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CARAVANA DO AMOR / Ana Seymour
CARAVANA DO AMOR / Ana Seymour

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Ninguém conhece o próprio destino... Kansas, 1857

O sonho de seu falecido pai era ir em busca do ouro, mas Kelly Gallivan ouve a flauta mágica chamando para a colonização do Oeste americano e sai no rumo do "mar de relva". Mas como poderia saber que, guiando a caravana que a levava através das pradarias, Jeb Hunter seria o guia do destino dela?

Guia de caravanas de pioneiros que rumavam para o Oeste, Jeb Hunter era responsável pela vida das pessoas que conduzia, mas guardava na alma uma secreta culpa. Atormentado pelo passado, não podia sonhar em ter um futuro... até que Kelly Gallivan usou de uma incrível estratégia para se integrar à caravana e se apossar do coração dele!

 

 

 

 

Independence, Missouri Abril de 1857

Kelly fechou os olhos enquanto a tesoura ia cortando seus longos cabelos.

Ande depressa, Paddy, antes que eu mude de ideia.

Bem que eu gostaria que você mudasse mesmo de ideia — resmungou o irmão dela, de treze anos. — E pare de me chamar de Paddy.

A tesoura tilintava enquanto montes de reluzente cabelo caíam no chão à volta deles.

— Era assim que nosso pai chamava você, lembra-se? Em respeito à memória dele, se não tiver outro motivo, você devia aceitar o apelido.

Patrick Gallivan suspirou.

Kelly, você tinha doze anos quando veio para cá... lembra-se da mãe-pátria tão bem quanto papai se lembrava. Mas eu tinha apenas seis anos. Sou um americano... e não quero um apelido irlandês.

Você também é irlandês — declarou Kelly, ainda com os olhos fechados. — Acha isso tão ruim assim?

Patrick recuou um passo para examinar o próprio trabalho.

— Não, não é ruim. E eu me orgulho de ter nascido na Irlanda... mas agora sou americano. — Pondo a tesoura de lado, o garoto deu o trabalho por encerrado. — Bem, você não está se parecendo com um homem, se é isso o que pretende. Não sei como espera enganar alguém.

Kelly abriu os olhos e vagarosamente se voltou para o espelho com floreada moldura de prata que havia pertencido à mãe dela, em Duncannon, na Irlanda.

— Ai, meu Deus — foi tudo o que conseguiu dizer. Patrick abriu os braços e soltou um resmungo de aborrecimento.

— Eu sabia que você acabaria se arrependendo, Kel­ly. Que ideia mais maluca.

Kelly olhou para o irmão.

—Imagino que você prefira voltar para Nova York para ficar empilhando caixas de peixes pelo resto da vida.

Patrick fez um ar de repulsa.

Eu não quero nem ver peixe.

Então é melhor me ajudar nisto. De outra forma a Companhia de Colonização do Oeste não permitirá que façamos parte da caravana de carroças. Mulheres desacompanhadas não são aceitas.

O semblante de Patrick relaxou um pouco.

— Você não é uma mulher desacompanhada, Kelly. Tem um homem para protegê-la... eu.

Kelly engoliu o nó que sentia na garganta desde o instante em que tinha visto a própria cabeça tosada. Entendendo a mão, segurou na do irmão.

Você é de fato o meu protetor, Pad... Patrick, mas acho que a associação não pensa a mesma coisa.

O advogado de St. Louis disse que o contrato assinado por papai era... — Fazendo uma pausa Pa­trick torceu a boca, tentando se lembrar dos termos legais. — ...perpetuamente transferível aos herdeiros.

Sim, mas ele também disse que os membros da caravana podem decidir, em votação, afastar qualquer carroça que seja considerada indesejável para o bem-estar do grupo. E no nosso caso nem precisará haver votação, porque, como eu já disse, o regulamento proíbe a ida de mulheres desacompanhadas.

Por um momento eles ficaram em silêncio. Muitas coisas indesejáveis haviam acontecido desde a partida da Irlanda. Em vez da terra de ouro que tinha sido prometida e que eles estavam esperando, a cidade de Nova York acabou se mostrando notavelmente hostil ao pequeno grupo de imigrantes que chegou no outono de 1853, com pouco dinheiro e algumas esperanças. Não era de admirar que, obrigado a se instalar com a família no apertado acampamento de imigrantes, Sean Gallivan tivesse ficado tão saudoso dos campos verdes de sua terra natal. Não era de admirar também ele ter sonhado em ir para a Califórnia, onde ainda era possível um homem viver e sustentar a família com os frutos da terra.

Finalmente Patrick sorriu.

— Bem, se eles têm mesmo o direito de nos expulsar da caravana, só precisamos cuidar para que não quei­ram fazer isso. Teremos de mostrar a eles que somos dois rapazes finos.

A voz do garoto mostrava a mesma determinação com que ele havia ajudado Kelly a superar aquele ter­rível mês. Mostrando que estava crescendo, o irmãozinho dela suportava com estoicismo as dificuldades surgidas desde a súbita morte do pai deles. Estava crescendo bem a tempo de enfrentar um mundo que às vezes se mostrava duro mesmo para aqueles de muita fibra.

Kelly também sorriu.

— Então... estou parecendo um rapaz fino? — per­guntou, engrossando a voz.

Levantando-se, ela se pôs a andar em passadas largas pelo pequeno quarto de pensão que eles dividiam desde que haviam chegado a Independence, dois dias antes. Vestia uma calça de Patrick, que ia até os joe­lhos, e um paletó do pai, que se pendurava nos ombros estreitos como se fosse um saco de batatas. O irmão observou-a, pensativo.

— Você não precisa andar como um galo. Basta ca­minhar normalmente. Apenas não... Bem, você sabe: procure não balançar os quadris.

Kelly arregalou os olhos.

Eu nunca balanço os quadris — protestou.

Balança, sim — persistiu Patrick, com um sorriso malicioso. — Quando os irmãos Flanagan estavam por perto, balançava ainda mais.

Kelly puxou para baixo o paletó do pai, querendo esconder mais a apertada calça.

Isso mostra que você não sabe de nada, irmãozinho. Eu detestava os irmãos Flanagan.

Mas não Mickey... — atiçou Patrick, cantarolando as palavras.

Kelly fez um gesto de pouco caso.

— Não tenho tempo para ficar ouvindo suas boba­gens. Amanhã vamos ter de enfrentar o homem que vai guiar a caravana e, se não conseguirmos conven­cê-lo de que somos capazes de conduzir uma carroça até a Califórnia, estaremos numa grande enrascada. Agora falando sério, como está minha aparência?

Você vai ter que usar botas para cobrir esses tornozelos.

Bem, usarei as suas. Você poderá usar as de papai. Seus pés já estão quase do tamanho dos dele.

Minhas botas são muito grandes para você — ele protestou.

—Isso não tem importância. Darei um jeito. Patrick balançou a cabeça, ainda olhando atentamente para a irmã.

Não sei, mana. Acho bom rezarmos para esse tal capitão Hunter seja meio cego.

Não podemos querer que o guia da caravana da qual vamos participar seja meio cego — pronunciou-se Kelly, com secura, desabando na única e estreita cama do quarto.

As reservas de dinheiro deles estavam bem baixas e tinha sido preciso alugar o quarto mais barato da pensão. Nas últimas duas noites Patrick havia dormido no chão. Naquele dia alugariam uma carroça para le­var até Westport Landing a bagagem que haviam tra­zido de Nova York, composta por um baú de roupas e várias caixas de madeira contendo as ferramentas de marceneiro deixadas por Sean Gallivan. Em West­port ficariam no acampamento de colonos instalado às margens do rio Missouri. Lá estaria esperando por eles a grande carroça, totalmente equipada, que o pai deles havia comprado por correspondência, depois de uma longa troca de correspondência.

Patrick riu.

— Bem, talvez não cego, mas pelo menos um pouco míope. E você vai ter que procurar ficar longe dele o máximo possível.

Impaciente, Kelly tirou o enorme paletó, revelando as curvas do corpo que, se mostradas, imediatamente desmascarariam a mentira. Jogando o paletó em cima da cama, passou a mão pelos cabelos recentemente cortados.

Tudo o que eu quero é chegar à Califórnia. — Depois de dar mais uma olhada no espelho ela suspi­rou. — Pretendo ficar o mais longe possível de todos... principalmente desse capitão Hunter. Farei o possível para que o homem nem perceba que estou viva.

 

Westport Landig, Kansas Abril de 1857

Jeb Hunter cavalgava ao lado da dupla fila de carroças, vez por outra acenando para os novos colonos. O comboio ainda estava parado, aprontando-se para a partida. As carroças sempre pa­reciam limpas e bonitas naquela fase, a cobertura de lona tremulando ao vento do Kansas. Era o grupo mais numeroso que ele já havia conduzido. Tendo começado na década anterior com um punhado de audazes pio­neiros, o fluxo de colonos para o Oeste dos Estados Unidos era agora um caudaloso rio, de tal forma que algumas localidades que antes serviam apenas como postos avançados de reabastecimento, como Fort Kearney, Fort Laramie e outras, haviam se transformado em verdadeiras cidades pelas quais passavam milhares de carroças. Mas o aumento do número de pessoas não havia diminuído os riscos da viagem. A cada jor­nada Jeb reparava no aumento do número das cruzes que indicavam a sepultura dos que iam ficando pelo caminho. Aquelas cruzes se multiplicavam como se­mentes espalhadas pelo vento.

— Boa tarde, sr. e sra. Todd — cumprimentou Jeb, tocando com os dedos na aba do chapéu de couro.

Os Todd eram exatamente o tipo de gente que ele gostava de ter nos grupos que conduzia. Já mais que cinquentão, Frank Todd era um homem calmo, forte e que atirava bem. E só precisava tomar conta da esposa. Não tinha filhos, mãe ou cunhadas para criar complicações. Um homem para proteger uma mulher, como devia ser naquelas circunstâncias. Cada vez que se encarregava de uma família grande, cheia de mulheres e crianças indefesas, Jeb sentia um frio no estômago. Havia ocasiões bem complicadas. Em algumas delas, principalmente depois que ele havia perdido Melanie, o mal-estar no estômago era tão grande que o deixava de fato doente. Nessas ocasiões, via-se obrigado a parar a caravana e se proteger nos arbustos, pondo para fora o que havia ingerido nas ultimas horas. Felizmente não era o que estava acon­tecendo agora.

Frank Todd acenou, respondendo ao cumprimento dele.

— Acha que estaremos prontos para partir amanhã, capitão, conforme o previsto?

Jeb assentiu e fez o cavalo chegar mais perto da carroça do simpático casal.

Espero que sim. Estamos aguardando só mais duas famílias, que devem chegar esta tarde.

Uma delas é composta por aqueles rapazes ir­landeses, não é? — perguntou Eulalie Todd. Depois que Jeb assentiu ela continuou. — Pobrezinhos. O pai morreu tão de repente. E de admirar eles continuarem com a intenção de fazer a viagem.

Jeb franziu a testa.

O pai já havia adquirido todo o equipamento ne­cessário. E fez uma boa aquisição, porque a carroça é muito boa. Mesmo assim, não me agrada pensar que dois garotos estarão viajando sozinhos. Se conseguir­mos fazer com que eles desistam da ideia de ir para a Califórnia, ficarei mais aliviado.

Mas não é melhor termos na caravana o maior número possível de carroças? — ponderou Frank.

Não necessariamente. Já temos quase cinquenta carroças nesta caravana. Mais do que isso fica até difícil de controlar.

Quer que eu converse com os garotos quando eles chegarem aqui? — ofereceu-se Frank, que tinha sido eleito representante dos membros-contribuintes da as­sociação dos colonos.

Isso significava que Jeb poderia usá-lo como árbitro caso surgisse algum desentendimento entre os inte­grantes da caravana. Os Todd também estavam le­vando na carroça os suprimentos pessoais de Jeb. Quando a jornada se iniciasse, eles acampariam juntos e partilhariam a mesma fogueira para fazer comida.

— Não, eu cuidarei do assunto — dispensou Jeb. — Legalmente os garotos estão inscritos e a carroça deles já está aqui esperando. Se estiverem mesmo de­cididos, teremos que levá-los.

Frank fez um gesto de concordância.

— Bem, pode dizer a eles que Eulália e eu estaremos à disposição, caso precisem de alguma coisa.

Jeb sorriu.

— Pelo que está nos papéis, os filhos de Gallivan têm treze e dezenove anos. O de treze ainda é um fedelho de calças curtas, mas espero que o de dezenove já seja um rapagão corpulento e que saiba se arranjar sozinho.

— Dezenove anos é uma bela idade para começar a vida no Oeste — opinou Eulalie Todd. — É a pri­mavera da vida. Infelizmente os pobrezinhos ainda es­tão de luto. Estarei sempre pronta a consolá-los, se eles estiverem tristes, o que provavelmente estão. Para começar, prepararei uma sopa de nabos para esta noite e os convidarei para jantar. — A voz da mulher demonstrou melancolia. — Na nossa terra, a casa sempre se enchia com as crianças da vizinhança quando eu fazia a minha sopa de nabos.

Então ela olhou para trás, como se para além da pradaria pudesse ver a casa de tijolos aparentes que havia deixado em St. Louis.

— Então faremos assim, sra. Todd — disse Jeb, abrindo um sorriso, o que ultimamente fazia bem pou­co. — Eu mesmo pretendo tomar um ou dois pratos dessa sopa de nabos.

Depois de piscar o olho para a simpática mulher, ele tocou novamente na aba do chapéu e afastou-se.

Patrick olhou para a carroça nova com um ar de abatimento.

— Como vamos pôr tudo aí dentro, mana? Só as ferramentas de papai ocuparão metade do espaço.

Kelly estava pensando no mesmo problema. Sentia o mesmo aperto no estômago que vinha se tornando tão frequente desde o dia em que, três semanas antes, ela e Patrick haviam retornado ao quarto de hotel em St. Louis para encontrar o pai caído de lado na cama, ainda quente. Antes de falar ela respirou fundo.

Primeiro tiraremos daí esses suprimentos para arrumar no lugar as caixas de ferramentas. Depois colocaremos tudo por cima. Ficará apertado, mas não há outro jeito.

E onde vamos dormir? Em cima do teto?

A voz de Patrick já começava a engrossar por causa da adolescência, mas naquele momento soou fina, cheia de aborrecimento e ironia.

— Se for preciso dormir no teto para chegarmos à Califórnia, faremos exatamente isso. Se papai trouxe todas essas coisas da Irlanda, nós conseguiremos levá-las para a Califórnia.

Patrick saltou para o interior da carroça.

— Podíamos levar apenas as ferramentas de metal e deixar aqui as peças de madeira. Posso fazer tudo novo quando chegarmos à Califórnia.

As últimas palavras ele disse num tom deliberadamente casual, como se quisesse dizer à irmã que sabia não ter, nem de longe, a habilidade de marceneiro que, há muito tempo, a família Gallivan vinha trans­mitindo de geração a geração. Patrick era habilidoso com as mãos, mas não tinha tido tempo de desenvolver com o pai essa habilidade. Mas Kelly não tomaria para si a tarefa de dizer isso a ele.

Era sonho de papai começar uma nova vida na Califórnia, Patrick, levar para aquela terra rica as coi­sas que trouxe da Irlanda. Agora que ele está morto, cabe a nós realizar o sonho. Não se preocupe. Arran­jaremos lugar para tudo. — Kelly mordeu o lábio. Não era hora para sucumbir à dor e à saudade. — Talvez não precisemos de todos os suprimentos que a Com­panhia de Colonização nos mandou. Seremos apenas dois para comer, não três.

Tem razão. Seremos apenas dois, já que papai não estará aqui para comer. — O semblante de Patrick iluminou-se. — Talvez possamos vender de volta parte dos suprimentos à Companhia de Colonização. Assim teremos algum dinheiro.

Kelly engoliu o aborrecimento causado pelo tom de voz despreocupado do irmão. Sabia que Patrick sentia tanto quanto ela a falta do pai, mas a irresponsabili­dade natural da idade não deixava que ele lidasse cor-retamente com uma coisa tão importante como a morte. A cada dia que passava, parecia mais fácil para o ga­roto falar do pai como se ele apenas fizesse parte de antigas lembranças. Kelly ainda estava muito longe disso. A todo o instante, ficava com a sensação de que bastaria virar uma esquina para ver o rosto enrugado e querido do pai. Quando se dava conta de que isso nunca mais voltaria a acontecer, sentia um nó na gar­ganta, algo que às vezes até tornava difícil a respira­ção. Sean Gallivan estava morto. Depois de todos os Honhos dele, de fazer tantos planos, de economizar di­nheiro, ele não veria a Califórnia, a terra prometida. Mas ela veria.

Quando o capitão Hunter aparecer, perguntare­mos a ele se isso será possível — disse Kelly. — En­quanto isso, vamos começar a tirar aqueles barris da carroça para arrumar as coisas.

Pensei que o capitão estaria aqui para nos receber.

Kelly subiu até onde estava o irmão. Mal havia es­paço para eles dois na estreita cama da carroça, que estava abarrotada com os mantimentos que Sean havia encomendado. Patrick tinha razão. Não haveria lugar para preciosas ferramentas de marceneiro que haviam pertencido ao bisavô deles, todas guardadas nas pe­sadas caixas que já tinham atravessado o Oceano Atlântico e um terço do continente americano.

— O capitão Hunter deve ser um homem muito ocu­pado. Mesmo assim, tenho certeza de que logo ele es­tará aqui.

Kelly não tinha pressa nenhuma em se encontrar com o capitão que lideraria a caravana, sabendo que aquele seria o primeiro teste de verdade para o disfarce dela. Pela manhã, na saída deles de Independence, Patrick se ocupara de pagar a conta da pensão e o homem da estrebaria mal havia olhado para ela. Agora estava mais acostumada a usar a calça do irmão, mas não podia esperar que ficaria indefinidamente sem atrair a atenção das pessoas.

Estava particularmente preocupada com o rosto. An­tes de guardar o espelho na mala, havia se examinado detidamente. Os cabelos curtos não mudavam o fato de que o rosto dela era distintamente feminino, com lábios rosados e olhos azuis de longos cílios. A pele estava bronzeada pelo sol, sem a alvura das damas que ela vira passeando na calçada de Park Avenue, em Nova York. As faces, porém, eram macias e lisas como o mármore. Ninguém que olhasse de perto acre­ditaria que aquele rosto pertencia a um homem. Ao deixar a cidade, naquela manhã, ela havia tomado o cuidado de esfregar terra no rosto, para divertimento do irmão.

— Olá! — chamou uma voz na parte da frente da carroça.

Patrick saltou para fora e olhou pelo lado do veículo.

— Estamos aqui atrás.

Parada no bagageiro coberto da carroça, Kelly olhou para o homem que levava o cavalo para onde estava o irmão dela. A primeira impressão que teve foi de que ele era alto. Estava montado, mas mesmo assim parecia bem mais alto do que os rapazes imigrantes com quem ela havia passado algum tempo em Nova York. Devia ser pelo menos um palmo mais alto do que Mickey Flanagan.

— Sr. Gallivan? — perguntou o homem, olhando para o interior da carroça.

Kelly sentiu um aperto no estômago.

— Meu pai morreu — disse, lembrando-se no último instante de manter a voz baixa.

O homem pareceu constrangido e esfregou o queixo com a mão.

— Ah... eu sei disso. Sinto muito. Estive em contato com o seu advogado, claro. Mas eu estava me dirigindo a você, meu rapaz. Ficarei contente em chamá-los pelo primeiro nome, se permitirem, mas ainda não sei quais são os nomes. Eu sou Jeb Hunter, o guia da caravana em que vocês se inscreveram.

Kelly abaixou-se, obrigando-se a manter a calma. Sim, claro. Agora era ela o sr. Gallivan. E precisava fazer com que isso parecesse verdade se queria que o estratagema desse certo.

Calmamente o irmão dela estendeu a mão para o recém-chegado.

— Prazer em conhecê-lo, capitão. Eu sou Patrick e quem está ali é Kelly. Deixar de lado esse negócio de "sr." estará perfeito para a minha... ah... para o meu irmão.

— Kelly? — perguntou o capitão, olhando mais aten­tamente para o escurecido interior da carroça.

— É... Ke... Kernan — corrigiu-se Patrick.

O capitão Hunter mexeu a cabeça para o lado.

—Um nome irlandês, não é? Bem, rapazes, estão achando tudo satisfatório?

Patrick olhou para a irmã, deixando que ela respondesse.

Kelly respirou fundo e falou com a voz grossa, como havia praticado.

— Parece que estamos com mais mantimentos do que vamos precisar, capitão Hunter.

Jeb sorriu.

— O velho Albert Boone, representante da Compa­nhia de Colonização do Oeste aqui em Westport, sabe mesmo como arrumar mantimentos, isso é verdade. Mas vocês acabarão descobrindo que o que está aí é apenas o necessário para atender às suas necessidades. A carroça pode parecer muito cheia agora, mas vocês se acostumarão.

Kelly arriscou-se a se chegar mais para perto da luz. Apesar da decisão de ficar bem longe do capitão Hunter, uma hora ele teria que ver o rosto dela. Por que não podia ser agora.

— O problema, capitão, é que trouxemos de Nova York algumas coisas que vão precisar caber na carroça.

O homem pareceu espantado ao ver o rosto dela e Kelly rapidamente apontou para o que estava às costas dele, esperando com isso distraí-lo. Jeb dirigiu um ou­tro olhar atento a ela antes de se voltar para a carroça alugada. Então soltou um assobio baixo e passou a perna longa por cima do cavalo para desmontar.

— O que é isso tudo, em nome de Júpiter? Kelly reparou que ele não parecia contente com o que estava vendo. Então engoliu em seco.

— Apenas ferramentas — disse, em tom de desculpa, o que fez a voz afinar um pouco. — Essas caixas contêm as ferramentas de marceneiro que foram do meu avô e o meu pai.

Jeb caminhou em volta da carroça, examinando a carga com ar de espanto.

Outra vez Patrick tomou a palavra.

— Meu irmão e eu vamos começar uma fazendinha na Califórnia, quando chegarmos lá. Nosso pai trouxe essas coisas com ele quando veio da Irlanda.

Jeb virou-se e olhou para Patrick, depois para Kelly, que outra vez havia se retirado para as sombras. Então balançou a cabeça.

— Vocês não vão ter como levar tudo isso. Seu pai deveria compreender que isso não seria possível. Sinto muito, rapazes. — Outra vez ele abaixou a cabeça, atento ao escurecido interior da carroça. — Ouçam, eu sei que a morte do seu pai deve ter sido um choque muito grande para vocês dois. Se quiserem voltar para Nova York, cuidarei para que lhes seja devolvido todo o dinheiro pago à Companhia pela carroça, bem como o que foi usado para comprar mantimentos.

O capitão deu alguns passos na direção de Kelly. Tinha olhos castanhos muito claros, com rugas nos cantos, cer­tamente causadas por muitos anos de cavalgada ao sol. O rosto era de traços fortes, o que estava muito de acorda com o corpo alto e musculoso. A raiva dela desapareceu tão rapidamente quanto havia aparecido.

— Não vamos lhe dar nenhum problema — declarou Kelly, com voz branda. — Prometo.

Jeb Hunter fitou-a com curiosidade. Depois de olhar rapidamente para Patrick, voltou outra vez os olhos paia a carroça em que eles haviam chegado.

Tudo aquilo ali veio da longínqua Irlanda? — perguntou, tirando o chapéu e passando a mão pelos cabelos castanhos-claros.

Sim, tudo aquilo veio da longínqua Irlanda — respondeu Kelly, com firmeza. — E agora vai tudo para a distante Califórnia.

Um ar de incerteza apareceu no rosto de Jeb, uma expressão que não pareceu muito adequada ao rosto dele. Depois ele coçou a nuca e olhou para a frente da carroça, onde quatro bois pastavam pacificamente.

— Quanto mais peso o seus bois tiverem que arras­tar, mais água precisarão beber. — O capitão fez uma pausa e ajeitou na cabeça o chapéu de couro. — A água pode se tornar uma coisa muito preciosa ao longo de nossa viagem.

Kelly estava começando a relaxar. Embora houvesse dirigido a ela alguns olhares estranhos, aparentemente n capitão Hunter não pretendia questionar a identi­dade dela como filho de Sean Gallivan.

— Reparei que algumas dessas famílias estão le­vando uma vaca leiteira — ela observou. — Essas vacas vão precisar de água, não vão, capitão?

Hunter mostrou um sorriso relutante.

— Devo reconhecer que sim. Kelly assentiu.

— Então o senhor pode simplesmente considerar o equipamento extra que estamos levando como a nossa vaca leiteira.

 

Jeb voltou a montar no cavalo, com uma naturalidade que fez Kelly sentir uma coisa esquisita nas entranhas.

Vou fazer um trato com vocês — ele disse, indi­cando com um gesto a carroça vinda de Independence. — Levem a metade do que está ali. Deixem as caixas mais pesadas e o que mais puderem dispensar. No fim da tarde virá aqui um representante da Compa­nhia para recolher os mantimentos que tiverem vindo em excesso. Provavelmente ele oferecerá algum dinhei­ro pelo que vocês quiserem deixar aqui.

Capitão, meu irmão e eu já tivemos que deixar em St. Louis o corpo do nosso pai. É nossa intenção levar conosco para a Califórnia o que for possível do que ele nos deixou.

Kelly percebeu que estava com a voz levemente tre­mula e mordeu o lábio inferior de uma forma que che­gou a doer. Aparentemente, porém, a emoção dela não produziu nenhum efeito em Jeb Hunter.

— Sinto muito. Pelo menos metade daquelas coisas terão que ficar aqui... ou vocês e a carroça inteira fi­carão. Façam a escolha. Partiremos ao amanhecer, ra­pazes. Agora vou deixá-los sozinhos para que tomem sua decisão.

Kelly não disse nada e Patrick resolveu falar.

— Obrigado, capitão. Estaremos prontos ao amanhecer.

Jeb olhou mais uma vez para o interior da carroça.

—Procurem se lembrar de que, antes de chegar à Califórnia, teremos que atravessar duas cadeias de montanhas. Minha recomendação é que levem a carga mais leve possível.

Dito isso ele bateu com os calcanhares na barriga do cavalo e se afastou, levantando uma nuvem de poei­ra que atingiu os olhos de Kelly.

— Talvez ele tenha razão, Kelly — opinou Patrick, depois de um momento. — Não vamos precisar de todas aquelas coisas. Eu posso comprar ferramentas novas quando chegarmos lá e fazer tudo o que for preciso.

No mesmo instante Kelly lembrou-se de quando tinha visto o irmão, ainda apenas um garotinho, de pé ao lado do pai, muito sério e imitando cada movimento das mãos hábeis e seguras de Sean Gallivan. Felizmente ela podia atribuir à poeira as lágrimas que sentiu nos olhos.

— Vamos construir a fazenda de papai na Califórnia, Patrick. Ela será muito fértil e bonita, exatamente como ele sonhou. — Nesse ponto a voz dela se encheu de firmeza. — E faremos isso com as ferramentas que pertenceram a dele.

Eles trabalharam até altas horas da noite. O repre­sentante dos colonos, Frank Todd, havia aparecido no fim da tarde para convidá-los para uma reunião festiva de despedida que seria feito em campo aberto, mas eles polidamente declinaram do convite. Precisavam de todo o tempo para continuar erguendo e arrastando volumes, desembalando e embalando coisas até que o interior da carroça ficou parecendo um arranjo mais intrincado do que um quebra-cabeça chinês. Já estava quase amanhecendo quando Kelly se declarou satis­feita com a arrumação. As caixas de ferramentas es­tavam inteiramente cobertas pelos mantimentos e não poderiam ser vistas, qualquer que fosse o ângulo do qual se olhasse. Tudo estava arrumado, a não ser uma caixa vinda do armazém da Companhia com um rótulo no qual se lia: Bolinhos de Carne.

Para falar a verdade, nunca gostei de bolinhos de carne — disse Kelly ao irmão.

Até que eles não são ruins — declarou Patrick, mastigando um dos bolinhos. — Pelo menos não são de peixe.

Quando o pai deles havia se tornado um fanático sobre os planos de mudança para a Califórnia, eles perceberam a necessidade de fazer economia. Em fun­ção disso, quase sempre comiam os pedaços de peixe que os pescadores descartavam ao limpar sua merca­doria e que Patrick todos os dias ia buscar. Agora bas­tava sentir o cheiro de peixe para que eles dois ficassem enjoados.

O homem do armazém já havia partido há muitas horas. Assim sendo, a caixa de bolinhos de carne teve que ficar no chão, ao lado da carroça.

— Vai amanhecer daqui a uma hora, mais ou menos — disse Kelly, finalmente. — Podíamos dormir um pouco.

— Não estou com o menor sono — declarou Patrick, sentando-se ao lado da irmã diante do fogo que eles haviam mantido aceso durante toda a noite. — É difícil acreditar que finalmente estamos de partida. Tanta coisa aconteceu...

As últimas palavras o rapazola disse com voz trêmula.

— Não é justo, não acha? — disse Kelly, tristonha.

— Papai devia estar aqui, conosco.

Patrick assentiu e eles ficaram olhando para as brasas. Só depois de vários minutos o garoto voltou a falar.

Vá dormir se quiser, mana. Teremos um longo dia pela frente.

Não, está tranquilo aqui e é onde eu vou ficar. Será bom ter alguns momentos de paz antes que todos os outros se acordem. Talvez possamos dormir um pou­co durante a viagem.

Patrick riu.

— Mostre-me apenas um lugarzinho onde eu possa me enroscar dentro dessa carroça, por menor que seja, e eu pensarei em cochilar.

Kelly suspirou.

— Haverá mais espaço à medida que formos con­sumindo os mantimentos ao longo da viagem.

— Vocês dois devem estar mesmo ansiosos para partir, garotos — soou a voz de Jeb Hunter na escuridão por trás deles. — Foram os primeiros a se levantar.

Nós ainda... — começou Patrick, interrompendo o que dizia quando sentiu nas costelas o cotovelo de Kelly. — Bem... já estamos prontos, apenas esperando pela hora da partida.

Espero que tenham descansado o suficiente. Em geral os dois primeiros dias são os mais estafantes. — Jeb olhou rapidamente para a carroça deles. — Es­tou vendo que vocês já arrumaram o bagageiro. Con­seguiram vender ao homem da Companhia o resto do que trouxeram?

— Sim — apressou-se em dizer Kelly. — Sem problemas.

Que mal faria mais uma mentira em meio a tantas outras que ela já havia contado para sustentar aquele embuste?

O capitão Hunter os examinava com muita atenção e Kelly não gostou nada do olhar que ele dirigiu a ela. Então inclinou-se para a frente e fingiu atiçar o fogo, com isso escondendo o rosto.

— Como meu irmão disse, estamos prontos para a partida — enfatizou.

Jeb moveu-se vagarosamente, num jeito talvez ca­sual demais, e espiou para o interior da carroça.

— Parece que estão levando uma porção de coisas.

Kelly apenas emitiu um resmungo, esquivando-se de responder.

O homem caminhou até a fogueira e parou diante deles.

—É bom ver que vocês entenderam. Ás vezes a viagem se torna tão penosa que somos obrigados a deixar para trás parte da carga que levamos. Você vão encontrar pelo caminho objetos de família, ferramen­tas, móveis... toda sorte de coisas "essenciais" que acabam não parecendo tão essenciais assim quando se está a quilômetros de distância de Westport Landing. Kelly queria olhar diretamente nos olhos dele, mas lembrou-se de que naquele momento manter o disfarce era mais importante do que o orgulho dela. Então con­tinuou com a cabeça abaixada.

Entendo o que está dizendo, capitão. Posso lhe garantir que meu irmão e eu faremos o que for preciso para alcançarmos a Califórnia.

Bem, admiro a sua atitude, Kernan. E o tipo de disposição de que vamos precisar ao longo da jornada.

Jeb ficou em silêncio enquanto estudava os dois ir­landeses. Tinha ficado desapontado ao ver pela pri­meira vez o mais velho dos irmãos Gallivan. O rapaz era muito franzino, com uma aparência quase doentia, e não parecia muito mais velho do que o irmão menor. Mas o jovem irlandês estava fazendo frente a Jeb ra­zoavelmente bem... o que também podia ser dito do irmão mais novo, para ser sincero. Talvez eles também soubessem fazer frente aos rigores da viagem.

— Vocês sabem atirar, rapazes? — quis saber Jeb.

Patrick e Kelly se entreolharam.

Estamos querendo aprender — declarou o pri­meiro, — Há um belo rifle entre as coisas que papai comprou. Novinho em folha.

Vocês nunca caçaram, nunca deram um tiro? — perguntou Jeb, incrédulo.

Normalmente não se vêem búfalos perambulando pelas ruas de Manhattan, capitão — retorquiu Kelly, olhando para ele por entre os espessos cílios.

Jeb riu mas mudou o peso do corpo de uma perna para outra, intrigado e pouco à vontade. Juraria que aquele rapaz o deixava com os pêlos da nuca eriçado, o que só acontecia quando ele estava com uma mulher. Era uma sensação estranha. Talvez se devesse ao fato de que Kernan Gallivan era muito femininamente esbelto. Além disso, tinha as feições tão perfeitas que pareciam copiadas diretamente de uma das estátuas de mármore que certa vez ele tinha visto num livro.

Bem, vocês vão ter que aprender a atirar... os dois. Certamente um dos outros homens se oferecerá para lhes ensinar. Por acaso já fizeram amizade com seus vizinhos? — Os dois rapazes balançaram a cabeça e ele prosseguiu. — Na frente de vocês irá Scott Haskell. Ele é um argonauta e está viajando sozinho.

Um argonauta? — perguntou Patrick, intrigado.

Um garimpeiro. Esses homens são chamados as­sim por causa da história mitológica de Jasão e os Argonautas. Vocês devem conhecer... a interminável busca do Velocino de Ouro.

Ele disse aquilo com desdém na voz.

Pensei que a Corrida do Ouro já havia acabado há muito tempo — disse Kelly.

Sempre haverá uma corrida do ouro dirigida a al­gum lugar enquanto os homens pensarem que o dinheiro é o segredo para uma vida feliz. — Jeb havia aprendido há muito tempo que isso não era verdade, mas em geral não estava muito disposto a partilhar a lição com outras pessoas. — Voltando ao que eu dizia, na retaguarda de vocês estão os Burnett... um jovem casal da Virgínia e suas duas filhinhas. São ótimas pessoas.

Patrick pôs-se de pé.

— Vamos manter a mesma ordem na viagem inteira? — perguntou ao guia.

— Em geral mantemos a mesma ordem, a menos que haja motivo para que se faça uma troca de lugares. Mas a cada dia a carroça que vai na frente passa para o fim da fila.

— Por que isso?

Jeb sorriu.

— E para que todas as carroças tenham a chance de passar pelo menos um abençoado dia sem engolir poeira. — Patrick pareceu confuso e ele balançou as duas mãos. — Você entenderá o que estou querendo dizer depois de passar algumas horas no meio de uma caravana que se desloca pela pradaria, Patrick.

Depois de desejar aos dois rapazes boa sorte no pri­meiro dia de viagem, afastou-se para fazer um último exame nas outras carroças.

Quando as primeiras luzes do amanhecer se espalha­ram pela pradaria, quase todos os colonos já estavam de pé, cheios de energia e com o mesmo tipo de contida excitação que Kelly via no rosto do irmão. Quanto a ela, desejava poder encontrar um lugar para ficar longe de tudo e dormir por uma semana inteira. A longa noite de arrumação a tinha deixado extenuada, da mesma forma como as últimas semanas de dor e preocupação. Prometendo a si mesma uma boa noite de sono quando eles estivessem na estrada, ela passou água nos olhos cansados e esfregou mais terra nas faces.

Na verdade devia se sentir ótima. Estava fazendo direitinho tudo o que havia jurado fazer enquanto ob­servava o pai ser descido para a cova, dentro de um caixão de pinho barato. Naquela manhã eles partiriam para o Oeste. O capitão que liderava a caravana havia permitido a ida deles. Depois que deixassem Westport, não haveria retorno. Mesmo que o disfarce dela fosse descoberto, os outros teriam que permitir que eles pros­seguissem. O obstáculo mais difícil já tinha sido su­perado. Ela devia se sentir no topo do mundo, mas a imagem dos bruxuleantes olhos azuis do pai deixava os dela cheios de lágrimas. E não permitia que sentisse nada além de cansaço.

— Quantas carroças!

Kelly voltou-se ao ouvir a voz infantil. Logo depois esfregou os olhos para clarear a visão. Devia estar mais cansada do que imaginava, porque agora via em dobro.

— Em marcha! — bradou a visão número dois.

Kelly soltou um riso rápido por causa da própria confusão. Aquelas duas garotinhas eram gêmeas, claro.

— Bom dia — ela disse às duas cópias idênticas que se aproximaram e pararam subitamente a seguros dois metros de distância. — Quem são as duas mocinhas?

As meninas riram uma para a outra.

— Eu sou Polly — disse a da direita. — E ela é Molly.

Kelly achou estranho uma mãe dar às filhas nomes que pareciam sugeridos por um papagaio que falasse com rimas. Mas não fez nenhum comentário a esse respeito.

— Prazer em conhecê-las. Eu sou Kel... Kernan. Kernan Gallivan.

Kelly havia se esquecido por completo de falar com voz grave, mas as meninas não pareciam questionar a masculinidade dela.

— Nós somos da família Burnett — declarou Polly. — Seremos seus vizinhos. Foi mamãe quem disse isso. Ela disse também que deveremos ser gentis com vocês, porque você e seu irmão perderam seu papai.

Depois de ter visto tanta falsa solidariedade em estranhos, o jeito direto daquela menina deixou Kelly desarmada. Outra vez os olhos dela se encheram de lágri­mas, que foram acompanhadas por um nó na garganta.

Sim, nós perdemos o nosso papai — ela confirmou, quando conseguiu falar. — Quantos anos vocês têm?

Eu sou a mais velha — disse Polly, que evidentemente era também a mais comunicativa das duas. — Cinco minutos mais velha. Mas estamos as duas com dez anos de idade.

Kelly olhou para Molly, cujo sorriso era um pouco mais tímido do que o da irmã.

— Dez anos... E uma bela idade, não é mesmo? Vocês estão apenas começando a ficar crescidas.

Molly olhou para os desgastados sapatos.

Papai disse que vamos ter que aprender a con­duzir a carroça — pronunciou-se, numa voz que Kelly mal podia ouvir.

Isso parece a coisa certa a fazer. Meu irmão tem apenas treze anos e já sabe conduzir carroças há pelo menos três anos.

Mas ele é um menino — ponderou Polly. — É diferente.

Nem sempre. Não precisa ser necessariamente diferente.

Você fala de um jeito engraçado.

Kelly não saberia dizer se a menina se referia ao tom agudo da voz dela ou ao sotaque. Bem, seria me­lhor escolher a opção mais segura.

— E porque eu passei toda a minha infância num outro país, onde nasci e vivi até os doze anos de idade. Vocês já ouviram falar na Irlanda?

As duas meninas assentiram e Polly tomou a ini­ciativa de responder.

Ouvimos, sim, na escola. Na caravana não tere­mos escola e talvez não tenhamos durante um bom tempo, mas mamãe nos dará aulas.

Isso é bom, Polly. A instrução é uma coisa muito importante.

É isso o que mamãe vive dizendo.

Parece que sua mãe é uma mulher muito esperta — disse Kelly, sorrindo.

Eu disse a vocês, meninas, que não deviam im­portunar os vizinhos. Além disso, a caravana logo es­tará partindo.

Uma bonita loira que não parecia ter idade sufi­ciente para ser mãe de ninguém caminhava na direção delas, vinda da carroça de trás. O sorriso que mostrava desmentia inteiramente a reprovação das palavras que tinha dito.

Ela falou conosco primeiro, mamãe.

Elas não estavam me importunando, minha se­nhora — disse Kelly, agora se esforçando para manter a voz baixa.

A mulher aproximou-se por trás das filhas e pôs uma mão no ombro de cada uma.

— Eu sou Dorothy Burnett. Você deve ser um dos rapazes Gallivan.

— Sou Kernan, minha senhora. Prazer em conhecê-la. Kelly recuou para a própria carroça, rezando para que a mulher não estendesse a mão para apertar a dela. A delicadeza das mãos era uma coisa que ela não conseguiria disfarçar.

— Estou vendo que você já conheceu Polly e Molly. — Com um riso rápido e a expressão de quem já tinha dado mil vezes a mesma explicação, Dorothy Burnett prosseguiu. — Na verdade elas se chamam Priscilla Jo e Mar- garet Mary, mas o pai colocou esses apelidos quando as duas eram recém-nascidas e eles acabaram pegando.

Kelly sorriu.

Então, que seja Polly e Molly. Meninas, durante algum tempo vocês vão ter de me ajudar para que eu saiba quem é quem.

No passado elas ficaram famosas por usar a se­melhança para enganar as pessoas — informou Do­rothy, rindo. — Portanto, tome cuidado.

Kelly sentiu-se atraída pela simpatia daquela mu­lher. Era bom saber que haveria a companhia de outra jovem. Logo depois ela sentiu um aperto no peito, lem­brando-se de que, por causa do disfarce, não poderia ser confidente de Dorothy. Bem que seria confortador ter uma confidente.

— Saberei entender alguma brincadeira de vocês, meninas — disse, num tom melancólico e sorrindo para as gêmeas. — Numa certa época, também fui famoso por enganar as pessoas só para me divertir.

 

Jeb Hunter havia falado a verdade ao se referir à poeira. Fazia apenas algumas horas que haviam iniciado a viagem, mas logo na pri­meira hora Kelly e Patrick puderam perceber que se deslocar no meio de uma caravana de quase cinquenta carroças significava ficar permanentemente no interior de uma espessa nuvem de poeira. A primeira parte da trilha que partia de Westport era plana, fácil de ser percorrida. Era o "mar de relva" tantas vezes des­crito por Sean Gallivan nas longas noites de planeja­mento da viagem, em Nova York. Mas o constante tráfego de carroças havia retirado toda a relva da tri­lha, deixando o chão descoberto. Com isso, a caravana era acompanhada de uma nuvem vermelha de pó. Se­guindo o exemplo dos viajantes mais experiente, Kelly e Patrick amarraram um lenço no rosto para diminuir o desconforto.

Acho que não vou mais precisar esfregar terra nas faces — disse Kelly ao irmão, em tom de brinca­deira, sentada ao lado dele no banco da carroça. — O acúmulo natural de sujeira no meu rosto já é suficiente para enganar até o presidente dos Estados Unidos.

Eu preferiria que papai tivesse comprado ca­valos para nós em vez desses bois estúpidos — res­mungou o irmão dela. — Com um cavalo eu poderia cavalgar um pouco afastado das carroças, como faz o capitão Hunter.

Durante a manhã inteira eles viram a movimentação do guia da caravana, que ia de uma carroça a outra para verificar os equipamentos e fazer recomendações, sempre elevando o ânimo dos colonos, a maioria deles dando seus primeiros passos para longe da civilização.

Os cavalos não são muito bons para puxar carga pesada — rebateu Kelly. — Papai disse que precisa­ríamos de mulas ou bois, e que os bois eram mais baratos.

Se ele tivesse comprado mulas, eu poderia caval­gar pelo menos durante uma parte do tempo.

Naquele momento Jeb Hunter se dirigia à carroça deles.

— Não quero ouvi-lo criticando as decisões de papai, Patrick — disse Kelly, distraidamente, com os olhos postos no guia.

Só podia ser a cor de mel daqueles olhos extraordi­nários que frequentemente atraía o olhar dela, mas era preciso reconhecer que o rosto dele estava perfei­tamente de acordo com os olhos, sendo igualmente belo, embora tivesse a beleza rude de um homem acostu­mado a trabalhar ao sol. Jeb Hunter tinhas rugas nas faces que tornavam severa a expressão dele, a não ser quando sorria. Mas não parecia ser um homem que sorrisse com muita frequência.

— Não está me ouvindo, mana? — perguntou o ir­mão dela.

O quê?

Eu perguntei se você acha que vamos poder trocar os bois por mulas quando chegarmos à próxima parada.

Jeb chegou bem perto e só então Kelly se lembrou de abaixar a aba do enorme chapéu de feltro que estava usando.

— Como estão as coisas por aqui, rapazes? — per­guntou o guia da caravana.

— Tudo bem — respondeu Kelly, num murmúrio. Qual era o problema com ela? Talvez estivesse mais cansada do que pensava. O capitão Hunter estava fa­zendo uma simples pergunta, mas aquilo servia para fazê-la sentir um sobressalto. Tratava-se de um belo exemplar de homem, isso era verdade, mas ela não precisava ficar tão nervosa por causa da proximidade dele, como uma donzela em sua primeira dança.

— Eu preferia que papai tivesse comprado mulas — lamuriou-se Patrick, parando de olhar para a irmã e dirigindo os olhos ao capitão.

Kelly soltou um demorado suspiro, sem dizer nada.

Vocês têm bons animais aí, Patrick — declarou o capitão Hunter. — E você ficará grato por eles serem bois quando seus braços começarem a doer por causa das rédeas. Os bois são muito mais fáceis de controlar.

Meus braços não doem e eu daria qualquer coisa para poder cavalgar, assim como o senhor está fazendo.

Jeb sorriu.

—      Qualquer dia desses, quando as coisas estiverem mais acertadas e o pessoal não precisar tanto da minha ajuda, deixarei que você cavalgue na garupa do meu cavalo. Ou, melhor ainda, poderá montar Storm sozi­nho e eu me sentarei aí ao lado do seu irmão.

Patrick olhou rapidamente para a irmã, cujos olhos se arregalaram.

— Ah... não precisa se preocupar — gaguejou. — Nem faço muita questão disso.

Jeb pareceu intrigado com a confusão do garoto.

— Bem, a oferta está de pé. E é claro que você pode sempre descer para caminhar na relva. Você e seu irmão podem se revezar para conduzir a carroça. Assim ficarão durante algum tempo longe da poeira.

Kelly se viu prestando atenção na forma como as coxas fortes do capitão Hunter apertavam a barriga do cavalo. Irritada consigo mesma, obrigou-se a trazer o pensamento de volta à viagem.

Acha mesmo que os bois são a melhor escolha, capitão Hunter? — perguntou, esperando que a res­posta do homem validasse os cuidadosos preparativos feitos pelo pai dela.

As opiniões a esse respeito são divergentes — respondeu Jeb. — Quanto a mim, prefiro os bois por um único motivo.

Que motivo? — quis saber Patrick.

O capitão hesitou por um momento antes de responder.

— É um longo trajeto até a Califórnia e as coisas nem sempre saem conforme o planejado. Se formos obrigados a abater um dos animais para matar a fome, um boi resultará numa refeição bem mais saborosa do que uma mula.

Com ar de abatimento, Kelly e Patrick olharam para os quatro enormes animais pretos que se movimenta­vam vagarosamente à frente deles. Enquanto o capitão Hunter se despedia com um aceno e se dirigia à carroça dos Burnett, Patrick olhou para a irmã e mostrou um sorriso amarelo.

— Pelo menos não será peixe.

Eles fizeram uma parada para o almoço antes do meio-dia, em deferência aos que estavam em sua pri­meira longa viagem e já sentiam os nervos à flor da pele e os músculos doendo. Foi um enorme alívio para Kelly poder descer da carroça e esticar as pernas. Ela se sentia como se houvesse passado a manhã inteira enroscada dentro de uma mala apertada e que sacudia o tempo todo. Até aquele momento Patrick não parecia sentir os efeitos dos solavancos da carroça. Aceitando a sugestão de Hunter, ele já havia descido da carroça em inúmeras ocasiões, às vezes simplesmente caminhan­do um pouco afastado da poeira, em outras correndo pela relva para ver de longe a comprida fila de veículos, que parecia ir além de onde a vista podia alcançar.

Enquanto Kelly pegava duas maçãs e uma porção de carne de charque para o almoço, o irmão dela apareceu caminhando tranquilamente de volta à car­roça, acompanhado por um visitante. Kelly reconhe­ceu o homem como o vizinho da frente deles... o ar­gonauta, como Hunter o havia chamado. Imediata­mente puxou o chapéu mais para baixo e aprumou os ombros. Ficaria contente quando tivesse conhecido todos os integrantes da caravana e fosse reconhecida por eles como um homem.

Apesar do nervosismo dela, outra vez as apresen­tações transcorreram sem problemas. Kelly soltou um suspiro de alívio e permitiu-se examinar Scott Haskell protegida pela aba do chapéu. O homem não era tão bonito quanto o guia da caravana, mas o rosto era agradável, cativante mesmo.

Pensei em vir conhecê-los ontem à noite, rapa­zes, mas só voltei para a carroça bem tarde — disse o garimpeiro.

Não teria importância a hora em que aparecesse — respondeu Patrick, num tom alegre. — Levamos a noite toda para arrumar as coisas na carroça.

Haskell ergueu as sobrancelha castanhas e espessas.

A noite toda! Vocês devem estar mais cansados do que eu, que passei todo o dia de ontem trabalhando com Joe Ferro.

Joe Ferro? — repetiu Patrick, curioso.

O ferreiro, garoto. Trabalhei como ferreiro em Pittsburgh e paguei as mulas que puxam minha carroça pon­do ferraduras em cada um dos animais desta caravana.

Vai trabalhar como ferreiro na Califórnia, sr. Haskell?

— Pode me chamar de Scott, garoto. Você também, Kernan.

Depois de olhar rapidamente para Kelly, ele pareceu se surpreender com alguma coisa e se demorou com os olhos no rosto dela.

E então? — insistiu Patrick. — Vai?

Se vou o quê, garoto?

— Vai trabalhar como ferreiro no Oeste?

Finalmente o homem voltou os olhos para Patrick.

De jeito nenhum, meu amigo. Não quero mais fumaça por baixo de mim. Nem ter limalha de ferro pinicando a minha pele como um enxame de moscas do pântano. Pretendo ficar rico, Patrick, meu rapaz. O único metal com que vou lidar daqui para a frente será ouro... ouro puro, amarelinho.

Puxa! — exclamou Patrick, olhando para Scott Haskell como se o homem houvesse acabado de atra­vessar o rio Missouri caminhando por sobre as águas, com os pés descalços.

Kelly sentiu uma ponta de impaciência. Só faltava agora Patrick encher a cabeça com ideias malucas so­bre garimpo de ouro em vez de trabalhar com ela na instalação de uma pequena fazenda. Quando eles che­gassem à Califórnia, mais do que nunca ela precisaria da ajuda do irmão.

— Fazemos votos para que tenha muita sorte, sr. Haskell — disse, falando depressa. — Mas, antes de mais nada, vamos ter que chegar lá. E devíamos estar preparando o nosso almoço antes que o capitão Hunter nos ponha outra vez em movimento.

O homem dirigiu a ela um olhar desconcertado, mas desta vez tinha um sorriso brincalhão nos lábios.

— Tem toda razão, meu rapaz. Vou voltar para a minha carroça agorinha mesmo. Mas estou muito ansioso para conhecê-los melhor na reunião desta noi­te, rapazes.

Kelly achou que ele sublinhava a última palavra, mas preferiu pensar que estava imaginando coisas. Lembrou-se de que o capitão Hunter os havia infor­mado de que naquela noite se realizaria uma reunião formal para discutir os problemas que pudessem ter surgido no primeiro dia de viagem.

— Nós estaremos lá — disse, com cautela.

Depois da tal reunião ela finalmente poderia dormir um pouco.

Aquele era o sexto ano em que Jeb partia acompa­nhando um novo grupo de colonos. A cada ano, duas ou três famílias resolviam voltar quando eles chega­vam a Fort Kearney. Em geral, logo ao fim do primeiro dia ele até podia prever as que tomariam essa decisão.

Naquela viagem, os Wagner certamente seriam os primeiros a desistir. Durante o dia inteiro, a esposa do sujeito não havia parado de se queixar. E talvez os Pendleton. Marido e mulher haviam chegado poucos dias antes da Inglaterra, declarando-se dispostos a se instalar no Oeste americano, mas agora já começavam a dar mostras de que a viagem estava sendo exaustiva demais para eles. Jeb pensava também nos rapazes irlandeses. Eles certamente demonstravam ter dispo­sição, mas não era uma coisa fácil deixar para trás o pai recentemente enterrado para empreender a tra­vessia do continente. Ao longo daquele dia, frequen­temente Jeb se vira pensando nos dois rapazes.

Bem que ele precisava distribuir melhor a atenção. Sempre aconteciam pequenos problemas no início de uma viagem como aquela e todas as pessoas inscritas haviam pago a mesma coisa. Mesmo assim ele voltava à carroça dos Gallivan sempre que possível. O jovem Patrick estava sempre cheio de entusiasmo e era ob­servador. Havia até reparado que a nuvem de poeira levantada pelos cascos das mulas era diferente da que os bois criavam. O irmão mais velho falava menos, mas havia sempre uma expressão determinada naquele rosto bonito que deixava Jeb intrigado. Sempre que ele tentava engajar o jovem irlandês numa conversa mais demorada, ouvia apenas monossílabos como resposta. De alguma forma, porém, Jeb sentia uma grande vitalidade por trás daqueles olhos intensamente azuis.

Agora mesmo ele observava os dois irmãos, que se aproximavam do círculo de colonos que já se reuniam em volta da grande fogueira acesa na pradaria, um pouco afastada das carroças. Naquele primeiro dia ele não havia orientado os viajantes para que dispusessem os veículos em círculo. Isso poderia esperar até que eles estivessem trafegando em território indígena.

No luar de início da primavera Jeb podia ver o rosto das pessoas que estavam sob a responsabilidade dele. Gente boa, em geral... firme e cheia de determinação. Por alguns instantes ele correu os olhos pela multidão, mas sempre voltando ao surpreendente rosto dos dois rapazes irlandeses.

— Patrick, Kernan! — chamou-os Jeb, finalmente. — Venham até aqui a frente. É a primeira oportuni­dade que temos para apresentá-los a todos.

Patrick olhou para a irmã e apertou levemente o braço dela, confortando-a. Kelly fechou os olhos por alguns instantes. Estava exausta. Mesmo assim, que­ria passar logo por aquela história das apresentações. Bem que podia ser agora. Com o chapéu bem afundado na cabeça e se concentrando para não arriar os ombros, caminhou em volta do círculo na direção de onde estava o capitão.

— Estes são os irmãos Gallivan — disse Jeb Hunter, erguendo a voz, — Pessoal, espero que vocês todos façam o possível para que eles se sintam bem-vindos.

Era melhor não retardar muito as apresentações. Além de haver uma série de assuntos para serem dis cutidos, aquelas pessoas estavam cansadas. Assim sen­do, o capitão fez um gesto para que Kelly e Patrick se sentassem e começou imediatamente a reunião.

Kelly deixou-se cair pesadamente no chão. Aqueles poucos minutos de pé na frente da multidão haviam esgotado as poucas forças que ela ainda tinha. Temia que a qualquer momento alguma daquelas pessoas... provavelmente uma criança mais atenta... apontasse para ela e gritasse: "Vejam! E uma moça!" Mas ne­nhuma voz se ergueu para isso. Agora ela era oficial­mente Kernan, um dos "irmãos Gallivan". E naquela noite poderia dormir com um pouco mais de facilidade.

Depois da reunião, Scott Haskell pôs-se a caminhar ao lado dela no retorno às carroças. Patrick, que pa­recia ter uma energia inesgotável, havia corrido na frente dela. O céu havia escurecido e se enchido de estrelas. O pai dela tinha dito que haveria noites espetaculares na pradaria, mas na realidade a coisa era muito mais fantástica do que as descrições dele.

— Parece que o bom tempo vai se manter — obser­vou Haskell.

Com o rosto protegido pela escuridão, Kelly até relaxou.

— O céu está uma coisa inacreditável — disse, com voz sonolenta. — Nunca pensei que as estrelas pudes­sem brilhar tanto.

Estamos com sorte. Pelo que disse Hunter, algu­mas caravanas começam com as chuvas da primavera, que caem durante dias seguidos. O pessoal se vê ob­rigado a enfrentar lama durante quase toda a viagem.

Meu irmão e eu estamos preparados para enfrentar qualquer coisa, desde que cheguemos à Califórnia.

Haskell riu.

Vocês são realmente dois sujeitos de muita de­ terminação. Quantos anos você tem mesmo, Kernan?

Dezenove.

O garimpeiro assentiu.

Parece que não cresceu muito, não é? — comen­tou, em tom casual.

Bem... não. No lugar de onde eu vim, as pessoas não são muito altas.

É mesmo? Mas Patrick parece que vai espichar um bocado. Ele já tem quase o seu tamanho.

Os cabelos loiros de Haskell brilhavam ao luar e agora ele mostrava o mesmo sorriso brincalhão de quando eles haviam se conhecido, na hora do almoço.

— Acho que Patrick ficará mais alto do que eu, sim. Deve ser por causa da alimentação da América, porque nosso pai não era um homem alto.

Kelly estava achando aquela conversa muito estra­nha. Scott Haskell mal os conhecia. Por que se impor­taria com a altura do irmão dela... ou dela?

Por um bom tempo ele a fitou no escuro. Depois sacudiu a cabeça e mudou de assunto.

— Imagino que vocês estejam indo para o vale Sonoma.

Kelly encolheu os ombros para aliviar a tensão.

Vamos para lá, sim. Para onde está indo, sr. Haskell?

Scott, por favor — disse o homem, com um sorriso.

Scott.

Acho que vou circular um pouco... para ver por onde corre a riqueza. Provavelmente me fixarei em algum lugar ao sul de San Francisco.

Kelly ia fazer um comentário quando subitamente o pé dela, desajeitadamente enfiado na bota grande de Patrick, tropeçou numa pesada pedra que ela não tinha visto por causa da escuridão. Perdendo o equi­líbrio, caiu para o lado do acompanhante. Scott virou-se e imediatamente pôs as mãos fortes nos ombros dela.

Oh... desculpe — disse Kelly, embaraçada.

 

Quando aprumou o corpo ela fez uma careta, sen­tindo dor no tornozelo.

Você está bem? — perguntou Scott.

Sim, é só... Desculpe-me, por favor. — Recuando um passo para se livrar das mãos do homem, Kelly soltou um gemido quando firmou o pé no chão. O tor­nozelo agora latejava. — Parece que torci o tornozelo.

Scott pegou nas delicadas mãos dela. Puxou-a mais para perto e examinou-a detidamente ao luar. Depois olhou-a nos olhos.

— Talvez essas botas sejam grandes demais para pezinhos que devem ser muito delicados... senhorita Gallivan.

Embora coberta de sujeita, a pele de Kelly empalideceu.

— O que... o que está querendo dizer? Scott sorriu.

— Não se preocupe, mocinha. Seu segredo estará seguro comigo, embora eu não consiga imaginar como alguém nesta caravana possa realmente acreditar que você é um homem.

Kelly puxou as mãos das dele.

Quando percebeu isso? — perguntou, com desâ­nimo na voz.

No instante em que vi esses seus lindos olhos azuis — respondeu o garimpeiro, em tom alegre. — Não podia acreditar que Deus cometeria a crueldade de desperdiçá-los num homem. — A expressão dela mostrou mais desalento e ele mudou de tom, passando a falar com brandura. — Seu rosto está bem disfarçado com terra e esse chapelão, garota, mas eu vi suas mãos. Um homem não poderia ter mãos tão delicadas.

Kelly recuou mais um passo, apenas para ser lem­brada da dor no tornozelo.

— O advogado em St. Louis nos disse que a Com­panhia de Colonização do Oeste não permite que uma mulher desacompanhada participe de uma caravana — explicou-se, respirando com dificuldade por causa da dor e por ter sido descoberta.

— Mas você queria ir para a Califórnia de qualquer jeito, não é isso?

— E, sim. Meu irmão e eu temos que chegar à Califórnia.

Scott assentiu, subitamente sério.

Você é uma moça muito corajosa, Kernan... O nome é Kernan mesmo?

Kelly.

Ah, assim é melhor. É mesmo uma moça muito corajosa, Kelly, como eu já disse, e não vou fazer nada para que vocês sejam obrigados a voltar. Na verdade, espero que me considerem um amigo.

Havia simpatia nos olhos dele e ternura na mão que bateu de leve no ombro dela.

Se guardar o meu segredo, sr. Haskell, eu cer­tamente o considerarei um amigo.

Ótimo. — Movendo a cabeça para o lado ele aper­tou os olhos. — Mas você vai ter que aprender a me chamar de Scott.

Kelly sorriu, logo depois suspirando.

Acho bom eu aprender mesmo, Scott, porque já estou precisando me aproveitar da sua amizade.

E só falar.

Antes de dizer o que queria ela abaixou os olhos para o pé, com uma expressão de desânimo.

—Acho que vou precisar de alguma ajuda para vol­tar à carroça.

Scott fez um ar de preocupação.

— Então está mesmo machucada. Droga! Que azar. Será que alguém do grupo tem algum treinamento médico?

Kelly ergueu as duas mãos para protestar.

— Não, por favor. Eu vou ficar boa. Se você apenas me ajudar a voltar para a carroça, tenho certeza de que amanhã o problema já estará resolvido. O garimpeiro hesitou.

— Você não quer que ninguém a examine muito de perto. É isso, não é?

Kelly trincou os dentes por causa da dor, que co­meçava a se espalhar pela perna. Scott a segurou pelo cotovelo quando ela cambaleou. No mesmo instantes os dedos dàla se fecharam nos antebraços dele.

— Vai me ajudar? Por favor...

Não era um pedido que ela fizesse sem esforço, mas naquele momento a dor impedia que Kelly mantivesse a independência que sempre gostava de ter.

Scott abaixou um pouco a cabeça para olhá-la nos olhos. Depois, sem dizer nada, ergueu-a do chão usando os braços fortes.

— Não precisa me carregar — ela protestou. O garimpeiro balançou a cabeça.

— Você pesa pouco mais do que uma pena, menina. Eu poderia carregá-la daqui até a Califórnia sem verter uma única gota de suor por causa disso.

A dor no tornozelo, que continuava a pulsar, impediu que ela sentisse embaraço por estar permitindo tanta intimidade a um homem que mal conhecia.

— Obrigada — murmurou Kelly. — Tenho certeza de que amanhã poderei caminhar novamente.

