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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CARLOS WIZARD / Ignácio de Loyola Brandão
CARLOS WIZARD / Ignácio de Loyola Brandão

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

OURO, MEU DEUS! Ouro. Hilda estremeceu. Precisava de alguma coisa de ouro. Se não, como dar banho no recém-nascido? A bacia de latão estava cheia de água morna, ela tinha pressa. O que possuía de ouro para colocar na água do banho? Naquela casa modesta de caminhoneiro não havia nem sombra do metal precioso, Hilda não tinha joias, colares, correntinhas, nada.
Então sorriu. Claro que tinha ouro. A solução estava em suas mãos. Por mais remediada que fosse, a aliança de ouro do casamento era ponto de honra. Hilda tirou o anel do dedo e o colocou na bacia para o primeiro banho de Carlos. Segundo a crença dos imigrantes italianos do Paraná daquela época, o primeiro banho de uma criança deveria ter na água um objeto de ouro para trazer boa fortuna e prosperidade. Qualquer um. Se bem não fizesse, mal não haveria de fazer. Assim foi dado o banho de ouro no recém-nascido. Era 19 de setembro de 1956.
O pai de Carlos, Antônio Oriondes Martins, natural de Clevelândia (PR), deixou a mãe e a cidade de Pinhão aos 13 anos, para mergulhar na vida. Era a necessidade de dias melhores. João Martins, o avô de Carlos, tinha morrido quando Antônio estava com apenas 10 anos. Sozinha, Dulce, a mãe, vivia em dificuldade para sustentar os filhos pequenos. Antônio foi levado para trabalhar com seu Gilberto, agora seu patrão, um caixeiro-viajante que vendia de tudo um pouco. Antônio começou a vida como aprendiz aos 13 anos, percorrendo o Paraná, de cidade em cidade, de vila em vila. Ocasionalmente iam para São Paulo pela estrada de ferro, nos tempos da maria-fumaça, a fim de comprar artigos no atacado e revendê-los no interior. O adolescente ganhava 85 cruzeiros por mês e, conforme as vendas, recebia 5 cruzeiros a mais a cada mês. Foi com seu Gilberto que Antônio aprendeu duas profissões, a de comerciante e a de motorista. Com o passar dos anos, assumiu o posto do caixeiro e passava a semana oferecendo mercadorias para uma clientela já formada no interior do estado. Mais tarde seu Gilberto comprou uma caminhonete e o trabalho de Antônio ficou mais empolgante. Sentir-se evoluindo o deixava orgulhoso. “Em 1950, meu patrão mudou-se para Curitiba, fui com ele, para montar o Café Maracanã. Até ajudei a construir o prédio da fábrica”, diz Antônio. “Logo eu me tornei o vendedor número um, tinha jeito para a coisa. Não havia mês em que a venda não atingisse os 30 mil quilos de café em pó, uma quantidade enorme para a época.” Ele se lembra do contentamento que teve quando o patrão comprou um caminhão novinho, Chevrolet, e colocou nas mãos dele.

 


 


O Paraná, que tinha completado 103 anos de emancipação política, vivia já um período de declínio da agricultura cafeeira, enquanto a do mate prosseguia, ao passo
que a desenfreada extração da madeira prenunciava o esgotamento das reservas. Havia uma indústria incipiente e a imigração seguia seu curso com o Paraná recebendo
levas de poloneses, ucranianos, alemães, japoneses, italianos, sírio-libaneses. Quando Carlos nasceu, Curitiba vivia uma década de desenvolvimento. Se em 1950 contava
com 180 mil habitantes, em 1960 atingira quase o dobro, 362 mil.
Entre os italianos que começaram a chegar ao Paraná no final do século XIX, estavam os Sforza, os Andreatta, os Ferrarini, bisavós maternos de Carlos. Fixaram-se
na colônia Farias, município de Colombo. Quanto aos avós paternos, João Martins e Dulce, ele morreu cedo, como se viu. Dulce viveu até os 85 anos.
João e Dulce eram fascinados pela constelação de Órion, uma das mais visíveis no céu, principalmente nas noites escuras do interior paranaense, quando as estrelas
se destacavam. Eram míticas principalmente as Três Marias, que fazem parte do sistema e que encerram histórias e lendas. Não se sabe se eles tinham noção do mito
grego de Órion, filho de Poseidon (ou Júpiter), deus dos mares, por quem Artemis, irmã de Apolo, se apaixonou. Apolo, enciumado, tanto fez, tantas artimanhas criou,
que Artemis acabou matando o amado. Foi quando, trespassada pela dor, ela o transformou numa constelação. Para João e Dulce, o nome Órion era sonoro, compreendia
algo de misterioso e belo. Os filhos que nasciam foram ganhando os nomes de Oriondes, Oriondino, Oriondina e Oriovaldo.
PREPARAR UM FILHO PARA SERVIR A DEUS
Hilda casou-se aos 17 anos e nove meses depois deu à luz o primeiro filho, Carlos. Morando hoje nos Estados Unidos, ela vem ao Brasil visitar o filho uma vez por
ano e nos encontramos em Campinas. Ela contou que semanas depois do nascimento do filho, sentiu, de repente, um imenso temor. O de que não pudesse criar o menino.
Era uma jovem que sabia pouco da vida, não tinha sido preparada, e com o marido fora de casa a semana inteira sentia-se em absoluta solidão, cheia de angústia, desamparada.
Vivia uma sensação de impotência.
Certa noite, lembrou-se de uma Bíblia, presente de casamento. Leu trechos e começou a sentir-se reconfortada. Pediu a Deus: “Salve a vida dessa criança, Senhor!
Não permita que nada de mal lhe aconteça. Prometo criá-lo para que possa servir a Ti. Que esse menino cresça para servir a Deus. Vou fazer tudo para orientá-lo,
encaminhá-lo nesse destino”. Até hoje, Carlos, aos 56 anos, lembra-se de a mãe ter repetido dezenas de vezes essa história. “Aquele momento teve forte influência
sobre mim. Ao oferecer seu filho ao Senhor ela criou vínculo e compromisso entre mim e Deus.”
Do bairro do Portão, onde nasceu, Carlos não tem recordações, era muito novo. As visões ficam mais claras depois que a família mudou-se para o Boa Vista, um bairro
novo, em um descampado na periferia da cidade. Ele tinha 3 anos e foram morar na casa de tia Paulina, irmã da mãe. A essa altura, já eram nascidas as duas irmãs,
Sônia e Sandra. Mais tarde, o pai comprou o terreno vizinho e começou a construir uma casa de madeira. Carlos acompanhava com curiosidade a chegada de tábuas, caibros,
vigas, sarrafos, telhas, assoalhos, que, como mágica, iam dando forma à nova casa. Ele era proibido de se aproximar do poço cavado no quintal para abastecer a obra
e, no futuro, a casa. Podia somente brincar com seus carrinhos de madeira na areia da construção. Era preciso usar muita imaginação, inventar os próprios brinquedos.
Finalmente, a casa que foi construída pelo avô Chico ficou pronta. Mas para ele só ficou mesmo depois que ergueu a cerca de madeira em volta. Não víamos a hora de
deixar aquele quarto na casa de tia Paulina, onde morávamos amontoados. Agora, havia a nossa casa. Comparada com o quartinho onde estávamos era como se estivéssemos
nos mudando para uma mansão. Minha mãe gostava de dizer: “a nossa casa”. Meu pai sorria e feliz dizia: “Essa é a primeira, depois vamos construir outras no quintal
para alugar”. Era uma sala, o quarto dos pais, o quarto das crianças com uma única cama, cozinha, banheiro. Os irmãos vinham vindo, todos para o mesmo quarto. Como
vinham, de onde vinham? Sei lá. Diziam que chegavam trazidos pela cegonha. Como saber? Nunca vi uma na vida. Tudo era um grande mistério para mim, marcado por alguns
símbolos. Lembro-me apenas de cenas difusas, minha mãe dizendo ao tio Pedro: “Corra, vá chamar a parteira”, e ele saía rua afora, caminhava alguns quilômetros em
busca de um telefone público. Eram poucos, distantes, funcionavam mal, geralmente instalados em pontos de táxi ou em algum bar. Pagava-se pela ligação. Passadas
algumas horas, eu via chegar uma senhora negra trazendo sua bolsinha secreta, que entrava no quarto e trancava a porta. Será que trazia a criança na bolsa? Afastavam
os pequenos, aquilo era assunto para gente grande. Por quê? Nessas horas nem perguntar ao pai eu podia, ele estava sempre viajando com seu caminhão. Assim, misteriosamente
foram entrando em casa Célia, Luis, Oriondes e Sérgio.
Ao se lembrar desse tempo, Hilda diz: “Sempre tive dois filhos que não andavam, dois de mamadeira e dois de fralda. E Carlos me ajudando a dar conta”.
A partir da construção daquela casa de madeira, outras famílias chegaram no Boa Vista e uma escola começou a ser erguida bem em frente de sua casa. Era uma obra
simples, de madeira, como a maioria das construções do Paraná na época. Carlos sentava-se ao portão e ficava olhando os trabalhadores erguerem as novas paredes.
“Vi nascer e crescer as salas em que mais tarde eu viria estudar”, acentua com orgulho. Assim que inaugurou, Carlos foi dos primeiros matriculados na Escola Ermelino
de Leão, nome de um político que exerceu várias vezes o cargo de presidente da então Província do Paraná, no século XIX, e era também historiador.
DESCOBRINDO QUE FRUTAS NÃO TÊM BICHO
Brincadeiras da época, em um tempo em que ainda não existia a indústria atual que dispõe milhares de produtos nas lojas, eram bolinha de gude, pular corda, esconde-esconde,
cavalinho de pau com cabo de vassoura, rodar arco, rodar peão, brincar com pneu velho nas ruas, soltar pipa, jogar bola – quando aparecia uma –, fazer caminhão e
trens de tocos de madeira, subir em árvore e, para desespero das mães, aventurar-se num córrego próximo à casa por onde corria também o esgoto do bairro.
Nos fins de semana, a família estava completa e muito alegre. O pai retornava sempre trazendo sacos de comida. Trazia sacos de 60 quilos de arroz, feijão e farinha
de milho, latas de mel, latas de banha recheada de carne de porco, queijo, goiabada etc. O passeio favorito acontecia quando todas as crianças subiam na carroceria
do caminhão e seguiam pela BR-116 rumo à Colônia Faria, distante 35 km. Era nossa maior diversão e encantamento visitar os avós maternos que moravam em uma chácara
e promoviam encontros dos parentes italianos e dos amigos com música, dança, muita comida. Meus avós criavam galinhas, patos, gansos, coelhos, porcos, uma ou duas
vacas que garantiam o consumo de leite. Havia um enorme pomar com uvas, ameixas, peras, maçãs, e a criançada com os primos não saíam das árvores, comia-se muita
fruta. Só descobri que pêssego e ameixa não tinham bicho depois que cresci. Até então, era apanhar pêssego, pera, goiaba ou pera direto do pé e tirar os bichos de
dentro enquanto saboreavam as frutas. Como criança, eu pensava que toda fruta tinha bicho dentro.
Quando chegávamos à Colônia Faria, parecia que tínhamos chegado à Itália, lá só se falava o italiano. Até hoje as palavras em italiano que sei aprendi na infância.
O cardápio se repetia a cada domingo, macarronada feita em casa, frango e maionese. A comida era simples, supergostosa. Os mais velhos podiam tomar vinho feito na
chácara. À tarde, tinha a polenta frita na chapa do fogão a lenha com café e leite. Lembranças que nunca vão me sair da memória.
O domingo acabava e estava na hora de voltar para casa. O pai começava a carregar o caminhão para, segunda-feira, partir para a estrada e a mãe cuidar dos sete filhos
pequenos. A vida inteira, minha mãe carregou um sentimento de solidão, mas essa sensação de ausência e solidão não era sentida pelas crianças. Isso vinha à tona
em certos momentos, quando algum filho, ou ela mesma, ficava doente e daí tínhamos de recorrer aos tios ou aos vizinhos por socorro. Afinal, naquela periferia não
tínhamos contato com outros modelos de convivência.
Diante daquela condição constante de solidão, minha mãe incutiu em mim o senso de responsabilidade: “Você é o mais velho, meu braço direito, tem de cuidar dos irmãos”.
Aquilo me dava satisfação, mas também me preocupava, era um peso. Sabia que se tudo desse certo o crédito seria dos irmãos que eram “bonzinhos” e se comportavam
bem. Se alguma coisa desse errado a “culpa” era minha que não tinha cuidado bem dos menores. O interessante é que, hoje em dia, ensino o mesmo conceito no mundo
corporativo: o líder divide o crédito da vitória com a equipe e assume a responsabilidade se os objetivos não forem atingidos.
Sempre tive grande respeito e carinho por minha mãe, pois apesar de todas as suas limitações e desafios, ela encontrava tempo para alimentar minha autoestima. Com
frequência me dizia: “Pense grande, acredite em você, tudo o que desejar na vida você alcançará, querer é poder”. Era como se ela quisesse reforçar em mim a promessa
que havia feito de me preparar para uma missão maior.
Quando meu irmão Luis nasceu, ficamos muito ligados, a relação que temos até hoje é muito forte. Já meus irmãos Oriondes e Sérgio desde pequenos foram muito próximos,
essa amizade se estendeu pela adolescência e hoje são sócios em um negócio próprio em Utah.
ACOMPANHANDO O PAI PELAS ESTRADAS
Na altura dos 10 anos, durante as férias escolares, às vezes o pai o chamava: “Vamos viajar!”.
Esse convite era música para os ouvidos de Carlos, pois a viagem com o pai representava “férias” de verdade, porque enquanto estava em casa sua rotina consistia
em arrumar os pratos para as refeições, limpar a mesa, ajudar a lavar e secar a louça, varrer a casa, passar o escovão com palha de aço no assoalho da casa, auxiliar
a encerar o chão, passar a enceradeira na casa e, claro, cuidar dos irmãos menores.
Carlos subia no caminhão com um sorriso nos lábios, pronto para uma semana de emoções e aventura. Ele começava por carregar o caminhão Ford F-600. Em meio às mercadorias,
havia um pequeno baú de madeira com mantimentos para uma semana, panelas, frigideira, pratos, talheres, copos de plástico e um fogareiro. Na hora do almoço ou da
“janta”, parávamos o caminhão na proximidade de um rio, eu ia buscar água em um garrafão de plástico e meu pai ficava descascando batatas, abrindo as latinhas de
feijoada, preparando o arroz e as linguiças para fritar. Quando voltava com água fresquinha, eu fazia o Ki-suco para acompanhar a refeição.
Essas viagens com meu pai eram a grande aventura que somente eu vivia. Nenhum de meus irmãos ou amigos passava por algo igual. Aprendia a viver, conhecia a dureza,
não tinha medo.
À noite, quando Antônio não aguentava mais de sono, paravam, abriam dois colchonetes na traseira do caminhão, estendiam lençóis e cobertores e dormiam na estrada.
Antônio, apesar de ser um homem bom e doce, não era de muita conversa. Durante o dia ouviam rádio o tempo inteiro. Pai e filho divergiam nas preferências musicais,
mas a vontade do genitor era soberana e prevalecia. Carlos queria ouvir a Jovem Guarda, Roberto e Erasmo Carlos, Vanderleia, Martinha, enquanto Antônio era fã de
Pedro Bento e Zé da Estrada, Tonico e Tinoco, Tião Carreiro e Pardinho e de tantas outras duplas sertanejas da época.
No interior do Paraná não havia asfalto, as estradas eram poeira nas secas, lama nas chuvas. Nada mais comum que ficar encalhado, as rodas afundadas no barro. Caminhões
e carros levavam grossas correntes que “encapavam” os pneus e protegiam razoavelmente dos encalhes. Ao parar em estradas de pouco movimento, o jeito era munir-se
de paciência e esperar que passasse alguém, a pé ou a cavalo, que pudesse buscar socorro. Podia-se ficar encalhado por horas, ou dias. Deixávamos o tempo correr
até chegar alguém de boa vontade para nos socorrer com um trator e nos livrar do atoleiro. Esse espírito de camaradagem e apoio mútuo era fundamental. Aprendi a
não me deixar dominar pela ansiedade, não ficar angustiado, saber que a solução viria, de alguma forma. Não tinha consciência seja do perigo, seja do transtorno.
A velocidade do tempo era outra; os instantes, longuíssimos; o silêncio, quebrado pelas músicas sertanejas do rádio ou por pássaros e animais, ainda havia muito
mato, era um Paraná em desenvolvimento, repleto de araucárias.
Alguns anos mais tarde em uma dessas viagens, a surpresa. De repente, naquela vastidão vazia, o pai disse: “Meu filho, está na hora de você aprender a dirigir”.
“Eu? Só tenho 12 anos.” “Está na hora.”
Susto e contentamento. Dizem que quem aprende em estrada de terra acaba sendo o melhor dos motoristas, porque vive de tudo, enfrenta qualquer situação. O pai encolheu-se
junto à porta, à esquerda, espremido, e o menino tomou a direção. Era incômodo, mas empolgante. A direção pesada e Carlos feliz. Antônio orientava: “Mais para a
esquerda, filho. Cuidado na curva. Tire o pé do acelerador. Pise no freio. Pise na embreagem. Engate a segunda marcha. Devagar, devagar... cuidado... estamos subindo...
O câmbio, mude a marcha”.
Estrada deserta, Carlos com o olhar fixo a sua frente, a estrada rodeada de árvores, qualquer desvio o pai estava ali para corrigir. O menino tão contente nem percebeu
o silêncio. Ao volante, ele se “achava”. O caminhão subia, descia, virava, cruzava com gente a cavalo, com charretes. O pai quieto. Uma hora, o menino virou-se e
deu com Antônio no maior ronco, a cabeça encostada na porta. Ele diminuiu a velocidade, que já não era muita, tossiu, fez barulho. Sentia calafrios. Estava sozinho.
“Nossa, isso aqui é de verdade, estou dirigindo este caminhão enorme sozinho. Onde está meu professor? Eu pensava que meu pai estava me acompanhando”. Ele era o
motorista. A parceria estava interrompida, o instrutor dormia. E como parar? Apavorado, acordou o pai, que abriu os olhos e não deu a mínima: “Toque em frente filho,
você está indo bem...”.
Carlos, orgulhoso, contou para a mãe que tinha dirigido. “Como é que ele me faz uma coisa dessas?”, gritou Hilda. Dali em diante, cada vez que o menino partia com
o pai, “eu não tinha mais sossego, não dormia à noite, só rezava”, confessa Hilda.
DESCOBRINDO A AUTONOMIA, A INICIATIVA
Na semana seguinte, os dois saíam novamente na segunda-feira, vendendo de cidade em cidade, regressavam na sexta, com o caminhão vazio. Havia momentos em que, diante
de uma mercearia ou armazém, Antônio ficava sentado ouvindo rádio no caminhão e mandava o filho ir à luta. Carlos descia e seguia as recomendações.
“Filho, preste atenção. Desça, vá falar com o dono. Verifique o que tem no estoque, o que não tem, do que ele precisa. Preencha o pedido e venha buscar as mercadorias
no caminhão. Entregue o produto, receba o dinheiro e venha entregar tudo para o pai.”
Naqueles momentos nem pai nem filho percebiam que estavam criando um modelo. Era algo inconsciente para as duas partes. Ele me dava autonomia, liberdade. Meu pai
despertava a responsabilidade e gerava em mim o espírito de iniciativa. Foi assim que aprendi a não ter medo das pessoas. A não ter medo de ouvir “não”. Sem saber,
estava aprendendo a vender, a negociar, oferecer produto, controlar estoque, realizar cobranças, documentar a venda, receber a grana e finalmente prestar conta ao
chefe. Meu pai ficava tranquilo esperando o resultado, não ia junto. Confiava, não interferia; as decisões eram minhas. Lição para toda a vida.
Anos mais tarde, Carlos compreendeu algumas imagens que tinham permanecido em sua memória, dos tempos em que viajava com o pai. Ele observava que alguns estabelecimentos
comerciais tinham representantes e distribuidores em várias cidades no interior do Paraná. Mais do que isso, ele notava que na maioria das cidades havia lojas das
Casas Pernambucanas, da Riachuelo ou da Hermes Macedo. Eram redes sempre presentes e seguiam o mesmo padrão visual. A pergunta que já circulava em minha mente era:
como essas empresas conseguem ter tantos pontos, tantos representantes, clientes? Com minha curiosidade natural e meu senso de observação aguçado, começava a perceber
que era um modelo de negócio, porém só daria conta disso racionalmente anos mais tarde.
Quando voltava para casa às sextas-feiras, Antônio chamava o filho e lhe entregava um saco de estopa cheio de dinheiro que ficava atrás do banco do caminhão. Ao
passar pelos fregueses, recebia o dinheiro e atirava as notas dentro do saco. Ao entregá-lo a Carlos recomendava: “Este é o dinheiro da semana. Tire do saco, separe
nota por nota, desamasse, conte, divida em pacotinhos”.
Desamassar muitas vezes era passar a ferro, e o normal era o ferro em brasa. Para mim, esse exercício era uma sensação de responsabilidade, uma demonstração de confiança,
e ao mesmo tempo uma distração como se eu estivesse montando um quebra-cabeça ou completando um jogo. Separava tudo, as notas de 10, de 50, 100, 200, 500 e 1.000
cruzeiros e fazia macinhos com aquelas notas coloridas, colocava o elástico. Anotava e entregava tudo ao meu pai que na segunda-feira levava aquele sacão de dinheiro
à empresa, para prestar contas. Não havia a sensação de perigo, nem se cogitava que pudesse ser roubado. Isso não existia.
A essa altura, para aumentar a renda familiar, Hilda fez um curso de corte e costura e passou a confeccionar roupas infantis em casa. Quando havia uma quantidade
razoável, entregava uma sacola para Carlos e outra para sua irmã Sônia e as duas crianças saíam a vender roupas de crianças pelas ruas de Curitiba. A maior alegria
dos dois pequenos vendedores era acabar a tarde com as sacolas vazias, tendo comerciado todas as peças, e voltar para casa com os bolsos cheios de dinheiro.
Nessa época surgem os traços do empreendedor. Um dia Carlos pediu ao pai que comprasse um saco de batatas, alguns pés de alface e cenoura. Além de roupa, ele queria
vender verduras de porta em porta. O pai ia ao mercadão central e com o caminhão trazia o pedido, o menino colocava num carrinho de mão e partia pelas ruas do bairro.
Formou uma freguesia no Boa Vista. A cada dia, separava o lucro das vendas e no fim de semana pedia ao pai que trouxesse mais mercadorias do mercado. De maneira
minúscula estava reproduzindo a experiência aprendida com o pai, porém, em vez de dirigir o caminhão, ele conduzia o carrinho de mão. Além disso, o menino era polivalente,
e também passou a vender sorvetes na porta das escolas. Não parava, queria crescer.
A NECESSIDADE DE UMA BUSCA ESPIRITUAL
Houve um instante na trajetória de Carlos que determinou seu futuro, sua maneira de agir e de ver as coisas. Hoje, olhando para trás, ele pode situar esse momento
perto dos 12 anos. Seus pais tinham tido educação católica, tanto que duas de suas tias, Doracy e Lourdes, irmãs de sua mãe, entraram para o convento e tornaram-se
freiras. Verdade que mais tarde abandonaram o hábito e se casaram. Meus pais sempre tiveram muita fé em Deus. Pessoas sensíveis, viviam uma inquietação espiritual,
formulavam perguntas, não obtinham respostas, havia um vazio dentro deles. Lembro-me dessa busca. No fim da década de 1960, eles diziam que já havia muita maldade
no mundo e que as pessoas estavam perdendo a noção entre o certo e o errado, estavam perdendo a noção de princípios, valores, ética e respeito mútuo. Imbuídos desse
espírito, eles passaram a buscar uma religião que pudesse ajudá-los a criar os filhos e manter a família unida. Recordo-me de que cada domingo frequentávamos um
culto, uma cerimônia, uma missa. Em um havia longos sermões; no outro música e cânticos; no outro guitarras e tambores, ou flautas. Para nós, crianças, tudo isso
parecia apenas uma diversão de fim de semana, mas para meus pais era a busca mais importante para o futuro da família, e muitas vezes ao terminar cada visita o vácuo
interior continuava, dominava a alma.
Certa noite, bateram em nossa porta dois rapazes vestidos de terno, camisa branca e gravata. Na lapela do paletó havia um emblema com a bandeira do Paraná com a
inscrição: Aqui se trabalha. Quando perguntei o que queriam, eles disseram que queriam falar com meu pai.
— Meu pai não está em casa.
— Que horas ele vai voltar?
— Ele está viajando e só volta no fim de semana.
— Então, voltaremos outro dia para falar com ele.
Quando voltei para dentro, minha mãe perguntou:
— Quem eram aqueles homens de terno no portão?
— Não sei, eles queriam falar com o pai.
— O que eles fazem?
— Não sei, acho que são fiscais do imposto de renda, pois tinham um emblema da bandeira do Paraná na lapela do paletó.
— E agora, meu filho?
— Eles disseram que vão passar de novo aqui para falar com o pai quando ele voltar de viagem.
Na época, no Paraná, a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias tinha poucos adeptos. Os primeiros missionários chegaram ao Brasil na década de 1930 e
se instalaram no Sul, a pedido das comunidades germânicas; embora americanos, eles aprendiam o alemão para vir ao Brasil. Nas décadas seguintes, passaram a aprender
o português e o trabalho se estendeu pelo país inteiro.
Os jovens prometeram e realmente voltaram. Não eram fiscais, não eram nem brasileiros. Eram norte-americanos missionários, os Mórmons. Através de Elder Fitzer e
Elder Mangum, dois rapazes com uma dedicação extraordinária e um grande amor pelo próximo, ainda que falando um português rudimentar, conhecemos o evangelho de Jesus
Cristo de uma maneira diferente, tanto na prática quanto no ensinamento. Um novo capítulo se iniciou em nossa vida familiar, e certamente em minha visão pessoal.
Meus pais encontraram o que inconscientemente buscavam havia tempos, uma igreja que pudesse ajudá-los a manter a união familiar. Um dos fundamentos básicos dos Mórmons
é a manutenção da família. A partir dali passamos a ter, individual e coletivamente, uma noção maior do que era o mundo, a sociedade, a integração, a comunidade.
Pode-se dizer que foi uma iluminação. Meus pais compreenderam todo o passado e o presente. Eles tinham vivido distantes dos pais em ambientes inadequados, com princípios
e valores confusos. Aos 10 anos, minha mãe deixou a chácara na Colônia Faria onde morava com a família e seus doze irmãos e foi levada por uma senhora à capital,
para ser empregada doméstica. Nunca mais morou com a mãe e a família. Ela lembra que todas as noites, deitada na cama, chorava de saudade de casa, sem saber por
que tinha de viver aquela separação. Meu pai, aos 13 anos, deixou a casa da mãe e seguiu com um caixeiro-viajante para aprender a ganhar a vida, tentar a sorte grande
na capital. Cada um seguiu com um desconhecido mundo afora. Em síntese, formação zero, orientação zero, amparo espiritual zero.
O encontro com a Igreja Mórmon permitiu aos meus pais conhecer o que nunca tiveram antes, o apoio, um norte, uma sustentação emocional e espiritual. A situação se
modificou, a vida passou a ter um propósito maior do que apenas trabalhar para obter bens materiais e pagar as contas. Eles passaram a ter a perspectiva de uma família
eterna. Hoje meu pai, com 80 anos, afirma que a decisão mais acertada que tomou foi ter levado uma vida de fé, voltada para a virtude e a dignidade. Repete com frequência:
“Tornei-me um pai melhor, um marido melhor, um trabalhador melhor, um cidadão melhor para este país, enfim, um melhor filho de Deus”.
Passamos a praticar o conceito chamado reunião familiar, que acontece geralmente na segunda-feira, mas pode ser em qualquer dia. O objetivo é trazer o pai e a mãe
para junto dos filhos, criar um clima de união, interação, integração. Um clima de espírito comum. Então, meu pai, que viajava e ficava fora a semana inteira, partia
somente depois dessa reunião. Com uma visão nova, começou a haver uma mudança nos relacionamentos marido-mulher, pais-filhos, pela consciência do todo. Meu pai continuava
a viajar, mas com o tempo sua qualificação profissional melhorou e ele foi capaz de estar mais presente, e os períodos em que ficava em casa eram intensamente valorizados.
CADA MOMENTO NA VIDA É UMA LIÇÃO
Carlos estudou na Escola Ermelino de Leão da primeira à quarta série. Quando passou para a quinta série, foi transferido para o Colégio Estadual América, no bairro
Bacacheri. O garoto tinha um horário escolar atípico, resultado de uma escassez de vagas nas escolas públicas paranaenses na década de 1970, que culminou em três
turnos para atender a demanda de alunos. Ele entrava no colégio às três da tarde e saía às sete da noite. Agora ia ao colégio de bicicleta. A bicicleta foi uma aventura.
Ali no Boa Vista eu tinha um amigo, Carlos Santana, que ganhou uma Caloi. Era o máximo, a novidade. A família de meu amigo era, aos meus olhos, abastada, o pai era
funcionário do Banco do Estado do Paraná. E o meu sonho passou a ser uma bicicleta igualzinha à dele. Claro que comecei a encher a paciência do meu pai. Queria porque
queria uma Caloi. Virou obsessão, sonho, objeto de desejo. No entanto, sempre ouvia: “Olha, filho, tenha paciência! Uma hora a bicicleta vem”.
Dali em diante, eu me via pedalando uma Caloi novinha, chegando à escola, me exibindo para as meninas. Sonhava dia e noite com a Caloi sendo entregue na minha casa.
Um dia, meu pai chegou, feliz: “Meu filho, comprei uma bicicleta para você! Está no caminhão”.
Corri, voei. Na hora que vi, tive de me conter para não mostrar a decepção. Não era a Caloi. Era uma bicicleta de mulher, aquela sem a barra, e ainda por cima usada
e vermelha. Bicicleta de menina. Mas era o que eu tinha, o que era possível meu pai me dar. Com ela passei a ir à escola.
Para chegar ao Colégio América, a uma distância de três quilômetros, não tinha ônibus que fizesse o percurso. Ou ia a pé, ou o pai levava, o que era raríssimo naqueles
tempos. A bicicleta foi a solução ideal. Quando as aulas terminavam, às sete da noite, em certo período do ano já estava bem escuro até chegar em casa. Aquela bicicleta
me ensinou uma lição que carrego até hoje. Imaginem um jovem, adolescente, que tem uma bicicleta vermelha e de mulher! O que me gozavam, as ironias pesadas, as chacotas
que eu precisava ouvir calado. Aprendi a ignorar, a me anestesiar, a filtrar aquele impacto negativo das críticas e censuras alheias. Aprendi que mais importante
do que o que acontece com você é como você reage em cada situação. Aprendi a dominar minha atitude mental e minha postura emocional. Eu simplesmente invertia a situação.
Imaginava, fazia de conta, que tinha a melhor bicicleta da cidade, a mais moderna, a mais elegante e a mais rápida, e assim andava para cima e para baixo sem me
preocupar com a opinião dos outros. Até cheguei a disputar uma corrida promovida pelo colégio com a tal bicicleta. Cheguei entre os últimos, mas participei. Esse
mecanismo de autodefesa me protegeu ao longo da vida e funciona até hoje, uma vez que como empresário sou alvo de censuras e críticas alheias. Enfim, a bicicleta
vermelha de menina me acompanhou e me serviu muito bem por quase cinco anos.
A MERCEARIA DA GARAGEM NA ADOLESCÊNCIA
Em determinado momento, os filhos crescendo, indo para a escola, as despesas aumentando com uniformes, material escolar e comida, Antônio e Hilda, pressentindo a
disposição e a capacidade empreendedora do mais velho, decidiram abrir uma pequena mercearia na garagem de casa, a que deram o nome de Super Empório Maracanã. Mais
um exemplo de quem “pensa grande” e começa “pequeno”. A garagem era um lugar estreito, diminuto, mas o nome do armazém tinha duas palavras gloriosas: Super e Maracanã,
na época o maior estádio do mundo.
A mercearia vendia de tudo. Secos e molhados, verduras, botijões de gás, artigos de papelaria, doces, pão, leite, manteiga, o que fosse necessário. Era um pequeno
grande empório. Como o pai jamais abandonou o emprego que tinha, aliás permaneceu nele até se aposentar, era Carlos quem acordava cedo e abria as portas, atendendo
a freguesia ao lado da mãe. Juntava os irmãos, organizava. Ele gostava de empilhar os sacos de açúcar de cinco quilos.
Como as coisas chegavam a granel, Antônio comprava saquinhos vazios de plástico, e cabia aos meninos, com a ajuda de uma concha, enchê-los com um quilo de arroz,
feijão, milho, farinha de milho, fubá, amendoim. O método de fechamento demorou a ser “descoberto”, desperdiçava-se produto. Até que Carlos soube um dia de um processo
prático. Cheio o pacotinho, dobravam a ponta, com o auxílio de uma régua, passavam uma vela acesa pelo plástico, ele fechava. Terminado o período da manhã, Carlos
almoçava, subia na bicicleta e ia para o colégio.
Na Escola Ermelino de Leão, Carlos não teve dificuldades, era bom aluno e tirava boas notas. Até então, todas as aulas eram dadas por uma única professora. Os problemas
escolares começaram no Colégio América, pois ali eram sete ou oito matérias diferentes com um professor para cada uma, em salas e horários diversos. Para mim foi
um choque, não estava preparado emocionalmente para enfrentar o “ginásio”. Admito que com tantas tarefas “profissionais” durante o dia cuidando da mercearia, os
estudos não eram uma prioridade na agenda diária. Consequentemente, as notas no colégio ficavam comprometidas e eram mais vermelhas que azuis, com exceção de uma
matéria. Certa vez a professora Ada Strasser, jamais esquecerei esse nome, entrou na sala e perguntou quem era o aluno Carlos Martins. Fiquei aterrorizado e pensei:
“E agora? O que eu fiz? O que aprontei dessa vez? Vão chamar meus pais para vir ao colégio?”. Daí, com a voz mais doce do mundo, ela disse: “Parabéns, você tirou
dez na prova de inglês. Foi a nota mais alta da classe”.
Essa nota somente foi possível graças às aulas que recebi dos missionários Mórmons. Aqueles jovens passaram a ser professores, companheiros, mentores, modelo para
um garoto cheio de ideias e entusiasmo. Eles me ensinaram as primeiras palavras em inglês. Descobri que gostava e tinha facilidade para o idioma e os jovens americanos
trouxeram métodos “modernos”. Chegavam à minha casa com um gravador de fita cassete, ainda aqueles rolos enormes, substituídos mais tarde pelo cassete. Gravávamos
músicas do rádio, ouvíamos, transcrevíamos as letras, traduzíamos, separávamos expressões, praticávamos a pronúncia. Foi uma maneira prática e lúdica de aprender.
O gravador era dos missionários e no momento em que um deles terminou a missão e estava prestes a voltar aos Estados Unidos, ganhei de presente o aparelho, que,
assim como a bicicleta, foi meu companheiro por muitos anos.
Assim, dos 13 aos 16 anos passei minha vida “profissional”, digamos, atrás do balcão daquela mercearia. À medida que cresciam, meus irmãos foram assumindo a mesma
tarefa. Mais tarde meu pai passou a trabalhar com uma Kombi e quando possível eu mesmo fazia entregas das compras na casa dos fregueses com o veículo.
Hoje, olhando em retrospectiva, percebo que a forma de remuneração na mercearia se aproximava do socialismo puro. Nenhum dos filhos ganhava salário, mas quando precisávamos
de alguma coisa pedíamos aos pais, que nos supriam com o que precisássemos. Era o esquema da época, a gente não reclamava, apenas aceitava. Porém, com o tempo percebi
que a meritocracia é o modelo ideal de remuneração, ou seja, cada um é recompensado na medida exata de seu desempenho pessoal. Isso é um conceito lógico e racional
para o sucesso no mundo empresarial. Passados muitos anos, consegui ver com clareza a situação. No entanto, havia outro lado na história. Meus colegas iam jogar
bola e eu ficava atrás do balcão. Tinha uma festinha e eu preso na mercearia. Isso gerava certo desconforto emocional. Eu era jovem, com muitas amizades e interesses,
e tinha de trabalhar. Hoje percebo que aquela mercearia foi inconscientemente o meu “abismo do fracasso”, uma experiência extenuante, mas que só fui valorizar mais
tarde. Aquele balcão foi uma enorme escola. Aprendi a verificar qualidade de mercadorias, tratar com clientes, relacionar-me com o consumidor, fazer as entregas,
cumprir os prazos, entabular negociações, calcular custos, descontos, fazer promoções. Tomei consciência de que somos eternos aprendizes e que em cada fase da vida
aprendemos algo novo, uma palavra gera uma lição de vida. Não posso reclamar de nada. Tudo me foi útil na vida até hoje.
Carlos era incansável na busca de uma nova oportunidade de fazer algum trabalho extra e ter uma renda complementar. Aos 15 anos ele teve uma ideia brilhante e foi
falar com o diretor de sua antiga escola. Saiu da diretoria autorizado a tirar uma foto de cada aluno, que seria produzida em parceria com um vizinho fotógrafo.
Percorreu todas as salas, fez a proposta, os alunos e os pais aceitaram, centenas de fotos foram feitas, reveladas, copiadas e vendidas com um bom lucro. Mais tarde,
Carlos, entusiasmado com sua façanha de fotografar, participou de um concurso de fotografia e foi contemplado com um troféu pela melhor imagem.
APENAS UM ADMIRADOR SOLITÁRIO
Tudo o que ele sabia, naqueles primeiros dias, é que a jovem tinha vindo de Ponta Grossa e era filha de um professor universitário formado em farmácia. Foi olhar
e se encantar. Inquieto, ele observava, seguia, se mostrava, se exibia, mas nada. Ela permanecia indiferente. Ou pelo menos parecia, mulheres têm seus próprios meios
de levar as situações. Conseguiu saber o nome, Vânia. Daqui e dali, soube a idade, 13 anos. Dois a menos do que ele. Vânia era vista nos eventos da igreja, nas atividades
esportivas. Bonita, chamava a atenção. Ele fez de tudo para se aproximar, não conseguia espaço. Ele não sabia, mas ela não achava nenhuma graça nas “brincadeirinhas”
que ele fazia para chamar a atenção. Tornava-se um crianção, meio infantil. “A vantagem é que ele era muito alegre, uma pessoa agradável de estar junto, porém não
me interessei.” Mas Carlos não a esquecia um minuto, era um admirador solitário.
O INSTINTO DO ESPÍRITO AVENTUREIRO
Nesse meio-tempo, Carlos vivia suas primeiras “expedições aventureiras”. Três colegas mais velhos o convidaram para fazer um acampamento no rio dos Papagaios, que
fica na direção de Ponta Grossa. Nada muito distante de Curitiba. Detalhe: não iriam de carro ou ônibus. Eles iriam de carona. Quando Carlos pediu a aprovação da
mãe, a resposta de imediato foi um não. Depois de muita insistência a mãe disse: “Se seu pai deixar, você pode ir”. Agora ele precisava convencer seu antigo companheiro
de viagem a autorizar a excursão. Carlos mal começou a explicar o que queria e o pai já foi dizendo: “Entendi, já entendi, meu filho. Pode ir”. Mochila nas costas,
os amigos foram para a estrada. No rio dos Papagaios, havia um parque, instalações para piqueniques, atrações para fins de semana. O grupinho decidiu ficar dois
ou três dias, levando os próprios apetrechos e pegando carona. Uma experiência nova e gratificante para os jovens aventureiros. O percurso era curto, sessenta quilômetros.
