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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CASA DE DAVID / Allan Massie
CASA DE DAVID / Allan Massie

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

   

 

Porque tenho frio e tremo durante a noite, buscaram-me esta donzela, Abisag, a sunamita, para que partilhe o meu leito e me traga calor. Abisag é uma donzela amável e bonita, nédia e de pele macia como as azeitonas novas. Bem preparada também no uso dos lábios de cereja e das mãos quentes. Não evidencia a mais ínfima repugnância quando pressiona a sua juventude contra o meu corpo frio e seco como o couro (quase o corpo de um cadáver). Trabalha em silêncio e com ternura, com uma arte que é ou natural ou resultado de uma boa educação; mas eu não consigo corresponder-lhe.

A velhice é um naufrágio. Por vezes, a meio da noite, negado o sono, ouço a sua respiração e dou comigo a chorar.

Ela hesita em falar. Não sei se tem a cabeça cheia de perguntas que não ousa fazer-me. Estou impressionado com o seu autodomínio, se eu fosse um homem sentimental, leria amor na sua ternura. Mas é claro que não há amor, e nem poderia haver. Quando eu era jovem, a simples idéia de uma donzela ligada assim à coisa flácida e seca em que me tornei, ter-me-ia enojado. Mesmo agora, sinto pena dela, pelo menos o suficiente para a guardar do medo que me consome o espírito. Coloco a mão entre as suas coxas e sonho acordado com o passado.

É impossível que o meu filho Salomão, que todas as manhãs entra no meu quarto na esperança de entretanto se ter tornado rei, me compreenda, pois foi educado em palácios, com toda a delicadeza, sem que a sua pele alguma vez tenha sido exposta ao rigor do clima, ao passo que eu fui criado na adversidade, entre as montanhas. Guardo-lhe rancor por esta diferença, e não gosto dele por isso. De todos os meus filhos, é dele que menos gosto, e, no entanto, ele será o meu sucessor, porque estou velho e não posso opor-me a sua mãe, Betsabé, a quem outrora amei mais do que a qualquer outra das minhas esposas, exceto Mical, filha de Saul, que se virou contra mim, tal como eu agora me virei contra Betsabé, embora esteja demasiado cansado e débil para contrariar a sua vontade.

Salomão não sabe o que é ter frio, estar exposto ao vento e à chuva e a neve ouvir os lobos a uivarem nas franjas da noite. Nunca conheceu a solidão, nem se sentiu um mero grão de poeira na imensidão do deserto. Nunca ouviu no vento as palavras do Senhor. Como pode ele ser rei, um rei como eu tenho sido?

Eu era o mais jovem e o mais bem parecido dos filhos de meu pai, o filho da sua velhice e o seu preferido. Os meus irmãos odiavam-me, todos exceto Chamá, tal como os irmãos de José o odiaram ao vê-lo vestido com uma túnica comprida. Quanto a mim, invejava-os porque tinham escapado a pastoricia e ido para o exército para se juntarem ao grande rei Saul. Eu inventava histórias na noite, e agora não sei quais eram verdadeiras e quais eram imaginárias. Será que matei realmente um leão e um lobo, como me vangloriava de ter feito? Talvez Mas sou um poeta, e os poetas são mentirosos que glorificam o Todo-Poderoso pela fertilidade da Sua criação.

Mas Samuel não foi imaginação minha.

Eu conhecia-o apenas como sumo sacerdote, o servo do Senhor e um homem cuja ira era conhecida em toda a tribo de Judá

Quando mandou informar o meu pai, Jessé, como administrador de Belém, de que tencionava ficar alojado em nossa casa quando viesse oferecer um sacrifício ao Senhor na nossa pequena cidade, fiquei contente por ter uma desculpa para me escapar para as montanhas para tomar conta das ovelhas. Não queria saber de sacerdotes, e uma vez que estava na altura dos partos, tinha de velar pelo bem-estar do meu rebanho.

Os meus irmãos, no entanto, estavam ansiosos por verem o sumo sacerdote, e lutavam entre si para decidirem qual deles receberia a sua benção.

- E porque deveria ele querer abençoar um de vós? - perguntei, e recebi logo o troco.

- Esses são assuntos que transcendem a compreensão de um pastor - responderam-me eles.

Era uma manhã de Primavera da máxima beleza. Cerca do meio-dia, reuni as ovelhas à sombra de um olival, e deitei-me junto delas, tranqüilo, com o braço em volta do pescoço forte de um dos cães. Sol batia, quente, nas minhas pernas, os cordeirinhos brincavam e, de vez em quando, ouvia-se o balir de uma ovelha para lembrar a um deles de que se tinha afastado demasiado. Eu bebia vinho misturado com água do meu odre, e comia pão com queijo, que partilhava com os cães.

A luz do Sol tremeluzia entre os ramos de oliveira, e o mundo era bom e estava em paz. Eu dava voltas aos versos de um poema que estava a fazer para exaltar a beleza da terra e a magnificência da criação do Senhor. Toda a vida tenho sido muito feliz na solidão, sob os céus, pois é só então que tudo está sossegado e que o movimento do tempo parece parado.

Murmurei o meu nome: «David, David, David», com ternura, e pareceu-me que se espalhava pelas encostas das montanhas e que enchia o mundo. «Do Senhor é a terra e a sua plenitude.» E foi-me concedido gozá-la plenamente.

Nesse momento, soube que não me estava destinado passar os dias a cuidar de rebanhos, nem a contar molhos no tempo das ceifas, e que me esperava um destino mais nobre. E, porque tinha essa certeza, não sentia impaciência mas prazer no desempenho da minha humilde tarefa, assim como nas oportunidades para pensar e sonhar que a solidão me oferecia. Sempre desconfiei e desprezei o homem que não suporta estar sozinho.

Somos criaturas de tão estranhas sugestões que este contentamento se coadunava facilmente com a inveja que eu sentia pelo fato de os meus irmãos se encontrarem a servir no exército.

Até nessas alturas eu sentia o meu poder, e o vento nas folhas das oliveiras trazia-me a promessa de glória.

O som de passos que trepavam a encosta interrompeu-me o sonho. O pêlo do cão endureceu sob a minha mão, e o animal rosnou um aviso em surdina. Fiz pressão sobre ele para evitar um latido, e levantei-me, preparado para qualquer encontro.

Era o meu irmão Chama, cheio de calor e a arfar, e, por uns momentos, incapaz de falar. Passei-lhe o meu odre e ele refrescou-se e sorriu.

- Hum - disse ele, - passam-se coisas estranhas lá em baixo, não há dúvida.

Voltou a beber e devolveu-me o odre.

- Mandaram-me vir buscar-te - continuou ele.

- Isso não faz sentido - disse eu. - Não posso deixar o rebanho. O pai sabe isso.

- Não faz mal - disse ele -, se olhares lá para baixo, verás o velho Gedeão a subir para te substituir.

- Mas o que se passa?

- Bem, é um mistério - disse ele. - Samuel chegou.

- Como é ele?

- Aquilo que se esperava. Alarmante. O conselho de anciãos da cidade estava nervoso. «É de paz a tua vinda?», perguntaram eles. Tinham aspecto de quem lhe teria barrado a entrada se tivessem tido coragem.

- Mas porquê? Ele é o sumo sacerdote. Deviam ter-se sentido honrados.

- És um inocente, meu jovem irmão David, perdido nos teus sonhos, na tua poesia e nos teus rebanhos, não sabes mesmo nada, pois não? Oxalá Gedeão não se demore.

- Ele é velho. É um grande esforço para ele, aquela montanha. De qualquer maneira, não vejo... mas continua, conta-me mais coisas.

- Eles estavam nervosos e assustados, mas não puderam recusar deixá-lo entrar, vendo que ele é, como dizes, o sumo sacerdote, para oferecer o seu sacrifício, e eu não sei por que teria ele de vir para Belém para fazer isso, mas, também, não compreendo os sacerdotes, e depois os anciãos dispersaram, sem grande cerimônia, devo dizer, e ele entrou em nossa casa. E deves ter reparado, meu irmãozinho, o estado em que as mulheres estavam, e ainda ficaram piores quando Samuel recusou comer e disse que tinha assuntos para tratar primeiro. Que assuntos, bem podes perguntar, pois foi o que todos fizemos. Em seguida fez o pai passar conosco em parada em frente dele, um por um, e não me importo de te contar, David, que foi enervante a forma como ele me olhou, como se visse dentro do meu coração, da minha mente e da minha alma. E depois apalpou-me como se eu fosse um potro que ele quisesse comprar, resmungou com voz rouca, e voltou a olhar-me nos olhos, e abanou a cabeça e afastou-me para o lado. Mas logo a seguir voltou a chamar-me, como se estivesse a pensar fazer uma oferta, como se faz no mercado, colocou a mão debaixo do meu queixo, obrigando-me a olhá-lo nos olhos. Digo-te, não gostei nada, senti o suor a correr-me pela barriga das pernas. Mas ele suspirou e voltou a resmungar, e disse ao pai: «Estão aqui todos os teus filhos? Não tens outro?» Então o pai disse que havia apenas o mais novo, que estava a cuidar das ovelhas. «A cuidar das ovelhas», repeliu Samuel, num tom de voz como se estivesse a magicar qualquer coisa, ou talvez mais desconfiado, «a cuidar das ovelhas? Manda buscá-lo». Há algo de terrível nele, sabes, um ar de autoridade ou de poder, embora não passe de um velho, como se poderia pensar. «Manda buscá-lo imediatamente, pois não comeremos nem beberemos enquanto ele não tiver chegado.» As mulheres começaram a murmurar e a lamentar-se, pensando que o jantar estava estragado, e ele deve tê-las ouvido, pois olhou-as com ar carrancudo e disse: «Essa é a vontade do Senhor.» Por isso aqui estou eu, e aqui está finalmente Gedeão para te substituir, e é melhor que nos apressemos, pois não posso responder pelo seu mau humor nem pelo da nossa mãe, se nos demorarmos.

E assim desci a encosta e entrei em casa. Por um momento, tendo acabado de sair do Sol, eu não via nada e senti-me tonto, pois viera a correr, e o mundo girava em meu redor. Mas uma mão amparou-me e segurou-me, e a escuridão fez-se luz, e eu vi Samuel e caí de joelhos à sua frente.

Ele colocou a mão sob o meu queixo, pele áspera contra pele macia, e puxou-o para cima de forma a que os meus olhos fossem obrigados a encontrar os dele. O cheiro da pele idosa era fétido e azedo como o de um bode. Ele segurava-me e ordenou aos outros que saíssem.

Estávamos a sós, e o seu silêncio, o seu cheiro, e uma estranha emanação de poder oprimiam-me. Um jumento zurrou no pátio, e Samuel continuava sem falar.

Tirou das pregas do manto um como de óleo e derramou uma pequena quantidade sobre a minha cabeça, e esfregou o óleo no meu crânio com o polegar. Murmurava palavras que eu não compreendia. Eram, sei-o agora, na língua antiga, que apenas os sacerdotes falavam, embora muitos hoje não compreendam, eles próprios, o significado dos encantamentos antigos.

Puxou-me para cima e beijou-me em ambas as faces e na boca, apertando-me num forte abraço, ao mesmo tempo que as suas unhas se cravavam na minha pele, por cima das costelas.

- Meu filho - disse ele -, ungi-te servo do Senhor dos Exércitos e instrumento da sua vingança.

Em seguida chamou o meu pai e disse-lhe:

- Abençoado és entre os pais, pois o teu filho David é o escolhido do Senhor.

E quando entramos para comer, ele colocou-me à sua direita, no lugar de honra, e encheu-me de vinhos e da carne mais saborosa.

- Vejo - disse ele - que o jovem David é tão virtuoso quanto é belo, e por isso encontrou favor junto do Senhor e de mim, Seu humilde ministro.

Eu pensei, subitamente horrorizado: «ele não me selecionou para ser sacerdote, pois não?» Mas esse pensamento passou, pois nesse exato momento tive consciência de que só os descendentes da tribo de Levi podiam ser sacerdotes-

Samuel bebeu vinho e levou a mesma taça aos meus lábios, e o seu olhar pousou nas minhas pernas, nuas sob a túnica curta. Passou a mão pelas minhas faces e eu senti-me corar ao ver os meus irmãos Eliab e Abinaclab acotovelarem-se e soltarem um riso abafado ao presenciarem o comportamento lânguido do homem idoso para comigo.

Em seguida, o meu pai, desculpando-se ao ver Samuel afetado pelo vinho, chamou-me à parte e disse-me que regressasse para junto do meu rebanho.

- Há coisas que aconteceram hoje aqui que devem permanecer secretas - disse ele.

Chama escapou-se de casa comigo, e começamos a subir a montanha à medida que a luz do dia desaparecia. Contei-lhe tudo o que se passara, e ele ficou em silêncio durante muito tempo. Depois estendeu a mão, tocou-me a cabeça, correu os dedos pelo meu cabelo e levou-os aos lábios, cheirando-os em seguida.

- O óleo santo do Senhor. David, tenho medo por ti.

- Chama - disse eu -, não te compreendo. Não compreendo nada do que aconteceu hoje. Talvez não ouse compreender.

- Não há dúvida - disse ele. - Só pode querer dizer uma coisa. Vieram-me à cabeça os risinhos abafados de Eliab e Abinadab. Tentei um gracejo.

- Os nossos irmãos pareciam saber o que estava a acontecer.

- Eles são loucos. David - disse ele -, receio por ti. És o Ungido de Israel, ungido com óleo, tal como o rei Saul foi ungido.

O Sol escorregava por detrás das montanhas.

- Saul é o rei - disse eu -, e ele tem filhos.

- É isso que faz com que eu tenha medo - disse ele. Mandámos Gedeão embora e contámos as ovelhas. Em seguida

Chama adormeceu. Mas eu estava deitado acordado, sob as estrelas, e, embora tremesse, havia uma música estranha no meu coração. Passei os dedos pelo cabelo, e eles ainda cheiravam ao óleo santo de Israel.

A nossa história é escrita pelos sacerdotes, razão pela qual me tenho dado ao trabalho de nunca os ofender. Samuel era o sumo sacerdote e é, por isso, o seu herói, ou será. Mas foi mais complicado do que isso. A escolha do herói depende da pessoa que escolhe. Aquela visita de Samuel determinou a minha vida. Devo o que sou ao fato de ter encontrado favor junto dele, embora por pouco não me tivesse trazido a morte. Não leva a lado nenhum especular sobre o que teria sido feito de mim se o Senhor não tivesse lançado o Seu olhar sobre mim, mas agora, quando tão pouca coisa importa, vou contar como tudo se passou.

Comecemos por Samuel, o menino do Templo de Silo, oferecido pela mãe para servir o Senhor e Eli, o sumo sacerdote. Depressa se tornou o favorito de Eli entre os rapazes do templo, e confortava-o, dizem, como Abisag me conforta. Mas esse pode ser apenas um rumor malicioso, do tipo que os sacerdotes atraem devido ao seu gosto pelo secretismo, e eu não sei se o jovem Samuel era o catamito de Eli ou não. Os nossos sacerdotes não estão proibidos de ter mulheres, como acontece com os sacerdotes de algumas nações, mas Eli, diz-se, não se ligou a mulher alguma após o nascimento dos filhos Hofni e Fineias.

Certamente que também ele precisava de conforto, pois Hofni e Fineias pecavam contra o Senhor, e deitavam-se com prostitutas que freqüentavam o recinto do Templo, e cometiam abominações variadas, sobejamente condenadas.

Seja como for, o mais preocupante era o seu fracasso no desempenho do primeiro dever daqueles que governam um estado: mantê-lo em segurança, tal como ao seu povo, contra os inimigos. Assim, no tempo de Eli, os filisteus andavam livremente por todo o território de Israel, e levaram consigo a Arca da Aliança, para vergonha de Eli e de todos os Filhos de Israel.

Será difícil para qualquer pessoa agora compreender até que ponto o nome dos filisteus espalhou o terror em Israel, de tal forma eu os dominei e subjuguei. Pela minha parte, embora tenha morto tantos, nunca partilhei o preconceito comum contra este povo. Pelo contrário, vi que tínhamos muita coisa a aprender com eles. Eram exímios nas artes em que éramos ignorantes, e eram incomparavelmente mais civilizados do que as rudes tribos de Israel da minha juventude. Contudo, uma vez que lhes faltava um deus ou deuses capazes de os proteger, recolheram uma colheita amarga às minhas mãos.

Samud agradou a Eli, não importa como, e sucedeu-lhe como Juiz de Israel. Não contarei em pormenor os seus anos de governação; esses podem ser lidos, favoravelmente apresentados, nos escritos dos sacerdotes, e devem, por isso, ser lidos com cuidado. Os filhos de Samuel eram tão incompetentes e desprovidos de vergonha como os de Eli tinham sido. Os sacerdotes reclamam grande sabedoria para si próprios, mas é espantoso quão raramente os seus filhos trilham o caminho do Senhor.

Assim, uma delegação dos chefes de cada tribo foi ter com Samuel. Queixaram-se do fracasso dos filhos dele na defesa de Israel, e exigiram o fim do domínio do sacerdote. «Israel deve ter um rei, como as outras nações», disseram.

Este pedido sensato enfureceu Samuel. Disse-lhes que um rei seria um tirano, e ameaçou com todo o tipo de fatalidades se as pessoas fossem tão imprudentes ao ponto de preferirem um rei ao governo santo de sacerdotes. Haveria propriedades confiscadas, e impostos, e sedução de filhas.

A sua eloqüência não os convenceu. A experiência, primeiro dos filhos de Eli, e, em seguida, dos de Samuel, fê-los pensar que nenhum rei poderia ser pior.

Assim, Samuel cedeu, sabendo que, se não o fizesse, eles ignora-lo-iam e escolheriam eles próprios um rei. «Era melhor», pensou ele, «escolher um que ele pudesse controlar».

Demorou o máximo que pôde. Este candidato não era adequado, aquele fora rejeitado pelo Senhor, e assim por diante. Por fim selecionou Saul, filho de Quis, da tribo de Benjamim.Tenho ouvido muitas opiniões sobre os motivos que o levaram a escolher Saul, mas, tendo tomado a sua decisão, ele insistiu em afirmar que o Senhor o guiara. Mais tarde arrepender-se-ia de o ter dito, mas na altura, pareceu-lhe sensato. O Senhor falava através de Samuel; Samuel nomeara Saul. Por isso, era evidente, o rei estava subordinado ao sumo sacerdote.

Aquele é o tipo de argumento que agrada aos sacerdotes, mas, é claro, sejam quais forem os seus aspectos positivos, pode levar a uma

conclusão que é ridícula e impraticável.

Saul, na sua juventude, era muito belo, alto e de estatura nobre, de cabelo preto comprido e encaracolado e tristes olhos castanhos. Falava

em voz baixa e os seus lábios eram vermelhos como cerejas. Samuel

ungiu-o com óleo, beijou-o e disse-lhe que o Senhor fizera dele chefe

do Seu povo de Israel.

- És a Espada do Senhor, a espada de Israel, tal como eu sou o seu Juiz e intérprete da Sua vontade.

O pobre Saul ficou horrorizado. Viera ter com Samuel apenas para procurar a sua ajuda para recuperar alguns jumentos que eram propriedade do pai e que se tinham perdido ou tinham sido roubados. A última coisa que queria era ser feito rei.

- A tribo de Benjamim - protestou ele - é a mais pequena das tribos, somos pessoas humildes das colinas, e o meu pai nem sequer é um dos chefes da tribo.

Samuel sorriu. E que tem isso, dizia o seu sorriso, quando eu, Samuel, o instrumento do Senhor, te nomeei rei?

- É a vontade do Senhor - disse ele, e, assim, Saul não teve alternativa senão fazer o que lhe pediam. Não se apercebeu de que a insignificância da sua família e da sua tribo era uma das razões para a escolha.

Passados anos, o seu filho, o meu querido amigo Jónatas, de quem eu soube da consternação de Saul, disse-me que a mãe de Saul chorara quando soube que este fora nomeado rei.

- Nenhum bem daí virá - disse ela; uma profecia que se gravou na mente de Jónatas e que o fez acreditar que estava destinado que ele próprio morreria jovem.

Pouco depois, no entanto, a idéia de ser rei entusiasmou Saul. De qualquer maneira, após ter sido ungido, não se poderia saber o que Samuel, enfurecido, faria caso Saul recusasse a honra.

Contudo, disse Jónatas, Saul, após a sua elevação, andou muito tempo infeliz. Não sabia o que se esperava dele - nem, suponho eu, sabia - e tinha grande receio de Samuel, que raramente o deixava sozinho, ora a passar-lhe a mão pela face e dizendo-lhe que era o favorito do Senhor, ora fixando-o com os seus olhos azuis muito protuberantes e tratando-o como uma criança ignorante e que não sabe o que faz.

Os problemas posteriores de Saul foram conseqüência desta primeira incerteza. Faltava-lhe autoconfiança e passou de um extremo ao outro. Apesar dos seus grandes talentos, nunca acreditou completamente no seu direito a ser rei. Sabia que Samuel se sentia ressentido com a necessidade daquela nomeação, mesmo enquanto o tratava como seu criado ou como um brinquedo.

No entanto, surgiu uma coisa com que Samuel não contava. Saul revelou-se um chefe de homens natural e um general com raro olho para o país e uma boa compreensão dos princípios da guerra. Gostaria de afirmar aqui que, embora o meu próprio renome militar houvesse de ultrapassar largamente o de Saul, foi com ele que aprendi grande parte da minha arte. Nos seus primeiros tempos de rei, antes de se lhe ter nublado a mente e de o juízo se lhe ter enfraquecido, ele era um mestre da arte da guerra. Isso confundia Samuel, e irritava-o, por mais satisfatórios que os resultados pudessem ser para Israel, porque via que Saul escapava à sua tutela. A verdade é que o velho sacerdote estava consumido pela inveja.

Isto depressa se tornou evidente da pior maneira possível. Em guerra contra os filisteus, Saul conduziu o seu exército até um desfiladeiro onde seriam obrigados a lutar em circunstâncias desfavoráveis. Saul então mandou buscar Samuel para que oferecesse sacrifícios ao Senhor. Samuel não deu resposta. Saul demorava-se. O exército estava impaciente. Alguns diziam que o Senhor não favorecia a empresa; outros manifestaram as suas dúvidas escapando-se para casa. Saul mandou novamente buscar Samuel; o homem idoso não respondeu novamente. Assim, perdendo a paciência, e receando o efeito que uma maior demora teria, Saul conduziu ousadamente o serviço e foi ele próprio quem ofereceu os sacrifícios.

Mal o fez, assim um toque de trombetas anunciou a chegada de Samuel. O homem idoso olhou os animais mortos, cujo sangue ainda corria, e olhou Saul. O rei não se mostrava hesitante. Isso enfureceu ainda mais o sacerdote, pois via que Saul escapara à sua autoridade. Levantou as mãos ao alto e amaldiçoou Saul pela sua impaciência e impiedade. O Senhor, disse ele, que tencionara estabelecer o reino de Saul sobre Israel para sempre, deplorava agora a irreverência do rei, Ele retirara o Seu favor a Saul, tal como uma nuvem pode obscurecer o Sol.

Saul tentou explicar. Não serviu de nada. O Senhor, disse-lhe Samuel, prezava mais a obediência do que a gordura de ovelhas.

No entanto, quando a batalha eclodiu, Saul saiu vitorioso. As pessoas começaram a perguntar-se se Samuel sabia de fato interpretar corretamente a vontade do Senhor.

Sem dúvida que estes murmúrios chegaram aos ouvidos do idoso sacerdote, tendo contribuído para intensificar o ódio que sentia por Saul. Eu compreendo os seus sentimentos; há poucas coisas que sejam mais amargas do que um amor que morreu. Samuel amara Saul quando pensava que ele era seu instrumento. Agora que Saul lhe tinha escapado, Samuel censurava-se pelo amor que sentira.

É claro que tudo isto eu sei porque me contaram, mas não tenho dúvidas, daquilo que conheço tanto de Saul como de Samuel, do ponto em que as coisas estavam entre eles. Saul ficou consternado Venerara Samuel e regalava-se com o seu favor. O afastamento daquele afligia-o. Acreditava que agira sensatamente; no entanto, o receio do Senhor era forte nele, e nunca duvidou (como outros faziam) de que Samuel era o porta-voz do Senhor. E, todavia, Saul não via como poderia ter agido de outra forma.

O último encontro entre ambos foi ainda mais amargo. Os amalecitas aliados aos quenitas, pressionavam fortemente as fronteiras a sul de Israel. Apesar da sua experiência anterior, Saul voltou a procurar a bênção de Samuel. Foi-lhe dada, mas com a seguinte recomendação: «Vai, pois, agora, fere Amalec - disse Samuel -, e destrói completamente tudo o que eles têm, todos os homens, mulheres e crianças, todos os seus rebanhos e manadas».

Não é clara a forma como Saul entendeu esta mensagem. Na minha opinião, pensou que se tratava de retórica típica de sacerdotes. De qualquer maneira, quando ele alcançou a vitória, após ter tomado a sensata precaução de subornar o rei dos quenitas para que desertassem o seu aliado, ficou satisfeito com um êxito esmagador, e não fez qualquer tentativa para seguir as instruções de Samuel. que entendia, tal como eu sempre fiz, que as medidas extremas são adequadas apenas num caso extremo. Ele desejava, suponho eu, pacificar a fronteira sul, de forma a não levantar hostilidades eternas para com Israel. Samuel chegou ao acampamento de Guilgal. Pediu a Saul que lhe explicasse os mugidos dos bois e os balidos das ovelhas em torno do acampamento.

- Não são esses os rebanhos e as manadas dos amalecitas, que o Senhor ordenou que fossem destruídos?

Saul admitiu que eram, e, ainda a tentar apaziguar Samuel, disse ao sacerdote que podia escolher os melhores para sacrificar ao Senhor esta foi uma generosidade da sua parte, uma vez que a carne de animais oferecidos em sacrifício é pertença dos sacerdotes. Samuel não se apaziguou. Saul desafiara-o demasiadas vezes; ele colocara o seu próprio julgamento acima do do Senhor. Por isso o Senhor rejeitara Saul como rei de Israel.

Saul deve ter suspirado ao ouvir isto, mas deu a impressão (disseram-me) de ter ficado impassível. Afinal, fosse qual fosse o prestígio de Samuel, o de Saul era agora maior, devido às suas vitórias. Ele sabia perfeitamente que o exército o seguiria e lhe obedeceria, a ele, e não a Samuel. Os soldados raramente têm os sacerdotes em grande consideração, e, embora o exército de Saul fosse constituído, na sua maior parte, por recrutas e voluntários a meio tempo, ele, por esta altura, já formara o núcleo de uma força profissional da Guarda Real, dedicada à sua própria pessoa. Fosse qual fosse o efeito moral das maldições de Samuel, as conseqüências práticas imediatas devem ter parecido insignificantes.

Mesmo assim, ele ainda pensava que era melhor tentar restabelecer as boas relações com Samuel. Por isso, quando o sacerdote ordenou que o rei dos amalecitas fosse trazido à sua presença, Saul mandou alguém à sua própria tenda, onde o alojara. Não sei o que ele esperava que acontecesse. Não sei o que eu, no seu lugar, teria esperado. Provavelmente pensava que o sacerdote se enfureceria e o amaldiçoaria da forma que Saul tão bem conhecia e de que já estava cansado. Seja como for, ele não podia ter esperado que Samuel pegasse numa espada e cortasse o pescoço ao infeliz rei Agag. Saul, de um salto, interveio e tirou a espada da mão do ancião. Disse-lhe que saísse do acampamento e que se desse por feliz por lhe ser permitido fazê-lo. Quando, passados alguns dias, Agag sucumbiu aos ferimentos que lhe foram infligidos, a rainha dos amalecitas exigiu que Samuel fosse julgado por assassínio. Saul recusou. Teria sido tudo muito embaraçoso. Em vez disso, deu à rainha um dos seus filhos - não me lembro agora qual - como marido.

Saul lidara com uma situação difícil com uma destreza que eu só posso admirar. Samuel, no entanto, ficou ainda mais furioso ao saber que devia a vida ao bom senso e à demência de Saul.

Retirou-se para Rama, a sua cidade, onde se sentia seguro. Contudo, porque formara a intenção de destruir Saul, não acreditava, apesar das provas em contrário, que Saul não alimentasse a mesma intenção em relação a ele. Assim, durante alguns meses, não se atreveu a sair de Rama. À medida que cismava no que acontecera, a sua amargura aumentava, pois via que não havia hipótese de suplantar Saul num futuro próximo, tão grandes eram a fama e a popularidade do rei.

Não tenho dúvidas de que Samuel acreditava realmente que o Senhor falava através dele, e de que sabia precisamente o que ia na mente do Senhor; por isso ficou confuso, durante muito tempo, devido à sua impotência. Era intolerável saber que o Senhor rejeitara Saul, e, todavia, ver Saul ainda a prosperar.

Mas a vingança é um prato para ser servido frio. Samuel disse a si próprio que poderia morrer feliz, se soubesse que preparara o caminho para a destruição de Saul.

Assim, consultou secretamente sacerdotes em todo o país, e comungou com o Senhor durante as horas de vigília. Então, tendo ponderado bem sobre o assunto, fez a viagem para a casa de meu pai, em Belém, com os resultados que já descrevi.

Passaram dois anos. Não havia notícias de Samuel, no entanto eu sabia que Chamá tivera razão ao opinar sobre a importância do que acontecera. Ao longo desse tempo, tive muitos momentos de impaciência, mas, na globalidade, eu estava contente por esperar. Eu estava numa idade em que o momento presente parece eterno. Deliciava-me com a minha vida diária. Havia guerras e rumores de guerras, mas não nos incomodavam. Quando a erva crescia, eu levava os rebanhos para as pastagens de Verão, nas montanhas. A cada dia que passava, o meu corpo e a minha mente tornavam-se mais poderosos, e, ao final da tarde, eu cantava, acompanhado pela minha harpa, a glória de Deus e as maravilhas do mundo que me rodeava. Os meus irmãos vinham e iam para as guerras, e traziam de lá histórias da grandeza de Saul e das façanhas do seu filho Jónatas, e de Abner, primo de Saul e grande comandante, todos descendentes da sua própria tribo de Benjamim. Os meus irmãos pareciam ter esquecido a visita de Samuel, embora Eliab, quando estava irritado, me chamasse «o rapaz do sacerdote». Uma vez que eu sabia que isso era ridículo, permanecia em silêncio. Só Chama me olhava de maneira diferente.

Surgiram, então, outras histórias: que Saul fora atacado por uma estranha doença que lhe afetava a mente e que o atirava para a melancolia, que estava próxima do desespero. Quando as pessoas falavam do estado do rei, lembravam-se da forma como Samuel o amaldiçoara, e diziam que o Senhor retirara o Seu favor a Saul, e que esta era a causa da sua loucura. Em tais momentos, Chamá colocava a mão sobre mim para me obrigar a permanecer em silêncio. Mas eu não me sentia tentado a falar. Se nós estivéssemos certos e se o Senhor, de fato, me escolhera, por intermédio de Samuel, o Senhor, na devida altura, providenciaria os meios que tornariam a Sua escolha conhecida de Israel.

Eu prezava muito a minha castidade naqueles dias. Parecia-me que uma virtude qualquer me abandonaria, se eu cedesse às tentações que agora vejo que são normais. Muitas vezes, em noites escuras, eu lutava com o meu desejo, imaginando a sua satisfação; mas nem sequer Raquel, a filha do chefe da nossa tribo, uma rapariga um ano mais velha do que eu e que seguia os meus movimentos pelo pátio com olhos de corça, escuros e admiradores, me conseguia tentar a quebrar o voto que eu fizera sob as estrelas. Em contrapartida, eu abria o meu coração na poesia, e a beleza e a melodia das minhas canções traziam-me celebridade e novos admiradores.

Chegou, finalmente, o dia em que me foram novamente chamar às montanhas. Encontrei o meu pai na companhia de um jovem moreno, talvez uns sete anos mais velho do que eu. Era alto e magro, com uma barba preta e cheirosa e um nariz comprido e torcido à ponta.

- Ele tresanda a ovelhas e a cabras - disse o homem.

O olho esquerdo do homem não fitava a direito, e olhava-me por cima daquele nariz comprido.

- No entanto, isso pode remediar-se - disse ele -, quando chegarmos a Guibeá.

- David - disse o meu pai -, este é Joab, filho de tua irmã, que veio para te levar para junto do rei. Saul está doente, tem a mente perturbada, e os físicos recomendaram que a música pode acalmar-lhe o espírito. Assim, vai buscar a tua harpa, pois deveis partir o mais depressa possível e aproveitar a noite para viajar.

Eu conhecia Joab de ouvir os meus irmãos falarem nele. A mãe dele era filha da primeira mulher de meu pai, e Joab era da idade deles, na verdade um pouco mais novo do que o mais velho, mas já os ultrapassara largamente em renome. Falavam dele com ciúmes, mas com uma admiração relutante.

- É uma grande honra teres sido escolhido - disse o meu pai; mas eu podia adivinhar que ele estava confuso e ansioso.

- Eu próprio sou o responsável - disse Joab. - A minha mãe tem falado muitas vezes nos dons musicais do rapaz. - Fungou. Não é uma coisa de que eu perceba ou por que me interesse. No entanto, quando eles procuravam um músico, lembrei-me do que ela dissera, e pus o nome dele à frente. Ficarei agradecido se o rapaz não me deixar ficar mal.

O meu pai já ordenara aos servos que preparassem presentes para o rei. Eram coisas caseiras: pão da melhor qualidade, um par de cabritos e uma ânfora de vinho da colheita do ano anterior. Joab mostrou sinais de impaciência e eu apressei-me a ir buscar a minha harpa, embrulhando-a em folhas de lírios selvagens para a proteger do frio da noite e do calor do Sol matinal. Os meus sentimentos estavam misturados. Sentia-me encantado por ver o mundo abrir-se à minha frente. Por outro lado, nunca esperara entrar nele como tocador de harpa.

Partimos em silêncio, e o silêncio manteve-se durante a primeira parte da viagem. Eu estava consciente de que o jumento que eu montava fazia uma fraca figura ao lado da mula de Joab, e de que o nariz comprido cuja silhueta eu via no fundo do céu da noite parecia insistir na minha inferioridade em relação ao seu possuidor. Contudo, eu recusava ser subjugado. Havia alegria no movimento dos cascos e no tinido da armadura da guarda de Joab. A Lua erguia-se por cima das montanhas, o ar arrefecia e a noite caía, à medida que escolhíamos o caminho ao longo do trilho irregular que rodeava os montes.

Perto do despontar da aurora, avistamos Jerusalém do outro lado do vale. A cidade, é talvez necessário dizê-lo, era ainda, naqueles dias, a fortaleza dos jebuseus, uma tribo que nunca reconhecera a supremacia de Israel.

- Porque é que - perguntei a Joab - sofremos o fato de os inimigos do Senhor ocuparem um lugar tão bonito?

- A cidade está bem fortificada - esclareceu Joab. - O que é que tu, meu fedelho, sugerias para que nós a tomássemos?

Senti-me ofendido com o seu tom de voz, mas estava decidido a não mostrar os meus sentimentos. Por isso, sorri, simplesmente, e disse, num tom tão amigável quanto me foi possível conseguir, que é claro que eu hesitaria em avançar qualquer sugestão, não tendo experiência em tais assuntos, e sabendo perfeitamente que nada do que eu dissesse poderia interessar a alguém que alcançara o que o meu primo alcançara (ele era, na verdade, meu sobrinho, mas eu achei que seria mais prudente chamar-lhe primo). No entanto, eu tinha o maior interesse em ouvir como é que ele lidaria com aquele problema, pois estava ansioso por aprender, e, nesse sentido, não desejaria perder a oportunidade que esta viagem tão inesperadamente me oferecia. À medida que eu falava, sentia Joab a ficar à vontade. Sempre achei que a lisonja quebra as defesas estabelecidas pelo orgulho. Sabia-o por instinto, e o meu instinto era agora confirmado pela experiência, pois Joab lançou-se imediatamente numa análise detalhada dos problemas militares que a minha pergunta levantava, e, quando acabou de falar, eu sabia que tinha subido na sua consideração. Geralmente as pessoas sentem-se muito mais felizes por darem a sua opinião do que por ouvirem os pontos de vista de outros, e Joab não era exceção. Nada dá aos grandes homens uma melhor noção da inteligência de outros do que serem alvo de perguntas que encerrem admiração. Quando Joab terminou a sua exposição, que foi, posso dizê-lo, lúcida e interessante, ele já tinha alterado a tal ponto a sua opinião sobre mim que me disse que eu ainda podia dar um bom soldado. E, na realidade, eu não dissera nada que o fizesse pensar isso; eu só lhe dera rédea solta.

Joab deixou-me numa antecâmara do palácio. Eu estava feliz por ficar livre da sua presença, e penso que ele sentia o mesmo. Os modos dele tinham moderado no decorrer da viagem, mas agora que tínhamos chegado, ele estava, imagino eu, embaraçado. Era um homem rígido, convencional, e embora ele possa, tal como ele disse, ter sugerido que eu poderia ser a pessoa ideal para ajudar ou para curar o rei, ele pode também ter sentido que um cantor e um tocador de harpa não traria grande crédito à família. Não sei. Toda a vida conheci Joab, mas nunca tive a certeza de que lhe poderia ler a mente. Sempre houve qualquer coisa nele que me escapa. Ele sente o mesmo a meu respeito, e, embora poucos me tenham servido melhor, nenhum o fez com tão pouca boa vontade. A vida jungiu-nos, um ao outro, como um par de bois nos campos, mas isso é o máximo que se pode dizer.

Agora eu esperava, esperava. Estava nervoso, pois tudo me era estranho. E, simultaneamente, tudo era do máximo interesse. Era o meu primeiro olhar ao mundo a que sabia que me adequava, e impressionava-me que, em todas aquelas idas e vindas, ninguém reparasse no rapaz que estava sentado ao canto com a sua harpa aos pés.

Uma jovem serva trouxe-me bolos e vinho, e olhou-me como se gostasse que falássemos. Mas eu era incapaz de participar nos gracejos da conversa banal. Nem era capaz de comer nem de beber. Sentia-me oco; havia um grande vazio à espera de ser cheio, mas nada de material o poderia encher. Por fim, um jovem robusto encontrava-se à minha frente e disse que Abner desejava ver-me. Eu sabia quem era Abner, é claro: a sua fama corria por todo o Israel. O homem falou-me como se eu fosse um criado. Peguei na minha harpa e segui-o.

Um homem alto encontrava-se de costas para mim. O jovem robusto falou e deixou-nos. Esperei. Um fio de suor correu-me pela coxa. Estava muito calor e a fragrância das flores quase tomou conta de mim. Rezei ao Senhor para que me desse força.

Abner virou-se e avançou para mim. Colocou a mão sob o meu queixo, como Samuel fizera, e ergueu-o, de forma a que eu fosse obrigado a olhá-lo nos olhos. Era tudo o que eu podia fazer para não me virar, mas ele segurava-me com firmeza e olhava o meu rosto como se tentasse tirar-me a essência da alma. Não era nada daquilo que eu estava à espera.

- O Senhor sabe - disse ele -, o Senhor sabe se tu servirás. Compreendes? - perguntou ele. - Joab disse-te o que se espera de ti?

