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Carta de um defunto rico / Lima Barreto
Carta de um defunto rico / Lima Barreto

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Carta de um defunto rico

 

“Meus caros amigos e parentes. Cá estou no carneiro n° 7...,     da 3a quadra, à direita, como vocês devem saber, porque me puseram     nele. Este Cemitério de São João Batista da Lagoa não     é dos piores. Para os vivos, é grave e solene, com o seu severo     fundo de escuro e padrasto granítico. A escassa verdura verde-negra     das montanhas de roda não diminuiu em nada a imponência da antiguidade     da rocha dominante nelas. Há certa grandeza melancólica nisto     tudo; mora neste pequeno vale uma tristeza teimosa que nem o sol glorioso     espanta... Tenho, apesar do que se possa supor em contrário, uma grande     satisfação; não estou mais preso ao meu corpo. Ele está     no aludido buraco, unicamente a fim de que vocês tenham um marco, um     sinal palpável para as suas recordações; mas anda em     toda a parte.

Consegui afinal, como desejava o poeta, elevar-me bem longe dos miasmas mórbidos,     purificar-me no ar superior — e bebo, como um puro e divino licor, o     fogo claro que enche os límpidos espaços.

Não tenho as dificultosas tarefas que, por aí, pela superfície     da terra, atazanam a inteligência de tanta gente.

Não me preocupa, por exemplo, saber se devo ir receber o poderoso     imperador do Beluchistã com ou sem colarinho; não consulto autoridades     constitucionais para autorizar minha mulher a oferecer ou não lugares     do seu automóvel a príncipes herdeiros — coisa, aliás,     que é sempre agradável às senhoras de uma democracia;     não sou obrigado, para obter um título nobiliárquico,     de uma problemática monarquia, a andar pelos adelos, catando suspeitas     bugigangas, e pedir a literatos das ante-salas palacianas que as proclamem     raridades de beleza, a fim de encherem salões de casas de bailes e     emocionarem os ingênuos com recordações de um passado     que não devia ser avivado.

Afirmando isto, tenho que dizer as razões. Em primeiro lugar, tais     bugigangas não têm, por si, em geral, beleza alguma; e, se a     tiveram era emprestada pelas almas dos que se serviram delas. Semelhante beleza     só pode ser sentida pelos descendentes dos seus primitivos donos.

Demais, elas perdem todo o interesse, todo o seu valor, tudo o que nelas     possa haver de emocional, desde que percam a sua utilidade e desde que sejam     retiradas dos seus lugares próprios. Há senhoras belas, no seu     interior, com os seus móveis e as costuras; mas que não o são     na rua, nas salas de baile e de teatro. O homem e as suas criações     precisam, para refulgir, do seu ambiente próprio, penetrado, saturado     das dores, dos anseios, das alegrias de sua alma; é com as emanações     de sua vitalidade, é com as vibrações misteriosas de     sua existência que as coisas se enchem de beleza.

É o sumo de sua vida que empresta beleza às coisas mortais;     é a alma do personagem que faz a grandeza do drama, não são     os versos, as metáforas, a linguagem em si, etc., etc. Estando ela     ausente, por incapacidade do ator, o drama não vale nada.

Por isso, sinto-me bem contente de não ser obrigado a caçar,     nos belchiores e cafundós domésticos, bugigangas, para agradar     futuros e problemáticos imperantes, porque teria que dar a elas alma,     tentativa em projeto que, além de inatingível, é supremamente     sacrílego.

 

De resto, para ser completa essa reconstrução do passado ou     essa visão dele, não se podia prescindir de certos utensílios     de uso secreto e discreto, nem tampouco esquecer determinados instrumentos     de tortura e suplício, empregados pelas autoridades e grão-senhores     no castigo dos seus escravos.

Há, no passado, muitas coisas que devem ser desprezadas e inteiramente     eliminadas, com o correr do tempo, para a felicidade da espécie, a     exemplo do que a digestão faz, para a do indivíduo, com certas     substâncias dos alimentos que ingerimos.

Mas... estou na cova e não devo relembrar aos viventes coisas dolorosas.

Os mortos não perseguem ninguém e só podem gozar da     beatitude da superexistência aqueles que se purificam pelo arrependimento     e destroem na sua alma todo o ódio, todo o despeito, todo o rancor.