Para o garoto era algo inusitado, novidade, liberdade, pedir carona, dormir ao relento, comer pouco e caminhar muito. Foi a iniciação.
A viagem seguinte seria mais longa. Até Foz do Iguaçu, Paraguai e Argentina, com os mesmos amigos. Ampliava-se o pequeno mundo. Mas não era suficiente. Vivia o aprendizado,
aceitar o que aparecia, carro ou caminhão, Kombi, o que fosse, eles eram reféns do transporte. Dividiam-se em grupos de dois, três, uns partiam, outros esperavam,
depois se reencontravam.
O próximo roteiro foi Santos com mochila nas costas, levando pão, sardinha, leite condensado, goiabada, nada que precisasse ser cozido. Veio então a “grande” aventura,
Rio de Janeiro. Sair do Paraná, atravessar o estado de São Paulo, pegar a Dutra, erguendo o dedão, pedindo carona. Saíam sem dinheiro, cada um deles não tinha nem
100 cruzeiros no bolso, caso fosse preciso pegar um ônibus. E não havia dinheiro para uma refeição decente ou sequer uma pensão. O que isso me ensinou? Que eu tinha
um instinto natural para explorar o novo, a não ter medo do desconhecido, enfrentar barreiras, obstáculos, lidar com a rejeição, o inesperado, não me intimidar com
acidentes de percurso, ter de planejar e depois mudar ou ajustar o próprio plano. Estava predisposto a situações novas, desconhecidas, arriscadas. Empreendimentos
em que não havia segurança, não havia ninguém a minha espera para me acolher, me encaminhar. Nunca tive medo de tentar. A ausência de medo é uma das características
de um empreendedor, porque você está sempre à mercê de um mundo em constantes mudanças.
Havia um vizinho caminhoneiro que ia toda semana para a cidade de Registro (SP) buscar bananas. Certo dia, Carlos o acompanhou. Mas o homem voltou e Carlos não.
Preocupada, Hilda foi atrás: “Cadê meu filho?”. E o homem assustou Hilda: “Não sei, ele não foi comigo”. Depois, ela descobriu que Carlos tinha ido para o Rio de
Janeiro atrás de Vânia, que tinha ido visitar uma tia. Hilda encontrou um álbum escondido embaixo da caixa-d’água da casa com fotos que mostravam Carlos em Copacabana
ao lado da linda jovem Vânia. Ele não contou da viagem, sabia que a mãe não ia deixar. “E não foi dessa vez que ele conquistou a Vânia, não.”
IR PARA OUTRO PLANETA
Um dia, e esse momento ficou nítido na memória de Carlos, um daqueles missionários com os quais estudava inglês perguntou:
— Nunca pensou em ir para os Estados Unidos?
— Mas como? Sou de família humilde.
— Se você quiser, pode cursar uma universidade.
— Universidade? Nos Estados Unidos? Impossível.
— Menos impossível do que você pensa.
— Como? Não vejo nenhum caminho.
— A Universidade Brigham Young, que pertence à Igreja Mórmon. Você pode conseguir uma bolsa de estudos.
Naquele momento uma luzinha se acendeu em sua mente, e nunca mais se apagou. Dali em diante aquela seria uma das metas de Carlos. Algum tempo depois, ele conheceu,
em uma atividade da igreja, um rapaz chamado Itúrbides Alberto D’Aquino de Oliveira, que se tornaria um de seus melhores amigos. Itúrbides era um nome raro, único,
por isso todo mundo o chamava de Tatá. Os dois rapazes gostavam de música, festas, bailinhos, de jogar futebol e, quando sobrava algum dinheiro saíam com os amigos
para ir ao cinema e depois comer uma pizza na rua Quinze de Novembro, no centro de Curitiba. A família de Tatá tinha passado pela mesma inquietação espiritual que
os pais de Carlos e encontrou um caminho espiritual na Igreja Mórmon. Tatá, assim como Carlos, também estudava inglês com os missionários e, certa vez, fez a revelação:
— Sabe qual é o meu sonho, brother? Ir para a América. Para isso estudo inglês. Não sei como vai ser, mas um dia eu vou!
— Tatá, você está contando o meu sonho. Ir para América. É tudo o que quero.
— E como vai ser?
— Não sei, só sei que quero. Só penso nisso.
Itúrbides no futuro faria uma grande surpresa ao amigo nos Estados Unidos. Carlos ouvia, ouvia sempre, quase como um mantra, pessoas que lhe diziam: “Você é um sonhador.
Você já foi longe demais. Começou indo ao rio dos Papagaios, depois Foz, Paraguai, Argentina, Santos, Rio de Janeiro, agora Estados Unidos? Está doido? Acha que
vai dar certo? Tem condições? Tem dinheiro? Por que não fica aqui mesmo no Boa Vista? Não é muito arriscado? E se não der certo, o que os outros vão dizer?”. Ele
ouvia e procurava ignorar. Enquanto isso, dentro de si repetia as palavras que ouvira tantas vezes de sua mãe: “Pense grande, acredite em você, tudo o que você desejar
na vida você alcançará, querer é poder”.
Hoje ele define essas pessoas pessimistas e negativas como “matadoras de sonhos”. Gente a quem devemos fechar os ouvidos, ignorar, pois eles tentam convencer você
que não tem o direito de sonhar e realizar seus sonhos. Assim como Ulisses, o herói grego, tampou os ouvidos ao canto das sereias que o exterminariam.
Por outro lado, ele se perguntava, mas como um questionamento saudável: “Tenho potencial? Ou potencial a gente desenvolve? Vou conseguir? Será apenas minha imaginação?
Vou conseguir ir em frente?”. Imediatamente, respondia: “Posso! Tenho potencial. Quero, vou conseguir, é realidade. Basta não ter medo”. Estavam sendo moldados caprichosamente
os princípios que o orientariam no futuro. Embriões do empreendedor.
Simultaneamente, Carlos tinha em mente uma figura que significava para ele coragem, desprendimento e arrojo. Era o tio Oriondino, irmão de Antônio Oriondes, que
simplesmente abandonou tudo em Ponta Grossa, trabalho estável, segurança, apanhou a mulher e os filhos pequenos e partiu para Paterson, Nova Jersey, Estados Unidos,
para trabalhar como garçom no restaurante Bethwood, cujo dono, Mr. Pombo, era um imigrante italiano naturalizado americano. A trajetória do tio passou a ser seguida
por Carlos com grande interesse e admiração.
Dino, com 35 anos, o dobro da idade do sobrinho, tornou-se um herói, mas um de carne e osso, nada de superpoderes, nada sobrenatural, um sujeito que lutava pelo
que queria. Era possível sair de uma vida limitada e sem perspectivas e crescer. Dino foi o primeiro membro da família que chegou à América do Norte, outro planeta
na época, arranjou trabalho, comprou casa, carro, viajava, tinha conforto. Todo o “american way of life” chegava por meio de fotos, cartões-postais e cartas que
o jovem Carlos, agora com 17 anos, lia, relia, guardava e com os quais sonhava.
Corria a década de 1970, Richard Nixon governava o país, a Guerra do Vietnã tinha terminado, as tropas americanas estavam sendo retiradas e voltando à terra natal.
Cartas, cartões, revistas, páginas de jornal, anúncios, os Estados Unidos se abriam diante de Carlos, principalmente as oportunidades de crescimento. Como chegar
lá? Carlos, a essa altura, tinha deixado o “emprego” na mercearia da família e conseguira um trabalho como auxiliar de escritório numa empresa de representação de
filmes fotográficos no centro de Curitiba. Ganhava salário mínimo, mas não levou muito tempo e ele encontrou uma oportunidade de aumentar a renda.
O olhar aberto e a velocidade do raciocínio fazem o empreendedor. Carlos descobriu que o laboratório tinha uma gaveta com centenas de envelopes com fotos abandonadas
por clientes que nunca vieram buscar o serviço de revelação. O que fez? Organizou o trabalho, negociou com o patrão uma comissão para recuperar o “dinheiro perdido”.
O chefe topou de imediato. Daí ele telefonava a cada um daqueles “esquecidos”, lembrava-os das fotos, ia entregá-las na residência. Assim, a loja recuperou um dinheiro
considerado perdido, os fotografados tiveram suas lembranças e o “caixa pessoal” de Carlos ganhou volume. O que acontecia é que o adolescente não parava um minuto,
trabalhava com afinco, criava incessantemente.
VIRANDO UMA PÁGINA NA VIDA
“Agora ou nunca”, pensou ele.
Está na hora de ir embora. As cartas que meu tio Dino enviava eram animadoras, ele estava bem de vida, eu poderia me dar bem igualmente. Estava com 17 anos e tinha
algumas barreiras para vencer. Precisava de uma autorização dos pais. Meus pais deixariam? Estavam preocupados com a segurança do filho, quando eu comentava o assunto,
citando meu tio, diziam que ele já era adulto quando partira, era responsável. Vez ou outra, manifestava meu desejo de ir, e eles diziam: “Você é um sonhador! Acho
que já foi longe demais”. Mas eu queria ir embora e defrontava-me com outro obstáculo. Com meu trabalho, ganhava um salário mínimo (na época, cerca de 50 ou 60 dólares),
mais os extras das fotos, portanto eu teria de trabalhar por muito tempo para economizar o suficiente para pagar a passagem aérea. Mesmo assim, comecei a economizar,
mas era uma poupança ínfima. Um dia, juntei forças e fui falar com meu pai, meu antigo companheiro de viagens
— Quero ir para os Estados Unidos. É tudo o que quero na vida. Você me autoriza?
— Fale com sua mãe, se ela deixar, você pode ir.
Os dois se olharam, depois me olharam, foi um momento decisivo e inesquecível. Mas antes que minha mãe pudesse responder, meu pai se adiantou e disse:
— Então, vá! Se tem como ir, vá! Não tenho um tostão para ajudar com a viagem.
Passados tantos anos, Hilda agora revela que aquela decisão do filho quase a matou do coração. “Fiquei apavorada, chorei um dia inteiro.”
Quanto a Carlos, estava exultante.
No fundo era somente disso que eu precisava, a autorização. Eu tinha minha vontade e minha coragem. No dia seguinte, saí correndo atrás do passaporte. Como eu era
menor de idade, foi necessário passar pelo Juizado de Menores para oficializar a autorização de meu pai. Até aí, tudo bem. Com a mente concentrada, coisa que aprendi
muito cedo, fui obstinado correndo de um lado para o outro. Queria encontrar uma agência que me vendesse uma passagem para Nova York em dez vezes e sem entrada.
Enquanto procurava por essa agulha no palheiro, na minha mente eu repetia as frases: Pense grande, acredite em você, tudo o que você desejar na vida você alcançará,
querer é poder.
Encontrei uma agência de viagens, mas, para comprar a passagem a prazo, teria de ter um avalista. O único possível era meu pai, que tinha um negócio. Como convencê-lo?
Antônio, a essa altura, parecia já participar dos sonhos do filho, afinal ele também não tinha sido um aventureiro ao deixar a casa aos 13 anos e embarcar rumo a
dias melhores? O que teria acontecido se ele tivesse ficado no Pinhão, interior do Paraná, e não tivesse arriscado vir para a cidade grande? Com esses pensamentos
na mente e apostando no futuro do filho, ele assinou a folha de cadastro da agência e assim consegui dividir os 1.000 dólares em dez prestações de 100 dólares, depois
assinei todos os papéis que me puseram na frente.
Nesse momento, descobri que tinha gente torcendo para tudo dar certo, mas também os “matadores de sonhos” que torciam contra e ainda diziam: “Ele conseguiu autorização
dos pais, o passaporte e já conseguiu a passagem, agora eu quero ver conseguir o visto americano”.
Peguei o ônibus Cometa de Curitiba e viajei até São Paulo. No dia agendado, fui ao consulado americano, cheguei inquieto, entrei na fila, olhava as pessoas apreensivas
ao meu redor. Alguns executivos, alguns casais, eu era o mais novo da fila. Eu olhava para o guichê. Via os funcionários conversando, pegando documentos, verificando
cada detalhe, e eu ali na fila, aflito, esperando minha vez de ser atendido. E se negassem? Todos os sonhos cairiam por terra. Como eu voltaria a Curitiba para enfrentar
os amigos, a família? O que eu diria aos meus amigos missionários? Finalmente chegou minha vez, com as mãos trêmulas entreguei meus documentos. A senhora que me
atendeu fez apenas três perguntas: “Você estuda? Para onde você vai? Quanto tempo vai ficar nos Estados Unidos?”. Respondi cada pergunta, ela pegou os documentos,
saiu do guichê por um instante que parecia uma eternidade e depois me devolveu o passaporte num envelope sem dizer nada. Não me atrevi a abrir, esperei sair do prédio,
corri para a rua. Aflito, olhei. O visto tinha sido concedido. Não consegui conter as lágrimas e me lembro de ter repetido sem parar: “Thanks God, thanks God, thanks
God, I did it, I did it, I did”.
A adrenalina de verdade começou quando Carlos se pôs a fazer as malas para a viagem. Não havia malas, tudo que levou cabia numa mochila que continha algumas peças
de roupa, alguns objetos pessoais e o Livro do Mórmon. Tomou um ônibus rumo a Campinas. Voos internacionais partiam de Viracopos. Mal sabia que no futuro ele faria
a América na cidade de Campinas e que usaria esse mesmo aeroporto semanalmente. Quando o ônibus chegou à noite ao terminal aéreo, a aeronave da PanAm já estava no
pátio, o coração acelerava. Entrar pela primeira vez num avião foi deslumbrante. Porém, a maior sensação foi no dia seguinte quando começamos a sobrevoar Nova York
antes de aterrissar no aeroporto John F. Kennedy. Uma sensação de liberdade, realização, independência tomou conta de meu coração, de minha mente, meu espírito.
Eu me senti como Neil Armstrong pousando na Lua. Sensação de estar virando uma página na vida. E eu estava.
• 2 •
Uma aventura chamada América
CARLOS DESEMBARCOU EM NOVA YORK FELIZ, ainda que apreensivo, porque a vida tinha feito uma das suas. O tio que deveria esperá-lo simplesmente estava no Brasil. Meses
antes da partida, Dino e a família voltaram ao Paraná, precisavam legalizar documentos no Consulado dos Estados Unidos. Às vésperas do embarque, a documentação estava
atrasada e Carlos viu-se em um dilema: “Vou? Não vou? Espero? O que faço?”. Adiar a passagem, remarcá-la? Finalmente chegou a uma decisão. Carlos iria e o tio embarcaria
em seguida, porque segundo as autoridades os papéis estavam quase prontos. Em 12 de setembro de 1974, o jovem, que tinha apenas 17 anos, embarcou para os Estados
Unidos confiante, cheio de recomendações e conselhos. Não podia saber que o tio só voltaria àquele país seis meses depois.
Sozinho, num país desconhecido, ao desembarcar na Big Apple havia mais um obstáculo a ser vencido: passar pela imigração e pela alfândega. Ao se aproximar dos guichês
e se ver diante daqueles policiais severos, uma mistura de apreensão, fé, esperança e receio provocavam um redemoinho dentro dele. Tentava manter a calma e se lembrar
das palavras de sua mãe: “Pense grande, acredite em você, tudo o que desejar na vida você alcançará, querer é poder”. Chegou a vez dele e diante do oficial da imigração
de expressão impenetrável, foi interrogado:
— Motivo da viagem?
— Vim conhecer Nova York.
— Onde você vai ficar?
— Na casa de um amigo.
— Você tem dinheiro?
— Sim, senhor.
O oficial da imigração carimbou seu passaporte com o visto de entrada e ainda disse: “Welcome to the United States of America”. Eram outros tempos. O mundo ainda
viria a conhecer o ataque terrorista de 11 de setembro, que mudaria para sempre o processo de entrada de estrangeiros na América. Quando ultrapassei aquela última
barreira, respirei fundo e comemorei. Foi uma vitória. Do aeroporto segui para a Central Station. Paguei 35 dólares pelo táxi e fiquei com 65 no bolso. Era tudo
o que tinha. Até a cidade de Paterson, Nova Jersey, eu desembolsaria mais 10 dólares de trem. Quem se importava? Estava, enfim, na América, tudo era diferente, empolgante.
Sabia que ia dar certo, não tinha medo. Parti felicíssimo naquele trem. Meu tio tinha me dado o endereço de um amigo, Alex, afirmando que ele me arranjaria onde
ficar. Havia uma comunidade brasileira que recebia os recém-chegados e dava apoio. Prometeram me levar a Mr. Pombo.
Na segunda-feira, o jovem curitibano foi ao restaurante e na tarde daquele mesmo dia começou a trabalhar, Mr. Pombo cumpriu com a palavra. “Graças ao inglês aprendido
no Brasil, eu me comunicava bem e no mês seguinte consegui tirar a carteira de motorista, cujos testes eram em inglês. Foi um espanto para alguns brasileiros que,
após morar por anos nos Estados Unidos ainda não tinham conseguido a habilitação norte-americana.”
No restaurante ele fazia de tudo, era garçom, lavava pratos, fazia faxina na cozinha. Havia três coisas de que ele gostava: a interação com as pessoas, o salário
e as gorjetas, sem contar que a comida era a melhor da cidade.
Carlos estava contente com a vida, mas havia uma coisa que o preocupava. Havia alguma coisa estranha na cidade, ele não conseguia definir. A população era composta
por imigrantes latinos, italianos, gregos e havia predominância da população de origem afro-americana. Línguas, usos, costumes e moral diferentes, muitas vezes em
atrito. Ele não estava preparado para esse choque cultural. Paterson foi fundada em meados de 1600 e a maioria de seus prédios tinha cem, duzentos ou trezentos anos.
A paisagem mais comum nas ruas eram prédios abandonados, semidestruídos, alguns parcialmente deteriorados ou queimados. Não havia casas com flores ou jardins ao
seu redor. Ele não via crianças brincando ou andando de bicicleta pelas ruas. A paisagem era a de uma casa colada à outra, com a fachada direto na calçada, sem garagem.
Os carros, antigos, ficavam estacionados nos dois lados das ruas estreitas e sombrias. Muitos veículos costumavam percorrer a cidade com músicas num volume altíssimo.
Ao caminhar solitário pelas ruas, sempre desertas por causa do inverno que se aproximava, e procurar alguma beleza para alegrar os olhos e os sentidos da alma, e
ao observar esses contrastes entre as minhas expectativas e a realidade encontrada, de repente, me dei conta de que eu estava a dez mil quilômetros de distância
de casa, não conhecia ninguém. Eu estava sozinho, um estranho numa terra estranha. Notei também que os demais moradores da cidade se encontravam na mesma situação
que eu. Cada um havia deixado seu país de origem em busca de liberdade, da autorrealização e do sonho americano na cidade de Paterson. Em meio a essa angústia interior
e aos sentimentos conflitantes, ao caminhar por aquele município de 40 mil habitantes, opressivo, eu pensava: “Onde está a América pintada pelos missionários, os
Estados Unidos da Califórnia ensolarada, das extensões do Arizona, da grandeza de Salt Lake City? Será que tudo aquilo era apenas miragem?
Onde estava o cenário hollywoodiano que Carlos esperava? O jovem sonhador, que tinha vindo para conviver com o primeiro mundo, com a cultura norte-americana, havia
caído num ambiente de terceiro mundo, numa cidade dominada por um mix cultural cheio de problemas sociais. Nada que remetesse aos Estados Unidos idealizado. Curiosamente,
Carlos não podia saber que, naquela cidade cinza, fechada, tinha nascido Allen Ginsberg, um dos poetas que iluminaram e libertaram a moderna poesia norte-americana,
inserido no contexto da chamada beat generation, uma virada radical na literatura que se fazia.
Ele não tinha como saber que no Brasil, em Curitiba, sua mãe vivia na angústia, chorava, morta de preocupação. Um dia, ela recebeu uma foto de Carlos e se desesperou,
via o filho magrinho, pálido, imaginava: “Ele está muito doente”. A essa ansiedade ela acrescentava outra, de cunho religioso. “Nos Estados Unidos, a liberdade era
total e meu medo era que meu filho se perdesse, se afastasse dos princípios que o tinham norteado, se desencaminhasse”.
ONDE ESTÁ A NOSSA AMÉRICA SONHADA?
Três meses depois da chegada, alguém bateu na porta, tarde da noite. Carlos, receoso, abriu e quase caiu de costas.
— Não acredito! Tatá! Você aqui em Paterson?
Itúrbides, sempre muito independente, viajou aos Estados Unidos sem avisar e resolveu fazer uma surpresa ao brother que por meses tinha enviado cartas e mais cartas
ao Brasil, convocando: “Venha, Tatá! Aqui a vida é uma maravilha”.
A partir daquele momento, os dois se tornaram inseparáveis, passaram a partilhar o mesmo quarto e a dividir despesas. Foram trabalhar juntos em um restaurante chamado
The Outrigger, cujos proprietários eram imigrantes gregos: Jimmy atendia os clientes, o “Mr. M” das finanças, e Leo cuidava da cozinha. Carlos admite que, de todos
os chefes que teve na vida, Leo foi o mais severo.
Aliás, Carlos havia sido despedido do restaurante Bethwood. Um dia contou ao dono que no Brasil trabalhava em um escritório e tinha experiência em datilografia.
Gostaria de saber se poderia trabalhar no escritório do restaurante. O chefe olhou de alto a baixo e respondeu:
— Esta semana temos muitas festas, eventos importantes, precisamos de você no restaurante. Vou pensar em seu pedido e segunda-feira dou uma resposta.
Na segunda-feira, Carlos foi trabalhar de terno e gravata, todo arrumadinho, crente que entraria em nova etapa, promovido, deixaria de lavar pratos e limpar o chão.
O chefe apenas lhe disse:
— Avaliamos seu pedido e foi recusado. Você está despedido.
Primeira derrota em solo americano. E agora, num país estranho, cultura estranha, contas para pagar e desempregado? Virou o mundo e arranjou trabalho em uma fábrica
de tintas em pó. Seu horário ia das dez da noite às seis da manhã. Ao lado de uma esteira, ele devia colocar uma tampa em cada lata de tinta e dar uma pancada com
um martelinho para firmar. Acontece que a falta de prática e a monotonia do serviço e o sono o levavam a atrasar, as latas se acumulavam na frente dele antes de
seguirem para o empacotador. Era preciso acionar um botão vermelho, parar tudo, o que atrasava a produção. A cena era igual à de Tempos modernos, de Chaplin.
Por isso, Itúrbides e Carlos estavam felizes, agora lado a lado. Trabalhando como garçons, ambos conseguiram fazer uma boa poupança que possibilitou a compra de
um Mustang vermelho usado. Uma parte do dinheiro Carlos enviava ao Brasil para o pagamento das prestações da passagem aérea. Nos fins de semana, os passeios se estendiam,
os Estados Unidos gradualmente sendo descobertos. Três meses depois da chegada de Itúrbides, num momento de reflexão, Carlos questionou:
— Você acha, Tatá, que esses são os Estados Unidos com que sonhamos?
— Não me parece nem um pouco. Mas onde está a nossa América?
— Do outro lado, na Costa Oeste.
— E o que pensa fazer?
— Ir para lá.
— Mas... Já?
— Por que não? Vamos embora daqui.
Foram. Carlos, quando decidia, decidia, concentrava-se naquilo que desejava e nada o desviava. Arrumaram as malas e partiram para uma nova aventura, Salt Lake City,
em Utah, e ali ficaram. Ao chegar à cidade, foram recebidos pelos missionários seus antigos professores de inglês. De repente, tudo se encaixou perfeitamente. As
pessoas eram amigáveis, receptivas, hospitaleiras, dispostas a estender uma mão. Enfim, encontraram a América do Norte que tanto buscavam. A cidade era linda com
largas avenidas, casas modernas, um cenário magnífico com montanhas, lagos, riachos. Tão logo conseguiram emprego, lavando pratos novamente, compraram um Dodge Cornett,
tão antigo quanto o Mustang vermelho de Nova Jersey. Foram a São Francisco, Los Angeles, Beverly Hills, Hollywood. Enfim, descobriram a América. Voltaram a Salt
Lake.
Em cada bairro, havia uma Igreja Mórmon, que promovia atividades de cunho espiritual, social, cultural, musical, esportivo. Tudo num ambiente familiar aprazível.
Enfim, Carlos e Itúrbides se sentiram em casa. Encontraram em Utah a liberdade que buscavam enquanto ainda estavam no Brasil. Fiéis a seus princípios, não faltavam
aos cultos, e durante a semana participavam de todas as atividades extras promovidas pela comunidade: show de talentos, jogos, piqueniques e maratonas. Era o ambiente
perfeito para conhecer lindas garotas, sair, passear, ir a festas, bailes, enfim, curtir os Estados Unidos.
Certo domingo, ouviram na igreja uma mensagem que causou um grande impacto na mente e no espírito dos dois. O bispo disse: “Cada jovem da igreja deve dedicar dois
anos de sua vida para servir uma missão a fim de trazer almas a Jesus Cristo. Deus espera isso de vocês”.
Um olhou para o outro. “E agora, brother? Vamos nessa?” “Por que não? Vamos, sim.” No domingo seguinte, deram a resposta afirmativa ao bispo. Não é possível escolher
onde cumprir a missão, a pessoa é designada. Tanto se pode ir para Japão, Rússia quanto África, Coreia, América Latina ou algum país europeu. Quem designa o lugar
é o profeta, o líder máximo, que para isso recebe todos os formulários dos jovens e, após analisar, determina. Não há a obrigação absoluta de se dedicar à missão.
É uma decisão voluntária, pessoal. Se o indivíduo sente dentro dele esse chamado divino, parte para a missão. Esse momento aconteceu em dezembro, quando voltaram
ao Brasil para passar o Natal com a família e esperar a resposta pelo correio para saber onde serviriam como missionários. No entanto, por dentro Carlos alimentava
um sonho: “Ainda volto a este país para estudar aqui, cursar universidade. Só assim me completarei”.
• 3 •
A missão de doar-se ao próximo
Algumas semanas depois, Carlos recebeu a carta com a sua designação. Não quis abri-la sozinho. Ali dentro estava seu destino. Conteve a ansiedade, queria que a família
participasse daquele momento. Reuniu-os na sala. Cada irmão arriscava um lugar, os mais disparatados. O pai brincava:
— Se for longe, não deixo ir!
A curiosidade era geral, Carlos fez suspense. Finalmente abriu o envelope, sorriu, olhou para a família. Todos gritaram expressões alegres, cheias de expectativa:
— Para onde vai? Para onde?
— Lisboa. Portugal.
Alegres, comemoraram. Agora, vinha a espera. E Itúrbides, para onde iria? Duas semanas depois, o amigo ligou:
— Brother, você não vai acreditar. Acabei de receber meu chamado missionário.
— É? E para onde vai?
— Não pode imaginar!
— Diga!
— Lisboa, Portugal.
— Nãããããão!
— Siiiiiiiiiiiim!
Os dois se emocionaram ao telefone ao realizar que após tanto tempo juntos, tanta convivência desde sua iniciação como jovens Mórmons, agora continuariam por mais
dois anos como missionários no mesmo país. Sincronicidade, coincidência, inspiração divina? Certamente!
O que é a missão? É o tempo em que os jovens, aos 18 anos, se entregam a um serviço abnegado em favor do próximo. Não vamos para a missão com objetivos egoístas,
de autorrealização pessoal, acadêmica ou profissional. Na missão o grande objetivo é doar-se. Levar o evangelho para as pessoas, transmitir esperança, resgatar as
famílias e gerar projetos de serviço. O que isso significa? Você pode trabalhar tanto na pintura de uma escola como na reforma de uma creche ou na manutenção de
praças públicas, ou prestar serviços comunitários de forma abrangente. Na missão estamos voltados para o próximo. Dedicamo-nos ao Criador como uma retribuição aos
dons, aos talentos, às habilidades e às bênçãos que Ele nos concedeu.
O missionário Mórmon nada recebe, não tem ganho, remuneração. Como consequência natural, o jovem amadurece, progride e se desenvolve emocional e espiritualmente.
Como norma da missão, cada jovem acrescenta ao seu nome o título de Elder. Dali para a frente, Carlos passou a ser Elder Martins, que trabalhou por um ano em Lisboa,
seis meses no Porto e em Vila Nova da Gaia e seis meses em Coimbra. Já Itúrbides, Elder Oliveira, passou um ano no Porto, seis meses em Lisboa e seis meses em Coimbra.
Ambos admitem que a melhor parte da missão foi quando serviram como companheiros na cidade de Coimbra.
No entanto, Carlos partiu para a Europa com o coração pesado. Tinha acabado de saber que Vânia estava noiva de um jovem. A missão em Portugal tinha como responsáveis
o presidente e sua esposa, um casal maduro de Utah, na faixa dos 50 anos, com grande experiência, que a todos assistia, cuidava, orientava, ensinava. Uma convivência
profunda, havia entre eles grande integração, interação e apoio mútuo. O presidente Pinegar incentivou muito Carlos para que tentasse fazer a universidade nos Estados
Unidos.
Servir como missionário na adolescência foi algo inestimável, revela Carlos. Uma experiência enriquecedora. Para mim, a missão sempre foi sagrada. Quando fui, sabia
que estava fazendo a coisa certa, na hora certa, no lugar certo. Aprendi por experiência própria o que está escrito na Bíblia: “Se alguém deseja encontrar sua vida,
perdê-la-á. E quem perder sua vida por amor de mim, achá-la-á”. O Carlos Martins que chegou e o Elder Martins que saiu eram pessoas diferentes. A missão, por sua
natureza espiritual, me proporcionou uma nova dimensão sobre o propósito da vida. Com a compreensão de que somos filhos legítimos de um Pai Celestial amoroso, fui
capaz de me aproximar dessa fonte divina e sentir sua presença em meus pensamentos e minhas intuições. Esse relacionamento íntimo com o Criador me trouxe a paz,
a serenidade e a confiança para superar os desafios que mais tarde enfrentaria. Além disso, me imbuiu da imensa capacidade que temos de sonhar e ir em busca dos
sonhos.
• 4 •
Na lua de mel, a decisão de prosperar
CONCLUÍDA A MISSÃO, CARLOS REGRESSOU ao Brasil com o pensamento em duas coisas: conquistar Vânia e viabilizar o projeto de voltar para os Estados Unidos, para estudar
na Universidade Brigham Young. Achava que resolveria tudo rapidamente com sua determinação. No entanto, admite: “Deus tinha outros planos para mim antes de voltar
aos Estados Unidos”. Afoito, soube que para poder estudar lá precisaria do curso colegial completo e comprovar uma situação financeira capaz de sustentá-lo. Imediatamente
matriculou-se no supletivo do Colégio Camões e acabou concluindo o segundo grau próximo de completar 22 anos.
Em uma reunião da igreja, Hilda ouviu duas mulheres conversando e apurou os ouvidos, o assunto a interessava. Ótima notícia. Uma das senhoras confidenciava:
— Estou bem triste hoje.
— Por quê?
— Meu filho desmanchou o noivado com uma jovem que é encantadora. De cortar o coração, ela é uma maravilha.
— A noiva era a Vânia, não era?
— Era. Conhece?
— Quem não a conhece, bonita, viva, talentosa?
Hilda voou para casa, afobada. Chamou o filho:
— Tenho uma boa notícia. Vânia desmanchou o noivado.
— Desmanchou? Tem certeza?
— A mãe dela confirmou.
— Agora, eu me caso com ela.
A ocasião aconteceu. Um amigo, chamado Otto Roeder, que, mais tarde muito ajudaria Carlos lhe apresentando alguns executivos e empresários interessados em aulas
de inglês, pois na época Carlos ensinava jovens e crianças, disse a Carlos:
— Esta semana vou jantar com sua irmã Sônia numa churrascaria muito boa. Por que não convida Vânia para irmos juntos?
Vânia aceitou. Naquela noite, Vânia viu um Carlos diferente. Agora um ex-missionário, amadurecido, informado das coisas, cheio de planos na cabeça. Combinaram o
encontro num baile. A intenção dela era apresentar uma amiga de nome Franciele, talvez os dois se dessem bem. Mas no baile Carlos só quis dançar com Vânia. Os sentimentos
dela começaram a mudar, e assim tudo começou.
Carlos ganhou a simpatia da jovem e marcou um novo encontro. Vânia era a quinta dos oito filhos do casal Raul Taques Pimentel e Irene de Campos. Os encontros se
amiudaram, os dois passaram a se ver com frequência. Descobriam um ao outro. Em seus intervalos de almoço, Carlos comprava dez fichas de telefone público para poder
falar longamente com sua “princesa”, como a chamava. Quem reclamava era o pessoal que formava uma fila diante do orelhão, mas o apaixonado não estava nem aí. O tempo
passou e a atração virou paixão, o sentimento de amor foi aumentando, e Carlos cada vez mais seguro de que ela seria sua companheira para sempre.
“Naquela ocasião, chegou ao Brasil o Elder James E. Faust, autoridade geral da Igreja Mórmon que faria palestras aos jovens. O tema: casamento. Estávamos na primeira
fila e lembro-me de uma frase dita por ele que me impressionou muitíssimo”, diz Carlos revelando emoção. Casamento é uma questão de fé e amor. Fé e amor a Deus e
ao cônjuge. Havendo essa duplicidade de fé e amor, o casamento perdura. Se não houver essas virtudes, nenhum casamento terá vida longa. Inspirados por esse pensamento,
Vânia e eu começamos a visualizar nossa devoção a Deus e a medir nosso grau de confiança e amor mútuos. Não demorou para que tivéssemos a certeza de que poderíamos,
deveríamos e iríamos nos unir. Quatro meses depois, estávamos casados.
VAMOS BUSCAR A PROSPERIDADE
Casaram-se no dia 16 de março de 1979. Os convites foram feitos em xerox, as fotos tiradas por amigos e os docinhos preparados de forma caseira. Houve o casamento
civil e uma recepção na igreja para familiares, amigos e convidados, quando receberam a bênção do bispo numa capela local. Depois, a fim de se “casarem para toda
a eternidade”, vão ao templo, um dos edifícios mais sagrados da igreja. Dessa forma, foge-se daquele conceito “até que a morte os separe”. O conceito principal da
Igreja Mórmon é o da família eterna.
Naquela época, só havia um templo Mórmon na América Latina, em São Paulo na avenida Francisco Morato, Morumbi. Quem se dispusesse a participar dessa cerimônia teria
de ir para São Paulo. Eles foram. Em seguida partiram para a lua de mel nas praias do Paraná e Balneário Camboriú, Santa Catarina, numa Kombi emprestada. Eu dirigia
emocionado; ora olhava para a estrada, ora olhava para aquela mulher linda que tinha me aceitado unicamente motivada pelo amor. Na época eu ganhava um salário mínimo,
e ela dois como secretária. Então, o que eu tinha a lhe oferecer senão uma vida de luta e trabalho? Esse pensamento despertava ternura em mim e me dava uma força
extraordinária. Estava disposto a avançar na vida, realizar, mudar minha condição profissional e financeira.
Certa noite, Vânia se lembrou de que era segunda-feira, dia que os Mórmons reservam para a reunião familiar.
— A família somos nós. Esta é a nossa primeira reunião.
— Então, vamos fazer diferente.
Foram para a praia, sentaram-se na areia de mãos dadas conversando sobre planos para o futuro. Foi quando determinaram uma meta:
— Vamos buscar a prosperidade — disse ele.
— Faremos isso com a ajuda de Deus.
Naquele momento, sabíamos por preceito e experiência própria que, se quiséssemos prosperar com o auxílio divino, precisaríamos guardar a lei da prosperidade indicada
na Bíblia. Por isso, naquela noite tomamos uma decisão da qual não nos arrependemos até hoje. Prometemos a Deus que seríamos fiéis no pagamento do dízimo e generosos
no auxílio ao próximo. Meta traçada, objetivo definido. Ao voltarmos para iniciar nossa vida de recém-casados, ainda não sabíamos o que fazer para sair daquela pobreza.
Como superar os obstáculos, as barreiras imensas que enfrentaríamos na busca da autossuficiência? Não tínhamos a mínima ideia do que significava ter sucesso e quais
eram as implicações referentes a esse mundo desconhecido. Não possuíamos mapa, bússola, roteiro, normas, indicações. Nada! Apenas o desejo e a confiança em nós mesmos
de que construiríamos fortuna.
Carlos tinha consciência de que o sucesso acontece quando a preparação encontra uma oportunidade (esta é uma de suas máximas prediletas nas palestras que faz pelo
país e pelo mundo). Se ele quisesse mudar a situação financeira, teria de mudar a condição acadêmica. A partir daí, a vida girou em torno de ganhar e poupar com
a intenção de obter uma formação superior no exterior. Alugamos um modesto apartamento na avenida Vicente Machado, em Curitiba. Nada mais que sala, quarto, cozinha
e banheiro. Como eu tinha aprendido inglês nos Estados Unidos e praticado por dois anos com os missionários americanos em Portugal, decidi dar aulas como forma de
sustento. Consegui horários em cursinhos e alguns alunos particulares. Porém, o pouco que eu e minha esposa ganhávamos mal dava para pagar as despesas do mês.
No entanto, eu pensava o tempo todo em voltar aos Estados Unidos, cursar a universidade. Era uma obsessão. Só não sabia que Deus tinha outros projetos para mim.
Três meses depois de casado, fui chamado para servir como bispo da Igreja Mórmon em Curitiba, designação surpreendente. Ser chamado como bispo aos 22 anos? Os bispos,
em geral, são pessoas maduras, mais experientes, com a vida profissional definida e situação financeira estabelecida. É importante notar que na organização da Igreja
Mórmon não há clero remunerado. Todos os membros servem na condição de voluntários e para manter sua família trabalham normalmente em tempo integral em sua profissão.
Acho que fui o bispo mais jovem do Brasil. Naquele mesmo momento, me veio com clareza a oração com que minha mãe, lá atrás, tinha me entregue ao divino. Meu Deus,
salve a vida desta criança. Prometo criá-lo para que possa servir a ti. Que este menino cresça para servir a Deus. Vou fazer tudo para orientá-lo, encaminhá-lo para
vos servir. Aquelas palavras eram vivas, fortes.
Estaria capacitado, preparado, qualificado? Por outro lado, tive uma sensação de alegria e gratidão a Deus pela confiança em uma missão de tanta responsabilidade.
Meses mais tarde, passei no vestibular de Administração e fui cursar a faculdade. Em seguida, outro fator de surpresa e alegria, a notícia de que Vânia estava grávida.
Quando juntei os fatos, percebi o peso: recém-casado, mulher grávida, curso na faculdade, uma congregação da igreja para cuidar e ainda trabalhar para manter a sobrevivência
da família. Somente conseguiria dar conta de tudo isso com a ajuda de Deus.
Na ocasião possuíamos um fusquinha de segunda mão que dava muito trabalho. No inverno curitibano, o gelo se formava sobre o capô do carro, a bateria arriava. Como
fazer para dar a partida? Quem pagava o pato? A esposa, porque eu ficava ao volante e ela, apesar de grávida, empurrava para o carro pegar no tranco. Quando ela
aprendeu a dirigir, invertemos, eu empurrava e ela fazia o carro pegar.