No dia seguinte, porém, Kelly ainda não conseguia ficar de pé, nem para caminhar algum tempo longe da poeira. O pé estava tão inchado que não cabia dentro da folgada bota de Patrick. Depois que o irmão envol­veu o pé dela tiras de pano rasgadas de uma camisa velha, Kelly calçou uma meia de lã bem grande.

Scott apareceu na hora do café da manhã para per­guntar como ela estava. Ofereceu-se para preparar uma cama para ela no bagageiro da carroça dele, onde havia bem mais espaço, mas Kelly recusou a oferta, aceitando apenas que ele a ajudasse a subir ao banco do veículo.

Não havia contado a ninguém mais o acidente que havia sofrido, mas parecia existir em funcionamento uma misteriosa rede de informações entre as carro­ças. Assim sendo, não havia se passado nem meia hora desde o reinicio do deslocamento da caravana quando Jeb Hunter apareceu, com um ar de preo­cupação no rosto.

— Fiquei sabendo que ontem à noite você machucou a perna, Kernan — ele disse, indo direto ao assunto.

Kelly assentiu, mantendo a cabeça abaixada por baixo do chapéu de abas largas. Depois de ter sido descoberta por Haskell, já não acreditava tanto no disfarce.

— Apenas torci o tornozelo... — murmurou. — Não é nada sério.

Jeb balançou a cabeça. Já havia alguém machuca­do... e logo no segundo dia. Ele só esperava que aquilo não fosse um mau agouro.

— Tem certeza de que não houve fratura? Não existe a chance de encontrarmos um médico daqui até Fort Kearney. Acho melhor eu dar uma olhada.

No mesmo instante Kelly ficou tensa. Sentado numa caixa ao lado, Patrick bateu no joelho dela para animá-la.

— Meu irmão logo estará bom — disse. — Pode acreditar. O senhor não precisa se preocupar.

Jeb hesitou. A independência daqueles rapazes era mesmo uma coisa admirável, mas a saúde dos inte­grantes da caravana estava sob a responsabilidade dele. Uma perna quebrada que não recebesse os de­vidos cuidados poderia se transformar num problema bem sério.

— Mesmo assim, vou dar uma olhada para ter cer­teza — disse, num tom de voz que não aceitava con­testação. — Voltarei aqui quando pararmos para o almoço.

O riso do homem se transformou em gargalhada. Kelly sentiu-se confortável nos braços dele... o mesmo conforto que sentia quando, ainda menina, ficava no colo do pai. Rapidamente ela afastou aquele pensa­mento. Não se sentava no colo do pai há muitos anos e certamente não precisava do calor do abraço de homem nenhum. Estava simplesmente sentindo um pouco de cansaço por causa do tornozelo machucado, que havia latejado a noite inteira, impedindo-a de dormir direito.

— Bem, agora vamos dar uma rápida olhada nisso, mocinha. Em bases estritamente profissionais, pode acreditar. — Agora o garimpeiro sorria para ela, um sorriso que alcançava os olhos azuis muito claros. — Agirei apenas como seu... bem... seu veterinário.

Patrick terminou de dar água aos bois e aproximou-se deles por trás.

Acha que meu irmão ficará bom?

Que tal você tirar uma daquelas caixas de trás da carroça para que sua irmã se sente? — rebateu Scott.

Com os olhos arregalados, o garoto voltou-se para a irmã.

— Ele sabe? Kelly assentiu.

Parece que o meu disfarce não foi muito convin­cente para o sr. Haskell. Mas ele prometeu que guar­dará o nosso segredo.

Que droga, Kelly! — resmungou o menino. — Eu lhe disse que isso não daria certo. Acha que pode dar certo, sr. Haskell?

Patrick chutou a roda da carroça com a ponta da bota.

— O nome é Scott — corrigiu-o o garimpeiro, ainda com Kelly nos braços. — A caixa, garoto.

Patrick puxou uma das caixas da parte de trás da carroça e a pôs no chão para que Scott sentasse Kelly.

Quando ela já estava acomodada, o homem recuou um passo e olhou para o garoto.

Não posso lhe responder com certeza, Patrick, mas ninguém mais questionou a identidade de sua irmã. Ela é uma mocinha danada de esperta. Pode muito bem sustentar essa história até o fim da viagem.

Desde que Jeb Hunter não insista em ver meu tornozelo — condicionou Kelly, fazendo uma careta enquanto estendia a perna para a frente.

O tornozelo, enrolado na noite anterior com as ban­dagens, continuava a latejar.

— Talvez ele nem apareça — arriscou Patrick, esperançoso.

Mal o menino terminou de falar, porém, os três er­gueram a cabeça quando ouviram o barulhos dos cascos de um cavalo. O guia da caravana se aproximava da carroça deles, com os olhos fixos em Kelly.

Scott empurrou o chapéu um pouco para trás, le­vantou-se e cruzou os braços para esperar pela chegada de Jeb Hunter.

— Boa tarde, capitão — disse, em voz baixa, atraindo a atenção do guia.

Kelly mexeu-se em cima da caixa para que a perna machucada ficasse parcialmente escondida.

— Boa tarde — respondeu Jeb, parando o cavalo a poucos passos dele. — Vim ver como está o tornozelo do rapaz.

Depois de desmontar ele começou a se aproximar, mas Scott deu um passo adiante, barrando a passagem.

—      Ele diz que está se sentindo bem melhor.

Kelly ficou olhando enquanto os dois homens para­vam, um de frente para o outro. Alguma coisa na pos­tura deles dava a impressão de que aquilo era mais uma confrontação do que uma conversa.

— Eu sei — disse Hunter, com uma ponta de irritação na voz. — Mesmo assim quero dar uma olhada, só para ter certeza.

Dizendo isso ele começou a dar a volta em Scott, que o segurou pelo braço.

— Eu mesmo já fiz um exame — disse o garimpeiro.

— Você não precisa se preocupar.

Scott é um especialista — pronunciou-se Patrick.

Hunter olhou para a mão que segurava o braço dele.

Um especialista?

Scott removeu a mão e passou a falar num tom mais conciliador.

— Já trabalhei com esse tipo de ferimento — disse.

— Tornozelos torcidos e coisas parecidas. Acho que Kernan ficará bom se permanecer em repouso por uns três ou quatro dias.

Pela primeira vez desde que havia torcido o torno­zelo, Kelly ficou alheia à dor enquanto observava a competição entre os dois homens. Eles não estavam destinados a ser amigos, isso era bem claro. Era muito clara a animosidade que havia entre os dois.

— Eu só queria que as pessoas parassem de falar de mim e do meu tornozelo — pronunciou-se Kelly, procurando pôr a maior veemência possível na voz bai­xa. — O sr. Haskell diz que estou bem, e o tornozelo praticamente parou de doer. Portanto, gostaria que o incidente simplesmente fosse esquecido.

Jeb Hunter olhou para ela com a testa franzida.

Você pôs bandagens no tornozelo como se deve fazer?

Sim. Como já dissemos, o sr. Haskell entende do assunto.

O guia recuou um passo e voltou os olhos para Scott.

— O rapaz parece confiar em você, Haskell, e foi muita bondade sua ajudá-lo. No entanto, no futuro eu apreciarei se você se lembrar de que sou o único res­ponsável pela saúde das pessoas desta caravana.

Scott abriu um sorriso afável.

—Mas é claro, capitão Hunter. Todos nós sabemos que é você quem manda.

Hunter pareceu hesitar por um momento, certa­mente achando que havia algum sarcasmo no comen­tário do garimpeiro, mas acabou não insistindo no assunto.

— Está certo. Retomaremos a marcha daqui a uns vinte minutos. — Depois de acenar para Patrick ele dirigiu um último olhar a Kelly. — Então tome cuidado com esse tornozelo, Kernan.

Depois que ele montou e se afastou, Kelly descobriu que estava com a respiração contida. Então soltou um demorado suspiro.

— Bem, mais uma crise superada. Scott pôs um joelho no chão ao lado dela.

— Mesmo assim, ainda vou dar uma olhada no seu tornozelo, mocinha.

Kelly fez uma careta de dor e embaraço quando ele empurrou um pouco para cima a barra da calça curta que ela usava e começou a desenrolar as ataduras. O tornozelo dela continuava muito inchado e tinha uma coloração entre o azul e o cinza. Depois de soltar um assobio baixo, Scott olhou para ela e piscou o olho.

— Estou com a impressão de que você torceu o tornozelo.

Kelly riu e se viu relaxar, a contragosto se deixando influenciar pelo charme de Scott Haskell. Depois que ele apalpou com todo cuidado o tornozelo dela, dizendo que aparentemente não havia nenhum osso quebrado e começando a repor as ataduras, ela perdeu o cons­trangimento e até se divertiu com as brincadeiras dele. Embora o fato de que ele havia descoberto o segredo houvesse diminuído a confiança dela no disfarce, era bom saber que havia na caravana pelo menos mais um aliado além de Patrick. Ela continuava decidida a chegar à Califórnia com esforço próprio e não pediria ajuda a ninguém. Mas não fazia mal nenhum vez por outra relaxar, tendo certeza de que estaria olhando para um rosto amigo.

 

Quatro dias mais tarde, Kelly começou a ficar ansiosa para ver o rosto amigo de Scott Haskelr Na manhã seguinte à primeira vez em que ele havia posto as bandagens no tornozelo dela, o garimpeiro tinha aparecido pouco depois do ama­nhecer, carregando uma braçada de madeira para acender o fogo, um bule já cheio de água e uma lata de café. Kelly havia despertado de mais uma noite maldormida, achando que não valeria a pena o esforço de preparar alguma coisa quente para combater o frio da manhã de primavera. Mas alegrou-se em poder ficar calmamente sentada, com as costas apoiadas na roda traseira da carroça, apenas observando enquanto Scott circulava pelo pequeno acampamento, ocupado em pre­parar um café da manhã que consistiu em bacon frito e café forte.

A parada para o almoço tinha sido curta e os via­jantes tiveram que se contentar em mastigar comida fria. A noite, porém, Scott havia reaparecido para pre­parar, com a ajuda de Patrick, um delicioso jantar.

No dia seguinte ela até achou que já estava em con­dições de se movimentar sozinha, mas Scott recusou-se terminantemente a permitir que fizesse isso. Conti­nuou encarregando-se do trabalho de cozinheiro e se dirigia a Patrick com bem-humoradas brincadeiras,sempre com a naturalidade de um irmão mais velho. Os olhares que vez por outra dirigia a Kelly, porém, nem sempre eram os de um irmão. E isso a espantava muito. Ela percebia uma clara admiração masculina naqueles olhares, achando incrível ele poder ver algu­ma coisa de atraente nela. Afinal de contas, vivia per­manentemente suja de poeira e vestia-se como um ho­mem. Um homem desajeitado, bem entendido.

Todas as outras pessoas da caravana pareciam acei­tar com naturalidade a presença de Kernan. Os soli­dários vizinhos que apareceram depois de saber que ela havia sofrido um acidente, apenas perguntando se havia alguma gravidade, demonstravam a indiferença de quem estivesse diante de um inconsequente rapaz que ainda não houvesse deixado sua marca na vida. Não havia nenhuma deferência, nada na atitude da­quelas pessoas que sugerisse a cortesia que a boa edu­cação mandava ter quando se estava diante de uma jovem solteira. Mas ela não se aborrecia com aquilo. Muito pelo contrário. Era uma prova de que o plano estava dando certo.

Kelly só se sentia de volta à sua condição de mulher quando estava com Scott. Agora mesmo ele a olhava daquele jeito, sentado de frente para ela no outro lado do fogo. Eles estavam sozinhos, já que Patrick tinha ido se divertir com garotos da mesma idade em uma outra carroça.

— Agradeço muito pela sua ajuda neste últimos dias, Scott — disse Kelly, depois de um silêncio que, esten­dendo-se muito, tornou-se até pesado.

O garimpeiro sorriu.

— Sou romântico por natureza, Kelly. Estou sempre pronto a ajudar donzelas em apuros.

Kelly riu e ergueu os braços, sacudindo as folgadas mangas do paletó do pai.

— Acho que no momento "donzela" é um termo ele­gante demais para me descrever.

O semblante de Scott ficou sério.

— Eu teria algum problema para encontrar as pa­lavras certas para descrevê-la, Kelly. Quando olho para esse seu rostinho lindo, para esses olhos grandes e muito azuis, acho que meu coração vai parar de bater.

Kelly enrubesceu e moveu o corpo um pouco para trás, afastando o rosto do círculo de luz da fogueira.

— Eu pensava que só os irlandeses tivessem o cos­tume de dizer coisas lisonjeiras.

Scott permaneceu sério por mais algum tempo, de­pois sorriu.

— Desculpe. Eu devo ter dado a impressão de que não estava sendo sincero. Ou, no mínimo, falei antes da hora. Peço sinceramente que me desculpe.

Kelly sacudiu a cabeça, confusa.

— Não, eu não quis dizer que... Não há nada para desculpar. Você é... você tem sido muito bondoso conosco.

Scott olhou de lado para ela, com uma expressão de troça no rosto.

— E, como toda mulher bonita, você deve estar se perguntando se as minhas intenções são boas.

Outra vez Kelly riu. Nunca tinha tido a oportuni­dade de conhecer um homem que a deixasse tão à vontade. E ficava com a impressão de que, com todo aquele charme, Scott Haskell seria cativante em quais­quer circunstâncias. O jeito dele formava um flagrante contraste com os modos taciturnos do guia da carava­na, que havia aparecido várias vezes para perguntar pelo estado dela, mas nunca se demorando mais do que o tempo estritamente necessário para ouvir a res­posta. Embora Kelly ficasse aliviada por ele não ter pedido outra vez para examinar o tornozelo machucado dela, o que certamente serviria para desmascará-la, sentia um certo incômodo por causa dos modos bruscos de Jeb Hunter.

Não estou preocupada em saber se as suas in­tenções são boas ou ruins, Scott — ela declarou, res­pondendo ao novo amigo. — Patrick e eu estamos muito gratos por tê-lo por perto.

Patrick é um bom menino. Você pode se orgulhar dele.

Eu me orgulho, sim. Vamos formar uma boa equi­pe na Califórnia.

Será uma tarefa e tanto, Kelly... começar uma fazenda só vocês dois.

Kelly ergueu a cabeça.

— Não tão difícil assim. Nós cuidaremos para que dê certo. Eu sou capaz de fazer qualquer trabalho que um homem faça. — Com uma careta ela olhou para a perna machucada. — Quando puder contar com as duas pernas, claro.

Scott apertou os olhos, olhando para ela na meia obscuridade.

— Quando chegar essa hora, talvez você não esteja mais sozinha. Ouvi dizer que no Oeste as mulheres não ficam muito tempo solteiras.

Kelly fez outra careta.

— Mas eu não sou uma mulher, lembra-se? E não tenho o menor interesse em ter um homem na minha vida, dizendo o que eu devo e o que não devo fazer.

Scott soltou uma gargalhada.

— Isso é que é uma declaração feita sem meias palavras.

Uma chuveirada de faíscas subiu da fogueira quando uma acha de lenha se partiu em duas, escorregando do monte na direção de Kelly. Scott levantou-se no mesmo instante e saltou para o lado dela, chutando com o bico da bota a lenha de volta para o fogo. Kelly começou a recuar, mas ele pôs a mão no ombro dela para retê-la.

— Não precisa sair de onde está, garota. Apenas vou pôr a lenha no lugar.

Abaixando-se e roçando o joelho na perna dela, o garimpeiro usou um acha de madeira apagada para empurrar os outras, arrumando-as numa pirâmide mais estável.

— Acho que assim está bom — disse, sentando-se ao lado dela.

As pernas deles ainda se tocavam, nenhum dos dois tomando a iniciativa de se afastar.

Kelly respirou fundo o ar morno, que tinha o cheiro de campina seca e fumaça.

— Está uma noite perfeita — disse, num tom so­nhador, enquanto olhava para o céu estrelado.

Scott apoiou as mãos no chão e olhou para cima. Depois de alguns instantes, voltou os olhos para ela.

— Está, sim — disse, finalmente. — Quando resolvi fazer esta viagem, não podia imaginar o quanto ela também seria perfeita.

A voz dele agora estava muito grave e Kelly se voltou para olhá-lo, surpresa. Por um longo minuto eles ficaram se olhando nos olhos, até que Scott ergueu a mão para afastar uma curta mecha de cabelo da testa dela.

Os dedos dele eram ásperos contra a pele macia de Kelly, mas ela não se importou com isso. Logo depois os mesmos dedos se intrometeram entre os cabelos dela, numa terna carícia.

— Gosto dos seus cabelos curtos — murmurou Scott.

Pela primeira vez Kelly não estava usando o chapéu de abas largas e não fez o menor esforço para resistir ao toque. O calor daquele contato e a agradável tran­quilidade da noite serviram para que ela se sentisse relaxada e feliz. Scott aproximou muito a cabeça, até que ela pudesse ver os minúsculos fios da barba por fazer. Talvez tivesse a intenção de beijá-la, pensou Kel­ly, meio atordoada. A escuridão os envolvia como um manto protetor. Ela não se importaria se ele a beijasse, decidiu timidamente Kelly, deixando que os olhos au­tomaticamente se fechassem.

— Boa noite! — soou uma voz grave entre eles e a fogueira.

Kelly e Scott se afastaram imediatamente.

— Hunter — disse o garimpeiro, com a voz nota­velmente rouca.

Kelly sentiu as faces queimando, embora não sou­besse exatamente por quê. Eles não tinham feito nada de errado, embora ela agora se sentisse como uma garotinha surpreendida enquanto roubava doces.

Jeb Hunter deslocou-se até o outro lado da fogueira e agachou-se.

— Como está a sua perna hoje, Kernan? — pergun­tou, numa voz um tanto ríspida.

Kelly aprumou um pouco mais o corpo e afastou a perna da de Scott.

— Melhor — respondeu, sentindo a garganta seca e falando num tom mais alto do que pretendia. Então obrigou-se a se expressar com a voz mais baixa. — O tornozelo já está quase curado, acho.

O capitão assentiu, depois olhou para Scott e outra vez para ela. Parecia não saber o que dizer. Depois de um momento o silêncio se tornou constrangedor e Kelly resolveu falar.

— Não gostaria de tomar uma caneca de café, capitão?

Uma leve mudança se operou no semblante de Scott, que pareceu não aprovar o convite, mas rapidamente ele se recuperou.

— Imagino que, pelo menos por hoje, todos os seus deveres estejam cumpridos, Hunter.

Jeb mostrou um fraco sorriso.

— Meus deveres não estarão cumpridos enquanto eu não levar você e todos os outros desta caravana até a Califórnia, Haskell.

— Cumpridos para que você possa tomar uma ca­neca de café, pelo menos — acrescentou o garimpeiro, levantando-se e indo pegar uma caneca de metal no saco de lona onde estavam as coisas de cozinha dos Gallivan.

Scott Haskell movia-se ali com muita desenvoltura, parecendo até que aquela carroça pertencia mais a ele do que aos dois garotos irlandeses, reparou Jeb, ten­tando entender por que aquele pensamento o irritava tanto. Sabia que parte dos motivos era simplesmente o fato de o jovem e afável Haskell ter declarado sua intenção de se tornar um garimpeiro. Jeb havia dei­xado a Califórnia e aceitado trabalhar como guia de caravanas em parte por ter decidido que nunca mais teria nada a ver com a corrida do ouro. Sempre que algum garimpeiro participava de uma caravana con­duzida por ele, ficava com vontade de sacudir o sujeito até fazer desaparecer dos olhos do idiota aquele ar de cobiça e esperança.

Scott retornou para perto da fogueira, encheu a ca­neca de café e estendeu-a para Jeb, que continuava agachado no mesmo lugar.

— Sente-se, Hunter — convidou Scott, agora evi­dentemente conformado com o fato de que o guia da caravana havia interrompido o momento de privaci­dade dele com Kelly.

Jeb hesitou, depois sentou-se no chão e ergueu a mão para pegar a caneca.

— Obrigado — disse, com a voz tensa.

— Estamos nos deslocando de forma a chegar à Ca­lifórnia dentro do prazo previsto, capitão? — perguntou Kelly, desta vez se lembrando de manter a voz em tom baixo.

Jeb assentiu.

— Temos tido sorte até agora, porque ainda não começou a chover. As carroças estão conseguindo per­correr uma boa distância com a trilha seca. Embora haja muita poeira, a ausência de chuvas tem suas vantagens.

— Mas não acha que está tudo seco demais? — per­guntou Scott. — Será que vamos ter água suficiente para matar a sede dos animais e a nossa ao longo de todo o trajeto?

Jeb deu de ombros.

— Não há como saber. Isso pode mesmo se tornar num problema. Em geral caem chuvas de primavera nesta época do ano, mas é preciso pensar também no fato de que elas podem transformar uma trilha fácil de percorrer num lamaçal, o que é sempre um pesadelo. Ou um simples riacho numa caudalosa e intransponí­vel corrente de água.

Kelly sentiu um arrepio apesar da noite morna.

— Vamos ter de atravessar algum rio, logo? — perguntou.

Jeb balançou a cabeça.

— Não. Pelo menos não nos próximos dias. Ficare­mos deste lado do rio Kansas durante mais algum tempo. Em geral prefiro não atravessá-lo tão cedo.

— Então vamos ter que atravessá-lo?

— Vamos, sim. Se o tempo continuar como está, porém, isso não será nenhum problema. Encontrare­mos vários pontos onde poderemos atravessá-lo no vau. Mesmo assim, é sempre um rio de bom tamanho... e esse é um dos motivos por que eu insisti para que todos trouxessem a menor carga possível.

Jeb reparou que o jovem irlandês olhava para o ba­gageiro da própria carroça, com uma expressão de cul­pa. Parecia até que os dois Gallivan não haviam se­guido à risca a orientação dele sobre a carga que as carroças poderiam transportar. Bem, o tempo diria. Aqueles não seriam os primeiros a se ver na contin­gência de deixar pelo caminho preciosos pertences. Mesmo assim ele preferia que os garotos tivessem se­guido a orientação. Tinha um estranho sentimento pro-tetor em relação àqueles dois órfãos recentes. Gostaria de se aproximar dos Gallivan, mas até aquele momento os jovens irlandeses não pareciam considerar bem-vin-da a presença dele, assim como não pediam conselhos. E agora davam a impressão de ter encontrado um outro protetor na figura de Scott Haskell.

— Amanhã você estará na vanguarda da caravana, Haskell — lembrou Jeb ao garimpeiro. — No dia se­guinte irá para o fim da fila.

Scott estava outra vez sentado ao lado de Kelly, embora não tão perto quanto antes.

— Sabe de uma coisa, Hunter? — ele disse, depois de coçar o queixo. — Acho que vou mudar o posicio­namento da minha carroça para ficar atrás da dos Gallivan. Assim eles serão os primeiros da fila no meu dia e também no deles. Depois levaremos as duas car­roças para a retaguarda.

Jeb parou a caneca a meio caminho da boca.

— Por que você faria essa generosidade, Haskell? — perguntou, outra vez percebendo na própria voz a inexplicável irritação.

Scott olhou rapidamente para o lado.

— Não quero me separar de... ah... dos rapazes. — Diante da expressão de surpresa que Jeb mostrou, apressou-se em dar mais explicações. — Kernan ainda pode precisar da minha ajuda por causa do tornozelo machucado.

— Você não disse que já estava praticamente cura­do? — perguntou Jeb, olhando para Kelly.

— Eu... bem... é que... — ela gaguejou. Também estava muito surpresa com o fato de que Scott permitiria que ela e Patrick tivessem um dia a mais sem engolir poeira apenas para que eles não se separassem.

Finalmente Jeb abanou a mão.

— Bem, não importa saber o motivo que tem para querer fazer isso. Não são permitidas mudanças no posicionamento das carroças na fila.

Scott aprumou o corpo.

Nenhuma outra carroça estará envolvida além da dos Gallivan e da minha — disse, calmamente. — Não vejo que problema isso poderá acarretar.

Não compete a você ver ou tentar resolver os problemas desta caravana, Haskell, mas a mim. Estou lhe dizendo que o posicionamento das carroças não será mudado.

Fez-se um momento de silêncio durante o qual Scott e Jeb se olharam fixamente por cima do fogo. Outra vez Kelly teve a impressão de estar diante de dois touros prontos a se enfrentarem pela liderança do re­banho. Aquilo a fez sentir um distinto desconforto.

— Não tem importância, Scott — ela se apressou em dizer. — Você deve aproveitar o seu dia para ser o primeiro da fila, como todos os outros.

Scott balançou a cabeça.

— A carroça é minha. Acho que posso posicioná-la no lugar que eu bem quiser.

Jeb pôs a caneca no chão, perto do fogo, e levan­tou-se. Desta vez a voz dele soou macia, falsamente aveludada.

— É bem verdade que a carroça é sua, Haskell, mas também é verdade que a caravana é minha. Você vai ter de manter a carroça no lugar que eu disser.

Kelly quase podia sentir a tensão de Scott, sentado ao lado dela. Então pôs a mão no braço dele.

— Pode acreditar, Scott — disse, em voz baixa. — terei que lhe pedir que se afaste de nós.

Kelly quase podia sentir a tensão de Scott, sentado ao lado dela. Então pôs a mão no braço dele.

— Pode acreditar, Scott — disse, em voz baixa. — Para nós não haverá problema nenhum. Será apenas mais um dia.

Os olhos de Jeb seguiram aquele movimento. Ele achava muito estranha a silenciosa comunicação que parecia existir entre o garimpeiro e o jovem irlandês. Só que continuava a não entender por que se importava tanto com aquilo. Depois olhou mais atentamente para Kernan Gallivan. A bruxuleante luz da fogueira, as feições do rapaz pareciam quase... graciosas. No mí­nimo, tratava-se de um sujeito um pouco delicado de­mais para os rigores do Oeste... e devia ser por isso que Jeb sentia tanta necessidade de proteger os irmãos irlandeses. Diabo! Ele devia até ficar contente com o fato de que os garotos estavam podendo contar com a ajuda de Haskell. Jeb já tinha muito com que se preo­cupar, porque não era fácil liderar uma caravana de tantas carroças num percurso tão extenso. Ele até pen­sou em mudar de ideia sobre o posicionamento das carroças, só para demonstrar alguma gratidão a Has­kell, mas resolveu manter a decisão tomada. Por ex­periências anteriores, sabia que fazer as pessoas com­preenderem que as ordens dele eram a lei podia sig­nificar a diferença entre a vida e a morte.

—Estamos todos entendidos, então? — perguntou, depois de um momento.

Scott olhou para a mão de Kelly e pareceu pensar no que iria responder. Finalmente resolveu falar.

—Sim, estamos entendidos. Manteremos o posicio­namento das carroças.

Jeb assentiu.

— Ótimo. — Por alguns instantes ele ficou espe­rando por mais comentários. Como Scott e Kelly per­maneceram em silêncio, apenas se despediu, falando em voz baixa. — Obrigado pelo café, então.

Dito isso o guia silenciosamente desapareceu na escuridão.

—Sim, claro. Menos você. — Kelly pigarreou e esfregou rapidamente os braços. — Está começando a esfriar, não acha?

Scott abriu um sorriso compreensivo.

— Não estou sentindo nenhum frio, garota, mas está ficando tarde. Ainda precisa da minha ajuda para al­guma coisa?

Kelly levantou-se, tomando o cuidado de não apoiar o peso do corpo na perna machucada.

— Não, apenas vou me deitar para mergulhar no sono — disse, apontando para o local na relva onde Patrick havia desenrolado as camas de campanha deles.

— Eu ficaria mais tranquilo se você e seu irmão dormissem no interior da carroça.

Kelly abriu os braços.

Infelizmente não existe espaço.

Numa dessas noites vai chover e vocês vão ter que encontrar abrigo em algum lugar.

Kelly suspirou e indicou com um gesto o céu sem nuvens.

— Bem, esta noite não vai chover. Portanto, acho que podemos deixar para resolver o problema quando ele se apresentar.

Scott hesitou por alguns instantes antes de voltar a falar.

— Há espaço de sobra na minha carroça, garota. — Kelly ergueu a sobrancelhas finas, demonstrando sur­presa, e ele sorriu. — Só estou dizendo isso... para o caso de começar a chover e vocês precisarem se abrigar rapidamente.

Kelly retribuiu ao sorriso.

— Obrigada pela oferta, Scott, mas Patrick e eu daremos um jeito. Você já fez muitas coisas por nós. Por mim.

Outra vez a voz de Scott ficou macia.

— Bobagem, Kelly. Os vizinhos são para isso mesmo.

Depois de ficar por alguns instantes com a palma da mão na face dela, num gesto que não tinha nada a ver com a boa vizinhança, ele se despediu com um aceno de cabeça e girou o corpo, começando a caminhar na direção da própria carroça.

— Capitão Hunter?

Jeb voltou-se, quase se assustando com a voz. Os anos passados em campo aberto o haviam deixado com os sentidos aguçados e em geral ele estava atento a tudo que acontecia em volta, mas agora não havia per­cebido a aproximação do garoto.

— Olá, Patrick. Como está o tornozelo do seu irmão? — perguntou.

Provavelmente ouviria a mesma história contada pelo próprio Kernan na noite anterior, no acampamen­to dos Gallivan, mas pareceu natural fazer a pergunta.

— Ele agora já está se movimentando sem muita dificuldade. Na verdade... o meu irmão me disse que hoje eu poderia fazer parte do trajeto cavalgando com o senhor. Se a oferta ainda estiver de pé, claro.

Jeb sentiu uma onda de satisfação. Patrick era um garoto muito cheio de energia, talvez um pouco sério demais para a idade. Até aquele momento, vi­nha enfrentando as dificuldades da jornada sem uma única reclamação. Jeb ficou pensativo, perguntando-se se ele e Melanie podiam ter tido um filho como aquele menino. A dor que sentiu no peito já era uma coisa tão costumeira que quase passou sem que ele percebesse. Quase.

Para mim será uma enorme satisfação tê-lo cavalgando comigo, Patrick. Sabe que terá que ir na ga­rupa do cavalo, não é?

Sim, eu sei.

Os cabelos pretos e os olhos azuis do garoto eram quase idênticos aos do irmão. No entanto, enquanto aqueles atributos deixavam Kernan com uma aparên­cia quase graciosa, em Patrick mostravam a promessa de um rapaz bonito e cheio de virilidade. O contraste entre os dois irmãos era marcante.

— Se quiser eu posso ir com seu irmão durante algum tempo. Assim, o cavalo será inteiramente seu. Ele iria trotando perto da carroça de vocês — acres­centou Jeb, querendo que o garoto tivesse certeza de que não estaria sozinho.

Por alguns instantes Patrick ficou olhando para o alazão branco, com olhos compridos. Finalmente respondeu.

— Não, é melhor eu ir na garupa. Jeb deu de ombros.

Como queira. Talvez seja melhor mesmo. Assim poderemos percorrer de uma ponta a outra a fila de carroças, verificando se está tudo em ordem. Tem cer­teza de que seu irmão não precisará de ajuda?

Sim, tenho certeza. O tornozelo melhorou tanto que as gêmeas Burnett farão o trajeto de hoje ao lado dela, na nossa carroça.

Jeb ergueu as sobrancelhas, confuso.

— Ao lado... dela? Foi isso o que você disse? Patrick ficou com as faces muito pálidas.

— Eu quis dizer que elas estarão ao lado dele. Com o meu irmão.

Jeb balançou afirmativamente a cabeça.

— Ah, sim. Bem, é bom saber disso. Se precisar de alguma coisa, ele poderá recorrer aos Burnett.

— Sim, poderá — concordou Patrick, com o rosto voltando às cores normais.

Havia alguma coisa estranha com aqueles irmãos Gallivan, pensou Jeb enquanto montava no cavalo e estendia a mão para ajudar Patrick a subir à garupa. Mesmo assim ele continuava a se sentir atraído pelos irlandeses. Talvez fosse apenas um sentimento de solidariedade por causa da recente perda sofrida pelos garotos. Ainda não havia se passado muito tempo des­de a morte do pai deles. Os dois órfãos precisavam de tempo para se recuperar. Só o tempo aplacava a dor de quem houvesse sofrido a perda de um ente querido. Quase sempre.

Jeb sentiu os braços do menino em volta da cintura e pôs a mão grande em cima das de Patrick, querendo transmitir segurança.

Está pronto? — perguntou.

Sim, senhor!

A voz infantil cheia de entusiasmo fez com que Jeb sorrisse, apesar dos pensamentos tristes. Patrick era bem jovem. Não seria necessário muito tempo para que a dor dele se aplacasse. Não era o que acontecia com Jeb. Mesmo depois de muitos anos passados, ele sofria agora o que sempre havia sofrido por causa da perda de Melanie. E não permitiria que o tempo cica­trizasse aquela ferida. Não se achava merecedor disso.

 

Kelly estava se divertindo muito, o que parecia acon­tecer pela primeira vez em muitas semanas. Logo que Polly e Molly se mostraram inteiramente à vontade na companhia dela, a conversa se tornou deliciosa­mente sem reservas. Aparentemente a mais tímida das gêmeas, Molly, havia desenvolvido uma paixonite por Patrick, e a irreprimível irmã mais velha não per­deu a oportunidade para usar o fato como uma arma.

Molly tem um namorado — disse a Kelly, de­monstrando com os movimentos dos lábios o quanto estava excitada.

Não tenho, não! — reagiu Molly, fazendo cara feia.

Tem, sim.

Não tenho!

Tem, tem, tem!

Kelly estava sentada no alto banco da carroça, com uma garota em cada lado. Deixando por um instante as rédeas sobre o colo, segurou no ombro de cada uma delas.

— Pronto, pronto. Não vamos começar uma briga. Não é uma coisa muito elegante caçoar de uma menina se referindo a garotos, Polly — censurou, com brandura.

Polly não se abalou.

— E o namorado dela é o seu irmão — disse, em tom dramático, dirigindo um olhar de desafio à irmã, que respondeu mostrando a língua.

Kelly conteve um sorriso.

— Está tudo certo, Molly. Não há nada de errado em sentir afeição por um menino. Cedo ou tarde, todas as garotas acabam passando por isso.

Molly olhou bem para ela, pestanejando intensamente.

— Você não vai contar nada a ele, não é? — per­guntou, em voz baixa e cheia de preocupação.

Kelly balançou a cabeça.

— Não direi uma só palavra. E você também não deve dizer nada, Polly — recomendou, séria. A carroça sacolejou ao passar num buraco da trilha e ela segurou novamente as rédeas. — Vocês não iam me ensinar aquela balada que a sua mãe estava cantando ontem à noite, perto do fogo?

Prontamente a briga e Patrick foram esquecidos enquanto as duas garotas competiam para ensinar à nova amiga a canção preferida da família. Kelly recostou-se na tábua de encosto do assento, delician­do-se com a cantoria das duas, ao mesmo tempo que tentava se lembrar de quando tinha dez anos de ida­de. Tinha sido tão despreocupada e feliz quanto as gémeas Burnett? A mãe dela havia morrido ao dar à luz Patrick, quando Kelly tinha seis anos. Sean Gallivan tinha ficado arrasado e a maior parte das lembranças de Kelly consistia nas tentativas de fazê-lo superar a perda. Aparentemente ela nunca havia conseguido isso, por mais que tentasse. Talvez fosse mesmo impossível fazer um homem esquecer a mulher amada, principalmente quando se tratava de uma com­panheira tão dedicada.

As gêmeas estavam envolvidas numa outra discus­são, desta vez sobre a ordem dos versos da canção, mas havia bem menos veemência do que quando a disputa havia se referido a assuntos do coração.

— O que vocês acham de cantarmos cada vez de um jeito? Assim eu certamente poderei aprender a can­ção inteira.

A sugestão de Kelly bastou para encerrar a conten­da. As duas garotinhas viviam brigando, o que era muito natural em irmãs da mesma idade, mas eram naturalmente boas e Kelly sentia-se relaxada na com­panhia delas. A manhã inteira não pensou uma única vez no fato de que estava disfarçada.

No entanto, aquele estado de despreocupação foi su­bitamente interrompido quando ela viu Jeb Hunter cavalgando na direção da carroça, com Patrick subindo e descendo na garupa do cavalo. Sentada ao lado dela, Molly ficou visivelmente tensa e Kelly se viu reagindo da mesma forma. Imediatamente puxou mais para bai­xo a aba do chapéu diante da testa.

—Pelo que estou vendo, Kernan, hoje você arranjou ajudantes — disse Jeb quando chegou perto.

A voz dele agora estava muito mais relaxada do que algumas noites antes, quando eles haviam conversado em volta do fogo. O tom parecia o de uma pessoa mais jovem. O rosto também parecia rejuvenescido e, sur­preendentemente, o homem a brindou com um dos seus raros sorrisos. Kelly conteve a respiração ao ver todas aquelas mudanças.

— Sim, eu certamente arranjei — respondeu, tomando o cuidado de falar no tom mais grave possível. Esperava que Polly e Molly não reparassem naquela súbita mudança no tom de voz. — E parece que hoje o senhor também tem um ajudante.

Jeb voltou-se na sela e dirigiu a Patrick um olhar de admiração e afeto.

— Este aqui deu todas as indicações de que poderá vir a ser um excelente guia de caravanas.

O sorriso de Kelly desapareceu no mesmo instante.

— É pouco provável — ela se apressou em dizer. — Vamos trabalhar na agricultura e na criação de gado, lembra-se? E Patrick será um carpinteiro, como o nosso pai.

Jeb pareceu não reparar na veemência com que ela fazia aquelas afirmações.

— Ele tem agudeza de visão. Mostrou coisas na tri­lha em que nem eu havia prestado atenção.

Patrick mostrou-se radiante com os elogios.

— Foi incrível, Kel... Kernan! — exclamou. — Bem que eu gostaria de poder cavalgar assim todos os dias.

Você não pode querer ser um incômodo para o capitão Hunter, Patrick — disse Kelly, com brandura.

Ele não foi incômodo nenhum. Pelo contrário, porque eu gostei muito da companhia. — Jeb aproxi­mou mais o cavalo, acompanhando a marcha vagarosa dos bois. — Só o trouxe de volta porque vamos parar para o almoço e achei que talvez você precisasse da ajuda dele. Para ser sincero, até pensei em fazer a refeição com vocês.

Certamente, capitão Hunter — disse Kelly, ten­tando esconder a apreensão. — O senhor será muito bem-vindo.

— Eu trouxe o almoço — anunciou Scott, erguendo um pesado caldeirão de ferro. — Aqui dentro está um delicioso guisado com feijão vindo do armazém da Companhia Colonização. Uma lata inteira — ele acres­centou, olhando para Kelly, que continuava no assento da carroça, e depois se voltando para Dorothy, Jeb e Patrick, que já havia descido do cavalo do guia. — O suficiente para todos.

O tom de voz do garimpeiro não mostrava nenhum desagrado com a presença de Jeb Hunter, mas Kelly já o conhecia suficientemente bem para perceber uma ten­são que não era natural no despreocupado Scott. Ela preferiu não tentar descobrir por que se sentia na ob­rigação de cuidar para que Scott Haskell e Jeb Hunter não se antagonizassem. Tinha tido a responsabilidade de cuidar dos dois homens da família durante tantos anos que achava a atitude perfeitamente natural.

— O capitão Hunter almoçará conosco — disse, di­rigindo a Scott um luminoso sorriso e um silencioso agradecimento pela compreensão dele.

Recompensando o gesto dela, a expressão de Scott imediatamente tornou-se mais cordial.

Ainda mais confuso do que alguns dias antes, quan­do havia podido observar aqueles dois, Jeb reparou na interação que havia entre Kernan e o afável garim­peiro. Havia uma definitiva e misteriosa comunicação entre os dois rapazes, algo que ia muito além da boa vizinhança. Se ele não tivesse visto nos olhos de Scott o indisfarçável interesse pelos encantos femininos de Dorothy Burnett, agora estaria quase preocupado com a possibilidade de que o garimpeiro tivesse intenções pouco naturais em relação ao jovem irlandês. Só podia ser uma ideia maluca. Afinal de contas, ele próprio havia sentido algum tipo de atração pelos irmãos Gallivan... um instinto protetor e paternal.

Mesmo assim, Jeb sentiu-se um pouco constrangido e fora de lugar enquanto Haskell assumia o controle das coisas, parecendo até que fazia parte da família Gallivan.

 

El es se deslocaram durante mais alguns minutos antes que as carroças enfilei­radas fossem parando, uma por uma.

— A carroça da frente deve ter alcançado o rio Silver — explicou Jeb. — Eu disse a eles que deveriam parar lá.

Quase no mesmo instante a mãe das gêmeas apa­receu para pegar as meninas. Kelly reparou que o po­lido sorriso que o capitão Hunter dirigiu a Dorothy Burnett não era em nada diferente daquele com que ele brindava Frank Todd, a maternal Eulalie Todd ou qualquer das outras pessoas que integravam a cara­vana. Scott, por sua vez, que se reuniu a eles logo em seguida, como Kelly já esperava, mostrou à simpática loira um sorriso cheio de charme e inclinou com cor­tesia a cabeça, indicando claramente que a admirava como uma mulher jovem e atraente. Jeb Hunter não parecia gostar tanto assim de mulher, pelo menos na opinião de Kelly. Ou talvez se considerasse numa po­sição tão elevada na caravana que não achasse correto flertar com as garotas bonitas. Fosse como fosse, era um assunto ao qual ela não dava a menor importância.

— Não quer ficar com a meninas para almoçar co­nosco, sra. Burnett? — convidou Scott, dirigindo a Do­rothy mais um de seus charmosos sorrisos.

— Será que podemos, mamãe? — perguntou Polly, saltando da carroça para o chão.

— Imagino que o seu pai esteja nos esperando para almoçar com ele, querida. John certamente ficou com saudade por não ter a companhia das duas gatinhas dele a manhã inteira.

As garotas ficaram obviamente desapontadas com a recusa, mas nenhuma delas reclamou ou insistiu no pedido. Sorrindo, despediram-se de Kelly com acenos e seguiram a mãe na direção da carroça de trás.

Scott havia posto o caldeirão no chão e preparava a pequena fogueira onde esquentaria o feijão.

— Pode acender agora, Patrick — disse, finalmente, levantando-se e limpando as mãos na calça. Reparando que Kelly ainda estava no assento da carroça ele se aproximou e ergueu as mãos. — Venha. Vou ajudá-lo a descer.

Kelly olhou rapidamente para Jeb.

— Agora já posso me arranjar sozinho, Scott.

Ignorando o protesto, o garimpeiro pôs o pé no estribo da carroça e subiu. Um minuto mais tarde estavam os dois no chão, mas não antes que Scott tivesse tempo para murmurar algumas palavras ao ouvido dela.

— É que eu gosto de ajudar você, doçura.

Ninguém mais poderia ter ouvido aquilo, mas as faces de Kelly ficaram muito quentes. Era a primeira vez que ele a chamava de "doçura" e, ao fazer aquilo quando Jeb Hunter estava presente, parecia querer dizer que tinha algum direito sobre ela. O pensamento deixou Kelly irritada. No instante em que foi posta no chão, ela empurrou o vizinho de carroça e voltou-se para Patrick.

— Deixe que eu cuidarei disso — disse, abaixando-se diante da fogueira ainda apagada e pegando a caixa de fósforos da mão do irmão.

Patrick olhou para ela com um ar de surpresa.

— Está tudo bem com você?

Kelly assentiu, concentrando-se em acender os gra­vetos que Scott havia arrumado por baixo da madeira mais grossa. Ainda sentindo as faces quentes, manteve a cabeça abaixada.

— Vá buscar um pouco de água — disse ao irmão. — Daqui a pouco a caravana vai estar outra vez em movimento e, se não aprontarmos logo a comida, te­remos que ficar com fome.

Ainda demonstrando surpresa, Patrick pegou o bal­de pendurando no lado da carroça e caminhou para o rio. De pé ali perto, Jeb observava a cena.

— Não há pressa — disse. — Num dia quente como o de hoje, os animais precisam de um bom descanso. Retomaremos a marcha daqui a algumas horas, quan­do a temperatura começar a abaixar.

A voz dele parecia querer transmitir conforto, quase como a de um adulto que lidasse com uma criança birrenta, e Kelly deu-se conta de que estava parecendo grosseira. Scott não devia tê-la chamado de doçura, mas isso não chegava a ser uma ofensa grave. E o capitão não tinha feito nada para merecer o mau hu­mor dela. Então ela ergueu a cabeça.

Foi muita gentileza sua levar Patrick na garupa do seu cavalo, capitão. É claro que ele se divertiu muito. Meu irmão sempre quis andar a cavalo, mas natural­mente era difícil surgir essa oportunidade numa cidade como Nova York.

Uma cidade grande não é um lugar muito indi­cado para um menino crescer — declarou Jeb, retri­buindo ao sorriso. — Seu irmão vai gostar do Oeste. E eu gostei muito das horas que passei com Patrick. Ele poderá ficar comigo sempre que sentir vontade.

Kelly riu.

Acho melhor não dizer isso, ou nunca vai conse­guir se livrar dele, capitão. Patrick não está nada feliz em ter que ficar o tempo todo sentado ao meu lado, na carroça.

Eu falei sério. Storm, meu cavalo, é um animal grande... Não será problema nenhum para ele carregar também o peso de Patrick. Você também poderá ex­perimentar, quando estiver com o tornozelo melhor.

Kelly viu-se atraída por mais um dos raros sorrisos de Jeb Hunter. Aquilo o transformava de um impla­cável e excessivamente responsável dirigente de cara­vana num homem que sentia satisfação em proporcio­nar alegria a um menino.

O fogo pegou, levantando labaredas. Kelly recuou e, com o canto do olhos, reparou que Scott observava a conversa dela com o capitão, dando a impressão de que não gostava daquilo.

Estendendo as mãos ela ergueu o caldeirão de feijão para pô-lo sobre o fogo. Sentia-se mais ou menos como os malabaristas que vez por outra tinha visto nas ruas de Nova York... tentando alegrar ao mesmo tempo dois homens bem diferentes. E não acreditava que aquela situação melhorasse à medida que eles fossem atra­vessando o país. Por mais que ela quisesse fazer aquela viagem sem chamar a atenção de ninguém, a desco­berta do segredo e a torção do tornozelo haviam trans­formado Scott Haskell em protetor dela. E por mais que ela quisesse ficar fora do caminho do capitão, já estava percebendo que os longos dias percorrendo a trilha ficavam mais interessantes sempre que Jeb Hunter cavalgava ao lado da carroça deles.

Havia se tornado um costume para Jeb e Patrick cavalgarem juntos, pelo menos durante uma parte do dia. Ver o musculoso guia de caravanas montando o enorme alazão branco com o garoto irlandês na garupa já era uma coisa comum para o grupo de colonizadores. E a cada dia Jeb se via passando um pouco mais de tempo na carroça dos Gallivan, demorando-se por lá para tomar mais uma caneca de café, ouvindo mais uma das interessantes histórias que Kernan contava sobre a dura vida que ele e o irmão haviam levado em Nova York.

Era mais do que evidente que existia uma cordia­lidade muito grande entre os dois irmãos, algo que se estendia também aos visitantes, em vez de excluí-los. Scott Haskell evidentemente também reparava nisso. O aspirante a garimpeiro estava sempre na carroça dos Gallivan quando Jeb aparecia por lá e nunca se mostrava muito contente com a visita do capitão, em­bora fosse difícil entender o motivo disso. Às vezes Jeb até se sentia como se ele e Haskell fossem pre­tendentes rivais à mão de uma bonita donzela.

Ao mesmo tempo que se tornava cada vez mais afei­çoado a Patrick, Jeb também sentia um crescente fas­cínio pelo mais velho dos irmãos. Agora o tornozelo de Kernan estava quase curado e ele outra vez tinha condições de circular pelas carroças vizinhas nas pa­radas noturnas. Sempre estava pronto a dizer a todos uma palavra de encorajamento, transmitindo ânimo. Uma noite ficou horas sentado diante da fogueira acesa ao lado da carroça dos Todd, escutando as reminis­cências que Eulalie tinha para contar de St. Louis. Constantemente levava as gêmeas Polly e Molly para um passeio ou alguma outra aventura, dando assim um pouco de descanso a Dorothy e John Burnett. O próprio Jeb gostava muito de quando conversava com o jovem irlandês, cujas perguntas sobre a trilha e o que eles podiam esperar na Califórnia eram sempre inteligentes e espirituosas.

Depois de se sentir atraído para a carroça dos Gal­livan pela quinta noite seguida, Jeb achou que talvez aquilo se devesse ao interesse que Kernan Gallivan sempre demonstrava. Ele vivia sozinho há tantos anos que até havia se esquecido de como era bom se sentar à noite para conversar com alguém sobre os eventos do dia.

Naquela noite, como sempre, Scott estava na carroça dos Gallivan quando ele chegou. Os Burnett também se encontravam lá, entoando canções entusiasticamen­te puxadas por Molly e Polly. Molly havia superado a timidez e demonstrava sem reservas o interesse que sentia por Patrick, mesmo diante do grupo inteiro. Sempre dava um jeito de se sentar ao lado dele e pu­xava conversa com o garoto. Nem mesmo as ocasionais brincadeiras que Polly fazia por causa daquilo dimi­nuíam seu fascínio infantil pelo irlandês.

Jeb aceitou a caneca de café oferecida por Kernan e sentou-se para participar da animada conversa. Já tinha sido o líder de seis caravanas como aquela, mas nunca havia se permitido ficar tão perto das pessoas. Sempre procurava se convencer de que não seria positivo ter uma proximidade muito grande. Achava que não devia ser fácil liderar pessoas das quais fosse amigo e, por isso, preferia a solidão. Principalmente não queria ver casais felizes, famílias cheias de esperanças planejando a nova vida no Oeste. Não queria se lembrar de quando ele e Melanie tinham feito a mesma coisa.

— Não quero ser um desmancha-prazeres, mas acho melhor interrompermos agora a reunião — disse Jeb quando o grupo terminou uma comprida canção. — Ama­nhã teremos um dia difícil e acho que seria melhor irmos dormir, assim quando amanhecer estaremos descansados.

No dia seguinte eles atravessariam para o lado norte do rio Kansas, que vinham acompanhando desde a partida de Westport. Seria o primeiro teste mais difícil para aquele grupo de colonizadores.

— Posso ir no cavalo com o senhor, capitão? — per­guntou Patrick, ansioso.

Jeb balançou a cabeça.

Infelizmente não, Patrick. O dia inteiro vou ter de ficar à disposição para ajudar o pessoal no que for preciso. Storm será muito exigido e certamente sentirá o peso extra. Além disso, quero que você esteja na carroça com seu irmão quando chegar a hora de atra­vessar o rio.

Acha que teremos problemas na travessia, capi­tão? — perguntou Kelly.

— Nada muito sério. Mantendo-se o tempo bom, o nível do rio estará baixo. Mesmo assim, atravessar um rio com a largura do Kansas é sempre um desafio. Amanhã você entenderá por que eu insisti para que a carroça de vocês tivesse a carga aliviada.

Kelly engoliu o sentimento de culpa. Aquela altura, ela e Patrick já haviam arrumado e rearrumado a vo­lumosa bagagem, até finalmente terem algum espaço para dormir na carroça. Mas sabia que o guia da ca­ravana não fazia ideia de como a carga que eles leva­vam era pesada. Pensou até em revelar isso a ele, mas mudou de ideia. Os quatro bois que puxavam o veículo já tinham dado provas de resistência, embora fossem vagarosos. Conseguiriam atravessar o rio.

Patrick olhou para ela com uma expressão de an­siedade, como se ele também estivesse preocupado com o excesso de carga da carroça. Levantando-se, Kelly chegou perto do irmão e apertou o ombro dele, que­rendo transmitir ânimo.

—Certamente será um dia excitante — disse, numa voz deliberadamente alegre.

Patrick virou a cabeça e olhou para ela.

— Não acha que...

Kelly apertou novamente o ombro dele, impedindo-o de terminar a pergunta.

— O que eu acho é que vai dar tudo certo — garantiu. As outras pessoas em volta da fogueira foram se levantando. John Burnett, um homem magro, sério e calado, mas que olhava para a esposa e para as filhas com o carinho de um urso protetor, pegou Polly e Molly pela mão.

— Acha que será seguro atravessarmos o rio com todas as pessoas dentro das carroças, capitão? — per­guntou. — Talvez seja melhor eu primeiro carregar minhas filhas, uma por uma.

Jeb balançou a cabeça.

— Como eu disse, o nível do rio estará baixo — repetiu, para tranquilizar o sulista. — Desde que man­tenhamos a ordem e todos sigam as instruções, alcan­çaremos a outra margem sem nenhum problema. Não precisaremos nem molhar os pés.

John assentiu, mostrando acreditar no que dizia o guia. Depois de murmurar um boa-noite formal para Scott, Kelly e Patrick, voltou-se e começou a caminhar para a própria carroça com as duas meninas.

— Até amanhã, pessoal — despediu-se Dorothy, com aquele sorriso cheio de encanto e que contrastava tanto com a seriedade do marido.

Jeb esperou durante algum tempo para ver se Haskell se retiraria. Como o garimpeiro não parecia ter pressa, também se despediu e saiu caminhando ao lon­go da fila de carroças.

Scott esperou até que o capitão desaparecesse na escuridão e voltou-se para Kelly.

Não gosto de pensar em você tendo que controlar aqueles animais para atravessar o rio.

Eu consegui controlá-los direitinho até aqui — ela respondeu, cheia de confiança. — Não sei por que a travessia do rio poderá ser diferente.

Scott aproximou-se um passo. Depois olhou para Patrick, que também havia se levantado mas conti­nuava ali.

— Patrick, meu rapaz, por que não vai dar uma última olhada nos animais para ver se está tudo em ordem? Deixe-me conversar com sua irmã por um minuto.

Patrick pareceu surpreso por ser excluído daquele jei­to, mas logo depois mostrou um sorriso bem-humorado.

Você pode conversar o quanto quiser com minha irmã, mas não está pensando em fazer nenhuma gra­cinha com ela, não é? Ela é um rapaz, lembra-se? Não ficaria bem.

Patrick! — exclamou Kelly.

Ela não sabia se estava mais aborrecida por ficar sa­bendo que o irmão pensava aquelas coisas ou pela pos­sibilidade de que ele estivesse certo ao sugerir que Scott queria ficar a sós com ela com objetivos românticos.

— É isso mesmo, Kelly! — persistiu Patrick. — Ele sempre fica com aquele olhar apatetado quando olha para você, exatamente como Mickey Flanagan ficava.

Scott Haskell coçou o queixo, parecendo não saber se devia rir ou fazer cara feia.

— Vá andando, garoto — disse, finalmente. — Não vai acontecer nada demais por aqui. Só quero conversar um pouco com Kelly.

Patrick afastou-se, contornando a carroça, e Scott olhou novamente para Kelly.

— Não fique outra vez toda ouriçada com o que vou dizer, garota, mas o fato é que nem você nem seu irmão têm força suficiente para conduzir os quatro bois na travessia do rio. Estou pensando em levar a minha carroça e depois voltar para levar a de vocês.

Kelly percebeu que aquela oferta, exatamente como tudo o mais que Scott tinha feito por eles desde o primeiro dia da viagem, tinha a única intenção de aju­dar. No entanto, outra vez ficou ressentida com a sugestão de que não teria condições de fazer um trabalho apenas por ser mulher. Havia prometido, perante o caixão do pai, que ela e o irmão transformariam em realidade o sonho dele. Se tivesse que quebrar os dois braços para conseguir que os bois atravessassem o rio, faria exatamente isso.

— Nós conseguiremos — disse, com os lábios apertados.

Aquela altura Scott já sabia que não adiantaria nada discutir.

Está certo — disse, suspirando. — Mas é bom que Patrick esteja sempre sentado ao seu lado, para ajudar no que for preciso.

Não sei em que outro lugar ele vai poder ficar se quiser atravessar o rio. Patrick nunca aprendeu a nadar.

Kelly agora procurava falar num tom leve, mas a preocupação por causa do excesso de peso na carroça estava mais forte.

— Se mudar de ideia, terei muito prazer em ajudar. A luz fraca da fogueira, que já estava se apagando, a expressão de Scott sofreu uma mudança. Subitamen­te pareceu que ele queria mesmo fazer alguma "gra­cinha", como tinha dito Patrick. Kelly recuou um passo.

— Não vou mudar de ideia. Agora acho melhor irmos dormir, como o capitão Hunter sugeriu.

Scott continuou a fitá-la por um longo momento, depois segurou a mão dela.

— Está certo — disse, virando a mão de Kelly para depositar um beijo na palma. — Durma bem, garota.

Antes que ela pudesse recuperar a voz para dizer alguma coisa, ele se voltou e retirou-se para a própria carroça.

 

O rio Kansas corria calmamente, atravessando a pradaria como se fosse melaço derramando-se de um pote. Largo e tranquilo na maior parte de seu curso, em alguns pontos, onde encontrava uma passagem mais estreita, dançava por cima de pedras e troncos de árvore caídos, cheio de energia, apenas para voltar a deslizar calmamente logo adiante.

Jeb escolheu um dos mais tradicionais pontos de travessia. Nas duas margens, a relva amassada ou morta era uma prova do tráfego constante de carroças. Se as chuvas de primavera tivessem sido normais, as margens estariam perigosamente escorregadias por causa do lodo. Nesse caso, Jeb teria preferido continuar rio acima, buscando algum ponto de travessia menos usado. Com o tempo seco, porém, a travessia naquele ponto não ofereceria perigo.

Sempre era necessário um dia inteiro para que todas as carroças chegassem à outra margem do rio. Ele nunca deixava que mais de duas carroças atravessas­sem ao mesmo tempo, já que queria observar de perto, pronto para ajudar no que fosse necessário. E fazer isso com cinquenta carroças era uma tarefa que con­sumia muitas horas.

Tendo se levantado antes de raiar o dia, Jeb comeu alguns biscoitos e uma caneca de café dormido. Não havia tempo a perder acedendo uma fogueira. Ele ha­via pedido a Frank Todd que fosse o primeiro a fazer a travessia, para ver como estava o leito do rio ali. Para se certificar disso, Jeb cavalgaria ao lado da car­roça. Já havia passado naquele local algumas vezes, mas não era raro o rio apresentar mudanças.

Depois de se alimentar ele pôs a sela e os arreios no cavalo. Logo depois montou e foi verificar se as pessoas das primeiras carroças já estavam de pé, pre­parando-se para a travessia. Tinha dito àquelas que ocupavam as carroças do fim da fila que naquele dia poderiam dormir até mais tarde. Muitas horas se passariam antes que chegasse a vez delas. Era o caso dos Burnett, dos Gallivan e de Scott Haskell, que haviam passado para o fim da fila apenas alguns dias antes. Apesar de ainda ser muito cedo, porém, Jeb viu que Patrick Gallivan já estava de pé, dando água aos bois que puxavam a carroça deles. Não resistiu ao impulso de se aproximar para desejar bom-dia ao garoto.

— Vou sentir sua falta na garupa do meu cavalo, filho — disse, quando chegou perto.

Patrick sorriu para ele e deu uma palmadinha no traseiro de um dos enormes bois.

Bem que eu queria poder trocar este aqui por um cavalo. Assim poderia cavalgar com o senhor o tempo todo.

Deixando que o seu irmão tivesse sozinho o tra­balho de conduzir a carroça? — ralhou Jeb, de bom humor.

O sorriso do menino foi desaparecendo.

Tem razão. Acho que não seria direito.

Você poderá cavalgar comigo amanhã, depois da travessia.

O pessoal da frente já está se preparando para entrar na água? — perguntou o garoto, agora com an­siedade no rostinho bonito. — Será que eu posso ir com o senhor até a margem do rio, capitão? Gostaria de ver o início da travessia.

Jeb sorriu, lembrando-se da primeira vez em que tinha visto a travessia de um rio. Havia sentido a mesma excitação que agora via no rosto de Patrick. Melanie tinha ficado petrificada, ele se lembrava muito bem. Ha­via apertado as mãos dele com muita força, chegando a ferir a pele dele com as unhas. Os ferimentos acabaram se transformando em cicatrizes que demoraram muitos meses para desaparecer. Recentemente ele havia pro­curado aquelas marcas, sem, no entanto, encontrá-las.

Bem, não tinha importância. Levava dentro do peito cicatrizes que nunca desapareceriam.

A súbita lembrança desmanchou por completo o bom humor de Jeb, que se mexeu na sela.

— Seu irmão já se levantou?

— Não.

A ansiedade que antes havia nos olhos de Patrick também não estava mais lá, certamente por ele ter percebido a mudança de expressão de Jeb.

— Então é melhor você ficar aqui, até que ele se levante. Os Todd começarão a travessia dentro de al­guns minutos, mas haverá tempo de sobra para que você veja outras carroças entrando na água. Isso nos tomará o dia todo.

— Então posso ir até lá assim logo que meu irmão se levantar?

Jeb procurou refazer o sorriso.

— Pode, sim. Apenas procure ficar afastado das car­roças quando elas estiverem descendo o barranco perto da margem do rio. Ele é bem íngreme e este será o primeiro bom teste para os freios de algumas delas.

— Tomarei cuidado. Jeb assentiu.

— É assim que se fala, garoto.

Enquanto levava o cavalo de volta ao início da fila, ele estava outra vez com uma expressão solene no rosto.

Os outros membros da caravana acabaram demons­trando um interesse parecido com o de Patrick, já que para muitos aquela seria a primeira travessia de um rio. Depois que Jeb foi e voltou sozinho várias vezes, finalmente considerando satisfatória aquela passagem, reparou que o barranco estava cheio de espectadores que queriam ver a enorme carroça dos Todd atraves­sando o rio.

Kelly e Patrick tinham ido até lá a pé, acompanhados por Scott e pelos Burnett. Havia um ar festivo no ar. Afinal de contas, atravessar o rio Kánsas repre­sentava uma mudança em relação aos quilómetros e quilómetros percorrendo a pradaria em meio a uma nuvem de poeira.

— Na hora do almoço poderíamos fazer um pique­nique aqui neste barranco — sugeriu Kelly, em tom alegre, o que fez Scott rir.

— Não acha que esta viagem já está sendo um pi­quenique com duração de alguns meses? — perguntou.

— Temos comido ao ar livre em todas as refeições. Kelly não se abateu.

