem-parecido e eficiente; aquele miserável do Baldick estava por certo
equivocado. O contramestre era um homem cauteloso, consciencioso, inteligente, um marinheiro à antiga: os traços do seu carácter podiam ler-se no seu trabalho. O
tesoureiro e o condestável eram muito diferentes, embora o condestável estivesse demasiado doente para que se pudesse avaliá-lo, e isso era tão óbvio que, a meio
da visita do capitão, desapareceu sem que ninguém desse por isso. Os guardas-marinhas tinham melhor aspecto do que seria de esperar: os guardas-marinhas de brigues
e cúteres costumavam ter um aspecto particularmente miserável. Quanto àquele rapaz, o Babbington, Jack não podia permitir que fosse a terra com aquela roupa vestida:
a mãe contara por certo com um crescimento que não ocorrera; bastar-lhe-ia levar aquele chapéu que quase o tapava para desacreditar todo o navio.
A sua principal impressão foi a de que estava na presença de uma velharia: de facto, havia algo de obsoleto e arcaico no Sophie; era como se o fundo, em vez de estar
revestido a cobre, tivesse sido pregado com tachões, como se os costados tivessem sido calafetados em vez de pintados. Os tripulantes, embora não fossem velhos,
longe disso (de facto, a maior parte dos homens estava na casa dos vinte), tinham um ar antiquado; alguns usavam sapatos e calções tufados14, uma indumentária que
era já uma raridade nos seus tempos de guarda-marinha, quando tinha a idade do jovem Babbington. Reparou ainda que se comportavam de uma forma natural e espontânea;
pareciam
14 Petticoat-breeches: de facto, a grande moda deste tipo de calções tufados fora em fins do século XVII, mais de um século antes. (N. do T.)
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razoavelmente curiosos, mas não mal-intencionados nem enressaibados, ou tão-pouco intimidados.
Sim, a palavra era essa: antiquado. Gostava muito daquele navio - gostara dele no momento em que os seus olhos haviam percorrido pela primeira vez as suaves curvas
da sua coberta; porém, vendo as coisas com um olhar mais frio, não podia deixar de reconhecer que se tratava de um navio velho e lento com o qual, muito provavelmente,
não faria fortuna. Sob as ordens do seu antecessor, o Sophie levara a cabo duas acções meritórias, uma contra um navio corsário francês de Toulon, de vinte canhões,
e a outra no estreito de Gibraltar, protegendo um comboio de uma chusma de canhoneiras de Algeciras que o haviam atacado num mar calmo; porém, tanto quanto se lembrava,
o Sophie nunca conseguira nenhuma presa digna de registo.
Regressaram ao salto do pequeno castelo de popa - na realidade, era mais um simples tombadilho - e Jack, baixando a cabeça, entrou na cabina. Curvado, e bem curvado,
avançou na direcção dos armários sob as janelas que se estendiam ao longo de toda a popa - uma moldura elegante, curvilínea, para uma vista de Mahón absolutamente
magnífica, bem digna das atenções de um Canaletto: a cidade, iluminada pelo silencioso sol do meio-dia, parecia (vista da relativa obscuridade da cabina) pertencer
a um outro mundo. Sentando-se com um cauteloso movimento lateral, Jack verificou que podia erguer a cabeça sem a menor dificuldade - ainda lhe sobravam umas boas
dezoito polegadas -, e disse:
- Pois bem, Mr Marshall, devo felicitá-lo pelo aspecto do Sophie. Tudo muito arrumado, tudo em óptima ordem. - Achou que podia ousar tal exuberância desde que a
sua voz mantivesse aquele tom oficial, mas não passaria daí, isso era certo; tão-pouco tencionava dirigir-se aos homens ou anunciar qualquer tipo de indulgência
para celebrar a ocasião. Odiava a ideia de ser um capitão "popular".
- Obrigado, capitão - disse o mestre.
- Agora vou a terra. Mas dormirei a bordo, evidentemente; agradecia-lhe que enviasse um bote para recolher o meu baú e os meus pertences. Estou hospedado no Crown.
Ficou ali sentado por um momento, saboreando a glória de estar na sua cabina. Ali não havia canhões; se os houvesse, a construção muito peculiar do Sophie exigiria
que se colocasse as suas bocas a seis polegadas da superfície, e os dois canhões de quatro, que normalmente teriam ocupado muito espaço, encontravam-se mesmo por
cima da sua cabeça; mesmo assim o espaço não era muito; naquela cabina, tirando os armários, caberia apenas uma mesa
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colocada de través. Apesar de tudo, era bastante mais do que até então possuíra no mar. Por isso contemplava tudo aquilo com um intenso prazer, apreciando com especial
deleite as sete janelas graciosamente montadas e inclinadas para dentro, todas elas tão brilhantes como espelhos, sete molduras que formavam uma curva perfeita que
embelezava, e muito, aquela cabina.
Era mais do que até então tivera em toda a sua vida; era mais do que alguma vez esperara para os primeiros tempos da sua carreira; sendo assim, por que razão haveria
no seu íntimo uma inquietação que contrariava a sua exultação, um sentimento ainda indefinido que lhe fazia lembrar o aliqu-id amari dos seus tempos de escola?
Enquanto regressava a terra num bote conduzido pelos tripulantes do seu próprio navio, envergando calças de brim brancas e chapéu de palha com o nome Sophie bordado
na fita, com um solene e silencioso guarda-marinha ao seu lado no paneiro, Jack deu-se conta da verdadeira natureza daquele sentimento. É que o capitão Aubrey deixara
de ser um dos "nossos": passara a ser um dos "deles". De facto, naquele instante ele era a encarnação desses "eles". Durante a sua visita ao navio, tinham-no tratado
com a maior deferência - um respeito diferente do que se tinha em relação a um oficial, diferente do que se tinha em relação ao nosso semelhante: essa deferência
rodeara-o, cobrira-o, como se fosse uma campânula de cristal, separando-o, apartando-o da tripulação do navio; e, à sua partida, o Sophie deixara escapar um suspiro
de alívio, um suspiro que Jack conhecia perfeitamente e que poderia ser traduzido por esta exclamação: "Jeová já se foi embora!".
"É este o preço que se tem de pagar", reflectiu. - Obrigado, Mr Babbington - disse para o rapaz. Deixou-se ficar nas escadas enquanto o bote dava a volta e se afastava
ao sabor do esforço dos remadores; o jovem Babbington gritava com a sua voz esganiçada: - Agora, ciar! Vamos! Não adormeça, Simmons, seu patife, seu cara de grogue!
"É o preço que se tem de pagar", pensou Jack. "E, por Deus, vale a pena pagá-lo!". Enquanto estas palavras se enraizavam na sua mente, a expressão de profunda felicidade
e de deleite contido voltava uma vez mais ao seu rosto radiante. Contudo, ao dirigir-se para o Crown, onde o esperava um encontro
- um encontro com alguém que estava ao seu nível -, havia no seu passo apenas um pouco mais de firmeza do que era habitual no tenente Aubrey.
15 Expressão latina que poderá traduzir-se por "um não sei quê de amargo". (N. do T.)
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CAPÍTULO DOIS
Estavam sentados a uma mesa redonda, numa sacada das traseiras da estalagem que se erguia muito acima do mar - e no entanto tão perto dele que os dois homens tinham
devolvido as conchas das ostras ao seu primitivo elemento líquido com um ligeiro movimento do pulso; de uma tartana que estava a descarregar, cerca de cinco metros
abaixo, chegava-lhes uma mescla de odores variados - alcatrão de Estocolmo, cordame, lonas, terebintina da China.
- Perdoe-me a insistência, Mr Matunn, mas acho que devia comer um pouco mais de cabrito guisado - alvitrou Jack.
- bom, já que insiste - disse Stephen Maturin. - Está excelente, de facto!
- Cabrito guisado é uma das coisas que fazem bem no Crown - disse Jack. - Embora talvez não devesse reconhecê-lo. Para além das sobremesas, tinha encomendado empadas
de pato, bife à moda da casa e cabeça de porco de salmoura. O homem confundiu tudo, sem dúvida. Só Deus sabe o que está nesse prato ao pé de si, mas de certeza que
não é cabeça de porco. Fartei-me de lhe dizer, visage de porco, visage de porco; e ele acenava que sim, tal e qual um mandarim chinês. Garanto-lhe que é exasperante:
pedimos-lhes que preparem cinco pratos, cinco platos, explicando tudo tintim por tintim em espanhol e quando chegamos à mesa encontramos apenas três, dois dos quais
não pedimos. Sinto-me envergonhado por não ter nada de melhor para lhe oferecer, mas pode crer que não foi por falta de empenho da minha parte.
- Asseguro-lhe, Mr Aubrey, que há muito tempo que não comia tão bem e - com uma vénia - em tão agradável companhia - disse Maturin.
- bom - disse Jack enquanto enchia os copos e observava, sorridente,
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a transparência do vinho -, a mim pareceu-me que, para comunicar com os espanhóis, bastava o pouco espanhol que conheço.
- Está a esquecer-se, evidentemente, de que nestas ilhas se fala catalão.
- Catalão? O que é o catalão?
- Ora, é a língua da Catalunha, Mr Aubrey... das ilhas, de toda a costa mediterrânica até Alicante, mesmo para lá de Alicante. De Barcelona. De Lérida. Da região
mais rica da península.
- Deixa-me espantado, Mr Maturin. Não fazia a menor ideia! Uma outra língua, diz o senhor? Mas atrevo-me a dizer que são línguas muito parecidas. Não será o catalão
umputain, como se diz em França?
- Ah, não, nada disso - retorquiu Mr Maturin. - Não são nada parecidas. O catalão é uma língua muito mais bela. Mais erudita, mais literária. E muito mais próxima
do latim. Ah, e a propósito, se me permite a emenda, creio que a palavra é patois e nã.oputainl.
- Sim, sim, é isso mesmo. Patois. No entanto, era capaz de jurar que putain também é uma palavra francesa; ouvi-a não sei onde. Mas consigo não vale a pena dar-me
ares de erudito... Diga-me, Mr Maturin, o catalão soa assim tão diferente ao ouvido, quer dizer, a um ouvido ignorante como o meu?
- Sim, o catalão é tão diferente do castelhano como o italiano é diferente do português. Castelhano e catalão são mutuamente incompreensíveis, soam inteiramente
diferentes. A entoação de cada uma delas situa-se numa clave musical completamente diferente. Enfim, são tão diferentes como Gluck e Mozart. Este excelente prato
que aqui tenho a meu lado, por exemplo (e vejo que fizeram o possível para cumprirem as suas ordens), chama-se jabalí em castelhano, ao passo que em catalão se diz
senglar.
- É carne de porco?
- De um primo do porco, o javali. Permita-me...
- Não há dúvida, o senhor sabe muito. Importa-se de me passar o sal? É um prato excelente, sem dúvida; mas garanto-lhe que não teria adivinhado de que animal era
a carne. Que coisas são estas, escuras e macias e tão saborosas? - perguntou Jack Aubrey.
- Aí está uma pergunta que me deixa embaraçado, capitão.
- Em catalão chamam-lhes boleis1... Quanto ao nome que lhes dão em
1 Jack Aubrey confundepatois, dialecto, computain, prostituta. (N. do T.)
2 Boletos, em português: cogumelos dos bosques, de chapéu espesso, alguns dos quais comestíveis. (N. do T.)
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inglês, francamente não sei. Provavelmente não têm nome, isto é, um nome vulgar, embora o naturalista não tenha dificuldade em reconhecê-los. Trata-se do boletus
edulis de Lineu.
- Como...?! - começou Jack, olhando para Stephen Maturin com sincera afeição. Comera quase um quilo de cabrito, e o javali, por cima do cabrito, fazia vir ao de
cima toda a sua afabilidade. - Como...?! - Porém, ao aperceber-se de que podia estar a ser inconveniente para o seu convidado, disfarçou tossicando e tocou a sineta
para chamar o criado, enquanto juntava as garrafas vazias no seu lado da mesa.
A questão, contudo, estava no ar, e só uma discrição tingida de um extremo melindre ou de um óbvio mau humor poderia tê-la ignorado.
- Eu fui criado nestas terras - disse Stephen Maturin. - Passei grande parte dos meus tempos de infância e juventude com o meu tio em Barcelona ou com a minha avó
na região para lá de Lérida. Para dizer a verdade, passei mais tempo na Catalunha do que na minha Irlanda natal; e quando voltei à Irlanda para frequentar a universidade,
deu-se um caso curioso: fazia os meus exercícios de Matemática em catalão, porque era mais fácil manejar os números nessa língua.
- Nesse caso, fala por certo catalão como qualquer nativo - disse Jack.
- Que maravilha! É aquilo a que eu chamo aproveitar bem o tempo da infância! Quem me dera poder dizer o mesmo de mim.
- Não, não - disse Stephen abanando a cabeça. - Para dizer a verdade, aproveitei muito mal o meu tempo: alcancei um conhecimento razoável dos pássaros - esta é uma
região muito rica em aves de rapina - e dos répteis; mas o campo dos insectos, exceptuando os lepidópteros, e o das plantas, não passam para mim de verdadeiros desertos
de ignorância, da mais grosseira, estéril e estúpida ignorância! Só depois de ter estado alguns anos na Irlanda e de ter escrito o meu pequeno trabalho sobre as
fanerogâmicas do Upper Ossory, é que compreendi quão monstruosamente desperdiçara o meu tempo. Uma região tão vasta e totalmente inexplorada desde que Willughby
e Ray3 por aqui passaram em fins do século passado! Lembrar-se-á por certo de que o rei de Espanha convidou Lineu a visitar o país, dando-lhe inteira liberdade de
acção; Lineu, porém, declinou o convite. Pois eu tinha tido todas estas riquezas inexploradas ao meu alcance e nem havia reparado nelas!
3 Francis Willughby e John Ray, naturalistas ingleses que trabalharam juntos na classificação de animais e plantas e que viajaram por toda a Europa entre 1663 e
1666. (N. do T.)
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Imagine só o que teriam conseguido um Palias, um Solander, ou os irmãos Gmelins4! Foi por isso que aproveitei a primeira oportunidade que surgiu e acedi a acompanhar
o velho Mr Browne. É certo que Minorca não é tão rica como o continente; mas, em contrapartida, é uma área de rocha calcária tão extensa que tem a sua flora específica
e tudo o mais que deriva dessa interessante condição geológica.
- Mr Brown, o do estaleiro? O oficial da Marinha? Conheço-o bem disse Jack. - É um excelente camarada, adora cantar e compõe umas melodias deliciosas.
- Não. O meu paciente morreu no mar. Sepultámo-lo perto do castelo de San Felipe: pobre homem, estava tísico em último grau. Acalentara a esperança de o trazer para
aqui. Nestes casos, por vezes uma mudança de ares e de dieta pode operar milagres... Porém, quando Mr Florey e eu o abrimos, encontrámos uma tão grande... Em suma,
concluímos que os seus médicos (e eram os melhores de Dublin) tinham sido demasiado optimistas.
- Abriram-no? - exclamou Jack, afastando-se do prato.
- Sim. Achámos que era o melhor, para dar uma satisfação aos parentes e amigos. Ainda que, francamente, os parentes e amigos de Mr Browne não pareçam ter sido muito
afectados pela sua morte. Há semanas que escrevi ao único parente que conheço, um fidalgo do condado de Fermanagh, e até agora não recebi resposta.
Houve um momento de silêncio. Jack encheu os copos (que, pelos vistos, se enchiam e esvaziavam ao sabor dos movimentos da maré) e comentou:
- Se eu soubesse que o senhor era cirurgião, creio que não teria resistido à tentação de o recrutar.
- São excelentes criaturas, os cirurgiões - disse Stephen Maturin num tom algo acerbo. - E quem sabe em que estado estaríamos todos nós se não fossem eles! A perícia,
a destreza e a presteza com que Mr Florey extraiu o brônquio eparterial certamente o deixariam tão espantado quanto deliciado. Contudo, não tenho a honra de pertencer
a essa classe. Sou médico.
- Médico? Deus do céu, sou mesmo despropositado! Desculpe-me, doutor... - disse Jack. - Mas, mesmo assim, doutor, mesmo assim creio que deveria levá-lo para bordo
e prendê-lo no porão até zarparmos. O meu pobre Sophie não tem cirurgião e não há a menor possibilidade de encontrar alguém
4 Peter Palias, naturalista alemão; Daniel Solander, botânico sueco; os Gmelins, botânicos alemães do século
XVIII. (N. do T.)
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para o cargo. Diga-me, doutor... como poderei convencê-lo a embarcar? Um navio de guerra é o local mais apropriado para um filósofo, sobretudo no Mediterrâneo: há
pássaros, peixes - prometo-lhe alguns peixes estranhos e monstruosos -, fenómenos naturais, meteoros e a possibilidade de obter algum dinheiro graças à venda das
presas. Creio que até mesmo um filósofo como Aristóteles teria sido sensível ao dinheiro das presas. Dobrões, doutor Maturin: dobrões guardados em sacos de macio
cabedal, olhe, mais ou menos deste tamanho, mas extremamente, maravilhosamente, pesados. Dois sacos destes é o máximo que um homem pode carregar.
Jack falara num tom de brincadeira, não sonhando sequer com uma resposta séria, e ficou francamente espantado quando ouviu Stephen retorquir:
- Mas, capitão, eu não possuo as qualificações necessárias para ser cirurgião naval! Sim, é verdade que pratiquei muitas dissecações anatómicas e que conheço a maior
parte das operações cirúrgicas; porém, não sei nada de higiene naval, nem tão-pouco das enfermidades específicas dos homens do mar...
- Por Deus, doutor! - exclamou Jack. - Não se preocupe com essas ninharias! Pense antes no género de "especialistas" que nos costumam enviar e que não passam de
ajudantes de cirurgião, de uns miseráveis aprendizes imberbes que passaram por uma farmácia apenas o tempo suficiente para que o Ministério da Marinha lhes desse
um certificado. Não sabem nada de cirurgia, quanto mais de medicina; vão aprendendo com as experiências que fazem nos pobres marinheiros e só pedem a Deus que entre
os tripulantes haja algum ajudante de médico com experiência, ou algum veterinário amador, ou um charlatão, ou mesmo um magarefe. E não precisam de pedir muito pois,
graças ao recrutamento, nunca há falta desses espécimes na Marinha. E quando finalmente adquirem uns rudimentos do seu ofício, lá vão eles, todos lampeiros, oferecer-se
às fragatas e aos navios de linha. Não, não. Ficaríamos encantados se o tivéssemos a bordo, mais do que encantados. Por favor, doutor Maturin, peço-lhe que pense
numa tal eventualidade, nem que seja por um instante apenas... Não será preciso referir - acrescentou Jack, com uma expressão muito séria - o prazer que me daria
se aceitasse ser meu companheiro de bordo.
O criado abriu a porta, anunciando "Um fuzileiro!". Imediatamente atrás dele, apareceu um jovem de casaca vermelha com aquilo que parecia ser um maço de documentos.
- Capitão Aubrey? - perguntou ele num tom estridente. - com os
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cumprimentos do capitão Harte. - E desapareceu com um estrondo de botas.
- Devem ser as minhas ordens - comentou Jack.
- Não se preocupe comigo - disse Stephen. - Leia-as já. - Pegou no violino de Jack e dirigiu-se para o fundo da sala, onde se entreteve a tocar uma escala grave
e sussurrante vezes sem conta.
As ordens eram mais ou menos o que Jack esperava: ordenavam-lhe que procedesse aos abastecimentos com a maior diligência possível e que escoltasse doze navios mercantes
e de transporte (nomeados na margem) até Cagliari. Teria de navegar a grande velocidade e evitar qualquer dano nos seus mastros, vergas ou velas. Não deveria recuar
perante perigo nenhum, mas também não deveria, em circunstância alguma, correr riscos desnecessários. Depois, com o carimbo de confidencial, vinham as instruções
relativas às mensagens secretas - a diferença entre amigo e inimigo, entre bom e mau: "O navio que faça primeiro o sinal deverá içar uma bandeira vermelha no topo
do mastaréu do velacho e uma bandeira branca com uma flâmula por sobre a bandeira do mastro grande. O outro navio deverá responder a este sinal com uma bandeira
branca com flâmula sobre a bandeira do mastaréu da gávea maior e com uma bandeira azul no topo do mastaréu do velacho. O navio que tenha feito primeiro o sinal disparará
um tiro de canhão para barlavento, e o outro navio responderá disparando três tiros de canhão para sotavento, com intervalos não muito curtos". Por fim, havia uma
nota dizendo que o tenente Dillon havia sido nomeado para o Sophie, em substituição de Mr Baldick, e que chegaria em breve a Mahón no navio Burford.
- Ora aqui estão boas notícias! - disse Jack. - vou ter um companheiro magnífico como primeiro-oficial. Só nos permitem ter um no Sophie, não sei se sabe, e por
isso é um cargo muito importante... Não o conheço pessoalmente, mas estou certo de que é uma excelente criatura. Distinguiu-se de forma notável no Durt, um cúter
alugado, tendo atacado três navios corsários franceses no canal da Sicília, afundando um e apresando outro. Na altura, toda a Marinha comentou o caso; mas a carta
do tenente Dillon nunca foi publicada na Gazette e Dillon não foi promovido. Um azar infernal, de facto. Estranhei o sucedido, pois não me parecia que Dillon não
estivesse interessado na publicação: Fitzgerald, que conhece bem o caso, disse-me que Dillon era sobrinho (ou seria primo?) de um nobre de cujo nome não me
5 Jornal oficial, neste caso da Marinha britânica. (N. do T.)
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lembro. Fosse como fosse, tratava-se de um feito louvável. Na verdade, imensos homens foram promovidos por muito menos. Foi o que aconteceu comigo, por exemplo.
- Capitão Aubrey, se não é indiscrição, posso perguntar-lhe o que fez para ser promovido? Sei tão pouco de assuntos navais!
- Ah, foi muito simples. Fui ferido em combate, a primeira vez no Nilo e a segunda quando o Généreux apresou o velho Leander. naturalmente, tiveram de repartir as
recompensas e como eu era o único tenente entre os sobreviventes, lá acabei por ter a minha recompensa. Tardou, é certo, mas recebi-a de braços abertos quando chegou,
ainda que tenha demorado e tenha sido imerecida. Que me diz a um chá? E talvez um muffin Ou prefere continuar com o seu
Porto!
- Sim, beberia de bom grado um chá - disse Stephen. - Mas diga-me, capitão - acrescentou, pegando de novo no violino e ajeitando-o sob o queixo -, os seus compromissos
navais não implicam grandes despesas? Viagens a Londres, uniformes, juramentos, recepções...?
- Juramentos? Ah, está a referir-se às cerimónias de investidura no cargo! Não. Isso só se passa com os oficiais. Vamos ao Almirantado, lêem-nos um texto sobre lealdade,
sobre a supremacia britânica e a mais absoluta e total rejeição do Papa; sentimo-nos muito, muito solenes, dizemos "Juro" e o tipo que está sentado à secretária
diz-nos: "É tudo, terá de pagar meio guinéu", frase em tudo oposta ao espírito e formalidade da cerimónia. Mas esta cerimónia é apenas para os oficiais quando recebem
a patente do posto. Os médicos são nomeados mediante uma autorização. Mas o senhor, creio, não se oporia a prestar juramento - disse Jack com um sorriso. Sentiu
que tal observação era algo indelicada, e algo pessoal também, e portanto prosseguiu por outro caminho: - A certa altura tive um companheiro de bordo que se recusava
a prestar juramento, qualquer juramento; para ele, era uma questão de princípio. Nunca consegui gostar dele, o raio do homem estava sempre a mexer na cara! Suponho
que era um indivíduo muito nervoso. Aqueles tiques provavelmente tranquilizavam-no. Porém, sempre que uma pessoa olhava para ele, lá estava ele com o dedo enfiado
na boca, ou a beslicar a face, ou a puxar o queixo para o lado. São pequenas coisas sem importância, é certo; mas quando temos de estar fechados com uma pessoa assim
nos alojamentos dos oficiais, dia após dia, ao longo de toda uma missão, a coisa acaba por se
6 Bolinho leve, redondo e chato, comido quente e com manteiga. (N. do T.)
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tornar muito aborrecida. Quer dizer, quando somos mais novos, quando não passamos de uns meros cadetes, ainda podemos gritar: "Ó homem, deixe a cara em paz, por
amor de Deus!"; porém, quando chegamos a oficiais, enfim... temos de nos conter. Seja como for, este meu camarada afeiçoou-se à leitura da Bíblia e foi esse exercício
que o levou a defender a ideia de que não deveria prestar juramento algum; e quando o pobre Bentham foi julgado por aquele estúpido conselho de guerra, chamaram-no
para depor como testemunha e ele recusou-se terminantemente a prestar juramento. Virou-se para o velho Jarvie e disse-lhe que isso era contrário ao que vinha nos
Evangelhos. Uma resposta dessas poderia ter resultado com Gambier, com Saumarez ou com qualquer outro mais dado à leitura das Escrituras, mas não com o velho Jarvie.
Não, nem pensar! O meu camarada estava perdido, infelizmente; nunca consegui gostar dele. Para dizer a verdade, também cheirava muito mal, mas era um marinheiro
razoavelmente bom, além de que não tinha vícios. Era a isto que me referia quando lhe disse que não se oporia a prestar juramento. Em suma, queria dizer que o senhor
não é um fanático.
- Não, de modo nenhum - retorquiu Stephen. - Não sou nada fanático. Fui educado por um filósofo, ou talvez deva dizer um philosophe7, e é um facto que adoptei alguma
da sua filosofia. O meu mestre teria considerado os juramentos como uma coisa infantil: inútil quando voluntária, e susceptível de oposição ou pura e simplesmente
ignorada quando imposta. Nos tempos que correm, poucas serão as pessoas que, por muito falhas de inteligência, acreditem no pão que cai do céu do conde Goodwin8.
E isto, obviamente, aplica-se também aos seus marinheiros.
Seguiu-se um longo silêncio enquanto o criado trazia o chá.
- Leite, doutor? - perguntou Jack.
- Sim, por favor - retorquiu Stephen. O médico estava imerso nos seus pensamentos; a sua expressão não mentia: os olhos fixos no vazio, a boca franzida como se fosse
assobiar.
- Gostaria... - disse Jack.
- Costuma dizer-se que é sinal de fraqueza e de muita imprudência
7 O uso do termo francês (aliás adoptado em inglês) remete para os filósofos enciclopedistas do século
XVIII francês. (N. do T.)
8 Francis Goodwin, bispo e historiador inglês (séculos XVI XVII), escreveu o primeiro texto em língua inglesa em torno de uma viagem espacial: The Man in the Moon
or a Discourse of a Voyage Thitker by Domingo Gonsales, the speedy messenger. O protagonista deste romance utópico, Domingo, chega a um país antediluviano e obviamente
imaginário, onde havia comida a rodos e os homens não precisavam de trabalhar. (N. do T.)
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uma pessoa dar de si uma imagem menos favorável - comentou Stephen, reduzindo Jack ao silêncio. - Contudo, o capitão fala comigo com uma tal franqueza que não poderei
deixar de fazer o mesmo. A sua oferta, a sua sugestão, não poderia ser mais tentadora; porque, para além das considerações elogiosas que teve a amabilidade de fazer,
e que eu só posso retribuir com a mais extrema cordialidade, a verdade é que a minha situação nesta ilha chegou a um beco sem saída. O paciente que eu deveria tratar
até ao Outono faleceu. Tinham-me dito que era um homem de recursos - possuía uma casa em Merrion Square -, mas quando Mr Florey e eu examinámos os seus objectos
pessoais antes de os selarmos, não encontrámos nada, rigorosamente nada - nem dinheiro, nem cartas de crédito. O criado da infortunada criatura desapareceu, o que
talvez explique a ausência do dinheiro; mas os seus amigos não respondem às minhas cartas. Por outro lado, a guerra apartou-me do meu pequeno património em Espanha;
e quando há pouco lhe disse que havia muito tempo que não comia tão bem, pode crer que não era em sentido figurado.
- Não! - exclamou Jack, incrédulo. - Mas o que me diz é terrível, doutor! Lamento profundamente que esteja em apuros, e se a... se a rés angusta o aflige, espero
que me permita... - A mão de Jack estava já no bolso dos seus calções, mas Stephen Maturin interveio a tempo:
- Não, não, não! - disse ele uma dúzia de vezes, sorrindo e abanando a cabeça. - É muito amável, mas não posso aceitar.
- Lamento profundamente que esteja em apuros, doutor - repetiu Jack -, e quase me envergonho de lucrar com isso, mas a verdade é que o meu Sophie precisa de um médico.
Para além de tudo o mais, o doutor não faz ideia de como os marinheiros são hipocondríacos: adoram ser vistos pelo médico, e uma tripulação sem alguém que cuide
dela, mesmo que se trate do mais tosco e inexperiente ajudante de médico, não é uma tripulação feliz. Além do mais, seria uma forma de resolver imediatamente as
suas dificuldades. O salário, para um homem instruído, é miserável: cinco libras por mês, e creia que só de falar nisto me envergonho. Mas há sempre a possibilidade
de obter dinheiro das presas, e creio que há também algumas gratificações, como é o caso das doações da rainha Ana, para além de receber mais qualquer coisa
9 Em latim no original: adversidade, situação difícil, crítica (designadamente do ponto de vista económico). (N. do T.)
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por cada homem que sofra de sífilis, uma percentagem que é deduzida do salário dos doentes.
- bom, no que toca ao dinheiro, devo dizer-lhe que não estou especialmente preocupado. Se o imortal Lineu foi capaz de atravessar oito mil quilómetros na Lapónia
com apenas vinte e cinco libras nos bolsos, com certeza que eu também poderei. Mas, diga-me, capitão: crê realmente que a coisa é exequível? Terá de haver por certo
uma nomeação oficial, não é verdade? E quanto ao uniforme? E os instrumentos? E os remédios e o material médico?
- Agora que me fala disso, e todas as suas questões têm razão de ser, verifico, com surpresa, o pouco que sei sobre o assunto... -, retorquiu Jack com um sorriso.
- Mas, por amor de Deus, doutor, não nos preocupemos com ninharias. Terá de obter um certificado do Ministério da Marinha, quanto a isso não há dúvida. Mas sei que
o almirante lhe passará uma ordem provisória mal eu lha peça, e pedir-lha-ei com o maior gosto, pode crer. Quanto ao uniforme, não existe nenhum uniforme especial
para cirurgiões, ainda que uma casaca azul seja de norma. Quanto aos instrumentos e o mais, disso tratarei eu. Creio que o colégio dos farmacêuticos costuma enviar
um baú para todos os navios. Florey há-de saber disso, ele ou qualquer outro cirurgião. Seja como for, venha a bordo sem demora. Venha logo que possa, amanhã, por
exemplo; almoçaremos juntos. Como a ordem provisória demorará um pouco, sugiro-lhe que faça esta viagem como meu convidado. Não será a mais confortável das viagens
- sabe, é que não há muito espaço no navio -, mas servir-lhe-á para se habituar à vida no mar; e se tem um senhorio insolente, será uma boa bofetada. Permita-me
que lhe encha a chávena. Estou certo de que gostará, pois a vida no mar é espantosamente filosófica.
- Certamente - disse Stephen. - Para um filósofo, para um estudioso da natureza humana, que haverá de melhor? Os objectos da sua investigação estão todos juntos
e encerrados, incapazes de fugir ao olhar perscrutador do cientista. Além disso, as suas paixões são exacerbadas pelos perigos da guerra, pelos riscos dos seus ofícios,
pelo seu isolamento relativamente às mulheres e pela sua dieta singular, embora uniforme. E também pelo seu ardente fervor patriótico, sem dúvida - e ao dizer estas
últimas palavras, não deixou de fazer uma vénia em intenção de Jack; logo prosseguiu, porém: - É verdade que, durante algum tempo, me interessei muito mais pelos
criptogâmicos do que pelos meus semelhantes; mas, mesmo assim, um navio deve ser um cenário muitíssimo instrutivo para um espírito dado à investigação.
- Prodigiosamente instrutivo, doutor, posso garantir-lhe - disse Jack.
- Sinto-me muito feliz por ter Dillon como primeiro oficial do Sophie e por
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ter um médico de Dublin como cirurgião. A propósito, Dillon é seu compatriota. Talvez o conheça... - sugeriu Jack.
- Há tantos Dillons! - disse Stephen com um sobressalto. - Qual é o seu primeiro nome?
- James - retorquiu Jack, espreitando a nota.
- Não - disse Stephen, seguro de si. - Não me lembro de ter conhecido nenhum James Dillon.
- Mr Marshall - disse Jack -, avise o carpinteiro, por favor. Estou à espera de um convidado: teremos de nos esmerar para que ele possa fazer uma viagem cómoda e
confortável. O meu convidado é médico, um grande homem no campo da filosofia.
- Um astrónomo, capitão? - perguntou o mestre, muito interessado.
- Creio que será mais botânico do que astrónomo - retorquiu Jack.
- Mas tenho grandes esperanças de que fique connosco como cirurgião do Sophie; para tal, porém, teremos de lhe tornar a vida o mais agradável possível. Seria magnífico
para a tripulação do navio poder contar com a presença a bordo de um homem tão eminente!
- Sem dúvida, capitão, sem dúvida. O pessoal ficou muito triste quando Mr Jackson foi para o Palias, e substituí-lo por um médico seria uma grande jogada. Há um
a bordo do navio-almirante, e outro em Gibraltar, mas não há mais nenhum em toda a frota, tanto quanto sei. Em terra, levam um guinéu por consulta; pelo menos foi
o que me disseram.
- Ou mesmo mais, Mr Marshall, ou mesmo mais. Já temos toda a água a bordo?
- Sim, meu capitão, já foi toda carregada e armazenada, excepto os dois últimos tonéis.
- Ah, Mr Lamb, finalmente! Quero que dê uma vista de olhos ao anteparo da minha cabina e que veja o que pode fazer para que haja um pouco mais de espaço, pois preciso
de alojar um amigo: talvez possa deslocá-lo para a frente uns cinquenta centímetros. Sim, Mr Babbington, que se passa?
- com sua licença, capitão, o Burford está a fazer sinais do promontório.
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- Muito bem. Agora vá dizer ao tesoureiro, ao condestável e ao contramestre que quero falar com eles.
A partir desse instante, o capitão do Sophie mergulhou a fundo nos livros e documentos do navio - o rol dos tripulantes, o livro das roupas e apetrechos, as licenças,
o registo da enfermaria, o livro das despesas gerais, os gastos do condestável, do contramestre e do carpinteiro, abastecimentos e devoluções, contabilidade geral
das provisões recebidas e devolvidas e contabilidade trimestral das mesmas, juntamente com os certificados da quantidade de bebidas alcoólicas, vinho, cacau e chá,
isto para já não falar do diário de bordo, do copiador e do livro de encomendas. Como almoçara extremamente bem, e nunca fora bom em números, depressa perdeu o norte.
Trataria da maior parte dos assuntos com Ricketts, o tesoureiro; e como a irritação de Jack aumentava a par com a sua confusão, a certa altura pareceu-lhe ter detectado
alguma ligeireza na forma como o tesoureiro lhe apresentava as suas intermináveis somas e balanços. Além disso, o tesoureiro pedia-lhe que assinasse documentos,
facturas, notificações de recebimento e recibos, e Jack sabia perfeitamente que não entendia patavina de muitos daqueles documentos.
- Mr Ricketts - disse ele, após uma longa e eloquente explicação que não lhe trouxe nada de novo -, aqui, no rol, com o número 178, está um tal Charles Stephen Ricketts.
- Sim, meu capitão. É o meu filho.
- Ah, bom. Vejo que chegou a 30 de Novembro de 1797, procedente do Tonnant, o antigo Princess Royal. A idade não figura junto ao nome.
- Ah, deixe-me ver... Sim, o Charlie devia ter quase doze anos por essa altura.
- Foi-lhe dado o posto de marinheiro de primeira.
- Sim, meu capitão. Ah, ah!
Era uma das típicas pequenas fraudes que se cometiam todos os dias. Mas era ilegal. Jack não sorriu e continuou:
- Marinheiro de primeira até 20 de Setembro de 1798, altura em que foi promovido a escriturário. E depois, a 10 de Novembro de 1799, foi promovido a guarda-marinha.
- Sim, meu capitão - disse o tesoureiro. Para além da situação um tanto ou quanto embaraçosa que era ter uma criança de onze anos classificada como marinheiro de
primeira, o ouvido perspicaz de Mr Ricketts não deixou de captar a ligeira ênfase que o capitão dera à palavra promovido, bem como a
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repetição da mesma palavra, que não seria propriamente normal. A mensagem que ênfase e repetição lhe transmitiam era a seguinte:
- Sim, eu sei que pareço um péssimo homem de negócios. Mas se o senhor tentar algum dos seus truques de tesoureiro comigo, pode crer que é o último truque que tenta,
pois deixo-o crivadinho de balas. E mais: o posto atribuído por um capitão pode ser retirado por outro capitão, e se o senhor ousar perturbar o meu sono, juro-lhe
por Deus que despromoverei o seu filho e que açoitarei a rosada e macia pele das suas costas todos os dias até ao fim da missão, altura em que nas costas do pobre
já não deve haver pele para cobrir as carnes. -Jack estava já com uma forte dor de cabeça; tinha os olhos ligeiramente raiados por causa do Porto que bebera e havia
neles uma sugestão tão clara de ferocidade latente que o tesoureiro levou a mensagem muito a sério.
- Sim, meu capitão - repetiu o homem. - Sim. Aqui tem o registo das contas do estaleiro. Quer que lhe explique em pormenor os diferentes assuntos?
- Se faz favor, Mr Ricketts.
Aquele era o seu primeiro contacto directo, enquanto responsável máximo por um navio, com questões contabilísticas; e a verdade é que Jack não podia dizer que estivesse
a gostar. Mesmo um pequeno navio (e o Sophie mal passava das cento e cinquenta toneladas) precisava de uma quantidade imensa de provisões: barricas de carne de vaca
e de porco e de manteiga, todas numeradas e registadas, grantonéis, tonéis e meios-tonéis de rum, toneladas de biscoito Old Weevil, sopa em pó com a marca do Estado,
para além de diversos artigos destinados ao condestável, e em particular pólvora (moída, granulada, sempre da melhor marca), escovilhões, parafusos, mechas, ferros
escorvadores, buchas e projécteis igualmente variados - planquetas, lanternetas, metralha de vários tipos ou simples e vulgaríssimos projécteis esféricos -, para
não falar dos incontáveis objectos de que o contramestre precisava (e que o mesmo contramestre tantas vezes desviava), como era o caso dos polés, talhas simples
e duplas, cassoilos, dados de quatro e de duas divisões, dados planos, dados finos simples e duplos, moitões simples com correia, moitões gémeos, enfim, toda uma
litania. Quanto à carpintaria, Jack estava muito mais à vontade, dado que para si a diferença entre um polé simples de dois canais e um polé simples de talão era
tão clara como a que havia entre o dia e a noite ou entre o bem o mal - e, por vezes, era mesmo mais clara. Contudo, nesse momento a sua mente, habituada a lidar
com problemas físicos e concretos, já estava completamente esgotada: os seus olhos percorreram por um
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segundo as pilhas de livros velhos e esfarrapados e cheios de páginas marcadas que se erguiam sobre a borda curva dos armários, e fixaram-se, anelantes, no ar luminoso
e no mar ondulante que se via das janelas. Passou a mão pela testa, virou-se para Mr Ricketts e disse-lhe:
- Mais tarde examinaremos o que falta, Mr Ricketts. Do que não há dúvida, é que temos aqui um enorme montão de papéis. E não há dúvida também que um escriturário
é um elemento imprescindível em qualquer tripulação. Ah, agora me lembro que nomeei para esse cargo um jovem que subirá a bordo hoje mesmo. Estou certo de que lhe
facilitará a tarefa, Mr Ricketts. Parece-me um rapaz voluntarioso e competente, para além de ser sobrinho de Mr Williams, o agente das presas. Creio que é vantajoso
para o Sophie mantermos um bom relacionamento com o agente, não acha, Mr Ricketts?
- Evidentemente, capitão - retorquiu o tesoureiro com um ar de profunda convicção.
- Agora tenho de ir ao estaleiro com o contramestre, antes do disparo da tarde - disse Jack, fugindo para o ar livre.
Mal pisou a coberta, avistou o jovem Richards, que subia pelo costado de bombordo acompanhado por um homem negro e muito alto - teria por certo bastante mais do
que um metro e oitenta de altura.
- Aqui está o jovem de quem lhe falei, Mr Ricketts. Ah, e este é o marinheiro que me trouxe, não é verdade, Mr Richards? Sim senhor, tem um aspecto muito robusto...
Como se chama ele?
- Alfred King, meu capitão.
- Sabe ferrar e rizar as velas e manobrar o leme, King? - perguntou Jack.
O homem acenou que sim com a cabeçorra; ao abrir a boca, os dentes muito brancos cintilaram no seu rosto negro; contudo, em vez de falar, fez um som que se assemelhava
a um grunhido. Jack franziu o sobrolho, e com razão - de facto, aquilo não eram modos de se dirigir a um capitão, e para mais no seu próprio castelo de popa.
- Então, Mr King - disse ele, secamente -, não haverá por acaso uma língua razoavelmente educada nessa cabeça?
O homem abanou a cabeça, com um ar subitamente desolado e apreensivo.
- Desculpe, capitão -, interveio o escriturário -, mas ele não tem língua. Os mouros cortaram-lha.
- Ah! - exclamou Jack estupefacto. - bom, acomode-o na proa, Mr Richards. Eu entendo-me com ele mais tarde. Mr Babbington, acompanhe
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Mr Richards lá abaixo e mostre-lhe as acomodações dos guardas-marinhas. Venha, Mr Watt, temos de chegar ao estaleiro antes que aqueles mandriões parem definitivamente
de trabalhar.
- Creio que temos ali um homem capaz de lhe alegrar o coração, Mr Watt - disse Jack enquanto o cúter avançava pelo porto. - Quem me dera ter muitos como ele! Não
parece muito entusiasmado com a ideia, ou é impressão minha, Mr Watt?
- bom, meu capitão, eu nunca diria que não a marinheiros experientes. E por certo que era melhor termos marinheiros experientes no lugar de alguns membros da nossa
tripulação que não são homens do mar (embora já não restem muitos), pois já estamos em serviço há muito tempo, e eles, como era de esperar, foram saindo, e a maioria
dos que ficaram estão classificados como marinheiros de segunda, mas... - O contramestre não conseguia achar maneira de sair do seu intrincado parênteses e, depois
de uma pausa, concluiu: - Mas quanto a recrutá-los em grande número, não, isso não, meu capitão.
- Nem sequer para substituir os que foram chamados para os serviços portuários?
- bom, se o meu capitão me permite, dir-lhe-ei que para os serviços do porto não foram chamados mais do que meia dúzia, e tratámos de os escolher com todo o cuidado,
pois só mandámos a escumalha, enfim, aqueles que eram mesmo uns cabrões da pior espécie. Quer dizer... uns mandriões... O meu capitão desculpe a linguagem. Mas quanto
a recrutar gente em grande número, isso acho que não, meu capitão. Numa corveta de três quartos, como é o caso do Sophie, é um verdadeiro quebra-cabeças alojar tanta
gente nas entrecobertas: o Sophie é uma embarcação apresentável, confortável, cómoda, mas não é o que se pode chamar um navio espaçoso.
Jack não respondeu a estas observações, que todavia confirmavam muitas das suas impressões; reflectiu sobre isso até chegarem ao estaleiro.
- Capitão Aubrey! - exclamou Mr Brown, o oficial encarregado do estaleiro. - Deixe-me cumprimentá-lo e desejar-lhe as maiores felicidades. Estou muito contente por
vê-lo.
- Obrigado, Mr Brown, muitíssimo obrigado. - Cumprimentaram-se.
- É a primeira vez que o vejo nos seus domínios!
- Não me posso queixar de falta de espaço, pois não? - disse o oficial de Marinha. - O fabrico de cordas é ali. A oficina de velas fica mais além, por detrás do
seu querido Généreux. A única coisa que me falta é um muro mais alto à volta do depósito de madeira. Não imagina a quantidade de
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ladrões que há nesta ilha; sobem o muro a coberto da noite e roubam-me os meus mastros, ou pelo menos tentam. Creio que por vezes são instigados pelos próprios capitães.
Seja isto verdade ou não, uma coisa é certa: crucificarei o próximo filho da mãe que apanhe, nem que esteja a olhar para um linguete de cabrestante.
- Quer-me parecer, meu caro Mr Brown, que o senhor só ficará realmente satisfeito quando já não houver um único navio de Sua Majestade no Mediterrâneo... Poderá
então passear-se pelo seu estaleiro, passando revista a um exército de latas de tinta todos os dias da semana e não fornecendo aos necessitados capitães mais do
que uma cavilha por ano!
- Escute com atenção o que lhe vou dizer, meu jovem - disse Mr Brown pondo a mão no braço de Jack. - Escute a voz da experiência e da idade. Um bom capitão, o bom
capitão, nunca precisa do estaleiro para nada. Arranja-se com o que tem. Cuida com esmero daquilo que pertence ao rei e nunca desperdiça nada: calafeta o casco com
a graxa que lhe resta; engaia os cabos com corda dupla e cuida deles e precinta-os para que não se esgarcem em ponto nenhum, repito, em ponto nenhum, do escovem;
cuida das velas muito melhor do que da sua própria pele e nunca larga os sobrejoanetes. Quem faz o contrário, mais não faz do que coisas perigosas, desnecessárias;
enfim, vistosas mas inúteis. E sabe qual é o resultado, Mr Aubrey? Pois o resultado é a promoção! Porque, como sabe, nós mandamos o nosso relatório para o Almirantado
e o nosso relatório tem muito, muito peso. O que é que fez de Trotter um capitão10? O facto de ele ser o mais poupado de todos os capitães de corveta! Alguns homens
levavam mastaréus da gávea duas e três vezes por ano... Trotter nunca o fez! Mas não vamos mais longe, Mr Aubrey: pensemos no caso do capitão Allen. O capitão Allen
nunca me apareceu aqui com uma daquelas horrendas listas mais compridas que flâmulas. E, diga-me, como está ele agora? Pois está à frente da mais bela de todas as
fragatas! Mas... por que raio é que eu estou com esta conversa consigo? Sei muito bem que o senhor não é um desses jovens capitães gastadores, esbanjadores e dissipadores
que há para aí aos montes! E sei-o por causa do extremo cuidado com que trouxe o Généreux para o estaleiro. Além do mais, o Sophie está muito bem equipado. O único
problema será talvez a pintura... Posso arranjar-lhe alguma tinta amarela, não muita, embora saiba de antemão que vou deixar irritados outros capitães.
10 Mais precisamente, post-captain, comandante de um navio de vinte ou mais peças.
(N. do T.)
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- Pois bem, Mr Brown, ficar-lhe-ia muito grato se me arranjasse uma ou duas latas de tinta - disse Jack, passeando despreocupadamente os olhos pelo depósito dos
mastros. - Mas devo dizer-lhe que não vim ter consigo por causa de tintas mas sim porque queria pedir-lhe que me emprestasse os seus duetos. Levo um amigo nesta
viagem e ele gostaria muito de ouvir o seu dueto em si menor.
- Emprestar-lhos-ei de bom grado, capitão Aubrey - disse Mr Brown.
- Mrs Harte está a transcrever para harpa um dos meus duetos, mas irei falar com ela imediatamente. Quando partem?
- Logo que tenhamos carregado toda a água e o comboio esteja reunido.
- Será amanhã ao anoitecer, se o Fanny chegar entretanto; e quanto à água, creio que não demorará muito. O Sophie leva apenas dez toneladas. Prometo-lhe que amanhã
ao meio-dia terá as partituras.
- Estou-lhe muito grato, Mr Brown, infinitamente grato. Sendo assim, uma muito boa noite para si e dê os meus melhores cumprimentos a Mrs Brown e a Miss Fanny.
- Deus do céu! - disse Jack, despertando sobressaltado de um sono profundo, por obra e graça das ensurdecedoras marteladas do carpinteiro. Apegou-se como pôde à
suave escuridão da cabina enterrando a cara na almofada, pois a sua mente disparara numa tal correria que não conseguira conciliar o sono antes das seis da manhã.
Para dizer a verdade, o facto de ele ter aparecido na coberta à primeira luz da manhã, examinando vergas e aprestos, dera alento ao rumor de que o capitão já estava
acordado e vigilante. E essa era também a razão para o zelo madrugador do carpinteiro e para a presença nervosa do camareiro dos guardas-marinhas (o anterior camareiro
do capitão partira no Palias), rondando por perto com uma bandeja que continha aquele que costumava ser o pequeno-almoço do capitão Allen: uma jarra de cerveja fraca,
papas de sêmola de milho e carne de vaca fria.
Mas era impossível continuar a dormir; aquelas portentosas marteladas, mesmo por cima da sua cabeça, acompanhadas pelos ridículos cochichos a que o carpinteiro e
os seus ajudantes se entregavam, dissipariam qualquer
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dúvida. Estavam na sua cabina, evidentemente. As marteladas cravavam-se como punhais na cabeça de Jack.
- Acabem com essas malditas marteladas! - exclamou.
Uma voz surpreendida, que parecia estar ali ao lado dele, respondeu: com certeza, meu capitão! - ao que se seguiu um desfilar de pezinhos de lã.
Tinha a voz rouca. "Quem me manda tagarelar que nem um parvo? O resultado está a vista", pensou ele, ainda deitado no beliche. "Estou rouco que nem um corvo de tanto
falar. Quem me manda fazer convites precipitados? Um convidado sobre o qual nada sei, num navio minúsculo que mal conheço". com um ar algo abatido, pôs-se a meditar
sobre o extremo cuidado que era preciso ter com os seus camaradas de bordo - afinal, num navio, a intimidade entre os tripulantes era tão grande... sim, no fundo
era como no casamento... e é tão desagradável ter gente intrometida, melindrosa e arrogante a bordo de um navio... temperamentos incompatíveis encerrados numa gaiola.
Numa gaiola: isso fê-lo lembrar-se do seu manual de náutica e dos trabalhos que ele lhe tinha dado em rapaz, especialmente aquelas equações absolutamente insuportáveis:
Dado o ângulo a que a verga se encontra braceada, pretende-se saber a orientação das velas, expressa pelo símbolo b. É o complemento do ângulo DCI. Logo, CI:ID=rad.:tan. DCI = I:tan. DCI = : cotan. b. Portanto, temos finalmente : cotan. b = A1:B1:tan. 2 x, e A1.cotan.b = B tangente 2, e tan. 1 x = A/B cot. Esta equação expressa evidentemente a mútua relação entre a orientação das velas e a declinação...
"É muito fácil, não é verdade, meu querido Jacky ?", disse uma voz encorajadora, a voz de uma mulher jovem e enorme que se debruçava sobre ele com um ar amável (porque,
nesse capítulo da sua memória, Jack era um rapazito de doze anos, sobre o baixo e o atarracado, ao passo que Queeney, uma jovem casadoira, de tão alta que era, parecia
voar lá nas alturas).
"Não me parece, Queeney", disse o rapazito. "Para ser franco, acho mesmo muito difícil".
"bom", disse ela, com uma paciência inesgotável. "Faz um esforço. Vê se te lembras do que é uma cotangente e começamos tudo de novo. Imaginemos que o navio é uma
caixa oblonga...".
Por um momento, imaginou que o Sophie era uma caixa oblonga. No fundo, pouco vira do navio, mas havia duas ou três coisas fundamentais que sabia com absoluta certeza:
uma, era que estava subaparelhado - certamente
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que navegaria bem à bolina; porém, com o vento pela popa, mais pareceria uma lesma; outra, era que o seu antecessor tinha uma maneira de ser completamente diferente
da sua; e a terceira, era que a sua tripulação acabara por se parecer com o seu próprio capitão, um bom capitão, um homem sensato, reservado, cuidadoso e nada agressivo,
que nunca içava os sobrejoanetes, um homem valente quando era atacado, mas o exacto oposto de um corsário mouro". "Quem conseguisse combinar a disciplina com o espírito
de um corsário mouro", pensou Jack, "varreria o oceano de uma ponta à outra". E a sua mente, descendo rapidamente até a coisas bem mais comezinhas, concentrou-se
então no dinheiro que ganharia se conseguisse varrer o oceano
- enfim, não de uma ponta à outra, mas pelo menos uma parte razoável do oceano.
"Ah, aquela miserável verga grande! E com certeza que vou conseguir ter como cachorros12 um par de canhões de doze. E as balizas aguentarão? Aguentem ou não, tem
de se fazer qualquer coisa para que esta caixa oblonga fique mais parecida com um navio de combate - com um verdadeiro navio de guerra".
Enquanto os seus pensamentos se iam organizando desta forma, a pequena cabina foi ficando inundada de luz. Um barco de pesca carregado de atum passou sob a popa
do Sophie, saudando-o com o rugido estridente de uma concha; quase ao mesmo tempo, o sol ergueu-se de repente por detrás do castelo de San Felipe - na verdade, o
sol saltara mesmo, surgindo achatado como uma rodela de limão no meio da bruma matutina e arrancando as suas amarras da terra com um puxão violento. A penumbra da
cabina desapareceu por completo em pouco mais de um minuto: o tecto encheu-se da suave cintilação das ondinhas e um único raio, reflectido por alguma superfície
imóvel no distante cais, entrava pelas janelas da cabina, iluminando a casaca de Jack e a sua resplandecente dragona. O sol nasceu também dentro da sua mente e o
seu semblante atormentado abriu-se num sorriso. De um salto, levantou-se do beliche.
11 No original, Sallee-rover: navio pirata mouro; o Sallee inglesado é de facto Salé, um porto situado em Marrocos. (N. do T.)
12 Canhões que se montavam na última portinhola de vante nos antigos navios de baterias. (N. do T.)
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O sol havia já chegado ao doutor Maturin dez minutos antes, pois estava num local do navio muito mais alto: também ele se mexera e remexera na cama e virara e escondera
a cara, pois também ele tivera um sono inquieto, mas o fulgor do sol acabara por o derrotar. Abriu os olhos e olhou à sua volta
com um ar muito aturdido: apenas um momento antes, estivera quase
podia dizer que estivera mesmo, e que bem que lhe soubera e que feliz se sentira- - na sua Irlanda natal com uma jovem ao seu lado, e a mão da jovem, pormenor importante,
agarrava-lhe o braço; e o resultado era que a sua mente, ainda mal desperta, não conseguia absorver o mundo que os seus olhos viam. Sentia ainda o toque firme da
rapariga no seu braço, sentia até a fragrância da jovem; ainda confuso, apanhou algumas folhas esmagadas sob si
- folhas de dianthus perfragrans. A fragrância foi reclassificada - era uma flor, nada mais - e o etéreo contacto, a firme pressão daqueles dedos, evaporou-se. Lia-se
no seu rosto a mais pungente infelicidade; os seus olhos enevoaram-se. Sentira por aquela jovem uma afeição extrema; e ela estava indissoluvelmente ligada àqueles
tempos passados...
Não estava preparado para um golpe tão violento, um golpe que penetraria em qualquer tipo de armadura, e durante alguns minutos sentiu uma dor insuportável; porém,
deixou-se ficar onde estava, sentado e piscando os olhos para o sol.
- Deus do céu! - disse por fim. - Mais um dia! - Ao dizer isto, o seu rosto começou a recompor-se. Levantou-se, limpou o pó branco dos seus calções e pegou na casaca
para a sacudir. Mortificado, deu-se conta de que o bocado de carne que escondera no bolso envolto no seu lenço, durante o jantar do dia anterior, lhe manchara os
calções de gordura. "Que coisa mais estranha", pensou, "ficar transtornado por causa de uma ninharia destas; mas a verdade é que estou mesmo transtornado". Sentou-se
e comeu a carne (o olho de uma costeleta de cabrito), e por um momento a sua mente debruçou-se sobre a teoria dos revulsivos, Paracelso, Cardan, Rhazes. Estava sentado
nas ruínas da abside da capela de St Damian, sobranceira a Mahón, a norte da cidade, contemplando a vasta e serpeante entrada do porto, e o imenso mar para lá do
porto, aquele azul matizado que parecia atravessado por caminhos; o sol imaculado começara a erguer-se lá para as bandas de África. Refugiara-se nesse local uns
dias antes, quando o seu senhorio começara a mostrar-se descortês; a última coisa de que estava à espera era uma cena, pois sentia-se demasiado esgotado do ponto de vista emocional para enfrentar condignamente tão desagradável episódio.
Nesse momento reparou nas formigas que transportavam as migalhas
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que deixara cair. Tapinoma erraticum. Seguiam uma direcção perfeitamente definida, formando dois carreiros, cada um com o seu sentido, através da concavidade, ou
pequeno vale, da sua peruca caída no chão e de pernas para o ar e que mais parecia um ninho abandonado, ainda que em tempos tivesse sido a mais bela e elegante das
perucas que apareciam em Stephens Green. As formigas andavam depressa, com os abdómens elevados, empurrando-se e chocando umas contra as outras. O seu olhar não
largava as enfadonhas criaturinhas e, enquanto as observava, um sapo observava-o a ele: os seus olhos encontraram-se e Stephen Maturin sorriu para o animal. Era
um sapo esplêndido, com mais de meio quilo e uns olhos fulvos, brilhantes. Como conseguiria aquele sapo sobreviver com a erva tão magra e tão escassa daquela paisagem
árida, ressequida, tão castigada pelo sol, e tendo por único refúgio uns quantos restos de pedra descolorida, algumas alcaparreiras rastejantes com os seus espinhos
que mais pareciam ganchos e um cisto cujo nome Stephen não conhecia? Uma paisagem muito mais árida e ressequida agora, pois o Inverno de 1799-1800 havia sido de
uma secura fora do normal, as chuvas de Março não tinham caído e o calor chegara prematuramente. Suavemente, vagarosamente, esticou um dedo e afagou a garganta do
sapo: o sapo inchou um pouco e moveu as patas dianteiras; depois sentou-se tranquilamente, olhando-o bem nos olhos.
O sol continuava a subir no horizonte. A noite não estivera fria um único momento; mesmo assim, aquele calor era delicioso. Stephen Maturin reparou nuns quantos
cartaxos negros que deviam ter um ninho não muito longe: um dos cartaxos mais pequenos voava já. No arbusto para onde urinou, via-se a pele que uma cobra largara,
e a parte que cobrira os olhos do réptil estava perfeita, espantosamente cristalina.
- Que deverei pensar do convite do capitão Aubrey? - disse ele em voz alta, naquele vasto espaço prenhe de luz e ar, um espaço que se tornava ainda mais vasto quando
comparado com a mancha de casas no sopé do monte e com os campos cultivados em redor dessa mancha, formando um xadrez perfeito que se ia esbatendo à medida que os
cultivos subiam pelo ocre pálido das suaves colinas. "Jack será assim apenas quando está em terra? Uma companhia tão agradável, um homem tão simples, tão sincero...".
A recordação do almoço fê-lo sorrir. "Mesmo assim... mesmo assim, que importância deverei dar ao que se passou? Comemos bem e bebemos melhor: quatro garrafas, talvez
cinco... Não, não devo expor-me a uma afronta". Pensou e repensou o caso, argumentando contra as suas esperanças; por fim, chegou à conclusão de que se conseguisse
dar à sua casaca um aspecto aceitável - e a
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poeira parecia estar a sair, ou pelo menos talvez fosse possível disfarçá-la -, faria uma visita a Mr Florey no hospital e falaria com ele, em termos gerais, da
profissão de cirurgião naval. Sacudiu as formigas da peruca e colocou-a na cabeça; começou a descer na direcção do caminho do monte - entre a erva mais alta espreitavam
as pontas vermelho-púrpura dos gladíolos, mas a recordação daquele malfadado nome fê-lo parar. Como pudera esquecer-se por completo desse nome durante o sono? Como
era possível que, ao despertar, não lhe tivesse ocorrido imediatamente o nome de James Dillon?
"Embora seja verdade que há centenas de Dillons", pensou. "E é claro que muitos deles se chamam James".
- Christe - cantarolava James Dillon num sussurro, enquanto rapava os refractários pêlos louro-arruivados da sua barba à pouca luz que entrava pela escotilha da
canhoneira número doze do Burford. - Christe eleison. Kyrie... - O cântico não era tanto um sinal de religiosidade mas mais o desejo ardente de não se cortar; de
facto, como sucedia com tantos papistas, James Dillon era algo dado à blasfémia. Contudo, a difícil tarefa de rapar o bigode obrigou-o ao silêncio; e quando ficou
com o lábio superior limpo, já não conseguiu retomar o fio da melodia. De qualquer forma, a sua mente estava demasiado ocupada para se dedicar à busca de um neuma
tão fugidio, pois estava prestes a apresentar-se ao seu novo capitão, um homem de quem dependeriam o seu bem-estar e tranquilidade nos tempos mais próximos, isto
já para não falar da reputação, da carreira e das perspectivas de promoção.
Acariciando a pele suave e brilhante, abandonou os alojamentos dos oficiais e chamou um fuzileiro.
- Escove-me as costas da casaca, Curtis, se faz favor. O meu baú está pronto e a saca com os livros também vai - disse James Dillon. - O capitão está na coberta?
- Não, meu tenente, ainda não - retorquiu o rapaz. - Ainda agora começou a tomar o pequeno-almoço. Dois ovos cozidos e um escalfado.
O ovo escalfado era para Mrs Smith, uma espécie de paga pelos seus serviços nocturnos, como o rapaz e Dillon sabiam perfeitamente; contudo, o olhar cúmplice do jovem
não foi retribuído pelo tenente. James Dillon franziu os lábios e por um breve momento, enquanto subia a correr a escada que
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conduzia ao castelo de popa, profusamente banhado pelo sol, o seu rosto revelou uma raiva irreprimível. Saudou o oficial de quarto e o primeiro-oficial do Burford.
- bom dia. bom dia. Mas que elegante que está! - disseram-lhe. - Ali está ele, logo a seguir ao Généreux.
Percorreu com os olhos o buliçoso porto: nesse momento, a luz do sol era quase horizontal, de tal forma que os mastros e vergas ganhavam um estranho relevo e as
ondas saltitantes emitiam uma reverberação ofuscante.
- Não, não! - disseram. - Perto da cábrea flutuante. O falucho acaba de tapá-lo. Acolá! Já consegue vê-lo agora?
Via-o mesmo muito bem. Estivera a olhar para demasiado longe e o Sophie escapara-lhe, quando afinal estava mesmo ali, a pouco mais do que a distância de um cabo,
mais pequeno do que as outras embarcações. Apoiou-se na amurada e fitou o navio com uma concentração extrema, sem sequer piscar os olhos. Passado um bocado, pediu
emprestado o óculo de longo alcance ao oficial de quarto e examinou de novo o navio; o exame não poderia ter sido mais minucioso e rigoroso. Viu o brilho de uma
dragona, cujo portador só podia ser o capitão, e os tripulantes mostravam-se tão activos como um enxame de abelhas. Contara com um pequeno brigue; nunca lhe passara
pela cabeça que o Sophie fosse, por assim dizer, um anão dos mares. A maior parte das corvetas de catorze canhões tinham entre duzentas e duzentas e cinquenta toneladas:
o Sophie pouco mais teria que cento e cinquenta.
- Gosto do castelo de popa, tão pequenino - disse o oficial de quarto.
- Era o Vencejo espanhol, não era? E quanto a ser muito pequeno, bom, quando se está num navio de setenta e quatro canhões, todos os outros parecem minúsculos.
Havia três coisas que toda a gente sabia acerca do Sophie: a primeira era que, ao contrário de quase todos os outros brigues, tinha um castelo de popa; a segunda,
era que tinha sido espanhol; e a terceira era que tinha no castelo de proa uma bomba de olmo, ou melhor, um tronco de olmo perfurado que comunicava directamente
com o mar e que era utilizado para lavar a coberta
- um acessório insignificante, para dizer a verdade, mas tão acima da categoria do navio que nenhum marinheiro que o visse ou ouvisse falar dele se esqueceria desse
facto.
- Os alojamentos talvez estejam um tanto ou quanto apinhados de gente - disse o primeiro-oficial -, mas creio que o tenente fará uma bela e sossegada viagem escoltando
o comboio de navios mercantes pelo Mediterrâneo.
57
- bom... - disse James Dillon, incapaz de encontrar a resposta certa para aquela amabilidade possivelmente bem-intencionada. - bom... - disse ele, com um conformado
encolher de ombros. - Poderia emprestar-me um bote? Gostaria de apresentar-me ao capitão do Sophie o mais rapidamente possível.
- Um bote? Nem pensar, tenente Dillon! - exclamou o primeiro-oficial. - Se lhe emprestasse um bote, a seguir pediam-me uma barcaça! Os passageiros do Burford estão
à espera dos barcos dos vendedores para irem a terra, caso contrário terão de ir a nado... - Mr Coffin fitou James Dillon com uma expressão severa e fria até que
o riso do oficial de quarto o denunciou; porque Mr Coffin era um caçoador de primeira e aproveitava todas as ocasiões para caçoar dos outros, mesmo antes de ter
tomado o pequeno-almoço.
- Se me dá licença, meu capitão, o tenente Dillon apresenta-se ao serviço - disse James, tirando o chapéu e exibindo o cabelo ruivo escuro que flamejava sob o sol
reluzente.
- Seja bem-vindo a bordo, Mr Dillon - disse Jack levando a mão ao chapéu e estendendo-a de seguida a Dillon. Fitava o tenente com um desejo tão intenso de saber
que espécie de homem ele seria que o seu olhar ganhou um acuidade quase insuportável. - Aliás, seria bem-vindo em qualquer ocasião, mas muito especialmente nesta
manhã: espera-nos um dia cheio de trabalho. Gajeiro! Algum sinal de vida no cais?
- Ainda não há nada, meu capitão.
- O vento está exactamente como eu quero - disse Jack Aubrey, observando pela centésima vez as raras nuvens brancas que vogavam, aqui e acolá, pela claridade perfeita
do céu. - Mas com a temperatura a subir, não podemos confiar no vento.
- O seu café está pronto, capitão - disse o camareiro. - Obrigado, Killick. Que se passa, Mr Lamb?
- Não encontro cavilhas de arganéu suficientemente grandes em sítio nenhum, meu capitão - queixou-se o carpinteiro. - Mas sei que há um monte delas no estaleiro.
Posso mandar alguém buscar umas quantas?
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- Não, Mr Lamb. Se quer salvar a sua pele, não se aproxime do estaleiro. Dobre as cavilhas de que dispõe; prepare a forja e, em cada uma delas, faça um anel sem
defeito. Não demorará mais de meia hora. bom, Mr Dillon, depois de se ter instalado confortavelmente no seu camarote, gostaria que viesse tomar uma chávena de café
comigo. Dir-lhe-ei então o que me proponho fazer.
James desceu num instante ao camarote triangular que passaria a ser a sua casa, despiu o uniforme de apresentação e vestiu umas calças e uma velha casaca azul; quando
reapareceu, Jack ainda soprava, com um ar pensativo, o seu café.
- Sente-se, Mr Dillon, sente-se - disse. - Afaste esses papéis. Mais parece água de castanhas este café, mas pelo menos foi feito mesmo agora. Açúcar?
- com sua licença, meu capitão - disse o jovem Ricketts -, o cúter do Généreux está atracado bordo com bordo e traz os homens que foram recrutados para os serviços
portuários.
- Trá-los todos?
- Todos menos dois, meu capitão, dois que foram substituídos. Ainda com a chávena de café na mão, Jack levantou-se todo contorcido
e, com um rodopio, saiu da cabina. Enganchado às cadeias principais de bombordo, lá estava o bote do Généreux, cheio de marinheiros que olhavam para cima, rindo
e trocando frases jocosas ou simplesmente apupos e assobios com os seus antigos companheiros. O guarda-marinha do Généreux saudou o capitão do Sophie e anunciou:
- O capitão Harte manda-lhe os seus melhores cumprimentos e comunica-lhe que pode prescindir destes homens.
"Que deus te abençoe, minha querida Molly!", disse Jack para si mesmo; e, em voz alta: - Os meus cumprimentos e agradecimentos ao capitão Harte. Agora, faça o favor
de conduzir esses homens a bordo.
Não eram grande coisa, de facto, pensou Jack, enquanto o moitão do lais de verga fazia subir os seus miseráveis pertences: três ou quatro deles eram francamente
apatetados, dois outros tinham aquele ar indefinível de homens com alguns talentos e uma esperteza que os distingue dos demais - mas muito menos do que eles pensam.
Dois dos tontos estavam positivamente imundos e um deles conseguira trocar a sua pobre roupa de bordo por um traje vermelho que conservava ainda algum brilho. Fosse
como fosse, todos tinham duas mãos e todos saberiam por certo atar um cabo; e seria estranho,
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muito estranho, se o contramestre e os seus ajudantes não conseguissem ensiná-los a içar.
- Coberta! - gritou o homem que estava no topo do mastro. - Coberta! Já há movimento no cais!
- Muito bem, Mr Babbington - retorquiu Jack. - Agora pode descer e tomar o pequeno-almoço. - Seis tripulantes que julgava estarem perdidos para sempre - disse Jack
para James Dillon, com um sorriso de satisfação, ao voltar para a cabina. - Podem não ser grande coisa. Para dizer a verdade, creio que teremos de os obrigar a tomar
banho se não quisermos ficar com o navio cheio de sarna, mas pelo menos ajudar-nos-ão a levantar ferro. E espero que isso aconteça o mais tardar pelas nove e meia.
- Enquanto batia com os dedos na borda de latão dos armários, prosseguiu: - Embarcaremos dois cachorros de doze, se por acaso conseguir convencer os serviços de
material de guerra. Porém, com ou sem esses cachorros, levantarei ferro enquanto esta brisa durar, pois quero pôr o Sophie à prova. Escoltaremos um comboio de uma
dúzia de navios mercantes até Cagliari. Partiremos ao anoitecer se, entretanto, todos tiverem chegado. Veremos como se porta o Sophie. Sim? Que deseja, Mr... Mr...?
- Pullings, meu capitão. Sou ajudante do mestre. A lancha do Burford está atracada bordo com bordo. Traz marinheiros.
- Para nós? Quantos?
- Dezoito, meu capitão. - E alguns têm cá uma pinta de bêbedos que não lhe digo nada. teria acrescentado Mr Pullings, se para tanto lhe chegasse a ousadia.
- Sabe alguma coisa acerca deles, Mr Dillon? - perguntou Jack.
- Sabia que o Burford tinha muitos antigos tripulantes do Charlotte e alguns homens dos navios recrutadores que viriam prestar serviço em Mahón; mas nunca ouvi dizer
que tencionassem mandar homens para o Sophie.
Jack esteve prestes a dizer: "E eu que estava com medo de não ter um único homem...", mas limitou-se a um risinho sufocado, ao mesmo tempo que se perguntava por
que raio é que aquele como da abundância resolvera derramar sobre ele os seus tesouros. "Lady Warren..." foi a resposta que lhe ocorreu, num lampejo revelador. Voltou
a rir-se, e disse:
- Agora tenho de ir ao cais, Mr Dillon. Mr Head, que é um homem de palavra, dir-me-á se poderei contar com os cachorros dentro de meia hora. Em caso afirmativo,
far-lhe-ei um sinal com o meu lenço, para que comece a desatar as espias. Sim?... que se passa agora, Mr Richards?
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- Meu capitão - retorquiu o pálido escriturário -, o senhor tesoureiro diz que tenho de trazer-lhe todos os dias, a esta hora, os recibos e as cartas para que os
assine, e o livro de contabilidade passado a limpo para que o examine.
- Muito bem - disse Jack num tom amável. - Todos os dias, sem dúvida, mas apenas nos dias normais... Em breve aprenderá a diferença entre dias normais e anormais.
- Viu que horas eram. - Aqui tem os recibos para a tripulação. Mostrar-me-á o resto noutra altura.
A cena na coberta não era diferente de Cheapside13 em obras: sob as ordens do carpinteiro, dois grupos estavam a preparar os locais onde, hipoteticamente, seriam
instalados os cachorros de popa e proa; por outro lado, alguns homens que iriam fazer a sua primeira viagem, bem como alguns dos idiotas que tinham estado a trabalhar
no porto, esperavam de pé junto às suas bagagens; alguns observavam as obras com um ar interessado e oferecendo comentários, outros miravam embasbacados à sua volta,
olhando para o céu como se nunca o tivessem visto. Um ou dois tinham mesmo chegado ao sagrado castelo de popa.
- Santo nome de Deus! Mas que raio de confusão é esta? - perguntou Jack. - Mr Watt, isto é um navio de Sua Majestade, não é o batelão de Margate!14 Eh, o senhor
aí, vá já para a proa!
Por um breve momento, antes que o espontâneo acesso de indignação de Jack Aubrey os fizesse retomar a sua actividade com mais vigor ainda, os suboficiais lançaram-lhe
um olhar triste; Jack ainda conseguiu ouvir as palavras "tanta gente...".
- vou a terra - disse. - Quando regressar, é preciso que esta coberta tenha um aspecto completamente diferente.
Ainda estava vermelho de raiva quando desceu ao bote, atrás do guarda-marinha. "Imaginarão por acaso que vou deixar um marinheiro capaz em terra quando posso levá-lo
a bordo?", disse Jack para si mesmo. "Pois ainda que muito lhes custe, não poderá haver três quartos. E mesmo assim, o espaço não será muito... Será difícil conseguir
catorze polegadas para todas as redes...".
O sistema de três quartos era bastante humano, já que permitia aos homens dormirem uma noite inteira de vez em quando, ao passo que, com o
13 Cruzamento de Londres onde confluíam cinco ruas. (N. do T.)
14 Margate, cidade da costa sueste inglesa; a zona é conhecida pelas suas praias e estâncias de veraneio. (N. do T.)
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sistema de dois quartos, não poderiam dormir mais de quatro horas seguidas; em contrapartida, graças a este último sistema, metade dos homens teriam todo o espaço
disponível para colocar as suas redes de dormir, visto que a outra metade estaria na coberta. "Dezoito e seis, vinte e quatro", disse Jack, "vinte e quatro mais
cinquenta aproximadamente... enfim, à volta de setenta e cinco. E destes, com quantos farei os quartos?". Calculou o número a fim de o multiplicar por catorze, pois
catorze polegadas era o espaço permitido para cada rede de dormir, segundo as regras; aliás, parecia-lhe bastante improvável que o Sophie dispusesse desse espaço,
fosse qual fosse a sua tripulação oficial. Estava ainda a fazer as suas contas quando o guarda-marinha exclamou:
- Parar! Desarmar remos! - e o bote beijou suavemente o cais.
- Regresse ao navio, Mr Ricketts - disse Jack. - Não creio que vá demorar muito tempo, e assim pouparemos alguns minutos.
Porém, devido ao inesperado aparecimento dos homens do Burford, Jack chegara demasiado tarde: outros capitães haviam chegado primeiro e Jack tinha de esperar pela
sua vez. Passeou sob o cintilante sol da manhã ao lado de alguém com uma dragona igual à sua - era Middleton, o qual, graças a influências mais poderosas, conseguira
o comando do Vertueuse, um encantador navio corsário francês que, se houvesse justiça no mundo, estaria agora sob as ordens de Jack. Depois de terem contado um ao
outro os últimos mexericos navais do Mediterrâneo, Jack referiu que pretendia levar um par de canhões de doze.
- Acha que o Sophie aguentará? - perguntou-lhe Middleton.
- Espero que sim. Os canhões de quatro são uma desgraça; mas confesso que estou ansioso por ver como reagirão os madeiros da bateria.
- bom, espero que tudo corra bem - disse Middleton, aquiescendo com a cabeça. - Seja como for, a verdade é que veio no dia certo, meu caro Jack. Ao que parece, tencionam
pôr Mr Brown à frente de Mr Head; e Mr Head ficou tão furioso que desatou a saldar toda a existência, tal qual uma peixeira à hora de fecho do mercado.
Jack ouvira já qualquer coisa acerca desse novo episódio da antiga e interminável disputa entre a Junta Militar e a Junta Naval, e queria ouvir muito mais; contudo,
nesse preciso momento o capitão Halliwell, todo sorridente, saiu do escritório de Mr Head, e Middleton, que ainda tinha alguns resquícios de consciência, disse para
Jack:
- Dou-lhe a minha vez. Precisarei de um século para tratar de todas as minhas caronadas.
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- bom dia - disse Jack mal entrou. - Sou o capitão Aubrey, do Sophie, e gostaria de levar um par de cachorros de doze.
Sem alterar a sua expressão melancólica, Mr Head retorquiu:
- Sabe quanto pesam?
- À volta de trinta e três quintais, creio.
- Trinta e três quintais, três libras e três onças. Pode levar uma dúzia deles, capitão, se acha que o seu navio aguenta.
- Muito obrigado, Mr Head, mas dois canhões chegam-me perfeitamente - replicou Jack, fitando atentamente Mr Head, pois desconfiava que este era muito capaz de estar
a troçar dele.
- Os canhões são seus, Mr Aubrey, e a responsabilidade também disse Mr Head com um suspiro enquanto rabiscava uns sinais secretos numa velha e enrugada papeleta.
- Entregue isto ao encarregado do arsenal e ele arranjar-lhe-á o mais belo par que um homem jamais viu. Também tenho alguns morteiros em muito bom estado, se é que
tem espaço para os levar.
- Estou-lhe extremamente grato, Mr Head - disse Jack rindo de prazer.
- Quem me dera que os restantes serviços estivessem tão bem organizados
como o seu!
- Também eu, capitão, também eu! - exclamou Mr Head com uma expressão subitamente sombria, tal era a paixão que o consumia. - Há para aí uns indivíduos preguiçosos
e velhacos... uns sabujos nojentos e miseráveis que passam a vida a tocar flauta, a arranhar na rabeca, a bajular os outros para receberem presentes e a contar histórias
da carochinha, e que seriam obrigados a esperar um mês pelos seus canhões; mas acontece que eu não pertenço a essa categoria de gente... Capitão Middleton, para
si são caronadas, não é verdade? - concluiu Mr Heart mal enxergou o capitão do Vertueuse.
De novo ao sol, Jack fez o sinal combinado e, perscrutando por entre os mastros e as vergas entrecruzadas, enxergou uma figura no topo do mastro do Sophie: curvava-se
como que a saudar a coberta, antes de desaparecer descendo por um brandal, tal qual uma conta de um colar deslizando por um fio.
Desembaraço e rapidez eram as palavras de ordem de Mr Head, mas o encarregado do desembarcadouro do arsenal parecia não se ter apercebido disso. Começou por mostrar
os dois canhões de doze a Jack com muito boa vontade. - O mais belo par de canhões que um homem poderá desejar comentou, afagando-lhes os ouvidos, enquanto Jack
assinava a entrega; logo de seguida, porém, o homem pareceu mudar de humor: que havia vários capitães à frente de Jack... que havia que ser justo... voltas e mais
voltas... e havia
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outros de trinta e seis que estavam à frente e que tinham de ser transportados primeiro... e ele que tinha tão poucos homens ao seu serviço!
O Sophie desamarrara as espias havia já algum tempo e estava cuidadosamente acostado ao embarcadouro logo a seguir às cábreas. Havia mais barafunda a bordo do que
antes, mais barafunda do que o normal, inclusivamente tendo em conta a relaxada disciplina do porto, e Jack estava certo de que alguns homens já tinham arranjado
maneira de se embebedarem. Rostos expectantes - agora muito menos expectantes - seguiam atentamente os passos do capitão, e o capitão não parava de andar de um lado
para o outro, olhando ora para o relógio, ora para o céu.
- Por Deus! - exclamou Jack dando uma palmada na testa. - Mas que estupidez a minha! Esqueci-me por completo do "azeite"! - Deu meia-volta num ápice e correu para
o depósito do arsenal; uma estridente gritaria precedeu a cena de que estava à espera: o encarregado do desembarcadouro do arsenal e os seus ajudantes faziam rodar
os carros das caronadas de Middleton na direcção da ordenada fila de canos.
- Encarregado! - gritou Jack. - Venha ver os meus canhões de doze. Tenho andado numa tal azáfama esta manhã que me parece que me esqueci de os untar. - com estas
palavras, e usando da maior discrição, deixou cair uma moeda de ouro em cada ouvido; lentamente, uma expressão de clara aprovação foi-se insinuando no rosto do encarregado.
- Se o meu condestável não estivesse doente, ter-mo-ia por certo lembrado.
- Pois... muito obrigado, capitão. Este é um costume muito antigo e confesso que não gostaria que os velhos costumes desaparecessem - observou o encarregado, ainda
com alguns resquícios de enfado; num instante, porém, o seu rosto iluminou-se; e logo acrescentou: - O meu capitão disse que estava com muita pressa, não foi? Verei
o que posso fazer.
Cinco minutos mais tarde, o cachorro de proa, cuidadosamente suspenso das suas argolas, boca e ouvido, flutuava suavemente por sobre o castelo de proa do Sophie,
a poucos centímetros da sua posição definitiva: Jack e o carpinteiro estavam de gatas lado a lado - quem os visse, pensaria que estavam a lavar a coberta -, atentos
aos ruídos que fariam os madeiros e os vaus quando a cábrea largasse o canhão. Jack fazia sinais com a mão, ao mesmo tempo que gritava: - Devagar agora, devagar
agora! - Todo o navio estava em profundo silêncio, toda a tripulação observava a manobra com a maior atenção, inclusivamente o grupo de aguadeiros, com os baldes
suspensos, e também a cadeia humana que ia passando a bala esférica de doze libras desde a margem até ao costado e por fim até ao paiol de tiro, onde estava o ajudante
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do condestável. O canhão desceu e plantou-se firmemente no local que lhe estava destinado: ouviu-se um rangido profundo, mas sem consequências dignas de registo,
e a proa baixou um nada.
- Excelente! - exclamou Jack enquanto examinava o canhão perfeitamente colocado no espaço que lhe fora reservado. - Ainda ficamos com muito espaço à volta dele.
Sim, sim, um mar de espaço, sem dúvida! - disse ele, recuando um passo. Na sua pressa para evitar que Jack o pisasse, o ajudante do condestável que estava atrás
de Jack chocou com o seu vizinho, que por sua vez tropeçou no seu companheiro do lado, desencadeando-se assim uma reacção em cadeia naquele apinhado espaço mais
ou menos triangular entre o mastro e a roda de proa, da qual resultaram ferimentos num dos grumetes e a quase morte por afogamento de um outro.
- Onde está o contramestre? - perguntou Jack após o acidente. - Mr Watt, vejamos agora o aparelho. Precisamos de uma adriça reforçada para aquele polé. Onde é que
está a corda para fixar o canhão?
- Está quase pronta - retorquiu o contramestre, transpirado e exausto.
- Eu próprio estou a fazer a entrançadura.
- bom - disse Jack caminhando depressa na direcção do castelo de popa, por sobre o qual estava já suspenso o segundo cachorro, capaz de abrir um buraco na coberta
e outro no fundo do navio se a força da gravidade pudesse exercer-se livremente -, um contramestre de um navio de guerra não levará muito tempo a fazer uma coisa
tão simples como uma entrançadura. Ponha-me esses homens a trabalhar, Mr Lamb. Isto aqui não é o fiddlers green15. - Olhou de novo para o relógio. - Mr Mowett -
disse Jack para um sorridente ajudante do mestre cuja expressão se tornou num ápice muito séria. - Mr Mowett, conhece por acaso o Caféjoselito?
- Claro, meu capitão.
- Nesse caso, faça-me um favor: vá ao Café Joselito e pergunte pelo doutor Maturin. Dê-lhe os meus melhores cumprimentos e diga-lhe que lamento muito não poder regressar
ao porto à hora do almoço, mas que lhe mandarei um bote ao entardecer... Ele que escolha a hora!
15 Fiddlers green: o paraíso que, segundo se cria, estava reservado a marinheiros (ou a soldados, em particular os de cavalaria). (N. do T.)
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Não tinham regressado ao porto à hora do almoço: teria sido, obviamente, uma impossibilidade lógica, visto que ainda não tinham deixado o porto; de facto, naquele
momento deslizavam majestosamente pelo meio das apinhadas embarcações em direcção ao canal. Uma das vantagens de ter um navio pequeno com uma tripulação numerosa
era que se podia executar manobras que estavam vedadas a um navio de linha, e Jack preferia aquele rastejar esforçado a ser rebocado ou a ziguezaguear com as velas
desfraldadas, contando, como contava, com uma tripulação muitíssimo inquieta, com os seus hábitos completamente alterados e, no fundo, a abarrotar de estranhos.
No canal de saída, desceu a um bote e deu uma volta em redor do Sophie: observou-o de todos os ângulos, ao mesmo tempo que pesava as vantagens e os inconvenientes
de mandar todas as mulheres para terra. Seria fácil encontrar a maioria delas enquanto os homens almoçavam: não apenas as raparigas locais que estavam lá para se
divertirem e juntarem mais umas moedas para os seus pés-de-meia, mas também as amantes quase permanentes. Se fizesse uma revista agora e outra imediatamente antes
da partida definitiva, ficaria com o navio completamente despovoado de mulheres. Não queria mulheres a bordo. Só causavam problemas e, com a chegada de novos tripulantes,
causariam ainda mais. Por outro lado, havia uma certa falta de zelo a bordo, uma ausência de verdadeira energia que Jack não queria transformar em ressentimento,
especialmente naquela tarde. Quanto aos seus costumes, os marinheiros eram tão conservadores como os gatos, como Jack muito bem sabia: seriam capazes de suportar
esforços e dificuldades incríveis, já para não falar de perigos, mas tudo teria de ser feito sem beliscar os seus costumes, pois caso contrário transformar-se-iam
em selvagens. A corveta estava bastante afundada, quanto a isso não havia dúvida: estava um pouco baixa à proa e adernava um nada. Todo aquele peso suplementar teria
ficado muito melhor abaixo da linha de flutuação. Mas teria ainda de ver como o Sophie se comportaria.
- Dou voz de rancho aos homens, meu capitão? - perguntou James Dillon quando Jack voltou a bordo.
- Não, Mr Dillon. Temos de aproveitar este vento. Depois de termos passado o cabo, poderão descer. Os canhões já estão bem amarrados e com culatra?
- Sim, meu capitão.
- Sendo assim, vamos fazer-nos à vela. Guardar remos. Que todos os homens se preparem para içar.
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O contramestre deu a ordem e correu para o castelo de proa, no meio de muitos passos apressados e de grande confusão de berros.
- Os recém-chegados aí em baixo: silêncio! - Mais passos apressados. A tripulação regular do Sophie permanecia serena e em absoluto silêncio nos seus postos habituais.
Ouviu-se claramente uma voz a bordo do Généreux, situado a um cabo de distância: - O Sophie está a fazer-se à vela.
Balouçando suavemente, o navio abandonava já o porto, deixando para trás as outras embarcações e, mais ao fundo, a luminosa cidade. O vento norte, soprando a bombordo,
empurrava a proa, virando-a um nada. Jack fez uma pausa e, ao dar-se conta do que se passava, exclamou:
- Acima imediatamente! - As vozes repetiram a ordem e, num instante, os ovéns obscureceram-se com os homens que passavam e subiam correndo como se estivessem a subir as escadas das suas casas.
- Soltar! Desdobrar! - Outra vez as ordens, e os homens da gávea correram para as vergas. Estrincaram os cabos que mantinham as velas aferradas às vergas; recolheram
o velame debaixo dos braços e esperaram.
- Largar velas! - foi a ordem, a que se seguiram os gritos e os assobios do contramestre e seus ajudantes.
- Firmar empuniduras! Firmar empuniduras! Guinda solta! Mais ânimo na gávea do traquete! Às escotas do joanete! Bracear! Amarrar!
Um suave empurrão vindo de cima fez escorar o Sophie, e logo outro e outro, numa sucessão cada vez mais rápida, convertendo-se num impulso constante; o navio avançava
e, batendo contra os seus costados, as águas pareciam ganhar uma nova vida. Jack e o seu primeiro-oficial trocaram um olhar: não, de facto a coisa não tinha corrido
mal - o joanete de proa tinha demorado algum tempo, por causa de um mal-entendido sobre a definição de recém-chegados; de facto, não se sabia ao certo se os seis
tripulantes do Sophie que haviam regressado deveriam ou não ser incluídos nessa injuriosa categoria. Disto resultara uma violenta, embora silenciosa, disputa nas
vergas, e as velas tinham sido aferradas de uma forma um tanto ou quanto espasmódica; feitas as contas, porém, não passaram por nenhuma vergonha e não tiveram de
suportar a troça dos outros navios de guerra do porto. Ao longo da azáfama da manhã, momentos houvera em que cada um dos homens temera precisamente que isso viesse
a acontecer.
O Sophie abrira as suas asas mais como uma mansa pomba do que como um falcão voraz, mas não tanto que merecesse a reprovação dos especialistas que estivessem atentos
aos seus movimentos; e no que tocava aos habitantes de Mahón, tinham já os olhos tão saturados de idas e vindas de todo o tipo de
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embarcações que a partida do Sophie não suscitou neles mais do que uma glacial indiferença.
- Desculpe - disse Stephen Maturin, tocando no chapéu ao interpelar um oficial que estava no cais -, poderá dizer-me se conhece um navio chamado Soph ia?
- Um navio de Sua Majestade? - perguntou o oficial, retribuindo a saudação. - Um navio de guerra? bom, creio que não há nenhum navio com esse nome. Talvez o senhor
esteja a referir-se a uma corveta... à corveta Sophie... ou não?
- Sim, sim, é capaz de ter razão... No que toca a questões navais, não há em todo o mundo criatura mais ignorante do que eu... O navio a que me refiro é comandado
pelo capitão Aubrey.
- Precisamente: a corveta Sophie, a corveta de catorze canhões. bom, está praticamente à sua frente, em linha com a casinha branca que se vê no cabo.
- Aquele navio com velas triangulares?
- Não. Esse é uma polacra-seífee. Um pouco mais para a esquerda.
- Aquele navio mercante muito pequeno com dois mastros?
- bom... - retorquiu o marinheiro, rindo-se -, é verdade que está um tanto ou quanto afundado, mas garanto-lhe que é um navio de guerra. E creio que está prestes
a zarpar. Sim, sim. Ali estão as gáveas: as empuniduras já estão amarradas. Estão a içar as vergas. Agora... agora estão a largar os joanetes... Mas o que é que
se passa...? Ah, bom, já está! A coisa não correu muito bem, mas, enfim, tudo está bem quando acaba bem, e o Sophie nunca foi muito rápido nas manobras, bem pelo
contrário. Olhe, olhe, está a ganhar velocidade. com este vento, chegará à boca do porto sem ter de mexer num único braço.
- Quer dizer... quer dizer que já está a fazer-se ao mar?
- Claro... Deve estar já a navegar a uma velocidade de três nós, talvez mesmo quatro.
- Muito agradecido, muito agradecido - disse Stephen erguendo o chapéu.
- Um seu criado - disse o oficial erguendo o seu. Depois observou
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Stephen por um momento. "O homem estava com mau aspecto, coitado...", pensou. "Devia ter-lhe perguntado se se sentia bem... bom, agora já é demasiado tarde... De
qualquer modo, parece mais tranquilo".
Stephen descera até ao cais para averiguar se podia chegar ao Sophie a pé ou se teria de arranjar um bote para honrar o seu compromisso, um compromisso em forma
de almoço com o capitão Aubrey; a conversa com Mr Florey convencera-o de que deveria levar muito a sério não só o convite para almoçar, mas também o convite mais
genérico para desempenhar o cargo de cirurgião
uma proposta absolutamente razoável que deveria aceitar sem pensar duas
vezes. Mr Florey fora de uma cortesia sem limites: explicara-lhe o funcionamento do serviço médico da Armada Real Inglesa, levara-o a assistir a uma amputação especialmente
interessante, praticada por Mr Edwardes, cirurgião do Centaur, rejeitara os seus escrúpulos de que lhe faltava experiência estritamente cirúrgica, emprestara-lhe
um tratado de Blane sobre as doenças que costumam afectar os marinheiros, o Libellus de Natura Scorbuti, de Hulme, o Effectual Means, de Lind, e o Marine Practice,
de Northcote, e prometera arranjar-lhe pelo menos os instrumentos indispensáveis até que a sua nomeação fosse autorizada e recebesse o baú oficial. "No hospital",
comentara Mr Florey, "não faltam os trocartes, os tenáculos e as curetas, isto já para não falar das serras e das raspadeiras de ossos".
Stephen Maturin deixara que a sua mente se convencesse totalmente; e ao ver o Sophie com as suas velas brancas e o casco baixo fazendo-se cada vez mais pequeno à
medida que avançava pelos caminhos reluzentes do mar, a violência das suas emoções levou-o a entender com que intensidade desejara viver sob novos céus e ter uma
nova forma de ganhar a vida e manter um relacionamento mais próximo com aquele amigo que agora navegava rapidamente na direcção da ilha da quarentena e que rapidamente
desapareceria por detrás dela.
Atravessou a cidade num curioso estado de ânimo; sofrera tantas desilusões nos últimos tempos que julgava ser impossível suportar outra. Mais ainda: estava completamente
desarmado. Permitira que todas as suas defesas amolecessem e agora procurava fortalecê-las de novo, ao mesmo tempo que apelava a todas as suas reservas. Os seus
passos levaram-no às proximidades do Café Joselito, onde ouviu umas vozes dizendo: - Ali está ele! Chame-o! Não, corra atrás dele! Se der uma corrida, com certeza
que ainda o apanha...
Não fora ao café naquela manhã porque, se bebesse uma chávena de café, ficaria sem dinheiro para pagar um bote que o levasse até ao Sophie, e fora
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por isso que o guarda-marinha que agora corria atrás dele não conseguira encontrá-lo.
- Doutor Maturin? - perguntou o jovem Mowett, e logo se deteve, positivamente confundido com aquela expressão feroz que reflectia uma profunda antipatia. Apesar
disso, transmitiu a mensagem; e sentiu um grande alívio ao verificar que o doutor o saudava com uma expressão muito mais humana.
- É muito amável da sua parte - disse Stephen. - Em sua opinião, qual será a melhor hora?
- bom... suponho que por volta das seis, doutor - retorquiu Mowett.
- Sendo assim, estarei às seis nas escadas do Crown - disse Stephen.
- Agradeço-lhe muito o trabalho que teve para me encontrar - acrescentou.
Despediram-se com uma vénia e Stephen disse para si mesmo: "Irei agora ao hospital oferecer os meus préstimos a Mr Florey: há um caso de fractura composta acima
do cotovelo que exigirá uma ressecção primária da articulação. Há muito que não oiço o rangido dos ossos debaixo da minha serra", acrescentou, com um sorriso que
reflectia o prazer que certamente iria sentir.
Pela alheta de bombordo tinham o Cabo Mola: as turbulentas rajadas, que ora se levantavam ora sossegavam, e que vinham dos montes e vales da sinuosa margem norte
do grande porto, já não os fustigavam; com uma tramontana quase estável de norte para nordeste, o Sophie navegava velozmente rumo a Itália, sob o impulso das suas
velas mestras, com um único rizo nas gáveas e nos joanetes.
- Faça-o orçar tanto quanto for possível - ordenou Jack. - Que velocidade acha que alcançará, Mr Marshall? Seis nós?
- Duvido que chegue aos seis, meu capitão - retorquiu o mestre abanando a cabeça. - Está um tanto ou quanto lento devido ao excesso de
peso na proa.
Jack pegou no leme e, ao fazê-lo, uma última rajada vinda da ilha fez balouçar o navio, enchendo de espuma a amurada a sotavento e arrancando o chapéu ao capitão;
a sua cabeleira dourada ficou flutuando ao vento na direcção
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sul-sudoeste. O mestre correu atrás do fugitivo chapéu, arrebatou-o das mãos do marinheiro que o apanhara numa rede de dormir e, limpando cuidadosamente a divisa
com o seu lenço, abeirou-se de Jack, segurando no chapéu com ambas as mãos.
- O velho Sodoma e Gomorra é tão querido para o Louro - murmurou John Lane, o homem da gávea do traquete, para o seu amigo Thomas Gross. Thomas piscou o olho e sacudiu
a cabeça, mas não havia censura na sua reacção: estavam preocupados com o fenómeno, e não com qualquer juízo de ordem moral. - bom, só espero que não nos faça trabalhar
demasiado - replicou.
Jack deixou cair o navio a sotavento até as rajadas passarem; então, ao dar-lhe de novo o seu rumo, com as mãos bem firmes nas malaguetas da roda do leme, pôde estabelecer
um contacto directo com a essência viva do navio: a vibração que sentia sob as palmas das suas mãos, algo que ficaria a meio caminho entre um som e o curso das águas,
vinha directamente do leme e associava-se a incontáveis ritmos, ao rangido e ao zumbido do casco e da enxárcia. O vento afiado e límpido fustigava-lhe a face esquerda
e à medida que ia manobrando o leme, o Sophie respondia-lhe com mais rapidez e mais ânimo do que alguma vez esperara. O navio orçava cada vez mais. Todos os homens
olhavam ora para cima, ora para a frente. Por fim, apesar de a bolina estar tão tensa como a corda de um violino, o joanete de proa estremeceu. Jack abrandou a marcha.
- Leste quarta a nordeste, meia a norte - observou com satisfação.
- Mantenha-o assim - disse ele ao timoneiro, após o que deu a ordem, a tão esperada e muito bem recebida ordem de chamar para o rancho.
Almoçariam todos enquanto o Sophie, o mais cochado a bombordo que lhe era possível, entrava nas solitárias águas do mar alto, onde as balas dos canhões de doze não
poderiam causar qualquer dano e onde qualquer desastre passaria despercebido. O navio ia vencendo milhas atrás de milhas e o seu rasto escumoso estirava-se um pouco
a sudoeste. Jack atentou nesse rasto da janela do castelo de popa, com um ar aprovador: a coberta apresentava um abatimento muito reduzido; e o timoneiro era por
certo um homem com muita experiência para ser capaz de manter um rasto tão certo, tão perfeito. Estava a almoçar sozinho - uma refeição espartana de ensopado de
cabrito e couves, tudo misturado. Quando se deu conta de que não tinha ninguém com quem partilhar as inúmeras ideias que revoluteavam na sua mente, lembrou-se de
que aquela era a sua primeira refeição formal na qualidade de capitão. Quase fazia um comentário jocoso sobre o caso na presença do despenseiro (porque,
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além do mais, estava de óptimo humor), mas reprimiu-se. Não lhe ficaria bem. "Acabarei por acostumar-me com o tempo", pensou, e olhou de novo para o mar com um deleite
extremo.
Os canhões não tinham sido propriamente um êxito. Mesmo com apenas metade das munições, o canhão de proa recuava tão violentamente que, ao terceiro disparo, o carpinteiro
correu para a coberta, tão pálido e assustado que toda a sua disciplina foi por água abaixo num ápice.
- Não faça isso, meu capitão! - exclamou, tapando o ouvido do canhão com a mão. - Se o meu capitão visse em que estado estão os vaus da bateria! E os trincanizes
cederam em cinco sítios! Deus nos valha! Deus nos valha! - O pobre homem correu na direcção das cavilhas da culatra. - Cá está, cá está! Eu já sabia, eu já sabia!
Estão já meio soltas... estes madeiros são tão velhos! Por que não me disse nada, tom? - perguntou o carpinteiro com um olhar de censura para o seu ajudante.
- Não me atrevi - retorquiu tom, com a cabeça baixa.
- Não pode ser, meu capitão - disse o carpinteiro. - Não com estes madeiros. Não com esta coberta.
Jack sentia-se cada vez mais furioso - naquele castelo de proa apinhado, assistia-se a uma cena que era a própria encarnação do ridículo: o carpinteiro rastejava
aos seus pés, parecendo suplicar misericórdia para o seu navio, mas na realidade estava a examinar as fendas; bom, e para dizer a verdade, aquilo não eram maneiras
de um tripulante se dirigir ao seu comandante. Mas era impossível resistir à sinceridade dos sentimentos de Mr Lamb - tanto mais que Jack, no fundo, concordava com
ele. A força do coice do canhão - toda aquela imensa mole de metal largando disparada para trás e erguendo-se ao nível da culatra com um ruído vibrante - era demasiada
para um navio como o Sophie. Além disso, o espaço de manobra era reduzido, pois os canhões de doze e os seus aparelhos ocupavam grande parte do pouco espaço que
havia. Jack sentia-se amargamente decepcionado: um projéctil de doze libras podia abrir um buraco noutro navio a uma distância de aproximadamente quinhentos metros:
podia lançar uma chuva letal de metralha, abater uma verga e causar grandes destroços. Enquanto reflectia, as suas mãos brincavam com um dos
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projécteis de doze libras. Em contrapartida, um projéctil de apenas quatro libras, por muito longe que conseguisse chegar...
- E se disparar o outro - disse Mr Lamb, ainda de gatas, com uma coragem alimentada pelo desespero -, o seu convidado vai ficar completamente encharcado, pois abriram-se
fendas horríveis.
William Jevons, ajudante do carpinteiro, subiu nesse instante à coberta e disse, numa voz que, apesar de baixa, ressoou o suficiente para ser ouvida no topo de mastro:
- Há cerca de trinta centímetros de água na arca da bomba.
O carpinteiro levantou-se, enfiou o chapéu na cabeça e informou o seu comandante:
- Há cerca de trinta centímetros de água na arca da bomba, meu capitão.
- Muito bem, Mr Lamb - retorquiu Jack com um ar tranquilo -, vamos bombear essa água. Mr Day - acrescentou, virando-se para o condestável, que, apesar de muito doente,
se arrastara até à coberta para ensaiar os canhões de doze (para dizer a verdade, o condestável ter-se-ia mesmo levantado do túmulo, se lá estivesse) -, Mr Day,
retire e recolha os canhões. Contramestre, mande homens para a bomba.
com uma expressão pesarosa, Jack acariciou o cano ainda quente do canhão de doze e dirigiu-se para a popa. Não estava especialmente preocupado com o mar: o Sophie
tinha vindo a navegar com muita facilidade e vivacidade naquele mar de vaga curta, e, tendo em conta as suas características específicas, portara-se até muito bem.
Contudo, sentia-se irritado por causa dos canhões, profundamente irritado; com uma virulência inaudita, os seus olhos fixaram-se na verga grande.
- Em breve teremos de arriar os joanetes, Mr Dillon - observou Jack pegando na carta de navegação. Consultava-a por uma mera formalidade, mais do que por qualquer
outra razão, pois sabia muito bem onde estavam: por obra e graça daquele sentido muito particular que se desenvolve nos verdadeiros homens do mar, Jack sabia que
a terra não estava longe - sim, lá estava ela, no fundo do horizonte, uma silhueta obscura atrás de si, mais exactamente atrás da sua omoplata direita. Tinham estado
a navegar sempre contra o vento e os pequenos pregos na carta indicavam bordadas quase idênticas lés-nordeste e depois oés-noroeste: tinham feito cinco bordadas
(na virada, o Sophie não era tão rápido como Jack esperara) e, uma das vezes, tinham virado em roda; e tinham estado a navegar a uma velocidade de sete nós. Estes
cálculos desenvolviam-se em catadupa na sua mente; encontrou a solução
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logo que a procurou: - Manter este rumo durante meia hora e depois colocar o navio quase com o vento pela popa; dois graus menos. Isto levar-nos-á ao porto.
- Não seria má ideia encurtar a vela agora - observou. - Manteremos este rumo durante meia hora. - Depois desceu à cabina, pensando na melhor maneira de lidar com
a grande massa de papéis que solicitavam a sua atenção: para além do inventário das despensas e dos livros de contabilidade, havia o diário de bordo do Sophie, o
qual lhe diria qualquer coisa sobre a história recente do navio, bem como a lista dos tripulantes, que o informaria acerca daqueles homens. Folheou o diário:
Domingo, 22 de Setembro de 1799, ventos NO, O, S. Rumo N40 O, distância 49 milhas, latitude
37º 59 N, longitude 9º 38 O, Cabo St Vincent S27 E 64 milhas. Pela tarde
vento fresco e rajadas com chuva, largámos e reduzimos a vela ocasionalmente. Noite e manhã - vento tempestuoso, às 4 horas pusemos a vela mestra redonda, às 6 avistámos
um navio desconhecido a sul, às 8 vento mais moderado, rizámos a vela mestra redonda, às 9 entrámos em contacto com o navio. Era um brigue sueco que rumava a Barcelona
com lastro. Ao meio-dia, tempo calmo, giro completo de proa.
Dezenas e dezenas de informações sobre este tipo de tarefas; e também sobre o trabalho de escolta. Enfim, o género de trabalho de todos os dias, simples, sem nada
de espectacular, que constituía noventa por cento da vida na Marinha: noventa por cento ou mesmo mais.
Homens distribuídos por tarefas diversas, leitura do Código de Justiça Militar... viagem em comboio, com joanetes e as gáveas com dois rizos. Às 6, sinal secreto
para duas linhas de navios de guerra que responderam. Todas as velas içadas, a tripulação preparando cabos... dando bordadas ocasionalmente, a vela de gávea com
três rizos... aragem tendendo para calmaria... limpeza de camas. Formação em divisões, leitura do Código de Justiça Militar, castigo aplicado a Joseph Wood, John
Lakey, Matthew Johnson e William Musgrave, doze chicotadas por bebedeira... Tarde calma e tempo enevoado, às 5 descemos remos e botes para chegar à margem, às 6.30
chegámos à margem aproveitando a corrente, âncora no Cabo Mola S6 O distância cinco léguas marinhas. As 8.30, começando de súbito ventania, obrigados a cortar a
espia e a fazermo-nos à vela... Leitura do Código de Justiça Militar e realização de
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serviço religioso... punido Geoffrey Sennet com 24 chicotadas por desacato... Francis Bechell, Robert Wilkinson eoseph Woodpor se terem embebedado...
Muitas, muitas entradas deste tipo: bastantes chicotadas, mas nada de muito sério - não havia nenhuma sentença de cem chicotadas, o que entrava em contradição com
a primeira impressão que tivera, uma impressão de relaxamento: teria de examinar o diário com mais atenção. Agora estudaria a lista dos tripulantes.
Geoffrey Williams, marinheiro de segunda classe, nascido em Bengala, apresentou-se como voluntário em Lisboa a 24 de Agosto de 1797, abandonou o navio a 27 de Março
de 1798, em Lisboa. Fortunato Carneglia, guarda-marinha, 21 anos, nascido em Génova, expulso a
1 de Junho de 1797 por ordem do contra-almirante Nelson, liberdade
condicional. Samuel Willsea, marinheiro de primeira, nascido em Long Island, apresentou-se como voluntário no Porto, a 10 de Outubro de 1797, desertou a 8 de Fevereiro de 1799, em Lisboa. Patrick Wade, grumete, 21 anos, nascido no condado de Fermanagh, recrutado a 20 de Novembro de 1796 em Porto Ferram, deixou o navio a 11 de Novembro
de 1799 para ingressar no navio Bulldog, por ordem do capitão Darley. Richard Sutton, tenente, ingressou a 31 de Dezembro de
1796 por ordem do comodoro Nelson, falecido a 2 de Fevereiro de 1798, em acção contra um navio corsário francês. Richard William Baldick, tenente, ingressou a 28
de Fevereiro de 1798 por incumbência do conde de St Vincent, deixou o navio a 18 de Abril de 1800 para integrar a tripulação do navio Palias, por ordem de Lorde
Keith.
Na coluna intitulada VESTUÁRIO DE MARINHEIROS FALECIDOS, via-se a soma de oito libras, dez xelins e seis dinheiros junto ao nome de Sutton: haviam certamente leiloado
no mastro principal as roupas do infeliz tenente Sutton.
Contudo, Jack não conseguia concentrar a sua atenção naquela coluna tão formalmente ordenada. O mar, aquele mar reluzente, de um azul mais escuro do que o do céu,
e o rasto branco que o navio deixava atrás de si, eram uma tentação para os seus olhos. Acabou por fechar o livro e permitiu-se o luxo de apreciar a vista da janela
da popa: se lhe apetecesse, pensou, poderia ir dormir; e olhou à sua volta, desfrutando daquela esplêndida intimidade, o bem mais raro que havia no mar. É claro
que, como tenente no Leander e noutros navios de grandes dimensões, já desfrutava de belas vistas, através
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das janelas dos alojamentos dos oficiais; porém, nunca o fizera sozinho, nunca o fizera longe da presença ou da actividade de outros homens. Era verdadeiramente
maravilhoso: no entanto, precisamente naquele momento, ansiava pela presença e pela actividade de outros seres humanos - a sua mente estava demasiado ávida e inquieta
para poder saborear todo o encanto daquela solidão, embora soubesse que esse encanto existia; o certo é que, mal ouviu as quatro badaladas, levantou-se da sua cadeira
e subiu à coberta.
Dillon e o mestre estavam a estibordo, junto ao canhão de bronze de quatro, e era óbvio que trocavam opiniões sobre uma parte do cordame visível desse local. Mal
viram Jack, deslocaram-se para bombordo, como era tradicional, respeitando os privilégios do capitão, pois aquela era a sua zona do castelo de popa. Era a primeira
vez que aquilo lhe acontecia: não estava à espera de que lhe acontecesse - para dizer a verdade, Jack nunca pensara nisso - e sentiu uma ridícula sensação de prazer.
Porém, ao mesmo tempo ficara sem companhia, a menos que chamasse James Dillon à sua presença. Deu duas ou três voltas, examinando as vergas: estavam braceadas tão
fortemente quanto os ovéns do mastro principal e do mastro de proa o permitiam, mas não tanto como estariam numa situação ideal; mentalmente, tomou nota para não
se esquecer de dizer ao contramestre que pusesse amantilhos cruzados - talvez assim ganhassem dois ou três graus.
- Mr Dillon - disse Jack -, ice a vela mestra redonda. Sul quarta a oeste com meio sul.
- com certeza, meu capitão. com dois rizos?
- Não, Mr Dillon, nenhum rizo - retorquiu Jack com um sorriso, após o que reatou a sua deambulação. À sua volta ouviam-se ordens, ruídos de passos, os gritos do
contramestre: os seus olhos seguiram toda a operação com uma estranha indiferença - estranha, porque o seu coração galopava.
O Sophie caía suavemente a sotavento. - Assim, assim! - gritou o mestre para o timoneiro, que conseguiu manter o rumo do navio. Quando este começou a virar para
receber vento pela popa, a vela do estai grande desapareceu numa inchada nuvem que depressa se afundou sobre um monte cinzento e inanimado de velas enroladas; logo
de seguida apareceu a vela mestra redonda, inchando e agitando-se durante alguns segundos, até que ficou bem controlada e tensa, com as suas escotas caçadas. O Sophie
disparou então para a frente e quando Dillon gritou "Amarrar!", a corveta aumentara já a sua velocidade de pelo menos dois nós, mergulhando a proa e levantando a
popa como se tivesse sido colhida de surpresa pelo seu timoneiro - e era de crer que a surpresa tivesse sido grande. Dillon mandou outro homem para o leme,
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para apresentar o seu costado ao vento e às ondas caso alguma rajada mais forte fizesse virar o navio. A vela mestra redonda estava tão tensa como a pele de um tambor.
- Chamem o veleiro - disse Jack. - Mr Henry - perguntou Jack mal o veleiro chegou -, seria um grande choque para si se lhe pedisse que acrescentasse mais pano àquela
vela?
- Nem pensar, meu capitão - retorquiu o veleiro com a mais absoluta segurança. - Nem mesmo que isso tivesse sido feito antes. Não, meu capitão, com esta verga é
impossível. Repare no horrendo seio que se formou. Para dizer a verdade, aquilo mais parece uma bexiga de porco.
Jack acercou-se da amurada e olhou fixamente para o mar que o navio ia vencendo, para a longa curva que se formava a sotavento quando a corveta subia. Resmungou
qualquer coisa e regressou ao seu ponto de observação junto à verga grande,
uma vara de madeira com mais de trinta pés de comprido e com uma espessura que ia desde
as cerca de sete polegadas nos estropos, a parte central, até às três polegadas nos lais, as extremidades.
"Parece mais uma verga seca do que uma verga grande", pensou Jack ao apreciar a verga pela vigésima vez. com toda a sua atenção, observou como a força do vento actuava
sobre ela: o Sophie não navegava mais rapidamente agora, e por isso não havia um afrouxamento da resistência; a verga aguentava, tensa, e Jack teve a sensação de
que a ouvia queixar-se. Os braços do Sophie puxavam a verga para a frente, evidentemente, visto que se tratava de um brigue, e a tensão era maior nos lais, um facto
que o irritava; contudo, o grau de escora era constante. Permaneceu onde estava, com as mãos atrás das costas e um olhar vigilante; e os outros oficiais que estavam
no castelo de popa, Dillon, Marshall, Pullings e o jovem Ricketts, permaneciam atentos, sem dizer palavra, olhando por vezes para o seu novo capitão, outras vezes
para a vela. Não eram os únicos homens que naquele momento se interrogavam, pois muitos dos marinheiros experientes que estavam no castelo de proa tinham-se associado
àquele duplo esquadrinhamento - primeiro, olhavam para cima; depois, olhavam de soslaio para Jack. A atmosfera era francamente estranha. Agora que navegavam com
vento pela popa, ou quase, ou seja, agora que iam na mesma direcção que o vento, ouvia-se apenas um ligeiro rumor; a lenta mas demorada arfada do Sophie (sem mar
de través que o fizesse mover-se rapidamente) produzia muito pouco ruído; e, a juntar a isto, havia uma calma tensa entre os tripulantes, que se limitavam a trocar
sussurros, fazendo o possível por não serem ouvidos, a não ser pelo parceiro mais
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próximo. Contudo, e apesar de todo o seu cuidado, uma voz chegou ao castelo de popa: - Vai dar cabo do navio se continuar a forçá-lo desta maneira.
Jack não ouviu: não se dava conta da tensão que o rodeava; a sua mente estava longe, muito longe, ocupada com os cálculos das forças opostas - não eram cálculos
matemáticos, de modo nenhum, pois havia neles muita complacência; eram os cálculos de um cavaleiro montando um cavalo novo e que já se tinha apercebido de que, em
breve, teriam de saltar uma sebe bem alta.
Desceu à cabina e, depois de ter estado a apreciar as vistas da janela de popa, observou a carta de navegação. O Cabo Mola estaria agora a estibordo (avistá-lo-iam
muito em breve), o que implicaria um recrudescimento considerável do vento, pois o cabo desviá-lo-ia ao longo da costa. Muito calmamente, pôs-se a assobiar Deh,
vieni" enquanto pensava: "Se tenho êxito nesta viagem e se consigo fazer um montão de dinheiro, enfim, digamos... várias centenas de guinéus, a primeira coisa que
faço, depois de saldadas as contas, é ir a Viena à ópera".
James Dillon bateu à porta nesse instante: - O vento está a aumentar, meu capitão - disse. - Posso aferrar a vela mestra ou pelo menos rizá-la?
- Não, não, Mr Dillon... não faça isso - retorquiu Jack com um sorriso. Considerando, porém, que não era justo deixar tal responsabilidade sobre os ombros do seu
primeiro-oficial, acrescentou: - Dentro de dois minutos subirei à coberta.
De facto, Jack estava na coberta em menos de um minuto, mesmo a tempo de ouvir um penetrante rangido que não augurava nada de bom.
- Soltar escotas! - gritou. - Às adriças! Sapatilhos da gávea! Estreitar amantilhos! Arriar! Mais ânimo nisso! Eh, aí, rápido!
Rapidez não faltava: a verga era pequena; ao fim de pouco tempo, já estava na coberta, a vela desenvergada e tudo aduchado.
- Não tem remédio, pois rachou nos estropos, meu capitão - disse o carpinteiro com a tristeza estampada no rosto. Não havia dúvida: aquele era um diaazarado para
o pobre carpinteiro. Só lhe tinham acontecido desgraças.
- Podia chumbeá-la, mas não ficaria em condições. Não, nem pensar.