Quarta-feira de carnaval, 20 de fevereiro de 1980, a data está bem gravada na memória. Nem poderia ser de outra maneira. Tarde quieta, cidade ainda curtindo os dias
de folia, porém eu estava na Livraria Ghignone, na rua das Flores, uma das principais de Curitiba, dando aulas de inglês a Fernando, filho de José, o fundador da
livraria, um homem relacionado com todo o meio intelectual do país, amigo dos maiores escritores de seu tempo, de Graciliano Ramos a Jorge Amado e Carlos Drummond
de Andrade. De repente, a secretária de Fernando entrou na sala, afobada.
— Desculpe-me, professor! Mas tem uma pessoa nervosa ao telefone insistindo em falar urgentemente com o senhor.
Carlos pensou: quem pode ser? Quem me localizou aqui? Que urgência é essa? Minhas aulas são o que há de mais importante...
Fui atender. Do outro lado da linha, Enos, meu cunhado.
— Meu caro, é melhor vir para o hospital, imediatamente.
Assustado, balbuciei:
— Hospital? O que está acontecendo? O que foi?
— Vânia não passou bem, veio fazer uma consulta na Casa de Saúde São Vicente e o médico disse que ela está para dar à luz os gêmeos a qualquer momento.
— Dar à luz? Já? Ainda não está na hora. Falta um mês.
— É, mas o médico disse que gêmeos costumam chegar antes...
Carlos despediu-se afobadamente de Fernando, pegou o fusquinha e seguiu para o hospital, coração batendo. Instantes depois de chegar, já tinha nos braços Charles,
que saiu primeiro, e Lincoln, minutos depois. A chegada dos gêmeos foi outra alegria. Deus enviara duas crianças em lugar de uma. Naquela época o espírito empreendedor
já despontava e me veio a ideia de uma lanchonete. Saí em busca de um ponto até me decidir pela rua Voluntários da Pátria, no centro. Aluguei uma sala comercial
e fui comprando aos poucos no crediário equipamentos, mesas, cadeiras, balcão. Chamamos a lanchonete de Chicken House. Vânia me apoiava, cuidava de assar os frangos
para a lanchonete quando eu dava as aulas.
Havia uma diferença na consciência e na cultura de ambos com relação ao dinheiro. Enquanto ela, filha de um funcionário público, vinha de uma família cautelosa,
reservada, comedida, na qual um passo maior era pensado e repensado, ele era filho de comerciante, acostumado à instabilidade, ao risco e a novos empreendimentos.
Vânia era menos aventureira por índole, mas não recuou um milímetro, acompanhou o marido e sempre foi segura acerca do dinheiro. O espírito de fazer era bem marcante
no jovem marido, estudante, pai, bispo, professor e microempresário, pois seis meses depois de abrir a Chicken House ele alugou uma sala comercial na rua Mateus
Leme para vender sorvetes. Não duraram muito os dois empreendimentos. Enquanto isso, o pensamento de estudar na Universidade Brigham Young não saía de minha cabeça.
Eu escrevia com frequência a Utah, buscando orientação. Soube que ninguém era reprovado no ingresso à instituição. Eles tinham uma série de critérios para aceitação.
A partir do momento em que eu preenchesse determinados pré-requisitos, seria aceito. O tempo ia passando e eu mantendo contatos. Passei pelo pré-requisito um, pelo
dois, até completar os sete. E receber a carta de aceitação.
Três anos após o casamento, Carlos, Vânia e os gêmeos embarcavam para os Estados Unidos. A Brigham Young tinha aberto uma nova porta na vida do casal. Carlos tinha
26 anos e recomeçava tudo. Partiu decidido a cursar aquilo que era o foco no Brasil dos anos 1980, ou seja, Computação, Análise de Sistemas e Tecnologia. O futuro
apontava nessa direção. Levaram consigo 5 mil dólares, fruto de economias. Tinham certeza de que carregavam uma fortuna na bagagem.
• 5 •
Os alunos mais pobres da universidade
A VIAGEM FOI POR ETAPAS, Curitiba, São Paulo, Miami, Chicago, Salt Lake City. Prevenidos, sabíamos como agir em nossa vida de penúria. As comissárias de bordo serviam
os quatro lanches para o pai, a mãe e os dois filhos. Tempos de outro tratamento na aviação comercial. Repartíamos, comíamos metade e a outra ia para uma mochila
especial. Em cada etapa, enchíamos a mochila de bolachas, biscoitos, cereais, iogurtes, pães, torradas, geleias, uma e outra fruta. Era nossa reserva, não tínhamos
ideia do que viria pela frente. Não sabíamos o que seria ao chegar. Com a mochila abastecida, não morreríamos de fome. Enfim, melhor prevenir do que remediar.
Em Salt Lake City foram recebidos pela família Pinegar, a mesma da missão em Portugal, que os apanhara no aeroporto e os levara à casa deles. Vânia foi providenciar
um lanche para as crianças e abriu a mochila com a “reserva alimentícia”. A esposa do presidente Pinegar a acompanhava e, surpresa, perguntou:
— O que é isso?
Vânia, com simplicidade, um sentimento de sensatez, respondeu:
— Umas comidinhas que trouxemos do avião. Posso guardar na geladeira?
A senhora Pinegar riu, apanhou a mochila:
— Deixe comigo!
Jogou tudo no lixo. Vânia ficou encabulada, mas acabou rindo. Tudo era aprendizado.
Alguns dias depois, o presidente Pinegar levou o casal para procurar moradia em Provo, onde se localiza a Brigham Young University (BYU), um dos maiores complexos
de ensino dos Estados Unidos. A cidade fica a cerca de setenta quilômetros de Salt Lake City. Foram até o campus universitário e encontraram vários anúncios de imóveis
para locação no mural de avisos. Eles se interessaram por um basement, porão com sala, cozinha, dois quartos e banheiro. O preço estava dentro de suas condições:
160 dólares mensais. Na rua 500 North, número 931 West.
Foram conhecer a pequena moradia e quando se aproximaram viram uma senhora trabalhando no jardim. Conversando em inglês, perguntaram sobre a vizinhança, a mulher
só teve elogios. Percebendo o sotaque, a mulher indagou:
— Vocês estão vindo morar aqui? São de onde?
— Do Brasil. Acabamos de chegar e vamos ficar pelos próximos anos.
— Não acredito! Sou de Campinas! São Paulo! Conhecem? Meu nome é Teresa.
Imediatamente a conversa passou do inglês para o português. A partir dali, a amizade foi instantânea. Vânia se identificou com a vizinha Teresa, casada com David
Eastman. Durante todo o período em que permaneceram em Utah, as famílias se frequentaram, em especial nas festas de Natal, Ano-Novo, Dia de Ação de Graças, feriados,
datas comemorativas, aniversários. O casal Eastman e os Martins são amigos até hoje.
Nova etapa de vida. Vânia ficou encantada com a organização de tudo, o trânsito, a facilidade de obter coisas novas ou usadas de boa qualidade. Montamos rapidinho
nossa moradia comprando móveis de outros estudantes. Soubemos que podíamos alugar móveis. Uma cadeira, 50 centavos por mês. Uma mesa, 1 dólar. O pessoal vinha nos
visitar, surpreendia-se: “Nossa, como vocês estão bem equipados!”. Fiquei admirada ao ver que havia água quente nas torneiras. Em Curitiba, com aquele frio, era
tudo água gelada. O conforto espantava, percebia a diferença de cultura, de sociedade.
Para poder sair, passear, ir ao cinema ou a um show universitário, as amigas faziam rodízio entre si como baby-sitters. Em uma semana, Vânia ficava com os filhos
de outras, na seguinte elas ficavam com os da esposa de Carlos. Na universidade, nas classes de computação, Carlos deparou com a primeira dificuldade. Alguns professores
estavam dando a matéria e, de repente, anunciavam:
— Conforme vimos no semestre passado, esta matéria já foi dada, de modo que vamos continuar deste ponto em diante.
Que ponto?, indagava Carlos. Era preciso um esforço suplementar enorme para buscar o que tinha sido ensinado, compreender o assunto, a fim de seguir o raciocínio
almejado. Ele tinha passado anos distante dos bancos escolares, perdera o ritmo, a concentração, estava diante de um novo ambiente de aprendizado e de uma concorrência
acirrada. Enfrentou um enorme desafio acadêmico. Eram necessárias longas horas na biblioteca e nos laboratórios para cumprir a carga pesada de matérias e projetos
exigidos em cada curso. Quando chegaram os resultados do primeiro semestre, deu-se o impacto. As notas eram péssimas. Ele foi acometido por profundos sentimentos
de incapacidade, impotência, frustração. A caminho de casa, eu me vi como a criança que tira notas baixas e tem medo de encarar os pais. Preparei mentalmente minha
defesa. Criando desculpas. Como explicar a Vânia aquele insucesso? Dizia para mim mesmo que não tinha nascido para estudar, muito menos nos Estados Unidos. Era melhor
desistir, abandonar, cair fora. Meu negócio era outro, ainda que não soubesse qual. Não ia ficar ali, estava perdendo tempo, devia voltar ao Brasil, repetia sem
parar, desanimado. Entrei em casa de mansinho, desejando não encontrar Vânia. Ela estava ansiosa à espera. Com o semblante arrasado, mostrei as notas.
— Algumas são bem ruins. Você tem razão.
— Sei disso, está bem claro. Mas já sei o que vou fazer.
— Para melhorar as notas?
— Não, meu bem, já decidi. A universidade aqui é complicada, muito puxada, pesada demais. Não contava com isso.
— E o que está pensando fazer?
— Pensei bem, concluí que não estou preparado. Vai exigir muito além de minha capacidade.
— Diga de uma vez! O que pretende?
— Voltar ao Brasil. O melhor é voltar para casa.
Voltar para casa?
Sim, não tem outro jeito
— Depois de todo o sacrifício para chegar aqui, refazemos as malas, jogamos o sonho fora e voltamos. E o que nos impusemos como meta de vida?
— Acho que não nasci para estudar! Vamos voltar e eu me comprometo a fazer tudo, o possível e o impossível, para conseguir um bom emprego e manter a família. Aqui
não fico mais.
— Carlos! Não vai me dizer que saímos do Brasil para você estudar nos Estados Unidos e você desiste logo no primeiro semestre. Não sei quanto tempo vai precisar
para isso, mas enquanto não se formar não voltaremos. Não importa se vai repetir a mesma matéria duas ou três vezes. Ou quanto for necessário. Ponha isto na cabeça!
Vou fazer qualquer sacrifício para lhe apoiar.
— Mas...
— Nem mais, nem menos. Imagine o que nossos filhos vão dizer? Vão saber que o pai desistiu na primeira barreira! Que lição de vida será para eles? Daqui sairemos
somente após sua formatura.
Até hoje fico comovido quando penso no apoio incondicional que recebi de minha esposa naquele instante em que me senti tão fragilizado. Graças àquela postura firme
e segura, ganhei força e motivação para seguir sabendo que ela estaria me incentivando e estimulando apesar das dificuldades que viriam.
“Vi, claramente, quem Vânia era e seria”, comenta Carlos, revelando hoje, aos 56 anos, a emoção que se apossou dele. Que mulher! Determinada, definida. Sabia o que
fazia, o que queria e estava disposta a se sacrificar o tempo que fosse necessário para me apoiar. E veja que não foi nada fácil para ela. Quando chegamos, Vânia
sabia poucas palavras de inglês, quase nada. Enfrentava uma cultura desconhecida, hábitos e usos diferentes, não podia se expressar, interagir com os outros, ela
que sempre foi muito expansiva, comunicativa. Imagino como deve ter sido para ela a transição. Brutal! Jamais saberei avaliar quanto sofreu, se privou, se reprimiu.
Acrescentemos o fato de que, não tendo recursos, ela precisou trabalhar. Fazia faxina na casa de americanos e também atuava como baby-sitter no basement onde morávamos.
Sem esquecer Charles e Lincoln, pequenos ainda. Sempre seremos gratos também ao casal Gordon e Wendy Nichol que conhecemos por intermédio das reuniões dominicais
na igreja. Eles literalmente nos adotaram, provendo alimentos, agasalhos, calor humano, incentivando-nos e ensinando a Vânia suas primeiras lições de inglês.
DINHEIRO CONTADO PARA APROVEITAR OFERTAS
A Universidade Brigham Young tinha 27 mil alunos e mantinha um centro de ensino de idiomas, no qual preparava os jovens que partiriam em missão pelo mundo afora.
Chamado de MTC (Missionary Training Center), ali eram ensinadas nada menos que setenta línguas, do chinês ao português, do espanhol ao húngaro, russo, alemão, tudo.
Um dia, Carlos foi informado de que estava aberta uma vaga para professor de português e correu para se candidatar. Passou por todos os testes e foi aceito como
instrutor. Ao longo dos três anos que passou na BYU, Carlos deu aulas no MTC enquanto prosseguia o curso de Ciência da Computação e Estatística. Sem se dar conta
na época, ganhou, primeiro, preparo acadêmico como aluno e profissional, segundo como professor, adquirindo as técnicas de um educador, acostumando-se com o ambiente
em salas de aula.
Foi então que Carlos lembrou-se de uma conversa com os missionários, na qual eles garantiram que seria fácil conseguir uma bolsa de estudos na Brigham Young – e
essa também foi uma das razões pela qual ele se entusiasmou em ir para os Estados Unidos. Correu ao departamento que se ocupava dos estudantes estrangeiros e foi
informado:
— É verdade, você pode se candidatar a uma bolsa destinada aos descendentes indígenas.
Um tanto quanto estupefato, Carlos ficou remoendo a notícia. Indígena? Será que sou indígena? Será que tenho sangue de índio? Será que vou conseguir essa bolsa?
Foi conversar com um estudante brasileiro, um carioca de olhos azuis chamado Mardson Queiroz.
— A bolsa Lamanita? Claro que você vai conseguir!
— Como? Será que nós, brasileiros, temos direito?
— Todos os norte-americanos que conheço acham que os brasileiros são índios. Tanto que me inscrevi, com estes olhos azuis, e ganhei a bolsa.
Era tudo o que Carlos precisava ouvir. Correu lá, foi aprovado como indígena e ganhou a bolsa.
Melhorou um pouco a situação, mas a vida ainda era corrida, batalhada. Durante o dia ele estudava e lecionava à noite. Ainda que estivesse disposto a lecionar mais,
para ganhar mais, só podia trabalhar quatro horas por dia, pela lei americana para alunos estrangeiros. Não levou muito tempo e os 5 mil dólares levados do Brasil
evaporaram. Não havia recursos da família. As despesas eram por conta do casal. Vânia saía para o supermercado com o dinheiro contado, 10 ou 20 dólares, sabendo
exatamente o que podia comprar. Toda semana analisava folhetos e anúncios de jornal, anotava as ofertas e planejava as compras. “Neste supermercado, compro isto.
Naquele, o que está em oferta, no terceiro tem uma promoção boa...” Dona de casa controladíssima, sistemática. Um dia, a caixa de um supermercado observou:
— Curioso! Você vem aqui e só compra as ofertas!
A frase entrou para o folclore da família e ainda hoje é repetida. Claro que comer em um restaurante, um dia que fosse, estava fora de questão. Uma vez por semana,
a família ia até uma sorveteria, onde comprava um sorvete em um copo gigante que custava 25 centavos. Um sorvete e quatro pazinhas. Uma vez por semestre (e o semestre
era de quatro meses) os alunos vendiam seus livros e resgatavam parcialmente o dinheiro aplicado. Nesse dia, os Martins se davam ao luxo de fazer um lanche no McDonald’s.
Tempos mais tarde, Vânia deu uma entrevista em que reconheceu: “Éramos os alunos mais pobres da universidade. Ganhávamos pouco e nossos gastos eram altos com as
despesas de casa, com as crianças e a universidade”.
“Nosso passeio de sábado consistia em pegar 5 ou 10 dólares e sair de carro com os meninos parando em todas as garage sales ou yard sales que encontrássemos (vendas
de utensílios usados feitas na garagem ou no jardim das casas). O desafio consistia em voltar para casa com o maior número de objetos, fossem roupas ou brinquedos
para os meninos, artigos domésticos ou uma bobagem qualquer. Levávamos horas percorrendo cada venda até consumir os tais dólares. Charles e Lincoln, que viveram
nos Estados Unidos entre os 2 e 6 anos, têm lembranças escassas desse primeiro período, tais como ir a um parque, brincar de pega-pega, soltar pipa, ir à igreja,
ficar em casa vendo televisão. A TV era também uma maneira de aprender a língua.
NEVE COMO EM UMA CENA DE FILME
Passado o verão, chegou o inverno. Certa tarde, quando caiu a primeira neve, Carlos estava no auditório da universidade e, terminadas as aulas, ao sair se deparou
com um campus completamente branco: o pátio, as calçadas, as ruas, os carros, os jardins, as árvores, as montanhas. Os flocos de neve continuavam caindo suavemente,
deixando toda a paisagem reluzentemente branca, encantava a vista. Mas que alegria! Carlos foi tomado por uma sensação de felicidade como uma criança em manhã de
Natal. Correu para casa, apressado, queria apanhar os meninos e a esposa e sair para brincar, fazer boneco de neve, guerra de bola de neve, tudo aquilo que se vê
nos filmes norte-americanos. Entrou em casa como um raio e se deparou com Vânia sentada, cabisbaixa, deprimida. Assustou-se:
— O que aconteceu, meu bem?
— Nevou, está frio. Tudo congelado!
— Por isso estou aqui! Para sairmos, brincarmos. Olha que dia bonito lá fora!
— Você sabe que eu não gosto do frio. Ainda estamos em outubro e já está tudo coberto de neve. Imagine! Pensar que vai continuar assim até março ou abril. Estou
pensando nesses meses que virão, eu presa em casa, enfurnada. E se as crianças estranharem? O corpo delas não está preparado para isso. Se ficarem doentes? Como
vamos dar conta de levar os meninos ao médico?
Carlos compreendeu que Vânia olhava para o futuro, ia muito além. Eles moravam num basement, um porão, onde o sol mal batia. Havia o problema do aquecimento central,
outro custo. Ela projetava um futuro de meses e meses enclausurada. Sua preocupação era com o bem-estar dos pequenos, que sem plano de saúde não podiam correr o
risco de adoecer. A essa altura descobriram também que o sistema de aquecimento do carro que haviam comprado não funcionava. Se fossem consertar, sairia mais caro
que o próprio valor do automóvel. Assim, cada vez que saíam à noite de automóvel no inverno, levavam cobertores para se proteger do frio dentro do carro.
E SE NÃO HOUVESSE UMA GRÁVIDA NO ANDAR DE CIMA?
Certa noite, estava o maior silêncio no basement onde moravam, todos dormiam. De repente, fortes batidas na porta. Vânia e Carlos acordaram assustados. O que estava
acontecendo? As batidas recrudesciam. O que era? Algum louco, a polícia, estudantes que tinham errado de porta? Acenderam a luz, sonolentos, sem raciocinar. Olharam
o relógio.
— Nossa, passa da meia-noite! Quem estará aqui a uma hora dessas? Uma visita? Um amigo? A essa hora? Não, talvez um assaltante? As pancadas continuavam, insistentes.
— Temos de abrir, isso não vai parar! O que pode ser? — perguntou Carlos.
— Sei tanto quanto você. Vá abrir a porta.
As batidas se intensificaram e Carlos, ainda que indeciso, receoso, correu para atender. Sem falar nada, o vizinho que morava na casa de cima entrou correndo, voou
direto à cozinha. Carlos o seguiu, sem entender. O homem, junto ao fogão, mostrou.
— Está vendo?
— O que?
— Um dos registros de gás ficou aberto. Poderia ter sido uma catástrofe!
Carlos acordou de vez, tremeu. E se o vizinho não tivesse descoberto? Apavorado, disparou para ver como estavam os gêmeos. Felizmente estavam bem. Voltou para agradecer
e, perplexo ainda, saber:
— Como percebeu o gás?
— Minha mulher está grávida, as grávidas ficam sensíveis a odores. De repente, ela começou a passar mal, senti o cheiro de gás. Fui à nossa cozinha, não havia nada.
Concluímos: quem sabe é no basement, na casa dos brasileiros.
“Não fosse pela intervenção de nossos vizinhos, podíamos ter morrido os quatro naquela noite. Abrimos todas as janelas para dissipar o gás. Muito depois nos deitamos,
mas não conseguimos pegar no sono, passamos a noite a pensar no ocorrido, dando graças a Deus!”, acrescenta Carlos. Por alguma razão, alguma fresta, alguma intervenção
divina, quem sabe provando a existência do anjo da guarda, o gás subiu até a moradia de cima, antes de invadir os quartos do casal e das crianças. Por que subiu
em vez de se esparramar? Por uma lei da física?
Mais uma vez os acasos da vida, que na verdade não são acasos, as coisas são determinadas e têm uma razão de ser. Uma mulher grávida acordou nauseada e salvou uma
família inteira. E se não houvesse uma mulher grávida no andar de cima? Enigmas que ficam. Cada dia que passa, cada ano, penso às vezes naquele tempo, e tenho uma
visão clara dos sacrifícios pelos quais minha mulher passou. Então, eu me perguntava: como Vânia não vê tudo isso? Essa beleza, essa natureza maravilhosa, essa exuberância?
Pé no chão, realista, cuidando de uma casa, das crianças, do marido que estudava o dia inteiro e trabalhava à noite, hoje entendo que ela viveu uma grande solidão.
Os invernos rigorosos de Utah a deprimiam profundamente. Muitas vezes o que a confortava eram as cartas que chegavam dos familiares do Brasil. Até hoje, quando a
convido para visitar os Estados Unidos, se for inverno, ela encontra uma desculpa, não vai. Ficou um trauma.
LASTRO CULTURAL PARA O FUTURO LÍDER
Quando Carlos completou um ano na BYU, se deu conta de que havia uma grande diferença entre a preparação acadêmica e a profissional para vencer após a formatura.
Imbuído dessa percepção, ele começou a formar uma biblioteca pessoal com livros motivacionais, sobre relacionamento humano e técnicas de liderança. Teve contato
direto com Steven R. Covey, conhecido escritor, que mais tarde se tornaria um dos grandes gurus da administração corporativa mundial. Carlos afirma que “esses livros
me ensinavam o que a minha alma buscava. Preenchiam uma lacuna emocional imensa em minha mente. Era uma literatura que continha técnicas simples, porém fundamentais,
de como estabelecer objetivos e alcançá-los, como lidar com as adversidades, como eliminar maus hábitos, como motivar a mim mesmo e os outros, enfim, como alcançar
o sucesso”.
“Porém, em determinado momento parei totalmente com essas leituras. Sentia que esse conhecimento me impulsionava ao empreendedorismo, à realização de grandes projetos.
Naquele momento, a prioridade era completar os estudos e precisava fazer isso no período mais breve possível, afinal era uma questão de inteligência.”
Carlos analisou quantos créditos já havia acumulado, quantos faltavam e chegou à conclusão de que poderia se formar em mais dois anos se estudasse em tempo integral
fazendo três semestres por ano. A partir daquele momento, formar-se passou a ser uma obsessão. Mesmo sabendo de suas deficiências e limitações, traçou esse objetivo.
Algumas disciplinas mais pesadas, ele chegou a fazer três vezes. Reprovou na primeira, passou na segunda vez com nota mínima e fez uma terceira vez para obter notas
satisfatórias.
Ele criou uma rede de amizades com os professores e assistentes de ensino que com boa vontade se propuseram a apoiá-lo em seu objetivo de formar-se num prazo recorde.
Houve uma experiência curiosa da qual até hoje se lembra sem evitar o riso. Havia uma professora assistente que se afeiçoou com o jeito e as ambições do aluno brasileiro
e passou a acompanhá-lo em períodos extraclasse na elaboração de projetos, trabalhos e estudos diversos. Sempre que Carlos estudava com ela, sentia-se muito bem
com sua didática, seu modo de explicar conceitos complexos de maneira simples e prática. Tudo se tornava muito claro e lógico para seu entendimento. Um dia, curioso
para saber sobre a experiência e a formação da professora, Carlos perguntou:
— A senhora me desculpe a curiosidade. Mas em que área se graduou? Qual foi sua especialização na faculdade?
— Eu me formei em educação elementar. Minha especialização foi no ensino de alunos com retardamento mental.
Ao ouvir a resposta, franca, direta, Carlos quase morreu de tanto rir. De repente, ele se deu conta de que a professora estava utilizando todas as regras, técnicas
e truques aprendidos em sua experiência acadêmica para ensinar um aluno brasileiro que enfrentava dificuldade de aprendizagem. Não era de admirar que tudo que ela
explicava parecia muito fácil.
Quando as pessoas lhe perguntam como sua formação em análise de sistemas o ajudou em sua trajetória profissional, Carlos costuma dizer que sua experiência acadêmica
criou uma base sólida para seus empreendimentos futuros. Por três anos na universidade, precisei escrever diariamente centenas de linhas de programação. Todos esses
sistemas são 100% fundamentados na lógica. Cada linha escrita exigia uma leitura da condição prévia, análise, decisão, direção, opções, alternativas, visando alcançar
o resultado almejado. Com o tempo minha mente passou a fazer todos esses processos automaticamente. Até hoje aplico processos de análise de negócios com técnicas
aprendidas nos bancos escolares. O curso aprimorou meu senso lógico, racional e analítico, todos elementos fundamentais para o êxito empresarial.
Graças ao programa de esportes da universidade, considerado excelente, a BYU se tornou famosa em todos os Estados Unidos. Carlos e Vânia acompanhavam com entusiasmo
as partidas de futebol americano realizados no campus universitário, que contava com craques de nome nacional, como Steve Young. Outro motivo de orgulho foi ver
a ex-aluna da BYU Sharlene Wells coroada Miss América em 1985.
JEITINHO BRASILEIRO PARA MATAR A SAUDADE
Evidentemente, para um casal brasileiro, acostumado com um tipo de vida e relacionamento com família, vizinhos, amigos, a cultura e a sociedade norte-americana apresentavam
grande diferença. A saudade batia forte, às vezes. Um dia, Teresa, amiga da família, conversava sobre o assunto e ouviu Vânia comentar que se fosse possível, se
houvesse um jeito, bem que ela e as crianças gostariam de dar um pulo ao Brasil. Até para os meninos terem contacto com avós, tios, primos. Mas, suspirou ela, é
simplesmente impossível, não temos a mínima chance.
— Como não?, perguntou Teresa.
— Mas de que jeito?
— Sabe que você e as crianças podem ir ao Brasil e voltar por 600 dólares?
— Conte o milagre, conte o santo.
— Há um ônibus da Greyhound que vai de Salt Lake até Miami. A passagem custa somente 100 dólares. E as crianças não pagam.
Os ônibus da Greyhound ficaram famosos no Brasil certa época, porque apareciam em todos os filmes norte-americanos. Eles tinham um logotipo na lateral, com o cachorro
que dá nome à empresa correndo, como se estivesse saltando no ar.
— E quanto tempo leva daqui a Miami?
— É rapidinho. Três dias e três noites.
— E depois disso?
— Em Miami você compra passagem para São Paulo pelas Linhas Aéreas Paraguaias, LAP. Aproveite agora, enquanto seus filhos não pagam passagem.
— Maravilha... Mas, e os 600 dólares?
— Faça o que a maioria faz. Leve umas coisinhas na mala e venda lá. Quando voltar, traga alguma coisa, venda aqui.
Vânia animou-se, foi atrás da passagem da Greyhound e da LAP, marcou data, encheu as mochilas de comida para três dias de viagem até Miami e partiu. De Miami o avião
partia para Assunção e após longuíssima escala (na qual se comprava água mineral e a garrafa vinha cheia de água de torneira) seguia para São Paulo. Aqui, o sogro,
Antônio, estava à espera com o carro e seguiram viagem para o Paraná pela antiga BR 116, conhecida como a “rodovia da morte”. O que eram mais seis horas de viagem
para quem fizera 72 de ônibus e 12 de avião? Ficaram alguns dias e em seguida fizeram o mesmo trajeto de volta.
CEM CURRÍCULOS PARA CEM EMPRESAS
O tempo passava e a época da formatura se aproximava. Carlos fez uma lista de cem empresas norte-americanas que tinham filiais no Brasil. Preparou um bom currículo,
tirou cem cópias, fez cem cartas de apresentação e enviou todas pelo correio. Algumas semanas depois, as respostas começaram a chegar. Uma a uma. Diziam a mesma
coisa:
Agradecemos seu interesse, mas neste momento não temos vaga. Vamos manter seu currículo em nosso arquivo para um contato futuro.
Carlos aflito conversava com Vânia.
— Meu bem, será que ninguém vai me contratar? Será que vamos voltar para o Brasil sem emprego? Será que meu currículo não é suficientemente bom? Será que valeu a
pena termos vindo para cá?
Diariamente, ansioso, verificava as cartas na caixa do correio. Abria uma por uma. Não, não, não e mais não. Cem cartas partiram. Noventa e nove voltaram com a mesma
resposta: não. Decepção sobre decepção. Quando Carlos pensava que as esperanças haviam acabado, uma empresa sinalizou:
Gostamos de seu currículo. Gostaríamos de conhecê-lo. Você poderia vir à sede da empresa em Cincinnati, Ohio, para uma entrevista pessoal? Vamos marcar uma data
conveniente em sua agenda. As despesas de transporte aéreo, alimentação e acomodações serão por nossa conta. Favor contatar o RH.
Era a Champion International, uma das maiores empresas do setor de papel e celulose do mundo, que tinha filial no Brasil, em Mogi-Guaçu, interior de São Paulo. Tinham
uma vaga aberta para um profissional formado em computação, tecnologia e sistemas de informação. Na data combinada, mandaram as passagens, reservaram hotel e Carlos
partiu. No aeroporto de Cincinnati, havia um carro esperando que conduziu Carlos ao hotel.
Sabendo que, entre cem cartas enviadas, havia recebido apenas uma resposta positiva, ele vivia uma mescla de sensações: entusiasmo por um lado, porém preocupação,
incertezas, dúvida sobre a própria capacidade, receio de não se sair bem, mas no fundo algo lhe dizia que tudo daria certo. Quando chegou ao hotel, ajoelhou-se ao
lado da cama e fez uma oração pedindo forças, sabedoria e inspiração. Para ele, “a oração faz parte do dia a dia, principalmente nos momentos decisivos. Sei que
nós humanos, somos limitados na nossa capacidade de avaliação, percepção, análise e direção, mas quando nos doamos a um poder superior passamos a contemplar horizontes
e cenários que sozinhos não conseguiríamos visualizar”.
Depois de passar o dia todo visitando a empresa, conhecendo vários setores e diretores, submetendo-se a uma bateria de entrevistas e testes, o último encontro seria
com o presidente da organização. Carlos pensava: “O que mais ele quer saber? Agora é tudo ou nada. Ou ele vai acabar comigo, ou irá me contratar”. Após algumas palavras
de elogios sobre as entrevistas prévias realizadas, o presidente disse a Carlos:
— A pessoa certa, no local certo, na hora certa tem um grande valor. Parabéns, você está contratado. Vai ficar um ano em nossa matriz e depois será transferido para
a nossa filial no Brasil.
Corria o ano de 1986, faltavam poucas semanas para a formatura.
• 6 •
Enfim, executivo internacional
CARLOS ESTAVA CONTRATADO. Cem cartas enviadas, apenas uma resposta positiva. Mas não precisava mais do que uma. Ria sozinho. Retornou a Utah e foi recebido no aeroporto
por Vânia e os meninos, além de seus irmãos do Brasil que motivados pela história de Carlos acabaram indo estudar em Utah também. Vânia segurava um cartaz nas mãos
que dizia: You are a champion. Os gêmeos seguravam outro com as palavras: You are our hero. Os irmãos recorreram ao humor: Quem diria! O vendedor de batatas se tornou
um executivo internacional.
Do aeroporto foram a uma pizzaria e comemoraram aquele momento. Passaram o tempo todo falando do passado, do presente e do futuro. Lembravam-se dos tempos de “pobreza”,
quando eram crianças e Carlos e a irmã saíam vendendo roupas de porta em porta, do carrinho de mão e das verduras, da bicicleta vermelha, das viagens de caminhão,
do armazém no Boa Vista, do Fusquinha que não queria pegar. Enfim, página virada. Novo capítulo se iniciava.
A Champion comunicou que entre os benefícios que ele agora teria, como executivo, estava o de a empresa se encarregar da mudança da família. A palavra executivo
rodava pela sua mente, incessantemente. No dia determinado, o caminhão parou diante do apartamento. No último ano de estudo, Carlos conseguiu se mudar para um dos
alojamentos do campus. “Quando Vânia e eu olhamos pela janela o tamanho do caminhão, rimos. A comédia mal tinha começado. Cinco funcionários uniformizados bateram
em nossa porta. Entraram prontos para fazer a mudança. Um dos funcionários apontou para o sofá.”
— Podemos pegar esse?
— Não. Pertence à universidade. Vai ficar aqui.
— E a mesa?
— Também é da universidade.
— Bem, vamos apanhar as cadeiras.
— Também são da universidade.
— Então, começo pela geladeira, fogão e máquina de lavar.
— Pertencem à universidade.
Os homens, surpresos, não sabiam o que fazer. Logo um chegou com caixas especiais almofadadas:
— Os cristais são comigo. Posso abrir os armários?
Ele abriu e só encontrou copos de plástico.
Um terceiro queria saber se a cama estava pronta para ser levada.
— A cama é da universidade.
Assombrados, os transportadores foram levando apenas algumas caixas para o caminhão com livros, roupas e objetos pessoais. Não entendiam. Não tinha cama, cadeiras,
sofá. Em algumas caixas, foi embalado o pouco que a família tinha. O enorme caminhão estava vazio. O supervisor se aproximou:
— Em geral, a Champion manda um caminhão cegonha buscar o carro. Mas se você quiser podemos levar o seu Ford Fiesta dentro do caminhão baú.
Colocaram o Fiestinha no caminhão e partiram. Em Cincinnati a família ficou primeiro em um hotel, os meninos adoravam a piscina. Enfim, encontraram uma casa em um
condomínio residencial com playground, piscina e salão de festas. Os gêmeos tinham espaço para correr e brincar à vontade com outras crianças da vizinhança. Foram
matriculados no Fairfield Elementary School. O que mais nos marcou, a mim e ao meu irmão, foi ir para a escola naqueles ônibus amarelos, típicos do sistema de ensino
norte-americano. Uma emoção quando subimos nele pela primeira vez, com nossas mochilinhas. Fizemos o pré ali. Na escola, só falávamos inglês. Para compensar, em
casa mamãe insistia no português. Fomos educados em duas línguas. Tínhamos mais conforto e espaço, ainda que fosse uma casa geminada, com um quintalzinho nos fundos.
Essa situação durou mais ou menos um ano – diz Lincoln.
O casal se sentiu recompensado por todo o sacrifício de três anos em Utah. Na Champion o expediente de Carlos seguia o padrão norte-americano das nove da manha às
cinco da tarde, onde trabalhava com outros cem funcionários analistas de sistema, liderados por um japonês de 35 anos, que era o diretor de projetos. Com ele Carlos
aprendeu uma grande lição. Não era formado em ciência da computação ou na área de tecnologia. Sua especialização era gestão e planejamento. Ele acompanhava cada
projeto e controlava para que fossem entregues no prazo, estabelecia as prioridades e certificava-se de que as metas fossem cumpridas. Sem perceber na época, foi
com esse diretor que Carlos mais se identificou em sua experiência em Ohio.
Vânia, agora fluente em inglês, fez amizade com as vizinhas e passou a ter uma ótima convivência com as pessoas da igreja. Era um relacionamento mais fraterno, de
frequentar casas, jantar, sair, passear, fazer piqueniques, participar de eventos espirituais e recreativos. “Passamos a ter uma vida social muito saudável”, define
Carlos.
Vânia passou a fazer parte da organização das senhoras, chamada Sociedade de Socorro, mantida pela Igreja Mórmon. Toda jovem, a partir dos 18 anos, passa para essa
organização mundial e tem como objetivo prover o bem-estar e o auxílio mútuo por meio de atividades comunitárias e assistenciais. Até hoje ela continua a fazer parte.
“O convívio com os membros da igreja em Ohio enriqueceu nossa experiência no exterior.” A grande diferença da vida pós-formatura foi que saltamos de um salário mensal
de 500 dólares, em Utah, para um patamar acima dos 2 mil, que na época considerávamos uma fortuna. Até podíamos esbanjar, se quiséssemos. No entanto, continuamos
a viver de forma modesta, disciplinada, seguindo princípios rígidos de economia, porém com certa folga.
Na Champion havia um grande refeitório onde diariamente era servido o almoço, porém cada um pagava a própria conta. Na equipe em que Carlos trabalhava, havia seis
programadores que sempre almoçavam juntos.
Carlos, habituado ao tempo de faculdade, trazia o lanche de casa preparado por Vânia. No início, seus colegas riam e faziam gozação do brasileiro que trazia o almoço
e esquentava-o no micro-ondas do refeitório. Nessas horas Carlos se lembrava da bicicleta vermelha e não se importava com a censura dos amigos. Enquanto comia, fazia
de conta que estava diante de um banquete. Mais tarde outros colegas de sua equipe passaram a trazer comida de casa também.
Houve um momento em que a escola de Charles e Lincoln incentivou os alunos a recolher latinhas de refrigerantes e cerveja. Levavam à escola e recebiam um centavo
por lata. Certos dias, Carlos acompanhava os meninos nas redondezas do bairro. Precisavam fazer isso para ter um dinheirinho extra? Não. Mas era uma lição de cidadania,
valorização e para saber que seu esforço seria remunerado. Aprendiam a ser autossuficientes. Aliás, à medida que cresceram esse modelo continuou. Quando um deles
pedia dinheiro, ganhava alguma tarefa para cumprir.
Estava estabelecido um dos conceitos fundamentais para a formação de patrimônio do casal, aplicado a todos os filhos, ao longo da vida. “Trabalhar para ganhar o
próprio dinheirinho”, ressalta Carlos, de modo firme e coerente. E se a expressão “ganhar seu dinheirinho” parece estranha, aqui se revela como os Martins educaram,
filosofia passada aos filhos e que será repassada aos netos.
O conceito que sempre dominou foi o da autossuficiência, ou seja, o de a pessoa fazer um esforço, um empenho ou trabalho na obtenção de um benefício, um resultado.
Desde crianças todos foram acostumados a associar qualquer tipo de atividade doméstica ao ganho de algumas moedinhas. Tanto para arrumar a cama, quanto para organizar
os livros e o material escolar, ou para deixar o quarto em ordem, tirar os pratos da mesa, arrumar a cozinha, colocar o lixo para fora. Desse modo sabiam que teriam
mais ou menos recursos e privilégios de acordo com seus envolvimentos nas atividades domésticas.
O casal nunca praticou o princípio da mesada, por acreditar que ela cria um conceito prejudicial à formação da autoadministração. Ela acomoda o indivíduo, que não
se sente obrigado a nada. Não tenho nada contra os pais que dão mesada, respeito a filosofia de cada um. Todavia, no meu modo de ver as coisas, empreendedor que
sou, a mesada cria nos filhos uma sensação de dependência e eles crescem pensando que os pais “devem” alguma coisa para eles. Quando na verdade é o oposto, os pais
não devem nada aos filhos, são eles que devem aos pais. A partir do momento em que o pai dá a mesada, se algum dia, por algum motivo, razão ou circunstância, a mesada
deixar de ser dada, instala-se no filho a revolta: “Como meu pai me deixa sem meu dinheiro?”. É uma base de relacionamento equivocada.
