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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CAPTURAR UM LOBO / Susan Krinard
CAPTURAR UM LOBO / Susan Krinard

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Morgan perdeu tudo - sua família, seu passado, e sua esperança - quando foi em busca do pai que o abandonou, sua mãe e irmã. Acusado de um terrível crime, Morgan está condenado a longos anos na prisão, um destino inimaginável para um homem de sangue shapeshifter.
Tudo o que ele quer é viver o resto de sua vida em liberdade entre os lobos. Mas um fatídico encontro com um circo itinerante chama-o de volta para a humanidade, e para uma união com a mulher destinada para ele: Athena Munroe, aleijada em um devastador acidente e agora um dos luminares da sociedade rica de Denver.
Dominada por seu irmão super protetor Niall, Athena Morgan encontra em símbolo vivo da liberdade que perdeu. Só ela tem o poder de aliviar a sua dor. Mas Morgan tem suas próprias memórias sombrias para superar antes que ele possa aprender a amar novamente.
Athena pode capturar a um lobo que se recusa a ser domado?

 

 

 


 

 

 


Prólogo

Canon City, Colorado, 1875

Livre.
Morgan se deteve apenas ao transpassar as portas da Penitenciária Territorial, contemplando através dos barrotes as frias e duras caras dos homens que o tinham
mantido enjaulado durante os últimos cinco anos. Ele sabia que suas vazias expressões ocultavam alívio... alívio de que o único prisioneiro que não tinham podido
dobrar estivesse deixando sua jurisdição.
Tinham deixado de tentar lhe golpear depois do primeiro ano porque não lhes deu nenhuma outra razão além de seu silêncio, que lhes desgostasse. Tinham-lhe deixado
quase completamente em paz depois do segundo ano, e o mesmo tinham feito os outros sentenciados. Embora nunca tentou escapar, mantinham-lhe em sua cela todo o tempo
exceto durante uma hora cada dia, e então só o deixavam sair sob forte vigilância, com meia dúzia de rifles apontando a sua cabeça.
Tinha aprendido como conservar sua prudência quando os aromas do bosque e o rio chegavam até ele através da janela com barrotes. Tinha aprendido a existir em
um lugar onde tudo o que tinha sido morria de uma lenta e persistente morte.
Foi mais fácil que a que seu pai tinha sofrido.
Sem posse alguma salvo pelas lembranças e as roupas que levava em cima, afastou-se dos altos muros de pedra. A estrada conduzia ao leste, à cidade do Canon
City, com suas casas, lojas e botequins. Ao oeste se elevavam os picos do Sangue de Cristo, e ao norte Pike's Peak e Colorado Springs. A fronteira com o Território
no Novo México se localizava a uns cento e cinquenta quilômetros para o sul, seguindo em linha reta.
A estrada que lhe tinha levado a Colorado em busca de seu pai tinha começado no oeste, em Califórnia. Mas sua mãe e sua irmã já não estavam esperando-o na pequena
cabana da montanha. Quatro anos depois de seu julgamento e encarceramento em vários cárceres e logo ali na Penitenciária Territorial, tinha recebido a única carta
de seus nove anos de condenação.
Seu tio Jonas tinha sido breve. Edith Holt estava morta, e sua irmã Cassidy tinha ido com o Jonas a seu rancho no Novo México. Ali, ela teria uma educação decente
longe da desagradável influência de seus parentes.
Cassidy tinha tido seis anos quando Morgan partiu. Agora devia ser uma mulher, familiarizada com o cortejo e o beijar e todas as coisas que Morgan havia perdido.
Poderia inclusive ter começado uma família própria. Não haveria lugar em sua vida para um ex-sentenciado.
Melhor que Cassidy esquecesse que existia sequer. Ele não tinha família. Estava sozinho. E assim permaneceria.
Havia muitas maneiras de estar sozinho no Colorado. Não cada vale era uma florescente cidade mineira, nem cada colina estava infestada de ansiosos buscadores
de ouro. Havia lugares onde os lobos ainda evitavam as escopetas e armadilhas dos caçadores.
Aí é aonde Morgan iria. Ao norte, e ao oeste, às altas montanhas e os profundos vales. Ali poderia esquecer que alguma vez tinha sido um homem.
Seus pés, tão acostumados a medir as dimensões de sua cela, mostravam-se lentos em recordar o que era andar a passos largos. O pó do outono se elevava em pequenas
rajadas sobre seus arruinados sapatos. desprendeu-se do informe couro e tirou os sapatos de um pontapé.
Caminhou uns cem passados estrada adiante e virou para o norte, onde só rastros animais marcavam o caminho. Ninguém o chamou, nem para amaldiçoá-lo nem para
despedir-se dele. Apartou aos humanos de sua mente.
O tempo tal e como os homens o mediam tinha perdido seu significado fazia já muito. Andou durante muitos dias, bebendo de regatos, mananciais e rios, comendo
o que sentia que era comestível e seguro para comer. Onde os homens fediam a lixo e metal, ele passou sem ver visto. A estação que eles chamavam Verão de São Martin
se demorou montanha acima. Folhas douradas rangeram sob seus pés. Logo nevou e ele se tirou de cima o frio como o tinha feito durante seus anos de cativeiro.
Finalmente, chegou o dia em que ouviu uivar aos lobos.
O aroma dos homens não chegava até ali. O ar lhe ardia o nariz com a promessa do inverno, e se convertia em névoa com cada respiração.
Elevou a vista para o espaçoso céu e uivou. Os lobos lhe responderam. E vieram, em silencio para qualquer que caminhasse sobre duas patas. Quando lhe circundaram,
com a pelagem arrepiada e despindo os dentes, ele se desprendeu dos restos de suas arruinadas roupas e caminhou entre eles sem medo. Enquanto eles retrocediam, ele
mudou.
Os lobos lhe reconheceram, embora com segurança que nunca tinham visto nenhum como ele. Esconderam-se em sinal de obediência. O casal dominante gemeu ansiosamente,
e ele lhes disse em uma linguagem que eles compreendiam que não usurparia sua soberania contanto que lhe deixasse compartilhar o destino da manada.
E assim, eles lhe deram as boas-vindas. Apresentou-se a cada lobo por turno, seus ombros cobertos de negra pelagem elevando-se por cima dos dos outros, sua
altura duas vezes a da besta mais pequena. Logo os despachou e se converteu em homem pela última vez.
Reuniu suas descartadas roupas e as estendeu em uma ordenada pilha sobre o chão virgem. Com suas mãos, escavou um profundo buraco, depositou sua camisa e suas
calças dentro, e alisou a terra sobre os restos de sua humanidade.
Um floco de neve beijou o ombro do Morgan. Outro lhe uniu, e seus irmãos agitaram-se e deram voltas enquanto caíam do céu para oferecer uma bênção final. Deslizou
seus dedos por sua cara, sentindo o gasto da mesma e os afiados planos, a cicatriz da bochecha onde um companheiro da prisão lhe tinha apunhalado e deixado tão somente
uma mínima marca. Não haveria semelhante marca no lobo. E o peso em seu peito, durante tanto tempo ignorado, murchar-se-ia e logo seria esquecido.
Com um encolhimento de ombros, mudou. Flocos de neve ficaram presos em sua pelagem. A riqueza do bosque se derramou sobre ele e o acolheu.
Uns uivos se elevaram do pendente mais próximo. Ele respondeu e pôs-se a correr ao galope, cobrindo o desnivelado chão sem esforço. Os anos perderam consistência
um a um, qual pele humana e ossos, até que seu coração jazia nu para o mundo... e se congelou em uma parte de gelo, intocado e intocável.
Agora era realmente livre.





































CAPÍTULO 1

Denver, Colorado, Junho 1880

Uma por uma, os membros da Sociedade Assistencial de Damas se elevaram de suas poltronas e sofás no grande salão dos Munroe e se despediram de sua anfitriã.
As estreitas saias de seda e brocado rangeram, confinando pernas que estranha vez encontravam um uso prático salvo para transportar a suas proprietárias da mansão
à carruagem e da carruagem às lojas.
Athena Sophia Munroe não se levantou para acompanhar a suas convidadas à porta. Estendeu sua mão enluvada e aceitou as despedidas oferecidas como uma rainha
em seu trono. Uma rainha encerrada enquanto isso luxo como o estaria a mais favorecida consorte do harém de um pashá.
Sorriu e encontrou um elogio para cada dama, por sua vez, escutando seu bate-papo enquanto Brinkley as conduzia ao saguão.
Cecily Hockensmith se atrasou, agitando indolentemente seu leque contra o ar seco e quente.
-O que vai se fazer com respeito a este horrível calor? -exclamou. -Todo mundo nos aconselha que vamos às montanhas durante o verão, mas papai não deseja perder-se
nenhuma oportunidade de fazer negócios -fez uma careta de desgosto. -Negócios, sempre negócios. Não é espantosamente aborrecido?
-Os homens não parecem achar assim - disse Athena. Pensou no Niall, trabalhando duro em algum sufocante escritório enquanto ela se sentava comodamente em casa.
-É certo que muitas famílias deixam a cidade no verão. Esse é o motivo de que nossa concorrência hoje foi menor do que seria em outras épocas. No outono, teremos
nosso pessoal ao completo de novo.
A senhorita Hockensmith fechou os olhos e suspirou.
-Nós sempre íamos ao Newport durante os verões em New York. Ah, essas frescas brisas do oceano... que agradáveis eram!
Athena assentiu com educada compaixão.
-Deve ser muito diferente em Denver, com o oceano tão longe.
-Alguma vez visitou você o mar, querida minha?
-Temo que não. Ia frequentar à escola no leste, mas...
-Deve ir algum dia, senhorita Munroe. Não pode você perder-lhe.
Athena se imaginou junto às ondas, respirando o ar salgado e deixando que a água banhasse seus pés. A imagem era tão tentadora que doía.
-Eu gostaria de levar aos órfãos ao oceano - disse rapidamente. Eles o apreciariam mais que ninguém.
-Ah, sim, os querido órfãos - a senhorita Hockensmith ficou séria, encontrando o olhar da Athena com um ar de preocupado interesse. -Confio em que não lhe importará
um pequeno conselho de irmã. Estive observando-a desde nossa chegada, senhorita Munroe. Confesso que nunca vi a ninguém que trabalhasse tão incansavelmente como
você em benefício das massas. Vá! Nem sequer nossos maiores filantropos de New York se mostram tão... pessoalmente envoltos em semelhante trabalho.
Athena se ergueu em sua cadeira.
-Você me elogia em excesso, senhorita Hockensmith. Eu faço muito pouco, e conto com a ajuda de muitos outros. Parece-me que é nosso dever, como os mais afortunados,
fazer o que pudermos para ajudar aos que tem menos.
A senhorita Hockensmith arqueou uma depilada sobrancelha.
-Naturalmente. Mas os órfãos, as perdidas, os homens desempregados do Globeville e Swansea... está você segura de que não aceitou ocupar-se de muito, querida
minha? -seus escuros olhos brilharam com compaixão. -Temo que esgote a você mesma com o Baile de Inverno, entre tantas outras empreitadas. Você sabe que eu estaria
mais que feliz de ajudá-la. Tinha tanta experiência organizando assuntos deste tipo em New York... e desejo tanto ajudar aos queridos órfãozinhos...
Athena contemplou a Cecily, sua estatura e presença, e o cabelo cor meia-noite sobre uma cara pálida e encantadora. A dama estava acostumada a ser a soberana
de seu próprio reino, e quem podia culpá-la? Tinha sacrificado muito ao vir a Denver com seu pai.
-É obvio -disse Athena. -Seu conselho e experiência serão muito bem recebidos. Necessitarei a ajuda de todo o mundo para converter o segundo Baile de Inverno
em um êxito igual ao do ano passado.
-É uma pena que nós não tivéssemos chegado à cidade naquele tempo -disse Cecily, -mas estou segura de que fez você um excelente trabalho. Certamente, seu salão
de baile é um dos mais formosos que jamais vi em Denver... para uma modesta reunião. Quanto vocês devem ter desfrutado dançando nele!
Athena fez um ligeiro ajuste a suas perfeitamente dispostas saias, como se alguma parte dela tivesse sido exposta por um inadvertido movimento. Sentiu-se agradecida
pelo descuidado comentário de Cecily; muito melhor essas ocasionais espetadas que as navalhadas de piedade.
A sociedade de Denver já não tinha razão para compadecê-la. Não tinha provado ser capaz de contribuir tanto como qualquer com seu trabalho para com esses menos
afortunados? Não era seu salão formal um dos mais elegantes e de bom gosto de todo Denver? Não confiavam as esposas e filhas dos colegas de seu irmão em seu julgamento
referente a tudo, das últimas modas de Paris à contratação de serventes?
Eu não sou diferente de nenhum deles. Não sou diferente.
-Mas oh, quão desconsiderado de minha parte - disse Cecily. - Rogo-lhe que não pense... - com uma exibição de confusão, Cecily criou um pequeno furacão com
seu leque. -Não foi minha intenção lhe recordar...
-Por favor, senhorita Hockensmith, não se aflija. Asseguro-lhe que não me sinto ofendida no mais mínimo pelo tema de dançar -riu brandamente. -É um baile, depois
de tudo! E você é uma muito elegante bailarina.
Cecily Hockensmith tinha aperfeiçoado a delicada arte de ruborizar.
-Adula-me você, senhorita Munroe. Simplesmente é natural que uma mulher dance bem quando a provê de um companheiro excepcional.
Athena sabia a quem se referia a senhorita Hockensmith. Ela punha grande empenho em tomar devida nota de cada perturbação nas geralmente acalmadas águas que
conformavam o círculo social da elite de Denver. A elegante dama de New York, como solteira que era ainda, tinha prestado especial atenção ao Niall desde o começo.
Isso não era nada estranho. Niall Munroe era um homem arrumado de porte digno e meios econômicos consideráveis.
Mas Niall não tinha correspondido o interesse, embora havia cortesmente dançado com Cecily no baile de aniversário da senhora do William Byers. E não era um
bailarino particularmente bom. Os negócios lhe tinham impedido de dominar semelhante sutilezas.
Athena suspirou para seus adentros. O que ia fazer com o Niall? Poderia a senhorita Hockensmith ser a mulher idônea para ele?
O mero pensamento resultava incômodo. Mas, por quê? Havia muito que admirar na senhorita Hockensmith, e seu pai poderia converter-se no novo sócio de negócios
de Niall.
A ia ver muito agora que seu pai e ela se instalaram em Denver. Possivelmente nos converteremos em grandes amigas... quão maravilhoso seria se eu pudesse ajudar
ao Niall e à senhorita Hockensmith a encontrar a felicidade...
Animada com a idéia, Athena fez a um lado seu débil desassossego e apertou a mão do Cecily.
-Duvido que se você encontrasse escassez de pares no Baile de Inverno.
-Obrigado, senhorita Munroe. Mas, por favor, considere minha oferta de ajuda. Não quisesse que se esgotasse. Seu irmão mencionou que você trabalha muito duro.
Niall novamente.
-Não tem você um irmão, senhorita Hockensmith? Já sabe como são. Eu acredito que eles devem pensar secretamente que nenhuma irmã amadurecida jamais e se converte
em uma mulher.
-E uma mulher como você não quereria permanecer independente. Admiro sua coragem - Cecily fechou seu leque. -Não obstante, me peça ajuda quando queira, senhorita
Munroe.
-Athena, por favor. Somos um círculo tão pequeno aqui em Denver...
-E as formalidades é melhor as reservar para aqueles fora dele -Athena teve o breve e pouco caridoso pensamento de que Cecily devia ter praticado seu perfeito
sorriso ante um espelho. -Estou segura de que nos converteremos em amigas íntimas, querida Athena.
-Então aguardo com anseio vê-la em nossa próxima reunião.
Com um gracioso giro, Cecily flutuou para a porta. Athena admirava a forma em que se movia, de um modo tal que suas ajustadas saias mantinham uma coluna quase
imperturbada pelo movimento de suas pernas.
Como se não necessitasse pernas absolutamente.
Athena manobrou sua cadeira de rodas até a janela e abriu as cortinas. Todas as carruagens partiram, incluído a de Cecily. Nenhuma das damas consideraria ir
caminhando a casa, embora a maioria vivia a umas poucas quadras do bairro da moda que se estendia ao longo da Rua Quatorze.
Escolheriam elas caminhar esta noite se existisse a possibilidade de que alguma vez voltassem a andar de novo?
Estou mórbida esta tarde - se repreendeu. -Niall estará logo em casa.
E Niall merecia paz e tranquilidade depois de um comprido dia ocupando-se de seus negócios. Athena manobrou habilmente sua cadeira de rodas até a cozinha para
consultar ao Monsieur Savard a respeito do jantar dessa noite. Reorganizou as rosas expostas em uma mesinha baixa de madeira de palisandro situada no saguão de mármore
e painéis de carvalho da entrada, e falou com a governanta em relação à nova donzela e a contratação de uma lavadeira para substituir à mulher que regressou a sua
terra natal a França.
Quando tudo terminou conforme sua vontade, ocupou seu lugar usual ante sua secrétaire na sala de estar privada e começou a rever as várias cartas, convites
e respostas a suas campanhas de caridade. Regozijava-se com cada pequena vitória e recusava considerar as falhas menores. No que aos órfãos concernia... ou às mães
solteiras, ou aos pobres homens das fundições, procurando trabalho... podia ser notavelmente persistente. Tinha algo pelo que lutar.
Algo que estava além dela mesma e seus corriqueiros problemas.

A porta principal se abriu fora no saguão, e Athena ouviu o estrondo da voz de seu irmão, seguido pelo cultivado tenor de Brinkley. Niall entrou com passos
largos na sala, uma típica expressão de preocupação em sua aposta cara. Fez uma pausa apenas depois da porta e reparou em Athena com vaga surpresa, como se não a
encontrasse esperando precisamente no mesmo lugar cada tarde.
-Boa tarde, Niall - disse ela. -Que tal foi o dia?
-Muito bem, obrigada. E o seu?
Esse era o reconfortante ritual que sempre seguiam, embora estranha vez tinha algum deles um pouco realmente notório que reportar. Niall levava o negócio de
seu pai e dirigia a herança da Athena, provendo-a com uma muito generosa atribuição; ela, em troca, ocupava-se da casa e atuava como anfitriã quando os associados
de negócios dele se reuniam para jantar ou em uma reunião social.
Mas havia vezes, como essa tarde, quando Athena sentia um traiçoeiro desejo por algo mais. Se tão somente Niall se interessasse verdadeiramente em suas atividades...
-Foi bastante bem - disse ela. -A Sociedade Assistencial se reuniu para discutir o Baile de Inverno...
-Ainda faltam meses para isso - disse ele, servindo-se seu acostumado uísque do aparador.
-Sim, mas os êxitos dos Munroe sempre provieram que um excelente planejamento. Eu sozinho sigo seu exemplo e o de papai - sorriu para apagar o desafio de suas
palavras. -Considero meu trabalho merecedor de semelhante cuidado.
Niall apurou sua bebida.
-Eu não estou tão seguro de que os beneficiários de sua caridade sejam merecedores de seus esforços... ou do dinheiro que gasta neles - ele se serviu de outra
bebida e franziu o cenho ao inofensivo copo. -É muito generosa.
Athena conteve um sorriso. Niall sempre tinha sido direto, e esta era apenas um argumento novo.
-Concordamos faz muito que você ganharia o dinheiro e eu me encarregaria de que uma porção do mesmo fosse destinado a ajudar aos menos afortunados de acordo
a meu próprio julgamento.
-Um julgamento apoiado na emoção e o sentimentalismo.
Athena dirigiu sua cadeira de rodas mais perto a ele e lhe tocou a manga.
-O que acontece, Niall? Te preocupa algo?
Ele depositou a segunda bebida sobre o aparador intacta e a olhou diretamente.
-Uma dessas "mulheres perdidas" que tentou reformar foi agarrada tratando de roubar a carteira a um financista muito influente de Chicago.
-Uma de minhas garotas? Como sabe?
-Quando a detiveram, deixou escapar seu nome. Parecia pensar que você intercederia por ela - recolheu o copo e apurou seu conteúdo rapidamente. -Não foi uma
circunstância agradável ouvir o nome de minha irmã em lábios de uma prostituta.
Athena se olhou os dedos entrelaçados.
-Você mesmo foi testemunha do fato?
Niall caminhou para seu escritório e revolveu a pilha de papéis e faturas.
-Eu estava consultando com o cavalheiro em questão respeito a um negócio de certa importância quando lhe abordou na rua. É uma sorte que a apanhasse. Ela está
agora no cárcere, aonde pertence.
Niall sempre tinha sido o realista e ambicioso da família, Athena o coração e a consciência. Estava mais molesto com sua irmã que com a pobre jovem que tinha
sido conduzida a cometer semelhante ato.
Molesto porque o trabalho da Athena havia inadvertidamente interrompido seu negócio. Porque ela tinha falhado.
-É inteiramente culpa minha - disse ela docilmente. -Pagarei a fiança da garota e...
-A proíbo. Algumas pessoas não podem ser ajudadas, Athena. Só se reforçam ainda mais em sua preguiça e sua dependência.
Ela elevou a cabeça para encontrar o olhar de Niall. O pétreo cinza de seus olhos se suavizou, e ela viu a piedade e a culpabilidade em seu rosto. Não por aqueles
dos que tinha falado, mas sim por ela.
-Alguma vez tentou ajudar -perguntou ela- simplesmente porque sim? Sem esperança de benefício ou ganho?
-E você? -a boca de seu irmão era uma linha rígida, quase cruel. -Não gerou dividendos seu trabalho em forma de admiração e respeito de suas damas? Não te ganhou
um lugar próprio onde ninguém possa sentir pena de você?
Athena segurou com força os aros de ferro das rodas de sua cadeira e puxou-os para trás como se ele a tivesse golpeado.
-Lamento te haver decepcionado.
Ele agitou a cabeça e fez um gesto cortante o bordo da mão.
-Não. Não. Mas é completamente desnecessário que esgote a você mesma se convertendo em indispensável para cada causa filantrópica em Denver. Os Munroe já têm
o respeito e a admiração da cidade... da nação. Nunca tivemos que lutar por isso. Ninguém nos ultrapassa em influência ou capital. Enquanto seja minha irmã, sua
posição está assegurada.
Inclusive embora não possa dançar, ou fazer um grande tour pela Europa, ou sequer desfrutar de um almoço social no Windsor...
-Naturalmente tem razão, Niall - disse ela, recuperando a compostura - Aprecio tudo o que tem feito por mim.
-Athena... - ele fez uma careta. -Sou uma péssima companhia esta noite. Possivelmente deveria jantar sozinha.
-Não, por favor. Compreendo as pressões que você encara. Não falemos mais disto. M. Savard preparou sua comida favorita, e não quererá lhe decepcionar.
Ele suspirou.
-Muito bem.
Era impossível para ela tomar o seu braço, assim que ele se situou atrás de sua cadeira e a empurrou até a sala de jantar. Ali, colocou-a em um extremo da mesa
e logo ocupou seu assento no extremo oposto. Cada serviço estava elegantemente disposto, com um vaso de flores frescas no centro da vasta mesa de carvalho, o suficientemente
baixo para que não obstruísse a visão da impressionante longitude desta.
Brinkley apareceu para dirigir à criada e ao lacaio no serviço do primeiro prato. Durante um tempo, ambos comeram em silêncio enquanto Athena procurava algum
tema inócuo a fim de voltar a aproximar-se do Niall.
-Vi a senhorita Hockensmith hoje - começou. -Gosta muito de você, acredito. Estará esperando seus cuidados no Baile de Inverno.
-Ah sim?
Ele não levantou os olhos de seu prato.
Quão pouco sabia ele realmente de mulheres, para ter tão vasta experiência do mundo.
Quão só deve estar unicamente com esses secos homens de negócios como companheiros, e quão alheio a sua própria solidão.
Ter somente a sua irmã não era suficiente.
Até recentemente, ela não tinha considerado os efeitos daninhos dessa solidão. À amadurecida idade de vinte e seis, tinha visto cada vez mais e mais de suas
contemporâneas casarem-se e dirigir lares próprios. Recordava um tempo no que inclusive ela tinha albergado semelhantes aspirações.
Aspirações egoístas, sem pensar em outros. Era pelo Niall por quem ela devia preocupar-se agora. Ela conhecia sua verdadeira razão para evitar os laços do matrimônio.
Era ela, Athena Munroe, atada a ele com as implacáveis cadeias da culpabilidade. Tudo o que ele pudesse ter sonhado quando era um menino, todo o velho entusiasmo
pela vida, tinha sido abandonado em prol de seu cuidado, de sua felicidade.
Mas, como podia ela estar contente quando sabia que ele não o estava, inclusive se em última instância a felicidade dele implicava que ela devia estar sozinha?
Não era esse um sacrifício pequeno depois de todos os que ele tinha feito?
Enquanto ela tivesse seu trabalho...
-A senhorita Hockensmith é bastante encantadora, sabe? -disse. -E se mostra muito disposta a ajudar no trabalho da Sociedade, e com os órfãos. Parece-me recordar
que tinha estado considerando a seu pai para alguma classe de associação...
Ele espionou por cima das flores em direção a ela.
-Deseja se converter em minha assessora de negócios, Athena, ou está simplesmente se fazendo de casamenteira?
Seu intento de brincadeira a animou.
-Não te faria mal ter ocasionais cortesias com minhas amigas.
Ele murmurou algo em voz muito baixa para que ela o ouvisse, o que não era proeza fácil de realizar. Suas orelhas ainda funcionavam perfeitamente bem, e melhor
que as de qualquer que ela tivesse conhecido em sua vida.
-Desculpa?
-Nada - ele assentiu em direção ao Brinkley, que havia trazido a sobremesa. Logo, esfaqueou o pudim como se este fosse uma dura fatia de carne de vaca. Finalmente,
deixou sua colher sobre a mesa e olhou a Athena. A nuca desta formigou como no começo de uma tormenta nesta pradaria é o quinto verão que não foste ao rancho -disse.
-Isso eu não gosto, Athena. O calor e o pó são nocivos para sua saúde. Necessita ar fresco e quietude, e ao permanecer em Denver certamente não os está conseguindo.
Não permitirei que caia doente por causa de sua própria teimosia.
Athena provou seu pudim, logo saboreando-o.
-Gozo de boa saúde, Niall. Não há perigo...
-Você me acha pouco atento, mas vi as mudanças em você. Convenceu a si mesma de que pode resolver todos os problemas de Denver sem ajuda, nem descanso.
-Descanso? Me olhe -ela abrangeu com um gesto de sua mão a longitude de seu corpo. -Eu descanso muitíssimo. São as pessoas às que intento ajudar quem não tem
descanso, lutando como o fazem cada dia simplesmente para sobreviver.
-Nosso próprio pai lutou denodadamente quando chegou a Denver, e ninguém lhe ofereceu caridade. A teria rechaçado.
-Não todas as pessoas deste mundo são iguais, Niall. Você sabe isso tão bem como qualquer um.
Contemplaram-se o um ao outro. Havia dois assuntos que quase nunca tiravam colação: o acidente da Athena e a natureza que ela tinha herdado de sua mãe. Athena
evitava deliberadamente pensar em uma ou outra coisa; o primeiro não podia ser desfeito, e o segundo ela o tinha deixado atrás para sempre.
Não tinha conhecido a sua mãe. Possivelmente esse fosse o motivo de que estivesse tão sensibilizada para os órfãos, que tinham perdido muito mais.
-Mantive a promessa que te fiz - disse Athena, as palavras deslizando-se através do nó em sua garganta. -Você prometeu não interferir na ocupação que escolhi.
Ele franziu o cenho, levantando-se de sua cadeira.
-Eu não prometi te deixar fazer o que te agradasse sem importar o custo. Sua insistência em visitar na cidade as barracas de campanha e o distrito dos armazéns
é temerária em extremo.
Sua pele se tornou fria. Como se tinha informado disso? Tinha sido tão cuidadosa ao ir de incógnito, com capa e capuz e acompanhado por um fornido antigo soldado
a quem tinha contratado depois de que o administrador de seu orfanato a tivesse urgido a conseguir alguma amparo. Desde não ter sido por sua imobilidade, ela não
teria temido a homem algum, inclusive na pior parte da cidade.
Não pense no que poderia ter sido. Não o faça.
-Tem empregados pagos aos que pode enviar a realizar semelhantes tarefas - continuou Niall. -Ninguém, e menos que ninguém as membros de sua Sociedade, esperam
que te suje as mãos ou ponha em perigo sua pessoa. Não é uma comum dependente, Athena. Sua elegante senhorita Hockensmith não aprovaria semelhante impropriedade.
Athena sabia em seu coração que ele tinha razão, mas tinha escolhido aceitar o risco, sabendo que as outras damas não esperariam que uma inválida fosse capaz
de semelhantes aventuras.
Essas eram as únicas que lhe estavam permitidas agora. Entre os órfãos, os bêbados ou as pobres pessoas vivendo nas puídas barracas de campanha com o passar
do South Platte, ela não podia possivelmente ser objeto de piedade. Era ela quem tinha as vantagens, ela quem dava. Ninguém lhe recordava, sequer inadvertidamente,
o que tinha perdido.
E eles a necessitavam.
-São pessoas, Niall - disse com ardor. -Não é suficiente que alguém lhes entregue a comida e garantir que tenham água fresca, roupas e carvão suficiente para
suportar o inverno. Eles devem ser incentivados, para mostrar-lhes que há uma vida melhor pela que lutar. Sem exemplos reais, como poderiam aprender?
-Deixa que alguém mais lhes ensine. Alguém que seja... um estorvo.
Ela se separou da mesa e girou sua cadeira ao redor da mesma.
-Não sou eu um estorvo para você, Niall? Sua preocupação por mim está te distraindo de seu importante trabalho, não seria muito mais singelo se eu ficasse tranquilamente
sentada e tecesse meias três - quartos até que encontrasse alguma utilidade para mim?
Seu arrebatamento flutuou no ar como uma bruma asfixiante. Athena se levou uma mão à garganta, surpreendida e desgostada. Tinha saído dela essa auto compassiva
e egoísta crítica, ou tinha tomado alguma harpia sua aparência e sua voz? O que a havia possuído?
Tem alguma utilidade absolutamente, Athena Munroe?
Niall percorreu a longitude da mesa e se deteve ante ela, séria e estranhamente calado.
-Sim, Athena. Isso é o que eu preferiria... ver-te a salvo e contente. Mas sei que não é possível.
-Mas eu estou... estou contente! Não vê que...?
-Sinto muito. Não me deixou escolha. Ou concorda em terminar com essas visitas clandestinas aos subúrbios, e reduz seus compromissos a um número razoável, ou
tomarei medidas para que seja levada a um lugar onde possa reconsiderar suas prioridades.
Um gelado terror a alagou.
-O Baile de Inverno... não pode esperar que abandone isso, ou aos órfãos. O dinheiro de papai o fez possível. Eu só estou fazendo o que ele desejava.
-É sua escolha, Athena. Eu poderia me ocupar de que fosse relevada de todos seus auto impostos deveres... e o farei, se acreditar que isso te salvará de você
mesma.
-Se tão somente pudesse pensar em algo mais que no dinheiro...
-O dinheiro que você tanto se alegra de ter?
As lágrimas lhe queimavam atrás de seus olhos.
-De onde tirou um coração tão duro, Niall? Não foi de papai. Sua mãe...
-Deixa a nossa mãe fora disto.
-Ela nunca foi minha mãe. Não quis sê-lo.
A clara pele do Niall se avermelhou.
-Ela te reconheceu como dela, quando poderia haver...
-Sei o que poderia ter feito - disse Athena brandamente. - Sei -manobrou a cadeira de rodas e começou a fazê-la rodar para a porta. -Se me desculpar, Niall,
estou cansada. Subirei ao meu quarto.
-Athena...
-Boa noite.
Ouviu o murro que Niall deu à mesa enquanto alcançava o saguão. Brinkley fez ato de aparição, sempre afável e eficiente, para ajudá-la a chegar a seu quarto.
Ele a conduziu até o elevador hidráulico Otis de segurança localizado ao fundo do saguão e fechou a cancela.
Depois de dois anos, Athena se tinha acostumado ao curioso movimento do artefato, o qual Niall tinha insistido em que era a solução perfeita para o problema
das escadas. E agora, naturalmente, o grande hotel Windsor tinha elevador próprio. A previsão do Niall igualava com a de seu pai em tudo.
Como o fazia sua devoção por ela. Uma devoção que lhe mantinha prisioneiro tão indubitavelmente como sua cadeira o fazia com a Athena.
No segundo piso, Brinkley saiu a seu encontro para abrir a cancela e logo se colocou a seu lado. Ele tinha estado muito tempo com a família para perguntar se
ela desejava que a levassem a seu quarto. Fran estaria esperando na pequena câmara adjacente à sua, e tudo o que Athena desejava fazer agora era retirar-se a dormir.
Como tinham podido ir tão mal as coisas? Como tinha conseguido ela iniciar uma disputa com seu irmão, quando eles estranha vez levantavam a voz um ao outro?
Ela nunca poderia vencer ao Niall em uma discussão, e não cometeria o engano de pôr em dúvida suas ameaças.
Fran a ajudou a despir-se e a meter-se na cama, e ela permaneceu estendida olhando ao teto durante um comprido momento. Queria que Niall fosse feliz, mas precisava
prosseguir com seu trabalho sem impedimentos. De algum modo, devia distrair a atenção do Niall sobre sua pessoa, e, ao mesmo tempo, provar que era realmente capaz
de cuidar de si mesmo.
Se fosse verdadeiramente independente...
Mas como? Niall ainda controlava sua herança, de acordo com os termos do testamento de papai. Ela não podia demandar sua parte a menos que contasse com a aquiescência
do Niall. E ele a via como o que era: uma inválida.
Tentou mover as pernas. Estas permaneceram como simples vultos sob as mantas, unicamente os dedos dos pés seguiam sendo capazes de movimento. Fazia já muito
que tinha renunciado a caminhar.
Devia haver alguma outra forma de convencer ao Niall de que era uma mulher sensível, amadurecida e forte em mente e espírito se não em corpo, alguma forma de
lhe aliviar de sua culpabilidade de uma vez por todas.
Deixou-se levar a um mundo crepuscular entre sonho e despertar, e lhe pareceu que estava correndo... correndo a quatro patas em vez de sobre duas. Quatro completas,
saudáveis e poderosas patas. E não estava sozinha.
Em sonhos, podia fingir.

CAPÍTULO 2

Sul de Colorado, Junho de 1880

Vozes.
Elas o atraíram para a piscante luz e o aroma de ocupação humana, embora tinha deixado para trás esse mundo em um tempo mais à frente da lembrança. Não teria
sabido dizer, inclusive embora tivesse sido capaz de falar, por que fugiu dos caçadores para cair nos braços de outros homens em lugar de dirigir-se para a profundeza
do bosque.
Uma loucura. Ainda assim, a dor dominava suas ações, isso e o conhecimento de que estava quase morto. As vozes se achavam muito próximas.
A luz de uma fogueira lhe queimou os olhos. Arrojou-se dentro do círculo conformado pelos muitos habitáculos humanos e se cambaleou enquanto se detinha. Os
latidos da matilha ressoaram da borda do bosque.
Vozes elevadas, gritos de alarme, outros similares aos uivos dos lobos. Preparou-se para mais dor, preparado para gastar suas últimas forças se vinham com cordas
para lhe atar.
Ninguém o fez. Altas figuras entraram e saíram de seu nublado campo de visão. O aroma de humano choveu sobre ele desde todas as direções. Suas pernas cederam
e caiu de lado. Cada inspiração trazia consigo uma ardente agonia. Pouco a pouco, a luz e o resto de seus sentidos se esfumaram. Logo veio a escuridão.
Paz.
Voltou a si lentamente, e as vozes ainda seguiam ali. Palavras humanas, pensamentos humanos, imagens humanas... alagaram sua mente como água suja.
Mas agora compreendia o que ouvia. E ele mesmo era humano.
-Jesus, Maria, e José! Viu isso?
-Impressionante - disse a segunda voz, mais profunda. -Espantoso.
Um murmúrio de acordo e incredulidade seguiu a isso.
-Dado que todos fomos testemunhas disso -disse uma terceira voz, marcada por um gentil arrastar de sílabas, devemos chegar à conclusão de que não foi uma ilusão.
-As ilusões não sangram - disse a primeira voz. Seja o que for, dispararam-lhe.
-Poderia ser perigoso - se ouviu dizer a uma quarta voz. -Não toque, Caitlin.
-Não pode ver que está muito mal ferido para ser um perigo para alguém?
Ele abriu os olhos e tentou enfocar o mundo que lhe rodeava. Seus sentidos estavam embotados, o ouvido e o olfato filtrando-se através de incômodos órgãos humanos.
O corpo em que estava agora recusava responder a suas ordens.
Sua memória retornou, e com ela a compreensão. Entre suas costelas inferiores se achava encaixada a bala do caçador, a mesma que lhe tinha alcançado enquanto
escapava dos cães dos humanos. Não teria sido uma ferida mortal se tivesse continuado como lobo.
Mas não o tinha feito. De algum modo, de algum jeito além de sua vontade, tinha mudado. O lobo tinha deslocado para os homens, e o homem em seu interior tinha
traído ao lobo. E agora jazia em um atoleiro de seu próprio sangue, com a luz do fogo dançando sobre sua pele nua, suspenso a meio caminho entre a vida e a morte.
Não podia distinguir as caras a seu redor, mas lhes cheirava claramente: roupa tecida, couro, suor e cavalos. Uma dúzia de homens e mulheres cujas vozes lhe
chegavam com maior prontidão agora, como uma chuva do verão.
-Parece estar recuperando a consciência.
-Sangrará até morrer se não lhe ajudarmos.
-Ajudá-lo? Não sabemos nada sobre ele.
-É possível que quem quer que lhe disparasse tivesse uma boa razão para isso.
-Possivelmente não pode falar absolutamente!
Ele se esforçou por recordar como mover sua boca e língua para formar palavras, como dizer o nome que tinha usado nessa vida passada.
Morgan. Morgan Holt, que não aceitava ajuda de ninguém. Nem dívida nem obrigação, nem tampouco caridade. Ainda assim, tinha ido ali. Achava-se completamente
em poder dessas pessoas.
Com um feroz ato de vontade, expulsou as distrações do pensamento e a memória. Convocou sua minguante fortaleza e chamou o lobo interior.
Nada. Nada exceto dor, e noite. O sangue assobiou atrás de suas orelhas. Seu coração vacilou, deteve-se e logo saltou lentamente à vida de novo.
Um de seus aspirantes a salvadores se aproximou, e ele tentou afastar-se. Pele calosa roçou a sua. Encontrava-se muito fraco para estremecer de asco. E, assim,
flutuou, imaterial, em um limbo onde somente as vozes eram sólidas.
-Vamos meninos - disse a primeira voz. -Me ajudem a lhe levar dentro de minha barraca.
-Nós quase não temos comida suficiente para nos alimentar, muito menos a um estranho.
-Um estranho? Tão somente lhe olhe! Ele é como nós!
-Caitlin e Harry estão certos. Não podemos deixar morrer, e acredito que ouço sons de uma perseguição.
-Sabe tão bem como qualquer um como são os habitantes da cidade, e como tratam a aqueles que são diferentes.
Uma cara, redonda, masculina e com costeletas, adquiriu forma sólida enquanto emergia da névoa.
-Pode me ouvir, jovem? Queremos te ajudar. Meu nome é Harry, Harry French. Encontra-te entre a trupe do Fantástico Circo Familiar do French. Não tema, está
a salvo aqui...
-Morrerá se continua falando, Harry.
Outra cara se aproximou: mais jovem, mais delicada, emoldurada por uma massa de cabelo vermelho.
-Não morrerá. Veio aqui por uma razão, sei. Para nos ajudar, enquanto nós ajudamos a ele.
-Um de seus "pressentimentos", Vagalume? -disse a voz que arrastava gentilmente as palavras.
-Algo lhe fez vir a nós. Necessitávamos um milagre. Possivelmente isto o seja.
-Se sobreviver e estiver disposto a nos ajudar.
-Eu estou de acordo com Caitlin -disse o velho. -Ele é a boa sorte que estivemos esperando, e devemos lhe salvar. Tor!
Fortes passos se aproximaram. Largas mãos agarraram ao Morgan, e este foi elevado em braços avultados de músculos e tensos como uma banda de aço. Um grande
vazio se abriu em torno dele enquanto perdia contato com a terra. Das profundidades de sua garganta emergiu um único e patético grunhido.
-Não se preocupe, Tor. Não remói, verdade, jovem? Não, claro. Caitlin, vêem comigo. O resto de vós melhor estão atentos a esses cães e a quem quer que esteja
com eles.
-Não conseguirão passar além de nós, Harry.
Essa voz foi a última coisa que ouviu durante um comprido espaço de tempo. Quando despertou de novo, achava-se tendido em um cama de armar sob numerosos cobertores,
rodeado pelos aromas de animais e humanos. Tentou classificar os aromas, conectando cada um com seu nome: lona, palha, corda, azeite, metal, mofo, comida do dia
anterior... os membros lhe pesavam; o peito doía com cada respiração.
Mas estava vivo.
Tênue luz solar penetrou através da lona estendida sobre sua cabeça. O pequeno espaço se achava lotado de caixas, algumas das quais serviam como plataforma
para outros objetos não identificados. A cama de armar era o único móvel na barraca, salvo por uma cadeira dobradiça e uma mesinha.
Fora das paredes de lona, Morgan podia ouvir o ruído de um acampamento ativo. Havia cães ladrando, cavalos relinchando e vozes de homens, todo o qual criava
um contínuo e monótono zumbido em seus ouvidos.
Eles lhe tinham levado ali. Tinham salvado sua vida. Uma enxurrada de maldições foi a ele em toda sua grosseira criatividade, mas sua garganta estava muito
seca para falar.
Esticou os músculos. Um por um, todos seus dedos obedeceram suas ordens. Não era um prisioneiro. Podia rasgar essas paredes de lona como se fossem papel, uma
vez recuperasse as forças. Sentiu sua ferida sarando, a carne unindo-se hora a hora.
Concentrou-se em mover as pernas. Uma parede de gris dor caiu por trás de seus olhos. Voltou a cair entre os cobertores, respirando asperamente através dos
dentes.
Uma quebra de onda de aroma humano soprou dentro da barraca, montada sobre o ar carregado de pó.
-Ah, está acordado! Muito bem, muito bem. Por um momento, parecia duvidoso que sobrevivesse... não, não, não deve tentar se mover ainda!
A voz era a primeira que tinha ouvido, a que pertencia ao velho com as costeletas. Harry French. Morgan piscou para desfazer-se da bruma em seus olhos. A corpulenta
silhueta resolveu em um robusto cavalheiro de cabelo cinza com um casaco negro com remendos, colete vermelho brilhante que se estirava sobre um proeminente ventre
e calças com quadros cinzas e negros. Um branco bigode curvado para cima era o maior atrativo de uma cara de outro modo pouco atrativa, enrugada pela idade e queimada
pelo sol.
A habilidade de rir tinha abandonado ao Morgan muito antes de que escolhesse o caminho do lobo. Mas algo nessa cômica cara e esse largo sorriso despertou uma
peculiar sensação em seu interior, e seu ventre se moveu em um doloroso puxão. Ele tossiu.
-Oh, céus, oh, céus - as mãos do Harry French riscaram um desenho de aflição. -Deve estar tão seco como um osso. Água... sim, isso é o que necessita, e possivelmente
um pouquinho de uísque por acaso. Acredito que ainda fica uma garrafa ou duas - deu a volta como se fosse sair e logo girou sobre si mesmo a metade de passagem.
- Estúpido, estúpido. Não fomos apropriadamente apresentados, embora possivelmente recorda meu nome?
Seu inocente entusiasmo recordou ao Morgan a um cachorrinho de lobo ainda verde.
-Harry... French - disse roucamente.
Harry aplaudiu.
-Compreendeu-o! Maravilhoso. Delicioso. Possivelmente recorda também onde está?
Circo. As palavras estavam vindo com mais facilidade agora, mas tomou ao Morgan um momento juntar as imagens. Tinha visto um circo uma vez, quando tinha quinze
anos e estava sem um pêni no bolso. As carroças e tendas tinham sido assentadas sobre um lote vazio nos subúrbios de uma próspera cidade mineira de Nevada. Ele se
tinha escondido na tenda principal e se ocultou atrás dos degraus para ver o espetáculo, até que um dos trabalhadores do circo lhe tinha pilhado e jogado a chutes
do lugar.
Esse menino não tinha seguido sendo um menino durante muito mais tempo.
-Quanto...? -limpou a garganta, recordando como mover os lábios e a língua. -Quanto tempo?
-Quanto tempo esteve entre nós? -Harry French mordiscou um dos extremos de seu bigode. -Seis dias, acredito. Sim, seis. Sua recuperação foi bastante notável.
Um pouquinho mais de descanso, isso é tudo o que precisa - sorriu satisfeito e se balançou sobre seus calcanhares- Somos seus amigos. Não há necessidade de que nos
conte nada que não deseje contar. Pode descansar tranquilo, não lhe delataremos... não, não. Nós compreendemos.
Seu segredo. Morgan se esticou e logo lentamente se relaxou de novo. Seus anônimos salvadores não podiam saber nada de seu passado, mas lhe tinham visto mudar
e não tinham tido o sentido comum de assustar-se.
-Verá, todos aqui somos um pouquinho estranhos - disse French, como se tivesse adivinhado os pensamentos do Morgan. -Oh, não somos no mais mínimo como essas
grandes companhias que vão em ferrovia, com essas pobres criaturas enjauladas e grandes artistas. Eu gosto de pensar que somos como uma família, uma família de pessoas
muito especiais. Aqueles que não têm outro lugar aonde ir... eles encontram seu caminho até mim, mais logo ou mais tarde, igual ao tem feito você - tirou um relógio
de bolso de seu colete, jogou um olhar à esfera e o voltou a guardar. -Céus, oh, céus. Tinha prometido falar com o Strauss sobre as reservas de comida. Strauss é
nosso cozinheiro chefe. Estamo-nos ficando sem provisões, e temo que minhas habilidades contábeis nunca foram... -se interrompeu com um suspiro de desculpa. -Deve
pensar que sou bastante confuso. Ultimamente não fomos tão prósperos como desejaríamos. Uma cadeia de desgraças... má sorte, em realidade. Esse é o por que acampamos
aqui em plena natureza e não podemos te oferecer uma decente cama de hotel. Preocupo-me tanto por meus meninos, por isso será deles... mas estou seguro de que nossa
sorte trocou. Sim, tem-no feito. Conhecerá outros logo - voltou a olhar seu relógio. -Me desculpa, querido moço? Enviarei a alguém com comida e bebida imediatamente.
Antes que Morgan pudesse forjar uma tardia resposta, French tinha saído da barraca. Suas palavras ressoaram nas sensitivas orelhas do Morgan durante muitos
minutos depois de que o outro homem tivesse saído.
Mas o que este havia dito despertou mais sentimentos que Morgan tinha abandonado como lobo: preocupação, consternação e medo. Não o sensível respeito pela inconstância
da natureza ou a arma do caçador, a não ser um temor muito mais vago.
"Ele não morrerá. Veio aqui por uma razão, sei. Para nos ajudar, enquanto nós ajudamos a ele... necessitamos um milagre... ele é a boa sorte que estivemos esperando..."
Premonições de um destino pior que a mera morte se apoderaram do Morgan com renovada urgência. Apoiou-se nos braços e se levantou novamente, aliviado de ver
que seu corpo funcionava apesar da dor. Poderia escapar. Não era muito tarde.
Só havia um modo de saber se estava o suficientemente curado. Fechou os olhos e insistiu na mudança.
No profundo de seu corpo, o núcleo de seu ser começou a trocar. Ele o sentiu, não como dor, mas sim como uma transição natural. Era como se cada átomo se tornasse
fluido e se reformasse a si mesmo qual argila nas mãos de um professor oleiro.
Mas a mudança não se completou. Tropeçou com a barreira de sua ferida e se deteve, forçando a seu corpo a tomar uma decisão apoiada em uma única lei: sobrevivência.
A sobrevivência significava preservar as forças em lugar das esgotar em prol da mudança. Morgan abriu os olhos e viu a si mesmo irreconhecível, nem lobo nem
humano. Um monstro.
O instinto tomou a decisão por ele. Morgan retornou a sua forma humana. Enjôo e náusea lhe mantiveram imóvel durante uns segundos, mas pressionou mais à frente
do esgotamento de seu corpo e conseguiu ficar em pé. Pura e simples determinação lhe impulsionaram para a fresta de tênue luz que marcava a entrada da barraca.
O pôr-do-sol outorgava ao acampamento uma certa suavidade que quase disfarçava a atmosfera desvencilhada e de adversidade. Barracas e coloridas carroças, marcadas
pelo duro uso e frequentes reparações, jaziam repartidas pelo bordo de um amplo vale cheio de matas de salvia e outros matagais. Uma manada de cavalos com as costas
arqueada estavam apinhados juntos em um curral improvisado.
Por toda parte havia uma certa frenética atividade, como se os membros do Circo Familiar do Harry French não se atrevessem a deixar de mover-se. A gente se
apressava daqui para lá, envolta em casacos e mantas muito remendados. Um homem fazia jogos malabares com numerosas bolas de um vermelho brilhante sem aparentemente
as tocar. Uma impossivelmente esbelta mulher se balançava sobre um arame quase muito fino para ser visível a olhos normais. Uns cães corriam dando pequenos latidos
e saltando através de uns aros.
O único lugar silencioso se achava centrado em um fogo junto a uma barraca aberta mobiliada com fileiras de desvencilhadas mesas e bancos de madeira. Havia
um homem gordo cozinhando uma seção lamentavelmente pequena de carne no espeto servido por uma turma de meninos descalços que vigiavam com a grave concentração da
fome.
Morgan reconhecia a pobreza quando a via. Tinha sofrido a fome muitas vezes em sua vida, e tinha viajado sem mais posse que a roupa sobre seu corpo. Sua grande
vantagem tinha sido o lobo, o qual lhe tinha permitido caçar e sobreviver sob condições que teriam matado a um homem comum.
Essa gente não era tão afortunada. Não se necessitava muita imaginação para ver que tinham sofrido a "má sorte" que Harry French tinha mencionado, embora Morgan
sabia pouco de circos e o que os fazia prosperar ou arruinar-se.
Ele compreendia que nenhum homem ajudava a outro sem esperar nada em troca. Os "meninos" de Harry French esperavam algo dele, algo que ele não podia lhes dar.
Poderia deixar para trás a culpabilidade, como tinha deixado para trás tantas outras muitas coisas. Se partia, agora, sem encarar a aqueles que lhe tinham salvado...
-Não irá partir tão logo?
Morgan baixou a vista para a familiar voz e se topou com um par de olhos azuis no rosto de um duendezinho, coroado por uma labareda de grosseiramente encaracolado
cabelo vermelho. Aí estava o segundo de seus salvadores... de seus captores... a pessoa que tinha anunciado alguma ainda não revelada utilidade para ele. Parecia
pouco mais que uma menina, com o peito plano e os quadris estreitos. As meias, a saia até o joelho e o ajustado sutiã que vestia somente enfatizavam sua figura de
menino.
Ela era a primeira mulher que tinha visto em uma década, e não sentiu nada. Nem seu coração nem seu corpo se comoveram. Compreendeu com um sobressalto que esta
garota recordava a sua irmã Cassidy, tão tenuemente recordava. Só que o cabelo de Cassidy tinha sido de cor negra, como o seu próprio.
A garota assobiou através de seus dentes.
-Sara rapidamente, não? -ela uniu as mãos atrás das costas e lhe rodeou, estalando a língua pelo baixo. -Sempre anda por aí pelado? Eu gostava mais como lobo.
-Então saia do caminho e não me verá mais.
Ela colocou as mãos no quadril.
-Bom, ao menos pode falar.
Morgan lhe mostrou os dentes. Muito tarde, lamentou-se sua mente. Muito tarde.
-Quem é você?
-Sou Caitlin... Caitlin Hughes. Você tem nome?
-Morgan. Holt.
-Bom, Holt, sabe onde está?
-O velho me disse isso.
-Esse velho é Harry, que concordou em te acolher, e não diga nada mau sobre ele ou terá que responder ante o resto de nós - ela o olhou com ferocidade. -Duvido
que a ele lhe tenha ocorrido que simplesmente te levantaria e te partiria sem dizer nada depois que salvamos sua vida.
O cabelo da nuca do Morgan ficou de pé.
-Eu não lhes pedi que me ajudassem.
-Veio a nós, não? -a garota destacou a si mesma eloquentemente. -Não temos muito para compartilhar, e nada absolutamente para os forasteiros, mas lhe aceitamos.
Quem mais teria feito isso? Deve-nos o suficiente para não sair correndo com o rabo entre as pernas.
Obrigação. Morgan contemplou o terreno circundante e a liberdade mais à frente, tão rapidamente escapando de entre as mãos.
-Você acha... que há uma razão para que eu viesse aqui - disse ele, aguçando sua voz em tom de mofa.
-Sei que há.
-Não há razão para que as coisas aconteçam.
-Realmente acha isso, não? -ela meneou a cabeça. -O que queira que seja, de onde quer que venha, eu acredito que há um pouco de honra em você, ou já teria partido.
Por isso vai ajudar-nos.
Ele encontrou seu olhar, e ela deu um passo atrás.
-Está jogando um jogo perigoso.
-Não me assusta. Vi muitas coisas.
Ela estava um pouco assustada, mas o ocultava bem. Ele sentiu o primeiro despertar de um reticente respeito, assim como sentia medo de ataduras que nada tinham
que ver com muros da prisão.
-Não tenho nada que lhes dar - disse com dureza.
-Sim que o tem. Tem algo muito valioso. Nós vivemos de mostrar às pessoas coisas que nunca viram antes. E você é algo que muito pouca gente viu.
-Querem que eu... me exiba?
A idéia era tão absurda que apagou tanto suas dúvidas como seu medo. Deu a volta para ir.
Sua mão lhe deteve. Seu primeiro impulso foi retirar-se da forma mais rápida possível, sem importar o dano que pudesse proporcionar a ela. Em vez disso, manteve-se
rígido e grunhiu.
-Não posso deixar que vá. Não até que me prometa conhecer às pessoas que te ajudou.
Morgan reconheceu a armadilha, e que deveria pagar um preço por escapar a ela. Deu à garota um seco assentimento. A linguagem de seu corpo lhe dizia que não
tinha estado segura de que ele concordasse e que sabia muito bem que não poderia lhe deter. A garota se agachou para entrar na barraca e ressurgiu com seu cobertor.
-Ponha isto em cima - disse, -e vêem comigo.
Ele agarrou o cobertor e o passou por cima dos ombros. Caitlin partiu através do acampamento em direção à barraca mais próxima. A gente enviava saudações no
crepúsculo, suas vozes cálidas com o sentimento da amizade. Morgan se encurvou sob seu cobertor e se obrigou a voltar-se surdo às joviais respostas de Caitlin. Eles
não eram seus amigos, nem tampouco o era ela.
Chegaram até uma barraca tão desvencilhada e remendada como as outras e Caitlin levantou a lapela.
-Entra - lhe disse ela.
Ele duvidou. Três distintivos e familiares aromas humanos impregnavam o ar. Isso era outra armadilha, outra forma de lhe reter.
-Não se preocupe - disse Caitlin. -Poderia partir para o Ulysses pela metade se quisesse, e Florizel é inofensivo. Quanto a Tamar... - encolheu os ombros.
Morgan tratou de agachar suas orelhas que permaneciam teimosamente fixas em sua posição e entrou na barraca.
Dois homens estavam sentados em um par de cadeiras dobradiças a cada lado de uma pequena mesa, concentrados em um jogo de cartas. Um deles era de estatura média,
mas sua pele era tão pálida como a lua, e seu cabelo da mesma fantasmal tonalidade.
O outro era da altura de um menino, suas pernas pendurando a boa distância do chão. Estava vestido impecavelmente em proporcionadas calças, colete e casaco,
tudo feito do que Morgan supunha tinham sido roupas caras. Suas botas brilhavam por causa de um recente lustrado. Seus traços eram arrumados, seu espesso cabelo
amarelo da classe que qualquer dandy invejaria. Mas a natureza tinha formado seu corpo em uma paródia do de um homem normal.
Atrás deles permanecia de pé uma mulher de assustadora sensualidade, exuberantes curvas e uma pele que reluzia como se tivesse centenas de diminutas gemas incrustadas.
Seu espesso cabelo negro lhe chegava quase até a cintura. Um par de serpentes se enroscavam em torno de seus ombros e antebraços, com as línguas aparecendo.
A mulher serpente contemplou ao Morgan com escuros e brilhantes olhos. Na mesa, o albino arrojou sua mão de cartas com um suspiro de desgosto.
-Nem sequer trate de negá-lo, Wakefield. Deixou-me ganhar outra vez.
O homenzinho arqueou as sobrancelhas.
-Não faz falta que jogue se o encontra desagradável - disse, com um suave acento sulino. -Me desculpo se te ofendi.
O albino bufou e olhou para o Morgan. Wakefield seguiu seu olhar.
-Ah - disse. -Já vejo que nosso paciente se recuperou.
O homenzinho desceu da cadeira. Caitlin foi até ele, sua miúda figura elevando-se sobre ele.
-Ulysses, este é Morgan Holt. Morgan Holt, este é Ulysses Marcus Aurelius Wakefield.
O miúdo executou uma surpreendentemente e graciosa reverência.
-A seu serviço, senhor.
Caitlin meneou a cabeça.
-Está desperdiçando sua cortesia sulina com este, Professor.
-Ah, sim? E você, naturalmente, não lhe provocou de modo algum, Vagalume.
Caitlin bufou, logo olhou à mulher moréia.
-Esta é Tamar, a encantadora de serpentes. E Florizel - adicionou, indicando ao homem pálido com um assentimento. -É nosso chefe Joey. Isso é um palhaço no
jargão da gente de cidade.
Florizel estudou ao Morgan com lúgubre receio.
-Este é seu homem-lobo? -disse. -Esta é nossa última esperança, nosso salvador?
-Florizel, fala muito - disse Caitlin.
-Não acredito que este seja o momento para rixas familiares - disse Ulysses. Elevou a vista para o Morgan com a mesma falta de temor que Caitlin, mas a sua
provinha de um lugar mais profundo, mais calado. Estava tão separado da paixão como Morgan procurava estar. -Foi desafortunado que não fôssemos capazes de lhe consultar
seus desejos, senhor Holt -disse, -mas você estava inconsciente naquele momento. Caitlin é propensa a fortes sentimentos... premonições, se você preferir... que
a movem a temerárias ações. Frequentemente não aplica a lógica quando mais útil seria fazê-lo. Ela vê seu particular talento como uma possível solução a nosso dilema...
como você terá podido observar.
-Ela quer que eu trabalhe para vocês - disse Morgan. -Que seja um de seus... fenômenos.
-Que seja um de nós - corrigiu Ulysses. -Você estava sozinho e a beira da morte quando chegou. Tem algum outro lugar aonde ir?
-Prefiro estar sozinho - inclusive enquanto o dizia, Morgan não compreendia por que o tinha admitido a um desconhecido. Levantou o lábio. -Estou sozinho.
-É um homem pouco comum aquele que realmente prefere a solidão - disse Ulysses. -Quanto às esperanças de Caitlin... muitos dos membros da trupe não têm mais
lar que este. Esta é sua família. Harry acolheu ao primeiro marginalizado faz dez anos, e nunca rechaçou a alguém necessitado. Mas nossa trupe enfrentou uma desgraça
atrás de outra durante os recentes meses: o roubo de nosso capital, a enfermidade de nossos cavalos e graves contratempos climáticos. Temos recursos insuficientes
para nos alimentar e nada armazenado para os meses de inverno. Encontramo-nos em uma precária situação que poderia requerer que nos dissolvamos se queremos sobreviver.
Você, com seu dom tão único, parece ter chegado no momento mais propício.
Morgan pensou em sua manada adotiva, todos seus membros mortos, e em como tinha sido formar parte de um tudo maior. Ainda assim, sempre tinha estado separado,
inclusive então. Sempre.
-Eu não posso lhes salvar - disse. -Me deixe partir.
Ulysses estudou ao Morgan em silencio durante um comprido momento.
-É você o que se denomina um homem duro, Morgan Holt, um que viveu separado da civilização durante algum tempo. Está acostumado a cuidar de si mesmo. É excepcionalmente
habilidoso no âmbito da sobrevivência. Não lhe importam os assuntos emocionais, e esse é o motivo de que se ressente por qualquer dívida que lhe atribuam. Ainda
assim, sofre o puxão da obrigação. Por quê?
Morgan se sentiu como se o estivessem debulhando pedaço a pedaço, como as peças internas de um relógio.
-É preparado, homenzinho - disse brandamente. -Mas não sabe tudo.
-Acredito que é você um homem de honra, senhor Holt, embora o mundo pode que não reconheça essa qualidade - sua larga testa se enrugou. - Enfrentou alguma grande
prova que pôs a prova sua fé na humanidade e lhe conduziu a viver em plena natureza. Mas agora se encontra entre quem poderia começar a compreender.
Palavras. Acertadas palavras, perspicazes palavras, que se entrelaçaram em uma tapeçaria feita com um único propósito. O nó se estava apertando centímetro a
centímetro. Morgan retrocedeu, preparado para atirar a manta e pôr-se a correr. Caitlin alargou a mão como se para lhe deter novamente, e, por uma vez, pareceu tão
vulnerável como qualquer outra garota de sua idade.
Morgan retrocedeu outro passo e golpeou uma cálida e firme superfície. Umas mãos lhe agarraram para lhe estabilizar. Virou-se para encarar ao Harry French,
quem sustentava uma garrafa de uísque em uma larga e gretada mão. O velho piscou com ar surpreso.
-Não deveria estar de pé - disse. Seu olhar se desviou do Morgan aos outros. -Caitlin, por que lhe deixou levantar-se? Está pálido, meu filho, muito pálido.
-O senhor Holt vai deixar-nos, Harry - disse Caitlin.
O rosto de Harry mudou, e foi como se o sol se ocultou depois de uma nuvem.
-Oh, já vejo. Já vejo - a decepção na cara do velho atravessou o adormecido coração de Morgan com mais facilidade que nenhum das recriminações de Caitlin ou
o recital de desastres de Ulysses. Por um momento, viu a cara de seu pai e a morte de seus sonhos. O fim de toda esperança. -Bom, bom - disse Harry, tentando sorrir,
- devemos ao menos compartilhar uma bebida antes de sua partida. Consegui, como vê, encontrar uma garrafa.
-A única que fica - disse Caitlin. -Não a desperdice, Harry.
-Não lhe ponhamos preço à bondade, Caitlin - depositou a garrafa sobre a mesinha e extraiu um par de copos de seu casaco. -Vamos beber por sua recuperação,
senhor Holt... e para que continue com boa saúde -verteu a bebida e ofereceu ao Morgan o primeiro copo.
Morgan baixou a vista para o mesmo. Embora tivesse sido capaz de suportar a beberagem, não poderia havê-lo tragado devido ao nó em sua garganta.
-Eu não bebo.
-Ah. Muito admirável - Harry elevou seu próprio copo, olhou-o pensativamente, e o voltou a deixar sobre a mesa. -Não há escape a nossos problemas na garrafa,
não, certamente.
Morgan voltou a cara. Harry lhe deu um tapinha no ombro.
-Não se preocupe, moço. Pedimos muito de um estranho. Mas não deve ir até manhã, depois de que ter feito uma boa refeição...
Morgan escapou de seu agarre e saiu a passos largos da barraca. Caminhou cegamente através do terreno, tremendo apesar de que não sentia o frio da tarde. Deteve-se
na beira do acampamento, deixou cair a manta e insistiu na mudança. Seu corpo protestou, mas obedeceu. Morgan pôs-se a correr para as colinas.
A floresta baixa de pinheiros, zimbro e carvalho se fechou em torno dele, e as vozes das pessoas do circo se transformaram nos distantes gritos dos pássaros.
Uma espessa pelagem ondeou e flutuou sobre seu corpo. A caça menor se apartava rapidamente de seu caminho. Suas garras grandes devoravam os quilômetros. O céu iluminava
seu caminho com milhares de estrelas. O ar limpo lhe cantava. As vozes humanas, os pensamentos humanos, eram deixados na esteira de seu avanço. Longe, longe para
o norte, os lobos chamavam uma velha vida de esquecimento.
Tinha ultrapassado a primeira cadeia de colinas povoadas de pinheiros e entrado no vale anexo antes de que uma sensação física como o puxão de uma soga lhe
fizesse deter-se abruptamente. Encolerizou-se e lutou contra ela, mas a soga atirou dele em direção ao sul, de volta através do passo das montanhas relutante passo
a relutante passo.
Nunca tinha aceitado caridade, nem se tinha convertido em um ser dependente. Ele era um tudo, mas só porque assim lhe tinham feito. Seu corpo era livre, mas
seu coração não. Não enquanto a dívida permanecesse sem ser paga.
Obrigação não era pertencer. Não significava amizade, nem amor, nem nenhuma das palavras carentes de valor que os homens usavam tão livremente. Não lhe ataria
para sempre.
Faria seu pacto, cumpriria sua condenação, e logo partiria sem remorsos.
O entardecer estava trazendo sombras ao vale quando alcançou os bosques que se elevavam sobre o acampamento. Sentiu imediatamente que algo estava mau, e o desconhecido
aroma de gente estranha. Débeis gritos provinham do agrupamento de carroças e tendas. Morgan se lançou a uma veloz corrida colina abaixo.
O punhado de homens que estavam causando problemas poderiam ter sido bagunceiros da cidade mais próxima, mineiros que tinham perdido seus direitos de propriedade
ou inclusive desesperados para o outro lado da fronteira com Novo México. Essas pessoas, como os lobos, atacariam onde vissem debilidade, mas encontravam alegria
em atormentar.
Um tipo atarracado cambaleou sob o insignificante peso de Caitlin enquanto esta dava murros a sua cabeça e ombros; Harry estava retorcendo-as mãos e gritando
alertas do lado de fora, e o descomunal integrante da trupe: Tor, tinha a dois dos habitantes de cidade agarrados pela gola de suas camisas. O quarto invasor tinha
ao Ulysses Wakefield suspenso pelos braços.
-Senhor - disse Ulysses com impecável dignidade. -Está você confundido se acreditar que temos algo que valha a pena roubar. Eu não albergo nenhum desejo de
violência.
-Violência! -espetou o rufião. -Vá, pequeno...
Morgan aterrissou entre eles e mordeu ao atormentador do Ulysses no tornozelo. Seus dentes penetraram lã e carne. O homem gritou e deixou cair ao miúdo. Ulysses
rodou uns metros e ficou em pé de um salto, sacudindo-a roupa. Seus olhos encontraram os do Morgan e ele assentiu, lentamente e sem sorrir.
Morgan girou sobre seus quartos traseiros e foi pelo oponente do Caitlin.
-Lobo! -gritou o primeiro homem. -É um lobo!
Como o covarde que era, saiu ato seguido correndo tão rápido como sua claudicação o permitia. Caitlin saltou das costas de seu adversário, e este seguiu a esteira
de seu companheiro. Os dois cativos do Tor se levantaram do chão e seguiram o exemplo dos outros. Morgan lhes deixou partir.
-Isso deveria lhes ensinar - disse Caitlin, sacudindo o pó das mãos. Olhou ao Morgan. -Já era hora de que aparecesse.
De todas as partes do acampamento, os outros membros da trupe apareceram e se agruparam juntos contra a noite. Os meninos saíram correndo das tendas, dando
alaridos de excitação enquanto seus pais lhes repreendiam. Morgan permaneceu de pé no centro do amplo círculo, sentindo-se tão estranho como sempre tinha sido, e
se transformou.
Houve uns poucos ofegos de assombro, murmúrios, e uma exclamação. Mas ninguém fugiu. Harry, Caitlin e Ulysses se aproximaram, com Tamar lhes pisando os calcanhares.
A luz da lua convertia em prata a pele da encantadora de serpentes, sobrenatural em sua beleza, com suas criaturas enroscando-se e agitando-se em torno de seus ombros.
-Assim é verdade - disse ela, olhando a Caitlin. -É o que assegurava que era.
-E pode nos salvar, Tamar. É um dos nossos.
-Ele é um dos nossos - repetiu Ulysses gravemente.
-Bem-vindo - disse Harry, dando palmadas ao Morgan em seu ombro nu. -Bem-vindo e obrigado, meu filho. Seu retorno foi muito oportuno, certamente - esfregou
as mãos e sorriu brilhantemente a todos. -Queridos meus, acredito que é melhor que partamos imediatamente. Se um banda de rufiões nos tem descoberto, outros poderiam
fazê-lo também. Temos muito que preparar agora que nosso novo amigo se uniu a nós, novas cidades que conquistar - seus olhos se iluminaram como os de um menino.
-O Homem-Lobo - disse. -Temos muito que fazer!
Tamar se deslizou mais perto do Morgan. Os remendos de pele escamosa de seus braços nus piscavam os olhos e reluziam.
-Compartilhará minha carroça esta noite, Homem-Lobo?
Caitlin bufou. As serpentes retorcendo-se sobre os ombros de Tamar se elevaram.
Ulysses se meteu entre elas.
-O senhor Holt pode, acredito eu, decidir por si mesmo.
-Caminharei - disse Morgan. Logo encontrou o olhar do Harry. -Tenho uma dívida com você e a nota promissória.
-Sei que o fará, estimado moço. Sua generosidade...
-Eu não sou nem generoso nem honorável. Não quero seu agradecimento. Não quero nada de vocês.
-Algum dia -disse Caitlin - necessitará a alguém, Morgan Holt. Espero estar aí quando isso aconteça.
A garota se afastou em direção às tendas, e outros a seguiram. Morgan permaneceu onde lhe tinham deixado, escutando os estalos da lona, o chutar e bufar dos
cavalos, e as suaves chamadas dos integrantes da trupe e os trabalhadores enquanto levantavam o acampamento. Obrigou-se a si mesmo a cegar seus olhos às estrelas
que tinham sido seu único teto durante tantos anos, a fazer ouvidos surdos às chamadas da natureza e ao profundo terror em seu coração.
Algum dia necessitará a alguém.
Nunca. Nunca de novo.











































CAPÍTULO 3

Colorado Springs, Outubro 1880

-É real?
-Não pode sê-lo. A gente de circo conhece quanta truque haja. Todos nascem ladrões e estelionatários.
Os dois granjeiros estavam parados um pouco afastados das barras da jaula, o suficientemente perto para sentir-se atrevidos. O mais velho, com um cabo puído
de palha entre seus dentes, deu uma cabeçada, assentindo.
-Pura falsidade, tudo isto, dou-te minha palavra - disse, enquanto cuspia na palha pisoteada a seus pés.
-Talvez tenha razão - disse o mais jovem, -mas me parece bastante real. -Sorriu maliciosamente. -Quer entrar e averiguá-lo?
-Eles não deixarão entrar em ninguém ali.
-Então só ponha a mão sobre as barras. Para ver o que faz.
A multidão formada redemoinhos entre os dois homens gritou, respirando-o a fazê-lo.
-Vamos! -urgiu-o um empregado de barraca. -Pegue sua mão e veja o que acontece!
O granjeiro o fulminou com o olhar.
-Não estou aqui para seu entretenimento -Saltou atrás gritando, quando Morgan arremeteu contra as barras, mostrando seus dentes para impressionar. O companheiro
do granjeiro caiu sobre seus joelhos e se arrastou afastando-se lentamente para os pés dos observadores. Em segundos, a multidão ficou paralisada, entre encantada
e aterrorizada, empurrando para a parte de atrás da barraca tanto como pôde.
-Bom Deus, é real!
-Não te atreva a amaldiçoar, Cal! -gritou uma mulher. -É um servo do mesmo Diabo!
-Ora! É somente um homem com um traje de pele...
Morgan olhou ao longo da jaula e voltou outra vez, curvando os dedos como garras de forma ameaçadora, e se retirou a sua esquina. Alguma alma temerária empurrou
um pau pelas barras; ele o rompeu em dois com o golpe casual de uma mão. Uma senhora chiou e fingiu desmaiar. Ele tinha visto o mesmo, cem vezes.
Um dos anunciadores das atrações secundárias chegou para juntar em manada aos habitantes e levá-los a barraca grande para o espetáculo. Outra vez o Aterrador
Homem-Lobo era um êxito espetacular.
Morgan deixou de manter a mudança e se permitiu voltar a ser humano outra vez. Tinha crescido acostumado ao desconforto que acompanhava sua pouco natural meia
forma, mas era só depois da transformação que sentia a profunda dor em seus ossos e músculos.
Rígido e dolorido, saiu da jaula e se encolheu em seu roupão. Salpicou sua cara com água como se pudesse tirar lavando as olhadas fixas da gente, o aroma constante
de seus corpos metidos na pequena barraca dia após dia. Sempre o mesmo ritual, o mesmo desprezo, a mesma resolução.
Amanhã. Amanhã irei. Fiz o suficiente.
Riu e apartou o cabelo molhado da cara. O tinha deixado crescer até que alcançou seus ombros, pesado e selvagem como a pele de um lobo. Com isto queria recordar-se
a si mesmo quem era, e quem não era.
Tirou o roupão e colocou uma camisa e calça. Levava quase cinco meses com o circo. Cinco meses, e Harry havia dito, justamente ontem, que a companhia tinha
suficiente dinheiro economizado para estabelecê-los três meses do inverno sem o risco de dispersar-se.
Graças ao Homem-lobo, cuja reputação temível tinha precedido ao circo em cada cidade, vila ou povoado que eles tinham visitado. Pouco importava que o Fantástico
Circo Familiar do French fosse ainda um espetáculo de pequenos vagões, incapaz de competir em esplendor com o grande Barnum ou Forepaugh. Cada granjeiro ou rancheiro,
comerciante ou puta, jovem ou velho, homem ou mulher, simples ou preparado, tinha que ver por si mesmo se a criatura era real ou tão falsa como o granjeiro havia
dito. Alguns voltavam duas e três vezes. Nenhum deles alguma vez compreendeu a verdade.
Não queriam. E Morgan tolerava sua ignorante especulação e zombava deles com suas posturas e grunhidos. Tinha aprendido divertir-se com a cegueira dos homens.
A trupe era igualmente cega. Eles o tinham aceito completamente, lhe dando as boas-vindas como se sempre tivesse vivido entre eles, mas ele tinha feito por
eles tudo o que era capaz de fazer.
-Amanhã, vou.
Limpou o gosto ácido de sua boca e saiu de noite. além das lanternas que marcavam o perímetro das terras do circo jazia um caminho de escuridão, e mais à frente,
as luzes e o bulício de Colorado Springs. Os gritos e os aplausos da audiência na tenda do circo afogaram o murmúrio dos grilos e o murmúrio do vento dos álamos
da Virgínia com o passar do arroio. Cada noite ele parava e escutava, disposto a correr para tudo o que tinha desprezado.
-Poderia partir agora - pensou. Mas permaneceu onde estava, virando-se para o norte onde os homens dominavam. Não tinha entrado na cidade da chegada da companhia,
fazia três dias; nunca dormia nos baratos quartos de hotel compartilhados com os donos da companhia, quando podiam encontrar tais alojamentos.
Mas não era Colorado Springs o que atraía sua atenção para o norte em vez do oeste e as montanhas. Seu instinto, a única parte dele em que se permitia confiar,
sussurrava-lhe em uma perdida e esquecida língua.
Não está sozinho... dizia-lhe.
Tremeu violentamente, como se as palavras fossem gotas de água que deviam ser sacudidas de seu casaco. Tinha estado sozinho desde que se partiu de casa aos
quatorze. Em todos seus anos procurando o Aaron Holt, nunca houve outro como ele ou sua mãe ou irmã.
Não pode se ocultar para sempre.
Grunhiu e se virou para o sul, para a tenda do circo. Por uma vez a segurança estava entre a multidão, onde as vozes de seu passado não o alcançavam. Cruzou
com aldeãos que vadiavam pelo caminho e entrou no quarto onde os atores se vestiam preparando-se para sua entrada. O aroma de corpos humanos o assaltou uma vez mais.
A multidão rugiu de aprovação quando os palhaços completaram seu ato.
-É esta noite, então?
Morgan olhou para baixo ao Ulysses, que ainda levava a toga e o barrete. -O Pequeno Professor- era, segundo o locutor do espetáculo, tanto o homem mais pequeno
como o mais brilhante sobre a terra. Podia responder qualquer pergunta, e às vezes fazia uns julgamentos de caráter notavelmente exatos. Morgan sabia isto muito
bem.
Morgan mostrou seus dentes em uma meia risada.
-Lendo minha mente, Professor?
-Nada disso. Simples lógica e observação - Jogou para trás as mangas de seu traje. -Nossos recursos parecem estar em ordem. Fez o que se tinha proposto a fazer.
Sua dívida conosco está paga, não é certo?
Nós. Sempre era nós, os artistas contra o mundo, e Morgan sempre fora do círculo. Ele o quis assim.
-Harry estaria muito decepcionado se disser adeus - Ulysses tirou o gorro de grande tamanho com sua borla de ouro e o sustentou entre suas mãos manicuradas.
-E Caitlin, também.
Por consentimento tácito, ambos foram à porta de trás, a entrada dos artistas, para conseguir uma melhor vista do interior da tenda do circo. Caitlin logo começava
seu ato, graciosamente balançada em cima do nu quarto traseiro de um de seus bem treinados cavalos castrados cinzas, ao meio galope ao redor do círculo. Com cada
volta, Caitlin dava um salto mortal sobre bandeiras sustentadas por seus ajudantes, aterrissando perfeitamente cada vez. Seus pés nus, abençoados com dedos notavelmente
flexíveis, nunca perderam seu agarre. Seu vermelho cabelo sobre sua risonha cara.
-Caitlin não pode entender seu desejo de solidão - disse Ulysses. -Ela, mais que qualquer de nós, manteve a companhia unida. Mas você não tem nenhum laço que
te ate aqui. Não procura um lar entre outros como você.
-Não há outros como eu.
Ulysses levantou suas sobrancelhas.
-Embora seja certo que nunca observei a outro membro de sua espécie, suponho que realmente tem um parente em algum lugar, uma família, que compartilha seus
dons.
Esta não era a primeira vez que Ulysses tinha tratado de meter-se no passado de Morgan. Se havia alguém que tivesse o direito a perguntar, era ele. Os dois
tinham compartilhado residência, e a natureza desapaixonada de Ulysses satisfazia o desejo do Morgan de intimidade.
Morgan a contra gosto admirou a capacidade do homenzinho para separar-se com objetividade do açoite da emoção. Mas Ulysses tinha um defeito que o acossava,
e era sua curiosidade. Em mais de uma ocasião, tão persistente busca do conhecimento tinha perfurado a cuidadosa guarda do Morgan.
-Não tenho família - respondeu Morgan. Não sinta pena por mim, Professor, não necessito do mesmo que você ou outros necessitam.
-Mas mudou -disse Ulysses. -Embora não queira admiti-lo, é diferente do homem que veio a nós faz meses. Harry e Caitlin o viram em ti desde o começo.
-O que viram? Que podia ser domesticado como um cão? Os homens se matariam entre eles antes que trocar algo que eles sejam.
-Os homens lutarão pelo que eles acreditam. No que você acredita, meu amigo?
-Que um homem que confia em alguém mais que nele mesmo é um idiota.
-Possivelmente. Mas ser um idiota é melhor que não ter esperança.
-Do modo em que você se agarra à esperança de que sua família te pedirá que volte?
Essas pequenas crueldades eram suficientes, geralmente, para parar a alguém o suficientemente parvo para exigir uma amável amizade ao Morgan Holt. Ulysses era
feito de uma madeira mais forte.
-Touché - disse. -A Papa diz que os parvos entram correndo onde os anjos temem pisar, e nenhum de nós é um anjo - Deu volta para ir-se, enquanto os aplausos
da multidão marcavam o final do ato de Caitlin.
Amaldiçoando-se, Morgan se parou frente à frente homenzinho.
-Demônios - disse brandamente. -Deveria me deixar sozinho, Professor.
Ulysses lhe dedicou uma de suas estranhas e melancólicas risadas.
-Homens inclusive sábios podem ser parvos entre amigos. Ai de mim!, não obstante a decepção de minha família por mim, criaram-me para ser um cavalheiro.
-A mim não. Devo estar com os lobos. Não aqui.
-Todos nós, em um momento ou outro, duvidamos sobre aonde pertencemos. Se me desculpar...
-Eu... -Morgan ainda não sabia como pedir perdão sem que as palavras se aderissem a sua garganta. -Eu fui muito cruel.
Ulysses se inclinou.
-Isso não importa. E agora tenho cartas para escrever.
-A sua família?
-O dever de um cavalheiro, temo.
-Inclusive embora eles nunca respondam.
-Eles são família - disse Ulysses. -Se faz muito mais pela família que por um estranho.
A velha dor às vezes podia tomar ao Morgan despreparado, como fez agora.
-Prefiro a um estranho.
-Às vezes essa opção toma a gente mesmo independentemente de suas inclinações. Mas se decide nos abandonar esta noite, não nos esqueça.
Esta vez Morgan lhe deixou ir. Ainda nunca tinha ganho uma discussão com o Ulysses Marcus Aurelius Wakefield.
-Ele também tem sentimentos, sabe?
Caitlin se aproximou ao lado dele, aplicando-se em sua cara um pano. Seus braços nus, pescoço, e cara estavam úmidos pela transpiração, e os cachos de seu cabelo
se aderiam a sua bochecha. Os latidos dos cães do ato de Vico no cenário assinalaram o princípio do seguinte ato.
Morgan olhou as palhaçadas dos cães com um débil desprezo, recordando como Vico tinha tratado de convencer o de jogar lobo domesticado entre os cães guias de
ruas.
-O Professor pode cuidar-se sozinho.
-É isto por que sempre adere a ele como um ouriço sempre que nós estamos entre os aldeãos?
-O Professor tem razão. Sua imaginação é realmente incrível.
-E você é um mentiroso terrível. Preferiria morrer antes que admitir que cuida de alguém, ou algo.
-E por que deveria ele te admitir algo a você? -Tão silenciosa como suas serpentes, Tamar apareceu ao lado deles. -Vamos tentar mudá-lo em algo que ele não
é - A encantadora de serpentes posou seus olhos pesados sobre Morgan. -Esse é um engano que eu não cometo.
Morgan deu um cuidadoso passo para distanciar-se. Tamar tinha um poder, próprio dela, para fascinar a cada homem que estava a seu alcance. Era alta, ágil, e
formosa, apesar da frieza de seus olhos. O ritmo de seu exótico acento trabalhava como um veneno misturado com vinho de mel. Nenhum aldeão sabia que a luxuosa peruca
de mechas negras como asa de corvo ocultava uma cabeça tão lisa como a pele de uma serpente. A maior parte de seus pretendentes não se teriam preocupado. Estavam
fascinados.
Mas a todos eles, aldeãos ou atores, ela os ignorava... salvo ao Morgan. Ele a evitava, e então ela o perseguia ainda mais sem piedade.
Deslizou perto dele, passando sua flexível mão ao longo de seu braço.
-Está cansado, meu amigo. Abandona aos que não lhe entendem. Vêem a minha barraca, e aliviarei sua testa com azeites perfumados e cantarei antigas canções de
amor.
Só um morto podia não ser consciente da sexualidade que Tamar exsudava em cada palavra sussurrada, cada movimento. A gente de circo não era nenhuma puritana,
mas ele tinha ignorado os poucos convites que tinha recebido. Tomar a um ator como amante, embora fosse por uma única vez, significava ter laços mais fortes com
o circo. Ele preferia o anonimato das mulheres que vendiam seus serviços por um preço.
Ainda assim, esteve tentado. Seu corpo tinha fome da liberação que lhe tinha sido negada por muito tempo. O sexo era comovedor sem verdadeira intimidade, agradar
sem compromisso, não como se estivesse entre os lobos. Tamar estaria satisfeita se soubesse que o tinha conquistado, até só por uma noite.
Uma risada lenta encurvou os lábios de Tamar. Suas mãos abandonaram seu braço e vagaram mais abaixo. Ele estremeceu. Ela riu, sem fôlego.
-Meu pobre, pobre lobo. Está doente. Tamar pode aliviar sua dor -Ela se agarrou a ele audazmente. -Ninguém entende como eu o faço. Venha, meu fino garanhão.
Montaremos rápido e longe.
Caitlin fez um ruído grosseiro, tirando Morgan de seu atordoamento.
-O homem que escreveu sobre a sutileza das serpentes não pode ter estado pensando em você, Tamar.
-E a você nenhum homem quereria - assobiou ela. -Parece um cavalo. Tem a forma de um pau. Morgan não tomaria embora lhe rogasse.
-Morgan é meu amigo - Caitlin lançou ao Morgan um olhar de desculpa. -Não seduzo a meus amigos.
-Não penso que seja uma mulher absolutamente. Por que não encontra a outra moça para jogar?
-É um insulto apenas digno de você, Tamar. Onde está o veneno de sua língua?
Morgan grunhiu. Dois pares de olhos femininos se fixaram nele, e Tamar fechou sua boca. Caitlin dobrou seus braços sobre de seu peito e começou a falar.
-Tranquilizem-se - disse ele. -Se vocês querem brigar, esperem até que me tenha ido.
-Ido? -repetiu Caitlin.
-Parto-me esta noite.
Tamar agarrou seu braço. Ele se soltou e encontrou o olhar afligido de Caitlin.
-O Professor disse que lhe devia dizer isso antes de ir.
-Que amável de sua parte. E que consideração.
-Nunca disse sê-lo tampouco. Já reembolsei minha dívida.
-E agora continua seu alegre caminho, sem um pensamento para o que está deixando atrás.
-Não fiz nenhuma promessa.
-Ao fim nos tirou de cima, então.
-Você é forte, Vagalume. Os fortes sobrevivem.
-Se não se despedir do Harry, perseguir-te-ei e te matarei eu mesma.
-Seria um idiota para me arriscar a sua cólera.
-Você nunca seria um bom palhaço, Morgan Holt - disse ela, com lágrimas entupidas em sua garganta. -Vamos. Ela voltou correndo à tenda do circo enquanto a banda
começava a tocar o final.
Ele obedeceu antes que ela pudesse trocar de idéia. Tamar já se foi do quarto, pelo qual ele estava profundamente agradecido. Mas ele não tinha saído ileso.
O sabor desconhecido, amargo do pesar queimava sua língua.
Isto era a tristeza. Culpa. Ele se tinha permitido aproximar-se muito a Caitlin, e ao Ulysses e Harry. E ainda ficava o pior pela frente.
Esperou sozinho no bordo do terreno até que a enchente de aldeãos surgindo da tenda do circo anunciasse o final do espetáculo. As risadas e bate-papos excitados
foram diminuindo e apagando-se, só uns poucos meninos persistiam em jogar um olhar final aos monstros à luz da lua. O resto ia à deriva passando o carro dos ingressos,
descendo por caminho e para as luzes de cidade.
A gente do circo veio depois, Florizel e os palhaços, Vico com seus cães, Caitlin e seus ajudantes dirigindo aos cavalos a seus cochos, Regina a mulher-pássaro,
Tor o homem forte, e todos outros. Deixaram a tenda separadamente ou em pequenos grupos, indo cada um a seu próprio carro ou barraca. Os meninos para tudo e a equipe
trabalhariam durante a noite para desarmar a tenda do circo e preparariam a companhia para a saída antes da alvorada.
Mas o resto não dormiria. Este era um tempo para a celebração, porque por fim a companhia podia confrontar estabelecer-se durante o inverno e descansar até
a primavera sem o medo de dissolução ou fome. "Os monstros" do Fantástico Circo Familiar de French manteriam sua querida casa e santuário por outro ano.
E Morgan o abandonaria, como tinha feito com cada outro lar que tivesse conhecido.
A última, solitária figura que deixou a tenda se movia com a deliberação de um homem que sofria os dores da velhice e acreditava que ninguém olhava. Morgan
rodeou o bordo do terreno e fez uma pausa apenas fora da barraca de Harry até que ouviu o som de verter líquido e um suspiro satisfeito.
Uns olhos negros, injetados de sangue, olharam como Morgan entrava. Harry baixou seu copo, e seu bigode grisalho se levantou em um sorriso.
-Meu querido moço - lhe disse. -Se aproxime um tamborete. Acredito que podemos dizer que nossa última atuação em Colorado Springs foi outro triunfo, não está
de acordo? -Ele levantou sua garrafa. -Possivelmente esta noite? Não, não, certamente não - Tomou outro gole e estalou seus lábios. -Mais para mim, então!
Morgan agachou sua cabeça. De tudo, isto era o mais difícil, esta despedida. Caitlin não era ingênua, apesar de seu pequeno tamanho e a cara de duendezinho.
Ulysses era muito pragmático para acreditar que Morgan ficaria. Mas Harry... Harry French era ainda um menino, sem afetar por castigadora mão da experiência.
-Isto é tudo graças a você, certamente - seguiu Harry. -Já encontramos um lugar encantador para quartéis de inverno, no Texas. Muito melhor que o velho em Ohio.
Todos teremos muito tempo para descansar e melhorar nossas atuações -Riu em silêncio. -Não há nenhuma razão para nos limitarmos às cidades mais pequenas. Tudo o
que temos que fazer é tomar cuidado em evitar a competência direta com as grandes companhias. Podemos não ser grandes, mas temos a melhor atração do oeste!.
-Harry.
-Sim? Disse algo, meu moço?
Morgan se endureceu.
-Parto-me, Harry.
Harry se imobilizou. Deixou seu copo.
-Bem, bem. Sabíamos que este dia chegaria, verdade? Embora eu tivesse esperado...
-Estou... agradecido pelo que fizeram - disse Morgan. Sua voz soou rude e áspera, e fez um esforço para suavizar. -Sabe que a gratidão não é ... fácil para
mim.
-Ah, sim. Sim, sei - Ele esboçou um pequeno sorriso que levantou seu bigode. -Isso a faz tão mais importante quando você a dá.
-Não, Harry. Não mereço... este...
-Sentimento? -Harry não levantou seus olhos. -Os sentimentos são difíceis para você. Sei isso também. É um homem de poucas palavras, e ainda assim... - Elevou
o olhar, com lágrimas em seus olhos. -Não acredito que seja um homem sem sentimentos. De outra forma não teria vindo se despedir.
-Vê o que deseja ver.
-Meus olhos estão velhos e débeis, mas certas coisas as vejo com o coração. De algum modo, apesar de todas suas habilidades, está cego, meu filho.
-Não me chame isso.
Harry se sobressaltou com seu grunhido, mas recordou de onde vinha ele.
-Perdoa a um velho tolo, Morgan. Tenho por norma nunca procurar no passado de minha gente, e tenho quebrado esta regra contigo. Só desejo... poder te convencer
que é um homem melhor do que pensa.
As têmporas do Morgan tinham começado a palpitar. O cabelo do dorso de seu pescoço se levantou em premonição de desastre.
-Vim para dizer adeus, e lhe agradecer... -Se voltou para a entrada da barraca e se deteve, torpemente, durante um segundo final, e desprezando sua vacilação,
e saiu com uma pernada da barraca.
Não chegou mais à frente que ao pé das colinas. Não se transformou. Seu coração lhe pesava, frio como uma pesada nevada. Teria dado as boas-vindas a uma neve
forte agora. Assim se dispersariam os aromas daqueles que deixava atrás, e poria um véu entre o mundo e o silêncio mudo do selvagem.
A solidão. O isolamento. Um uivo construído no fundo de sua garganta, o único som de pena que podia emitir.
Mas a neve não escutou seu pedido. O sentimento de equívoco que tinha sentido na barraca de Harry tinha crescido. Um malvado aroma flutuava sobre a pradaria,
um acre aroma de fumaça.
Virou-se para enfrentar o leste. Uma estranha nuvem se elevava desde mais abaixo do terreno do circo. Um pouco muito grande se queimava.
Correu mais rapidamente que qualquer humano, os pés nus encontrando o caminho entre pedras frouxas e rochas agudas. Colunas de fumaça entrando em seus pulmões
e picando sua pele. De repente, a luz de um fogo muito alto obscureceu a lua e as estrelas. Quando chegou ao acampamento, teve que forçar seu caminho entre a multidão
de espectadores atraídos pelo espetáculo de um resplendor grande e destrutivo.
As chamas devoraram tudo o que foi deixado na tenda do circo, e várias outras tendas e carroças se queimavam também. Os atores estavam de pé em grupos desesperados,
necessitados, enquanto o corpo de bombeiros voluntários local lutava para extinguir o incêndio.
Mas o dano já parecia. Os carros de apoio tinham estado entre aqueles destruídos, junto com um número de tendas e a maior parte do vagão-escritório de Harry,
que continha os salários e economias da companhia.
Separando sutilmente aromas do fedor esmagador da cinza ardente, Morgan encontrou seu caminho ao Harry.
O ancião não estava sozinho. Caitlin e Ulysses estavam de pé com ele. A luz da luz destacava a pena sobre cada cara volta para cima. Todo o progresso que a
companhia tinha feito com a chegada do Morgan tinha sido desfeito em uma hora.
-Harry - disse.
O ancião deu volta, seus olhos como poços de miséria.
-Morgan?
-Voltou? -perguntou Caitlin. Seu rosto se abriu em um amplo sorriso. -Não podia nos abandonar, não agora. Nunca - Se jogou sobre ele e o abraçou forte. Morgan
aguentou o abraço em um estóico silêncio.
Os olhos do Harry encontraram os seus sobre a cabeça de Caitlin.
-É um bom homem, Morgan Holt.
Caitlin se separou e limpou sua cara com a manga de seu casaco.
-O que fazemos agora, Harry?
Ele olhou as volutas fumaça que se elevavam do fogo que morria.
-Seguir adiante, como sempre o tem feito. Encontraremos um modo de continuar, inclusive se devemos trabalhar durante o inverno.
-Continuaremos - esteve de acordo Caitlin. -E permaneceremos juntos.
Ulysses se moveu ao lado de Morgan.
-Espero que Caitlin não sofra uma grave decepção - disse brandamente. -É muito pior que o que Harry admite.
-Sei.
-Ficará conosco?
-Ficarei. Não tenho outra opção, verdade?
-Às vezes me pergunto -disse Ulysses- se Caitlin não tem razão, e há um motivo para estes acontecimentos, um além de nosso entendimento.
-Então quem quer tenha estes motivos não tem nenhum amor por mim, ou por você.
-"O coração tem razões que a própria razão desconhece".
-É uma fraude, Professor - disse Morgan. -Ainda escuta a seu coração.
-E você não o faz?
Morgan se girou sobre seus calcanhares e se afastou.









