— Pode ser, mas hoje é um dia diferente. Pode­mos fazer uma festinha. Eu prepararei uma jarra de limonada.

A maioria da carroças havia começado a jornada com uma boa quantidade de açúcar, mas o precioso suprimento de limões só duraria mais alguns dias. As­sim sendo, excetuando-se uma ou outra ocasião espe­cial, quando se dariam ao luxo de fazer um refresco com essências mais caras, logo eles teriam que se con­tentar em beber água pura.

— Podemos também abrir um pacote de biscoitos doces e uma lata de bombons de licor — acrescentou Patrick, com entusiasmo.

— Viva! — exclamou Polly, começando a saltitar, no que previsivelmente foi acompanhada pela irmã.

— Um piquenique!

— Sim, um piquenique! — fez eco Molly. Dorothy abriu um sorriso indulgente.

— Parece que vamos ter que fazer um piquenique hoje, amigos — disse, levantando-se e sacudindo a saia, naturalmente com mais recato do que as filhas. — Vou voltar à nossa carroça para ver em que poderei contribuir para a comida.

Kelly imitou a vizinha, levantando-se.

— Também vou.

Quando Scott e John começaram a se erguer, Dorothy abanou a mão para eles.

— Vocês podem ficar aqui no barranco, tomando conta das crianças. Daqui a meia hora, mais ou menos, vão até onde estão nossas carroças para ajudar a trazer a comida do piquenique.

Dorothy sempre deixava Kelly muito à vontade. Nem parecia ter importância o fato de que a simpática mu­lher a considerava um homem. Conversava com Kelly com tanta naturalidade que até parecia que elas eram amigas de infância.

As duas iam caminhando calmamente ao longo da fila de carroça quando um grito fez com que Kelly olhasse para trás. Uma carroça havia parado logo depois de entrar no rio e Jeb Hunter cavalgava em volta dela, tentando descobrir o que a impedia de seguir. Virando-se para o lado para examinar de per­to uma das rodas do veículo, ele ficou praticamente pendurado na sela. Com o movimento, a barra da camisa dele escapou da calça, na parte de trás, e Kelly corou levemente ao ver uma parte das mus­culosas nádegas do capitão. Com o canto do olho, viu que Dorothy Burnett também observava o guia da caravana, demonstrando vivo interesse. Kelly sur­preendeu-se com aquilo. Afinal de contas, Dorothy era uma mulher casada!

Logo depois elas retomaram a caminhada.

— É sorte nossa termos o capitão Hunter como guia — disse a loira, com naturalidade, sem fazer menção ao interesse feminino que Kelly tinha visto nos olhos dela.

— Acho que sim — disse Kelly, hesitante. Dorothy parou e olhou para ela.

— Acha? Pois eu tenho certeza! Ele é realmente um dos melhores. Dizem que nunca perdeu uma carroça nas muitas caravanas que já liderou. E, o que é mais importante, nunca perdeu uma vida.

Bem, ele parece ser consciencioso no trabalho que faz.

Mais do que consciencioso. No armazém da Companhia de Colonização, ouvi comentários segun­do os quais Jeb Hunter morreria antes de deixar que alguma coisa errada acontecesse com alguém que estivesse integrando uma caravana sob a responsa­bilidade dele.

As vezes ele podia ser um pouco mais afável — opinou Kelly, lembrando-se da ocasião em que, na pre­sença dela, o capitão havia deixado bem claro para Scott Haskell que queria que suas ordens fossem cum­pridas sem discussão.

Elas estavam chegando à carroça dos Gallivan e Kel­ly parou. Continuando a andar, Dorothy olhou para trás para encerrar a conversa.

— Não me importo se ele é afável ou não, desde que leve minha família em segurança através do país.

Perto das cinco da tarde, a maior parte da cara­vana já tinha feito a travessia do rio. Na outra mar­gem, viam-se carroças estacionadas por todos os la­dos, sem que ninguém se preocupasse em manter a fila. As pessoas haviam retirado parte da carga de muitas delas, deixando os volumes molhados ao sol para que secassem.

Patrick e as gêmeas Burnett haviam passado as duas últimas horas correndo e brincando por ali, es­perando a hora em que atravessariam o rio. Kelly não esperava com a mesma ansiedade a vez dela. Quanto mais a carroça se aproximava do rio, mais pesada ela achava a carga que estava levando. Ao longo do dia tinha observado que as carroças com pouco peso atra­vessavam o rio sem dificuldade, enquanto as mais pesadas geralmente ameaçavam atolar. Por isso, rezava para que o excesso de peso na deles não causasse ne­nhum problema. Não tinha a menor dúvida de que Jeb Hunter ficaria furioso se descobrisse que eles não haviam cumprido a ordem dele de se desfazer de parte da bagagem.

Como se fosse atraído por aqueles pensamentos, su­bitamente o capitão apareceu na carroça deles. Estava com as roupas ensopadas, mas não parecia nem um pouco cansado depois de um dia de intenso e duro trabalho.

— Imagino qué não tenha comido nada o dia inteiro, capitão.

As palavras partiram dos lábios de Kelly antes mes­mo que ela pudesse pensar no que testava dizendo. E provavelmente aquela não devia parecer uma pergunta muito masculina.

Jeb não deu mostrar de estar muito preocupado com a falta de alimentação.

— Comerei à noite — disse, abanando a mão. Era evidente que estava concentrado unicamente no tra­balho. — Estão prontos para a travessia, rapazes? Amarraram tudo direitinho?

Patrick dispôs-se a responder, com entusiasmo na voz.

— Fizemos exatamente como o senhor mandou, ca­pitão. Não se preocupe conosco. Nossa carga está tão firme quanto estaria no porão de um navio.

Jeb sorriu para ele e moveu a cabeça em aprovação.

— Otimo. Apenas não puxem demais as rédeas. Dei­xem que os animais encontrarão o caminho. Segurem com firmeza, mas sem exageros. — Voltando os olhos de Patrick para Kelly, ele hesitou por alguns instantes. Depois voltou a falar. — Tem certeza de que não quer que eu peça a um dos homens mais fortes para ir aí com vocês?

— Nós conseguiremos controlar os bois, capitão — ela respondeu, tensa.

— Está certo — disse Jeb, fazendo o animal se voltar. — Haskell e vocês serão os próximos.

Segurando as rédeas, Kelly reparou que estava com as mãos muito brancas. Por favor, não deixem que a carroça atole, suplicou silenciosamente aos quatro bois. Ela e Patrick ficaram olhando enquanto a carroça de Scott alcançava a beira do barranco e balançava para os lados na descida. Viam os freios de madeira com­primindo-se contra as rodas traseiras enquanto o veí­culo deslizava para descer a pequena elevação e co­meçava a entrar na água. Kelly soltou a respiração, que havia prendido sem perceber, quando a carroça do vizinho deles se aprumou e foi se deslocando va­garosamente, penetrando em águas mais profundas.

Scott pôs a cabeça no lado da cobertura do veículo, olhando para trás, e sorriu para eles.

— É muito fácil! — gritou.

— Muito fácil para uma carroça só com a metade da carga, como a sua — murmurou Kelly.

Jeb estava no meio do rio. A água ali alcançava os flancos de Storm, mas o animal mantinha-se firme­mente parado contra a corrente.

— Pode vir agora, Gallivan! — gritou o capitão, fa­zendo um gesto para que eles iniciassem a descida do barranco.

— Segure o freio com firmeza — disse Kelly a Pa­trick, muito tensa.

— Já estou segurando.

Frank Todd e alguns outros homens serviam de guias para incitar algum animal que relutasse em descer o barranco. Quando Kelly sacudiu as rédeas, Frank aproximou-se do boi que liderava os outros e deu uma firme palmada no traseiro do animal. Com seu andar desajeitado, os quatro bois começaram a descer o barranco com a carroça sacolejando atrás de­les. Kelly trincou os dentes, segurando as rédeas com firmeza.

— Vocês estão se saindo bem, rapazes! — gritou Jeb, encorajando-os.

A carroça de Scott já havia alcançado a parte mais funda, no meio do rio, e parecia trafegar com facilidade.

Kelly e Patrick balançaram-se violentamente quan­do primeiro as rodas dianteiras da carroça começaram a descer o barranco, depois as traseiras.

— O freio, Patrick! — gritou Kelly, sentindo um enorme alívio quando o veículo passou a trafegar com as quatro rodas no leito do rio. Então Patrick soltou o freio. A carroça aprumou-se e continuou vagarosa­mente pelo leito cheio de pequenas pedras.

Kelly arriou os ombros, subitamente fraca por causa do alívio de tensão. O barranco no outro lado do rio era bem mais suave e subi-lo não seria uma tarefa tão difícil quanto a descida que eles acabavam de fazer. Se a carroça havia descido sem tombar, não seria com­plicação nenhuma subir aquela leve elevação.

Os bois marchavam passivamente diante deles, alheios à água que corria em volta, agora alcançando o meio das pernas deles. A carroça estava quase no meio do rio quando a velocidade começou a diminuir, as rodas do veículo provavelmente se atolando. Fi­nalmente os animais se recusaram a prosseguir e o veículo parou.

— Use o chicote, Gallivan — gritou Jeb, virando o cavalo e partindo na direção deles.

Kelly aprumou-se no assento e sacudiu as rédeas. Patrick pegou o pequeno chicote no gancho embaixo do banco e estalou-o por cima dos animais, mas sem tocá-los. O barulho era suficiente para assustar, mas os bois não saíram do lugar.

— Bata de leve no traseiro deles — sugeriu Kelly.

— Acho que não vai machucar — acrescentou, vendo a expressão de dúvida do irmão.

Erguendo o braço fino, ele açoitou com o chicote no boi que estava mais perto. No mesmo instante o animal se projetou para o lado, puxando os outros e ameaçando o equilíbrio da carroça. O sobrecarregado veículo virou para a direita, depois inclinou-se precariamente para a esquerda. Kelly ouviu um forte barulho enquanto a roda dianteira esquerda se quebrava por baixo deles. Logo depois, horrorizada, viu Patrick deslizar no assento para cair na água.

 

Mesmo de longe, Jeb teve certeza de que a carroça dos Gallivan carregava muito mais peso do que as outras que já haviam atravessado o rio. Peso demais para os quatro bois. E o que mais temia se confirmou quando ele viu os animais empaca­rem tão logo as rodas do veículo começaram a afundar no leito fofo do rio. Os experientes homens que traba­lhavam para Boone sabia exatamente que carga um gru­po de quatro, seis ou até oito bois podia arrastar. Cer­tamente não haviam sobrecarregado a carroça dos ra­pazes. Isso significava que os Gallivan não haviam se livrado de parte da carga que haviam trazido de Nova York, deixando de seguir a orientação dele.

Ele já estava cavalgando na direção dos irlandeses, ao mesmo tempo furioso e preocupado, quando os bois começaram subitamente a se movimentar, fazendo com que a carroça se inclinasse para o lado e o mais jovens dos Gallivan caísse no rio.

Como sempre, o pânico diante do perigo que corria uma das pessoas sob a responsabilidade dele ameaçou dominá-lo. Também como sempre, ele expulsou aquela sensação, obrigando-se a manter a calma. Storm já havia passado praticamente o dia todo dentro da água. Abençoado animal que era, porém, não demonstrava o menor cansaço. Projetou-se para a frente, obedecendo ao comando do dono e alcançando a carroça dos Gal­livan em questão de segundos. Àquela altura, porém, a correnteza já havia arrastado o corpo leve de Patrick vérios metros rio abaixo, afastando-o da carroça.

Jeb olhou para carroça meio tombada, em cujo ban­co Kernan continuava sentado, com os olhos azuis arregalados.

—Ele não sabe nadar — gritou o irlandês.

Logo depois, antes que Jeb pudesse orientá-lo para ficar onde estava, o rapaz pôs os pés na beirada do assento e saltou para a água, indo na direção do irmão.

Por um instante Jeb ficou parado, paralisado diante da estupidez do irlandês. Agora, em vez de um garoto para ser retirado da água, havia dois. Pelo menos Ker­nan sabia usar suficientemente bem a corrente, em vez de lutar contra ela, concluiu Jeb, de pronto, ob­servando enquanto o rapaz mais velho rapidamente alcançava o irmão. Balançando a cabeça e ainda lu­tando contra aquela sensação de pânico, ele fez Storm descer a corrente. Olhando para o barranco, viu que Frank Todd e os outros corriam na mesma direção.

— O que vamos fazer? — gritou Frank para ele.

Jeb balançou a cabeça. O rio era bem espaçoso ali, e sem obstáculos. Se deixados ali, os dois rapazes poderiam boiar até o Missouri. Mas a vantagem era que não ha­veria no caminho nada que pudesse machucá-los. Sabia que eles se manteriam à tona até que fossem resgatados. Não seria a primeira vez que, durante uma travessia de rio, ele retiraria da água um passageiro ensopado. O complicado era ter de tirar dois deles ao mesmo tempo. Era uma sorte os dois Gallivan serem leves.

Agradecendo a Deus pela firmeza do cavalo, Jeb di­rigiu-se à margem do rio. Lá chegando, fez com que o animal partisse galopando rio abaixo, até ultrapassar os garotos em mais de tinta metros. Depois apontou o cavalo novamente para o meio da água, calculando o ângulo para poder alcançar os irlandeses a tempo de impedir que eles continuassem a ser levados pela correnteza. Kernan havia alcançado Patrick e os dois estavam abraçados. Quando alcançou o ponto por onde os dois deveriam passar, Jeb obrigou Storm a parar.

— Calma, rapaz — disse ao cavalo. — Prepare-se para um choque.

Rapidamente tirou do estribo um dos pés, passou a perna por cima do animal e saltou para a água, deci­dido a ficar ali até que os garotos se chocassem contra eles. Havia o perigo de que o choque derrubasse na água tanto Storm quanto o próprio Jeb, mas a urgência não permitia que ele pensasse num plano melhor. Os dois continuavam a ser trazidos pela cor­renteza na direção deles, numa velocidade que parecia aumentar. Jeb preparou-se e, com os pés plantados no leito do rio, no instante do choque empurrou com força o cavalo na direção contrária à do deslocamento dos rapazes. Storm cambaleou um pouco, mas manteve-se de pé. Jeb pendurou-se na sela, enquanto os dois rapazes faziam o mesmo no outro lado, o que funcionou como uma balança.

Patrick debatia-se, em pânico, agarrando firmemen­te no braço de Jeb. Parecendo mais controlado, Kernan segurava com firmeza na sela, sem dar trabalho à Jeb. Depois de alguns segundos e com certo esforço, Jeb conseguiu fazer com que o garoto montasse na garupa do cavalo, onde já estava acostumado a ficar. Depois voltou a atenção para Kernan, que agora estava do­brado de barriga sobre o cavalo, na frente da sela, com uma das mãos no braço de Jeb.

— Ele está bem? — perguntou o mais velho dos Gallivan, num tom muito agudo.

Quando o jovem irlandês olhou para a retaguarda do cavalo, Jeb viu o rosto dele, agora limpo, a não mais de quinze centímetros de distância. Examinando os braços e o corpo do rapaz, arregalou os olhos ao ver a ensopada camisa colada a um par de seios de­cididamente femininos.

No mesmo instante Kelly viu o espanto que assomou ao semblante do capitão. Imediatamente voltou à po­sição de antes, emborcando-se para baixo e rezando para estar enganada sobre a súbita revelação que tinha visto nos olhos de Jeb Hunter. Mas sabia que estava numa situação desesperadora. O corpo feminino estava esparramado sobre o cavalo, sendo tocado pelas costas da mão dele em alguns pontos. E a mão dela, de dedos muito finos, agarrava a camisa dele. O folgado paletó do pai tinha sido levado pela correnteza. Agora só res­tava a apertada calça de Patrick e a camisa, que, toda molhada, devia estar colada à pele. Não faria muita diferença se ela estivesse nua.

Kelly ficou esperando por uma explosão, mas Jeb simplesmente pôs o pé no estribo e subiu à sela. Logo depois virou o cavalo para o lado do rio. Patrick não parava de tossir e Jeb olhou para trás.

Você está bem, garoto? — perguntou, numa voz tensa e enraivecida.

Estou — respondeu o garoto, procurando contro­lar a tosse.

Kelly começou a se voltar, procurando sair da des­confortável posição.

Fique onde está! — vociferou Jeb.

A nossa carroça...—começou Patrick, numa voz cheia de preocupação.

A carroça de vocês está com a roda quebrada — cortou Jeb. — Estava levando peso demais.

Tanto Patrick quanto Kelly ficaram em silêncio du­rante o resto do trajeto até a margem do rio. Quando eles chegaram ao barranco, Jeb ergueu Kelly pelo braço e depositou-a no chão, sem a menor cerimônia. Depois voltou-se para trás e, com um pouco mais de cuidado, ajudou Patrick a descer do cavalo. Finalmente des­montou, sempre com os olhos fixos em Kelly, que es­tava de pé, trémula de frio, com as roupas coladas ao corpo. Desolada, ela olhava para o rio, lamentando o paletó ter sido levado pelas águas. Se estivesse coberta pelo paletó, ela não ficaria tão exposta ao olhar de Jeb Hunter.

Pouco depois Scott Haskell aproximou-se.

— Você está bem? — perguntou, pondo um cobertor por cima dos ombros dela.

— Estou — respondeu Kelly, dirigindo a ele um olhar de gratidão.

Várias outras pessoas se aproximaram, mas Kelly não reparava na presença de ninguém mais. Toda a atenção dela estava concentrada nos olhos castanhos de Jeb Hunter. Alguém apareceu com um cobertor para Patrick.

— Desculpe — disse Kelly, finalmente, olhando para o capitão e tentando quebrar o silêncio.

— Parece que você tem bons motivos para pedir desculpas.

A frieza na voz do capitão fez com que ela sentisse um arrepio.

Não é hora para isso, Hunter — intrometeu-se Scott. — Esses dois devem estar mortos de frio. Pre­cisam se aquecer. Depois você conversará com eles.

Imagino que você tinha conhecimento disso, Haskell — disse Jeb, enraivecido, fazendo um gesto na direção de Kelly, obviamente se referindo às obvias caracterís­ticas femininas que agora ela demonstrava ter.

Eu sabia que Kelly era uma mulher, se é isso o que você está querendo dizer — respondeu Scott, com toda calma. — Só que não vi necessidade em chamar atenção para o assunto.

—Kelly, é? Então até mesmo o nome era uma mentira?

—A caravana não aceita mulheres desacompanha­das — defendeu-se Kelly.

Agora que o pavor estava superado e ela sentia al­gum calor proporcionado pelo cobertor, via-se com um pouco mais de condições para enfrentar a raiva de Jeb Hunter. Já havia previsto uma difícil confrontação com o guia da caravana caso o disfarce dela fosse desco­berto. Bem, a hora havia chegado. E ela estava disposta a morrer, se fosse preciso, mas não deixaria que nin­guém a obrigasse a fazer o caminho de volta.

— Tem razão — concordou Jeb. — A caravana não aceita mulheres desacompanhadas. E com muitas e boas razões.

Kelly apertou com mais firmeza o cobertor em volta dos ombros, recuou um passo e olhou diretamente nos olhos de Jeb Hunter.

—Eu teria muito interesse em ouvir essas razões, capitão, mas no momento estou mais preocupada em vestir roupas secas e arranjar um jeito de tirar minha carroça do meio do rio. Portanto, se me dá licença...

Assim que acabou a frase, a irlandesa virou as costas para ele e subiu o barranco, muito miúda e molhada, o pesado cobertor arrastando no chão às costas dela. Jeb sentiu uma torção nas entranhas. Uma mulher. Diabo! Que transformação. Uma mulher sozinha na caravana dele. E não uma mulher como outra qual­quer... Aquela mulher não obedecia ordens e tinha uma teimosia sem tamanho. Era uma mulher cujo acam­pamento ele havia querido visitar noite após noite. Uma mulher, de alguma inexplicável forma, já havia conseguido se insinuar furtivamente no buraco negro que era o coração dele.

A avaria na carroça dos Gallivan significava que a travessia do rio não se completaria naquele dia. As poucas carroças que ainda esperavam na margem sul do rio prepararam seu próprio acampamento para pas­sar a noite. Quase todos os homens da caravana se ofereceram para ajudar Jeb, Scott, John Burnett e Pa-trick na monumental tarefa de esvaziar a carroça ava­riada. Quando Kelly entrou no rio com a intenção de participar do trabalho, Jeb segurou rudemente nos om­bros dela, obrigando-a a voltar-se e empurrando-a para a terra.

—Os homens cuidarão disso! — esbravejou. — Só me falta agora você tropeçar nesse tornozelo machu­cado. E desta vez certamente haveria uma fratura.

Kelly olhou para Scott, em busca de apoio, mas pela primeira vez ele se mostrou de acordo com o guia da caravana.

—Fique lá no barranco, Kelly — sugeriu. — Você pode ir organizando as caixas e os mantimentos que levarmos para lá.

Assim sendo ela teve que permanecer na margem do rio, seca e aquecida, enquanto os companheiros de viagem do sexo masculino se entregam àquela sequên­cia interminável de idas e vindas, até que a última das caixas com as coisas dela foi levada para o bar­ranco. Foram horas mortificantes, durante as quais não ajudaram em nada os fulminantes olhares que Jeb Hunter dirigia a ela cada vez que se aproximava. Aquela altura ele já sabia exatamente a quantidade de coisas que ela e Patrick haviam atulhado dentro da carroça. Ainda não tinha feito nenhum comentário sobre o assunto, mas Kelly estava certa de que isso acabaria acontecendo.

Finalmente Frank e Scott levaram para a água o grupo de seis bois dos Todd, que foram atrelados aos quatro dos Gallivan. Para facilitar o trabalho dos ani­mais, vários homens se juntaram para empurrar a carroça na parte de trás. Depois de quarenta minutos de muito esforço, o veículo avariado foi arrastado para a margem norte do rio.

Kelly ficou olhando, sem poder fazer nada, mordendo o lábio e tentando controlar as lágrimas. Estava tão preocupada que nem reparou na aproximação de Eulalie Todd e Dorothy Burnett. A mais velha das duas mulheres pôs a mão confortadora no ombro dela.

— Não foi culpa sua, doçura.

Aquelas palavras cheias de simpatia quase a fizeram chorar de verdade, mas Kelly controlou-se.

— Foi, sim. O capitão me disse que não devia tirar a carga em excesso da carroça, mas eu não dei ouvidos a ele.

Eulalie abraçou-a.

—O que importa é que você e seu irmão estão bem. Quando você estiver com a minha idade, vai perceber que as coisas não têm significado nenhum... são as pessoas que importam.

— Mas eu estou causando problemas a todos... Dorothy aproximou-se pelo outro lado e passou o braço em volta da cintura dela. Kelly viu-se impren­sada entre as duas mulheres, como um bebe que pre­cisasse de muita proteção.

—Você ajudou muitas pessoas da caravana. Elas ficarão felizes em poder retribuir os favores, Kernan. Isto é... — A mãe das gêmeas riu. — Seu nome é Kelly, não é?

Kelly abaixou a cabeça, amargurada.

— E, sim. Sinto muito por ter enganado a tantas pessoas... principalmente vocês duas. Eu queria lhes contar.

A resposta da suave Eulalie, dada numa voz cheia de ênfase, chegou a surpreendê-la.

— Bem, se não fizessem essas normas ridículas que proíbem as mulheres de ter acesso a muitas coisas que elas são perfeitamente capazes de fazer, você não teria se metido nessa enrascada.

Não sabemos por que você tomou essa atitude, Kelly — concordou Dorothy. — E devo dizer que sempre achei que você era prestativa e boa demais com minhas me­ ninas para ser um homem — acrescentou, rindo.

Agradeço muito pela amizade de vocês — declarou Kelly às duas mulheres. — No entanto, acho que o guia da caravana não terá a mesma tolerância. — Nes­se ponto ela suspirou. — Agora ele tem uma boa razão para ficar furioso comigo.

Com o crepúsculo de fim de primavera, a claridade logo desapareceu. Além disso, os homens que traba­lhavam na carroça dos Gallivan ainda não haviam jantado. Jeb agradeceu pela ajuda e disse que na manhã seguinte eles terminariam o conserto da car­roça e levariam para lá as que ainda estavam na margem oposta. Kelly murmurou agradecimentos en­quanto eles iam se dispersando, cada um tomando o rumo de sua carroça, mas a maioria preferiu não responder. Os olhares não eram exatamente hostis, mas ficou óbvio que eles não se sentiam muito à vontade em vê-la usando roupas masculinas, agora que já se sabia que ela era uma mulher.

Patrick havia ajudado a descarregar as caixas, mas sem demonstrar o seu costumeiro entusiasmo. Parecia pequeno, de crista caída, e Kelly sabia que o irmão se sentia tão culpado quanto ela. No mesmo instante de­sejou que eles estivessem de volta a Nova York, sem nunca ter ouvido falar na Companhia de Colonização do Oeste ou na Califórnia. Talvez o pai deles ainda estivesse vivo se não tivessem resolvido fazer uma via­gem tão árdua. Kelly sabia que aquele pensamento era louco, mas no momento estava desesperançada de­mais para ser lógica.

Scott aproximou-se com um prato de feijão com carne charqueada.

— Você não comeu nada, garota — disse, com brandura.

Pelo menos, aquele era um homem que não olhava para ela como se estivesse vendo um capricho da na­tureza. Kelly dirigiu a ele um sorriso de gratidão. De­pois olhou para o prato e balançou a cabeça.

— Não quero comer nada.

Scott pegou na mão dela e levou-a até um grosso tronco de árvore que havia na borda do barranco.

— Você está cansada demais para saber o que quer, Kelly. E precisa comer. Sente-se — disse, apontando para o tronco.

Era mais fácil fazer como ele dizia. Assim sendo, Kelly sentou-se, esforçando-se para engolir um pouco do feijão quase frio.

—Obrigada — murmurou.

Scott pôs o pé no tronco e inclinou-se para o lado dela.

— Achei que devia avisá-la, garota. Jeb Hunter está furioso com você.

Aquela informação não era nem um pouco surpreen­dente para ela.

— O que ele pretende fazer conosco?

Scott balançou a cabeça e torceu os lábios.

Não sei, mas o homem não parece muito disposto a perdoá-la. Acho prudente você procurar ficar bem longe dele.

É o que eu mais quero, mas não acredito que ele deixe as coisas como estão. Para começo de conversa,eu desobedeci uma ordem expressa dele. Para compli­car, o papel que procurei desempenhar nesta caravana foi uma grande mentira. Desde o começo.

Scott mostrou um sorriso de pesar.

—É uma situação bem complicada, não acha? Kelly achou que não conseguiria engolir nem mais um pouquinho daquele feijão. Então devolveu o prato a Scott e levantou-se.

— O que eu acho é que posso muito bem resolver isso tudo... e logo.

Scott juntou as sobrancelhas.

— Resolver logo o quê?

— O sermão, a repreensão, qualquer coisa que o nosso capitão preparou para mim. Não adiantará nada esperar até amanhã.

Dito isso ela aprumou o corpo e marchou para o lado das carroças, indo à procura de Jeb Hunter.

Jeb estava exausto. Atravessar um rio com as car­roças era uma das coisas mais complicadas de fazer numa caravana que rumasse para o Oeste. Era quase como se Jeb precisasse dar uma parte de si mesmo a cada carroça que fazia em segurança a travessia. Quando acontecia algum problema, então, o dia se tor­nava ainda pior. No caso presente, eles tinham tido a má sorte de que o contratempo acontecesse com uma das últimas carroças, já no fim do dia, perto da hora em que normalmente todos deveriam se recolher para uma noite de descanso. Em vez disso, eles tinham tido várias horas a mais de estafante trabalho. Tudo por causa de uma mulher teimosa que vinha mentindo desde o primeiro instante.

A disposição de ânimo de Jeb não ajudava em nada para as dores que se espalhavam por todos os músculos do corpo. Eulalie Todd havia tentado convencê-lo a comer alguma coisa, mas naquele momento ele tinha a sensação de que qualquer comida teria o gosto de serragem. Havia aceitado apenas o gole de uísque ofe­recido por Frank, logo depois indo se deitar. Era mais uma noite seca e de temperatura amena, o que signi­ficava que ele sob as estrelas, deixando os Todd sozi­nhos na carroça deles. Jeb não acreditava que naquela noite Frank tivesse muita disposição para tirar partido da privacidade que teria com a esposa. Além de já ser um pouco idoso, o homem havia trabalhado o dia inteiro. Bem, talvez os carinhos da maternal Eulalie o reani­massem, pensou Jeb com um sorriso cansado enquanto abria os cobertores sobre a relva. Normalmente procu­rava não pensar muito naqueles assuntos. Vez por outra se entregava aos prazeres do corpo com alguma simpá­tica garota de cabaré, quando estava em alguma das extremidades da trilha, mas geralmente se contentava com a vida celibatária. Afinal de contas, era o que me­recia. Se não tivesse tão inquieto e estúpido, ainda es­taria vivendo na Califórnia, podendo aquecer-se todas as noites no corpo quente da doce Melly.

— Capitão Hunter?

Jeb levou um susto ao ouvir a voz de Kelly Gallivan soar na escuridão. Imediatamente ele se voltou para encará-la.

— Se eu fosse você, escolheria outra hora para falar comigo — disse, tenso.

— O senhor está com raiva. Reconheço que tem todos os motivos para...

Jeb levantou-se e deu um passo na direção dela, com os punhos cerrados.

— Não, srta. Gallivan. Eu não estou com raiva. Es­tou furioso. E, se você fosse mesmo o homem que dizia ser, eu me sentiria muito tentado a lhe dar o trata­mento que você certamente merece.

Kelly obrigou-se a olhar diretamente nos enfurecidos olhos dele.

— Desculpe. Eu... nós não tivemos muito tempo para pensar no que fazer depois da morte do meu pai. Achei que a única saída...

— E desobedecer à minha ordem para que aliviasse a carga da carroça de vocês também foi a única saída? — ele a interrompeu.

— Bem... — murmurou Kelly, suspirando. — Reco­nheço que isso foi um erro. Acontece que aquelas fer­ramentas estão com a nossa família desde... — A voz de Kelly foi ficando fraca, desanimada, e ela parou de falar. Logo depois aprumou o corpo e encheu-se de coragem. — Capitão, se pretende me dar uma surra, pode fazer isso imediatamente.

À luz do luar as feições da irlandesa eram nota­velmente belas, mesmo agora, quando ela estava com o maxilar apertado e os olhos semicerrados, pare­cendo esperar que ele fosse realmente castigá-la fi­sicamente. Jeb sentiu a raiva indo embora, como um líquido escorrendo de uma garrafa com o gargalo vol­tado para o chão. As palavras dela e a forma como ficava parada diante dele, totalmente indefesa, o dei­xavam desarmado. E ela era linda demais. Como, em nome de Deus, ele podia ter pensado tratar-se realmente de um homem? Haskell logo havia perce­bido que Kernan Gallivan era na verdade uma mu­lher disfarçada. Qual tinha sido o problema dele, Jeb? A raiva começou a voltar, mas agora dirigida a uma outra pessoa... ele próprio.

Jeb abriu os braços.

— Parte da culpa cabe a mim mesmo — reconheceu, falando numa voz um pouco menos tensa. — O capitão de uma caravana tem que saber o que está na carroça dos passageiros. Deve saber se eles estão doentes ou feridos, felizes ou tristes, cansados ou cheios de dis­posição. — Nesse ponto ele passou nervosamente a mão pelos cabelos. — E certamente deve saber qual é o sexo desses passageiros.

Pela contração do pescoço esbelto, Jeb pôde ver que ela engolia em seco. Um pescoço esbelto e muito fe­minino. Diabo dos infernos!

— Mas eu enganei o senhor — argumentou a irlan­desa. — Fiz de tudo para garantir que o senhor não descobrisse, que ninguém descobrisse. Achei que só me disfarçando de homem teria permissão para par­ticipar da caravana.

— Haskell descobriu.

Jeb não sabia por que aquele fato o irritava tanto. Kelly Gallivan hesitou por alguns instantes.

— Bem, aconteceu aquele problema com o meu tor­nozelo, como o senhor sabe — lembrou, finalmente.

Ah, sim! Haskell havia cuidado do tornozelo dela. O tornozelo que estava ligado a uma daquelas tornea­das pernas em que Jeb tinha tido que reparar naquele mesmo dia, quando ela estava ensopada, com a calça masculina grudada ao corpo como uma segunda pele. Haskell provavelmente tinha tido o tornozelo dela nas mãos, apalpado, massageado, talvez até...

Kelly pigarreou.

— E o sr. Haskell teve mais chances para ficar na nossa companhia.

— Quando você contou a ele?

Kally Gallivan juntou as sobrancelhas finas.

— Eu... não entendi.

— Quando você contou-lhe a verdade?

Ao ouvir a pergunta ela abaixou a pálpebras de es­pessos cílios por cima dos olhos azuis. Parecia relutante em responder, como se percebesse que o fato de Scott Haskell saber da verdade tornava a coisa ainda mais difícil para ele.

— Eu não contei a ele — disse Kelly, finalmente. — O sr. Haskell... mais ou menos... adivinhou. Foi no primeiro dia.

— No primeiro dia — repetiu Jeb, sentindo-se ainda mais culpado.

Kelly assentiu, mantendo a cabeça abaixada. Jeb soltou um demorado suspiro. Depois abaixou-se e retirou uma toalha da mochila. A trabalheira no rio o tinha deixado todo sujo de lama. Precisava se lavar antes de se enroscar por baixo do cobertor.

Erguendo-se ele olhou outra vez para a jovem irlandesa.

— Não vou repreendê-la mais, srta. Gallivan, pois com isso punirei minha própria estupidez. Não me da­rei esse prazer.

Os olhos de Kelly se encheram de alívio.

— Prometo que, de agora em diante, farei tudo o que me mandar, capitão. Patrick e eu trabalharemos duro para que não haja mais nenhum atraso na viagem. Se­ pararemos uma parte da bagagem para ser deixada para trás. Não questionaremos suas ordens e...

Jeb ergueu a mão, fazendo um ar de surpresa.

Espere um pouquinho. Será que você entendeu mesmo?

Se eu entendi o quê?

Srta. Gallivan, não existe a menor chance de você e seu irmão prosseguirem esta viagem para a Califór­nia. Logo que chegarmos a Fort Kearney, cuidaremos de arranjar uma escolta para levá-los de volta a St. Louis.

Kelly recuou um passo, parecendo que agora recebia de fato a bofetada que havia esperado antes.

—Voltar a St. Louis? O senhor não pode estar fa­lando sério.

—Nunca falei tão sério. Uma jovem solteira e um garoto inexperiente não podem fazer parte de uma caravana que esteja atravessando o país.

Kelly não quis acreditar nos próprios ouvidos.

Até aqui nós fizemos tudo direitinho.

— Ah, sem a menor dúvida! Causaram um dia de atraso na viagem deixando que a carroça atolasse bem no meio do rio. Sem falar na trabalheira que isso nos deu.Kelly cerrou os punhos.

—Capitão Hunter, meu irmão e eu vamos para a Califórnia...

Jeb começou a caminhar na direção do rio, passando por ela.

—Não com a minha caravana — disse, desapare­cendo antes que ela pudesse responder.

Dorothy Burnett estava esperando por Kelly ao lado da carroça inclinada e avariada.

— Ele disse que não nos deixará continuar a viagem com a caravana — ela disse à vizinha, com a voz tremula.

Ainda não queria acreditar no que tinha ouvido.

— Ele só está com raiva, Kelly — disse Dorothy, passando o braço por cima dos ombros dela. — Pela manhã, muito provavelmente fará com que você ouça uma desses superiores sermões masculinos e tudo vol­tará às boas.

Kelly balançou a cabeça.

— Não me pareceu que ele estivesse com essa disposição.

Dorothy franziu a testa.

Bem, ele não pode simplesmente abandoná-la. Ninguém concordaria com isso.

Ele disse que, quando chegássemos a Fort Kear­ney, arranjaria uma escolta para nos acompanhar de volta ao Leste.

Apática, Kelly pegou a chaleira e despejou a água em cima da fogueira para apagar as brasas.

Isso é loucura! Se vocês fizeram tudo certo até agora...

Eu sei. — Kelly sentou-se num balde emborcado e afundou a cabeça nas mãos. — Não faz sentido. Eu sabia que ele ficaria enraivecido, mas pensei que, de­pois que estivéssemos percorrendo a trilha, não poderia nos mandar de volta.

— Talvez ele não possa. O que dizem os documentos? Talvez você possa obrigá-lo a deixar que vocês conti­nuem com a caravana.

Kelly esticou as pernas para a frente. Ainda estava vestindo a calça de Patrick. As roupas dela estavam cuidadosamente guardadas no fundo de um dos en­charcados baús empilhados em volta da carroça. Ela não sabia se conseguiria identificar qual era esse baú, mesmo se quisesse. Além disso, depois de tudo por que eles haviam passado naquele dia, as roupas eram a última das preocupações dela.

— Eu não quero obrigá-lo a nada. Afinal de contas, ele é o nosso líder. Não posso transformá-lo numa es­pécie de inimigo.

Dorothy chutou as brasas que haviam se espalhado em volta da fogueira, perdida em pensamentos. Final­mente voltou a falar.

— Bem, nesse caso, cuide de transformá-lo num amigo.

Como assim? — perguntou Kelly, surpresa com a sugestão.

Ah, minha querida Kelly! Agora todos já sabem que você é uma mulher e não há nada de mal em tirar todas as vantagens possíveis disso. Hunter é um homem, de carne e osso. — Nesse ponto ela riu. — Ou pelo menos pensa que é. Vá procurá-lo e fique com esses seus compridos e lindos cílios bem abaixados. Sua mãe nunca lhe ensinou o que uma mulher deve fazer para obter o que quiser de um homem.

Kelly sentiu calor no rosto.

—Eu tinha seis anos de idade quando minha mãe morreu. Mas espero saber o suficiente sobre essas coisas para ficar acima...

Dorothy apressou-se em abraçá-la, interrompendo o que ela dizia.

— Desculpe, Kelly. Você não teve uma vida fácil, não foi mesmo? Mas não fique aborrecida comigo. Eu não estava sugerindo que você fizesse nenhuma imoralidade. Apenas quis dizer que, se você conseguir con­vencer Hunter a tratar a coisa em bases amigáveis, talvez ele se mostre mais disposto a mudar de ideia.

— Você acha mesmo? — perguntou Kelly, em dúvida.

Quando morava em Nova York, ela sempre havia sentido desprezo pelas moças que usavam seus encan­tos femininos para conseguir o que queriam. Além dis­so, enquanto Scott Haskell sempre se mostrava encantado quando via um rosto bonito, Jeb Hunter dava a impressão de que tinhas outras coisas em que pensar. Era sempre muito simpático e atencioso com as mu­lheres da caravana, mas Kelly não se lembrava de tê-lo visto dirigir a nenhuma delas o sorriso conquis­tador que Scott sempre abria quando se via diante de qualquer mulher que tivesse entre dez e sessenta anos. Dorothy recuou um passo e examinou com atenção a figura de Kelly, dos cabelos curtos às pernas longas e bem torneadas. Quando voltou a falar, parecia ter muita certeza do que dizia.

— Kelly, pode escrever o que estou dizendo: depois que dermos um jeito nessa sua aparência, acho muito difícil o capitão da caravana continuar com raiva de você.

Kelly sabia que devia estar cansada o su­ficiente para sucumbir ao sono mesmo de pé, mas as palavras de Dorothy martelavam em sua cabeça, impedindo-a de pensar em ir para a cama. Havia repelido prontamente a insinuação da amiga de que, lançando mão de encantos femininos que ela su-postamente possuía, seria possível derrubar as resis­tências de Jeb Hunter.

Era bem verdade que Kelly nunca havia podido con­versar com a mãe sobre tais coisas, mas não tinha dúvida de que, se tivesse crescido podendo contar com os cuidados maternos, teria ouvido advertências contra ideias como aquela. Por outro lado, havia jurado que faria qualquer coisa para chegar à Califórnia. E, como Dorothy tinha dito, não seria como se ela estivesse fazendo uma... bem alguma coisa errada. De fato, fazia muito sentido pensar que, conseguindo ela estabelecer uma comunicação amigável com o capitão, seria muito mais fácil fazê-lo examinar, com calma e racionalidade, a possibilidade de permitir que Patrick e ela conti­nuassem fazendo parte da caravana.

Enquanto Kelly argumentava consigo mesma, as suas pernas, como se tivessem vontade própria, come­çaram a levá-la na direção do arvoredo onde Jeb Hunter havia desenrolado o cobertor para dormir. O coração batia descontroladamente quando ela diminuiu o passo, aproximando-se do lugar. Talvez ele já hou­vesse retornado do banho e estivesse dormindo. Quando começou a entrar na formação de árvores, ela estava com os punhos cerrados e tinha o lábio inferior firmemente preso entre os dentes. Resolveu que, caso ele estivesse dormindo, ela o acordaria. Não conseguiria dormir se não tentasse mais uma vez fazê-lo mudar de ideia.

Jeb esfregou firmemente os braços com a toalha, afastando o frio da pele molhada. No corpo, pelo menos, ele se sentia melhor depois do banho. Era muito bom ter aquela sensação de limpeza, algo que servia tam­bém para diminuir o aborrecimento com as complica­ções do dia. Tudo aquilo o tinha deixado com uma leve dor de cabeça, mas ele já estava acostumado a lidar com aquele estado de coisas.

Por algum tempo Jeb ficou parado na margem do rio, nu, deixando que a brisa se encarregasse de secar o resto do corpo dele.

O acampamento agora estava quieto. No outro lado do rio ele apenas vislumbrava a fraca claridade das poucas fogueiras ainda acesas perto das carroças que não tinham podido fazer a travessia. A maior parte delas haviam passado para a margem de cá, quase todas agora já estando secas e com a carga no baga­geiro. No dia seguinte eles reiniciariam a jornada tão logo as outras completassem a travessia. Tão logo se concluísse o conserto da carroça dos Gallivan.

A dor de cabeça de Jeb ameaçou transformar-se em enxaqueca. Ele havia começado a ter aquilo depois da morte de Melly, um mal-estar que durante um ano o atormentou quase todos os dias. Ultimamente as en­xaquecas já não eram tão frequentes, em parte porque ele havia aprendido a se afastar das situações que podiam causá-las. Procurava não se envolver emocionalmente em nada, fossem quais fossem as circunstâncias.

Naquele dia, porém, havia quebrado as próprias re­gras ao se irritar seriamente com a srta. Kelly Gallivan. E agora provavelmente pagaria pelo descuido tendo que suportar cabeça latejando durante um bom tempo.

Jeb enxugou o rosto com a tolha e pôs-se a fazer movimentos com a cabeça para flexionar o pescoço. Às vezes aquilo ajudava.

— Oh, meu Deus!

A exclamação fez com que ele prontamente inter­rompesse os movimentos da cabeça. Agindo por reflexo, abaixou a toalha para cobrir as partes do corpo que não deviam ficar expostas. Como se fosse um pesadelo criado pela dor de cabeça dele, lá estava Kelly Gallivan em pessoa.

—Desculpe... capitão... eu... — ela gaguejou. — Bem... eu estava procurando pelo senhor.

Jeb rapidamente recobrou a compostura. O emba­raço da garota o divertia, era até uma pequena vin­gança por todos os transtornos que ela já havia causado e muito provavelmente continuaria causando por mais algum tempo.

—Pensei que já havíamos discutido tudo o que tí­nhamos para discutir esta noite, srta. Gallivan.

A irlandesa desviou o rosto.

— Por favor... bem... sinta-se à vontade para... para se vestir, capitão. Acredite que não tive nenhuma intenção de interromper seu banho.

—Você não interrompeu nada — rebateu Jeb. Sur­preso com aquilo, percebeu que estava realmente se divertindo muito com o desconforto dela. — Já terminei meu banho. Se quer tomar o seu, pode ficar à vontade que eu já estou saindo.

Enquanto falava ele indicou a água com a mão que segurava a toalha e conteve um sorriso ao ver que a garota desviava os olhos arregalados.

— Não, eu não vim aqui para... isto é... estou aqui para falar com o senhor.

Jeb sentiu a cabeça latejar. Aquela brincadeira já estava indo longe demais. Pendurando a toalha no om­bro ele pegou a calça.

— Pelo que me lembro, eu já lhe disse que hoje não estou com a menor disposição para conversar. No momento o que nós dois precisamos mesmo é de um bom sono.

Com o canto do olho Kelly viu que agora eleja estava decentemente vestido. Pelo menos da cintura para bai­xo. Então voltou-se e olhou-o de frente.

Eu sei — disse. — No entanto, da forma como estão as coisas, acho que não conseguirei dormir. Não posso aceitar o que o senhor me disse, capitão. Sobre meu irmão e eu voltarmos...

Pela manhã ouvirei o que tiver para me dizer, srta. Gallivan — ele a interrompeu, abanando a mão para dispensá-la.

Imediatamente Kelly percebeu que tinha sido muito direta. Os olhos do homem agora estavam apertados. Ele não queria nem ouvir o que ela pudesse ter para falar. Dorothy havia sugerido que procurasse trans­formá-lo num amigo, o que certamente facilitaria as coisas, mas isso agora parecia muito difícil, provavel­mente impossível.

Kelly! — ela disse, num impulso.

O quê?

Por favor, pode... — Kelly fez uma pausa e res­pirou fundo, esforçando-se inutilmente para demons­trar naturalidade. — Pode me chamar de Kelly, em vez de srta. Gallivan. Assim, pelo menos não parecerá que está furioso comigo.

Por um minuto Jeb ficou olhando para ela, a expressão do rosto dele se abrandando de uma forma quase imperceptível.

— Mas eu estou furioso com você, mocinha.

Kelly mordeu o lábio.

— Eu sei. Mas queria que não estivesse. Quero que sejamos... amigos.

Por mais alguns instantes o capitão ficou olhando para ela, com um ar de descrença.

— Amigos? — repetiu, finalmente. — Srta. Gallivan, eu não faço amizade com pessoas que estejam parti­cipando de uma caravana liderada por mim, com pes­soas cuja vida possa depender de mim. Se estivesse querendo a amizade de alguém, você, minha linda im­postora, muito certamente seria a última pessoa desta caravana que eu procuraria com esse objetivo.

O capitão ainda não havia vestido a camisa e, à luz da lua, Kelly não podia deixar de reparar nos músculos esculturais do peito dele. A calça de couro cobria os quadris esbeltos e as pernas igualmente musculosas. Jeb Hunter era um belo exemplar de homem, pensou Kelly pela centésima vez. Dorothy tinha toda razão. Seria prudente... e interessante, ela transformá-lo num amigo, quisesse ele ou não. Bem que ela queria saber o que fazer para pôr em prática o plano da loira. Do­rothy tinha dado a entender que não haveria problema nenhum, que seria até fácil. No entanto, olhando para a expressão implacável de Jeb, Kelly não tinha tanta certeza disso.

Então procurou pensar no que faria Kate Flanagan. Em Nova York, havia mais homens circulando à volta de Kate Flanagan do que moscas em torno de um pote de mel. Se não tivesse nove irmãos mais velhos para tomar conta dela, àquela altura a garota já teria se casado pelo menos uma três vezes.

Kelly aproximou-se um passo do local onde Jeb es­tava, de pé perto da água.

— O que é que eu posso fazer para convencê-lo de que estou arrependida de... de tê-lo enganado?

— Ah, não precisa fazer nada. Eu acredito que você está arrependida, sim. Mas que proveito alguém pode tirar disso?

Talvez o capitão Hunter amolecesse um pouco se ela o deixasse beijá-la na face. Logo que teve o pen­samento, porém, Kelly sentiu que alguma coisa tremia dentro dela. Apertando as mãos para que o tremor não chegasse ao exterior, aproximou-se mais um passo.

— Bem, existe alguma coisa que eu possa fazer para que... para que se tire algum proveito disso, então? — perguntou, numa voz muito fraca.

Jeb ficou olhando para ela por um interminável momento, com uma expressão indecifrável. Finalmente resolveu falar.

—Se não pudesse ver que você está tremendo como uma vara verde, menina, talvez eu acreditasse que sabe o significado do que acabou de dizer. Como posso ver isso muito bem, vou poupar a nós dois futuros problemas mandando-a de volta à sua carroça.

Kelly apertou ainda mais as mãos. Elas estavam. tremendo, droga!

Estou disposta a fazer qualquer coisa que me permita chegar à Califórnia com o meu irmão, capitão Hunter. Quero que concorde em nos levar.

Eu não levo mulheres desacompanhadas nas mi­nhas caravanas, srta. Gallivan. Nenhum tipo de mu­lher desacompanhada — ele acrescentou. — Agora seja uma boa menina e volte para a sua carroça. Procure dormir um pouco. Amanhã vai ter um bocado de tra­balho para por suas coisas na carroça... depois de es­colher o que jogará fora.

Ele falava num tom que não deixava margem a dis­cussão, mas Kelly não estava disposta a desistir.

Voltaremos a conversar sobre o assunto amanhã, então, quando estivermos descansados — disse, tentando sorrir.

— Você pode conversar o quanto quiser, falar o tempo todo até a hora em que chegarmos a Fort Kearney. Mas saiba que não conseguirá nada com isso. Uma vez lá, não terá opção além de voltar para o Leste.

Outra vez os olhos de Kelly desceram para o peito do capitão. Ele certamente era... forte, mas também não precisava agir de forma tão tirânica. Cheia de indignação ela aprumou o corpo, nervosa e decidida a mudar de tática. Agora que sabia que a proposta de "amizade" que tinha feito, fosse em que bases fosse, seria sempre re­cusada, estava até se sentindo melhor. Ficaria mais à vontade combatendo o capitão usando as próprias habi­lidade do que recorrendo a encantos femininos que, até onde ela sabia, talvez nem possuísse.

—Voltar para o Leste, é? — perguntou, trincando os dentes e começando a se afastar. — Isso é o que vamos ver, sr. Chefe de Caravana!

Na manhã seguinte o humor de Jeb não havia me­lhorado. Depois de um dia estafante, ele devia dormir como uma pedra. Em vez disso, tinha ficado acordado durante horas, repassando os acontecimentos do dia. Sempre que fechava os olhos, via Kelly Gallivan pas­sando nervosamente a língua nos lábios, oferecendo-se para fazer "qualquer coisa" para se desculpar por tê-lo ludibriado. E outra vez ele ficava se perguntando como seria mergulhar naqueles olhos intensamente azuis. Depois, mantendo os olhos fechados, era água que ele via, lembrando-se dos momentos no rio, quando havia temido que a correnteza levasse embora duas pessoas que estavam sob a responsabilidade dele. Às vezes até adormecia, mas as visões eram as mesmas. Subita­mente os olhos eram os de Melly, abertos mas sem vida, olhando fixamente para o teto do aconchegante chalé deles como se quisessem transformar os últimos e terríveis momentos da vida dela numa horrível eter­nidade. Nessas ocasiões ele se acordava, assustado e molhado de suor.

Kelly Gallivan não era Melly, disso não havia a me­nor dúvida. Ele tinha salvado Kelly. Bem como o irmão dela. Nada do que tinha feito merecia reprovação. Des­ta vez, tinha estado no lugar certo e feito exatamente o que devia. Mas, por Deus, não queria ter de fazer aquilo novamente. O quanto antes se livrasse de Kelly e Patrick Gallivan, melhor.

Depois ele voltava a se deitar e o ciclo recomeçava. Perto do amanhecer, concluiu que não conseguiria ter um sono tranquilo e se levantou. Começaria cedo os trabalhos do dia e, cora um pouco de sorte, as carroças que ainda estavam no outro lado do rio completariam a travessia antes do meio-dia. Naquele dia eles ainda poderiam percorrer uns seis ou sete quilômetros. Seis ou sete quilômetros mais perto de Fort Kearney, onde ele não precisaria mais se preocupar com os desen­caminhados filhos do finado Sean Gallivan, o mais jovem dos quais naquele momento caminhava na direção de Jeb.

—Como estão as coisas hoje, Patrick? — ele per­guntou, num tom leve, não querendo descontar no me­nino o próprio mau humor. — Machucou-se de alguma forma no banho forçado de ontem?

Patrick agora parecia ter menos idade do que de fato tinha. Havia perdido um pouco da petulância com a qual Jeb secretamente se divertia.

—Não por causa do banho forçado, mas me sinto arrasado em relação a tudo o mais — respondeu o garoto.

Jeb esperou que Patrick se aproximasse. Os Todd ainda não haviam saído da carroça e ele estava come­çando a acender o fogo para preparar o café da manhã.

— Em que aspecto está se sentindo arrasado? — perguntou, procurando não pôr muita simpatia na voz.

Debitava à irmã do garoto a maior parte da culpa pela farsa montada, mas Patrick também havia se en­volvido, mesmo não tendo idade suficiente para saber o que era certo e o que era errado. Jeb não queria desculpá-lo com excessiva facilidade.

Patrick deu de ombros.

— Não sei — murmurou.

Jeb sentiu um nó na garganta, mas resolveu que se manteria inflexível.

— Acha que é porque vocês mentiram para mim ou porque sua irmã desobedeceu minhas ordens sobre o limite de carga da carroça?

Patrick olhou para ele, com os olhos cheios de culpa. Tinha olhos tão intensamente azuis quanto os da irmã.

— Desde o princípio eu disse a Kelly que aquilo era uma ideia maluca.

Jeb assentiu.

— Bem, você estava certo. A ideia maluca acabou causado uma porção de transtornos, e vai causar mais alguns antes que eu possa mandá-los de volta para o Leste.

— Não nos mande embora, capitão.

Agora os olhos azuis estavam cheios de lágrimas, que ameaçavam escorrer pelas faces do garoto. Sen­tindo um aperto no peito, Jeb estendeu a mão para apertar levemente o ombro do menino.

— Vou ter de fazer isso, Patrick. Sua irmã não quer entender que o Oeste pode ser um lugar terrível para uma mulher sozinha, como é o caso dela.

— Kelly é forte, capitão Hunter — argumentou Pa­trick, enfático. — E nosso pai sempre dizia que ela era muito mais inteligente do que qualquer homem que ele conhecesse.

— Mesmo assim, Patrick, coisas horríveis podem acontecer. Acredito que ela é inteligente... ou não teria conseguido enganar tanta gente, mas no Oeste isso não ajudará em nada.

Patrick pareceu não fazer ideia de quais poderiam ser tais coisas horríveis, mas Jeb não tinha a intenção de esclarecer. Embora estivesse olhando para um me­nino esperto e que aprendia com facilidade, não queria viver com a culpa de ter posto fim à infância de uma criança.

— Só pode ser porque o senhor está com muita raiva de nós — disse Patrick, numa voz cheia de tristeza.

Jeb puxou-o para perto e abraçou-o rapidamente.

— Não, Patrick. Eu não estou com raiva de vocês. Pelo menos não mais. Mas não posso levar você e sua irmã para a Califórnia. Sinto muito.

Os braços de Patrick apertaram timidamente a cin­tura de Jeb.

— Eu ainda posso cavalgar com o senhor antes de chegarmos ao forte?

Jeb abaixou os olhos para o menino. Deve ser assim que um homem se sente quando tem um filho, pensou. Naquele momento sentia um misto de orgulho e in­certeza, algo que parecia capaz de derreter as entra­nhas dele. Então afagou os cabelos de Patrick.

— Pode cavalgar comigo sempre que quiser, Patrick. Até chegarmos ao forte.

Depois de uma noite maldormida, Kelly havia aca­bado de se levantar quando Dorothy e as gémeas che­garam ao desarrumado acampamento dela com um prato cheio de pães de milho.

— Esta manhã você já tem muitas outras coisas em que pensar, Kelly — disse Dorothy. — Achei que devia trazer alguma coisa para poupá-la do trabalho de fazer comida para o café da manhã.

Kelly sorriu, agradecida. Pelo menos podia começar o dia ouvindo uma palavra amiga.

Mamãe disse que você serão expulsos da cara­vana, Kernan — disse Polly, com um pouco de orgulho na voz por estar a par das novidades.

Não é Kernan, é Kelly — Molly a corrigiu, com seu jeito tímido.

Sim, Kelly. Como você é uma mulher sem um homem para protegê-la, o capitão Hunter não deixará que você e Patrick continuem conosco na caravana continuou Polly, sem dar a impressão de que fazia um julgamento da situação.

Em seu jeito tipicamente infantil, ela lidava com fatos, não com suposições.

Ficou com Dorothy a responsabilidade de transmitir a solidariedade da família.

—Meninas, no momento não vamos aborrecer Kelly com esse assunto. Ela teve um dia duro ontem e hoje tem muito trabalho pela frente.

Polly pôs as mãos na cintura e contemplou as caixas espalhadas em volta.

— Isto aqui está uma confusão enorme — disse, balançando a cabeça.

O comentário fez Kelly rir, apesar de tudo.

Está, sim — ela concordou. — Uma confusão pela qual eu sou responsável, acho.

Você quer nossa ajuda para arrumar as coisas? — perguntou Molly. Logo depois mostrou um sorriso tímido. — Patrick vai ajudar, não vai?

Nós podemos ajudar, sim, Kelly — declarou Dorothy. — E John também. Não faz mal nenhum poder contar com braços fortes.

Vocês já têm feito muito por nós e... — começou Kelly.

Dorothy abanou a mão, minimizando o que ela ia dizer.

— E o que me diz das vezes em que você ficou com essas diabinhas, me dando uma folga?

Kelly sorriu para as gêmeas.

—Elas são minhas camaradinhas.

Polly abriu muito os olhos.

—Mas nós não sabíamos que você era uma garota, Kelly. Agora podemos realmente ser camaradas, não podemos?

Kelly pôs o prato com os pães de milho numa sa­liência da carroça e aproximou-se para abraçar cada uma das meninas.

Sim, agora podemos realmente ser camaradas.

Até que você e Patrick sejam mandados embora — acrescentou Polly.

Você seguiu meu conselho, Kelly? — perguntou Dorothy. — Teve uma conversa com o capitão Hunter?

Infelizmente você estava enganada sobre a suscetibilidade do nosso capitão às súplicas de uma mulher.

Dorothy sorriu.

— Mas estou vendo pela sua expressão que você não vai desistir da luta.

Kelly também sorriu. Aquela era uma das vantagens da revelação do segredo dela. Agora era possível ter com Dorothy um pouco da camaradagem feminina de que ela tanto vinha sentindo falta.

— Sabe o que eu acho, Dorothy? Não vai ser nada fácil, mas daqui até Fort Kearney muita coisa pode acontecer.

Dorothy abriu um largo sorriso

—É assim que se fala, menina.

— Por volta do meio-dia a carroça dos Gallivan já es­tava consertada. A experiência de ferreiro de Scott mostrou-se muito útil para recuperar as partes metá­licas da roda amassada no acidente. O guia da cara­vana não havia aparecido, mas Kelly e Patrick tomaram para si a tarefa de jogar fora tudo o que não era absolutamente indispensável, aliviando assim o peso da carga.

Pode jogar fora qualquer coisa, menos as ferra­mentas — disse Kelly ao irmão.

Mas o peso maior está nas ferramentas — pro­testou Patrick. —Além disso, nenhuma dessas pessoas vai achar que precisaremos de ferramentas de marce­naria para começar uma fazendinha.

Nenhuma dessas pessoas teve a sorte de receber de herança as ferramentas deixadas pelo bisavô. Para levar adiante a tradição...

Kelly parou de falar quando, num gesto de frustra­ção, Patrick deu um chute numa das velhas e pesadas caixas.

Sabe de uma coisa, Kelly? Papai gostava muito das ferramentas dele. E você sempre acha que tem que fazer tudo assim ou assado só porque seria do jeito como papai teria feito. Mas eu nem mesmo gosto de trabalhar com madeira.

Patrick!

É isso mesmo. Não gosto, não. Prefiro ser um bom garimpeiro, como Scott. Quem pode gostar de pas­sar o dia inteiro trancado num lugar, debruçado sobre um pedaço de madeira?

Mas papai passou todas aquelas horas ensinando a você...

E eu detestei tudo. Odiei cada minuto.

Kelly ficou olhando para o irmão durante algum tempo, depois voltou os olhos para as caixas de ferra­mentas. Aquelas coisas haviam pertencido ao bisavô dela. Mas era preciso reconhecer que as caixas estavam em péssimo estado, algumas rachadas e todas muito sujas. E as ferramentas também não estavam em con­dições muito boas. Se o pai dela estivesse presente, estaria mais preocupado em levar a família para a Califórnia do que em continuar com as ferramentas. Perdoe-me, papai, ela se desculpou, em silêncio. De­pois olhou para o irmão.

—Abra as caixas e pergunte às pessoas da caravanas e têm interesse em ficar com algumas das ferramen­tas. Talvez consigamos reconquistar alguns dos amigos que perdemos causando o atraso na viagem.

Pela expressão de Patrick, pareceu até que a irmã estava dando a ele permissão para ir comprar um sor­vete. O garoto saltou em cima da maior das caixas e saltitou de alegria. Depois pulou para o outro lado e ocupou-se em abrir a tampa.

—A partir de agora, nada mais de peixe nem de trabalhos de marcenaria — disse, feliz da vida. — A Califórnia vai ser mesmo um grande lugar!

Depois dos inesperados acontecimentos da travessia do rio, uma espécie de torpor pareceu tomar conta dos integrantes da caravana. Jeb não tinha dito que ha­veria mais pelos menos dez dias de constante deslo­camento pela pradaria antes que eles se aproximassem do forte, onde poderiam ter alguns dias de descanso. A primavera estava se transformando no verão, o que podia ser visto na paisagem, com o infindável verde agora pontilhado de púrpura, azul e vermelho. As de­licadas flores silvestres eram uma promessa de que haveria vida para além daquelas intermináveis pas­tagens naturais.