Na Champion Carlos fez amizade com um colega que tinha vindo da Índia para estudar nos Estados Unidos, com a intenção de voltar para seu país de origem. Após a formatura,
porém, conseguira um bom emprego e decidira nunca mais retornar para sua terra natal. Sempre que os dois se encontravam, o indiano tentava convencer o brasileiro
a seguir o mesmo caminho. Ele dizia que o Brasil era muito parecido com a Índia: pobreza, desemprego, falta de oportunidade. Já os Estados Unidos eram sinônimo de
segurança, estabilidade e riqueza. Finalmente, ele me convenceu a dar início ao processo junto à imigração a fim de solicitar minha residência americana. Conversei
com meu gestor na empresa, o japonês, e ele me deu o maior incentivo, dizendo que os Estados Unidos eram o país da oportunidade. Naquele dia fui para casa muito
empolgado para conversar com Vânia sobre o plano de permanecer nos Estados Unidos definitivamente e buscar o sonho americano de independência financeira e sucesso.
Para minha surpresa, ela ficou chocada: “Não acredito que agora você mudou de ideia. Você mudou nossos planos. Todos estes anos de sacrifício com a ideia fixa de
voltar para casa e você vem dizer que quer essa vida fácil aqui nos Estados Unidos. Não, não, não! Vamos voltar para nosso lugar. Aqui você vai ser mais um na multidão.
Afinal, conseguiu se formar no exterior. Agora chegou a sua vez de retornar e fazer a diferença, ser alguém no lugar onde você nasceu. Por favor, não dê ouvidos
ao seu amigo indiano.
Novamente um momento crucial. O indiano tinha razão quando falava de desemprego, inflação alta, instabilidade política no fim da década de 1980 no Brasil. No meu
íntimo, eu via uma oportunidade de mudar radicalmente minha condição pessoal e profissional me tornando um residente americano e desfrutar de todas as facilidades
e conveniências oferecidas pela vida nos Estados Unidos. Por outro lado, como eu podia negar o anseio, o sonho, o desejo de minha esposa de retornar ao Brasil com
sua firme convicção de que iríamos “fazer a América” em nosso país de origem? E agora, o que fazer?
• 7 •
A fila que mudou uma vida
NESSE ÍNTERIM, MUITA COISA tinha mudado no círculo familiar.
Carlos, relata dona Hilda, sua mãe, entusiasmado com os Estados Unidos, ainda na Brigham Young, começou a fazer a cabeça dos irmãos. “Venham para cá, é tudo tranquilo,
a faculdade é excelente, as oportunidades são enormes.” Assim, Luis, um dos mais chegados a Carlos, foi e passou a tentar convencer Oriondes, que também partiu.
Porém, o trabalho continuou por Gil Fagundes de Lima, marido de Sandra. Eles tinham dois filhos e também desembarcaram na “terra prometida”. Nesse meio-tempo, Carlos
tinha regressado ao Brasil, porém a catequese continuou com Gil, que seduziu Nelson, marido de Sônia. Ambos tinham duas filhas. Oriondes voltou a Curitiba para se
casar, Luis veio com ele e uma semana depois também se casou. Tudo rápido. Como o Sérgio tinha terminado a missão, apanharam o irmão mais novo com Célia, a irmã
mais nova, e os levaram também. Os Martins estavam todos nos Estados Unidos. Antônio e Hilda estavam sós no Brasil.
Um dia Carlos e Luis, quando ainda eram estudantes na BYU, foram conversar com Betty Lewis, encarregada do departamento de aconselhamento de alunos. A certa altura,
os irmãos contaram o sacrifício que fizeram, a obsessão de estudar nos Estados Unidos, a aplicação férrea para se formarem. Então, ela questionou:
— Digam-me: o que, afinal, motivou você e seus irmãos a saírem do Brasil para vir estudar nos Estados Unidos?
— Estávamos fugindo da pobreza. Sabíamos, e sabemos, muito bem que a educação é o maior agente transformador de um indivíduo e da sociedade.
DO INTERIOR NORTE-AMERICANO AO INTERIOR BRASILEIRO
Terminado o estágio de um ano em Cincinnati, Carlos, Vânia e os filhos voltaram ao Brasil. Vânia grávida de uma menina, com uma barriguinha aparente, costumava usar
uma camiseta rosa com a inscrição: Made in Ohio. Foram morar em Mogi-Guaçu, na vila Champion, ao lado da indústria onde Carlos passou a trabalhar, batendo ponto,
de segunda a sexta, das oito às dezoito. Vânia, que aprendera a dirigir nos Estados Unidos, estranhou muito o trânsito da região, pois nas ruas estreitas da cidade
havia uma mescla de carros, pedestres, bicicletas, motos, carroças e os muitos caboclos montados a cavalo, mulas ou burricos. Os meninos Charles e Lincoln foram
estudar na Fundação Educacional Guaçuana. A vida mudara radicalmente para os irmãos: No quintal havia mangueira, abacateiro, jabuticabeira e uma horta. Ganhamos
um cãozinho basset, aquele salsichinha. Brincávamos na rua, fazíamos amizade. Infância normal, gostosa, de moleque brasileiro no interior. Para ir à escola apanhávamos
o ônibus circular, transporte municipal. Todo mundo se conhecia, foi uma época bem divertida – recordam-se os dois.
Carlos se sentia super-realizado, pois tudo o que havia imaginado quando saiu de Curitiba agora estava acontecendo. Era executivo de uma multinacional, tinha casa,
carro, conforto, todos os benefícios de um profissional com suas qualificações. Pensava: “Agora que voltamos ao Brasil, vou fazer carreira, crescer na escalada corporativa.
Fico uns anos nesta empresa, depois mudo e mudo até atingir o topo da carreira”. Com 30 anos, ele não podia saber que a carreira seria diferente de tudo o que sonhara.
Carlos refletia muito sobre a questão da oportunidade para quem quer avançar na vida. Reconhecê-la é fundamental, é preciso faro, instinto, coragem. “O que muita
gente não sabe é que a oportunidade costuma aparecer disfarçada na nossa frente. Se a pessoa não estiver preparada, ou alerta, não vai percebê-la. E como ela vem?
Disfarçada em forma de trabalho. Foi o que aconteceu comigo.”
Certo dia, no trabalho, ele foi surpreendido pela proposta de um colega de seu setor:
— O que acha? Você sabe muito bem inglês. Poderia me dar algumas aulas particulares?
Carlos pensou: “Aulas de inglês significam dinheiro no bolso. E um dinheirinho a mais não faz mal a ninguém”. Concordou e começou a dar aulas na sala de sua casa
no período noturno. Depois desse seu primeiro aluno, outro chegou, depois mais um e mais um. Em pouco tempo, tinha diante dele uma turma, depois duas, três. Após
alguns meses, sua esposa também passou a dar aulas em casa e, à medida que o tempo passava, o número de alunos aumentava.
Para Carlos, naquela época, as aulas de inglês não passavam de um complemento à renda familiar. Vendo sua trajetória em retrospectiva, ele admite: É curioso notar
que, às vezes, possuímos um dom, um talento, uma habilidade nata, mas não nos damos conta da própria aptidão, não conseguimos reconhecer o nosso potencial. Isso
aconteceu comigo.
Enquanto tentava conciliar sua vida de executivo e professor particular, ele passou a viver uma grande inquietação mental que não conseguia definir. Inconformado
com sua jornada dupla de trabalho, certa vez chegou a dizer: Não entendo mais nada. Quando me casei dava aulas de inglês para sobreviver. Ganhava pouco, lutava com
dificuldade. Chegado o fim do ano era uma tristeza. Todo mundo fazendo festas, comemorando, férias, décimo terceiro salário e eu numa pior. Sem alunos não havia
receita. Por isso tinha sonhado com a formatura no exterior, uma trajetória internacional, carreira corporativa, segurança e estabilidade de uma grande empresa.
Agora que tenho tudo, aqui estou eu de volta dando aulinhas de inglês por uma renda extra.
PODE O CHEFE DOS CHEFES GANHAR TÃO POUCO?
Certo dia ele foi ao banco receber o salário. Ao chegar, o caixa fez um sinal para esperar um minuto. Naquele momento, Carlos notou sobre o balcão uma pasta aberta
com o título Folha de Pagamento Confidencial da Champion. Tinha sido deixada naquele lugar por distração ou para que o funcionário a consultasse? Talvez não devesse
estar ali, mas a vida traça seus caminhos de uma maneira que somente ela sabe o porquê. Acasos não existem. Curioso, ousado, Carlos olhou a relação de nomes que
estavam na lista e logo encontrou o de seu chefe, um diretor com vinte anos de carreira, profissional que tinha passado por grandes empresas, possuía um currículo
impecável. Quando viu quanto o executivo ganhava, Carlos ficou surpreso. Ao ser atendido, perguntou à moça do caixa:
Essa folha de pagamento é mensal, quinzenal ou semanal?
Ela riu:
— Claro que é mensal, a empresa não faz pagamento semanal. Recebi meu humilde salário e fui para casa inconformado. Eu não acreditava no que acabara de descobrir.
Imaginava que o salário do diretor fosse altíssimo, muito maior do que aquele que eu vi. Imediatamente um pensamento me dominou. Foi como se uma voz em minha mente
e no meu coração gritasse. Podia ver essa pergunta em letras imensas e luminosas acima de mim: É isso o que desejo? Trabalhar por mais vinte anos para depois conquistar
essa remuneração? Será que estou disposto a me submeter a todas as demandas da escalada corporativa para, quando estiver próximo à aposentadoria, receber um cheque
assim? Esse é meu sonho, minha meta? Será que não conseguirei ganhos maiores trabalhando por conta própria? Nasci para ser empregado ou empregador?
Essas perguntas o deixaram atordoado. Foi um momento de grande reflexão e questionamento. Com o passar dos dias, a inquietação aumentou a ponto de tornar-se uma
obsessão. “E agora, fazer o quê? Qual será o caminho da prosperidade? Aquele que Vânia e eu vislumbramos naquela noite na praia de Camboriú?”
Naquele instante delineava-se a filosofia de vida do empreendedor. Ele mesmo começava defini-la claramente, sabendo que estava chegando o momento de uma decisão.
A questão ficou dividida. Se ele – ou qualquer pessoa – quisesse uma vida tranquila, sossegada, com relativa segurança, conforto, deveria trabalhar numa boa empresa.
A pessoa teria uma boa casa, um bom carro e de vez em quando condições de fazer uma viagem para a praia. No entanto, se você deseja ser próspero, ficar rico, milionário,
ter uma supercasa, um supercarro, viajar de primeira classe por todo o mundo, ter seu helicóptero ou jatinho próprio, realizar todos os sonhos, não há outro caminho
senão o de criar seu próprio negócio, aprender a expandir sua operação, ganhar escala e multiplicar seus talentos e recursos. Ou seja, empreender. O episódio na
fila no banco foi fundamental, me deu a clareza de propósito. Senti que o caminho da prosperidade consistia na capacidade empreendedora. Embora ainda não soubesse
qual seria meu projeto de vida, naquele momento decidi que eu seria empreendedor e ganharia meu sustento desenvolvendo meus próprios planos, metas, objetivos, e
ganharia mais ou menos na mesma proporção de meus esforços, criatividade e inteligência.
Hoje em dia Carlos ensina as pessoas a sonhar com as estrelas e ter os pés no chão. Imbuído desse espírito, ele sabia que, por um tempo, precisaria manter seu emprego
para cobrir as despesas do mês até se estabelecer em seu pretenso negócio. Mesmo porque naquele momento ele ainda não sabia qual iria montar. Enquanto isso não acontecesse,
seria insensatez pedir o desligamento da empresa. Em seu íntimo, no entanto, de forma incompreensível para ele mesmo, havia uma voz mansa e suave que dizia:
— Você pode mais!
— Acredite em si mesmo!
— Acredite em seus sonhos.
Mesmo assim, enquanto ele queria acreditar na voz interior, pensava: Mas quando devo largar meu emprego? Será que vale mesmo a pena abandonar a estabilidade e a
segurança de um emprego fixo? Vou arriscar sem saber em que negócio ou área vou atuar? O que minha esposa vai achar de tudo isso? Qual será a reação de meus pais?
O que os outros vão dizer? E se o negócio falhar? E se tudo der errado?
Enquanto tentava combater aquelas vozes negativas e manter acesa a chama de se tornar um empreendedor, ele teve essa sensação: Era como se tivesse nas mãos um quebra-cabeça
de mil peças para montar. Era como se as peças estivessem espalhadas em confusão em cima da mesa, mas não havia uma imagem, uma foto ou ilustração em que me basear.
Não tinha a mínima noção de por onde começar.
Tudo o que Carlos sabia era que teria o negócio próprio e mais nada. Ele conversava com Vânia para definir em que área atuar, mesmo ambos dando as aulinhas de inglês
à noite. Certa vez sentaram-se e decidiram fazer uma relação de possíveis projetos. Puseram mais de dez ideias diferentes no papel, as quais variavam de tamanho,
natureza e segmento.
Ao discutirem, de repente Vânia dizia:
— Acho que você deve tentar isso...
Carlos ponderava:
— Mas que tal se fizermos esse projeto?
Ambos concordavam por um momento, mas depois outra ideia surgia:
— Por que a gente não monta tal coisa...?
Daí pensavam nos prós e nos contras de cada projeto e, de repente, indagavam:
— Mas será que as aulas de inglês não seriam nossa grande oportunidade? Não será esse nosso futuro?
Nesse instante Carlos se lembrava dos momentos de dificuldades vividos em Curitiba como recém-casados em que lecionava e conseguia dinheiro somente para sobreviver
e no fim do ano era uma penúria terrível. Vânia, grávida e preocupada com os filhos gêmeos ainda pequenos, perguntava:
— Mas será que vale mesmo a pena abandonar a segurança e a estabilidade do emprego e começar tudo do zero?
Enquanto isso, Carlos trabalhava durante o dia na Champion, dava as aulas em casa à noite e continuava martelando a cabeça na busca de uma solução: “Onde encontrar
o sucesso? Como conseguir ser próspero? O que fazer para vencer financeiramente?”. A solução estava diante de seus olhos, mas ele não conseguia ver. Nesse cenário
de dúvidas e questionamentos, Carlos sentia-se desorientado sem saber que rumo tomar, por onde começar.
Além disso, consciente de suas limitações, ele raciocinava: Em qualquer área que eu atue, vai levar muito tempo para obter um retorno financeiro satisfatório. Possivelmente,
no início, não receba nada ou quase nada. Se receber o suficiente para manter a família, já estarei satisfeito. Sabia também que não dominava a operação de nenhum
dos negócios listados.
Passaram-se semanas, o casal conversava, trocava ideias, ideias. A busca por uma resposta tornou-se uma pressão interna, obsessão. Naquele momento, Carlos teve a
nítida sensação de que precisava de uma inspiração maior, de uma orientação superior a sua capacidade intelectual, para auxiliá-lo a tomar a decisão correta, pois:
Este não seria apenas um trabalho ou negócio qualquer, mas um projeto de vida, seria uma causa, um ideal para o qual eu daria o melhor de mim, pois estava disposto
a me dedicar de corpo e alma, com todas as minhas energias, dons e talentos para o êxito do empreendimento. Embora eu não soubesse que rumo seguir, nem por onde
começar, ou como proceder, dentro de mim havia a fé e a certeza absoluta de que Deus sabia o caminho e Ele poderia me indicar o rumo.
UMA INSPIRAÇÃO DIVINA
Carlos e Vânia haviam passado o fim de semana em Curitiba e agora voltavam a Mogi-Guaçu. Carlos dirigia seu Passat de segunda mão pela BR-116, enquanto Vânia cochilava
e os gêmeos dormiam no banco de trás, acompanhados da nenê, Thais Michele, que tinha acabado de nascer, no dia 18 de janeiro de 1987. Carlos, em pensamento, analisava
os projetos que ele e Vânia haviam imaginado. Em meio a curvas, subidas e descidas da estrada, de repente lhe veio à mente a cena de um filme ao qual ele assistira
várias vezes, Um violinista no telhado1. Esse filme antológico conta a história de Tevye e de sua família, que viviam em um terrível estado de pobreza na antiga
Rússia e sonhavam alcançar a América. Ele era um pobre leiteiro, criava vacas e com sua carroça saía de casa em casa vendendo o leite na aldeia. Certo dia seu cavalo
adoeceu e o homem se viu obrigado a puxar ele mesmo a carroça para servir a freguesia.
Abatido pela penúria, inconformado com a situação que enfrentava, em certo momento ele parou no caminho, ergueu os olhos para o céu e bastante emocionado começou
um diálogo com o Criador:
— Meu Deus! O que aconteceria se eu fosse um homem rico? O que aconteceria se eu tivesse uma fortuna? Mesmo que fosse uma pequena fortuna, será que isso estragaria
seus planos?
Carlos sentiu-se como o leiteiro, casado e com filhos pequenos para criar, vivendo de modo remediado diante da grandeza do que ambicionava, sonhando “fazer a América”
mesmo depois de já haver retornado de lá. Imbuído de fé e confiança em Deus, com a crença de que Ele tem planos e respostas para todos, na solidão da estrada Carlos
no espírito de oração repetiu as perguntas de Tevye e acrescentou:
Pai Celestial, que caminho devo seguir? O que vai me proporcionar maior realização profissional, pessoal, financeira? Que profissão devo desempenhar para cumprir
satisfatoriamente o propósito de minha existência? Como aplicar os talentos e os dons que o Senhor me concedeu, mesmo que eu desconheça plenamente quais são esses
dons? Como gerar riqueza para mim, para os que estão à minha volta e para a sociedade em geral?
Subitamente, a inquietação desapareceu.
Um sentimento tomou conta de mim, por inteiro, ocupou meu coração, a mente, acalmou o espírito. A resposta foi clara. Naquele instante senti que as aulas de inglês
seriam meu projeto de vida. Eu não iria abrir uma escola de idiomas, e sim uma rede de escolas, com presença em todo o país. Eu me assustei com a grandeza da resposta
e indaguei: Mas como fazer isso? A resposta silenciosa foi: “Pedi e recebereis, buscai e achareis, batei e abrir-se-vos-á”. Essa resposta veio no dia 1º de maio
de 1987, e a primeira pessoa a saber foi a Vânia.
— Acorde, meu amor. Descobri, descobri!
— Descobriu o quê? Me deixe dormir.
— Descobri o que vamos fazer.
— Vamos fazer onde, o quê? ...
— Vamos abrir uma escola de inglês.
— Você e suas ideias.
A partir dali, não houve mais questionamento ou incertezas sobre a direção a seguir. Eu sabia, apesar de tudo, que tinha um túnel escuro para percorrer. Quando estamos
em uma busca interior, seguindo o espírito de “pedir e receber, buscar e achar”, às vezes precisamos dar um passo na escuridão e confiar na fé. É como se tivéssemos
luz para andar um ou dois metros, mas, ao caminhar na luz recebida, logo recebemos um novo clarão que nos dá segurança para ir avante. Ter recebido aquela inspiração,
enquanto dirigia, fez toda a diferença em minha trajetória pessoal e profissional, pois eu sabia que, a qualquer momento, poderia recorrer à mesma fonte de inspiração
em busca de apoio, consolo, alento e direção. Aquela resposta me deu certeza, confiança e força para perseverar no caminho a ser percorrido.
Coincidentemente, semanas depois de Carlos haver recebido a resposta que tanto buscava, seu chefe da Champion chamou-o com urgência à sala da diretoria. Carlos esperava
um aumento ou promoção. Recebeu uma balde de água gelada em uma conversa rápida. O diretor explicou que a empresa passava por uma reestruturação e que seu nome estava
na lista dos funcionários a serem demitidos. Não lhe foram dadas mais explicações. Apenas disseram: “Por favor, reúna seus pertences pessoais e não precisa voltar
ao trabalho amanhã”.
Carlos sabia que agora estava por conta própria. Não adiantava olhar para trás e se lamentar. Precisava olhar para a frente e confiar em seu potencial e nos sonhos
que ele mesmo desenvolveu.
— Agora mais essa! O que dizer para Vânia quando chegar em casa?
• 8 •
Inglês em 24 horas, audácia e revolução
HOJE ELE SABE. Porque acaba racionalizando tudo, tirando partido de cada situação vivida. Aquela demissão, que deu fim à minha pretensa carreira de executivo, foi
a maneira que o universo encontrou para me dizer: “Chegou a hora de seguir em frente, rumo ao solitário caminho da prosperidade. A experiência de lecionar no centro
de idiomas da universidade em Utah foi, sem que eu soubesse na época, um estágio importante em minha qualificação profissional. As aulas de inglês em minha casa
foram o embrião para o surgimento da primeira escola Wizard neste país, que mais tarde se tornaria a líder mundial no setor do ensino bilíngue. Quem diria que aquele
menino que nasceu numa periferia curitibana, vendeu roupas e verduras na infância, acompanhou o pai nas viagens de caminhão entregando mercadorias e contava os centavos
para ter uma pequena poupança, seria um dia convidado pela presidenta da república, Dilma Rousseff, para acompanhá-la à China e mais tarde à Rússia?
Ao contemplar suas realizações, Carlos costuma citar o autor inglês Robert Frost: “Havia duas estradas no bosque. Em determinado ponto, elas se separavam. Eu peguei
a estrada menos percorrida, e isso fez toda a diferença”.2
UM MÉTODO DIFERENTE
É difícil definir se Carlos é mais um educador ou um empreendedor. Se ele possui mais talento comercial e domina bem a área de marketing. Se ele é mais concentrado
no desenvolvimento de pessoas ou de material didático. Ele mesmo não tem respostas. Porém, tão logo visualizou a formação de uma rede de escolas, sabia que precisava
ter um método de ensino diferenciado que pudesse ser amplamente utilizado. Foi quando se deu conta de que, embora nunca tivesse estudado pedagogia ou linguística,
ele precisaria parar tudo para escrever a lição um do livro um. E depois a lição dois, três, e assim sucessivamente.
Habituado à racionalidade dos programas de computação, Carlos decidiu fazer uma seleção de expressões, verbos e vocábulos mais utilizados nas conversações do cotidiano.
A partir daí passou a elaborar uma sequência de lições que eram entregues a Sandra, secretária de seu ex-chefe da Champion, que em seu tempo livre datilografava.
Quando chegou à lição 24, ele disse para a esposa:
— Vamos parar por aqui. Já temos 24 lições prontas. Não precisamos de mais. Vamos lançar o curso “Fale inglês em 24 horas”.
Vânia gostou da ideia. Carlos foi até o jornal e colocou um anúncio na sessão de classificados: Fale inglês em 24 horas,
Método prático, rápido e objetivo.
Conversação. Satisfação garantida. Ligue já.
Ele sabia que precisava de uma marca, por isso adotou o nome Conversation Center em suas apostilas. Tinha certeza de que sua metodologia era inovadora. Os empreendedores
sabem quando descobrem um caminho não trilhado, cheio de perspectivas. Daí a crença insuperável no que criam e colocam em ação. Num tempo em que todos ofereciam
cursos de longa duração, não duvidaram de que o slogan FALE INGLÊS EM 24 HORAS chamaria a atenção pelo inusitado da proposta. Aquilo era ousadia.
O telefone tocava, Vânia atendia e fazia a maior propaganda das aulas do professor Martins, contava como se tinha formado nos Estados Unidos e estava lançando um
método de ensino de inglês revolucionário que possibilitava a pessoa falar mais de cem frases por hora. Alguns eram céticos e desligavam. Os mais interessados e
curiosos faziam perguntas e Carlos oferecia uma aula demonstrativa gratuita. Essa é uma prática bem-sucedida que as escolas Wizard adotam até hoje.
Certa vez, o diretor de uma empresa de autopeças ligou e o próprio Carlos atendeu. Após alguns instantes, o sujeito perguntou:
— Eu gostaria de saber se esse curso tem ou não tem tarefa de casa.
— Antes de poder responder, preciso saber de uma coisa. O senhor gosta ou não gosta de tarefa de casa?
— Detesto! Se tiver lição de casa, nem vou me matricular.
— Você acaba de encontrar o curso perfeito. Aqui não tem lição para ser feita em casa.
O diretor resolveu começar. Vânia que acompanhou a conversa ao telefone perguntou:
— Mas a tarefa de casa é tão importante. O aluno precisa escrever para fixar o idioma. O que você vai fazer quando ele descobrir que tem uma tarefa escrita para
ser feita após cada aula?
— Não se preocupe. Vamos fazer a lição de casa na própria aula.
Esse é o estilo do professor Carlos Martins. Ele conduz a conversa, o raciocínio e a energia para a solução e não para o problema. Com frequência repete: “Líderes
estão concentrados na solução e não no problema, e também mais importante do que a ordem dos cubos é saber se precisamos ou não dos cubos”.
Certa vez Vânia atendeu a ligação de um gerente da concessionária da Volkswagen. Ele disse que precisava aprender o inglês, mas sempre teve bloqueios com a língua.
Vânia tranquilizou-o. “Este é o curso ideal, pois o objetivo é o desenvolvimento da fala”. Empolgado, o sujeito começou a estudar e era Vânia quem dava aulas. Depois
de algumas sessões, ela admitiu, desanimada:
— Ele tem bloqueio de aprendizagem mesmo. Não sei o que vou fazer. A aula não rende, não tem ritmo.
Carlos não se perturbou:
— Não precisamos dar todo o conteúdo da lição em uma única aula. Se ele precisar de tempo, dividimos a mesma lição em vários segmentos.
Vânia seguiu a cartilha. Após completar 24 horas de curso, o gerente chegou à lição cinco.
Dias depois, Vânia comentou:
— Você exagerou na dose. A apostila está muito pesada, tem muito conteúdo. Que tal refazermos e diluirmos os conteúdos em duas apostilas?
E as 24 horas? Agora serão 48?
Então foi a vez da Vânia ensinar o mestre:
— Não importa o número de horas. O que importa é a satisfação do aluno.
O conteúdo da apostila original acabou se desdobrando em uma segunda e depois em uma terceira apostila.
Num domingo Carlos estava na igreja e um amigo lhe disse:
— Conheço uma pessoa em Araraquara que fala inglês fluentemente. Quer dar aulas, mas não tem método. O homem pode se interessar pelo seu sistema. Ele se chama Carlos
Alberto Rocha.
Sem hesitar Martins foi encontrar Rocha em Araraquara. Houve grande afinidade entre os dois. Ambos eram Mórmons, haviam servido como missionários, eram casados,
tinham filhos na mesma faixa etária, adoravam inglês e queriam fazer do ensino uma fonte de renda.
— Me conte, Martins, como é esse negócio de “Fale inglês em 24 horas”?
Martins explicava. Rocha, preocupado:
— Como vou fazer para conseguir alunos?
— É simples. Só precisa colocar um pequeno anúncio na sessão de classificados do jornal e seu telefone não vai parar de tocar.
— Sim, e o que vou responder?
— Não se preocupe. Vou deixar com você um roteiro de atendimento.
No fundo, 25 anos atrás era o sistema que o telemarketing hoje utiliza, com roteiros preparados para as operadoras; até nisso Martins foi pioneiro.
— Quanto devo cobrar pelas aulas? Você conhece Araraquara, o pessoal daqui é simples e não tem muito dinheiro para essas coisas.
— Rocha, você vai trabalhar com executivos, empresários, profissionais liberais. Um pessoal que tem dinheiro e valoriza o inglês. Confie em mim. Em Mogi-Guaçu eu
e minha esposa já temos mais de trinta alunos.
— E as apostilas? Não tenho dinheiro para comprar agora. Aliás, nem sei se vou conseguir os alunos.
— Não se preocupe. Deixo cinco com você e levo um cheque pré-datado para trinta dias. Tudo bem?
— Se não conseguir os alunos, devolvo as apostilas e você rasga meu cheque. Tudo bem?
— Vai dar certo. Você ainda vai me ligar pedindo mais apostilas. Garanto isso, poderia até apostar se eu fosse de apostar.
Essa é a história do primeiro concessionário da rede Conversation Center, nome que Carlos tinha dado à sua pequena empresa. Era Carlos Alberto Rocha, um funcionário
público que atuava como agente penitenciário, que aprendeu inglês como autodidata de modo muito semelhante a Martins.
As palavras de Martins foram proféticas com relação ao amigo Rocha. No primeiro anúncio colocado no jornal, foi fechado um curso VIP com o diretor do principal hotel
da cidade. Depois vieram empresários e industriais de diversos setores. A cada mês ele conquistava novos alunos e ligava pedindo mais apostilas. O telefone não parava
de tocar. Mais tarde ele se tornou um representante do método para o interior e conquistou outros importantes professores que seguiram o mesmo caminho trilhado por
ele. Abriu sua escola Conversation Center e ela se tornou uma das principais do estado de São Paulo.
Carlos Martins ficou emocionado quando, determinado dia, Rocha ligou, eufórico:
— Adivinhe onde dei aula essa semana?
— Não tenho a mínima ideia
— Em um jatinho executivo. Acredita? Um aluno meu, diretor da Citrosuco, está gostando tanto das aulas que não quer interromper o curso. Então me convidou para fazer
algumas viagens com ele e pelo caminho vamos estudando. Contando, tem gente que não acredita.
A cada momento era uma nova conquista, uma nova escola. Carlos gostava de convencer os que estavam em dúvida, os incrédulos. Faz parte de sua maneira de ser. São
os desafios. Assim atendeu a empresária Maria Antonieta, conhecida como Tuni, cujo esposo Roberto era o maior distribuidor de cervejas e refrigerantes da região
de Mogi-Guaçu. Ela já era fluente no inglês e queria aulas de manutenção. Carlos assumiu mais essa aluna e as aulas eram interessantes, conversavam sobre atualidades,
música, shows, saúde, nutrição, educação, negócios. E apesar de Tuni ter uma condição financeira privilegiada, em determinada aula Carlos ousou perguntar:
— Tuni, estou precisando de uma professora de inglês para dar aulas a iniciantes. Você teria interesse?
Maria Antonieta passou de aluna a professora e mais tarde se tornou a segunda pessoa a utilizar a nova metodologia de ensino. Sem saber, Carlos estava estabelecendo
um modelo que nos anos seguintes ele veria se repetir milhares de vezes no desenvolvimento de seu negócio. Hoje ele afirma que 50% de seus franqueados bem-sucedidos
iniciaram como alunos. Eles se identificaram com a filosofia do curso, com a metodologia, com a dinâmica e, com seu espírito empreendedor, transformaram o ensino
em um negócio próspero e muito rentável.
Nessa época a atividade de Carlos era intensa. Ele anunciava os cursos no jornal, dava aulas, criava novas lições, mantinha a motivação dos amigos Rocha e Tuni e
contatava professores em outras cidades para a expansão da rede.
A terceira concessionária foi a jovem Angela Vilela, da cidade de Araras. O pai dela dava aulas de oratória e a filha, recém-formada em Letras, ajudava o pai nos
cursos. Quando conheceu Carlos, ela expandiu seus horizontes para o ensino do inglês. Assim, pai e filha vislumbraram uma maneira de fazer crescer a renda familiar
aumentando seu leque de cursos. Mais tarde, o professor Vilela abandonou completamente a oratória e a filha se desenvolveu e cresceu como excelente empresária no
ensino de idiomas.
A relação que existia entre eles, ou seja, com os franqueados, era muito próxima, tudo corria de maneira informal, quase doméstica, íntima. Quando Martins ia visitar
o amigo Rocha, este puxava um colchão de espuma e arrumava para o professor passar a noite na sala de sua casa. O professor Vilela fazia questão de receber Carlos
com um farto lanche da tarde em sua casa elegante.
Na época em que ainda moravam em Mogi, Carlos em certo momento teve um insight e disse a Vânia:
— Precisamos agendar uma reunião de treinamento para nossos três primeiros concessionários.
— Treinamento? Mas onde faremos?
— Aqui mesmo, em casa.
No dia marcado, reunião em andamento, Vânia entrou em cena, interrompendo:
— Preparei um lanchinho para vocês.
Abriu um pacote de bolachas, serviu guaraná. Era o que havia de melhor. Todos se deliciaram com a simplicidade.
Nesse período, Hilda e Antônio decidiram sair de Curitiba. “Estávamos lá os dois, sozinhos e aquilo começou a me dar nos nervos. Tive uma enorme depressão”, confessa
Hilda. Era um imenso vazio em torno da gente. Todos os filhos, genros, netos estavam longe. Para que ficar ali? Além do mais, a empresa em que Antônio trabalhava
havia quarenta anos fechou. Ele se aposentou. Então, Carlinhos (assim ela se refere ao filho mais velho) nos chamou para lhe dar uma força, podíamos ficar com ele
por um tempo. Vendemos praticamente todos os móveis e partimos de Curitiba rumo a Mogi-Guaçu. Thaís era pequenina e Charles e Lincoln mais crescidinhos, ainda que
crianças. Eu tomava conta da casa, cozinhava, passava, lavava, Vânia dava aulas, Carlos escrevia as lições. Era nossa rotina.
O pai vendo a luta cotidiana do filho, propôs:
— Sempre trabalhei e não gosto de ficar parado. Preciso fazer alguma coisa. Não precisa me pagar nada, quero colaborar, fazer alguma coisa. Quero ver seu negócio
crescer.
Carlos aceitou. Estava consciente de que o pai, embora bem-intencionado, não tinha a menor ideia de inglês, nada sabia sobre treinamento de professores nem tinha
noção das qualificações para utilizar uma nova metodologia de ensino
— Como acha que pode ajudar?
— Sempre trabalhei como vendedor. Já vendi de tudo em minha vida desde que saí do Pinhão com 13 anos. Não sei falar inglês, mas uma coisa sei. Nenhum negócio sobrevive
sem vendas.
Motivado com o entusiasmo do pai, ainda que um pouco ressabiado, Carlos perguntou:
— Sim, tudo bem. O que é que vamos vender?
— Ora meu filho, as apostilas.
— Para quem?
— Você é o professor, sei. Só que tem muito a aprender. Vamos pegar o carro, encher o porta-malas de apostilas e sair pelo interior do estado vendendo.
— Vender para quem, meu pai do céu?
— Para professores. Não são eles que vão usar as apostilas?
Os velhos tempos voltaram, os dois lembrando a época em que viajavam de caminhão pelo interior do Paraná. Enchiam o tanque do Del Rey, carro de Antônio, com cheque
pré-datado na esperança de vender as apostilas para cobrir a despesa da gasolina. Mais tarde o Del Rey foi substituído por uma Brasília azul, que passou a fazer
parte da história do professor. Partiam de cidade em cidade, Americana, Limeira, Rio Claro, São Carlos e assim seguiam. O almoço era pastel e guaraná. A música dessa
vez era uma fita cassete que Carlos trouxe dos Estados Unidos com melodias inspiradoras. Antônio dirigia e Carlos aproveitava para escrever novas lições, revisar
materiais e se inspirar na próxima apostila. Em cada cidade, compravam dois jornais, abriam nos Classificados em busca de quem estava anunciando aulas de inglês,
telefonavam, marcavam encontros.
Algumas lembranças não saem da memória do filho. Ele admirava a ousadia do pai. Certa vez chegaram a um importante colégio e pediram para falar com o diretor, o
coordenador e os professores de inglês. Todos a postos para começar a reunião, Antônio surpreendeu:
— Temos um assunto muito importante para tratar com vocês. Vocês preferem fazer a reunião em inglês ou em português?
Carlos sentiu um frio na barriga, quase caiu da cadeira. Instantes de tensão, silêncio, os professores se entreolharam, até o diretor trazer o alívio:
— Nosso inglês é muito fraco. Só dá para a gente se virar. Vamos fazer a reunião em português mesmo.
Mal sabiam que Antônio não falava uma única palavra em inglês.
• 9 •
A marca virou nome próprio
GRADUALMENTE O MÉTODO DO PROFESSOR MARTINS começou a ser conhecido. A divulgação era feita por meio de cartõezinhos, folhetos, cartazes colocados em pontos estratégicos
e um anúncio minúsculo na sessão de classificados dos jornais. Foi então que Carlos percebeu que ainda não tinha registrado sua marca. Dirigiu-se a um escritório
especializado e teve a primeira decepção.
— Qual é a marca?
— Conversation Center?
— Hum, não sei não.
— Não sabe o quê?
O advogado do escritório de registro de marcas e patentes, doutor Paulo Roberto Toledo Correia, fez um movimento negativo com a cabeça. E foi taxativo:
— Essa marca é muito genérica. Não dá a você direito à exclusividade de uso. Vai ter de pensar em outro nome, forte e original.
Carlos começou mais uma vez a buscar inspiração para saber que nome dar à sua empresa recém-nascida. Pensava em letras de música, expressões, fazia junção de palavras.
De repente, lembrou-se de um filme clássico, O Mágico de Oz3 (The Wizard of Oz), sucesso sem precedentes em toda a história do cinema. Foi filme, peça na Broadway
e tinha provocado um impacto muito grande pela simbologia da busca de um sonho. A menina Dorothy que sai em busca do mágico de Oz me comovia pela simbologia dos
personagens. Ela caminha acompanhada pelo Leão, pelo Homem de Lata e pelo Espantalho. O Leão era medroso e queria que o Mágico de Oz restaurasse sua coragem de rei
dos animais. O Homem de Lata desejava ganhar um coração, para sentir amor pelas pessoas. O Espantalho se ressentia da ausência de cérebro, seu sonho era ser inteligente,
poder pensar. Para chegar ao mágico, os quatro enfrentam toda série de dificuldades, barreiras, oposições. Quando chegam, o mágico mostra a eles que a coragem do
Leão estava dentro dele, assim como o coração do Homem de Lata e o cérebro do Espantalho. Bastava que explorassem seu interior. Para isso, eles teriam de procurar,
enfrentar e vencer a bruxa malvada do Oeste. Ou seja, havia um preço a pagar. Enfim, é uma história de superação cujo frescor se mantém intacto ao longo de décadas.
A palavra Wizard passou a ressoar dentro de mim. Foi quando me veio uma expressão: Wizard of Conversation. O Mágico da Conversação. Era isso. Para mim estava encontrado
o nome. Depois resolvi simplificar e cortei o “conversation” e deixei apenas Wizard. Bastava. Esse nome traduzia o conceito do método, algo mágico, a magia que se
opera dentro de cada pessoa que começa a aprender uma nova língua. Corri para o escritório de registro de marcas. O advogado, doutor Paulo, me atendeu novamente.
— Vou ser sincero, Carlos. Essa marca não é boa. Wizard? Não! Não vai pegar.
Um conselho de meu pai, que sigo até hoje, me veio à mente. Ele dizia: “Meu filho, quando alguém te diz algo com o qual você não concorda, faça para ele a mesma
pergunta para ver o que responde”. Foi o que fiz:
— Tudo bem, doutor. Já que, com sua vasta experiência acha que esse nome não é bom, não vai pegar, se o senhor fosse abrir uma escola de inglês, que nome daria?
Ele pensou um minuto e declarou solene, imperioso:
— Tenho um nome bom para você. A marca é Linguex. Eu daria esse nome à escola. Linguex.