CAPÍTULO 4

O fogo tinha atraído a Niall, embora ele não se havia nem precavido se não tivesse saído de seu hotel para um tardio passeio noturno. Colorado Springs não era
uma cidade tão grande como para não fazer caso de uma boa conflagração, especialmente quando o que se queimava era um circo de visita.
Portanto, Niall seguiu à multidão até os subúrbios de cidade, onde a maior parte do resplendor já tinha sido extinto. Ele não tinha ido à função do circo, absorto
como tinha estado com o negócio que recentemente tinha completado no Novo México, mas reconheceu o desastre quando o viu. Observou com indiferente curiosidade como
a gente do circo corria de um lado a outro, gesticulando e gritando quando alguma nova perda era descoberta.
Quase podia compadecê-los. Seu pai tinha sofrido muitos reveses em seus primeiros anos de negócios em Denver, mas tinha perseverado e os tinha vencido. Tinha
sido atrevido e desumano assim como ardiloso, como a gente tinha que sê-lo nestes casos. Niall tinha continuado seus passos. A fortuna Munroe se duplicou nos sete
anos que Niall tinha tomado o controle.
Mas tinha começado com uma vantagem. Esta gente, vagabundos e vigaristas, viviam sempre ao bordo da ruína. Ele duvidava que qualquer deles aceitasse um trabalho
estável, decente, em lugar do tipo de vida que eles viviam.
Uma vez tinha considerado essa vida nômade para si mesmo. Uma vez não tinha pensado no futuro além dos cinco minutos seguintes. Athena pagou por sua loucura.
Agora ele passava cada dia tratando de fazer o correto. E falhando.
Afundou as mãos nos bolsos de seu sobretudo e recordou sua última conversa com a Athena.
Onde conseguiu seu coração de pedra, Niall?
Ela, simplesmente, não podia entender. Como poderia protegida como estava ela? E ele tentava mantê-la assim. Ela não tinha noção dos perigos do mundo, as crueldades
que existiam para uma jovem o bastante parva para acreditar que ela poderia trocá-lo.
Niall suspirou e olhou as estrelas, visíveis agora que a fumaça tinha começado a limpar-se. Quando tinha sido a última vez que se deteve procurar as constelações,
ou caminhou pelo prazer de fazê-lo? Era consciente de que Athena era incapaz de fazê-lo, por culpa dele.
Bem, agora tinha uma oportunidade de demonstrar a Athena o que estava mal em seu coração, se ele decidia tomar o risco.
Deixou cair seu olhar e seguiu uma figura solitária enquanto cruzava o terreno do circo com passo resolvido. Um dos artistas. Uma mulher nada voluptuosa, quase
com formas de menino, mas cheia de graça, entretanto. De fato, o modo que ela se movia era impressionante, e se encontrou olhando-a fixamente ainda depois que desaparecesse
em uma das tendas intactas.
Não foi até que ele esteve quase ali que compreendeu que tinha estado andando para aquela mesma barraca. Deteve-se, considerando retirar-se. Este não era seu
mundo, ou seu negócio.
Mas seu impulso repentino de ajudar exigia que encontrasse a alguém que aceitasse sua generosidade. Tirou sua carteira do bolso e examinou o conteúdo. Cem dólares
seriam mais que suficientes.
Uma cabeça apareceu pela abertura da barraca. Estava coroada por um arbusto desordenado de cabelo encaracolado vermelho, e a cara debaixo era a de quão jovem
ele tinha seguido.
Ela o olhou fixamente, desconcertada. Ele a saudou com seu chapéu.
-Desculpe-me -disse, -mas, tenho o prazer de me dirigir a um dos artistas deste estabelecimento?
A moça lançou uma gargalhada.
-Fala você como Ulysses. Quem é você?
Foi seu turno para ficar desconcertado. Que ela pudesse rir neste momento o assombrou, mas sua franqueza era incrível.
-Peço-lhe perdão - disse ele. -Meu nome é Niall Munroe. Não pude menos que notar o dano que sofreram como resultado do fogo...
-Notou-o? -Ela saiu totalmente da barraca, e ele conseguiu lhe jogar seu primeiro olhar bom. Sua impressão inicial tinha sido correta: ela era leve, magra como
um menino, com um casaco muito grande, e fabulosa em tamanho e porte, mas seus olhos eram brilhantes e sua risada, deslumbrante. -E por que deveria você preocupar-se,
Niall Munroe?
Era certo. Uma vez mais ele pensou em afastar-se, mas os olhos dela o mantinham imóvel no lugar.
-Eu tinha pensado oferecer minha ajuda -disse rigidamente, -mas se você não a necessita, Senhorita...
-Hughes. Caitlin Hughes. E ainda me pergunto por que alguém da cidade se preocuparia com o que acontece com a gente como nós.
Cidade. Ela disse a palavra como um insulto. Ele se ergueu em toda sua altura, bastante considerável.
-Em Denver, acostuma-se brindar ajuda aos que são menos afortunados que um. Quando notei o grau de sua desgraça, não pensei que rechaçariam qualquer oferta
de ajuda.
-Oh - Ela alargou seus olhos. -Entendo. Você é um homem muito rico de uma grande cidade, e deseja nos dar caridade.
Ele ficou o chapéu sobre sua cabeça.
-Já vejo que a ofendi, então seguirei meu caminho.
-Não. Espere - Ela mordeu seu cheio lábio inferior e suspirou. -Eu... nós não estamos muito acostumados a que os da cidade nos ofereçam ajuda. A maior parte
do tempo, eles... -Ela se deteve. -Terá que falar com o Harry.
-Harry?
-Ele é o dono e administrador do circo. Estou segura de que estará muito contente de vê-lo, Sr. Munroe.
Ele teve o absurdo desejo de lhe pedir que o chamasse Niall.
-Estar-lhe-ia agradecido, Senhorita Hughes...
Ela avermelhou, e apareceram sardas sobre sua pálida pele. Ele se perguntou outra vez como era possível que encontrasse atrativa a semelhante marota.
Caitlin olhou a larga, magra figura do cavalheiro e se amaldiçoou por idiota. Sabia, como todos, que a companhia estava em terríveis apuros, inclusive se ela
fingia outra coisa pelo bem de Harry. Se alguém de cidade queria oferecer ajuda, quem era ela para dizer não? Inclusive se tudo os sinos de alarme em sua cabeça
lhe diziam que se fora imediatamente.
E ainda mais, teve que admitir, este homem não era alguém comum. Estava vestido como alguém com muito dinheiro. Comportava-se como um príncipe. Era atrativo,
de uma forma fria. E a olhava com uma intensidade estranha que ela não podia ignorar.
Morgan tinha aquela intensidade. Mas quando ele a olhava, ela só via um amigo. Não sentia nenhum estremecimento em seu ventre, nem calor em suas bochechas.
-Dir-lhe-ei que você veio - disse ela, entrando rapidamente na barraca.
-Volta logo? -disse Harry, elevando a vista do caos de livros de contabilidade e papéis que tinha salvado do carro escritório. Sua cara estava tensa e abatida.
-O que acontece, Vagalume?
-Há um homem fora, um de cidade, que... bem, embora pareça mentira, que quer nos ajudar.
-Sério? -Harry franziu seus lábios. -É estranho. Bem, fá-lo entrar, para o que sirva!
Caitlin assentiu e foi procurar ao Niall Munroe. Ele andava inquieto, algo que ela não tinha esperado ver em um cavalheiro tão solene. Isto o fez parecer mais
humano, de algum modo.
-Harry, o senhor French o verá agora - disse ela.
-Obrigado - Ele assentiu e entrou na barraca.
Caitlin esperou fora, caminhando de um lado para outro. O aroma de lona e madeira queimada era sufocante, mas o comichão em seus nervos manteve sua
esperança. Poderia ser a aparição do Niall Munroe outro milagre? Vários meses atrás, ela tinha estado segura que Morgan tinha chegado no momento que devia fazê-lo.
Agora sua intuição lhe dizia o mesmo do estranho cavalheiro.
Sua intuição, ou algo muito mais físico?
Sacudiu a cabeça com desgosto, mas esperou uma longa hora enquanto Munroe falava com o Harry. Munroe saiu por fim, colocou-se o chapéu sobre a cabeça, e se
abotoou o casaco ante o frio da noite. Não pareceu surpreso por encontrá-la ainda ali.
-Boa noite, senhorita Hughes - disse ele. -Voltaremos a nos ver.
Ela avermelhou por sua reverência e olhou para outro lado até que ele se afastou um pouco cruzando o terreno e dirigindo-se para a cidade. Harry apareceu pouco
depois.
-Não vai acreditar isto, minha querida, mas estamos salvos outra vez!
-Salvos? -murmurou ela.
-Esse cavalheiro, o Sr. Munroe, ofereceu-nos um contrato em Denver, uma função privada para o orfanato de sua família. A família Munroe é gente muito importante
em Colorado, eu mesmo estou informado disso. São extremamente ricos e influentes. A irmã do Sr. Munroe é uma pessoa bastante importante na sociedade de Denver e
faz um muito bom trabalho. Ele deseja contribuir a sua organização benéfica de um modo inovador. Aceitou substituir nossas tendas, nos prover de um terreno em sua
própria terra, e nos pagar muito bem de verdade. Tão bem, de fato, que isto fará mais que compensar as perdas de esta noite.
-Tanto? -Caitlin já não podia ver a forma do Munroe, e ainda assim ela seguiu procurando contra toda razão. -É tão tarde na temporada...
-Uma última função, e logo teremos bastante para o inverno, como o tínhamos planejado. Como podemos rechaçar esta oportunidade?
-Não podemos. Certamente, não podemos - Ainda assim, Caitlin sentiu um estremecimento de selvagem temor e antecipação, como se tentasse um novo e muito perigoso
truque.
-Quando devemos partir? -perguntou.
-Assim que possamos estar preparados. Juntarei aos artistas ao amanhecer e lhes direi as boas notícias - Apertou suas mãos. -Oh, esta resultou ser uma noite
muito melhor que o que os acontecimentos sugeririam! Quem sabe onde nos pode conduzir este patrocínio?
Era certo. Harry sempre encontrava o bem em tudo, mas ela sentia o mesmo mau pressentimento
De uma coisa estava segura. Suas vidas estavam a ponto de trocar, a sua, a de Morgan, a de todo o mundo. Não podia começar a supor aonde conduziam estas mudanças,
mas o Destino tinha intervindo com uma vingança.
Depois desta noite, nada seria o mesmo outra vez.

A alta, familiar figura, cruzou com passos largos o caminho, e Athena se afastou das janelas da sala para enfrentar a porta. Niall tinha voltado para casa.
Tinha estado fora uns quatro longos meses. Era estranho, mas apesar de sua última discussão, ela tinha sentido terrivelmente sua falta. Nem sequer os constantes
compromissos sociais e filantrópicos tinham sido suficientes para aliviar sua solidão.
Quando começou? Perguntou-se, escutando a porta e a saudação do Brinkley. Quando comecei a estar... descontente?
Não podia assinalar o dia exato ou a data, mas o sentimento de vazio tinha ido crescendo, e isto a preocupava. Tinha desperdiçado horas e horas olhando pela
janela a seus amigos e vizinhos passeando ou dando um passeio a cavalo no rangente ar de outono, e recordando o que gostava de ir chutando os montões de folhas secas
e as carreiras através do parque sobre um brioso cavalo.
Mas seus amigos e colegas da Sociedade tinham sido tão atentos como sempre em suas visitas, assim como generosos em suas contribuições. Os órfãos e gente pobre
ainda respondiam a suas visitas com solene gratidão. Não havia nenhuma razão para seu descontentamento.
Certamente era a mudança de estação o que a fazia sentir tão inquieta. Agora que Niall havia tornado, essas molestas emoções se dissipariam. Sua oposição a
maior parte de seu trabalho, acender-lhe-ia uma determinação renovada. Sim, isso era o que ela necessitava, novas idéias; algo pelo que lutar.
A porta de rua se abriu. A voz de Brinkley deu as boas vindas a casa a seu patrão, e os passos do Niall ressoaram no vestíbulo.
Athena se sentou direita e teve seu melhor sorriso pronto para ele quando entrou na sala. Ofereceu-lhe suas mãos.
-Niall, seja bem-vindo a casa! É maravilhoso que tenha tornado.
Ele se inclinou para tomar suas mãos e as beijou.
-Athena. Tem bom aspecto, encantadora como sempre.
Athena olhou seu rosto. Ele também tinha bom aspecto; seus geralmente sóbrios olhos cinza quase brilhavam, como se ocultassem alguma travessura. Recordaram-lhe
os velhos tempos, quando Niall tinha sido... quando tinha sido para ele tão fácil rir. Tão fácil para ambos.
-Sente-se, e me conte tudo sobre seus negócios - disse ela, lhe indicando à donzela da sala que trouxesse chá, café e bolachas. -Foi tudo bem?
Niall riu e se sentou em sua poltrona frente à chaminé.
-Você nunca teve nenhum interesse em meus negócios.
-Possivelmente seja tempo de que o tenha.
-E possivelmente seja tempo em que eu tome interesse nos teus.
Ela ficou alerta.
-Estou... realmente lamento nossa discussão antes que partisse.
-Não. Tinha toda a razão. fui muito áspero, muito pouco pormenorizado.
Seu coração se encheu de esperança.
-É muito amável, Niall. Nada me agradaria mais que desejasse ajudar.
-Então confio em que estará contente com o que te trouxe hoje.
Athena não se permitiu mostrar muito entusiasmo. Niall frequentemente lhe trazia presentes à volta de suas viagens de negócios, mas nunca com tal prazer.
-Eu não vejo nenhum pacote - disse ela, inclinando-se para olhar atrás dele. -Não posso imaginar o que pode ter trazido das minas no sul!
-Ah, isto não caberia em nenhum tipo de caixa - disse ele com fingida solenidade. -De verdade, terá que sair para vê-lo.
O alarme paralisou o ar em seus pulmões.
-Aqui, na casa?
-Isto não caberia nem sequer no jardim. Deverá vir comigo, na carruagem, se quiser seu presente.
Ela baixou o olhar a seu regaço e as cuidadosas dobras de seu vestido.
-Você sabe... que não é fácil para mim, Niall.
-Vai ao orfanato e está entre os pobres...
-Sim, mas isso é diferente.
-Porque eles não têm nenhum direito a te compadecer?
Ela estremeceu com sua sagaz observação. Durante um momento ele pareceu incômodo.
-Compreendo que não desfruta indo à cidade, ou com visitas sociais - disse ele. -Mas acredito que desejará fazer uma exceção neste caso.
Ela encontrou seu olhar. Havia uma insinuação de desafio nela, e isto a interessou o bastante para ganhar sua plena atenção. Ele era tão propenso a querer protegê-la,
e agora a impulsionava a sair. Realmente isto devia ser especial.
-Muito bem - disse ela devagar. -Se quer te refrescar enquanto me preparo.
-Não tem sentido. Está muito bem assim - Agitou a campainha chamando o Brinkley. -Por favor, chame à donzela da senhorita Munroe, e diga ao Romero que necessitaremos
o carro.
Fran apareceu para colocar o xale da Athena sobre seus ombros e empurrou sua cadeira pelo corredor. Só fazia um momento, Athena tinha estado desejando alguma
nova fonte de inspiração, e seu desejo parecia ter saído de suas mãos.
Fran, Romero, e Niall a colocaram no carro e cobriram suas pernas com outro xale. Ela se forçou a olhar pela janela enquanto viajavam, vislumbrando a várias
mulheres que ela conhecia passeando do braço, uma nova mansão construindo-se sobre o Welton, o bonde caminho ao distrito comercial. Tudo em Denver estava trocando,
muito ocupado para reduzir a velocidade durante um instante.
Ela esperava que Niall parasse o carro em qualquer momento, mas eles moveram-se através da melhor parte de cidade, passaram moradias mais modestas com a fazenda
mantida em jardas poeirentas, e foram para uma área perto dos subúrbios da cidade. Os Munroe possuíam vários lotes de terra vazios ali, e Niall frequentemente dizia
que esperava que o investimento desse resultado quando a cidade se ampliasse e requeresse terreno para novas construções.
Curiosa, apesar de si mesma, Athena procurava algo insólito. O carro deu um giro em um poeirento caminho, e ali, esparramado em um campo de pasto outonal, estava
sua surpresa.
Um circo. Ela reconheceu as tendas, os carros vistosos, a peculiar gente transladando-se com seus animais e seus trajes brilhantes. Niall riu, contente com
sua confusão.
-Pergunta-te por que te trago para um circo? -perguntou-lhe. -Antes que eu partisse, arreganhou-me por meu fracasso em ajudar a aqueles em necessidade. Estará
contente de saber que te escutei. Não só ajudei a esta gente em seu tempo de necessidade, mas também os contratei para oferecer uma função para seu orfanato e a
meu custo.
Athena o olhou fixamente e compreendeu que estava boquiaberta.
-Niall... estou... eu nunca poderia haver imaginado.
Ele indicou ao Romero que parasse ao bordo da parcela.
-Quis que visse isto por você mesma, e que conhecesse quem contratei para entreter a seus meninos.
-Oh, Niall. Os meninos ficarão encantados, sei.
Ele a alcançou através dos assentos e pressionou suas mãos.
-Enquanto a você agrade, Athena. Vamos?
Romero e ele a ajudaram a descer, e sua cadeira foi tirada de sua prateleira especial no porta-malas. Athena estava muito ocupada absorvendo o que via para
notar o incômodo e desigual caminho de terra enquanto Niall empurrava sua cadeira para as tendas.
Um homem obeso, de aspecto jovial com brancas costeletas, veio encontrar-se com eles quando se aproximaram da barraca maior, a que ela supôs devia ser a casa
do administrador. Estava vestido excentricamente, mas bastante normal comparado com algumas das pessoas que ela tinha visto trabalhando ou praticando no lote.
-Meu querido, querido Sr. Munroe! -disse o corpulento homem efusivamente. Sacudiu a mão do Niall e baixou a vista para Athena. -E esta deve ser sua encantadora
irmã!.
-Athena -disse Niall, -permite que lhe presente ao Sr. Harry French, gerente e proprietário do Fantástico Circo Familiar do French. Senhor French, a senhorita
Athena Munroe.
-Encantado, encantado, não tenho palavras - French lhe sorriu abertamente. -Posso lhe dizer quão encantado estou de poder conhecê-la?
Athena gostou de Harry French imediatamente. Ela devolveu seu sorriso e pressionou sua mão.
-Me alegro de conhecê-lo, Senhor French. Meu irmão me disse que vocês vieram a Denver para entreter aos meninos de nosso orfanato. Sei que eles o considerarão
a experiência de sua vida.
Harry ruborizou, sua pele contrastando ainda mais vistosamente com o branco de seu bigode.
-Faremos todo o possível, vá se o faremos. Seu irmão nos tem feito um grande favor. Sabe você, nós sofremos uma série de desgraças, e ele nos ofereceu uma solução
a nossas dificuldades. É muito generoso. Ah, sim, o mais generoso.
Niall olhou ao longe.
-Espero que não terá você inconveniente em lhe mostrar a minha irmã algo de seu estabelecimento, Senhor French -disse ele bruscamente.
-Será um prazer. Oh, sim. Ainda nos estamos acomodando, mas estou seguro... ah, há alguns de meus artistas, se me seguirem...
Afastou-se andando com um rebolado. Niall suspirou e conduziu a Athena atrás dele.
-Pensa que é um momento oportuno para apresentações? -perguntou Athena. -Possivelmente seria melhor convidá-los a nossa casa.
-Assombra-me, Athena - disse Niall. -Não se convida a esta classe de gente a sua casa.
Ela não podia discutir-lhe por tudo o que sabia, a gente de circo era considerada pouco menos que vagabundos, sujos e ignorantes. Não entravam dentro das duas
classes de pessoas com as que ela tratava, nem necessitada e dependente, nem ricos e cultos.
Mas certamente era questão de encontrar o modo justo de lhes falar. Os artistas que Harry French tinha mencionado estavam de pé em um grupo que olhava para
a grande tenda, falando entre eles. Athena notou o novo da lona, sem uma mancha ou rasgado. Muitas das outras lojas tinham um aspecto gasto, como os carros.
-Senhorita Munroe - disse Harry, adiantando-se a ela e Niall, -agrada-me lhe apresentar a meus artistas, quem, sinto que posso me gabar, estão entre o mais
fino em nossa nação -Se balançava para trás sobre seus calcanhares e estendeu seu braço em um magnífico gesto-. Caitlin Hughes, nossa principal atração, cheia de
graça e excelente cavaleira; Ulysses Marcus Aurelius Wakefield, também conhecido como o Pequeno Professor, gênio e adivinho; Tamar a Rainha das Serpentes, e Morgan,
nosso...
-Encantada de conhecê-la, senhorita Munroe - A moça que French tinha apresentado como Caitlin deu um passo adiante, começou a oferecer sua mão, e a deixou cair
torpemente. Era bonita de um modo insólito, peralta, muito pequena em seu traje de circo de ajustadas calças e saia curta. Ela jogou uma olhada ao Niall. -Harry
disse que daremos uma função para os órfãos dos que você se ocupa. É muito amável de sua parte e do Sr. Munroe ajudar aos meninos que não têm um lar.
Athena sorriu. A moça podia não ser muito educada, e certamente não era refinada, mas Athena gostou tão rapidamente como lhe tinha gostado de Harry French.
-Boa tarde, senhorita Hughes. Espero com impaciência sua atuação.
A cara de Caitlin ficou vermelha como seu cabelo e se afastou. O pequeno homem ao lado dela se inclinou ante a Athena.
-Ulysses Wakefield, seu mais obediente servidor - disse com uma suave voz lenta do Sul. -Confio em que encontrará nossa humilde companhia digna de suas mais
altas expectativas.
Que estranho era conhecer outra pessoa que levava uma carga física tão maior que a própria. Era um cavalheiro, por sua roupa, formas, e o discurso, embora ela
estava sentada ele podia encontrar seu olhar fixo parado sobre suas duas próprias, curtas pernas. Sua cara era formosa, e se comportava como se fosse de uma altura
normal. Mas ele, como Athena, frequentemente devia enfrentar um mundo que não podia entender.
Ofereceu-lhe sua mão.
-Sei que não vou decepcionar-me, Sr. Wakefield - disse ela. Ele beijou o ar em cima de seus nódulos, deixando seus sentimentos incompreensivelmente adulados.
Ela elevou a vista à terceira pessoa e perdeu qualquer sentido de comodidade.
Tamar era alta, voluptuosa, e formosa, mas seus olhos morados estavam desprovidos de calor. Seus lábios permaneceram planos sem dar as boas vindas. Uma cabeça
de réptil empurrou rapidamente, saindo de seu escuro casaco.
-Senhorita Munroe - disse, sua voz baixou e se acentuou pesadamente. -Espero que não tenha encontrado inconveniente em vir até aqui.
-Não. Não houve, obrigada - Athena manteve suas mãos dobradas em seu regaço e sustentou o olhar fixo de Tamar, resolvendo não deixar ver sua inquietação. Estava
claro que não receberia nenhuma saudação mais amistosa da Rainha das Serpentes. Mas uma sensação ainda mais inquietante centrada em suas têmporas, parecia provir
da direção do homem que Harry não tinha terminado de apresentar.
Ela girou sua cabeça. Seus olhos se encontraram com os do último homem. Ela poderia ter jurado que inclusive suas pernas sentiram o impacto daquele dourado
olhar.
-Oh, sim - disse Harry, aproximando-se a tropeções ao lado deles. -Que negligente fui. Senhorita Munroe, me permita lhe apresentar ao Morgan Holt.
























CAPÍTULO 5

Tão forte foi a sensação de reencontro entre eles que Athena quase lhe perguntou onde tinha estado e onde tinha ido durante estes anos.
Conteve-se antes de cometer um engano embaraçoso. Eles não se conheceram antes. Ele era um estranho, embora seu coração insistisse em outra coisa. Um estranho
que a obrigava a olhá-lo fixamente a despeito de todos suas boas maneiras e educação.
Morgan Holt era alto, embora não tão alto como Niall. Era amplo de ombros e estreito de quadril como um atleta natural. Enquanto outros levavam casacos e mantos
contra o vento de outono, ele estava vestido com uma camisa de algodão com o pescoço aberto e uma simples calça, e seus pés estavam nus.
Mas sua cara tinha algumas singularidades significantes. Oh, era bastante formoso, não do modo convencional preferido pelas mulheres da sociedade de Denver,
mas sem lugar a dúvidas atraente. "Rude" era a palavra que lhe veio à cabeça. Estava bem barbeado, não fazendo nenhuma concessão na moda de largas costeletas e bigodes.
Seu cabelo negro caía até seus ombros, como um índio, e suas sobrancelhas eram como navalhadas escuras em cima de seu penetrante olhar dourado. Algo em sua cara,
em sua expressão, exercia uma fascinação sobre ela que ia muito além de como se via.
Segredos. Sua cara estava cheia de segredos, uma superfície tranquila sobre ocultas correntes borbulhantes e em ebulição. Absoluta intrepidez. Feroz independência.
Todas as coisas que ela desejava possuir.
Morgan era um homem que nunca rogaria por um lugar no mundo. Nunca tinha que demonstrar nada. Ninguém o compadeceria.
Ele piscou como um gato ante o sol. Ela voltou a si bruscamente e se deu conta de que ele estava fazendo o mesmo exame metódico ao que ela o tinha exposto.
Seus olhos se foram ocultando à medida que passavam de sua cara a seu corpo mais abaixo e à cadeira com suas rodas especiais. E então ele encontrou seu olhar, e
ela viu o que ela tinha temido... e esperado. Quando os homens a olhavam, não viam uma mulher. Viam uma aleijada, uma garota a que nunca lhe permitiu crescer, uma
criatura para ser protegida e para ser mimada, mas nunca ser amada. Não como um homem amava a uma mulher, como seu pai tinha adorado a sua mãe.
A maior parte do tempo era capaz de ignorar a masculina moléstia ante sua deficiência. A maior parte do tempo não se permitia pensar nos sócios do Niall, ou
nos amigos de seu irmão, como homens. Essa parte intacta dela permanecia fechada, segura, dentro dela.
Até que um homem como este chegou. E de repente, dolorosamente, era consciente de sua poderosa masculinidade e de seus próprios defeitos como mulher.
-Senhorita Munroe - disse ele.
Ela começou, logo que esperando que ele falasse.
-Encantada de conhecê-lo, Sr. Holt - disse, agarrando-se à frase de rotina. -Qual é sua área de trabalho no circo? -Ela sorriu cuidadosamente. -É você o domador
de leões, talvez?
Ele fez um som com a garganta que ela adivinhou era uma risada.
-Não há leões aqui. Nenhum animal enjaulado, exceto um. Poderia dizer-se que eu o domestico, tanto como se permite ser domesticado.
Sua voz era de barítono, um pouco áspera, sem o acento refinado que o Sr. Wakefield tinha tido, ou a insinuação de uma educação mais avançada que marcou o discurso
de Harry French. Tinha sua própria música particular, como o suspiro do vento nos pinheiros da montanha.
-E que tipo de besta é, Sr. Holt? -perguntou ela.
-Uma que você nunca viu antes.
-Estranha e mortal, suponho?
-Sim - Ele olhou fixamente seu rosto como se pudesse discernir seus pensamentos por pura determinação. -O que faz você, Senhorita Munroe? A que se... dedica?
Ou não se dedica a nada?
Estava zombando dela. Ela apreciava ler a voz e as expressões, e não cabia dúvida que Morgan Holt queria provocá-la.
Ela olhou ao redor para ver se Niall escutava, mas ele estava em uma profunda conversa com o Sr. French e Caitlin Hughes. Ulysses se tinha ido, e só Tamar olhava
de longe, enquanto uma serpente lhe enrolava no alto do braço.
-Você se refere, possivelmente, a isto? -disse ela, assinalando seu corpo. -Você acredita que alguém em minha situação é incapaz de fazer algo útil? Eu lhe
asseguro que nem minha mente nem meu coração estão paralisados, Sr. Holt.
Logo que as palavras saíram de sua boca, perguntou-se de onde tinham vindo, e por que tinha revelado tanto a um estranho hostil. Ele não a conhecia, nem ela
a ele, mas ela se sentia como se a estivesse pondo a prova, entrando em uma batalha da que não entendia a causa.
E isso era ridículo. Depois de tudo, ele era um empregado, parte de um mundo separado da sua por classe, dinheiro, e por gostos.
-Perdão - disse ela amigavelmente. -Entendi mal sua pergunta.
-Harry disse que sua família é importante no Colorado - disse ele. -Seu irmão contratou a companhia do Harry sabendo que não tinha outra opção que aceitar sua
oferta, queria ele ou não.
Ele fez um buraco na terra com o pé.
-Quando um tem dinheiro, tudo é possível, não é certo?
Agora ela entendia seu antagonismo. Ele não sentia desprezo por sua incapacidade, mas sim por sua riqueza. Estava ressentido do que ele e sua gente careciam
e do que eles deviam ao Niall. Possivelmente seus próprios antecedentes eram de pobreza.
Isso não era desculpa para sua descortesia.
-Já vejo - disse ela. -Você decidiu que ter dinheiro faz a uma pessoa incapaz de ser virtuosa ou trabalhar honestamente. É à riqueza a que você se opõe, ainda
quando lhe proporciona um emprego. Lamento sinceramente que sua vida tenha sido tão difícil, Sr. Holt.
Ah. Isso penetrou sua armadura.
-É você muito amável, Senhorita Munroe - disse ele curvando o lábio. -Suponho que quando um se passa a vida ajudando a seus inferiores, não adverte o que sua
própria vida está perdendo.
Ela não permitiu que ele notasse seu estremecimento. Quem em nome do céu se acreditava que era? Ele não a conhecia, nem sabia nada sobre ela. Ela conteve seu
gênio, desorientada por sua cólera crescente. Quase tinha esquecido como era a verdadeira fúria. A causar pena muito mais que nada do que Morgan Holt havia dito.
-Posso ver que minhas atividades não lhe interessariam -murmurou ela. -Eu não domestico bestas perigosas, simplesmente persuado às mais relutantes.
-Como me descreveria? -perguntou ele brandamente. -Perigoso ou resistente?
Suas perguntas não tinham sentido a menos que fossem outra provocação injustificada. De que ele pudesse ser perigoso, ela não tinha nenhuma dúvida... embora
sabia que não para ela. Como poderia sê-lo? Só era um homem, orgulhoso, grosseiro, e difícil, mas ainda assim só um homem. Ela podia escapar de sua companhia sempre
que quisesse. E quanto a resistente...
-Parece-me que gosta das adivinhações, Sr. Holt -disse ela, -mas eu prefiro deixar essas diversões para meus amigos.
Olharam-se fixamente um ao outro. Athena se sentia cada vez mais incômoda, e o novo, fantasmal formigamento que sentia em suas pernas se fez mais pronunciado.
Não, não em suas pernas... algo em cima e entre elas. A boca lhe secou. Pensou em chamar o Niall e lhe pedir que a levasse a casa, mas de sua garganta só saiu um
murmúrio.
Isto era bastante ridículo. O Sr. Holt era um desafio, mas ela tinha encarado tais desafios antes, tanto de desumanos empresários como de desconfiados pobres.
Estava segura de que poderia ganhar, a não ser a avaliação do Morgan, pelo menos seu respeito. Parecia importante que o conseguisse, com tal de que não tivesse que
ceder muito. Era necessário se ela devia ajudá-lo.
Ajudá-lo? O que tinha posto esse pensamento na cabeça? Ele não era um indigente ou um doente, só tinha más maneiras..
-Não quis ser descortês - disse ela. -Nós, simplesmente não nos entendemos um ao outro. Somos...
-Muito diferentes - Uma estranha expressão passou pelo rosto dele. Se ela não o tivesse conhecido melhor, poderia ter pensado que era tristeza. Solidão. Mas
então ele riu, quebrando a ilusão. -Se alguma vez fosse a seu mundo, Senhorita Munroe, você me teria que manter com uma correia.
Ela soube que era melhor recuar. Devia haver algo realmente mal nele, uma grande amargura, ou alguma desordem sutil da mente. E entretanto, se o considerava,
ela sabia que a explicação era muito singela. Havia muito mais do Morgan Holt do que o olho via.
Seus olhos. O que acontecia seus olhos?
O silêncio inquieto se viu interrompido com um repentino tumulto no bordo do terreno. Uma caravana de vistosas carruagens apareceu atrás do Niall, e Athena
os reconheceu imediatamente. Ela suspirou com alívio e apreensão mesclados. Não soube quem havia dito a seus amigos sobre o circo, mas estava bastante contente com
a distração.
-Se me desculpar, Sr. Holt - Ela moveu sua cadeira, tratando de seguir seu próprio caminho, mas se encontrou a si mesma sendo propulsada para frente por mãos
fortes e seguras. Soube que o toque não era do Niall. Apesar do mau humor de Morgan Holt, ele empurrou sua cadeira com habilidade, evitando pedras e buracos com
destreza, como se o tivesse estado fazendo toda sua vida.
Possivelmente era uma forma de desculpar-se. Ela logo que podia opor-se quando seus amigos já vinham a saudá-la.
Cecily Hockensmith ia à frente, seguida por várias das damas mais jovens e atrevidas do círculo da Athena. Avançavam em turba, exclamando e olhando fixamente
as assombrosas vistas e aromas.
-Minha querida Athena! -disse Cecily, sustentando suas mãos. -Ouvimos a respeito deste novo projeto maravilhoso de seu irmão, e tivemos que vir e vê-lo por
nós mesmas. Que inteligente de sua parte, alugar um circo para nossos estimados órfãos. Que original!.
Suzanne Gottschalk, loira e formosa, levou um lenço ao nariz.
-Que... perfumado é.
Millicent Osborn soltou uma risadinha.
-É obvio, tola. Alguma vez viu um circo antes? -Saudou a Athena. -Não preste nenhuma atenção a Suzanne. Estamos todos muito impressionados, não é certo?
-Certamente - disse Grace Renshaw, deslizando seus óculos por seu nariz - Outra pluma mais em seu gorro de caridade, por assim dizer. Não sei o que fariam os
desafortunados de nossa cidade sem você e o Sr. Munroe.
Athena ocultou sua satisfação e as saudou tudo com um sorriso.
-Elogia-me muito. Em realidade foi idéia de meu irmão, e bastante inesperada. Eu mesma acabo de chegar.
-Então não chegamos muito tarde para uma visita -disse Millicent - Deve ser terrivelmente exótico. E, é obvio, queremos contribuir com a função; deve nos permitir
ajudar! -Olhou por cima da cabeça da Athena-. Possivelmente este... cavalheiro?
Athena era agudamente consciente da presença do Morgan atrás dela, de seu tosco aroma e de seu masculino tamanho. E o fato óbvio de que não era um cavalheiro.
Era mais que provável que se estivesse preparando para insultar a suas amigas como tinha tratado de insultar a ela. Só podia rezar para que não o fizesse.
-Senhoras -disse ela, -me permitam lhes apresentar ao Sr. Morgan Holt, um dos artistas do Fantástico Circo Familiar do French.
As damas fizeram silêncio, observando ao Holt. Athena se perguntou se estavam tendo a mesma reação que teve ela, ou se simplesmente o encontravam uma tosca
curiosidade. A maior parte de suas amigas não compartilhavam seu costume de entrar nos bairros baixos para distribuir alimento e roupa. Para elas, ele não pareceria
muito diferente dos "baixos elementos", a respeito dos que seus pais e irmãos as tinham advertido.
-Vou levar - exclamou Suzanne. Millicent riu bobamente, e Grace a fez calar.
A nuca da Athena continuava fazendo cócegas.
-Estou segura de que o Sr. French estará agradado de nos mostrar os terrenos, já que o Sr. Holt deve ter outros compromissos.
-Que lástima - disse Cecily com gelada ênfase. -Não desejamos lhe reter, Sr. Holt.
Um cavalheiro teria tomado a despedimento de Cecily de bom aspecto e realizado uma digna retirada, mas Morgan Holt não se moveu. Em vez disso, foi Cecily quem
deu um passo atrás, chocando-se contra Suzanne e causando um pequeno alvoroço.
-Não tenho nenhum outro... compromisso - disse Holt em um tom ligeiramente zombador. -Posso lhe mostrar os primeiro lobos, Senhorita Munroe?.
Morgan ficou parado e permitiu a si mesmo as olhar fixamente, tão depreciativo como um corvo rodeado de tagarelas pardais. Não, não pardais, a não ser papagaios
extravagantemente emplumados que se aventuraram fora de suas jaulas por uma tarde.
A líder do bando aceitou sua homenagem com régia majestade, afetada e correta em sua cadeira de rodas e só levemente menos chamativa que as outras. E ele se
perguntou, não pela primeira vez, por que ficava com ela.
Seu encontro tinha sido menos que cordial. Ainda se ele não tivesse sabido quem era ela, a teria classificado como a classe de mulher -dama- que existia só
nas margens de sua vida: uma gravura em uma revista andrajosa; um manequim abarrotado de laços no braço em alguma barraca na poeirenta rua principal de um povo anônimo;
uma cara nos assentos da tenda durante uma função.
O que outra coisa poderia ser ela? Ele sabia que classe de pessoas eram ela e seu irmão. Seu pai os tinha invejado e imitado toda sua vida. Quantas promessas
tinha feito Aaron Holt a sua esposa e filhos, sempre começando e terminando do mesmo modo: "Não carecerão de nada assim que tenha um golpe de sorte", ou "Quando
for rico, dentro de um ano ou dois..."
Athena Munroe vinha de um mundo que Morgan logo que tinha roçado em estranhas oportunidades, tão estranho para ele como as massas de chá para um lobo do bosque.
O tecido de seu traje poderia ter vestido a uma família pobre durante um inverno inteiro. As pérolas em seu esbelto pescoço e orelhas eram de bom gosto e inclusive
mais custosas. Não lhe teria cuidadoso duas vezes se não lhe tivesse falado primeiro.
E então, no espaço de uns poucos minutos, havia dito mais a ela do que geralmente dizia a seus colegas de trabalho durante um dia inteiro.
E teve medo.
Ele soube a razão, embora não tivesse sentido. Quando viu pela primeira vez a Athena Munroe, quando olhou seus brilhantes olhos cor avelã, sentiu por um instante
que tinha encontrado a fonte da voz. A voz, a chamada do norte, a que tinha ignorado e tinha desprezado aquela noite em Colorado Springs.
O sentimento persistiu ainda quando se deu conta da loucura de tais pensamentos. Não foi certamente sua beleza o que o fez paralisar-se no lugar, olhando-a
fixamente como um menino a sua primeira mulher.
A cara da Athena Munroe era agradável e também suas feições, com lábios levemente cheios e maçãs do rosto altas. A pele era clara, a mandíbula teimosamente
firme. O cabelo era um marrom ordinário. A figura que ele podia ver era esbelta. Mas seus olhos... seus olhos tinham profundidades inesperadas. Trocavam de cores
com cada pequeno movimento, de marrom a verde e marrons outra vez. Olharam ao Morgan com uma desconcertante combinação de vulnerabilidade e desafio, e ele tinha
pressentido que estava assustada, não dele, mas sim de sua compaixão.
Estava inválida. Ele não podia imaginar um destino mais atroz que estar apanhado como ela, incapaz de correr. Isso era o outro, a imprevista qualidade que ele
tinha visto em seus olhos, a tristeza duradoura da permanente, devastadora perda.
Perda que ele entendia. A compaixão veio, e com ela, a classe da emoção que desprezava. Ele a tinha provocado e a tinha incitado, esperando quebrantar sua indesejada
compreensão, para afugentá-la ou incitar alguma observação pomposa que reforçaria a antipatia para os de sua classe.
Mas lhe tinha respondido com espírito, inclusive procurou uma desculpa, e ele sentia o início de uma relutante admiração a seu valor. Ficou a seu lado para
ajudá-la quando devia haver partido. Isso tinha sido um engano.
Ela não era como ele. Ela era uma dama, mimada, protegida, acostumada a fazer as coisas sua maneira, e agora que a via entre sua própria gente, soube que sua
compaixão estava desconjurada.
-Lobos, Sr. Holt? -perguntou ela brandamente, sem incomodar-se em voltar-se para ele. -Eu pensei que havia dito que não havia feras em seu circo.
Ele girou sua cadeira.
-Não bestas, Senhorita Munroe, só homens que atuam como eles.
-É obvio. Já vi um exemplo. Não preferiria você voltar com seus amigos?
Ela, como a fria, moréia beleza entre os papagaios, tratava de despedi-lo. Ele sorriu, mostrando os dentes.
-Sou tudo o que tem de momento, Senhorita Munroe.
-Possivelmente devamos vir em outro momento - disse a mulher de cabelo negro.
-Não - respondeu Athena. -Se o Sr. Holt estiver disposto a nos guiar, então sigamos adiante - Ela assentiu ao Morgan. -Quando você quiser.
Dessa forma ela trocou sua desvantagem e manteve sua dignidade, pondo-o em seu lugar outra vez. Não, ela não necessitava sua compaixão. Ele se plantou atrás
da cadeira e a empurrou na direção da grande tenda, seguido pela tagarelice dos papagaios de Athena.
Ele se debatia pensando como fazer para tirar de cima essas tolas criaturas, quando viu o irmão da Athena andando a passos largos para unir-se a eles. Ele inclinou
seu chapéu às damas, que sorriram bobamente em resposta, e sorriu a sua irmã.
-Bem? Está agradada, querida minha? Adverti-te que estas pessoas não são ao que sua está acostumada, mas...
-É encantador, Niall. Obrigado -Ela meio girou a cabeça, como se tratasse de ver a cara do Morgan. -Conhece sr. Holt? Acredito que ele... dirige os animais.
Niall olhou ao Morgan com indiferença, e então o enfocou com um duro olhar. Era óbvio que ele não tinha advertido quem empurrava a cadeira da Athena. Os instintos
de Morgan despertaram completamente, como o fariam na presença de um inimigo.
-Não fomos apresentados - disse Niall. -Sr. Holt, eu acompanharei às damas.
-O Sr. Holt estava a ponto de nos levar a dar uma volta - começou Athena.
-O Sr. French arrumou uma para um momento mais apropriado -disse Niall. Seu olhar continuava fixo em Morgan. -Todas suas amigas serão bem-vindas, é obvio.
A mulher de cabelo negro se aproximou do Munroe.
-Acabo de dizer a Athena quão generoso é você proporcionando um entretenimento tão grande para os meninos.
-Temo que eu não possa me levar o crédito, Senhorita Hockensmith. Isto foi inteiramente idéia da Athena.
-Niall... -começou Athena.
-Por favor, não o negue - disse a Senhorita Hockensmith, cobrindo a mão da Athena no braço da cadeira. -Faz muito, querida minha. Não podemos mais que nos admirar
por sua dedicação.
Morgan estudou à mulher. Sua antipatia imediata para ela era quase tão intensa como o era para o Niall. Ela se pendurou no braço de Munroe como se o reclamasse
como seu companheiro, mas seu aroma não revelou nem rastro de interesse.
Athena retirou brandamente a mão.
-É muito amável, como sempre.
-Nada disso. Mas certamente está cansada, querida Athena. Todos devemos voltar, como seu irmão aconselhou.
Morgan apertou seus punhos nos cabos de cadeira, reconhecendo o que estava vendo. Athena era a fêmea principal de sua manada, e Hockensmith cobiçava seu lugar.
Entre lobos tal competência poderia chegar a provocar uma ferida, possivelmente a morte. Mas estas criaturas eram mais propensas a brigar e bicar que a rasgar e
romper. Ele olhou a Athena para ver como respondia.
Mas lhe negou a oportunidade de averiguar, quando Harry e Caitlin reapareceram, com Tamar a uns poucos metros atrás. Caitlin se deteve uns poucos passos das
damas de sociedade. Olhou ao Niall Munroe, que lhe devolveu o olhar. O aroma da atração era inconfundível.
Munroe e Caitlin? Era tão provável como ele acasalar-se com a irmã de Munroe. Mas ele não foi o único que advertiu o intercâmbio de olhares. Os escuros olhos
da Senhorita Hockensmith se estreitaram e se fixaram em Caitlin. Só lhe faltou grunhir.
Harry se apressou até a cadeira da Athena, um trio de pôsteres enrolados em suas mãos.
-Ah, Sr. Munroe, Senhorita Munroe... senhoras! Tinha pensado que tudo se queimou no fogo, mas consegui salvar vários de nossos papéis. Vocês os podem encontrar
divertidos.
Entregou um ao Niall, um a Athena, e o terceiro à Senhorita Hockensmith.
-Normalmente teríamos muitos mais impressos como avança quando devemos nos apresentar em um povo, mas já que esta é uma função para seus meninos, Senhorita
Munroe, não será necessário.
Niall Munroe se meteu seu pôster sob o braço sem desenrolá-lo, e a Senhorita Hockensmith fez o mesmo. Athena o olhou e sorriu ao Harry.
-Estou segura que os meninos gozarão vendo tudo isto. Obrigada, Sr. French.
Ele assentiu e olhou ao Morgan.
-Ah, Morgan, meu moço. Talvez o Sr. Munroe te comunicou que planejamos uma visita e um ensaio para a Senhorita Munroe e seus amigos dentro de uns dias. Desejamos
fazer nossa melhor atuação, não é certo?
Morgan entendeu a insinuação, se não a razão de Harry para fazê-la. Deu um passo afastando-se de cadeira da Athena. Inesperadamente, Athena girou para encará-lo
e lhe sorriu como o tinha feito com o Harry.
Ele se esqueceu que algo que tivesse tido em mente. Falar foi impossível.
-Obrigado, Sr. Holt, por oferecer-se a nos acompanhar -disse ela, estendendo a mão. -Voltaremos a nos encontrar.
Ele tomou sua mão sem ser consciente do gesto. Era pequena e morna na sua, e sua luva não diminuiu a firmeza de seu punho. A que se devia que uma garota rica
mimada fosse tão forte?
-Quereria você ver meu pequeno mascote, Senhorita Munroe? -Tamar entrou no meio deles, estirando uma de suas serpentes para a cara da Athena. A serpente sondou
o ar, a língua oscilante. Athena estremeceu e se manteve muito quieta.
-Tamar -disse Harry, -não acredito que a Senhorita Munroe...
-Oh, não se preocupe. É bastante inócua - Tamar acariciou a cortada cabeça meigamente. -Inócua para meus amigos.
-Tamar - Morgan agarrou seu braço. -Leve isso longe e deixa-a sozinha.
Ela permitiu que a afastasse.
-É obvio, meu querido lobo - sorriu a Athena. -Estou segura de que chegaremos a nos conhecer melhor. Tenho a muitos outros pequenos companheiros ansiosos por
conhecê-la.
Niall deu um passo para Tamar, olhou ao Morgan, e apertou a mandíbula.
-Sr. French, confio em que se certificará de que nenhum animal perigoso possa andar solto pelo acampamento - Atrás da apressada resposta do Harry, tomou sua
posição depois da cadeira de sua irmã. -Vamos, Athena. Levar-te-ei a carruagem. Senhorita Hockensmith, senhoras.
Ele inclinou seu chapéu com um olhar final e revelador a Caitlin e o conjunto se afastou rapidamente antes que Athena pudesse falar outra vez. A maior parte
de seu grupo de adoradores se foi com eles, e Tamar se afastou para as tendas.
A senhorita Hockensmith se atrasou. Descartou ao Morgan com um olhar e submeteu a Caitlin a um comprido e lento exame.
-É você uma das artistas, querida? -perguntou. -É um disfarce muito ousado. Se for à cidade, espero que levará algo menos... provocante.
Caitlin olhou para baixo, a sua apertada calça e saia.
-Eu...
Morgan viu com assombro que a afiada língua doe Caitlin estava tão muda como a sua. Voltou-se para a Senhorita Hockensmith.
-Caitlin tem uma razão para usar o que tem posto. Você viu assim -disse, assinalando o elaborado vestido da mulher com um movimento do queixo, -para que os
homens farejem detrás dele.
Ela olhou fixamente ao Morgan, os lábios abertos de assombro.
-Como se atreve....
-Ele se atreve... bastante - disse Caitlin, encontrando ao fim sua voz. -Eu não me zangaria com ele.
Nenhum insulto o bastante apropriado vinho à mente da Senhorita Hockensmith.
-Já vejo que o Sr. Munroe foi enganado por... por... terei que dizer-lhe.
Morgan grunhiu. Não um grunhido pequeno do fundo da garganta, mas da classe que utilizaria se um lobo menor viesse a desafiá-lo. A Senhorita Hockensmith empalideceu
e retrocedeu vários passos rapidamente, tropeçando com suas saias ridiculamente limitadas. Sem outra palavra, rodeou-os e se afastou atrás dos outros. Caitlin deixou
sair um suspiro explosivo.
-Isso não foi uma boa idéia, Morgan.
-São todos iguais, Vagalume. Não confie neles.
-Não me parece que siga seus próprios conselhos.
-Como?
-Vi a forma em que olhava a Athena Munroe.
Pela segunda vez em poucos minutos, ela o deixou mudo.
-E que forma é essa?
-A forma em que nunca te vi olhar a outra mulher antes.
-Melhor te faz cortar o cabelo, Vagalume. Tampa-te os olhos.
Ela sacudiu a cabeça.
-Tem uma boa cara de jogador de pôquer, Morgan, mas é um mentiroso terrível. O que acontece ela? É sua linda voz? Suas finas maneiras? -A expressão de Caitlin
era anormalmente séria. -Tem melhor gosto de que pensei. Eu gosto.
-E nunca tinham gostado dos intrusos - ele disse com dureza. -Até hoje.
-Niall Munroe é um cavalheiro. Isto o fez ele, a fim de contas. Não poderia ser mais generoso.
-Que te passa com ele, Vagalume? É seu fino traje? A maneira extravagante em que fala? A maioria das fêmeas o considerariam bonito.
-Pela forma em que sua irmã lhe olha, ela deve pensar que você também é bastante bonito.
O cabelo atrás de suas orelhas se arrepiou.
-Eu não sou um cavalheiro.
-E eu não sou uma dama. Ainda... -Ela encolheu os ombros. -Meus sentimentos estiveram equivocados antes. Possivelmente agora não o estejam.
Não lhe perguntou a que "sentimentos" em particular se referia. Se ela escolhia à lua depois do sangue-frio do Niall Munroe, era seu direito... tanto como ela
devia esperar que outros não tivessem tais sentimentos. Ele menos que ninguém.
Caitlin bocejou com exagerada indiferença.
-Bem, vou à cama. Logo amanhecerá. Deveria descansar também, inclusive os lobos precisam dormir - Ela se dirigiu a sua barraca, e depois de um momento ele se
dirigiu a que compartilhava com o Ulysses.
O homenzinho jazia em sua cama de armar, seus braços sustentando sua cabeça. Abriu seus olhos quando Morgan entrou.
-Algo te incomoda - observou. -Eu notei quando conhecemos os Munroe.
-Todo mundo está interessado em meus sentimentos esta noite -grunhiu Morgan.
Ulysses se elevou sobre seus cotovelos.
-É só que estranha vez revela seus pensamentos internos, e é estranho que eu seja capaz de me precaver deles.
-Sinto-me honrado de que o encontre entretido.
-Nada disso - Ulysses balançou suas curtas pernas sobre o bordo do cama de armar. -Naturalmente me interessa o bem-estar de meus companheiros, especialmente
quando um deles sacrificou muito ao ficar entre nós.
Morgan verteu água de um cântaro e bebeu vários copos seguidos.
-Não há nada mau comigo. Não estou interessado nesta Athena Munroe.
-Ah.
-Às vezes, Wakefield, seu cérebro se interpõe no caminho de seu sentido comum.
-Possivelmente. Mas sua própria objetividade poderia ficar em dúvida, meu amigo.
-Quando me viu com uma mulher?
-Nunca. Mas você não é como os outros homens, exceto, imagino, de uma maneira essencial. Nem o homem nem o lobo existem sem certos instintos pela conservação
de sua espécie.
-Inclusive você?
-Para mim seria inadmissível ser pai - disse gravemente Ulysses. -Mas você tem um dom que deve preservar.
-Vi à Senhorita Munroe uma vez, e Caitlin e você já decidiram que a quero - riu. -Como se ela me quisesse, embora esteja inválida. Não sou humano. Preocupa-se
por Caitlin, não por mim.
Ulysses guardou silêncio por um momento.
-Temo-me que tenho que te advertir que fala em sonhos.
Morgan se girou rapidamente para encará-lo.
-O que?
-Falou coisas... profundamente dolorosas. Sei que não desejava as compartilhar com estranhos, mas sou seu amigo, Morgan. Escutar-te-ei, devo-lhe isso.
-Que disse?
Ulysses sustentou seu olhar sem temor.
-Falou de seu pai. E de barras da prisão.
Morgan lançou seu copo sobre a tábua que servia como mesa.
-Sou um sentenciado. Isso troca sua amizade, Professor?
-Não. Só me convence de que deve falar destas coisas com alguém, se quer as deixar atrás.
-Como você deixou atrás seu passado? -disse Morgan rindo-se. -Eu...
A lapela da tenda se abriu e Tamar entrou. Olhou ao Ulysses e logo o ignorou, indo diretamente para o Morgan.
-Estive-te esperando - disse ela.
Morgan a olhou friamente.
-Não estava informado de que planejássemos nos encontrar.
-Mas disse que não queria passar esta noite sozinho.
-Está fazendo o parvo, Tamar - disse Ulysses, as palavras soaram cortantes como um ianque.
-Não me importa sua opinião, pequenino.
-Morgan não quer nada contigo.
-Ah, agora o manequim fala por você, meu lobo?
Ela se sentou na cama de armar ao lado de Morgan e lhe respirou na orelha.
-É seu dono? Ou é que já se apaixonou pela menina na cadeira?
Morgan ficou tenso.
-Se quiser ternos sentimentos, procura em outra parte.
-Ah, mas encontro o amor tão tedioso como você. Temos muito em comum, você e eu. Compartilhamos só o que desejamos não compartilhar, não mais - Sua larga língua
se enroscou no lóbulo da orelha. -Vamos. Vamos longe, e me permita te ensinar.
O corpo de Morgan tinha começado a pulsar de uma maneira que ele tinha ignorado muitas vezes. Esta era uma dor que não tinha porque suportar, especialmente
quando a cura estava tão livre de consequências. Ele e Tamar poderiam utilizar um ao outro sem ilusões ou esperanças
Ulysses e Caitlin pensavam que ele se sentia atraído pela Athena Munroe. Havia uma forma de lhes fazer ver quão equivocados estavam, e purgar seus próprios
sentidos do perturbador efeito da Athena.
Levantou-se, puxando a Tamar com ele.
-Muito bem - disse. -Nos daremos um ao outro o que queremos. Mas não espere um amante. Não estou de humor para ser gentil.
As pupilas dela estavam aumentadas pelo desejo e o entusiasmo.
-Não quero um amante - Se aproximou e o beijou, empurrando a língua em sua boca. Ele respondeu com igual violência, desprezando-se. Quando ela o tirou da barraca,
lançou um olhar final e triunfante ao Ulysses.
Morgan não olhou para trás.























CAPÍTULO 6

As ruas da zona comercial de Denver representavam tudo o que Morgan odiava. Baixou com passo decidido a Rua Dezesseis, mantendo os olhos fixos em seu caminho,
de cabeça baixa por causa de degraus ocasionais e fazendo todo o possível por ignorar o nada prazenteiro ruído e o mau aroma dos cavalos, esterco, comida danificada,
fumaça, corpos sem lavar, e a essência de muitos humanos juntos em um mesmo lugar.
Ele tivesse preferido não ter que vir a este lugar. A ilimitada generosidade dos Munroe, havia provido aos principais artistas do circo de um alojamento no
mais fino hotel de Denver: o Windsor. Morgan deveria estar incluído entre os favorecidos, mas antes se enforcaria que ficar na cidade. Visitá-la já era o suficientemente
mau.
Assim permaneceu com o grupo do circo, os operários, com a equipe técnica, e com os artistas de menor grau, vendo como o circo voltava a cobrar vida. Aos poucos
dias de instalar-se em Denver, o Fantástico Circo Familiar do French estava em ordem, ocupada praticando e preparando-se para a atuação dos órfãos, que seria oferecida
ao término da semana. Todos tinham o suficiente para comer, e novos trajes estavam sendo confeccionados pela costureira para substituir aqueles que estavam gastos
ou queimados pelo fogo.
Harry fiscalizava as melhoras e as restaurações com ainda maior jovialidade que antes. Caitlin tinha preparado seus cavalos de maneira que estes tinham tomado
um brilho acetinado de saúde renovada, Florizel e seus companheiros estavam aperfeiçoando um novo ato de palhaços do qual ele estava excessivamente orgulhoso, os
malabaristas, acrobatas, e os treinadores de cães, concentraram-se em realizar suas tarefas com um alegre ensimesmamento. A esperança flutuava no ar como um sedutor
perfume.
Morgan cumpriu com o que se prometeu a si mesmo. Não visitou o Tamar de novo. Sua única noite com ela tinha sido mais que suficiente para afastá-lo de qualquer
desejo de compartilhar sua cama uma segunda vez. Era fácil tirá-la de seus pensamentos.
Não podia dizer o mesmo de Athena Munroe. Não se tinham encontrado novamente, mas seus olhos e seu aroma ainda voltavam para ele estando acordado ou dormido.
Não havia nenhuma razão para isso, e não tinha nenhum sentido. O dia que a Srta. Munroe e seus amigos de sociedade foram realizar a prometida visita ao circo,
ele tomou a imediata decisão de visitar a Ulysses no Windsor, e permanecer ali. A única maneira de liberar a seus pensamentos da Athena Munroe era a de evitá-la
tanto como fosse possível até que a companhia deixasse Denver.
E isso não seria o suficientemente logo para ele. Caminhou pelo meio-fio, apartando-se das calçadas de madeira, preferindo sentir o cascalho a sentir as árvores
mortas e as nuvens constantes de pó a sentir o contato humano. Usava sapatos, para não chamar muito a atenção, aquilo era uma de suas poucas concessões à civilização.
E não envergonharia ao Ulysses.
Deslizou entre as carruagens, carros e vagões fugindo de toda classe de carros de carga. Os vagões de tanques de água, orvalhavam a terra em um vão esforço
de manter o pó situado, e água suja corria pelas sarjetas a ambos os lados da rua. Os fétidos aromas do rio e das fundições ficavam suspensos no ar imóvel. Bandas
de jovens vagabundos se plantavam perto e se mofavam dos transeuntes, embora ao Morgan não incomodaram.
Este fez uma careta de dor ante o constante rumor de serrar e martelar de cada nova construção que se elevava com ao longo do distrito.
Os altos edifícios de tijolo e ferro a ambos os lados da rua pareciam inclinar-se para dentro um pouco mais com cada passo que dava, como se tentassem esmagá-lo.
Passou ante numerosas casas chinesas de lavagem e secagem de roupa entre botequins e comércios. A Casa da Moeda com seus tijolos caindo a pedaços, e o enorme bloco
do "Tabor" na esquina do Larimer.
O Hotel Windsor se elevava a cinco andares na concorrida intercessão da Dezoito com o Larimer, volumoso e construído com uma pesada pedra cinza. Morgan levantou
a vista para ele, com todo o pêlo de seu corpo arrepiado prestando atenção. Homens e mulheres, a maioria bem vestidos e com ar próspero, entravam e saíam pela porta
despreocupadamente como se o peso vertical da construção não pudesse derrubar-se em qualquer momento sobre eles.
-Está ébrio? -gritou alguém. -Sai do caminho!
Fez-se a um lado enquanto um pesado vagão carregado ocupava o lugar onde ele tinha estado parado. Seus ouvidos lhe doíam com o ruído. Podia escapar disso, ou
de volta ao terreno do circo ou entrando no hotel.
Subiu à calçada e abriu às portas. Um par de senhoras, distraídas com sua conversa, chocaram-se com ele ao sair. Detiveram-se olhando-o surpreendidas e logo
se apuraram em seu caminho.
O vestíbulo se estendia ao redor dele, uma reluzente caverna de dourada ornamentação, ferro forjado, e cobre gentil. Cadeiras e sofás com almofadões de veludo
dispostos em grupos com planta em vasos de barro.
Ecos de risadas e conversas. Morgan sentiu o aroma de comida recém feita que vinha desde outra entrada, a qual supôs devia conduzir ao sala de jantar do Windsor.
Manteve-se perto do bordo do vasto espaço e se dirigiu ao mostrador onde jovens recepcionistas esperavam aos hóspedes com suas bolsas e vultos. Morgan se manteve
a um lado enquanto o recepcionista mais próximo terminava com um casal amadurecido e chamava um botões, para a seguir dirigir-se para o Morgan.
- Posso lhe ajudar? -perguntou, avaliando ao Morgan com um olho experiente.
- Ulysses Wakefield - disse Morgan. -Seu quarto.
O recepcionista consultou o livro e assentiu.
- Sim, está hospedado conosco. O Sr. Wakefield lhe está esperando?
- Me diga onde está, e o encontrarei.
- Mandarei um menino para lhe fazer saber que você está aqui, senhor...
- Holt.
- Muito bem, senhor Holt. -Fez soar uma campainha. -Um momento.
Morgan se reclinou sobre o mostrador, suas orelhas lhe dando ferroadas ante todos os sons. Torvelinhos de perfumes sufocantes seguiam às mulheres elegantemente
vestidas como se fossem trens invisíveis. As fragrâncias artificiais que as fêmeas humanas usavam tão alegremente quase conseguiam cobrir seus aromas naturais. Um
desses aromas naturais veio a ele, um familiar para ele desde fazia pouco, e rastreou a sala procurando sua origem.
Localizou-o entre um grupo de mulheres tagarelando, era um dos papagaios que tinham ido atrás a Athena Munroe para ver o circo. Rapidamente identificou-a entre
as três damas que ficavam a dois mais das que tinham estado no circo com a Athena. Somente faltava a do cabelo negro.
Morgan se afastou uns passados do mostrador para olhar mais de perto. Athena não estava entre aquelas mulheres, mas ele escutou o nome "Munroe" elevar-se da
conversa geral.
-Senhor?
Ignorando ao recepcionista, Morgan tomou uma decisão repentina e foi depois das amigas da Athena. Ninguém se precaveu de seu passo. Seguiu às mulheres até a
entrada da sala de jantar, onde um homem obsequioso as acompanhou até uma larga mesa que se encontrava perto. Morgan se deteve para estudar o quarto.
Era um lugar muito mais luxuoso que qualquer restaurante ou bar nos que Morgan tivesse estado antes de seu encarceramento. Havia tantas mulheres como homens
comendo e bebendo nas mesas brancas de linho. Sorviam seu vinho e comiam seus filetes sem uma preocupação.
O garçom dirigiu ao Morgan um olhar incerto, como se preferisse indicar ao Morgan algum outro local de menor categoria.
-Almoço para um, senhor?
Uma mesa pequena, desocupada, encontrava-se o bastante perto das damas.
-Leve um filé a aquela mesa - disse. -Mal passado. E água pura. -Mostrou seus dentes em um sorriso. -Não se preocupe. Posso pagar.
O homem abriu e fechou a boca.
-Muito bem, senhor.
Morgan não esperou a que acompanhassem a seu lugar. Sentou-se na cadeira estofada, prestando atenção às conversações que se entreteciam.
-Oh, mas realmente, querida, não perdeu muito. Estávamos convidadas a ver um ensaio hoje, mas declinei o convite.
-E eu. Uma vez é suficiente.
As duas vozes pertenciam às amigas da Athena. Morgan levantou sua cabeça sem girá-la.
-Foi idéia da Athena? -perguntou uma terceira.
-Assim o disse seu irmão. E não é isto típico dela, trazer um circo inteiro a Denver para seus órfãos?
-Verdadeiramente... é tão ridículo. Ela não pode resistir a ultrapassar o que fazem outros. E fazer-se ver como uma santa... oh, devo me desculpar. Falo muito
alegremente.
-Sabe que aqui está entre amigas. E todas estamos de acordo em que Athena... bom, como podemos evitar sentir compaixão por ela? Como podemos não apoiar seus
projetos, não importa quão inconvenientes sejam?
-Você pode dizer isso, Marie, porque não lhe chamaram mais de 5 vezes o mês passado para algum novo projeto ou outro. Tive-me que perder um almoço e duas recepções
por causa dela. E ter que vê-la nessa cadeira...
-Pobrezinha. Ela nunca se casará.
-Mas ela alguma vez será uma de nós... como poderia? Se não tivesse estado vadiando como um moleque da rua quando era mais jovem, em vez de aprender bom comportamento
e decoro como o resto de nós, não estaria inválida. Mas seu pai a mimou e a deixou correr livre. Agora não tem mais que fazer que fingir ser superior que qualquer.
-Isso é verdade, Suzanne. Esses caros vestidos franceses estão esbanjados nela. Como pode exibi-los de maneira apropriada quando não pode estar de pé, e muito
menos dançar? E é tão boa. Sinto-me como um terminante ogro em sua presença.
-Ela deve esforçar-se muito mais para ser perfeita tendo um defeito tão grande.
Uma das mulheres sussurrou.
-Não esqueçamos o rumor de que sua mãe...
-Millicent! Recorda onde está.
-Não devemos esquecer que seu irmão é um homem importante em nossa cidade e um solteiro casadouro - disse a primeira mulher com uma voz irônica. -Não seria
inteligente desprezar a sua irmã. -Fez uma pausa depois de beber. -Devemos enfrentar os fatos, queridas minhas. Athena é nosso caso de caridade, e devemos aceitar
essa carga.
Houve um murmúrio de acordo, e a discussão se voltou para o menu.
Morgan olhou suas mãos, apertadas sobre a mesa.
Assim que estas eram as amigas da Athena. Estas eram as que pareciam tão diferentes e cheias de louvores quando estavam com ela, as companhias às quais Athena
via com toda confiança. Falavam dela como se fora um objeto de desdém, não de admiração.
Morgan tentou, e fracassou, entender suas furiosas emoções. Athena Munroe nem sequer estava presente, e ainda assim criava uma tormenta em seu estômago e em
seu coração que não o deixava descansar. A compaixão que havia sentido a primeira vez que a viu voltou, o triplo do que tinha sido antes.
Por que? Por que um breve encontro lhe tinha feito isto? Que poder tinha ela, ela que carecia do honesto respeito de suas próprias amigas? Tudo o que ele sabia
da Athena era o que tinha observado e os que haviam dito dela as que a criticavam... e o que ele conhecia das pessoas como ela. Este não era seu mundo, esta não
era sua classe. O que faziam entre eles não tinha importância para ele.
Mas nos últimos meses tinha recordado o que era ter amigos, não estar sozinho. Reconheceu a alguém que era uma pária, não importava quão diferente fosse dele.
E Athena não sabia que era uma pária.
Cada característica negativa que tinha esperado encontrar na Athena se expor nestas mulheres: arrogância, brincadeira, o superficial desejo de conforto e comodidade.
Ainda assim Athena estava ajudando aos desafortunados, quaisquer fossem seus motivos, e estas refinadas "damas" se mofavam de seus esforços. Se não era uma delas,
o que era?
Levantou-se e, recordando o filé, deixou cair várias moedas sobre a mesa. Não foi procurar ao Ulysses. Passou junto ao garçom, cruzou a porta, passou através
do vestíbulo e saiu à luz do sol da tarde. Tinha começado a ver que era inútil perguntar-se sobre o impulso que o conduzia; era o instinto, ao qual se obedecia de
uma forma em que a razão humana não podia.
O instinto o tinha conduzido ao circo. Tinha-lhe dado amigos quando não os queria. Agora o instinto o empurrava de volta ao circo.
A Athena Munroe.

Tão pouco digna como devia parecer, Athena logo que podia conter sua excitação enquanto Harry French lhe dava as boas vindas uma vez mais ao Fantástico Circo
Familiar do French.
Ele se tinha sentado a sua direita na carruagem, tagarelando todo o tempo enquanto a levava através do terreno e a assinalava várias das instalações do circo:
o caminho central, com suas atrações anexas e suas concessões, a barraca-cozinha, as lojas e vagões dos artistas e dos operários que faziam possível o circo, e é
obvio, a grande tenda, brilhante e nova. Cada porção do terreno estava cheia de atividade, como se os artistas esperassem uma imensa multidão de clientes em vez
da uma audiência de órfãos.
Era melhor que nenhum outro convidado estivesse presente no ensaio de hoje para ser testemunha do infantil entusiasmo da Athena. Embora tinha convidado a seus
amigas e a seus sócios do orfanato, cada um deles tinha dado um pedido de desculpas ou uma desculpa. Normalmente, Athena se teria preocupado por tantas negativas,
mas estava muito nervosa para insistir.
Não procurou o Morgan Holt. Ele tinha estado inegavelmente rude durante seu encontro anterior; alguns poderiam haver dito que essa era uma maneira suave para
definir seu comportamento, com seus duros olhares e sua absoluta falta de decência. Ele, como a mulher Tamar, tinham sido os únicos artistas do circo que tinha conhecido
que não lhe tinham dado uma genuína boa-vinda.
Mas Athena não tinha tido medo... não dele. Essa era a parte estranha; havia sentido uma necessidade nele, que lhe falou no mais profundo de seu coração.
O que poderia necessitar esse homem, especialmente dela? Não era nem um indigente, nem um bêbado, nem um órfão. Parecia ressentir-se pela mera idéia de que
ele ou seus amigos pudessem necessitar um patrocinador, sem importar o bem intencionado ou a causa que fosse. Saiu-se com a sua demonstrando que era imune às fraquezas
humanas.
Sim, isso era, ele tinha necessitado provar algo. Mas por que a ela? Morgan Holt não podia saber muito dela, exceto por rumores.
Rememorou-o, com perfeito detalhe: seus olhos, a grossa juba de seu negro cabelo, os marcados músculos e a graça natural com a que se movia. A calidez de sua
forte e nua mão, o suficientemente quente para acender suas luvas em chamas. A maneira em que se ficou com ela e tinha empurrado sua cadeira, como se se conhecessem
fazia anos em vez de minutos.
E a forma em que a tinha defendido da encantadora de serpentes. Tamar era de sua própria classe, ainda assim ele a tinha advertido que se afastasse com uma
implacável resolução. Durante esse só instante, tinha parecido tão galante como qualquer cavalheiro protegendo a sua dama.
Como se tinha metido essa ideia em sua cabeça? Ela não era sua dama. A mera noção era ridícula.
Ela e Morgan Holt não tinham nada em comum. Ainda assim apesar das diferenças que a separava da gente do circo, gostava de Caitlin, Ulysses, e Harry French.
Sim, lhe gostavam de muito.
-Aqui estamos - disse Harry, fazendo uma parada na entrada da grande tenda. Tinha o tamanho de uma grande porta de entrada, o suficientemente larga para que
entrassem várias pessoas de uma vez. -Isto é o que chamamos a porta dianteira, Srta. Athena. Os artistas normalmente entram pela porta traseira, aquela é a entrada
da parte traseira, onde se preparam para suas atuações.
Athena lhe sorriu.
-Todos estes interessantes termos. Acredito que poderia manter toda uma conversa a respeito de vocês, e ninguém fora do circo poderia entender uma palavra!
Harry riu entre dentes.
-Essa é a idéia. -Começou a comportar-se com uma falsa pomposidade. - Está sendo muito favorecida, minha dama, ao ser introduzida em nossa linguagem secreta.
-Certamente - disse Athena, surpreendendo-se a si mesmo. -Sinto-me privilegiada.
Harry se ruborizou, pigarreou, e a guiou ao interior da tenda. Imediatamente Athena sentiu o espaço a seu redor, sentiu o aroma do serragem e dos cavalos, escutou
as vozes dos artistas chamando-se uns aos outros de cima abaixo. Seguiu o som até a parte mais alta das plataformas perto do teto da tenda, onde um homem com malhas
executava um grácil salto mortal no meio do ar e era apanhado por um segundo homem.
-Dois de nossos acrobatas - disse Harry. -Quase terminaram, mas o palhaço e a atuação de Caitlin vêm a seguir. Tenho um lugar para você onde poderá observar
tudo de perto.
Levou a cadeira para baixo por um corredor formado por umas barras de madeira que ladeavam a porta dianteira, debaixo de uma barreira de corda, e perto do bordo
de uma pista que circundava o interior da tenda. Aproximou uma cadeira ao lado da dela.
-Os Irmãos Giovanni são novos em nosso pequeno grupo - lhe disse ele, assinalando com seu queixo ao homem que estava no mais alto. -Se uniram a nossa moça da
corda bamba, Regina. Pudemos acrescentar sua atuação quando nossa sorte melhorou, uns quantos meses atrás. Graças a você e a seu irmão, Srta. Athena, poderemos mantê-los
no circo.
Athena apartou seu olhar dos acrobatas e olhou ao ancião cavalheiro.
-Desculpe-me se for muito descarada, mas meu irmão mencionou um incêndio que destruiu a tenda original. Sofreram muitos infortúnios?
-Assim é, tais contratempos podem malograr um espetáculo pequeno como o nosso. Dependemos de elementos como o clima, a presença de outros artistas nas proximidades,
a prosperidade dos povos que visitamos, e a saúde de nossos animais - Se encolheu de ombros. -Os grandes espetáculos começaram a usar locomotivas para mover-se de
cidade em cidade, logo que ficam espetáculos em vagões como o nosso. Talvez não sejamos tão competitivos como antigamente. Mas não o quereria de outra forma.
-Porque vocês são como uma família - murmurou Athena.
Ele a olhou com surpresa.
-Assim é, querida. Uma família. E como qualquer família, faríamos tudo o que esteja em nosso poder para nos ajudar uns aos outros e permanecer juntos.
Athena sentiu um pingo de inveja e rapidamente a ocultou. Todo isso lhe faltava e sua única família era seu irmão, e ele tinha tão pouco tempo reservado para
algo que não fossem os negócios. Apesar disso, havia trazido para o circo.
-Por isso é que estamos aqui nesta terra... para nos ajudar os uns aos outros - disse ela.
-E foi uma boa sorte para nós que seu irmão viesse quando o fez -Ele sorriu, como ante uma lembrança privada. -Tão afortunada como a chegada do Morgan.
-Morgan Holt? -disse ela antes de dar-se conta de quão rápido o nome tinha chegado a seus lábios. -Ele não há... ele não leva tempo com vocês?
-Um pouco mais que os acrobatas. Foi graças a ele que pudemos permanecer juntos durante o verão.
Harry falou com tanta calidez que Athena se perguntou que tinha feito Morgan para ganhá-lo. Harry era uma dessas escassas pessoas às que gostam de todo mundo
e confiam em qualquer, embora Athena reconheceu um afeto mais profundo, quase paternal. Ela não tinha esquecido o amor de um pai.
-Não acredito que nos haja dito que é o que faz ele, Sr. French.
-O que faz? Porque...
Duvidou, lutando com as palavras.
-Agora está... ah... preparando um novo número.
-Já vejo. -Ela o olhou, perguntando-se porque tinha estado tão disposto a falar do Morgan uns momentos atrás e depois se tornou evasivo. -Talvez seu número
guarda alguns segredos especiais?
-Ah. Sim, exatamente isso. - Deu um tapinha na sua mão. -É muito amável por ser indulgente com este velho. Devemos guardar nossas atrações únicas de aqueles
que tratariam das copiar.
-Compreendo-o. Estou segura de que o que seja que escolha para me apresentar, será maravilhoso.
Justo quando ela terminou de falar, os palhaços prometidos chegaram à pista, acompanhados por vários cães, uma grande bola, e objetos diversos como uma trompetista
e uma sombrinha. O palhaço líder, vestido com objetos desiguais e exageradamente grandes, tinha a pele e o cabelo muito brancos, o qual não parecia estar tingido.
Ele guiava a outros em uma série de truques que tinham a Athena rindo com mais abandono de que teria mostrado se seus amigos estivessem a seu lado.
Os palhaços saudaram em direção a Athena quando sua atuação terminou, e depois de uma pausa, vários cavalos cinzas foram levados a pista. Correndo ligeira detrás
deles estava Caitlin, com seu arbusto de cabelo vermelho. Não levava látego, ainda assim logo que entrou na pista, os cavalos se ordenaram e observaram cada seu
movimento com as orelhas levantadas.
-Caitlin é nossa amazona -nossa Dama Principal- embora tenha mais de uma habilidade - comentou Harry com orgulho. -Treina cavalos selvagens e atua cavalgando
sem arreios. Poderá ver uma exibição de suas habilidades para montar mais tarde. Artistas tão versáteis são uma grande vantagem para um grupo pequeno como nós.
Athena assentiu, mas sua atenção estava posta em Caitlin. A garota era a graça mesma. Seus pés logo que pareciam tocar o chão enquanto permanecia no centro
da pista e dava breves ordens aos arreados cavalos, os quais saltavam, dançavam e formavam um balé equino.
De todas as coisas que tinha visto no circo, esta era a mais dura. Uma vez ela tinha sido tão ligeira sobre seus pés como Caitlin.
Uma vez tinha cavalgado como o vento... e mais rápido.
Sentiu como se suas pernas se retorcessem, uma estranha sensação momentânea, como se reagissem com simpatia aos movimentos fluídos da garota de cabelo vermelho.
Athena descansou suas mãos em seu regaço e as apertou fortemente. Era bom que se recordasse a si mesmo o que não podia voltar a ter. Anos atrás tinha abandonado
a irreal esperança, mas cada tanto o velho desejo retornava. E tinha retornado, de maneira breve, em companhia do Morgan Holt.
-Ela é realmente surpreendente, Sr. French - disse ela. -O felicito...
Perdeu o fio de seus pensamentos. Uma familiar, imponente figura tinha aparecido ao outro lado da pista, olhando em sua direção.
Morgan. Seu coração saiu voando até o teto da tenda, e ela soube que se não era muito cuidadosa provavelmente este cairia picado esmagando-se contra o chão
da forma mais dolorosa.
Harry também viu o Morgan. Moveu-se em seu assento e olhou a Athena.
-Por favor, continue desfrutando do espetáculo, Srta. Athena - disse ele. -Se me desculpar... - Se levantou de sua cadeira e partiu pelo caminho de serragem
que beirava a pista.
Athena tentou concentrar-se na atuação de Caitlin, mas seu olhar procurava Morgan através da pista como se um cabo invisível os conectasse. Dificilmente podia
dar-se conta de que um dos cavalos do Caitlin tinha começado a corcovear e a precipitar-se, afastando-se dos outros.
Alguém gritou. Athena voltou a cabeça justo quando o animal saltava da pista e ia diretamente para ela.
Os segundos passaram como se fossem minutos. Athena agarrou as rodas de sua cadeira e tratou das mover. Não tinha medo. Olhou com calma através da pista para
o lugar onde estava Morgan.
Ele não estava ali. Já estava correndo ao interior da pista, deixando um rastro de roupa descartada a seu passo. A metade de sua corrida, seu corpo se perdeu
em uma nuvem escura, e quando tocou o chão de novo já não era um homem. Quatro grandes patas arrojavam serragem enquanto um grande lobo branco se lançava atrás do
cavalo cheio de pânico.
Athena teve a fascinante sensação de flutuar, como se ela mesma se converteu em uma acrobata. O lobo arrojado a uma incrível velocidade, alcançou ao cavalo
só a uns passos da cadeira da Athena, e o empurrou a um lado. Ela pôde sentir a rajada de ar enquanto o lobo passava, escutar seu ofego e o chiado do cavalo.
Logo começou a tremer. As vozes se desvaneciam dentro e fora de seu ouvido. Só sua vista permaneceu nítida. Com perfeita claridade viu o Caitlin agarrar ao
cavalo errante, viu o lobo deslizar-se até deter-se e sacudir seus escuros pelos. Uma neblina sobrenatural o rodeou de novo, e quando sumiu Morgan Holt se encontrava
plantado no lugar do lobo.
Ele estava completa... totalmente nu. Magnífico. Athena mordeu o lábio inferior, lutando para escapar desta irrealidade parecida com um sonho que tinha apanhado
sua mente. Todos seus sentidos estavam trabalhando de novo, mas seus pensamentos giravam em círculos inúteis.
Sabia o que tinha visto. Sabia.
Morgan deu um passo em direção a Athena. Um membro da trupe foi atrás dele e lhe colocou uma pesada capa sobre os ombros. Morgan a sujeitou e caminhou a grandes
passos para a Athena, sem olhar a direita ou a esquerda. A visão dela foi bloqueada pela pequena multidão da gente do circo que se reuniu ao redor dela. Parecia
como se tivessem medo de falar. Sua própria língua estava congelada.
-Srta. Athena! Está você bem? -A voz do Harry French se entrecortou enquanto se agachava ao lado dela. -Não tenho palavras para expressar nossas...
-Mais tarde, Harry. -A gente deixou passo ao Morgan, o qual se deteve detrás da cadeira dela. Seus olhos, olhos de lobo, sustentaram os dela. -Não vêem que
necessita tranquilidade?
Harry se tornou para trás.
-Claro. Claro. Deixa que se recoste em alguma parte. Eu...
Sem esperar a que Harry terminasse, Morgan se equilibrou como uma águia e envolveu a Athena em seus braços. Ela sentiu o violento pulsar do coração dele contra
seu flanco, e seu fôlego no cabelo. Seus passos eram tão suaves que ela parecia voar pelo ar com asas invisíveis.
Ninguém a havia tocado assim exceto seu irmão, Romero, ou Brinkley quando a levavam ou traziam da carruagem ou de uma cadeira a outra. Essas ocasiões eram impessoais,
questão de necessidade. Isto era muito diferente.
Morgan Holt a levava em braços. Facilmente poderia haver-se limitado a empurrar sua cadeira.
Ela não estava ao bordo da morte, não importava quão impressionada estivesse. Ainda assim ele a levou diretamente através da pista e passando pela entrada traseira
-"a porta traseira" recordou ela incongruentemente- a um quarto mobiliado com cadeiras, uma mesa, e uma cama de armar.
Ele a deitou na cama de armar e a acomodou de uma maneira confortável, alisando sua saia sem tocar mais acima de seus joelhos. Um raio subiu e desceu por seu
corpo, concentrando-se sob sua cintura. Uma sensação imaginada, mas... que maravilhosa!
Ébria. sentiu-se como devia sentir o embriagado, embora ela não tinha tomado uma gota. Morgan trouxe uma magra manta de lã e a cobriu com ela. Arrastou uma
cadeira a um lado do cama de armar e se sentou, envolvendo-se na volumosa capa. Ela parecia não esquecer que ele estava completamente nu debaixo. Sua cara estava
muito perto da dela, e ela podia ver cada detalhe de seus rasgos, muito melhor de como o recordava.
-Srta. Munroe - disse ele. Sua voz era rouca e estava cheia de preocupação. Sim, preocupação, do Morgan Holt. -Não está ferida, verdade?
-Não - Ela sorriu bobamente. -Estou completamente bem.
Ele se levantou e deu um passo atrás de uma manta pendurada de uma esquina da barraca. Emergiu um minuto depois levando uma camisa e calças, detendo-se para
encher um copo com água de uma jarra sobre uma pequena mesa.
-Beba isto - disse, pressionando o bordo do copo sobre seus lábios.
O inofensivo ato de beber restaurou seu sentido da realidade.
-Eu vi... o que fez -murmurou. -Eu vi tudo.
Um músculo na mandíbula dele se esticou e relaxou. Não veio nenhuma negativa. Ele simplesmente esperou, olhando-a aos olhos com toda a implacável paciência
de um predador natural. Parecia o bastante feroz para lhe arrancar membro por membro, mas ela não tinha medo. Oh, nada tão simples como o medo.
Não era ela a que necessitava confiança agora.
Ela tirou sua mão de baixo da manta e tocou a sua. Ele a manteve apertada em um punho sob a mão dela.
-Entendo porque Harry não me disse o que você faz no circo - disse ela, dirigindo suas palavras com cuidado. -Não estou em choque, ou horrorizada. E sei que
não estou louca. -O tremor começou de novo, uma reação adiada como a coceira que vem aos dedos esquentados pelo fogo logo depois de uma grande exposição aos ventos
da montanha. -Não contarei seu segredo. Como vê, tenho um próprio. -Ela respirou larga e profundamente. -Sou como você, sou uma mulher lobo.