Os que não conseguem isso — ai deles!

Alonguei-me nessas considerações intempestivas, quando a minha     tenção era outra.

O meu propósito era dizer a vocês que o enterro esteve lindo.     Eu posso dizer isto sem vaidade, porque o prazer dele, da sua magnificência,     do seu luxo, não é propriamente meu, mas de vocês, e não     há mal algum que um vivente tenha um naco de vaidade, mesmo quando     é presidente de alguma coisa ou imortal da Academia de Letras.

Enterro e demais cerimônias fúnebres não interessam ao     defunto; elas são feitas por vivos para vivos.

É uma tolice de certos senhores disporem nos seus testamentos como     devem ser enterrados. Cada um enterra seu pai como pode — é uma     sentença popular, cujo ensinamento deve ser tomado no sentido mais     amplo possível, dando aos sobreviventes a responsabilidade total do     enterro dos seus parentes e amigos, tanto na forma como no fundo.

O meu, feito por vocês, foi de truz. O carro estava soberbamente agaloado;     os cavalos bem paramentados e empenachados; as riquíssimas coroas,     além de ricas, eram lindas. Da Haddock Lobo, daquele casarão     que ganhei com auxílio das ordens terceiras, das leis, do câmbio     e outras fatalidades econômicas e sociais que fazem pobres a maior parte     dos sujeitos e a mim me fizeram rico; da porta dele até o portão     de São João Batista, o meu enterro foi um deslumbramento. Não     havia, na rua, quem não perguntasse quem ia ali.

Triste destino o meu, esse de, nos instantes do meu enterramento, toda uma     população de uma vasta cidade querer saber o meu nome e dali     a minutos, com a última pá de terra deitada na minha sepultura,     vir a ser esquecido, até pelos meus próprios parentes.

Faço esta reflexão somente por fazer, porque, desde muito,     havia encontrado, no fundo das coisas humanas, um vazio absoluto.

Essa convicção me veio com as meditações seguidas     que me foram provocadas pelo fato de meu filho Carlos, com quem gastei uma     fortuna em mestres, a quem formei, a quem coloquei altamente, não saber     nada desta vida, até menos do que eu.

Adivinhei isto e fiquei a matutar como que é que ele gozava de tanta     consideração fácil e eu apenas merecia uma contrariedade?     Eu, que...

Carlos, meu filho, se leres isto, dá o teu ordenado àquele     pobre rapaz que te fez as sabatinas por "tuta-e-meia"; e contenta-te     com o que herdaste do teu pai e com o que tem tua mulher! Se não fizeres...     ai de ti!

Nem o Carlos nem vocês outros, espero, encontrarão nesta última     observação matéria para ter queixa de mim. Eu não     tenho mais amizade, nem inimizade.

Os vivos me merecem unicamente piedade; e o que me deu esta situação     deliciosa em que estou, foi ter sido, às vezes, profundamente bom.     Atualmente, sou sempre...

Não seria, portanto, agora que, perto da terra, estou, entretanto,     longe dela, que havia de fazer recriminações a meu filho ou     tentar desmoralizá-lo. Minha missão, quando me consentem, é     fazer bem e aconselhar o arrependimento.

Agradeço a vocês o cuidado que tiveram com o meu enterro; mas,     seja-me permitido, caros parentes e amigos, dizer a vocês uma coisa.     Tudo estava lindo e rico; mas um cuidado vocês não tiveram. Por     que vocês não forneceram librés novas aos cocheiros das     caleças, sobretudo, ao do coche, que estava vestido de tal maneira     andrajosa que causava dó?

Se vocês tiverem que fazer outro enterro, não se esqueçam     de vestir bem os pobres cocheiros, com o que o defunto, caso seja como eu,     ficará muito satisfeito. O brilho do cortejo será maior e vocês     terão prestado uma obra de caridade.

Era o que eu tinha a dizer a vocês. Não me despeço, pelo     simples motivo de que estou sempre junto de vocês. É tudo isto do José Boaventura da Silva.

 

                                                                                            Lima Barreto

 

Carlos Cunha        Arte & Produção Visual

 

 

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