— Tem certeza?
— Absoluta.
— Desculpe, doutor Paulo, não gostei. Vou ficar com Wizard mesmo.
— Você é quem sabe, se assim prefere, faremos assim.
Os anos se passaram e o doutor Toledo Corrêa pôde acompanhar o desenvolvimento e crescimento da Wizard. Em nenhum dos eventos empresariais em que já nos encontramos,
ele nunca citou esse incidente, nem eu. Carrego apenas gratidão por ele ter sido o instrumento legal que efetuou o registro dessa marca tão valiosa.
CARLOS WIZARD? NEM PENSAR
A Wizard acabara de completar seu primeiro ano de existência e um dia a franqueada de Mogi-Mirim, Marcia Rossi, apareceu com uma ideia que, naquele momento, pegou
Carlos de surpresa, pareceu absurda.
— Carlos, estive pensando e me ocorreu que você deve colocar o Wizard em seu nome.
— Que ideia maluca é essa? Por que isso?
— Veja só, quem fundou o Fisk foi o professor Richard Fisk, e César Yázigi criou o Yázigi, duas escolas tradicionais. Você precisa ser Carlos Wizard Martins.
— Nem pensar!
— E tem mais. Com o tempo a escola vai crescer e, quando a mídia citar a escola, falará da Wizard. Quando falar de você, citará a marca.
— Não tem chances, a ideia é maluca!
— Mas pense no marketing.
— Estou fora, Márcia, esqueça.
— Ah! Carlos, então você não ama sua marca.
— Claro que amo. Mas não faz sentido acrescentar a marca ao meu nome civil.
— Saiba então de uma coisa. Se você não colocar Wizard no seu nome, vou colocar no meu.
Ele pensou rápido. “Antes que ela coloque a marca no nome dela, coloco no meu.” Foi assim que o professor Martins acabou se tornando Carlos Wizard Martins.
“Com frequência encontro Marcia Rossi, cumprimento e digo: ‘Sou Carlos Wizard graças a você’.” Na convenção nacional em comemoração aos 25 anos da rede, Carlos relatou
esse episódio a uma plateia de mais de mil pessoas, depois chamou a franqueada Marcia ao palco e com muita emoção lhe conferiu o troféu “Marcia Wizard Rossi”.
Irônico, uma de suas boas qualidades, sorri e acrescenta: “Às vezes fico pensando, e se eu fosse Carlos Linguex Martins?”. Nessa época, Vânia e Carlos exerciam muitas
atividades na Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias. Os Mórmons são membros ativos e voluntários, e servem à comunidade sem remuneração. “Servimos por
amor ao evangelho de Jesus Cristo e ao próximo”, reitera ele. “Vânia sempre foi ativíssima com crianças, jovens adolescentes e, em especial, no cuidado às viúvas
carentes por intermédio da organização chamada Sociedade de Socorro que atende os interesses emocionais e espirituais de milhares de mulheres em todo o mundo.”
Certo dia Carlos recebeu uma ligação do presidente da missão Campinas, Joseph Murphy. Foi marcado um encontro com o casal.
— Irmão Martins, temos acompanhado sua trajetória, sua disposição e dedicação à causa da igreja. Chegou a hora de você assumir uma responsabilidade maior. Eu gostaria
de lhe chamar para servir como presidente do ramo da igreja na região de Mogi-Guaçu, Mogi-Mirim e Itapira.
— Presidente Murphy, não sabe quanto fico honrado com esse chamado. Agradeço de coração tamanha confiança. Mas há uma situação que o senhor desconhece. A razão de
estarmos em Mogi-Guaçu era meu trabalho. E acabei de ser despedido. Nossa intenção é voltar a Curitiba, cidade de minha família e também de minha esposa, onde até
já demos entrada numa casinha, e vamos financiar o resto. Além disso, estamos no processo de abertura de nosso próprio negócio e pretendemos nos instalar em Curitiba,
será uma escola de inglês. Vamos esperar apenas acabar o semestre escolar de nossos filhos. No fim do ano, partimos.
Calmo, o presidente Murphy respondeu:
— Sinceramente, eu não sabia de seus planos e projetos. Mas uma coisa eu sei: esse chamado não é meu. É de Deus. E Ele, sim, sabia que você é de Curitiba, sabia
que comprou essa casinha. Sabia que estava de mudança. Mesmo assim, recebi a inspiração para lhe transmitir esse chamado. Deus precisa de você, Martins.
Nesse momento Vânia começou a chorar, pois ela realmente desejava retornar a Curitiba após uma ausência de cinco anos. Queria estar próxima de seus pais e irmãos.
Por outro lado, ela sabia também da importância dessa designação.
— Não precisam responder agora. Vão para casa, orem a Deus, conversem entre si. No próximo domingo me deem a resposta.
— Mas, se aceitarmos ficar aqui, o que vai ser de nossa casinha em Curitiba? Perguntou Carlos ao presidente.
— Venda.
— Porém, lá o imóvel é mais barato, aqui é diferente, as casas são mais caras, não teremos condição de comprar outra.
— Não se preocupe. O Senhor proverá!
Foi um instante difícil, a cabeça de Carlos e a de Vânia estavam a mil por hora. Demitido há poucos meses, começando um negócio incerto, usando a indenização que
nem era tão significativa com a intenção de comprar um teto para abrigá-los, afinal tinham sido apenas dois anos na Champion, contando o tempo nos Estados Unidos.
E agora esse chamado inesperado de imensa responsabilidade! Antes de se despedir, o presidente Murphy completou:
— Vou lhes fazer uma promessa. Vocês vão abrir o negócio aqui no estado de São Paulo, e Deus vai abençoá-los. Seu negócio irá prosperar.
Ao longo daquela longa semana, Carlos e Vânia lembraram de sua lua de mel, na praia de Camboriú, quando os dois tinham traçado a meta de serem prósperos. “Queríamos
a prosperidade, sim, seguindo os princípios da fé, da confiança em Deus. Então, como podemos negar esse chamado?”, indagou Carlos.
Em seguida Vânia recitou um de seus versículos favoritos da Bíblia: “Buscai primeiro o reino dos céus e sua justiça e todas estas coisas vos serão acrescentadas”.
— Sim, presidente, aceitamos.
Até hoje, Vânia e Carlos conversam sobre aquele momento decisivo. Acreditamos na inspiração divina, na promessa, aceitamos o chamado. Algumas vezes hoje, no conforto
de nossa elegante morada, nos perguntamos: e se tivéssemos dito não? Se tivéssemos decidido ir para nossa casa em Curitiba? Como teria sido nossa trajetória? As
coisas teriam se passado como se passaram? Talvez sim, talvez não. Quem sabe estivéssemos os dois naquela casinha, vivendo de alguma coisa, não podemos imaginar
o quê. Sabemos apenas o que aconteceu por termos seguido um desígnio que acreditamos ter vindo de Deus. E isso fez toda a diferença.
Carlos ainda tinha mais um desafio. O que dizer aos pais de Vânia que aguardavam ansiosamente o retorno da filha e dos netos após uma ausência de cinco anos? “Aproveitei
um fim de semana oportuno, fui até Curitiba, sentei-me com meu sogro, Raul.”
— Há uma coisa que devo confessar. Afinal o senhor sempre esperou que, após os Estados Unidos, voltássemos a Curitiba, morando na casa comprada com esforço. Acontece
que temos novidades. Agora os planos mudaram. Não vamos mais morar aqui.
Expliquei a respeito do chamado da igreja, ele ouviu em silêncio. E eu, esperando sua reação. Ele me apoiou integralmente:
Nunca devemos negar um chamado de Deus.
Depois ele me surpreendeu:
— Pensando melhor, Carlos, empresarialmente falando, pés fincados na terra, se fosse eu também ficaria em São Paulo. Como sabe, sou paranaense de Castro, mas quando
chegou a hora de minha filha mais velha nascer, eu levei a Irene, minha esposa, para ganhar a Tânia na capital paulista. Tenho orgulho de ter uma filha paulistana.
Afinal, São Paulo é a grande locomotiva da economia brasileira. O interior do estado é o segundo maior mercado consumidor do país. Você estará próximo aos grandes
centros.
Com mais de 70 anos, aquele homem era visionário, mente aberta, sabia tudo da vida. Eu tinha medo de que ele resistisse. Pedisse: “Fique por aqui, traga minha filha
de volta, quero ter meus netos por perto”. Enfim, apelasse para o aspecto emocional. Nada disso, mente aberta, ele simplesmente disse: “Vá em frente, siga seu caminho,
você tem o Brasil inteiro para conquistar”.
• 10 •
De dia, casa, de noite, escola
O ANO DE 1987 CHEGOU AO FIM. Não havia como contemporizar, era preciso desocupar a casa, sair da Vila Champion, em Mogi-Guaçu. Pela frente, grandes tarefas, cercadas
de ansiedade. Mudar de cidade, arranjar casa, procurar alunos, novos professores, pontos de venda. Enfim, organizar racional e legalmente uma empresa. Aos domingos,
Carlos Martins ainda cuidava de seu chamado pela igreja em Mogi-Guaçu. Sufoco, muitas decisões, algumas rápidas, outras improvisadas, muitos sacrifícios pela frente.
Conhecemos dos empreendimentos bem-sucedidos apenas o brilho, a beleza e a grandiosidade. Geralmente, ignoramos os bastidores, o início, o medo, o risco, os obstáculos,
o sacrifício pessoal e familiar e as quedas pelo caminho.
Finalmente, a família mudou-se para Campinas. Alugaram uma casa na rua Dez de Setembro, 38, no bairro do Cambuí. A residência tinha cozinha, copa, sala e três quartos.
Os pais de Carlos, Antônio e Hilda, ficaram com o quarto principal. Nos fundos havia uma edícula com dois dormitórios, que acomodava o casal e as crianças. A parte
da frente da casa dividia-se entre moradia, refeições, ambiente “social” e três salas de aula. Não havia quintal ou espaço para as crianças brincarem, apenas um
corredor dividia a casa da edícula. Nesse tempo, os gêmeos estavam com 7 para 8 anos e Thaís com 1 ano. Charles e Lincoln iriam cursar o primeiro ano primário. Foram
matriculados na Escola Estadual Dona Castorina Cavalheiro. Estavam ansiosos para estudar em uma escola grande, em uma cidade grande. No primeiro dia de aula, a decepção.
Os pais foram informados que os professores das escolas públicas entraram em greve, sem previsão de início das aulas. Vânia ficou angustiada, aflita. “E agora? Como
será a formação de nossos filhos sem aulas?”, ela perguntava. Carlos tentou contemporizar: “Tenha paciência. Logo as aulas vão começar. Passaram-se uma semana, duas,
três, e nada. Vânia não teve dúvida: “Vamos colocar esses meninos numa escola particular. Custe o que custar”. Dizemos entre nós que Thaís e a escola são gêmeas,
ambas nasceram no mesmo ano. Algumas vezes, ainda em Mogi-Guaçu, Vânia estava dando aula e a bebê começava a chorar. Sem nenhuma cerimônia, Vânia pegava a criança
no colo e continuava com a aula enquanto amamentava a menina. Thaís cresceu com enorme facilidade para línguas. Os americanos dizem que ela fala o inglês sem sotaque.
Haveria alguma relação?
Carlos sorri, há nele sempre uma ponta sutil de humor e graça. A Wizard passou a funcionar como escola a partir de nossa mudança para Campinas em 1988. Porém, comemoramos
1987 como data simbólica, muito íntima. Ela corresponde na verdade ao momento em que tive a inspiração, a resposta segura e muito pessoal de que o ensino seria nosso
projeto de vida. O que eu não sabia era que levaria muito tempo até o projeto se materializar e se tornar um empreendimento bem-sucedido.
Carlos aprendeu um axioma: “Técnicos se especializam em cumprir tarefas específicas, ao passo que empreendedores se especializam em ter ideias, planejar, contratar,
treinar e delegar tarefas. Ninguém jamais fez algo grandioso sozinho”. Portanto, tinha chegado a hora de fazer a primeira contratação.
Alessandra Moscão Maccione jamais podia imaginar que seria a primeira de um grupo educacional que hoje gera mais de cinquenta mil empregos no Brasil e no exterior.
Martins a define bem: “Tinha apenas 16 anos, mas sua responsabilidade era a de um adulto, cheia de boa vontade, iniciativa e otimismo. Para ela não havia tarefa
difícil. Fazia o que precisava ser feito com prontidão, excelência e alegria”. Vânia diz que “Alessandra parecia ler o pensamento de Carlos, corria para executar
algumas tarefas, mesmo antes de ele pedir. Era comunicativa, ágil e simpática”.
EXAUSTOS, MONTAVAM APOSTILAS NA MADRUGADA
No início não havia divisão de funções entre eles. Alessandra, Vânia, Carlos e seus pais assumiam todos os desafios do novo empreendimento. Esse pequeno time se
incumbia de colocar anúncios no jornal, atender os telefonemas, receber candidatos ao curso, agendar aulas, contatar os concessionários de outras cidades, oferecer
materiais didáticos, preparar, embalar e enviar pelo correio as apostilas, fazer a cobrança dos cursos, manter as contas e a casa sempre em “ordem”. Começavam o
dia juntos abrindo as portas da casa ou da escola, e acabavam o dia juntos após as 21 horas, quando se encerravam as últimas aulas.
Durante o dia as aulas eram esporádicas, havia certo espaço para respirar em casa, mas após as 17 horas todas as três salas e mais a copa da casa ficavam lotadas
de alunos que tinham aulas de hora em hora. Diariamente Carlos, Vânia e outros professores assumiam esses alunos pioneiros.
Após a última aula Antônio ia até a padaria Sacramento, que ficava próxima à escola, e Hilda preparava o lanche. Vânia colocava os meninos na cama e então começava
o expediente mais pesado do dia. As lições agrupadas em formato de apostilas eram preparadas manualmente. Carlos redigia os textos, datilografava, mandava fazer
fotocópias numa papelaria próxima. Chegou um momento em que o volume justificou a compra de uma máquina fotocopiadora e outra para encadernar. As tarefas eram divididas,
um datilografava, outro copiava, um terceiro encadernava. Os pais de Carlos faziam parte do mutirão após o lanche noturno. Arrumada a casa, começavam a separar lições,
página por página, e a montar as apostilas em sequência, encadernando. Vânia era encarregada de examinar apostila por apostila, verificar se as folhas estavam na
sequência numérica correta, uma vez que percebiam que a exaustão provocava confusão, folhas eram trocadas, juntavam duas ou três páginas iguais, algumas em branco.
Quando olhavam o relógio, passava da meia-noite. Alguém dava o alerta:
— Ninguém aguenta mais, minha gente. Hora de descansar. Amanhã continuamos.
No dia seguinte, cedo, as tarefas prosseguiam. Colocar o material em caixas, colar etiquetas dos destinatários, ir ao correio, enfrentar longas filas até ser atendido
para despachar tudo aos primeiros concessionários da época.
Certa vez, Vânia estava na fila dos Correios com várias caixas de material quando um rapaz conhecido da família a avistou sobrecarregada de volumes a espera do atendimento.
Ele lhe perguntou:
— Vânia, por que você não contrata um office boy?
A ideia veio em boa hora e foi feita nova contratação. Dona Hilda preocupada com a folha de pagamento disse: “Meu filho, cuidado com o aumento do funcionalismo”.
Até hoje riem quando se lembram dessa cena.
Carlos reconhece duas virtudes que o ajudaram a vencer. Uma foi sua capacidade criativa na área linguística ao criar um sistema que possibilita a pessoa falar cem
frases por hora num segundo idioma desde a primeira aula. E a segunda é seu estilo de acreditar na capacidade empreendedora do indivíduo, mais do que nele próprio.
“Às vezes sinto-me como o missionário do empreendedorismo. Ajudo a pessoa a ver nela mais do que ela consegue ver em si mesma.” Obviamente, ao longo dos anos, ele
contratou profissionais qualificados que o auxiliavam a cumprir essa missão. “Tenho certeza de que, além de ensinar línguas, criamos uma grande escola de empreendedores.”
Essa é uma característica que o acompanha desde o início.
Sempre foi muito claro que a escola era a maneira de sustentar a família e promover recursos para a expansão do negócio. Porém, seu objetivo maior era a formação
de uma rede. Assim a luta pela implantação do método prosseguia. Procurávamos estritamente professores de inglês e tínhamos o objetivo de transformá-los de educadores
em empreendedores. Muitos se viam diante de um mundo novo, inesperado; assustador para uns, fascinante para outros. Certa vez, no Rio de Janeiro, contatei Vera Lucia
Pimentel, casada com um militar. Ela queria ser representante do método, mas não falava uma palavra em inglês.
— Não tem problema, Vera. Você é ótima vendedora. Basta encontrar uma professora. Você vende os cursos, a professora dará as aulas.
De acordo com a orientação que dávamos, ela precisava colocar aquele anúncio nos classificados do principal jornal da cidade. Eram as clássicas e eficazes três linhas:
Fale inglês em 24 horas
Método prático, objetivo. Conversação.
Telefone ...
Vera Lucia, com certa relutância e receio de como as pessoas iriam reagir diante dessa proposta, publicou o anúncio em O Globo e colocou, evidentemente, o telefone
do apartamento onde morava na Praia Vermelha. Na manhã da publicação, o telefone começou a tocar, mas ela ficou tão nervosa que, quando o telefone tocava e a pessoa
dizia “Estou ligando para saber sobre esse curso de inglês em 24 horas”, apavorada, desligava o telefone. Somente depois de três ou quatro chamadas, teve coragem
de responder, seguindo o roteiro de como passar as informações do curso. Conseguiu alunos como jamais imaginara. “Isso demonstra como o início foi desafiador e ao
mesmo tempo incipiente, tanto para nós como para os adeptos da nova metodologia.”
Num sábado à tarde em que não havia aulas, a família estava em casa num momento de descontração e descanso quando de repente tocaram a campainha. Um homem estendeu
a mão e se identificou:
— Meu nome é David Drysdale. Passei e vi o adesivo da Brigham Young University no carro. Sou formado nessa universidade, você também? Foi assim que conheci um dos
americanos mais simpáticos de minha vida. Ele morava em Itu e trabalhava num banco em Campinas. Não levou muito tempo até que, além de seu trabalho regular, ele
começasse a dar aulas de inglês com muito sucesso. Até hoje a escola Wizard de Itu é conduzida por Cristina Andreazza, então esposa de David.
Literalmente, desde o início transformamos pessoas talentosas em empreendedores bem-sucedidos, com uma visão ampla e o pensamento voltado ao crescimento e à expansão
empresarial – orgulha-se Carlos.
Certa vez ele soube de uma professora em Mogi das Cruzes, no Vale do Paraíba, que era muito eficiente, dava aulas particulares de inglês. Quem sabe o método pudesse
interessá-la? Fadua Hashid Sleiman recebeu Carlos, foi gentil, ouviu a exposição, mas rejeitou a oferta:
— Não tenho interesse no seu material, não!
— Você já tem um método próprio?
— Não tenho. Uso material de livrarias.
— Por que não experimenta este método de conversação?
— Que garantia tem esse material? Não sei se os alunos vão gostar. Percebi que aquela jovem era competente, séria e dedicada, seria uma ótima representante da Wizard
na região. Era um desafio que mexia comigo, e eu não podia sair da cidade sem fechar um acordo:
— Fadua! Vou fazer o seguinte. Tenho tanta confiança de que seus alunos vão aprovar o método que estou disposto a deixar o material com você, não cobro nada. Teste
com a moçada. Trabalhe com seus alunos. Daqui a um mês volto e você me diz o resultado. Se tiver gostado, paga. Se não, devolve, levo embora. A amizade é a mesma.
— Está bem.
Carlos diz que “foi aprendendo que o caminho do sucesso está cheio de pedras, obstáculos e desafios. Há muitos desapontamentos, as coisas nunca dão certo na primeira
vez, ou na segunda e na terceira, e as pessoas nem sempre agem como você espera, ou confia. Mas tem de prevalecer a certeza no que faz, no que criou”. Ele faz um
breve e bem-humorado retrospecto de vida: Considero-me uma pessoa normal, sou um brasileiro como qualquer um, sem nenhuma característica extraordinária. Na verdade,
em termos acadêmicos acumulei até um longo histórico de fracassos: repeti duas séries escolares, terminei o ensino médio somente aos 22 anos (até hoje não tenho
coragem de mostrar minhas notas aos meus filhos), entrei na faculdade tardiamente, aos 26 anos, e me formei aos 30. Pouco tempo depois de conseguir meu primeiro
emprego, fui demitido. Mas logo descobri um talento que havia dentro de mim. O professor empreendedor que eu escondia.
Passados os trinta dias, ele retornou a Mogi das Cruzes e encontrou Fadua sorridente:
— Gostei muito do material. Os alunos também. Vou pagar as apostilas e comprar mais.
Fadua comprou, comprou e comprou, e seus alunos foram aumentando, de maneira que passado um tempo ela decidiu abrir uma escola com o nome Wizard. O estabelecimento
cresceu, chegou a ser a maior escola da cidade. Mais tarde, Fadua se associou a uma professora japonesa, Tieko Tsai, e as duas abriram a Wizard em Guarulhos. Com
seu espírito de liderança, Fadua fez parte de vários comitês, conselhos e se destacou como uma das principais franqueadas da rede. Mais tarde, acabou deixando a
rede para cuidar dos interesses financeiros de sua família de origem libanesa. E a sócia Tieko?
Bem, a Tieko acabou abrindo uma segunda, terceira, quarta, quinta escola e assim sucessivamente. Atualmente ela possui mais de dez escolas e administra dez mil alunos.
Por vários anos, foi eleita a franqueada número um da Wizard. Recentemente passou a integrar o Hall da Fama da rede.
O que teria acontecido se Carlos tivesse dito não a Fadua? Tivesse ido embora sem deixar nenhuma apostila? Tivesse desacreditado no potencial daquela professora?
A história dessas duas professoras é significativa. Do êxito do método, da confiança de Carlos no talento alheio, em sua disposição de plantar semente a semente,
cuidar, acompanhar e aguardar os frutos futuros.
“Até hoje tenho um pensamento que me orienta, conduz. Um ensinamento que tem aplicação universal. Um dogma, digamos: “O sucesso acontece quando a preparação encontra
a oportunidade”.
Fundamento, lema, princípio, conceito, axioma, tudo. Nossa base, iniciada no momento em que aquele colega pediu: Carlos, pode nos dar umas aulas à noite? Naquele
instante decidiu-se meu futuro e trabalhei nessa direção. A prosperidade viria daí.
SEMENTE QUE LEVOU 25 ANOS PARA DAR FRUTOS
Certa vez, Martins convidou o amigo Rocha de Araraquara para irem juntos a Bauru na tentativa de encontrar um professor para apresentar o método. Como faziam habitualmente,
chegaram à cidade e compraram os jornais, em busca de alguém que desse aula particular de inglês. Porém, neste dia estavam sem sorte. Rocha inconformado disse:
— Não é possível, uma cidade deste tamanho deve ter algum professor particular de inglês.
— Como vamos fazer?
— Já sei. Vamos parar as pessoas na rua e perguntar se conhecem algum professor de inglês na cidade.
Carlos achou a ideia absurda, mas como costuma acreditar nas ideias alheias respondeu:
— Vamos lá, ótima ideia.
Estacionaram o carro e Rocha começou a parar os pedestres e fazer sua consulta.
— Não, não conheço ninguém.
— Não faço a menor ideia.
Carlos, então, disse:
— É melhor perguntar para um jovem.
De repente, surgiu um rapaz e Rocha repetiu a pergunta:
— Sim, conheço. Ele se chama Marco Cesar. É o meu professor de inglês.
— Como fazemos para falar com ele?
— É fácil. Vocês vão até a esquina, ali há uma praça e uma escola de inglês. Ele trabalha lá.
Os dois caminharam encontraram a escola, pediram para falar com o professor, que logo veio até a recepção.
— Professor Marco, temos um assunto importante para tratar com o senhor, mas não gostaríamos de falar aqui. Terá algum lugar reservado onde possamos conversar em
particular?
O professor ficou meio ressabiado, afinal dois estranhos querem conversar, necessariamente em segredo. Todavia, a atitude de Martins e Rocha parecia inspirar confiança.
Ao mesmo tempo, estava curioso, não custava nada ouvir.
— Podemos atravessar a rua, sentar num banco da praça e conversar tranquilamente.
Rocha e Martins, entusiasmados, tiraram o professor de dentro da escola, atravessaram a rua, sentaram-se e começaram, didaticamente, a explicar a nova metodologia,
a sistemática, o sucesso dos alunos, professores e a sua intenção de contar com o professor Marco como novo usuário e divulgador do material.
Ele ouviu atentamente:
— Gostei do método, é interessante. Acho eficiente, sei que vocês vão ter sucesso. Mas não posso aceitar.
— Por alguma razão?
— Estão vendo essa escola de onde saímos?
— Sim.
— Pois é minha. Sou o dono. Sou o diretor do Yázigi aqui. Tenho um contrato. Portanto, não posso comprar o material de vocês. Compreendem?
Precisávamos concordar. Ele foi, acima de tudo, um cavalheiro, um homem educado. Ouviu tudo, atentamente com respeito e dignidade. E nós, com aquela cara de tacho,
nos seguramos para não rir de nós mesmos na frente dele. Tínhamos caído do cavalo.
O que eu, Rocha e o professor Marco não sabíamos na época era que, 25 anos mais tarde, a rede Yázigi passaria a fazer parte do Grupo Multi e finalmente estaríamos
trabalhando juntos.
A família já estava em Campinas havia quase dois anos. Vânia cada vez mais atarefada com a escola e Carlos cada vez mais ausente cuidando da expansão da rede. Semanas
depois de retornarem de uma viagem a Florianópolis em que treinaram a professora Maria Helena Balthazar para representar a escola na capital catarinense, Vânia deu
a notícia:
— A viagem ao sul fez bem. Estou grávida.
Comemoram aquele momento e ao mesmo tempo veio a preocupação da condição precária em que a família se encontrava. Pois a essa altura já havia tantos alunos que em
alguns horários a casa inteira era usada como classe.
Quando a mãe de Vânia soube da gravidez, apareceu para uma visita de uma semana. Ela ficou abismada com a situação da filha. Durante todo o dia, era um entra e sai
de gente na casa. À noite ela pegava as crianças e saía para dar uma volta “na cidade”. Ficavam caminhando pelas ruas, porque não havia onde acomodar a todos. Voltavam
após o término das aulas, às 21 horas. Muitas vezes, Thaís, com apenas 2 anos, adormecia, vinha no colo. Até o dia em que Vânia bateu o pé, contundente, enérgica:
— Carlos, assim não dá mais! Agora serão quatro crianças, dois meninos e duas meninas, não podemos continuar vivendo dessa maneira. É uma vida precária. Não vai
ser possível educar os filhos, dar aulas, cuidar de tudo, apertado assim. Até quando vamos viver nessa situação?
Priscila Roberta nasceu em 3 de abril de 1989. Os irmãos gêmeos lembram: A vida de nossos pais era difícil, de luta e trabalho, não tínhamos dinheiro para grandes
coisas. Nos divertíamos passeando, e quando podíamos fazíamos um churrasquinho no parque Taquaral. Às vezes íamos a uma pizzaria. Para ter ideia, começamos a frequentar
shoppings somente depois dos 12 anos. Mas não era vida ruim, não. Nunca passamos necessidade, apenas nossos pais eram controlados, evitavam dívidas. Nunca usavam
cartão de crédito. Uma coisa mudou. Com o movimento de Campinas, uma cidade grande, trânsito intenso, acabaram as brincadeiras de rua.
• 11 •
Um trio excepcional alavancou a Wizard
CONVERSANDO, ANTÔNIO E HILDA chegaram a uma conclusão: “Já demos nossa contribuição. Agora o Carlos pode andar sozinho”. Esperaram alguns dias e comunicaram:
— Filho, chegou a hora de partirmos. Temos seis filhos morando nos Estados Unidos. Os netos estão nascendo por lá também. Vamos socorrer seus irmãos. Tome. Aqui
estão 5 mil dólares. Você vai precisar. Quando puder, você paga.
Partiram aos Estados Unidos com as mãos vazias, uma na frente e a outra atrás. Já estavam com mais de 50 anos, não falavam inglês e não tinham qualificação profissional.
Foram para a casa da filha Sonia, a mais velha, enquanto se adaptavam. Outros tempos, Antônio se empregou numa fábrica de chupetas, trabalhando oito horas por dia.
Encerrado o expediente, ia entregar jornais, durante hora e meia para uma distribuidora. Ainda havia um “bico” para a própria fábrica de chupetas, que Antônio fazia
em casa à noite. Depois que conseguiu um work permit, Antônio passou por uma fábrica chinesa e terminou na Nestlé, onde permaneceu por quinze anos. Ao se aposentar
recebeu um bônus de 50 mil dólares. Quanto a Hilda, começou trabalhando no aeroporto, limpando salas, depois passou a fazer faxina em casas particulares e alguns
escritórios. Trabalhavam dia e noite. Aplicando os princípios básicos de autossuficiência, ou seja, viver de acordo com o que se recebe, não gastar mais do que se
ganha, a cada mês poupar um pouco, apesar de sua renda limitada, quinze anos depois conseguiram comprar três bons imóveis nos Estados Unidos. Propriedades pagas
à vista sem financiamento, sem depender de empréstimo bancário. Esse exemplo paterno leva Carlos a sempre ponderar: Quando observo, aqui no Brasil ou nos Estados
Unidos, gente que chega aos 50 ou 60 anos e ainda vive em casas alugadas, sem nenhuma perspectiva, pensando que a vida está se aproximando do fim e os sonhos se
acabaram, olho para o exemplo de meus pais. São inspiração, exemplo da capacidade de trabalho e da administração de recursos. Pessoas que nunca tiveram medo de assumir
riscos. Sempre olharam o mundo com uma atitude mental positiva.
Por um momento, veio à mente de Carlos aquele instante em que ele e Vânia saíram de Campinas rumo ao desconhecido. “Revivi lá atrás aquele pai que, quando revelei
que queria ir para os Estados Unidos, sem dinheiro, sem nada, disse apenas: ‘Vá! Que Deus te abençoe’”. No dia da partida, Carlos conversou longamente com o pai.
Quando Antônio se despediu, o filho perguntou:
— E o que será da escola?
— Confie, filho. Somente Deus sabe!
Ele tinha razão. Ninguém conseguiria prever o que estava à frente de Carlos e Vânia na condução de seu pequeno empreendimento.
Os dois venderam a modesta casa de Curitiba, na qual haviam dado uma pequena entrada e com mais 5 mil dólares no bolso saíram em busca de um imóvel em Campinas.
Encontraram um que os agradou no bairro Santa Genebra. No entanto, surgiu um obstáculo, o dinheiro da entrada não era suficiente. Vânia teve a ideia:
— Que tal apelarmos para seus irmãos que moram nos Estados Unidos?
Falaram com todos, emprestando mil dólares de um, 2 mil de outro, até completar a quantia necessária para a entrada. O saldo restante foi financiado pela Caixa Econômica
Federal. Adquirida a casa, a família viveu momentos de grande euforia. Haviam se livrado do aluguel. Apesar das dívidas contraídas, pelo menos agora a filha Priscila
podia nascer numa casa, e não numa escola. Era na periferia, porém confortável, com sala, cozinha, três quartos, banheiro. No fundo do quintal, um campinho de futebol,
onde, nos fins de semana, o pai batia bola com Charles e Lincoln. Maneira de espairecer e promover a integração familiar. Dali em diante, a casa da rua Dez de Setembro
virou totalmente escolar, e os Martins se instalaram em Santa Genebra. A vida começou a ser um pouco mais folgada. Os meninos puderam criar suas cachorrinhas basset
Sicha e Laika, e as meninas adotaram um coelho chamado Puffy. Os pais, preocupados com o desenvolvimento dos filhos, compraram um piano usado e matricularam as crianças
nas aulas de música. Hoje, eles distraem a família quando se juntam, tocando músicas que aprenderam na infância.
UMA CARTA NA MADRUGADA
Certo dia, quase meia-noite, Carlos chegou em casa. Vânia e as crianças estavam dormindo. Na mesa da cozinha, havia uma carta para ele. Curioso, quase rasgou o envelope
na pressa. O que seria? Problemas? Se fosse, ela teria esperado acordada. Vânia escreveu:
Meu bem, ando preocupada com você. Queria muito conversar sobre esse assunto, mas achei melhor escrever. Não me leve a mal. Escrevo pensando em seu bem-estar e de
nossa família. Observo que você é muito esforçado em seu trabalho, muito dedicado, responsável, leva tudo muito a sério. Acontece que temos filhos pequenos para
criar. Muitas vezes você sai de casa às seis horas da manhã, passa o dia inteiro longe de casa. Quando volta à noite, as crianças já estão dormindo. Lembre-se de
que as meninas pequenas esperam, querem e precisam receber seu abraço. Os meninos ainda pequenos querem ver o pai chegar em casa para jogar bola. Você não pode roubar
esse momento da vida de nossos filhos. Sei que sua intenção de trabalhar tanto é boa e que faz isso visando nosso bem-estar. Mas sinto que está havendo um desequilíbrio
muito grande entre o trabalho e nossa vida familiar. Já orei a Deus sobre isso e sabe qual foi a resposta? Você deve colocar a família em primeiro lugar e Deus vai
enviar pessoas honestas e competentes para trabalhar ao seu lado. Então eu gostaria de convidá-lo a ficar mais presente em casa. Confie nessa promessa. Não precisa
temer. Eu te amo muito. Quando lembro dessa carta, me comove pensar no ânimo de Vânia, seu sacrifício excepcional, sua disposição de ir em frente, com boa vontade,
sem desaprovar, recriminar. Sabia que estávamos lutando para ter uma vida independente. Dava total apoio, agindo como dona de casa, esposa, mãe e “sócia” em turnos
dobrados ou triplicados. Certamente, se não fosse por ela, eu não teria vencido todas as barreiras iniciais. Com frequência repito essa frase: “Meu bem, você merece
todo o conforto do mundo!”.
UM EMPRÉSTIMO PAGO DIA A DIA
Vez ou outra surgem, como relâmpagos fugazes, lembranças de momentos de angústia diante de situações para as quais parecia não haver saída. A Wizard nos primeiros
anos e até se consolidar, como qualquer empresa que avança, aqui e ali se viu sufocada, sem saída do ponto de vista financeiro. Quando ela nasceu, vivia-se sob o
governo José Sarney, quando a inflação alçava-se a casas insuportáveis de 80% ou 90% ao mês. Vieram os Planos Cruzados que nada resolveram, a moeda foi trocada,
ninguém sabia como planejar.
Então, vieram os anos 1990, quando o Brasil penetrou num corredor escuro que trouxe desespero. Foi quando o governo Fernando Collor de Mello confiscou todo o dinheiro
de todas as contas físicas e jurídicas do país. De um dia para o outro, não houve sequer um cidadão brasileiro ou uma empresa que não tenha estado à beira do abismo,
perdendo noites e noites em busca de solução para o insolúvel.
A Wizard tinha compromissos com funcionários e fornecedores, e necessitava de dinheiro para fazer funcionar suas operações. Em caixa, zero. Nesse momento, pela primeira
vez, foi preciso recorrer a um empréstimo bancário, coisa que provocava horror em Carlos, que conhecia os mecanismos. Apanharam o dinheiro e solucionaram momentaneamente
o problema. No entanto, no vencimento da primeira parcela, o caixa continuava vazio. Um mal-estar incomensurável tomou conta do casal, principalmente de Vânia, que
cuidava das finanças e era supercontrolada. Mal-estar físico, psíquico, houve de tudo. Segundo mês, caixa vazio. À beira da depressão, Vânia tomou uma decisão e
foi ao Banco Cidade de Campinas. Ao ser atendida pelo gerente, chamado Basso, ela lhe disse.
— Devo ao banco e vou pagar cada centavo. Porém, não estou em condições de honrar os pagamentos conforme o combinado.
— E o que podemos fazer?
— Vim fazer uma proposta que talvez não esteja nas normas bancárias.
Agoniada, ela silenciou por um minuto.
— Diga, minha senhora.
— Todos os dias, no final do expediente, recolho o que houver em caixa e trago ao banco. A cada dia vocês receberão um dinheirinho. Assim vou pagando pouco a pouco,
na medida das possibilidades. Do contrário, fechamos.
— Realmente não é nada ortodoxo, não é uma norma. Aliás, é a primeira vez que um cliente se dispõe a pagar dessa maneira. Porém, cada situação é uma situação.
“Minha nossa”, ela pensou, “Se ele não concordar, o que faço?” Basso sorriu e acenou afirmativamente com a cabeça.
— Está bem assim! Tentemos, não custa.
Daquele dia em diante, todos os dias, pontualmente às 16h30, o vigia via a Brasília azul de Vânia se aproximar e abria o portão. Ela chegava e depositava o que tinha
sido arrecadado. Meses depois, a dívida estava saldada.
Passou o tempo e, certo dia, na escola, a recepcionista veio avisar Vânia que o gerente do Banco Cidade queria falar com ela. “Ih, será que fiquei devendo alguma
coisa? Um saldo escondido que rolou e cresceu com juros?” Temerosa, mandou Basso entrar.
— Nossa, quanto tempo...
— Verdade, sentimos sua falta no banco, estávamos acostumados.
— E agora?
— Vim fazer uma visita, estamos com produtos novos, linhas de crédito especiais. Lembrei-me de você como ótima cliente, estou oferecendo recursos para investir e
ampliar seu negócio.
— Ah, Basso! Muito obrigada. Mesmo! O senhor foi incrível pela paciência e pela confiança e devemos muito, temos a maior consideração. Porém, decidimos que a próxima
vez que voltarmos ao banco será para aplicar nosso dinheiro. Não para emprestar. Daqui para a frente, dos bancos queremos os juros.
— Pois vou dizer que a senhora está certa.
Anos depois, Basso ligou para avisar que estava em outro banco e que se a Wizard precisasse de dinheiro ele estava à disposição. Ela ficou feliz, pois isso mostrou
que sabia se mover no mundo complexo das finanças, conquistando confiança.
TRÊS PILARES DA WIZARD
Naquele difícil início, três pessoas tiveram um impacto muito grande na atividade da escola. Cada um tinha uma competência distinta fundamental para o êxito do negócio.
Roque César de Campos era um executivo que havia trabalhado em grandes empresas e na época estava fazendo consultoria para pequenas e médias organizações. Expliquei
a ele a nossa atividade e o desafio que enfrentávamos, buscando transformar professores em empreendedores. Roque foi o primeiro profissional, o primeiro executivo
com quem trabalhamos que ampliou a visão de uma atividade puramente de ensino para uma atividade empresarial de grande escala. Na sua visão de negócios, já repetia
muito para nós, como se quisesse gravar em nossa mente: “Vai chegar o dia em que a empresa vai crescer, vocês terão várias escolas em várias cidades, vão precisar
montar uma estrutura forte com diversos departamentos. Arquitetura, Recursos Humanos, Pedagógico, Comercial, Logística, Distribuição, Financeiro, Jurídico. Vão ter
de contratar diretores para cuidar de cada um desses setores”.