CAPÍTULO 7

Cecily Hockensmith deu seu nome à secretária na recepção do Niall e esperou ser anunciada, olhando com apreciação os diplomas e o Bierstadt original na imaculada
parede do escritório.
Niall não tinha desenhado o lugar, é obvio. Ele sabia que era mais inteligente não encomendar aqueles temas a suas habilidades, quando seus talentos se encontravam
em outras direções. Mas seu tinha sido o dinheiro por trás de tudo o que ela via aqui, e na casa da rua 14. Possuía o edifício no que ela se encontrava agora, e
além muitos mais em Denver. Apesar de seus rústicos começos, esta cidade poderia converter-se em um lar aceitável para uma dama que tinha sido uma luz destacada
da elite de New York.
Enquanto aquela dama tivesse o marido indicado, e todos seus consideráveis recursos em suas mãos. Ela tinha decidido quando tinha chegado com seu pai, escassos
em recursos mas com grande ambição, que apontaria ao melhor. Se não podia ter comodidades em New York, seria fabulosamente enriquecida em Denver.
Só havia um obstáculo em seu caminho.
Desenrolou o pôster até a metade e olhou com aversão as palavras e os desenhos. Seus sentimentos sobre o tema eram genuínos, na medida em que a gente do circo
estivesse envolta, Niall estaria muito mais que agradecido por seus esforços com Athena como o tinha estado no passado. Ele estava começando a reconhecer que Athena
necessitava algo mais do que ele podia lhe prover. Algo que talvez se poderia achar longe de Denver.
Enquanto Athena seguisse sendo o centro da vida do Niall, nenhum deles poderia ser feliz. E tampouco poderia sê-lo Cecily Ethelinda Hockensmith.
O relógio de bronze do suporte da chaminé de mármore deu a hora. Cecily sabia onde estava a maioria do círculo da Athena nesse momento, desfrutando de um almoço
na sala de jantar do Windsor como o faziam cada quinta-feira. Athena nunca se unia a eles, e Cecily ainda não tinha sido convidada ao lugar sagrado das jovens de
sociedade de Denver.
Aquilo chegaria logo. Athena lhe tinha dado as boas vindas a sua filantrópica irmandade e a seu lar, mas a desafortunada garota tinha menos influência social
da que acreditava. Cecily havia escutado dissimuladamente as conversas. Suspeitava que aquelas altivas jovens, que professavam ser amigas da Athena necessitavam
sozinho uma cotovelada para desviar o olhar da Srta. Munroe e dirigi-la para uma mulher mais amadurecida e de maior sofisticação.
-Srta. Hockensmith? O senhor Munroe a verá agora.
Ela assentiu à secretária e a seguiu ao interior do escritório do Niall. Não era a primeira vez que estava nessa sala, mas nunca deixava de lhe tirar o fôlego.
Nenhum escritório de Nova Iorque do mesmo tipo era tão impressionante. Ou mais opulenta.
Tinha aprendido que Niall não mantinha esse luxo por ele mesmo. Ele conhecia o valor de impressionar a aqueles que deviam buscar respaldo financeiro, ou investidores
potenciais para suas próprias empresas. O dinheiro gera dinheiro. Niall Munroe tinha o toque do MIDAS e uma absoluta indiferença por seu conforto pessoal. Ficou
de pé atrás de seu escritório de mogno estofado de couro e a saudou delicadamente.
-No que posso lhe servir?
Cecily tomou assento, contendo-se para não franzir o sobrecenho. Depois de meses de trato, ele ainda era muito formal com ela. Ela devia manter as distâncias,
mas aquilo era insuportável. Podia ser paciente. E mais devota a sua própria causa.
-Espero não lhe causar inconveniente, Sr. Munroe - disse ela com sua mais melodiosa voz. -Não teria vindo se não houvesse sentido que isto era uma urgência.
De fato, eu... o considerei cuidadosamente antes de vir a vê-lo.
Seus olhos cinzas a observaram um instante e logo se apartaram.
-Por favor fale livremente, Srta. Hockensmith. Estarei feliz de ajudá-la no que possa.
Obviamente estava impaciente. Ela se tinha intrometido no curso de sua jornada de negócios. E sabia como conseguir que um lento arroio se convertesse em um
problema. Sabia como tomar uma pequena coisa sem importância e fazê-la parecer de grande consequência.
-Obrigado, Sr. Munroe. Se me permitir... - Ela se levantou, cuidando de que sua saia caísse de maneira adequada, e se moveu com consciente graça até seu escritório.
-Serei o mais breve possível. Uns dias atrás, quando estávamos visitando a Athena no circo... se lembra?
-Sim, Srta. Hockensmith. Foi amável de sua parte compartilhar a diversão da Athena.
-Foi um prazer, é obvio. Mas enquanto estávamos ali, recebemos estes pôsteres do proprietário... o Sr. French, conforme tenho entendido. Confesso que não me
ocorreu olhá-los até que passou um tempo. Não estou familiarizada com os circos e a gente que os habita, assim não lhe dava importância.
Niall olhou ao cilindro de papel que ela pôs em seu escritório.
-Ah, sim. Recordo-o.
-Não pode imaginar minha aflição quando vi a natureza do espetáculo que este circo tentava dar a nossos órfãos. -Desenrolou o pôster e usou um par de pesos
do escritório do Niall para sustentar os extremos, levando-o diretamente para ele.
Ele apenas o olhou.
-Srta. Hockensmith, entendo a natureza do espetáculo. Não vejo nada daninho em um circo.
Cecily aguentou seu temperamento. Os homens em geral podiam ser obtusos, mas Niall Munroe era o pior de todos. Necessitava um pouco mais de incentivo.
-Por favor, leia-o, Sr. Munroe. -Ela colocou um de seus dedos enluvados perto da parte superior do papel. -Só olhe o que consideram como sua atração mais importante!
Ele olhou. Franziu o cenho, e suas sobrancelhas desceram de uma forma que inquietou ao Cecily mais que satisfazê-la.
-O Homem Lobo - murmurou. Cecily observou seu rosto enquanto examinava o desenho de uma criatura metade homem, metade besta, com presas e babando-se, suas largas
unhas raspando as barras de uma jaula que não parecia o suficiente segura. -"A única verdadeira besta existente, certificado por peritos nos grandes faculdades da
ciência, aclamado através da nação. Pare-se só a centímetros de suas ferozes garras. Escute seus terroríficos grunhidos. Veja-o com seus próprios olhos..." -Olhou
ao Cecily. -Não vi nada disto quando estive no circo.
-Sempre escutei que estas pessoas realizam enganos. Este "Homem Lobo" não é a única espantosa atração da qual alardeiam. Estão a mulher serpente e suas venenosas
serpentes, e outro montão de estranhas criaturas inadequadas para ser vistas por meninos pequenos que não têm pais que os guiem.
Niall continuou olhando-a, os pensamentos correndo velozmente detrás de seus olhos. Cecily aproveitou sua vantagem.
-Não é minha única preocupação -continuou. -Me dava conta que Athena contratou a esta gente sem precaver-se de suas naturezas. Ela o fez com a melhor intenção
e seu desejo de entreter aos meninos é louvável, mas Athena tem um coração muito quente para julgar com a razão fria que devemos algumas vezes empregar para proteger
o nosso. Devo dizer que não sinto que essa gente de circo seja uma companhia apropriada tanto para a Athena como para os meninos.
Niall fechou sua mão atrás de suas costas e deu meia volta, olhando às cortinas de veludo corridas sobre a janela.
-Vão realizar uma só atuação.
-Mas que dano poderia fazer-se enquanto eles estejam aqui? Precisamente Athena está vendo um ensaio hoje. -inclinou-se sobre o escritório. -Deve entender, Sr.
Munroe, que somente falo com a mais profunda consideração a sua irmã. Levo pouco tempo em Denver, mas nesse tempo observei que o coração da Athena exerce um completo
controle sobre sua cabeça. Temo por ela.
Niall se encolheu de ombros. Ela tinha acertado em seu ponto mais débil.
-Não sabia nada sobre o homem lobo, mas os outros... -Sua voz era tão rígida como sua postura. -Não permitirei que minha irmã esteja em companhia de alguém
que pudesse lhe fazer dano. Disso pode estar segura, Srta. Hockensmith.
Ah. Claro que ele ficaria à defensiva. Ela não devia lhe fazer acreditar que tinha encontrado defeitos no cuidado de sua amada irmana.
-Naturalmente não podia estar informado de tudo isto. Você deve conceder, Sr. Munroe, que nós as mulheres nos entendemos as umas às outras melhor do que poderia
fazê-lo um irmão. Você não pode estar em todas partes ao mesmo tempo nem ter em conta todas as possibilidades. É por isso que me ofereço para ajudar em tudo o que
esteja em minha mão.
Ao fim se deu volta para ela. Ao fim tinha sua completa atenção, inclusive seu reconhecimento.
-Não ignorei seus esforços, Srta. Hockensmith. Não desatendi a suas anteriores observações, e me dou conta de que... não posso dar a Athena tudo o que ela possa
necessitar.
-Você é o melhor irmão que qualquer dama poderia desejar. Mas Athena não tem mãe, nem irmã maior que a guie. Não obstante todos na sociedade de Denver amam
e admiram a sua irmã, Sr. Munroe, sua bondade poderia deixá-la indefesa ante aqueles que queriam aproveitar-se dela. Os incultos e indigentes, de qualquer classe,
são conhecidos por esse comportamento.
Ele olhou o pôster.
-Uma vez você sugeriu que mandasse a Athena fora... a New York, possivelmente. Não vi nenhum benefício nisso antes. Mas nós temos um segundo primo ali, entre
a boa sociedade, o qual poderia lhe prover companhia.
-E eu sei de muitas pessoas que a quererão tanto como a queremos aqui - Ela apertou suas mãos eloquentemente. -Só aqui é onde está... atada por seu passado.
Ela sente a necessidade de provar-se a si mesmo e não vejo evidência de que tente moderar suas atividades.
-Falei com ela sobre essa questão.
-Mas escutou? Algum tempo fora, em companhia de pessoas bem criadas e conselheiros de maior idade, permitir-lhe-ão encontrar uma nova perspectiva e dar-se conta
de quanto mais há no mundo para desfrutar.
Niall a submeteu à mesmo intenso olhar perfuratriz que lhe tinha dado ao pôster.
-Ainda não estou convencido de que ela estaria melhor longe da única família que tem. Você não a conhece tão bem como eu, Srta. Hockensmith.
Rapidamente ela trocou a estratégia e sorriu gentilmente.
-Naturalmente que não. Você sabe melhor que ninguém como cuidar da Athena.
A concessão dela abrandou a postura dele.
-Entretanto, você sustenta uns argumentos muito válidos, Srta. Hockensmith. Tê-los-ei em conta. Quanto ao circo... não há negócio aqui que não possa esperar.
-Removeu os pesos e deixou que o pôster se enrolasse. -Verei a Athena agora mesmo. Seria tão gentil de me acompanhar?
Seu coração saltou.
-É obvio.
Ele sorriu, uma expressão mais sincera esta vez.
-É você uma dama de grande generosidade, Srta. Hockensmith. Tão generosa como ardiloso é seu pai. Acredito que logo ele e eu logo estaremos fechando nossa sociedade.
Feliz, Cecily lhe mostrou somente uma humilde satisfação.
-Essas são maravilhosas notícias, Sr. Munroe.
-Athena e eu esperamos ver a você e a seu pai no jantar de na próxima semana - disse ele. -Mas no momento... - Deu uns passos ao redor do escritório, tomou
seu chapéu do cabide de mogno, e ofereceu seu braço ao Cecily. Vamos, Srta. Hockensmith?
Ela tomou pelo cotovelo e caminhou com ele até a porta.
Que essas arrogantes jovens no Windsor a observem agora, e reconsiderem seu valor. Tinham tanto que aprender. Niall Munroe virtualmente não tinha nenhum conhecimento
no que às mulheres concernia, mas seguia sendo um homem. E ela era certamente uma mulher.
O suficientemente mulher para dirigir toda a sociedade de Denver.

"Sou uma mulher lobo". Morgan não punha em dúvida seus sentidos. Toda sua vida tinha dependido de sua precisão, e não estava preparado para duvidar deles agora.
Não havia entendido o anúncio surpreendente de Athena Munroe.
O olhar dela sustentou o seu, firme e cordato, embora tremia sob a manta pelo que não estava tão bem como dizia. Ele poderia jurar que não estava louca. Não
tinha motivos para inventar tal história, quando a maioria das pessoas sairiam correndo gritando de terror depois ter visto o que ela tinha visto.
Mas ele saberia. Com segurança saberia. Ele tinha voltado para terreno por ela, e bem a tempo para salvar a de um grave dano, mas sim da morte. Agora estavam
conectados com mais força que por uma tênue simpatia. Agora era muito pior.
Estúpido..
-Não tem... nada que dizer? -perguntou ela, com emoção em sua voz. -Talvez necessita uma prova. Infelizmente, não sei como dar-lhe.
Ela se via tão pequena, tão frágil sem a couraça de sua cadeira de rodas, suas pernas debaixo da saia como os de uma boneca de trapo. Tinha sido como uma pluma
entre seus braços, não, não uma pluma, porque uma pluma não tem substância. Ela era toda real, cálida e feminina.
Uma mulher de seu sangue. Não queria que fosse certo. Oh, não. Queria provar que era uma mentirosa.
- Se você for o que diz -disse ele, -há maneiras de demonstrá-lo. -Olhou ao redor da barraca. -Me diga que há nesse cofre.
Ela olhou para o baú de madeira.
-Eu não...
-Me diga o que cheira.
Os olhos dela se aumentaram ao compreender. Nem choque, nem medo, nem assombro, mas sim reconhecimento.
-Uma prova - murmurou. -Muito bem.
Fechou seus olhos de novo e respirou profundamente. Franziu o cenho.
-Há várias coisas no cofre - disse lentamente. -Algo... feito com flores. Flores secas e palha. Um chapéu. De Caitlin - respirou profundamente outra vez. -Sim,
pertence a Caitlin. Também há uma peça de couro -muito gasto- que também é de Caitlin, mas foi usado com os cavalos. Metal... uma fivela, talvez. Um arreio. E sim,
o aroma de um livro velho, um que se molhou várias vezes. Como uma velha, mofada biblioteca. Acredito que é do Ulysses. E algo de Harry. Lã. Um objeto de roupa -
Ela abriu seus olhos. -Espero que não deseje que identifique especificamente o tipo de objeto.
Morgan observou seu rosto. Sabia que não podia ter visto o conteúdo do cofre, ainda assim o havia descrito exatamente e sem duvidar.
Ela tinha sentidos de homem lobo. Se a ordenava escutar algum som distante, relatar um fragmento de uma conversa da grande tenda, estava seguro de que lhe faria
esse favor. Mas se lhe pedia que espreitasse a um cervo no profundo do bosque, ou correr sem cansaço por horas, ou despir-se...
Converteu suas mãos em punhos.
-Impressionante - disse ele. -Mas existe uma forma segura de prová-lo. Transformar-se.
Tanto daria que a tivesse golpeado. Ela empalideceu, e logo a cor retornou rapidamente.
-Refere-se a me converter em um lobo, como o fez você?
Disse-o como se a idéia fora impensável.
-Passa algo mau, Srta. Munroe? Alguma vez o fez antes? Ou é que aqueles que vivem como o faz você estão por cima dessas coisas?
-Como eu? -Ela tratou de incorporar-se com seus cotovelos, pensou-o melhor, e se recostou de novo. -Não lhe compreendo.
-Aqui, na cidade. Entre aquela gente.
Ela era muito experimentada nos jogos dos de sua classe para revelar algum dano, mas, entretanto ele o sentiu.
-Aquela gente? -disse ela com um frágil sorriso. -Se refere a meus amigos? Meu irmão? Aqueles com vidas ordenadas, vantagens e conexões?
-Se fosse como eu -disse ele, -não poderia negar seu sangue. E se não a nega, não poderia tolerar a linda jaula em que vive. -Ele se inclinou para diante, olhando-a
aos olhos. -Você sabe o que sou. Deve conhecer outros. Por que escolheu este momento para admitir sua natureza se preferia sua vida segura e fácil? Por que me dizer
isso sequer?
Ela deixou cair a manta até a cintura e fez um esforço hercúleo para sustentar-se erguida. Morgan se moveu para ajudá-la, mas seus olhos lançaram tal orgulhoso
desdém que ele se tornou para trás.
-Confesso que sei muito pouco dos... de nossa classe - disse ela. -Só conheci um como eu...
-Seu irmão?
-Minha mãe. Ela... se foi quando nasci.
Uma peculiar sensação veio sobre ele, um desejo de aliviar o pesar que escutava em sua voz, de protegê-la da futura infelicidade. Loucas, inexplicáveis emoções.
Mas era seu instinto - profundo e confiável instinto- o que lhe dizia que acreditasse em suas palavras. Que aceitasse suas afirmações.
Que confiasse nela.
-E seu pai? -perguntou ele, mais gentilmente.
-Ele não era como minha mãe, mas sabia o que era ela. Quando fui o suficientemente mais velha para entender, deu-me uma carta que ela tinha escrito antes de
que... se fosse. Explicava poucas coisas, mas houve muito mais que ficou sem dizer. Nunca estive segura de se havia outros como nós, ou quantos. Até agora...
-E seu irmão?
-Ele tem uma mãe diferente... -ela se tomou uma pausa, sopesando suas palavras. -Sabe o que sou, mas ele é como papai.
Humano. Pai humano, irmão humano, mãe ausente. Criada com o amparo dos privilégios no coração de uma cidade humana. Sozinha.
Era por isso pelo que ela tinha vindo para ele... pelas respostas que sua mãe não lhe tinha dado?
-É por isso que não pode transformar-se? -perguntou ele. Não teve a ninguém que a ensinasse.
-Mas o fiz. Ensinei-me mesma. -Ainda em sua torpe posição as arrumou para erguer seus ombros e manter a dignidade. -Podia fazer o que você fez, uma vez. Quando
era mais jovem. Antes de... -Fez um breve, e apático gesto direto a suas pernas.
Dor. Por um momento alagou seus olhos, junto com as lembranças muitos tormentosos para suportar. A mente dele formou uma imagem de si mesmo aleijado como estava
ela, e se sobressaltou do horror. O que parecia uma inconveniência para um humano era pior que a morte para um homem lobo.
-Sua lástima é desnecessária - disse ela, levantando seu queixo. -O aceitei faz muito tempo.
Seus olhos demonstraram a mentira de suas palavras, mas a enganosa cadência tranquila retornou a sua voz. Poderia estar dirigindo-se a suas amigas no chá.
Se ele tivesse sido sábio, teria aceitado sua negativa, houvesse-lhe dito o que ela desejava saber e a tivesse despedido. Ela acreditava que tinha chegado a
um acordo com suas aflições; quem era ele para lhe sugerir algo de qualquer maneira? Se ela se construiu uma vida passível para si mesmo no mundo humano, isso era
assunto dele.
Mas ele recordou a conversa das mulheres de mentalidade estreita às que ela chamava "amigas". Amigas humanas. Não podiam saber o que ela era, e ainda assim
a qualificavam de estranha, um objeto da pena que ela rechaçava.
Ele tinha sido atraído para ela por sentidos mais profundos que o mero intelecto. Atraído para protegê-la. E agora que lhe tinha confessado o segredo que a
fazia ainda mais estranha que antes...
Em seu vagar, nunca tinha conhecido a ninguém do sangue lobo, nem nos botequins ou os caminhos poeirentos, nem nos desvencilhados povos ou os campos mineiros.
Agora tinha encontrado seu espelho em uma mulher de riqueza, educação, e com a posição que os humanos valorizavam. Mas não havia nada selvagem na Athena Munroe.
Espírito, talvez, e coragem, mas não o desesperado desejo de liberdade além das paredes humanas.
Não somos nada parecidos. Não podemos sê-lo.
-Tratei que dedicar meu tempo e recursos ao serviço de outros -disse ela brandamente. -Estou bastante contente. Deixei essa outra vida a um lado. Mas quando
lhe vi... mudar... me dava conta que ainda havia uma pequena parte de mim que não estava enterrada.
Com uma inoportuna sacudida de perspicácia, Morgan reconheceu a grandeza do que lhe tinha admitido. Suas desvantagens físicas a fizeram lutar o dobro para ser
competente e forte em cada uma das outras partes de sua vida. De algum jeito eles eram parecidos; os dois fizeram o possível por evitar a necessidade. Athena ajudava
a outros; eles a necessitavam, não o inverso.
Havia muito pouco que ele necessitasse. Mas agora Athena o necessitava a ele, e ele não conhecia a extensão dessa necessidade. Esperava que ele -ele, de entre
todas as pessoas- a eximisse de sua natureza de homem lobo?
Saltou da cadeira e passeou em um círculo no chão de serragem.
-O que quer de mim?
Athena as tinha arrumado para levar suas pernas ao bordo do cama de armar, como se fora a pôr seu peso em seus pés, para logo ir-se.
-Se fosse tão amável -disse ela, -eu gostaria de me sentar. Estou completamente recuperada.
Ele certamente não o estava. Mas foi para ela e a levantou de novo, levando-a para a cadeira. O contato era perturbador, e era consciente de seu inconfundível
aroma feminino e da aceleração do coração dela. Uma vez que esteve acomodada a soltou rapidamente e deu uns passos para trás.
-Por favor desculpe-me, Senhor Holt -disse ela. -Me dou conta de que você não procurava minhas confidências. Tentarei não abusar muito. Se pode me dizer...
-mordeu-se o lábio inferior. -Alguma vez conheceu uma mulher chamada Gwenyth Desbois?
-Sua mãe?
Ela assentiu. Seus olhos brilharam - com esperança, talvez. Ele se odiou a si mesmo por ter que fazer-lhe pedacinhos.
-Não. Só conheci outro com o sangue de lobo... minha própria mãe.
-Já vejo. -Baixou seu olhar a suas mãos. -Tinha pensado que você, tendo viajado tanto, poderia ter conhecido a mais como nós.
Ele sacudiu sua cabeça, desejando poder diminuir a dor.
-A última vez que vi minha mãe e a minha irmã tinha 14 anos.
-Faz tanto tempo? Era só um menino.
-Não fui um menino durante muito tempo.
-Mas você as amava. Algo lhe manteve afastado delas. Sei o que é perder... -A comissura da boca dela tremeu. -Eu amava a meu pai.
Ele não seguiu o caminho que lhe oferecia.
-Foram-se - disse ele. -A vida continua.
-Sim. -depois de um instante, ela sorriu. Sempre o sorriso, por diante e generosa, cobrindo o que ela não queria que o mundo visse. -Ainda tenho ao Niall, e
meu trabalho.
Niall Munroe, arrogante, crédulo... e humano.
-Seu irmão sabe o que é, e não lhe importa?
-Como disse, é meu meio irmão. Ele soube do primeiro momento que eu... durante muitos anos.
E estava indubitavelmente orgulhoso de que ela guardasse seu segredo. Poucos humanos eram tão tolerantes.
-Seu pai esteve casado duas vezes?
Um ligeiro rubor veio às bochechas dela.
-Não.
Bom. Ou ela ou seu irmão eram o que os humanos chamavam um bastardo, ilegítimo, nascido de uma mãe sem status de esposa. Tais coisas significavam muito em seu
mundo. Quando os homens lobos formavam casal, era para toda a vida... a menos que um do par fora humano.
-Alguma vez tentou transformar-se de novo? -perguntou ele, ansioso de trocar de tema.
-Não depois do acidente. Seu sorriso era ansiosamente valente e completamente falso.
-Tinha medo?
Ele não queria que a pergunta soasse tão desafiante. Não esperava uma resposta, mas ela a deu de todas maneiras.
-Não sabia que poderia passar se tratasse de me converter depois de me recuperar de minhas feridas - disse ela. -Aconteceu nas montanhas, no inverno. Eu estava
em forma de lobo apenas antes de ocorrer o acidente, mas voltei a trocar quando minhas pernas se danificaram.
Então ela tinha sabido o que era correr livre. Uma vez mais ele se viu forçado a corrigir suas hipóteses a respeito dela. Desde sua própria experiência, Morgan
sabia que uma ferida não sempre era o mesmo em ambas as formas. Era perigoso trocar quando se estava gravemente ferido, pelo grande esforço que poderia levar a morte.
Mas uma ferida menor podia ser curada pela mudança em si mesmo. O que tinha aleijado à mulher, poderia não entrevar ao lobo.
Mas não podia estar seguro. Se ela tentava trocar e se convertia em um lobo com duas patas inúteis...
Isso era o que ela temia. Por isso tratava de esquecer sua dupla natureza, até que ele a tinha recordado. Era melhor viver uma meia vida que converter-se em
uma brincadeira da natureza.
Mas ela havia dito que uma parte de si mesmo não podia esquecer.
-O passado é o passado - disse ele. -Não posso ajudá-la, Srta. Munroe.
Ela deixou cair seu olhar, parecia pronta para replicar, e lhe deu uma pequena sacudida a sua cabeça.
-Foi que o mais útil, Sr. Holt. Salvou-me a vida, e respondeu a minhas perguntas com muito boa vontade. Não posso pedir mais. Agora, poderia ser tão amável
de me trazer minha cadeira...
A cortês muralha estava de novo em seu lugar, a vulnerabilidade se desvaneceu depois dos limites da conveniência e o status.
-Não me deve nada. Mas devo... perguntar... se você não culpa ao Caitlin ou a outros pelo que ocorreu. Foi um acidente.
-Preocupa-se com eles, verdade? -disse ela brandamente. Seus olhos adquiriram calidez e por um insuportável momento pareceu como se ela fosse abraçar-lhe. Ela
recuperou o sentido o suficientemente rápido. -Não tema. Tenho intenção de seguir adiante com a atuação. Estou segura de que a Srta. Hugues se assegurará de que
os cavalos sejam seguros para os meninos. Por favor agradeça ao Sr. French pela mais encantadora visita, e lhe assegure minha boa vontade.
Morgan reconheceu a despedida. Ela havia derrubado seu coração a ele, purgado a si mesmo de dúvidas, e agora estava pronta para retornar a sua vida. Ele podia
esquecer qualquer pensamento sobre um misterioso laço entre eles.
-Um último conselho, Srta. Munroe - disse ele. -Não dê de presente sua confiança à ligeira. Não confunda inimigos com aliados.
Pôs-se a andar para a saída antes que ela pudesse responder. Caitlin bloqueava o caminho, empurrando a cadeira de Caitlin diante dela.
-Ela está bem? -perguntou a moça olhando com atenção sobre o ombro dele. -Estava tão preocupada, mas tinha que tranquilizar aos cavalos... não posso acreditar
que Pennyfarthing se desbocasse assim. Ele não é assim, e não me pôde dizer que estava mau. Harry está fora de si, mas acreditou que devíamos deixá-los só a vocês
dois. Ela está bem, Morgan?
-Não está ferida.
-Estava terrivelmente assustada com você?
Ele quis rir.
-Aceitou-o o bastante... bem.
-Assim não pensou que estava louca? Não o dirá a ninguém?
-Duvido-o.
Os olhos dela se estreitaram.
-Alguma outra coisa vai mau, então. Está zangada conosco? Tirar-nos-á seu apoio?
-Disse que não o faria.
-Discutiram?
-Os estranhos rara vez discutem.
-Especialmente quando um estranho salvou a vida de outro, e revela seu mais profundo segredo.
Ele evitou o olhar muito conhecedora dela.
-Comprova-o por você mesma. Pode levá-la com o Harry e acompanhá-la de volta a sua carruagem.
-Isso é tudo?
-Que mais quer, Vagalume? Sua promessa de imortal devoção?
- Já chegou tão longe, Morgan?
-A dama está esperando.
-Mas não para sempre, Não cometa esse engano, meu amigo.
Grunhiu-lhe e se foi. A suave e zombadora risada dela o perseguiu a metade do caminho através da barraca.






































CAPÍTULO 8

Athena Munroe estava muito tranquila quando Caitlin foi procurá-la. Sorriu a Caitlin o suficiente, mas foi essa classe de sorriso automático que indicava que
sua mente estava em alguma outra parte.
Caitlin conhecia o nome dessa "alguma outra parte". Definitivamente havia algo entre o Morgan e Athena, embora Morgan provavelmente preferiria morrer antes
de admiti-lo. Caitlin teve a impressão de que não teria muito mais êxito tentando surrupiar informação a Athena.
Athena já tinha visto o que Morgan realmente era. Ele disse que ela o tinha aceito, mas ninguém se acostumava a uma vida tranquila quando todas suas ilusões
de realidade tinha sido viradas de cabeça para baixo. Os da cidade acusavam frequentemente aos feirantes de ter duas caras, mas eles eram igualmente bons jogando
sujo. Talvez melhores.
Uma situação muito delicada, certamente. Mas Caitlin nunca tinha sido nenhuma pingo delicado.
-Sinto o que ocorreu na pista -disse com cautela. -Pennyfarthing nunca tinha feito nada parecido antes. Se tivesse sabido que ia desbocar-se, não lhe teria
utilizado hoje.
Athena piscou e olhou a Caitlin como se acabasse de reconhecê-la.
-Por favor não pense mais nisso, Srta. Hughes. Acredito que Pennyfarthing estava mais assustado que eu. Como pode ver, estou perfeitamente.
Estava-o?
-Me alegro. Gosta dos cavalos, Srta. Munroe?
O sorriso da Athena vacilou ligeiramente.
-Sim.
Essa singela resposta disse mais que um discurso. Como seria ser capaz de montar, correr e andar e que logo todo isso te seja arrebatado?
-Então ainda podemos oferecer o espetáculo aos meninos - disse Caitlin.
-Estou segura de que não se repetirá um incidente como este.
-Seguro que não - Caitlin jogou a cadeira da Athena para trás. -Quererá ir para casa, Srta. Munroe, depois de toda esta excitação. Harry se sente mal pelo que
passou. Quer desculpar-se pessoalmente, se você aceita lhe ver.
-É obvio. Eu... -Ela se deteve, e Caitlin pôde sentir como se formava a tormenta. -Posso lhe fazer uma pergunta franca, Srta. Hughes? -Athena não voltou a cabeça,
mas seus ombros estavam tão tensos como o arame da Regina. -Você sempre soube o que ele era?
Não havia necessidade de perguntar a qual "ele" se referia... e não podia fazer como que não sabia do que lhe falava.
-Desde a primeira vez que veio a nós.
-Então sempre terá um lugar entre vocês.
Este era um detalhe interessante.
-Se assim o quiser ele. Nós cuidamos dos nossos.
Olhou diretamente a Athena aos olhos.
-O que viu hoje... não há muita gente de cidade que o aceitaria tão bem como você.
-Gente de cidade. É assim como nos chamam?
-Os feirantes têm aprendido a não confiar com facilidade.
-Morgan me advertiu que não confiasse. Eu não poderia viver dessa maneira, sem confiar em ninguém.
-Aqui confiamos os uns nos outros. E agora devemos confiar em você. Pelo bem do Morgan.
-Tem-lhe muito carinho, Srta. Hughes.
-É como um irmão para mim. Um irmão difícil.
-Um homem difícil.
-Um homem apesar de tudo, Srta. Munroe.
Athena apartou a vista.
-Não deve temer. Não revelarei seu segredo.
Impulsivamente, Caitlin tocou sua mão. Os sensíveis dedos estavam rígidos com uma agitação que não conseguia expressar com palavras.
-É você uma mulher muito valente - lhe disse.
-Para ser da cidade, Srta. Hughes?
-Será melhor que me chame Caitlin a partir de agora. Em certo modo, agora é parte de nossa família.
Os dedos da Athena se relaxaram e se curvaram sobre os de Caitlin. Seu sorriso se converteu em algo mais que um simples gesto de benevolência impessoal.
-Obrigada, Caitlin. Meu nome é Athena - Liberou sua mão. -Como disse, tivemos suficiente excitação para um só dia.
-Sim - Caitlin se endireitou e sujeitou os puxadores da cadeira. -Se pudesse lhe dizer uma palavra ou duas ao Harry... está na tenda-cozinha, a ponto de morrer
de nervos. -Ela duvidou. -Quer que mande chamar o Sr. Munroe?
-Não será necessário. Posso fazer muitas coisas sem a ajuda de meu irmão.
Ah, um ponto delicado. Caitlin recordava bem quão dominante era Niall Munroe, e não seria surpreendente que tivesse algum tipo de raio protetor com o que envolvia
a sua irmã. Em seu mundo, os homens esperavam obediência por parte de suas mulheres, e Athena era ainda menos livre que a maioria. Rebelava-se contra o domínio de
seu irmão?
Havia algumas coisas que nem sequer uma grande fortuna podia comprar... nem a liberdade, nem a lealdade, nem tampouco o amor. Ulysses conhecia isto muito bem.
E Caitlin estava mais agradecida que nunca de que nada do que possuía dependesse do apoio do dinheiro. Enquanto a companhia sobrevivesse.
Caitlin girou a cadeira e o empurrou para o pátio.
-Acredito -disse brandamente, -que pode fazer algo que se proponha.
Athena não respondeu. Caitlin respeitou seu silêncio. Era o começo de uma amizade que a surpreendia, e surpreendia a Athena ainda mais. Caitlin teve o pressentimento
de que não seria a última maravilha que sairia dos sucessos do dia.
Estavam a meio caminho da tenda-cozinha quando seu pressentimento se manifestou como correto. Uma alta figura andava com passos largos cruzando o terreno com
um férreo propósito impregnando cada passo.
Niall Munroe. Caitlin deteve a cadeira e escutou a seu coração pulsar como o trote de seus cavalos.
-Acredito que seu irmão veio atrás de você, Athena - disse.
O Sr. Munroe não era um homem que esbanjasse o tempo em formalidades. Olhou ao Caitlin -uma vez- e logo se voltou para sua irmã.
-Terminou com sua visita, Athena? -perguntou.
-Acabo de terminar. Não tinha que me recolher. Sou...
-Preferiria que voltasse diretamente para casa. A Srta. Hockensmith está esperando na carruagem, e te acompanhará.
-O que significa isto, Niall? Por que...?
-Não te concerne. Levarei-te a carruagem.
A boca da Athena se fechou em uma teimosa linha, tão diferente a seu habitual curva gentil. Caitlin olhou a irmã e irmão. Oh, sim, aqui havia uma rebelião.
-Não deve preocupar-se com sua irmã, Sr. Munroe - disse ela. -esteve suficientemente segura conosco.
O rosto dele se ruborizou, uma visão muito inesperada em alguém tão exaltado.
-Desejo falar com você, Srta. Hughes. Se for tão amável para permanecer aqui até que retorne.
-É obvio. Não tenho nada melhor que fazer.
Ele ignorou sua ironia e tomou seu lugar depois da cadeira. Enquanto se levava a sua irmã, Athena olhou atrás para a Caitlin. Era um olhar que continha aborrecimento
e uma súplica que Caitlin não soube como responder.
Ela apertou sua mandíbula e esperou. Não estava sob as ordens de nenhum homem, e muito menos do Niall Munroe, mas ele pagava as faturas. E ela estava empenhada
em descobrir algo mais daquela classe de homem que atuava como se fosse o dono do mundo e de todos os que viviam nele.
Ao bordo do terreno, Athena e Munroe se encontraram com outra mulher - a Srta. Hockensmith, a qual Caitlin recordava da primeira visita da Athena- e Niall elevou
a Athena dentro da carruagem que esperava, o qual estava enganchado a um segundo veículo mais pequeno. Ele e a Srta. Hockensmith mantiveram uma breve conversa, depois
da qual ele se girou sobre seus calcanhares e se dirigiu para Caitlin. A Srta. Hockensmith lhe olhava fixamente.
Caitlin lhe recebeu com um sorriso provocador.
-Sempre trata a sua irmã como se fosse uma faxineira, Sr. Munroe?
-Esse não é assunto de sua incumbência, Srta. Hughes.
-Então do que quer me falar? Com segurança sou muito humilde para que um cavalheiro tão fino perca seu tempo em galanterias.
Esse intrigante rubor voltou de novo, alisando as duras linhas do rosto dele. Tirou um papel enrolado de seu casaco e o tendeu a ela.
-Somente tenho uma pergunta, Srta. Hughes. O que é este "Homem-Lobo"?
Ela jogou uma segunda olhada ao papel e se precaveu de que era um dos pôsteres que Harry dava aos visitantes. Conhecia bem o desenho, e o que dizia. Era possível,
embora fosse remotamente possível, que Athena tivesse quebrado sua palavra e tivesse contado a seu irmão o que tinha visto hoje?
Não. Mas se não o era, por que estava Munroe tão preocupado?
-Só é um de nossos números.
-E que classe de número é?
-Todas as companhias têm seus segredos. O Homem-Lobo é uma de nossas atrações especiais. A gente vem para ser assustada e aterrorizada, e nós tentamos não lhes
decepcionar.
O papel enrolado começou a dobrar-se com o apertão dele.
-Não vi a tal pessoa quando fui a Colorado Springs. Acaso se oculta da vista pública, Srta. Hughes? É alguma classe de monstro indigno da sociedade respeitável?
O que é o que faz... transformar-se em lobo ante os olhos do público?
Ela riu.
-Com segurança não acredita em tais coisas, Sr. Munroe. Não um cavalheiro refinado e educado como você.
Ele piscou.
-Tenho direito a conhecer quem tenho empregado.
-É você um homem o suficientemente maior para ter medo desses contos de fadas. Sua irmã não estava assustada.
Com um rápido movimento ele agarrou a boneca dela.
-Acaso se encontrou com esse... esse "conto de fadas"?
Ela olhou fixamente a mão dele.
-Harry a apresentou a todo mundo. Não acredita que sua irmã lhe haveria dito algo se representássemos um perigo para seus órfãos... ou para você?
Ele a soltou tão repentinamente como a tinha agarrado.
-A Srta. Hockensmith tinha razão - disse. -Não são uma companhia adequada.
-Assim ao menos deixa que uma mulher lhe governe - disse ela com doçura. Olhou à figura vigilante que aguardava lado da carruagem, e observou fascinada como
a conduta usualmente fria do Munroe desaparecia em uma nuvem de ira.
-Desejo ver este homem, Srta. Hughes. Agora mesmo.
-O que é que teme? Alguém que não é exatamente como você?
-Não terei... monstros expostos a minha irmã ou a aqueles a seu cargo.
-Nesse caso - disse ela, tornando o cabelo atrás, - conhecerá exatamente o que comprou. -Com movimentos rápidos e eficientes se empurrou a rebelde massa de
cabelo depois das orelhas.
-Meu Deus - disse ele. -O que ocorreram a suas orelhas?
-Nasci com elas -disse ela, -tal como você nasceu com seu dinheiro e seu orgulho. Eu sou um dos monstros que despreza, Sr. Munroe. Pode me insultar tudo o que
queira, mas não a meus amigos. Qualquer deles é o dobro de homem do que você nunca será.
Ele retrocedeu um passo, ainda olhando fixamente os nítidos pontos nas pontas das orelhas dela.
-Onde está o Sr. French? -perguntou ele com a voz estrangulada.
Ela se girou e pôs-se a andar cruzando o terreno, sem esperar a ver se ele a seguia. Com cada passo se amaldiçoou a si mesma por sua total falta de sentido
comum.
Graças a seu arrebatamento, a companhia provavelmente perderia o patrocínio dos Munroe. E se o perdiam, perderiam o dinheiro que tão desesperadamente necessitavam
para manter a família unida.
Maldita fosse se deixava que Munroe se precavesse de seu arrependimento. Conduziu-o até a tenda-cozinha, onde Harry se estava servindo um copo de delicioso
uísque em uma das largas mesas, e se tornou para um lado. Harry ficou de pé com um sorriso nervoso.
-Ah, Sr. Munroe! Que prazer lhe ver. Sua irmã é a mais encantadora, a mais...
-Devo falar com você, Sr. French. A sós - olhou significativamente a Caitlin.
Harry a olhou com alarme. Não havia nada que ela pudesse fazer para lhe tranquilizar, embora devia encontrar uma forma de escutar o que acontecesse ele e Munroe.
Seu ouvido era mais fino do normal, mas não o suficiente como para não ver-se obrigada a escutar às escondidas.
Morgan. Virou-se e partiu em sua busca, esperando que não se foi correndo tal como fazia quando estava em problemas. Mas a sorte estava do lado dela; encontrou-lhe
observando aos malabaristas com os braços cruzados e uma escura expressão.
Ela se enganchou a seu braço e puxou ele. Parecia como se estivesse arrastando a um tigre furioso com uma correia de seda.
-Necessito sua ajuda, Morgan. Niall Munroe está falando com o Harry, e tenho que saber do que estão falando.
Se havia algo bom que dizer do Morgan era que nunca perdia o tempo com perguntas inúteis. Foi com ela até a entrada da tenda-cozinha e se detiveram depois da
proteção do poste de uma barraca. Harry e Niall ainda estavam falando, ou ao menos Niall o fazia.
Morgan inclinou sua cabeça. Seus olhos se estreitaram, e a esquina de sua boca se moveu nervosamente.
-Munroe está tentando comprar ao Harry para que se vá -disse. -Está-lhe pagando para que deixe Denver já, antes da atuação.
-Quanto está oferecendo?
-A metade do que prometeu pelo espetáculo - Ele agachou a cabeça, e ela acreditou ver como se arrepiava o cabelo de sua nuca. -Do que se trata isto, Vagalume?

-Acredita que está protegendo a sua irmã - disse ela. -Dos monstros, como nós.
-Ele sabia o que obtinha quando contratou à companhia -A Caitlin lhe pôs a pele de galinha quando ele a olhou. -Ou há algo mais?
Ela tocou seu braço.
-Viu um dos pôsteres. Antes não sabia o do Homem-Lobo, Morgan. Não acredito que possa adivinhar a verdade embora o tentasse. Mas ele... -Ela sacudiu sua cabeça.
-Tem medo do que não encaixa em seu mundo.
-Como sabe isso?
A voz do Morgan cresceu, suave e perigosa. Ela se estremeceu.
-Foi minha culpa. Disse coisas que não deveria. Mas ele já tinha tomado sua decisão antes de vir aqui. Ordenou a Athena que partisse. Se dependesse dela...
-Athena você gosta.
-Acredito que se pode confiar nela. Igual a você.
Ele não o negou.
-Munroe não tem direito...
-Ele acredita que tem todo o direito.
Morgan voltou para a conversa do Niall.
-Harry não lhe está dando uma resposta. Diz que não quer incomodar à Srta. Athena. Está pedindo ao Munroe um pouco de tempo para falar com os feirantes, e provar
que o circo é seguro.
Bendito seja. Caitlin se arriscou a jogar uma olhada dentro da tenda-cozinha. Não necessitava a tradução do Morgan para ver como tinha reagido Munroe à evasiva
do Harry. Fez um último e breve comentário - o suficientemente alto para que Caitlin o ouvisse- e se virou, com o rosto furioso.
-Disse -terminou Morgan, -que não seria inteligente por parte do Harry permanecer no povoado, que seria um engano desafortunado. -Seus lábios se elevaram, mostrando
seus dentes. -Harry tem um dia para decidir-se.
Era pior do que Caitlin esperou. Separou-se da entrada quando Munroe saiu por ela, preparada para jogar ao Morgan a um lado usando a força física se fosse necessária.
Mas Morgan se comportou bem. Retirou-se -"desapareceu" seria a palavra apropriada- e Munroe saiu pela porta sem lhe ver.
-Não perca seu tempo com ele, Vagalume - disse Morgan.
-O que sugere? Falará com ele? Não é mais diplomático do que o sou eu.
Ela pôs-se a andar atrás do Munroe, correndo para alcançar seus largos passos. Desculpar-se-ia. Suplicar-lhe-ia, sobre seus joelhos se era necessário, que lhes
deixasse ficar o tempo suficiente para o espetáculo. Não somente pelo dinheiro, mas sim pelo bem de Athena.
Sim, pela Athena. E talvez... também pelo Morgan.
-A que vem esse apuro, passarinho? Tem um novo amor?
Tamar podia aparecer e desaparecer com a mesma desconcertante facilidade que Morgan. Caitlin diminuiu sua marcha.
-Agora não, Tamar - lhe disse. -Tenho uma tarefa importante.
-Com ele? -Tamar arqueou seu comprido e elegante pescoço para a direção pela que Niall se foi. -Isto será do mais interessante.
Exasperada, Caitlin se apurou, esperando que Tamar não interferisse. Alcançou ao Niall justo quando tinha chegado às carruagens que esperavam.
-Sr. Munroe - sussurrou ela, tocando seu braço. -Devo falar com você.
Os músculos dele estavam tensos sob a fina lã de seu casaco.
-Não tenho nada que dizer, Srta. Hughes. Minha irmã deve voltar para casa.
-Está cometendo um engano - disse ela, pressionando sua manga com mais firmeza. -Por favor...
Ele se voltou. Seus olhares se encontraram, e ficaram presos. Uma incrível faísca de... algo... chispou entre eles, formando uma corrente que começou nos olhos
e correu através do corpo de Caitlin até o ponto onde sua mão tocava o braço dele.
Ela somente podia supor o que seu próprio rosto revelava, mas o do Niall Munroe podia servir igual de bem como reflexo. Inclinou-se para ela - brandamente,
oh, tão brandamente- e seus lábios se abriram. Um olhar vítreo empanou seus olhos. Caitlin conteve o fôlego.
-Sr. Munroe. Devemos ir já!
A voz da Srta. Hockensmith saindo da janela da carruagem rompeu a conexão. Niall jogou sua mão para trás. Sem outra palavra por parte do Caitlin, deu-lhe uma
lacônica ordem ao cocheiro e subiu ao assento do condutor da carruagem mais pequena.
Uma olhada ao angustiado rosto da Athena foi tudo o que Caitlin pôde ver antes que as carruagens ficassem em movimento, rodando e saltando através dos buracos
do chão.
-É tão triste - disse Tamar atrás dela. -Era um romance tão promissor, verdade? Mas sempre perderá frente a uma dama tão rica e atrativa. -Entrecerrou as pálpebras
e golpeou a cabeça de uma de seus sempre presentes serpentes. -A menos, é obvio, se lhe der um pouco do que nenhum homem rechaça. Quer que te ensine como se faz,
pequeno passarinho?
-Mantenha-se fora disto, Tamar. Não tem nada que ver contigo.
-Ah, não? -Tamar elevou suas escuras sobrancelhas.
Caitlin passou a seu lado e retornou a tenda-cozinha, temendo o que poderia encontrar.
Harry ainda estava ali, parecendo tão miserável como quando lhe tinha deixado. Morgan estava com ele, e Ulysses tinha chegado com uma dúzia de feirantes mais.
Estavam falando entre eles, tentando decidir o que tinha passado.
Caitlin sacudiu sua cabeça enquanto se aproximava, e Harry suspirou.
-Damas e cavalheiros -disse ele, -parece que temos que tomar uma decisão importante e desagradável. Reúnam a outros, e nos encontraremos na grande tenda dentro
de meia hora.
Eficientes como sempre em tempo de crise, os feirantes estavam reunidos e esperando na grande tenda antes que tivesse passado a meia hora. Ulysses e Morgan
conservavam seus lugares perto do Harry, como se fossem um par de guarda-costas grotescamente mal emparelhados. Caitlin se sentiu agradecida uma vez mais de que
Morgan não tivesse ido atrás de Niall Munroe. Quase tinha temido que poderia devorar ao irmão da Athena como jantar.
-Meus amigos, meus filhos - disse Harry com sua voz mais causar pena, -as circunstâncias me impeliram a lhes chamar a esta reunião de forma que possamos discutir
nosso futuro.
Um murmúrio geral seguiu suas palavras, mas ele elevou suas mãos para sossegá-lo.
-Como sabem, dentro de uns poucos dias íamos oferecer um espetáculo beneficente para os meninos do orfanato patrocinado pela Srta. Athena Munroe e seu irmão.
Nos foram pagar uma boa soma por este privilégio -Inclinou sua cabeça. -Mas, apareceram as complicações.
Com menos palavras das que estava acostumado a usar, Harry explicou o que Niall lhe havia dito. Houve gritos de desgosto, um montão de maldições, e muitas sacudidas
de cabeça.
-Nunca confiar nos da cidade -gritou alguém. -Sempre rompem sua palavra.
-Por que? -perguntou outro homem. -Do que se trata tudo isto, Harry?
Harry espremeu suas mãos.
-Bom, verão... quando nos contratou, ele não tinha ciência de nossa principal atração, nosso Morgan. Confesso que não termino de entender seu raciocínio, mas
se empenhou em acreditar que nosso Homem-Lobo poderia ser perigoso para os meninos e para sua irmã. É totalmente ridículo, mas...
Os feirantes se silenciaram. Como um só olharam ao Morgan. Ele sustentou seus olhares com uma fria indiferença, uma raridade contra outras raridades.
-Munroe teme às raridades - disse Caitlin em voz alta, dando um passo adiante. -Qualquer classe de raridade. Mas sua irmã não é como ele - Varreu à multidão
com seu olhar. -Ela é uma boa mulher. Viu o que era Morgan, e não estava assustada. Quer nos ajudar.
-Dirige ela o dinheiro? -gritou Florizel o palhaço.
-Diz que Munroe nos ameaçou se não deixávamos o povoado - disse um dos Irmãos Grassotti Voadores. -Têm ouvido que é um homem poderoso nesta cidade. Ofereceu-nos
dinheiro para ir, não seria pior correr o risco de ficar e fazer que se enfureça?
Como podia ela rebater tal argumento? A gente do circo nunca saía bem de um enfrentamento com a gente de cidade, e muito menos contra alguém importante. Conheciam
a sabedoria de uma retirada estratégica quando os da cidade se voltavam hostis. Ela olhou ao Harry, ao Morgan, e ao final ao Ulysses.
Ulysses só se moveu um pouco, mas cada olho se fixou nele quando o fez.
-Harry montou esta companhia - disse tranquilamente. -Muitos de nós não tínhamos lar, nem emprego, absolutamente nada até que ele nos acolheu. Seu lar sempre
esteve aberto a qualquer que o necessitasse, a qualquer que fosse diferente, apesar da natureza de dita diferença - Olhou diretamente ao Florizel. -Uma vez aspirou
a ser um grande ator de teatro. Mas ninguém te contratou por culpa de sua aparência. Seu talento não significava nada. Estava imerso no álcool quando lhe encontramos,
e Harry te deu a oportunidade de atuar para o público.
Voltou-se para a Regina, cujo alto e incrivelmente magro corpo se elevava por cima de todos outros.
-Seu irmão te jogou à rua quando negou a te casar com um homem que nunca te haveria tocado se não fosse pela fortuna de sua família. Teria difícil encontrar
um casamento aí fora, mas aqui...
Não terminou a frase. Regina apertou seus compridos e muito finos dedos ao redor dos grossos dedos de seu marido, Tor o forçudo.
-Há infinidade de histórias como estas - disse Ulysses. -Para mim está claro...
-Harry nos perguntou nossa opinião - disse Giovanni. -Não quer que fiquemos, verdade, Harry?
-Pois... bom, é verdade que o Sr. Munroe quer que vamos e que nos pagará a metade da soma combinada se o fazemos. Mas a Srta. Munroe, ela está muito interessada
em nosso espetáculo. Inclusive deseja que fiquemos para uma segunda atuação.
-Ainda não vejo que podemos ganhar fazendo que um homem como Munroe se volte contra nós - disse Giovanni. -Se conseguirmos o suficiente para nos manter durante
o inverno...
-Só se não termos nenhum percalço -disse Caitlin. -Se tivermos outro incêndio, ou a mais mínima má sorte...
-Arrumaremo-nos. Vamos, Harry. Não precisamos pedir mais problemas.
-Eu também voto por partir -disse Tamar, deslizando-se à frente da reunião. -O que devemos a esta... Athena Munroe? A qualquer de sua classe?
-Assim é.
-Tamar diz a verdade. Enquanto ele pague, não tem que nos importá-lo que sua irmã...
Um profundo, reverberante grunhido se deslizou através das enérgicas palavras. Morgan fixou seu potente olhar por turno sobre cada um dos que falavam. Todos
deram um passo atrás para a segurança da multidão.
-Covardes - disse. Não elevou a voz, cada palavra soou como o choque de pratos. -Se orgulham de ser diferentes e melhores que os da cidade. Dizem que são uma
família. Agora alguém vem a vós que necessita o que podem oferecer, e lhe dão as costas.
Elevou-se um coro de protestos.
-Isso não tem sentido, Morgan - disse Giovanni. -Athena Munroe é tão rica como Creso. Por que necessitaria nossa ajuda?
-Ela não é como nós - disse Florizel, atrevendo-se a dar um passo à frente. -De que maneira é ela um monstro, tal como Caitlin amavelmente se refere a nós?
É uma aleijada, isso é tudo.
Morgan grunhiu. O rosto do Florizel perdeu toda sua cor.
-Uma aleijada - disse Morgan. -Uma estranha para os de sua própria classe, que ajuda aos estranhos sem pedir nada em troca. Ela me viu mudar hoje, e não estava
assustada. E não trocou de opinião sobre nós.
Caitlin se manteve ao lado do Morgan.
-O que Morgan diz é a verdade. Talvez seja da cidade, mas sabe o que é sofrer.
-Demos nossa palavra de atuar para seus órfãos - disse Morgan. -Irei ver o Munroe. Dir-lhe-ei que deixaremos Denver se permitir que demos nosso espetáculo.
-Fará isso pela dama e seus órfãos? -perguntou Florizel. -Esteve desfrutando dos favores da dama, os que ela facilmente possa outorgar, e é por isso que seu
irmão quer que vamos?
Caitlin estranha vez tinha visto o Morgan transformar-se em Homem-Lobo, a criatura em que se voltava durante o espetáculo. Agora ele começou a transformar-se,
seu corpo girava em uma bruma negra, um fino pêlo negro começou a crescer sobre suas mãos e pés e sobre o pescoço de sua camisa. Seu rosto permanecia quase sem mudanças,
mas era inegavelmente lupino. E mortífero.
Harry interveio.
-A honra de Morgan e sua palavra sempre nos valeu desde a primeira vez que lhe encontramos -disse. -Confio em seus instintos, e nos do Caitlin. Acredito...
acredito que têm razão -Esfregou a cara com um lenço. -Acredito que devemos ficar para a atuação, e logo ir.
-E o que passa se Munroe se nega a nos pagar?
-A Srta. Munroe se ocupará de que recebamos nosso dinheiro -disse Morgan. Entre um batimento do coração e o seguinte, já era humano de novo. -Vocês decidem
se deixarem ou não que alguém da cidade lhes diga aonde podem ir ou como podem viver.
Harry tossiu atrás de sua mão.
-Acredito que é o momento de votar. Que os que querem que vamos digam "Sim".
Ouviram-se uns poucos sims quase inaudíveis. Quando Harry perguntou pelos nãos, elevaram-se com convicção. Caitlin sorriu amplamente ao Morgan e Ulysses.
-Esta decisão supõe um risco - disse Ulysses quando os feirantes começaram a dispersar-se. -Munroe é um homem poderoso.
-Acredito que está subestimando a força de caráter da Athena -disse Caitlin- Ela quer que fiquemos, e sei que pode enfrentar a seu irmão se tiver que fazê-lo.
O rosto de Harry se obscureceu outra vez.
-Espero que tenha razão, Caitlin. Eu também desejo ajudar a esses pobres meninos. Confesso que desenvolvi um certo... carinho por ela.
-Os riscos calculados às vezes são necessários -disse Ulysses, esquadrinhando ao Morgan com interesse, -embora só seja para preservar a honra e a palavra de
alguém.
-Honra - soprou Caitlin. -Quando a honra te deu algo, Uly? Somente estamos fazendo o correto.
-Sua reação parece algo pessoal, Vagalume.
-O que parece, feito está - disse Harry. -Temos que seguir adiante o melhor que possamos.
-E alguém deverá explicar a Athena o que ocorreu - acrescentou Caitlin. -Teremos que encontrar uma desculpa para que volte. Estou segura de que seu irmão não
tem pensado lhe contar nada até que nos tenhamos ido de Denver.
-Talvez não lhe desafie - disse Morgan. -Sua vida depende do dinheiro de seu irmão. Se ele assim o decidisse, poderia lhe tirar qualquer liberdade da que ela
desfruta.
Caitlin lhe olhou surpreendida.
-É certo que tenta protegê-la em excesso. Não sei o que é o que Niall Munroe teme tanto, mas ele não é um... -Avermelhou e se apressou. -Falou para que fiquemos,
Morgan. Quer ajudar a Athena, inclusive a chamou valente, é que não tem fé em sua habilidade para lutar pelo que deseja?
Ela pôde ver como ele se retraía interiormente outra vez, negando os sentimentos que lhe tinham impulsionado a falar a favor da Athena com uma paixão tão incomum
nele.
-Do que falaram Athena e você no pátio, Morgan? -perguntou Caitlin. -A estava testando? Quer que falhe, de forma que já não tenha nenhum motivo para preocupar-se?
Sua cabeça assentiu imperceptivelmente.
-Munroe acredita que pode comprar algo e a qualquer pessoa -disse ele através de seus dentes. -Nós não somos seus mascotes.
-Nem tampouco sua irmã. Mas se tiver razão, e Athena está disposta a nos deixar partir... então o que?
-Teremos que suportar seus desejos, é obvio - respondeu Harry. -É por dias como estes pelos que desejo me haver retirado faz anos.
-Oh, Harry... -Caitlin se deteve quando se precaveu de que Morgan estava a meio caminho da porta principal. -Aonde vai?
-A contar à Srta. Munroe - disse ele sem interromper seus passos. -Para descobrir que é o que ela deseja.
Caitlin pensou com rapidez. Quem estava melhor preparado para entregar uma mensagem clandestina? E quem era mais imprevisível quando seu coração estava envolto?
-Não pode simplesmente entrar em sua casa. Nem sequer sabe onde vive.
-Descobri-lo-ei.
-Se Niall te vir...
-Não me verá - Para provar este ponto, ele pareceu desvanecer-se antes de alcançar a porta.
Agora não há volta atrás, pensou Caitlin, obcecada por esse sentimento da fatalidade que lhe tinha chegado pela primeira vez com o Morgan Holt e havia tornado
com o Niall Munroe.
-É um jogo perigoso, Vagalume - disse Ulysses, ficando de pé atrás dela. -Morgan não é um boneco do destino.
-Pensava que não acreditava no destino.
-Somente quando joga com os que considero meus amigos.
Ela apoiou sua mão no ombro dele.
-Então, meu amigo, deixa que eu mantenha a fé por todos nós.
























CAPÍTULO 9

Athena nunca tinha desejado tanto ter calma. Seu corpo se via sacudido por calafrios nascidos de emoções em conflito que a empurravam em um sentido e logo no
outro. As paredes de sua tranquila e silenciosa sala pareciam a ponto de esmagá-la como algum elemento medieval de tortura.
Se essa tarde tivesse tido que enfrentar a uma só situação premente, teria podido confrontá-lo com a suficiente facilidade. Mas os incidentes tinham chegado
tão grosso e tão rápido como os flocos de neve de uma tempestade de neve na montanha... primeiro a escapada por pouco na grande tenda, depois a incrível exibição
de Morgan... a desconcertante conversa a seguir... e finalmente a repentina aparição de Niall e seu comportamento irracional.
Ainda estava furiosa com o Niall. Era mais fácil tratar com sua fúria que confrontar os outros sentimentos que a golpeavam desde todas direções. Mas apesar
de que a fúria a assustava, só nas semanas recentes se permitiu a si mesmo enfurecer-se por uma questão pessoal.
Enfurecer-se em nome dos oprimidos estava bem e justificado; fúria pelo próprio orgulho ferido, ou o ressentimento, era o pior tipo de egoísmo. Athena sabia,
e o conhecimento disso não parecia ajudá-la.
Rodou sua cadeira para a janela. Niall tinha acompanhado à Srta. Hockensmith a sua casa, mas ainda não havia retornado.
O passar das horas não tinham acalmado o humor de Athena. Seguia rememorando o momento em que Niall tinha vindo por ela, como apenas a tinha cuidado, descartando-a
como se fosse uma menina, e ordenando-lhe que se fosse. Como tinha tratado a Caitlin, com menos cortesia que a uma criada. E quando tinham alcançado a privacidade
de seu lar, negou-se a lhe dar uma explicação por seu comportamento.
Ela se havia sentido humilhada, tratada dessa forma por seu próprio irmão diante de uma amiga. Porque Caitlin tinha começado a ser sua amiga, apesar de todas
as diferenças que existiam entre elas.
De uma maneira estranha, Caitlin tinha recordado a ela mesma quando era mais jovem - imprudente, apaixonada, recusando qualquer concessão à feminilidade ou
ao decoro- rápida para dar sua lealdade, e seu coração. O que terá pensado da forma em que Niall tinha atuado? Acreditaria que Athena estava sob o polegar de seu
irmão.
Athena não tinha feito nada para desmentir essa impressão. Tinha permitido que Niall a obrigasse a subir à carruagem, suportado os olhares de simpatia de Cecily
Hockensmith, e se tinha atormentado a si mesma especulando sobre o assunto que Niall tinha que discutir com os feirantes.
O que acontecia dentro dele?
Tomou as meias que tinha deixado em uma mesa lateral e voltou a deixá-la um segundo depois. Com segurança Niall não tinha podido imaginar o que Morgan era realmente.
Ela era a única privilegiada com esse segredo. Esse maravilhoso, surpreendente segredo.
Não estou sozinha.
Esse simples, estúpido pensamento voltava para ela uma e outra vez, tamborilando com um ritmo tão constante como os batimentos do seu do coração. Não estou
sozinha.
Não era que Morgan lhe tivesse dado as boas vindas com os braços abertos como se fora uma companheira licantropa. Mas tinha visto como seus olhos se alargavam
e deixava cair à guarda por um instante quando lhe tinha contado o que ela era.
O homem que tinha vislumbrado atrás da máscara... oh, esse descobrimento tinha sido tão pleno e poderoso como ter sabido seu segredo. Ele alegou que ela não
podia ser de seu sangue porque vivia em uma cidade e desfrutava de uma vida cômoda. Mas quando lhe tinha falado de sua mãe, houve tal compreensão em seus olhos,
tal compaixão, que ela poderia haver-se posto a chorar.
Essa inesperada simpatia era a razão de que tivesse permitido que um pouco de auto compaixão se deslizasse fora de seu férreo controle. Tinha contado muito
pouco sobre o acidente, mas foi muito mais do que nunca tinha contado a ninguém exceto a papai, apenas antes que morresse. Inclusive tinha admitido que seus pais
não tinham estado casados.
Graças ao céu que se repôs antes de lembrar-se de feitos passados e irreversíveis. Tinha sido capaz de aceitar o desprezo final de Morgan - e seu toque em seu
corpo- sem fraquejar. E pôde ver que toda a rude ferocidade que ele exibia escondia uma grande vulnerabilidade e a dor de uma profunda perda.
Uma perda tão semelhante à sua própria. E ele era leal a seus companheiros da companhia, protetor como todo irmão mais velho deveria ser. Inclusive suas últimas
palavras para ela encerravam uma advertência enigmática: "Não confunda aos inimigos com os aliados".
O que quereria dizer? Certamente Morgan não era seu inimigo. adoraria -inclusive estaria agradecida- sua amizade.
Amizade? Esperava que ele poderia compartilhar algum grande mistério que alguma vez descobriu? Que classe de amizade pode existir quando provavelmente alguma
vez voltará a ver quando o circo se vá?
Não voltaria ela para restaurar os limites entre eles - os altos muros do dinheiro, temperamentos, e crenças? Não sobem esses muros o suficientemente alto que
inclusive o lobo mais forte não poderia saltá-los?
E por que acreditaria ela que ele poderia desejar escalar tais barreiras? Ele não queria nada disso.
Ainda... não está sozinha, insistia seu coração. E tampouco ele.
Golpeou o braço da cadeira com a mão e se apartou com força da janela. Dormir é o que necessitava.
Uma boa noite de sonho curava tantos males, purgava uma multidão de pensamentos inúteis. Especialmente os pensamentos sobre o que ela não deveria desejar e
que nunca poderia ter.
Mordeu o lábio e franziu o cenho olhando a cama. Normalmente chamaria Fran para que a ajudasse a passar da cadeira à cama, mas seria puro egoísmo tirar Fran
de seu próprio leito a semelhantes horas. Acaso era uma distância tão intransponível essas poucas polegadas entre sua cadeira e a cama? Seus braços eram o suficientemente
fortes. A pequena faísca de rebelião que a mantinha acordada tão tarde, sustentada pelos acontecimentos do dia, brilhou como uma chama.
Apertando a mandíbula, aproximou a cadeira à cama tanto como pôde, colocando-a lado com lado. Agarrou-se com força à barra de ferro que percorria a longitude
da cama, desenhada para impedir que caísse fora.
O suor brotou de sua frente, apesar de que o quarto estava frio. Os músculos de seus braços já lhe doíam pelo esforço que viria.
Pode fazê-lo. É o suficientemente forte. Empurrando e atirando alternativamente, começou a passar seu peso da cadeira para as barras da cama. Seus braços protestaram.
Apertou os dentes e se arrastou a si mesma para cima para salvar a distância à barra.
A cadeira rodou apartando umas poucas polegadas. O espaço entre ela e a cama cresceu em consequência, alargando-se como um abismo. A prega de seu vestido ficou
apanhado pelo braço da cadeira. Uma punhalada de autêntica dor atravessou sua coluna vertebral e se alojou no fundo de seu corpo.
Não choraria pedindo ajuda. Venceria, ou a encontrariam à manhã seguinte atirada no chão. Realizou outro esforço, e seu vestido se rasgou deslizando-se por
seus ombros.
Por um momento ficou pendurada entre a cama e a cadeira, sua metade superior quase... quase... arremessada sobre a colcha. Mas então algum movimento de seu
corpo separou a cadeira outra preciosa polegada. O peso morto de sua metade inferior a arrastava para baixo, como ambiciosas mãos estirando-se para ela da perdição.
Caiu. Seu cotovelo golpeou a barra da cama enquanto caía, enviando dor para seu braço e ombro. Mas muito, muito pior foi o lento, ignominioso deslizamento para
o chão.
Ficou arremessada no tapete, sua camisola jogada para cima por cima de seus inúteis joelhos e seu cotovelo intumescido pelo golpe. As lágrimas se amontoaram
na borda de seus olhos. Deixou que caíssem. Ninguém as veria essa noite. Mas pela manhã...
Rodando sobre seu estômago, elevou-se sobre seus braços. Levar-lhe-ia horas, mas conseguiria voltar para a cadeira ou à cama. Se não era possível com uma, sê-lo-ia
com a outra. Que Deus impedisse que Niall a encontrasse assim.
Um tênue som veio das escadas: passos subindo, tão suaves que teve que esforçar-se para ouvi-los.
Morgan Holt a tinha feito mais consciente dos sentidos físicos do que jamais poderia admitir. Ela conhecia os passos de cada membro da casa, das ligeiras pegadas
de Fran até as passadas grandes e decididas de Niall. Mas estes passos não os reconhecia.
Sua pele começou a arrepiar-se. Instintivamente se estirou para alcançar a prega de sua camisola e tentou puxá-la para tampar seus joelhos. O movimento a fez
perder o equilíbrio, e caiu para trás sobre seu cotovelo machucado justo quando os passos se detiveram diante de sua porta.
Abriu-se com um balanço. Um aroma familiar, inquietantemente fascinante flutuou dentro com o cortante ar de outubro. A entrada ocupada por uma figura magra
e poderosa.
Morgan Holt tinha vindo para lhe devolver sua chamada.

Morgan sabia, quando abriu a porta, que o tentador aroma da Athena Munroe lhe tinha guiado ao aposento correto. Mas ela não estava onde ele tinha esperado que
estivesse.
Jazia no chão ao lado de uma cama de quatro postes, suas imprestáveis pernas cobertas pela metade por sua camisola, seu rosto salpicado por um esforço que indicava
comoção e dor. Soube imediatamente o que tinha estado tentando fazer.
Fechou a porta atrás dele e se ajoelhou a seu lado. O calafrio de não lhe fez duvidar; colocou os braços sob os ombros e joelhos dela e a elevou sobre a cama.
Ela se abraçou desesperadamente a seu robe, tentando ocultar as pernas da vista dele.
Esforçando-se por aparentar indiferença, ele puxou a camisola até os tornozelos dela e subiu as enrugadas mantas até sua cintura. As gemas de seus dedos roçaram
sua panturrilha; apartou as mãos com rapidez, mas não antes de haver sentido a calidez de sua pele e sofrer uma sacudida de excitação.
Ela se ruborizou.
-O que está fazendo aqui?
Sua resposta física para ela tinha deixado tão chocado que não pôde encontrar uma resposta. As emoções dela se precipitaram sobre ele como uma refrescante inundação
no deserto, e nenhuma só de suas defesas mais impenetráveis puderam as rechaçar.
Desgosto. Aborrecimento. Vergonha. Todo o orgulho próprio dela estava perdido, porque ele tinha sido testemunha de sua derrota. Ela retrocedeu ante ele, mas
não porque um homem da classe dela não toca a uma mulher tão intimamente a menos que ele fosse seu marido. Estava envergonhada porque era vulnerável, exposta...
um pássaro sem asas para ser ridicularizada, um coelho para ser devorado. Ela, que estava acostumado a ser forte e livre.
A mente dele formou uma imagem dela elevando-se com esforço de sua cadeira, inclinando-se denodadamente para alcançar a cama -seus valentes esforços insistindo
inclusive quando seu corpo a traía- sua humilhante queda ao chão. Ele soube o que era considerar um simples movimento de uma cadeira a uma cama como se fosse um
salto através de um abismo de trinta metros.
E quanto coragem era necessária para viver com esse intransponível obstáculo cada dia de sua vida.
O olhar dela se encontrou com a dele. Agora era ele quem retrocedia ante o assalto dela a seus sentidos e a seu coração. Sentia-o como uma ferida aberta, este
terrível intercâmbio. A pele dele parecia tomar o calor do dela, embora não se tocassem; ele apartou a vista somente para notar o suave inchaço dos peitos dela através
da fina malha de sua camisola, e a provocadora desordem de seu cabelo castanho.
Agachou-se ao lado da cama, tanto para proteger-se a si mesmo para sentir-se menos ameaçador aos olhos dela. Ele era um intruso ali. Este era o lugar dela,
seu território, poderia lhe ordenar que se fosse. Ele se apressaria a obedecer e correr antes... antes...
-Como entrou? -exigiu saber ela. Sua voz se elevou mais segura, embora cortou a meia frase. -Os criados...
-Não me ouviram. Mas você sim.
-Sim -Ela se sentou direita apoiando-se em uns travesseiros, atirando da manta com ela. -Isso não explica por que veio na metade da noite, invadiu nossa casa,
e entrado em mi... meu quarto como se tivesse o direito...
-Direito não, mas sim um motivo - disse ele brandamente, cruzando os braços diante de seus joelhos. -Vim a lhe dar uma mensagem. Seu irmão...
-Se meu irmão estivesse aqui...
-Mas não está.
-Tem o hábito de entrar como um ladrão, Sr. Holt, quando não há nenhum homem que lhe detenha?
Ele não pôde evitar admirar a crescente firmeza de sua voz e a franqueza de seu olhar. Não poderia zangar-se com ela depois do que tinha visto. Esta não era
a agradável, educada e benévola dama que tinha descido das alturas para ver a presente surpresa de seu irmão. Esta era a mulher que ele tinha vislumbrado brevemente
na barraca depois do recente seu acidente despertar a mulher-lobo- e gostava mais ainda por sua sincera irritação.
Sim, gostava. Inclusive a palavra se o fazia estranha enquanto rodava por sua mente, explorando e saboreando-a como se ele fosse um cachorrinho com uma fascinante
parte de osso.
-Vou e venho aonde desejo -disse ele, -mas não para machucá-la.
-Suponho que sua educação, qualquer que seja, não lhe ensinou que implica um dano considerável entrar no quarto de uma dama sem ser convidado nem acompanhado.
Não é somente de pouca educação... -Ela tragou e agarrou com força o bordo da manta. -Entre... a gente de cidade, a reputação é algo valioso. Se alguém lhe visse
aqui, a minha se veria comprometida.
-Conheço suas regras - Ele trocou de posição, e os olhos dela seguiram o movimento. -Você e seus amigos esbanjam muito tempo preocupando-se com o que não é
importante.
-O que quer dizer com isso? -Ela se elevou mais sobre os travesseiros, esquecendo de colocar a manta também. -O que sabe você sobre meus amigos, ou sobre as
delícias da vida?
Ele deixou cair o queixo sobre seus braços cruzados. Este era um momento tão bom como qualquer outro. Poderia lhe contar o que tinha escutado no restaurante
Windsor. Seria amável por sua parte liberá-la de suas ilusões.
Mas olhou ao rosto dela e soube que a verdade a destruiria. Não era o bastante forte. Talvez nunca fosse. E quando o circo deixasse Denver -amanhã, dentro de
uma semana, dentro de um mês, -já não lhe importaria nada disso.
Não deveria lhe importar agora. Não deveria lhe importar que seu irmão a atasse com uma curta correia e que ela escolhesse não vê-lo, ou que ela se desse por
vencida por medo de perder o pouco que tinha.
O pouco que tinha. Ela riria dele se lhe dissesse isso, rodeada como estava pelo luxo e tudo que o dinheiro poderia comprar. Todas as coisas que sua própria
família não tinha tido, que seu próprio pai tinha estado tão faminto por ter.
-Tem razão sobre minha educação, Srta. Munroe - disse ele. -Não tivemos muito. Vivíamos em uma pequena cabana nas montanhas. Uma cama e um catre. Com somente
uma chaminé e velas para nos iluminar. Meus pais... minha mãe caçava, e nós pescávamos e vendíamos as peles no povoado. Tínhamos livros, mas não fomos à escola -
As lembranças se empanaram com o pó dos anos que subia dos lugares onde os mantinha escondidos, elevando uma névoa em sua mente. -Não necessitávamos nada mais, até
que p...
Deteve-se. Fez retroceder as lembranças ao esquecimento e ficou de pé. De onde demônios tinham vindo? Por que aqui, com ela? Ela não era parte de seu passado,
ou de seu futuro. E seu futuro não chegava mais à frente do seguinte momento.
-Seus pais - disse Athena, com a voz repentinamente amável. -Havia dito que não tinha visto sua família desde que era um menino. Perdê-los sendo tão jovem...
sinto lhe haver falado como o fiz.
Ele se obrigou a olhá-la. O rosto dela tinha assumido essa cortês, quase santa, expressão, lhe fazendo desejar morder e grunhir até fazê-la perdê-la de novo.
Deliberadamente baixou seu olhar desde seus olhos a seu queixo e mais abaixo, onde a gola de sua camisola abraçava o gracioso arco de sua garganta.
Apesar das rendas e babados, a fina malha do objeto deixava pouco à imaginação. Os tons rosados da pele de lhe davam um tintura rosa à branco tecido, e onde
seus peitos elevavam o vestido ele podia ver os escuros círculos de seus mamilos. Cada um formava um pequeno, fascinante pico que se fizeram mais pronunciados quando
ela notou o olhar dele.
Os humanos - ou os licantropos em forma humana- eram quase como os animais. Seus corpos respondiam ao instinto e aos desejos que não tinham nada que ver com
o intelecto. O corpo de Morgan era muito mais consciente do de Athena.
Ele não tinha sido alheio a ela durante seus encontros anteriores. Tinha sido consciente de seu sexo e tinha tolerado certa atração, inclusive antes que
tivesse conhecido a verdadeira natureza dela. Mas a atração tinha sido somente isso, e o tinha afastado com facilidade.
Mas já não. Algo tinha mudado. Não era só respeito para a coragem dela aguentando as limitações de seu corpo e espírito, ou que tivesse compartilhado suas emoções
a contra gosto. Não era porque estivesse ali no dormitório dela, um local que os humanos consideravam como o lugar apropriado para o sexo. Nem tampouco era porque
ela tivesse posto uma camisola transparente em lugar de saias armadas. Tinha visto muitas mulheres vestidas com menos, e as tinha considerado como simples desafogos
para as necessidades de seu corpo.
Athena não era como essas mulheres. Ele compreendia a diferença entre mulheres criadas como o tinha sido ela, e as mundanas habitantes do circo ou dos botequins.
Ela não tinha experiência, disso estava seguro, nem habilidade. Sua provocação era completamente sem intenção.
Considerava-o como uma besta lasciva que poderia atirar abaixo sua preciosa reputação, ou pior, um inimigo capaz de fazê-la recordar o que tinha perdido.
Não importava com quanto cuidado ela ou seus socialmente apropriados amigos tentassem aparentar o contrário, ela sabia porquê ele a olhava e porquê desejava
ocultar-se a si mesmo de seu olhar. Sua pele flamejou, a cor subindo desde seu pescoço e chegando até a raiz de seu cabelo. Sua respiração se acelerou. Ele podia
ouvir o batimento do coração de seu pulso por debaixo da suave carne de sua garganta. O aroma dela tinha sofrido uma sutil mudança à medida que seu corpo se preparava
para a cópula, e as narinas dele se alargaram para capturar a fragrância da excitação.
Desejava-o. E ele desejava a ela. Esta garota, esta arrogante e ingênua mulher em sua jaula com rodas... ele a desejava como nunca tinha desejado a outra mulher
em toda sua vida.
Seus pés se moveram com vida própria, lhe aproximando dela. Suas mãos se estenderam para tocá-la, abraçá-la, reclamá-la.
Minha, uivou o lobo. Minha.
-Detenha-se - sussurrou ela. -Morgan. Por favor.
Ele acreditou ter imaginado a petição, mas as mãos dela agarraram as mantas e seus olhos suplicaram piedade. Deteve-se. O ar encheu seus pulmões. Sacudiu a
cabeça para romper os filamentos de luxúria como teias de aranha que lhe tinham atado a Athena, e soltaram sua tenaz garra.
Mas não de tudo. Seu corpo ainda doía e gritava, recusando ser silenciado. Tudo o que precisava era aspirar o aroma dela, e estaria apanhado de novo. Mas tinha
vindo com um propósito, e ainda tinha que cumprir com ele.
Niall Munroe havia lhe trazido aqui. Tinha traído a Athena, dos seus, sua família, sua manada. E Athena ignorava o engano de seu irmão tal como ignorava a hipocrisia
de seus amigos de sociedade.
Morgan tinha pretendido dar a Athena uma oportunidade para lutar por si mesma. Até agora, não se tinha questionado seus motivos. Atração física, o instinto
de ajudar a alguém de sua própria espécie, sua aversão pelo Niall Munroe, compaixão... tudo lhe levava a este quarto e a este instante. Esta inegável necessidade.
Expirou longamente.
-É hora de que conte a que vim...
-Vá -a manta da Athena chegava ao queixo, emoldurando seu pálido rosto. -Se não se for neste instante, ver-me-ei obrigada a chamar a minha donzela. Seria melhor
que não o fizesse, pelo bem de ambos.
Ele sacudiu seu corpo uma última vez e aproveitou a ocasião para inofensiva escaramuça.
-Chame a sua donzela, Athena, mas espero que seja uma mulher muito valente. Não desejaria aterrorizá-la.
-Desfruta com isso, verdade? -A faísca desafiante voltou para os olhos dela. -Gosta de intimidar às pessoas somente porque pode. Os sentimentos de outros não
significam nada para você. Poderia lhe jogar eu mesma se não fosse uma... -Levantou o queixo. -Não é um cavalheiro, Sr. Holt, aproveitando-se de mulheres indefesas.
Se pensar -se é que alguma vez pensa- que tenho algum interesse em você além de sua participação no circo, está você tristemente equivocado.
Ela se tinha aproximado muito à verdade. Morgan sorriu.
-Por que pensa que eu estou interessado? Tantos homens tem ofegando atrás de você, Athena? Desfaz-se de seus pretendentes com a ponta de sua língua, ou o faz
seu irmão por você?
Arrependeu-se de sua crueldade imediatamente. As pupilas dela se estreitaram como se ele puxado ela e a tivesse sacudido. Depois a luz feroz abandonou seus
olhos, e baixou o olhar para suas mãos colocadas sobre a manta.
-Não tenho pretendentes - disse ela. -Pode ver porque não os tenho. Deixei-me levar pelo orgulho. Tem você uma extraordinária habilidade para me converter em
uma harpia. Esqueci minhas maneiras... Comportei-me que forma abominável. Mas você salvou minha vida, e isso não o esquecerei.
Morgan se sentiu tão alto como Ulysses, e muito menos honorável.
-Athen...
-Não importa por que veio, Morgan, é mais que óbvio que você e eu somos muito diferentes inclusive para falar um com o outro de uma maneira calma e razoável.
Façamos uma trégua, e aparentemos que este mal-entendido nunca passou.
Mal-entendido? Ele se teria rido se não se tornou tão profundamente sensível à fragilidade dela. Uma simples lágrima lhe tivesse posto de joelhos.
-Morgan - disse ele.
Ela piscou.
-Perdão?
-Chamou-me Morgan.
-Sinto muito. Não pretendia...
-Ninguém me chama Sr. Holt - disse ele. -Isso é para os cavalheiros.
-Peço-lhe desculpas por minha rudeza...
-Morgan.
Ela duvidou por um comprido instante, olhando com fixidez a manta entre seus dedos.
-Morgan.
-Bem - Ele se sentou onde estava, sem confiar em si mesmo se se aproximava dela. -Não sou seu inimigo, Athena. Vim para avisá-la de que seu irmão está atuando
em seu contrário.
-Niall? Não compreendo.
-Ele nos trouxe -a companhia- a Denver para atuar para seus órfãos. Agora quer comprar para que vamos antes da atuação, e não acredito que pense dizer-lhe a
você até que nos tenhamos ido.
-Comprar?
-Vi-lhe oferecer dinheiro ao Harry se íamos. A companhia queria que você soubesse, assim poderá decidir.
-Isso é ridículo. Meu irmão lhes pagou a viagem a Denver. Por que lhes jogaria agora?
-Quer a verdade?
Uma porta se fechou depois dos olhos dela.
-É obvio. Ainda não compreendo...
-Inteirou-se do número do Homem-Lobo. Por isso estava tão aborrecido quando foi procurá-la, e é por isso que quer que você se separe a médio prazo
Ela empalideceu.
-Ele não sabia que você estava no espetáculo? Mas se tiver estado com o circo todo o tempo...
-Não me viu quando contratou à companhia, e não acredito que saiba que sou um Homem-Lobo. É a idéia o que ele odeia. Contou ao Caitlin que não quer que os meninos
vejam algo inapropriado para eles, mas ela pensa que está assustado e o oculta clamando que a protege a você. Manteria à companhia aqui se não fosse por mim.
-Por que Niall teria que estar assustado? -A suave curva dos lábios dela tomaram um gesto teimoso. -Se sua atuação for muito aterrador para os meninos, deixaremo-lo
fora. O que diz de meu irmão... ter-lhe-á entendido mau.
Ele poderia haver-se detido aí, lhe contar o que a companhia tinha decidido, e deixá-lo em suas mãos. Seria o caminho mais fácil. Uma vez que começasse a dizer
tudo o que tinha em mente, só conseguiria conectar mais profundamente com ela.
Mas não estava já a meio caminho do inferno?
-Não o entendi mau, Athena. Se seu irmão fosse um ser humano comum, não acreditaria que minha atuação fosse outra coisa que um truque. Deve suspeitar que o
Homem-Lobo é como você... e rapidamente se deu conta de quem e o que sou.
-Mas contei a você que ele compreende...
-Por que o teme tanto se é que aceita o que você é? Por que quer que vamos antes de que você nos veja outra vez?
A boca dela se abriu tentando tomar fôlego.
-Conheço meu próprio irmão. Tem que haver algum outro motivo para seu... comportamento tão estranho.
Apesar da veemência de suas palavras, Morgan soube que estava mentindo. Oh, não de propósito, e não a ele, se não a si mesma. Havia algo ao que ela não queria
enfrentar-se.
-Disse que seu irmão sempre soube o que você era. A mãe dele era humana, mas a sua era uma dos nossos.
-Sim - O rosto dela estava pálido, como se se antecipasse a alguma terrível dor. -Meu pai amava a minha mãe. Aceitava-a completamente.
-E seu irmão o fez? Você correu como um lobo antes do acidente. Talvez ele a invejava.
-Não - disse ela. -Se equivoca - Olhou rapidamente aos lados, como um animal apanhado procurando uma saída. -Seus pais... os dois eram licantropos?
-Me... pai era humano.
-E ele invejava a sua mãe?
-Não sei - Sua garganta se ressecou, e teve que tragar duas vezes para esclarecê-la. -Amava-a. Ele nunca levantou uma mão contra ela ou disse uma palavra dura,
até que ele...
Olhou-lhe fixamente esperando que terminasse. Não pôde.
-Falávamos de seu irmão, e porque está assustado - disse com dureza. -Talvez não quer que possa juntar-se com outro de sua espécie. Do que a está protegendo,
Athena? Acaso odeia secretamente o que você é -o que somos- da forma em que os humanos odeiam aquilo que não compreendem? Ou é que quer que esqueça o que era antes
do acidente?
-Meu irmão - começou Athena, lutando com seus pensamentos tal como ele fazia com os seus. -Penso que ele adivinha, ou adivinhará, o que você é, e quer me manter
apartada. Mas não tem nenhum motivo para pensar que você me machucaria.
-Eu nunca poderia machucá-la, Athena.
Ele sentiu a reação dela como um murro em seu estômago.
-Sei que não o faria - disse ela em um suspiro. -Mas se Niall souber o que tem feito esta noite...
-Não saberá - Ele se levantou, estirando a coluna vertebral até que rangeu- Mas você não deseja que me encontre aqui. Vim a lhe dizer que a companhia se manterá
de seu lado. Se você desejar que fiquemos, faremo-lo, não importa o que diga seu irmão.
Era muita comoção, havia-se dito muito para descartá-lo sem mais, mas ela manteve sua confusão sob controle, e lutou para por acalmar-se.
-Por que desafiam ao Niall quando ofereceu lhes pagar?
-Possivelmente nós não gostemos que os da cidade nos dêem ordens.
-Essa não é uma boa razão. Niall tem muita influência...
-Harry sabe o que a atuação significa para você. Você gosta. Assim como também a Caitlin.
-É muito amável de sua parte. E... e você?
-Eu não gosto de seu irmão.
Ela emitiu uma risada assustada.
-É você muito direto.
-Eu não gosto do que faz a você.
-A mim?
-Controlando-a. Assegurando-se de que permaneça tal como está agora.
Os olhos dela se alargaram.
-Ele não tenta me manter aqui... desta forma. Não há nada que possa fazer-se a respeito - Ela sacudiu a cabeça, rechaçando qualquer pensamento desagradável
que ele tinha metido em sua mente. -Niall me permite fazer o que posso pelos indigentes e os deficientes. Só deseja o melhor para mim, me fazer feliz. É um bom homem.
-Ele é humano. Você não.
Ela esteve calada durante um comprido momento.
-É você um homem estranho, Morgan Holt. Apenas me conhece. Tampouco Harry, ou Caitlin. E ainda assim faria isto por mim.
-Você ajuda a pessoas que não conhece. Por que deveriam ser distintos os feirantes? Ou não somos o bastante santos?
-Eu não sou uma santa - disse ela brandamente. -Que deseja que faça?
-Não é minha escolha.
-Ainda assim veio aqui, quando poderia ter enviado uma mensagem amanhã.
-Tem medo de enfrentar a seu irmão? -perguntou ele. -Caitlin disse que não o teria. Disse que você tinha vontade própria. Tem-no, Athena? É mais fácil deixá-lo
correr e aparentar que está de acordo com seu irmão de forma que possa esquecer o que perdeu?
Olhou-o fixamente, afligida. As palavras de Caitlin voltaram para o Morgan tão vividamente como se ela estivesse no quarto a seu lado. "Está a pondo a prova,
Morgan? Deseja que falhe, para assim não ter um motivo para preocupar-se?".
E se deu conta de que estava plantado ao bordo de um precipício, desejando pela metade que ela lhes jogasse e pela metade esperando que tivesse a coragem de
ser o que seu sangue clamava que fosse. Não esta aleijada em uma cadeira, a não ser uma mulher com caráter e força. Era uma prisioneira que não reconhecia sua prisão
ou aos carcereiros nos que confiava. Sua independência e influência social eram ilusões, suas boas obras eram um falso consolo, seu orgulho e aceitação de seu destino
eram só máscaras de papel que se espremem com um toque.
Mas se decidia lutar, se enfrentava às realidades que voluntariamente ignorava, então ele estaria vinculado a sua causa. A ela. Em alguma parte, em algum momento
desde seu primeiro encontro, tinha aceitado a Athena Munroe como parte de sua manada tal como se uniu aos feirantes... a contra gosto, odiando-se a si mesmo por
sua debilidade, mas vinculado com toda segurança.
Ele não queria esta responsabilidade para outra pessoa. Tinha intenção de passar a vida sozinho, sem ataduras, sem sentimentos.
Mas o circo lhe tinha mudado... Caitlin, Harry, Ulysses. Tinha começado a esquecer o que era viver com cadeias, e o que lhe tinha levado até ali.
O pequeno suspiro da Athena lhe trouxe de volta do passado.
-Perguntou-me por minha decisão - disse ela, encontrando o olhar dele. -Desejo que fiquem. Os meninos esperam um presente especial, e não lhes decepcionaremos.
Encontrarei uma forma de convencer a meu irmão, não importa o que custe.





