Patrick havia retomado o hábito de cavalgar na ga­rupa do cavalo de Jeb. Com a capacidade de recupe­ração típica de uma criança, não demorou para superar o trauma da perigosa queda no rio. Por outro lado, continuava sentindo-se um dos responsáveis pelo in­cidente. O capitão não mais os visitava à noite para conversar em volta da fogueira. Aparecia pela manhã para pegar Patrick, dirigia um tenso cumprimento a Kelly e se afastava. Ela só voltava a vê-lo na hora do almoço, quando ele levava o garoto de volta à carroça. Kelly havia continuado a usar as roupas masculinas. Considerava um jeito prático de se vestir e não queria abrir o baú para retirar de lá os vestidos. No íntimo, porém, sabia que tinha motivos bem mais complicados. Motivos que tinham a ver com a noite na margem do rio, quando ela havia encontrado Jeb Hunter. A su­gestão de Dorothy tinha sido procurar dobrar a resis­tência do capitão usando a astúcia feminina, algo que ela havia tentado. O fato de que Jeb não só permanecia irredutível como também a havia rejeitado fazia com que Kelly ficasse embaraçada sempre que pensava no assunto. Não voltaria a cometer o mesmo erro.

Dorothy e Eulalie não pareciam dar importância ao fato de que ela se vestia como homem. E Scott era atencioso como sempre, dando a impressão de que era indiferente à indumentária dela. Apenas os outros ho­mens da caravana a observavam com alguma estra­nheza quando ela passeava com as gémeas ao longo da comprida fila de carroças. Era preciso admitir que uma mulher usando roupas masculinas era no mínimo estranho. Ela havia perdido o paletó do pai e não tinha nada para cobrir uma parte da calça, que se ajustava confortavelmente às cochas e era amarrada à cintura por um pedaço de barbante.

Cinco dias depois da travessia do rio, Jeb ordenou uma parada bem antes do pôr-do-sol. Queria aprovei­tar um local perfeito para acampamento, entre o rio e uma formação de árvores. Até mesmo os adultos rea­giram como crianças que recebessem de presente uma inesperada folga da escola, muitos deles entrando no rio para se livrar da poeira de muitos dias. Logo que eles pararam e desatrelaram os animais, Patrick e Kelly foram chamar as gêmeas e os quatro também se dirigiram ao rio.

— Mamãe disse que nós podemos nadar no rio usan­do apenas as roupas de baixo — declarou Polly, segu­rando na mão de Kelly e saltitando o tempo todo.

— Eu não quero fazer isso — protestou Molly, olhan­do rapidamente para Patrick.

— Cada um nadará como achar melhor — decretou Kelly. — O dia está quente e a brisa logo secará nossas roupas molhadas.

Patrick viu um grupo de novos amigos, meninos da idade dele que já estavam se banhando.

— Vou entrar na água! — gritou, começando a correr.

— Não vá para o fundo — advertiu Kelly, elevando a voz.

Esperava que o fato de quase ter se afogado houvesse ensinado ao irmão dela a ter respeito pela correnteza. Mas achava também que devia se alegrar por ele não ser um menino tímido. Já podia perceber que a timidez não ajudaria em nada no Oeste. E ela e Patrick esta­vam indo para o Oeste. Apesar da continuada e total recusa de Jeb Hunter em discutir o assunto com ela.

Naquele preciso momento o objeto do pensamento dela vinha caminhando na beira do barranco, obser­vando as cambalhotas que as pessoas davam na água. Estava sorrindo, o que mudava inteiramente a apa­rência do rosto dele. Kelly não conseguia parar de olhá-lo. Finalmente ele a viu e parou de sorrir.

— Vamos, Kelly — disse Polly, puxando-a para o rio. — Vamos entrar na água.

Kelly pegou as gémeas pela mão e desceu o barranco.

— Não acha que devemos tirar os sapatos? — per­guntou Molly, olhando para a água com uma expressão de dúvida.

Kelly reparou na grande quantidade de sapatos dei­xados na relva perto da margem do rio.

—Acho que sim. Vocês não se incomodam de pisar nas pedras com os pés descalços, não é?

As garotas já estavam sentadas no chão, soltando o cadarço dos sapatos.

—As meias também? — perguntou Polly.

Kelly assentiu e também se sentou para tirar as enormes botas de Patrick. Deixando os três pares de calçado no mesmo lugar, elas se levantaram e deram alguns passos para pôr o pé na água, sentindo a tem­peratura. No calor que estava fazendo, aquilo propor­cionava uma deliciosa e refrescante sensação.

Patrick reapareceu e estendeu a mão para Polly.

—Venha — disse, alegremente. — Você pode saltar de uma pedra para outra, brincando de rã.

Polly olhou para o meio do rio. De onde estava, bem perto da margem, a correnteza parecia mais forte do que vista do barranco.

Não quero ir para muito longe — declarou, temerosa.

Eu irei — disse rapidamente Molly, pegando na mão que Patrick continuava a estender para Polly.

Tomem cuidado — recomendou Kelly enquanto as duas crianças acompanhavam a correnteza, pulando de uma para outra pedra grande.

Charles Kirby, um dos novos amigos do irmão de Kelly, ofereceu a mão a Polly, que olhava para as costas de Patrick e Molly com algum ressentimento.

Kelly sorriu. Era bom ver as crianças da caravana se divertindo. Elas também trabalhavam duro durante a jornada. Não importava a idade, todos ali tinham suas obrigações: recolher lenha para a fogueira, fazer comida, tomar conta dos menores. Mereciam ter um tempo para brincar.

Patrick certamente tinha tido muitas poucas opor­tunidades para se divertir na difícil vida deles em Nova York. Nos últimos quatro anos havia trabalhado embalando peixe, dia após dia. E Kelly cuidava da arru­mação e da limpeza do pequeno apartamento alugado em cima do mercado. Também cozinhava e consertava as roupas da família. No fim do dia, descia para ganhar algum dinheiro extra fazendo faxina depois que o mer­cado fechava. Sean Gallivan passava o dia inteiro na pequena marcenaria perto do mercado de peixes, ten­tando ganhar a vida com a profissão que havia apren­dido com o pai. Enquanto isso, sonhava com verdes alqueires de terra no Oeste americano. Uma terra rica da qual ele seria dono.

Patrick merecia mesmo brincar à vontade, pensou Kelly, observando o irmão continuar a descer o rio, sempre segurando na mão de Molly.

— Acho que nós todos precisávamos de uma folga — disse Jeb Hunter, parado na margem ali perto.

Kelly voltou-se, surpresa.

— Ah, capitão Hunter — disse, sem ser muito calorosa.

Jeb a observou durante alguns instantes, depois abaixou os olhos para as pernas dela. A pele clara aparecia entre a barra da calça curta e a água. Kelly recuou para uma parte mais funda do rio.

— Vai se juntar a eles? — perguntou o capitão, fazendo um gesto na direção das crianças.

Ela não tinha certeza, mas parecia haver algum di­vertimento nos olhos dele.

— Talvez eu vá — respondeu Kelly, como se preci­sasse se defender. — Não há nada de errado em brincar um pouco, vez por outra. Imagino que, como nosso capitão, o senhor não se permita esse tipo de coisa.

De pé na margem do rio, ele parecia muito mais alto do que ela. Kelly recuou mais, querendo que a água cobrisse inteiramente a parte exposta das pernas. Pisou numa pedra mais lisa e cambaleou, desequilibrada. No mesmo instante ele entrou na água e se­gurou-a firmemente pelos braços.

— Se não tomar cuidado você acabará tendo que nadar, queira ou não — advertiu.

Agora Jeb estava tão perto que Kelly podia sentir nas pernas o calor do corpo dele.

— Eu... desculpe — ela gaguejou. — Agora o senhor ficou com as botas molhadas.

O capitão abaixou os olhos para os próprios pés.

—Não tem importância.

Ele ainda estava segurando-a.

— Eu estou bem — disse Kelly. — O senhor já pode... bem... me soltar.

Olhou-a longamente, examinando-a com atenção.

— Não sei — disse, finalmente. — Não quero ter de pescá-la outra vez do rio.

A água fria fez com que Kelly sentisse as pernas arrepiadas. Ou talvez fosse por algum outro motivo. Então ela puxou os braços, mas o corpo de Jeb Hunter ainda estava quase tocando no dela.

— Não vai precisar fazer isso, capitão Hunter — res­pondeu Kelly, sentindo os lábios subitamente tensos.

Havia uma expressão estranha nos olhos castanhos de Jeb Hunter.

— Parece que as crianças tiveram uma boa ideia. Segurar na mão de alguém ajuda a pessoa a manter o equilíbrio.

Se aquelas palavras tivessem sido pronunciadas por Scott, Kelly saberia o que entender. Os comentários que o garimpeiro fazia com intenção de conquistá-la tornavam-se a cada dia mais diretos. Mas obviamente o capitão Hunter não tinha nenhuma intenção de con­quista. Naquela outra noite, ele havia deixado bem claro que não tinha o menor interesse em tais coisas... pelo menos não com ela.

—Não vou cair, capitão. — Movendo-se com cuidado para não desmentir o que acabava de dizer, Kelly ca­minhou pelas pedras de volta ao barranco. — Na ver­dade, não quero mais ficar na água. — Estava com a calça encharcada até o meio das coxas. — Estou toda molhada.

Outra vez Jeb abaixou os olhos.

— Sim, estou vendo.

Ele não saberia dizer se estava muito à vontade com a visão que tinha naquele momento. Só esperava que o corpo não desse sinais óbvios da reação que es­tava tendo. As pernas bem torneadas de Kelly Galli-van, claramente desenhadas na calça molhada e que se colava à pele, produziam forte efeito em um homem que já não se lembrava da última vez em que havia se deitado com uma mulher.

Na noite em que tinha sido procurado por ela, na beira do rio, Jeb havia concluído que desejava aquela garota. Isso o surpreendia. Ao longo dos anos, havia se tornado muito hábil em superar os desejos do corpo. E obedecia com muito cuidado a uma regra estabele­cida por ele próprio: nunca sentir desejo por uma mu­lher que participasse de uma caravana sob a respon­sabilidade dele. Era bem verdade que Kelly Gallivan não continuaria naquela caravana. Dentro de mais al­guns dias estaria a caminho do Leste, fora do alcance, indo para longe do pensamento dele. Era uma pena Fort Kearney estar tão perto.

— Por que ainda está vestindo roupas masculinas? — ele perguntou, expressando-se numa voz mais alta do que pretendia.

Kelly pareceu surpresa e um pouco ofendida com a súbita mudança de assunto.

Elas são confortáveis.

Talvez para você — resmungou Jeb.

Como assim?

Kelly parecia honestamente confusa, embora não pudesse ser tão ingênua a ponto de não saber que era dona de um corpo capaz de despertar forte interesse em qualquer homem.

— Eu quis dizer que essa não é exatamente uma roupa recatada para uma jovem.

Com ar de incredulidade, Kelly correu os olhos à volta deles, observando os outros membros da caravana que brincavam na água, alguns seminus e todos com as roupas coladas à pele.

— Não estamos exatamente numa sala de visitas, capitão.

Jeb pensou um pouco. Não era justo querer que ela observasse os mesmos preceitos de comportamento que ele adotava.

Tem razão, não estamos numa sala de visitas — concordou, com um sorriso. — E, para falar a verdade, isso não é da minha conta.

Não, não é.

Nesse caso, retiro o comentário que fiz.

Kelly ficou olhando para ele por um momento, pa­recendo adotar uma expressão mais relaxada.

—Está certo — disse. Logo depois sorriu, de uma forma tão radiante que Jeb teve medo de que o coração dele parasse de bater. — Acho melhor eu ir ver o que as crianças estão tramando — acrescentou, olhando para o rio e acenando.

Jeb ficou observando enquanto ela saia caminhando com naturalidade, de calça curta e cabelos também curtos, uma ágil e adorável criatura, tão vivaz quanto os lendários duendes da terra natal dela.

Era mesmo uma pena Fort Kearney estar tão perto.

 

Companhia de Colonização do Oeste havia transformado Fort Kearney de um isolado posto avançado numa fervilhante metrópole. Comerciantes de todos os ramos haviam estabelecido seus negócios para fornecer mercadorias e serviços aos ocupantes das carroças que, aos milhares, passavam pelo forte todos os anos. Cobravam preços exorbitantes por artigos que os viajantes podiam ter adquirido por quase nada no Leste, se houvessem previsto o quanto sentiriam necessidade daquelas coisas.

O óleo de cozinha era vendido por dois dólares a lata, enquanto a carne charqueada custava cinco dó­lares o quilo. Mesmo assim, os integrantes da caravana liderada por Jeb Hunter se mostraram entusiasmados com aquele retorno temporário ao que pelo menos pa­recia ser um mundo civilizado. Entre as carroças cir­culavam rapidamente informações sobre onde podia ser encontrada essa ou aquela mercadoria e qual era a melhor estratégia para se conseguir uma redução no preço.

Kelly e Patrick ouviam em silêncio os planos dos novos amigos. Se Jeb Hunter fizesse valer sua vontade, Fort Kearney seria o fim da viagem para eles. O ho­mem havia chegado a sugerir que eles procurassem vender a carroça, optando por voltar para St. Louis a cavalo e levando em mulas de carga os pertences pes­soais que quisessem manter. Assim voltariam para casa muito mais rapidamente, segundo explicou a uma lívida Kelly na noite anterior à chegada ao forte.

Não adiantaria nada dizer a ele que o Leste nunca seria um "lar" para ela. Kelly e Patrick não tinham um lar... e estavam ali justamente com o objetivo de construir um.

Desde o dia em que as pessoas da caravana haviam se divertido no rio, Kelly vinha evitando o capitão. O brilho dos olhos dele havia deixado nela uma sensação estranha, algo que chegava a ser desconfortável. E não tinha sido difícil ficar fora do caminho dele. Na verdade, o homem também parecia evitar a companhia dela.

Mas Kelly sabia que teria que enfrentá-lo tão logo eles chegassem a Fort Kearney. De alguma forma, pre­cisava convencê-lo a deixá-la prosseguir com a cara­vana. Naquela noite havia passado horas acordada, tentando pensar num jeito de conseguir isso. A suges­tão de Dorothy de tentar conquistar a amizade do ca­pitão definitivamente não tinha dado certo. Kelly ficou com a sensação de que Jeb Hunter era do tipo de pessoa que não fazia amizade com ninguém. Ou pelo menos não faria com quem o houvesse enganado.

Depois de retirar da bagagem o contrato firmado pelo pai dela com a Companhia de Colonização do Oes­te, Kelly examinou-o detidamente, procurando alguma cláusula que obrigasse legalmente o capitão a permitir que ela e Patrick acompanhassem a caravana até a Califórnia. No entanto, como os advogados de St. Louis tinham dito, estava bem claro que o capitão tinha au­toridade quase total para decidir quem integraria a caravana sob a liderança dele e o que os viajantes poderiam ou não fazer durante a jornada.

O capitão Hunter havia anunciado que se faria uma parada de quatro dias no forte, tempo suficiente para que fossem feitos os necessários consertos nas carroças e se renovassem os estoques de comida. Aquilo serviria também para que as pessoas tivessem um descanso do interminável rolar das carroças por quilômetros e quilômetros em meio ao capim alto.

Tempo suficiente também para que se fizesse uma festa, sugeriram Frank e Eulalie Todd. Aceita com en­tusiasmo a sugestão, ficou decidido que os membros da caravana se reuniriam para um jantar dançante no segundo dia da parada. Duas compridas mesas fo­ram armadas diante do armazém do lugar e ficou acer­tado que o pai de Charles Kirby, Henry, e um dos soldados do forte tirariam de suas rabecas a música que animaria os dançarinos.

Patrick, que havia passado o dia inteiro explorando o forte na companhia de Charles e dois outros garotos, mostrou-se muito excitado com a perspectiva.

—Um baile de verdade, mana! — exclamou, sal­tando para fora da carroça, onde havia entrado para trocar a camisa. — Eu nunca fui a um baile!

Kelly estava sentada perto da pequena fogueira. Ainda vestia- a calça e a mesma pesada camisa de linho que havia usado durante a viagem. O sorriso desapareceu do rosto de Patrick quando ele olhou para a irmã.

Você já?

O quê?

Já foi a um baile?

Kelly franziu a testa. Naquele momento o que ocu­pava a mente dela era a iminente confrontação com Jeb Hunter. Havia prestado muito pouca atenção nos preparativos da festa.

— Não, acho que não.

—Bem, então vamos. Está quase na hora de começar. Polly e Molly aproximaram-se correndo da carroça deles, parecendo ainda mais excitadas do que Patrick.

Os cabelos delas, quase sempre soltos, estavam esticados para trás e presos por um largo laço de fita, azul para Polly e vermelho para Molly. Kelly já não tinha nenhuma dificuldade para reconhecer as duas. Os olhos de Molly tinham um brilho mais peralta e o rosto de Molly era um pouco mais fino do que o da irmã.

Isso mesmo, Kelly! — exclamou Polly, fazendo coro ao chamamento de Patrick. — Vamos. A festa já vai começar e tenho certeza de que vamos nos divertir muito.

Vocês estão muito bonitas hoje, meninas — elo­giou Patrick, galantemente, o que deixou o rosto de Molly tão vermelho quanto o laço de fita.

Você não vai trocar de roupa, Kelly? — perguntou Polly.

Patrick olhou para a irmã, subitamente surpreso.

—Ela tem razão, mana. Você também deve trocar de roupa. Não vai poder dançar direito vestindo minha calça.

Eu não sei dançar mesmo — respondeu Kelly, com secura.

Eu posso lhe ensinar, Kelly — ofereceu-se Polly.

Ou mamãe fará isso — emendou Molly. — Foi ela quem nos ensinou a dançar.

Kelly sorriu para as duas entusiasmadas garotas. Elas nem imaginavam a sorte que tinham por terem uma mãe amorosa e dedicada como Dorothy, que lhes ensi­nava a dançar e a amarrar os cabelos com lindas fitas. Kelly não tinha tido essas coisas, embora nunca houvesse sabido o que estava perdendo. E agora isso não tinha mais importância. Ela podia viver razoavelmente bem sem saber dançar e sem pôr fitas nos cabelos.

Vão vocês para o jantar dançante, crianças. Tal­vez eu apareça por lá mais tarde.

Talvez? — repetiu Patrick, com um ar de incon­formidade no rosto. — Você tem que ir, Kelly?

Kelly sorriu para o irmão, enternecida.

—Eu irei. Agora, Patrick, seja cavalheiro e acompanhe estas duas adoráveis mocinhas aqui. Divirtam-se.

As gêmeas riram e Patrick assumiu seu papel, fa­zendo uma exagerada reverência antes de oferecer um braço a cada uma delas. Logo depois os três perderam a pose e saíram correndo para o local do evento. Kelly sorriu, observando-os. Depois suspirou.

Eles têm toda razão, sabia? — Dorothy, que havia observado a cena a alguns passos de distância, apro­ximou-se à medida que as crianças se afastavam. — Você deve trocar de roupa para ir ao jantar dançante.

Não sei se quero ir.

A loirinha abanou a mão.

—Bobagem. E claro que você vai. Scott deveria ser seu acompanhante. — Fazendo uma pausa, olhou para a carroça do garimpeiro. — Por onde ele anda?

Kelly deu de ombros.

Não o vi a tarde inteira. Ele disse que havia conhecido no forte alguns homens que já trabalharam nos campos de garimpo. Parece que está interessado em obter algumas informações com eles.

Bem, então John e eu seremos seus acompanhan­tes, porque você vai ao jantar dançante.

Kelly levantou-se.

—Ouça, Dorothy... Eu nem sei dançar. Além disso, não estou com disposição para...

Sem querer ouvir, a amiga subiu na carroça e co­meçou a abrir as caixas.

— Você deve ter roupas guardadas em algum lugar. Venha me ajudar a procurá-las, Kelly.

Kelly abriu os braços.

—Não faço a menor ideia de onde...

Antes que ela pudesse concluir a frase, Dorothy vol­tou-se, com um sorriso de triunfo no rosto, segurando um vestido verde de fustão, o único que Kelly tinha tomado o cuidado de dobrar antes de pôr no baú. Uma vez, demonstrando sentir orgulho da filha, Sean Gallivan tinha dito que, quando usava aquele vestido, ela ficava com os olhos tão brilhantes quanto pedras pre­ciosas. Ela ainda se lembrava de como os próprios olhos dele brilhavam enquanto dizia aquilo, parecendo muito orgulhoso da filha.

—Eu estava guardando esse vestido para usar quando chegássemos à Califórnia — ela disse, com tris­teza na voz.

A expressão de Dorothy tornou-se dura. Pendurando o vestido no braço esquerdo, a sulista olhou para Kelly com as mãos na cintura.

—Pois saiba que nunca chegará lá se não começar logo a fazer algum esforço a fim de continuar nesta caravana.

Agora ela estava com uma postura exatamente igual à que adotava quando ralhava com as filhas. Kelly sentiu vontade de rir, o que melhorou em muito seu ânimo.

Esforço? Que tipo de esforço?

Esforço, sair, conversar com as pessoas, fazer mo­vimento, conquistar aliados para a sua causa... Con­versar com aquele nosso guia grosseirão para mostrar que não deixará docilmente que ele a expulse do grupo.

Não sei se ele quer conversar comigo. Depois dos problemas que causei, é possível até que ninguém mais queira.

Ai, meu Deus! Todos aqui gostam muito de você e de Patrick, menina. Você encontrará muito apoio, desde que peça. Quanto ao capitão Hunter, acho que ele está muito mais interessado em conversar do que você pensa.

Kelly caminhou até onde estava Dorothy e pegou o vestido verde do braço dela. Seria bom usar outra vez aquele vestido, sentir o tecido contra a pele em vez da grosseira calça de Patrick.

O que a faz acreditar nisso, Dorothy?

Ele é um homem, não é? E como eu lhe disse naquele dia, Kelly. Você é uma garota muito bonita.

No mesmo instante Kelly se lembrou da noite na beira do rio.

— Não acho que Jeb Hunter esteja interessado nes­sas coisas. Pelo menos não em relação a mim.

Dorothy recuou um passo e ficou olhando para a amiga com um ar de incredulidade no rosto.

Kelly Gallivan, em Nova York nenhum rapaz de­monstrou interesse em namorar você?

Eu estava sempre muito ocupada...

Está vendo? É esse o seu problema. É tudo uma questão de experiência, autoconfiança... além de um pouco de intuição feminina. — Pegando outra vez o vestido ela encostou-o no corpo de Kelly e ficou mexendo a cabeça para os lados, evidentemente querendo ter uma ideia de como ficaria. Depois devolveu o ves­tido à amiga e sorriu, piscando o olho. — Querida, esqueça tudo o que eu acabei de dizer. Tenho a sen­sação de que, nesse vestido, tudo o que você vai precisar fazer é aparecer na festa.

Os dias pareciam mais longos com a aproximação do verão. O sol ainda brilhava no horizonte a oeste do forte quando Kelly chegou ao local do jantar dançante, acom­panhada por Dorothy e John Burnett. Depois de final­mente convencê-la a se vestir para o evento, Dorothy havia contemplado com admiração a transformação ope­rada na amiga. Declarando que Kelly causaria sensação, ofereceu-se para arrumar-lhe os cabelos.

Não acho que você possa melhorar muito este de­sastre — tinha dito Kelly, olhando-se no espelho da mãe.

Mas Dorothy havia escovado inúmeras vezes os curtos cabelos de Kelly, até deixá-los lustrosos.

— Não está mal — tinha dito Dorothy, recuando para admirar o próprio trabalho. — É diferente, mas parece adequado ao formato do seu rosto. Você fica parecendo uma... um duende.

Bem que ela queria poder desaparecer como um duende, pensou Kelly enquanto caminhava na direção do grupo reunido entre as duas compridas mesas. A maioria daquelas pessoas já havia comido. A dança ainda estava para começar e ouviam-se muitos risos e vozes altas enquanto Frank Todd distribuía canecas de vinho de maçã, os viajantes se mostrando muito contentes em poder ficar algum tempo afastados da poeirenta trilha.

Na frente do quartel, vários dos soldados do forte observavam a festa com sorrisos de simpatia. Agora já estavam acostumados com a cena, tendo presenciado as reuniões promovidas por outras caravanas que pa­ravam ali. Entendiam ser uma boa coisa os novos co-lonizadores procurarem se divertir um pouco no meio de uma viagem tão estafante.

A chegada de Kelly e Dorothy causou uma certa comoção entre os soldados. Os rapazes se cutucaram, trocando cometários. Um deles chegou a assobiar, alto o suficiente para que o som chegasse aos ouvidos delas.

— Está vendo, Kelly? — disse Dorothy, orgulhosa.

— Você já está causando sensação.

— Estão olhando para você, Dorothy — protestou Kelly.

— É pouco provável — discordou a loira, penduran­do-se no braço de John, que caminhava ao lado dela.

— Eu já tenho o meu bonitão aqui.

Enquanto eles continuavam a se deslocar, até mesmo Kelly teve que admitir que aparentemente todos aqueles soldados tinham os olhos nela. Era uma sensação es­tonteante e que ela experimentava pela primeira vez.

—Provavelmente eles não vêem muitas mulheres por aqui — interpretou, olhando para os Burnett, ao mesmo tempo embaraçada e satisfeita.

— Eles não vêem por aqui muitas mulheres com a sua aparência, minha amiga — corrigiu-a Dorothy, fa­lando com brandura.

Os soldados não foram os únicos que se mostraram impressionados. Enquanto eles se dirigiam às mesas onde estava a comida, os colonos começaram a se cu­tucar, trocando comentários sobre a mudança na apa­rência dela. Alguns dos homens que haviam se mos­trado indignados depois da revelação do disfarce agora olhavam para ela, alguns sob atenta observação da esposa, todos com contida admiração.

Até mesmo Patrick reparou na mudança, afastan­do-se de um grupo de amigos e correndo para os re-cém-chegados.

— Ei, você está incrível, mana!

Kelly olhou em volta, procurando por Scott. Estava tão excitada quanto curiosa para ver a reação que ele teria quando a visse limpa e arrumada. Mas aparente­mente o garimpeiro não estava por ali. Na verdade, quan­do correu os olhos pela multidão quem ela viu foi Jeb Hunter. Visivelmente espantado ao vê-la, ele pôs sobre a mesa o prato vazio e veio ao seu encontro.

Kelly não estava muito certa de que já queria falar com o capitão. Havia esperado se encontrar antes com Scott. Não saberia explicar por quê, mas naquela noite, sentindo-se bonita e feminina, preferiria que Jeb a visse nos braços de Scott.

Jeb tocou na aba do chapéu quando chegou perto.

—Imagino que essa seja mesmo a srta. Gallivan — disse, como se participasse de uma descompromissada conversa e parecendo divertido.

Diabo de homem!, pensou Kelly. Ele sabia deixá-la desconcertada.

— Não estou tão diferente que o senhor não possa me reconhecer, capitão Hunter. Apenas troquei de roupa.

Jeb pegou numa das mãos dela e ergueu-a, como se esperasse que ela desse uma pirueta para exibir o vestido. Kelly continuou parada e ele a examinou.

—Sim, estou vendo — disse. — E isso vai banir para sempre o espectro de Kernan Gallivan da cabeça dos homens aqui presentes.

Kelly olhou para o lado, tentando ver Dorothy e John, mas o casal havia se afastado na direção das mesas de comida. Ela estava sozinha. Então olhou para o capitão.

—Isso faz mesmo tanta diferença... a roupa que a pessoa está usando?

Jeb soltou a mão dela e hesitou por um momento. Antes de responder coçou o queixo.

— Acho que depende da pessoa e do que ela está usando.

Bem, sou a mesma Kelly Gallivan e estou usando um vestido de três dólares, já um pouco fora de moda.

Seu cabelo também está diferente.

—Não, não está. Ele só está um pouco mais... macio. Enquanto falava ela passou os dedos pelos cabelos. Jeb riu e outra vez Kelly reparou no quanto ele mudava quando não estava com a expressão séria.

—Bem, eu gosto dele... macio — disse o capitão, sorrindo.

Kelly já tinha visto aquele sorriso num dos irmãos Flanagan e ficou com a impressão de que o homem tentava flertar com ela. Tal pensamento a deixou meio atordoada e ela imediatamente procurou se convencer de que seria impossível o sério e rígido capitão Hunter querer namorá-la. As atitudes dele apenas se adequa­vam ao espírito da noite.

—Está uma linda noite — comentou Kelly, aproveitando o pensamento e falando num tom leve. — E parece que todos aqui estão se divertindo muito.

E, parece — concordou Jeb, desfazendo o sorriso. — Isso é bom para eles. Vão precisar de boas lem­branças nos dias que teremos pela frente. Como você sabe, a maior parte da viagem ainda precisa ser feita.

Sim, eu sei. — Estaria na hora de falar da per­manência dela na caravana? Agora, quando o capitão estava relaxado e de bom humor, quando ele ainda dirigia a ela aquele... olhar que a deixava com as faces tão rosadas quanto as de Molly quando olhava para Patrick? — Pretende retomar a viagem daqui a três dias, não é, capitão? — começou Kelly, com cuidado.

A expressão do guia da caravana se tornou cautelosa.

Sim, partiremos daqui a três dias. Mas não se preocupe. Quando chegar essa hora, já terei feito todos os arranjos necessários para que vocês voltem para o Leste. A carroça pode ser vendida de volta à Companhia de Colonização do Oeste e assim vocês terão di­nheiro suficiente para pagar o transporte até Nova York, se é para lá que você e seu irmão querem ir.

Sabe muito bem que não é para lá que meu irmão e eu queremos ir, capitão Hunter.

Jeb abaixou os olhos para as próprias botas.

—Será que vamos estragar esta noite agradável com uma discussão, srta. Gallivan?

Sempre que ele a chamava pelo nome de família, era como se quisesse lembrá-la da farsa montada para enganá-lo.

— O senhor já me chamou de Kelly, capitão. Acho que pode me chamar pelo primeiro nome.

Outra vez ele olhou par ela.

— Kelly, então. Você está certa quanto a isso. No meio desta região selvagem, às vezes parece tolice con­tinuar observando todas as convenções sociais.

— É, parece — concordou Kelly. — Quanto a termos uma discussão, saiba que não é isso o que eu quero.

O rosto de Jeb mostrava agora a costumeira expres­são de seriedade, mas os olhos castanhos continuavam a observá-la com uma espécie de contida intensidade. A luz do sol poente o deixava com uma tonalidade dourada na pele bronzeada, como a de um leão atento.

— Está certo — ele disse, falando depressa. — Então não vamos discutir. Que tal se, em vez disso, eu for pegar um prato de comida para você?

Kelly balançou a cabeça.

—Não estou com fome.

Jeb fez uma careta, desaprovando o que acabava de ouvir. Outra vez correu os olhos pelo vestido dela.

Precisa comer alguma coisa, srta... Kelly. Nesse vestido, parece tão inconsistente quanto um arbusto balançado pelo vento no meio de uma campina.

Inconsistente?

Bem, um pouco... frágil. — Jeb pareceu confuso, quase embaraçado, o que não estava muito de acordo com o seu jeito em geral autoritário. — Eu quis fazer um elogio, não um insulto. Quando penso em todo o trabalho duro que você fez, arrastando e erguendo vo­lumes pesados, quando todos nós pensávamos que era um rapaz...

—Desde que consigo me lembrar, capitão Hunter, eu venho fazendo trabalho pesado. Quase todas as mu­lheres que conheço fazem a mesma coisa. Não sei porque isso parece surpreendê-lo.

Jeb Hunter sorriu. E foi um sorriso largo, franco. Kelly não queria acreditar nos próprios olhos.

—Não acredito que alguma coisa que você faça possa me surpreender, Kelly Gallivan — ele declarou. — E agora, já que devo chamá-la de Kelly, acho que você terá que passar a me chamar de Jeb.

Quando terminou de falar ele moveu a cabeça para

o lado, sempre sorrindo e olhando diretamente nos olhos dela. Aquilo era flerte, decidiu Kelly. Ela podia ser inexperiente naquelas coisas, mas os sinais eram inequívocos. A forma como ele a olhava fazia com que ela sentisse um calor interno. Uma sensação feminina. Talvez fosse por causa do vestido. Ela se sentiria mais segura se ainda estivesse envergando uma calça mas­culina. Não gostava daquela fraqueza, da sensação de que poderia se derreter. Era somente aquele tipo de debilidade feminina que permitia aos homens estabe­lecerem todas as leis e normas, como a que a impedia de prosseguir viagem com a caravana.

Kelly aprumou o corpo, embora com isso mal con­seguisse superar a altura dos ombros largos de Jeb.

— Talvez agora eu queira um pouco de comida — disse. — Mas acho que posso fazer eu mesma o meu prato.

Dito isso ela se voltou e caminhou com firmeza na direção das mesas de comida.

O sol agora mergulhava por trás do forte, espalhando uma explosão colorida e parecendo incentivar a alegria dos que participavam da reunião festiva. Cada um dos membros da caravana sabia que as planas pradarias que eles haviam atravessado até ali não eram nem de longe um exemplo das difíceis trilhas que teriam que ser superadas no deserto ali perto e nas planícies mais a oeste. Depois eles alcançariam as montanhas. Na­quela noite, porém, podiam esquecer o que teriam pela frente, podendo celebrar o término da primeira etapa de uma viagem rumo à realização do sonho de ter uma vida melhor.

A chegada da noite dava início a uma segregação, com os homens circulando em volta das jarras de vinho de maçã, as crianças correndo, cheias de energia, e as mulheres indo para lá e para cá, reabastecendo as mesas de comida. Mas agora havia também um grupo que se reunia para a dança, composto tanto por jovens como por mais idosos. Pais dançavam com suas filhas e senhoras de cabelos crisalhos rodopiavam nos braços de rapazes solteiros.

Kelly teve uma constante fila de parceiros desde o início da dança, chegando a ficar ofegante e exausta. Seguir os passos simples da dança campestre, acom­panhando o ritmo ditado pelos dois tocadores de ra­beca, não oferecia a menor dificuldade. Com surpresa, ela constatou que estava se divertindo enormemente. Não voltou a conversar com Jeb Hunter, que não apa­receu para convidá-la para dançar.

Mas alegrou-se ao ver Scott, que apareceu tarde e praticamente a arrebatou dos braços de Ole Estvold, bem no instante em que o corpulento norueguês en­tendia a mão para fazê-la rodopiar ao som de uma animada canção do Kentucky.

— Você está maravilhosa, garota! — disse o garim­peiro, de imediato. — Embora um pouco ofegante.

Kelly riu.

— Estou... ofegante, sim. Se quer saber, não ficarei aborrecida se nos sentarmos um pouco.

Os olhos de Scott. brilhavam de admiração.

— Vou pegar alguma coisa para você beber.

Segurando-a pelo braço, saíram do meio da multidão de dançarinos. Parando diante da mesa de comida já quase vazia, encheu um copo com vinho de maçã e ofereceu a ela.

No primeiro gole, o líquido desceu pela garganta de Kelly parecendo queimar.

— E forte — ela disse, tossindo.

Scott pegou o copo da mão dela e experimentou o vinho.

— É bem forte, sim — concordou. — Mas parece que é só o que resta — acrescentou, correndo os olhos pelas duas mesas. Passou o copo novamente para Kel­ly, dizendo: — Beba. Não vai lhe fazer nenhum mal. Pelo menos era uma bebida. Kelly encheu-se de co­ragem e tomou vários goles.

— Por onde andou? — perguntou depois a Scott.

— Batendo boca, como dizem por estas bandas — ele respondeu, com um sorriso.

— Com os soldados?

— Com os soldados, com veteranos do Oeste... Estão aqui dois verdadeiros homens das montanhas que re­solveram descansar um pouco depois da estação de caça. Foxy e Daniel.

— Foxy? — espantou-se Kelly. — Foxy não significa alguma coisa ou alguém aparentado com uma raposa?

Scott riu e pegou no braço dela, fazendo menção de conduzi-la para o centro do agora escurecido pátio.

— É, significa — confirmou. — Mas é assim que ele é chamado. Mas acho que não é o nome verdadeiro. Sujeitos pitorescos... os dois.

Kelly estendeu a mão para trás e depositou o copo em cima da mesa enquanto Scott a puxava.

— Para onde estamos indo?

— Não quer dançar um pouco mais? — ele a convidou, indicando com um gesto de cabeça o grupo de colonos.

Agora os dançarinos já não eram tantos, muitos de­les tendo se recolhido para as respectivas carroças.

— Não. Ainda estou esbaforida. Hoje me diverti mui­to mais do que imaginei ser possível.

Scott apertou levemente o braço dela.

— Tenho a impressão de que você não teve muitas oportunidades para se divertir na vida, Kelly.

— Meu pai era um homem divertido — ela respon­deu, um pouco na defensiva. — Sempre tinha alguma história para contar sobre os duendes, aqueles anõe-zinhos mágicos e brincalhões da mitologia irlandesa.

Patrick e eu ríamos tanto que ficávamos com o estô­mago doendo.

Eles continuaram a conversar enquanto caminha­vam vagarosamente ao longo da fachada do quartel, rumando para o lado do forte onde a caravana liderada por Jeb Hunter havia acampado. Estavam saindo do espaço alcançado pela luz das lanternas que tinham sido acesas para iluminar a improvisada pista de dan­ça. A única luz agora vinha das janelas das poucas casas de madeira que se erguiam depois do quartel. Mas a lua brilhava no céu e Kelly não teve problema nenhum para ver o sorriso que Scott mostrou, ao mes­mo tempo que retirava a mão do braço dela para en­volvê-la parcialmente pela cintura.

Não tive a intenção de criticar a sua infância, Kelly. Minha gente veio para esta terra há várias gerações. Antes de começar esta viagem, eu ficava me perguntando como seria deixar a casa da família e atravessar meio mundo para começar uma nova vida.

Mas agora está fazendo exatamente isso.

Sim, estou. E isso me faz admirar ainda mais imigrantes como o seu pai, que tiveram a coragem de vir para o Novo Mundo com a família.

Com duas crianças — acrescentou Kelly, com ên­fase. — Patrick tinha apenas seis anos de idade.

E você tinha apenas doze. Era muito jovem para ter que aprender a se adaptar a um mundo inteira­mente novo.

Papai e Patrick eram o meu mundo. Eu não me importava com nada além disso. Papai dizia que as coisas melhorariam na América.

E elas melhoraram?

Bem, na nossa terra natal as pessoas estavam passando fome. Portanto, acho que elas melhoraram, sim. Sempre tivemos o que comer em Nova York, desde que nos contentássemos com peixe.

Kelly sentiu um leve estremecimento ao se lembrar daquilo. Ou talvez fosse a friagem da noite. Scott aper­tou um pouco mais o braço em torno da cintura dela.

—É bom caminhar com você, Kelly — disse, numa voz subitamente rouca.

O zunido dos insetos na pradaria fazia um tranqui­lizante contraponto à conversa deles. E era bom sentir o calor que vinha do corpo de Scott.

— Eu também gosto — ela disse, simplesmente.

Aquilo evidentemente foi uma resposta suficiente para Scott. Parando de andar, ele segurou-a pelos om­bros e a fez ficar de frente. Em seguida beijou-a ternamente nos lábios. Imediatamente depois, aprumou o corpo e respirou fundo.

—Venho pensando em fazer isso há muito tempo, garota.

Tudo aconteceu tão rapidamente que Kelly nem teve tempo para ficar surpresa. Mas continuava a sentir nos lábios o calor dos dele. Era uma sensação extre­mamente agradável.

Agora já fez — ela murmurou.

Você ficou ofendida?

Kelly sacudiu a cabeça. Tinha sido o primeiro beijo dela... o primeiro beijo de verdade. E o mais surpreen­dente era que não estava nem enrubescida.

— Não, não fiquei.

— Ótimo — disse Scott, outra vez com o seu sorriso natural. — Porque pretendo voltar a fazer isso brevemente.

Kelly levou as costas da mão até os lábios ainda sensíveis.

Quando?

Brevemente.

Dito isso ele segurou novamente no braço dela e começou a andar na direção das luzes que iluminavam a pista de dança.

 

Jeb sentou-se na beirada da calçada diante do ambulatório do forte. Única calçada do lugar, ela era ladeada por dois compridos pilares que sustentavam um toldo verde. O saudável diverti­mento dos viajantes havia obtido integral aprovação do médico do forte, dr. Arthur Featherstone. Cerca de quarenta minutos antes Jeb tinha parado ali para ad­quirir alguns medicamentos de primeiros socorros, sen­tando-se para conversar com o velho e falastrão major, que sempre tinha histórias para contar, em geral en­volvendo ocorrências médicas. Finalmente o dr. Fea­therstone havia desejado boa-noite, dizendo sem ro­deios que já estava fechando o ambulatório, e Jeb foi para a calçada, de onde ficou observando os membros da caravana. Já estava escurecendo e, olhando para os que ainda dançavam no local iluminado pelas lan­ternas, ele se sentiu particularmente solitário. Então sentou-se na borda da calçada para contemplar a lua. O círculo luminoso no céu era a companhia mais ade­quada para ele naquela noite. Em qualquer noite.

O pensamento dele voltou para o encontro com Kelly Gallivan, algumas horas antes. Ao vê-la atravessando a multidão, envergando o vestido verde, sorrindo e com aquele seu jeito natural de mexer os quadris enquanto caminhava, ele havia sentido como se alguém o socasse no estômago. Já estava lidando razoavelmente bem com o fato de que ela era uma mulher atraente. Mas aquela súbita aparição de Kelly usando uma roupa feminina o pegara desprevenido. A roupa moldava per­feitamente a parte superior do corpo, ajustando-se numa cintura que não parecia tão fina na calça mas­culina. Uma onda de puro desejo se apossou de Jeb quando ele se lembrou naquilo.

Um casal vinha caminhando no escuro, na direção daquele lado, e ele não se surpreendeu ao verificar que quem se aproximava era Kelly em pessoa. Scott Haskell a abraçava pela cintura e olhava para ela. Estava escuro demais para que Jeb visse a expressão do garimpeiro, mas não tinha a menor dificuldade para imaginar qual seria.

Aqueles dois não poderiam vê-lo, já que ele estava inteiramente coberto pelas sombras do toldo e do edifício que tinha às costas. A educação mandava revelar a pró­pria presença, mas mesmo assim Jeb permaneceu imó­vel, automaticamente apurando os ouvidos na tentativa de ouvir alguma coisa da conversa dos dois. Mas as vozes eram baixas, como na conversa de dois namorados. E, como se fosse para confirmar aquela suspeita, subita­mente Haskell se inclinou para beijar Kelly.

Abatido com aquilo, Jeb sentiu algo que remota­mente se parecia com ciúme. Ciúme não, claro! Talvez fosse inveja. Ele sentia inveja de todos os casais apai­xonados que se entregavam ao impulso natural de tro­car carícias. Mas não cederia a nenhum impulso. Pelo menos não com uma pessoa por quem sentisse alguma afeição. Nunca mais repetiria aquele erro.

O beijo foi muito rápido. Muito mais rápido do que teria sido se Jeb estivesse na pele de Haskell. Mas agora ele definitivamente não queria ser descoberto. Protegeu-se mais nas sombras e conteve a respiração até que Kelly e Haskell se voltaram e, de mãos dadas, rumaram para a pista de dança.

O fato não ajudou em nada a melhorar o estado de ânimo de Jeb. E levantou uma questão. Estariam Has­kell e Kelly apaixonados? Se fosse o caso, eles poderiam se casar, sendo o comandante do forte oficiante da cerimônia, e consequentemente ela não seria mais uma mulher sozinha. Teria o direito de continuar na cara­vana. Era uma ideia interessante. Uma ideia que re­solveria os problemas de todos.

Jeb levantou-se da dura plataforma de madeira e dobrou o corpo para trás. Por um longo tempo ficou olhando para a escuridão depois da retirada do casal. Parecia mesmo a solução perfeita... Kelly Gallivan ca­sar-se com Scott Haskell. Ele não ficaria com a sen­sação de ter sido injusto ao impedi-la de realizar o sonho de viver no Oeste. Mais uma culpa.... E não pre­cisaria se preocupar em arranjar uma escolta para levá-la de volta ao Leste. Além disso, poderia ter a agradável companhia de Patrick pelo resto da viagem. Kelly e Haskell juntos... a solução perfeita. Mas isso nem de longe explicava por que a ideia o deixava com uma enorme vontade de socar as pilastras que sus­tentavam o bonito toldo do dr. Featherstone.

Quando Kelly chegou à carroça depois do passeio com Scott, Patrick já estava dormindo, enroscado por cima de algumas caixas nos fundos do bagageiro, ainda inteiramente vestido, de botas e tudo. Devia ter ficado morto de cansaço depois de correr o dia inteiro com os amigos, ela concluiu, com um sorriso.

Mas Kelly não estava com sono e pensou até em acender uma fogueira. Já que eles comeriam no jantar dançante, ninguém havia se preocupado em acender o fogo para preparar comida naquela noite. E agora ela se dava conta de que sentia falta... não exatamente do calor, já que a temperatura estava agradável, mas do conforto, da sensação de aconchego que a proximi­dade de uma fogueira proporcionava.

Seria muito bom ter um pouco de aconchego, embora Kelly não soubesse exatamente o motivo, daquela von­tade. Na verdade havia se divertido muito na festa. Todos tinham sido muito simpáticos com ela, mesmo os que haviam demonstrado aborrecimento depois do incidente na travessia do rio. Kelly havia gostado mui­to também de ter tido a ajuda de Dorothy para se vestir, de quando a amiga penteou os cabelos dela, pequenas atenções femininas das quais a vida inteira ela havia sentido falta.

— Durma bem, garota — disse Scott, com ternura na voz. —Agora pode descansar tranquila, sabia? Está começando a me parecer que você não precisará mais ter nenhuma discussão com o capitão Hunter. — Kelly fez um ar de quem não estivesse entendendo e ele sorriu. — Eu lhe disse que, no Oeste, mulheres sol­teiras não permaneciam solteiras por muito tempo, não disse? — Quando ela ia responder, Scott encostou dois dedos nos lábios dela para silenciá-la. — Já é tarde e você deve estar cansada, doçura. Conversaremos ama­nhã. Faremos alguns planos.

Depois ele a beijou, desta vez na face, e retirou-se.

Kelly encostou-se na carroça, sentindo-se melancó­lica. Provavelmente aquilo se devia a confusão em que se encontravam as emoções dela. O beijo de Scott tinha sido bom, talvez não tão mágico quanto ela havia ima­ginado que seria o primeiro beijo, mas certamente... agradável. O que a perturbava, no entanto, não era o beijo de Scott, mas sim as palavras com que ele havia se despedido.

Kelly desistiu da ideia da fogueira e de dormir, de­cidindo se sentar durante algum tempo para ficar ape­nas contemplando a lua. Acomodou-se no chão, sem se preocupar com a possibilidade de sujar o vestido, apoiou as costas na roda da carroça e suspirou. De nada adiantaria tentar se convencer de que havia en­tendido mal as palavras de Scott. Ele vinha sendo mui­to atencioso com ela desde o dia da partida da caravana e naquela noite tinha dito com todas as letras que pretendia voltar a beijá-la brevemente. As pessoas não costumavam fazer esse tipo de declaração a menos que a coisa estivesse começando a se tornar séria. E ela poderia resolver o problema que estava enfrentando. Se estivesse casada, Jeb Hunter não teria argumentos para expulsá-la da caravana. Parecia uma razão bem pouco comum para que alguém pensasse em se casar, mas provavelmente outras pessoas já haviam se casado por motivos bem mais prosaicos.

Estaria Scott apaixonado por ela? Kelly sabia que não tinha o mesmo sentimento por ele. Disso não tinha a menor dúvida. Embora houvesse perdido a mãe ainda muito pequena, lembrava-se do carinho com que os pais se tratavam. Recorrendo a lembranças mais recentes, vislumbrava o rosto do pai sempre que se referia à finada esposa. Sean Gallivan nunca havia se esquecido dela. Até morrer, nunca havia ao menos olhado para outra mulher. Isso, sim, era amor. E certamente não era nada parecido com a mistura de gratidão, amizade e afeição que Kelly sentia por Scott Haskell.

—Ainda está acordada? — perguntou Jeb Hunter, a enorme figura subitamente iluminada pelo luar.

Kelly assustou-se e bateu fortemente com as costas na dura roda da carroça. A pancada a fez soltar um mal contido grito.

Ai!

Desculpe — ele se apressou em dizer. — Não tive a intenção de assustá-la.

Kelly levou a mão as costas, tentando massagear o ponto atingido. Depois de algum tempo, viu que não conseguia alcançá-lo e desistiu.

O que deseja, capitão?

Jeb abaixou-se ao lado dela.

Você se machucou?

Enquanto falava ele ergueu a mão para o ombro dela, mas Kelly recuou.

— Eu estou bem — declarou, esperando para ouvir o que ele tinha a dizer. Depois de alguns instantes de silêncio, durante os quais o homem apenas ficou olhan­do para ela, voltou a falar. — Deseja alguma coisa a esta avançada hora da noite, capitão Hunter?

Jeb esticou as pernas compridas e sentou-se ao lado dela.

Eu queria apenas conversar. Mas acho que concordamos que você me chamaria de Jeb.

Não me lembro de ter feito nenhum acordo nesse sentido.

Jeb soltou um riso relutante.

Srta. Gallivan, é mesmo uma mulherzinha muito teimosa.

Alegra-me saber que percebeu isso, capitão. Assim não se surpreenderá amanhã quando eu voltar a pro­curá-lo para tratar da minha permanência na caravana.

Para falar a verdade, era justamente sobre isso que eu queria falar com você.

Agora que estava ali, Jeb não tinha muita certeza do motivo que o tinha feito procurar Kelly Gallivan. Se quisesse reconhecer a verdade, teria de dizer que não havia se sentido capaz de esperar até a manhã seguinte para confirmar ou desmentir o que pensava estar acontecendo entre Haskell e Kelly. Mas não havia sinal do garimpeiro por ali, e a irlandesa não parecia com o humor de uma garota que houvesse acabado de ouvir uma proposta de casamento.

—Por acaso mudou de ideia quanto à decisão de me expulsar da caravana, capitão? — ela perguntou, com uma ponta de esperança na voz.

Não. Eu não levo mulheres desacompanhadas nas minhas caravanas. Não conheço nenhum guia de ca­ravana que faça isso.

Então sobre o que quer falar comigo?

Jeb mexeu-se. Não era nada confortável ficar com as costas apoiadas na roda da carroça.

—Não acha melhor irmos nos sentar na beira do rio, onde a relva é mais macia? — sugeriu, ainda sem saber como se referir aos confusos pensamentos que tinha tido.

Kelly assentiu, indiferente, mas aceitou ajuda para se levantar quando ele se ergueu e estendeu a mão. Encolheu-se e fez uma careta quando apoiou o peso do corpo na perna que havia machucado.

Você está bem mesmo? — perguntou Jeb, segu­rando nos cotovelos dela.

Estou, sim. O tornozelo está quase bom, mas acho que esta noite dancei um pouco mais do que devia.

A caminho do rio Jeb continuou segurando no braço dela.

Talvez você deva enfaixá-lo novamente.

Vou pensar nisso. Se ele voltar a doer, pela manhã conversarei com Scott sobre o assunto.

Há um médico aqui no forte. Você devia dar mais atenção aos conselhos dele do que aos de um ferreiro — recomendou Jeb, sem conseguir tirar da voz o tom de censura. — Aqui está bom? — perguntou, indicando um local do barranco perto da margem do rio.

Kelly assentiu e eles se sentaram, a saia dela es­corregando pela borda do barranco. Logo depois ela pousou as mãos no colo e olhou para ele.

— Por que tenho a sensação de que o senhor não gosta muito de Scott?

Jeb respirou fundo e olhou para o incessante movi­mento das águas do rio.

Pessoalmente, não tenho nada contra Haskell. Apenas não sinto muita simpatia por garimpeiros.

Por acaso uma parte das pessoas que o senhor levou para o Oeste não se destinava aos campos de garimpo de ouro?

Jeb assentiu.

—Sim, já vi muitos homens bons se deixarem se­duzir pela febre do ouro. Em geral isso não resultou em boa coisa.

Kelly seguiu o olhar dele e começou a prestar aten­ção no correr da água. Aquilo era hipnótico. Então resolveu esperar. Jeb Hunter tinha dito que queria conversar com ela. Portanto, ele que falasse. Quando Jeb finalmente falou, depois de um demorado silêncio, foi de uma forma que quase a assustou.

—Você está pensando em se casar com Scott Has­kell? — perguntou, de chofre.

Kelly engoliu em seco. Por acaso aquele homem era algum tipo de bruxo? Ou tinha ficado escondido em algum lugar, escutando as palavras com que Scott ha­via se despedido dela? Bem, era melhor procurar ga­nhar tempo.

—Por que está me perguntando isso?

Jeb virou o corpo, ficando de frente para ela.

Está me parecendo que vocês dois se tornaram... muito bons amigos, digamos assim. E eu pensei que podia lhe ocorrer que, estando casada, não haveria motivo para ser impedida de continuar com a caravana até a Califórnia.

E mesmo? Se eu estiver casada, o senhor me deixará prosseguir a viagem?

Kelly ficou esperando pela resposta com a respiração contida, tendo que aguardar por vários momentos.

—Acho que vou ser obrigado a isso. Tendo um marido, você não seria em nada diferente das outras mu­lheres adultas que participam da caravana. Kelly sentiu umidade na palma das mãos.

Ah, sim...

Então você pensou no assunto.

Bem... não até esta noite.

Ele a pediu em casamento?

O homem pareceu tenso enquanto esperava pela res­posta dela.

—Acho que esse é um assunto para ser tratado apenas pelo sr. Haskell e por mim — disse Kelly, com frieza. — Francamente, não sei como isso pode ser do seu interesse.

O sorriso que ele mostrou foi igualmente gélido.

—Acho que já deixei bem claro para você que tudo o que acontece numa caravana liderada por mim é do meu interesse.

Sim, claro, ele estava certo quanto a isso. O único problema era que, na cabeça dela, a ideia de se casar com Scott ainda não estava suficientemente resolvida. Como poderia discutir o assunto com Jeb Hunter? Prin­cipalmente quando a proximidade dele à luz da lua começava provocar as mesmas palpitações que ela ha­via sentido ao vê-lo saindo do banho, inteiramente des­pido? Não eram sensações muito agradáveis e ela nem sabia exatamente o que podiam significar, mas sabia que nunca havia sentido com Scott nada nem remo­tamente parecido. Nem mesmo ao ser beijada nos lá­bios por ele, naquela mesma noite.

Kelly suspirou.

Sim, tem razão. O senhor tem todo o direito de saber. E pode ter certeza de que, tão logo eu saiba, irei lhe comunicar.

Então está pensando no assunto?

Jeb arrancou do chão um punhado de relva, que arremessou na direção do rio. Franziu a testa quando as folhinhas e os finos talos caíram no chão, sem al­cançar a água. Parecia até aborrecido com à ideia de vê-la casada com Scott, pensou Kelly, um pouco con­fusa. Provavelmente queria mesmo se livrar dela.

Para lhe dizer a verdade, capitão...

Vindo de você, isso é mesmo uma grande novidade — ele a interrompeu.

Kelly fez uma careta.

Reconheço que mereço esse seu comentário, mas a verdade é que não tenho certeza sobre se devo ou não me casar com Scott. Poderia ser uma solução para o meu problema, mas... simplesmente não sei.

Está apaixonada por ele? — perguntou Jeb, com o rosto muito perto do dela.

Kelly podia ver a leve cicatriz no lado direito do queixo dele e o reflexo do luar nos olhos castanhos muito claros.

—Eu...

O ar pareceu parar na garganta dela, dificultando a respiração.

O coração de Jeb começou a bater muito fortemente dentro do peito. Kelly estava tão perto que ele podia sentir o aroma de lavanda que o vestido verde exalava. E os lábios dela estavam muito próximos dos dele. Não sei, ela tinha dito, parecendo perdida. Aquelas palavras ecoavam, acompanhando a pulsação que ele sentia.

Num movimento inconsciente, Jeb ergueu as mãos para segurar nos braços dela. Depois, sempre como se os membros tivessem vontade própria, envolveu-a pela cintura. Logo depois os lábios deles se encontraram, primeiro apenas experimentando, depois mais exigen­tes, vorazes.

Kelly emitiu um som gutural, mas não era um pro­testo e aquilo apenas serviu para aquecer ainda mais o sangue dele. Aqueles lábios eram macios e carnudos e a boca era doce, com um leve gosto de vinho de maçã.

Jeb intensificou o assalto do beijo, agora nem remo­tamente pensando em se controlar. Sentiu no peito a pressão dos seios dela e apertou-a ainda mais, como se pretendesse sufocá-la. Queria aplacar imediatamen­te o desejo que havia se apossado dele no instante em que a vira nos braços de Scott Haskell.

Aquilo não podia ter demorado mais do que uns poucos segundos, mas foi o bastante para fortalecer a palpitação que Jeb sentia. Foi o suficiente também para que Kelly recobrasse os sentidos e colocasse as mãos no peito dele, começando a empurrá-lo.

Os gemidos que ela agora emitia eram inequivoca­mente de protesto. Jeb sentiu uma onda de alarme, algo parecido com pavor, e relaxou o abraço. O quê, em nome de Deus, havia tomado conta dele?

Sem dizer nada, Kelly saiu daquele abraço e recuou, continuando sentada no barranco. Jeb soltou-a ime­diatamente, sentindo uma contorção nas entranhas. Sentia também um forte calor na palma das mãos. Como se quisesse se esconder, deixou-se cair de costas no barranco e cobriu os olhos com o antebraço. Não queria ver a acusação que certamente havia naqueles olhos. Nunca na vida ele havia tentado tirar proveito de uma mulher contra a vontade dela. Por outro lado, enquanto sentia a respiração voltar ao normal, Jeb se perguntava se aquilo tinha sido inteiramente contra a vontade de Kelly? Teria sido a simples inexperiência que a fizera moldar a boca de forma que os lábios deles se ajustassem com tanta perfeição?

Desculpe — ele disse, finalmente, um pouco me­ nos arrependido do que tinha ficado quando ela havia interrompido o abraço.

Eu... o senhor... — gaguejou Kelly, parecendo mais perdida do que nunca.

E mais jovem.

Jeb sentou-se. Mesmo ela não tendo demonstrado inequivocamente que não queria aquilo, ele não tinha o direito de beijá-la.

— Deve ter sido por causa do luar — disse, devagar.

—E do seu vestido verde. Eu me deixei levar pelos seus... encantos.

Você não deveria... — ela começou, com uma ex­pressão de censura.

E claro que não. Eu vergonhosamente me apro­veitei de uma mulher sozinha e indefesa que estava comigo. — No mesmo instante ele percebeu como po­deria usar aquele incidente para garantir que não hou­vesse repetição do fato. — E é precisamente por isso que são estabelecidas normas sobre mulheres solteiras numa viagem longa. Elas ficam inteiramente indefesas contra um aproveitador como eu.

Kelly bateu nos joelhos com os punhos fechados.

—Então isso não passou de um espetáculo, capitão? —perguntou, numa voz baixa e cheia de raiva. —Estava querendo me mostrar o quanto estou indefesa?

Jeb sentiu o coração apertado, parte dele querendo negar a acusação. Kelly não tinha experiência prati­camente nenhuma com os homens, precisava saber que a resposta de seu corpo à proximidade do dela não era nenhuma farsa. Mas talvez fosse melhor para eles dois ela acreditar que estava mesmo lidando com um aproveitador.

— E consegui isso? — perguntou Jeb, com um sorriso forçado.

Kelly abriu as mãos e pôs-se de pé.

—O que o senhor conseguiu foi me mostrar que devo tomar mais cuidado na escolha das minhas companhias.

Vagarosamente, Jeb também foi se levantando.

— Se persistir na ideia de ir para o Oeste, você encontrará companhias bem piores do que eu.

— Duvido muito, capitão — despachou Kelly. Logo depois ela girou nos calcanhares e marchou na direção da própria carroça.

O que você diria se eu resolvesse me casar com Scott? — perguntou Kelly a Patrick, na manhã se­guinte, enquanto eles se ocupavam em acender a fo­gueira para preparar o café da manhã.

Casar-se? Casar-se com ele?

Bem, não sei se é exatamente isso o que Scott tem em mente. No entanto, se eu estiver casada com ele, o capitão Hunter terá que nos deixar prosseguir na caravana.

Kelly havia passado uma boa parte da noite mal-dormida tentando se convencer da lógica daquele pas­so. E procurando garantir a si mesma que, ao tomar a decisão, não levaria em conta os beijos que havia partilhado com Jeb Hunter na noite anterior. No final, porém, concluiu que não estaria sendo honesta consigo mesma se não reconhecesse que tinha ficado assustada com o que havia acontecido na beira do rio. Assustada não com Jeb, mas com ela própria.

Mas... — Patrick pôs sobre o monte a última acha de lenha e ficou olhando para a irmã, com a confusão estampada no rosto. — Isto é... você não pode se casar com alguém que mal conhece. Além disso... — Fazendo uma pausa o garoto mudou de expressão, agora parecendo aliviado. — Além disso, Scott não vai para Sonoma, mas sim para os garimpos de ouro. Não, você não pode se casar com ele.

Bem, talvez ele possa ficar casado comigo por algum tempo, indo depois para os garimpos de ouro.

Patrick pareceu ainda mais confuso do que nunca.

— As pessoas costumam fazer isso? Ficam casadas só durante algum tempo?

Kelly abriu os braços, exasperada.

—Não sei. Provavelmente a ideia toda é uma maluquice.

Durante algum tempo eles trabalharam em silêncio, Patrick acendendo o fogo e Kelly pondo pó de café no coador. Finalmente Patrick retomou a palavra.

Até que não seria tão ruim assim. Eu gosto dele.

Eu também gosto dele — declarou Kelly, numa voz tristonha.

Ela gostava dele. Desde o início, Scott tinha sido muito bondoso e prestativo. Fazia o possível para proporcionar momentos agradáveis a ela e a Patrick. Era um homem bom. E sabia beijar de uma forma muito agradável.

Agradável. Kelly sacudiu a cabeça quando uma ou­tra lembrança tomou conta da mente dela. Mas não foi a lembrança do beijo agradável de Scott Haskell. O beijo que a deixara com as pernas bambas e a sen­sação de que estava prestes a se derreter era um outro. Agora ela estava pensando no beijo de Jeb Hunter.

Depois de ter passado anos evitando a ideia toda, tinha sido beijada por dois homens na mesma noite. E os dois beijos não podiam ter sido mais diferentes um do outro.

Só por volta do meio-dia Scott foi procurá-la na car­roça. Kelly tinha ficado esperando pelo aparecimento dele desde o raiar do dia, no decorrer daquelas horas mudando de ideia pelo menos duas dúzias de vezes sobre o que queria que ele dissesse.