Vânia e eu estávamos tão no início da atividade, ainda engatinhando, tentando sobreviver, e tudo aquilo parecia um sonho remoto inatingível, como se fosse cena de
um filme imaginário que ele estava contando para nós. Quando saíamos das reuniões, perplexos e ansiosos, ríamos de nervoso: “Nossa! Esse Roque é incrível. Um visionário!
Como consegue projetar coisas que nem nós poderíamos imaginar?”. Sonhos distantes.
Roque César de Campos provou ser um mestre em administração, gestão de projetos, pessoas, planejamento, organização de eventos, de estratégias, execução e acompanhamento
de resultados. Ele chegou no momento certo para transformar uma atividade doméstica em uma empresarial. Literalmente, ele nos pegou pela mão e deu os passos iniciais
conosco. Graças ao Roque realizamos a primeira convenção da Wizard, no despertar da década de 1990. Foi em Campinas, no Hotel Vila Rica, e ele organizou toda a programação,
os workshops, a parte motivacional, a parte de orientação técnica. Executou todo um trabalho de alinhamento e direcionamento a um projeto grandioso. Não passavam,
modestamente, de uns quarenta concessionários. Ele mais tarde criou o contrato de franquia que regulamenta a relação entre as partes. Estabeleceu vários padrões
e procedimentos. Modelos de gestão e comunicação, alguns deles praticados ate hoje. Enfim, colocou a casa em ordem.
Naquela época, entrou em cena um segundo personagem, José Carlos Simeoni Ponce. Ele estava interessado em adquirir uma franquia. Após ouvi-lo por meia hora, Carlos
ficou impressionado com seu raciocínio aguçado, lógico e rápido. Ponce explicou que a escola teria três sócios. Ele, um investidor e um professor de inglês. Martins,
intrigado com a composição da sociedade, perguntou, crente de que não receberia uma resposta convincente:
— Ponce, se um dos sócios é professor e o outro entra com o capital, qual é seu papel no negócio?
— Sou o mais importante dos três. Sou o que vai ganhar o dinheiro. Vou ganhar para mim e para meus sócios. Sem mim, o investidor continuará com seu capital e o professor
com seu talento. Juntos, podemos crescer, multiplicar, lucrar.
“Palavras proféticas. Meses após a inauguração da unidade, Ponce e seus sócios estavam sendo homenageados pelo elevado número de alunos, pela qualidade de ensino
e pelo excelente padrão de instalação da escola”, recorda Martins, emocionado.
Ponce provou ser o mais importante dos três sócios. Investido apenas do desejo de vencer, destituído de capital ou do domínio de um segundo idioma, mostrou que,
embora o estudo, o talento e o dinheiro sejam importantes, não podem ser substituídos pela determinação de um indivíduo que sabe aonde quer chegar. Ponce fez uma
contribuição significativa, pois atuou como franqueado, depois aceitou o convite para ser o primeiro diretor comercial da rede e, mais tarde, foi promovido ao cargo
de diretor-superintendente.
Gilberto Baroni na época já estava com mais de 50 anos. Era um profissional qualificado e competente. Em sua carreira, havia tido apenas três empregos e agora buscava
recolocação no mercado de trabalho. Foi contratado quando a escola tinha 35 professores, representantes ou concessionários. Como primeiro controller do grupo, seu
desafio foi implantar as rotinas contábeis, fiscais, tributárias, para garantir a solidez da expansão financeira que o projeto enfrentaria. Os anos se passaram e
até hoje Gilberto Baroni trabalha ao lado de Carlos Martins. Ele já se aposentou várias vezes. Volta para casa, descansa um pouco, mas após alguns meses pega o telefone
e pergunta:
— Carlos, posso continuar trabalhando mais um pouco?
Ele é recebido de braços abertos, pois além de ser profissional experiente, Baroni se tornou um amigo, confidente, conselheiro, tanto para assuntos profissionais,
pessoais e até mesmo familiares. Afinal ele viu os filhos de Carlos crescerem. Participou diretamente de grandes decisões que a família tomou. No coração de Carlos
e Vânia, há uma profunda gratidão ao amigo Baroni.
ACREDITAR NO POTENCIAL DAS PESSOAS
Quando Carlos pensa que seu grupo empresarial gera cerca de milhares de empregos no Brasil e no exterior, ele não pode deixar de se lembrar da carta que recebeu
de Vânia. A promessa foi cumprida. Deus enviou pessoas responsáveis e competentes para trabalhar ao seu lado. E a preocupação da dona Hilda sobre o aumento do funcionalismo?
Bem ele mesmo responde:
— Descobri que as pessoas, em sua maioria, são honestas, talentosas, criativas, cheias de potencialidades. Precisam apenas de uma oportunidade de se descobrir, de
pôr em prática sua capacidade de realização. Tão logo encontram um ambiente promissor, com perspectivas de desenvolvimento pessoal e profissional, realizam empreendimentos
grandiosos. Mudam, ganham autoestima, confiança, estão prontas a arriscar e sonhar. Então, seu desempenho é fantástico. Elas se surpreendem com o que são capazes
de conquistar.
• 12 •
Multiplicação de talentos
COM 31 ANOS, CARLOS ERA UM JOVEM EMPREENDEDOR, sonhador, inquieto, um homem maduro que sempre pensava como vencer financeiramente. Concluído o curso em uma grande
universidade, teve sete anos de vivência internacional, cinco nos Estados Unidos e dois na Europa, período que lhe deu uma visão abrangente de mundo e de negócios.
Não era mais um jovem com um olhar limitado sobre seu futuro. No exterior conhecera um modelo de negócio bem estabelecido e bem-sucedido, o das franquias, que poderia
ser aplicado no Brasil. Tendência nova para o país de um modelo já comprovado no estrangeiro. A expansão empresarial apresentava linhas que obedeciam padrões e conceitos
preestabelecidos e predeterminados.
Carlos tinha visualizado no exterior alguns empreendimentos que se expandiam rapidamente por diversas cidades, com a mesma marca, o mesmo produto, a mesma filosofia,
o mesmo tipo de serviço, a mesma qualidade no atendimento e, em muitos casos, a mesma arquitetura e decoração de lojas e ambientes.
Mantinha-se o controle central, tendo parceiros espalhados por várias áreas. Essa maneira moderna de funcionar ficou gravada dentro dele. “Então, quando surgiu a
Associação Brasileira de Franchising, tudo veio à tona, houve uma convergência de momentos. No final da década de 1980, a Wizard e a ABF nasceram juntas.” A partir
dali não houve palestra, seminário, encontro, feira, exposição, evento sobre o tema, que promovesse o novo sistema, ao qual ele não comparecesse, ávido por se alimentar.
Para saber, conhecer, penetrar nos meandros, iluminar pontos obscuros, encontrar saídas.
No futuro, Martins escreveria sobre suas experiências, sua maneira de ser e agir, repartindo o que aprendeu. Ele sempre se baseou em conceitos como Você é o criador
de sua própria vida. O que isso significa? Que “seus pensamentos, seus sentimentos e suas palavras têm poder”. Lemos nas Escrituras Sagradas que “por meio da palavra,
mundos foram criados, o próprio homem foi criado, a água jorrou de uma montanha”. Portanto, imagine o que a força da palavra pode fazer em sua vida. Por isso, evite
pensar e falar de modo negativo, pessimista e fatalista. Sem saber, você atrai para si mesmo aquilo que fala, pensa e despende energia. Ao gastar energia e tempo
preocupando-se com tudo o que não quer, você acaba catalisando para si aquilo que não deseja. Isso acontece no nível inconsciente 24 horas por dia, 7 dias por semana.
Tudo o que está lhe acontecendo neste momento é você quem está atraindo para o cotidiano. O Universo lhe dará certamente o que busca, seja algo positivo ou negativo.
Não existe meio-termo na busca de seus sonhos. Ou você está se aproximando ou se distanciando deles. A escolha é sua. Você decide a cada dia, a cada momento, a cada
instante os pensamentos que circulam em sua mente, e suas ações determinam seu destino. Desse modo, você é responsável pela obra-prima de sua vida, de sua existência,
de seus sonhos.”
Carlos adverte que “atraímos pessoas, circunstâncias e eventos por meio de nossos pensamentos”. Esse pioneiro empreendedor acredita que a metodologia de ensino por
ele criada e praticada na Wizard teve berço na Brigham University. Um método de grande impacto. Mais do que empreendedores, somos educadores. O aluno que conclui
o curso em nossas escolas sai satisfeito. Porque, além de aprender uma segunda língua, ele adquire técnicas de liderança, é um curso de como vencer na vida, um preparo
para uma carreira profissional internacional. Por isso, desde o início, o tempo todo, investimos na área de desenvolvimento das equipes, na formação das pessoas,
na qualidade do atendimento.
Desde o começo, nos debruçamos sobre o marketing, assim estamos presentes nos principais meios de divulgação. O aluno, o consumidor, tem orgulho de ver a marca,
ver a escola dele presente em todos os meios, no país inteiro. Somos a única escola de inglês do Brasil que possui mais de um milhão de fãs no Facebook.
Acrescente-se que Carlos, desde o princípio, depois de haver recebido aquela resposta divina, jamais imaginou ter uma escola de inglês apenas. A inspiração daquele
momento já me remetia a uma rede de escolas de idiomas em nível nacional, apenas ainda não sabia como realizar isso. Não tinha noção do processo do desenvolvimento
e os desafios que enfrentaria. E que desafios eram esses? Primeiro, encontrar pessoas que se unissem a nós a fim de criar uma estrutura empresarial para desenvolver
o projeto. Depois, buscar as pessoas que atuariam nas pontas, em cada uma das cidades, das localidades, para utilizar a marca e a metodologia que usávamos na sede
em Campinas. Afinal, o grande segredo do negócio era ganhar escala nacional.
Os concessionários passaram a ser chamados de franqueados. Natural que fossem professores. No entanto, Martins teve um problema pela frente. Muitos eram grandes
profissionais, excelentes mestres, tinham o dom e o talento para dar aulas. Porém, ainda precisavam descobrir neles o potencial empreendedor. Sentimos desde o início
que nossa missão consistia em promover a qualificação profissional, e muitas vezes emocional, para transformar esses professores em empreendedores. Para alguns desses
pioneiros, os sonhos do professor Martins se tornaram um pesadelo muito grande. Não suportaram. Houve quem aceitasse, eram pessoas que tinham uma visão de vida e
trabalho compatível com uma expansão empresarial. Outros simplesmente disseram: “Não, nada disso, queremos apenas ser professores”. Isso foi respeitado, muitos continuaram
trabalhando dando aulas com eficiência até hoje. Cada um tem seu próprio talento, um dom ou missão.
Considero-me um verdadeiro apaixonado pelo sistema de franchising. Tanto do ponto de vista do consumidor quanto do empreendedor, acredito ser esta a melhor opção
na obtenção de produtos e serviços. A franquia, acima de tudo, é uma fórmula testada e comprovada de montar um negócio, utilizando a experiência, o know-how e as
técnicas de uma empresa bem-sucedida. O sistema de franchising multiplica os recursos, expande a receita, amplia os negócios, gera empregos, qualifica a mão de obra
e valoriza o cliente. Ele é a forma mais segura e rentável de montar o próprio negócio. Muitos são os exemplos de pessoas que aderem à franquia com um mínimo de
recursos e conseguem, por meio do próprio esforço, mudar sua condição financeira. Uma franquia bem-sucedida é uma fórmula de sucesso capaz de ser reproduzida várias
vezes.
UM MODELO DE SUCESSO
Ao analisarmos a trajetória vitoriosa de Carlos Martins, logo veremos que ninguém jamais realizou algo grande sozinho. Ele venceu graças a sua capacidade de formar,
treinar, motivar e recompensar a equipe de profissionais em diversos níveis. Ele costuma afirmar que “Você somente alcançará sucesso de verdade quando for capaz
de auxiliar outros a ter sucesso”. Esta é uma de suas grandes satisfações: poder acompanhar o processo de transformação na vida de centenas de empreendedores que
acreditam em si mesmos, em seu sucesso, em seus sonhos e num curto espaço de tempo atingem a condição de empresários bem-sucedidos. Carlos afirma que “para alguns,
esse processo é gradual e lento, porém, para outros, esse processo de transformação ocorre tão rapidamente que eles mesmos se surpreendem”.
É natural todo mundo desejar o sucesso. Mas poucos têm um modelo para seguir. Carlos se orgulha quando pensa que criou “uma grande escola de empreendedores”. Em
anos recentes, ele afirma que, graças ao seu modelo de franquia, ajudou a formar mais de cem novos milionários nos últimos anos no Brasil. Importante: a maioria
deles começou do zero. Cada um entrou para a rede de franquias com uma formação profissional e acadêmica distinta, mas todos têm uma característica em comum: são
apaixonados pela área de ensino, possuem um forte espírito empreendedor e abraçaram a educação como projeto de vida.
O PARCEIRO QUE FEZ SEU PRIMEIRO MILHÃO
Carlos recorda, feliz, uma conversa breve que teve com um franqueado em uma convenção realizada na Costa do Sauípe. Já era mais de meia-noite. A banda continuava
tocando no salão principal. Ele e Vânia estavam se dirigindo para o quarto quando foram interrompidos por um jovem franqueado. Ele disse:
— Hoje me considero uma pessoa super-realizada e gostaria de agradecer a vocês por isso. Sabe por quê? Porque este ano completei 30 anos. Minha filhinha nasceu.
Comprei a casa própria. Paguei pela casa mais de 1 milhão de reais. Paguei à vista. E o carro que está na garagem é uma BMW.
Naquele momento o casal ficou emocionado com a vitória do parceiro, a noite terminou com um abraço a três.
SONHO COLETIVO
Carlos sabe que esses empreendedores venceram graças a sua capacidade de transformar o sonho individual em coletivo. Quando você acredita o suficiente em você, em
seu potencial multiplicador, está pronto para dar este passo fundamental: influenciar as pessoas ao redor a abraçar seu sonho. Quando as pessoas a sua volta se unirem
a você na busca de seu sonho, seu empreendimento se transformará em algo muito maior do que você mesmo. A pergunta é: “Como fazer isso acontecer?”.
A resposta, seguindo sete conceitos fundamentais:
Acreditar. O primeiro passo para criar um time vencedor é acreditar nas pessoas e em sua capacidade de realização. Acreditar é confiar, e a confiança é um valor
para quem a dá e para quem a recebe, pois cria um vínculo sólido em qualquer time.
Treinar. Por realmente acreditar em sua equipe, você dedicará tempo e recursos para qualificar, capacitar e treinar seus profissionais. Desenvolver é um dos desafios
mais gratificantes de um líder bem-sucedido.
Motivar. Como líder de uma organização, você precisará ser o principal incentivador daqueles que estão sob sua gestão. Seus liderados serão um reflexo direto de
você mesmo. Se você se apresentar cabisbaixo, abatido, mal-humorado, seus liderados vão agir da mesma maneira. Se você tiver energia e entusiasmo, contagiará a todos.
Delegar. Quem possui o espírito empreendedor precisa se familiarizar bem com o princípio da delegação. O líder sabe que seu tempo e sua capacidade são limitados
e por isso conta com o talento e a experiência dos membros de seu time.
Acompanhar. Delegação sem acompanhamento e prazo combinado para a entrega das tarefas é pura enganação, tanto para quem dá a ordem quanto para quem a recebe. Se
um líder deixar a equipe solta sem acompanhamento e cobrança, talvez ele nunca mais ouça falar do assunto delegado.
Avaliar. Outro aspecto importante para quem lidera um time é, de tempos em tempos, reunir a equipe para avaliar os resultados, estabelecer prioridades e corrigir
o rumo.
Comemorar. Carlos descobriu que as pessoas são mais motivadas pela valorização, pelo reconhecimento e pela oportunidade de crescimento profissional do que somente
pela remuneração. Por isso, reserve sempre um tempo para comemorar os resultados alcançados.
No fundo, trata-se de ajudar seus colaboradores a ver neles os talentos que muitas vezes eles próprios não conseguem ver.
A existência da Wizard é baseada na capacidade que seu líder tem, continuamente, de escolher seus parceiros, saber motivá-los e transformá-los em empreendedores.
Na capacidade de olhar e saber quem tem sonho, desejos, ambição e garra, apostando e investindo nele. O que gera uma contínua multiplicação de talentos, que, por
sua vez, vai gerar outros talentos, como um motor contínuo.
• 13 •
Dolorosa experiência de vida
CARLOS ATENDEU O TELEFONE, ouviu por um minuto, perdeu a fala, não conseguiu responder, uma névoa cinza pareceu cair sobre a sala. Do outro lado da linha, a pessoa
falava, Carlos deixou de ouvir. Não queria ouvir. Tudo o que conseguia pensar era: “Não, meu Deus! Diga que não é verdade! É um engano. Estão ligando para a pessoa
errada”.
— Alô, alô, repetia a voz. Carlos, está aí? Carlos Martins, alô, alô... Você me ouviu? Ouviu a notícia que acabei de dar? Carlos...
— Estou aqui, pode falar... Quem é?
Ele não tinha reconhecido a voz de Isabel Damico, uma amiga de Vânia.
— Carlos, vou repetir tudo... Houve um acidente de carro. Você tem de vir para cá, urgente...
— Acidente? Onde?
— Aqui no Tapetão. Venha rápido! Com seus filhos...
O Tapetão é o apelido de uma grande avenida de Campinas que vai do Taquaral para Barão Geraldo.
— Seus filhos gêmeos estavam no carro, foi grave!
Súbito, Carlos despertou, saltou da mesa, correu, eram 18h30 do dia 3 de agosto de 1998, inverno, já estava escuro. Ele estava terminando uma reunião com Léa Bueno,
coordenadora pedagógica, quando a secretária passou a chamada. Lea olhou espantada para aquele homem que desapareceu em um segundo, tomado pelo desespero. Vânia
estava na escola, em outra sala, em uma reunião do financeiro com o contador Baroni. Passado um tempo, Baroni recebeu uma ligação, olhou para Vânia, disse secamente:
“Depois nos falamos”. Apanhou o carro e saiu sem explicar nada, Vânia ficou perplexa.
O trânsito estava pesado e, ao aproximar-se do Tapetão, a angústia de Carlos aumentou, a polícia redirecionava os carros para outras ruas, um caos, tudo travado,
buzinas, congestionamento, motoristas nervosos. E ele precisando chegar. Um guarda fez sinais enérgicos, bloqueando a passagem, ele gritou:
— Meus filhos estão naquele carro...
O guarda abriu caminho. Na cena, havia policiais, bombeiros, paramédicos, ambulâncias, curiosos, jornalistas. No meio da pista, o trator pesado, toneladas de ferro,
contra o qual o carro tinha batido. Temeroso, Carlos se aproximou. O lado do motorista estava vazio. No outro banco, julgou reconhecer Charles, desacordado, preso
nas ferragens. Vivo? Como saber? Confuso, tentando manter a serenidade, coração aos saltos, ele dizia ao jovem preso entre ferragens.
— Fique tranquilo, está tudo bem, tudo vai ficar bem.
Guardas tentavam afastá-lo, Carlos perguntava:
— Havia mais gente no carro?
— Havia, foram levados para o hospital da Unicamp.
O hospital era próximo ao acidente. De repente, Isabel, a amiga que tinha telefonado, se aproximou, ele pediu:
— Me faz um favor? Vá até minha casa, converse com Vânia! É preciso prepará-la para este choque! Ela não deve vir! Não terá forças para enfrentar.
Profissionais se aproximaram para tirar o corpo das ferragens. Um dos guardas perguntou:
— O senhor é o pai dos gêmeos?
— Sim.
— Lamento! O senhor acaba de perder um filho. Estamos tentando salvar o outro.
Ele não conseguiu se mover, nem sabia onde tinha deixado o carro. Conseguiu achar, demorou para sair daquela confusão. O baque tinha sido forte, ele sentia aquele
trator imenso em cima de seu corpo. “Foi um choque gigantesco, a situação mais trágica que um pai pode enfrentar”, lembra-se Carlos, que ainda se emociona e trava
a voz ao recordar os fatos, quinze anos depois. Como um autômato, dirigiu até a Unicamp. Foi impedido de entrar no hospital, mesmo dizendo que era o pai da vítima.
Havia alvoroço na porta do pronto-socorro. E com a ausência de notícias, um vazio dentro da cabeça. Atordoado, viu chegar uma ambulância com um corpo. Alguém exclamou:
— Esse já foi.
Tudo girava, ele sabia que não podia se deixar abater, precisava manter o domínio de si. Dali mesmo ligou para o cunhado Enos em Curitiba, depois para um colega
de trabalho, Mario Costa, e enfim para Gilberto Baroni, o amigo de trabalho e líder da igreja, contando o acontecido. Precisava ouvir uma voz amiga. Baroni teve
palavras que acalmaram um pouco aquele pai que tinha a sensação de estar em um abismo negro.
Chegavam amigos, funcionários e conhecidos, os telefonemas esparramavam a notícia, havia uma multidão diante do hospital. Levada por um casal de médicos amigos,
Vânia chegou. Abraçou o marido chorando; como percebeu que ela não tinha nenhuma informação, ele apenas disse que os garotos estavam sendo atendidos e medicados.
Nesse instante, uma enfermeira apareceu e anunciou:
— Estamos tentando salvar o Charles. Está sendo operado.
Carlos estranhou. Tinha ouvido que o filho morrera. Chamou a enfermeira de lado:
— Você está dizendo isso para consolar minha esposa? Não quer dizer a verdade para ela?
— A verdade é essa! Estamos tentando recuperar o jovem. Ele sofreu traumatismo craniano, hemorragia interna, tem uma fratura exposta numa perna e quebrou o braço
em sete lugares. Está inconsciente na UTI, entre a vida e a morte...
— Por favor, não me engane.
— A verdade é essa. Ele está vivo.
“Naquele momento acendeu em mim uma chama de esperança, de fé. Talvez Charles estivesse mesmo vivo. Vai ver tinha uma chance de sobreviver”, pensou Carlos. “Porém,
eu estava confuso. Não me contive, perguntei:
— Quem morreu, então?
— O outro passageiro do carro.
— Quer dizer que havia um terceiro?
— Sim, esse é que faleceu.
“Mas eu podia jurar que tinha visto Charles preso entre as ferragens. Teria sido meu desespero, alucinação? Como a nossa mente é complexa. Insisti e fiquei sabendo
que o terceiro passageiro, o que falecera, era Fernando Carinhana, um amigo de meus filhos.”
Vânia sentiu-se mal, pensando no sofrimento da mãe do menino. Naquele instante, tudo veio à mente dela. Fernando passara o dia na casa dos Martins e como já estava
bem escuro, Vânia achou melhor que o jovem dormisse lá aquela noite. Conversa vai, conversa vem, os gêmeos decidiram levá-lo para casa. Charles ia entrando no banco
da frente, Fernando se adiantou: “Na frente sento eu”, e ali ficou. Partiram e ao chegar no Tapetão, surgiu no meio da pista, no escuro, sem luzes, atravessando
a pista, um trator imenso, monstro de ferro e aço. Não devia estar ali. Estava. Fernando morreu na hora. Não tivesse trocado de lugar com Charles, teria sido este.
Carlos e Vânia, sem saber como, se viram dentro do hospital e se aproximaram do leito onde Lincoln estava sendo medicado numa maca no corredor. Consciente, com muitos
ferimentos no corpo, mas sem correr risco de morte. Confortaram o jovem e foram afastados, era gente demais se amontoando, empurrando, falando, médicos, enfermeiros,
anestesistas, atendentes, correndo de um lado para outro, havia outros pacientes além dos acidentados. Carlos nada disse ao filho sobre o irmão.
Finalmente, alta madrugada, os médicos deram uma avaliação mais detalhada do estado de saúde dos dois garotos. Gravíssimo um deles, porém com possibilidades de vida.
Recomendaram: “Voltem para casa. Precisam descansar”.
Vânia, de tão nervosa, perdeu o controle do maxilar. Tremia convulsivamente. Tomou um calmante. Repetia: “O que será que Deus quer que eu faça para ele salvar a
vida do Charles?”. Amigas vieram para dormir na casa, dar apoio. Priscila, com 9 anos, deitou-se ao lado da mãe, que chorou até adormecer de cansaço. Por alguma
razão, veio à mente de Vânia que em sua família eram oito irmãos, os sete casados tinham filhos biológicos. No entanto, três deles, além dos filhos biológicos, adotaram
outras crianças. Vânia sempre dissera para seus irmãos: “Tenho quatro filhos e não quero mais nenhum, é muita responsabilidade, trabalho, precisa muita dedicação.
Admiro a iniciativa de meus irmãos, mas não vou adotar nenhuma criança. Sou impaciente, ter um filho adotado exige muita dedicação, empenho total”. No entanto, ao
despertar após aquela madrugada e fazer suas orações ela teve um sentimento forte. Uma inspiração: “Meu Deus, faço esta prece com todas as forças de meu coração
para que o Senhor possa salvar nosso filho. Sendo atendida, prometo que vou cuidar de um filho seu que esteja abandonado”. Pediu mais, que o Senhor ajudasse, porque,
se Carlos tivesse sentimentos contrários, aquele filho seria um empecilho na vida de ambos.
Carlos ainda hoje se mostra emocionado:
“Pela primeira vez na vida, ela considerou a possibilidade de adotar uma criança menos afortunada. Naquela manhã quando expressou seus sentimentos, eu a apoiei.”
— Deus sempre nos mandou filhos aos pares. Vieram os gêmeos. Depois de sete anos nasceu uma menina e em seguida outra, que se criaram juntas, por terem pequeníssima
diferença de idade. Já se passaram dez anos. Você vai adotar um, eu também adoto um. Assim, cuidaremos de duas crianças carentes.
— E vamos aceitar quem Deus nos mandar. Cuidaremos deles da melhor forma.
Lincoln recebeu alta rapidamente, sofreu ferimentos mais leves. Charles, por sua vez, passou quinze dias em coma na UTI. Uma eternidade para a família que não sabia
do destino do filho que havia sido pronunciado morto. Sem nenhum movimento, sem qualquer reação, nenhum sinal de melhora. Carlos e Vânia passavam o tempo com altos
e baixos, sobressaltos e esperanças. Vinha uma notícia boa, seguida por outra ruim. Uma péssima, secundada por uma provável melhora. A cada momento ouviam: “O pulmão
está acumulando água”; “Os rins passaram a funcionar mal”; “Apareceu um problema na coagulação”.
Ou enfrentavam a linguagem médica, científica, hermética, que não entendiam e não sabiam como interpretar. O roteiro era invariável. Eles se alternavam entre a casa
e o hospital da Unicamp, em completo desassossego. Quinze dias depois, aconteceu uma primeira reação, um leve movimento dos olhos. Charles começava a renascer. Não
tenho a mínima ideia de quanto tempo o processo durou, a memória mistura claros e escuros. Vieram novas especulações. Será que Charles ficaria paraplégico? Algum
dia recuperaria os movimentos? Quais seriam as sequelas? Teríamos em casa um homem-vegetal?
Havia um médico, amigo de família, que integrava o Hospital das Clínicas em São Paulo. Vânia ligou para ele, explicou a situação, queria transferir Charles de Campinas
para a capital. No dia seguinte, o amigo chamou:
— Telefonei para a Unicamp. A coisa é muito mais grave do que vocês pensam, não tem nenhuma condição de transferência, é um risco enorme.
Finalmente, Charles voltou para casa, consciente, porém imóvel. Dos sessenta e tantos quilos que pesava antes, estava com menos de quarenta. Era um bebê de 18 anos,
não conseguia comer, ir ao banheiro, não se locomovia, tínhamos de alimentá-lo, dar banho, transportá-lo da cadeira de rodas para a cama. Ele não conseguia segurar
uma bala com as mãos. Sua fala era o balbuciar de uma criança. Uma voz mansa, pausada, lenta. Felizmente seu cérebro não tinha sido afetado, seu raciocínio estava
intacto.
Sessões diárias, intensas, de fisioterapia. Qualquer saída de casa era na cadeira de rodas, fosse ao cinema, ao shopping, à igreja, à casa de amigos. Quando ele
pedia, Carlos colocava a cadeira no carro e levava o filho ao estádio de futebol.
“Um dia, a família foi tomada de emoção, Charles, na hidroterapia, como uma criança que dá seus primeiros passos, andou lentamente de um lado ao outro da piscina,
sozinho. Era o início do restabelecimento de sua capacidade de caminhar.”
Passados seis meses do trágico acidente, chegou o grande momento na vida de um jovem Mórmon. Aquele em que, aos 19 anos, ele se apresenta para fazer o trabalho missionário.
Desde criança os dois irmãos se preparavam para partir para uma missão. No entanto, tudo tinha mudado. Lincoln se apresentou, porém Charles ainda não havia tido
alta médica. Estava sem condições, lutando, amparado por uma equipe de fisioterapeutas, fonoaudiólogos, psicólogos e tudo mais necessário. Ele ainda precisava se
submeter a novas cirurgias reparadoras, menos invasivas.
Lincoln foi chamado a servir como missionário em Houston, Texas. Momento dramático. Os gêmeos estavam sempre unidos em tudo e agora separavam-se, em um momento crucial.
Foi uma ruptura. Seis meses mais tarde, Charles foi considerado são, pronto para a sua missão. Nunca se sabe para onde se vai ser enviado, são centenas de missões
no mundo, destinos os mais diferentes. Os jovens preenchem seus formulários se candidatando ao serviço voluntário, enviam à sede da igreja e aguardam receber a designação
do profeta.
Preocupados, Carlos e Vânia enviaram uma longa carta à igreja, detalhando o acidente, a recuperação, relatando as deficiências e os cuidados, os acompanhamentos
médicos de que Charles necessitava. Fizeram um apelo. Seria possível manter o jovem próximo de casa, em São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba, no caso de ele precisar
de atendimentos especiais? Documentação enviada, carta anexada, veio a espera.
Finalmente, a resposta chegou. A família se reuniu em suspense, cheia de ansiedade. Para onde iria Charles? Estavam prontos para uma comemoração. Abriram o envelope,
se assustaram. Ele tinha sido designado para a África do Sul. Claro que foi uma surpresa, superada somente pela fé. O próximo passo seria um estágio de treinamento
em Provo, Utah, Estados Unidos, onde os jovens missionários se qualificam antes de ir para seus destinos. Como o visto necessário para a África atrasou, Charles
terminou o treinamento em Provo e seguiu para a Flórida, fazendo outro estágio. Finalmente embarcou.
Ao se apresentar ao presidente da missão, o jovem ouviu que a igreja ali atendia a África do Sul, Lesotho, Botswana, Moçambique.
— Achamos conveniente designá-lo para Moçambique, onde se fala português e seu trabalho será mais eficiente.
Passados alguns dias, Charles foi informado, e isso o encheu de orgulho, pois ele e outros cinco jovens norte-americanos eram os primeiros missionários a atuar no
país, portanto desbravadores. Pioneiros dos Mórmons naquele país lusitano. Ele serviu em Maputo, a capital, em Beira, a segunda maior cidade de Moçambique e num
vilarejo chamado Maromeu, a duzentos quilômetros de Beira. Nessa aldeia não havia energia elétrica, água encanada ou qualquer conforto da civilização. Um lugar próximo
ao primitivo. Charles permaneceu na África por 18 meses. Nunca teve nenhum problema de saúde, nunca perdeu um dia de trabalho, estava recuperado.
Hoje, no Conselho de Administração da empresa, Charles admite que a missão foi uma profunda experiência de vida. Moldou sua formação. A mim, acostumado com a casa
de meus pais, de meus avós, superprotegido, me vi tomando banho de água fria numa terra sem energia elétrica, lavando minhas roupas, fazendo comida. Habitava um
país recém-saído de uma guerra civil de 25 anos, inteiramente destruído, sem água potável e sem luz. Nação em ruínas, sem ruas pavimentadas, os hospitais tinham
sido quartéis militares, as pessoas perdiam as pernas ao pisar em minas que explodiam. Havia três telefones para cada mil habitantes. Moçambique era o país mais
pobre do mundo. A língua oficial era o português, porém menos de 20% falava esse idioma, o restante eram dialetos tribais.
Cada vez que olho para trás, vejo uma cena que nunca mais sairá de mim. Um ano teve uma enchente que devastou o país. As águas subiram. Uma mulher grávida se refugiou
em uma árvore com outras pessoas de sua aldeia. Porém, as águas chegaram até ela. As contrações começaram, ela entrou em trabalho de parto, com mulheres em volta
ajudando. Uma hora depois do parto, uma equipe de resgate salvou o bebê e sua mãe. Isto foi notícia em todo o mundo, até hoje pode ser encontrada na internet. A
mulher se chamava Sophia Pedro, tinha 22 anos, e a criança salva é Rositha.
Vivendo em meio à pobreza, aprendi a dar valor às coisas mais simples. Nos supermercados não havia carne, leite, iogurte, açúcar. Ali tomei consciência da importância
do básico. Hoje, quando me vejo numa situação difícil, que me parece intransponível, olho para trás, e tudo se torna simples. Não consigo esquecer uma ironia. Levei
um cartão de crédito para me ajudar. Num país sem telefones, sem eletricidade...
Quanto a Lincoln, também diz que seu ganho foi imenso. Aprendi, muito jovem, a me relacionar com as pessoas e a liderar equipes, tratar das pessoas. Uma coisa que
me apavorava era falar em público, hoje falo com segurança. Na missão você fica dois anos e não liga nem recebe ligações da família, a não ser em dois dias especiais,
o da Mães e o Natal. Foi quando tomei consciência do valor da família, da disciplina, de seguir as regras e as orientações. Aprendi sobre os modelos organizacionais.
Durante dois anos acordei às 6h30, trabalhava doze horas por dia e ia dormir às 22h30. Sem férias sem feriado, sem descanso. Visitando creches, orfanatos, asilos,
ajudando a quem precisava. Serviço de amor ao próximo, vivendo com orçamento reduzido. Compartilhando com os outros os princípios e valores que aprendemos na vida,
levando o bem, a vontade de Deus. Quando voltei, encarar a faculdade e a vida foi mais fácil. Ganhei autoconfiança.
• 14 •
Nova realidade em relação ao dinheiro
A WIZARD GANHOU CORPO nos seus primeiros dez anos. A estratégia adotada foi a de começar pelo interior, porque avaliavam e sentiam uma carência muito grande de qualidade
no setor de ensino do inglês. As primeiras cem escolas foram abertas fundamentalmente no interior de São Paulo, a princípio, depois no Brasil.
Quando completou dez anos de existência e compunha uma rede de duzentas escolas em todo o Brasil, Carlos Martins decidiu comemorar com pompa e circunstância. “Em
alto estilo. Escolhemos Orlando, na Flórida. Porque era um grande momento. Elaboramos uma programação intensa, com atividades, passeios, jantares, premiações, workshops
e palestras. Enfim, um evento inesquecível.” Realmente, aquele foi um momento iluminado, porque ali Carlos teve um diálogo com sua esposa que mudaria para sempre
sua condição financeira. Depois da intensa agitação de um dia, no silêncio do quarto de hotel, Vânia fez uma observação que ele achou estranha, intrigante.
— Não sei por que está tão feliz. Por que se mostra tão entusiasmado, empolgado!
— Como não sabe? E a festa de nossos dez anos? Esqueceu que dez anos atrás eu estava desempregado, sem saber o que fazer, sem perspectivas, com filhos para sustentar,
vivendo apertado. E hoje?
— E hoje?
Ela repetiu com uma ironia que o desconcertou.
— Hoje? Criamos uma rede de escolas presente em todo o Brasil. Ensinamos milhares de alunos. Geramos empregos, contribuímos para a educação do país! Não é motivo
para se alegrar e comemorar?
— É. Claro que é. Agora, me diga. Quanto temos em nossa conta bancária?
Foi como se ele tivesse levado um tapa na cara.
— Vou te dizer sinceramente. Não sei.
— Pois eu sei. Após dez anos de trabalho duro, nós dois, com empenho, dedicação, sem pensar no cansaço, com sacrifícios, sabe quanto temos no banco?
— Sabe o nosso saldo?
— Não...
— Três mil reais...
— O quê? Três mil reais?
— Três mil reais.
Foi uma ducha de água gelada. A partir dali, eu não parava de pensar nisso. Três mil reais. Dez anos de trabalho árduo e uma conta quase zerada. Naquele momento
eu sabia que alguma coisa precisaria mudar na forma de lidar com o dinheiro. Continuasse como estava, trabalharia por mais dez anos e ia continuar com os três mil
reais. Na minha coleção de pensamentos, há um que diz: “Quando o discípulo está pronto, logo aparece o mestre”.
AS TRÊS GRAÇAS DE CARLOS
Mais tarde, num voo internacional, um dia caiu-me nas mãos uma revista de bordo com um artigo que me impressionou. O autor era um especialista em gestão financeira
e apresentava um novo conceito, revolucionário na forma de administrar as finanças de pequenas empresas, especialmente as empresas familiares. Conceito que se resumia
em três palavras: poupar na origem.
No momento em que li essas palavras, parecia que as letras saltavam da página e que tinham sido escritas diretamente para mim. Naquele momento me deu um “clique”
e despertei para uma nova realidade em relação ao dinheiro. O conceito consiste em predeterminar, predefinir, prefixar com antecedência qual margem de lucro você
pretende obter de seu negócio ou de sua renda. E tão logo você receba seu salário ou outra fonte de renda, separe imediatamente a parte designada para a formação
de seu patrimônio futuro, e viva somente com o resto. Não importa qual seja seu salário ou receita.
Eu precisava mudar radicalmente minha forma de lidar com o dinheiro. Hoje posso afirmar que graças ao alerta severo de minha esposa naquela noite em Orlando, graças
à decisão de pouparmos na origem e graças à disciplina e à perseverança na aplicação desse conceito, ao longo dos anos subsequentes a Wizard saiu da realidade de
duzentas escolas para se transformar em um dos maiores grupos educacionais do país.
As contínuas entrevistas me deram uma relativa intimidade com Carlos Wizard Martins. Um dia, indaguei: Que impacto teve no desenvolvimento de seus negócios o fato
de ser Mórmon? Esperava essa pergunta, ela é recorrente. Eu seria ingrato e insensível se não reconhecesse que foi importante e significativo. A comunidade Mórmon
tem grande convivência, interação e integração nacional. Desse modo, nos relacionamos com pessoas de todo o Brasil, de todas as camadas econômicas e sociais. Essa
relação vai mais longe, temos acesso à Universidade Brigham Young em Utah, mantida pela igreja, convivemos com líderes empresariais americanos, que atuam em diversas
partes do mundo em vários setores. Devido à influência cultural dos missionários norte-americanos, a parcela de Mórmons brasileiros que fala inglês é muito alta,
as amizades se fazem e evoluem, há troca de experiências acadêmicas e profissionais. Em razão desse relacionamento saudável e propício à cooperação mútua, não foi
difícil encontrar profissionais qualificados para trabalhar conosco em diversos estados do Brasil. Não fossem essas relações, como prospectar professores em Manaus,
Recife, Brasília, tantos lugares? Seria muito difícil fazer uma expansão em grande escala. Portanto, não ha como negar que as amizades, a convivência proporcionada
pela Igreja Mórmon serviu para alavancar o início de nossas atividades. Depois, a rede tomou seus próprios rumos. Hoje, com a evolução do sistema e seu crescimento,
a porcentagem de empresários Mórmons na rede ficou reduzida.