Jack, com um ar indiferente, aquiesceu. Depois avançou até à amurada, pôs-lhe um pé em cima e subiu para o primeiro enfrechate; o Sophie ergueu-se
16 Canzonetta de Don Giovanni, do II Acto da ópera homónima de Mozart: "Deh, vieni alla finestra, o mio tesoro". (N. do T.)
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sobre as ondas e, efectivamente, ali estava o Cabo Mola, uma barra escura três graus a estibordo.
- Creio que teremos de melhorar a vigia - comentou. Depois, virando-se para o primeiro-oficial, acrescentou: - Rume ao porto, Mr Dillon. Velocidade máxima. Não temos
um minuto a perder.
Três quartos de hora passados, o Sophie recolheu as suas amarras e, antes de se ter imobilizado por completo, já o cúter estava na água; a verga rachada flutuava
já e o barco disparou com urgência na direcção do cais, levando-a a reboque como se fosse a sua cauda.
- Aí vai toda sorridente a serpente mais desavergonhada de toda a nossa frota - comentou um remador de proa enquanto Jack subia as escadas do embarcadouro. - Põe
em perigo o nosso pobre Sophie da primeira vez que sobe a bordo, deixa-o praticamente sem vergas em condições, com os madeiros aflitos e com metade da tripulação
bombeando desesperadamente e a outra metade na coberta todo o santo dia, sem uma pausa sequer para uma cachimbada. E lá vai ele a subir as escadas todo sorridente
- como se o rei Jorge estivesse à espera dele no cimo das escadas para o armar cavaleiro.
- E nem vamos ter tempo para comer, porque tão cedo não vamos livrar-nos disto - disse uma voz baixa no meio do barco.
- Silêncio! - gritou Mr Babbington, profundamente indignado.
- Mr Brown - disse Jack com uma expressão grave -, poderia prestar-me um serviço muito valioso. Infelizmente, a minha verga grande danificou-se irremediavelmente,
e, apesar disso, tenho de partir ao anoitecer, pois o Fanny já chegou.
Peço-lhe, por isso, que a declare perdida e que me dê outra. Nunca me vi numa situação tão
embaraçosa, meu caro amigo - acrescentou, dando o braço a Mr Brown e conduzindo-o na direcção do cúter. - vou devolver-lhe os dois canhões de doze, pois receio que
a corveta esteja sobrecarregada. Ao que sei, o serviço de material de guerra está agora nas suas mãos.
- Teria todo o prazer em satisfazer o seu pedido - retorquiu Mr Brown examinando a horrenda racha da verga que os homens do cúter seguravam.
- Mas não há no estaleiro nenhuma verga que seja suficientemente pequena para o seu navio.
- Ora, Mr Brown, está a esquecer-se do caso do Généreux - contrapôs Jack. - O Généreux tinha três vergas do joanete de proa sobressalentes, e muitas outras vergas;
e o senhor seria por certo o primeiro a admitir que tenho direito a uma.
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- Pois bem, capitão, pode experimentá-la se quiser; pode içá-la para vermos como fica. Mas não lhe prometo nada - disse Mr Brown.
- Permita que os meus homens a vão buscar, Mr Brown. Lembro-me perfeitamente do sítio onde estão armazenadas. Mr Babbington, quatro homens! Vá, mexam-se!
- É apenas para experiência, capitão Aubrey, não se esqueça disso! exclamou Mr Brown. - Sempre quero ver como vão içá-la!
- Ora aqui está uma verdadeira verga! - exclamou Mr Lamb examinando a vara com um ar sinceramente enlevado. - Nem um só nó, nem um só anel: creio que é uma verga
francesa, quarenta e três pés imaculados! É verdadeiramente digna de uma vela mestra, meu capitão!
- Sim, sim - retorquiu Jack, impaciente. - Aquela guindaleta ainda não está no cabrestante?
- A guindaleta está pronta, meu capitão - foi a resposta, após uma breve pausa.
- Então ice-a.
A guindaleta tinha sido fixada no centro da verga e, a partir daí, seguia até quase à sua extremidade de estibordo, atada em meia dúzia de pontos, desde os estropos
até aos lais, com bocas - ou seja, tiras de filaça; a guindaleta ia desde o lais até ao polé no topo do mastro e daí até ao cabrestante; de tal forma que, quando
o cabrestante girou, a verga ergueu-se da água, inclinando-se cada vez mais no sentido vertical, até chegar a bordo completamente erecta. Aí, foi conduzida cuidadosamente,
com a ponta para a frente, por entre a enxárcia.
- Corte a boca exterior - disse Jack. A filaça caiu e a verga inclinou-se um pouco, segura pela boca vizinha: à medida que a verga foi subindo, as outras bocas foram
sendo cortadas; quando a última foi cortada, a verga balouçou, claramente abaixo do topo.
- Nunca servirá, capitão Aubrey! - gritou Mr Brown através da sua trombeta no meio da tranquila brisa da tarde. - É demasiado grande e certamente soltar-se-á. Terá
de serrar os lais e metade do terceiro quarto.
Ali colocada, erecta e nua, como os braços de uma imensa balança, a verga parecia, na verdade, excessivamente grande.
- Enganchar os amantilhos! - ordenou Jack. - Não, mais longe. A metade da distância do segundo quarto. Largar a guindaleta e arriar. - A verga desceu então à coberta
e o carpinteiro correu a buscar as suas ferramentas.
- Mr Watt - disse Jack ao contramestre. - Quero que prepare apenas as cordas que servem para atar os braços à verga. - O contramestre abriu a
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boca, voltou a fechá-la e, muito lentamente, resolveu-se a fazer o seu trabalho enquanto dizia para si mesmo que, em todo o mundo - em todo o mundo, excepto em Bedlam17
-, as cordas referidas pelo capitão eram preparadas depois dos estribos, dos andorinhos, das coroas do aparelho de verga (ou então um sapatilho para o gancho do
aparelho, se se preferisse): e não se preparava nenhum deles - nunca - até que, na extremidade serrada, se tivesse colocado o cunho, ou seja, a parte estreita sobre
a qual todos se apoiavam, e se tivesse colocado no cunho uma braçadeira para evitar que todos eles deslizassem na direcção do centro. O carpinteiro reapareceu nesse
instante com uma serra e uma régua. - Mr Lamb, por acaso traz uma plaina? - perguntou Jack. - O seu ajudante vai buscar-lhe uma. Desmonte a urraca da varredoura
e retoque as extremidades dos cunhos, Mr Lamb. - O carpinteiro fitou-o com um ar francamente espantado, até que, por fim, compreendeu o que Jack pretendia fazer;
então, tratou de cepilhar lentamente as pontas da verga, desbastando o suficiente para que as pontas ficassem brancas, tão brancas que pareciam novas, e do tamanho
de um pãozinho.
- Já chega - disse Jack. - Icem-na outra vez e braceiem-na pelo redondo com todo o cuidado. Mr Dillon, tenho de ir a terra: devolva os canhões ao arsenal e espere
por mim no canal. Temos de partir antes do canhonaço da noite. Ah, outra coisa: quero todas as mulheres em terra!
- Todas, meu capitão? Sem qualquer excepção?
- Todas as que não tenham certidão de casamento. Todas as prostitutas. As prostitutas são muito importantes nos portos, mas não no alto mar. Fez uma pausa, baixou
à sua cabina e voltou passados dois minutos, metendo um sobrescrito no bolso. - De novo para o estaleiro! - ordenou, saltando para o bote.
- Vai ver que ficará satisfeito por ter seguido o meu conselho - disse Mr Brown ao recebê-lo nas escadas do cais. - A primeira rajada de vento tê-la-ia arrancado.
- Posso levar os duetos agora, Mr Brown? - perguntou Jack com alguma impaciência. - vou buscar o amigo de que lhe falei. Trata-se de um grande músico. Tem de conhecê-lo.
Da próxima vez que viermos a Mahón, tem de me permitir que o apresente a Mrs Brown.
17 Bedlam: designação popular do Hospital of St Mary of Bethlehem, primeiro manicómio inglês e europeu, tristemente célebre pela forma brutal como eram tratados
os doentes. O termo Bedlam acabou por aplicar-se a todos os manicómios (acepção já caída em desuso) e a todo o tipo de confusão extrema. (N. do T.)
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- Será uma honra, capitão. Uma honra e um grande prazer - retorquiu Mr Brown.
- Para as escadas do Crown agora! Rápido! - disse Jack, regressando numa corrida algo trôpega com as pautas debaixo do braço: tal como sucedia com muitos outros
marinheiros, Jack Aubrey estava bastante gordo e transpirava facilmente quando ia a terra. - Temos apenas seis minutos - disse, espreitando para o seu relógio à
luz do crepúsculo quando chegaram ao cais.
- Ah, muito bem, cá está o doutor! - exclamou Jack logo que viu Stephen Maturin. - Espero que me perdoe por o ter atraiçoado esta tarde. Shannahan, Bussell: venham
comigo os dois! Os outros esperam no bote! Mr Ricketts, será melhor que espere a umas vinte jardas do cais. Assim evitará tentações! Doutor, importa-se de esperar
enquanto faço algumas compras? Não tive tempo para mandar buscar nada, nem sequer um carneiro, ou presunto, ou uma garrafa de vinho; receio, por isso, que tenhamos
de comer charque e bolo de casamento Old Weevil18 durante a maior parte da viagem, com uma parte de grogue e quatro de água para molhar a secura. Contudo, poderemos
abastecer-nos em Cagliari. Quer que os marinheiros levem a sua bagagem para o barco? A propósito - acrescentou, enquanto caminhavam seguidos pelos dois marinheiros
-, e antes que me esqueça, é costume na Marinha pagar-se uma parte do salário antecipadamente a partir do momento em que se é contratado; por isso, pensando que
o meu amigo não quereria ser diferente dos demais, meti-lhe uns quantos guinéus neste sobrescrito.
- Ora aí está um costume extremamente humano! - exclamou Stephen Maturin com um ar francamente satisfeito. - Mas é uma norma que se cumpre sempre?
- Invariavelmente - retorquiu Jack. - É um costume universalmente seguido na Marinha.
- Nesse caso - disse Stephen pegando no sobrescrito -, segui-lo-ei à risca. Não gostaria de parecer diferente dos outros. Estou-lhe extremamente grato. Mas diga-me,
capitão, posso mesmo dispor de um dos seus homens? O violoncelo, como sabe, é um objecto volumoso: quanto ao resto, levarei apenas um pequeno baú e alguns livros.
- Sendo assim, encontrar-nos-emos nas escadas logo que soe o primeiro quarto depois da hora - propôs Jack. - Suplico-lhe, doutor, que não perca
18 Ironicamente, o capitão referia-se ao biscoito, ou seja, uma espécie de pão muito seco que se comia nos navios. (N. do T.)
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um minuto que seja, pois estamos com muitíssima pressa. Shannahan, cuide do doutor e trate da sua bagagem com todo o cuidado! Bussell, acompanhe-me!
Quando o relógio deu o quarto de hora e a última nota ficou suspensa no ar como que esperando que soasse a meia hora, Jack já estava a dar as suas ordens:
- Ponham o baú entre as escotas da proa. Mr Ricketts, sente-se em cima do baú. Doutor, sente-se ali com o violoncelo. Muito bem. Desatracar! Ciar! Agora, remar com
firmeza!
Ao fim de pouco tempo, chegaram ao Sophie e fizeram subir Stephen e os seus pertences pelo costado - mais exactamente, pelo costado de bombordo, visto que, desse
modo, evitavam cerimónias e tinham a certeza de que o doutor subia mesmo a bordo: os marinheiros tinham uma opinião muito pouco lisonjeira acerca dos homens de terra
e, por isso mesmo, nunca permitiriam que o doutor Stephen Maturin subisse sozinho àquelas alturas, ainda que as alturas do Sophie não fossem nada do outro mundo.
Por fim, Jack conduziu-o à cabina.
- Cuidado com a cabeça - avisou. - Aquela pequena toca ali é sua. Ponha-se à vontade,
peço-lhe, e desculpe a minha falta de cerimónia. Tenho de subir à coberta imediatamente.
- Mr Dillon - disse -, está tudo em ordem?
- Tudo em ordem, meu capitão. Os doze navios mercantes já deram o sinal.
- Muito bem. Dispare um tiro de canhão para os avisar e faça-se à vela. Creio que teremos de sair do porto com joanetes, caso se mantenha este resto de brisa; depois,
quando estivermos longe do abrigo do cabo, poderemos fazer uma saída respeitável. Faça-se pois à vela; logo de seguida, teremos de organizar os quartos. Um longo
dia este, Mr Dillon...
- Muito longo, meu capitão.
- Por um instante, cheguei a pensar que nunca mais chegaria ao fim...
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CAPÍTULO TRÊS
Ao soarem as duas badaladas do quarto da manhã, o Sophie navegava a uma velocidade constante rumo a leste, ao longo do paralelo trinta e nove, com o vento pela popa;
com os joanetes, não adernava mais de duas fiadas de tábuas ao longo do seu casco, e poderia ter içado os sobrejoanetes se o grupo amorfo de navios mercantes que
se encontrava sob a sua protecção não tivesse decidido navegar muito lentamente até que amanhecesse por completo, sem dúvida por recearem equivocar-se relativamente
à longitude.
No entanto, o céu tinha ainda uma cor cinzenta e era impossível saber se estava limpo ou coberto de nuvens muito altas; mas o mar apresentava já uma luminosidade
nacarada, mais própria do dia do que da escuridão, e essa luz reflectia-se nas grandes convexidades das gáveas, dando-lhes o brilho das pérolas cinzentas.
- bom dia - disse Jack para a sentinela da porta.
- bom dia, meu capitão - respondeu a sentinela adoptando a posição de sentido.
- bom dia, Mr Dillon.
- bom dia, meu Capitão - respondeu Dillon levando a mão ao chapéu. Jack examinou o estado do tempo e a orientação das velas e concluiu que
deveriam ter uma bela manhã; aspirou profundamente o ar puro, um verdadeiro consolo depois da atmosfera abafada da cabina. Virou-se na direcção da amurada, mais
precisamente na direcção da caixa onde eram recolhidas as redes de dormir e que àquela hora estava vazia de redes; observou os navios mercantes: estavam todos lá,
dispersos por uma zona não muito ampla; como que enredado na enxárcia dos navios, lá estava Saturno, tão baixo no horizonte que por um momento Jack chegara a confundi-lo
com uma longínqua
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lanterna de popa ou com uma luz de gávea invulgarmente grande. Olhou a barlavento e viu uma fiada de gaivotas ainda meio-ensonadas, disputando sem grande convicção
o pequeno-almoço - sardinhas ou anchovas ou talvez pequenas cavalas. O rangido dos polés, a suave melodia dos cabos e das velas, o ângulo formado pelos alojamentos
da tripulação, a linha curva desenhada pelos canhões, tudo isso inundava o seu coração de felicidade - de tal forma que chegou a apetecer-lhe dar um salto ali mesmo.
- Mr Dillon - disse Jack Aubrey, reprimindo o desejo de apertar a mão ao seu primeiro-oficial -, depois do pequeno-almoço teremos de passar revista à tripulação
e tomar uma decisão definitiva no que toca aos quartos e ao alojamento.
- Sim, meu capitão. Neste momento as coisas ainda estão um tanto ou quanto desorganizadas, pois os novos tripulantes ainda não estão acomodados.
- Pelo menos temos muitos homens. Poderíamos combater facilmente em ambos os lados ao mesmo tempo, coisa que raramente acontece num navio de guerra. Embora receie
que nos tenham deixado o pior da tripulação do Burford; pareceu-me que entre eles havia uma quantidade desproporcional de homens de Lorde Mayor. Não deve haver antigos
tripulantes do Charlotte, pois não?
- Temos um, meu capitão, aquele homem que é careca e que usa um lenço vermelho ao pescoço. O lugar dele é na gávea de proa, mas parece estar ainda muito aturdido
e desorientado.
- Um caso muito triste - observou Jack abanando a cabeça.
- Sem dúvida - disse James Dillon com uma expressão absorta enquanto recordava certas imagens da catástrofe: uma língua de fogo subindo nos ares e as chamas imensas
devorando tudo, desde a borla do mastaréu até à linha de flutuação, num navio que levava oitocentos homens a bordo. - O crepitar das chamas ouvia-se a uma milha
ou mais de distância. E por vezes as labaredas brotavam do navio e erguiam-se no ar, crepitando e ondeando como bandeiras gigantescas. Tudo se passou numa manhã
como esta: talvez um pouco mais tarde, é certo.
- Assistiu a tudo, não é verdade? Faz alguma ideia de qual foi a causa? As pessoas falaram de uma máquina infernal que teria sido introduzida a bordo por um italiano
ao serviço de Boney1.
1 Diminutivo para Napolcão Bonaparte. (N. do T.)
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- A mim disseram-me que tinha sido um imbecil que havia armazenado palha na entrecoberta, junto ao barril com o rastilho para os tiros de aviso. A palha teria ardido
e as chamas teriam chegado à vela mestra num ápice. Tudo aconteceu tão de repente que nem tiveram tempo para chegar às gaxetas.
- Conseguiram salvar algum tripulante?
- Sim, alguns. Recolhemos dois marinheiros e um artilheiro de popa que tinha queimaduras horríveis. Salvaram-se pouco mais de cem, parece-me. O que aconteceu nas
proximidades do Charlotte não primou pela dignidade. Poderiam ter sido salvos muito mais homens, mas os botes não se aproximavam o suficiente.
- Estariam por certo a pensar no caso do Boyne - comentou Jack.
- Sim. Os canhões do Charlotte disparavam logo que o fogo os atingia, e todos sabiam que a qualquer momento o paiol da pólvora podia explodir. Todos os oficiais
com quem falei disseram-me o mesmo: os botes não podiam aproximar-se demasiado do Charlotte. O mesmo aconteceu com o meu barco. Eu estava num cúter alugado, o Dart...
- Sim, sim, eu sei que estava - disse Jack com um sorriso significativo.
- ...a três ou quatro milhas, com o vento pela popa. Abeirámo-nos, mas depois não houve maneira de convencer os homens a remar com a energia necessária. Naquele
cúter não havia nenhum marinheiro ou grumete que tivesse medo do fogo dos canhões. De facto, tratava-se de um grupo com um comportamento impecável, tanto na abordagem
como na luta contra o fogo costeiro, como em qualquer outra tarefa bélica que lhes fosse atribuída. E os canhões do Charlotte não disparavam contra o nosso barco,
evidentemente: disparavam como calhava, digamos assim. Mas não, o sentimento que se vivia naquele cúter era completamente diferente do que se experimenta numa acção
de guerra ou numa noite horrível cheia de perigos. E não vale a pena forçar uma tripulação que está de má vontade.
- Pois não - disse Jack. - Só não é preciso forçar quem está de boa vontade. - Lembrou-se da sua conversa com Stephen Matunn, e acrescentou: - E uma asserção contraditória.
- Poderia ter acrescentado que uma tripulação com os seus hábitos completamente alterados, com o sono interrompido e privada das prostitutas a que estava acostumada,
também não era a melhor das armas; mas Jack Aubrey sabia perfeitamente que qualquer comentário seu, num navio de setenta e oito pés e três polegadas de comprido,
ganhava os contornos de uma declaração pública. Além do mais, o oficial de derrota e o timoneiro não estavam longe. O oficial de derrota deu a volta à ampulheta
e quando os primeiros grãos de areia iniciaram a sua entediante
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viagem de regresso à metade de onde haviam acabado de sair, chamou com uma voz baixa, com uma voz de quarto nocturno: "George!"; a sentinela avançou com um passo
pesado e deu as três badaladas.
Agora já não havia a menor dúvida quanto ao céu: de norte a sul, o mais puro azul; só a oeste permanecia uma ligeiríssima sombra violeta.
Jack saltou para a amurada de barlavento, agarrou-se aos ovéns e subiu pelos enfrechates. "Isto é capaz de não parecer muito digno de um capitão", pensou, detendo-se
sob o vulto do cesto da gávea, com a intenção de ver que largueza os amantilhos cruzados poderiam dar à verga. "Talvez fosse melhor subir pelo buraco do cesto".
Desde a invenção daquelas plataformas situadas na parte superior do mastro e denominadas cestos da gávea, os marinheiros, por uma questão de brio, chegavam aos referidos
cestos por um caminho tão estranho quanto tortuoso, subindo pelas arreigadas, que iam desde os amantilhos perto do topo do mastro até às chapas na borda exterior
do cesto da gávea: agarravam-se às arreigadas e trepavam tal qual aranhas, suspendendo-se de costas a uns vinte e cinco graus da vertical, até que alcançavam a borda
do cesto e subiam para dentro dele, ignorando por completo o orifício quadrado - muito mais prático - situado junto do próprio mastro, ao qual os ovéns conduziam
directamente, pois esse orifício era a sua culminãoncia natural: enfim, um caminho directo, seguro, com degraus fáceis, desde a coberta até ao cesto da gávea. Poderia
mesmo dizer-se que ninguém usava aquele orifício, a que chamavam boca de lobo; ninguém, excepto quem nunca tivesse navegado, ou então pessoas de elevado estatuto;
e quando Jack Aubrey passou através dele, foi tal o susto que pregou a Jan Jackruski, marinheiro de segunda, que este não conseguiu conter um grito.
- Pensei que o senhor era o demónio do navio! - disse Jackruski na sua língua, que era o polaco.
- Como se chama? - perguntou Jack.
- Jackruski, meu capitão. Por favor, muito obrigado - retorquiu o polaco.
- Mais atenção na vigia, Jackruski - disse Jack subindo facilmente pelos ovéns do mastaréu da gávea. Parou no topo, passou um braço pelos ovéns do joanete e apoiou-se
comodamente nos vaus reais: muitas horas passara ali nos seus tempos de rapaz, no cumprimento de castigos. De facto, começara a subir àquelas alturas ainda tão pequeno
que podia sentar-se facilmente no vau real central com as pernas suspensas; então, inclinava-se para a frente, apoiava-se no vau de popa com os braços dobrados e
dormia uma belíssima soneca, mantendo-se sempre bem encaixado apesar dos rodopios
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violentos do assento. Ah, o que ele dormia naquele tempo...! Estava sempre com sono, ou com fome, ou com sono e fome ao mesmo tempo. E que perigosas lhe pareciam
aquelas alturas! Claro que no seu querido Theseus o topo era mais alto, muito mais alto (à volta de cento e cinquenta pés). Ah, e o que aquilo baloiçava! Enjoara
certa vez no topo do Theseus e, num abrir e fechar de olhos, o seu jantar desaparecera no ar e nunca mais ninguém o vira. Mas a altura do topo do Sophie era confortável,
muito confortável. Oitenta e sete pés menos a profundidade da sobrequilha, ou seja, à volta de setenta e cinco pés, o que lhe dava um horizonte de dez ou onze milhas.
Observou todas essas milhas de mar a barlavento - tudo deserto. Nem uma vela. Nada quebrava a tensa linha do horizonte. O joanete acima de si ganhou de súbito uma
tonalidade dourada. Logo a seguir, a dois graus pela amura de bombordo, num crescente resplendor de luz, o sol espreitou, ofuscante. Por um longo momento, apenas
Jack ficou iluminado, como se fosse um eleito do astro-rei; depois a luz alcançou a gávea e deslizou ao longo dela até chegar ao pico da vela mestra, conquistando
por fim a coberta e inundando-a de proa a popa. As lágrimas cresceram nos olhos de Jack, nublaram-lhe a visão, transbordaram, caíram-lhe pelas maçãs do rosto: lágrimas
que não deslizavam num fio mas que caíam em gotas separadas - duas, quatro, seis, oito gotas que voaram para sotavento através do ar tépido e luminoso.
Inclinando-se para ver debaixo do joanete, atentou nos seus protegidos, os navios mercantes: dois pinques, dois snows2, um laúde do Báltico; os outros eram todos
barcas-longas; estavam lá todos, e o último começava agora a fazer-se à vela. O sol começara já a aquecer, e uma deliciosa preguiça apoderou-se dos seus membros.
"Não, isto assim não está bem", disse para si mesmo: de facto, havia inúmeras coisas a tratar lá em baixo, no navio que ele comandava. Assoou-se e, com os olhos
ainda fixos no laúde, que ia carregado de mastros, esticou o braço na direcção do brandal de barlavento. Agarrou-se a ele maquinalmente, sem pensar no que estava
a fazer, como se o cabo mais não fosse que a maçaneta da porta de sua casa, e deslizou suavemente até à coberta, enquanto pensava: "Um dos novos em cada brigada
de artilheiros é capaz de dar bom resultado".
Quatro badaladas. Mowett lançou a barquilha, esperou que a ponta vermelha se deslocasse no sentido da popa e gritou: "Girar!". O oficial de
2 O snow era um tipo de navio muito semelhante ao brigue. (N. do T.)
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derrota gritou "Parar!" vinte e oito segundos mais tarde, sem perder de vista a pequena ampulheta. Mowett mordiscou o cordel quase no terceiro nó, ergueu num repente
a peça de madeira e apontou com giz "três nós" na tábua de bordo. O oficial de derrota correu para a enorme ampulheta, virou-a e chamou "George!" com uma voz firme
e sonora. A sentinela avançou e, energicamente, fez soar as quatro badaladas. Um instante depois, foi o pandemónio: ou melhor, o pandemónio para um Stephen Maturin
que acabava de acordar e que, pela primeira vez na sua vida, ouvia os estranhos lamentos do contramestre e dos seus ajudantes que, a intervalos completamente arbitrários,
repetiam "Dobrar as camas!". Ouviu um ruído de passos apressados e uma voz tonitruante que gritava: "Todos acima, todos acima! Fora ou para baixo! Fora ou para baixo!
Acordar e levantar! Levantar e lavar! Fora ou para baixo! Aqui vou eu, com uma faca afiada e a consciência tranquila!". Ouviu depois três ruídos secos, pois as redes
de três dos novos tripulantes, que dormiam o mais profundo dos sonos, foram efectivamente cortadas pela tal faca afiada. Ouviu gente praguejando, ouviu risos, ouviu
o impacto de um açoite de corda quando um ajudante do contramestre desatou a bater num homem ainda meio-adormecido e completamente esparvoado, e logo a seguir um
estrépito ainda maior quando cinquenta ou sessenta homens desataram a correr pelas escotilhas com as suas redes nas mãos a fim de as guardarem na caixa reservada
para o efeito.
Os gajeiros de proa tinham colocado na coberta a bomba de tronco de olmo, que ressoava já, arquejante. E com a água que eles bombeavam, os homens do castelo de proa
limpavam o castelo de proa, os do cesto da gávea maior limpavam a parte de estibordo do castelo de popa e os homens do castelo de popa limpavam o resto. E esfregavam
com zorra até que a água ganhava um aspecto leitoso, devido à mistura de minúsculas lascas de madeira e de calafeto. Os grumetes e os desocupados - os quais, na
realidade, faziam uma quantidade de trabalhos ligeiros durante todo o dia - usavam as bombas de corrente para eliminarem a água acumulada durante a noite nos porões
de esgoto, ao passo que a brigada de artilheiros enchia de mimos os catorze canhões de quatro; mas nada disso tinha o efeito electrizante do verdadeiro tropel de
passos que Stephen Maturin pudera ouvir momentos antes.
"Será alguma emergência?", perguntou-se Stephen, abandonando rapidamente, ainda que com algumas cautelas, a sua rede de dormir. "Uma batalha? Fogo? Um veio de água
incontrolável? Estarão demasiado ocupados para me avisarem ou ter-se-ão esquecido de que estou aqui?". Vestiu os calções o mais depressa que pôde; porém, ao endireitar-se
com um movimento
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brusco, bateu com a cabeça numa viga; o choque foi tão violento que cambaleou por um momento, meio-atordoado; com a cabeça entre as mãos, deixou-se cair em cima
de um armário.
Alguém estava a falar com ele.
- Como disse? - perguntou Stephen, os olhos enevoados pela dor.
- Perguntei se tinha batido com a cabeça, doutor.
- Sim - respondeu Stephen olhando para a mão: para seu grande espanto, a mão não estava coberta de sangue; aliás, não havia uma única mancha...
- São estas vigas velhas, doutor - respondeu o homem naquele tom invulgarmente claro e didáctico usado no mar com os homens de terra e, na terra, com os imbecis.
- Tem de ter cuidado, pois são muito baixas. - Stephen fitou o camareiro com uma expressão tão feroz que o homem se lembrou imediatamente do que o levara ali; pelo
que, sem mais delongas, perguntou:
- Deseja uma costeleta ou duas para o pequeno-almoço, doutor? Um bom bife? Matámos um novilho em Mahón e temos uns bifes magníficos.
- Então, doutor? - exclamou Jack. - Bons dias! Espero que tenha dormido bem.
- De facto, dormi muito bem. Estas redes de dormir são uma invenção estupenda.
- Que lhe apetece para o pequeno-almoço? Estive agora na coberta e chegou-me ao nariz o cheiro do bacon que vinha dos alojamentos dos homens e disse para mim mesmo
que, em toda a minha vida, nunca tinha sentido um cheiro tão bom! Creio que só os árabes discordarão de mim... Que me diz a uns ovos com bacon e depois um bife?
E café?
- O seu pensamento coincide inteiramente com o meu - retorquiu Stephen, que em matéria de vitualhas tinha grandes atrasos a recuperar.
- E imagino que também haverá cebolas, que são ideais para combater o escorbuto. - A palavra "cebolas" trouxe-lhe ao olfacto o cheiro a cebolas fritas, e ao paladar
a textura muito particular das mesmas, uma textura firme mas gordurosa; não teve outro remédio senão engolir em seco, o que não deixava de ser bastante doloroso.
- Que se passa? - perguntou Stephen, pois os gritos e o terrível estrondo dos passos, como que produzido por animais enlouquecidos, voltavam a fazer-se ouvir.
- Estão a chamar a tripulação para o pequeno-almoço - informou Jack sem dar a menor importância ao caso. - Despache-se com o bacon, Killick. E com o café. Estou
morto de fome.
- Que bem que dormi! - disse Stephen. - Um sono profundo.
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Profundo, reparador e tonificante. Nenhum hipnótico ou tintura de láudano teriam produzido semelhante efeito. Mas devo dizer que estou envergonhado do meu aspecto.
Dormi até tão tarde que ainda nem sequer fiz a barba, ao passo que o capitão já está tão elegante como um noivo. Desculpe-me por um momento.
- Foi um cirurgião naval, em Haslar - disse Stephen, ao regressar, já barbeado -, quem inventou essas ligaduras arteriais curtas que há agora: lembrei-me dele agora
mesmo, quando passava com a navalha perto da carótida externa. Quando o mar está bravo, os homens devem ferir-se muito, imagino. E com gravidade.
- bom, as coisas não são bem assim... - disse Jack. - É uma questão de prática, suponho. Café? O que nós realmente temos no mar são montes de abdómens prestes a
rebentar (não me lembro do termo científico) e muitos casos de sífilis.
- Hérnias. O termo científico é hérnias. Surpreende-me, capitão.
- Exactamente: hérnias. São muito comuns. Julgo que metade dos desocupados sofrem de hérnias em menor ou maior grau. É por isso que lhes damos as tarefas mais leves.
- bom, se pensarmos na natureza do trabalho de um marinheiro, talvez não seja assim tão surpreendente... E é óbvio que a natureza das suas diversões explica a incidência
da sífilis. Lembro-me de ter visto em Mahón grupos de marinheiros completamente alvoroçados, dançando e cantando com as mais deploráveis prostitutas. Homens do Audadous,
se bem me lembro, e do Phaeton; mas creio que não havia nenhum do Sophie.
- Não. Os homens do Sophie eram um grupo tranquilo em terra. Fosse como fosse, não tinham nenhum motivo para festas e regozijes. Quando não há presas, não há dinheiro...
Só o dinheiro da presa permite ao marinheiro fazer a festa em terra, visto que o seu salário é muito reduzido. Que me diz agora a um bife e a outra taça de café?
- Digo que é uma ideia magnífica, capitão.
- Espero ter o prazer de o apresentar ao primeiro-oficial durante o jantar. Parece-me um bom marinheiro e um verdadeiro cavalheiro. Ele e eu teremos uma manhã muito
ocupada: temos de classificar os tripulantes e de lhes indicar as suas obrigações; como nós dizemos, temos de distribuí-los e alojá-los. E tenho ainda de arranjar
dois criados, um para si e outro para mim, e também um oficial de derrota. O cozinheiro dos oficiais deverá servir na perfeição.
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- Vamos passar revista à tripulação, Mr Dillon - disse Jack.
- Mr Watt! - chamou James Dillon. - Todos os homens para passar revista!
O contramestre passou a ordem e os seus ajudantes correram para baixo gritando: "Todos na coberta!". A coberta do Sophie, entre o mastro principal e o castelo de
proa, encheu-se imediatamente de homens - todos os seus tripulantes, incluindo o cozinheiro, que secou as mãos ao avental e com o qual fez depois uma bola que meteu
debaixo da camisa. Distribuíram-se de-uma forma bastante incerta pelos dois quartos a bombordo, com os recém-chegados apinhando-se inseguros entre eles e com um
aspecto andrajoso e miserável, absolutamente desolador.
- Todos preparados para passar revista, meu capitão - disse James Dillon descobrindo-se.
- Muito bem, Mr Dillon - disse Jack. - Adiante.
A uma indicação do tesoureiro, o escriturário avançou com a lista dos tripulantes e o primeiro-oficial do Sophie começou a chamada:
- Charles Stallard.
- Presente! - exclamou Charles Stallard, marinheiro de primeira, voluntário do St Fiorenzo, que ingressara no Sophie a 6 de Maio de 1795, quando contava vinte anos.
Nenhuma anotação sob a coluna "Infracções", nenhuma sob a coluna "Doenças Venéreas", nenhuma sob a coluna "Enfermaria". Enviara dez libras para Inglaterra: era,
obviamente, um homem valioso. Passou para estibordo.
- Thomas Murphy.
- Presente! - disse Thomas Murphy, levando o nó do indicador à testa antes de se colocar ao lado de Stallard, um gesto imitado por todos os homens até que James
Dillon chegou a Assei e a Assou, nomes que não eram propriamente de cristãos: eram marinheiros de primeira, nascidos em Bengala; que estranhos ventos os haviam levado
até ali? A verdade é que aqueles Assei e Assou, apesar de anos e anos na Armada Real Inglesa, levaram as mãos às testas e depois aos corações, curvando-se rapidamente
enquanto o faziam.
- John Codlin. William Witsover. Thomas Jones. Francis Lacanfra. Joseph Bussell. Abraham Vilheim. James Courser. Peter Petersen. John Smith. Giuseppe Laleso. William
Cozens. Lewis Dupont. Andrew Karouski. Richard
93
Henry... - e assim prosseguiu a lista, só não respondendo o condestável, que estava doente, e um tal Isaac Wilson; até que chegou ao fim, com os novos tripulantes
e os grumetes: noventa e oito almas ao todo, contando com os oficiais, marinheiros, grumetes e fuzileiros.
Logo de seguida deu-se início à leitura do Código de Justiça Militar, uma cerimónia a que frequentemente se seguia um serviço religioso - e visto que na mente da
maioria dos tripulantes as duas cerimónias estavam intimamente associadas, não admirava que os seus rostos ganhassem uma expressão profundamente devota enquanto
escutavam aquelas palavras já de todos conhecidas: "Para melhor governo das frotas, dos navios de guerra e de todas as forças marítimas de Sua Majestade, das quais,
com a ajuda da divina Providência, dependem a abastança, a segurança e o poder do seu reino. Decreta Sua Majestade, o Rei, por e com o parecer e conselho espiritual
e temporal dos lordes e comuns, hoje reunidos no Parlamento, e pela autoridade dos mesmos, que, a partir do dia vinte e cinco do mês de Dezembro de mil setecentos
e quarenta e nove, os artigos e ordens a seguir transcritos, tanto em tempo de paz como em tempo de guerra, deverão ser escrupulosamente observados e executados
da forma que a seguir se menciona" -, uma expressão que mantiveram ao longo de toda a leitura, mesmo quando ouviram dizer que "todos os oficiais da Coroa e todos
quantos, pertencendo à tripulação dos navios mercantes ou de guerra de Sua Majestade ou encontrando-se neles, sejam considerados culpados de imprecações profanas,
blasfémia, embriaguez, falta de aprumo, ou outros actos escandalosos, incorrerão no castigo que o conselho de guerra considerar adequado impor-lhes". Uma expressão
que também não mudou ao ouvirem vezes sem conta as palavras "será condenado à pena de morte": "Qualquer oficial da Coroa, capitão e comandante da frota que não encoraje
os oficiais inferiores e os marinheiros a lutar com valentia. Será condenado à pena de morte todo aquele que se renda cobardemente ou suplique tréguas ao inimigo,
e seja declarado culpado por sentença do conselho de guerra. Será condenado à pena de morte todo aquele que, por cobardia, negligência ou deslealdade, se abstenha
de perseguir os inimigos, piratas ou rebeldes, vencidos ou em fuga. Será condenado à pena de morte qualquer oficial, marinheiro, soldado ou outra pessoa pertencente
à frota, que agrida um oficial superior, ou desembainhe a espada ou faça o gesto de a desembainhar, ou empunhe qualquer arma. Será condenado à pena de morte todo
aquele que, na frota, cometa o odioso e antinatural pecado de sodomia, com homem ou animal. Será condenado à pena de morte...". O espectro da morte assomava em todos
os artigos; e mesmo quando todas as
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outras palavras eram completamente incompreensíveis, a palavra "morte" tinha sempre um tom belo, ameaçador, levítico, e a tripulação sentia um prazer grave enquanto
escutava aquela longa sucessão de palavras; estavam acostumados a escutá-las - de facto, ouviam-nas todos os primeiros domingos de cada mês e em ocasiões extraordinárias
como aquela. Eram um conforto para os seus espíritos, e quando a leitura terminava, era notório que os homens estavam muito mais apaziguados.
- Muito bem - disse Jack. - Faça o sinal vinte e três com dois canhonaços a sotavento! Mr Marshall, vamos içar as velas do estai grande e do estai do traquete. E
logo que veja aquele pinque acercar-se de nós com o resto do comboio, ice os sobrejoanetes. Mr Watt, encarregue-se de pôr o veleiro-e os seus ajudantes a trabalhar
na vela mestra redonda. E quanto aos novos tripulantes, mande-os à popa um a um. O escriturário, onde está? Mr Dillon, vamos preparar a distribuição dos quartos.
Doutor Maturin, deixe-me apresentar-lhe os meus oficiais... - Era a primeira vez que Stephen e James estavam frente a frente no Sophie, mas Stephen já tinha visto
aquele flamejante rabo-de-cavalo ruivo com a sua fita preta, e por isso já estava preparado para o embate. Mesmo assim, o choque foi tão forte que o seu rosto reflectiu
automaticamente uma agressividade velada e a mais fria das reservas. Para James Dillon, o choque foi ainda maior; devido à pressa e à azáfama das vinte e quatro
horas anteriores, nem tivera tempo para ouvir o nome do novo cirurgião; porém, e tirando uma ligeira mudança de cor, o seu rosto não denunciou nenhuma emoção especial.
- Estava a pensar - disse Jack para Stephen logo que as apresentações terminaram - que o doutor talvez gostasse de dar uma vista de olhos ao navio enquanto eu e
Mr Dillon fazemos o nosso trabalho. Ou prefere ficar na cabina?
- Prefiro ir ver o navio. Garanto-lhe que nada me daria maior prazer retorquiu Stephen. - Uma tão elegante complexidade de... - ia ele a dizer, mas a sua voz logo
se desvaneceu.
- Mr Mowett, tenha a bondade de mostrar ao doutor Maturin tudo o que ele deseje ver. Leve-o até ao cesto da gávea: a vista lá de cima é esplêndida. Meu caro doutor,
um pouco de altura não lhe faz impressão, pois não?
- Ah, não, claro que não - respondeu o cirurgião do navio mirando
distraidamente à sua volta. - Não me faz impressão nenhuma.
James Mowett era um jovem delgado, aparentando cerca de vinte anos;
envergava umas calças de lona e uma camisola de lã às riscas que lhe dava um
ar de lagarta; e tinha uma espicha pendurada ao pescoço, já que, antes de lhe
ser atribuída aquela tarefa, fora chamado para participar nos trabalhos
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da nova vela mestra redonda. Observou Stephen atentamente, procurando descortinar que género de homem tinha à sua frente, e, com aquela mistura de encanto espontâneo
e amável deferência que caracteriza o trato de muitos marinheiros, fez a sua vénia e disse:
- Muito bem, doutor Maturin, por onde prefere começar? Vamos directamente ao cesto da gávea? De lá de cima poderá ver todo o espaço da coberta.
Todo o espaço da coberta resumia-se a cerca de dez jardas à popa e dezasseis à proa: um espaço perfeitamente visível do local onde se encontravam; mas Stephen retorquiu:
- Subamos então. Siga à frente, que eu imitarei os seus movimentos o melhor que puder.
Observou atentamente o jovem, que subia agilmente pelos enfrechates, após o que, com a mente longe, muito longe dali, subiu vagarosamente atrás dele. James Dillon
e Stephen Maturin tinham pertencido aos United Irishmen, uma sociedade que, nos últimos nove anos, passara por diferentes fases: fora, sucessivamente, uma associação
pública e aberta que reivindicava a emancipação de presbiterianos, dissidentes e católicos, bem como um governo representativo da Irlanda; uma sociedade secreta
e proscrita; um corpo armado, em aberta rebelião; e, finalmente, uma ruína derrotada e perseguida. Muitos haviam sido traídos - a começar pelo próprio Lorde Edward
Fitzgerald - e muitos tinham-se retirado, chegando mesmo a suspeitar das próprias famílias, já que os acontecimentos haviam dividido a sociedade e a nação de uma
forma terrível. Stephen Maturin não temia a traição; aliás, nem sequer temia pela sua própria vida, pois não lhe atribuía grande valor. Mas tinha sofrido muito devido
aos inumeráveis rancores, ódios e tensões que sempre resultam do fracasso de uma rebelião, e por conseguinte agora não conseguiria suportar mais nenhuma decepção,
mais nenhuma confrontação hostil e recriminatória, mais nenhum exemplo daquelas amizades que, de um momento para outro, se tornavam frias como o gelo - ou pior ainda.
Sempre houvera grandes divergências no seio da associação; e agora, nas ruínas do edifício que tão dificilmente se erguera, era impossível - visto que se perdera
o contacto diário - saber o que pensava cada um dos seus membros.
Não temia pela sua vida, não temia por si mesmo. Naquele momento, porém, o seu corpo continuava a subir, e ia já a meio do caminho entre os ovéns quando soube que
se encontrava num estado de extremo terror. Quarenta pés não são uma grande altura; mas parecem muito mais altos, etéreos e precários, quando debaixo dos nossos
pés temos apenas uma inconsistente
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escada de cordas movediças; e quando Stephen percorrera já três quartos do caminho, os gritos de "Amarrar!" na coberta indicaram que as velas do estai grande e do
estai do traquete estavam já içadas e que as suas escotas estavam caçadas. As velas incharam e o Sophie adernou uma ou duas fiadas de tábuas, ao mesmo tempo que
guinava a sotavento; Stephen baixou os olhos e viu a amurada passando lentamente sob os seus pés e, logo a seguir, mesmo debaixo de si, lá muito em baixo, as águas
reluzentes do imenso mar. Agarrou-se aos enfrechates com uma força cataléptica e não subiu mais; ficou pregado onde estava, enquanto as forças de gravidade e centrífuga,
o pânico irracional e o terror racional, actuavam sobre o seu corpo imóvel, ora empurrando-o para a frente, de tal modo que o padrão axadrezado dos ovéns e dos seus
enfrechates cruzados lhe deixava marcas na testa, ora puxando-o para trás e com tal força que o pobre doutor mais parecia uma camisa a secar numa corda.
À sua esquerda, uma forma deslizou pelo brandal e umas mãos agarraram-no suavemente pelos tornozelos; era Mowett, que lhe dizia com a sua voz alegre e juvenil:
- Vamos, doutor, continue. Agarre-se aos ovéns, aos verticais, e olhe para cima. Cá vamos nós! - O seu pé direito foi firmemente colocado no enfrechate seguinte
e o esquerdo seguiu-lhe o exemplo; e depois de mais um odioso e rodopiante puxão para trás, durante o qual Stephen fechou os olhos e parou de respirar, o orifício
do cesto da gávea recebeu a segunda visita do dia. Mowett subira rapidamente pelas arreigadas e estava já no cesto, preparado para içar o seu pupilo.
- Isto aqui é o cesto da gávea, doutor - disse Mowett, fingindo não se aperceber do ar positivamente esgotado de Stephen. - O outro ali é o cesto da gávea do traquete,
claro.
- Agradeço-lhe muito a sua amabilidade em ajudar-me a subir até aqui
- disse Stephen. - Muito obrigado.
- Ora, doutor, por favor... - disse Mowett. - E aquela ali é a vela do estai grande, içaram-na agora mesmo... E a outra acolá é a vela do estai do traquete de proa:
só existem nos navios de guerra.
- Aqueles triângulos? Por que lhes chamam velas do estai? - perguntou Stephen; em parte, perguntava apenas por perguntar.
- Porque envergam nos estais, deslizam ao longo dos estais como cortinas, graças àquelas anilhas a que nós chamamos garruchos. Antes tínhamos estropos, mas o ano
passado, em Cádis, passámos a usar garruchos e os garruchos são muito melhores. Os estais são aqueles cabos grossos que descem obliquamente.
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- E a função deles, pelo que vejo, consiste em estender estas velas.
- bom, doutor, de facto estendem-nas. Mas aquilo para que realmente servem é para segurar os mastros, para os manter de pé, ou seja, para impedir que caiam para
trás quando o navio balanceia.
- Os mastros precisam de suporte, não é verdade? - perguntou Stephen, caminhando com cuidado pela plataforma e acariciando a ponta quadrada do mastro inferior e
a base arredondada do mastaréu da gávea, dois robustos pilares paralelos, separados por três pés de madeira. - Nunca me passou tal coisa pela cabeça.
- Por Deus, doutor! Se não tivessem suporte, os mastros dariam voltas e mais voltas e cairiam borda fora. Os ovéns suportam-nos lateralmente, e os brandais, estes
aqui, suportam-nos por detrás.
- Estou a ver, estou a ver. Diga-me - disse Stephen, que queria a todo o custo que o jovem continuasse a falar -, diga-me: para que serve esta plataforma e por que
é que o mastro é duplo a partir deste ponto? E para que serve este martelo?
- O cesto, doutor? bom, para além de fazer parte do aparelho e de servir para fazer subir coisas, é muito prático para os soldados que combatem com armas ligeiras:
podem disparar para a coberta do inimigo e arremessar os potes fétidos3 e as granadas. E estas placas aqui na borda aguentam as bigotas para os ovéns do mastaréu
da gávea - o cesto proporciona uma base ampla para que os ovéns tenham um apoio: o cesto tem um pouco mais de dez pés de diâmetro. E em cima é igual. Temos os vaus
reais, que distribuem os ovéns do joanete. Está a vê-los ali? Ali em cima, onde está a serviola, para lá da verga da gávea.
- Suponho que seria impossível descrever toda esta confusão de cordas, madeiras e lonas sem recorrer a termos náuticos. Claro, claro que seria impossível.
- Sem recorrer a termos náuticos? Seria difícil, doutor, mas posso tentar, se quiser.
- Não, é melhor não. Suponho que, na grande maioria dos casos, os objectos em questão só são conhecidos por esses nomes. - Os cestos do Sophie tinham suportes de
ferro para os brandais que protegiam os seus ocupantes durante as batalhas. Stephen sentou-se entre dois deles, com um braço
3 Stinkpots: recipientes com explosivos que espalhavam vapores nocivos, outrora usados nas batalhas navais. (N. do T.)
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à volta de cada um e as pernas suspensas; sentia-se reconfortado por estar firmemente ancorado no ferro, no metal, com a sólida madeira debaixo do traseiro. O sol
já ia bem alto no céu e traçava um belo padrão de luz e sombra extrema sobre a coberta branca - com linhas geométricas e curvas unicamente quebradas pela massa informe
da vela mestra redonda que o veleiro e os seus homens haviam espalhado sobre o castelo de proa. - Suponhamos que pegávamos neste mastro - disse ele acenando com
a cabeça para a frente, pois Mowett, aparentemente, receava falar demasiado; receava aborrecê-lo e instruí-lo mais do que a sua posição permitia - e que tinha de
o descrever desde a base ao topo.
- Este é o mastro de proa, doutor. À base chamamos mastro inferior ou simplesmente mastro de proa; tem quarenta e nove pés de comprido e está assente na sobrequilha.
É suportado por ovéns de ambos os lados, três pares de cada lado, e pela frente é estaiado pelo estai do traquete, que desce até ao gurupés; e o outro cabo paralelo
ao estai é o contra-estai, que serve para o caso de o estai se romper. Depois, aproximadamente a um terço da altura total do mastro de proa, temos a corrente do
estai grande: o estai grande começa aqui mesmo em baixo e suporta o mastro principal debaixo de nós.
- Então aquilo é um estai grande - disse Stephen olhando distraidamente para o estai. - Muitas vezes ouvi esse termo. De facto, tem um aspecto robusto, robusto e
maciço...
- Dez polegadas de espessura, doutor - disse Mowett todo orgulhoso.
- E o contra-estai tem sete. Depois, temos a verga do traquete, mas talvez seja melhor acabar com os mastros antes de começar com as vergas. Está a ver a gávea do
traquete, semelhante a esta onde nos encontramos agora? Descansa sobre os curvatões e os vaus reais a cerca de cinco partes da altura do mastro de proa; assim, a
parte restante do mastro inferior é dupla, porque se junta ao mastaréu da gávea, tal como estes dois aqui. O mastaréu da gávea, não sei se está a ver, é aquele segundo
mastro que sobe, aquele troço mais fino que se ergue acima do cesto. Içamo-lo de lá de baixo e fixamo-lo ao mastro inferior, do mesmo modo que um fuzileiro ajusta
a baioneta à sua espingarda: sobe através dos curvatões e, quando está suficientemente alto para que o buraco no fundo dele se veja bem, passamos uma cunha através
desse buraco, ajustando-a com o martelo de que falou há bocado, e cantamos "Eh, calçado!" e... - e a explicação prosseguiu com extrema vivacidade.
"Castlereagh pendurado do topo de um mastro e Fitzgibbon pendurado do outro", pensou Stephen, embora sem a menor intenção de fazer espírito, bem pelo contrário.
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- ...e é estaiado por diante também ao gurupés. Se espreitar por aqui, poderá ver uma ponta do mastaréu da vela do estai.
A voz do jovem chegava-lhe aos ouvidos como uma agradável melodia de fundo, sobre a qual procurava pôr em ordem os seus pensamentos. Stephen deu-se então conta de
uma pausa expectante: as palavras "mastaréu da vela do estai" tinham-na precedido.
- Precisamente - disse o cirurgião. - E quanto mede esse mastaréu?
- Trinta e um pés, doutor, o mesmo que este aqui. Bem, mesmo por cima da gávea do traquete está a coleira do estai do mastaréu da gávea maior, que suporta este mastaréu
da gávea mesmo por cima de nós. Depois temos os curvatões e os vaus reais do mastaréu da gávea, que é onde está situada a outra serviola; e a seguir o mastaréu do
joanete. E guindado e fixado da mesma forma que o mastaréu da gávea, só que os seus ovéns são menos grossos; e é estaiado por diante ao pau de bujarrona. Está a
ver aquela vara por detrás do gurupés? É uma espécie de mastaréu do gurupés, digamos assim. Tem vinte e três pés e seis polegadas de comprido. O mastaréu do joanete,
claro, não o pau de bujarrona, pois esse tem vinte e quatro.
- É um prazer escutar alguém que conhece tão bem a sua profissão comentou Stephen. - Mr Mowett, o senhor é de uma precisão inigualável.
- Ah, só espero que os capitães digam o mesmo, doutor! - exclamou Mowett. - Da próxima vez que pararmos em Gibraltar, voltarei a fazer o exame de tenente. Três capitães
já com muitos anos de mar fazem as perguntas aos candidatos; e da última vez um capitão diabólico perguntou-me quantas braças precisaria para a aranha da vela mestra
e quanto tinha de comprido a tábua perfurada por cujos orifícios passam as várias partes da aranha. Na altura não sabia, mas agora já poderia responder-lhe: são
precisas cinquenta braças de um cabo com uma espessura de três quartos de polegada, embora não pareça, pois não? E a tábua perfurada por onde passam as várias partes
da aranha tem catorze polegadas de comprido. Creio que seria capaz de dizer-lhe as medidas de tudo o que há neste navio, excepto talvez as da nova verga grande,
que medirei com o meu cinto antes do jantar. Gostaria de saber outras medidas, doutor?
- Gostaria muito de saber as medidas de todas as coisas - retorquiu Stephen.
- bom, a quilha do Sophie tem cinquenta e nove pés de comprido; a bateria, setenta e oito pés e três polegadas; e tem dez pés e dez polegadas de profundidade. O
gurupés mede trinta e quatro pés, e já descrevi todos os mastros, excepto o mastro principal, que tem cinquenta e seis. A verga da vela
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de gávea - esta mesmo acima de nós, doutor - mede trinta e um pés e seis polegadas; o mastaréu do joanete maior, que fica por cima, mede vinte e três pés e seis
polegadas; e o mastaréu do sobrejoanete, em cima de tudo, mede quinze pés e nove polegadas. E os botalós da varredoura... Mas devia explicar-lhe primeiro as vergas,
não acha, doutor?
- Sim, talvez fosse melhor.
- Na realidade, são muito simples.
- Alegra-me sabê-lo.
- Começaremos pelo gurupés. Há uma verga que o cruza, com a cevadeira ferrada nela. Essa é a verga da cevadeira, naturalmente. Depois, passando ao mastro de proa,
a de baixo é a verga do traquete e a grande vela redonda ferrada nela é o traquete; a verga do velacho cruza, por cima desta; depois, temos a verga do joanete de
proa e a verga do pequeno sobrejoanete com a sua vela ferrada. No mastro principal é o mesmo, só que a verga grande, mesmo abaixo de nós, não tem nenhuma vela envergada.
Se tivesse, chamar-lhe-íamos vela mestra redonda, porque com este tipo de aparelho podemos içar duas velas mestras, a vela mestra redonda, que se enverga na verga,
e a vela mestra de botaló, atrás de nós, que se enverga numa carangueja por cima e num botaló por baixo. O botaló tem quarenta e dois pés e nove polegadas de comprido
e dez polegadas e meia de espessura.
- Ah sim? Dez polegadas e meia? - Que absurdo que fora fingir que não conhecia James Dillon! Uma reacção perfeitamente infantil, ou seja, a mais usual e a mais perigosa
de todas as reacções.
- Agora, para acabar com as velas redondas, temos as varredouras, doutor. Só as içamos quando o vento sopra de través, e colocam-se por fora das ourelas, quer dizer,
as bordas das velas redondas, esticadas por botalós que correm ao longo da verga através de urracas. Pode vê-las muito bem daqui.
- Que gritaria é esta?
- É o contramestre a chamar a tripulação para içar velas. Vão envergar os sobrejoanetes. Por favor, doutor, afaste-se e venha para aqui, senão os gajeiros ainda
o esmagam.
Mal Stephen se afastou, um enxame de marinheiros e grumetes saltou rapidamente pela borda do cesto e trepou a toda a velocidade pelos ovéns do mastro principal.
- Agora, doutor, quando derem a ordem, vê-los-á deixar cair a vela e depois os homens na coberta caçarão primeiro a escota de sotavento, porque o vento sopra desse
lado, e a vela colocar-se-á com facilidade. Depois será a vez da escota de barlavento; e logo que tiverem saído da verga, os homens
101
moverão as adriças, e a vela será içada. Ali estão as escotas, passando pelo polé com uma mancha branca; e estas são as adriças.
Instantes depois, os sobrejoanetes já estavam inchados; o Sophie adernou mais uma fiada de tábuas e o zunido da brisa na enxárcia subiu meio tom: os homens desceram
com menos pressa do que tinham subido e o sino do navio tocou cinco vezes.
- Diga-me - disse Stephen preparando-se para os seguir -, o que é um brigue?
- Um brigue? Este navio é um brigue, doutor, embora lhe chamemos corveta.
- Obrigado. E o que é um... Ah, outra vez a gritaria!
- É só o contramestre, doutor. A vela mestra redonda deve estar pronta e ele quer que os homens a enverguem.
O garboso contramestre vela por todo o navio
E como um mastim já rouco, grita no meio da tempestade.
Sempre disposto a ensinar os que nada, sabem,
Louva os que são hábeis e anima os tímidos.
- Parece manejar aquela vara com a maior desenvoltura... Espanta-me que os homens não choquem contra ele... Ah, com que então é poeta, Mr Mowett? - perguntou Stephen
com um sorriso nos lábios: começava a sentir que conseguiria enfrentar a situação.
Mowett riu-se, todo animado.
- Será mais fácil por este lado, doutor, com o navio a adernar assim. Irei um pouco mais abaixo que o senhor. Diz-se que o melhor é não olhar para baixo. Devagar
agora. Desça devagar... com paciência, tudo se faz. Ora bem... Está a ver? Já cá estamos!
- Por Deus! - exclamou Stephen limpando as mãos. - Que bom que é estar de novo cá em baixo! - Olhou para o cesto e de novo para a coberta. "Nunca pensei que fosse
tão medroso", pensou; e, virando-se para Mowett, pediu-lhe: - E agora, Mr Mowett, podemos ver o que há lá em baixo?
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- Talvez encontremos um cozinheiro entre os novos tripulantes - disse Jack. - A propósito, espero poder contar com a sua companhia ao jantar.
- com todo o gosto, capitão - retorquiu James Dillon com uma vénia. Estavam sentados à secretária da cabina, com o escriturário ao seu lado; diante deles estavam
espalhados o rol do Sophie, o livro de gastos gerais, o livro das descrições e diferentes listas.
- Cuidado com esse tinteiro, Mr Richards - disse Jack, pois o vento ganhara de repente mais força, fazendo com que o navio desse uma guinada caprichosa. - Tape-o
e segure-o na sua mão. Será melhor assim. Mr Ricketts, vamos lá ver os novos tripulantes.
Formavam um triste grupo quando comparados com a tripulação regular do Sophie. Mas os tripulantes do Sophie, obviamente, estavam em casa; os tripulantes do Sophie
vestiam todos a roupa fornecida pelo velho Mr Ricketts, o que lhes dava uma aparência razoavelmente uniforme; e durante os últimos anos tinham sido razoavelmente
bem alimentados - pelo menos em quantidade. Os novos, com três excepções, eram homens recrutados nos condados do interior, a maioria enviada pelo bedel; havia sete
beberrões de Westmeath1 que tinham sido detidos em Liverpool por terem provocado uma rixa, e que sabiam tão pouco do mundo (só tinham deixado a sua terra para irem
trabalhar nas colheitas) que quando lhes deram a escolher entre as húmidas celas da prisão e a Marinha, escolheram esta última porque era mais seca; havia um apicultor
com uma carantonha lastimável e uma grande barba em bico, a quem tinham morrido todas as abelhas; um construtor de telhados de colmo que ficara sem trabalho; alguns
pais solteiros; dois alfaiates mortos de fome; e um louco pacífico. Os mais andrajosos tinham recebido roupas nos navios recrutadores, mas os outros vestiam ainda
as suas calças de bombazina já muito gastas ou velhos casacos em segunda mão - um camponês trazia ainda o seu típico casaco de linho grosseiro. As excepções eram
três marinheiros de meia-idade: um era dinamarquês, chamava-se Christian Pram e fora segundo-ajudante num navio mercante do Levante; os outros dois eram gregos,
pescadores de esponjas, e, tanto quanto fora possível entender, chamavam-se Apollo e Turbid, tendo sido recrutados em circunstâncias que permaneciam obscuras.
- Excelente, excelente! - disse Jack esfregando as mãos. - Creio que poderemos nomear Pram oficial de derrota, pois temos falta de um oficial de
4 Condado irlandês. (N. do T.)
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derrota. E quanto aos irmãos Esponja, poderemos nomeá-los marinheiros de primeira logo que aprendam um pouco de inglês. Quanto aos outros, todos grumetes. bom, Mr
Richards, logo que conclua essas descrições, procure Mr Marshall e diga-lhe que quero falar com ele.
- Creio que teremos de organizar os quartos com um total de quase cinquenta homens - disse James erguendo os olhos dos seus cálculos.
- Oito no castelo de proa, oito na gávea do traquete. Mr Marshall, entre e sente-se. Venha dar-nos o benefício dos seus conselhos. Devemos aprontar a lista dos quartos
e distribuir os homens antes do jantar. Não há um minuto a perder.
- E aqui, doutor, é onde nós vivemos - disse Mowett avançando de lanterna em punho pelos alojamentos dos guardas-marinhas. - Cuidado com a viga. Tenho de lhe pedir
desculpa pelo cheiro: provavelmente, é por causa do Babbington.
- Ah isso é que não é! - exclamou Babbington abandonando num ápice o livro que estava a ler. - Você é muito cruel, Mowett - murmurou o rapaz fervendo de indignação.
- Comparado com os outros, é um camarote bastante luxuoso, doutor
- disse Mowett. - Entra alguma luz pelo gradeamento, como pode ver, e também entra um pouco de ar quando levantam os tampos das escotilhas. Lembro-me de que na cabina
de proa do velho Namur as velas se apagavam por falta de ar, e não tínhamos nada tão cheiroso como o Babbington.
- Imagino que sim - disse Stephen sentando-se e perscrutando a penumbra. - Quantos homens estão aqui alojados?
- Agora, apenas três, doutor: faltam-nos dois guardas-marinhas. Os mais novos põem as suas redes de dormir junto ao paiol dos cereais e costumavam comer o rancho
com o condestável antes de este adoecer gravemente, mas agora vêm para aqui, comem a nossa comida e dão-nos cabo dos livros com os seus dedos gordurosos.
- Está a estudar Trigonometria? - perguntou Stephen, cujos olhos, habituados já à escuridão, conseguiam distinguir um triângulo desenhado a tinta.
- Sim, senhor doutor - respondeu Babbington. - E creio que já estou quase a descobrir a solução. - ("E tê-la-ia descoberto já se este grandessíssimo
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animal não se tivesse intrometido", acrescentou o jovem Babbington para si mesmo.)
Mowett comentou poeticamente:
Numa cama de lona. meditando profundamente, O cérebro numa azáfama com senos e tangentes, Um guarda-marinhajaz, em cálculos perdido, Até que se detém, vítima de
um intrometido.
- Dou-lhe a minha palavra de honra, doutor: estou muito orgulhoso dos meus estudos - disse Babbington.
- E tem razões para estar, sem dúvida - disse Stephen, com os olhos fixos nos pequenos navios desenhados à volta do triângulo. - Mas diga-me uma coisa: o que significa
um navio em linguagem náutica?
- Tem de ter três mastros de pano redondo, doutor - responderam-lhe os dois com a maior simpatia -, e um gurupés; e os mastros têm de ser três: inferior, mastaréu
da gávea e mastaréu do joanete, pois nunca chamamos navio a uma polacra.
- Ah não? - disse Stephen.
- Oh, não, nem pensar! - exclamaram os dois com um ar muito sério.
- Nem à polacra, nem ao laúde, nem ao xebec; porque, embora se possa pensar que os xebecs têm um gurupés, a verdade é que têm apenas uma espécie de pequeno botaló
reforçado.
- Garanto que não me esquecerei desse pormenor - retorquiu Stephen.
- Imagino que, ao fim de algum tempo, acabam por se habituar a viver neste espaço... - observou, erguendo-se com todo o cuidado. - Ao princípio, estes alojamentos
devem parecer... enfim... um tanto ou quanto exíguos.
- Ah, doutor! - disse Mowett - E continuou:
Não menospreze, senhor, este humilde lugar, Que dá à nossa frota os guardiães do mar! Este local sagrado deve venerar, Pois formou Hawke e Howe na acção militar!
- Não faça caso do que ele diz, doutor! - exclamou Babbington, ansioso. - Não é que ele seja insolente. Não, insolente não é. Mas tem uma maneira de ser detestável,
lá isso é verdade.
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- Ora, deixem-se disso, por favor! - exclamou Stephen. - Vejamos o resto do... enfim, desta nave, deste meio de transporte.
Seguiram em frente e passaram por outro fuzileiro que estava de sentinela; e, avançando às apalpadelas por aquele penumbroso espaço entre dois gradeamentos, Stephen
tropeçou em qualquer coisa mole; ouviu-se imediatamente um ruído metálico e uma voz furiosa, que gritou:
- Veja lá onde é que põe os pés, seu labrego de merda!
- Então, Wilson?! Cale já essa boca! - exclamou Mowett. - É um dos homens que estão a ferros - explicou. - Não ligue, doutor.
- Por que está preso?
- Por indecência, doutor - retorquiu Mowett com algum pudor.
- Ah, este camarote é grande, apesar de baixo! - exclamou Stephen. São os alojamentos dos oficiais inferiores?
- Não, doutor. Aqui é onde os marinheiros comem e dormem.
- Uma parte, imagino. A outra parte deve dormir mais abaixo.
- Mais abaixo já não há alojamentos, doutor. Por baixo de nós fica o porão, que tem apenas uma pequena plataforma, uma espécie de coberta mais baixa.
- Quantos marinheiros são?
- Contando com os fuzileiros, são setenta e sete, doutor.
- Nesse caso, não podem dormir todos aqui: é materialmente impossível.
- com todo o respeito, doutor, a verdade é que dormem mesmo. Cada homem tem catorze polegadas para armar a sua cama, e armam-nas de proa a popa. O vau do meio do
navio mede vinte e quatro pés e dez polegadas, o que dá vinte e dois lugares. Pode ver os números aqui escritos.
- Um homem não se pode deitar num espaço tão reduzido! Catorze polegadas?
- bom... de facto não é muito cómodo... Mas já será mais fácil se o espaço em questão tiver vinte e oito polegadas de comprido. Não sei se está a ver, mas num navio
com o sistema de dois quartos, metade dos homens estão sempre na coberta fazendo o seu quarto, de maneira que todos os seus lugares ficam livres.
- Mesmo com vinte e oito polegadas de comprido, ou seja, dois pés e quatro polegadas, é muito natural que os homens fiquem todos... enfim... muito comprimidos.
- bom, doutor, de facto ficam muito próximos uns dos outros; mas assim pelo menos estão protegidos das intempéries. Fazem-se quatro fileiras desde o anteparo até
este vau; desde este vau até àquele; depois, até ao vau
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que tem a lanterna suspensa em frente; e, por fim, entre este último vau e o anteparo de proa, junto à cozinha. O carpinteiro e o contramestre têm aí os seus camarotes.
A primeira fileira, e parte da seguinte, é para os fuzileiros; depois, vêm os marinheiros, que ocupam duas fileiras e meia. Desta forma, com uma média de vinte redes
em cada fileira, conseguimos que caibam todos.
- Mas deve ser um tapete contínuo de corpos, mesmo só com metade dos homens!
- De facto assim é, doutor.
- Onde estão as janelas?
- Não temos nada parecido com aquilo a que o doutor chama janelas retorquiu Mowett abanando a cabeça. - Há as escotilhas e os gradeamehtos no tecto, mas é claro
que, quando faz vento, estão quase todos fechados.
- E a enfermaria?
- bom, doutor, para dizer a verdade, enfermaria também é coisa que não temos. Mas os doentes dispõem de camas armadas mesmo junto ao anteparo de proa, a estibordo,
ao pé da cozinha; além disso, deixam-nos usar a cabina de popa.
- Há uma cabina à popa?
- bom, doutor, não é bem uma cabina; é mais uma portinhola, embora não como numa fragata ou num navio de linha. Mas serve.
- Para quê?
- Não sei como hei-de explicar-lhe, doutor - respondeu Mowett corando. - É uma espécie de casinha.
- Uma latrina? Uma retrete?
- Isso mesmo, doutor.
- E os outros homens, como é que fazem? Têm penicos?
- Oh, não, doutor, claro que não! Saem por aquela escotilha ali e vão até às latrinas, uns pequenos sítios de ambos os lados da proa.
- Ao ar livre?
- Sim, doutor.
- E como é que fazem quando há tempestade?
- bom, doutor, os homens vão sempre às latrinas, mesmo quando há tempestade.
- E dormem aos quarenta ou aos cinquenta, sem nenhuma janela? bom, se algum dia entrar nestes alojamentos alguém com febre tifóide, ou peste, ou cólera-morbo, que
Deus tenha piedade de todos vós!
- Ámen, doutor - disse Mowett, absolutamente horrorizado perante as firmes e convincentes certezas do doutor.
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- Um jovem cativante, sem dúvida - comentou Stephen ao entrar na cabina.
- O jovem Mowett? Alegra-me que tenha gostado dele, doutor - disse Jack, que parecia muito cansado e apoquentado. - Não há nada mais agradável do que ter bons camaradas.
Posso oferecer-lhe um copo? Da bebida dos homens do mar, a que chamamos grogue. Conhece? Garanto-lhe que, no mar, desliza lindamente! Simpkin, traga-nos grogue!
Raios o partam, é tão lento como Belzebu... Simpkin! Despache-se com o grogue! Maldito filho da mãe! Ah, ei-lo finalmente! - disse, servindo-se imediatamente. - Estava mesmo a precisar de uma bebida! - exclamou, pondo o copo em cima da mesa. - Que manhã mais entediante! Cada quarto tem de ter exactamente a mesma proporção
de tripulantes qualificados nas várias patentes, e outras coisas mais! Uma discussão infindável. Além disso... - prosseguiu Jack, aproximando-se um pouco mais de
Stephen -, cometi uma gafe de todo o tamanho... Peguei na lista e li em voz alta "Flaherty, Lynch, Sullivan, Michael Kelly, Joseph Kelly, Sheridan e Aloysius Burke"
(aqueles tipos que tinham ido a Liverpool para as colheitas) e disse: "O quê? Mais um grupo desses malditos papistas irlandeses? Se continuamos assim, metade do
quarto de estibordo será formado por eles e não conseguiremos livrar-nos do rosário". Disse isto em tom de brincadeira, é claro. Mal o disse, porém, senti nos meus
ouvintes um frio verdadeiramente glacial, e disse para mim mesmo: "Caramba, Jack, és mesmo idiota! Dillon é irlandês e ainda é capaz de pensar que estavas a criticar
a Irlanda". Na realidade, nunca me passou pela cabeça criticar a Irlanda, pois seria um claro sinal de intolerância da minha parte. De facto, o que pretendia dizer
era que odeio os papistas. De maneira que tentei esclarecer o caso, lançando uns quantos ataques ao Papa, irónicos mas inofensivos; mas talvez não tão inofensivos
como eu pensava, pois o gelo não se derreteu.
- E odeia mesmo os papistas? - perguntou Stephen.
- Ah, sim, sem dúvida, tal como odeio estes papéis que se amontoam na minha secretária. Mas os papistas são um bando muito perverso, com a questão da religião e
tudo o mais. Queriam fazer ir pelos ares o Parlamento. Ah, como nós costumávamos comemorar o Cinco de Novembro5! Uma das minhas
5 A 5 de Novembro de 1605, os católicos tentaram fazer ir pelos ares o Parlamento inglês, em resposta às leis promulgadas contra eles e como parte de uma conspiração
(a Conspiração da
Pólvora) contra o rei Jaime I de Inglaterra. A conspiração fracassou e o seu chefe, Guy Fawkes, foi capturado e executado. Desde então, os protestantes passaram
a comemorar esse dia (o Guy Fawkes Day) em que é queimado um boneco de palha que representa o cabecilha da conspiração. (N. do T.)
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melhores amigas, a amabilidade personificada, ficou tão perturbada quando a mãe dela se casou com um papista que passou a dedicar-se ao estudo da Matemática e do
Hebreu (aleph, beth...), apesar de ser a rapariga mais bonita das redondezas... Ensinou-me navegação, enfim, era uma mulher muito inteligente. Contou-me uma imensidão
de coisas sobre os papistas. Já não me lembro de nada, mas uma coisa é certa: é uma gente muito perversa. Não se pode confiar neles. Pense só na recente rebelião...
- Mas, meu caro amigo, os United Irishmen eram principalmente protestantes, os seus chefes eram protestantes. Wolfe Tone e Napper Tandy eram protestantes. Os Emmets,
os OConnors, Simon Butler, Hamilton Rowan, Lorde Edward Fitzgerald, eram protestantes. E a ideia básica da associação era unir os irlandeses protestantes, católicos
e presbiterianos. Foram os protestantes que tomaram a iniciativa.
- Ah sim? bom, como o doutor pode ver, não conheço o caso a fundo: pensava que tinham sido os papistas. Estava nas índias Ocidentais quando tudo se passou. Mas,
depois de não sei quantas horas a trabalhar com papéis, estou pronto para odiar os papistas e também os protestantes, mais os anabaptistas e os metodistas. E também
os judeus. Não. Na realidade estou-me marimbando para tudo isso. O que realmente me aborrece é ter ferido a sensibilidade de Dillon, pois, como lhe disse há pouco,
não há nada mais agradável do que ter bons camaradas a bordo. As coisas para ele não estão fáceis, pois para além de ter de cumprir os seus deveres de primeiro-oficial,
ainda tem de participar num quarto, num navio novo, com uma tripulação nova e com um capitão novo; e eu gostaria muito de facilitar o mais possível a sua integração.
Sem um bom entendimento entre os oficiais, não há navio feliz: e um navio feliz é aquele que consegue ser um bom navio de guerra. Devia ouvir o que Nelson disse
a esse respeito: garanto-lhe que tudo o que ele disse é a mais profunda das verdades. Dillon virá jantar connosco, e eu ficar-lhe-ia muito grato se o doutor, por
assim dizer... Ah, Mr Dillon, entre! Entre e beba um copo de grogue connosco!
Em parte por razões profissionais, e em parte por uma capacidade de abstracção inteiramente natural, Stephen costumava assumir o privilégio do silêncio à mesa; e
agora, refugiado no seu silêncio, observava James Dillon
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com especial atenção. Era a mesma cabeça pequena, erguida bem alto; o mesmo cabelo ruivo escuro, evidentemente, os mesmos olhos verdes; a mesma pele fina, a mesma
má dentadura - aliás, tinha mais dentes estragados agora; o mesmo ar de quem beneficiara de uma educação exemplar; e embora fosse um homem delgado e não fosse mais
alto do que a média, parecia ocupar tanto espaço como o corpulento Jack Aubrey. A principal diferença que encontrava em Dillon era que o seu ar de quem estava sempre
a um passo de desatar a rir, ou de quem tinha descoberto alguma nova piada, se tinha esfumado - de facto, esse ar tão peculiar tinha desaparecido sem deixar rasto.
Agora, a sua expressão era grave e austera, tipicamente irlandesa. Tinha um comportamento reservado, mas perfeitamente atento e cortês, sem o menor sinal de ressentimento.
Comeram um rodovalho aceitável - aceitável, depois de raspada a massa de farinha e água que o cobria -, após o que o camareiro lhes trouxe um presunto. O porco que
produzira aquele presunto sofrera por certo de uma longa doença incapacitante; de facto, era o tipo de presunto reservado aos oficiais que compravam as suas próprias
provisões; e só um homem versado em anatomia patológica conseguiria desossá-lo com algum à-vontade. Enquanto Jack se esforçava por cumprir os seus deveres de anfitrião
e incitava o camareiro a "atacar na parte mais fina" e a "despachar-se", James virou-se para Stephen com um sorriso de convidado para convidado e disse-lhe:
- Parece-me que já tive o prazer de estar na sua companhia, doutor. Terá sido em Dublin? Ou talvez em Naas?
- Não creio ter tido essa honra, Mr Dillon. Confundem-me frequentemente com o meu primo, que tem o mesmo nome que eu. Dizem que somos muitíssimo parecidos, o que,
devo admiti-lo, me provoca algum embaraço, já que o meu primo tem um aspecto sinistro, um ar matreiro de delator ao serviço do Castle6. E a condição de delator é
mais odiosa no nosso país do que em qualquer outro, não é verdade? Pelo menos esta é a minha opinião. Ainda que, evidentemente, haja muitos exemplares desse tipo
no nosso país.
Stephen dissera tudo isto num tom de conversa amena, mas suficientemente alto para que Dillon, que estava ao seu lado, conseguisse ouvi-lo distintamente, já que
Jack continuava a sua ladainha: - com calma agora...
6 Castle: referência ao castelo de Dublin, antigo centro do poder inglês na Irlanda, residência oficial do representante da Coroa, sede do Conselho de Estado e ocasionalmente
do Parlamento. (N. do T.)
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Espero que não seja duro que nem uma pedra... Agarre-o pelo meio, Killick; com a mão toda, homem, pode mexer-lhe à vontade!
- Estou inteiramente de acordo consigo - disse James Dillon com um olhar de absoluta compreensão. - Brindamos, doutor?
- com todo o gosto, Mr Dillon.
Brindaram ambos com o sumo de abrunho, vinagre e acetato de chumbo que tinham impingido a Jack Aubrey como vinho e logo se viraram, um com interesse profissional,
e o outro com estoicismo profissional, para verem como Jack desossava o presunto.
O Porto, contudo, era respeitável, e, depois de a toalha ter sido retirada, a atmosfera da cabina tornou-se muito mais descontraída e confortável.
- Por favor, Mr Dillon, fale-nos da acção que levou a cabo no Dart disse Jack enchendo o copo de Dillon. - Ouvi tantas versões diferentes...
- Sim, conte-nos o que se passou - disse Stephen. - Considerá-lo-ei um favor muito especial.
- Ora... não foi nada de importante! - disse James Dillon. - Tratou-se apenas de uma batalha contra um grupo de miseráveis corsários, enfim, uma escaramuça entre
barcos pequenos. Eu fiquei temporariamente com o comando de um cúter alugado, uma embarcação não muito grande, com um único mastro, doutor. - Stephen acenou com
a cabeça. - Chamava-se Dart. Tinha oito canhões de quatro, o que era bom sem dúvida; mas eu dispunha apenas de treze homens e de um grumete para os disparar. Contudo,
chegaram ordens para que levássemos a Malta um mensageiro do rei e dez mil libras em numerário; e o capitão Dockray pediu-me também que levasse a sua mulher e a
cunhada.
- Lembro-me dele como primeiro-oficial do Thunderer - disse Jack.
- Um homem bom, muito afável, querido de todos...
- Assim era, de facto... - disse James abanando a cabeça. - com um vento constante de sudoeste, fizemo-nos ao mar, virámos a três ou quatro léguas a oeste de Egadi
e mantivemo-nos um pouco a sudoeste. Levantou-se um vento forte ao anoitecer e, como levava senhoras, para além de ter falta de tripulantes, pensei que o melhor
seria aproveitar o abrigo de Pantelleria. Durante a noite, porém, o vento amainou e o mar acalmou. Então, cerca das quatro e meia da manhã, quando estava a fazer
a barba, lembro-me muito bem, porque fiz um corte no queixo...
- Ah! - exclamou Stephen com satisfação.
- ...ouviu-se um grito de "Navio à vista!", e nesse mesmo instante corri para a coberta...
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- Claro, claro - disse Jack rindo-se.
- ...e ali estavam três navios corsários franceses, de vela latina. Havia já claridade suficiente para os distinguir; aliás, estavam tão próximos de nós que já se
viam os cascos. Observei com o meu óculo os dois que estavam mais perto. Cada um deles tinha na proa um canhão grande de bronze de seis e quatro canhões giratórios
de uma libra. Reconheci-os: já havia tido confrontos com eles quando era tripulante do Euryalus.
- Quantos homens tinham?
- bom, entre quarenta e cinquenta por navio; além disso, cada um tinha à volta de uma dúzia de mosquetões de ambos os lados. E sem dúvida que o terceiro navio era
igual. Tinham andado à caça de presas no Canal da Sicília durante algum tempo, usando os portos de Lampione e Lampedusa para se reabastecerem. E agora tinha-os a
sotavento, assim dispostos... - derramou algum vinho sobre a mesa para explicar a posição dos navios - ...e o vento soprava daqui, onde está a jarra. Cochados, poderiam
ultrapassar-me facilmente; e era evidente que o seu plano consistia em atacar-me de ambos os lados e abordar-me.
- Precisamente - disse Jack.
- Assim, pesando tudo muito bem pesado (os meus passageiros, o mensageiro do rei, o dinheiro e a costa da Berberia mesmo à minha frente, para o caso de ter de arribar),
concluí que o melhor seria atacá-los separadamente enquanto estava a barlavento e antes que os dois mais próximos unissem as suas forças. O terceiro ainda estava
a três ou quatro milhas, virando a barlavento com todas as velas içadas. Oito tripulantes do cúter eram marinheiros de primeira e o capitão Dockray mandara o seu
timoneiro juntamente com as senhoras, um timoneiro magnífico, aliás, chamado William Brown. Desempachámos rapidamente o navio para o combate que se avizinhava e
carregámos por três vezes os canhões. Devo dizer que as senhoras revelaram uma coragem que excedeu por completo as minhas melhores expectativas. Informei-as de que
o seu lugar era em baixo, no porão. Contudo, Mrs Dockray respondeu-me que não admitia que um jovem imberbe, com uma única dragona nos ombros, lhe dissesse quais
eram os seus deveres; pensaria eu, por acaso, que a esposa de um capitão com tantos anos de mar estava disposta a dar cabo do seu vestido de musselina no porão de
esgoto daquela casca de noz? Ameaçou que iria contar tudo à minha tia e ao meu primo Ellis, que é Primeiro Lorde do Almirantado, e que me levaria a conselho de guerra
por cobardia, por temeridade, por não perceber nada da minha profissão. Entendia de disciplina e de coordenação tanto ou mais que a mulher que ia
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com ela. "Venha já, minha querida", disse ela para Miss Jones, "você reparte a pólvora e enche os cartuchos e eu levo-os para cima no meu avental". Por essa altura,
as posições eram estas... - e desenhou de novo as posições dos navios com o auxílio do vinho. - O corsário mais próximo estava a dois cabos de distância e a sotavento
do outro; há dez minutos que ambos disparavam os canhões de proa.
- Desculpe, Mr Dillon, um cabo equivale a quanto? - perguntou Stephen.
- Cerca de duzentos jardas, doutor - retorquiu James. - De maneira que baixei o leme (o cúter era maravilhosamente rápido nas viradas) e manobrei para atacar o navio
francês pelo meio. com o vento pela alheta, o Dart cobriu a distância em pouco mais de um minuto, o que não foi nada mau, visto que os canhões deles continuavam
a disparar. Governei eu próprio o navio até ficarmos à distância de um tiro de pistola e logo corri à proa para dirigir a abordagem, deixando a cana do leme nas
mãos do grumete. Infelizmente, o grumete não entendeu as minhas instruções e deixou que o navio corsário deslocasse a proa demasiado para a frente; por isso, alcançámo-lo
por detrás do mastro de mezena, o que fez com que o nosso gurupés arrasasse os ovéns de bombordo da mezena do corsário, bem como uma parte da amurada e da enxárcia
de popa. Assim, em vez de o abordarmos, passámos debaixo da sua popa: o mastro de mezena do navio pirata caiu pela borda devido ao choque, e nós corremos para os
canhões e disparámos uma surriada. Dispúnhamos apenas do número de homens suficiente para disparar quatro canhões; eu e o mensageiro do rei manipulávamos um deles,
ao passo que Brown nos ajudava a dispará-lo depois de ter feito fogo com o seu. Orcei para me acercar do corsário por sotavento e para passar diante da sua proa,
a fim de o impedir de manobrar; mas eles tinham tanto velame içado que o Dart teve de se deter por um momento, durante o qual trocámos fogo com a rapidez e a intensidade
que nos era possível. Por fim avançámos; encontrámos de novo o nosso vento e virámos tão rapidamente quanto nos foi possível, colocando-nos perpendicularmente à
proa do navio francês. Demasiado rapidamente, para dizer a verdade, pois só pudemos dispor de dois tripulantes para caçar as escotas e a nossa espicha acabou por
chocar contra a verga do traquete deles, arrasando-a: a vela do traquete caiu, afundando-se sobre o canhão grande de proa e sobre os giratórios. Quando virámos,
já tínhamos a nossa bateria de estibordo preparada e disparámo-la tão de perto que incendiámos num instante a vela do traquete e os restos do mastro de mezena espalhados
por toda a coberta. Então, os piratas pediram tréguas e renderam-se.
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- Muito bem feito, sim senhor! - exclamou Jack.
- E em boa altura - prosseguiu James -, pois o outro navio corsário aproximava-se rapidamente. O nosso gurupés e a nossa espicha só por milagre é que ainda estavam
de pé; de maneira que disse ao capitão do navio pirata que o afundaria se tentasse avançar na direcção do seu companheiro. Eu não podia prescindir de nenhum marinheiro
para me apoderar do navio que se tinha rendido. bom, e também não tinha tempo para isso.
- Claro que não - disse Jack.
- De modo que nos aproximámos navegando em direcções opostas; eles disparavam como lhes dava na gana, com tudo o que tinham. Quando estávamos a cerca de cinquenta
jardas um do outro, o cúter caiu quatro graus para sotavento para lhes apontar os canhões de estibordo; disparámos uma surriada e logo orçámos rapidamente, após
o que disparámos outra a uma distância de cerca de vinte jardas. A segunda surriada foi verdadeiramente extraordinária. Nunca me passara pela cabeça que os canhões
de quatro pudessem portar-se tão bem. Aproveitámos o momento em que o navio baixava e disparámos, embora um pouco mais tarde do que considerava adequado; os quatro
tiros acertaram em cheio na linha de flutuação: vi-os atingirem os seus alvos, todos na mesma fiada de tábuas do casco. Passado um pouco, os homens do navio pirata
largaram as suas armas e não paravam de correr de um lado para o outro, todos aos gritos. No nosso navio, entretanto, dera-se um caso infeliz: Brown tropeçara num
canhão no momento do coice e a carreta destroçara horrivelmente o seu pé. Ordenei-lhe que fosse para baixo, mas ele opôs-se categoricamente; respondeu-me que ficaria
ali e que lutaria com o seu mosquete. Nesse preciso instante desatou aos vivas, dizendo que o navio francês estava a afundar-se. E assim era: ficaram por um momento
à flor da água mas logo se afundaram num ápice, com as velas envergadas.
- Deus do céu! - exclamou Jack.
- Fiquei à espera do terceiro, enquanto a tripulação amarrava e consertava cabos, pois a nossa enxárcia estava feita em bocados. Além disso, o mastro principal e
a espicha estavam tão danificados que não me atrevia a forçá-los com as velas. Havia muitas fendas profundas e uma bala de seis libras acertara em cheio no mastro.
Creio que o terceiro navio pirata fugiu de nós pura e simplesmente, de maneira que não tínhamos outra hipótese senão voltar ao local onde estava o primeiro dos três
navios. Afortunadamente, os seus homens tinham estado muito ocupados com o incêndio, pois, caso contrário, ter-se-iam escapulido. Levámos seis homens para bordo
para bombear, lançámos os mortos ao mar, prendemos os outros e pusemos o barco a reboque
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do nosso; dirigimo-nos então para Malta, onde chegámos passados dois dias, o que me surpreendeu, pois as nossas velas eram um monte de buracos seguro por fios e
o nosso casco não estava muito melhor.
- Levou os homens do navio que se afundou? - perguntou Stephen.
- Não, doutor - retorquiu James.
- Piratas, nunca! - exclamou Jack. - Não com treze homens e um grumete a bordo. E quantas baixas tiveram, Mr Dillon?
- Tirando o pé de Brown e uns quantos arranhões, não houve feridos nem mortos. Foi algo de espantoso, de facto. Mas também é verdade que não éramos muitos.
- E as baixas deles?
- Trinta mortos, meu capitão. E vinte e nove prisioneiros.
- E do navio que afundaram?
- Cinquenta e seis.
- E o que fugiu?
- bom, segundo nos disseram, eram quarenta e oito. Mas esse navio praticamente não conta, pois só fez alguns disparos ao acaso antes de fugir.
- Pois bem, Mr Dillon - disse Jack -, felicito-o de todo o meu coração. Foi uma grande façanha!
- Também eu quero felicitá-lo - disse Stephen. - Brindemos, Mr Dillon - acrescentou, fazendo uma vénia e erguendo o seu copo.
- Pois sim! - exclamou Jack com uma súbita inspiração. - Brindemos pelos êxitos futuros das tropas irlandesas e pela perdição do Papa.
- Pela primeira parte, brindaria mais de dez vezes - disse Stephen rindo-se. - Porém, pela segunda, não beberia uma única gota, por muito voltaireano que seja. O
pobre homem está à mercê de Boney e, francamente, isso é perdição bastante! Além do mais, é um beneditino extremamente culto...
- Nesse caso, brindemos à perdição de Boney! - propôs Jack.
- À perdição de Boney! - exclamaram, e esvaziaram os copos.
- Espero que me desculpe, capitão - disse Dillon -, mas dentro de meia hora terei de render quarto e gostaria de conferir primeiro a distribuição dos homens. Muito
obrigado pelo jantar, foi uma óptima refeição.
- Uma acção verdadeiramente memorável... - comentou Jack logo que a porta se fechou. - Cento e quarenta e seis homens contra catorze, ou quinze, se contarmos com
Mrs Dockray. É o mesmo tipo de façanha que Nelson teria cometido, uma acção rápida, imediata, directa ao inimigo.
- Conhece Lorde Nelson, capitão?
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- Tive a honra de servir sob o seu comando no Nilo - disse Jack -, e de jantar por duas vezes na sua companhia. - A recordação desses momentos fez com que um sorriso
imenso se desenhasse no seu rosto.
- Posso pedir-lhe uma coisa? Importa-se de me descrever Lorde Nelson?
- Ah, creio que o doutor simpatizaria imediatamente com ele! É um homem muito delgado, frágil mesmo; acho que era capaz de levantá-lo só com uma mão. Digo isto,
é claro, sem qualquer falta de respeito. Mas basta olhar para ele para se ver que é um grande homem. Na filosofia há uma coisa a que chamam partícula eléctrica,
não é? Um átomo carregado, julgo que é assim que se diz. Lorde Nelson falou comigo nesses dois jantares. Da primeira vez, foi para me dizer: "Importa-se de me passar
o sal?", e desde então faço sempre o possível por pedir o sal como ele, não sei se o doutor se deu conta disso. Mas, da segunda vez, eu estava a tentar explicar
ao meu vizinho, um soldado, como eram as tácticas navais (posição a barlavento, romper a linha e outras coisas) e, numa das pausas, Lorde Nelson inclinou-se um pouco
na nossa direcção e, com um sorriso extraordinário, disse-me: "Nunca se preocupe com as manobras; limite-se a atacá-los". Não me esquecerei nunca das suas palavras:
"Nunca se preocupe com as manobras; limite-se a atacá-los". E nesse mesmo jantar contou-nos que numa noite fria alguém lhe oferecera uma capa e que ele respondera
que não era preciso, pois não tinha frio, que o seu fervor pelo rei e pelo seu país o mantinham quente. Parece absurdo agora que lho conto, não é? E se fosse outro
homem, outro homem qualquer, por certo teríamos comentado: "Ora, mas que disparate!", e teríamos acrescentado que se tratava de uma mera manifestação de entusiasmo.
Porém, com Lorde Nelson, uma pessoa sente como que uma exaltação, sim, é isso, uma exaltação, e... - mas que raio é que se passa, Mr Richards? Entre ou saia; mas
não fique à porta como um galo de Quaresma!
- Meu capitão - disse o pobre escriturário -, o senhor disse que antes do chá podia trazer-lhe os papéis que faltavam, e como o chá já vem a caminho...
- Muito bem, muito bem, tem toda a razão - disse Jack. - Deus do céu, mas que montão infernal! Ponha-os aqui, Mr Richards. Tratarei deles antes de chegarmos a Cagliari.
- Os de cima são os que o capitão Allen deixou para passar a limpo, só precisa de assiná-los - disse o escriturário saindo às arrecuas.
Jack olhou de relance para o alto da pilha, fez uma pausa e exclamou:
- Ora aqui está! Tinha de ser! Aqui está em que consiste todo o nosso
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trabalho na Armada Real Inglesa, sem tirar nem pôr! Sentimo-nos nós arrastados por uma impetuosa corrente de fervor patriótico, estamos nós prestes a travar a mais
renhida das batalhas, e pedem-nos que assinemos uma coisa destas! - E passou a Stephen uma folha cuidadosamente escrita.
A bordo do Sophie, corveta de Sua Majestade,
no alto mar
Senhor,
Rogo-lhe que proceda à convocação de um conselho de guerra tendo em vista o julgamento de Isaac Wilson (marinheiro), pertencente à tripulação da corveta que tenho
a honra de comandar, por ter cometido o crime antinatural de sodomia com uma cabra, no estábulo, na noite de 16 de Março.
Sou, de Sua Senhoria, o mui obediente e humilde servidor,
Para Sua Excelência Lorde Keith, K. B. etc. etc. Admirai of the Blue.
- É estranho como a lei insiste sempre no carácter antinatural da sodomia - observou Stephen Maturin. - Apesar de eu conhecer pelo menos dois juizes que são pederastas;
bom, e isto para não falar dos advogados... Que acontecerá a este homem?
- Oh... Será enforcado sem dúvida - retorquiu Jack. - Pendurado num lais de verga, com botes de todos os navios da frota a assistir...
- Parece-me um tanto excessivo.
- Claro que é. Ah, mas que aborrecimento infernal! Dezenas de testemunhas terão de ir à nau-capitânia, enfim, dias e dias perdidos... E toda a gente a rir-se à custa
do Sophie Mas por que raio é que denunciam coisas destas? A cabra será abatida - nada mais justo - e será servida àqueles que denunciaram o desgraçado do Isaac Wilson.
- Não poderia desembarcá-los aos dois, em locais distintos, caso esteja muito preocupado com as questões morais, e continuar a sua viagem tranquilamente?
- bom - disse Jack, já mais calmo. - Talvez a sua ideia não seja má de todo. Um pouco de chá? com leite?
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- Leite de cabra?
- bom, suponho que sim.
- Nesse caso, será melhor sem leite. Se não estou em erro, disse-me que o condestável estava doente. Talvez seja boa altura para ver o que posso fazer por ele. Diga-me
onde fica a câmara dos oficiais, que eu vou até lá.
- Esperava encontrá-lo na câmara dos oficiais, não é verdade? Só que o camarote do condestável fica noutro sítio. Killick leva-o até lá. A câmara dos oficiais, numa
corveta, é usada como messe.
A essa hora, naqueles que eram realmente os alojamentos dos oficiais, o mestre esticou-se e disse ao tesoureiro:
- Agora há imenso espaço livre, Mr Ricketts. Pode-se estar à vontade.
- Sem dúvida, sem dúvida, Mr Marshall - retorquiu o tesoureiro.
- Assiste-se a grandes mudanças actualmente. Se darão ou não resultado... bom, isso já não sei.
- Oh, creio que poderão dar um resultado satisfatório... - disse Mr Marshall sacudindo lentamente as migalhas do seu colete.
- Todas estas extravagâncias... - prosseguiu o tesoureiro numa voz baixa desconfiada - ...a verga grande... os canhões... os reforços, sobre os quais fingia não
saber nada... Todos estes tripulantes novos, e não há espaço que chegue para os alojar... O sistema dos quartos... O Charlie disse-me que os homens já andam a murmurar.
- E acenou com a cabeça na direcção dos alojamentos dos marinheiros.
- Sim, é muito provável que murmurem. Muito provável mesmo. Todo o sistema antigo foi alterado, os velhos companheiros de rancho foram separados. Mas creio que também
nós seríamos um tanto ou quanto frívolos se fôssemos jovens e nos víssemos de repente com uma dragona novinha em folha no ombro da nossa casaca. Mas se os oficiais
rectos e disciplinados o apoiarem, então creio que o resultado final poderá ser bastante bom. O carpinteiro gosta dele. Watt também, porque é um bom marinheiro,
quanto a isso não pode haver dúvida. E Mr Dillon também parece conhecer a sua profissão.
- Talvez, talvez - retorquiu o tesoureiro, que conhecia desde há muito as paixões do mestre.
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- Além disso - prosseguiu Mr Marshall -, as coisas poderão animar-se um pouco mais sob o comando da nova autoridade. Os homens gostarão do novo estilo quando se
habituarem; e os oficiais também, parece-me. Tudo o que é preciso é que os oficiais o apoiem. Assim, tudo irá de vento em popa.
- Como disse? - perguntou o tesoureiro aplicando o ouvido, porque Mr Dillon estava a deslocar os canhões e, no meio do ruído atroador que acompanhava essa operação,
ouviu-se de repente um forte estalido, capaz de ensurdecer por um instante o mais apurado dos ouvidos. Paradoxalmente, fora aquele ruído atroador que tornara possível
a conversa entre o mestre e o tesoureiro, já que normalmente seria impossível manter uma conversa privada num navio de vinte e seis jardas de comprido e com noventa
e um homens a bordo, e cuja câmara de oficiais tinha inclusivamente outros compartimentos mais pequenos, separados uns dos outros por delgadas pranchas de madeira
ou simplesmente por bocados de lona.
- De vento em popa. Disse que se os oficiais o apoiarem, tudo irá de
vento em popa.
- Talvez. Mas se não o apoiarem - prosseguiu Mr Ricketts -, se não o apoiarem e ele persistir em excentricidades deste género (e creio, sinceramente, que ele possui
o carácter de um excêntrico), temo que não dure muito tempo no comando do Sophie, tal e qual como aconteceu a Mr Harvey. É que um brigue não é uma fragata, e muito
menos um navio de linha; pode-se gozar dos favores dos homens e perder tudo num abrir e fechar de olhos, porque esses mesmos homens podem causar-nos sarilhos diabólicos
ou mesmo arruinar-nos.
- Ora, Mr Ricketts - disse o mestre -, não precisa de me dizer que um brigue não é uma fragata e muito menos um navio de linha.
- Talvez não precise de lhe dizer que um brigue não é uma fragata e muito menos um navio de linha, Mr Marshall - replicou o tesoureiro com algum calor. - No entanto,
Mr Marshall, quando se anda no mar há tanto tempo como eu, sabe-se que, para se ser um bom capitão, não basta ser-se um marinheiro experiente. Qualquer marinheiro
é capaz de governar um barco no meio de uma tormenta - prosseguiu ele num tom desdenhoso - e qualquer dona de casa em calções é capaz de manter limpas as cobertas
e até mesmo as entrecobertas. Porém, para se ser um bom capitão de um navio de guerra, é preciso ter cabeça - e dava palmadinhas na sua testa - e coragem, coragem
a sério, e estabilidade, bem como capacidade de comando: qualidades que dificilmente se encontram num qualquer novato caído do céu, nem num Jack esperto qualquer
- acrescentou, mais ou menos para si mesmo.
- Não sei, mas isto é o que eu penso.
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CAPÍTULO QUATRO
O tambor rufava e retumbava na escotilha do Sophie. Os homens subiam numa correria e o ruído dos seus passos desesperadamente apressados fazia com que o tenso rufar
do tambor parecesse ainda mais urgente. No entanto, exceptuando os novos tripulantes, todos os homens exibiam uma expressão tranquila, já que para eles o som do
tambor significava muito simplesmente a chamada aos seus postos - o ritual da tarde que muitos dos tripulantes do Sophie haviam já celebrado milhares de vezes, cada
um correndo para um lugar antecipadamente determinado ou para um grupo específico de cordas que já conhecia de cor.
O certo, porém, é que a sua participação naquele ritual nunca poderia ter suscitado elogios. Muitas coisas tinham mudado na cómoda rotina do Sophie: a distribuição
dos homens pelos canhões era diferente; cerca de vinte inquietos novatos tinham de ser empurrados como carneiros para os seus devidos lugares ou para algo que se
aproximasse disso; e como a maioria dos recém-chegados só estava autorizada a içar sob orientação dos mais experientes, a parte da coberta entre os castelos ficava
apinhada de gente - e pisadelas de pés era coisa que não faltava.
Durante dez minutos, os tripulantes do Sophie mais pareceram formigas, distribuindo-se pela coberta superior e pela bateria. Jack observava-os tranquilamente por
detrás da roda do leme, enquanto Dillon berrava ordens e os oficiais e os guardas-marinhas disparavam furiosamente em todas as direcções, cientes de que o comandante
estava a vê-los e de que a sua ansiedade não contribuía em nada para melhorar as coisas. Jack contava que houvesse confusão, embora não tão medonha como aquela a
que acabava de assistir; contudo, o seu inato sentido de humor e o prazer de sentir aquela máquina
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funcionando sob o seu comando (ainda que funcionando mal, é certo), superaram todas as outras - e mais justificadas - emoções.
- Por que é que eles se comportam assim? - perguntou Stephen, que estava ao pé dele. - Por que correm eles de um lado para o outro com tanto afã?
- O objectivo é que cada homem saiba exactamente para onde deve dirigir-se em caso de acção de guerra, ou em caso de emergência - retorquiu Jack. - As coisas nunca
poderiam sair bem se, numa situação dessas, tivessem de pensar antes de actuar. As brigadas de artilheiros já ocuparam os seus lugares, não sei se está a ver, tal
como os fuzileiros comandados pelo sargento Quinn. Os marinheiros do castelo de proa, tanto quanto posso ver daqui, também já ocuparam os seus lugares; e os do convés
também já devem estar nos seus postos. Há um capitão para cada canhão, como pode ver, e ao seu lado há um artilheiro que limpa o canhão, o servente, e outro, aquele
com cinturão e cutelo, que pertence ao destacamento de abordagem; há também um veleiro, que deixa o canhão se, por exemplo, no meio de uma batalha, tivermos de mudar
as vergas; e um bombeiro, aquele com o balde, cuja tarefa consiste em apagar qualquer fogo que possa eclodir. Ali está Pullings, apresentando a sua divisão a Dillon.
Já não falta muito.
O pequeno tombadilho superior estava a abarrotar de gente - o mestre, ocupando-se do governo da corveta; o oficial de derrota no leme; o sargento de infantaria com
o seu grupo de armas ligeiras; o guarda-marinha sinaleiro; parte da guarda de popa; os artilheiros; James Dillon; o escriturário e outros
- mas Jack e Stephen passeavam de um lado para o outro como se estivessem sós. Jack estava imbuído da olímpica dignidade do seu posto, e Stephen surgia ao abrigo
dessa aura. Tudo aquilo era muito natural para Jack, que conhecia aquelas situações desde criança; Stephen, contudo, assistia pela primeira vez a tais cerimónias
- e experimentava uma sensação não totalmente desagradável, a sensação de estar a velar um morto: de facto, ou aqueles homens atentos e absortos do outro lado da
parede de vidro estavam mortos e mais não eram do que fantasmas, ou então era ele o morto - ainda que, neste último caso, se tratasse de uma estranha morte, pois
embora estivesse habituado àquela sensação de isolamento (acostumado a ser, enfim, uma pálida sombra num outro mundo silencioso e privado), a verdade é que agora
tinha um companheiro, e um companheiro que falava.
- ...O seu posto, por exemplo, deveria ser em baixo, naquilo a que chamamos a cabina. Não que seja uma verdadeira cabina, tal como aquele castelo de proa não é um
verdadeiro castelo de proa, no sentido exacto da
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palavra. Mas a verdade é que lhe chamamos cabina, contendo os baús dos guardas-marinhas que fazem de mesa de operações, e teria de ter os seus instrumentos todos
a postos.
- É aí que serei alojado?
- Não, não. Dar-lhe-emos algo de melhor. Mesmo quando já estiver sujeito ao Código de Justiça Militar - disse Jack com um sorriso -, verificará que sabemos honrar
a erudição; pelo menos ao ponto de lhe concedermos um espaço privado de dez pés quadrados e tanto ar fresco quanto o que deseje respirar.
Stephen assentiu com a cabeça.
- Diga-me, capitão - disse ele em voz baixa um momento depois.
- Se eu estivesse sujeito à disciplina naval, aquele camarada poderia ordenar que me chicoteassem? - E acenou para Mr Marshall.
- O mestre?! - exclamou Jack com um espanto inexprimível.
- Sim - respondeu Stephen olhando atentamente para ele, com a cabeça ligeiramente inclinada para a esquerda.
- Mas ele é apenas o mestre... - disse Jack. Se Stephen tivesse chamado popa à proa do Sophie, ou quilha à borla do mastaréu, Jack teria compreendido perfeitamente;
mas que fizesse tais confusões no que à cadeia de comando respeitava, que confundisse o estatuto relativo de um capitão e de um mestre, de um oficial que recebeu
patente de posto e de um suboficial, era algo que subvertia a ordem natural das coisas e minava o sempiterno universo. Por um momento, a mente de Jack não conseguiu absorver o que o seu companheiro de passeio lhe dissera. Ficou boquiaberto por um instante; contudo, apesar de não ser nenhum erudito e de não perceber nada do verso
hexâmetro, Jack tinha um raciocínio razoavelmente rápido. - Meu caro amigo, creio que fez uma grande confusão. O mestre está subordinado ao capitão. Um destes dias
terei de lhe explicar a hierarquia da Marinha. Seja como for, a si nunca o chicotearão. Não, nem pensar! Você nunca será chicoteado - acrescentou, fitando-o com
grande afecto, e com algo que se assemelhava ao assombro, assombro perante um prodígio tão extraordinário, perante uma ignorância tão crassa, perante algo que nem
mesmo uma mente tão aberta à fantasia como a de Jack poderia ter concebido.
James Dillon atravessou a parede de vidro.
- Todos estão nos seus postos, meu capitão - disse ele erguendo o tricórnio.
- Muito bem, Mr Dillon - disse Jack. - Vamos fazer exercícios com os canhões.
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Um canhão de quatro libras pode não lançar um grande quantidade de metal, nem atravessar dois pés de carvalho a meia milha de distância, ao contrário do que sucede
com um de trinta e duas libras; mas é capaz de lançar uma sólida bala de ferro fundido de três polegadas a mil pés por segundo, o que é sem dúvida algo de muito
desagradável para o seu alvo. E o canhão propriamente dito é uma máquina formidável: tem um cano de seis pés de comprido, pesa doze quintais, apoia-se numa carreta
de carvalho maciço, e quando é disparado recua com tal violência que parece estar vivo.
O Sophie possuía catorze destes canhões, sete de cada lado; e os dois canhões de popa, no castelo, estavam reluzentes. Cada canhão tinha uma equipa de quatro homens
e um marinheiro ou um grumete que trazia a pólvora do paiol. Cada grupo de canhões estava a cargo de um guarda-marinha ou de um ajudante do mestre - Pullings tinha
a seu cargo os seis canhões de proa, Ricketts os quatro a meio e Babbington os quatro de popa.
- Mr Babbington, onde está o como da pólvora1 deste canhão? - perguntou Jack com uma expressão fria.
- Não sei, meu capitão - balbuciou Babbington muito vermelho.
- Parece que se extraviou.
- Sargento de artilharia! - chamou Jack. - Peça outro a Mr Day, ou melhor, peça-o ao seu ajudante, pois Mr Day está doente.
Na sua inspecção, não encontrou mais nenhuma deficiência digna de nota. Porém, depois de ter obrigado os homens a preparar e a disparar os canhões meia dúzia de
vezes (ou melhor, depois de os homens já terem repetido todos os movimentos necessários para o efeito, excepto o do disparo), o seu rosto ensombreceu-se: aqueles
homens eram extraordinariamente lentos. Tinham sido apenas treinados para surriadas e não para disparos isolados. com um ar visivelmente satisfeito, colocavam cuidadosamente
os canhões contra a portinhola, ao ritmo mais lento que se possa imaginar: e o resultado era que todo o exercício parecia inútil e artificial. Era certo que um serviço
normalíssimo de escolta de um comboio em nada contribuía para que os homens sentissem apaixonadamente a realidade vital dos canhões. Mas, mesmo assim... "Quem me
dera poder comprar uns quantos barris de pólvora!", pensou, tendo em mente a imagem muito clara das contas do condestável: um total de quarenta e nove meios-barris,
menos sete do que aqueles a que o Sophie tinha direito; quarenta e um de grão vermelho grande, sete de grão
1 Polvorinho usado na época, que consistia num chifre de boi. (N. do T.)
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branco grande (pólvora restaurada, de potência duvidosa) e um de grão fino para escorva. Em cada barril havia quarenta e cinco libras de pólvora: o Sophie gastaria
um inteiro em cada surriada dupla. "Mesmo assim", prosseguiu Jack, "creio que podemos fazer um par de descargas: só Deus sabe há quanto tempo essas cargas estão
nos canhões! Além do mais", acrescentou para si mesmo, para o mais recôndito do seu ser, "o cheiro é delicioso".
- Muito bem - disse ele em voz alta. - Mr Mowett, faça o favor de ir para a minha cabina. Sente-se junto ao relógio de mesa e tome nota do tempo exacto que transcorre
entre a primeira e a segunda descarga de cada canhão. Mr Phillips, começaremos com a sua divisão. Será a divisão número um. Silêncio em todo o navio!
De facto, fez-se um silêncio absoluto em todo o navio. A barlavento, o vento silvava constante na tensa enxárcia a dois graus de través. A brigada do canhão número
um molhava nervosamente os lábios. O canhão encontrava-se na posição normal de repouso, fortemente amarrado contra a sua portinhola - ou trancafiado, na linguagem
náutica - ou encarcerado, por assim dizer.
- Desamarrar o canhão!
Os homens da brigada desataram as cordas que prendiam o canhão e cortaram as tranças de filástica que amarravam a culatra e que serviam para manter o canhão ainda
mais firme. O suave chiar da carreta indicou que o canhão já estava solto; dois homens aguentaram as cordas laterais, pois, caso contrário, o adernamento do Sophie
(que tornava desnecessárias as cordas traseiras) levaria a que o canhão rodasse para o interior da coberta antes que fosse dada a ordem seguinte.
- Nivelar o canhão!
O servente empurrou com força o seu espeque sob a portentosa culatra do canhão e ergueu-a com um movimento rápido, enquanto o condestável metia uma cunha por debaixo
a fim de deixar o cano apontado na posição horizontal.
- Tirar a tapa da boca!
A brigada deixou que o canhão se deslocasse rapidamente: a culatra deteve-se quando a boca já estava virada cerca de um pé na direcção do interior do navio; então,
o veleiro tirou a tapa esculpida e pintada que fechava a boca do canhão.
- Enfiar a boca na portinhola!
Agarrando-o pelas cordas laterais, os homens levantaram o canhão
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rapidamente, empurrando com força a carreta para o lado e aduchando esmeradamente as cordas em pequenos círculos.
- Escorvar o canhão!
O capitão da brigada pegou na sua agulha de escorvar, introduziu-a no ouvido do canhão e perfurou o cartucho de flanela que havia dentro. Depois pegou no como e
verteu a fina pólvora pelo ouvido e para a caçoleta de escorvar, calcando-a depois com extrema diligência. O servente pôs a palma da mão por cima da pólvora, para
impedir que ela se espalhasse pelo ar, e o bombeiro pendurou o como da pólvora ao ombro.
- Apontar! - E, a esta ordem, Jack acrescentou: - Nesta mesma posição! - pois, naquela fase, não queria introduzir mais complicações, em particular uma elevação
do canhão ou uma mudança de direcção.
Dois dos membros da brigada sustinham agora as cordas laterais: o servente ajoelhou num dos lados, com a cabeça afastada do canhão, e soprou suavemente no rastilho
que tinha tirado do seu estojo (pois no Sophie não se usava fecharia de pederneira); o grumete que trazia a pólvora manteve-se a estibordo, imediatamente atrás do
canhão, com o cartucho seguinte na cartucheira de couro; por fim, o capitão da brigada, segurando na sua agulha e protegendo a escorva, debruçou-se sobre o canhão,
mirando fixamente ao longo do cano.
- Fogo!
Por um milésimo de segundo, houve um assobio, um clarão, e logo o canhão disparou com uma detonação forte e satisfatória, resultado da explosão de mais de uma libra
de pólvora firmemente acondicionada num espaço reduzido. Uma labareda carmim no meio do fumo, fragmentos de bucha voando pelo ar, o canhão recuando oito pés sob
o corpo arqueado do seu capitão e entre os membros da brigada, o som vibrante da culatra aquando do coice - todos estes elementos eram praticamente inseparáveis
no tempo; e antes que tudo se tivesse desvanecido, o comandante do navio tratou de dar a ordem seguinte.
- Tapar o ouvido! - exclamou Jack Aubrey, observando a trajectória da bala enquanto o fumo branco se deslocava para sotavento. O capitão da brigada introduziu a
agulha de escorvar no ouvido do canhão. A bala fez erguer um fugaz penacho no mar picado, cerca de quatrocentas jardas a barlavento, e logo outro e outro, como que
brincando às pedrinhas nas últimas cinquenta jardas antes de se afundar. Os membros da brigada fixaram então as cordas traseiras, para que o canhão ficasse firmemente
preso e imune à agitação do mar.
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- Limpar o canhão!
O servente meteu rapidamente o escovilhão de pele de ovelha no balde do bombeiro e, enfiando a cabeça no estreito espaço entre a boca e o costado, puxou pela argola,
afastando a boca da portinhola, e introduziu o escovilhão na alma do canhão: fez girar escrupulosamente o escovilhão uma série de vezes, até que o tirou, enegrecido
e ligeiramente queimado num sítio.
- Carregar com o cartucho!
O grumete que servia a pólvora já tinha o cartucho de tela preparado: o servente introduziu-o e calcou-o firmemente. O capitão de brigada mantinha a sua agulha de
escorvar no ouvido para comprovar que o cartucho estava no sítio devido, e gritou:
- Colocado!
- Disparar!
A bala estava já na sua grinalda, prestes a ser entregue, e a bucha encontrava-se já na sua estopilha; porém, uma infortunada escorregadela fez com que a bala desatasse
a rodar caprichosamente pela coberta até à escotilha de proa, com o capitão de brigada, o servente e o grumete da pólvora, qual deles o mais ansioso, correndo atrás
dela. Por fim, juntaram-na ao cartucho, com a bucha bem calcada sobre este último, e Jack exclamou:
- Enfiar a boca na portinhola! Escorvar! Apontar! Fogo! - Imediatamente, assomando à clarabóia da cabina, perguntou: - Mr Mowett, quanto tempo passou?
- Três minutos e três quartos, meu capitão.
- Deus do céu! - disse Jack quase para si mesmo. No vocabulário de que dispunha, não havia palavras capazes de exprimirem a sua angústia. Os membros da divisão de
Pullings pareciam inquietos e envergonhados; os artilheiros da brigada número três estavam já de tronco nu e tinham atado os lenços à volta da cabeça para se protegerem
de clarões e estrondos: cuspiam já nas mãos, enquanto Mr Pullings, mais nervoso do que nunca, não parava de um lado para o outro com os seus espeques, escovilhões
e alavancas.
- Silêncio! Desamarrar o canhão! Nivelar o canhão! Tirar a tapa da boca! Enfiar a boca na portinhola!
Desta feita, as coisas correram muito melhor - pouco mais de três minutos. Porém, para além de a bala não ter escorregado pela coberta, Mr Pullings tinha-os ajudado
a elevar o canhão e a puxar as cordas traseiras, enquanto fitava os céus com um ar ausente, como se desejasse mostrar que, na realidade, ele não estava ali.
À medida que os canhões foram disparando um atrás do outro, também a
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melancolia de Jack aumentava. Os artilheiros da equipa número um e da equipa número três não eram, longe disso, um bando de idiotas - na realidade, aquele era o
verdadeiro ritmo médio de fogo do Sophie. Arcaico. Antediluviano. E se tivessem de apontar a um alvo previamente determinado, ou de alterar a direcção de tiro, ou
de erguer os canhões com alavancas e espeques, as coisas teriam sido ainda mais lentas. O canhão número cinco não pudera disparar, pois a pólvora havia humedecido.
Isso podia acontecer em qualquer navio: mas era lamentável que também tivesse ocorrido por duas vezes na bateria de estibordo.