Eu fiz um gesto em direção à minha harpa, mas não consegui encontrar palavras.

- Não - disse Abner. - Suponho que não. Ele deverá ter preferido deixar isso comigo. Ele é assim. Muito bem - libertou-me o queixo ->-, muito bem, então, jovem David, o rei perdeu o juízo. Numa palavra, que tu jurarás não transmitir a ninguém, se desejares ver o Sol nascer amanhã, ele está louco. Mergulhou num silêncio sombrio, e treme de terrores que não ousa, ou não pode, mencionar. Percebes alguma coisa disso?

- Eu conheci o medo - disse eu. - À noite, nas montanhas, sozinho, senti a nudez da minha alma.

- Huumm - disse ele. - Não sei o que isso significa. Estás com medo agora?

- Sim - disse eu -, mas confio no Senhor.

- Também não sei nada disso - disse ele -, mas teremos de tentar. Ele pode ser violento, aviso-te, mas os seus físicos parecem pensar que a música o pode acalmar. É por isso que estás aqui.

Serviu a si próprio uma caneca de vinho e bebeu.

- O rei é um grande homem - disse ele. - Lembra-te disso, embora ele te pareça uma concha oca.

O quarto era como uma caverna e a única lamparina de azeite derramava uma magra luz, que deixava a maior parte da câmara na sombra. Havia um poderoso odor a ervas queimadas (mais tarde vim a saber que os físicos do rei acreditavam que isso poderia aliviar as suas dores de cabeça). Por um momento parecia estar deserto. Em seguida apercebi-me de uma forma enroscada no chão, com as costas para a parede, junto à mesa em cima da qual se encontrava a lamparina. Levantou a cabeça e, à medida que os meus olhos se acostumavam à obscuridade, encontraram os do rei, indiferentes, como se não vissem nada, e, no entanto, firmes, como se me penetrassem a alma. Os olhos do rei permaneceram fixos em mim enquanto eu me inclinei e comecei a tocar harpa. Mantive o meu próprio olhar afastado, mas não conseguia escapar à consciência daquele olhar sombrio.

Abner avisara-me de que não haveria conversa, e, assim, eu tocava as cordas da harpa e comecei a cantar.

Estava acostumado a cantar sozinho, sob o céu noturno, para mim próprio, para afirmar a beleza da criação; e cantara muitas vezes na nossa aldeia, ao serão, enquanto as jovens serviçais se amontoavam à minha volta e trauteavam o estribilho e me olhavam com uma admiração que me obrigava a modular o tom, mudando de ardor para tristeza melancólica, o que provocava nelas lágrimas e profundos suspiros. Nessa altura descobri que dominava não só a música, mas também todos os que a ouviam. Mas agora, quando comecei a cantar para Saul, sentia a garganta seca, a voz fraca, e toquei três notas erradas na primeira balada. Mas ele não se mexeu. Cantei sobre Abraão e a aurora da nossa raça, sobre José e a sua grandeza no Egito, sobre Moisés e a travessia do mar Vermelho e os anos passados no deserto, sobre Josué e o som das trombetas, que deitou abaixo as muralhas de Jericó; e Saul não se mexeu.

A minha voz tornava-se mais forte, mas o meu coração batia mais depressa, pois via a perspectiva de fracasso a abrir-se à minha frente. Via fugir ingloriamente esta grande oportunidade que me fora concedida. Ouvia o escárnio dos meus irmãos e imaginei-me a regressar na ignomínia à casa de meu pai. Eu podia ter chorado de dor, como um animal ferido, e, no meu coração, amaldiçoei esta coisa que era, ou fora, Saul, pois não respondia à minha música, permanecendo insensível como as rochas entre as montanhas.

Cantei sobre o amor, sobre donzelas junto ao poço, à medida que o entardecer se alongava e elas olhavam, ansiosas, os pastores que ali tinham ido antes delas. Cantei a beleza terna dos seus avanços e retiradas, à medida que a Lua se erguia no firmamento e os jumentos se encontravam debaixo das oliveiras. E Saul não se mexeu.

Umedeci os lábios, e, arriscando tudo, cantei sobre a beleza e a força do próprio Saul na sua gloriosa juventude. Cantei a sua grandeza na guerra e a sua magnanimidade na vitória.

Grande ambição e feitos e o coroar de tudo;

O brilho do prazer que desce sobre o maior,

O esplendor da manhã, os dias que encantam,

A glória e a beleza que fazem avançar o rei Saul.

A estas palavras, a cabeça voltou a erguer-se. Uma mão - forte, escura, peluda - estendeu-se e tocou-me a face. Os dedos tremiam-lhe como os de uma mulher nos primeiros momentos de uma paixão a acordar, mas eram frios como o metal numa manhã de geada. Eu de forma alguma me afastei. Em vez disso, forcei-me a encontrar o seu olhar, e não encontrei nada. A mão caiu, e eu continuei a cantar. Mas agora havia uma diferença; a raiva estava a abandonar Saul. Entoei uma canção de embalar como se faria a uma criança, e as pálpebras caíram sobre aqueles olhos mortos e Saul adormeceu. Era, eu sabia, o sono de um homem exausto que durante muito tempo não ousara deixar-se escorregar para a inconsciência, com receio dos demônios que o assaltariam. Continuei a cantar, devagar, calmamente; e em seguida tudo mergulhou no silêncio, apenas quebrado pela respiração do rei.

Passado muito pouco tempo, a cortina foi afastada para o lado, e Abner fez-me sinal com a mão.

- O rei dorme - disse eu.

- É a primeira vez desde há dias. Como acordará ele?

- Quem é que pode adivinhar?

- Os demônios abandonaram-no?

- Talvez durmam também - disse eu.

- Trabalhaste bem. Tu próprio pareces esgotado.

Bateu as palmas e uma escrava trouxe vinho e um prato de bolinhos de amêndoa.

Até hoje, não sei qual foi a causa da perturbação de Saul, e não sei porque a minha música o acalmou e pareceu efetuar uma cura. Alguns dos cortesãos do rei diziam que o seu estado era resultado de um golpe que recebera meses antes de uma espada dos filisteus; isso fez com que o osso lhe pressionasse o cérebro, diziam eles. Pode muito bem ser verdade; se assim for, é difícil imaginar que a música pudesse ter qualquer efeito benéfico. Contudo, é de mais supor que a melhoria do seu estado foi apenas uma feliz coincidência com o fato de eu estar a tocar para ele. Pela minha parte, sempre pensei que a rejeição de Samuel em relação a Saul desencadeou a devastação na sua mente, dando origem a estranhos medos. Talvez Saul nunca se tenha realmente considerado merecedor do seu papel de rei, e se tenha refugiado do seu aguçado sentido de imperfeição nestes acessos de loucura. Tal explicação - embora do tipo que é motivo de troça por parte de um homem dominado pelo senso comum como é Joab - faz sentido para mim, pois sei da minha própria experiência como a mente está sujeita a terrores que a razão pode pôr de parte, mas que não pode apaziguar.

Voltei a tocar para o rei no dia seguinte, e voltei a vê-lo mudar de uma coisa dominada por terrores que não podia mencionar para um homem capaz de fechar os olhos num sono pacífico. E assim foi durante seis dias, e as pessoas perguntavam-se sobre a mudança operada em Saul, mas continham-se, ainda receosas. Apenas Abner tinha confiança em que se estava a processar uma cura. Todos os dias me encorajava, já que antes de eu entrar no quarto de Saul, eu próprio era sempre assaltado pelo medo, pois parecia-me que Saul continuava imprevisível. Mais do que isso, eu receava que os demônios que o abandonavam se apoderassem de mim. É claro que tais medos eram ridículos, como os medos de uma criança, ou aquele terror da noite, quando o viajante é obrigado a olhar para trás, embora saiba e diga a si próprio que não pode haver ali ninguém. No entanto, um medo que ele despreza obtém o domínio sobre ele. Todos os dias, durante os primeiros minutos, eu tinha dificuldade em soltar sons das cordas da minha harpa.

Então, ao sétimo dia, perto do final da tarde, eu cantei ao Senhor uma canção que fizera desde a minha chegada a Guibeá.

O Senhor é o meu pastor, nada me falta.

Em verdes prados me faz descansar, e conduz-me às águas refrescantes

Reconforta a minha alma, guia-me pelos caminhos retos, por Amor de Seu nome.

Mesmo que atravesse os vales sombrios, nenhum mal temerei, porque estais comigo;

O Vosso bastão e o Vosso cajado dão-me conforto. Preparais-me um banquete frente aos meus adversários. Ungis com óleo a minha cabeça e a minha taça transborda. A graça e a bondade hão-de acompanhar-me todos os dias da minha vida. A minha morada será a casa do Senhor ao longo dos dias.

Mais uma vez, quando eu acabei de cantar e as notas da harpa morreram, Saul estendeu a mão e tocou-me a face, mas, desta vez, os seus dedos estavam quentes e a sua mão era firme. ..,„.

- Estive longe - disse ele -, e tu trouxeste-me de volta.

Assim, deixei-o com o coração a transbordar de alegria, pois sabia que tivera êxito como nem sequer me atrevera a sonhar poder ter. Disse a Abner que, na minha opinião, o rei voltara a ser ele próprio.

Quando ele me agradeceu e me elogiou, deixou transparecer, pela primeira vez, uma certa falta de confiança. Isso inquietou-me. Não era o que eu procurara nele. Pela minha parte, senti a minha alegria a esvanecer-se. É uma sensação que desde então eu tenho vindo a reconhecer como normal, após um grande desgaste do espírito. É preciso descer-se da montanha; é como a tristeza que se segue ao ato de amor. Tudo deveria ser diferente. No entanto, como de uma caneca a verter, o triunfo escoa, e apercebemo-nos de que o mundo continua, é obrigado a continuar, o seu curso do costume. O estado de espírito não era novo para mim, nem sequer nessa altura, mas na antecâmara do palácio eu conheci-o mais completamente do que nunca.

Abner deixou-me, com um pedido de desculpas murmurado. Penso que ele estava contente por se ir embora, subitamente embaraçado pela minha presença. Quanto a mim, atirei-me para cima de uma cama e isso era tudo o que eu podia fazer para reprimir as lágrimas. De repente, o horizonte encurtou, como se a noite se abatesse sobre mim. Uns momentos antes, eu sentira-me capaz de qualquer coisa; agora era como se eu tivesse entregue toda a minha vitalidade a Saul. Talvez os meus medos se justificassem, e o espírito maligno do desespero que o possuíra, e do qual eu o libertara, invadisse agora a minha alma. Rezei ao Senhor para que Ele não permitisse que isso acontecesse, e em seguida penso que adormeci.

Ou talvez não, talvez a minha memória se recuse a fornecer-me a confusão da minha mente. Nessa altura era quase noite, e eu ainda estava dominado pela melancolia, sentindo-me inútil, quando uma escrava entrou trazendo uma lamparina; seguiam-na duas jovens.

Pus-me de pé atabalhoadamente, e elas olharam-me, sussurraram qualquer coisa uma à outra e soltaram risinhos.

- Peço perdão - disse eu -, talvez eu não devesse estar aqui. Não sei. O meu senhor Abner disse-me que esperasse, mas isso foi há muito tempo.

- Ele é muito bonito.

Isto disse a mais baixa delas, uma rapariga morena e atarracada como tantas da nossa aldeia.

- Porque não deixas de olhar para mim? - perguntou a outra.

- Peço perdão - repeti eu. Em seguida engoli em seco. - É porque nunca vi ninguém tão bonito.

A rapariga baixa voltou a soltar risinhos.

- Que impertinência - disse ela.

Mas agora que eu pronunciara as palavras, era verdade que eu não era capaz de despregar os olhos da outra. Era alta e elegante como uma gazela. Os seus olhos eram lagos escuros sob pálpebras coloridas de violeta. As sobrancelhas marcadas a lápis formavam um arco por cima deles e davam à aparência dela um ar de desdém inefável que a curva vermelha dos seus lábios não negava. Estava vestida de seda branca e usava uma faixa que ecoava a cor daqueles lábios, e os seus dedos eram brancos e esguios e inocentes de trabalho. Eu estava consciente de que, em comparação, eu parecia quente, confuso e grosseiro. Queria esconder as minhas mãos e esperava que ela não tivesse reparado no suor que me escorria pela testa e pela parte de trás das coxas. Mas, ao mesmo tempo, eu conheci uma excitação como nunca sentira antes, e estava aterrorizado com a idéia de que ela me pudesse deixar antes que eu a pudesse impressionar.

- Peço perdão - disse eu -, se pareço impertinente, mas ninguém pode olhar para ti e ficar insensível perante tamanha beleza.

- Oh, isso - disse ela. - Todos os jovens da corte fazem essa observação, quando se permitem a ousadia, e da mesma forma. Os elogios feitos ao meu aspecto aborrecem-me. Viemos agradecer-te.

- E olha para ti - disse a outra, rindo mais uma vez despropositadamente. - Ver que tipo de pessoa é que conseguiu o que nenhum físico foi capaz de fazer!... Somos as filhas do rei. Eu sou Merab e esta é Mical.

Na minha juventude, eu era muito dado a sonhar acordado, e agora veio-me à cabeça, como se vinda dos serafins alados do céu, a idéia de que Mical me fora enviada como recompensa por eu ter curado Saul. Sabia que era uma idéia absurda, mesmo quando ela se apoderava de mim e não me abandonava. Assim, com os olhos presos a Mical, respondi à irmã.

- Eu não consegui nada. Na melhor das hipóteses «ou um Instrumento do Senhor.

--Que coisa mais idiota - disse Merab.

- E pretensiosa - disse Mical. - Eu esperava tanto que não fosses aborrecido, e agora vejo, como de costume, a minha esperança esvanecer-se.

- Penso que ele não está a falar a sério - disse Merab.

- Claro que não. É simplesmente outra forma de se exibir. Que aborrecido!

- Não - disse eu, e corei ao dar comigo a contradizê-la. - Não

- continuei. - Não é assim. É que não sei o que fiz, ou melhor, como o fiz. Toquei harpa e cantei, e o rei está curado. Não podeis esperar que eu acredite que isso teve realmente alguma coisa a ver comigo. Não comigo próprio. Sou pastor - disse eu -, e não compreendo estas coisas.

--Pastor, que curioso... - disse Mical.

- Ele de fato tresanda a ovelhas e a cabras - disse a irmã. - É desagradável, Mical.

- Bem - disse eu -, peço perdão por isso, mas, como estais a ver, não compreendo como é que o rei está curado. É um milagre, e é por isso que eu digo que sou apenas um instrumento do Senhor. Não estou a reclamar grande coisa para mim quando o digo. Muito pelo contrário.

Olhando para o passado, como eu admiro a minha astúcia espontânea! Estava desesperado para impressionar Mical, e sabia, sem pensar, que não valeria a pena fingir ser uma pessoa que não era. Havia demasiada inteligência no olhar dela para que eu tivesse esperança em enganá-la. Por isso exibi a diferença que eu constituía em relação a tudo o que ela conhecia. Eu não podia competir com os janotas perfumados do palácio, nem com os grandes guerreiros do exército. Por isso apresentei-me como o pastor simples, o filho ignorante da natureza. E, é claro, em determinado sentido, tudo isso era verdade. E era igualmente verdade que, como artista, eu não fazia idéia - tal como os verdadeiros artistas nunca fazem - da forma como conseguia os melhores efeitos.

Por isso falei assim e sorri. Vi-me a fazê-lo, e sabia que o sorriso com que a presenteei era um dos meus sorrisos especiais, que usara toda a minha vida para encantar a minha mãe e as senhoras da casa.

- Que modesto! - disse ela, e, embora eu tivesse ouvido a ironia da sua voz, eu sabia que ela estava impressionada, se não fosse por mais nada, pelo menos porque ela também reconhecia que eu era igualmente demasiado capaz de ser irônico, mesmo enquanto ela me aceitava como alguém ingênuo e impoluto.

- Toca para nós - pediu ela -, e então poderei julgar se estás a dizer a verdade.

Hesitei. Ela escorregou para a obscuridade e reclinou-se num canapé, numa atitude receptiva. Mas mesmo assim, eu continha-me. Seria fácil fazer-lhe a vontade e eu podia tirar da minha harpa música que a encantaria; mas se o fizesse, seria assim que ela me veria: um músico submisso, e não era isso que eu queria. No entanto, não conhecia outra forma de a impressionar, e não desejava parecer enfadado.

Nessa altura a cortina foi afastada para o lado e um jovem entrou na sala. Avançou para mim, colocou-me as mãos nos ombros e abraçou-me, apertando-me com força e beijando-me ambas as faces.

- Espero que as minhas irmãs tenham sido amáveis para contigo

- disse ele. - Sentimo-nos tão profundamente em dívida para contigo que espero que se tenham estado a comportar melhor contigo do que é seu costume.

-Temos sido perfeitamente encantadoras, Jónatas - disse Mical -, embora de uma forma mais controlada do que tu. Acabei de pedir a David que toque para nós.

- Não há necessidade disso - disse ele. - Ele não é nenhum animador de festas profissional, sabeis, e, além disso, tenho a certeza de que está exausto, não é assim, David?

- Estou cansado - disse eu -, mas fico muito feliz por tocar, se é isso que me é pedido.

- Não - disse ele. - Em vez disso, tens de vir comer conosco. Colocou o braço em volta do meu ombro, encostando-se a mim, e

conduziu-me a outra sala, onde havia uma mesa posta.

Nessa refeição: não me lembro do que comemos, nem de que falamos, e isto não só porque o vinho era de uma qualidade que eu raramente provara. De fato, eu bebi com moderação, como sempre foi meu costume. Contudo, estava intoxicado pelo encanto e prazer da ocasião. Jónatas dispensara os escravos e ficamos só nós os quatro. A sua animação apoderou-se da tarde. Era, sem dúvida, uma expressão de alívio pelo fato de a escura fronteira da loucura do rei ter sido removida, e todos se sentiam como se tivessem sido libertados da prisão ou até da sepultura. Eu nunca estivera em tão agradável companhia. Nunca fora recebido em tão agradáveis termos de igualdade, já que à mesa de meu pai eu estava eternamente aprisionado entre o desejo dos meus irmãos de me censurarem e de deitarem por terra as minhas pretensões, e a ânsia da minha mãe e das outras mulheres de me mimarem. Mas aqui havia um fácil dar e receber de conversa que encorajava até Mical a ceder.

Se eu me apaixonara perdidamente por Mical, era agora seduzido pelo encanto de uma família que me oferecia algo que era completamente novidade para mim. Gostavam tanto uns dos outros, e, de sua própria e espontânea vontade, convidaram-me para ficar com eles naquela tarde. Eu poderia ter chorado de felicidade; em vez disso, dei comigo a rir e a falar como nunca falara antes. Eu sabia que era brilhante, aquecido pelo Sol do encorajamento e do afeto natural de Jónatas.

É claro que eu sabia das suas façanhas. Ele era a jóia da tribo de Benjamim e, na verdade, de todo o exército. A sua coragem, audácia e espírito empreendedor nas guerras eram assunto de conversa em todo

o Israel. Eu sentira inveja do seu renome quando este chegava até nós em Belém: era apenas cinco anos mais velho do que eu, e conseguira tanto, enquanto eu apascentava ovelhas e fazia música. Agora a minha inveja era conquistada pelo seu encanto. A beleza dele era o contrário da de Mical, sendo franca e aberta. A curva de águia do seu nariz falava de orgulho, mas, quando ele sorria, o sorriso viajava-lhe até aos olhos, e o seu prazer era evidente. Arreliava as irmãs, mas da forma mais amigável. Tinham o hábito de falar por vezes em versos improvisados, e, para meu grande prazer, fui atraído para esta conversa e não me saí mal. Se Jónatas tivesse o objetivo de me fazer brilhar aos olhos de Mical, não teria executado a tarefa mais maravilhosamente.

Por fim, espontaneamente, eu disse:

- Gostaríeis mesmo que eu cantasse?

Mandaram buscar a minha harpa e eu afinei-a, cantando em seguida uma canção pastoril sobre a saudade e um amor não correspondido. A música comoveu-os. Silenciou a nossa alegria, e tocou-nos com a tristeza essencial da vida, da transitoriedade da juventude e da beleza. Cantei sobre a mortalidade de todas as alegrias terrenas, e nós, que estávamos tão alegres, conhecíamos uma alegria mais profunda ao contemplarmos a hora inevitável em que caminharíamos para a noite dos dias.

Pela manhã, Jónatas puxou-me para si e arrepiou-me o cabelo, à medida que eu pressionava o rosto contra o seu ombro.

- Quem me dera, David, poder manter-te junto de mim.

O vento frio das suas palavras levou consigo a jovem flor da minha árvore.

- Ouve, David - disse ele, a voz doce e baixa -, ouve com atenção. O rei ordenou que regressasses a casa. A lembrança da sua loucura revolta-o e perturba-o. A tua presença lembra-o dela. É um insulto à força que ele recuperou haver um testemunho vivo dos dias e das noites em que ele era menos do que um homem. O fato de te ver, diz ele, é para ele uma censura. Ele está grato pelo que fizeste, e carregar-te-á de presentes, mas é seu desejo que deixes a corte imediatamente.

Eu caí - não me envergonho de o lembrar - de joelhos. Agarrei-me às pernas de Jónatas. Solucei o meu desgosto e a minha decepção e a raiva que me consumia. Queixei-me da injustiça da ordem. Gritei que, se ele me amasse verdadeiramente, me manteria junto de si. Agarrava-me a ele e implorava usando a sua carne, e, à medida que sentia o desejo dele crescer, conheci a esperança. Mas ele afastou-me e voltou a falar.

- David, amado, pois é esse o significado do teu nome, ouve-me. Não me posso opor à vontade de meu pai, por muitas razões, e uma delas é por tua causa.

Eu não queria ouvir, mas o amor dele obrigou-me.

- Tens dezesseis anos, apenas dezasseis anos, e foste apanhado numa Primavera vacilante e incerta. com o tempo, regressarás homem. Amar-te-ei sempre, e tu a mim, mas não desta forma.

- Receias os sacerdotes - disse eu.

- Não, David, é por te amar que deves ir. O que aconteceu entre nós é bom, e não mau, mas se ficasses comigo, haverias de o sentir como mal, saberias o que é a vergonha e desprezar-te-ias a ti próprio.

Em seguida pegou num pano e secou-me as lágrimas, inclinou-se para a frente e beijou-me, uma vez, nos lábios.

Abner providenciou uma escolta que me levasse a Belém. Havia duas mulas carregadas de presentes da parte do rei. Ofereci-os ao meu Pai e à minha mãe, mas passou muito tempo antes que eu perguntasse que presentes eram.

Os meus pais ficaram encantados com o meu feito e com a honra que eu conseguira, e eu esforçava-me para esconder deles o desgosto que me dilacerava.

Então ponderei nas palavras de Jónatas e na estranheza dos meus próprios desejos, que me atraía tanto para ele como para Mical, e, durante um tempo, atormentei-me, sabendo que os sacerdotes condenavam o que Jónatas e eu tínhamos feito como algo abominável e contrário à natureza.

Mas eu correspondera a Jónatas naturalmente como uma flor se vira para o Sol.

Agora, chegado à velhice, maravilho-me com a minha própria perplexidade e com a abnegação de Jónatas e o conhecimento que tinha de si mesmo. Por um momento esquecido das minhas enfermidades, olho com saudade a minha juventude ardente, e chamo Abisag para me confortar.

Tenho conhecido muitos desgostos, mas, no entanto, pergunto-me se existe algum suplício que possa ultrapassar o de um jovem consciente dos seus poderes e a quem seja negada a sua existência a quem foi concedido espreitar a sua terra prometida, e que depois tenha encontrado uma cortina corrida a ocultar o panorama. Durante dois anos definhei em casa, um mero pastor de ovelhas e de cabras. Na solidão da noite, gritei ao Senhor:

- Durante quanto tempo me esquecerás, Ó Senhor? Para sempre? Durante quanto tempo esconderás de mim o Teu rosto, e me negarás o Teu favor? Pensa em mim e ouve-me, Ó Senhor, meu Deus: ilumina os meus olhos para que eu não seja obrigado a dormir o sono da morte. A formalidade da linguagem poética pouco fez para estancar a minha desventura ou aliviar o meu desespero. «O que pode», dizia eu para mim próprio, «um poeta fazer a não ser canções?» Contudo, o meu coração respondia que eu era mais do que um poeta.

Conheci muitas vezes a tentação durante estes meses de saudade e havia raparigas na aldeia e em casa de meu pai que teriam ficado felizes por satisfazerem as minhas necessidades. Uma vez eu cedi, a uma rapariga morena, uma escrava, descendente de quenitas; mas após uma breve rapsódia e um alívio momentâneo, a vergonha apoderou-se de mim. É estranho recordar agora esse sentimento, mas a minha juventude foi, por inclinação, casta, virtuosa, ambiciosa. A rapariga chorava também, talvez de felicidade. Agora nem sequer me recordo do seu nome.

Os meus irmãos permaneceram no exército. As guerras continuavam, oscilando ora para um lado ora para outro, mas a maior parte do tempo, apenas rumores chegavam até nós. Uma vez um grupo de incursores filisteus passou por Belém, em fuga, mal parando para saquear. Eu observei «o pó a erguer-se atrás deles, à medida que me enroscava debaixo de uma oliveira, na montanha por cima, tendo levado o meu rebanho para uma cova, onde estava escondido.

Os meus irmãos - Eliab, Abinadab e Chama - vieram a casa por duas vezes, quando houve calmaria na luta. Vangloriavam-se das suas façanhas, embora Chama me confessasse que, na verdade, nenhum deles tinha alcançado grande glória. Contou-me como Joab subira na consideração de Saul, devendo agora ser o quarto homem do reino, atrás de Saul, Jónatas e Abner. Quando ele mencionou Jónatas, eu fiquei aliviado por me encontrar na sombra para que ele não visse o meu rosto corar. Eu desejava e, ao mesmo tempo, receava ouvir o seu nome. Eu fazia com que os meus irmãos o mencionassem, e nessa altura afastava o olhar. Mas eram imagens de Mical que perturbavam e excitavam as minhas noites.

Eliab, em especial, era caloroso ao falar de Joab com admiração. Na sua opinião, o renome de Jónatas era resultado não das suas próprias qualidades, mas do conselho e da capacidade organizativa de Joab.

- Encaremos os fatos - dizia ele -, Jónatas é só brilho e Joab fornece o valor sólido.

Estava corado do vinho, e, enquanto falava, batia na mesa. Era gordo, complacente e tinha o rosto vermelho. Era em Eliab que eu estava a pensar quando escrevi aquele verso que é muitas vezes citado: «O insensato diz em seu coração: não há Deus.»

Ele afirmava também que Joab valia dois Abner.

«Se Abner não fosse primo de Saul» - este era o seu refrão constante.

Eu sabia que isso era um disparate. Nunca neguei os talentos de Joab - na verdade foram-me necessários - mas, como mostrarei, ele era inferior a Abner era tudo o que importa aos olhos do Senhor. Abner era um grande cavalheiro (para usar uma palavra que eu próprio inventei como forma de encorajar a espécie de virtude que admiro), enquanto Joab, para ser sincero, era, é, e será sempre um ser desprezível.

«Jónatas é só brilho»... era este o gênero de calão militar idiota com que Eliab se deliciava- Fazia-o sentir que era um homem do mundo, um homem que conhecia as coisas por dentro. Pobre Eliab. Por muito pouco que eu sempre tenha gostado dele, dou comigo agora a sentir pena dele. Há algo de patético num homem que tão consistentemente sobrestima as suas capacidades e a sua importância. Ele estava sempre tão certo de que tinha razão, e, na verdade, raramente a tinha.

Pressionei Chama para que persuadisse o meu pai de que agora eu já tinha idade suficiente para deixar os rebanhos e tomar o meu lugar no exército. Quando ele me contou que o meu pai dissera que tinha de consultar Eliab, as minhas esperanças desfizeram-se em cinza. Além disso, disse o meu pai, a minha mãe estava ansiosa para que eu ficasse em casa.

Era difícil, mesmo com a vantagem da informação trazida pelos meus irmãos, compreender o curso da guerra. Na verdade, tal como vejo as coisas hoje, era na sua maior parte, uma sucessão de confusa escaramuças na fronteira incerta entre os Filhos de Israel e as tribos dos filisteus: ataques de surpresa a celeiros e a eiras, queima de colheitas, roubo de rebanhos, e o ataque ocasional a cidades mal defendidas. Saul e Jónatas conseguiram algum êxito, o suficiente, de qualquer forma, para fazerem com que os reis filisteus se unissem e, no ano em que fiz dezoito anos, lançassem um grande exército contra Israel, como se estivessem determinados a acabar com Saul e a reduzir Israel à submissão. Espalhou-se a palavra de que o perigo nunca fora maior, e depois, por muito tempo, não se ouviu mais nada.

Parecia que a campanha chegara a um ponto decisivo, mas que os comandantes de ambos os exércitos receavam» dar o primeiro passo Os meus irmãos mandaram dizer que estavam estacionados no vale de Elah com os filisteus posicionados nas montanhas em frente. E que tinham falta de provisões. Imploravam ao meu pai que lhes enviasse o que pudesse, e eu implorei-lhe que me deixasse tomar conta da expedição. Ele estava relutante em fazê-lo, mas eu venci, principalmente porque não havia mais ninguém em quem ele^ pudesse confiar e ele estava demasiado velho para empreender a tarefa ele próprio. Mas ordenou-me que regressasse mal tivesse entregue as provisões, para que eu lhe desse informações sobre os meus irmãos. Penso que não deve ser considerado culpado de ter decidido secretamente que não faria tal coisa.

Viajamos de noite e avistamos o acampamento quando a bruma matinal se elevava do fundo do vale. Eu estava admirado, sendo ignorante em assuntos de guerra, de ver soldados debruçados sobre caldeirões de comida, oleando os corpos, preparando as armaduras, carregando baldes para as linhas. Eu não vira qualquer imagem verdadeira da vida militar, e não me ocorrera que os homens têm de realizar as tarefas normais da vida diária, mesmo no meio de uma campanha militar. O fedor que se libertava das latrinas era repulsivo, a propósito, e não é de mais dizer que a minha primeira experiência da vida no acampamento me ensinou a importância de tratar da higiene e das provisões. Muitos exércitos têm sido destruídos pela febre porque as latrinas eram escavadas num local inadequado.

Só a guarda noturna se mantinha firme no posto. À medida que eu caminhava através do acampamento, perguntando-me se alguma vez iria encontrar os meus irmãos naquela confusão de homens, soaram trombetas. Apressei o passo, ansioso por ver ação, mas alguém me disse que aquilo era simplesmente o sinal para o render da guarda noturna e para a sua substituição por um novo destacamento.

- Receio não estar a compreender - disse eu.

- Bem - disse um soldado de meia idade com uma expressão bondosa -, não admira estares confuso, se és novo no acampamento. É uma posição bastante estranha. Estás a ver o rio lá em baixo. Ele é o maldito no meio disto tudo. Ambas as partes estão com medo de o atravessarem em primeiro lugar, porque no momento em que se fizer isso, está-se em desvantagem. Por isso estamos simplesmente aqui sentados e olhamo-nos uns aos outros com má cara por cima do vale, como dois linces, nenhum se atrevendo a avançar. Talvez tenhamos apenas de ver qual dos lados morre de fome primeiro. Isso que levas aí nesses jumentos, rapaz, são provisões?

- Sim - disse eu -, mas tenho de as entregar aos meus irmãos. No entanto, se tens fome, posso dar-te alguns pães, se me disseres onde posso encontrar os meus irmãos, os filhos de Jessé.

- Os filhos de Jessé? - coçou a cabeça. - Bem - disse ele -, não sei bem. Mas davam-me jeito alguns pães.

Nesse momento soou um toque de trombetas do outro lado do vale, e gritos de incitamento que alastravam ao longo das linhas dos filisteus. Dois homens surgiram à luz do Sol, o primeiro carregando um grande escudo à sua frente, o segundo, mesmo àquela distância, uma figura enorme. Avançou para o alto da colina, e levou à boca um grande corno.

- Lá está o sacana - disse o meu novo amigo. - Todas as malditas manhãs, à mesma hora maldita.

- O que é? Quem é?

- Ouve e já ficas a saber.

Um silencio caíra sobre o acampamento, como se de vergonha. Apercebi-me disso imediatamente, embora não saiba como. O filisteu soprou um poderoso ronco, ampliado com a ajuda do corno. Não fui capaz de apanhar todas as palavras, mas o mais importante era claro. Ele estava a desafiar o exército de Israel para que arranjasse um campeão que lutasse contra ele e assim decidir a questão da guerra.

Avançou mais em direção a nós, mantendo sempre o olhar fixo, e não parecendo reparar como o escudeiro se movimentava em harmonia com ele para o proteger de algum projéctil que pudesse ser arremessado. Avançou até se encontrar a menos de cinqüenta metros do riacho, e a uma distância nunca superior a essa, em linha reta, pelo ar, entre os dois exércitos.

Eu olhei-o com atenção. Tinha na cabeça um elmo de bronze e usava uma cota de malha. As pernas estavam protegidas com perneiras de bronze; carregava uma longa lança e tinha uma espada curta e grossa presa ao cinto. E era certamente muito grande. Eu nunca vira um homem tão grande. O meu irmão Eliab era o homem mais alto que eu conhecia, era mais alto ainda do que o rei, e este filisteu tinha a cabeça e os ombros a mais do que ele, e eram bem grandes. Agora ele erguia novamente o corno e rugia, e, desta vez, eu consegui distinguir as palavras.

- Todos os homens de Israel são covardes e têm coração de mulher, pois não há um que ouse aceitar o meu desafio?

E riu, e desatou a dizer obscenidades e ameaças de como ele esquartejaria o corpo de qualquer um que se lhe opusesse.

Eu fiquei interessado ao ouvi-lo falar daquela maneira, pois parecia-me que estas últimas ameaças tencionavam dissuadir um adversário e não encorajá-lo, e, assim, o enorme filisteu poderia não ser o herói que queria que nós pensássemos que era.

- Todos os malditos dias - disse o soldado -, e fica ali, naquela pose, até que o Sol deixe de estar a pino, rindo de nós e praguejando, até que ficamos enjoados.

- E ninguém aceitou o seu desafio? - perguntei.

- Olha para ele, meu rapaz - disse outro soldado. - Olha para os braços e pernas que tem, olha para as armas, sem medo nenhum. Muito obrigado.

- Dizem até - disse um terceiro - que o rei prometeu a filha em casamento a qualquer homem que mate este Golias, mas eu digo, um homem morto não pode ser marido, independentemente do que lhe for prometido. «

- Isso são disparates - disse o meu primeiro amigo. - O rei não fez tal promessa, e por esta razão: é que ele sabe que não há um homem no exército que possa derrotar este Golias, e ele sabe o efeito que teria sobre o exército o fato de enviar um campeão para depois o ver morrer.

- Sim - disse o segundo soldado -, mas e o efeito de não enviar nenhum? E isso, heim?

- Mas é vergonhoso - disse eu -, deixar que este bruto nos insulte desta maneira.

- Oh, lá vergonhoso, é - disse o terceiro homem. - Bem, falando por mim, meu jovem, eu prefiro ter vergonha a estar morto. É claro que é contigo, se pensas de outra forma. Avança e vai lutar contra ele, se quiseres.

E riu. Era a troça que ria.

- Está bem - disse eu -, vou fazê-lo. E matá-lo-ei. Se mais ninguém defende a honra de Israel, fá-lo-ei eu.

- O rapaz está louco.

- Não, não estou - disse eu. Subi a uma rocha para me dirigir à multidão que agora tinha crescido. - Aquele homem, é Golias que lhe chamais?, confia na sua força bruta e no terror que acredita que é capaz de inspirar. Mas eu não tenho medo, não há terror em mim, pois eu confio no Senhor dos Exércitos, que conduziu Israel para fora do Egito e libertou os nossos antepassados das mãos do faraó, tal como Ele me libertará deste filisteu.

Eu não pensara naquilo, pois estava na verdade a falar como se as palavras não me pertencessem e me fossem dadas pelo Senhor, e por isso eu falava calmamente, com toda a certeza, e as minhas palavras e o meu comportamento silenciaram o riso, de forma que os soldados se renderam a mim e colocaram de lado as suas dúvidas. E o meu comportamento era, como eu o teria desenhado se tivesse sido capaz de pensar, o perfeito contraste do palavreado fanfarrão do filisteu; e também isso impressionou aqueles que me ouviam.

Nesse momento, ouvi chamarem o meu nome, voltei-me e vi o meu irmão Eliab. Penso que ele não ouvira o meu discurso, mas vi que ele estava furioso por me encontrar a dirigir-me aos soldados, e disse com brusquidão e secura:

- Por que estás aqui? Por que deixaste as tuas poucas ovelhas nas montanhas? Vieste ver a batalha, foi? Eu conheço-te, sempre a meter o nariz aonde não és chamado.

- O que fiz eu agora? - perguntei. - E não há uma boa razão para aquilo que estou prestes a fazer?

Apontei para o outro lado do vale, para o filisteu, e, para fúria de Eliab, os homens davam vivas e gritavam:

- Levemos o rapaz ao rei!

Tive de esperar, é claro, no exterior da tenda de Saul, enquanto ele era colocado ao corrente da notícia de que se apresentara um voluntário. Eu não tinha dúvidas de que a minha oferta seria aceite. Isso soa-me agora estranhamente, pois no lugar de Saul, eu teria certamente elogiado um campeão tão jovem, mas teria recusado educadamente deixá-lo ser morto. Contudo, a possibilidade de uma recusa nunca me ocorreu. A minha única inquietação era poder encontrar Jónatas, não porque não estivesse ansioso por vê-lo, mas porque sabia que ele iria certamente intervir para me tentar convencer, e, se tal não acontecesse, de convencer o pai, de que eu não devia defrontar Golias. Mas perguntei aos guardas sobre o seu paradeiro, e fiquei aliviado quando me disseram que ele comandava a ala direita do exército e que estava agora ocupado a treinar os seus homens.

Finalmente fui admitido à presença de Saul. Ele não mostrou sinais de me ter reconhecido, mas franziu o sobrolho, e, por um momento, lembrei-me do seu estado de espírito de desespero e loucura. Tinha covas nas faces e nos olhos uma orla vermelha da falta de sono ou de tanto chorar.

- Quer dizer - disse ele -, quer dizer que queres lutar contra este Golias, e és apenas um rapaz. É uma... - e fez uma pausa, como que antes de pronunciar a palavra «loucura», que ele não desejava pronunciar, e substituiu-a por «idiotice».

- Não, meu rei e senhor - disse eu. - Não é idiotice, pois confio no Senhor Deus de Israel. Quando eu era criança, meu rei e senhor, e cuidava dos rebanhos de meu pai, veio um leão e de outra vez um urso, e abocanharam um cordeiro. E embora eu fosse uma criança, agarrei o leão e tirei-lhe o cordeiro da boca; em seguida bati no leão e matei-o, e, na outra ocasião, fiz o mesmo ao urso, e fui capaz de fazê-lo porque o Senhor estava comigo. E Ele defender-me-á igualmente contra este filisteu incircunciso que tem troçado do exército de Israel e do rei meu senhor.