CAPÍTULO 10

Athena aguardou ver como respondia Morgan, profundamente agradecida de ter conseguido manter a compostura intacta -apenas- durante essa horrorosa visita.
Quão feitos tinham sido tirados a luz durante sua conversa ainda davam voltas dentro de sua mente, lhe fazendo difícil o concentrar-se em uma única perturbadora
revelação. Era incapaz de decidir qual era pior: a inoportuna intrusão do Morgan, sendo este testemunha de sua impotência, ou o que lhe tinha contado sobre o Niall.
Ela acreditava no Morgan, apesar do doloroso que lhe resultava fazê-lo assim. Desde essa discussão meses atrás quando Niall a tinha acusado de fazer muito,
uma parte dela tinha estado preparando-se para semelhante batalha. Simplesmente, não tinha acreditado que esta chegaria tão logo, ou de uma forma tão inesperada.
Tinha mentido ao Morgan ao dizer que Niall aceitava sua natureza não humana; em seu coração, ela sabia que ele não o fazia, não de todo. Era uma questão que
eles nunca tinham discutido. Mas se Niall pensava que lhe podia recordar a herança de sua mãe e como aquela a tinha levado a esta vida de confinamento...
Como podia ela admitir quanto lhe doía que Niall tivesse conspirado a suas costas, tudo em nome de proteger a de si mesmo?
Sua reputação se converteu na menor de suas preocupações. Ainda assim, não podia ignorar o efeito que Morgan tinha sobre ela, aqui, em seu próprio e mais privado
santuário. Ele era o lobo que falava com a besta dormindo em seu interior. O homem que a olhava como se ela fosse uma mulher desejável. Que o céu a ajudasse, havia
sentido esse olhar como um toque sussurrando acima e abaixo de sua carne, despertando sensações que tão somente tinha começado a experimentar antes do acidente.
Por que, oh, por que tinha vindo Morgan para despertá-la de novo? Por que a fazia sentir mais que qualquer outro homem vivo, mais do que nenhuma pessoa tinha
direito a sentir?
E por que estava tão decidido a protegê-la?
Manteve a cabeça alta e lhe observou sopesar sua resposta tão implacavelmente como tinha julgado sua vida. Finalmente, inclinou a cabeça e um sorriso elevou
um canto de sua boca.
-Caitlin estava certa - disse. -É bastante valente.
-Obrigada. E agora deve partir. Se meu irmão te encontrar aqui, nada no mundo lhe convencerá para deixar que o circo permaneça em Denver.
Ele inclinou a cabeça.
-Partir-me-ei.
Athena se permitiu relaxar-se somente um pouco, sabendo que não haveria mais oportunidades de dormir essa noite. Passaria as horas da madrugada forjando uma
forma de tirar a limpo o assunto com o Niall... sem revelar sua fonte de informação.
-Por favor, transmite minha gratidão ao Harry e aos outros - disse. -Peça-lhes que esperem até que tenham minhas notícias. Encarregar-me-ei de que te chegue
uma mensagem quando tiver falado com o Niall - ter um plano definido era reconfortante, à margem de quão tênue fora este. -Não importa qual seja a resposta do Niall,
assegurar-me-ei de que a trupe receba o pagamento completo que foi prometido.
-Inclusive se perder a briga?
Ela estremeceu por dentro ante sua insistência em usar termos tão violentos. Possivelmente era que ele não conhecia outro modo...
Se continuava com essa linha de pensamento, permitir-se-ia a si mesmo ser atraída para ele, para sua vida, com a esperança de que de algum modo ela poderia
desembaraçar o mistério de Morgan Holt. Desejava tanto lhe compreender, inclusive sabendo que semelhante curso de ação era perigoso além de sua mais desatinada especulação.
As perguntas que poderia fazer ao Morgan Holt satisfariam sua curiosidade, nada mais. As respostas não trocariam o que era.
-Se perder a batalha -lhe disse- você não terá perdido nada.
-E seu irmão te dominará durante o resto de sua vida.
-Você parece tão determinado a "me dominar" como ele. São todos os homens tão profundamente irritantes como vocês dois?
-São todas as mulheres tão insensatas como você e Caitlin?
-Não sabe... você, um homem de mundo? Não deixaste um rastro de corações quebrados atrás de você?
Ele se retorceu como se fosse mordê-la, e logo seus olhos se acenderam como faróis dourados.
-Ainda não. Deveria começar agora?
Nunca em toda sua vida havia Athena estado tão agradecida por uma distração como o esteve quando ouviu o inconfundível som de uma porta fechando-se de uma portada
no piso inferior.
-Niall está em casa - sussurrou. -Deve ir imediatamente!
Ele a obsequiou com seu mais lupino sorriso.
-O que aconteceria não o fizesse?
-Se for depressa, pode sair pela janela. Estou segura de que descer de um segundo piso é um jogo de meninos para um homem com seus talentos.
As escadas rangeram sob o patamar. Athena fez gestos ao Morgan em direção à janela. Ele partiu obedientemente na direção correta, mas, no último minuto, virou-se
e se deslizou junto a sua cama.
Athena supôs que, em alguma profunda parte dentro de si, ela estava quase esperando o que aconteceu em seguida. Morgan se agachou junto a ela, pôs as mãos sobre
a cama, e se inclinou muito perto. Seu calor a banhou como um sol do verão. Seu espesso, negro, comprido cabelo roçou os lençóis, seu travesseiro, seus peitos.
E logo ele a beijou. Sua boca desceu sobre a dela, dura por só um instante, antes de tornar-se gentil e começar a acariciar. Seu peso a pressionou contra os
travesseiros. Ela poderia haver-se sentido sufocada, aterrorizada, mas seus sentidos se viram tão realçados que as quebras de onda de prazer pulsaram desde sua cabeça
até seus pés. Um de seus braços se moveu como se tivesse mente própria para enroscar-se em torno dos ombros dele. Firme músculo se contraiu sob sua palma.
-Athena - murmurou ele.
Ela conteve a respiração. Seus lábios palpitavam. Seu corpo palpitava.
-Morgan.
Uma tábua solta no chão do patamar fora de sua porta rangeu em alerta. Morgan deu um pulo para trás. Saltou para a janela, abriu-a violentamente e logo se esfumou
por ela. O ar frio penetrou por entre as cortinas, fazendo um vão intento de esfriar a quente pele da Athena. Apressadamente, ela reacomodou sua camisola e se deslizou
mais abaixo sob o cobertor. Não tinha sentido fingir que não tinha estado acordada, não com o abajur ainda ardendo e a janela totalmente aberta.
A porta se abriu. Niall entrou no quarto e jogou uma olhada em redor. Sua expressão, graças ao céu, não mostrava mais que uma ligeira perplexidade. Ele carecia
dos sentidos para saber que alguém mais tinha estado na habitação.
-Vi a luz acesa - disse. -Por que não está adormecida? -antes que ela pudesse responder, ele reparou nas cortinas ondeando e foi para a janela para fechá-la.
-Vai pegar uma pneumonia, Athena. Por que está aberta a janela?
-Tenho um pouco de calor - disse ela docilmente. -Não podia dormir.
Ele franziu o cenho e se deteve junto a sua cama.
-Tem febre? Deveria mandar procurar um médico?
-Não. Estou bem... só estava pensando.
Ele tomou assento entre as barras ao pé da cama.
-No que?
Athena tratou de recordar quanto tempo fazia desde que ela e Niall tinham tido um bate-papo sincero que não girasse em torno de elementares cortesias ou, mais
recentemente, discussões a respeito das atividades dela.
-O circo - respondeu ela honestamente. -A atuação para os meninos. Só faltam uns poucos dias.
Ele teve a decência de parecer incômodo. Seus dedos puxavam um pouquinho o cobertor dela.
-Estaria muito decepcionada... se a atuação tivesse que ser cancelada?
Assim que ele se sentia obrigado a dizer algo, depois de tudo. Ela enfrentava uma clara escolha: ou fingia não saber nada, usando sua suposta ignorância para
escavar a resolução do Niall, ou lhe confrontava diretamente. Ela sabia o que teria escolhido ontem.
Muitas coisas tinham sido diferentes ontem. Ela não tinha acreditado que chegaria o dia em que se veria obrigada a desafiar a seu irmão. Mas claro, tampouco
teria acreditado que chegaria o dia em que seria beijada em sua própria cama por um virtual estranho... muito menos um como Morgan Holt.
-Planeja mandar o circo longe - disse.
Ele a olhou bruscamente.
-Como soube?
-Por... algo que Cecily disse hoje no terreno - improvisou ela. Cecily Hockensmith tinha atuado de maneira bastante estranha enquanto ela e Athena esperavam
na carruagem a que Niall retornasse, mas Athena tinha estado mais preocupada com seu irmão naquele momento. -Eu sabia que algo acontecia pela forma em que te comportava.
Não foi você mesmo.
Ela inspirou aliviada ao ver que tinha suposto corretamente.
-Discuti o assunto brevemente com a senhorita Hockensmith -disse Niall- e lhe pedi que viesse comigo quando fui ao terreno...
-Para lhe pedir ao circo que deixasse Denver - terminou ela. -Por que, Niall? Eles foram um presente para mim, para os meninos. Cecily mencionou algo sobre
uma má influência, mas certamente...
-Tinha tido a esperança de que isto não saísse a tona até que partissem -disse Niall, ficando de pé. -Mas já que o adivinhou, não vejo razão para negar a verdade
- ele caminhou até o outro lado do quarto e se dirigiu à parede, as mãos unidas à costas. -Cometi um engano ao trazer o circo a Denver. Não é um entretenimento adequado
para os meninos, nem os artistas companhia apropriada para você e as outras jovens damas.
-Já vejo. E discutiu isto com Cecily?
-A senhorita Hockensmith se mostrou de acordo comigo.
Athena se mordeu o lábio. Era difícil não estar um pouco molesta com Cecily por ficar de parte de seu irmão, mas sabia que os motivos da outra mulher eram bons
ainda se sua atitude era muito severo.
-O que te conduziu a tomar esta decisão, Niall?
Aí. Agora ele ou lhe diria a verdade ou procederia cautelosamente, como se isto fosse um delicado trato de negócios.
Ele escolheu um caminho intermédio.
-Recebi alguma nova informação que sugeria que seria melhor se eles não ficavam. Ofereci-lhes uma substancial gorjeta em compensação. mostraram-se bastante
felizes de aceitá-la.
Agora ele estava mentindo.
-Fizeram-no? Não é realmente aos meninos a quem deseja proteger, verdade, Niall? Você teme por mim.
Ele se deu a volta e a olhou.
-E se o estou? Já passa muito tempo com esses mendigos e gentinha agora mesmo. Discutimos isto antes...
-Eles são seres humanos, não é certo? São muitíssimo mais aptos para ser danificados que para fazer mal. Os integrantes da trupe se acham constantemente ao
bordo do desastre, e ainda assim são generosos e afetuosos.
-Vê-o? Já pensa neles como amigos.
-Formalizamos um contrato com eles, e você sempre disse que os contratos devem ser honoravelmente cumpridos. Inclusive se não considerar semelhante contrato
como sagrado, eu sim o faço -ela fez provisão desse valor é o por que deve concordar a deixar ficar para que completem sua atuação.
-Devo? Ouvi-te corretamente, Athena?
-Sim. Pedi-te muito pouco durante estes passados anos, exceto me permitisse usar minha porção da herança como desejasse. Agora te estou pedindo isto.
Ele a olhou com o cenho franzido e passeou de um limite do quarto a outro.
-Já lhes pedi que se fossem.
-Envia uma mensagem e lhes diga que mudou que idéia. Não precisa dar nenhuma explicação.
Agora era o momento crucial. Ou ele esgrimia um melhor argumento que o que tinha usado até esse momento, ou se veria forçado a lhe contar sua verdadeira razão
para querer a trupe... e muito especialmente ao Homem-Lobo... fora de seu alcance.
-Se fizer isto, Niall - disse ela. -Me manterei afastada do terreno até o dia da atuação.
-Isso não é suficiente. Se permitir que o circo fique, deve prometer reduzir algumas de suas mais desmedidas atividades.
Athena fechou os olhos. Ela sabia que ele estava usando isto como um meio para fazer a mesma coisa da que Morgan lhe tinha acusado: controlá-la.
-Pede muito - disse ela.
-E você também - o colchão rangeu enquanto ele voltava a sentar-se. -Eu estou disposto a me comprometer, mas só se você fizer o mesmo.
Se comprometeu? -pensou ela com desacostumada amargura. -Negociar é uma palavra muito agradável. Manipular é uma mais acertada. Você tem todas as vantagens.
-Muito bem - disse. -Enviará uma mensagem amanhã pela manhã?
-Sim - lhe deu tapinhas na mão. -É o melhor, querida minha. A atuação será no domingo. Não prevejo nenhum problema enquanto você permaneça em casa até então.
Athena esteve muito tentada de discutir. Não desfrutava fazendo-o, e já tinha tido sua dose essa noite com o Morgan. Mas uma semente de ira jazia, dura e fria,
em seu coração, ameaçando crescendo até converter-se em algo maior e muito mais intratável. Algo com garras e presas e a tenacidade para eliminar cada obstáculo
de seu caminho por qualquer meio.
Exatamente como Morgan Holt.
Ela colocou a mão sob as mantas.
-Estou cansada. Acredito que eu gostaria de dormir agora.
-Bem - ele se levantou e foi apagar a abajur. -Estou seguro de que terá muitas coisas que fazer até no domingo. Pedirei à senhorita Hockensmith que venha de
visita e traga suas amigas.
Ela não respondeu. Depois de um momento, a luz se extinguiu e logo a porta se fechou brandamente. Os passos do Niall se retiraram corredor adiante até seu próprio
quarto. Outra porta se fechou. Tudo ficou em silêncio exceto pelo tamborilar dos ramos do algodoeiro contra sua janela.
Athena jazia fria e rígida sob as mantas, lutando por controlar seus irracionais paixões. Seu estômago se esticava e se revolvia como se tivesse digerido até
o último farrapo do contente que ela tinha cultivado do acidente.
Mentiu-me, Niall. Trata-me como uma menina, e deixei de ser uma menina quando você me tirou de debaixo desse montão de neve depois da tempestade de neve.
Uma menina. Para o Niall, ela sempre seria isso, dependente e incapaz de guiar seu próprio destino.
Morgan Holt não a via dessa maneira. Tremeu recordando o beijo, e a gelada semente em seu coração foi consumida em um fogo de puro desejo físico.
Morgan Holt acreditava que ela era valente e capaz. Ele a via como uma mulher. Não a banhava com preciosas palavras. Era apenas cortês. E, ainda, suas ações
falavam mais eloquentemente que o mais culto dos discursos.
E a tinha beijado.
Ela tocou os seus lábios. Era bom que devesse manter-se afastada até a atuação. Se se voltava a encontrar com ele em privado, não sabia o que faria ou diria.
Ou o que ele faria ou diria, quando não havia futuro possível que compartilhar entre ambos.
Em sonhos, ela podia caminhar, e correr, e inclusive mudar de novo. Em sonhos, todas as barreiras entre ela e Morgan Holt se dissolviam como neve em uma bule,
e ela esquecia que sua vida estava riscada agora na forma em que sempre seria.
Fechou os olhos e insistiu aos sonhos a vir.

Niall acompanhou a Athena, a senhorita Hockensmith, e as poucas amigas que tinham escolhido assistir à atuação aos assentos especiais dispostos expressamente
para eles ao bordo mesmo da pista. Havia trabalhadores ocupados em fazer os ajustes finais a acessórios que iriam ser usados pelos artistas: o elevado arame, a cama
elástica, as várias bolas, bandeirolas e aros. O andaime para os artistas aéreos pairava sobre suas cabeças. Uma trompetista desafinada soava fora da entrada dos
integrantes da trupe no lado oposto da pista, e as professoras do orfanato agruparam aos últimos dos meninos a seu cargo na área de assentos comuns, a qual a gente
do circo chamava os "azuis".
As vozes dos meninos se deixaram ouvir e ecoaram sob a cova artificial da tenda. Sons de inocente e singela alegria. Niall olhou as felizes caras voltas para
cima e se alegrou de não ter negado aos órfãos esse pequeno prazer. Athena tinha convidado aos residentes dos outros orfanatos de Denver em adição ao seu próprio;
quase cem jovenzinhos enchiam os "azuis".
Athena tinha sido fiel a sua palavra. Ficou tranquilamente em casa até essa tarde. Se tinha havido alguma ligeira tensão entre ele e sua irmã, Niall a tinha
atribuído a um pequeno ressentimento por parte de sua irmã. Ela o superaria... sempre o fazia. Não havia ninguém no mundo menos apto para guardar rancor que Athena.
Niall a conhecia melhor que ninguém.
Como uma confirmação de seu julgamento, Athena lhe sorriu brilhante e imparcialmente a ele e a qualquer outra pessoa que entrasse em seu campo de visão, incluindo
o Harry French. O velho lhes tinha atendido pessoalmente e disposto que lhes provessem com refrescos, fazendo reverências com aduladora humildade. Felizmente, não
tinha tido a temeridade de perguntar ao Niall por que tinha mudado de ideia a respeito de permitir a atuação, embora Niall se assegurou de que o Homem-Lobo se mantinha
afastado. Existia o pequeno risco de que Athena recordasse coisas que era melhor que permanecessem enterradas.
Cecily Hockensmith tocou seu braço.
-Oh, senhor Munroe, me alegro tanto de que encontrasse você uma forma de permitir o espetáculo apesar de nossas preocupações -disse. -Athena se vê tão feliz.
Foi você muito ardiloso ao encontrar uma solução que agradasse a todo mundo.
-Eu não gosto de fazer a minha irmã infeliz -disse ele, lhe dando um olhar- Não há razão pela que semelhantes assuntos não possam ser resolvidos de um modo
equitativo.
-Certamente. Meu pai expressou frequentemente quanto admira suas habilidades de negociação.
Ele murmurou uma cortesia apropriada e olhou em direção à pista. Se não fosse por Athena e suas amigas, ele teria preferido permanecer no escritório no trabalho,
domingo ou não. Mas este era um momento de triunfo para a Athena, e ele não arruinaria o prazer que ela obteria.
Não soube por que continuou examinando a tenda enquanto Cecily Hockensmith tagarelava junto a ele. Quando Harry French, vestido em seu brilhante casaco e colete,
entrou na pista para anunciar o começo do espetáculo, ele escutou durante um momento e logo deixou sua mente vagar para os últimos informes de seus investimentos
mineiros e interesses bancários.
A atuação começou com os inevitáveis palhaços. Estes saltaram pela pista, levando a cabo sátiras e brincando com os meninos da audiência com suas absurdas palhaçadas.
Niall observou o primeiro ato, decidiu que este era competente e bastante inofensivo, e voltou para seus cálculos de benefícios e perdas. As risadas e gritos dos
meninos, pontuadas pelo ocasional ofego de assombro ou comentário da senhorita Hockensmith, logo que perturbavam suas ruminações.
Um estalo de música da pequena banda marcou a mudança ao seguinte ato, uma manada de cães treinados. Esta passou voando igual ao primeiro. Niall realizou uns
quantos mudanças a um contrato escrito em sua mente. Outra atuação, de um trio de acrobatas, seguiu ao segundo ato, e ele compôs uma carta ao gerente de sua operação
de fundido em Argo.
Foi somente quando o quarto ato começou que ele finalmente se deu conta, embora não poderia haver dito em princípio por que o fez. Uma fila de cavalos cinzas
entrou trotando à pista, com os pescoços arqueados e plumas ondeando orgulhosamente. Depois deles, ligeira como uma fada, saltava uma garota vestida com malhas e
uma saia curta, seu vermelho cabelo flamejando como um halo em torno de seu rosto.
Foi então que ele soube o que tinha estado procurando.
Dados e números se desvaneceram de sua mente como giz apagado de uma piçarra. Caitlin Hughes dançou elegantemente até o centro da pista, um látego ornamental
em sua mão, e chamou a seus cavalos. Estes se elevaram sobre as patas traseiras em perfeita formação, para grande deleite dos meninos.
-Acredito que reconheço a essa garota - disse a senhorita Hockensmith. -Uma coisinha miúda, não é certo? Não posso imaginar que classe de criação deve ter tido.
Niall apenas a ouviu. Ele estava recordando sua última conversa... discussão... com a senhorita Hughes, e como ela retirou esse notável cabelo para revelar
umas orelhas delicadamente bicudas.
Orelhas como... como as de um elfo surgido da lenda. E ela tinha sido tão desafiante. Seus olhos tinham relampejado como os brincos de safira que Niall tinha
dado a Athena dois Natais atrás.
A garota estava muito longe para lhe ver agora. Seu olhar seguiu cada movimento que ela fez, como se tivesse arrojado um feitiço sobre ele. Uma ou duas vezes,
a senhorita Hockensmith disse algo, mas ele somente ouviu sua voz e não as palavras.
Quão notável era a senhorita Hughes. Niall tratou de recordar suas ásperas maneiras, sua rudeza e sua estranheza física, mas se foi tornando crescentemente
difícil fazê-lo assim. Ela dirigia os cavalos como se falasse sua linguagem; eles se elevavam sobre suas patas traseiras, executavam reverências e saltavam a sua
mais ligeira indicação.
Muito rapidamente, um assistente veio para recolher aos cavalos, deixando um na pista com ela. Ela saltou sobre as costas nuas do animal e se balançou aí enquanto
seus ajudantes se colocavam em vários pontos da pista, suspendendo bandeirolas no caminho que ela e suas arreios seguiriam ao longo da circunferência da mesma.
O cavalo começou a trotar e logo saiu ao meio galope. Caitlin bem poderia ter estado voando. Enquanto suas arreios se aproximava de uma bandeirola e passava
por debaixo, ela se saltou para cima no ar e por cima da estirado tecido, realizando um duplo salto mortal e aterrissando com precisão sobre o lombo do animal. As
damas ofegaram com assombro e aplaudiram.
A senhorita Hockensmith puxou sua manga.
-Senhor Munroe...
Ele apartou o braço. Caitlin realizou uma série de saltos e proezas acrobáticas, cada uma mais perigosa que a anterior. Um segundo cavalo foi trazido, e ela
saltou de um lombo a outro enquanto ambos corriam, algumas vezes executando saltos mortais no meio. Niall se esqueceu de respirar. Caitlin seguiu a curva da pista
para os assentos e lhe olhou diretamente.
Era impossível, mas ele poderia ter jurado que seus olhos se encontraram e ficaram presos através dessa distância. Algo agarrava de maneira irritante sua manga.
Não lhe prestou atenção e conteve a respiração enquanto Caitlin sorria.
A tenda rangeu audivelmente sobre suas cabeças, sacudida pelo vento. A arreios do Caitlin se aproximou da seguinte bandeirola e se lançou bruscamente para a
esquerda, seu casco golpeando o bordo de madeira da pista. Caitlin perdeu o equilíbrio... só durante um momento, mas o suficiente para deixá-la mal preparada para
a seguinte bandeirola.
Niall ficou em pé de um salto. Caitlin golpeou a bandeirola em um mau ângulo e saiu voando na direção oposta a sua espantada arreios, golpeando o chão com força.
-Meu Deus! -gritou Athena. -Niall!
Ele não necessitou mais ânimos. Saltando por cima da baixa barreira entre os assentos e a pista, precipitou-se para a tombada figura de Caitlin. Se tinha resultado
ferida... se estava...
Ela abriu os olhos.
-Oh. É você - disse, arrastando as palavras. -Não posso compreendê-lo. Pennyfarthing sempre foi meu melhor cavalo.
-Não trate de falar - ordenou ele.
Tirou o casaco e o estendeu sobre ela. Outros tinham chegado, formando uma parede de preocupação em torno deles dois. Harry French se abriu passo a empurrões.
-Vagalume! Está ferida?
Caitlin sorriu fracamente.
-Estou melhor.
Niall elevou a vista para o Harry.
-Os meninos não deveriam ver isto. Por favor, peça às professoras que lhes levem fora, e seja tão amável de lhes distrair de algum jeito até que... até que
isto esteja resolvido.
-Naturalmente, naturalmente, como você diga - replicou Harry, parecendo a ponto de tornar a chorar. -Mas devemos conseguir um médico...
-É obvio. Niall, deveria procurar o Dr. Brenner imediatamente.
Athena. Niall limpou a mente o suficiente para procurá-la, e a encontrou nos braços do homem que ele reconheceu como Morgan Holt. Este olhou ao Niall aos olhos
com inconfundível desafio.
Holt. Niall recordava como esse rufião tinha permanecido perto de Athena durante sua primeira visita, mas agora ele começava a perguntar-se que interesse tinha
Holt nela. Quem era ele?
-Por favor, Niall - disse Athena, toda enérgico propósito e despreocupação por sua comprometedora posição. -Não sabemos quão gravemente foi machucada Caitlin.
Ela tinha razão, e ele não tinha tempo para preocupar-se com o Morgan Holt nesse momento. Virou-se de volta para Caitlin e acomodou seu casaco mais firmemente
sob seu queixo. Seu rosto se contraiu pela dor.
-Fique quieta - lhe disse ele. - O resto de vocês, assegurem-se de que permanece cálida e imóvel. Suas feridas podem não ser evidentes à vista.
O miúdo, Ulysses, deu um passo adiante.
-Não há necessidade de que se preocupe, senhor Munroe. Cuidaremos bem dela até que chegue o doutor.
Niall assentiu.
-Voltarei antes de uma hora. Athena...
-Eu ficarei aqui, com Caitlin - disse ela.
Sua serena convicção prometia uma longa discussão se ele protestava.
-Senhor French, por favor, leve a minha irmã a sua cadeira - disse Niall. Tardiamente, recordou a Cecily Hockensmith e as outras damas. A senhorita Hockensmith
permanecia a salvo mais à frente do círculo de gente do circo, sua cara congelada em um franzido. A expressão rapidamente se transformou em uma de preocupação quando
a jovem se topou com seu olhar.
-Senhorita Hockensmith - disse ele, ficando em pé, -ficará você com a Athena? A agradeceria muito.
-É obvio - ela sorriu tentativamente enquanto ele caminhava entre a multidão reunida. -Farei tudo o que possa.
-Obrigado - lhe apertou a mão ao passar e caminhou com passos largos para a ampla entrada da tenda.
Uma vez aí, deteve-se, meio temeroso de que Caitlin não fosse estar onde ele a tinha deixado.
Mas a multidão se dispersou o suficiente para revelar sua figura, coberta agora com o casaco dele. Harry French trouxe a cadeira da Athena, e Holt a acomodou
nela. Ulysses se ajoelhou junto a Caitlin, falando com seu suave e agradável acento sulino.
Niall girou sobre seus calcanhares e se encaminhou para a carruagem. O doutor veria Caitlin. Agora que a atuação estava efetivamente concluída, o tempo e a
distância se encarregariam de Morgan Holt, e de qualquer que fosse seu interesse na Athena, e eliminaria a pouco grata complicação que o circo tinha causado aos
Munroe.
Não podia esperar a que a vida retornasse à normalidade de novo.




CAPÍTULO 11

Cecily permaneceu com a mão descansando sobre o respaldo da cadeira da Athena e amaldiçoou ao Niall Munroe pela centésima vez.
Maldito fosse. Maldito por ceder aos caprichos de sua irmã, maldito por lhe olhar a essa bruta menina, e maldito por deixá-la aí com essa gente horrível e sua
nauseabunda suscetibilidade.
-Obrigada por ficar -disse Athena. -Sei que esta não é uma situação agradável, mas lhe agradeço isso.
Cecily sorriu.
-Sabe o que faria algo por você e seu irmão, minha querida - disse.
Olhou com desgosto para a ruiva feto do demônio, cujo peito plano parecia inclusive menos substancial quando se achava estendida de costas. O que, em nome do
céu, via Niall em semelhante criatura?
Porque algo tinha visto, disso ela estava segura. Seus sentidos eram notavelmente agudos no que a seus próprios interesses concernia. Tinha notado como ele
a ignorava enquanto observava à garota atuar. Não tinha respondido a muitos de seus comentários. Tinha-a deixado sentada sobre a dura cadeira sem uma só explicação
e partiu correndo para estar com seu novo objeto de flerte só porque esta sofrido uma pequena queda.
-Não passa nada - disse o velho gordo, Harry French, à garota. -Tudo vai estar bem.
-É obvio que sim - disse Athena. -Niall trará nosso próprio doutor. É o melhor que há em Denver.
Caitlin fez muito esforço para lhe devolver o sorriso, sem dúvida regozijando-se em toda a atenção que estava recebendo.
-Isso é... muito amável de sua parte, Athena.
Athena. Cecily estremeceu. Como podia a irmã do Niall permitir que a prostituta a chamasse por seu nome de batismo? Cecily franziu o cenho e sentiu um formigamento
subir pela espinha.
Morgan Holt estava observando-a. Achava-se de pé muito perto da Athena, do outro lado da cadeira, como uma espécie de cão guardião de cabelo negro. Era como
se ele pudesse ver através de Cecily e dentro de seus pensamentos. Ela não gostou dele imediatamente, mas sob seu status fazia possível o descartar. Isso não resultava
tão fácil com ele a uns poucos passos de distância.
Isto era o que resultava da permissividade do Niall. Ela tinha acreditado que essa batalha já estava ganha. Agora devia reagrupar e considerar novas estratégias
que pavimentassem o caminho para a partida da Athena de Denver.
Topou-se com o olhar de Morgan Holt e sorriu com o seguro conhecimento de sua própria superioridade. Assim que ele encontrava a Athena atrativa, não? Niall
devia ter observado a forma em que ele se pegava a Athena, e Cecily podia facilmente fazer soar a teimosa e inexplicável dedicação de Holt como muito mais ameaçadora
do que em realidade era.
E, quanto à senhorita Caitlin Hughes...
-Deveria partir - disse Morgan Holt.
Cecily se sobressaltou.
-Desculpe?
-Athena está conosco. A você não necessitamos.
Sua surpresa ante sua descarada ordem a manteve silenciosa durante segundos compridos. Athena, falando com Caitlin, não a tinha ouvido. Cecily apertou a mão
em torno do ombro da Athena.
-Eu não farei semelhante coisa.
Incrivelmente, lhe mostrou os dentes. Ela conseguiu reprimir-se e não afastar-se cambaleando para alguma ilusória segurança.
-Como se atreve? -sussurrou.
Ele deu um passo para ela. Ela ofegou e colocou uma distância igual entre ambos.
Repentinamente, pareceu que cada olho estava sobre ela. O miúdo com seus frisados caracóis loiros levantou a vista como se fosse seu igual em altura e qualquer
outra coisa. Um dos palhaços a olhou lascivamente, e o fortão com a túnica de pele animal flexionou os punhos. Hostis e estranhos olhares encontravam o seu se virasse
aonde virasse.
As paredes da tenda ameaçavam cair sobre ela se permanecia outro segundo em seu interior. Apressou-se a alcançar a saída. Uma vez fora, foi capaz de respirar
de novo. Com a segurança veio o sentido comum, e honesta ira.
Eles acreditavam podiam fazê-la fugir como um coelho assustado?
O que Athena deve estar pensando neste momento... se é que acaso se precaveu de algo sequer.
Ignorada. Primeiro pelo Niall, e agora pela Athena. Era insuportável. E ainda assim, quando quis pôr-se a andar para retornar à tenda, achou que seus pés estavam
como enraizados no chão.
Morgan Holt era um demente. Não havia forma de predizer o que poderia fazer se lhe provocava, e obviamente sentia tanto desprezo por ela como ela por ele. Possivelmente
fosse melhor esperar até que Niall retornasse.
Olhou a seu redor procurando um lugar onde sentar-se e, não encontrando nenhum, cruzou os braços e se dispôs a resistir. Depois do que lhe pareceu muito tempo,
captou a bem vinda visão da carruagem de Niall entrando na parcela. O cocheiro conduziu até a metade da mesma e se deteve perto da grande tenda.
Niall desceu de um salto da carruagem, seguido mais pausadamente por um cavalheiro de cabelo e barba brancos. Cecily foi unir se aos homens ao passo mais rápido
que sua dignidade lhe permitia.
-Oh, senhor Munroe - disse. -Me alegro tanto de que você haja retornado tão logo.
-Por que não está dentro com a Athena? -perguntou Niall, logo que lhe dedicando um olhar enquanto urgia ao doutor a lhe alcançar com um gesto da mão e se encaminhava
com frenético passo para a tenda.
Cecily não pôde manter seu ritmo. Diminuiu o passo e permitiu que os homens a precedessem. Ninguém a faria parecer tola ou a trataria de semelhante maneira,
nem os Munroe nem nenhum outro. Devia partir, agora, sem olhar atrás.
E arriscar seu futuro ali? Tudo o que precisava fazer era tragar seu orgulho e a situação ainda poderia ser salva e volta em seu favor. Apertando os punhos,
preparou-se para fazer o intento uma vez mais.
-Que triste é perder um amor.
Cecily se virou abruptamente para encarar à única integrante da trupe que não tinha visto entre aqueles em torno de Caitlin: a encantadora de serpentes, Tamar.
Cecily retrocedeu. A mulher tinha as habituais serpentes sobre os ombros como uma espécie de grotesca gargantilha, mas não foi isso o que alarmou a Cecily. Havia
algo desumano nesses escuros e enviesados olhos deles.
-Eu... eu não sei o que quer você dizer - balbuciou Cecily.
-Oh, mas sim que o faz - sorriu a mulher serpente. Seus dentes eram brancos e ligeiramente afiados nas pontas. -Este homem que você deseja, este Niall Munroe,
lhe está escorrendo de entre os dedos.
-O que sabe você de mim ou do senhor Munroe?
-Tenho olhos - Tamar fez cócegas à parte inferior da acetinada mandíbula de uma serpente com uma unha grafite de vermelho. -Sei que você deseja a este Niall
Munroe. Sei que nossa Caitlin também o quer, embora não o admita. E vi como ele olha a ela e não a você.
Ouvir seus próprios pensamentos expostos tão às claras foi uma considerável comoção. Essa mulher, uma desconhecida, tinha visto a sórdida atração entre o Niall
e a pequena golfa. E poderia não ter sido a única.
-Por que me conta isto? -demandou Cecily. -Que possível razão...?
-Você deseja livrar-se de sua rival, não é certo?
Tamar piscou, e Cecily compreendeu com um calafrio que não a tinha visto fazê-lo assim desde que começou a conversa.
-Talvez há algo que eu também desejo. Possivelmente possamos nos ajudar a uma à outra.
-Deve estar brincando - Cecily olhou com repugnância o patentemente cabelo da encantadora de serpentes, sua chamativa maquiagem, a bata que ocultava tão pouco
de sua generosa figura. -Como poderia você possivelmente me ajudar?
-Desgosto-lhe, não? Possivelmente pensa que sou muito inferior a você, como minhas serpentes - sorriu. -Não importa. Você concordará porque deseja que o circo
parta igual ao faço eu. E se Athena Munroe obtém seu desejo, o circo não se irá durante muito tempo.
-O que quer dizer? Vocês vão deixar Denver agora que a atuação terminou.
-Acredito que não. Devido a nossa Caitlin saiu machucada, sua amiga Athena disse que perguntará a seu irmão se a trupe poderia ficar em seu rancho das montanhas
até que ela esteja bem novamente. E isso poderia levar todo o inverno, não?
-Absurdo. Niall jamais concordaria.
-Não o faria? -Tamar se encolheu de ombros. -Ele olha a nossa Caitlin como se nunca tivesse visto uma mulher antes. Seriamente acredita que a deixará partir
tão facilmente?
A rápida e óbvia resposta morreu na língua de Cecily. Ela ficou tão fria como Tamar e suas serpentes, examinando todas as possibilidades com calma racionalidade.
Tão repulsivos como encontrava às pessoas do circo, e a esta criatura em particular, Cecily não tinha aliados contra Caitlin e seus vulgares encantos. Tamar
se tinha apresentado a si mesma como uma colega conspiradora, com agudos poderes de observação e um frio sentido de seu objetivo. Seria uma entristecedora inimizade.
Ela indubitavelmente tinha recursos que Cecily não podia albergar a esperança de duplicar... se é que se podia confiar nela. E se não exigia um preço muito alto
por seus serviços.
-Disse que podia me ajudar - disse Cecily. -O que propõe?
Tamar se lambeu os lábios com a ponta de sua língua.
-Eu conheço o circo como você não poderia, Posso ouvir o que se diz e contar-lhe como lhe contei os planos da Athena. Existem muitas maneiras em que posso...
criar dificuldades para seu amor e nossa Caitlin quando quiserem estar juntos.
Cecily albergava poucas dúvidas a esse respeito.
-E o que quer em troca? Você disse que deseja que o circo parta. Por que?
-Eu também tenho um amor - respondeu Tamar, seus olhos tornando-se tão turvos como os de uma serpente a ponto de mudar a pele. -Há alguém que não pertence a
nossa trupe que lhe jogou um feitiço, igual à garota enfeitiçou a seu homem.
Pensando rapidamente, Cecily rebuscou em sua memória pelos personagens que pudessem encaixar em tão vaga descrição. Quem diabos aceitaria a uma criatura como
Tamar como amante? A quem quereria ela?
A quem exceto a alguém igual de estranho que ela? Não ao miúdo, certamente. Ao palhaço albino, possivelmente...
Não. A resposta era evidente. Que integrante da trupe se tomou um interesse tão estranhamente pessoal em Athena esse primeiro dia na parcela? Quem tinha estado
parado tão perto, tão protetoramente perto, à cadeira da Athena, como se tivesse algum direito especial?
-Morgan Holt - disse. -É ele, verdade?
Tamar vaiou.
-Ele é meu lobo. Meu somente. Não lhe terá.
Seu lobo? É obvio. O Homem-Lobo. Morgan Holt é o Homem-Lobo!
E ele tinha posto seus olhos em Athena.
Cecily sorriu.
-Me deixe me assegurar de que nos compreendemos a uma à outra. Você atuará em meu favor para manter à garota afastada do senhor Munroe, e eu farei o que possa...
dentro do razoável, naturalmente... para fazer o próprio com a Athena e Morgan Holt.
-Então nos compreendemos uma à outra - Tamar olhou para a tenda. -Use o que lhe disse. Já me dirá aonde lhe enviar mensagens quando me inteirar do que interesse
a ambas. E você me ajudará quando chegar o momento.
-A menos, é óbvio, que eu possa persuadir ao senhor Munroe de fazer o que originalmente pretendia fazer: enviar a seu circo longe. Então ambas teremos o que
desejamos sem maiores problemas.
Tamar inclinou a cabeça.
-Encontraria do mais curioso que você tivesse êxito.
Cecily encontrou um pedaço de papel e um lápis em sua bolsa e escreveu seu endereço. Era um definitivo risco confiar nessa criatura, mas ela se sentia confiante
em que poderia controlar sua sociedade. Se não, bem podia fazer as malas e partir de Denver amanhã mesmo.
Passou-lhe o papel dobrado ao Tamar e rapidamente retirou a mão.
-Me envie uma mensagem se se inteira de algo mais que possamos usar, mas seja discreta. Se me causar alguma vergonha, posso lhe assegurar que as coisas se voltarão
muito desagradáveis.
-Ameaças? -riu Tamar, com um rouco som que brotava do profundo de sua garganta, como de escamas roçando contra pedras. -Eu também posso fazer ameaças. Mas é
melhor não ser inimizades, não? Vá encontrar a seu amor antes de que seja muito tarde.
Deu a volta e, com um meneio de quadris, deixou a Cecily só para considerar a sabedoria dos pactos com o diabo.

O grisalho doutor devolveu seu instrumental, garrafas e ataduras a sua maleta e meneou a cabeça. Morgan sabia que ninguém mais estava destinado a ver o gesto;
olhou para a Athena, sentada na cadeira, a seu lado. Ela o tinha perdido. Caitlin não.
-Tão mau é então, doutor? -perguntou a cavaleiro, sorrindo torcidamente. -Devo começar a planejar meu funeral?
O homem mais velho olhou ao Niall Munroe, quem se achava abaixado do outro lado do Caitlin. Ele tinha rondado em torno da garota desde seu retorno com o médico,
mostrando-se tão possessivo como um puma com uma matança recente. Munroe provavelmente não acreditava que ninguém tivesse notado isso, tampouco.
-Possivelmente deveríamos falar em privado, senhorita Hughes -disse o doutor.
-Estes são meus amigos -replicou Caitlin, ignorando corajosamente sua dor. -Não me dá medo que eles o ouçam.
O doutor suspirou.
-Muito bem. Como já lhe disse antes, sua perna está quebrada. Fiz o que pude para encaixá-la e estabilizá-la com um atadura, mas o tempo deve buscar a cura.
É minha considerada opinião que deve você tomar-se muitos meses de descanso em cama se alguma vez deseja voltar a caminhar. Desde não fazê-lo assim, temo-me que
estará permanentemente... - duvidou, olhando de Niall a Athena.
-Por favor, fale francamente, Dr. Brenner - disse Athena. -Não me dá medo ouvir a verdade - se inclinou e apertou os dedos de Caitlin. -O Dr. Brenner foi nosso
médico durante muitos anos. Eu confio em seu julgamento completamente. Esse é o porquê deve fazer exatamente como ele diz e descansar em um lugar tranquilo onde
possam te cuidar apropriadamente.
Fez-se um espectador silencio no grupo. Morgan observou ao Niall, preparando-se para sua reação quando Athena propusesse seu plano para a recuperação de Caitlin.
Moveu-se um centímetro ou dois mais perto da Athena, seu quadril contra a cadeira dela. Não tanto como para tocá-la, Oh, não; se fosse tocá-la agora, depois do que
tinha acontecido em seu dormitório, não sabia o que poderia chegar a fazer.
Levar-lhe e violá-la?, zombou de si mesmo. Foi um beijo. Isso é tudo. E Athena não mostrava sinais de estar nem nervosa nem transtornada em sua presença.
Provavelmente, tinha descartado o beijo, igual a ele... um ato impulsivo rapidamente explicado como loucura momentânea. Era melhor dessa forma. Melhor que o
que quer que houvesse entre eles começasse e acabasse com esse beijo. Inclusive assim, não podia obrigar-se a si mesmo a deixar seu lado.
-Niall - começou Athena. Morgan podia sentir seu corpo esticar-se, ouvir suas rápidas inspirações. Apertou sua mão sobre o respaldo de sua cadeira. -Niall,
estive pensando... sobre como poderíamos ajudar a Caitlin.
Ela olhou uma vez ao Morgan à cara, e lhe sorriu para lhe dar ânimo.
Sorriu-lhe... a expressão se sentia estranha em seu rosto. Mas ela pareceu ganhar coragem e encarou a seu irmão de novo.
-O doutor disse que Caitlin deve ter descanso completo. É óbvio que, sob essas condições, ela não pode viajar longe, e uma tenda não é o lugar adequado para
uma inválida.
Niall ficou de pé e se sacudiu as calças.
-É obvio que não. A senhorita Hughes pode permanecer no hotel até que esteja...
-Nem o hotel tampouco - havendo-se atrevido a interromper a seu irmão, Athena continuou. -Existe um lugar muito melhor onde ela pode ser cuidada e permanecer
com seus amigos. Não vamos muito a Long Park nesta época do ano... por que não permitimos que o circo passe o inverno ali, enquanto Caitlin se recupera?
-No rancho?
-Sim. Naturalmente, haverá neve e temperaturas frias, mas Long Park está isolado do pior do clima, e há muitíssimo espaço. O segundo estábulo não foi usado
em anos. Aí se poderia manter ao gado, e, entre a casa dos peões e a casa principal, certamente haveria camas ou camas de armar suficientes para todo mundo. Já discuti
isto com o senhor French, e ele concordou a que, em troca de alojamento durante o inverno, ele e seu trupe farão duas atuações de caridade na primavera...
Niall elevou uma mão, silenciando-a. Morgan se enrijeceu.
-Se nos desculpa - disse bruscamente ao doutor. -Devo falar com minha irmã.
Rodeou a Caitlin, apartou com o ombro ao Morgan, e segurou as barras da cadeira de Athena.
-Está bem - disse Athena em um sussurro destinado somente ao Morgan.
Este deu um passo atrás, e Niall a levou longe do grupo, para um lugar de relativa privacidade ao outro lado da tenda.
A conversa que seguiu foi de uma vez tranquila e veemente. Morgan ignorou os murmúrios dos membros da trupe e observou a Athena e ao Niall, escutando o progresso
do debate. Mantendo a calma, Athena apresentou seu argumento. Seu irmão, como era de esperar, estava furioso, embora fez um esforço para ocultar sua ira das inoportunas
testemunhas. Tinha-o posto em uma incômoda posição ao lhe pedir sua cooperação em público.
Mas Athena não voltou atrás. Sua voz se manteve firme e cheia de convicção, inclusive quando Niall se abateu sobre ela e pareceu como se tivesse gostado de
lhe dar umas boas palmadas.
Que Deus lhe ajudasse se o fazia.
-Morgan?
Ele baixou a vista para Caitlin. Ela estava branca em torno da boca e seus olhos revelavam grande dor, apesar dos esforços do doutor.
-Deveria ser você transladada a uma cama, senhorita Hughes -disse o Dr. Brenner. Logo seguiu a direção de seu olhar para o Morgan. -Pode você levá-la em braços?
Caitlin deixou ouvir uma rouca risada.
-Acredito... que Morgan está preparado para a tarefa. Estarei bem. Obrigado, doutor.
O homem mais velho assentiu e recolheu sua maleta.
-Senhor French, se posso ter umas palavras com você? -com um receoso olhar em direção aos Munroe, afastou-se com o Harry.
-O que estão dizendo... Athena e Niall? -perguntou Caitlin.
Morgan se abaixou junto a ela.
-Athena está lhe dizendo o que nos disse. Munroe está contra.
Caitlin enrugou o nariz.
-Isso já o supunha. Que mais?
-Munroe diz que eles não são responsáveis pelo que aconteceu, e que ele e Athena tinham concordado que o circo partiria imediatamente depois da atuação. Não
o diz, mas não a quer ao redor de nós.
-Isso também sei - suspirou Caitlin. -Tratei de dizer a Athena que não era uma boa idéia.
-Mas ela não está cedendo ante ele. Está-lhe dizendo que tanto se eles tiverem uma responsabilidade ou não pelo que te aconteceu, te oferecer um lugar onde
te recuperar é o correto. É... de elementar decência.
-Para ela o será. Mas Niall...
-Ele diz que seria muito caro alimentar a trupe o inverno inteiro. Ela responde que o custo não é nada para a fortuna Munroe, e que as atuações de caridade
na primavera o compensarão de sobra.
-Segue.
-Ele diz que ela não tinha direito a fazer semelhantes promessas sem lhe consultar, e lhe pergunta do que tem tanto medo.
-Isso lhe fará zangar.
-Sim, mas ela...
Ele perdeu seu trem de pensamento enquanto observava a Athena, a forma orgulhosa em que elevava a cabeça e a postura de seus ombros. Niall destrambelhava e
intimidava, mas ela não se intimidava.
-Está orgulhoso dela, não? -perguntou Caitlin.
Orgulhoso? Ele começou a negá-lo, mas a palavra soava certa. Sim, estava orgulhoso. Ela se tinha enfrentado a seu irmão não uma, a não ser duas vezes... em
ambas as ocasiões pelo bem de pessoas que pouco conhecia.
Faria o mesmo por ela?
-Ela diz -continuou- que se ele se preocupar em algo porque você seja capaz de voltar a caminhar ou a montar... - encontrou os olhos do Caitlin. -Ela pergunta
quanto está ele disposto a fazer para assegurar-se de que o que aconteceu a ela não acontece a você.
Caitlin fechou os olhos.
-Nunca perguntei a Athena o que foi o que a...
-Um acidente. Isso é tudo o que sei - ele olhou o rosto do Niall. -Munroe está fraquejando.
-Porque ela compara a si mesma comigo. Pergunto-me... ele é tão protetor. Talvez há mais que somente o dever de cuidar de uma irmã inválida.
Sua declaração capturou o interesse do Morgan. Havia mais nisso? Estava a vigilância do Niall impulsionada por alguma outra coisa além de devoção filial? Quando
surgisse a oportunidade, o perguntaria a Athena...
Não. Não desejava mais detalhes de sua vida, os comovedores pequenos feitos que se abririam passo mais profundamente para seu coração.
-Você deseja ir a seu rancho, Vagalume?
Caitlin trocou de postura e fez uma careta.
-Temo a idéia de ficar de cama durante meses.
-Não é provável que vão ser meses, não?
Morgan tinha averiguado pouco depois de unir-se ao circo que Caitlin tinha uma habilidade para sarar quase tão forte como a sua própria.
-Niall não tem que saber quão rapidamente posso voltar a estar de pé novamente - sorriu ela picaramente. -E quanto a você?
Morgan tinha evitado deliberadamente imaginar como seria ficar em um rancho isolado pela neve durante um comprido inverno, inativo e inquieto, com Athena ao
alcance da mão. Havia ela pensado nisso? Havia ela considerado sequer o que aconteceria se ela e Morgan eram postos juntos uma e outra vez?
-Se forem ao rancho - disse. -Eu poderia não ficar.
-Por causa de Athena?
-Já não me necessitarão mais.
-Está evitando o óbvio, Morgan. É da Athena de quem tem medo.
-Como o tem você do Munroe, Vagalume?
-Possivelmente o tenho, sim.
Ambos ficaram em silêncio. Morgan viu que os integrantes da trupe, satisfeitos com o cuidado de Caitlin, dispersaram-se. O doutor tinha abandonado a tenda;
Ulysses e Harry estavam falando uns quantos metros mais à frente. Os Munroe tinham concluído sua discussão e Niall estava empurrando a cadeira de sua irmã em direção
ao Harry. Nada na cara de nenhum dos dois sugeria quem ganhou a escaramuça.
A senhorita Hockensmith escolheu esse momento para retornar. Chegou junto ao Munroe e obsequiou com um sorriso de desculpa a Athena. Houve uma troca de palavras,
com uma certa frieza por parte do Munroe e uma queixosa pergunta feita pela senhorita Hockensmith.
-Por favor, vá falar com a senhorita Hockensmith, Niall -disse Athena- Eu gostaria de dizer adeus ao senhor French.
A expressão do Niall era tão tormentosa como um céu de Agosto.
-Muito bem. Voltarei para buscar você em uns minutos - olhou a Caitlin e logo permitiu à senhorita Hockensmith lhe preceder em seu caminho de saída da tenda.

Athena já estava fazendo rodar sua cadeira para Caitlin e Morgan. Harry e Ulysses se uniram a eles... Harry, como era habitual, dividido entre a preocupação
e a desculpa.
-Senhor French - disse Athena, estendendo suas mãos por volta dele como se a passada hora tivesse sido perfeitamente agradável e corrente. -Devo partir agora.
Os meninos tiveram um dia bastante excitante, e desejo me assegurar de que retornem ao orfanato em bom estado.
-Compreendo-o bem, senhorita Athena. Completamente. Todos nós lhe estamos muito agradecidos por seu amável cuidado de nossa Caitlin.
-Não foi nada - ela fez uma pausa e olhou por turnos a cada um deles. -Quanto ao outro assunto... Niall concordou.
Harry sorriu.
-Maravilhoso. Maravilhoso. Uma dívida a mais que temos com você, querida minha.
-Não nos... veremos muito durante o inverno. Prometi a meu irmão que ficaria em Denver enquanto a trupe esteja no Long Park. Sei que estarão vocês cômodos ali.
Assegurar-me-ei disso, inclusive se não puder estar presente.
Assim era como ela tinha selado o trato: com uma promessa de manter-se afastada da gente em que seu irmão não confiava. Morgan não tinha esperado menos.
Por que, então, ele se sentia para fazer migalhas a tenda com seus dedos nus?
-Era a única maneira - disse ela, encontrando seu olhar. -Caitlin terá muito descanso entre seus amigos, e estará como nova na primavera.
-Ele te deixará vir a nos ver mais adiante - disse Caitlin. -Sei que o fará.
-Possivelmente.
Athena continuou olhando ao Morgan. Seus lábios se separaram ligeiramente, plenos e úmidos. O corpo dele recordou, vividamente, como eles haviam conhecido.
Como tinham respondido.
Harry pigarreou.
-Possivelmente é melhor que leve a Caitlin a minha barraca, Morgan, até que possamos levá-la ao hotel.
-Eu me ocuparei do transporte - disse Athena. Sua língua apareceu por entre seus lábios para umedecer seu lábio inferior. -Tudo estará preparado no Long Park,
e terão vocês um guia para atravessar o passo. Poderia haver um pouco de neve, mas o tempo não deveria ser muito duro.
Morgan rompeu a quase dolorosa conexão entre ambos e se ajoelhou para agarrar a Caitlin em seus braços. Esta aspirou bruscamente ante o movimento, mas seu olhar
saltou da Athena ao Morgan com ávida atenção. Athena o notou e se virou rapidamente para o Harry.
-Adeus, senhor French. Senhor Wakefield, Caitlin... Morgan.
-Adeus no momento - disse Harry. -Obrigado, querida minha.
Morgan não ficou até o final da cena. Levou a Caitlin fora pela porta traseira e se encaminhou para a barraca do Harry.
-É muito mau, não? -murmurou Caitlin.
Ele grunhiu e a depositou sobre a cama de armar de Harry.
-Preocupa-se por sua perna, não por mim.
-Preocupa-me que negue o que todos outros podem ver.
O frio e inquieto olhar que Morgan frequentemente usava com grande efeito não funcionou com o Caitlin.
-E o que seria isso?
Por uma vez, a expressão dela era perfeitamente grave, e não só a causa da dor.
-Vá, meu amigo -disse- pois somente que está apaixonado pela Athena Munroe.









CAPÍTULO 12

Morgan estranha vez ria. Mas o fez agora, um abrupto som que soou meio tosse e meio grunhido. Não podia ter confirmado o diagnóstico do Caitlin mais completamente.
Ela o tinha visto vir, é obvio. Ao princípio, as faíscas entre ele e Athena tinham parecido mera atração, a classe de curiosidade que uma pessoa poderia sentir
por alguém que é o completo oposto da gente mesmo. Como eu e Niall Munroe.
Mas em algum ponto do caminho, curiosidade e atração se converteram em algo muitíssimo mais sério. O suficientemente sério para assustá-los a ambos. E muito.
Tal e como assustava ao Niall.
-Está fazendo isto muito mais difícil do necessário - disse, tentando acomodar sua dolorida perna mais confortavelmente. -Por uma vez em sua vida, mais te vale
estar disposto a aceitar um conselho. Eu compreendo a Athena como você não poderia. Sou mulher também, já sabe.
-Isso notou Munroe - ele a olhou com ferocidade. -Está apaixonada por ele?
-Isso é ridículo - disse ela com ligeireza. -E inclusive se o estivesse, ele não quereria ter nada que ver comigo.
-Não? Pela forma em que se manteve perto de você quando saiu machucada...
-Não significa nada - se encolheu ela de ombros. -E estamos falando sobre ti, assim não trate de mudar de tema.
-Está esbanjando o fôlego. Athena não virá ao rancho.
Caitlin riu entre dentes, embora o movimento sacudiu sua perna e a machucou.
-Tenho o pressentimento de que ela encontrará o modo de fazê-lo.
Morgan murmurou em tom grave e passeou de um lado a outro pela breve extensão da barraca.
-Você é sua amiga - disse. -Se voltar a falar com ela, lhe diga que não vá.
-Por quê? Gosta da trupe, e nós gostamos dela. Eu não tenho direito sequer a sugeri-lo... a menos que você tenha uma muito boa razão que eu possa lhe dar.
Ele se deteve meia pernada e apertou as mãos formando punhos à costas.
-Seria melhor se nunca voltarmos a nos encontrar novamente.
-Melhor para ela, ou para você? -Caitlin tratou se sentar-se, mas a dor era muito intensa. Maldita fosse a inconveniência de estar tão... tão incapacitada,
inclusive se era só por um curto espaço de tempo. -Não acredito que pense menos dela por causa de sua desgraça. Eu sei que não te importa o que pensem os habitantes
da cidade. Vocês dois são muito diferentes em tantas maneiras... mas essa não é a razão pela que quer que ela permaneça em Denver - a jovem inspirou profundamente.
-Você deseja protegê-la de si mesmo. Não se acredita o suficientemente bom para ela, e isso não tem nada que ver com o dinheiro ou a posição, nem nenhuma dessas
coisas. O que te aconteceu que te fez estar tão seguro de que ela está melhor sem você?
Ela tinha pressionado muito e muito rápido. Ele se girou bruscamente para encará-la, com a cabeça baixa e os dentes ao descoberto.
-É suficiente - disse. -Não volte a falar disto, Vagalume.
-Não te tenho medo, Morgan. Conheço-te muito bem. Gaba-se e intimida, mas não me machucaria. Nem a ela tampouco.
Nunca um homem se assemelhou mais a um animal ferido e faminto. Mas Morgan fechou a boca e retrocedeu para a porta, preparado para retirar-se quando não podia
ganhar.
-Sinto-o - disse ela. -Não tenho direito de te julgar. Mas seja o que foi o que fez no passado... quem quer que fosse vir a nós... sei que é um bom homem. Isso
nos provou a todos nós. E, quanto a Athena...
Uma alta sombra se abateu sobre a parede externa da barraca. Niall Munroe inclinou a cabeça para entrar na barraca e quase se chocou com o Morgan. Franziu o
cenho, mas, ao divisar a Caitlin, rapidamente suavizou sua expressão.
-Senhorita Hughes - disse. -Desculpe. Eu gostaria de falar com o senhor Holt.
Morgan se encolerizou.
-Melhor ser rápido, Munroe.
-Não até que você ouça o que tenho que dizer. Em privado.
Sem dizer uma palavra, Morgan apartou ao Niall de um empurrão e abandonou a barraca. Niall foi atrás dele.
Se sua perna tivesse doído um pouco menos, Caitlin teria coxeado até a porta e escutado tudo o que pudesse. Tal como estavam as coisas, somente ouviu o retumbar
de profundas vozes, elevando-se em tom e hostilidade com o passo dos minutos. Niall foi o que mais falou... ou ordenou, porque Caitlin tinha uma muito exata idéia
do que estava dizendo. As réplicas do Morgan foram breves e afiadas como as folhas de um lançador de facas. Quando tudo acabou, somente um homem retornou à barraca.
Niall Munroe se deteve momentaneamente na entrada e logo entrou, inclinando seu comprido corpo com desconforto.
-Onde está Morgan? -demandou Caitlin. -O que lhe disse?
Possivelmente ele tinha esperado uma mais amável bem-vinda. endireitou-se e tirou o chapéu. Seu cabelo castanho estava revolto baixo este, embora o recente
duelo tinha sido feito com palavras e não com punhos.
-Não precisa preocupar-se com isso, senhorita Hughes -disse ele calmamente.
-Morgan é meu amigo - replicou ela. -O que concerne a meus amigos também concerne.
-Muito bem - ele deixou seu chapéu sobre o banquinho junto à cama de armar e enlaçou as mãos à costas. -Pedi que se mantivesse afastado de minha irmã.
Apertando os dentes contra as moléstias, ela se incorporou sobre os cotovelos.
-Fê-lo? E por que, se posso perguntá-lo?
Sustentou-lhe o olhar sem desculpa.
-Chamou a minha atenção que ele está mostrando um certo... interesse nela, e que ela não se mostrou de todo indiferente.
Chamou a sua atenção. Então não tinha sido ele quem observou a atração, a não ser alguém mais. E Caitlin tinha uma muito boa idéia de quem poderia ser esse
alguém... a oficiosa, afetada e ressentida Cecily Hockensmith.
-Posso lhe assegurar que não aconteceu nada impróprio entre o Morgan e Athena - disse Caitlin. -Harry não o permitiria, nem eu tampouco.
-O que você considera impróprio... - pensou melhor o que estava a ponto de dizer e começou de novo. -Eu não estava em um engano, então, ao acreditar que minha
irmã esteve fazendo companhia ao Holt.
Quanto admitir, quando a mente do Niall já estava tão predisposta contra Morgan?
-Eles se gostam - disse ela. -Por que é isso tão terrível?
-Porque Athena é ainda muito parecida com uma menina em muitas maneiras, e não tem experiência com homens. É muito confiante, e Holt... -se deteve novamente,
apertando a mandíbula. -Minha irmã depende de mim, e de meu julgamento. Seu Homem-Lobo não é companhia adequada para uma dama.
Assim Munroe tinha descoberto a natureza do ato circense do Morgan. Indubitavelmente, isso era obra também da senhorita Hockensmith.
-Surpreende-me que se dignasse você a me visitar - disse Caitlin. -Porque certamente eu não sou melhor companhia para um cavalheiro tão fino como você. Dirá
a sua irmã que evite e que você não?
Ele poderia haver partido então, e escapar a seus insultantes pergunta completamente. Mas ficou, contemplando o interior da barraca como se esta se achasse
cheia de valiosos e fascinantes tesouros mais que dos cacarecos da vida do circo.
-Eu conheço o mundo como Athena não o faz - disse. -Ela é a única coisa em minha vida que não arriscarei ou deixarei ao acaso.
-Já vejo. E o que respondeu Morgan a sua amável proposta?
Seu olhar retornou bruscamente a ela.
-Ele nega qualquer interesse em minha irmã.
Mentiroso. Ou você ou Morgan são uns mentirosos da pior índole, porque estão mentindo a vocês mesmos.
-Então não tem nada do que preocupar-se. Segundo eu o entendo, Athena prometeu manter-se afastada do rancho enquanto nós estejamos ali. Arrumou-o tudo justo
como o desejava - ela voltou a estender-se na cama de armar. -Melhor que não desperdice mais seu valioso tempo, senhor Munroe.
Ele recolheu seu chapéu do banquinho e se sentou escarranchado, com as pernas bem separadas.
-Não é suficiente que estejamos lhe proporcionando um lugar no que ficar durante o inverno, senhorita Hughes? Não demonstramos nossa boa vontade?
-Os membros da trupe não apreciam a caridade pouco sincera.
-Não é insincera, maldita seja... lhe peço desculpas -ele passou a mão pela testa, revolvendo-se ainda mais o cabelo. -Deve você compreender que...
-Que a caridade está bem se vier de alguém como você para gente como nós, mas não a amizade?
Ele exalou um suspiro.
-Senhorita Hughes... Caitlin...
-Só os amigos deveriam chamá-los uns aos outros por seus nomes de batismo, senhor Munroe.
-Que prova de amizade deseja você de mim? -rugiu ele.
Ela o olhou com firmeza. Ele descendeu a algo como submissão.
-Desculpo-me. É só que eu... - sua maldição não foi o suficientemente baixa para escapar à detecção dela. -Me considero mesmo seu amigo... Caitlin. E tenho
a esperança de que você se considere a minha.
Bom, bom, bom.
-Ah, sim? Isso é muito generoso de sua parte... Niall.
Ele não resistiu à familiaridade, assim que ela se sentiu impulsionada a aceitar sua sinceridade. Ainda assim, ele era muito presunçoso para seu próprio bem.
-Dado que nos convertemos em tão íntimos amigos - disse ela- deve me explicar por que Athena e Morgan não podem ser amigos também.
-Isso é diferente...
-Como é diferente? Eu não tenho muita educação, nem sobrenome nem dinheiro. Não sou melhor que Morgan.
Ele franziu o cenho, adotou um ar melancólico e se girou no banquinho para não encará-la, perdido em seus próprios pensamentos. Ao fim, pareceu chegar a uma
conclusão e voltou a encontrar seu olhar.
-Minha irmã... - começou. -Athena não é como você. Ela perdeu a classe de liberdade que você desfruta, e a habilidade de proteger-se a si mesma. É vulnerável
em corpo e em espírito. E é assim por minha causa.
-O que quer dizer com que é por causa de você?
-Ela sofreu um acidente - baixou os olhos, chutando a palha do chão com os saltos de suas botas. -Aconteceu nas montanhas, durante o inverno. Estávamos em
Long Park, e eu... naqueles dias, eu tinha tendência a ser estúpido. Temerário - suspirou. -Ela foi apanhada em uma avalanche que provocou um severo machucado a
suas pernas. O doutor nos disse que nunca voltaria a caminhar.
Caitlin mordeu o lábio. Esse homem que falava com tanto remorso e vergonha não era o mesmo cuja arrogância a tinha zangado a ela e posto furioso ao Morgan.
Logo que podia acreditar que ele tivesse crédulo tanto nela, de entre toda a gente. Ou era porque ela era tão diferente, porque se encontrava tão fora dos limites
do seleto círculo dele, que era um recipiente seguro para semelhante confissão?
A culpabilidade podia levar a um homem a cometer atos horríveis. Certamente, ao Niall dava a razão para considerar a sua irmã tão frágil como uma boneca de
porcelana da China, uma herança para manter em uma prateleira bem alta, admirada, mas não tocada.
E talvez até explicasse por que se viu motivado a aceitar o plano da Athena, e vindo ver Caitlin agora. Sua ferida lhe recordava muito a de sua irmã, mas esta
vez ele tinha a oportunidade de fazer que tudo saísse bem.
Caitlin tinha um muito forte desejo de alargar as mãos para ele e lhe tocar, mas sabia que seria um engano. Piedade, inclusive simpatia, ele não a toleraria
melhor do que o fazia Morgan. Eram eles dois tão diferentes, depois de tudo?
Que classe de culpabilidade fazia ao Morgan duvidar de seu próprio valor, e lhe impulsionava a afastar-se da Athena?
-Sinto-o - disse ela sinceramente. -Mas Athena é mais forte do que você acredita. Não lhe culpa, estou segura.
-Seu coração é generoso por natureza. E esse é o porquê se encontra nessa cadeira -Niall agarrou seu chapéu e se levantou. -Agora compreende você por que Morgan
Holt deve manter-se longe dela.
Não, não o compreendo - pensou ela. -Há algo que te está deixando fora, meu amigo. Algo mais que não vai admitir.
-Acredito que se equivoca -disse ela. -Sei que o faz.
Ele colocou o chapéu na cabeça com desnecessária força.
-A decisão foi tomada. Você e o circo irão ao Long Park, e Athena permanecerá aqui. Há muitas coisas que a manterão ocupada todo o inverno.
-E a você?
Ele se voltou para olhá-la da porta da barraca.
-Encarregar-me-ei de que tenha tudo o que necessite. Adeus, senhorita Hughes.
Caitlin fechou os olhos e lhe escutou afastar-se. Bom, agora algo tinha ficado ao descoberto. Seus sentimentos tinham provado ser corretos de novo... com respeito
ao Morgan, Athena e Niall Munroe.
A única opinião que não tinha ouvido ainda era a da Athena. E essa não seria fácil de obter, se Niall resolvia manter a sua irmã em Denver.
Se havia uma coisa que Caitlin amava de verdade era um desafio. Niall era o desafio maior que ela jamais tinha enfrentado. Sem dúvida, era rico porque não tinha
escrúpulos e estranha vez não conseguia o que queria. Era a classe de homem que não duvidaria em esmagar a um rival.
Mas era simplesmente humano. Tinha debilidades. E Caitlin Hughes, uma vez tendo tomado uma decisão, podia ser uma muito formidável oponente.
Dou-te um justo alerta, meu teimoso amigo. Este é um jogo que tenho a intenção de ganhar.

As seguintes cinco semanas foram as mais longas da vida da Athena. Deveria ter sido uma época atarefada, muito para lhe permitir experimentar solidão ou sonhar
acordada. O Baile de Inverno estava aproximando-se, e ela estava obrigada e resolvida a que este segundo baile anual fosse o mais magnífico e com maior assistência
de quantos se celebrassem em Denver esse ano.
Athena tinha visto frequentemente a Cecily Hockensmith, mas não tão assim a seu próprio irmão. Niall se achava constantemente fora por um negócio ou outro,
nesses precisos momentos se encontrava em Chicago e tinha telegrafado para dizer que antecipava permanecer ali até fim de mês. A predição de Caitlin de que se abrandaria
e permitiria a Athena visitar o rancho não se cumpriu.
Não obstante, ela se aproveitou de sua ausência lançando-se inclusive com mais energia ao trabalho que ele tinha desaprovado: visitando os subúrbios e blocos
de moradias com roupa e carvão, falando pessoalmente com as garotas esquecidas com bebês sem pais, comprando camas e material escolar para os órfãos e ideando novos
planos caridosos que se prolongassem no futuro. Conduzia às outras damas de suas numerosas organizações filantrópicas tão implacavelmente como o fazia consigo mesma.
Mas nunca era suficiente. O mais mínimo momento isolado e tranquilo, e seus pensamentos voavam através de Front Range para o rancho onde tinha passado cada
verão desde que era menina. Antes de ficar adormecida cada noite, a imagem de uma certa cara parecia reluzir no ar sobre ela: grosso cabelo negro, olhos dourados
que lhe cantavam a respeito de selvagens corridas à luz da lua, uma sensual boca que prometia mais beijos proibidos.
Em momentos como esses, ela sentia estranhas e fantasmagóricas sensações por debaixo de sua cintura, igual ao tinha feito quando Morgan visitou seu quarto.
Mas sempre conseguia desterrar semelhantes fantasias, e se recordava a si mesma que sentia falta da todos os integrantes da trupe: Harry, Caitlin, Ulysses, inclusive
a aqueles homens e mulheres a quem logo que conhecia. Morgan não tinha a única reclamação sobre seu afeto.
E ainda assim, Morgan lhe tinha sorrido. Aquele terrível dia da atuação, quando todo se havia refugo, lhe tinha dado coragem com essa simples expressão e a
inesperada calidez de seu olhar.
Agora ele se encontrava a mais de cinquenta quilômetros para o oeste, atrás de uma parede de colinas e montanhas. Essas montanhas estavam já cobertas de neve,
e logo o passo ao Long Park se voltaria impenetrável pela duração do inverno.
Comodamente instalada em sua sala de estar avançada a tarde de um dia de finais de Novembro, envolta em um xale de lã para combater o frio que nem sequer o
generoso fogo podia dissipar, Athena desdobrou ansiosamente a carta que tinha reservado para ler ao final do dia. Esta, como as outras que chegavam pontualmente
duas vezes por semana, era do Harry French.
Harry se tinha eleito a si mesmo em cronista de todos os sucessos que aconteciam em Long Park, do estado de Caitlin, e as atividades dos integrantes da trupe.
Cada vez que Athena abria uma de suas missivas, obrigava-se a si mesmo a lê-la lentamente, recusando adiantar-se. Fez o mesmo essa noite.

Minha querida senhorita Athena, começava a carta,

Agradar-lhe-á saber que por causa da magnificência de seu irmão e sua própria grande bondade, todos estamos prosperando em Long Park. Como lhe escrevi previamente,
os animais estão bem instalados no estábulo, que seu irmão preparou para nós; as habitações da casa principal, e os alojamentos na casa dos peões são de fato merecedores
de louvor. Não poderíamos pedir nada melhor.
Nossa pequena atuação para os trabalhadores do rancho encontrou grande aprovação por parte de seus homens, que ao princípio pareciam desconfiar um tanto de
nós; após, fizeram o impossível para nos fazer sentir bem-vindos. As provisões são abundantes, os fogos ardentes, e o humor festivo. Unicamente carecemos de uma
coisa: sua querida presença.
Caitlin pergunta por você constantemente. Ela é muito valente e não admite sentir dor, mas devo ser franco e confessar que temo por ela; há momentos em que
a expressão em seus olhos não é de bom agouro para seu futuro. Pergunto-me se não ter abandonado já a esperança de retomar suas antigas atividades. Estas foram sempre
tão importantes para ela...

Athena deixou cair a carta em seu regaço. Essas não eram boas notícias. Não eram boas absolutamente. Harry só tinha insinuado uma certa resignação com respeito
a Caitlin, mas até agora não havia dito que a cavaleira poderia estar abandonando a esperança.
O céu não quisesse que isso acontecesse. Caitlin não podia, não devia, perder o que Athena tinha perdido.

Entretanto, peço-lhe que não se preocupe, querida Patrona. Nós estaremos a seu lado como sempre o temos feito, e recusaremos deixar que se renda. Ou eu, ou
Ulysses, ou Morgan...

Morgan. Athena tragou saliva e fez uma pausa para recuperar o fôlego antes de continuar.

...ou Morgan estamos com ela cada hora e evitamos que pense tão improdutivas meditações. Seguimos as instruções do doutor ao pé da letra. Aproveitamo-nos que
sua bondade e lhe temos lido livros de sua biblioteca, e Morgan lhe traz pequenos obséquios do exterior: folhas mortas e ramos de folha perene, ou pedras coloridas
do riacho. Caitlin parece as desfrutar, e essas coisas afastam sua melancolia por um pouco.

Presentes de Morgan. Athena sorriu, reconhecendo em tão simples gestos a relutante generosidade dele. Morgan se preocupava com Caitlin como o faria por uma
irmã. Protegia-a de todo dano. Quanto mais faria por uma mulher a que escolhesse como seu...?
Cala - ordenou seu coração. -Se cale.

Morgan passa muito tempo vagando pelo parque, inclusive com o clima mais inclemente. Você sabe, naturalmente, que pequenas inconveniências como amargas temperaturas
teriam pouco efeito sobre ele. Ele se cuida de encobrir sua dual natureza dos trabalhadores do rancho, mas quando não está com Caitlin sua inquietação é quase alarmante.
Tememos em ocasiões que possa partir e não retornar. Já pagou qualquer dívida que tivesse conosco, mas continuamos albergando a esperança de que escolha permanecer
como integrante de nossa família.

Como se os penetrantes ventos das montanhas tivessem alcançado seu lar através dos quilômetros que lhes separavam, Athena se agasalhou mais com o xale e agitou
a campainha situada sobre a mesinha a seu lado. Brinkley apareceu, e por sua petição enviou à donzela a acrescentar mais carvão ao fogo na chaminé. Inclusive depois
de que as chamas adquirissem renovado vigor, Athena encontrou pouco conforto nelas.
Harry não falaria do Morgan partindo a menos que sentisse que era uma possibilidade muito real. Certamente Morgan ficaria até que Caitlin pudesse caminhar de
novo; certamente ele informaria a Athena de tal intenção, embora só fosse dizer adeus.
Era muito esperar que escrevesse, como fazia Harry. Muito pedir que lhe enviasse alguma mensagem pessoal, quando não existia nada tangível entre eles salvo
um segredo compartilhado e um beijo roubado.
Athena revisou o resto da carta, registrando apenas as palavras, e guardou o papel dobrado dentro de seu xale.
Por um momento, repousou a cabeça contra a cadeira e deixou que as emoções a atravessassem, a tropicões como uma enseada transbordante de água na primavera
que inexoravelmente se levava por diante pedras, ramos e terra.
Quando a enchente acabou, somente uma consideração permaneceu em seu coração. O que queira que Morgan pudesse fazer, o que queira que escolhesse com respeito
a ela, ele não era sua principal preocupação. Caitlin o era. Caitlin, ao bordo de render-se ao desespero que uma vez quase tinha reclamado o espírito da Athena.
Se havia uma só ação que Athena pudesse tomar para evitar que acontecesse, devia tentá-la. Inclusive se isso significava romper sua palavra, desafiar ao Niall,
e deixar os detalhes de último minuto do Baile de Inverno sem fazer durante muitíssimos dias. Ninguém mais poderia compreender a situação de Caitlin melhor que ela.
Ninguém mais poderia aconselhar, enrolar e intimidar com maior autoridade.
Cecily Hockensmith tinha sido pródiga com sua companhia e assistência com o baile. A ela lhe podia confiar qualquer detalhe que devesse ser dirigido durante
a ausência da Athena.
Uma vez a idéia germinou na mente da Athena, os impedimentos práticos fizeram sua aparição em rápida sucessão. Tanto como estimava e confiava em Brinkley, Fran,
Romero, e os outros, não desejava envolver aos serventes em sua insubordinação; devia fazer os preparativos e arrumar o transporte ao Long Park sem lhes alertar
de antemão. Felizmente, seus entendimentos com as caridades lhe dava idéias a respeito de onde poderia empregar discretamente uma resistente carroça e um habilidoso
condutor.
Não obstante, requereria a ajuda de Fran com o assunto de vestir-se e chegar escada abaixo. A Athena não lhe tinha proibido abandonar a casa, e Fran não a interrogaria
se ela fingia estar indo a outra excursão clandestina aos blocos de edifícios. Se mentia a Fran, a donzela teria uma desculpa para assisti-la sem sabê-lo em sua
escapada.
Athena se viu forçada a admitir que estava um pouquinho assustada de aonde poderia conduzir este aberto desafio. Niall tinha deixado muito clara sua posição.
Mas ela tinha tido êxito em lhe convencer antes, e podia fazê-lo de novo.
Cecily poderia ajudá-la nisso também. Com a façanha um fato consumado e Cecily tomando partido pela Athena, Niall poderia não mostrar-se inteiramente irracional.
Isto era pela Caitlin. A ira do Niall é um pequeno preço a pagar por sua recuperação.
E Morgan Holt não tinha absolutamente nada que ver com isso.
Consultou seu relógio e viu que não era muito tarde ainda para enviar uma mensagem a Cecily, lhe pedindo que viesse a primeira hora da manhã. Justamente enquanto
fazia soar a campainha chamando o Brinkley, este entrou na sala com aspecto de ir fazer um anúncio.
-A senhorita Hockensmith acaba de chegar, senhorita Munroe -disse. -Disse-lhe que perguntaria se estava você em casa.
-Sim. Sim, de fato, por favor, faça-a entrar diretamente.
Ele fez uma reverência e foi cumprir sua ordem. Lamentando a bastante desalinhada natureza de seu velho xale, Athena o fez descer mais abaixo de seus ombros
e assumiu um sorriso de boas-vindas. Cecily se deslizou dentro da sala tirando um pouquinho de neve do casaco e foi tomar a mão da Athena.
-Ah, Athena. Que tempo tão miserável! Temo-me que chegou o inverno - permitiu ao Brinkley que lhe tirasse o casaco. - Compreendo que é tarde, mas lamentei tão
não poder ver-te hoje. Sabe quão aborrecidas são os jantares da senhora Coghill, mas não pude recusar seu convite.
-É obvio que não - disse Athena. -Não quer se sentar? Um pouco de chá, possivelmente?
-Não acredito que possa beber uma só gota mais - disse Cecily, afundando-se com elegância em uma poltrona. -E como se encontra hoje, querida menina? Não terá
trabalhado muito duro, espero?
Athena não estava de humor para conversa inconsequente quando sua mente estava vibrando com planos. Despediu-se do Brinkley e aguardou até que este teve fechado
a porta da salinha de estar atrás de si.
-Cecily... tenho que te pedir um grande favor.
-Ah, sim? -Cecily se inclinou para frente. -Rogo-lhe isso, me diga.
-Decidi fazer uma pequena excursão às montanhas. Enquanto estou fora, sentir-me-ia muito honrada se você assumisse os preparativos finais para o Baile de Inverno.
-Uma excursão? -uma débil sombra danificou a frente de alabastro do Cecily. -Por que quereria visitar as montanhas em tão...? -sua expressão se iluminou. -Athena,
não pode querer dizer que vai ao rancho.
-Sim. Recebi correspondência do Harry French que sugere que a senhorita Hughes não se está recuperando tão rapidamente como poderíamos desejar. Sinto que devo
oferecer minha amizade e todo o ânimo que possa neste momento crucial, coisa que não posso fazer aqui -encontrou o olhar de Cecily sem desculpa. -Sou consciente
de que Niall não deseja que vá, mas a condição da senhorita Hughes supera semelhantes considerações pessoais. Estou segura de que o compreende.
Cecily puxou as pontas dos dedos de suas luvas brancas.
-Temo que devo te aconselhar contra isso, querida minha. Não só é seguro que zangue a seu irmão, mas também não é a estação adequada para semelhante viagem.
E como iria? Não pode dirigir um veículo por você mesma.
-Não tenho a intenção de fazê-lo. Posso dispô-lo tudo se você concordar a não falar com meu irmão até que eu esteja de retorno em Denver.
-Não se encontra o senhor Munroe em Chicago?
-Sim, e não vai retornar até o dia do baile. Eu estarei a salvo em casa a tempo - Athena apertou as mãos no regaço. -Sei que tem muito afeto a meu irmão, Cecily.
É possível que tenha notícias dela. Isso é por que te peço que não diga nada disto com antecipação. Nada mau acontecerá por causa disso.
Cecily suspirou e adotou um ar pensativo.
-Sabe que sou sua amiga, querida Athena, mas não me sinto cômoda enganando a seu irmão. E devo me preocupar com você, também. Inclusive se te leva a sua donzela...
-Irei sozinha. Não desejo envolver aos serventes, embora, é obvio, eles saberão onde estou.
-Já vejo.
Era, obviamente, tempo de regatear. Athena tinha certa familiaridade com o método, porque tinha usado a persuasão muitas vezes ao solicitar relutantes contribuições
dos leões... e leoas... da sociedade de Denver. Lamentava que houvesse necessidade de manipular a Cecily, mas o que tinha intenção de dizer não se afastava muito
da verdade.
-É muito pedir -admitiu- e aborreço o engano tanto como você. Mas de muitas maneiras, cheguei a pensar em você como uma irmã. Considero-o um excelente sinal
de que meu irmão não estará tão só como o esteve no passado.
Sua gentil insinuação não passou inadvertida. Cecily se endireitou, e seus olhos adquiriram um certo brilho.
-Sinto-me adulada de que pense assim, Athena - baixou o olhar. -Eu... temo que não fui particularmente bem-sucedida em ocultar meu afeto pelo senhor Munroe.
Athena se relaxou.
-Meu irmão pode ser bastante teimoso, mas foi abençoado com muitas magníficas qualidades. Manterei sua assistência neste assunto entre nós dois, e Niall unicamente
saberá a respeito de seu incansável trabalho de caridade e da perseverança de sua amizade.
Cecily se manteve calada durante muitos minutos, e Athena se perguntou se possivelmente tinha chegado muito longe ao sugerir o suborno de sua influência com
o Niall. Tinha prestado mais atenção a Cecily do que o fazia a outras mulheres, e uma palavra favorável ou duas por parte da Athena poderia supor toda a diferença.
Athena se perguntou por que não tinha animado mais ativamente ao Niall para tomar em consideração a Cecily como esposa. Ela tinha reconhecido a possibilidade
disto desde o começo de sua relação com a mulher de mais idade... tinha visto o forte interesse de Cecily no Niall... ainda assim, esta não tinha seguido adiante
com o plano apesar das vantagens.
Niall não podia ser influenciado, em qualquer caso, e o céu ajudasse à mulher que o tentasse. A garota a que ele escolhesse amar devia ser muito mais forte
do que sua irmã era.
-Está o bastante segura de que se sente cômoda deixando o baile em minhas mãos?
A voz de Cecily surpreendeu a Athena, devolvendo sua atenção ao aqui e agora.
-Não tenho uma só dúvida. Seu gosto e experiência são impecáveis.
-Mas se houver mudanças repentinas... se devem fazer-se alterações...
-Então eu sei que você fará o correto - Athena jogo uma olhada ao relógio sobre o suporte da chaminé, impaciente por acabar com isso para poder começar a planejar
sua viagem.
-Quando tem a intenção de partir? -perguntou Cecily.
-Depois de amanhã, à alvorada - disse ela, tomando uma rápida decisão. -Me ajudará, Cecily?
-Farei tudo o que possa - Cecily ficou de pé e se sacudiu as saias. -Minha carruagem está esperando. Devo ir a casa.
-É obvio - Athena deixou escapar um calado suspiro. -Há algo que precise saber sobre o baile? Informarei às partes interessadas de que tem autoridade completa,
e os gastos adicionais podem ser postergados até minha volta, mas se houver algo mais...
A mulher maior sorriu.
-Observei seu trabalho cuidadosamente durante os passados meses, querida minha. Acredito que posso atuar como seu suplente com a devida eficiência -se deteve
na porta. -Se cuide muito. Nunca me perdoaria se algo te acontecesse.
-É uma verdadeira amiga, Cecily.
-E espero um dia ser muito mais... para você, e para o senhor Munroe. Boa noite, Athena.
-Boa noite.
Athena escutou os passos do Brinkley e o som da porta principal fechando-se com uma rajada de ar. Puxou o xale para voltar a subir o sobre os ombros e dirigiu
sua cadeira para a secrétaire. Mordiscou a ponta de sua pluma, considerando as cartas que tinham que ser escritas, e começou a primeira delas enquanto a garoa tamborilava
contra os cristais das janelas.
Amanhã se ocuparia de que as cartas fossem entregues. E, em poucos dias, ela estaria junto ao leito do Caitlin, entre a gente que tinha chegado a significar
tanto para ela como qualquer de seus amigos de Denver.
Possivelmente Morgan lhe sorriria de novo. Ela não o esperava, e muito menos algo mais que isso. Se podia acompanhar a Caitlin durante sua etapa mais difícil,
isso seria suficiente.
Isso teria que bastar.


















CAPÍTULO 13

As necessidades do negócio nunca tinham parecido tão intermináveis nem a conversa tão aborrecida como o tinham sido durante as passadas cinco semanas. Niall
reclinou a cabeça contra o assento do vagão Pullman Palace da ferrovia dirigindo-se ao oeste de Kansas City, profundamente agradecido de estar indo a casa.
Ou não o estava? Quando entrasse pela porta da casa da Rua Quatorze, teria que encarar a Athena... e ele sabia que o desconforto que tinha crescido entre ambos
não se teria desvanecido tão rapidamente.
Não era que ele esperasse que Athena o desafiasse. Em assuntos de importância, ela sempre se submetia a sua opinião não importava quão teimosa pudesse parecer.
Assim é como devia ser. E a senhorita Hockensmith... Cecily... estava cuidando dela. De fato, ele se havia sentido aliviado ante o prospecto de partir, permitindo
a Athena a oportunidade de reconsiderar sua bobeira e retornar a sua rotina normal.
Mas a insistente ponta de preocupação permanecia: Athena se achava encaprichada com o circo... pior, com o Morgan Holt... e essa gente estava a uns meros cinquenta
quilômetros de distância nas montanhas. Só Deus sabia o que estavam fazendo no rancho. E a garota...
Afrouxou o pescoço da camisa e tentou relaxar, embora não tinha dormido nem comido bem desde que deixou Denver. Essa garota... Caitlin... tinha pensado nela
muitas vezes enquanto estava em Chicago, na solidão de seu quarto de hotel, com a vazia comoção tendo lugar na rua sob sua janela. Tinha recordado seu sorriso, o
halo de cabelo vermelho, sua valentia ao encarar uma ferida séria.
O doutor havia dito que se recuperaria com o descanso apropriado. Essa era a única razão pela que ela e outros estavam no Long Park. Além de lhe prover alojamento
para o inverno, ele não era responsável pelo que acontecesse a Caitlin Hughes.
E ainda assim, pensava nela. Imaginava como Athena, confinada a uma cadeira, seu vibrante espírito para sempre aquietado. E a enfermidade da culpabilidade enchia
seu peito, lhe recordando que ele estava tão inválido como sua irmã.
Athena tinha usado suas lembranças compartilhadas contra ele... estava muito curtido como negociador para não reconhecê-lo. Sem invocar diretamente a grande
dívida que ele tinha com ela, tinha-lhe forçado a reconhecer a necessidade de afastar a Caitlin do destino que ela mesma tinha sofrido.
Isso não aconteceria a Caitlin. Ele se asseguraria disso. Ele se tinha comportado corretamente, honoravelmente. Athena estava agradecida.
Mas nenhuma dessas verdades lhe confortava. Quanto mais aproximava-se o trem de Denver, mais seguro estava de que devia ver por si mesmo como andavam as coisas
no rancho. Poderia falar com o senhor Durant e o capataz, assegurar-se de que o circo não estava aproveitando-se muito de seus alojamentos gratuitos. E, enquanto
estava ali, jogaria uma olhada a Caitlin e levaria um relatório de seu estado a sua irmã.
Sim. Irei ao Long Park. Só uma breve parada em Denver, e logo seguirei viagem.
No momento em que tomou essa decisão, a tensão em seu peito se aliviou e sua mente voltou a estar clara de novo. Fechou os olhos. O balanço do trem se converteu
em um relaxante movimento, e ele já não reparou na fumaça ou o desconforto da comprida viagem. Pela primeira vez em um mês, dormiu durante toda a noite.