O Sophie tinha orçado para disparar os canhões de estibordo, pois desse modo eliminava toda e qualquer possibilidade de acertar no comboio; e ali estava o navio,
cabeceando tranquilamente, quase sem se mover, enquanto os artilheiros extraíam a última carga humedecida. Stephen pensou que, nesse momento de calma, não seria
inapropriado dirigir-se ao capitão; disse a Jack:
- Por favor, capitão, poderia dizer-me por que razão aqueles navios estão tão juntos? Estão a falar uns com os outros ou... ou a prestar assistência uns aos outros?
- Apontou por cima da caixa onde os homens guardavam as redes de dormir: Jack seguiu o dedo do médico e, por um instante, observou, incrédulo, o navio mais atrasado
do comboio, o Dorthe Engelbrechtsdatter, o laúde norueguês.
- Aos braços! - gritou ele imediatamente. - Leme a bombordo! Aquartelar a proa! Mexam-se! Carregar a vela mestra!
Lentamente, de início, e depois cada vez mais rapidamente, com todo o vento nas velas de proa fortemente braceadas, o Sophie caiu a sotavento. Agora estava amurado
a bombordo. Passado um bocado, tinha o vento de popa e, em seguida, tomou o rumo fixado, com o vento a três graus pela alheta de estibordo. Houve muita correria
de um lado para o outro do navio e Mr Watt e os seus ajudantes rugiam e assobiavam furiosamente, mas os tripulantes do Sophie eram melhores nas velas do que nos
canhões, pelo que, pouco tempo depois, Jack pôde ordenar:
- Vela mestra redonda! Varredoura! Mr Watt, as cadeias e as defensas. Mas, pelo que vejo, não preciso de lhe dizer o que tem de fazer.
- Sim, sim, meu capitão - disse o contramestre, afastando-se com um ruído metálico, já carregado com as cadeias destinadas a evitar que as vergas caíssem durante
a acção.
- Mr Mowett, suba com o óculo e diga-me o que vê. Mr Dillon, não se esqueça daquele vigia: temos de mudá-lo de posto amanhã... se por acaso ele
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ainda for vivo amanhã! Mr Lamb, tem tudo preparado para eventuais danos causados pelos tiros?
- Tudo pronto, meu capitão - retorquiu o carpinteiro sorrindo, porque aquilo, para ele, não era um grande problema.
- Coberta! - gritou Mowett do alto do retesado velame. - Coberta! É um navio argelino! É uma galera argelina! Já abordaram o laúde! Ainda não se apoderaram dele!
Parece-me que os noruegueses estão a defender-se no pouco espaço que têm!
- Alguma coisa a barlavento? - perguntou Jack.
Durante a pausa que se seguiu, foi possível ouvir-se - uma vezes melhor, outras vezes pior, conforme os caprichos do vento - o irritante crepitar dos tiros de pistola
no navio norueguês.
- Sim, meu capitão! Uma embarcação. De aparelho latino. Ainda não se consegue ver o casco. Não consigo distingui-la claramente. Dirige-se para leste... direita a
leste, parece-me.
Jack assentiu com a cabeça, enquanto mirava de cima a baixo as suas duas baterias. Ele, que era um homem grande e corpulento, parecia ter agora o dobro do seu verdadeiro
tamanho; os seus olhos, azuis como o mar, brilhavam de uma maneira extraordinária, e no vívido rosado do seu rosto resplandecia um sorriso constante. Uma súbita
mudança parecia ter transfigurado o Sophie; com a sua nova e enorme vela mestra redonda e as gáveas imensamente ampliadas pelas varredouras, de ambos os lados das
mesmas gáveas, o Sophie, a exemplo do seu capitão, parecia ter agora o dobro do seu tamanho real enquanto rasgava velozmente os caminhos do mar.
- bom, Mr Dillon - disse -, estamos com sorte, não lhe parece?
Stephen, que os observava com curiosidade, reparou que aquela animação extraordinária também contagiara James Dillon - na realidade, toda a tripulação parecia transfigurada
por uma estranha exaltação. Perto dele, os fuzileiros verificavam as pederneiras dos seus mosquetes, e um deles polia a fivela do seu cinturão, soprando nela e esfregando-a,
e rindo-se todo feliz entre duas sopradelas cuidadosamente dirigidas.
- Sem dúvida - retorquiu James Dillon. - Não podia ter calhado melhor.
- Faça sinais para o comboio, para que vire dois graus a bombordo e reduza vela. Mr Richards, tomou nota da hora? Tem de anotar a hora exacta em que ocorrem todas
as coisas. Mas, Mr Dillon, o que é que terá dado àqueles tipos? Terão pensado que estávamos ocupados... ou que éramos cegos? bom, mas este não é o momento adequado...
Vamos abordá-los,
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evidentemente, caso os noruegueses consigam resistir o tempo suficiente. Odeio disparar contra uma galera, sejam quais forem as circunstâncias. Creio que pode distribuir
todas as pistolas e alfanges. Mr Marshall - disse ele, virando-se para o mestre, que estava no seu posto de combate, ao leme, e que era agora responsável pela navegação
do Sophie -, quero que nos deixe em posição de abordar aqueles malditos mouros. Pode largar as varredouras pequenas se o navio aguentar. - Nesse momento, o condestável
subia penosamente a escada. - Mr Day - disse Jack -, que bom vê-lo na coberta! Sente-se melhor?
- Muito melhor, meu capitão, obrigado - disse Mr Day -, graças ao cavalheiro... - e acenou na direcção de Stephen. - Deu resultado! - acrescentou, falando para o
corrimão de popa. - Achei que era melhor informá-lo de que vou ocupar o meu posto.
- Ora aí está uma bela notícia, uma belíssima notícia. Teve sorte em encontrar este médico, não acha, condestável? - disse Jack.
- Claro, claro que sim, meu capitão. Deu resultado, doutor. Deu mesmo resultado, meu capitão, até me parece um sonho! É verdade, um sonho... - disse o condestável,
fitando complacentemente o Dorthe Engelbrechtsdatter e o navio pirata, que estavam a cerca de uma milha de distância, e depois o Sophie, com todos os seus canhões
ainda quentes e acabados de carregar, com as bocas fora das portinholas e perfeitamente prontos para disparar, e todos os seus tripulantes a postos nas cobertas
desempachadas para combate.
- Estávamos nós a fazer exercícios - prosseguiu Jack, quase para si mesmo - quando aqueles cães atrevidos, remando contra o vento, se abeiraram das traseiras do
comboio tentando abocanhar o laúde. Quem se julgarão eles? E já teriam fugido com ele se o nosso bom doutor não nos tivesse chamado a atenção.
- Estou em crer que não há doutor como o nosso - disse o condestável. - bom, creio que será melhor descer agora ao paiol, meu capitão. Ainda não temos muitos cartuchos
cheios; e aposto que vai pedir-me uma quantidade deles. Ah, ah, ah!
- Meu caro amigo - disse Jack a Stephen enquanto media a crescente velocidade do Sophie e a distância que o separava do laúde envolvido na batalha; naquele estado,
em que a sua vitalidade era três vezes superior ao normal, conseguia fazer os seus cálculos na perfeição, falar com Stephen e imaginar um sem-número de variáveis,
tudo ao mesmo tempo. - Meu caro amigo, prefere ir para baixo ou ficar na coberta? Talvez fosse divertido para si ir para
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o cesto da gávea maior com os atiradores de primeira e disparar contra aqueles canalhas.
- Não, não, não - retorquiu Stephen. - Eu detesto a violência. A minha tarefa consiste em curar, e não em matar; pelo menos não em matar com premeditação, ainda
que justificadamente. Por favor, capitão, deixe-me ocupar o meu lugar, o meu posto, na cabina.
- Era dessa resposta que eu estava à espera, doutor! - disse Jack apertando-lhe a mão. - Contudo, não gostaria de ter de sugerir ao meu convidado aquilo que deveria
fazer. Será um grande consolo para os homens. Para todos nós, de facto. Mr Ricketts, indique ao doutor Maturin onde fica a cabina. E dê uma mão ao ajudante do doutor
por causa dos baús.
Uma corveta com apenas dez pés e dez polegadas de calado era muito mais obscura, húmida e mal ventilada no seu interior do que um navio de linha; contudo, no que
tocava a esses pormenores, no Sophie essa situação era surpreendentemente positiva, e Stephen teve apenas de pedir mais uma lanterna a fim de examinar e dispor os
seus instrumentos e a magra provisão de ligaduras, compressas e torniquetes. Sentou-se perto da luz, lendo cuidadosamente o Marine Practice de Northcote: "...depois
de ter cortado a pele, pedir ao mesmo ajudante que a limpe o melhor possível; depois, avançar cortando pela carne e pelos ossos circularmente". Jack apareceu, calçando
botas hessenas2 e, para além da espada, armado ainda com duas pistolas.
- Posso usar o quarto ao lado? - perguntou Stephen, após o que acrescentou em latim, para que o seu ajudante não o entendesse: - Os pacientes poderiam ficar desencorajados
se me vissem a consultar estes livros que, para mim, são a voz da autoridade.
- Claro, claro - exclamou Jack, escusando-se a decifrar o latim. - Tudo o que quiser, doutor, tudo o que quiser. vou deixar-lhe estas coisas. Vamos abordá-los, se
conseguirmos chegar até eles; bom, e também é muito possível que eles tentem abordar-nos, nunca se sabe, já que estes malditos navios argelinos costumam estar a
abarrotar de gente. Os piratas argelinos são uns selvagens sanguinários: todos eles, sem excepção - acrescentou, rindo-se a bom rir e logo desaparecendo na penumbra.
Jack estivera em baixo muito pouco tempo; contudo, quando regressou ao castelo de popa, a situação mudara já por completo. Os piratas argelinos
2 Botas enfeitadas com borlas, originalmente usadas pelas tropas do Hesse; durante a Guerra de Independência norte-americana (fins do século XVIII), muitos foram os
mercenários hessenos que combateram pela Inglaterra. (N. do T.)
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tinham-se apoderado dos comandos do láude: o navio norueguês procurava agora aproveitar o vento norte; os piratas estavam a içar a vela de verga inferior do mastro
de mezena, e era evidente que esperavam escapulir-se levando consigo o laúde. A galera encontrava-se na mesma longitude que o laúde, mas bastante longe dele; ninguém
movia os remos, nenhum dos catorze enormes remos que tinha em cada costado; a sua proa estava virada na direcção do Sophie e as suas imensas velas latinas estavam
frouxamente enrizadas - era um navio baixo, comprido, elegante, mais comprido do que o Sophie, mas muito mais leve e estreito: obviamente muito rápido e, obviamente,
habilmente comandado. Tinha um ar singularmente letal, um ar de réptil venenoso. As suas intenções eram claras: ou se envolvia em combate com o Sophie, ou então
atrasá-lo-ia o suficiente para que o laúde pudesse percorrer cerca de uma milha em busca do refúgio da noite.
A distância era agora de um pouco mais de um quarto de milha e, com o suave e constante movimento das ondas, as posições relativas estavam constantemente a mudar:
a velocidade do laúde estava a aumentar e, ao fim de quatro ou cinco minutos, o laúde encontrava-se já a sotavento da galera, enquanto esta permanecia imóvel.
Uma ligeira nuvem de fumo apareceu na proa da galera. Ouviu-se o zumbido de uma bala que passou por cima da proa, à altura dos vaus reais do mastaréu de gávea, e,
quase ao mesmo tempo, o forte estampido do canhão que a tinha disparado.
- Anote a hora, Mr Richards - disse Jack ao lívido escriturário; agora, as razões da sua palidez eram outras e os seus olhos pareciam sair das órbitas. Jack correu
para a proa, mesmo a tempo de ver o clarão produzido pelo segundo canhão da galera. com um ruído semelhante ao de uma oficina de ferreiro em plena laboração, a bala
atingiu a pata da melhor âncora de proa do Sophie, dobrou-a pelo meio e desapareceu no mar.
- Um canhão de dezoito - disse Jack ao contramestre, que se encontrava no seu posto, no castelo de proa. E acrescentou para si mesmo: "Até é possível que seja um
de vinte e quatro. Ah, se eu tivesse os meus canhões de doze!". A galera não tinha baterias nos costados, naturalmente, mas tinha canhões à proa e à popa: graças
ao óculo, Jack pôde ver que a bateria de proa consistia de dois canhões pesados, um outro mais pequeno e alguns giratórios; e o Sophie expor-se-ia sem dúvida aos
seus devastadores disparos enquanto manobrasse para a abordar. Os canhões giratórios estavam a disparar agora, produzindo um ruído atroador.
Jack regressou ao castelo de popa.
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- Silêncio de proa a popa! - gritou ele no meio dos excitados murmúrios. - Silêncio! Desamarrar os canhões! Nivelar os canhões! Tirar as tapas das bocas! Enfiar
as bocas pelas portinholas! Mr Dillon, tem de colocá-los o mais à frente possível! Mr Babbington, diga ao condestável que dispararemos em cadeia! Uma bala de dezoito libras atingiu o costado do Sophie entre os canhões número um e número três de bombordo, lançando uma chuva de grandes e pontiagudas lascas de
madeira, algumas com dois pés de comprido, que prosseguiram a sua trajectória ao longo da apinhada coberta até derrubarem um fuzileiro e chocarem contra o mastro
principal, já quase sem força. Uns lúgubres ais de dor eram a prova provada de que algumas das lascas pontiagudas tinham cumprido a sua missão; pouco depois, e a
toda a pressa, dois marinheiros levaram para baixo o seu companheiro, deixando um rasto de sangue à sua passagem.
- Os canhões estão todos a postos? - gritou Jack.
- Todos a postos, capitão! - foi a resposta depois de uma pausa ofegante.
- Primeiro a bateria de estibordo! Disparem nessa mesma direcção! Disparem alto! Disparem para os mastros! Mr Marshall, primeiro teremos de virar!
O Sophie deu uma guinada de quarenta e cinco graus, colocando um quarto do costado de estibordo de frente para a galera, que nesse preciso instante disparou mais
uma bala de dezoito libras na direcção do meio do Sophie, mesmo acima da linha de flutuação; o enorme estrondo do impacto surpreendeu Stephen Maturin, que nesse
momento aplicava uma ligadura à volta da artéria femoral de William Musgrave: por pouco não conseguia fazer o nó. Mas os canhões do Sophie já estavam apontados à galera e a bateria de estibordo disparou imediatamente duas surriadas seguidas: o mar ergueu-se em brancos penachos à volta da galera e a coberta do Sophie encheu-se com os redemoinhos do fumo acre e penetrante da pólvora. Quando disparou o sétimo canhão, Jack gritou:
"Outra vez!", e o Sophie começou a virar em redondo para a surriada de bombordo. Os redemoinhos de fumo dissiparam-se a sotavento: Jack viu a galera disparar toda
a sua bateria dianteira, pondo-se ao mesmo tempo em movimento, graças ao poder dos seus remos, para evitar o fogo do Sophie. A galera disparou alto e uma das balas
atingiu o estai do mastaréu da gávea maior, arrancando um grande pedaço de madeira do tamborete, que caiu em cima da cabeça do condestável no preciso momento em
que este assomava à escotilha principal.
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- Rápido com os canhões de estibordo! - gritou Jack. - Virar o leme!
- Queria que a corveta voltasse à sua posição anterior porque, se conseguisse disparar outra surriada de estibordo, atingiria a galera enquanto esta se movia da
esquerda para direita. Ouviu-se um estrondo abafado no canhão número quarto e um grito terrível: o servente, com a pressa, não limpara bem o canhão, e, ao introduzir
a nova carga, esta explodira-lhe na cara. Os seus companheiros levaram-no dali para fora, voltaram a limpar e a carregar o canhão e dispararam. Porém, toda a operação
fora demasiado lenta: para dizer a verdade, toda a bateria de estibordo se revelara demasiado lenta: a galera deu a volta de novo - conseguia girar como um pião,
ciando com todos aqueles remos - e estava já a afastar-se velozmente para sudoeste, com o vento pela alheta de estibordo e as suas enormes velas latinas desfraldadas
em ambos os lados, numa disposição que era conhecida pela designação "orelhas de mula". O laúde já se tinha afastado meia milha e estava agora a sueste; o seu rumo
e o do Sophie eram cada vez mais divergentes. O Sophie demorara demasiado tempo a guinar, e por isso a distância entre os dois aumentara imenso.
- Meio grau a estibordo! - disse Jack subindo à amurada de sotavento e observando com extrema atenção a galera que se encontrava quase à proa do Sophie, a pouco
mais de cem jardas, mas avançando para ele. - Desfraldar as varredouras dos joanetes! Mr Dillon, ponha um canhão na proa, por favor! Ainda temos as cavilhas de arganéu
dos canhões de doze.
Tanto quanto Jack conseguia enxergar, o Sophie não tinha causado nenhum dano à galera: disparar baixo teria significado disparar directamente para os bancos onde
se apinhavam os remadores, cristãos presos com cadeias aos remos; e disparar alto... Afastou de supetão a cabeça e o seu chapéu voou disparado pela coberta: uma
bala de mosquete procedente do navio pirata fizera-lhe um golpe na orelha. Apalpou a orelha com a mão e verificou que estava completamente dormente, para além de
sangrar muito. Desceu da amurada e esticou a cabeça de lado, para que a orelha sangrasse para barlavento, enquanto a sua mão direita protegia a sua preciosa dragona
das gotas.
- Killick! - gritou, inclinando-se por debaixo do tenso arco da vela mestra redonda de forma a não perder de vista a galera. - Traga-me uma casaca velha e outro
lenço! - Enquanto mudava de roupa, continuou a examinar atentamente a galera, que havia disparado por duas vezes com o seu único canhão de popa: ambos os disparos
tinham falhado por muito pouco. "Meu Deus, com que facilidade disparam aquele canhão de doze!", pensou. As varredouras do mastaréu de gávea estavam caçadas; a velocidade
do
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Sophie aumentou; avançava já com grande rapidez. Jack não foi o único a dar por isso, pois logo se ouviram vivas no castelo de proa, vivas que se repetiram depois
no costado de bombordo, à medida que a tripulação se ia inteirando do sucedido.
- O canhão de proa está pronto, meu capitão - disse James Dillon, sorridente. - Que lhe aconteceu? Está bem? - perguntou, reparando na mão e no pescoço ensanguentados
de Jack.
- Foi só um arranhão, nada de especial - retorquiu Jack. - Mr Dillon, que acha você desta galera?
- Estamos prestes a alcançá-la - disse Dillon; embora falasse serenamente, havia na sua voz uma exultação verdadeiramente arrebatada. Tinha ficado tremendamente
perturbado com a súbita aparição de Stephen Maturin, e embora as inúmeras obrigações do presente o impedissem de proceder a uma reflexão consistente, o certo é que
a sua mente, lá muito no fundo, estava cheia de preocupações não-expressas, de uma angústia indizível, de obscuras sombras de incoerentes pesadelos: e foi com uma
expressão profundamente anelante que atentou no tumulto que reinava na coberta da galera argelina.
- Está a abafar as velas - disse Jack. - Veja-me bem este vilão manhoso! Vá para junto da escota da vela mestra. Veja, veja com o meu óculo!
- Não, meu capitão. De maneira nenhuma - retorquiu Dillon fechando irritado o óculo.
- bom - disse Jack -, bom... - Uma bala de doze libras passou através das varredouras pequenas de estibordo do Sophie. fazendo dois buracos, exactamente um atrás
do outro, e zumbiu a três ou quatro pés de Jack e Dillon, uma mancha perfeitamente visível, roçando mesmo a caixa onde os tripulantes guardavam as redes de dormir.
- Bastar-nos-ia ter um ou dois dos seus artilheiros. Não precisávamos de mais - observou Jack. - Topo de mastro! - gritou.
- Meu capitão? - retorquiu a longínqua voz.
- Que se passa com o navio a barlavento?
- Está a arribar, capitão, e dirige-se para a ponta do comboio. Jack assentiu com a cabeça.
- Que os capitães dos canhões de proa e os sargentos de artilharia tratem de carregar o canhão de proa. Eu próprio dispararei.
- Pring morreu, meu capitão - anunciou Dillon. - Outro capitão?
- Sim, Mr Dillon, arranje outro. Dirigiu-se para a proa.
- Vamos apanhá-los, meu capitão? - perguntou um marinheiro de
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cabelo grisalho, um dos membros do destacamento de abordagem, com aquela agradável familiaridade que é característica dos momentos de crise.
- Assim espero, Cundall, assim espero - retorquiu Jack. - Pelo menos apanhá-los-emos com os nossos disparos.
"Cão maldito!", disse para si mesmo enquanto observava pela mira a coberta da galera argelina. Sentiu o início do movimento ascendente das ondas sob a ponta da quilha,
baixou rapidamente a mecha até ao ouvido, ouviu o assobio, um estrondo ensurdecedor, e, por fim, o guincho da carreta quando o canhão deu o coice.
"Hurra! Hurra!", gritaram os homens no castelo de proa. O disparo fizera apenas um buraco na vela principal da galera, na parte central, mas era a primeira vez que
acertavam no inimigo. Mais três disparos; e ouviram um ruído metálico na popa da galera.
- Continue, Mr Dillon - disse Jack endireitando-se. - Passe-me o óculo.
O sol estava tão baixo agora que era difícil ver alguma coisa com o óculo; protegeu-o com a outra mão e concentrou toda a sua atenção nas duas figuras com turbantes
vermelhos que se encontravam por detrás do canhão de popa da galera. Uma bala de mosquetão atingiu o guarda-gurupés de estibordo do Sophie e Jack ouviu um marinheiro
romper num verdadeiro rosário de furibundas obscenidades. "Coitado do John Lakey, aconteceu-lhe uma coisa horrível", disse uma voz baixa, perto dele. "Acertaram-lhe
nos tomates". Ao seu lado, o canhão disparou de novo; porém, antes que o fumo o impedisse de ver a galera, já tinha tomado uma decisão. A galera argelina estava
a abafar as suas velas, ou seja, afrouxando as escotas para que as velas, aparentemente inchadas, não puxassem com toda a sua força: era por isso que o pobre, velho,
gordo e pesado Sophie, navegando furiosamente e correndo o risco de perder toda a mastreação, se aproximava a pouco e pouco da elegante, esbelta e mortífera galera.
O navio argelino estava a tentar enganá-lo
- de facto, a galera poderia fugir em qualquer momento. Para quê? Para que o Sophie se afastasse da sua posição a sotavento do laúde, precisamente, e assim a galera
poderia tentar destruir a sua mastreação, alvejando-o à vontade (pois mantinha-se à deriva) e apresando-o também. E também para levar o Sophie para sotavento do
comboio, de tal forma que aquela embarcação a barlavento poderia apoderar-se rapidamente de meia dúzia dos seus membros. Virou a cabeça para a esquerda a fim de
dar uma olhadela ao laúde. Mesmo que este virasse, conseguiriam apanhá-lo com uma única bordada, porque o laúde era muito lento - não tinha gáveas e, portanto, não
dispunha
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de joanetes -, muito mais lento do que o Sophie. Mas não conseguiria alcançá-lo em pouco tempo com aquele rumo e aquela velocidade, a menos que rumasse a barlavento,
bordada atrás de bordada, aproveitando a escuridão iminente. Não, não daria resultado. O seu dever era bem claro: teria de fazer uma escolha profundamente desagradável,
como sempre. E chegara o momento de tomar uma decisão.
- Fogo amplo! - disse, quando o canhão se pôs em movimento. - Bateria de estibordo: preparados! Sargento Quinn, ocupe-se dos homens com armas ligeiras. Quando eles
estiverem completamente de través, apontar à cabina, por detrás dos bancos dos remadores, muito baixo. Disparem à voz de comando! - Ao virar-se para regressar ao
castelo de popa, olhou de relance para o rosto de James Dillon, enegrecido pela pólvora, e detectou uma expressão que, se não era de raiva ou de algo pior, seria
pelo menos de amarga contrariedade. - Aos braços! - gritou, pensando que, quando tivesse tempo para tal, elucidaria o mistério daquela expressão. - Mr Marshall,
rume na direcção do laúde! - Ouviu os protestos da tripulação - um "Ah!" generalizado de decepção - e acrescentou: - Virar em redondo a toda a força!
"Apanhá-los-emos desprevenidos e dar-lhes-emos uma tal lição que nunca mais se hão-de esquecer do Sophie", acrescentou para si mesmo, agora que estava atrás de um
canhão de quatro libras de estibordo. Àquela velocidade, o Sophie virava com rapidez: Jack agachou-se, meio-curvado e sem respirar, todo o seu ser concentrado no
reluzente cano de bronze e no imenso mar para além dele. O Sophie virou e virou; os remos da galera começaram a mover-se com fúria, agitando as águas, mas já era
demasiado tarde. Um décimo de segundo antes que a galera estivesse de través, e imediatamente antes que o Sophie chegasse a meio do seu movimento descendente, Jack
gritou "Fogo!" e a bateria do Sophie disparou com a mesma determinação que um navio de linha, ao mesmo tempo que todos os mosquetes que havia a bordo disparavam
também. O fumo dissipou-se e a tripulação desatou aos vivas e aos hurras, pois havia um buraco enorme no costado da galera e os mouros corriam desvairadamente de
um lado para o outro. Pelo seu óculo, Jack pôde ver o canhão de popa desmontado e vários corpos jazendo na coberta: mas o milagre não se tinha produzido - não conseguira
arrancar-lhe o leme, nem lhe tinha feito buracos catastróficos sob a linha de flutuação. Contudo, já não esperava que a galera causasse mais problemas, pelo que
toda a sua atenção se virava agora para o laúde.
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- bom, doutor - disse Jack ao chegar à cabina -, como é que vão as coisas?
- Bastante bem, obrigado. A batalha começou de novo?
- Não, doutor, foi apenas um disparo que atravessou a proa do laúde. A galera fugiu por sudoeste e encontra-se já tão longe que nem se lhe vê o casco. Dillon acaba
de descer a um bote para libertar os noruegueses. Os mouros penduraram uma camisa branca em sinal de rendição. Malditos bandidos!
- Ora aí está uma bela notícia, capitão! É que é impossível coser em condições as feridas com as sacudidelas provocadas pelo movimento dos canhões. Posso ver a sua
orelha?
- Não vale a pena, doutor, não é nada de grave. Foi só uma bala de mosquete que roçou por ela. Como estão os seus pacientes?
- Julgo que poderei resolver satisfatoriamente quatro ou cinco casos. Aquele homem com uma incisão terrível na coxa, disseram-me que tinha sido uma lasca de madeira:
será possível?
- Ah sim, sem dúvida, doutor. Uma lasca de carvalho, grande e pontiaguda, voando a toda a velocidade pelo ar, pode rasgar um músculo de maneira assombrosa. Acontece
frequentemente.
- Esse homem reagiu extremamente bem; socorri também aquele homem que se queimou; coitado, como ele ficou! Sabe que o calcador da pólvora se cravou na parte superior
do bíceps e que por pouco não afectou o nervo cubital? Mas não posso tratar o condestável aqui em baixo, quer dizer, com tão pouca luz é impossível tratá-lo.
- O condestável? Que se passa com ele? Pensei que o tinha curado!
- E curei mesmo. Curei-o de uma violenta prisão de ventre auto-induzida, o caso de prisão de ventre mais sério que pude ver em toda a minha vida. E tudo porque o
condestável consumia quina como quem come pão, obviamente sem qualquer orientação médica. Mas o que ele tem agora é uma fractura deprimida do crânio e vou ter de
usar a trefina. Olhe, capitão, ali está ele: repare no estertor característico; julgo que aguentará até amanhã de manhã. Porém, logo que amanhecer, terei de lhe
abrir o crânio com a minha serrinha. Poderá ver o cérebro do condestável, meu caro amigo - acrescentou o doutor com um sorriso. - Ou pelo menos a sua dura mater.
- Deus do céu! - murmurou Jack. Começava a sentir uma profunda
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depressão, o anticlímax, uma batalha tão insignificante e por tão pouco: dois bons marinheiros mortos. O condestável por certo não aguentaria, nenhum homem conseguiria
sobreviver depois de lhe abrirem o cérebro, isso era mais do que evidente... E os outros... bastaria uma coisa de nada para que morressem, como tantas vezes acontecia.
E não conquistara a galera unicamente por causa do maldito comboio: aquele jogo só admitia dois jogadores, não mais.
- Mas o que é que se passará agora? - exclamou, ao ouvir um clamor que vinha da coberta.
- Estão a passar-se coisas muito estranhas a bordo do laúde, meu capitão - informou o mestre logo que Jack chegou ao castelo de popa; pouco conseguiam ver, pois
o sol estava a pôr-se. O mestre era originário do Norte (de Orkney ou Shetland) e, fosse por essa razão, fosse por algum defeito natural na fala, tinha um acento
muito peculiar que se tornava mais evidente em momentos de crise. - Quer-me parecer que aqueles malditos sodomitas andam outra vez a fazer das suas.
- Mr Marshall, vamos abordar o laúde. O destacamento de abordagem vem comigo!
O Sophie agarrunchou as vergas para evitar mais danos e manobrou o velacho de forma a que o navio deslizasse suavemente, aproximando o seu costado do do laúde. Jack
agarrou-se à mesa das enxárcias no costado do laúde norueguês e saltou pela destroçada rede de abordagem, seguido por um grupo de aspecto feroz e sinistro. Sangue
na coberta: três corpos; cinco mouros muito pálidos, comprimidos contra o anteparo da cabina de tombadilho de ré, sob a protecção de James Dillon; Alfred King, o
negro mudo, com um machado de abordagem na mão.
- Levem os prisioneiros - disse Jack. - Fechem-nos no porão da proa. O que é que se passou, Mr Dillon?
- Não consigo entendê-lo bem, meu capitão, mas creio que os prisioneiros atacaram King na entrecoberta.
- Foi isso que aconteceu, King?
O negro continuou a mirar tudo à sua volta com um olhar feroz - os seus companheiros agarravam-no pelos braços. Jack ficou na mesma: aquela reacção podia significar
tudo e nada.
- Foi isso que aconteceu, Williams? - perguntou Jack.
- Não sei, meu capitão - retorquiu Williams com um olhar vidrado, levando a mão ao chapéu.
- Foi isso que aconteceu, Kelly?
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- Não sei, meu capitão - respondeu Kelly, exactamente com o mesmo olhar, mas benzendo-se.
- Onde está o mestre do laúde, Mr Dillon?
- Meu capitão, parece que os mouros os atiraram todos ao mar.
- Santo Deus! - exclamou Jack. No entanto, não se tratava de um facto invulgar. Gritos de raiva indicaram-lhe que a notícia já tinha chegado ao Sophie. - Mr Marshall
- disse ele, aproximando-se da amurada -, tome conta dos prisioneiros. Não tolerarei nenhum disparate. - Observou a coberta e a enxárcia de uma ponta à outra: poucos
danos. - Mr Dillon, você vai levar o laúde até Cagliari - disse ele em voz baixa, profundamente impressionado com a selvajaria dos piratas. - Leve todos os homens
que forem precisos.
Voltou para o Sophie com uma expressão extremamente grave. Contudo, ao fim de um minuto no castelo de popa, ouviu uma mesquinha e infame voz interior: "Nesse caso...
nesse caso o laúde é uma presa! Repara bem, a operação não foi um simples resgate!". Silenciou de imediato aquela estranha voz, chamou o contramestre e deu início à inspecção do brigue, decidindo por que ordem se fariam as reparações mais urgentes. O Sophie sofrera muitos danos, apesar da brevidade do combate, um combate em
que não se tinham disparado mais de cinquenta tiros - o Sophie era agora um bom exemplo do que uma artilharia potente podia fazer no mar. O carpinteiro e dois dos
seus ajudantes trabalhavam agora em andaimes, na parte exterior do costado, procurando tapar um buraco muito perto da linha de flutuação.
- Não consigo chegar-me a ele em condições, meu capitão - disse Mr Lamb em resposta ao inquérito de Jack. - Estamos quase a afogar-nos e mesmo assim não conseguimos
tapá-lo. Não com a corveta nesta posição.
- vou virar para que possa trabalhar, Mr Lamb. Mas avise-me logo que o buraco esteja tapado. - Olhou de relance para o laúde, que ocupava de novo o seu lugar no
comboio: virar significaria afastar-se do laúde, e o laúde, curiosamente, convertera-se em algo de muito querido para ele. "Carregado de mastros, carvalho de Stettin,
estopa, alcatrão de Estocolmo, cordame", prosseguiu, ansiosa, a importuna voz interior. "É muito capaz de valer duas ou três mil, ou mesmo quatro...". - Sim, Mr
Watt, com certeza - disse ele em voz alta. Subiram ao cesto da gávea maior e examinaram o tamborete danificado.
- O bocado de madeira que falta foi o mesmo que deixou o pobre Mr Day fora de combate - disse o contramestre.
- Ah... com que então foi isso! Um bocado, não, Mr Watt, um bocadão!
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Mas não devemos perder a esperança. O doutor Maturin vai fazer-lhe... vai fazer-lhe uma coisa extraordinária com uma serra, logo que amanheça. Precisa de luz para
o fazer, de luz e de uma perícia invulgar, lá isso é verdade.
- Ah, sim, meu capitão, perícia não deve faltar ao nosso médico! exclamou o contramestre calorosamente. - Deve ser uma pessoa muito inteligente, quanto a isso não
há dúvida. Os homens estão muito contentes com ele. "Que bem que o doutor cortou a perna ao Ned Evans!", dizem. "E que bem que ficaram cosidas as partes íntimas
do John Lakey; para além de tudo o mais. Porque, no fim de contas, o doutor, por assim dizer, nem sequer está de serviço, é mais um convidado".
- É verdade, Mr Watt - disse Jack. - De facto, aquilo que o doutor Maturin está a fazer revela uma enorme generosidade. bom, vamos precisar de uma espécie de trinca,
Mr Watt, até que o carpinteiro possa tratar do tamborete. As espias terão de estar o mais tensas possível. E que Deus nos ajude se tivermos de arriar os mastaréus
da gávea!
Examinaram mais uma meia dúzia de casos e Jack desceu à sua cabina, parando por um momento para examinar o comboio - muito ordenado e compacto agora, depois do susto.
Ao afundar-se nas almofadas que havia sobre os armários, deu consigo a dizer "Há três", pois a sua mente estava toda atarefada a calcular três oitavos de três mil
e quinhentas libras, que este era o valor que tinha fixado para o Dorthe Engelbrechtsdatter. Porque três oitavos (menos um oitavo, que ia para o almirante) era a
parte a que tinha direito. Contudo, naquele momento, não era ele o único que estava a fazer contas de cabeça, pois todos os tripulantes que estavam inscritos nos
livros do Sophie tinham direito a receber alguma coisa - Dillon e o mestre, um oitavo entre os dois; o cirurgião (se o Sophie tivesse algum cirurgião oficialmente
inscrito nos seus livros), o contramestre, o carpinteiro e os ajudantes do mestre, outro oitavo; os guarda-marinhas, os oficiais inferiores e o sargento receberiam
outro oitavo; e o oitavo restante seria dividido entre os demais tripulantes. E era assombroso ver com que agilidade - uma agilidade de tesoureiro - aquelas mentes
tão pouco acostumadas a conceitos abstractos manejavam aqueles números, aqueles símbolos, fazendo as contas duas e três vezes para eliminarem qualquer hipótese de
erro - e obtendo por fim a soma correcta até ao mais ínfimo vintém. Jack pegou num lápis para fazer as contas, sentiu-se envergonhado por ter essa ideia, largou
o lápis, hesitou, voltou a pegar no lápis, e por fim escreveu uns números muito pequenos, na diagonal e na ponta de uma folha, afastando rapidamente o papel mal
ouviu baterem à porta. Era o carpinteiro, ainda molhado, que vinha informá-lo de
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que os buracos estavam tapados e de que na arca da bomba não havia mais do que dezoito polegadas de água, "o que nem sequer chega a metade do que eu estava à espera,
com o brutal canhonaço que a galera disparou e ainda por cima tão baixo". Fez uma pausa, olhando de soslaio para Jack de um modo muito estranho.
- bom, são óptimas notícias, Mr Lamb - disse Jack após um momento.
Mas o carpinteiro não se mexia; ficou onde estava, molhando os quadrados de lona pintados, acabando mesmo por fazer uma pequena poça. Até que, de repente, rebentou:
- bom, se é verdade o que aconteceu com o laúde e se os pobres noruegueses foram lançados ao mar, talvez mesmo os feridos, que é uma coisa que me deixa fora de mim,
porque, francamente, é um acto de pura crueldade... Que mal é que eles podiam fazer se os tivessem preso no porão? Seja como for, os suboficiais do Sophie gostariam
que o cavalheiro - e apontou com a cabeça para a parte da cabina onde Stephen Maturin se tinha instalado provisoriamente - repartisse com eles a parte que lhes cabe,
nada mais justo, em sinal de reconhecimento pela... pela sua conduta, porque todos os homens, sem excepção, acham que o doutor teve uma atitude digna dos maiores
louvores.
- Por favor, meu capitão - disse Babbington -, o laúde está a fazer sinais.
Jack viu a bandeira multicolor que Dillon tinha içado - obviamente, a única bandeira que restava no Dorthe Engelbrechtsdatter - e que, entre outras coisas, indicava
que havia doentes a bordo e que estava prestes a zarpar.
- Todos a virar em redondo! - gritou. E quando o Sophie se encontrava à distância de um cabo do comboio, gritou: - Ó de bordo!
- Meu capitão - respondeu a voz distante de Dillon -, tenho uma boa notícia! Os noruegueses estão todos a salvo.
- O quê?
- Os - noruegueses - estão - todos - a - salvo. - Os dois navios aproximaram-se mais. - Estavam escondidos num local secreto no porão de vante. - E repetiu: - ...no
porão de vante.
- Ah!, no porão de vante - murmurou o timoneiro; é que o Sophie, naquele momento, era todo ouvidos: caíra sobre o navio um silêncio sepulcral.
- A todo o pano! - exclamou Jack furioso ao ver as gáveas tremendo por causa das emoções do timoneiro. - Mantenha-o a todo o pano!
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- Está a todo o pano, meu capitão.
- E o mestre pergunta - continuou a voz distante de James Dillon se podemos mandar um médico a bordo, porque um dos seus homens se feriu num dedo do pé quando descia
a escada.
- Diga ao mestre, da minha parte - gritou Jack com um vozeirão que quase chegava a Cagliari e com a cara vermelha do esforço e da profunda indignação que sentia
-, diga ao mestre que pegue no dedo do pé do tripulante e que o... ele sabe!
Regressou meio-aturdido à cabina. Acabava de perder 875 libras e a sua expressão não poderia revelar maior azedume e descontentamento.
No entanto, essa não era uma expressão frequente em Jack, nem tão-pouco uma expressão que durasse muito tempo; e quando entrou no cúter que o levaria à nau-capitânia
no ancoradouro de Génova, o rosto de Jack Aubrey recuperara já a sua jovialidade natural. Era uma expressão solene, evidentemente, pois uma visita ao formidável
Lorde Keith, Admiral of the Bine e comandante-em-chefe da Armada Real Inglesa no Mediterrâneo, não era coisa para menos. E a sua solenidade, quando se sentou no
paneiro do cúter, brilhando de asseio, a barba muito bem feita, o uniforme resplandecente, acabou por afectar o timoneiro e os tripulantes, que remavam vagarosamente,
mantendo os olhos fixos no homem que transportavam. Fosse como fosse, chegariam à nau-capitânia antes da hora marcada, e Jack, depois de consultar o relógio, pediu-lhes
que dessem a volta ao Audacious e parassem. Dali podia ver toda a baía, com quatro fragatas e cinco navios de linha a duas ou três milhas de distância da costa e,
por detrás deles, mais perto de terra, um enxame de canhoneiras e navios com morteiros; bombardeavam sem cessar a esplêndida cidade, que se erguia nas escarpas de
uma ampla curva ao fundo da baía - navios rodeados por uma nuvem de fumo que eles próprios produziam depois de lançarem bombas contra os apinhados edifícios na parte
oposta do longínquo molhe. Ao longe, os barcos pareciam pequenos; palácios, igrejas e casas pareciam ainda mais pequenos (embora perfeitamente visíveis naquele ar
suave e transparente), como se fossem brinquedos; porém, o incessante fragor dos disparos e a contundente resposta da artilharia
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francesa, que se encontrava em terra, pareciam estranhamente próximos, reais e ameaçadores.
Passaram os dez minutos que faltavam para a hora da sua visita; o cúter aproximou-se da nau-capitânia; e, ao grito de "Ó do barco!", o timoneiro respondeu "Sophie!",
o que significava que o seu capitão estava a bordo. Jack subiu pelo costado, saudou os oficiais do castelo de popa, cumprimentou o capitão Louis e foi conduzido
à cabina do almirante.
Tinha todas as razões para estar satisfeito consigo mesmo - escoltara o seu comboio até Cagliari sem quaisquer perdas; acompanhara outro comboio a Livorno; e agora
estava ali exactamente à hora marcada, apesar de não haver vento por alturas de Monte Cristo. No entanto, estava extremamente nervoso e não fazia outra coisa senão
pensar em Lorde Keith; por isso, quando viu que não havia nenhum almirante naquela bela cabina espaçosa e cheia de luz, mas apenas uma mulher jovem e bem feita,
de costas viradas para a janela, ficou positivamente pasmado.
- Jacky, meu querido! - disse a jovem. - Que bonito que está, que bem que lhe fica o uniforme! Deixe-me dar-lhe um jeito no lenço do pescoço. Ah, Jacky, que assustado
que está! Até parece que eu sou um francês!
- Queeney! Minha querida Queeney! - exclamou Jack, abraçando-a e dando-lhe um carinhoso e sonoro beijo.
- Que Deus os amaldiçoe e os mande para o Inferno, cambada de moles! - exclamou uma voz furiosa com acento escocês e logo o almirante entrou na cabina, vindo da
galeria. Lorde Keith era um homem alto, moreno, com uma bela cabeça leonina, e os seus olhos disparavam chispas da mais pura raiva.
- Este é o jovem de quem lhe falei, almirante - disse Queeney, dando um último jeito ao lenço preto de Jack, que ficara de súbito muito pálido e que só agora dava
pela aliança que Queeney tinha no dedo. - Eu costumava dar-lhe banho e levá-lo para a minha cama quando ele tinha pesadelos.
Esta não seria por certo a melhor das recomendações para um almirante recém-casado e já perto dos sessenta anos, mas parecia ter dado resultado.
- Oh, esqueci-me por completo! - exclamou o almirante. - Perdoe-me. É que tenho tantos e tantos capitães sob o meu comando e alguns deles, francamente, alguns deles
não passam de uns miseráveis devassos...
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- "E alguns deles, francamente, alguns deles não passam de uns miseráveis devassos...", disse-me ele, trespassando-me com aquele olhar terrivelmente frio que ele
tem - contou Jack, enchendo o copo de Stephen enquanto se reclinava confortavelmente sobre as almofadas. - E eu estava praticamente certo de que ele me tinha reconhecido,
pois já me tinha visto em três ocasiões, qual delas a pior... A primeira foi no Cabo da Boa Esperança, a bordo do velho Reso, quando eu era guarda-marinha: ele era
então o capitão Elphinstone. Subiu a bordo apenas dois minutos depois de o capitão Douglas me ter baixado de posto e, ao ver-me todo choroso, perguntou ao capitão
Douglas: "Por que é que este miúdo está todo ranhoso de tanto chorar?". E o capitão Douglas respondeu-lhe: "Este miúdo é um devasso de primeira,-apesar da sua pouca
idade; baixei-o de posto para que ele aprenda qual é o seu dever".
- E será essa a melhor maneira de aprender? - perguntou Stephen.
- bom, essa é a maneira mais fácil de ensinar um rapaz a respeitar as normas - retorquiu Jack com um sorriso. - Mas há outras maneiras: podem amarrar um miúdo a
um gradeamento no portaló e açoitá-lo até perder os sentidos... Mas a principal medida é rebaixar de posto o guarda-marinha, ou seja, o guarda-marinha deixa de ser
considerado um cadete e passa a ser tratado como um simples marinheiro de segunda. De facto, converte-se num marinheiro de segunda; dorme e come com eles; e, para
além dos açoites, qualquer um dos seus superiores lhe pode bater, basta que tenha uma vara na mão... Nunca pensei que o capitão Douglas fosse capaz de me rebaixar
de posto, apesar de me ter ameaçado bastantes vezes; é que ele era amigo do meu pai e eu pensava que seria benevolente comigo, e de facto foi. A verdade é que me
rebaixou mesmo de posto: e só me restituiu o posto de guarda-marinha seis meses depois. No fim de tudo, fiquei-lhe imensamente grato, porque, daquela forma, pude
conhecer a coberta inferior de uma ponta à outra e, de um modo geral, todos os homens foram extremamente amáveis comigo. Porém, quando o capitão Douglas me comunicou
o castigo, desatei a berrar que nem um bezerro, chorava que nem uma rapariga! Ah, ah, ah!
- E por que razão tomou o capitão Douglas uma medida tão drástica?
- Ah, creio que foi por causa de uma rapariga, uma rapariga negra chamada Sally - respondeu Jack. - Ela vinha num daqueles botes que vêm vender coisas aos navios
e eu escondi-a no paiol dos cabos. Mas eu já havia tido problemas com o capitão Douglas por outras razões: por desobediência, a maior parte das vezes, e também porque
eu demorava muito tempo a levantar-me, ou porque faltava ao respeito ao mestre-escola (tínhamos um mestre-escola a
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bordo, um tal Pitt, que era um bêbedo de primeira), ou, enfim, por uma infinidade de ninharias. Depois, a segunda vez que Lorde Keith me viu foi no Hannibal, era.
eu o quinto a bordo e o nosso primeiro-tenente era um miserável de um imbecil, um tal Carrol: se há coisa que odeie mais do que estar em terra, é estar sob as ordens
de um indivíduo que, além de imbecil, não entende nada de marinhagem. Ofendeu-me tanto, e tão deliberadamente, por uma questão de disciplina perfeitamente trivial,
que me vi forçado a perguntar-lhe se queria encontrar-se comigo fora do navio. Isso era precisamente o que ele queria: correu a contar ao capitão que eu o tinha
desafiado. O capitão Newman achou que era um disparate, mas acrescentou que eu teria de pedir desculpa. Mas eu não podia fazer isso, porque não havia nada de que
pedir desculpa, pois quem tinha razão era eu. E foi assim que tive de ir prestar contas perante uma dúzia de capitães e dois almirantes, um dos quais era Lorde Keith.
- Que aconteceu?
- Insolência: fui oficialmente repreendido por insolência. Depois, a terceira vez... mas não vou entrar em pormenores - disse Jack. - É curioso, muito curioso...
- prosseguiu, olhando pela janela de popa com uma expressão de sincero assombro - ...prodigiosamente curioso, mas creio que não deve haver muitos homens que sejam
simultaneamente imbecis e maus marinheiros. Quer dizer, homens sem valor nenhum e que consigam chegar a um posto elevado na Armada Real Inglesa. Mas que os há, há.
De facto, eu servi sob as ordens de pelo menos dois desses homens... E, da segunda vez, cheguei mesmo a pensar que estava definitivamente arrumado, com a carreira
destruída, a carreira e a vida... enfim, irremediavelmente condenado. Passei oito meses em terra, tão melancólico como aquele tipo daquela peça, como é que se chama?
bom, não interessa... Ia à cidade sempre que me podia dar a esse luxo, ou seja, não muitas vezes, e esperava horas a fio naquela maldita sala de espera do Almirantado.
Cheguei de facto a pensar que nunca mais voltaria ao mar: seria um tenente com meio soldo para o resto da vida. Se não tivesse o violino e a caça à raposa (quando
conseguia arranjar um cavalo, é claro), acho que me teria enforcado. Creio que foi nesse Natal que vi Queeney pela última vez. Ou talvez a tenha visto uma vez em
Londres, algum tempo depois.
- É sua tia? Prima?
- Não, não. Não somos parentes. Mas fomos criados praticamente juntos. Ou melhor, ela é que quase me criou a mim. Lembro-me sempre dela, não como uma criança pequena,
mas como uma rapariga já crescida, embora
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a nossa diferença de idades não seja superior a. dez anos. Uma rapariga maravilhosa! A família dela vivia numa propriedade chamada Damplow, ao lado da nossa, e a
casa deles dava para o nosso jardim. E creio que, depois da morte da minha mãe, passava tanto tempo em casa deles como na minha. Tanto não, mais - disse Jack, com
um ar pensativo, erguendo os olhos para a bússola. - Conhece o doutor Johnson3? O autor do Dicionário Johnson
- Claro que conheço! - exclamou Stephen com uma estranha expressão. - O mais respeitável, o mais admirável dos autores modernos. Discordo de tudo o que ele diz,
excepto quando fala da Irlanda, mas devo dizer que nutro por ele uma grande admiração; e a sua biografia de Savage é um livro magnífico. O mais curioso é que ele
apareceu num sonho que tive há menos de uma semana, o sonho mais vívido, tão vívido que parecia real, que tive em toda a minha vida! Não deixa de ser estranho que
se tenha referido a ele poucos dias depois desse meu sonho.
- Sim, de facto é estranho... Pois o doutor Johnson era um grande amigo da família de Queeney, quer dizer, antes de a mãe de Queeney fugir para se casar com um italiano,
um papista. Queeney ficou extremamente abalada com a perspectiva de ter um padrasto papista. Recusou-se sempre a conhecê-lo. "Tudo menos um papista", dizia ela.
"Garanto que preferia mil vezes ter o negro Frank4 por padrasto". De maneira que nesse ano queimámos treze Guy Fawkes. Deve ter sido em 1783 ou 1784, pouco depois
da Batalha dos Santos. Depois do sucedido, instalaram-se em Damplow mais ou menos definitivamente, quer dizer, instalaram-se as raparigas e uma prima velha. A minha
querida Queeney... Acho que já lhe tinha falado dela, não tinha? Foi ela que me ensinou Matemática.
- Sim, creio que sim: também estudava Hebreu, se bem me lembro...
- Exactamente. Uma excelente professora: com ela, era facílimo entender tanto as secções cónicas como o Pentateuco. A minha querida Queeney... Pensava que ficaria
solteira, apesar de ser tão bonita; de facto, que homem quereria casar com uma rapariga que sabia hebreu? E era uma pena: uma jovem tão meiga e tão doce deveria
ter um monte de filhos. Mas a verdade é que acabou por se casar com o almirante, de maneira que tudo acabou em bem, embora... embora o almirante seja... enfim...
um homem já muito entrado: tem
3 Doutor Johnson: Samuel Johnson (1709-1784), escritor inglês. Em 1744 publicou Life of Savage, biografia do seu amigo Richard Savage, a seguir citada no texto.
Em 1755 publicou o Dictionary ofthe English Language, referido por Jack Aubrey. (N. do T.)
4 O negro Frank: Francis Barber, o criado negro do doutor Johnson. (N. do T.)
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o cabelo todo branco, anda pela casa dos sessenta, julgo eu. Acha que... enfim, como doutor, o que é que acha? Quer dizer, será possível...?
- Possibilissima.
- Ha?
- Possibile è Ia cosa, e naturale - cantou o doutor num tom rouco e chiado, completamente diferente do tom em que costumava falar e que não era de todo desagradável.
- E se Susanna vuol, possibilissima - acrescentou ele num tom desafinado, mas não tanto que não fosse possível reconhecer Fígaro5.
- Deveras?! Deveras?! - perguntou Jack com extremo interesse. Após um momento de reflexão, acrescentou: - Podíamos tentar um dueto, doutor, improvisando... Ela juntou-se
a ele em Livorno. E eu que pensava que tinham sido os meus méritos, finalmente reconhecidos, e as honrosas feridas sofridas em combate - e riu-se a bom rir - a causa
única da minha promoção! Agora não tenho a menor dúvida de que tudo se ficou dever a Queeney. Ah, mas ainda não lhe contei o melhor, e isso devo-o também a ela,
é mais que certo. Vamos fazer um cruzeiro de seis semanas pelas costas francesa e espanhola, até ao Cabo de La Não!
- Ah sim? E isso é bom?
- Se é bom? É óptimo! Acabaram-se as escoltas! Deixamos de estar presos àquele bando de sonsos e velhacos, àqueles desprezíveis navios mercantes que se arrastam
que nem lesmas pelo mar! Os franceses e os espanhóis, o seu comércio, os seus portos, as suas cargas: esses serão os nossos objectivos. Lorde Keith salientou a extrema
importância de todas as acções que tenham por fim aniquilar o comércio francês e espanhol. De facto, pôs muita ênfase neste assunto, disse que era uma tarefa tão
importante como as grandes acções da frota, para além de ser muito mais proveitosa. O almirante chamou-me à parte e fez-me um longo discurso acerca desta questão,
pois Lorde Keith é sem dúvida um comandante extremamente perspicaz; não é um Nelson, obviamente, mas é uma criatura invulgarmente brilhante. Ainda bem que Queeney
se casou com ele. E não estamos sob as ordens de ninguém, o que é estupendo! Não terei nenhum palhaço careca a dizer-me, "Jack Aubrey, deve seguir para Livorno com
estes porcos para a frota", acabando com todas as esperanças de conseguir uma presa. Ah, o dinheiro que se obtém com as presas! - exclamou, sorrindo e batendo na
coxa; e o fuzileiro
5 As Bodas de Fígaro, de Mozart: frase de um recitativo do início do II Acto. (N. do T.)
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que estava de sentinela à porta da cabina, e que tinha estado a escutar a conversa com toda a atenção, também sorriu enquanto aquiescia com a cabeça.
- Dá assim tanto valor ao dinheiro? - perguntou Stephen.
- Amo-o apaixonadamente - retorquiu Jack, e o tom da sua voz não podia ser mais sincero. - Sempre fui pobre, doutor, e anseio ser rico.
- Nada mais justo - comentou o fuzileiro que estava de sentinela.
- O meu querido pai também foi pobre toda a vida - prosseguiu Jack.
- Mas tão generoso como um dia de Verão! Dava-me cinquenta libras por ano quando eu era guarda-marinha, e naquele tempo cinquenta libras eram uma soma considerável...
ou teria sido, se ele tivesse conseguido persuadir Mr Hoare a pagá-la após o primeiro trimestre. Santo Deus! O que eu sofri no velho Reso: contas do rancho, lavandaria,
os uniformes que iam ficando pequenos!... Claro que adoro dinheiro! Mas creio que é melhor irmos andando, acabam de soar as duas badaladas.
Jack e Stephen tinham sido convidados a jantar na câmara dos oficiais, onde os esperava o leitão comprado em Livorno. Penetraram na penumbra da câmara e James Dillon,
o mestre, o tesoureiro e Mowett deram-lhes as boas-vindas; a câmara dos oficiais não tinha janelas de popa, nem janelas de guilhotina, apenas uma pequena clarabóia
mesmo em frente; as peculiaridades da construção do Sophie faziam com que a cabina do capitão fosse bastante ampla (ou mesmo luxuosa, se fosse possível cortar um
nada as pernas ao capitão), pois a corveta estava livre dos canhões habituais; em contrapartida, a câmara dos oficiais ficava num nível inferior ao da coberta superior
e assentava numa espécie de saliência plana, não muito diferente de uma coberta inferior.
De início, o jantar revelou-se demasiado formal e cerimonioso - apesar de iluminado por um esplêndido candelabro bizantino que Dillon encontrara numa galera turca
- e regado por um vinho invulgarmente bom, ou mesmo notável, pelos padrões da Marinha, pois Dillon era um indivíduo abastado. Toda a gente se comportava o melhor
possível, assumindo uma atitude tão rígida quanto artificial: Jack teria de dar o tom, como ele muito bem sabia: esperavam isso dele, era um privilégio seu. Contudo,
aquele género de deferência, o interesse com que todos escutavam cada comentário seu, obrigava a que as palavras proferidas fossem dignas da atenção que suscitavam
- uma situação particularmente fatigante para um homem acostumado a um tipo de conversação normal, despreocupada, com constantes interrupções, contradições e informalidade.
Ali, tudo o que ele dizia estava certo; e o fardo era tão pesado que toda a sua boa disposição se evaporou por completo em pouco tempo. Marshall e o tesoureiro Ricketts
mantinham-se em silêncio, excepto
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quando era preciso dizer "por favor" ou "obrigado", e comiam com uma precisão medonha; o jovem Mowett (um dos convidados) também não falava, como seria de esperar;
Dillon ensaiava falar de ninharias; e Stephen Maturin mergulhara nos mais profundos devaneios.
Foi o leitão que salvou o melancólico festim. Impelido por um tropeção do camareiro, que coincidiu com uma repentina guinada do Sophie, o leitão voou da travessa
e foi aterrar no colo de Mowett. com o alvoroço e as gargalhadas que se seguiram, todos os convivas voltaram a ganhar um aspecto humano, mantendo uma atitude natural
por bastante tempo - o tempo bastante para que a situação atingisse o ponto por que Jack ansiava desde o início do jantar.
- Muito bem, meus senhores - disse ele depois de terem bebido à saúde do rei -, tenho notícias que, segundo creio, lhes vão agradar, embora deva pedir perdão a Mr
Dillon por falar de assuntos de serviço à sua mesa. O almirante autorizou-nos a fazer um cruzeiro sozinhos até ao Cabo de La Não. E convenci o doutor Maturin a manter-se
a bordo e a coser-nos as nossas feridas sempre que a violência dos inimigos do rei nos deixe maltratados.
"Hurra!". "Muito bem!". "Escutem, escutem!". "Que esplêndidas notícias!". "Escutem!" - exclamaram os presentes quase ao mesmo tempo, e os seus rostos reflectiam
uma afabilidade tão sincera que Jack se sentiu profundamente comovido.
- Lorde Keith ficou encantado quando lhe contei - continuou Jack.
- Disse-me que tinha muita inveja de nós, pois não tinha nenhum médico na nau-capitânia. Aliás, ficou espantado quando lhe contei o caso do cérebro do condestável,
e até pediu que lhe trouxessem o óculo para ver Mr Day tomando o seu banho de sol na coberta. Também redigiu a nomeação do doutor pela sua própria mão, coisa que,
tanto quanto sei, nunca havia acontecido antes na Marinha.
Todos os presentes concordaram: a nomeação merecia um brinde "Killick, traga três garrafas de Portol". "Encha os copos!" - e enquanto Stephen continuava sentado
à mesa, com a cabeça humildemente baixa, todos se levantaram; e, com as cabeças apertadas contra as vigas do tecto, desataram
a cantar:
Hurra, hurra, hurra! Hurra, hurra, hurra! Hurra, hurra, hurra! Hurra!
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- No entanto, há uma coisa de que não gosto - disse Stephen, enquanto a nomeação andava de mão em mão, reverentemente apreciada por todos os homens. - "Pela presente
nomeio-o cirurgião... assumirá o cargo de cirurgião... a dotação destinada ao soldo e vitualhas, de acordo com o que é costume para o cargo de cirurgião da referida corveta". É uma definição falsa; e uma definição falsa é um anátema para uma mente filosófica.
- Estou certo de que será um anátema para uma mente filosófica disse James Dillon. - Mas a mente naval adora essas definições. Peguemos, por exemplo, na palavra
sloop.
- Sim - disse Stephen, fechando os olhos por causa do intenso aroma do vinho do Porto e tentando recordar as definições que ouvira.
- bom, um sloop, como sabem, é na realidade uma embarcação de um só mastro, com um aparelho de popa a proa. Porém, na Armada Real Inglesa, um sloop pode estar aparelhado
como um navio, ou seja, pode ter três mastros.
- Basta pensar no caso do Sophiel - exclamou o mestre, ansioso por dar a sua modesta contribuição. - Na verdade, o Sophie é um brigue, pois tem dois mastros. - E
mostrou dois dedos, para o caso de Stephen - que não era um homem do mar - não ser capaz de apreender um número tão grande. - Porém, no instante em que o capitão
Aubrey subiu a bordo, o brigue transformou-se numa corveta; porque o comandante de um brigue tem de ser um tenente.
- Ou tomemos o meu caso - disse Jack. - Chamam-me capitão, mas na realidade sou capitão-de-corveta.
- Ou o local onde dormem os homens, na proa - disse o tesoureiro, apontando para o mesmo. - Falando com propriedade, e oficialmente, é a coberta da bateria, embora
nunca tenha albergado canhões. Nós chamamos-lhe coberta de mastros, embora também nunca tenha albergado mastros, mas alguns continuam a chamar-lhe coberta da bateria
e, à verdadeira coberta da bateria, chamam coberta superior. Ou tomemos o caso deste brigue, que não é um verdadeiro brigue, nem sequer com a vela mestra redonda,
mas mais uma espécie de snow ou, enfim, um hermafrodita.
- Não, não, meu caro doutor - disse James Dillon -, nunca permita
6 A explicação de Dillon assenta na dupla significação do termo inglês sloop: sloop pode ser uma chalupa (de um só mastro) e uma corveta (neste caso, sloop ou sloop
of war), navio de guerra. (N. do T.)
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que uma simples palavra aflija o seu coração. Nós temos criados do capitão que só o são de nome, pois na realidade são guardas-marinhas; temos marinheiros de primeira
inscritos nos nossos livros que só o são de nome, pois não passam de miúdos: encontram-se a milhas e milhas de distância e ainda frequentam a escola. Afirmamos que
não mudamos nenhum brandal, quando, afinal, estamos sempre a mudá-los; e juramos muitas outras coisas em que ninguém acredita. Não, não, o doutor poderá chamar a
si mesmo o que quiser, desde que cumpra o seu dever. A Armada expressa-se por símbolos, e o meu amigo poderá dar o significado que muito bem entender às palavras
que a Armada usa, a quaisquer palavras.
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CAPÍTULO CINCO
Havia uma única razão para que o diário de bordo do Sophie se tornasse notado: era passado a limpo por David Richards, que possuía de facto uma belíssima caligrafia;
quanto ao resto, porém, era igual a qualquer outro diário de bordo. O seu estilo semiliterário, oficial e inevitavelmente insípido, nunca variava; o diário de bordo
falava exactamente no mesmo tom da abertura do barril de carne número 271 e da morte do ajudante de cirurgião, e a sua prosa nunca ganhava contornos a que pudéssemos
chamar humanos nem mesmo quando o Sophie capturou a sua primeira presa.
Quinta-feira, 28 de Junho, ventos variáveis, SE rodando a S, rumo S50 O, distância 63 milhas. Latitude
42º 32N, longitude 4º 17E, Cabo de Creus S76º O 12 léguas.
Ventos moderados e céu nublado ao entardecer, às 7 horas primeiro rizo nos joanetes. Manhã seguinte com o mesmo tempo. Exercícios com os canhões grandes. Tripulação
realizando tarefas ocasionais.
Sexta-feira, 29 de Junho, rumo S e E... Aragem e tempo limpo. Exercícios com os canhões grandes. Ao entardecer reforçaram-se os cabos. Ao amanhecer, ventos moderados
e nuvens, terceiro rizo na vela de gávea, envergámos outro velacho e rizámo-lo forte, ventos tempestuosos às 4, ferrámos a vela mestra redonda, às 8 ventos mais
moderados, rizámos a vela mestra redonda e largámo-la. Ao meio-dia, calma. Falecimento de Henry Gouges, ajudante de cirurgião. Manobras com os canhões grandes.
Sábado, 30 de Junho, aragem tendendo a calma. Exercícios com os canhões grandes. Castigados Shannahan e Yates com 12 açoites por embriaguez. Matou-se um novilho com 530 libras de peso. Reserva de água: 3 toneladas.
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Domingo, 1 de Julho... Passou-se revista à tripulação por divisões, leu-se o Código de Justiça Militar, celebrou-se serviço religioso, lançou-se ao mar o corpo de
Henry Gouges. Ao meio-dia, o mesmo tempo.
O mesmo tempo: no entanto, a certa altura o sol afundou-se por entre um banco de nuvens cinzento-púrpura e tumescente que se tinha formado a oeste, e todos os marinheiros
com alguma experiência perceberam que, numa questão de horas, o tempo mudaria. Esses marinheiros estavam espalhados pelo castelo de proa, onde penteavam os seus
longos cabelos ou entrançavam o cabelo uns aos outros; enquanto se entregavam a tais rituais, não se eximiram - bem pelo contrário - a explicar aos camaradas que
faziam a sua primeira viagem que aquela dilatada ondulação que vinha de sueste, aquele calor estranho e pegajoso que provinha tanto do céu como da superfície vítrea
do portentoso mar, e aquele aspecto horrivelmente ameaçador do sol, significavam que estava iminente a dissolução de todos os vínculos naturais, uma convulsão apocalíptica
dos elementos - enfim, que tinham pela frente uma noite danada. Os marinheiros com experiência dispunham de imenso tempo para baixar o moral dos seus ouvintes, que
estavam já bastante abatidos devido à morte tão pouco natural de Henry Gouges (o qual dissera: "Ah, ah, camaradas, hoje faço cinquenta anos! Oh, meu Deus!", e nesse
instante morrera, sentado onde estava, com o copo de grogue na mão, o grogue que nem sequer tinha provado). Dispunham de imenso tempo porque era domingo à tarde
e nas tardes de domingo os marinheiros descansavam no castelo de proa, com os rabos e rabichos-de-cavalo soltos. Alguns deles tinham cabeleiras tão compridas que
lhes chegavam à cintura - poderiam mesmo enfiá-las debaixo do cinto; e agora que haviam desfeito os ornamentais rabos-de-cavalo e penteavam as longas cabeleiras,
domadas quando molhadas, revoltas quando secas e carentes de qualquer óleo, o seu aspecto era positivamente medonho e as suas palavras assemelhavam-se a oráculos;
o que, obviamente, contribuía ainda mais para o mal-estar dos tripulantes inexperientes nas lides do mar.
Os marinheiros mais batidos carregaram nas tintas; porém, ainda que muito se esforçassem, dificilmente poderiam exagerar a descrição do que estava para acontecer,
pois o vento tempestuoso que vinha de sueste não parou de crescer desde as primeiras rajadas de aviso, no final do quarto das seis às oito, até aos horrendos rugidos
de uma portentosa corrente de ar, no final do quarto de modorra, uma torrente tão prenhe de chuva morna que os homens que estavam ao leme tiveram de baixar as cabeças
e virar a boca para
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o lado para poderem respirar. As ondas eram cada vez maiores: não tinham a altura dos vagalhões do Atlântico, mas eram mais íngremes, e, de certo modo, mais perniciosas;
arremessavam violentamente as suas cristas, como se quisessem chegar aos cestos da gávea do Sophie, e eram suficientemente altas para deter o movimento do navio
enquanto este virava para elas a proa e procurava vencê-las com uma vela de capa. Isso era algo que o Sophie era capaz de fazer muito bem; de facto, o Sophie podia
não ter um aspecto muito perigoso ou nobre, mas, com os mastaréus de gávea retirados e colocados sobre a coberta, os canhões seguros com cordas duplas e as escotilhas
corridas, ficando apenas um pequeno espaço resguardado para se aceder à escada de popa, e tendo a sotavento centenas de milhas do imenso mar, o Sophie mantinha-se
ao pairo, tão confortável e tão despreocupado como um êider1. Além disso, era uma embarcação perfeitamente estanque, pensou Jack enquanto o Sophie subia a espumosa
colina de uma onda e deslizava pela sua ameaçadora crista apoiando apenas a proa e descendo suavemente até ao côncavo da onda. com um braço à volta de um brandal,
Jack acompanhava atentamente os movimentos do navio. Envergava uma casaca de lona alcatroada e uns calções brancos de algodão: o seu cabelo louro, que usava solto
e comprido em honra de Lorde Nelson, afastava-se todo para trás quando o navio chegava à crista e voltava a cair-lhe sobre os ombros quando o navio chegava à concavidade
como se fosse um anemómetro natural; Jack observava a sucessão regular das ondas, como num sonho, à pálida luz da lua. Muito satisfeito, verificou que a sua previsão
das qualidades do Sophie não só se confirmava como era largamente superada.
- É perfeitamente estanque - disse ele para Stephen Maturin, o qual, preferindo morrer ao ar livre, se arrastara até à coberta, onde continuava agarrado com toda
a sua força a um pontalete, mudo, encharcado e horrorizado.
- Como?
- O - Sophie - é - perfeitamente - estanque.
Stephen franziu o sobrolho, impaciente: aquele não seria por certo o momento mais adequado para falar de ninharias.
Contudo, logo que surgiu no horizonte, o sol fez desaparecer o vento, e, por volta das sete e meia da manhã seguinte, tudo o que restava da tempestade eram os vagalhões
e uma fila de nuvens baixas para os lados do longínquo
1 Ave das regiões árcticas, cujas penas eram usadas na confecção dos edredões. (N. do T)
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golfo de León, a noroeste; o céu era agora de uma pureza inacreditável e o ar estava tão lavado que Stephen pôde distinguir as patas de um petrel que passou sobre
a esteira do navio a umas vinte jardas de distância.
- Lembro-me de um terror extremo, paralisante - disse ele, sem perder de vista o passarito -, lembro-me da existência desse terror, mas agora escapa-me por completo
a natureza profunda da emoção.
O timoneiro e o oficial de derrota olharam um para o outro, perplexos.
- Não é muito diferente do que sente uma mulher no parto - continuou Stephen, falando bastante mais alto e dirigindo-se para o corrimão de popa a fim de não perder
de vista o petrel. O timoneiro e o oficial de derrota desviaram rapidamente o olhar: aquilo que o doutor estava a dizer era terrível: alguém podia ouvir. O cirurgião
do Sophie, que, em plena luz do dia e na coberta principal, perante uma tripulação extasiada, abrira o crânio do condestável (o qual era agora conhecido, não como
Day, mas como Lazarus Day), era muito respeitado e venerado, mas nunca se sabia até que ponto poderia ir a impropriedade da sua linguagem.
- Recordo-me de um caso...
- Barco à vista! - exclamou o vigia, para alívio de todos os homens que se encontravam no castelo de popa do Sophie.
- Onde?
- A sotavento. A dois graus, três graus de través. Um falucho. Está em apuros, com as escotas soltas.
O Sophie virou e aqueles que se encontravam na coberta logo puderam ver o falucho subindo e descendo ao sabor das ondas alterosas. Não fez qualquer tentativa para
escapar nem para mudar de rumo ou para se pôr à capa: as suas velas esfrangalhadas continuaram como estavam, ondeando ao sabor das rajadas irregulares de um vento
que em breve amainaria por completo. Tão-pouco respondeu à saudação do Sophie. Não havia ninguém na cana do leme e quando a corveta se aproximou mais, aqueles que
tinham óculos puderam ver a barra movendo-se de um lado para o outro com as guinadas do falucho.
- Há um cadáver na coberta! - exclamou Babbington, todo satisfeito por o ter enxergado.
- Será difícil baixar um bote nestas condições - disse Jack, como que para si mesmo. - Williams, vamos abordar o falucho. Mr Watt, traga-me alguns homens para o
prenderem. Mr Marshall, que acha disto?
- bom, meu capitão, a mim parece-me que é uma embarcação de Tânger ou de Tetuão... do extremo oeste da costa, em todo o caso...
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- Aquele homem que está no buraco quadrado morreu de peste disse Stephen mal fechou o óculo.
Um silêncio pesado acompanhou esta afirmação e pôde ouvir-se o vento suspirando por entre os ovéns de barlavento. A distância entre os dois navios era cada vez mais
curta e todos podiam ver um corpo inanimado meio-metido na escotilha de popa, com talvez mais dois debaixo dele; e também um corpo quase nu entre o emaranhado da
adriça perto do leme.
- Mantenha o navio assim! - ordenou Jack. - Doutor, tem a certeza do que disse? Use o meu óculo.
Stephen espreitou pelo óculo por um momento e logo o devolveu.
- Não há dúvida possível - disse. - vou preparar as minhas coisas para subir a bordo. Pode ser que haja sobreviventes.
O falucho estava quase a tocar a corveta agora; na amurada do falucho via-se uma gineta domesticada, um animal que os navios da costa de Berberia costumavam levar
por causa dos ratos; a gineta olhava ansiosa para o Sophie, pronta para saltar. Um marinheiro sueco já com alguma idade, chamado Volgardson, o mais amável dos homens,
atirou-lhe com um lambaz e o animal perdeu o equilíbrio; os homens, alinhados ao longo do costado, procuravam enxotá-lo com os mais variados gritos.
- Mr Dillon - disse Jack. - Bordada a estibordo.
Subitamente o Sophie renasceu, com as chamadas estridentes do contramestre, a correria dos marinheiros para os seus postos, o alvoroço geral. E, no meio do alarido,
Stephen gritou:
- Insisto em que me dêem um bote! Protesto!
Jack pegou nele pelo cotovelo e, com afectuosa violência, conduziu-o até à cabina.
- Meu caro amigo - disse -, sinto muito, mas não deve insistir nem protestar, pois isso é rebelião, e quem se revolta é enforcado. Se o meu amigo subisse a bordo
do falucho, mesmo que não nos contagiasse com a doença que vitimou a tripulação do navio, teríamos de navegar com bandeira amarela até Mahón: e o meu amigo sabe
o que isso significa, não é verdade? Significa que teríamos de passar quarenta malditos dias na ilha da quarentena e que levaríamos um tiro se tentássemos sair da
paliçada. E trouxesse ou não a doença consigo, metade dos homens morreria de medo se o meu amigo subisse a bordo daquele falucho.
- Tenciona abandonar esse barco sem lhe prestar qualquer tipo de ajuda?
- Precisamente.
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- bom, nesse caso a responsabilidade é inteiramente sua, capitão.
- Claro que é, doutor.
O diário de bordo não ligou a este incidente; fosse como fosse, seria difícil encontrar a linguagem oficial adequada para dizer que o cirurgião do Sophie erguera
um punho aparentemente ameaçador para o capitão do navio; e quanto ao que se passou com o falucho, o diário de bordo limitou-se a um falso entrámos em contacto com
o falucho: e às onze e um quarto virámos, pois era muitíssimo mais agradável anotar o acontecimento mais feliz que, em muitos anos, ocorrera com o Sophie (o capitão
Allen fora um comandante pouco afortunado: a sua tarefa consistira quase sempre em escoltar comboios; e sempre que iniciava um cruzeiro, parecia que o mar se tinha
esvaziado - e nunca capturara uma presa)...
Ao entardecer, vento moderado e tempo claro, subimos os mastaréus do joanete, abrimos o barril de cerdo número 113, parcialmente estragado. Às sete, avistámos uma
vela desconhecida a oeste, preparámo-nos para perseguição.
"A oeste", neste caso, significava quase exactamente a sotavento do Sophie; e "preparar-se" significava que o navio teria de desfraldar quase todas as velas que
possuía - incluindo as velas pequenas, as varredouras dos joanetes e das gáveas, os sobrejoanetes, naturalmente, e até mesmo os bonetes -, pois a presa em vista
era uma polacra de tamanho considerável, com velas latinas no mastro de proa e no mastro de mezena e velas redondas no mastro principal: portanto, deveria ser francesa
ou espanhola; e se conseguissem capturá-la, daria sem dúvida bom dinheiro. O mesmo deviam ter pensado os tripulantes da polacra, pois esta, quando as duas embarcações
se avistaram, estava ao pairo, aparentemente reparando o mastro principal, que fora danificado pela violenta tempestade; porém, quando o Sophie acabou de alar pelas
escotas, já a polacra se tinha colocado a favor do vento e encetava a sua fuga com todas as velas que tinha podido desfraldar em tão pouco tempo - uma polacra particularmente
desconfiada e muito pouco interessada em ser surpreendida.
O Sophie, com a sua abundância de homens adestrados em içar velas rapidamente, fez duas milhas no primeiro quarto de hora, ao passo que a polacra apenas conseguiu
fazer uma milha; porém, logo que a presa pôde desfraldar todo o velame possível, as velocidades dos dois navios passaram a ser muito semelhantes. Contudo, com o
vento a dois graus pela alheta e a vela mestra redonda na sua melhor posição, o Sophie conseguia ser mais rápido; e quando ambos alcançaram a velocidade máxima,
o Sophie navegava a mais de
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sete nós e a polacra apenas a seis. Mas havia ainda entre os dois navios uma distância de quatro milhas e faltavam apenas três horas para que ficasse escuro como breu - além de que só haveria lua por volta das duas e meia. Os homens do Sophie nutriam a esperança - uma esperança muito razoável de que, àquela velocidade, se
rompesse qualquer coisa na enxárcia da presa, pois esta tivera por certo uma noite muito dura; daí que fossem muitos os óculos que a observavam do castelo de proa
do Sophie.
Jack permanecia junto ao guarda-gurupés de estibordo, desejando com toda as suas forças que a corveta avançasse mais e mais e pensando que era muito capaz de dar
o seu braço direito por um bom canhão de proa; e nem sequer lhe parecia que esse preço fosse excessivamente alto. Olhou para trás para se certificar do enfunamento
das velas; depois, os seus olhos fixaram-se nas ondas de proa, que subiam e logo deslizavam suavemente pelo escuro costado; parecia-lhe que, com a orientação actual,
as velas de popa exerciam uma pressão excessiva sobre o talha-mar, que a pressão extrema das velas poderia estar a dificultar a progressão do navio, e por isso ordenou
aos homens que colhessem o sobrejoanete principal. Poucas vezes dera uma ordem tão relutantemente obedecida; porém, a corda da barquilha depressa provou que ele
tinha razão: o Sophie, graças ao impulso do vento, avançava agora com mais facilidade e rapidez.
O sol pôs-se pela amura de estibordo, o vento começou a rodar para norte, soprando em rajadas, e, por detrás deles, a escuridão começou a apoderar-se do firmamento:
a polacra estava ainda a uma distância de três quartos de milha, mantendo o seu rumo para oeste. Como o vento soprava agora de través, içaram as velas de estai e
a vela mestra de popa a proa: Jack conseguiu ver toda a manobra claramente; mas quando olhou de novo para a coberta, já esta se encontrava envolta em penumbra.
Agora, com as varredeiras desfraldadas, a presa - ou o fantasma de uma presa, uma mancha pálida que aparecia de vez em quando na crista das ondas - podia ser vista
do castelo de popa; Jack observava-a com o seu óculo de noite, procurando descortiná-la no meio da escuridão que rapidamente se adensava, e de vez em quando dava
uma ordem num tom baixo, confidencial.
A noite caía - e a presa desaparecia: um desaparecimento súbito. No quadrante do horizonte onde balouçara aquela desmaiada mas sedutora mancha, agora apenas se via
o mar agitado e deserto e Régulo2 começando a assomar.
2 A estrela mais brilhante da constelação de Leão, também conhecida por Alfa. (N. do T.)
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- Vigia - gritou Jack -, vê alguma coisa? Uma longa pausa.
- Não, meu capitão. Não há sinal da polacra.
Precisamente: nem sinal dela. Que ia fazer agora? Precisava de pensar, de pensar ali, na coberta, onde tinha um contacto mais directo com a situação com o vento
instável dando-lhe em cheio no rosto, o brilho da bitácula ali mesmo ao pé, e sem a menor interrupção. E isto era algo que as convenções e a disciplina da Marinha
lhe permitiam. Jack desfrutava da inviolabilidade própria de um capitão (tão ridícula por vezes, uma verdadeira tentação para espíritos mais dados a pompas, às estúpidas
pompas) e podia pensar livremente. A certa altura, viu Dillon afastando Stephen a toda a pressa: registou o facto, mas a sua mente prosseguiu na busca de uma solução
para o problema. Das duas uma: ou a polacra mudara de rumo, ou mudaria de rumo em breve: a questão estava em saber aonde a levaria esse rumo ao amanhecer. A resposta
dependia de muitos factores - se eram franceses ou espanhóis, se regressavam ao seu país ou se afastavam dele, se eram astutos ou não passavam de uns simplórios;
e, sobretudo, dependia das qualidades de navegação da polacra. Jack Aubrey tinha uma noção muito clara destes factores, pois havia seguido todos os movimentos do
navio com a máxima atenção durante as últimas horas; de modo que, construindo o seu raciocínio (se é que se podia chamar "raciocínio" a um processo puramente instintivo)
na base destas certezas e de uma correcta estimativa dos demais factores, chegou por fim a uma conclusão. A polacra tinha virado em roda; possivelmente tinha parado
- com a árvore seca, ou seja, com a mastreação sem velas, para não ser descoberta - e o Sophie passara por ela na escuridão, rumo a norte; fosse isso ou não verdade,
de uma coisa estava Jack convencido - a polacra far-se-ia à vela muito em breve, navegando cochada na direcção de Agde ou de Sete, atravessando a esteira do Sophie
e confiando na capacidade das suas velas latinas para fugir para barlavento e pôr-se a salvo antes do amanhecer. Se assim era, então o Sophie deveria virar de bordo
em seguida e dirigir-se para barlavento sob um velame ligeiro: desse modo, quando raiasse a luz do dia, teria a polacra a sotavento, pois era provável - muito provável
mesmo - que o seu capitão recorresse apenas aos mastros de proa e de mezena: de facto, durante a perseguição não tinha sequer utilizado o mastro principal, danificado
pela tempestade.
Jack entrou na cabina do mestre e, entrecerrando os olhos ofuscados pela luz, certificou-se da posição do Sophie; confrontou os seus cálculos com os de Dillon e
dirigiu-se à coberta para dar as suas ordens.
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- Mr Watt - disse -, vou virar de bordo e quero que toda a operação decorra em absoluto silêncio. Não quero ordens em voz alta, nem sobressaltos, nem gritos.
- Não haverá ordens em voz alta, meu capitão - disse o contramestre, que logo se afastou dizendo "Todos a virar", "Todos a virar", num sussurro rouco que resultava
particularmente estranho.
A ordem e a forma de a darem tiveram um efeito curiosamente poderoso: com tanta certeza como se se tratasse de uma revelação directa, Jack sabia que os homens estavam
incondicionalmente com ele; por um brevíssimo momento, uma voz interior disse-lhe que seria melhor que tivesse razão, pois, caso contrário, nunca voltaria a desfrutar
daquela confiança ilimitada.
- Muito bem, Assou - disse ele ao marinheiro hindu que estava ao leme, e o Sophie orçou suavemente.
- Leme a sotavento - disse Jack; um grito que normalmente se ouvia nos confins do horizonte não passava agora de um simples murmúrio. E depois: - Largar amuras e
escotas. - Ouviu os pés descalços numa correria e as escotas da vela de estai chiando nos estais: aguardou até que o vento estivesse a um grau pela amura de barlavento
e logo disse, um pouco mais alto:
- Içar a vela mestra. - O Sophie estava a virar e agora caía a sotavento. Jack sentia já o vento na outra face. - Soltar e içar - disse, e os tripulantes do convés
entre os castelos içaram os braços de estibordo como se fossem veteranos do castelo de proa. As bolinas de barlavento retesaram-se e o Sophie ganhou velocidade.
O Sophie navegava agora rumo a nor-nordeste, cochado e com as gáveas rizadas. Jack desceu. Não queria que se visse nenhuma luz nas suas janelas de popa, e não valia
a pena armar as portinholas, pelo que o melhor era ir até à câmara de oficiais, onde entrou necessariamente curvado. Para sua grande surpresa, encontrou James Dillon
(na realidade, era a hora do quarto de Dillon em baixo, mas Jack, no seu lugar, nunca teria abandonado a coberta) jogando xadrez com Stephen, enquanto o tesoureiro
lhes lia passagens do Gentlemans Magazine, acrescentando comentários da sua laia.
- Deixem-se estar, senhores - exclamou Jack, ao ver que todos se tinham erguido de um salto. - Vim só desfrutar da vossa hospitalidade por um bocado.
Receberam-no de braços abertos e apressaram-se a servir-lhe vinho, bolachinhas doces e o último número do Navy List. Mas a verdade é que, ali, Jack era um intruso:
perturbara aquele tranquilo encontro social, reduzira ao
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silêncio os comentários literários do tesoureiro e interrompera o xadrez tão drasticamente como um raio do Olimpo. Stephen Maturin, como mandavam as regras, comia
agora naquela câmara - a sua cabina era aquela espécie de armário pequeno, para lá da lanterna dependurada do tecto - e tinha todo o ar de pertencer já àquela comunidade;
Jack sentiu-se obscuramente magoado e, depois de ter conversado um pouco com os presentes (uma conversa que lhe pareceu seca e forçada, excessivamente polida), regressou
de novo à coberta. Logo que o viram aparecer pela escotilha palidamente iluminada, o mestre e o jovem Ricketts deslocaram-se em silêncio para bombordo, e Jack retomou
o seu passeio solitário entre a grinalda e a bigota que estava mais à popa.
No início do quarto de modorra, o céu cobriu-se de nuvens; e, pouco antes das duas badaladas, caiu um aguaceiro forte que assobiava na bitácula. A lua ergueu-se
no céu, um objecto pálido e inclinado que mal se distinguia: Jack sentia o estômago retorcer-se, tal era a sua fome; porém, continuou a andar de um lado para o outro,
olhando mecanicamente para sotavento, para a imensa escuridão, sempre que dava a volta.
Três badaladas. Em voz baixa, o cabo de quarto informou que não havia novidade. Quatro badaladas. Havia tantas outras possibilidades, tantas outras coisas, milhares
de coisas que a presa poderia ter feito, em vez de arribar e dirigir-se para Sete!...
- Mas o que é isto? com esta chuva toda e em mangas de camisa?... Não é possível! É pura loucura! - exclamou Stephen, de súbito atrás dele.
- Silêncio! - exclamou Mowett, o oficial de quarto, que não conseguira interceptar o médico.
- Pura loucura! Pense no ar da noite, na humidade que cai, no fluxo dos humores. Se o dever manda que passe a noite aqui ao ar livre, então terá de vestir uma camisola
de lã! Por favor, uma camisola de lã para o capitão! Eu próprio irei buscá-la!
Cinco badaladas - e de novo um aguaceiro. O homem que estava ao leme foi rendido pelo colega - e a indicação sussurrada do rumo, as informações de rotina. Seis badaladas
- e a escuridão começava a ser menos densa a leste. O feitiço do silêncio parecia agora mais forte do que nunca; os homens que iam orientar as vergas caminhavam
nas pontas dos pés e, um pouco antes das sete badaladas, o vigia tossiu e chamou quase a medo; de facto, a sua voz ergueu-se apenas o suficiente para ser ouvida:
- Coberta! Coberta, meu capitão! Creio que está ali, a estibordo... Creio...
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Jack enfiou o óculo no bolso do casaco de lã que o médico lhe tinha trazido, subiu a correr ao topo do mastro, instalou-se firmemente na enxárcia e dirigiu o óculo
na direcção que o homem lhe assinalava com o braço. As tonalidades cinzentas que anunciavam o amanhecer começavam já a ver-se através da chuva e das nuvens baixas
e rasgadas a sotavento; sensivelmente a uma milha de distância, com as suas velas latinas brilhando quase imperceptivelmente, lá estava ela, a polacra. Depois, a
chuva voltou a escondê-la, mas Jack teve ainda tempo para verificar que era efectivamente a presa que perseguiam; além disso, ficou a saber que a desconfiada polacra
tinha perdido o mastaréu da gávea maior.
- Você é realmente um óptimo marinheiro, Anderssen! - disse Jack, dando-lhe uma palmada no ombro.
À muda e atenta interrogação do jovem Mowett e de todos os homens de quarto na coberta, respondeu Jack com um sorriso que tentou evitar parecer excessivo e com as
palavras: - Está a sotavento. Leste, quarta a sul. Pode iluminar a corveta, Mr Mowett, para que vejam a potência que temos: não quero que eles façam nenhum disparate
como disparar um canhão, pois poderiam ferir algum dos nossos homens. - Ditas estas palavras, retirou-se, pedindo uma luz e uma bebida quente; e da sua cabina podia
ouvir a voz aguda de Mowett, embargada pela emoção de pertencer a uma tripulação que tinha por comandante aquele homem (e Mowett era um daqueles marinheiros que
teriam sido capazes de dar a sua vida por Jack), enquanto o Sophie arribava e desfraldava as suas asas.
Jack recostou-se contra a parede curva onde estavam as janelas de popa e foi bebendo lentamente aquilo a que Killick chamava café; mesmo assim, o seu estômago agradecia.
Ao mesmo tempo que se sentia invadido pelo calor do café, sentia-se inundado por uma serena e sossegada onda de felicidade uma felicidade que qualquer outro capitão
(ao recordar a captura da sua primeira presa) poderia ter discernido no resumo que figurava no diário de bordo, ainda que o diário de bordo não falasse especificamente
de felicidade:
Às 10:30 virámos, às 11 com as velas mestras, gávea rizada. Amanhecer nublado e com chuva. Às 4:30 observada a presa a leste quarto a sul, a meia milha de distância.
Arribámos e tomámos posse da referida presa, que era o Aimable Louise, polacra francesa, carregada de cereais e diversos tipos de mercadorias e que se dirigia para
Sete, com cerca de duzentas toneladas, seis canhões e dezanove homens. Enviada com um oficial e oito tripulantes para Mahón.
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- Permita-me que lhe encha o copo - disse Jack com uma disposição magnífica. - É bastante melhor do que o vinho que costumamos beber todos os dias, não lhe parece?
- Melhor, delicioso e muito mais forte, uma bebida saudável e revigorante - disse Stephen Maturin. - É um excelente Priorato. Do Priorato, uma zona para lá de Tarragona.
- Sem dúvida, doutor, sem dúvida. É de facto um vinho excelente. Mas... voltando à presa: a principal razão por que estou contente é que a presa acicata os homens,
por assim dizer; e a mim dá-me mais margem de manobra. Temos um óptimo agente de presas, que me deve favores, e estou convencido de que nos adiantará cem guinéus.
Posso distribuir sessenta ou setenta guinéus pelos tripulantes e comprar finalmente alguma pólvora com o resto. O melhor que neste momento se pode dar a estes homens
é um pouco de diversão em terra. E para isso, obviamente, precisam de ter dinheiro.
- E não teme a deserção? Lembro-me de que me tem falado amiúde desse problema: desse mal terrível, como o meu amigo diz.
- Se os homens não tiverem ainda recebido todo o dinheiro da presa e estiverem convictos de que receberão mais algum, é certo e sabido que não desertarão. Pelo menos
em Mahón. Além disso, quando eu ordenar de novo exercícios com os canhões grandes, fá-los-ão com muito mais ânimo. Não julgue que desconheço que tem havido murmúrios
entre os homens. E eu compreendo-os, pois obriguei-os a trabalhar duramente... Mas agora já devem achar que foi por uma boa razão... Se conseguir arranjar a pólvora
(não me atrevo a usar muito mais da que nos foi atribuída), tratarei de organizar uma espécie de competição entre a bateria de bombordo e a bateria de estibordo
e também entre os dois quartos, tendo em conta que o vencedor ganhará um belo prémio. E, seja pelo desejo de conquistar o prémio, seja por uma questão de amor próprio,
não perco a esperança de fazer com que a nossa artilharia seja pelo menos tão perigosa para os outros como o é para nós mesmos. E então - Santo Deus, o sono que
eu tenho! - poderemos realmente empreender o nosso cruzeiro. Tenho um plano para as noites, manter-nos-emos perto da costa... mas, em primeiro lugar, quero explicar-lhe
como vamos dividir o nosso tempo. Uma semana nas proximidades do Cabo de Creus, depois regressamos a Mahón para o reabastecimento, sobretudo de água. Em seguida,
acercar-nos-emos de Barcelona e seguiremos ao longo da
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costa... ao longo da costa... - e bocejou prodigiosamente; duas noites sem dormir e meio litro do Priorato do Aimable Louise eram um preparado mais potente do que
qualquer sonífero receitado por Stephen: um preparado irresistível, cálido, suave, delicioso. Jack ficou onde estava, pestanejando para a luz, perdido em agradáveis
devaneios; e ouviu a longínqua voz de Stephen discursando acerca do litoral de Espanha - conhecia-o bem até Denia, poderia indicar-lhe uma quantidade de interessantes
resquícios das ocupações fenícia, grega, romana, visigótica e árabe; mostrar-lhe-ia que existiam dois tipos de garças-reais nos brejos que ficavam perto de Valência;
falar-lhe-ia do estranho dialecto e da natureza violenta dos valencianos; seria até muito provável que vissem os flamingos...
As notícias do desastre ocorrido com o Aimable Louise tinham provocado alterações em todo o Mediterrâneo ocidental: de facto, os navios que cruzavam essa área tinham-se
afastado das rotas inicialmente traçadas; o certo, porém, é que, menos de duas horas depois de terem mandado a sua presa para Mahón - a primeira presa verdadeiramente
importante -, os homens do Sophie avistaram mais dois navios: um deles era uma barca-longa que rumava a oeste, e o outro era um brigue que se encontrava a norte
e que parecia dirigir-se para sul. O brigue era a escolha óbvia - o Sophie fixou o seu rumo de molde a interromper-lhe o curso mas mantendo-o sempre rigorosamente
vigiado: o brigue navegava calmamente com as mestras e as gáveas, ao passo que o Sophie içou os sobrejoanetes e os joanetes e virou a bombordo, com o vento a favor,
adernando de tal modo que as mesas de guarnição de sotavento ficaram debaixo de água; e à medida que as suas rotas iam convergindo, os tripulantes do Sophie verificavam,
com evidente espanto, que o desconhecido era extraordinariamente parecido com o seu próprio navio, inclusivamente no que respeitava ao arrufamento do gurupés.
- Só pode ser um brigue, este navio! - exclamou Stephen, de pé junto à amurada, ao lado de Pullings, um ajudante do mestre tão corpulento quanto tímido e calado.
- Claro, doutor, claro que é. E se não visse, não acreditava: é igualzinho ao nosso navio! Quer ver no meu óculo, doutor? - perguntou, limpando cuidadosamente o
óculo com o seu lenço.
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- Obrigado, Mr Pullings. Um óculo excelente, que bem que se vê! Mas permita-me que discorde de si, Mr Pullings. Aquele navio, aquele brigue, é amarelo, um amarelo
horrível!, ao passo que o nosso Sophie é preto, com uma faixa branca.
- Oh, isso é só uma questão de pintura, doutor! Repare no castelo de popa, com aquele salto tão antiquado, tal e qual como o nosso: não se vêem muitos deste tipo,
nem sequer nestas águas. Repare no arrufamento do gurupés. E é mais que certo tem uma arqueação igual à nossa, à volta de dez toneladas ou menos. Devem ter sido
feitos no mesmo estaleiro. Mas tem três bandas de rizos na gávea de proa e por isso podemos concluir que é um navio mercante e não um navio de guerra como o nosso.
- Vamos capturá-lo?
- Seria demasiado bom para ser verdade, doutor, mas talvez consigamos.
- A bandeira espanhola, Mr Babbington! - ordenou Jack; e, olhando à sua volta, Stephen pôde ver a bandeira vermelha e amarela ondeando no topo do mastro.
- Estamos a navegar sob uma bandeira que não é a nossa... - sussurrou Stephen. - Não é um acto... hediondo... atroz...?
- Como?
- Um acto reprovável, moralmente indefensável?
- Por amor de Deus, doutor, trata-se de uma prática corrente, pelo menos no mar. Mas no último momento içaremos a nossa bandeira, disso pode estar certo, antes mesmo
de dispararmos um canhão que seja. As coisas são assim mesmo. Olhe para ele agora: está a içar uma bandeira dinamarquesa e de certeza que é tão dinamarquês como
a minha avó...
Mas os acontecimentos provaram que Thomas Pullings estava errado.
- O rigue dinamarquês Clomer, senhor - anunciou o seu capitão, um dinamarquês que já vira muito mar e também muito vinho, de tez muito pálida e olhos aureolados
de vermelho, ao mostrar os documentos a Jack na cabina deste. - Capitão Ole Bugge. Peles e cera de .Dripoli para Barcelona.
- Muito bem, capitão - disse Jack depois de examinar atentamente os papéis, absolutamente legítimos. - Estou certo de que me perdoará o aborrecimento que lhe causei,
mas são coisas que temos de fazer, como muito bem sabe. Permita-me que lhe ofereça um copo deste Priorato que, segundo me disseram, é um bom vinho.
- É melhor queom, capitão - disse o dinamarquês, sentindo o vinho
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deslizar pela garganta. - É um vinho maravilhoso. Capitão, poderá fazer-me a fineza de me dizer qual é a sua posição?
- Capitão, no que toca a posições, não poderia ter encontrado melhor navio! Temos a bordo o melhor navegador de todo o Mediterrâneo. Killick, avise Mr Marshall!
Mr Marshall, o capitão B... o capitão deseja saber qual é a nossa posição.
Na coberta, os tripulantes do Clomer e do Sophie observavam os respectivos navios com profunda satisfação, como se se olhassem num espelho: de início, os homens
do Sophie tinham sentido aquela semelhança extrema como uma espécie de impertinência por parte dos dinamarqueses, mas mudaram de opinião quando o vigia e seu camarada
Anderssen desatou a falar com os seus compatriotas do Clomer numa língua arrevezada que dominava na perfeição, perante a admiração silenciosa de todos os espectadores.
Jack acompanhou o capitão Bugge até ao costado com extrema afabilidade; uma caixa de Priorato desceu até ao bote dinamarquês; e, inclinando-se sobre a amurada, Jack
disse ao capitão:
- Contar-lhe-ei como tudo correu, da próxima vez que nos virmos. Quando o capitão do Clomer chegou ao seu navio, já as vergas do
Sophie, com um rangido característico, estavam a mudar de orientação, para conduzirem o navio, o mais cochado possível, para o seu novo rumo, nordeste quarta a norte.
- Mr Watt - observou Jack, fitando-o fixamente -, logo que tenha oportunidade, precisamos de amantilhos cruzados à proa e à popa; não estamos a navegar tão cingidos
ao vento como eu desejaria.
- Que estarão eles planeando? - perguntaram-se os tripulantes quando todas as velas estavam já içadas e bem enfunadas, e tudo estava aduchado na coberta, para grande
satisfação de Mr Dillon; pouco depois, porém, a notícia começou a circular; o camareiro da câmara dos oficiais contou-a ao ajudante do tesoureiro, que a contou ao
seu ajudante, o qual, por sua vez, a contou na cozinha, lugar a partir do qual se propagou a todo o navio - a notícia de que o capitão dinamarquês, por ter simpatizado
com o Sophie, devido à sua semelhança com o Clomer, e também porque Jack se comportara com ele de uma forma extremamente cortês, informara este último de que, não
muito longe dali, para norte, estava um navio francês carregado de mercadorias e com uma vela mestra carregada de remendos, navegando na direcção de Agde.
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O Sophie, graças a sucessivas bordadas, navegava agora contra o vento cada vez mais fresco; e à quinta bordada foi possível ver um ponto branco a nor-nordeste, demasiado
distante e demasiado fixo para que fosse uma gaivota solitária, perdida na lonjura. Era a corveta francesa, com toda a certeza; meia hora depois, já não havia a
menor dúvida, graças à descrição que o capitão dinamarquês fizera da sua enxárcia. No entanto, a embarcação comportava-se de uma forma tão estranha que os homens
do Sophie só se convenceram de que era mesmo a corveta francesa quando apontaram os canhões e os botes começaram a cruzar o pouco mar que os separava, transferindo
os abatidos prisioneiros. Em primeiro lugar, a corveta francesa parecia não dispor de nenhum vigia, e só se deu conta da presença dos seus perseguidores quando estes
se encontravam a cerca de uma milha de distância; e, mesmo então, mostrou-se hesitante, vacilante, confiando na segurança da bandeira tricolor e rejeitando-a de
imediato, fugindo com excessiva lentidão e demasiado tarde
- e desatando, dez minutos depois, a fazer sinais de rendição que se tornaram veementes ao primeiro disparo de advertência.
James Dillon entendeu os motivos daquele comportamento logo que subiu a bordo do Citoyen Durand: a corveta estava carregada de pólvora levava tanta pólvora que esta
nem cabia no porão e até na coberta havia barris tapados com lona alcatroada; além disso, o seu jovem capitão levava a esposa a bordo. A mulher estava grávida -
era o seu primeiro filho - e a noite de tempestade, a perseguição e o temor de uma explosão tinham provocado o parto. James Dillon era um homem tão valente como
os demais, mas ficou aterrorizado com aqueles gemidos incessantes e com aqueles gritos horrendos, roucos, penetrantes, tão selvagens como os de um animal, que por
vezes rompiam por entre os gemidos; ficou como que paralisado, de olhos fixos no marido, branco como a cal, a cara lavada em lágrimas, o olhar ausente, tão aterrado
como ele.
Deixando Babbington sozinho no comando do Citoyen Durand, regressou rapidamente ao Sophie, onde explicou a situação. Mal Jack ouviu a palavra "pólvora", o seu rosto
iluminou-se; porém, quando ouviu a palavra "bebé", ficou como parvo a olhar para Dillon.
- Creio que a mulher vai morrer - disse James.
- bom, não sei, enfim... - disse Jack, hesitante; e agora que já conhecia o significado daquele remoto e horrendo ruído, conseguia ouvi-lo com maior
clareza. - Diga ao doutor que venha ter comigo! - ordenou ele a um fuzileiro.
Agora que a excitação da perseguição já se esbatera, Stephen Maturin encontrava-se no local do costume, junto à bomba de tronco de olmo, espreitando pelo seu tubo
para se deleitar com a visão das águas resplandecentes do Mediterrâneo. Quando Jack lhe disse que havia uma mulher em trabalho de parto a bordo da presa, Stephen
retorquiu:
- Ah sim? Bem me parecia que já tinha ouvido aqueles gemidos em qualquer lado! - e fez tenção de voltar para o sítio de onde tinha vindo.
- com certeza que pode fazer qualquer coisa, doutor... - disse Jack.
- Tenho a certeza de que a pobre mulher vai morrer - disse James. Stephen fitou-os por um instante com o seu estranho e inexpressivo
olhar; por fim anunciou:
- Eu vou. - Mal o viu descer, Jack comentou: - bom, a mulher já está em boas mãos, graças a Deus. Mas diga-me, Mr Dillon, toda a carga que está na coberta também
é pólvora?
- Sim, meu capitão. É uma loucura.
- Mr Day! Venha cá, Mr Day! Conhece por acaso as marcas francesas?
- Claro, meu capitão. São idênticas às nossas, com a diferença de que, no caso francês, o grão grande de primeira tem um anel branco à volta do vermelho; e os meios-tonéis
pesam trinta e cinco libras.
- Para quantos tem espaço, Mr Day?
O condestável reflectiu por um momento.
- Apertando a fiada do fundo, talvez possa armazenar uns trinta e cinco ou trinta e seis.
- Então vamos a isso, Mr Day! Há muitas coisas danificadas a bordo daquele navio, vejo-as bem daqui, coisas que teremos de tirar a fim de evitarmos mais danos. Suba
a bordo, Mr Day, e escolha o melhor. Poderá usar a lancha deles. Mr Dillon, não podemos confiar este arsenal flutuante a um guarda-marinha; terá de levá-lo para
Mahón, logo que tenhamos transferido a pólvora. Escolha os homens que lhe pareçam mais adequados e mande-me o doutor Maturin na lancha francesa: estávamos mesmo
a precisar de uma lancha... Santo Deus, que grito horrendo! Lamento muito deixar tudo isto a seu cargo, Dillon, mas as coisas são mesmo assim, como bem sabe.
- Claro, meu capitão. Levo o capitão francês comigo? Seria inumano obrigá-lo a abandonar o seu navio.
- Ah, claro, claro! Pobre homem... em que embrulhada ele se meteu!
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Os pequenos barris com a sua mortífera carga atravessaram o pouco mar que separava os dois navios, subiram a bordo do Sophie e desapareceram no seu ventre; o mesmo
aconteceu a meia dúzia de soturnos franceses, mais as suas bolsas e os seus baús; faltava, porém, a habitual atmosfera festiva - os tripulantes do Sophie, incluindo
os pais de família, sentiam-se culpados, preocupados, apreensivos; os horrendos gemidos da mulher continuavam a ouvir-se; e quando Stephen apareceu na amurada para
gritar que não poderia abandonar o navio francês, Jack inclinou-se perante a obscura justiça que o condenara a perder, pelo menos por algum tempo, a companhia do
médico.
"?!?
O Citoyen Durand cruzava suavemente a noite, rumo a Minorca, empurrado por um vento constante; logo que os gritos cessaram, James Dillon pôs um homem de confiança
no leme, fez uma visita ao quarto na cozinha e dirigiu-se para a sua cabina. Stephen estava a lavar-se, e o capitão francês, com um ar abatido e destroçado, segurava
a toalha com mãos trémulas.
- Espero... - disse James.
- Oh, sim! - retorquiu Stephen, interrompendo-o deliberadamente.
- Um parto perfeitamente normal, talvez um tanto lento; mas nada de extraordinário. Meu amigo - disse ele para o capitão -, será melhor despejar estes baldes para
o mar; depois, recomendo-lhe que descanse um pouco. Monsieur, tem um filho - acrescentou.
- As minhas mais sinceras felicitações - disse James. - E os meus melhores desejos de uma rápida recuperação de Madame.
- Muito obrigado, meus senhores, muito obrigado - disse o capitão, de novo com os olhos cheios de lágrimas. - Por favor, comam e bebam à vossa vontade. Enfim, façam
de conta que estão em vossa casa.
E foi isso mesmo que James e Stephen fizeram; sentaram-se em confortáveis cadeiras e atacaram a montanha de bolos que haviam sido confeccionados para celebrar o
baptismo da impaciente criança, previsto para a semana seguinte, em Agde; não poderiam sentir-se melhor; e, ali mesmo ao lado, a pobre mulher dormia finalmente,
com o marido ao pé dela segurando-lhe na mão e a rosada e encarquilhada criancinha respirando profundamente contra o seu peito. Reinava agora uma calma absoluta
ali em baixo; e na coberta
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reinava a mesma calma, com o vento estável que fazia navegar a corveta a uma velocidade de seis nós, e com os gritos habituais num navio de guerra reduzidos a um
suave e ocasional "Como é que isso vai, Joe?". Tranquilidade absoluta; e assim atravessavam a noite naquela caixa escassamente iluminada, embalados por uma ondulação
regular: ao fim de algum tempo naquele silêncio absoluto e com aquele balouçar ininterrupto, lento e ritmado, qualquer homem daria consigo a pensar que poderia estar
em qualquer um dos milhões de sítios que constituem o mundo - sozinho no mundo - enfim, num mundo completamente outro. Na cabina, os pensamentos de James e Stephen
estavam longe, muito longe dali; Stephen deixara de ter qualquer sensação de movimento era como se não viesse de sítio nenhum nem fosse para nenhum sítio; tinha
uma consciência muito vaga de que haveria movimento - e uma consciência mais vaga ainda do presente imediato.
- Até agora - disse ele em voz baixa - não tivemos nenhuma oportunidade de falar. Aguardava com impaciência este momento; e agora que chegou, sinto que, na realidade,
pouco há a dizer.
- Talvez não haja mesmo nada - disse James. - Creio que nos compreendemos perfeitamente.
Isso era certo, certíssimo; certíssimo no que tocava ao fundo da questão; no entanto... no entanto, não pararam de falar durante as horas em que permaneceram refugiados
naquela intimidade.
- Creio que a última vez que nos vimos foi em casa do doutor Emmet disse James, depois de uma longa e pensativa pausa.
- Não. Foi em Rathfarnham, com Edward Fitzgerald. Eu ia a sair da casa de Verão quando você e Kenmare apareceram.
- Em Rathfarnham? Ah, sim, claro... Agora me lembro. Foi logo após a reunião da comissão. Sim, sim, já me lembro. Você era amigo íntimo de Lorde Edward, não era?
- Mantivemos um relacionamento muito próximo em Espanha. Na Irlanda, passei a vê-lo cada vez menos; ele tinha amigos de quem não gostava e em quem não confiava e
eu sempre fui uma pessoa moderada, demasiado moderada, para ele. Embora Deus seja testemunha de que, naquela época, eu era um ardente defensor de toda a humanidade
e um fiel seguidor do republicanismo. Lembra-se do teste?
- Qual deles?
- Aquele que começava por "Você é um homem firme?".
"Sou".
"Firme como?".
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"Firme como um junco".
"Nesse caso, continue".
"Firme na defesa da verdade, da lealdade, da unidade e da liberdade".
"Que traz na sua mão?".
" Um ramo verde".
"Onde cresceu.".
"Na América".
" Onde floresceu ?".
"Em França".
"Onde vai plantá-lo?".
- Não sei mais. Já não me lembro do resto. Não foi esse o teste que me fizeram. Foi outro, muito diferente.
- Sim, estou certo de que foi outro. Mas foi o que me fizeram a mim: naquele tempo, a palavra "liberdade" era para mim uma palavra prenhe de significado. Mas já
então me sentia céptico em relação à palavra "unidade": a nossa sociedade era constituída por membros tão diversos! Sacerdotes, deístas, ateus e presbiterianos;
republicanos visionários, utopistas e homens que, pura e simplesmente, detestavam os Beresfords3. Você e os seus amigos, se bem me lembro, defendiam principalmente
a emancipação.
- Emancipação e reforma. Eu, pelo menos, não pensava numa república; nem tão-pouco os meus amigos da comissão, evidentemente. Na situação actual da Irlanda, converter-se
numa república seria apenas um pouco melhor do que ser uma democracia. O carácter irlandês opõe-se em absoluto à ideia de república. Uma república católica. Nada mais absurdo!
- Aquela garrafa é de brande?
- Sim, creio que sim.
- A propósito, a resposta à última pergunta do teste era "Na coroa da Grã-Bretanha". Os copos estão mesmo atrás de si. Eu sei que foi em Rathfarnham - prosseguiu
Stephen -, porque passei toda a tarde a tentar convencê-lo de que não deveria pôr em prática o seu tresloucado plano para o levantamento: disse-lhe que me opunha
à violência (sempre me opus) e que, mesmo que não me opusesse, abandonaria a sociedade se ele teimasse em levar por diante aquele plano insensato e visionário que
seria a sua própria ruína, e também a ruína de Pamela, a ruína da sua causa e a ruína de muitos
3 Família aristocrática irlandesa envolvida nos acontecimentos políticos da época. (N. do T.)
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homens valentes e devotados. Ele olhou para mim com aquela expressão amável e preocupada, como se sentisse pena de mim, e retorquiu que tinha de encontrar-se consigo
e com Kenmare. Não compreendera rigorosamente nada do que eu lhe dissera.
- Tem tido notícias de Lady Edward, de Pamela?
- Só sei que está em Hamburgo e que a família tem cuidado dela.
- A mais bela mulher que jamais conheci, a mais bela e a mais amável. E não há nenhuma tão corajosa como ela.
"Sim", pensou Stephen, os olhos fixos no brande.
- Nunca desperdicei tantas energias como naquela tarde - disse o médico. - Por essa altura, eu já não defendia nenhuma causa nem nenhuma teoria sobre o melhor governo
para as sociedades dos homens; não teria mexido uma palha pela independência de nenhuma nação, real ou imaginária. No entanto, vi-me obrigado a discutir com extremo
ardor, como se sentisse o mesmo entusiasmo dos primeiros dias da Revolução, quando todos nós transbordávamos de bondade e amor.
- E porquê? Por que razão tinha de falar com ele desse modo?
- Porque tinha de o convencer de que os planos dele não passavam de uma tremenda loucura, tanto mais que já eram conhecidos no Castle, o que não admira, pois ele
estava rodeado de traidores e espiões. Expus os meus argumentos usando de uma firmeza e de uma capacidade de persuasão que ignorava possuir: para dizer a verdade,
saí-me muito melhor do que alguma vez esperara; no entanto, Edward não me ouvia. A sua atenção vagueava. "Repare", disse-me ele a certa altura, "há um papo-roxo
naquele teixo ao pé do caminho". Apercebia-se apenas de que eu estava contra ele, e por isso não prestava a menor atenção às minhas palavras; se é que estava capaz
de me escutar, e talvez não estivesse! Pobre Edward! "Firme como um junco" Quando afinal muitos dos homens que o rodeavam eram a desonestidade personificada: Reynolds,
Corrigan, Davis... Ah, que lástima, que lástima!
- E estava assim tão certo de que não mexeria uma palha, nem que fosse por objectivos moderados?
- Não, nem uma palha. com o fracasso total da revolução em França, o desalento tomou conta de mim. Um desalento que nada nem ninguém poderá descrever... E depois
do que vi em 1798, em ambos os lados - a mais iníqua loucura de um lado, a mais iníqua e brutal das crueldades do outro -, fiquei tão desgostoso e enojado com as
acções que os homens praticam quando inseridos em massas e com as causas que os homens defendem que não seria capaz de dar um passo para reformar o Parlamento, ou
para impedir a união
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ou para provocar o surgimento do milénio4. Claro que falo apenas por mim
- a cada um a sua verdade -, mas o homem como parte de um movimento ou de uma multidão é-me totalmente indiferente. Esse homem é inumano. Nações ou nacionalismo
são palavras que não me dizem rigorosamente nada. Os únicos sentimentos que experimento, sejam eles quais forem, são pelos homens como indivíduos; a minha lealdade,
pouca ou muita, não interessa, é para com indivíduos concretos, unicamente.
- E o patriotismo?
- Meu caro amigo, esse é um debate que já dei por terminado. Mas você sabe tão bem como eu que patriotismo é apenas uma palavra; e uma palavra que, normalmente,
acaba por significar uma de duas coisas: ou o meu país, com razão ou sem ela, o que é odioso, ou o meu país tem sempre razão, o que é uma pura imbecilidade.
- Contudo, no outro dia interrompeu o capitão Aubrey quando ele estava a trautear Croppies lie down
- bom, é claro que eu não sou a coerência personificada... Sobretudo quando se trata de pequenas coisas... Mas quem o é? De qualquer modo, o capitão Aubrey não conhecia
o significado da canção. Nunca esteve na Irlanda e aquando do levantamento encontrava-se nas índias Ocidentais.
- E eu estava no Cabo, graças a Deus. Pelo que me disseram, foi uma coisa terrível.
- Terrível? Por muito que me esforce, não poderei descrever com palavras todos os erros crassos, todas as indecisões, aquela loucura assassina, enfim, a estupidez
de tudo aquilo. O resultado foi nulo; o levantamento atrasou cem anos a independência; semeou o ódio e a violência; gerou uma raça vil de delatores e coisas como
o major Sirr. E, ao mesmo tempo, converteu-nos em presas fáceis de delatores chantagistas. - Fez uma pausa e continuou:
- Porém, voltando a essa canção, devo dizer-lhe que me comportei assim porque não gosto de a ouvir, é certo, mas também porque estavam presentes vários marinheiros
irlandeses e nenhum deles era orangista6; teria sido
4 Conceito constante da Bíblia, em particular do Apocalipse Segundo S. João; tratar-se-ia de um período de mil anos durante o qual Jesus Cristo reinaria sobre a
Terra, antes do Juízo Final. (N. do T.)
5 Croppies lie down, ou "Abaixo os Croppies". Os Croppies eram os rebeldes irlandeses de
1798, quando a simpatia pelos revolucionários franceses era mostrada através de um corte de cabelo curto (de crop, que significa aqui "cabelo à escovinha"). (N.
do T.)
6 Orangista: membro de uma sociedade secreta que surgiu no Norte da Irlanda em 1795 e cujo objectivo consistia em manter o protestantismo e a sua influência na política
irlandesa; esta sociedade colaborou com o exército inglês na repressão dos católicos rebeldes. (N. do T.)
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lastimável se, por causa de uma simples canção, esses homens acabassem por odiar o capitão, quando na mente deste não havia a menor intenção de insultar quem quer
que fosse.
- Gosta muito do capitão, não é verdade?
- Se gosto? Sim, talvez goste. Não diria que é um amigo íntimo: afinal, conheço-o há tão pouco tempo... Mas é certo que estou muito ligado a ele. E lamento que você
não esteja.
- Eu próprio o lamento. Vinha com vontade de gostar dele. Tinham-me dito que era um homem extravagante e caprichoso, embora bom marinheiro, e vontade de gostar dele
era coisa que não me faltava. Mas nos sentimentos não se pode mandar...