E nessa altura ajoelhei-me perante Saul, e peguei-lhe na mão, e beijei-lha, para mostrar a minha lealdade e a minha confiança, e para sugerir que tudo o que eu procurava dele era a sua bênção.

Mesmo assim, ele hesitou, e a mão tremia-lhe como se a fosse retirar, mas eu mantive-me firme e esperei.

- Muito bem- disse ele -, é uma idiotice, mas...

- Meu rei e senhor - disse eu -, o Senhor Deus dos Exércitos protege os simples que depositam Nele a sua confiança, e derruba o homem poderoso que confia apenas na sua própria força.

Saul mandou chamar o seu escudeiro, e ordenou-lhe que me trouxesse armas e armadura. Em seguida sentou-se à sua mesa e bebeu vinho (há incidentalmente aqueles que dizem que Saul era um bêbado, ,e que a deterioração do seu caráter e das suas capacidades, tão evidente nos últimos anos da sua vida, era conseqüência deste vício do vinho; mas penso que isso não era absolutamente verdade). Tentei imaginar em que estaria ele a pensar, se lamentava já não ser capaz de enfrentar, ele próprio, o desafio de Golias, ou ter proibido (como eu vim a descobrir) Jónatas de defrontar o filisteu. Eu perguntava a mim próprio se seria verdade que ele prometera a filha a quem derrotasse Golias, e se ele cumpriria a promessa, e se ele estaria a pensar nisso. Na verdade, porém, ele estava mais provavelmente a considerar as conseqüências do meu desafio, pois disse-me que esperasse numa tenda contígua, após o que o ouvi chamar Abner.

Coloquei o ouvido junto a uma costura das peles de que era feita a tenda, para poder ouvir a conversa entre ambos.

Abner começou por perguntar se era verdade que um jovem estava prestes a aceitar o desafio de Golias, e falava como se achasse estranho o fato de Saul ter consentido.

- Eu também achei que era uma idiotice - respondeu o rei -, e talvez, embora o rapaz tenha um comportamento impressionante, esse seja o juízo sensato a fazer. Mas podemos virar o caso a nosso favor. Em primeiro lugar, coloca Golias a ridículo. Já discutimos o assunto várias vezes, não é verdade? E dissemos que a derrota de um campeão desmoralizaria o exército, e foi por isso que não permitimos que alguém enfrentasse o filisteu. Mas, neste caso, trata-se apenas de um rapaz. Se ele for morto, não tem muita importância, não há desonra. Na verdade, a imagem de um jovem a ser chacinado por aquele bruto enorme pode inspirar indignação nos nossos homens. Pensarão que ele é um herói e um mártir, ao passo que... mas mesmo assim. Quero que dês ordem para que os homens peguem em armas. Depois, no instante em que o combate acabe, quando Golias estiver a exibir-se, triunfante, e os filisteus estiverem a exultar, lançaremos um ataque. É a única maneira de podermos ter esperança de superar a desvantagem do terreno, que nos tem impedido até agora de o fazer. Temos de quebrar o marasmo, antes que o nosso exército desanime, e esta é a melhor oportunidade que podemos ter.

- bem - disse Abner -, lamento pelo rapaz, mas concordo contigo.

Saul riu.

- O rapaz fala com entusiasmo do Senhor Deus dos Exércitos. Deixá-lo ser um sacrifício voluntário ao Senhor.

Não posso censurar Saul por pensar como pensava, mas não era nada encorajador ouvir tal conversa, embora mais tarde eu viesse a admirar a perspicácia com que Saul se apercebeu de que lhe fora dada uma oportunidade de vencer, e como consegui-la.

Em seguida fui novamente chamado à tenda real, que Abner deixara. Saul disse-me que me fora destinada uma tenda, e que a minha armadura me esperava lá. Disse que ainda me voltaria a ver antes de eu marchar contra o filisteu, que eu, ao sair da tenda do rei, ainda via a exibir-se e a pavonear-se na montanha em frente.

- Não há tempo a perder - disse Saul -, se ainda queres lutar hoje.

Os meus auxiliares eram respeitosos, como que fazendo jus à coragem que eu demonstrava. A armadura era magnífica. Vesti uma túnica dourada de tecido rico que Saul também enviara, e permiti que os escravos me cobrissem com a armadura, e o elmo de bronze incrustado de jóias. Senti-me um poderoso guerreiro, e sabia que estava tão esplêndido que desejava, quando regressasse, apresentar-me perante o rei e que Mical lá estivesse para me ver.

Mas, quando me encontrei de novo com Saul, tirei a armadura e as finas roupas e fiquei à sua frente com uma túnica simples, de tecido grosseiro, um cinto de couro em volta da cintura e os pés descalços.

Porque lhe disse:

- Não experimentei esta armadura e não estou acostumado a estas armas. Lutarei e matarei Golias à minha própria maneira, e com as armas simples das montanhas.

Pedi, no entanto, que a armadura e as roupas finas fossem levadas de volta para a tenda que Saul me destinara, pois considerava-as um presente que eu estava prestes a provar que merecia.

Em seguida deixei o rei e caminhei, muito devagar, como quem caminha à vontade, pelo acampamento, com a minha funda em volta do pescoço, sem olhar nem para a direita nem para a esquerda, mas saboreando os murmúrios de admiração, os gritos de «Boa sorte!» que chegavam até mim vindos de todos os lados. Passei as linhas da frente e desci para o riacho, e um silêncio profundo caiu atrás de mim. Eu mantinha os olhos baixos e não olhei na direção de Golias.

Junto ao riacho, ajoelhei-me e rezei ao Senhor, escolhendo em seguida cinco pedras lisas da água e colocando-as no meu alforje de pastor. Então, com o meu bordão na mão, atravessei a água e avancei para o filisteu. À medida que o fazia, levantei a cabeça, olhei para ele e sorri, pois sabia que isso o enfureceria.

Havia silêncio em ambos os acampamentos, e Golias bateu no peito e rugiu:

- Sou eu, porventura, algum cão para vires ter comigo com um bordão na mão?

Em seguida amaldiçoou-me em nome dos seus deuses: Dagon, com a sua cabeça de peixe, Baal-zebub, o Senhor das Moscas, e Atargatis, o demônio fêmea.

- Vem - gritou ele - e entregarei a tua carne às aves do céu.

- Não é assim - disse eu. - Tu tens a tua lança e a tua espada, mas eu venho ter contigo em nome do Senhor Deus de Israel, que jurou entregar-te nas minhas mãos. E cortar-te-ei a cabeça para que seja usada como troféu e testemunha do poder do Senhor Deus dos Exércitos. Pois a batalha é do Senhor e Ele entregou-te a mim.

Tal com eu esperava, este desafio enfureceu o bruto, que se deslocou pesadamente na minha direção. Mas eu afastei-me dele de um salto, mantendo-me fora do seu alcance e continuando a provocá-lo. Esta situação prolongou-se durante algum tempo, e, quando foi necessário, voltei a atravessar o riacho para o local até onde ele não se atrevia a seguir-me, pois encontrar-se-ia entre as linhas da frente do nosso exército. Corri, então, ao longo da margem e voltei a atravessar, forçando-o a virar-se para me perseguir. Entretanto ele estava cada vez mais irritado e sem fôlego, mas continuava a praguejar à medida que a sua fúria crescia. Eu estava deliberadamente a fazê-lo parecer idiota, pois apercebia-me de que o êxito dependia de duas coisas: primeiro, tinha de fazer com que ele atirasse a lança, de forma a que ele pudesse apenas atacar-me a curta distância, onde eu não tinha intenções de me encontrar; segundo, eu tinha de o separar do escudeiro, que, no entanto, sendo um soldado experimentado, se estava a verificar hábil na defesa do seu senhor.

Assim, deixei-o aproximar-se ainda mais de mim, à medida que eu andava de um lado para o outro na beira do riacho. Fiz uma pausa, como que sem fôlego, e, com um ronco de triunfo, ele atirou o seu dardo. Uma vez que eu estava preparado para isso, saltei para o lado, e o dardo enterrou-se no chão, do lado israelita do riacho. Subi a encosta da colina, na diagonal, correndo em direção ao exército Filisteu, como que dominado por um pânico repentino. Fingi que tropeçava e atirei-me para o chão. Pus-me de pé, cambaleante, e levei a mão ao joelho, esfregando-o, para sugerir que estava ferido. Olhando para trás por cima do ombro, coxeei alguns metros, virei-me e enfrentei-o, deixando a minha boca escancarar-se. Cheguei a soltar um suspiro desesperado, e ele empurrou para o lado o escudeiro, e, levantando a sua enorme espada acima da cabeça com as duas mãos, fê-la descer sobre mim, rosnando a sua ira e o seu triunfo. Eu coloquei na funda uma pedra que tirei do alforje, e arremessei-a. Atingiu-o mesmo por baixo do elmo, em cheio no rosto, e ele caiu ao chão. Levantei o olhar. O seu escudeiro estava estupefato, em seguida virou costas e fugiu em direção às suas linhas. Eu avancei para Golias. Ele estava deitado de costas, a pedra enterrada na testa. Toquei-lhe com o pé, e o corpo não se mexeu. Tirei a espada das pedras onde caíra, e dirigi-a ao seu pescoço. Foi uma tarefa mais difícil do que eu tinha imaginado, mas, por fim, estava realizada. Coloquei o elmo debaixo do braço, e, segurando a cabeça ensangüentada pelo cabelo, desci a colina. Nesse momento exato, fui quase arrastado pelos nossos soldados que, com gritos de alegria, tinham atravessado o riacho e atacavam o exército filisteu colina acima. Não olhei para ver o resultado, mas continuei a descer, atravessei o riacho e subi a colina até à tenda de Saul.

O silêncio rodeava-me. Olhei para trás, para o outro lado do vale, e vi os filisteus em debandada.

É claro que Saul não me deu Mical. Talvez a história de que ele a prometera ao homem que matasse Golias não tivesse fundamento, e fosse um daqueles rumores que se propagam tão livremente nos acampamentos (os soldados são tão viciados em boatos como mulheres de aldeia). No entanto, eu não penso assim. Muito provavelmente, num momento de inquietação, Saul tinha, de fato, feito tal oferta, que agora considerava conveniente esquecer, e que pode até, na verdade, ter esquecido. A sua compreensão da realidade estava a enfraquecer, algo que ninguém que o amasse ou admirasse podia observar sem sentir dor.

Não havia ninguém a quem eu pudesse confessar o meu desejo por Mical, e embora eu tivesse sido recompensado pela minha vitória sobre Golias com a evidência do favor do rei, teria sido considerado presunçoso da minha parte aspirar à mão da sua filha. Assim, fui obrigado a esperar pelo desenvolvimento dos acontecimentos, confiante de que o Senhor lhes daria tal volta de forma a que a minha paciência fosse recompensada.

Eu tinha o cuidado de não parecer fanfarrão nem arrogante. Sabia que a minha posição era precária. Havia muitos preparados para atribuírem o meu triunfo à sorte, e muitos mais tinham inveja do fato de alguém tão jovem ter adquirido tal distinção. Para surpresa minha, Joab parecia não se encontrar entre eles. Eu ultrapassara-o, mas ele procurava o meu favor e não demonstrava para comigo qualquer indiferença estudada ou desdém, com os quais me considerara até então.

No entanto, eu não era tão ingênuo que me deixasse iludir completamente com isso; sentia-me, por outro lado, encorajado, pois sabia que Joab era intensamente ambicioso e eu via que a sua atitude para comigo indicava que ele tinha confiança de que a minha estrela estava em ascensão. A verdade é que Joab sempre foi um homem que se preocupou mais com a realidade do poder do que com a sua aparência. Sabia que lhe faltava o magnetismo que um homem deve ter para subir ao primeiro lugar do Reino, sabia também que nunca poderia desafiar o domínio da tribo de Benjamim enquanto Saul vivesse (porque o rei, na sua melancolia receosa, sentia relutância em confiar em quem quer que fosse a não ser na sua família mais chegada e nos parentes). Além disso, Joab odiava Jónatas e tinha ciúmes de Abner; sabia que não tinha as boas graças de nenhum deles. Por isso, a sua ligação a mim era por interesse e não por afeição.

Que diferente de Jónatas! Ao final da tarde do dia em que matei Golias, quando me encontrava na minha tenda, admirando a fantástica armadura que não usara, Jónatas veio ter comigo, diretamente do campo de batalha onde acrescentara a sua glória. O rosto brilhava-lhe de exultação e tinha as coxas cheias de pó e sangue seco, e, quando me abraçou, encontrei o suor da batalha no calor do seu corpo. Durante muito tempo, nenhum de nós falou, mas apertávamo-nos num forte abraço e lutávamos com o ardor da juventude que procura libertar-se após os terrores e perigos do campo de batalha. Devido aos nossos feitos daquele dia, estávamos esgotados de moralidade, de responsabilidade, até de vontade, e mitigamos as nossas necessidades no corpo um do outro, afirmando a vida que podia ter-nos sido arrancada, como as folhas vermelhas do Outono são arrancadas da árvore. Era como se, estremecendo na companhia um do outro, membros jovens e calorosos entrelaçados, encontrássemos na escuridão íntima da tenda de pele de cabra um equivalente à paixão mental que tínhamos despendido na agonia da batalha. Quando terminamos, mantivemo-nos próximos, e cada um de nós procurou nos olhos do outro a sua alma. Não conhecíamos nem culpa nem vergonha, embora o ato seja condenado como abominação, pois o que fizéramos parecia-nos a ambos não só natural como necessário.

Então, finalmente, Jónatas falou, mas não consigo levar-me a escrever as palavras que pronunciou, pois fazê-lo dar-lhes-ia um significado muito diferente daquele que têm no meu coração. As palavras de amor São unicamente para amantes, e, independentemente da forma como um poeta escreve, as palavras que ele diz à sua amada são geralmente banalidades. com as mulheres, segundo a minha considerável experiência, as banalidades funcionam melhor que tudo, e qualquer tentativa para ir além delas resulta em absurdo mal-entendido.

Nunca existe tal coisa como seja a igualdade no amor. Há sempre um amante que beija e o outro que oferece a face ou os lábios, e é assim, seja qual for a forma que o ato sexual em si possa adquirir. O equilíbrio pode variar. A pessoa adorada pode tornar-se a adoradora, ponto em que - com exceção, talvez, de um breve momento de êxtase - a primeira pessoa a adorar desliza para a posição de adorada. A nossa situação não era de forma alguma igual, pois Jónatas era o filho do rei e eu era um jovem rude. Contudo, foi ele que insistiu e eu que consenti, de forma que nos momentos isolados de paixão, o equilíbrio da desigualdade que prevalecia para além da tenda foi invertido. A virtude de elevada moral que fizera com que Jónatas negasse a si próprio o que mais queria, durante dois anos, servira apenas para aprofundar e enriquecer a sua paixão, que eu, faminto de prazer devido à minha própria castidade e excluído do amor por que ansiava, satisfazia agora avidamente, alimentando um apetite que eu não podia evitar.

E Jónatas era carinhoso para comigo. Essa era uma grande dádiva. Ele preocupava-se com a minha reputação, dando-se ao trabalho de assegurar que a nossa ligação permanecia oculta dos olhos indiscretos ou, na pior das hipóteses, conjeturais, do acampamento. Embora ele nunca hesitasse em me fazer avançar perante os homens, tanto no conselho do rei como no exército, evitava manifestações públicas de afeto, e tinha o cuidado de elogiar o meu intelecto mais do que a minha pessoa. Ele até se exercitou a abster-se do prazer de me olhar de uma forma que pudesse levantar as suspeitas até daquele que melhor inclinado estivesse para comigo; Jónatas negava mesmo a si próprio aquele prazer especial, com o qual o amante secreto tão fácil e infalivelmente trai a sua paixão: a demasiado freqüente introdução do nome da pessoa amada na conversa. Isso era o mais notável, e, para mim, era uma prova segura da profundidade e da virtude do seu amor, uma vez que ele era, por natureza, franco e aberto, e não dado a reservas ou a qualquer duplicidade.

Não posso deixar de atribuir a mim próprio algum crédito no que respeita ao êxito com o qual escondíamos a natureza do nosso amor. Não poderia ter sido mantido em segredo, se eu fosse apenas um rapaz bonito, sem mais préstimo algum noutros campos (mas nesse campo Jónatas não teria amado um rapaz assim). Como as coisas estavam, uma combinação da minha própria proeza e capacidade, e o respeito que isso me trouxe, asseguraram que eu depressa desempenhasse um papel proeminente na organização do exército. Deve compreender-se que, naquela altura, Israel era um estado jovem, livre das peias da cerimônia que se encontram em estados há muito estabelecidos, e, sendo assim, uma vez que a nossa organização era rudimentar ou até experimental, aos jovens com capacidade de imaginação eram dadas oportunidades que lhes teriam sido negadas noutras circunstâncias (observo, a propósito, que o jovem Salomão, cuja sensatez está aquém da sua idade, tem tendência a admirar a formalidade nas estruturas e métodos de negociar, o que certamente restringirá o desenvolvimento de talentos como o meu, no reino, enquanto o dirigir. Essa será a perda de Israel, mas nada do que eu possa dizer influenciará aquele jovem que se mostra tão ansioso para que eu saia de cena).

Era óbvio que a vitória em Elah, tornada possível graças à minha derrota sobre Golias, trouxera a Israel apenas um alívio temporário. Os filisteus tinham sido expulsos da região montanhosa baixa de Sefalah, mas Saul não se aventurara a persegui-los pela planície dentro para continuar aí a campanha. Por isso tinham-se retirado confortavelmente para as suas cidades de Gat, Ascalon e Zimlag, prontos para recomeçar a guerra quando lhes conviesse. Não poderia haver qualquer segurança para Israel enquanto os filisteus não tivessem sido subjugados.

Havia uma tarefa que parecia para além das nossas capacidades, e perante a qual a maior parte das pessoas, até mesmo Saul, se encolhia. As dúvidas do rei devem ser desculpadas. Ele passara tantos anos de um lado para o outro, numa guerra intermitente com os filisteus, que deixara de acreditar - se é que alguma vez acreditou - na possibilidade de uma vitória final. Para ele, a guerra com a Filisteia fazia parte da vida, tão natural como as estações do ano, e a vida sem ela era inconcebível como era a vida sem as estações do ano. Como é fácil para a estrutura mental de um homem tornar-se fixa!

Havia, naturalmente, boas razões para este estado de espírito, por mais doente que pudesse parecer estar. Eu estava pronto a admiti-las. Por um lado, os filisteus eram, quando comparados com os nossos, melhores lutadores do que os israelitas, mais corajosos e fisicamente mais fortes. Curiosamente, quando mencionei isto, que, para mim, era um fato incontestável, levantou-se um tumulto, vindo ironicamente daqueles que acreditavam que a guerra contra os filisteus jamais poderia terminar com êxito, enquanto eu, que pensava que poderia, estava bastante preparado para admitir esta desagradável realidade. O tumulto na Câmara do conselho foi oportuno e caracteristicamente apaziguado por Jónatas, que observou, com um sorriso:

- Não admira que David pense como pensa, uma vez que Golias era indubitavelmente superior a ele em físico, e, no entanto, sofreu uma derrota total. Imagino que David nos vai dizer que somos superiores num aspecto importante...

- E qual é ele? - perguntou Saul, franzindo o sobrolho.

- Na inteligência, pai.

Fiquei satisfeito ao ver que Aitofel, de certa forma o mais esperto membro civil do conselho, sorria.

Como eu disse, Jónatas antecipou-se-me. Éramos, na minha opinião, superiores em inteligência. Nesse ponto, fiz uma pausa para permitir que fosse gozado um certo grau de presunção. A pausa foi feliz, pois impediu-me de acrescentar que não valia de muito sermos superiores em inteligência, se nos abstivéssemos de a aplicar à questão. Toda a minha vida tenho tido muito cuidado para não me permitir parecer mais esperto do que aqueles com quem estou a lidar, e talvez uma das coisas mais úteis que Jónatas alguma vez fez por mim tenha sido persuadir-me a tentar disfarçar a minha superioridade intelectual em expressões vagas e de cortesia. Incidentalmente, uma das razões por que nós, israelitas, somos tão odiados e olhados com suspeita pelos nossos vizinhos é o fato de tantos de nós lhes permitirem ver que sabemos que eles são intelectual e moralmente inferiores a nós.

Tendo isto em consideração, e tendo surpreendido uma breve careta no rosto de Jónatas, que interpretei corretamente como um aviso, embarquei, tal como tínhamos combinado, numa análise da disparidade militar existente entre os filisteus e nós próprios. A grande vantagem deles encontrava-se no desenvolvimento que tinham efetuado do carro de guerra, combinando mobilidade e um poder de destruição formidável. Numa batalha formal em terreno aberto, isto era de mais para a nossa infantaria convencional, armada de dardos, lanças e espadas curtas, já que os arqueiros que seguiam nos carros podiam infligir danos enormes, enquanto eles próprios se encontravam fora do alcance dos nossos dardos, e então, quando as nossas linhas estavam enfraquecidas, o ataque violento dos carros em si verificava-se demasiadas vezes irresistível. Era-nos difícil competir, pois Israel não era um país de criação de cavalos, embora, se pudéssemos agarrar e ocupar uma faixa da planície costeira, as coisas fossem diferentes nesse aspecto. Entretanto parecia-me que devíamos tentar desenvolver forças que fossem ainda mais móveis do que os carros, arremessadores de funda e arqueiros de armas leves. Sublinhei que um soldado de infantaria podia segurar um arco mais poderoso do que os arqueiros de carro. Podíamos derrotar os filisteus numa guerra desigual, e até em batalhas campais, se escolhêssemos cuidadosamente o terreno - e aqui eu prestava homenagem à astúcia de Saul por ter selecionado o vale de Elah, terreno em que os filisteus deram pouco uso aos carros. Mas, acrescentei, se íamos levar a guerra para a planície, tínhamos não só de melhorar a nossa mobilidade, mas também de treinar os nossos lanceiros - agora melhor protegidos pelos arremessadores de funda e pelos arqueiros - para suportarem o ataque dos carros. Eu também tinha algumas idéias sobre esse assunto, observei, mas talvez tivesse dito o suficiente naquele momento.

Seguiu-se uma discussão geral, na qual as minhas idéias foram atacadas pelos tradicionalistas. Jónatas interveio apenas para questionar algumas das hipóteses deles, mas absteve-se, como tínhamos combinado, de apoiar abertamente o meu ponto de vista. Abner manteve-se em silêncio por muito tempo. O próprio Saul parecia distraído, formando bolas de miolo de pão entre os dedos até estarem cinzentas, e batendo em seguida as palmas para apressar uma escrava que mandara buscar vinho. Bebeu duas taças de uma assentada e sentou-se com a taça cheia na mão direita, enquanto os dedos da sua mão esquerda continuavam a moldar os pedaços de miolo de pão. Era impossível adivinhar se a discussão o aborrecia, se ele se sentia ofendido com a minha crítica implícita à forma como ele conduzia a guerra - mesmo embora eu a tivesse adoçado com elogios -, se estava a ponderar as questões que eu levantara, ou se se tinha abstraído e escorregado para aquele mundo privado que a sua mente tantas vezes agora parecia habitar.

Em seguida Aitofel levantou uma mão, e Abner, que, sem uma palavra, tomara o controlo do encontro, uma vez que Saul, imperceptivelmente, renunciara a ele, pediu-lhe que falasse. Não me lembro do que ele disse exatamente, mas os seus modos permanecem claros na minha memória: o tom suave, sibilante e insinuante, a sugestão de que era imperdoável da sua parte falar, mas que, já que estava a cometer tal solecismo, tinha de expressar os seus profundos agradecimentos pela nossa vontade de o ouvir. Desta forma, pedindo muitas desculpas pela sua ousadia, ele conduzia a reunião - como geralmente fazia.

Aitofel era um homem fora do vulgar. Nem sacerdote nem soldado, não tinha estatuto evidente, não podia apontar para nenhum feito por que se distinguisse particularmente, e, contudo, onde as coisas se decidiam, lá estava Aitofel, formando a decisão. Talvez um dia haja um termo que descreva adequadamente pessoas como Aitofel; tenho a certeza de que ele representa um tipo de homem do futuro. Se a sociedade para cuja criação eu tenho trabalhado se estabelecer – e, para fazer justiça a Salomão, ele, só ele entre os meus filhos, compreende que eu tenho tentado formar uma nação a partir de tribos, e criar algo sem precedentes, a que, na verdade, considero impossível dar um nome, uma vez que as palavras para aquilo que ainda não existe não se encontram, naturalmente, na nossa língua, e, de fato, até eu próprio não tenho mais do que uma noção do que pretendo – se, como eu digo, ( mas perco-me nos parênteses da velhice ) -, tal sociedade vier a existir, poderá haver muitos Aitofel. Talvez a explicação da lei deixe de ser um assunto reservado aos sacerdotes, e passe a ser apanágio de toda uma classe de Aitofel. Admiro-o, apesar de tudo.

Naquele tempo, sobre o qual estou agora a escrever, eu tinha razões para lhe estar agradecido. Ele era um apoiante de Jónatas, pois via que a estrela de Saul estava a declinar, e a ambição levou-o a agarrar-se ao meu amigo. Ele pode até ter sido o seu confidente dos assuntos mais íntimos. Eu suspeitava disso pela forma calculista com que ele me olhava. É claro que ele olhava toda a gente dessa forma, mas havia algo de terno e de cauteloso nos seus modos para comigo, o que eu considerava inquietante porque refletia um conhecimento que eu lhe teria negado, se tivesse opção. Dito isso, sendo um partidário de Jónatas, ele estava do meu lado. A conclusão que se podia tirar do seu discurso era que eu conseguira o que pretendia. Foi-me destinada a tarefa de treinar o novo exército de Israel e de organizar o seu equipamento, assim como as tácticas que empregaria em batalha.

Os meses que se seguiram foram repletos de prazer. Eu trabalhava longas horas e não as lamentava. Era abençoado com o entusiasmo da juventude e sentia o poder que tinha. Há poucos prazeres maiores na vida do que exercermos os nossos talentos em pleno, e poucos maiores do que pegar num corpo de recrutas em bruto e moldá-los, fazer deles uma força de luta.

Joab era meu lugar-tenente (nunca se deve permitir que os sentimentos pessoais influenciem a escolha de subordinados. Salomão, ocorre-me agora, será um bom selecionador de homens, pois é incapaz de gostar seja de quem for). Joab desempenhou as suas funções com excelência, como eu sabia que aconteceria; podia dar-se-lhe uma ordem e ter-se a certeza de que seria cumprida. Ainda não aprendera a sobrestimar a sua capacidade. O seu discernimento em assuntos militares era admirável, e era só desses que eu o desejava encarregar.

Depressa alcançamos resultados. As nossas tropas, treinadas para um nível superior de condição física, e supremamente confiantes nas suas capacidades - como os soldados geralmente estão quando confiam nos seus comandantes - começaram a infligir uma sucessão de derrotas aos filisteus, que ficaram espantados ao descobrirem que as forças israelitas se deslocavam agora com maior rapidez do que antes, apanhando-os continuamente de surpresa.

Outra coisa: embora eu fosse buscar as minhas tropas de elite à minha própria tribo de Judá, tendo-se o meu irmão Chama verificado um excelente oficial, tive o cuidado de envolver membros de tantas das doze tribos quantas era possível. Havia para isso uma boa razão militar: não éramos assim tão numerosos que pudéssemos dar-nos ao luxo de negligenciar quaisquer recursos humanos. Mas também pensei que isso poderia ser-me vantajoso no futuro, se eu conseguisse ganhar crédito junto das tribos do Norte.

Tornei-me uma figura popular. Nada demonstrava mais claramente a nobreza do caráter de Jónatas do que a sua completa ausência de ressentimento em relação ao meu êxito. Já com Saul não se passava a mesma coisa. Quando ele ouviu dizer que havia uma canção popular que declarava que «Saul matou mil, mas David matou dez mil», houve muitos que o avisaram de que eu me estava a tornar um rival, e ele próprio não mostrou relutância em tomar em consideração tal suspeita. Era um disparate. Eu tinha ainda apenas vinte anos quando se podiam ouvir as raparigas a cantarem essa canção à medida que tiravam água dos poços ao crepúsculo.

Mas o pobre Saul vivia, ele próprio, cada vez mais num mundo de crepúsculo.

Que maravilhosas eram as manhãs quando o Senhor cantava a beleza da Sua criação! Num dia assim, com o orvalho ainda a brilhar e uma pálida Lua em quarto crescente ainda visível nos cumes das montanhas, elas próprias pintadas de cor-de-rosa e de ouro pelo Sol nascente, eu regressava de um exercício noturno - pois decidira que as minhas tropas seriam tão formidáveis e certeiras na escuridão como à luz do dia -, resplandecendo com a saúde e a felicidade que a guerra simulada concede. O dia era coroado de generosidade e os caminhos que eu pisava prometiam-me abundância. As pastagens estavam vestidas de rebanhos e as pequenas colinas rejubilavam de todos os lados.

Tomei banho num lago rodeado de salgueiros, e o meu serviçal preparou-me roupa limpa.

- Senhor - chamou-me ele -, meu senhor, aproximam-se mulheres.

Vesti-me à pressa, e saí das árvores para encontrar Mical na companhia das suas criadas.

Senti-me corar como se fosse um jovem imaturo e não o homem em que me tornara.

- Quer dizer que descobriste o meu lago secreto - disse ela, estendendo a mão para tocar o meu cabelo molhado.

- Não sabia.

- Que grande homem te tornaste, já não és o pobre músico contratado para distrair o meu pai.

As palavras dela reduziram-me a esse estatuto, e deixaram-me sem fala.

- Porque' me tens evitado desde que te tornaste um homem importante? O meu irmão exige os teus serviços permanentes?

-Jónatas, o meu Senhor, tem sido muito generoso.

- com certeza - disse ela -, e, sendo um guerreiro tão distinto, agora já não tens tempo para mais nada a não ser a guerra. Pelo menos é o que me dizem.

Os meus olhos devoravam-na. Ela não se ofendeu com tal escrutínio, adotando, na verdade, uma atitude que me convidava a intensificá-lo. As criadas afastaram-se a um sinal dela, e ficamos sozinhos no pequeno bosque. com as mãos, ela cobriu os seios que lhe apareciam por cima do decote cavado do manto, e em seguida, com um sorriso, baixou os braços.

- Se te tenho evitado - disse eu -, é porque não posso olhar-te sem te desejar.

com estas palavras entreguei-me ao poder dela. Se ela não fosse filha de Saul... mas, nesse caso, sentiria eu o que sentia, se ela não o fosse? Ela estendeu aquelas mãos longas e pálidas que nunca tinham tido necessidade de trabalhar.

--Aqui estou eu. .-.-,

- Saul matar-me-ia - disse eu. Ela riu.

- Claro que mataria. Aqui estou eu. O riso dela encorajou-me.

- Quero-te como minha amante - disse eu -, mas também como minha mulher.

- Oh, David - disse ela. - Estou tão aborrecida. Fala com o meu pai.

- E se eu falar? Se eu tiver essa ousadia?

- Ousadia? Não és, por acaso, o rapaz que matou um lobo e um urso e um gigante filisteu? E hesitas em dizer uma palavra?

Eu estava na cama com Jónatas quando lhe disse que queria casar com a irmã.

- Não precisas de me dizer isso - retorquiu ele, e beijou-me. Garantiu-me que me ajudaria, mas disse-me o que eu sabia e que

receava ouvi-lo dizer: que Saul ficaria furioso porque os seus sentimentos para comigo eram tão complicados.

- Um dia ele diz-me que tenha cuidado contigo, que a tua ambição é desmedida e que me destruirás. Depois fala de ti com carinho, como se tu, e não eu, fosses o seu filho preferido.

- Sim - disse eu -, ele quer matar-me, mas choraria junto ao

meu cadáver.

- David - disse Jónatas -, não precisas de fingir comigo. Os sacerdotes dão com a língua nos dentes. Sei tudo sobre a visita que Samuel fez à casa de teu pai e o que então se passou.

- E Saul sabe?

- David, David, achas que, se ele soubesse, estarias aqui para fazer essa pergunta? Há coisas que as pessoas não ousam contar ao rei.

- Mas tu sabes e eu estou aqui.

Ele sorriu, e passou o dedo pela linha do meu maxilar.

- Digamos que eu não o consigo evitar - disse ele. - Por um lado, nunca estive muito impressionado com Samuel. Por outro lado, não sou capaz de te negar nada. Falarei com o meu pai.

- Mical - disse eu - sabe de nós.

- A minha irmã é muito esperta.

- Se não fosse - disse eu -, não estaria apaixonado por ela.

- Nesse caso, estás completamente - disse ele.

Foi assim que tudo começou. Jónatas ficou de convencer o pai. Nessa altura, tal não fazia sentido para mim, mas eu estava confiante de que ele faria o seu melhor. É estranho, não é? Quero eu dizer, porque o faria ele? Se o conseguisse, perder-me-ia. De fato, essa foi a última vez que fizemos amor. Ele não deixou de me amar, por vezes eu pensava que ele me amava mais do que nunca, mas... eu não compreendia, e, de certa forma, ainda não compreendo. Nunca amei ninguém assim, nem sequer Mical. Especialmente Mical, talvez. Tentei amar assim o Senhor - a Sua vontade, não a minha - mas não acho que tenha conseguido. Como Samuel, detesto dizer isto, mas, como Samuel, ao longo da maior parte da minha vida não tenho tido dificuldade em convencer-me de que a minha vontade é, por um golpe de grande sorte, a do Todo-Poderoso. E pode ter sido. Não posso ter a certeza de que não foi. Os êxitos que tive, os meus regressos das profundezas fizeram-me acreditar, no momento certo, de que sou, de fato, o Eleito do Senhor, e de que estou aqui para realizar a Sua vontade. Que só posso interpretar seguindo a minha própria vontade.

Agora, nas longas horas de vigília, tenho medo: de morrer, de não morrer. Ouço a leve respiração de Abisag, a sunamita, e quero espetar-lhe facas, porque ela estará viva quando eu já não estiver. E, contudo, grito por descanso.

Cheguei ao ponto de odiar toda a gente, é esse o problema. Exceto, estranhamente, Abisag, que, na verdade, me traz algum conforto. Quero espetar-lhe facas só porque é ela que está aqui. Em vez disso, passo a mão ressequida pelos seus flancos morenos e finjo que a ternura que ela demonstra para comigo vem do coração.

Mas não vem. Não poderia vir.

Nas longas horas de vigília, erguem-se acusações como fantasmas vingativos. Só Jónatas não tem nada de que me acusar porque fui tão sincero com ele quanto o pode ser alguém com a minha natureza reservada.

Houve uma noite em que, ao regressarmos de uma incursão contra os filisteus, o triunfo da vitória se esvaiu de nós, para ser substituído por uma vergonha que nenhum de nós conseguia explicar. Tínhamos morto cerca de uma dúzia de infiéis, e conhecido a alegria ao revistar os seus cadáveres. No entanto, nesse serão, Jónatas disse, num murmúrio, para que só eu pudesse ouvir:

- Mas eles eram homens, sabes, iguais a nós.

  • Foi bom que ele tivesse falado num sussurro; Joab, por exemplo, teria considerado as suas palavras como um gênero de traição. Mas eu compreendia-o, e apertei-lhe a mão fria na noite húmida.

Eu não estava bem. Doía-me o corpo, devido à dor de cabeça e à febre, conseqüências ou irmãs consangüíneas de um forte ataque de disenteria que me afetara na nossa marcha e me deixara fraco e queixoso. Como sempre, esta doença que aflige soldados em movimento deixou-me cansado e abatido.

Nessa altura, irrompeu uma desavença entre os homens. A nossa patrulha - pois pouco mais era do que isso - era composta quase em partes iguais por homens de Jónatas e pelas tropas de infantaria ligeira que eu treinara. A causa da desavença não se chegou a determinar. Ouviu-se um guincho, um grito de raiva, e em seguida soluços. Corremos a investigar, as entranhas a doerem-me com a rapidez do movimento. Alguém acendeu uma lanterna. Vimos então Neemias, um dos sargentos de Jónatas, com o pescoço cortado. Um dos meus homens, A/.arel, estava ao lado, com uma faca ensangüentada na mão, a culpa manifesta, e uma expressão de desorientação no rosto, como se a faca tivesse agido de modo próprio, sem intenção. Não havia outro remédio. A cabeça doía-me da febre e eu mal podia pensar. Joab, avançando, deu a ordem. O infeliz Azarei foi entregue às tropas de Jónatas. O irmão de Neemias tirou-lhe a faca da mão criminosa e encostou-lhe a ponta ao pescoço. Eu fechei os olhos. Jónatas interveio:

- Assim não - disse ele. O que queria ele dizer com aquilo? Isto não é uma rixa sangrenta - acrescentou. - Não se deve permitir que se torne nisso. Azarei deve ser julgado formalmente.

- É a Lei de Moisés - gritou o irmão de Neemias. - Olho por olho, sangue por sangue.

- Não assim - repetiu Jónatas. - David - disse ele -, és o seu comandante...

Eu tinha a boca seca, clamando por vomitar. O horror ergueu-se à minha frente. Eu de bom grado me teria atirado ao chão e chorado. Mas havia olhos fixos em mim. Falei, e a minha voz era de cana rachada. Disse a Azarei que tinha de morrer, mas às mãos do seu próprio comandante. Tirei ao irmão ofendido a faca com a qual Azarei tinha morto Neemias e, com a mão a tremer, sob a Lua pálida, cravei-a no pescoço de Azarei. O sangue dele esguichou sobre mim. Ele caiu de joelhos, cuspindo mais sangue. Ajoelhei a seu lado. Azarei morria aos poucos. Coloquei os braços em volta dele, fazendo com que caísse ainda mais rapidamente, e cobri-lhe a cabeça com o meu manto. Tirei a faca e voltei a espetá-la e aninhei-o nos meus braços, à medida que o seu sangue corria sobre a areia em direção às rochas.

Pela manhã, os homens olhavam-me com pesada hostilidade. Disse-lhes que cavassem uma sepultura para Azarei.

Foi Joab que me trouxe a notícia dos rumores que circulavam sobre mim.

Quando ele abordou o assunto, fiquei com medo, pensando que os relatos se pudessem referir às minhas relações com Jónatas: «uma abominação» aos olhos dos sacerdotes, embora para muitos deles falar assim fosse hipocrisia. Mas não; era o meu desejo por Mical que se tornara falatório na corte; igualmente condenado como presunção.

- Alguém - disse Joab - contará ao rei, e aí...

Reconheci medo nos seus olhos; ele perguntava-se se se poderia separar do meu destino, ou se era identificado como estando demasiado próximo de mim.

- Por que motivo se oporia o rei Saul? - disse eu. - Ele é rei, mas antes de o ser, nasceu tão humilde quanto eu, ainda mais, de fato, pois Jessé é mais rico em rebanhos do que Quis alguma vez o foi com os seus miseráveis jumentos tresmalhados...

Eu falava sem refletir, mas fazia-o para estimular Joab e forçá-lo a declarar-se a favor ou contra. Mas Joab era astuto, e atacou sob outro aspecto.

- Também correm rumores - disse ele -, relacionados com a visita que Samuel fez à casa de teu pai.

- E acreditas neles?