Patrick havia ficado quieto durante o café da manhã. Eles discutiram um pouco mais o assunto e Kelly ouviu do irmão as mesmas perguntas que se fazia. Ela amava Scott Haskell? Esperava ser feliz num casamento com ele? Seria um passo acertado a dar? O que o pai deles diria a respeito?

Aquela última pergunta era bem complicada de res­ponder. Com a morte da mãe de Kelly, Sean Gallivan havia perdido boa parte da fé na Igreja Católica. Dei­xou até mesmo de levar os filhos à missa. Mas Kelly sabia que o pai não havia abandonado inteiramente os princípios cristãos. Lembrava-se de, mais de uma vez, ter ouvido a opinião dele sobre um dos mais im­portantes sacramentos da Santa Madre Igreja.

—O casamento é para a vida inteira, meus filhos. Vocês devem ter toda certeza do que querem antes de pronunciar os votos.

Scott Haskell era mesmo o homem que ela queria por marido? Para o resto da vida? Quando Scott fi­nalmente apareceu, assobiando, com aquele seu jeito despreocupado e um buquê de flores na mão, que ofe­receu a ela depois de fazer uma galante reverência, Kelly ainda não havia encontrado resposta para ne­nhuma daquelas perguntas.

—Acho que você entendeu sobre o que eu estava falando ontem à noite, Kelly — ele disse, certamente reparando no ar de seriedade dela. — Afinal de contas, faria muito sentido... você e eu.

Faria sentido? Então o amor se resumia a isso? Kelly aproximou o buquê do nariz para sentir a fragrância, pensando na resposta que daria.

— Scott, desde o começo, você tem sido uma dádiva de Deus para nós. Mas agora está se dispondo a sa­crificar os próprios planos para fazer com que os meus dêem certo.

Scott sentou-se ao lado dela no tronco de árvore que eles haviam arrastado para perto do local da fogueira para que funcionasse como banco.

—Sacrifício! Que jeito de falar é esse, menina? Eu aposto que não existe um só homem num raio de se­tecentos quilômetros que não se sentiria o mais sortudo dos seres viventes se pudesse tê-la como esposa.

Naquele dia Kelly estava outra vez usando a calça do irmão. Aquela roupa fazia com que ela se sentisse mais forte, menos vulnerável.

—Bem, não existem muitos homens num raio de setecentos quilômetros — disse, com um leve sorriso. — Portanto o seu argumento não prova muita coisa.

Scott pegou na mão dela.

Eu consideraria um privilégio muito grande poder me casar com você, Kelly Gallivan, desde que aceite o meu pedido. — Então ele olhou para o chão. — Acha que devo me ajoelhar? — perguntou, com uma ponta de bom humor.

Por favor, não — respondeu Kelly, sacudindo a cabeça.

Aquele homem sabia fazê-la rir, dizia coisas muito engraçadas. Não tinha dito que a amava, mas ela não estava muito certa de que o amor era a coisa mais importante quando se tratava de casamento.

—Então o que me diz? Posso ir falar com o coman­dante do forte. Podemos nos casar hoje mesmo. Depois iremos procurar Jeb Hunter para dizer a ele que Kelly Haskell e seu novo marido estão definitivamente decididos a continuar integrando a caravana que partirá daqui dentro de dois dias.

Ela não saberia dizer se foi por causa da forma estranha como soou o nome dela misturado ao de Scott ou da menção a Jeb, mas subitamente Kelly viu a situação com cristalina clareza. Vagarosamente puxou a mão do meio das de Scott e deixou-a cair sobre o colo.

—Sinto muito, Scott. Não posso me casar com você. No mesmo instante ele aprumou a cabeça, demons­trando surpresa.

—Por que não? — perguntou, de chofre, desfazendo o sorriso.

— Acho que seria difícil explicar com palavras, mas tenho uma ideia formada sobre casamento... — Kelly fez uma pausa e sacudiu a cabeça. — Não sei se quero me casar.

Scott soltou o ar dos pulmões, exasperado.

Sempre pensei que o sonho de toda garota era se casar.

Bem, casamento não é o sonho desta garota aqui. Tudo o que eu quero é chegar à Califórnia, construir a fazendinha que- o meu pai...

E como conseguirá isso se não querem deixá-la ir para lá sem um marido? — inquiriu Scott, um pouco enraivecido e demonstrando na voz o quanto estava ofendido.

Ainda não sei. Só sei que não seria justo para você casar-se comigo só para que eu consiga chegar à Califórnia.

Acho que tenho o direito de dizer o que é justo ou não para mim — ele protestou.

Justo para nós dois, então. Eu fiquei muito li­sonjeada com a sua proposta, mais até do que posso dizer. — Kelly virou um pouco o corpo e pôs a mão no joelho dele. — Mas não posso aceitar. Se Jeb Hunter continuar se recusando a me levar para a Califórnia como uma mulher solteira, arranjarei um jeito de ir para lá por minha própria conta.

 

Durante mais algum tempo Scott havia tentado persuadir Kelly a se casar com ele, finalmente desistiu e foi procurar pelo forte os homens da montanha com quem dizia ter feito ami­zade. Depois de se mostrar inicialmente ofendido com a recusa, acabou reassumindo seu costumeiro jeito bem-humorado e brincalhão.

— Ainda tenho dois dias para vencer suas resistên­cias, garota — tinha dito, piscando-lhe o olho antes de se afastar.

Mas Kelly estava certa de que não mudaria de ideia. Com a decisão tomada, sentiu como se estivesse tirando dos ombros um enorme peso. Não importava o que acontecesse em relação à caravana que logo estaria rumando para a Califórnia, ela não prosseguiria a via­gem na condição de esposa de Scott Haskell. Mas a breve satisfação com a tomada de decisão sobre aquele assunto logo desapareceu. Ela ainda estava na mesma enrascada em que se encontrava antes que a ideia de um casamento com Scott houvesse ocorrido a qualquer um deles. Agora havia apenas uma pessoa em condi­ções de ajudá-la: Jeb Hunter. E isso apesar do fato de que, depois do ocorrido na noite anterior, ela não se importaria se nunca mais voltasse a pôr os olhos na­quele homem. Mesmo assim teria que procurá-lo.

Quando ia saindo do armazém do forte, Jeb não se surpreendeu ao ver Kelly Gallivan atravessando o pá­tio, caminhando resolutamente na direção dele. Sabia que naquele dia teriam de conversar, mas havia pro­curado protelar a conversa. Por isso não foi ao encontro dela, preferindo esperar que ela se aproximasse. Mas fez pelo menos a cortesia de tirar o chapéu.

—Quero falar com o senhor, capitão.

O olhar dela era duro, bem diferente da apaixonada submissão que ele tinha visto naqueles olhos azuis na noite anterior. Agora, porém, no que dizia respeito a Kelly Gallivan, a ocasião era bem outra. Jeb percebeu de pronto que ela não estava ali para falar sobre o que havia acontecido entre eles à beira do rio. O que estava perfeito para ele.

Sim, claro, srta. Gallivan — disse Jeb, procu­rando se expressar com naturalidade. — Natural­mente está aqui para saber detalhes sobre a sua volta para Westport.

Não. O que pretendo é persuadi-lo a me levar para a Califórnia. Estou disposta a ficar o dia inteiro aqui, suportando o sol e discutindo com o senhor, até obter a sua concordância.

Ela estava outra vez usando uma calça masculina, tinha as pernas levemente apartadas e as mãos na cintura. Se estivesse usando um cinto-cartucheira com um revólver no coldre, daria a impressão de que estava pronta para um duelo a bala. Definitivamente, não lembrava a mulher que ele tinha tido nos braços na noite anterior.

Já lhe dei minha resposta sobre esse assunto. Ficarmos aqui ao sol não me fará mudar de ideia.

Não compreendo como o senhor pode ser tão tei­moso — disse a irlandesa, enraivecida.

Jeb sorriu.

—Numa batalha de teimosia com você, srta. Gallivan, não estou muito certo de que sairia vencedor. Mesmo assim você não pode continuar integrando a caravana.

Porque sou solteira.

Porque não tem ninguém para protegê-la...

Nenhum homem — ela o interrompeu.

Sim, nenhum homem.

Ele devia contar-lhe, pensou Jeb, enraivecido. De­via sentar-se com ela para dizer exatamente as coisas horríveis que podiam acontecer no Oeste a uma mu­lher sozinha e desprotegida. Uma mulher como Mel-ly, a doce e indefesa Melly, que nunca devia ter sido deixada sozinha. A linda e meiga Melly, que havia se casado com ele confiando cegamente que teria toda proteção, sem pensar na possibilidade de que o ma­rido passasse a percorrer os garimpos em busca do sonho louco de riqueza instantânea. Ele até se per­guntava como ficaria o lindo e teimoso rosto de Kelly Gallivan depois que ela soubesse o que havia acon­tecido com Melly.

—Sua única exigência é que eu tenha um homem para me proteger. O que significa que, se eu me casasse com Scott Haskell, teria a sua permissão para continuar?

Pronto. Aquele era o momento pelo qual ele havia esperado. Talvez se tornasse mais fácil esquecer o calor que aquela mulher transmitia ao sangue dele com o conhecimento de que ela pertencia a um outro homem. Jeb esperava sinceramente por isso. De ou­tra forma, aquele poderia se tornar o mais longo ve­rão da vida dele.

—Se você se casasse, eu teria que permitir que continuasse fazendo parte da caravana até a nossa chegada à Califórnia.

Jeb quase podia sentir as ondas de irritação que exalavam da irlandesa enquanto ela ponderava sobre o que obviamente considerava a mais revoltante das injustiças. Bem, ele sempre havia olhado para os imi­grantes que levava para Oeste como algo parecido com crianças. E às vezes uma criança não se mostrava dis­posta a aceitar uma decisão tomada por um adulto, por mais necessária que fosse.

—E então? — ele perguntou. — Vai se casar com Scott Haskell?

Kelly deixou escapar um demorado suspiro e er­gueu os braços na laterais do corpo, deixando-os cair novamente.

—Não, não vou — respondeu, finalmente, com can­saço na voz.

Jeb ficou surpreso com a resposta e duplamente sur­preso com o alívio que sentiu ao ouvir aquelas palavras.

Por que não? — perguntou.

Porque não amo Scott Haskell, capitão Hunter, embora isso não seja da sua conta.

Tudo o que acontece nesta...

Kelly ergueu as duas mãos para interromper o que ele dizia.

Sim, sim, já sei. Tudo o que acontece nesta ca­ravana é da sua conta. Bem, capitão, como o senhor já me informou numerosas vezes, não faço mais parte da caravana. E isso significa que não é mais da sua conta nada que diga respeito à minha vida.

Eu prometi que a ajudaria a fazer os arranjos para o retorno.

Kelly virou as costas no meio da frase dele e começou a se afastar. Um pouco adiante olhou rapidamente para trás.

Não precisa se preocupar. Meu irmão e eu per­maneceremos no forte até que apareça por aqui uma caravana que concorde em nos levar para a Califórnia.

Pode ser uma longa espera.

Agora a irlandesa estava quase no meio do pátio.

—Isso não é mais da sua conta, lembra-se, capitão?

Quando ele conseguiu pensar numa resposta ela já estava muito longe e não poderia ouvir.

—O próprio Scott, Rudy Popovich... mais... Dorothy ergueu os dedos da mão direita, começando a contagem.

—O sr. Ingebretson — ajudou Patrick.

Há uma porção de homens solteiros na caravana — concordou Kelly. — Apenas as mulheres solteiras não têm permissão para participar. Segundo o capitão, elas não têm quem os proteja.

Mas eu estou aqui para proteger você, Kelly! — protestou Patrick, com a voz de pré-adolescente cheia de indignação.

Tem toda razão, Patrick — apoiou Eulalie Todd. — Kelly tem você e uma porção de amigos para protegê-la.

E nós nos incluímos entre esses amigos — de­clarou a mãe de Charles Kirby, Francês, que havia se juntado ao grupo de mulheres reunido na carroça dos Gallivan para discutir a decisão do guia da caravana de expulsar Kelly e o irmão. — Charles ficará arrasado se Patrick não continuar conosco.

Muitas daquelas mulheres tinham uma secreta ad­miração por Kelly por ela ter tido a coragem de se dis­farçar de homem com a finalidade de participar da via­gem. E queriam ver resolvida positivamente a compli­cação em que os dois órfãos irlandeses se encontravam.

— Sabem de uma coisa? — disse Dorothy, correndo os olhos pelo grupo. — Nós todas estamos indo para o Oeste porque queremos que as coisas sejam diferen­te... para nós e para nossas filhas.

—Ouvi dizer que no Oeste já se fala até em permitir que as mulheres tenham o direito de votar — acrescentou Francês.

Como a mais velha das mulheres presentes, Eulalie ocupava uma posição no centro do grupo, compatível com a tranquila liderança que tinha.

— É, parece que os ventos estão mudando — ela comparou.

— Bem, as coisas podem estar mudando no Oeste, mas no que se refere a esta caravana elas continuam a ser exatamente como são no Leste — pronunciou-se Kelly. — É a palavra do homem que prevalece.

Por alguns momentos ninguém disse nada. Sentado no chão, Patrick mexeu-se, procurando se ajeitar, evi­dentemente pouco à vontade por ser o único represen­tante ali do desprezível sexo masculino.

—E eu sei muito bem qual é o motivo disso — disse Dorothy, finalmente. — A caravana somos nós... todos nós. Homens e mulheres, não importa qual seja o sexo de cada um. Se quisermos que vocês dois con­tinuem conosco, não entendo por que um homem so­zinho tem o direito de decidir o contrário. Mesmo sendo ele o guia da caravana.

—Segundo o contrato... — começou Kelly. Aquela altura, porém, Dorothy já havia se levantado e passava as mãos uma na outra para tirar os vestígios de terra, com um ar de determinação no rosto.

— As pessoas podem falar mais alto que qualquer contrato, Kelly. Principalmente quando falam juntas. — Fazendo uma pausa ela correu os olhos pelo grupo e sorriu. — Vamos, meninas. Temos um trabalho a fazer!

Com incredulidade, Jeb olhou para o grupo de mu­lheres que entrou no dormitório do quartel, onde àque­la hora só ele estava. Querendo permitir que os Todd tivessem privacidade em sua carroça pelo menos du­rante a estada deles no forte, havia pedido ao coman­dante permissão para pernoitar ali, já que havia várias beliches desocupadas. Com isso, tinha também a chance de conversar com os soldados. Naquela noite, porém, sentindo-se pouco sociável, não estava com disposição para ouvir as histórias dos soldados, caçadores de peles e aventureiros que sempre podiam ser encontrados no forte, fosse qual fosse a época do ano.

Felizmente tinha sido o primeiro a chegar ao dor­mitório. Com um pouco de sorte, adormeceria antes que começasse a costumeira sinfonia de roncos e res­piração pesada. No entanto, mal havia tirado as botas quando se deu a grandiosa entrada do que parecia ser metade das mulheres da caravana. Lideradas pela mu­lher de Frank, Eulalie. E no meio delas, naturalmente, estava Kelly Gallivan.

— Capitão Hunter — Eulalie tomou a palavra. Não era um bom começo, já que, desde o segundo dia da viagem, a maternal e grisalha senhora o tratava pelo primeiro nome. — Estamos aqui para tratar de um certo assunto com o senhor.

Jeb levantou-se vagarosamente e olhou para os pés calçados apenas pelas meias. Bem que queria estar com as botas. Um homem que se visse sozinho diante de um bando de mulheres determinadas devia pelo menos estar de botas.

Passando a mão pelos despenteados cabelos ele ob­rigou-se a sorrir.

— Boa noite, sra. Todd... minhas senhoras.

— O assunto se refere aos Gallivan, a jovem Kelly, aqui presente, e o irmão dela, Patrick.

— Sim — disse Jeb, com secura. — Foi o que imaginei. Dorothy Burnett adiantou-se um passo e passou o braço em torno da cintura de Kelly. Com resposta, a irlandesa dirigiu um meio sorriso à loira e também passou o braço por trás da cintura dela. Embora Kelly ainda vestisse roupas masculinas, o gesto parecia im­plicar algum tipo de comunicação feminina que excluía totalmente Jeb ou qualquer outro homem.

— Pelo que soubemos, o senhor disse que ela não podia continuar com a caravana — pronunciou-se Dorothy, numa voz cordial mas firme.

Estranhamente, Jeb se sentiu na defensiva.

— Os colonos formaram uma associação, legalmente constituída, e é isso o que está numa das cláusulas do contrato de instituição dessa associação — respon­deu, logo se recriminando por achar que precisava usar argumentos legais para justificar os próprios atos.

— Sabemos disso — voltou a falar Dorothy. — Mas nós... — Fazendo uma pausa ela correu os olhos pelas outras mulheres presentes. — ...nós mulheres não con­sideramos justa essa cláusula em particular.

— E gostaríamos de lembrá-lo de que a associação é constituída por nós — acrescentou Eulalie. — Todos nós, homens e mulheres. Assim sendo, achamos que essa cláusula pode perfeitamente ser modificada.

Jeb resistiu à vontade de massagear a nuca. Já havia reparado que Kelly adotava uma postura prudente, sem dizer nada até aquele momento. E não precisava, já que metade das mulheres da caravana estavam ali para falar por ela. Numa caravana como aquela, as noites poderiam ser longas e frias para o homem que não tivesse os favores de sua esposa.

— Nas caravanas que liderei até hoje, nunca deixei que as regras fossem mudadas no meio da viagem — disse Jeb, ele próprio sentindo que não falava com muita convicção.

De alguma forma, no instante mesmo da entrada daquele bando de mulheres no dormitório, havia per­cebido que não venceria a batalha que estava para ser travada.

—Bem, na minha opinião essa é uma outra norma que pode perfeitamente ser modificada — respondeu Eulalie, com a tranquilidade que lhe era própria.

Jeb olhou para o chão. Até onde estava disposto a ir para manter a decisão tomada? Não apenas as noi­tes, mas também os dias seriam bem longos e insu­portáveis se as mulheres da caravana se voltassem contra o guia. A solidariedade e o bom humor exis­tentes até ali desapareceriam, dando lugar à descon­fiança e a intrigas. Isso podia até ser perigoso. Desen­tendimentos no grupo era o caminho mais fácil para o surgimento de problemas os mais diversos. Não era fácil decidir. Ele precisava pesar os benefícios de uma capitulação àquela altura em comparação com uma possível perda de autoridade num momento em que ela fosse absolutamente necessária. Também não podia deixar que isso acontecesse.

Levantando a cabeça ele cruzou o olhar com o dé Kelly.

—Não me oponho a que o assunto seja resolvido por uma votação — declarou, finalmente. — Deixare­mos que os membros da caravana tomem a decisão.

— Uma votação, naturalmente, da qual participa­riam todos os membros da caravanas, inclusive as mu­lheres — condicionou Dorothy.

Jeb olhou para a bonita loira, depois para o rosto enrugado de Eulalie, que o observava com a severidade que a suas feições naturalmente brandas permitiam. Finalmente olhou novamente para Kelly.

— Uma votação da qual as mulheres participarão — concordou.

No mesmo instante os olhos de Kelly se encheram de luz. Jeb teve até a impressão de que ela correria para abraçá-lo. Mas foi apenas impressão, claro, ele concluiu, frustrado. Além de não se casar com Haskell, a bela irlandesa continuaria integrando a caravana e ele a veria todos os dias, durante muitas semanas. Com a constante presença dela, não poderia se esque­cer de quando havia beijado aqueles lábios tentadores, de como havia sentido no peito a pressão dos seios dela. Naquele momento mesmo se lembrava de tudo aquilo, embora corresse o risco de que as reações do corpo dele o deixassem embaraçado diante de todas aquelas mulheres.

Jeb sentou-se pesadamente na cama.

— Se isso encerra a nossa discussão, minhas senho­ras, desejo boa noite a todas — disse, quase com secura. — Já estava me recolhendo.

— Então faremos a votação amanhã? — quis saber Eulalie.

Jeb assentiu, com os olhos fixos na esposa de Frank e evitando olhar para Kelly.

— Sim. Pela manhã conversarei com Frank e pedirei a ele que cuide dos detalhes.

—Obrigada, capitão — disse Kelly, com brandura, falando pela primeira vez.

Por intermináveis segundos ela sustentou-lhe o olhar antes de se voltar para seguir a procissão de mulheres que, contidamente triunfantes, caminhavam para a saída do dormitório. Jeb esperou até que a porta se fechasse e deixou-se cair de costas na cama, abatido.

O grupo de apoio aos Gallivan, que agora incluía praticamente todas as mulheres da caravana e boa parte dos homens, mostrou-se radiante quando, como resultado da votação, ficou decidido que a carroça dos irlandeses continuaria com eles a viagem. Kelly, no entanto, se perguntava se o custo daquela vitória não tinha sido muito alto. Era muito bom ter conquistado tantas amigas entre as mulheres, algo de que até então não se sentia capaz, mas ao mesmo tempo os dois ho­mens que antes haviam se tornado tão importantes para ela pareciam se afastar.

A reação de Scott à rejeição do pedido de casamento estava sendo mais dura do que Kelly havia imaginado. Na verdade ela não tinha pensado que a proposta fosse algo mais que outra tentativa de resolver os proble­mas dela. Mas evidentemente que envolvia mais sen­timentos do que o jeitão despreocupado do garimpeiro demonstrava.

Quanto a Jeb Hunter, tomava todos os cuidados para não se aproximar da carroça deles. Nem aparecia mais para convidar Patrick para cavalgadas matinais, o que antes fazia com frequência. Era duro para Kelly ver o irmão observando de longe o guia da caravana, com olhos compridos.

Bem, ela havia afirmado que conseguiria chegar ao Oeste sozinha, sem a ajuda de nenhum homem, e apa­rentemente estava tendo a chance de provar isso.

Agora que Scott e Jeb pareciam não querer a com­panhia deles, Kelly e Patrick adquiriram o hábito de acender a fogueira à noite com os Burnett. Molly fi­nalmente demonstrava com menos timidez a paixonite que sentia por Patrick e as três crianças se davam muito bem. Sem se queixar muito, ajudavam os adultos na preparação do jantar e depois corriam para brincar com as outras crianças da caravana, aproveitando o fato de que no verão o sol demorava a se esconder.

A princípio Kelly se retirava logo depois da partida das crianças, achando que Dorothy e John podiam que­rer privacidade. Atendendo à insistência deles, porém, passou a ficar até mais tarde, sentando-se perto da fogueira para bebericar café. Gostava da companhia daqueles dois. Além disso, não teria graça nenhuma ficar sozinha na carroça atulhada de coisas.

Agora eles atravessavam uma região seca das pra­daria a oeste de Nebraska... o deserto, como se cos­tumava dizer. O chão ainda era coberto por uma relva pontilhada por flores silvestres, mas já se viam plantas características de regiões desérticas, como o cacto. E a poeira era mais espessa, às vezes pare­cendo ficar parada no ar quando as carroças se movimentavam. Mesmo cobrindo o nariz com um lenço, os viajantes tossiam.

Aquele dia tinha sido um dos piores. Os Burnett e os Gallivan haviam tossido durante o jantar inteiro, bastando para isso pensar na nuvem de poeira.

— Vai ser duro ter de voltar à trilha amanhã pela manhã — comentou Kelly, suspirando.

— Ah, pode acreditar que vai — concordou John.

—Eu fico até com a impressão de que o deserto vai sumir... já que a areia está entrando toda nos meus pulmões.

Kelly e Dorothy riram.

— Talvez melhore um pouco se molharmos o lenço com que cobrimos o rosto — sugeriu a loira.

John balançou a cabeça.

— Ele secará num minuto, por causa do calor. Além disso, temos de poupar água. Vocês devem se lembrar do que o capitão disse sobre a secura desta região.

— Não podemos fazer isso nem para as meninas?

— persistiu Dorothy. — Elas caminharam durante a maior parte do dia, mas mesmo assim ficaram muito expostas à poeira.

John coçou a cabeça.

—Não sei, mas podemos conversar com o capitão Hunter sobre o assunto.

— O que você e Patrick estão fazendo em relação à poeira, Kelly? — perguntou Dorothy.

— O mesmo que vocês. Usamos lenços que, minutos depois, ficam tão cheios de poeira que não fazem ne­nhum efeito.

— Acho melhor irmos falar com o capitão agora mes­mo — sugeriu Dorothy. — Pelo menos ele poderá nos dizer por quanto tempo ainda ficaremos no deserto.

Kelly sentiu um arrepio. Mal tinha visto o homem naquela última semana, mas a lembrança do que havia acontecido entre ela e Jeb no forte ainda era muito clara, como se o fato houvesse ocorrido minutos antes.

— Acho que já vou dormir — ela se apressou em dizer.

E foi aquela pressa que a esperta Dorothy não deixou de perceber.

— Qual é o problema entre você e o capitão? Antes de chegarmos a Fort Kearney ele vinha à carroça de vocês quase todas as noites. Agora simplesmente desapareceu.

Kelly balançou a cabeça, fazendo uma expressão vaga.

— O capitão anda muito ocupado, acho.

Dorothy franziu a testa. As rugas naquela região do rosto dela haviam se tornado mais pronunciadas depois de todos aqueles dias de exposição ao sol. Depois de ficar olhando para Kelly durante algum tempo, vol­tou-se para o marido.

— Por que não vai procurar o capitão Hunter para discutir o assunto com ele, querido? Pergunte o que podemos fazer para pouparmos as crianças desse desconforto.

John assentiu e desdobrou as longas pernas para se levantar.

— Logo estarei de volta — disse, pondo-se a cami­nhar ao longo da fila de carroças com seu jeitão calmo.

Dorothy ficou olhando para ele, com uma expressão de ternura.

—Você devia agradecer a Deus pela sorte que tem, Dorothy — comentou Kelly. — John é um homem como muito poucos.

— É um bom marido e excelente pai — concordou a loira, sorrindo. — Mas eu arranjei um jeito de afas­tá-lo daqui só para que nós duas possamos conversar sobre você. Fale-me do capitão Hunter.

Kelly sentia-se próxima de Dorothy como jamais ha­via se sentido de nenhuma outra mulher, mas era absolutamente impossível revelar o que havia acontecido na margem do rio naquela outra noite.

— O que poderei lhe dizer sobre ele? Você sabe que Jeb Hunter sempre foi contra a minha permanência na caravana. Nunca teria concordado em me levar se não fosse a firme tomada de posição de vocês todas.

Dorothy dobrou o corpo para frente e jogou no fogo dois gravetos secos, que quase imediatamente se tor­naram incandescentes.

— Sim. E o que mais? — disse, num tom paciente.

— O que mais?

—O que mais existe entre você e Jeb Hunter?

Kelly procurou se ajeitar onde estava, subitamente achando muito forte o calor que vinha da fogueira.

— Não existe mais nada. Ele está enraivecido co­migo, acho.

—Sei... — Os olhos azuis de Dorothy tinham um brilho malicioso. — Minha avó me disse uma vez que os homens ficam enraivecidos com as mulheres por quem estão apaixonados.

Kelly corou fortemente.

—Não diga bobagens, Dorothy. É claro que Jeb Hunter não está apaixonado por mim. Para falar a verdade, ele me parece ser do tipo de homem que não se apaixona por ninguém.

— Bem, imagino que Jeb Hunter era muito apai­xonado pela esposa.

—Esposa? — repetiu Kelly, sem entender por que ficava tão surpresa com o que acabava de ouvir.

O capitão devia ter uns trinta anos, mais ou menos. Poucos homens chegavam àquela idade sem se casar.

— Você não sabe da história? Ele tinha uma esposa jovem e muito bonita. Eles estavam casados há poucos meses quando ela morreu. Pelo que dizem, a pobrezi­nha foi assassinada enquanto estava sozinha no chalé em que eles moravam, na Califórnia.

Kelly engoliu em seco, sem dizer nada.

—Acho que ele nunca se recuperou completamente do choque — prosseguiu Dorothy. — Sempre procuro me lembrar disso quando o capitão se mostra um pouco... você sabe... quando ele fica autoritário. A experiência, pela qual passou deixaria abalado qual­quer homem.

— Acho que sim — concordou Kelly, sentindo um arrepio. — Deve ter sido muito duro para ele.

— Mas isso foi há muitos anos. Desde então o capitão vem trabalhando como guia de caravanas. Acredito que seria doloroso para ele se fixar novamente na Califórnia.

Kelly sentia-se atordoada pelo que acabava de tomar conhecimento. A tragédia acontecida com a jovem es­posa de Jeb devia ter alguma coisa a ver com a firme oposição dele à presença de mulheres desacompanha­das nas caravanas que liderava. Agora tudo parecia fazer mais sentido e, pela primeira vez desde que eles haviam partido de Fort Kearney, ela se sentia mais compreensiva em relação ao bonito capitão. Já não era tão fácil classificá-lo simplesmente como um machão teimoso que se recusava a reconhecer as capacidades de uma mulher.

— Então o que me diz? — perguntou Dorothy.

—Sobre o quê? — murmurou Kelly, que havia se esquecido inteiramente do assunto da conversa delas.

—Não ouviu nada do que eu disse, Kelly? Talvez hoje você esteja sonolenta demais para tratar disso.

Arrependida de ter ficado tão distraída, Kelly olhou para a amiga, agora prestando toda atenção.

— Tratar de quê?

Dorothy mostrou um sorriso complacente.

— Conversar com Jeb Hunter. Eu estava sugerindo que fôssemos atrás de John para participar da conversa sobre o deserto. Depois John e eu nos retiraríamos e você teria a chance de ficar sozinha com o capitão.

A simples ideia fez com que Kelly sentisse uma pon­tada no estômago. Ela não queria ficar sozinha com Jeb. Menos ainda naquele momento. Não enquanto não tivesse tempo para digerir a informação que Do-rothy havia lhe revelado com tanta naturalidade.

—Não acho que seja uma boa ideia — disse. Dorothy levantou-se e sacudiu a saia.

— Bobagem. Há dias que vocês dois vêm evitando se encontrar. O pobre Patrick não pode mais cavalgar porque o capitão nunca fica a menos de dez metros da carroça de vocês. E você se vê obrigada a passar noites de tédio porque rejeitou um pretendente e se convenceu de que devia assustar o outro.

Como de costume, o jeito de falar direto de Dorothy fez Kelly achar que levava as coisas muito a sério. A amiga tinha razão. Era tolice ela e Jeb evitarem se falar. O mesmo podia ser dito em relação a Scott. Ela devia simplesmente procurar os dois e dizer: "Paz. Va­mos ser amigos".

Vagarosamente Kelly se levantou.

— Irei com você, Dorothy — disse. — Mas só para saber quanto tempo ainda levaremos para atravessar o deserto. E para ser... amigável. Mas quero fazer um pedido: prefiro que você não me deixe sozinha com ele.

— Sua covarde! — ralhou Dorothy, sorrindo. Com relutância, Kelly riu.

— Você tem razão quanto ao que disse sobre Patrick. Ele sente muita falta das cavalgadas matinais. É per­feitamente natural para um menino que acabou de perder o pai buscar a companhia de alguém com mais autoridade. Quanto ao meu relacionamento com Jeb, porém, ficará resumido ao trabalho. Meu pai pagou pelos serviços dele como guia e eu agora apenas farei uso disso. Não quero que esse limite seja ultrapassado.

— Então você o trata por Jeb, é? — Dorothy passou o braço por trás da cintura de Kelly enquanto elas começavam a se afastar da carroça. O tom risonho da sua voz era ainda mais acentuado pelo sotaque da Virgínia. — Kelly, menina, você pode ficar falando até fazer o rio fluir em sentido contrário, mas procure uma outra para convencer dessa história de "relacionamen­to resumido ao trabalho". Não fique pensando que a filhinha da minha mãe nasceu ontem.

 

Kelly havia esperado sinceramente que Dorothy atendesse ao pedido feito por ela para não ser deixada sozinha com Jeb Hunter, Elas encontraram John e Jeb sentados em volta da fogueira dos Todd, juntamente com Eulalie e Frank, além dos homens da montanha, Foxy e Daniel. Os dois grisalhos pioneiros haviam resolvido se juntar à caravana deles em Fort Kearney apenas para ter com­panhia até as montanhas, onde se dedicariam a mais um período de caça antes que a neve começasse a cair.

Kelly tinha ficado contente ao ver o tamanho do grupo. Aquilo significava que ela não corria o risco de ter de conversar sozinha com o guia da caravana. No entanto, nem havia terminado de tomar a caneca de café oferecida por Eulalie quando Foxy e Daniel se levantaram, alegando que queriam abrir seus cober­tores na relva para dormir. Eulalie e Frank também se disseram cansados, recolhendo-se à carroça. E não demorou muito para que Dorothy, exatamente como havia ameaçado, cutucasse o marido e se levantasse.

— Precisamos chamar as meninas, John — disse, com fingido ar de preocupação. — Está na hora de pôr as duas para dormir. Mas você pode ficar, Kelly. Certamente quer saber mais sobre o que acontecerá no resto da viagem. Isso é até bom, porque amanhã poderá nos passar as informações que o capitão lhe der.

John levantou-se, meio desequilibrado depois de ser privado da confortável localização perto do fogo. Dirigiu um olhar de surpresa à esposa, mas seguiu atrás dela sem dizer nada.

Subitamente eles estavam sozinhos. Kelly não teve tempo nem para pensar em alguma desculpa com que pudesse se retirar.

— Então está querendo ter informações sobre o resto da viagem, srta. Gallivan? — perguntou Jeb.

Ele falava com formalidade, nem de longe usan­do o tom cordial que havia empregado na primeira fase da viagem e até mesmo depois da revelação do disfarce dela.

A noite estava agradável e calma. A nuvem de poeira que acompanhara a caravana durante todo o dia finalmente estava assentada. Kelly achou que a noite estava bonita demais para que ela ficasse res­sentida. Na verdade, achava até divertida a ousadia de Dorothy. E não podia se queixar do comporta­mento determinado da amiga. Afinal de contas, a obstinação de Dorothy e a serena persistência de Eu­lalie tinham grande responsabilidade na permanên­cia dela na caravana.

No entanto, diferentemente de Dorothy, que havia crescido entre as beldades do Sul, Kelly não sabia lidar com as dissimulações do jogo homem-mulher.

—Acho que minha amiga tramou para nos deixar a sós — disse, sem meias palavras.

A máscara de polidez que cobria o rosto de Jeb es­corregou um pouco.

— Por que acha que ela faria isso, srta. Gallivan? — ele perguntou, depois de umedecer os lábios.

Kelly mostrou um meio sorriso. Otimo. Aparente­mente o homem estava pronto para ser tão direto quanto ela. Era até possível que, no fim das contas, eles tivessem alguma coisa em comum.

— Na opinião de Dorothy, eu devia lhe perguntar por que tem evitado se aproximar da nossa carroça. Compreendo seus motivos para ainda ter raiva de mim, mas acho que Patrick não tem nada a ver com isso.

Jeb pegou o bule e serviu-se de mais um pouco de café. Fez um gesto de cabeça para a caneca que Kelly ainda segurava com as duas mãos, mas ela recusou com um meneio de cabeça. Tudo levava a crer que ele estava querendo ganhar tempo antes de fazer algum comentário. .

Então ela resolveu tomar a iniciativa.

— Ainda está zangado comigo, capitão?

Jeb pôs o bule de volta perto do fogo e olhou para ela.                                  

— Não — respondeu.

— Então por que...

— Acho que você já sabe a resposta para essa per­gunta, Kelly.

Agora havia naqueles olhos castanhos o mesmo bri­lho que ela tinha visto naquela noite na beira do rio. E era algo mais palpável que um toque. Durante al­guns segundos ela ficou com a respiração contida.

— E porque... — Kelly fez uma pausa e respirou fundo. Não queria falar com a voz trémula. — E por causa do que aconteceu no forte?

Jeb pareceu enraivecido, mas ela não pensou que fosse a causadora de toda aquela raiva.

— É por causa do que aconteceu no forte, sim — ele confirmou, rispidamente. — E por causa das pos­síveis consequências, se aquilo voltar a acontecer.

— Não... não voltará a acontecer — disse Kelly, numa voz muito fraca. — E... eu não estou mais abor­recida com aquilo. Portanto, peço que não se preocupe.

Uma distância de mais de um metro os separava, mas ela sentia um certo calor entre eles, exatamente como tinha sido na outra noite, quando subitamente tudo havia se transformado em algo de que se lembrava todas as noites, sempre que fechava os olhos.

E ele sentia a mesma coisa. Kelly podia ver isso pelo brilho dos olhos castanhos, pela respiração ace­lerada. Ela precisava sair dali... imediatamente. Então levantou-se e estendeu a mão para devolver a caneca.

— Preciso ir — disse, nervosamente. — Eu... bem... tenho que chamar Patrick para dormir.

Jeb levantou-se um segundo depois. Estendeu o braço para pegar a caneca, mas segurou também a mão de Kelly, impedindo-a de se afastar. Os dedos dele eram quentes e fortes, contrastando com os dela, que estavam frios apesar de terem segurado a caneca morna.

— Não está mais aborrecida com o que aconteceu? — ele perguntou, em voz baixa. — Então isso significa que, na ocasião, ficou aborrecida.

— Bem, eu fiquei, mas depois percebi que tinha sido apenas um beijo sem nenhum outro significado... — Ago­ra parecia impossível controlar o tremor da voz e Kelly respirou fundo. — É só que não sou muito experiente nessas coisas e fui tomada de surpresa.

Enquanto falava Kelly tentou puxar a mão, mas Jeb manteve o aperto dos dedos.

— Isso me parece muito óbvio — disse Jeb, balan­çando a cabeça para calar o protesto que ela começou a fazer por causa da rudeza dele. — Se você tivesse alguma experiência, Kelly, saberia que o que aconteceu entre nós naquela noite não foi "apenas um beijo sem nenhum significado".

Kelly puxou a mão, achando ridícula aquela disputa, mas então ele a soltou, continuando a segurar apenas a caneca. Apesar do nervosismo que sentia, achou en­graçada a veemência do tom de voz dele e sorriu.

— Está certo — submeteu-se. — Foi mais do que um beijo sem nenhuma significação. Acho que tenho experiência suficiente para pelo menos saber disso.

— Otimo — aprovou Jeb, no mesmo tom ríspido. — Então deve saber também por que tenho evitado uma repetição do evento.

Kelly ergueu as sobrancelhas.

— É porque... não gostou — arriscou.

Jeb revirou os olhos, num gesto de exasperação.

— Sua ingenuidade, minha criança, tiraria a pa­ciência de um santo. E saiba que eu não sou nenhum santo, Kelly Gallivan.

—E eu não sou nenhuma criança — ela despachou, olhando fixamente para ele.

Jeb riu ao ouvir o protesto, quase gargalhando.

— Por Deus, não. Você não é nenhuma criança. E quando põe aquele brilho demoníaco nos olhos azuis, torna-se páreo para qualquer mulher a oeste do Mis-sissíppi, não importa a idade da que quiser competir com você. Mas é precisamente esse o problema.

— Que problema?

Jeb recuou um passo e pôs a caneca sobre uma pedra. Quando voltou a. falar, pareceu não ter coragem para olhar nos olhos dela.

— Sinto atração por você, Kelly, uma atração muito grande. Eu... fico me lembrando daquele beijo o tempo todo. Na verdade, apenas olhar para você me deixa com vontade de fazer tudo novamente. Portanto, é mais fácil não olhar para você.

Kelly hesitou por um momento. Depois balançou a cabeça.

—Então pretende fazer todo o resto da viagem para a Califórnia sem olhar para mim? Meu Deus! Ainda faltam muitas semanas.

Diante do absurdo daquela ideia, Jeb dirigiu a ela um sorriso largo.

—Acho que vou ter de andar com os olhos meio vendados, como as mulas.

Kelly forçou um sorriso ao ouvir a ridícula sugestão.

—Há quem diga, capitão, que o senhor tem mesmo algumas das características desses animais — não re­sistiu a comentar.

O sorriso persistiu enquanto ele balançava a cabeça.

— Achei que você passaria a me chamar de Jeb.

—Não enquanto o senhor continuar decidido a não olhar para mim durante as próximas dez semanas.

O toque de humor havia dissipado a tensão e, pela primeira vez em muitos dias, eles partilhavam um agradável companheirismo. Kelly achou aquilo muito bom e suspeitou de que Jeb pensava a mesma coisa.

— Bem, provavelmente vez por outra vou ter de olhar para você. Acha que vou ser obrigado a fazer esse sacrifício todos os dias?

Kelly riu. Agora evidentemente ele estava brincan­do, mostrando um lado de Jeb Hunter que ela ainda não tinha visto.

— Bem, digamos uma vez por dia — respondeu, no mesmo tom bem-humorado. — E prometo fazer o pos­sível para não obrigá-lo a fazer muitas vezes uma ta­refa tão penosa. Só peço que não me obrigue a voltar a esfregar terra no rosto.

Jeb parou de sorrir e fez uma careta.

— Parece que, pelo menos durante mais alguns dias, nenhum de nós vai precisar esfregar terra no rosto. Teremos poeira de sobra.

— Então quer dizer que a seca vai continuar? — perguntou Kelly.

Jeb confirmou com um gesto de cabeça e franziu a testa.

— Foxy e Daniel disseram que não caiu uma gota de chuva neste território desde o último outono.

— Mas pelo caminho encontraremos água suficiente para suprir nossas necessidades.

—Desde que continuemos margeando rios. Kelly sentiu alguma hesitação na voz dele.

— Então continuaremos margeando os rios, certo? É a única coisa que faz sentido.

Por alguns instantes Jeb ficou olhando para o céu sem nuvens, até finalmente voltar os olhos para ela.

— Sim, é o que faz sentido, mas...

Kelly percebeu que ele evitava dizer alguma coisa e persistiu.

— Mas o quê?

Jeb suspirou, mas desta vez não desviou o olhar.

— Mas, com a seca que está acontecendo, ficar sem­pre perto dos rios é a única coisa que faz sentido tam­bém para os índios.

Agora já não existia nenhum tom de brincadeira na voz dele. Outra vez estava ali o guia da caravana, o homem sempre ciente de suas responsabilidades. Kelly queria pedir mais informações sobre os índios, mas a postura fria dele parecia determinar o encerramento da conversa.

— Está esperando problemas? — ela arriscou.

—Meu único problema será adormecer na sela ama­nhã se não descansar um pouco agora — respondeu Jeb, despejando o resto do café do bule sobre a fogueira, que ia se apagando.

Foi um comentário quase rude e Kelly recuou um passo, meio desequilibrada.

— Boa noite, então — murmurou.

A resposta dele foi apenas um leve aceno de cabeça enquanto ela começava a caminhar de volta à própria carroça.

Kelly preferiu não falar com ninguém sobre o co­mentário de Jeb acerca de um possível encontro com nativos hostis, mas de alguma forma e.spalhou-se pela caravana a ideia de que tal possibilidade existia, prin­cipalmente quando a água na região se tornava tão escassa. Isso significava que todos iriam procurar o precioso líquido nas fontes que restassem.

As crianças, notadamente os meninos, estavam substituindo os folguedos no rio por batalhas de brin­cadeira entre colonos e indígenas de mentira. Os adul­tos divertiam-se com aquilo, mas intimamente reza­vam para que a fantasia de seus filhos não tivesse nenhuma contrapartida na realidade.

Apesar daquela nova preocupação, Kelly sentia-se mais feliz do que nunca desde a morte do pai. Na manhã seguinte à conversa com Jeb na carroça dos Todd, ele apareceu para convidar Patrick para uma cavalgada matinal, parecendo até que nunca havia in­terrompido aquela rotina.

Patrick procurou não demonstrar muito claramente que se alegrava por voltar a ter a mesma camaradagem de antes com o guia da caravana, mas Kelly sabia que, secretamente, o irmão estava exultante. Ela pró­pria se via obrigada a reconhecer que gostava muito das idas de Jeb à carroça deles. Esperava com ansie­dade pelo momento em que veria a aproximação do capitão, sempre uma imponente figura montando Storm. Todas as manhãs, via-se tomando um pouco mais de cuidado com a própria figura. Lamentava-se amargamente por causa dos curtos cabelos, desejando que as longas madeixas cortadas em St. Louis retor­nassem por algum passe de mágica.

Havia começado a usar outra vez as próprias roupas. Procurava se convencer de que fazia aquilo apenas para não ficar diferente das outras mulheres da cara­vana, que a haviam ajudado com tanta determinação. Não tinha nada a ver, claro, com a forma como Jeb olhava para ela naquele novo jeito de se vestir.

Scott continuava afastado. Ela havia procurado con­versar com ele uma noite, mas a conversa só serviu para deixá-los embaraçados. Kelly resolveu que o me­lhor seria dar tempo para que ele assimilasse a rejeição dela à proposta de casamento.

Isso deixava o campo livre para Jeb Hunter, e a cada dia ele parecia avançar um pouco mais para tirar proveito do fato. Agora aparecia para convidar Patrick para cavalgar não só pela manhã, mas também à tarde. Vez por outra, quando retornava com o menino, no fim da tarde, se deixava ficar sob o pretexto de aju­dá-los a acender o fogo ao lado da carroça, a tal ponto que Kelly se sentia na obrigação de convidá-lo para o jantar. E assim nasceu o costume. Logo tornou-se do conhecimento de todos na caravana que, caso houvesse algum problema, à hora do jantar o capitão Hunter podia ser encontrado na carroça dos Gallivan. Secre­tamente se faziam apostas sobre o tempo que o sério capitão levaria para admitir que estava apaixonado pela jovem, bela e vivaz irlandesa.

Kelly e Jeb não davam ouvidos àqueles comentá­rios, mas haviam estabelecido suas próprias regras para um jogo que, noite após noite, os levava cada vez mais perto de uma repetição daquele primeiro beijo à beira do rio.

Na verdade, Kelly estava pronta para permitir que isso acontecesse. Jeb havia deixado bem claro que não tinha a menor intenção de fixar residência em algum lugar ou de voltar a se casar. Assim sendo, trocar alguns beijos com ele ao luar não representaria nenhuma amea­ça aos planos dela. Seria apenas mais uma lição entre as muitas que teriam de ser aprendidas no Oeste. Pelo menos era disso que ela tentava se convencer.

Era Jeb quem resistia. Depois da conversa em que havia reconhecido sentir atração por ela, dirigia-se a Kelly de uma forma no mínimo prudente. O tom com que conversava com ela, porém, era bem pouco dife­rente do que usava com Patrick, parecendo sempre usar de franqueza. Às vezes Kelly pensava reconhecer aquele jeito de olhar, mas era algo que sempre desa­parecia antes que ela pudesse ter certeza.

A caravana agora fazia um penoso e vagaroso des­locamento pela planície seca. Não havia sinais da pre­sença de índios, embora Jeb sempre tomasse o cuidado de procurar pegadas ou evidências de acampamento recente. Um dia, já perto do fim da tarde, quando as mulheres pediram para parar ele balançou a cabeça. Queria ultrapassar aquele território o mais depressa possível, alcançar paragens onde pudesse se sentir mais seguro.

—Prosseguiremos nesse ritmo até alcançarmos a pe­dra da Independência — explicou, naquela noite, quando eles se reuniram em volta da fogueira. — É lá a passagem para as montanhas Rochosas. Será muito bom se con­seguirmos chegar lá dentro de duas semanas. Ultrapas­saremos as montanhas no rumo da Califórnia antes que as primeiras neves comecem a cair.

Kelly sentia que a proximidade agora existente entre eles era quase tão forte quanto a atração física. Gos­taria de saber mais sobre a esposa de Jeb, mas ele sempre hesitava em falar daquilo. Era o único assunto que trazia de volta o arredio capitão Hunter de antes, que fazia com que Jeb não quisesse ficar conversando com eles à noite, perto da fogueira.

—Hoje Jeb só virá bem tarde — informou Patrick, uma noite. — Resolveu dar uma olhada na margem do rio até a alguns quilómetros daqui. Quer ver se não há índios na espreita, prontos para arrancar o nosso escalpo.

— Patrick! — exclamou Kelly, censurando o jeito de falar do irmão. — Tenho certeza de que, se há índios por aqui, não estão preparando uma emboscada para nos surpreender. Os índios são sempre leais e corretos. E não acredito que eles arranquem o nosso escalpo, a menos que os importunemos primeiro.

— Jeb disse que os homens brancos já importunaram os índios muitas vezes. Acha que eles têm todo o direito de ter raiva de nós.

— Mas por que você agora chama o capitão de Jeb? Devia ter mais respeito.

Patrick riu antes de responder.

— Você também o chama de Jeb. Além disso, ele me disse que podia chamá-lo assim.

—Bem, acho que seria mais apropriado chamá-lo de capitão Hunter, pelo menos quando houver outras crianças por perto.

Patrick não pareceu se importar com a cara feia que ela fazia.

— Está certo. Mas continuarei a chamá-lo de Jeb nas nossas cavalgadas. Ah, é tão bom cavalgar, Kelly! Num desses dias você devia experimentar.

—Como você não se cansa de lembrar, irmãozinho, não temos um cavalo.

—Mas você podia cavalgar com Jeb, como eu faço. Storm pode transportar duas pessoas sem a menor dificuldade.

— Não acredito que o capitão Hunter esteja inte­ressado em...

Kelly parou de falar ao ver que Jeb se aproximava. No mesmo instante, Patrick se levantou e saiu cor­rendo na direção do cavalo dele.

— Você pode levar Kelly para um passeio num des­ses dias, não pode, Jeb?

—Levar Kelly para um passeio? — ele perguntou, passando a perna longa por cima da sela e saltando para o chão.

— Na garupa de Storm. Como eu tenho feito quase todos os dias. Contei a ela o quanto temos nos divertido.

Jeb pareceu achar a ideia engraçada.

—Não acredito que sua irmã queira ficar pulando na garupa de um cavalo, parceiro. Isso é coisa para homem, sabia?

Kelly fez um ar de desprezo.

— Ah, é? Lá vêm vocês outra vez com essa história. "Coisa para homem" por quê?

Jeb olhou para o vestido azul de algodão que ela usava.

— Bem, para começar... as roupas. Embora isso não seja raro no Oeste, a maioria das mulheres do Leste ficaria embaraçada se tivessem que se escarranchar em cima de um cavalo vestida de saia.

—Ah, mas esse é um problema fácil de resolver. Basta que a mulher vista uma calça masculina.

Jeb ficou com os olhos brilhando ao perceber o tom de desafio da voz dela.

— A maioria das mulheres também não gosta de fazer isso.

— Bem, então eu não faço parte da maioria das mulheres — respondeu Kelly, com jovialidade.

— Está dizendo que gostaria de cavalgar comigo? — perguntou Jeb, com ar de incredulidade.

Não era o que ela pretendia fazer, mas agora apa­rentemente o assunto havia se tornado uma questão de orgulho feminino.

—Certamente. Se Patrick pode fazer isso, por que eu não poderia?

Jeb riu.

—Está certo, se é o que você acha. Haverá luz su­ficiente depois do jantar. Poderemos fazer uma boa cavalgada.

No instante em que propôs a cavalgada noturna, Jeb percebeu que não era uma coisa muito prudente. Há dias que vinha procurando definir o que sentia por Kelly Gallivan. Tentava se convencer de que via tanto ela quanto Patrick como irmãos mais jovens, pessoas por quem sentia afeição, nada além disso. Sempre des­viava o rosto quando se via com os olhos fixos nos negros cabelos dela, agora já bem mais crescidos, ou na forma como ela voltava para cima os delgados pulsos quando preparava o jantar. Procurava tomar muito cuidado nisso.

E agora, agindo como um idiota, permitia que ela se enfiasse naquela apertada calça masculina para se encarapitar na garupa do cavalo, ficando tão perto que, cada vez que os cascos dianteiros de Storm atingiam o chão, os pequenos e firmes seios dela se pressionavam contra as costas dele. Como se isso não bastasse, havia concordado em levá-la para ter uma visão panorâmica do vale do rio, escalando uma das pequenas colinas que ladeavam a tilha que eles haviam percorrido o dia inteiro. Para isso tiveram que se afastar muito da fila de carroças, perdendo a proteção oferecida pela constante presença de outras pessoas.

Os braços de Kelly apertavam a cintura dele com força, embora de uma forma mais relaxada do que nos primeiros minutos.

—Você está bem? — perguntou Jeb, virando a ca­beça um pouco para trás.

— Acho que sim, pelo menos enquanto eu puder continuar segurando na sua cintura. Isso não é incó­modo para você?

As mãos dela apertavam o estômago dele logo acima do cinto, logo acima da região do corpo que já começava a doer por causa daquele constante contato físico.

— Não, não é incómodo — mentiu Jeb. Querendo distrair a mente, ele se pôs a contar as formações de arbustos.

—Será que não seria mais fácil se eu ficasse na sua frente? — perguntou Kelly.

—Não — respondeu Jeb, simplesmente. Durante vários minutos eles cavalgaram em silêncio, até que ela voltou a falar.

— Patrick gosta muito de cavalgar com você. E isso é bom para ele. Acho que faz com que sinta um pouco menos a falta de papai.

— Seu irmão é um bom menino. É doloroso perder o pai quando se é tão jovem.

Kelly achou que talvez estivesse diante de uma aber­tura para conhecer um pouco mais sobre a vida de Jeb Hunter.

— E os seus pais, Jeb? — perguntou.

—Também perdi meus pais, embora na ocasião es­tivesse um pouco mais velho do que Patrick.

— Eu sinto muito. Jeb deu de ombros.

— Na época eu já estava perto de correr o mundo para fazer minha própria vida. Senti a falta deles, claro, mas durante um bom tempo foi como se eu os houvesse deixado, e não o contrário. Quando realmente assimilei o fato de que eles estavam mortos... — Por alguns instantes ele hesitou. — Quando assimilei isso, já havia começado a minha própria família.

Kelly sentiu o coração se acelerar um pouco. Estaria Jeb disposto a conversar com ela sobre a esposa dele? Teria ela coragem para perguntar?

— Sua própria família? — disse, procurando falar em tom casual.

—Sim — ele confirmou, puxando a rédea do cavalo, que naquele momento chegava ao alto da colina. — Este parece um bom lugar para se contemplar a vista, se você tiver interesse.

— Certamente — respondeu Kelly, embora lamen­tasse a interrupção da conversa.

Depois de desmontar num salto ele ergueu as mãos para ajudá-la. Storm era um animal grande e Kelly ficou feliz por poder escorregar nos braços de Jeb antes de pisar no chão. O contato foi breve, mas o aperto das mãos dele em sua cintura causou uma deliciosa onda de calor. Imediatamente depois ele a soltou.

— Obrigada — murmurou Kelly. — Foi muita gen­tileza sua.

— Está sentindo as pernas firmes? — perguntou Jeb, com um sorriso.

Kelly deu alguns passos.

— Acho que consigo andar.

O sorriso dele tornou-se mais largo.

— Lembre-se de que ainda temos de fazer todo o caminho de volta.

—Não se preocupe, capitão. Cavalgarei até onde quiser me levar.

Dito isso ela olhou para o vale e não conteve uma exclamação. Jeb seguiu a direção do olhar dela.

—Bonito, não?

A relva amarelada era manchada pelas sombras da tarde nos locais onde se erguiam as árvores, isoladas ou em grupos de duas ou três. No fundo do vale as carroças da caravana formavam um círculo irregular, parecendo brinquedos infantis descuidadamente dei­xados ali por seus donos. Atravessando a campina avis­tava-se uma longa sucessão de colinas, todas muito parecidas com aquelas em que eles se encontravam, formando uma ondulada silhueta contra o horizonte dourado. Kelly estava encantada com o que via.

— O sol está quase se pondo — murmurou.

—Sim, e nós já devíamos estar voltando. Estará es­curo quando chegarmos ao local onde estão as carroças.

— Ah, por favor! Vamos contemplar a vista só mais um pouquinho... — Sem esperar pela resposta dele, Kelly deixou-se cair sentada na relva, esticou as pernas para a frente e respirou fundo. — E um pouco parecido com o que eu me lembro da minha terra natal, a Ir­landa. Colinas verdes e uma vastidão de terra.

—Mas não terra suficiente para alimentar o grande número de irlandeses que têm vindo para cá — disse Jeb, num tom brando.

Soltando a rédea do cavalo ele se sentou ao lado dela.

Kelly mostrou um sorriso triste.

— E, tem razão. Imagino que as lembranças que tenho da Irlanda estão todas misturadas com as fan­tasias do meu pai. Quando chegamos a Nova York, parecia que ele não sabia falar de outra coisa que não fosse a nossa terra natal. "Poder se mexer", cos­tumava dizer. Terra suficiente para uma pessoa po­der se mexer.

— E era isso o que ele esperava encontrar na Ca­lifórnia, imagino.

Kelly assentiu. Ficou com a visão toldada pelas lá­grimas, mas percebeu que era a primeira vez que aqui­lo acontecia em muitos dias. Talvez já fosse hora de começar a deixar que aquela ferida sarasse, como Pa-trick já havia feito.

Por vários momentos eles ficaram em silêncio, ob­servando o sol se esconder por trás das colinas a oeste. No céu alaranjado, as poucas nuvens iam se tornando escuras.

— Este seria um belo momento para congelar — disse Kelly, pensativa.

— Congelar? — perguntou Jeb, evidentemente intrigado.

Kelly riu antes de explicar.

— Era uma brincadeira que papai costumava fazer. A noite, quando ia nos pôr na cama, perguntava qual tinha sido o nosso momento mais agradável durante o dia inteiro. Nós relatávamos algum fato e ele nos mandava fechar os olhos. "Fiquem assim que esse momento bom vai congelar por trás destas pálpebras so­nolentas." Queria dizer que sonharíamos com o fato feliz durante a noite toda. Jeb sorriu.

— Que momentos você congelou?

Kelly estava inteiramente tomada pela nostalgia, mas as lembranças eram melhores do que em qualquer outra ocasião desde a morte do pai dela. Pensava ape­nas em momentos agradáveis. Deitando-se na relva ela fechou os olhos.

—Acho que sempre foram coisas sem muita impor­tância. Comer um doce gostoso ou talvez ter a ajuda da sra. McElroy para terminar logo a limpeza das lojas do mercado e poder voltar para casa mais cedo. Às vezes eu congelava uma cena descrita em algum livro, quando tinha acesso a algum.

Jeb mal podia prestar atenção nas palavras dela, ocupado que estava com as próprias lembranças... as mais recentes. Lembranças da última vez em que tinha estado sozinho com Kelly, tão próximo dela, e de como tinha sido fácil tomá-la nos braços. Da ra­pidez com que os lábios dela haviam se tornado ma­cios ao contato com os dele. Dos beijos quentes que eles haviam trocado.

Kelly abriu os olhos.

— O que eu quero é saber mais sobre você, mas cá estamos nós outra vez falando de mim.

— Não há muito o que dizer sobre mim, acho. Quan­do ouço você e Patrick falando do pai de vocês, fico pensando que o relacionamento que tiveram com ele foi mais intenso e prazeroso do que qualquer coisa que eu possa ter tido na minha infância.

Da posição em que estava, Kelly podia ver a si­lhueta de Jeb desenhada contra o céu avermelhado. A luz do entardecer conferia aos cabelos dele uma cor de ferrugem. Os fios esvoaçavam levemente ao sabor da brisa que soprava. E os fortes traços do rosto estavam sombreados. Era um momento para guardar na lembrança, pensou Kelly consigo mesma. Um mo­mento para congelar.

— Você deve ter algumas lembranças especiais — ela disse.

Jeb respirou fundo, aparentemente com alguma dificuldade.

—A única lembrança que vem à minha mente no momento não tem nada a ver com a minha infância. — Vendo o ar de curiosidade de Kelly, ele se explicou melhor. — Estou me lembrando do gosto destes seus lábios vermelhos.

 

Foi como se ele a houvesse tocado. O sim­ples som das palavras produziu em Kelly o mesmo efeito. Ela conteve a respiração e ficou espe­rando, já sentindo os lábios doloridos. E às palavras dele seguiu-se a ação. Jeb debruçou-se sobre ela, blo­queando a visão do céu. Logo em seguida Kelly fechou os olhos e o mundo se tornou escuro, existindo apenas a pressão dos lábios dele.

Quando ela moveu levemente a cabeça para cima, buscando um contato maior, Jeb emitiu um som baixo, dando a entender que aquela aquiescência o agradava.

— Por Deus do céu, doçura — murmurou, com os lábios encostados nos dela. — Tudo o que você faz aumenta o meu desejo.

Aquelas palavras, pronunciadas numa voz quente, tiveram um forte efeito no ventre de Kelly, onde in­críveis e ansiosas sensações ocorriam. Ela abriu os olhos e viu que ele a fitava com uma intensidade que parecia capaz de queimá-la.

Jeb não a havia tocado em nenhum outro lugar do corpo que não os lábios, mas o olhar dele era como um quente e vagaroso toque, primeiro no centro dos lábios dela, depois deslizando para o queixo, percor­rendo a faces e finalmente alcançando as pálpebras, que outra vez se fecharam enquanto ela se deixava ficar na relva, numa deliciosa letargia.

Intermináveis minutos se passaram antes que Kel­ly sentisse o peso do corpo de Jeb, o peito dele le­vemente pressionado contra os seios dela. Uma das pernas dele se intrometeu entre as dela, dura e quen­te contra o interior das coxas, que já estavam sen­síveis por causa dos movimentos para cima e para baixo na garupa de Storm.

Kelly soltou um gemido, não de protesto, mas apenas um reflexo, tentando encontrar um escoadouro para as sensações que a dominavam em ondas. Jeb ergueu um pouco a cabeça e acariciou as faces dela com os polegares.

— Olhe para mim, Kelly — pediu, com a voz rouca.

Quando ela abriu os olhos outra vez, a expressão dele havia mudado. O olhar predador havia desapa­recido, substituído por um sorriso terno.

— Seus lábios foram feitos para o beijo, doçura — disse Jeb, mal pondo em prática o que dizia, tão de leve a beijou.