- Pois não. Mas é curioso, ou pelo menos é curioso para mim: estou no meio dos dois e sinto estima por ambos. Na realidade, mais do que estima. Mas diga-me: o capitão
Aubrey cometeu alguma falta que ache digna de censura? Se ainda tivéssemos dezoito anos, perguntar-lhe-ia: "O que é que há de errado em Jack Aubrey?".
- E talvez eu respondesse: "Tudo, porque ele tem um comando e eu não" - retorquiu James Dillon com um sorriso. - Mas basta, não me vou pôr a criticar o capitão diante
de um amigo dele.
- Ah, sim, claro, claro que tem defeitos. Sei que é extremamente ambicioso no que toca à sua profissão e que desconhece a paciência quando encontra algum obstáculo
pela frente. Queria apenas saber por que razão você não gostava nele. Ou será apenas uma rejeição superficial, uma antipatia à primeira vista?
- Talvez, é difícil saber. Claro que o capitão é por vezes uma companhia muito agradável; há alturas, porém, em que é nítida aquela insensibilidade arrogante, tão
característica dos ingleses... e há uma coisa que realmente me irrita: a sua loucura pelas presas. A disciplina e o treino que ele impõe aos tripulantes são mais
próprios de um navio pirata faminto do que de um navio de Sua Majestade. Quando perseguimos aquela miserável polacra, não se permitiu um único momento de descanso
em toda a noite. Quem o visse, teria por certo pensado que perseguíamos um navio de guerra e que, no fim da perseguição, seríamos louvados por Sua Majestade. E mal
a presa capturada se afastou do Sophie, ordenou mais exercícios com os canhões e logo as baterias de ambos os costados desataram a atroar os ares.
- Um navio corsário é assim tão indigno? A minha pergunta deve-se apenas a uma total ignorância.
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- bom, um navio corsário tem uma motivação completamente diferente. Um navio corsário não luta por uma questão de honra, mas unicamente por uma questão de ganância.
É um mercenário. Os lucros são a sua raison dêtre.
- Os exercícios com os canhões não poderão ter em vista um objectivo mais honroso?
- Ah, sim, claro. É muito possível que eu esteja a ser injusto... ou que padeça de inveja... ou que, enfim, peque por pouca generosidade... Desculpe-me se o ofendi.
Além do mais, reconheço de bom grado que o capitão é um marinheiro excelente.
- Santo Deus, James! Já nos conhecemos bem para podermos dizer tudo o que nos vai na alma sem nos preocuparmos com eventuais ofensas! Passa-me a garrafa?
- bom, nesse caso... - começou James. - Se me é permitido falar com tanta liberdade como se estivesse numa casa vazia, dir-lhe-ei uma coisa: acho que o capitão encoraja
aquele tipo, o Marshall, de uma maneira indecente, isto para não usar um termo mais grosseiro.
- Creio não estar a perceber...
- Não conhece a história desse tipo?
- Que tem de especial a história dele?
- O que tem de especial é que ele é um pederasta.
- É possível.
- Tenho provas disso. Tive-as em Cagliari, embora, para dizer a verdade, não precisasse delas. E o tipo está perdido de amores pelo capitão Aubrey, por isso trabalha
que nem um forçado das galés; e se o deixassem, esfregaria com zorra todo o castelo de popa. Chega a perseguir os homens com muito mais zelo do que o contramestre,
e tudo para conquistar um sorriso do capitão.
Stephen aquiesceu.
- Sim - disse. - Mas não pensará por certo que Jack Aubrey partilha das inclinações de Marshall...
- Não. Mas creio que tem consciência dessas inclinações e que encoraja o tipo. Ah, eu sei que é torpe da minha parte estar a falar assim. Excedi-me. Talvez esteja
bêbedo... A garrafa já está quase vazia.
Stephen encolheu os ombros.
- Não. Mas olhe que está redondamente enganado. Posso garantir-lhe, e digo-o com a maior seriedade e sobriedade, que o capitão não tem a menor noção do que se passa.
Nalgumas coisas, o capitão não é de facto muito
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perspicaz; e segundo a sua visão simplista do mundo, os pederastas só são perigosos para os grumetes que servem a pólvora e para os meninos de coro, ou para aquelas
criaturas efeminadas que podem ser encontradas nos bordéis do Mediterrâneo. Fiz uma tentativa mais ou menos encoberta para o instruir um pouco sobre o tema, mas
ele olhou-me com um ar de entendido e atiroume: "Ora, doutor, não me venha com mais histórias de traseiros e vícios; não se esqueça de que passei toda a minha vida
na Marinha!".
- Nesse caso, deve estar um pouco carente de penetração.
- James, espero que esse comentário seja inteiramente inocente.
- Tenho de subir à coberta - disse James, olhando para o relógio. Regressou passado um bocado, depois de ter assistido ao revezamento do homem do leme e de ter verificado
o rumo da corveta; trouxe consigo uma rajada do ar frio da noite e sentou-se em silêncio até sentir de novo o calor da cabina. Stephen Maturin tinha aberto outra
garrafa.
- Há ocasiões em que não sou inteiramente justo - disse James pegando no seu copo. - Sou demasiado susceptível, eu sei; mas quando estamos rodeados de protestantes
e ouvimos aquela cantilena deles, aquela cantilena hipócrita, estúpida e grosseira, a nossa vontade é fugir. E como não podemos fugir numa direcção, fugimos noutra.
É uma tensão constante, como você deve saber, e melhor do que ninguém.
Stephen fitou-o com toda a atenção, mas não lhe disse nada.
- Sabia que eu era católico? - disse James.
- Não, não sabia - retorquiu Stephen. - Sabia, sim, que uma parte da sua família era católica; mas quanto a si... Não acha que isso o coloca numa posição difícil?
- perguntou-lhe, hesitante. - com o juramento... as leis penais...?
- De modo nenhum - disse James. - No que se refere a essas coisas, sinto-me absolutamente tranquilo.
"Isso é o que você pensa, meu pobre amigo", disse Stephen para si mesmo enquanto enchia de novo o copo para ocultar a sua expressão.
Por um momento, pareceu que James Dillon ia continuar a falar daquele tema, mas não o fez: houve uma ligeiríssima mudança no delicado equilíbrio que se estabelecera
entre os dois homens, e a conversa mudou de rumo. Continuaram a falar, com raros momentos de silêncio, mas agora os temas eram os amigos comuns e os deliciosos dias
que tinham vivido juntos num passado que lhes parecia já muito distante. Tantas pessoas que tinham conhecido! Tão notáveis, algumas delas, tão divertidas, outras!
Outras ainda, tão respeitáveis!
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Quando a conversa terminou, já tinham esvaziado a segunda garrafa. James voltou à coberta.
Desceu ao fim de meia hora e, ao entrar na cabina, como se retomasse uma conversa entretanto interrompida, disse para Stephen:
- E, além disso, é claro, temos a questão da promoção. vou dizer-lhe uma coisa que quero que mantenha em segredo, embora não devesse dizê-la: pensava que me dariam
um comando depois do caso do Dart; pode crer que se sofre muito quando se é desprezado desta forma. - Fez uma pausa e perguntou: - Como é que se chamava aquele sujeito
de quem se dizia que tinha ganho mais dinheiro com a picha do que no exercício da sua profissão?
- Selden. Mas, neste caso, creio que essa apreciação é completamente despropositada. Em minha opinião, tratou-se de um processo normal que envolveu alguns empenhes,
nada mais. Também não estou a dizer que Jack Aubrey é o mais casto dos indivíduos, mas estou certo de que esse tipo de comentários, no caso de Jack Aubrey, não tem
a menor pertinência.
- bom, seja como for, pretendo ser promovido. Digo-lhe com toda a franqueza: como qualquer outro marinheiro, dou muitíssimo valor à promoção; e servir sob as ordens
de um capitão que só pensa em caçar presas não é o caminho mais rápido para a alcançar.
- bom, eu nada sei de assuntos navais: mas pergunto-me, sim, pergunto-me se não será demasiado fácil para um homem rico menosprezar o dinheiro, confundir os verdadeiros
motivos... prestar demasiada atenção a simples palavras e...
- Santo Deus! Não me diga que está a chamar-me rico!
- Já cavalguei pelas suas terras, James.
- Três quartos delas são montanhas, o quarto restante são pântanos; e mesmo que me pagassem rendas por algumas delas, seriam apenas umas centenas de libras por ano,
não chegaria às mil...
- Sinto muito, James, mas chorar não posso... - retorquiu Stephen ironicamente. - Nunca conheci ninguém que admitisse ser rico ou dorminhoco: talvez os pobres e
os que dormem pouco tenham alguma superioridade moral, não sei... De onde virá esta tendência? bom, mas voltando ao tema... Ninguém duvida por certo que Jack Aubrey
é tão valente como os mais valentes e que é um homem perfeitamente capaz de conduzir os seus homens em acções de guerra gloriosas e admiráveis...
- Está assim tão certo da sua coragem?
"Ah, finalmente! Aí está o verdadeiro motivo da sua animosidade!", pensou Stephen. - Não - disse ele em voz alta. - Não o conheço o
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suficiente. Mas ficaria espantado, verdadeiramente espantado, se o capitão se revelasse um cobarde. O que o leva a pensar que o capitão possa ser um cobarde?
- Eu não digo que seja. Não seria capaz de dizer que um homem não é corajoso sem dispor de provas. Mas deveríamos ter apresado aquela galera. Poderíamos tê-la abordado
e capturado em vinte minutos.
- Ah sim? Eu não percebo nada dessas coisas, e, além disso, estava cá em baixo quando se deu o incidente. Mas ouvi dizer que o mais prudente era dar a volta, a fim
de proteger o resto do comboio.
- A prudência é uma grande virtude, quanto a isso não há dúvida disse James.
- bom. E a promoção significa muito para si, não é verdade?
- Claro que significa. Nunca houve um único oficial, por pouco valor que tivesse, que não desejasse ardentemente o comando de um navio. Mas posso ver, pela sua expressão,
que acha que sou uma pessoa incoerente. Compreenda a minha posição: eu não quero nenhuma república. Eu apoio as instituições estabelecidas, consolidadas, e também
a autoridade, desde que não seja tirânica. Tudo o que peço é um parlamento independente, um parlamento onde estejam sentados os homens responsáveis do reino e não
um miserável punhado de arrivistas e oportunistas. Sendo assim, não posso deixar de estar satisfeito, perfeitamente satisfeito, com a união com a Inglaterra, perfeitamente
satisfeito com os dois reinos: garanto-lhe que, se fizer um brinde à lealdade, esvazio o copo de uma só vez e não me engasgo.
- Por que está a apagar a luz? James sorriu.
- Porque o dia está a nascer - disse ele, apontando com a cabeça para a janela da cabina e para a luz acinzentada que começava a iluminar o mar.
- Vamos até à coberta? É possível que já se vejam as montanhas de Minorca. Deve faltar muito pouco; e creio que poderá ver alguns desses pássaros a que os marinheiros
chamam pardelas, bastará que nos abeiremos o suficiente do penhasco de Fornells.
com um pé já na escada do tombadilho, James virou-se e olhou Stephen nos olhos.
- Não compreendo o que me levou a falar com tanto rancor - disse ele passando a mão pela testa com uma expressão simultaneamente infeliz e desconcertada. - Creio
que nunca procedi assim. Não, de facto não me expressei bem: fui deselegante, incorrecto; não disse o que pensava, nem o que realmente queria dizer. Não há dúvida:
antes de eu ter aberto a boca, entendíamo-nos muito melhor.
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CAPÍTULO SEIS
M r Florey, o cirurgião, era solteiro; tinha um casarão situado numa zona alta, perto da Igreja de Santa Maria; e com a liberalidade que lhe era permitida pelo seu
estado civil, convidou o doutor Maturin a ficar em sua casa sempre que o Sophie voltasse a Mahón para reabastecimento ou reparações, e pôs à sua disposição, para
guardar as bagagens e as colecções, uma divisão que já albergava o hortus siccus que Mr Cleghorn, cirurgião da guarnição de Mahón há quase trinta anos, reunira num
sem-número de poeirentos volumes.
Era uma moradia esplêndida para os espíritos mais dados à meditação: com o cume do penhasco de Mahón por detrás, a mansão erguia-se sobre o cais dos navios mercantes
a uma altura absolutamente estonteante - uma altura tal que o bulício do porto chegava aos ouvidos dos seus habitantes como um simples zunido de um insecto, não
mais do que um fundo impreciso, ideal para as deambulações do pensamento. O quarto de Stephen ficava nas traseiras, e era fresco porque estava virado a norte e dava
para o mar; e Stephen sentava-se junto à janela aberta, com os pés enfiados numa bacia cheia de água quente, escrevendo o seu diário, enquanto lá fora os andorinhões
(comuns, brancos e alpinos) se lançavam em velozes corridas pelo ar tórrido e reverberante que havia entre ele e o Sophie, o qual mais parecia um brinquedo perdido
na lonjura do porto, amarrado ao cais de reabastecimento.
"Pelos vistos, James Dillon é católico", escreveu ele com a sua letra minúscula, secreta. "Mas não era. Ou melhor, o facto de ser católico não
1 Expressão latina (à letra "horta seca"): herbário, colecção de plantas secas conservadas entre folhas de papel para estudos botânicos. (N. do T.)
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influenciava de forma determinante o seu comportamento, nem o levava a considerar uma blasfémia como algo de intoleravelmente doloroso. Não era, sob nenhum aspecto,
um homem religioso. Terá havido alguma conversão, alguma transformação loyoliana? Espero que não. Quantos católicos haverá na Armada que ocultam a sua condição?
Gostaria de lho perguntar, mas seria uma pergunta muito indiscreta. Lembro-me de o coronel Despard me ter dito que, em Inglaterra, o bispo Challoner dava uma dúzia
de dispensas por ano a pessoas interessadas em receber os sacramentos de acordo com os ritos da Igreja anglicana. O coronel T... o dos distúrbios de Gordon, era
católico. Estaria Despard a referir-se unicamente às forças armadas? Na altura não me ocorreu perguntar-lhe. Será essa a causa da perturbação de James Dillon? Sim,
creio que sim. Por detrás de toda aquela agitação há por certo uma pressão muito forte. Além disso, parece-me que atravessa um período crítico, um momento de viragem
na sua vida, um momento que o conduzirá àquela rota que nunca mais abandonará, àquela rota que continuará a seguir pelo resto da sua vida. Muitas vezes tenho pensado
que é nesta fase (uma fase em que nos encontramos os três, de uma maneira ou de outra) que os homens cunham definitivamente o seu carácter; ou então é o seu carácter
que se cunha definitivamente neles. Antes desta fase, predominam a alegria, a exuberância, o entusiasmo; depois, por acção de um qualquer encadeamento de casualidades,
ou devido a alguma preferência íntima (ou talvez a uma tendência inerente), o homem avançará por um caminho que nunca mais poderá deixar, e por esse caminho seguirá,
tornando-o cada vez mais fundo (um sulco, ou um canal) até se perder por completo nos meandros do seu carácter - da sua máscara -, até perder por completo a sua
humanidade, convertendo-se numa mera acumulação de atributos, os atributos que definem o seu carácter. James Dillon era uma criatura encantadora. Agora está a fechar-se
sobre si mesmo. É estranho - ou deverei dizer: triste, muito triste? - esse processo pelo qual os homens perdem a alegria: a alegria de espírito, a alegria que brota
naturalmente, espontaneamente. A autoridade é o seu grande inimigo: o facto de se possuir autoridade. Dos homens com mais de cinquenta anos que conheço, poucos são
os que me parecem inteiramente humanos, e nenhum deles sim, praticamente nenhum - exerceu funções de autoridade durante muito tempo. Os oficiais superiores que aqui
se encontram são disso um bom exemplo: o almirante Warne, por exemplo. Homens mirrados, ressequidos (mirrados e ressequidos na essência; não nas barrigas, infelizmente).
Para isso contribuem a pompa inerente aos cargos, um regime alimentar nada saudável, algum prazer demasiado tardio e excessivamente caro, como ir para a cama
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com uma amante demasiado fogosa. No entanto, Lorde Nelson, segundo Jack Aubrey, é um homem extremamente franco, simples e amável. Tal como o próprio Jack Aubrey,
em muitos aspectos; ainda que por vezes, e sem se dar conta disso, mostre alguma arrogância, aquela arrogância que decorre do poder. Contudo, não há dúvida de que
Jack Aubrey conserva a sua alegria. Durante quanto tempo? Que mulher, que causa política, que decepção, ferida, doença, filho rebelde, derrota, que acontecimento
estranho ou imprevisto lhe roubará toda a alegria de que agora dá provas? Mas estou preocupado com James Dillon: mostra-se tão instável como sempre - ou mais ainda.
Só que agora, e para usar a terminologia musical, tudo se passa dez oitavas abaixo e num tom muito mais sombrio; e por vezes temo que, num momento de mau humor,
cause a si mesmo danos irreparáveis. Daria tudo para que ele e Jack fossem bons amigos! São tão parecidos em tantos aspectos! E James é um indivíduo aberto à amizade:
quando compreender que está enganado acerca da conduta de Jack, por certo tomará uma atitude completamente diferente. Mas... alguma vez compreenderá? Não continuará
ele a concentrar em Jack todo o seu descontentamento? Se assim for, não há razão para esperanças, porque o descontentamento, e a luta interior, devem ser por vezes
muito violentos num homem tão desprovido de humor (ocasionalmente) e tão profundamente exigente no que respeita à honra. Vê-se obrigado a conciliar o inconciliável
com muito mais frequência do que a maioria dos homens; e está menos capacitado para o fazer. E, diga ele o que disser, a verdade é que James sabe, tão bem como eu,
que corre o perigo de uma horrível confrontação: suponhamos, por exemplo, que tinha acompanhado Wolfe Tone2 em Lough Swilly... E se Emmet consegue convencer os franceses
a invadir de novo? E se Bonaparte se reconcilia com o Papa? Não é impossível. Mas, por outro lado, James é de facto uma criatura instável; e, se num dos seus momentos
de entusiasmo, começar a apreciar Jack como deveria, é certo e sabido que não mudará - não será possível encontrar maior afeição e lealdade. Daria tudo para que
fossem bons amigos!".
Suspirou e arrumou a pena. Pô-la sobre a tampa de um frasco com álcool, onde conservara uma das mais notáveis áspides que jamais vira - uma áspide grossa, venenosa,
de focinho achatado, toda enroscada agora no seu
2 Wolfe Tone (1763-1798): político irlandês, fundador dos United Irishmen. Em 1795 foi desterrado para a América devido às suas ideias independentistas. Regressou
a França, onde preparou uma invasão da Irlanda com forças francesas, que fracassou. Foi capturado em Lough Swilly, onde entrara com três mil homens. (N. do T.)
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novo habitat alcoólico, os olhos de pupila fendida fitando-o através do vidro. Esta áspide era um dos frutos do tempo que tinham passado em Mahón antes de o Sophie
ter voltado, trazendo atrás de si uma terceira presa, uma tartana espanhola de tamanho médio. E, junto à áspide, havia dois objectos relacionados com o Sophie: um
relógio e um óculo. No relógio, faltavam vinte minutos para a hora marcada; daí que Stephen tenha pegado no óculo para observar a corveta. Jack Aubrey ainda estava
a bordo, resplandecente no seu melhor uniforme, discutindo com James e com o contramestre algum problema da parte superior da enxárcia: estavam os três a apontar
para cima, os três inclinando-se ao mesmo tempo, ora para um lado ora para o outro, o que lhes dava um ar francamente cómico.
Encostando-se ao parapeito da pequena varanda, Stephen observou o cais e a entrada do porto através do óculo. Reconheceu quase de imediato o rosto muito vermelho
do marinheiro George Pearce, deitado de costas no chão num júbilo extasiado: estavam com ele alguns dos seus companheiros; a cena passava-se perto do amontoado de
tabernas que se estendia até aos curtumes; e os homens passavam o tempo a jogar às pedrinhas nas águas calmas. Eram tripulantes do Sophie que tinham levado as duas
presas e haviam sido autorizados a ficar em terra, ao passo que o resto da tripulação continuava a bordo da corveta. Mas todos tinham participado na primeira distribuição
do dinheiro das presas; e, observando mais atentamente aqueles homens, e reparando no brilho prateado das supostas pedrinhas que estavam a atirar e nos frenéticos
mergulhos dos rapazitos nus nas águas pouco profundas e malcheirosas, Stephen percebeu que aquelas criaturas estavam a dilapidar a sua riqueza da forma mais expedita
que mente humana podia conceber.
Nesse instante, um bote afastava-se do Sophie, e, pelo seu óculo, Stephen viu o timoneiro cuidando do estojo do seu violino com um ar digno e cerimonioso. Recostou-se,
tirou um pé da água - que já estava tépida e fitou-o por um momento, meditando sobre as diferenças anatómicas entre as extremidades inferiores dos mamíferos superiores:
cavalos, macacos, o orangotango que os viajantes africanos referiam, ou o chimpanzé de M. de Buffon, seres sociáveis e brincalhões na sua juventude, mas carrancudos,
taciturnos e esquivos depois de crescidos. Qual era o verdadeiro modo de ser do orangotango? "Quem sou eu", pensou, "para afirmar que o macaco jovem e alegre é tão-só
a crisálida (por assim dizer, a pupa) do velho soturno e solitário? Quem sou eu para afirmar que o segundo modo de ser não é o desfecho natural e inevitável, a verdadeira
natureza do orangotango, infortunadamente?".
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- Estava a meditar acerca do orangotango - disse Stephen Maturin em voz alta logo que a porta se abriu e Jack entrou com um rolo de partituras e uma expressão de
ávida expectativa.
- Não duvido, não duvido - disse Jack. - Parece-me um tema muito respeitável, um tema digno das mais apuradas meditações. Mas agora despache-se. Tire o pé da bacia.
Por que raio é que meteu os pés em água quente? Vá, enfie depressa as meias. Não temos um minuto a perder. Não, as meias azuis não; vamos à festa de Mrs Hart, ou
melhor, à sua recepção.
- Devo levar meias de seda?
- Claro que deve levar meias de seda. Mas despache-se, homem. Chegaremos tarde se não desfraldar um pouco mais as velas.
- Está sempre tão apressado... - disse Stephen, irritado, enquanto mexia e remexia nas suas coisas. Uma cobra de Montpellier escorregou do meio das roupas, produzindo
um som roçagante, e atravessou o quarto numa série de curvas extraordinariamente elegantes, a cabeça erguida umas dezoito polegadas acima do chão.
- Oh! - gritou Jack, saltando para cima de uma cadeira. - Uma cobra!
- Acha que estas servem? - perguntou Stephen. - Têm um buraco...
- É venenosa?
- Muitíssimo. Ou me engano muito, ou está com vontade de o atacar. Sim, sim, creio que vai atacá-lo. Se calçasse as meias de seda por cima das de estambre, com certeza
que não se notava o buraco... Mas sufocaria de calor... Não acha que está um calor horrível?
- Deve ter duas braças de comprido. Diga-me, é mesmo venenosa? Dá-me a sua palavra de honra que é venenosa?
- Se enfiar a sua mão na boca dela até aos dentes de trás, é natural que encontre algum veneno; de contrário, não achará veneno nenhum. A Malpolon monspessulanus
é uma cobra perfeitamente inofensiva. Estou a pensar levar uma dúzia delas para o Sophie, por causa dos ratos. Ah, se eu tivesse mais tempo e se os homens não perseguissem
os répteis de uma forma tão estúpida e intolerante... Que figura triste que o meu amigo está a fazer em cima dessa cadeira... Barney, Barney, buck or doe Hás kept
me out ofChannel Row - cantou ele para a cobra; e embora esta fosse surda como todas as cobras, o certo é que o fitava toda contente enquanto ele a levava.
Visitaram primeiro Mr Brown, do estaleiro. E depois das saudações, apresentações e felicitações pela esplêndida sorte de Jack, interpretaram o Quarteto em si bemol
de Mozart, com grande aplicação e notório entusiasmo;
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Miss Brown tocava viola - o que lhe sobrava em doçura, faltava-lhe em convicção. Nunca tinham tocado juntos, nunca tinham ensaiado aquela peça; não admira que o
resultado global se caracterizasse por uma divergência extrema, ou seja, o exacto oposto do que se pretendia; contudo, todos eles mantiveram um ar radiante enquanto
a peça durou, e a audiência - Mrs Brown, que tricotava tranquilamente, e um gato branco - ficou radiante com a interpretação.
Jack estava muito animado e excitado, mas o seu grande respeito pela música obrigou-o a controlar-se durante todo o quarteto. Foi durante a refeição que se seguiu
- um par de galinhas, língua glaceada, sillabuíflummery4 e maids of honour - que começou a afrouxar as rédeas. Como tinha sede, bebeu dois ou três copos de Sillery
sem se dar conta de que os bebera: e a sua cara estava cada vez mais vermelha, e ainda mais alegre do que o costume, a sua voz decididamente mais masculina, e o
seu riso mais descontraído: fez um relato muitíssimo colorido de como Stephen tinha serrado a cabeça do condestável e de como a tinha posto melhor do que antes;
e, de quando em quando, os seus olhos azuis muito brilhantes fixavam-se no peito de Miss Brown, que a moda desse ano (exagerada pela distância que os separava de
Paris) cobrira com um nada de gaze.
Stephen emergiu dos seus devaneios e reparou na expressão grave de Mrs Brown; Miss Brown olhava recatadamente para o seu prato e para Mr Brown, que também tinha
bebido muito e embalara numa história que, a crer nos primeiros capítulos, prometia um desfecho lamentável. Mrs Brown era muito indulgente com os oficiais que tinham
passado longas temporadas no mar, especialmente com aqueles que voltavam triunfantes de um cruzeiro e que, por isso mesmo, mostravam grande predisposição para o
divertimento; contudo, era muito menos indulgente com o marido, e conhecia aquela história há uma eternidade, tal como aquele olhar algo vítreo com que ele ficava
depois de bem bebido.
- Venha, minha querida - disse ela finalmente para a filha. - Creio que será melhor deixarmos os senhores sozinhos, para conversarem mais à vontade.
3 Sobremesa à base de natas (ou leite) batidas com açúcar e por vezes com claras de ovo, e aromatizada com vinho ou licor. (N. do T.)
4 Doce frio em forma de pudim feito com farinha ou cereais, a que se juntam frutos (frescos ou secos). (N. do T.)
5 Folhado com recheio de creme doce, aromatizado com pasta de amêndoa e limão. (N. do T.)
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A recepção de Molly Harte era um acontecimento social literalmente de arromba; os convidados eram de facto uma multidão, e uma multidão heterogénea - estavam lá
quase todos os oficiais, eclesiásticos, civis, comerciantes e notáveis de Minorca; de tal modo que Molly Harte, para os abrigar a todos, mandara colocar um toldo
enorme sobre o pátio do Senor Martinez; como a música era de regra, a banda militar do Forte de San Felipe tocava para o distinto ajuntamento, instalada naquele
que costumava ser o escritório do comandante.
- Permita-me que lhe apresente o meu amigo, um amigo do coração, o médico e cirurgião Stephen Maturin - disse Jack, conduzindo Stephen à presença da anfitriã. -
Mrs Harte.
- Um seu criado, minha senhora - disse Stephen fazendo uma respeitosa vénia.
- Agrada-me muito contar com a sua presença, doutor Maturin - disse Mrs Harte, sentindo desde logo uma irresistível inclinação para abominar aquele homem.
- Dr Maturin, capitão Harte - prosseguiu Jack.
- Muito prazer - disse o capitão Harte, sentindo imediatamente uma forte antipatia por aquele indivíduo, ainda que por motivos completamente distintos dos de Mrs
Harte; e, olhando por cima da cabeça de Stephen, estendeu uns relutantes dedos por altura da rotunda barriga. Stephen fitou deliberadamente os relutantes dedos,
deixou-os pendurados onde estavam e, sem dizer nada, respondeu com uma vénia de cortês insolência que condizia tão bem com as tenebrosas boas-vindas do anfitrião.
Molly Harte não se pôde impedir de pensar: "É mais que certo: vou gostar daquele homem". Jack e Stephen seguiram em frente para deixarem espaço aos outros, pois
a maré de gente estava a crescer rapidamente: os oficiais da Marinha, pelos vistos, tinham chegado todos ao mesmo tempo, ou seja, poucos segundos depois da hora
marcada.
- Ora aqui está ele! Jack, o afortunado! - exclamou Bennet, do Aurore.
- Palavra de honra, Jack, vocês saíram-se muito bem! Quase não conseguia entrar em Mahón, tantas eram as vossas presas! Os meus parabéns, Jack! Mas, francamente,
veja lá se deixa alguma coisa para a reforma dos velhotes!
- Ora, meu caro - disse Jack, rindo-se e pondo-se ainda mais vermelho do que já estava -, a explicação para o nosso êxito é muito simples: sorte
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de principiante! Uma sorte que muito em breve se dissipará. E depois, bom, depois lá ficaremos nós a chuchar outra vez no dedo!
Havia à volta dele uma meia dúzia de oficiais da Marinha, da sua idade e mais velhos; todos o felicitavam, alguns com tristeza, outros com um pouco de inveja, sem
dúvida, mas todos com aquela benevolência espontânea que Stephen encontrara já tantas vezes na Marinha; e enquanto se dirigiam em bloco para uma mesa com três enormes
poncheiras e um regimento de copos, Jack contou-lhes, com todos os pormenores e uma desinibida abundância de termos do jargão marinheiro, como correra cada captura.
Escutaram-no em silêncio, com extrema atenção, por vezes aquiescendo com a cabeça e semicerrando os olhos; e Stephen disse para si mesmo que, a certos níveis, era
possível uma comunicação perfeita entre os homens. Depois, tanto ele como a sua atenção se desviaram do grupo; postou-se junto a uma laranjeira com um copo de ponche
de aguardente na mão; e aí, com uma expressão francamente radiante, pôde observar, de um lado, os uniformes, e do outro, através dos ramos da árvore, os sofás e
as cadeiras baixas onde estavam sentadas várias mulheres, esperando que homens vários lhes trouxessem gelados e sorvetes; e esperando em vão, pelos vistos, já que
pelo menos os marinheiros que estavam à sua esquerda não mostravam qualquer pressa em servi-las. As senhoras suspiravam pacientemente, na esperança de que maridos,
irmãos, pais, amantes, não se embriagassem demasiado; e sobretudo com a esperança de que o vinho não despertasse neles o apetite por distúrbios ou brigas.
O tempo foi passando; a lenta corrente da festa, num dos seus redemoinhos, aproximou o grupo de Jack da laranjeira, e Stephen pôde ouvi-lo dizer a certa altura:
- Há tempestade no mar esta noite.
- Está tudo muito certo, Aubrey - disse um capitão pouco depois -, mas os tripulantes do Sophie, quando vinham a terra, costumavam ser uns homens tranquilos e decentes.
Agora que têm umas moedas nos bolsos, armam barulho por tudo e por nada. E que barulho! Comportam-se como um grupo de babuínos loucos. Agrediram brutalmente os homens
da barcaça do meu primo Oaks, sob o absurdo pretexto de que tinham um médico a bordo, o que lhes daria o direito de levar uma barcaça de um navio de linha que possui
um simples cirurgião: um pretexto positivamente absurdo! Não há dúvida: as duas ou três moedas que trazem nos bolsos puseram-nos fora de si.
- Lamento muito que os homens do capitão Oaks tenham sido agredidos - disse Jack, sinceramente preocupado. - Mas o que os meus homens
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dizem é a pura verdade. De facto, temos a bordo um médico, um verdadeiro perito nas artes da medicina, tanto com a serra como com o clister. - Jack olhou à sua volta
com uma expressão amável. - Não sei onde se meteu, mas ainda há pouco estava comigo... Mas eu conto-lhes o que ele fez: abriu o crânio do nosso condestável, tirou-lhe
os miolos para fora, pô-los em condições e voltou a metê-los lá dentro. Garanto-lhes, meus senhores, que não me atrevia a olhar... E, por fim, disse ao armeiro que
fosse buscar uma moeda de uma coroa e lhe desse com o martelo para ficar mais fina e com a forma de uma pequena abóbada, não sei se estão a ver, ou de uma malga
pequena, assim arredondada, e então colocou-a no crânio e deu-lhe voltas e mais voltas até ela ficar bem ajustada e, por fim, coseu o couro cabeludo tão bem como
o melhor dos veleiros. Ora bem, meus senhores: a isto é que eu chamo medicina, uma ciência que está nos antípodas desses malditos comprimidos que nos dão a torto
e a direito e das desgraçadas esperas a que condenam os doentes. Ah... mas aqui está ele!
Saudaram-no afavelmente, insistiram em que bebesse um copo de ponche, mais um copo de ponche - todos tinham já bebido muito; era uma bebida muito saudável, um ponche
excelente, a bebida mais apropriada para um dia tão quente. A conversa prosseguiu animada, mas Stephen e um capitão chamado Nevin mantinham-se algo silenciosos.
Stephen reparou no olhar absorto e meditativo de Nevin - um olhar que lhe era muito familiar - e não achou estranho que este o levasse para trás da laranjeira, onde
lhe contou em voz baixa e num tom grave e confidencial, mas francamente desinibido, que tinha dificuldades em digerir mesmo as comidas mais simples! Há um ror de
anos que os médicos conheciam a dispepsia do capitão Nevin, mas não havia um único capaz de lhe achar remédio; mas ele estava certo de que a maldita dispepsia não
resistiria às superiores faculdades de Stephen. O melhor seria contar ao doutor Maturin todos os pormenores de que conseguisse lembrar-se, porque se tratava de um
caso muito singular e interessante, como lhe dissera Sir John Abel - Stephen conhecia Sir John? -, mas, para ser franco (baixou a voz e olhou furtivamente à sua
volta), tinha de admitir que também tinha certas dificuldades na... enfim, na evacuação... Continuou a falar em voz baixa, tão baixa quanto insistente; e enquanto
o capitão Nevin falava, Stephen permaneceu com as mãos atrás das costas, a cabeça baixa, o rosto gravemente inclinado numa atitude atenta. E de facto não estava
desatento; mas também não estava tão concentrado nas palavras de Nevin ao ponto de não poder ouvir Jack exclamar: "Sim, sim, os outros também virão a terra. Estão
em fila ao longo da amurada, com o vestuário adequado para virem a
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terra, dinheiro nos bolsos, os olhos fora das órbitas e as pichas com uma jarda de comprido". Seria quase impossível não o ouvir, pois Jack possuía uma voz bem projectada
e o seu comentário surgira no meio de um daqueles curiosos momentos de silêncio que ocorrem mesmo em assembleias muito numerosas.
Stephen lamentou o comentário; e lamentou o efeito que produziu nas senhoras que estavam sentadas do outro lado da laranjeira, as quais se foram levantando e afastando
com o seu passinho miúdo e, em muitos casos, com olhares de indignação; mas lamentou muito mais que Jack, com a cara da cor de um tomate e uma expressão de tresloucado
júbilo nos olhos faiscantes, lhes tivesse atirado, triunfante: "Não precisam de se apressar, minhas senhoras. Eles só vêm a terra depois do canhonaço da noite!".
A conversa aumentou decididamente de intensidade, sufocando a eventualidade de novos comentários deste jaez; o capitão Nevin concentrava-se de novo no seu cólon
quando Stephen sentiu uma mão no braço; era Mrs Harte, que sorria para o capitão Nevin de tal maneira que este logo recuou e, em recuando, desandou, acabando por
desaparecer por detrás das poncheiras.
- Doutor Maturin, por favor, leve o seu amigo - disse Molly Harte numa voz baixa, urgente. - Diga-lhe que o navio está a arder, diga-lhe qualquer coisa, mas leve-o
já daqui, pois receio que venha a fazer qualquer coisa de que se arrependerá.
Stephen aquiesceu. De cabeça baixa, avançou na direcção do grupo, pegou em Jack pelo cotovelo e disse-lhe: -Venha, venha, venha - num meio-sussurro tão estranho
quanto imperativo, ao mesmo tempo que saudava aqueles cuja conversa interrompera. - Venha, capitão, pois não temos um minuto a perder!
"Quanto mais depressa nos fizermos ao mar, melhor", murmurou Jack Aubrey, fitando ansiosamente o porto de Mahón, iluminado por escassa luz. Seria aquele bote a sua
própria lancha, com o resto dos homens de licença, ou seria um mensageiro do furioso e implacável comandante, com ordens para que o cruzeiro do Sophie fosse anulado?
Estava ainda algo transtornado por causa dos excessos da noite anterior, mas a parte mais estável da sua mente, sempre que podia, garantia-lhe que só tinha feito
asneiras, que poderiam
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tomar medidas disciplinares contra ele sem que ninguém as achasse injustas ou abusivas. Naquele momento, daria tudo - absolutamente tudo - para não se encontrar
com o capitão Harte.
O escasso vento que soprava vinha de oeste - um vento peculiar, húmido, que espalhava por todo o lado o cheiro infecto dos curtumes. Mas servia para ajudar o Sophie
a abandonar o porto e a afastar-se para o alto mar, onde a sua própria língua não o atraiçoaria; onde Stephen não seria mal visto pelas autoridades; e onde Babbington,
esse endemoninhado rapaz, não teria de ser salvo da fúria das mulheres velhas da cidade. E onde James Dillon não poderia bater-se em duelo. Aos seus ouvidos só havia
chegado um vago rumor: pelos vistos, era mais um daqueles incidentes idiotas e terríveis que costumam ocorrer em todas as guarnições depois de uma ceia bem regada
e que lhe poderia ter levado o seu primeiro oficial - o melhor de todos os oficiais que haviam viajado com ele, por muito empertigado e imprevisível que fosse.
O barco reapareceu sob a popa do Aurore. Afinal sempre era a lancha, e vinha a abarrotar de marinheiros de licença: havia ainda uma ou duas almas alegres entre eles,
mas, de um modo geral, aqueles que conseguiam pôr-se de pé não se pareciam nada com os tripulantes que tinham ido a terra - para além de já não terem nenhum dinheiro
nos bolsos, mostravam-se silenciosos, tristes e abatidos. Quanto aos que não conseguiam pôr-se de pé, deitaram-nos no chão, uns ao lado dos outros e junto de outros
que tinham chegado antes.
- Estão todos a bordo, Mr Ricketts?
- Estão todos a bordo, meu capitão - retorquiu o guarda-marinha com um ar francamente esgotado -, excepto Jessup, o ajudante do cozinheiro, que partiu uma perna
devido a uma queda nas Pigtail Stairs, e Sennet, Richards e Chambers, da gávea do traquete, que foram para Penang com alguns soldados.
- Sargento Quinn!
Mas o sargento Quinn não conseguia dar uma resposta em condições. Conseguia pôr-se de pé e permanecer direito, mas a sua única resposta a tudo o que Jack lhe perguntava
era "Sim, meu capitão", seguida de uma continência.
- Todos os marinheiros estão a bordo, excepto três - disse-lhe James em privado.
- Obrigado, Mr Dillon - disse Jack olhando de novo para a cidade.
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Viam-se algumas luzes pálidas movendo-se na escuridão do penhasco.
- Nesse caso, creio que será melhor fazermo-nos ao mar.
- Sem esperar pelo resto da água, meu capitão?
- Que quantidade é? Parece-me que duas toneladas. Sim: viremos buscá-la noutra ocasião, juntamente com os marinheiros que faltam. Mr Watt, toda a tripulação a soltar
amarras: e que o façam em silêncio, por favor!
Disse isto não só porque sentia umas pontadas terríveis na cabeça (a perspectiva de os ouvir berrar não lhe agradava rigorosamente nada), mas também porque desejava
que o Sophie zarpasse sem chamar a atenção de ninguém. Por sorte, a corveta estava amarrada com simples espias à proa e à popa, e por isso não seria preciso realizar
a lenta operação de levantar as âncoras, não haveria corridas nem empurrões no cabrestante, nem a chiadeira áspera do polé; fosse como fosse, os tripulantes relativamente
sóbrios estavam demasiado esgotados - daí que soltassem amarras em silêncio e com extremo azedume, embora com algum despacho; contudo, naquele triste e fedorento
amanhecer que coroava uma noite de bebedeira, já ninguém cantava "alegres marinheiros", nem "marinheiros sem vintém", nem "os britânicos nunca, nunca, nunca, serão
escravos". Felizmente, Jack tinha tratado das reparações e do abastecimento (à excepção daquela maldita última viagem para ir buscar água) antes que alguém pusesse
o pé em terra; e poucas vezes deu tanto valor ao ditado "homem prevenido vale por dois" como quando viu o Sophie, com a bujarrona inchada e virando para leste, já
reparada e reabastecida, encetar a sua viagem de regresso à independência.
Uma hora depois estavam no estreito. A cidade, com os seus diabólicos cheiros, ficava para trás, sumida na neblina; diante deles tinham unicamente o mar e as suas
águas cristalinas. O gurupés do Sophie apontava quase exactamente para o pálido resplendor que indicava o nascer do sol no horizonte, e o vento virava cada vez mais
para norte, tornando-se mais fresco à medida que mudava de direcção. Alguns dos mortos-vivos da noite anterior moviam-se agora como se tivessem chumbo nos braços
e nas pernas. Dentro de pouco tempo regá-los-iam com a mangueira, a coberta voltaria a estar como devia e a rotina diária reinaria de novo no navio.
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Uma atmosfera de soturna reserva reinava no Sophie enquanto o navio avançava fastidiosamente para sudoeste, tentando, em vão, alcançar os mares escolhidos para o
seu cruzeiro, entre calmarias, ventos incertos e ventos de proa que se tornaram tão perversos quando o navio chegou ao alto mar que a pequena ilha de Aire, perto
da ponta leste de Minorca, permanecia obstinadamente no horizonte norte, umas vezes maior, outras mais pequena, mas sempre, sempre, à vista.
Era quinta-feira e todos os tripulantes foram convocados para presenciarem os castigos. Os dois quartos colocaram-se de ambos os lados da coberta principal, com
a balandra e a lancha rebocadas pelo navio para que houvesse mais espaço; os fuzileiros tinham formado com a precisão habitual, a partir do terceiro canhão de popa;
e o pequeno castelo de popa estava apinhado de oficiais.
- Mr Ricketts, onde está o seu punhal? - perguntou James num tom áspero.
- Esqueci-me, senhor. Desculpe, senhor - murmurou o guarda-marinha.
- Ponha-o imediatamente e não se atreva a subir à coberta incorrectamente vestido.
O jovem Ricketts lançou um olhar culpado ao capitão enquanto descia a toda a pressa; contudo, a expressão grave de Jack Aubrey era tão medonha quanto as palavras
de James Dillon. Na verdade, Jack Aubrey tinha exactamente a mesma opinião que Dillon: aqueles infelizes iam ser açoitados, e por isso tinham direito a que tudo
se fizesse com a devida cerimónia - ou seja, com toda a tripulação presente e assumindo a mais solene das atitudes, e os oficiais com os seus chapéus de laço dourado
e as suas espadas, e o tambor rufando como devia.
Henry Andrews, um dos cabos, conduziu os condenados um a um: John Harden, Joseph Bussell, Thomas Cross, Timothy Bryant, Isaac Isaacs, Peter Edwards e John Surel,
todos eles acusados de embriaguez. Ninguém tinha nada a dizer em sua defesa: e nenhum dos acusados tinha nada a dizer em defesa própria.
- Uma dúzia a cada um - disse Jack. - E se houvesse justiça no mundo, você levaria duas dúzias, Cross. Um homem responsável como você... um ajudante do condestável...
que vergonha!
No Sophie, era costume dar as vergastadas no cabrestante, e não num gradeamento: os homens avançavam com um ar soturno, despiam a camisa lentamente e encostavam-se
àquele cilindro baixo e grosso; e os ajudantes do
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contramestre, John Bell e John Morgan, atavam-lhes os pulsos do outro lado do cabrestante, mais por formalidade do que por qualquer outra razão. Preparado o primeiro
homem, John Bell avançou, dando ao chicote com a mão direita, atento ao sinal de Jack. Jack fez um sinal com a cabeça e ordenou:
- Pode começar.
- Um - disse solenemente o contramestre quando as nove cordas com nós nas pontas silvaram no ar e golpearam as costas nuas e tensas do marinheiro. - Dois... Três...
Quatro...
E assim prosseguiu a execução das penas; e, uma vez mais, o olhar frio e experiente de Jack deu-se conta de que o ajudante do contramestre, astuto como poucos, fazia
com que os nós das cordas atingissem o cabrestante, sem que ninguém - excepto Jack - notasse que estava a poupar os seus companheiros. "Está tudo muito bem", pensou
Jack, "mas, das duas uma: ou eles conseguem entrar no paiol das bebidas, ou então há para aí algum filho da puta que armazenou vinho a bordo. Se descubro quem é,
podem crer que o amarro a uma grade e acabo de vez com a marosca". Já chegava de bêbedos: sete num só dia! Não, este estado de coisas não tinha nada a ver com os
sinistros prazeres a que os homens se tinham entregado em terra - tudo isso pertencia já ao passado; e quanto à paralisia alcoólica que afectara os homens que estavam
nos embornais, também isso fora esquecido no momento em que a corveta se fizera ao mar - enfim, os homens não eram os verdadeiros culpados; a culpa era das normas
tolerantes do porto, da disciplina muito indisciplinada do porto. Não, não, isto era diferente. No dia anterior, precisamente, Jack hesitara em fazer exercícios
com os canhões depois do jantar, por causa do número de homens suspeitos de terem bebido demasiado: e era tão fácil - facílimo - um marinheiro bêbedo enfiar o pé
debaixo de uma carreta aquando do recuo ou meter a cara em frente da boca de um canhão! Jack acabara por ordenar apenas os movimentos necessários para o disparo;
mas não mandara disparar.
Diferentes navios tinham diferentes tradições relativamente à reacção que os homens deveriam ter quando castigados: os velhos tripulantes do Sophie permaneceram
calados, mas Edwards (um dos novos), que viera do Kings Fisher, onde a tradição era outra, berrou um tremendo "Ah!" à primeira vergastada, facto que transtornou
de tal forma o ajudante do contramestre que as duas ou três vergastadas seguintes magoaram mais o ar do que as costas do infractor.
- Vamos, John Bell! - disse o contramestre num tom de clara reprovação,
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não porque nutrisse qualquer tipo de hostilidade relativamente a Edwards, para quem olhava com a plácida imparcialidade de um carniceiro avaliando um cordeiro, mas
simplesmente porque o trabalho tinha de ser bem feito; e o certo é que as restantes vergastadas justificaram plenamente o crescendo dos berros de Edwards, capaz
de mortificar um coração empedernido. Mortificado ficou sem dúvida o coração do pobre John Surel, um homenzito franzino de Exeter que nunca fora açoitado e que,
ao crime de embriaguez, juntava agora o de incontinência; mesmo assim, imundo como estava, foi açoitado; e chorava e dava tais berros e tão dilacerantes que John
Bell, nervoso, desatou a dar-lhe forte e rápido para que a triste cena acabasse depressa.
"Um espectador que não estivesse habituado a ver tal espectáculo, achá-lo-ia por certo terrivelmente bárbaro!", pensou Stephen. "Em contrapartida, para aqueles que
já estão habituados, tanto se lhes dá como se lhes deu... Ainda que este rapaz pareça francamente afectado...". com efeito, Babbington estava um tanto pálido e ansioso
quando a lamentável cerimónia terminou e Surel, gemendo ainda, foi entregue aos seus envergonhados companheiros e logo afastado dali a toda a pressa.
Mas quão fugazes eram a palidez e a ansiedade daquele jovem! Menos de dez minutos depois de a equipa de limpeza ter apagado todos os vestígios daquela cena, já Babbington
subia à parte superior da enxárcia, perseguindo Ricketts a grande distância, e, apesar de se deslocar com algum esforço, estava visivelmente deliciado.
- Quem é que está lá em cima a fazer disparates? - perguntou Jack, descortinando vagas formas através do fino pano do sobrejoanete grande.
- São os grumetes?
- Não, meu capitão, são os cadetes - respondeu o oficial de derrota.
- Agora me lembro que preciso de falar com eles - disse Jack.
Pouco depois, a palidez e a ansiedade regressavam ao rosto de Babbington, e por boas razões. Os guardas-marinhas deveriam tomar certos dados ao meio-dia, dados destinados
a determinar a posição do navio e que deveriam ser transcritos num pedaço de papel. Estes papéis eram conhecidos como as informações dos cadetes e o sentinela entregava-os
ao capitão, dizendo: "As informações dos cadetes, meu capitão"; a isto, o capitão Allen (indolente e descuidado) costumava responder com um "Ah, as informações dos
cadetes", e atirava os papéis pela janela.
Até então, Jack tinha estado demasiado ocupado com o treino da tripulação e não pudera cuidar devidamente da educação dos guardas-marinhas, mas tinha visto as informações
do dia anterior, as quais, com uma unanimidade
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muito suspeita, situavam o Sophie a 39?21N, o que não estava mal, mas também numa longitude que o navio só poderia ter alcançado se tivesse atravessado a cadeia
montanhosa que separava Valência do interior, percorrendo, em terra, cerca de trinta e sete milhas.
- Como é possível que tenham feito um disparate destes? - perguntou-lhes Jack. Para dizer a verdade, não era uma pergunta de fácil resposta: nem esta, nem as muitas
outras que Jack lhes fez; e os rapazes, de facto, nem tentaram responder, mas concordaram que não estavam ali para se divertirem, nem por causa da sua beleza viril,
mas sim para aprenderem as suas profissões; e mais concordaram que os seus diários de bordo (que traziam debaixo do braço) não eram exactos, nem completos, nem actualizados,
e que o gato do navio os teria escrito melhor; e que, de futuro, prestariam a maior atenção aos dados e cálculos de Mr Marshall; e que marcariam a carta náutica
com ele todos os dias; e que nenhum homem estaria em condições de passar a tenente e muito menos de assumir um comando ("Que Deus me perdoe", disse Jack, num aparte
para si mesmo), se não soubesse calcular, em qualquer momento, a posição do seu navio no espaço de um minuto - um minuto, não, trinta segundos! Além disso, teriam
de lhe mostrar os seus diários todos os domingos. Mas atenção, queria ver uns diários asseados e uma letra legível!
- Sabem escrever em condições, ou não? Se não sabem, terão de aprender com o escriturário. - Eles pensavam que sim, que sabiam, sim, estavam certos de que sabiam;
não se poupariam a esforços. Mas Jack não parecia convencido e queria que se sentassem naquele armário e que pegassem na pena e no papel e que lhe passassem aquele
livro ali, não, não é esse, o outro! Ia ler-lhes algumas passagens desse livro, porque teriam tudo a ganhar se escutassem os seus ensinamentos.
E foi assim que Stephen, ao fazer uma pausa para reflectir sobre o caso do paciente que estava a ver e que padecia de uma pulsação muito débil, ouviu a voz de Jack,
teatralmente lenta, grave e terrível, transportada pelo ventilador de lona que fazia chegar ar fresco à suposta enfermaria de bordo.
- O castelo de popa de um navio de guerra pode ser considerado, e com toda a razão, uma escola nacional destinada à instrução de um grande número dos nossos jovens;
é aí que adquirem o hábito da disciplina e aprendem todas as interessantes minúcias do serviço náutico. Pontualidade, limpeza, diligência e prontidão são virtudes
regularmente inculcadas, tal como a sobriedade e mesmo a abnegação, virtudes que, uma vez aprendidas, se revelam extraordinariamente úteis. Aprendendo a obedecer,
são também ensinados a mandar.
"Sim senhor, sim senhor!", disse Stephen para si mesmo, após o que se
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concentrou inteiramente no caso daquela pobre e esgotada criatura de lábio leporino que jazia na rede ao pé dele, um homem com muito pouco tempo de Marinha e que
pertencia ao quarto de estibordo.
- Que idade tem, Cheslin? - perguntou.
- Ah, doutor, não sei ao certo a minha idade! - retorquiu Cheslin, com um nada de impaciência na sua apatia. - Calculo que tenha uns trinta anos, mais ou menos.
- Uma longa pausa. - Tinha quinze quando o meu pai morreu; e podia contar as colheitas desde então, é só uma questão de fazer um esforço. Mas é muito esforço para
mim, doutor.
- Pois é. Escute, Cheslin: você vai ficar muito doente se não comer. Mandarei que lhe façam uma sopa e você terá de a comer.
- Obrigado, doutor, muito obrigado, mas não há nada que me apeteça comer e duvido que eles me deixem comer. Nem pensar!
- Mas por que raio é que você lhes foi dizer qual era a sua ocupação? Cheslin permaneceu calado por um instante, com os seus olhos inexpressivos desmesuradamente
abertos.
- Acho que estava bêbedo, doutor. Aquele grogue que eles fazem dá cabo de um homem... Mas nunca pensei que ficassem tão assustados. Embora, para ser sincero, a gente
de Carborough e dos campos à volta também não gostasse nada de falar dessa minha ocupação...
Nesse instante chamaram a tripulação para o jantar, e o rancho, aquele vasto espaço por detrás da lona que Stephen tinha posto para proteger um pouco a enfermaria,
encheu-se de marinheiros alvoroçados e famintos. Um alvoroço ordenado, contudo: cada grupo de oito homens corria para o seu sítio, das vigas do tecto desciam imediatamente
as mesas e da cozinha chegavam bandejas de madeira cheias de porco salgado (também isso indicava que era quinta-feira) e de ervilhas. O grogue, que Mr Pullings acabara
de misturar no bebedouro junto ao mastro principal, era levado religiosamente para baixo - toda a gente se afastava à sua passagem, não fosse perder-se uma única
gota do precioso líquido.
Num ápice, Stephen viu abrir-se diante de si um caminho, um caminho de caras sorridentes e olhares amáveis por onde passou; notou que alguns dos homens cujas costas
untara com óleo nessa manhã estavam agora muitíssimo bem-dispostos, e em particular Edwards, pois este, sendo negro, possuía um sorriso que brilhava muito mais do
que os outros naquele ambiente penumbroso; mãos atentas afastaram um banco do seu caminho e outras mãos, mais violentas, fizeram com que um grumete rodopiasse sobre
o seu eixo. O pobre grumete ainda teve direito a ouvir das boas: "Não volte a virar as costas ao
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doutor! Para onde é que foram as suas boas maneiras?". Gente boa; e que rostos tão amáveis; mas estavam a matar Cheslin.
- Tenho um caso curioso na enfermaria - disse ele a James quando se sentaram para digerirem o pudim de figos com a ajuda de um cálice de Porto.
- O homem está a morrer de inanição; ou melhor, morrerá se eu não conseguir tirá-lo daquele torpor em que agora se encontra.
- Como se chama?
- Cheslin: é aquele do lábio leporino.
- Eu sei, eu sei. Pertence ao quarto de estibordo, é sentinela de convés. Um inútil.
- Ah sim? Mas olhe que, há algum tempo atrás, prestava um grande serviço a homens e mulheres.
- De que forma?
- Era um come-pecados.
- Santo Deus!
- Derramou o seu Porto, James.
- Conte-me tudo o que sabe, doutor - pediu James, limpando o vinho.
- bom, trata-se de um costume muito parecido com os nossos. Quando alguém morria, mandavam chamar Cheslin; punham sobre o peito do morto um naco de pão e Cheslin
comia-o, e desse modo ficava com os pecados do morto. Depois punham-lhe uma moeda de prata na mão e corriam com ele de casa, cuspindo-lhe e atirando-lhe pedras enquanto
o pobre fugia.
- Pensava que essas práticas já tinham acabado... - disse James.
- Não, não acabaram. É um costume bastante corrente, embora ninguém fale dele. Mas parece que os marinheiros o consideram ainda mais assustador do que as outras
pessoas. Certo dia Cheslin descaiu-se e contou-lhes. Resultado: todos se viraram contra ele. Os seus companheiros de rancho expulsaram-no da mesa; os outros não
falam com ele, nem o deixam comer ou dormir ao pé deles. O homem não tem nada, do ponto de vista meramente físico, mas morrerá dentro de uma semana se eu não conseguir
fazer nada.
- Seria melhor atá-lo ao portaló e dar-lhe cem vergastadas, doutor disse o tesoureiro da cabina enquanto fazia as suas contas. - Quando estive
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num navio que ia buscar escravos à Guiné, entre as guerras, os negros que pertenciam à tribo dos Whydaws, ou Whydoos, morriam às dezenas na rota do meio6, unicamente
devido ao desespero que sentiam por terem sido afastados do seu país e dos seus amigos. Salvámos muitos deles açoitando-os pela manhã. Mas, quanto a esse tipo, não
há nada que se possa fazer para o proteger: porque os homens acabariam por o asfixiarem, ou por lhe torcerem o pescoço ou atirando-o ao mar, no fim de tudo. Os marinheiros
aguentam muita coisa, mas nunca um Jonas7. É como um corvo branco: os outros desatam a dar-lhe bicadas até o matarem. Ou o albatroz. Um tipo apanha um albatroz -
é fácil, com uma corda - e pinta-lhe uma cruz vermelha no peito e os outros dão cabo dele num abrir e fechar de olhos. Muito nos divertimos nós com os albatrozes
nas proximidades do Cabo. Mas os marinheiros nunca permitirão que esse tipo coma com eles, nem que esta missão dure cinquenta anos. Não é assim, Mr Dillon?
- É, de facto é - disse James. - Mas por que raio é que ele veio para a Marinha? É um voluntário. Ninguém o obrigou a vir.
- Creio que estava farto de ser um corvo branco - disse Stephen. Mas não vou perder um doente por causa dos preconceitos dos marinheiros. Temos de tomar todas as
providências para que a maldade dos outros não o atinja. E, se recuperar, nomeá-lo-ei meu ajudante. Nessas funções, não precisará de entrar em contacto com muita
gente. Tanto mais que o meu actual ajudante...
- Desculpe, doutor, mas o capitão apresenta os seus cumprimentos e gostaria que o senhor viesse ver uma coisa espantosamente filosófica! - exclamou Babbington, entrando
como uma flecha.
Ao passar da obscuridade da câmara dos oficiais para a extrema luminosidade da coberta, era quase impossível ver o que quer que fosse; porém, semicerrando os olhos,
Stephen pôde distinguir a estibordo o mais alto dos gregos a quem chamavam Esponjas, completamente nu e com uma poça de água aos pés; o homem ainda estava todo encharcado
e exibia um bocado de uma placa de cobre com grande satisfação. À sua direita estava Jack, com as mãos atrás das costas e uma expressão triunfante no rosto; à sua
esquerda,
6 Rota do meio ou middle passage: a rota África-Índias Ocidentais, seguida pelos traficantes de escravos. (N. do T.)
7 Referência a Jonas, o profeta do Velho Testamento que, por ter desobedecido a Deus, causou uma tempestade que pôs em perigo o navio em que viajava; ou seja, um
indivíduo que traz consigo o azar. (N. do T.)
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a maioria dos homens de quarto, esticando a cabeça e observando com atenção. O grego estendeu mais a mão que segurava a velha placa de cobre e, fitando fixamente
o rosto de Stephen, virou-a lentamente. Do outro lado havia um pequeno peixe escuro com uma ventosa na cabeça, ventosa com que se colava ao metal.
- Uma rémora! - exclamou Stephen, manifestando tanto assombro e deleite como Jack e o grego esperavam, ou ainda mais. - Um balde, por favor! Tenha cuidado com a
rémora, Esponja, meu amigo! Ah, que alegria ver uma rémora a sério!
Como o mar estava calmo, os irmãos Esponja tinham mergulhado para tirar do casco as algas que reduziam a velocidade do Sophie: era possível vê-los através da água
transparente; deslizavam por cordas que tinham nas pontas balas de canhão envoltas numa rede e sustinham a respiração dois minutos seguidos: por vezes mergulhavam
por debaixo da quilha e apareciam do outro lado do barco porque o coração parecia fraquejar. Mas só ao fim de algum tempo é que os olhos do Esponja mais velho tinham
detectado o astuto inimigo, escondido sob a chapa de resbordo. A rémora era tão forte que tinha arrancado a chapa, explicaram eles a Stephen; mas isso não era nada
- a rémora era tão forte que poderia imobilizar a corveta, ou quase, no meio de um forte vendaval! Mas agora tinham-na apanhado - era o fim dos seus dias, a maldita!
- e o Sophie poderia deslizar pelas águas tal qual um cisne. Por um breve momento, Stephen sentiu-se tentado a argumentar com eles, a apelar ao seu senso comum,
a salientar que o pobre peixe media apenas nove polegadas e que as suas barbatanas eram uma coisa de nada; mas era demasiado sensato e estava demasiado contente
para ceder a essa tentação, de maneira que levou cuidadosamente o balde para a sua cabina, onde conviveria em paz com a rémora.
E Stephen era também demasiado diplomata para se sentir vexado quando, pouco tempo depois, um vento muito razoável os atingiu por bombordo, de tal modo que o Sophie
(já livre da maldita rémora) adernou e desatou a navegar, tão suave e firmemente como um cisne, a uma velocidade de sete nós, até ao pôr-do-sol, altura em que se
ouviu o vigia gritar: "Terra à vista! Terra pela amura de estibordo!".
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CAPÍTULO SETE
Aterra em questão era o Cabo de La Não, o limite sul da zona de cruzeiro do navio; o cabo erguia-se no horizonte oeste, uma forma escura, nítida, que sobressaía
na imprecisa orla do céu.
- Muito bem, Mr Marshall, uma bela aproximação a terra! - disse Jack ao descer do cesto da gávea, onde estivera a examinar o cabo com o seu óculo.
- O astrónomo real não teria feito melhor.
- Obrigado, meu capitão, muito obrigado - retorquiu o mestre, o qual, com efeito, tinha anotado diligentemente uma série de dados sobre a lua, para além das observações
usuais, para calcular a posição da corveta.
- Muito contente pela... aprovação. - Como lhe faltavam as palavras, acabou por se expressar com um movimento brusco da cabeça e com um nervoso esfregar de mãos.
Era curioso ver aquele homem corpulento, um colosso de feições duras e marcadas, transfigurado por um sentimento que exigia uma forma de expressão doce e delicada;
e vários foram os marinheiros que trocaram olhares cúmplices. Mas Jack não deu por olhar nenhum: sempre atribuíra o escrupuloso e denodado esmero de Mr Marshall
em todos os aspectos da navegação e o seu zelo de oficial executivo a uma generosidade natural e à sua integridade de homem do mar; e, fosse como fosse, a sua mente
estava agora demasiado ocupada com a ideia de testar os canhões na escuridão. Estavam suficientemente longe de terra, e portanto os canhões não seriam ouvidos; e
embora a artilharia do Sophie tivesse melhorado muito, Jack não se sentiria tranquilo enquanto não se aproximasse, passo a passo, seguramente, da perfeição.
- Mr Dillon - disse -, vamos proceder a um concurso entre os quartos de estibordo e de bombordo na escuridão. Sim, eu sei - acrescentou, ao
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reparar na expressão crítica do primeiro-oficial -, mas se o exercício se realizar da luz para a escuridão, nem mesmo a pior tripulação cairá sob os seus canhões,
nem precisará de se atirar ao mar. De modo que, se achar bem, vamos preparar um par de tonéis para os exercícios diurnos, e outro par de tonéis, com uma lanterna,
ou um archote, ou qualquer coisa desse género, para os exercícios nocturnos.
Sempre que havia exercícios com os canhões (e parecia-lhe ter já passado tanto tempo desde o primeiro a que, por descuido, assistira), Stephen escapulia-se para
os seus aposentos; não gostava do estampido dos canhões, nem do cheiro da pólvora, nem da eventualidade de ferimentos graves, nem da certeza de um céu sem pássaros
- por isso passava o tempo em baixo, lendo os seus livros, mas com o ouvido atento, não fosse registar-se um acidente: era tão fácil que algo corresse mal, com os
movimentos bruscos dos canhões numa coberta que baloiçava e cabeceava ao sabor da ondulação. Naquele fim de tarde, porém, ignorando o tumulto que se preparava, subiu
à coberta com a ideia de se dirigir à proa, até à bomba de tronco de olmo - a bomba de madeira cuja parte superior, por ordem sua, era desmontada duas vezes ao dia
por diligentes marinheiros, para que a parte inferior do navio ficasse melhor iluminada, aproveitando os raios oblíquos do sol; Jack, ao dar por ele, disse:
- O doutor aqui?! Subiu à coberta para se certificar dos nossos progressos? É um belo espectáculo, não é? Os canhões a dispararem todos ao mesmo tempo! E esta noite
vê-los-á na escuridão, o que ainda é melhor. Devia ter visto a batalha do Nilo! Visto e ouvido! Ter-se-ia sentido o mais feliz dos homens!
As melhorias ocorridas na potência de fogo do Sophie eram de facto impressionantes, mesmo para um espectador como Stephen, tão avesso às coisas militares. Jack estabelecera
um sistema que não era agressivo para as balizas da corveta (as quais, de facto, não conseguiriam suportar o choque de uma surriada dos dois bordos) e que, simultaneamente,
era bom do ponto de vista da emulação e da regularidade: primeiro disparava o canhão de sotavento da bateria; e quando este dava o coice, disparava o seguinte, produzindo-se
assim uma sucessão de disparos cujo fumo não impedia que o último artilheiro visse claramente. Jack explicou tudo isto enquanto o cúter se afastava envolto em penumbra,
com os tonéis a bordo.
- Claro - acrescentou -, claro que o alcance de tiro não é grande... apenas o suficiente para fazermos três descargas. Ah, quem me dera que fossem quatro!
Os artilheiros estavam nus da cintura para cima; haviam atado lenços de
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seda preta na cabeça; tinham um ar concentrado e competente; dir-se-ia que estavam no seu verdadeiro elemento. Haveria um prémio, naturalmente, para os canhões que
alcançassem o objectivo; mas o melhor prémio seria para o quarto que fosse mais rápido a disparar - e que não disparasse ao acaso, nem errasse os seus tiros.
O cúter estava já longe, à popa e por sotavento, e o primeiro tonel baloiçava ao ritmo das ondas - Stephen sempre achara espantoso que dois corpos navegando tranquilamente
se encontrassem praticamente juntos num dado momento e, um momento depois, parecessem estar separados por muitas milhas, sem que nenhum deles tivesse feito qualquer
esforço especial ou aumentasse grandemente a velocidade. A corveta virou e deslocou-se suavemente sob as suas gáveas, passando a um cabo de distância do tonel, por
barlavento.
- Não vale a pena afastarmo-nos mais - observou Jack, com o relógio numa mão e um pedaço de giz na outra. - Não poderíamos disparar com a força suficiente.
Passaram alguns momentos. O tonel via-se à proa, cada vez maior.
- Desamarrar os canhões! - gritou James Dillon. Já se sentia na coberta o cheiro do rastilho. - Nivelar os canhões! Tirar as tapas das bocas! Enfiar as bocas nas
portinholas! Escorvar! Apontar! Fogo!
Foi como se um martelo enorme desatasse a martelar uma pedra com intervalos de meio segundo com uma assombrosa regularidade; o fumo formou uma grande coluna que
se afastava rapidamente do brigue. Tinha disparado a bateria de bombordo e os homens do quarto de estibordo esticavam as cabeças e punham-se nas pontas dos pés para
verem melhor onde as balas caíam. Caíram demasiado longe, a quase trinta jardas do alvo, mas estavam bem agrupadas. O quarto de bombordo trabalhava com denodo e
concentração, limpando, calcando, manobrando os canhões: as costas dos homens brilhavam, o suor escorria abundante.
O tonel não estava ainda bem pelo través quando a descarga seguinte o destroçou por completo.
- Dois minutos e cinco - disse Jack com um risinho de satisfação. Sem sequer fazer uma pausa para dar vivas, o quarto de bombordo continuou a fazer as suas operações
com toda a rapidez possível; inclinaram os canhões para cima e o enorme martelo repetiu os seus sete golpes, enquanto a água esguichava à volta das aduelas do tonel
destruído. Os serventes da limpeza dos canhões e os calcadores despacharam-se num ápice, os artilheiros enfiaram as bocas nas portinholas e subiram os canhões com
aparelhos e alavancas
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tanto quanto era possível; contudo, os disparos ultrapassaram em muito o objectivo - o que significava que não poderiam disparar a quarta surriada.
- Não faz mal - disse Jack. - Ficaram muito perto. Seis minutos e dez segundos. - O quarto de bombordo soltou um suspiro colectivo. Tinham-se esforçado ao máximo
para poderem fazer a quarta descarga e para não ultrapassarem os seis minutos, pois sabiam muito bem que o quarto de estibordo demoraria menos tempo.
Na verdade, o quarto de estibordo conseguiu fazer cinco minutos e cinquenta e sete segundos; em contrapartida, porém, não conseguiram acertar no tonel. Na penumbra,
ideal para o anonimato, ouviram-se críticas aos "Filhos da puta sem escrúpulos! A dispararem às cegas, imprudentemente! Fazem tudo para ganhar. E com a pólvora a
trinta e cincopence a libra".
O dia dera lugar à noite e, para grande satisfação de Jack, quase nada mudara na coberta. A corveta orçou, virou de bordo e logo se dirigiu, com o vento a favor,
para a ondulação resplandecente que envolvia o terceiro tonel. As descargas sucediam-se uma atrás da outra, como línguas escarlates trespassando o fumo; os grumetes
que serviam a pólvora corriam pela coberta, desciam até ao paiol da pólvora por entre os tabiques situados para lá da sentinela e regressavam com a carga; os artilheiros
arfavam e resmungavam: o ritmo pouco mudara.
- Seis minutos e quarenta e dois segundos - disse Jack depois de ter observado atentamente o seu relógio junto à lanterna. - Ganhou o quarto de bombordo - anunciou.
- Não esteve mal o exercício, pois não, Mr Dillon?
- Para ser franco, correu muito melhor do que esperava - retorquiu James.
- E agora, meu caro amigo - disse Jack a Stephen -, que me diz a um pouco de música? Desde que os seus ouvidos estejam em condições, é claro... Posso convidá-lo,
Mr Dillon? Creio que Mr Marshall está encarregue da coberta agora, não é verdade?
- Obrigado, meu capitão, muito obrigado pelo convite. Mas o senhor sabe que para mim, infelizmente, a música é um verdadeiro desperdício, é como dar pérolas a porcos...
- Estou francamente satisfeito com o exercício desta noite - disse Jack enquanto afinava o violino. - Agora creio que poderemos costear com mais tranquilidade, sem
pôr a nossa pobre corveta demasiado em risco.
- Apraz-me muito que esteja satisfeito; e os marinheiros, de facto, pareciam manejar os canhões com grande destreza. Mas permita-me uma correcção: essa nota não
é um lá.
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- Ah não? - disse Jack, ansioso. - Está melhor assim?
Stephen aquiesceu com a cabeça, bateu com o pé três vezes e logo se lançaram na execução do divertimento minorquino de Mr Brown.
- Reparou no sinal que fiz com a cabeça na parte dopom-pom-pom? - perguntou Jack.
- Claro que reparei. Muito vivo, muito ágil. Reparei que não bateu com a cabeça na lâmpada nem na prateleira. E eu só rocei no armário por uma vez.
- Creio que o melhor é não se pensar nas coisas. Os marinheiros, quando moviam estrondosamente os canhões, não pensavam no que estavam a fazer. Manejar os aparelhos,
limpar com escovilhões, calcar: tudo se tornou perfeitamente mecânico para eles. Estou muito contente com eles, sobretudo com os homens dos canhões número três e
número cinco da bateria de bombordo. Garanto-lhe que, quando começaram, não passavam de um punhado de incompetentes.
- A gravidade com que os conduz é incentivo bastante para se tornarem competentes.
- bom, sim, é verdade: não se pode perder um só momento.
- Mas... mas não acha que essa sensação de pressa constante pode ser opressiva, esgotante?
- Não, por Deus! Faz parte da nossa vida, tal e qual como o porco salgado, especialmente quando estamos em águas instáveis. No mar, tudo pode acontecer em cinco
minutos. Ah! ah!, devia ter ouvido Lorde Nelson! com este tipo de artilharia, uma só surriada pode derrubar um mastro e proporcionar a vitória numa batalha; e é
impossível saber com antecedência quando precisaremos de disparar. No mar, é impossível saber o que vai acontecer.
Era uma grande verdade. Um olho capaz de tudo ver, capaz de penetrar a escuridão, teria visto a esteira da fragata espanhola Cacafuego, navegando rumo a Cartagena,
que teria atravessado a esteira do Sophie se a corveta não tivesse permanecido quinze minutos a atirar água para os tonéis incendiados; o que realmente sucedeu foi
que o Cacafuego passou silenciosamente a oeste do Sophie, a uma milha e meia de distância, sem que os dois navios se vissem um ao outro. O mesmo olho teria visto
muitas outras embarcações nas proximidades do Cabo de La Não porque, como Jack sabia, todos os navios que saíam de Almería, Alicante ou Málaga, tinham de contornar
aquela ponta; e, em particular, teria avistado um pequeno comboio que se dirigia para Valência sob a protecção de um navio corsário; e teria visto que o rumo do
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Sophie (se não fosse alterado) o aproximaria da costa e do comboio (a barlavento) cerca de meia hora antes de nascer o dia.
- Meu capitão, meu capitão! - disse Babbington ao ouvido de Jack.
- Chiu, meu amor - murmurou o capitão, não para Babbington, mas para a dama com quem estava a sonhar. - Ha? O que foi?
- Mr Dillon diz que se vêem luzes de gávea ao largo, meu capitão.
- Ah! - exclamou Jack, acordando imediatamente e correndo logo para a coberta, ainda mergulhada em profunda escuridão, só com a camisa de dormir vestida.
- bom dia, meu capitão - disse James, saudando-o e passando-lhe o seu óculo.
- bom dia, Mr Dillon - disse Jack, tocando na touca de dormir em resposta à saudação e pegando no óculo. - Onde é que está?
- Mesmo a bombordo, meu capitão.
- Santo Deus, que bela vista que você tem, Mr Dillon! - exclamou Jack baixando o óculo; limpou-o depois e perscrutou de novo a inconstante neblina. - Dois. Três.
Creio que quatro.
O Sophie estava ali à capa, com o velacho içado e a vela da gávea quase totalmente desfraldada, contrabalançando-se um ao outro, e encontrava-se mesmo debaixo do
escuro rochedo. O pouco vento que havia soprava em volúveis rajadas, de nor-noroeste, e trazia o cheiro quente das montanhas; porém, à medida que a terra fosse aquecendo,
viraria certamente para nordeste ou mesmo para este. Jack agarrou-se aos ovéns.
- Analisemos as posições do topo - disse. - Malditas fraldas! exclamou enquanto subia.
O dia começava a clarear; a bruma dissipou-se, revelando cinco navios numa fila desordenada, ou melhor, cinco navios amontoados; estavam tão próximos que era possível
ver os seus cascos, e o mais próximo não distava mais de um quarto de milha. De norte para sul, surgia primeiro o Gloire, um navio corsário de Toulon, muito rápido
e com doze canhões de oito libras, contratado por Jaume Mateu, um rico comerciante de Barcelona, para proteger os seus dois settees, o Pardal e o Xaloc. Estes dois
settees tinham seis canhões cada um e o segundo levava um valioso (e ilegal) carregamento de
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mercúrio; o Pardal estava situado no quadrante sotavento do navio corsário; e, quase ao mesmo nível do Pardal, mas a barlavento e apenas a quatrocentas ou quinhentas
jardas do Sophie, estava o Santa Lúcia, um snow napolitano cheio de desconsolados monárquicos franceses, capturado pelo Gloire quando ia a caminho de Gibraltar;
vinha depois o segundo settee, o Xaloc; e, por fim, uma tartana que se tinha juntado ao grupo perto de Alicante, toda satisfeita por poder gozar de protecção contra
os piratas berberes, os navios corsários minorquinos e os cruzeiros britânicos. Todos eles eram embarcações muito pequenas; todos esperavam que o perigo viesse do
alto mar (por isso costeavam - uma forma incómoda e arriscada de navegar quando comparada com as viagens pelas largas estradas do alto mar, mas que lhes permitia
benificiar do apoio das baterias costeiras); e se algum daqueles navios avistasse o Sophie quando houvesse mais luz, os seus homens comentariam por certo: "Olhem,
um pequeno brigue deslizando vagarosamente ao longo da costa: com certeza que vai para Denia".
- Que acha do navio? - perguntou Jack.
- com esta luz, não consigo contar todas as portinholas. Parece-me um tanto ou quanto pequeno para ser uma corveta de dezoito canhões. Porém, seja como for, é evidente
que possui alguma potência; e não há dúvida de que é o cão de guarda dos outros.
- Sim, claro. - Sim, de facto isso era evidente. Encontrava-se a barlavento do comboio, enquanto o vento virava e os navios dobravam o cabo. Jack começou a pensar
com rapidez. Num ápice, apreciou uma vasta série de possibilidades: nesse momento, ele era, simultaneamente, o capitão do navio que escoltava o comboio e o capitão
da corveta em que seguia.
- Posso fazer uma sugestão?
- Sim - disse Jack secamente. - Desde que não tenhamos de reunir um conselho de guerra: os conselhos de guerra nunca decidem nada. Pedira a Dillon que subisse com
ele em consideração por ter avistado o comboio; porém, na realidade, não desejava consultar ninguém e fazia votos para que Dillon não interrompesse a rápida sucessão
das suas ideias com nenhuma observação, por muito inteligente que fosse. Só uma pessoa poderia tratar convenientemente deste caso: o capitão do Sophie.
- Talvez fosse melhor chamar os homens aos seus postos - disse James Dillon com um ar muito sério, pois aquela era uma sugestão com água no bico.
- Está a ver aquele pequeno e desleixado snow entre nós e o navio? disse Jack virando-se para James. - Se cruzarmos lentamente a verga do
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traquete, em dez minutos estaremos a umas cem jardas atrás dele: desse modo, poderemos esconder-nos do navio corsário. Está a ver aonde quero chegar?
- Sim, meu capitão.
- com o cúter e a lancha cheios de homens, poderemos capturar o snow antes que ele se aperceba do que quer que seja. Se fizermos barulho, o navio corsário avançará
para o proteger: acontece que o navio corsário não pode bordejar, terá de virar em redondo; e se pusermos o snow com vento pela popa, poderemos passar entre os dois
e disparar uma ou duas vezes contra o navio enquanto se dá a volta e até é possível que derrubemos um mastro do settee ao mesmo tempo. Coberta! - disse ele, elevando
um pouco a voz.
- Silêncio na coberta! Mande esses homens para baixo. - O rumor já se tinha espalhado e os homens subiam correndo pela escotilha de proa. - Mandaremos o destacamento
de abordagem. Deveríamos mandar todos os negros que temos, porque são homens muito robustos e, além disso, os espanhóis têm medo deles; depois, prepararemos o navio
para o combate o mais discretamente possível e os homens terão de estar prontos para voar para os seus postos. Mas todos devem permanecer em baixo, absolutamente
invisíveis, à excepção de uma dúzia. É preciso que eles pensem que somos um navio mercante. - Jack balouçava na borda do cesto, com a camisa de dormir erguendo-se,
inchada pelo vento, à volta da cabeça. - Podemos tirar os tortores, mas não deve ver-se mais nenhum preparativo.
- E as camas?
- Ah sim, por Deus, as camas! - exclamou Jack, fazendo uma pausa.
- Teremos de trazê-las para cima rapidamente, muito rapidamente, pois caso contrário seremos obrigados a lutar com elas, uma situação terrivelmente incómoda. Mas
não deixe que ninguém suba à coberta enquanto o destacamento de abordagem não partir. A surpresa é tudo.
Surpresa, surpresa. Surpresa extrema de Stephen quando o acordaram com sacudidelas e ordens de "Todos aos seus postos, doutor, todos aos seus postos", e quando se
viu no meio de uma actividade incrivelmente intensa, embora silenciosa - gente a correr de um lado para o outro numa escuridão quase de breu, sem um raio de luz,
ouvindo-se o suave choque das armas sigilosamente distribuídas -, os homens escolhidos para a abordagem deslizaram pelo costado mais próximo de terra e desceram
aos botes, em grupos de dois e três; os ajudantes do contramestre ordenavam numa espécie de grito sussurrado: "Preparados, preparados para ocupar os seus postos,
todos os homens preparados"; os suboficiais e respectivos ajudantes controlando as
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suas equipas, silenciando os tolos (que não eram poucos no Sophie) que queriam saber com toda a urgência o como e o porquê daquilo tudo; e a voz de Jack chamando
na escuridão: "Mr Ricketts, Mr Babbington!" - "Meu capitão?" - "Quando os avisar, vocês e os gajeiros terão de subir imediatamente: os joanetes e as velas mestras
terão de ser desfraldados nesse preciso momento" - "Sim, sim, meu capitão".
Surpresa. A surpresa cada vez maior do ensonado quarto do Santa Lúcia, enquanto via aquele brigue aproximando-se mais e mais: pretenderia juntar-se ao grupo?
- É aquele barco dinamarquês que anda sempre abaixo e acima junto à costa - declarou Jean Wiseacre. O súbito e desvairado assombro daqueles homens quando viram dois
botes surgindo por detrás do brigue e navegando a toda a velocidade! Depois de um primeiro momento de incredulidade, fizeram tudo o que lhes era possível: correram
a buscar os seus mosquetes, empunharam os seus alfanges e começaram a desamarrar um canhão; porém, cada um dos sete homens actuava isoladamente, e tinham menos de
um minuto para tomar uma decisão; de maneira que, quando os ferozes e vociferantes marinheiros do Sophie se agarraram à mesa da enxárcia principal e à mesa da enxárcia
de proa e deslizaram em tropel pela amurada, a tripulação do snow recebeu-os unicamente com um tiro de mosquete, dois tiros de pistola e um desanimado choque de
espadas. Instantes depois, os quatro mais ágeis tinham-se refugiado no aparelho, um correra para baixo e dois jaziam na coberta.
Dillon abriu de rompante a porta da cabina, lançou um olhar feroz ao jovem corsário que estava ao leme, ao mesmo tempo que lhe fazia pontaria com a sua pesada pistola
e lhe perguntava:
- Rende-se?
- Oui, monsieur- retorquiu o jovem com uma voz trémula.
- Para a coberta - ordenou Jack movendo a cabeça. - Murphy, Bussell, Thompson, King, fechem as escotilhas. Davies, Chambers, Wood, tratem das escotas. Andrew, alar
a bujarrona. - Correu então para o leme, depois de afastar um corpo do seu caminho, e o Santa Lúcia foi caindo a sotavento, primeiro lentamente, e depois cada vez
mais rapidamente. Olhou por cima do ombro e viu que o Sophie estava a desfraldar os joanetes, e logo a seguir a desfraldar o traquete, a vela de estai grande e a
carangueja: baixou-se para ver por debaixo do traquete do snow e lá estava ele, o navio corsário, começando a virar em redondo, ou seja, a girar com o vento pela
popa e a tomar a direcção contrária para resgatar a presa. Havia grande actividade a bordo do navio;
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também havia grande actividade a bordo das outras três embarcações que compunham o comboio: homens correndo de um lado para o outro, gritos, assobios, o longínquo
rufar de um tambor. Porém, com aquele vento tão ligeiro e com tão pouco velame desfraldado, moviam-se vagarosamente, como que atacados de letargia, seguindo tranquilamente
suaves curvas predeterminadas. Por todo o lado largavam velas, mas as embarcações nem por isso ganhavam velocidade. Foi por causa dessa lentidão que Dillon se deu
conta de um silêncio estranhíssimo: um silêncio quebrado um momento depois, quando o Sophie passou a bombordo roçando a proa do snow, com a bandeira ondeando, e
fazendo uma estrondosa saudação a Dillon e aos seus companheiros. De todas as embarcações presentes, só o Sophie sulcava vigorosamente as ondas - e James, de repente,
sentiu-se orgulhoso ao ver que todas as suas velas estavam caçadas, tensas e inchadas. As camas estavam a ser empilhadas a uma velocidade incrível (James viu cair
duas ao mar) e, no castelo de popa, inclinando-se por cima da caixa onde as camas eram recolhidas; Jack ergueu bem alto o seu chapéu, gritando: "Muito bem feito,
Mr Dillon, muito bem feito!". O destacamento de abordagem devolveu a saudação aos seus companheiros e, ao fazê-lo, aquela atmosfera de ferocidade assassina que havia
na coberta do snow alterou-se por completo. Ouviram-se de novo vivas e, do interior do snow, sob as escotilhas, saiu, em resposta, um uivo colectivo.
O Sophie, com todas as velas desfraldadas, navegava a cerca de quatro nós. O Gloire ia a uma velocidade apenas superior à necessária para manobrar e dera já início
a uma manobra, movendo o leme para descrever gradualmente uma curva a bombordo que deixaria a sua popa sem protecção contra o fogo do Sophie. Estavam a menos de
um quarto de milha um do outro e a distância estava a diminuir rapidamente. O navio francês, contudo, não era propriamente idiota; e Jack viu-o desfraldar a gata
e girar a verga do traquete e a verga grande para que o vento empurrasse a popa a sotavento e invertesse o movimento, já que o leme se revelava inútil.
- Demasiado tarde, meu amigo - disse Jack. A distância diminuía. Trezentas jardas. Duzentas e cinquenta. - Edwards! - gritou ele para o capitão do canhão de popa
-, dispare contra a proa do setteel - O tiro, de facto, atravessou o traquete do settee. O settee soltou as adriças e as velas desceram num ápice e uma figura nervosa
correu para a popa, agitando veementemente a sua bandeira. Contudo, Jack não tinha tempo para se ocupar do settee. - Orçar! - gritou. O Sophie fez-se mais ao vento
e o traquete voltou a inchar. O Gloire estava agora ao alcance dos canhões de proa. - Assim, assim - disse Jack, e ouviu os homens arfando e resmungando enquanto
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giravam ligeiramente os canhões a fim de os manterem apontados. Os marinheiros estavam silenciosos, tensos, ocupando as posições que lhes estavam destinadas; os
serventes estavam ajoelhados, virados para o interior da coberta, segurando nos rastilhos incendiados e soprando neles suavemente para que não se apagassem; os capitães
estavam agachados, mirando por cima dos canos dos canhões a popa e a alheta indefesas do navio inimigo.
"Fogo!". A palavra foi interrompida pelo rugido; uma nuvem de fumo ocultou o mar e o Sophie tremeu até à quilha. Jack enfiava maquinalmente a camisa nos calções
quando reparou que havia qualquer coisa que não estava bem, que havia algo de errado com o fumo. com efeito, uma mudança repentina no vento, uma repentina rajada
de nordeste, estava a empurrar o fumo na direcção da popa: a corveta foi apanhada desprevenida e a proa virou a estibordo.
- Aos braços! - gritou Marshall manobrando o leme para que a corveta voltasse à posição anterior. Voltou, de facto, embora lentamente, e a segunda surriada atroou
logo de seguida: mas a rajada de vento também tinha virado a popa do Gloire, que ripostou mal o fumo se dissipou. Nos breves segundos transcorridos, Jack teve tempo
suficiente para ver que tinham atingido a popa e a alheta: tinham destruído algumas janelas da cabina e a pequena galeria; e que o Gloire tinha doze canhões, para
além de arvorar a bandeira francesa.
O Sophie perdera muita velocidade e o Gloire, que estava de novo amurado a bombordo, como de início, ganhava velocidade rapidamente; seguiam rotas paralelas, navegando
cochados sob aquele vento instável, mas o Sophie vinha um pouco atrás. Não deixaram de disparar um contra o outro, num estrépito quase contínuo, e no meio de um
fumo ora branco, ora negro-acinzentado, ora iluminado por violentas explosões de um fogo carmim. E os canhões não se calavam: o tempo passava, o sino tocava, o fumo
adensava-se: e o comboio desaparecia à popa.
Não havia nada a dizer, nada a fazer: os capitães das equipas de artilheiros tinham ordens para cumprir e cumpriam-nas com esplêndida fúria, disparando para o casco,
disparando tão rapidamente quanto era possível; os guardas-marinhas encarregados das divisões corriam de uma ponta a outra da fila, dando uma mão aos homens e evitando
que se instalasse a confusão; a pólvora e as balas chegavam do paiol com perfeita regularidade; o contramestre e os seus ajudantes deambulavam pelo navio, verificando
se o aparelho sofrera danos; nos cestos, os mosquetes dos atiradores especiais crepitavam vivamente. Jack continuava reflectindo: perto dele, à sua esquerda, encolhendo-se
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apenas um nada quando as balas açoitavam a coberta ou perfuravam o casco (com um tremendo e dilacerante estrépito), estavam o escriturário e Ricketts, o guarda-marinha
do castelo de popa. Uma bala atravessou a caixa onde eram guardadas as redes, passou diante de Jack a uma curta distância, chocou contra um suporte de ferro e perdeu
a sua força nas camas do outro lado "Uma bala de oito libras", pensou Jack enquanto ela rolava na sua direcção.
O navio francês disparava alto, como sempre, e bastante ao acaso: na zona tranquila, azul e sem fumo, a barlavento, Jack tinha visto cair balas nas águas a cerca
de cinquenta jardas de distância, à proa e à popa, sobretudo à proa. O Gloire estava a adiantar-se: pelos clarões que iluminavam a parte mais distante da nuvem de
fumo e pela mudança ocorrida no som, era muito claro e evidente que o Gloire estava a adiantar-se. E uma coisa dessas não podia estar a acontecer. De modo nenhum.
- Mr Marshall - disse Jack Aubrey pegando na sua trombeta -, vamos passar sob a popa deles. - Quando ergueu a trombeta, houve um tumulto e gritos na proa: um canhão
tinha-se virado, talvez dois. - Deixar de disparar aí! - gritou ele com toda a sua força. - Canhões de bombordo, esperar!
O fumo era agora menos denso. O Sophie começou a virar a estibordo para cruzar a esteira do inimigo e fazer com que a bateria de bombordo apontasse à popa do Gloire,
abarcando-a em toda a sua extensão. Mas o Gloire não ia permiti-lo; como que avisado por uma voz interior, o capitão do navio subira o leme apenas cinco segundos
depois de o Sophie ter feito o mesmo; e agora, com o fumo dissipando-se de novo, Jack, junto à caixa das camas de bombordo, pôde ver, a uma distância de cerca de
cento e cinquenta jardas, a grinalda do Gloire e, nela, o seu capitão, um homem de baixa estatura e grisalho, olhando fixamente para trás. O capitão francês esticou
a mão para trás e pegou num mosquete e, apoiando os cotovelos na grinalda, fez pontaria a Jack sem a menor cerimónia. O caso era extraordinariamente pessoal: Jack
sentiu que os seus músculos do rosto e do peito se retesavam involuntariamente, como se fosse conter a respiração.
- Os sobrejoanetes, Mr Marshall! - ordenou. - Ele está a afastar-se! O fogo dos canhões tinha cessado e, naquela calmaria, Jack ouviu disparar o mosquete como se
o tivesse a um palmo do ouvido. Um segundo depois, Christian Pram, o timoneiro, deu um grito lancinante e vacilou sem chegar a cair, arrastando o leme consigo: no
seu antebraço abriu-se uma ferida que ia desde o pulso ao cotovelo. A proa do Sophie voou contra o vento e, apesar de Jack e Marshall terem tomado conta do leme
imediatamente, o Sophie tinha
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perdido aquela oportunidade. Para que a bateria de bombordo apontasse de novo à popa, a corveta teria de dar um novo giro que obrigaria o navio a perder ainda mais
velocidade; e isso não poderia acontecer. O Sophie estava agora a cerca de duzentas jardas do navio francês, pela alheta de estibordo - e só havia uma coisa a fazer:
ganhar velocidade, alcançá-lo e retomar o combate; caso contrário, todas as esperanças se desvaneceriam. Jack e o mestre olharam de relance um para o outro: tinham
desfraldado todo o velame possível, mas o vento estava excessivamente à proa para as varredouras.
Jack tinha os olhos fixos na presa, esperando alguma agitação a bordo desta, ou uma ligeira mudança na sua esteira, o que significaria o começo de um giro a estibordo;
o Gloire viraria e cortaria a proa do Sophie, disparando contra ele de proa a popa ao avançar na direcção do seu disperso comboio. Mas Jack perscrutava o inimigo
em vão. De facto, o Gloire mantinha o seu rumo. Aumentara a sua vantagem relativamente ao Sophie mesmo sem os sobrejoanetes, que estava a içar agora: e o vento também
lhe era mais favorável. Jack esperava com os olhos semicerrados e cheios de lágrimas pois o sol dava-lhes em cheio; uma mudança de vento fez com que o navio se afastasse
mais; a sua esteira era cada vez mais longa. O capitão francês disparava com pertinácia - um marinheiro passava-lhe os mosquetes carregados - e uma bala arrancou
um enfrechate a dois pés da cabeça de Jack; mas agora o Sophie estava praticamente fora do alcance dos mosquetes e, fosse como fosse, tinha-se já atravessado aquela
indefinível fronteira entre a animosidade pessoal e a guerra anónima, o que não afectava Jack minimamente.
- Mr Marshall - disse ele -, vire pouco a pouco até podermos saudá-lo. Mr Pullings, dispare como eles merecem!
O Sophie desviou-se dois, três, quatro graus, do seu rumo. O canhão de proa disparou e o resto da bateria de bombordo seguiu-o numa sequência regular. Demasiado
impaciente, infelizmente: estavam bem colocados, mas viam-se as balas a cair na água a vinte e mesmo trinta jardas da popa. O Gloire, mais preocupado com a sua segurança
do que com a honra, e esquecendo por completo os seus deveres para com o senor Mateu, orçou em vez de guinar para responder ao fogo inimigo. Sendo um navio, podia
navegar à bolina melhor do que o Sophie, e não teve o menor escrúpulo em fazê-lo, aproveitando ao máximo o vento favorável. Estava pura e simplesmente fugindo. Da
surriada seguinte, duas balas pareceram atingi-lo e, de facto, uma delas atravessou-lhe a gata. Mas o alvo era cada vez mais diminuto, à medida que os rumos dos
dois contendores divergiam - e as esperanças do Sophie se desvaneciam.
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Após mais oito surriadas, Jack ordenou que cessassem fogo. Tinham alvejado astuciosamente o navio inimigo, tinham arruinado o seu belo aspecto, mas não tinham conseguido
destroçar o seu aparelho, o que o deixaria ingovernável, nem tinham arrancado nenhum mastro ou verga vitais. E era evidente que não tinham conseguido convencê-lo
a voltar para trás e a lutar lais contra lais. Enquanto fixava o fugitivo Gloire, Jack tomou uma decisão.
- Dirigir-nos-emos de novo para o cabo, Mr Marshall - disse ele. Sul-sudoeste.
O Sophie sofrera escassos danos.
- Há alguma reparação que não possa esperar meia hora, Mr Watt? perguntou Jack, atando distraidamente um briol que se soltara.
- Não, meu capitão. O veleiro terá algum trabalho, é certo; mas eles não dispararam planquetas e a nossa enxárcia não sofreu nada. Pouca prática, meu capitão; muito
pouca prática. Nada como aquele turco malvado, que fez das boas ao nosso querido Sophie.
- Nesse caso, chamaremos os homens para o pequeno-almoço e trataremos dos nós e das costuras depois. Mr Lamb, que danos temos?
- Nenhum abaixo da linha de flutuação, meu capitão. Quatro buracos bastante feios na zona central e as portinholas dois e quatro quase reduzidas a uma: isso é o
pior. Mas não é nada, comparado com a tareia que demos a esse... sodomita - acrescentou Mr Lamb, numa voz quase sumida.
Jack Aubrey avançou na direcção do canhão desmontado. Uma bala do Gloire destroçara a parte da amurada onde se fixavam as cavilhas de arganéu de popa, no preciso
momento em que o canhão número quatro recuava. O canhão, parcialmente travado do outro lado, dera uma volta e chocara com violência contra o seu vizinho, que estava
desamarrado, e acabara por tombar. Por sorte, uma sorte verdadeiramente extraordinária, os dois homens que teriam ficado esmagados entre os canhões não se encontravam
no fatídico local naquele momento - um deles estava a limpar, com água do balde para extinguir incêndios, o sangue de um arranhão que tinha na cara, e o outro correra
a buscar mais rastilhos; e por sorte, uma sorte igualmente extraordinária, o canhão tombara em vez de prosseguir a sua mortífera corrida ao longo da coberta.
- bom, Mr Day. Por um lado até tivemos sorte. O canhão pode ir para a proa enquanto Mr Lamb não puser novas cavilhas de arganéu.
Enquanto se dirigia para a popa, despindo a casaca enquanto caminhava
- de súbito, o calor tornara-se insuportável -, Jack examinou atentamente o horizonte a sudoeste. No meio da neblina que se dissipava, não se avistava
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o Cabo de La Não nem uma única vela. Nem sequer reparara que o sol já tinha nascido; mas ali estava ele, o astro-rei, bem alto no céu. Sim, não havia dúvida, deviam
ter navegado longas milhas.
- Santo Deus, apetecia-me tanto um café! - disse ele, regressando inopinadamente à realidade, onde o fluir do tempo era de novo normal e o apetite contava. - "Mas
a verdade é que tenho de descer", reflectiu. Esse era o lado mau: era ali, em baixo, na enfermaria, que se via o que acontecia quando a cara de um homem e uma bala
de ferro se encontravam.
- Capitão Aubrey - disse Stephen, fechando o seu livro no preciso instante em que viu Jack entrar na enfermaria. - Tenho uma queixa muito séria a fazer-lhe.
- Sou todo ouvidos - retorquiu Jack, procurando distinguir na escuridão aquilo que os seus olhos receavam ver.
- Mexeram na minha áspide. Garanto-lhe, capitão, mexeram na minha áspide. Fui à minha cabina buscar um livro, há menos de três minutos, e que vi eu? O recipiente
onde se encontrava a áspide estava seco, completamente seco!
- Diga-me primeiro qual é o saldo desta carnificina; depois tratarei da sua áspide.
- Ah... uns quantos arranhões, um homem com uma ferida pouco profunda no antebraço, um par de estilhas para extrair - nada de grave - umas ligaduras e pronto! Os
únicos casos para a enfermaria são uma gonorreia crónica com pouca febre e uma hérnia inguinal sem grande importância; e o antebraço. Agora a minha áspide...
- Não há mortos? Nem feridos? - gritou Jack, o coração saltando-lhe no peito.
- Não, não, não. Agora a minha áspide. - Stephen trouxera a áspide num recipiente cheio de álcool; algum marinheiro ladrão pegara no frasco, bebera todo o álcool
e deixara a áspide ressequida e desamparada.
- Lamento imenso - disse Jack. - Mas... e o homem que bebeu o álcool? Não morrerá? Não deveria tomar um emético?
- Não, não morrerá. Infelizmente! Esse maldito, esse ladrão embrutecido pelo álcool, mais bárbaro que os próprios hunos, não morrerá! E era um álcool tão bom, o
melhor do mercado, de dupla destilação.
- Por favor, doutor, venha tomar o pequeno-almoço comigo na cabina; umas boas chávenas de café e uma boa costeleta grelhada tirar-lhe-ão esse ferrão que o ladrão
do álcool lhe deixou. Acalmá-lo-ão... - com a alegria que lhe inundava o coração, Jack esteve prestes a encontrar uma frase espirituosa; sentiu-a a flutuar no ar,
quase ao seu alcance; contudo, a frase acabou
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por fugir-lhe e limitou-se a rir tão alegremente quanto o magoado Stephen poderia tolerar. E logo acrescentou, mudando de assunto: - O maldito vilão fugiu-nos; e
temo que o nosso regresso seja profundamente aborrecido. Pergunto-me se Dillon terá conseguido capturar o settee, ou se este também terá fugido.
Era uma curiosidade natural, uma curiosidade partilhada por todos os homens a bordo do Sophie, excepto por Stephen; uma curiosidade que não seria satisfeita nessa
manhã, nem muito depois do meio-dia, quando o vento amainou, dando lugar a uma calmaria quase total; as velas acabadas de envergar batiam contra os mastros, suspensas
das vergas em flácidos inchaços, e os homens que trabalhavam nas velas rasgadas tinham de ser protegidos por um toldo. Era um daqueles dias terrivelmente húmidos
em que não corre ar nenhum, e o calor era tanto que, apesar da sua extrema impaciência em recuperar o destacamento de abordagem, garantir a presa e seguir para norte
ao longo da costa, Jack não era capaz de ordenar que recorressem aos remos. Os homens tinham combatido contra o navio inimigo bastante bem (apesar de os canhões
se mostrarem ainda demasiado lentos) e tinham estado muito ocupados com as reparações dos danos causados pelo Gloire. "Deixá-los-ei em paz até ao quarto das quatro
às seis, pelo menos", concluiu Jack.
O calor era cada vez mais sufocante; o fumo que saía da chaminé da cozinha flutuava na coberta, juntando-se ao cheiro do ponche e do quintal de carne salgada que
a tripulação havia devorado; o regular tang-tang do sino surgia a intervalos tão longos que, muito antes de o snow ter sido avistado, Jack teve a sensação de que
o encarniçado combate daquela manhã pertencia a uma outra época, a uma outra vida, ou mesmo (se não fosse o persistente odor a pólvora no almofadão sob a sua cabeça)
a um outro tipo de experiência - como num conto que tinha lido. Estirado sobre o armário debaixo da janela de popa, Jack revolveu tudo isto na sua cabeça, deteve-se
um pouco, revolveu mais e mais, e mais lentamente, e, num instante, mergulhou num sono profundo.
Acordou de repente, retemperado, fresco e plenamente consciente de que o Sophie tinha estado a navegar suavemente durante bastante tempo, com um vento que o fazia
inclinar-se um pouco, com o resultado de que a popa ia mais alta do que a proa.
- Quer-me parecer que os malditos rapazes acabaram mesmo por o acordarem, meu capitão - disse Mr Marshall com solícito azedume. - Mandei-os para cima, mas parece
que foi demasiado tarde. Berravam e guinchavam que nem um bando de babuínos. Raios os partam mais às brincadeiras deles!
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Embora fosse uma criatura excepcionalmente aberta e sincera, Jack respondeu imediatamente:
- Ah, não, eu não estava a dormir. - Na coberta, olhou de relance para os dois topos de mastro; lá em cima, os guardas-marinhas examinavam atentamente a cena que
se passava em baixo, temendo que o mestre contasse as suas faltas ao capitão. Ao verem Jack olhando para eles (e como que para demonstrarem que estavam a cumprir
cabalmente o seu dever), desviaram imediatamente os olhos em direcção ao snow e ao settee, que se aproximavam rapidamente do Sophie com o vento que soprava de leste.
"Lá está ele!", disse Jack para si mesmo, extremamente satisfeito. "E capturou o settee. É um homem competente, um marinheiro formidável". Sentiu uma profunda afeição
por Dillon - teria sido fácil deixar escapar a segunda presa enquanto controlava a tripulação do snow. Na realidade, deveria ter feito um esforço extraordinário
para capturar e trazer os dois barcos, pois o settee nunca se teria rendido de bom grado.
- Muito bem, Mr Dillon! - gritou Jack quando James, seguido por uma figura com um uniforme desconhecido e feito em farrapos, subiu a bordo pelo costado do navio.
- O settee tentou fugir?
- Tentou de facto, meu capitão - disse James. - Permita-me que lhe apresente o capitão La Hire, da Artilharia Real Francesa. - Descobriram-se, fizeram uma vénia,
cumprimentaram-se.
- Os meus respeitos - disse La Hire, num tom baixo e compenetrado. E Jack respondeu:
- Domestique, monsieur.
- O snow era uma presa napolitana. O capitão La Hire teve a amabilidade de se encarregar dos monárquicos franceses que seguiam como passageiros e dos marinheiros
italianos, mantendo a tripulação da presa controlada enquanto nós tratávamos de capturar o settee. Lamentavelmente, depois de termos controlado este settee, verificámos
que a tartana e o outro settee se encontravam já demasiado longe, a barlavento: fugiram ambos navegando junto à costa e encontram-se agora sob a protecção dos canhões
da bateria de Moraira.
- Ah! Examinaremos essa baía depois de termos tratado dos prisioneiros. Há muitos prisioneiros, Mr Dillon?
1 Em francês, no original: "Um seu criado, senhor". (N. do T.)
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- Apenas uma vintena, meu capitão, pois os tripulantes do snow são aliados. Iam a caminho de Gibraltar.
- Quando foi a captura?
- Ah, é uma bela presa, capitão! Há cerca de oito dias.
- Tanto melhor. Diga-me, houve algum problema?
- Não, meu capitão. Ou melhor, pequenos problemas sem importância. Agredimos dois tripulantes do snow na cabeça e também houve um recontro estúpido a bordo do settee:
um homem levou um tiro de pistola. Espero que tudo tenha corrido bem no Sophie.
- Sim, sim. Não houve mortos nem feridos graves. O navio corsário fugiu demasiado rapidamente para que pudesse causar-nos grandes danos: conseguia navegar quatro
milhas, contra as nossas três, apesar de não ter desfraldado ainda os sobrejoanetes. Uma embarcação verdadeiramente prodigiosa.
Jack julgou ver no rosto de James Dillon uma fugaz expressão de reserva
- ou talvez fosse qualquer coisa na sua voz; contudo, não parou para pensar nisso, pois era preciso inspeccionar as presas e tratar dos prisioneiros; porém, duas
ou três horas depois, aquela impressão tornou-se mais nítida.
O capitão Jack Aubrey estava na sua cabina: sobre a mesa, tinha aberto um mapa onde figurava o Cabo de La Não e, sobressaindo um pouco mais abaixo, o Cabo de Moraira
e o o Cabo de Ifach, entre os quais se situava a pequena aldeia de Moraira, ao fundo da baía. James Dillon estava sentado à sua direita, Stephen Maturin à sua esquerda
e Mr Marshall diante dele.
- Além disso - dizia Jack -, disse-me o doutor que, segundo os espanhóis, o outro settee leva um carregamento de mercúrio escondido em sacas de farinha. Portanto,
teremos de o tratar com o máximo cuidado.
- Sim, claro - disse James Dillon. Jack lançou-lhe um olhar feroz e logo os seus olhos se fixaram de novo no mapa e no desenho de Stephen: um desenho em que se via
uma pequena baía com uma aldeia e uma torre ao fundo: um quebra-mar baixo avançava mar adentro cerca de vinte ou trinta jardas e virava ligeiramente para a esquerda
mais cinquenta jardas, até terminar num montículo rochoso, encerrando desse modo um porto protegido de tudo excepto do vento de sudoeste. Penhascos escarpados estendiam-se
desde a aldeia até à ponta nordeste da baía. Do outro lado havia uma praia de areia que ia desde a torre até ao extremo sudoeste, onde os penhascos voltavam a erguer-se.
"Pensará por acaso que sou cobarde?", pensou Jack. "Ou que deixei de perseguir o navio porque não queria sofrer nenhum dano e que regressei à pressa por causa da
presa?". A torre dominava a entrada do porto;
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situava-se cerca de vinte jardas a sul da aldeia e da praia de cascalho onde estavam atracados os barcos de pesca.
- bom, este montículo na ponta do quebra-mar - disse Jack em voz alta -, que altura terá? Dez pés?
- Talvez mais. Há oito ou nove anos que estive nessa baía - disse Stephen -, e por isso não posso ter uma certeza absoluta; no entanto, a capela que se encontra
sobre esse montículo resiste às ondas altas das tempestades de Inverno.
- Nesse caso, protegerá por certo o nosso casco. bom, se ancorarmos a corveta com uma regeira presa ao anete da âncora, assim - disse Jack, descrevendo uma linha
com o dedo, desde a bateria até à rocha -, o Sophie ficará bastante seguro. Poderá abrir fogo com o máximo de intensidade possível, disparando contra o quebra-mar
e contra a torre. Os botes do snow e do settee atracam na angra do doutor - acrescentou, assinalando uma pequena fenda na costa, muito perto do extremo sudoeste
- e nós avançamos pela margem o mais depressa possível e tomamos a torre por trás. Quando estivermos a cerca de vinte jardas, dispararemos o foguete e você, Mr Dillon,
apontará os canhões e disparará sem cessar.
- Eu, meu capitão?! - exclamou James.
- Sim, Mr Dillon, você; eu vou a terra. - Não houve nenhuma réplica a estas palavras de Jack Aubrey; após uma pausa, prosseguiu com os pormenores do plano: - Enfim...
dez minutos para nos deslocarmos desde a angra até à torre e...
- Vinte minutos, por favor! - disse Stephen. - Vocês, os homens corpulentos e de compleição sanguínea, registam uma elevada percentagem de mortes súbitas, devido
a esforços violentos sob um calor impiedoso. Há muitos casos de apoplexia e congestão.
- Gostaria... gostaria muito que o doutor não dissesse coisas dessas retorquiu Jack num tom grave: todos olharam para Stephen com uma expressão de intensa reprovação,
e Jack acrescentou: - Além do mais, doutor, eu não sou um indivíduo corpulento.
- Pois não - comentou Mr Marshall -, o capitão até é muito elegante.
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As condições eram perfeitas para o ataque. Os resquícios do vento leste conduziriam o Sophie até às proximidades da costa e quando a lua surgisse no céu, o vento
que sopraria de terra empurrá-lo-ia até ao alto mar - ao Sophie e a tudo o que conseguissem arrecadar. Durante a prolongada observação do porto a partir do topo
do mastro, Jack avistou o settee e numerosas embarcações amarradas à parede interna do quebra-mar, bem como uma fileira de barcos de pesca fundeados ao largo da
costa: o settee encontrava-se perto da extremidade do quebra-mar onde ficava a capela, em frente dos canhões da torre a umas cem jardas no outro lado do porto.
"Posso não ser perfeito", pensou Jack, "mas, por amor de Deus, cobarde é que eu não sou! E se não conseguir capturar o settee, juro que o reduzirei a cinzas!". Contudo,
estas reflexões não duraram muito. Da coberta do snow napolitano, numa escuridão quase total, viu o Sophie dobrar o Cabo de Moraira e penetrar na baía, enquanto
as duas presas, com os botes a reboque, navegavam na direcção da outra ponta. Como o settee já estava no porto, não haveria nenhuma surpresa para o Sophie: antes
de ancorar, receberia os disparos da bateria. A haver surpresas, elas só poderiam vir dos botes: a escuridão era já demasiado grande para que fosse possível ver
as presas atravessando as imediações da baía e dirigindo-se para a angra de Stephen, onde os botes atracariam - segundo as palavras do doutor, "uma das poucas angras
onde os andorinhões de peito branco constróem os seus ninhos". Jack observou a corveta com uma ansiedade extrema, mesclada de uma grande ternura, dilacerado pelo
desejo de estar nos dois lugares ao mesmo tempo. As possibilidades de um horrendo fracasso inundavam-lhe a mente: os canhões da bateria costeira (que potência teriam?
Stephen não pudera esclarecê-lo) disparando incessantemente contra o casco do Sophie, o intenso fogo dos dois lados, o vento poderia amainar, ou levantar-se impetuoso
para logo acalmar na costa; a bordo da corveta não havia marinheiros suficientes para a pôr fora do alcance das balas; e se os botes se extraviassem? Era uma tentativa
temerária, absurda, imprudente.
- Silêncio em todo o navio! - gritou Jack, furioso. - Querem acordar toda a costa?
Nunca imaginara que os seus sentimentos em relação à corveta pudessem ser tão profundos: sabia exactamente o que estava a acontecer com o Sophie naquele preciso
momento - o rangido muito peculiar da verga grande na sua troça, o murmúrio do leme, ampliado pela caixa de ressonância da proa; e a passagem da corveta pela baía
parecia-lhe intoleravelmente longa.
- Meu capitão - disse Pullings. - Creio que a ponta está agora a bombordo.
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- Tem razão, Mr Pullings - disse Jack espreitando pelo seu óculo nocturno. - As luzes da aldeia estão a apagar-se umas atrás das outras. Leme a bombordo, Algren.
Mr Pullings, mande um bom marinheiro para as amarras: deveríamos ter vinte braças neste momento. - Dirigiu-se à grinalda e gritou por sobre as negras águas: - Mr
Marshall, estamos a aproximar-nos.
A alta e negra franja de terra destacava-se sobre a escuridão menos intensa do céu estrelado: estava cada vez mais próxima, eclipsando silenciosamente Arcturo e
depois toda a Coroa: eclipsando mesmo Vega, muito alta no céu. O ruído regular da sonda ao cair na água, a constante cantilena do marinheiro nas amarras de barlavento:
"Profundidade nove; profundidade nove; marca sete; cinco e um quarto; cinco menos um quarto...".
Diante deles estava a pálida angra sob o penhasco e uma franja de espuma de um branco desmaiado, cerzida pelas ondas que iam morrer na praia.
- A estibordo! - disse Jack. O snow orçou e a vela do traquete moveu-se como se fosse uma criatura sensível. - Mr Pullings, o seu grupo para a lancha! - Catorze
homens passaram rapidamente por ele e deslizaram silenciosamente pelo costado a caminho da lancha: cada um deles tinha uma faixa branca no braço. - Sargento Quinn!
- Passaram depois os fuzileiros, os mosquetes brilhando apenas um nada, as botas martelando na coberta. Alguém estava às apalpadelas na cintura de Jack. Era o capitão
La Hire, que se juntara aos soldados como voluntário e que procurava a mão de Jack para o cumprimentar.
- Bon sorte - disse La Hire, cumprimentando finalmente Jack Aubrey.
- Muito merci, mon capitão - respondeu Jack. Nesse preciso instante o céu iluminou-se e ouviu-se o estrondo de um forte disparo.
- O cúter onde está? - perguntou Jack, meio-cego pelo clarão.
- Está aqui, meu capitão. - Era a voz do timoneiro, que estava mesmo por baixo dele. Jack desceu.
- Mr Ricketts, onde está a lanterna furta-fogo?
- Meti-a na minha casaca, meu capitão.
- Coloque-a na popa. Ciar! - O canhão voltou a fazer-se ouvir, seguido quase de imediato por outros dois em uníssono: estavam a fazer ensaios, estavam a ver se acertavam,
quanto a isso não havia dúvida: um estrondo tremendo e avassalador para um canhão. Seria um canhão de trinta e seis? Olhou para trás e viu os quatro botes atrás
dele, uma linha imprecisa contra as vagas silhuetas do snow e do settee. Afagou as pistolas e a espada com gestos mecânicos: poucas vezes se tinha sentido tão nervoso
e todo o seu ser se concentrava no seu ouvido direito: queria ouvir a bateria do Sophie.
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O cúter navegava velozmente e os remos rangiam ao sabor dos movimentos dos homens, ofegantes devido à violência do esforço.
- Parar de remar, todos! - disse o timoneiro em voz baixa; poucos segundos depois, o barco disparava por cima do cascalho da praia. Os homens já tinham saído e ergueram
a lancha antes que ela encalhasse; seguiram-se-lhe o bote do movo com Mowett, o escaler com o contramestre e a lancha do settee com Marshall.
A pequena praia estava cheia de homens.
- A corda, Mr Watt? - disse Jack.
- A corveta vai disparar - disse uma voz; nesse momento, de facto, ouviram-se sete canhões disparando; o estrondo chegava bastante esbatido.
- Aqui tem, meu capitão - disse o contramestre tirando do ombro duas aduchas de uma corda com uma polegada de grossura.
Jack pegou na ponta de uma das cordas e disse:
- Mr Marshall, pegue na sua corda, e que cada homem faça um nó. Ordenadamente, como se estivessem formados para a revista a bordo do Sophie, os homens ocuparam os
seus lugares. - Prontos? E aí? Avançar!