- Estou aqui - disse ele -, e falei com os teus irmãos.

- Nesse caso, não tenho nada a recear. Sabes o que Samuel fez, sabes que ele me nomeou o Eleito do Senhor, e me ungiu com óleo santo. O desígnio do Senhor poderá ser evitado? O que tem o Eleito do Senhor a temer de Saul, a quem o Senhor dos Exércitos rejeitou?

Eu falava assim para ligar Joab a mim, mas não sentia a confiança que expressava. Certamente que havia momentos em que me acreditava inviolável, um ser colocado à parte para cumprir o desígnio do Senhor; mas também havia alturas em que me parecia não ser mais do que o instrumento do rancor de um velho.

Foi pouco depois disto que, tal como tínhamos combinado, Jónatas falou ao pai no assunto do meu casamento. Sem dúvida que escolheu o momento cuidadosamente, quando Saul se encontrava numa das suas agora raras disposições de claridade e euforia. De qualquer forma, ele extraiu-lhe uma promessa, embora Saul também tenha estabelecido uma condição: eu podia casar com Mical, se trouxesse ao rei os prepúcios de uma centena de filisteus. Naturalmente que isso eu cumpri. Joab murmurou entredentes que Saul certamente esperara que eu fosse morto durante a realização da tarefa; mas eu não acredito. Eu adquirira, afinal, uma considerável fama como matador de filisteus, e, na verdade, regressei com quase o dobro do número de prepúcios solicitados. O nosso casamento e a minha primeira ambição foram, assim, alcançados.

Mical ainda me visita em sonhos, ou na dormência que é tudo a que tenho direito agora; mas é-me difícil escrever sobre ela. Há uma certa pena que vem junto. Ela desejava-me, como eu a ela; e, contudo, ao fazermos amor, experimentei uma distância entre nós que nunca conheci com outra mulher. Era como se uma parte dela permanecesse de fora, observando-nos, e empenhada em avaliar. Mesmo em momentos de paixão culminante, quando as pernas dela se encontravam enroladas em volta de mim, e balançávamos em comum ardor, eu sentia este afastamento, esta recusa em entregar-me todo o seu ser. E, no entanto, ela afirmava o amor dela quando estávamos deitados, banhados em suor, e derramava muitas vezes lágrimas que, assegurava-me ela em suaves murmúrios, eram de alegria. A sua pele era macia como pétalas de rosa e os seus beijos doces como mel. Eu conheci o prazer infinito, e, contudo, a minha ânsia nunca estava satisfeita.

Saul caiu de novo numa cisma, depois numa profunda melancolia, depois num pesado silêncio, depois num aspecto assustador e zangado, depois no desespero tornado mais terrível pela iminência da violência. Abner implorou-me que voltasse a cantar para ele, que repetisse a magia que eu usara anteriormente.

Hesitei.

Quando vim ter com Saul, anteriormente, pensei eu, eu era um rapaz desconhecido, com uma voz bonita. Ele não sabia nada de mim e eu poderia ter sido um espírito enviado pelo Senhor para o auxiliar. Essa experiência não pode repetir-se. Ninguém pode tomar banho duas vezes no mesmo rio, pois o rio mudou, e a primeira água correu para o mar. Agora Saul conhece-me bem, e os seus sentimentos em relação a mim são confusos. Um dia ele é rico em palavras de amor; no dia seguinte fixa-me com um olhar de repugnância.

Mas consultei Jónatas e Mical, e embora ela de início não respondesse, Jónatas implorou-me que fizesse uma tentativa.

- Não há outros bardos em Israel, para que tu tenhas de rebaixar-te?

Senti o seu desprezo, mas, sentindo-o, vi que era a vontade do Senhor que eu me humilhasse e cantasse para Saul.

O rei estava encolhido ao canto de um quarto escuro, mais terrível do que na primeira ocasião, porque agora eu conhecia-o e podia aprofundar melhor a natureza da possessão maligna na qual ele se encontrava. Atirou-me um olhar em que, mesmo na obscuridade, eu li ódio e malevolência; e os dedos esfregavam-se uns nos outros, em carne viva e a sangrarem, a pele já gasta. ,.;

De início eu cantei em voz baixa - uma canção de embalar como as que as mães usam para acalmarem os filhos. Em seguida entoei uma velha balada que encantara Saul quando estava sentado a festejar, pois falava da glória da sua coragem na aurora brilhante de Israel. Cantei u elogiá-lo e ele nem se mexeu. Então, lembrando-me da minha anterior tentativa, irrompi a louvar o Senhor, meu pastor. As pálpebras do rei moveram-se, e, quando cheguei ao verso que conta a viagem da alma através do escuro vale da morte, ele, vacilante, pôs-se em pé. Por um momento, assim ficou, vacilante, como se a compreensão despontasse nele, e nesse momento acreditei que eu estava a realizar a mesma magia de antes. Mas então ele cambaleou em direção a um canto do quarto, onde havia lanças encostadas à parede - mais tarde fiquei a saber que ele desafiara todas as tentativas de as retirarem de lá. Pegou numa, e levou o braço atrás. Eu saltei para o lado, à medida que a lança atingia a parede atrás de mim, e aí ficou pendurada, a vibrar, enquanto eu deslizava por debaixo das cortinas em busca de segurança.

- Quer dizer que não conseguiste - disse Mical.

- Não consegui. Ele sabia que era eu, e quis matar-me. É verdade, não consegui.

Abraçamo-nos na angústia comum, e então foi como se o conhecimento da minha falta de êxito tivesse quebrado o dique da reserva dela, pois entregou-se-me completamente; e o nosso medo e a nossa desdita traduziram-se numa felicidade como nenhum de nós alguma vez conhecera.

A nossa alegria era ainda mais intensa porque eu sabia que não podia durar. Talvez Mical também sentisse isso, embora não dissesse nada a esse respeito. Fazia parte da sua maneira de ser manter o silêncio. Só quando estava zangada é que dizia o que pensava. Não acreditando na sorte, ela sentia que a felicidade era algo a esconder, com medo de que lha roubassem. Pelo menos é o que eu penso agora; naquela altura eu ficava confuso e inquieto com a sua reticência. Ela tinha a capacidade de me fazer sempre sentir que lhe falhara. Até nessa noite, depois de Saul ter atentado contra a minha vida, quando ela se virou "para dormir, a minha mão a repousar entre as suas coxas, ela parecia estar a fugir de mim, que, um momento antes, tivera a ilusão de a possuir inteiramente.

De manhã, levantei-me apreensivo. Estava a toda a hora à espera que um guarda me viesse prender. Quando me aventurei a sair, vi medo nos olhos dos homens. Espalhara-se a notícia do ataque do rei à minha pessoa; quando me olhavam, não sabiam se deviam saudar o chefe que os filisteus receavam, ou desviar os olhos de um miserável que o rei condenara.

Só Jónatas continuava o mesmo.

Continuava o mesmo porque não compreendia.

- Meu caro rapaz - disse ele -, o meu pobre pai não estava no seu juízo perfeito. É tudo o que há a dizer. Quando ele recuperar...

- Se recuperar...

- Até recuperar não pode dar qualquer ordem que não passe primeiro por Abner ou por mim próprio, e ambos te amamos. Quando ele recuperar, arrepender-se-á deste ato, que, em seu juízo perfeito, ele condenará, tal como eu o condeno.

Eu desejava poder partilhar da sua confiança. Em vez disso, argumentei com ele. Disse-lhe que a loucura de Saul era agora diferente, mais entranhada. Disse que o medo e o ressentimento que Saul sentia em relação a mim tinham-lhe corroído a natureza; que nunca poderia voltar a amar-me; que me via agora como o instrumento da vingança de Samuel.

- Não quero fugir para o exílio - disse eu. - Não quero abandonar Mical. Não quero ser um fora-da-lei. Mas...

Deixamos aquele «mas» a pairar no ar. Jónatas comprometeu-se a tentar reparar a situação. Eu não pensava que tal fosse possível, e despedi-me.

- Aconteça o que acontecer - disse Jónatas -, nada nos poderá separar. Eu cuidarei de ti e dos teus, tal como tu cuidarás de mim e dos meus.

- Aconteça o que acontecer - respondi eu; e abraçamo-nos.

No entanto, demorei-me. Não conseguia fazer-me aceitar o que sabia ser verdade: que tudo aquilo por que eu lutara estava prestes a ser-me tirado. Eu estava com medo, também, com medo de regressar à solidão que eu conhecera quando era menino. Implorei a Mical que se preparasse para me acompanhar. Ela respondeu que o seu amor era grande, mas que não podia ver-se como uma fugitiva num deserto.

- Muito bem - disse eu -, ficarei aqui e morrerei. A idéia de te perder é pior do que a idéia de perder a vida.

- Retórica - disse ela. - Se perderes a vida, perder-me-ás na mesma.

Saul lutou e conseguiu sair da escuridão em que se encontrava. Notou a minha ausência da sua mesa. Jónatas disse-lhe que eu fora a Belém para assistir a uma festa familiar e para participar num sacrifício. Por um momento - disseram-me - Saul não disse nada, limitou-se a enrolar o pão entre os dedos em ferida. Em seguida praguejou contra Jónatas, chamando-lhe louco, canalha e traidor.

- David enfeitiçou-te - gritou ele. - Colocas o desejo pelo teu catamito acima da lealdade para com o teu pai. , . *

Jónatas ficou sem palavras. Até Abner hesitou em Interpor-se entre O rei e a sua raiva.

- O rapaz tem de morrer - disse Saul.

- Ele não fez nada para merecer a morte - protestou Jónatas. Pelo menos é o que se conta; eu não sei. Gostaria de acreditar que ele falou em minha defesa, mas Saul era terrível na sua raiva, e até Jónatas pode não ter ousado opor-se-lhe.

Saul enviou guardas a Belém para que me prendessem. Eu deixei Mical e fugi, embrenhando-me na noite. Chorei quando nos separamos, mas ela insistiu para que me apressasse.

De uma caverna nas rochas nuas, vi a aurora romper, e esquadrinhei a planície à procura de sinais de perseguição. Rezei ao Senhor, apelando-Lhe para que se lembrasse da minha fidelidade e de que eu nunca servira outro deus, de que a minha fé jamais vacilara nos dias da minha prosperidade, e de que eu confiava Nele apesar da minha aflição. E em seguida adormeci.

Quando acordei, o Sol beijava a caverna. Fiz deslizar as mãos ao longo das coxas, comprimi-as uma contra a outra, e ansiei por Mical. O meu desejo era intenso, mas quando passou, encontrei alívio na minha solidão. O Sol subiu ao seu zênite, queimando a terra castanha e tostando as rochas. Olhei a vasta planície vazia. Um falcão pairava por cima da minha cabeça, mas não havia qualquer som que quebrasse o silêncio do meio-dia. Invadiu-me a sensação de uma paz duradoura à medida que o mundo transbordava da luz essencial da glória do Senhor.

Descansei as costas contra a rocha quente e esperei. O falcão desceu subitamente, mas voltou a subir, as garras vazias, tendo falhado a presa. Eu observava-o a pairar na calma virgem daquele dia sem vento. Levei o odre aos lábios e bebi um pouco de vinho e de água; em seguida voltei a adormecer.

Quase ao final da tarde, desci a encosta da montanha, os pés a escorregarem no cascalho. Durante o dia eu deixara a minha mente de pousio; a ação, sempre acreditei, não é determinada da melhor forma pelo pensamento. Eu movia-me com um leve cuidado ao longo da pequena linha de junção do sopé das montanhas, até que, virando para um lado, vi luz no vale por baixo. E então voltei a fazer uma pausa, e esperei, até que o manto da noite caísse e as tochas se extinguissem. Por baixo de mim, tanto quanto eu sabia, encontrava-se Nob, uma povoação de sacerdotes, governada por Aimélec, neto de Eli, mestre de Samuel. Eu conhecia-o como alguém que ficara ao lado de Samuel contra Saul; no entanto, não ousei confessar que eu próprio fugia do rei, com receio de que Aimélec ou alguns dos outros sacerdotes pudessem aproveitar a oportunidade para encontrar favor junto do rei, prendendo-me. Mais do que isso, eu suspeitava de que o medo poderia impedi-los de ajudarem alguém que o rei condenara.

Foi o próprio Aimélec que avançou para mim, e, quando ouviu quem eu era, mostrou sinais de alarme. Disse-lhe que estava envolvido numa missão secreta em nome de Saul, e que era imperativo que ninguém soubesse da minha visita. Ele lançou-me um olhar de dúvida, e eu vi que o intrigava o fato de eu ter chegado sozinho e sem ser anunciado. Disse-lhe que combinara encontrar-me com os meus homens num local secreto ali perto, e viera à procura de mantimentos.

- Não temos pão ordinário, só pão consagrado - disse Aimélec.

- Dá-me então cinco pães da semana passada - disse eu.

- Tu e os teus homens estais puros ou impuros? É que, como sabes, o pão da proposição só pode ser dado àqueles que se tenham guardado de mulheres.

- Na verdade - disse eu -, há três dias que nos temos guardado de mulheres.

Então Aimélec, embora ainda nervoso, ordenou que fossem buscar o pão, e isso foi feito por um homem que eu conhecia, Doeg, um edomita, um indivíduo com aspecto de vilão, um pouco estrábico, que servira antigamente na casa de Saul.

Acondicionei o pão no saco, que trazia às costas, e parti. Aimélec estava desejoso de me ver partir, e eu não desejava demorar-me.

- O rei - disse eu - ficar-te-á agradecido pela ajuda que me deste. - E, com isto, desapareci na noite.

Agora, finalmente, admitia para mim próprio para onde ia. Muitas vezes me tenho perguntado sobre as partidas que a mente nos prega, e sobre a minha falta de vontade até de mencionar a mim próprio meu refúgio destinado, enquanto não tenha obtido sustento para uns dias. Será que eu receava que de alguma forma me traísse perante os sacerdotes, e que eles então me trairiam perante o rei? não sei, mas suponho que alguma coisa desse tipo me reprimia.

Numa campanha contra os filisteus, eu passara através de um vale estreito não muito distante do vale de Elah, e ficara impressionado com a estranha formação da terra. Naquele vale, através do qual corria um riacho até de Verão, havia uma colina rochosa e íngreme, uma fortaleza isolada separada da cordilheira central das montanhas de Judá. Próximo do cume havia uma série de cavernas profundas, e até naquela altura me pareceu que o Senhor fizera daquele local uma fortaleza segura. Chamava-se Adullam, e, em marchas noturnas, era por lá que eu seguia.

Adullam era um local com inúmeras vantagens, incluindo as próprias vantagens naturais. Situava-se para lá da terra que Saul controlava e vigiava, e, contudo, não fazia parte do território dos filisteus. Resumindo, situava-se em terra-de-ninguém, em terra de malfeitores, já que os únicos habitantes daquela região, com exceção de alguns pastores, eram homens arruinados e sem lei que não reconheciam qualquer senhor e que viviam das incursões que faziam aos seus pacíficos, mas ainda assim distantes vizinhos. Pensei que naquele lugar poderia encontrar um refúgio e que daqueles homens faria o meu próprio grupo de guerreiros.

Mas primeiro era necessário chamar a mim aqueles em quem sabia que podia confiar. Era perigoso fazer a tentativa; não havia futuro a não ser que eu o fizesse. Durante alguns dias estive indeciso, a pensar na forma de consegui-lo. Não ousava ir eu próprio, pois sabia que a casa de meu pai estava a ser vigiada pelos agentes de Saul. Então, regressando ao meu refúgio após uma saída para caçar, deparei com um pastor que dava de beber ao rebanho no riacho. Observei-o por detrás de uma rocha. Tinha dois rapazes com ele. Desci vagarosamente a montanha e saudei-o. Ele pareceu imediatamente ansioso. Um cão-pastor rosnou. Felicitei o homem pelo cão atento e pelo rebanho.

- O que tens com isso? - perguntou ele.

- Nada, amigo, mas percebo de ovelhas.

Os olhos dele estavam fixos na pequena espada que eu trazia pendurada ao cinto. Tirei umas moedas de prata da minha bolsa e fi-las tinir.

- Procuro - disse eu - um homem que me leve uma mensagem. Talvez o teu filho mais velho o faça.

O rapaz franziu o sobrolho. Eu voltei a fazer tinir as moedas de prata.

- Eu faria com que valesse a pena - disse eu.

O rapaz mais novo puxou pela manga do pai e sussurrou-lhe qualquer coisa ao ouvido. O homem olhou-me atentamente.

- Eu podia ganhar mais - disse ele.

O rapaz mais novo abanou a cabeça, como que para negar que aquele fora o conteúdo do que sussurrara. Coloquei a mão sobre os copos da minha espada.

- Podias - disse eu. - Ou talvez não. A distância é longa daqui até ao rei, mas o primeiro passo seria o mais perigoso.

- Sim - disse o pastor -, o que sei de ti é que és um homem sanguinário. O rapaz irá se o preço for justo.

Atirei-lhe algumas moedas.

- O mesmo - disse eu - quando ele voltar. Ele deve ir a Belém, procurar a casa de Jessé, meu pai, e perguntar pelo meu irmão Chama. Deve, então, dizer a Chama onde eu me encontro e que ele deve vir ter comigo com o maior número de homens que conseguir reunir. Olhei o rapaz no rosto. - Se me enganares - disse eu -, que o Senhor tenha misericórdia da tua alma, pois as tuas mãos estarão manchadas do sangue do teu irmão e do teu pai. - Fiz sinal ao rapaz mais novo. - Tu vens comigo. Traz um dos cordeiros do teu pai.

Teria eu agido de outra forma se o rapaz, Laís, não fosse belo? Provavelmente não, pois era prudente levá-lo como refém, mas, ao primeiro olhar que lhe lancei, reparei nos olhos escuros, nos lábios carnudos e nas pernas direitas e fortes que a sua túnica curta revelava. Havia já sete dias que eu estava sozinho. Sentia saudades de Mical, e sempre detestei praticar o pecado de Onan. Nessa noite deitei-me com ele depois de termos comido. Ele entregou-se a mim com um desejo igual ao meu.

- Tenho sonhado contigo, meu Senhor David - disse ele -, desde que ouvi pela primeira vez contar como mataste Golias - e as nossas línguas dançavam juntas à medida que nos entrelaçávamos um no Outro. - Quando o meu irmão regressar - disse ele -, eu ficarei contigo. - soltou um riso abafado. - O meu irmão fá-lo com as ovelhas - disse ele.

- A maior parte dos rapazes que são pastores faz isso - murmurei eu -, mas eu nunca me importei comigo, e... - empurrei para trás o cabelo emaranhado que lhe encobria o rosto e beijei-o. Ele voltou a rir:

- Eu preferia fazer de ovelha do que de carneiro - disse ele, e virou-se nos meus braços, empurrando as nádegas contra mim. Mais tarde, eu disse:

- Mas não faltará muito para preferires o papel do carneiro, Laís. Es ainda um menino. Quando os meus amigos vierem, farei de ti meu escudeiro.

Passados três dias, perto do final da tarde, Chama chegou com meia-dúzia de homens. Dei ao irmão de Laís o que lhe prometera e mandei-o embora com um aviso do que lhe poderia acontecer se ele revelasse o nosso paradeiro. Ele parecia tão sombrio como antes, e perguntei-me se não teria sido mais sensato da minha parte tê-lo despachado. Penso que Laís não se teria oposto, e via que alguns dos meus novos companheiros pensavam que eu fora imprudente ao confiar no seu silêncio. Mas sempre preferi não derramar sangue, a não ser que tal seja imperativo. O Senhor ama aqueles que são misericordiosos.

Chama disse-me que deixara mensagens e instruções a outros amigos, e que esperava receber reforços em breve. Eu confiara que ele assim faria, pois sabia que a nossa posição continuava perigosa até eu reunir uma força suficientemente grande que me permitisse fazer mais do que esconder-me nas cavernas - por mais agradável que, noutros aspectos, Laís tornasse a minha estada ali.

Passado pouco tempo, os homens prometidos começaram a chegar. Os filhos da minha meia-irmã Seruia -Joab, Abisai e Asael - encontravam-se entre os primeiros que se juntaram a mim. Recebi Joab com uma mistura de sentimentos. Por um lado, nunca foi fácil lidar com ele. Independentemente dos serviços que ele me prestou, nunca consegui ultrapassar a sensação de repulsa que ele me inspirava. Por outro lado, era prova da minha reputação o fato de que um homem tão capaz e ambicioso tivesse trocado o serviço de Saul pelo meu. No entanto havia nele um ar perturbado e, ao mesmo tempo, perturbador. Ele era agora cruel ao denunciar Saul e toda a sua família, e até dizia que desejava tê-los morto a todos antes de ter vindo juntar-se a mim.

Era característico de Joab o fato de não demorar a dizer-me que Saul já dera Mical a outro homem como esposa, o fato de sugerir que ela não fora contrariada, e o fato de que ele tinha um prazer malicioso em ser o portador de tais notícias. Era também característico o fato de, após tê-lo feito, ter olhado Laís e ter dito:

- Mas vejo que a notícia tem menos probabilidades de te magoar do que eu pensava.

Os irmãos dele tinham um caráter diferente. Abisai era calmo e totalmente de confiança; Asael era vivo, corajoso, belo e cheio de alegria.

O nosso pequeno grupo crescia em número e coloquei Joab a treiná-lo. Apesar dos seus defeitos, nunca lhe neguei capacidade militar, e sabia que ele compreendia o que eu queria dos meus homens e que os prepararia de acordo com os meus objetivos.

Um dia, ao fim da tarde, quando os cozinheiros estavam a preparar o jantar, a sentinela gritou o aviso de que estava alguém a chegar. O homem que subia a montanha estava exausto, tendo caído por duas ou três vezes e pondo-se em pé com dificuldade. Enviei Laís e Asael para o ajudarem, e, quando o trouxeram à minha presença, o que restava das suas roupas vermelhas revelava que era sacerdote.

De início, ele nem conseguia falar, mas, depois de lhe terem dado sopa e vinho, ele recobrou ânimo suficiente para estar mais consciente do lugar em que se encontrava. Ao ver-me, caiu aos meus pés e, quando eu o levantei, disse que era Abiatar, filho de Aimélec, sacerdote de Nob, e «o último da casa de Eli». A história que ele contou, numa voz entrecortada de freqüentes soluços e muitos suspiros, era terrível.

Saul, disse ele, reunira o conselho alguns dias após a minha fuga. Sentou-se debaixo de uma tamargueira em Rama, com uma lança na mão, e amaldiçoou os seus conselheiros pela sua falta de êxito em prenderem-me. Acusou-os de conspirarem contra ele, e de estarem coniventes com Jónatas, que o traíra e se aliara a mim.

- Não há um homem - gritou ele - que seja leal e me ajude a encontrar o meu inimigo?

Nesse momento Doeg, o edomita, avançou e ajoelhou-se perante o rei. Contou-lhe sobre a visita que eu fizera a Nob e que Aimélec me dera mantimentos.

Assim, Saul mandou buscar Aimélec e os outros sacerdotes de Nob e acusou-os de ajudarem o seu inimigo. Aimélec protestou que, tanto quanto sabia, eu era um servo leal ao rei, e que acreditara que, ao ajudar-me, estava a ir de encontro aos desejos do rei. Como é que ele saberia que o marido da filha do rei e assassino de Golias se tornara inimigo de Saul? A sua defesa enfureceu Saul ainda mais, tanto mais que, suponho eu, as suas palavras eram tão evidentemente verdadeiras que, por isso, não tinham resposta. Gritando que não argumentaria com um traidor, Saul ordenou aos seus servos que o matassem. Nenhum homem se moveu, até que Doeg, o edomita, avançou e, puxando por uma espada, atingiu Aimélec no pescoço. Quando este caiu, Doeg cortou-lhe a cabeça, e em seguida virou-se para os outros sacerdotes, que estavam demasiado aterrorizados para se mexerem. Este era o sinal para um massacre geral. Segundo Abiatar, foram mortos mais de oitenta sacerdotes; e ele próprio só escapou porque fingiu estar morto e fugiu, rastejando, quando a noite caiu.

Esta história comoveu-nos a todos profundamente.

Abracei Abiatar e disse:

- Uma grande parte da culpa é minha: eu soube, quando vi Doeg, o edomita, que ele contaria a Saul sobre a minha visita, e, embora não pudesse prever que Saul se vingaria de forma tão terrível daquilo que o teu pai fizera em toda a sua inocência, mesmo assim, fui eu a causa da morte de toda a tua casa. Suplico, por isso, que fiques comigo, e prometo que te manterei em segurança.

Contudo, enquanto estava deitado sob as estrelas, com Laís a dormir a meu lado, eu não podia fazer outra coisa senão refletir sobre os misteriosos desígnios do Senhor, que asseguram que do mal vem o bem: é que ninguém que se encontrasse agora ao meu serviço poderia ter qualquer dúvida sobre qual seria o seu destino se caísse nas mãos de Saul. Assim, parecia-me, a violência e a crueldade do rei tinham-me prestado um serviço, prendendo os meus homens firmemente à minha causa.

A pequena cidade de Queila - uma povoação israelita a cerca de uma hora de marcha das nossas cavernas - estava a ser cercada por uma força filisteia. Resolvi que devíamos libertá-la e fazer dela a nossa base. Era claro para mim que, se queria estar à frente de algo mais do que um grupo de homens fora-da-lei, teria de estabelecer a minha reputação como um chefe capaz de ter êxito onde Saul falhava, e de proteger os nossos conterrâneos do terror dos filisteus. Tão-pouco podia eu esquecer que era o sucessor ungido de Saul. O rei virara-se contra mim por esse motivo, recompensando a minha lealdade com a perseguição. Empurrara-me para o deserto, mas eu faria do deserto o meu ponto de partida e não o meu destino.

- Podemos - disse eu aos meus oficiais - estabelecer um principado nosso, um estado de fronteira, independente de Saul e seguro em relação aos filisteus.

A minha determinação não foi bem recebida. Isso surpreendeu-me. Se os meus seguidores não estavam preparados para tal aventura, porque é que, perguntava eu, se tinham juntado a mim?

Seria simplesmente para atuarem como salteadores e lacaios?

Para seu crédito, Joab, nunca demonstrando falta de inteligência, mas, por vezes, falta de discernimento, viu a força do meu argumento; e onde Joab ia à frente, outros, que reconheciam a sua calma mas que receavam a minha audácia, embora a admirassem, estavam prontos a segui-lo. Aborrecia-me que Joab e eu estivéssemos tão íntima e necessariamente unidos; mas eu reconhecia o valor do laço que nos unia.

Atacamos o acampamento filisteu ao amanhecer. Observei muitas vezes que aqueles que cercam uma cidade se encontram em condições precárias ou vulneráveis, a não ser que o seu comandante tenha tanto a inteligência como os recursos para se proteger de uma força libertadora. Ao comandante filisteu, de cujo nome me esqueci, faltava pelo menos a inteligência. As suas forças estavam concentradas junto às muralhas de Queila, e parece que não lhe ocorreu guardar a retaguarda. Desbaratamos o seu exército antes do nascer do Sol. Houve pouca resistência e não perdemos um único homem. As portas de Queila abriram-se-nos, e fomos recebidos como heróis e libertadores. A gratidão dos habitantes da cidade sobreviveu até ao ataque que os meus homens fizeram às adegas. Reuni os anciãos e informei-os de que dali para a frente se encontravam sob a minha proteção; e que estavam dispensados da lealdade para com Saul, que os abandonara aos lobos filisteus, e que agora deviam considerar-me seu senhor. Convidei-os a oferecerem donativos que satisfizessem as necessidades dos meus soldados; e eles não recusaram.

Eu dava valor ao meu pequeno triunfo por outra razão: ele lembrava aos filisteus que eu era um homem a ter em consideração. É claro que eu sabia que havia poucas hipóteses de me encontrar em breve em posição de me defrontar com o exército filisteu em condições de igualdade; mas isso não me preocupava. Eu via, embora o escondesse até dos meus oficiais, que poderia chegar a altura em que eu precisasse de fazer concessões amigáveis aos filisteus, se o objetivo de Saul em relação a mim permanecesse inalterável; e parecia bom que através desta pequena aventura independente eu me tivesse mostrado formidável.

Entretanto enviei uma mensagem a Saul, na qual declarava que o sofrimento de Israel forçara as minhas ações, e que eu seguraria Queila para proteger a fronteira. Havia talvez uma insolência implícita nesta declaração, que era provável que enfurecesse o rei. Novamente, eu julgava que o efeito moral da minha expressão de confiança não me prejudicaria entre aqueles que, no exército de Saul, estavam conscientes dos seus poderes em declínio, e que ficaram também consternados com minha expulsão e com a desonra de Jónatas.

A minha satisfação foi de pouca dura. Queila era um sítio pequeno. Não era fácil acomodar os meus homens, que, após a estada no deserto, não eram, confesso, os convidados mais agradáveis para os habitantes da cidade, cuja gratidão inicial depressa foi substituída por resmungos entredentes. As relações entre eles e o meu exército deterioraram-se. O administrador de Queila, que viu a sua importância diminuída pela minha presença, verificou-se obstrutivo. Para lhe ensinar melhores maneiras, e para impressionar o povo com a minha severidade, destituí-o do seu posto e coloquei-o sob prisão domiciliária. Joab era todo a favor de o mandar açoitar, ainda mais quando soube que o administrador declarara que éramos homens imorais e ímpios: David cometia abominação com Laís, e Joab com El-Hanan, filho de Dodo, de Belém. Eu era solidário com a raiva de Joab, mas, acreditando que açoitar o administrador iria irritar os habitantes da cidade, recusei concordar com isso. Contentei-me em levar a mulher do administrador para o meu leito, certificando-me de que ele soubesse que eu o fizera.

Este incidente, contudo, fez-me refletir. Era natural, é claro, que. enquanto vivêssemos como homens à margem da lei - seiscentos homens sem mulheres - houvesse vários de nós culpados daquilo que os sacerdotes consideram uma ofensa contra o Senhor; homens, especialmente soldados, devem encontrar alívio, e, se estão privados de mulheres, vão buscá-lo onde ele existe. De qualquer maneira, eu não acreditava que a minha ligação a Laís fosse imoral. Contudo, não me enganei ao supor que os rumores sobre as nossas relações não prejudicariam a minha reputação, por mais natural que os meus homens os achassem. Os meus sentimentos pelo rapaz eram de ternura e amor, assim como de desejo; no entanto, mesmo quando o tinha nos braços, sob o céu noturno, eu tinha saudades de Mical, pois o homem que gozou o amor de mulheres, não pode encontrar nunca verdadeira satisfação num rapaz. O ato pode ser de prazer intenso, e, no entanto, há nele futilidade, pois existe apenas por si só e para si só. A mulher do administrador era gorda, mais velha do que eu, inexperiente na arte do amor, e passiva nos meus braços como carne morta. Mesmo assim, ela deu-me o que o meu pobre e encantador Laís não me poderia nunca dar.

Chegou a notícia de que Saul marchava contra Queila; e era óbvio que a sua chegada seria bem-vinda pelos habitantes da cidade, cujo ressentimento contra a nossa presença e exigências estava já a fazê-los esquecer que eu os libertara das mãos dos filisteus. Joab era a favor de segurar a pequena cidade e desafiar Saul; mas era duvidoso que o pudéssemos fazer, a não ser que os homens de Queila estivessem ao nosso lado. E eu não acreditava que eles estivessem. Para persuadir Joab disso, mandei Abiatar, como sacerdote, ler o oráculo, para que pudéssemos conhecer a palavra do Senhor. À minha pergunta, se os homens de Queila estariam a meu lado ou me entregariam antes a Saul, a resposta foi inequívoca. Assim, preparamo-nos para partir, pegando primeiro fogo aos telhados das casas para dar aos ingratos uma lição de boas maneiras.

Retiramo-nos para o Sul, para Hebron, para fora do alcance de Saul, onde nos sustentávamos cobrando tributo aos agricultores cujas terras nós, em troca, protegíamos de saqueadores.

O principal proprietário da zona era um homem chamado Nabal, rico em rebanhos de ovelhas e cabras. Por altura da tosquia, nós guardamos os seus homens através de Carmel, e, quando a tosquia terminou, enviei a Nabal um destacamento dos meus homens. Asael chefiava a delegação, sendo o que melhor falava e o mais apresentável dos meus oficiais. Dei-lhe instruções para que falasse com Nabal de forma educada e diplomática. Devia contar-lhe como tínhamos guardado a tosquia dos seus rebanhos e assegurado que decorresse sem perturbações; Nabal devia ter reparado que não perdeu nem uma única ovelha ou onça de lã. O cuidado com que as tínhamos guardado devia agora ser recompensado.

- Não há necessidade - disse eu a Asael - de proferir qualquer ameaça, mas não fará mal se o informares de quantos somos, e lembra-o das minhas façanhas, e diz-lhe também que gênero de homem sou.

Contudo, Nabal era louco, e enfureceu-se. «Quem era esse David?», gritou ele. Um fugitivo do seu rei? Não era melhor do que um reles fora-da-lei, segundo o que ele ouvira dizer. Que David saiba que ele, Nabal, nunca pagara qualquer proteção a nenhum salteador e não iria começar a fazê-lo agora.

Asael regressou com esta mensagem insolente. Naturalmente, eu coloquei a minha resposta em movimento. Não tinha alternativa, se queria manter o respeito dos meus homens, e nessa noite marchamos em direção às terras de Nabal.

Não íamos longe, no entanto, quando os meus batedores relataram que uma caravana avançava para nós.

Pensando que talvez Nabal tivesse, muito sensatamente, mudado de opinião, dei ordem para pararmos, enquanto, prudentemente, dava igualmente ordem a Joab que preparasse os homens para combater. A caravana aproximou-se, e uma figura separou-se do grupo e avançou para nós, sozinha. Havia luar, e o emissário ainda se encontrava a alguma distância, quando vi que se tratava de uma mulher. Deixei-a aproximar-se de nós, muito à frente da caravana, antes que me mexesse para a saudar. Quando o fiz, ela ajoelhou.

Em seguida levantou a cabeça e falou, perguntando primeiro se estava a dirigir-se a David, o futuro rei de Israel. Era Abigaíl, disse ela, esposa de Nabal, e trouxera-me os presentes que o marido me negara. Implorou-me que o perdoasse pela sua loucura, que ela teria evitado, se tivesse estado presente quando os meus homens se dirigiram a ele.

- Recebe o que te trago como oferta de paz - disse ela -, para que não haja qualquer rixa sangrenta entre a poderosa casa de Nabal e o meu Senhor David.

É claro que eu não tinha qualquer desejo de derramar sangue desnecessário, e mandei avançar os meus homens para que trouxessem os jumentos em que ela carregava os seus presentes. Achando-os satisfatórios, enviei-a para casa com a certeza de que tinha evitado o derramamento de sangue e, ao ganhar a minha gratidão e amizade, preservara o marido das conseqüências da sua própria estupidez e maus modos.

Mesmo assim, enviei uma escolta de cinqüenta homens com ela, para assegurar que ela não sofresse a raiva de Nabal, que eu tinha a certeza que as ações dela teriam provocado.

Abigaíl, de olhos orvalhados da excitação de ter traído o marido, estava apreensiva em relação à raiva dele. Ao regressar, encontrou-o tão ébrio a ponto de não estar consciente. Pela manhã, quando ele, crapuloso, estava deitado, ela contou-lhe o que fizera. Ele extravasou a sua raiva e bateu-lhe. Ela gritou, alertando os meus homens. Eles empurraram para o lado o guarda que se encontrava junto à porta do quarto, e, encontrando Nabal de pé em cima da mulher que estava no chão, a tremer, calaram o louco. Penso que não foi o golpe que o matou, pois ainda se arrastou alguns dias antes de morrer. Sem dúvida que foi a vontade do Senhor que fez com que ele sofresse pela sua falta de senso. Abigaíl assegurou-me que ele tivera um ataque de apoplexia.

Quando eu soube da morte de Nabal, mandei imediatamente buscar Abigaíl para fazer dela minha mulher. Ela concordou sem hesitar, e veio ter comigo com algumas das suas servas. Foi de uma destas, chamada Aínoam, uma menina sorridente de olhos pretos e travessos, que nasceu o meu primeiro filho, nove meses depois. Dei-lhe o nome de Amnon.

Entreguei Laís a Asael, que havia muito o admirava, e que também casou com uma das servas de Abigaíl.

A situação do meu pequeno exército era ainda arriscada. Permanecemos na terra rude a sul de Hebron, e vivíamos da necessária extorsão dos agricultores de lá, que, no entanto, beneficiavam de proteção contra malfeitores que nós lhes fornecíamos. Contudo, sendo os agricultores por natureza ingratos, a nossa presença não era bem-vinda; e, na verdade, havia alturas em que eu lamentava o peso que nós lhes impúnhamos. Mas as coisas não poderiam ter sido de outra forma. Éramos demasiado fracos para desafiarmos Saul em campo aberto, o que, de qualquer maneira, eu estava relutante em fazer, devido ao respeito que ainda sentia por ele e também por causa do meu amor duradouro por Jónatas. No entanto, aborrecia-me ser obrigado a viver assim. O tempo estava a passar, e eu, que fora durante tão breve e esplendidamente um dos Grandes de Israel, via a minha ambição a estagnar, o meu gênio sem emprego satisfatório. As canções que eu cantava ao Senhor eram melancolia nestes meses desertos. Mais do que isso, alguns dos meus homens sentiam-se oprimidos pela aparente futilidade do nosso modo de vida. Joab resmungava por causa da nossa inação, e isso perturbava-me; o seu descontentamento podia verificar-se contagioso, e eu sabia que a sua lealdade nunca foi mais do que provisória.

Chegou a notícia de que Saul marchava contra nós, com um grande exército. Alguns diziam que eram cinco mil, outros dez mil. Não tínhamos meio de saber qual das estimativas estava correta; mas era certo que a força do rei superava largamente a nossa, e que não podíamos esperar defrontá-la em campo aberto. De qualquer maneira, eu não desejava arrastar Israel para a guerra civil nem para uma luta fratricida. Apesar da impaciência de Joab, eu estava contente por esperar a minha hora.

Aproximava-se o fim do Verão. As colheitas tinham sido feitas, e extraímos mantimentos suficientes aos relutantes agricultores. Eu sabia que não era provável que Saul mantivesse a campanha pelo Inverno dentro, pois mesmo que a sua força igualasse apenas a estimativa mais inferior, ele não teria meios de a agüentar no campo quando chegassem as chuvas de Outono e o tempo frio se instalasse. Além disso, eu tinha razões para acreditar que Saul já não era capaz de manter uma campanha longa. Aqueles que me traziam informações secretas, intermitentemente, do acampamento do rei, todos me asseguravam que Saul sofria um declínio tanto mental como físico. Alguns diziam que ele todas as noites recolhia ébrio ao seu leito; se assim era, eu sentia pena dele, pois acredito que ele bebia para afastar ou dominar os demônios que o atormentavam. Outros diziam que ele caíra no hábito de consultar bruxas e necromantes, abjetos patifes que fingem um conhecimento do futuro que nenhum homem ou mulher pode possuir; pois o futuro só é conhecido do Senhor, que guarda de nós os Seus segredos pelos Seus inescrutáveis desígnios. Pelo menos é o que crem os sacerdotes; pela minha parte, acredito que o Senhor deixa a vontade do homem livre e apenas intervém para guiar os contornos mais latos do nosso destino. Ponderei muitas vezes tais assuntos naqueles anos que passei no deserto, e desde então não encontrei motivo para alterar a minha opinião. O conhecimento que o homem tem de si próprio e dos seus condicionalismos não tem maior alcance do que a luz de uma pequena vela num grande átrio.