Kelly tentava desesperadamente recuperar o con­trole dos próprios sentidos. As reações que estava tendo a deixavam assustada. Não queria pensar que outra pessoa podia fazer aquilo com ela, deixá-la com a mente tão atordoada. Naquela viagem ela já havia recusado uma proposta de casamento porque não queria permitir que ninguém tivesse algum poder sobre sua vida. De alguma forma, porém, parecia que o poder de Jeb Hunter sobre ela não precisava de permissão. A razão mandava que ela saísse de baixo dele, mas o corpo não cooperava para que esse objetivo fosse alcançado. Em vez disso ela moveu a cabeça para cima, outra vez estabelecendo contato com os lábios dele.

Desta vez ele foi notavelmente vagaroso no beijo.

Começou com uma leve pressão, depois passou a língua entre os lábios dela, buscando sua rendição, numa ação cuidadosa e persistente. Era algo tão delicioso que, sem pensar no que fazia, Kelly ergueu os quadris para pressionar a virilha contra a coxa firme dele.

Depois de soltar mais um gemido, Jeb afastou os lábios dos de Kelly e virou-se para o lado, deixando a cabeça cair pesadamente sobre o peito dela.

— Isto é totalmente contra as minhas normas — disse, numa voz tensa e frustrada.

Para Kelly, aquilo foi como se ele houvesse jogado no rosto dela um balde de água fria. Havia normas para as coisas que um homem e uma mulher podiam fazer na privacidade?

—Então eu devo pedir desculpas? — perguntou, quando finalmente conseguiu fôlego para falar.

Jeb apertou de leve os ombros dela e sentou-se.

—Não — respondeu, rapidamente. —Eu devo pedir desculpas. Sem contar a de agora, já liderei seis ca­ravanas de pioneiros que atravessaram o país, e em nenhuma deixei que isso acontecesse comigo.

O desejo não satisfeito que Kelly sentia fez com que a voz dela parecesse enraivecida.

— Então parece que eu tive sorte!

Jeb jogou para trás os desarrumados cabelos e soltou um riso rápido.

— Não, você teve muito azar, seria melhor dizer.

A autocondenação era tão evidente em seu tom de voz que a raiva dela começou a se dissipar. Vagaro­samente Kelly se sentou.

— Não foi tão ruim assim, Jeb — disse, com meiguice e um toque de bom humor.

Desta vez o riso dele foi mais solto.

— Bem, obrigado por isso, então. Mesmo assim, não era algo que eu pretendia deixar que acontecesse.

— Talvez tenha acontecido porque eu deixei.

Jeb balançou a cabeça.

— Não faz diferença. Eu não tinha nada que beijar você ou qualquer outra mulher sob a minha proteção.

O corpo de Kelly finalmente estava retornando ao normal. Depois de esticar as pernas ela ajeitou a camisa.

— Você é apenas o guia da caravana, Jeb, não o nosso pai.

—O guia de uma caravana tem que fazer o papel de pai, marido e policial, tudo ao mesmo tempo.

— E o de amigo?

Estava começando a ficar bem escuro, mas Kelly ainda podia ver a tensão que havia tomado conta do semblante dele por causa da lembrança de que o dever precisava ser cumprido.

—Não — respondeu Jeb, depois de um minuto. — Não posso ser amigo de ninguém da caravana. E certamente também não posso ser amante. E uma imprudência muito grande ter envolvimento pessoal com pessoas a quem muitas vezes sou obrigado a dar ordens.

Kelly revirou os olhos, demonstrando exasperação.

— Você nunca pensou na hipótese de que deixar que esses sentimentos se desenvolvam pode tornar mais fácil a obtenção da cooperação que precisa ter dos membros da caravana? Reflita um pouco, homem de Deus!

Jeb balançou a cabeça, com firmeza.

— Não, senhora. Não é possível ser o líder num momento e num outro ser apenas um dos membros do bando, um amigo, um amante. A coisa não funciona.

— Em resumo: você não pode ser o líder de uma caravana e também usufruir de alguns beijos no alto de uma colina.

— Exatamente. — Levantando-se, ele estendeu a mão para ela. — Vamos. Teremos que fazer no escuro o caminho de volta. Não gosto de fazer isso no terreno irregular dessas pradarias. Storm pode tropeçar num buraco e quebrar uma perna.

Agora o tom de voz dele era outra vez profissional, efetivamente fechando a porta para qualquer coisa mais pessoal. Mas Kelly não estava nem um pouco disposta a deixar que Jeb voltasse a seu confortável papel de guia da caravana, um homem distante e que parecia não ter sentimentos. Não depois do que eles haviam partilhado.

Aceitando a ajuda da mão estendida ela se pôs de pé. Depois sacudiu com as mãos a poeira dos fundilhos da calça.

— Bem, capitão, acho que esta foi a primeira vez que beijou alguém usando calça. Pelo menos aquele tipo de beijo.

Eleja estava passando as rédeas por cima da cabeça do cavalo e preparando-se para montar, mas ao ouvir aquelas palavras parou e voltou-se. Depois de hesitar por alguns instante, relaxou o semblante e abriu um. sorriso franco.

—É, não aquele tipo de beijo — concordou.

—Foi um tipo de beijo... gostoso — classificou Kelly, sentindo calor nas faces ao se lembrar de como tinha sido bom.

Jeb parecia se esforçar muito para não deixar que as palavras dela minassem a resistência dele. Soprou o àr dos pulmões e pôs o pé no estribo, montando em seguida.

— Sim — disse, lacónico. — Foi gostoso. Mas será melhor para nós dois se isso não voltar a acontecer.

Aquelas palavras foram ditas numa voz tão distante que Kelly desistiu de tentar fazer com que a situação voltasse a ser igual a momentos antes, quando ele havia chegado a chamá-la de doçura. A maior parte da cavalgada de volta foi feita em silêncio.

A brisa havia aumentado de intensidade, o que levou Jeb a fazer um comentário.

— Talvez esse vento traga alguma chuva. Seria de grande utilidade para nós.

Agora eles cavalgavam mais vagarosamente do que quando tinham ido para a colina, deixando que Storm escolhesse com mais cuidado o lugar onde pisar na escurecida relva. O balanço do cavalo era quase um embalo. Por isso, quando Jeb fez o animal parar ao lado da carroça, Kelly estava quase caindo de sono.

— Por que vocês demoraram tanto? — perguntou Patrick, correndo na direção deles vindo do lado da carroça dos Burnett.

—Por nenhum motivo importante, filho — res­pondeu Jeb, com naturalidade, olhando com atenção para o rosto do menino. — Aconteceu algum proble­ma, Patrick?

Os olhos do garoto mostravam preocupação.

—Dorothy esteve procurando por vocês. Parece que Molly está bem doente.

—Doente? — repetiu Kelly, alarmada, saltando da garupa do cavalo sem se preocupar em segurar na mão que Jeb oferecia.

— Molly disse que o dia todo ela ficou com as mãos no estômago e gemendo, mas agora está apenas dei­tada. Eu estive lá. Molly parece muito fraca. Fiquei muito... assustado.

Havia uma certa insegurança na voz de Patrick quando ele disse aquelas últimas palavras e Kelly pas­sou o braço por cima dos ombros dele.

— As crianças adoecem com muita facilidade, Pa­trick — disse, procurando reanimá-lo. — E em geral ficam boas com a mesma rapidez.

No entanto, quando ela e Jeb subiram à carroça dos Burnett e viram a garotinha deitada na cama arrumada especialmente para ela, Kelly sentiu um nó na garganta. Molly estava muito pálida e respirava com dificuldade.

— Oh, bom Deus — murmurou Kelly, intimamente se recriminando por ter dito aquilo quando viu a ex­pressão ressentida de Dorothy.

— Ela tem estado... o senhor sabe... com o intestino relaxado há já alguns dias, capitão — explicou a mãe da garota. — Ficou muito embaraçada para contar a quem quer que fosse, mas agora está como se a vida tivesse sido tirada do corpinho dela.

O semblante de Jeb havia se transformado numa máscara que Kelly mal conseguia reconhecer. Embora o medo de todos sempre fosse em relação aos índios, a disenteria era de longe o que mais matava naquelas vastas planícies.

— Ela precisa beber algum líquido, muito líquido — disse Jeb, sentando-se ao lado do corpo frágil de Molly e erguendo o pulso fino para sentir a pulsação.

— Não consigo fazê-la beber mais nada — declarou Dorothy.

— Mas isso terá que ser feito, mesmo que tenhamos que enfiar pela garganta dela, pouco a pouco. — Jeb olhou para John, que estava sentado num dos cantos da carroça, com os olhos muito abertos e uma expressão de susto. — Você tem algum vinho de maçã... não aque­le muito forte? — O pai da menina balançou negati­vamente a cabeça e ele continuou. — Então vá ver se arranja um pouco. Pergunte em todas as carroças.

— Nós já tentamos fazer com que ela bebesse água... — começou Dorothy.

— Água não — cortou Jeb. — Com o nível do rio tão baixo, era isso o que eu temia que acabasse acon­tecendo. A água está muito salobra, talvez contami­nada. Teremos que cavalgar por entre as colinas em busca de alguns riachos menores, onde a água seja mais fresca. — Inclinando-se para fora da carroça ele chamou com um gesto o irmão de Kelly. — Patrick, quero que você vá a todas as carroças e diga às pessoas que não devem beber a água que pegaram no rio. Terão que beber vinho, leite ou o que mais conseguirem para matar a sede. Amanhã procuraremos nos abastecer com um bom estoque de água fresca.

Patrick pareceu aliviado com a tarefa que recebeu. Provavelmente queria mesmo uma desculpa para se afastar dos rostos tensos dos adultos reunidos na car­roça dos Burnett.

— Vou falar com eles todos, Jeb.

Dito isso o garoto girou o corpo para se afastar, mas Jeb o chamou para dar mais uma instrução.

— Pergunte em todas as carroças se alguém mais adoeceu.

Patrick olhou para a irmã e para o casal Burnett. Depois pôs os olhos em Polly, que estava sentada em cima de um saco de farinha de trigo, com os olhos inchados de chorar.

—Acho que vou precisar de ajuda — disse à garota. — Será que você pode vir comigo?

A normalmente vivaz menina assentiu solenemente e saiu de onde estava. Kelly dirigiu a Patrick um sor­riso de gratidão. Logo depois as duas crianças desa­pareceram na escuridão.

Kelly sempre havia pensado que a noite passada com o angustiado pai ao lado da mãe moribunda seria a mais longa de que se lembraria em toda a vida. No entanto, as horas que passou observando a pequena Molly Burnett lutando pela vida eclipsaram aquela lembrança da infância. Os segundos pareciam uma eternidade enquanto o rosto bonito de Dorothy se con­traía de ansiedade e os olhos azuis de John pareciam ter perdido todo o brilho. Aqueles dois pareciam ter envelhecido uma década em apenas uma noite.

Era a presença de Jeb que fazia com que todos man­tivessem o controle. Em nenhum momento ele deixou seu posto ao lado da menina enferma. Sem perder tem­po com demonstrações de pena, obrigava Molly a in­gerir líquido, forçando colheradas entre os lábios iner­tes para combater a febre, que se manteve alta durante toda a madrugada.

Com voz calma, mas firme, dizia aos Burnett que não era incomum as crianças serem atacadas tão du­ramente pela disenteria. Continuava insistindo que a causa da doença era a água salobra que eles vinham ingerindo ultimamente, e que portanto a doença não seria transmitida por Molly aos familiares ou às pes­soas das outras carroças. Não havia nenhum motivo para pensar que Polly poderia apresentar sintomas semelhantes.

Ele não chegou a dizer, mas Kelly percebeu implícita por trás daquelas palavras a afirmação de que, se o pior viesse a acontecer, Dorothy e John continuariam a ter uma filha.

E, durante as intermináveis horas daquela a noite, tudo levava a crer que seria mesmo esse o desfecho. Era difícil acreditar que uma pessoa humana pudesse mudar tão rapidamente. Em poucas horas a pele de Molly pareceu sem vida, quase acinzentada. Ela havia evacuado sangue, pelo que os pais tinham dito a Jeb. E isso havia acontecido de uma forma tão intensa que dificilmente ainda teria no organismo o sangue neces­sário para continuar vivendo.

Os Todd apareceram para uma visita, juntamente com os Wilks e muitos outros membros da caravana, todos preocupados e assustados. Aparente-mente nin­guém dormia naquela noite. Patrick e Polly se reve­zavam em constantes visitas às outras carroças, sem­pre retornando à dos Burnett para ver se havia se operado alguma mudança no estado de Molly. Até então, felizmente, não levavam notícia de ninguém mais na caravana apresentando sintomas da doença.

Kelly mal podia acreditar que uma noite que havia começado com ela observando o pôr-do-sol ao lado de um homem maravilhoso, descobrindo as delícias da paixão, pudesse terminar de uma forma tão angus­tiante. A certa altura cruzou o olhar com o de Jeb e teve a impressão de que ele também se lembrava dos beijos que eles haviam trocado na colina. O sorriso que ele mostrou não era apenas encorajador, transmi­tia também conforto, algo mais íntimo.

Quando o dia já estava perto de clarear, todos eles ficaram com a sensação de que a doença de Molly havia alcançado um estado crítico. Era o momento em que a alma que se debatia dentro daquele corpo frágil su­cumbiria ou venceria o combate.

Jeb continuava obrigando a menina a ingerir lí­quido, desta vez uma sopa de nabos levada por Eu-lalie Todd. Kelly sentou-se ao lado de Dorothy num saco de mantimentos, com o braço por cima dos om­bros da amiga. John estava sentado no outro lado da carroça, com os olhos fechados, mas era mais do que evidente que não dormia.

— Ela moveu os lábios — disse Jeb, com uma leve excitação na voz.

Imediatamente Dorothy e John se puseram de pé. Jeb dirigiu aos pais da garota um sorriso cauteloso.

— Molly apenas engoliu uma colherada de sopa. Por sua própria iniciativa. É um bom sinal.

Um leve gemido partiu da cama. Jeb voltou-se e ofereceu mais uma colherada de sopa. Desta vez todos podiam ver que, embora continuasse com os olhos fe­chados, a menina se alimentava por vontade própria.

— Graças a Deus — murmurou Dorothy, com lá­grimas escorrendo pelo rosto.

Kelly sentiu um nó na garganta e engoliu em seco, também dando graças aos céus.

Quando Frank e Eulalie apareceram pela terceira vez, pouco antes do raiar do dia, foram informados de que a sopa levada por eles havia operado um milagre. Eulalie abriu um sorriso largo.

— Eu devia ter dito logo a vocês. Todos sempre dis­seram que minha sopa de nabos seria capaz de res­suscitar um defunto.

Pelo meio da manhã, Molly permanecia com os olhos abertos por tempo suficiente para demonstrar que es­tava constrangida com o fato de que o guia da caravana permanecia sentado ao lado dela. Até sorriu quando Patrick subiu à carroça para ralhar carinhosamente com ela.

— Você nos deu um susto enorme, Molly! Acho bom ficar boa logo, está ouvindo?!

As horas sem dormir fizeram com que Kelly se sen­tisse entorpecida, o que pelo menos a deixou sem ener­gia para pensar nos beijos de Jeb. Ela resolveu que não pensaria naquilo enquanto não tivesse um bom sono, mas viu que seria difícil pôr em prática a decisão quando Scott apareceu para ter notícia do estado de saúde de Molly. A simples visão do rapaz que a havia pedido em casamento apenas para salvar o sonho dela a fez sentir uma pontada no estômago.

Jeb ficou na carroça dos Burnett até por volta do meio-dia. Depois de fazer John e Dorothy promete­rem que o chamariam se houvesse alguma mudança no estado da menina, saltou para o chão e flexionou os músculos. Ninguém pensaria que a caravana se poria em movimento naquele dia, claro. No entanto, já que Molly estava fora de perigo, ele podia muito bem se desincumbir de outras tarefas. Estava jus­tamente pensando no que podia fazer depois que ti­vesse algumas horas de sono quando viu a aproximação de Frank Todd, que se dirigia à carroça dos Burnett à procura dele.

—Temos dois outros casos de disenteria — disse Frank, logo que chegou perto. — E uma das pessoas doentes é Hester Hamilton.

Hester era a mais velha das mulheres que rumavam para o Oeste com a caravana. Era ciente demais de sua condição de dama para revelar a própria idade, mas ela e o marido, Samuel, não faziam segredo do fato de que ele era vários anos mais jovem. E Samuel era alguns anos mais velho do que Frank Todd. Jeb havia ficado um pouco cético sobre a capacidade do idoso casal de resistir à dura jornada, mas foi conven­cido pela evidente boa saúde dos dois e, mais do que qualquer outra coisa, pela forte ligação que havia entre marido e mulher.

— Ela me arrancou do berço — costumava dizer Samuel, piscando o olho. — E, desde então, nunca mais nos separamos.

Era bonito ver um casal apaixonado depois de tantos anos de vida em comum. Os Todd pareciam ter a mes­ma boa sorte. Não era pedir demais querer da vida apenas aquilo, pensava Jeb, com amargura, embora reconhecendo que aquilo parecia ser tão raro quanto uma flor brotando da neve.

E agora, marchando para a carroça dos Hamilton, ele se culpava pelo que estava acontecendo. Talvez não devesse ter concordado em levar na caravana pes­soas tão idosas. Conhecia os perigos, a tensão da via­gem. Devia ter pensado na disenteria, uma doença traiçoeira para crianças e idosos. Bem, em todas as viagens sempre acontecia algo inesperado. Fazia parte do trabalho dele estar pronto para qualquer contin­gência e garantir àquelas pessoas que todos os pro­blemas seriam resolvidos.

A doença da sra. Hamilton havia surgido tão rapi­damente quanto a de Molly. Quando Jeb chegou à car­roça ela não conseguia mais se sentar, não tinha forças nem para virar a cabeça. Samuel estava sentado na borda da cama, segurando na mão da semiconsciente esposa e murmurando palavras de conforto. Era no­tável reparar que, embora estivesse com o rosto pálido e grave, ele não demonstrava desespero. A angústia que tinha sido quase palpável na carroça dos Burnett não existia ali.

Quando Jeb subiu à carroça, Samuel voltou os olhos para ele e mostrou um sorriso triste.

— Nós já nos despedimos — disse, com voz branda. — Só por garantia.

— Temos que fazer com que ela beba muito líquido. Faremos uma experiência com a sopa da sra. Todd, que parece ter dado resultados muito bons com Molly.

O desespero transmitido pela voz de Jeb estava em franco desacordo com a serenidade de Samuel.

— Eu mesmo servirei a sopa a ela — prontificou-se o idoso homem. — Desde que você faça a gentileza de ir buscar um pouco.

Obviamente ele não cederia a ninguém aquele posto ao lado da esposa.

Jeb passou a tarde indo da carroça dos Hamilton para a da outra vítima, Homer, o filho de dezesseis anos dos Crandall, cujo caso felizmente era brando e fácil de controlar. Vez por outra passava também na carroça dos Burnett para verificar os progressos de Molly. A garotinha agora já se alimentava sozinha e até ria das brincadeiras da irmã e de Patrick, que ameaçavam avançar para roubar a comida das mãos dela. Kelly continuava fazendo companhia a Dorothy e John. Assim sendo, a menina tinha enfermeiras de sobra.

Entre uma e outra visita aos enfermos, Jeb fazia perguntas a Frank, Scott, Henry Kirby e vários dos outros sobre o estoque de água potável que estava sen­do formado. Todos os barris que tinham sido abaste­cidos com água do rio tiveram que ser esvaziados e lavados com vinagre, Para satisfazer às necessidades imediatas das pessoas da caravana, um grupo de cinco homens foi despachado para as colinas, levando uma tropa de mulas e com a incumbência de recolher água da fonte mais limpa que conseguissem encontrar.

Hester Hamilton morreu pouco antes da meia-noite. O adeus sobre o qual Samuel havia falado a Jeb tinha sido, de fato, o último deles. Jeb perguntou-lhe se acei­tava a ajuda oferecida por alguma das mulheres para arrumar o corpo da bondosa Hester, mas outra vez a resposta do homem foi simples e serena.

—Obrigado, capitão, mas eu mesmo farei isso — disse Samuel, ainda segurando a mão da esposa morta.

Há dois dias sem dormir, Jeb afastou-se da carroça dos Hamilton sentindo que cambaleava um pouco. Que­ria fazer mais uma visita a Molly e ao jovem Crandall, mas tinha medo de simplesmente desmaiar se não dor­misse por algum tempo. Isso se conseguisse dormir. A morte da sra. Hamilton tinha sido para ele como re­ceber no peito o impacto de uma enorme pedra. Não ajudava nada pensar no fato de que a mulher já era bem velha e que talvez houvesse chegado mesmo a hora dela. Não ajudava também a estóica aceitação que o marido demonstrava em relação à perda que acabava de sofrer, sem lançar a culpa sobre ninguém. Jeb assumia para si toda a culpa do ocorrido. Mais uma culpa para pesar sobre os ombros dele.

Quase todas as carroças estavam às escuras. Nin­guém havia dormido direito na noite anterior e, na­quele dia, as fogueiras tinham sido apagadas cedo. Da carroça dos Todd, porém, era possível ver Kelly sentada perto da fogueira. Jeb caminhou para lá.

— Por que não está dormindo, Kelly? — perguntou, quando chegou perto.

— Cheguei ainda há pouco da carroça dos Burnett. Preciso pôr meus pensamentos em ordem antes de ten­tar dormir. Como está o sr. Hamilton?

— Muito melhor do que eu estaria no lugar dele. Como está Molly?

Kelly dirigiu a ele um sorriso cansado.

— Ficou muito enrubescida quando Patrick a viu de camisola. Na minha opinião, isso significa que a garota está muito perto de se recuperar.

— Patrick ainda está lá? — perguntou Jeb, olhando em volta.

—Não, está dormindo profundamente dentro da carroça. Teve um dia duro, como qualquer um de nós. Acho que ele gosta mais de Molly do que quer reconhecer.

— Amor pueril. Para essas crianças isso é tão sim­ples, não é mesmo?

Jeb sentou-se perto dela. Kelly havia tomado banho em algum momento daquele dia e posto o vestido verde de que ele tanto gostava.

— Não — ela discordou, balançando a cabeça. — Não acho que o amor seja uma coisa simples, seja em que idade for.

Jeb não resistiu a provocá-la.

— Tenho que acreditar na opinião de uma especialista. Kelly rebateu de pronto a ironia dele.

—Não é uma coisa simples, e ninguém precisa ser especialista para saber lidar com o amor. Basta fazer o que acha ser natural.

Depois disso ficaram os dois em silêncio, pensando no que teria sido natural para eles na colina. Aquilo havia acontecido mesmo há apenas uma noite?

Kelly olhou para Jeb. À luz da fogueira, o rosto dele parecia abatido e cansado e ela subitamente sentiu vontade de abraçá-lo. O que ele tinha dito, mesmo? Que seria melhor para eles dois se aquilo não acon­tecesse outra vez. Kelly voltou os olhos para as brasas da fogueira.

Jeb sentiu a exaustão deixar o corpo dele, substi­tuída por uma sensação bem mais estimulante. Kelly estava incrivelmente atraente à bruxuleante luz da fogueira. Os enormes olhos azuis o fitavam, abaixo dos tosquiados cabelos. O mais prudente seria se le­vantar e sair logo dali. Porque naquele momento o que mais queria era abraçá-la para saciar a vontade de beijar aqueles lábios tentadores.

Não havia luz em nenhuma das carroças próximas. Era como se eles estivessem sozinhos no meio de uma pradaria, acariciados pela brisa da noite e ouvindo a serenata dos insetos que esvoaçavam por ali.

—Você disse que Patrick está dormindo, não disse? — perguntou Jeb, chegando-se para mais perto.

Kelly desviou o rosto do fogo e fitou-o com os olhos grandes.

— Sim — murmurou.

Jeb tomou-a nos braços e imediatamente a beijou.

No instante em que foi abraçada Kelly sentiu que, naquela vez, um beijo não seria suficiente. Em vez de apenas querer explorar com ternura aqueles lábios, ele parecia querer satisfazer uma necessidade quase desesperada, como se quisesse buscar conforto, esque­cer a tensão e a culpa daquelas últimas horas. Bem, ela estava plenamente disposta a confortá-lo. Logo per­cebeu, porém, que conforto era apenas uma parte do que ele queria.

Kelly não saberia dizer como tudo aconteceu. Havia lutado contra a ideia desde o primeiro instante em que o tinha visto montado em seu enorme cavalo. Continuara lutando ao longo dos muitos quilómetros percorridos na pradaria, mas agora não podia lutar mais. Estava ir­remediavelmente apaixonada por Jeb Hunter.

Procurou se convencer de que aquilo seria a mais pura loucura. Ele obviamente não estava interessado em amor. Havia deixado bem claro, sem meias pala­vras, que beijá-la tinha sido um erro. Mesmo assim voltava a beijá-la, depois de ir à carroça dela no meio da noite. Havia jurado que os beijos deles não volta­riam a acontecer. No entanto, não havia nenhuma re-lutânica naquele beijo...

Kelly inclinou a cabeça para trás, deixando o pescoço livre para os carinhos de Jeb. Queria mergulhar o mais profundamente possível naquele delicioso turbilhão de sensações que estava apenas começando a conhecer. Se aquilo era um erro, a culpa seria dividida entre ela e Jeb.

 

Jeb sabia exatamente o que estava fazen­do. Sabia também que, mais tarde, não seria capaz de se justificar argumentando consigo mes­mo que aquilo havia acontecido porque estava há dois dias sem dormir. Ou porque havia bebido um forte vinho de maçã com o estômago vazio. Não seria capaz nem mesmo de pôr a culpa na necessidade de algum tipo de reafirmação de vida e amor depois da mais recente e perdida luta contra a morte.

Nada importava. A única coisa que importava era Kelly, a irlandesa de olhos brilhantes e corpo luxu­riante, a mulher de espírito destemido que o havia iludido, atormentado, recusando-se a desistir quando ele já havia tomado a decisão de mandá-la embora. Kelly, que ainda não havia terminado de derramar lágrimas de dor pela morte do pai, mas que parecia disposta a abrir o coração e o corpo para oferecer con­forto a ele.

Ela entregava e recebia, enchendo com deliciosas curvas as mãos dele, que finalmente alcançaram a ele­vação firme dos seios, apertados pelo corpete do vestido verde. Sem seguir um pensamento consciente, Jeb co­meçou a soltar a carreira de pequenos botões que ia do pescoço à cintura dela, buscando o calor daquele corpo.

Kelly apoiou as costas no braço de Jeb e deixou que ele fosse abrindo o vestido, até que os seios dela fi­cassem expostos ao olhar e ao toque dele. Abaixando a cabeça ele apertou com os lábios um dos intumescidos mamilos. Como um recém-nascido que precisasse de um alimento vital, pôs-se a sugar aquele seio. Ao mes­mo tempo sentia o corpo dolorido de desejo.

Kelly fechou os olhos, deixando docilmente que ele se saciasse. E emitiu um gemido de protesto quando Jeb abandonou o seio dela.

— Ah, isso é tão...

Interrompeu a frase e ele ergueu a cabeça por um instante para encorajá-la a falar.

— Tão o quê, doçura? Você gostou?

Kelly entreabriu os olhos e mostrou um sorriso cheio de sensualidade.

— Gostei, sim — respondeu. — Gostei muito. Por favor, faça mais um pouco.

Jeb teria achado divertida a franqueza que ela de­monstrava se não estivesse tão dominado pela excita­ção que aquilo provocava. Procurando ignorar a onda de luxúria que se apossava de determinada parte do seu corpo, cobriu com a boca o outro seio de Kelly, brindando-o com as mesmas atenções com que havia tratado o primeiro.

Kelly moveu para os lados a cabeça encostada no braço dele, maravilhada com as delícias daquela pri­meira experiência com o prazer erótico. Jeb continuava com suas ações tão ousadas quanto vagarosas. Quando os mamilos dela estavam duros e molhados, voltou a beijá-la nos lábios. Logo depois aproximou a boca da parte alta do braço dela. Alternando beijos com lam­bidas e leves mordidas, percorreu o ombro dela até alcançar o pescoço.

Não fazia ideia de quando levaria aquelas carícias à sua previsível conclusão. Agora era tarde demais para pensar em outro desfecho. Kelly tinha um reve­lador enrubescimento nas faces e os gemidos que sol­tava eram cada vez mais ansiosos e suplicantes. Os dedos dela apertavam e soltavam as costas de Jeb, no mesmo ritmo com que a língua dele a invadia na boca.

A aceitação dela era tão completa que eliminou todas as dúvidas sobre a retidão daquilo que eles estavam fazendo. Embora ela sempre houvesse parecido muito inocente, agora tudo levava a crer que Kelly tinha experiência nas coisas do amor. Era uma garota da cidade, afinal de contas. E não de qualquer cidade, mas de Nova York. Talvez até houvesse se deitado com Haskell. A simples ideia deixou Jeb furioso. Com os vestígios de bom senso que lhe restavam ele ergueu a cabeça e olhou em volta, procurando sinais de alguém que houvesse se acordado nas carroças vizinhas. Aque­le não era um lugar muito apropriado... ele não poderia agir com a lentidão necessária para garantir que a moça tivesse um prazer semelhante ao dele. A ansie­dade com que as mãos dela percorriam o corpo dele, porém, era uma indicação de que, apressados ou não, eles alcançariam o mesmo resultado.

Jeb abaixou a calça e ergueu a saia de Kelly, rapi­damente a despindo das roupas de baixo para tocá-la no santuário já umedecido e quente. A resposta dela foi erguer os quadris em sinuosos movimentos, o que fez com que Jeb sentisse fogo nas veias. Sem mais preliminares ele a penetrou.

Kelly soltou um demorado gemido e apertou os dedos nos ombros dele, com tanta força que Jeb pensou sentir as unhas dela atravessando a camisa e se cravando na carne. No mesmo instante ele recuou, horrorizado, percebendo que, agindo sem o devido cuidado, acabava de ultrapassar a fina barreira da virgindade dela. Kelly Gallivan era virgem. Tinha sido virgem, corrigiu-se Jeb, sentindo um súbito mal-estar.

Interrompendo todos os movimentos ele se deixou ficar deitado por cima dela, com os olhos fechados. Não tinha coragem suficiente para olhá-la nos olhos.

— Você nunca tinha feito isso antes — disse, em tom desanimado, finalmente abrindo os olhos.

— Nunca — confirmou Kelly, numa voz que ele mal pôde ouvir.

— Quer que eu pare?

Ele ainda estava dentro dela e pouco a pouco Kelly ia se acostumando com aquela extraordinária sensa­ção. Na verdade, estava se tornando algo prazeroso, até mesmo estimulante. Ela havia se encontrado à bei­ra do mesmo êxtase momentos antes de sentir a ines­perada e súbita dor. Agora o êxtase retornava, pouco a pouco.

— Não — respondeu, com convicção. Jeb beijou-a nos lábios, de leve.

— Eu sinto muito — disse.

Logo depois ele se retirou de dentro dela, fazendo-a sentir-se vazia. Antes que ela pudesse protestar, po­rém, Jeb a calou com outro beijo. E logo o lugar onde ainda há pouco estava o membro enrijecido foi percor­rido pelos dedos dele, que se movimentavam em deli­ciosas carícias. Kelly voltou a mexer os quadris em busca de algum alívio.

Sentia-se cada vez mais molhada na região que ele tocava e, ao ser novamente penetrada pelo duro mem­bro de Jeb, não sentiu nenhuma dor, apenas uma de­liciosa sensação de prazer que ia aumentando no mes­mo ritmo dos vagarosos movimentos que ele fazia. O prazer se tornou ansioso e finalmente quase doeu quando os movimentos que eles faziam passaram a ser mais rápidos. Ela soltava gemidos enquanto incrí­veis sensações se espalhavam pelo corpo, partindo de sua feminilidade. Quando achou que estava prestes a perder os sentidos, no ápice do prazer, sentiu que Jeb se retirava de dentro dela, ao mesmo tempo que fazia coro aos gemidos que ela emitia. Depois ele ficou dei­tado de costas ao lado dela.

Por um bom tempo eles ficaram muito quietos, exaustos. Kelly fechou os olhos e sentiu-se flutuando num mar de bem-aventurança. Não podia dizer que sabia com clareza o que acabava de acontecer com ela. Não tinha tido uma mãe para explicar aquelas coisas de homem e mulher e certamente nem sonharia em pedir esclarecimentos ao pai. Tudo o que sabia havia concluído do que ouvira dos pedaços de conversas das mulheres que iam ao mercado. Mas não saberia dizer se aquela súbita penetração de Jeb tinha ou não al­guma coisa a ver com ter um bebé. Para falar a ver­dade, essa era uma preocupação que ela nem de longe tinha tido ao se ver nos braços dele naquela noite.

Também não estava nem um pouco preocupada com a questão da virgindade. Já que não tinha interesse em procurar um marido, nunca havia considerado ne­cessário preservar o próprio corpo para entregá-lo como um presente a um homem em particular, o que sempre havia considerado uma tolice.

Mas um bebê era um assunto bem diferente. Não seria nada fácil começar uma fazenda tendo de tomar conta de uma criança. Agora que as deliciosas sensa­ções do amor físico começavam a se dissipar, ela se recriminava por ter sido tão impulsiva.

Jeb sentiu imediatamente que uma mudança se ope­rava em Kelly. Ela já estava se arrependendo do que acabava de acontecer entre eles, sem dúvida, e isso era perfeitamente natural. Antes daquela noite era virgem, Deus do céu, e ele a havia possuído ali no chão, bem perto da carroça, a poucos passos de onde dormia o irmão dela. Logo ela, Kelly Gallivan, uma das pessoas que participavam da caravana, alguém que se encontrava sob sua responsabi-lidade. Nunca em toda sua vida Jeb tinha feito nada tão vil. Bem, isso não era verdade, ele se corrigiu, com amargura. Deflorar uma virgem que se encontrava sob a respon­sabilidade dele era apenas mais um pecado a ser acres­centado a uma longa lista de outros. Ele havia pre­parado o próprio caminho para o inferno ao deixar Melanie sozinha num lugar violento.

— Você está bem? — perguntou Jeb, procurando esconder a tensão.

Kelly ergueu um pouco a parte de cima do corpo e cobriu as pernas com a saia, perguntando-se se era assim que a coisa devia terminar. A voz dele havia se tornado distante. Jeb e ela tinham feito a coisa mais íntima que duas pessoas podiam fazer, mas agora ele parecia até um estranho. Queria deitar-se novamente e abraçá-lo, enquanto ouvia-o murmurar palavras do­ces ao seu ouvido. Em vez disso ele se mostrava dis­tante, discretamente fechando a braguilha da calça enquanto repetia a pergunta.

— Você está bem? Não está machucada?

Kelly balançou a cabeça, aturdida. Nunca havia con­versado sobre aquilo com outra mulher, mas alguma coisa dentro dela dizia que não era daquele jeito que duas pessoas agiam depois de fazer amor. Talvez ele não houvesse gostado muito, embora o pensamento chegasse a ser cruel quando ela se lembrava das in­críveis sensações que as carícias de Jeb haviam pro­duzido no corpo dela.

Kelly sentou-se e começou a abotoar o vestido. Antes de responder, procurou assumir a postura mais digna possível.

— Você não me machucou, capitão. Não se preocupe. A voz dela era tão fria quanto um amanhecer de janeiro, tanto que Jeb sentiu um arrepio. Mas merecia aquilo. Merecia mais do que apenas o desprezo daquela mulher. Se o pai dela ainda fosse vivo, teria todo o direito de descarregar uma espingarda no irresponsá­vel que havia desvirginado a filha dele. E Jeb pensou que até acharia bom. Nos meses que se seguiram ao assassinato de Melanie, muitas vezes havia pensado em dar cabo da própria vida.

—Vou deixá-la sozinha — disse. — Eu... Nem vai adiantar lhe pedir desculpas. Aconteceu e não há nada que possamos fazer a respeito.

Aconteceu? Então a discussão que ela teria com o primeiro amante se resumiria a isso? Kelly sentiu que seu temperamento irlandês começava a entrar em cri­se. Era um temperamento que fazia jus às histórias que se contavam sobre os irlandeses e, uma vez esta­belecida a crise, era muito difícil controlá-la.

No mesmo instante ela se pôs de pé.

— Capitão Hunter, você e eu continuaremos a viajar juntos por um bom tempo, durante vários meses. Acho melhor você sair daqui agora mesmo, antes que eu lhe diga alguma coisa que torne esses meses altamente insuportáveis para nós dois.

Jeb também se levantou, um pouco mais devagar que ela.

— Quero que você saiba que...

Kelly ficou olhando enquanto ele hesitava, logo de­pois olhando para o chão e balançando a cabeça. Pa­recia imensamente cansado.

— Não é nada — concluiu. — Já é tarde. Voltarei aqui pela manhã e então conversaremos a esse res­peito.

Incrédula, Kelly ficou olhando enquanto ele apanha­va o chapéu do chão e começava a se afastar.

Jeb não apareceu pela manhã. Devia estar ocupado com suas funções de líder da caravana. Logo cedo seria realizada uma reunião com os homens que haviam cavalgado entre as colinas em busca de água. Os estoques de água potável estavam quase se esgotando. Como ninguém mais havia adoecido, alguns dos via­jantes estavam começando a usar a água do rio, apesar das advertências do capitão. Ele queria pôr a caravana em movimento o mais depressa possível, esperando encontrar águas mais limpas.

Mas antes era preciso cuidar do preparativos para o sepultamento de Hester Hamilton. Samuel não havia se mostrado contrário a que ela fosse enterrada numa cova rasa entre duas árvores.

— A minha Hester não ficará lá — tinha dito, com os olhos cheios de lágrimas apesar da serenidade da voz, ao mesmo tempo que apontava para o coração. — Ela estará sempre aqui.

Todos se reuniram em volta do buraco cavado no chão enquanto o corpo de Hester era descido, enrolado num lençol. Depois que Frank Todd leu alguns versos da Bíblia, Scott, Jeb e alguns outros homens se ocu­param em encher a cova de terra. Enquanto isso al­guém começou a entoar um hino. Logo se formou um coro de vozes um tanto desafinadas perdido no meio da pradaria, quase superado pelo assobio do vento que açoitava a relva.

Finalmente eles se puseram outra vez em movimen­to, as carroças sendo puxadas pelos animais e a maior parte das pessoas caminhando, quase todas em silên­cio, pensando no monte de terra deixado entre as duas árvores.

E Jeb acabou não indo à carroça dos Gallivan. A caravana continuou se deslocando até quase ao anoitecer, tentando recuperar um pouco do atraso cau­sado pelo dia e meio em que tinha ficado parada. Todos pareciam muito abatidos e cansados. Até mesmo as crianças se mostravam pouco dispostas para os seus costumeiros folguedos. Patrick passou o dia inteiro ao lado de Kelly, sem se importar em procurar a companhia dos amigos. Chegou a comentar com a irmã que talvez Jeb fosse convidá-lo para uma cavalgada, mas não fez nenhuma queixa depois que o dia passou sem que o guia da caravana aparecesse.

Quando eles finalmente pararam, todos estavam cansados demais para estacionar as carroças em cír­culo. Deixaram os veículos em fila e muitas das pessoas nem se preocuparam em acender uma fogueira. As mães de família ofereciam como jantar comida fria, em geral bolo de carne ou as maçãs que restavam, já murchas por causa do forte calor.

Talvez mais do que os outros, Kelly estava exausta. Havia dormido muito pouco na noite anterior, depois do encontro com Jeb, e isso já tendo passado uma noite em claro. Quando Scott apareceu na carroça deles, pou­co depois da parada da caravana, com um prato cheio de biscoitos e carne fria, ela agradeceu como se ele fosse um enviado dos céus.

—Ontem, quando saímos para procurar água, ti­vemos sorte e conseguimos caçar algumas galinhas sil­vestres — explicou o garimpeiro. — Cozinhamos todas à noite.

Kelly não saberia dizer o que a deixava mais con­tente, a possibilidade de comer uma comida fresca ou o fato de que Scott parecia voltar a ser o bom e de­sinteressado amigo deles. As duas coisas eram muito boas, ela concluiu enquanto se sentava no chão com o visitante e Patrick para começar a comer.

O jeito brincalhão de Scott era exatamente o que ela precisava para usar como um antídoto contra a amarga experiência com Jeb. Kelly não queria acre­ditar que ele havia passado o dia inteiro sem procu­rá-la. Era como se estivesse zangado com ela por causa de uma coisa da qual pelo menos metade da culpa cabia a ele próprio. Na ocasião, pelo menos, havia parecido tratar-se de uma coisa que os dois queriam na mesma medida.

— Você vai ser nosso amigo outra vez, Scott? — perguntou Patrick, de boca cheia.

— Patrick! — exclamou Kelly, censurando o irmão. Scott, porém, abriu um sorriso bem-humorado e aba­nou a mão para desmanchar a repreensão dela.

— É claro que continuarei sendo amigo de vocês, Pat, meu garoto. Se você e sua irmã me quiserem por perto.

—Mas é claro que queremos você por perto — apres­sou-se em dizer Patrick. — Não queremos, mana?

Kelly assentiu e dirigiu a Scott um olhar de arre­pendimento que comunicava muito mais do que o que podia ser dito com palavras.

Scott piscou o olho para ela.

—Então acho que vocês me têm de volta. Pelo menos até nos aproximarmos dos campos de garimpo.

Patrick pôs sobre o prato um osso inteiramente descarnado.

— Então você sairá a campo para fazer sua fortuna, certo? — perguntou, entusiasmado.

— Certíssimo, garoto.

—Bem que eu gostaria de poder fazer a mesma coisa — disse o menino, com tristeza na voz.

— Nós estaremos garimpando o nosso próprio tipo de fortuna, Patrick, como você sabe muito bem — lem­brou-o Kelly. — Construiremos o futuro que papai pla­nejou para a nossa família.

Patrick ficou em silêncio, mas a expressão dele dizia que, para urij garoto de treze anos, trabalhar na agri­cultura ou cuidar do gado não tinha nem de longe o mesmo romantismo de procurar fortuna num garimpo de ouro.

— Não se preocupe — disse Scott, pondo mais um pedaço de carne no prato do menino. — Tenho certeza de que você terá aventuras de sobra na Califórnia. E tem muitos anos pela frente para viver'todas essas aventuras.

Patrick assentiu e aceitou a coxa de galinha silvestre oferecida pelo visitante.

— Mal posso esperar — disse, outra vez de boca cheia.

Kelly sorriu para os dois, feliz pela primeira vez naquele dia. O melhor seria simplesmente tirar Jeb Hunter da cabeça. Uma vez na Califórnia, ela e Patrick teriam atividades de sobra. Não precisavam da com­panhia de um guia de caravanas que vivia eternamente para lá e para cá.

Ouvindo um som inesperado os três voltaram a ca­beça para ver Jeb Hunter parado perto da carroça. Antes de falar ele pigarreou.

— Desculpem. Estou interrompendo alguma coisa?

— Para falar a verdade, nós já íamos nos deitar — apressou-se em dizer Kelly.

Tanto Patrick quanto Scott se voltaram para fitá-la, ambos espantados, mas ela manteve a cabeça erguida. Jeb não soube esconder o constrangimento.

—Nesse caso desejo boa noite a todos. Só estou passando nas carroças para ver se está tudo em ordem. Não é nada importante.

Scott olhou para o rosto tenso de Kelly e depois para Jeb. Logo em seguida tomou a palavra, com toda naturalidade.

—Se quiser pode ficar, Hunter. Eu lhe ofereceria um pedaço de galinha silvestre cozido, mas parece que o garoto aqui estava com um apetite dos infernos e consumiu tudo.

—Não, obrigado. Acho que também vou me recolher. Todos nós estamos precisando de uma boa noite de sono.

Kelly apertou fortemente as mãos sobre o colo. Na noite anterior, Jeb também teria tido dificuldade para dormir? Ela esperava fervorosamente que sim.

— Acha que poderemos cavalgar um pouco amanhã, Jeb? — perguntou Patrick.

O guia da caravana olhou para Kelly.

—Hu-humm —respondeu, evasivamente. Patrick sorriu, evidentemente tomando a resposta como uma afirmativa. Logo depois olhou para a irmã.

— Como foi a sua cavalgada daquela noite, Kelly? Com a doença de Molly e tudo o mais, eu acabei me esquecendo de perguntar.

Kelly desviou os olhos de Jeb para o irmão. No mo­vimento, percebeu que Scott a observava atentamente, sem dúvida querendo ouvir a resposta.

— Foi interessante — disse.

Patrick se mostrou interessado em ter mais detalhes.

— Vocês galoparam? E você conseguiu ficar segu­rando na cintura de Jeb o tempo todo? Às vezes isso é um bocado difícil — acrescentou, evidentemente or­gulhoso de nunca ter caído do cavalo.

Kelly rezou para que, à luz do luar, o rubor dela não fosse notado pelos demais.

— Acho que me saí bem, Patrick. Mas você ouviu o capitão dizer que já é hora de todos nos recolhermos para descansar um pouco.

— Eu só queria saber se vocês haviam galopado ou se o cavalo apenas trotou — disse o menino, parecendo desapontado por não poder falar sobre aquele assunto, evidentemente certo de que poderia mostrar que se saía melhor do que a irmã com um cavalo. — Já estou galopando direitinho, não estou, Jeb?

— Está, sim, parceiro — respondeu o capitão, pa­recendo com o pensamento distante.

Scott levantou-se.

— Então vamos nos deitar ou ficar aqui conversando a noite toda.

Kelly também se levantou, grata pela sugestão.

— Não quero saber o que vocês vão fazer, mas eu vou me deitar — declarou.

— Partiremos amanhã à hora de sempre — disse Jeb.

— Otimo — respondeu Scott. — Seria bom se ti­véssemos mais motivos para ficar mais contentes. O dia de hoje não foi nada fácil. Como está reagindo o sr. Hamilton?

Jeb balançou a cabeça, evidentemente espantado.

— Ele parece tão tranquilo que eu mal posso acreditar.

—O velho Samuel vive dizendo que a sra. Hester sempre estará com ele — acrescentou Patrick. — Ele sabe que a mulher morreu, não sabe?

— Sabe, sim — respondeu Jeb. — Parece que sim­plesmente aceita o que foi decidido pelo destino. — Nesse ponto a voz dele pareceu insegura, como se não fosse fácil entender o comportamento de Samuel. — Estive com ele várias vezes depois da morte de Hester. No entanto, em vez de sentir pena, fico pensando: "Que homem de sorte". Ah, não faz sentido.

— Para mim faz muito sentido — discordou Kelly. — Papai sempre estará no meu coração, exatamente como Samuel diz que Hester estará no dele. Não é uma perda irreparável.

Por alguns instantes Jeb ficou olhando para ela, em silêncio. Depois abriu os braços.

— Então acho que você também é uma pessoa de muita sorte.

— Acho que sim.

Depois de dirigir a ele um rápido sorriso, Kelly se despediu de Patrick e Scott com um aceno de cabeça. Logo em seguida caminhou para a carroça. Naquela noite não queria dormir ao relento.

Apesar da promessa, Jeb não apareceu para pegar Patrick na manhã seguinte. O garoto ficou aguardando o dia inteiro, finalmente parecendo desistir de ter es­peranças quando a tarde foi chegando ao fim. Fez tudo para não mostrar o quanto estava desapontado, mas Kelly sabia que o que ele mais queria era se divertir com uma boa cavalgada. Patrick já havia deixado bem claro que gostava muito dos momentos passados com Jeb, quando podia falar "de homem para homem", como às vezes dizia. Parecia até que conversava com o guia da caravana com uma franqueza que não havia usado nem mesmo com o próprio pai. E aprendia muito com Jeb. As conversas deles abordavam os mais diversos assuntos, tratando das particularidades do Oeste, dos cavalos, dos índios... coisas sobre as quais um garoto falaria durante horas antes de se cansar. Levando em conta tudo isso era fácil concluir que, se Jeb interrom­pesse a amizade naquele ponto, seria um trauma enor­me para Patrick.

Kelly procurou se convencer de que tudo estaria bem se ele não quisesse mais nada com ela. Obviamente tratava-se de um cafajeste. Que outra classificação me­receria um homem que, depois de ensinar a ela tantas delícias do amor físico, simplesmente se afastava? Era muito melhor ficar longe dele, cuidar apenas de chegar à Califórnia para atingir os objetivos almejados. Tam­bém não adiantaria nada perder tempo lamentando o encontro com Jeb Hunter. Para ser honesta, Kelly não estava arrependida. A rápida experiência amorosa ha­via servido para que ela tomasse conhecimento de sen­timentos e sensações que nem sabia existirem. Além disso, o relacionamento deles a tinha feito aprender uma valiosa lição: a de que homens solitários como Jeb Hunter deviam ser deixados com sua solidão. Eram incapazes de manter um relacionamento.

Por isso, quando Scott apareceu mais uma vez na carroça deles, à hora do jantar, Kelly o recebeu com mais entusiasmo do que nunca. Talvez Jeb fosse capaz de frustrar as esperanças de Patrick, mas Scott nao faria isso. Desde o início da viagem, tratava o menino com atenção e amizade. Naquele dia mesmo, na hora do almoço, havia levado para Patrick várias roupas em perfeitas condições de uso. O irmãozinho de Kelly estava se transformando num homem bem diante dos olhos dela. Expressava-se agora numa voz mais grave e ultimamente quase não soltava mais os gritos agudos de antes. E mal cabia nas roupas velhas. Na noite anterior Kelly havia comentado que, se não fosse en­contrada uma solução, o irmão dela teria que completar a viagem para a Califórnia inteiramente nu.

A única reserva dela em relação àquela amizade era que Patrick sempre demonstrava muito interesse nas histórias de Scott sobre garimpo de ouro. Mas Kelly esperava que, quando eles chegassem à Califórnia e seguissem caminhos diferentes, o irmão dela acabasse esquecendo.

Scott pareceu satisfeito com a recepção calorosa, mas não tomou nenhuma iniciativa para tirar proveito da mudança de atitude dela. Não tentou mais andar de braço dado com ela nem se fazer notado por aqueles seus charmosos sorrisos. Parecia realmente decidido a assumir o papel de um atencioso e protetor irmão mais velho. E Kelly viu-se naturalmente invadida por um sentimento de gratidão.

Eles tiveram um jantar alegre, aliviados pela pos­sibilidade de deixar para trás um dia dominado pelo espectro da doença e da morte. Depois da refeição os Burnett se juntaram a eles, com Molly nos braços do pai, saindo da carroça pela primeira vez depois da enfermidade. A garotinha já estava quase de volta ao seu estado normal, embora ainda um pouco fraca. Era até difícil acreditar que, apenas três noites antes, tinha estado tão perto da morte.

Depois de uma agradável hora de conversa, John assumiu a tarefa de pôr as gémeas na cama. Scott também se despediu, desejando boa-noite a todos, e Patrick subiu à carroça para se recolher, deixando Kel­ly com Dorothy. A recente enfermidade da filha havia deixado abalada a normalmente enérgica loira sulista. Mostrando-se solidária, Kelly dispôs-se a ouvir as es­peranças e os sonhos que Dorothy acalentava para as duas filhas. Pela primeira vez, achou que podia real­mente entender o que era construir uma família, ter filhos para amar e educar. Naturalmente aquilo não era para ela, que teria que organizar uma fazenda e precisava cuidar de Patrick.

Além disso, para construir uma família ela teria que ter um marido. Teria de estar apaixonada. A ideia fez com que Kelly se lembrasse dos momentos passados nos braços de Jeb. Ele não tinha ido até a carroça deles... nem mesmo para cumprir a promessa feita a Patrick. Kelly sentiu um arrepio. Ainda não sabia de­finir exatamente o que havia acontecido entre eles. Mas não tinha sido amor. Disso ela estava muito certa, droga!

Depois que mais um dia se passou sem que Jeb Hunter desse nenhuma notícia, Kelly começou a ficar com raiva. Mesmo esquecendo o fato de que um cava­lheiro deveria pelo menos demonstrar alguma preocu­pação com o bem-estar dela depois do que eles tinham feito juntos, mesmo esquecendo a promessa que ele tinha feito de levar Patrick para uma cavalgada, tra­tava-se do guia da caravana. Fazia parte do trabalho dele verificar se tudo estava bem com eles.

— Por onde anda o nosso guia? — perguntou Kelly, enraivecida, durante o jantar do dia seguinte.

Scott apenas deu de ombros, mas John Burnett, que estava usando a fogueira deles para esquentar uma panela de sopa, dispôs-se a responder.

— Acho que tem se ocupado na solução desse pro­blema da água. Vem insistindo que devemos ir buscar nas colinas a água necessária para reabastecer nossos estoques, até mesmo a destinada a matar a sede dos animais. Muitas pessoas não estão satisfeitas com isso.

— Mesmo depois do que aconteceu com Molly e Hes-ter Hamilton? — perguntou Kelly.

John balançou a cabeça, com ar de desolação.

— Infelizmente, há quem tenha memória curta.

— Bem, seja como for, ele devia passar aqui vez por outra para nos dizer como estão indo as coisas.

— Estive conversando com Frank Todd — comuni­cou Scott, — Ele disse que Hunter proibiu terminan­temente que se tirasse água do rio enquanto não se tiver certeza de que ela pode ser usada.

Patrick estava visitando as gémeas e Kelly se sentiu segura para falar dele.

— O capitão prometeu que levaria meu irmão para uma cavalgada. Patrick ficou enormemente desapontado por ele não ter aparecido para cumprir a promessa.

— Bem, por que não pegamos algumas das minhas mulas para fazer uma cavalgada? — sugeriu Scott. — Elas não são tão elegantes quanto o alazão de Hunter, mas servem perfeitamente para um passeio no fim da tarde.

O semblante de Kelly se iluminou.

— Ah, Patrick ficaria muito contente! De pronto, John desaprovou a ideia.

— Ei, vocês conhecem as regras. Não temos auto­rização para nos afastar da caravana sozinhos.

— Não iremos muito longe — argumentou Scott. — Apenas o suficiente para que Patrick fique com a sen­sação de que fez sua cavalgada diária.

— Eu concordo — declarou Kelly, voltando-se depois para John. — Se por acaso o capitão Hunter finalmente resolver dar as caras por aqui, por favor diga a ele que saímos para uma cavalgada.

John continuou sério.

— Ainda acho que não é uma boa ideia.

Àquela altura, porém, Kelly já estava correndo na direção da carroça dele para chamar o irmão.

— Eles foram para onde? — inquiriu Jeb.

— Saíram montados nas mulas de Haskell — res­pondeu John, num tom conciliador. — Acho que não pretendem ir muito longe.

Jeb continuou montado na sela de Storm, demons­trando incredulidade.

— Aqueles idiotas — disse, finalmente.

— Eles disseram que voltariam antes do pôr-do-sol — acrescentou John.

— Se antes disso não forem encontrados pelos pawnees.

— Pelos pawnees?

— Estamos bem no meio dos campos de caça desses índios.

John franziu a testa alta.

— O que vamos fazer agora?

— A mesma coisa que temos feito nas expedições para ir buscar água. Junte um grupo de homens ar­mados. Homens! — repetiu Jeb, enfático. — Não mu­lheres ou crianças.

John ainda procurou minimizar o problema.

— Haskell está com eles.

— Otimo. E quantas armas eles levaram? John balançou a cabeça.

Jeb voltou os olhos para as colinas, na direção para onde, segundo John, o trio havia seguido.

— Irresponsáveis! — disse, com os dentes trincados.

 

Montar uma das mulas de Scott não era -tão excitante quanto tinha sido caval­gar na garupa de Storm. Mesmo assim, estava sendo muito bom poder se afastar da caravana durante al­gum tempo. A poeira levantada pelos cascos daqueles animais não era tão espessa e o vento enchia as narinas dos humanos com o cheiro do capim alto que se espa­lhava pela região.

Ao começar a se afastar da caravana, Kelly tinha ficado olhando para trás o tempo todo, esperando que a qualquer momento um irado Jeb Hunter partisse no encalço deles, mas aparentemente ninguém estava prestando atenção no que eles faziam. As carroças pa­reciam diminuir de tamanho por causa da distância e, quando eles alcançaram a primeira colina, Kelly relaxou, esquecida de tudo.

Ela e Patrick iam numa das mulas, enquanto Scott cavalgava uma outra. Patrick havia se mostrado dis­posto a cavalgar um animal sozinho, mas Kelly não demonstrou tanta segurança. Assim sendo, o garoto concordou em ir com a irmã, desde que ocupasse o lugar da frente.

Ao longo do trajeto, Scott distraiu os acompanhantes contando histórias sobre mulas e sobre a época em que havia trabalhado como ferreiro. O tempo passou rapidamente e, quase sem se dar conta disso, eles se viram no alto de uma colina de onde se descortinava a vista da pradaria. O rio, prateado e majestoso, corria até onde a vista deles podia alcançar, tanto para o leste como para o oeste. Visto dali, não parecia estar com a água tão salobra nem ser tão traiçoeiro em al­guns trechos.

— Infelizmente não podemos apenas nos deitar no rio e ir flutuando até a Califórnia — lamentou Kelly, em tom sonhador.

—Ah, isso seria magnífico! — concordou Patrick. Kelly reparou que o irmão dela estava adotando um jeito mais americano de falar, o que certamente se devia à convivência com os outros garotos da caravana. Bem, ela não o censurava por isso. Queria mesmo que ele se integrasse inteiramente ao país que buscava um futuro de grandeza.

—Não seria nada fácil "flutuar" por cima das mon­tanhas Rochosas — ponderou Scott, rindo.

Patrick não perdeu o entusiasmo.

—Seria mais incrível ainda, ora!

—Vejam — voltou a falar Scott, num tom de voz mais contido. — Um grupo de cavaleiros está se afas­tando da caravana.

Kelly voltou os olhos para onde Scott e o irmão dela já olhavam. Cavaleiros? Ela havia esperado ver Jeb. Na verdade, se pensasse bem nos motivos que a tinham levado a aceitar a oferta de Scott, talvez fosse obrigada a reconhecer que só havia concordado em fazer aquele passeio por estar ressentida com o distanciamento de Jeb. Mas em nenhum momento chegara a pensar que um pelotão sairia à procura deles, como se estivesse caçando um bando de ladrões de cavalos. Bem, talvez a inocente cavalgada fosse uma transgressão muito mais séria do que havia parecido a princípio.

— E melhor descermos a colina para ir ao encontro deles — ela propôs.

Scott assentiu.

— Espero que não tenhamos causado nenhum pro­blema. Pesando bem, John tinha razão. Devíamos pelo menos ter comunicado a Hunter o que pretendíamos fazer.

O tom de voz de Patrick mostrou a mesma preocu­pação dos mais velhos.

— Será que Jeb ficará aborrecido conosco? — ele perguntou.

Kelly não respondeu, mas Scott olhou para o garoto e piscou o olho.

—Não se preocupe, Patrick. Ele não ficará aborre­cido com você. Se alguém tiver que enfrentar a raiva do nosso guia, esse alguém serei eu.

Logo depois eles começaram a descer a colina, sem mais comentários. Os homens no outro lado do vale evidentemente já os tinham visto, porque pararam suas montarias. Agora era possível ver que o animal que liderava o grupo era Storm, montado por Jeb Hun­ter. Enquanto continuavam vencendo a distância entre os dois grupos eles puderam ver também que Jeb se voltava para os outros homens, mandando-os de volta para o acampamento da caravana. Logo depois o ca­pitão partiu em disparada na direção deles.

Não se passaram dez minutos antes do encontro. E quando isso aconteceu Kelly já lamentava amargamen­te a impulsiva excursão.

— Que diabo acha que estava fazendo, Haskell? — gritou o capitão, ainda a vários metros de distância deles.

—Não fomos muito longe — defendeu-se Scott, que obviamente também se arrrependia da façanha. — Que motivos você tem para ficar tão irritado, Hunter?

Jeb obrigou o cavalo a parar e saltou ao chão, logo depois marchando na direçâo deles. Com um gesto de mão, indicou Kelly e Patrick.

— Que motivos eu tenho para ficar irritado? Sozi­nhos e desarmados, vocês saíram para cavalgar em território dos pawnees. Por acaso quer que eu lhe dê uma descrição detalhada do que eles são capazes de fazer com uma moça e um garoto?

Scott ficou em silêncio e Kelly resolveu falar em defesa dele.

— Em parte a culpa foi sua! — declarou, olhando firmemente para Jeb.

— Em parte a culpa foi minha?

Ela não se deixaria intimidar pelo tom de voz au­toritário do guia.

—Sim. Nós queríamos que Patrick se distraísse um pouco. Afinal de contas, ele ficou esperando durante dois dias inteiros que você aparecesse para cumprir a promessa de levá-lo para uma cavalgada.

Jeb pareceu ficar sem saber o que dizer. Quando voltou a falar, foi num tom de voz que já não demons­trava tanta raiva.

— Isso não é desculpa para que vocês se arriscassem tanto.

—E claro que nós não imaginávamos estar correndo tanto risco — justificou-se Scott.

— E é justamente por isso que sou eu o guia da ca­ravana, Haskell, não você! — devolveu Jeb, de pronto.

— Bem, o fato é que ninguém saiu machucado — pronunciou-se Kelly, num tom conciliador. — Peço des­culpas por você ter sido obrigado a sair à nossa procura. Não voltaremos a fazer isso.

— É bom mesmo que não façam — disse Jeb, agora dirigindo a ela os olhos enraivecidos, e não a Scott. Depois de alguns momentos, porém, pareceu um pouco mais calmo. — Acho que devo me desculpar por não ter passado ultimamente na carroça de vocês. É que tenho andado até aqui de problemas.

Mesmo aos ouvidos de Jeb aquelas palavras pare­ceram vazias. Ele havia tido uma porção de problemas, o principal dos quais era a renovação dos suprimentos de água, mas podia ter arranjado alguns minutos para passar na carroça dos Gallivan. Podia ter levado Pa­trick para cavalgar durante algum tempo. A verdade era que havia evitado isso. Havia evitado um encontro com ela. Tinha sido um desprezível covarde.

— Cavalgaremos amanhã, parceiro — disse, olhando para Patrick. — É uma promessa. E agora quero lhe pedir um favor.

—O quê? — perguntou Patrick, numa voz muito baixa, como se estivesse consciente de que tinha sido ele a causa de toda aquela confusão.

Jeb apontou para a mula onde estavam os dois irmãos.

— Será que você pode cavalgar sozinho esse animal, levá-lo de volta ao acampamento?

— Claro — respondeu o menino, parecendo confuso. — Mas... e Kelly?