Jack avançou na direcção da ponta, onde a praia se estreitava e, atrás dele, presa à corda, vinha a sua metade do destacamento de desembarque. Sentia crescer no
seu peito uma excitação violenta - a espera terminara: aquilo, aquilo era o agora. Quando dobraram a ponta, viram um fogo que os cegava e o ruído tornou-se dez vezes
mais intenso: a torre disparou três, quatro potentes projécteis que passaram como lanças vermelhas quase a rasar o chão, e o Sophie, cujas gáveas podiam ver-se claramente
quando os clarões iluminavam todo o céu, replicou com um fogo preciso, rápido, disparando contra o quebra-mar para provocar uma chuva de fragmentos de pedra e assim
dissuadir o inimigo de qualquer tentativa para rebocar o settee para terra. Tanto quanto Jack poderia ver daquele ângulo, o Sophie estava exactamente na posição
que tinham marcado no mapa, tendo a bombordo a negra massa rochosa da capela. Mas a torre ficava mais longe do que esperava. O seu deleite - para dizer a verdade,
algo que se aproximava mais do êxtase não o impedia de sentir o esforço do seu corpo, o esforço das pernas erguendo-se lentamente da macia areia onde as suas botas
se afundavam. Não, não podia cair! Não, de modo nenhum, pensou Jack ao dar um tropeção; e voltou a pensar o mesmo ao aperceber-se da queda de um dos homens da corda
de Marshall. Protegeu os olhos dos clarões e, com um esforço incrivelmente violento, apartou-os da batalha; as suas pernas continuaram a lutar contra a areia da
praia, e o seu coração batia desalmadamente, quase sufocando a sua
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mente, mas a verdade é que pouco avançava. Porém, de repente, o chão tornou-se mais duro: como se se tivesse libertado de uma carga de cento e quarenta libras, desatou
a caminhar com um passo ligeiro, ou melhor, corria, de facto corria. Era uma areia compacta, uma areia que não fazia ruído quando se caminhava sobre ela; atrás dele
ouvia apenas a respiração violenta, arquejante, do destacamento de desembarque. A bateria, por fim, virava-se para eles apressadamente e, através das ameias da muralha,
viam-se as silhuetas dos espanhóis, numa grande azáfama à volta dos canhões. Uma bala do Sophie roçou pela rocha da capela e passou sibilando por cima das suas cabeças;
nesse momento, um torvelinho repentino na brisa trouxe-lhes um cheiro sufocante a pólvora - a pólvora da torre.
Seria aquele o momento certo para disparar o foguete? O forteestava muito próximo - ouviam-se mesmo as vozes dos espanhóis e o ruído das carretas. Mas os espanhóis
estavam completamente concentrados no fogo contra o Sophie: podiam aproximar-se um pouco mais, um pouco mais, um pouco mais ainda. Todos avançavam muito lentamente,
conjuntamente; viam-se todos uns aos outros graças aos clarões, graças àquela luz estranha que incendiava a escuridão.
- O foguete, Bonden - murmurou Jack. - Mr Watt, as fateixas. Verifiquem as armas, todos.
O contramestre fixou as fateixas de três unhas às cordas; o timoneiro plantou os foguetes, acendeu uma mecha e protegeu-a, não fosse apagar-se; no meio do clamor
da bateria, ouviu-se um ligeiro tinido metálico - o som dos cintos a soltarem-se da corda; ao mesmo tempo, a respiração dos homens tornava-se mais natural, menos
arquejante.
- Prontos? - sussurrou Jack.
- Prontos, meu capitão - sussurraram os oficiais.
Jack curvou-se. A mecha assobiava; e o foguete subiu, com uma cauda vermelha e uma explosão azul nas alturas.
- Avante! - gritou Jack, e a sua voz foi afogada por gritos alvoroçados: "Hurra! Hurra!".
Correr, correr, correr! Atiraram-se ao fosso sem água, treparam pelas cordas como um enxame, até ao parapeito, gritando, gritando sempre - um clamor vibrante. Jack
ouviu o timoneiro dizendo: "Dê-me a sua mão, camarada". Sentiu a dilacerante rugosidade da pedra e de repente já estava lá em cima, com a espada desembainhada numa
mão e a pistola na outra: porém, não havia ninguém contra quem lutar. Os artilheiros - à excepção de dois que estavam no chão e outro que estava curvado devido a
um ferimento,
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perto da grande lanterna por detrás dos canhões - deslizavam uns atrás dos outros pela muralha e corriam na direcção da aldeia.
- Johnson! Johnson! - gritou. - Desarmar os canhões! Sargento Quinn, dispare sem cessar! Iluminar esses espigões!
O capitão La Hire tratava já de tirar os fechos dos canhões de vinte e quatro, ainda quentes, com uma alavanca.
- Melhor fazer saltar - disse La Hire no seu inglês mascavado. - Fazer saltar tudo no ar.
- Vous savez faire saltar no ar? - perguntou Jack Aubrey.
- Claro! - disse La Hire com um sorriso que não deixava dúvidas quanto à sua competência em explosivos.
- Mr Marshall, o senhor e o seu grupo vão rapidamente para o quebra-mar. Sargento, os fuzileiros formam o mais perto de terra possível, disparando sem cessar, quer
haja gente por perto ou não. Vire em redondo o settee e largue as velas, Mr Marshall. O capitão La Hire e eu vamos proceder a uma operação delicada: daqui a pouco
a fortaleza irá pelos ares!
- Deus do céu! - disse Jack. - Odeio cartas oficiais!
Nos seus ouvidos ressoava ainda a espectacular explosão (afinal, havia um segundo paiol de pólvora debaixo do primeiro - um facto que os cálculos do capitão La Hire
não tinham previsto), e nos seus olhos flutuavam ainda fugazes formas amarelas, resquícios da incandescente coluna de luz que havia sido projectada; doíam-lhe horrivelmente
a cabeça e o pescoço, porque o lado esquerdo da sua longa cabeleira tinha ardido, e apresentava feias queimaduras e contusões no couro cabeludo e no rosto; na mesa
diante de si estavam quatro rascunhos que rejeitara; e, sob a custódia do Sophie, seguiam as três presas, rumando com urgência a Mahón, sob um vento favorável, ao
passo que ao longe o fumo formava ainda uma espessa nuvem, pairando sobre a pequena aldeia de Moraira.
- Por favor, doutor, oiça-me agora esta passagem - disse Jack - e diga-me se a gramática está bem e se a linguagem é a mais correcta:
Tenho a honra de lhe comunicar que, de acordo com as ordens recebidas, segui na direcção do Cabo de La Não, onde encontrei um comboio de três
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embarcações comandadas e protegidas por uma corveta francesa de doze canhões.
- A seguir, falo do snow e faço uma breve referência ao combate com o navio corsário e manifesto a minha indignação a propósito da presteza com que ele fugiu. E
passo imediatamente ao destacamento de desembarque.
Dado que, aparentemente, o resto do comboio tinha fugido com a intenção de procurar a protecção dos canhões da bateria de Moraira, decidimos que deveríamos tentar
os ditos canhões, o que foi conseguido com êxito, tendo a referida bateria (composta por quatro canhões de ferro de vinte e quatro, situados numa torre quadrada)
sido destruída por explosão às duas horas e vinte e sete minutos e os botes deslocados para o extremo sudoeste da baía. Fomos obrigados a incendiar três tartanas
que estavam ancoradas, mas capturámos o settee quando comprovámos que se tratava do Xaloc, o qual transportava uma valiosa carga de mercúrio escondida em sacas de
farinha.
- Está simples e directo, não acha, doutor? Quer dizer, está sem exageros... bom, vou continuar:
Ao primeiro-oficial Dillon, que se encarregou temporariamente da corveta de Sua Majestade que tenho a honra de comandar e que manteve um fogo incessante sobre o
quebra-mar e a bateria, não poderei deixar de manifestar o meu profundo reconhecimento pelo seu zelo e actividade. Todos os oficiais e marinheiros tiveram tão bom
comportamento que seria iníquo referir casos particulares; devo, porém, reconhecer a amabilidade de Monsieur La Hire, da Artilharia Real Francesa, que ofereceu voluntariamente
os seus préstimos para levar a cabo a explosão do paiol de pólvora e que sofreu algumas contusões e queimaduras. Incluo uma lista dos mortos e dos feridos: John
Hayter, fuzileiro, morto; James Nightingale, marinheiro, e Thomas Thompson, marinheiro, feridos. Tenho a honra, Excelência, de...
- O resto é como de costume. Que lhe parece, doutor?
- bom, está mais clara do que a última - disse Stephen. - Mas creio que o termo iníquo é exagerado... Injusto é mais simples, e mais adequado.
- Sim, claro, injusto fica melhor. Bem me parecia que havia qualquer coisa que estava mal...
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O Sophie encontrava-se por alturas da ponta de San Pedro: tinha estado extremamente activo na semana que agora findava e estava a aperfeiçoar rapidamente a sua técnica,
mantendo-se no alto mar durante o dia, enquanto as forças militares espanholas percorriam a costa à sua procura, aproximando-se da costa à noite para - tal qual
um diabo em figura de navio - pregar alguns sustos aos pequenos portos e ao comércio costeiro nas horas que precediam o alvorecer. Era uma forma de actuar perigosa
e muito peculiar e que exigia uma preparação muito cuidadosa; dependia muito, e sempre, da sorte; mas a verdade é que até aí resultara plenamente. Por outro lado,
exigia um grande esforço da parte dos tripulantes do Sophie, porque no alto mar Jack obrigava-os a um treino incessante com os canhões, e James fazia-os andar numa
agitação ainda maior, pois era ele quem supervisionava os exercícios com as velas. James era um oficial extremamente rigoroso: gostava que o navio estivesse sempre
o mais limpo possível, com ou sem acção, e não havia expedição ou escaramuça ao alvorecer que não terminasse com uma limpeza geral - com a coberta brilhando de asseio
e os metais resplandecentes. James Dillon era especial, como diziam os marinheiros; contudo, o zelo que punha nos trabalhos de pintura, no içar perfeito das velas,
na orientação das vergas, na limpeza dos cestos e no aduchar dos cabos ao estilo flamengo, era, na realidade, superado pelo prazer que sentia em conduzir aquele
frágil e belo edifício náutico nos combates contra os inimigos do rei, que poderiam transformá-lo em destroços, em cinzas ou em mais um intruso dos fundos marinhos.
No entanto, os tripulantes do Sophie, por muito esgotados, esfomeados e ansiosos que estivessem, suportavam tudo isto com um estado de ânimo excelente, pois todos
eles tinham já ideias muito precisas sobre o que fariam mal desembarcassem e uma noção relativamente precisa da significativa mudança que ocorrera no relacionamento
entre os seus superiores: o profundo respeito e consideração que James Dillon manifestava relativamente ao capitão Jack Aubrey desde os acontecimentos de Moraira,
bem como os passeios que davam juntos e as frequentes consultas que faziam um ao outro, não tinham passado despercebidos; e, muito naturalmente, os comentários que
o primeiro-oficial pronunciara à mesa da câmara dos oficiais, elogiando de forma exuberante a actuação do destacamento de desembarque, tinham passado imediatamente
de boca em boca.
- A menos que me tenha enganado nas contas - disse Jack, erguendo
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os olhos do papel -, desde que iniciámos o cruzeiro capturámos, afundámos ou incendiámos o equivalente a vinte e sete vezes o nosso próprio peso; e se esses navios
estivessem todos juntos, poderiam ter disparado quarenta e dois canhões contra o Sophie, contando com os canhões giratórios. Era nisso que o almirante estava a pensar
quando dizia que era preciso não deixar uma única vela espanhola de pé. bom - acrescentou, rindo-se a bom rir -, e se com isso ganharmos uns milhares de guinéus,
pois bem, tanto melhor!
- Posso entrar, meu capitão? - perguntou o tesoureiro, assomando à porta.
- Bons dias, Mr Ricketts. Entre, entre e sente-se. São esses os números de hoje?
- Sim, meu capitão. Receio que não lhe agradem. Abriu-se uma fenda no segundo tonel da fila inferior e devemos ter perdido cerca de duzentos e cinquenta litros.
- Nesse caso, Mr Ricketts, temos de rezar para que venha chuva retorquiu Jack. Porém, mal o tesoureiro se foi embora, Jack virou-se para Stephen com uma expressão
desolada. - Sentir-me-ia o mais feliz dos homens se não fosse essa maldita água! De facto, exceptuando a água, tudo corre lindamente: os tripulantes não poderiam
comportar-se melhor, o cruzeiro tem sido magnífico, ninguém adoeceu a bordo... Ah, se ao menos eu tivesse carregado toda a água em Mahón! Mesmo com racionamento,
mesmo fazendo as limpezas com água do mar, gastamos meia tonelada de água por dia, por causa do calor e por levarmos tantos prisioneiros; além disso a carne tem
de ser remolhada e o grogue tem de ser misturado com água. - Almejara instalar-se nas rotas marítimas que confluíam por alturas de Barcelona, talvez o cruzamento
de rotas com mais tráfego em todo o Mediterrâneo: esse seria o culminar do cruzeiro. Agora, porém, teria de navegar rumo a Minorca e não fazia a menor ideia da recepção
que teria, nem das ordens que receberia; além disso, já não faltava muito para que acabasse o tempo autorizado para o cruzeiro, e os ventos caprichosos ou um comandante
caprichoso poderiam dá-lo por terminado - com toda a certeza que assim fariam.
- Se é de água doce que precisa, posso indicar-lhe uma enseada não muito longe daqui, onde poderá encher todos os barris que quiser.
- E por que me diz isso só agora? - exclamou Jack, apertando a mão ao doutor com uma expressão que, apesar de deliciada, não melhorava em nada um aspecto profundamente
desagradável: de facto, a parte esquerda do seu rosto, cabeça e pescoço, continuava crestada e com uns veios de azul e vermelho, tal e qual o focinho de um mandril;
para cúmulo, reluzia, pois Jack
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aplicava todos os dias o unguento que Stephen prescrevera; e, espreitando sob a espessa camada de unguento, via-se já um friso de minúsculos pêlos louros; a face
direita, em contrapartida, estava bem morena e melhor barbeada: o conjunto dava-lhe o ar perverso e degenerado de um facínora rematado.
- O capitão nunca me perguntou...
- É um local desprotegido? Sem baterias?
- Nem casas há, quanto mais canhões! No entanto, foi habitado em tempos, visto que no alto do promontório há ruínas de uma villa romana; sob as árvores e a vegetação
selvagem (estevas e almecegueiras) ainda é possível descortinar a antiga estrada. Sem dúvida que os seus habitantes recorriam à nascente: além de abundante, é muito
possível que tenha qualidades medicinais. Os camponeses usam-na em casos de impotência.
- E acha que consegue encontrá-la?
- Sim - disse Stephen. Por um momento manteve-se com a cabeça baixa. - Oiça, capitão... Gostaria de lhe pedir um favor.
- Um favor? com certeza, doutor!
- Tenho um amigo que vive a duas ou três milhas da costa: gostaria que me deixasse no local da nascente e que me recolhesse, digamos, doze horas depois.
- Muito bem - disse Jack. O pedido do doutor era perfeitamente razoável. - Muito bem - repetiu, virando a cabeça para ocultar o sorriso que se espalhou pelo seu
rosto, um sorriso de quem estava a entender muito bem aquele pedido. - E gostaria de passar a noite em terra, não é verdade, doutor? Acercar-nos-emos da costa ao
fim da tarde. Tem a certeza de que não seremos surpreendidos?
- Certeza absoluta.
- Enviarei de novo o cúter pouco depois de o sol nascer. Mas... e se eu for obrigado a afastar-me da costa? Que fará o meu amigo nesse caso?
- Voltarei ao local na manhã seguinte, ou na manhã a seguir a essa, uma série de manhãs seguidas, se for preciso. Agora tenho de ir - disse o doutor, levantando-se
ao ouvir o som do sino, um som ainda muito débil, que o seu novo ajudante tocava para avisar os doentes da hora da consulta. - Não me atrevo a deixar aquele camarada
sozinho com os remédios. - O come-pecados descobrira uma maneira de se vingar dos seus companheiros: tinham-no surpreendido a moer greda para as papas dos doentes,
sob o pretexto de que era uma substância muito mais activa, muito mais potente; e se a maldade, por si só, produzisse efeitos, há vários dias que a enfermaria estaria
vazia de homens.
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Os remos do cúter, logo seguido pela lancha, venciam cautelosamente aquela escuridão tépida, enquanto James Dillon e o sargento Quinn vigiavam a enseada fortemente
arborizada; a duzentas jardas do promontório, sentia-se já o aroma dos pinheiros, misturado com o odor da esteva - era como respirar um outro elemento.
- Se remarem um pouco mais para a direita - disse Stephen -, poderão evitar as rochas onde vivem os lagostins. - Apesar do calor, levava a sua capa negra por cima
dos ombros; ia sentado e muito apertado no escasso espaço do paneiro, mirando fixamente a apertada angra com uma intensidade singular e uma palidez extrema.
O riacho que desaguava ali formara uma pequena barra durante as cheias; o cúter não avançou mais: todos saltaram para fora para o porem a flutuar e dois marinheiros,
fazendo uma cadeirinha com os braços, levaram Stephen até à margem. Fizeram-no descer delicadamente, muito para lá da marca da maré alta, exortaram-no a ter cuidado
com aquele mato cerrado e voltaram rapidamente ao barco para lhe trazerem a capa. A água, caindo incessantemente, formara um charco nas rochas da parte alta da praia;
e foi aí que os marinheiros encheram os seus barris, enquanto os fuzileiros montavam guarda nas extremidades da angra.
- Que jantar magnífico! - observou Dillon, sentando-se com Stephen numa rocha macia e muito quente, bastante conveniente para coxas e nádegas.
- Raras vezes comi melhor - disse Stephen. - E, no mar, nunca comi tão bem. - Jack tinha agora um cozinheiro francês, um monárquico do Santa Lúcia que se oferecera
como voluntário, e estava a engordar a olhos vistos, como um boi cevado para ganhar o primeiro prémio da feira. - Além disso, James, você estava extremamente animado.
- Foi uma clara violação da etiqueta naval. Na mesa de um capitão, só falamos quando o capitão nos dirige a palavra, e estamos sempre de acordo; o resultado é muito
pouco divertido, mas, enfim, a tradição é assim mesmo. No fim de contas, o capitão representa o rei. Mas achei que devia mandar a etiqueta às urtigas e fazer um
esforço especial, que deveria mostrar-me muito mais cortês do que é costume. Não fui inteiramente justo com ele, não, nem pensar - acrescentou, apontando com a cabeça
para o Sophie - e ele foi muito simpático ao convidar-me.
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- Não há dúvida: ele adora presas! Mas a captura de presas não é a sua principal preocupação.
- É verdade. Mas creio que nem todos se apercebem disso. Aliás, o próprio capitão não faz justiça a si mesmo. Os marinheiros, por exemplo, não creio que o conheçam.
E se não estivessem firmemente controlados pelos oficiais, pelo contramestre e pelo condestável - e também por Marshall, devo admiti-lo -, julgo que haveria problemas
com eles. Aliás, creio que poderá haver problemas ainda: o dinheiro das presas sobe depressa à cabeça... Do dinheiro das presas à desordem e à pilhagem não vai um
grande passo. Aliás, já se registaram problemas desses. E da pilhagem e das bebedeiras à rebeldia, e mesmo ao motim, a distância também não é muito grande... Os
motins acontecem sempre em navios em que a disciplina ou é demasiado branda ou demasiado severa.
- Estou certo de que está enganado quando diz que os marinheiros não o conhecem: os homens incultos têm uma tremenda perspicácia nestas matérias: conhece algum juízo
popular que se tenha revelado errado? Quando se adquire um pouco de educação, essa perspicácia parece dissipar-se, tal e qual como a capacidade de decorar poesia.
Conheci camponeses que eram capazes de recitar dois ou três mil versos! Mas, voltando atrás: crê de verdade que a nossa disciplina é branda? Surpreende-me essa eventualidade,
mas, enfim... no que respeita a assuntos navais, não passo de um ignorante.
- Não. Aquilo a que costumamos chamar disciplina é, no caso do Sophie, bastante rigorosa. Eu estava a referir-me a outra coisa, àquilo a que poderíamos chamar as
relações intermédias. Um comandante é obedecido pelos seus oficiais porque ele próprio obedece, e assim sucessivamente; na sua essência, não se trata de uma questão
pessoal. Se o comandante não obedece, a cadeia enfraquece. Por amor de Deus, mas que sério que eu estou! Estava a pensar naquele pobre soldado em Mahón e foi por
isso que me vieram à ideia estas reflexões morais. Não acha que é muito frequente uma pessoa estar toda alegre ao jantar e, à hora da ceia, dar consigo a pensar
por que raio é que Deus fez assim este nosso mundo?
- Sim, de facto é muito frequente. Mas que relação é que isso tem com o soldado?
- Estávamos a discutir o dinheiro da presa. O soldado dizia que tudo aquilo era injusto. Estava revoltado e era muito pobre. Afirmava que os oficiais estavam na
Marinha unicamente por causa das presas. Disse-lhe que estava enganado e ele replicou que eu mentia. Encaminhámo-nos na direcção daqueles extensos jardins que há
em Mahón, por cima do cais (Jevons, do
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implacable, estava comigo) e a discussão acabou num abrir e fechar de olhos. Pobre coitado! Num instante, muito atrapalhado, e com um ar de perfeito idiota, admitiu
que eu tinha razão! Que se passa, Shannahan?
- Os barris estão cheios, meu oficial.
- Então tapem-nos bem e levem-nos para o barco.
- Adeus - disse Stephen, levantando-se.
- Vai-se já embora? - disse James.
- Imediatamente. Tenho de ir antes que escureça demasiado.
No entanto, seria preciso que estivesse uma escuridão muito, muito estranha, para que Stephen se enganasse no caminho. O caminho subia serpenteando, cruzando e voltando
a cruzar o riacho; e, se havia caminho, isso devia-se unicamente a uma meia dúzia de pescadores de lagostins, aos homens impotentes que iam banhar-se no charco da
nascente e aos raríssimos viajantes que se aventuravam por ali; com um gesto mecânico, Stephen agarrou-se ao ramo que o ajudaria a saltar por cima de uma cova profunda
- um ramo polido por muitas mãos, pois qualquer caminhante que por ali passasse teria de se socorrer dele.
Subindo, subindo sempre: e a brisa quente suspirando por entre os pinheiros. A certa altura abandonou o caminho e subiu a uma rocha, donde pôde ver os botes puxados
pelos remos, lá muito em baixo, a uma distância extraordinária, com a sua pesada carga de barris (tão pesada que parecia querer afundá-los), todos tão juntos como
os ovos da rã; depois, o caminho voltava a ter um tecto baixo de ramos de árvores e Stephen só emergiu de novo quando chegou a uma zona coberta de tomilho e erva
baixa, onde a ponta arredondada do promontório sobressaía por entre o mar de pinheiros. Exceptuando o violeta da névoa que cobria as longínquas montanhas e o amarelo
intenso de uma pequena faixa do céu, todas as cores se tinham desvanecido. Viu umas caudas brancas a mexerem-se e a afastarem-se de si: e, tal como esperava, ali
estavam os noitibós, ou melhor, as vagas formas desses pássaros revoluteando e disparando na penumbra, girando sobre a sua cabeça como fantasmas. Sentou-se junto
a uma grande rocha que continha uma curiosa inscrição: Non fui non sum non curo2; e, a pouco e pouco, os coelhos começaram a regressar das suas tocas, aproximando-se
cada vez mais dele, até que, do lado de onde vinha o vento, pôde ouvi-los roendo apressadamente no tomilhal. Queria ficar ali sentado até ao nascer do dia e estabelecer
uma
2 Non fui non sum non curo: "Não fui, não sou, não me preocupo". (N. do T.)
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continuidade nas suas ideias - se é que tal era possível: o amigo (embora existente) era um mero pretexto. O silêncio, a escuridão, aqueles inúmeros aromas familiares
e o calor da terra tinham-se tornado (à sua maneira) tão necessários para ele como o ar.
- Creio que podemos acercar-nos de terra agora - disse Jack. - Não fará mal nenhum se chegarmos antes do tempo e, além disso, gostaria muito de esticar um pouco
as pernas. Seja como for, gostaria de o ver tão depressa quanto possível; não me sinto nada tranquilo com ele em terra. Já pensei mais do que uma vez que não deveria
tê-lo deixado ir sozinho a terra; mas também já dei comigo a pensar que o doutor Maturin quase seria capaz de comandar uma frota.
O Sophie tinha estado a bordejar à vista da terra e o quarto de modorra chegava agora ao fim, com James Dillon substituindo o mestre; como todos os marinheiros estavam
na coberta, podiam aproveitar para virar, pensou Jack, limpando as gotas de orvalho do corrimão de popa e inclinando-se sobre este para apreciar o cúter, rebocado
à popa, claramente visível na fosforescência daquele mar tépido de um branco leitoso.
- Foi ali que enchemos os barris, meu capitão - disse Babbington, apontando para a praia envolta em sombras. - E se não estivesse tão escuro, poderia ver aquela
espécie de caminho por onde o doutor subiu.
Jack avançou pela praia para ver o caminho e o charco da nascente; caminhava pesadamente, desajeitadamente, pois as suas pernas não conseguiam adaptar-se à terra
de um momento para o outro: o solo não subia e descia como uma coberta. Porém, enquanto passeava de um lado para o outro na penumbra, o seu corpo foi-se habituando
à rigidez da terra - e ao fim de algum tempo as pernas já o levavam com mais facilidade e os seus movimentos eram mais suaves e menos desajeitados. Reflectiu um
pouco sobre a natureza do solo, sobre o lento e acidentado despertar da luz solar - uma progressão abrupta, como que aos solavancos -, sobre a agradável mudança
do comportamento do primeiro-oficial desde as escaramuças de Moraira e sobre a estranha transformação do comportamento do mestre, que por vezes se mostrava extremamente
taciturno. Dillon tinha uma matilha nas suas propriedades, trinta e cinco casais de cães de caça e havia organizado caçadas esplêndidas -
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devia ser uma região extraordinária; bom, e as raposas teriam de ser prodigiosamente fortes para resistirem tanto tempo a tanto cão: Jack sentia um grande respeito
por alguém que era capaz de conviver de forma tão pacífica com uma matilha. Era evidente que Dillon sabia muito de caçadas e cavalos; no entanto, era estranho que
a algazarra dos cães não o incomodasse, porque, de facto, uma matilha fazia cá uma destas algazarras...
O tiro de aviso do Sophie fê-lo despertar bruscamente destas plácidas reflexões. Virou-se num ápice e viu o fumo descendo pelo costado. As bandeiras de sinais foram
içadas rapidamente; porém, sem o óculo e com uma luz escassa, não poderia distingui-las: a corveta virou em redondo e, como se tivesse intuído a perplexidade do
capitão, recorreu ao mais velho de todos os sinais - os joanetes desfraldados e as escotas agitando-se no ar, sinal que significava embarcações estranhas à vista;
e o Sophie reforçou este sinal com um segundo tiro.
Jack olhou para o seu relógio e, com ansiedade, para os imóveis e silenciosos pinheiros; disse:
- Passe-me a sua faca, Bonden - e pegou numa pedra grande e chata. Regrediar escreveu ele na pedra (movido pela ideia de que era necessário algum secretismo); de
seguida, escreveu a hora e as suas iniciais. Colocou-a no cimo de um pequeno monte de pedras, lançou um último e descoroçoado olhar para o bosque e subiu ao cúter.
Logo que o cúter abordou a corveta, as vergas desta rangeram, as velas incharam e o Sophie rumou ao alto mar.
- Navios de guerra, meu capitão, estou quase certo disso - disse James. - Pensei que estaria de acordo se rumássemos ao alto mar.
- E pensou muito bem, Mr Dillon - retorquiu Jack. - Empresta-me o seu óculo?
No topo do mastro, enquanto recobrava o alento e a luz do dia se espalhava por sobre um mar livre de brumas, Jack pôde distingui-los claramente. Dois navios a barlavento,
vindos do sul, navegando velozmente com todas as velas desfraldadas: navios de guerra, com toda a certeza. Ingleses? Franceses? Espanhóis? Havia mais vento para
aquelas bandas e deviam estar a navegar a uma velocidade de dez nós. Jack olhou por cima do seu ombro esquerdo para a linha da costa, que se orientava para leste.
O Sophie teria muita dificuldade
3 Jack Aubrey estaria provavelmente a pensar em regredior, termo latino que significa "retroceder, voltar". (N. do T.)
233
em dobrar aquele cabo antes que os outros o alcançassem; mas deveria dobrá-lo a tempo, pois caso contrário ver-se-ia cercado. Sim, eram navios de guerra. Agora já
se via o seu casco; e embora não pudesse contar as portinholas, Jack estava quase certo de que eram grandes fragatas, de trinta e seis canhões: de certeza que eram
fragatas.
Se o Sophie dobrasse o cabo primeiro, talvez tivesse uma oportunidade: e se navegasse pelas águas pouco profundas desde a ponta até ao recife situado depois desta,
ganharia meia milha, pois nenhuma fragata de grande calado poderia persegui-lo naquelas águas.
- Mandaremos os homens tomar o pequeno-almoço, Mr Dillon disse ele. - E depois preparar-nos-emos para o combate. A haver combate, será preferível que tenhamos a
barriga cheia.
Contudo, no Sophie, poucas foram as barrigas que se encheram descansadamente naquela manhã resplandecente; a impaciência provocara uma espécie de rigidez que impedia
que as papas de aveia e o biscoito fossem para baixo suave e naturalmente; e mesmo o café de Jack, recém-tostado e moído, desperdiçou o seu aroma no castelo de popa,
pois os oficiais estavam demasiado ocupados a analisar os respectivos rumos e velocidades e os possíveis pontos de convergência: duas fragatas a barlavento, uma
costa hostil a sotavento e a possibilidade de serem cercados - o suficiente para tirar o apetite a qualquer um.
- Coberta! - chamou o vigia, imerso na pirâmide formada pelo velame desfraldado e tenso. - Está a içar a bandeira, meu capitão! Bandeira azul!
- É capaz de ser verdade... - disse Jack. - Mr Ricketts, responda com a mesma bandeira.
Agora, todos os óculos do Sophie estavam virados para o joanete de proa da fragata mais próxima, pois toda a gente queria ver o sinal secreto: de facto, embora qualquer
navio pudesse içar uma bandeira azul, só um navio de Sua Majestade poderia fazer o sinal secreto de reconhecimento. E ali estava ele, o sinal secreto: uma bandeira
vermelha no traquete, seguida, um momento depois, por uma bandeira branca e uma flâmula no mastro grande, e pelo débil estrondo de um canhão de barlavento.
Toda a tensão se dissipou de um momento para o outro.
- Muito bem - disse Jack. - Respondamos como está previsto. Mr Day, três disparos a bombordo em ritmo lento.
- É o San Fiorenzo, meu capitão - disse James Dillon, ajudando o nervoso guarda-marinha com o livro de sinais, pois, com o vento que estava, as
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páginas, de um colorido muito belo, eram absolutamente incontroláveis. - E está a chamar pelo capitão do Sophie
- Diabo! - disse Jack para si mesmo. O capitão do San Fiorenzo era Sir Harry Neale, que fora primeiro-oficial do Resolution quando Jack era o guarda-marinha mais
jovem, e, posteriormente, seu capitão no Success: era um fanático no que tocava à prontidão, à limpeza, à perfeição no vestir e à hierarquia. Jack não tinha feito
a barba; o cabelo que lhe restava estava completamente desgrenhado; o unguento azul de Stephen cobria-lhe metade da cara. Mas não tinha alternativa. - Nesse caso,
viraremos para nos aproximarmos dele - disse Jack, e correu logo para a sua cabina.
- Ei-lo finalmente! - disse Sir Harry, fitando-o com iniludível repugnância. - Por amor de Deus, capitão Aubrey, que lentos que vocês são!
A fragata parecia enorme; comparados com os do Sophie, os mastros do San Fiorenzo pareciam os de um navio de linha de primeira classe; a coberta era um oceano, uma
imensidão de madeira. Jack Aubrey tinha a sensação, simultaneamente absurda e angustiante, de que o tinham esmagado, reduzindo-o a um tamanho ínfimo; e uma outra
sensação, não menos angustiante que a primeira - a sensação de que passara, num abrir e fechar de olhos, de uma posição de total autoridade para outra de absoluta
subordinação.
- As minhas desculpas, capitão - disse Jack, com um ar perfeitamente inexpressivo.
- bom. Venha até à minha cabina. O seu aspecto não mudou muito, Aubrey - comentou Sir Harry Neale, apontando para uma cadeira. - No entanto, estou muito contente
por nos termos encontrado. Temos um excesso de prisioneiros e quero passar cinquenta para a sua corveta.
- Lamento imenso, Sir Harry, lamento imenso não poder satisfazer o seu pedido, mas a minha corveta já está cheia de prisioneiros.
- Não pode satisfazer o meu pedido, foi o que disse? Mas não se trata de satisfazer pedidos, capitão Aubrey. Trata-se de obedecer a ordens! Ter-se-á esquecido por
acaso de que estou acima de si na hierarquia, que sou um veterano e o senhor um novato? Além disso, sei muito bem que enviou parte da tripulação com as presas para
Mahón: estes prisioneiros podem ocupar o seu
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lugar. De qualquer modo, poderá desembarcá-los dentro de poucos dias; portanto, não se fala mais do caso.
- E o meu cruzeiro, Sir Harry?
- Meu caro capitão Aubrey, estou menos preocupado com o seu cruzeiro do que com o bem da Marinha. Devemos fazer a transferência o mais rapidamente possível, pois
tenho novas ordens para si. Andamos à procura de um navio americano, o John B. Christopher, que segue de Marselha para os Estados Unidos, com escala em Barcelona,
e esperamos encontrá-lo entre Maiorca e o continente. Entre os seus passageiros, é muito possível que se encontrem dois rebeldes, dois membros dos United Irishmen:
um deles é um sacerdote católico chamado Mangan; o outro, um indivíduo chamado Roche, Patrick Roche. Devemos detê-los, pela força se necessário. É muito provável
que usem passaportes e nomes franceses; de facto, ambos falam francês fluentemente. Aqui está a descrição do sacerdote: cerca de quarenta anos, delgado, estatura
média; tez morena, cabelo castanho-escuro, mas usa peruca; nariz adunco; barbicha pontiaguda, olhos cinzentos e uma grande verruga junto a boca. Quanto ao outro:
cerca de trinta e cinco anos, robusto, cerca de um metro e oitenta de altura; cabelo negro e olhos azuis; falta-lhe o dedo mindinho da mão esquerda, e caminha
com rigidez por causa de uma ferida na perna. Seria melhor que ficasse com estas folhas.
- Mr Dillon, prepare-se para receber vinte e cinco prisioneiros do San Fiorenzo e mais vinte e cinco do Amélia - disse Jack. - E depois teremos de participar com
eles numa operação de busca de rebeldes.
- Rebeldes? - exclamou James.
- É verdade - retorquiu Jack com um ar ausente, enquanto inspeccionava a bolina do velacho, que estava frouxa. Depois de ter dado uma ordem, retomou o diálogo com
James Dillon. - É verdade, Mr Dillon, rebeldes. Por favor, dê uma vista de olhos a estas folhas. Contêm a descrição dos homens que são procurados. Logo que tenha
algum tempo livre, é claro... Ou melhor, se alguma vez tiver tempo livre...
- Mais cinquenta bocas - comentou o tesoureiro. - Que me diz a isto, Mr Marshall? Mais trinta e três rações completas. Santo Deus! Onde é que eu vou buscar dinheiro
para tanta coisa?
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- Creio que só temos uma alternativa, Mr Ricketts: seguir para Mahón logo que possível e dizer adeus ao cruzeiro. Mais cinquenta prisioneiros é impossível, tão certo
como eu chamar-me Marshall. Nunca vi dois oficiais tão acabrunhados em toda a minha vida. Cinquenta!
- Mais cinquenta cabrões! - comentou James Sheehan. - E tudo por causa das superiores conveniências deles. Jesus, Maria, José!
- Coitado do doutor, sozinho no meio daquelas malditas árvores. Até é capaz de haver corujas! Maldita seja a Marinha, quer dizer, o San Fiorenzo, e o Amélia também.
Malditos sejam!
- Sozinho? Não, não me parece que o doutor esteja sozinho... Mas quanto ao resto dou-lhe toda a razão: maldita seja a Marinha!
Foi com este estado de espírito que o Sophie navegou para noroeste, formando com as fragatas uma linha horizontal para esquadrinhar a zona; o Sophie encontrava-se
na parte exterior, ou seja, na extremidade direita dessa linha. O Amélia estava a bombordo, com as gáveas meio-arriadas, e o San Fiorenzo encontrava-se à mesma distância
do Amélia, mas na parte mais próxima da costa, fora do campo de visão do Sophie e na melhor posição para capturar qualquer presa lenta que por acaso aparecesse.
Os três navios juntos poderiam vigiar sessenta milhas do Mediterrâneo sob aquele céu completamente limpo; e foi assim que navegaram um dia inteiro.
E foi de facto um longo dia, preenchido e movimentado como poucos: foi preciso desimpedir o paiol de proa, encerrar e manter sob vigilância os prisioneiros (muitos
deles provenientes de navios piratas, homens perigosos) e perseguir três navios mercantes tão pesados quanto estúpidos (todos eles neutrais e muito relutantes em
parar; mas um deles lá acabou por dar algumas informações sobre um navio a dois dias de navegação, a barlavento, que lhes pareceu ser americano e que estava a reparar
o mastaréu do velacho); e, para se manterem a par das fragatas, tiveram de mudar constantemente a orientação das velas devido à instabilidade do vento, que de quando
em quando, para cúmulo, despejava perigosas rajadas. Apesar dos desmedidos esforços dos seus tripulantes, o Sophie fez apenas o suficiente para evitar a humilhação.
Além do mais, tinha falta de tripulantes: Mowett, Pullings e o velho Alexander, um piloto excelente, tinham partido nas embarcações capturadas, juntamente com um
terço dos melhores homens, de tal forma que James Dillon e o mestre eram obrigados a revezar-se nos quartos. A calma também faltava, e de que maneira - a lista de
infractores não parava de crescer à medida que o dia ia avançando.
"Nunca pensei que Dillon pudesse ser tão cruel...", pensou Jack
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enquanto o seu lugar-tenente vociferava para a gávea do traquete, obrigando o choroso Babbington e um pequeno grupo de gajeiros a largar pela terceira vez a varredoura
da gávea de bombordo. Era verdade que a corveta estava a navegar a uma velocidade esplêndida (tendo em conta as suas possibilidades); porém, o que estava a passar-se
era lastimável - de facto, estavam a forçar demasiado o navio e a atormentar estupidamente os homens; o preço que pagavam era demasiado alto. No entanto, a Marinha
era mesmo assim, e Jack não devia interferir. A sua mente voltou a concentrar-se nos seus problemas e a preocupar-se com Stephen: aquela incursão numa costa hostil
fora pura loucura! Além disso, estava profundamente descontente consigo mesmo por causa do seu comportamento a bordo do San Fiorenzo. Fora um flagrante abuso de
poder: deveria ter adoptado uma atitude firme. Porém, ali estava ele, atado de pés e mãos por aquelas folhas, por aquelas instruções, e pelo Código de Justiça Militar.
E também havia o problema dos guardas-marinhas. A corveta precisava de pelo menos mais dois, um jovem e outro mais velho; perguntaria a Dillon se queria propor alguém
- um primo, um sobrinho, um afilhado; era uma atenção com que os capitães compensavam os primeiros-oficiais, bastante frequente quando o seu relacionamento era bom.
Quanto ao mais velho, queria alguém com experiência, de preferência alguém que pudesse ser nomeado ajudante do mestre quase de seguida. Os seus pensamentos detiveram-se
por um momento no timoneiro, um marinheiro excelente e capitão do cesto da gávea maior; passaram depois para os marinheiros mais jovens da coberta inferior. Preferia
alguém que tivesse começado de baixo, um marinheiro completo como o jovem Pullings, e não aqueles jovens cujas famílias podiam dar-se ao luxo de os mandar para a
Marinha... Se os espanhóis capturassem Stephen Maturin, considerá-lo-iam um espião e matá-lo-iam.
Era quase noite quando deram por terminados os contactos com o terceiro navio mercante. Jack estava morto de fadiga - os seus olhos estavam vermelhos, irritados,
e os ouvidos estavam quatro vezes mais sensíveis do que o normal, e parecia-lhe que tinha uma corda à volta da cabeça, apertando-lhe as têmporas com toda a força.
Estivera na coberta o dia todo, um dia angustiante que começara duas horas antes do amanhecer. Decidiu deitar-se por um instante apenas, antes que adormecesse em
pé. Contudo, nesse breve intervalo o seu ensonado cérebro ainda teve tempo para dar livre curso a duas intuições: Stephen estaria perfeitamente bem e James Dillon
não estava nada bem. "Não fazia ideia que Dillon atribuía tanta importância ao cruzeiro, embora também seja verdade que se afeiçoou muitíssimo a Maturin. Que indivíduo
estranho...", disse para si mesmo, e logo caiu num sono profundo.
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Um sono profundo, profundo e tranquilo: o sono de um homem jovem, um pouco gordo, bem alimentado, saudável e exausto - um sono auspicioso; apesar disso, Jack acordou
bruscamente poucas horas depois, preocupado e inquieto. Através da janela de popa chegaram-lhes umas vozes baixas e urgentes que pareciam discutir: por momentos
pensou num ataque de surpresa, num ataque em que os botes faziam a abordagem de noite; porém, logo de seguida, já mais desperto, reconheceu as vozes de Dillon e
Marshall e voltou a adormecer. "Contudo", disse a sua mente um bom bocado depois, ainda que sonhando, "como é possível que estejam ambos no castelo de popa a esta
hora da noite, quando deviam estar os dois de quarto? Ainda não soaram as oito badaladas". Como que a confirmar esta afirmação, ouviram-se três badaladas, e de vários
pontos da corveta chegaram os gritos de "Está tudo bem". Mas não estava tudo bem. A corveta não seguia à mesma velocidade. O que é que se passaria? Enfiou o roupão
à pressa e subiu à coberta. Não só a velocidade fora reduzida, como também a proa estava virada a lés-nordeste quarta a leste.
- Meu capitão - disse Dillon, dando um passo em frente -, a responsabilidade é inteiramente minha. Anulei as ordens do mestre e mandei subir o leme. Creio que há
um navio pela amura de estibordo.
Jack perscrutou a névoa prateada - havia luar, o céu estava meio-coberto e a ondulação havia aumentado. Não viu navio nenhum, nenhuma luz: mas isso não provava nada.
Pegou na carta náutica e verificou a mudança de rumo.
- Estamos a navegar na direcção da costa de Maiorca - disse bocejando.
- Sim, meu capitão. Por isso tomei a liberdade de reduzir pano.
Era uma infracção disciplinar muito grave. Mas Dillon sabia-o tão bem como ele; por isso, não fazia sentido dizer-lhe o que ele já sabia.
- Quem é que está a comandar este quarto?
- Sou eu, meu capitão - retorquiu o mestre. Falava tranquilamente, mas a sua voz soava quase tão áspera e tão pouco natural como a de Dillon. Havia ali estranhas
vibrações, muito mais fortes do que um simples desacordo sobre a luz de um navio.
- Quem está lá em cima?
- Assei, meu capitão.
Assei era um marinheiro hindu, um marinheiro inteligente, digno de toda a confiança.
- Eh, Assei!
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- Sim! - respondeu uma vozinha na escuridão.
- Vê alguma coisa?
- Não ver nada, meu capitão. Só ver estrelas, nada mais.
"Nesse caso... nesse caso, aquela fugaz visão não tinha qualquer razão de ser... Mas talvez Dillon tivesse razão, pois de contrário não teria tomado uma decisão
tão extraordinária... No entanto... no entanto, as coisas tinham tomado um rumo muito estranho...".
- Está mesmo certo de que viu uma luz, Mr Dillon?
- Completamente certo, meu capitão, e muito contente.
Contente era uma palavra que soava estranhíssima dita por aquela voz, áspera. Jack permaneceu calado por um momento; depois alterou o rumo um grau e meio para norte
e deu início a mais um dos seus passeios costumeiros. Quando soaram as quatro badaladas, o dia começava a nascer a leste e pela amura de estibordo avistava-se terra;
porém, apesar da claridade da abóbada celeste, em que o azul disputava já a primazia à escuridão, através da bruma que pairava sobre o mar só era possível ver uma
forma obscura, como que uma mancha. Jack desceu para se vestir; quando estava a enfiar a camisa pela cabeça, ouviu gritar que havia um barco à vista.
A embarcação emergia de um banco de nevoeiro, duas milhas apenas a sotavento; Jack limpou o óculo e pôde ver o mastaréu do velacho reparado, apenas com uma gávea
rizada. Tudo estava claro, agora: Dillon tinha toda a razão do mundo. Ali estava a sua presa, embora - coisa estranha - se tivesse desviado do seu rumo normal; deveria
ter virado algum tempo antes, por altura da ilha Dragonera, e agora abria lentamente caminho pelo amplo canal que conduzia ao sul; dentro de uma hora, mais ou menos,
teriam concluído a sua desagradável missão e Jack sabia muito bem o que estaria a fazer ao meio-dia.
- Muito bem, Mr Dillon! - exclamou Jack. - Muito bem! Não poderíamos ter feito melhor. Nunca me passou pela cabeça que pudesse estar tão para leste! Ice a nossa
bandeira e dispare um tiro de aviso.
O John B. Christopher mostrava-se algo receoso face a um navio de guerra que poderia estar esfomeado de presas e desejoso de impressionar todos os seus tripulantes
ingleses (ou qualquer outro tripulante que o destacamento de abordagem considerasse inglês); mas como não tinha nem a mais remota possibilidade de fugir, sobretudo
com um mastaréu em más condições e os mastaréus do joanete tombados na coberta, após uma ligeira agitação no velame e um esboço de desvio, mudou a orientação das
gáveas, içou a bandeira americana e esperou pelo bote do Sophie.
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- É melhor ir você - disse Jack a Dillon, que estava ainda curvado sobre o seu óculo, como que concentrado em qualquer ponto obscuro da enxárcia do barco americano.
- Fala francês melhor do que qualquer de nós, agora que o doutor não está; e, além do mais, foi você que o descobriu neste local extraordinário. A si se deve esta
descoberta. Quer ver de novo as instruções ou... - Jack deteve-se. Tinha já visto muitas bebedeiras na Marinha, tinha visto almirantes bêbedos, capitães mais novos
ou mais velhos bêbedos, grumetes de dez anos bêbedos; ele próprio, noutros tempos, fora levado para bordo num carrinho de mão, tal era o seu estado; contudo, odiava
que os homens se embebedassem em serviço, e ainda por cima às primeiras horas da manhã! - Talvez seja melhor ir o mestre - disse Jack secamente. - Avisem Mr Marshall!
- Oh, não, meu capitão! - exclamou Dillon, recuperando a compostura. - Peço-lhe desculpa... foi um momentâneo... estou perfeitamente bem. - E, de facto, parecia
estar. Já não estava coberto de suor, nem pálido, nem tinha aquela expressão perplexa, espantada; agora, um rubor intenso, estranho, cobria o seu rosto.
- bom - disse Jack, dubitativo. - Um momento depois, porém, James Dillon já estava a chamar pelos tripulantes do cúter e corria de um lado para o outro verificando
as armas e preparando as suas próprias pistolas; enfim: demonstrava, da forma mais clara possível, que era dono e senhor de si mesmo. Quando o cúter já estava pronto
para zarpar, virou-se para Jack e disse-lhe:
- Talvez fosse melhor dar-me as folhas, meu capitão. Assim refrescarei a memória enquanto nos acercamos.
O Sophie deteve-se lentamente e manteve-se pela amurada de bombordo do John B. Christopber, preparado para disparar e atravessar a roda do navio americano ao primeiro
indício de problemas. Mas não houve nenhum problema. Do castelo de proa do John B. Christopher chegavam algumas vozes que gritavam, num tom mais ou menos trocista:
"Paul Jones!"4 e "Como tem passado o rei Jorge?"5, e os artilheiros, preparados para mandar os seus primos para uma outra e melhor vida, sem a menor vacilação, mas
também sem rancor, ter-lhes-iam respondido no mesmo tom; contudo, o capitão do
4 Referência a John Paul Jones (1747-1792), marinheiro escocês considerado o fundador da Armada dos Estados Unidos. (N. do T.)
5 Obviamente o rei Jorge III (1738-1820), em cujo reinado a Inglaterra perdeu precisamente as colónias americanas. (N. do T.)
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Sophie não queria brincadeiras - aquela era uma missão odiosa e não havia lugar para diversões. Ao ouvir o grito de "Feijões de Boston!"6, Jack disparou:
- Silêncio de proa a popa! Mr Ricketts, tome nota do nome desse homem!
O tempo foi passando. O rastilho ia-se consumindo a pouco e pouco. Em toda a coberta, a atenção dos homens vagueava. Um mergulhão de asas muito brancas, brilhantes
de tão alvas, passou por sobre as suas cabeças e Jack deu consigo a pensar no que teria acontecido a Stephen, esquecendo-se por completo do seu dever. O sol subia
- continuava a subir.
Por fim, o destacamento de abordagem apareceu no portaló do barco americano e desceu para o cúter: Dillon surgiu, sozinho. Estava a responder cortesmente às saudações
do comandante e dos passageiros. As velas do John B. Christopher estavam já a enfunar-se; o primeiro-oficial gritou, com aquele estranho sotaque da colónia: "Atar
esse maldito estai!", e o seu grito ressoou na imensidão do mar. O navio deslocava-se para sul e o cúter do Sophie atravessava já o espaço que os separava.
Quando James desceu ao cúter e se dirigiu para o navio americano, não fazia a menor ideia de como iria proceder. Durante todo o dia - desde o momento em que se tinha
inteirado da missão da esquadra - sentira-se esmagado por uma estranha ideia de fatalidade; e naquele momento, embora tivesse tido muito tempo para pensar no caso,
não sabia ainda o que iria fazer. Pareceu-lhe estar a viver um pesadelo quando subiu (sem a menor vontade de o fazer) pelo costado do navio americano. E sabia, evidentemente,
que iria encontrar o padre Mangan, apesar de ter feito tudo o que estava ao seu alcance para evitar esse encontro, excepto sublevar-se abertamente ou afundar o Sophie;
apesar de ter alterado o rumo e reduzido o pano, fazendo chantagem com o mestre para o conseguir fazer, Dillon sabia que, mais tarde ou mais cedo, acabaria por se
encontrar com o padre Mangan. Mas o que não sabia, o que não tinha previsto, era que o sacerdote ameaçaria denunciá-lo se ele não fizesse vista grossa. Detestara
aquele homem desde o momento em que ambos se tinham reconhecido; mas foi precisamente nesse momento que
6 Boston beans, no original. Referência provável a um incidente que é considerado o "casus belli" (o "Boston Tea Party") da Guerra da Independência Americana e que
ocorreu precisamente em Boston (não muitos anos antes - em 1773 - da cena descrita). Por outro lado, "beans" ("feijões") tem, por si só, um sentido depreciativo.
Os patriotas americanos que provocaram o referido incidente em Boston valeriam tanto como "beans", ou seja, nada. (N. do T.)
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tomou uma decisão - não faria o papel de polícia, não os prenderia. E foi então que veio a ameaça. Por um segundo, pensou que tal ameaça não o afectara minimamente
- estava certo disso; porém, num instante, a situação tornou-se insustentável. Viu-se obrigado a fingir que examinava atentamente os passaportes das outras pessoas
a bordo, antes de recuperar o domínio de si mesmo. Deu-se conta de que não havia saída possível, que qualquer caminho que seguisse seria desonroso; mas nunca imaginara
que a desonra pudesse ser algo de tão profundamente doloroso. Era um homem orgulhoso, e o olhar satisfeito que o padre Mangan lhe lançara de soslaio magoara-o mais
do que tudo no mundo e, com essa mágoa, com essa ferida aberta, surgira uma nuvem de intoleráveis dúvidas.
O cúter tocou no costado do Sophie.
- Essas pessoas não estavam a bordo, meu capitão - informou James.
- Tanto melhor - disse Jack alegremente, erguendo o seu chapéu para saudar o capitão americano. - Oeste meio ponto a sul, Mr Marshall. E guarde-me de novo esses
canhões, por favor. - A intensa fragrância do café começava a espalhar-se pela coberta, vindo da escotilha de popa. - Dillon, venha tomar o pequeno-almoço comigo
- disse ele, agarrando-o afectuosamente pelo braço. - Homem, você ainda está muito pálido!
- Terá de desculpar-me, meu capitão - murmurou James libertando-se: no seu olhar espelhava-se um profundo ódio. - Não me sinto bem.
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CAPÍTULO OITO
Dou-lhe a minha palavra de honra, doutor: sinto-me perfeitamente perplexo. Por isso lhe exponho a situação, confiando inteiramente na sua imparcialidade... Sinto-me
perfeitamente perplexo: por mais que tente, não consigo entender que tipo de ofensa... Não foi o facto de ter desembarcado aqueles prisioneiros, aquelas criaturas
iníquas, abomináveis, na ilha Dragonera (embora esteja certo de que ele reprovou tal decisão), pois o problema começou antes, mal a manhã despontou. - Stephen escutava-o
com um ar grave e atento (e nunca, nunca o interrompia), enquanto Jack, muito lentamente, recuando à procura de pormenores a que não tivesse dado importância e avançando
depois para retomar a cronologia dos factos, lhe contava a história das suas relações com James Dillon: ora boas, ora más; ora más, ora boas. O último episódio dessa
história era aquele extraordinário esfriamento, não só inexplicável mas também profundamente doloroso, já que entre os dois crescera uma sincera afeição, para além
da estima que há muito existia. Além disso, Jack estava preocupado com a incompreensível conduta de Mr Marshall; mas isso, enfim, era muito menos importante.
com extremo cuidado, Jack reiterou os seus argumentos sobre a importância da harmonia num navio, caso o seu comandante quisesse fazer dele uma eficiente máquina
de combate; citou exemplos de casos em que essa harmonia existia e de outros em que se verificava o contrário; e a sua audiência escutou e aprovou. Contudo, o doutor
Stephen Maturin não poderia recorrer aos seus conhecimentos para tentar resolver aquele tipo de problemas, nem poderia (como Jack, de uma forma algo ignóbil, teria
gostado) oferecer os seus préstimos, já que naquele momento não passava de um interlocutor imaginário - de facto, toda a sua carne pensante estava trinta léguas
a sudoeste, para
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lá do mar. Um mar bravo, um mar enfurecido: depois de vários dias de frustrante calmaria e aragens e um vento muito fresco de sudoeste, o vento tinha virado para
leste durante a noite e agora soprava muito forte e encapelava ainda mais as ondas, de tal forma que o Sophie avançava pesadamente sob as gáveas e as velas mestras
com dois rizos; as ondas alterosas chocavam violentamente contra a proa por barlavento, encharcando o vigia do castelo de proa e quase salpicando James Dillon, postado
no tombadilho superior e comungando com o Diabo enquanto comandava o baloiço daquela cama-navio onde Jack arengava silenciosamente à escuridão.
A sua vida fora sempre uma azáfama constante; no entanto, logo que penetrava na inviolável solidão da sua cabina, logo que passava pelo sentinela que tinha à porta,
Jack Aubrey dispunha de muito tempo para reflexão. Um tempo que não desperdiçava com trocas de impressões acerca de ninharias, nem com opiniões deste ou daquele
marinheiro, nem com escalas incompletas tocadas por uma gorjeante flauta alemã1. "Falarei com ele logo que o recolhermos. Falar-lhe-ei, em termos muito gerais, de
uma evidência: é que, para qualquer marinheiro, é muito reconfortante ter um amigo íntimo a bordo, alguém em quem possa confiar inteiramente; falar-lhe-ei ainda
de uma singularidade notável da vida de um marinheiro: num determinado momento está rodeado de companheiros, cercado por todo o lado de companheiros na grande confusão
da câmara dos oficiais, tão rodeado de gente que mal pode respirar, quanto mais tocar outra coisa que não seja uma jíga no violino; um instante depois, mergulha
numa solidão que se assemelha ao recolhimento do eremita - algo que nunca havia conhecido em toda a sua vida".
Em momentos de tensão, Jack Aubrey costumava reagir de duas maneiras: ou tornava-se agressivo ou dava-lhe para o amor; ansiava pela violenta catarse da acção ou
então pela catarse violenta do amor. Adorava batalhas, fosse no mar ou na cama.
"Compreendo perfeitamente que certos comandantes levem mulheres consigo nas viagens", reflectiu. "Para além do prazer, imagine-se só a felicidade de encontrar um
refúgio, de mergulhar numa cálida, vibrante, amorosa..." paz era a palavra que faltava. "Quem me dera que houvesse uma mulher na minha cabina", acrescentou, após
uma pausa.
Esta confusão, esta incompreensão aberta e assumida, exprimia-as apenas na sua cabina, diante do seu companheiro imaginário; contudo, a aparência
1 German flute: trata-se da flauta moderna. (N. do T.)
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exterior do capitão do Sophie não tinha nada de hesitante, e só um observador muito perspicaz teria reparado que a recente amizade que surgira entre ele e o seu
lugar-tenente tão depressa morrera como nascera. O mestre, contudo, era precisamente um observador desse tipo. Durante algum tempo, a horrível aparência de Jack,
com aquelas queimaduras e contusões e o unguento do doutor por cima, provocara no mestre uma notória repugnância; ao mesmo tempo, porém, a óbvia afeição que Jack
dedicava a James Dillon despertara nele um ciúme que ia exactamente no sentido contrário. Além disso, fora ameaçado em termos que não deixavam praticamente margem
para dúvidas, em termos quase directos; e assim, por uma causa inteiramente diferente, observava o capitão e o primeiro-oficial com,uma ansiedade lancinante.
- Mr Marshall - disse Jack no meio da escuridão: o pobre homem saltou como se tivessem disparado uma pistola atrás dele -, quando pensa que avistaremos terra?
- Dentro de cerca de duas horas, meu capitão, se se mantiver este vento.
- Sim, era o que me parecia - disse Jack, erguendo os olhos para a enxárcia. - Contudo, creio que poderá soltar um rizo agora; e quando amainar um pouco mais, largue
os joanetes. Navegaremos a todo o pano possível. E avise-me quando avistarmos terra, Mr Marshall.
Menos de duas horas depois, Jack reapareceu na coberta e pôde ver uma linha remota e irregular pela amura de estibordo: Espanha, com a singular montanha a que os
ingleses chamavam "montanha do ovo", perfeitamente alinhada com a âncora de proa, e a enseada da nascente mesmo em frente da proa do Sophie.
- Santo Deus! - exclamou Jack baixando o seu óculo. - Não há dúvida, Mr Marshall: o senhor é um navegador magnífico. Merecia ser mestre da frota.
Contudo, demoraram mais de uma hora para chegar à baía; e agora que as coisas estavam prestes a acontecer, agora que tinham deixado de ser meras conjecturas teóricas,
Jack dava-se conta de toda a ansiedade que sentia - e da importância que o desfecho daquele episódio tinha para si.
- Mande vir o timoneiro, por favor - disse ele, regressando à sua cabina depois de ter dado meia dúzia de voltas nervosas pela coberta.
Barret Bonden, o timoneiro e capitão do cesto da gávea maior, era invulgarmente jovem para o posto que ocupava; um indivíduo de aspecto franco e aberto, duro mas
sem brutalidade, alegre e bem-disposto, correcto e disciplinado e, evidentemente, um marinheiro de primeira: navegava desde menino.
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- Sente-se, Bonden - disse Jack um pouco constrangido, pois estava prestes a oferecer-lhe o castelo de popa, nem mais nem menos, e a possibilidade de ascender ao
pináculo da hierarquia naval. - Estive a pensar... Gostaria de ser promovido a guarda-marinha?
- Como?! Não, meu capitão, de modo nenhum! - retorquiu Bonden imediatamente, os dentes brilhando na penumbra. - Mas agradeço-lhe muito pela boa opinião que tem de
mim.
- Ah! - exclamou Jack, estupefacto. - Mas porquê?
- Porque não tenho conhecimentos suficientes, meu capitão. Acredite no que lhe digo - acrescentou, rindo-se alegremente. - A única coisa que eu sei ler é a lista
de quarto e tenho de soletrar aquilo tudo muito lentamente; e já sou demasiado velho para usar colarinho. Além disso, meu capitão, que aspecto teria eu, ataviado
como um oficial? Um limpa-chaminés todo aperaltado! E os meus velhos companheiros de rancho desatariam a rir a bandeiras despregadas e a gritar: "Olhem, olhem, lá
vai o menino!".
- Muitos e bons oficiais começaram pela coberta inferior - disse Jack.
- Eu próprio comecei assim - acrescentou, lamentando imediatamente aquela sequência de frases.
- Eu sei, meu capitão - retorquiu Bonden, e o seu sorriso brilhou de novo.
- Como é que soube?
- Há um tipo do quarto de estibordo que foi seu companheiro no Reso, quando estavam nas proximidades do Cabo.
"Santo Deus!", exclamou Jack para si mesmo. "E eu que nunca dei por ele! Eu a mandar as mulheres para terra, tão justo como o pomposo Pilatos, e afinal eles sabiam...
Olha que esta!". E, em voz alta e com um ar algo rígido: - bom, Bonden, pense no que lhe disse. Seria uma pena se não aproveitasse.
- Se me permite a ousadia, meu capitão - disse Bonden, levantando-se e ficando para ali parado, subitamente constrangido, desajeitado e embaraçado -, há o filho
da minha tia Sloper, o George, George Lucock, gajeiro de proa, do quarto de bombordo. Sabe quase tanto como um professor e é capaz de escrever com uma letra tão
miudinha que quase não se vê; é mais novo do que eu e mais rápido, meu capitão. Ah sim, muito mais rápido.
- Lucock? - disse Jack com uma expressão dubitativa. - Não passa de um miúdo! Não foi ele que foi açoitado a semana passada?
- É verdade, meu capitão. Mas foi só porque o canhão dele ganhou
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outra vez e ele não conseguiu passar sem beber um copo, por consideração a quem lho ofereceu.
- bom - disse Jack, pensando que talvez houvesse prémios mais adequados do que uma garrafa (embora nenhum fosse tão apreciado como uma garrafa) -, eu vou estar com
atenção ao seu primo.
Enquanto decorriam as enfadonhas manobras, Jack pensou maduramente no problema dos guardas-marinhas.
- Mr Babbington - disse, interrompendo de repente as suas voltas.
- Tire as mãos dos bolsos. Quando escreveu à sua família pela última vez?
Mr Babbington estava ainda naquela idade em que quase todas as perguntas suscitam um sentimento de culpa - e aquela pergunta continha, de facto, uma acusação inteiramente
válida. Corado e atrapalhado, respondeu:
- Não sei, meu capitão.
- Puxe pela memória, Mr Babbington, puxe pela memória - disse Jack, e o seu rosto afável, de súbito, ganhou um ar sombrio. - Em que porto pôs a carta? Mahón? Livorno?
Génova? Gibraltar? bom, deixe lá, não interessa. Não se distinguia nenhuma forma humana na longínqua praia. - Não interessa. Escreva uma carta, uma bela carta! Duas
páginas, pelo menos. E entregue-ma amanhã com os seus trabalhos diários. Mande cumprimentos meus ao senhor seu pai e diga-lhe que Hoares é o meu banqueiro. - É que
Jack, como a maior parte dos capitães, administrava os dinheiros que os pais mandavam regularmente aos jovens cadetes. "Hoares", repetiu Jack com um ar distraído,
"Hoares é o meu banqueiro", e um ruído eminentemente desagradável, fazendo lembrar o canto estrangulado de um galo, fê-lo virar-se. O jovem Ricketts estava agarrado
ao tirador de uma talha, procurando controlar-se, mas sem muito êxito. O olhar glacial de Jack Aubrey abafou imediatamente o riso do rapaz, o que lhe permitiu responder
à pergunta: - E você, Mr Ricketts, tem escrito ultimamente aos seus pais? - chegou-lhe um audível "Não, meu capitão", quase sem lhe tremer a voz.
- Nesse caso, fará exactamente o mesmo que Mr Babbington: duas páginas, letra pequena, e nada de pedir novos quadrantes, nem chapéus com laços, nem cabides - ordenou
Jack; e o guarda-marinha teve a sensatez de concluir que aquele não era o momento certo para protestar, ou melhor, para
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lembrar que o seu querido pai, o único dos seus progenitores ainda vivo, estava em contacto com ele todos os dias; ou melhor, a todas as horas. com efeito, todo
o navio se apercebia claramente da extrema tensão de Jack Aubrey. "O Louro está muito preocupado por causa do doutor", diziam. "Cuidado com as tempestades!". E quando
chegou a hora de recolher as camas, os marinheiros que tinham de passar por ele para as guardar na caixa de estibordo, olhavam-no de soslaio, com um ar visivelmente
nervoso; um deles, por querer olhar ao mesmo tempo para o oficial de derrota, para o desnível da coberta e para o capitão, estatelou-se ao comprido no chão.
Mas o Louro não era o único que estava ansioso. E quando Stephen Maturin foi finalmente visto a sair de entre as árvores e a atravessar a praia para subir ao bote,
ouviu-se um coro de "Lá esta ele!" desde o convés até ao castelo de proa, num desafio claro à boa disciplina, logo seguido por um sortido de "Hurras!" ao desafio.
- Ah, doutor, não imagina como estou contente por o ver! - exclamou Jack enquanto Stephen subia desajeitadamente a bordo, empurrado e puxado por mãos bem-intencionadas.
- Como está o meu caro amigo? Venha, venha já tomar o pequeno-almoço comigo. Atrasei-o de propósito. Como se sente? Espero que razoavelmente animado... Ou não?
- Estou muito bem, obrigado - respondeu Stephen que, de facto, estava agora com um aspecto um pouco menos cadavérico, pois tinha enrubescido de satisfação perante
a transbordante amabilidade da recepção. - vou dar uma vista de olhos à enfermaria e depois partilharei consigo o bacon com todo o gosto. bom dia, Mr Day. Tire o
chapéu, se faz favor. Muito bem, muito bem: deixa-me muito satisfeito, Mr Day. Mas atenção: nada de sol! Recomendo-lhe que use uma peruca galesa, bem apertada. bom
dia, Cheslin. Espero que tenha um bom relatório sobre os nossos pacientes.
- Essa - disse Stephen, com a boca um tanto ou quanto gordurenta devido ao bacon -, essa era uma questão que me preocupava, e de que maneira! Iria o meu ajudante
pagar na mesma moeda aos marinheiros? E os marinheiros voltariam a persegui-lo? com que rapidez conseguiria o meu ajudante adaptar-se a uma nova identidade?
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- Identidade? - perguntou Jack, servindo-se tranquilamente de mais caf£ - A identidade não é algo com que se nasce?
- A identidade a que me refiro é algo que existe entre um indivíduo e o resto do mundo e que assume contornos variáveis: um ponto médio entre a visão que o indivíduo
tem de si mesmo e a visão que os outros têm dele, pois cada uma dessas visões, obviamente, afecta a outra continuamente. Trata-se de um fluxo recíproco, capitão.
Nesta identidade não há nada de absoluto. Por exemplo: se o meu amigo passasse agora uns dias em Espanha, verificaria que a sua identidade se tinha alterado, pois
seria confrontado com uma visão completamente diferente da sua pessoa. De facto, os espanhóis consideram-no um homem odioso, um vilão, um assassino, um indivíduo
cruel, violento e falso.
- Sim, suponho que devem estar furiosos comigo - disse Jack sorrindo. - E quase aposto que me chamam Belzebu. Mas isso não faz de mim um Belzebu.
- Ah não? Acha que não? bom, mesmo que isso seja verdade, não é menos certo que você semeou a revolta e uma agitação extrema nos interesses mercantis ao longo da
costa. Há um homem muito rico chamado Mateu que neste momento sente por si uma raiva do tamanho do mundo. O mercúrio pertencia-lhe e, por ser de contrabando, não
estava coberto pelo seguro; também eram dele a embarcação que o Sophie destruiu em Moraira e metade da carga da tartana que foi incendiada por alturas de Tortosa.
Ora, acontece que Mateu tem boas relações com os ministros do governo espanhol. Resultado: fê-los sair da sua costumeira indolência e foi autorizado a fretar um
dos navios de guerra de Sua Majestade, o rei de Espanha...
- Autorizado a fretar, não fretou, meu caro doutor. Nenhum privado pode fretar um navio de guerra, um navio da nação, um navio do rei, nem mesmo em Espanha.
- Talvez eu não tenha usado o termo correcto, o que é muito frequente quando abordo assuntos navais. Seja como for, trata-se de um navio muito potente que terá duas
missões: proteger o comércio costeiro e, sobretudo, perseguir o Sophie, que agora é um navio conhecido de todos, tanto pela fama, como pela descrição. Foi o que
me disse a prima2 de Mateu enquanto dançávamos.
2 No original, cousin tanto pode significar "primo" como "prima"; ver-se-á mais adiante que se trata de um "primo"; no momento em que Stephen dá esta informação,
é natural que o seu interlocutor pense que se trata de uma "prima". (N. do T.)
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- O doutor dançou? - exclamou Jack, muito mais espantado do que quando Stephen dissera "enquanto comíamos o nosso menino3 assado frio".
- Claro que dancei. Por que raio é que não havia de dançar?
- Claro, claro... Aliás, até é natural que dance muito bem. Só estava a pensar que... Mas é mesmo verdade que dançou?
- É. O meu amigo nunca viajou pela Catalunha, pois não?
- Não.
- Nesse caso, devo dizer-lhe que na Catalunha, nas manhãs de domingo, é costume todas as pessoas, seja qual for a sua idade ou condição, dançarem à saída da igreja:
e foi assim que dei comigo a dançar com Ramon Mateu i Cadafalch na praça que há em frente da catedral de Tarragona, onde tinha ido ouvir a Missa Brevis de Palestrina.
É uma dança muito peculiar, uma dança de roda a que os catalães chamam sardana; e se me passar o seu violino, tocarei para si a melodia de uma delas, a única de
que me lembro bem, embora tenha a certeza de que me vai achar um desses rabequistas que andam a mendigar pelas ruas e que deixam os nossos ouvidos num estado lastimável.
- E tocou.
- É uma melodia encantadora, sem dúvida. Um pouco ao gosto árabe, não acha? Mas asseguro-lhe que fico todo arrepiado só de pensar que o meu amigo andou a passear
por esses campos, portos, cidades. Pensei que se esconderia, que ficaria com a sua amiga, que não sairia do quarto dela... quer dizer...
- Mas eu tinha-lhe dito que podia andar à vontade por toda a Catalunha, não tinha?
- Sim, de facto disse. -Jack Aubrey reflectiu por um momento. - Nesse caso, se o doutor assim o entendesse, é claro, também poderia averiguar que navios e comboios
estavam no mar, quando eram esperados, que cargas traziam, etc. etc. Talvez pudesse mesmo informar-me acerca dos galeões.
- Claro que podia - disse Stephen. - Isto é, se decidisse tornar-me espião. Contudo, há um conjunto de noções, noções estranhas e aparentemente ilógicas, que nos
levam a considerar correcto e natural que falemos dos inimigos do Sophie, mas que nos fazem sentir que é incorrecto, desonroso e muito pouco decente falarmos das
presas.
- Sim - disse Jack, fitando o doutor com um ar pensativo. - Na caça, deve dar-se sempre vantagem à lebre, quanto a isso não há dúvida. Mas... que
3 Baby, no original, remete para qualquer animal nos primeiros tempos de vida; poderia tratar-se de um leitão, de um bezerro, etc. (N. do T.)
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informações tem para me dar sobre esse potente navio? De que classe é? Quantos canhões tem? Onde se encontra?
- Chama-se Cacafuego.
- Cacafuego? Cacafuego? Nunca ouvi falar... bom, pelo menos não deverá ser um navio de linha. Que sabe sobre o seu aparelho?
Stephen manteve-se em silêncio por um instante.
- Envergonha-me dizer-lhe que não perguntei, capitão - respondeu finalmente. - Porém, a julgar pela satisfação com que pronunciavam o seu nome, creio que deve ser
um navio enorme e muito potente.
- bom, trataremos de nos mantermos fora do seu caminho: e visto que eles sabem como somos, tentaremos mudar de aspecto. É maravilhoso o que uma camada de tinta e
um empavesamento podem fazer, ou mesmo uma bujarrona com estranhos remendos ou um mastaréu da gávea chumeado. A propósito, suponho que já lhe disseram por que razão
fomos obrigados a abandoná-lo em terra.
- Falaram-me de fragatas e que tinham abordado o navio americano.
- Sim: um disparate de primeira! Os homens que eram procurados não se encontravam a bordo do navio americano. Dillon revistou o navio durante quase uma hora. Fiquei
muito contente, pois lembrei-me de que o doutor me tinha dito que os membros dos United Irishmen eram de um modo geral boas pessoas, muito melhores do que aqueles
tipos de cujo nome nunca me lembro... Como é que eles se chamam? White Boys4? Orange Boys?
- United Irishmen? Pensava que eram franceses... Disseram-me que tinham ido revistar o navio americano porque andavam à procura de franceses.
- Faziam-se passar por franceses. Quer dizer, se estivessem no navio americano, ter-se-iam feito passar por franceses. Foi por isso que mandei Dillon, que fala tão
bem francês. Mas não estavam lá; e, em minha opinião, toda a operação foi uma tremenda asneira. Fiquei muito contente, como lhe disse; mas Dillon, estranhamente,
parecia perturbado. Suponho que estaria ansioso por deter os rebeldes... Ou então estava muito aborrecido por o nosso cruzeiro ter sido bruscamente interrompido.
Desde essa altura... bom, mas não devo importuná-lo com tais problemas... Falaram-lhe dos prisioneiros?
4 White Boys: associação agrária constituída por camponeses irlandeses em 1761, e que, entre outros objectivos, pretendia corrigir as injustiças de que os camponeses
eram vítimas por parte dos proprietários das terras e resistir à cobrança do dízimo. Os Orange Boys, naturalmente, eram os Orangistas. (N. do T.)
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- Disseram-me que as fragatas tinham sido tão boas que até lhes tinham dado mais cinquenta prisioneiros para a colecção.
- É claro que só pensaram nas conveniências deles! Estavam a pensar em tudo menos no bem da Marinha! Enfim, uma acção mesquinha e desprezível! - exclamou Jack, com
os olhos fora das órbitas. - Mas eu vinguei-me... Mal acabámos de revistar o navio americano, aproximámo-nos do Amélia navegando com o vento, comunicámos que não
tínhamos encontrado ninguém e fizemos sinal de que íamos separar-nos; e uma par de horas mais tarde, com vento favorável, desembarcámos aqueles tipos todos na ilha
Dragonera.
- Perto de Maiorca?
- Precisamente.
- Mas... mas isso não vai contra todas as normas? Não será repreendido por causa disso? Levado a conselho de guerra?
Jack retraiu-se de súbito e, batendo em madeira, retorquiu:
- Por favor, doutor Maturin, nunca mais pronuncie essa horrível palavra! Basta ouvi-la uma vez para que o dia de uma pessoa fique completamente estragado!
- Mas não terá problemas por causa disso?
- Não se chegarmos a Mahón com uma presa de primeiríssima qualidade - disse Jack, rindo-se. - E que agora talvez tenhamos tempo para nos instalarmos nas proximidades
de Barcelona, se o vento ajudar: esse é que era o meu grande objectivo. Teremos apenas tempo para darmos uma ou duas voltas e depois teremos de seguir directamente
para Mahón com o que tenhamos capturado, pois o número de tripulantes é tão reduzido que já não podemos enviar mais ninguém com as presas. bom, e também não poderemos
ficar muito mais tempo no mar, pois caso contrário acabaremos a comer as nossas botas...
- Mesmo assim...
- Não se preocupe, meu caro doutor. Não havia nenhuma ordem precisa para os desembarcarmos aqui ou acolá, nenhuma ordem; e, naturalmente, pagarei o dinheiro correspondente
à captura daqueles prisioneiros. Além disso, estou protegido: todos os oficiais reconheceram formalmente que devíamos desembarcá-los devido à escassez de água e
de provisões: Marshall, Ricketts, até mesmo Dillon... Embora Dillon tenha tido um ataque de virtude e amuo por causa desta história dos prisioneiros.
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O Sophie tresandava a sardinhas assadas e tinta fresca. Encontrava-se a quinze milhas do Cabo de Tortosa, numa calma total, espojando-se na suave ondulação; e o
fumo azul das sardinhas, que comprara a uma barca-longa que pescava de noite (de facto, o Sophie comprara toda a sua pescaria), espalhava-se ainda, com o seu cheiro
enjoativo, pela entrecoberta, pelas velas e pelo aparelho, meia hora depois da refeição.
Seguindo as ordens do contramestre, uma numerosa brigada pintava de amarelo os costados da corveta, ocultando habilmente o branco e o preto com que o navio viera
do estaleiro; o veleiro e uma dúzia de homens de dedal e agulha trabalhavam numa longa e estreita faixa de lona, que serviria para esconder todos os indícios de
que o Sophie era um navio de guerra; e o primeiro-oficial ia remando num bote à volta do navio, para aquilatar o resultado daquelas operações. A seu lado tinha apenas
o cirurgião, a quem dizia:
- Tudo. Fiz tudo o que estava ao meu alcance para o evitar. Tudo: infringi todas as regras. Alterei o rumo, reduzi o pano, algo que é impensável na Marinha, fiz
chantagem com o mestre para que pudesse estar à vontade; e, no entanto, na manhã seguinte, lá estava ele, duas milhas a sotavento, onde era inconcebível que estivesse.
Eh, Mr Watt! Baixar seis polegadas a toda a volta!
- Podia ter sido pior. Se qualquer outro homem tivesse subido a bordo, certamente que os deteria.
Uma pausa, e James Dillon disse:
- Ele inclinou-se sobre a mesa e a sua cara ficou tão perto da minha que podia até sentir-lhe aquele hálito fedorento... Fitou-me com um olhar odioso, o olhar de
um verdadeiro poltrão, e foi então que se saiu com aquela velhacaria. Eu já tinha tomado uma decisão, como lhe disse; no entanto, poderia até parecer que estava
a ceder diante de uma grosseira ameaça. E, dois minutos depois, estava convicto de que, efectivamente, tinha cedido a uma grosseira ameaça.
- Mas não cedeu, James. Você está a ser vítima de uma fantasia doentia. Dir-se-ia que sente prazer, um sombrio prazer, em torturar-se: tenha muito cuidado com esse
pecado, James. Quanto ao mais, James, é pena que lhe atribua tanta importância. De facto, feitas as contas a tudo, que importância é que isso poderá ter?
- Só um homem que estivesse quase morto é que não lhe atribuiria
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tanta importância, um homem que estivesse completamente morto para o sentido do dever, isto já para não falar... Assim está bem, Mr Watt!
Stephen ponderava a conveniência de lhe dizer: "Não odeie Jack Aubrey por causa disso, não beba tanto, não se destrua a si mesmo por algo que ao fim de pouco tempo
estará esquecido", ou a inconveniência de provocar uma explosão no seu interlocutor. De facto, e apesar de uma calma aparente, James Dillon estava com os nervos
à flor da pele, vítima de uma lastimável exasperação. Stephen não conseguiu decidir-se; encolheu os ombros, ergueu a mão direita, com a palma para cima, num gesto
que significava "Bah, o melhor é deixar as coisas como estão", e comentou para si mesmo: "No entanto, esta noite obrigá-lo-ei a tomar um purgante5 - pelo menos isso
posso fazer - e um pouco de mandrágora, que terá um efeito revigorante; e no meu diário escreverei: . D. obrigado a fazer o papel de Judas Iscariotes, tanto para
um lado como para o outro, e dado que rejeita o determinismo (o determinismo absoluto), concentra todo o seu ódio no pobre J. A. o que constitui um exemplo notável
dos processos mentais humanos; porque, na realidade, J. D. não sente qualquer antipatia relativamente a J. A. - bem longe disso.
- Pelo menos - disse James, remando de regresso ao Sophie -, espero que depois deste vergonhoso episódio possamos levar a cabo alguma acção. É uma maneira magnífica
de um homem se reconciliar consigo mesmo: e, por vezes, com todos os outros.
- O que é que aquele tipo está a fazer no castelo de popa? Aquele ali, com a casaca amarela?
- É o Pram. O capitão Aubrey disfarçou-o de oficial dinamarquês; faz parte do nosso plano para que não nos reconheçam. Não se lembra da casaca amarela do capitão
do Clomert Os dinamarqueses costumam vestir-se assim.
- Não, de facto não me lembro. Mas diga-me: é frequente ocorrerem coisas destas no mar?
- Ah, sim! É uma ruse de gueneh perfeitamente legítima. Também costumamos enganar o inimigo com sinais falsos: todos eles, excepto os de socorro. Cuidado com a tinta,
agora.
Nesse momento, Stephen caiu inopinadamente ao mar, no espaço entre o bote e a corveta, que estavam a afastar-se um do outro. Caiu e afundou-se, emergiu quando as
duas embarcações estavam outra vez a juntar-se, bateu
5 Black draught: mais exactamente, uma infusão de sena com sulfato de magnésio, com efeitos purgativos. (N. do T.)
6 Em francês, no original: "ardil de guerra". (N. do T.)
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com a cabeça nas duas e voltou a mergulhar. A maior parte dos tripulantes do Sophie que sabiam nadar saltaram para a água - entre eles Jack; e outros acorreram com
bicheiros, um arpão para golfinhos, duas pequenas fateixas, um horrendo gancho farpado preso a uma corrente; mas foram os irmãos Esponja que o encontraram, a cinco
braças de profundidade (os ossos de Stephen eram muito pesados para a estatura que tinha, o seu físico ignorava a gordura e, além disso, calçava umas meias-botas
que tinham solas de chumbo), e que o trouxeram para a superfície, com a roupa mais escura do que o habitual, o rosto mais pálido, todo encharcado e furiosamente
indignado.
Não foi um evento daqueles que marcou uma época, mas foi sem dúvida um acontecimento útil, pois serviu de tema de conversa na câmara dos oficiais num momento em
que, para manter a aparência de uma comunidade civilizada, era necessário um grande esforço. James Dillon mostrava-se quase sempre abatido, distraído, silencioso;
e tinha os olhos injectados de beber tanto grogue, embora não conseguisse alegrar-se nem embebedar-se. O mestre mostrava-se quase tão reservado como Dillon e de
quando em quando olhava furtivamente para o primeiro-oficial. Por isso, durante uns dias, à hora da refeição, debruçaram-se sobre a questão de saber ou não saber
nadar e abordaram-na de uma forma perfeitamente exaustiva - o facto de ser raro os marinheiros saberem nadar, as vantagens de saber nadar (salvar a vida; o prazer
que proporcionava, em climas agradáveis, naturalmente; o facto de se poder levar um cabo até à praia numa emergência), as suas desvantagens (o prolongamento da agonia
da morte em caso de naufrágio, ou caso um homem caísse ao mar sem ser visto, o facto de se estar a enganar a natureza - porque, afinal, se Deus quisesse que o homem
nadasse, teria feito dele um peixe, ou não?, etc. etc.), a estranha incapacidade para nadar das crias das focas, o uso de flutuadores, a melhor maneira de aprender
e praticar a arte da natação...
- A única forma correcta de nadar - disse o tesoureiro pela sétima vez
- é juntar as mãos como se estivéssemos a rezar... - semicerrou os olhos e colou as mãos - ...atirá-las para a frente, assim. - Desta vez atingiu mesmo a garrafa,
que mergulhou violentamente na bandeja da salada de carnes, anchovas, ovos cozidos, legumes em pickles e azeitonas, e foi aterrar, envolta em espesso e gorduroso
molho, em cima do colo de Marshall.
- Eu já sabia que isto ia acontecer, eu já sabia! - gritou o mestre, dando um salto e desatando a limpar-se. - Eu já lhe tinha dito: "Ainda deita abaixo essa maldita
garrafa!". Eu já lhe tinha dito! E além disso, você nem uma braçada sabe dar, e põe-se para aí a falar como se nadasse tão bem como uma lontra! Deu cabo das minhas
melhores calças de nanquim.
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- Não foi com intenção - retorquiu o tesoureiro com um ar sombrio; e tudo voltou à costumeira e bárbara tristeza.
De facto, enquanto o Sophie navegava rumo a norte, bordada após bordada, ninguém poderia dizer que o ambiente a bordo fosse propriamente alegre. Jack estava sentado
na sua agradável cabina, lendo o Boletim Oficial da Armada; sentia-se deprimido, não tanto porque voltara a comer demasiado, nem porque na lista de oficiais constante
do boletim havia muitos nomes acima do dele, mas, essencialmente, porque se tinha dado conta do sentimento prevalecente a bordo. Não poderia saber qual era a natureza
exacta das complicadas perturbações que afligiam Dillon e Marshall. Não poderia saber que Dillon, que estava ali, a poucas jardas dele, tentava vencer o desespero
com uma série de invocações e com uma pálida tentativa para ceder à resignação - enquanto uma parte da sua mente, aquela que não estava concentrada em orações cada
vez mais mecânicas, convertia a sua infortunada confusão num ódio claro contra a ordem estabelecida, contra a autoridade e os capitães, e contra todos aqueles que,
por nunca terem vivido um conflito entre a honra e o dever, seriam capazes de o condenar sem a menor hesitação. Por outro lado, embora Jack conseguisse ouvir o barulho
dos passos do mestre na coberta, algumas polegadas acima da sua cabeça, a verdade é que não poderia adivinhar que o pobre homem estivesse emocionalmente transtornado
e sentisse, no seu terno coração, o angustiante temor de que o seu segredo viesse a ser conhecido. Mas Jack sabia muito bem que o seu mundo fechado e reservado se
encontrava desgraçadamente desafinado; atormentava-o um deprimente sentimento de fracasso - o sentimento de não ter logrado alcançar aquilo a que se propusera. Teria
gostado muito de perguntar a Stephen Maturin as razões daquele fracasso; teria gostado muito de falar com ele acerca dos mais diversos temas e de tocar um pouco
de música; mas sabia que um convite para a cabina do capitão se assemelhava demasiado a uma ordem, nem que fosse devido ao carácter absolutamente excepcional de
uma eventual recusa
- e por isso, poucos dias antes, ficara estupefacto com a recusa de Dillon; e por isso não deixara de pensar no caso desde então. Onde não havia igualdade, não poderia
haver companheirismo: quando um homem era obrigado a dizer "Sim, meu capitão", o seu "sim" não valia nada, mesmo que fosse sincero. Aprendera estas coisas ao longo
dos seus muitos anos na Marinha; eram perfeitamente evidentes; mas nunca lhe passara pela cabeça que pudessem ser tão reais, tão gritantes, nem que pudessem afectá-lo
a si, Jack Aubrey.
Um pouco mais abaixo, na pequena câmara dos guardas-marinhas, quase
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deserta, a melancolia era ainda mais profunda: de facto, os cadetes estavam a chorar. Desde que Mowett e Pullings tinham partido como tripulantes das presas, os
dois guardas-marinhas tinham-se revezado no sistema de dois quartos e, consequentemente, nenhum deles dormia mais de quatro horas seguidas - o que era francamente
duro numa idade em que a cama sabe tão bem e em que se dorme mais do que o mais mole dos gatos; além disso, ao escreverem as cartas que o capitão lhes mandara escrever,
tinham ficado tão sujos de tinta que Jack Aubrey acabara por os repreender severamente; para cúmulo, Babbington, a quem não ocorria nada, rigorosamente nada, para
dizer à família, enchera as suas páginas perguntando por todos os seres vivos que viviam na sua casa e também na aldeia - pessoas, cães, cavalos, gatos, pássaros
- e inclusivamente pelo grande relógio da sala de entrada, de tal modo que agora transbordava de saudades. Para cúmulo dos cúmulos, Babbington tinha chagas e manchas
na cara e no corpo - resultado inevitável dos seus encontros com prostitutas, como lhe dissera o escriturário Richards, mais velho, mais sensato e mais experiente
do que ele - e receava que lhe caíssem os dentes e o cabelo e que os seus ossos amolecessem. A infelicidade do jovem Ricketts tinha uma causa completamente diferente:
o seu pai dissera-lhe que pensava transferir-se para um navio de carga ou de transporte, porque lhe pareciam mais seguros e acolhedores e o jovem Ricketts enfrentara
corajosamente a perspectiva de uma separação; agora, porém, parecia que não ia haver separação nenhuma, pois ele mudaria também de navio e, desse modo, ver-se-ia
afastado do Sophie e de uma vida que amava com tão extrema paixão. Marshall, vendo que o rapaz estava a cair de cansaço, mandara-o para baixo; e ali estava ele,
às três e meia da manhã, sentado em cima do seu baú, com a cara entre as mãos e as lágrimas deslizando-lhe por entre os dedos, tão exausto que nem tinha vontade
de se deitar.
Diante do mastro principal, o ambiente era muito menos triste, ainda que alguns homens - muitos mais do que o habitual - aguardassem sem o menor prazer pela manhã
de quinta-feira e pelas chicotadas que lhes estavam destinadas. Quanto aos outros, a maioria não tinha grandes motivos para estar triste, a não ser o trabalho duro
e a comida racionada; contudo, e visto que o Sophie era já quase uma comunidade, todos os homens estavam conscientes de que qualquer coisa estava a correr mal, qualquer
coisa que não tinha só a ver com a irritação dos oficiais - o que era exactamente, não saberiam dizer; mas sabiam que era algo que minara e destruíra a habitual
corrente de afabilidade que os unia a todos. A tristeza do castelo de popa impregnava cada vez mais o navio, chegando mesmo ao estábulo, à manjedoura, aos próprios
escovéns.
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Deste modo, o Sophie - visto como uma entidade - não se encontrava em plena forma enquanto avançava pela noite dentro, por entre rajadas de uma tramontana que agora
parecia amainar; nem tão-pouco quando o vento norte, ao amanhecer, deu lugar (como é frequente naquelas águas) a espirais de névoa que vinham de sudoeste e anunciavam
um dia resplandecente névoas sem dúvida encantadoras para quem não tivesse de passar por elas perto da costa. Porém, isto não era nada quando comparado com o estado
de tensão - já para não falar do abatimento e mesmo do medo - que Stephen descobriu quando, ao amanhecer, se dirigiu ao castelo de popa.
Fora acordado pelo tambor que chamava todos os homens aos seus postos. Dirigira-se imediatamente à enfermaria, onde, com a ajuda de Cheslin, preparara os seus instrumentos.
com uma expressão radiante e ansiosa, um marinheiro anunciara "um xebec enorme dobrando o cabo, muito próximo da costa". Stephen recebeu a notícia com um interesse
relativo e, momentos depois, pôs-se a afiar a faca que costumava usar nas operações; depois, afiou os bisturis e a serra dentada com uma pequena pedra amoladeira
que comprara em Tortosa unicamente para esse fim. O tempo passou e o primeiro marinheiro que falara com ele foi substituído por outro, pálido e muito nervoso, que
lhe transmitiu as saudações do capitão Aubrey, acrescentando que o capitão pretendia que o doutor subisse à coberta.
- bom dia, doutor - disse Jack. Stephen reparou no sorriso forçado, na expressão severa, circunspecta. - Parece que encontrámos um adversário mais forte. - Jack
acenou com a cabeça para um navio enorme, de aspecto ameaçador mas, ao mesmo tempo, de uma beleza extraordinária; haviam-no pintado de um vermelho-vivo que sobressaía
contra o cinzento soturno do pano de fundo das escarpas. Estava bastante baixo na água, tendo em conta o seu tamanho (era quatro vezes maior que o Sophie), mas tinha
à popa uma espécie de plataforma móvel que a fazia projectar-se muito acima do seu painel, ao passo que uma singular projecção em forma de bico fazia avançar a sua
proa uns bons vinte pés para lá da roda. Os mastros principal e de mezena tinham portentosas vergas latinas curvas e as suas velas estavam orientadas face à aragem
de sudoeste de forma a que fosse o Sophie a acercar-se dele e não o contrário; e, mesmo àquela distância, Stephen reparou que também as vergas eram vermelhas. O
costado de estibordo, de frente para o Sophie. tinha pelo menos dezasseis portinholas para os canhões; e as cobertas estavam a abarrotar de homens.
- Um xeec-fragata de trinta e dois canhões - disse Jack. - E só pode ser espanhol. Os rebordos enganaram-nos por completo. Até ao último momento, pensámos que era
um navio mercante; além disso, quase todos os
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homens estavam em baixo. Mr Dillon, ordene a mais alguns homens que se escondam, mas sem dar nas vistas. Mr Marshall, três ou quatro homens, não mais, para tirar
o rizo da gávea do traquete, mas que o façam lentamente, como se fossem marinheiros inexperientes. Anderssen, grite mais qualquer coisa em dinamarquês e deixe esse
balde balouçando no costado. - Em voz mais baixa, disse para Stephen: - Está-me a ver aquela raposa? Aquelas portinholas abriram-se há dois minutos apenas; estavam
ocultas pela maldita pintura. E embora tivessem pensado içar as vergas redondas - repare no mastro de proa -, podem içar as latinas num ápice e abocanhar-nos imediatamente.
Temos de seguir o nosso rumo, não há outra alternativa. Tentaremos não lhe dar nenhuma alegria. Mr Ricketts, tem as bandeiras prontas? Tire a casaca imediatamente,
atire-a já para o paiol! Isso! - Nesse instante soou um disparo de aviso no castelo de popa da fragata: a bala passou por cima da proa do Sophie e, depois de o fumo
se dissipar, apareceu a bandeira espanhola. Vamos, Mr Ricketts! - disse Jack. A bandeira dinamarquesa luziu de repente numa extremidade da carangueja, seguida pela
bandeira amarela de quarentena no mastro de proa. - Pram, venha até aqui e saúde-os movendo os braços. Dê ordens em dinamarquês. Mr Marshall, vamos meter de capa
desajeitadamente. Ficaremos a meio cabo de distância, não mais.
Estavam cada vez mais perto. Silêncio absoluto a bordo do Sophie: era possível ouvir os homens tagarelando no xebec. A pouca distância de Pram, em calções e mangas
de camisa - e, evidentemente, sem a casaca do uniforme -, Jack pegou no leme.
- Repare-me naquela gente toda! - disse ele, em parte para si mesmo, em parte para Stephen. - Devem ser mais de trezentos. Vão interrogar-nos dentro de um ou dois
minutos. Pram, diga-lhes que somos dinamarqueses e que vimos de Argel. Doutor, ajude-o falando espanhol, ou qualquer outra língua que ache conveniente, logo que
se torne necessário.
A pergunta ouviu-se claramente na calmaria da manhã.
- Que brigue é esse?
- Responda claro e bem alto, Pram - ordenou Jack.
- Clomer! - gritou o oficial de derrota, que envergava a sua casaca amarela; as escarpas devolveram um "Clomer!" mais esbatido, mas com o mesmo tom de desafio, embora
não tão perceptível.
- Manobre o velacho para parar, mas muito lentamente, Mr Marshall
- murmurou Jack -, e os marinheiros que permaneçam junto aos braços. Murmurava porque sabia muito bem que os oficiais da fragata estavam a observar o castelo de
popa do Sophie com os seus óculos - e porque qualquer
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coisa lhe dizia, obviamente sem razão, que os óculos ampliariam também a
sua voz.
A distância entre a fragata e o brigue começou a aumentar, e, ao mesmo tempo, os grupos que se tinham formado a bordo da fragata, as suas brigadas de artilheiros,
começaram a dispersar. Por um momento, Jack pensou que tudo tinha terminado, e o seu coração, até então tranquilo, disparou numa correria. Mas não. Um bote da fragata
largara em direcção ao Sophie.
- Talvez não consigamos evitar o confronto - disse Jack. - Mr Dillon, os canhões estão preparados com carga dupla, não estão?
- Tripla, meu capitão - retorquiu James; ao olhar para ele, Stephen detectou aquela expressão de doentia felicidade que tantas vezes encontrara no rosto de James:
a expressão fria de uma raposa prestes a lançar-se numa acção tresloucada.
A brisa e a corrente continuavam a levar o Sophie na direcção da fragata, cujos tripulantes haviam entretanto retomado a sua tarefa de substituírem o aparelho latino
pelo aparelho redondo: subiam como um enxame aos ovéns, observando com curiosidade o dócil brigue, que estava prestes a ser abordado pela sua lancha.
- Saúde o oficial, Pram - disse Jack. Pram encammhou-se para a amurada e lançou-se num enfático relato da sua viagem, próprio de um marinheiro experiente. A língua
usada era o dinamarquês, sem dúvida, mas um dinamarquês muito simplificado (e, por essa razão, algo ridículo), como se isso bastasse para que o oficial da lancha
o entendesse. Contudo, no seu longo discurso não aparecera uma única vez a palavra "Argel" sob qualquer forma reconhecível: Pram substituíra-a pela expressão "costa
dos Berberes", e repetira-a, em vão, uma série de vezes.
O remador de proa espanhol estava prestes a enganchar o bicheiro quando Stephen, falando um espanhol com sotaque escandinavo, mas facilmente compreensível, gritou:
- Têm algum cirurgião a bordo? Alguém que nos possa dizer que epidemia atacou alguns dos nossos homens?
O remador de proa baixou o bicheiro.
- Porquê? - perguntou o oficial espanhol.
- Alguns dos nossos homens adoeceram gravemente em Algiers7 e estamos com muito medo do que possa acontecer. Não sabemos que doença é.
7 Stephen começa por usar a designação inglesa para Argel; daí que o oficial espanhol não o tenha entendido; por fim, recorre às designações francesa e espanhola.
(N. do T.)
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- Ciar! - ordenou imediatamente o oficial. - Em que porto disse que estiveram?
- Algiers, Alger, Argel: foi aí que os marinheiros desceram a terra. Por favor, diga-me: como são os sintomas da peste? Inchaços? Pústulas? Por favor, suba, venha
ver estes pobres homens! Por favor, senhor, vou mandar-lhe este cabo!
- Ciar! - repetiu o oficial. - E foi em Argel que desceram?
- Sim! Vai mandar-nos o seu cirurgião?
- Não! Ah, pobres homens! Que Deus e a Virgem tenham compaixão de vós!
- Podemos ir buscar remédios? Por favor, deixe-me descer ao seu bote!
- Não! - retorquiu o oficial, benzendo-se. - Não, não! Mantenham-se afastados ou dispararemos! Vão para o alto mar: o mar curará esses homens! Que Deus esteja convosco!
Boa viagem! - O oficial ordenou ao remador de proa que atirasse o bicheiro ao mar e a lancha afastou-se, remando rapidamente para regressar ao xeec-fragata.
Estavam a uma distância que permitia ainda uma troca de impressões relativamente fácil; na fragata, alguém gritou algumas palavras em dinamarquês; Pram respondeu;
depois, uma figura alta e magra, sem dúvida o capitão, apareceu no castelo de popa, e perguntou se tinham visto uma corveta inglesa, um brigue.
- Não! - responderam. E quando as embarcações começaram a afastar-se uma da outra, Jack murmurou:
- Pergunte-lhes o nome.
- Cacafuegol - foi a resposta, facilmente audível apesar da distância.
- Façam boa viagem!
- Uma boa viagem para vocês também!
- Então aquilo é que é uma fragata - disse Stephen, apreciando detidamente o Cacafuego.
- Um xeec-fragata - disse Jack. - Lentamente com os braços, Mr Marshall: não podemos dar a impressão de que estamos com pressa. Uma enxárcia muito curiosa, não é
verdade? Parece-me que não há nada mais rápido: a sua boca extrema é muito larga, para poder suportar uma grande
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pressão das velas, mas a caverna é muito estreita; no entanto, precisa de ter uma tripulação muito numerosa, pois quando navega de bolina usa o aparelho latino,
e quando o vento sopra forte pela popa ou pelas alhetas, retira-se esse aparelho e deixa-se na coberta e no seu lugar colocam-se vergas para velas redondas; é óbvio
que isso dá imenso trabalho. Por isso, um navio destes deverá ter pelo menos trezentos homens. Agora está a mudar para o aparelho redondo, o que significa que seguirá
para norte junto à costa. E por isso nós teremos de ir para sul, pois já estamos fartos da sua companhia! Mr Dillon, vamos dar uma vista de olhos à carta.
- Santo Deus! - disse Jack já na sua cabina, juntando as mãos e rindo-se satisfeito -, cheguei a pensar que desta vez estávamos mesmo perdidos! Ou que a corveta
seria incendiada, afundada, destruída, e que nós acabaríamos enforcados, afogados ou esquartejados! Não há dúvida: o doutor é uma jóia rara! E quando ele se pôs
a agitar o cabo e a rogar ao oficial, com um ar muito sério, que subisse a bordo? Eu percebi o que ele dizia, apesar de falar tão rapidamente! Ah, ah, ah! Que se
passa, Mr Dillon? Não achou graça à cena?
- Sem dúvida, meu capitão. Foi uma cena muito cómica.
- Que vengan! - suplicava o doutor, com uma expressão capaz de fazer chorar as pedras da calçada e agitando muito o cabo. E eles começaram logo a recuar, tão sérios
e solenes como um bando de corujas! - Que vengan! Ah, ah, ah! Santo Deus! Mas você não parece muito divertido, Dillon...
- Para lhe dizer a verdade, meu capitão, fiquei tão surpreendido com o facto de termos evitado o navio espanhol que quase não tive tempo para saborear o lado cómico
deste episódio.
- Mas - disse Jack, sorrindo - o que acha que deveríamos ter feito? Atacá-los?
- Estava convencido de que íamos atacar - disse James num tom veemente. - Estava convencido de que era essa a sua intenção. E sentia-me positivamente deliciado com
essa perspectiva.
- Um brigue de catorze canhões contra uma fragata de trinta e dois? Não está a falar a sério, pois não, Mr Dillon?
- Claro que estou, meu capitão. Quando eles estavam a subir a lancha e metade da tripulação estava ocupada com a enxárcia, a nossa bateria e as nossas armas ligeiras
tê-los-iam feito em pedaços, e, com este vento, tê-los-íamos abordado antes que eles se tivessem recomposto.
- Ora, Mr Dillon! Para além do mais, não teria sido uma acção muito honrosa...
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- Talvez eu não seja a pessoa mais indicada para decidir em questões de honra, meu capitão - retorquiu Dillon. - Falo simplesmente como um homem de acção.
Mahón. O Sophie viu-se de súbito cercado pelo seu próprio fumo, pois estava a disparar as suas duas baterias e um canhonaço para saudar a bandeira do almirante,
içada no Foudroyant, cuja imponente massa se encontrava entre as escadas Pigtail e o cais do arsenal.
Mahón. Os tripulantes do Sophie que estavam de licença trataram logo de se empanturrarem com carne de porco assada e pão a sério (já chegava de biscoito), num ambiente
de exuberante animação e alegria: barris de vinho rapidamente esvaziados, uma hecatombe de porcos, mulheres chegando de perto e de longe.
Jack estava rigidamente sentado na sua cadeira; tinha as mãos suadas e a garganta ressequida. As sobrancelhas de Lorde Keith eram negras e espessas, com alguns pêlos
prateados muito brilhantes, sob os quais faiscava um olhar frio e penetrante cujo alvo era Jack Aubrey.
- Deverei concluir, portanto, que tomou essa medida unicamente por uma questão de necessidade? - disse Lorde Keith.
Referia-se ao desembarque dos prisioneiros na ilha Dragonera: de facto, desde o princípio da entrevista que quase não falara de outra coisa.
- Sim, Lorde Keith.
O almirante demorou um instante a responder.
- Se o tivesse feito por indisciplina - disse ele lentamente -, por não querer subordinar-se às instruções dos seus superiores, ver-me-ia obrigado a abordar o caso
de uma forma muito mais séria. Lady Keith estima-o muito, como o senhor sabe muito bem; e eu ficaria muito triste se tivesse de concluir que os seus actos constituíam
um obstáculo às suas próprias expectativas; por isso, permita-me que lhe fale com toda a franqueza...
Jack sabia que ia passar por um mau bocado desde que vira a cara séria do secretário, mas aquilo era muito mais duro do que alguma vez esperara. O almirante estava
invulgarmente bem informado; conhecia todos os pormenores da sua carreira: repreensão oficial por insolência, incumprimento de ordens em certas ocasiões, fama de
ser demasiado independente, temerário e mesmo
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insubordinado, rumores de mau comportamento em terra, excessos alcoólicos; e muitos outros. O almirante não enxergava a menor possibilidade de uma promoção - embora
o capitão Aubrey não devesse preocupar-se muito com isso, pois havia imensos oficiais que nem sequer chegavam ao cargo de capitão; e os capitães constituíam um corpo
eminentemente respeitável. Porém... como confiar um navio de linha a um homem obstinado que, apesar de integrado numa frota, decidisse travar uma batalha de acordo
com as suas próprias noções de estratégia? Não, não havia a menor possibilidade de promoção, a menos que ocorresse algo de extraordinário. O historial do capitão
Aubrey deixava muito a desejar. Lorde Keith falava tranquilamente, com grande rigor, revelando uma extrema precisão nos factos que citava e na forma como os citava.
De início, Jack sentira-se muito envergonhado e inquieto
- enfim, sofrera horrivelmente; porém, à medida que a entrevista foi avançando, começou a sentir como que um ardor por alturas do coração, ou um pouco mais abaixo,
um ardor que poderia prenunciar uma explosão de raiva que seria mais forte do que ele. Baixou a cabeça porque estava certo e seguro de que o seu olhar não conseguiria
disfarçar a fúria que começava a consumi-lo.
- Em contrapartida - disse Lorde Keith -, você possui, de facto, uma qualidade primordial para qualquer capitão: é uma pessoa afortunada. Nenhum dos meus outros
cruzeiros causou tantos danos ao comércio inimigo; nenhum capturou sequer metade das presas que o Sophie logrou capturar. Por isso, quando regressar de Alexandria,
poderá contar com outro cruzeiro.
- Obrigado, Lorde Keith.
- Esta decisão provocará sem dúvida algum ciúme e críticas várias; mas a sorte é algo que raramente dura. Pelo menos, essa é a minha experiência pessoal, e devemos
aproveitá-la enquanto dura.
Jack manifestou o seu reconhecimento e agradeceu, não sem algum encanto, a amabilidade com que o almirante se dispusera a dar-lhe os seus preciosos conselhos, e
enviou saudações respeitosas - afectuosas, se Lorde Keith lho permitia - a Lady Keith, e retirou-se. Porém, apesar do prometido cruzeiro, a verdade é que no seu
coração ardia um fogo intenso, devorador; fizera um discurso de despedida sereno e cortês, é certo; porém, quando saiu da sala, havia uma tal ferocidade no seu olhar
que a sentinela desistiu inopinadamente da sua expressão irónica, a expressão de quem sabia o que se havia passado naquela sala, e ficou quase tão petrificado como
uma estátua.
- Se aquele miserável do Harte está a pensar falar-me no mesmo tom disse Jack para si mesmo, avançando pela rua e obrigando um pacífico cidadão
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a encostar-se à parede - ou num tom parecido, pode ter a certeza de que lhe arranco o nariz! E a Marinha que se lixe!
- Mercy, minha querida! - gritou ele ao entrar no Crown -, traga-me um copo de vino, sim, isso mesmo, e um copito de aguardiente. Malditos sejam todos os almirantes!
- acrescentou, deixando que aquele vinho fresco e fragrante corresse livremente e lhe curasse a violenta secura que lhe atormentava a garganta.
- Mas ele é um almirante muito bom, querido capitano - disse Mercedes, sacudindo o pó das lapelas da casaca. - Vai dar-lhe um cruzeiro quando voltar de Alexandria.
Jack lançou-lhe um olhar arguto e observou:
- Mercy querido, se você soubesse das viagens dos espanhóis metade do que sabe das nossas, eu seria o mais feliz dos homens! - Bebeu de um trago a aguardente e pediu
mais um copo de vinho, daquela bebida magnífica e tão calmante.
- Tenho uma tia que sabe muitas coisas - disse Mercedes.
- Deveras, minha querida? Pois esta noite há-de contar-me tudo acerca da sua querida tia. - Deu-lhe um beijo singularmente distraído, ajeitou o chapéu à sua nova
peruca e anunciou: - Mas agora é tempo de tratarmos daquele miserável!
Contudo, o capitão Harte recebeu-o com muito mais cortesia do que era habitual e congratulou-o pelos acontecimentos de Moraira - "essa maldita bateria causava-nos
imensos problemas; perfurou três vezes o casco do Palias e derrubou um dos mastaréus da gávea do Esmeralda; há muito que devíamos ter-lhes tratado da saúde". Convidou-o
a jantar.
- E traga o seu cirurgião. A minha esposa pediu-me que o convidasse.
- Estou certo de que o doutor ficará encantado com o convite, caso não tenha outro compromisso. E como tem passado Mrs Harte? Espero que bem. Tenho de lhe apresentar
os meus respeitos.
- Ah, sim, está muito bem, obrigado. Mas não vale a pena ir visitá-la esta manhã: foi montar a cavalo com o coronel Pitt. Não sei como Molly suporta este calor...
Ah, a propósito, capitão Aubrey, gostaria de lhe pedir um favor. Estou certo de que o meu amigo não mo recusará. - Jack fitou-o atentamente, mas sem se comprometer.
- O meu assessor financeiro quer mandar o filho para o mar e você tem uma vaga para um guarda-marinha, tão simples como isso. É um homem perfeitamente respeitável
e a sua esposa andou na escola com Molly. Conhecê-los-á ao jantar.
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De joelhos, com o queixo à altura da mesa, Stephen observava o louva-a-deus macho aproximando-se cautelosamente da fêmea: esta era um belo e robusto exemplar, de
cor verde, e erguia-se nas suas quatro patas traseiras, com as duas patas dianteiras solenemente suspensas; de quando em quando, um estremecimento levava-a a inclinar
o corpo para a frente; de cada vez que isso acontecia, o macho, um exemplar castanho, recuava. Ele avançava em linha recta, com o corpo paralelo ao tampo da mesa,
com as antenas apontadas para a frente, esticando hesitantemente as suas patas dianteiras, longas, denteadas, predadoras: mesmo àquela luz forte, Stephen conseguia
ver o curioso brilho interior que havia nos seus enormes olhos ovais.
Vagarosamente, a fêmea virou a cabeça quarenta e cinco graus, como que para olhar para o macho. "Será isto o reconhecimento?", perguntou-se Stephen, erguendo a lupa
para ver se detectava qualquer movimento nas antenas dela. "Ou o consentimento?".
O macho castanho terá certamente pensado que era o consentimento: de facto, deu três passadas e montou a fêmea; as pernas dele aferraram-se aos élitros dela, as
suas antenas encontraram as dela e começaram a afagá-las. Exceptuando um movimento vibratório, um estremecimento elástico causado por aquele peso adicional, parecia
não haver qualquer reacção, ou resistência, por parte da fêmea; e, pouco depois, começava a violenta cópula dos ortópteros. Stephen atrasou o seu relógio de maneira
a que ficasse na hora e tomou nota num livro que estava aberto no chão.
Passaram uns minutos. O macho abrandou um pouco o seu abraço. A fêmea moveu a sua cabeça triangular, fazendo-a girar ligeiramente da esquerda para a direita. Através
da lupa, Stephen podia vê-la abrindo e cerrando lateralmente as mandíbulas; depois, houve uma série de movimentos tão rápidos que, apesar de todo o seu cuidado e
de uma atenção extrema, não conseguiu segui-los - e de repente a cabeça do macho separou-se do corpo, como um limão arrancado da árvore, e ficou presa nas patas
dianteiras da fêmea, unidas como se orassem. A fêmea abocanhou a cabeça e o brilho dos olhos desapareceu; sobre as costas dela, o macho continuou a cópula ainda
com mais violência do que antes, eliminadas que estavam todas as suas inibições. "Ah", disse Stephen, com intensa satisfação, e anotou de novo a hora.
Dez minutos depois, a fêmea arrancou três pedaços do comprido tórax do seu companheiro, acima das articulações das patas, e comeu-os, aparentemente
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com apetite, deixando cair migalhas quitinosas da carapaça. O macho continuava a copular, firmemente ancorado ainda sobre as suas patas traseiras.
- Ah, finalmente encontro-o, doutor Maturin! - exclamou Jack. - Há um quarto de hora que estou à sua espera!
- Oh - disse Stephen, levantando-se. - Desculpe-me, capitão. Rogo-lhe que me desculpe. Sei muito bem que, para si, a pontualidade é algo de extremamente importante.
Tinha atrasado o meu relógio quando a cópula começou - disse ele, cobrindo, com gestos muito suaves, o louva-a-deus fêmea, mais o seu jantar, com uma caixa ventilada.
- Pronto, agora já posso ir.
- Não - disse Jack. - Não com essas horríveis meias-botas. A propósito: por que raio é que mandou pôr-lhes sola de chumbo?
Em qualquer outro momento, Jack teria ouvido uma resposta muito desagradável, mas Stephen já se tinha apercebido de que o capitão não passara uma manhã propriamente
sossegada com o almirante; e tudo o que disse, enquanto trocava as meias-botas pelos sapatos, foi:
- Não é preciso ter uma cabeça, nem sequer um coração, para dar a uma fêmea tudo o que ela precisa.
- Isso faz-me lembrar uma coisa... - disse Jack. - Tem alguma coisa que ajude a minha peruca a manter-se fixa? Vi-me numa situação absolutamente ridícula quando
atravessei a praça: Dillon estava do outro lado, com uma mulher (a irmã do governador Wall, creio), de maneira que retribuí a saudação dele com particular atenção,
não sei se está a ver. Ergui o chapéu e a maldita peruca veio atrás do chapéu. O doutor pode rir-se à vontade, e reconheço que, de facto, é caso para rir; mas teria
dado uma nota de cinquenta libras para não passar por aquela vergonha diante de Dillon.
- Aqui tem um esparadrapo - disse Stephen. - Deixe-me dobrá-lo e colá-lo à sua cabeça. Lamento imenso que tenha tido esse... esse contratempo na presença de Dillon.
- Também eu - disse Jack, inclinando-se para que Stephen lhe pusesse o esparadrapo: então, movido por uma súbita explosão de confiança (estavam num local tão diferente
do habitual, estavam em terra, e o relacionamento entre eles, em terra, não era o mesmo que no mar), Jack arriscou:
- Nunca me senti tão desconcertado em toda a minha vida. Sinceramente, doutor, fiquei sem saber o que fazer. Dillon acusou-me praticamente de
- custa-me até dizer a palavra - conduta indevida, depois do caso do Cacafuego. O meu primeiro impulso foi pedir-lhe explicações, e uma satisfação, naturalmente.
Mas trata-se de uma situação tão peculiar. Se eu quisesse prejudicá-lo, seria fácil; e se ele quisesse prejudicar-me, expulsá-lo-iam da
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Marinha num abrir e fechar de olhos, de maneira que, para ele, o resultado seria sempre o mesmo.
- E a Marinha é a grande paixão de Dillon, quanto a isso não há dúvida.
- E num ou noutro caso, o Sophie ficaria num estado lamentável... bastaria que um de nós cometesse um disparate. Além do mais, dificilmente arranjaria um melhor
primeiro-oficial: é um homem exigente, duro, mas não é nenhum feitor de escravos; um excelente marinheiro; nunca tenho de me preocupar com a rotina diária da corveta...
Quero crer que não foi essa a sua intenção.
- Estou certo de que Dillon nunca seria capaz de pôr em causa a sua coragem - disse Stephen.
- Acha que não? - perguntou Jack, fitando Stephen e baloiçando a peruca na mão. - Apetece-lhe jantar com os Harte, doutor? - perguntou, após uma pausa. - Eu tenho
de ir e gostaria muito que me acompanhasse, caso não tenha outro compromisso.
- Jantar? - perguntou Stephen, como se a comida tivesse acabado de ser inventada. -Jantar? Ah, sim, claro que irei, com todo o gosto!
- Não tem um espelho, pois não? - perguntou Jack.
- Não. Não. Mas há um espelho no quarto de Mr Florey. Trataremos disso quando descermos.
Apesar de se sentir bem e de ter posto o seu melhor uniforme e a sua dragona dourada, o que o deixava francamente feliz, Jack não tinha - nunca tivera - a menor
opinião acerca do seu aspecto, e, até àquele momento, nunca gastara mais de dois minutos seguidos na apreciação da sua aparência. Porém, depois de se ter visto ao
espelho com tempo e atenção, perguntou:
- Estou mesmo horrível, não estou, doutor?
- Sim - disse Stephen. - Sem dúvida. Sem sombra de dúvida.