A minha estratégia de resposta à perseguição de Saul era retirar-me antes de ele chegar, retirar-me para o deserto de Zif e para as altas montanhas onde os meus homens, agora acostumados a uma vida dura, estariam em vantagem numa escaramuça que fosse forçada contra nós. Mas eu estava confiante de que podíamos evitar uma batalha e de que o exército de Saul depressa se cansaria da vã perseguição de um inimigo que parecia tão pouco real como uma sombra. A minha estratégia foi coroada de êxito. Encontrávamo-nos muitas vezes a poucos quilômetros de distância de Saul sem que ele se apercebesse da nossa presença. Alguns dos meus homens ansiavam por uma batalha, mas a maior parte apreciava o jogo que eu estava a jogar.

Ora aconteceu que, certa noite, no intervalo entre a Lua cheia e a nova, Saul estava acampado a meia hora de marcha do nosso próprio local de refúgio, ignorando, no entanto, quão próximo se encontrava da sua presa pretendida. À medida que fazia a ronda pelos nossos postos avançados, fui dominado pelo impulso de lembrar ao rei que tipo de homem eu era. Assim o disse a Abisai, irmão de Joab e que era o chefe da vigia noturno, e apontei para o tremeluzir das fogueiras do acampamento do rei no vale por baixo de nós. Abisai era um homem sem imaginação, mas de absoluta fidelidade e confiança, tão pronto para me seguir e confiar em mim como os cães-pastores que eu costumava treinar na minha infância.

Assim, dando apenas uma breve palavra aos postos avançados, descemos a encosta a coberto do escuro da noite, sem usar qualquer luz, mas confiando na consciência de que a nossa experiência de vida de fugitivos fizera a nossa segunda natureza. Saul, sofrendo de excesso de confiança, ou simplesmente devido aos seus poderes em declínio, colocara no posto de vigia uma sentinela inadequada, e nós deslizamos sem dificuldade por entre o cordão exterior do seu acampamento. O excesso de confiança deve ter sido a razão, como vim a concluir mais tarde, pois Abner estava com o rei, e, como estratego experiente e hábil que era, teria certamente assegurado que a guarda fosse posicionada de forma mais concentrada, se não tivesse sido vítima de uma inteligência defeituosa.

No entanto, mesmo enquanto escrevo estas palavras, a dúvida surge-me; pois a verdade é que, por essa altura, como descobri mais tarde, o comportamento de Saul tornara-se tão irregular que nem sequer Abner ousava argumentar com ele nem corrigir sub-repticiamente, como estivera acostumado a fazer, eventuais disparates em que o rei pudesse incorrer. Saul chegara, de fato, a um triste estado, em que a sua raiva era facilmente estimulada contra qualquer pessoa que parecesse não estar de completo acordo com ele. A verdade é que, neste estádio, Saul já não se encontrava apto a ser nem rei nem general do exército; mas, uma vez que era ambas as coisas, Israel sofria.

Conhecíamos, é claro, a disposição do acampamento do rei, e, assim, Abisai e eu, uma vez no interior das linhas, movíamo-nos com a confiança e a liberdade de homens que tratavam naturalmente dos seus assuntos; tal comportamento não é, geralmente, colocado em questão, e a noite era demasiado escura para que alguém nos visse o rosto e nos reconhecesse. Seria exagero sugerir que, uma vez no interior das linhas, estávamos fora de perigo, pois o azar é sempre possível. Contudo, fizemos o que pudemos para eliminar o risco de que alguém pudesse parar e interrogar-nos quanto à determinação com que nos dirigíamos à tenda do rei.

Esse constituía um momento de perigo, pois era certo que a tenda estaria guardada por sentinelas. Mas uma grande e miraculosa calma pairava sobre tudo; era como se o exército real inteiro fosse apanhado num sono provocado por drogas. Não havia sentinelas; entrámos na tenda sem sermos abordados, e demos conosco de pé, junto ao corpo adormecido do rei, que estava deitado na sua enxerga, uma lamparina de azeite em cima de uma cadeira que se encontrava a seu lado, pois Saul experimentava agora todos os terrores da escuridão, e, como uma criança pequena, receava estar sem luz, caso acordasse antes do romper da manhã.

Tinha a lança estendida no chão a seu lado, num local onde facilmente lhe poderia chegar com a mão no momento em que acordasse. Mas a sua dormência era profunda. Estava deitado de costas, ressonando, e dele soltava-se um forte odor a vinho. Abisai colocou a mão na lança.

- David - sussurrou ele -, o Senhor entregou nas tuas mãos o teu inimigo.

Levantou a lança do chão e estendeu-ma.

- Mata-o com a sua própria lança. Depois fugimos daqui, e pensarão que ele foi morto por um dos seus próprios homens. Ninguém suspeita de que estamos aqui. Podemos sair daqui tão facilmente como entramos. Pensarão que alguém que estava farto da sua loucura e que já não confiasse nele para estar à frente de Israel pôs fim à sua vida. Então ou Jónatas, que é teu amigo, será rei, e tu serás restabelecido na posição que de direito te pertence, ou o povo lembrar-se-á de Samuel e chamar-te-á como o Ungido do Senhor.

Talvez ele não tivesse dito tudo isto. Talvez estes tenham sido apenas os pensamentos que lhe li no olhar. Talvez eu tenha atribuído ao pobre Abisai, calmo e desprovido de imaginação, os pensamentos que fluíam na minha própria cabeça.

Deixai-me ser honesto, como nunca fui das muitas vezes que tenho contado a história desta proeza - aborrecendo com isso os meus filhos, receio eu, até o meu amado Absalão, e certamente aquele frio e fastidioso Salomão, a quem a idéia de resvalar por uma encosta abaixo e entrar no acampamento do inimigo deve parecer impensável. Sempre fingi ter rejeitado imediatamente a sugestão de Abisai (ao contar a história coloquei na boca de Abisai as palavras que aqui escrevi para ele, tornando-as, por vezes, de fato mais fortes e mais coloridas). Sempre me apresentei como magnânimo, como alguém a quem a idéia de matar Saul fosse totalmente repugnante.

.„, Mas é claro que não foi assim. As histórias raramente são como gostamos de as contar. Peguei na lança que Abisai me estendia e senti-lhe o peso na minha mão. Perguntei-me, absurdamente, se seria a mesma lança que o próprio Saul me atirara enquanto eu cantava para ele, naquela vã tentativa de curar a sua loucura. Encostei-lhe a ponta à garganta e piquei-lhe a pele, fazendo surgir uma gota de sangue, que cresceu como uma cereja a amadurecer. Saul não se moveu no seu ébrio torpor; os seus roncos continuavam a repercutir-se, eu afastei a lança e segurei-a no ar, com ambas as mãos, sobre o seu ventre agitado. Houve um momento - ainda sinto a excitação - em que estive prestes a atacá-lo.

O que me impediu? O que foi, de fato? Quem me dera poder dizer que foi medo do Senhor que nos deu o mandamento: «Não matarás.» Quem me dera poder dizer isso, sem mentir. Pode ter sido por prudência. No meu juízo perfeito eu sabia que Saul estava agora lançado, demoniacamente empurrado, para um caminho, uma forma de vida, que devia levar ao desastre, pois toda a realidade que ele reconhecia existia agora apenas na sua mente perturbada. Posteriormente pensei que desisti por causa da minha própria posição como Ungido do Senhor, Se o rei de Israel fosse vítima de um assassino, qual seria a esperança do seu sucessor? Mas penso que não foi isso. Penso que poupei Saul porque naquele momento me veio à cabeça a imagem dele a avançar na minha direção quando pela primeira vez o curei da sua loucura, quando ele estendeu a mão e me tocou a face e eu senti os seus dedos quentes e a mão firme, à medida que ele dizia: «Estive longe e tu trouxeste-me de volta.»

Por isso eu disse a Abisai:

- Não.

Ele olhou-me sem compreender.

- Não - repeti. - Não posso fazê-lo.

- Nesse caso, dá-me a lança - disse ele - e eu acabarei com este assassino de sacerdotes.

- Não, Abisai - disse eu -, apaga aquela lamparina de azeite, e eu levarei a lança de Saul, e asseguro-te, embora não me compreendas agora, que teremos ganho uma vitória muito maior e um maior renome do que se tivéssemos de fato morto Saul.

Era, talvez, uma atitude pouco amável, sabendo eu, como sabia, do pavor que Saul tinha da escuridão, ter-lhe apagado e depois retirado a lamparina, mas eu não via por que motivo ele deveria escapar impune, e, de qualquer maneira, dormia tão profundamente que não achei provável que acordasse antes da luz do dia.

Pela manhã, quando o Sol tocou as montanhas com os seus dedos cor-de-rosa, eu avancei para uma saliência numa elevação da montanha que dava para o acampamento de Saul. Laís estava comigo, e soprou fortemente um como de carneiro para alertar aqueles que se encontravam no vale por baixo. Em seguida fechei as mãos em concha e, no silêncio claro do ar da montanha, gritei com quanta força tinha para chamar Abner. Passou algum tempo, e Laís voltou a soprar o como, uma nota trocista e provocadora, e então vi Abner avançar para a extremidade do acampamento. Levantei a voz e, usando a linguagem marcadamente retórica que é considerada adequada à comunicação formal entre personagens importantes, gritei:

- Não és um homem corajoso, Abner, e um digno defensor do rei Saul? Vai à tenda do rei e procura a lança que estava no chão junto à cama e a lamparina que velava por ele de noite. Vai, procura-as e pergunta para onde foram...

Nesse momento recuei, fazendo sinal a Laís para que fizesse o mesmo, com receio de que algum arqueiro destemido atirasse uma seta, pois, embora eu pense que nos encontrávamos fora do alcance de todos os arqueiros, se é que talvez não do mais forte deles, é sempre sensato tomar precauções. Mas eu estava, no entanto, consciente de uma grande correria e de uma grande agitação no acampamento por baixo, e não pude deixar de rir ao ver homens a correrem de um lado para o outro em pânico e confusão.

O acampamento mergulhou no silêncio, e vi homens a recuarem, como se envergonhados, e uma voz ergueu-se em direção às montanhas onde nos escondíamos, uma voz que tremia, incerta, mas que, mesmo assim, reconheci como a voz de Saul.

- És tu, David? - gritou ele. - És tu, David, meu filho?

E eu dei um passo em frente, entrando no campo de visão do rei, e tive a certeza de que Saul estava dominado pela vergonha e de que, de momento, eu estava seguro e que podia deixar que me vissem; e gritei um apelo:

- Sou eu, David, quem fala para Saul, meu Senhor e meu mestre, e olha, esta lança que tenho na mão é aquela que a noite passada fui buscar à tenda em que dormias. Toca o pescoço, meu rei e senhor, e sente o local em que te piquei quando te encontravas à minha mercê. Se eu desejasse fazer-te mal, nada a não ser a minha vontade e a misericórdia do Senhor me poderiam impedir. Isso não te prova que não sou teu inimigo? Porque é que, então, me persegues nas montanhas como a um animal selvagem?

Fez-se um longo silêncio. Saul estava sentado numa rocha e cobriu o rosto com as mãos como se se debatesse com os demônios que lutavam para o manter sob o seu poder. E o exército observava, imóvel, enquanto eu estava consciente dos meus próprios homens escondidos nos rochedos por cima, e senti que os ouvia a susterem a respiração, à medida que esperavam a resposta do rei.

Finalmente, o rei, vacilando, pôs-se de pé. Avançou, encostado a Abner, até se encontrar fora do acampamento e ao alcance dos meus arqueiros.

- Perdoa-me, David, meu filho - gritou ele. - Volta para mim, e juro que não tocarei num cabelo da tua cabeça, e que podes cumprir o teu destino.

Em seguida soluçou novamente e cambaleou, e teria caído, não fosse o apoio de Abner.

Acredito que ele foi sincero nesse momento, e que o amor que ele outrora sentira por mim surgira de novo no seu peito - e quem me dera ter confiado nele. Mas eu sabia que ele falava apenas sob a emoção do momento. Por isso gritei a Abner e disse-lhe que me enviasse um jovem, um dos seus oficiais, para vir buscar a lança do rei e «a lamparina de azeite», disse eu, «que guarda o rei dos terrores da noite enquanto as suas sentinelas dormem».

com o olho da minha mente, vi Abner corar de vergonha, embora, é claro, àquela distância eu não pudesse ver tal coisa. No entanto, conhecia-o suficientemente bem para compreender como ele se sentia, e uma parte de mim lamentava a humilhação a que eu o expusera.

Abner baixou a cabeça, e levou o rei dali, e, pouco depois, surgiu do acampamento um oficial, que subiu a montanha até mim. Reconheci-o como sendo Adonias, um amigo de Jónatas, e por isso, sabendo que nada tinha a recear, avancei para ele e abracei-o. Enviei Laís montanha acima para ir buscar vinho, e Adonias sentou-se a meu lado na saliência do rochedo que dava para o acampamento do rei. Perguntei por Jónatas e se ainda sofria de desonra.

- Saul nunca mais voltará a confiar nele - foi a resposta -, por tua causa, David.

Laís trouxe o vinho, e mandei-o embora.

- Diz a Jónatas - pedi eu - que me lembro das promessas que tocamos.

Adonias disse:

- Eu devia ter ciúmes de ti, David. Ninguém pode ocupar o teu lugar na vida de Jónatas. Ele tem amantes, é claro, mas ninguém pode ocupar o teu lugar.

- Eu era um rapaz - disse eu. - Agora sou um homem. Jónatas compreende isso.

- Sim - disse ele -, Jónatas compreende de mais, e a si próprio demasiado bem, para sua própria felicidade ou conforto.

Passei o odre a Adonias, e observei-o enquanto bebia. Era um jovem belo, com tristeza nos olhos.

- Havia uma mensagem para mim naquilo que disseste. Se o rei não pode confiar ou não confiará mesmo em Jónatas, então eu não posso confiar no que ele acabou de me dizer.

- Eu morreria por Jónatas - disse ele. - Posso ter de o fazer. O rei é como um vento que nunca sopra da mesma direção dois dias seguidos. Quando ele estava louco, David, e tu o curaste, era diferente. Eu era demasiado jovem para estar no acampamento nessa altura, mas ouvi falar nisso, e o próprio Jónatas me contou o que fizeste. A forma como a tua música e algo em ti afastaram os demônios da sua alma. Mas agora eles dominam-no com firmeza. São demônios astutos e permitem que ele tenha uma aparência de sanidade. Por vezes, certos dias. Mas, bem no fundo, Saul está tão louco como uma raposa astuta. Não confia em ninguém, nem sequer nos homens da sua própria tribo de Benjamim, nem sequer em Abner, que o ama. Saul encontra-se nas mãos de terrores que não compreende e até Abner o observa com horror. Sabes porque conseguiste entrar tão facilmente na tenda do rei ontem à noite? Porque as suas vozes lhe disseram que tivesse cuidado com os seus próprios guardas, e, por isso, ele dispensou-os. A chacina dos sacerdotes de Nob aflige-o. Ouvi-o dizer que está tão profundamente atolado em sangue que... não me lembro da continuação. Algo terrível, algo louco. Há dias em que só fala do velho Samuel e da maldição que o sacerdote lhe lançou, e depois diz, por vezes: «Uma vez que estou amaldiçoado, agora nada me pode ser proibido.» E em seguida inverte a frase e declara que, por causa da maldição, não é capaz de nada. Tudo, nada, para ele é a mesma coisa. Digo-te, David, se tivesses morto o rei quando ele estava deitado à tua mercê, e se tivesses então marchado abertamente sobre o acampamento e tivesses anunciado o que tinhas feito, até Abner se teria sentido aliviado pelo fato de o tormento de Saul e o medo que Saul inspira terem terminado.

- Eu sou o Ungido do Senhor - disse eu -, e a promessa que fiz a Jónatas de não causar mal à sua casa e à sua família deve incluir Saul.

-- Compreendes-te a ti próprio, David?

- Não, será que alguém se compreende a si próprio? Só o Senhor sabe ler os nossos corações.

Adonias abanou a cabeça. Bebeu mais algum vinho, devolveu-me o odre e estendeu as pernas ao Sol.

- Sabes o que Jónatas diz sobre ti? Que todos os homens te desejam, e todas as mulheres também. Ele diz que até mesmo se Saul não acreditasse na história de que Samuel te ungiu como o Eleito do Senhor, que ele sabe que é verdadeira, pois o testamento de Samuel foi descoberto após o assassinato dos sacerdotes de Nob, ele sentiria a mesma coisa que sente em relação a ti, que os seus sentimentos por ti são uma mistura de amor, inveja, medo e ódio. Mas Jónatas diz que é o próprio Saul que Saul receia e odeia. Foi um dia mau para Saul quando foi ter com Samuel à procura daqueles jumentos perdidos que pertenciam a seu pai, Quis. - E, em seguida, disse, abruptamente: Nunca me deitei com uma mulher. Deves achar estranho.

- Estranho, sim.

- E repreensível?

- Há um rapaz na minha companhia, o rapaz que nos trouxe o vinho, que sente o mesmo que tu, e é um dos lutadores mais corajosos entre os meus homens. Nós somos o que somos, Adonias. Jónatas é um bom homem. Eu sou o Eleito do Senhor, sim, a história sobre o velho Samuel e a unção é verdadeira, assim, se Samuel falou as palavras do Senhor, eu sou, de fato, o Seu Eleito; e, no entanto, eu não sou um bom homem como Jónatas é. Compreendes o que eu estou a dizer? A natureza do homem é misteriosa, complexa, torcida como uma oliveira velha. Apenas alguns homens raros, como Jónatas, crescem direitos como um pinheiro.

- Ele tem um filho deficiente - disse Adonias -, um rapaz estropiado chamado Mefiboset. Ele é tão dócil com ele. O menino não é como os outros, a sua mente divaga, mas Jónatas é tão dócil e carinhoso para com ele. Haverias de ver como ele o trata, como o segura nos braços. Gostaria de me juntar a ti, David, e partilhar o teu destino, mas não posso deixar Jónatas, embora receie que Saul nos conduza ao desastre.

-Jónatas - disse eu - tem sorte em te ter a ti. E agora deves regressar ao teu exército, senão Saul pensará que estamos a conspirar contra ele. Assegura a Jónatas que eu o amo como sempre amei e que o meu coração está com ele nas suas dificuldades.

Nessa altura ele levantou-se e abraçamo-nos, e as suas longas pestanas estavam úmidas das lágrimas.

- Espera - disse eu -, esqueceste-te da lança e da lamparina de Saul.

Ele pegou-lhes e disse:

- Saul estaria melhor e nós poderíamos estar todos mais seguros, se eu deixasse a lança contigo.

- Mesmo assim - respondi eu, e fiquei a vê-lo descer a montanha em direção ao exército e ao rei que ele receava.

Não voltei a vê-lo mais. Tombou ao lado de Jónatas, na fatídica batalha do monte Guilboa, sobre a qual escreverei em pormenor mais à frente. Mas aquela conversa ficou comigo, assim como a memória de um jovem generoso e infeliz, cujo nome escolhi para dar a um dos meus filhos.

É manhã. Abisag espreguiça o seu encanto que desperta, e boceja. «Oh, quem me dera voltar a ser jovem!», penso, enquanto egoistamente a chamo para me beijar. «Oh, quem me dera estar morto!...», penso, enquanto observo a sua beleza nua a caminho do banho. •>;

O período seguinte da minha vida é um período de que sempre preferi não falar. Contudo, a verdade é que não houve nada de que me envergonhe ao longo do caminho que percorri, pois tudo foi ditado pela necessidade. Há nações, tanto quanto sei, que reconhecem a Necessidade como uma deusa, e, no entanto, por força da minha educação e experiência, não reconheço qualquer deus senão o Senhor Deus dos Exércitos, o Deus de Israel, que me conduziu através do sombrio vale do medo e do perigo terrível para as terras altas e soalheiras - abençoado seja o Seu nome -, embora confesse que houve momentos em que senti a tentação de invejar aqueles povos que têm uma pletora de deuses e deusas, cada um a proteger uma determinada atividade ou parte da vida. Rezo para que o Senhor dos Exércitos me defenda de ceder a tal tentação, mas admito que, se o fizesse, a Necessidade seria uma deusa que eu reconheceria prontamente.

Felizmente não é preciso fazê-lo. Se a Necessidade não é uma deusa, a Necessidade é, mesmo assim, uma coisa, um fato, tão duro e rígido e doloroso como a rocha contra a qual podemos dar uma topada com um dedo do pé no escuro da noite. Ninguém, já o disse muitas vezes, serve para comandar um exército, se não reconhecer a Necessidade, assim como a primeira e a mais rara qualidade que se exige a um general é a coragem e a sabedoria de saber quando deve retirar.

Essa era agora a minha posição. Na minha conversa com aquele jovem infeliz, Adonias convencera-me de que o arrependimento de Saul do seu zelo a perseguir-me até à morte, não duraria muito. A perturbação do seu espírito colocá-lo-ia mais uma vez, e em breve, contra mim, pois eu sentia que, bem no fundo da sua mente atormentada, espreitava a suspeita de que, se me matasse, provaria, até para sua própria satisfação, que Samuel não falara as palavras do Senhor. Se eu, a quem Samuel ungira com óleo como sendo o sucessor de Saul, pudesse ser retirado de cena, deve, então, ter parecido a Saul, na sua confusão louca, que o fato de Samuel o ter rejeitado deixara de ser a expressão da vontade do Senhor, assim como o fato de Samuel me ter ungido também já não o era. Desta forma, eu não me conseguia convencer de que Saul não renovaria em breve a sua perseguição, e, à medida que as semanas passavam, e as dificuldades de manutenção da minha pequena força nas montanhas inóspitas de Judá aumentavam, eu receava que a próxima investida de Saul pudesse terminar menos bem para mim.

A necessidade obrigava-me a deslocar as nossas posições, e parecia-me que não tinha outra alternativa senão oferecer os meus serviços aos filisteus. Eu conhecera Aquis, rei de Gat, durante umas negociações enquanto ainda gozava do favor de Saul, e ele impressionara-me por ser um homem sincero, embora limitado, como eu disse a Joab, Abisai e Asael, que chamei para consultar em relação à situação difícil em que nos encontrávamos; um homem com quem eu podia negociar. Joab tinha dúvidas e levantou objeções, tal como eu esperava. Abisai ficou em silêncio; assuntos de política de alto nível ultrapassavam-no sempre; e eu incluíra-o na conferência apenas porque ele teria ficado ofendido se eu não o tivesse convidado, e porque, no fim, eu sabia que a confiança que ele depositava em mim o levaria a concluir que eu tinha razão. O perspicaz Asael viu logo a força do meu argumento. A rapidez da sua compreensão era a sua grande virtude, embora aliada a um ardor imaginativo que, por vezes, o conduzia a atos de imprudente impetuosidade. Joab, no entanto, bateu o pé e recusou ser persuadido.

- Eu sempre disse - opinou ele - que o único filisteu bom é o que está morto.

Abafei o aborrecimento que esta entoação característica de uma banalidade já gasta inspirou em mim. Joab sempre foi fértil nestas opiniões de frases feitas. Suponho que é mais fácil repetir este tipo de coisas do que pensar-se por si próprio.

-Joab - disse eu -, sabes em quão elevada consideração eu tenho a tua opinião, e, especialmente, quanto eu confio em ti em matéria de estratégia e táctica. A qualidade da tua força de luta é inteiramente resultado da tua capacidade a treinar homens. Sei o quanto trabalhaste arduamente e durante quantas longas horas, e sei que a minha posição seria, na verdade, desesperada, não fossem os teus esforços. É inteiramente compreensível que, ocupado como tens estado, não tenhas tido o tempo que a tua diligência me concedeu para considerar o aspecto mais lato da nossa situação. Mas a verdade é que estamos aqui encurralados entre as forças de Saul e as forças da Filisteia, por um lado, e as da necessidade, por outro lado; à medida que o Inverno se aproxima, os nossos dias aqui estão contados. Em breve chegará a altura em que não poderemos satisfazer as necessidades básicas dos nossos homens. Aí, alguns desertarão, e o teu trabalho terá sido perdido.

- Não tenho mais amor pelos filisteus do que tu. Acredita-me, há um único em quem eu confiaria, e se abro uma exceção para Aquis de Gat, é apenas porque já vi o suficiente para estar convencido de que ele não é o teu filisteu típico, mas um homem digno e decente. Mesmo assim, não ousaria aproximar-me dele a não ser por uma coisa: e essa coisa é aquilo que tu conseguiste ao fazeres dos nossos homens um exército tão formidável. Temos algo para lhe oferecer que nenhum rei rejeitará, e, ao mesmo tempo, uma força suficientemente bem treinada e disciplinada para o demover da traição, caso a avaliação que faço do seu caráter esteja errada. Mas a nossa opção, meu caro Joab, é clara: devemos confiar-nos, a nós próprios, e à segurança das nossas mulheres, filhos e entes queridos, ou a Aquis ou a Saul. Conheces Saul demasiado bem para crer que qualquer homem, já sem falar daqueles que o ofenderam como, principalmente, tu e eu fizemos, possa confiar nele no estado perturbado e atormentado em que se encontra. Assim, embora relutante, tenho de insistir para que concordes comigo em que, dos dois males, uma aproximação de Aquis é o menos perigoso.

Naturalmente que as palavras lisonjeiras que proferi surtiram o seu efeito. Joab, que sempre acreditou que lhe era atribuído menor valor do que realmente merecia, ficou, de momento, apaziguado. É claro que, por algum tempo, continuou a resmungar e a protestar, mas fê-lo apenas por uma questão de forma, para enfatizar a força da sua vontade e a independência do seu espírito, tendo, no entanto, ambas sido subvertidas pelas minhas palavras.

As negociações com Aquis foram tão fáceis e agradáveis quanto eu esperava. Aquis era um homem suficientemente inteligente para se aperceber de que a sua ligação ao meu pequeno exército bem treinado fortaleceria grandemente a sua própria posição na rivalidade, que era endêmica, entre os reis da Filisteia, sendo as divisões entre estes, graças ao Senhor, a salvação dos Filhos de Israel. A força e a continuada superioridade militar dos filisteus eram suficientes - apesar das reformas que eu iniciara no exército de Saul - para destruir totalmente os Filhos de Israel e subjugar o nosso povo, especialmente agora que Saul não era o que fora anteriormente; só a incapacidade dos filisteus de manterem a unidade e a harmonia entre si é que impediu que isso acontecesse - testemunho, como eu sempre soube, da superioridade do Senhor Deus de Israel sobre os ídolos que os filisteus adoram; porque, como eu escrevi, «a não ser que o Senhor guarde a cidade, a sentinela acorda em vão». Em momentos mais prosaicos, no entanto, reconheço que a discórdia entre os nossos inimigos, até mesmo entre os que pertencem à mesma raça, é uma grande ajuda para a proteção com que o Senhor dos Exércitos nos envolve.

A minha confiança justificava-se. Residia, estou inclinado a admitir, não só na certeza de que a inteligência de Aquis seria suficiente para o deixar aperceber-se do valor da força que eu lhe trazia, mas também na consciência que eu tinha da admiração que ele desenvolvera por mim no nosso encontro anterior.

Assim, foi com verdadeiro calor que ele me abraçou e com sinceridade que se declarou encantado por me ter juntado a ele. Além disso, acrescentou que nada o poderia gratificar mais do que a confiança que eu depositava nele.

- Temos lutado encarniçadamente um contra o outro, David, e aprendido, em batalha, a reconhecer as virtudes um do outro. Tendo sido os melhores inimigos, que possamos ser, a partir de hoje e para sempre, os melhores amigos.

Naturalmente que eu concordei com esta proposta e disse-lhe que a sua generosidade me enchia o coração de alegria.

Aquis deu um grande festim de boas-vindas, tendo ele próprio ficado sentimental e agradavelmente ébrio. Joab ficou sombrio e embrutecido pela embriaguez, mas, mesmo naquele estado, não deixou de estar alerta e desconfiado. Eu bebi com moderação, como sempre foi meu hábito, mas não permaneci tão ofensivamente sóbrio de forma a colocar em demasiada evidência a minha superioridade em relação aos meus companheiros. Além disso, tal como Joab, embora talvez por razões mais subtis, permaneci alerta. Eu sabia que havia entre os filisteus muitos chefes que tinham motivos para se sentirem ressentidos comigo, pois eu tirara-lhes filhos, irmãos ou pais, e, em algumas ocasiões, levei-lhes as filhas. Sabia também que entre eles havia aqueles que tinham inveja de Aquis e que não perderiam tempo a aproveitar a mínima oportunidade para o afastar. Realmente, neste ponto, a hostilidade de Joab para com os filisteus era justificada. São, por natureza, traiçoeiros, pois não há entre os seus deuses e deusas uma divindade que exija deles a verdade, como faz o Senhor Deus de Israel. E, por esta razão, pensam que não é desonra nenhuma faltarem à palavra dada, e não compreendem o conceito de lealdade. Aquis era uma exceção rara entre eles, e creio que a sua mãe era uma israelita que foi capturada da minha própria tribo de Judá, tendo sido escrava e concubina do pai do rei.

Não levou muito tempo que eu não me tivesse apercebido de murmúrios contra nós. Nesse ponto eu calculara mal, não tendo contado com o caráter mau e egoísta dos filisteus. Eu pensara que Aquis não seria o único a reconhecer o valor da minha presença à cabeça de um exército de seiscentos homens; mas qualquer reconhecimento desse tipo era impedido pelo ressentimento, e depressa me apercebi de que não só corríamos algum perigo, como a amizade que Aquis nutria por mim constituía uma ameaça à sua própria posição. Os filisteus não têm qualquer problema em assassinar um rei. De fato, é uma prática comum entre eles, por mais aberrante e vil que nós, israelitas, a consideremos.

Assim, abordei Aquis e sugeri que poderia ser vantajoso para ambos se ele me concedesse um posto independente, de preferência na fronteira com os amalecitas (inimigos tanto de Israel como da Filisteia), onde eu o podia servir de uma forma em que as probabilidades de irritar a sua nobreza e os seus capitães fossem menores.

Aquis, sendo, como eu disse, tão inteligente quanto reto, respondeu de imediato à força do meu argumento. Atribuiu-me o comando da pequena cidade de Ciclag, a meio dia de marcha de Gat, e perpetuamente ameaçada pelos amalecitas e pelas outras tribos hostis que habitavam a zona da fronteira sul. Tomei a meu cargo a proteção dos habitantes de Ciclag, lançando incursões punitivas contra os inimigos que os tinham atormentado durante tantos anos. Estas incursões serviam o objetivo duplo de manter a qualidade de luta do meu pequeno exército e de me tornarem estimado aos olhos dos cidadãos de Ciclag, a quem eu não só libertei do medo como também enriqueci através dos despojos de guerra. Eles depressa se tornaram apegados a

mim, a tal ponto, na verdade, que, quando finalmente me estabeleci como rei, primeiro de Judá, e depois de todo o Israel, eles continuaram a aceitar-me como seu senhor.

Uma vez que nunca pretendi que a minha estada entre os filisteus fosse duradoura, e nunca esqueci que era o Ungido do Senhor, era natural que me esforçasse por limitar as minhas incursões ao território daquelas tribos que há muito eram inimigas dos israelitas e dos filisteus. Se ocasionalmente eu também lançava incursões contra as cidades de Judá, era meramente porque julgava necessário fazê-lo para persuadir Aquis da minha lealdade sincera, e de que tinha de todo cortado os laços que me uniam ao meu próprio povo.

Mas depressa surgiu uma nova crise. Saul, vivendo raros momentos de lucidez, alcançara recentemente algum êxito nas escaramuças fronteiriças com os filisteus, enquanto Jónatas fizera uma incursão audaciosa e coroada de êxito contra algumas das suas cidades a norte. Isso despertou os filisteus e persuadiu-os a colocarem de lado as disputas entre os seus pequenos reinos e a unirem-se num grande exército empenhado em, como eles colocavam a questão, «exterminar a víbora que era Saul e toda a sua descendência».

Logicamente que Aquis me chamou, como seu vassalo, para que me juntasse ao exército filisteu, não sentindo qualquer hesitação em fazê-lo, porque acreditava que as incursões que eu fizera a Judá, e que lhe tinham sido relatadas, me tivessem separado completamente do meu próprio povo. Alguns dos meus homens, entre eles o nobre Asael, ficaram consternados perante a idéia de lutarem ao lado dos nossos inimigos tradicionais contra conterrâneos israelitas. Joab, no entanto, deu um murro na mesa e disse:

- É a oportunidade por que esperávamos. Aniquilamos Saul e a promessa de Samuel será cumprida. - E acrescentou, num jeito superficial: - Abençoado seja o nome do Senhor.

Eu compreendia Joab. Quando desertou de Saul para se juntar a mim, ficara decepcionado com o lento crescimento do nosso exército; pensara que David e Joab atraíssem mais dissidentes, e não imaginara que a nossa permanência no deserto fosse tão prolongada e perigosa. Resistira à minha proposta de que nos devíamos aliar a Aquis, em parte porque não gostava e não confiava nos filisteus, e em parte, simplesmente, porque era uma idéia nova; e Joab precisava sempre de tempo para se adaptar a idéias novas. Agora, embora não tivesse ultrapassado a repugnância que sentia pelos filisteus, reconciliara-se com a nossa opinião. O ódio que nutria por Saul e por toda a sua família - incluindo até o meu querido Jónatas - era tão intenso que acredito que ele teria achado bem-vinda uma aliança com Satanás, se isso assegurasse a destruição de Saul. Ele via agora chegar esse tão ansiado momento. E, no seu entusiasmo, não se apercebia das dificuldades que, para mim, eram evidentes. É claro que a derrota de Saul e, talvez, a sua morte em batalha deixariam livre o trono de Israel. Contudo, eu não podia estar confiante de que todas as tribos me aceitariam como o sucessor de Saul - embora eu lhes proclamasse que Samuel me ungira com óleo como o Eleito do Senhor - se eu tinha lutado no exército filisteu contra Saul e Israel. Era possível que Aquis me estabelecesse como rei-marioneta de Israel, e que, uma vez rei, eu pudesse, gradualmente, ser capaz de me libertar dos laços filisteus; mas mesmo essa não me parecia ser uma solução feliz. Não era assim que eu desejava tornar-me rei de Israel.

Rezei longas horas ao Senhor para que Ele guiasse os meus passos no caminho da justiça e assim me permitisse cumprir a promessa que eu Lhe fizera através da mediação de Samuel. Acalmei os medos e incertezas dos meus homens dizendo-lhes que confiassem no Senhor dos Exércitos, cuja mente homem algum poderia conhecer, mas cujo objetivo era fixo e que guiava as nossas saídas e entradas. Lembrei-os do sofrimento dos nossos antepassados quando vaguearam quarenta anos no deserto, após terem sido libertados do Egito. Observei igualmente a Aquis que, embora fosse seu vassalo e estivesse plenamente consciente da dívida de gratidão que tinha para com ele, eu cumpriria, naturalmente, de bom grado ou não, qualquer tarefa de que ele me incumbisse, mas não estava tão certo de que todos os seus conterrâneos ficassem felizes de me verem a marchar com eles contra o meu próprio povo. Aquis, disse eu, não tinha motivos para duvidar da minha lealdade para com ele; mas outros podiam pensar de maneira diferente.

- Abordo este assunto, meu caro Aquis - disse eu -, apenas como um aviso. Não gostaria que a minha presença no teu exército fosse razão para perturbar as tuas relações com os outros reis da Filisteia, ou até para os persuadir a depositarem menos do que toda a confiança em ti.

- David - respondeu ele, abraçando-me -, como sempre, falas como um homem digno. Mas a minha confiança em ti é absoluta, e assegurarei aos comandantes meus companheiros que é bem fundada.

Naturalmente que me confessei contente pela confiança que Aquis demonstrava para comigo. No entanto, eu esperava ter possivelmente feito surgir uma pequena dúvida na sua nobre mente.

As coisas aconteceram do acordo com o aviso que eu lhe fizera. Quando os outros reis filisteus souberam que eu ia marchar com eles, e que Aquis pretendia até dar-me o comando da ala direita do exército, explodiram de raiva. David, diziam eles, enganou Aquis; David enfeitiçou Aquis; David seduziu Aquis, David é o inimigo da Filisteia; a desavença entre Saul e David foi mero fingimento; David ainda está a trabalhar para Saul, que o enviou para as fileiras dos filisteus para que os traia quando a batalha estiver no seu auge; David, diziam alguns, deve ser condenado à morte como espião; mesmo que Aquis não concorde com isso, diziam eles, todos nós nos recusamos a marchar, se David e os seus homens fizerem parte do exército.

Aquis contou-me tudo isto. Estava irritado e envergonhado.

- Eu não podia imaginar - disse ele - que até o rei de Ascalon, que tem tanto de repugnante como de estúpido, pudesse descer tão baixo e acusar-me das abominações de que me acusa. Nunca lhe perdoarei, embora seja meu primo, e um dia terá a minha vingança, mas agora, David, para minha vergonha total, tenho de te pedir que deixes, tu e os teus homens, o exército, e que te retires para Ciclag, onde conquistaste tão grande êxito a defender a nossa fronteira sul, como convenceria, penso eu, qualquer pessoa com uma ínfima parte da tua virtude e lealdade. Perdoa-me, David, por este pedido, e fica na certeza de que ele não trai qualquer dúvida que me tenha surgido no espírito em relação à tua absoluta lealdade para comigo e virtude inata. Foi um discurso nobre e eu tive pouca dificuldade em responder de forma adequada. Pestanejei rapidamente por várias vezes para que as lágrimas começassem a jorrar, embora eu imagine que Aquis supôs que eu estava a tentar refreá-las.

Abracei-o e agradeci-lhe, numa voz embargada, a confiança em mim que ele tinha expressado, e assegurei-lhe que me lembraria da sua nobreza até ao dia da minha morte. Como, de fato, tenho feito. Além disso, consegui reprimir um sorriso até sair de perto dele.

Assim, estive ausente do último ato da tragédia de Saul. E o que sei dela, sei-o apenas pela mistura de rumores, boatos e especulação que compõe aquilo a que os homens chamam história, ou, por vezes, lenda.

Saul, nestes últimos dias, foi visitado, segundo parece, por uma nova e estranha perturbação do espírito. Já não sofria aquela aniquilação da mente que o fechava numa nuvem de noite; era mais como se se movimentasse, pesado e vacilante, através de um nevoeiro úmido e pegajoso, não vendo nada, não ouvindo nada, não compreendendo nada, e, no entanto, ainda em movimento.

Foi nesta estranha disposição que ele se escapou, assim que lhe chegou aos ouvidos a forma como os filisteus se uniam contra ele, para consultar uma mulher que se dizia possuir o poder, por arte necromântica, de chamar os mortos para que se revelassem aos vivos e falassem com eles. Nos seus tempos de apogeu, Saul promulgara leis que expulsavam do reino aqueles que afirmavam ter conhecimento de magia negra. Chamara-lhes mentirosos e charlatães que levavam os homens à maldade através de artimanhas que fingiam e conhecimento do que é proibido saber. A sua tentativa foi em vão, como tais esforços devem sempre ser. O desejo de certos homens de penetrar, ou de acreditar que penetraram, para além das realidades da rocha e da pastagem, da terra arada, do vento, da chuva e da mudança das estações, nunca pode ser erradicado.