Durante três dias completos, Cecily manteve os dedos cruzados e rezou para ter tão somente um pouco de sorte. Athena tinha abandonado Denver cedo a manhã do
dia anterior; um mero dia e meio mais tarde, Cecily tinha obtido mais do que tinha direito a esperar.
A princípio, havia ressentido a posição em que Athena a tinha posto. Depois de tudo, a última coisa que ela desejava fazer era lhe mentir ao Niall se ele chegava
a perguntar que tal estava sua irmã... embora, graças a Deus, ele unicamente o tinha feito assim durante sua estadia em Chicago. Mas Cecily tinha encontrado impossível
rechaçar a oportunidade que Athena lhe oferecia sem dar-se conta: a de fazer o Baile de Inverno seu próprio.
Certo, havia já relativamente poucos detalhes que resolver na semana e meia que subtraía até o evento, mas os que havia podiam ser feitos bastante importantes
com a correta ênfase. Os convidados habituais já tinham sido convidados, e o serviço de comidas acordado, mas Cecily tinha estado fazendo sua própria investigação
enquanto ajudava a Athena. Ela sabia que o grande salão de baile no Windsor estava disponível a noite do baile. E tinha decidido, imediatamente depois da partida
da Athena, trocar o lugar do salão privado de baile dos Munroe a uma convocação pública.
Isso, naturalmente, significaria mais decorações, mais flores de estufa, e muitas outras alterações mais. Cecily sabia que Athena preferia a intimidade e o
mesmo círculo familiar de conhecidos as multidões e a exibição pública. Com uma completa falta de imaginação, ela escolhia convidados que eram generosos com doações,
não aqueles que supunham uma fascinante companhia ou ofereciam novas oportunidades sociais ou de negócios.
Cecily não tinha interesse na caridade além do que esta podia fazer por seu progresso social. Sabia de numerosos dignatários e homens de negócios de outros
estados ou cidades, e inclusive de fora do país... incluindo um príncipe de alguma pequena nação européia e ao menos um conde inglês... que estavam atualmente na
cidade; tinha-lhes enviado convites e a um bom número de outros personagens úteis que tinham sido deixados fora da lista de convidados por desejos de espaço.
Depois disso, foi necessário ordenar comestíveis adicionais, uns adequados para tão elegantes assistentes. Quando chegasse a hora do dia do baile, o evento
conservaria pouca semelhança com o que Athena tinha planejado.
E Athena, bendita fosse sua ingenuidade, recordaria que tinha dado a Cecily carta branca para fazer o que considerasse necessário. Pareceria boba e egoísta
se protestava pelas mudanças. De fato, se a garota estivesse longe unicamente os poucos dias que tinha proposto, Cecily estaria muito surpreendida. Quando retornasse,
seria muito tarde para voltar para os acertos prévios.
Cecily suspirou com ligeiro remorso e desceu de sua carruagem, contente de estar em casa depois de um comprido dia de compras. O preço deste engano poderia
muito bem ser a perda da confiança e a amizade da Athena. Mas Cecily tinha adquirido cada vez mais confiança no vínculo do Niall com ela; de fato, tinha preparado
numerosas histórias para explicar a ausência da Athena se ele retornava a Denver antes que sua irmã. Cada uma delas deixaria em mau lugar a Athena e a Cecily como
a parte prejudicada.
Isso era um risco também, é obvio. Niall poderia decidir acreditar em sua irmã em vez da ela, se esta escolhia tachar a Cecily de mentirosa. Mas em quem confiaria
Niall quando sua irmã havia, tão descaradamente, quebrado sua promessa?
A porta da casa Hockensmith no Welton se abriu de repente enquanto ela a alcançava. O novo mordomo, um dos muitos serventes recentemente empregados graças à
benéfica associação do senhor Hockensmith com o Niall Munroe, fez uma reverência e tomou seu casaco.
-Senhorita Hockensmith -disse, com a nota justa de deferência, -há um cavalheiro esperando para vê-la.
-Um cavalheiro? -ela esteve de uma vez intrigada e molesta; esse homem deveria saber melhor que não devia admitir um visitante na casa quando ela estava ausente.
-Quem é?
-O senhor Munroe. Chegou faz tão somente um momento, e está esperando na salinha de receber.
O medo e a excitação se tragaram a irritação do Cecily. Niall havia retornado logo, e bem poderia saber já que Athena se foi... mas Cecily estava preparada
para essa precisa contingência.
-Muito bem, Parton. Por favor, lhe informe que me reunirei com ele breve -se apressou escada acima para seu quarto e fez os ajustes necessários a seu cabelo
e sua roupa, ensaiando sua história enquanto o fazia assim.
Tinha a cabeça bastante limpa quando entrou na salinha de receber. Niall estava de pé, mas não parecia particularmente molesto. Cecily expeliu a respiração
que tinha estado contendo e compôs uma expressão de grave preocupação.
-Senhor Munroe! Alegro-me tanto de que haja tornado.
Ele se girou para encará-la, e sua expressão neutra trocou a um cenho franzido.
-Senhorita Hockensmith? O que ocorre?
Ah. Ele não podia ter estado em casa, ou saberia. Os serventes o haveriam dito imediatamente.
-Veio diretamente da estação? -perguntou, lhe urgindo a tomar assento.
-Sim. Não permanecerei em Denver muito tempo. Unicamente devi perguntar... - seu cenho aprofundou. - Por quê? Trata-se de Athena?
-Oh, céus. Tinha albergado tantas esperanças de localizá-lo em seu hotel antes que deixasse você Chicago, mas o telegrama não deve ter sido entregue. Naturalmente,
logo que soube...
-Soube o que? Onde está Athena?
-Ela foi ao rancho - Aí. Se ele admirava a franqueza, apreciaria a sua mais que nunca agora. -Foi tudo minha culpa. As coisas tinham estado indo tão bem...
Athena parecia bastante estável e eu estava ajudando-a com o baile. Logo, faz três dias, fez alguns comentários a respeito de desejar visitar seus amigos do circo,
apesar de suas instruções em contra.
-Ela foi ao rancho? -repetiu Niall, como se não acreditasse. -Como?
Cecily compôs sua cara em uma máscara de contrição e vergonha.
-Eu... temo que tenha contratado algum transporte que a leve ali. Não me notificou nem aos serventes... eu unicamente inteirei ontem quando seu mordomo enviou
uma mensagem para me informar de sua ausência e da nota que ela tinha deixado - isso, ao menos, aproximava-se bastante à verdade. Ela se tinha feito a ignorante
com os serventes também. -Eu estava tão segura de que a tinha convencido de abandonar tão desmedido plano -continuou. -Empreguei cada método de persuasão, pode estar
você seguro. Simplesmente, não me ocorreu que não deveria confiar nela quando disse que se sentia esgotada e preferia passar-nos próximos dias em isolamento. Parece
tão frágil, e esteve trabalhando tão duro, que temi por sua saúde. Inclusive lhe ofereci lhe enviar ao doutor, mas ela recusou. Aparentemente, mentiu a sua donzela
a respeito de onde estava indo - elevou o olhar em ansiosa súplica. -Oh, senhor Munroe. Rezo para que você possa perdoar meu terrível engano.
Sua aposta saiu bem. Se Niall tinha estado preparado para condená-la por abandono, sua torrente de explicações e desculpas teria suavizado um pouco sua ira.
-Não - disse ele. -Não é culpa dela, senhorita Hockensmith. Eu não deveria ter esperado que tivesse você êxito onde eu falhei -ele caminhou até a janela e apartou
as cortinas. -Eu deveria ter antecipado isto desde o começo. Minha irmã trocou enormemente nos passados meses, e eu me neguei a vê-lo. Ela se tornou perita no engano
e a manipulação.
-Mas certamente você está sendo muito severo...
-Não há necessidade de que você suavize o golpe - disse ele. Voltou-se para ela, tudo traçado de ira oculta por uma máscara tão perita como a dela. -Ambos fomos
enganados por sua aparente inocência.
Cecily ficou de pé. Era hora de lhe dar uns quantos empurrões na direção correta e lhe deixar pensar que a solução era sua completamente.
-Talvez ela tenha ido simplesmente a cuidar da garota ferida.
-Você sabe que essa não é a razão. Eu poderia ter estado cego ante a atração antes, mas você estava certa. Ela desenvolveu uma inapropriada avaliação pelo Holt,
e essa é a verdadeira razão de que me tenha desobedecido.
Cecily se atreveu a tocar seu braço em gesto de simpatia.
-O que queira que seja que você possa temer, senhor Munroe, estou segura de que Athena não perdeu por completo o sentido comum. Ela pode estar dirigida por
sentimentos que não compreende... tantas jovens o estão... e seu julgamento ser precário. Viveu uma vida muito protegida em Denver, e, ao mesmo tempo, possui a confiança
de um menino em sua própria invulnerabilidade. Quando você a traga de volta, terá uma oportunidade de pôr as coisas em seu lugar novamente.
-Pôr as coisas em seu lugar - um músculo na mandíbula dele se flexionou. -Eu nem sempre escutei seus conselhos no passado, senhorita Hockensmith, mas agora
vejo que devo tomar medidas diretas. Athena chegou a considerar sua posição em Denver como algo indisputável. Sua cadeira a mantém a salvo de toda censura. Ela não
acredita que nada possa trocar seu mundo, incluído um flerte com um descarado como Holt, e essa é uma presunção que ela não pode permitir-se -ele inclinou a cabeça.
-A deixei sair-se com a sua muito frequentemente, e, ainda assim, tentei protegê-la mantendo-a perto. Enviá-la longe pode ser precisamente o que ela necessita.
Cecily emitiu um silencioso gorjeio de triunfo.
-Certamente. Não posso estar em desacordo com você, senhor Munroe -duvidou por um calculado momento. -Você disse que tem primos em Nova Iorque. Se me permitir
a audácia... possivelmente seria melhor se a envia diretamente ali em vez de trazê-la diretamente de volta a Denver. Qualquer rumor que surja se extinguirá rapidamente,
e ela estará bem longe da tentação. Eu serei capaz de completar os preparativos para o baile, assim que os esforços da Athena não se vejam escavados. Compreendo
que isto é muito repentino...
-Não. Não, absolutamente - ele encontrou seu olhar com sombria aprovação. -Irei para Long Park logo que seja possível... se o tempo se mantiver como até agora,
com um bom cavalo posso chegar amanhã pela manhã. Começarei a fazer os acertos para a partida da Athena a Nova Iorque imediatamente - agarrou a mão. -Sei que posso
seguir contando com sua ajuda, senhorita Hockensmith.
-Sempre - ela derrubou seu coração em seus olhos. -Farei indagações eu também e estarei pronta quando você me necessite.
Ele elevou sua mão como se fora a beijá-la.
-Foi você inestimável... Cecily. Não o esquecerei.
O uso de seu nome por parte dele foi o toque final de sua vitória.
-Compreendemo-nos um ao outro tão bem... Niall.
Ele sorriu, mas seus pensamentos estavam claramente enfocados em sua iminente viagem.
-Deixá-la-ei, por agora - caminhou para o hall e tomou seu chapéu e seu casaco de mãos do mordomo. -Boa tarde, senhorita Hockensmith. Notificar-lhe-ei quando
tiver a Athena sob meu cuidado novamente.
Depois que ele se foi, Cecily se deixou cair em uma cadeira e recuperou o fôlego. Sua boa fortuna não só se manteve, mas também se tinha duplicado. Niall já
tinha estado preparado para pensar o pior da Athena. Não importava o que sua irmã pudesse dizer agora, ele não ia estar muito inclinado a acreditá-la.
E Athena não retornaria a Denver. Um fundamental obstáculo eliminado com pouco esforço por parte de Cecily... e os restantes impedimentos em sua escalada ao
topo da sociedade cairiam, um por um, quando o Baile de Inverno demonstrasse ser um grande êxito. Todos os esnobes e curtos de idéias cidadãos de Denver iriam em
turba a sua porta uma vez compreendessem o que Cecily era capaz de fazer.
Especialmente depois de que ela se convertesse na senhora do Niall Munroe.
Cecily estirou as pernas, lambeu os lábios, e começou a contar seus presentes de bodas.

Tinha sido em um dia como esse... espaçoso, frio e preparado com um gentil presente de neve nova... quando Morgan tinha ido aos lobos e deixado atrás a amargura
de sua antiga vida.
Uma vez mais, via-se de pé ante a mesma soleira. Uma vez mais, considerava livrar-se de sua prévia existência igual a se sacudia a neve da pelagem. Mas esta
mudança não era tão fácil.
Esta mudança era aterradora.
Cruzou o prado aberto com um rápido galope, suas garras golpeando o terreno tão silenciosamente como ele perseguia à lebre. O cortante ar penetrava o interior
de seu nariz e assobiava ao passar junto a suas orelhas. Os aromas eram sempre mais intensos nessa época do ano, e ele sabia, ao passar, onde o urso tinha escolhido
sua toca, onde o lince tinha matado recentemente, e onde o esquilo tinha armazenado suas provisões para o inverno.
Folhas açoitadas pelo vento e terra úmida, caules secos de novelo ainda tenras, e quebradiças raminhos roçavam as suas patas e o curto cabelo que debruava estas.
A maior parte da neve da passada semana se derreteu, porque os dias ainda não eram tão frios para mantê-la. Mas logo, prometia o vento. Logo, sussurravam os pinheiros.
Logo será inverno outra vez, e você deverá escolher.
A lebre virou à esquerda abruptamente, saltando para evadir a seu mortífero perseguidor. Mas Morgan era mais que lobo, igual a era mais que homem. Ele girou
em metade do ar e lhe cortou o passo à lebre. Esta se parou, escorregando, a menos do meio metro de sua cabeça encurvada. Ele podia ouvir seu lhe gaguejem coração
enquanto o animal se pegava ao chão e esperava em silenciosa e aterrorizada resignação.
Morgan tocou seu tremente corpo com a ponta dos dedos de suas patas. Anos atrás, não se teria detido como tinha feito agora. Um lobo não tinha em conta os sentimentos
de suas vítimas. Pensava em seu estômago vazio e o duro inverno que tinha por diante.
Parvo sentimental. Morgan retrocedeu, meneando a cabeça com desgosto. A lebre permaneceu quieta. Morgan despiu seus dentes e lançou uma dentada ao ar. A lebre
saltou para cima e saiu à corrida antes que o bafo da respiração do Morgan tivesse desaparecido sequer.
Não era prova suficiente essa inexplicável urgência de oferecer piedade? Prova de que, inclusive se ele o desejava, não poderia voltar com os lobos?
Ele os ouvia frequentemente, cantando nas montanhas. Permaneciam longe do rancho, mas estavam aí. Uma nova manada, uma que aceitaria sua presença igual à primeira.
Até que, um por um, fossem assassinados pelos homens ou conduzidos mais profundamente ainda dentro dos bosques.
Conduzidos. O instinto e a necessidade conduziam ao lobo. A coisa que conduzia ao Morgan era um amo muitíssimo mais brutal. Atava-o com novas lembranças e esperanças,
atirava dele uma e outra vez em direção a aqueles que tinham reclamado sua lealdade. Para o rancho, e para o leste e a cidade onde Athena Munroe vivia sua vida de
regras, fila e restrições.
Ela não iria até ali. Seria parva se o fizesse, e Athena não era tola. Ainda assim, cada vez que Morgan se aproximava um pouco mais ao limite do comprido parque,
elevava o olhar para as colinas e sonhava escapando, dava-se a volta e retornava.
Justo como fez hoje.
O torpe gado que podava a quebradiça erva piscou ao lhe olhar enquanto ele dava um amplo rodeio em torno do mesmo. Os peões do Munroe, que respondiam ante o
capataz e estranha vez viam seu patrão, nem sequer eram conscientes de que um lobo vagava pelo parque. Morgan se cuidava de escolher atalhos que ocultassem seus
rastros. Quão último desejava era ver uma manada de homens armados devido à presença de um lobo solitário entre seu precioso gado.
O céu vespertino tinha adotado a apagada patina cinza de uma iminente nevada, escurecido pelos verticais fios de fumaça das muitas chaminés do rancho. Morgan
rodeou as dependências exteriores e os dois alojamentos para os peões, a gente reservado para estes e o outro para os membros da trupe. Trotou até o estábulo onde
estavam os cavalos destes últimos, empurrou a porta para abri-la e saltou sobre o palheiro onde guardava suas roupas.
Vestiu-se e caminhou entre os cavalos, tomando nota de sua condição. Estavam-se voltando vagos e confiantes ali, igual a ele.
Ainda assim, ele caminhou um pouco mais rápido enquanto se aproximava da casa principal com seu imponente exterior de pedra e sua extensa e baronial magnificência.
Long Park poderia ser um rancho boiadeiro, mas em seu centro havia uma mansão que um príncipe estrangeiro invejaria. Niall Munroe não era dos que aceitavam menos
que o melhor para si ou para sua irmã. Athena estaria tão cômoda ali como em seu próprio lar na Rua Quatorze.
E sempre existia a possibilidade, embora uma pequena, de que tivesse vindo.
Entrou na casa por uma porta lateral reservada aos serventes e seguiu o estreito corredor até as habitações de convidados do piso inferior que tinham sido reservadas
para o Harry, Caitlin, Ulysses, e uns poucos dos outros. Dado que Morgan dormia no estábulo, Harry e Ulysses compartilhavam o quarto, enquanto que Caitlin tinha
uma para ela sozinha.
A porta do quarto de Harry estava aberta, liberando o aroma de fumaça de cachimbo no corredor. A porta de Caitlin permanecia também entreaberta.
-... não posso pensar em razão alguma pela que Harry escreve tão incessantemente, a menos que espere despertar uma particular resposta por parte da senhorita
Munroe -dizia a voz do Ulysses. -Sei que tem carinho a jovem dama, mas ele nunca foi um admirável correspondente. Vejo-me portanto obrigado a concluir que você teve
alguma influência sobre ele, Caitlin.
-Eu? Que mente tão suspeita tem, Uly. Naturalmente que Harry deseja mantê-la informada de...
-A gravidade de sua condição? Sua profunda preocupação por seus estado mental e indefinidos prospectos de recuperação?
-Posso evitar se Harry exagerar?
-Ele sabe tão bem como eu que sua ferida está quase curada.
-Mas Athena ouviu o doutor dizer que era séria. Ela não tinha razão para acreditar que eu me recuperaria tão rapidamente.
Morgan cruzou os braços e se recostou contra a parede fora do quarto. Ulysses tossiu discretamente.
-A senhorita Munroe possui uma natureza evidentemente altruísta e complacente e é propensa a considerar o bem-estar de outros antes que o seu próprio. Ela fez
certas promessas a seu irmão a condição de nossa permanência aqui durante o inverno. Sopesou as consequências práticas de fomentar uma rebelião doméstica?
-Se quer dizer que Niall Munroe poderia não sair-se com a sua por uma vez...
-Você mesma pode garantir, Vagalume, que minha preferência pela razão sobre a paixão me dotou que uns confiáveis poderes de observação. No meu entender, o senhor
Munroe só pode ser pressionado até certo ponto antes de que comece a pressionar ele.
-E o meu é que Niall não é nem de longe tão carente de coração como ele mesmo acredita que é.
-Seu coração te diz isso porque você acredita que está apaixonada por ele.
Caitlin estalou em gargalhadas.
-Seus todo-poderosos dotes de observação outra vez, Uly? Quando estiveste sequer apaixonado você?
Ulysses permaneceu silencioso por um segundo mais do esperado.
-Para um homem de minha natureza... e estatura... é mais sábio evitar as emoções ternas e as complicações resultantes de semelhante sentimento. Mas sou humano.
Posso reconhecer a teimosia quando o vejo.
Morgan aguardou a que Caitlin o negasse. Quando ela não o fez, ele deixou cair as mãos aos flancos e deu um involuntário passo para a porta aberta.
-Não sei -sussurrou Caitlin. -Ele e eu... não temos nada em comum. Não sou uma inocente, Uly. Sou muito maior do que pareço. Sei que Niall Munroe é um homem...
só um homem... e não lhe deixarei destruir as vidas da gente a que quero.
-Athena e Morgan.
-E você, e Harry, e outros. Tudo o que precisamos fazer é superar este inverno e nossa sorte trocará para bem. Sei.
Ulysses suspirou, e seus pés roçaram contra o chão enquanto saltava de seu assento.
-Eu não tenho direito a te dizer o que deveria ou não deveria fazer -disse. -É inclusive possível que sua fé e lealdade cheguem a provar ser mais formidáveis
que a riqueza e o poder de um homem como Munroe. Mas tome cuidado. A devoção se cobra um alto preço.
Morgan se fez a um lado enquanto Ulysses saía pela porta. O miúdo se deteve, elevou a vista para o Morgan, e fechou gentilmente a porta atrás dele.
-Não te perguntarei se escutou nossa discussão - disse.
-O que é todo isso sobre cartas a Athena? -perguntou Morgan.
-Isso deverá perguntar-lhe a Caitlin. Vejo que decidiu permanecer conosco outro dia mais.
-O que te faz pensar que estava planejando partir?
-A questão nunca foi se iria, a não ser quando o faria. Não é lealdade a trupe o que te retém aqui.
-Não deveria escutar as amalucadas fantasias de Caitlin.
-São estas tão improváveis? -Ulysses olhou para a porta fechada. -A senhorita Munroe não parecia, a primeira vista, poder igualar a força de vontade de Caitlin.
Mas me têm feito notar que as aparências são enganosas -se girou para o quarto que compartilhava com o Harry. -Não seja muito severo com a garota. Se experimentar
um desejo de conversa racional, já sabe onde me encontrar.
Sem estar acalmado, Morgan entrou no quarto de Caitlin. Ela não pareceu surpreendida de lhe ver. Suas pálpebras caíram pela metade sobre seus olhos.
-Olá, Morgan - disse fracamente. -Que tal sua corrida?
-Está apaixonada pelo Munroe?
-Já tivemos esta conversa antes. Eu poderia te fazer a mesma pergunta...
-Eu não amo a Athena Munroe!
Seu rugido reverberou pelo quarto. As comissuras dos lábios do Caitlin se curvaram em sinal de satisfação.
-Então por que não parte? -perguntou ela. -Athena poderia chegar em qualquer momento.
-Ela não vai vir aqui.
-Tão seguro está?
-O que estiveram fazendo Harry e você?
Caitlin se examinou as unhas.
-Oh, nada. Athena esteve preocupada comigo, assim estivemos...
-Mentindo. Dizendo-lhe que está pior do que está. Caitlin...
-Mais te vale não lhe grunhir a Athena como o faz comigo. Ela provavelmente te devolverá o grunhido.
Morgan ficou gelado.
-O que quer dizer com isso?
-As mulheres apaixonadas podem ser criaturas muito ferozes.
-Ela não é...
-Sei, sei. Ela não está apaixonada por você - a jovem pôs os olhos em branco. -E você não esteve chutando o chão por aqui como um touro com um cólica porque
Athena está fora de seu alcance.
Morgan se afastou um passo da cama.
-Você pensa que ela ata a este lugar, Vagalume? Acredita que eu não poderia partir agora mesmo e alguma vez olhar atrás?
-Acredito que poderia tentá-lo. Mas espero que não o faça, meu amigo.
Como ela tinha feito muitas vezes já antes... como unicamente ela e Athena tinham o poder de fazer... o deixou em silêncio. Caitlin era como a lebre que ele
tinha apanhado habilidosamente e logo liberado por causa de um muito sensível sentimentalismo. Como um lobo inferior da manada a quem ele não tivesse sido capaz
de ensinar seu lugar. Ela e Athena podiam lhe dar voltas e mais voltas em torno de seus dedos, fazendo-o girar nesta ou aquela direção até que ele já não distinguisse
o leste do oeste ou o céu da terra.
Athena. Quando ela o olhava aos olhos com essa ligeira elevação de seu queixo e essa calidez em seus olhos avelã, ele quase esquecia por que desejava escapar.
-Depois de todos estes meses - disse Caitlin brandamente. -Ainda não sei de onde veio ou por que te estava ocultando como lobo em plena natureza. Sei que te
estava ocultando... todos o fazemos, de uma maneira ou outra.
-Equivoca-se. Eu era livre. Tinha a única classe de liberdade que merece a pena ter.
-Livre de ataduras para outras pessoas. É isso, não? Isso é do que sempre teve mais medo. De estar em dívida conosco por salvar sua vida. De fazer amigos incluso
embora não quisesse. E Athena incrementa seu dilema mil vezes.
-Eu escolhi meu próprio caminho.
-Pergunto-me se algum de nós o faz - lhe franziu o cenho aos dedos dos pés que apareciam do gesso cobrindo sua perna. -Algo te aconteceu, Morgan. Algo o suficientemente
mau como para que não queria te arriscar a que acontecesse de novo. Gente a que queria... saíram machucados, ou lhe machucaram. A própria família do Ulysses lhe
jogou porque ele não podia provavelmente ser um autêntico Wakefield tendo a aparência que tem. Mas ele ainda lhes escreve, esperando uma reconciliação - levantou
a vista. -Sei que é difícil manter a esperança quando não deseja fazê-lo. O amor é o pior de tudo, porque é como uma lanterna brilhando sobre tudo o que não deseja
ver. Ou recordar.
Morgan apertou um punho em torno do poste da cama.
-Eu não gosto como filósofa, Vagalume.
-Acredito que eu tampouco eu gosto - riu ela. -Isso é o que passa quando a gente está apanhado em uma cama escutando ao Ulysses te ler velhos e mofados livros
escritos por gregos e romanos mortos.
O quarto ao redor do Morgan trocou, suas alegres paredes amarelas fechando-se até converter-se em uma cela cinza e quebradiça.
-Os mortos deveriam ser esquecidos.
-Ninguém deveria ser esquecido.
-Vive dentro de um sonho, Vagalume.
-E você, Morgan? Esqueceu o que é sonhar?
Morgan liberou seus doloridos dedos da guarda da cama.
-Os homens sonham. Os lobos não. Eu sei qual está melhor fora.
-Enganamos a nós mesmos - disse ela. -Eu finjo tanto como você que nada importa em realidade. Mas ao menos, eu sei que estou fingindo.
-Então sabe que Niall Munroe não está para nada interessado em você - disse Morgan com crueldade. -Ele poderia tomar seu corpo se você o oferecesse, como o
faria com qualquer puta.
-Possivelmente eu escolha dar-lhe esqueceu os prazeres do corpo, Morgan? Oh, não... recordo que desfrutou que a companhia de Tamar de vez em quando. Ela deve
ser muito habilidosa, e sabe exatamente o que deseja. Athena é só uma mulher pela metade, não?
Suas palavras rasgaram ao Morgan do coração até o ventre.
-Athena... -começou, afogando-se. -Athena é... mais que uma mulher. mais do que você possa...
Ele se calou, respirando com dificuldade. Caitlin o olhou com firmeza, suas sardas tão gritantes como a pintura dos vagões.
Um ligeiro golpe soou na porta. Harry entrou, alheio a tudo, enchendo o quarto com sua loquaz e alegre presença.
-Ah, Morgan, moço. Ulysses disse que te encontraria aqui. Caitlin, como te encontra nesta muito formosa tarde?
-Não está nevando fora? -perguntou Caitlin, retorcendo a cabeça para a janela com cortina de encaixe.
-Assim é, assim é. Mas isso não deveria escurecer nosso prazer ante uma muito inesperada visita. Um dos peões acaba de informar que uma carruagem está subindo
pelo caminho. Algum transporte contratado e um condutor, sem dúvida, para estes passos de montanha -ele se esfregou as mãos. -Não são maravilhosas notícias, Morgan?
Nossa própria senhorita Athena veio por fim.













































CAPÍTULO 14

Morgan encarou o Harry, erguendo-se ante o homem mais velho e olhando-o desde seu quase meio metro de diferença em altura.
-Você a trouxe aqui - acusou. -Você e Caitlin.
As sobrancelhas do Harry se arquearam para o teto.
-Mas, meu filho, esta é sua propriedade, depois de tudo!
Morgan grunhiu e o rodeou. Seu coração enviava sacudidas de luz acima e abaixo de seu corpo com cada pulsado. Não tinha estado esperando ele isto cada dia?
Não havia sentido, no profundo de sua alma, que ela não poderia manter-se afastada mais do que ele mesmo poderia deixar de pensar nela?
Mas Harry e Caitlin tinham disposto isto entre eles dois, jogando com sua vida e a da Athena como se fossem peças de marfim sobre o tabuleiro de xadrez do Harry.
Morgan não se teria surpreso no mais mínimo se Caitlin tivesse planejado sua própria ferida só para propiciar que ele e Athena estivessem juntos. Mas ele podia recusar
jogar sob as regras que ambos tinham imposto.
Um corpo fresco e flexível bloqueou seu caminho. Desde não ter estado tão ensimesmado, teria cheirado a Tamar a um quilômetro e meio de distância, e a teria
evitado.
-Meu lobo - disse ela. -O que te faz franzir o cenho assim? Colocaram os caçadores muitas armadilhas para seu gosto? -ela sorriu, e ele rememorou beijar esses
lábios, e sustentar esse corpo disposto contra o sua durante a noite.
Ele poderia havê-la tido milhares de vezes após, com tão somente olhar em sua direção. Mas tinha beijado a Athena. Um beijo, carente de inclusive as mais básicas
intimidades da carne, e tinha perdido todo interesse no sabor de outra boca.
Tamar poderia ter tomado o número de amantes que tivesse querido entre os membros da trupe, apesar de sua raridade física. Em troca, elegia persegui-lo a ele.
Ela insistiu até conseguir um dos quartos da casa principal, e convertido assim em impossível o evitá-la completamente. Morgan havia finalmente compreendido que
ela acreditava que tinha algum direito sobre ele por causa de sua breve relação.
Por que, não o compreendia. Não lhe tinha devotado nada. Qualquer ambição que se ocultasse por trás de seus calculistas olhos, ele não podia fazê-la realidade.
Sua beleza era como uma flor da selva da que ele tinha ouvido falar: intoxicante de olhar mas impregnada com o aroma da carne podre.
-Sim - disse ele. -Muitas armadilhas.
Tratou de passar, mas ela alargou o braço para lhe deter. Tinha muita força para ser uma mulher, oculta mas sempre preparada.
-Nunca a terá - disse ela. A pura calma de sua voz lhe pôs o pêlo de ponta. -Ela te cuspiria à cara, meu lobo, como todos outros.
-Não fale dela, Tamar.
-Ah, o feroz grunhido - riu ela brandamente. -Por que não deveria eu falar dela? Os outros o fazem. Todos eles querem à pequena indefesa -ela riscou sua bochecha
com uma larga unha. -Você a ama também? Sonha com suas inúteis pernas voltando para a vida e envolvendo-se em torno de você de noite? Imagina vivendo em sua grande
casa da cidade, com o colar de ouro de uma fina dama ao redor de seu pescoço, ou acredita que ela te seguirá para pular nos bosques como uma besta?
Ele a agarrou pela boneca e a apartou.
-Não.
-Os homens são meninos - disse ela com a mesma acalmada e desapaixonada voz de antes. -Só querem o que não podem ter ou o que lhes fará adoecer do estômago.
Ela ficará doente. E quando tiver necessidade de cura, vêem a mim.
Deixou-o ir, deslizando-se longe sem um sozinho olhar sedutor. E uma estranha sensação o atravessou, lhe surpreendendo em sua sinceridade.
Ele sentia lástima pela Tamar. Compadecia-a a ela e a sua inexplicável obsessão por ele. Perguntava-se o que a teria feito ser como era, e por que ela via nele,
de entre todos os homens, uma cura para sua dor privada.
Era isso o que os humanos chamavam compaixão? Tinha-lhe ensinado Athena seu significado?
Ele não queria saber nada disso. Pôs-se a andar de novo, logo que sabendo em que direção ia. Tamar era igual a outros, seu objetivo: dobrá-lo a seus desejos.
Encontrou-se ao final do corredor, onde este se abria a um grande saguão. O lugar reverberava com vazio, não tão grande como as estadias públicas do lar da
Athena em Denver, mas sim o suficiente para acolher a um par de cabanas de tamanho médio ou a uma granja normal dentro de suas altas paredes. Os chãos de madeira
e os rústicos adornos pouco faziam para fazê-la parecer menos palaciana. Mobiliário acolchoado e gentil se achava agrupado em torno de suntuosos tapetes tecidos
e uma grosa pele de urso. A chaminé era imensa, seu perpétuo fogo constantemente alimentado com troncos de pequenas árvores.
A porta do saguão se achava aberta ao hall de entrada. A neve penetrava pelas portas exteriores. Athena entrou empurrada em sua cadeira de rodas, um dos peões
atrás dela com um par de bolsas de viagem.
Athena se afrouxou o pescoço de seu grosso casaco de lã.
-Por favor, deixe as bolsas por aqui em qualquer lado, Sterling -disse ao peão. -Apreciaria muito se se assegurasse você de que meu condutor é alimentado e
que lhe oferece uma cama para passar a noite.
-Fá-lo-ei o melhor que possa, senhorita Athena -replicou Sterling, soltando as bolsas no chão, -mas estamos a transbordar aqui com essa gente do circo e isso.
O capataz não está muito contente com o apertado das dependências na casa dos peões e esses cavalos de brincadeira no estábulo, e ouvi que o senhor Durant está pensando
em demitir... com perdão, senhora.
Athena sorriu, atirando de suas luvas.
-Pobre senhor Durant. Durante muitos anos, tudo o que tem feito é manter a casa em condições para convidados que estranha vez chegavam. Assegurar-me-ei de lhe
dizer a ele e ao capataz que serão bem recompensa...
Ela viu o Morgan e se deteve. Morgan foi vagamente consciente de que Sterling tinha abandonado a estadia, lhes deixando a sós. Athena continuou lhe olhando
fixamente, com os lábios ligeiramente separados, e Morgan sentiu como se lhe tivessem disparado, esfolado e pendurado na parede como um troféu.
Havia dito a Caitlin que poderia partir quando quisesse e não olhar atrás. Tinha mentido. Não podia obrigar-se a dar um só passo para afastar-se da mulher ao
outro lado da sala.
-Morgan - sussurrou ela.
A ausência aumenta o carinho, proclamava o velho dito. Agora Athena compreendia exatamente o que este queria dizer. Um olhar ao Morgan, tão quieto de pé no
hall, e ela soube que sua vinda tinha sido inevitável. Uma inspiração do ar que ele respirava e ela se perguntou como seu coração tinha seguido pulsando no frio
vazio de sua separação.
Uma corrente de quase dolorosa sensação se disparou para cima por suas pernas, dos calcanhares ao quadril. Os olhos do Morgan ardiam, invocando-a. Ordenando.
Vêem. Vêem a mim.
Era como se ele tivesse estado chamando-a cada momento das passadas cinco semanas, e só agora lhe ouvisse realmente. Seus dedos se cravaram nos braços da cadeira.
Os músculos de suas pernas, durante tanto tempo dormidos, começaram a tremer e retorcer-se.
Vêem. Ele sorriu, elevando a carga de seu temor. Ele alargou a mão.
Vêem.
Athena jogou todo seu peso sobre seus braços e empurrou. Seus pés tocaram o chão. Seus joelhos tremeram, mas só por um momento. Logo se bloquearam, estabilizando-a,
e ela se levantou. Lenta e cuidadosamente, ficou de pé, a cadeira a suas costas, e se balançou por causa da mareante altura de seu próprio metro cinquenta de estatura.
Não tinha tempo de ponderar o milagre. Morgan a convocava, seus olhos incluso mais demandantes agora, seus dedos curvados para chamá-la. Ela deslizou um pé
pelo suave chão de madeira. O segundo seguiu ao primeiro.
Um passo foi dado. Outro. Um terceiro. Ela se atreveu a levantar a vista do chão de novo. Os olhos do Morgan irradiavam triunfo e orgulho... por ela. Mas ele
aguardou... aguardou até que ela havia cruzado a distância entre ambos e só um passo mais a levaria a seus braços.
E ela o obteve. Elevou os braços e os envolveu em torno dos ombros dele... não para obter suporte, nem por necessidade, mas sim porque lhe desejava. Com sua
própria fortaleza, ela atraiu o rosto dele para o seu; abriu a boca e inalou a calidez de seu fôlego.
E lhe beijou. Beijou-lhe, livre para fazer essa escolha tal e como era livre para ficar em pé e caminhar e sentir novamente.
A boca de Morgan se abriu sobre a sua, tomando o que ela oferecia. Algum grande milagre esperava a ser revelado em seu abraço, um conto que só ele podia ilustrar
com seus lábios e sua língua. Ela sentiu sua erótica promessa lhe baixando até os dedos dos pés.
Que não acabe tão rapidamente. Que nunca acabe...
-Athena.
Algo não era correto na voz de Morgan. Ela abriu os olhos, e o choque da realidade a jogou de volta na cadeira.
A cadeira que ela nunca tinha deixado. Ela não estava de pé, nem nos braços do Morgan. Permanecia exatamente onde Sterling a tinha deixado, e Morgan ainda esperava
no hall.
Tudo tinha sido um sonho. Uma cruel e traiçoeira fantasia fabricada por sua confusa mente. Teria chorado, mas muitos anos de prática lhe tinham ensinado a tragá-las
lágrimas.
Esquece por que está aqui. Viu o Morgan, e todo o resto desapareceu, inclusive Caitlin. É seu justo castigo por tão vil egoísmo.
Castigo, e um claro aviso de que Morgan não era o que seus infantis sonhos faziam dele.
-Athena - disse ele. Seus olhos não eram cordiais, a não ser receosos. -Está doente?
-Não - ela conseguiu sorrir. -Estou bastante bem. Como está Caitlin? Vim para me assegurar de que se está recuperando como deveria.
-Veio aqui sem a permissão de seu irmão?
Ela não pôde dizer se era censura ou admiração o que ouviu em sua voz. Não a tinha animado ele a desafiar a seu irmão no passado?
-Niall está longe por negócios - elevou o queixo. -Quer me levar ao quarto de Caitlin?
Ele deu meio passo para ela, parou, e fez um estranho e quase impotente gesto.
-Athena. Não deveria haver... - ele meneou a cabeça, com um torcido sombrio nos lábios. -Te levarei com ela.
-Senhorita Athena!
Harry emergiu do hall, logo que detendo-se para rodear ao Morgan, e saudou a Athena com uma cálida sorriso.
-Bem-vinda, bem-vinda! É obvio, eu não tenho direito algum a lhe dar as boas vindas a seu próprio lar, mas estamos todos tão contentes de que tenha vindo. Caitlin
estará satisfeita...
-Como está ela?
A faísca nos olhos do ancião diminuiu.
-Estive preocupado por ela, como você já sabe, mas... - lançou um olhar precavido ao Morgan. -Agora que você está aqui, seguro que fará progressos. Morgan,
seria tão amável de levar as bolsas da senhorita Athena a seu quarto? O senhor Durant deixou bastante claro que estava reservando sua câmara para você, querida minha,
também como a do senhor Munroe, em caso de que vocês viessem... tal como deveria fazer, naturalmente. Não é que algum de nós sonhasse sequer apropriando-lhe agarrou
as mangas da cadeira da Athena. -Confesso que sinto algo de pena pela situação do senhor Durant. Ele não estava absolutamente preparado para nós, inclusive com a
contratação extra de serventes que seu bom irmão contratou. Compreendo que o senhor Durant foi o cuidador de tudo isto durante anos... mas inclusive embora a maioria
dos membros da trupe estão na casa dos peões, o pobre claramente não teve que tratar nunca com tantos convidados. Apesar de nossos esforços, ele parece... bastante
molesto.
Athena recordava ao senhor Durant como um nervoso e eficiente, embora geralmente bondoso, homem mais velho que tinha dirigido competentemente as grandes festas
que seu pai tinha dado quando ela era menina. Homens e mulheres proeminentes tinham vindo de Denver para falar de negócios ou simplesmente relaxar-se longe do calor
da cidade no verão, mas isso tinha sido muitos anos atrás. Evidentemente, o senhor Durant tinha perdido prática.
-Não se preocupe, Harry. Eu mesma falarei com ele esta tarde.
-Estou seguro de que ele estará bastante aborrecido por não havê-la visto... acredito que está consultando com o capataz a respeito de uma escassez de provisões
-Harry empurrou sua cadeira longe da porta, e Athena foi muito consciente de Morgan reunindo a bagagem e lhes seguindo. -Não trouxe você a sua donzela, querida?
-prosseguiu Harry. -Sei que há muitas jovens aqui para limpar, cozinhar e o resto. Possivelmente uma delas poderia atendê-la...
-Isso não será necessário -disse Athena, desejando ter olhos na nuca. -Só vou ficar alguns dias, e unicamente necessitarei assistência ocasional.
-Certamente, certamente. De todas maneiras, ocupar-me-ei de localizar a alguma garota para você, a fim de que possa refrescar-se. Caitlin está dormindo neste
momento, mas quando despertar -deteve a meio caminho do quarto e contemplou a grande escada de carvalho com consternação. -Oh, céus. Que extraordinariamente estúpido
de minha parte. Se quarto está no segundo piso, não?
-Não estive no Long Park muitas vezes durante os últimos anos. Niall pretendia fazer que instalassem um elevador, mas parecia desnecessário...
E ele sempre me levava em braços. Mas agora não está aqui. O senhor Durant não é suficientemente forte, nem tampouco Harry. Isso deixa a...
-Morgan, se posso abusar de sua amabilidade uma vez mais -disse Harry.
Athena conteve a respiração. Morgan foi até eles, inclinou-se sobre a Athena, e a elevou em braços. Não era a primeira vez que ele a sustentava assim, mas do
beijo... desde sua fantasia de caminhar... o ato estava carregado com quase insuportável excitação.
E vergonha por suas lastimosas expectativas.
Morgan subiu as escadas, sem falar, enquanto Harry ofegava atrás deles, a um passo muito mais lento.
-À direita - sussurrou ela quando alcançaram o patamar. Morgan a levou até o quarto que ela indicou, balançou seu peso sobre um braço, e usou a mão livre para
abrir a porta.
O mobiliário e decoração da habitação consistiam nas esponjosas e singelas seleções de uma jovenzinha, sem trocar desde antes do acidente. Morgan duvidou quando
viu a cama com dossel de encaixe branco, logo gentilmente a assentou sobre a superfície.
Olhou-o. Devolveu-lhe o olhar. O quarto se tornou muito cálido apesar da vazia chaminé. Soprando como um fole, Harry apareceu na porta.
-Morgan -disse entre ofego e ofego. -As bolsas...
Morgan retrocedeu e voou do qaurto. Athena pressionou as mãos contra a cara, desejando poder ter um punhado de neve com que esfriar seu rubor.
-Seja seja, minha querida menina. O que é o que ocorre?
Ela tratou de reagrupar-se em uma posição mais digna sobre a cama e sorriu ao Harry, lhe convidando a sentar-se na delicada cadeira de balanço junto a sua penteadeira.
Ele fechou a porta, olhou com suspeita a cadeira de balanço e se sentou cautelosamente. A cadeira de balanço rangeu, mas resistiu.
-Suponho que estou cansada, isso é tudo - disse ela. -O condutor que contratei era bastante competente, mas a carruagem não era confortável, temo-me.
-Seu irmão não sabe que você veio.
-Não. Ele está fora, e eu tomei a decisão por mim mesma - melhor não entrar em detalhes sobre esse ponto; compartilhar tais preocupações com o Harry não lhe
faria bem a nenhum dos dois. E havia algo mais que ela já não podia seguir guardando-se para si mesmo. -Harry... está Morgan... está ele aborrecido por que eu vim?
Harry se inclinou para frente, provocando um grunhido por parte da cadeira de balanço, e uniu suas mãos entre seus joelhos.
-Minha querida menina - disse, com incomum gravidade. -Como pode fazer semelhante pergunta?
-Ele... Eu... - ela girou a cabeça a um lado. -Eu nunca falei que isto com ninguém. sente-se muito estranho... equivocado...
-Não, não. Nunca diga isso -Harry se levou uma mão ao coração-. Me sinto honrado além do que as palavras podem expressar de que tenha escolhido me falar como
o faria com seu próprio pai. Verá, eu a considerei como a uma filha desde dia em que nos conhecemos. E Morgan é como o filho que nunca tive.
Mandando a discrição ao vento carregado de neve, Athena encontrou seu olhar.
-Eu queria muitíssimo a meu pai - disse. -Ainda lhe sinto falta de terrivelmente. Mas, se pudesse ter um segundo pai, escolheria a você.
-Obrigado, querida minha. Obrigado - ele alargou a mão para seu bolso em busca de um lenço. -Vi muitas coisas em minha vida. Muito poucas me surpreendem já.
Nada que você possa dizer me alterará, o asseguro.
Athena tragou saliva.
-Nem sequer sei bem como começar. Desde que lhes conheci... circo inteiro... hei sentido como se fossem uma segunda família.
-Como nos sentimos para você.
-E... e...
Oh, por que a eloquência a abandonava em momentos como esse? Ainda assim, quão frequentemente tinha falado ela com autêntica intimidade com alguém, discutido
algo que não fosse obras de caridade, assuntos sociais, moda ou a gestão doméstica? Entre todas as mulheres a quem ela considerava suas amigas, por que alguma vez
haveria nem sonhado em lhes confiar algo como o fazia com este falador e bondoso ancião?
Porque ela confiava nele... confiava em Harry, e em Caitlin, inclusive em Morgan, mais do que o fazia em sua própria gente, a mesma gente a quem considerava
seus iguais.
E não se envergonhava disso.
-Me conte o que saiba do Morgan - disse apressadamente. -De onde vem, quem era sua família. Por favor, Harry. Devo sabê-lo.
-Estive esperando que me perguntasse isso durante bastante tempo, querida minha. Contar-lhe-ei o que sei, embora em muitos aspectos, Morgan é um enigma para
mim como o é para você.
Athena se preparou para o que se morava.
-Eu sei o que ele é. Isso não me choca...
-E esse é o porquê eu encontro tão singelo querê-la.
O nó na garganta da Athena tinha duplicado seu tamanho. Ela tentou recordar, e falhou, quando tinha ouvido tão ternas palavras em boca de alguém da morte de
seu papai.
-É como se não desejasse falar de seu passado... nem de sua família nem do que deseja na vida. Por que, Harry? O que lhe aconteceu?
-Ninguém sabe. Chegou a nós sob a forma de um lobo açoitado por caçadores, e trocou a forma de homem ante nossos olhos. Nossa trupe sempre foi um lar para aqueles
que não têm lugar no mundo exterior, assim que lhe aceitamos com naturalidade entre nós. Ele sentia que nos devia algo, e embora com relutância, pagou-nos convertendo-se
em nosso ato do Homem-Lobo. Teve tanto êxito atraindo audiência que é por si só quase inteiramente responsável por nos salvar de uma certa ruína. Poderia nos haver
abandonado muitas vezes, e parecia desejar fazê-lo assim... mas ficou.
-Preocupa-se com vocês.
-Sim, embora ele não o admitirá voluntariamente.
-Como vivia antes de ir a vós?
-Isso sim sei. Passou muitos anos como um lobo, entre as bestas... deliberadamente evitando as caçadas dos homens. Mas suas razões não lhe posso dizer isso.
Há uma grande amargura dentro dele, um desejo de ver unicamente o pior na humanidade.
-E você sempre vê o melhor.
-Tento-o -ele estudou seus gordinhos dedos entrelaçados. partidas Não fala de sua família, exceto para dizer que perdeu a seus pais e a sua irmã antes de internar-se
nos bosques. Eu suspeito de alguma escura tragédia, da qual se culpa a si mesmo. Dizem que há um menino dentro de cada homem, e o menino que era Morgan foi conduzido
à maturidade em meio de pesares -lhe sorriu com tristeza, -e, ainda assim, há algo nele que permite que alguém perdoe sua áspera natureza. Em seu coração, é profundamente
generoso e protege a aqueles a quem considera amigos, embora negaria ter algum amigo absolutamente.
-E você deseja lhe ajudar - murmurou Athena. -Quer averiguar por que sofre, e repará-lo de algum modo...
-Estou seguro de que só há uma pessoa neste mundo que pode propiciar tal cura - disse Harry em voz baixa. -A que ele não acredita que exista.
Athena tinha medo de decifrar suas palavras.
-Alguma vez tentou falar com você, como o faço eu agora?
-Nunca. Mas no fundo de meu coração, atrevo-me a pensar que ele me vê, embora só seja um pouquinho, como seu adotivo.
-Obrigada, Harry.
Apesar da brevidade de sua conversa, Athena se sentia de uma vez esgotada e entusiasmada. Harry queria ao Morgan. E também Caitlin. O que ela sentia poderia
não ser tão impensável.
Mas, o que era o que sentia?
-Deve descansar agora, querida minha - disse Harry, ficando em pé. -Encontrarei uma donzela para que a atenda, e a informarei logo que Caitlin esteja acordada
- posou uma mão sobre o lado da cara dela. -Durma bem, minha menina. E tenha fé.
Ela cobriu sua mão com a sua.
-Obrigada, Harry.
Ele abriu a porta e quase tropeçou com as bolsas que Morgan tinha deixado justo na soleira. Com uma breve sacudida de cabeça, elevou uma por uma e as depositou
dentro do quarto.
A dor no peito de Athena continuou muito depois de que ele se foi. Uma donzela chegou antes de uma hora com água para que se lavasse e a ajudou a desfazer as
malas. O senhor Durant também encontrou tempo para ir a vê-la, desculpando-se por havê-la desatendido mas claramente sobressaltado por suas adicionais responsabilidades.
Absolveu-o de toda necessidade de cuidar pessoalmente dela e dispôs ter à garota contratada perto se por acaso algo se oferecia. Permaneceu na cama por não
pedir ao Durant ou a algum estranho que a levantasse para tirá-la ou acomodá-la na cadeira. Harry não retornou, e Morgan se manteve afastado. Ao final, ela ficou
demasiado sonolenta para esperá-los. A donzela a ajudou a colocar sua camisola e Athena se enterrou sob a colcha edredom.
O esgotamento superou à preocupação, e fechou os olhos. Despertou de entre a neblina do semi-sonho, ao sentir uma intensa dor em suas pernas, tão aguda e repentina
que lhe fez dar um grito.
Dor em suas pernas. Alargou a mão para as tocar, segura de que devia estar ainda sonhando. Fechou os olhos novamente, insistindo-se a voltar a dormir... mas,
em lugar disso, inundou-se em outro sonho, este inclusive mais fantástico.
Porque estava correndo. Correndo, não sobre duas pernas, a não ser sobre quatro patas... correndo como um lobo, com as mandíbulas abertas para capturar a neve
que caía. E, a seu lado...
A seu lado estava Morgan. Morgan como um magnífico lobo negro, diminuindo-a com seu tamanho e poder. Ainda assim, apesar de toda a força dele, ela igualava
seu frenético passo; suas garras eram como raquetes de neve, roçando o suave manto de neve fresca. O frio não transpassava a exuberante densidade de sua pelagem,
e seu nariz estava cheia de aromas tão ricos e sutis como as cores do tecido de um artista.
Competiam em corridas contra o próprio vento, ela e Morgan. E ele a olhava de soslaio, com olhos amarelos brilhantes de dor, e ria. Com um estalo de velocidade,
ele a adiantou.
Ela vacilou. Por um instante, soube que isso não podia estar acontecendo, que não tinha esperança alguma de lhe alcançar.
Mas a gentil voz de Harry estava ali, dentro dela: Estou seguro de que só há uma pessoa neste mundo que possa propiciar tal cura. E soube que devia ajudar ao
Morgan, embora não soubesse como nem por que; ela devia lhe curar, e curar-se a si mesma também.
Me curar a mim mesma? A clara incongruência do pensamento a arrojou para frente, e pôde sentir ao mesmo tempo o mundo coberto de neve dissolvendo-se em torno
dela, substituído com afiadas sombras e um tapete de lã.
Um tapete firme sob seus pés. Dois pés. Podia ver os dedos de seus pés na escuridão, muito brancos ao final de uma larga coluna de tecido.
Eles se agitaram para ela.
Outro cruel e intolerável piada a seus gastos. Procurou sua cama, decidida a acabar com aquilo.
A cama se achava a muitos metros de distância. Teria que caminhar para alcançá-la. Caminhar significava estar de pé.
Estava de pé. Suas pernas doíam, Oh, doíam terrivelmente, da maneira em que o faziam suas mãos quando tinham estado expostas ao frio e logo sustentadas sobre
um fogo.
Isso não era um sonho.
Levou as mãos às bochechas. Não era um sonho. Não a dor, e não o fato de que seus músculos se achavam muito fracos para sustentá-la muito mais tempo.
Impossível, disse-lhe seu coração enquanto se dava a volta cuidadosamente em direção à cama. Impossível, ecoou se sua mente enquanto calculava a distância que
deveria cobrir... a mesma distância que tinha cruzado inconscientemente tão somente uns momentos atrás.
Começou a tremer. Não só suas pernas, esgotadas como estavam, a não ser seu corpo inteiro. Era alegria. Tragou a risada e saboreou um sabor salgado em seus
lábios.
Posso me pôr de pé. Posso caminhar. Sou livre.
Parecia simplesmente natural que Morgan devesse vir então, para compartilhar seu triunfo. Completamente correto que ele caminhasse até ela... descalço, com
as calças meio abotoadas e a camisa com o pescoço aberto... e a beijasse.
Esta vez... oh, sim. Esta vez era real.

Morgan tinha guardado a lembrança de seu único beijo prévio durante semanas, obcecado com um ato impulsivo que deveria ter esquecido um instante depois de havê-lo
levado a cabo.
Agora sabia por que tinha sido incapaz de esquecê-lo. A boca dela se abriu sob a sua tão docemente, com tanta confiança, que soube que ela também tinha estado
pensando nisso. Desejando-o tanto como ele.
Mas não havia sido mero desejo o que lhe tinha impulsionado a dar esse último passo. Tinha estado correndo... correndo como sempre fazia quando a companhia
de outros se tornava insuportável. Especialmente a companhia desta mulher. Tinha achado pouca paz nas saídas para exterior, porque não tinha estado só.
De algum modo, lhe tinha seguido. Ele havia se tornado consciente de sua presença enquanto a primeira pista de uma falsa aurora flamejava pelo fio do céu, delineando
os dentados perfis cobertos de neve das montanhas. O silêncio tinha sido absoluto. Um minuto ele corria sozinho e ao seguinte a sentia a seu lado, um lobo fantasma,
lhe jogando uma carreira enquanto ele fazia o mesmo com seus próprios medos.
Tinha sabido que era impossível. Ela não estava realmente ali. Mas seu espírito tinha ido a ele, como os índios diziam que acontecia algumas vezes pelas noites.
Tinha-o desafiado em seu próprio terreno, sem medo. E ele havia sentido que havia mais nessa visão que um sonho que ambos compartilhavam.
Enquanto as estrelas desapareciam sobre sua cabeça, deu a volta e galopou para o rancho, não sabendo o que poderia encontrar. Ninguém despertou nas terras ou
a casa quando entrou. Tinha deslocado escada acima, sem fazer um som, e até a porta do quarto de Athena.
E aí estava ela... de pé, no centro do tapete, erguida sobre suas duas pernas. Sua cara tinha a expressão de um cervo sobressaltado. Logo ela começou a tremer,
e Morgan sentiu a mescla de medo e triunfo como se fosse sua própria.
Triunfo, e orgulho. Orgulho por ela, pela conquista que tinha feito contra todas as probabilidades. Profunda e inesperada alegria ao sentir que poderia estar
completa, e livre.
Ele não perguntou. Foi até ela, a tomou em seus braços, e beijou.
Esse foi um beijo como o outro não o tinha sido: prolongado, ardente e compartilhado com igual ardor. Nele, Morgan verteu todo o desejo que tinha mantido tão
fortemente selado dentro de si, desencadeado pela nova fortaleza da Athena.
Ela podia fazer mais que ficar de pé. Seus braços eram fortes e seguros em torno de seu pescoço. A loba que tinha deslocado junto a ele estava presente em toda
sua extensão, e seus dentes se fecharam sobre o lábio inferior dele com uma ferocidade para a qual não estava preparado.
O lobo dentro dele pedia a gritos conquistar. Ele explorou o aveludado interior de sua boca com rápidas passadas de sua língua, e logo empurrou mais profundo.
Ela parecia pronta para lhe devorar. Se nunca tinha beijado a um homem antes dessa noite, aprendia muito rapidamente.
Era o sangue de homem-lobo que cantava em suas veias tanto como o fazia nas dele mesmo. Poderosa e inegável atração. O lobo que ela não podia ser enquanto estivesse
atada a essa cadeira tinha despertado a todas as possibilidades da liberação.
Ele abrangeu seu espesso e solto cabelo em seus punhos e puxou sua cabeça para trás, beijando e mordiscando seu pescoço nu. Ela assobiou de prazer. Uma distante
parte dele se interrogou a respeito de tão vasta mudança dentro dela, mas ele arrojou o pensamento a um lado.
Toma-a, demandou o lobo. Ela te deseja. Você a deseja. Nada mais importa.
Ninguém o veria. Ninguém saberia. Uma única e frenética cópula, e ele partiria novamente e ninguém se inteiraria.
Ir-se? Acreditava que podia fugir de semelhante atadura? Uma vez fosse consumada...
Como se ambos compartilhassem uma mesma mente, apartaram-se no mesmo preciso momento. Athena estava ofegando e ruborizada, seus lábios ligeiramente inchados,
seus olhos vívidos, mais dourados que verde ou marrom. Ela cambaleou. Ele a agarrou de novo e a levou a cama.
Ela se deitou sem protestar. Ele podia ver como suas pernas tremiam, pressionadas ao bordo mesmo de suas forças. Era notável que a tivessem suportado portanto
tempo. Certamente não o teriam podido fazer assim de ter sido ela puro-sangue humana.
-Morgan - sussurrou ela. -O fiz. Eu... me pus em pé.
Já o beijo se via relegado a um rincão longínquo de seus pensamentos. Ele não podia culpá-la. Deveria sentir-se aliviado, embora seu corpo doía e lhe amaldiçoava
por sua covardia.
-Sim - disse ele. Considerou o bordo da cama e escolheu abaixar-se junto a esta em troca. -Como aconteceu?
-Não sei. Um momento estava sonhando, e ao seguinte... - ela deslizou a língua por seu lábio inferior. Morgan fez uma careta. -Sonhei que estava correndo sob
a forma de um lobo. Contigo.
-Senti-o - disse ele. -Te vi, em minha mente.
-Fê-lo? -ela sorriu, como se acabasse de descobrir que havia uma alegria maior que recuperar o uso de suas pernas. -Não foi só um sonho?
Ele começava a compreender. Ela tinha sonhado correndo, seu sangue de lobo levando-a para a liberdade, e seu corpo tinha atuado. Tinha desafiado aos doutores
e pessimistas que tinham declarado que nunca voltaria a caminhar novamente... incluído ela mesma. Ele deveria haver sentido desde o começo que sua paralisia tinha
nascido de negações e hipóteses, não de um corpo arruinado. Esse era o por que a tinha beijado a primeira vez, por que a tinha incitado a desafiar a seu irmão, por
que se tinha permitido a si mesmo aproximar-se tanto...
Quando se voltou tão sábio?
-Se pode caminhar -disse ele, evitando sua pergunta- suas feridas devem estar curadas.
-Curadas - ela inalou a palavra como se fosse ar, exalou-a, saboreando um gosto que não tinha tido esperanças de saborear de novo. -É isso possível?
-Suas pernas lhe sustentaram. Seus músculos devem estar débeis e magros, mas funcionam. Pode senti-los?
-Sim - havia maravilha em seus olhos, e ela se percorreu o corpo com as mãos, de cintura a coxa. Sua camisola se amoldava à figura debaixo, e Morgan apertou
os dentes. -Posso. Doem.
A dor deve ser grande, mas ela o suporta sem queixar-se. O orgulho encheu seu coração até incômodas proporções.
-Eu só sei um pouco sobre feridas como estas, mas vi homens que não tinham usado braços ou pernas durante muitos meses, e podem ficar bem se não abandonarem.
Continuará doendo, ainda depois de muito tempo. O lobo ajudará. Foi o lobo o que te curou.
Ela encontrou seu olhar.
-Mas eu... eu não me transformei em anos.
-Seu corpo não esquece. Igual a seus músculos não esquecem como ficar de pé. Aprenderão a caminhar e logo a correr de novo - ele a olhou fixamente aos olhos.
-É o suficientemente valente para fazê-lo, Athena. Sempre o foi.
Ela se ergueu para reclinar-se contra os travesseiros, flexionando cuidadosamente seus joelhos.
-Mas se tudo o que se precisava era coragem, então por que me fizeram falta tantos anos para encontrá-lo?
Pergunte ao Ulysses, desejou lhe dizer ele. Ele é o filósofo... ele e Caitlin.
-Do que tem medo? -perguntou.
-Eu... - ela fechou os olhos, e ele pôde senti-la viajando anos atrás, a essa nevada ladeira de montanha de fazia tanto tempo. -Não sei. Acreditei nos doutores.
Acreditei em Niall.
Niall.
Morgan sufocou um grunhido.
-Ele te mantém nessa cadeira.
-Não! Não - ela meneou a cabeça, recusando ouvir algo dito contra seu irmão. -Nada é tão simples. Ele fez tudo por mim.
-Ele não compreendia ao lobo - disse Morgan. -Nem tampouco você.
A confusão nos olhos dela se esclareceu, e uma nova energia vibrou por todo seu corpo.
-Eu acreditei que o lobo se foi para sempre. Obriguei-me mesma a acreditá-lo - lhe olhou de tal maneira que sua garganta se contraiu e ele não poderia ter falado
ainda se tivesse querido. -Não foi só o lobo em meu interior o que fez que isto acontecesse - disse ela brandamente. -Não foi um milagre. Foi você. Sua inspiração,
sua crença em mim... inclusive sua intimidação. Foi um exemplo que eu nunca tinha encontrado em nenhuma outra parte.
Ele ficou em pé de um salto.
-Concede-me muito mérito.
-Não acredito assim. Você é tantíssimo mais do que sabe, Morgan.
-E você não sabe nada de mim.
-Então me conte -ela se inclinou para frente, deliberadamente fazendo trabalhar os músculos de suas pernas. -Se tiver sofrido... eu desejo te ajudar como você
me ajudaste. Devo-te tanto. Deixe-me te pagar ao menos um pouco dessa dívida.
Ele pôs-se a andar para a porta e se deteve. Cada nervo ardia com conflitivas urgências. Correr. Ficar. Evitá-la a toda costa. Tomá-la. Possuí-la. Fazê-la sua
para sempre.
-Há muita gente que se preocupa com você, Morgan - disse ela atrás dele. -Você não quer lhe dever nada a ninguém... e não quer que ninguém te deva nada. Acredita
que não vi isso uma e outra vez em meu trabalho?
-Entre seus casos de caridade? -espetou-lhe ele. -Aqueles que são muito fracos para sobreviver por si mesmos, e muito orgulhosos para admiti-lo assim?
-O circo necessitava sua ajuda e você a brindou. Poderia haver partido, mas ficou. Não tinha razão para me dar ânimos, e ainda assim o fez. Não posso te compreender,
Morgan... e apesar disso, em certo modo, faço-o.
-É uma menina.
-Eu tive um pai que me queria, e um irmão que me protege inclusive quando é muito diligente nisso. Possivelmente eu me deixei mesma ser protegida. Mas, quem
protegeu a você?
-Eu não necessito amparo.
Ela fez uma pausa, e ele pensou que a tinha afastado do tema. Mas ela não tinha terminado.
-Perdeu a sua família quando foi jovem - disse. -Mas tem uma nova família agora. Caitlin, e Ulysses, todos os de circo. Todos eles são seus amigos. E Harry
te considera um filho.
Ele não podia suportá-lo. O pouquinho de conversa que tinha ouvido entre ela e Harry, quando tinha deixado as bolsas de viagem junto a isso porta tinha sido
mais do que desejava saber. E, ainda assim, ele tinha invejado sua fácil intimidade, o afeto entre pai e filha. Sua última conversa com o Aaron Holt tinha sido...
melhor esquecê-la.
-Como era seu pai? -perguntou ela.
Ele se voltou contra ela.
-Era um sonhador, um folgado, um homem que não podia cuidar de sua família -fechou os olhos, vendo o estragado, agonizante e suplicante rosto que tinha tão
pouca semelhança com o homem que ele tinha conhecido em sua infância. -Ele deixou a minha mãe...
Muito duro. Muito.
-Eu fui lhe buscar - disse ele. -Para lhe trazer para casa.
-Encontrou-lhe?
Ela pareceu sentir a enormidade do que perguntava, porque sua voz se tornou diminuída. Ele sorriu brutalmente.
-Encontrei-lhe.

-Odiava-o - sussurrou ela. -Oh, Morgan...
Era piedade o que havia em seus olhos, em sua voz? Estava ela alargando sua mão, seus dedos em posição de ir acariciar sua bochecha, seu cabelo, como se ele
fosse um menino desconsolado... um de seus preciosos e lastimosos órfãos?
Ele se moveu mais rápido do que o olho humano podia ver e a agarrou pelo pulso.
-Não me compadeça - grunhiu. -Não se atreva a sentir piedade por mim.
Ele se abaixou sobre ela, suas pernas a cada lado dos quadris dela, imobilizando seus braços contra a cama. Athena compreendeu, Oh, sim, ela sabia... mas estava
acalmada, sem medo.
Ele não desejava seu medo. Ele desejava... desejava...
-Morgan...
Ele a silenciou uma vez mais com seus lábios.








CAPÍTULO 15

Athena sabia que não devia demonstrar medo. O lobo estava nos olhos de Morgan, em sua necessidade, e ela soube que empurrou muito rapidamente.
Mas ela necessitava também. Precisava lhe compreender, e agora... enquanto ele a beijava com uma dureza que prontamente se transformou em uma faminta carícia...
ela compreendeu que necessitava algo muito mais físico.
Os meros desejos físicos que ela se negou a si mesma, sabendo que nenhum homem seria capaz de satisfazê-los inclusive se se tomasse a moléstia de tentar com
uma inválida. A absolutamente egoísta satisfação que não beneficiava a ninguém exceto a ela mesma.
Agora ela tinha começado a desejar... não a sonhar, nem a desejar, a não ser a procurar ativamente o que não tinha estado a seu alcance até esse momento.
Isso a assustava como o próprio Morgan não podia. Suas pernas tinham começado a despertar de seu comprido sonho, mas ela não se precaveu de como todas as demais
partes dela adquiriam vida tão brilhantemente com seu toque.
Isso tinha acontecido, com ele, mas não dessa maneira. Os dedos dele se enredaram em sua juba solta, mantendo-a quieta com ferocidade enquanto a beijava com
toda a meticulosidade que ela tinha imaginado em seu sonho acordada escada abaixo.
Mas a ira dele, sua aparente ferocidade, era uma fachada tanto como o era sua ordinária forma humana. Inclusive agora, a segurava tão terno como uma loba levando
a seu cachorrinho entre mandíbulas capazes de esmagar ossos.
A boca dele formou seu nome contra seus lábios, e ele liberou seus braços. Ela os deixou onde estavam, embora se sentia bem longe de passividade alguma. Seu
instinto era estender as mãos para ele e atraí-lo para baixo, abaixo, dentro de si mesma.
Mas ele devia ter o controle. Ela o sentiu assim, da mesma forma em que sentia o esmagador pesar das jovens mães solteiras ou a ira dos homens que não podiam
encontrar trabalho para alimentar a suas famílias. Em tais casos, ela sabia como responder... como dar, curar, recompor... mas agora ela devia encontrar seu caminho
igual a um cego.
Um cego que logo que tinha começado a ver.
Morgan acariciou sua orelha com o nariz, seu fôlego quente sufocante contra a fresca carne do nascimento de seu cabelo. Ela deixou escapar um breve grito de
surpresa. Ele a beijou de novo, primeiro nos lábios e logo na testa, as pálpebras, o nariz, e o queixo. Cada beijo era pouco mais que um suspiro, mas carregado de
tal potência que ela não teria podido confundi-lo com algo como uma saudação fraternal.
Logo que tinha reconhecido a natureza puramente erótica das carícias quando ele a surpreendeu novamente. Sua língua lambeu o ângulo de sua mandíbula, do lóbulo
da orelha ao queixo. Era como se estivesse saboreando-a antes de começar seu festim, uma promessa de mais coisas ainda por vir.
Mais do que tinha acontecido em seu dormitório, ou inclusive em seu sonho. Essa situação podia ir tão muito mais longe, se ela se atrevia a permiti-lo. Tudo
o que tinha que fazer era lhe dizer: "não".
Ele pressionou sua boca contra a parte inferior de sua mandíbula, onde o pulso batia muito rápido, onde ela estava mais indefesa. Ela jogou a cabeça para trás
e fechou os olhos. Ele mordiscou aqui e lá... dentadas amorosas que ela vagamente pensou que deviam ser comuns entre os de sua espécie. A espécie de ambos.
Logo ele começou a desabotoar a parte de acima de sua camisola.
Ela conteve a respiração. Um botão aberto: ele separou os dois extremos e beijou o espaço entre ambos. Um mais: outro beijo. O terceiro botão jazia aninhado
em um vale de carne. O último acabava justo onde seus peitos pressionavam tão desavergonhadamente contra o fino tecido.
Agulhas de sensação lhe cravavam no ventre e os peitos. Quando ele chegasse ao final dos botões, não faria o que um inoportuno pretendente poderia ter feito,
de ter tido ela pretendentes. Ela não se fazia iludida a respeito de sua intenção.
Por quê? -gritou seu muito abusado sentido comum. -Por que aqui, e agora?
Por que não? Acaso esperava promessas de amor, um lento e formal cortejo como o que qualquer mulher normal preferiria? É você normal? É-o ele?
Não poderia esta ser sua única oportunidade de saber o que é ser amada?
Ele entrelaçou os dedos com os seus e puxou seus braços para colocar-lhe por cima da cabeça. Não a manteve ali. Em lugar disso, deixou sua mão deslizar-se em
sentido descendente por seu corpo, roçando ombro, peito e quadril sem ficar, indo ao fim a repousar na união de suas pernas.
Suas pernas, que já não eram pesos mortos a não ser estranhos apêndices que ela não estava segura ainda como encaixavam no resto de sua pessoa. Apêndices que
ainda não a obedeciam, mas podiam sentir.
Sentiu o calor de sua palma através do linho de sua camisola. Sentiu-o começar a deslizar a malha para cima por suas coxas, centímetro a centímetro, da metade
de sua panturrilha e mais acima. Sentiu a corrente de ar frio lamber sua pele nua enquanto a língua dele lambia sua orelha e seu queixo.
Logo sua mão estava sobre ela, sem nada entre eles.
Ele aproximou seu rosto ao dela. Os pulmões dele trabalhavam como os de um homem que tivesse estado correndo muitos quilômetros sem descansar. Seu nariz aspirou
os aromas que pertenciam somente a ele, únicos e intoxicantes, lobo e humano. Úmidas e pesadas mechas de negro cabelo se enroscaram sob sua mandíbula e na fenda
entre seus peitos.
-É tão sensível com outros - sussurrou ele roucamente em sua orelha. -Mas o é contigo mesma, Athena?
Ele deslizou sua mão embaixo do apinhado tecido de sua camisola. A ponta de seus dedos apenas... ou assim pensava ela... roçando os pequenos e apertados cachos
no alto de suas coxas.
Ela tinha lido a respeito de sacudidas elétricas e imaginado como deviam sentir-se. Mas foi apenas uma adequada comparação quando ele tocou o lugar mais privado
baixo esse suave escudo.
Ele tinha perguntado se ela era sensível consigo mesma. Nenhuma resposta foi necessária. Um prazer parecido à dor sacudiu-a e queimou com cada pequena rotação
do dedo dele, arrancando ofegos do profundo de seu peito. Ficar de pé, caminhar, voltar a correr... tudo isso não era nada comparado com o êxtase que chegava ao
mero centro de tudo o que ela era ou alguma vez poderia ser.
Era esta a coisa da qual as mulheres falavam em veladas alusões e sussurros quando os homens se achavam convenientemente fora de seu raio de audição? A coisa
que fazia que compartilhar a cama de um homem fora mais que um dever e uma maneira de fazer?
Morgan. Ele a tocou de novo, e sua voz se perdeu a meio caminho entre sua garganta e sua língua.
Sentir... sentir tão gloriosamente valia qualquer preço que tivesse que ser pago. Sentir isso à mãos do Morgan, com seu corpo estirado sobre o seu, era um milagre
que ela não merecia.
Mas o que obtinha Morgan? Ele tinha começado isso para silenciá-la... para provar algo a ela, a si mesmo: que era o dono de seu próprio destino e que estava
couraçado contra qualquer sentimento que ela pudesse oferecer. E, ainda assim, seu intento de dominação se converteu em um presente... de prazer, de novos sentimentos
e maravilhas como Athena nunca tinha conhecido.
Compreendia ele o que o fazia? Era isso parte de seu jogo? Ou era tão real e sincero como a renovada plenitude de seu corpo?
Ele não era tolo, nem ela tampouco. A exata natureza da consumação física entre homem e mulher não era a não ser uma vaga idéia na mente da Athena, mas devia
estar conectada com a forma em que ele a tocava, a forma em que seu corpo respondia e se voltava úmido, quente e necessitado. Ela podia compreender agora como as
mulheres geravam filhos fora dos laços do matrimônio.
Mas os habilidosos dedos do Morgan não eram os órgãos capazes de plantar nova vida no corpo de uma mulher. Meninos... por todos os céus, meninos... ela tinha
renunciado a esse futuro tão completamente como o tinha feito com a possibilidade de ver-se livre da cadeira.
Meninos, matrimônio, amor físico. Repentinamente, as três coisas se tornaram sólidas e tangíveis, vívidas paisagens que ela podia ver através de uma janela
aberta em lugar de imprecisos espectros entrevistos em meio de uma névoa de resignação.
Morgan os tinha feito possível. Ele só. Ele deu e deu, sem saber quanto, e agora dava outra vez. Ela sabia em seu coração que ele não a forçaria, não se arriscaria
a deixá-la grávida. Deus proibisse que ele criasse tão inquebrável laço entre ambos.
Mas se ele pensava nela... em sua reputação, a qual parecia ter ignorado em Denver... e no futuro que para sempre alteraria se continuava... então, como podia
acusar a de tão insensível egoísmo?
Não. Se ele tinha pretendido provar sua independência, sua indiferença ante a ternura humana, tinha escolhido a maneira equivocada de fazê-lo. Ele dava prodigamente,
negando-se a si mesmo a classe de satisfação que os homens deviam obter de tal união. E ela não podia suportar a idéia de que ele não tivesse nada exceto o duvidoso
conforto de saber que podia fazê-la sentir.
Foi então quando ela compreendeu que se apaixonou por ele.
A noção foi tão cegamente óbvia que ficou brevemente sem sensação. Tudo se congelou: pulmões, coração, inclusive sua habilidade para ouvir e ver.
Amava ao Morgan Holt. Não era mera atração por alguém igual a ela, alguém que podia compreender. Não era algum tipo de rebelião contra a vida que ela pensava
tinha escolhido depois do acidente. Nem sequer era por essa coisa maravilhosa que ele fazia com seus lábios e suas mãos.
E não era absolutamente o que ela tinha esperado que seria o amor. Tinha acreditado que este se achava além de seu alcance, uma emoção conectada com galantes,
arrumados e corteses homens que possuíam riquezas e presença e que nunca olhariam duas vezes a uma mulher em uma cadeira uma inválida. Homens como seu irmão e seus
associados, os maridos e pais de suas amigas da sociedade.
Morgan não era galante, ou cortês, nem sequer arrumado no estilo desses homens. Tinha mau caráter, era brusco, sem maneiras, indiferente às normas sociais,
e muito direto ao falar. Era estranho que considerasse os sentimentos de outros como era devido... como ela tentava fazer.
Mas a sua era uma amplitude de alma, uma atormentada devoção, uma apaixonada lealdade que não podia ser comprada mas que, uma vez entregue, era eterna. Ele
tinha decidido pouco depois de seu primeiro encontro que ela devia permanecer com seu pequeno círculo de familiares e amigos. Ela sabia que ele nunca permitiria
que nada a danificasse, e que lutaria até a morte por ela.
Todo isso era o que ele dava, não tendo nada salvo a si mesmo. Mas ele sentia. Sentia tão profundamente como qualquer que ela tivesse conhecido jamais.
Como podia ela outorgar sentido a essa emoção, a esse conhecimento do que ele significava para ela? Via agora quanto tinha tirado dele, e estava envergonhada.
Ela não tomava sem dar em troca.
Ela devia dar ao Morgan... ajuda, socorro, e cura, se podia. Inclusive amor, se havia ao menos uma oportunidade de que ele o aceitasse. Mas havia um presente
mais imediato dentro de seu alcance que podia dispensar. Um pequeno e temporário presente que supunha menos para ela que para sua sociedade, mas que poderia começar
a pagar a dívida que ela tinha com ele.
Se tinha o valor.
Morgan a acariciava com gentis toques, e ela perdeu momentaneamente o poder de considerar abstratos tais como o valor e o egoísmo. Enjoada, arqueou-se, para
cima, sua espinho dorsal curvando-se como se para trazer cada centímetro de seu corpo em contato com o seu. Mais e mais alto, desdobrando asas que lhes levassem
a ambos até os céus.
Estava chegando o momento de perfeita liberdade. Não mais cadeira, não mais espera, nem atadura alguma à terra. Só uma carícia mais, uma mais, e ela poderia
provar... provar-se a si mesma, e a todo mundo...
Morgan se deteve. Athena abriu os olhos com um protesto silencioso, mas o olhar na cara dele a manteve calada. Ela ouviu o golpear de passos correndo escada
acima um segundo depois que ele.
Niall. Logo que teve tempo para baixar sua camisola sobre os joelhos antes de que ele atravessasse a porta como uma exalação.
-Meu Deus - disse roucamente. - Athena -seu olhar caiu sobre o Morgan. -Você, condenado bastardo...
-Niall!
O grito da Athena bem poderia ter sido um sussurro, porque não penetrou a raiva do Niall. Este não podia ver nada salvo ao homem que tinha desflorado a sua
irmã.
Morgan Holt. O desgraçado escondido sobre ela em sua cama... a cama dela... um desagradável grunhido emergindo de sua garganta como se estivesse defendendo-a
de seu próprio irmão. Defendê-la, por Deus, quando ele tinha roubado o pouco que lhe ficava de valor.
Niall apertou os punhos e se equilibrou contra seu inimigo. Morgan saltou para cima e lhe deu o encontro a meio caminho. Niall sentiu seu punho conectar com
carne e osso, ouviu o satisfatório grunhido de dor enquanto Morgan se cambaleava e caía de joelhos pela força do golpe.
Mas não ficou no chão. Ficou em pé de novo, sacudindo-a sangue de seu lábio partido, e separou e fincou as pernas. Niall lhe deu o gosto com um segundo murro
direto à mandíbula. A cabeça do Morgan girou violentamente a um lado.
-Niall, detenha-se!
Ele foi consciente do movimento na periferia de seu campo visual: uma figura embelezada com pálido linho lançando-se para ele com passo instável. A confusão
evitou que golpeasse novamente, embora Morgan permanecia teimosamente em pé. Se um dos amigos do circo do muito filho de puta tinha vindo a lhe ajudar...
Uma mão agarrou seu braço. O rosto de Athena apareceu subitamente ante ele.
-Niall!
Athena. Ele piscou. Ela não podia estar aí. Ela estava na cama. Mas a cama estava vazia, edredom e lençóis revoltas mas sem manchar. A mão que agarrava seu
braço com tão frenética força era magra e feminina.
Ela estava de pé... inclinando seu peso contra ele, mas erguida sobre seus próprios dois pés. O choque reverberou através de Niall. Tinha entrado na habitação
esperando o pior, e encontrando-o... mas não tinha estado preparado para isto. Não para ver a Athena capaz de permanecer de pé, de caminhar, de participar voluntariamente
em sua própria ruína.
Encontrou seu olhar, uma estranha e fria calma reduzindo sua raiva a um apagado palpitar detrás de seus olhos.
-Quanto tempo? -perguntou com voz suave e razoável. -Quanto tempo esteve me mentindo, Athena?
Uma banda feita de cinco dedos de aço apanhou sua garganta. Ele lutou contra um braço tenso com músculos, implacável em seu alcance. Sua visão se estreitou
até enfocar somente um par de olhos cor âmbar que eram meras fendas e uma boca cheias de nus dentes brancos.
Logo o apertão se relaxou, e ele se deteve enquanto caía, escorrendo-se fora do alcance enquanto se esforçava por encher seus pulmões com precioso ar. Suas
costas se chocaram contra a parede, e deixou que esta lhe sustentasse até que pôde voltar a ver claramente.
Eles estavam de pé um ao lado do outro, não tocando-se mas quase, o bastardo e a desavergonhada e meio humana irmã de Niall. O cabelo da Athena caía meio solto
sobre seus ombros como o de uma puta barata do Cherry Creek, seus lábios machucados de beijar. Morgan...
Morgan permanecia de pé em frente dela, com a cabeça baixa e os ombros afundados como um urso preparado para lançar-se à carga. Áspero cabelo negro lhe caía
sobre os olhos, lhe dando o aspecto de um louco. Seu lábio e nariz sangravam onde Niall lhe tinha alcançado totalmente, mas ele logo que parecia consciente de suas
feridas. Um quase inaudível grunhido vibrava em sua garganta.
Ele era um animal. Pior que um animal. Niall pensou no rifle escada abaixo... o de seu pai, pendurado na parede quando Walter Munroe conheceu o Gwenyth Desbois,
e nunca voltado a usar após. Seu pai tinha abandonado o caçar por agradar por causa dessa mulher. Mas o rifle estava ainda ali.
A porta se achava perto. Tudo o que ele tinha que fazer era evitar provocar um ataque. Deu um passo atrás.
-Niall - disse Athena. Ela moveu um pé, deslizando-o pelo chão. -Não é o que você pensa. Por favor, me escute!
Ele a olhou de tal maneira que ela vacilou, cruzando os braços sobre o peito como se assim pudesse proteger do desprezo em seu olhar.
-Eu não sou mais cego que você engana - disse ele. -É uma puta, igual a sua mãe.
Ele não estava muito seguro do que aconteceu então, ou como começou. Os dentes do Morgan foram os primeiros em trocar. Começaram a alargar-se, voltando-se mais
afiados, os incisivos dotados de um fio cortante como adagas em miniatura. Logo a cara... sutilmente, lentamente, de forma tão gradual que Niall não poderia haver
dito exatamente como progresso a transformação. Seu estômago se revolveu com horror ante a visão de algo que nem Deus nem a Natureza tinham pretendido nunca que
existisse.
Pele escurecida com barba de um dia se obscureceu ainda mais, adotando a áspera textura da pelagem curta. O nariz se fundiu com o lábio superior. As orelhas
trocaram de forma, alargando-se. O corpo tomou proporções que zombavam da forma humana, empurrando e puxando as costuras da roupa de Morgan.
E, durante todo isso, os olhos logo que trocaram. Mantinham-se concentrados em Niall com todo o resolvido propósito de um faminto predador ante a visão de uma
comida fácil.
A cara de Morgan Holt já não era a de um homem. Nem a de uma besta, embora se assemelhava mais a de um lobo. Um lobo... o Homem-Lobo. Uma lenda feita para assustar
aos meninos e entreter a enfastiadas audiências. Uma criatura como a mãe da Athena. Como Athena.
O ato circense de Morgan Holt não era uma atuação absolutamente. E Niall o compreendeu tudo.
Em tais momentos... como se se achasse em metade de um crucial trato de negócios... a mente de Niall se voltou tão aguda como as presas do Homem-Lobo. Sabia
que Morgan tinha a força para fazê-lo pedaços com pouco esforço, e que por alguma razão ainda não o tinha feito assim. Viu que Athena se estava movendo, coxeando,
colocando-se a si mesma entre os dois homens como se seu miúdo corpo pudesse lhes manter separados.
-Não permitirei que façam mal um ao outro! -gritou. Sua voz tremeu, mas não vacilou. -Agora já sabe o que Morgan é. Eu rompi minha promessa ao vir aqui, mas
não te menti. Não podia me arriscar a te dizer toda a verdade.
-Por que então eu evitaria que lhe visse de novo? Evitaria que fosse com seu... o que é ele? Seu companheiro? -riu Niall. -Esperou que outro como você viesse
e te levasse longe? Será a cadela deste cão, Athena?
Morgan se lançou para frente. Athena se interpôs em seu caminho, quase caindo, e Morgan se deteve para agarrá-la. Niall notou com gelada curiosidade que cada
um dos dedos do Morgan culminavam em uma curvada unha negra, e se perguntou se ele poderia falar com língua humana.
-Ela não tem feito nada - disse Morgan com voz áspera, respondendo a sua pergunta. -Se não a deixar em paz, eu...
-Não é próprio dos homens grunhir e brigar como os porcos pelas sobras.
A voz estava um pouco sem respiração, mas Niall a teria reconhecido igual em um grito que em um sussurro. Girou-se bruscamente para a porta. Caitlin estava
de pé na entrada, com o Harry French sustentando-a por um lado e Ulysses Wakefield pelo outro. Linhas de tensão emolduravam seus olhos, mas era perfeitamente capaz
de empalar ao Niall com um olhar de puro desprezo.
-O galante cavalheiro branco, cavalgando para resgate para salvar a honra de sua dama - disse ela, olhando além dele, para o Morgan, sem piscar sequer ante
sua grotesca aparência. -Você não é melhor que ele, Morgan Holt - seus olhos se iluminaram com prazer quando se toparam com a Athena. -E você. Se olhe!
-Caitlin! -exclamou Athena. -Não deveria estar fora da cama. Eu... eu estou bastante bem. Tudo está bem.
Nada estava claramente bem, mas Niall sabia que o momento mais perigoso tinha passado.
-Isto não é seu assunto - disse, dirigindo-se ao French. -Saiam.
Athena se soltou pela metade do agarre de Morgan.
-Harry, leva-a de volta...
-E perder toda a diversão? -Caitlin se inclinou para frente, quase arrastando aos dois homens com ela. -Opino que isto deveria converter-se em um de nossas
atuações habituais, não acredita, Harry?
O ancião olhou de uma cara a outra, um estudo em si mesmo da agonia da preocupação.
-Oh, céus. Eu não sabia... Não me dava conta de que o senhor Munroe tinha chegado até que ouvimos os gritos, e Caitlin insistiu...
-Foi muito amável de sua parte vir a visitar -disse Caitlin a Niall, Sorrindo docemente. -Lamento que esteja tão zangado, senhor Munroe, mas se você insistir
em entrar em habitações privadas sem anunciar-se, expõe-se a ver coisas que não goste.
Niall abriu a boca para responder e ficou mudo ante a cintilação nos olhos azuis de Caitlin. Maldita seja, como podia ele estar pensando em seus olhos em um
momento como esse? Ela sempre tinha aprovado a atração da Athena por Holt. Bom Deus, provavelmente ela tinha insistido a Athena a abandonar seus princípios e sua
humanidade por uma noite de paixão em braços deste monstro.
-Você... você defende que minha irmã se entregue a este... -ele fez gestos com a mão em direção ao Morgan, doente até o mais fundo de seu ser. -Você sabia o
que ele era, você e seus fenômenos de circo. E permitiu que Athena se aproximasse dele...
-Acredito que averiguará você que ela tem mente própria. Athena soube o que ele era desde que lhe salvou a vida quando um cavalo fugiu na grande tenda -Caitlin
inclinou a cabeça. -Você não a queria perto do Morgan por causa de sua atuação. Mas não tinha forma de saber que não era uma atuação absolutamente. Não parece você
um homem que esteja chocado por algo que nunca viu antes.
-Não o está - disse Athena em voz baixa. Afastou-se do suporte de Morgan e permaneceu livre sobre suas instáveis pernas. -Está chocado porque Morgan e eu compartilhamos
a mesma natureza. Minha mãe... ela era uma mulher-lobo também.
Os olhos do Caitlin se abriram como pratos.
-É obvio. Isso explica tantas coisas... por que reagiu tão calmamente quando viu o Morgan mudar, e por que se sentiram atraídos um pelo outro -ela olhou ao
Niall. -Mas isso significa que você também deve ser...
-Não o sou -respondeu ele. -Minha mãe era uma mulher normal. Ela foi a primeira esposa do Walter Munroe.
-Ah. Já vejo -o olhar de Caitlin era tão sombrio que Niall teve dificuldades encontrando-a. -A mãe da Athena era sua amante, então.
Sua franqueza não deveria haver surpreso a essas alturas.
-Isso não importa. Ela é minha irmã, e eu prometi protegê-la de todo dano.
-E muito bom trabalho que fez.
Estranha vez tinha sentido Niall semelhante ira. Era como se seu crânio fosse uma caldeira superaquecida, enegrecendo sua visão com fervente vapor. Quando olhou
a Caitlin, não se atreveu a liberar sua raiva. Mas Athena, e Morgan, eram completamente outra questão.
-Eu pensei que ela necessitava amparo - disse, girando-se para sua irmã. -Olhe-a! esteve enganando a todo mundo, fingindo impotência para ganhar simpatia e
suporte para suas caridades... e para si mesma -ignorou a horrorizado protesto da Athena. -Achava que podia me fazer dançar ao som que tocasse te fazendo a inválida,
Athena? Foi esse seu jogo todo este tempo, igual a... igual a fingir que não é exatamente igual a sua mãe?
Morgan grunhiu ameaçadoramente. Caitlin saltou para frente sobre uma só perna.
-E a quem te parece você, Niall Munroe? -perguntou ela. -Você alguma vez esteve impulsionado pelo medo por sua irmã, não é certo? É ódio... ódio para qualquer
que seja diferente, ódio e culpabilidade lhe comem por dentro porque ajudou a pôr a Athena nessa cadeira. Controlá-la e chamar amparo era a única forma de te salvar
da culpabilidade e enjaular o que não compreende!
Suas palavras reverberaram no completo silêncio que seguiu. Niall ouviu a acusação uma e outra vez, odiando a Caitlin por revelar sua vergonha, enojado ante
a verdade.
E ela só sabia a metade disso.
Tinha que sair, antes de desgraçar-se ainda mais a si mesmo. Mas que lhe pendurassem se ia deixar a Athena em mãos dessa gente, não importa qual clamasse Caitlin
que era seu motivo. Ele nunca se retirou de uma briga sem algum plano para obter a vitória final.
Caitlin lhe proveu da distração que necessitava. Como se tivesse feito uso de toda sua força ao lhe censurar, deixou escapar um suave gemido e se cambaleou
para um lado. Niall avançou e a agarrou antes que alguém mais se movesse, endireitando-a e estendendo-a ao Holt. Morgan a agarrou por reflexo, deixando livre ao
Niall para agarrar a Athena.
Ela se sentiu quase como se nem tivesse ossos quando ele a elevou, e ele esteve seguro quando a teve em seus braços que suas pernas não eram as de uma mulher
sã. Eram muito magras, carentes de um completo desenvolvimento muscular. Ela poderia ser capaz de ficar de pé, inclusive coxear, mas não estava em modo algum recuperada.
Talvez seu engano não tinha sido tão atroz como ele tinha acreditado.
Niall abriu caminho a golpe de ombro entre o Harry e o miúdo e fez uma pausa na soleira, com a Athena rígida em seus braços. A presença doe Caitlin acautelava
ao Holt de ir atrás deles. Seus olhos amarelos seguiram ao Niall com um silencioso juramento de que a batalha estava longe de acabar. O mundo se estreitou até albergar
unicamente a eles dois, um comprido e vermelho túnel de ódio que lhes conectava com tanta segurança como Athena levava o sangue bestial de sua mãe.
-Escuta bem, Morgan Holt - disse Niall. -Te faço uma solene promessa. Se alguma vez voltar a tocar a minha irmã de novo, matar-te-ei.
Quase meigamente, Morgan passou a uma meio inconsciente Caitlin ao Harry French e pôs-se a andar para o Niall. Athena se debateu contra o peito do Niall, e
seus olhos se prenderam nos do Holt.
Niall não tinha explicação para o que seguiu. Mulher e besta-homem se olharam um ao outro e foi como se outro túnel lhes enlaçasse, excluindo a todos outros...
um túnel feito de luz em lugar de ódio. Athena sorriu. Alargou a mão, detendo o Holt com um gesto tão elegante como o de uma bailarina.
-Por favor, fica Morgan - disse. -Cuida de Caitlin. Ela te necessita agora.
Holt piscou lentamente, e a estranha transformação que lhe havia possuído antes começou a reverter. Quando o processo acabou, era humano novamente, embora as
sombras sob seus maçãs do rosto pareciam mais pronunciadas e a dor apertava as comissuras de sua boca. Niall esperava que a mudança tivesse sido excruciante.
Deu as costas ao Holt, a todos eles, e tirou sua irmã de dentro do inferno.




