— Levarei sua irmã no meu cavalo. Quero conversar em particular com ela por alguns minutos.

Patrick torceu o corpo em cima da mula e olhou para a irmã. Kelly balançou afirmativamente a cabeça.

— Segure bem a rédea — ela recomendou enquanto descia da garupa da mula.

— Você não tem obrigação nenhuma de ir com ele, Kelly — disse Scott, certamente achando que ela pre­cisava de proteção.

— Não se preocupe, Scott — respondeu Kelly. — Você e Patrick voltem para o acampamento. Nós iremos logo atrás.

Por alguns instantes ela ficou esperando, parada, enquanto Scott e Patrick a olhavam, parecendo em dúvida. Depois os dois incitaram as mulas, que começaram a se afastar em seu passo vagaroso. Kelly ca­minhou até onde estava Jeb e ergueu a mão. Em vez de ajudá-la a subir à garupa do cavalo, porém, ele desmontou.

— Vamos deixar que Storm caminhe um pouco — disse. — Isto é... se você não se importar.

Kelly sentiu um arrepio. Tudo levava a crer que a conversa que ela tanto queria quanto temia ter com Jeb Hunter finalmente estava para acontecer.

— E os índios? — perguntou.

—Aqui estamos bem perto do acampamento. Não precisamos nos preocupar com eles.

Segurando na rédea de Storm, que seguiu docilmen­te atrás dele, Jeb começou a andar na direção de onde estavam as carroças. Kelly o seguiu, esperando que ele falasse primeiro. Como isso estivesse demorando muito a acontecer, ocorreu a ela o pensamento de que talvez eles já houvessem feito todo o caminho de volta ao acampamento antes que o homem abrisse a boca. Mas finalmente ele resolveu falar.

— Tudo isso tem sido uma idiotice muito grande.

Não era exatamente o que Kelly esperava ouvir.

— Tudo isso o quê? — ela perguntou, entendendo mais ou menos o que ele queria dizer mas querendo uma explicação mais clara.

— Tudo isso — repetiu Jeb, fazendo um gesto vago com a mão. — Você e eu. Patrick. Haskell...

A referência ao garimpeiro deixou Kelly realmente confusa.

— O que Scott tem a ver conosco? Jeb olhou-a de lado.

— O que você acha?

O constrangimento por causa da preocupação que eles haviam causado agora já não era tão grande e Kelly começava a se sentir outra vez irritada com ele.

— Não faço a menor ideia, capitão.

— Imagino que você quer que eu acredite que essa sua escapada com Haskell não tem nada a ver com o fato de que eu não a procurei para que tivéssemos uma conversa desde que... desde que fizemos amor.

Kelly parou de andar, obrigando Jeb a fazer o mes­mo. Storm estancou o passo tão subitamente que quase esbarrou neles.

—Não houve nenhuma escapada minha com Scott. Que ideia mais absurda!

— Bem, você saiu com ele.

— Com ele, sim, mas também com o meu irmão. Por acaso isso lhe parece algum tipo de atividade clan­destina?

Jeb deu um puxão na rédea. Quando Storm começou a resfolegar, inquieto, ele ergueu a mão automatica­mente para afagar o focinho do animal.

— Por que você resolveu fazer isso, então?

Kelly balançou a cabeça, sem esconder o quanto es­tava exasperada.

— Para que meu irmão pudesse sair para uma cavalgada... exatamente como eu já lhe disse. Não teve nada a ver com você, Jeb Hunter. Sinto muito se acha tão difícil entender que o mundo não se re­sume à sua pessoa. Ou às suas preciosas normas, se é assim que pensa.

Jeb pareceu um pouco desconcertado. Depois de al­guns instantes de silêncio, empurrou o chapéu para trás e coçou a cabeça.

— Eu devia ter ido conversar com Patrick, explicar a ele o quanto estive ocupado hoje.

— E ontem.

— E ontem — concordou Jeb.

A respiração de Kelly tornou-se mais calma.

— Bem, quanto a isso nós estamos de acordo, pelo menos.

— E eu devia ter ido conversar com você. Até tentei naquela outra noite, mas vocês estavam jantando com Haskell. Não poderia discutir certos assuntos na pre­sença dele.

—Discutir que coisas? — perguntou Kelly, embora já soubesse a resposta.

Mesmo contra sua vontade, ela já começava a se sentir disposta a perdoá-lo... por não ter ido à carroça deles, por ter deixado Patrick desapontado, por ter ralhado com eles por causa do inocente passeio. Jeb estava dizendo que havia pensado em conversar com ela, chegando mesmo a tentar fazer isso. E agora, na­quela noite, demonstrava sentir ciúme. De Scott. Isso era inequívoco. E fazia com que o coração dela amo­lecesse perigosamente.

Jeb olhou para ela com uma expressão quase tímida.

— Você não gostaria de... bem... — Parecendo não saber o que fazer com as mãos, indicou uma formação de árvores cerca de cinquenta metros ao sul de onde eles estavam. — Podíamos amarrar Storm para nos sentarmos um pouco.

A um quilómetro dali as carroças iam se iluminando com a luz das lanternas a óleo, os viajantes se prepa­rando para a noite de descanso.

— Não temos que voltar logo? — perguntou Kelly, alarmando-se ao perceber que estava com a garganta seca.

Jeb balançou a cabeça.

— Todos na caravana sabem que estamos aqui. É até provável que, lá mesmo do acampamento, estejam vendo Storm. — Nesse ponto ele pegou-a pela mão e começou a caminhar na direção das árvores. — Você está com frio — disse, fechando os dedos grandes em torno dos dela.

— Não, não estou — disse Kelly, sentindo um arrepio.

Jeb parou de andar e recuou um passo para pegar um cobertor enrolado e amarrado atrás da sela.

— Deixe-me cobrir seus ombros com isto.

Logo depois eles retomaram a caminhada para as árvores.

— Não estou mesmo com frio — disse Kelly, enfática. — Mas podemos nos sentar no cobertor, se você quiser.

Jeb assentiu e abriu o cobertor sobre a relva alta. Kelly deixou-se cair ali de joelhos, sentindo como se estivesse em cima de uma fofa cama. Depois de amar­rar Storm num arbusto, Jeb acomodou-se ao lado dela.

— Bem, aqui estamos nós — disse, depois de pigarrear.

Agora não havia nem vestígio do autoritário guia da caravana, o que fez com que Kelly se sentisse mais confiante.

— Sim — ela disse, brandamente.

— Como eu ia dizendo...

— Pelo que me lembro, capitão, você não estava dizendo muito coisa — comentou Kelly, agora bem-humorada.

Jeb fez uma careta e coçou o queixo.

—É, reconheço que não estava, mesmo — capitulou, virando-se um pouco e olhando-a intensamente. — Você se incomoda de me chamar de Jeb?

Poucos centímetros os separavam.

—Não, não me incomodo — respondeu Kelly, numa voz cada vez mais branda.

— Otimo. Agora, na minha opinião, o que precisamos resolver aqui é o fato de nos termos deixado arrebatar naquela noite...

— Espere aí. É assim que você define o que aconteceu?

—Bem, você entende o que eu quis dizer. Nós es­távamos cansados, esgotados em função da doença de Molly, de tudo o que vinha acontecendo...

O bom humor de Kelly desapareceu.

— Capitão... Jeb, tenho certeza mais do que absoluta de que, se deixei que você fizesse amor comigo, não foi por estar cansada ou esgotada.

— Mas que droga — resmungou Jeb, passando a palma das mãos nas pernas da calça. — Estou ten­tando me desculpar, mulher, e você fica me inter­rompendo o tempo todo.

—Tentando se desculpar? Então é disso que se trata? Jeb soltou um demorado suspiro.

—Naquela noite, eu não sabia que você era... — Ele parecia ter dificuldade para encontrar as palavras certas para se expressar. — Não sabia que seria a sua primeira vez.

— Pois eu acho que, se quisesse saber, você poderia ter simplesmente me perguntado.

Prontamente ele assentiu.

— Sim, eu devia ter perguntado. Ou, melhor, não tinha nada que fazer com que chegássemos àquele pon­to, fosse lá qual fosse a sua experiência.

Kelly olhou demoradamente para as feições de Jeb, que estavam contraídas, a testa vincada. O dia inteiro havia sentido raiva por causa da aparente indiferença dele em relação aos momentos de paixão que eles ha­viam partilhado. Agora, porém, o que ele menos de­monstrava era indiferença. Na verdade, parecia sofrer uma amargura maior até do que a dela. Depois de alguma hesitação Kelly pôs a mão no braço dele, por cima da camisa de couro.

—Não foi tão ruim assim, Jeb — disse, com ternura na voz.

—Foi a sua primeira vez com um homem, menina, e tudo o que você tem a dizer é que "não foi tão ruim assim"? — ele resmungou. — Por Deus, Kelly! Não era para ter existido nada de ruim para você. Tinha que ter sido uma coisa maravilhosa... mágica. Trata-se da experiência mais íntima que um homem e uma mulher podem partilhar. Quando é a primeira vez de um deles dois, então...

Kelly mostrou um meio sorriso.

— Bem, na verdade foi muito bom... quase tudo, pelo menos. E acredite que não estou aborrecida por causa do que aconteceu.

—Mas devia estar. Eu me sentiria bem melhor se você me desse uma bofetada no rosto, me chamasse de cretino.

Kelly ficou sem saber se devia rir ou oferecer a ele algum conforto. Era bem mais difícil lidar com o re­morso de Jeb Hunter do que com a arrogância que ele em geral demonstrava. Aquilo a fazia experimentar sensações de ternura que ela não queria ter... fosse por Jeb ou por qualquer outro homem.

—Você pode se classificar como quiser, mas eu me recuso a dar uma bofetada no seu rosto. Sinto muito, mas não acredito em violência.

Aquelas palavras fizeram com que um relutante sor­riso aparecesse nos lábios dele.

— Então é uma mulher que sabe perdoar, Kelly Gallivan!

—Por falar nisso, estou perdoada pela excursão de mulas que fiz com Patrick e Scott?

Jeb sustentou o olhar dela.

— Está, sim.

—E você não vai mais me acusar de ter dado uma "escapada" com Scott?

Em vez de responder ele fez outra pergunta.

— Ele está apaixonado por você?

—Espero que não. Acho que, desde o princípio, Scott se sentiu na obrigação de ser um protetor para mim e para Patrick. Acho também que foi isso que o levou a me fazer a proposta de casamento, para permitir que eu continuasse na caravana. O que ele quer mesmo é chegar aos tais campos de garimpo de ouro.

— A tentação do Velocino de Ouro.

A voz de Jeb outra vez tinha uma ponta de amargura.

—Você não gosta muito de garimpeiros, não é? — disse Kelly, mais afirmando do que perguntando.

Jeb hesitou por um momento. Depois espichou as pernas compridas e recostou-se no tronco da árvore que se erguia por trás deles.

— Não — respondeu, simplesmente.

Foi como se uma janela houvesse se fechado no sem­blante dele. Kelly já tinha visto aquilo acontecer, mas agora queria uma explicação.

— Por que não? — perguntou, voltando-se para olhá-lo de frente.

Jeb rolou a cabeça contra o tronco da árvore, fle­xionando o pescoço. Felizmente, a dor de cabeça que vinha sentindo desde que ouvira de John Burnett a informação de que Kelly havia se afastado do acam­pamento parecia estar começando a ceder.

— Porque sei o tipo de idiotas que eles são — res­pondeu simplesmente.

Kelly contraiu os lábios.

— Bem, estamos falando de ouro, certo? Por que diz que eles são idiotas.

— Por experiência própria.

— Você já foi garimpeiro de ouro? Jeb moveu afirmativamente a cabeça.

—Fui acometido pela febre, exatamente como qual­quer um desses jovens sem juízo.

— Mas não ficou rico?

Jeb soltou um resmungo, como se desdenhasse a si próprio.

— Nem de longe. Houve dias em que nem tinha o suficiente para pagar um prato de comida.

Kelly ainda achava difícil de entender. Afinal de contas eles estavam falando de ouro.

—Talvez não tenha persistido pelo tempo que devia. Jeb fechou os olhos, outra vez com a expressão tensa.

Kelly sentiu um aperto no peito ao perceber que ele estava a ponto de fazer uma revelação importante, algo sobre o que não falava com facilidade. Depois de algum tempo Jeb finalmente ergueu as pálpebras e olhou-a, com uma expressão que a fez sentir um frio na espinha.

— Eu persisti por um tempo suficiente para que um bando de assassinos estuprasse e assassinasse mi­nha esposa.

Kelly sentiu as têmporas latejando e até teve medo de desmaiar. Como ainda estava de joelhos, buscou uma posição mais estável.

— Que Deus tenha misericórdia — murmurou. Jeb voltou os olhos para a noite escura.

—É. Bem, ele não teve. Ninguém teve misericórdia da minha doce Melanie. Ninguém. A começar por mim.

Kelly procurou alguma palavra de conforto para di­zer, mas a enormidade da tragédia dele era tão as­sustadora que tornou-se impossível pensar no que quer que fosse. Finalmente ela saiu daquele estado de torpor e segurou-o pelas mãos. Jeb dava a impressão de mal reparar naquilo. Depois de ter revelado a pior parte, parecia sentir necessidade de contar o resto da história. Numa voz que soava curiosamente apática, foi rela­tando como havia deixado sozinha a jovem esposa, ape­sar dos protestos dela, na esperança de encontrar ouro enquanto os veios eram abundantes nos campos de garimpo. Muitos aventureiros se espalhavam pelo ter­ritório, todos com o objetivo de fazer fortuna antes que o precioso metal se esgotasse. A febre havia tomado conta da mente dos mais jovens, como uma doença contagiosa e mortal. E Jeb Hunter foi uma das vítimas mais fáceis.

Apenas três meses foram suficientes para que ele concluísse que só bem poucos daqueles homens veriam o sonho de riqueza transformado em realidade. Como milhares de outros, mal conseguia encontrar o suficiente para continuar subsistindo. Nesse meio-tempo, alguns desses aventureiros, frustrados em suas espe­ranças de encontrar fortuna fácil, iam se organizando em bandos de foras-da-lei para assaltar e pilhar. Já que não conseguiam enriquecer na Califórnia como ha­viam planejado de início, buscariam o mesmo fim por meio do roubo e da violência. E a esposa de Jeb, deixada sozinha no chalé deles, no sopé da montanha, ficou à mercê de homens assim.

Quando ele chegou ao fim da narrativa, lágrimas escorriam pelas faces de Kelly. A terrível história tor­nava fácil entender a rigidez que às vezes tomava conta do semblante daquele homem, a frieza do olhar dele. Jeb Hunter vivia agora com duas tragédias. O assas­sinato da esposa tinha sido apenas a primeira dessas tragédias. A segunda era a implacável e angustiante culpa com a qual ele era obrigado a conviver.

Em algum momento ao longo daquela narrativa, Kelly havia se chegado para bem perto de Jeb, sempre segurando nas mãos dele. E agora ele apertava com tanta força os dedos dela que os deixava formigando, mas era evidente que nem mesmo se dava conta do que estava fazendo.

—Você não tinha como saber — ponderou Kelly, depois de um demorado silêncio. — Como alguém po­deria imaginar que uma coisa tão terrível aconteceria?

—No nosso casamento, eu prometi, diante de Deus e dos homens, que tomaria conta dela, que a protege­ria... — contrapôs Jeb, cheio de amargura. — Até que a morte nos separasse — acrescentou, emitindo um som horrível que pareceu meio riso e meio soluço.

Kelly aproximou-se ainda mais, puxando-o para jun­to de si. Não havia nenhuma sensualidade naquele gesto, apenas a solidariedade humana que levava uma pessoa a oferecer conforto a alguém em sofrimento. Nada diferente do que ela havia feito ao consolar Dorothy na noite em que Molly havia parecido prestes a ser levada pela morte. Depois de alguns instantes, porém, Kelly percebeu que estava com os seios endu­recidos contra o corpo quente de Jeb. E ele também percebeu isso.

Voltando a apoiar o corpo no tronco da árvore, deitou-a no colo e beijou-a na boca. Kelly sabia que dificilmente alguma ação dela faria cicatrizar a fe­rida que sangrava no coração dele, mas podia fazer com que ele esquecesse a dor, pelo menos durante algum tempo. Podia providenciar para que Jeb se perdesse nas sensações que, naquela outra noite, ele próprio havia ensinado a ela. Queria fazer isso por ele... e por ela própria.

A razão ia vagarosamente retornando à mente de Jeb quando o corpo dele começou a fugir ao controle. Outra vez ele se deu conta de onde estava. Sabia que era Kelly quem se contorcia nos braços dele, não Melanie. Nunca mais abraçaria Melanie. Era a doce Kelly quem estava ali, com o rosto molhado pelas lágrimas que havia derramado por causa dele. E aquelas lágrimas preciosas pareciam atingi-lo no ín­timo, regando um terreno que havia permanecido seco durante tantos anos.

Jeb beijou-a novamente, cheio de gratidão, um sen­timento que rapidamente se transformou em intenso desejo. Em algum ponto razoável e sensível da mente, sabia que não devia deixar que aquilo voltasse a acon­tecer. Mas o coração e o corpo não estavam querendo ouvir nenhum conselho de prudência. Além disso, ha­via um argumento muito simples: ele precisava encher de ternura aquela mulher, redimindo-se de quando ha­via lhe tirado a virgindade de uma forma quase rude.

Jeb respirou profundamente, obrigando-se a ficar controlado. Mostraria a ela a doçura das sensações que o amor físico podia proporcionar. Faria com que ela se sentisse nas alturas.

Deitando-a na relva, Jeb começou cobrindo-lhe o ros­to de beijos cheios de ternura. Quando Kelly fechou os olhos, com uma expressão sonhadora, ele foi abrindo lentamente a blusa que ela usava, mesclando a tarefa com beijos igualmente ternos.

— Olhe para mim, doçura — disse, levantando um pouco a cabeça.

Kelly ergueu as pálpebras e fitou-o, de forma que ele pôde ver a mudança que se operou naqueles ma­ravilhosos olhos azuis, que se abriram ainda mais quando ele apertou de leve o mamilo dela. Descendo vagarosamente com a mão, ultrapassou o cós da calça de Patrick que ela usava e continuou a escorregar os dedos. Outra mudança nos olhos de Kelly, ainda aber­tos, mostrou o momento exato em que ele atingiu o ponto certo.

Aquela exploração vagarosa e cheia de erotismo pro­duzia sensações que se espalhavam em ondas pelo cor­po de Kelly. Contorcendo-se sob os carinhos enlouque-cedores, ela ergueu um pouco os quadris, como se toda a existência dela se concentrasse no ponto que ele to­cava. Desesperada, enfiou os polegares nas laterais da calça e empurrou-a para baixo, querendo permitir-lhe livre acesso. Jeb recuou um pouco para facilitar o que ela estava fazendo.

— Relaxe, doçura — recomendou, numa voz tão cheia de doçura quanto as carícias dos dedos. — Ape­nas relaxe e sinta.

Pouco depois ela estava inteiramente nua, serpen­teando sobre o áspero cobertor, enquanto ele a beijava pelo corpo todo, da ponta dos pés aos cabelos, fazendo depois o caminho de volta, sem nenhuma pressa. Outra vez os dedos dele a procuraram no centro mais sensível às carícias eróticas, primeiro bem de leve, até que finalmente um daqueles dedos se intrometeu pela aber­tura umedecida, penetrando-a alguns centímetros. Su­bitamente foram os lábios dele que se aproximaram daquela região, por cima dos dedos. Kelly soltou um demorado gemido quando sentiu naquela mesma parte do corpo a carícia da língua quente de Jeb. Apertou fortemente os dedos no cobertor, achando que estava a ponto de explodir.

Quando ela emitiu outro gemido, desta vez mais alto, Jeb foi subindo, aproveitando para beijá-la no bico de um dos seios. Finalmente olhou-a com uma expressão divertida.

— Não tão alto, doçura. Assim as pessoas da cara­vana poderão ouvi-la.

Quando voltou a beijá-la, Jeb percebeu que novas lágrimas haviam molhado aquelas faces macias, mas agora eram lágrimas de paixão. Então também se des­piu e deitou-se ao lado dela.

—Devia ter sido assim na sua primeira vez... você, cheia de amor, se derretendo nos meus braços.

A voz dele chegava aos ouvidos de Kelly grave e transbordante de sensualidade. Momentos antes ela havia chegado ao orgasmo levada apenas pelas carícias dele, mas já começava a se sentir outra vez possuída pelo desejo. Diferentemente da apressada experiência da outra noite, Jeb agora estava inteiramente nu, ex­pondo o corpo musculoso. Cheia de curiosidade e ou­sadia, Kelly estendeu a mão para explorá-lo. Afinal de contas, ele a havia visitado em todas as partes do corpo. Partes das quais ela nem se dava conta, pensou Kelly, sem conter um sorriso.

—Por que está ronronando, gatinha? — perguntou Jeb, também sorrindo.

— Gatinhas felizes ronronam... — ela respondeu.

— Eu a fiz feliz, doçura? — perguntou Jeb, agora sério.

—Fez, sim. O mundo é pequeno demais para as sensações que experimentei.

Ele a beijou na ponta do nariz.

— Isso me deixa contente. Era exatamente o que eu queria.

A mão de Kelly alcançou o ventre dele, que era co­berto por uma camada de macios pêlos. Jeb soltou um gemido de prazer e encorajamento.

—Está ronronando também, Jeb? — ela perguntou, com malícia na voz.

Jeb guiou-lhe a mão, incentivando-a a descer até alcançar a ereção dele.

— Homens não ronronam — protestou.

Mesmo assim soltou um gemido ainda mais cheio de sensualidade quando os dedos de Kelly se fecharam em torno do símbolo de sua masculinidade.

—Para mim isso é ronronar — ela persistiu, come­çando a fazer movimentos com a mão. Nunca havia aprendido como uma mulher devia agir em circuns­tância como aquela, mas parecia algo perfeitamente natural e as reações de Jeb evidentemente aprovavam o que ela fazia. — Embora seja um ronronar muito forte — prosseguiu, falando ao ouvido dele. — Como o de um tigre.

Jeb imitou o rosnado de um felino e deitou-se sobre ela, induzindo-a a abrir as pernas. Então, sem se preo­cupar com outras carícias, penetrou-a e soltou um ge­mido de satisfação.

Desta vez não houve dor, apenas uma estonteante sensação de preenchimento. Logo depois transformou-se numa paixão crescente e Kelly procurou acompa­nhar o ritmo dos movimentos que ele fazia com os quadris. Jeb beijou os mamilos dela até senti-los in­tumescidos. Finalmente ergueu a cabeça.

— Abra os olhos, doçura. Fique olhando para mim enquanto eu a levo outra vez ao clímax.

Kelly obedeceu, sentindo-se novamente a ponto de explodir. Os movimentos sensuais de Jeb assumiram um ritmo enlouquecedor, algo que ele acompanhava com gemidos roucos. E cumpriu a promessa de levá-la ao clímax, mas ela não conseguiu continuar com os olhos abertos quando outra vez alcançou o orgasmo.

Momentos mais tarde Jeb se movimentou para trás. Rapidamente ela ergueu as pernas para retê-lo, mas foi tarde demais, porque ele já havia se retirado.

Dominada por uma sensação de vazio, logo depois Kelly sentiu-se atingida nas coxas pelo líquido quente e espesso expelido pelo sexo dele.

— Desculpe, doçura — disse Jeb.

 

Krlly deixou-se ficar por baixo dele, en­torpecida e saciada. Sentia como se um maravilhoso milagre houvesse se operado em seu cor­po. Que coisa incrível! Não era de admirar povos se baterem em guerras por causa do amor, pensou, va­gamente. Não era de admirar homens e mulheres fa­zerem toda sorte de loucuras em nome do amor.

Só o final tinha sido um pouco desapontador, quando ele havia querido se retirar tão rapidamente de dentro dela. Por acaso o prazer do sexo tinha para o homem a mesma grandiosidade que para a mulher? Seria ele capaz de experimentar as mesmas sensações que ela? Provavelmente sim. Pelo menos, Jeb agora parecia tão exausto e satisfeito quanto ela.

Kelly estendeu a mão e puxou o cobertor por cima deles.

— Vamos rezar para que ninguém mais tenha a infeliz ideia de sair para uma cavalgada noturna... tal­vez passando por aqui — disse Jeb, com um sorriso preguiçoso.

Kelly riu.

— Só espero que Scott e Patrick não resolvam voltar aqui para nos procurar.

O sorriso de Jeb desapareceu.

— Não posso acreditar que deixei isso acontecer outra vez. Não poderia me queixar se levasse umas boas chicotadas.

Kelly segurou nas faces dele e olhou-o nos olhos.

— Você disse alguma coisa parecida com isso na primeira vez em que estivemos juntos. Ainda não pen­sou na hipótese de que talvez eu tenha deixado acon­tecer, não você?

— E sempre responsabilidade do homem...

— Que asneira! Nem tudo importante na vida é responsabilidade do homem, Jeb. Algumas são repar­tidas em igual medida. E eu diria que o que acabamos de fazer juntos é definitivamente uma dessas coisas. — Kelly repousou a cabeça no braço dele e sorriu. — E, se quer saber, achei lindo.

Jeb abraçou-a.

— Também achei lindo — murmurou.

— Então o assunto está resolvido.

Por alguns instantes eles ficaram quietos, cada um perdido nos próprios pensamentos. Kelly estava ten­tando imaginar o que aquela novidade tão fantástica podia significar para o futuro dela, para o futuro que havia planejado ter com Patrick. Certamente não es­tava disposta a abdicai do sonho do pai, mas pela primeira vez começava a se perguntar se não estaria disposta a partilhar aquele sonho com alguém mais... com Jeb. Ele sem dúvida havia planejado se fixar em algum lugar com a esposa, antes da horrível morte dela. Depois de todos aqueles anos de andanças, do Leste para o Oeste e vice-versa, talvez estivesse dis­posto a tentar novamente.

Se ela já estivesse com uma criança no ventre, ele não teria escolha. A ideia fazia com que Kelly sentisse as mais desencontradas emoções. Pensar naquilo não a deixava tão alarmada quanto havia ficado ao consi­derar pela primeira vez a possibilidade. Seria compli­cado começar uma fazenda estando grávida, mas não impossível, principalmente se ela pudesse contar com a ajuda de um marido. Naturalmente preferiria que, na hipótese de vir a se casar com Jeb, eles não se vissem obrigados a começar a vida juntos em tais circunstâncias. Outra vez ela se perguntou o que deveria fazer em se­guida. Como em tantas outras vezes, lamentou não poder contar com os conselhos da mãe. Bem, só havia uma forma de descobrir o que precisava saber.

— Jeb — começou Kelly, hesitante.

— O que é, doçura? — ele perguntou, parecendo quase adormecido.

— No final... quando... Ah, você sabe... Quando você saiu de dentro de mim tão de repente. Aquilo significou que... — Kelly respirou fundo, obrigando-se a dizer as palavras. — Aquilo significou que nós não fizemos um bebé?

Jeb apoiou-se no cotovelo, ergueu um pouco o corpo e olhou-a fixamente.

— Você não sabe por que eu fiz aquilo?

Como resposta Kelly apenas balançou a cabeça, embaraçada.

Jeb suspirou demoradamente.

— Se eu tivesse continuado dentro de você quando... quando terminei, então, sim, haveria a possibilidade de estarmos fazendo um bebé. Por isso me retirei.

— Obrigada — disse Kelly, com um leve sorriso. — Também acho um pouco cedo para termos um bebé.

Jeb estava erguendo a mão para ajeitar os cabelos, mas parou na metade do caminho. Um pouco cedo? Mas o que estava se passando na cabeça daquela mu­lher. Rapidamente ele procurou repassar todas as con­versas que haviam tido, tentando se lembrar de já ter dito alguma coisa que a levasse a acreditar que no futuro poderia haver entre eles algum tipo de compro­misso. Bem, eles tinham feito amor. Para uma garota como Kelly, era de se supor que isso implicava um compromisso. Mas ele nunca havia se "comprometido com palavras, disso tinha certeza. Eram palavras que não pretendia repetir pelo resto da vida. Não conse­guiria viver com a culpa de, mais uma vez, deixar de cumprir um juramento.

—Eu fui deliberadamente cuidadoso, Kelly — disse Jeb, falando devagar. — Sei que não agi corretamente ao fazer amor com você, mas seria o mais desprezível dos homens se, ainda por cima, a deixasse com um filho no ventre.

O vento soprou um pouco mais forte, retirando a parte do cobertor que os envolvia. Kelly sentiu um súbito arrepio.

— Deixar-me com um filho? — perguntou. — Mas não é costume, quando um homem e uma mu­lher fazem um bebe... cuidarem juntos da criação desse filho?

Jeb retirou o braço de baixo dela e sentou-a, dei­xando-a com as costas apoiadas na árvore. Feito isso começou a se vestir.

— Foi por isso que tomei tanto cuidado para que não fizéssemos um bebé, Kelly. — A voz dele fez com que ela sentisse um frio que lhe chegou aos ossos. — Esse tipo de vida não é para mim.

— Houve época em que você deve ter querido exatamente esse tipo de vida.

Jeb balançou afirmativamente a cabeça.

— Houve, sim. Se ao menos eu tivesse ficado ao lado da minha esposa, construindo com ela o futuro que havíamos planejado juntos, hoje seria uma pessoa diferente. Mas isso não aconteceu e agora eu perdi até o direito de pensar numa existência assim.

Kelly apertou o cobertor em torno dos ombros.

— Não acredito nisso, Jeb. E você também não deve acreditar. Nenhum homem pode perder para sempre o direito de ser feliz por causa de um único erro.

Jeb terminou de se vestir. Quando olhou para ela, parecia quase enraivecido.

—Não foi apenas um "erro", Kelly. Eu fui o res­ponsável pelo assassinato brutal de uma mulher jovem e indefesa que havia confiado em mim para cuidar dela, protegê-la...

Alguma coisa estalou na cabeça de Kelly.

— Indefesa? — ela inquiriu. — Talvez a sua Melanie não tivesse mesmo como se defender dos assassinos que a mataram, mas certamente não era indefesa. Era uma pioneira, por Deus do céu!

— Uma mulher — corrigiu-a Jeb. — Exatamente como qualquer outra mulher, que precisa da proteção de um homem para sobreviver numa terra como a Ca­lifórnia. Exatamente como você, Kelly, embora se ache tão invencível. Pode muito bem acontecer com você o mesmo que aconteceu com Melly. E quem estará lá para protegê-la? Um garoto de treze anos?

— Eu saberei me proteger, assim como saberei cons­truir uma fazenda sozinha. Exatamente como consegui chegar até aqui sozinha!

— Tomando atitudes como a que tomou hoje, quan­do poderia ter dado um fim a sua vida e à do seu irmão?

Agora eles estavam os dois ajoelhados, olhando-se de frente, sem nenhum vestígio da ternura de momen­tos antes na voz ou na expressão.

— Já pedi desculpas por isso, capitão — disse Kelly, com frieza. — E, se fizer a gentileza de me passar minhas roupas, voltaremos logo para a caravana, onde você poderá reassumir seu papel de valente defensor de mulheres e crianças... assim como remoer sua culpa, o que parece gostar tanto de fazer.

— Por que diabo está dizendo isso? — reagiu Jeb, jogando as roupas no colo dela, quase com violência.

A raiva de Kelly desapareceu no instante em que ela pensou melhor nas palavras que acabava de dizer. Quando respondeu foi numa voz cheia de tristeza.

— Não existe nobreza nenhuma em passar a vida remoendo o passado, Jeb, não importa o motivo que se pense ter para fazer isso. Tenho certeza de que sua Melanie foi uma mulher forte e corajosa, já que se dispôs a construir um lar na Califórnia... num lugar selvagem, como você diz. E estou igualmente certa de que ela não iria querer que, por causa das circunstân­cia da tragédia que a matou, você passasse o resto da vida se mortificando.

Jeb ficou em silêncio enquanto Kelly rapidamente se vestia. Só voltou a falar quando ela já estava pronta.

— É melhor voltarmos — disse, simplesmente.

Kelly ficou esperando enquanto ele ia buscar o ca­valo. Pouco depois Jeb retornou, já montado, e esten­deu a mão para levá-la à garupa do animal. Cautelo­samente ela envolveu a cintura dele com os braços, mas procurou manter o corpo o mais afastado possível enquanto o cavalo trotava de volta ao acampamento, sem que nenhum deles dissesse nada.

Patrick e Scott esperavam ao lado da carroça, olhan­do para a noite enquanto eles se aproximavam. Scott pareceu disposto a perguntar o motivo de toda aquela demora, mas deve ter mudado de ideia ao ver a tensão que havia no rosto do guia da caravana.

Jeb parou o cavalo a uma certa distância e voltou-se para trás, oferecendo a mão para ajudar Kelly a descer. Ainda fora do alcance dos ouvidos de Scott e Patrick, olhou-a e franziu a testa.

— Eu sinto muito — murmurou.

Kelly fitou-o, depois abaixou os olhos para a mão estendida. Ignorando-a, agarrou na parte de trás da sala e saltou para o chão.

— Também sinto muito — disse, tensa.

Logo depois se afastou e desapareceu por trás da carroça.

Cumprindo o que havia prometido, Jeb apareceu na manhã seguinte para levar Patrick para cavalgar com ele. Ainda estava tendo problemas com alguns dos viajantes que não queriam seguir o plano de ra­cionamento da água. Não ajudava em nada Foxy Whitcomb e Daniel Blue fazerem pouco dos temores do guia da caravana sobre haver algum perigo em se consumir a água do rio.

— Sempre bebi qualquer água daqui até a costa! — vangloriou-se Foxy. — Até mesmo da fonte de Satanás, que John Colter descobriu a nordeste daqui. E podem acreditar que nunca adoeci em toda a minha vida.

Mas levar o menino na garupa do cavalo não com­plicaria em nada aqueles problemas. Ele já havia de­sapontado muito um dos membros da família Gallivan. Podia pelo menos continuar tendo boas relações com Patrick.

Jeb gostou muito de ver o sorriso de boas-vindas no rosto do garoto, que sabia ser uma companhia agra­dável. Enquanto se concentrava em fazer com que a caravana continuasse se deslocando para o Oeste, ele procurou tirar Kelly da cabeça. Apesar do problema da água e do temor de que outras pessoas adoecessem, era bom ver que fazia tempo bom. Em mais duas se­manas, no máximo, eles chegariam à pedra da Inde­pendência. Se ele conseguisse levar o grupo até lá sem maiores problemas, a parte mais difícil do trabalho estaria superada. Havia ainda que ultrapassar as mon­tanhas, o que não era uma tarefa fácil, mas sempre a parte mais complicada era controlar um grupo tão grande de pessoas durante a travessia das extensas pradarias e do deserto.

O "bom dia" de Kelly tinha sido apenas um gesto civilizado quando ele havia ido até a carroça para apa­nhar o irmão dela. Jeb a olhou nos olhos, aqueles mes­mos olhos azuis que na noite anterior haviam brilhado de paixão. Aquela recepção fria foi como uma punha­lada no estômago, algo que ele não sentia desde a" morte de Melly.

— Trarei seu irmão de volta na hora do almoço — disse Jeb.

Kelly apenas assentiu, sem dizer nada.

Naquele dia, a parada para almoço acabou sendo a mais turbulenta desde a partida de Westport. Apro­ximando-se da carroça dos Crandall, Jeb e Patrick en­contraram um grupo de viajantes cercando Foxy e Da­niel. Os dois veteranos esquentavam uma refeição de milho dentro de uma panela contendo a barrenta e salobra água do rio. Quando os grãos de milho assen­tassem no fundo da panela, puxaria para baixo a lama e, pelo que Foxy disse em voz alta àquelas pessoas, também os espíritos do mal.

— E assim que os índios fazem — disse o veterano ao grupo, composto principalmente por homens. — E eles nunca adoecem.

De fato, a água que resultou na parte de cima da panela parecia notavelmente clara, nada parecida com o lodoso líquido que corria no rio. Vários dos presentes pegaram canecas para experimentar.

— E fresca como a água de uma fonte! — aprovou Thomas Crandall.

O filho dele, Homer, que só agora estava se recu­perando dos efeitos da disenteria que o havia acome­tido, postou-se ao lado do pai e olhou para a água com ar de dúvida.

— O capitão disse que não devíamos beber a água do rio — lembrou. — Pelo menos enquanto não come­çarmos a subir as montanhas.

— Bem, o capitão não tem uma família inteira con­sumindo uma boa quantidade de água todos os dias — rebateu Crandall. — Não sei por que temos que nos levantar tão cedo todos os dias e ir buscar água tão longe, se temos um rio perfeitamente bom bem perto das carroças.

Um murmúrio de aprovação se espalhou pelos presentes.

— O motivo para isso é o menino que está ao seu lado, Crandall — disse Jeb, aproximando-se do grupo.

— Você quase o perdeu, e agora está correndo o risco de perder outra pessoa da sua família ou mesmo de se matar. — Descendo do cavalo ele chegou mais perto e tirou a caneca da mão do homem. — Não aja como criança! — acrescentou, enraivecido.

Crandall deu a impressão de que estava disposto a se atracar com o guia da caravana, mas conteve-se. Quando falou, estava pálido de raiva.

— Na minha opinião, Whitcomb e Blue podem falar sobre esta região com muito mais segurança do que você, Hunter, porque andam por aqui há mais tempo. Se eles dizem que é possível limpar a água do rio, é só o que basta para mim.

— Nesse caso, é uma sorte você não estar dando as ordens por aqui, porque acabaria nos matando a todos. Eu já disse que, até segunda ordem, ninguém deve beber a água do rio. Quem desobedecer a essa determinação será afastado da caravana no instante em que chegarmos a Fort Laramie. — Pegando a panela da mão de Foxy ele derramou todo o líquido no chão. Feito isso, voltou a montar. — Há numerosos rios nas colinas pelas quais estamos passando. Não sei por que devemos correr riscos desnecessários. Não quero perder mais ninguém que es­teja sob minha responsabilidade.

Depois disso ele se afastou, observado por aque­las pessoas, muitas delas com uma expressão de insatisfação.

—Quando assumem alguma responsabilidade, esses fedelhos sempre vêem problema em tudo — resmungou Foxy.

— Hunter adora viver dando ordens a torto e a di­reito — acrescentou Crandall. — Talvez já seja hora de lembrar a ele que fomos nós que o contratamos.

O problema continuou naquela noite, quando Jeb convocou uma reunião para que se organizassem gru­pos de sentinelas que deveriam montar a guarda no-turna durante os próximos dias, até que a caravana se aproximasse da pedra da Independência.

— Estamos agora bem no coração do território sioux — disse aos presentes. — E nos últimos anos eles não têm se mostrado muito amigáveis com os brancos.

— Um pato selvagem poderá partir daqui e voar durante uma semana que não encontrará um só sioux — disse Foxy, por trás do grupo.

Jeb havia dormido muito mal nas últimas noites, sempre pensando em Kelly, alternando o remorso com pensamentos eróticos. E aquele dia tinha sido muito difícil, principalmente por causa das discussões envol­vendo o problema da água. Por tudo isso, não estava com a menor disposição para aturar a "voz da expe­riência" de Foxy.

— Por acaso você voa como um pato selvagem, Foxy, para dizer uma coisa como essa? — perguntou, com secura.

O pioneiro levantou-se e caminhou vagarosamente até a frente do grupo. Todos os olhos estavam fixos nele.

— E você, Hunter, quantos búfalos viu por aqui? Nenhum, certo? Os sioux foram para o norte, seguindo os búfalos.

— Os búfalos foram quase extintos nesta região — rebateu Jeb. — E é exatamente esse o problema, por­que os índios não podem sobreviver sem eles. E não ficaram nada contentes depois que multidões de ho­mens brancos invadiram o território deles para dizimar os rebanhos.

— Eles foram para o norte — persistiu Foxy.

Jeb balançou a cabeça, exasperado. Depois indicou com um gesto de mão os que estavam presentes.

— Apenas por acreditar nisso, você pode estar dis­posto a arriscar a vida dessas pessoas, mas eu não estou. Vamos nos revezar para montar guarda durante a noite. Já resolvi isso e é assim que vai ser.

Olhando em volta, Jeb viu expressões de desagrado em muitas daquelas pessoas. No início da viagem todos consideravam o que ele dizia como algo tirado do evan­gelho. Naquele ponto, porém, com os problemas se acu­mulando, o moral do grupo estava baixo. Há mais de dois meses e meio que eles vinham se deslocando por pradarias intermináveis, uma paisagem monótona, quente e seca. Havia chegado a hora em que todos ficavam com a impressão de que a jornada nunca che­garia ao fim. A comida fresca havia acabado há muito tempo. Além disso existiam os insetos e o tormento da poeira constante. Muitos estavam desenvolvendo uma tosse crónica e, sempre que possível, se afastavam da caravana para respirar um pouco de ar puro.

Quando eles alcançassem as montanhas Rochosas, porém, as atitudes mudariam por completo. Todos pas­sariam a demonstrar uma renovada energia para su­perar os obstáculos que teriam pela frente. O objetivo finalmente estaria bem perto de ser alcançado. No ou­tro lado daquelas montanhas eles encontrariam a terra prometida. Não que pensassem que o resto da viagem seria fácil, mas naquele ponto em geral o moral do grupo subia, pelo menos durante algum tempo. Se tudo desse certo, continuaria sendo assim até que eles al­cançassem a costa.

Jeb sabia disso e se esforçava para ser simpático com as pessoas durante aqueles últimos e tediosos dias na pradaria. Mas em nenhuma outra caravana havia acontecido com ele o que estava ocorrendo agora. Nun­ca ele havia se deixado atrair tanto por uma das mu­lheres do grupo de colonos, a ponto de esquecer as próprias responsabilidades ou não conseguir dormir direito à noite.

— Frank tomará nota dos nomes — disse, antes de encerrar a reunião. — Quero que todos os homens acima de dezoito anos se inscrevam com ele para que sejam formados os grupos que ficarão montando guarda.

Com o canto do olho ele viu que Kelly o observava, com uma expressão que parecia ser de simpatia. Aquilo o fez lembrar-se de quando tinha sido confortado por ela, na noite anterior. Não fizera nada para merecer aquele conforto, mas tinha sido muito bom. Bom de­mais. Pelo bem da caravana e pelo bem dele próprio, no futuro faria tudo para não tirar proveito de uma oportunidade como aquela.

Jeb parecia exausto e, ao ouvi-lo explicando os de­talhes das medidas de segurança que deviam ser to­madas, Kelly percebeu pela primeira vez a enormi­dade do peso que aquele homem carregava nos om­bros. Não era só a culpa pela morte da esposa, mas também os problemas pessoais de cada um dos pio­neiros que todos os anos ele levava para o Oeste. Era uma punição rigorosa demais para o crime que ele acreditava ter cometido... o crime de ter tido os mesmos sonhos idiotas de todos aqueles que se dei­xavam levar pela febre do ouro.

Pensar naquilo a deixava triste. Triste por Jeb e por ela própria. Sempre que fechava os olhos, ainda podia sentir o maravilhoso êxtase a que ele a tinha levado. Quando os abria, olhava no rosto dele e sentia um calor como nunca havia experimentado. Tinha amado o pai e amava Patrick, mas agora sabia que existia um lugar muito especial no coração dela reser­vado para Jeb.

Mas isso não importava. Para que eles pudessem ter uma vida juntos, ele teria que se livrar dos próprios demónios. E não parecia estar muito interessado nisso. Eram esses demónios que mantinham acesa no ator­mentado coração dele a lembrança de Melanie. Por mais dolorosa e destrutiva que fosse, era uma lem­brança que estava sempre presente. E Kelly não se sentia no direito de interferir naquilo.

Depois da reunião, acompanhados por Scott, ela e Patrick voltaram caminhando vagarosamente para a carroça. Scott, sim, era um homem aberto e sem com­plicações. Faria muito mais sentido se fosse ele o dono daquele lugar especial no coração de Kelly. No entanto, como ela já havia percebido tantas vezes desde a morte do pai, ocorrida pouco antes da partida para a reali­zação do grande sonho dele, poucas coisas na vida fa­ziam sentido. Pouquíssimas coisas.

—Andam falando por aí em motim — disse Scott, depois que eles se afastaram dos outros.

— Motim? — inquiriu Kelly. — Que história é essa?

— Um motim contra Hunter. As pessoas estão fi­cando fartas dos modos autoritários dele.

— Nunca ouvi nada mais ridículo.

— Pelo que me lembro, você mesma disse que ele dá ordens demais — lembrou Scott.

— Ele é o guia da caravana, não é? Acho que não valeria o que ganha se vez por outra não fizesse uso da autoridade que tem.

— Jeb nunca foi mandão comigo — pronunciou-se Patrick. — Eu gosto dele.

Scott pareceu não gostar do comentário, mas ficou em silêncio.

— Bem, espero que as pessoas tenham um pouco de bom senso e parem de falar essas bobagens — disse Kelly. — Não ajudará em nada termos divergências internas quando chegamos a uma parte perigosa da viagem.

— Se é que existe perigo — comentou Scott.

— Bem, Jeb diz que existe. E eu acredito nele.

— Agora ele é "Jeb", é? — perguntou Scott, olhando de lado para ela.

Kelly sentiu-se corar, mas preferiu não responder.

— Nós o contratamos para nos guiar, não foi? Então devemos deixar que ele faça o seu trabalho como acha que deve ser feito.

— Não sei... Há quem acredite que Foxy e Daniel alcançariam resultados muito melhores guiando a nos­sa caravana.

Logo depois eles chegaram à carroça de Scott, que parou de andar, evidentemente sem intenção de acom­panhá-los. Kelly abriu os braços.

—Não posso acreditar que alguém pense seria­mente nisso. Aqueles dois contam histórias interes­santes, mas é mais do que evidente que também con­tam mentiras.

A luz da lua, Scott olhou bem para o rosto dela.

— O que é que está acontecendo entre você e Hun­ter? — perguntou. — Você mudou de ideia sobre ele desde que começamos a viagem.

— Eu simplesmente percebi que ele é um profis­sional eficiente e que sabe do que está falando. E é claro que se preocupa com os problemas das pessoas da caravana.

— Preocupa-se com os problemas de alguns mais do que com os de outros.

Kelly não tentou refutar o que Scott acabava de dizer. Pela forma como Jeb a ignorava, ninguém po­deria acusá-lo de alimentar sentimentos especiais por ela.

— Até agora ele acertou em tudo. Acertou sobre o peso que poderíamos levar na carroça e é evidente que acertou também nessa questão da água. Ninguém mais adoeceu depois que paramos de beber da água do rio.

— Isso pode ser simples coincidência. Vai me dizer que ele acertou também quando quis expulsá-la da caravana?

Kelly suspirou. Patrick havia continuado a caminhar para a carroça deles e agora ela estava sozinha com Scott.

—Não estou dizendo que você é obrigado a gostar dele, Scott, mas certamente será prejudicial para a caravana inteira se as pessoas começarem a se dividir em facções. Você já sabe de uma coisa que Jeb tem enfatizado desde o começo: todos nós devemos traba­lhar em equipe.

—Podemos simplesmente decidir que devemos tra­balhar em equipe sem o nosso atual guia — rebateu Scott.

— Espero que não, porque o que quero é chegar à Califórnia. E acho que você também quer. Continuo convencida de que a pessoa que nos levará até lá é Jeb Hunter.

No dia seguinte, quase todas as pessoas da caravana já sabiam do que se falava contra o capitão. Depois que Jeb apareceu na carroça dos Gallivan para apa­nhar Patrick, cumprimentando-a apenas com um ace­no de cabeça, Kelly passou o resto da manhã pergun­tando-se se ele estava ciente da insatisfação que agora sentiam vários dos integrantes da caravana. Achava que devia falar com ele sobre o assunto, mas temia que qualquer conversa entre eles fosse impossível depois de como havia terminado o último encontro amoroso. E tinha certeza de que Jeb Hunter seria mais feliz se não voltasse a pôr os olhos nela. Embora não estivesse tentando se convencer de que havia parado de gostar do difícil capitão, sabia que seria melhor que aquela viagem chegasse ao fim o mais rapidamente possível, de forma que ela nunca voltasse a vê-lo. Assim, poderia entregar o coração e as energias unicamente ao projeto de erguer a fazenda sonhada pelo pai.

O sol a pino significava que logo eles fariam uma parada para almoço. Dorothy foi até a carroça dos Gal­livan para perguntar a Kelly se ela estava sabendo dos boatos sobre motim. Quando Kelly assentiu, a loira não se conteve.

— São os mesmos homens de sempre... aquele Tho-mas Crandall e o velho e idiota homem da montanha, Foxy. E também o outro, Daniel Blue.

Um acesso de tosse fez Dorothy interromper o discurso.

— Vá caminhar um pouco afastada das carroças, Dorothy, longe da poeira — sugeriu Kelly. -— Conti­nuaremos a conversa assim mesmo porque eu poderei ouvi-la. — Enquanto a amiga se afastava ela prosse­guiu. — O que acha que devemos fazer?

— Por que você não conversa com o capitão Hunter? — disse Dorothy. — Conhece-o melhor do que qualquer outra pessoa nesta caravana.

Kelly ficou olhando para os bois que se deslocavam vagarosamente à frente dela, arrastando a carroça.

— Não acredito que ele queira falar comigo. Dorothy ergueu a mão em concha para proteger os olhos do sol e olhou para ela.

— Vocês estão tendo uma briga de namorados? — perguntou.

Kelly mordeu o lábio. Esperava que as palavras da amiga fossem apenas uma figura de linguagem. Não queria nem pensar na hipótese de Dorothy ou qualquer outra pessoa da caravana saberem que ela e Jeb ti­nham tido um rápido namoro. Já era humilhante de­mais ela saber que tinha sido rejeitada por ele de uma forma tão rude.

— E só que no momento não estamos nos dando muito bem.

— E uma briga de namorados, então — concluiu Dorothy, fazendo um gesto afirmativo com a cabeça.

— Mas não se preocupe. Você saberá resolver o pro­blema. Isso se esses malucos não arranjarem um jeito de desbancá-lo da função.

—Isso não chegará realmente a acontecer, não é? As carroças começaram a diminuir a marcha depois que Jeb ordenou à da frente que parasse para o almoço.

— Não sei — disse Dorothy, parecendo preocupada.

—Se você não estiver querendo ir falar com ele, talvez nós duas devamos ir ver o que Eulalie tem a dizer sobre o assunto.

Kelly sentiu um enorme alívio. Mulher excepcional­mente forte, apesar da fala macia e do jeito afável, Eulalie saberia o que fazer.

— Acho que você deve ir falar com Jeb, Kelly — sugeriu Eulalie, repetindo o que Dorothy já tinha dito.

— Acredito que ele tenha desenvolvido um sentimento mais profundo por você.

— Ahá! — comemorou Dorothy, batendo palmas e saltitando, deliciada ao ver que a mulher mais velha tinha as mesmas suspeitas dela. — O que foi que eu lhe disse, garota?

Kelly franziu a testa. Aparentemente seria mesmo obrigada a ter um confronto com Jeb. Eles teriam de superar a questão pessoal para pensar apenas no bem da caravana.

— Mas o que vou dizer a ele?

— Basta adverti-lo — respondeu Eulalie. — Faça com que o capitão saiba dos boatos que estão circulando.

— Vocês não acham que seria melhor o sr. Todd se encarregar disso? Afinal de contas, ele foi eleito re­presentante dos membros da caravana.

— Frank ficou tão enraivecido quando soube dessa história que nem está conseguindo pensar direito. Dis­se que não quer perturbar o sossego do capitão falando de uma hipótese tão absurda.

— Então vou ter que dar conta do recado — resig­nou-se Kelly, já sentindo um frio na barriga.

— Vá procurá-lo, Kelly — disse Dorothy, agora fa­lando com brandura. — Pergunte o que devemos fazer para impedir que essa loucura seja levada adiante.

— Vou tentar. — Kelly olhou para o rosto esperan­çoso das duas amigas. — Mas tenho que dizer a vocês que existe a possibilidade de que Jeb Hunter não quei­ra nem ouvir o que eu tenho para dizer.

 

Kelly teria preferido que a reunião com capitão se realizasse logo, mas ele es­palhou pelas carroças, com a ajuda de Patrick, a orien­tação de que se fizesse um almoço rápido. Era o que vinha fazendo ultimamente, enquanto eles atravessa­vam o que chamava de "coração do território índio". Com isso fazia com que a caravana se deslocasse alguns quilómetros extras todos os dias, o que só aumentava a insatisfação dos descontentes. Os almoços curtos, os longos dias de marcha, o revezamento de sentinelas... tudo aquilo parecia desnecessário enquanto eles per­corriam quilómetros e quilómetros sem que aparecesse um único índio amigável, menos ainda os hostis.

Kelly teve que correr de volta à carroça quando os veículos começaram a rodar novamente, e Patrick se juntou a ela com a notícia de que não cavalgaria com Jeb naquela tarde já que o guia da caravana faria algumas observações no terreno adiante das carroças.

Assim sendo ela teria a tarde inteira para planejar a conversa que teria com ele. Quando a noite começou a cair, concluiu que estava dando importância demais a uma coisa que na verdade era uma tarefa muito simples. Ela e Jeb tinham feito amor. Não havia nada que pudesse ser feito para mudar isso. No entanto, como eram dois adultos, podiam perfeitamente passar por cima das dificuldades pessoais para lidar com o problema que tinham em mãos. Ela nem mesmo men­cionaria o último encontro privado deles. Nem mesmo pensaria naquilo, resolveu enquanto guardava os uten­sílios usados no jantar e se preparava para ir à carroça dos Todd à procura do capitão.

— Eulalie disse que você queria falar comigo. Surpresa ao ouvir a voz dele, Kelly soltou o que estava segurando. O prato metálico caiu no chão e saiu rolando até bem perto dos pés do recém-chegado. Jeb abaixou-se para apanhá-lo e olhou-a com um sor­riso torto.

— Já vai começar a jogar coisas em mim?

Kelly levou a mão à garganta. Aquela não era, nem de longe, a forma calma e contida com que havia pla­nejado saudá-lo.

— Você me assustou — explicou, o que era inteira­mente desnecessário.

Jeb não desfez o meio sorriso.

— Desculpe. Ai, meu Deus! A esta altura você já deve estar cansada de me ouvir pedindo desculpas. Talvez seja até melhor eu parar de me desculpar.

Kelly pegou o prato da mão dele, guardou-o na caixa de utensílios de cozinha e fechou a tampa.

— Não precisa se desculpar. Você não fez nada agressivo comigo.

— A não ser tirar a sua virgindade e fazer isso deixando-a com a falsa impressão de que pretendia me casar com você.

Kelly olhou em volta, querendo certificar-se de que Patrick não estava por perto para ouvir aquilo. Jeb estava sendo descuidado ao levantar aquele assunto ali, onde qualquer pessoa poderia aparecer para ouvi-los. Além disso, ela percebia na expressão dele uma raiva mal contida que o fazia agir com temeridade.

— Existe algum problema? — perguntou.

—Que problema poderia haver? Estou conduzindo para o Oeste um numeroso grupo de carroças e estamos agora no ponto mais perigoso do trajeto. Neste exato minuto, é muito possível que estejamos sendo obser­vados por um grupo de guerreiros sioux. Estamos qua­se sem água para beber. E agora eu fico sabendo que meus liderados não acham mais importante seguir a minha liderança. Para completar, transgredi uma re­gra que nunca deixei de cumprir, além de talvez ter destruído a vida de uma das mulheres da caravana.

— Por acaso essa mulher sou eu? — perguntou Kelly.

—Sim, essa mulher é você — ele confirmou. Agora a raiva era muito clara no rosto de Jeb, e outra vez Kelly percebeu que era algo que se dirigia unicamente contra ele próprio. Mesmo assim, havia decidido deixar os assuntos pessoais de lado para tra­tar apenas da insatisfação que havia se espalhado en­tre parte dos integrantes da caravana.

— Então você já sabe do que alguns dos nossos acom­panhantes andam pensando em fazer?

Jeb assentiu.

— Frank já me falou no assunto. Além disso, parece que algumas pessoas não se preocupam muito em es­conder o que estão pensando.

— Bem, quero que você saiba que nem todos na ca­ravana concordam com o que se anda falando por aí. E não são poucas as pessoas que continuam do seu lado.

A expressão de Jeb abrandou-se por um momento.

— Obrigado — ele disse. — Mais do que ninguém, você tem motivos para não gostar de mim.

— Não acho que as pessoas tenham deixado de gos­tar de você, Jeb, embora algumas vezes suas ações sejam um tanto... um tanto duras. Você podia se es­forçar um pouco para se mostrar simpático com as pessoas, ser engraçado.

— Não sou nenhum palhaço, Kelly.

— Você sabe muito bem que nãp foi isso o que eu quis dizer. Não precisamos de um palhaço, mas sim de um líder.

— Eles deviam simplesmente deixar que eu os li­derasse, parar de ficar se lamentando.

— Sim, eu concordo. Para falar a verdade, não con­sigo entender o que está se passando com algumas dessas pessoas.

Jeb voltou-se e abaixou-se ao lado da fogueira. Pe­gando um pedaço de madeira, começou a mexer nas brasas, como se precisasse atiçar o fogo. Kelly havia pensado em deixar que a fogueira se apagasse, mas percebeu que ele precisava de alguma coisa para fazer e não disse nada. Finalmente a voz de Jeb voltou a soar, num tom apático.

— Eu sei o que está se passando com elas. Acontece a mesma coisa em todas as caravanas nesta altura da viagem. E a loucura da pradaria, como costumamos chamar. Mas pessoas enlouquecidas podem se tornar perigosas, e é meu dever protegê-las da própria falta de sanidade.

Kelly aproximou-se e ajoelhou-se ao lado dele, perto do fogo.

— O que pretende fazer? — perguntou, preocupada.

— Bem, para começar, vou dizer a Whitcomb e a Blue que peguem suas coisas e se afastem de nós o mais depressa que puderem. Não vai ajudar em nada ter gente aqui refutando todos os argumentos que apresento.

— Eles parecem ser uns sujeitos experientes e confiáveis.

— Ah, e são mesmo! Só que são homens da monta­nha. Precisam estar prontos para matar o primeiro urso que aparecer ou para contar uma história mais emocionante do que a de outro pioneiro.

Kelly sentou-se e cruzou as pernas. Era bom ver que estavam conversando daquele jeito, com franqueza e camaradagem. E ele até parecia disposto a revelar mais.

—Você acha que são eles a causa dos nossos pro­blemas? — perguntou.

Jeb sentou-se ao lado dela, na mesma posição.

—Não, não exatamente. Estou certo de que eles não fazem a menor ideia do prejuízo que podem causar a essas pessoas. São homens que vivem sozinhos. Estão acostumados a ir para onde bem querem, na hora em que sentem vontade... Acampam quando se sentem cansados, sabendo que poderão sobreviver com os re­cursos da natureza se os mantimentos que levam se esgotarem. Nunca tiveram a responsabilidade de con­duzir uma caravana de carroças cheias de homens, mulheres e crianças na travessia do continente.

— Como você faz.

— É, como eu faço.

Jeb esfregou o nariz e depois as têmporas.

— Está com dor de cabeça?

— Estou. É uma coisa com a qual tenho que conviver. Parece que minhas dores de cabeça gostam de aparecer justamente quando tudo o mais está errado.

— Você não usa nenhum analgésico?

— Não. Apenas convivo com ela.

Homens, pensou Kelly, exasperada. O pai dela tinha sido igualzinho, nunca querendo reconhecer que algu­ma coisa podia estar errada com ele. Antes de sofrer o ataque fatal, muito provavelmente havia sentido pon­tadas no peito, mas sem nunca falar sobre o assunto. Enquanto Jeb continuava a massagear as têmporas, porém, ela reparou que a reação dele à dor de cabeça estava muito de acordo com a personalidade tipica­mente masculina. Era como se a dor fosse bem-vinda. Outro instrumento de penitência.

Kelly pôs-se de pé e foi até os fundos da carroça para pegar a caixa de primeiros socorros que havia recebido com os mantimentos fornecidos pela Compa­nhia de Colonização do Oeste. Encontrou um pó anal­gésico e pôs uma colherada numa xícara, misturando com um pouco da água fresca que os homens da brigada de busca de água deixavam diariamente nas carroças.

— Beba isto — disse, retornando à fogueira e es­tendendo para ele o analgésico.

Jeb olhou para a xícara como se aquilo fosse veneno.

— É água fresca — garantiu Kelly. — Não estou transgredindo sua proibição de usar a água do rio.

— Então parece que você é uma exceção — ele disse, antes de ingerir o remédio em três grandes goles. — O gosto é horrível — acrescentou, fazendo uma careta.

Kelly riu.

— Não aja como um bebe. Seja um bom menino e tome o remédio todo.

— Eu já tomei — respondeu Jeb, devolvendo a xícara e resmungando um agradecimento. — Obrigado.

Aquilo fez com que Kelly sentisse ternura misturada com um pouco de tristeza. Jeb Hunter sempre se mos­trava muito responsável no cumprimento da obrigação de proteger e tomar conta do rebanho que conduzia. Mas quem tomava conta dele? Parecia pensar que não merecia ter alguém para fazer isso.

— Quer um pano quente para pôr na testa? — ofe­receu Kelly.

Sem pensar no que fazia ela se inclinou e começou a massagear com os dedos as têmporas dele. Jeb emitiu um murmúrio de aprovação e moveu a cabeça um pouco para trás, ao mesmo tempo que fechava os olhos.

—Isso é muito melhor do que um pano quente — disse, com voz branda.

Logo o calor da pele dele se misturou aos dos dedos de Kelly, que prosseguiu nos movimentos circulares.

— Se você puser um pano quente na testa durante algum tempo, talvez ajude — ela disse.

—Não, isso não é necessário — ele respondeu, logo mudando de assunto. — Você está com um cheiro bom. Lavanda...

Kelly ajoelhou-se ao lado dele para continuar a massagem.

— E o meu sabonete — ela explicou, com um leve sorriso. — Ele ocupa bem pouco lugar — apressou-se em acrescentar.

Jeb abriu os olhos. A raiva havia desaparecido por completo e aparentemente uma parte da dor. Com um ar de divertimento ele a fitou.