Carlos tem enorme gratidão para com todas as pessoas que o auxiliaram ao longo de sua trajetória. No entanto, há dois líderes da Igreja Mórmon cujos conselhos influenciaram
profundamente seu desenvolvimento pessoal e empresarial. Um deles foi o Elder Helvécio Martins, que fazia parte da presidência da igreja no Brasil. Ao observar o
início modesto da nova escola, teve uma visão profética:
— Vejo — aliás, tenho certeza — que seu negócio vai crescer, expandir, prosperar. Aceita um conselho?
— Claro que sim.
— Dê a Deus o que é de Deus e a César o que é de César.
— Como assim?
— Há fortunas licitas e ilícitas. Deus quer que você construa uma fortuna lícita. Portanto, pague 100% de seus impostos e nunca se arrependerá dessa decisão.
Carlos acredita que esse conselho, um desafio visto com desdém por muitos que atuam num cenário de informalidade neste país, foi essencial para construir uma plataforma
segura e sólida para um crescimento sustentável.
Outro líder por quem Carlos e Vânia têm grande carinho e respeito é o Elder Neil L. Andersen, apóstolo da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias. Certa
vez ele e sua esposa, Kathy, convidaram o casal Martins para um almoço em São Paulo. Conversaram longamente, foram os últimos a deixar o restaurante. Naquele encontro
o Elder Andersen aconselhou Carlos a agir em seu dia a dia com a razão e o coração. Lembrou o ensinamento milenar de que “tudo que de ti sair a ti retornará”. “Portanto,
em momentos sensíveis e delicados de fazer um acordo para pôr fim a uma disputa, a um conflito, acerto de contas nas relações comerciais, devemos tentar equilibrar
a justiça e a misericórdia tão bem exemplificada na vida de Cristo.” Kathy acrescentou: “Às vezes muitas pessoas vão tentar se aproveitar ou tirar vantagem de vocês.
Então, terão a sensação de uma grande injustiça, porque estão agindo legítima e corretamente e a outra parte é que está equivocada. Isso aconteceu conosco. Mesmo
assim, sigam o exemplo do Salvador de ‘dar a outra face’ sem se preocupar com o que isso possa significar materialmente. Não há dinheiro que pague a paz de espírito
e as bênçãos que advirão por terem essa atitude”.
Carlos, homem racional, admite:
Essa foi uma das lições mais difíceis que recebi. Por outro lado, foi a lição que teve maior impacto em minha vida pessoal e empresarial. Com frequência encontro-me
num contexto de decisão entre seguir a razão, a justiça, aliadas à misericórdia. Nesses momentos lembro-me do conselho do Elder Andersen que me ajuda a agir com
equilíbrio. O que me traz grande paz de espírito.
• 15 •
Deus faz tudo à sua maneira
LINCOLN NO TEXAS, CHARLES NA ÁFRICA, as meninas Thaís e Priscila pré-adolescentes. A vida voltava ao normal. Porém, Vânia e Carlos não se esqueceram do compromisso
assumido com Deus. Foram até o Juizado da Infância e da Juventude em Campinas fazer seu cadastro como pretendentes à adoção. Para sua surpresa, não foram bem interpretados.
Questionaram por que adotar se eles já possuíam filhos biológicos. Alguém lhes informou que, se fossem até Curitiba, o processo de adoção seria mais fácil. Que decepção.
Lá chegaram até mesmo a questionar a idade do casal e a motivação aparentemente equivocada da adoção. Algumas pessoas menos instruídas, porém bem-intencionadas,
diziam que não precisavam recorrer ao Juizado, bastava o casal pegar um recém-nascido do hospital e registrar como filho legítimo e tudo estaria resolvido.
Quando Artur Hipólito, um colega de trabalho, soube da intenção de Carlos e Vânia, passou a ser solidário à causa. Ele mesmo tinha uma “filha do coração”, como costuma
dizer. Acompanhou o casal à Associação de Pais Adotivos de Campinas, onde conheceram o professor Bicudo, pessoa predestinada, cuja missão de vida passou a ser instruir
e orientar casais interessados no processo de adoção. A documentação era rigorosa, entrevistas com assistentes sociais, depoimentos dos membros da família, exigia-se
um calhamaço de comprovações, até atestado de antecedentes criminais. Por sua vez, os pais candidatos faziam um memorial de intenções. Os Martins disseram que gostariam
de adotar dois meninos. Se possível, irmãos entre si, e de preferência que o mais velho tivesse no máximo 2 anos. Foram advertidos de que a associação enviaria os
documentos para o país inteiro e que deveriam ter paciência. Poderia ser um período longo, um ano ou mais. Alguém fez uma comparação com uma gestação: “Não esperamos
nove meses para um bebê nascer?”.
Paciência é uma coisa, ansiedade natural outra. Em julho de 2000 a família estava em Curitiba para o casamento de uma sobrinha e também para visitar Enos de Castro
Deus Filho, um cunhado. Exatamente aquele a quem Carlos tinha ligado do local do acidente, comunicando o “falecimento” de Charles. Uma tarde, o celular tocou, era
um interurbano da cidade de Barracão, extremo oeste do Paraná, divisa com a Argentina. Uma pessoa se identificou e disse que tinha recebido o pedido do casal e que
havia uma criança liberada para adoção. Deveriam ir até lá imediatamente, apresentar-se ao Juizado da Infância e ele cuidaria dos procedimentos.
“Tínhamos mandado tantos formulários”, diz Vânia, “que eu nem me lembrava dessa cidade, nem sabia onde era.”
Barracão, com sete mil habitantes, fica na divisa entre Argentina e Santa Catarina. Foi o tempo de encher o tanque do carro, pegar as meninas, passar por uma série
de lojas de roupas para crianças, as meninas ajudando, pega isto, leva aquilo, este é bem bonito. Fazia um frio bárbaro. Montaram um kit improvisado, nem conheciam
a criança, e partiram numa viagem de setecentos quilômetros. Chegaram a Barracão num sábado e, apesar de ser fim de semana, foram atendidos pelo juiz que esclareceu
a situação. Tratava-se de um menino com 3 meses. A mãe biológica, sem condições de cuidar do recém-nascido, tinha mudado para São Paulo, depois de entregar o filho
a uma avó que, por sua vez, repassou a guarda da criança a um casal de idosos até que o juiz permitisse a adoção. Houve uma série de desencontros, vai a uma casa,
não havia ninguém, vai a outra, tinham viajado, afinal era domingo. Até que se viram frente a frente com o menino. Logo que viram a criança se emocionaram, sentiram
que aquele pequenino era a resposta para suas orações. Sua busca de dois anos estava chegando ao fim. Estava sendo recompensada. Conseguiram inclusive que o Fórum
fosse aberto no domingo, as pessoas tinham boa vontade. Confirmaram com as assistentes sociais e com a promotora: “Sim, queremos adotá-lo”, e começaram a tratar
dos papéis. A certa altura, Vânia comentou:
— Quando fizemos o nosso pedido, nos predispomos a adotar duas crianças. Já que estamos aqui, o senhor teria, porventura, conhecimento de outra criança na mesma
situação, à espera de adoção?
— Vejam só. Tem.
— Tem?
— Este recém-nascido tem um irmãozinho de 2 anos. Não sei se está para adoção. Está com a avó, essa mesma que entregou este bebê ao casal idoso que acabaram de conhecer.
A promotora e as assistentes sociais se dispuseram a procurar a avó e saber das condições da criança. Precisavam de um tempo para averiguar. De qualquer modo, teriam
de esperar a volta do juiz. A família instalou-se num modesto hotel, quase uma pensão, e aguardou ansiosamente pela resposta. Parecia que estavam vivendo a cena
de um filme imaginário. Na manhã fria do dia seguinte, Vânia e Carlos foram avisados de que a avó havia liberado a criança. Para organizar a documentação, teriam
de continuar na cidade. Sempre seremos gratos pela disposição e boa vontade daquele juiz, da promotora e das assistentes sociais, pois eles não mediram esforços
e gastaram seu fim de semana para nos ajudar. Havia, certamente, além da generosidade de seres humanos especiais, a mão invisível de Deus apontando o caminho, dirigindo
cada passo. Afinal, tínhamos ido em busca de um bebê e saíamos com dois irmãos, exatamente como havíamos pedido. Mais do que isso, por um acaso (mas seria mesmo
acaso?) naquele dia, a mãe biológica estava na cidade, o que foi mais do que oportuno, era necessário. Afinal ela precisava assinar os documentos da adoção. Evitava-se
assim ir aonde ela estivesse ou enviar por correio ou por malote de cartórios, esperando sabe Deus quanto tempo!
Terminada a reunião, recolhidas assinaturas, a mãe, mulher de 30 e poucos anos, se aproximou e estendeu um papelzinho.
— O que é isso? — indagou Carlos.
— São as três palavras que o menino com 2 anos sabe dizer. Ca, pê e mi.
— E o que significam?
— Quando ele quer água, diz cá. Quando diz pê, quer a chupeta. E mi significa que quer dormir. Ah, mais uma coisa. Os meninos são portadores de esferocitose, uma
doença congênita que exige cuidado. Ficamos comovidos com as três palavrinhas e preocupados com essa tal doença, da qual nunca ouvíramos falar antes. Mas não pensamos
no que nos aguardava, estávamos felizes, radiantes. Apanhamos o papelzinho, os documentos, as crianças, fomos para o hotel. Vânia e as meninas deram um bom banho
nos dois, agasalhamos os pequeninos, pegamos a estrada de volta para Curitiba e dali para Campinas. Foi uma viagem inesquecível. Sentíamos que estávamos transportando
duas criaturas especiais preparadas por Deus para fazer parte de nossa família. Sabíamos que Nicholas e Felipe somente chegaram até nós por uma intervenção divina.
Em Campinas as meninas queriam brincar com Nicholas e diziam: “Vai, Nicholas, apanhe a bola”.
O menino ficava imóvel, sem reação. Nada. O olhar parado no ar. Vânia tinha a sensação de que ele não sabia o que significava bola, nem apanhar. Outras vezes ficava
sentado diante da televisão, ao lado deles, e não esboçava um gesto, não emitia um som, nada pedia, nunca sorria. Era inútil tentar um diálogo, não havia qualquer
interação ou comunicação. Rapidamente perceberam que algo se passava. Cogitavam: será que o menino é surdo? Mudo? Autista? Qual será a sua deficiência? Foi então
que se lembraram de que, no momento da adoção em Barracão, estavam tão felizes que passaram batidos. Agora, a frase vinha à cabeça: “Vocês precisam saber que esses
dois meninos têm uma doença rara e congênita, a esferocitose”.
Mas que doença seria essa? Correram em busca dos melhores especialistas. Campinas tem um vasto centro médico, o Hospital Boldrini, rico campo de pesquisas. Esferocitose
é uma doença em que o baço danifica os glóbulos vermelhos e a pessoa se vê tomada por uma espécie de hepatite. A pele e os olhos ficam amarelados. Tais pacientes
precisam ser acompanhados o tempo todo, porque, se o nível dos glóbulos vermelhos cair abaixo de certo índice, é preciso hospitalizar, fazer transfusão de sangue,
a pessoa perde toda resistência, cancelam-se suas imunidades. Souberam que o tratamento definitivo para isso é a retirada do baço, no entanto esse órgão só pode
ser eliminado depois que a criança atinge os 10 anos, uma vez que ele filtra o sangue, protegendo de certas enfermidades. Mesmo assim, após a retirada, o paciente
precisa tomar doses diárias de antibióticos até os 18 anos, porque fica sujeito a sérias infecções.
Soube mais o casal. A mãe das crianças adotadas não tinha o baço, que foi retirado em certo momento da juventude e acabou vivendo uma vida normal. Os Martins ficaram
admirados. Havia aqui, ainda, outra coincidência, porque quando Vânia estava grávida de Priscila, após um dos exames, o médico observou:
— Você está com o baço um terço maior do que o normal.
— E o que se faz nesses casos?
— Temos de extraí-lo para evitar problemas maiores.
— Mas grávida...?
— Claro que não. Terminada a gravidez, faremos a cirurgia, é rápida.
Assim foi feito, de maneira que tanto a mãe biológica como a adotiva são mulheres que não possuem o baço. Vânia já chegou aos 55 anos e leva vida normal. Quanto
aos meninos, quando chegaram aos 10 anos, tiveram o baço eliminado.
Nicholas não tinha coordenação motora nem força para segurar um lápis. Além da esferocitose, o garoto deve ter sofrido alguma perda por falta de oxigenação do cérebro.
Os especialistas que o examinaram e o tinham sob cuidados avaliaram que até os 2 anos ele deve ter sido mantido isolado, sem interagir com outras crianças ou mesmo
adultos, de maneira que por falta de estímulos seu desenvolvimento cognitivo ficou muito comprometido. A partir do momento em que foi para a escola, professoras
e coordenadoras notaram que havia um atraso em seu processo de aprendizagem, de assimilação e captação. Ele tinha criado um vácuo no desenvolvimento que, com o tempo,
cuidados, tratamento dirigido, poderia ser zerado.
Até acertarem a maneira de educar os dois filhos, o casal Martins penou. Ambos precisavam de um professor especial, as escolas negavam, não permitiam. “Tem o MEC,
tem isto, tem o currículo, tem aquilo.” Há muita burocracia. Finalmente, a solução. Professores particulares, especializados, psicólogos, pedagogos, professores
de educação física, que davam (e ainda dão) as aulas em casa. Continuaram a busca até encontrar uma escola que aceitou os meninos. Os fatos vêm demonstrando esse
progresso e Nicholas aos 15 anos se aproxima da normalidade, ainda que descompassos apareçam inesperadamente. Mais importante que o acompanhamento médico, acima
de tudo foi o carinho, incentivo, apoio que demonstramos por ele. Acreditamos que essa afeição auxilie imensamente na formação de sua autoestima. Afinal, nas primeiras
séries escolares ele precisa despender muito mais tempo e energia para executar funções básicas como as quatro operações em matemática – avaliam Vânia e Carlos.
Neste ano de 2013, em que ele está cursando a sétima série, um fato assombrou e emocionou os pais. Pela primeira vez em sua trajetória escolar, Nicholas tirou nota
dez em ciências e matemática. Carlos e Vânia, orgulhosos ao constatar a superação do filho, mandaram emoldurar as duas provas que estão agora na parede do quarto
do jovem. Tudo isso seria uma prova de Deus? Nunca vamos ter essa resposta. Sabemos que na vida há coisas que controlamos e outras não, e a presença de nosso filho
Nicholas é uma delas. Veja, jamais imaginamos que seríamos pais adotivos, e fomos. Deus nos deu uma experiência dura, quase perdemos um filho e ganhamos outros dois.
Isso faz uma diferença enorme em nossa vida. Só podemos pensar que de alguma forma foi a mão de Deus conduzindo nossos passos e toda a situação.
O PAPAI NOEL INESPERADO
No último Natal, todo o clã Martins estava reunido. Eram doze netos (hoje são catorze) na maior expectativa. Uma pergunta pairava: quem será o Papai Noel? Muitas
vezes, em anos anteriores, tinha sido contratado um Papai Noel profissional, como diz Vânia, ironicamente. Chegava um velhinho bem vestido, bem falante, bom ator
e fazia a distribuição dos presentes. A meninada delirava. Mas em 2012, quando papai Noel entrou, houve um “Oh” de admiração. As crianças pareciam reconhecer aquele
andar, aquela voz a rir “Hô, Hô, Hô” sem muita convicção e ameaçando rir. Distribuídos os presentes, o Papai Noel foi embora. Quando Carlos apareceu na sala, foi
“desmascarado” pelo neto Alvin, de 4 anos, que disse: “O Papai Noel era você, vovô”.
• 16 •
Retalhos da vida cotidiana
“ELE QUER ESTAR OCUPADO O TEMPO TODO, precisa estar sempre fazendo alguma coisa. Não pode perder um minuto.” Assim Vânia Martins sintetiza o marido Carlos. Um dos
últimos depoimentos para este livro foi o dela. Terminada a conversa, cheio de curiosidade, perguntei, de chofre: “Como você vê seu marido?”. Ela me olhou sorridente,
com alegria e bom humor. Não hesitou: O oposto de mim. Somos muito diferentes. Daí o nosso equilíbrio. Ele corre, e eu digo: “Devagar, pare um pouco”. Carlos costuma
fazer sempre duas coisas ao mesmo tempo. Tanto isso é verdade que mandou instalar na sala de exercícios de casa um suporte na esteira e uma tela de tamanho maior
na parede, assim ele consegue se exercitar na esteira enquanto lê, atualiza e organiza seus e-mails. Faz tudo com naturalidade. Se está se barbeando, faz alongamento
das pernas. Ao esperar numa fila qualquer, revisa suas anotações no iPhone. Costuma dizer que o dom da paciência consiste em fazer algo enquanto se espera. Nesse
sentido, ele é um homem muito paciente. Se vamos à praia, enquanto deito na esteira, fecho os olhos, esqueço o mundo e a vida, ele está com o caderninho aberto com
suas lições de chinês. Quando viaja com motorista ou está no avião, abre o laptop, responde não sei quantos e-mails, recebe outros. Se um voo atrasa, ele não se
preocupa, logo coloca o celular ou o notebook em atividade. Como não confia na memória, grava no telefone os compromissos. Antigamente carregava um minigravador
como memorando de tarefas e compromissos.
A PESCARIA FRUSTRADA
Diz Vânia:
Para que se tenha uma ideia do tipo de homem que ele é basta dizer que lá atrás, em Curitiba, quando ainda dava aulas particulares, meus irmãos, um dia, planejaram
uma pescaria e convidaram Carlos para ir junto. O plano era sair no sábado pela manhã, passar o dia à beira do rio, contar histórias, comer algo diferente. Enfim,
distrair-se. Carlos estava animado, o dia amanheceu ensolarado e ele começou a arrumar os apetrechos. Varas, anzóis, iscas, molinete, repelente de mosquitos, um
chapéu.
De repente, o telefone toca. Eu atendi e dei o recado:
— É um de seus alunos. Quer falar com você.
— Nossa! O que ele quer em pleno sábado?
Do outro lado da linha, a voz comunicou:
— Não sei se você tem algum plano para hoje, mas estou ligando pois estou com a tarde livre. Se você tiver tempo gostaria de fazer quatro horas de aula seguidas.
Pode ser?
Carlos ficou atônito. E agora? Vou, não vou, o que eu digo para ele? E os meus amigos, e a pescaria?
— OK, pode vir a minha casa. Vamos ter aulas das 14 às 18 horas.
Ate hoje meus irmãos se lembram dessa cena admirados pela decisão do professor de abrir mão de uma pescaria para atender o pedido de um aluno. Carlos tem paciência
infinita para lançar o anzol e pescar novos alunos, mas sentar-se à beira d’água e esperar um peixe morder a isca...
APRENDENDO CHINÊS
Vânia continua falando de Carlos:
Aliás, ele vive agora para aprender chinês. Quer se expressar fluentemente na língua. Faz aulas quase todos os dias. Enquanto se prepara pela manhã, fica ouvindo
o áudio das lições em chinês. Ora uma professora vem a nossa casa, ora tem aulas pela internet com a professora de Tianjin, na China. Pouco tempo atrás, a professora
Wang Hongyan surpreendeu a todo mundo.
— Resolvi me tornar membro da Igreja Mórmon e serei batizada em Hong Kong. Gostaria que assistisse meu batismo em sua próxima visita a meu país.
Na data e no horário combinados, Carlos estava presente no outro lado do mundo. Agora sua professora chinesa está fazendo um curso de extensão universitária em Utah.
VAMOS DAR UMA VOLTA DE CARRO?
“Logo aprendi como segurá-lo numa conversa”, acrescenta Vânia. Quando preciso ou quero discutir alguma coisa, digo: “Vamos dar uma volta?”. Apanhamos o carro e conversamos.
Porque assim ele está conversando e ao mesmo tempo fazendo “outra coisa”. Tudo isso com tranquilidade, espontaneidade. Carlos é incansável, o trabalho lhe dá prazer,
não é um fardo.
Divertimento para nós é sair para comer, é o cinema, uma festa, as reuniões de família aos domingos. Nas férias reunimos os filhos e os netos e fazemos uma viagem
ao exterior. Gostamos muito do Caribe. Eu, particularmente, adoro sol, praia, calor. Como Nicholas também gosta de cinema, em geral escolhemos o filme em função
dele. Quando os gêmeos eram pequenos, o futebol era obrigatório. Eles convocavam, e o pai entrava em campo. Mesmo na pequena casa em que começamos em Campinas havia
um gramadinho para bater bola. Agora, eles tiram o pai de Campinas para assistir jogos em São Paulo. Sempre abre uma brecha para ler livros sobre motivação, superação,
liderança, relacionamentos interpessoais, gestão. Lê, anota, discute, concorda, discorda.
DEVOLVA À SOCIEDADE O QUE RECEBEU
Vânia continua falando do marido:
Conheço pouca gente com a capacidade que ele tem de mudar. Está indo em um rumo, mas, se percebe que está errado, muda sem a mínima dificuldade. Investe em um negócio,
arrisca em algum setor, mas se vê que não funciona, para e não se lamenta. O não dar certo faz parte da vida também. Ele dá a volta por cima. É otimista. É um homem
que olha para os outros, deseja o sucesso de cada franqueado, professor, aluno, cada amigo, quer que as pessoas prosperem, faz o que pode para ajudar. Desde que
lançou seu livro Desperte o milionário que há em você, já percorreu mais de quinze estados dando palestras sobre educação, liderança e empreendedorismo. São eventos
abertos ao público que costumam reunir de 700 a 1.000 pessoas, geralmente realizados nos auditórios da Igreja Mórmon. Faz isso a custo zero, arca com despesas de
transporte e acomodações. É uma das formas que ele encontrou para devolver à sociedade o muito que recebeu, motivando, inspirando, incentivando novos jovens empreendedores.
TRABALHO É PRAZER, NÃO SACRIFÍCIO
Por outro lado, os filhos e os que o conhecem bem são unânimes em dizer que Carlos não tem hobbies ou hábitos extravagantes. Ele se realiza na profissão, em suas
atividades na igreja e com a família. É incansável no que faz, não vê a profissão como trabalho, mas como uma fonte geradora de prazer e satisfação. Pessoas mais
sábias fazem uma distinção. Emprego é para o sustento, a sobrevivência, trabalho é o sonho. Já visitou 41 países e quando está no avião rumo a Índia, China, Estados
Unidos ou Europa, ele tem a sensação de estar sentado na poltrona de sua casa. Dorme tão bem em viagens internacionais como se estivesse em seu quarto. Cumprir uma
agenda intercontinental não representa sacrifício. Não deixa um e-mail sem resposta, independentemente do local ou do fuso horário em que esteja.
Em março de 2013, enviei um e-mail a ele, para pedir uma informação para este livro. No mesmo dia, ele me respondeu, acrescentando: do aeroporto de Dubai, a caminho
da China. Está sempre no ar.
FIEL AOS AMIGOS E À FÉ
Certa vez Carlos foi convidado pela Microsoft para uma feira de tecnologia em Copenhague. Na semana anterior à viagem, ele recebeu o e-mail de um amigo, Luiz Augusto
Figueiredo, executivo internacional que morava em Cingapura, no qual dizia que na semana seguinte ele, a esposa Simone e os filhos Thomas e Alex seriam batizados
na Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias. Carlos não pensou duas vezes. Sem avisar o amigo, cumpriu sua agenda em Copenhague e embarcou para Cingapura.
Chegando ao hotel, ligou para Luiz.
— Parabéns por sua decisão. É algo que me toca profundamente. Momento muito importante para você e sua família. Poderia me informar o horário e local da cerimônia?
Luiz ficou surpreso, mas passou os detalhes.
— Só não estou entendendo para que você quer saber tudo isso.
— Preciso do endereço para chegar aí.
— Está louco? Estou em Cingapura.
— Eu também.
— Nessa idade e vem me dar trote? Num momento tão sério.
— Felicidades, amigo.
Desligaram. Luiz ficou sem fala quando viu o amigo entrando na igreja. Nunca mais esqueceu. Uma pessoa que se desloca no mundo para participar de um momento espiritual
íntimo de uma pessoa? É alguém muito raro. A emoção ficou para sempre.
O RITUAL DOS ALMOÇOS
Muito tempo atrás, filhos ainda crescendo, estudando, ao consultar a agenda, Carlos assustou-se ao perceber que estava aceitando todos os convites que tinha (e tem)
para almoço ou jantar, comendo fora de casa de segunda a segunda, chamado por um executivo, um amigo, um investidor, um candidato a alguma parceria, um franqueado.
E os encontros com a mulher e os filhos? Chamou a secretaria e advertiu:
— Se alguém me convidar para almoço, diga que para aquele dia já tenho compromisso.
A hora de almoço tornou-se o momento em que a família conversava, ouviam as histórias uns dos outros, os problemas, as preocupações, as alegrias, falava-se da vida
e do futuro. Momento de convivência, agregação familiar. Essa foi a maneira de ele demonstrar à esposa e aos filhos que são prioridades. Raramente ele quebrou essa
rotina.
Sendo uma pessoa para quem o tempo é escasso, ele recorre à organização. Quando os primeiros filhos eram pequenos, ele montou um calendário: segunda-feira, reunião
familiar. Terça-feira, sair com Charles para um passeio exclusivo dos dois. Quarta-feira, dia do Lincoln. A quinta pertencia à Thais e sexta era de Priscila. O sábado
pertencia ao marido e à mulher. O passeio podia ser um shopping, uma sorveteria, um parque, uma volta na quadra. Cada um sabia que tinha seu dia com o pai e guardava
para aquele momento perguntas, revelações, problemas, preocupações, frustrações e alegrias.
ENSINANDO O TEMPO INTEIRO
Numa época, contrataram um motorista para levar as crianças à escola. Depois de um tempo, verificaram que no almoço os filhos, todos os dias, relatavam as histórias
que o motorista contava sobre sua família, seus sonhos, sua infância no interior da Bahia, seus amigos, os problemas do bairro, dos filhos. As conversas na mesa
eram sempre os casos que o motorista tinha contado. Claro, era a consciência de outra realidade, mas isso acendeu uma luz vermelha, pois as crianças estavam sabendo
mais do motorista do que da própria casa e família. Dali em diante, Vânia e Carlos, na ida e volta da escola, com os filhos em diferentes idades, sempre se organizaram
para levá-los e buscá-los. Era uma obrigação que ele, em geral, assumia com alegria. Houve períodos, segundo Priscila, hoje com 24 anos, que, assoberbado pelo trabalho,
o pai acabava se atrasando muito na hora da saída da escola. Aborrecido consigo mesmo, um dia propôs:
— Fico ansioso quando me atraso, e vocês também. O que preferem? Que eu me atrase e vocês me esperem ou que contrate outro motorista para buscá-los?
— Sem motorista, preferimos esperar pelo senhor. Pode atrasar.
Nesses momentos em que dirigia com os filhos, Carlos aproveitava para ensinar. Apontava e pedia que dissessem “árvore” em inglês. Ou pessoa, ônibus, banco, loja,
janela, sorvete, o que fosse. Estava o tempo todo dando aulas de conversação, o que faz também com os netos. Quando os filhos desejavam alguma coisa e pediam em
inglês correto, ganhavam ponto, o que significava um dinheirinho a mais na mesada, pelo sistema adotado em casa.
Quando a neta pede: “Vovô, quero sorvete”, ele olha para ela e diz: “Em inglês, em inglês: Grandpa, I want some ice cream”. Carlos pensa o tempo inteiro em inglês,
não deixa uma vírgula faltar nas frases. No exterior, nas viagens obrigava os filhos a puxar conversa com os taxistas ou fazer compras nas lojas em inglês. Aprendizado
contínuo.
Com essa de ser o “motorista particular”, ele acabou conhecendo melhor os amigos dos filhos, é homem de fácil socialização. “Sabia o nome de todas as minhas amigas”,
diz Priscila. “Mesmo anos depois de termos deixado a escola, ao encontrar alguma jovem num shopping ou em que lugar for, ele lembra: essa não é a fulana de tal,
assim, assim?”
ATRASADINHO, ATRASADINHO
Thaís Michele estava no carro com os pais indo para Campinas, na memorável viagem do início de 1987, em que Carlos Martins teve a inspiração sobre o que deveria
ser o futuro para ele. Acordou Vânia para comunicar a descoberta que mudaria suas vidas, a criação de um método de ensino para uma rede de escolas. Vânia tinha preferido
dar à luz em Curitiba com um médico que conhecia havia muito, um desses de família de longa tradição.
Infância feliz, salienta Thaís, hoje aos 26 anos, casada com Renan Fernandes, e com dois filhos, Alvin, com 4 anos, e Lydia, com 2. E grávida de um terceiro. Um
dia, eu tinha 6 anos, estava na pré-escola, em uma escola cooperativa, quando fui acordada e fiquei pronta para ir para a escola. Meu pai me levaria. Meu pai, concentrado
em alguma coisa do trabalho, começou a enrolar e a adiar, e o tempo foi passando. Fui ficando nervosa.
— Vamos embora, pai, vou chegar atrasada.
— Um pequeno atraso não faz mal a ninguém.
— O senhor não sabe de nada. Chegar atrasada é a pior coisa.
— Por quê?
— Cada um que chega atrasado é recebido pela classe inteira cantando: “Atrasadinha, atrasadinha”. Uma vergonha.
— Então, vamos fazer assim. Vou te levar, já atrasamos mesmo. Mas vou entrar com você na sala e dizer que você acordou cedo, estava pronta, tudo foi culpa minha.
Dito e feito, assim que entrei na classe, a turma disparou: “Atrasadinha, atrasadinha”. Meu pai deu dois passos à frente e mandou que parassem: “Não, não, ela não
tem culpa. Fui eu que me atrasei. Podem cantar para mim, se quiserem”.
E ficou ali firme enquanto o pessoal bagunçou a valer, cantando “Atrasadinho, atrasadinho” para um senhor, um pai. Acho que naquele momento ele representava todos
os pais, foi demais. Nunca mais nos atrasamos.
O DILEMA DE TORCER EM FUTEBOL
A família tem algumas histórias pitorescas como o impasse levantado por Vânia. Os meninos, pequenos ainda, passaram a torcer, um para o Palmeiras, o outro para o
São Paulo.
— Carlos, temos um problema. Se torcermos para o Palmeiras, estaremos privilegiando o Charles. Se pelo São Paulo, o Lincoln.
— Não chega a ser um conflito, sorriu Carlos.
— Mas é sério, eles ainda são pequenos.
— E como resolver a questão?
— Vamos torcer para o Corinthians.
Resultado: lá em casa é uma grande mistura, porque sendo corintianos, torcemos contra o São Paulo e contra o Palmeiras – acentua ele, com sua ponta de ironia e um
olhar ardiloso. Por causa da influência de meus filhos, eu que nunca fui esportista nem liguei muito para o futebol, acabei indo aos estádios. Nos clássicos campineiros,
entre Guarani e Ponte Preta, fomos várias vezes, os moleques adoravam.
PAI E MÃE AOS OLHOS DOS FILHOS
Priscila, que deu a Vânia e Carlos dois netos, Isabella e Luigi, sempre se achou a mais mimada – pudera, era a caçula – sorri ao lembrar que era o pai quem despertava
a filharada. Ele costumava aprontá-la. Ela, por sua vez, ficava descalça, à espera de que ele viesse calçá-la, era um ritual. Se ele vacilasse, ela saía com sapato
e meia na mão, ia descalça até o carro, ele compreendia.
Os filhos dizem que a mãe é durona, impondo limites, exigindo que fossem os melhores na escola, que andassem sempre de cabeça erguida. Sem ser antissocial, é reservada,
contida. Ela é muito “preto no branco”, certo e errado, gosto, não gosto. Vou fazer. Não vou. Objetiva. Ele é mais solto, de passar a mão na cabeça, contemporizar
aqui e ali, faz amizades facilmente, se relaciona, conquista. Os filhos reconhecem que a mãe é excepcional em momentos de emergência. Calma, não se deixa dominar
pelo pânico, domina a situação, resolve. Thaís jamais esquece um problema, nos primeiros anos da Wizard, ela estava com 10 anos, quando a entrega de livros ficou
desorganizada, virou caos. Muito trabalho, pouca gente. Mamãe disse simplesmente: “Vou entrar no circuito. Deixem por minha conta”. Vestida com shorts, camiseta
e tênis nos pés, foi até o depósito de materiais, reuniu a equipe, solicitou que lhe levassem todos os pedidos parados, os atrasados, as pendências. Assumiu, organizou,
trabalhou dias e dias até de madrugada, botou ordem na casa. Cada vez que algum setor ia mal, lá estava ela, apagava o fogo. Ela gosta de apagar fogo.
ANIVERSÁRIO? NATAL? DIA DA CRIANÇA?
O consumismo não atingiu a família. Quando a Wizard completou 25 anos, Vânia resolveu surpreender Carlos.
— Meu bem, para comemorar seu jubileu de prata, comprei um Rolex de presente para você.
Carlos agradeceu e ficou muito emocionado com o lindo relógio. Agora Vânia precisa ficar lembrando o marido de usar o presente que ganhou, sorri ela. Numa roda,
certa vez, amigos perguntavam entre si o objeto de desejo, o sonho de consumo de cada um. Desfilavam todas as fantasias, iates, aviões, mansões, viagens, roupas,
grifes. Na hora de Carlos, quando o viram pensando, sacaram logo:
— Sabemos! É uma Ferrari.
— Se eu quisesse uma Ferrari, já teria comprado.
Seus sonhos são diferentes, não seguem o diapasão dos clichês.
Nessa família que tem tudo e pode querer tudo, o dinheiro tem outro valor. Eles se acostumaram desde cedo à economia, a desprezar o supérfluo. Priscila lembra que
algum filho chegava:
— Mãe, quero isso!
— Ah, quer? É seu aniversário? Dia das Crianças? Ou Natal?
— Não.
— Então...
Nessas datas, os presentes eram o que havia de melhor, cumpriam-se os desejos. Ou ainda:
— Mãe, preciso de um tênis novo. Ou vestido, sapato, o que for.
— Está precisando?
— Não?
— Está para rasgar alguma coisa?
— Não!
— Então, põe na lista dos Estados Unidos.
Um dia, Thaís e a mãe foram comprar uma raquete de tênis. O vendedor disse o preço, Vânia comentou: “É muito caro”. Ele acrescentou: “À vista, em dinheiro, tem desconto”.
Ela pediu: “Espere um pouco, já volto”. Pegou o carro foi a um caixa eletrônico, apanhou o dinheiro, ganhou o desconto. Longe estavam os anos em que nos Estados
Unidos tiveram de buscar roupas de inverno nas entidades que doavam. Ou comprar frangos vivos que eram muito mais baratos, tendo de matar, depenar e cozinhar. Longe
estavam tais tempos, mas jamais esquecidos.
ESTÃO SAINDO? É HORA DE CHEGAR
À noite, as saídas eram sempre reguladas, as crianças tinham horário para chegar. Priscila se diz mais caseira e casou-se com o primeiro namorado aos 19 anos, assim
que se formou na faculdade, enquanto Thaís era mais saideira, teve cinco ou seis namorados antes de se casar. Nenhum dos quatro, Lincoln, Charles, Thaís ou Priscila,
frequentava baladas. Não somente pela religião que veta a bebida e o cigarro, mas por inclinação natural. Iam a festas na casa de um e outro. Muitas vezes, eram
dez da noite, Thaís e Priscila estavam acabando de se arrumar, Vânia se mostrava inconformada: “Esta hora e vão sair? Isto é hora de chegar. Não vão sair de jeito
nenhum”.
Divertimentos para todos sempre foi cinema e principalmente shows de bandas, de rock, de MPB, Engenheiros do Havaí, Paralamas do Sucesso, Capital Inicial, Titãs,
Skank, Jota Quest, Daniela Mercury. O pai levava, assistia, gostava, se divertia também. Outras vezes, um filho pedia: “Vamos para São Paulo? Tem jogo...”.
Chegavam e, se não houvesse mais ingressos, compravam dos cambistas mesmo, o que importava era assistir à partida.
ASSISTINDO A COPA DO MUNDO COM A FAMÍLIA
Foram muitas vezes ver treinos de Fórmula 1. Faziam viagens para o Nordeste ou para Santa Catarina, tinham casa de praia no litoral do Paraná. Em 1998, o pai e os
dois filhos foram acompanhar a Copa do Mundo na França, aproveitaram para passear pela Alemanha, Itália, Bélgica e Inglaterra.
Em 2006 foi a vez de Carlos viajar com Thaís e Priscila para presenciar a Copa da Alemanha, vencida pela Itália. Nunca rimos tanto na vida. Fazíamos o que queríamos.
Ele nos deu liberdade. Imagine! Pedíamos: “Vamos ao shopping”, ele ia, apesar de odiar. Nos levava, nos deixava e sentava-se em algum ponto com o laptop. Nunca o
abandona. Nele faz lições, manda e recebe e-mails, enfim, se realiza. Está sempre ligado. Mas é uma grande companhia. Outro dia, conversando com minha irmã comentamos:
“Nunca teríamos paciência ou disposição para levar duas adolescentes numa viagem dessas pelo exterior”. Berlim, Munique, Dortmund, Londres, Paris, Amsterdã, Bruxelas.
Viajamos de trem e de carro. Nas cidades andávamos de metrô, táxi e caminhávamos. Vivemos sempre a vida local. Fomos esquiar nos Alpes, pintamos e bordamos. Choramos
muito quando o Brasil perdeu.
Já a Copa da África do Sul reuniu a família inteira, não ficou ninguém de fora, netos incluídos. “No entanto, até agora não vimos o time brasileiro ser campeão do
mundo, nossa esperança é a Copa no Brasil em 2014”, completa Thaís.
AS ESCOLHAS DAS FILHAS
Carlos nunca se esquece de um dia, quando Thaís tinha 12 anos e, muito séria, chamou-o, muito concentrada:
— Pai, não sei o que vou ser quando crescer! Não sei qual profissão ou carreira vou seguir. Mas de uma coisa tenho certeza. Não quero ser professora como você.
Encontrou seus caminhos. Ela formou-se em comunicação pela Brigham Young e chegou a fazer um estágio na Áustria. Na empresa, já atuou na Wizard TV, um canal corporativo
voltado ao treinamento e à qualificação de franqueados e professores. Atualmente se dedica a projetos de comunicação na área de mídia social e desenvolve apps para
smartphones. Tudo ligado à educação.
Sobre a garota, diz Carlos:
É uma pessoa que consegue captar mensagens não expressas em palavras. Ela tem um pensamento muito lógico e racional. Quer o porquê para tudo, deve haver uma razão
em cada coisa. Qualidade, ou defeito, que herdou de mim, e que talvez a faça sofrer. Consegui aprender que nem tudo tem um porquê, nem tudo tem uma razão. Há coisas
que são assim porque são, não há explicação.
Terminado o ensino médio, Priscila, a outra filha, foi para os Estados Unidos, onde se formou em International Business, pela Universidade Brigham Young, no campus
Havaí. Enquanto ela estudava no Havaí, Carlos foi convidado para fazer parte do Comitê de Liderança do Presidente da BYU. Em determinada ocasião, foi até o Havaí
falar para todos os alunos e professores. Priscila ficou com a missão de apresentar o pai diante de uma imensa plateia. Apavorada, ligou para a irmã mais velha.
— Thais do céu, estou nervosa. Não sei o que dizer na apresentação do papai. Você pode me ajudar?