CAPÍTULO 16

Em momentos como estes -pensou Athena- teria perfeito sentido chorar. Mas seus olhos permaneceram teimosamente secos, embora a serpenteante dor em suas pernas
fosse um constante aviso de que o pior estava ainda por vir.
Niall desceu as escadas virtualmente correndo, afastando-se cegamente do terrível perigo que só existia em sua mente. Fez uma pausa ao pé das escadas, indeciso,
e cruzou o saguão com ela em braços até a porta da biblioteca de Walter Munroe.
A estadia tinha estado fechada desde que papai tinha morrido. Estava escuro dentro, e cheirava a mofo e livros velhos. A Athena lhe fechou a garganta ante as
lembranças empilhadas nas prateleiras e em cada esquina.
Niall a depositou na poeirenta cadeira acolchoada em couro depois do escritório de papai e se afastou uns passos como se ela pudesse de algum modo lhe corromper
se a tocava mais tempo do necessário. Isso doeu também, mas todos as dores se fundiram juntos de tal modo que era difícil distinguir um de outro.
De ter sido capaz, ela se teria posto em pé e partido diretamente escada acima, de volta ao Morgan. Mas suas pernas tinham sido forçadas além de seus limites,
atrofiado-los músculos sofrendo espasmos, e não seriam capazes de levá-la nem sequer até a porta.
-Sente-se feliz agora? -perguntou Niall.
Se via esgotado, doente... não o homem vital e seguro de si mesmo que ela conhecia, a não ser um estranho mais terrível que Morgan em sua forma meio-lobo. Ele
tinha ameaçado matar ao Morgan, e Athena lhe acreditava. Tentá-lo-ia, ainda a risco de sua própria vida, se Morgan se aproximava dela novamente.
A menos que ela pudesse lhe fazer compreender.
-Não te menti a respeito de minhas pernas, Niall - começou, reunindo as palavras lentamente. -Acabo de me dar conta de que sou capaz de me ter em pé. Não acreditei
que isso fosse possível. Acreditei nos doutores, igual a você.
Ele jogou para trás a cabeça e deixou escapar uma áspera risada.
-Um milagre, é isso? Um milagre que casualmente teve lugar quando jazeu com o Morgan Holt?
Ela passou por cima o mordaz comentário.
-Sei que se sentiu responsável todos estes anos. Eu não queria que o fizesse. Esse é o porquê tratei de me construir uma vida própria, na medida do possível,
e me criar um lugar na sociedade que não dependesse de ti. E o obtive, Niall. Mas você nunca o viu como um êxito.
-É isso êxito, Athena? -perguntou ele. -Escolher a essa... gente por cima da vida que nosso pai trabalhou para construir para a família? O instinto animal em
lugar da conduta civilizada que minha mãe tentou te inculcar? O instinto de seguir aos da sua própria espécie?
-Disso é do que tem medo, não? Quando se inteirou da atuação do Morgan...
-Não imaginei o que ele era. Eu só pensei que ele te recordaria o que deveria esquecer. Esperei e rezei para que seu confinamento e suas atividades sociais
lhe fizessem abandonar a idéia de alguma vez... voltar a trocar.
-Então Caitlin tinha razão - disse ela. -Era o medo o que lhe fazia me proteger do mundo. Medo e culpabilidade - tragou saliva. -Alguma vez me quis, Niall?
Ou sempre me odiou?
-Odiava o que foi. E odiava a Gwenyth Desbois por causa do que fez a mãe.
Athena fechou os olhos.
-Sempre o suspeitei, mas... tratei de não acreditar.
Ele se reclinou contra o escritório.
-Sabe como era a vida antes que essa prostituta seduzisse ao pai... antes que lhe convencesse de que pular com um animal era melhor que permanecer fiel a sua
esposa?
-Minha mãe... Morgan não é um animal - sussurrou ela.
-Tinha a esperança de que você seria diferente. Esforcei-me por que assim fosse - sua cara tinha a cor do giz, ou da neve que caía gentilmente ao outro lado
das janelas. -Me alegrei quando resultou ferida. Alegrei-me, Athena. Não poderia ter pedido um modo melhor de... evitar que te convertesse em algo como ela. Mas
não fui o suficientemente cuidadoso.
Olhou-o fixamente, com tanta ira e piedade que nenhuma resposta pôde aflorar a seus lábios. Ele se afastou do escritório e caminhou pelo estudo, tocando desinteressadamente
o lombo de um livro e logo outro sem ver os títulos.
-Não pode combater o que é - disse ele com voz apagada. -Há muito desse animal em você, Athena. E é porque te quero que não posso deixar ceder a ele.
-Porque me quer, ou porque odiava a minha mãe? Sei que sua mãe saiu machucada, Niall. E o sinto por isso. Mas ela nunca me quis tampouco. Eu sempre senti seu
ressentimento, inclusive embora ela não deixava que nosso pai visse como se sentia. Se papai não tivesse insistido em que você e eu fôssemos tratados da mesma maneira,
não sei o que...
-Nosso pai -soprou ele. -Ele te adorava. Você sempre foi especial. depois de que a prostituta partiu, você recordava a ela. Ele te teria dado algo.
Athena se recostou contra o assento, recordando algo que Morgan havia dito não fazia muito.
-Você me invejava, Niall? Estava ciumento de que papai pudesse me querer? Ou era porque eu podia fazer coisas que nenhuma pessoa comum poderia? Queria ser como
eu?
Ele se pôs a rir.
-A mera idéia me repugna. Nunca pude compreender como nosso pai podia tocar a essa mulher. Mas pensei que você devia ser considerada inocente de seu pecado,
dado que não escolheu nascer. Agora terá que escolher - ele a encarou de novo, pálido e gasto. -Te gaba da vida que construíste, de toda a gente a que ajudaste.
Toda a sociedade te respeita. Essa vida deve ser importante para você, Athena. Agora terá que decidir quanto exatamente.
Um terrível pressentimento se derramou como ácido pelo estômago da Athena. Umas cãibras sacudiram suas coxas, e ela lutou por sufocar um grito. Não podia ser
débil, agora não.
-Orgulha-te de não ser egoísta, não? -disse ele, mofando-se como o cruel desconhecido em que se converteu. -Athena Munroe nunca pensa em si mesma. É a mais
generosa, a mais nobre dama de Denver. Tão nobre que sacrificará o que deseja pelo bem de outros -tomou assento no bordo do escritório, uma perna balançando-se como
se estivessem mantendo um bate-papo amistoso. -Tenho uma proposta para você, querida irmã. Poderia enviar ao circo longe, logo que o tempo melhore... lhes pagar
por essa única representação que fizeram e nada mais. Sua Caitlin parece capaz de caminhar, assim já não há mais necessidade de mimá-la.
-Caitlin...
-Se cale, a menos que deseje que os jogue a todos em metade da neve agora mesmo - ele estudou suas bem arrumadas unhas. -Posso lhes obrigar a ir-se e dizer
ao xerife que abusaram que nossa hospitalidade e roubado um pouco do Long Park... pode estar segura que me acreditariam no que a gente como eles concerne. Igual
à gente decente acreditaria que você foi seduzida pelos fraudes de Harry French e seus seguidores.
-Mentiria...
-Faria mais que mentir. Aprendi muitos truques dirigindo os negócios de nosso pai. Seria fácil me assegurar de que o circo nunca possa retornar a Colorado.
Eles poderiam ter que viajar uma boa distância para encontrar alojamentos durante o inverno, com o tempo sendo tão mau -Athena sacudiu a cabeça, mas ele continuou
implacavelmente. -Isso não é tudo, Athena. Eu ainda tenho o controle de suas contas bancárias. Nosso pai deixou no meu entender quando deveria permitir tomar o controle
delas. Não acredito que vás estar pronta jamais para dirigir sua própria herança... a menos que possa me provar que é capaz de viver a tranquila e razoável vida
de qualquer mulher decente.
Athena viu aonde queria chegar ele.
-Niall, não pode castigar a gente inocente por causa do que eu...
-Tantos dependem de suas caridades - prosseguiu ele, ignorando-a. -Todas essas jovens mães. Os órfãos. Os homens sem trabalho. O que fariam se suas contribuições
fossem cortadas de repente? Oh, convenceu a muitos outros de doar, mas uma palavra nos ouvidos de maridos e pais poria um fim a essa fonte de ganhos também. Você
conhece as mulheres, mas eu conheço os homens. Eles se alegrariam de não ter que suportar a carga de obrigações filantrópicas -suspirou. -E logo está seu famoso
Baile de Inverno. Faltam menos de duas semanas para isso, certo? Todo mundo estará ali, preparados para te dar o parabéns por seu excelente trabalho. Seria uma pena
que fosse incapaz de continuar com ele e alguém mais levasse todo o mérito.
O baile, que Athena tinha deixado em mãos de Cecily, esperando retornar muito antes da data de sua celebração. O baile que ela tinha planejado e se esforçou
por converter no mais magnífico evento de caridade do ano, o pináculo de seus esforços, o elemento que definiria seu lugar na sociedade de Denver.
E Niall pretendia arrebatar-lhe Ela não duvidava de que poderia. Cecily estava apaixonada por ele; se todo se reduzia a isso, não escolheria Cecily obedecer
sua vontade por cima de sua amizade com a Athena?
Uma pequena e fria mão lhe apertou o coração. Como tinha sabido Niall que tinha que ir procurar a ali? Não tinha sido por acidente. Athena tinha acreditado
que Cecily mantivesse seu segredo, mas ela tinha esperado retornar a Denver antes que Niall. Se este tinha descoberto a ausência de sua irmã e confrontado a Cecily,
em que modo a beneficiaria desafiar ao homem que queria? E ela não tinha prometido ajudar. Havia dito que faria "tudo o que possa".
Niall sabia exatamente como golpear a sua irmã. Todos esses anos, Athena lhe tinha acreditado alheio a seu trabalho, mas agora compreendia seu engano. Ou ele
ou alguém mais tinha estado observando muito cuidadosamente.
-A senhorita Hockensmith... Cecily... me alertou faz meses de que estava fazendo muito -disse Niall. -É perfeitamente natural que deva ser aliviada de sua carga
e te dê a oportunidade de... se recuperar em outra cidade, possivelmente com nossas primos em Nova Iorque. Quanto ao Holt... o que disse era sério. Se se voltar
a aproximar de você, matá-lo-ei. Inclusive as criaturas como ele podem ser eliminadas, de uma forma ou outra.
O peso completo das ameaças de Niall ancorou a Athena profundamente na cadeira, paralisando sua vontade como o acidente o tinha feito com suas pernas. Ela não
podia ver escapamento algum. Se desafiava ao Niall, perderia tudo... tudo pelo que tinha trabalhado, os recursos para suas caridades, o baile, sua posição em Denver...
e a vida do Morgan também.
-Pensa que seria feliz com o Holt - disse Niall. -Deve decidir se será mais feliz com ele, vivendo como uma vagabunda e um animal, ou entre gente civilizada
no lar de sua família, rodeada por seus amigos e iguais e capaz de ajudar aos menos afortunados a gosto de seu coração.
Ele se manteve silencioso depois disso. Athena podia ouvir o ruído de um relógio marcando os minutos em algum lugar da casa, o rangido de passos escada acima,
vozes sussurradas no hall, mas a do Morgan não se achava entre elas.
Deixou escapar um estremecido suspiro.
-Necessito tempo... tempo para pensar sobre o que disse -sussurrou. -Niall, se tão somente escutasse...
-Já tive suficiente disso. Mentiu-me, Athena, ao prometer ficar em Denver se o circo vinha ao rancho. Não posso voltar a confiar em você. Se espera conservar
algo da vida que criou em Denver... se se preocupar sinceramente o bem-estar de seus amigos... te submeterá para mim e fará exatamente o que te diga. Qualquer separação...
-se encolheu de ombros. -Posso impor o castigo em qualquer momento.
O que significava que ela viveria com um impedimento mais seguro que o que tinha imobilizado suas pernas durante tantos anos. Ele dirigiria sua vida completamente,
e ela não tinha modo de lhe parar. Inclusive se encontrasse o valor para mudar de novo, seria a um preço muito alto.
-Agora pode te fazer a mártir com verdadeira sinceridade -disse ele, cravando a faca mais fundo. -Seu malvado meio-irmão te manterá prisioneira no escuro castelo.
Mas ainda terá tudo o que sempre teve, Athena... e estará a salvo.
Ficava determinação suficiente para sentar-se muito direita na cadeira e lhe olhar diretamente aos olhos.
-Me deixe me assegurar de que nos compreendemos um ao outro. Em troca de minha... cooperação... você permitirá que o circo fique aqui durante o inverno, sem
ser incomodado, só para partir quando o passo esteja aberto na primavera. Não interferirá, em modo algum, com minhas caridades, e continuará provendo os recursos
que eu requeira para as manter adequadamente. E deixará ao Morgan em paz.
-Se nunca contatar com ele e se mantém afastado.
Por que era que a traição do Niall doía mais agudamente nesse caso pessoal, em lugar de na questão das caridades e os alojamentos do circo? Era ela realmente
tão egoísta como ele implicava, ao considerar sua felicidade... esta frágil e nova felicidade que apenas se atrevia a imaginar... por cima do bem-estar de outros?
Mas ela tinha suposto muito sem consultar com o Morgan. Possivelmente ele não consideraria isso como um sacrifício absolutamente. Ela tinha decidido, em um
momento de paixão, que amava ao Morgan Holt. Mas ele, e seus mais profundos desejos, permaneciam sendo um mistério.
Niall assumia que ela desejava uma vida com o Morgan. Uma vida. O que significava isso? O que diria Morgan se ela propusesse semelhante coisa, saída de um nada,
sem um só plano sensato? Teria o futuro que ela vislumbrava algo que ver com o que ele via para si mesmo?
Teria a valentia de perguntar-lhe alguma vez? Ou ele a ela?
-Concordo - disse, deixando escapar as palavras de seu interior antes de que pudesse considerar o dano que estas faziam. -Aceito suas condições.
-Sabia que não tinha perdido todo seu sentido comum, Athena, ou seu orgulho -Niall vacilou. -Holt... ele...?
-Ele não me arruinou, Niall. Mas, importaria se o tivesse feito, porque não estarei me reservando para ninguém mais, ou sim?
Ele não tinha resposta para sua amargura. Agora que tinha ganho, parecia quase envergonhado. Mas o momento passou. Levantou-se do escritório.
-Farei que uma das donzelas se ocupe de suas coisas. Dormirá em minha habitação esta noite, e eu ficarei na salinha de receber. Voltaremos para Denver logo
que seja possível.
Ele abandonou a estadia por um momento, indubitavelmente para assegurar-se de que o caminho estava espaçoso, e retornou para elevá-la em braços novamente. Ela
se estendeu passivamente em seus braços enquanto ele a levava de volta escada acima e a deixava na singela e masculina cama de seu dormitório, fechando com chave
a porta ao sair.
O dia transcorreu lentamente. Uma amortecida neve caía fora, criando um manto branco que projetava irrealidade sobre tudo o que tinha acontecido. Athena tentou
não ouvir os sons da casa, ou escutar procurando a voz do Morgan. Ninguém foi vê-la salvo uma donzela, com suas bolsas de viagem, lençóis limpos e água. A donzela
a ajudou a vestir... um tardio intento de restaurar sua dignidade... e logo Athena se sentou na singela cadeira de carvalho em uma esquina e deixou sua mente em
branco.
Caiu a noite. A donzela lhe trouxe o jantar em uma bandeja, e ela a ignorou. Depois das dez, ouviu o inconfundível lamento do uivo de um lobo dentro dos limites
do rancho. Contraiu-lhe o coração.
Morgan. Estava tentando falar com ela? Graças ao céu que não tinha ido vê-la. Possivelmente ela tinha estado no certo. Possivelmente ele se sentia aliviado
pela separação, ou os outros sabiamente lhe tinham convencido de evitar mais confrontações.
Desejou ter a habilidade de uivar em resposta com a eloquência da poderosa voz dele.
Fique longe, Morgan. Por favor, fique longe.
Ficou meio adormecida. Seu queixo ricocheteou contra seu peito e despertou com um sobressalto. Havia alguém fora da janela. Seus sentidos lhe diziam que era
mais de meia-noite.
Sabendo o que encontraria, apertou os dentes e plantou os pés no chão. A dor a aguilhoou do calcanhar ao joelho. Ela coxeou até a janela e apartou as cortinas.
Um lobo negro permanecia enterrado até as curvas na neve, olhando para a janela. Fôlego congelado se elevava em uma nuvem de seu focinho. Tinha-o visto em forma
de lobo duas vezes antes... quando ele a tinha salvado, e em seu sonho... mas agora compreendia o alcance completo de sua magnificência. Nenhum lobo comum seria
jamais tão grande, com a pelagem tão espessa, ou os olhos tão brilhantes. O amor se fez um nó em seu peito, debatendo-se por liberar-se.
Ele correu para a parede. Athena elevou a metade inferior da janela. Perdeu o equilíbrio, agarrou-se ao móvel mais próximo, e avançou de volta para a cadeira.
Inclusive se suas pernas tivessem estado bem e fortes, não a haveriam sustentado agora.
Morgan não fez ruído algum enquanto escalava a parede. Uma silhueta obscureceu o cinza quadro de luz de lua. Athena sentiu um estremecimento de lembrança, como
se estivesse revivendo o passado uma segunda vez... a noite que Morgan tinha ido a sua habitação na mansão de Denver. Uma vez mais, ele tinha encontrado o modo de
chegar até ela apesar de todos os obstáculos.
E ela não tinha nada que lhe dar.
A janela rangeu enquanto se abria mais amplamente, o justo para admitir a um homem. A escura cabeça humana de Morgan apareceu na habitação, emoldurada por sua
juba de cabelo úmido. Ele se balançou sobre o vão e saltou ao chão.
A Athena tomou um instante compreender que estava nu. Ele se endireitou. Ela olhou fixamente. Desejou ter bebido algo da água que havia trazido a donzela, porque
sua boca estava seca como algodão.
Havia-o visto nu antes, na grande tenda, mas não tão de perto. Cada proporção, cada linha de seu corpo era perfeita... nem muito larga ou musculosa, nem muito
ligeira, a não ser idealmente adequada para uma vida de correr e caçar, saltar e adaptar-se ao agreste em toda sua dureza e beleza. Compará-lo com uma estátua era
muito inadequado. Seu peito estava ligeiramente polvilhado com pêlo escuro que descia em uma flecha até a base de seu estômago. Ela não se atrevia a olhar ali. Ainda.
-Como... como está Caitlin? -perguntou.
-Descansando - ele sacudiu a cabeça, para desprender-se de todas as distrações externas. -Te machucou Niall?
Em sua voz havia uma promessa do que faria se ela respondia afirmativamente.
-É meu irmão - sussurrou. -Ele faz... o que pensa que é melhor para mim.
-Ainda segue acreditando isso?
Seu limpo e masculino aroma, beijado pela neve, substituiu todo o ar da habitação. Ela podia ouvir o som de seu pulso, justo sob a pele na base de seu pescoço,
onde este encontrava seus amplos ombros. E mais abaixo... além da esbelta firmeza de sua cintura e quadris... ele estava vibrantemente vivo. Vivo e desejando-a.
-Niall é humano - disse ela, escutando o som de sua própria voz como se esta pertencesse a outra mulher. -Como poderia compreender?
-Compreender o que? Que não te pode pôr um colar como a um cão? Ou que ele não é seu dono?
Seu desprezo bem poderia ter estado dirigido a ela. Ele esperava que lhe desse as costas ao mundo que sempre tinha conhecido, fingindo que não importava. Nisso
ela tinha falhado. Falhado às expectativas dele, a si mesma, e a ele.
Teria preferido qualquer outra maneira, qualquer outro tempo e lugar, para dizer-lhe. Mas não havia escapamento. Ele ficaria de pé aí, nu ante seus olhos, seu
corpo desenvolvido como sua língua não o era, e a ouviria fazer sua escolha.
Não sinta nada. Desconecta seus sentidos. Finge que não tem necessidade, nem desejo, nem coração.
-Morgan -disse. -Vou com o Niall, retornar a Denver. Nunca mais voltarei a ver-te.
Morgan ouviu as palavras. Estas foram claras, precisas, desapaixonadas, como se Athena estivesse recitando uma lição do McGuffey's Reader que Morgan recordava
de sua infância.
Ele ouviu as palavras, mas estas não tinham sentido. Quão único o tinha era o clamor de seu corpo, o quente desejo pela Athena, a necessidade de acabar o que
tinha começado em sua habitação. Terminá-lo completamente, e ao demônio com o Niall Munroe e todos os escrúpulos da sociedade humana.
Ela estava sentada aí, tão formal com sua camisola abotoada até o pescoço e as mãos no regaço. Ele poderia ter sido um mendigo ante uma rainha, como uma vez
tinha pensado das mulheres de sociedade que borboleteavam em torno de sua cadeira.
Mas ela não tinha sido uma rainha quando ele a tinha acariciado. Ela tinha estado indefesa de necessidade, preparada para entregar tudo... sim, inclusive a
virgindade que sua gente valorizava tão elevadamente. Se ele tivesse escolhido tomá-la. Mas não se decidiu, debatendo-se entre seu desejo e a liberdade, entre a
vida que desejava e as ataduras que a entrega dela enrolaria em torno de seu pescoço.
Se ele escutava a seu corpo agora, a decisão era simples. Se Athena fazia um só gesto de bem-vinda, dava-lhe um doce olhar de desejo...
Vou com o Niall - havia dito ela. -Nunca mais voltarei a ver-te.
Estúpidas palavras. Carentes de significado, nascidas do habitual medo a seu irmão, do hábito da obediência. E medo, também, dele e do que ele a tinha feito
converter-se.
Muito bem. Ele decidiria, aí e agora. Cada instante que ambos tinham passado juntos, cada lembrança dela quando tinham estado separados, conduzia a isso.
Ele alargou uma mão para ela.
-Vêem - disse. -Sairemos agora. Esta noite. Seu irmão nunca nos encontrará.
Ela contemplou sua mão.
-O que?
-Afasta seus medos - ele deu um passo para ela. -Não é humana. Curará rapidamente agora que sabe que suas feridas estão em sua mente e não em seu corpo. Logo
será capaz de correr. E, antes disso... agora... pode mudar.
Nu terror cruzou seu rosto.
-Mudar... eu... não, Morgan. Passou muito tempo...
-Para -ele a olhou desde sua superior altura, insistindo-a a sentir todo o valor que ele sabia que ela tinha. -Deixa de acreditar no que não pode fazer. Acredita
no que é. Tire as roupas e vêem comigo.
Tão rapidamente como tinha aparecido, seu medo se desvaneceu.
-Aonde, Morgan?
Sua pergunta enviou gelo escorrendo-se por sua espinha dorsal. Tinha-lhe pedido que se fosse com ele. Que se convertesse... sim, que se convertesse em sua
companheira, que permanecesse com ele até a morte. Tinha-lhe devotado a outra pessoa a coisa que tinha pensado estava morta fazia já muito tempo dentro de si. E
ela perguntava "aonde".
-Comigo - disse ele. -Aos bosques. As montanhas. Correremos, você e eu, como o fizemos em sonhos. Caçaremos e respiraremos ar limpo e beberemos água aonde nunca
chegou o metal do homem. Será livre, Athena.
-Livre? -ela deixou cair a cabeça, e seus ombros se elevaram e logo caíram com um estremecimento. -O que é a liberdade?
Ele ouviu as lágrimas em sua voz e cruzou o espaço entre eles, alargou a mão para ela, segurou seu ombro e o sentiu esticar-se sob seu gentil apertão.
-Você criou sua própria jaula e deixa que seu irmão faça as barras muito fortes para rompê-los - disse. -Mas eu posso rompê-las. Eu te ensinarei tudo o que
precisa saber. Proteger-te-ei até que possa te proteger por si mesma. Nunca partirei de seu lado.
Levantou-lhe o queixo. As lágrimas penduravam como estrelas em suas bochechas. Ele se inclinou e as beijou, um lado e logo o outro, saboreando o sal e a Athena.
Logo se abaixou, tomou sua cara entre suas mãos e beijou seus lábios.
Ela respondeu como o tinha feito em sua habitação: apaixonadamente, com um novo fio de violência que lhe excitou e quase lhe assustou. Era a loba nela, revivendo
com seu toque, esperando por uma palavra final para sair e convertê-la em tudo o que estava destinada a ser. Seus dedos se prenderam no cabelo dele, puxando e machucando,
apertando-o contra ela.
Logo lhe empurrou para afastá-lo e deixou seus braços pendurar imóveis.
-Não posso ir contigo.
Ele a ouviu esta vez, mas se negou a acreditá-la.
-Athena...
-Não posso, Morgan. Não posso viver da forma que você deseja, em meio da natureza, separada da gente e a sociedade - não havia lágrimas agora, nem paixão. -Eu
não sou como você. Acostumei-me a minha vida. Tenho responsabilidades. Intento ajudar às pessoas, e se eu me desvanecesse... quem lhes ajudaria em meu lugar?
Ele deu um passo atrás, procurando em seus olhos. A loba tinha desaparecido. Esta era a altiva e fechada mulher que ele tinha conhecido aquela primeira vez
no solar do circo, a que tinha sido tão escrupulosamente justa e educada com seus inferiores. Com ele.
-Você acredita que eles lhe precisam - disse ele, cruel em sua ira. -Necessitam seu dinheiro. Quantos outros em sua cidade têm dinheiro para dar?
-Não o compreende. Não todo mundo é tão generoso...
-Tão bom e generoso como você?
-Não - ela se separou dele, voltando a cara. -Mas eu tenho o tempo e a inclinação para trabalhar. Tenho... uma posição, um rol que outros aceitam. Outros que
poderiam não dar se eu não estivesse aí para pedir.
-Inclusive embora já não seja uma inválida?
-Sigo sendo a mesma por dentro. As coisas que me importavam... antes... seguem importando agora. Meus amigos são ainda meus amigos.
-E Caitlin? Harry, Ulysses? Eles não o são?
Ela contemplou fixamente a parede ao outro lado da habitação.
-Quero-lhes. Eles... mas eles são parte de um mundo diferente, como eu sou parte do meu. E o teu é diferente do de ambos. Muito diferente, Morgan. Não pode
ver que... simplesmente somos... muito diferentes?
-Essa não é a razão - disse ele. Agarrou o respaldo da cadeira e lhe deu a volta, forçando-a a ela a lhe olhar. -Sinto seu medo. Não deseja abandonar a elegante
casa e as finas roupas, e às pessoas que lambe suas mandíbulas como cachorrinhos famintos, porque isso é tudo o que sabe como ser. Você gosta do poder de dar às
pessoas o que necessitam quando não têm nada. Fazer que lhe implorem...
-Não. Eu nunca tenho feito que ninguém me implore, por nada.
-Não? O que é o que essa gente pobre vê quando lhe olham, com suas finas maneiras, e sabendo que você pode lhes dar ou lhes tirar o que eles necessitam? Odeiam-lhe
enquanto fingem te oferecer suas gargantas? Todas essas damas elegantes que lhe seguem... o que lhes dá, Athena? Uma razão para acreditar que são pessoas boas e
nobres porque ajudam a pobre garota inválida a assistir a aqueles a quem alguma vez vê?
A evidente dor em seus olhos lhe deteve em seco. Ele sabia que a tinha machucado, que se tinha aproximado muito a uma verdade que logo que podia decifrar ele
mesmo.
-Athena - gemeu. -Não quero... maldita seja, me escute. Tem uma oportunidade de ser forte, de não necessitar a ninguém -ele se debateu por pôr em palavras seus
confusos pensamentos. -Quando não necessita, pode dar livremente. Quando não te importa o que outros pensem de você, pode criar seu próprio lugar. Seu verdadeiro
lugar. Não o compreende?
Olhou-o fixamente, e ele pensou que via os começos de compreensão antes de que ela o deixasse fora novamente.
-Conhece você seu próprio lugar, Morgan? -disse. -Sabe o que deseja da vida? Pensou alguma vez além da próxima hora? -ela sorriu com cansada resignação. -Você
pode cortar todos seus laços. Eu não. Mas... -fechou os olhos. -Você... você poderia vir comigo.
Ele ficou muito quieto.
-Contigo?
-A Denver. Não imediatamente. Depois... depois de que eu tenha tido tempo de fazer compreender ao Niall, quando ele tenha superado sua ira.
Ela não entrou em detalhes. Não tinha que fazê-lo. Ele viu o que ela queria dizer com essas poucas palavras, e o terror se abriu caminho a golpes desde seu
ventre até alagar sua boca e seu cérebro.
-Ir contigo? -disse ele em um eco de mofa. -Me unir a você em sua jaula? Viver em sua magnífica casa e vestir suas elegantes roupas e me converter em um cão
mulherengo para suas damas?
-Não é isso o que você me pediu que fizesse... abandonar tudo?
Não lhe olhou. Ele se sentia frio, amargamente frio, embora o vento invernal não deveria lhe haver afetado no mais mínimo. Athena estava sugando todo o calor
de seu corpo, todas as tênues esperanças de seu coração, todos os estúpidos sonhos de futuro que ele nunca tinha considerado.
Igual a antes. Igual a passava sempre e sempre passaria.
Ele retrocedeu para a janela.
-Eu não te peço nada - disse. -Não quero nada de você, nem de ninguém.
Ela não tratou de detê-lo enquanto ele alcançava a janela e preparava seus músculos para saltar. A ansiedade de seu corpo se afogou no pesar, a raiva e o estupor;
ele a olhava e podia ver uma desconhecida, uma inimizade, não à mulher a quem tinha pedido que se convertesse na companheira de sua vida.
Que lhe olhasse uma última vez. Que soubesse o que rechaçou. Que sentisse o que ele sentia.
-Vá - disse ele. -Vá com seu irmão. Paralise a si mesma de novo, e reza para que todas suas elegantes coisas te façam esquecer o que atirou ao lixo.
Os olhos dela encontraram os seus, úmidos e sem expressão. Ele saltou, balançou-se sobre o vão da janela, e se deixou cair por esta.
A neve amorteceu sua aterrissagem, mas lhe deu as boas vindas ao forte golpe que estremeceu seus ossos e sacudiu o desespero de sua cabeça. Logo que fazendo
uma pausa, se transformou e começou a correr tão rápido como lhe era possível, longe da habitação, do rancho e da Athena.

Foi estranho que retornasse. Obrigou-se a ir até o estábulo para vestir-se justo antes da alvorada, consciente de que tinha começado a nevar outra vez e se
estava forjando uma tormenta para mais tarde esse dia. Uma tormenta que apanharia a qualquer... qualquer humano... que desejasse abandonar as montanhas.
Um lobo poderia partir quando lhe desejasse muito. Isso foi o que manteve ao Morgan circundando a casa como um cão espancado, até que Harry saiu por uma das
portas laterais pouco depois do amanhecer e exalou uma baforada de fumaça no espectador ar.
Harry estava procurando algo. A alguém. Morgan sabia o que ele esperava ver, e o que os outros deviam pensar. Assegurar-se-ia de que soubessem quão equivocados
estavam.
Morgan se transformou no estábulo, colocou suas roupas e caminhou para o alpendre. Harry se surpreendeu ligeiramente quando viu o Morgan, e logo seus ombros
se afundaram.
-Parece que vai nevar - comentou enquanto Morgan se unia a ele. -Mau tempo. Sinto-o nos ossos.
-Uma tormenta - Morgan insistiu a seu cabelo a aplanar-se contra seu pescoço. -Não tem que preocupar-se. Estão a salvo aqui.
-Ficamos?
-Athena não deixaria que Munroe lhes jogasse -disse ele com amargura. -Ela se preocupa muito por... ajudar.
Harry lhe olhou.
-Morgan, sinto muito. Desejaria poder ter feito algo para intervir. Todos o fazemos. soubemos... quase desde o começo o que sentia a garota por você, e você
por ela -ele tossiu detrás de sua mão. -Sou um velho tolo e bisbilhoteiro. Eu a fiz vir aqui, com minhas cartas, quando deveria me haver mantido afastado de seus
assuntos. Mas tudo o que desejamos... tudo o que eu desejo é sua felicidade. A tua e a da Athena - piscou repetidas vezes. -Te conheço bastante bem... assumo saber...
que o que deseja fazer agora é sair correndo. Permanentemente. Mas... - tomou uma larga inspiração e encarou ao Morgan. -Peço que confie em mim, Morgan. Confia em
mim, como o faria em sua própria gente. Você é como um filho para mim, inclusive embora... embora eu seja um pobre pretenso pai. Inclusive assim, como pai te aconselho
que espere. Seja paciente. Fica um pouquinho mais. Qualquer obstáculo que possa achar-se ante você agora, pode ser superado.
Morgan tragou saliva e olhou para as montanhas. Harry estendeu uma mão, vacilou, e a deixou repousar sobre o ombro do Morgan. Sentia-se curioso, esse toque,
depois do da Athena. Muito próximo, muito íntimo, como o de um parente. Família.
O toque de um pai.
-Não queira ser meu pai - disse, ficando absolutamente quieto, assustado de seu próprio terror. -Sabe o que aconteceu a meu verdadeiro pai, Harry? -elevou as
mãos. -Eu lhe matei. Assassinei-lhe com estas duas mãos.















CAPÍTULO 17

-Não acredito - disse Caitlin - Nem por um momento.
Ulysses a olhou com gravidade e encontrou o olhar doe Harry. Os três se achavam sentados no quarto de Caitlin enquanto a tormenta bramava fora das sólidas paredes
da casa no que era já seu terceiro dia. O vento uivava quase tão ferozmente como Morgan o tinha feito cada noite da chegada do Niall. Ninguém tinha visto o Morgan
depois da breve conversa que Harry tinha mantido com ele, mas ele não se foi. Os uivos assim o provavam.
Caitlin sabia que Harry tinha esperado para contar a ela e ao Ulysses a terrível revelação dE Morgan, vacilando a respeito de quanto compartilhar. Ao final,
tinha sido incapaz de guardá-la para si mesmo. Não estava em sua natureza sofrer sozinho, ou deixar que outros sofressem do mesmo modo. Seu coração era muito grande
para ocultar-se em uma esquina.
Todos os membros da trupe se estiveram ocultando, de uma forma ou outra, enquanto Niall permanecia no Long Park. Ele lhes evitava, e Athena ficava em seu quarto...
o quarto de Niall, que lhe tinha sido dada depois do incidente com o Morgan... mas a atmosfera se sentia tão venenosa como o cospe fumaças de uma dessas horrendas
fundições de Denver. Ulysses se tinha informado, escutando as faxineiras que logo que notavam sua existência, que Athena ia retornar a Denver com o Niall logo que
o tempo o permitisse. Ela não ia voltar a ver o Morgan nunca mais, e ia manter-se afastada da gente do circo.
Um trato com o diabo, pensou Caitlin. Niall lhe tinha exigido obediência em troca da segurança do circo... e possivelmente do homem que amava. Que ela amava
ao Morgan, Caitlin não tinha nenhuma dúvida. Igual a sabia que Morgan não poderia viver sem ela.
-Não - repetiu com firmeza. -Morgan não poderia ter matado a seu próprio pai. Não disse nada mais, Harry?
A cara do ancião decaiu como se este tivesse perdido vários quilogramas em poucos dias.
-Não. Deixou-me com isso e se afastou. Como se... quisesse que eu pensasse o pior.
-Ele vive sob o peso de uma carga intolerável - disse Ulysses em voz baixa. -O suficientemente intolerável para lhe fazer evitar a companhia de outra gente...
como você mesma muitas vezes notou, Vagalume. Ele castiga a si mesmo.
-Por assassinato? -soprou Caitlin. -Não. Deve haver muito mais nessa história. Falou contigo, Uly? Nos deve dizer isso.
Ulysses unicamente desviou a vista, evitando a pergunta. Caitlin desejava lhe sacudir.
-Está ocultando algo, sei. Mas também sei que Morgan não é um assassino. Eu o sentiria se fosse.
-Há vezes em que os sentimentos são inadequados.
-E às vezes são tudo o que temos -disse Harry. -Se ele teve algo que ver com a morte de seu pai, deve ter havido uma muito boa razão.
-Estou de acordo -disse Uly. -Mas me encontro perdido quanto a como lhe ajudar.
-A ajuda que ele mais precisa é com a Athena... e Niall - disse Caitlin.
-Interferir agora poderia piorar as coisas - disse Uly. -Morgan deve reconhecer o perigo de enfrentar ao Munroe diretamente.
-E você, Vagalume? -perguntou Harry gentilmente.
Ela sabia o que ele estava perguntando, mas escolheu fingir o contrário.
-Eu sei que deve haver uma maneira de desbaratar os planos do Niall -disse. -Terá que distraí-lo até que Athena encontre um meio de ser mais esperta que ele.
Com um pouco de fôlego...
-Eu não gosto da expressão de sua cara, Vagalume - disse Harry.
-Niall é quase tão perigoso como Morgan - acautelou Ulysses. -Você mesma o viu.
-E você me alertou repetidamente que me cuide, como uma velha avó -disse Caitlin, rindo. -Acredita que me deprimi seriamente na habitação da Athena?
Ulysses e Harry intercambiaram uns olhares. Harry assumiu uma severa expressão que não encaixava para nada com seus alegres rasgos de São Nicolau.
-Estamos aqui contra a vontade do Munroe - disse. -Athena nunca permitiria que sofrêssemos dano algum, mas se ela escolhe desafiar a seu irmão, ele nos jogaria
no ato -encontrou os olhos de Caitlin. -Não permitirei que nos expulsem, Vagalume, enquanto sejamos capazes de sair por nossa própria vontade. Nem te permitirei
te pôr a você mesma em risco, já seja em corpo ou em alma. Darei ordens aos membros da trupe para que se preparem para partir logo que passe a tormenta.
-Não fala a sério, Harry. É quase inverno já. Não podemos viajar agora... e você quer ver a Athena e Morgan juntos tanto como eu.
-Sim. Mas fui testemunha das consequências de nossa interferência, e sinto... -ele piscou, dando a impressão de um ligeiramente desconcertado mocho. -Sinto
nos ossos que devemos ir.
-É por causa do que Morgan disse?
-Tenho medo do que fará se o pressionam muito - admitiu Harry. -Tentarei lhe convencer de que venha conosco. Logo, quando todo se acalmar de novo, pode voltar.
Caitlin estudou ao Harry com crescente agitação. Nunca o havia visto tão sério, nem tão decidido. Seriamente acreditava que ela ficaria a si mesmo, ou a trupe,
em um aperto do que não pudesse sair?
-Está equivocado, Harry - disse. -Nada bom sairá de fugir agora.
-Já tomei minha decisão - ele ficou em pé e pôs-se a andar para a porta. -Direi aos outros que iniciem os preparativos, e nos partiremos ao primeiro signo de
bom tempo.
Quando Harry se foi, Caitlin olhou ao Ulysses.
-Você está de acordo com ele, não?
-Eu faria qualquer sacrifício pessoal pelo bem de Morgan - disse ele. -Ajudaria à senhorita Munroe se fosse capaz. Mas é meu considerado julgamento que o bem-estar
da trupe deve ter precedência sobre o da Athena e Morgan. Eles devem fazer suas próprias escolhas - fez uma pausa. -O sinto, Caitlin.
Ela via que discutir com ele era tão inútil como o teria sido com o Harry. Os homens podiam ser tão teimosos uma vez que lhes colocava uma idéia na cabeça,
não importa quão errônea fosse esta... ela tinha pensado que Harry seguiria seu coração mais que a maioria, mas inclusive ele caía detento da idéia de que o dinheiro
significava poder e que as mulheres tinham que ser protegidas de suas próprias tolas noções.
Estendeu-se na cama, silenciosamente jogando fumaça, durante uma boa hora depois de que Ulysses se partiu. A trupe não devia partir até que o problema com a
Athena e Morgan fosse resolvido. Ela se tinha tomado muitas moléstias para juntá-los e que a pendurassem se deixava que Niall Munroe arruinasse seus planos.
A tormenta passaria em qualquer momento, mas fariam falta muitos dias para que a trupe estivesse pronta para ficar em marcha. Inclusive com bom tempo, a neve
impediria o progresso e faria o passo difícil de atravessar. Isso lhe dava um pouco mais de tempo.
Se Harry e Ulysses temiam que alguma precipitada ação por sua parte... bom, ela se asseguraria muito bem de não lhes decepcionar.

-Acaba de chegar uma carta, senhorita Hockensmith - disse Parton, apresentando o papel em uma bandeja de prata com uma pequena reverência. -Está marcada como
urgente.
Cecily fez uma pausa para aceitar o envelope, escutando para assegurar-se que as damas reunidas na salinha de receber estavam ainda entretidas em sua conversa.
Quando Parton partiu para procurar mais lanches para suas influentes convidadas, ela examinou o endereço do remetente com um ansioso sorriso.
Levava o selo de Yankee Gulch, a única cidade de importância mais próxima ao rancho de Niall. Sua esperança de que a carta pudesse ser do Niall se viu prontamente
extinta. A escrita definitivamente não era a dele, nem pertencia tampouco a Athena.
Niall tinha estado longe muitos dias, indubitavelmente devido ao mau tempo que cobria as montanhas como um manto. Ela se tinha alegrado pela pausa que isso
lhe supunha. Com o Baile de Inverno a tão somente uns dias, nada poderia interferir com o êxito social que ela estava a ponto de obter.
Franziu o cenho ante o envelope e lhe deu a volta. Não era nem do Niall nem da Athena...
Começou a ler, enrugando o nariz ante o aroma altamente picante do papel, e quase o deixou cair.

Prometeu me ajudar, vinha sem saudação, se eu te ajudava a manter ao Munroe e a nossa Caitlin separados. Dava-te informação que você iria usar para controlar
à garota e influenciar seu amado. Mas agora deve saber que ele está aqui, com o Caitlin, como Athena está com meu lobo.

Cecily sustentou a carta com a ponta dos dedos, desejando poder queimá-la imediatamente. Não tinha que ler o nome rabiscado ao final da carta para saber quem
a tinha enviado.
Tamar. Tamar, essa horrível mulher-serpente com suas veladas ameaças e promessas, de quem Cecily tinha esperado não voltar a saber jamais. Ela não havia sequer
suposto que a cigana soubesse ler, muito menos escrever.

Seu irmão tenta fazer que Athena retorne a Denver, continuava a carta, mas Morgan permanece sob seu feitiço. Ela é agora capaz de estar de pé e caminhar, o
que elimina um obstáculo entre eles. Morgan poderia tentar segui-la. Falei com o Harry French e lhe convenci que nossa Caitlin ficará a em perigo ao ir atrás de
seu irmão e tratar de meter-se nos assuntos de Athena. Ele concordou que devemos abandonar este lugar. Partiremos assim que o tempo permita. Mas se Morgan não vem
conosco, você deve se assegurar de que fazer que Athena nunca deseje voltar a lhe ver de novo.
Eu sei que Morgan foi enviado a prisão pelo crime de matar a seu próprio pai. Deve averiguar a verdade nesse assunto rapidamente, para que quando Athena retorne
possa lhe dizer que classe de homem é seu amado. Quando ela se volte contra ele, ele virá para mim. Não falhe.

Cecily espremeu o papel em seu punho, sua mente correndo a toda velocidade com a informação que Tamar tinha irradiado. Assim Niall tinha visto Caitlin, não?
E a garota andava ainda atrás dele, apesar de sua suposta ferida.
E Morgan Holt era um sentenciado. Um parricida. Cecily sorriu com satisfação. Não lhe surpreendia, porque isso justificava completamente seu absoluto desprezo
pelo homem e suas cortes. Um crime dessa classe não podia ser perdoado facilmente. Inclusive Athena tremeria e se estremeceria ante semelhante conhecimento, especialmente
quando ela tinha adorado tanto a seu próprio pai.
E era capaz de caminhar! O sorriso de Cecily se azedou. Tinha-lhe passado pela cabeça, uma ou duas vezes, que a invalidez de Athena poderia ser um plano para
ganhar a simpatia da sociedade e apoio para suas causas. Certamente, muitas das damas não teriam sido tão generosas se ela não fosse inválida, e fosse, portanto,
merecedora de piedade em si mesma.
Havia o "amor" transformado a Athena, ou havia ela decidido que desejava algo mais que o que a tinha contentado no passado? Niall não estaria tão malditamente
protetor de sua irmã se esta pudesse caminhar. Mas a garota poderia provar ser muito mais problemática e difícil de influenciar. Poderia inclusive brigar pela posição
que Cecily lhe estava roubando.
Cecily colocou a carta em uma dobra de sua saia e caminhou lentamente para a salinha de receber. Tamar clamava que Cecily devia a ela, mas Cecily não reconhecia
tal dívida. De fato, se assim o escolhia, podia simplesmente ignorar a informação sobre o Morgan e permitir que as coisas tomassem o curso que o destino decretasse.
Se essa estúpida menina caía em mãos de um assassino sentenciado e se fugia com ele, por que ia isso a ser de consequência para ela enquanto tivesse a devoção do
Niall e ele não suspeitasse de nenhuma intervenção pessoal por sua parte? Por que deveria fazê-lo ele? Athena estaria fora do caminho de uma vez por todas, arruinada
em sociedade.
Por outra parte, se Cecily confirmasse a informação de Tamar e a remetesse ao Niall, ele teria inclusive mais razão para lhe estar agradecido por lhe alertar.
Sim. Cecily se deteve na entrada da salinha, escutando as generosas expressões de antecipação da senhora Merriwether ante o baile por vir. Ela teria grande
deleite pessoal em desmascarar ao Morgan Holt ante o Niall, Athena, e o mundo. Isso poria fim a seus desdenhosos olhares e sua grosseira falta de respeito por quem
era melhor que ele. Tudo o que ela tinha que fazer era levar a cabo umas quantas discretas averiguações... seu pai certamente conhecia às pessoas corretas, agora
que estava associado com o Niall... e ela podia inteirar-se de tudo o que fosse necessário para destroçar as infantis esperanças de romance de Athena.
Alisando as saias, Cecily entrou na salinha e aceitou graciosamente a comemoração das mais novas e devotas membros de sua corte.

Quatro dias depois da desastrosa chegada de Niall, a neve deixou de cair. Essa mesma manhã, justo depois da alvorada, ele colocou a Athena na pesada carruagem
do rancho e ordenou ao condutor que lhes levasse a Denver.
Athena não tinha nada que lhe dizer ao Niall, e ele manteve o mesmo sério silêncio. Ela olhava pela janela e procurava o Morgan, atormentando-se a si mesma
com o pensamento de que nunca lhe veria de novo. Uma vez, perto do bordo do parque, ouviu o uivo de um lobo. Isso foi tudo.
Tinha sabido que Morgan recusaria seu convite de retornar com ela. Tinha sabido que não arriscava nada ao perguntar-lhe que não havia possibilidade de romper
seu trato com o Niall.
Poderia lhe haver contado todas suas razões para declinar sua oferta de levá-la com ele. Mas quando ele tinha feito suas acusações, o orgulho a tinha deixado
muda. Que acreditasse semelhantes coisas sobre ela. Que voltasse para sua vida selvagem e sua liberdade.
Ela não permitiria que Niall a visse chorar.
O passo através das montanhas era difícil por causa da profundidade da neve, e se detiveram para trocar de cavalos e passar a noite em um hotel no Golden. Quando
chegaram a Denver a tarde do seguinte dia, Athena se tinha obrigado a ser insensível a todo sentimento.
Cecily estava na casa para lhes receber, como se tivesse sabido exatamente quando chegariam, e instruiu ao Brinkley para que se ocupasse do conforto de ambos
com presunçosa confiança. Uma vez estiveram acomodados na sala de estar, lisonjeou ao Niall... com elegância, é obvio... e reconheceu a presença da Athena com um
breve assentimento. Não mencionou o baile, embora este era dentro de só quatro dias.
Athena não teve coração para perguntar. Pela primeira vez, via algo na mulher de mais idade que nem gostava nem compreendia. Ela tinha assumido que Cecily era
sua amiga e confidente, mas Niall havia dito que lhe tinha alertado a respeito da Athena "trabalhando muito" algum tempo atrás. Quanto fazia que estava Cecily falando
com suas costas? Via ela a Athena como um impedimento para suas ambições sociais... a irmã inválida que unicamente estaria no meio?
Athena tinha julgado mal a tanta gente... poderia ter estado tão equivocada a respeito da amizade de Cecily? E, se se tinha equivocado nisso, em quantas coisas
mais havia também errado seu julgamento? Como responderiam seus amigos de sociedade a sua habilidade de caminhar de novo? Alegrar-se-iam por ela? Dar-lhe-iam as
boas vindas como membro ativo e móvel de seu círculo de elite?
Sempre se tinha sentido segura assumindo que era uma deles, apesar de sua inabilidade para comprar, almoçar no Windsor ou dançar uma valsa. Não meramente uma
deles, a não ser uma líder, uma impecável anfitriã capaz de persuadir aos mais ricos de assistir a suas reuniões, unir-se a suas sociedades caridosas e doar generosamente
a suas causas.
Deveria estar ansiosa de reatar seu trabalho e retomar sua posição como fundadora de um dos maiores bailes do ano. E ainda, todas as coisas que uma vez lhe
tinham parecido tão importantes se converteram mais em um dever que um prazer, responsabilidades das que devia ocupar-se não importa quanto desejasse poder arrastar-se
até uma cova e hibernar até que a dor em seu coração tivesse passado.
Morgan se tinha convertido em uma parte dela. Era mais que amor, mais que qualquer desejo que ela tivesse sofrido jamais. Quase podia lhe sentir através dos
quilômetros, sentir sua ira, sua confusão e sua dor, como se as emoções de ambos estivessem fundidas em um. Um coração, um ser, uma alma. Uma alma a que lhe tinha
negado toda esperança e distração.
A voz elevada de Niall a tirou do poço no qual tinha cansado. Ele estava ainda falando com Cecily, e sua expressão disse a Athena que tinha ouvido algumas notícias
que não gostava. Ele levantou a vista e a contemplou como se ela fosse o próprio Morgan.
-Niall? O que ocorre?
Ele girou a cabeça e deu a Cecily uma ordem seca. Ela assentiu, olhou a Athena com uma muito inexpressiva expressão, e abandonou a habitação.
-Vou retornar ao Long Park imediatamente - disse logo que estiveram a sós. -Você permanecerá aqui sob o cuidado de Cecily. Pedi-lhe que se assegure de que está
confinada na casa esta vez, e instruirei aos serventes de acordo a isso. Recorda que se romper sua promessa...
-Retornar? -ela aferrou os braços de sua cadeira com tanta força que lhe doeram os dedos. -Por quê? Fiz tudo o que pediu...
-Não precisa saber minhas razões. Faz o que a senhorita Hockensmith te ela diga tem a sabedoria e a experiência das que você obviamente carece... e talvez lhe
explique isso tudo quando voltar a Denver.
-Não - ela esticou os músculos de suas pernas, preparando-se para lhe encarar de pé. -Isso não é suficiente, Niall. Suas razões podem ter efeito sobre nosso
trato, e isso me dá direito de saber.
Nunca antes tinha parecido ele tão disposto a golpeá-la. Ela recusou retirar-se. Depois de um momento, ele se afastou, os punhos apertados contra os flancos.
-Deixarei à senhorita Hockensmith que lhe explique - disse isso ele. -Possivelmente acreditará dela o que não aceita de mim.
Antes que ela pudesse protestar, ele girou sobre seus calcanhares e partiu para o hall. Brinkley apareceu com uma bandeja de chá quente, depositou-a sobre a
mesa a seu lado, e a olhou com tanta simpatia que ela se perguntou quanto sabia ele. Mas ele também voou enquanto ela reunia as palavras para perguntar. Viu-se forçada
a esperar, com agulhas de dor lhe apunhalando as pernas, enquanto Niall fazia os preparativos para partir e Cecily falava com ele no hall.
Uma hora antes de meia-noite, justo enquanto o relógio comprido dava a hora como um portador de desgraças, Niall colocou o casaco e saiu da casa. Unicamente
algo terrível lhe faria sair a semelhante hora, quando a escuridão impediria de viajar às montanhas. O que podia ser tão urgente?
Cecily sabia. Ela tinha sido o arauto das misteriosas más notícias. Ela tinha quebrado a confiança da Athena. Ela ia ser a carcereira oficial de Athena, a pedido
de Niall. Athena tinha a intenção de obter uma explicação, inclusive se isso significava assumir que Cecily era sua adversária... ou sua inimiga.
Apertando os dentes contra o desconforto, Athena se impulsionou a si mesmo até estar de pé e concentrou sua atenção em chegar à porta da salinha de estar, arrastando
um pé atrás de outro. Uma vez ali, recuperou o fôlego, renovou sua coragem, e insistiu a suas trementes pernas a suportar seu peso só um pouquinho mais.
Brinkley a viu o final do hall, deteve-se assombrado, e se apressou a ir a seu lado para ajudá-la. Ela se apoiou em seu braço com certa gratidão. Se não era
sua imaginação, então suas pernas se estavam voltando mais fortes... mas não o suficiente ainda para as tarefas que ela poderia ter que lhes requerer.
-Obrigada, Brinkley - disse ela. -Por favor, me leve onde a senhorita Hockensmith.
A usualmente estóica cara do homem exibiu um brilho de emoção, e ela soube que não tinha interpretado mal este.
-Você não gosta da senhorita Hockensmith, Brinkley?
-Desculpe-me, senhorita Munroe. Não me corresponde que eu goste ou me desgoste a dama.
-Mas tem uma opinião.
Ele adotou uma expressão cuidadosamente neutra e a guiou corredor adiante para a biblioteca.
-A senhorita Hockensmith parece mover-se muito livremente pela casa e dispor nela, senhorita Munroe. Eu penso... - ele vacilou.
-Continua - lhe fez deter-se. -Preciso saber contra o que tenho que lutar, e você me poderia dizer isso.
A boca do mordomo se esticou.
-Eu penso que a senhorita Hockensmith pensa em si mesma como a senhora da casa, muito em breve.
Bom, isso certamente não era nenhuma surpresa. Athena começou a mover-se de novo, a ira lhe brindando nova energia a seus músculos.
-Obrigada por ser franco, Brinkley. Será honesto comigo se te perguntar em alguma outra ocasião?
Ele baixou a vista para ela com gravidade.
-Senhorita Munroe... nós... os serventes, esperamos o melhor para você. Agora que pode caminhar... possivelmente as coisas sejam diferentes.
Diferentes. Como tinham percebido os serventes a vida na casa Munroe? Tinham considerado uma carga atender a ela? Ela tinha tratado de ser justa em seu manejo
dos assuntos domésticos, mas Niall era, como pouco, brusco com os serventes e lhes tratava mas bem como máquinas. A admissão do Brinkley havia deixado claro que
ele não desejava a Cecily Hockensmith como proprietária e senhora da casa.
Mas isso é o que ela seria, se se casava com o Niall. E, de repente, Athena reconheceu o que tanto tinha evitado reconhecer até agora: que a vida a que tinha
retornado trocaria para sempre se Cecily se convertia na senhora Munroe. Cecily arrumaria a casa como lhe parecesse, daria as ordens e tomaria seu lugar por cima
da Athena no esquema da vida caseira.
Um grande abismo pareceu abrir-se sob os instáveis pés da Athena. É óbvio, ela deveria ter sabido que tudo se veria alterado quando Niall se casasse. Ela tinha
querido que ele se concentrasse em alguém além de si mesmo. Ela queria que ele fosse feliz. Mas a felicidade dele significava que ela devia ou viver como um ser
dependente na casa que ela mesma tinha dirigido ou lavrar um destino por si só.
E isso tinha deixado de ser um impossível. Ela podia caminhar. estava-se fazendo mais forte. Mas este era o lar que ela tinha amado, que tinha convertido no
perfeito refúgio contra o mundo exterior. Cada detalhe havia sido refinado de acordo a suas especificações. Era seu santuário, e ela estranha vez tinha sentido desejos
de abandoná-lo.
Ainda assim, quando tinha ido a Long Park, tinha sido uma ruptura com o passado que ela não tinha reconhecido como o profundo evento que este tinha sido. Ela
se tinha aventuroso longe, não só em quilômetros, mas também em espírito. Não tinha retornado igual a estava antes.
A Athena que foi e a Athena de hoje eram irmãs, mas já não eram idênticas. Alguém tinha estado contente com uma vida de serviço, retendo um lugar seguro em
sociedade, inclusive se dito lugar era um de confinamento e poucas surpresas. Tinha acreditado que corrigir a injustiça social era o único trabalho que merecia a
pena para alguém como ela. Alguém que não tinha nada mais com que contribuir.
A nova Athena tinha perdido essa complacência e esse sentido de propósito. Não sabia quem era, ou do que era capaz. Mas o lobo não podia retornar a sua jaula.
Que o céu a ajudasse. Era o lobo quem odiava ao Niall e suspeitava de uma básica duplicidade por parte de Cecily. Era o lobo quem a fazia questionar-se todas
as verdades sob as que tinha vivido, quem desdenhava os sacrifícios que ela tinha feito, quem rasgava suas vísceras com garras de aço. E era o lobo quem uivava lhe
dizendo que sempre estaria sozinha.
Sozinha. Era ou Morgan ou nada. Não haveria outro.
-Senhorita Munroe? Está doente?
Ela abriu os olhos para ouvir a voz de Brinkley e viu que de algum jeito tinham chegado ao fim do corredor.
-Sinto muito, Brinkley. Está a senhorita Hockensmith na biblioteca?
-Sim. Deseja que permaneça perto, senhorita Munroe?
-Estarei bem. Obrigada, Brinkley.
Ele a escoltou até a porta da biblioteca e ela se soltou de seu braço para demonstrar que podia caminhar a breve distancia por si só. Ele aguardou até que ela
teve entrado na sala e fechou silenciosamente a porta então.
Cecily estava sentada na sólida poltrona de couro depois do escritório de mogno do Niall, arremessada para trás em uma pose imprópria de uma dama, como se tivesse
perfeito direito a reclamar tudo o que era dele.
-É hora de que me diga por que Niall partiu tão apressadamente depois de que falasse com ele - disse Athena.
Cecily deu um salto no assento e pareceu genuinamente atônita, como se tivesse esperado que Athena permanecesse docilmente na salinha de estar até que os serventes
a escoltassem escada acima até seu dormitório. Niall não lhe havia dito que podia caminhar?
-Athena! -exclamou a outra mulher, levando uma mão à garganta. -Sobressaltou. Tinha pensado que estaria muito cansada para ficar acordada até tarde depois de
tão comprida viagem - seu olhar varreu a extensão do corpo da Athena. -Querida minha, que maravilhoso! Quanto faz que é capaz de caminhar?
Athena não tinha intenção de permitir a Cecily escapar a sua pergunta. Todos seus sentidos ferviam com ira e desconfiança. Ela escolheu, indo em contra do hábito
de muitos anos, não escutar o que lhe diziam.
-Niall está retornando ao rancho - disse. -Ele deixou claro que você ia cuidar de mim em sua ausência, e que evitaria que deixasse a casa sem você fazendo de
acompanhante. Presumo que esse é o porquê está ainda aqui.
A expressão de Cecily trocou de uma de fingido prazer a uma mais honesta cautela.
-Seu irmão está preocupado por seu bem-estar, igual a eu. É desafortunado...
-Sim. Algo é muito desafortunado se ele sentiu a necessidade de sair logo que chegamos... mas foi também desafortunado que você lhe dissesse aonde tinha ido
eu quando confiei em você para me guardar o segredo.
-Bom, querida... -Cecily se levantou e rodeou o escritório, roçando as pontas de seus dedos a todo o comprido da envernizada madeira. -Não tive escolha salvo
lhe dizer onde tinha ido quando ele me perguntou isso. Eu não desejava romper sua confidência, mas seu irmão não aceita um não por resposta.
-Não, não o faz. Mas por causa de que você preferiu sua consideração a minha amizade, encontro-me agora prisioneira em meu próprio lar. E você não sofreu por
isso, verdade?
Os olhos do Cecily faiscaram com afronta.
-Desculpa. Eu sempre desejei unicamente o que é melhor para você. Tenho a experiência que você não, e esse é o porquê o senhor Munroe confia em mim para te
cuidar em sua ausência.
-E por que está ele ausente, Cecily? Não respondeu a minha pergunta -ela deu um passo para diante, cuidadosa de não agarrar-se ao marco da porta. -Seja boa
e me diga a verdade.
A agradável curva dos lábios de Cecily se voltou magra e dura.
-É a verdade o que realmente deseja, querida minha? A verdade a respeito do que penso de você e de seu amante?
Athena se preparou para os golpes que sobreviriam.
-Sim.
-Muito bem - sorriu Cecily, com um olhar tão fria e calculadora como triunfante. -Mas primeiro deve te sentar, querida menina, ou poderia cair. Não acredito
que esteja de tudo firme sobre seus pés.
-Prefiro seguir de pé.
Cecily se reclinou contra o escritório e cruzou os braços.
-Sim, informei a seu irmão a respeito de sua localização quando ele chegou antes do que você estimou. Ele teria descoberto sua ausência bastante logo - suspirou
e meneou a cabeça. -Recordará que não te fiz promessas... deliberadamente. Eu prefiro não romper minha palavra se posso evitá-lo.
-Que mais lhe disse? -demandou Athena quando ela guardou silêncio.
-Vá, meramente que seu julgamento não era bom, e que possivelmente deveria viver em outra parte durante um tempo para ganhar uma muito necessitada experiência
e te desprender de suas várias... obsessões. Estou feliz de dizer que seu irmão esteve de acordo com minha valoração.
-Obsessões?
-Suas causas caridosas, naturalmente, que conduzem a tanto excesso. E também sua teimosia com o Holt... porque não é ele a verdadeira razão de que fosse ao
rancho? Para ser a amante de seu homem-selvagem?
Faz uma semana, ela teria respondido negativamente a isso e com completa sinceridade. Então, ela se havia dito a si mesmo que o bem-estar de Caitlin era sua
única razão para a viagem sem precedentes. Essa deliberada ingenuidade estava morta.
-Morgan não é meu amante -disse ela calmamente. -Mas lhe amo. Ele possui uma honestidade que você nunca compreenderia.
Cecily se pôs-se a rir.
-Sim, claro. É ele o cavalheiro de brilhante armadura chegado para te resgatar de sua vida de inválida?
-É por causa dele que posso caminhar - disse ela. -Ele me deu a coragem para desafiar as coisas que eu sempre tinha acreditado sem questionar... sobre o mundo,
e sobre mim mesma.
-E agora vê a verdade? -Cecily continuou rendo entre dentes de maneira desagradável. -Oh que divertido. Dado que é tão devota à completa honestidade, será muito
infeliz ao descobrir que seu Morgan Holt é menos que o nobre selvagem que você acredita.
-O que quer dizer?
-Vá, alguma vez lhe perguntou a respeito de seu passado? Tão pouco interesse tem na honra e o bom nome de seu irmão e o respeito de seus amigos?
Cecily não sabia nada da verdadeira natureza do Morgan, ou da de Athena. Suas insinuações aludiam a algum outro segredo, um que Cecily claramente considerava
do mais detestável. E estava no certo... o que sabia Athena do passado do Morgan, exceto ele tinha sofrido?
-Sei que Morgan é um bom homem - disse. -O que ele tenha feito antes...
-É muito pior do que sua imaginação possa conceber. Orgulha-se tanto de ajudar aos destituídos e ignorantes, os necessitados e impuros, e ainda assim permanece
tão tristemente acanhada - a mulher de mais idade adotou um ar de zombador. - Meu pesar querida Athena, é de fato hora de que saiba a verdade. Seu amante é pior
que um inculto animal a quem não lhe deveria permitir estar entre gente civilizada. É um assassino... um sentenciado que passou anos na prisão. E você, menina, é
simplesmente outra de suas vítimas.

CAPÍTULO 18

Athena logo que foi consciente de que se estava movendo até que suas costas se chocaram contra a parede. Por um momento, seus pensamentos foram um caos, e logo
ela soube exatamente como responder.
-É uma mentirosa - disse. -Diria algo em benefício de sua própria causa... não importa a que fosse. Se pensar que pode ganhar em meu irmão com truques e estratagemas
como este, então é você a que está tristemente equivocada. Uma vez eu lhe diga o longe que é capaz de chegar para converter-se em sua esposa...
-Acredita que isso é tudo o que quero? -as pálpebras do Cecily desceram sobre seus olhos, tão preguiçosamente desumanos como os de uma pantera. -Oh, sim, tenho
a intenção de me casar com seu irmão. E te quero fora de meu caminho... algo que será muito mais fácil agora que já não deve ser carregada daqui para lá como uma
mimada princesa - riu novamente. -Não, não uma princesa. Uma deusa. A deusa Athena, sempre disposta a dignar-se a ajudar aos desafortunados de qualquer status e
repartir sua vasta sabedoria e generosidade sobre um mundo em penumbras. Mas todo o tempo que esteve sentada tão alto sobre seu trono, não teve nem idéia de como
te vê a sociedade.
-Mas você me dirá isso, não é certo, Cecily?
-Como amiga tua, não tenho escolha - Cecily brincou com o punho de sua manga. -Você imagina a si mesma como uma líder da sociedade de Denver, e suponho que
o é... embora só seja porque seu irmão é um dos homens mais importantes, influentes e ricos do oeste. Ninguém deseja lhe ofender te ofendendo a ti. Mas quando as
damas vêm a sua casa para as reuniões e pressionam a seus maridos, irmãos e pais para que façam doações... acredita que o fazem por pura admiração e devoção? Oh,
não. Elas lhe compadecem, Athena... e chegaram a ressentir o que as forças a fazer com sua "gentil" persuasão. Você as faz sentir-se culpadas por não sentir como
você. E, assim, elas lhe permitem que as governe em pequenas coisas... e seguem com o resto de suas vidas sem ti bastante felizmente.
Todo o ar escapou dos pulmões da Athena.
-Você é nova na sociedade de Denver. Não pode saber...
-Já não sou uma recém chegada, querida. Você me ajudou com as apresentações, e a associação de seu irmão com meu pai têm feito maravilha por minha posição aqui.
O broche final foi que me desse o controle do Baile de Inverno, o qual eu aperfeiçoei em modos tais que suas aborrecidas sensibilidades nunca conseguiriam captar.
Será um triunfo, eu levarei o mérito, e Denver terá uma nova princesa a que adorar.
As pernas da Athena tinham transbordado o ponto da mera dor e agora se sentiam como blocos de gelo.
-Tenho amizades em Denver. Elas se darão conta do que é, e também o fará meu irmão.
-Fá-lo-ão? -ela estalou a língua tristemente. -Seu irmão já está convencido de que estive no certo em meus alertas sobre ti todo este tempo. Ele teve a evidência
de que não se pode confiar em você para conduzir sua própria vida, especialmente não em Denver, entre tantas lembranças pouco benéficas. Eu sempre soube que ter
a uma inválida sob o mesmo teto seria irritante, mas você tem uma vontade o suficientemente forte para te opor à minha. Logo irá a Nova Iorque, e Niall me pedirá
que me case com ele. Quanto a seu amante... duvido que precise preocupar-se por ele nunca mais.
O marco da porta se cravou nas palmas da Athena.
-Por que retornou Niall a Long Park?
-Deveria ser óbvio. Uma vez eu lhe disse o que Holt é, ele soube que devia ver pessoalmente que tão horrível criminoso... um homem que matou a seu próprio pai...
seja expulso de Colorado. Permanentemente.
Athena deixou seu peso cair contra a parede. Morgan tinha matado a seu próprio pai? Era impensável, inconcebível. A gente poderia também acusar ao Niall de
matar a sua querida mãe...
E, ainda assim, Morgan era um homem-lobo. Via-se impulsionado por urgências que um homem corrente não poderia compreender. Era então tão impossível que um homem
com a natureza do lobo pudesse matar mais facilmente do que o fazia um humano completo, que pudesse perder o controle da besta dentro dele?
Ela sacudiu a cabeça violentamente, enojada por suas dúvidas. Morgan não era um assassino... e inclusive considerar que ele tivesse cometido parricídio era
absurdo. Ridículo.
Niall tinha ido atrás de Morgan, acreditando semelhantes contos, já impulsionado pela raiva. Não seria uma simples questão de proteger a Athena ou à sociedade
de um suposto assassino. Oh, não. Isto seria pessoal. Quanta desculpa necessitaria ele para que seu ódio se voltasse letal? E quanto faria falta para que Morgan
devolvesse o golpe com o mesmo desgraçado propósito?
Sabe o que tem feito? -sussurrou Athena. -Não só pôs em perigo ao Morgan, a não ser a meu irmão também.
-Vamos, tão pouca fé tem em seu irmão?
Pensa, Athena.
-Quem lhe disse isso? Quem transmitiu essas mentiras sobre o Morgan?
-Não são mentiras, asseguro-lhe isso. Obtive a informação de fontes muito confiáveis. Quanto a quem me alertou do grave perigo que representa Holt... recorda
a essa horrenda mulher-serpente do circo? Parece que ela não sente mais afeto por ti que o que eu tenho por essa fresca ruiva que pôs suas miras no Niall. Nós dois
encontramos formas de ser de utilidade a uma para a outra.
Fresca ruiva. A quem poderia referir-se ela salvo a Caitlin? Athena rememorou as vezes que ela havia visto juntos a seu irmão e a Caitlin. Se tinha havido alguma
atração aí, ela tinha estado muito entretida em seus próprios problemas para vê-la. Mas Cecily não tinha estado tão distraída...
Niall e Caitlin. Era uma idéia quase tão louca como marcar ao Morgan como assassino. E Tamar... esta sempre tinha parecido albergar ressentimento para a Athena,
mas por que trair ao Morgan? O que era o que ela sabia sobre oculto passado?
Cecily estava no certo respeito a uma coisa: Athena não podia confiar em seu próprio julgamento, o qual lhe tinha falhado tão horrivelmente do começo. Ela tinha
colocado sua fé em falsos amigos, subvalorizou a culpabilidade e o ressentimento de seu irmão, e considerado docilmente a si mesmo um membro respeitado e útil da
sociedade. Cecily poderia exagerar com respeito às opiniões das mulheres de Denver, mas havia um ápice de verdade nessa particular reclamação que Athena não podia
ignorar.
Eu desejava ver, em mim mesma e em todos outros, unicamente o que me fazia sentir importante e necessitada.
Cruzou o olhar com a de Cecily.
-Ensinou-me uma valiosa lição, Cecily. Desde este momento em adiante, não aceitarei o que outros me digam sem me questionar isso. Descobrirei a verdade por
mim mesma, com os olhos bem abertos. Morgan me dará a verdade, e Niall escutará o que tenho que dizer.
-Inclusive se o fizesse... o qual duvido muitíssimo... não terá oportunidade de falar com ele, querida minha. Tem que permanecer aqui, a salvo. Recorda?
O sorriso de Cecily encheu a Athena de tanta raiva que ela logo que percebeu a emoção pelo que era.
-E como tem intenção de me deter?
A boca da mulher mais velha se abriu de par em par, como se ela tivesse visto um lobo incorporar-se sobre seus quartos traseiros e falar.
-Você está chocada? -perguntou Athena. -Possivelmente não me conhece tão bem como acha.
A boca do Cecily se fechou com um som audível.
-Permanecerá aqui como seu irmão ordenou ou eu...
-Ou você... o que fará, Cecily? Está preparada para me reter por você mesma?
-Os serventes. Niall deixou ordens estritas...
-Você assume que todos os serventes obedecerão sem fazer perguntas.
Cecily deu um passo atrás, seu olhar indo à porta atrás de Athena e logo ao cordão com a campainha situado na esquina da biblioteca. Rodeou apressadamente o
escritório para puxar o cordão.
Brinkley entrou na habitação tão rapidamente que Athena soube que devia ter estado aguardando perto.
-Senhorita Munroe - disse ele. -No que posso servi-la?
-Eu lhe chamei - disse Cecily com aspereza. -O senhor Munroe deixou claras instruções de que a senhorita Munroe não podia abandonar a casa sem supervisão. A
senhorita Munroe poderia não ver-se inclinada a cooperar. Por favor, escolte-a a seu dormitório, e feche-a com chave a porta.
-Tenho que compreender que deseja você que eu mantenha prisioneira à senhorita Munroe?
-Não presuma questionar minhas instruções, ou as de seu patrão! Se não se vir capaz de controlar a uma garota meio coxa...
-Está bem, Brinkley - disse Athena. -Não espero que você desafie a meu irmão.
O mordomo elevou uma bem definida sobrancelha.
-Vá, senhorita Munroe, não recordo semelhantes ordens.
-Você... você lhe ouviu tão claramente como eu! -gritou Cecily. -O advirto, se prosseguir com essa atitude...
-Estive considerando retornar a Inglaterra - disse Brinkley a Athena- Possivelmente este seria um momento conveniente para entregar minha demissão.
Athena poderia lhe haver abraçado.
-Pode ir se o desejar Brinkley, mas estou segura de que pode encontrar um excelente emprego aqui em Denver se decide nos deixar.
-Possivelmente. Temo que o resto da criadagem poderia desejar entregar também sua demissão, se -olhou ao Cecily por cima de seu nariz- se vêem obrigados a aceitar
instruções da senhorita Hockensmith.
-Como se atreve?! -Cecily ponho-se a andar para ele, deteve-se e olhou com odeio a Athena. -Não sairão com a sua nisto, nenhum dos dois.
-Não se preocupe, Cecily. Pode dizer ao Niall que te obriguei a deixar ir.
-Você... você não pode! Logo que pode caminhar. Como tem a intenção de...
-Já o fiz antes, recorda? E esta vez posso conduzir eu mesma. Se sair ao amanhecer, deveria ser capaz de chegar ao Long Park não muito depois do Niall.
-Está louca! Se conduzir através das montanhas só certamente te encontrará com o desastre!
-É muito amável de sua parte preocupar-se, Cecily, mas tenho recursos dos que você não sabe nada.
A cara do Cecily se endureceu.
-Não deixarei que te parta, com serventes ou sem serventes - fez um gesto ao Brinkley. -Saia.
O mordomo olhou a Athena. Esta assentiu.
-Isto é entre a senhorita Hockensmith e eu. Não necessitarei seus serviços esta noite. Diga a Fran que pode retirar-se ela também.
-Só precisa chamar se precisa algo, senhorita Munroe - Brinkley saiu sem um só olhar em direção a Cecily.
No momento em que a porta se fechou, Cecily avançou para a Athena. Seus punhos estavam apertados, e, apesar de todas suas finas roupas e seu meticuloso penteado,
parecia a mera esposa de um pescador.
-Não se equivoque -vaiou. -Te deterei - alargou a mão para o braço da Athena. Athena lhe apartou a mão de um golpe. Cecily ofegou surpreendida e deu um passo
atrás.
-Bom Deus - disse. -É uma descarada! Aconselharei a seu irmão que envie a um manicômio!
-Nesse caso, me deixe te dar uma boa razão para semelhante recomendação - sorriu Athena, e o lobo se agachou sobre suas patas traseiras e se preparou para saltar.
Cecily foi golpear de novo, decidida a fazê-la perder o equilíbrio. Athena se girou para um lado, facilitando que Cecily golpeasse a parede, e logo lhe retorceu
o braço à mulher de mais idade atrás das costas.
Cecily chiou. Athena manteve seu apertão com surpreendente facilidade, procurando profundamente em seu interior a força do lobo, a força que ela tinha conhecido
e abraçado antes do acidente.
-Bem poderia desistir - disse. -Você não pode me machucar, mas eu sim poderia te machucar se lutar.
Todo desejo de luta abandonou a Cecily, e Athena começou a relaxar. Ela viu o reflexo da luz sobre metal um instante antes que a forquilha1 saísse disparada
para seu ombro.
Habilmente, Athena fez girar a Cecily e esquivou a improvisada arma. A forquilha de prata roçou contra a madeira da porta e caiu sobre o tapete. Athena grunhiu.
Grunhiu como Morgan o fazia, mostrando os dentes. Cecily esqueceu de gritar de dor e se separou dela com horror.
-Avisei-te - disse Athena. -Melhor que saia desta casa imediatamente - liberou o Cecily, que se afastou cambaleando-se e sustentando o pulso.
-O que é você? -sussurrou.
-Reza para nunca averiguá-lo - Athena se pôs a um lado, deixando livre a soleira da porta. Cecily não necessitou maior fôlego que esse. apressou-se a passar
junto à Athena e se escapuliu para o hall, seu escuro cabelo ondeando solto sobre seus ombros.
A porta principal se fechou de uma portada. Athena se reclinou contra a porta e sentiu seu corpo reagir ante o que ela acabava de fazer. Suas pernas já não
tinham cãibras e tremiam, mas não sustentariam seu peso por muito mais tempo. Ela estava usando energia emprestada pelo mesmo lobo que tinha começado a reconhecer.
Sabia que tinha que atuar antes que a energia se esgotasse. Não havia tempo para contemplar quão dramaticamente ela tinha trocado, ou quão perto tinha estado
da verdadeira violência. Nem tempo para lamentos ou segundos pensamentos. Pois quando o sol se elevasse, ela estaria de caminho às montanhas. E ao Morgan.
Encontrando apoio em qualquer superfície a seu alcance, conseguiu sair da biblioteca, chegar ao hall, e voltar para a salinha de estar. Brinkley apareceu a
seu lado antes que ela tivesse oportunidade de chamá-lo.
-A senhorita Hockensmith nos deixou - disse Athena, encontrando um assento na cadeira mais próxima. -Não acredito que vá voltar. Apreciaria sua ajuda, se ainda
se sente capaz de me dar isso.
-Faço-o, senhorita Munroe. E também os outros. Sua donzela está preparada para despedir-se com o resto de nós, se for necessário.
Athena fechou os olhos e reclinou a cabeça contra o respaldo da cadeira.
-Obrigada, mas acredito que sou capaz de fazer isto sozinha.
-Peço ao Romero que prepare uma carruagem, senhorita Munroe?
Seria Brinkley tão cooperativo se soubesse que sua intenção era montar a cavalo mais que usar uma carruagem?
-Eu falarei com ele mais tarde. No momento, eu gostaria de subir a meu dormitório.
Brinkley ofereceu sua assistência, e ela se permitiu o luxo de subir no elevador mais que subir as escadas. Uma vez em seu dormitório, fechou a porta e se recostou
contra a mesma, bem consciente de que seus planos eram penosamente vagos.
As calças de menino e a enorme camisa de flanela estavam ainda em sua arca de quando ela os tinha guardado fazia anos. As calças eram muito grandes, mas com
a ajuda de um par de suspensórios de seu irmão ficariam bem. Fez que Brinkley recuperasse seu casaco de pele do armário da roupa de inverno e pediu ao Monsieur Savard
que lhe preparasse uma comida para levar, para o caminho.
À alvorada, deslizou-se para fora da casa e foi ao estábulo sem alertar ao Brinkley, esquivou-se de Romero, que se tinha ficado adormecido na cocheira esperando-a,
e selecionou o mais forte dos cavalos. Suas pernas tinham tido o descanso suficiente para sustentá-la em pé com relativamente pouca dor enquanto ela selava e lhe
colocava o bridão e seus arreios. Depois de numerosos intentos, conseguiu subir à sela.
Sentia-se estranho sustentar as rédeas de novo, sentir o poder de um cavalo sob seu comando. Suas pernas não estavam nem de longe de volta à normalidade, mas
pareciam mais capazes com cada hora que passava, e ela não temia que pudessem traí-la quando mais as necessitasse.
Elas, como os serventes, como a gente do circo, eram de confiança. Tal e como ela sabia que podia lhes confiar seu próprio coração.
Antes do amanhecer, deixou a casa e todas suas dúvidas para trás. Pela primeira vez em sua vida, perguntou-se se alguma vez retornaria.
Estou a caminho, Morgan. Não enfrentará a meu irmão sozinho. E quando nos encontrarmos de novo, toda a verdade sairá finalmente à luz.