Nos melhores homens, este desejo toma a forma de comunhão com o Todo-Poderoso em locais desertos; noutros, incapazes da humildade da alma que o Senhor exige, ele expressa-se de uma maneira que- promete certezas mais imediatas, ilusões e enganos, embora a realidade tenha de provar que assim é. Apenas o cultivo da virtude, através da comunhão com o Todo-Poderoso, pode salvar aquele que procura conhecimento a partir das sombras do engano. E contudo, mesmo ao escrever isto, sei que não é a verdade completa, que tem mais a ver, como eu aprendi, com provar a água da amargura; que se passa com o homem o mesmo que com a árvore: quanto mais ele procura elevar-se até à luz clara do conhecimento, tanto mais deve enterrar as raízes na terra, no escuro, no profundo, no mal. O insensato diz em seu coração: «Não há Deus»; mas aquele que procura conhecer Deus deve primeiro aprender de que mal é, ele próprio, capaz, que horrores se escondem dentro dele.

Assim, o pobre Saul, miserável farrapo de um homem e de um rei, passou fome um dia e uma noite, e aventurou-se a ir até Endor para consultar uma mulher que se vangloriava da sua capacidade de evocar os espíritos dos mortos para os interrogar. E ele assim fez, imagino, num estado de desprezo e repugnância por si próprio.

Ela penetrou facilmente no disfarce dele.

- Não é o rei que me suplica que evoque o espírito de Samuel? perguntou ela. - E não é este o mesmo rei que proclamou a perversidade de artes como a minha, e me teria mandado apedrejar até à morte ou expulsar de Israel?

E Saul deitou-se no chão em frente dela, e lambeu o pó.

Então ela riu, de vê-lo tão abjeto, e concordou em fazer como ele lhe pedia, pois nada inspira mais estes necromantes como o reconhecimento do seu poder por aqueles que, em seu juízo perfeito, o negariam.

Por que meios ela evocou a aparência do falecido sumo sacerdote, não sei. Mas é certo que aqueles que acompanharam Saul afirmaram mais tarde que a figura de Samuel se ergueu perante ele numa nuvem de nevoeiro vermelho.

Saul, ainda estendido na terra nua da cabana, derramou o desespero que lhe rasgava a alma. Gritou que o Senhor o abandonara no seu sofrimento e que era o mais miserável dos homens. Os filisteus tinham trazido um grande exército contra ele, e, quando ele procurou orientação junto do Senhor, ouviu apenas o vento no deserto. Por isso viera ter com Samuel para lhe implorar que intercedesse junto do Senhor em seu nome, pois só assim Israel poderia ser salvo.

Resumi o que me foi relatado como palavras incoerentes, mas acredito que foi esta a essência da prece triste e dolorosa de Saul.

Também não sei por que meios a mulher de Endor conseguiu a forma que evocara em resposta a Saul. Suponho que, como tantas outras pessoas do seu vil tipo, ela possuía a capacidade de colocar a voz de tal maneira que as palavras que pronunciava pareciam não vir dela mas de outro lugar, e dos lábios de outro ser ou daquilo que parecia

um ser.

As palavras que ela dirigiu a Samuel eram duras. Nisso, pelo menos, ela foi honesta, pois respondeu como eu tenho a certeza que o próprio Samuel, aquele homem severo e amargo, com uma memória longa e implacável, teria respondido. Saul - dizia a mensagem - fora colocado de lado pelo Senhor por causa da sua desobediência à palavra do Senhor, cuja vontade ele desafiara ao poupar os amalecitas. Por isso o Senhor rejeitara Saul e toda a sua casa, e, se Saul continuasse e entrasse na batalha, deveria ir sem esperança, pois já fora tudo dito. Saul estava condenado, e pereceria no monte Guilboa.

Nessa altura a visão esvaneceu-se e o rei chorou. A mulher deu-lhe pão e vinho e a carne de um vitelo gordo. Agradar-me-ia pensar que ela o fez por piedade de Saul, mas é mais provável que ela desejasse prolongar o seu triunfo e saborear a imagem do grande rei reduzido ao estado de uma criança desesperada que falava sem nexo. Seja como for, Saul comeu e bebeu, e foi-se embora, agradecendo à mulher de uma forma que continha vestígios da sua antiga majestade. Mas o seu semblante, dizem os homens, era vazio como a rocha que surge, a pique, das areias do deserto. E foi nesse espírito que ele avançou para a sua última batalha.

Quando me trouxeram a Ciclag a notícia da sua derrota e da morte de Jónatas e dos seus outros filhos, senti a sua agonia e o meu coração ficou desolado. Saul caíra sobre a sua própria espada para evitar, em primeiro lugar, ser capturado pelos filisteus e, depois, tornar-se motivo de chacota para eles. A notícia foi trazida por um jovem que fugiu do campo de batalha e que trazia consigo o diadema e o bracelete de Saul. Contou-me o que eu mais tarde descobri que não era verdade: que ele próprio matara Saul - que caíra, ferido - a pedido do próprio rei. Sorriu ao ajoelhar-se à minha frente, saudando-me como rei, e voltou a sorrir como se procurasse uma farta recompensa. Olhei-o com horror.

Vanglorias-te – disse eu – por teres morto o Ungido do Senhor. Olha bem para a luz do dia, jovem, pois não voltarás a vê-la.

Em seguida dei ordens para que o levassem da minha presença, e lhe tirassem os olhos, pois, disse eu, “ Que a escuridão seja daquele que enviou Saul para a noite eterna. Mas que viva – acrescentei –, para que venha a conhecer a dor da humilhação, e que suplique o seu pão àqueles que o conhecerão como vil. Desta forma, aquele que se vangloria de crueldade sentirá a dor de receber a misericórdia; e, enquanto viver, será para todos os homens uma lembrança perpétua de que o Senhor é justo “.

Ele gritava horrivelmente à medida que o ato estava a ser realizado. Quando ouvi os seus gritos, estremeci, e, em seguida, cancelei a minha primeira ordem,

e decretei que ele devia ficar perto de mim. Desta forma, disse para mim próprio, terei junto a mim um exemplo e um aviso das profundezas a que os homens podem cair. Ele ficou na minha casa durante sete anos, sofrendo o desdém de todos. Entreguei-o, então, aos sacerdotes, com a instrução de que lhe fosse concedida uma cela, e que o alimentassem a pão e água, juntamente com a oportunidade de fazer as pazes com o Todo-Poderoso. Pode ainda lá estar a viver. Não sei.

Nessa noite, nos meus aposentos, recordei Saul, tal como fora na sua força gloriosa. Recordei com uma dor ainda mais aguda o amor que Jónatas sentia por mim, e fiz um poema :

  

A Honra de Israel pereceu sobre as colinas !

Tombaram os heróis !

Não o conteis em Gat, nem o descrevais nas ruas de Ascalon,

Para que não se regozijem as filhas dos filisteus,

Nem saltem de alegria as filhas dos incircuncisos !

 

Montes de Guilboa, não caia sobre vós orvalho nem chuva,

Campos traiçoeiros,

Pois aí foi desonrado o escudo dos heróis.

O escudo de Saul não foi ungido com óleo,

Mas com o sangue dos feridos e a gordura dos guerreiros.

O arco de Jónatas não recuou jamais,

E a espada de Saul jamais deu golpe em vão.

 

Saul e Jónatas, amados e gloriosos, jamais se separaram,

Nem na vida nem na morte,

 

Mais velozes do que as águias,

Mais fortes do que os leões.

 

Filhas de Israel, chorai sobre Saul!

Ele vestia-vos de púrpura suntuosa ;

E ornava de ouro as vossas vestes.

 

Tombaram os heróis no campo de batalha!

Jónatas, morto sobre as tuas colinas!

 

Jónatas, meu irmão, que angústia sofro por ti!

Como eu te amava!

O teu amor era uma maravilha para mim

Mais excelente que o das mulheres.

 

Como tombaram os heróis e se destruíram as armas de guerra!

 

Depois de ter composto esta canção, senti um grande cansaço a invadir-me mas o meu desgosto foi atenuado, pois sabia que os honrara e que as minhas palavras lhes tinham dado toda a imortalidade que estava em meu poder atribuir. Então, uma vez que tinha a mente cheia da memória do amor que Jónatas sentira por mim, e eu por ele, e uma vez que não desejava a companhia de mulheres, mas receava a idéia da solidão, mandei chamar Laís.

Cantei-lhe a minha lamentação, e ele desatou a chorar.

Quando ele se recompôs, disse:

- Mas, David, Saul procurava-te para te matar, e agora cantas tão maravilhosamente a sua glória.

- Sim - disse eu -, achas que sou hipócrita, Laís?

- Se assim fosse, não teria chorado.

- Mas não compreendes?

Ele abanou a cabeça.

- Eu próprio não compreendo - respondi eu. - Fiz a canção que tinha de fazer. Não sei mais nada. Por vezes, Laís, penso que cada um de nós é duas pessoas, como Saul era. A cisão, a divisão da sua natureza era nele clara e indubitável. Mas existe em todos nós. Mesmo quando eu ordenei que cegassem aquele infeliz, eu estava a pensar que vantagem eu poderia retirar da morte de Saul e de Jónatas e do desastre que se abateu sobre Israel. Estava a considerar que efeito é que tudo isso teria na minha relação com Aquis. E, no entanto, quando me retirei para os meus aposentos, conheci apenas o desgosto, e fiz o que fiz. Nessa altura lamentei a sua perda. Mas nunca me permiti a ignomínia de o odiar, como ele me odiava a mim. Contudo, acredito que ele lutasse também contra esse ódio. Laís, a natureza do homem é complexa. Por mim próprio, tinha de fazer esta canção, para me preservar da corrupção ao honrar Saul.

- E Jónatas - disse Laís.

-Jónatas - disse eu, e tomei-o nos meus braços.

 

Livro Dois

 

Até Asael estava espantado e irritado por eu não me declarar agora o rei Ungido de Israel. Ele não ficou satisfeito com a explicação que lhe apresentei de que tinha aprendido uma coisa sobre a arte de governar: nunca tomar uma decisão enquanto não fosse essencial e não tivesse chegado o momento certo. Ele abanou a cabeça, incrédulo, quando eu disse que esperaria até que fosse chamado.

Joab, dizia ele, estava furioso. Joab também não podia compreender-me. Asael hesitou, e em seguida, numa torrente de palavras, disse que o seu irmão mais velho até se perguntava se eu teria perdido a coragem.

- Tempo e paciência - disse eu -, tempo e paciência.

Em vez disso, eu enviara felicitações discretas a Aquis pela sua vitória. Depois, secretamente, e sem lhe anunciar a minha intenção, retirei-me para Hebron, a principal cidade de Judá. Convém lembrar que, por esta altura, o reino de Israel estava cortado ao meio devido à continuada ocupação de Jerusalém pelos jebuseus. Assim, estabeleci-me nesta altura em Hebron e fui aceite como rei pelos homens de Judá, mas Abner, que era eternamente leal à casa de Saul, sendo primo do falecido rei, embora amistoso para comigo, colocou o último filho de Saul que sobrevivera, Isboset, como rei no lugar de Saul. Fê-lo, embora soubesse que Isboset era uma pobre criatura, lento de raciocínio e indolente, que não era um soldado mas um covarde que Saul mantivera afastado do exército para salvaguardar o seu próprio orgulho. Abner, na sua obstinada (mas louvável) devoção à memória de Saul, fez Ishoset rei, e eu honrei-o pela sua lealdade. Joab, com inveja da nobreza e do renome de Abner, argumentou que Abner pretendia, com o tempo, ver-se livre de Isboset e tornar-se, ele próprio, rei.

- Bem - disse eu -, sabes como eu confio na tua opinião, primo, mas temos de esperar para ver. Confia na vontade do Senhor. Abner também pertence à casa de Saul, que o Senhor privou do reino, pela boca de Samuel, da mesma forma que esse mesmo reino me foi prometido. Mas não o procurarei com derramamento de sangue. Fazê-lo seria um pecado grave. Não tenho qualquer desejo de derramar o sangue dos nossos conterrâneos israelitas. Como disse ao teu irmão, tempo e paciência resolverão as coisas a nosso favor.

Assim, enviei uma mensagem amigável a Abner e a Isboset, e sugeri que devíamos colaborar contra os filisteus. Não mencionei o assunto do rei, mas falei apenas como se fôssemos todos os três iguais.

Abner respondeu no mesmo tom, e propôs uma data e um local para um encontro. O lugar sugerido era Guibeon, que, ficando a cerca de oito quilômetros a oriente de Guibeá e a cerca de dez quilômetros a noroeste de Jerusalém, situava-se dentro do território que Isboset controlava, embora ineficazmente.

Eu concordei, e em seguida cometi um dos maiores erros da minha vida. Reconhecendo o perigo de ir eu próprio a tal lugar, mesmo com um guarda e mesmo confiando em Abner, pedi a Joab que chefiasse a nossa delegação.

- O próprio Isboset não estará lá - disse eu -, mas a delegação deles será chefiada por Abner, o segundo homem do reino deles. Por isso não é adequado que eu vá. É mais apropriado que tu, como segundo homem de Judá, fales com Abner, o que ambos farão como iguais. Porque tu, Joab, és para mim o mesmo que Abner é para Isboset.

Eu disse isto para agradar a Joab, demonstrando-lhe a minha confiança nele e a minha elevada consideração pelas suas capacidades. E resolvi não lhe revelar que estava à espera de uma cilada. Não suspeitava de Abner, mas, recordando o desdém de Jónatas pelo irmão Isboset, e recordando também o desprezo com que Mical falara dele, receei que ele pudesse, sem conhecimento de Abner, aproveitar a oportunidade para tratar do meu assassínio. Dessa forma ele afastaria do caminho o Ungido do Senhor, para assim mostrar ao seu povo que a maldição que Samuel lançara sobre a casa de Saul era coisa vã.

Tenho motivos, que só vim a conhecer mais tarde através do próprio Abner, para acreditar que as minhas suspeitas eram justificadas, e que me tinham montado tal armadilha, embora Abner estivesse inocente e não tivesse conhecimento de nada naquela altura. E, no entanto, censuro-me por não ter corrido o risco, e por ter permitido que a prudência me governasse.

Faço-o agora com conhecimento de causa do que se passou.

A conferência começou amigavelmente, assim me relataram, com Abner e Joab a recordarem batalhas passadas contra os filisteus, batalhas em que ambos tinham conquistado glória. Então Abner (aparentemente) sugeriu que alguns dos jovens de cada lado divertissem os mais velhos ao participarem numa guerra fictícia. E Joab concordou, observando - segundo me contaram - que veriam sem dúvida que os jovens tinham muito que aprender.

Foi Laís quem, banhado em lágrimas, me forneceu o mais fidedigno relato do que então se seguiu, sendo ele um dos jovens a quem Joab disse que se despisse para aquele jogo de guerra.

- Estávamos a lutar corpo a corpo - disse ele -, e então, de repente, eu vi que um dos jovens de Abner puxara por uma adaga e que se estava a preparar para apunhalar o seu adversário, que era El-Hanan. Gritei um aviso, mas demasiado tarde. A adaga deslizou entre as costelas de El-Hanan, que soltou um forte grito, e o seu corpo desfaleceu na mão do outro. Foi horrível, David. Num momento, uma brincadeira, e, no momento seguinte, uma carnificina. Porque, é claro, quando viu o que estava a acontecer, Joab gritou que fomos traídos, e sacou da sua própria espada, e todos aqueles que tinham estado a conversar e a beber vinho como velhos companheiros estavam agora filados às gargantas uns dos outros. Não posso culpar Joab, pois sabemos que ele amava El-Hanan, e, no entanto, creio que se ele tivesse agido de outra maneira, o próprio Abner teria despachado o assassínio...

À medida que ele falava, recordei aquela noite no deserto, quando Azarei matou Neemias, sargento de Jónatas, numa briga, e eu, agindo como juiz e carrasco ao mesmo tempo, evitei uma rixa sangrenta ao...

- Continua - disse eu a Laís -, mas sê breve.

- Não poderia ter sido propositado - disse o rapaz -, pois nem Abner nem nenhum dos seus homens estava preparado para uma batalha, enquanto Joab nos avisara com antecedência para não tirarmos os olhos das nossas armas, caso fôssemos ameaçados por uma conspiração traiçoeira. Por isso depressa os colocamos em fuga, até Abner, que apenas teve tempo para agarrar uma lança antes de se encaminhar para as montanhas. E Asael foi atrás dele... e não regressou... Estava já

escuro quando encontramos o seu corpo, com uma ferida provocada por um único golpe de lança. Em seguida espiamos Abner e os seus homens, à medida que a Lua se levantava, a salvo daqueles que perseguíamos e que se encontravam no cimo de uma colina. E Abner gritou cá para baixo, para Joab: «Até quando irá a espada ceifar vidas? Até quando os israelitas matarão israelitas?» Laís chorava.

- Eu amava Asael - disse ele em voz baixa e entrecortada -, e fui eu que o trouxe. Sepultamo-lo no túmulo da família, em Belém, e aqui estamos nós, David. Abner pode não ter tido outra alternativa, mas Joab jamais lhe perdoará.

A mim, Joab disse apenas:

- Agora também eu aprendo a praticar a paciência.

Eu pregava paciência, praticava paciência, reconhecia a necessidade de ter paciência; e, mesmo assim, cansava-me dessa virtude.

- Quanto tempo, Ó Senhor - rezava eu -, quanto tempo ainda para que o Teu servo entre no reino que lhe foi prometido?

Eu também praticava diplomacia. Essa pode ser uma atividade cativante. Contudo, descrevê-la é cansativo. Ouvir um relato de manobras diplomáticas é insuportável. Embora, em Hebron, eu me esforçasse por governar bem, por ser amado e - mais importante ainda respeitado pelos meus súbditos, eu estava consciente de que os anos estavam a passar, e de que eu estava a envelhecer sem a oportunidade de me realizar. A impaciência de Joab aborrecia-me. Desde que Abner matara Asael, Joab era sempre mais taciturno e menos de confiança. Eu receava o assalto de um espírito das trevas que o envolvesse e o destruísse como o espírito maligno aniquilara o pobre Saul.

Eu tinha poucos consolos. Cartas ocasionais do sensato Aitofel, conselheiro de Saul e agora do filho, secretamente entregues, asseguravam-me que a governação do infeliz Isboset era cada vez menos aceitável para os Filhos de Israel. E, contudo, Abner continuava obstinadamente leal e não havia qualquer sinal de revolta. Aitofel também aconselhava paciência.

Para aliviar o meu aborrecimento, que eu receava que me levasse a cometer algum ato imprudente, tomei várias esposas em Hebron. Agora, na velhice, para além do ato de fazer amor, é-me doloroso tentar lembrá-las. E, na verdade, o nome de várias já se me escapou da memória em declínio. Havia uma, no entanto, que me trouxe um prazer especial, e cuja imagem ainda me aparece em sonhos. Por que motivo isso acontece, confunde-me, pois desse casamento surgiu a mais intensa mistura de amor, medo, ódio, dor e autocensura. E raiva.

O nome dela era Maaca. Era filha de Talmai, rei de Guessur, um miserável principado a noroeste do mar da Galileia. Era uma rapariga árabe, trigueira, de olhos da forma e da cor das azeitonas escuras, e membros que podiam ultrapassar o cabrito-montês na corrida. Tinha o caráter feroz como um cão selvagem. E deu-me dois filhos: Absalão, o meu filho mais amado, e Tamar, a mais bela das minhas filhas.

E terei mais a relatar sobre eles - em grande parte para me consolar -, se o Senhor desejar que eu seja obrigado a fazê-lo.

Então, finalmente, irrompeu a discórdia no reino do Norte, que eu há tanto esperava. Isboset, para compor a sua loucura, zangou-se com Abner, aparentemente porque Abner se apoderara de uma rapariga que fora em tempos concubina de Saul, e que ele próprio desejava. A verdadeira causa era mais profunda. Apesar da sua incapacidade, Isboset estava lisonjeado pelo seu título de rei, e chegara a acreditar na realidade da sua governação. Assim, sentia-se cada vez mais ressentido com o domínio que Abner exercia, naturalmente, tanto pela força do seu caráter como pela razão da sua experiência. O próprio Abner se sentia ressentido com as reprimendas que lhe eram publicamente dirigidas. O seu desdém pelo rei, que ele elevara a tal posição apenas por causa da sua própria devoção à memória de Saul, intensificou-se. Lembrou-se do afeto e do respeito que sempre sentira por mim e, assim, finalmente, enviou embaixadores para que sugerissem que os dois reinos se deveriam voltar a unir, que ele próprio se livraria de Isboset, e que eu deveria ser reconhecido como o rei de direito de todo o Israel.

Por um momento, no entanto, hesitei. Admirava Abner e, contudo, não podia fazer outra coisa senão suspeitar de que ele me estava a atrair a uma armadilha. Assim, fiz-lhe um teste. Disse-lhe que só concordaria com um encontro se ele, ao mesmo tempo, me trouxesse de volta Mical, de quem a ira e a inveja de Saul me tinham privado, para que eu a restabelecesse na posição que era sua, de direito, como minha esposa.

É claro que me estava a enganar a mim próprio. Não era que eu receasse realmente uma armadilha. Mais do que isso, o que eu desejava era que essa fosse a primeira afirmação do novo poder que eu devia assumir: exigir o regresso de Mical como condição para me encontrar com Abner. A perda de Mical - e o fato de Saul a ter entregue imediatamente em casamento - fora o mais profundo insulto que jamais me tinham feito. Mical, para além dos outros aspectos em que era perfeita, fora para mim a prova do meu grande êxito e aceitação como um dos homens poderosos de Israel. A humilhação de a perder fizera voltar a mim todos aqueles anos passados no deserto. Eu não falara disso a ninguém. Era como se, ao perder Mical, eu tivesse perdido parte da minha virilidade, como se, ao arrancá-la de mim, Saul me tivesse transformado num eunuco. Eu sabia que ele se apercebera disso, e que rejubilara com o que fizera. Por isso, era necessário que ela me fosse devolvida, se eu queria ficar de novo inteiro, e como se só assim o reino de Israel pudesse recuperar a sua perfeita saúde e a fertilidade.

No entanto, eu esperava a sua chegada com agitação e profunda ansiedade. Toda a vida me foi fácil dominar as mulheres. Não é só porque sou rei que, mesmo agora, não tenho dificuldade em conseguir um sorriso da minha pequena sunamita. Nunca duvidei da minha capacidade de cativar, e a maneira de ela sorrir prova-me que essa capacidade não desapareceu. É claro que os homens acham natural dominarem as suas mulheres, e a maior parte fá-lo, de fato. Mas poucos

- talvez nenhum - devem tê-lo achado tão fácil como o rei David. Até Maaca, aquela gazela selvagem do deserto, corava com o meu sorriso e tremia como uma jovem potra quando eu lhe tocava. É assim que deve ser.

Mas Mical, desde o nosso primeiro encontro, insistiu na nossa igualdade como homem e mulher, e o seu sorriso sugeria que ela considerava que a sua aceitação dessa igualdade era mera pretensão. O orgulho dela como filha do rei era algo que eu nunca venci. E até nos meus momentos mais cruéis, eu conhecia em mim um certo prazer por não ter conseguido fazê-lo.

A própria Mical deve ter sofrido. Eu não podia duvidar disso, embora sempre tivesse duvidado de que o amor dela por mim fosse igual ao meu por ela. Ela fora tratada pelo pai como um objeto, um objeto que lhe oferecia um meio de expressar o seu ressentimento em relação a mim, e, nesse sentimento, que então dominava o seu coração em desordem, ele não pensou nos sentimentos da filha. Menosprezou o orgulho dela, que era a principal das suas emoções, em guerra apenas com o seu amor-próprio e com a admiração pela sua própria beleza. Sem se preocupar com o que ela sentia, ele dera-a a outro em casamento, a um homem que ela desconhecia, e de condição humilde. Saul tratara a sua filha como um homem podia tratar uma escrava de quem se cansara, livrando-se dela onde quer que lhe parecesse conveniente. Eu não podia duvidar de que Mical ficara amargamente ressentida. Eu também não podia duvidar de que ela tivesse escondido o seu ressentimento, pois mostrar ressentimento em público é uma ofensa ao orgulho de qualquer pessoa.

Mas eu não podia ter a certeza de que ela não se ressentia igualmente daquilo que ela poderia presumir compreender como uma revelação de um sentimento em mim que não era amor por ela, mas simplesmente desejo de posse. Por outras palavras - e as minhas palavras são cada vez mais confusas, como os meus pensamentos, nas noites desperdiçadas da velhice -, eu receava que ela me pudesse ver como via Saul. O homem poderoso que pega onde lhe apetece e larga conforme lhe apetece.

Assim, o meu primeiro cuidado deve ser mostrar que exigi o seu regresso porque ela era mais importante para mim do que qualquer outra mulher. Conseqüentemente, ordenei a Maaca, que eu reconhecia que era a única entre as minhas esposas que Mical poderia ver como adversária, que voltasse por algum tempo para a sua tribo - o que ela fez, levando consigo os nossos dois filhos, Absalão e Tamar. O fato de me ter privado, mesmo que apenas por algum tempo, da companhia não só da esposa que mais me satisfazia a fazer amor, mas também dos dois filhos que eu mais amava, é prova da sinceridade da minha paixão por Mical.

Joab disse que eu era louco em querê-la de volta. Aquela mulher é uma cabra, e toda aquela família só traz complicações. Devias saber isso melhor que ninguém, David. No entanto, nada que eu possa dizer te fará mudar de opinião. Sempre foste tão obstinado em relação a ela como Jónatas era contigo. Até o fiel Laís levantou dúvidas.

- Oh, eu lembro-me, David, quantas vezes te tenho ouvido suspirar por ela, como até, por vezes - ele soltou um riso abafado -, me chamavas pelo nome dela. Mas ressuscitar o passado? Poderá tal ser possível? Será até sensato tentar?

Mas eu esperava por ela, e recordava os atos que Saul exigiu que eu realizasse para poder ganhá-la, e ela aproximou-se, e os anos voaram. A sua beleza não se alterou, e ela não se ajoelhou quando se aproximou de mim; e havia aquele velho meio sorriso trocista no seu rosto quando disse:

- David, meu marido, e rei, segundo consta...

- Um rei com falta da sua verdadeira rainha.

- Sempre soubeste fazer discursos bonitos, que não significavam nada, tal como o teu canto conseguiu arrancar o rei, meu pai, à sua loucura e aos demônios que o habitavam, e isso, infelizmente, no fim, também não significava nada. Mas uma vez que és rei, segundo consta, e uma vez que eu sou a tua verdadeira esposa, a quem tu pediste que voltasse, aqui estou eu. Toma-me como eu sempre fui.

O que significava, como eu sabia e voltei a constatar, de alguma forma separada de mim mesmo quando estávamos mais próximos um do outro.

 

Abner provara a sua sinceridade. Mical foi-me devolvida ao meu leito, e à minha casa, onde, naturalmente, assumiu o lugar principal entre as minhas esposas. Assim, eu combinei então uma data e um local para me encontrar com Abner para deliberarmos como é que ele poderia colocar todo o Israel sob o meu governo. Para facilitar as coisas, e porque sabia da inimizade que Joab nutria por Abner, uma inimizade tornada mais aguda, suspeito eu, pelo receio de que Abner, devido ao seu talento, ao seu caráter, e aos serviços que estava em vias de me prestar, suplantasse rapidamente Joab e ocupasse o segundo lugar no meu exército e na minha administração - por todas estas razões, eu despachei Joab, para que acalmasse alguns distúrbios na fronteira com os filisteus, uma tarefa para a qual ele era, é claro, eminentemente capaz.

As minhas negociações com Abner não poderiam ter corrido melhor. Ele confessou que tinha feito um grande disparate após a batalha do monte Guilboa, quando promovera a causa de Isboset.

- Mas - disse ele - eu prometera a Saul, no extremo do seu desespero, que não trairia a sua casa, e, assim, pareceu-me que não tinha alternativa. Se eu me tivesse sentido livre, na minha mente e no meu espírito, para me virar para ti, David, eu tê-lo-ia feito, pois, como sabes, sempre admirei o teu talento e caráter. Nunca deixei de lamentar o ódio que Saul desenvolveu por ti. Mas esse ódio era um fato que pesava bastante nas minhas considerações. Além disso, tenho de admitir que havia muitos dos homens importantes de Israel que perderam

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pais, irmãos, filhos ou outros parentes no monte (lullhoa, que estavam contra ti por causa da tua aliança com os filisteus. «Se David não se tivesse aliado a Aquis», diziam eles, «mesmo não tendo ele participado naquela terrível batalha, mesmo assim os filisteus teriam estado mais fracos, pois teriam sido obrigados a destacar tropas para as funções que os homens de David estavam a desempenhar em nome deles; e, assim, poderíamos ter ganho a batalha». Receio, David - continuou Abner -, que nunca te tenhas apercebido do quanto a tua aliança com os filisteus te prejudicou.

- E que outra alternativa me restava? - respondi. - Não foi Saul que me empurrou para o deserto, onde poderia ter morrido de fome, como um animal selvagem, se não me tivesse virado para Aquis?

Abner colocou a mão no meu joelho.

- Não duvido de que a tua visão sobre o que era necessário fazer estivesse correta. Não sei o que eu teria feito, se me tivesse encontrado na tua situação. Acredita-me, estou de acordo contigo, e se soubesses as vezes sem conta que eu tentei persuadir Saul a abandonar a guerra contra ti!... Bem - ele levantou as mãos ao alto -, seria tão fácil contar as folhas de uma árvore ou os grãos de areia no deserto como determinar as ocasiões em que Jónatas e eu falámos a teu favor. Mas aquela maldita visita de Samuel à casa de teu pai, em Belém esse era um tema ao qual, novamente por razões que não podes deixar de compreender, Saul regressava sempre. Era como uma espinha que tinha cravada na garganta. Conseqüentemente, não conseguimos nada. Nada podia prevalecer contra o ódio de Saul e o medo que ele tinha de Samuel e da tua relação com o sumo sacerdote.

Bebeu um pouco de vinho.

- David - disse ele -, estou apenas a tentar explicar, mesmo que não tivesse jurado a Saul que defenderia a sua casa - e nesse juramento Saul leu a promessa de que eu desafiaria a memória e a herança de Samuel -, mesmo que não o tivesse feito, eu não poderia ter falado a teu favor em Israel, após o desastre do monte Guilboa. A animosidade contra ti era intensa, não porque os homens se lembrassem como Saul te perseguira e aprovassem essa perseguição, mas por causa da tua aliança com Aquis. De fato, se eu o tivesse feito, só teria enfraquecido e talvez até destruído a minha própria posição e a influência que possuo.

- Mas agora as coisas são diferentes?

- Certamente. Tenho discutido ultimamente estes assuntos com Aitofel, que sente, como sabes, uma grande ternura por ti, e a quem eu encorajei para que se correspondesse contigo, fato de que os meus agentes há muito me informaram. Em primeiro lugar, o tempo foi passando, e a lembrança da tua aliança com Aquis já não é tão nítida. Os homens estão agora mais preparados para a perdoar. «Talvez David não tivesse alternativa», dizem eles. De qualquer maneira, a forma com que ele se tem conduzido desde então prova que não é amigo dos filisteus. Em segundo lugar, a estupidez brutal de Isboset tem desgostado todos profundamente. Embaciou a memória de Saul. Saul, na verdade, dizem os homens, foi grande e corajoso na sua juventude, mas o caráter de Saul deteriorou-se com a idade e a longa permanência no poder. Isboset não pode comparar-se à glória de Saul na sua juventude, mas também ele mostra sinais de deterioração. O fato é que, a cada dia que passa, ele deixa o povo mais desgostoso. Entretanto, chega a notícia de que, em Hebron, David governa com paciência e equidade. E depois fala-se de Samuel...

- Sim - disse eu -, e que dizem os homens de Samuel?

- Que ele falou as palavras do Senhor. Que a conduta de Isboset é a manifestação da sabedoria de Samuel na sua compreensão de que o Senhor rejeitara a casa de Saul. Que talvez os homens falem verdade quando dizem que Samuel reconheceu David como aquele que era verdadeiramente o Eleito do Senhor, e que, por isso, o ungiu com óleo.

- Então, finalmente - disse eu -, chegou a hora...

- Na verdade, chegou. Deixa o assunto nas minhas mãos, David.

- De boa vontade - disse eu, e abracei-o.

E assim foi combinado. Abner regressaria ao Norte e exerceria os seus poderes de persuasão sobre os homens mais importantes do reino e das tribos, para que concordassem em rejeitar Isboset, tal como o Senhor instruíra Samuel para que rejeitasse Saul, e se virasse para mim, como o verdadeiro Ungido do Senhor verdadeiro. Sete anos de paciência, diplomacia e contenção teriam assim a sua recompensa. A minha ambição seria cumprida e a do Senhor seria manifestada, e glorificada.

Mas, infelizmente, embora eu sempre tivesse confiado no Senhor, aprendi que o Acaso pode desfazer o mais sensato e o mais virtuoso dos planos. O Acaso, a que poderei também chamar contingência, desempenha, nos assuntos dos homens, um papel que tem tanto de dramático como de insondável.

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Aconteceu que Joab tratara dos seus assuntos na fronteira com a eficiência que eu esperara mas com uma alacridade que eu não previra. Regressou a Hebron exatamente quando Abner partia. A notícia do seu regresso não chegara até mim, pois eu estava ocupado com Maaca, que chamara secretamente e alojara numa casa construída no interior da muralha oriental de Hebron; fi-lo porque achara que Mical, apesar do amor que eu sentia por ela e da devoção que ela ainda me inspirava, não me podia oferecer, devido ao hábito da reserva desdenhosa, acrescida da forma como fora usada e abusada na mão de Saul, não podia ou não queria oferecer-me aquela excitação sensual nem aquela alegria de entrega sexual que Maaca invariavelmente me proporcionava na sua ardente e animalesca paixão pela minha pessoa.

Assim, eu deitava-me com Maaca quando o desejo me incendiava, e encontrava-me nos braços dela quando Joab regressou e encontrou Abner junto à porta norte da cidade.

Cada um deles, contaram-me mais tarde, evidenciou surpresa ao ver o outro. A surpresa era genuína da parte de Abner, mas parece-me hoje provável que Joab, que mantinha espiões (como eu suspeitava) mesmo entre os servos que habitavam a intimidade da minha casa, tivesse tido conhecimento da missão de Abner e se tivesse apressado a interceptá-lo. No entanto, cada um deles fingiu sentir prazer ao ver o outro. Atiraram-se ao pescoço um do outro e abraçaram-se. Então Joab sugeriu que, para selar a sua reconciliação, e talvez para discutir outros assuntos, deviam retirar-se por algum tempo para uma taberna próxima e tomarem vinho como símbolo da amizade passada e das boas relações futuras. Abner, nobre e generoso como sempre, concordou.

O que transpareceu, de início, daquilo de que falaram, no espaço apertado daquela taberna escura, nunca poderá saber-se com exatidão. Pode até nem ter havido qualquer discussão. Mas antes que o Sol tivesse abandonado o ângulo em que projetava sombra, Joab surgiu, de adaga ensangüentada na mão, e gritou a Abisai, dizendo que o irmão Asael fora finalmente vingado. Então os soldados de Joab, como se estivessem preparados, caíram sobre a escassa tropa de Abner, mataram alguns elementos e capturaram os restantes, amarrando-lhes os pulsos e levando-os sob custódia para o posto militar guarnecido pelos homens de Joab.

Quando me trouxeram a notícia, chorei e rasguei as minhas vestes e chamei Joab à minha presença.

Ele ficou de pé, impassível e sombrio, com ar de reprovação.

- David - disse ele -, que gênero de homem és? Conhecias Abner há muitos anos como teu inimigo, apesar das suas alegações de amizade. Sabias que, sem a sua ajuda, Isboset nunca se teria tornado rei de Israel e que o rei serias tu, e eu próprio seria o segundo homem do reino, como sou em Hebron. Conhecia-lo como o assassino de Asael, meu irmão, teu sobrinho, e a quem tu também amavas. E, mesmo assim, arranjas uma desculpa para me enviares para a fronteira para fazer um trabalho que qualquer sargento estaria à altura de fazer, e assim, tendo forjado a minha ausência, convidas o teu inimigo a vir aqui, negoceias com ele e obsequiá-lo. David, nenhum homem te serviu com mais lealdade do que eu, Joab, e do que os meus irmãos, filhos de Seruia. Desertamos do exército de Saul, no qual ganhamos honras, por tua causa; enfrentamos a morte e a desonra por tua causa; arriscamos tudo por tua causa. E a tua recompensa foi magra. Preferiste Abner, o inimigo da nossa casa, e teu inimigo, porque ele se manteve fiel a Saul e em seguida colocou Isboset no trono em teu lugar - e, mesmo assim, preferiste-o a nós, os teus servos mais leais. David, há em ti qualquer obstinação que faz com que ames os teus inimigos e desprezes os teus amigos. Observei isso em ti desde o início, quando te apresentei à glória, fazendo com que tivesses aceso a Saul; e, no entanto, nunca me agradeceste, mas afastaste-te de mim para te virares para o filho do rei, Jónatas, e estavas deitado com ele enquanto eu me consumia de raiva, lá fora, no escuro. E agora que matei Abner, o inimigo da nossa casa e o assassino do meu querido irmão, numa luta justa que surgiu de repente como as tempestades que irrompem sobre as montanhas de Judá, censuras-me e lamentas a sua perda. David, isso é indigno de um homem e indigno de ti. Pensa só nisto: o que fez Abner por ti, e o que fiz eu, Joab, por ti? Pesa estas duas perguntas e vê para que lado se inclina a balança...

A sinceridade e a pureza da sua raiva comoveram-me, como Joab nunca me tinha comovido. Peguei-lhe no braço e levei-o para fora da sala, para o terraço. A noite caía e as primeiras estrelas e uma Lua recém-nascida apareciam sobre a coroa das montanhas de Judá de que ele falara. Por baixo, na cidade, zurravam jumentos, e as raparigas tiravam água dos poços da noite vizinha.