Jack Aubrey cortara o resto do cabelo mal chegara ao porto e comprara aquela peruca para cobrir a penugem que o barbeiro lhe deixara na cabeça; mas não havia nada
que tapasse a face queimada (a qual, para cúmulo, e não obstante a aplicação continuada do unguento prescrito por Stephen Maturin, ficara um pouco avermelhada devido
ao sol) nem que ocultasse a tumefacção ao nível da testa e do olho, que atingira agora a fase amarela, com uma franja azul à volta; tudo isto somado, não havia dúvida
de que o lado esquerdo do seu rosto evocava claramente o focinho do grande mandril africano.
Depois de terem tratado todos os assuntos que havia a tratar com o agente que se ocupava das presas (uma recepção absolutamente reconfortante; o homem era todo vénias,
todo sorrisos), Jack Aubrey e Stephen
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Maturin fizeram-se ao jantar. Deixando Stephen entregue à contemplação de uma rela junto à fonte do pátio, Jack pôde encontrar-se a sós com Molly Harte - por um
breve momento, é certo - na fresca sala de estar.
- Santo Deus, Jack! - exclamou ela, fitando-o espantada. - De peruca?
- Será por pouco tempo - retorquiu Jack, avançando rapidamente na direcção dela.
- Tenha cuidado, Jack - murmurou ela, deslizando para trás de uma mesa de jaspe, ónix e comalina, com três pés de largo, sete pés e meio de comprido e dezanove quintais
de peso. - A criadagem.
- Esta noite no caramanchão ? - segredou ele.
Molly Harte abanou a cabeça e, sem palavras, mas com grande profusão de sinais faciais, declarou:
- Indisposée. - Depois, num tom baixo mas audível, num tom sensato, enfim, acrescentou: - Deixe-me falar-lhe das pessoas que vêm jantar connosco, os Ellis. Ela é
de boas famílias, creio. Enfim, andámos as duas na escola de Mrs Capell. Muito mais velha do que eu, é claro: era uma das raparigas mais velhas, de facto. E depois
casou com este Mr Ellis, da City. É um homem respeitável, educado, extremamente rico, e ocupa-se do nosso dinheiro com extrema habilidade. O capitão Harte deve-lhe
muito; e eu conheço Laetitia desde pequena; de maneira que existe entre nós, como dizer... um duplo laço, digamos assim. Eles querem que o filho seja marinheiro;
por isso, agradar-me-ia muito que...
- Farei tudo o que estiver ao meu alcance para lhe agradar - disse Jack com um ar sombrio. As palavras o nosso dinheiro tinham-no magoado profundamente.
- Doutor Maturin, estou tão contente por ter vindo! - exclamou Mrs Harte encaminhando-se para a porta. - vou apresentá-lo a uma amiga que é um poço de erudição.
- Deveras, Mrs Harte? É uma agradável notícia. Mas diga-me: em que matérias é a sua amiga erudita?
- Oh, em tudo, Doutor Maturin, em tudo - retorquiu ela, muito alegre. E essa parecia ser também a opinião de Laetitia, já que, mal viu Stephen,
rompeu numa longa exposição sobre o tratamento do cancro e a conduta dos Aliados na guerra: oração, amor e evangelismo eram a resposta certa para
8 Em francês, no original: "indisposta". (N. do T.)
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ambos os casos. Era uma estranha criaturinha, aquela Laetitia; o seu inexpressivo rosto de biscuit fazia lembrar uma boneca; era tímida e, ao mesmo tempo, extremamente
presumida, além de ser senhora de uma juvenilidade absolutamente alarmante; falava lentamente, movendo o torso de uma forma estranha, como que retorcendo-o, e fitando
o estômago ou o cotovelo do seu interlocutor, de maneira que a sua prelecção se arrastou por um tempo sem fim. O marido era um homem alto, de olhos húmidos e mãos
suadas, com uma expressão resignada, evangélica, para além de ser cambaio: não fossem os joelhos e confundi-lo-iam com um mordomo. "Se aquele homem sobreviver",
pensou Stephen enquanto Laetitia perorava sobre Platão, "tornar-se-á um avarento: mas é mais provável que acabe por se enforcar". E o diagnóstico não demorou: "Prisão
de ventre; hemorróidas; pé chato".
Os dez convivas sentaram-se à mesa e Stephen verificou que Mrs Ellis seria a sua vizinha da esquerda. À direita tinha uma tal Miss Wade, uma rapariga simples, amável
e com um apetite esplêndido, tão esplêndido que nem sequer era afectado pelo tempo quente e húmido, nem pelos ditames da moda; vinham depois Jack, Mrs Harte e, à
direita desta, o Coronel Pitt. Stephen e Miss Wade tinham-se lançado numa acesa discussão em torno da comparação das qualidades do lagostim e da lagosta; contudo,
a voz de Mrs Ellis depressa os interrompeu - e com tal insistência e volume que só um surdo a poderia ignorar.
- Mas não compreendo, doutor... Afinal o doutor é médico e não cirurgião, pelo menos foi o que me disseram; assim sendo, como é possível que esteja na Marinha? Como
é possível que esteja na Marinha, sendo, como é, médico?
- Indigência, minha senhora, pura indigência. É que, em terra, nem tudo o que luz é ouro9. Além disso, é claro que também fui motivado pelo fervoroso desejo de morrer
pela pátria.
- O cavalheiro está a brincar, minha querida - disse o marido do outro lado da mesa. - com todas essas presas que fizeram, o doutor é por certo um homem muito abonado,
como nós dizemos na City - acrescentou, acenando e sorrindo maliciosamente.
9 No original, o doutor Maturin recorre a um trocadilho (talvez de oportunidade duvidosa, à mesa) que dificilmente passaria para português; em vez de dizer "For
ali that glisters is not gold" ("É que nem tudo o que luz é ouro"), Stephen Maturin diz "For ali that clysters is not gold" (clysters é, obviamente, clisteres).
Um trocadilho entre "luz" e "pus", por exemplo, seria mais forçado do que o constante do original. (N. do T.
272
- Oh! - exclamou Laetitia, surpreendida. - O doutor gosta de ser espirituoso! Tenho de ter cuidado com ele, não há dúvida! Mesmo assim, doutor Maturin, o senhor
tem também de tratar dos simples marinheiros e não apenas dos guardas-marinhas e oficiais, e isso deve ser muito desagradável!
- Pois bem, minha senhora - disse Stephen, fitando-a com curiosidade: para uma dama tão pequena de corpo e tão evangélica de espírito, não havia dúvida que bebia
generosamente; bebera já o suficiente para que uma profusão de manchas vermelhas lhe adornasse a alvura do rosto. - No que toca aos marinheiros, garanto-lhe que
é fácil curá-los. Costumo administrar-lhes óleo de gato10.
- E faz muito bem - disse o coronel Pitt, que falava pela primeiravez.
- No meu regimento também não tolero essas criaturas que se queixam de achaques por tudo e por nada.
- O doutor Maturin é extremamente rigoroso - asseverou Jack. Pede-me frequentemente que açoite os homens, pois é uma boa maneira de os arrancar à apatia e de, simultaneamente,
lhes dilatar as veias. Cem chicotadas no portaló têm o mesmo efeito que quinze libras de enxofre e melaço, como nós costumamos dizer.
- Isso é que é disciplina! - exclamou Mr Ellis, aquiescendo com a cabeça.
Stephen sentiu as pernas estranhamente despidas: não havia dúvida, o seu guardanapo deslizara até ao soalho; mergulhou para o procurar e, naquele espaço coberto,
semelhante ao interior de uma tenda, deu com vinte e quatro pernas, seis pertencentes à mesa e dezoito aos seus temporários companheiros de mesa. Miss Wade descalçara
os sapatos: a mulher que estava sentada diante dele deixara cair um lenço muito amarrotado: a reluzente bota militar do coronel Pitt apoiava-se no pé direito de
Mrs Harte e, sobre o pé esquerdo desta - a uma distância muito razoável do direito -, repousava o sapato de fivela de Jack Aubrey, quase tão volumoso como a bota.
Os pratos foram-se sucedendo: medíocre comida minorquina cozinhada com água inglesa, vinho igualmente medíocre adulterado com agraz minorquino; e, a certa altura,
Stephen ouviu a sua vizinha dizer:
- Consta que o senhor possui uma grande autoridade moral no seu navio. - Salvou-o Mrs Harte, que se levantou nesse preciso momento e que,
10 No original, oil of cat. o doutor referia-se ao cat of nine tails, "gato de nove rabos", ou seja, o chicote de nove correias com nós nas pontas. (N. do T.)
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coxeando ligeiramente, se dirigiu para a sala de estar: os homens agruparam-se à cabeceira da mesa e o turvo Porto foi passando de mão em mão um ror de vezes.
O vinho conseguira animar Mr Ellis, que quase florescera ao fim de uns quantos cálices; o dique da abastança deixou passar a desconfiança e a timidez, que num instante
se evaporaram; e Mr Ellis encetou uma longa dissertação sobre disciplina - a ordem e a disciplina tinham uma importância primordial; a família, a família disciplinada,
era a pedra angular da civilização cristã; os oficiais em cargos de comando eram, por assim dizer, os pais das suas numerosas famílias e demonstravam o amor que
dedicavam aos filhos através da firmeza. Firmeza. O seu amigo Bentham, o cavalheiro que escrevera Defence of Usury" (um livro que merecia ser impresso a letras de
ouro), inventara um mecanismo de castigo. Firmeza e temor: porque, cavalheiros, as duas grandes forças que faziam mover o mundo eram a cobiça e o medo. Bastava que
pensassem na Revolução Francesa, na ignominiosa rebelião da Irlanda, isto já para não falar - acrescentou, fitando maliciosamente os rostos petrificados dos
seus companheiros - nos desagradáveis incidentes de Spithead e Nore: tudo cobiça, tudo cobiça; e a cobiça só podia ser reprimida através do medo.
Mr Ellis sentia-se perfeitamente à vontade em casa do capitão Harte, já que, sem precisar de perguntar o caminho, avançou na direcção de um aparador, abriu uma porta
envidraçada com armações de chumbo nos caixilhos e retirou um bacio; e, espreitando por cima do ombro, continuou o seu discurso sem uma pausa, salientando que, felizmente,
as classes mais baixas, de um modo natural, e no seu jeito naturalmente humilde, respeitavam e admiravam os homens de nobre estirpe; e só os homens de nobre estirpe
podiam ser oficiais. A este estado de coisas presidia Deus, pois fora Ele que assim fizera as coisas, prosseguiu Mr Ellis ao mesmo tempo que abotoava a braguilha;
e quando voltou a sentar-se à mesa, observou que conhecia uma casa onde o artigo que acabara de usar era de prata - de prata maciça. A família era uma boa coisa:
brindaria à disciplina. O castigo físico era uma boa coisa: brindaria ao castigo físico, sob todas as suas formas. Quem poupa nos açoites, estraga os filhos - quem
ama, castiga.
- Tem de nos fazer uma visita uma destas quintas-feiras, para ver como
11 "Defesa da Usura": referência a Jeremy Bentham (1748-1832), moralista e legislador inglês; a sua moral, assente numa "artimética" dos prazeres e das dores, deu
origem a uma corrente denominada utilitarismo. (N. do T.)
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o ajudante do contramestre demonstra o seu amor pelos indisciplinados disse JackAubrey.
O coronel Pitt, que tinha estado a observar o banqueiro com um desprezo tão evidente que roçava a grosseria, soltou uma gargalhada e logo se despediu, sob o pretexto
de que tinha de tratar de assuntos relacionados com o seu regimento. Jack estava prestes a seguir-lhe o exemplo quando Mr Ellis lhe rogou que ficasse - ficar-lhe-ia
muito grato se fizesse o obséquio de o ouvir.
- Tenho feito algumas operações financeiras para Mrs Jordan e tenho a honra, a imensa honra, de ter sido apresentado ao duque de Clarence - começou Mr Ellis, procurando
impressionar o seu interlocutor. - Conhece-o por acaso?
- Sim, conheço - retorquiu Jack, que fora companheiro de tripulação daquele membro da casa de Hanover, uma criatura singularmente despida de atractivos, para além
de irascível, insensível e arrogante.
- Tomei a liberdade de lhe falar do nosso Henry e disse-lhe que esperava que o nosso filho se tornasse oficial, e ele teve a amabilidade de nos aconselhar a mandá-lo
para a Marinha. A minha esposa e eu reflectimos maduramente no caso e concluímos que seria preferível um navio pequeno a um navio de linha, porque nos navios de
linha por vezes há muita mistura, não sei se me faço entender, e a minha esposa é uma criatura muito susceptível, muito niquenta. Sabe, é que ela descende dos Plantagenetas.
Além disso, alguns capitães desse tipo de navio exigem que os seus cadetes tenham uma dotação anual de cinquenta libras.
- Quanto a mim, Mr Ellis, insisto sempre que os meus guardas-marinhas tenham uma dotação mínima de cinquenta libras - disse Jack.
- Oh! - proferiu Mr Ellis, algo desanimado. - Oh! Mas atrever-me-ia a dizer que há muitas coisas que podem ser obtidas indirectamente. Não que esteja preocupado
com isso, nem pensar. Quando a guerra começou, todos nós, na City, enviámos uma mensagem a Sua Majestade, dizendo-lhe que o apoiaríamos com as nossas vidas e as
nossas fortunas. Cinquenta libras, ou mesmo mais, não têm qualquer importância para mim: o que é preciso é que o navio seja um navio distinto! Mrs Harte, amiga de
infância da minha esposa, falou-nos de si; bom, e além do mais o meu amigo é um perfeito Tory, exactamente como eu. Ah, e ontem vimos o tenente Dillon, que é sobrinho
de Lorde Kenmare, segundo creio, e que possui uma fortuna muito interessante. Enfim, pareceu-nos um verdadeiro cavalheiro. Assim sendo, e para abreviar este meu
longo discurso, se o capitão aceitasse o meu filho, creia que lhe ficaria extremamente agradecido. E permita-me que acrescente - prosseguiu
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Mr Ellis com uma embaraçosa jocosidade, em tudo contrária ao tom que efectivamente pretendia usar -, que, com a minha experiência e com o meu profundo conhecimento
do mercado de valores, o meu amigo não se arrependerá. Asseguro-lhe que o negócio será vantajoso para si! Ah, sim, sem dúvida! - e riu-se.
- Creio que deveríamos juntar-nos às senhoras - disse o capitão Harte, incapaz de esconder a vergonha que estava a sentir por causa daquele convidado.
- O melhor será que o seu filho navegue, digamos, cerca de um mês disse Jack, levantando-se. - Durante esse período, poderá ver se gosta da Marinha e se tem as aptidões
necessárias para a vida no mar; findo esse período, poderemos voltar a falar do assunto.
- Lamento tê-lo metido nisto - disse Jack, levando Stephen pelo braço e guiando-o na descida das escadas Pigtail, por cujas tórridas pedras disparavam lagartixas
verdes. - Nunca pensei que Molly Harte fosse capaz de oferecer um jantar tão horrível! O que é que lhe terá passado pela cabeça? Reparou naquele soldado?
- Aquele de escarlate e dourado, com botas?
- Esse mesmo. Um exemplo perfeito do que lhe estava a dizer, doutor Maturin. No exército há dois tipos de homens: aqueles que são extremamente amáveis e corteses,
como o meu querido tio, e aqueles que não passam de umas bestas consumadas, como é o caso daquele indivíduo. O exacto oposto do que sucede na Marinha. É um fenómeno
que conheço há muito tempo e confesso que ainda não consegui entendê-lo. Como podem conviver estes dois tipos de homens? Espero que não importune Mrs Harte. Ela
é por vezes tão franca e aberta, tão pouco desconfiada... enfim, temo que possam abusar da sua boa fé.
- Aquele homem, não me lembro do nome dele, o assessor financeiro, é um caso digno de estudo - disse Stephen.
- Ah, esse! - disse Jack sem o menor interesse. - Que se pode esperar de um homem que passa o dia sentado, pensando em dinheiro? Além do mais, é um tipo de pessoa
que não aguenta o vinho. O capitão Harte deve-lhe por certo muitos favores; caso contrário, não o convidaria.
- Oh, sem dúvida que é uma criatura obtusa, ignorante, superficial, enfim, um pateta insuportável que, para cúmulo, fala pelos cotovelos. No entanto, devo dizer-lhe
que o acho verdadeiramente fascinante. Ele é o puro burguês numa situação de efervescência social. Possui o fácies típico de quem padece de prisão de ventre e hemorróidas,
é cambaio e encurvado de ombros,
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tem pé chato, mau hálito, os olhos esbugalhados, e na sua atitude há uma mistura de resignação e vaidade; e com certeza que reparou naquela efeminada insistência
na autoridade e no castigo físico quando já estava completamente embriagado. Apostaria que sofre de uma impotência quase total: isso explicaria a incansável loquacidade
da esposa e o seu irreprimível desejo de se tornar notada, ridiculamente combinados com aqueles ademanes de rapariguinha; e explicaria também o cabelo ralo da senhora:
dentro de um ano, mais mês, menos mês, estará completamente calva.
- Nesse caso, talvez não fosse mau que toda a gente fosse impotente disse Jack num tom sombrio. - Evitar-se-iam muitos problemas.
- E depois de ver os pais, estou ansioso por ver o filho, o fruto de tão estranha e insípida união: será um daqueles malditos meninos mimados? Um ditadorzinho? Ou
será que a resistência da infância...?
- Atrevo-me a prever que será um perfeito exemplar do maçador típico; mas, pelo menos, quando regressarmos de Alexandria, já saberemos se será possível fazer alguma
coisa do rapaz. Assim, não teremos de o suportar durante o resto da missão.
- Disse Alexandria?
- Disse.
- No Baixo Egipto?
- Precisamente. Não lhe tinha dito? Antes do próximo cruzeiro, teremos de levar uma mensagem à esquadra de Sir Sidney Smith, que tem estado a vigiar os franceses,
não sei se sabe.
- Alexandria! - exclamou Stephen, parando a meio do cais. - Que maravilha! Não percebo como é que o meu amigo não desatou a gritar de alegria logo que soube da notícia!
Não há dúvida: o almirante é o mais indulgente dos homens, um verdadeiro chefe militar! Sinto uma enorme admiração por esse homem!
- bom, não é mais do que uma viagem de ida e volta pelo Mediterrâneo, cerca de seiscentas léguas para lá e para cá e com escassíssimas possibilidades de capturar
uma presa, tanto na ida como na volta.
- Nunca pensei que pudesse ser tão materialista! - exclamou Stephen.
- Que vergonha! Alexandria é um local histórico!
- Pois é - disse Jack, recuperando o seu bom humor e a sua alegria de viver, por obra e graça da contagiante satisfação de Stephen. - bom, e com alguma sorte, ainda
somos capazes de ver as montanhas de Creta. Mas vamos, doutor, temos de subir a bordo: se continuamos aqui parados, ainda nos atropelam.
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CAPÍTULO NOVE
Serei talvez ingrato ao queixar-me", escreveu Stephen, "mas quando penso que poderia ter caminhado pelos escaldantes desertos da Líbia, onde abundam (como nos conta
Goldsmith) serpentes de ruindade vária; que poderia ter pisado a costa de Canopo, visto os íbis e as miríades de aves pernaltas do lago Mareótis e, quem sabe, talvez
até o crocodilo; e que passámos como um remoinho pela costa norte de Creta, com o monte Ida todo o dia à vista; e que chegámos a estar a apenas meia hora de Citera
e que, apesar de todas as minhas súplicas, não quiseram parar o navio ou metê-lo de capa, como dizem os homens do mar; e quando penso nas maravilhas que se encontravam
a tão escassa distância da nossa rota - as Cíclades, o Peloponeso, a grandiosa Atenas - e que não foi permitido o mínimo desvio a essa rota, nem sequer por meio-dia
-, enfim, quando penso nisto tudo, tenho de fazer um esforço hercúleo para não desejar que a alma de Jack Aubrey vá para as profundas do Inferno. Em contrapartida,
porém, quando encaro estas notas, não como uma série de potencialidades incumpridas, mas como o registo de realizações positivas, não posso deixar de me sentir exultante
- e por um sem-número de razões! O mar de Homero (embora sem a terra de Homero); o pelicano; o grande tubarão branco que os marinheiros, tão amavelmente, fizeram
o favor de pescar; os holotúrias; a euspongia mollissima (a mesma com que Aquiles encheu o seu capacete, segundo I1 Poggio1); as gaivotas que não constam ainda dos
estudos taxionómicos; as tartarugas...! Além
1 Gian Francesco Poggio Bracciolini, dito II Poggio, humanista italiano que viveu em Florença entre 1380 e 1459, famoso por ter descoberto numerosas obras da Antiguidade
romana. (N. do T.)
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disso, estas semanas podem contar-se entre as mais tranquilas que passei em toda a minha vida; e poderiam contar-se entre as mais felizes se não me tivesse dado
conta de que J. A. e J. D. poderiam matar-se um ao outro, da forma mais civilizada que se conhece, na primeira escala que fizéssemos: pois, ao que parece, no mar
não pode haver duelos. J. A. está ainda profundamente magoado por causa de certos comentários a propósito do caso do Cacafuego
- pois crê que, em tais comentários, houve insinuações menos próprias acerca da sua coragem - e isso, para J. A. é algo de absolutamente insuportável: a recordação
desses momentos persegue-o a toda a hora. E J. D. embora agora esteja mais calmo, é uma criatura inteiramente imprevisível: no seu íntimo, encontro apenas raiva
contida e infelicidade, uma imensa nuvem negra que acabará por explodir - como, não sei. É como estar sentado em cima de um barril de pólvora numa forja em plena
actividade, com chispas saltando por todo o lado (as chispas, nesta minha imagem, seriam os motivos de ofensa)".
De facto, não fora essa tensão, essa nuvem passageira, e teria sido difícil imaginar uma forma mais agradável de passar os últimos dias de Verão. A corveta mostrava-se
agora muito mais rápida, pois Jack Aubrey dera-lhe as melhores condições de navegabilidade, reestivando o porão para lhe levantar a popa e devolvendo aos mastros
a inclinação que os construtores espanhóis haviam projectado. Além disso, os irmãos Esponja, com uma dúzia de nadadores do Sophie sob as suas ordens, tinham passado
os longos períodos de calma nas águas gregas (o seu elemento natural), limpando o casco da corveta; e Stephen nunca se esqueceria de um cálido crepúsculo em que
se dedicara exclusivamente à contemplação do mar; a superfície da imensa massa parecia um espelho imperturbável e, no entanto, o Sophie recebia vento bastante nos
joanetes, deixando nas águas um infindável e sussurrante sulco, uma linha que brilhava com uma fosforescência que não era deste mundo, uma cauda que se estendia
por um quarto de milha. Dias e noites de uma pureza inacreditável. Noites em que a estável brisa jónica enchia a vela mestra redonda - e os quartos sucediam-se sem
que fosse preciso tocar num único braço - e em que ele e Jack permaneciam na coberta tocando horas sem fim, entregues à música, esquecidos do mundo, até que as gotas
de orvalho desafinavam as cordas. E dias em que a perfeição do amanhecer era tão extrema e a solidão tão imensa que os homens quase tinham medo de falar.
Uma viagem cujos objectivos haviam perdido toda a importância - unicamente a viagem pela viagem. E, de um ponto de vista meramente operacional, a corveta encontrava-se
agora bem apetrechada de homens, já que toda a
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tripulação que acompanhara as presas estava de novo a bordo: o trabalho não era muito; a pressa, apenas a necessária; dia após dia, sempre a mesma rotina; dia após
dia, os mesmos exercícios com os canhões, sempre com o mesmo fito, reduzir o tempo de disparo, segundo a segundo, até ao dia em que, a 16º31' E, o quarto de bombordo conseguiu disparar três surriadas em cinco minutos exactos. E, acima de tudo, o tempo absolutamente magnífico e (exceptuando uma semana de calmaria absoluta, no extremo leste do Mediterrâneo, pouco depois de se terem despedido da esquadra de Sir Sidney) os ventos favoráveis: de tal modo que, quando
começou a soprar um levante moderado, no preciso momento em que a crónica escassez de água os obrigou a dirigirem-se à ilha de Malta, Jack comentou, preocupado:
- Isto é demasiado bom para que dure. Algum preço teremos de pagar por esta bem-aventurança.
Jack Aubrey estava especialmente interessado em fazer uma viagem rápida, uma viagem extraordinariamente rápida - ou seja, uma viagem capaz de convencer Lorde Keith
de que ele era um homem digno de toda a confiança e que tinha por único objectivo o escrupuloso cumprimento do dever; na sua vida de adulto, nunca ouvira nada que
lhe tivesse provocado um tão grande desalento (após larga reflexão) como as observações de Lorde Keith a propósito de uma eventual promoção. Lorde Keith dissera
o que dissera para seu bem; e não poderia ter sido mais convincente: de tal modo que as suas palavras haviam ficado gravadas na mente de Jack Aubrey.
- Pergunto-me se se justificará tanta preocupação por causa de um simples título, um título que roça a pura bizantinice - observou Stephen.
- No fim de contas, já lhe chamam capitão Aubrey; e, se for promovido, continuarão a chamar-lhe capitão Aubrey; porque, tanto quanto sei, ninguém diz "capitão2 fulano
de tal do navio tal". Ou será que o meu amigo sente uma caprichosa atracção pela simetria, um anseio irreprimível de usar duas dragonas?
- Esse anseio ocupa, de facto, um importante lugar no meu coração, mesmo ao lado do desejo de ganhar mais dezoito pence por dia. Mas permita-me que sublinhe, meu
caro doutor, que está completamente equivocado. Actualmente, chamam-me capitão unicamente por uma questão de cortesia, ou seja, dependo da cortesia de uma série
de criaturas insignificantes, exactamente
2 Mais precisamente, post-captain, comandante de um navio de vinte ou mais peças (o que não sucedia ainda com Jack Aubrey, cujo navio possuía apenas catorze canhões).
(N. do T.)
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como os cirurgiões, a quem chamam doutores unicamente por cortesia. Gostaria o meu amigo que um qualquer brutamontes intratável lhe chamasse Mr Maturin a partir
do momento em que decidisse esquecer-se das cortesias? Ao passo que, sendo promovido, tornar-me-ei capitão por direito; mas, mesmo assim, limitar-me-ia a mudar a
dragona de um ombro para o outro. Só teria direito a usar duas dragonas três anos depois da minha nomeação. Não. A razão por que qualquer oficial de Marinha (no
seu juízo perfeito, é claro) deseja ardentemente ser nomeado comandante de um navio de vinte ou mais peças é só uma: a partir do momento em que se passa para o outro
lado da barreira, tudo é possível! Ou seja, a partir desse momento, só é preciso fazer uma coisa para se chegar, no seu devido tempo, a almirante. E essa coisa,
meu caro amigo, é estar vivo!
- E é esse o acúmen da felicidade humana?
- Claro que é - disse Jack, olhando fixamente o doutor. - Não lhe parece evidente?
- Oh, sim, claro.
- A partir do momento em que se dá esse salto - disse Jack, sorrindo face a tão radiosa perspectiva -, começa-se a subir na lista, quer se tenha um navio quer não,
tudo dependendo da antiguidade, na mais perfeita das ordens: - rear-admiral of the blue, rear-admiral of the white, rear-admiral of the red, vice-admiral of the blue e assim sucessivamente, sempre a subir... Não contam os méritos, não há selecção nenhuma. É isso que eu quero. Até chegar a esse ponto, tudo depende de interesses,
da sorte ou da aprovação dos superiores, que na sua maioria são uma súcia de velhos, tão niquentos como adelaides. Temos de tratá-los com o maior servilismo: "Sim,
meu capitão", "Não, meu capitão", "com sua permissão, meu capitão", "Um seu humilde criado, meu capitão"... Não sente um odor magnífico, doutor? Carneiro assado!
Janta comigo, não janta? Convidei o oficial e o guarda-marinha deste quarto.
O oficial em questão chamava-se Dillon e o guarda-marinha era o jovem Ellis. Jack determinara muito rapidamente que não deveria haver no navio nenhuma fractura evidente,
que toda a hostilidade e esse incivilizado e doentio sentimento deveriam ser sufocados - e, uma vez por semana, convidava o oficial (e por vezes o guarda-marinha)
do quarto da manhã, fosse ele quem
3 Rear-admiral: contra-almirante, cargo imediatamente anterior a vice-admiral, vice-almirante. (N. do T.)
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fosse; e, uma vez por semana, em troca, os oficiais convidavam-no a jantar na sua câmara. Dillon aceitara tacitamente esta ordenação das coisas e, à superfície,
havia entre os dois uma civilidade inexcedível - um estado de coisas que, na vida de todos os dias, era muito ajudado pela presença invariável de outras pessoas.
Naquela ocasião particular, Henry Ellis era uma dessas presenças protectoras. Revelara-se um rapaz normal, mais agradável do que se esperava: notavelmente tímido
e reservado, de início, quase um bobo na corte de Babbington e Ricketts; agora, porém, já integrado, mostrava alguma propensão para falar pelos cotovelos. Mas não
na mesa do capitão: estava mudo e rígido, com os cotovelos colados ao torso e as pontas dos dedos e as orelhas resplandecentes de limpeza, e devorava, como um lobo,
bocados enormes de carneiro que engolia inteiros. Jack sempre gostara dos jovens e, ainda que não gostasse, sentia que um convidado merecia ser tratado com a máxima
consideração; daí que, após ter convidado Ellis a beber um copo de vinho, virou-se para ele com um sorriso afável e disse-lhe:
- Vocês estavam a recitar uns versos esta manhã, na gávea do traquete... Uns versos excelentes, em minha opinião. Eram de Mr Mowett? Mr Mowett compõe uns bonitos
poemas. - E assim era, de facto. O seu poema sobre o envergamento da nova vela mestra redonda suscitou a admiração de todo o navio: contudo, a meio de uma descrição
geral do Sophie, a sua inspiração revelara-se algo perversa, do que resultara uma passagem particularmente infeliz:
Branca como as nuvens sob o fulgor do sol A sua quilha,4 brilha nas translúcidas águas.
Acontece que este dístico destruíra por completo a sua autoridade poética junto dos cadetes; e era precisamente este dístico que os outros tinham estado a recitar
na gávea do traquete, unicamente porque queriam picá-lo ainda mais.
- Por favor, Mr Ellis, recite-nos aqueles versos... - pediu Jack. - Estou certo de que o doutor gostará de os ouvir.
- Ah, sim, Mr Ellis! Recite-os, por favor - disse Stephen.
4 No original, bottom; Mowett estaria a pensar na quilha do navio; contudo, a palavra bottom também significa "traseiro" ou "nádegas"; daí o ridículo a que o poeta
se expôs. O trocadilho dificilmente encontraria equivalente em português. (N. do T.)
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O infortunado rapaz enfiou um grande bocado de carneiro a um canto da boca, pôs-se muito pálido e, socorrendo-se das poucas forças que ainda lhe restavam, retorquiu:
- Sim, meu capitão - fixou os olhos nas janelas de popa e começou: Branca como as nuvens sob o fulgor do sol... - e logo se deteve. "Oh, meu Deus, não me abandones!",
disse para si mesmo. - Branca como as nuvens sob o fulgor do sol A sua... - A voz tremeu-lhe, esvaiu-se e reviveu tão débil como uma aparição desesperada, explodindo
num guincho: - A sua quilha
- mas ficou-se por aí.
- Um verso belíssimo! - exclamou Jack após uma pausa muito breve.
- E, além disso, muito edificante. Doutor Maturin, um copo de vinho?
Mowett apareceu nesse preciso instante, como um espectro um tanto ou quanto atrasado para a sua deixa, e disse:
- Desculpe interrompê-lo, meu capitão, mas há um navio com as gáveas içadas três graus a estibordo.
Ao longo daquela maravilhosa viagem quase não tinham visto nenhuma embarcação, exceptuando uns quantos veleiros pequenos em águas gregas, e um navio de transporte
que seguia da Sicília para Malta; por isso, quando o desconhecido finalmente se aproximou o suficiente para que pudessem ver os seus joanetes e um nada das velas
mestras, todos o miraram fixamente, com uma intensidade inusitada. O Sophie havia passado o canal da Sicília naquela manhã e rumava a oés-noroeste, tendo o Cabo
de Teulada, na Sardenha, a vinte e três léguas norte quarta a leste, um vento moderado a nordeste, e apenas cerca de duzentas e cinquenta milhas de mar até Mahón.
O desconhecido parecia rumar a oés-sudoeste ou talvez a sul - como se se dirigisse para Gibraltar ou Oran - e estava situado a noroeste quarta a norte da corveta.
Estes rumos, a persistirem, conduziriam a uma intersecção; naquele momento, porém, ninguém poderia adivinhar qual deles cruzaria o sulco do outro.
Alguém que observasse a cena de fora teria visto o Sophie adernar ligeiramente depois de a tripulação se ter agrupado no costado de estibordo; teria notado que,
no castelo de popa, a excitação das conversas rapidamente redundara em silêncio; e teria sorrido ao ver dois terços da tripulação e todos os oficiais franzindo os
lábios no instante em que o longínquo navio largou os joanetes. Isto significava que o desconhecido só poderia ser um navio de guerra; e, além disso, uma fragata
ou um navio de linha. Contudo, os joanetes não tinham sido ferrados com a habilidade e destreza próprias dos bons
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marinheiros - e muito menos com a habilidade e a destreza características da Armada Real Inglesa.
- Faça o sinal secreto, Mr Pullings. Mr Marshall, comece a afastar-se. Mr Day, prepare o canhão.
A bandeira vermelha subiu pelo mastro de proa, formando de início uma grande bola; ao chegar lá acima, porém, desfraldou-se bruscamente, começando a ondear, enquanto
a bandeira branca e a flâmula flutuavam no mastro principal e um tiro de aviso era disparado para barlavento.
- Bandeira azul, meu capitão - anunciou Pullings, colado ao seu óculo de longo alcance. - Flâmula vermelha no mastro principal. Bandeira de partida no mastro de
proa.
- Aos braços! - ordenou Jack Aubrey. - Sudoeste quarta a sul, meio sul - disse ele para o homem que estava ao leme, pois aquele sinal fora a resposta de seis meses
antes. - Largar os sobrejoanetes, as varredouras inferiores e as varredouras da gávea. Mr Dillon, investigue e diga-me a sua opinião.
James Dillon subiu aos vaus reais e orientou o óculo na direcção do distante navio: quando o Sophie mudou de rumo, cabeceando por entre as compridas ondas que vinham
de sul, James compensou aquela mudança de posição, movendo como um pêndulo o braço que tinha livre e focando o desconhecido através do óculo. O brilho do canhão
de bronze da proa, ampliado pelo sol da tarde, fê-lo pestanejar. Não havia dúvida: era uma fragata; não conseguia contar as portinholas dos canhões, mas era sem
dúvida uma fragata muito potente. E elegante. Os seus tripulantes estavam também a içar as varredouras inferiores; e tinham dificuldade em manobrar um botaló.
- Meu capitão - disse o guarda-marinha logo que desceu do cesto da gávea maior acompanhado por um marinheiro -, aqui o Andrews acha que é o Dédaigneuse.
- Veja de novo com o meu óculo - disse Dillon passando o seu óculo, o melhor que havia a bordo, a Andrews.
- Sim. E o Dédaigneuse - disse o marinheiro, um homem de meia-idade que cobria o seu bronzeado torso unicamente com um colete vermelho sujo de gordura. - Repare
na curva da proa, meu capitão, é uma proa moderna. Eu fui prisioneiro do Dédaigneuse durante mais de três semanas: era tripulante de um navio carvoeiro que foi apresado
por eles.
- Quantos canhões tem?
- Vinte e seis canhões de dezoito na coberta superior, meu capitão, oito de dezoito no castelo de popa e no castelo de proa e um de bronze de doze na proa. Eles
obrigavam-me a polir o canhão de bronze.
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- É uma fragata, meu capitão, não há dúvida - informou James. E Andrews, do cesto da gávea maior, um homem sensato, diz que é o Dédaigneuse. Foi prisioneiro naquele
navio.
- bom - disse Jack, sorrindo -, é uma sorte que os dias estejam a encurtar. - com efeito, faltavam cerca de quatro horas para que o sol se pusesse; o crepúsculo
não durava muito naquelas latitudes; e, além disso, havia lua nova. Para alcançar o Sophie, o Dédaigneuse teria de navegar a uma velocidade quase dois nós superior
à deles, mas Jack não acreditava que conseguisse fazê-lo: o Dédaigneuse estava muito bem armado, mas não era um navegador famoso como o Astrée ou o Pomone. No entanto,
concentrou-se numa única coisa: conseguir que a sua querida corveta alcançasse quanto antes a sua velocidade máxima. Era possível que não conseguisse escapulir-se
durante a noite. Nas índias Ocidentais participara numa perseguição ao longo de mais de duzentas milhas e que durara trinta e duas horas, e cada jarda percorrida
era extremamente importante. O vento soprava agora quase pela alheta de bombordo do Sophie, não muito longe do ponto onde seria mais favorável, e a velocidade da
corveta passava já os sete nós; a tripulação, numerosa e muito bem preparada, largara tão agilmente os sobrejoanetes e as varredouras que no primeiro quarto de hora
a corveta parecera ganhar vantagem relativamente à fragata.
"Seria bom que as coisas continuassem assim", pensou Jack, olhando de relance para o sol através da muito fina e gasta lona da gávea. As prodigiosas chuvas de Primavera
no Mediterrâneo Ocidental, o sol grego e os ventos fortes haviam eliminado os acabamentos do construtor até à última partícula e o seio da vela e os rizos mostravam-se
débeis e frouxos: não havia problema quando navegavam com o vento pela popa, mas, se tivessem de dar bordadas quando a fragata se aproximasse, o aparelho ficaria
destroçado - e nunca tinham estado tão perto disso.
Ao contrário do que Jack desejava, as coisas não continuaram como estavam. Quando o casco da fragata sentiu a pressão das velas que haviam sido desfraldadas lentamente,
o Dédaigneuse tratou de recuperar o tempo perdido e lançou-se na perseguição do Sophie. De início foi difícil chegar a tal conclusão - longínquos relâmpagos incendiaram
o horizonte e assomou nos céus uma escura sombra; contudo, passados três quartos de hora, o seu casco era já bem visível do castelo de popa do Sophie; e Jack ordenou
que largassem a antiquada gávea da cevadeira, afastando-se mais meio grau.
Na grinalda, Mowett explicava a Stephen a natureza da vela que acabavam de largar no Sophie; era uma vela presa com um vergueiro na ponta do botaló
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e tinha uma argola de ferro, obviamente uma raridade num navio de guerra; e Jack permanecia junto ao último canhão de popa da bateria de estibordo, com os olhos
fixos na fragata, procurando não perder nenhum dos movimentos a bordo desta, concentrado no cálculo dos riscos que correriam ao largar as varredouras do joanete
com aquele vento cada vez mais intenso; nesse instante ouviu-se um rumor confuso à proa e o grito de "Homem ao mar!". Um segundo depois, Jack viu passar Henry Ellis,
arrastado pela suave e ondulante corrente, com uma expressão de assombro e fazendo um esforço extremo para manter a cabeça fora de água. Mowett atirou-lhe a corda
de uma talha. Henry ergueu os dois braços e tentou agarrar a corda: contudo, a cabeça do pobre rapaz ficou submersa num ápice e as suas mãos não conseguiram alcançar
a preciosa corda. Um segundo depois, ficava para trás, no sulco do navio, agitando freneticamente os braços.
Todos os rostos se viraram para o comandante do navio. A expressão de Jack Aubrey não poderia ser mais grave. Os seus olhos corriam da fragata para o rapaz e do
rapaz para a fragata, que se acercava do Sophie, navegando a oito nós. Em dez minutos, perderiam uma milha ou mais: quando o navio se pusesse à capa, as varredouras
poderiam ser destroçadas e perderiam um tempo sem fim para ganhar de novo velocidade. Noventa homens estavam em perigo. Estas considerações e muitas outras - incluindo
a percepção da extrema intensidade dos olhos que o fitavam, a recordação da detestável natureza dos pais do rapaz, o estatuto de Ellis, na prática uma espécie de
convidado, para além de protegido de Molly Harte - voaram pela sua mente antes que a sua respiração, por momentos opressa, retomasse o seu curso normal.
- Escaler! - ordenou Jack com uma voz áspera. - Todos preparados! Mr Marshall, faça parar o navio!
O Sophie virou rapidamente, colocando-se contra o vento: o escaler saltou num ápice para a água. Não foi necessário dar muitas ordens. A tripulação, quase sem dizer
palavra, mudou a orientação das vergas e reduziu pano, fazendo passar rapidamente pelos polés adriças, brióis e rizes; e Jack, apesar da raiva extrema e do imenso
desalento que sentia, não deixou de admirar a serena competência dos seus homens.
O escaler arrastava-se dificilmente, procurando atravessar de novo a curva da esteira do Sophie: lentamente, muito lentamente. Os homens que seguiam no escaler espreitavam
de ambos os lados da embarcação, com o bicheiro enfiado na água, movendo-o sempre. Uma busca interminável. Agora, por fim, tinham virado; faltava-lhes fazer apenas
um quarto do caminho
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de volta; e, através do seu óculo, Jack pôde ver todos os remadores caindo violentamente para o fundo do escaler: o remador de popa remara com tanta força que o
seu remo se partira, atirando com ele para trás.
- Jesus, Maria... - murmurou James Dillon, que estava ao lado de Jack. O Sophie começava já a mover-se quando o escaler chegou junto dele.
O jovem afogado foi imediatamente subido a bordo.
- Está morto - disseram os homens.
- Desfraldar as velas - ordenou Jack. De novo se sucederam as silenciosas manobras com admirável rapidez. Demasiada rapidez. O Sophie não estava ainda no seu rumo,
não alcançara ainda sequer metade da velocidade que tinha anteriormente, quando se ouviu um horrível rangido: a verga do joanete de proa cedera ao nível dos estropos.
Agora as ordens não poderiam ser mais rápidas: ao erguer os olhos do corpo encharcado de Ellis, Stephen viu Jack dando ordens a Dillon, usando termos técnicos que
o doutor não podia entender; Dillon, usando a trombeta, transmitiu-as ao contramestre e aos gajeiros de proa, que se apressaram a subir ao alto da enxárcia; Stephen
viu ainda Jack dar um outro conjunto de instruções ao carpinteiro e aos seus ajudantes, a calcular as mudanças ocorridas ao nível das forças que actuavam na corveta,
e dar indicações ao timoneiro para que seguisse um rumo apropriado. Por cima do ombro, Jack fitou por um momento a fragata e depois olhou para baixo, para o corpo
aparentemente inanimado de Ellis, com uns olhos expectantes, penetrantes.
- Poderá fazer alguma coisa por ele, doutor? Precisa de ajuda?
- O coração parou - disse Stephen. - Mas gostaria de tentar... É possível içá-lo pelos pés na coberta? Lá em baixo não há espaço...
- Shannahan! Thomas! Dêem uma ajuda! Usem a talha e esse mialhar. Façam o que o doutor lhes ordenar. Mr Lamb, essa reparação...
Stephen mandou Cheslin buscar lancetas, charutos, o fole da cozinha; e quando o corpo inerte de Henry Ellis ficou suspenso sobre a coberta, fê-lo baloiçar duas ou
três vezes com a cara para baixo e a língua de fora, conseguindo assim esvaziar alguma da água que o infeliz engolira.
- Mantenham-no assim - disse Stephen, e picou-o com uma lanceta por detrás das orelhas. - Mr Ricketts, faça-me um favor: acenda-me esse charuto. - Os tripulantes
do Sophie que não estavam ocupados a reparar a verga, nem a envergar de novo a vela e a guindá-la, nem a orientar constantemente as velas, nem a lançar furtivos
olhares para a fragata, tiveram o imenso prazer de acompanhar o que o doutor Stephen Maturin estava a fazer. com o fumo do charuto, Stephen encheu o fole e meteu
a ponta deste numa das
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narinas do paciente, enquanto o seu ajudante lhe fechava a boca e a outra narina. Então, insuflou o fumo acre nos pulmões de Ellis e, ao mesmo tempo, fez baloiçar
o seu corpo de tal modo que o ventre ora fazia pressão sobre o diafragma, ora deixava de fazê-la. Arfadas, engasgadelas, uma vigorosa aplicação do fole, mais fumo,
arfadas mais regulares, e, por fim, o jovem desatou a tossir. - Já podem baixá-lo - disse Stephen aos fascinados marinheiros. Não há dúvida: este rapaz nasceu para
ser pendurado.
A fragata percorrera entretanto uma grande distância e agora já era possível contar as portinholas dos seus canhões sem recorrer ao óculo. Era uma fragata poderosa
- cada uma das suas baterias podia lançar um total de trezentas libras de metal, contra as vinte e oito do Sophie -, mas levava muita carga e, mesmo com aquele vento
moderado, tinha dificuldade em avançar. Parecia fazer um grande esforço para navegar por entre as ondas que rebentavam regularmente sob a sua proa, salpicando a
coberta. Contudo, continuava a acercar-se do Sophie - isso era evidente. "Mas", disse Jack para si mesmo, "aposto que, com a tripulação que tem, arriará os sobrejoanetes
antes que escureça". Devido ao seu minucioso exame do modo de navegar do Dédaigneuse, Jack Aubrey estava convencido de que muitos dos seus marinheiros eram inexperientes;
era mesmo possível que todos os tripulantes fossem novatos - isso não era invulgar nos navios franceses. "Mas também é possível que tente disparar antes disso".
Jack ergueu os olhos para o sol. O astro-rei estava ainda muito longe do horizonte. E depois de ter dado cem voltas desde a grinalda ao canhão e vice-versa, verificou
que o sol ainda continuava muito longe da linha do horizonte
- exactamente no mesmo lugar, brilhando com estúpida vivacidade entre a esteira arqueada da gávea e a verga, enquanto a fragata continuava a acercar-se do Sophie
de uma forma muito clara.
Entretanto, a rotina diária da corveta prosseguia de um modo quase mecânico. Foi dada voz de rancho no início do quarto das quatro às seis; e, duas badaladas depois,
quando Mowett puxou a barquilha, James Dillon perguntou:
- Chamo todos os homens aos seus postos, meu capitão? - Dillon estava um tanto indeciso, pois não sabia quais eram as intenções de Jack. Enquanto falava com Jack,
Dillon não deixava de espreitar o Dédaigneuse, que se aproximava com uma impressionante exibição de velas, esplendorosas sob o sol ainda forte, e com aquela espécie
de bigode branco na proa, que o fazia parecer ainda mais veloz do que realmente era.
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- Ah, sim, claro, claro! Vejamos primeiro o resultado da medição de Mr Mowett. Depois, chame todos os homens aos seus postos, Mr Dillon.
- Sete nós e quatro braças - disse Mowett ao primeiro-oficial, que se virou e levou a mão ao chapéu para comunicar o resultado ao capitão.
Ouviu-se o rufar do tambor e o estrondo amortecido dos pés descalços dos homens na coberta; todos ocuparam os seus postos num ápice; depois deu-se início ao longo
processo de atar bonetes às gáveas e aos joanetes; de colocar brandais adicionais nos topos dos mastaréus dos joanetes (pois Jack estava decidido a largar mais vela
durante a noite); e centenas de pequenas mudanças na tensão, orientação e envergadura das velas - e tudo isto levava o seu tempo; no entanto, o sol continuava a
brilhar, e o Dédaigneuse continuava a ganhar terreno. A fragata levava demasiado velame desfraldado na parte superior da enxárcia e na popa: porém, a bordo daquele
navio, tudo parecia ser de aço; de facto, o Dédaigneuse não tivera ainda nenhum percalço com o aparelho, nem virara em roda (e era nessa eventualidade que Jack depositava
as suas maiores esperanças), apesar de, no quarto das seis às oito, ter dado algumas guinadas bruscas que deviam ter causado calafrios ao seu comandante.
- Por que é que ele não orienta a vela mestra para barlavento, de forma a que a fragata não suporte tanta pressão? - perguntou-se Jack. - Só pensa na velocidade,
é claro. É muito pragmático, aquele sacana...
A bordo do Sophie, fizera-se tudo o que se podia fazer. As duas embarcações, silenciosas, navegavam a grande velocidade pelas cálidas águas sob o sol da tarde; e
a fragata continuava a ganhar a corrida, aproximando-se a um ritmo constante.
- Mr Mowett - chamou Jack ao terminar mais um dos seus passeios. Mowett separou-se do grupo de oficiais que, no costado de bombordo do castelo de popa, seguiam atentos
os movimentos do Dédaigneuse. Mr Mowett... - disse Jack, e logo fez uma pausa. Do interior do navio, meio-apagados pelo vento que soprava pela alheta e pelo ranger
do aparelho, chegavam fragmentos de uma suite para violoncelo. O jovem guarda-marinha fitou o capitão com um ar atento, pronto a executar as suas ordens, e, por
deferência, inclinou o seu corpo magro e esguio, e assim se manteve por uns instantes, procurando adaptar-se - continuamente, inconscientemente - ao rápido e serpenteante
movimento do navio. - Mr Mowett, gostaria muito que me recitasse o poema que dedicou à nova vela mestra - disse Jack. - Sou um apaixonado da poesia - acrescentou,
sorrindo, ao ver a expressão de
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circunspecto desalento de Mowett, resultante da sua tendência para negar tudo o que fazia.
- bom, meu capitão - disse Mowett, indeciso, num tom baixo, afável; tossicou e, num tom completamente diferente, muito formal, anunciou: A Nova Veia Mestra -, e
lançou-se na recitação do poema:
A vela mestra, pelas rajadas rasgada, Como uma flâmula é desenvergada: com rizes fixada, outra é preparada; Içam-na e, sob a verga, é desfraldada. Até aos lais o
cabo em breve vai chegar E logo as empuniduras há que ajustar. Depressa os braços é preciso brandear, Depressa um punho de amura há que arrastar: A candeliça de
sotavento é baixada E as escotas, por fim, são ajustadas.
- Excelente! Magnífico! - exclamou Jack Aubrey dando palmadinhas no ombro do guarda-marinha. - Palavra de honra, Mr Mowett: esse poema merece ser publicado no Gentlemans
Magazine! Mas recite-me outros versos, Mr Mowett, ficar-lhe-ia muito grato.
Mowett, acanhado, baixou os olhos; depois recobrou ânimo e recomeçou: Poema Ocasional - anunciou, e logo deu a conhecer a sua obra:
Ah! Se eu tivesse de Marot a excelsa arte1 De despertar nos corações o sentimento, Celebraria por certo em toda a parte O assombroso horror da costa a sotavento.
- Ah, sim, a costa a sotavento - murmurou Jack, assentindo com a cabeça; nesse preciso momento ouviu-se o primeiro canhonaço da fragata. O ruído surdo do canhão
de proa do Dédaigneuse foi pontuando o poema de
5 Referência a Clément Marot, poeta francês do século XVI, introdutor em França das formas poéticas do Renascimento. (N. do T.)
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Mowett ao longo de cento e vinte versos; no entanto, não se viu cair nenhuma bala até ao momento em que a borda inferior do sol tocou o horizonte; então, uma bala
de doze libras passou a vinte jardas do costado de estibordo da corveta no instante preciso em que Mowett estava a chegar ao infortunado dístico:
Sob o terror de uma esperada morte Os homens só podem chorar a sua sorte
O guarda-marinha sentiu-se na obrigação de fazer uma pausa para explicar que, "obviamente, aqueles homens não passavam de marinheiros da Marinha Mercante".
- Ah, sim, claro, esse pormenor é muito importante - disse Jack.
- Mas receio ter de o interromper agora, Mr Mowett. Diga ao tesoureiro que precisamos de três barris dos maiores e encarregue-se de os levar para o castelo de proa.
Mr Dillon, Mr Dillon! Vamos construir uma balsa e colocar nela uma lanterna de popa e três ou quatro lanternas mais pequenas; mas o trabalho tem de ser feito atrás
do traquete; é absolutamente necessário que não nos vejam.
Jack mandou acender a lanterna de popa um pouco antes do habitual e ele próprio foi até à cabina para ver se as janelas de popa estavam tão iluminadas como pretendia.
Quando o crepúsculo começou a adensar-se, também apareceram luzes a bordo do Dédaigneuse - e, pouco depois, desapareceram os sobrejoanetes. Agora, com os sobrejoanetes
ferrados, o Dédaigneuse era uma silhueta negra que se recortava contra o céu violeta; e o seu canhão de proa, aproximadamente de três em três minutos, lançava línguas
de fogo vermelho-alaranjadas, visíveis muito antes de o seu estrondo chegar à corveta.
Vénus ocultou-se pela amura de estibordo e, sem a sua presença, o firmamento ficou muito menos iluminado. Havia meia hora que a fragata não disparava: só era possível
calcular a sua posição graças às luzes; parecia manter-se à mesma distância - agora, era quase certo que não conseguiria encurtar a distância.
- Levem a balsa para a popa - disse Jack. O estranho artefacto desceu pelo costado, depois de ter chocado contra os botalós das varredouras e tudo o mais que estivesse
ao seu alcance; tinha uma lanterna de popa sobressalente pendurada num mastro da mesma altura que a grinalda do Sophie e quatro lanternas mais pequenas formando
uma fila. - Preciso de um marinheiro que seja muito ágil e habilidoso - disse Jack. - Lucock!
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- Meu capitão?
- Quero que desça à balsa e que acenda cada lanterna à medida que se apaguem a bordo as lanternas correspondentes.
- Sim, meu capitão. Acendo-as quando as de bordo se apagarem.
- Leve esta lanterna furta-fogo e ate uma corda à cintura.
Era uma operação difícil, com o mar agitado e a corveta arremessando tanta água à sua volta; e havia sempre a possibilidade de algum dos homens do Dédaigneuse pegar
no seu óculo e descobrir uma figura actuando de um modo muito estranho por detrás da popa do Sophie; mas agora já estava feito e Lucock passou por cima da grinalda
e dirigiu-se para o castelo de popa envolto em sombras.
- Muito bem - disse Jack num tom muito baixo. - Soltem a balsa.
A balsa afastou-se da popa e Jack sentiu o Sophie fazer um movimento brusco no momento em que se libertou da carga que arrastava. Era uma imitação muito razoável
das luzes da corveta, ainda que a balsa baloiçasse demasiado; e o contramestre tinha feito uma armação com um emaranhado de cordas velhas, a fim de imitar as janelas
do castelo de popa.
Jack fitou a balsa por um instante. Depois ordenou:
- Larguem as varredouras dos joanetes. - Os gajeiros subiram, desaparecendo na escuridão; na coberta, todos escutavam com extrema atenção, imóveis, trocando olhares
expectantes. O vento amainara um pouco, mas havia o problema da verga que cedera; e, fosse como fosse, o velame desfraldado exercia uma pressão tão grande...
As velas acabadas de desfraldar foram caçadas; os brandais adicionais foram retesados; o rumor da enxárcia aumentou um quarto de tom; o Sophie navegava agora mais
rapidamente. Os gajeiros reapareceram na coberta e juntaram-se aos seus atentos companheiros, olhando para trás de quando em quando, à procura das luzes cada vez
mais longínquas. Não se desprendeu nada no aparelho; a pressão diminuiu um pouco; e, de súbito, todos se viraram para o Dédaigneuse, já que a fragata começara a
disparar de novo. A fragata disparou vezes sem conta; e os tripulantes do Sophie puderam ver o costado da fragata intensamente iluminado, pois o Dédaigneuse dera
uma guinada para disparar uma surriada na direcção da balsa - uma visão magnífica, de facto, uma extensa linha de fulgurantes clarões, acompanhados de um assombroso
estrondo. Contudo, a balsa não sofreu qualquer dano e, na coberta do Sophie, os homens não conseguiam sufocar o riso. Surriada atrás de surriada, a fragata parecia
acometida de loucura. Por fim, as luzes da balsa apagaram-se, todas ao mesmo tempo.
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- Pensarão que nos afundámos? - perguntou-se Jack, fitando o costado da distante fragata. - Ou terão descoberto o engano? Terão parado? Seja como for, estou certo
de que não pensarão que levaremos a nossa avante.
Uma coisa era dizer que estava certo; e outra, muito diversa, era estar verdadeiramente convencido disso; daí que Jack Aubrey tenha subido ao topo do mastro para
perscrutar o horizonte com o seu óculo de noite, num movimento regular que ia desde nor-noroeste até lés-nordeste; aí estava quando as Plêiades apareceram no céu;
e aí continuava quando o dia raiou, embora nesse momento já se pudesse concluir que, ou tinham deixado a fragata para trás, ou que esta, ao tentar persegui-los,
tomara um novo rumo, para leste ou oeste.
"Oés-noroeste é o rumo mais provável", pensou Jack Aubrey, semicerrando os olhos por causa do brilho intolerável do sol nascente, enquanto apoiava o óculo contra
o peito para o fechar. "Era o que eu teria feito". Desceu do topo com dificuldade, passando rigidamente por entre o aparelho, e dirigiu-se para a sua cabina caminhando
pesadamente. Mandou chamar o mestre para calcular a posição da corveta naquela altura e, com os olhos fechados, esperou que ele chegasse.
Deviam estar a cinco léguas do Cabo Bougaroun, na costa norte de África, pois tinham percorrido mais de cem milhas durante a perseguição, e muitas delas na direcção
errada.
- Teremos de orçar o mais possível, com o vento que houver - o vento amainara e morrera durante o quarto de modorrra -, mantendo-nos cochados tanto quanto pudermos.
Mesmo assim, podemos dizer adeus a uma travessia rápida. -Jack encostou-se para trás e fechou de novo os olhos; ainda pensou dizer ao mestre que, felizmente, a África
não se tinha movido para norte meio grau durante a noite; não chegou a dizê-lo, mas essa ideia fê-lo sorrir; e, com esse sorriso nos lábios, adormeceu profundamente.
Mr Marshall ofereceu algumas observações que não obtiveram resposta; contemplou Jack Aubrey por um momento e, depois, com infinita delicadeza, colocou-lhe os pés
sobre o baú e uma almofada sob a cabeça; por fim, enrolou as cartas náuticas e saiu da cabina pé ante pé.
Adeus a uma travessia rápida: quanto a isso não havia dúvida. O Sophie dirigia-se para nor-noroeste, e o vento, quando soprava, vinha precisamente de nor-noroeste.
Além disso, ao longo de vários dias não soprou vento nenhum; de tal forma que, para chegarem a Minorca, os homens viram-se obrigados a remar durante doze horas seguidas;
e atravessaram o grande
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porto com a língua de fora, pois nos últimos quatro dias tinham bebido apenas um quarto da ração de água.
Para cúmulo, a saída do porto também foi penosa; a lancha e o cúter rebocavam a corveta e os homens davam o seu melhor para movimentar os pesados remos, enquanto
o fedor das fábricas de curtumes os perseguia, espalhando-se implacável pelo ar parado.
- Que local tão deprimente! - observou Jack, desviando os olhos da ilha da quarentena.
- Acha que sim? - disse Stephen, que subira a bordo com umas calças novas, oferta de Mr Florey. - Quanto a mim, penso que tem os seus encantos.
- Mas isso é porque o doutor adora tudo o que seja sapo - retorquiu Jack. - Mr Watt, os homens estão a remar ou quê?
A sua mais recente decepção, ou talvez devesse dizer humilhação, radicava num caso insignificante, mas, mesmo assim, um verdadeiro vexame, um vexame singularmente
absurdo. Oferecera-se para levar Evans, da bombarda Aetna, no seu bote, embora tivesse de desviar-se do seu caminho e passar por entre os navios abastecedores e
de transporte que formavam o comboio de Malta; e Evans, olhando para a sua dragona com a insolência que o caracterizava, dissera:
- Onde comprou essa dragona, Jack?
- No Paunch.
- Ah, bem me parecia. No Paunch, as dragonas têm nove partes de bronze; quase não lhes põem ouro. Ao fim de pouco tempo começa a notar-se.
Inveja e maldade, claro. Jack ouvira já vários comentários desse género, todos eles provocados pelos mesmos lamentáveis motivos, mas nunca se mostrara grosseiro
com nenhum oficial que houvesse obtido um cruzeiro ou que tivesse sido premiado pela sorte no que respeitava a presas. Não que tivesse tido uma sorte excepcional
no que respeitava a presas - de facto, não tivera tanta sorte como os outros pensavam. Mr Williams recebera-o com uma expressão algo sombria: não fora possível confiscar
uma parte da carga do San Cario, pois tinha sido despachada por um comerciante grego de Ragusa que se encontrava sob protecção britânica; as despesas do julgamento
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no tribunal do Almirantado tinham sido muito elevadas; e, nas circunstâncias prevalecentes, quase não valia a pena enviar as presas mais pequenas. Por outro lado,
o chefe do estaleiro tinha feito uma cena infantil por causa da verga do joanete - uma simples vara, afinal, um simples objecto que, mais tarde ou mais cedo, sofreria
danos. E também por causa dos brandais. Mas, acima de tudo, Molly Harte não se dignara aparecer mais do que uma tarde, após o que partira, a fim de passar uns dias
com Lady Warren em Ciudadela: que estava comprometida há muito tempo, dissera. Jack Aubrey nunca pensara que aquela partida viesse a ter tanta importância para si
e que aquele abandono viesse a afectar tão profundamente a sua felicidade.
Uma série de decepções. Ficara contente com Mercy e com as histórias que ela tinha para lhe contar - mas não tinha mais nenhuma razão para se sentir contente. Lorde
Keith partira dois dias antes e comentara que era estranho que o capitão Aubrey não tivesse regressado no prazo fixado; e o capitão Harte não perdera tempo a informar
Jack do comentário de Lorde Keith. Os horrendos progenitores de Ellis não haviam abandonado ainda a ilha e Jack e Stephen tinham sido obrigados a suportar a sua
hospitalidade - fora a primeira vez na sua vida que Jack vira meia garrafa de vinho branco repartida por quatro. Decepções. Os próprios tripulantes do Sophie, que
haviam recebido um adiantamento do dinheiro das presas, tinham-se comportado mal, muito mal (mesmo segundo os padrões de comportamento do porto). Quatro estavam
presos por violação; outros quatro encontravam-se ainda nos bordéis quando o Sophie zarpou; outro tinha fracturado a clavícula e o punho. "Todos uns animais, todos
uns bêbedos", disse Jack para si mesmo, fitando, furioso, os seus tripulantes; de facto, muitos dos marinheiros que naquele momento moviam os remos, tinham um aspecto
verdadeiramente repugnante - imundos, com uma expressão esparvoada e com a barba por fazer; alguns traziam ainda a sua melhor roupa, a que usavam para descer a terra,
toda manchada e enlameada. Havia no ar um cheiro a fumo de muitos dias, a tabaco de mascar, a suor e a prostíbulo. "Não ligam nenhuma aos castigos. vou nomear aquele
negro mudo para ajudante do contramestre. King, chama-se King. E arranjarei um gradeamento como deve ser: pode ser que assim não se esqueçam dos seus deveres". Decepções.
Os rolos de lona número três e quatro, de excelente qualidade, que havia encomendado e pago com o seu dinheiro, não tinham sido entregues. Nas lojas, tinham-se esgotado
as cordas de violino. O pai enviara-lhe uma carta em que falava com veemência, quase com entusiasmo, das vantagens de voltar a casar, da grande conveniência de ter
uma mulher que se ocupasse do governo da casa, da
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importância que o casamento tinha para um homem, sob todos os pontos de vista, especialmente do ponto de vista da sociedade - enfim, a sociedade exigia que um homem
cumprisse certos requisitos. O estatuto social da mulher, dizia o general Aubrey, não tinha rigorosamente nenhuma importância; a partir do momento em que casava,
a mulher passava a pertencer à classe social do marido e uma só coisa importava: que a mulher tivesse um bom coração; e bons corações, Jack, e belíssimas mulheres,
existem em todo o lado: mesmo na cozinha de uma humilde casinha de camponeses; a diferença de idades - entre uma pessoa que ainda não tinha chegado aos sessenta
e quatro anos e outra de vinte e tal - tinha muito pouca importância. As palavras "um velho garanhão para uma jovem..." haviam sido riscadas e uma seta apontava
para "que se ocupasse do governo da casa"; na margem dizia: "Enfim, quer-me parecer que isso de governo de casa é muito parecido com o que faz um primeiro-oficial
da Marinha".
Jack Aubrey olhou para o seu primeiro-oficial, que estava a ensinar ao jovem Lucock como colocar o sextante para medir a altura do sol sobre o horizonte. Reparou
que todo o corpo de Lucock (de facto, o corpo e a alma), apesar de alguma contensão, revelava um intenso e profundo prazer, não só porque, graças às cuidadosas explicações
de Dillon, compreendia finalmente aquele mistério, mas também porque acabara de ser promovido; aquela visão tão agradável fez com que a disposição de Jack se alterasse
profundamente; nesse mesmo momento decidiu que virariam para sul e iriam até Ciudadela: queria ver Molly - haveria talvez algum mal-entendido, um daqueles mal-entendidos
idiotas que ele esclareceria imediatamente, Ah, e passariam juntos uma hora maravilhosa no jardim rodeado de altos muros que dava para a baía!
Por detrás do castelo de San Felipe, uma escura linha sobre o mar prenunciava uma brisa, provavelmente de oeste: atingiram essa linha ao fim de duas transpiradas
horas naquele calor que não parava de aumentar; subiram a lancha e o cúter e prepararam-se para se fazer à vela.
- Vamos rumar à ilha de Aire - disse Jack.
- Para sul, meu capitão? - perguntou o mestre, francamente surpreendido, pois virar para norte, contornando Minorca, era a forma mais directa de chegar a Barcelona,
e o vento era favorável.
- Precisamente - retorquiu Jack secamente.
- Sul quarta a oeste - disse o mestre para o timoneiro.
- Sul quarta a oeste - repetiu o timoneiro, e as velas de proa incharam rapidamente.
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Do mar alto vinha um vento muito vivo, um vento limpo e salgado, capaz de varrer toda a imundície. O Sophie adernou apenas um nada quando ganhou vida de novo; Jack
viu Stephen afastar-se da sua bomba de tronco de olmo e encaminhar-se para a popa; quando o médico passou por ele, não se conteve e disse-lhe:
- É uma maravilha estar de novo no mar! O doutor não se sente como um texugo enjaulado quando está em terra?
- Como um texugo enjaulado? - disse Stephen, pensando rapidamente nos texugos que tivera oportunidade de conhecer. - Não, não me sinto.
Conversaram despreocupadamente sobre temas vários - texugos, lontras, raposas - a caça à raposa -, certos casos de raposas que revelavam uma astúcia, uma perfídia,
uma resistência e uma memória verdadeiramente assombrosas. A caça ao veado, ao javali. E enquanto conversavam, a corveta ia-se acercando da costa minorquina.
- Lembro-me de uma vez que comi javali - disse Jack, que recuperara por completo o seu bom humor -, javali estufado. Foi a primeira vez que jantei consigo. E foi
o doutor que me disse que era javali, porque eu não sabia. Ah! Ah! Ah! Lembra-se desse javali?
- Sim. E lembro-me de que falámos também da língua catalã, o que me traz à memória algo que ando para lhe dizer desde ontem à tarde. James Dillon e eu fomos até
Ulla com a intenção de ver os monumentos pré-históricos da região - druídicos, sem dúvida - e a certa altura demos com dois camponeses que, separados por uma distância
razoável, gritaram um para o outro alguns comentários sobre as nossas pessoas. vou relatar-lhe essa conversa. Primeiro camponês: "Está a ver estes hereges que andam
para aqui a passear feitos pavões? O ruivo de certeza que é descendente de Judas Iscariotes!". Segundo camponês: "Sempre que aparecem ingleses, as ovelhas têm partos
prematuros ou abortam! São todos iguais! Havia de lhes dar uma caganeira que os levasse! Para onde é que eles vão? De onde é que eles vêm?". Primeiro camponês: "Vão
ver a navetah e a taula den Xart7 Vêm daquele navio de dois mastros que está defronte do armazém de Pep Ventura! Zarpam na terça-feira, ao alvorecer, para um cruzeiro
de seis semanas ao
6 Naveta: monumento megalítico característico das ilhas Baleares. Destinava-se a incinerações colectivas ou ossários. A sua disposição faz lembrar a forma de uma
nave rectangular ou trapezoidal. (N. do T.)
7 Taula: monumento megalítico característico das Baleares. É constituído por uma pedra vertical e outra horizontal, que formam um T. (N. do T.)
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largo da costa, de Castellón ao Cabo de Creus! Pagaram os porcos a quatro dólares a vintena! Concordo com o meu amigo: havia de lhes dar uma caganeira que os levasse!".
- O seu segundo camponês não primava pela originalidade - comentou Jack, acrescentando, num tom pensativo, interrogativo: - Não há dúvida, parece que eles não gostam
mesmo dos ingleses. E no entanto, nos últimos cem anos8 têm estado quase sempre sob a nossa protecção.
- É espantoso, não é? - disse Stephen Maturin. - Mas o que eu pretendia era sugerir que o nosso aparecimento em Maiorca talvez não resulte tão inesperado como o
meu amigo pensa. Existe um comércio contínuo de pescadores e contrabandistas entre esta ilha e Maiorca. Na mesa do governador espanhol não faltam os nossos lagostins
de Fornells, nem a nossa manteiga de Xambo, nem o nosso queijo de Mahón.
- Sim, eu percebi aonde queria chegar, e agradeço-lhe muito o cuidado
com que...
Uma forma obscura moveu-se de súbito na sombria escarpa que tinham a estibordo - uma forma imensa, de contornos pontiagudos, dotada de asas: sinistra como a morte.
Stephen deu um grunhido em tudo semelhante ao do porco, arrancou o óculo que Jack Aubrey tinha debaixo do braço, afastou o capitão do seu caminho, agachou-se junto
à amurada e apoiou sobre ela o óculo, examinando o seu alvo com extrema intensidade.
- Um abutre barbado! É um abutre barbado! - exclamou. - Uma cria de abutre barbado!
- bom - disse Jack imediatamente, sem um segundo de hesitação -, então deve ser porque se esqueceu de fazer a barba esta manhã! - O seu rosto vermelho enrugou-se,
os seus brilhantes olhos azuis quase deixaram de se ver; deu uma fortíssima palmada na coxa e curvou-se num tal paroxismo de júbilo e prazer que, apesar da rigorosa
disciplina do Sophie, o homem do leme não conseguiu resistir ao contágio e rompeu num estrangulado "Ho! Ho! Ho!", imediatamente reduzido ao silêncio pelo oficial
de derrota.
8 Mais precisamente, de 1713 a 1756 e de 1799 a 1802, períodos em que a ilha de Minorca foi inglesa. (N. do T.)
299
- Por vezes - disse James Dillon num tom confidencial - compreendo que sinta simpatia pelo seu amigo. Nunca conheci ninguém capaz de se divertir tanto com a mais
insignificante das piadas.
Aquele era o quarto do mestre; o tesoureiro estava à proa, fazendo contas com o contramestre; Jack estava na sua cabina, ainda extremamente bem-disposto, imaginando
um novo disfarce para o Sophie e deleitando-se (por antecipação) com o feliz encontro que teria nessa noite com Molly Harte. Ela ficaria tão surpreendida - e tão
contente - ao vê-lo em Ciudadela: seria o mais feliz dos encontros! Stephen e James estavam a jogar xadrez na câmara dos oficiais: o furioso ataque de James, baseado
no sacrifício de um cavalo, um bispo e dois peões, quase atingira o nível máximo de erro; e durante uma longa e tranquila pausa, Stephen estivera a pensar na melhor
maneira de evitar a derrota do amigo dentro de três ou quatro jogadas; qualquer processo serviria, desde que não deitasse o tabuleiro ao chão. Como James dava grande
importância àquelas coisas, decidiu ficar ali sentado até que o tambor chamasse todos os homens aos seus postos; e enquanto esperava, movia a rainha no ar de modo
pensativo, trauteando uma melodia.
- Parece que, infelizmente, há a possibilidade de um acordo de paz disse James, rompendo o silêncio. - Stephen franziu os lábios e cerrou um olho. Também ele ouvira
esse rumor em Mahón. - Espero, por isso, que tenhamos oportunidade de participar nalguma acção a sério antes que seja demasiado tarde. Tenho muita curiosidade em
saber como o doutor reagirá a uma tal ocorrência: a maior parte dos homens acha esse tipo de acção completamente diferente do que esperava. O mesmo se passa com
o amor: é uma enorme decepção e, no entanto, uma pessoa está sempre com vontade de recomeçar. É você a jogar, doutor.
- Eu sei, eu sei - retorquiu Stephen com alguma aspereza. Olhou de relance para James Dillon e ficou surpreendido com a expressão de profunda desolação que havia
naquele rosto. O tempo não fizera aquilo que Stephen esperava - muito longe disso. Não havia dúvida: o navio americano continuava no horizonte. - Mas acha mesmo
que não houve acção até agora?
- O quê? Aquelas escaramuças? Não, isso não foi nada. Eu estava a pensar num outro tipo de acção, a uma escala muito diferente, muito mais grandiosa.
300
- Não, Mr Watt - disse o tesoureiro, assinalando o último ponto do acordo privado segundo o qual ele e o contramestre ganhariam treze e meio por cento com uma série
de provisões que pertenciam por igual aos seus respectivos reinos -, o senhor poderá dizer o que quiser, mas este rapaz acabará por ser a perdição do Sophie; e,
pior ainda, conseguirá que sejamos todos feridos ou mortos ou que nos façam prisioneiros. E a mim não me apetece nada passar o resto dos meus dias numa prisão francesa
ou espanhola, e muito menos acorrentado a um remo numa galera argelina, suportando chuva e sol e sentado sobre os meus próprios excrementos. E também não quero que
o meu Charlie seja ferido. É por isso que vou mudar de navio. Esta é uma profissão que tem os seus riscos, admito; e estou disposto a correr esses riscos por ele.
Mas veja se me entende, Mr Watt: estou disposto a correr os riscos normais da profissão, e não estes riscos que todos temos corrido: loucuras como a daquela maldita
bateria, ou abeirarmo-nos da costa à noite como se fôssemos nós os senhores da terra, ou abastecermo-nos de água em qualquer sítio, só para continuar a navegar por
mais meia dúzia de dias, ou atacar tudo o que aparece, independentemente do tamanho ou do número. Sim, é verdade: todos nós pensamos na grande oportunidade, naquela
oportunidade que surge apenas uma vez na vida, quanto a isso estou de acordo; mas não devemos pensar apenas na grande oportunidade, Mr Watt.
- Tem toda a razão, Mr Ricketts - disse o contramestre. - E devo dizer-lhe que nunca gostei daqueles amantilhos cruzados. Mas está muito enganado quando diz que
ele só pensa na grande oportunidade. Repare-me naquela guindareza: não existe cabo de melhor qualidade. E os fios são uma maravilha - disse o contramestre enquanto
abria uma extremidade do cabo com o seu passador. - Veja, Mr Ricketts, veja. E por que é que os fios são uma maravilha? Porque estes cabos não vieram do estaleiro
do rei, só por isso: Mr Brown, tacanho e avarento como é, nunca viu cabos desta qualidade. O Louro comprou-os com dinheiro do seu bolso, Mr Ricketts, tal como a
lata de tinta onde você está sentado. - E teria acrescentado: "É para que veja, seu mesquinho de merda, seu cobardolas, seu filho de uma puta sifilítica!", mas era
um homem pacífico e em tudo avesso a conflitos, além de que o tambor começou a chamar todos os homens aos seus postos.
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- Chamem o meu timoneiro - disse Jack depois de o tambor ter tocado a recolher. A mensagem passou: o timoneiro, o timoneiro do capitão, depressa, mais depressa!
Que corra, deve haver problemas, vai ser crucificado! Ah!, ah!, ah! - e Barret Bonden apareceu. - Bonden, quero que os tripulantes do bote tenham um aspecto impecável:
limpos, bem barbeados, bem vestidos, com chapéus de palha, camisolões, faixas à cintura.
- Sim, meu capitão - disse Bonden, com um rosto inexpressivo e o coração transbordando de curiosidade. Bem barbeados? Bem vestidos? Numa terça-feira? Lavavam-se
às quintas-feiras e aos domingos, conforme as divisões: mas fazer a barba à terça-feira, no mar...?! Correu a avisar o barbeiro da corveta e quando metade da tripulação
do cúter estava já com a pele tão rosada e sedosa quanto a arte do barbeiro permitia, Bonden obteve uma resposta cabal às suas questões. Estavam a dobrar o Cabo
de Artrutr e, pela amura de estibordo, via-se já Ciudadela; porém, em vez de seguirem para noroeste, viraram na direcção da cidade e detiveram-se a quinze braças
de profundidade, com o velacho entalado, e a um quarto de milha do cais.
- Onde está Simmons? - perguntou James, passando revista rapidamente à tripulação do cúter.
- Simmons está doente - retorquiu Bonden. E acrescentou, com uma voz quase sumida: - Ele faz anos hoje, Mr Dillon.
James Dillon assentiu com a cabeça. Contudo, substituir Simmons por Davies não era uma medida muito acertada: embora Davies tivesse a mesma estatura que Simmons
e lhe servisse perfeitamente o chapéu de palha com o nome do navio bordado na fita, a verdade é que Davies era negro, tão negro como carvão, e não passaria despercebido.
Fosse como fosse, agora já não era possível fazer nada, pois o capitão já estava pronto e impaciente, esplêndido no seu melhor uniforme, com a sua melhor espada
e o seu melhor chapéu de fita dourada.
- Não creio que demore mais de uma hora, Mr Dillon - disse Jack Aubrey, com uma estranha mistura de excitação reprimida e formalidade constrangida; e enquanto o
contramestre dava as suas ordens, desceu ao imaculado e reluzente cúter. Bonden compreendera o caso melhor que Dillon: para o capitão Aubrey, naquele momento tanto
lhe fazia que a tripulação do cúter tivesse todas as cores do arco-íris, ou mesmo que todos os seus homens fossem pintalgados de um sem-número de cores.
O sol punha-se num céu algo inquieto; os sinos de Ciudadela chamavam ao "Angelus" e os do Sophie chamavam para o quarto das seis às oito; a lua, quase cheia, espreitava
já no céu, erguendo-se gloriosamente por detrás do
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Cabo Negre. Os marinheiros guardaram as redes. O quarto mudou. Todos os guardas-marinhas, contagiados pela paixão de Lucock pela navegação, fizeram cálculos da posição
da lua ao longo da sua ascensão, e de todas estrelas fixas, uma a uma. Oito badaladas; o quarto de modorra. As luzes de Ciudadela apagavam-se.
- Vem aí o cúter - anunciou finalmente o vigia, e, dez minutos depois, Jack subia pelo costado da corveta. Estava muito pálido e, à luz intensa da lua, a sua cabeça
mais parecia uma caveira: um buraco negro no sítio da boca, os olhos muito encovados.
- Ainda está na coberta, Mr Dillon? - disse, esboçando um sorriso.
- Vamos fazer-nos à vela, Mr Dillon: o vento de popa levar-nos-á para o alto mar - ordenou Jack, encaminhando-se, com passo vacilante, para a sua cabina.
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CAPÍTULO DEZ
Numa das suas obras, Maimónides conta-nos a história de um alaudista que, tendo sido chamado a tocar em determinada cerimónia, descobriu inopinadamente que se havia
esquecido não apenas da peça que deveria interpretar, mas também de toda a sua arte de músico, da dedilhação, enfim, de tudo", escreveu Stephen. "Tenho por vezes
o pavor de que o mesmo me aconteça a mim; um pavor que não é inteiramente irracional, visto que em criança passei por uma experiência não muito diversa: regressando
a Aghamore após oito anos de ausência, fui visitar sem demora Bridie Coolan e ela falou-me em irlandês; a sua voz era-me intimamente familiar (o que não admira,
pois Bridie Coolan fora minha ama); eram-no também a entoação e mesmo as próprias palavras; a verdade, porém, é que não entendi rigorosamente nada do que ela me
dizia - os sons que proferia não me transmitiam nenhum significado. Fiquei estarrecido com a perda que sofrera. Tudo isto me veio à memória pelo facto de ter descoberto
que já não sei o que sentem ou pretendem os meus amigos - nem tão-pouco o que pensam. É muito claro que J. A. teve uma enorme decepção em Ciudadela; sofre horrivelmente
- aliás, nunca imaginei que um homem como ele pudesse sofrer tanto; e é também muito claro que J. D. permanece num estado de grande infelicidade; contudo, exceptuando
estas evidências, pouco mais sei acerca deles - eles não falam e eu já desisti de inquirir. A minha impaciência, obviamente, não facilita as coisas. Tenho de lutar
contra uma forte tendência para a obstinação, a hostilidade, o ressentimento (uma tendência muito fomentada pela falta de actividade); mas confesso que, embora sinta
por eles a maior estima, não me importava nada de os mandar para o diabo: a eles e às suas extravagantes e egocêntricas questões de honra e à estúpida competição
em que se
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envolveram e que consiste em saber qual dos dois, em termos de proezas, será o campeão - proezas de que, evidentemente, poderão resultar mortes desnecessárias; não
apenas a morte dos dois (e, aí, o problema é só deles), mas também a minha, isto já para não falar do resto da tripulação. Uma tripulação massacrada, um navio afundado
e as minhas colecções destruídas - nada disto tem importância para eles, pois a única coisa que conta são os seus malditos brios. Para eles, todos os outros aspectos
da existência são desprezíveis e insignificantes - em suma, reduzem-nos a bagatelas, a ninharias, a nada. Como não haveria de me sentir indignado? Passo metade do
meu tempo a purgá-los, a sangrá-los, a prescrever-lhes dietas suaves e soporíferos. Ambos comem horrores, e bebem outro tanto, sobretudo J. D. Já cheguei a pensar
que se mostram reservados comigo porque decidiram bater-se em duelo na próxima escala, e porque sabem que, se a coisa chegasse aos meus ouvidos, os impediria de
cometer tamanha loucura. Que tormento para a minha alma, tudo isto! Se eles tivessem de esfregar as cobertas, içar as velas ou limpar o fundo da corveta, por certo
desistiriam destas fanfarronices de salão. Já não tenho paciência para os aturar. São incrivelmente imaturos para a idade e o posto que têm: ainda que, na realidade,
tudo leve a crer que, se não fossem imaturos, não estariam aqui - os homens maduros, equilibrados, não embarcam em navios de guerra, não passam a vida a deambular
pelo oceano em busca de violência. Apesar de toda a sua sensibilidade (e recordo que tocou a sua transcrição de Deh, vieni com uma delicadeza verdadeiramente sublime,
pouco antes de chegarmos a Ciudadela), creio que J. A. devido a diversos outros traços da sua personalidade, estaria melhor a comandar um navio pirata de há cem
anos atrás no mar das Caraíbas. E, apesar de toda a sua perspicácia, J. D. corre o sério risco de se transformar num fanático, num Loyola dos nossos dias - isto
é, se não levar antes uma valente bordoada na cabeça ou uma estocada fatal onde quer que seja. Não me sai da cabeça aquele infeliz comentário...".
Depois de ter deixado Ciudadela, a corveta, para grande espanto dos seus tripulantes, não rumara a Barcelona, mas sim a oés-noroeste; e, ao nascer do dia, quando
dobravam o Cabo de Salou, a curta distância da costa, apresara uma embarcação costeira espanhola de cerca de duzentas toneladas que transportava uma carga valiosa,
montando (mas não chegando a disparar) seis canhões de seis - apresara-a pelo lado mais próximo de terra, tão fácil e tranquilamente como se o encontro houvesse
sido marcado várias semanas antes e o comandante do navio espanhol tivesse um escrúpulo absolutamente invulgar em questões de pontualidade.
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- Uma acção muito lucrativa do ponto de vista comercial - comentou James ao ver a presa desaparecendo a leste, com vento favorável, rumo a Mahón, ao passo que a
corveta se dirigia para norte da sua zona de cruzeiro, uma das rotas marítimas mais concorridas do mundo. Mas não era esse comentário (embora também não primasse
pela felicidade) que não saía da cabeça de Stephen.
Não. O caso passou-se mais tarde, depois do jantar, quando ele e James estavam no castelo de popa. Conversavam descontraidamente sobre as diferenças existentes entre
certos costumes de vários países - os espanhóis jantavam e deitavam-se muito tarde; os franceses levantavam-se da mesa e passavam ao salão todos juntos, homens e
mulheres; os irlandeses permaneciam à mesa bebendo vinho até que um dos convidados sugeria que passassem ao salão; entre os ingleses, era ao anfitrião que competia
fazer tal sugestão; e a extrema diversidade de costumes nacionais no que tocava aos duelos.
- Em Inglaterra, os duelos são muito raros - observou James.
- Sem dúvida, sem dúvida - concordou Stephen Maturin. - Quando estive pela primeira vez na cidade de Londres, fiquei espantado com o facto de os seus habitantes raramente
saírem1.
- Sim - disse James. - As ideias sobre questões de honra também são completamente diferentes nos dois reinos. Já fiz muitas provocações a ingleses, com uma virulência
que, na Irlanda, implicaria necessariamente um duelo; a verdade, porém, é que nenhum desses ingleses reagiu desafiando-me para um duelo. Nós, os irlandeses, chamar-lhes-íamos
medrosos, ou talvez mesmo cobardes. - Dillon encolheu os ombros e preparava-se para continuar quando a clarabóia da cabina se abriu, assomando a ela a cabeça e os
maciços ombros de Jack Aubrey. "Nunca imaginei que um rosto tão naturalmente inocente pudesse tornar-se, de um momento para o outro, tão ameaçador, tão profundamente
tenebroso", pensou Stephen.
"Terá J. D. dito isto de propósito?", escreveu. "Não estou certo disso, mas suspeito que sim - seria apenas mais um entre muitos comentários que tem feito ultimamente,
comentários que talvez não sejam intencionais, que serão apenas o resultado de uma evidente falta de tacto, mas que tendem,
1 Para que se entenda a resposta de Stephen, note-se que o termo usado por James Dillon no original - rencounter - pode significar não só duelo, mas também um encontro
casual com um amigo ou um duelo verbal mais ou menos pacífico. James Dillon usa o termo rencounter com o significado de duelo com armas; Stephen Maturin entende
o termo rencounter aparentemente na primeira das duas outras acepções. (N. do T.)
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todos eles, a provocar receios justificados, num contexto detestável e francamente desprezível. Não sei. O tempo de o saber já lá vai. Tudo o que sei agora é que,
quando está furioso com os seus superiores, irritado com a subordinação que a Marinha exige, acicatado pelo seu temperamento inquieto e nervoso, ou (como sucede
agora) dilacerado pela infidelidade da sua amante, J. A. recorre à violência para se aliviar - à violência e à acção. J. D. impelido por fúrias completamente diversas,
faz exactamente o mesmo. A diferença - penso eu - é que J. A. anseia apenas pelo estrondo ensurdecedor da batalha, por uma extrema actividade mental e física e pela
sensação de estar vivendo intensamente o momento presente, ao passo que J. D. deseja algo mais". Fechou o caderno e ficou a olhar para a capa durante muito tempo,
com o pensamento longe, muito longe dali; só regressou ao Sophie quando ouviu alguém batendo à porta.
- Mr Ricketts - disse Stephen -, em que posso ser-lhe útil?
- Doutor - disse o guarda-marinha -, o capitão pergunta se gostaria de subir à coberta para ver a costa.
- À esquerda do fumo, para sul, temos a montanha de Montjuich, com o seu grande castelo; e aquela projecção à direita é Barceloneta - disse Stephen. - E ao longe
pode ver-se o Tibidabo erguendo-se por detrás da cidade: foi ali que, ainda criança, vi pela primeira vez o falcão de pata vermelha. Se seguirmos uma linha que parta
do Tibidabo, passando pela catedral e indo até ao mar, encontraremos o Moll de Santa Creu e o seu grande porto comercial e, à esquerda, a bacia onde estão atracados
os navios do rei e as canhoneiras.
- Muitas canhoneiras? - perguntou Jack.
- Creio que sim, mas nunca indaguei.
Jack aquiesceu com a cabeça; observou atentamente a baía para reter na memória todos os pormenores e, inclinando-se para a coberta, ordenou:
- Coberta! Arriar! Façam bem as coisas! Babbington, mexa-se com esse cabo!
Stephen ergueu-se umas seis polegadas no seu poleiro no topo de mastro e cruzou as mãos para não se agarrar involuntariamente a cordas, vergas e polés. Babbington
possuía a agilidade de um símio, acompanhando-o a todo
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o momento e puxando-o até ao brandal de barlavento; Stephen desceu daquela altura vertiginosa até à coberta, onde o retiraram da canasta em que fora içado: a bordo
daquele navio, todos pensavam que o doutor era a maior das nulidades como marinheiro.
Agradeceu-lhes com um ar ausente e desceu até ao local onde os ajudantes do veleiro reparavam a rede onde repousava o corpo de tom Simmons.
- Estamos só à espera do disparo, doutor - disseram-lhe eles; e, nesse preciso instante, apareceu Mr Day com balas de canhão do Sophie enfiadas numa rede.
- Achei que eu próprio devia prestar-lhe a minha homenagem - disse o condestável, dispondo as balas aos pés do jovem com mãos experientes.
- Foi meu companheiro no Phoebe: já nessa altura não tinha muita saúde, coitado - acrescentou, como se se tivesse lembrado de repente desse pormenor.
- Ah, sim, o tom nunca foi muito forte - disse um dos ajudantes do veleiro enquanto cortava a linha da sua agulha com o canino partido.
Estas palavras, e a invulgar delicadeza do olhar de quem as proferira, tinham por fim confortar Stephen, que acabava de perder o seu paciente: apesar de todos os
seus esforços, os quatro dias de coma haviam conduzido a um desenlace fatal.
- Diga-me, Mr Day - disse Stephen depois de os ajudantes do veleiro terem saído -, quanto é que ele bebia por dia? Perguntei aos amigos dele, mas só me deram respostas
evasivas: mentiram-me, sem dúvida.
- E claro que mentiram, doutor, e mentiram porque a coisa é proibida por lei. Quanto é que ele bebia por dia? bom, o tom era um rapaz popular, de maneira que é muito
possível que tivesse a ração máxima, para além de um ou dois goles só para molhar a comida... Enfim, por dia devia beber à volta de um litro.
- Um litro. bom, um litro é muito, mas não acredito que chegue para matar um homem. Numa mistura de três partes de água para uma parte de álcool, daria cerca de
dois decilitros e meio de álcool: uma quantidade susceptível de embebedar, mas não de matar.
- Santo Deus, doutor! - exclamou o condestável, fitando-o com afectuosa compaixão. - O que ele bebia não era um litro de mistura mas um litro de rum!
- Um litro de rum?! De rum puro?! - exclamou Stephen.
- Isso mesmo, doutor. Cada homem tem apenas direito a dois decilitros e meio de rum por dia, dois decilitros e meio distribuídos pelo jantar e pela
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ceia: e é a essa quantidade de rum que se junta a água. O resto é bebido puro... Deus do céu! - disse, rindo-se e dando palmadinhas no pobre cadáver que estava entre
os dois. - Se os homens bebessem apenas dois decilitros e meio de rum por dia, num instante rebentaria um sangrento motim! E com toda a razão, aliás.
- Dois decilitros e meio de rum por dia, para cada homem? - disse Stephen, vermelho de raiva. - Um copo dos grandes? vou falar com o capitão, é preciso que despejem
esse rum no mar!
- E assim entregamos o seu corpo ao mar - disse Jack, fechando o livro. Os camaradas de tom Simmons inclinaram a grade: ouviu-se o ruído da lona que envolvia o corpo
deslizando pela grade, caindo suavemente na água; por fim, as águas límpidas borbulharam: os restos mortais de tom Simmons pertenciam-lhes agora.
- Mr Dillon - disse Jack, sem ter perdido totalmente o tom formal com que fizera a leitura -, creio que agora poderemos continuar com as armas e com a pintura.
A corveta estava à capa, tão longe de Barcelona que a cidade não se via no horizonte; e pouco depois de tom Simmons ter chegado ao fundo do mar (a profundidade,
naquele sítio, era de quatrocentas braças), o Sophie estava já quase transformado num snow branco com a borda negra, com um cavalo
- mais precisamente, um cabo rigidamente içado na vertical - que substituiria o mastro da carangueja normalmente usado nos snows; ao mesmo tempo, o rebolo montado
no castelo de proa girava sem parar, afiando alfanges, piques, machados de abordagem, as baionetas dos fuzileiros, as adagas dos guardas-marinhas, as espadas dos
oficiais.
Era muito grande a azáfama a bordo do Sophie, mas havia nessa azáfama uma curiosa gravidade: era natural que, depois de terem sepultado um homem, os seus companheiros
de rancho, e mesmo os seus companheiros de quarto, se sentissem abatidos (pois tom Simmons era muito querido - se não o fosse, nunca lhe teriam dado um presente
de anos tão perigoso); porém, aquela solenidade afectava toda a tripulação e, por essa razão, não se ouviam cânticos no castelo de proa, nem as piadas do costume.
Era uma atmosfera silenciosa, reflexiva, não irada, nem sombria, longe disso, mas... Stephen,
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deitado na sua rede (passara toda a noite junto do pobre Simmons), procurava encontrar a palavra certa - opressiva? terrível? premonitória? Porém, apesar do tremendo
barulho que Mr Day e os seus ajudantes faziam - vistoriando o paiol de tiro, separando as balas com ferrugem ou qualquer outro defeito e fazendo-as rolar por uma
superfície inclinada com uma ressonância tremenda, centenas de balas de canhão de quatro libras chocando umas contras outras -, apesar de tudo isto Stephen adormeceu
sem conseguir descobrir a palavra certa.
Acordou ao ouvir o seu próprio nome.
- O doutor Maturin? O doutor Maturin não está para ninguém - dizia a voz do mestre na câmara dos oficiais. - Diga-me o que pretende dele, que eu informo-o à hora
do jantar. Se ele estiver acordado a essa hora.
- Pretendia perguntar-lhe qual é o melhor remédio para um cavalo relaxado - disse Ellis com uma voz trémula, pois já estava cheio de dúvidas quanto à missão que
lhe haviam confiado.
- E quem é que o mandou perguntar isso? com certeza que foi aquele patife do Babbington! Que vergonha, Mr Ellis! com tantas semanas de mar e ainda se deixa enganar
por esses malandros!
Era evidente que a atmosfera grave e solene que reinava no navio não havia chegado ainda à câmara dos guardas-marinhas; ou então certamente já se esfumara. Ah, os
jovens, pensou Stephen, sempre tão longe de tudo, sempre tão apartados de tudo: a sua felicidade era completamente independente das circunstâncias! Recordou a sua
própria infância, a intensidade com que vivia o presente - a felicidade não dependia então de se olhar para o passado, nem para o futuro... Nesse preciso momento,
o apito do contramestre chamou para o jantar e Stephen sentiu de repente um tremendo aperto no estômago; fez girar as pernas e levantou-se. "Estou a transformar-me
num animal naval", disse para si mesmo.
Aqueles eram os dias fartos do início de um cruzeiro; ainda havia pão (e não biscoito) à mesa, e Dillon, curvado sob as vigas do tecto para trinchar um magnífico
lombo de carneiro, não deixou de informar o doutor:
- Quando subir à coberta, deparará com uma transformação prodigiosa. Deixámos de ser um brigue, agora somos um snow.
- com um mastro extra - explicou o mestre, erguendo três dedos.
- Deveras? - disse Stephen, passando o seu prato com impaciência.
- E a que se deve essa transformação? É uma questão de velocidade? De conveniência? Ou é só para melhorar a aparência do navio?
- Nada disso, doutor. É só para enganar o inimigo.
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A refeição continuou com considerações várias sobre a arte da guerra, os méritos dos queijos de Mahón e de Cheshire e a surpreendente profundidade do Mediterrâneo
a uma distância tão curta da costa; e, uma vez mais, Stephen não deixou de reparar no engenho com que os marinheiros alimentavam uma conversa - sem dúvida o resultado
de muitos anos no mar e de uma tradição de muitas gerações de homens confinados a um espaço reduzido; um engenho que permitia mesmo que um homem tão rude como o
tesoureiro contribuísse para que o fio da conversa não se rompesse, um engenho que ajudava a suavizar antagonismos e tensões - recorrendo frequentemente a trivialidades,
é certo, mas proporcionando uma fluidez susceptível de tornar o jantar não apenas descontraído, mas até razoavelmente agradável.
- Tenha cuidado, doutor - disse o mestre, agarrando-o por trás na escada do tombadilho. - O navio está a começar a baloiçar.
Quanto a isso não havia dúvida; e embora a coberta do Sophie estivesse apenas um nada acima daquela a que se poderia chamar a câmara de oficiais submarina, o certo
é que na coberta o movimento se notava muito mais. Stephen cambaleou, agarrou-se a um pé-de-carneiro e olhou à sua volta com
um ar expectante.
- Mas afinal onde é que estão as vossas transformações prodigiosas? perguntou ele, indignado. - Onde é que está esse célebre terceiro mastro, aquele que vai enganar
o inimigo? E que graça é que tem zombarem de um principante nas coisas do mar, que é o que eu sou? Sim, qual é a graça? Palavra de honra, senhores bufões, qualquer
campónio com pretensões a cavalheiro e com o estômago a abarrotar depoteen2 teria sido mais delicado do que os senhores. Não se dão conta de que coisas dessas não
se fazem?
- Por amor de Deus, doutor - exclamou Mr Marshall, impressionado com a súbita e extrema ferocidade do olhar de Stephen -, dou-lhe a minha palavra de honra. Mr Dillon,
rogo-lhe que diga qualquer coisa...
- Meu caro camarada, acalme-se - disse James, acompanhando Stephen até ao cavalo, ou seja, o cabo muito tenso que corria paralelamente ao mastro principal, cerca
de seis polegadas atrás dele. - Garanto-lhe que, para qualquer marinheiro, isto é um mastro, um terceiro mastro: e, agora, o meu amigo verá algo que se assemelha
muito à velha vela mestra ser içada sobre esse mastro como uma vela de carangueja, ao mesmo tempo que se coloca uma vela do
2 Poteen: uísque irlandês de destilação caseira e ilegal. (N. do T.)
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mastro de mezena na verga mesmo por cima das nossas cabeças. Nenhum marinheiro diria que somos um brigue.
- bom - disse Stephen. - Tenho de acreditar no que me diz. Mr Marshall, peco-lhe sinceras desculpas pela minha estúpida precipitação.
- Não tem importância, doutor. O doutor pode precipitar-se à vontade que eu não me zango consigo - retorquiu o mestre, que sabia da estima que Stephen lhe dedicava
e que atribuía uma extrema importância a esse facto.
- Parece que houve tempestade para sul - observou, apontando com a cabeça nessa direcção.
O grande movimento ondulatório estendia-se desde a longínqua costa africana e, embora as pequenas ondas de superfície o ocultassem, os seus intervalos longos e regulares
eram claramente visíveis ao longe. Stephen podia perfeitamente imaginar aquelas ondas enormes vencendo os rochedos da costa catalã, erguendo-se céleres sobre as
praias cobertas de seixos e recuando, como que sugadas, com um ruído monstruoso, dilacerante.
- Espero que não chova - disse. Muitas vezes, no princípio do Outono, vira aquele mar abandonando uma já longa tranquilidade e agitar-se e inchar, ameaçador; logo
de seguida, levantava-se vento de sueste, o céu ganhava um tom amarelo e uma chuva cálida desatava a cair torrencialmente sobre as vinhas: no preciso momento em
que as uvas estavam prontas para a vindima.
- Navio à vista! - gritou o vigia.
Era uma tartana de tamanho médio, aparentemente bastante carregada e navegando contra o ventro fresco de leste; era óbvio que vinha de Barcelona; e encontrava-se
a dois graus pela amura de bombordo da corveta.
- Que sorte isto não ter acontecido uma hora antes! - comentou James Dillon. - Mr Pullings, apresente os meus respeitos ao capitão e informe-o de que há uma embarcação
desconhecida a dois graus pela amura de bombordo. - Antes que James tivesse terminado, Jack já havia subido à coberta, com a pena ainda na mão e uma expressão de
intensa excitação nos olhos brilhantes.
- Doutor, não se importa...? - disse Jack a Stephen, dando-lhe a pena, e logo subiu ao topo do mastro tal qual um rapaz. A coberta estava cheia de marinheiros realizando
as tarefas matinais e alterando a orientação das velas, enquanto a corveta tomava discretamente um novo rumo para impedir que a tartana se chegasse a terra, e correndo
de um lado para o outro com pesadas cargas. Depois de terem chocado consigo duas ou três vezes e de ter ouvido uma quantidade de "Dá-me licença, doutor" e "Deixem
passar! Ah, é o doutor, perdão!", Stephen dirigiu-se tranquilamente para a cabina; sentou-se em
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cima do baú de Jack e pôs-se a reflectir sobre a natureza de uma comunidade (a sua realidade), as diferenças existentes entre essa comunidade e cada um dos indivíduos
que a compunham, a comunicação no seio da comunidade, como se estabelecia essa comunicação.
- Ah, está aqui! - exclamou Jack, regressando à cabina. - Creio que não passa de uma velha tartana. Esperava que fosse algo melhor.
- Tenciona capturá-la?
- Ah, sim, creio que sim... Mesmo que ela virasse neste preciso instante... Mas estava tão desejoso de uma boa peleja, doutor! Não sei como explicar-lhe, mas a verdade
é que uma boa peleja desperta a mente, põe-na em movimento, agita-a, agiganta-a; as suas infusões e sangrias não são nada quando comparadas com uma boa peleja. Ruibarbo
e sena. Mas diga-me, doutor, se não houver nenhum impedimento, crê que podemos tocar qualquer coisa esta noite?
- Seria para mim um grande prazer - disse Stephen. Observou Jack atentamente e imaginou como seria o aspecto daquele homem quando o fogo da juventude se tivesse
apagado: pesado, grisalho, autoritário, se não mesmo violento e mal-humorado.
O Sophie deslizava velozmente pelas águas, sem ter largado mais pano e sem mostrar qualquer intenção de se abeirar da tartana - parecia de facto um snow que seguia
tranquilamente uma rota mercantil fixa que terminaria em Barcelona. Passada meia hora, puderam ver que a tartana tinha quatro canhões e uma tripulação escassa (o
cozinheiro ajudava nas manobras) para além de ter um aspecto desagradavelmente descuidado, enfim, um ar perfeitamente neutral. No entanto, quando a tartana se preparava
para virar a sul, o Sophie içou as suas velas de estai num ápice, largou os joanetes e arribou com surpreendente rapidez - tão surpreendente que a tartana não conseguiu
virar e abateu-se de novo sobre a amura de bombordo.
Quando estavam a meia milha de distância, Mr Day (que se pelava por apontar e disparar um canhão) atingiu-a no pé da roda e a tartana manteve-se à capa, com a verga
baixa, até que o Sophie se abeirou dela e Jack ordenou que o seu capitão subisse a bordo.
- Cavalheiro, o capitão sente muito, mas não pode subir a bordo do seu navio; se pudesse, fá-lo-ia com todo o gosto, cavalheiro, mas há um problema: o casco da lancha
está destruído - dizia o capitão com a ajuda de uma jovem encantadora, presumivelmente sua amante ou algo parecido. - De qualquer modo, o capitão é de Ragusa, e
portanto é neutral; é neutral e vai de
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lastro para Ragusa. - O homenzinho moreno bateu no casco da lancha para reforçar o que a jovem havia dito: e, com efeito, havia um buraco no casco.
- Como se chama a tartana? - perguntou Jack.
- Pola - respondeu a jovem.
O capitão Aubrey permaneceu impassível por um momento, imerso como estava nos seus pensamentos; enfim, estava de péssimo humor. As duas embarcações subiam e desciam.
Quando as ondas subiam, a costa espreitava por detrás da tartana. Para aumentar ainda mais a sua irritação, Jack viu um barco de pesca a sul, um barco que navegava
rapidamente com o vento pela popa; e logo atrás vinha outro - ali estavam dois atentos vigilantes... Os tripulantes do Sophie permaneciam silenciosos, os olhos postos
na mulher: lambiam os lábios e engoliam em seco.
A tartana não ia de lastro - uma mentira perfeitamente estúpida. Além disso, Jack duvidava que tivesse sido construída em Ragusa. Mas Pola... seria esse o verdadeiro
nome?
- Baixar o cúter e encostá-lo - ordenou. - Mr Dillon, quem temos a bordo que fale italiano? John Baptist é italiano.
- E Abram Codpiece, meu capitão: tem nome de tesoureiro.
- Mr Marshall, leve Baptist e Codpiece e verifique todos os dados relativos a esta tartana: veja os seus documentos, inspeccione o porão, vasculhe mesmo na cabina,
se for preciso.
O cúter baixou; o barqueiro manobrou-o com extremo cuidado, de forma a que não riscasse o costado recém-pintado da corveta. Os homens, armados até aos dentes, saltaram
para o cúter servindo-se de um cabo que pendia do lais de verga grande, preferindo partir o pescoço ou afogar-se a estragar o seu belo trabalho de pintura.
Remaram até à tartana e abordaram-na: Marshall, Codpiece e John Baptist entraram para a cabina; ouviu-se claramente uma voz de mulher, aguda, furiosa, e, depois,
um grito penetrante. Os homens que estavam no castelo de proa desataram a pular, tentando ver o que se passava; depois, puseram-se a olhar uns para os outros, com
as faces ruborizadas.
Marshall reapareceu na coberta.
- Que fez a essa mulher? - gritou Jack.
- Bati-lhe, meu capitão - retorquiu Marshall, fleumaticamente. A tartana é tão de Ragusa como eu. O capitão só fala a língua franca3, diz o
3 Neste caso, como era comum nos portos do Mediterrâneo, uma "língua" que assentava basicamente no italiano, misturado com elementos de outras línguas, designadamente
o francês, o espanhol, o grego e o árabe. (N. do T.)
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Codpiece, não fala italiano em condições; a rapariga tem documentos espanhóis no avental; o porão está cheio de fardos destinados a Génova.
- Oito pessoas a bordo, contando com os passageiros: parecem-me uns tipos rebeldes e perigosos.
- É infame! Atrever-se a bater numa mulher! - exclamou James.
- E pensar que um animal destes é nosso camarada de bordo!
- Espere até se casar, Mr Dillon - disse o tesoureiro com um risinho.
- Fez muito bem, Mr Marshall - disse Jack. - Não podia ter feito melhor. Quantos tripulantes? Como é que eles são?
- Então mande-os para cá! Mr Dillon, por favor, escolha os homens para a tripulação da presa. - Enquanto Jack falava, começou a chover, e, com as primeiras gotas,
veio um som que fez com que todos os homens virassem a cabeça; um instante depois, todos os olhos se fixavam num ponto algures a nordeste. Não eram trovões. Eram
disparos.
- Depressa com os prisioneiros! - gritou Jack. - Mr Marshall, venha com eles! Não o aborrece ter de tomar conta da mulher, pois não?
- Não, meu capitão, não me aborrece nada! - respondeu Marshall.
Cinco minutos depois já estavam de novo a navegar, deslocando-se diagonalmente ao longo da ondulação, sob uma chuva torrencial, e com um movimento ágil e serpenteante.
Agora tinham o vento de través e, embora tivessem ferrado os joanetes, deixaram para trás a tartana em menos de meia hora.
Stephen observava, junto à grinalda, a longa esteira do navio; a sua mente estava longe, muito longe dali, quando se apercebeu de uma mão que lhe puxava suavemente
pela casaca. Virou-se e viu Mowett, que lhe sorria, e, um pouco mais atrás, o novato Ellis, que, de gatas, vomitava cuidadosa e desesperadamente por um pequeno buraco
quadrado da amurada, uma escotilha.
- Doutor, doutor - disse Mowett -, está a molhar-se todo!
- Pois estou - disse Stephen; e, após uma pausa, acrescentou: - Não admira, está a chover.
- Pois está - disse Mowett. - Não prefere ir para baixo, para não se molhar mais? Ou quer que lhe traga uma capa impermeável?
- Não. Não. Não. É muito amável, Mr Mowett, mas não quero... disse Stephen com um ar distraído; e Mowett, que falhara rotundamente na primeira parte da sua missão,
passou animadamente à segunda, que consistia em convencer Stephen a deixar de assobiar, pois o seu assobio enervava, e de que maneira, os homens do quarto de popa,
mais os que estavam no castelo de popa, mais... enfim, todos aqueles que o ouvissem.
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- Permite-me que lhe explique uma coisa, doutor Maturin? Tem a ver com náutica, é claro: o doutor ouviu este disparo?
- Faça favor, Mr Mowett, explique à vontade - disse Stephen, deixando de franzir os lábios.
- Muito bem - disse Mowett, apontando para a direita, na direcção de Barcelona, com o braço estendido sobre o mar revolto, acinzentado. - Aquilo ali é o que nós
chamamos costa a sotavento.
- Ah sim? - disse Stephen, com um brilho nos olhos que denotava algum interesse. - É uma coisa que vocês odeiam, não é? Mas não será um simples preconceito, uma
crença imposta pela tradição, uma mera superstição?
- Oh, não, de modo nenhum, doutor! - exclamou Mowett; e logo rompeu a explicar o que significava navegar com a costa a sotavento; perder-se-ia distância a barlavento
quando se virasse em redondo; seria impossível virar se o vento fosse muito forte; seria inevitável derivar para sotavento caso surgisse um vendaval soprando precisamente
na direcção da costa: uma situação de um horror inimaginável! As suas palavras eram pontuadas pelo ruído intenso dos disparos, por vezes um rugido contínuo que durava
meio minuto, outras vezes uma única e violenta detonação. - Oh, daria tudo para saber o que se passa! - exclamou Mowett, interrompendo as suas explicações, pondo-se
nas pontas dos pés e esticando a cabeça.
- Não há nenhuma razão para estar com medo - disse Stephen. - Em breve o vento soprará na direcção das ondas. Isso acontece amiúde por alturas da festa de São Miguel4.
Ah, se ao menos se pudesse proteger as vinhas com um imenso guarda-chuva!
Mowett não era o único que daria tudo para saber o que se passava: o capitão e o primeiro-oficial do Sophie, ansiando pelo fragor da batalha e pela libertação, mais
do que humana, que a batalha proporcionava, permaneciam no castelo de popa, lado a lado mas infinitamente longe um do outro, com todos os seus sentidos presos ao
longínquo nordeste. Quase todos os outros membros da tripulação estavam tão atentos como eles; e o mesmo se podia dizer dos homens do Felipe V, um navio corsário
espanhol de sete canhões.
O Felipe V apareceu de súbito no meio da chuva torrencial, como uma rajada ameaçadora que soprasse pela aleta do costado mais próximo de terra, dirigindo-se para
o local da batalha com todo o pano que podia suportar. O
4 Celebrada a 29 de Setembro. (N. do T.)
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Sophie e o Felipe V viram-se um ao outro ao mesmo tempo: o Felipe V disparou e içou a sua bandeira; recebeu em resposta a surriada do Sophie e, compreendendo o erro
que cometera, deu a volta ao leme e rumou a Barcelona, com vento forte pela aleta de bombordo e as suas grandes velas latinas inchadas e oscilando violentamente
ao sabor da poderosa ondulação.
O leme do Sophie girou um segundo depois do do navio corsário: destaparam num ápice as bocas dos canhões de estibordo: os homens protegiam com as mãos as escorvas
e as mechas que já crepitavam.
- Disparem todos para a proa deles! - gritou Jack Aubrey; servindo-se de alavancas, ergueram os canhões em cinco graus. - Em frente! Disparar quando virarmos! -
Virou a roda do leme duas malaguetas e os canhões dispararam. O navio corsário deu uma guinada de imediato, como se pretendesse abordar; porém, nesse preciso momento
a sua vela de mezena, que embatia contra o mastro, desabou sobre a coberta. O navio guinou de novo e começou a afastar-se com vento pela popa. Contudo, um dos disparos
acertara na parte superior do leme e, sem ela, o navio não poderia levar velas à popa. Estavam já a usar remos para virar e trabalhavam furiosamente na verga de
mezena. Dispararam os seus dois canhões de bombordo e um dos disparos atingiu o Sophie, fazendo o mais estranho e inesperado dos ruídos. No entanto, a surriada
seguinte da corveta, disparada ao mesmo tempo e a uma distância mínima, juntamente com uma descarga de mosquetes, pôs termo a qualquer resistência da embarcação
inimiga. Doze minutos depois do primeiro disparo, o navio corsário arriou a sua bandeira e a corveta explodiu de alegria - os homens não paravam de dar vivas, abraçavam-se
com muitas palmadas nas costas, apertavam-se as mãos, riam-se.
A chuva deslocara-se para oeste e formava uma densa faixa cinzenta que ocultava o porto, agora muito mais próximo.
- Mr Dillon, aprese o navio - ordenou Jack, olhando para o cata-vento. O vento estava a mudar, como ocorria amiúde naquelas águas depois da chuva, e não tardaria
muito a soprar de sueste.
- Houve danos, Mr Lamb? - perguntou, quando o carpinteiro se aproximou dele para o informar.
- Felicito-o pela captura, meu capitão - disse o carpinteiro. - Não houve danos no sentido estrito do termo; quer dizer, não houve danos na estrutura; no entanto,
uma das balas provocou uma confusão horrível na cozinha: desmontou a chaminé do fogão e deitou por terra todos os tachos.
- Vamos já ver isso - disse Jack. - Mr Pullings, esses canhões de proa não estão bem seguros. Mas... mas que raio é que se passa?! - exclamou,
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estupefacto. Os artilheiros estavam estranhamente - horrendamente mesmo
- pintalgados. Pela mente de Jack Aubrey passaram num ápice ideias horríveis, até que se apercebeu de que os homens estavam cobertos de tinta preta fresca e de fuligem
da cozinha. Manifestando exuberantemente a sua alegria, os homens que se encontravam no extremo da proa desataram a besuntar os seus camaradas. - Acabem com esse
maldito... disparate! Que Deus vos castigue... haviam de apodrecer todos! - Jack Aubrey raramente praguejava, tirando o habitual maldito ou uma blasfémia inofensiva,
e os homens, que esperavam vê-lo muito mais satisfeito, pois acabavam de apresar um belo navio corsário, ficaram como mudos, passando a exprimir a sua cumplicidade
e alegria unicamente com um piscar ou um revirar de olhos.
- Coberta! - gritou Lucock do topo. - Vêm aí as canhoneiras de Barcelona! Seis! Oito... nove... onze! Talvez mais!
- Baixar a lancha e o escaler! - ordenou Jack. - Mr Lamb, suba a bordo do navio corsário e veja se é possível reparar o leme.
com aquela ondulação, não era tarefa fácil erguer a lancha e o escaler até aos lais de verga e lançá-los depois à água; no entanto, os homens estavam desenfreados
e subiam os botes como loucos - era como se tivessem o estômago cheio de rum e não houvessem perdido nem um átomo da sua excepcional destreza. Ouviam-se risos abafados:
risos que logo foram calados pelo grito de "Navio a barlavento!" - um navio que podia deixá-los entre dois fogos -, mas num instante voltaram os risos, pois o navio
a barlavento era, muito simplesmente, a tartana que tinham acabado de capturar.
Os botes iam e vinham; os prisioneiros, abatidos alguns, ríspidos outros, desceram ao paiol de proa, os peitos inchados com os seus objectos pessoais; na corveta
ouvia-se o ruído dos enxós do carpinteiro e da sua equipa, que faziam uma nova cana para o leme; Stephen deteve Ellis, que passou por ele como um foguete, e perguntou-lhe:
- Quando é que lhe passou o enjoo, Mr Ellis?
- Foi quando os canhões começaram a disparar, doutor - retorquiu Ellis. Stephen assentiu com a cabeça.
- Bem me parecia - disse. - Estive a observá-lo.
O primeiro disparo fez saltar um penacho branco de água, da altura de um mastaréu da gávea, entre as duas embarcações. Sim senhor, pensou Jack, treino não lhes faltava
e, além disso, a maldita da bala era muito, muito pesada.