Niall açulou a seu exausto cavalo uns quantos passos mais e logo puxou as rédeas, olhando sobre árvores e pradarias do alto da escarpa rochosa que beirava o
extremo sul do parque.
O tempo tinha estado nublado durante toda sua viagem pelas montanhas. Impulsionado pela raiva e pouco mais, havia coberto a metade do caminho ao rancho antes
de compreender que tanto ele como sua montaria necessitavam umas poucas horas de descanso e sonho.
Inclusive assim, tinha-lhe levado somente umas quantas horas mais do usual cobrir a distância de Denver, e era só meio-dia. Sua ira tinha sido apaziguada pelo
cansaço, mas a visão do rancho estendido abaixo e as numerosas figuras escorrendo-se por entre os edifícios, reavivou sua determinação.
Antes que se pusesse o sol, teria ajustado suas contas com o Morgan Holt de uma vez por todas.
Estalou a língua ao cavalo e o guiou pelo íngreme atalho que descia para o vale, uma rota muito mais difícil e direta que a estrada através do passo. Curiosamente,
não eram pensamentos de Morgan os que o acompanhavam. O rosto que ele visualizava em sua mente pertencia a alguém mais inteiramente... zombador e pícaro e rematado
por um revolto e encaracolado cabelo vermelho.
Caitlin. Ela estava ali abaixo, tão alheia como o resto ao feito de que ele estava em caminho. O que pensaria ela se soubesse que estava para chegar? Zombaria
dele e lhe cuspiria em um olho tal e como que o tinha feito quando tinha defendido ao Morgan e Athena? Ou... poderia ela possivelmente...?
Sua boca se curvou com desgosto. Tinha-o enganado igual ao tinham feito os outros. Tinha o induzido a pensar que se arriscava a ficar permanentemente inválida
se não tinha um apropriado descanso e quietude.
O doutor assim o disse, recordou-se a si mesmo. Não tinha razão para não lhe acreditar.
Claro que o mesmo doutor havia predito que Athena nunca voltaria a caminhar... muito para confiar nas opiniões dos doutores. Caitlin estava o suficientemente
forte para interpor-se entre ele e algo que ele quisesse. Sua irmã tinha trocado de uma obediente, bem criada e calada jovem dama a uma fresca voluntariosa e desafiante.
Não era coincidência que se tornou assim pouco depois de sua associação com o circo.
E com o antigo sentenciado Morgan Holt.
Niall apertou os dentes e sentiu ao cavalo soltar um enorme suspiro enquanto alcançava chão plano. Pequenos flocos de neve se formavam redemoinhos em torno
de seus cascos. Nenhum outro ser tinha usado esse caminho em algum tempo... nenhum humano, em qualquer caso. O ar era brioso e frio, com uma quietude que sugeria
que se morava mau tempo.
Sentindo comida e refúgio perto, o cabelo acelerou o passo e se lançou ao trote através do parque. Ao Niall não importou o estalo continuado. O desconforto
físico afastou de sua mente a imagem do Caitlin. Um homem não podia pensar em uma mulher quando suas pernas doíam e seus dedos tinham perdido a sensação.
A menos que começasse a imaginar um fogo, um copo de uísque, e uma cama quente já ocupada por um flexível, nu e muito feminino corpo...
O cavalo soprou quando ele atirou com força das rédeas. Maldita seja. Veria essa bruxa bastante logo, e a realidade faria derrubar-se essas ridículas fantasias.
Luxúria por alguém como Caitlin Hughes? O mero pensamento o envergonhava. E, ainda assim, quando tentava imaginar ao Cecily Hockensmith compartilhando sua cama,
estremecia-se com um pouco muitíssimo pior que vergonha.
Bateu com o pé nos flancos de seu cavalo para que se lançasse a um breve, mas satisfatório meio galope que lhe levou até a mais afastada edificação exterior.
A fumaça se elevava em escuros penachos das numerosas chaminés, e ele notou que havia grandemente mais atividade entre a gente do circo da que tinha visto antes.
Gente e animais se moviam daqui para lá. Havia carroças à proteção dos edifícios, e homens carregando os veículos em preparação para uma viagem.
Niall não podia confundir-se ante o que via. O circo se estava preparando para deixar o rancho, com ganho, tendas e tudo. Estava louco Harry French, ou era
simplesmente um idiota?
Ou tinha suposto que os integrantes da trupe já não seriam bem-vindos em Long Park depois do acontecido no dormitório da Athena? Nisso, ao menos, não se equivocava.
Niall tinha estado muito zangado ante a revelação de Cecily para considerar o que diria ao French quando chegasse. Poderia ter decidido permitir ao circo ficar...
assessorado pelo Morgan Holt.
Mas se eles já tinham escolhido sair correndo, bom...
Seu cavalo fez o intento de dirigir-se para o estábulo, e Niall o encaminhou para a casa principal. Desmontou ante os degraus da ampla galeria coberta de neve.
Um peão apareceu convenientemente para levar a animal a uma baia, e Niall correu escada acima e atravessou a porta principal com apenas uma pausa para desfazer-se
da neve aderida a suas botas.
Depois do ruído e o bulício de fora, a casa estava muito silenciosa. Niall fez um alto no saguão para considerar seu curso de ação. Morgan poderia estar ali,
ou poderia haver partido já. Harry French provavelmente não revelaria a verdade de um modo ou de outro.
Nem tampouco Caitlin. Ainda assim, seus pés indevidamente lhe levaram corredor adiante como se ela tivesse elevado a voz em um canto de sereia, lhe convocando
à destruição.
Abriu a porta de seu dormitório tão silenciosamente como foi possível. Ela estava aí, em sua cama. Ele meio tinha esperado encontrá-la de pé, já não impulsionada
a manter o engano de uma ferida séria. Mas estava sozinha, puxando a borda de seu edredom com dedos ágeis e nervosos. Preocupada, pensou ele. Preocupada com minha
irmã... e pelo Holt.
Ele fechou a porta com um golpe forte. Caitlin saltou e se virou para lhe contemplar, e ele notou por milésima vez a forma em que suas sardas só se somavam
a seu atrativo em lugar de diminuí-lo. A forma em que seu cabelo parecia arder sob qualquer tipo de luz, como se estivesse iluminado de dentro. A forma em que seus
olhos...
-O que está fazendo aqui? -perguntou ela. -Onde está Athena?
Ele se pôs-se a rir. Não era melhor bem-vinda da que tinha esperado.
-Athena está a salvo em casa - disse, caminhando para a cama. -Onde ficará. Eu estou... agradecido de vê-la com tão bom aspecto, senhorita Hughes.
-Pois você não tem bom aspecto absolutamente - disse ela, lhe estudando com o cenho franzido. -Deve ter deixado Denver quase logo que chegou. Cavalgou toda
a noite?
Era preocupação o que ouvia em sua voz?
-Não está interessada na razão pela que tornei tão rapidamente?
Ela se voltou a acomodar sobre seu montão de travesseiros com um falso ar de despreocupação.
-Nem sequer vou tentar supor o que pode estar passando por sua mente, Niall Munroe.
-É você uma mentirosa - ele encontrou uma cadeira e a aproximou da cama. -Mas o direi de todas maneiras. Onde está Morgan Holt?
Ela não demonstrou surpresa ante sua pergunta, e ele se perguntou quanto saberia realmente.
-Não tenho nem idéia. Não lhe vimos desde que partiram. Deveria alegrar-se de que se foi... - ela estreitou os olhos. -Ou não o faz?
-Depende de se desejo ver escapar a um assassino ou não.
Isso apanhou sua atenção. Ela se endireitou, sustentando seu olhar com olhos tão francos e desprovidos de medo como os de um menino. Mas ela não era uma menina...
bem longe disso.
-Está chamando assassino ao Morgan, inclusive embora ele teve a oportunidade de lhe fazer dano e não o fez?
-Chamo-lhe o que é - lhe espetou Niall. -Me surpreende que sejam tão otimistas com respeito a ter semelhante criatura entre vocês, você e French... e , ainda
assim, defende-lhe. Anima-lhe...
-Embora não seja totalmente humano? -sorriu ela, e seus olhos se enrugaram nos bordos. -Algumas vezes penso que ele é mais humano que qualquer que conheço.
-E quão bem lhe conhece, Caitlin? Sabia que esteve na prisão durante anos por assassinar a seu próprio pai?
-Na prisão?
Ela não o tinha sabido. Esse era um pequeno, mas importante ponto em seu favor.
-Eu o acabo de descobrir recentemente. Mas isso explica muito sobre o Holt e sua conduta... seu desonroso trato para minha irmã, e sua propensão à violência.
Essa é a razão pela que retornei, Caitlin... para me assegurar de que não possa machucar a ninguém mais.
Ela considerou sua declaração em silêncio. Ele sentia que sua revelação não tinha sido uma completa comoção para ela, não mais que a de Cecily o tinha sido
para ele.
-Bem? -demandou ele. -Ainda considera o Holt seu amigo? Defender-lhe-ia agora?
-Inclusive se o que afirma é verdade... e não estou dizendo que o seja... o que acredita que pode fazer a respeito?
Niall tinha imaginado numerosos cenários em sua mente durante sua cavalgada de Denver, e cada um deles tinha acabado com o Holt em um queixoso e sangrento atoleiro
a seus pés. Além disso...
-Realmente acredita -disse Caitlin- que pode simplesmente caminhar para ele e... o que? Obrigá-lo a entregar-se às autoridades?
-Eu não lhe temo.
-Então é um estúpido. Um homem preparado teria medo. Mas você não tem direito a fazer nada a ele. Não machucou a ninguém em todo o tempo que lhe conheci. Não
pode arruinar sua vida, e a da Athena, simplesmente porque odeia o que não pode compreender.
-Se eu odiasse tudo o que não compreendo -disse ele- odiaria a você.
Ela se mordeu o lábio inferior.
-Bem poderia me odiar se tiver a intenção de machucar a meus amigos.
Ele sorriu amargamente.
-Eu só estou interessado em encontrar ao Morgan Holt. O resto de vocês... partem, não?
-Em uma hora. Harry decidiu que seria o correto. Era óbvio que você nos queria fora daqui. Não há necessidade de que se preocupe com que vamos causar lhe nenhum
problema mais, senhor Munroe.
-É muito tarde para preocupar-se por isso, senhorita Hughes.
-Já se saiu com a sua. Não é isso suficiente?
Ele ficou em pé de um salto.
-Não. Está longe de ser suficiente - ele cruzou a distância até a cama com grande rapidez, agarrou a Caitlin pelos ombros, e a beijou.
Ela nem sequer se incomodou em resistir. A temporária rigidez veio da comoção, mas um instante depois, ela era flexível e disposta em seus braços. Sua boca
se abriu à sua com toda a entusiasta habilidade de uma prostituta experimentada.
Oh, sim, lhe desejava, igual a ele a desejava a ela. Não sentimentalmente ou com inconvenientes expectativas, nem sequer pelo benefício do amor ou inclusive
uma real avaliação... simplesmente por nua e desatada luxúria. E Caitlin não estava envergonhada. Não, no mais mínimo.
Ele concluiu o beijo e a afastou de um empurrão. Ela se recostou, nem ofendida nem ultrajada por suas liberdades. Suas sardas eram muito marcadas.
-A que veio isso? -disse ela, recuperando o fôlego.
-Já sabe - lhe voltou às costas para não ver seus lábios e o franco desejo em seus olhos. -O soube desde dia que nos conhecemos.
-Que me deseja? Que eu te desejo? -ela riu brandamente. -Que alívio quer dizer em voz alta e deixar de fingir. Eu nunca fui muito boa fingindo.
-Não - ele cruzou os braços e contemplou a parede. -Normalmente eu sou muito bom nisso. Ou devo sê-lo, em meu trabalho. Mas pareço ter perdido minhas habilidades
no que a você concerne.
-E isso se preocupa?
-Por que deveria fazê-lo estar encaprichado de uma garota sem família, de duvidosa moral e interesses que se acham diretamente em conflito com meus próprios?
-Que palavras tão doces e amorosas - disse Caitlin como para si mesma. -Nenhuma mulher poderia desejar um pretendente mais devoto.
Niall se deu a volta.
-Quantos teve, Caitlin? Vintenas, pensaria eu. Centenas. Sou eu simplesmente outra conquista, ou um prêmio em particular?
-Que arrogância. Pensa o pior de mim por ter tido outros amantes, mas estou segura de que você não sente nenhum escrúpulo sobre as mulheres que teve. Oh, não.
Todo seu remorso é por me desejar.
Ele estava esmigalhado entre o desejo de golpeá-la e o de voltar a beijá-la até que ela fosse incapaz de falar.
-Permiti ao circo ficar no rancho por seu bem, e teu nada mais. Você me pagou se pondo a favor da Athena contra seu próprio irmão, e contra o que é melhor para
ela. Holt é um sentenciado, um assassino, e eu não lhe permitirei ficar aqui, onde tem a oportunidade de contatar com minha irmã de novo.
A mudança de assunto dirigiu a conversa de volta aonde ele a queria, mas não podia concentrar-se. Os olhos de Caitlin continuavam rindo-se dele, embora ele
teria podido jurar que via dor sob o humor. Poderia uma mulher como Caitlin ser machucada, realmente machucada, por um homem?
-Já vejo - disse ela ao fim. -Bem, eu não posso te ajudar. Não sei onde está Morgan, e não lhe diria isso se soubesse. Eu posso te desejar, Niall Munroe, mas
não a qualquer preço.
-Nem sequer ao preço de uma riqueza além de sua imaginação?
-Não trairei a meus amigos por dinheiro...
-Eu não falo de traição - ele deu um passo para ela e se deteve, incapaz de pensar o que fazer com suas mãos. -Eu falo de... você e eu, Caitlin. Pelo que poderíamos
ter juntos.
-Posso acreditar o que acabo de ouvir? -ela fechou os olhos. -Me está oferecendo...?
-Tudo - ele tomou assento no bordo da cadeira, lutando contra a absurda urgência de ficar de joelhos. -Segurança, roupas finas, carruagens, jóias, todas as
coisas que nunca teve. Um lar de verdade no que viver, Caitlin, não uma tenda. Sem necessidade de pôr em perigo sua vida nunca mais.
-Quer que deixe o circo? Que abandone a todos meus amigos, a vida que sempre conheci, que me converta em sua...? -lentamente, sua boca se relaxou, e ela encontrou
seu olhar. -Que me converta em sua amante. Isso é o que me está oferecendo, não?
O calor alagou sua cara. Maldita fosse essa mulher, que podia lhe fazer sentir como um menino pequeno que acabasse de ser pilhado com os dedos no bolo. Como
podia ele deixá-la ter semelhante poder sobre ele?
-Sim -disse ele friamente -Isso é exatamente o que estou oferecendo. Mas a amante do Niall Munroe não careceria de nada, asseguro-lhe isso - ele desviou a vista
para a janela, sentindo uma fria corrente de ar contra a bochecha apesar de que aquela estava fechada. -Eu nunca tive uma amante. Nunca acreditei que desejasse uma,
até agora. Desejo-te, Caitlin. Admito-o. E estou disposto a pagar o que me peça.
A expressão de sua cara era tão gentil que ele poderia ter chorado.
-Só há um problema, meu amigo. Eu estou acostumada à liberdade. Vou e venho e me comporto exatamente como desejo, e nenhum homem me diz o que devo ou não devo
fazer. Sua sociedade nunca permitiria isso, nem sequer na amante de um grande homem. E não gosto de ser possuída. Nem sequer por você.
Ele a contemplou sem compreender até que entendeu exatamente o que ela havia dito.
Tinha o rechaçado. A ele, a quem muito poucos lhe negavam algo sem lamentá-lo profundamente. Ela, que não tinha nada, que vivia de dia em dia sem a garantia
de jantar de noite seguinte, rechaçada pela gente decente, recusava uma vida de comodidade e luxo. E a ele.
-Estranha vez pedi algo duas vezes - disse ele. -Estou acostumado a conseguir o que desejo. Mas te farei minha oferta uma vez mais. Vêem a Denver comigo. Vive
em uma elegante casa que poderá chamar tua própria, onde poderá fazer o que agradar dentro de suas paredes. Não espero que te mova em sociedade ou te volte como
outras mulheres. Não te peço que troque. Só exijo que você e eu nos desfrutemos do um ao outro como desejamos, com toda a liberdade de seu desejo.
-Mas, não o vê? Eu trocaria se fizesse o que me pede. A mulher que você deseja agora deixaria de existir, e chegaria a desprezar o que admira em mim. Tal e
como eu chegaria a te desprezar a você - suspirou. -O sinto, Niall. Há uma única razão que me impulsionaria a aceitar, e essa seria que abandonasse esta perseguição
ao Morgan e Athena - ela estendeu sua mão. -Deixe-os viver suas próprias vidas, Niall, e eu compartilharei a sua.
Ele retrocedeu, afastando-se da cama, apartando os olhos de sua atração. Assim que ela podia ser comprada, depois de tudo... por um preço que ele se negava
a pagar.
Maldita fosse.
-Muito bem - disse. -Deixou clara sua posição. Mas me compreenda, Caitlin... minha oferta não tem peso sobre minhas intenções para o Morgan ou meu desejo de
proteger a minha irmã. Farei o que seja necessário, com ou sem sua ajuda - lhe fez uma rígida reverência. -Se me perdoar, tenho um assassino ao que encontrar.
A mão de Caitlin ficou flutuando em metade do ar, seus dedos curvados em gesto de súplica incluso enquanto ele fechava a porta sobre uns sonhos impossíveis.





CAPÍTULO 19

-É muito arriscado. Devemos atrasar a partida ao menos durante outro dia mais - disse Ulysses, estudando o céu como se este fosse uma besta perigosa e imprevisível.
O qual, pensou Caitlin, é precisamente a verdade. E ela preferiria encarar a essa besta perigosa que passar uma só noite sob o mesmo teto que Niall Munroe.
Não havia rastro do sol do meio-dia atrás do denso toldo cinza de nuvens. Ela, Harry e Ulysses estavam de pé junto ao estábulo, onde a caravana completa do
circo se achava reunida e pronta para fazer a viagem para o este através do passado... uma dúzia de carroças, cinquenta cavalos e pôneis incluindo os de Caitlin,
e a muito apreciada Calliope. Niall, graças ao céu, não tinha saído da casa.
Caitlin balançou seu peso sobre um par de improvisadas muletas, consciente da rigidez de sua perna mas não sentindo já dor. Se sua ferida não podia evitar que
abandonasse esse lugar, nenhum ser humano poderia fazê-lo. Nem sequer um amigo bem-intencionado.
-Parece-te tão pouco a seu xará como qualquer homem poderia fazê-lo, Ulysses Wakefield - lhe repreendeu. -Onde está seu sentido da aventura? Seu espírito circense?
Ou, já postos, seu orgulho?
-Nunca me senti atraído pelos atos suicidas - disse Ulysses. -Nem desejo ver a trupe apanhada em uma tormenta de neve. Meu desejo de partir não parece tão urgente
como o seu, Vagalume.
Caitlin não lhe tinha contado a ninguém a respeito da oferta de Niall. Apesar dos receios de Uly, Harry estava tão obviamente ansioso de partir como ela. Era
difícil dizer se ele estava mais preocupado por ela ou pelo Morgan... quem se achava ainda nos arredores, a julgar pelos rastros de lobo que apareciam cada noite
perto da casa. Ele não podia romper seus laços finais com a trupe. Ou com a Athena, embora não tinha ido atrás dela.
Como podem os homens ser tão tolos?
-Estamos preparados para ir - disse Harry, atendo-se mais seu desgastada cachecol em torno do pescoço. -Tudo está em ordem, e não me faz graça a perspectiva
de permanecer aqui com o Munroe planejando sobre nós como um abutre faminto.
-Falei com muitos dos outros e todos estão de acordo - acrescentou Caitlin. -Teremos que atravessar o passo enquanto o tempo esteja espaçoso. Se não o fizermos
agora, poderíamos não conseguir outra oportunidade antes que se acabe o inverno - com um olhar impossível de ler dirigida a Caitlin, Harry partiu apressadamente
para consultar com o chefe de pista. Os cavalos chutavam o chão, os cães ladravam e os integrantes da trupe esperavam impacientemente a ordem de mover-se.
A ordem veio ao final, e a caravana ficou em movimento bruscamente com muito estalar de látego e gemido de arreio, e gritos foram intercambiados ao longo da
fila de carroças. Baforadas de vapor se elevavam das bocas dos cavalos. A brumosa luz não podia diminuir as brilhantes cores de carroças e adereços, ou os resplandecentes
retalhos de trajes vestidos pelos membros da trupe. Mas não havia fanfarra, e as pessoas do circo estavam deprimidas enquanto caminhavam através da neve passando
os edifícios exteriores e entrando no parque. Os peões fizeram uma parada em seus trabalhos para lhes ver passar, uns poucos tocando o chapéu, e o senhor Durant
saiu à galeria, indubitavelmente contente de perder de vista a seus indesejados convidados.
Caitlin ia sentada junto ao Harry na carroça que fazia as vezes de escritório, sua perna ferida no alto diante dela, e recusou olhar atrás. Niall não tinha
razão para persegui-los. Ele, como Durant, estaria feliz de lhes ver partir. O único interesse nos membros da trupe que ficava ao Niall descansava no que eles soubessem
do Morgan, e ninguém tinha respostas que lhe satisfizessem.
Avançando lentamente centímetro a centímetro pela estrada de terra meio coberta de neve, a caravana passou através da barreira que marcava o limite dos pastos
interiores. Ante eles se estendia um manto de branco pontuado pelos ramos nus de arbustos sem folhas, e o verde mais profundo de abetos e píceas. Sulcos e rastros
assinalavam o passo dos peões e seu gado. Não passou muito até que inclusive esses sinais desapareceram, substituídos pelas mais sutis pegadas de raposas, coelhos
e cervos.
Quando a última carroça teve atravessado o ponto situado a meio caminho do passo, começou a cair uma ligeira nevada. Caitlin espirrou e reajustou suas mantas.
Certamente, um pouco de neve não podia lhes fazer danifico.
Mas logo nem sequer ela foi capaz de fingir que tudo estava bem. Os ligeiros flocos se transformaram em densas massas que se assentavam sobre cada superfície
que não estivesse o suficientemente cálida para as derreter. Logo, a neve caía tão depressa que Caitlin não podia ver além das duas seguintes carroças da fila, e
as árvores junto à pradaria se voltaram sombras inidentificáveis. As montanhas se desvaneceram por inteiro.
-Oh, céus - murmurou Harry, suas mãos enluvadas muito tensas sobre as rédeas. -Isto não parece bem. Não parece bem absolutamente -estalou a língua aos cavalos,
mas estes já estavam lutando para abrir caminho através da gradualmente crescente neve. Suas orelhas estavam aplanadas contra suas cabeças em eloquente protesto.
Caitlin fechou os olhos e sussurrou uma quase esquecida prece.
-Ulysses tinha razão - disse. -Devemos retornar.
-Estou de acordo. A estrada desapareceu. Não vejo como poderíamos encontrar o passo, ou inclusive cruzá-lo. Mas existe uma pequena dificuldade. Não estou seguro
de como voltar para rancho.
-Mas certamente podemos voltar sobre nossos passos...
-Só podemos tentá-lo - unicamente seus preocupados olhos eram visíveis entre o chapéu e o cachecol enquanto ele dava a volta à pesada carroça. Os cavalos viraram
e se lançaram de flanco através da neve virgem. As rodas da carroça foram apanhadas por algum obstáculo enterrado, mas com muitos rogos e promessas, Harry conseguiu
que os cavalos os liberassem.
Gradualmente, as outras carroças seguiram o exemplo do Harry, cada condutor imitando ao que levava diante. A visibilidade se deteriorou até abranger uma única
carroça. Harry conduziu de retorno pelo caminho pelo que tinham vindo, usando a caravana em si mesmo como guia. Imateriais vozes gritavam perguntas e instruções.
Caitlin captou uma olhada do Ulysses, mas ele logo se perdeu na tempestade de neve.
Pareceu que tivessem acontecido horas até que Harry alcançou o final da fileira de carroças. Logo não houve nada adiante salvo uma parede de branco fundindo
terra e céu em um monótono vazio. Inclusive os rastros deixados pela caravana estavam desaparecendo rapidamente, como se a natureza se ressentisse da mancha que
os intrusos tinham criado sobre sua casta perfeição.
-Não sei por onde ir -disse Harry, sua voz apagada até ser um sussurro. -Cada direção parece a mesma.
-O chefe de pista tem uma bússola - disse Caitlin. -Vá lhe buscar, Harry, e eu esperarei aqui.
Ele suspirou e lhe passou as rédeas. Com um grunhido, desceu da alta e estreita boléia, aterrissando incomodamente na neve, que chegava à altura do joelho.
Abriu caminho até a carroça mais próxima, que não era mais que um borrão na distância. Seu fôlego subia para o céu em baforadas similares à fumaça dos trens com
cada passo que dava.
Em tanto se mantenha perto das carroças, não pode perder-se, recordou-se Caitlin enquanto passavam os minutos. A carroça detrás da sua era invisível agora,
e nenhuma outra se aproximou. Era difícil acreditar que existisse alguém mais nesse estranho mundo de vazio. Até o som se apagou, e ela duvidava de que pudesse ter
ouvido um grito proveniente desde uns poucos metros de distância.
Depois de uma hora, começou a assustar-se. Se Harry se perdeu, teria que lhe encontrar. As muletas eram inúteis na neve. Desenganchar um dos cavalos e montá-lo
a cabelo era uma opção apenas melhor. Mas se não o tentava, algum errante vaqueiro em procura de ganho extraviado depois da tormenta lhes encontraria congelados
a tão somente uns poucos quilômetros da salvação.
Niall, pensou ela, aferrando-se no nome como se este fosse um encantamento mágico. Se alguma vez te importei, sequer um pouquinho, vêem e nos encontre. Nos
ajude.
Mas não foi Niall quem respondeu a sua silenciosa chamada. Ao princípio, ela pensou que a escura forma emergindo da bruma branca era Harry, ileso e a salvo,
e se pôs-se a rir, aliviada. Mas a figura estava muito perto do chão para ser humano.
Morgan. Ela se sentou direita, ignorando temporal que tratava de lhe rasgar a roupa, e aguçou a vista contra a neve.
-Morgan!
Ele se deslizou em sua direção como um anjo escuro de imperceptíveis asas, sua pelagem repelindo a neve como esta fosse a mais gentil das garoas primaveris.
Deteve-se a boa distância dos nervosos cavalos e emitiu um baixo e interrogante som que era um cruzamento entre latido e grunhido.
-Graças a Deus que está aqui -lhe gritou ela, para fazer-se ouvir por cima do vento. -Nos perdemos! Harry está por aí atrás em alguma parte, e me temo... tem
que lhe encontrar!
Morgan baixou o focinho em um lupino assentimento e girou sobre suas patas traseiras, afastando-se entre saltos com as orelhas captando sons que só ele podia
ouvir. Caitlin se deixou cair pesadamente sobre o assento e se atreveu a respirar novamente. Resultava estranho como ela tinha rezado para que viesse Niall quando
Morgan era de longe uma muito melhor escolha para lhes salvar. Niall, depois de tudo, somente era um homem.
Ainda assim, ela continuava imaginando, com absurda persistência, que Niall estava, nesses momentos, a caminho dali. Quando Harry e Morgan retornaram à carroça,
o ancião cavalheiro aferrando a pelagem do Morgan e tropeçando com o passar do caminho que ele mesmo tinha feito, ela se amaldiçoou a si mesmo por desejar que Niall
estivesse aí fora em meio desse pesadelo.
Possivelmente Niall se teria perdido como Harry o tinha feito. Possivelmente teria morrido esforçando-se em provar errôneos todos os terríveis julgamentos que
ela tinha feito sobre ele presa da ira e a dor.
Ao bordo de suas forças, Harry escalou sobre a boléia da carroça, e Caitlin lhe cobriu com sua própria manta. Ele tratou de falar, os dentes lhe tocando castanholas
cada vez que abria a boca. Seu bigode rodeado de gelo estava tão rígido como uma tabela.
-Não tente falar - disse ela. -Morgan?
O lobo apareceu a seu lado, suas imensas garras descansando sobre o flanco da carroça. Seus enviesados olhos encontraram os dela, e se transformou.
Tão notável como era ver um homem nu fundo até a coxa na neve sem que o frio lhe afetasse para nada, Caitlin não estava de humor para maravilhar-se.
-Devemos voltar para rancho - disse. -Pode nos guiar?
-Sim - Morgan olhou na direção pela que Harry e ele tinham vindo. -Correrei a voz ao resto da caravana e reunirei as carroças - fez uma pausa, franzindo o cenho
ao Harry. -Ele ficará bem, Vagalume. Mantenha-o quente. Retornarei logo que possa.
-Morgan... você... por acaso viu o Niall quando vinha para nós?
Seus olhos eram tão duros como o topázio.
-Não. Ninguém poderia lhes seguir no meio disto, inclusive se queria fazê-lo deu a volta e saltou sobre a neve, movendo o dobro de rápido que qualquer humano.
Caitlin se resignou a suportar outra espera, esquentando ao Harry com o calor de seu corpo e as mantas de ambos combinadas.
O urgente relincho de um cavalo foi a primeira indicação de que Morgan tinha tido êxito em sua busca dos outros. Logo, outra carroça se deteve junto à do Harry,
com o Ulysses levando as rédeas. Ele assentiu calmamente em direção a ela, mas seus olhos contavam uma história diferente.
-Está todo mundo bem? -chamou Caitlin.
-O suficiente. É afortunado que Morgan chegasse quando o fez - ele fez um gesto assinalando atrás de si e Caitlin viu as sombras de outras carroças aproximando-se.
Morgan corria entre elas, humano e logo, em menos de um segundo, lobo de novo.
Foi como lobo que tomou a dianteira e guiou aos membros da trupe para o refúgio. A marcha foi difícil, muito mais do que tinha sido na outra direção, mas Morgan
se mostrou inesgotavelmente paciente e útil em manter a caravana unida, dando ânimo aos cansados cavalos e tirando carroças dos bancos de neve.
Um grupo de cavaleiros lhes deram o encontro quando alcançaram os limites do rancho. Morgan se apressou a meter-se na parte de trás da carroça enquanto Caitlin
detinha os cavalos ante o sinal de um dos peões.
-Senhorita Hughes? -disse o líder, seu rosto escurecido sob capas de cachecóis e lenços. -Pensamos que não conseguiriam retornar. Íamos de caminho para lhes
buscar.
-Estamos bem - disse ela, jogando um olhar ao Harry. -Por favor, diga... diga a todo mundo que estamos a salvo.
O cavaleiro sacudiu a cabeça.
-O senhor Munroe foi atrás de vocês quando começou a tormenta. Alguns homens foram com ele, mas se separaram. Eles voltaram, mas ele não. Viram-no vocês, senhorita?
Ao Caitlin, o coração lhe caiu até os saltos das botas.
-Ele...? O senhor Munroe saiu para nos buscar?
-Sim, senhorita. E logo que a neve comece a cair de maneira mais ligeira, sairemos nós. O senhor Munroe não está acostumado a esta classe de tempo.
Os homens saudaram e se afastaram cavalgando. Morgan saltou ao chão da parte de trás da carroça e correu ao longo desta, mantendo o veículo entre ele e os cavaleiros.
Doente do estômago, Caitlin guiou a carroça para o estábulo, só medianamente consciente das outras carroças rodando atrás. Numerosos peões estavam ali preparados
para ajudá-la a ela e ao Harry a entrar na casa que alojava aos peões. Trementes e desgraçados condutores desatrelaram aos cavalos e os colocaram no estábulo.
Caitlin não voltou a ver o Morgan. Ela tomou assento ao bordo da cama, balançando-se para trás e para frente enquanto constantes ruído e movimento se formavam
redemoinhos a seu redor. Alguém jogou outra manta sobre seus ombros, e Harry passou por ali, bastante melhorado, para lhe fazer uma pergunta que ela não pôde ouvir.
Ela elevou a cabeça. Harry e Ulysses permaneciam de pé lado com lado, um robusto ancião e um arrumado miúdo, olhando-a como se tivessem desagradáveis notícias
que dar. Caitlin se preparou para a dor.
-Está preocupada com o Munroe, não? -perguntou Harry brandamente. -Não tem que preocupar-se mais.
A esperança penetrou na murcha casquinha que era seu coração.
-Ele está aqui?
-Ainda está desaparecido - disse Ulysses. -Mas vamos a te dizer que Morgan se ofereceu voluntariamente para ir lhe buscar. Se algum homem... alguma criatura
sobre a face desta terra... tem a habilidade de lhe localizar, esse é ele.
-Morgan... se ofereceu voluntariamente? -Morgan, que odiava ao Niall e era odiado por este a sua vez? Por que desejaria ele salvar a seu inimigo de uma morte
quase segura?
Porque, gostasse ou não, ele tinha um inquebrável elo com o Niall Munroe. Caitlin não imaginava que Morgan o fizesse pelo bem dela. Niall era o irmão da Athena,
e ela sabia que Morgan arriscaria algo com tal de lhe economizar o pesar de perder ao último membro de sua família.
Muito para falar de indiferença. Muito para falar de liberdade e ruptura de todos os laços de amor e amizade.
Agora tudo o que ela tinha que fazer era rezar... rezar não só para que Morgan encontrasse ao Niall, mas também para que não se matassem o um ao outro quando
ele o fizesse.

-Estaria você louca se seguisse caminho com esta tormenta, senhorita - disse o hospedeiro, agitando um dedo diante da Athena. -Se diz que vai ser a pior da
temporada. Não posso imaginar como conseguiu chegar tão longe.
Athena estava de pé na soleira do colorido estábulo e olhava a neve voando fora. Depois de uma larga parada no Golden, certamente parecia uma espécie de milagre
que ela tivesse viajado todo o trajeto de Denver com cada vez mais mau tempo. Embora ela logo que sentia o frio, a viagem tinha estado longe de ser agradável. Suas
pernas tinham ultrapassado o ponto da dor, convertendo-se em insensíveis apêndices úteis nada mais que para aferrar-se ao ventre de seu cavalo.
O castrado animal tinha mostrado um grande espírito ao levá-la tão dentro nas montanhas, até essa pequena cidade mineira com sua estreita rua de saloons, lojas
e um único hotel e estábulo. Dandy certamente merecia uma quente baia, uma ampla porção de aveia e uma boa noite de sono.
Mas Yankee Gulch estava ainda a quilômetros de distância de onde ela desejava ir. Onde ela devia ir.
-Não posso deixar que se leve um de meus cavalos esta noite -disse o hospedeiro com inquietação. -Só fica outra hora de luz. Seria igual ao assassinato... o
seu e o do cavalo, os dois.
Ele tinha razão no do cavalo, e o seu certamente não podia ir mais longe. Ela enfrentou a uma escolha difícil de aceitar: ficar a passar a noite ali, sabendo
que Niall devia estar já no Long Park, ou arriscar a vida de uma besta inocente.
Isso não podia fazê-lo. Mas a terceira alternativa a enchia de tal terror que sentia uma frieza muito mais selvagem que algo com que a natureza pudesse prover.
Suspirou e se girou para o hospedeiro.
-Disse você que tinha uma habitação livre. Ficarei por esta noite e sairei pela manhã.
O grisalho homem se relaxou e se arranhou sob o bordo de seu manchado chapéu.
-Bem. Agora, saiamos deste frio, e eu me assegurarei de que seu cavalo esteja bem cuidado esta noite. Os quartos não são elegantes, mas em uma noite como esta...
- se encolheu de ombros e fez um gesto para a porta do hotel anexo.
O quarto era tão simples como o hospedeiro tinha avisado, e só ligeiramente limpo. Estava empesteado pelo suor rançoso do ocupante anterior e a fumaça de cachimbo,
viciando cada respiração que ela tomava.
Athena tragou seu desgosto e depositou seu pequeno fardo sobre o irregular chão. Os lençóis sobre a cama, embora muito remendadas, pareciam razoavelmente limpos.
Não é que ela esperasse dormir muito...
Levou a única e desvencilhada cadeira de madeira até a janela e observou como a neve cobria a rua, os edifícios construídos com baixo orçamento e o punhado
de carroças atadas frente ao armazém geral. Os poucos pedestres se moviam apressadamente, figuras anônimas de cabeças abaixadas e botas manchadas de branco. Denver,
e as comodidades do lar, pareciam estar a um milhão de quilômetros de distância.
Voltar era outra possibilidade que ela não considerava. A tensão em seu estômago lhe dizia que seus instintos eram corretos. Devia chegar ao rancho. Os dois
homens que mais queria no mundo se encontravam em horrível perigo.
Apesar de sua convicção de que o sonho estava fora de toda questão, seu queixo começou a cair sobre seu peito. Ela tratou de comer um pouco do pão que Monsieur
Savard tinha empacotado para a viagem, mas estava tão seco e sem gosto como a areia. O pequeno quarto se sentia como uma jaula... a classe de jaula que Morgan havia
descrito quando tinha falado da vida dela... e a impensável ideia que ela tinha rechaçado começava a parecer atrativa. Só um último e persistente medo a detinha.
Dormiu a intervalos na cadeira. Fora do torvelinho de sua imaginação, uma imagem se formava em nítido branco e negro. Ao princípio, tudo o que podia ver
era neve: neve no chão, entre as árvores, no céu, pintando cada plúmbeo e apagado matiz.
Logo viu a forma negra estendida no chão... negra pelagem, negra cauda, negro focinho. Os olhos estavam abertos, mas não viam. O corpo estava perfeitamente
imóvel. Nenhuma respiração saía pelas abertas mandíbulas. Mas havia outra única cor presente nesse mundo cinzento... um vívido matiz que supurava na neve junto à
cabeça do grande lobo.
Escarlate. A cor da fresca e brilhante sangue.
Athena saltou na cadeira, afogando com um grito.
Só foi um sonho, disse a si mesma. Mas era uma mentira. Ela tinha "sonhado" correndo junto ao Morgan como lobo, compartilhando o que ele sentia enquanto corria
sozinho. Parte disso tinha sido real. E se essa aparição também era real... ou o ia ser logo?
Já não ficavam escolhas. Morgan a necessitava, agora, e só havia uma forma de que ela pudesse encarar a tormenta e sobreviver.
Tremendo como reação, chutou sua bolsa sob a cama e tirou um maço de notas de dinheiro de seu bolso, deixando-os onde pudessem ser encontrados pelo hospedeiro.
O sol se pôs; pouca, se alguma, gente estaria na rua para vê-la partir ou tentar detê-la.
Se escapuliu escada abaixo, insistindo aos outros inquilinos a permanecer em seus quartos. O aroma de comida gordurenta pegou ao nariz, mas o hospedeiro estava
ocupado em alguma outra parte e ela passou pelo vestíbulo sem ser vista.
A neve continuava caindo tão fortemente como antes. Athena correu para o estábulo e se assegurou de que Dandy tinha sua manta e sua aveia. Unicamente tinha
um favor mais que lhe pedir.
Ocultando-se atrás de sua fornida corpulência, despiu-se rapidamente. Primeiro veio o casaco, logo as duas camisas, e logo as calças. Um vento gelado soprava
através das gretas nas paredes do estábulo, enroscando-se em torno de sua carne nua. Mas o frio carecia de importância, sendo tão facilmente descartado como as camisas,
calças e botas.
Ela se deteve nua junto à cabeça de Dandy, acariciando seu focinho tanto para confortar-se a si mesma como a ele. Ele podia descansar a seu prazer, seu cuidado
assegurado pelo generoso pagamento que ela tinha deixado em seu quarto. Mas ela tinha um comprido caminho por diante.
E essa viagem devia começar com um ato de valor que não estava segura de possuir. Nem podia dar seu primeiro passo entre os cavalos. Fazendo uma rápida inspeção
do estábulo, descobriu um pequeno desvão onde escondeu sua roupa... não havia necessidade de dar ao pobre hospedeiro mais preocupações das que já encararia quando
descobrisse que ela não estava.
A palha rangeu sob seus pés descalços enquanto ela se escorria para a porta do estábulo. Não tinha necessidade de preocupar-se com a modéstia, ou de ser levada
a um asilo para loucos. A rua estava vazia de homem ou besta alguns. Inclusive as mais recentes marcas de carroça tinham sido apagadas. Yankee Gulch estava escuro
salvo por uma ou duas luzes brilhando nas janelas, mas sua lupina visão noturna fazia que tudo parecesse tão claro como o dia.
Abrindo caminho através da neve, rodeou o estábulo até o beco junto a este. Era um lugar tão bom como qualquer outro para tentar o impossível.
Não impossível. Houve uma época em que o fazia facilmente. Quando foi pouco mais que uma menina, não podia imaginar a vida sem isso. Ou uma vida sem o uso de
suas pernas.
Agora tem suas pernas de novo. Reclama o resto de você mesma, Athena. Pelo bem de Morgan.
Ela fechou os olhos e o desejou.
Nada aconteceu. Permaneceu de pé sobre duas débeis pernas, com o cabelo solto lhe açoitando o rosto. Seria tão fácil render-se e admitir a derrota...
Não posso. Passou muito tempo. Meu corpo já não sabe como fazê-lo.
Sentou-se no meio do beco, enterrando a cara nas mãos. Seria melhor simplesmente estender-se aí e deixar que a neve a cobrisse. Como podia ela ajudar ao Morgan...
ela, que tinha vivido uma vida suave e fácil, que se acreditava tão importante, e que ainda assim não tinha valor para encarar um desafio quando este se apresentava?
Quem era ela, para acreditar que tinha o poder de lhe salvar?
Elevou a cabeça e contemplou a neve que caía. Essa mesma neve caía agora sobre ele, em um lugar onde ele poderia estar jogado moribundo e sozinho.
Apertou os punhos e se obrigou a ficar em pé. Recordava como era quando mudar não requeria mais que um pensamento. Recordava correr através do bosque no rancho,
levada a êxtase das centenas de aromas e sons que nem sequer seus superiores sentidos humanos poderiam detectar.
Mas, por cima de tudo, recordava correr junto ao Morgan, lobo com lobo, completamente livre.
Uma peculiar sensação varreu seu corpo. Era como se cada músculo, cada osso, cada nervo, retorcesse-se de dentro para fora, mas sem dor. Uma névoa se elevou
sobre ela como um véu de seda, indiferente ao vento.
Ela elevou os braços e se entregou à mudança. A vida fluiu e se transformou. Sua visão se alterou, captando o mundo de uma posição muito mais próxima à terra.
Aromas e sons explodiram sobre seus sentidos como uma onda gigantesca.
Por um momento, tudo o que ela pôde fazer foi respirar, lutando para dirigir o assustador assalto. Gradualmente, o que parecia tão estranho se converteu em
algo familiar, um pouco tão natural como o tinha sido o caminhar antes de seu acidente. Deu um passo sobre quatro amplas garras. Suas pernas traseiras tremeram,
um persistente efeito residual de sua invalidez, mas a tiraram do beco, primeiro caminhando, logo ao trote e logo ao galope.
Correu pela rua deserta e para as choças aos subúrbios da cidade, passando a mina e os desperdícios das escavações humanas dentro da terra. O bosque a chamava,
e as montanhas, com canções que só alguém de seu sangue poderia ouvir.
O instinto assinalou o caminho ao Long Park quando não ficava caminho algum para que um ser humano o seguisse. O instinto e uma emoção muito humana chamada
amor.
Athena uivou em sinal de desafio à tempestade de neve e correu como nunca antes o tinha feito.

Niall tinha vindo por esse caminho. Morgan cheirou o chão, detectando os aromas enterrados sob uma capa de neve recentemente caída. Qualquer rastro que Munroe
tivesse deixado fazia muito que se apagou; se não estava morto já, nenhum humano nascido poderia lhe encontrar.
Mas um homem-lobo sim. E Morgan planejava fazê-lo assim, pôr a um lado seu ódio pelo homem que andava caçando. Pelo bem da Athena.
Quase sentia a Athena a seu lado, saltando sobre riachos congelados e através de matagais de arbustos de bagos. Mas ela estava em Denver agora, a salvo e cálida,
onde devia estar.
Sentou-se sobre seus quartos traseiros e deixou escapar um estrangulado uivo. As últimas palavras que lhe havia dito tinham estado impregnadas de crueldade
e amargura. Essa era a última lembrança que ela tinha dele... zangado, odiando, culpando-a por ser o que era em vez do que ele desejava que ela fora.
Ela não tinha cometido o mesmo engano. Ela tinha compreendido que ele não iria com ela. Possivelmente esse era o por que o tinha pedido.
Maldita seja, Athena Munroe. Encontrarei a seu precioso irmão. E logo deve deixar ir. Deixe ir, ouve-me?
Seus grunhidos se afastaram com o vento. Esticando os músculos, saltou sobre um banco de neve e seguiu a pista de um aroma. Nenhum outro animal era o suficientemente
estúpido para estar fora; o bosque e o parque tinham o aspecto que deviam ter tido antes que o primeiro intruso humano se entrou nessas montanhas. Em paz. Tão quieto
como os mortos, ou tão esquecido. Uma doce oferta de final que ele não podia aceitar.
Encontrou a sua presa umas poucas horas antes da alvorada. Niall estava escondido sob a parcial proteção de uma árvore caída. Não havia rastro de sua montaria.
Morgan cheirou a cinza no lugar onde ele tinha tratado de acender um fogo, mas nenhuma chama teria sobrevivido ao temporal.
Morgan se aproximou cautelosamente, com as orelhas pegas à cabeça. Ouviu o áspero som da respiração do Niall, sentiu o calor emanando de seu corpo... estava
vivo, então. Desprendeu-se de um selvagem remorso e se aproximou mais.
A cabeça do Niall se elevou bruscamente. Suas sobrancelhas estavam rodeadas de gelo, sua pele quase azul. Tentou mover-se, medindo em seu bolso.
Morgan se equilibrou contra ele e aferrou o pulso do Niall entre seus dentes, saboreando couro e lã de carneiro. O aroma do Munroe era rançoso pelo medo e o
esgotamento. Seu olhar encontrou a do Morgan, e a última faísca de briga o abandonou.
Até ficava uma comoção mais que encarar. Morgan lhe soltou e retrocedeu, sacudindo-os rançosos aromas da pelagem. Foi quase um alívio mudar e encontrar seus
sentidos amortecidos, como sempre estavam em sua forma humana.
Munroe exalou uma grande nuvem de vapor e tentou sentar-se.
-Você - disse roucamente.
-Sim - Morgan se abaixou sobre os calcanhares. -Vim para te levar de volta ao rancho.
Munroe riu.
-Você veio a... me salvar?
-Eu te deixaria morrer aqui, mas há dois que se preocupam com você. É por elas que vim esta noite.
-Dois? -ele tremeu e tratou de ajustar o pescoço de seu casaco com dedos congelados.
-Sua irmã, e Caitlin.
-Caitlin - ele trocou de postura de novo e caiu de costas. -Ela está bem?
-Ela e os outros estão a salvo.
Niall fechou os olhos.
-Você os encontrou?
-Sim. Seus homens disseram que saiu para lhes buscar quando se desatou a tormenta. Isso te outorga o direito a viver.
-O direito a viver - repetiu ele. -E o que dá a você o direito a me julgar, Holt? Você, que assassinou a seu próprio pai?
Morgan não sentiu surpresa alguma. Tinha vivido muito tempo entre os homens para manter semelhantes segredos indefinidamente, e ninguém tinha melhor motivo
para pô-los ao descoberto que Niall Munroe.
Mas a acusação do Munroe não lhe alcançou. Era como se o irmão da Athena estivesse falando de outro homem, evocando lembranças de outra vida.
-Não o nega - disse Munroe. sentou-se, encorajado pelo silêncio do Morgan. -Não é que isso fosse servir-te de algo. Culpo-me por não havê-lo descoberto faz
muito. Quão único não compreendo é por que não lhe penduraram.
-Então há algo sobre mim que não sabe.
-Clama ter uma justificação para seu parricídio? -ele riu novamente, os dentes lhe tocando castanholas. -Um homem capaz de fazer isso poderia fazer algo. Mas
você não é um homem, verdade? Você é uma besta que não pensa mais que em matar.
-Uma besta como sua irmã.
-Não! -Munroe ficou apuradamente em pé, com dificuldade, e se apoiou contra a árvore cansada. -Minha irmã não pode evitar o que ela é. Mas eu não a deixarei
entregar-se à monstruosa herança que sua mãe impôs sobre ela - seus olhos se nublaram. -Soube que ela era maligna desde a primeira vez que a vi na cama de meu pai.
Morgan ganhou consciência de seu corpo de novo.
-Ela?
-Gwenyth Desbois. A cadela que seduziu a meu pai e lhe arrebatou seu amor a minha mãe - os dentes do Munroe brilharam brancos no rígido ovalóide de sua cara.
-Eu a vi mudar muito antes que Athena aprendesse como retorcer seu corpo no de um animal. E meu pai sabia. Ele sabia o que ela era e ainda assim a desejava. Ele
obrigou a minha mãe a criar a Athena como se fosse dela...
-E você odeia a Athena por isso. Odiaste-a desde que nasceu.
-Se cale! Você não sabe nada sobre isso, sobre como foi saber o que ela era. Eu o teria oculto, a teria deixado viver uma vida comum. Mas nosso pai o contou
tudo quando pensou que ela era suficientemente mais velha para compreendê-lo. Ele a arruinou - Niall estampou seu punho contra a árvore, fazendo cair neve dos ramos
mortos. -E você... você a destruirá completamente. Esse é o porquê devo te deter, igual detive sua mãe.
Morgan inclinou a cabeça.
-O que aconteceu à mãe da Athena? -perguntou brandamente.
-Eu tinha oito anos a primeira vez que os vi juntos. Minha mãe não sabia. Ela não o averiguou até depois de vários anos. E eu era muito jovem para fazer nada
então. Mas quando tive doze me liberei dessa cadela, e meu pai nunca soube.
Doze. Dois anos mais jovem do que Morgan tinha sido quando deixou seu lar para sempre, jurando encontrar a seu próprio pai e lhe levar de volta a Califórnia.
Ele tinha abandonado sua infância quando completou os quinze.
Aos oito anos de idade, Munroe tinha visto seu pai na cama com seu amante. Quatro anos mais tarde, livrou-se dela. As feias imagens que cobraram forma na mente
do Morgan procediam do mais escuro dos lugares em seu interior: imagens de um menino com um revólver, uma mulher implorando piedade, e a terrível finalidade de um
disparo.
Uma pistola, uma faca, veneno... não importava. Niall era muito ardiloso para implicar-se a si mesmo na morte do Gwenyth Desbois. Não era fácil matar a um homem-lobo,
mas alguém com conhecimento, resolução e o ódio suficiente podia obtê-lo.
-Tive que fazê-lo - disse Niall. -Tinha que liberar a meu pai e restaurar a honra de minha mãe. Era a única maneira.
O ódio era um amo desumano. Podia fazer que um menino, ou um homem, acreditasse que algo que faça está justificada. Convencê-lo de que suas razões são puras,
boas e altruístas.
O menino tinha estado aí de pé com a pistola e escutado as súplicas. Tinha visto as mãos elevadas, os olhos vácuos, o tremor dos lábios. Tinha pontudo sua arma,
cuidadosamente. Um disparo foi tudo o que fez falta.
-Vê por que devo te deter? -disse Niall, sua voz soando muito longínqua. -Fica suficiente humanidade na Athena merecedora de ser salva.
Morgan viu a pistola na mão do Niall. Ele sabia o que isso significava, e o que faria falta para lhe parar os pés a seu inimigo. Uma provisão de músculos e
tendões, um salto, um único golpe, um limpo quebrar de ossos em um pescoço humano.
Outro assassinato.
Niall disparou. A bala queimou o flanco do Morgan, um surpreso instante de dor que pareceu menos real que a acalmada indiferença de seus pensamentos. Cambaleou.
Uma segunda bala roçou a têmpora do Morgan.
Pela Athena.
Caiu. O sangue desprendeu vapor ao tocar a neve. Morgan sentiu seu corpo trabalhando para curar as feridas, mas deixou o sangue emanar e a dor lhe transpassar.
Insistiu a seu coração a reduzir a marcha, a seus pulmões a deter sua luta por ar. Fechou os olhos.
A presença de Niall era uma débil calidez sobre ele. Aguardou um terceiro disparo, mas este não chegou. Seu corpo absorveu o chute do Niall sem reagir. Frio
metal pressionou contra suas mandíbulas. Deteve os batimentos do coração de seu coração justo quando os dedos de Niall procuravam o pulso na base de seu pescoço.
-Tão fácil - murmurou Niall. -Nem sequer lutou, bastardo. Por que? -ficou em pé abruptamente e se afastou, seus movimentos retrocedendo ao mesmo tempo em que
a consciência do Morgan. -Maldito seja. Vá ao inferno.
























CAPÍTULO 20

Athena conhecia o caminho. Como mulher poderia haver-se perdido, mas o lobo não podia ser confundido ou enganado por uns sentidos distorcidos. Correu sem pausa
através da tormenta, e, com a chegada do alvorada, soube que tinha alcançado a terra dos Munroe.
Não poderia haver dito o que foi o que a fez deter-se estando tão perto de seu objetivo, com os aromas da fumaça produzida pela madeira ardendo, cavalos e humanidade
flutuando em suas fossas nasais. O lugar era como qualquer outro do parque, onde as árvores e novelo de folhas perenes cresciam espessos ao bordo da pradaria. Nem
animal nem pássaro rompiam o silêncio. Mas ela se deteve, sua pelagem ficando erguida e suas orelhas oscilando para captar o som de uma voz.
A do Morgan. E ela compreendeu que isso era o que a tinha feito deter-se. O vento ficou quieto; a cacofonia de mil aromas, enredados pela tormenta, tornou-se
a assentar em uma gentil canção. E uma sutil nota soava doce e amada entre todas as demais.
Morgan. Ela girou seu focinho para o aroma, todo seu cansaço evaporando-se instantaneamente. Morgan estava ali, muito perto, possivelmente atrás do seguinte
grupo de abetos.
Atravessou correndo a pradaria, deixando atrás uma profunda ravina na neve. A meio caminho através de este diminuiu o passo, e suas patas traseiras começaram
a sofrer cãibras e a sacudir-se com uma dor que gritava em seu corpo como uma alerta de destruição.
Equivocado. O aroma do Morgan estava equivocado. O que tinha parecido uma pura e doce melodia estava manchada. Misturado com o aroma do Morgan havia outro que
ela conhecia tão bem como o seu próprio, e um terceiro que ela reconhecia e temia por cima de todos os outros.
Niall tinha estado ali, ou muito perto. E ou ele ou Morgan tinham derramado sangue.
Nem sequer a dor em suas patas poderia fazê-la ir lento agora. Forçou a seus músculos a obedecer e saltou, rompendo a superfície da neve em sua descida e saltando
novamente. O bordo da pradaria se elevava adiante. abriu-se caminho com suas garras por um sobressalente pedra bruta e entrou na coberta das árvores.
O aroma de sangue se voltou mais espesso, o aroma do Morgan mais forte enquanto o do Niall se apagava. As garras da Athena logo que tocavam o chão. Em uma pequena
clareira, protegido do pior da tormenta, encontrou-lhe.
Ele estava deitado sobre neve derretida por seu próprio sangue, as extremidades retorcidas e espesso cabelo escuro lhe tampando a cara. O chão a seu redor tinha
sido pisoteado por pés calçando botas. Os de Niall.
Niall tinha estado ali. O marcado aroma do metal e a pólvora serviam de contraponto ao fedor do sangue. Nenhuma baforada de fôlego se elevava dos lábios abertos
de Morgan.
Athena cobriu a distância restante em um só salto. Perdeu o equilíbrio, caiu de lado e se apressou a dar os últimos passos sobre pernas trementes.
Morgan jazia sem mover-se. Athena deu um empurrãozinho a seu queixo com seu focinho e grunhiu em sua cara. Sua pele estava fria. Arranhou-lhe freneticamente
com suas garras, alheia aos arranhões que estava deixando sobre sua pele nua. O peito dele não se movia. Ela agarrou seu braço entre os dentes e puxou-o para um
lado e outro com pequenos e desesperados gemidos.
Só então, quando cada intento lhe falhou, ela se sentou sobre seus quartos traseiros e uivou. Os lobos não podiam chorar. Mas ela era humano também, e os humanos
possuíam uma estranha e estúpida qualidade chamada esperança.
A esperança lhe deu a força para mudar. A esperança manteve seu coração pulsando enquanto ela se estendia em cima dele, estendendo braços e pernas sobre ele
como uma manta vivente. A esperança esquentou seu coração enquanto beijava seus inertes lábios.
-Vive - sussurrou. -Maldito seja, Morgan, vive - afundou os dedos em seu cabelo e lhe levantou a cabeça como se assim ele pudesse ver a determinação em seus
olhos. -Vai render-se agora, depois de ter lutado contra o mundo com cada respiração? É assim como isto acaba? Bem, subvalorizou-me por última vez, Morgan Holt.
Beijou-lhe novamente, machucando, mordendo seu lábio inferior até que saboreou sangue. Odiando-o, e lhe amando mais que à vida mesma.
Ele ofegou. Seu peito se arqueou como se estivesse movido por uns fios invisíveis, e logo aspirou uma grande baforada de ar. Brilhante e fresca sangre emanou
das feridas em seu flanco e sua têmpora.
-Morgan! -gritou ela, procurando algo com que deter a hemorragia. Mas ele não a ouviu. Seus olhos permaneceram fechados. Uma escura névoa se formou sobre seu
corpo, o sinal revelador de uma iminente mudança.
Ela se deslizou longe dele justo enquanto a transformação começava. Não foi nem rápido nem suave; em metade da mudança, ele flutuou entre lobo e homem igual
a tinha feito em seu dormitório no Long Park. Só que esta vez não foi por escolha dela. Seu corpo não podia completar a mudança em seu debilitado estado, tão próximo
à morte. O sangue continuou tingindo a neve.
Athena o aferrou por seus ombros cobertos de pelagem e o sacudiu.
-Decide, Morgan! -gritou. -Vive ou morre. Lobo ou homem. Mas se escolher a morte, saberei que é um covarde!
As pálpebras dele se agitaram brandamente, revelando os estranhos olhos amarelos de um lobo. Ele se estremeceu violentamente, e a névoa se voltou uma nuvem
asfixiante. A forma sob as mãos da Athena terminou sua transição. O lobo negro jazia de lado, logo que respirando.
Ela enterrou as mãos na pelagem de Morgan, sentindo as feridas. Seus dedos estavam secos quando os retirou. Já não havia mais sangue. Os ossos e músculos se
sentiam firmes e inteiros. E seu coração pulsava com força sob suas costelas.
Sem questionar o milagre, Athena se deixou cair e descansou a cabeça sobre o flanco dele. Soube que ficou adormecida quando sentiu mãos... mãos humanas... em
seu cabelo, acariciando-o e apartando-o de sua cara.
Ela piscou e se sentou. Morgan estava estendido a seu lado, sua pele nua intacta e seus olhos livres da dor. Ele deixou cair sua mão e levantou o olhar para
ela, esperando suas perguntas.
-Não estou sonhando? -sussurrou ela.
-Não - ele sorriu... esse débil e quase imperceptível sorriso que ela finalmente tinha aprendido a reconhecer. -Nem tampouco o estou eu.
Ela alargou a mão, tocando qualquer parte dele que podia alcançar. Não era sua imaginação. As feridas que tinham sangrado tão livremente se foram, como se nunca
tivessem existido. Ao princípio, ela pensou que inclusive a neve manchada de sangue se desvaneceu, mas logo viu a escura mancha a vários metros de distância e compreendeu
que Morgan os tinha transladado a ambos ao chão limpo.
Era de dia agora, e a tormenta tinha passado, mas a temperatura permanecia abaixo de zero. Athena se sentia tão cálida como se ela e Morgan jazessem envoltos
em mantas diante de um lhe chispem fogo.
-Curou a si mesmo - disse ela maravilhada. -Como?
-É uma coisa perigosa - replicou ele. -Um grande risco que aceitar quando não há nenhuma outra escolha. Se um de nós que esteja ferido gravemente... se nos
transformamos nesse momento, ou morremos ou saramos.
-Pensei que estava morto - seus olhos se empanaram com tardias lágrimas. -Não respirava.
-Mas te ouvia - ele capturou uma mecha de cabelo da Athena e o colocou atrás da orelha. -Me chamou covarde.
Os punhos dela se apertaram com o selvagem desejo de apagar a golpes a gentil zombaria em seu rosto.
-Encontrou isso tão divertido? Desfrutou me fazendo pensar que estava morto?
-Não. Mas tinha que convencer ao Niall de que o estava.
Niall. Athena fechou os olhos, e suas lágrimas se derramaram.
-Ele pensou que te tinha matado - disse. -Quando disse que ia retornar ao Long Park, soube que algo mau ocorria. Eu deixei Denver logo que imaginei suas intenções.
-Arriscou-o tudo - disse ele. -Se transformou, Athena. Trouxe-me de volta da morte.
De algum jeito, essa vitória parecia superficial. Dissesse Morgan o que dissesse, não lhe tinha salvado. A admiração em seus olhos, o orgulho em sua voz, faziam
a prova que se morava muito mais insuportável.
-Sim - disse ela. -Me transformei.
-Porque temia por mim. Mas deve ter sabido que era Niall quem estava em perigo.
Ela encontrou seu olhar, e soube. Soube que Morgan compreendia a razão pela que Niall tinha vindo a lhe matar. As acusações de Cecily estavam entre eles, não
ditas, mas impossíveis de ignorar. Inclusive agora, depois de seu milagroso escapamento da morte.
Especialmente agora.
-Acreditarei em você, Morgan - disse ela. - O que me diga, eu acreditarei.
Ele desviou a vista.
-Meu grande segredo - disse ele. -Não teria importado se eu tivesse ficado com os lobos. Mas Harry e sua gente me trouxeram de volta aos homens, onde o passado
nunca é esquecido. Nem sequer por aqueles que o viveram.
Então era verdade. As coisas horríveis que ela se negou a aceitar... alguma parte delas deviam ser verdade. Mas a pergunta que ela sabia que devia fazer lhe
congelou na língua.
-Estive na prisão - disse ele, com voz carente de expressão. -Niall o descobriu. Isso é pelo que voltou. Para te proteger.
Athena se sentou muito quieta, temerosa de que se se movia seu corpo inteiro poderia fazer-se pedacinhos como uma figura esculpida de gelo.
-Cecily me disse - replicou isso ela. -Ela foi a que o contou ao Niall.
-Contou-lhe sobre mim. Sobre o que sou -ele produziu um áspero som pelo baixo. -É verdade - finalmente ele a olhou. -Não o acreditou até agora. Tinha fé em
mim.
Quão amargamente zombava de si mesmo. Ela reconheceu o desprezo, o incansável auto-julgamento. O que queira que fosse que tinha feito, seu castigo nunca tinha
acabado. Ele o levava consigo sempre.
O contaria tudo se ela perguntava. Cada desagradável detalhe de seu crime e encarceramento, algo que ela pudesse desejar conhecer. E ele esperaria, como bem
lhe havia dito, que ela se afastasse dele cheia de repugnância e horror.
-Não deveria ter retornado, Athena - disse ele. -Seu irmão teria estado a salvo.
Disse-o com tanta relutância, como se estivesse revelando uma grande debilidade... como se salvar uma vida fosse mais vergonhoso que arrebatá-la. Apesar do
que ele havia dito antes, assumia que ela tinha escapado de Denver para proteger ao Niall. E não o tinha feito? Não tinha estado ela igualmente assustada por ambos
os homens, sabendo que Niall não tinha a mais mínima oportunidade contra um homem-lobo?
Mas ela conhecia seu irmão. Conhecia sua falta de escrúpulos, e sua tenacidade. Teria estado preparado para enfrentar com um homem-lobo... ou um assassino.
Um homem que matou a seu próprio pai. Essas tinham sido as palavras de Cecily. E Morgan o tinha admitido. Mas não tinha machucado ao Niall. Seu coração se encheu
com a convicção de que ele tinha permitido deliberadamente ao Niall que atacasse e lhe desse por morto, para não sentir-se impulsionado a matar a seu irmão.
Ela só podia pensar em uma razão pela que ele arriscaria sua própria vida para salvar a do Niall.
-Se você fosse um assassino -disse- te seria fácil matar a um homem ao que odeia.
Ele a contemplou, permanecendo teimosamente mudo. Forçá-la-ia a tirar suas próprias conclusões mais que fazer algo para limpar seu nome, ou restaurar seu valor
a seus olhos.
Assim dependia dela. Ela devia decidir: acreditar em Cecily e Niall, e ao próprio Morgan, ou olhar além dos frios feitos, ao homem por trás dos mesmos. O homem
cuja bondade brilhava como a bíblica luz sobre o Portal de Presépio. O homem que amava.
As palavras eram inadequadas. Aí, em meio da natureza, os dois se sentavam na neve alheios ao frio ou à nudez que teria matado a um homem ou mulher normal.
Aí, a linguagem humana não tinha poder para expressar os sentimentos que se amontoavam em seu peito e queimavam sua garganta.
Mas havia outra classe de comunicação muitíssimo mais eloquente. Repentinamente, e mais agudamente também, ela foi consciente de sua nudez em uma maneira nova
e tentadora... sua nudez e a do Morgan.
Morgan pareceu ler seus pensamentos. Ele esticou seus músculos e tratou de erguer-se, mas seus joelhos dobraram. Agarrou-se a um abeto e se reclinou contra
ele, respirando com dificuldade. Athena se tragou um grito de alarme.
-Ambos estamos esgotados -disse. -Precisamos descansar antes de... antes de fazer nada mais.
-Está doente? Suas pernas...
Naturalmente, ele se preocuparia com ela e não por si mesmo.
-Estou cansada. Doem-me as pernas e necessitamos tempo para nos recuperar.
E para decidir o que fazer. Ela deixou essas palavras sem dizer, mas ele as ouviu.
-Levar-te-ei a rancho.
Para que Niall tenha outra oportunidade de te matar? Para que possa sair fugindo por última vez?
-Não. Não ainda -ela manteve sua voz serena, sua expressão acalmada. -Só preciso descansar. Em algum lugar tranquilo. Por favor, Morgan.
Os músculos da mandíbula dele se moveram.
-Há uma cova não longe daqui. Não é muito melhor...
-Servirá - ela começou a levantar-se e Morgan se apressou a lhe oferecer seu suporte. Ela sentiu a vibração dos músculos sob sua pele enquanto ele tentava levantá-la.
-Posso caminhar - insistiu ela. -Me leve até a cova, Morgan.
Ele se apartou imediatamente, e ela compreendeu que ele acreditava que não queria a tocasse. O pensamento a adoeceu, mas tragou seu protesto e o deixou tomar
a dianteira, avançando com passos largos pela neve com um passo muito rápido para que um homem debilitado pudesse suportar. Inclusive assim, ele voltava a cabeça
para ela cada poucos passos para assegurar-se de que lhe seguia.
Não tiveram que ir muito longe. Seu caminho lhes levou através das árvores e para uma escarpa de granito que formava um conjunto de salientes colina acima,
acabando em um beiral com uma crosta de pedaços de gelo. Debaixo estava a escura boca de uma cova. Morgan entrou, moveu-se por seu interior, e emergiu uns quantos
minutos mais tarde.
-O lugar é seguro - disse, dirigindo-se ao ar por cima da cabeça dela, recusando olhar seu corpo ou a seus olhos. -Um urso a converteu em sua toca uma vez,
mas não ficou muito tempo.
Ela assentiu e passou por cima do bordo da entrada. Morgan se pegou a uma rocha para que não lhe roçasse por acidente. Athena arrastou os pés entre folhas secas
e agulhas de pinheiro, cheirando a numerosos antigos habitantes da cova. Era um suave, quente e reconfortante aroma, como o de uma mantinha de menino bem usado.
Sua cabeça quase tocava o teto da cova.
Esse seria o lugar. Ali, Athena Sophia Munroe faria algo que seu antigo eu nem teria sonhado, igual a ela nunca tinha sonhado voltar a caminhar.
Ajoelhou-se sobre a colcha de folhas e observou ao Morgan entrar, vacilar, e assentar-se contra a curva parede de rocha junto à entrada.
-Posso fazer uma fogueira - ofereceu ele.
Não tenho frio, quase disse ela, e compreendeu seu engano. Ela precisava lhe atrair mais perto, mas ele se estava ficando tão longe como lhe era possível.
Tão poderoso era sua auto depreciação? Não confiava ele em si mesmo no que se referia a ela? Já não a desejava?
Não. Não a menos que seu corpo atuasse de maneira independente de sua mente. Ela sabia o que via, o que ele tentava ocultar. Ele pensa que você não lhe deseja.
Possivelmente não tem a força suficiente. Possivelmente isto é um engano.
Um engano, sim, de acordo às regras que governavam a gente como Cecily Hockensmith. Mas não para eles dois. Isto não era só correto, a não ser necessário.
Todas as perguntas foram silenciadas. Ficou em pé e caminhou para ele, cada passo sendo dado com grande cuidado. Ele levantou a vista e se encolheu como se
lhe enfrentasse com um rifle carregado e a morte nos olhos.
Ela se deixou cair de joelhos antes que ele pudesse mover-se.
-Morgan - disse, e tocou seu braço. -Não te odeio. Nunca poderia te odiar.
Ele não respondeu. Ela roçou sua cara com a ponta dos dedos. Cada músculo no corpo dele se esticou.
-O que queira que seja que possa ter feito, Morgan... quem quer que fosse no passado... não é quem é agora. Eu te conheço. Pensou que me converteria em seu
juiz, como Niall, e te condenaria?
A risada dele foi incisiva, como as novas cercas de arame sendo colocadas por toda a pradaria.
-A santa senhorita Munroe, sempre tão generosa com os despossuídos.
O insulto não teve o poder de ferir. Ela compreendia sua fonte.
-Faria isto uma santa? -sussurrou ela. Tomou sua cara entre as mãos e lhe beijou. Os lábios dele, firmes e inflexíveis, resistiram por espaço de um segundo.
Logo ele gemeu profundamente e a apanhou entre seus braços.
A vitória foi doce, mas Athena soube imediatamente que saboreá-la devia ficar para mais tarde. O beijo do Morgan era urgente, quase feroz, transbordante de
necessidades que ela não podia esperar que ele controlasse. Nem desejava que o fizesse. Não quando ela tinha o poder de aliviar sua dor por um pouco.
Permitiu a seu corpo derreter-se no dele. Ele se elevou sobre os joelhos, levando-a consigo, de forma que seus corpos se tocassem em todo o comprimento: peito
com peito, quadril com quadril, coxa com coxa. Ele ardia como se tivesse febre. Ela sentiu sua rígida plenitude pressionada contra seu ventre e ficava quente e fria
por turnos.
Não tema. Não havia espaço para o medo. Mas esse era o seguinte grande troco, que seguia à transformação de seu coração e seu corpo humano. Esse era a soleira
do qual ela já não poderia retornar ao que tinha sido antes.
Morgan não devia sentir nenhuma vacilação ou dúvida. O que ia acontecer era por ele. Só para ele. Ele não teria motivo para arrepender-se de que eles dois fizessem
juntos agora, não importa quantas outras coisas de seu passado lamentasse. Essa era a oportunidade de ambos de criar uma lembrança perfeita que lhes durasse uma
vida inteira.
Athena estava preparada para aceitar ao Morgan dentro de seu corpo incluso sem a doce persuasão de beijos e carícias.
Ela quase desejava que ele a baixasse sobre o chão e consumasse a fome que ambos compartilhavam.
Mas ele ungiu a comissura de sua boca com um beijo sussurrado, sua língua escapando para tocar o bordo seus lábios. Sua mera delicadeza despertava o desejo
da Athena. Esta abriu a boca, precisando sentir alguma parte dele dentro dela. Ele ignorou o convite e gentilmente apanhou entre os dentes seu lábio inferior.
A sensação provocada por sua sucção foi deliciosa, um forte puxão de seus nervos que ressoou no profundo de seu ventre. Ela fechou os olhos e deixou de resistir.
Quando ele explorou cuidadosamente cada linha e curva de sua boca, baixou a cabeça até seu ombro e roçou com seus dentes a sensível pele na união com seu pescoço.
Não houve dor, só deleite, mas, ainda assim, ele aliviou cada dentada com sua língua. Seu fôlego crepitou na orelha dela.
-Morgan -suspirou Athena - Isto é...
Ele pressionou um dedo contra sua boca e negou com a cabeça. Ela compreendeu. Não haveria palavras, nada do mundo humano que invadisse esse oásis em meio da
neve. Morgan a elevou contra si e pegou seu corpo ao dele, cálida pele sobre cálida pele. Os peitos dela foram descansar no oco de seus ombros. Sem esforço, ele
a posicionou, colocando as mãos sobre sua cintura, até que os mamilos dela roçaram contra seu queixo e logo seus lábios.
Uma vez antes ele a havia tocado aí. Mas o que ele tinha feito em sua habitação no rancho não era nada comparado com isto. A ponta de sua língua brincou com
seus mamilos até que estes se converteram em picos palpitantes, e então ele tomou em sua boca.
Athena tinha aprendido, fazia muito, que os peitos das mulheres estavam feitos para alimentar e nutrir aos bebês. Agora ela descobria que ocultavam segredos
de prazer que só um homem podia liberar. Morgan mamou dela, massageando sua carne entre suas mãos. Ele desenhou diminutos círculos com sua língua e levou seus dentes
até a mera ponta antes de encher sua boca com ela. Athena deixou que sua cabeça caísse para trás, gozando do corpo que Morgan tanto adorava.
Esse corpo de mulher tão perfeitamente desenhado para encaixar no seu. E Morgan estava decidido a familiarizar-se com cada parte do mesmo. Athena não estava
segura de que pudesse suportar a espera.
Não lhe deu escolha. A sua era uma gentil tirania de prazer. Quando terminou com um peito se moveu ao outro para lhe dar igual atenção, bebendo-se seus gemidos
com rápidos beijos.
Logo a deslizou para baixo, colocando as coxas dela a cada lado de seus quadris. Ela não se atreveu a olhar entre ambos. A lustrosa dureza de sua ereção pressionava
contra ela, a quente ponta muito perto do lugar que se tornou tão úmido e inchado. Já seu corpo sabia como se sentiria, como a deliciosa agonia se veria aliviada
quando ele enchesse a profunda dor em seu interior.
Mas foram os dedos dele os que a encontraram em troca, roçando entre suas pernas até dar com o oculto botão de nervos. Seu polegar acariciou em um movimento
rítmico enquanto seu outro braço a sustentava quando as pernas dela já não puderam seguir fazendo-o.
Um pouco mais, só um pouco mais, e ela encontraria seu caminho para o paraíso. Esta vez, quando acontecesse, ela queria que ele estivesse com ela completamente.
Cegamente, alargou uma mão para tocar qualquer parte dele que pudesse, e encontrou o quente e escalonado plano de sua barriga.
Ele capturou sua mão e pressionou sua mão contra seu próprio peito. Fê-la reclinar-se de novo e seu recentemente flexível corpo se arqueou para elevar os quadris
sobre as coxas do Morgan seus joelhos um a cada lado dele, seu cabelo esparso pelo chão da cova.
Ela estava plenamente exposta. Indefesa, sim, mas não da forma em que o tinha estado em sua cadeira. Isto era voluntária rendição, excitação, antecipação de
inconcebíveis alegrias por vir.
Não demorou para chegar. Algo se deslizou dentro dela, passando o suave portal tão aberto ao toque do Morgan. Ela ofegou com surpresa.
Ele se inclinou sobre ela e a beijou na testa.
-Estou-te preparando - disse, e ela soube que eram seus dedos os que tinham encontrado seu caminho dentro dela, preparando-a, voltando-a louca por uma mais
ousada penetração. -Está tão molhada -sussurrou ele, lhe roçando a orelha com os lábios. -Tão ansiosa por me alojar dentro de você.
As palavras humanas que ele tinha pronunciado sustentavam uma magia insuportável. Sim, ela estava molhada, e pronta, e ansiosa de desejo por ele. Mas sua boca
não podia formar os sons para lhe fazer obedecer. Ela fechou os olhos e o suportou com uma mescla de dor e prazer, e quando o calor da boca dele substituiu a seus
dedos, ela soube quão ingênua era realmente.
Sua língua seguiu o mesmo ardente atalho que suas mãos antes, jogando com ela e chupando-a, lambendo sua umidade, afundando-se profundamente dentro dela só
para retirar-se novamente. Seu corpo escalou até um precipício, deixando sua mente ainda atada à opaca terra.
-Não - ofegou ela. -Morgan, eu quero... os dois. Juntos.
O calor de seu fôlego a abandonou, e, por um momento, ela se sentiu fria e abandonada. Logo suas fortes mãos estavam lhe separando as coxas, elevando seu traseiro,
atraindo-a para ele. Na postura correta, ao fim, para terminar o que ele tinha começado.
-Quando entra em você - sussurrou ele- não haverá volta atrás.
Ela elevou uma mão para cobrir sua boca como ele tinha feito com a sua, lhe silenciando, sentindo sua própria umidade em seus lábios. E logo ele estava dentro
dela, como ela tinha imaginado, só que mil vezes melhor. Não havia dor, somente a plenitude dele expandindo, enchendo, completando.
Morgan tinha sabido, do momento em que tinha sustentado a Athena nua em seus braços, do momento em que a tinha saboreado, que sua união seria como nenhuma outra
que tivesse experimentado antes. Não eram só os muitos anos de forçado celibato. Não era que sua única vez com Tamar tivesse sido tão fria e carente de emoção. Não,
era tanto muito mais que isso, mais inclusive que o desejo que tinha sentido pela Athena quase desde dia em que ambos se conheceram.
Athena era dele. Ele seria o primeiro em possuí-la, em tomar a virgindade que voluntariamente lhe concedia. Ela se entregava sem relutância ou falsa modéstia.
O aroma do desejo impregnava a cova, e o intoxicante sabor de seu desejo ainda permanecia em sua língua.
Ele sabia que este ato de amor era um presente do momento.
Depois de que tivesse acabado, as perguntas ainda estariam ali... as perguntas, as dúvidas e os medos. E não lhe importou. Por agora só havia uma realidade,
e tanto o lobo como o homem gritavam que a desfrutasse por primeira e última vez. Por um momento, ele e Athena aferrariam a salvação com as duas mãos.
E ainda, quando a penetrou, moderando-se e desesperado por não machucá-la, soube quão penosas tinham sido suas maiores expectativas.
Ela estava escorregadia, quente e estreita em torno dele, e, enquanto ele se movia mais profundo, ela afundou os dedos no tapete de folhas sob suas costas e
gemeu docemente. A pequena barreira cedeu facilmente, e ele ainda se conteve até que ela alargou uma mão e agarrou seus ombros em urgente demanda.
Com um gemido de alívio, ele empurrou de forma dura e certeira. Foi como retornar a um lar que tivesse estado perdido durante muito tempo. Ela se arqueou contra
ele, elevando os quadris, lhe atraindo mais profundamente ainda em seu interior. Ele agarrou suas firmes nádegas para mantê-la quieta enquanto se retirava e logo
a penetrava de novo mais rapidamente. Ela ofegava ao mesmo tempo em que se produziam os movimentos dele, soando como o batimento do coração da própria vida.
Mas ela estava muito longe. Ele a elevou de modo que ela estivesse sentada escarranchado em seu regaço e seus mamilos pressionassem contra suas costelas. Ela
tinha os olhos fechados, a pele ruborizada, e os lábios separados em uma expressão de êxtase.
Ele queria lhe ver os olhos, vê-los olhando os seu enquanto ele a fazia sacudir uma e outra vez.
-Me olhe - ordenou que. -Me olhe, Athena.
Ela obedeceu. Suas pestanas se agitaram brandamente, revelando uns olhos mutáveis quase engolidos pelo negro de suas pupilas. O olhar dela sustentou o seu como
se ambos fossem capazes de unir suas mentes além de seus corpos, e ele recordou aquela vez em Denver quando a sentiu chegar todo o caminho a sua alma.
Entregava-lhe sua alma agora, lhe sustentando o olhar enquanto ele a levava a plenitude. Seus pequenos ofegos se converteram em um prolongado suspiro de maravilha.
Ele teve um momento para saborear seu triunfo, e logo foi arrebatado ao mesmo perfeito lugar que ela.
Athena caiu contra ele, ofegando pesadamente, e ele sustentou perto seu tremente corpo. Eles eram ainda um em todos os aspectos. Mas a separação chegaria, tão
indevidamente como o amanhecer, e tudo o que lhe ficaria seria a lembrança de seu sedoso calor e o êxtase nos olhos dela.
O silêncio se apropriou da cova, mas não era a pacífica quietude do descanso depois de um vigoroso fazer o amor. Morgan não tinha esperança de obter tal recompensa,
e sentia, no teimoso apertão de Athena sobre seu corpo, que ela não a tinha encontrado tampouco. Quão único ele podia lhe dar tinha durado tão somente uns quantos
absurdos momentos.
E, ainda, quando ela finalmente se apartou, ele logo que pôde conter-se para não atraí-la de volta e começar outra vez. Seu corpo não deveria ser capaz de desejá-la,
mas o fazia. Ele o fazia. Reclinou a cabeça contra a fria pedra e fechou os olhos.
Vai, desejou. Por seu bem, Athena. Vai.
Soltou uma maldição quando sentiu o fôlego dela sobre suas bochechas, mas inclusive as maldições lhe abandonaram quando suas mãos se moveram para lhe abranger
abaixo. Um toque tão leve lhe fez estar pleno e firme como se não acabasse de tomá-la.
-Isto é tão novo para mim - murmurou ela. Seus dedos riscaram sua inteira longitude acima e abaixo, atrasando-se na aveludada ponta. -Se importa?
Ele gemeu.
-Se importar? Athena...
-O que você fez... foi tão maravilhoso. Eu quero fazer o mesmo por você.
O mesmo? Ele nunca tinha imaginado que ela poderia lhe tocar, lhe explorar, da mesma forma em que ele o tinha feito com ela. Ela era uma dama protegida, ignorante
dos caminhos da carne até que ele os ensinou. Mas suas mãos se moveram novamente, e ele se sentiu obrigado a admitir que ela aprendia muito rapidamente, de fato.
Mas essa não foi a surpresa final. Justo quando ele se resignou a sofrer a deliciosa tortura de suas carícias, as mãos de lhe deixaram, e sua boca continuou
o trabalho que aquelas tinham começado. Ele se aferrou à prudência com crispada resolução. Ela desejava dar, tão altruistamente como sempre, mas ele não estaria
em dívida com ela. Nem sequer nisto.
Com implacável gentileza, ele aferrou seus ombros e a fez erguer-se. Os olhos dela refletiram confusão, inclusive dor. Ele a beijou na boca e a deitou sobre
o manto de folhas, fazendo que se estirasse para amoldar-se à longitude de seu corpo. Logo acomodou suas pernas a cada lado de seus próprios quadris para que ela
o montasse escarranchado.
Ela baixou a vista para ele e compreendeu. Cedeu-lhe o controle, o domínio sobre o que fizessem juntos... juntos, compartilhando prazer e plenitude. Morgan
se converteu em seu prisioneiro voluntário, e ela aceitou seu convite.
Minúsculos movimentos de suas coxas e quadris jogaram com ele e lhe atormentaram enquanto ela encontrava a posição correta. Ela se deslizou para baixo, abaixo,
acolhendo-o em seu interior, e logo terminou afundando-se nele excitantemente. Foi ela quem controlou o ritmo, quem sorriu com assombrada satisfação quando ele ficou
indefeso em seu poder. Seu cabelo varria através do peito dele em sincronia com seus movimentos. Seus pequenos e regulares dentes lhe mordiscaram os ombros.
Nenhum dos dois pôde controlar o inevitável final. Morgan esteve tão inepto como um menino com sua primeira mulher. E, ainda, por alguma maravilha da magia
que eles criavam juntos, alcançaram os céus em impecável harmonia.
Athena se estendeu com a cabeça encaixada sob seu queixo, o batimento do coração de seu coração voltando-se mais lento ao mesmo tempo do dele. Morgan fechou
os olhos. Se ela ficava aí o tempo suficiente, sua carne se converteria na dele, seus ossos os seus, seu mero ser uma parte inseparável dele. Mas ele a reteve aí
até que ela ficou adormecida e o sol alcançou um ângulo que deixou a cova sumida em penumbras.
A escuridão lhe permitiu ocultar o que podia admitir em seu coração mas nunca poderia dizer em voz alta.
-Amo-te - sussurrou na fragrância de seu cabelo. Amo-te. Mas o amor nunca é suficiente.




