-joab - disse eu, e imbuí a minha voz de toda aquela terna doçura com a qual costumava cativar as donzelas de Belém -, Joab, se fui injusto para contigo, perdoa-me. Mesmo que não tenha sido injusto para contigo, e tu, mesmo assim, acredites que o tenha sido, perdoa-me. Estou consciente e prezo muito a tua devoção para comigo, assim como estou consciente e prezo os teus serviços mais do que as palavras podem dizer. Também eu amava Asael. Também eu chorei a sua perda, e ainda choro. Mas um rei não é apenas um homem. Um rei não se pode permitir sentir apenas o que um homem sente. Chegaram até mim informações sobre o descontentamento existente no Norte. Tu próprio me censuraste por ter decidido esperar até que tais informações chegassem até mim, e defendias que, em vez disso, eu tivesse marchado para Norte, tivesse usurpado o trono e empurrado o infeliz Isboset para o exílio. Contudo, quando expliquei os meus motivos, tiveste a benevolência de concordar com eles. Bem, então - fiz uma pausa e coloquei-lhe o braço por cima dos ombros -, quando aquelas informações chegaram até mim, vieram diretamente de Abner, que insistiu em encontrar-se comigo. Sim, tens razão, achei prudente enviar-te para longe daqui naquilo que descreves como uma missão de sargento. Lamento-o agora. Teria sido melhor se te tivesse contado na altura o que te estou a contar agora. Mas... se o meu encontro com Abner não tivesse corrido bem... eu receava que, no teu justificado desejo de vingar Asael... acontecesse o que acabou por acontecer... É claro que, se as coisas corressem como eu esperava, eu planeava contar-te assim que regressasses. Bem, tentei ser demasiado inteligente, demasiado cuidadoso, e a culpa é minha. Lamento, Joab, lamento mesmo. .. E tomei-o nos meus braços e senti na minha a sua face chorosa. Podeis estar surpreendidos, como muitos o fizeram na altura, porque não castiguei Joab pelo assassínio de Abner. Teria havido vantagens em fazê-lo. Nada me teria ilibado mais de suspeitas de cumplicidade aos olhos das tribos do Norte e dos muitos parentes de Abner. Além disso, a lei exige que um assassino seja condenado à morte embora eu admita que há diferentes interpretações quando se trata de uma questão de vingança.

No entanto, tudo o que fiz foi sugerir que ele se retirasse por alguns meses para o refúgio tranqüilo da casa de seu pai em Belém. É certo que eu ficara profundamente comovido com o desabafo de Joab, que me consciencializou de que os seus sentimentos eram mais complicados e admiráveis do que eu supunha; o seu caráter era mais forte, mais complexo e mais generoso.

Mas sempre fui um homem fácil de comover nesse sentido, sendo, contudo, capaz de tomar atitudes frias na manhã seguinte, atitudes que podem contradizer o teor da emoção. É, penso eu, aquilo a que tenho ouvido chamar «o temperamento artístico».

Havia outro motivo, que sinto relutância em confessar. Ao andar ocupado com questões de diplomacia e assuntos de estado, eu negligenciara a gestão do exército no dia-a-dia. Deixara isso a cargo de Joab e entregara-lhe o recrutamento. Não podia, por isso, ter a certeza, se, num momento de crise, as minhas tropas me obedeceriam a mim, ou ao seu comandante direto - Joab.

Dei a Abner um funeral magnificente. A banda da minha guarda real tocou uma lamentação que eu próprio compus. Eu conduzi a procissão, vestindo apenas um simples manto de luto, descalço e com cinzas na cabeça. Junto à sepultura, ergui a voz e cantei:

Será que Abner tinha de morrer como morrem os insensatos?

As tuas mãos não estavam algemadas, nem os teus pés presos a correntes.

Caíste como se cai nas mãos de criminosos.

Em seguida decretei um dia de jejum em toda a cidade, e quando o meu arauto veio insistir comigo para que quebrasse o jejum (como lhe fora ordenado, dirigindo-se ao local onde eu estava sentado na praça pública), eu falei e disse:

- Sabes que caiu hoje um grande príncipe em Israel, e o rei há-de comer? É mais fácil que os abutres venham buscar os ossos de Abner do que passar essa comida entre os meus lábios neste triste dia. Abençoado seja o Senhor que ordena o luto por um príncipe como Abner, um homem tão valoroso, um conselheiro tão sensato e prudente nas suas ações. Veio aqui como pacificador, falámos num ambiente de amizade, e agora é-nos levado. Abençoado seja o Senhor Deus dos Exércitos.

E assim manifestei o meu pesar, e as minhas palavras espalharam-se a todas as tribos do Norte e à família de Abner, em particular; e vim a saber que os seus corações se acalentaram e se abriram para mim por causa do meu desgosto e do respeito que eu demonstrara para com o seu chefe caído.

Mas não fiz qualquer menção do seu assassino, pois não via razão para levantar uma animosidade mais forte e mais profunda. Se, em qualquer altura, os sacerdotes que registram estes assuntos me atribuírem pragas dirigidas a Joab e aos filhos de Seruia, bem, então os escribas mentem.

No entanto, conservei a memória do ato de Joab bem viva no meu coração.

A minha correspondência com o sábio Aitofel assegurava-me que a opinião que circulava entre os grandes homens do Norte estava, a cada dia que passava, a mudar a meu favor, enquanto o infeliz Isboset, consciente de que estava a perder estima, e dominado por receios indignos de um rei, mergulhava cada vez mais no hábito desprezível da embriaguez.

Ora acontecera que, no nosso último encontro, eu inquirira a Abner se vivia alguém da família de Jónatas. Havia apenas uma pessoa: o rapaz coxo, Mefiboset, que a ama, aterrorizada, deixara cair numa ocasião, e que vivia agora na corte do tio, o rei, como objeto de ridicularizarão e desdém.

Mandei dizer, através de Aitofel, que o rapaz seria bem-vindo em Hebron. Fi-lo não só porque me agradava saldar desta forma, por mais inadequada que fosse, a dívida que eu tinha para com o meu querido Jónatas, mas também porque sabia que, quando se soubesse que eu demonstrara tal mercê para com o infeliz descendente do heróico filho de Saul, eu ganharia boa respeitabilidade no seio da tribo de Benjamim. E assim, Aitofel garantiu a fuga do rapaz da casa de Isboset, e mandou que o trouxessem para Hebron de noite, sob a responsabilidade de guardas de confiança.

- O teu pai - disse-lhe eu - foi o melhor amigo e o mais verdadeiro que eu tive até hoje, e por isso, naqueles dias que me faltam viver, serás bem-vindo aqui. Estarás em segurança e serás um convidado de honra na casa de David.

Afaguei-lhe o cabelo, beijei-o nos lábios e coloquei-o no chão. Ele agarrou-me a mão e cobriu-a de beijos. Todos aplaudiram em redor e o rapaz corou.

- Nada receies - disse eu -, e em breve aprenderás a deixar de ser tímido.

Apenas uma pessoa não ficou encantada pela recepção que dei ao rapaz: Mical, sua tia.

- Porquê, David? - disse ela. - Porque me humilhas? Afirmas que me amas mais do que a qualquer outra mulher, que eu sou a pérola ou o rubi entre as tuas esposas, e, no entanto, expões-me a este insulto público. Sabes que, embora eu não tenha culpa, mas por vontade do Senhor e talvez devido à forma como o meu pai me tratava, não posso ter filhos. Naturalmente que as outras mulheres da tua casa, sendo algumas delas as mais miseráveis e comuns criaturas, deixam escapar comentários sobre isso, embora não o façam, é claro, na minha presença. Mas agora trouxeste para aqui este deficiente, sabendo elas que é filho do meu irmão, e assim elas podem apontar para ele e dizer: «Se ela tivesse tido um filho, seria um monstro como este.» Por acaso pensaste no que estás a fazer, David? Será que o desejo de popularidade é tudo o que te domina? Alguma vez pensas nos meus sentimentos?

- Mas o rapaz não é deficiente de nascença. A ama deixou-o cair no chão quando ele era bebe. É por isso que ele é assim. E é filho de Jónatas.

- Não me fales de Jónatas, pois roubaste-mo.

- O que queres dizer com isso?

- Realmente, David, por vezes penso que ainda és o rapaz pastor que eu conheci a tresandar a ovelhas e cabras.

Felizmente, as honras que fiz a Abner, o relato da minha raiva por Joab e da forma como recebi o filho de Jónatas alcançaram o efeito que eu procurava. Quase todos os dias eu recebia emissários vindos do Norte e que insistiam para que eu reunisse as minhas forças e afastasse o intolerável Isboset. No entanto, eu demorava, à espera que o fruto maduro caísse da árvore. À noite, costumava isolar-me sob os céus, no terraço do meu pequeno palácio, e estendia o olhar para o Norte, quando a Lua se levantava por cima das montanhas e o silêncio

da noite era quebrado pelo ladrar dos cães e os ganidos dos chacais do deserto. E orava ao Senhor para que me enviasse um sinal.

Mas não chegava sinal nenhum, nenhum que eu pudesse reconhecer com segurança. Por isso, eu esperava.

Entretanto, todos os relatos que eu recebia indicavam que o apoio

estava a fugir a Isboset como um cálice de água desaparece nas areias

do deserto.

* O fim dele foi súbito e brutal. Dois homens rebeldes, Recab e Baa-

na, filhos de Rimon de Beerot, entraram no palácio do rei sob qualquer pretexto, dirigiram-se ao seu quarto e encontraram-no deitado, embriagado do deboche da noite anterior, embora fosse já meio-dia. Feriram-no com as suas adagas, cortaram-lhe a cabeça e fugiram do palácio, perante a indolência ou indiferença dos guardas de serviço. Viajaram depois para o Sul e apresentaram-se-me em Hebron, produzindo a cabeça de Isboset, banhada em sangue, do saco em que a traziam, e mostraram-ma, sorridentes.

E um deles disse:

- David, observa a cabeça do teu inimigo, o filho de Saul que te sentenciou à morte. Israel é teu, meu senhor.

E o outro acrescentou:

- Foi a vontade do Senhor. Fizemos o que fizemos a mandado do Senhor dos Exércitos, que, por intermédio de Samuel, te ungiu com óleo.

Sorriam quando se ajoelharam perante mim, esperando que eu ficasse contente, e que os recompensasse. Mas eu recuei, horrorizado, afastando-me destes homens sanguinolentos.

Agora deixai-me ser honesto. Porque não? Sou demasiado velho para mentir.

É claro que fiquei contente por Isboset ter sido afastado, pois sabia que isso me assegurava que os chefes de todas as tribos de Israel me chamariam agora para ser rei, e que eu assumiria o trono sem uma guerra que faria com que os israelitas se matassem uns aos outros. Assim, no fundo do meu coração, eu estava contente. E sabia que este era, de fato, o sinal que eu pedira ao Senhor.

Contudo, eu sentia-me igualmente miserável ao ver a expressão dos assassinos enquanto colocavam a cabeça de Isboset a meus pés. E sabia que recompensar regicidas seria pôr em perigo a minha própria posição no futuro. Nenhum estado pode estar seguro, se nele a vida do rei não for considerada sacrossanta.

Por isso disse-lhes, falando em voz alta para que todos os que se tinham reunido em redor pudessem ouvir:

- Quando, após a batalha do monte Guilboa, um louco me trouxe a cabeça de Saul pensando assim agradar-me, como é que eu o recompensei? Agora trazeis-me a cabeça de seu filho, que também era rei de Israel e esperais que vos recompense por terdes assassinado um homem que estava deitado no seu próprio leito. Tereis a mesma recompensa que dei ao amalecita que me trouxe de presente a cabeça de Saul.

Chamei a minha guarda, mandei prender os homens e julguei-os, como mereciam. Os guardas derrubaram-nos à minha frente, cortaram-lhes as mãos e os pés e penduraram-nos como aviso para todos em Hebron.

Em seguida mandei sepultar a cabeça de Isboset no túmulo que construíra para Abner. Se Abner não tivesse sido assassinado, ter-nos-íamos livrado de Isboset de uma maneira mais decente. Teria sido suficiente tirar-lhe os olhos e obrigá-lo depois a viver ao cuidado dos sacerdotes do Altíssimo com o assassínio de Isboset, a minha sucessão ao trono estava segura, pois o castigo que eu atribuíra aos seus assassinos convencera todos aqueles que ainda eram leais à casa de Saul de que eu não tivera nada a ver com a sua morte, como era, de fato, o caso.

Poucos ousavam observar que os filhos de Rimon tinham servido

antes nas forças especiais que Joab recrutara e treinara como guardas da fronteira.

E assim, a promessa que o Senhor me fizera pela boca de Samuel foi cumprida, e, aos trinta anos de idade, tornei-me rei de Todo o Israel, para regozijo geral.

Eu estava agora determinado a embarcar numa empresa que há anos tinha na cabeça, desde aquele primeiro final de tarde em que, viajando com Joab para o palácio de Saul para curar o rei da sua loucura, víramos as luzes de Jerusalém a cintilarem do outro lado do vale. Nessa altura, lembremo-nos, eu perguntara a Joab por que razão é que sofríamos o fato de os jebuseus controlarem uma cidade que, parecia, fora concebida pela natureza e pelo Senhor para ser o lugar principal de Israel. Essa idéia ocorrera-me muitas vezes ao longo dos anos de luta, e agora, quando me perguntava onde deveria estabelecer a minha residência principal, virei de novo o rosto para Jerusalém.

Certamente que teria pena de deixar Hebron, onde vivera feliz e rodeado de honrarias durante sete anos. Mas Hebron não era apenas o baluarte da minha própria tribo de Judá, o que por si só a tornava inadequada como minha residência principal, se eu queria manter a lealdade, tão recentemente conquistada, das tribos do Norte; mas, ficando também situada no extremo Sul da terra de Israel, a sua posição era má, se eu queria exercer o governo efetivo de toda a terra, especialmente porque as comunicações entre o Norte e o Sul eram interrompidas pela posse de Jerusalém e dos arredores pelos jebuseus.

Saul residira a maior parte do tempo em Guibeá, onde Isboset fora assassinado, mas Guibeá era a cidade da tribo de Benjamim, e eu receava que, se escolhesse Guibeá, Judá ficasse ressentida.

Silo fora durante muito tempo o local santo de Israel. Fora lá que os sacerdotes tinham guardado a Arca da Aliança até ao momento vergonhoso em que foi levada para Gat pelos filisteus. Fora em Silo que Samuel servira Eli, o velho sumo sacerdote, e ainda era considerado Um local santo. Mas desde que fora saqueada pelos filisteus, as suas muralhas nunca tinham sido completamente reparadas; e, de qualquer maneira, embora eu tenha sempre achado prudente mostrar reverência para com os sacerdotes, eu não queria fazer nada que pudesse recordar aos homens os dias em que Israel era governado pelos Juizes e pelo sumo sacerdote e não por um rei.

Além disso, Silo situava-se na terra de Efraim, e, até certo ponto, a mesma objeção em relação a Silo aplicava-se igualmente a Hebron e Guibeá. Eu estava determinado a ser rei de Todo o Israel, a unir as doze tribos numa poderosa e coesa nação-estado, e apercebia-me de que quanto mais eu fosse associado a qualquer uma das tribos, tanto mais difícil seria realizar essa tarefa.

Por todas estas razões, Jerusalém parecia-me ser a cidade ideal para estabelecer a minha residência. Assim, anunciei que era vontade do Senhor que Jerusalém caísse nas mãos de Israel, para que fosse a capital e a Cidade de David.

Também me parecia benéfico para mim, logo no início do meu reinado, realizar algum feito que impressionasse todas as tribos com a minha grandeza. Os reis vivem e prosperam de acordo com a sua autoridade e o seu poder. A autoridade depende da estima, assim como o poder depende da capacidade de suscitar medo. Eu não tinha dúvidas de que possuía poder, mas procurava a autoridade que um feito brilhante, e que apelasse à imaginação geral, me pudesse trazer. E assim, poucas semanas após ter sido reconhecido rei de Todo o Israel, dei instruções a Joab para que preparasse planos para um ataque a Jerusalém.

De início, ele estava duvidoso, embora compreendesse as minhas

razões.

- São boas razões - disse ele, coçando o nariz comprido -, e

persuasivas, David. No entanto... - fez uma pausa, ainda a coçar o nariz - se falhássemos... e podemos falhar, pois Jerusalém está tão bem fortificada que os jebuseus têm um provérbio que diz que os cegos e coxos são suficientes para a defender, se falhássemos, o golpe para a tua autoridade e para o teu poder seria tal que não seria fácil recuperares dele.

- Bem, Joab - respondi eu -, o teu conselho é, como sempre, bom. E, na verdade, quem me dera ter-te consultado mais cedo, pois se o tivesse feito, poderias ter-me convencido, já que és, como sabes, capaz de o fazer. Mas, infelizmente, num momento que admito ter sido de precipitação, já anunciei que é vontade do Senhor que tomemos Jerusalém e que seja conhecida como a Cidade de David. Sendo assim, perceberás que é impossível recuar.

Joab voltou a coçar o nariz, e concordou, embora com relutância. Fora, é claro, a prever as suas objeções que eu fizera o meu anúncio público.

-Joab - eu falava agora num tom suave -, sei que tens pensado muito na forma de concretizar isso, e eu recordo-me, já passaram tantos anos, de como sugeriste que a cidade poderia ser tomada se dividisses o exército, e fingisses que o ataque principal seria lançado do Sul, de maneira a atrair os defensores para longe das muralhas a norte, que são menos bem protegidas por natureza, e em seguida, quando essas defesas tivessem sido, desta forma, enfraquecidas, lançarias um violento ataque desse lado, usando o corpo principal do exército.

- Lembro-me que esse era o meu plano - disse Joab.

- Era o teu plano - disse eu -, por isso mesmo, confio-te a organização do ataque, para que possas ter a honra e a glória de ser tanto o autor como o executor. Mas não te esqueças do seguinte: quando a cidade tiver sido tomada, eu desejo poupar os jebuseus. Ser-nos-á útil ter uma cidade povoada por gente que nos deve tudo, até a vida, e que não tem amigos em Israel, a não ser o rei e o seu nobre general.

Joab viu aonde eu queria chegar. Ele próprio não teria pensado nisso, e, entregue ao seu próprio expediente, teria permitido aos seus soldados que satisfizessem os seus desejos numa orgia de sangue. Mas, quando o assunto lhe foi explicado, ele compreendeu muito bem a sabedoria daquilo que eu sugeria.

De fato, não me lembro bem qual fora o plano que Joab sugerira durante aquela conversa distante. Pode, na verdade, ter sido parecido com aquele que eu agora lhe avançava.

- Que o Senhor dos Exércitos esteja contigo - disse eu. Tudo decorreu como eu pretendia. A cidade que se vangloriava de

tão boas defesas caiu nas nossas mãos a pouco custo. Quando os jebuseus souberam que as suas vidas e propriedade seriam poupadas, ficaram surpreendidos, e saudaram-me mais como libertador do que como conquistador.

Assim, ganhei a minha capital, e atirei-me imediatamente à reorganização do estado. Ao mesmo tempo, decidi construir um palácio para mim, um palácio digno do um grande' rei. Para Isso, encetei negociações com Iliram, rei de Tiro. Quando era jovem, eu ficara impressionado pelo que me parecia ser a civilização superior dos filisteus, e com os êxitos por eles conseguidos na arte de construir. Mas durante o tempo que passei na corte do meu amigo Aquis, eu descobrira que os filisteus eram, neste campo, inferiores ao povo fenício de Tiro e Sidon; e até Aquis me confessou que, orgulhoso como era do seu próprio povo, os seus edifícios mais requintados não eram senão uma humilde imitação daquilo que os fenícios tinham alcançado.

Assim, enviei Aitofel, como o homem mais sutilmente inteligente ao meu serviço, a Tiro, com o objetivo de propor uma aliança com o rei Hiram. É verdade que havia pouca coisa que eu lhe pudesse oferecer em troca do que esperava receber dele. Mas, em conversa com Aitofel, concordamos em relação aos meios de conseguirmos a sua amizade.

Os fenícios são um povo mais dado ao comércio do que à guerra; e, como todos aqueles que têm prosperado e aprendido os prazeres do luxo, eles receiam homens que tenham levado vidas duras e que, não tendo nunca experimentado o conforto, desprezam aqueles que levam vidas fáceis e luxuosas. Aitofel devia impressionar o rei Hiram, dando-lhe a entender que nós, israelitas, éramos um povo assim. Ele devia também dizer mal do meu caráter e descrever-me como um homem que abrira caminho para o trono à custa de sangue, que me regozijava com a guerra, e a quem um monarca prudente e pacífico gostaria mais de ter como aliado do que como inimigo. Além disso, Aitofel devia dizer:

- A oriente do Jordão há tribos ainda mais selvagens do que as doze tribos de Israel, que David uniu e transformou numa poderosa nação armada. Essas tribos para lá do Jordão anseiam pelos despojos de Tiro e Sidon, mas entre ti e elas encontra-se David, que procura a tua amizade. Se lha concederes, ele servirá de baluarte e defesa segura contra as cruéis e gananciosas tribos do deserto. Mas se lha recusares, e uma vez que David se irrita facilmente, será difícil para um homem de paz como eu controlá-lo. Ele será tentado a dar ouvidos aos seus guerreiros, como Joab e Abisai, filhos de Seruia, e a colocar-se à cabeça das tribos selvagens do deserto e lançar um poderoso exército contra ti.

Hiram, um homem inteligente, preferia a paz e a amizade aos perigos certos e ao resultado incerto de uma guerra. Por isso concordou rapidamente em fazer um tratado comigo, e, em troca da segurança que eu lhe oferecia, em fornecer-me os habilidosos artífices e os materiais de que eu necessitava para realizar o meu sonho de construir um palácio para mim, pois desejava rodear-me de esplendor e beleza visíveis, iguais àquilo que eu próprio tinha capacidade de conseguir nas artes da poesia e da música.

Assim, o ano que se seguiu foi passado a observar a construção do meu palácio, feliz no conhecimento de que, ao criá-lo, eu estava não só a trazer um novo esplendor a Israel, como também a afirmar-me na nação como um rei superior em glória e magnificência ao pobre Saul, que vivera (como eu agora via) rudemente. Divertia-me pensar - à medida que via o meu sonho a realizar-se a cada dia que passava como, na minha ignorante e inocente juventude, eu ficara impressionado com o palácio de Saul.

Era meu desejo viver em paz com os vizinhos, mas o meu êxito causava neles inveja e medo. Eu acreditava que não tinha desavenças com os filisteus, e conservava uma cálida recordação da generosidade que Aquis demonstrara para comigo. Mas Aquis estava morto, e os novos reis dos filisteus ficaram receosos ao verem crescer o meu poder e a minha fama. Provocados apenas por isso, juntaram um grande exército e invadiram a terra de Israel. Fui, assim, obrigado a retomar a vida militar que eu esperava, para honra e glória do Senhor, ter deixado para trás.

Levei o meu exército para o vale de Efraim, a norte de Jerusalém, e esperei a investida. À medida que eles se aproximavam, eu recuava à frente deles, aparentemente em direção à cidade, como se, assustado com as dimensões das suas forças, eu tivesse resolvido refugiar-me dentro das muralhas e suportar um cerco. No entanto, usando o terreno ressequido do pequeno vale, mudei a direção da nossa marcha, de forma a manobrar as minhas forças para o flanco do inimigo, onde ficamos escondidos num bosque de amoreiras.

Sentia, apesar da minha relutância, um certo prazer em estar de volta ao campo de batalha, pensando estratégias para vencer um inimigo. Da minha longa experiência de guerra desigual, eu aprendera a conhecer o terreno e a observar as variações e hábitos do tempo atmosférico. Eu sabia que, naquele vale, se levantava uma leve brisa pouco antes do Sol mergulhar atrás das colinas e o som do vento nas amoreiras lembrava a marcha de um poderoso exército. Disse aos meus soldados que, antes do pôr do Sol, o Senhor enviaria uma força invisível em nosso auxílio, e que o sinal para o nosso ataque aos filisteus seria o som de pés a marcharem. Passamos o calor da tarde deitados à sombra das árvores, enquanto eu observava o exército dos filisteus avançar em coluna por cima da colina e descer para o vale que o levaria a Jerusalém. Marchavam como homens decididos a terminar uma tarefa. Uma trombeta tocou apenas três vezes como que para os encorajar. Mas havia silêncio quando o Sol se pôs, e o pó elevava-se da coluna que passava em frente de nós. Então, como eu previra, começou a soprar uma leve brisa. Abanava as árvores e as folhas soltavam um leve frêmito...

- O Senhor dos Exércitos veio em nosso auxílio - gritei eu, e caímos sobre o flanco dos filisteus. A surpresa foi completa. Não tiveram tempo de se colocarem em ordem de batalha. Dispersamo-los como folhas de Outono, e eles fugiam à nossa frente, aterrorizados e confusos. A perseguição durou até que a Lua subiu no firmamento, e o exército da Filisteia deixou de existir.

Eu haveria de conduzir outras guerras contra Edom e Moab e também aí triunfaria, mas esta vitória sobre os filisteus no vale de Efraim foi a maior da minha carreira militar. Os filisteus tinham oprimido Israel ao longo de muitas gerações, desde o tempo dos Juizes. O poderoso Sansão lutara contra eles. Tinham subjugado e saqueado no tempo de Eli. Saul combatera corajosamente contra eles até que foi vencido no monte Guilboa. Mas nunca mais. Eu quebrei o poder dos filisteus no vale de Efraim, à medida que o vento abanava as amoreiras, quebrei-o em fragmentos como um vaso despedaçado, e obriguei-os a pedir a paz em termos mais implorativos do que alguma vez haviam feito.

Impus condições rígidas, obrigando os filisteus a desmantelarem os lugares fortificados, e a aceitarem a minha autoridade sobre eles. Recrutei alguns dos seus mais valentes guerreiros para a minha guarda pessoal, para os honrar e para me mostrar corajoso e magnânimo, e também porque eu concluíra que uma guarda pessoal constituída em grande parte por estrangeiros proporcionar-me-ia uma defesa mais segura do que- se a selecionasse entre as invejosas tribos de Israel. E, mais importante de tudo, exigi-lhes que devolvessem a Arca da Aliança que tinham levado de Israel no tempo de Eli. E assim, eu trouxe o local em que o Senhor habita de volta a Israel, a terra do Senhor.

Na glória orvalhada de uma aurora de Verão, eu trouxe a Arca da Aliança para Jerusalém.

O nevoeiro ainda pairava em volta das franjas das oliveiras e o Sol estava ainda obscurecido, quando a Arca foi trazida da casa de Obededom, um levita, onde repousara três meses, enquanto eu preparava a sua entrada na minha cidade, que também é do Senhor. E quando os sacerdotes a trouxeram para fora e a colocaram com a devida reverência sobre um carro de bois, eu atirei-me ao chão, e adorei o espírito do Senhor dos Exércitos.

Em seguida foram oferecidos sacrifícios, de acordo com a Lei, e juntaram-se sete companhias de cantores para marcharem à frente da Arca, louvando o Senhor, enquanto subíamos a colina em direção a Jerusalém. À medida que a procissão começava a deslocar-se, o Sol rompeu as nuvens que se dissolviam e ouviu-se um grito que dizia que o Senhor estava satisfeito.

Eu caminhava, sozinho, atrás da última companhia de cantores, e tocava a pequena harpa, e a música fora eu que a compusera. Assim avançávamos em direção a Jerusalém, e a multidão engrossava, à medida que nos aproximávamos da cidade. Empurravam-se para verem a Arca, e atiravam-nos flores. Uma menina destacou-se do ajuntamento e colocou-me uma coroa de flores ao pescoço.

Ora acontece que, na praça ou espaço aberto em frente do meu palácio, eu mandara erguer um grande tabernáculo para receber a Arca, e, à medida que nos aproximávamos dele, eu levantei a voz e cantei:

 

Do Senhor é a terra e a sua plenitude;

O mundo inteiro e todos os que nela habitam.

Foi Ele quem a fixou sobre os mares

E a colocou sobre os rios.

 

Então, um coro de jovens de vozes vigorosas que se encontravam perante o tabernáculo vestidos de túnicas de linho puro, entoaram o desafio:

 

Quem será digno de Subir ao monte do Senhor?

Quem poderá permanecer em Seu lugar santo?

 

Fez-se silêncio, como eu ordenara, para que o conteúdo da pergunta fosse totalmente compreendido, e, em seguida, os sacerdotes responderam, o olhar fixo em mim:

 

O que tem as mãos limpas e o coração puro,

Que não pensa nas vaidades

Nem jura com perfídia.

Esse receberá a bênção do Senhor

E a recompensa de Deus, seu Salvador.

 

Agora toda a companhia de cantores entoava:

 

Esta é a geração daqueles que O buscam,

Dos que buscam a presença do Deus de Jacob.

 

As trombetas soaram e os címbalos produziram um som metálico, e toda a multidão de Israel ali reunida abriu o coração para saudar o regresso da Arca:

 

Levantai, ó pórticos, os vossos dintéis,

Levantai-vos, ó pórticos eternos,

Para que entre o rei da Glória!

 

Mas o coro de jovens, com todos os instrumentos musicais em repouso, entoou a pergunta:

 

Quem é este rei glorioso?

 

E eu respondi:

O Senhor forte e poderoso, O Senhor herói nas batalhas.

 

Toda a companhia começou a cantar:

 

Levantai, ó pórticos, os vossos dintéis,

Levantai-vos, ó pórticos eternos,

Para que entre o rei da Glória!

Quem é este rei glorioso?

O Senhor dos Exércitos,

Ele é o rei glorioso.

 

Coloquei a minha harpa de lado, e, avançando para o centro do espaço aberto em frente ao tabernáculo, subi a um plinto e falei ao povo. Falei em voz baixa, e, contudo, as minhas palavras foram ouvidas por todos, e ecoaram pelas montanhas em redor:

- Quando os nossos antepassados se encontravam no deserto depois de terem fugido à tirania do Egito, o Senhor fez uma aliança com Moisés e com todos os Filhos de Israel, para que esta terra de Israel fosse nossa por todas as gerações vindouras. E a Arca, a habitação do Senhor, marcou essa aliança.

«Depois, nos dias negros de Israel, no tempo do sumo sacerdote Eli, os filisteus conduziram uma guerra cruel contra Israel, e colocaram as suas mãos ímpias na Arca da Aliança, tendo-a levado para as suas próprias cidades, para que Israel receasse que o Senhor tivesse virado as costas ao Seu povo. E quando a Arca nos foi tirada, a escuridão abateu-se sobre a terra, uma escuridão tão profunda como uma noite de Inverno. Mas os Filhos de Israel continuaram a confiar no Senhor dos Exércitos, e o Senhor continuou a cuidar de nós. O grande rei Saul lutou contra os filisteus, e, ao seu serviço, um simples rapaz pastor, pela Graça do Senhor dos Exércitos, matou o campeão dos filisteus, o gigante Golias. Mas continuávamos privados da Arca.

«Samuel ungira esse rapaz pastor com óleo para significar que ele era o Eleito do Senhor, e quando Saul, poderoso em batalha, foi cruelmente morto, esse rapaz pastor, eu próprio, tornou-se rei neste palácio. Em muitas batalhas, com a ajuda dos meus nobres soldados e a bênção e o braço forte do Senhor dos Exércitos, derrotei os filisteus e expulsei-os de Israel, até às portas de Gat. E obriguei-os a submeterem-se a mim, à vontade de Israel e do Senhor dos Exércitos. Por isso eles entregaram a Arca da Aliança, que devolvemos hoje à glória do Senhor, nesta cidade de Jerusalém, que a partir de hoje será um lugar santo.»

Dizendo estas palavras, deixei escorregar do corpo o meu manto real, e caí ao chão, e fiquei nu em frente- de todo o povo, com exceção de um pano de linho amarelo que me cingia os rins, como se fosse o mais humilde dos sacerdotes do Senhor. Em seguida, a um sinal meu, os músicos tocaram e eu comecei a dançar.

Não me lembro dessa dança; nunca a poderia ter repetido. Os meus primeiros passos, penso eu, foram lentos, mesmo, parece, sendo inseguros, como se eu tivesse consciência da minha temeridade ao despir a alma perante o Senhor.

Que é o Homem, dizia a dança, para que Tu não o esqueças? E, à medida que os passos colocavam esta que era a maior das perguntas, eu inclinava o corpo, primeiro para trás, depois para a frente, para que os meus cabelos tocassem o pó da terra. Parecia, lembro-me, que estava fora de mim, e que testemunhava os movimentos deste corpo que se tornara servo da dança do Senhor.

Em seguida a música tornou-se mais rápida e a dança mais selvagem, à medida que falava da grandeza e da graça da criação do Senhor, das Suas dádivas a Israel e da grande generosidade que Ele demonstrara para conosco. Fiz uma pausa, num momento de silêncio entre a mudança de ritmo, e coloquei os braços em volta do meu corpo, parecendo encolher perante a majestade e o terror do Senhor. Então a dança voltou selvaticamente a tomar posse do intérprete, à medida que falava do Senhor, poderoso na batalha, cujo servo na destruição dos inimigos de Israel era o seu intérprete.

  • E, enquanto isso, as pessoas que assistiam continuavam silenciosas

e quedas, como as estrelas de Inverno, mas todas estavam dominadas

pelo êxtase, como um amante que contempla a beleza do seu amor.

A música parou quando a dança e o seu intérprete caíram ao chão,

humildes perante a Arca. E, daquela posição, sentindo a areia quente

do solo contra o corpo nu, levantei a cabeça e, sem acompanhamento,

cantei aquele salmo que fizera para Saul, quando a loucura o possuía:

O Senhor é o meu pastor, nada me falta...

Quando cheguei ao último verso: «A minha morada será a casa do

Senhor ao longo dos dias», um arrepio de reconhecimento perpassou

as pessoas que assistiam e estávamos todos unidos como um só corpo,

uma só alma, unidos em admiração e temor respeitoso pela majestade

e bondade do Todo-Poderoso.

Nesse momento, eu estava verdadeiramente unido ao meu povo, e mantive aquele silencio por mais tempo do que necessitaria um homem para inserir uma seta num arco e o deixar voar até ao coração do alvo. Mantive-o ainda por mais tempo, até que o tremor dos meus membros se apaziguou, e o bater acelerado do meu coração abrandou. Então prostrei-me perante a Arca, e comprimi o meu corpo contra a madeira, enquanto os sacerdotes entoavam a sua oração de graças ao Todo-

Poderoso. E, quando me levantei, limpei o suor da testa com o braço. Eu fizera tudo o que procurara fazer, e sabia que o meu triunfo era absoluto. Mas sabia também que era preciso guiar as pessoas que assistiam, das alturas do êxtase a que eu as elevara, pois uma grande multidão naquelas condições é algo incalculável. Por isso pareceu-me que seria bom para mim conduzir as pessoas até aos planos da experiência comum, para que a intensidade das cerimônias fosse seguida de uma disposição de dia santo feliz. Assim, eu dera instruções para que se preparasse um festim público, e fui eu próprio que orientei a distribuição do pão, carne, um bolo de passas e vinho a cada um dos presentes. Então, quando todos festejavam com alegria, retirei-me para o meu palácio.

O dia passava do seu zênite e eu ainda descansava, ao mesmo tempo que os sons de festa se elevavam até mim vindos da cidade por baixo. Eu estava consciente, lembro-me, de uma paz profunda, uma felicidade que vinha da minha compreensão de que, naquele dia, eu me ultrapassara a mim próprio, de que, para glória do Todo-Poderoso, eu criara, na cerimônia, uma perfeita obra de arte.

Mandei chamar uma das minhas concubinas - não me lembro qual - e deitei-me com ela para que fôssemos uma só carne, e, em seguida, mandei-a embora, e adormeci.

Quando acordei, a luz estava a desaparecer, e um servo entrou no meu quarto com uma lamparina, e informou-me de que Mical, sua senhora, desejava falar-me. Antes que eu pudesse dar o meu consentimento, a cortina foi puxada para o lado, e Mical encontrava-se na minha presença. Ficou de pé junto ao meu leito, e, à luz tênue, a beleza angular do seu rosto foi suavizada, e eu senti por ela um desejo que mão experimentava havia muitos meses. Estendi os braços, e ela cuspiu-me na cara.

- Artista de circo - disse ela -, bobo. Que fiz eu para ser tão humilhada?

Eu pensei: •ela está zangada porque eu chamei aquela concubina para o meu leito e não a ela, no dia do meu triunfo. Mas certamente que ela se apercebe de que eu jamais a trataria como um objeto chamado para satisfazer as minhas necessidades». Pensei: «não se aperceberá de que o meu amor por ela é de outro tipo? De outra natureza?-. Eu queria dizer-lhe tudo isto, mas, antes que eu pudesse falar, ela tirou-me os agasalhos de cima para revelar a minha nudez.

- Desonraste-me - disse ela, e a sua voz era fria como as noites do deserto -, humilhaste-me em frente de todo o povo. Como foste capaz, tu, um rei, de dançar nu em frente das jovens da cidade, sim, até em frente das prostitutas?! Como pudeste? Não tens dignidade-? Achas que o meu pai, o rei Saul, se teria exposto perante o povo, e esfregado a cabeça no pó como um estúpido ou um louco?

Eu pensei: «ela não me compreende. Nunca me compreendeu. não tem qualquer conhecimento do que devemos ao Todo-Poderoso». Pensei: «e eu próprio tenho estado errado. Pensei que ela fosse uma criatura diferente das outras, alguém possuído de sublimidade, cuja beleza exterior refletia a beleza da alma. E iludi-me, enganei-me».

Pensei: «é neste aspecto que eu tenho sido um louco».

No entanto, não lhe respondi, pois não conseguia pensar em palavras que não fossem duras, e que não exprimissem a tristeza que eu agora sentia ao olhá-la. Ao mesmo tempo que o fazia, parecia que o tempo, a decepção e o desdém lhe tinham corroído até a beleza.

- Que glorioso foste! - disse ela. - Que coisa maravilhosa, ver o rei a contorcer-se, nu, no pó!

- Mical - disse eu -, eu dancei perante o Senhor para honrar o Seu santo nome, porque Ele me escolheu como rei de Israel, quando rejeitou o teu pai, Saul. Se achas que é desonra e desprezo eu mostrar a minha humildade perante o Senhor, lamento por ti. Deixa que te diga, até as raparigas pobres da cidade, sim, e as prostitutas também, compreenderam o que eu estava a fazer hoje. Elas estavam em consonância com a minha dança, porque, por mais miseráveis que possam ser na sua vida diária, elas hoje vislumbraram um reflexo da majestade do Todo-Poderoso. Mas tu, fechada em palácios, e desprezando o povo, desprezas também o Todo-Poderoso, se me desprezas a mim, Seu servo. Entristece-me ver-te fechada no teu orgulho, egoísmo e ignorância, a ponto de não seres capaz... - estendi as mãos quando vi o seu rosto gelado de incompreensão.

- Palavras - disse ela -, palavras. Sabes sempre encontrar palavras para justificar tudo o que fazes, David. Usas palavras para fugires

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de mim, David, sempre o fizeste. Saltas e escorregas para os lados, depois desapareces, e, contudo, insistes sempre em que a luz brilha sobre ti, e até tu próprio és a causa da luz. Eu pensei: «o que ela está a dizer pode, de fato, ser verdade, mas não está relacionado com o que ela diz que lhe provocou a raiva. Ela tem vivido comigo como a esposa que eu mais amo, e, no entanto, não me conhece, porque nunca quis conhecer-me. Talvez nunca me tenha amado. Talvez seja incapaz de amar e seja por isso que nunca tivemos filhos».

Em seguida pensei: «mas eu tenho sido um louco. Fui capaz de a amar, de lhe dizer que a amo, e de ter a certeza de que isso era verdade, apenas porque talvez eu próprio tenha recusado conhecê-la, e me tenha convencido de que ela é o que eu queria que ela fosse e não aquilo que ela é verdadeiramente, seja o que for. Talvez essa seja a coisa mais pequena, mais contrária à vida e a Deus que me aparece agora pela frente».