As canhoneiras estavam ainda a mais de uma milha de distância, mas acercavam-se da corveta com uma rapidez assombrosa, navegando com o
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vento contra. As três primeiras tinham um canhão grande de trinta e seis e um total de trinta remos. Mesmo a uma milha de distância, era possível que um disparo
daqueles canhões trespassasse o Sophie de uma ponta à outra. Jack teve de reprimir a ânsia de gritar para que o carpinteiro se despachasse. "Se uma bala de trinta
e seis libras não o faz apressar-se, então não há nada que o faça apressar-se", pensou, enquanto passeava de um lado para o outro, espreitando, a cada volta, o cata-vento
e os canhões. As sete canhoneiras da frente já tinham verificado o alcance dos seus disparos e agora disparavam de forma intermitente - balas que, na sua maioria,
não chegavam à corveta, embora uma ou outra passasse silvando por cima dela.
- Mr Dillon! - gritou Jack para o navio capturado, após ter dado meia dúzia de voltas. Uma bala que caiu nesse instante perto da popa molhou-lhe a nuca. - Mr Dillon,
transferiremos o resto dos prisioneiros mais tarde e far-nos-emos à vela logo que possa! Ou prefere que lhe passemos um cabo de reboque?
- Não, obrigado, meu capitão. A cana do leme estará pronta em dois minutos.
- Entretanto, talvez não fosse má ideia começarmos a disparar... não temos nada a perder - reflectiu Jack, reparando que os tripulantes do Sophie estavam agora silenciosos
e algo tensos. - Pelo menos o fumo servirá para nos ocultar um pouco. Mr Pullings, a bateria de bombordo pode disparar à vontade.
Esta situação era muito mais agradável, com o estalido dos disparos, o estrondo, o fumo, a imensa e incessante actividade; Jack sorriu ao ver os artilheiros do canhão
de bronze mais próximo seguindo atentamente com o olhar a bala que haviam disparado, ansiosos por saberem onde caíra. Os disparos do Sophie acirraram ainda mais
os ânimos das canhoneiras espanholas; e aquele mar monotonamente cinzento encheu-se de vibrantes clarões ao longo de um quarto de milha.
Babbington estava diante dele agora, chamando-lhe a atenção para qualquer coisa. Jack virou-se e viu Dillon que, no meio da barafunda, lhe gritava que a nova cana
do leme já estava montada.
- Vamos fazer-nos à vela! - gritou Jack, e o velacho do Sophie, que estava de capa, mudou de direcção e inchou. Embora fossem orçar rumo a nor-noroeste, teriam de
ganhar velocidade antes, de modo que começaram a navegar com todas as velas de proa desfraldadas e com o vento pela popa. Estas manobras fizeram com que a corveta
se acercasse mais das canhoneiras e tivesse de passar diante delas: os canhões de bombordo não cessavam de
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disparar; as balas inimigas caíam à água ou passavam-lhes por cima; por um momento, Jack sentiu um prazer extremo e tresloucado só de imaginar que poderiam passar
rapidamente por entre as canhoneiras - estas eram um verdadeiro desastre quando o objectivo estava muito perto. Mas logo se lembrou de que levavam as presas com
eles e de que Dillon tinha ainda a bordo um número muito razoável de perigosos prisioneiros; por isso ordenou que agarrunchassem as vergas.
Os navios capturados orçaram ao mesmo tempo que a corveta e, todos juntos, afastaram-se para o mar alto a cinco ou seis nós. As canhoneiras seguiram-nos durante
meia hora; porém, quando começou a escurecer e se tornou impossível alcançá-los com os disparos, pois já estavam demasiado longe, viraram uma a uma e regressaram
a Barcelona.
- Toquei pessimamente - disse Jack Aubrey enquanto arrumava o arco.
- Não tocou com o coração - retorquiu Stephen Maturin. - O que não admira: tivemos um dia cheio de actividade. Foi, de facto, um dia fatigante, embora também tenha
sido satisfatório.
- Sem dúvida, sem dúvida! - exclamou o capitão com um brilho muito razoável nos olhos. - Estou muitíssimo satisfeito. - Fez uma ligeira pausa e perguntou: - O doutor
lembra-se daquele indivíduo chamado Pitt com quem jantámos certa noite em Mahón?
- O militar?
- Esse mesmo, esse mesmo... Diga-me uma coisa, doutor: achou-o um homem bem-parecido... enfim... um homem atraente?
- Não, não, de modo nenhum.
- Alegra-me muito que assim pense, doutor... Respeito muitíssimo as suas opiniões - retorquiu Jack Aubrey. - Mas diga-me, doutor... - acrescentou após uma longa
pausa -, não acha que, quando estamos melancólicos, a nossa mente tem tendência a voltar constantemente às mesmas coisas? É como... é como quando uma pessoa sofre
de escorbuto: as velhas feridas voltam a abrir-se e não saram mais... Não me esqueço, nem por um momento, daquilo que James Dillon me disse naquele maldito dia:
sinto o coração permanentemente ferido e, nestes últimos tempos, tenho meditado muito sobre o caso. Penso que deveria pedir-lhe uma explicação: aliás, já o
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deveria ter feito. Fá-lo-ei sem dúvida logo que cheguemos a terra: a menos que, nos próximos dias, aconteça qualquer coisa que torne desnecessário o meu pedido de
explicações.
- Pom, pom, pom, pom - fez Stephen em uníssono com o seu violoncelo enquanto olhava de relance para Jack Aubrey: havia uma gravidade profunda naquele rosto abatido
e acabrunhado, como que uma espécie de luz vermelha nos olhos enevoados. - Cheguei à conclusão de que as leis são a causa primordial da nossa infelicidade. Não se
trata apenas do facto de nascermos sob uma determinada lei e de termos de obedecer a outra: recorda-se por certo dos versos que falam disso; a minha memória é um
desastre no que respeita a versos... Não, meu amigo, o problema não é esse, é outro: nascemos sob meia dúzia de leis e temos de obedecer a outras cinquenta. Além
disso, existem grupos paralelos de leis, grupos que não têm nada a ver uns com os outros, e que, amiudadas vezes, são mesmo inteiramente contraditórios. Por exemplo:
você pretende fazer algo que o Código de Justiça Militar e as normas da generosidade proíbem (como me explicou), mas que as suas ideias sobre as leis morais e o
seu sentido da honra exigem que faça. Este é muito simplesmente um exemplo de algo que é tão comum, tão vulgar, como respirar. O asno de Buridan5 morreu de fome
e de sede quando se viu entre um alqueire de aveia e um balde de água equidistantes, por não conseguir decidir-se entre os dois. O que faz lembrar, embora com uma
ligeira diferença, o problema das duplas lealdades, que é também uma fonte de enormes tormentos.
- Dou-lhe a minha palavra de honra, doutor, de que não entendo o que quer dizer com "duplas lealdades". Uma pessoa só pode ter um rei. E o coração de um homem, a
menos que esse homem seja um biltre, não pode nutrir duas afeições idênticas ao mesmo tempo.
- Aquilo que o meu amigo acaba de me dizer é um disparate extraordinário - retorquiu Stephen Maturin. - E sabido que um homem pode sentir-se sinceramente ligado
a duas mulheres ao mesmo tempo: a duas, a três, a quatro, enfim, a um número surpreendente de mulheres. Contudo - acrescentou -, creio que você sabe mais desses
assuntos do que eu. Não: o que eu tinha em mente eram lealdades mais vastas, conflitos m,ais gerais. Por exemplo, os americanos leais, antes de as circunstâncias
políticas se complicarem; os
5 Jean Buridan, filósofo escolástico francês do século XIV que ilustrou o problema do livre-arbítrio com esta famosa parábola: o asno de Buridan acaba por morrer
de fome e sede por não conseguir decidir-se entre a aveia e a água, ambas colocadas a igual distância dele. (N. do T.)
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desapaixonados jacobitas em 45; os sacerdotes católicos na França de hoje, e outros franceses de muitas e diversas tendências que vivem dentro e fora do seu país.
Quanto sofrimento! E quanto mais honesta é a pessoa, maior é o sofrimento. Porém, nos casos que citei, o conflito é evidente: parece-me que as divergências menos
claras, menos nítidas, entre diferentes normas e leis, são aquelas que causam maior confusão e angústia: divergências entre as normas da moral, o direito civil,
o código militar, o direito consuetudinário, o código de honra, os costumes, as normas da vida prática, da civilidade, do diálogo amoroso, da galanteria. Isto já
para não falar do cristianismo, para quem o professa. Todas são contraditórias, em maior ou menor medida; nenhuma delas está em completa harmonia com as demais;
e um homem tem sempre de escolher uma e recusar as outras; e, como acontece consigo, talvez acabe por escolher aquela que menos lhe agrada. É como se todas as nossas
cordas estivessem afinadas segundo sistemas completamente diferentes, é como se o pobre do asno estivesse rodeado, não de um alqueire de aveia e um balde de água,
mas sim de vinte e quatro alqueires de aveia e outros tantos baldes de água.
- O doutor é um antinomista - disse Jack.
- Sou um pragmatista - retorquiu Stephen. - Venha, vamos beber um copo; enquanto bebemos, preparo-lhe uma poção. Talvez lhe faça uma sangria amanhã: a última foi
há três semanas.
- Está muito bem, doutor, eu tomo a sua poção - disse Jack. - Mas vou dizer-lhe uma coisa: amanhã à noite estarei no meio daquelas canhoneiras e, nessa altura,
serei eu a fazer a sangria e não o doutor... E, francamente, não me parece que aquela gente vá gostar...
O sabão acabara a bordo e, quanto à água para banhos, a ração fora drasticamente reduzida. Os homens que haviam ficado pintalgados de tinta preta e aqueles que tinham
sido besuntados pelos pintalgados tinham um aspecto que seria tudo menos agradável; e a equipa que trabalhara nas ruínas da cozinha ficara tão suja de gordura e
fuligem que o seu aspecto conseguia ser ainda mais desagradável - exibiam um ar estranhamente selvagem e bestial, sobretudo aqueles que tinham cabelos claros.
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- Os únicos homens com um aspecto decente são os negros - comentou Jack. - Estão todos a bordo, não estão, Mr Dillon?
- Davies foi com Mr Mowett no navio corsário, meu capitão - disse James -, mas os outros continuam connosco.
- Contando com os homens que ficaram em Mahón e com os tripulantes das presas, quantos nos faltam agora?
- Trinta e seis, meu capitão. Neste momento somos cinquenta e quatro a bordo.
- Óptimo. Assim ficamos com mais espaço. Deixe os homens dormirem o máximo possível, Mr Dillon. Abeirar-nos-emos da costa à meia-noite.
O Verão regressara após a chuva - uma tramontana suave, persistente, um ar cálido, transparente, um mar fosforescente. As luzes de Barcelona piscavam com um brilho
invulgar e, por sobre o centro da cidade, pairava uma nuvem luminosa: contra este pano de fundo, era fácil enxergar as canhoneiras que vigiavam a entrada do porto;
em contrapartida, as canhoneiras teriam muita dificuldade em avistar a corveta. Contudo, era óbvio que estavam alerta, pois tinham-se afastado da costa mais do que
o habitual.
"Logo que venham na nossa direcção", pensou Jack, "largaremos os joanetes, viraremos na direcção da luz cor de laranja, e depois, no último momento, orçaremos e
passaremos entre as duas que se encontram no extremo norte da formação". O seu coração batia regularmente, um pouco mais depressa do que era habitual. Stephen tinha-lhe
extraído dez onças de sangue e Jack pensava que se sentia muito melhor por causa disso. Fosse como fosse, o certo é que no seu cérebro havia uma limpidez e uma desenvol-
tura extremas.
A lua começava a espreitar por sobre o mar alto. Uma canhoneira disparou: um ruído grave, retumbante - a voz de um velho e solitário cão de guarda.
- A luz, Mr Ellis - disse Jack, e um foguete azulado elevou-se nos ares, tendo por objectivo confundir o inimigo. Os espanhóis responderam fazendo sinais com luzes
coloridas e mais um disparo, um disparo longínquo, muito para a direita. -Joanetes! - gritou Jack. -Jeffreys, vire na direcção da luz cor de laranja!
Era magnífico: o Sophie avançava rapidamente na direcção das canhoneiras, determinado, confiante e feliz. Mas as canhoneiras, ao contrário do que Jack previra, não
avançavam na direcção do Sophie. De vez em quando uma ou outra dava uma volta e disparava; porém, no geral, todas elas estavam a recuar. Para as espicaçar, a corveta
guinou e disparou uma surriada que caiu
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entre elas e que, a julgar pelo distante estrondo que se ouviu, surtiu algum efeito. Contudo, as canhoneiras continuaram a afastar-se.
- Malditas! - disse Jack. - Estão a tentar atrair-nos na direcção do porto. Mr Dillon, vela de capa e velas de estai. Vamos atacar a que está mais longe do porto!
O Sophie virou com rapidez para que o vento soprasse de través, e lançou-se a toda a velocidade na direcção da canhoneira mais próxima, tão adernado que as ondas
passavam suavemente por cima das portinholas. Então, as outras canhoneiras demonstraram o que eram capazes de fazer (quando a isso estavam dispostas): todas viraram
num ápice e desataram a disparar um fogo contínuo, enquanto a canhoneira escolhida pelo Sophie fugia para se refugiar no porto, deixando a popa do Sophie desprotegida
frente às demais. Um disparo de um canhão de trinta e seis fez com que todo o casco da corveta voltasse a retinir; uma outra bala passou mesmo por cima das cabeças
dos homens ao longo de toda a coberta; dois brandais foram rompidos pela raiz e caíram em cima de Babbington, Pullings e o timoneiro, deitando-os por terra; e um
pesado polé caiu sobre o próprio leme no momento em que James saltava para tentar controlar as malaguetas.
- Vamos virar, Mr Dillon - disse Jack; e, pouco depois, já o Sophie se afastava, navegando contra o vento.
Os tripulantes da corveta moviam-se com a agilidade e o desembaraço que haviam alcançado ao fim de muitos anos de prática; porém, vistos à luz dos clarões produzidos
pelos disparos das canhoneiras, os seus movimentos assemelhavam-se aos de simples marionetas. Logo após a ordem de "Largar e içar!", sucederam-se rapidamente seis
disparos; e Jack viu os marinheiros que estavam na escota da vela mestra executando uma rápida série de eléctricos movimentos - umas quantas polegadas entre cada
clarão; porém, todos eles exibiam a mesma expressão diligente e concentrada, todos eles se entregavam ao trabalho com todas as suas forças.
- Cochado, meu capitão? - perguntou James.
- Livre um grau - disse Jack. - Mas lentamente, lentamente: veremos se conseguimos atraí-las. Faça baixar dois pés a verga da gávea e afrouxe o amantilho de estibordo.
Quero que eles pensem que não nos atingiram. Mr Watt, teremos de tratar dos brandais do joanete antes de tudo o mais.
E, deste modo, todos se afastaram da costa, navegando pelas mesmas águas que haviam percorrido antes, com o Sophie reparando os seus cabos e as canhoneiras perseguindo-o
e disparando regularmente, enquanto a velha e maliciosa lua subia no céu com a sua habitual indiferença.
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Não havia grande ímpeto naquela perseguição: mesmo assim, porém, pouco depois de James Dillon o ter informado de que as reparações essenciais estavam concluídas,
Jack comentou:
- Se virássemos e largássemos todo o velame tão rápido como um relâmpago, creio que conseguiríamos isolar da costa aqueles patifes.
- Todos aos seus postos! - ordenou James. O contramestre começou a dar ordens e, enquanto subia ao seu posto junto à bolina da gávea mestra, Isaac Isaacs disse para
John Lackey com extrema satisfação:
- Vamos isolar da costa aqueles filhos da puta!
E tê-lo-iam feito se um infortunado disparo não tivesse acertado na verga do joanete de proa do Sophie. Não perderam a vela, mas a velocidade da corveta diminuiu
imediatamente; as canhoneiras viraram em redondo e começaram a afastar-se na direcção do porto, o melhor dos refúgios.
- bom, Mr Ellis - disse James quando a luz do amanhecer permitiu ver os inúmeros danos que a enxárcia da corveta havia sofrido durante a noite -, aqui tem uma magnífica
oportunidade para aprender a sua profissão; creio que aqui há trabalho suficiente para o manter ocupado até ao crepúsculo, ou talvez mesmo até mais tarde, pois poderá
fazer todo o tipo de costuras e nós e ainda forrar e percintar. - James Dillon estava singularmente alegre e de quando em quando corria pela coberta, trauteando
ou cantando algo não identificável.
Seria também preciso guindar a nova verga, reparar alguns buracos produzidos pelos disparos e voltar a ligar o gurupés à proa, porque uma bala fizera o mais estranho
dos ricochetes e cortara metade das voltas do nó sem sequer tocar na madeira - algo que os marinheiros mais velhos nunca haviam visto, um prodígio que merecia figurar
no diário de bordo. Durante todo o dia, um dia muito agradável e cheio de sol, o Sophie permaneceu naquele local sem que ninguém o importunasse, enquanto os tripulantes,
tal qual abelhas, trabalhavam arduamente para pôr tudo em ordem, mantendo-se ao mesmo tempo alerta e preparados para a acção, ansiando pela próxima batalha. Era
muito curiosa a atmosfera a bordo: os homens sabiam muito bem que em breve voltariam a aproximar-se da costa, talvez para alguma incursão, talvez para uma expedição
rápida; muitas coisas afectavam o seu estado de espírito - as capturas do dia anterior e da terça-feira transacta (havia o consenso de que cada homem já tinha mais
catorze guinéus do que quando havia zarpado); a imutável seriedade do seu capitão; a enraizada convicção de que Jack Aubrey dispunha de informações secretas sobre
os movimentos dos navios espanhóis; e a estranha e repentina alegria, roçando a
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frivolidade, do primeiro-oficial. James Dillon surpreendera Michael e Joseph Kelly, Matthew Johnson e John Melsom roubando na entreponte do Felipe V, o que constituía
um delito muito grave, julgado em conselho de guerra (embora fosse costume fazer vista grossa se os homens roubassem alguma coisa que estivesse acima das escotilhas);
a verdade, porém, é que James Dillon não dera parte do caso. Os culpados espreitavam-no a toda a hora, por detrás de mastros, vergas e botes; e o mesmo faziam os
seus companheiros, pois os tripulantes do Sophie eram muito dados a actos de rapina. O resultado de todos estes factores era uma estranha atmosfera caracterizada
por uma azáfama constante e por uma vigilância mesclada de uma alegria contida, e não isenta de alguma ansiedade.
com todos os homens tão ocupados, Stephen sentia alguns escrúpulos em ir para a sua bomba de tronco de olmo, como fazia diariamente, para, uma vez desmontada a parte
superior, observar através dela as maravilhas do mar; a sua presença ali tornara-se um facto tão normal que, para os tripulantes, era como se o doutor e a bomba
fossem uma e a mesma coisa - e falavam como se o doutor não estivesse presente; contudo, ao dar-se conta da atmosfera que prevalecia a bordo, Stephen não pôde deixar
de partilhar a inquietação que lhe subjazia.
James Dillon mostrou-se particularmente animado ao jantar; convidara de maneira informal Pullings e Babbington, e a presença destes, coincidindo com a ausência de
Marshall, deu à refeição um certo ar festivo, ainda que o tesoureiro estivesse pensativo e silencioso. Stephen observava James enquanto este, com uma voz atroadora,
se juntava ao coro da canção de Babbington:
A lei é esta e eu hei-de proclamar Até ao último dos meus dias, senhor, Que seja qual for o rei que hã-de reinar De Bray hei-de ser o desejado prior.
- Muito bem! - exclamou Dillon batendo na mesa. - Agora vinho para todos, para molharmos as nossas goelas! E depois temos de voltar à coberta, embora fique mal a
um anfitrião dizer uma coisa destas! Que reconfortante que é voltar a lutar contra navios de uma armada real, em vez desses malditos navios corsários! - observou,
a propósito de nada, quando os jovens e o tesoureiro já tinham partido.
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- Não há duvida, o meu amigo é um romântico! - disse Stephen.
- Uma bala disparada pelo canhão de um corsário faz o mesmo buraco que a do canhão de um rei.
- Romântico, eu? - exclamou James, verdadeiramente indignado, um brilho irado esboçando-se nos seus olhos verdes.
- É verdade, meu caro - disse Stephen. E, depois de aspirar um pouco de rapé, acrescentou: - Tenho a certeza de que a seguir me vai falar do direito divino dos reis.
- bom, apesar do seu entusiasmo por essas extravagantes ideias sobre a igualdade, não negará por certo que o rei é a única fonte de honra.
- Não - disse Stephen. - Nem por um momento.
- Da última vez que estive no meu país - disse James, enquanto enchia o copo de Stephen -, fui ao velório do velho Terence Healy, que fora caseiro do meu avô. Cantavam
uma canção que me perseguiu durante todo o dia de hoje, mas não consigo lembrar-me de tudo.
- Era uma canção irlandesa ou inglesa ?
- Também tinha palavras em inglês. Começava assim: :,
Oh, os gansos selvagens, voando, voando, voando, Os gansos selvagens sobre o mar cinzento nadando.
Stephen assobiou um compasso e, depois, com a sua voz áspera e desagradável, cantou:
Nunca mais voltarão, porque o cavalo branco se espantou
Espantou e relinchou,
No verde prado o cavalo branco relinchou.
- É isso mesmo, é isso mesmo! - exclamou James, e saiu trauteando; ao chegar à coberta, verificou que o Sophie estava recuperando toda a sua força.
Ao pôr-do-sol, a corveta dirigiu-se para o mar alto, dando sinais muito claros de que o seu afastamento da costa seria definitivo, e rumou a Minorca a velocidade
moderada; contudo, pouco antes do alvorecer abeirou-se de novo
da costa, com a mesma brisa favorável, um pouco a noroeste, tão fria e húmida que parecia outonal; e essa humidade fez lembrar a Stephen os cogumelos que povoavam
os bosques de faias; e, por sobre as águas, pairavam etéreas névoas, etéreas e volúveis, algumas delas de um castanho absolutamente invulgar.
O Sophie, seguindo um rumo nor-noroeste, abeirava-se da costa;as redes de dormir já tinham sido guardadas; os aromas do café e do bacon frito misturavam-se nos torvelinhos
que subiam pelo lado de barlavento da tensa vela de capa. À proa da coberta, aquela estranha névoa castanha ocultava ainda o vale e a foz do rio Llobregat; mas,
mais a norte, na direcção da cidade que começava a esboçar-se no horizonte, a cerração tinha-se dissipado quase por completo com os primeiros raios de sol - restavam
apenas alguns farrapos de nevoeiro que poderiam ser confundidos com promontórios, ilhas, bancos de areia.
- Eu sei, eu sei, aquelas canhoneiras pretendiam atrair-nos a uma armadilha - disse Jack Aubrey -, e estou ansioso por saber que armadilha era essa. - Jack não era
muito bom a fingir e Stephen convenceu-se de que o capitão sabia muito bem de que armadilha se tratava, ou pelo menos teria uma ideia muito aproximada.
Os raios de sol brincavam já na superfície da água, dando-lhe tonalidades diversas e maravilhosas, erguendo novas cerrações, dissolvendo outras, desenhando requintados
padrões de sombra no meio dos tensos cabos da enxárcia e das curvas puras das velas e também na alvura da coberta, agora ainda mais branca porque os homens estavam
a esfregá-la com zorra, deixando-a resplandecente: então, com um movimento rápido mas imperceptível, uma capa de névoa azul-acinzentada dissipou-se, revelando uma
enorme embarcação a três graus pela amura de bombordo, rumando a sul. O vigia anunciou a presença da referida embarcação, mas com uma voz perfeitamente normal e
por mera formalidade, já que, com a dissolução da névoa, qualquer homem que estivesse na coberta podaria ver o casco do desconhecido.
- Muito bem - disse Jack guardando o óculo depois de uma longa observação. - Que acha deste navio, Mr Dillon?
- Creio que é o nosso velho amigo, meu capitão - disse James.
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- Também eu. Largue a vela de estai grande. Orçaremos para nos abeirarmos dele. Dê ordens para limpar a proa e secar a coberta. E chame para o pequeno-almoço. Venha
tomar um café comigo e com o doutor. Seria uma pena desperdiçar um café tão bom.
- com todo o gosto, meu capitão.
Pouco conversaram durante o pequeno-almoço. Jack disse a certa altura:
- Doutor, imagino que prefira que calcemos meias de seda.
- Meias de seda? Por que raio é que hão-de calçar meias de seda?
- Ora, doutor, porque toda a gente diz que é mais fácil se o cirurgião precisar de cortar.
- Ah, sim, sim, claro! Fazem muito bem. Calcem todos meias de seda.
Embora pouco falassem, era inegável que uma camaradagem indissolúvel unia aqueles três homens - não precisavam de falar para que essa camaradagem se tornasse evidente;
e Jack, ao levantar-se para vestir a casaca do uniforme, virou-se para James e disse-lhe:
- Não há dúvida, o senhor tem toda a razão - como se tivessem estado a falar da identidade do navio desconhecido durante todo o pequeno-almoço.
Ao regressar à coberta, Jack pôde confirmar as suas suspeitas: o navio em causa era mesmo o Cacafuego; alterara o seu rumo para se encontrar com o Sophie, e agora
estava a largar as varredouras. Através do seu óculo, Jack podia ver o brilho rubro e escarlate do seu costado, profusamente iluminado pelo sol.
- Todos à popa! - disse. E enquanto a tripulação se reunia, Stephen viu desenhar-se um sorriso no rosto de Jack, um sorriso que reprimiu com grande esforço, pois
era preciso que a sua expressão se mantivesse o mais grave possível,
- Atenção! - disse Jack, contemplando todos os seus homens com um prazer óbvio. - Temos o Cacafuego a barlavento. Eu sei que alguns de vós não ficaram propriamente
muito contentes da última vez que o vimos, pois deixámo-lo partir sem sequer o saudarmos; mas agora, agora que temos uma artilharia que é a melhor da frota, o caso
muda completamente de figura! Portanto, Mr Dillon, preparemo-nos para a batalha!
Quando começara a falar, cerca de metade dos tripulantes do Sophie fitavam-no com evidente entusiasmo; um quarto deles pareciam algo preocupados; e os restantes
tinham o abatimento e a ansiedade espelhados nos rostos. Porém, a felicidade tranquila que irradiava dos rostos do capitão e do primeiro-oficial, e os vivas espontâneos
e deliciados da primeira metade da tripulação, alteraram radicalmente esta situação; e quando começaram a
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desimpedir o navio para combate, haveria apenas quatro ou cinco com um ar acabrunhado - quanto aos outros, quem os visse diria por certo que iam à
feira.
O Cacafuego, que agora tinha pano redondo, descia com a costa à vista e virava para oeste a fim de se colocar a barlavento do Sophie, pelo lado do mar alto; e o
Sophie virava para se colocar contra o vento. Desse modo, quando a distância entre as duas embarcações fosse de meia milha, o Sophie ficaria completamente desprotegido
face a uma devastadora surriada daquela fragata de trinta e dois canhões.
- O lado agradável das batalhas contra os espanhóis, Mr Ellis - disse Jack, sorrindo para os olhos esbugalhados e o rosto solene do jovem -, não está no facto de
os espanhóis serem cobarde, pois os espanhóis serão tudo menos cobardes; mas sim no facto de nunca, mas nunca, estarem preparados.
O Cacafuego estava quase a chegar à posição indicada pelo seu comandante: disparou um canhonaço e içou a bandeira espanhola.
- A bandeira americana, Mr Babbington! - ordenou Jack. - Isso dar-lhes-á que pensar por uns momentos... Tome nota da hora, Mr Richards!
Agora a distância diminuía muito rapidamente - segundo a segundo, e não minuto a minuto. O Sophie apontava a sua proa à popa do Cacafuego, como se pretendesse cortar
a esteira do navio espanhol; e não havia um único canhão que a corveta pudesse apontar. Havia um silêncio total a bordo, pois toda a tripulação estava pronta para
a ordem de virar - uma ordem que, muito provavelmente, não surgiria antes da surriada.
- Atenção à bandeira! - disse Jack em voz baixa: e logo a seguir, mais alto: - Para a direita, Mr Dillon!
- Virar a sotavento! - ouviu-se; e a voz do contramestre ouviu-se quase nesse mesmo instante; o Sophie virou, içou a bandeira inglesa, tomou o seu novo rumo e avançou
na direcção do costado da fragata espanhola. O Cacafuego disparou imediatamente, uma estrondosa surriada que passou à altura dos joanetes do Sophie, fazendo apenas
quatro buracos. Todos os tripulantes do Sophie desataram aos vivas e permaneceram tensos e ansiosos junto aos seus canhões, carregados em triplicado.
- Elevação máxima! Só disparar quando tocarmos! - gritou Jack com uma voz tremenda, ao mesmo tempo que observava as capoeiras, as caixas e os trastes que a fragata
estava a lançar ao mar. Através do fumo, pôde ver patos libertando-se e afastando-se de uma das capoeiras e também um gato enfiado numa caixa: como seria de esperar,
o animal estava completamente
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em pânico. Sentiam já o cheiro a pólvora e a névoa dissolvia-se cada vez mais. A corveta aproximava-se cada vez mais da fragata; no último momento, quando se colocasse
a sotavento da fragata espanhola, a falta de vento impedi-la-ia de se mover, mas a velocidade a que ia seria suficiente... Jack pôde ver as negras bocas dos canhões
espanhóis que nesse preciso momento vomitaram fogo, produzindo intensos clarões no meio de uma nuvem branca de fumo que ocultou o seu costado. "Demasiado alto uma
vez mais", pensou Jack, mas não tinha tempo para emoções enquanto procurava enxergar o costado da fragata por entre o fumo, a fim de conduzir a corveta precisamente
na direcção das principais mesas de enxárcia da fragata.
- Em frente, rápido! - gritou; e quando se ouviu o tremendo rangido do choque, ordenou: - Fogo!
O xeec-fragata estava baixo na água, mas o Sophie ainda estava mais baixo. Tinha as vergas presas à enxárcia do Cacafuego e os canhões abaixo do nível das portinholas
da fragata. Alvejou directamente a coberta do Cacafuego e a sua primeira surriada, disparada a uma distância de seis polegadas, produziu um efeito verdadeiramente
devastador. Houve um silêncio momentâneo após os vivas dos tripulantes do Sophie e, durante essa pausa de meio segundo, Jack pôde escutar uma gritaria confusa no
castelo de popa do xeec-fragata. Os canhões espanhóis voltaram a disparar, de forma irregular agora, mas com um estrondo verdadeiramente impressionante - as balas
passavam cerca de três pés acima da cabeça de Jack.
A bateria do Sophie disparava com uma cadência magnífica, um-dois"-três-quatro-cinco-seis-sete, com uma cadência que se assemelhava à do rufar do tambor, com meia
batida no final e o estrondo das carretas; e, à quarta ou quinta pausa, James agarrou Jack pelo braço e gritou-lhe:
- Deram ordem de abordar!
- Mr Watt, afaste a corveta! - gritou Jack, dirigindo a sua trombeta na direcção da proa. - Sargento, todos preparados! - Um dos brandais do Cacafuego caíra a bordo,
obstruindo a carreta de um canhão; Jack afastou-o, pondo-o à volta de um pé-de-carneiro e, ao erguer os olhos, deparou com um enxame de marinheiros espanhóis surgindo
no costado do Cacafuego. Os fuzileiros e os homens com armas ligeiras dispararam uma imponente descarga que os fez vacilar. A distância entre os navios aumentava
à medida que o contramestre, à proa, e a brigada de Dillon, à popa, iam empurrando com as suas varas. No meio de um intenso crepitar de tiros de pistola, alguns
espanhóis tentaram saltar e outros tentaram lançar fateixas; alguns caíram à água e outros recuaram. Os canhões do Sophie, agora apenas a dez pés do costado da
fragata, dispararam contra o grupo de indecisos, abrindo sete medonhos buracos.
O Cacafuego abatera a proa, colocando-a quase na direcção sul, e o Sophie dispunha de todo o vento de que precisava para voltar a fazer a abordagem. De novo explodiu
um ruído atroador que ecoou nos céus; os espanhóis tentavam baixar os seus canhões e faziam fogo com mosquetes e pistolas, disparando cegamente pela borda, com um
único e exclusivo objectivo: matar os artilheiros do Sophie. Os esforços dos espanhóis eram sem dúvida valorosos
um deles continuou a disparar, apesar de ferido uma e duas vezes; só ao
terceiro tiro se calou; no entanto, pareciam completamente desorganizados. Procuraram abordar mais duas vezes e, em ambas as ocasiões, a corveta separou-se, disparou
cinco ou dez minutos contra as obras mortas, provocando uma horrenda carnificina, e logo voltou a abeirar-se para destroçar as entranhas da fragata. Os canhões continuavam
a recuar com violência depois de cada surriada; e estavam já tão quentes que os homens mal conseguiam tocar-lhes. Os escovilhões silvavam e chamuscavam-se quando
penetravam nos canhões - estes estavam a tornar-se quase tão perigosos para os artilheiros como para os seus inimigos.
Durante todo esse tempo, os espanhóis tinham continuado a disparar de uma forma irregular, espasmódica, mas sem nunca pararem. O cesto da gávea maior do Sophie fora
atingido por vários disparos e estava já a desfazer-se - grandes pedaços de madeira caíam na coberta. A verga do traquete estava segura apenas pelas suas amarras.
A enxárcia ameaçava ceder por todo o lado e as velas tinham inúmeros buracos; a bordo do Sophie caíam constantemente projécteis incendiários e as brigadas de estibordo,
que estavam desocupadas, corriam de um lado para o outro com baldes de água. Contudo, apesar de toda esta confusão, a movimentação dos homens na coberta do Sophie
revelava uma ordem perfeita, um padrão magnífico - a pólvora subindo do paiol, o disparo, o constante subir-disparar-subir-disparar das brigadas de artilheiros,
a substituição imediata, sem uma palavra, de um homem ferido ou morto que logo era levado para baixo, a atenção extrema dos homens que avançavam por entre o denso
fumo - não havia choques nem empurrões e quase não se ouvia uma ordem.
"Não tarda muito ficaremos só com o casco", pensou Jack: era inacreditável que ainda não tivesse caído nenhum mastro ou verga; mas essa afortunada situação não duraria
muito tempo. Inclinando-se para Ellis, Jack segredou-lhe:
- Vá rapidamente à cozinha e diga ao cozinheiro que ponha a jeito
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todos os tachos e panelas mais sujos de fuligem. Pullings, Babbington, cessar fogo! Recuar, recuar! Gáveas de capa! Mr Dillon, depois de eu falar com a tripulação,
deixe o quarto de estibordo ir à cozinha! Quero que eles fiquem com as caras bem pretas! Atenção a todos! Atenção a todos! - gritou Jack enquanto o Cacafuego avançava
lentamente. - Iremos abordá-lo e apresá-lo. Terá de ser agora, agora ou nunca! Terá de ser agora enquanto eles vacilam! Cinco minutos lutando com todas as nossas
forças e a fragata será nossa! Peguem nos machados e nas espadas e em frente! Os homens do quarto de estibordo vão à cozinha pintar as caras de preto e seguem com
Mr Dillon! Os outros ficarão à popa comigo!
Desceu rapidamente à enfermaria. Stephen tinha quatro feridos e dois mortos.
- Vamos abordar - disse Jack. - Preciso do seu ajudante, de todos os homens a bordo. Vem connosco?
- Não, eu não irei - retorquiu Stephen. - Se quiser, encarrego-me do leme.
- Sim, sim, isso mesmo. Vamos - disse Jack.
Na coberta repleta de escombros, através do fumo Stephen viu o enorme tombadilho do xebec a umas vinte jardas pela amura de bombordo; viu também os tripulantes do
Sophie formando dois grupos; um deles saía da cozinha e dirigia-se para a proa, com todos os seus elementos armados e com as caras pintadas de preto; e o outro encontrava-se
já à popa, alinhando ao longo da amurada - neste último grupo encontravam-se o tesoureiro, pálido e com um olhar furibundo, tresloucado; o condestável, que piscava
os olhos, de tão habituado que estava à escuridão do interior da corveta; o cozinheiro, com o seu cutelo; o camareiro; o barbeiro do navio e mesmo o ajudante deste.
Stephen reparou no lábio leporino deste último e no seu sorriso imenso, triunfal; o rapaz acariciava a ponta do machado de abordagem e repetia: "Vão levá-las, seus
filhos da puta! Vão levá-las, seus filhos da puta!". Alguns canhões espanhóis continuavam a disparar - embora para o vazio.
- Bracear! - gritou Jack, e as vergas começaram a mudar de direcção para que o vento enchesse as gáveas. - Meu caro doutor, sabe o que tem de fazer? - Stephen assentiu
com a cabeça e, ao segurar nas malaguetas, pôde sentir a vitalidade do leme. O oficial de derrota afastou-se então do leme e pegou num alfange com uma expressão
de macabro regozijo. - Doutor perguntou Jack -, como se diz em espanhol "mais cinquenta homens"?
- Pode ser... otros cinquenta.
- Otros cinquenta - repetiu Jack, olhando para o médico com um
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sorriso extremamente afectuoso. - Manobre agora para que possamos abordar. - Depois de uma última saudação com a cabeça, Jack dirigiu-se para a amurada e subiu-a
agilmente apesar da sua corpulência; aí permaneceu agarrado a um ovem e brandindo a sua espada, uma comprida e pesada espada de cavalaria.
Apesar dos seus buracos, as gáveas incharam; o Sophie aproximou-se da fragata; Stephen virou o leme com rapidez; ouviu-se um tremendo rangido, o zunido de alguns
cabos rompendo-se; houve por fim uma forte sacudidela e os dois navios ficaram como que colados. com um violento clamor à proa e à popa, os tripulantes do Sophie
saltaram para a fragata.
Jack saltou por cima da destroçada borda da fragata e foi cair junto a um canhão ainda quente e fumegante; o artilheiro mais próximo avançou para si com um machado.
Em resposta, Jack atacou-o lateralmente, por altura da cabeça, mas o homem esquivou-se, agachando-se com rapidez; Jack saltou então por cima do artilheiro e correu
para o centro da coberta do Cacafuego.
- Em frente! Em frente! - gritou com uma voz atroadora, avançando e lançando golpes furiosos contra os artilheiros que fugiam e, em seguida, contra os piques e as
espadas que se lhe opunham: havia centenas, centenas de homens na coberta, reparou Jack; mas continuava a gritar: - Em frente! Em frente!
Os espanhóis recuavam, como que espantados, enquanto todos os marinheiros e grumetes do Sophie subiam a bordo pelo centro e pela proa do xebec. Os homens do Cacafuego
recuavam desde as proximidades do mastro principal até ao convés; uma vez aí chegados, porém, recobraram forças. Seguiu-se então um combate feroz e todos os homens
davam e recebiam golpes atrozes - uma massa muito densa de homens lutando, tropeçando nas vergas, quase sem espaço para caírem, alvejando-se com pistolas, ferindo
o inimigo com machados e espadas e piques; e outros, em grupos isolados de dois ou três, pelejavam junto à borda, urrando como animais. Na zona menos densa da batalha,
Jack avançara cerca de três jardas; um soldado estava agora diante de si: quando as suas espadas chocaram bem alto, um homem com um pique atingiu-o sob o braço direito,
levantando-lhe a carne das costelas, e logo retirou o pique para lho cravar de novo. Bonden disparou por trás do homem, arrancando a parte inferior da orelha de
Jack e matando o homem do pique nesse mesmo instante. Jack fintou o soldado espanhol e deu-lhe um golpe no ombro com uma força tremenda. Atrás de si, os combates
recrudesciam de intensidade. O soldado caiu gravemente ferido. Jack puxou pela espada, que chegara até ao osso, e deu uma olhadela rápida à sua volta.
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- Isto assim não vai resultar - disse.
No castelo de proa, os espanhóis, já quase recuperados da surpresa inicial e com a força do seu elevado número (eram quase trezentos), obrigavam os homens do Sophie
a recuar, rompendo a ligação entre o destacamento de Jack e o de Dillon. O avanço de Dillon fora certamente retido. As coisas poderiam mudar a qualquer momento.
Jack subiu a um canhão e gritou com tanta força que ficou com a garganta destroçada:
- Dillon! Dillon! À amurada de estibordo! Abra caminho até à amurada de estibordo! - Por um momento, no limite do seu campo de visão, pôde ver Stephen lá muito em
baixo, na coberta do Sophie: com o leme nas mãos, olhava tranquilamente para cima. - Otros cinquenta,! - gritou-lhe Jack, e Stephen, assentindo com a cabeça, respondeu-lhe
qualquer coisa em espanhol; então, Jack voltou ao combate, com a espada erguida e a pistola preparada.
Nesse instante ouviram-se gritos medonhos no castelo de proa; a luta para chegar à amurada tornou-se mais encarniçada, mais desesperada; houve algo que cedeu por
detrás da densa massa de tripulantes espanhóis no convés; estes viraram-se e deram com umas caras negras que se acercavam rapidamente deles. Formou-se uma confusa
aglomeração em torno do sino da fragata; ouviam-se os mais diversos gritos; os homens do Sophie com a cara pintada de preto davam vivas como loucos ao juntarem-se
aos seus companheiros; ouviam-se tiros, o choque das armas, passos apressados de uma retirada. Todos os espanhóis que estavam apinhados no convés ficaram como que
paralisados, incapazes de lutar. Os poucos que estavam no castelo de popa correram para a proa pelo costado de bombordo, numa tentativa de reunirem e organizarem
os homens - ou, pelo menos, para permitir que os fuzileiros se retirassem, pois não poderiam lutar naquelas condições.
O adversário de Jack, um marinheiro de baixa estatura, afastou-se contorcendo-se até cair por detrás do cabrestante. Jack soltou um suspiro de alívio, apreciou a
situação em toda a coberta e gritou:
- Bonden! Arriar a bandeira!
Bonden correu à popa, saltando por sobre o cadáver do capitão espanhol. Jack gritou, chamando a atenção de todos para a bandeira. Centenas de olhos, uns atentos,
outros desconcertados, viram a bandeira do Cacafuego baixando rapidamente.
Tudo tinha acabado.
- Cessar o combate! - ordenou Jack, e a ordem espalhou-se rapidamente por toda a coberta. Os homens do Sophie afastaram-se dos homens
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amontoados no convés e estes deixaram cair as suas armas, subitamente desanimados, assustados, defraudados. Do meio da multidão, abrindo caminho com evidente dificuldade,
avançou o oficial espanhol de posto mais alto que sobrevivera aos combates. O oficial postou-se diante de Jack e entregou-lhe a sua espada.
- Fala inglês? - perguntou Jack.
- Compreendo, capitão - disse o oficial.
- Os marinheiros deverão baixar ao porão imediatamente - disse Jack.
- Os oficiais ficam na coberta. Os marinheiros irão para o porão. Para o porão.
Os espanhóis deram a ordem: a tripulação da fragata começou a desfilar pelas escotilhas. Ao descerem, permitiram que os mortos e os feridos ficassem bem à vista
- uma massa emaranhada de corpos no centro do navio, muitos mais à proa, corpos dispersos por todo o lado - e também se tornou patente qual era o número real de
contendores.
- Rápido! Rápido! - gritou Jack Aubrey, e os seus homens obrigaram os prisioneiros a baixar mais depressa ao porão, agrupando-os diligentemente, porque eles compreendiam
tão bem como o seu comandante o perigo que existia. - Mr Day, Mr Watt, apontem um par dessas caronadas para as escotilhas. Carreguem-nos com metralha. Há muitas
caixas de metralha nas grinaldas de proa. Onde está Mr Dillon? Chamem Mr Dillon!
Chamaram-no, mas não houve resposta. Dillon estava estendido perto da amurada de estibordo, onde tinham ocorrido os combates mais encarniçados, a poucos passos do
jovem Ellis. Quando o levantou, Jack pensou que Dillon estaria apenas ferido; porém, ao voltá-lo, viu a ferida enorme que havia no seu coração.
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CAPÍTULO ONZE
Sophie, corveta de Sua Majestade ao largo de Barcelona
Excelência:
Tenho a honra de lhe comunicar que a corveta que tenho a honra de comandar, depois de mútua perseguição e de intensos combates, capturou um xebec-fragata espanhol
de trinta e dois canhões
- vinte e dois longos de doze libras, oito de nove libras e duas potentes caronadas -, a saber, o navio Cacafuego, comandado por Don Martin de Langara, com uma tripulação
de 319 oficiais, marinheiros e fuzileiros. A disparidade de forças levou-nos a adoptar certas medidas que se revelaram decisivas. Decidi abordá-lo e a abordagem
realizou-se quase sem baixas. E depois de violentos combates corpo-a-corpo, os espanhóis foram obrigados a arriar a sua bandeira. No entanto, terei de lamentar o
falecimento do tenente Dillon, que caiu no auge da batalha, comandando o seu destacamento de abordagem, e de Mr Ellis, um supranumerário; ao passo que Mr "Watt,
o contramestre, e cinco marinheiros sofreram ferimentos graves. Dificilmente poderei encontrar palavras para elogiar adequadamente a valentia com que Mr Dillon se
comportou e o impetuoso ataque que foi capaz de lançar.
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"Eu vi-o durante um breve momento", dissera-lhe Stephen, "vi-o através do buraco que se abriu entre duas portinholas e que as converteu numa só: estavam a combater
junto ao canhão e foi então que você gritou do alto daquela escada que há no convés; James estava na frente - os homens com a cara pintada de preto estavam atrás
dele. Vi-o alvejar com a pistola um homem que tinha um pique, trespassar logo depois com a espada um outro que tinha derrubado o contramestre e, finalmente, confrontar-se
com um oficial - sei que era um oficial porque tinha casaca vermelha. Depois de uns quantos gestos rápidos, James conseguiu tirar a espada ao oficial com um disparo;
arremeteu então contra ele, mas a sua espada bateu contra o esterno ou contra uma placa de metal e dobrou-se e partiu-se: porém, com as seis polegadas de espada
que lhe restaram, golpeou o homem com uma força e uma rapidez inconcebíveis. A felicidade que havia no seu rosto! Inacreditável! O brilho que havia nos seus olhos!".
Gostaria de acrescentar que nenhuma tripulação poderia ter demonstrado um comportamento mais valoroso, nem uma maior determinação e serenidade do que os homens do
Sophie. Desejaria ainda expressar o meu profundo reconhecimento pelo magnífico esforço e notável conduta do timoneiro, do carpinteiro, do condestável, dos suboficiais
e ainda de Mr Pullings, guarda-marinha graduado e tenente em funções, que lhe rogo recomende a Sua Senhoria.
Tenho a honra de, etc. etc.
Forças do Sophie no início da acção: 54 oficiais, marinheiros e grumetes. 14 canhões de quatro libras. 3 mortos e 8 feridos.
Forças do Cacafuego no início da acção: 274 oficiais, marinheiros e supranumerários. 45 fuzileiros. 32 canhões. O capitão, o contramestre e 13 marinheiros mortos;
41 feridos.
Leu e voltou a ler a carta; na primeira linha mudou "Tenho a honra" por "Tenho a satisfação"; assinou "John Aubrey" e endereçou-a a Mr Harte não a Lorde Keith, infelizmente,
pois o almirante estava no outro extremo do Mediterrâneo e toda a correspondência tinha de passar pelas mãos do comandante Harte.
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Era uma carta razoável; não muito boa, apesar de todos os seus esforços e revisões. Não, de facto escrever não era com ele. Mesmo assim, a carta relatava fielmente
os factos - alguns deles - e não continha nenhuma falsidade, exceptuando a indicação "ao largo de Barcelona", que era uma falsidade normal, pois toda a gente fazia
isso; na realidade, porém, a carta fora escrita em Mahón, um dia depois da chegada da corveta; e Jack Aubrey pensava que tinha feito justiça a toda a gente - ou
pelo menos fizera a justiça possível, pois Stephen Maturin insistira para que não referisse o seu nome. Porém, mesmo que fosse erigida em modelo de eloquência naval
(e nunca o seria), aquela carta revelava-se profundamente inadequada - como concluiria qualquer oficial da Marinha que a lesse. Por exemplo: falava da batalha como
algo isolado no tempo, como um facto desapaixonadamente observado, como um acontecimento que se desenrolara segundo uma certa lógica e que, agora, era recordado
com toda a clareza - quando, na realidade, quase todos os factos realmente importantes tinham ocorrido antes ou depois da batalha; e, no que respeitava a esses factos,
Jack dificilmente conseguiria estabelecer uma cronologia. Quanto ao período que se sucedeu à vitória, Jack Aubrey seria incapaz de se recordar de toda a sequência
de factos sem a ajuda do diário de bordo: na sua cabeça havia apenas uma imagem vaga, um borrão indistinto, feito de incessantes esforços, de extrema ansiedade e
de imenso cansaço. Trezentos prisioneiros furibundos deveriam permanecer no porão, guardados por duas dúzias de tripulantes do Sophie, os quais, além disso, teriam
de conduzir a presa de seiscentas toneladas até Minorca, suportando um mar alteroso e ventos tremendos; seria preciso renovar quase todo o aparelho da corveta, reparar
os mastros, mudar as vergas, envergar velas novas - e o contramestre era um dos feridos graves; uma viagem repleta de dificuldades - de facto, a um passo da catástrofe
-, quase sem nenhuma ajuda, fosse do mar, fosse dos céus. Uma vaga recordação apenas, um borrão muito incerto, e uma sensação opressiva; um sentimento de que a batalha
se saldara mais pela derrota do Cacafuego do que pela vitória do Sophie; e uma pressa constante, esgotante, como se a vida se resumisse à palavra "pressa". Enfim:
um nevoeiro apenas rompido por umas quantas - muito poucas - cenas extremamente claras: Pullings, na coberta repleta de sangue do Cacafuego, gritando-lhe ao ouvido
quase surdo que as canhoneiras tinham saído de Barcelona; a sua determinação em disparar contra as canhoneiras com a bateria da fragata que ficara intacta; o imenso
alívio que sentiu ao verificar, incrédulo, que as canhoneiras estavam a voltar para trás - voltavam para trás? porquê? -, tornando-se
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cada vez mais pequenas, confundido-se por fim com aquele horizonte ameaçador.
O som que o acordou no quarto de modorra: um gemido quase sufocado que foi aumentando por quartos de tom ou menos, até se transformar num grito imenso; depois, uma
série rápida de orações ou cânticos, e de novo aquele gemido que ia crescendo de intensidade e de novo o grito horrendo os tripulantes irlandeses velavam James Dillon,
que jazia com uma cruz entre as mãos e lanternas junto da cabeça e dos pés.
E os funerais. Ellis, pouco mais do que uma criança, parecia enchouriçado na sua rede, coberto com a bandeira que fora cosida à rede. E agora, ao lembrar-se desse
momento, os olhos de Jack voltavam a enevoar-se: chorara rios de lágrimas, que lhe corriam pelas faces enquanto os corpos eram lançados ao mar e os fuzileiros disparavam
as salvas.
"Santo Deus!", pensou, "Santo Deus!". Ao redigir a carta e ao trazer de novo à memória os factos passados, sentiu-se invadido de novo por uma aterradora tristeza.
A mesma tristeza que o acompanhara desde o final da batalha até que o vento esmoreceu a poucas milhas do Cabo Mola, obrigando-os a parar, e ele ordenou que disparassem
- a única maneira de pedir com urgência ajuda e um piloto; a mesma tristeza que, no entanto, travava uma batalha perdida contra a alegria que o inundava por vezes.
Ergueu os olhos e, enquanto acariciava a orelha ferida com a pena, procurou recordar o momento em que a alegria explodira no seu coração; e, pelas janelas da cabina,
atentou na prova evidente - gritante - da sua vitória, amarrada no cais do estaleiro; o costado de bombordo da fragata, ainda intacto, estava virado para o Sophie,
e as águas pálidas do Outono reflectiam o vermelho e os resplandecentes dourados da sua pintura; e a fragata parecia tão majestosa e perfeita como no primeiro dia
em que a vira.
Talvez tivesse sido quando recebeu as primeiras felicitações incrédulas, estupefactas, por parte de Sennet, do Belleropbon, cujo bote fora o primeiro a acercar-se
do Sophie. E as felicitações nunca mais pararam: de seguida foi Butler, do Naiad, e o jovem Harvey, e tom Widdrington e alguns guardas-mannhas, e também Marshall
e Mowett que, embora furibundos por não terem participado na batalha, irradiavam já todo o brilho da gloriosa acção dos seus camaradas. Os seus botes rebocaram o
Sophie e a sua presa; os seus homens substituíram os exaustos fuzileiros e grumetes que guardavam os prisioneiros; e Jack sentiu o peso irresistível da fadiga acumulada
durante todos aqueles dias e noites, como se fosse uma suave mas portentosa nuvem descendo sobre a sua cabeça, e adormeceu no meio das perguntas de Mowett e
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Marshall. Aquele sono maravilhoso - e o despertar no porto tranquilo, para receber uma breve nota, cuidadosamente dobrada e fechada, e não assinada, de Molly Harte.
Talvez tenha sido nesse preciso instante. A alegria, ou uma imensa onda de prazer, estava já com ele ao acordar. Lastimava amargamente a morte dos seus companheiros
- teria dado a mão direita se isso pudesse salvá-los; além disso, à mágoa que sentia pela morte de Dillon associava-se um sentimento de culpa cujas causas e natureza
lhe escapavam; no entanto, um oficial no activo, em tempo de guerra, pode sofrer intensamente - mas esse sofrimento nunca é duradouro. Graças a uma reflexão serena
e objectiva, concluiu que não existiam muitos casos em que um navio, agindo isoladamente, enfrentasse com êxito um adversário muito superior, e que, a menos que
fizesse uma imensa loucura, a menos que explodisse e voasse pelos ares, tão alto como o Boyne, as próximas notícias que receberia do Almirantado seriam que o seu
nome passaria a ser incluído na lista do Boletim Oficial - ou seja, que seria nomeadopost-captain.
com um pouco de sorte, dar-lhe-iam uma fragata: e desfilaram pela sua mente esses gloriosos navios, a aristocracia dos navios - Emerald, Seahorse, Terpsichore, Phaeton,
Subylle, Sirius, o afortunado Ethalion, Naiad, Alemène e Triton, o veloz Thetis. Endymion, San Fiorenzo, Amélia... dúzias deles: mais de uma centena em serviço.
Teria direito a uma fragata? Não, nem por isso: um navio de vinte canhões seria mais adequado, um navio de sexta categoria. Não, não tinha direito a uma fragata.
Nem a atacar o Cacafuego; nem a possuir Molly Harte. E no entanto, tinha-a possuído. Na diligência postal, num caramanchão, noutro caramanchão, a noite toda. Talvez
fosse por isso que agora estava tão sonolento, tão propenso a dormitar, pestanejando confortavelmente face ao futuro, como se o futuro fosse uma fogueira de carvão
mineral. E talvez fosse por isso que as feridas lhe doíam tanto. O golpe que tinha no ombro esquerdo abrira numa das extremidades. Reparara nesse golpe depois de
terminada a batalha, mas não conseguia lembrar-se de como o fizera; Stephen Maturin cosera-lho e também a ferida que tinha no peito, provocada pelo pique, usando
o mesmo esparadrapo para as duas, e aplicando uma outra espécie de esparadrapo no que lhe restava da orelha.
Mas dormitar é que não podia. Era o momento de navegar com a maré alta, era a hora de lutar por uma fragata, de aproveitar a sorte enquanto a sorte estivesse ao
seu alcance, enquanto a sorte estivesse ali a bordo. Escreveria imediatamente a Queeney, e mais meia dúzia de cartas nessa mesma tarde, antes da festa - talvez escrevesse
também ao pai, mas corria o risco de
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o pai desatar a vangloriar-se dos feitos do filho. O pai era o maior desastre que se podia imaginar no que tocava a intrigas e enredos e nunca soubera gerir os poucos
interesses que tinham em comum com os membros mais ilustres da família - por direito, nunca deveria ter chegado ao posto de general. Contudo, a carta oficial estava
à frente das demais; e Jack, sorrindo ainda, levantou-se lentamente.
Era a primeira vez que se sentia bem em terra e, embora ainda fosse muito cedo, não podia deixar de reparar nos olhares que lhe dirigiam, nos murmúrios que as pessoas
trocavam, nos dedos que apontavam na sua direcção. Levou a carta ao escritório do comandante; e os escrúpulos, e os problemas, se não de consciência ou de princípios,
então pelo menos de pudor, que o tinham perturbado ao longo da sua caminhada pela cidade, e mais ainda enquanto esperava na antecâmara, desapareceram mal ouviu as
primeiras palavras do capitão Harte.
- Muito bem, Aubrey - disse ele sem se levantar -, parece que temos de o felicitar uma vez mais pela sua prodigiosa sorte.
- É muito amável, capitão Harte - retorquiu Jack. - Trouxe-lhe a carta oficial.
- Ah, sim - disse o outro, mantendo a carta a uma certa distância e olhando-a com uma indiferença teatral. - vou mandá-la imediatamente. Mr Brown disse-me que é
impossível fornecer-lhe metade do que pretende: aliás, ficou positivamente espantado com os seus pedidos. Como é possível que tenha ficado com tantas vergas e tantos
mastros danificados? E o aparelho novo que lhe pediu... é absurdo! Os remos destruídos? Aqui não há remos. Tem a certeza de que o seu contramestre não está a exagerar?
Mr Brown diz que, neste porto, nunca houve uma fragata, nem um navio de linha, que tivesse pedido tanto cordame.
- Se Mr Brown me souber dizer como apresar uma fragata de trinta e dois canhões sem causar danos nalguns mastros e vergas, ficar-lhe-ei muito agradecido.
- Oh, nesses ataques de surpresa, já se sabe... Mas tudo o que lhe posso dizer é que terá de ir a Malta para obter a maior parte das coisas de que necessita. O Northumberland
e o Superb levaram tudo o que tínhamos. - O seu despeito e a sua maldade eram tão evidentes que as suas palavras pouco efeito poderiam ter; contudo, o golpe que
se seguiu apanhou Jack desprevenido e acertou-lhe na mais dolorosa das feridas. -Já escreveu à família de Ellis? As cartas oficiais - disse ele, batendo ao de leve
na notificação oficial - são fáceis de escrever. Em contrapartida, a carta que terá de escrever aos pais de Ellis...
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enfim, não lhe invejo tão ingrata tarefa. Se fosse eu, não saberia o que dizer-lhes... - Enquanto mordia na articulação do polegar, disparou um olhar furioso sob
as espessas sobrancelhas, e Jack ficou certo de que algum infortúnio, desastre ou revés financeiro, ou fosse lá o que fosse, o afectavam muito mais do que o comportamento
debochado da esposa.
Na realidade, Jack já tinha escrito aquela carta, aquela e todas as outras, ao tio de Dillon, às famílias dos marinheiros, e era nelas que pensava enquanto atravessava
o pátio com uma expressão sombria. Uma figura deteve-se à sombra dos arcos da entrada - alguém que o seguia atentamente, sem dúvida. Na galeria que conduzia à rua,
não conseguiu distinguir mais do que uma silhueta e as duas dragonas de um post-captain ou de um comandante de esquadra; e embora estivesse já preparado para saudar
o oficial em questão, o certo é que a sua mente continuava ausente, muito longe dali, quando o outro abandonou apressadamente a sombra protectora e lhe estendeu
uma mão entusiasmada.
- É o capitão Aubrey, não é? Eu sou Keats, do Superb. Meu caro capitão Aubrey, permita-me que o felicite calorosamente: foi sem dúvida uma magnífica vitória! Acabo
de passar pela sua presa com a minha barcaça e devo dizer-lhe que estou positivamente espantado! Sofreram muitos danos? Se puder ser-lhe útil, se precisar dos serviços
do meu contramestre, do meu carpinteiro, dos meus veleiros, não hesite! Dar-me-ia a honra de jantar a bordo do meu navio ou tem já algum compromisso? com certeza
que tem... Não há uma única mulher em Mahón que não dispute a sua presença! Que grande vitória, capitão!
- Agadeço-lhe de todo o coração, capitão Keats - exclamou Jack, enrubescendo devido a um cândido e indisfarçável prazer e retribuindo o cumprimento do seu interlocutor
com tamanha veemência que se ouviu um vago estalido de ossos e Keats só muito dificilmente conseguiu disfarçar a dor. - Estou-lhe infinitamente grato pela sua amável
opinião, capitão Keats. As suas palavras têm para mim um valor imenso. Para lhe dizer a verdade, aceitei já um convite do governador para jantar e assistir ao concerto;
contudo, se pudesse emprestar-me o seu contramestre e uma pequena brigada os meus homens estão exaustos, precisam de descanso como de pão para a boca -, garanto-lhe
que receberia a sua ajuda de braços abertos, como um presente caído do céu!
- Então está combinado! Alegra-me muito poder ajudá-lo - disse o capitão Keats. - Para onde vai agora? Para cima ou para baixo?
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- Para baixo, capitão. Tenho um encontro no Crown com... com uma pessoa.
- Nesse caso, vamos na mesma direcção - disse Keats agarrando em Jack pelo braço; ao atravessarem a rua para se abrigarem do sol, Keats desatou a chamar um amigo:
-tom, tom, venha ver quem está comigo! O capitão Aubrey, do Sophie Conhece o capitão Grenville, por certo.
- Tenho um imenso prazer em conhecê-lo, capitão Aubrey! - exclamou o sorridente Grenville, cego de um olho e com o rosto cheio de cicatrizes, resultado de muitas
batalhas: cumprimentou Jack e convidou-o imediatamente para jantar.
Jack recusara já sete convites (incluindo os de Grenville e Keats) quando chegou ao Crown e se despediu de Keats. Das bocas de pessoas que lhe mereciam respeito
ouvira as palavras "Nunca vi uma acção tão perfeita em toda a minha vida", "Nelson ficará encantado quando souber", "Se houver justiça no mundo, o governo comprará
a fragata e entregará o seu comando ao capitão Aubrey". Vira expressões de sincero respeito e admiração nos rostos de marinheiros e oficiais jovens que passaram
por si na rua apinhada de gente; e dois comandantes com um posto superior ao seu, infelizes no que tocava a presas e conhecidos por serem invejosos, correram a apresentar-lhe
os seus cumprimentos com muita simpatia e cortesia.
Quando entrou no Crown, subiu imediatamente ao seu quarto, despiu a
casaca e sentou-se.
- Deve ser a isto que chamam os vapores - disse, tentando definir aquilo que sentia e que era uma mescla de felicidade, inquietação, paz e comoção e que quase o
deixava à beira das lágrimas. Permaneceu sentado: aquele sentimento não só perdurou, como se tornou ainda mais intenso; e quando Mercedes entrou apressadamente no
quarto, fitou-a com a mais bondosa das expressões, com um olhar afectuoso e fraterno. Mercedes correu para ele, abraçou-o apaixonadamente e desatou a segredar-lhe
uma torrente de palavras em catalão, concluindo com um elogio em inglês:
- Meu capitão valente! Meu bom capitão, bom, bonito e valente!
- Obrigado, obrigado, minha querida Mercy. Estou-lhe infinitamente grato. Mas olhe - disse Jack Aubrey, procurando uma posição mais cómoda (a rapariga era roliça:
devia pesar uns bons setenta quilos) -, seja uma bona creatura para este seu amigo e traga-me um jarro de negus gelado, está bem?
1 Negus: bebida que consiste num mistura de Porto, xerez ou outro vinho aquecido com água quente, adoçado e condimentado com sumo de limão e noz-moscada. (N. do
T.)
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Sangria colda... Tenho sede, soif, muita sede, minha querida, muita, muita sede.
- A sua querida tia tinha toda a razão - continuou ele, arrumando o jarro e limpando a boca. - O navio de Vinaroz chegou à hora exacta e encontramos o falso comerciante
de Ragusa. Portanto, aqiii, aqiii tem o recompenso de su tia, minha querida - e tirou do bolso dos calções uma bolsilha de couro - y aqiii - acrescentou, exibindo
um primoroso pacote lacrado - tem um pequeno regalo para si, meu coração.
- Um presente? - exclamou Mercedes, pegando no pacote e mirando-o com olhos cintilantes, retirando habilmente o sedoso e lustroso papel de embrulho e o algodão colocado
pelo joalheiro, e encontrando, por fim, uma pequena cruz de diamantes com uma corrente. Deu um gritinho, beijou Jack, correu para o espelho, deu mais um gritinho
- iik, iik! - e voltou com a pedra cintilando no pescoço. Comprimiu o estômago e inchou o peito, tal qual uma rola; inclinou-se para a frente, com a cruz de diamantes
piscando entre os seios, e disse e repetiu: - Gosta? Gosta? Gosta?
O olhar de Jack era agora menos fraterno, muito menos fraterno. Sentia um nó na garganta e o coração batia com toda a força.
- Ah, sim, sim, gosto muito - disse ele com uma voz rouca.
- Timely2, meu capitão, o contramestre do Superb - anunciou o vozeirão de um homem que abria a porta. - Ah, queira desculpar, meu capitão...
- Não tem importância, Mr Timely - disse Jack. - Fico muito contente em vê-lo.
"E, de facto, talvez não fosse mau ele ter aparecido", pensou Jack ao subir de novo as escadas do porto, deixando atrás de si um numeroso grupo de hábeis tripulantes
do Superb que enfrechavam os ovéns acabados de colocar. "É que havia tanta coisa para fazer... No entanto... que doçura de rapariga!". Ia a caminho da casa do governador,
pelo menos era essa a sua intenção; porém, um confuso estado de espírito, constantemente navegando entre o passado e o futuro, e uma clara relutância em passar pela
rua principal (que estava sempre apinhada de marinheiros e onde por certo teria a impressão de estar a desfilar), levou-o a avançar por ruelas obscuras, saturadas
do aroma do vinho novo e com as sarjetas manchadas de púrpura por causa das borras, até chegar à igreja dos franciscanos, no topo da colina. Aí, obrigou-se a regressar
2 Jogo de palavras que se perderia na tradução. Timely é o nome do contramestre, mas também significa "a tempo, oportunamente". (N. do T.)
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ao presente e a tomar nova orientação; olhou com alguma ansiedade para o seu relógio, avançou rapidamente pelo arsenal e passou a porta verde da casa de Mr Florey,
olhando de relance para cima; rumou a noroeste quarta a norte e dirigiu-se para a residência do governador.
Para lá da porta verde, e num dos pisos superiores, Stephen e Mr Florey estavam já sentados para uma refeição informal, tão informal que os comes e bebes haviam
sido distribuídos pelo pouco espaço que restava em mesas e cadeiras não muito adequadas à função. Desde que haviam regressado do hospital, tinham estado a dissecar
um golfinho muito bem preservado, o qual jazia agora sobre um banco alto perto da janela, ao lado de qualquer coisa coberta com um lençol.
- Alguns capitães pensam que a melhor política consiste em incluir todos os casos em que há derramamento de sangue ou incapacidade temporária - disse Mr Florey -,
porque uma lista que dê a ideia de ter havido uma carnificina fica sempre bem no Boletim Oficial. Outros não admitem ninguém a não ser que esteja morto ou moribundo,
porque um número reduzido de baixas é uma indicação segura de que o comandante é cuidadoso e prudente. Creio que a sua lista está perto do meio termo, ainda que
talvez peque por alguma cautela: fê-la a pensar nas possibilidades de promoção do seu amigo, não é verdade?
- Exactamente.
- Claro... Permita-me que lhe sirva uma fatia de carne. Por favor, passe-me uma faca afiada: a carne de vaca, mais do que qualquer outra, deve ser cortada muito
fina, pois assim é muito mais saborosa.
- Esta não está afiada - disse Stephen. - Experimente o bisturi. Virou-se para o golfinho e, não encontrando o bisturi, espreitou sob uma nadadeira. - Onde é que
o teremos deixado? Ah! - exclamou, erguendo o lençol. - Aqui está outro. Uma bela lâmina: aço sueco, sem dúvida. Vejo que começou a incisão no ponto hipocrático
- disse, erguendo um pouco mais o lençol e atentando na jovem que estava por debaixo.
- Talvez fosse melhor lavá-lo - disse Mr Florey.
- Oh, creio que bastará limpá-lo com um pano - disse Stephen usando
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uma ponta do lençol. - A propósito, qual foi a causa da morte? - perguntou, deixando cair o lençol.
- Ora aí está uma boa questão - disse Mr Florey, cortando uma primeira fatia e levando-a ao abutre a um canto da sala, preso por uma pata.
- Uma boa questão, mas sinto-me inclinado a pensar que golpes vários acabaram com a sua vida antes que as águas tivessem tempo para o fazer. Fraquezas amorosas,
loucuras... Sim. Mas voltando à promoção do seu amigo... - Mr Florey fez uma pausa, fitando o longo bisturi de lâmina dupla e movimentando-o depois solenemente na
carne. - Se põem os cornos a um homem, é muito provável e natural que ele desate a dar cornadas a quem lhos pôs - disse ele com um ar despreocupado, olhando de relance
para Stephen, para ver o efeito que o seu comentário poderia ter produzido.
- Tem toda a razão - disse Stephen, atirando uma cartilagem ao abutre. - De um modo geral, fenum habent in cora"3. Porém - disse, sorrindo para Mr Florey -, não
creio que o seu comentário seja propriamente genérico. Não quer ser mais específico? Ou estará a referir-se à jovem sob o lençol? Sei que o disse pelos melhores
motivos e garanto-lhe que, por muito franco que seja, não me sentirei ofendido.
- bom - disse Mr Florey -, a questão é esta: o seu jovem amigo, o nosso jovem amigo, diria eu, porque o tenho em grande consideração, e porque penso que a acção
que realizou é muito prestigiante para a Marinha, enfim, para todos nós... o nosso jovem amigo, como dizia, foi muito indiscreto: e a dama também. Faço-me entender,
creio?
- Ah, sim, claro.
- O marido ficou furioso e está numa posição em que pode dar rédea solta à sua raiva, a menos que o nosso amigo se mostre prudente, extremamente prudente. O marido
não o desafiará para um duelo, porque não é esse o seu estilo, bem pelo contrário: enfim, uma criatura digna de dó... Mas é muito capaz de lhe montar alguma armadilha,
na esperança de que ele cometa algum acto de desobediência e acabe por ir a conselho de guerra. O nosso amigo é famoso pela sua impetuosidade, pela sua capacidade
de iniciativa e pela sua sorte, e não pelo cumprimento dos deveres de obediência e subordinação. E alguns dos capitães mais velhos sentem uma imensa inveja e um
3 Fenum habent in comu: "têm feno nos cornos" é a tradução literal desta citação latina; contudo, como os romanos tinham o hábito de prender uma porção de feno nos
cornos dos touros bravos, a frase latina utilizada pelo doutor Maturin significa também "são touros furiosos". (N. do T.)
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grande desconforto por causa dos seus êxitos. Além disso, o nosso amigo é um Tory, ou pelo menos é-o a sua família; e o marido e o actual Primeiro Lorde são Whigs,
e Whigs fanáticos, uma raça de desprezíveis fanfarrões. Faço-me entender, não é verdade, doutor Maturin?
- Claro, Mr Florey, claro que se faz entender; e estou-lhe muito grato pela sua franqueza: o que me conta vem confirmar inteiramente aquilo que eu pensava. E farei
tudo o que puder para que o nosso amigo tenha consciência da delicadeza da situação. Ainda que, para ser franco - acrescentou, com um suspiro -, haja alturas em
que penso que situações deste género só poderão ser resolvidas com uma ablação radical do membro viril.
- E essa é, quase sempre, a parte pecadora - disse Mr Florey.
O escriturário David Richards também estava a jantar, mas no seio da sua família.
- Como toda a gente sabe - dizia ele à respeitável multidão -, num navio de guerra o posto de escriturário do capitão é o mais perigoso de todos: tem de estar sempre
no castelo de popa, com a sua lousa e o seu relógio, para tomar notas, sempre ao lado do capitão, e todas as armas ligeiras e muitos dos canhões do inimigo estão
apontados para ele. Mesmo assim, o escriturário do capitão tem de permanecer sempre no seu posto, apoiando o seu superior, mantendo-se sereno e dando-lhe os seus
conselhos.
- Oh, Davy! - exclamou a tia, embevecida. - E ele pediu-lhe conselhos?
- Se ele me pediu conselhos? Ah! Ah! Ah! Juro-lhe que pediu.
- Não jure, meu querido! - retorquiu a tia, automaticamente. - Não lhe fica bem.
- "Bacharel Richards!" disse-me ele quando começaram a cair bocados do cesto da gávea maior por cima das nossas cabeças, desfazendo-se no castelo de popa como se
fossem lã para bordados. "Não sei que fazer. Sinto-me completamente perdido". "Só há uma coisa a fazer, meu capitão!", disse-lhe eu. "Abordá-los! Abordá-los pela
proa e pela popa; e dou-lhe a minha palavra de honra que a fragata será nossa em cinco minutos". Pois bem, minha tia, e minhas queridas primas, eu não sou pessoa
para me gabar e admito mesmo que foram precisos dez minutos e não cinco; mas valeu a pena, porque
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conseguimos apresar o mais belo xeèec-fragata que jamais vi: uma fragata acabadinha de embonar e com cavilhas de cobre! E quando cheguei à popa, depois de ter apunhalado
o escriturário do capitão espanhol, o capitão Aubrey cumprimentou-me e, com as lágrimas nos olhos, disse-me: "Richards, estamos-lhe todos muito, muito gratos". "É
muito amável da sua parte, meu capitão", disse eu, "mas não fiz mais do que qualquer bom marinheiro teria feito". "Muito bem, Mr Richards", disse ele, "muito bem".
- O jovem bebeu um gole de porter e prosseguiu: - Estive quase para lhe dizer: "Fazemos assim, ó Louro" (porque os marinheiros chamam-lhe "o Louro", tal e qual como
a mim me chamam "Richards, Fogo-do-Inferno" ou "Richards, o Trovão"): "você nomeia-me guarda-marinha do Cacafuego logo que o governo compre a fragata e assim ficamos
quites". Talvez lhe diga isso amanhã, pois sinto que possuo o dom de comandar. A fragata deverá atingir um preço entre as doze libras e dez xelins e as treze libras
por tonelada, não acha, meu tio? - perguntou ele. - Não danificámos muito o seu casco.
- Sim - disse Mr Williams, com um ar muito calmo. - Se o governo a comprasse, a fragata alcançaria por certo esse preço e o conteúdo dos porões valeria outro tanto:
o capitão Aubrey, para além do prémio, receberia cinco mil libras limpas; e a sua parte, meu sobrinho, seria de... vejamos... duzentas e sessenta e três libras,
catorze xelins e dois pence. Isto se o governo a comprasse, é claro.
- Que quer dizer o tio com esse se?
- Ora... Quero dizer que quem faz as compras do Almirantado é uma certa pessoa; que essa certa pessoa tem uma esposa que não prima pelo recato; e que essa certa
pessoa se transformou numa verdadeira fera! Ah, Louro, Louro, por que razão és tu como és? - perguntou muito teatralmente Mr Williams, deixando as sobrinhas boquiabertas.
- Se ele se preocupasse com os seus negócios, em vez de andar para aí a fazer de touro de cobrição da paróquia, então...
- Foi ela que o provocou! - exclamou Mrs Williams, que não deixava o marido concluir uma frase desde que ele dissera "Sim, quero" na Trinity Church do porto de Plymouth,
no ano de 1782.
- Uma desavergonhada, é o que ela é! Uma desavergonhada! - gritou a irmã solteira de Mrs Williams; e os olhos das sobrinhas viraram-se para ela, ainda mais esbugalhados
do que já estavam.
4 Variedade de cerveja preta pouco alcoólica e rica em sacarina. (N. do T.)
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- Uma cadela! - gritou Mrs Thomas. - O primo da minha Paquita foi quem a levou na sege até ao cais. Só visto, minhas amigas, só visto!
- Deviam prendê-la a uma carroça e arrastá-la por toda a cidade e dar-lhe umas valentes chicotadas! - decretou Mrs Williams. - Se eu tivesse o chicote na mão, não
responderia por mim!
- Então, minha querida...
- Eu sei muito bem o que é que o senhor está a pensar! - atirou-lhe a mulher. - Pois deixe de pensar o que está a pensar! Uma rameira, é o que ela é! Uma criatura
viciosa e perversa, uma desavergonhada!
De facto, nos últimos meses, a reputação da desavergonhada, viciosa e perversa criatura sofrera rudes golpes, o que explicava que a esposa do governador a tivesse
recebido tão friamente quanto a sua ousadia autorizava; em contrapartida, a sua aparência melhorara tanto que estava quase irreconhecível: fora uma mulher encantadora,
mas agora era, sem sombra de dúvida, uma mulher bela. Molly Harte e Lady Warren chegaram juntas ao concerto e, lá fora, esperando a sua carragem para lhes dar as
boas-vindas, havia um pequeno grupo de soldados e marinheiros: os mesmos homens que agora rodeavam Molly Harte, rosnando e eriçando-se numa furiosa e descabelada
competição, enquanto as suas esposas e irmãs e mesmo as noivas e namoradas, vestidas sem ponta de elegância, estavam sentadas em cinzentos grupos a uma certa distância,
com os lábios franzidos de indignação e os olhos postos no vestido escarlate que a multidão de uniformes quase ocultava por completo.
Os homens afastaram-se quando Jack apareceu; alguns voltaram para as suas mulheres, que lhes perguntaram se não achavam que Mrs Harte estava muito acabada, muito
acabada e muito mal vestida: com aquelas roupas tão antiquadas, parecia que tinham saído do baú da avó! Que pena, não era tão velha como parecia, coitadita! Devia
ter pelo menos trinta... quarenta... quarenta e cinco anos. Mitenes de renda! Nunca tinham visto uma senhora usar mitenes de renda. Aquela luz forte não a favorecia
nada, coitada. E, francamente, que extravagância usar aquelas pérolas enormes!
Havia nela... sim, de facto havia nela qualquer coisa de prostituta, pensou Jack, observando-a com uma expressão embevecida e reparando na forma
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como ela erguia a cabeça numa atitude de desafio, plenamente consciente do rosário de comentários que as outras mulheres iam desfiando: havia nela algo de prostituta,
mas a constatação desse facto servia apenas para espicaçar ainda mais o seu desejo. Ela só se entregava aos que triunfavam; pois ainda bem, pensou Jack, já que a
prova do seu triunfo, o Cacafuego, estava amarrado junto ao Sophie no porto de Mahón.
Após uma breve conversa de circunstância - durante a qual Jack julgou ter dissimulado tão bem como o melhor dos actores, o que, infelizmente para si, não correspondia
à verdade -, todos irromperam pela sala de música; Molly Harte, mais bela do que nunca, sentou-se junto à harpa, e os espectadores trataram de se acomodar nas pequenas
cadeiras douradas.
- Que vamos ouvir? - perguntou uma voz atrás de Jack. Virando a cabeça, Jack viu Stephen, todo empoado, com um ar respeitável, exceptuando o facto de se ter esquecido
da camisa, e ansioso por poder deleitar-se com mais um concerto.
- Algo de Boccherini, uma peça para violoncelo, e o trio de Haydn que nós arranjámos. E Mrs Harte vai tocar harpa. Sente-se aqui a meu lado.
- bom, suponho que terei mesmo de me sentar, pois a sala está a abarrotar de gente - retorquiu Stephen. - Estava ansioso por assistir a este concerto: tão cedo não
teremos outro.
- Que disparate! - disse Jack sem fazer caso. -Já se esqueceu da festa de Mrs Brown?
- Nessa altura já estaremos a caminho de Malta. As ordens estão a ser redigidas neste preciso momento.
- A corveta não está em condições de navegar. Não, nem pensar! replicou Jack. - Deve estar enganado, doutor.
Stephen encolheu os ombros.
- Foi o próprio secretário que mo disse.
- Maldito biltre! - exclamou Jack.
- Chiu! - disse toda a gente à volta deles; o primeiro violino deu o sinal com a cabeça, baixou o arco e todos os instrumentos se fizeram ouvir imediatamente, enchendo
a sala de uma deliciosa teia de sons e preparando assim a meditativa entrada do violoncelo.
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- De um modo geral - disse Stephen -, Malta revelou-se um local decepcionante. Mas pelo menos encontrei uma quantidade considerável de cebolas-albarrãs junto à praia:
vou conservá-las num cesto.
- Decepcionante, sem dúvida - disse Jack. - Ainda que, exceptuando o que aconteceu ao pobre Pullings, não tenha razões de queixa. Forneceram-nos tudo do que precisávamos,
excepto os remos: o encarregado do estaleiro não podia ter sido mais amável. E trataram-nos como se fôssemos imperadores. Mas diga-me, doutor, crê que as cebolas-albarrãs
são boas para dar forças a um homem? Sinto-me tão em baixo como... como um gato castrado. Enfim... não funciono!
Stephen examinou-o atentamente, tomou-lhe o pulso, observou-lhe a língua, fez-lhe algumas perguntas mais ou menos sórdidas.
- Foi alguma ferida que piorou? - perguntou Jack, alarmado com a expressão séria do doutor.
- Será uma ferida, se quiser chamar-lhe assim - disse Stephen. - Mas não foi causada pelas espadas do Cacafuego: o problema é outro, meu caro. Alguma dama sua amiga
foi demasiado generosa nos seus favores, demasiado bondosa para muitos e variados amigos dela.
- Santo Deus! - exclamou Jack, a quem nunca acontecera uma daquelas.
- Não se preocupe - disse Stephen, compadecendo-se ao ver a expressão horrorizada de Jack. - As suas forças depressa voltarão: quando a coisa é atacada de princípio,
o importuno agente não resiste. Não lhe fará mal nenhum ficar fechado por uns tempos na sua cabina, beber apenas água de cevada, que é um óptimo emoliente, e comer
unicamente papas de aveia, mas ralas, muito ralas. Nada de carne de vaca ou de carneiro, tão-pouco vinho ou bebidas espirituosas. Se é verdade o que Mr Marshall
me disse acerca das viagens para oeste nesta época do ano - e, para mais, com uma escala em Palermo -, creio que quando dobrarmos o Cabo Mola já o meu amigo estará
em condições de arruinar de novo a sua saúde, o seu futuro, a sua razão, o seu aspecto e a sua felicidade.
Stephen Maturin abandonou a cabina de uma forma que Jack considerou inumana, pois, aparentemente, o doutor não se mostrava nada preocupado com o seu paciente. Stephen
desceu rapidamente à enfermaria, onde misturou uma poção e um pó que escolheu entre os muitos e diversos pós que tinha sempre à mão (como todos os outros cirurgiões
navais). As rajadas do gregal, que soprava do Cabo Delimara, fizeram com que o Sophie desse uma súbita guinada a sotavento e caísse demasiado líquido na mistura.
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- É demasiado - observou Stephen, mantendo o equilíbrio como um marinheiro experimentado e vertendo o excesso num frasco de vinte draemas. - Não faz mal. Servirá
para o jovem Babbington. - Tapou o frasco e colocou-o numa prateleira com protecção, depois contou os outros frascos, perfeitamente etiquetados, e regressou à cabina
do capitão Aubrey. Sabia muito bem que Jack actuaria de acordo com a velha crença dos homens do mar segundo a qual "quanto mais, melhor" e que tomaria doses que
o levariam deste para o outro mundo se não o vigiasse muito atentamente. Por esse motivo, permaneceu junto de Jack enquanto este, arquejante e com ânsias de vómitos,
bebia a nauseabunda mistura; e pensou na transferência de autoridade em relações como aquela que mantinha com Jack Aubrey (ou melhor, de hipotética autoridade, visto
que entre ambos nunca houvera nenhuma colisão efectiva). Desde que enriquecera com a primeira presa, Stephen Maturin tratava de comprar grandes quantidades de assa-fétida,
castóreo e outras substâncias, para fazer com que os seus remédios tivessem o aspecto, o gosto e o odor mais repugnantes de toda a frota; e verificara que a sua
escolha dava resultado: os seus intrépidos pacientes sabiam, com todo o seu ser, que estavam a ser medicados.
- O capitão sente-se mal por causa das feridas - disse Stephen durante o jantar, de modo que não poderá aceitar o convite para jantar amanhã na câmara dos oficiais.
Terá de ficar fechado na cabina e só poderá comer papas de aveia muito ralas.
- Teve muitos ferimentos? - perguntou respeitosamente Mr Dalziel. Este Mr Dalziel era uma das muitas decepções de Malta; todos a bordo esperavam que Thomas Pullings
fosse nomeado primeiro-oficial, mas o almirante enviara um primo seu para ocupar tal cargo: aquele mesmo Dalziel of Auchterbothie and Sodds. O almirante tratara
de suavizar o golpe, enviando uma nota pessoal em que prometia "não esquecer o caso de Mr Pullings e referir muito favoravelmente junto do Almirantado o citado guarda-marinha".
No entanto, Pullings continuava a ser um ajudante do mestre. Não fora promovido, e esse era o primeiro golpe desferido na vitória do Sophie. Mr Dalziel apercebera-se
disso e mostrava-se muito conciliador; ainda que, na realidade, não precisasse de se mostrar conciliador, pois Pullings era a pessoa mais modesta do mundo e de uma
timidez que fazia aflição, excepto quando subia à coberta do inimigo.
- Realmente teve - retorquiu Stephen. - Feridas de pistola, espada e pique; e, ao examinar a ferida mais profunda, encontrei um pedaço de metal de uma bala que o
atingira na batalha do Nilo.
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- O bastante para que um homem se sinta mal - disse Mr Dalziel, o qual, ainda que não fosse por falta sua, nunca havia participado numa batalha e sofria horrores
por isso.
- O doutor corrija-me se estou enganado - disse o mestre -, mas creio que os nervos contribuem para abrir as feridas. E ele deve andar muito nervoso, pois não nos
encontramos na nossa zona de cruzeiro e o prazo que nos foi concedido está a acabar.
- Sim, sem dúvida - disse Stephen. De facto, Jack tinha todas as razões para andar nervoso, tal como os demais homens a bordo: mandarem-nos para Malta quando tinham
direito a um cruzeiro em águas muito ricas em presas, era, efectivamente, um golpe muito duro; para cúmulo, por obra e graça do destino e da espionagem de Jack,
corria agora o rumor de que, por essas águas, navegava um galeão que teria feito as delícias do Sophie - um galeão, ou vários galeões, uma quantidade de galeões
que naquele preciso momento navegavam ao longo da costa espanhola, a quinhentas milhas de distância do Sophie.
Estavam impacientes, extremamente impacientes, por retomarem o cruzeiro, por darem alguma utilidade aos trinta e sete dias que lhes eram devidos, trinta e sete dias
para aproveitar as oportunidades enquanto era possível; de facto, embora muitos deles possuíssem agora mais guinéus do que todos os xelins que haviam tido em terra,
não havia um único que não desejasse ardentemente obter mais e mais. Segundo cálculos mais ou menos gerais, um marinheiro de segunda classe receberia cerca de cinquenta
libras - e mesmo aqueles que tinham ficado magoados, feridos ou chamuscados na batalha, consideravam que era uma boa paga para uma manhã de trabalho: muito mais
interessante do que o incerto xelim diário que poderiam ganhar em terra com o arado ou o tear, e certamente melhor do que as oito libras mensais que certos comandantes
da Marinha Mercante, pressionados pelas circunstâncias, seriam capazes de pagar.
O facto de terem vencido uma batalha tão importante, a férrea disciplina existente a bordo e a extrema competência que haviam adquirido (tirando Willy, o louco do
Sophie, e outros casos desesperados, todos os marinheiros e grumetes do Sophie sabiam ferrar, rizar e conduzir o leme), tinham transformado aqueles homens num grupo
particularmente coeso e que conhecia perfeitamente o navio e as suas peculiaridades. E ainda bem que assim era, pois o novo primeiro-oficial seria tudo menos um
grande marinheiro - de facto, os tripulantes do Sophie tinham evitado que Mr Dalziel cometesse erros crassos quando a corveta, atravessando o Mediterrâneo a grande
velocidade, fora
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surpreendida por dois terríveis temporais; a par dos temporais, o Sophie tivera ainda de enfrentar ondas monstruosas, acompanhadas de uma total ausência de vento,
limitando-se o navio a chapinhar na monumental ondulação, girando e voltando a girar sobre si mesmo - de tal forma que o próprio gato do navio foi acometido de enjoo.
O Sophie navegava tão velozmente quanto possível, não só porque os seus tripulantes queriam aproveitar aquele mês de cruzeiro perto da costa inimiga, mas também
porque todos os oficiais estavam impacientes por saberem as notícias de Londres - por verem o Boletim Oficial e conhecerem a reacção oficial à proeza - ou seja,
a nomeação de Jack Aubrey para o cargo de post-captain e a provável promoção de todos os outros homens.
Aquela travessia era a confirmação do bom trabalho dos estaleiros de Malta e da grande capacidade da tripulação, já que naquelas mesmas águas, e durante o segundo
temporal, menos de vinte milhas a sul do Sophie, a corveta de dezasseis canhões Utile tinha-se afundado quando virava a barlavento buscando o vento de popa, dizimando
todos os seus homens. Contudo, no último dia o tempo melhorou, pois soprava uma tramontana estável que lhes permitiu navegar com a verga rizada: avistaram Minorca
pela manhã e pouco depois do pequeno-almoço ocuparam os seus postos; o sol ia a pouco mais de meio da sua viagem diária quando dobraram o Cabo Mola.
De novo cheio de vigor, embora um pouco menos bronzeado devido ao seu confinamento, Jack fitava atentamente as nuvens que, empurradas pelo vento, passavam sobre
o monte Toro, pressagiando que o vento norte estava para durar.
- Logo que chegarmos ao estreito - disse ele para Mr Dalziel -, prepare os botes e comece a colocar os tonéis na coberta. Teremos de começar a carregar a água esta
noite, a fim de zarparmos de manhã o mais cedo possível. Não podemos perder um único minuto. Mas vejo que já colocou os ganchos nas vergas e também os estais. Muito
bem, muito bem - acrescentou Jack com um risinho, após o que voltou para a sua cabina.
Contudo, o pobre Mr Dalziel não tinha colocado, nem mandado colocar, os ganchos e os estais: de facto, os marinheiros, sem lhe dizerem nada, e porque conheciam as
peculiaridades de Jack melhor do que o primeiro-oficial, tinham-se antecipado à ordem - e a pobre criatura desatou a abanar a cabeça, convocando toda a paciência
e serenidade de que era capaz. Encontrava-se numa posição difícil, pois embora fosse um oficial respeitável e escrupuloso, não suportaria qualquer comparação com
James Dillon: o anterior primeiro-oficial continuava muito presente na mente de todos os
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tripulantes, para cuja formação havia contribuído decisivamente: a sua autoridade dinãomica, a sua imensa capacidade técnica, o seu domínio da arte da marinhagem
- não só eram qualidades inesquecíveis, como pareciam cada vez mais vivas nas memórias dos homens.
Jack lembrou-se dele quando o Sophie avançou suavemente pelo grande porto, passando por angras e ilhas que lhe eram familiares: diante da ilha do hospital, deu consigo
a pensar que James Dillon teria feito as manobras com muito menos barulho; nesse preciso instante ouviu-se o grito de "Bote à vista!" e o longínquo grito de resposta
indicando que se acercava um capitão. Jack não conseguiu ouvir o nome, mas instantes depois, Babbington, muito alarmado, bateu-lhe à porta e anunciou:
- É a barcaça do comandante, meu capitão.
Havia grande algazarra na coberta: Mr Dalziel procurava fazer três coisas ao mesmo tempo e os homens que deveriam aprontar o costado da corveta faziam tudo o que
estava ao seu alcance para darem alguma decência ao seu aspecto. Poucos capitães teriam surgido de forma tão precipitada, avançando furtivamente a coberto de uma
ilha; poucos teriam importunado uma embarcação prestes a amarrar; e a maior parte, mesmo numa emergência, teria dado aos tripulantes dessa embarcação uma oportunidade,
ter-lhes-ia concedido uns minutos de descanso; mas não o capitão Harte, que subiu pelo costado o mais rapidamente que pôde. Ouviram-se vozes alvoroçadas gritando
as ordens; os poucos oficiais correctamente vestidos, embora com a cabeça descoberta, puseram-se rigidamente em sentido; os fuzileiros apresentaram armas e um deles
deixou mesmo cair o seu mosquete.
- Bem vindo a bordo, capitão Harte - disse Jack Aubrey, que, de tão bem-disposto que estava com as radiosas perspectivas do presente, conseguia mesmo sentir-se satisfeito
ao ver um rosto tão intratável, unicamente porque era um rosto conhecido. - Creio que é a primeira vez que temos a honra de o recebermos a bordo.
O capitão Harte virou-se para o castelo de popa e saudou Aubrey levando a mão ao chapéu, mas sem chegar a tocar nele, e observou, com uma expressão teatral de desagrado,
os imundos grumetes que estavam no costado, os fuzileiros com as cananas enviesadas, o montão de tonéis de água no meio da coberta e a anafada e mansa cadelita de
cor creme de Mr Dalziel, que encontrara um reduzido espaço livre e que nesse momento se aliviava, produzindo um imenso charco, ainda que tivesse pedido desculpa
a todos os presentes, baixando cabeça, orelhas e tudo o mais que lhe era possível baixar.
- Costuma manter a coberta neste estado, capitão Aubrey? - perguntou
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Harte. - Valha-me Deus! Isto mais parece uma casa de penhores de Wapping5 do que a coberta de uma corveta de Sua Majestade.
- Oh, não, de modo nenhum, capitão Harte! - retorquiu Jack, ainda de excelente humor, pois a capa de lona encerada sob o braço do capitão Harte só poderia conter
a nomeação para o cargo de post-captain, dirigida a J. A. Aubrey, uma nomeação transmitida com inusitada e maravilhosa rapidez. - Receio que tenha surpreendido o
Sophie a meio de intensos trabalhos a bordo. Quer fazer o favor de vir comigo à cabina, capitão Harte?
Os tripulantes estavam muito atarefados, fazendo deslizar a corveta por entre as embarcações que se encontravam no porto e preparando-se para a amarrar; afortunadamente,
sabiam conduzi-la e soltar a âncora muito bem, pois todos os homens concentravam as suas atenções, não no trabalho, mas sim nas vozes que saíam da cabina.
- O velho Jarvie está a dar-lhe forte - segredou Thomas Jones para William Witsover com um sorriso de todo o tamanho que se generalizou para lá do mastro principal,
pois aqueles que conseguiam ouvir alguma coisa depressa perceberam que o seu comandante estava a levar uma boa reprimenda. Os homens adoravam-no e tê-lo-iam seguido
até ao fim do mundo; no entanto, não deixava de ser divertido imaginarem a cena: o comandante estava a ser repreendido, estava a ser chamado à ordem, estava a ouvir
das boas: e muito caladinho.
- "Quando dou uma ordem, espero que essa ordem seja pontualmente cumprida" - disse Robert Jessup, com silenciosa pompa, para William Agg, ajudante do oficial de
derrota.
- Silêncio! - gritou o mestre, que não conseguia ouvir nada.
Mas o sorriso já se tinha esbatido: primeiro nos rostos dos homens mais divertidos, aqueles que estavam perto da clarabóia, depois nos rostos daqueles que comunicavam
com os primeiros através de significativos olhares e gestos e expressivas caretas, e assim por diante. E quando o ferro de leva foi lançado ao mar, já se ouvia por
todo o lado o murmúrio:
- Não há cruzeiro, não há cruzeiro.
O capitão Harte reapareceu na coberta. Viram-no a descer à sua barcaça com rígida cerimónia, numa atmosfera de silenciosa desconfiança, muito reforçada pela expressão
de pétrea circunspecção do capitão Aubrey.
O cúter e a lancha começaram a carregar água imediatamente; o escaler
5 Bairro portuário de Londres. (N. do T.)
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levou o tesoureiro a terra para comprar provisões e tratar do correio; os breus
- os barcos que vendiam todo o género de coisas aos navios fundeados abeiravam-se com as miudezas do costume; Mr Watt e a maior parte dos outros tripulantes do Sophie
que tinham sobrevivido às suas feridas, meteram-se imediatamente no bote do hospital para verem como é que aqueles filhos da mãe de Malta tinham deixado a enxárcia.
Os homens que estavam a bordo do Sophie desataram a gritar para os seus companheiros que vinham no bote do hospital:
- Já sabem ? Já sabem o que se passou ?
- O que foi? O que foi?
- Então não sabem?
- Não! O que é que se passou?
- Já não vai haver cruzeiro! Já tiveram cruzeiro que chegue, disse o filho da puta do sacana! com a viagem a Malta, acabou-se o prazo! Os nossos trinta e sete dias!
Agora vamos escoltar aquele maldito paquebote até Gibraltar, é isso que vamos fazer! E muito, muito obrigado por todos os esforços que fizeram no cruzeiro! O Cacafuego
não foi comprado pelo governo! Venderam-no aos malditos dos mouros por tuta e meia e uma libra de merda! O xebec mais incrivelmente rápido que vi em toda a minha
vida! O nosso regresso foi demasiado lento: "Não precisa de mo dizer", respondeu ele, "eu sei-o melhor que ninguém"! No Boletim Oficial não há nada sobre nós e o
velho cabrão não pediu a promoção do nosso Louro! Dizem que houve irregulandades na captura e que o comandante do Cacafuego não era nada comandante! Tudo mentiras!
Ah, se eu tivesse os colhões dele à mão de semear, podem crer que lhe pagaria na mesma moeda! Torcia-lhos bem torcidos e depois... - A gritaria foi interrompida
nesse momento por uma peremptória mensagem do ajudante do contramestre que, no castelo de popa, agitava furiosamente a extremidade de um cabo; contudo, continuaram
dando rédea solta à sua apaixonada indignação, embora com uma voz sumida (ou no que pensavam ser uma voz sumida); e se o capitão Harte tivesse aparecido naquele
preciso momento, certamente que aqueles homens se teriam amotinado e o teriam atirado às águas do porto. Estavam furibundos com aquela reacção à sua vitória, furibundos
por causa de Jack e por sua própria causa; e sabiam muito bem que não havia nem sombra de convicção nas censuras dos seus oficiais; e se o contramestre os mandasse
calar - fosse com um cabo ou com um lenço -, não fariam caso; até Mr Dalziel, que era um novato na corveta, ficara chocado com o tratamento infligido aos homens
do Sophie: pelo menos com o tratamento que poderia inferir a partir dos boatos, desta
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ou daquela frase ouvida à socapa, das conversas dos vendedores dos breus e da ausência do magnífico Cacafuego.
De facto, no que respeitava ao tratamento que lhes fora reservado, os rumores pecavam por benevolência. O comandante e o cirurgião do Sophie estavam sentados na
cabina do primeiro, rodeados por uma pilha de papéis, pois Stephen Maturin tinha estado a ajudar Jack Aubrey a tratar do expediente, para além de ter escrito algumas
cartas suas, e eram já três horas da manhã: o Sophie, amarrado, baloiçava suavemente, e os homens, apinhados nos seus alojamentos, podiam passar toda a noite a ressonar
(um dos magníficos prazeres proporcionados por um porto). Jack não fora a terra e não tinha a menor intenção de o fazer; e o silêncio, a ausência de movimento e
as muitas horas passadas de pena na mão pareciam tê-los isolado do mundo na sua cela iluminada; devido a essa sensação de isolamento, as suas conversas, que em qualquer
outra circunstância teriam sido inaceitáveis segundo os padrões da decência, pareciam perfeitamente vulgares e naturais.
- Conhece aquele sujeito, o Martinez, o proprietário da casa dos Harte? - perguntou Jack.
- Ouvi falar dele - retorquiu Stephen. - Segundo dizem, é um especulador, uma espécie de pseudo-rico, ligado a negócios mais ou menos escuros.
- bom, o caso é que conseguiu o contrato para transportar o correio, um belo contrato, sem dúvida. E comprou o Ventura, um desgraçado barco velho e lento, para fazer
o transporte. O Ventura nunca navegou a mais de seis milhas à hora, e é esse navio que teremos de escoltar até Gibraltar. Bastante razoável, dirá o meu amigo. Pois
é, mas teremos de levar a saca, levá-la a bordo do Ventura quando chegarmos à entrada do porto e voltar imediatamente para Mahón, sem atracarmos em Gibraltar: de
facto, sem mantermos qualquer tipo de comunicação com Gibraltar. E vou dizer-lhe outra coisa: ele não enviou a minha carta oficial no Superb, que navegava já no
Mediterrâneo dois dias depois de termos partido, nem tão-pouco no Phoebe, que ia directamente para Inglaterra; e aposto consigo o que quiser que a carta está aqui,
nesta saca imunda. E mais: sei muito bem o que diz a carta que ele juntou à minha: menciona sem dúvida essas imaginárias irregularidades na captura do Cacafuego
e aqueles sofismas sobre o estatuto do seu comandante. Insinuações absolutamente odiosas e também referências à demora. É por isso que não veio nada no Boletim Oficial.
É por isso que não houve nenhuma promoção: a capa do Almirantado continha apenas as suas próprias ordens, caso eu insistisse para que mas entregasse por escrito.
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- Claro que até uma criança percebe as razões dele. Provoca-o, na esperança de que você se exceda. Espera que lhe desobedeça e que arruine a sua carreira. Rogo-lhe
que não se deixe cegar pela raiva que sente.
- Ah, não! Nesta peça, o meu papel não será o do bobo! - retorquiu Jack com um sorriso algo forçado. - Mas quanto às provocações, garanto-lhe que o indivíduo se
portou admiravelmente. Quando penso em tudo isto, treme-me tanto a mão que nem consigo tocar uma escala - disse ele pegando no violino. E enquanto passava o violino
pelo espaço de apenas dois pés que havia entre o armário e o seu ombro, aglomeraram-se na sua mente uma série de pensamentos que tinham unicamente a ver com a sua
pessoa: todas aquelas semanas (ou mesmo meses), um tempo precioso em termos de antiguidade, estavam agora definitivamente perdidas - Douglas, do Phoebe, Evans, do
destacamento das índias Ocidentais, e um homem que não conhecia, chamado Raitt, já tinham sido promovidos; as suas nomeações tinham aparecido no último Boletim Oficial
e agora estavam à sua frente na imutável lista de post-captains; teria sempre menos antiguidade que eles. Tempo perdido; e, para cúmulo, os perturbantes boatos de
que a paz estava próxima. E embora não o reconhecesse abertamente, tinha a fundada suspeita, ou melhor, o temor, de que tudo tivesse corrido mal: não haveria promoção
nenhuma; a advertência de Lorde Keith fora verdadeiramente profética. Ergueu a cabeça para colocar o violino sob o queixo; franzia e apertava muito os lábios e só
isso já chegava para descarregar uma boa parte da sua tensão. O seu rosto ficou vermelho; exalou um profundo suspiro e abriu muito os olhos, que, devido à extrema
contracção das pupilas, pareciam mais azuis: os seus lábios franziram-se e apertaram-se ainda mais e, com eles, também a sua mão direita. As pupilas contraem-se
de forma simétrica até que o sen diâmetro atinge aproximadamente a décima parte de uma polegada, assinalou Stephen a um canto da página. Ouviu-se um forte ruído,
um som de cordas confuso e melancólico e, com uma estranha expressão de dúvida, surpresa e sofrimento, Jack afastou o violino, todo deslocado e com um aspecto singular,
pois tinha o braço partido. - Partiu-se! - exclamou. - Partiu-se! -Juntou as duas extremidades partidas com infinito cuidado. - Daria tudo para que uma coisa destas
não tivesse acontecido - disse ele numa voz sumida. - Conheço este violino desde os meus tempos de menino... desde que comecei a usar calções.
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A indignação face ao tratamento infligido ao Sophie não se limitava à corveta, mas era na corveta, muito naturalmente, que essa indignação se manifestava da forma
mais violenta; e enquanto davam voltas ao cabrestante para soltarem as amarras, os tripulantes cantavam uma nova canção que, com toda a certeza, não fora inspirada
pela castíssima musa de Mr Mowett:
Velho Harte, velho Harte, velha rês,
Raivoso filho de um peido seco francês.
Ei oh! Puxa a direito!
Puxa a direito, puxa a direito!
Ei oh! Puxa a direito!
O tocador de pífaro, que estava sentado em cima do cabrestante com as pernas cruzadas, largou por um instante o instrumento e cantou a parte de solista:
Diz o velho Harte para a sua Molly "Mas que vejo eu ali? O descarado comandante do Sophie Mais o seu violi-li-li-li-no!".
E, de novo, o furibundo, violento e tonitruante coro:
Velho Harte, velho Harte, velha rês, Filho zarolho de um peido seco francês.
James Dillon nunca teria permitido uma coisa daquelas, mas Mr Dalziel, que não entendia nenhuma daquelas alusões, deixou-os cantar à vontade - e a canção continuou
até os homens terem enrolado por completo o cabo, que fedia ao lodo de Mahón, içando as bujarronas e braceando a verga do velacho. O Sophie passou depois junto ao
Amélia, um navio que não viam desde a batalha contra o Cacafuego, e de repente Mr Dalziel verificou que a enxárcia
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da fragata estava cheia de homens, todos eles de chapéu na mão e virados para o Sophie.
- Mr Babbington - disse ele em voz baixa, não fosse estar equivocado, porque, em toda a sua vida, vira apenas uma manifestação daquelas -, diga ao capitão, com os
meus respeitos, que me parece que os homens do Amélia vão saudar-nos.
Jack subiu à coberta piscando muito os olhos no preciso momento em que se ouviu o primeiro viva, uma impressionante onda sonora a uma distância de apenas vinte e
cinco jardas. Depois ouviu-se o apito do contramestre do Amélia, e o segundo viva, desferido com a mesma precisão de uma surriada: e, segundos depois, o terceiro.
O contramestre e os oficiais do Amélia permaneceram em posição de sentido com a cabeça descoberta; e logo que os ecos do último viva se esbateram no porto, o contramestre
gritou: "Três vivas para o Amelia!", e os tripulantes do Sophie, apesar de profundamente atentos às tarefas de bordo, responderam como heróis, com as caras vermelhas
de satisfação e com toda a energia necessária para saudar devidamente os seus camaradas - uma energia imensa, pois sabiam muito bem o que eram boas maneiras. Por
fim, o Amélia foi ficando para trás, mas ainda gritaram: "Só mais um viva!", após o que os homens baixaram à coberta.
Fora uma bela saudação, uma saudação calorosa, uma despedida nobre, e, como seria de esperar, os homens do Sophie ficaram extremamente satisfeitos; contudo, a despedida
festiva não evitou que sentissem uma profunda mágoa, pois não evitou que repetissem: "Devolvam-nos os nossos trinta e sete dias!", como se fosse uma palavra de ordem
ou um lema, tanto na entrecoberta, o que era mais fácil, como na coberta, o que exigia uma maior ousadia. Nem evitou que retomassem as suas tarefas com menos interesse
do que era costume; e, nos dias e semanas que se seguiram, os homens do Sophie mostraram-se mais enfadados e desinteressados do que seria normal.
O breve episódio no porto de Mahón afectara consideravelmente a disciplina a bordo. Os tripulantes, perante a ignomínia de que haviam sido vítimas, haviam operado
uma transformação violenta: tinham-se transformado num corpo único, extremamente unido, muitíssimo ressentido e revoltado; daí que, durante algum tempo, a hierarquia
(nos seus aspectos mais subtis) tivesse praticamente desaparecido; e, entre outras coisas, o cabo do navio permitira que os feridos agora regressados ao serviço
trouxessem odres cheios de brande espanhol, anis e um líquido incolor que diziam ser gim. Um número vergonhoso de homens sucumbira à influência da bebida, nomeadamente
o capitão da gávea do traquete (bêbedo que nem um cacho) e ambos os
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ajudantes do contramestre. Jack despromoveu Morgan e promoveu Alfred King, o negro mudo, cumprindo a sua antiga ameaça - um ajudante de contramestre mudo seria certamente
mais terrível e mais dissuasivo, sobretudo quando o mudo tinha um braço tão tremendamente forte.
- Mr Dalziel - disse ele certo dia -, finalmente vamos montar uma verdadeira grade no portaló. Para eles, açoites no cabrestante são como festas; e eu quero acabar
de vez com estas malditas bebedeiras, dê lá por onde der.
- com certeza, meu capitão - disse o primeiro-oficial; e, após uma breve pausa, acrescentou: - Wilson e Plimpton fizeram-me saber que será para eles uma grande ofensa
se forem açoitados por King.
- Claro que será uma grande ofensa. E espero muito sinceramente que se sintam muitíssimo ofendidos. É por isso mesmo que vão ser açoitados. Estavam os dois bêbedos,
não estavam?
- Estavam a cair de bêbedos, meu capitão. Disseram que era o dia de Acção de Graças deles.
- De Acção de Graças?! Mas que raio é que há para agradecer? O Cacanego? O Cacafuego foi vendido aos argelinos!
- Eles são das colónias, meu capitão, e parece que nas colónias é um dia de festa. Seja como for, não é dos açoites que eles discordam, mas sim da cor daquele que
os vai açoitar.
- Bah! - exclamou Jack. - E há outra pessoa que vai ser açoitada se isto continua assim - acrescentou, inclinando-se e mirando pelas janelas da cabina -, é o capitão
daquele maldito paquebote! Faça-lhe um sinal com um canhonaço, Mr Dalziel. Um disparo não muito longe da popa. E ordene-lhe que mantenha a sua posição.
O maldito paquebote vivia um verdadeiro inferno desde que deixara o porto de Mahón. O seu capitão esperava que o Sophie navegasse directamente para Gibraltar, mantendo-se
sempre no mar alto, longe da vista de corsários e, sobretudo, fora do alcance dos disparos das baterias costeiras. Embora não fosse propriamente o navio mais veloz
da frota, apesar de todas as melhorias que haviam sido introduzidas, o Sophie conseguia atingir o dobro da velocidade do paquebote, tanto cochado como com vento
favorável; e tirava proveito da sua superioridade para descer junto à costa, perscrutando todas as baías e angras, obrigando o paquebote a manter-se a bombordo,
a muito pouca distância, e absolutamente aterrorizado.
Até então, esta busca ávida, semelhante ao trabalho de um cão de caça, provocara apenas umas quantas trocas de tiros com as baterias costeiras, pois as ordens que
Jack recebera eram taxativas - as perseguições estavam
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rigorosamente proibidas, ou seja, era-lhe praticamente impossível fazer presas. Mas essa consideração era absolutamente secundária: acção era o que ele queria e
procurava; e naquelas circunstâncias, daria tudo, ou quase tudo, para que a sorte lhe reservasse um confronto directo e sem grandes complicações com um navio mais
ou menos do tamanho do Sophie.
Foi com estes pensamentos que subiu à coberta. O vento amainara ao longo da tarde e parecia morrer agora, soltando de quando em quando umas arfadas irregulares;
o Sophie ainda conseguia mover-se, mas o paquebote estava quase parado. A estibordo tinham a extensa costa rochosa, com algo que se assemelhava a uma protuberância,
um pequeno cabo ou ponta com um castelo mouro em ruínas, mais ou menos a uma milha de distância.
- Está a ver aquele cabo? - perguntou Stephen, que o observava com um livro aberto nas mãos, marcando a página com o polegar. - É o Cabo Roig, a fronteira da língua
catalã no que toca à costa: e a pouca distância fica Orihuela, que é a última aldeia do interior onde se fala catalão; depois de Orihuela deixamos de ouvir catalão,
pois logo a seguir temos Múrcia e a bárbara algaravia do ai Andalus. Na primeira aldeia que há depois do cabo, as pessoas já falam como mouros: uma verdadeira algaravia,
um aranzel de estarrecer! - Stephen Maturin podia ser muito liberal em todos os aspectos da vida e do mundo, mas mouros é que não suportava.
- Então há por aí uma aldeia, é isso? - perguntou Jack com um intenso brilho nos olhos.
- bom, uma aldeola: vai vê-la já de seguida. - Fez uma pausa; a corveta deslizava sussurrante pelas águas paradas e a paisagem passava de forma quase imperceptível.
- Estrabão diz que os antigos irlandeses consideravam uma honra serem comidos pelos seus familiares: uma maneira de sepultar os mortos que, por assim dizer, mantinha
a alma em família - disse ele acenando com o livro.
- Mr Mowett, traga-me o meu óculo, se faz favor. Desculpe, doutor Maturin, estávamos a falar de Estrabão, não era?
- Pode dizer-se que Estrabão mais não é do que um Eratóstenes redivivo; ou deverei dizer, como os homens do mar, aparelhado de fresco?
- Diga à sua vontade, doutor, por quem é! - retorquiu Jack. - No cume da colina, sob o castelo, vai um sujeito cavalgando a toda a brida.
- Vai para a aldeia.
- Pois vai. Já estou a ver a aldeia, por detrás do penhasco. E estou a ver outra coisa - acrescentou, quase para si mesmo. A corveta avançava lentamente; e também
a baía de águas pouco profundas surgiu lentamente, em cuja
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margem se amontoavam as casas brancas. Havia três embarcações ancoradas, dois houaris e um pingue, embarcações mercantes pequenas, mas muito carregadas.
Ainda antes que a corveta começasse a aproximar-se, já havia muita actividade na margem e todos os homens do Sophie que dispunham de um óculo puderam ver gente correndo
de um lado para o outro e botes remando energicamente em direcção aos barcos ancorados. Viram depois os tripulantes dos navios mercantes correndo furiosamente pelas
cobertas e o som de acaloradas discussões depressa chegou aos ouvidos dos homens do Sophie. Segundos passados, ouviram os gritos desses tripulantes enquanto accionavam
os molinetes para levantar as âncoras; por fim, viram-nos largarem as velas e abeirarem-se ainda mais da costa.
Jack observou a costa durante algum tempo com o olhar penetrante de quem fazia intrincados cálculos: se o mar não se encrespasse, seria fácil tirar dali os barcos
a reboque - seria fácil tanto para os espanhóis como para o Sophie. Contudo, as suas ordens eram muito claras: impossível qualquer expedição. No entanto... no entanto,
o inimigo vivia do comércio costeiro as estradas eram execráveis para o transporte de grandes cargas, era absurdo recorrer-se a animais... carros puxados por cavalos,
nem valia a pena falar: Lorde Keith dera o máximo relevo à questão do comércio costeiro. E era seu dever apresar, incendiar, afundar ou destruir. Os homens do Sophie
fitavam atentamente o seu comandante: sabiam muito bem o que estava a pensar, mas também tinham uma ideia muito clara do que diziam as ordens de Harte aquilo não
era um cruzeiro, mas apenas uma viagem de escolta. Fitavam-no com tanta atenção que nem deram pelo escoar da areia que marcava o tempo. Joseph Button, a sentinela
cuja função era dar a volta à ampulheta que marcava as meias horas no preciso instante em que ficava vazia e tocar o sino imediatamente, foi acordado da sua contemplação
do rosto do capitão Aubrey por cotoveladas, beliscões e gritos abafados de "Joe, Joe, acorda, Joe, meu grande filho da puta!" e, por fim, pela voz de Mr Pullings,
colada ao seu ouvido: "Button, vire-me já a ampulheta!".
Quando a última batida do sino se extinguiu, Jack ordenou: "Vire em redondo, Mr Pullings, por favor".
Descrevendo uma curva quase perfeita, e entre débeis apitos e ordens de "Prontos! Leme a sotavento! Acima os punhos de amura e as escotas! Caçar a
6 Pequena embarcação com uma armação que consta de duas velas baionetas. (N. do T.)
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vela mestra!", o Sophie virou e, com as velas inchadas, rumou na direcção do distante paquebote, ainda parado num suave campo de mar violeta.
Depois de se ter afastado algumas milhas do pequeno cabo, também o Sophie se deteve por falta de vento, e para ali ficou na penumbra, com as velas flácidas e disformes,
enquanto o orvalho ia cobrindo tudo.
- Mr Day - disse Jack -, faça-me um favor: prepare alguns barris para incendiar, uma meia dúzia deles. Mr Dalziel, a menos que se levante vento, creio que poderemos
baixar os botes por volta da meia-noite. Doutor Maturin, que me diz a um pequeno divertimento?