CAPÍTULO 21

O sol era uma moeda de cobre em um claro céu azul quando Niall alcançou o rancho. Viu as carroças do circo agrupadas em massa a um lado do segundo estábulo,
meio enterradas em neve e reluzindo como adornos brilhantes e novos.
Morgan lhe havia dito a verdade. Caitlin estava a salvo.
Niall arrastou os pés os últimos poucos passos até a casa, escada acima e para a galeria. Fazia muito que tinha deixado de notar seu próprio esgotamento. Seu
coração se havia dissolvido um pouco mais com cada passo que lhe afastava do lugar do assassinato, derretendo-se como um bloco de gelo para formar um atoleiro em
suas pernas e logo voltar a congelar-se de novo.
Muitos outros pés tinham feito esse caminho nas passadas poucas horas. Caitlin estaria com os outros. Seus amigos, sua família, a gente em quem ela confiava.
Todos eles ouviriam o que ele tinha que dizer. Não importava o que pensassem dele. Nenhum julgamento podia lhe afetar agora.
Não se incomodou em sacudir as botas enquanto entrava no hall. Uma rajada de calidez lhe açoitou a cara, fazendo escapar riachos de água de seu chapéu e da
neve incrustada em sua roupa.
A chaminé na salinha de receber ardia com um imenso fogo, consumindo avidamente os grossos ramos das quais este se alimentava. A um lado, erguia-se uma mesa
disposta com os restos de uma comida e numerosas cafeteiras fumegantes. O espaço frente ao fogo estava abarrotado de gente, entre estas muitas caras que Niall tinha
chegado a conhecer bem: Harry French, o miúdo Ulysses, Tamar a encantadora de serpentes... e Caitlin. Caitlin, que levantou a vista enquanto ele se detinha na soleira.
-Niall! -gritou ela, começando a ir para ele. Seu olhar se posou sobre a porta fechada a suas costas e retornou a sua cara. Seus passos se diminuíram e pararam.
-Morgan saiu para te buscar -disse, -onde está?
Assim que esse ia ser seu recebimento. Sabia ela que ele tinha sido o primeiro em ir atrás dela e seus companheiros? Importava-lhe que tivesse retornado ileso?
Se não o fazia, não era mais que o que ele se merecia.
Todos eles estavam lhe contemplando agora, suas caras lhe dizendo o que esperavam ouvir.
Ele se tirou as luvas e os deixou cair ao chão.
-Ouvi que tentaram sair com a tormenta. Me... alegro de que retornassem com bem - tomando-se seu tempo, foi até a mesa e se serve um tigela de café. Este estava
ainda quente, e muito amargo.
-Onde está Morgan? -esse foi Ulysses, o miúdo, comportando-se como se fosse três vezes mais alto do que em realidade era. Niall via algo da velha aristocracia
sulina em seu rosto, a indomável teimosia que não poderia ser inteiramente quebrantada por nenhuma desgraça.
Harry French aferrou com força o respaldo de uma poltrona e lhe olhou com olhos aquosos. A encantada de serpentes o olhou com ódio. As outras pessoas do circo,
os que ele nunca se tomou a moléstia de identificar, guardaram um silêncio antinatural.
Niall deixou a tigela sobre a mesa.
-Morgan Holt está morto. Eu o matei.
O relógio de parede ao outro extremo da habitação alterou seu uniforme e imperturbável ressonar. Ninguém falou. Ulysses apertou os punhos e pôs-se a andar para
o Niall. Harry lhe conteve.
Caitlin só ficou olhando.
Niall se girou para o French.
-Podem permanecer no Long Park tanto como seja necessário... todo o inverno, se gostam - flexionou os dedos. Estes estavam voltando para a vida, ao contrário
que seu coração. -Eu não estarei aqui para lhes incomodar.
Harry sacudiu a cabeça. Uma lágrima escorregou por uma esquartejada bochecha. Ulysses deixou descansar sua pequena mão sobre o braço do ancião.
Não houve alerta do ataque quando este veio. Tamar se separou bruscamente de entre os outros membros da trupe e se equilibrou contra Niall, sua boca aberta
em um grito sem som. Ele levantou as mãos para detê-la, mas ela o levou por diante com o peso de seu corpo e os enviou a ambos ao chão.
Niall sentiu suas unhas lhe marcar a bochecha e seu venenoso fôlego em seu rosto. O corpo ficou paralisado. Imateriais vozes gritaram em alarme, e mãos se alargaram
para conter a seu assaltante. Esta se debateu, não como um gato selvagem com presas e garras, mas sim como uma serpente, vaiando e lançando a cabeça dá um lado a
outro.
-Assassino - sussurrou, enquanto os integrantes da trupe a afastavam dele. -Eu te amaldiçôo!
Dois homens musculosos levaram a Tamar. Outros saíram voando da habitação como se não pudessem suportar respirar o mesmo ar que o maldito Niall Munroe. Até
o Harry French partiu, e Ulysses.
Unicamente Caitlin ficou. Ela não havia dito uma palavra.
Esse ia ser seu justo castigo.
-É verdade, Caitlin - disse ele. -Eu lhe matei.
Ela cambaleou, e ele teve que conter os músculos de suas pernas para acautelar que lhe levassem a seu lado.
-Vai dizer me... que não teve escolha? -sussurrou ela. -Quando ele foi salvá-lo?
-Não - ele contemplou o negro e redondo sedimento de café no tigela sobre a mesa, imaginando-o como a soleira do inferno. -O fiz para salvar a minha irmã -
com um esforço, encontrou seu olhar. -Não é a primeira vez que tenho feito algo como isto. Deveria saber toda a verdade.
-Você há...? -se afogou, logo tragou. -Assassinou antes?
Ele agarrou a tigela e bebeu o café adoçado em seu interior.
-Quando tinha doze anos, fiz que a mãe da Athena se fosse. Ela roubou a meu pai do lado de minha mãe e converteu a Athena no que é. Uma besta, como Holt. Ela
nunca poderá retornar. Escolheu sua própria vida por cima de sua filha e o homem que afirmava amar - manteve a tigela pego a seus lábios muito depois de que aquele
estivesse vazio. -O fiz por minha família. E não o lamento - a gente dizia que a confissão era boa para a alma, mas a sua não se sentia menos negra. -Não te peço
que compreenda. Como disse, não te causarei mais problemas. Vou voltar junto à Athena imediatamente. Ela sairá para Nova Iorque logo que eu possa dispô-lo tudo.
-Para que possa esquecer?
Niall soltou a tigela sobre a mesa tão abruptamente que este se quebrou, e uma última gota de líquido escuro se escorreu pela superfície da mesa.
-Sim.
-E o que passa se Morgan não está morto?
Suas palavras penetraram sua acalmada fachada.
-O que?
-Ele não é um homem comum. Assegurou-te bem de que lhe matou?
A idéia lhe golpeou com força entre os olhos.
-Estava morto. Disparei-lhe duas vezes.
-Ele me disse uma vez que os de sua espécie saram muito rápido. Não o notou em sua irmã? Na forma em que ela foi capaz de caminhar tão rapidamente depois de
que começou a tentar de novo?
Ele o tinha notado. Mas tinha escolhido ignorar o que o rápido progresso da Athena poderia significar. Se Caitlin estava correta...
As lágrimas afluíram a seus olhos. Era algo vergonhoso para um homem o chorar, pior ainda quando não compreendia as razões que o provocavam: ira e frustração
ao pensar que poderia não ter tido êxito. Alivio por não haver-se convertido em um assassino. E medo... a pior de todas.
Rezou para que Caitlin não tivesse visto sua debilidade.
-Não deveria ter sugerido essa possibilidade - disse secamente. -Agora terei que encontrá-lo e me assegurar.
-Está louco! -ela se adiantou coxeando, lhe forçando a apartar a cara. -Me nego a acreditar que lhe daria caça de novo, quando tem uma oportunidade de expiar
seu engano!
-Entregando a minha irmã? Não tem direito a me pedir isso. Nenhum direito.
-Sim que o tenho - seu silêncio lhe impulsionou a levantar a cabeça. Ela se tinha detido a uns passos de distância, com a pele avermelhada e os olhos muito
brilhantes. -Você me deu esse direito. Maldito seja, Niall Munroe, é que não pode ver o que é o amor? -ela elevou uma pequena e elegante mão. -Ou pode ser que não
cria a ti mesmo merecedor de amor e perdão?
-Eu não estou pedindo perdão.
-Mas igualmente o deseja - ela se aproximou mais, seus lábios separados. -Possivelmente meu perdão não importe muito, mas te perdôo, Niall. Não perdeu todas
suas oportunidades. Pode escolher deixar que Athena faça sua própria vida. Pode trocar a sua.
Ele riu amargamente.
-Por amor?
-Eu tenho fé em você. Desejou-me uma vez, como amante. Se ainda o faz... não é muito tarde para nós.
Suas pernas ficaram paralisadas com algo mais que frio e esgotamento. Elas lhe mantiveram quieto enquanto ela posava as ásperas gemas de seus dedos sobre sua
cara, mantendo-o prisioneiro com olhos incapazes de engano.
-Irei contigo, Niall... onde queira e como quero que seja sua e elevou a cara até a dele e o beijou.
A necessidade brotou em seu interior, dispersando qualquer outro pensamento. Ele elevou seu flexível peso em seus braços e devolveu o beijo com interesse, devorando
essa cheia e terna boca com toda a violência da luxúria não correspondida. Ela não retrocedeu. Em seu pequeno corpo havia um torvelinho de paixão que encaixava completamente
com o dele. Ela se reclinou contra ele, seus pequenos peitos encaixados no oco de seus ombros. Seu calidez dissipou o ultimo resto de frio, convertendo-se em uma
fonte de calor mais efetivo do que qualquer fogo poderia havê-lo sido.
Calor, e desejo. Seu corpo estava faminto pelo dela da forma em que um homem ao bordo da morte estava faminto de vida. Ela era vida. Se ele tomava o que ela
aceitava, estaria escolhendo um caminho que nunca tinha considerado antes, um que levava a começos e não finais. Não seria débil, a não ser forte... tudo o que um
homem estava destinado a ser.
Uns quantos passos escada acima e ambos estavam em seu dormitório. Já os fortes músculos em suas coxas se contraíram à altura dos quadris, convidando-o a entrar.
Ele sabia que podia tomá-la uma e outra vez e nunca estar satisfeito. Ela corcovearia e se retorceria debaixo dele, montá-lo-ia escarranchado, em cada maneira imaginável
em que uma mulher poderia aceitar a um homem dentro dela. Seus olhos lhe diziam que não havia prazer, nem erótico desejo, que lhe fosse ser negado.
Respirando com dificuldade, atraiu-a ainda mais contra seu corpo e a levou a sua cama. Já ela estava desfazendo os ganchos e botões de seu sutiã, desfazendo-se
da ligeira regata que era sua única concessão à modéstia. Ele não podia desprender-se de suas próprias capas de roupa o suficientemente rápido. Com frenética impaciência,
lhe ajudou, abrindo à força um cinturão e atirando de mangas.
Ela foi primeira em estar nua, sua miúda figura sem mancha salvo por uns quantos pequenos cardeais. Seu gesso tinha sido retirado, e sua perna parecia perfeita
e boa exceto por uma leve claudicação. Ela não era como Athena, e ainda assim...
Antes que ele pudesse completar o pensamento, as mãos dela estavam em suas calças, puxando e acariciando ao mesmo tempo. A tortura era quase intolerável. De
algum jeito, ela se sentou escarranchado sobre ele, seus ágeis dedos lhe liberando de toda contenção. Um toque suave como um sussurro dançou sobre sua quente e dolorida
carne.
-Ah - sussurrou ela. -Que grande montaria é esta. Me deixe cavalgar, meu garanhão. Me deixe cavalgar como não cavalguei nunca antes.
Niall estava parado no centro do último momento de prudência, a última oportunidade para tomar o controle. Deve voltar para Denver, murmurou a parte fria de
seu cérebro. Se Morgan não estiver morto... se Athena...
Logo todo pensamento racional cessou de existir, porque estava sendo envolto em calor e calidez, e a boca de Caitlin estava sobre a sua. Ela o montou justo
como tinha prometido, cumprindo as mais selvagens fantasias que ele jamais contemplou de moço ou homem. Ele empurrou com força dentro dela, e ela caiu sobre ele
com gritos e gemidos, sua cabeça caindo para trás e seu cabelo refulgindo como se nele tivessem aceso um milhar de diminutas faíscas.
Ele se correu tão rapidamente como um menino inexperiente. Caitlin se derrubou contra seu peito, recusando deixá-lo livre. E ele encontrou, para sua grande
surpresa, que seu corpo não tinha terminado com ela. Nem de longe.
Ela deixou escapar um pequeno grito enquanto ele rodava e a punha debaixo. Ele se sustentou por cima dela, olhando seus olhos entrecerrados.
-Acredita que ganhou? -perguntou brandamente. -Pensa que teve o melhor de mim, Caitlin? -monopolizou a bochecha dela com sua palma, a primeira carícia gentil
que lhe tinha dado desde sua união. -Nenhuma mulher me possui. Nem sequer você.
Ela se agitou, os movimentos de seu corpo despertando seu desejo sexual de novo.
-Niall, não é que você...
Ele introduziu sua língua na boca dela, absorvendo seu protesto. No espaço de um batimento do coração do coração, seus braços estavam enlaçados em torno do
pescoço dele. Ele alargou as mãos e lhe agarrou as mãos, as retirando uma por uma e as fazendo repousar sobre o travesseiro por cima de sua cabeça.
-Agora é meu turno - disse, mantendo suas mãos apanhadas com uma das suas próprias enquanto a outra se deslizava entre as coxas dela.
Ele procurou e encontrou a úmida e sensível parte dela que lhe tinha obstinado tão audazmente e a acariciou com a gema de um dedo. Ela deixou escapar um baixo
gemido de satisfação.
Ele se tomou seu tempo com ela, como nunca tinha feito com as mulheres fáceis que tinha conhecido no passado... jogando, acariciando, observando sua cara enquanto
esta se alterava de surpresa a prazer e logo a instintivo êxtase. Assim que ela não acreditava que ele pudesse ser um amante, dar igual a tomava?
Deixa que compreenda quão equivocada estava. Mantendo sua própria luxúria contida, ele a beijou da testa até a ponta dos dedos dos pés, atrasando-se em seus
peitos, finamente formados e deliciosos... esses que ele uma vez tinha considerado tão pequenos... e o íntimo lugar que ele tinha deixado preparado com seu toque.
Ela tinha sabor de raios de sol e especiarias exóticas, simples e complexa de uma vez.
Caitlin Hughes não era virgem. Era uma feiticeira de antigos ritos carnais criados para apanhar a um homem... inocente e descarada, doce e pecaminosa, ingênua
e sábia além de sua idade. E ainda assim, ela era sua agora, e ele a possuiu tão completamente como lhe tinha seduzido. Suas coxas já estavam apartadas para sua
entrada. Enquanto se afundava nela, ele começou a compreender por que homens razoáveis o arriscariam tudo, entregariam o mundo em si mesmo, por uma mulher.
-Caitlin - sussurrou. -Maldita seja, Caitlin.
Ela simplesmente cruzou os tornozelos por trás de sua cintura e lhe atraiu mais profundamente dentro de si. Esta vez, foi ela a que alcançou a primeira cúpula,
estremecendo com rítmicas pulsações de abandonada alegria. Ele a seguiu um momento depois e sentiu sua semente derramar-se em seu corpo.
Ele deveria haver adormecido então, ou deixado a habitação sem um só olhar atrás, como tinha feito com as outras mulheres anônimas que se entregaram a ele por
um pouco mais concreto que o amor. Mas Caitlin o olhou com gentil sabedoria, convidando-o a um lugar que ia mais à frente do mero corpo e que acariciava a alma com
asas de veludo.
Ela tinha aberto as comportas muito, e através delas, ele viu as terríveis imagens de tudo o que tinha sido e feito. Os lençóis sobre as quais jazia Caitlin
estavam manchadas com sangue. O sangue de Morgan. E junto à cama, olhando-o com olhos zombadores, estava Gwenyth Desbois.
Nunca te liberará de nós - sussurrou ela. -Nunca.
Niall se afastou de Caitlin e saltou ao chão. Morgan e Desbois se desvaneceram. Caitlin se sentou, alargando a mão para ele, lhe fazendo gestos para que retornasse
à cama que ele mesmo tinha feito para si.
-Niall?
Ele agarrou sua camisa e suas calças.
-Devo ir a Denver.
Ele esperava que lhe reclamasse algo, que fizesse alguma sutil feminina chantagem pelo privilégio de lhe permitir desfrutar de seus favores, ou invocasse uma
tormenta de lágrimas para despertar sua culpabilidade. Deveria havê-lo sabido melhor. Ela passou as pernas sobre a cama e ficou de pé ante ele, com as mãos nos quadris
como se eles dois nunca tivessem compartilhado um leito de amantes.
-Não seja parvo - disse ela. -Há coisas mais poderosas que toda sua riqueza e influência. Esta é uma batalha que não pode ganhar.
Voltou-lhe as costas e se abotoou a camisa com dedos trementes.
-Não deveria enfrentar a mim, Caitlin. Lamentaria muito ver-te sair machucada disto.
Ela riu.
-É essa sua bonita declaração de amor, Niall Munroe?
-Amor? -ele a encarou de novo, ignorando a flagrante atração de seu corpo. -É isso o que pensou que era o que compartilhamos? Sinto te decepcionar, mas confio
em que aceitará reembolso por seu tempo, embora só seja na miserável forma de dinheiro.
A ela lhe deteve a respiração. Ele viu quão bem tinha dado no alvo, e se odiou a si mesmo por isso. E a odiou a ela mais por lhe fazer sentir culpado, e sentir
ternura, e vergonha. Por lhe fazer sentir.
-Maldita seja - disse ele. -Maldita você e toda sua espécie...
Uma explosão de dor concluiu sua maldição. Foguetes estalaram em sua cabeça, e logo ele estava caindo, caindo interminavelmente no poço reservado especialmente
para os homens destruídos pelo amor.
-O que tem feito?
Caitlin arrebatou o ramo da mão do Tamar e a jogou em um lado. O ramo golpeou contra a parede e acabou estendido aos pés da cama que ela e Niall tinham compartilhado
tão recentemente.
Ela caiu de joelhos junto ao Niall e lhe tocou a testa. Seus dedos se mancharam de sangue. Pressionou a orelha contra seu peito, sentindo-se insensível pelo
terror, e ouviu o apagado pulsado de seu coração. Suas respirações eram superficiais mas estáveis.
Ainda vivo. Graças aos deuses, ainda está vivo.
Trabalhando rapidamente, agarrou um travesseiro da cama e descansou gentilmente a cabeça do Niall sobre a mesma. Molhou uma toalha na água da bacia e a passou
pela ferida. Não era um corte grande, mas já tinha começado a inchar-se. Fabricou uma improvisada atadura com partes da roupa de cama e o envolveu em torno da cabeça
de Niall. Sabendo que não tinha a fortaleza para levantá-lo do chão, cobriu-o com uma manta e o agasalhou bem.
Só então, quando seus manejos estiveram completem, girou-se para a encantada de serpentes com toda a fúria sob seu mando.
-Por quê? -perguntou. -Por que, Tamar?
-Você me pergunta por quê? -Tamar lhe mostrou seus pequenos e ligeiramente afiados dentes em um sorriso impenitente. -Ele matou a meu Morgan. Merece morrer.
Caitlin fechou os olhos e rezou pedindo fortaleza.
-É uma idiota, Tamar.
-E você é uma traidora e uma puta por se deitar com ele, que assassinou a meu amor!
Caitlin foi consciente de sua nudez e se cobriu com um lençol rasgado.
-Morgan nunca foi seu amor - disse, forçando-se a permanecer acalmada. -E não está morto. Eu me estava assegurando que tinha uma oportunidade de recuperar-se
e escapar antes que Niall compreendesse esse fato.
A cruel máscara do Tamar se fez pedacinhos com perplexidade.
-Como que não está morto? Diga-me isso.
-Eu acredito que isso é algo que todos deveríamos saber.
Harry e Ulysses entraram no quarto, seus olhos cuidadosamente evitando a desarrumada cama e o estado de nudez de Caitlin. Ulysses se abaixou ao lado do Niall,
e Harry agarrou com firmeza a Tamar pelo braço.
-Munroe disse que lhe tinha disparado ao Morgan - disse Ulysses, inspecionando o curativo de Caitlin. -Acredita que estava mentindo?
-Não - Caitlin tremeu e tomou assento ao bordo da cama, observando a serena cara do Niall. Era a primeira vez que lhe tinha visto em paz, sequer por um momento.
-Niall estará bem?
Ulysses suspirou e se sentou sobre seus calcanhares.
-Um homem que permanece inconsciente durante muito tempo poderia não recuperar-se. Confia em que desperte logo.
Quão friamente falou ele, como se a vida ou a morte do Niall não tivessem importância. Mas, claro, ele ainda considerava o Niall como o homem que tinha assassinado
a seu amigo.
-Morgan não está morto - deu ela, pondo toda sua convicção em cada palavra. -Pensa, Uly. Poderia ter matado ao Niall se assim o tivesse escolhido. Mas há outras
coisas que são importantes para ele agora. Deve ter sabido que sua melhor oportunidade para manter-se vivo a si mesmo e ao Niall seria usar a ignorância do Niall
e fingir sua morte.
-Supõe muito, Vagalume.
-Não faço hipóteses. Eu acredito. Morgan tem uma razão para querer viver. Se ficarem forças, estará de caminho a Denver neste mesmo momento.
Ulysses e Harry intercambiaram um olhar. Harry pinçou em seu bolso em busca de um lenço. Depois de um momento, recompôs-se e se endireitou, lançando a Tamar
um severo olhar que não pôde encobrir seu alívio.
-Caitlin tem razão - disse. -Morgan tem uma razão para viver. E, se estiver vivo, irá procurar a Athena.
-Como o teria feito Niall, uma vez tivesse compreendido que existia uma possibilidade de que Morgan tivesse sobrevivido - ela ocupou o lugar do Ulysses junto
ao Niall, acariciando ensanguentado cabelo e apartando-o de sua pálida testa. -Eu poderia lhe haver deixado ir acreditando que Morgan estava morto, mas ele já tinha
começado a atormentar-se pelo que tinha feito. Não é um homem malvado. Eu tinha que lhe dar uma pequena esperança de redenção. Mas também tinha que evitar que fosse
atrás do Morgan de novo.
O olhar de Ulysses em direção à cama e foi evidência suficiente de que compreendia. Harry se ruborizou. Tamar se aproveitou do momento e se soltou.
-Se meu lobo estiver vivo, devo ir ter com ele imediatamente - disse.
Caitlin ficou em pé de um salto.
-Você não vai a nenhuma parte. Só leva dor a tudo o que toca.
-E quem é você para me deter?
A cara de Tamar, plena de ódio, tornou-se brumosa na visão do Caitlin. Esta soube estava preparada para tudo, inclusive matar, para proteger ao Morgan e a Athena.
E ao Niall, que necessitava tudo o que ela tinha para dar.
-Se ele morrer...
-Temo que Caitlin está correta, Tamar -disse Ulysses, interpondo-se entre ambas. Em sua mão havia uma diminuta Derringer. -Não podemos deixar que parta.
Tamar o contemplou com aberto desprezo.
-Disparar-me-ia, homenzinho?
-Se precisar... mas acredito que também você deseja viver.
Cuspiu-lhe. Ulysses não se moveu, seu olhar fixo no rosto de Tamar.
-Morgan não pode te amar, Tamar. Seu coração foi entregue a outra, e os de sua espécie se emparelham por toda vida.
Os olhos dela se abriram como pratos.
-E você acredita que eu me voltarei para você se não poder ter a ele?
Caitlin observou com crescente desconcerto. Que Ulysses ameaçasse exercendo violência era algo impensável. Mas algo em seu rosto, a estóica dor de um homem
empurrado além do que era capaz de suportar, contava uma história que a chocou mais que a pistola em sua mão.
-Não - disse Ulysses em voz baixa. -Não acredito isso. Mas já tem feito suficientes diabruras, e isso deve parar.
-Não pode chegar a Denver só - acrescentou Harry, fazendo um ultimo intento de raciocinar com ela. -Ulysses e eu sairemos imediatamente e nos asseguraremos
de que Morgan está bem. É melhor assim, Tamar.
Ela respondeu girando-se rapidamente para a porta. Ulysses elevou a Derringer e disparou. A bala penetrou na ombreira da porta, uns poucos centímetros à esquerda
do ombro de Tamar.
Caitlin nunca tinha visto Tamar empalidecer, mas esta o fez agora, cambaleando de volta para os braços de Harry. Harry lhe sujeitou as mãos atrás das costas,
apenas menos pálido que ela.
Ulysses baixou a pistola. Sua mão estava tremendo. Caitlin sabia que não tinha falhado por falta de habilidade, ou nervos sequer. Em seu rosto, ela leu a convicção
de que nunca poderia fazer dano a Tamar, não importa qual fosse a provocação.
-Sei que só há uma coisa que você ama realmente, Tamar - disse ele. -Desde que soube que foi capaz de causar grandes dificuldades, tomei a liberdade de requisitar
suas serpentes e as assegurar em uma segura mas oculta localização onde não é muito provável que as encontre. Elas necessitam calidez, e continuarão recebendo-a
enquanto você te comporte razoavelmente. Confio em ter sido suficientemente claro.
A boca de Tamar se abriu de par em par. Ulysses havia, certamente, encontrado o único ponto débil do arsenal da encantada de serpentes.
-Obterei minha vingança - vaiou esta.
Ulysses se encolheu de ombros e olhou ao Harry.
-Encerra-a em um dos quartos - lhe disse. -Não tratará de escapar enquanto suas serpentes estejam sob custódia.
Meneando a cabeça com tristeza, Harry empurrou a Tamar fora do quarto de Niall. Caitlin comprovou que Niall estava ainda respirando uniformemente e tocou o
ombro do Ulysses.
-Harry e você devem sair imediatamente - disse. -Morgan e Athena necessitarão toda a ajuda que possam conseguir se ele retornar a Denver.
-E você?
Ela sentiu dor pela tristeza que viu em seus olhos.
-Eu devo permanecer aqui com o Niall até que desperte.
-Sim - Ulysses franziu o cenho em direção ao Niall. -Talvez não tenha que esperar muito. Acredito que está despertando. Eu definitivamente preferiria estar
bem longe antes que ele recupere a consciência totalmente.
Caitlin olhou a cara do Niall e viu o débil movimento de seus lábios e o suave agitar de uma pálpebra. Graças aos Antigos.
Harry apareceu na porta.
-Feito - disse. -Acredito que estava certa a respeito das serpentes, Uly. Mas, como chegaremos a Denver? As carroças são muito lentas.
-Há numerosos transportes mais práticos na cocheira. O senhor Munroe não está em posição de objetar se tomarmos um emprestado, e os cavalos para atirar dele.
Recrutaremos a nossos companheiros da trupe para criar uma distração no caso de que qualquer dos trabalhadores do rancho tente interferir.
Harry assentiu. Caitlin deixou o lado do Niall o tempo suficiente para abraçar ao ancião e plantar um beijo no alto dos dourados cachos do Ulysses.
-Boa sorte - disse. -Faça tudo o que possam para ajudar ao Morgan e a Athena. Eles estavam destinados a estar juntos.
-Acharemos um modo - disse Harry. Ele assentiu em direção ao Niall. -Vagalume, está segura?
-Sim - sorriu ela secamente. -Mas os loucos sempre estão seguros.
Ulysses tomou sua mão e colocou sua pistola nela.
-Fica com isto, no caso de precisar.
Ela não desejava nada mais que arrojá-la ao outro lado da habitação, mas a colocou sobre a cama em seu lugar.
-Melhor que vão.
Com um último olhar preocupado, Harry seguiu ao Ulysses fora do quarto.
Caitlin começou sua vigília ao lado de Niall, notando todos os sinais do retorno de sua consciência. Estes apareceram com crescente frequência, e, ao final,
ele abriu os olhos, piscou, e tentou enfocar sua cara.
-O que? -murmurou ele. Sua mão voou para sua cabeça e o grande galo que se formou aí. -Caitlin?
-Está bem - ela comprovou a vendagem e lhe acariciou a bochecha. -Deve descansar.
-Algo é... - ele tratou de sentar-se, ofegou, e voltou a cair sobre o chão. Caitlin arrumou melhor as mantas em torno dele, preparada para sentar-se em cima
se era necessário.
Felizmente, seu corpo pareceu compreender que sua vontade não se realizaria. Ele fechou os olhos de novo e caiu no que Caitlin rezou fosse um normal sonho curador.
Mais tarde despertou e pediu água; ela verteu um pouco do jarro na mesinha e sustentou um copo contra seus lábios. O dia se converteu em noite; ele dormiu a intervalos,
despertando frequentemente com vagas perguntas e petições de água. Quando chegou o alvorada com sua falsa promessa de paz, ela soube que não permaneceria quieto
muito tempo mais.
Seus rasgos congelados em sinal de concentração, Niall se incorporou sobre os cotovelos. Tocou o vulto em sua cabeça e encontrou o olhar do Caitlin.
-Como? -perguntou com voz rouca. -Alguém... me golpeou.
-Sim - não servia de nada mentir. -Tamar te golpeou por trás.
-Tamar - tentou ficar de pé e alargou a mão procurando a ajuda do Caitlin. Ajudou-lhe e cruzou a distância até a cama, recordando no último instante cobrir
a pistola com uma esquina do edredom.
-Estava muito zangada, mas já não pode machucar a ninguém -disse Caitlin, ajudando-o a tornar-se. -Foi um mau golpe. Deve tomar cuidado, Niall.
-Holt... poderia estar vivo ainda. Devo chegar a Denver.
O golpe, obviamente, não tinha afetado a sua memória no mais mínimo.
-Desejaria que o golpe do Tamar tivesse conseguido colocar um pouco de sentido comum nesse grosso teu crânio - disse ela. -Se tenta cavalgar agora, sofrerá
por isso. Duvido que possa sequer conduzir uma carroça.
Ele a afastou de um empurrão.
-Avisei-te antes, Caitlin. Não... tente me deter.
Ela pensou na pistola aos pés da cama, e em quão longe estava disposta a chegar para lhe proteger a ele e aos outros a quem queria. Uly não tinha sido capaz
de lhe disparar ao Tamar. Ela poderia chegar tão longe para ameaçar ao Niall? Levaria a sério ele semelhante ameaça?
A simples persuasão, inclusive da variedade sexual, não funcionaria com ele agora. E isso não deixava a não ser uma única opção.
-Se não tentar te parar -disse- então vou contigo.
-Não -a palavra foi foto instantânea, abrupta e lúcida. - Não te quero envolta no que devo fazer.
-Mas já estou envolta. E não há nada que possa fazer a esse respeito -ela aferrou seu braço, obrigando-o a olhá-la. -Sofreu um forte golpe na cabeça. O que
acontece cai inconsciente de novo? E se não poder conduzir ou montar? Seria um parvo se for sozinho - sorriu com gravidade. -E inclusive se evitar que te acompanhe,
eu te seguirei.
Ele a estudou, sopesando suas palavras. Rechaçá-la-ia, como faria com quase qualquer que fizesse uma promessa similar... ou compreenderia que falava totalmente
a sério?
-Condenada empregada teimosa. Vai conseguir que lhe ele matem pôs todo seu peso sobre seus pés e tentou ficar de pé. Seu corpo se inclinou perigosamente. -Não
posso te deter... agora. Mas fará o que eu te diga e não interferirá. Ouve-me? -ele a agarrou pelos ombros, pressionando um pouco com muito força. -Me ouve, Caitlin
Hughes?
-Ouço-te.
Mas não me peça que te prometa nada. Não me peça que escolha entre você e meus mais queridos amigos.
-Então... - ele apertou os dentes. -Me ajude a me vestir. Devemos ir.
Quanto odiava ele pedir ajuda. Docilmente, ela reuniu sua roupa e lhe assistiu lhe tocando o menos possível, como se fosse uma faxineira e não uma amante que
tinha visto toda sua vulnerabilidade. Quando ambos estiveram bem cobertos e Niall teve reunido dois alforjes com provisões, ele a dirigiu fora, para o estábulo,
e se encontrou a um dos peões caminhando apressadamente para a casa.
-Senhor Munroe - disse o homem, tomado por surpresa. Dirigiu um olhar em direção ao Caitlin. -Justamente ia em sua busca. A gente do circo... eles roubaram
uma das carruagens de passeio. Chuck diz que devem haver partido umas poucas horas antes de ontem.
Niall soltou um juramento.
-E ninguém lhes deteve?
-Alguns de seus amigos nos fizeram uma jogada. Disseram que tinham visto um lobo perseguindo o gado, assim que todos saímos... -o homem agachou a cabeça. -O
sinto, senhor Munroe.
Niall se girou bruscamente para o Caitlin.
-Você sabia a respeito disso?
-Sim. Harry e Ulysses estavam preocupados com o Morgan, igual a eu.
-O velho e o miúdo? Inclusive tendo viajado toda a noite, não podem achar-se muito longe - Niall voltou a girar-se para o peão. -Sela dois dos cavalos mais
rápidos, e fá-lo depressa.
O homem se apressou a obedecer. Logo, estava levando no bridão a dois cavalos, ambos as finas montarias ao experiente olho de Caitlin. Antes que Niall ou
o peão pudessem lhe oferecer sua ajuda, ela saltou sobre o lombo do cavalo mais pequeno e agarrou as rédeas. Niall a imitou, cautelosamente, fazendo uma careta ante
a dor dentro de seu crânio.
Ele não desejaria sua solicitude agora. Tudo o que ela podia esperar era ter alguma pequena influência sobre ele quando chegasse o momento de encarar a batalha
que se avizinhava.

CAPÍTULO 22

O amanhecer penetrou na cova com pés de veludo, tão suaves que nem olhos ou orelhas humanos poderiam detectá-lo.
Athena o ouviu. Manteve os olhos fortemente fechados e implorou à luz que se retirasse, que deixasse de noite vir de novo. Uma noite interminável, livre dos
problemas do futuro ou do passado. Uma noite feita somente para amar e ser amada.
O peito de Morgan se elevava e caía sob sua bochecha, e um de seus braços mantinha sua protetora curva em torno de sua cintura, solto mas inegavelmente possessivo.
Tão impiedoso como o passado do tempo, a luz se abriu aconteço brincando sob suas pálpebras. Ela os abriu lentamente. Sua primeira visão foi o largo peito de
Morgan, o fino e escuro manto de pêlo, e o pendente de seu duro estômago. Ela se deteve si mesmo antes que seu olhar vagasse mais abaixo.
Não havia volta atrás do feliz interlúdio da noite passada. Aferrou-se desesperadamente aos últimos fios do mesmo, como tinha feito já alguma que outra vez
quando despertava de um sonho de correr sobre pernas invalida. Mas, como todos os sonhos, esse também devia chegar a seu fim.
Movida pelo mais pequeno dos impulsos, tornou-se para trás para estudar o rosto de Morgan. Esta ainda não tinha adotado as ásperas linhas e o receio que usualmente
exibia à luz do dia, nem seus rasgos refletiam a entrega e o abandono de seu ato de amor. Mandíbulas, lábios, olhos, frente... tudo estava calmo. Esperando. Aferrando-se
com força à paz que tão raramente se permitia a si mesmo.
Ela sentia tantas vontades de tocá-lo que doía. Mas se ainda dormia, ela não podia lhe roubar esses momentos. Desejou poder voltar a dormir de novo e encontrar-se
em um novo sonho, um no qual Morgan e ela estivessem juntos sem pensamento algum do vasto golfo que se estendia entre eles.
Um corvo grasnou abruptamente entre os pinheiros fora da cova. Morgan abriu um olho e murmurou uma inaudível maldição. Seu braço se apertou em torno dela como
se ele esperasse que ela voasse de seu lado.
-Bom dia - sussurrou ela. Deu-lhe um beijo na bochecha, lhe desafiando a rechaçar essa caseira intimidade. A mandíbula dele se esticou e a seguir relaxou. -Dormiu
bem?
Ele poderia haver acreditado louca por cair em tão banais cerimônias, como se fossem um casal recém casado normal e comum na primeira manhã depois de seu matrimônio...
um pouco tímidos, um pouco incômodos, ainda brilhando com os sensuais descobrimentos e aguardando com ilusão muitas mais dessas aventuras ainda por vir.
Mas ele girou a cabeça para olhá-la, e toda a ternura que encontrava tão difícil de mostrar apareceu nua e exposta em seus olhos.
-E você?
-Muito bem - ela aconchegou a cabeça sobre seu ombro e entrelaçou seus dedos com os dele. -Só desejaria...
Ele ficou rígido.
-O que desejaria?
Ela lançou a cautela ao vento.
-Desejaria que você e eu pudéssemos fazer que este momento durasse para sempre.
Ele se sentou, tomando cuidado de deixá-la baixar com gentileza enquanto trocava de posição. Athena se tragou a repentina grossura das lágrimas e apertou os
joelhos contra o peito. Arruinou-o. Palavras... as palavras somente o afugentam.
Morgan se sentou com as costas contra a parede inclinada da cova igual ao tinha feito a noite passada antes de lhe fazer o amor, tão inalcançável como um ídolo
pagão esculpido em pedra. Ela conhecia a natureza do coração que pulsava sob seu amplo peito, a gentileza da que ele era capaz, a teimosa lealdade que desmentia
seu próprio julgamento de si mesmo. Mas ele queria fingir que ela não compreendia.
-Isso não serve de nada, Morgan - disse ela. -Não podemos voltar atrás.
Ele contemplou com ferocidade a parede oposta. Uma corrente de ar frio soprou pela boca da cova, lançando largas mechas negras de cabelo contra sua cara e ombros.
Ele não fez intento algum por apartá-los.
-Não - disse. -Você não pode voltar a ser o que foi.
Isso não era o que ela tinha pretendido.
-Uma inválida? Viver negando a metade de mim mesma? Tem razão, Morgan. Unicamente posso ir para frente, igual deve fazer você.
Ele não disse nada. Ela quis gritar e saltar acima e abaixo, embora só fosse fazer que a olhasse. A intimidade de sua união tinha sido tão frágil como um floco
de neve, evaporada em um instante de calor e paixão. Como podia tudo o que ambos tinham construído a noite antes desvanecer-se tão completamente?
Com um esforço, ela se serenou. Qualquer emoção violenta somente o afastaria mais. As palavras equivocadas poderiam lhe assustar, mas eram tudo o que ela tinha.
-Nunca terminamos nossa discussão - disse. -Ainda há tempo para que conte tudo, Morgan. Eu disse que escutaria e não julgaria. Disse-o a sério. E tanto se
você gostar como se não, não pode te desentender de mim tão facilmente. Porque, vê?... eu te amo.
A cova reverberou com sua acalmada declaração. O coração da Athena tropeçou sobre seu próprio frenético batimento do coração. Morgan piscou uma vez, o único
signo de que tinha ouvido e compreendido.
-Já está - disse ela com falsa ligeireza. -Te entreguei meu maior segredo. Duvido que os teus sejam muito mais aterradores.
Lentamente ele a olhou, seus olhos carecendo de expressão salvo ante os dela.
-O que é o que quer de mim?
Nada de lágrimas, ordenou-se ela. Esta é sua maneira. Sempre se oculta quando sente muito.
-Quero saber o que você deseja. Quero compreender por que pensa que deve me proteger de você mesmo quando nos entregamos tanto o um ao outro.
Ele tomou uma larga e profunda inspiração e logo deixou sair o ar novamente, envolvendo sua cara em névoa.
-Virá comigo agora?
-O que?
-Perguntei-lhe isso uma vez antes - disse ele. -Virá comigo... longe de Denver, de Colorado, sem levar nada contigo, abandonando tudo o que conheceste? Fá-lo-á,
Athena?
Sim, gritou seu coração. Sim, sim, e sim. Mas havia algo mau na pergunta dele e sua própria resposta à mesma. Ela vacilou, e nessa vacilação jazia a fria e
dura semente da dúvida.
Tanto tinha sido alterado desde a primeira vez que lhe tinha pedido que abandonasse sua vida... ela tinha recordado como mudar, e se tinha curado a si mesmo.
Tinha começado a descobrir que o que parecia importante era somente uma cristaleira e falso orgulho. Tinha aprendido a amar, não com caridosa falta de paixão, a
não ser com sua alma inteira.
Ela não era a pessoa que tinha sido uns quantos meses atrás. Mas Morgan exigia sua absoluta rendição sem oferecer sua confiança em troca. Ele tinha tentado
afastá-la inclusive enquanto a reclamava como dela. Pedia-lhe que fugisse, não para uma vida real juntos, a não ser longe do que ele mesmo temia.
-Deseja que parta contigo - disse ela. -Mas esperas que o faça na ignorância. Quer que confie em você, quando você não me confiará as coisas que lhe machucaram
e lhe têm feito ser o que é. Recusa acreditar que eu sou o suficientemente forte para aceitar algo que me ela diga estendeu sua mão, flexionando a palma como se
pudesse tocar a cara dele. -Tudo o que peço é que confie em mim, Morgan. Que confie na mulher que te ama. Se fizer isso agora, irei contigo até os limites da terra
Folhas secas rangeram por todo o chão da cova. O coração da Athena pulsou cinco, dez, vinte vezes, antes que Morgan se movesse. Ele sorriu, mas só com sua boca,
e ela soube que tinha perdido sua aposta.
-Seu amor não é suficiente - disse ele, quase gentilmente. -As respostas que você deseja são só o começo. Não encontraria contente nem paz. Sempre esperaria
o que eu não posso te dar.
-Quer dizer que você não poderia me amar.
-O amor se rompe como gelo fino sobre a superfície de um lago justo quando a gente pensa que é seguro cruzá-lo - ele baixou a cabeça de modo que a escura massa
de seu cabelo ocultasse seu rosto. -É uma lição dura, mas te fará mais forte ao final.
-Forte... como o é você? É este seu exemplo, Morgan? -ela se estirou e ficou de pé para lhe encarar. -É fortaleza fingir que nada disto aconteceu? Deveria eu
deixar que meu passado determine meu futuro, me arrastar de volta a minha cadeira e jogar a estar indefesa para permanecer a salvo até o dia em que morra?
-Não estará a salvo em Denver.
Uma ira tão irracional despertou dentro da Athena que foi como se o lobo se deu procuração de sua mente sem Trocar seu corpo.
-Oh? -cuspiu ela. -Que perigo encararei, uma vez você te tenha ido? Meu coração estará forjado em ferro, mas ainda serei capaz de ajudar a aqueles que possam
lhe encontrar alguma utilidade à esperança. Se for cuidadosa, posso confeccionar uma explicação para minha recente conduta que possa convencer à sociedade de me
aceitar de novo em seu seio.
Os olhos dele queimaram através do véu de seu cabelo.
-Não estará a salvo enquanto seu irmão esteja vivo.
-Sei... sei que tentou te matar, mas não é um homem malvado. Falarei com ele. Far-lhe-ei compreender, e lamentará o que fez...
-Não - Morgan ficou em pé, movendo-se como se cada osso e músculo em seu corpo tivessem sido rasgados. -Niall me contou a verdade sobre sua mãe, Athena. Ocultou-lhe
isso durante todos estes anos. Queria que seguisse sendo dependente e débil, para não ter que recordar à mulher que roubou o amor de seu pai.
-Que verdade? -sussurrou ela.
Morgan vacilou, observando em direção à boca da cova.
-Que verdade? -ela avançou para ele e se deteve tão perto que ele não teve escolha salvo encontrar seu olhar. -Me diga isso.
Ele elevou sua mão e logo a deixou cair.
-Disse-me que se livrou de sua mãe.
Os joelhos dela se bloquearam, mantendo-a efetivamente de pé.
-Não entendo.
-Odiava-a. Odiava o que ela era, e o fato de que seu pai a amasse mais que a sua mãe. Ainda era um moço quando...
-Não - ela apertou as mãos contra as orelhas. -Não acredito.
-Não tinha razão para me mentir - a gentileza da voz do Morgan penetrou sua comoção como nenhum grito poderia havê-lo feito. -Me escute. Deve estar em guarda
contra ele. Sabe o que é e te odeia por isso, igual odiava a sua mãe. Ao vir para mim, traiu-lhe. Não te perdoará, Athena. Se matou uma vez, pode matar de novo.
-Como você? -ela retrocedeu para a entrada. -Você presume compreender o que Niall é porque cometeu um assassinato? -as palavras tinham saído de sua boca antes
que pudesse as deter. Ela tinha jurado não lhe julgar, não usar seu passado contra ele, e tinha faltado a sua promessa. -Morgan...
Os olhos dele eram cristal congelado.
-Deveria lhe haver matado.
Nesse momento, ela acreditou que ele tinha feito o que Cecily clamava, que podia matar a um homem sem escrúpulos nem remorso. Permaneceu de pé ao bordo da cova,
meio em luz meio em sombras, debatendo-se entre mulher e lobo, confiança e traição, amor e ódio.
Não havia certeza, nem paz. Os dois homens que mais queria se converteram em mortíferos estranhos. A dúvida a comia por dentro como um câncer. Seu familiar
mundo tinha feito mais que trocar; destroçou-se. Albergava tão somente a mais pequena das esperanças de voltar a uni-lo de novo. Pelo bem do Morgan, pelo do Niall...
e porque ela não tinha direito a uma felicidade que não se ganhou.
-Vou -disse. -Vou encontrar a meu irmão e a fazer que me diga a verdade -ela entrou na intensa luz do meio-dia, e Morgan se esticou para segui-la. -Não. Não
venha atrás de mim. Você não me deve nada - fechou os olhos ante a visão de sua amada cara. -É livre.
Ele se pôs-se a rir com desdita.
-Não confie nele. Athena...
Ela se transformou e estava preparada quando ele a seguiu. Voltou-se contra ele, mordendo e grunhindo, até que ele teve que retirar-se ou defender-se a si mesmo.
Mas ele não se transformou. Ajoelhou-se na neve, com as mãos sobre as coxas, e a observou partir.
Lágrimas fantasmagóricas se amontoaram em seus olhos de lobo. Deve ser desta maneira. Niall é ainda meu irmão. Você destruiria a ambos se matasse por mim. E
eu não sou o suficientemente forte, meu amor. Não o suficiente para acreditar em você.
Athena se inundou no lobo e correu com todas suas forças, até que não soube de nada mais que do correr do vento por entre sua pelagem. Quando alcançou o rancho,
riscou um amplo círculo ao redor dos edifícios e se aproximou da parte traseira da casa, uma sombra invisível aos olhos humanos. Na porta se transformou, deslizou-se
dentro da casa, e subiu apressadamente as escadas para seu dormitório. Aí colocou rapidamente uma saia de percal e uma blusa, apenas suficiente para cobrir sua nudez.
O eco de umas vozes lhe chegou de escada abaixo, mas nenhuma delas pertencia ao Niall. Baixou os degraus de dois em dois e confrontou a um par de surpreendidos
integrantes do circo, homens a quem reconheceu como as estrelas voadoras do Harry.
-Onde está o senhor Munroe? -perguntou.
Eles intercambiaram um olhar.
-Senhorita Athena? -disse um deles. -Partiu com o Caitlin justo depois do alvorada.
Ela não tinha tempo para considerar as implicações da participação do Caitlin.
-Aonde foram?
-Ouvi que foram procurar a você em Denver - disse o outro homem. -Harry e Ulysses partiram ontem à noite. Eles disseram que você poderia estar em problemas
- ele fez uma pausa. -Podemos ajudar, senhorita Athena?
Ela sacudiu a cabeça e tentou limpar a mente. Sabiam Harry e Ulysses que Niall tinha tratado de matar ao Morgan? Era esse o porquê de terem viajado a Denver?
Por que tinha levado Niall a Caitlin, quando certamente ele devia acreditar que Morgan estava morto e ele mesmo estava retornando para enfrentar a angústia de sua
irmã? Caitlin lhe odiaria quão mesmo ela pelo que tinha feito.
Sem dizer outra palavra mais aos integrantes da trupe, Athena correu de volta escada acima e abriu bruscamente o roupeiro. Em uma das prateleiras, encontrou
um par de calças e uma camisa de flanela. Tirou um par de velhas botas e rapidamente fez um fardo com a roupa, atando-a com uma corda de couro trancado. Levou o
fardo fora, deixou-o cair na neve, despiu-se e se transformou.
Mandíbulas lupinas se fecharam em torno da corda. Alcançaria Denver muito mais rapidamente em forma de lobo, mas não havia forma de dizer quando daria alcance
ao Niall. Se lhe encontrava na cidade, necessitaria a roupa.
Necessitaria cada pequena vantagem que pudesse obter.
Vozes humanas gritaram, cortando de raiz seus pensamentos. Tinha sido vista, e nenhum rancheiro resistiria a lhe disparar a um lobo. Ela se lançou de estar
parada a uma corrida mortal. Um disparo de rifle ressoou em sua esteira. Porções de neve roçaram sua pelagem, e uma segunda bala explorou na parte de chão onde ela
tinha estado um instante antes. Logo esteve mais à frente do alcance humano, em rota infalível para Denver.
Foi uma vez que alcançou o pé das colinas, justo enquanto o sol se estava afundando depois do Front Range, que recordou a importância de esta noite, o detalhe
que tão completamente tinha posto fora de sua mente. Era a noite do Baile de Inverno.
Ladrou uma risada lupina ao redor do couro entre seus dentes. O baile. O pináculo de sua vida social, o evento do qual ela se havia sentido tão desmesuradamente
orgulhosa. O que uma vez tinha parecido merecedor de um ano de consciencioso esforço se converteu em só outra tolice de auto-excessos, um prêmio de consolação para
uma mulher que tinha equivocado o verdadeiro sentido da vida.
Cecily estaria no baile, assenhorando-se sobre tudo o mundo. Nada a deteria, nem sequer a fuga da Athena e suas possíveis consequências para seus intuitos sobre
o Niall. Niall esperaria que Athena estivesse ali sob o vigilante olho de Cecily. Mas ele não encontraria a sua irmã. Não antes que encontrasse a ele.
O baile de Inverno de esta noite seria de fato um memorável.
-Sinto muito, senhor Munroe -disse o desconhecido servente com uma tímida sacudida de cabeça- mas a senhorita Hockensmith foi ao baile.
O Baile de Inverno. Maldita seja, esqueceu-se por completo dessa estupidez. Cecily tinha mencionado que tinha trocado o lugar de celebração ao Windsor, mas
ele tinha esquecido isso também.
Essa noite nada era o que deveria ser. Não tinha havida moço de quadras agasalhado nas habitações sobre o estábulo para fazer-se carrego de suas extenuada arreios
e a de Caitlin. Romero tinha desaparecido. A casa estava notavelmente vazia de serventes. Niall se achava de pé no hall de seu próprio lar, observando a cara de
um homem ao que não conhecia. Caitlin aguardava atrás dele, seu olhar captando a imensidão do alto teto e os adornos de dourado e mármore. Ela não estava menos perdida
que ele.
-Quem diabos é você? -exigiu, jogando no servente suas luvas. -Onde está Brinkley?
-Lamento dizer que o senhor Brinkley entregou sua carta de demissão - disse o homem com um ar de falso pesar. -A senhorita Hockensmith estimou necessário lhe
substituir a ele e aos outros serventes que partiram depois dele.
Bom Deus. Cansando-se o mundo inteiro a pedaços no breve tempo que tinha estado fora?
-Os outros serventes?
O homem pigarreou.
-Houve um certo número de mudanças na criadagem durante os passados dias, senhor. Você poderia desejar consultar os detalhes à senhorita Hockensmith. Quereriam
você e a jovem dama descansar na salinha de receber enquanto disponho que lhes sirvam chá?
-A senhorita Munroe acompanhou à senhorita Hockensmith ao baile?
Esta vez o mordomo não foi tão rápido em responder.
-Eu... não fui informado sobre o paradeiro da senhorita Munroe, senhor.
-O que quer dizer? -Niall agarrou ao homem pelo peitilho da camisa. -Onde está minha irmã?
-Senhor... Eu... ah... - o homem se engasgou e se voltou muito pálido. -Ela não residiu aqui desde minha chegada. A senhorita Hockensmith disse que... se tornou
louca, ameaçando com... matando à senhorita Hockensmith se ela tratava de deter a senhorita Miss Munroe. Isso é... tudo o que eu sei!
Niall lhe deixou cair ao chão. Athena, enlouquecida? Fugiu? E Cecily partiu alegremente ao baile como se tudo estivesse bem, sabendo onde Athena devia ter ido.
A repentina demissão e posterior contratação de serventes não era nada comparado com isso.
-Ela foi alertar ao Morgan - disse Caitlin atrás dele. -Deve havê-lo feito, sabendo quanto lhe odiava você. Senhor, se alcançou as montanhas...
-Poderia estar em qualquer parte. Perdida...
Ou com ele. Niall se cambaleou em direção à porta.
-Não pode retornar às montanhas agora - disse Caitlin, lhe aferrando do braço. Ele tratou de soltar-se, mas seu agarre era seguro e sem medo. -Está exausto,
e não saberia onde procurar. Ela encontrará ao Morgan se ele não a encontrou primeiro.
-Se estiver no certo, e ele está vivo - Niall se deteve ante a porta, reclinando a cabeça contra o painel de madeira. -Poderia tê-la em seu poder agora.
-Então tem uma oportunidade para fazer o correto, Niall. Deixe-os partir. Deixe-os viver a vida que estão destinados a viver.
Niall a ignorou, um pânico gelado correndo por suas veias.
-Cecily - disse, cuspindo o nome.
Agarrou seu casaco do cabide onde o novo mordomo o tinha pendurado e o jogou pelos ombros. Não se incomodou em interrogar mais ao servente, mas sim cruzou o
hall com grande rapidez e saiu pela porta traseira encarando a garagem. Os passos de Caitlin ressoavam a seus calcanhares.
Atrelou um dos cavalos à carruagem de passeio mais rápido e saltou sobre o assento. Caitlin subiu a seu lado. Com um grunhido, ele açoitou ao cavalo castanho
para que deixasse a garagem, enfiasse o caminho de entrada e saísse à rua.
Em questão de minutos, tinha alcançado a Dezoito e Larimer. As carruagens dos assistentes ao baile tinham as ruas tão congestionadas como durante os dias trabalhistas,
e, enquanto ele se aproximava do Windsor cada espaço disponível estava ocupado por um transporte. Levou a carruagem tão perto ao Windsor como foi possível e atou
o cavalo a uma luz.
-Você não tem nada que ver com nisto - disse a Caitlin. -Fique aqui.
Ela meneou a cabeça, esticando a mandíbula. Ele saltou do assento e pôs-se a andar para o Windsor com passo frenético, não olhando atrás para ver se lhe seguia.

Só duas horas de começado o baile, meditou Cecily, e tudo é absolutamente perfeito.
Esquivou com graça o completo de uma das viúvas proeminentes de Denver e meneou seu leque com um elegante giro de mão. O salão de baile do Windsor estava abarrotado
de ponta a ponta com a elite de Denver e dignitários visitantes, muitos deles gente a que essa cadela da Athena nunca teria pensado em convidar. A orquestra tocava
faiscantes melodias para deleitar a cada orelha, e os lanches e refrescos servidos na habitação anexa tinham sido criados por alguns dos mais dotados chefes da cidade.
Esse era o triunfo do Cecily, dela e nada mais que dela.
Em tanto Athena e seu irmão não o arruinassem. Cecily olhou em torno da câmara cheia de espelhos pela centésima vez. Era pura estupidez pensar que essa cadela
voltaria depois de sua fuga quatro dias atrás. Indubitavelmente, ou tinha perecido nas montanhas ou encontrado a seu amante e fugido com ele... se milagrosamente
tinha conseguido lhe alcançar antes de Niall.
Não obstante, Cecily fazia circular maliciosos rumores a respeito das razões para a repentina partida da Athena. Quando tinha contado a umas quantas fofoqueiros
escolhidas que Athena era capaz de caminhar... que indubitavelmente tinha estado enganando à sociedade durante anos... havia feito a narração com a sussurrada e
vergonhosa informação de que a garota tinha enlouquecido e a tinha atacado como uma besta selvagem, ameaçando sua vida.
Quão dispostas estiveram as aborrecidas matronas e senhoritas de Denver a acreditar tão acidentado relato, especialmente quando Cecily deu asas à especulação
de que Athena as tinha manipulado para que fizessem excessivas contribuições por piedade. Cecily lhes mostrou a considerável mancha roxa em seu braço por onde Athena
a tinha agarrado. Expressou sua compaixão pela jovem mulher que tinha cansado presa de maus elementos e de sua própria débil natureza. Um pouco de verdade aqui,
um pingo de exagero lá, e tinha sentado as bases para explicar a violenta deterioração da Athena.
Cecily tinha alertado à polícia, é obvio, e lhes havia dito que a senhorita Munroe tinha declarado sua intenção de viajar às montanhas sozinha. Se eles tivessem
encontrado à garota, Cecily teria sido vista como que tinha completo com seu dever, e Niall não poderia encontrar falha em seu proceder. Qualquer acusação que Athena
pudesse fazer poderia ser explicada como um resultado de seu estado lunático; Cecily tinha toda confiança em sair vitoriosa em um duelo de engenho. Mas a polícia
não tinha encontrado a Athena, nem ninguém tinha sido capaz de contatar com seu irmão por causa da gélida tormenta. Era uma tragédia, certamente.
Mas o baile devia continuar. Todo mundo estava de acordo, com a maior solenidade, em que Cecily estava dirigindo as coisas muito bem. Ela tinha feito tudo o
que podia, mas Munroe tinha esperado muito dela ao lhe pedir que cuidasse de uma louca. A pobre e demente Athena fazia tanto para criar o baile, inclusive se havia
lhe tornado as costas à sociedade quão mesmo a sua prudência. Seria o cúmulo da irresponsabilidade cancelar a festividade e privar aos inocentes desafortunados que
se beneficiariam do dinheiro arrecadado.
Assim Cecily tinha seguido adiante, tragando sua inquietação. Ela bem sabia que teria que encarar ao Niall, assumindo que ele retornasse de sua confrontação
com o Holt. Possivelmente não o fizesse. Cecily experimentou só um residual pesar ante o prospecto. Se Athena estava louca... e claramente o estava... ele poderia
ser instável também. Ela já não podia obrigar-se a si mesma a acreditar que o matrimônio com o Niall Munroe suportaria vantagens suficientes para superar as desvantagens...
particularmente quando ela tinha começado a obter uns muito promissores conhecimentos sobre os ricos solteiros de Denver.
Cecily esboçou um valoroso sorriso em benefício de seus pares e declinou uma oferta de um de tais cavalheiros para dançar. Melhor parecer um pouco reservada,
para causar pena pelos recentes sucessos que muito rápida em esquecê-los. Haveria tempo de sobra para celebrar depois do baile, quando sua nova posição social estivesse
firmemente estabelecida e ela tivesse tratado com o Niall. Se é que ele tinha sobrevivido.
Estava falando com a senhora Gottschalk, de costas às portas do salão de baile, quando o murmúrio de muitas vozes igualou ao zumbido de uma alterada colméia
de abelhas. A música se deteve abruptamente. Cecily fez uma pausa em seu solene discurso e deu a volta.
Niall Munroe se achava de pé na soleira, coberto de barro e vestido como se acabasse de chegar diretamente do selvagem, o qual muito provavelmente era o que
tinha feito. A seu lado estava essa criatura ruiva, Caitlin, com um aspecto tão desalinhado como o dele.
Cecily se encolheu sobre si mesma como se assim pudesse ocultar-se do olhar que percorria a multidão. Várias vozes se elevaram fazendo perguntas, mas ninguém
se aproximou de Niall. Este exsudava violência como um cão raivoso.
-Sabe ele? -sussurrou alguém atrás dela.
-Por que ia estar aqui se não soubesse? Olhe sua cara!
-Pobre homem...
-Ele deve ter sabido que ela estava louca.
Oh, ele sabia; disso Cecily estava segura. Ele tinha oculto a loucura da Athena atrás de uma máscara de propriedade e dependência. E também sabia que ela estava
desaparecida. Certamente tinha estado na casa e tinha falado com os serventes.
Cecily tentou respirar e sentiu seu espartilho apertar-se em torno de seu peito. Estava bem preparada para esse momento. Sabia o que devia fazer. Apareceria
ainda mais heróica se ficava a si mesmo a disposição do Niall antes que ele viesse em sua busca.
Mas seus pés não queriam levá-la até ele. Niall escaneou cada esquina da habitação, e ao fim seu olhar se posou sobre ela.
Moveu-se como um homem disposto a assassinar. Cecily se preparou para o ataque.
-Deixou-a ir - grunhiu, alheio às muitas centenas de pares de olhos. -Onde está?
Cecily convocou sua dignidade e entrelaçou as mãos em atitude de profunda preocupação.
-Senhor Munroe. Compreendo que você esteja tão alterado. Estou segura de que isto deveu ser toda uma comoção. Se tão somente tivesse sido capaz de lhe localizar...
Não lhe pediria que encontrassem um lugar mais privado para falar. Ela desejava a segurança de testemunhas.
-Eu confiei em você para vigiá-la! -gritou ele. -E a deixou partir... sempre a quis fora do caminho, não?
Uma mulher gritou em tom assustado.
-Ele está tão louco como ela! -exclamou outra.
-Senhor Munroe -disse o senhor Osborn, saindo em defesa do Cecily. -Por favor, baixe a voz. Há damas pressente, e este não é nem o momento nem o lugar para...
Niall lhe golpeou e enviou ao homem cambaleando-se para trás. Caitlin apanhou seu braço e se pendurou dele tão ferozmente como um bulldog. Uma quebra de onda
de movimento se expandiu do ponto de alteração enquanto damas e cavalheiros se escapuliam longe do mesmo.
-Não é... não é o que você pensa -disse Cecily. -Ela me atacou. Ameaçou me danificando seriamente. Os serventes ficaram de seu lado contra mim. Não ficou outra
escolha salvo lhe permitir que partisse. Naturalmente, contatei com a polícia imediatamente, mas... sua irmã não está bem, senhor Munroe. Deve você acreditar que
eu nunca a teria deixado ir voluntariamente.
-O que ela a atacou? Athena? -riu ele. -Está mentindo.
Ela se ruborizou.
-Está você aflito. Sabe que ela é capaz de caminhar. Sua força é maior do que parece. Estava decidida a ir atrás de seu amante... o assassino Morgan Holt.
Uma fresca quebra de onda de exclamações seguiu a essa declaração, mas o selvagem olhar do Niall impôs silêncio uma vez mais. Ele se abateu sobre o Cecily.
-Ele não veio aqui?
-Aqui? -Cecily se estremeceu. -Mas eu pensei que você... -mordeu o lábio inferior. -Eu lhe alertei sobre ele. Você disse que se ocuparia dele em pessoa!
Ele a agarrou pelos antebraços e a sacudiu.
-Se lhe aconteceu algo a minha irmã...
-Mas nada me aconteceu, Niall - disse uma voz rouca do outro lado da habitação. -Não na forma em que você quer dizer.





























CAPÍTULO 23

Cecily sentiu que seus joelhos começavam a ceder. Uma figura envolta em umas calças muito grandes e camisa de homem percorreu o atalho aberto que a multidão
tinha criado para a entrada do Niall. A aproximação da Athena não foi nem de longe tão violenta, mas cada olho se voltou para ela e o silêncio se tornou inclusive
mais profundo.
O rosto da Athena estava branco como um lençol, seu cabelo parecia um ninho de ratos, e sua respiração era irregular. Mas ela se deteve ante seu irmão como
se fosse mais alta e mais poderosa, capaz de lhe derrubar de um só golpe.
-Athena! -exclamou Caitlin.
-Athena -balbuciou Niall atônito. -Está... onde esteve?
Seu intento de recuperar o controle da situação falhou miseravelmente. Athena lhe olhou de frente, sem piscar.
-Matou a minha mãe?
A boca do Niall se abriu de par em par. Ela não teve piedade no mais mínimo.
-Sei que foi o responsável por seu desaparecimento justo depois de meu nascimento. Matou-a?
Cecily nunca tinha visto o Niall empalidecer como o estava fazendo agora.
-Athena, o que está fazendo?
-Estou procurando a verdade - sorriu ela, de um modo que causou um calafrio no espinho dorsal do Cecily. É muito tarde para preocupar-se com minha reputação
agora, não? Estou segura de que Cecily já lhe disse a todo mundo o que ainda não soubessem - o sorriso se desvaneceu. -Me responda.
-Athena... não o compreende - ele olhou a seu redor como procurando apoio e só encontrou um olhar que encontrasse a sua. Caitlin Hughes avançou até colocar-se
a seu lado. Era uma amostra do baixo que tinha cansado o que parecesse encontrar conforto em sua presença. -Eu não a matei - disse, com uma voz mais firme. -Fiz
que se fosse longe. Tinha que fazê-lo. Ela estava arruinando a vida de nosso pai, e teria arruinado a tua. Eu tratava de te salvar.
-Salvar a mim -sussurrou ela- ou a você mesmo? Tanto medo me tem?
O rosto do Niall se obscureceu de fúria.
-Quem te contou a respeito de sua mãe? -perguntou. Virou-se bruscamente para Caitlin. -Foi você?
-Não - Athena olhou ao Caitlin com uma remota gentileza nos olhos. -Morgan me disse isso. Pensou que estava morto, não? Achava que lhe tinha matado. Mas não
teve êxito, Niall. Ele te enganou. E eu lhe encontrei.
A expressão da cara do Niall se transformou de consternação a desprezo em questão de segundos.
-Você... você esteve com ele, não? Se voltando contra sua própria família, sua própria classe... Jazendo com ele como uma prostituta qualquer, como sua mãe...
Um borrão de movimento foi tudo o que Cecily viu antes que Niall se estrelasse de costas contra o chão do salão de baile. O borrão cobrou a forma de outro homem,
descalço e vestindo unicamente um capote que alcançava até as panturrilhas. Ele permaneceu de pé sobre sua vítima, com os dentes nus e olhos em chamas.
Morgan Holt. Morgan Holt tinha vindo. Esses terríveis olhos se separaram do Niall, descansaram brevemente sobre a Athena, e se posaram infalivelmente sobre
Cecily.
Com um instintivo chiado, Cecily deu a volta e voou da habitação.
Athena a observou ir sentir nada, igual a não sofria pesar ou vergonha sob as horrorizadas e interessados olhares daqueles a quem uma vez tinha chamado amigos.
Todas as emoções que a tinham impulsionado durante as passadas horas: raiva, confusão, terror... a tinham abandonado; era como se estivesse parada no olho de um
tornado, ouvindo-o uivar em torno dela enquanto ela permanecia ileso.
Era uma forma de proteger-se a si mesma da dor, igual a tinha feito uma fortaleza de sua invalidez e a cadeira que restringia sua liberdade. Da cadeira, ela
tinha observado o mundo passar, procurando afetá-lo enquanto permanecia sem ser afetada por ele, uma serena deusa de piedade e caridade que tinha esquecido o que
era ser humano.
Ela tinha deslocado a Denver para exigir a verdade ao Niall, e todo o tempo tinha estado escapando da verdade de seu coração. A verdade que ainda estava assustada
de sentir. Por causa de sua debilidade, Niall jazia esparramado no gentil chão, aguardando o golpe mortal. Tal e como Morgan aguardava para dá-lo.
Morgan a tinha seguido. Ela deveria ter sabido que o faria. Deveria ter sabido que ele ficaria em perigo a si mesmo para protegê-la de seu irmão... e extrair
sua vingança.
Ele tinha cuidado de Athena uma única vez desde que tinha entrado na habitação... encontrando seu olhar como um desconhecido, tão falto de emoção como ela.
O homem que ela tinha amado se foi, substituído por um assassino a sangue frio. E só ela podia lhe deter.
Ela, e Caitlin. A cavaleiro se ajoelhou junto ao Niall no mesmo instante em que Athena se colocava entre o Morgan e seu irmão.
-Não pode lhe fazer dano, Morgan -disse Athena. -Sabe que não pode.
Os desumanos olhos do desconhecido logo que tocaram os seus.
-Ele te destruirá, como destruiu a sua mãe.
-Ele não matou a minha mãe -disse ela. -A mandou longe, mas diz que não a matou. Eu lhe acredito.
Embora ela não tinha levantado a voz, Morgan se encolheu como se lhe tivesse golpeado. A aterradora e estranha máscara caiu, substituída por nua dor. Dor que
se abriu passo através da própria indiferença da Athena e a deixou sentindo-se em carne viva e indefesa.
-Você lhe acredita -disse Morgan. Baixou a vista para o Niall e deu um passo atrás, seus músculos relaxando sua postura de ameaça. -Ainda confia nele.
-Sim, Athena. Deve confiar em mim -Niall ficou de joelhos, sua atenção centrada no Morgan. -Eu conheço a verdade sobre este homem. É um sentenciado e um assassino
- elevou a voz para que esta alcançasse as esquinas mais afastadas do salão de baile. -Morgan Holt matou a seu próprio pai.
Um coletivo ofego de assombro se elevou de entre os espectadores. Numerosas mulheres pareceram com o bordo do desmaio, e não poucos homens olharam a seu redor
em busca de possíveis armas. Athena os ignorou a todos. Os angustiados olhos do Morgan se converteram em todo seu mundo.
-É verdade - disse ele, falando só para ela. -Eu matei a meu pai. Fiz nove anos na prisão. E teria assassinado a seu irmão para te proteger - sustentou em alto
suas mãos e girou as palmas para cima, flexionando os dedos até converter as mãos em punhos. -Possivelmente ele diz a verdade. Sou um assassino de coração. Você
fez o correto ao me abandonar.
Como uma presa estalando sob o peso de uma rugente enchente, seu coração cedeu. Tudo o que ela tinha estado retendo em seu interior, cada dúvida, cada insuportável
imagem, foi deslocada pela inundação até que ela teve sido limpeza, deixando-a reluzente e nova.
-Não - disse. -Eu estava equivocada. Disse que escutaria, e que confiaria em ti, mas me estava enganando a mim mesma - olhou ao Niall com profundo pesar. -Vim
atrás de meu irmão porque não podia encarar à pessoa que mais me importava. Niall era um inimigo que eu poderia conquistar. Meus sentimentos por você não. Tinha
medo de que Niall estivesse certo, e que eu estivesse apaixonada por um assassino. Preferiria te haver perdido para sempre que encontrar tão entristecedora falha
dentro de mim mesma.
Morgan sacudiu a cabeça.
-A única falha está em mim.
Athena estendeu a mão. Morgan olhou esta sem mover-se. Ela manteve sua mão onde estava, com os dedos estendidos, lhe oferecendo o perdão que ele recusava permitir-se
a si mesmo.
-Dir-te-ei o que eu acredito - disse ela. -Acredito que qualquer crime que cometeu foi somente porque não teve outra escolha. Acredito que pagou totalmente
por seus enganos. Acredito que há muito de bom em você, Morgan Holt, e alguém deve te fazer vê-lo.
-Você é a única que pode - disse Caitlin, contendo ao Niall com uma mão sobre seu ombro. Olhou-o com expressão de desculpa e elevou a voz para dirigir-se à
multidão. -Morgan teve duas oportunidades de matar ao senhor Munroe, e poderia ter escapado com facilidade. Mas foi Niall quem deixou ao Morgan, lhe dando por morto,
nas montanhas. Morgan escolheu fingir sua morte em vez de ver-se forçado a matar a seu inimigo.
-Tal e como se viu forçado a matar a seu pai.
Athena se girou para a refinada voz de tenor, reconhecendo-a imediatamente. Muito pouco tinha o poder de chocá-la agora, e tudo o que ela sentiu foi gratidão
e uma sincera alegria enquanto Ulysses Marcus Aurelius Wakefield e Harry French entravam no salão de baile.
Uma distante parte de sua mente reconheceu quão desconjurado pareciam ambos nessa brilhante companhia... Harry embelezado com sua gritante colete e jaqueta
vermelha, Ulysses um manequim de cabelo dourado de um cavalheiro sulino. Mas eles eram sua família de um modo que essas ricas e distintas pessoas nunca poderiam
sê-lo. Eles dois eram homens do espetáculo, enganadores profissionais, e ainda assim eram os mais honestos de todos. Ela os queria somente um pouquinho menos que
ao Morgan. E eles estavam ali para lhe salvar a ele.
Ulysses se deteve no centro da habitação, erguendo-se tão alto como sua estatura o permitia. Não vestia a túnica protetora e o anonimato do Pequeno Professor.
Estava inteiramente exposto ao fascinado desgosto daqueles que deveriam ter sido seus iguais, e Athena sabia quão difícil devia ter sido para o gentil homem que
tinha sido expulso fora de seu próprio mundo de elite.
-Damas e cavalheiros - disse ele. -Vejo que o senhor French e eu chegamos no momento mais propício. Somos integrantes do Fantástico Circo Familiar do French,
que recentemente foi contratado pela senhorita Athena Munroe - fez uma reverência em direção a ela. -Eu sou Ulysses Marcus Aurelius Wakefield, e o cavalheiro junto
a mim é Harold B. French. Observamos os acontecimentos que ocorreram recentemente envolvendo à senhorita Munroe, ao senhor Munroe, e ao senhor Holt. Agora é necessário
esclarecer as declarações que estes dois cavalheiros têm feito com respeito ao mais distante passado do senhor Holt.
Morgan deu um abrupto passo para o Ulysses.
-Não.
Ulysses baixou o olhar.
-Lamento romper uma confidência, meu querido amigo, mas deve fazer-se assim.
Voltando as costas ao Niall, Athena foi parar se junto ao Morgan. Ela tomou sua mão na sua. Os tendões sob os nódulos dele ressaltavam como cordas de aço. Agarrou-lhe
com mais força ainda.
-É certo -disse Ulysses- que Morgan Holt cometeu parricídio, um crime atroz entre gente civilizada. O senhor Holt foi submetido a julgamento e condenado a passar
muitos anos na prisão. Desde não ter sido por uma única testemunha que declarou em seu favor, teria sido sentenciado a morte. Ele nem se defendeu a si mesmo nem
tratou de escapar, embora teve muitas oportunidades para fazê-lo assim durante seu encarceramento -encontrou o olhar do Morgan de novo. -Eu fiz minha responsabilidade
me inteirar de tudo o que pudesse a respeito das circunstâncias rodeando este assunto. Eu conheço a verdade por trás da tragédia.
O salão de baile bem poderia ter estado vazio pelo absoluto silêncio que reinava nele. Cabeças coroadas por brilhantes tiaras e cabelos meticulosamente penteados
viajaram do Ulysses ao Morgan.
Ele contemplou o chão e fechou os olhos. Seu protesto foi tão suave que Athena a sentiu mais que ouvi-la.
-Damas e cavalheiros - disse Ulysses. -O pai do Morgan Holt deixou a sua esposa, filho e filha em Califórnia para procurar fortuna na mineração quando Morgan
não era mais que um menino de treze anos. Ele prometeu retornar, mas não o fez. Sua família se viu obrigada a valer-se por si mesma sem nenhuma fonte de ganhos até
que Morgan decidiu ir atrás de seu pai e lhe levar a casa. Tinha quatorze quando deixou a sua mãe e sua irmã. Não relatarei todas as tribulações que se viu forçado
a superar em sua viagem, ou como sua própria infância se perdeu antes que alcançasse a idade de quinze anos. Mas quando alcançou o Território de Colorado e finalmente
encontrou a seu pai, já tinha aprendido a odiar.
-Morgan - murmurou Athena, repousando a cabeça em seu ombro. -Oh, meu amor.
-A propriedade que seu pai tinha reclamado nas montanhas era pobre -continuou Ulysses- mas Aaron Holt não estava disposto a abandoná-la. Negou-se a voltar com
sua família, não importa como seu filho tratasse de lhe persuadir. Sua ânsia de riqueza era maior que seu amor. E assim, ele e seu filho brigaram amargamente, e
Morgan partiu com muitas duras palavras e um desespero ainda maior. Muitos meses mais tarde, retornou e encontrou a seu pai de novo. Mas Aaron Holt tinha trocado.
Tinha sido vítima de homens que faziam sua vida enganando e roubando, e eles lhe tinham deixado... - Ulysses fez uma pausa. - Peço-lhes desculpas, senhoras, mas
o que estou a ponto de relatar não é para ouvidos delicados. Poderiam querer abandonar a habitação antes que prossiga.
Ninguém se moveu. Morgan ouviu o fraco arrastar de pés de suave calçado, a rajada de ar emitida por centenas de gargantas, o rangido de espartilhos enquanto
as mulheres trocavam de postura para conseguir uma melhor visão dele. Ouviu o uniforme batimento do coração do coração da Athena e sentiu seu calidez ao longo de
seu flanco. Mas a voz do Ulysses se converteu em um zumbido, um revoltillo de palavras carente de significado que não tinha poder para descrever o que tinha acontecido
esse terrível dia nas montanhas de Colorado.
Tinha sido uma ensolarada e inusualmente cálida tarde de finais da primavera, mas Morgan logo que sentia o sol e as suaves brisas, nem notava a explosão de
flores silvestres crescendo gordas e exuberantes nas saias da montanha e as pradarias.
Tudo o que ele podia ver era ao Aaron Holt... não o afável e teimoso homem que tinha deixado atrás detento da ira, a não ser um consumido inválido de olhos
vazios que era mais estranho para o Morgan agora do que jamais o tinha sido. Achava-se estendido contra uma rocha no coração de sua propriedade, com as roupas sujas
e jogado em meio de seus próprios excrementos.
Morgan sabia que se estava morrendo.
-Eles tentaram me roubar minha propriedade - disse Aaron Holt, sua voz soando como uma dobradiça oxidada. -Esses bastardos ladrões. Briguei com eles. Não...
- tossiu, e o movimento sacudiu sua perna gangrenosa. Era um milagre que pudesse falar absolutamente. Morgan podia cheirar o veneno, a rápida podridão da carne.
O aroma da morte... de uma prolongada e dolorosa morte. -Se assustaram o suficiente como para não voltar -sussurrou Aaron. -Mas... me deixaram uma lembrança -fez
um gesto em direção a seu lhe supurem perna esquerda, de uma profunda cor bronze e púrpura por causa da infecção, já não reconhecível como tecido vivo.
A ferida original se perdeu sob o inchaço.
Aaron estava esquelético pela falta de alimento, e meio delirando pela febre. O primeiro que Morgan fez foi lhe trazer água e tentar fazer que comesse o duro
pão de um dia de velho que havia trazido consigo, mas seu pai o tinha afastado sem tocá-lo.
-Encontrarei um doutor - disse Morgan, meio assustado de que Aaron Holt não estivesse vivo quando ele retornasse.
Mas seu pai pôs-se a rir, um som mais terrível que o pranto, até que as lágrimas começaram a lhe correr pelas bochechas.
-Estou morrendo - disse. -Não posso comer, não posso dormir. Minha perna se está apodrecendo. Nenhum doutor pode me salvar já -sacudiu a cabeça ante a muda
negação do Morgan. -Não fui à cidade... quando ainda havia oportunidade para mim. Agora tudo o que posso fazer é... - se deteve e olhou ao Morgan com tal desespero
que os olhos de este se encheram de lágrimas. -Sei que não fui um bom pai para você. Sei que me odeia. Não considero que me deva nenhum favor, mas agora eu tenho
um que pedir - tomou uma profunda inspiração e logo deixou o ar sair com um lhe estralem assobio. -Me dói, menino. Não posso suportá-lo mais. Mas não tenho as forças
para acabá-lo por mim mesmo. Terá que fazê-lo você por mim.
Morgan ouviu as palavras, mas necessitou muitos minutos para compreender seu significado. Acabá-lo. Seu pai queria que ele acabasse com sua miséria, e só havia
uma maneira de fazê-lo.
-Eu hei... tenho uma pistola escondida sob essas pedras - disse Aaron. -Só faz falta... uma bala, menino.
-Não - Morgan deu um passo atrás, tropeçou com uma pedra, e recuperou o equilíbrio de novo. -Não o farei.
-Tem que fazê-lo. Tem que fazê-lo, menino. Passar-me-ei outra semana morrendo, e não posso... - o homem maior tossiu outra vez e se deixou cair contra a rocha.
-Estou-lhe implorando isso. Por favor...
Depois disso, Aaron Holt esteve calado durante um tempo, exausto por seus esforços para falar. Morgan tentou lhe fazer beber, mas seu pai recusava todo intento
de ajuda. Essa noite Morgan fez uma fogueira e cobriu a seu pai com todas as mantas que pôde encontrar. Durante a larga noite, Aaron sonhou. Chorou e gritou de agonia,
e Morgan podia cheirar a podridão estender-se, centímetro a centímetro, comendo o corpo do Aaron do interior.
Na alvorada, Aaron logo que podia mover-se. Era como se tivesse esgotado toda a vida que ficava dentro... tudo exceto a dor. Cada respiração lhe supunha uma
batalha. Gritou quando Morgan lhe tocou a perna para ajustá-la sob as mantas.
Não havia esperança para o Aaron Holt. Morgan sabia. Ele se tinha familiarizado com a morte durante os muitos anos passados em sua busca. Tinha-a visto adotar
muitas formas, mas nenhuma tão horrenda como essa.
-Você... deseja vingança - ofegou seu pai, abrindo um olho avermelhado. -Quer me ver morrer lentamente, não?
Morgan agachou a cabeça, a emoção tão asfixiante em seu interior que poderia havê-lo estrangulado.
-Eu não te odeio, P.
-Então me ajude! -gemeu Aaron. -Tenha piedade. Piedade.
O sol ascendeu ainda mais, prometendo outro dia quente. Sua luz riscou todos os tendões e veias ressaltando no pescoço e as mãos do Aaron Holt. Nada em sua
carícia poderia confortar ao pai do Morgan, nem agora nem nunca.
Morgan ficou em pé. Caminhou até a pilha de pedras onde Aaron tinha oculto seu revólver, e apartou as pedras a um lado. A pistola se sentia pesada e incômoda
em sua mão. Nunca tinha levado uma; não a tinha necessitado, sendo o que era.
Mas Aaron Holt era humano.
-Deus te abençoe, menino - sussurrou o homem maior. -Deus... te abençoe.
Com a pistola frouxa a seu lado, Morgan se colocou ante seu pai e contemplou a ladeira da montanha, onde fileiras de árvores perenes subiam para o céu.
-Há algo que queira que diga a Mãe e ao Cassidy?
Seu pai somente fechou os olhos.
-A cabeça - grasnou. -Essa é a maneira mais rápida. Não... não o sentirei. Não mais dor. Bendita... paz.
Morgan lhe odiou então, mais do que jamais o tinha feito. Elevou a pistola e pensou em todas as vezes que tinha sonhado de encarar ao Aaron Holt e lhe fazer
desejar estar morto.
Aaron Holt desejava estar morto. Isso era tudo. Não tinha nada que dar, nem enganos que corrigir, nem coisas que lamentar. Tão somente uma última exigência
ao filho que tinha abandonado.
-Por favor - sussurrou. -Maldito seja. Maldito seja.
O sol brilhava como louco sobre suas cabeças. A mão do Morgan começou a tremer. Ele a apertou em um punho. O tremor parou.
-Agora. Fá-lo... agora.
Morgan elevou o revolver e apontou com delicioso cuidado.
-Obrigado... Deus - sussurrou Aaron.
Morgan disparou uma vez. Entre um momento e o seguinte, a dor do Aaron Holt se acabou. O eco ressonou pelas colinas, e um bando de corvos elevou o vôo de um
próximo pinheiro em meio de estridentes gritos.
Um velho mineiro e sua mula emergiram de entre a maleza. Morgan foi distantemente consciente da assustada cara do homem e a forma em que este olhou do Morgan
ao corpo e logo depois de novo a ele.
-Matou-lhe - disse o velho.
-Era meu pai - disse Morgan.
Não havia lágrimas. Nem sentimento algum absolutamente.
O velho mineiro aferrou as rédeas de sua mula como se a vida o fora nisso.
-Devíamos ver como ia. Não tinha sabido nada dele em uma semana. Agora está morto - estreitou os olhos. -Você foi seu filho?
Outros dois homens apareceram atrás do mineiro, ambos embelezados com grosseiro traje e moderados por anos passados nas montanhas.
-Hank! Está bem? -disse um deles. Logo olhou ao Morgan. -Ouvimos o disparo. Que demônios?
-Aaron está morto -disse Hank. -Seu próprio filho lhe disparou.
Os recém chegados puseram-se a andar em direção ao Morgan e se detiveram ao ver a pistola. Morgan a deixou cair de entre seus dedos. Um dos homens lhe rodeou
cautelosamente e se apressou a agarrar a pistola.
-Está morto, certamente - disse o segundo homem com gravidade, inclinando-se sobre o corpo. -Você lhe viu fazê-lo, Hank?
-Bom, eu... - o velho mordiscou os puídos extremos de seu bigode. -Ouvi-lhes discutir antes, em março, durante o degelo. Não sabia que o menino era o filho
do Aaron. Mas...
-Temos que te levar a cidade, menino - disse o homem com a pistola, apontando-a para o peito do Morgan.
-Eu ouvi o Aaron lhe dizer que o fizesse - balbuciou o velho mineiro. -Seu aspecto não é precisamente bom. Possivelmente foi melhor assim.
-Isso o terá que decidir a lei - o primeiro homem assentiu em direção ao segundo. -Consegue um pouco de corda, Bill. Não podemos tomar riscos com um homem que
assassinou a sua próprio pai.
Hank abriu a boca como se fosse dizer algo, mas a voltou a fechar rapidamente. Morgan aguardou em silêncio enquanto Bill lhe atava as mãos à costas. Deu as
boas vindas ao desconforto quando os homens arrastaram de retorno a sua propriedade, a quilômetro e meio de distância, e falaram a respeito de como lhe levar a cidade
e lhe entregar à lei. Poderia ter escapado facilmente deles, mas não o fez.
Não se defendeu quando o submeteram a julgamento. O velho Hank falou do que tinha ouvido, como Aaron Holt parecia implorar ser assassinado, e o médico local
atestou que Aaron tinha estado sofrendo de uma gangrena mortal e devia ter estado padecendo uma insuportável dor.
Ao final, isso foi o que evitou ao Morgan a morte. O que lhe deram foi pior. Encerraram-lhe em um lugar que, em qualquer outro tempo, teria lhe tornado louco.
Enjaularam-lhe durante nove anos, e quando julgaram seu silêncio como rebelião lhe golpearam. Ele lhes deixou. Sempre se curava. Depois de um tempo, deixaram-lhe
em paz. A sós com seus próprios pensamentos e lembranças.
Esse foi o verdadeiro castigo, o único ao que nunca poderia escapar. Só o lobo lhe proporcionava paz. E logo isso também foi arrebatado.
-Por que não me disse isso?
Morgan escalou fora do poço da memória, estirando-se para a luz da voz.
A voz da Athena. Abraçava-lhe, e seus olhos avelã resplandeciam com lágrimas.
-Eu teria compreendido - sussurrou ela. -Isso não teria trocado nada entre nós.
A voz do Ulysses soou em dramática conclusão:
-E assim, Morgan Holt pagou por seu crime. Um crime de piedade, um relutante alívio do inconcebível tortura. Cumpriu sua sentença. Foi suficientemente castigado,
e não deve sê-lo mais.
A gente na multidão começou a murmurar, uma maré de som repentinamente liberada pelo final do relato do Ulysses. Morgan encontrou que sua mente se achava notavelmente
clara. Liberou seu braço do apertão de Athena e se girou lentamente para o Niall, quem se tinha posto em pé, com o Caitlin solene e pálida a seu lado. O olhar do
Niall evitou a dele.
-Ofereço-te um trato - disse Morgan. -Deixa partir a Athena. Ela não é como você. Dê-lhe o que é dela, e eu partirei e não retornarei.
-Não, Morgan - disse Athena. -Não é um trato que você deva fazer - se virou para seu irmão, com a cabeça em alto, e lhe insistiu a encontrar seus olhos. -Eu
te queria, Niall -disse. -Confiava em você. Negava-me a acreditar nada mau de você, inclusive quando deveria ter sabido a verdade. Você cuidou que mim durante todos
estes anos. Nunca esquecerei isso. Mas agora compreendo o que foi o que te fez ser tão cuidadoso comigo. Era a culpabilidade... não só pelo acidente, a não ser por
causa de minha mãe - ela não baixou a voz, embora devia saber que impressão causariam suas palavras na ávida audiência. -Me roubou isso, e me mentiu durante toda
minha vida. Tinha medo de que me voltasse como ela se tinha minha liberdade -ofereceu um dilacerador sorriso. -Se alegrou quando saí ferida, verdade? Eu estava segura
em minha cadeira, com meu trabalho doméstico e minhas caridades. Deixei-te me convencer de que isso era tudo ao que podia aspirar. Seu engano foi tratar de me arrebatar
inclusive isso. E minha grande sorte... - alargou a mão para a do Morgan. -Minha grande alegria é que alguém chegou para me ensinar sobre o valor e de atrever-se
a ter esperança. Alguém que sofreu mais do que você ou eu possamos imaginar.
-Athena - disse Niall, tragando com dificuldade. -Deve entender...
-Faço-o, Niall. E te compadeço - olhou a Caitlin. -Se alguém pode lhe ajudar, é você.
Caitlin inclinou a cabeça.
-Obrigada.
Niall olhou a Caitlin como se lhe tivessem crescido chifres e uma cauda.
-Você - sussurrou.
Observou primeiro ao Morgan e logo a Athena. Já não havia simplesmente medo em seus olhos, a não ser algo mais complexo feito de partes iguais de perplexidade
e desespero. Morgan reconheceu a classe de loucura que apanha a um homem quando tudo no que acreditou, cada fundamento de seu mundo, desintegra-se sob seus pés.
Como Cecily fazia antes que ele, Niall girou em redondo sobre seus calcanhares e saiu da habitação correndo. Caitlin vacilou, angústia em seus olhos, e correu
atrás dele. Um zumbido de excitados comentários se elevou e caiu por todo o salão de baile.
Athena apertou os punhos contra os flancos e não foi atrás deles. Morgan desejou abraçá-la, consolá-la com todas as carinhosas palavras que nunca tinha sido
capaz de dizer. Permaneceu quieto.
Ulysses e Harry se uniram a eles. Ulysses assentiu em direção ao Morgan, eloquente em seu silêncio. Os olhos do Harry estavam úmidos.
-Meu filho - disse. Alargou a mão como se fosse dar tapinhas no ombro do Morgan e logo colocou a mão em seu colete - Em seu meu lugar querido moço -pigarreou.
- Sei... sei que seu pai te queria, e que você queria a ele apesar de tudo. O que existe entre pai e filho não é facilmente feito pedacinhos.
-Ele tem razão -disse Athena. Ela não tinha medo de lhe tocar, não importa quão pouco respondesse a seu toque. -Viveu com isto muitos anos. Deixa-o ir. Se afaste
disso, igual a eu aprendi a me afastar de minha cadeira e de tudo o que me mantinha prisioneira - colocou a mão sobre seu peito, com os dedos estendidos, como se
pudesse alcançar dentro de suas costelas e substituir o que estava perdido. -Perdoa a seu pai, Morgan. Se perdoe a si mesmo.
-Escuta-a - Harry piscou, e uma lágrima escapou da extremidade de um olho. -Morgan... estou tão orgulhoso de você como se fosse meu próprio filho. Esse é o
por que devo insistir em que não desperdice a única coisa que pode te dar paz -tomou a mão do Morgan e logo a da Athena. Gentilmente, colocou os dedos dela entre
os dele. -Se amem um ao outro. Isso é tudo o que importa.
Morgan não poderia ter falado assim tivesse querido. A obstrução em sua garganta tinha crescido e crescido até encher todos os lugares vazios de seu corpo,
pressionando sobre suas pálpebras e o recobrimento de gelo em torno de seu coração.
Olhou a Athena aos olhos. Estes eram claros, sensatos, brilhando com amor. Por ele.
-Eu não posso ficar aqui, entre os homens - disse, de modo que só ela pudesse ouvi-lo.
-Sei.
-Não permitirei que abandone tudo isto por mim.
-Tudo isto? - ela olhou em torno da habitação, seu olhar varrendo o mar de caras como se estas não fossem mais que antigas pinturas penduradas em uma parede.
-Você acredita que desejo isto agora? Eles não me aceitariam de novo assim eu quisesse. E eu não os aceitaria a eles - tomou sua mão entre as suas. -Decidi, inclusive
antes de retornar a Denver, que minha antiga vida tinha se concluído. Deveria havê-lo sabido antes, mas uma parte de mim estava ainda atada a essa cadeira. A que
você me fez reconhecer pelo que era. Você, Morgan.
-Você sabia que eu tinha matado.
-E duvidei, por um tempo. Mas o amor... - ela olhou ao Harry com um cálido sorriso. -O amor é mais forte que a dúvida.
Mas, ainda, ele recusava permitir-se acreditar.
-A gente a que ajudas... não pode lhes abandonar.
-Com tudo e os enganos que cometeu, meu irmão tinha razão em certo modo - disse ela. -Ele me acusou de tentar fazê-lo todo eu mesma, como se pudesse salvar
a todo Denver sem ajuda de ninguém - baixou o olhar. -Fui arrogante. Quis me fazer indispensável... para o Niall, para a sociedade, para os necessitados... porque
não tinha nada mais então -seus olhos encontraram os dele. -Há muita gente boa em minha ocupação que podem fazer o que eu fazia. Tudo o que precisam é dinheiro.
Depois do que aconteceu, acredito que posso convencer ao Niall de que me entregue minha fortuna para poder dar às associações de caridade algo que requeiram para
seguir adiante sem mim. E... - lhe deu a volta à mão dele e beijou a palma. -Há gente que necessita ajuda por toda parte. Não importa onde vamos ou o que façamos.
Eu escolho uma vida contigo, Morgan Holt. Amo-te.
O peito do Morgan se elevou com uma grande e dificultosa inspiração. A frígida vagem atrás de suas costelas se rasgou em um doloroso e milagroso espasmo. Derretidas
gotinhas se apressaram a subir por sua garganta e penetraram em seus olhos. Ele ouviu o rouco som de uns soluços e compreendeu que as lágrimas eram delas.
-Athena - disse. Tomou sua cara entre suas mãos. Meu amor - a beijou, saboreando sal em seus lábios e os dela, desafiando ao mundo inteiro a que os julgasse.
Toda a ira, o auto depreciação e a dor que lhe tinham consumido saíram a fervuras nesse beijo, passaram para a Athena e voltaram para ele limpos e desencardidos.
-Te amo. Aceita-me, Athena?
-Sim. Oh, sim - lhe beijou atrevidamente, apaixonadamente, cuspindo figurativamente nos olhos às chocadas matronas. -Mas só se for para sempre.
Morgan respondeu tão ardentemente como Athena poderia ter desejado. Ela se regozijou de suas lágrimas, porque sabia que estas eram um veículo de liberação...
liberação da prisão na qual ele se encadeou a si mesmo da morte de seu pai. Não sentia vergonha por seu próprio silencioso pranto. Só três pessoas nesse grande salão
de baile lhe importavam agora.
-Athena - murmurou Morgan em seu cabelo. -Dançará comigo?
Ela se retirou um pouco com expressão assombrada.
-Você sabe dançar?
-Ulysses me mostrou como uma vez. Nunca pratiquei.
-E eu -disse ela- quase esqueci como.
Com solene deliberação, Morgan colocou uma mão sobre sua cintura e tomou a outra na sua. Não havia música. Athena não a necessitava. A música soava em seu coração,
uma melodia muito perfeita para ser interpretada por mãos humanas.
Morgan deu um incômodo passo, e logo outro. Era a primeira vez que Athena lhe tinha visto menos que provido de graça. Amou-o ainda mais por sua imperfeição,
e pelo valor que ele demonstrava em um lugar tão alheio a sua natureza. Seguiu-o, olhando-o aos olhos, enquanto ele se voltava mais seguro e seus passos adotavam
um ritmo suave e de três quartos.
Logo ambos estavam voando pelo salão de baile e Athena ria, glorificando-se no baile e o homem que a sustentava. Morgan sorriu. Dançou com ela com selvagem
abandono até as portas do salão e a levou consigo escada abaixo. Os mesmos pasmados trabalhadores do hotel e clientes que lhes tinham visto entrar de um em um lhes
observaram sair juntos da mão.
Saíram correndo à rua, deixaram atrás as carruagens e abandonaram a zona industrial situada justo aos subúrbios da cidade. Morgan se desfez de sua roupa com
olhos iluminados pelo desafio. Athena nem sequer vacilou. Mandou a voar suas roupas e tomou a mão do Morgan. Ele inclinou a cabeça e uivou o suficientemente alto
para despertar aos mortos. O homem nu se dissolveu em um grande lobo negro.
Em questão de segundos, Athena estava a seu lado. Lambeu-lhe o focinho meigamente, e ela pôde ouvir as palavras que não pronunciava, as palavras que os tinham
liberado a ambos: amo-te.
Ulysses olhou para as portas abertas, vagamente surpreso ante a tensão em seu peito. Não era habitual nele ficar sentimental, particularmente quando as coisas
se resolveram de modo tão fortuito.
A larga mão do Harry foi descansar sobre seu ombro. Não falou, nenhuma palavra era adequada para a ocasião. Ao contrário que Ulysses, Harry não sentia escrúpulos
a respeito de suas lágrimas. Sorveu ruidosamente, escavou em seu bolso em busca de um lenço, e se soou o nariz.
O alvoroço no salão de baile tinha alcançado um alto tom, homens e mulheres competiam uns com outros para exclamar mais loquazmente a respeito dos espantosos
eventos que acabavam de ter lugar. Ulysses elevou a vista para o Harry. Harry assentiu, e um sorriso se expandiu por sua redonda e corada cara.
Juntos, giraram-se para encarar a sua audiência. Harry elevou as mãos dramaticamente. O rugido de vozes caiu até ficar em um murmúrio, e logo em silêncio. Harry
fez uma reverência e se ergueu com um largo sorriso que elevou seu bigode quase até as sobrancelhas.
-Damas e cavalheiros - disse. -A atuação concluiu. Boa noite.












































Epílogo

Denver se via muito pequeno do alto da colina, e muito longínquo.
Athena ajustou sua mochila e se reclinou contra Morgan. Ele não teria remorsos por deixar a cidade bem atrás. O que mais a surpreendia era que ela mesma tivesse
tão poucos.
As únicas questões que tinha deixado sem resolver do baile tinham achado sua própria maneira de resolver. Niall tinha saído voando de Denver essa mesma noite,
como o tinha feito também Caitlin. Quando Athena tinha retornado à Rua Quatorze a tarde seguinte, tinha achado uma mensagem do banqueiro da família lhe informando
que lhe tinha sido dado completo controle de sua herança, assim como uma substanciosa porção da fortuna Munroe.
Niall, onde quer que tivesse ido, fazia esse último ato de expiação. O dinheiro era mais que suficiente para manter em marcha as caridades da Athena indefinidamente,
sob o cuidado de empregados de confiança. Como havia dito ao Morgan, sua direta supervisão era apenas necessária. E o que queira que as damas de sociedade de Denver
pensassem dela agora, não deteriam inteiramente suas próprias contribuições. Athena as tinha muito bem treinadas.
Cecily Hockensmith havia certamente acreditado que tinha a todo Denver a seus pés. Athena não podia nem supor o que a mulher mais jovem devia estar pensando
agora. Do baile, tinha permanecido encerrada em sua casa e não tinha enviado convites ou se aventurou a ir a um só almoço. Antes poderia haver importado a Athena
se a harpia recebia ou não seu justo castigo e se convertia em pessoa non grata entre a mesma gente a quem desejava impressionar. Agora, seu destino carecia de importância.
Não importa quanto tramasse e sorrisse afetadamente, nunca seria feliz.
E, quanto ao Fantástico Circo Familiar do French...
-Onde supõe que levará Harry a trupe depois de que acabe o inverno? -perguntou ao Morgan.
Ele alargou a mão e tomou a sua, apertando-a gentilmente.
-Não sei. Terá que encontrar substituições para o Caitlin e Ulysses... e Tamar.
Seus lábios se enrugaram com este último nome. Tamar e suas serpentes já não estavam quando Harry e Ulysses retornaram ao Long Park, e ninguém se incomodou
em indagar a respeito de seus paradeiros.
Somente Ulysses, havia-lhe dito Harry, parecia preocupado. Uns quantos dias mais tarde, este anunciou sua intenção de voltar para a mansão Wakefield no Tennessee,
para enfrentar a sua família pela primeira vez em muitos anos.
-Ulysses precisou jogar mão de um grande valor para aparecer ante a sociedade de Denver tal como o fez - disse Athena. -Acredito que isso foi o que lhe fez
decidir voltar para casa.
-Sempre se sentiu doído por causa da forma em que sua família lhe tratou - disse Morgan. -Não será fácil.
-Mas vale a pena - ela entrelaçou seus dedos com os dele. -Vale a pena saber que é o que verdadeiramente está destinado a ser, sem medo. E, mesmo assim... -
suspirou. -Estou preocupada com Caitlin. Se foi atrás do Niall, não pode esperar felicidade. Ele terá que mudar muito antes que possa aceitar amor.
-Como o fiz eu? -Morgan lhe ofereceu um sorriso torcido. -Eu não acreditava necessitar a ninguém. Você me provou que estava equivocado -beijou seus dedos. -Não
se preocupe pela Caitlin. Ela pode cuidar de si mesma. Não acreditaria que é uma mulher normal e comum?
Ela o olhou.
-Está dizendo...? Ela não é... não...
-Não, não como nós. Ela já estava viajando por este país só antes que você e eu nascêssemos.
Athena já fazia bastante que tinha deixado atrás a capacidade de assombrar-se ante semelhantes revelações.
-Já vejo. E ainda assim escolheu ao Niall.
Ambos guardaram silêncio por um momento, observando luz e sombra avançar pela pradaria se localizada mais à frente do limite da cidade. A neve se posava ligeiramente
sobre o cabelo da Athena. Uma nova e crescentemente familiar inquietação se abateu sobre ela, e ela soube que o tempo das despedidas havia chegado a seu fim. Puxou
a mão do Morgan.
Ele permaneceu onde estava, explorando o horizonte uma vez mais.
-Está segura, Athena?
Ela sabia o que ele estava perguntando. Rapidamente, avançou para ele e lhe rodeou a cintura com os braços.
-Estou segura, Morgan. Tão segura como de que estou aqui de pé com o homem que amo.
Ele se girou e a olhou aos olhos.
-Então vamos - disse. -O mundo inteiro nos espera.

 

 

                                                   Susan Krinard         

 

 

 

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