— Não se preocupe, Priscila. Basta você entrar no Google. Respondeu a irmã.
Priscila concluiu o curso em dois anos e três meses, reconhecido com tempo recorde na história da instituição, e se casou com Rafael Bertani assim que ele terminou
sua missão em Cuiabá, no Acre e no Amazonas. Estava com 19 anos. Partiram para a China, estabeleceram-se na cidade de Tianjin, a quinze minutos de trem-bala de Pequim.
Foi ali que Priscila se apaixonou por línguas, por pedagogia, pelo ensino. Hoje, na Wizard, como diretora pedagógica ela desenvolve o material didático. “Sou muito
persistente, fico em cima das coisas, não suporto erros. Sou fascinada pelo material que preparamos, do conteúdo ao layout, às formas como vai ser aplicado. Participo
do projeto do princípio ao fim.”
Trabalha em total sintonia com o pai. “Nós nos entendemos pelo olhar”, diz ele. “Temos a mesma mania de perfeição, de detalhes, de tornar o ensino objetivo, prático.
Buscamos inovação. Quanto à busca pela excelência, somos insatisfeitos, sempre.”
OS CAÇULAS, SENSIBILIDADES DIFERENCIADAS
Quando fala dos filhos mais jovens, de Nicholas e Felipe, o tom de voz de Carlos muda, suaviza-se mais ainda (como se já não estivesse cheia de afeto). Nicholas,
agora com 15 anos, segundo o pai: Tem uma sensibilidade diferenciada, uma preocupação fora do comum com os animais, com as plantas, o meio ambiente é algo que o
deixa emocionado. Chama a atenção a maneira como olha os bichos, os insetos, sabe de flores e árvores e conhece as estações e pode passar horas ouvindo o canto de
uma cigarra, atento a um pássaro fazendo o ninho, ou trazendo comida para os filhotes. A casa em Campinas está dentro de um terreno de dez mil metros quadros, há
vegetação suficiente na qual ele se infiltra, contempla. É perspicaz, observador e detalhista. Quando tinha 5 anos, descobrimos que tinha um talento natural para
desenhar. Quando não tem nada para fazer, pega uma folha de papel e seus lápis ou pincéis e pode ficar horas e horas com seus desenhos.
Já Felipe, com 13 anos, tem uma mente brilhante, facilidade de comunicação, capta tudo muito rápido e facilmente, se expressa bem e tem muitos amigos. Além de esportes,
ele gosta de música, especialmente de tocar guitarra. É um jovem extremamente carinhoso. Mesmo já tendo 13 anos, não vai dormir sem se despedir de nós e nos beijar.
É intuitivo, sagaz e sensível à sua voz interior. Já foi protegido de perigos por seguir um sentimento ou uma impressão pessoal. Certamente terá um futuro brilhante.
• 17 •
Trilhar o caminho das metas altas
A TRAJETÓRIA DE CARLOS WIZARD MARTINS está documentada. Sua luta para implantar o sonho de uma vida foi vitoriosa. Agora, é a evolução, a expansão de um projeto
dentro de um mundo em mutação, instalada a globalização. Lembremos que este relato é uma biografia incompleta e em aberto, porque nosso personagem está em plena
maturidade, vigor, produzindo, cuidando de uma obra em contínua transformação. Digamos que é um breve balanço da vida de um homem que descobriu sua estrada (a menos
percorrida, lembram-se?), criou uma filosofia e elaborou conceitos que servem para milhares como guia. Perseguiu (e persegue sistematicamente) sonhos maiores, dentro
de princípios ultraestabelecidos.
Aos 56 anos, família formada, negócios se desenvolvendo, Carlos revela que aprendeu algumas lições fundamentais. Uma delas é que em alguns momentos precisamos dizer
não e deixar de fazer algumas coisas boas, e até mesmo saudáveis, para escolher aquilo que é essencial. Este Carlos, hoje Wizard Martins, ainda é o mesmo da adolescência
com relação ao credo e à união familiar. Aquele que aos 12 anos encontrou um caminho novo que trouxe a paz espiritual por meio da união familiar.
Ele, que é um homem que vai, em um instante, do macro ao micro, da compra de uma rede de escolas que custa milhões ao detalhe da formulação de uma frase no material
escolar, se questionava como conciliar, equilibrar na prática o trabalho, a família, a igreja.
Há uma pergunta que sempre é formulada para Carlos: a influência dos conceitos, princípios e valores aprendidos na igreja e sua aplicação na vida profissional, que
foram valiosos para ele e para os filhos. Em entrevista à revista especializada IstoÉ Dinheiro, há algum tempo, ele revelou que tudo se inicia na organização denominada
Primária, que atende crianças de 2 a 12 anos. Ali recebem princípios, conceitos e valores como integridade, moralidade, ética, respeito ao próximo. A partir dos
12 anos, elas vão para a organização Rapazes e Moças que promove atividades para o desenvolvimento pessoal, de talentos, dons, habilidades de liderança. Passam a
ter alguma responsabilidade seja como conselheiro, ou como secretário, ou mesmo presidente de miniorganizações relacionadas ao trabalho voluntário na comunidade.
Aprendem a planejar, executar, avaliar, acompanhar. São responsáveis por si e pelos outros.
A igreja ensina esses jovens a serem autossustentáveis. Se vai haver uma atividade, viagem, acampamento, o que for, cada um tem de trabalhar para pagar o custo.
O princípio da autossuficiência é uma questão muito forte para nós. Aprendemos desde jovens a não depender dos pais e de ninguém. O objetivo é prover para si próprio.
Outro aspecto essencial é o estímulo para que todos adquiram o maior grau de educação, de instrução acadêmica possível, tanto que existe o Fundo Perpétuo de Educação,
de caráter internacional, que custeia mais de quinze mil jovens no Brasil. Finalmente, há a missão, de que já falamos com relação a mim e aos meus filhos. A missão
é o período de aprendizado do valor do altruísmo, serviço ao próximo e abnegação. O jovem sacrifica seus interesses pessoais em favor de uma causa maior que ele
mesmo. Ele se afasta do ambiente familiar, da “proteção” paterna e materna e mergulha no “desconhecido”, numa agenda que começa às seis da manhã com estudo das escrituras,
uma sessão de exercícios físicos, antes de partir para o trabalho que se estende até às nove da noite, e essa rotina exige muita disciplina, respeito às leis e regras,
à hierarquia.
Aprende o que vai usar no futuro, ferramentas preciosas: a perseverança, vencer obstáculos, barreiras e oposições. A eliminar de dentro de si o negativismo, adquirir
capacidade de interagir com as pessoas, argumentar, dialogar, falar em público, planejar. Acima de tudo, a ter metas altas e aprender os caminhos para alcançá-las.
É a formação de líderes.
Foi por isso que, quando certa vez perguntei a Carlos como ele conseguira formar, conduzir e liderar uma organização tão abrangente e manter o equilíbrio entre tantas
áreas distintas, ele respondeu: Desde os 12 anos faço parte da Igreja Mórmon, que possui a estrutura organizacional mais perfeita que já conheci. Creio que, além
de todo o aspecto doutrinário, dogmático e espiritual, a igreja tem sido para mim uma grande escola de organização e liderança.
Dessa maneira, Carlos segue hoje em dia alguns princípios de gestão de modo tão sério quanto sua própria religião. “Acreditar e valorizar as pessoas é um dos fundamentos
principais que explicam o sucesso de nosso empreendimento. Comunicação diária com mensagens motivacionais aos clientes faz parte da cartilha da empresa.” Todos esses
são conceitos valiosos que desde menino Carlos aplica em sua conduta diária.
• 18 •
Uma pausa de três anos
EM OUTUBRO DE 2000, VINDO DOS ESTADOS UNIDOS, Jeffrey R. Holland, apóstolo da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, chegou a Campinas. Marcou um encontro
com o casal Martins, que ficou surpreso, afinal tratava-se de uma autoridade geral, um alto cargo na igreja. A surpresa aumentou quando Elder Holland revelou que
“Deus tinha um importante encargo para os dois. Iriam presidir uma missão da igreja”. Para ter ideia do contexto, há no mundo 345 missões, sendo 34 no Brasil. Cada
missão conta com 150 a 180 jovens entre 18 e 20 anos e é presidida por um casal que serve voluntariamente durante três anos, sendo responsável pelo cuidado, bem-estar
e condução dos missionários.
“Somente poucos meses antes da partida soubemos que cumpriríamos a missão no Nordeste brasileiro, em uma área que cobria os estados da Paraíba, Rio Grande do Norte,
Pernambuco e parte do Ceará.”
Vânia e Carlos reconhecem que três anos em João Pessoa foi como se tivessem pausado todos os interesses de ordem pessoal, profissional e empresarial. Estávamos conscientes
de que o chamado era divino, o que nos dava conforto. Nem por isso não houve grandes desafios, obstáculos, adaptações. Mas havia (como há) aquela lembrança das palavras
do sogro Raul, nunca devemos negar um chamado de Deus. Tínhamos convicção de que aquele período não nos pertencia, era um tempo sagrado. Deveríamos dar nossas forças,
nosso talento, nossa habilidade e nosso dom para o crescimento e a expansão do Reino de Deus. Conviver, trabalhar e procurar formar jovens foi uma experiência rica,
em um período de dedicação exclusiva. Foram 24 horas por dia, sete dias por semana, sem férias, interrupções ou afastamentos, sem visitas fora do território da missão.
Ali estávamos para servir. Partimos acompanhados de Thaís, Priscila, Nicholas e Felipe.
Para a filha Thaís, então com 13 anos, a capital da Paraíba foi marcante. Vivíamos em uma casa modesta, mas confortável. Papai era o líder eclesiástico e o tempo
dele era inteiro doado aos outros. Não parava um minuto, nosso telefone tocava sem parar. Bem no ritmo dele. No entanto, no sábado, ele desligava tudo. Papai era
nosso. A família, prioridade. Então, era praia, e de cada vez em um determinado lugar, pouco repetíamos. Temporada de muito sol, água de coco, milho cozido e abacaxi.
Apanhávamos o carro, viajávamos uma hora, nos instalávamos em Coqueirinho, nosso recanto favorito. O domingo era outro dia dedicado à igreja, diariamente líamos
as Escrituras depois do almoço, conversávamos, interpretávamos. Acho que em João Pessoa foi o tempo em que vivemos mais ligados, todos muito juntos.
Nesse ínterim, Lincoln se casou em Campinas, com uma grande festa no Royal Palm Plaza, para centenas de convidados. Carlos não arredou pé de João Pessoa, não podia
pelo compromisso assumido. O presidente jamais deixa a região da missão. Vânia e os filhos foram. Conforme os preceitos da igreja, Lincoln e sua esposa Bianca fariam
a ordenança do casamento para a eternidade em um templo Mórmon e escolheram o de Recife. Então o pai teve permissão para comparecer. Lincoln deu seis netos a Vânia
e Carlos: Leonardo, Moroni, Lucca, Carlos, Lincoln e Luana.
Chegou a vez de Charles se casar com Mila, por sinal, irmã de Bianca, sua cunhada. Os irmãos brincam: “Uma sogra só para os dois. Economizamos”. Desta vez, Carlos
adiantou-se, fez uma negociação. A festa seria em João Pessoa. “Mas há amigos que não têm condições de arcar com os custos de uma viagem dessas, hotel etc.” Carlos
não hesitou. “Todos virão, são nossos amigos.” Bancou as despesas para convidados que saíram de diferentes lugares do país. Charles deu aos pais quatro netos, Victor,
Spencer, Letícia e Sophie.
Passado ano e meio no Nordeste, Carlos começou a receber relatórios inquietantes sobre a Wizard.
Havia problemas administrativos, brigas internas, competição por espaço e poder. O que fazer? Em julho de 2003, nossos filhos mais velhos, já casados, estavam nos
Estados Unidos cursando a universidade. Na época, ambos fizeram suas inscrições e foram aceitos na BYU. Charles inclinava-se para as ciências políticas, talvez porque
trouxesse um gene do avô, Raul Pimentel, pai de Vânia, que sempre teve grande interesse por assuntos dessa esfera, tendo sido prefeito de Siqueira Campos, no norte
do Paraná. Lincoln cursava economia e mais tarde chegou a fazer seu mestrado pela Universidade de Ohio. Charles faria um estágio de especialização em administração
pública em Harvard.
Na Wizard tínhamos nomeado pessoas de confiança como procuradores, que ficaram encarregados da parte financeira. Mas em alguns setores operacionais a água começou
a entrar no barco, despesas em excesso, relatórios dúbios. Momento de angústia, mais um desafio pela frente. E eu distante de Campinas.
Nesse momento, os filhos chegaram a João Pessoa para passar as férias. Foi quando o pai comunicou:
— Estamos enfrentando alguns problemas na empresa. Temos uma grande responsabilidade perante centenas de franqueados, milhares de professores e alunos. Precisamos
zelar pela integridade e consistência do sistema. Pensei em receber os relatórios, analisar, enviar para vocês nos Estados Unidos e buscarmos soluções juntos.
— Relatórios? Ler relatório nesse cenário preocupante não vai fazer diferença. O papel aceita tudo. Temos de estar lá, in loco, ver o que acontece e interagir com
a equipe. Estar próximo ao cliente.
— E vocês acham que podem fazer um intervalo nos estudos e passar seis meses na empresa? Não posso ir, de modo nenhum, ainda tenho um ano de missão pela frente!
O filho Charles não ficou surpreso:
Em nenhum momento passou pela cabeça de meu pai abandonar a missão e voltar para retomar a direção. A missão é sagrada, momento supremo. Tenho certeza de que ele
preferia ir à bancarrota que deixar Deus. Depois reiniciaria outro negócio, começaria tudo de novo.
• 19 •
Os filhos transformam a Wizard em Multi
OS GÊMEOS SABIAM, naquele julho de 2003, que teriam de conversar com as esposas, analisar a questão da faculdade, precisavam de um tempo para assumir e avaliar a
situação na empresa. Lincoln diz: Ninguém fez um curso superior mais fragmentado do que o meu. Foi todo pingado, mas isso é admitido nos Estados Unidos. A preocupação
era salvar a operação, perpetuar a atividade comercial e aliviar meu pai, cuja dedicação eclesiástica exigia tempo integral.
Os gêmeos partiram para Campinas com uma visão bem clara da incumbência. A Wizard tinha aproximadamente quinhentos franqueados, o que significava 120 mil alunos
e um faturamento global de 350 milhões de reais. Com o comando nas mãos dos filhos, em três meses, o quadro de funcionários passou de 220 para 150, vários departamentos
foram desativados, não eram produtivos. Por outro lado, aproveitaram talentos, valorizaram os colaboradores fiéis e contrataram novos profissionais. A empresa passou
por uma grande reestruturação, e os recursos foram direcionados para a expansão. Mal podiam imaginar na época que nos dez anos seguintes veriam a empresa crescer
dez vezes mais, ultrapassando a casa de 1 milhão de alunos e um faturamento global superior a 3 bilhões de reais.
Um ano mais tarde, Carlos terminou a missão e regressou. Pediu aos filhos: “Gostaria que ficassem mais um tempo à frente da operação para consolidarmos a transição”.
Nesse momento, passou a área comercial, o varejo, relacionamento com clientes para Lincoln e a administrativa e financeira para Charles. No início de 2005, os filhos
comunicaram que estava na hora de voltar aos Estados Unidos, a fim de terminar os cursos. Faltava pouco para se formarem. Mesmo à distância, continuaram a “despachar”
por meio de e-mails e telefonemas para manter funcionando a estrutura criada. Ao voltar em 2006, o pai comunicou: “De agora em diante, assumo como presidente e vocês
serão vice-presidentes. Abaixo de vocês, os diretores”.
Parte dos diretores passou a responder diretamente a Charles e Lincoln. Carlos ficou encarregado das áreas de marketing, planejamento estratégico e da parte pedagógica,
sua paixão. Ele sempre se reuniu semanalmente com seus filhos mais velhos para analisar, acompanhar, projetar e controlar os negócios e investimentos. Num determinado
dia em 2006, aconteceu uma reunião que mudou o futuro da Wizard. Formados em economia e administração, conhecendo o que ocorria no mercado, analisando a cena mundial,
atualizando-se com a literatura do segmento, Lincoln e Charles sentaram-se com o pai:
— Carlos, este é um momento-chave para a empresa. Nosso negócio é maior do que se imagina!
Na empresa, os filhos não o tratam como pai, e sim como Carlos.
— Como assim?
— Uma empresa líder de mercado, para se consolidar e se fortalecer, para se expandir, adquire as concorrentes, formando um grupo econômico, abrindo o capital e expandindo
horizontes.
— Por que dizem isso? O negócio vai bem, somos líderes de mercado, estamos presentes em todos os estados brasileiros.
Deu por encerrado o assunto. Passadas semanas, ambos voltaram:
— Carlos, o mercado é maior do que você pensa. Temos de nos reavaliar e pensar no futuro. Líder, sim. Até quando?
— Mas a cada ano estamos crescendo organicamente.
— Temos de abrir os olhos. Os investidores internacionais estão de olho no Brasil.
— O que sugerem?
— Está na hora de começarmos a fazer aquisições.
Aquisições? Passado algum tempo, os filhos bateram de novo na tecla, pressionando.
— Se não sairmos na frente, se não tomarmos a dianteira, grupos virão e começarão a comprar nossos concorrentes. Quando isso acontecer, ficaremos enfraquecidos,
reféns do mercado. Entendi que a visão deles era mais ampla, mais moderna e evidentemente mais abrangente. Mas eu precisava pensar, analisar e me convencer. Não
se tratava mais de abrir outra escola, conseguir mais um ponto de ensino. Era um passo enorme, envolvia dinheiro e uma nova postura empresarial – avalia Carlos.
Meus filhos tinham chegado a essa conclusão após pesquisas e conhecimento do mercado. O futuro se desenhava, cabia a mim dar o passo que me levaria a avançar ou
recuar. Esperava, como sempre, uma inspiração divina, ainda que soubesse que tudo dependia de duas palavras minhas, sim ou não. Deus nos concede o livre-arbítrio,
a capacidade de pensar e tomar as próprias decisões. Resisti, fortalecia-me com mil argumentos para dizer não. Encontrava mil motivos para dizer sim. O que fazer?
Momento de angústia, desenhava-se um sonho ainda maior. Os filhos batiam na mesma tecla, determinados:
— Carlos, olhe em volta! São muitos concorrentes. Muitas redes de franquias.
Ele ouvia em silêncio.
— O que sabemos da competição? Quem vai ter mais sucesso? Qual o mais louco? Quem vai fazer um trabalho melhor? Vamos ver as regiões onde estamos mais fracos, analisar,
comprar.
— Estou fora!
Passava um tempo e nova investida, desta vez mais firme, Lincoln e Charles ansiosos.
— Nós já temos tanto trabalho com nossos franqueados! Temos tanto a fazer, a melhorar, imaginem se aumentarmos a rede.
— Até aqui tivemos uma gestão familiar. Chegou a hora de profissionalizarmos a gestão. Vamos contratar gente qualificada.
Carlos adiava uma posição, até que veio um “para valer” da parte dos filhos mais velhos, a repetir, categóricos:
— É hora de formarmos um grupo econômico e passarmos a adquirir outras empresas. É uma visão estratégica de futuro. Tem mais! Se não assumirmos essa postura já,
grupos estrangeiros interessados no setor de educação no Brasil vão chegar e comprar nossos concorrentes. Daí, perderemos a liderança. Ficaremos enfraquecidos, vulneráveis.
Finalmente os filhos ouviram o que há tempos esperavam:
— SIM! Vamos comprar uma empresa de educação. Comecem pequeno. Não precisam fazer uma grande aquisição. Conduzam as negociações, vou observar.
Os irmãos já tinham uma rede em vista, a Yeski (Centro Cultural Americano), com sede em Campinas e setenta escolas espalhadas pelo Brasil. Marcaram uma reunião,
os donos eram Rita de Cássia Santos e seu sobrinho Igor Trafane. Preliminares, rodeios, gentilezas, até que os irmãos foram direto ao ponto.
— Queremos comprar a Yeski.
Eles se assustaram, jamais imaginaram vender, nem tinham pensado no assunto, e, de súbito, aquela proposta?
— Comprar? Quem falou em vender? Estamos crescendo, vamos muito bem. Nós é que queremos comprar.
Os gêmeos eram jovens, mas perceberam os meandros de uma negociação, o tipo de conversa a fim de valorizar o próprio negócio. Por outro lado, os proprietários estavam
de pé atrás, afinal tinham diante deles dois meninões com 26 anos que falavam em comprar uma rede de escolas. Conversa vai, conversa vem, toca no assunto, foge,
volta. Ambos tateando de modo cortês. De repente, a mulher disse:
— Está bem! E quem vai fazer o cheque?
— Nosso pai.
— Por que não veio?
— Ele virá, fiquem tranquilos. Vai aparecer em outro estágio da negociação.
— Vocês estão de brincadeira. Queremos vê-lo aqui! Vocês são novos, respeitamos vocês, mas onde está quem manda mesmo?
A esta altura Carlos Martins decidiu “dar as caras”. Um cheque foi feito e uma parte financiada. O pagamento saía do funcionamento das próprias escolas, era uma
dívida para com o vendedor, sem banco. Para ele era uma novidade, nunca tinha participado de uma aquisição semelhante. Entrou com entusiasmo e a Yeski foi comprada.
Aí, tomou gosto.
Terminado esse processo, meses depois, lá estavam os dois de novo diante do pai.
— Outra vez? O que é agora?
— Encontramos outro negócio bom. Uma rede chamada Planet Idiomas.
A negociação levou mais tempo e demandou paciência até ser concretizada. O acordo foi fechado e o cheque desta vez foi de 2 milhões. A Planet também tinha sede em
Campinas e atuava em cinquenta localidades, a maioria no sul e no sudeste, ainda que aparecesse em uma e outra capital. Um novo tempo para consolidar a unificação.
Dali em diante passei a ter total confiança na capacidade empreendedora dos dois, do sexto sentido deles para negócios. Sentia que já era um processo de transição
firme, estruturado. A Wizard dava sinais de que seria um grupo – acentua Carlos.
Os gêmeos revelam que enfrentaram a desconfiança de executivos profissionais da área, tanto interna quanto externamente. Diziam: “Ah, são muito novos, não têm experiência
nem capacidade para posições de tanta responsabilidade”. Não se intimidaram. Aquilo foi como provocar a onça com vara curta: “Não vamos baixar a guarda, eles vão
ver”.
Olheiros atilados, os irmãos mapeavam o mercado, analisavam possibilidades e risco de transações, trocavam informações, buscavam publicações especializadas, recebiam
informações de analistas, de banqueiros, consultavam profissionais do setor. Caçadores implacáveis. Assim identificaram a oportunidade de adquirir a Skill Idiomas,
rede com mais de trezentas escolas e uma tradição de 35 anos.
Os filhos cuidavam da transição e da unificação dos sistemas. Lincoln faz um perfil dessa época, intenso, febril: Charles liderou o grupo de aquisições e, em três
anos, compramos sete empresas. Cada aquisição foi uma grande emoção, requeria engenho e arte, ponderação, paciência e equilíbrio financeiro. Temos uma diretriz.
Nunca compramos nada pela emoção. Avaliamos a saúde da empresa e seu potencial de crescimento. Após a aquisição, vem o desafio de integrar, consolidar, unificar
a operação em busca do ganho de sinergia. Bem, disse que meu pai tirou um pouco o pé de acelerador, mas seu pensamento não para. Ele é um empreendedor nato. Está
sempre pensando em como ganhar escala com o negócio e como beneficiar financeiramente o maior número de pessoas. Quando encontra uma oportunidade, ele é ágil na
ação.
Em certo momento, os filhos surpreenderam novamente o pai:
— Estamos pensando em ampliar nossos horizontes e avançar para o setor do ensino profissionalizante.
— Como assim?
— Estamos namorando a rede People Computação, bastante respeitada na área.
Novamente o questionamento interior de Carlos, que jamais havia pensado em atuar nesse setor. Porém, os jovens tinham argumentos sólidos que convenciam sobre o sentido
de adquirir. Não levou muito tempo e ouviram o sim de Carlos. A cada nova aquisição aumentava a autoconfiança dos caçadores de empresas e aumentava também o tamanho
do cheque. Já convencidos de atuar no setor profissionalizante, a aquisição seguinte foi a SOS Computadores, uma rede tradicional espalhada por vários estados do
Brasil. Até o dia em que se viram diante do grande enfrentamento: a negociação com a empresa líder no setor, presente em todos os estados brasileiros, a Microlins,
com 750 escolas profissionalizantes, que pertencia ao Fundo Anhanguera, definida como “um peixe grande”. Exigiu persistência, virtude que os jovens tinham de sobra.
Logo, foram absorvidas a Quatrum e a rede Bit Company, também da área profissionalizante. E em 2007 formou-se o Grupo Multi Educação.
Em 2011, entrou em cena o Kinea, fundo de private equity ligado ao Banco Itaú, interessado no setor de educação, que fez um aporte de 200 milhões de reais por uma
parcela minoritária do negócio. Após alguns meses, eles se veriam diante de um repto, palavra que tem mais força que desafio, para compor o mosaico de marcas Multi.
Incorporar ao grupo uma das escolas mais tradicionais do Brasil, Yázigi, há mais de sessenta anos na área de ensino de idiomas. Sólida, estabelecida, competente.
A Microlins e o Yázigi foram aquisições transformadoras, deram grande mídia, notoriedade. Tacada de mestre. Carlos Martins, quando menino, desejou estudar inglês
no Yázigi, mas não teve recursos para frequentá-lo. Acabou aprendendo inglês com os missionários Mórmons. Quarenta anos depois, entrava na sede da escola. Como proprietário.
Finalmente, foi criada a Smartz em 2011, voltada ao ensino de português e matemática, como reforço escolar. Em cinco anos, nove aquisições, com um investimento total
de 450 milhões de reais, parte com capital próprio, parte com financiamento.
Wizard, Yázigi e Skill, na área de idiomas, Microlins, SOS e People na área profissionalizante. Smartz para ensinar português e matemática. Sete marcas, pois algumas
foram consolidadas. Três mil escolas, um milhão de alunos em todos os estados brasileiros e em dez países, gerando cerca de 50 mil empregos. Estava formado o Grupo
Multi Educação, do qual Lincoln foi nomeado CEO e Charles presidente do conselho administrativo.
O foco é o crescimento. “No Brasil, apenas 2% da população fala inglês, queremos chegar, no mínimo, ao nível do Chile e da Argentina que é de 7%. Teremos mais que
triplicar nosso mercado e vemos muito espaço para crescimento, tanto no inglês quanto no ensino profissionalizante. O sonho? A busca da perenidade”, concluem Charles
e Lincoln. Até hoje Carlos Wizard Martins confessa: “O meu sonho começou com a Wizard. A formação do Grupo Multi foi o sonho de meus filhos”.
O fundador tem um orgulho incontido. Para ele: Charles tem uma visão abrangente, o raciocínio aguçado, o pensamento expansionista. A estratégia dele é sempre para
realizar algo grandioso em parceria com grupos econômicos nacionais e internacionais e atuar em grande escala. É um homem que tem facilidade de unir diversas partes
com interesses distintos para chegar a um denominador comum satisfatório a todos. Quanto a Lincoln, atua com eficiência em outra área, é extremamente dedicado a
processos, relatórios, acompanhamentos e controles, ele é voltado para o atendimento do cliente, para o setor do varejo. O talento dele é com a área humanística,
uma vez que tem facilidade na comunicação, na integração e nos relacionamentos. Os irmãos não competem entre si. Eles se complementam, o que beneficia o desenvolvimento
individual e profissional de cada um.
Os filhos dizem do pai:
Ele tem seus valores e princípios muito bem definidos, porém uma coisa boa é que ele é aberto a novas ideias, a novos pensamentos. Parece que não, à primeira vista,
nos primeiros diálogos, mas ele repensa em dois minutos. Não é um homem que se prende muito a conceitos antigos. Se alguém chega com uma ideia que o atraia e o convença,
ele está disposto a mudar, a aceitar, a abraçar.
• 20 •
Sucesso só é sucesso quando compartilhado
TRANQUILO QUANTO À GOVERNANÇA e à posição da empresa, Carlos Wizard Martins é um empresário low-profile, ainda que firme e intuitivo nos negócios, empreendedor que
criou o embrião de um grupo educacional que se estende pelo mundo. Low-profile porque nunca vemos Martins se exibindo em eventos sociais, em revistas de celebridades,
ao volante de uma Ferrari, na proa de iates ou à mesa de restaurantes estrelados. Aliás, ele tanto pode ir ao restaurante quatro estrelas, onde estão artistas, celebridades
ou empresários emergentes, para um almoço ou jantar de negócios, quanto estará à vontade num lugar simples, com boa comida caseira.
Ao longo de meses e meses de reuniões, sempre o encontrei impecável, em trajes sóbrios. Se puder, foge do almoço, raramente marca um jantar. Em relação a comer,
é disciplinado em seus hábitos. “Muito ligado a nutrição, raramente janta e controla tudo que come. Aboliu o consumo de refrigerantes e ultimamente está controlando
até o nível de PH da água”, diz a filha Thaís, em tom de brincadeira.
Discreto, veste-se com sobriedade e aí reside sua elegância. Sempre que pode, escapa e vai ao encontro da família. Notícias sobre ele encontramos em publicações
econômicas, tecnológicas ou pedagógicas. Ele comunica-se bem e com frequência está presente em entrevistas nos principais meios de comunicação do país.
UM HOMEM ÀS VEZES FRACASSA
Foi num de nossos últimos encontros. Carlos relia suas notas, eu as minha, comparávamos. Já falamos sobre isso? Sobre aquilo? Nos percebemos fazendo um levantamento
dos assuntos, dos períodos de sua trajetória, das realizações. Fizemos a síntese de uma vida marcada por perseverança, determinação e paixão para trabalhar até realizar
os sonhos. “Nunca deixei nada por causa da sorte”.
Coisas boas vinham à mente. O garoto que começou a aprender inglês aos 12 anos. O jovem que foi para os Estados Unidos aos 17 anos com 100 dólares no bolso e passou
um ano e meio sem pedir ajuda aos pais. O rapaz que serviu em missão para a Igreja Mórmon por dois anos mergulhado totalmente em uma cultura estrangeira. O sonhador,
ainda que racional, que teve a boa fortuna de encontrar pessoas iluminadas que lhe indicaram o caminho a percorrer. O estudante que se preparou longamente para ser
aceito numa universidade americana e que, após seu curso, recebeu convite para atuar por três anos num dos maiores centros de ensino de línguas do mundo, o MTC.
Ao regressar ao Brasil, deu aulas à noite em casa para sobreviver. Embora sem experiência em linguística, pedagogia ou educação, criou um método novo, fácil de ser
aprendido, revolucionário, sem copiar materiais existentes no mercado, ao contrário, muitas vezes indo na direção oposta. Colocou a marca da empresa em seu nome
civil. Teve a intuição de montar uma empresa de franquia no momento em que o sistema de franchising nascia no Brasil. Enfrentou uma sucessão de planos econômicos
frustrados com uma inflação próxima a 100% ao mês.
Nestes meses todos de conversas e depoimentos, uma coisa começou a me incomodar. Tudo deu certo para esse homem? Nunca errou? Nunca fracassou? É um mágico, um Midas,
um predestinado? Seres humanos cometem erros, tomam decisões inadequadas. Ele surpreendeu-se com minha pergunta, no entanto foi franco, aberto. Não escondeu, a verdade
faz parte de seu estilo:
— Fracassos? Tive vários.
— Não parece...
— Tenho uma lista de empreendimentos malogrados. Abri uma rede de franquias para informática para crianças. Não foi para frente. Tive uma agência de locação de veículos.
Faliu. Montei uma lanchonete, desmontei, não foi para frente. Tentei uma sorveteria, precisei fechar. Fundei uma escola em Orlando, Estados Unidos. Prejuízo total.
Abri uma escola na China. Deu em nada. Abri uma agência de viagens, só perdi dinheiro. Criei um site de ofertas coletivas, prejuízo. Por dois anos desenvolvi um
material especial para redes de ensino. Nunca saiu da gaveta. Lancei quatro livros no mercado brasileiro, não emplaquei nenhum.
— Erros ou fracassos são remoídos, lembrados com dor. Fica imaginando: por que não fiz assim, assado?
— Há uma característica em meu temperamento que me protege emocionalmente dos insucessos. Costumo afirmar que o primeiro passo para a pessoa vencer financeiramente
é zerar seu passado. Pessoas que vivem presas a erros do passado não progridem. Pois consomem seus dons, sua energia e sua capacidade criativa se remoendo com situações
negativas que aconteceram muito tempo atrás. Essa postura bloqueia o progresso. Valorizo a capacidade de mudar, virar a página. De partir em outra direção. Tento,
dou o máximo, me esforço. Mas há coisas que nos fogem ao controle. Terminado, avalio. Que lição esse empreendimento frustrado me ensina? O que posso fazer diferente
da próxima vez? O que passou, passou. Não podemos ficar no caminho, como no poema de Carlos Drummond de Andrade: Tinha uma pedra no caminho. Deprimir, amargurar,
se fechar tolhem a ação de um homem.
SER RICO SEM VERGONHA OU CULPA
A partir de 2012 as livrarias passaram a ostentar com destaque o livro Desperte o milionário que há em você: como gerar prosperidade mudando suas atitudes e postura
mental. Esse livro faz parte de uma filosofia pessoal do autor. Ele gosta de escrever. Para ele, ser rico não é questão de sorte, e sim de empenho, postura mental
e disciplina. Não se pode ter medo, culpa ou vergonha de ser rico. O necessário é explorar o próprio talento, criar, acumular e multiplicar riqueza, com o objetivo
de fazer o bem, socorrer os necessitados e dar chance de crescimento aos que estão começando sua jornada rumo ao sucesso.
Não é um volume de teorias e fórmulas complexas que exasperam e confundem quem lê. Nada que esteja distante do homem comum que tem inteligência e determinação. Tudo
o que Wizard Martins coloca são experiências vividas, que o leitor pode viver também se deixar de ouvir os “matadores de sonhos”, os pessimistas, os acomodados,
os que se resignam a levar a vida mergulhados dentro da multidão opaca.
Ele escreve como quem conversa, sua prosa é direta e didática, fruto dos anos em que foi professor. O que ele pretende com seus livros? Espera que ajudem o leitor
a construir cada um a própria história de superação, transformação pessoal, ascensão profissional e financeira. “Meu intuito não é ensinar práticas de gestão, fórmulas
de economia, análise de mercado ou maneiras de administrar sua empresa. Procuro falar do que se passa em você, em sua mente, em seu coração e em seu espírito.”
Alerta aos que esperam fórmulas e equações matemáticas precisas: Você comprovará que riqueza, prosperidade e sucesso estão mais relacionados à sua postura mental
– à sua maneira de pensar, acreditar e agir – do que a fatores tangíveis. A riqueza começa dentro de cada um. Siga sua voz interior. Acredite em seus sonhos. O futuro
pertence aos que creem na riqueza de seus sonhos. Você é o criador de sua jornada. Rompa as correntes do passado. Quando você inicia um processo de mudança, está
cuidando da própria alma. Uma mudança real nunca é instantânea.
Quando perguntei: acredita que todo mundo consegue vencer, prosperar, enriquecer? Sua resposta foi imediata: “Sim, desde que a pessoa tenha o desejo, transforme
seu desejo em um projeto de vida e siga as regras, os conceitos e as leis que tiram a pessoa de seu estado financeiro atual e a projetem rumo a um novo mundo de
prosperidade. Quem seguir estes três princípios vencerá”.
Com várias pessoas com quem conversei, ouvi definições curiosas sobre esse professor, Carlos Wizard. Foram desde: “Ele consegue ver aquilo que normalmente não vemos”
a “Carlos não é apenas um sonhador, e sim um realizador de sonhos”, passando por “É um homem de pensamentos incomuns”. Quando fala de sonhos, Martins é categórico,
objetivo: “Os únicos limites aos seus sonhos são os que você aceita”.
Mas o que é o Grupo Multi Educação? Mais do que um sucesso econômico, é uma ideia, uma filosofia de vida: Acima de tudo, é uma escola de empreendedores. Um formador
de talentos empresariais que estão em contínuo processo de mudança, qualificação e atualização. É maravilhoso acompanhar o esforço do aluno que estuda o suficiente
até se tornar um mestre. O empenho do mestre dedicado que se qualifica ao posto de coordenador. A realização do coordenador que se transforma em franqueado. A alegria
do franqueado que se transforma num empresário de sucesso. Para alguns, esse processo é gradual e lento, porém para outros essa transformação ocorre tão rapidamente
que eles mesmos se surpreendem.
Este é o perfil de um homem bem-sucedido. Para ele, o que é o sucesso? O sucesso de verdade só acontece quando você consegue auxiliar outras pessoas a terem sucesso
também. Hoje vivo em auxiliar as pessoas que fazem parte de nosso sistema, da nossa organização, a fim de que desenvolvam as próprias metas, os objetivos, os sonhos
pessoais.
Descobri que quanto mais você for capaz de auxiliar outros a serem bem-sucedidos, mais sucesso você terá. Quanto maior for sua capacidade de unir forças, gerar e
dividir riqueza, maior ela será. Quem quer ganha tudo sozinho, quem quer tudo para si, acaba sem nada.
Seja por influência da mãe, de sua religião ou de suas convicções pessoais, Carlos é uma pessoa de fé que associa a prosperidade como algo louvável. Ele costuma
citar um pensamento de Keith DeGreen: Na medida em que o dinheiro é a qualidade dos serviços que prestamos aos outros, acumulá-lo é nobre. Na medida em que utilizamos
nosso dinheiro a serviço dos que amamos, suprindo-os com todo calor, conforto e segurança possíveis, o dispêndio é compensador e divino.
Carlos acrescenta:
Toda pessoa bem-sucedida carrega dentro de si a sensação de estar cumprindo uma missão, pois qualquer vitória perde seu valor se não a utilizarmos para propósitos
ainda maiores. É difícil alguém se sentir totalmente realizado sem experimentar a sensação de estar ligado, de alguma forma, aos propósitos mais elevados da vida.
Assim, todo aquele que deseja sentir o aroma pleno do sucesso precisará sentir-se em harmonia com o Criador.
Parece que ambição, prosperidade e fortuna são palavras opostas a humildade. Bem, encontrei um homem de posses, porém com um espírito manso e humilde. Quando lhe
perguntei como explicava sua trajetória, respondeu: Não tenho dúvida que meu projeto educacional nasceu sob a inspiração divina. Possuo profundo sentimento de gratidão
a Deus por essa preciosa dádiva que Ele me confiou. Tenho consciência da responsabilidade profissional, social e moral que repousa em mim, e saber que não estou
sozinho nesse majestoso empreendimento me transmite muita segurança, serenidade e confiança para levar avante os sonhos que um dia eu criei.
Uma pergunta final: agora, que sonhos restam, que projetos tem pela frente? Seu rosto que parece absorto, de repente se ilumina.
Sempre tive dentro de mim um ensinamento de Francisco de Assis que me marcou e sempre me norteou. Ele disse: “Comece fazendo o necessário, depois o possível. De repente, estará fazendo o impossível”.

 

 

                                                                  Ignácio de Loyola Brandão

 

 

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