O divertimento consistiu na emenda de algumas pautas e na cópia de um dueto que lhes tinham emprestado e que estava cheio de semifusas.
- Santo Deus! - disse Jack, erguendo os olhos avermelhados e chorosos ao fim de cerca de uma hora de divertimento. -Já estou demasiado velho para estas coisas. -
Tapou os olhos com as mãos e assim ficou por um bocado; com uma voz completamente diferente, disse: -Tenho estado a pensar em Dillon todo o santo dia. Todo o santo
dia. Não faz ideia da falta que ele me faz, doutor. Quando me falou daquele autor clássico, lembrei-me logo dele... porque falava dos irlandeses, sem dúvida; e Dillon
era irlandês. Quem o conhecesse, dificilmente acreditaria que era irlandês. Nunca o viram bêbedo, quase nunca gritava com os homens, falava como um verdadeiro cristão,
era o homem mais educado e cortês do mundo, um verdadeiro cavalheiro, não era dado a fanfarronices, bem pelo contrário. Ah... Santo Deus! Meu caro amigo, meu caro
Maturin, peco-lhe mil perdões pelo que acabei de dizer! Lamento-o profundamente, profundamente!
- Pois - retorquiu Stephen, após o que pegou na sua caixinha de rapé e aspirou uma pitada.
Jack tocou a sineta e, entre os diversos ruídos do navio, todos abafados no meio de tão extrema calmaria, ouviu os passos rápidos do seu camareiro.
- Killick - disse -, traga-me umas garrafas desse Madeira com o selo amarelo e também umas bolachas do Lewis. Não consigo que ele faça um bolo de sementes aromáticas
em condições - explicou a Stephen -, mas estes petty fours7 comem-se bastante bem e fazem sobressair a qualidade do vinho. Agora, quanto a este vinho - disse, fitando
atentamente o copo -, foi-me dado em Mahón pelo nosso agente e foi engarrafado no ano em que
7 Jack Aubrey pretendia dizer petits-fours, mas as dificuldades do francês levam-no a pronunciar petits como petty, termo que, em inglês, significa, entre outras
coisas, "insignificante", "sem importância", "mesquinho". (N. do T.)
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nasceu o meu cavalo Eclipse. Brindo com ele para que me perdoe a minha falta. À sua saúde, doutor Maturin!
- À sua, meu caro! É um vinho velho extraordinário, de facto. Seco, mas com um sabor magnífico. Excelente!
- Eu digo estas coisas horríveis - prosseguiu Jack, meditativo, enquanto iam esvaziando a garrafa - e, no momento em que as digo, não me dou conta do meu erro, apesar
de ver que as pessoas ficam com um ar furioso e me olham com reprovação, apesar dos sinais dos meus amigos chamando-me a atenção para os disparates que eu digo;
e quando dou pela coisa, digo para mim mesmo: "Voltaste a fazer asneira, Jack". Normalmente, acabo por me aperceber do erro cometido, mas sempre demasiado tarde.
Receio que, desse modo, tenha ofendido James Dillon muitas vezes - e baixou os olhos com um ar triste -, mas, como o doutor sabe, não sou o único que comete erros
desses. Não pense que pretendo tirar valor a Dillon seja de que maneira for. Menciono este caso apenas como um exemplo de que mesmo um homem educado e instruído
pode, por vezes, cometer erros deste género, porque estou convicto de que ele não o fez por mal; mas a verdade é que Dillon também me magoou muito certa vez quando
usou a palavra comercial durante uma conversa muito entusiasmada sobre a eventualidade de fazermos presas. Estou certo de que não o fez por mal, do mesmo modo que
eu, ainda agora, não tinha a intenção de que o meu comentário fosse ofensivo; mas tenho andado com esta história atravessada na garganta desde aquela maldita conversa.
Essa é uma das razões por que estou tão contente...
Nesse instante alguém bateu à porta.
- Peço-lhe que me desculpe, meu capitão. O ajudante do cirurgião está aflito, doutor. O jovem Ricketts engoliu uma bala de mosquete e não conseguem tirar-lha. Vai
morrer asfixiado, doutor!
- Desculpe, eu volto já - disse Stephen, colocando o copo na mesa com todo o cuidado e cobrindo-o com um lenço vermelho pintalgado: uma bandana.
Cinco minutos mais tarde, perguntou Jack ao doutor: - Então, doutor, já está tudo bem? Conseguiu salvar o rapaz?
- Talvez não consigamos fazer tudo o que queremos em medicina retorquiu Stephen, visivelmente satisfeito -, mas creio que, pelo menos, podemos administrar um emético
capaz de surtir efeito. Mas de que estávamos nós a falar?
- Da palavra comercial - disse Jack. - Foi essa a palavra que Dillon usou. E por isso estou tão contente por poder lançar esta expedição: com
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efeito, as ordens que recebi impedem-me de apresar os barcos, mas não me impedem de os incendiar. Por outro lado, também não perco tempo, pois tenho de esperar que
o paquebote nos alcance. E mesmo a criatura mais escrupulosa do mundo reconheceria que esta empresa não tem rigorosamente nada de comercial. É demasiado tarde, sem
dúvida. Estas coisas surgem sempre demasiado tarde... Mas garanto-lhe que, mesmo assim, esta operação me deixa extremamente satisfeito. James Dillon teria ficado
tão contente! Era mesmo disto que ele gostava! Lembra-se dele com os botes em Falamos? E em Palafrugell?
A lua declinava. O céu estrelado girava sobre o seu eixo, fazendo subir as Plêiades. Estava um céu de pleno Inverno (embora quente e sereno) quando a lancha, o cúter
e o escaler baixaram e o destacamento de desembarque desceu para dentro deles. Todos usavam casaca azul e uma braçadeira branca. Estavam a cinco milhas das suas
presas, mas já só falavam por murmúrios e apenas se ouviam alguns risos abafados e o tilintar das armas. Começaram a remar silenciosamente, pois os remos estavam
forrados com tela, e avançaram na escuridão; ao fim de dez minutos, apesar de muito forçar a vista, Stephen Maturin já não conseguia enxergá-los.
- Ainda consegue vê-los? - perguntou Stephen ao contramestre, que agora estava ao leme, pois ficara manco devido aos ferimentos sofridos na batalha contra o Cacafuego.
- Só consigo distinguir a lanterna furta-fogo com que o capitão observa a bússola - disse Mr Watt. - Um pouco atrás da serviola.
- Experimente com o meu óculo, doutor - disse Lucock, o único guarda-marinha que ficara a bordo.
- Daria tudo para que isto já tivesse acabado - disse Stephen.
- Também eu, doutor, também eu - disse o contramestre. - E também daria tudo para estar com eles. Para quem fica a bordo é muito pior. Eles estão juntos, estão alegres,
e o tempo passa num instante, tão depressa como se estivessem na feira de Horndean. Em contrapartida, os poucos homens que ficam a bordo não podem fazer outra coisa
senão esperar, e até dá a impressão de que a areia nunca mais anda na ampulheta! Temos a sensação de que passam anos, e não minutos, até sabermos qualquer coisa
deles... O doutor vai já ver como é.
Horas, dias, semanas, anos, séculos. A escuridão e o silêncio eram absolutos: de tal forma que por vezes o tempo parecia não existir; só uma vez ouviram um tremendo
estridor por sobre as suas cabeças - eram flamingos voando para o Mar Menor, ou talvez para os distantes pauis do Guadalquivir.
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Os clarões dos mosquetes e o subsequente ruído dos disparos não vieram do pequeno círculo em que Stephen concentrara o seu olhar, mas sim de uma zona muito mais
à direita. Ter-se-iam enganado no caminho? Ter-se-iam dirigido para o lado oposto? Ou seria ele que estava a olhar na direcção errada?
- Mr Watt - disse Stephen -, acha que os botes estão no local correcto?
- Claro que não, doutor - retorquiu o contramestre, muito tranquilo.
- Ou me engano muito ou o capitão está a ver se os despista.
O ruído de disparos prosseguiu incessante, e de quando em quando ouviam-se débeis gritos. Então, à esquerda, surgiu um clarão de um vermelho muito intenso; depois
um segundo, e um terceiro que repentinamente ganhou proporções monstruosas, uma língua de fogo que se elevava mais e mais, absolutamente imparável, uma fonte de
luz absolutamente prodigiosa - era um barco carregado de azeite que ardia.
- Deus todo-poderoso! - murmurou o contramestre, aterrorizado.
- Ámen - ouviu-se entre os silenciosos e atónitos tripulantes.
À luz das dantescas labaredas, puderam ver o fumo e as chamas dos outros incêndios, menos intensos; a baía inteira e a aldeia; o cúter e a lancha afastando-se das
margens e o escaler atravessando a baía para se juntar a eles; e o pano de fundo das colinas castanhas, num impressionante claro-escuro.
De início, o fogo elevou-se formando uma grande coluna, direita como um cipreste; porém, ao fim de um quarto de hora, as chamas começaram a derivar para sul, na
direcção das colinas, e a nuvem de fumo que flutuava sobre elas começou a estender-se como um fino manto iluminado de baixo. O brilho das chamas parecia agora mais
intenso e Stephen viu gaivotas revoluteando entre a corveta e a terra, todas elas atraídas pelo fogo. "O fogo deverá atrair todos os seres vivos", pensou ele com
alguma ansiedade. "Como se comportarão os morcegos?".
Nesse momento, os dois terços superiores da corveta revelaram uma forte inclinação e o Sophie começou a jogar, com as ondas rompendo contra o costado de bombordo.
Mr Watt acordou do seu demorado assombro e tratou de dar as ordens necessárias. Ao regressar à amurada, disse para o doutor:
- Vão ter de remar muito, se isto continua assim.
- Não poderíamos abeirar-nos e recolhê-los? - perguntou Stephen.
- Não, doutor, não podemos. Não com este vento e com os bancos de areia que há nas proximidades do cabo. Realmente não podemos, doutor.
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Outro grupo de gaivotas passou num voo raso sobre as águas.
- As chamas atraem todos os seres vivos num raio de muitas milhas disse Stephen.
- Não se preocupe, doutor - disse o contramestre. - Dentro de uma ou duas horas já o dia terá nascido e então nenhum ser vivo ligará ao fogo.
- Ilumina todo o céu - disse Stephen.
E também iluminava a coberta do Formidable, um navio de linha francês de esplêndida construção e com oitenta canhões, sob o comando do capitão Lalonde e com a insígnia
do contra-almirante Linois no mastro de mezena: o Formidable encontrava-se a umas sete ou oito milhas da costa, fazendo a viagem entre Toulon e Cádis, à cabeça do
resto da esquadra - o Indomptable, de oitenta canhões, sob o comando do capitão Moncousu, o Desaix, de setenta e quatro canhões, sob o comando do capitão Christy-Pallière
(um navegador magnífico), e o Muiron, uma fragata de trinta e oito canhões que até há pouco pertencera à República de Veneza.
- Rumemos à costa para ver o que se passa - disse o almirante, um homem pequeno, moreno, enérgico e excelente marinheiro, que usava calções vermelhos; e, momentos
depois, subiam já as lanternas com luzes coloridas. Os navios viraram ordenadamente uns atrás dos outros: os seus tripulantes demonstravam uma eficiência que faria
a inveja de qualquer armada; de facto, a maior parte desses homens viera da esquadra de Rochefort, muitos eram marinheiros de primeira classe e, além disso, eram
comandados por oficiais com muita experiência.
Tinham virado a estibordo e abeiravam-se da costa com o vento a um grau, já com o sol espreitando no horizonte, e os homens do Sophie não deixaram de os saudar com
alegria logo que os viram. Os botes tinham acabado de alcançar a corveta depois de uma longa e difícil perseguição, e os tripulantes do Sophie tardaram a avistar
os navios de guerra franceses; contudo, mal os viram, esqueceram a fome, a fadiga, as dores nos braços, o frio e a humidade, já que, num ápice, se espalhou pela
corveta um rumor imparável - "São os nossos galeões! Vêm a toda a pressa em direcção a nós!". As riquezas das índias Ocidentais, da Nova Espanha e do Peru: lingotes
de ouro servindo de lastro! Desde que a tripulação soubera que Jack recebia informações secretas sobre os movimentos dos navios espanhóis, coma o persistente rumor
de que encontrariam um galeão: e agora esse rumor confirmava-se plenamente.
As esplêndidas chamas continuavam a erguer-se contra o pano de fundo das colinas, embora a luz do amanhecer as tornasse mais pálidas; porém, com o afã de pôr tudo
em ordem e de preparar a corveta para a perseguição,
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ninguém reparou mais nas chamas - sempre que um homem podia desviar a sua atenção do trabalho que estava a executar, os seus olhos viravam-se, expectantes e deliciados,
para o Desaix, que se encontrava a três ou quatro milhas de distância, e para o Formidable, agora bastante atrás do Desaix.
A certa altura, porém, a alegria dos homens do Sophie desvaneceu-se por completo, embora fosse difícil localizar o momento exacto em que isso aconteceu: o camareiro
do capitão, ainda concentrado nos seus cálculos sobre quanto lhe custaria abrir umpub na Hunstanton Road, levou uma chávena de café a Jack, e ouviu-o dizer a Mr
Dalziel: "Uma posição verdadeiramente horrível, Mr Dalziel"; terá sido então que a alegria se transformou em tristeza, pois o homem reparou que o Sophie já não navegava
na direcção aos supostos galeões, mas que, pelo contrário, se afastava deles tão depressa quanto podia, cochado e com todo o velame desfraldado, incluindo os bonetes.
Por essa altura já se via o casco do Desaix - na realidade, desde há já algum tempo - e também o do Formidable: por detrás da nau-capitânia, viam-se também os joanetes
e as gáveas do Indomptable e, aproximadamente duas milhas a barlavento deste último, as velas da fragata cortavam já a linha do céu. A posição era de facto horrível;
mas o Sophie rumava a barlavento, o vento era incerto e era possível que o tomassem por um navio mercante sem qualquer importância - um brigue a que uma esquadra
ocupada em cumprir a sua missão não consagraria mais do que uma hora de atenção: não, a situação não era propriamente muito grave, concluiu Jack, baixando o óculo.
O comportamento dos homens no castelo de proa do Desaix, o moderado desfraldar de velas e muitos outros pormenores persuadiram-no de que o Desaix não lançara propriamente
uma perseguição. Mesmo assim... com que rapidez navegava! A sua proa alta, ligeira, espaçosa, redonda, elegante, ao estilo francês, e as suas velas, de um corte
perfeito, muito tensas e lisas, faziam com que o navio deslizasse suavemente, tão suavemente como o Victory. Além disso, conduziam-no muito bem: de tal modo que
o navio parecia correr por um caminho traçado sobre o mar. Jack esperava cortar a proa do Desaix antes que este tivesse saciado a sua curiosidade acerca do incêndio
na costa, atraindo-o assim para uma dança que o levaria a desistir dos seus intentos - até que o almirante lhe fizesse sinais para que se retirasse.
- Coberta! - gritou Mowett do topo. - A fragata apresou o paquebote.
Jack assentiu com a cabeça e apontou o seu óculo para o miserável Ventura e logo depois para a nau-capitânia, que se encontrava por detrás do
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navio de setenta e quatro canhões. Esperou: talvez cinco minutos. Aquela era a fase crucial. O Formidable começou a fazer sinais e disparou um canhonaço para lhes
dar mais ênfase. Infelizmente não eram sinais de retirada. O Desaix orçou imediatamente, já sem qualquer interesse pelo que se passava na costa: e logo surgiram
os sobrejoanetes, caçados e içados com tal celeridade que Jack franziu os lábios num assobio silencioso. Também o Formidable estava a largar mais velas; e agora
o Indomptable acercava-se rapidamente, com todas as velas desfraldadas e aproveitando o vento, que aumentara de intensidade.
Era evidente que os tripulantes do paquebote tinham confessado aos franceses o que o Sophie era na realidade. Mas também era evidente que o sol nascente tornaria
o vento ainda mais instável - ou mesmo nulo. Jack observou o velame do Sophie: todas as velas haviam sido desfraldadas, evidentemente; e, agora, todas as velas estavam
tensas, apesar do vento incerto. O mestre governava o Sophie, e Pram, o oficial de derrota, estava ao leme, tentando levar a velha e cansada corveta a dar o melhor
de si. Todos os homens estavam nos seus postos, prontos, silenciosos e atentos. Jack não tinha nada que dizer ou fazer; contudo, não deixou de reparar nas puídas
e flácidas velas do Almirantado e não deixou de se censurar cruelmente por ter perdido tempo - por não ter envergado as gáveas feitas com lona da melhor qualidade
que ele próprio havia comprado, embora estivesse proibido de o fazer.
- Mr Watt - disse ele, um quarto de hora depois, olhando para o alto mar e para as cristalinas zonas de calmaria -, preparar para usar os remos.
Poucos minutos depois, o Desaix içou a bandeira e abriu fogo com os canhões de proa; como se aquele duplo estrondo tivesse aturdido os ares, as pronunciadas curvas
das velas desapareceram, ondeando e inchando por um momento, e logo voltaram a ficar flácidas.
O Sophie tirou proveito do vento uns minutos mais, mas acabou por entrar também numa zona de calmaria. Antes que parasse por completo
- muito antes -, os homens pegaram em todos os remos que haviam conseguido em Malta, cinco homens para cada remo; a corveta avançava lentamente, como se navegasse
contra o vento, e os remos curvavam-se perigosamente devido à força e à concentração extremas com que os homens remavam. Era um trabalho duro, muito duro: de súbito,
Stephen reparou que também havia oficiais a remar, quase um oficial por remo. Avançou para um dos poucos lugares vagos: quarenta minutos depois, tinha as palmas
das mãos em carne viva.
- Mr Dalziel, mande o quarto de estibordo tomar o pequeno-almoço.
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Ah, ei-lo, Mr Ricketts! Creio que podemos servir uma ração dupla de queijo, pois não haverá comida quente durante algum tempo.
- Se me permite, meu capitão - disse o tesoureiro com uma expressão vagamente maliciosa -, creio que muito em breve haverá algo bastante quente.
O quarto de estibordo, que tomara o pequeno-almoço rapidamente, encarregou-se dos pesados remos para que os seus companheiros pudessem comer a sua ração de biscoito,
queijo e grogue; os oficiais tiveram direito ao mesmo, mais algum presunto; uma refeição breve e nervosa, pois o vento, que havia rodado dois graus, começava a encapelar
o mar. Os navios franceses foram os primeiros a aproveitá-lo e era impressionante ver como as suas velas enormes os faziam avançar com assombrosa rapidez. O Sophie
perdeu em vinte minutos a vantagem que havia alcançado com tanto esforço; e antes que as suas velas inchassem, do castelo de popa já se viam os bigodes que a ondulação
deixava na proa do Desaix. As velas do Sophie estavam agora inchadas, mas a velocidade a que a corveta seguia era demasiado baixa - uma velocidade que não servia
os seus intentos.
- Guardar os remos! - ordenou Jack. - Mr Day, deitar os canhões borda fora!
- Sim, meu capitão - respondeu o condestável com determinação; porém, os seus movimentos revelaram-se estranhamente lentos, forçados, muito pouco naturais, como
os de um homem que caminhasse à beira de um precipício, movido apenas por uma grande força de vontade.
Stephen voltou à coberta depois de ter calçado um par de luvas. Viu os artilheiros do canhão de bronze de estibordo com barras e alavancas nas mãos e uma expressão
ansiosa, quase temerosa, enquanto esperavam as ordens; quando estas vieram, empurraram lentamente o reluzente canhão, o seu belo canhão número catorze, e lançaram-no
ao mar. A queda coincidiu com o repuxo levantado, a cerca de dez jardas de distância, por uma bala do canhão de proa do Desaix; por isso, o canhão seguinte foi lançado
borda fora com menos cerimónia. Catorze canhões lançados ao mar, cada um deles pesando meia tonelada; depois dos canhões, foi a vez das carretas; de cada lado das
portinholas abertas, viam-se apenas as cordas com que os canhões eram amarrados - uma desolação indescritível.
Jack olhou para a proa e depois para a popa e compreendeu a situação: franziu os lábios e retirou-se para a grinalda. O Sophie, agora muito mais leve, ganhava velocidade
minuto a minuto; e agora que havia perdido todo
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aquele peso, muito acima da linha de flutuação, navegava agora muito mais erecto e resistia melhor ao embate do vento.
O primeiro canhonaço do Desaix atravessou o joanete, mas os dois seguintes não atingiram a corveta. Ainda havia tempo para realizar manobras
- muitas manobras. "Para começar", pensou Jack, "ficaria muito surpreendido se o Sophie não conseguisse virar com o dobro da velocidade do navio de setenta e quatro
canhões".
- Mr Dalziel - disse ele -, viraremos e voltaremos à mesma posição. Mr Marshall, dê o máximo de velocidade ao navio. - Poderia ser desastroso para o Sophie se houvesse
alguma falha na segunda manobra; por outro lado, aquele vento suave não era o mais conveniente para a corveta, pois esta navegava melhor quando o mar estava um pouco
agitado e quando tinha pelo menos um rizo nas gáveas.
- Prontos para virar! - O apito soou, a corveta virou a bombordo, colocou-se contra o vento e estabilizou de uma forma perfeita; as bolinas estavam já tão tensas
como as cordas de uma harpa, antes mesmo que o grande navio de setenta e quatro canhões tivesse começado a virar.
Contudo, o Desaix começou a virar, estava já a virar, as suas vergas estavam a girar; o seu costado axadrezado começou a ver-se da coberta do Sophie; e Jack Aubrey,
vendo através do seu óculo como era exactamente a bateria inimiga, disse para Stephen Maturin: "Doutor, aconselho-o a baixar". Stephen baixou, de facto, mas não
passou da cabina; e aí, espreitando pelas janelas da popa, conseguiu ver o casco do Desaix envolto em fumo da proa à popa, segundos depois de o Sophie ter começado
a virar de novo. A contundente surriada, novecentas e vinte e oito libras de ferro, mergulhou numa vasta área de mar perto do lado de estibordo, excepto duas balas
de trinta e seis libras que passaram assobiando entre a enxárcia, provocando grandes destroços e deixando muito cordame dependurado. Por um instante, pareceu que
o Sophie não ia conseguir virar, que ia deter-se impotente, que ia perder toda a sua vantagem e expor-se a uma segunda saudação, disparada com muito mais precisão.
Porém, as suas velas de proa receberam um suave empurrão do vento, o que fez com que o navio virasse e voltasse à posição inicial; o Sophie pôde assim ganhar velocidade
enquanto no Desaix ainda não tinham acabado de bracear - nem sequer tinham concluído a primeira das suas manobras.
A corveta conseguira uma vantagem de cerca de um quarto de milha. "Mas não me vão deixar fazê-lo de novo", pensou Jack.
O Desaix encontrava-se a estibordo e, tratando de recuperar o tempo
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perdido, virou sem deixar de disparar os canhões de proa. Os seus disparos, cuja precisão aumentava sempre que a distância entre os dois navios diminuía, roçavam
as velas da corveta ou rasgavam-nas, provocando frequentes sacudidelas e fazendo com que o Sophie fosse perdendo a pouco e pouco alguma velocidade. O Formidable
encontrava-se no lado oposto, para evitar que a corveta escapasse, e o Indomptable, a meia milha de distância, dirigia-se para oeste navegando contra o vento - mas
exactamente com o mesmo propósito. Os perseguidores do Sophie, quase alinhados, acercavam-se assim a grande velocidade da corveta que avançava à sua frente seguindo
uma linha quebrada. A nau-capitânia, de oitenta canhões, estava agora mais perto e, depois de dar uma guinada, disparou uma surriada; e o inflexível Desaix, dando
bordadas curtas, disparava também. O contramestre e a sua brigada estavam muito atarefados consertando os cabos, e nas velas havia alguns buracos horríveis; contudo,
até então nada de essencial fora derrubado e nenhum homem ficara ferido.
- Mr Dalziel - disse Jack -, comece a deitar as provisões ao mar. Abriram-se as escotilhas e tudo o que havia nos paióis foi lançado ao
mar: barris de carne de vaca salgada, barris de carne de porco, uma quantidade imensa de biscoitos, ervilhas, farinha de aveia, manteiga, queijo, vinagre, pólvora,
balas. com a bomba, escoaram a água para o mar. Uma bala de vinte e quatro libras atingiu o casco sob o painel de popa, e por isso as bombas tiveram também de escoar
água salgada depois da água potável.
- Mr Ricketts, vá ver como está a correr o trabalho do carpinteiro disse Jack.
- As provisões já foram todas lançadas ao mar, meu capitão - comunicou o primeiro-oficial.
- Muito bem, Mr Dalziel. Agora as âncoras e as perchas. Deixe apenas
o ancorete.
- Mr Lamb diz que na arca da bomba há dois pés e meio de água - disse o guarda-marinha, arquejante -, mas que o buraco feito pelo canhonaço está bem tapado.
Jack assentiu e virou-se para observar a esquadra francesa. Já não havia nenhuma esperança de escapar ao inimigo navegando cochado. Contudo, se conseguissem arribar,
virando rápida e inesperadamente, talvez pudessem voltar para trás e passar por entre os navios franceses, pois a corveta estava agora muito mais leve e tinha a
ajuda de um vento de um ou dois graus pela alheta e das ondas de popa - talvez assim conseguissem sobreviver e chegar a Gibraltar. O Sophie estava agora tão leve
- uma verdadeira casca de noz -
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que poderia ganhar-lhes vantagem se tivesse o vento pela popa; e se virasse com destreza, com alguma sorte conseguiria uma milha de vantagem antes que os navios
franceses ganhassem velocidade na sua nova posição. Claro que teria de resistir a duas surriadas enquanto passasse entre eles... Mas era a única esperança que restava;
e a surpresa era tudo.
- Mr Dalziel - disse -, vamos arribar dentro de dois minutos. Largaremos as varredouras e passaremos entre a nau-capitânia e o navio de setenta e quatro canhões.
Temos de fazer isto com a máxima rapidez, antes que eles se apercebam da manobra. - Dirigiu estas palavras ao primeiro-oficial, mas nesse mesmo instante todos os
homens compreenderam o que deviam fazer
- os gaveeiros correram para os seus postos e prepararam-se para enxarciar os botalós das varredouras. Na coberta, a abarrotar de gente, todos os homens estavam
muito atentos e a actividade não podia ser mais intensa. Esperem... esperem... - murmurou Jack ao ver o Desaix aproximar-se de través a estibordo. Era o navio com
que devia ter mais cuidado: estava tremendamente alerta e o seu capitão esperava ansiosamente que o Sophie iniciasse alguma manobra para depois dar as ordens. A
bombordo encontrava-se o Formidable, com um número excessivo de homens, como todas as naus-capitânias, e, por isso mesmo, menos eficiente numa situação de emergência.
- Esperem... esperem - disse Jack de novo, os olhos fixos no Desaix. Porém, o navio francês continuava a aproximar-se com uma regularidade notável. Contou até vinte
e só então gritou: - Agora!
O leme girou e o Sophie virou agilmente, como um cata-vento, em direcção ao Formidable. A nau-capitânia fez fogo de imediato, mas os seus canhões não estavam tão
bem preparados como os do Desaix, de modo que a apressada surriada caiu toda ao mar, precisamente no local onde a corveta estivera momentos antes: a oferenda do
Desaix foi lançada com maior precisão, embora com alguma cautela, pois temia-se que as balas, devido ao efeito de ricochete, chegassem à nau-capitânia; por isso,
apenas uma meia dúzia de balas provocou danos - as restantes não atingiram a corveta.
O Sophie atravessara velozmente a linha de navios sem sofrer danos graves; tinha as varredouras desfraldadas e o vento não podia ser mais favorável. A surpresa fora
total e a corveta conseguira afastar-se do inimigo uma milha em apenas cinco minutos. A segunda surriada do Desaix, disparada a uma distância de mais de mil jardas,
foi produto da raiva e da precipitação; ouviu-se um estrépito - a bomba de tronco de olmo fora destruída; mas não houve mais danos a bordo do Sophie. A nau-capitânia,
obviamente, dera uma contra-ordem para que não fosse disparada uma segunda surriada e, durante
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algum tempo, continuou a navegar de bolina e mantendo o mesmo rumo, como se o Sophie não existisse.
"Talvez tenhamos conseguido", disse Jack para si mesmo, apoiando as mãos na grinalda e observando a larga esteira da corveta. O seu coração batia ainda muito forte
devido à tensão que tivera de suportar antes das surriadas, devido ao medo de que os disparos destruíssem o Sophie; agora, porém, havia outras razões para que o
seu coração batesse forte. "Talvez tenhamos conseguido", disse de novo. Contudo, nesse mesmo instante viu aparecer um sinal na nau-capitânia e o Desaix começou a
virar, colocando a proa contra o vento.
O navio de setenta e quatro canhões virou com a mesma agilidade de uma fragata: as suas vergas giraram com a regularidade e a precisão de ,um mecanismo de relógio,
e era evidente que tudo a bordo estava perfeitamente colocado e amarrado, já que a sua tripulação, além de ser numerosa, possuía grande experiência. O Sophie tinha
também uma tripulação excelente, tão cumpridora dos seus deveres e tão bem preparada como Jack Aubrey poderia desejar; contudo, independentemente do que fizessem,
não conseguiriam que a corveta navegasse a mais de sete nós com aquele vento, ao passo que no último quarto de hora, o Desaix alcançara uma velocidade de mais de
oito nós sem as varredouras. E nem se ia dar ao trabalho de as desfraldar. Quando os homens do Sophie se deram conta disso - quando os minutos começaram a passar
e se tornou claro que o navio francês não tinha a menor intenção de desfraldar as varredouras -, todas as suas esperanças se desvaneceram.
Jack perscrutou o céu, aquela imensidão inexpressiva, salpicada de nuvens errantes - o vento não amainaria durante a tarde e ainda faltavam muitas horas para que
a noite caísse.
Olhou para o relógio: eram dez horas e catorze minutos.
- Mr Dalziel - disse -, vou para a minha cabina. Chame-me ao mínimo problema. Mr Richards, tenha a amabilidade de dizer ao doutor Maturin que quero falar com ele.
Mr Watt, dê-me umas quantas braças de corda de barquilha e três ou quatro malaguetas.
Na sua cabina, Jack fez um pacote com o livro de sinais e com outros documentos secretos, pôs as malaguetas de cobre dentro do saco do correio e apertou o saco bem
apertado; pediu depois a sua melhor casaca e guardou a sua nomeação no bolso interior. Recordou a passagem que dizia: "De tais normas, nem o senhor, nem qualquer
homem sob o seu comando, se deverá apartar, pois, em apartando-se delas, responderá por sua conta e risco"; e nesse preciso instante Stephen entrou.
- Ei-lo finalmente, meu caro amigo - disse Jack Aubrey. - Ora bem,
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doutor, a questão é esta: a menos que aconteça algo de muito surpreendente, receio que sejamos apresados ou afundados na próxima meia hora.
Stephen retorquiu: - Precisamente.
Jack prosseguiu: - Portanto, se há alguma coisa que tenha um valor especial para si, será conveniente que ma confie.
- Roubam os prisioneiros, é isso, não é? - perguntou Stephen.
- Sim, por vezes, roubam. A mim tiraram-me tudo quando o Leander foi apresado. E ao cirurgião roubaram-lhe os instrumentos antes mesmo que pudesse tratar dos nossos
feridos.
- Trago-lhe os instrumentos imediatamente.
- E o seu dinheiro.
- Ah, sim, claro, o meu dinheiro.
Jack voltou apressadamente à coberta e olhou para a popa. Nunca teria acreditado que o navio de setenta e quatro canhões pudesse acercar-se tanto do Sophie.
- Vigia! - gritou. - Que vê?
Sete navios de linha mesmo em frente? Metade da frota do Mediterrâneo?
- Nada, meu capitão - respondeu o vigia lentamente, depois de ter reflectido por um momento.
- Mr Dalziel, caso eu seja ferido, deve lançar isto ao mar no último momento - disse Jack indicando o pacote e o saco.
O rigoroso padrão de comportamento da corveta começava já a ganhar uma certa fluidez. Os homens estavam atentos e serenos; a ampulheta era virada no momento certo;
as quatro badaladas do quarto da tarde soaram com uma singular precisão, mas havia um certo movimento que não era alvo de qualquer chamada de atenção - muitos homens
subiam e baixavam pela escotilha de proa a fim de vestirem as suas melhores roupas (dois ou três coletes juntos e, por cima, a casaca de ir a terra), e pediam aos
respectivos oficiais que cuidassem das suas economias ou dos seus curiosos tesouros, na vaga esperança de que, dessa forma, pudessem conservá-los - Babbington tinha
um dente de baleia esculpido na sua mão, Lucock tinha um falo de touro da Sicília. Dois homens tinham já conseguido embebedar-se: reservas alcoólicas muito bem escondidas,
sem sombra de dúvida.
"Por que é que eles não disparam?", pensou Jack. Os canhões de proa do Desaix tinham permanecido silenciosos durante vinte minutos, apesar de o Sophie estar já ao
seu alcance na última milha que tinham percorrido. De facto, a corveta estava agora ao alcance de um tiro de mosquete e na proa do
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navio era fácil distinguir os diferentes membros da sua tripulação: marinheiros, fuzileiros, oficiais; e era mesmo possível ver a perna de pau de um dos homens na
coberta do Desaix. "O corte das velas é de facto esplêndido", pensou Jack. E, nesse mesmo momento, encontrou a resposta à sua pergunta: "Santo Deus, vão alvejar-nos
com metralha!". Era por isso que o navio se tinha acercado do Sophie tão silenciosamente. Jack abeirou-se do costado, lançou ao mar o pacote e o saco e esperou que
se afundassem.
Na proa do Desaix verificou-se um rápido movimento - a resposta a uma ordem. Jack dirigiu-se para o leme e agarrou nas malaguetas, ocupando o lugar do timoneiro,
ao mesmo tempo que olhava por cima do seu ombro esquerdo. Sentiu nas suas mãos a imensa vitalidade do Sophie: e viu o Desaix começar a guinar. O navio francês respondeu
ao giro do leme com a rapidez de um cúter e, num abrir e fechar de olhos, os seus trinta e sete canhões giraram e apontaram em direcção à corveta. O estrondo da
surriada e a queda do mastaréu do joanete e da verga do velacho foram quase simultâneos - caiu com grande estrépito uma chuva de polés, de bocados de cabos, de lascas
de madeira, e ouviu-se um clangor tremendo quando a metralha atingiu o sino do Sophie; depois foi o silêncio total. A maior parte das balas do navio de setenta e
quatro canhões passara a poucas jardas da roda: a metralha dispersa destroçara totalmente as velas e o aparelho, reduzindo-os a pouco mais que pó. Não havia dúvidas
de que a surriada seguinte destruiria completamente o navio.
- Içar as velas usando o sapatilho! - ordenou Jack, continuando a virar o Sophie contra o vento. - Bonden, arreie a bandeira!
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CAPÍTULO DOZE
A cabina de um navio de linha e a cabina de uma corveta de guerra diferem no tamanho, mas têm em comum as mesmas curvas harmoniosas, as mesmas janelas inclinadas
para dentro; e, no caso do Desaix e do Sophie, o mesmo ambiente tranquilo e agradável. Jack estava sentado na cabina do navio de setenta e quatro canhões e, através
das janelas de popa, contemplava Islã Verde e a ponta Cabrita, enquanto o capitão Christy-Pallière procurava na sua pasta um desenho que fizera da última vez que
tinha estado em Bath, quando se encontrava em liberdade condicional.
O almirante Linois tinha ordens para se juntar à armada franco-espanhola em Cádis; e tê-las-ia cumprido cabalmente se, ao chegar ao estreito, não tivesse verificado
que, em vez de um ou dois navios de linha e uma fragata, Sir James Saumarez tinha nada mais nada menos que seis navios de setenta e quatro canhões e um de oitenta
vigiando a esquadra mista. Este estado de coisas exigia alguma reflexão - e por isso o almirante Linois estava com os seus navios na baía de Algeciras, frente ao
rochedo de Gibraltar, protegido pelos grandes canhões das baterias espanholas.
Jack Aubrey estava consciente de tudo isto - na realidade, tudo aquilo era óbvio; e enquanto o capitão Pallière murmurava qualquer coisa a propósito dos seus desenhos
e gravuras, qualquer coisa como "Landsdowne Terrace... outra vista... Clifton... o local onde se bebem as águas termais", Jack Aubrey imaginava os mensageiros cavalgando
a toda a brida entre Algeciras e Cádis, porque os espanhóis não dispunham de semáforo. Contudo, os seus olhos continuavam fixos na ponta Cabrita, na extremidade
da baía; e de repente, por detrás da franja de terra, viu os mastaréus do joanete e uma flâmula de um navio que passava. Observou-o calmamente por alguns
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segundos, antes que o seu coração desse um salto imenso - pois tinha acabado de constatar que a flâmula era inglesa e os olhos do coração tinham dado por isso antes
dos olhos propriamente ditos.
Lançou um olhar furtivo ao capitão Pallière, que exclamou:
- Aqui está! Laura Place. O número dezasseis de Laura Place. É aí que costumam ficar os meus primos, os Christy, quando vão a Bath. E aqui, por detrás da árvore
- veria melhor, se não fosse a árvore -, está a janela do meu quarto!
Um camareiro entrou e começou a pôr a mesa, pois o capitão Pallière, além de ter primos ingleses e conhecer quase na perfeição a língua inglesa, possuía ideias muito
sólidas sobre aquilo que um marinheiro deveria comer ao pequeno-almoço: um par de patos, um prato de rim e um rodovalho grelhado do tamanho de uma roda de uma carroça
média, estavam a ser confeccionados na cozinha, isto para além dos habituais presunto, ovos, pão torrado, geleia e café. Jack observou a aguarela o mais atentamente
que pôde e disse:
- A janela do seu quarto? Surpreende-me, capitão.
O pequeno-almoço com o doutor Ramis era completamente diferente
- austero, raiando a penitência: uma tigela de cacau sem leite, uma fatia de pão com uma coisa de nada de azeite. "Tão pouco azeite não pode fazer mal", comentou
ele, que era um mártir do fígado. Era um homem de aspecto severo, magro, seco, com um rosto amarelo-acinzentado, uma expressão carrancuda e umas profundas olheiras
violáceas; parecia incapaz de sentir prazer, qualquer género de prazer; no entanto, enrubescera e sorrira de um modo afectado quando Stephen, depois de ter sido
confiado aos seus cuidados como prisioneiro e convidado, exclamara: "O senhor não será por acaso o ilustre doutor Juan Ramis, o autor de Specimen Animalium?". Antes
do pequeno-almoço, tinham visitado a enfermaria do Desaix, onde os enfermos eram muito poucos devido à obsessão do doutor Ramis em curar os fígados dos outros através
de um regime alimentar moderado que excluía inteiramente o vinho: com efeito, a enfermaria tinha apenas uma dúzia de casos banais, um ou outro caso de sífilis, os
quatro inválidos do Sophie e os feridos franceses em combate - três homens mordidos pela cadelinha de Mr Dalziel,
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em troca dos afagos que se propunham fazer-lhe: estavam agora em observação por suspeitas de hidrofobia. Na opinião de Stephen, havia um erro no raciocínio do seu
colega - o facto de uma cadela escocesa ferrar o dente num marinheiro francês não implicava necessariamente que o animal estivesse raivoso; embora, neste caso particular,
a cadela pudesse estar estranhamente desprovida de tino. Contudo, guardou esta reflexão para si mesmo e disse:
- Tenho estado a reflectir acerca da emoção.
- Emoção - repetiu o doutor Ramis.
- Sim - disse Stephen. - Emoção e a expressão da emoção. O seu quinto livro, e também parte do sexto, aborda as emoções que experimentam, por exemplo, os gatos,
os touros, a aranha. Sim, também eu tenho reparado no brilho singularmente intermitente que há nos olhos da tarântula: por acaso nunca reparou no brilho que há nos
olhos do louva-a-deus?
- Nunca, meu caro colega, embora Busbequius2 fale dele - replicou o doutor Ramis com grande complacência.
- Mas parece-me que a emoção e a sua expressão são quase a mesma coisa. Peguemos, por exemplo, no gato de que o senhor fala: vamos supor, por exemplo, que lhe rapamos
o pêlo da cauda, para que ele não possa eriçá-la; suponhamos ainda que lhe atamos uma tábua ao lombo para que ele não possa arqueá-lo, e que depois lhe mostramos
algo que lhe desagrada - um cão que goste de brincar, por exemplo. Nestas condições, o nosso gato não poderá expressar inteiramente as suas emoções; a questão que
se põe então é esta: o animal sentirá integralmente essas emoções? Senti-las-á, sem dúvida, visto que suprimimos apenas as suas manifestações mais brutais; mas senti-las-á
integralmente? O arqueamento, o ençamento, serão talvez uma parte integral da emoção, e não apenas um poderoso reforço da mesma emoção, ainda que também sejam isso...
Que lhe parece, doutor Ramis?
O doutor Ramis inclinou a cabeça, semicerrou os olhos e os lábios, e pronunciou-se.
- Como pode a emoção ser medida? - disse. - Não pode. É apenas um conceito, um conceito muito interessante, sem dúvida; mas, meu caro doutor, onde está a medição?
Não pode ser medida. Ciência é medição: não há conhecimento sem medição.
1 No original, mad, que significa "raivoso", mas também "louco"; daí o trocadilho ("desprovida de tino") que surge na frase seguinte e que se perde na tradução.
(N. do T.)
2 O doutor Ramis usa o nome latino de Ghislain de Busbecq, um diplomata flamengo do século XVI que introduziu na Europa vários tipos de plantas e algumas espécies
animais. (N. do T.)
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- Claro que pode ser medida! - exclamou Stephen com alguma veemência. - Proponho-lhe que tomemos os nossos pulsos. - O doutor Ramis tirou o relógio de bolso, um
belo Bréguet com o ponteiro dos segundos no centro, e puseram-se a contar as pulsações com um ar muito compenetrado. - Agora, meu caro colega, rogo-lhe que imagine,
que imagine de uma forma muito vívida, que peguei no seu relógio e o atirei brutalmente ao chão; eu imaginarei que o senhor é uma criatura diabólica. Vá, simulemos
os gestos, simulemos as expressões de uma violenta e extrema raiva.
O rosto do doutor Ramis ganhou um ar tetânico; os seus olhos quase desapareceram; a cabeça esticou-se, trémula. Stephen retorceu os lábios; agitou o punho no ar
e balbuciou qualquer coisa. Nesse preciso momento, entrou um criado com um jarro de água quente (não era permitido beber uma segunda tigela de cacau).
- Agora - disse Stephen Maturin -, tomemos de novo os nossos pulsos.
- Aquele peregrino da corveta inglesa está maluco - disse o criado do cirurgião ao segundo cozinheiro. - Maluco, chanfrado e possesso. E o nosso não está melhor.
- Não diria que é uma prova concludente - observou o doutor Ramis -, mas é muito interessante. Temos de tentar a adição de palavras agrestes e recriminatórias, de
remoques cruéis e amargos insultos, mas sem qualquer movimento físico, pois o movimento físico poderia explicar parte do aumento das pulsações. Se não me engano,
o senhor pretende tomar isto como prova per contra daquilo que havia avançado, não é verdade? Uma demonstração ao contrário, invertida, de pernas para o ar, por
assim dizer. Extremamente interessante.
- Não é mesmo? - disse Stephen. - A cena da nossa rendição e outras que presenciei fizeram-me pensar nestas coisas. com certeza que o senhor, com uma experiência
naval maior do que a minha, terá presenciado uma infinidade de cenas desse tipo.
- Sem dúvida - retorquiu o doutor Ramis. - Por exemplo, eu próprio tive a honra de ser prisioneiro dos ingleses nada menos do que quatro vezes. Essa - disse ele
com um sorriso - é uma das razões pelas quais nos sentimos tão felizes por vos termos entre nós. O que não é tão frequente como desejaríamos... Permita-me que lhe
ofereça outra fatia de pão, meia fatia, com um nada de alho? Passa-se muito ao de leve com o alho: o alho é muito saudável, é um óptimo anti-inflamatório.
- É muito amável, caro colega. Mas por certo reparou que os homens
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capturados ficam com uma expressão impassível... Suponho que será sempre assim... ou não?
- Invariavelmente. Mais parecem Zenão, seguido por todos os seus discípulos.
- E não lhe parece que essa supressão, essa negação dos sinais exteriores, reforços, senão mesmo ingredientes da angústia, não lhe parece que essa estóica aparência
de indiferença contribui, na realidade, para atenuar o sofrimento?
- Sim, é muito possível que assim seja.
- Eu penso que, de facto, atenua o sofrimento. Havia homens a bordo que eu conhecia intimamente e estou convicto de que, sem aquilo a que poderíamos chamar cerimónia
de atenuação, teriam ficado com o coração dês...
- Monsieur, monsieur, monsieur - exclamou o criado do doutor Ramis. - A baía está a encher-se de ingleses!
No tombadilho, encontraram o capitão Pallière e os seus oficiais observando as manobras do Pompée, do Venerable, do Audacious e ainda - um pouco mais longe - do
Caesar, do Hannibal e do Spencer, que, com um vento brando e instável de oeste, procuravam vencer as fortes e caprichosas correntes que fluíam e refluíam entre o
Atlântico e o Mediterrâneo: todos tinham setenta e quatro canhões, exceptuando o Caesar, a nau-capitânia de Sir James, que tinha oitenta. Jack permanecia a alguma
distância dos oficiais, com uma expressão de indiferença no rosto; e, um pouco mais longe, junto à amurada, estavam os oficiais do Sophie, que também procuravam
manter uma atitude o mais digna possível.
- Acha que vão atacar? - perguntou o capitão Pallière a Jack. - Ou crê que vão fundear frente a Gibraltar?
- Para ser franco, capitão - disse Jack olhando para o imenso rochedo -, estou convencido de que vão atacar. E perdoar-me-á se lhe disser que, tendo em conta as
forças em presença, é quase certo que esta noite dormiremos todos em Gibraltar. Confesso-lhe que estou muito contente, pois isso permitir-me-á retribuir a excepcional
amabilidade com que tenho sido tratado.
Fora tratado com extrema amabilidade desde o momento em que trocara saudações formais com o capitão Pallière no castelo de popa do Desaix e dera um passo em frente
para lhe entregar a sua espada: Pallière recusara-se a receber a espada e, no meio de rasgados elogios à resistência do Sophie, insistira junto de Jack para que
devolvesse a espada à sua bainha.
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- bom - disse o capitão Pallière -, de qualquer modo não permitiremos que isto nos estrague o pequeno-almoço.
- Uma mensagem do almirante, meu capitão - anunciou um tenente.
- Aproxime-se o mais possível das baterias.
- Mensagem recebida. Cumpra a ordem, Dumanoir - retorquiu o capitão. - Venha, capitão Aubrey; disfrutemos dos prazeres da vida enquanto podemos.
Era sem dúvida uma tentativa corajosa e os dois homens fizeram um esforço sobre-humano para manter a conversa viva, subindo a voz quando as baterias da ilha Verde
e do continente começaram a atroar e o fragor das surriadas se ouviu em toda a baía; mas Jack, de repente, deu-se conta de que estava a barrar o rodovalho com geleia
e a dar uma resposta que não tinha nada a ver com a pergunta. Houve então um tremendo estrondo e as janelas de popa do Desaix desfizeram-se em mil bocados; o móvel
acolchoado que estava debaixo das janelas e onde o capitão Pallière guardava os seus melhores vinhos disparou cabina fora, projectando uma torrente de champanhe,
Madeira e vidros; e, no meio dos destroços, rolou uma bala já esgotada, uma bala do Pompée, um dos navios de Sua Majestade.
- Talvez fosse melhor subirmos à coberta - observou Pallière.
A posição dos navios era curiosa. O vento, entretanto, tinha acalmado. O Pompée havia deslizado por detrás do Desaix, para fundear muito perto da amura de estibordo
do Formidable, a nau-capitânia francesa, e disparava furiosamente, enquanto este último era levado em direcção à costa com espias, a fim de evitar os traiçoeiros
bancos de areia. O Venerable, por falta de vento, tinha parado a meia milha do Formidable e do Desaix e atacava-os energicamente pelo lado de bombordo, enquanto
o Audacious, tanto quanto Jack conseguia enxergar por entre as nuvens de fumo, estava paralelo ao Indomptable, a umas trezentas ou quatrocentas jardas de distância.
O Caesar, o Hannibal e o Spencer faziam o possível e o impossível para atravessar a zona onde uma calmaria total alternava com rajadas de oés-noroeste: os navios
franceses disparavam com regularidade; e ao fundo da baía, desde a Torre del Almirante, a norte, até à ilha Verde, a sul, as baterias da costa disparavam incessante
e fragorosamente, enquanto as grandes canhoneiras espanholas, de valor incalculável naquela calmaria devido à sua mobilidade e ao seu conhecimento dos recifes e
das fortes correntes, avançavam para disparar contra os navios inimigos.
As colunas de fumo afastavam-se de terra, movendo-se ora para um lado, ora para outro, e ocultavam frequentemente o rochedo de Gibraltar e os
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três navios que se encontravam no mar alto; por fim, o vento estabilizou e foi possível ver os sobrejoanetes e os joanetes do Caesar espreitando por entre a negra
fumarada. No navio estava içada a insígnia do almirante Saumarez e ondeavam bandeiras de sinais que ordenavam fundear para apoio mútuo. Jack viu o Caesar deixar
para trás o Audacious, virando e passando muito perto do Desaix. A nuvem de fumo que o rodeava tornou-se mais densa, ocultando tudo: houve um clarão, como de um
relâmpago, no meio daquela massa escura, e uma bala disparada à altura das cabeças atingiu em cheio uma fila de fuzileiros que se encontravam no tombadilho do Desaix;
e toda a estrutura do potente navio tremeu com a força do impacto - pelo menos metade da surriada atingira em cheio o navio.
"Este não é o lugar para um prisioneiro", pensou Jack; fitou com particular consideração o capitão Pallière, em jeito de despedida, e correu para o castelo de popa.
Viu Babbmgton e o jovem Ricketts junto à amurada e gritou-lhes: "Baixem-se já! Acham que é boa altura para se fazerem de valentes? Querem ser cortados ao meio pelas
nossas próprias palanquetas?" - pois eram palanquetas as balas que os navios ingleses estavam a disparar agora contra o Desaix. Conduziu-os para baixo, deixou-os
no paiol dos cabos e dirigiu-se imediatamente para a sentina dos oficiais: não era o lugar mais seguro do mundo, mas, na entrecoberta de um navio de guerra em combate,
não havia muito espaço para espectadores, e Jack Aubrey desejava ardentemente acompanhar o desenrolar da batalha.
O Hannibal tinha fundeado um pouco à frente do Caesar, depois de ter atravessado a linha formada pelos navios franceses, e estava agora a disparar contra o Formidable
e as baterias de Santiago: o Formidable quase deixara de disparar, o que era uma sorte, pois o Pompée tinha borneado devido à corrente e agora tinha a proa virada
para o costado do Formidable, de tal modo que só poderia disparar com os canhões de estibordo contra as baterias de terra e as canhoneiras. O Spencer ainda estava
longe: mas, mesmo assim, havia cinco navios de linha atacando os três navios do inimigo - tudo estava a correr muito bem, apesar da artilharia espanhola. E, um segundo
depois, através de uma abertura que o vento de oés-noroeste conseguira fazer na fumarada, Jack pôde ver o Hannibal: o navio levantou âncora, fez-se à vela em direcção
a Gibraltar e, logo que alcançou suficiente velocidade, virou e dirigiu-se para o local onde se encontrava o navio almirante francês, a fim de passar entre este
e a costa, disparando sem cessar. "Tal e qual como no Nilo", pensou Jack; o Hannibal encalhou nesse preciso momento, ficando situado mesmo em frente dos potentes
canhões da Torre del Almirante. A nuvem de fumo
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tornou-se de novo mais densa; e quando finalmente se dissipou, foi possível ver os botes dos outros navios ingleses acercando-se do Hannibal, e também uma âncora
baixando; o Hannibal disparava furiosamente contra três baterias de terra e contra as canhoneiras e, com os canhões dianteiros de bombordo e os canhões de proa,
atacava o Formidable. Jack deu-se conta de que tinha juntado as mãos com tanta força que agora precisaria de uma grande determinação para as separar. A situação
não era desesperada - não era nada má, aliás. O vento de oeste tinha amainado e, agora, uma ligeira brisa de nordeste dividia em duas a nuvem de fumo produzida pela
pólvora. O Caesar levantou a âncora e, rodeando o Venerable e o Audacious, aproximou-se do Indomptable, que estava por detrás do Desaix, e alvejou-o com os mais
violentos canhonaços que até então se tinham ouvido. Jack não pôde averiguar qual era a mensagem das bandeiras de sinais que tinham sido içadas, mas estava certo
de que seria levantar âncoras e virar, juntamente com atacar o inimigo de mais perto: também havia sinais a bordo do navio almirante francês - levantar âncoras e
encalhar -, visto que agora o vento permitia que os navios ingleses se internassem mais na baía e era melhor ficar encalhado que sofrer um revés avassalador: além
disso, este sinal era mais fácil de obedecer do que o de Sir James, pois o vento continuava a soprar na zona onde se encontravam os franceses, ao passo que já tinha
acalmado no local onde estavam os ingleses; por outro lado, os navios franceses já tinham as espias preparadas e dezenas de botes aproximavam-se deles vindos de
terra.
Jack ouviu as ordens e o estrondo de pés em cima da coberta; e quando o Desaix virou para rumar apressadamente em direcção à costa, pôde ver toda a baía repleta
de fumo e um mar de destroços flutuando. O navio encalhou num recife, mesmo em frente da cidade, com uma sacudidela tão brusca que Jack perdeu o equilíbrio. O Indomptable,
que perdera o mastaréu do velacho, já estava encalhado na ilha Verde ou muito perto; e o navio almirante francês, embora Jack não conseguisse vê-lo, deveria estar
também encalhado.
Contudo, de súbito, a situação complicou-se. Os navios ingleses não se internaram na baía, nem arremeteram contra os navios franceses encalhados, nem tão-pouco os
incendiaram ou destruíram (e também não poderiam levá-los dali a reboque), porque, para além de o vento ter acalmado, obrigando o Caesar, o Audadous e o Venerable
a parar, todos os botes sobreviventes da esquadra trataram de rebocar o destroçado Pompée rumo a Gibraltar. As baterias espanholas disparavam furiosamente há já
algum tempo, e agora os navios franceses enviavam para terra centenas dos seus magníficos artilheiros. Em poucos minutos, o fogo dos canhões da costa tornou-se muito
mais
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intenso e preciso. Mesmo o pobre Spencer, que se encontrava à entrada da baía e não pudera intervir nos combates, sofreu grandes danos; o Venerable perdera o mastaréu
da gata; e parecia haver um incêndio na parte central do Caesar. Jack não conseguiu resistir por mais tempo e correu à coberta a tempo de ver a esquadra aproveitar
o vento que vinha de terra e fazer-se à vela rumo a leste, a Gibraltar, abandonando o desmastreado e impotente Hannibal à sua sorte, frente aos canhões da Torre
del Almirante. O Hannibal continuava a disparar, mas não poderia fazê-lo durante muito mais tempo: o mastro que lhe restava caiu e, pouco depois, também a sua bandeira
descia vacilante.
- Foi uma manhã muito agitada, capitão Aubrey - observou o capitão Pallière ao ver o seu prisioneiro inglês.
- Sem dúvida, capitão Pallière - disse Jack. - Espero que não tenhamos perdido muitos dos nossos amigos. - O castelo de popa do Desaix estava um destroço horrendo
e um rio de sangue corria por debaixo dos restos da escada do tombadilho até ao embornal. A caixa onde guardavam as redes estava feita em bocados; havia quatro canhões
desmontados por detrás do mastro principal, e a rede que protegia o castelo de popa estava abaulada, devido ao peso do aparelho que caíra. O navio estava escorado
três ou quatro fiadas sobre a rocha e podia desfazer-se ao mínimo embate das ondas.
- Perdi mais, muitos mais do que seria desejável - retorquiu Pallière.
- Mas o Formidable e o Indomptable ficaram em piores condições, e os seus comandantes morreram. O que é que estão a fazer a bordo do navio capturado?
O Hannibal içara de novo a bandeira. Era a sua bandeira, e não a bandeira francesa, mas estava ao contrário, com o símbolo da união de pernas
para o ar.
- Imagino que se esqueceram de levar a tricolor quando foram capturá-lo
- comentou o capitão Pallière, e logo tratou de ir dar ordens para desencalhar o navio. Pouco depois voltou para junto da destroçada amurada; ao ver a pequena frota
de botes que vinham remando com todas as forças desde Gibraltar, bem como os que saíam da corveta Calpe em direcção ao Hannibal, não resistiu a perguntar a Jack:
- Crê que vão tentar recuperar o navio? Qual será a ideia deles?
Jack sabia muito bem qual era a ideia deles. Na Armada Real Inglesa, a bandeira ao contrário significava uma situação de extrema aflição, um urgente pedido de socorro.
Ao vê-la, os homens do Calpe e do porto de Gibraltar tinham pensado que o Hannibal estaria de novo a flutuar e que pretenderia
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que o rebocassem; por conseguinte tinham enchido todas as lanchas disponíveis com todos os homens disponíveis - incluindo marinheiros que estavam em terra e, acima
de tudo, os melhores carpinteiros e artífices do estaleiro.
- Sim - disse ele, com toda a sinceridade e franqueza de um marinheiro falando com outro marinheiro. - Vão tentar recuperá-lo, sem dúvida. Mas se disparar agora
contra a proa do cúter que vai à frente, pode crer que virarão imediatamente, pois pensarão que tudo acabou.
- Ah, então é isso! - exclamou o capitão Pallière. Um canhão de dezoito girou com um forte rangido e apontou para o bote mais próximo. - Mas talvez seja melhor não
disparar - disse o capitão Pallière, pondo a mão sobre o fecho do canhão e sorrindo para Jack. Anulou a ordem de fazer fogo e, um após outro, os botes foram chegando
ao Hannibal, onde os marinheiros franceses, que os esperavam tranquilamente, levavam as tripulações para baixo.
- Não pense mais nisso - disse o capitão Pallière a Jack, dando-lhe palmadinhas no ombro. - O almirante deu sinal para desembarcarmos. O senhor e o seus homens virão
comigo e tentaremos encontrar-lhes alojamentos decentes até que possamos desencalhar e reparar o navio.
Os alojamentos destinados aos oficiais do Sophie, uma casa na parte alta de Algeciras, tinham um terraço imenso que dava para a baía, com Gibraltar à esquerda, a
ponta Cabrita à direita e, de frente, as indistintas sombras de África. A primeira pessoa que Jack viu nessa casa foi o capitão Ferris, do Hannibal, que fora seu
companheiro de tripulação em duas viagens. Ferris estava de pé, com as mãos atrás das costas, observando o que restava do seu navio. Jack tinha jantado com ele havia
menos de um ano, mas Ferris estava irreconhecível - de facto, não parecia o mesmo; envelhecera, mirrara; e quando se puseram a discutir a evolução da batalha, Ferris
falava lentamente, num tom vacilante, referindo as diversas manobras realizadas, as adversidades e os intentos frustrados como se relatasse algo que não tivesse
ocorrido na realidade ou que não tivesse ocorrido com ele.
- Então o meu amigo estava a bordo do Desaix, não é verdade? - disse ele depois de uma pausa. - O Desaix sofreu muitos danos?
- Tanto quanto pude aperceber-me, os danos que sofreu não o deixaram incapacitado para navegar. Não recebeu muitas balas abaixo da linha de
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flutuação e nenhum dos seus mastros ficou muito danificado: se não abrir nenhum rombo, depressa estará reparado, pois dispõe de um conjunto de oficiais e marinheiros
invulgarmente excelente.
- Quantos homens crê que perdeu?
- Muitos, por certo. Mas aqui está o meu cirurgião, que o saberá melhor do que eu. Apresento-lhe o doutor Maturin. O capitão Ferris. Santo Deus, Stephen! - exclamou
Jack Aubrey, recuando. Estava bastante habituado a carnificinas, mas nunca vira nada assim. Stephen Maturin parecia ter saído de um matadouro a abarrotar de animais.
As mangas, toda a frente da casaca até à gravata e a própria gravata estavam completamente empapadas em sangue, empapadas e retesadas porque o sangue começara já
a secar. O mesmo acontecia com os calções: enfim, toda a roupa que estava à vista ganhara um tom castanho-avermelhado.
- Desculpem - disse -, devia ter mudado de roupa, mas o meu baú ficou completamente destruído.
- Posso arranjar-lhe uma camisa e uns calções - disse o capitão Ferris.
- O nosso tamanho é mais ou menos o mesmo. - Stephen agradeceu com uma ligeira vénia.
- Esteve a ajudar os cirurgiões franceses? - perguntou Jack.
- com efeito.
- Tiveram muito que fazer? - perguntou Ferris.
- Houve cerca de cem mortos e outros tantos feridos - retorquiu Stephen.
- Nós tivemos setenta e cinco mortos e cinquenta e dois feridos disse o capitão Ferris.
- O capitão pertence ao Hannibalt - perguntou Stephen.
- Pertencia, doutor, pertencia! - retorquiu Ferris. - Arriei a minha bandeira - acrescentou, como que espantado com essa verdade, e desatou imediatamente a soluçar,
olhando para eles com os olhos esbugalhados, ora
para um outro, ora para outro.
- Capitão Ferris - disse Stephen -, diga-me, por favor: quantos ajudantes tem o seu cirurgião? E têm todos os seus instrumentos? vou ao convento ver os seus feridos
logo que coma qualquer coisa.
- Dois ajudantes, doutor - disse o capitão Ferris. - No que se refere aos instrumentos, receio que não possa responder-lhe. É muita bondade sua, doutor, o senhor
é um verdadeiro cristão, mas vou buscar-lhe a camisa e os calções: deve sentir-se muito mal com essa roupa. - Voltou com uma trouxa de roupa limpa envolta num roupão
e sugeriu ao doutor Maturin que
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operasse de roupão vestido, como vira fazer em Junho daquele ano, altura em que também houvera uma grande falta de roupa limpa. Pouco depois, sob a vigilância de
sentinelas com uniformes amarelos e vermelhos, várias criadas com um ar assustado serviram-lhes uma estranha e paupérrima refeição.
- Depois de ter tratado dos meus pobres homens, doutor Maturin, enfim, se nessa altura lhe restar um pouco de paciência, seria um acto de caridade da sua parte se
me receitasse um preparado qualquer à base de papoila-dormideira ou mandrágora. Devo confessar-lhe que me sinto estranhamente transtornado. Preciso de, como dizer...
de acabar com esta ansiedade, com esta confusão... Além disso, é provável que sejamos trocados dentro de poucos dias e, para cúmulo, serei julgado em conselho de
guerra.
- Por amor de Deus, capitão Ferris! - exclamou Jack, recuando na cadeira. - Não deve preocupar-se com isso, nunca vi um caso mais claro de...
- Não esteja tão certo disso, meu jovem - retorquiu o capitão Ferris.
- Todos os conselhos de guerra são perigosos, tenhamos nós ou não a razão do nosso lado: a justiça pouco conta. Lembre-se do pobre Vincent, do Weymouth; lembre-se
de Byng, fuzilado devido a um erro de julgamento e por ser impopular entre a sua gente. E pense no sentimento que prevalece neste momento em Gibraltar e no nosso
país: seis navios de linha derrotados por três navios franceses e um navio capturado, ou seja, uma derrota e o Hannibal capturado.
A apreensão do capitão Ferris, pensou Jack, mais parecia uma ferida, o resultado de ter ficado encalhado e de ter sido forçado a suportar durante horas, desmastreado
e impotente, o fogo incessante de três baterias de terra, um navio de linha e uma dúzia de potentes canhoneiras. O mesmo pensamento, com uma configuração algo diferente,
ocorreu a Stephen.
- Que julgamento é aquele de que falou Ferris? - perguntou o médico mais tarde. - É real ou imaginário?
- Oh, é muito real, muito real, doutor! - retorquiu Jack.
- Mas ele não fez nada de mal, pois não? Ninguém pode dizer que fugiu ou que não lutou tão duramente quanto pôde.
- Mas perdeu o seu navio. Qualquer comandante de um navio de Sua Majestade que perde o seu navio terá de ser julgado em conselho de guerra.
- Estou a ver... No caso de Ferris, será sem dúvida uma mera formalidade.
- No caso dele, sim - disse Jack. - Os receios dele não têm nenhum fundamento, é uma espécie de pesadelo acordado, parece-me.
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Porém, no dia seguinte, quando Jack, acompanhado por Mr Dalziel, foi ver os tripulantes do Sophie a uma igreja de um outro culto que não o deles e lhes comunicou
que, em Gibraltar, ondeava a bandeira de tréguas, os receios do capitão Ferris pareceram-lhe bastante mais razoáveis - e não o produto de uma imaginação atormentada.
Disse aos seus homens que tanto eles como os homens do Hannibal iam ser trocados e que, à hora do jantar, já estariam em Gibraltar, onde comeriam ervilhas e carne
de cavalo salgada e não aquelas estranhas comidas estrangeiras. E embora sorrisse e agitasse o seu chapéu para acompanhar os vivas com que os homens acolheram as
suas notícias, uma sombra negra começava a pairar na sua mente.
Essa sombra negra adensou-se ao atravessar a baía na barcaça do Caesar; e adensou-se ainda mais enquanto esperava na antecâmara para se apresentar ao almirante.
Ora se sentava, ora se levantava e andava de um lado para o outro, falando com outros oficiais, enquanto o secretário deixava passar pessoas que tinham assuntos
mais urgentes a tratar. Ficou surpreendido ao receber tantas felicitações pela batalha contra o Cacafuego - uma batalha que agora lhe parecia tão longínqua como
se tivesse ocorrido numa outra vida. Mas as felicitações (embora generosas e amáveis) eram um tanto superficiais, porque em Gibraltar havia uma atmosfera de severa
e geral condenação, de profundo abatimento, de extrema dedicação ao árduo trabalho - e também intermináveis e estéreis discussões sobre aquilo que deveria ter sido
feito.
Quando finalmente foi recebido, Jack Aubrey deparou com um Sir James quase tão velho e mudado como o capitão Ferris; e enquanto comunicava os factos que haviam ocorrido
com o seu navio, os estranhos olhos do almirante fitavam-no inexpressivamente sob as pesadas pálpebras; e não o interrompeu uma única vez, não pronunciou uma única
palavra, fosse de elogio ou de censura; Jack ficou tão inquieto com tal reacção que, se não fosse a cábula que ocultava na mão como um miúdo da escola, com uma lista
dos pontos a mencionar, ter-se-ia desviado do tema e apresentaria explicações e desculpas incoerentes. Era óbvio que o almirante estava muito cansado, mas a sua
mente conseguiu discernir os factos mais significativos, que tratou de anotar num bocado de papel.
- Em sua opinião, capitão Aubrey, em que estado se encontram os navios franceses? - perguntou-lhe por fim.
- O Desaix já flutua, Sir James, e está em bom estado; o mesmo sucede com o Indomptable. Não sei o que se passa com o Formidable, nem com o Hannibal, mas não há
dúvida de que abriram rombos; e em Algeciras corre o boato de que o almirante Linois enviou ontem três oficiais a Cádis, e um
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quarto oficial esta manhã, para pedir aos navios espanhóis e franceses aí fundeados que venham recolhê-lo.
O almirante Saumarez levou a mão à testa. Acreditara muito sinceramente que aqueles navios nunca mais voltariam a flutuar e fora isso que dissera no seu relatório.
- bom, obrigado, capitão Aubrey - disse ele passado um momento. Jack levantou-se. - Vejo que traz a sua espada - observou o almirante.
- É verdade, Sir James. O capitão francês teve a amabilidade de ma devolver.
- Um gesto muito simpático, embora eu esteja certo de que o cumprimento era bem merecido; e não tenho nenhuma dúvida de que o conselho de guerra fará o mesmo. Mas,
de um ponto de vista meramente formal, não é muito correcto andar com a espada enquanto não se realizar o conselho de guerra: trataremos do seu caso logo que seja
possível. O pobre Ferris, evidentemente, terá de ir para Inglaterra; quanto a si, poderemos julgá-lo aqui. Está aqui sob palavra, não é verdade?
- Sim, Sir James. Estou à espera de uma troca.
- É lamentável, de facto. A sua ajuda vinha mesmo a calhar: a esquadra está num estado... bom... Bons dias, capitão Aubrey - disse, esboçando um sorriso ou, pelo
menos, aligeirando um pouco a severidade da sua expressão.
- Como certamente sabe, encontra-se sob prisão nominal; rogo-lhe por isso que mantenha um comportamento o mais discreto possível.
Jack Aubrey sabia-o perfeitamente, embora em teoria; porém, aquelas palavras cravaram-se no seu coração como um punhal. Percorreu as ruas de Gibraltar, repletas
de gente e de movimento, num estado de extrema infelicidade. Quando chegou à casa onde estava alojado, desembainhou a espada, empacotou-a de qualquer maneira e enviou-a
ao secretário do almirante com uma nota. Saiu depois para dar um passeio; tinha a sensação de estar nu e tudo o que queria era que não o vissem.
Os oficiais do Hannibal e do Sophie encontravam-se em Gibraltar sob palavra: ou seja, enquanto não fossem trocados por prisioneiros franceses de igual posto, não
poderiam fazer nada contra a França ou contra a Espanha (tinham dado a sua palavra de honra que não o fariam) - enfim, eram meros prisioneiros numa prisão mais agradável
do que era costume.
Os dias que se seguiram foram terrivelmente infelizes e solitários - apesar de por vezes sair para dar um passeio com o capitão Ferris, ou com os seus guardas-marinhas,
ou com Mr Dalziel mais a sua cadelinha. Era estranho, estranho e antinatural, estar assim apartado da actividade do porto e da
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esquadra num momento daqueles, quando todos os homens com saúde, e muitos que nunca deveriam ter deixado o leito, trabalhavam com afinco na reparação dos navios
- uma colmeia sempre activa, um autêntico formigueiro de gente, era essa a paisagem do porto; em contrapartida, no alto daquela montanha rochosa onde espreitava
uma erva raquítica, entre a muralha árabe e a torre próxima da gruta dos macacos, Jack Aubrey estava só, entregue aos seus pensamentos, cheio de dúvidas e ansiedade,
perseguido por uma evidente autocensura. Lera os últimos números do Boletim Oficial, mas nenhum deles mencionava o triunfo do Sophie, nem tão-pouco a sua derrota;
encontrara uma ou duas referências nos jornais (referências que, no entanto, desvirtuavam os factos) e um parágrafo no Gentlemans Magazine que apresentava a acção
da corveta como um ataque de surpresa - e nada mais encontrara. Nos Boletins Oficiais havia uma dúzia de promoções, mas não a sua, nem a de Pullings, e era mais
do que certo que a notícia da captura do Sophie chegara a Londres ao mesmo tempo que a da captura do Cacafuego; ou mesmo antes, pois as boas notícias (supondo que
o seu relatório se perdera, supondo que esse relatório estava na saca que ele próprio lançara ao mar frente ao Cabo Roig) só poderiam ter chegado num despacho de
Lorde Keith, e Lorde Keith estava nesse momento no outro extremo do Mediterrâneo, perto da Turquia. Portanto, enquanto não terminasse o conselho de guerra, não teria
a menor possibilidade de ser promovido - promoção de prisioneiros era coisa que não existia. E se o julgamento corresse de forma adversa? A sua consciência estava
muito longe da tranquilidade. Se Harte orquestrara tudo aquilo, não havia dúvida de que tivera um êxito diabólico; ao passo que ele, Jack Aubrey, se comportara como
um simplório, como um perfeito idiota. Seria possível que houvesse tanta maldade numa só criatura? Seria possível que um miserável comudo fosse tão astucioso? Teria
gostado de comentar tudo isso com Stephen, porque Stephen possuía uma inteligência rara; pela primeira vez na sua vida, Jack Aubrey duvidava do seu entendimento,
da sua inteligência, da sua perspicácia. O almirante não o tinha felicitado: significaria isso que o ponto de vista oficial era...? Mas Stephen não pensava que estar
livre sob palavra o impedisse de ajudar no hospital naval; mais de oitocentos homens da esquadra tinham ficado feridos e ele passava quase todo o seu tempo no hospital.
"Meu caro amigo, você tem se de mexer, tem de andar", disse ele a Jack. "Por amor de Deus, suba a esses cerros íngremes, atravesse Gibraltar de uma ponta a outra,
uma vez, duas vezes, várias vezes, com o estômago vazio. Você possui uma constituição obesa: quando
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caminha, vêem-se-lhe as gorduras a tremer. Deve pesar à volta de duzentas e trinta libras".
"E a verdade é que transpiro que nem uma égua a dar à luz", pensou Jack, sentando-se à sombra de uma rocha enorme. Secou o suor, desapertou o cinturão e, procurando
distrair-se, pôs-se a cantarolar uma balada que falava da batalha do Nilo:
Ancorámos ao pé deles, audazes e livres como leões.
Que visão sublime, quando os seus mastros e ovéns caíram!
Depois surgiu o nobre Leander, de cinquenta e quatro canhões;
Contra aproa do Franklin com fragor dispararam;
Deram-lhe uma tremenda surra, rapazes, espalhando a destruição;
E os franceses, implorando clemência, logo a bandeira arriaram.
A melodia era encantadora, mas a inexactidão da letra desgostava-o: o seu querido Leander tinha cinquenta e dois canhões, como ele muito bem sabia, pois dirigira
o fogo de oito deles. Resolveu mudar de canção e recordou outra das suas favoritas:
Uma terrível desordem há pouco tempo ocorreu, E foi no dia de São Jaime que a refrega nasceu, com um murro, um simples murro, um simples murro, com um murro, um
simples murro, um simples murro.
De súbito, um macaco que estava numa rocha não muito longe dele, atirou-lhe com um monte de excrementos sem que ninguém o provocasse; e quando ele se ia a levantar
para protestar, o macaco desatou a agitar o punho enrugado e a guinchar com tal fúria que Jack, de tão desanimado que estava, voltou a sentar-se.
- Meu capitão! - gritou Babbington, que escalava a toda a pressa a encosta, vermelho do esforço que tinha de fazer para subir e gritar. - O brigue, o brigue! Ali,
do outro lado do cabo!
Era o Pasley; reconheceram-no imediatamente: um brigue alugado, um belo navio, acercando-se carregado de velas e ajudado pelo forte vento de noroeste.
- Veja, meu capitão - disse Babbington, deixando-se cair na relva de
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um modo que revelava uma clara falta de disciplina e passando a Jack um pequeno óculo de bronze. A lente pouco aumentava, mas podia ver-se claramente a bandeira
que ondeava num dos mastros do Pasley, com a mensagem inimigo à vista.
- Aí estão eles, meu capitão! - exclamou Babbington, apontando para as cintilantes gáveas que se recortavam sobre a obscura curva da costa, no final do estreito.
- Vamos! - exclamou Jack, e começou a subir, arquejando e gemendo, correndo tão depressa quanto podia em direcção à torre, o ponto mais alto de Gibraltar. Havia
alguns pedreiros trabalhando na torre, para além de um oficial de artilharia da guarnição com um esplêndido telescópio e uns quantos soldados. O oficial de artilharia,
num gesto de grande cortesia, ofereceu o telescópio a Jack, que o apoiou no ombro de Babbington; focou-o com todo o cuidado, observou bem a cena e disse:
- Ali está o Superb. E o Thames. E também dois navios espanhóis de três conveses: um deles é o Real Carlos, quase de certeza que é, pois tem a insígnia do vice-almirante.
Dois de setenta e quatro canhões. Não, um de setenta e quatro, e o outro, provavelmente, de oitenta canhões.
- É o Argonauta - disse um dos pedreiros.
- Outro de três conveses. E três fragatas, duas das quais francesas. Ficaram sentados em silêncio, observando o tranquilo desfile: o Superb e
o Thames mantinham a sua posição, apenas uma milha à frente da esquadra conjunta que atravessava o estreito, e os belos e enormes navios espanhóis de primeira classe
avançavam tão inexoravelmente como o sol. Momentos depois, os pedreiros foram comer; o vento rodou para oeste. A sombra da torre deslocou-se vinte e cinco graus.
Depois de terem dobrado a ponta Cabrita, o Superb e a fragata rumaram a Gibraltar, ao passo que os navios espanhóis orçaram para entrar em Algeciras; Jack verificou
que o navio almirante era de facto o Real Carlos, de cento e doze canhões, um dos navios mais potentes que sulcavam os mares; que um dos navios de três conveses
tinha uma potência similar e que o terceiro era de noventa e seis canhões. Era uma esquadra verdadeiramente formidável - com quatrocentos e setenta e quatro canhões
grandes, sem contar com os cento e muitos das fragatas - e todos os navios eram excepcionalmente bem governados. Ancoraram numa zona onde contavam com a protecção
das baterias espanholas, ficando tão bem ordenados como se o rei fosse passar-lhes revista naquele preciso instante.
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- Olá, meu capitão! - disse Mowett. - Imaginei que estivesse aqui e trouxe-lhe um bolo.
- Ah, obrigado, Mowett, muito obrigado! - exclamou Jack. - Acho que estou mesmo morto de fome. - Cortou imediatamente uma fatia e comeu-a. Que mudanças extraordinárias
haviam ocorrido na armada!, pensou Jack enquanto cortava outra fatia; quando era guarda-marinha, nunca lhe tinha passado pela cabeça falar com o comandante do navio
e muito menos levar-lhe bolos; e se lhe tivesse passado pela cabeça, nunca se teria atrevido a fazê-lo.
- Posso sentar-me na rocha consigo, meu capitão? - perguntou Mowett, sentando-se sem esperar pela resposta. - Vieram para ajudar os franceses a sair, suponho eu.
Acha que vamos atacá-los, meu capitão?
- O Pompée não estará pronto para voltar a fazer-se ao mar nas próximas três semanas - retorquiu Jack num tom dubitativo. - O Caesar sofreu muitos danos e tem de
ser mastreado de novo: mas mesmo que conseguissem tê-lo pronto antes que o inimigo se fizesse à vela, teríamos apenas cinco navios de linha para combater contra
dez, ou nove, se não incluirmos o Hanníbal: ou seja, os nossos trezentos e setenta e seis canhões contra mais de setecentos canhões da esquadra combinada. E também
temos menos tripulantes que eles.
- Mas o meu capitão de certeza que os atacava, ou não? - disse Babbington; e os dois guardas-marinhas desataram a rir-se alegremente.
Jack sacudiu a cabeça com um ar meditabundo e Mowett disse: - Como quando os arpoadores cercam e atacam, l Em hiperbóreos mares a baleia adormecida. São gigantescos,
os navios espanhóis! Os homens do Caesar pediram autorização para trabalharem de dia e de noite. O capitão Brenton diz que podem trabalhar o dia inteiro, mas que
de noite têm de estar de quarto. Estão a empilhar madeira de zimbro no cais para fazerem fogueiras e terem luz à noite.
E foi à luz de uma dessas fogueiras que Jack encontrou por mero acaso o capitão Keats do Superb, com dois dos seus tenentes e um civil. Depois dos primeiros instantes
de surpresa, das saudações e das apresentações, o capitão Keats convidou-o a jantar a bordo; visto que estavam prestes a partir, a refeição seria fraca, mas pelo
menos haveria couves do Hampshire, couves da própria horta do capitão Keats que tinham sido trazidas pelo Astraea.
- É muito amável da sua parte, capitão Keats; estou-lhe muito grato, mas rogo-lhe que me desculpe por não poder aceitar. Tive a infelicidade de
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perder o Sophie e, dentro de pouco tempo, comparecerei diante de si e dos outrospost-captains que me hão-de julgar.
- Não me diga! - exclamou o capitão Keats, subitamente embaraçado.
- O capitão Aubrey tem toda a razão - disse o civil, num tom sentencioso; e, nesse exacto momento, surgiu um mensageiro que disse ao capitão Keats que o almirante
queria vê-lo com urgência.
- Quem era aquele filho da mãe mal-encarado de casaca preta? - perguntou Jack ao seu amigo Heneage Dundas, do Calpe, que descia as escadas.
- Coke? É o novo auditor de guerra - disse Dundas, com uma expressão estranha. Mas seria mesmo uma expressão estranha? O reflexo das chamas podia fazer com que qualquer
expressão se tornasse estranha. As palavras do artigo 10º do Código de Justiça Militar vieram-lhe de súbito à memória: Se algum membro da frota pedir tréguas ou
se render cobardemente e for considerado culpado em conselho de guerra, será condenado à pena de morte.
- Venha comigo até ao Blue Pots, Heneage, venha beber comigo uma garrafa de Porto - disse Jack, passando com a mão pelo rosto.
- Jack - disse Dundas -, dou-lhe a minha palavra de honra que gostaria muito de ir consigo, mas prometi dar uma ajuda a Brenton. Era para lá que eu ia. Ali está
o resto do meu grupo, à minha espera. - E afastou-se na direcção da parte do cais que estava melhor iluminada. Jack afastou-se também, sem rumo fixo: meteu por ruelas
íngremes e escuras, passou por bordéis, sentiu o fedor que exalava de tabernas miseráveis.
Na manhã seguinte, abrigado junto à muralha de Carlos V, com o seu óculo apoiado sobre uma rocha, e com a sensação de estar a espiar ou a cometer alguma indiscrição,
seguiu atentamente os movimentos do Caesar (o Caesar já não era o navio almirante) que estava a receber o seu novo mastro principal, com cem pés de comprido e mais
de uma jarda de espessura. O trabalho decorria tão rapidamente que antes do meio-dia já haviam colocado o topo, e eram tantos os homens que trabalhavam na enxárcia
que nem se conseguia ver a coberta.
No dia seguinte, instalado ainda no seu melancólico poiso, e perseguido por um intenso sentimento de culpa - unicamente porque não mexia uma palha, ao passo que,
lá em baixo, toda a gente trabalhava, especialmente no Caesar -, viu o San António, um navio francês de setenta e quatro canhões procedente de Cádis e que chegou
atrasado, fundeando em Algeciras, junto aos seus amigos.
No dia seguinte havia uma grande actividade na parte mais distante da
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baía - numerosos botes iam e vinham entre os doze navios da frota combinada; os homens envergavam novas velas; subiam as provisões a bordo; içavam, umas após outras,
as bandeiras de sinais nos navios almirantes; e em Gibraltar havia também uma grande actividade, talvez mesmo mais intensa. Não havia nenhuma esperança no que tocava
ao Pompée, mas o Audacious já estava quase pronto, ao passo que o Venerable, o Spencer e, evidentemente, o Superb, estavam mais do que prontos para a batalha; quanto
ao Caesar, estava já nas últimas fases de reparação, sendo mesmo possível que, dentro de vinte e quatro horas, estivesse em condições de zarpar.
Durante a noite começou a soprar o levante, o vento que os espanhóis tanto desejavam, o vento que os levaria directamente para fora do estreito, uma vez dobrada
a ponta Cabrita, e que os conduziria a Cádis. Ao meio-dia, o primeiro dos navios de três conveses largou o velacho e começou a separar-se do grupo; os outros seguiram-no
sem demora. Levantaram as âncoras e zarparam uns atrás dos outros, com intervalos de dez ou quinze minutos, vindo a reunir-se frente à ponta Cabrita. O Caesar continuava
amarrado ao cais; estavam a abastecê-lo de pólvora e balas, e todos os homens a bordo, oficiais, marinheiros, civis e soldados da guarnição, trabalhavam diligentemente
e em silêncio.
Por fim, toda a frota combinada se pôs a caminho: não faltava sequer a sua presa, o Hannibal, que, com uma enxárcia provisória, se dirigia para a ponta Cabrita,
rebocado pela fragata francesa Indienne. E, a bordo do Caesar, escutaram-se as agudas notas do pífaro e do violino quando a tripulação começou a dar voltas ao cabrestante
para tirar o navio do cais, já preparado para a guerra. Ouviram-se clamorosos vivas em todo o porto, e também nas baterias, nas muralhas e nas encostas repletas
de espectadores; e quando os vivas cessaram, a banda da guarnição tocou tão alto como pôde Animemos os nossos rapazes, que vão partir em busca de glória, e os fuzileiros
do Caesar responderam com Os britânicos vão vencer. No meio da cacofonia, e apesar dela, conseguiam ouvir o pífaro: a cena não poderia ter sido mais comovente.
Quando passou sob a popa do Audacious, o Caesar içou de novo a insígnia de Sir James e, logo a seguir, a bandeira com o sinal levantar âncoras e preparar para a
batalha. A execução desta ordem foi talvez a mais bela das manobras navais que Jack jamais vira: todos esperavam o sinal, todos estavam preparados; e, num espaço
de tempo incrivelmente curto, as âncoras foram levantadas, e as velas desfraldadas formaram enormes pirâmides nos mastros, enquanto a esquadra - cinco navios de
linha, duas fragatas, uma corveta e um brigue - se afastava para formar em linha diante de Gibraltar.
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Jack abriu caminho por entre a multidão e encaminhava-se para o hospital com a intenção de convencer Stephen a escalar com ele quando o viu correndo pela rua deserta.
- Já saiu do cais? - perguntou Stephen, a uma distância considerável.
- Já começaram os combates? - Um instante depois, mais tranquilo, disse:
- Não perderia o espectáculo por nada deste mundo! A última coisa que me faltava era aparecer-me aquele tarado na Ala B! Não podia ter escolhido melhor dia para
cortar a garganta! Mas que sorte a minha, meu amigo, que sorte a minha!
- Não há que ter pressa, doutor, pois os combates não começarão tão cedo - disse Jack. - Mas lamento que não tenha podido ver o Caesar zarpar; foi um espectáculo
grandioso. Suba comigo até lá acima e veremos perfeitamente as duas esquadras. Venha. Primeiro vou a casa buscar um par de telescópios; e já agora uma capa, porque
refresca muito pela noite.
- Muito bem - disse Stephen depois de uma breve reflexão. - Posso deixar uma nota. E encheremos os bolsos de presunto. Assim o meu amigo já
to não ficará mal-disposto nem dará respostas curtas.
- Ali estão eles - disse Jack, fazendo uma pausa para recuperar o fôlego. - Ainda estão com o vento de bombordo.
- Vejo-os muitíssimo bem - disse Stephen, que subia rapidamente, cerca de cem jardas à frente de Jack. - Por favor, não pare tantas vezes. Vamos!
- Santo Deus, doutor! - disse Jack por fim, deixando-se cair à sombra da rocha que já lhe era familiar. - Você anda tão depressa! bom... pois aí estão eles!
- Sim, sim, aí estão eles: um espectáculo magnífico, sem dúvida. Mas por que é que estão com a proa virada para África? E por que é que só levam as mestras e as
gáveas com este vento suave? Aquele ali até está a manobrar a gávea maior para parar o navio, não é?
- É o Superb; está a fazer isso para manter a sua posição e não se adiantar ao navio almirante, porque o Superb é um soberbo navegador... É o melhor da frota...
Ouviu o que eu disse?
- Sim.
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- Foi um trocadilho bastante interessante, acho eu, muito engenhoso.
- E por que é que não se fazem ao mar?
- Oh, eles não vão lutar frente-a-frente: possivelmente não haverá nenhum tipo de acção à luz do dia. Seria uma loucura completa atacar a linha inimiga neste momento.
O almirante quer que o inimigo saia da baía e vá até ao estreito, pois assim terá espaço para manobrar e para atacar os navios inimigos, que não poderão virar. Se
este vento se mantiver, procurará isolar a retaguarda dos navios inimigos quando os apanhar em mar alto; e parece que sopra um daqueles levantes que duram três dias.
Repare, o Hannibal não consegue dobrar a ponta. Está a vê-lo? Irá parar à costa não tarda... A fragata está a ter muito trabalho... Estão a virar-lhe a proa... com
cuidado... isso... as velas estão a inchar... larguem a bujarrona... isso! Está a recuar agora.
Permaneceram sentados e em silêncio. À sua volta podiam ouvir alguns dos grupos espalhados por toda a superfície do Rochedo de Gibraltar: faziam comentários sobre
o vento, que agora estava mais forte, sobre a provável estratégia a seguir, sobre a quantidade exacta de canhões que havia em cada lado, sobre a grande qualidade
da artilharia francesa, sobre as correntes que havia frente ao Cabo Trafalgar.
A frota conjunta, agora com nove navios de linha e três fragatas, tinha-se posto à capa para formar linha de batalha, com os dois grandes navios espanhóis de primeira
classe na retaguarda, e navegava agora para oeste com o vento pela popa.
Um pouco antes, todos os navios da esquadra inglesa tinham virado ao mesmo tempo, obedecendo a um sinal, e estavam agora com o vento a estibordo e com pouco velame
desfraldado. Jack mantinha o telescópio focado no navio almirante e logo que viu um determinado sinal, murmurou:
- Cavamos nós!
Mal o sinal foi transmitido, o velame desfraldado duplicou e, uns minutos depois, a esquadra inglesa perseguia já os navios franceses e espanhóis; Jack viu-a afastar-se
- parecia cada vez mais pequena.
- Santo Deus, o que eu não daria para estar com eles! - exclamou Jack, desesperado. E, dez minutos passados, gritou: - Repare, o Superb vai agora à frente! Deve
ter sido o almirante que o chamou! - Nesse momento, como que por artes mágicas, surgiram as varredouras dos joanetes, tanto a bombordo como a estibordo. - Aquele
navio voa! - exclamou Jack
3 Entre o nome do navio, Superb (Soberbo) e o adjectivo, naturalmente. (N. do T.)
404
Aubrey, baixando e limpando o óculo: mas se estava a ver mal, não era por causa das lágrimas, nem devido a qualquer sujidade da lente: era porque já estava a escurecer.
No mar alto, o dia já se despedia; um entardecer fulvo inundara a cidade e as luzes começavam a acender-se por todo o lado. Viam-se também lanternas subindo lentamente
o rochedo, procurando os pontos mais elevados donde poderiam ver a batalha; e, do outro lado da baía, as luzes de Algeciras começavam também a piscar, desenhando
uma curva luminosa.
- Que me diz a um pouco de presunto? - perguntou Jack.
Stephen respondeu que o presunto era muito capaz de ser um bom profiláctico contra a humidade que caía; estavam a comer já há uns minutos, com os lenços estendidos
sobre as pernas, quando Stephen, inopinadamente, observou:
- Disseram-me que vou ser julgado pela perda do Sophie.
Jack não pensava no conselho de guerra desde manhã cedo, altura em que se soube que a frota conjunta estava a sair: agora, porém, o julgamento retornava à sua mente,
produzindo nele um choque extremamente desagradável, de tal forma que todo o seu estômago se revolveu. Contudo, replicou:
- Quem lhe disse isso? Os outros médicos do hospital?
- Sim.
- Teoricamente, têm razão. O nome oficial da coisa é "julgamento do capitão, dos oficiais e da tripulação do navio". Por mera formalidade, perguntam aos oficiais
se têm alguma acusação contra o comandante, e ao comandante se tem alguma acusação contra os oficiais; porém, é óbvio que, neste caso, só a minha conduta está em
causa. O doutor não tem que se preocupar, dou-lhe a minha palavra de honra. Não tem que se preocupar rigorosamente com nada.
- Oh, declarar-me-ei culpado imediatamente - retorquiu Stephen. E acrescentarei que, no momento em que tudo aconteceu, estava sentado no depósito da pólvora com
uma lanterna sem vidro, imaginando a morte do rei, dilapidando os meus medicamentos, fumando tabaco e apropriando-me indevidamente das rações da enfermaria. Nunca
vi maior disparate! - acrescentou, rindo-se a bom rir. - Francamente, capitão, surpreende-me que um homem tão sensato como você dê importância ao caso.
- Ah, não, eu não lhe dou importância! - exclamou Jack Aubrey. "Que mentiroso!", disse Stephen afectuosamente, mas para si mesmo. Após uma longa pausa, Jack observou:
- Quer-me parecer que você não considera os post-captains e os almirantes pessoas muito inteligentes. Ouvi-o dizer
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coisas bastantes duras acerca dos almirantes: enfim, acerca dos grandes homens em geral.
- bom, não há dúvida de que com a idade costuma acontecer algo de lamentável a esses grandes homens e almirantes, e também a esses post-captains. Uma espécie de
atrofia... Ficam com a cabeça e o coração mirrados... Creio que isso se deve a...
- bom - disse Jack, pondo a mão sobre o ombro do amigo, que mal se via à luz das estrelas -, como é que você se sentiria se a sua vida, a sua carreira e o seu bom
nome estivessem nas mãos de um punhado de oficiais do topo da hierarquia?
- Oh! - exclamou Stephen. Porém, aquilo que pretendia dizer nunca chegou a ouvir-se, porque, num longínquo ponto do horizonte, na direcção de Tânger, surgiu um intenso
clarão, não muito diferente da luz de um raio. Ergueram-se de um salto e, aguçando o ouvido, procuraram ouvir o longínquo estrondo; como o vento estava demasiado
forte, não conseguiram ouvir nada; voltaram a sentar-se e dirigiram os telescópios para oeste, para o mar alto. Puderam distinguir duas fontes de luz a umas vinte
ou vinte e cinco milhas de distância, separadas apenas um grau uma da outra: logo surgiu uma terceira: e depois uma quarta, e uma quinta, e, por fim, uma imensa
mancha vermelha que não se movia.
- Há fogo num navio - disse Jack horrorizado; o coração batia-lhe com tanta força que mal conseguia focar aquele intenso brilho vermelho.
- Queira Deus que não seja um dos nossos! Queira Deus que tenham alagado as munições!
Um clarão imenso iluminou o céu, deixando-os como cegos e apagando o brilho das estrelas; cerca de dois minutos depois chegou aos seus ouvidos o imenso e assustador
estrondo da explosão, largamente prolongado pelo seu próprio eco na costa africana.
- Que foi aquilo? - perguntou Stephen.
- O navio explodiu - disse Jack: recordava com extrema nitidez a batalha do Nilo e o interminável momento em que o LOrient explodiu; recordava mil e um pormenores
que pensava esquecidos, alguns deles verdadeiramente medonhos. E estava ainda imerso nas suas recordações quando uma segunda explosão, talvez maior do que a primeira,
trespassou a noite.
E depois nada. Nem a mais remota luz, nem o clarão de um canhonaço. O vento estava cada vez mais forte e a lua subia no céu, ofuscando as estrelas mais pequenas.
Passado um instante, algumas lanternas começaram a descer; outras permaneceram onde estavam; outras subiram ainda mais alto; Jack e
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Stephen ficaram onde estavam. Quando amanheceu, estava ainda sob a sua rocha; Jack esquadrinhava o estreito - agora deserto e calmo - e Stephen Maturin dormia profundamente,
com um sorriso nos lábios.
Nem uma palavra, tão-pouco um sinal: um mar silencioso, um céu silencioso e de novo um vento traiçoeiro. Às sete e meia, Jack acompanhou Stephen ao hospital e, após
ter bebido um revigorante café, voltou a subir ao Rochedo.
Graças a tantas subidas e descidas, conhecia já todos os meandros do caminho, e a rocha a que se encostava era-lhe já tão familiar como uma velha casaca. Na quinta-feira,
depois do chá, quando escalava o rochedo, com a sua ceia numa saca de lona, viu Dalziel, Boughton, do Hannihal, e Marshal descendo a íngreme encosta a tal velocidade
que nem conseguiram parar. Gritaram: "Vem aí o Calpel", e continuaram a correr, com a cadelita correndo à volta deles, ladrando toda contente - um perigo, pois podiam
tropeçar nela.
Heneage Dundas, da veloz corveta Calpe, era um jovem afável, muito apreciado pelas suas qualidades e, sobretudo, pelo seu domínio da Matemática; agora, porém, era
o homem mais querido em Gibraltar. Recorrendo a alguma brutalidade e fazendo valer, de um modo pouco escrupuloso, todo o peso do seu corpo e a violência das suas
cotoveladas, Jack abriu caminho por entre a multidão que rodeava Dundas: cinco minutos depois, deixou a multidão e desatou a correr como um miúdo pelas ruas da cidade.
- Stephen! - gritou, abrindo violentamente a porta e com uma expressão tão radiante que o seu rosto parecia ter aumentado de tamanho. - Vitória! Venha brindar pela
vitória! Deleite-se com uma vitória extraordinária, meu velho! - exclamou, apertando-lhe a mão com tal força que o pobre doutor parecia estar com uma crise de espasmos.
- Uma batalha magnífica!
- Mas... que aconteceu? - perguntou Stephen, limpando lentamente o bisturi e cobrindo a sua hiena africana.
- Venha! Explico-lhe tudo enquanto bebemos um copo! - disse Jack, conduzindo-o para a rua cheia de gente. Todos conversavam animadamente, e riam-se, e cumprimentavam-se
e davam-se palmadas nas costas: lá em baixo, no cais novo, o som era de vitória. - Vamos, estou com tanta sede como Aquiles. Como Aquiles, não, como Andrómaca! Keats
cobriu-se de glória, Keats ficará na História! Ah, ah, ah! Um verso magnífico, ha? Pedro, sirva-nos por favor! Traga-nos champanhe! Brindemos à vitória! Brindemos
a Keats e ao Superbl Brindemos ao almirante Saumarez! Pedro, traga outra garrafa! Brindemos de novo à vitória! Três vezes hurra!
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- Far-me-ia um grande favor se me contasse o que se passou - observou Stephen. - com todos os pormenores.
- Não conheço todos os pormenores - disse Jack -, mas conheço o essencial. O grande Keats - lembra-se que o vimos tomar rapidamente a dianteira? - alcançou o inimigo
pela retaguarda, formada por dois navios espanhóis de primeira classe, uns minutos antes da meia-noite. Esperou o momento oportuno, virou a sotavento e passou a
toda a velocidade por entre os dois navios espanhóis, disparando pelos dois costados: um navio de setenta e quatro canhões lutando contra dois navios de primeira
classe! Disparou sem cessar, provocando uma nuvem de fumo tão densa como puré de ervilhas; no meio de tão densa fumarada, os navios espanhóis, em vez de acertarem
no Superb, acertaram um no outro; e foi assim que o Real Carlos e o Hermenegildo, no meio daquela escuridão, se alvejaram furiosamente. O mastaréu do velacho do
Real Carlos foi derrubado, não se sabe se pelo Superb se pelo Hermenegildo, e a sua gávea caiu sobre os canhões e incendiou-se. Passados uns minutos, o Real Carlos
e o Hermenegildo chocaram e este último também se incendiou. Foram essas as explosões que vimos. Porém, enquanto o fogo os consumia, Keats avançou para combater
o San António; este orçou e respondeu com rara valentia; contudo, teve de se render ao fim de meia hora, pois enquanto o Superb disparava três surriadas com uma
precisão extrema, o San António disparava apenas duas. De maneira que Keats apresou o navio; e o resto da esquadra avançou o mais rapidamente que pôde para nor-noroeste,
aproveitando o vento forte. Quase apresavam o Formidable, mas este entrou em Cádis a tempo; e nós por pouco não perdíamos o Venerable, que ficou desmastreado e encalhado.
Mas conseguiram desencalhá-lo e agora está de regresso com uma enxárcia provisória e um botaló de varredoura no lugar de um mastro de mezena. Ah, ah, ah! Ali vêm
Dalziel e Marshall! Eh, Dalziel! Marshall! Venham cá! Venham brindar à vitória!
A bandeira subiu a bordo do Pompée; o canhão disparou; os capitães reuniram-se para o conselho de guerra.
Era uma ocasião solene e, apesar da luminosidade do dia, do imenso regozijo que se vivia em terra e dos risos de contentamento a bordo, cada
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post-captain pôs de lado a alegria e subiu ao navio com a gravidade de um juiz, sendo saudado com a devida cerimónia e conduzido à espaçosa cabina pelo primeiro-oficial.
Jack Aubrey, obviamente, já estava a bordo; mas o seu caso não seria o primeiro a ser julgado. Aguardando na messe, numa zona separada do resto da sala por um anteparo,
encontrava-se um capelão, um homem com um ar acossado que não parava de andar de um lado para o outro; por vezes, exclamava qualquer coisa para si mesmo e juntava
bruscamente as mãos. Vestira-se com extremo cuidado e no seu rosto viam-se ainda sinais das feridas que fizera ao barbear-se - o que, tudo somado, tornava a cena
ainda mais lastimosa; de facto, se metade do relatório geral sobre o seu comportamento dizia a verdade, então o pobre sacerdote não teria escapatória.
No momento em que se ouviu um segundo canhonaço, o master-at-arms4 levou o capelão; houve uma pausa, um desses longos períodos em que o tempo parece não fluir, parecendo
estagnar ou ganhar mesmo um movimento circular. Os outros oficiais falavam em voz baixa - também eles estavam vestidos com esmero, com a elegância e a atenção aos
mais ínfimos pormenores que o muito dinheiro das presas e os melhores alfaiates de Gibraltar tornavam possível. Apresentar-se-iam assim por respeito ao tribunal?
Por respeito ao julgamento propriamente dito? Ou devido a um sentimento de culpa residual, como se, assim vestidos, primorosamente vestidos, imaginassem que era
possível aplacar o destino? Falavam todos em voz baixa, num tom de voz uniforme, olhando de relance para Jack de quando em quando.
No dia anterior, todos eles haviam recebido uma notificação oficial, e, por alguma razão, todos a tinham trazido, dobrada ou enrolada. Ao fim de algum tempo, Babbington
e Ricketts, que estavam muito escondidos a um canto, começaram a transformar em obscenidades todas as palavras da notificação que se adequavam a tal tratamento,
ao passo que Mowett escrevia e riscava nas costas da sua, contando sílabas com os dedos e recitando em silêncio. Lucock olhava em frente, para o vazio. Stephen acompanhava
atentamente as agitadas e infrutíferas buscas de uma pulga vermelha, muito brilhante, no chão de lona axadrezado.
A porta abriu-se e Jack regressou bruscamente à realidade; pegou no chapéu e, baixando a cabeça, entrou na grande cabina, seguido pelos seus
4 Oficial encarregado de manter a disciplina a bordo. (N. do T.)
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oficiais. Parou a meio da sala, pôs o chapéu debaixo do braço e, com uma vénia, saudou o tribunal - primeiro o presidente, depois os capitães que estavam à sua direita,
por fim os capitães que estavam à sua esquerda. O presidente inclinou ligeiramente a cabeça e convidou o capitão Aubrey e os seus oficiais a sentarem-se. Um fuzileiro
colocou uma cadeira para Jack um pouco à frente das outras; Jack sentou-se, fazendo um movimento para ajeitar a espada que não tinha, enquanto o auditor de guerra
começava a ler o documento que autorizava o tribunal a reunir.
Enquanto durou esta longa leitura, Stephen examinou atentamente a cabina de uma ponta à outra: era uma versão ampliada do camarote privado do Desaix (que feliz que
se sentia por o Desaix estar a salvo!), igualmente cheia de luz e encantos - as mesmas janelas curvas de popa, a mesma inclinação das paredes para dentro (de facto,
a mesma inclinação que se verificava nas partes superior e central do costado), e, em cima, as mesmas vigas maciças, pintadas de branco, que iam de uma ponta à outra
da cabina, desenhando curvas de uma perfeição extraordinária: enfim, uma sala que não tinha o menor ponto de contacto com a geometria normal de uma casa. No extremo
oposto à porta, paralela às janelas, havia uma longa mesa; e, entre a mesa e a luz que entrava pelas janelas, estavam sentados os membros do conselho de guerra:
o presidente no centro, e três post-captains de cada lado; o auditor de guerra, de casaca preta, estava sentado a uma secretária em frente desta mesa; noutra secretária
mais pequena, à esquerda, estava um escrivão; e, ainda à esquerda, havia um espaço limitado por cordas para os espectadores.
O ambiente não podia ser mais austero: todos os oficiais sentados do outro lado da mesa, com os seus uniformes azuis e dourados, exibiam expressões de uma gravidade
inquestionável. O julgamento e a sentença anteriores haviam sido tremendamente dolorosos.
Eram precisamente aquelas cabeças, aqueles rostos, que atraíam todas as atenções de Jack. com a luz por detrás deles, era difícil distingui-los claramente; contudo,
era possível ver que os seus juizes exibiam quase todos expressões sombrias e que todos estavam imersos nos seus pensamentos. Conhecia Keats, Hood, Brenton, Grenville:
seria possível que Grenville lhe tivesse piscado o olho, o seu único olho, ou seria uma piscadela involuntária? Claro que era uma piscadela involuntária: qualquer
sinal teria sido uma grosseira falta de respeito ao tribunal. O presidente parecia vinte anos mais novo por causa da vitória, mas o seu rosto permanecia impassível,
e as pálpebras caídas impediam que Jack distinguisse a expressão dos seus olhos. Quanto aos outros capitães, conhecia-os apenas de nome. Um deles, que era canhoto,
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estava a desenhar - a rabiscar qualquer coisa: os olhos de Jack nublaram-se de fúria.
A voz do auditor de guerra continuava com a sua monótona recitação. "O Sophie, antiga corveta de Sua Majestade, depois de ter recebido ordens para seguir rumo a...
e considerando que aproximadamente a 40 O, 37? 40 N, perto do Cabo Roig...", ia ele dizendo, no meio da indiferença geral.
"Aquele homem adora o seu trabalho", pensou Stephen. "Mas a voz! Que voz horrível! É quase impossível entender o que ele diz. O homem não fala, papagueia, como todos
os advogados - deformação profissional". E reflectia sobre as doenças profissionais, sobre os corrosivos efeitos da rectidão nos juizes, quando reparou que a atitude
de Jack, rígida de início, era agora mais relaxada: e à medida que as formalidades foram avançando, o relaxamento tornou-se mais evidente. Jack tinha uma expressão
taciturna, estranhamente serena e ameaçadora; a sua postura, com a cabeça ligeiramente inclinada e os pés teimosamente juntos, contrastava de forma singular com
a perfeição do seu uniforme, e Stephen teve o forte pressentimento de que estava prestes a ocorrer uma catástrofe.
O auditor de guerra havia chegado à passagem que dizia "...para proceder a um inquérito à conduta de Jack Aubrey, capitão do Sophie, antiga corveta de Sua Majestade,
bem como ao comportamento dos seus oficiais e da sua tripulação, em consequência da perda do referido navio, que foi capturado no dia 3 do corrente mês por uma esquadra
francesa comandada pelo almirante Linois"; nesse momento, a cabeça de Jack baixou-se ainda mais. "Até que ponto temos nós o direito de manipular os nossos amigos?",
perguntou-se Stephen; então, escreveu a um canto de uma folha: Nada daria maior prazer a Harte do que uma explosão de indignação da sua parte neste preciso momento,
e passou a folha ao segundo-oficial, apontando na direcção de Jack. Marshall passou a folha a Dalziel, que a passou a Jack; este leu-a e, virando-se para Stephen
com uma expressão sombria, sem dar mostras de ter compreendido a frase, sacudiu a cabeça.
Um segundo depois, Charles Stirling, o presidente do conselho de guerra, pigarreou e deu início à sua intervenção:
- Capitão Aubrey, peço-lhe que explique as circunstâncias que rodearam a perda do Sophie, antiga corveta de Sua Majestade.
Jack levantou-se, fitou atentamente todos os seus juizes, respirou fundo e, com uma voz muito mais forte do que o habitual, com grande fluidez, fazendo pausas inesperadas
e recorrendo a uma entoação pouco natural - de facto,
411
aquela era uma voz áspera, violenta, como se Jack Aubrey se dirigisse a um grupo de acérrimos inimigos -, comunicou as suas explicações ao tribunal:
- Por volta das seis horas da manhã do dia 3 do corrente, divisámos a leste, nas proximidades do Cabo Roig, três grandes navios que pareciam ser franceses, e uma
fragata, os quais, pouco depois, se lançaram na perseguição do Sophie: o Sophie encontrava-se entre a costa e os navios que o perseguiam, ou seja, a barlavento dos
navios franceses: desfraldando todas as velas e empregando os remos, pois o vento era muito fraco. Procurámos manter-nos a barlavento do inimigo; porém, por volta
das nove horas, verificando que, apesar de todos os nossos esforços para navegarmos à maior velocidade possível, os navios franceses se aproximavam com extrema rapidez,
e que, mesmo virando em diferentes direcções, qualquer um deles poderia acercar-se de nós, e dando-nos conta da impossibilidade de fugir, devido à falta de vento,
decidimos lançar ao mar os canhões e outros objectos que estavam na coberta; esperámos pelo momento oportuno e, quando tínhamos pela alheta o navio francês mais
próximo, arribámos e largámos as varredouras; contudo, verificámos que os navios franceses continuavam a navegar mais velozmente que nós, apesar de não terem largado
as varredouras: e, por volta das onze horas, quando o navio mais próximo estava a uma distância de um tiro de mosquete, ordenei que fosse arriada a bandeira, pois
o vento estava de leste e tínhamos recebido várias surriadas que arrancaram o mastaréu da gávea maior e a verga do velacho e cortaram vários cabos.
Então, embora tivesse consciência da singular inépcia do seu relato, calou-se, cerrou os lábios bem cerrados e olhou em frente, enquanto a pena do escrivão chiava
na transcrição das suas últimas palavras: "e cortaram vários cabos". Houve uma ligeira pausa durante a qual o presidente do tribunal olhou para a esquerda e para
a direita, tossicando e preparando-se para intervir de novo. O escrivão fez um rápido floreado caligráfico depois de "cabos" e apressou-se a retomar a transcrição:
Questão do tribunal: Capitão Aubrey, considera haver algum motivo para censurar a conduta dos seus oficiais ou demais membros da tripulação?
Resposta: Não. Todos os homens a bordo deram o máximo de si. Questão do tribunal: Oficiais e membros da tripulação do Sophie, consideram haver algum motivo para
censurar a conduta do vosso comandante?
Resposta: Não.
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- Retirem-se todas as testemunhas, à excepção do tenente Dalziel ordenou o auditor de guerra; segundos depois, os guardas-marinhas, o mestre e Stephen encontraram-se
de novo na messe; foi cada um para seu canto, todos mais mudos que os mudos; tão denso silêncio não tardou a ser interrompido pelos gritos que vinham da enfermaria
(o capelão tentara suicidar-se) e pelo monótono rumor do julgamento. A inquietação, a ansiedade, a raiva de Jack Aubrey tinham abalado profundamente aqueles homens:
estavam tão habituados a vê-lo imperturbável perante situações tão difíceis que as emoções reveladas por Jack tinham-nos impressionado profundamente, perturbando-lhes
o discernimento. Podiam ouvir agora a voz dele, categórica, irada e muito mais forte que todas as outras vozes: "O inimigo disparou várias surriadas? E a que distância
estávamos nós quando disparou a última?", perguntava Jack a Mr Dalziel. A resposta deste não passou de um murmúrio - com o anteparo pelo meio, nem o mais saudável
dos ouvidos conseguiria entendê-lo.
- É um medo totalmente irracional - disse Stephen Maturin, olhando para as palmas das mãos, húmidas e pegajosas. - Isto é apenas mais um exemplo de... porque é mais
que certo que, se quisessem dar cabo dele, tinham-lhe perguntado logo: "Como é possível que tenha chegado a tal situação?". Mas, enfim, eu pouco sei de assuntos
navais. - Procurou algum consolo na expressão do mestre, mas não o encontrou.
- Doutor Maturin - disse o fuzileiro, abrindo a porta.
Stephen avançou devagar e fez o seu juramento com mais vagar ainda, procurando captar a atmosfera da sala: desse modo, deu também tempo ao escrivão para concluir
a transcrição do testemunho de Dalziel:
Questão do tribunal: O navio francês acercava-se do Sophie sem as
varredouras desfraldadas?
Resposta: Sim.
Questão do tribunal: Pareceu-lhe que o navio francês navegava
muito mais rapidamente do que o Sophie ?
Resposta: Sim, muito mais.
Doutor Maturin, cirurgião do Sophie, convocado a depor e tendo
prestado juramento.
Questão do tribunal: Tanto quanto pôde observar, crê que é correcta
a declaração do seu comandante acerca da perda do Sophie?
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Resposta: Sim.
Questão do tribunal: Possui conhecimentos bastantes sobre assuntos navais para poder concluir que foram feitos todos os esforços para escapar ao navio que perseguia
o Sophie?
Resposta: Pouco sei de assuntos navais, mas pareceu-me que todas as pessoas a bordo deram o máximo de si: vi o comandante ao leme e não houve um único oficial ou
marinheiro que não tivesse remado. Questão do tribunal: Estava na coberta no momento em que a bandeira foi arriada? A que distância se encontrava o inimigo no momento
da rendição?
Resposta: Estava na coberta e o Desaix encontrava-se à distância de um tiro de mosquete e não parava, de disparar contra o Sophie.
Dez minutos passados, o tribunal ordenou que todos os presentes se retirassem. Outra vez na messe; desta feita não houve qualquer hesitação sobre quem deveria passar
primeiro, pois Jack e Mr Dalziel faziam parte do grupo: estavam todos juntos agora, mas ninguém abria a boca. Seria possível que fossem risos aquilo que se ouvia
na sala do tribunal? Ou viriam os risos da sala de oficiais do Caesar?
Uma longa pausa. Uma imensa pausa: por fim, o fuzileiro apareceu à porta.
- Façam favor de entrar.
Entraram em fila e, apesar dos seus muitos anos de mar, Jack esqueceu-se de baixar a cabeça: bateu no dintel com tal força que uma mecha de cabelo e um nada de pele
ficaram colados à madeira. Avançou meio-cego e postou-se junto à sua cadeira.
O escrivão, que estava a escrever a palavra Sentença, ergueu os olhos, sobressaltado com a pancada; mas depressa retomou o seu trabalho - teria agora de transcrever
as palavras do auditor.
- No conselho de guerra reunido e deliberando a bordo do Pompée, navio de Sua Majestade, em Rosia Bay... o tribunal (após ter prestado juramento) procedeu aos seus
trabalhos, segundo ordem de Sir James Saumarez Bart, contra-almirante, e... tendo analisado todos os testemunhos e examinado maduramente e minuciosamente todas as
circunstâncias...
A voz do auditor, inexpressiva e monótona, prosseguiu com a ladainha; aquela voz e o zumbido que Jack sentia na cabeça pareciam unir-se num único som, de tal forma
que não conseguia ouvir praticamente nada do que o
414
homem dizia; e quanto ao sentido do olhar, também não estava melhor, pois as lágrimas impediam-no de enxergar o rosto do auditor.
- ...o tribunal é de opinião que o capitão Aubrey, os seus oficiais e a tripulação do Sophie envidaram todos os seus esforços para evitar que a corveta de Sua Majestade
caísse em mãos inimigas: e por essa razão os absolve. Assim sendo, são pela presente absolvidos de todas as acusações que sobre eles pendiam - disse o auditor e
Jack não ouviu rigorosamente nada.
A voz inaudível cessou e os olhos nublados de Jack aperceberam-se de que aquela forma negra se tinha sentado. Sacudiu a cabeça, que continuava a zumbir, cerrou os
maxilares e fez um esforço para recuperar todas as suas faculdades, pois dera-se conta de que o presidente do tribunal estava a levantar-se. Já com os olhos mais
desanuviados, Jack reparou no sorriso de Keats e viu o capitão Stirling pegando naquela velha e gasta espada que lhe era tão familiar, oferecendo-lha depois com
o punho virado para si, enquanto com a mão esquerda afagava um bocado de papel junto ao tinteiro. O presidente pigarreou uma vez mais no meio de um silêncio absoluto
e, com uma voz clara, com uma voz de homem do mar que combinava a gravidade, a formalidade e a alegria, disse:
- Capitão Aubrey, é para mim um enorme prazer que o tribunal a que tenho a honra de presidir haja decidido entregar-lhe a sua espada, e felicitá-lo pelo facto de
tanto os seus amigos como os seus inimigos lha terem restituído, na esperança de que, muito em breve, tenha, uma vez mais, a oportunidade de a desembainhar e usar na honrosa missão de defender o seu país.
Patrick O brian
O melhor da literatura para todos os gostos e idades