— Não vou obrigá-la a jogar fora o seu sabonete, K^lly. Não chego a ser um bicho-papão. Principalmente quando se trata de um sabonete que a deixa com o cheiro de um jardim inglês.

Kelly sentiu-se corar.

— Você devia dizer um jardim irlandês. Papai fez a mesma comparação quando me deu a caixa de sa­bonetes de presente. Segundo ele, mamãe usava a mes­ma fragrância.

Vagarosamente, Jeb ergueu as mãos para afastar as dela.

— Acho que agora já chega.

— Está se sentindo melhor?

Antes de responder ele soltou um riso de lástima.

— Minha cabeça está.

Kelly abaixou-se. O que ele estava querendo dizer era muito claro.

— Agora sou eu que devo pedir desculpas, não é? — perguntou.

Jeb examinou-a à luz fraca da fogueira.

— Desculpar-se por fazer com que o meu sangue corra mais depressa nas veias sempre que chega perto de mim? Acho que você não vai poder fazer nada para impedir isso, doçura. Terei que aprender a conviver com isso durante mais algumas semanas.

— Até poder se livrar de mim.

— Bem, sim... sem querer ser grosseiro. Até que eu a deixe em segurança no seu destino, já que foi para isso que todos vocês me contrataram. E é exatamente o que vou fazer, embora alguns pareçam dispostos a mudar a coisas.

A voz dele se tornou mais forte quando voltou a ser abordado um tema que era mais seguro para ela do que os assuntos pessoais. Kelly deixou as mãos caírem sobre as coxas. Jeb tinha razão. Naquele momento o bem-estar da caravana era muito mais importante do que qualquer sentimento que pudesse existir entre eles. Resolver o tipo de relacionamento que manteriam durante o resto da viagem era outra questão.

— Os Todd, os Burnett, Samuel Hamilton e vários outros estão do seu lado — declarou Kelly. — Além de Patrick e eu, claro.

— O que me diz do seu amigo Haskell? Kelly hesitou.

—Acho que no final Scott terá bom senso suficiente para fazer a coisa certa. Embora ele não goste muito de você — ela admitiu.

— Bem que eu gostaria de saber por quê — disse Jeb, com secura.

Kelly deu de ombros. Não estava disposta a discutir os sentimentos de Scott, assim como Jeb não queria discutir o que podia sentir por ela.

—Existe alguma coisa que nós possamos fazer... para persuadir os outros?

Jeb inclinou-se para trás com as mãos apoiadas no chão.

—Se eles aguentarem só mais alguns dias, começa­remos a subir as montanhas e alcançaremos o rio Doce, onde teremos mais água do que precisaremos sem que ninguém tenha que se afastar do acampamento.

— Você tem que dizer isso a eles, Jeb! — sugeriu Kelly, com ênfase.

— Esses sujeitos não vão querer ouvir nada mais que eu diga. Já percebi isso. Estão ocupados demais em prestar atenção nas baboseiras de Foxy.

— Então teremos que obrigá-los a ouvir — declarou Kelly, com firmeza.

Por alguns instantes Jeb ficou olhando para ela com um ar de admiração.

— Você é uma mulher que não desiste nunca, não é?

— Isso não devia surpreendê-lo. Há muitas outras mulheres nesta caravana que não desistem nunca. Você mesmo deve ter percebido isso em Fort Kearney.

Com a testa franzida, Jeb coçou o queixo.

— Sim, eu percebi.

— E seria muito bom para você vez por outra se lembrar daquele dia. Os homens podem ter força física suficiente para enfrentar de peito aberto os perigos do Oeste, mas as mulheres podem ter algo ainda mais importante: a força de vontade.

Os olhos de Jeb ficaram sombreados, certamente por causa de antigas lembranças.

— A força de vontade nem sempre protege a pessoa de um desastre — ele murmurou.

— A força física também não.

Jeb ficou em silêncio. Nas raras ocasiões em que se dava alguma folga do sentimento de culpa, via-se for­çado a reconhecer que, mesmo que tivesse estado no chalé com Melanie na hora da chegada dos criminosos, pouco teria podido fazer contra eles. Mais provavel­mente teria sido morto com a esposa. Kelly tinha razão. Havia ocasiões em que era impossível impedir um de­sastre, por mais vigor físico ou força de vontade que a pessoa tivesse.

— Você é uma mulher notável, Kelly Gallivan — ele disse, finalmente.

Cedendo a um impulso e contrariando as firmes re­soluções que havia tomado, Jeb inclinõu-se para bei­já-la. Era para ser um beijo de gratidão pelo apoio dela, mas no instante em que os lábios deles se tocaram transformou-se em algo mais. Outra vez um calor abra­sador se espalhou entre eles, impedindo-o de pensar com clareza.

Erguendo as mãos ele segurou nos braços dela, su­bindo depois para o pescoço. Queria impedi-la de se afastar enquanto saboreava aqueles lábios suculentos.

—Desculpem se estou interrompendo alguma coisa. A voz de Scott tinha uma aspereza como Kelly nunca tinha ouvido antes. E parecia haver algo mais, o que fez com que ela rapidamente aprumasse o cor­po, alarmada.

Jeb pôs-se de pé.

— O que está querendo, Haskell? — inquiriu, com rispidez.

— Uma das minhas mulas desapareceu...

— Espero que você as tenha deixado conveniente­mente amarradas para não... — interrompeu-o Jeb, mas Scott prosseguiu no mesmo tom enraivecido.

— Uma de minhas mulas desapareceu, assim como Patrick e as gémeas.

Kelly empalideceu no mesmo instante.

— Patrick estava jantando aqui apenas alguns mi­nutos atrás.

Scott olhou para ela durante alguns instantes, de­pois voltou-se novamente para Jeb, com uma expressão inflexível.

— Isso foi há mais do que alguns minutos atrás, eu diria. Ao que parece, vocês perderam a noção do tempo.

Kelly ignorou aquele tom de acusação.

— Por que acha que Patrick e as gémeas desapareceram?

—Eu não "acho"; sei que eles desapareceram. Do-rothy e John me disseram que Patrick saiu com as meninas logo depois do jantar, isso há mais de uma hora. Eles percorreram toda a caravana à procura dos três, sem ver sinal deles.

— Patrick não se afastaria sozinho da caravana. Ele deve se lembrar de como Jeb ficou aborrecido quan­do nós três fizemos a mesma coisa naquela noite.

— E por acaso vocês dois arranjaram tempo para explicar por que ele não devia se afastar da caravana? — inquiriu Scott.

Kelly sentiu um frio no estômago.

— Bem, ele sabe sobre os índios. Muito já se falou sobre isso.

— Sim, muito já se falou sobre isso, mas Foxy e Daniel têm se esforçado muito para garantir que não há motivo nenhum para que nos preocupemos com esse perigo — observou Jeb, começando a caminhar rapidamente e passando por Scott. — Tenho certeza de que as crianças também ouviram o que aqueles dois idiotas vivem dizendo. Onde estão os seus animais, Haskell? Quero dar uma olhada.

Kelly seguiu os dois homens até a parte de trás da carroça do garimpeiro, onde cinco das seis mulas de Scott pastavam calmamente na escuridão. Em silêncio ela rezou para que tudo aquilo não passasse de um mal-entendido. Em seguida olhou para a fila de car­roças, querendo que Patrick surgisse correndo, segu­rando na mão das gémeas. Jeb estava certo ao dizer que a força de vontade nem sempre era suficiente para prevenir uma tragédia.

— Vá buscar uma lanterna — ordenou Jeb a Scott. Kelly postou-se de lado enquanto o garimpeiro ia até a carroça e voltava com uma lanterna, que ficou segurando enquanto Jeb examinava o chão.

—Não há sinal de outros cavaleiros — disse final­mente o guia da caravana.

— Que outros cavaleiros? — inquiriu Scott.

— Índios. Aparentemente as crianças não foram le­vadas por ninguém.

— Se algum índio tivesse vindo até aqui, é claro que nós veríamos — argumentou Scott, como se Jeb tivesse acabado de dizer uma bobagem. — Eles não poderiam chegar a cavalo e levar as crianças bem dian­te do nosso nariz.

Jeb aprumou o corpo e dirigiu ao outro um olhar fulminante.

— Eles poderiam se aproximar o suficiente para ti­rar o chapéu da sua cabeça sem que você percebesse. Mesmo assim, parece que as crianças se afastaram por iniciativa própria.

— Não posso acreditar que Patrick cometeria a lou­cura de se afastar do acampamento durante a noite — voltou a falar Kelly, com a voz trémula.

Jeb fez menção de se aproximar para confortá-la mas parou quando Scott passou o braço por cima dos ombros dela.

— Nós vamos encontrá-los, garota — disse o garimpeiro.

Jeb ficou observando por um minuto enquanto ela afundava o rosto no ombro confortador de Haskell. Os dedos fortes do ex-ferreiro afagaram os curtos cabelos dela. Logo depois Jeb girou o corpo e se afastou. Pre­cisava reunir homens para formar um grupo de busca.

Cerca de meia hora mais tarde, pelo menos trinta homens estavam reunidos perto da carroça dos Bur-nett. Jeb os manteve afastados de onde estavam os animais de Scott para impedir que algum possível ras­tro fosse apagado, embora reconhecesse que seria mui­to complicado seguir rastros deixados na relva na escuridão da noite. Mas não chegava a ser impossível e por isso pediu a todos que levassem lanternas. Todos os cavalos que acompanhavam a caravana foram re­quisitados, bem como algumas mulas. Até mesmo Foxy e Daniel esqueceram por algum tempo as histórias que viviam contando para se juntar ao grupo.

Kelly vestiu novamente a calça e um agasalho de lã do irmão. Estava desamarrando uma das mulas de Scott quando Jeb se aproximou.

— O que pensa que está fazendo? — ele inquiriu, num tom de voz bem diferente do que havia usado ao conversar com ela perto da fogueira, não muito tempo antes.

—Estou preparando a montaria — respondeu Kelly. — Scott disse que esta é a mais dócil das mulas dele.

Jeb olhou-a com ar de espanto.

— Pois volte a amarrá-la. Você não vai a lugar nenhum.

Sem se importar com o que acabava de ouvir, Kelly passou por ele puxando o animal.

— Com licença. Scott arranjou uma sela emprestada com os Kirby.

Jeb segurou no braço dela, obrigando-a a parar.

— Já disse que você não vai.

— Ah, vou, sim! — ela respondeu, com calma.

—Kelly, não se lembra mais do que estivemos con­versando ainda há pouco? Sou eu o guia da caravana. Faço as regras por aqui. Não vamos levar nenhuma mulher.

Kelly fitou-o e balançou a cabeça, com expressão de tristeza.

— Sei que é você o guia da caravana e estou dis­posta a segui-lo em cada passo desta viagem, mas agora trata-se do meu irmão. Ele é tudo o que tenho no mundo. Não vou ficar parada só porque o guia da caravana vive tão ocupado em se culpar pela perda de uma mulher que não percebe que as outras mu­lheres são perfeitamente capazes de prestar ajuda. Que uma mulher em especial é perfeitamente capaz de prestar ajuda a ele.

O discurso não saiu exatamente como ela havia pre­tendido, mas talvez servisse, afinal de contas, para expressar o que ela vinha querendo dizer há algum tempo.

Jeb abriu a boca, dando a impressão de que persis­tiria no protesto, mas não disse nada. Finalmente sol­tou-lhe o braço e deixou-a caminhar ao lado dele na direção da carroça, onde Scott já esperava com a sela emprestada.

Dorothy deu a impressão de que estava pensando em seguir o exemplo de Kelly, também disposta a acompanhar o grupo de busca, mas finalmente apenas abraçou o marido antes que ele montasse no cavalo emprestado. Depois ficou olhando enquanto o grupo se afastava na noite.

Eles se mantiveram unidos, erguendo as lanternas enquanto Jeb acompanhava o que parecia ser rastros deixados na relva pela mula de Scott. Se continuassem naquele caminho, talvez tivessem a chance de encon­trar as crianças. Patrick e as duas gémeas pesavam pouco, motivo pelo qual os rastros não eram muito profundos. Às vezes Jeb erguia a mão, ordenando uma parada. Logo em seguida desmontava para examinar os rastros mais de perto, querendo ver se eles estavam seguindo na direção certa.

Falava-se muito pouco. Logo que Foxy Whitcomb começou a contar uma história sobre índios cativos, Jeb voltou-se para ele e ordenou que calasse a boca. Depois disso o velho homem da montanha não disse mais nada.

Scott havia amarrado as mulas perto de uma for­mação de árvores, não muito longe do acampamento, e por isso ninguém tinha visto a partida das crianças. Os rastros pareciam levar para o norte, perpendicu­larmente ao rio, indo diretamente para o estreito ajun­tamento de árvores que acompanhavam as colinas ali­nhadas a alguma distância dali.

Quando eles haviam percorrido um terço da distân­cia até aquelas árvores, Jeb desmontou e levou mais tempo examinando o chão do que nas outras vezes. Quando aprumou o corpo, os olhos dele pareciam trans­tornados à luz da lanterna.

—Agora existem rastros de três outros animais — disse aos acompanhantes.

Scott saltou do cavalo e, com alguma dificuldade, Kelly desmontou da mula que a transportava. Era a primeira vez que cavalgava sozinha e, fossem outras as circunstâncias, até aproveitaria para se vangloriar daquilo. Naquele momento, porém, só conseguia pen­sar em Patrick e nas meninas.

— São cavalos sem ferradura — concluiu Scott, de­pois de examinar os locais mostrados por Jeb.

— Sim, sem ferradura — concordou o guia da ca­ravana, falando devagar. — Montarias dos indígenas.

Um murmúrio se espalhou pelo grupo de cavaleiros. Durante vários dias, muitas semanas, eles haviam ou­vido histórias sobre os índios. Cavalgavam em grupos e escalavam sentinelas para montar guarda à noite. Agora, quando todos já começavam a achar que Jeb Hunter devia estar louco para ter aquela preocupação, os selvagens apareciam. Eram apenas três, na opinião de Jeb, mas onde havia três podia haver trezentos. E Patrick, Polly e Molly estavam com eles.

Kelly perdeu a conta do tempo que eles levaram naquela procura. Provavelmente ainda não haviam se passado duas horas, mas parecia que a busca se ar­rastava por um tempo maior do que toda a duração da viagem até aquele ponto. Os homens da montanha confirmaram a conclusão de Jeb, concordando que os rastros agora eram de quatro animais. E a pista mos­trava que, afinal de contas, aquela região não era de­serta de pessoas. Seres humanos viviam ali há muitos anos, séculos, talvez. Jeb estava certo ao dizer que os brancos eram os invasores. Naquele momento o mais importante era que os rastros deixados na antiga trilha permitiam que eles seguissem o progresso das crianças. Se eles passassem a atravessar o capim alto, seria impossível determinar a direção que tinham seguido. Scott retardou o passo da montaria para empare­lhá-la com a mula que levava Kelly.

— Como está se saindo, garota? — perguntou.

—Eu estou bem. Agora nossa preocupação deve ser Patrick... e as gémeas. Molly nem se recuperou direito da doença.

— A mim ela pareceu muito saudável. Precisamos ter fé e rezar para que aqueles três estejam bem.

—Você acha que os índios estão levando-os para a aldeia deles? — perguntou Kelly, engolindo em seco por causa do medo.

Contavam-se muitas histórias de crianças e mulhe­res brancas que eram levadas para viver com os índios e nunca mais se tinha notícia delas.

Scott estendeu a mão para dar palmadinhas no joe­lho dela, que repousava nas costas largas da mula.

—Nós vamos encontrá-los, Kelly. Não voltaremos enquanto não conseguirmos isso.

A voz alegre e encoraj adora de Scott serviu para levantar o ânimo dela, como tinha acontecido em tan­tas outras ocasiões durante aquela viagem. Ele não merecia estar em segundo lugar na afeição dela, pen­sou Kelly, procurando controlar as lágrimas.

— Eu sinto muito, Scott — ela murmurou. Ele pareceu espantado com o que ela dizia.

— Sente muito por quê?

Kelly abaixou os olhos para as mãos, que apertavam a parte da frente da sela.

— Pelo que você viu no acampamento. Jeb e eu. Por alguns instantes ele não respondeu. Quando fi­nalmente falou, foi no tom despreocupado de sempre.

— Hunter é um sujeito de muita sorte.

— Não sei se ele concordaria com você.

— Por quê?

— Porque... — Kelly apertou os lábios, procurando as palavras certas para se expressar. — Porque ele não me quer. Isto é, não quer... se casar comigo ou... ou qualquer coisa parecida.

A expressão de Scott tornou-se indecifrável.

— Ele lhe disse isso com tantas palavras?

— Disse, sim.

Durante algum tempo os dois animais se deslocaram sem que eles dissessem nada. Finalmente Scott reto­mou a palavra.

—Nesse caso, talvez os homens da caravana tenham razão. Hunter é mesmo um idiota.

Kelly não respondeu. Naquele exato momento não podia pensar em Jeb, nos problemas dele com os ho­mens da caravana nem nos problemas dele com ela. Não conseguia pensar em nada que não fosse Patrick. Já havia perdido o pai. Não suportaria perder também o irmão.

Na vanguarda do grupo as lanternas pararam e se juntaram, obrigando os animais de trás a estancar.

— O que está acontecendo? — quis saber Kelly. Scott ergueu-se com os pés nos estribos e esticou o pescoço.

—Tem alguém à nossa frente — disse, logo pros­seguindo, com excitação na voz. — Kelly, acho que eles os encontraram.

 

A lua crescente brilhava por cima da tri­lha, proporcionando uma luminosidade mortiça. Esforçando-se para fazer o relutante animal se adiantar, Kelly viu a silhueta de Patrick e das duas meninas, os três em cima de uma outra mula. No mes­mo instante ela sentiu os olhos cheios de lágrimas e os membros formigando de alívio.

— Patrick! — gritou, o alívio se transformando em alegria quando o irmão fez um fraco aceno em resposta.

Ele estava bem, isso era muito óbvio, e ao fazer essa constatação Kelly voltou a atenção para os três cavalos ao lado da mula onde estava o irmão dela e as duas meninas. Não era possível ver muito bem, mas os três cavaleiros certamente eram índios. Dois deles pareciam seminus. Os homens do grupo de colonizadores se afas­taram para dar passagem à mula. As três crianças pa­reciam em boas condições, embora um pouco assustadas. Patrick estava descendo da montaria enquanto os três índios continuavam montados em seus cavalos. Quando se aproximou, Kelly se surpreendeu ao ver que eles eram meninos, não muito mais velhos do que Patrick.

—Parece que interrompemos uma improvisada con­fraternização cultural — comentou Jeb enquanto ela segurava com firmeza na parte da frente da sela para descer da mula.

Scott aproximou-se por trás e também desmontou.

Kelly correu as mãos pelos braços de Patrick, que recuou prontamente, parecendo pouco satisfeito com aquela atenção.

— Já chega, mana — resmungou o garoto, olhando rapidamente para os três sioux montados, que, imó­veis, observavam o alvoroço dos colonos.

— Que maluquice foi essa, Patrick? — perguntou Kelly, recuando para observar o irmão depois de abra­çá-lo. Agora que a preocupação estava superada, co­meçava a crescer nela a raiva por causa da temeridade cometida pelo garoto. — Como pôde fazer uma coisa dessas?

Polly encarregou-se de responder.

— Nós só queríamos brincar um pouco com estes três meninos aqui, Kelly. Eles estavam no meio de umas árvores, acenando para nós.

— Não pretendíamos nos afastar tanto — acrescen­tou Molly, com voz chorosa.

Jeb adiantou-se um passo e pôs a mão no ombro de Patrick.

— Foi isso mesmo o que aconteceu, parceiro? — per­guntou, com voz branda. — Vocês viram os três sioux e quiseram conhecê-los.

— Eles estavam fazendo sinais para nós — explicou Patrick, sem repelir o toque de Jeb, que evidentemente não era tão embaraçoso quando o da irmã dele. — Preferimos não acenar para que eles se aproximassem do nosso acampamento. Tivemos medo de que, se eles fossem vistos pelos sentinelas, acabassem levando um tiro ou coisa assim.

— Bem, foi uma decisão prudente, porque esse risco existia mesmo — reconheceu Jeb.

—Por isso pegamos uma das mulas de Scott e vie­mos para cá. Queríamos ver se conseguíamos conversar com eles.

— E qual foi o resultado? — perguntou Jeb, em tom paciente.

Ele parecia perceber que as três crianças estavam abaladas pela aventura e achava que gritar com elas naquele momento não produziria nenhum resultado positivo. Kelly sabia que, no íntimo, ele devia estar furioso com Patrick por ter arriscado tanto a própria vida e a das duas garotas Burnett. Era admirável a forma como conseguia se conter.

Patrick começou a responder à pergunta do capitão, gesticulando muito.

— Depois que pegamos a mula de Scott, vimos que os garotos índios haviam desaparecido, mas a essa al­tura estávamos muito interessados em saber como eles eram. Por isso nos afastamos tanto.

— Até que eles apareceram para nos sequestrar — acrescentou Polly, dando muita importância ao que dizia.

— Não foi nada disso — apressou-se em desmentir Patrick.

— Talvez fosse essa a intenção deles — persistiu Polly.

Coube a Molly explicar o que realmente havia acontecido.

— Quando nos encontramos com os índios, perce­bemos que eles não entendiam o que dizíamos, e tam­bém não pudemos entender a linguagem deles. Então um dos três pegou na rédea da mula e começou a nos puxar para o outro lado da campina.

— Nós tentamos explicar que não podíamos nos afas­tar muito do nosso acampamento, mas eles apenas riam, continuando a nos puxar — explicou Patrick.

— Fiquei com tanto medo — confessou Molly.

—Eu não fiquei com medo nenhum — vangloriou-se Polly. — Achei tudo muito excitante.

Jeb olhou para os três nativos, que não haviam mo­vido um único músculo durante toda a discussão dos brancos. Depois sorriu para eles e ergueu a mão, com a palma voltada para a frente.

Um dos índios respondeu com um gesto similar, mas nenhum deles sorriu. Então Jeb disse algumas pala­vras que eles pareceram entender. O que havia levan­tado a mão dispôs-se a responder, falando muito de­pressa. Jeb balançou vagarosamente a cabeça.

— Não conheço o suficiente da linguagem deles para entender tudo — disse, continuando a prestar atenção. Quando o garoto terminou de falar, fez um gesto afir­mativo com a cabeça, a expressão grave. — Acho que ele está tendo dizer que estavam levando as crianças para alguém da tribo que sabe falar inglês. Só queriam conversar com Patrick e as meninas.

Kelly examinou o semblante sombreado dos três ín­dios. Vistos de perto, eles tinham muita semelhança com o irmão dela, a mesma curiosidade nos olhos, o mesmo corpo franzino, ainda longe de mostrar a for­taleza de um homem feito. Prontamente o medo dela desapareceu. Não teria sido muito diferente se três garotos irlandeses houvessem chamado Patrick para uma pescaria sem o conhecimento dos pais.

—Será que podemos convidá-los para nos acompa­nhar até o acampamento? — ela perguntou, reparando que a expressão de Patrick se iluminava por causa da sugestão.

Jeb balançou a cabeça.

—Não do jeito como está o ânimo das pessoas que ficaram lá. Não quero mais problemas.

—Na minha opinião, esses garotos não represen­tariam nenhum problema — rebateu Kelly.

— Também acho, mas é muito provável que os sioux saiam à procura deles, assim como nós nos organiza­mos para sair em busca de Patrick e das meninas.

Kelly viu o desapontamento tomando conta da ex­pressão de Patrick.

— Bem, se é assim... Você acha que há mais deles por perto?

— Eu sei que há mais deles por perto — respondeu Jeb, olhando para o lado onde estavam Foxy e Daniel. Talvez aquilo servisse para que aqueles dois velhos falastrões calassem a boca. Depois olhou outra vez para o irmão de Kelly. — Despeça-se dos seus novos amigos, Patrick. Já é bem tarde e não podemos saber quando os pais desses meninos resolverão sair à procura deles. Talvez já estejam fazendo isso. Portanto, acho melhor voltarmos imediatamente para o acampamento.

— Acho que eles são amigáveis — opinou Patrick, com tristeza na voz.

— Também acho, parceiro, mas é melhor evitarmos o risco de um encontro. Não seria nada interessante se um bando de índios chegasse aqui pensando que nós sequestramos os filhos deles. Sei que você é um garoto corajoso, mas pense no fato de que sua irmã e as meninas também estão aqui.

Patrick assentiu, relutante, e voltou-se para os três jovens guerreiros. Ergueu a mão, imitando o gesto que tinha visto Jeb fazer, e desta vez os três pequenos índios responderam, também erguendo a mão. Logo depois partiram em seus velozes cavalos, levantando uma nuvem de poeira.

Todas as outras pessoas da caravana que não ha­viam participado do grupo de buscas esperavam perto da carroça dos Burnett quando eles chegaram ao acam­pamento com as crianças. Dorothy correu para abraçar as duas. filhas, com tanto alvoroço que as três caíram no chão. Patrick pareceu um pouco constrangido quan­do Charles Kirby e outros garotos o cercaram. Agia como se ainda não soubesse se tinha sido o herói de uma grande aventura ou um garoto maluco que devia se envergonhar do que tinha feito.

Um bom tempo se passou antes que aquelas pessoas começassem e se retirar, indo cada uma para a sua carroça. Antes de se afastar Jeb perguntou se alguém se apresentava como voluntário para que se montasse uma guarda extra naquela noite.

— Aqueles três índios eram apenas crianças, capitão — protestou Thomas Crandall. — Não tinham a idade do meu Homer. Não vejo por que precisamos de mais guardas.

Jeb já estava farto da impertinência de Thomas Crandall. Pelo menos daquela vez Foxy e Daniel fica­ram de boca calada. Tinham experiência suficiente para saber que os três garotos nativos não podiam estar sozinhos. Era bem verdade que haviam parecido amigáveis, mas seria estupidez não tomar precauções.

— Então não se apresente como voluntário, Crandall — disse Jeb, com secura. — Tenho certeza de que muitos outros homens se mostrarão dispostos a sacri­ficar uma noite de sono a fim de garantir a segurança da família.

— Que história é essa? Por acaso está me chamando de covarde?

Jeb apenas balançou a cabeça e voltou-se para con­versar com Frank Todd. Kelly, porém, ficou horrori­zada ao reparar que Thomas Crandall e outros homens se afastavam para conversar em voz baixa, dirigindo olhares hostis ao guia da caravana.

Na opinião dela, bem que Jeb podia ter um pouco mais de tato. Depois do beijo deles naquela noite, porém, não estava disposta a procurá-lo para dizer isso. Apenas voltaria para a própria carroça, como as outras pessoas já estavam fazendo, e ficaria observando enquanto o ir­mão se deitasse para dormir, são e salvo. Na manhã seguinte haveria tempo suficiente para dar outra vez a Jeb Hunter alguns conselhos sobre diplomacia.

Kelly estava enganada. Na manhã seguinte ela não poderia fazer o que havia planejado. "Durante a noite a facção rebelde se reuniu na carroça de Thomas Cran­dall. Os dois homens da montanha foram convidados a se juntar a eles e, depois de uma relutância inicial, concordaram em atuar como guias da caravana, desde que a associação dos colonos decidisse que não queria continuar contando com os serviços de Jeb Hunter.

— Cuidaremos para que eles tomem essa decisão — garantiu Crandall.

Ao amanhecer, os mesmos homens foram acordar o guia da caravana, no cobertor aberto ao relento. Ainda com olhos de sono ele constatou que, ironicamente, era outra vez apanhado sem as botas.

—Não queremos continuar ouvindo suas ordens, Hunter — disse Crandall. — Se quiser você pode con­tinuar conosco até Fort Laramie ou simplesmente se afastar de nós hoje mesmo. A partir deste momento, Foxy cuidará do seu trabalho.

— É mesmo? — disse Jeb, com uma calma que sur­preendeu a ele próprio.

Normalmente teria partido para arrebentar a cabeça de Crandall por arriscar tão estupidamente a vida das pessoas da caravana. De um instante para outro, po­rém, não se importaria se fosse tudo para o inferno. Não era obrigação dele salvar a vida de todos os idiotas do mundo. Talvez fosse por causa de alguma coisa que Kelly tinha dito sobre sua doentia necessidade de se sentir responsável por tudo de ruim que acontecia no mundo. Certas coisas não poderiam mesmo mudar. O mundo continuaria sendo um lugar arriscado, por mais que ele quisesse o contrário.

— Pretende convocar uma votação para decidir isso, Crandall?

— Só para oficializar a resolução, mas acho que já podemos saber o que será decidido na votação.

Jeb sentou-se no chão e começou a calçar as botas.

—Ótimo. Avise-me quando souber do resultado. Os homens se entreolharam, um pouco surpresos com a fácil capitulação do guia. Logo depois Crandall retomou a palavra.

— Vamos. Cabe a Todd convocar a votação. Vamos procurá-lo.

Eulalie despertou Kelly com a notícia, que àquela altura já havia se espalhado pelo acampamento.

— Acho que está na hora de o nosso grupo de mu­lheres entrar em ação outra vez — disse a visitante enquanto Kelly salpicava água no rosto para despertar de vez.

— Mal posso acreditar que estejam pensando mesmo em fazer isso — disse Kelly, com abatimento. — Ontem à noite mesmo essas pessoas puderam ver que Jeb sabe do que está falando. Ele disse que havia índios na região, e nós vimos índios de verdade, com nossos próprios olhos.

— Mas eram apenas crianças — ponderou Eulalie.

— E daí? Crandall e os outros ficariam mais con­tentes se tivessem sido obrigados a enfrentar um bando de guerreiros?

Eulalie balançou a cabeça de cabelos brancos.

—Concordo com você, Kelly. E é por isso que de­vemos reunir novamente as mulheres. Precisamos pôr um pouco de bom senso na cabeça dessas pessoas.

—Está certo. Vou chamar Dorothy e começaremos a percorrer as carroças.

— Não temos muito tempo. Crandall está insistindo para que a votação se realize pela manhã, antes que a caravana se ponha em movimento.

— Então aproveitaremos o tempo que temos — res­pondeu Kelly, com firmeza.

Kelly surpreendeu-se ao encontrar Jeb calmamente sentado no estribo mais baixo da carroça dos Todd, desbastando com a faca um pedaço de madeira. Não parecia nem um pouco perturbado com o alvoroço que se fazia acerca da votação que decidiria a permanência ou a saída dele da liderança da caravana. O cobertor que ele usava como cama e os arreios do cavalo ainda estavam espalhados pelo chão, perto da carroça. Não parecia apressado para arrumar aquelas coisas, em­bora já passasse um pouco da hora em que gostava de ordenar a movimentação das carroças para mais um dia de viagem.

Kelly surpreendeu-se ainda mais quando, aproxi­mando-se para se reunir à multidão, viu o sorriso com que ele a saudava. Então também sorriu.

Frank estava começando a distribuir à multidão pe­quenos pedaços de papel em branco.

— Passarei para recolher os votos daqui a alguns minutos — explicava. — Quem quiser que Foxy assu­ma a responsabilidade de guiar a caravana, escreva um x. Caso contrário, devolva o papel em branco.

Reparando que só os homens recebiam o seu pedaço de papel, Kelly adiantou-se.

— As mulheres não vão votar? — perguntou, em voz alta para que todos ouvissem.

Frank balançou a cabeça.

— O regulamento diz que só os homens têm direito a voto.

— As mulheres participaram da votação que decidiu que Patrick e eu continuaríamos na caravana.

Frank fez uma expressão de quem pedia desculpas.

— Aquela foi uma situação especial, mas agora será preciso decidir sobre uma modificação muito impor­tante no contrato. Acho que cabe aos homens tomar essa decisão.

Kelly pôs as mãos na cintura e girou o corpo, olhando para as outras mulheres com a indignação estampada no rosto. Jeb levantou-se do estribo da carroça e ca­minhou na direção dela, sempre sorrindo.

— Não se aborreça por causa disso, doçura. Não vou dizer que se trata de uma bobagem, mas a decisão cabe aos membros da associação dos colonos. Deixe que eles votem.

Frank terminou de distribuir as improvisadas cé­dulas de votação e aprumou o corpo.

— Quero deixar registrado que continuo cem por cento ao lado de Jeb Hunter — declarou. — Ele nos trouxe até aqui, num tempo mais curto do que o pre­visto, sem que perdêssemos uma única carroça.

—Nós perdemos a sra. Hamilton — observou Cran-dall, destilando veneno.

Frank deu meia-volta e olhou diretamente para ele.

— Sim, e poderíamos ter perdido outras vidas se Jeb não soubesse que era a água do rio que estava causando a doença.

— Concordo plenamente — pronunciou-se o normal­mente calado John Burnett, surpreendendo a todos por falar com tanta veemência. — Foi ele quem salvou a vida da minha filha.

— Ora, nós não podemos ter certeza de que foi a água do rio que causou a doença! — rebateu Crandall, abanando a mão e olhando para os homens que se reuniam à volta dele. — Ande logo, Todd. Vamos aca­bar com isso.

Pelo menos metade dos homens emitiram murmú­rios de concordância.

Jeb postou-se ao lado de Kelly, correndo os olhos pela multidão, sempre com uma expressão plácida. Ela mal podia acreditar no que estava ouvindo.

—Esperem um minuto — disse, tão alto que até mesmo Thomas Crandall pareceu se espantar. — Eu posso não ter direito a voto, mas sou membro desta caravana exatamente como qualquer outra pessoa pre­sente. Acredito que tenho pelo menos o direito de falar. Caminhando até a carroça dos Todd ela subiu no de­grau onde Jeb havia se sentado, de forma a poder olhar de frente para onde estavam os principais dissidentes.

— Vocês homens deviam se envergonhar — disse, demorando os olhos em cada um deles. — Cada passo da nossa jornada de Westport até aqui tornou-se pos­sível por causa da ação de Jeb Hunter. Foi ele quem nos disse como e por onde devíamos seguir. Em perfeita segurança, nos fez atravessar rios onde, como vocês todos sabem muito bem, outras caravanas perderam boa parte de suas carroças, quando não todas. Foi ele também quem nos guiou até praticamente o fim do território indígena sem nenhum problema, muito em­bora, como pudemos constatar ontem à noite, haja de fato índios na região, como ele sempre afirmou. Jeb Hunter tratou de pessoas doentes e saiu para procurar os desgarrados, cuidando de todos como um pai cui­daria dos próprios filhos. — Kelly fez uma pausa e respirou fundo, enraivecida. — Em Fort Kearney nós ouvimos dizer que o capitão Hunter daria a própria vida antes de deixar que um de seus liderados mor­resse. Foi um homem assim que nós contratamos para nos levar à Califórnia. E é um homem assim que deverá continuar no comando da caravana, a menos que vocês não passem de uns completos... — Com exasperação ela sacudiu os braços, buscando a palavra. — ...de uns estúpidos!

Por trás da multidão Patrick começou a aplaudir o discurso da irmã, aos poucos sendo imitado por outras pessoas, até que aquilo se transformou numa verda­deira ovação. Alguns rapazes assobiaram, exprimindo sua aprovação, e Dorothy não conteve o entusiasmo.

—Faço minhas todas as palavras de Kelly Gallivan! — declarou, provocando mais aplausos.

Um pouco embaraçada com a reação que havia pro­vocado, Kelly desceu do estribo da carroça. Mas não podia se queixar de não ter conseguido o que pretendia. Por todos os cantos onde se espalhava a multidão, es­posas, mães e irmãs argumentavam com veemência ao ouvido dos homens. Quando Frank finalmente re­colheu os votos, apenas dois deles continham um x.

Por alguns instantes Jeb ficou olhando para a pilha de papéis na mão do representante dos colonos, pare­cendo indiferente. Depois voltou-se para a multidão.

—Bem, está ficando tarde, pessoal — disse. — Acho melhor retomarmos a viagem.

Só no fim da manhã, quando Patrick estava com os Burnett, Jeb foi até a carroça de Kelly para agradecer pelo apoio dela durante a votação.

—Não posso acreditar que precisei fazer aquilo — ela disse, ainda indignada, segurando com firmeza nas rédeas dos bois enquanto Jeb cavalgava ao lado da carroça. — Você tinha todo o direito de ficar furioso com aqueles homens.

—Na minha opinião isso não adiantaria nada — ele respondeu. — Como eu lhe disse ontem à noite, as pessoas ficam meio loucas quando a viagem chega a este ponto.

— Você reagiu a tudo com uma calma que eu não esperava. Onde está o Jeb Hunter que ficava atormen­tado e com dor de cabeça sempre que acontecia algum problema com a caravana dele?

—Está aprendendo a não se atormentar tanto. Kelly inclinou-se para trás e apoiou-se bem no as­sento, intrigada.

— Como ele está conseguindo isso?

Jeb sorriu para ela. Aparentemente havia passado a manhã inteira sorrindo.

— Talvez pela percepção de que o dever não é a única coisa na vida, que não há nada de errado em um homem querer alguma coisa a mais. A felicidade, por exemplo.

Agora Kelly estava de fato estupefata. Aquilo simples­mente não tinha nada a ver com o rígido guia da caravana que, durante várias semanas, vinha cuidando dos proble­mas de todos com uma dedicação que beirava o exagero.

— Felicidade? — ela perguntou, com cautela.

— Sim. Lembra-se da primeira vez em que a beijei... quando você me disse que eu era o guia da caravana, não um pai? — Kelly assentiu e ele prosseguiu. — Resolvi que não vou mais ser o protetor de todos. Con­tinuarei fazendo o meu trabalho da melhor forma pos­sível, claro, mas não serei obsessivo. Pensarei também em mim. E é até possível que, em algum ponto da viagem que ainda nos resta, resolva mudar de vida, fixar residência em algum lugar.

— Quando tomou essa decisão?

Antes que ele respondesse a carroça passou num bu­raco e sacolejou. Aquelas não eram as condições ideais para que eles tivessem uma conversa que Kelly sentia ser tão importante para Jeb, talvez para eles dois.

Jeb olhou-a por baixo da aba do chapéu.

— Pode ter sido ontem à noite, quando vi você bus­cando conforto no ombro de Haskell, e não no meu.

Kelly conteve a respiração. Aquele definitivamente não era o lugar certo para aquele tipo de conversa. Parecendo pensar a mesma coisa, Jeb tocou na aba do chapéu e sorriu para ela.

—Peço que me dê licença, doçura, mas tenho uma caravana para conduzir.

Dito isso ele se afastou. Kelly soltou a respiração e sentiu o coração bater muito fortemente, parecendo fazer um barulho capaz de superar o monótono ranger das carroças de madeira.

A simples visão do acidente geográfico espalhou um ânimo renovado pelas carroças. A pedra da In­dependência, a imponente estrutura cinzenta de gra­nito que se erguia até quase quarenta metros acima da planície, estava ao alcance dos olhos. E logo adian­te viam-se os primeiros sinais das montanhas Ro­chosas, uma visão de tirar o fôlego. Segundo os ve­teranos, chegar à pedra da Independência no dia Quatro de Julho não era apenas uma coincidência, mas também um sucesso e tanto. Além disso, exatamente como Jeb havia previsto, o fim das pradarias e a visão da silhueta das montanhas, com a promessa de riqueza logo adiante, era algo que deixava todos cheios de energia e entusiasmo.

Ficou decidido que eles celebrariam o Dia da Inde­pendência do país como se fosse a deles próprios, à sombra da pedra que homenageava a data, acampando ali perto. Jeb declarou que seria respeitado o feriado e que as crianças poderiam brincar nas águas frescas do rio Doce.

Muitas das mulheres voltaram a se reunir, desta vez não com objetivos políticos, mas sim para planejar o banquete que poderia ser feito com comida em con­serva. Os homens saíram para caçar e retornaram com alguns coelhos e dúzias de galinhas silvestres e patos selvagens.

Quando as crianças voltaram do banho de rio, foram mandadas para colher cebolas silvestres e outros con­dimentos que podiam ser recolhidos sem muita difi­culdade, como alho e mostarda verde. Uma videira foi encontrada bem perto da rocha e, enquanto os meninos gravavam seu nome na pedra, perto de onde estavam os de outros pioneiros, as meninas colhiam cachos de uvas que levariam para suas mães.

Kelly estava adorando o bom humor e a camarada­gem que imperavam na preparação da festa com as outras mulheres. Embora elas ainda .não houvessem conseguido o direito de voto na associação, sentiam-se fortes quando se reuniam, algo que ela não havia ob­servado nos anos passados no Leste. Kelly tinha a sensação de que Eulalie havia falado a verdade em Fort Kearney. Os ventos de mudança sopravam na terra que eles adotariam como lar. O Oeste seria um lugar de liberdade para todos, principalmente para as mulheres.

Os preparativos para a festa do feriado também ser­viram para mantê-la ocupada, o que era uma coisa muito boa. Ao ficar segurando as rédeas dos bois por dias a fio ela tinha tido tempo de sobra para pensar, pesar as possibilidades. Depois da rápida conversa no dia da votação, Jeb não tinha tido uma só oportunidade para ficar a sós com ela. Aparecia todos os dias pela manhã para apanhar Patrick, cumprimentava-a com um sorriso caloroso, mas nunca retornado à noite para uma conversa mais demorada. E não havia voltado a chamá-la de doçura.

Kelly estava começando a acreditar que apenas ha­via imaginado coisas a partir dos comentários dele. Teria Jeb realmente dito que não havia gostado de vê-la nos braços de Scott? O que queria dizer com aqui­lo? Era uma pergunta que ela se fazia com impaciência. Bem, provavelmente não significava nada.

Kelly resolveu tirar Jeb Hunter da cabeça e se deixar dominar pelo novo ânimo que havia se apossado dos viajantes. Seria muito bom ter a companhia das novas amigas na celebração do feriado. Ela poderia também pensar na fazenda que pretendia construir. E faria o possível para não pensar no guia da caravana mais do que... quatro vezes por hora.

As mulheres se superaram. As improvisadas mesas ficaram literalmente se dobrando ao peso de toda aquela comida. Fogueiras foram mantidas acesas durante todo o dia e o resultado foi uma interminável sucessão de guloseimas. Havia bolos feitos com a preciosa man­teiga trazida em barris desde Westport e rolinhos re­cheados com a geléia resultante das uvas que as crian­ças haviam colhido. Dorothy encarregou-se de fazer um pão de mel que seguia uma receita especial do Sul. Os homens comeram tanto que, discretamente, afrouxavam o cinto da calça, algo em que as mulheres não deixaram de reparar, ficando radiantes.

Foi como se ninguém ali houvesse tido que suportar onze semanas de uma estafante jornada. Foi como se o igualmente demorado complemento da viagem só es­tivesse para acontecer anos mais tarde. Todos estavam muito alegres, brincalhões e, pelo menos por enquanto, de bem com a vida.

Kelly tinha certeza de que nunca havia rido tanto. Daniel e Foxy, que tinham sido perdoados por Jeb e resolvido continuar com a caravana para subir as mon­tanhas, divertiam todos com suas histórias. E as crian­ças organizaram uma apresentação teatral baseada no Dia da Independência. A função incluiu as gémeas Bur-nett e Patrick representando os inalienáveis direitos: Vida, Liberdade e Felicidade.

Juntando-se aos que aplaudiam ao final da apre­sentação, Jeb sentou-se ao lado de Kelly.

— Direitos inalienáveis. Você acha que era isso o que seu pai tinha em mente quando resolveu que vocês iriam para o Oeste? — perguntou.

— Acho que sim — ela respondeu, voltando-se para ele. — Pelo menos a parte que fala em felicidade.

— Sei. É sempre a parte mais difícil. Kelly assentiu.

— É, sim. E como é que você está se saindo nesse particular. — Quando ele fez um ar interrogativo, ela procurou se explicar. — Dias atrás você disse que tal­vez resolvesse se fixar em algum lugar. Jeb sorriu.

— Eu disse isso?

— Mais ou menos isso.

Um grilo soltou seu trinado bem atrás deles, assus­tando-os e fazendo-os rir.

— Está aí um exemplo de alegria — brincou Jeb. — Você acha que esse grilo é feliz?

Kelly riu novamente, sentindo-se ela própria imen­samente feliz.

— Ah, não sei.

A certa altura ele pegou-a pela mão e levou-a para longe das pessoas que ainda estavam sentadas diante do improvisado palco onde as crianças havia apresen­tado sua produção.

—O espetáculo já terminou — disse, numa voz ale­gre. — Vamos caminhar um pouco.

— Preciso ajudar a recolher as coisas — protestou Kelly, mas Jeb não soltou a mão dela.

— Deixe que outra pessoa faça isso. Você não pode se responsabilizar por tudo que acontece nesta cara­vana — ele disse, em tom de brincadeira, repetindo uma das frases com que ela o censurava.

Kelly parou de resistir e deixou-se levar, contornan­do o enorme bloco de granito. Logo eles deram a volta completa, já que, embora muito alta, a pedra não tinha mais de vinte metros de largura.

— Assim é melhor — disse Jeb, quando chegaram a um ponto onde não podiam ser vistos pelas outras pessoas.

E continuava segurando a mão dela.

— O que é melhor? — quis saber Kelly.

— Isto.

Encostando-a na pedra ele pôs as mãos nas laterais do rosto dela. Agora estava muito sério. Kelly não pôde decifrar nada daquele expressão antes que ele chegasse bem perto para beijá-la. Não foi um beijo demorado, embora habilidoso e profundo. Pressionando a pedra com as costas, Kelly pensou que estava se derretendo.

— Meu Deus, há dias que eu vinha querendo fazer isso — confessou Jeb, com a voz rouca.

Kelly sentiu-se sorrindo, um sorriso que vinha do coração.

— Queria mesmo? — perguntou.

—Ah, queria!

— E o que o impedia de satisfazer essa vontade, capitão Jeb Hunter?

Agora o sorriso dela era franco, quase um riso de alegria.

— Andei fazendo umas considerações.

Kelly ainda era prisioneira das mãos dele, embora ainda não tivesse sido tocada por elas.

— Considerações? — repetiu, franzindo a testa. Jeb assentiu. Kelly via muito pouco da expressão dele, enquanto lá no alto o céu ia se enchendo de estrelas.

—Um homem tem que fazer algumas considerações até se acostumar com essa história de felicidade.

— Mas você vai tentar, não vai?

Jeb chegou-se ainda mais para perto dela e abaixou os braços.

— Vou, sim — respondeu, num murmúrio.

— É bom ouvir isso — disse Kelly, também murmurando.

Depois disso eles não disseram nada durante um bom tempo, ocupados que ficaram em se abraçar e entregar-se a uma demorada troca de beijos. Só depois de vários momentos ele recuou e apoiou uma das mãos na pedra, olhando para ela.

— Como estou me saindo? — perguntou.

Meio tonta, Kelly teve alguma dificuldade para en­tender a pergunta.

— Como está se saindo em quê?

—Nessa história de felicidade. Será que entendi o espírito da coisa?

Antes de responder ela soltou um riso rápido.

—Acho que você já assimilou inteiramente o espírito da coisa, Jeb Hunter.

Jeb afastou-se um passo e bateu nas coxas com as mãos, como se comemorasse uma descoberta.

— Tem toda razão. E no momento eu daria qualquer coisa por uma cama macia e algumas horas de priva­cidade com você.

— Parece que isso vai ser um pouco difícil de con­seguir por aqui — disse Kelly, excitada com a su­gestão. — Pelo menos a cama macia... — acrescentou, com malícia.

Jeb coçou o queixo enquanto olhava para ela.

—É... mas talvez haja uma alternativa. O que acha da cama de uma carroça durante todas as noites daqui até a Califórnia?

Aquelas palavras fizeram com que a excitação de Kelly com a perspectiva de estar nos braços dele co­meçasse a diminuir. Dali até a Califórnia, tinha dito Jeb. Então ele não estava propondo casamento. Ob­viamente havia reconhecido que a desejava, mas não parecia acreditar que eles tivessem a chance de um futuro juntos.

Kelly esfregou os braços.

— Está se esquecendo de que eu tenho um irmão, capitão. E de que tem uma caravana para dirigir. Não acho que seria recomendável você entrar furtivamente na minha carroça todas as noites.

O rosto de Jeb agora estava voltado para o lado da lua crescente e ela pôde ver que ele sorria.

— Não acha, é?

— Não.

—O que significa que você me fará esperar até que possamos arranjar um pastor em Fort Laramie. Ou um padre, já que você é irlandesa, e naturalmente católica.

— Um padre?

—Ou o comandante do forte. Não me importa quem seja o oficiante, desde que eu possa entrar furtiva­mente na sua carroça todas as noites. Legitimamente.

A primeira coisa que Kelly sentiu foi uma onda de alívio. Não estava ouvindo uma proposta de casamento muito romântica, mas era inequivocamente uma pro­posta de casamento. E, agora que ele já tinha dito as palavras, ela podia reconhecer, pelo menos para si mes­ma, que era o que vinha querendo ouvir há várias semanas. Imediatamente depois, pôs-se na ponta dos pés para beijá-lo na boca, o que provocou a pronta e inteira cooperação dele.

Só momentos mais tarde as dúvidas começaram a assaltar Kelly. O que aquilo significaria para os planos dela, para a promessa de realizar o sonho do pai? Sim, Jeb queria dormir na carroça dela... e ela também que­ria isso. Mas o que mais ele queria? Tinha declarado muito claramente que não queria voltar à vida perdida juntamente com a esposa. Estaria disposto a se fixar para cooperar na realização do sonho dela?

Jeb sentiu no mesmo instante a mudança operada em Kelly e não a impediu de recuar. Com os braços cruzados e virando a cabeça para o lado, ela agora o examinava.

— Então pretende entrar furtivamente na minha carroça todas as noites, sr. Guia da Caravana, mas como será quando chegarmos à Califórnia? — pergun­tou. — O que acontecerá então?

Jeb mostrou uma expressão séria enquanto punha a palma das mãos nas faces dela e a beijava apenas uma vez, com muita ternura.

—Quando chegarmos à Califórnia? Ora, está aí uma boa pergunta. Lembra-se daquele seu sonho de começar uma fazenda? Talvez possamos acrescentar algumas coisas... Que tal filhos? Acho que devíamos ter uns três.

Os olhos de Kelly se enevoaram.

— Só três? — ela protestou, com um sorriso mali­cioso. — Sempre pensei em ter quatro.

—Quatro, então. Está vendo como me transformei numa pessoa fácil de se convencer? — Erguendo-a do chão caíram juntos na relva macia aos pés da rocha. — Você se incomodaria se começássemos a providen­ciar isso aqui mesmo?

Kelly beijou-o no queixo.

— Não me incomodaria nem um pouco.

Por cima do fino tecido do vestido, Jeb apertou os já endurecidos seios de Kelly. A relva alta tremulava en­quanto ele começava a soltar os botões do vestido dela.

— Qualquer dia desses nós vamos fazer isso numa cama — disse Jeb, com voz de pezar.

—Eu não me incomodo — declarou Kelly, soltando um gemido de prazer quando sentiu a língua dele num dos sensíveis mamilos.

—Eu também não — disse Jeb, rindo. — Pelo menos não neste momento.

Logo depois foi ele quem soltou um gemido de sa­tisfação e surpresa quando ela o acariciou baixo da virilha, por cima da calça.

— Isso é tão bom, doçura — murmurou, incentivando-a. Encorajada, Kelly abriu a calça de Jeb e buscou o calor da virilidade dele.

Deitando-se de costas ele deixou que ela o acaricias­se, o que produzia ondas de prazer. Naquela vez pre­tendia se entregar por inteiro ao que ela quisesse fazer. Não deixaria que nada, nenhuma preocupação esta­belecesse limitações àqueles momentos. Pela primeira vez desde a morte da esposa, ele se permitiria uma mistura integral com outro ser humano, fundir-se com Kelly e, nesse processo, talvez criar uma nova vida para encher de cuidados e amor.

Kelly estava mais do que pronta para recebê-lo e, quando os movimentos de Jeb se tornaram mais fre­néticos, acompanhou-os com vigor e alegria. Jeb pensou que seu coração fosse parar de bater no instante em que explodiu dentro dela. Depois abraçou-a ternamen-te, trazendo-a para junto de si e sentindo que as lá­grimas de Kelly se misturavam com as dele próprio.

— Sei que não mereço isso — disse, com voz macia —, mas vou me sentir o homem mais feliz de toda a Califórnia se você se tornar minha noiva. Eu te amo, Kelly Gallivan.

As palavras que ele nunca havia pensado que vol­taria a dizer foram como um refrescante bálsamo em dolorosas feridas.

Kelly aninhou-se nos braços dele e suspirou.

— Eu também te amo, sr. Guia da Caravana. Por um bom tempo eles ficaram abraçados, obser­vando a estrelada noite do Oeste.

 

Vale do Napa Junho de 1858

Tem certeza de que nao haverá problema? — perguntou Jeb, com ar de preocupação. — Eu ficaria mais tranquilo se houvesse um médico aqui para dizer se você está já bem mesmo ou não.

Kelly ajeitou-se entre os travesseiros e estendeu os braços para o marido, que continuava ao lado da cama, ainda inteiramente vestido.

— Bobagem. Sou uma pioneira, querido. Se pude dar à luz o nosso bebé sozinha, acho que tenho con­dições de saber quando poderei convidar meu marido para se deitar comigo.

Hesitante, Jeb pôs um joelho na cama.

— Você não deu à luz inteiramente sozinha — ar­gumentou. — Lembre-se de que teve a minha ajuda e a de Patrick.

Kelly revirou os olhos.

— Grande ajuda... Patrick correndo para fora com o estômago embru-lhado tão logo viu sangue e você andando de um lado para outro, se lamentando, tor­cendo nervosamente as mãos, agindo como se eu fosse a primeira mulher a ter uma criança neste mundo de Deus. Dorothy e eu fizemos todo o serviço.

Para alegria de Kelly, os Burnett haviam resolvido se estabelecer como colonos num pedaço de terra do fértil vale logo ao norte de San Francisco, vizinho ao deles.

Sorrindo, Jeb inclinou-se para beijá-la.

— Bem, você foi a primeira mulher a ter um filho meu.

Kelly também sorriu para ele. Estavam ambos com aquela expressão de ternura que sempre mostravam quando falavam sobre o filho.

—Ele é lindo, não é? — ela perguntou, talvez pela centésima vez naquele dia.

Deixando a relutância de lado, Jeb deixou-se cair na cama ao lado dela.

— Sean Hunter. O bebé mais lindo da Califórnia.

—Do mundo inteiro, talvez — acrescentou Kelly, transbordante de felicidade. — Você acha que ele está bem?

Jeb olhou para o berço onde o filho deles dormia profundamente.

— Está bem, sim. Sempre se preocupa demais, sra. Hunter.

Kelly riu.

— Partindo de você, sr. Guia da Caravana, essa é uma acusação interessante.

Mexendo-se na cama, Jeb moveu-se mais para perto dela.

— Não sou mais guia de caravanas. Espero ser ape­nas o guia da nossa família, do nosso lar.

Kelly franziu a testa, fazendo menção de emitir um indignado protesto feminista, mas ele a calou com um beijo na boca.

— E da minha adorável e tentadora esposa — acres­centou, entre beijos. — Que depois do parto adquiriu umas curvas que nas últimas semanas estão me dei­xando louco. — Enquanto falava ele acariciou os seios dela por cima da camisola de musseline. Depois ergueu a cabeça. — Tem certeza de que não haverá problema? — voltou a perguntar.

— A preocupação é só sua, porque eu não estou nem um pouco preocupada — respondeu Kelly, pu­xando outra vez a mão dele para o peito.

Apertando levemente o seio agora farto, Jeb soltou um suspiro de satisfação.

— Meus dias de preocupação terminaram. Estou completamente feliz com você, doçura, e com Sean. Esta terra é mais rica do que qualquer sonho que o seu pai pudesse ter. Nós vamos ter uma boa vida aqui.

— Eu só queria que Patrick ficasse mais feliz com isso — disse Kelly, franzindo a testa.

Jeb ergueu a cabeça.

— Como eu já lhe disse, seu irmão está com catorze anos... a idade da aventura. Vai fazer muito bem a ele passar o verão nos campos de garimpo com Haskell.

Kelly ainda achava irónico o fato de que, uma vez realizado o casamento deles, em Fort Laramie, Jeb e Scott houvessem se tornado grandes amigos. Tudo levava a crer que não havia nenhuma rivalidade pela afeição dela, já que os dois homens se tratavam com uma cor­dialidade que parecia sincera em todos os sentidos.

— Foi bom mesmo Scott concordar em levá-lo — disse Kelly.

— Ah, vai ser melhor ainda quando Patrick puder ver com os próprios olhos que a vida aventureira de um garimpeiro se resume a suor e trabalho duro. Ele ficará muito feliz quando puder voltar para cá, no outono.

— Nesse meio tempo, poderemos ter um pouco da vantagens de que você uma vez me falou. Uma cama macia e algumas horas de privacidade... acho que foi isso o que disse.

— Estou satisfeito com o que temos tido — respon­deu Jeb, sorrindo e indicando com o gesto o berço do pequeno Sean.

— Mas a sua promessa foi de que teríamos quatro, capitão — lembrou Kelly, insinuante. — Eu devia ter exigido que isso constasse do contrato.

Jeb riu com vontade, desistindo de resistir aos es­forços dela para seduzi-lo. Sentando-se na beirada da cama, ocupou-se em tirar as botas. Depois deitou-se e puxou-a para perto, tendo que competir com as cober­tas da cama.

— Não vale acrescentar cláusulas ao contrato. Eu pensei que havia cumprido a minha parte quando a trouxe até a Califórnia.

— Não, esse foi o primeiro contrato. Estou falando do contrato que assinamos em Fort Laramie, quando me tornei sua esposa.

Kelly olhava nos olhos do marido. Sentia os seios duros contra o peito dele. Como Sean havia se alimen­tado há não mais de meia hora, aquela sensação devia ser causada por um outro tipo de estímulo.

— Ah, aquele outro contrato! — exclamou Jeb, fin­gindo se alegrar muito em ser lembrado daquilo. — O contrato que diz que poderei ter você comigo todas as noites, pelo resto de nossas vidas.

Agora a mão dele a acariciava no seio por baixo da camisola, tocando diretamente na pele. Agia com muito cuidado, muito vagar. Kelly pensou que enlouqueceria de tanto esperar.

— Sim, pelo resto de nossas vidas — ela concordou, erguendo as mãos para começar a soltar os botões da camisa dele.

— Kelly? Jeb?

Jeb imediatamente sentou-se na cama e olhou para a entrada do chalé. À porta estavam duas gémeas idên­ticas, muito loiras. Droga! Ele havia se esquecido de fechar a porta.

Kelly juntou rapidamente os dois lados da camisola e continuou deitada por baixo dos lençóis, olhando para as recém-chegadas.

— Polly e Molly? — disse, com certo nervosismo. — E muito bom ver vocês aqui.

A meninas foram entrando, evidentemente sem per­ceber o que haviam interrompido.

— Vocês estavam ocupados em alguma coisa? — perguntou Molly, inocentemente.

Kelly olhou para Jeb, que procurava mostrar a ex­pressão mais despreocupada possível. Depois sorriu com simpatia para as meninas.

— Não, queridas. Não estávamos ocupados. Vocês queriam alguma coisa?

— Molly estava com saudade de Patrick — respon­deu Polly.

— Polly também — acrescentou a outra.

— Bem, eu também estou com saudade de Patrick — confessou Kelly. — Mas espero que ele esteja se divertindo com Scott.

— Você acha que ele vai ficar rico? — perguntou Polly, com os olhos muito abertos.

Kelly balançou a cabeça, ciente da mão de Jeb a poucos centímetros dela por baixo das cobertas.

— Ah... eu não sei.

Polly aprumou o corpo e olhou em volta, como sem­pre muito segura.

— Bem, nós achamos que você podia estar sentindo saudade dele e por isso viemos até aqui. Mamãe disse que você podia estar solitária.

Kelly dirigiu um olhar de desespero para Jeb, que piscou-lhe o olho. Logo depois ele sorriu para as duas garotas.

—Foi muita bondade vocês virem até aqui, meninas, mas Sean está dormindo e Kelly está meio grogue. Como vocês sabem, as mulheres que dão à luz sentem muito sono.

Kelly esforçou-se para comprovar as palavras dele, bocejando.

As meninas assentiram

— Talvez devamos voltar outra hora — sugeriu Molly. Jeb mostrou um sorriso de aprovação.

— Amanhã seria ótimo — disse às garotas. Por baixo do lençol, a mão dele estava bem no alto da coxa de Kelly, que mantinha os olhos fechados e mordia o lábio para não gemer de prazer. — Até amanhã, meninas — prosseguiu Jeb, abaixando a voz. — Kelly já vai dormir.

— Então voltaremos amanhã pela manhã — disse Polly, pegando na mão da irmã e voltando-se para sair na ponta dos pés.

—Mas não muito cedo — recomendou Jeb. Logo depois a porta se fechou.

— Mentiroso! — censurou-o Kelly, abrindo os olhos e rindo.

Mas logo o riso dela se transformou em manifestação de desejo. Por baixo do lençol os dedos de Jeb conti­nuavam sua erótica exploração.

Um instante mais tarde a preocupação reapareceu no semblante dele.

— Se sentir algum desconforto você vai me dizer, não é?

—Querido marido, meu único desconforto tem sido essa espera para sentir você dentro de mim outra vez.

A observação instantaneamente deixou Jeb excitado. Levantando-se, ele tomou o cuidado de fechar o trinco da porta antes de se despir. Depois deitou-se nova­mente ao lado de Kelly, que a essa altura já havia tirado a camisola.

— Ah... — ele gemeu, expressando a satisfação que sentia ao contato dos corpos nus.

— E muito bom tê-lo de volta, meu marido — mur­murou Kelly, entre beijos.

Os olhos de Jeb mostravam um profundo contenta­mento. Enquanto ele a penetrava, com muito cuidado e carinho, continuou a olhá-la nos olhos.

— Lembra-se de que o seu pai sugeria que você congelasse os seus momentos preferidos? — perguntou.

Kelly assentiu, com o coração transbordante de amor e sem encontrar palavras.

Jeb finalmente fechou os olhos.

— Pois eu vou congelar este momento, meu amor, porque é o meu preferido. 

 

                                                                  Ana Seymour

 

 

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