Este pensamento deixou-me triste, mas eu estava também zangado. Deixei o meu leito e enfrentei-a. Éramos da mesma altura e olhei-a nos olhos, aqueles lagos escuros que eu achara tão misteriosos e encantadores, e disse:

- Sim, Mical, pode ser que as prostitutas da cidade sejam mais queridas ao Senhor do que tu, pois elas não O negam nos seus corações.

- Coisa vil - disse ela -, ator - e virou costas, abandonando os meus aposentos.

Eu bebi vinho do jarro e descobri que tremia. Tivéramos muitas discussões ao longo dos anos que geralmente terminavam conosco a fazer amor. Mas esta não podia terminar dessa forma. Eu via isso. Pensei: «chegamos realmente ao fim. E não tenho a certeza se estou infeliz. Somos como pessoas que se separam ao fim de uma viagem, e não há nada que se possa fazer».

Dei ordens para que Mical fosse tratada com todas as honras e cortesia, mas que ficasse limitada aos seus aposentos - até que, pensei,eu a pudesse estabelecer numa residência que fosse só dela - e que lhe fosse negado o acesso ao meu espaço e à minha pessoa.

Quando rejeitei Mical e ordenei que fosse excluída da minha presença, o sopro frio do Inverno caiu sobre mim. Dera a Mical tudo o que podia; as minhas maiores façanhas foram realizadas por causa dela. No exílio, nas longas noites do deserto, a beleza dela viera ter comigo em sonhos, e tivera amantes que choravam quando eu acordava com o nome dela nos lábios.

Agora eu pensava: «ela não passava de uma mulher comum. A Mical dos meus sonhos fora eu que a inventara. E esse pensamento causava-me dor. Eu supusera que a minha casa estava construída sobre uma rocha, e descobri que as suas fundações moviam-se como as areias do deserto».

Algo em mim se quebrou naquela altura, e jamais foi reparado. Durante meses não tive qualquer prazer com mulheres, e as minhas outras esposas e concubinas, de olhos baixos e pestanas úmidas de lágrimas, censuravam a minha falta de interesse.

Para me consolar, atirei-me ainda mais energicamente à tarefa para a qual o Todo-Poderoso me escolhera: transformar as tribos de Israel numa nação poderosa e num estado uno. Trabalhava longas horas. Muitas vezes, a aurora tocava o céu de cor-de-rosa antes que a lamparina se extinguisse no meu quarto, que era ao mesmo tempo local de trabalho.

No tempo de Saul, as responsabilidades pela administração e pelo governo do povo eram distribuídas de uma forma casual e à sorte - o pobre Saul não percebia nada de método. No seu tempo, os efeitos não foram calamitosos, pois a casa do rei era pequena, a sua autoridade fraca, e o alcance do governo limitado. De fato, para dizer a verdade, eu chegara a ver que Saul, que eu receara e a quem servira com reverência na minha juventude, não era mais do que um chefe guerreiro tribal. Comandava o exército, mas, entre o povo, eram os chefes das tribos e os homens mais importantes das aldeias que orientavam as coisas. E, nos assuntos da Lei, a ordem dos sacerdotes ainda vigorava, por vezes numa associação difícil com o costume.

Agora eu via que isso não poderia ser assim. Por um lado, eu agora governava mais povos do que os Filhos de Israel. Entre os meus súbditos incluíam-se muitos de outras tribos, e era necessário que eu regulamentasse as relações entre eles e impusesse uma certa uniformidade. Nisso fui imensamente ajudado pela sagacidade de Aitofel, que quase compreendeu na totalidade quais eram os meus objetivos, aproximando-se mais deles do que qualquer outro homem - independentemente da causa por que eu mais tarde teria de censurar Aitofel, nunca escondi a minha admiração pela sua inteligência. Também fui ajudado por Huchai, o erequita, que entrara ao meu serviço como funcionário, mas que eu depressa promovi devido à sua evidente inteligência. Huchai, sendo fraco de estatura e um pouco coxo da perna esquerda, não era soldado, e por isso, era desprezado por Joab. Mas, lembrando-me dele, pensei: «aquilo que eu estou a tentar criar necessita de todos os tipos de talento, e um homem desprovido de virtudes militares pode, ainda assim, ser útil». Verificou-se que eu estava certo quando pensara assim, pois o conselho de Huchai era astuto, e, encontrando-se mais próximo dos meus filhos em idade do que eu próprio, ele podia manter-me informado quanto aos sentimentos que dominavam os homens mais jovens. Tenho observado muitas vezes como os reinos entram em declínio à medida que o rei avança em idade.

Uma das minhas preocupações principais era fortalecer o exército, pois Israel estava rodeado de vizinhos invejosos e hostis. Recrutei uma esplêndida brigada de guardas - um corps d'élite, como os sírios lhe chamam. Um batalhão estava sempre ligado à minha própria pessoa, para servir de guarda pessoal real, enquanto o outro servia com o corpo principal do exército, no ponto de maior perigo. Os dois batalhões trocavam de posição de seis em seis meses. Desta forma, eu assegurava que ambos estivessem em contacto pessoal comigo, e, na realidade, cada guarda prestava juramento de fidelidade ao rei, mais do que a Israel. Muitos eram recrutados de tribos do outro lado das nossas fronteiras, especialmente entre os filisteus, e eu estava sempre pronto a admitir no corpo estrangeiros de terras mais distantes. Eu continuava muito consciente das rivalidades e invejas que dividiam Israel. Assim, dava valor aos guardas que estavam livres de fidelidades tribais e que

serviam unicamente a mim. Alistavam-se por um período de vinte anos, ao passo que o corpo principal do exército consistia de recrutas a curto prazo.

Manter uma tal força era caro, e eu dedicava muita atenção à reforma do sistema administrativo, necessária para garantir o pagamento de Impostos numa base regular e satisfatória. Eu sabia que isso poderia não ser uma medida popular, mas, acreditando que era necessária, não fugi à tarefa, e confiei que a minha reputação e autoridade natural seriam suficientes para assegurar a não totalmente relutante obediência dos meus súbditos. Além disso, eu estava ansioso por acumular riqueza para poder, com o tempo, construir um templo digno da grandeza do Senhor dos Exércitos.

O comandante da guarda era Benaías, da minha própria tribo de Judá, um homem da maior integridade. Não me desagradou completamente descobrir que Joab não gostava dele, e que Benaías não sentia qualquer afeição pelo meu segundo comandante. De qualquer maneira, Joab desejava que o comando da guarda fosse para o seu irmão Abisai. Mas eu preferia Benaías. Muitos dos guardas, como eu disse, eram filisteus, e Abisai mantinha o seu velho preconceito contra a nação deles. Não teria sido preciso mais do que este fato para fazer dele um comandante inadequado - mesmo que não tivesse havido outros motivos.

Uma vez que mencionei o meu objetivo de acumular riqueza para construir uma casa digna do Senhor, parece-me ser bom para mim dar como falsas certas histórias que me contam que foram inventadas relativamente a este assunto.

Diz-se que, quando eu contei a minha intenção a Natan, o profeta, ele me censurou em nome do Senhor, e me disse que o meu objetivo era uma ofensa ao Todo-Poderoso. Este é, claro está, exatamente o gênero de história em que os homens gostam de acreditar. Aparentemente, Natan - por quem eu, incidentalmente, sempre tive a mais elevada estima - disse-me, primeiro, que o Senhor preferia habitar numa tenda do que numa casa de cedro; e, segundo, que o Senhor me rejeitara como construtor do Seu templo porque eu era um homem de guerra, manchado de sangue. O fato de se contarem estas duas histórias contraditórias como se fossem compatíveis uma com a outra deveria ser suficiente para colocar ambas em questão.

É verdade, certamente, que Natan, como profeta itinerante, não gostava da idéia. Por outro lado, a casta sacerdotal dos levitas, de que o meu amigo Ahiatar era agora chefe, apoiava entusiasticamente a minha ambição, e não tinha quaisquer dúvidas de que o Senhor veria com bons olhos a construção de um templo que testemunharia a Sua glória. Quanto à acusação de que eu era um homem de sangue, era absurda; todas as minhas guerras foram conduzidas em nome do Altíssimo.

No meio de tudo isto, o fato é que construir um templo é um enorme e dispendioso empreendimento. Eu não desejava deixar ao meu sucessor uma carga de dívidas. Assim, decidi que não começaria a construir enquanto não reunisse riqueza suficiente para financiar a idéia. Agora que o fiz, estou demasiado velho e desprovido de energia para embarcar numa empresa, cuja conclusão é certo que eu não poderia ver, pois não viveria o suficiente para isso. Assim, confiei a tarefa a Salomão. Ele desempenha-la-á admiravelmente, pois herdou um gosto excelente tanto da mãe como de mim próprio. Salomão deveria estar-me agradecido pela longa e paciente acumulação de riqueza que lhe permitirá realizar a tarefa sem extorquir dinheiro ao povo nem sacrificar a sua popularidade. Mas a sua alma gelada é incapaz de uma emoção tão generosa como a gratidão. E ele não desejará de forma alguma reconhecer a dívida que tem para comigo.

Mas nenhum rei devia procurar popularidade, embora possa ficar feliz por ser recompensado com ela. Se a ganhar, deve ter cuidado. O nosso povo é inconstante, e a popularidade é efêmera. Eu próprio tenho sofrido vicissitudes da sorte e conspirações contra a minha vida. Felizmente, graças à eficiência dos meus serviços secretos, cuja gestão confiei a Aitofel, tenho-lhes sobrevivido.

Sobrevivi também a mais de cem batalhas, graças ao Senhor. Destruí o poder dos filisteus. Subjuguei o reino de Moab. Triunfei sobre Edom e sobre a Síria. Fiz com que o meu nome fosse receado pelo mundo inteiro. Consolidei as fronteiras de Israel e empurrei os meus inimigos à minha frente como o vento leva no seu sopro as areias do deserto. Ninguém antes de mim tornou o nome de Israel uma palavra a temer entre as nações do mundo.

Suportei e ultrapassei a traição. Quando Naás, rei de Amon, morreu, enviei embaixadores a seu filho Hanun, para lhe assegurar que continuaria firme na amizade para com ele, como fora com seu pai. O jovem era impetuoso e invejava a minha grandeza, que, de fato, impressionara de tal forma Naás que ele se submetera a mim como seu suserano. O seu filho recebeu os meus embaixadores com insultos e um desafio: cortou-lhes a barba e rasgou-lhes as roupas de forma a exibirem os órgãos sexuais. Em seguida formou uma aliança com as tribos selvagens dos sírios, oriundos do outro lado do grande rio Eufrates, e fez guerra a Israel. A conselho meu, Joab dividiu as nossas forças, empurrou Hanun até à sua cidade de Rabá, desbaratou as tribos Sírias, e cercou a cidade. Esta encontrava-se bem fortificada e o cerco foi longo e duro, mas eu estava calmo, pois não duvidava do nosso êxito final.

Não participei diretamente nesta guerra, contentando-me em dirigir o seu rumo de Jerusalém. Cansara-me da guerra, e procurava prazer noutras coisas. Mas, desde que rejeitara Mical, não conhecera qualquer prazer. A minha vida caíra numa disposição outonal, e só a atenção ininterrupta que eu dedicava aos assuntos de governo servia para esconder de mim a dor que sentia, e me arrancava ao desespero. Até a minha vocação para a poesia secou. E sentia-me uma casca seca. Olhava as estrelas e descobria-as obscurecidas por nuvens pesadas.

Nas noites quentes do início do Verão, eu não conseguia dormir. Durante o dia era assaltado por uma lassidão a que não estava habituado, e sentia-me perpetuamente exausto. No entanto, quando me retirava para o meu quarto, o sono era-me negado. Antigamente, teria chamado uma concubina, ou, ainda em tempos mais antigos, chamava Laís ou outro rapaz. Agora não sentia qualquer inclinação para aquilo que em tempos tinham sido prazeres, mas que, sentia-o agora, não me traria nem alívio nem satisfação.

Eu alcançara glória perante todos os homens, e encontrara favor aos olhos do Senhor. E estava aborrecido e cansado de todas as coisas, até da minha posição.

Não conseguia rezar. Não conseguia compor música nem poesia.

Por vezes recordava as noites da minha juventude quando apascentava os nossos rebanhos nas montanhas por cima de Belém. Do que tinha agora saudades era do que sentira tão intensamente naquela altura: a ansiedade do meu corpo e a vivacidade da imaginação da minha alma. Olhava agora por cima dos terraços de Jerusalém e perguntava-me porque é que as pessoas dormiam, quando o rei não conseguia.

Uma noite eu estava especialmente perturbado. Tivera nesse dia uma conversa acrimoniosa com Aitofel, que me relatara que os seus agentes o tinham informado de um encontro entre Amnon, o meu filho mais velho, e certos reis filisteus.

- Quem te deu autoridade para colocares os teus espiões atrás dos meus filhos?

- Meu rei e senhor - respondeu ele -, é em prol da segurança de Israel que eu atuo.

Mas não acreditei nele, suspeitando que, por razões e objetivos pessoais, ele desejava colocar-me contra Amnon, que nunca gostara dele.

Eu disse:

- Amnon é um rapaz de temperamento difícil e instável, mas ama-me e é-me fiel. Não desejo ouvir mais nada sobre este assunto, e ordeno-te que retires os espiões que colocaste atrás dele.

- Muito bem, meu rei e senhor - respondeu ele, mas distingui um tom de ironia na sua voz, e não podia ter a certeza de que ele me obedeceria. E, contudo, eu não ousava destituí-lo, pois sabia que ele usara a sua posição para ganhar muitos amigos e dependentes. Na verdade, eu sentia-me rodeado por aqueles que eram mais leais a Aitofel do que a mim próprio, David, o rei. E sabia que ele andara especialmente empenhado a formar a sua clientela entre os jovens da corte e do exército. Eu receava que ele os tivesse colocado contra Amnon; e, no entanto, sentia-me impotente para agir contra Aitofel, tal como era impotente para agir contra Joab.

Então, depois de o ter mandado embora, dei comigo a perguntar-me se a notícia que ele me trouxera sobre os encontros de Amnon com os filisteus poderiam não ser verdade. Eu amava Amnon, o meu primogênito, filho de Aínoam, nos dias em que eu ainda não era rei, mas um fugitivo do ciúme de Saul. Talvez porque a sua infância fora tão perturbada e perigosa, Amnon crescera sem aquela confiança que eu sempre senti, e que era tão evidente no seu irmão mais novo e mais bonito, Absalão, filho de Maaca. Eu sabia que Amnon tinha ciúmes de Absalão e receava que ele acreditasse, contra toda a lógica e todas as evidências, que eu preferia o seu irmão mais novo. Assim, embora eu tivesse dado a Amnon todas as provas do meu amor e favor, ele não conseguia acreditar nessa realidade, pois não conseguia acreditar em si próprio.

Desta forma, eu não podia pôr completamente de parte as informações dos espiões de Aitofel, e, no entanto, achava-as intoleráveis, e ficara ofendido com o que Aitofel afirmava saber. Eu estava perplexo e perturbado, e a minha alma estava pesada de maus presságios.

Nesta disposição de descontentamento, deixei o meu leito sem sono e caminhei para o terraço que se abria para fora do meu quarto.

O ar estava quente e a Lua erguia-se, alta, por cima da cidade. No entanto, eu não conseguia sentir a glória do Senhor. Encostei-me ao parapeito, e pensei que nunca estivera tão-só em toda a minha vida, já que, nas noites da minha juventude passada nas montanhas por cima de Belém, eu sempre estivera consciente do futuro glorioso que me esperava. E agora tudo era pó e cinzas e desânimo.

Então uma figura moveu-se num dos terraços das casas por baixo do palácio. Era uma mulher. Alheia à minha presença, ela despiu-se e começou a passar a esponja pelo corpo, molhando a esponja numa bacia e deixando a água fresca deslizar-lhe pelo corpo. Por um momento, observei-a apenas com indolente curiosidade, e então, quando ela se inclinou de novo sobre a bacia, a Lua vagabunda iluminou-a, e eu sustive a respiração. Nunca vira, eu estava disso plenamente consciente, tal graciosidade de movimentos, tal perfeição de formas. O cabelo pendia-lhe sobre os seios e ela atirou a cabeça para trás, e as tranças caíram-lhe sobre as costas e ela passou a esponja pelos seios. Depois, inclinando-se novamente para a frente, passou a esponja por entre as pernas. E o desejo cresceu em mim, e era como se eu pudesse provar a maciez húmida da sua carne.

Ainda inconsciente de que eu a observava - agora com uma urgência que parecia impossível não dever ser-lhe comunicada, mesmo através dos terraços - ela ficou, por um momento, nua, os braços estendidos em direção à Lua que a admirava. Em seguida, cobrindo-se com a fina túnica, desceu para a escuridão da sua casa.

Durante o que me pareceu muito tempo, observei o local por onde ela tinha desaparecido, como se a força do meu desejo a pudesse trazer de volta. Esse desejo tornara-se-me de fato evidente. Agradeci ao Senhor por me ter concedido tal visão e voltei para o meu quarto e toquei uma sineta para chamar um escravo, a quem ordenei que acordasse o meu sobrinho Jonadab, que fizera meu camareiro.

Ele veio rapidamente, esfregando o sono dos olhos, e, contudo, os minutos que esperei pareceram-me horas. Descrevi-lhe o que vira e perguntei-lhe diretamente quem era a mulher.

Jonadab riu. Era um rapaz alegre, delgado e de rosto magro, amante da bisbilhotice (razão pela qual eu o selecionei para aquele cargo) e da intriga.

- É extraordinário, meu rei e senhor - disse ele -, que perguntes, pois o nome dela é Betsabé e é a mulher mais bonita de Jerusalém.

- Mas quem é ela e porque é que eu não a vi antes?

- Meu senhor, ela é muito jovem, é neta de Aitofel e só há pouco tempo veio para a cidade. Na verdade, só há pouco tempo é que se transformou numa beldade. Há seis meses era uma menina engraçada e roliça e nada mais. Conheci-a quando era criança, e devo dizer que nunca pensei...

- Vai-ma buscar.

- com certeza, meu rei e senhor, só que - fez uma pausa e dirigiu-me um sorriso no qual li malícia e talvez alguma hesitação - há outra coisa que deves saber. Ela não é virgem, é uma mulher casada.

- Uma mulher casada? E Aitofel é avô dela?

- Assim é. Mas... - Jonadab voltou a sorrir, e, desta vez, só se lia malícia - o marido dela não está em Jerusalém. É um tal Urias, um hitita, oficial da tua guarda pessoal presentemente ao serviço do rei no cerco de Rabá. O meu tio deseja que a vá buscar?

-Jonadab - disse eu -, tenho de a possuir. É tão simples e terrível quanto isso. Sejam quais forem as conseqüências. Ele sorriu.

- Compreendo perfeitamente - disse ele. - Mas ela não é uma mulher que possa ser chamada abertamente para o que eu compreendo tão perfeitamente. Sendo assim dir-lhe-ei que o rei recebeu notícias do marido através de um mensageiro do exército, notícias essas que deseja transmitir-lhe imediatamente e em pessoa.

- Ela ama o marido?

- Casou com ele porque o avô assim determinou. Urias há muito que é um dos seus agentes.

- E ela virá se a chamarmos a esse pretexto?

- Quem pode recusar alguma coisa ao rei?

- E quando a trouxeres ao meu quarto, o que pensará ela?

- Repito, quem pode recusar alguma coisa ao rei? - Um sorriso de prazer trocista iluminou-lhe o rosto, como um relâmpago. - Que mulher o quereria fazer?

 

Ordenar o que se devia proibir: fazer o que se sabe que não se deve. Haverá prazer mais intenso e urgente? Enxagüei a boca com óleo de hortelã-pimenta para purificar o hálito. O silêncio da noite foi quebrado pelo ladrar de cães nos jardins da cidade. A calma do palácio envolvia-me. Comprimi-me contra o marmore casto e fresco de uma coluna. A música dançava em todos os meus membros e órgãos. E eu esperava.

Ela entrou no meu quarto com o passo leve da aurora, a túnica revelando um seio soberbo, o olhar úmido e os lábios macios entreabertos.

- Rosa de Sharon, lírio dos vales - disse eu. Ela ajoelhou-se perante mim e agarrou-me as mãos.

- Meu rei e senhor, diz-me Jonadab que tens notícias de meu marido Urias.

Eu coloquei a mão na floresta macia do cabelo dela e entrelacei-o nos meus dedos. Olhei, por cima da cabeça dela, para Jonadab, e fiz-lhe sinal para que nos deixasse. Ele retirou-se, sorridente, e eu levantei Betsabé, e inclinei-lhe o queixo para que ela me olhasse nos olhos.

- Cheiras a flores de amendoeira - disse eu. - Não tenho notícias de teu marido.

- Oh, meu rei e senhor, nesse caso eu não deveria estar aqui ela suspirou, baixando os olhos, mas estendendo-me os lábios. Eu atraí-a a mim e beijei-lhe os lábios, alimentei-me de rosas e provei o prazer. A língua dela procurou a minha e dançou. Eu deixei escorregar a mão sob a fina túnica dela, abri-a e deixei-a cair para o chão de mármore. Beijei-lhe os seios quentes e deixei as mãos percorrerem-lhe o corpo, e a carne dela cedia e ela apertava-se contra mim.

- Eu amo o rei - murmurou ela -, desde que o vi quando era menina e não tinha seios.

Ela encostou-se aos meus braços e eu levantei-a e levei-a para o meu leito.

- Oh, minha pomba, entra nos lugares secretos... alimenta-te de lírios... até que o dia nasça... até que as águas... as flores apareçam na terra... o canto da rola se ouça... Oh, meu amor, minha pomba...

E assim entrei nela e nos tornamos uma só carne, três, não, quatro vezes, e ela suspirava as palavras entrecortadas do amor, dormindo, depois, nos meus braços, os profundos olhos azuis-escuros fechados, serenos, e as tranças de corvo do seu cabelo espalhadas sobre mim. Provei o vinho do corpo dela e a minha mão repousava na fenda macia, o local secreto de prazer entre as suas coxas, enquanto ela, a dormir, soltava leves gemidos, e a sua mão, que desafiava o sono, me agarrava. Libertei o braço de debaixo do seu corpo e debrucei-me sobre ela, beijando a maciez de penas do seu ventre, e ela não se movia, suspirando apenas suavemente em doce rendição:

Trouxeste-me flores de amendoeira, e o sopro

de um vento distante impregnado de apaixonada doçura

Como se o mar estivesse no teu corpo.

A alegria da tua carne macia!

Para lá do amor ha um fantasma dessa necessidade

Que respira pela alma, tão calma,

E, contudo, o vento do deserto leva-a para lá do pôr do Sol.

Que pequeno é o mundo, que leve, nas tuas mãos!

Como as areias do deserto se estendem, vazias, para além de nós.

 

Perto da madrugada, ela moveu-se, e não havia nela nem ansiedade nem - o que eu receara - vergonha. Atraiu-me de novo a si, e mesmo então, à medida que a luz crescia, estava relutante em partir.

- Coloca-me como um selo no teu coração - murmurou ela -, pois o meu amor é forte como a morte...

Seria porque sabia, desde o início, que Betsabé seria a última mulher a quem eu renderia todo o meu ser, a última que me envolveria completamente, que fiz amor com ela com uma intensidade que não conhecera antes? Os amores da juventude têm o seu próprio ardor, pois são viagens de exploração. Mas, no amor da maturidade, também há recordação, e uma consciência de que o carro do tempo avança, veloz, em direção ao abraço negro da noite. Falei em rendição, mas havia também conquista, pois o desejo inspirado e arrebatador dela exigia a sua absoluta submissão às minhas exigências. E, além disso, ela conhecia, como que por natureza, toda a perícia, todos os requintes e expedientes pelos quais o prazer é intensificado e prolongado e, de fato, deve ter sido por natureza, já que ela foi dura, quando lho perguntei, e me respondeu que o marido, Urias, não tinha habilidade para a arte do amor, e estava acostumada, como ela disse, a que ele a montasse com o ímpeto de um touro, não se preocupando nada com o prazer dela. Prazer verdadeiro! - uma palavra pobre e meio-morta para descrever o que experimentamos juntos. Ela tinha o ardor da minha selvagem Maaca, agora meio-domada, associado a uma imaginação e destreza que eu antes apenas conhecera numa cortesã filisteia.

Uma manhã, acordando nos meus braços, e sentindo a paixão impaciente da carne ainda adormecida comprimida contra mim, eu pensei como Mical sempre escondera de mim uma parte dela, talvez a parte essencial, negando-me aquela submissão venerável que, exigindo a própria rendição do amante, transformam macho e fêmea numa só carne, num só ser, sendo cada um, no mesmo momento, conquistador e conquistado.

Nesse instante perguntei-me como pudera alguma vez ter suposto que amava Mical verdadeiramente. O verdadeiro amor pressupõe conhecimento completo, e ela proibiu-mo.

Betsabé acordou, então, com uma estranha, distante, por um momento, e até perigosa expressão no olhar brilhante. Em seguida essa expressão desapareceu, como se tivesse sido dirigida a outro que podia partilhar o seu leito, mas de quem ela não recebia qualquer satisfação, com quem ela nunca conheceria êxtase, mas cuja aproximação ela aceitava como um dever, com indiferença. E então sorriu, aquele meio-sorriso ao canto da boca e que lhe dançava nos olhos, um sorriso acolhedor, lascivo na sua sensual e voluptuosa certeza, um sorriso que me atraiu a ela e para dentro dela, aniquilando a distinção entre sexo e ser, e, contudo, engrandecendo, ao mesmo tempo, a minha sensação de ambos. Ela aceitava o que eu oferecia, o que eu fazia, para ela e com ela, como se todos os atos que criávamos juntos fossem um só ato, uma celebração contínua da união de homem e mulher, corpo e alma, tempo passado e tempo presente.

Fizemos amor à medida que o dia regressava à cidade e o Sol iluminava o nosso leito com os seus raios de vida.

Havia perigo nas suas visitas demasiado freqüentes ao palácio, pois a Lei de Moisés é dura, e o castigo para o adultério é a morte.

Quando ela pensava em Urias, chorava, mas de raiva, não de pena. E amaldiçoava Aitofel, que a obrigara a aceitar aquele casamento, fazendo, assim, com que o seu amor fosse um pecado contra a Lei. É que ambos sabíamos que nem mesmo o rei pode transgredir a Lei, e que, à face da Lei, se Urias chamasse esta em seu auxílio, nem mesmo a minha proteção lhe poderia assegurar a vida. Ela reconhecia isso, sendo tão inteligente como era bonita, e sabendo que os sacerdotes tinham poder até sobre os reis. E a consciência do nosso pecado e do perigo que ela corria era como uma nuvem negra que se elevava por detrás de montanhas proibidas na manhã brilhante do nosso amor.

Assim, formei o hábito de me escapar do palácio quando a noite caía e de me dirigir, disfarçado, para a casa de Betsabé. A sua velha ama, em cuja fidelidade ela confiava, era a única pessoa a que permitimos acesso ao nosso segredo, e ela era pelo menos suficientemente discreta para respeitar o meu anonimato e para não me dar qualquer indício de que reconhecia o rei, embora, naturalmente, eu soubesse que o meu disfarce não a enganava.

Betsabé adorava ouvir-me falar das minhas façanhas, das guerras e das batalhas em que participara, da ira de Saul, e do amor de Jónatas. Só a ela confessei a minha antipatia por Joab, e ela respondeu-me com um aviso contra o seu próprio avô, Aitofel.

- Acredita, meu amor, ele deixou-se corromper pela inveja. Embora o tenhas transformado num grande homem em Israel, ele acha que podia ser maior ainda, e porque é dissimulado e traiçoeiro por natureza, a tua virtude incomoda-o. Ele obrigou-me a casar para ligar Urias a si, e Urias informa-o de tudo o que se passa no exército, de qualquer rumor que ouve, qualquer descontentamento que é expressado. E Aitofel usa Urias para atrair a si jovens oficiais, de forma a que se convençam de que devem fidelidade a ele próprio e não a ti, que és o rei.

Uma noite ela chorou, e quando eu a pressionei, ela disse:

- Estou com medo. Urias é um homem cruel e violento. Quando descobrir o nosso amor, o nosso amor... - e a sua voz desfaleceu.

- Mas achas que eu não te protegerei?

- Contra a Lei?

- Contra a Lei.

Mas eu sabia que ela não acreditava em mim, nem confiava no meu poder. Tomei-a nos braços para lhe provar mais uma vez a força do meu amor, e, por algum tempo, ela ficou ali deitada, a tremer, como se se negasse a mim. Então, à medida que eu explorava o corpo dela, o tremor cessou, e ela entregou-se-me com um abandono tão completo que eu fiquei a conhecer a profundidade do seu temor e da sua apreensão.

- Urias nunca me usou como uma mulher deve ser usada - murmurou ela. - Eu nunca conheci o prazer até... outra vez, outra vez, leva-me ao monte da mirra, ao outeiro do incenso, ó meu amado, passa a mão pela fresta da porta, e eu abrir-te-ei...

- Meu amor, Betsabé, meu jardim secreto de prazeres... quão melhor é o teu amor do que o vinho, e o cheiro do teu corpo do que todas as especiarias...

(Porquê? Porque é que agora me torturo com estas lembranças, escrevendo pensamentos como palavras soltas, as palavras soltas de canções, da música dos céus que nunca é tocada por instrumentos terrenos? Pensando em Betsabé, transformo-a em Mical, que nunca me libertou desta maneira do seu ser, e chamo Ahlsag para me trazer alívio com os seus lábios de cereja, para afastar de mim a minha angústia, para que eu possa encontrar prazer através do conhecimento da sua obediência envergonhada...)

E então ela disse-me que estava grávida.

Na mistura de alegria e terror que ela sentia, a sua beleza estremeceu nos meus olhos. As suas têmporas tinham um toque de orvalho, e os lábios tremiam-lhe como folhas ao vento do seu medo.

- Urias fará com que eu seja julgada - soluçava ela -, e o rei não pode confessar o seu pecado perante todo o povo.

Em seguida, acrescentou:

- A minha ama Sara tirar-me-á a criança.

De início, eu não compreendi. Pensei: «isso não servirá, pois ela não poderá disfarçar o seu estado perante o mundo, nem poderá evitar que Urias ou Aitofel tenham disso conhecimento». Eu receava

- sim, receava - que Aitofel descobrisse no meu amor os meios para me destruir.

E então soube o que ela pretendia, e gritei:

- Não. A vida da criança é a dádiva do Senhor.

No dia seguinte, disse-lhe:

- Chamarei Urias do exército. Descobrirei um pretexto de que ninguém suspeitará. E então enviar-te-ei, e deves deixar que ele se deite contigo. Assim ele acreditará que o filho é seu, e tudo estará bem.

Ela lançou-me um olhar de censura.

- Se me amasses, não me pedirias que me deitasse com outro homem.

- Ele é teu marido.

- Quero eu dizer - continuou ela -, especialmente com o meu marido. Se me amasses, não me pedirias que me deitasse com o meu marido, que nunca foi para mim um verdadeiro marido.

- É porque te amo e me preocupo contigo que te peço para que o faças.

Durante muito tempo, ela resistiu, odiando a realidade, como é típico das mulheres.

- Se me amasses - dizia ela -, abandonarias tudo por mim, renunciarias ao trono em favor de Amnon, e levar-me-ias daqui contigo. Eu viveria feliz contigo no deserto.

Eu sabia que ela mentia. Sabia que ela não tinha a percepção de que estava a mentir, mas enganava-se a si própria.

- Não fiques zangado comigo, meu amado - disse ela -, por eu ser fraca e ter medo, mas não posso fazer o que me pedes. Não posso submeter-me àquele homem. Preferia morrer.

Apertei-a contra mim, coloquei a língua junto à orelha dela e pronunciei doces palavras de amor, e ela gritou:

- Estou doente de amor. Foi o amor que me fez, e é o amor que me destrói. Porquê, meu amado? Porque me observaste no terraço, porque vieste ter comigo como um jovem veado, para me fazeres dançar nas montanhas, numa dança que me destruirá? Eu não estava viva até tu me tocares.

Eu lisonjeei, eu persuadi, eu argumentei. Tudo em vão. Em seguida tomei-a nos braços e ela gemeu:

- Deixa-me morrer de amor, Ó Senhor! - e eu bebi lágrimas salgadas das suas faces.

Mas, ao amanhecer, ela compôs o rosto. Enfrentou o Sol que se levantava e disse que seria como eu desejava.

- Mas faço-o - disse ela - por tua causa, para que não sofras desonra em frente de todo o povo, pois eu própria escolheria a morte.

Puxou-me a si, exigindo amor como se não houvesse amanhã, como se estivéssemos deitados num jardim que envolvesse o mundo inteiro.

Encontrava-se perante mim, moreno e bruto, e desfazia-se em sorrisos. Movimentava desajeitadamente o corpo pesado. Interroguei-o sobre o cerco de Rabá e sobre o estado de espírito das tropas. Dei-lhe a entender que Aitofel me informara de que ele, Urias, era um homem em quem eu podia confiar para que me relatasse qualquer descontentamento, quaisquer dúvidas quanto à maneira como Joab estava a conduzir o ataque à cidade. Pedi-lhe a opinião sobre os motivos por que estava a levar tanto tempo. Deixei-o compreender que estava preocupado, que Joab me enviara informações que eu considerava inquietantes, mas, de que, no entanto, não tinha razões sólidas para duvidar. Eu disse, em quase tantas palavras, que o poder do rei era limitado, uma vez que tinha de confiar em informações que lhe eram dadas por aqueles em quem ele, por necessidade, depositara a sua confiança, mas que poderiam ter motivos para o enganarem. Era por isso que o mandara chamar à minha presença, porque Aitofel me assegurara que ele era um homem em quem eu podia confiar plenamente. Mais do que isso, disse eu, eu entendia que Aitofel demonstrara a sua própria confiança nele, e a elevada consideração que tinha por ele, dando-lhe a sua neta em casamento, uma donzela, segundo me tinham informado, de notável beleza e virtude, digna de um grande guerreiro. Eu posso até ter ido tão longe - de fato, eu fui tão longe - ao ponto de insinuar que, sob recomendação de Aitofel, eu dera instruções para que Urias fosse promovido, até ao mais alto nível. Joab, afinal, estava a envelhecer, e os seus poderes podiam estar em declínio.

Respondeu-me daquela forma balofa de fanfarrão, própria de soldado, e que eu sempre desprezei, e com aquela presunção peculiar e irrefletida que provém de uma total insensibilidade aos outros. À medida que ele falava, o juízo que Betsabé fazia dele confirmou-se: o homem era grosseiro, pesado e hipócrita, sem uma centelha de imaginação. Devia ser ciumento, com certeza.

Ao mesmo tempo era evidente - pois quero ser justo para com ele, tanto mais porque ele despertava em mim uma sensação de repulsa pela sua pessoa - que ele demonstrava um certo domínio dos assuntos puramente militares. Os seus comentários à forma como o cerco estava a ser conduzido não eram desprovidos de sentido. Quando, induzido à irreflexão pela simpatia que eu mostrava, ele falou com desdém da forma como Joab conduzia as coisas, e reconheci perspicácia no seu julgamento. Eu não podia negar que ele era provavelmente um oficial de regimento eficiente, embora a sua brutalidade inata evidenciada na forma como falava, e, na verdade, também na forma como movia aquele corpo pesado de boi, sugeria que ele devia comandar o medo, mais do que o afeto, dos soldados subalternos. Quando, para me impressionar, ele me contou como reprimira uma incipiente explosão de revolta, a minha admiração pela sua eficiência (partindo do princípio de que ele falava verdade) foi temperada pela repugnância que causou em mim o prazer claro que ele obtivera com o castigo que infligira.

Mesmo assim, louvei-o, elogiei-o, até, pois era minha intenção fazê-lo acreditar que encontrara favor a meus olhos. E, além disso, nada dá a um homem uma opinião tão boa de um superior como a atribuição de elogios por parte deste.

- Vejo que és um soldado de raro calibre - disse eu -, um homem à minha maneira, e em cujo bom senso e perspicácia eu posso confiar.

Em seguida interroguei-o exaustivamente, em grande pormenor, sobre as fortificações de Rabá, e, ao fazê-lo, tive o cuidado de lhe lembrar, sem que ele se apercebesse de que eu o estava a fazer, que eu próprio era um general de grande experiência e renome, com quem ele tinha a sorte de estar a falar de igual para igual.

Finalmente, eu disse:

- Estou-te mais agradecido, Urias, do que as minhas palavras o poderão dizer. Não podes imaginar quanto me é difícil, aqui, afastado do campo de batalha por necessidade, obter uma imagem clara e coerente de como as coisas estão na frente. Preencheste admiravelmente as lacunas inevitavelmente deixadas pelos outros relatos que tenho recebido, e sugeriste medidas em que pensarei muito, e estou certo de que, muitas delas, pelo menos, deverão ser colocadas em prática. Aitofel, em cujos conselhos sensatos há muito que confio, como tenho a certeza que sabes, falou-me muito bem de ti. Por isso, eu esperava ficar impressionado, sabendo que ele não é homem dado a exageros, mas estou ainda mais impressionado do que estava à espera. Assim, estou-te muito agradecido pelo tempo que me concedeste, pela tua clara exposição do estado das coisas, que se vê que consideraste longamente e com inteligência. Mas és um jovem, e sem dúvida que és vigoroso, e mantive-te afastado, por mais tempo do que seria razoável, dos prazeres que um soldado espera quando está de licença. Estarás com certeza ansioso por te encontrares com a tua mulher, e, se ela for tão bonita quanto me dizem, é uma ansiedade compreensível. Por isso libertar-te-ei agora para os braços e para o amor dela. Não tenho dúvidas de que te sairás tão nobremente no leito como no campo de batalha. E para mostrar que aprovo a tua conduta, e também para compensar a tua senhora, de cujo nome, envergonho-me de o dizer, não me recordo, tal é, meu amigo, a marca da idade, ou melhor, o castigo por se envelhecer, darei ordem para que enviem um prato de rara e excelente comida das minhas cozinhas para tua casa, se me deres a tua morada, assim como vinho da melhor colheita, e, desta forma, espero apaziguá-la, para que me perdoe pelo tempo que, inconscientemente, te mantive longe dela. Podes, assim, retirar-te, com os meus agradecimentos e o desejo sincero de que passes uma noite de amor, meu jovem touro, como bem mereces.

As minhas últimas palavras podem ter tido um sentido duplo, mas parece-me que ele não reparou. Na verdade, ignorante como ele era, não havia razão para supor que ele repararia. Urias retirou-se, e, depois, quando virou costas após ter recuado vinte passos e de se ter afastado de mim, caminhou daquela forma vaidosa, enfatuada e mal-educada que eu sempre detestei, vendo nela uma arrogância física

que reflete uma alma de bruto.

No entanto, eu estava satisfeito com a conversa que tivéramos. Por um lado, a aversão que ele despertara em mim libertou-me de quaisquer sentimentos de culpa que eu poderia ter tido ao pensar que fizera dele um cornudo - na verdade ele despertara em mim tal repugnância que, mesmo que eu não me tivesse já deitado (muitas vezes) com sua mulher, poderia ter desejado fazê-lo agora. Por outro lado, eu fizera o que decidira fazer. Penso que não o poderia ter feito de uma forma mais clara sem lhe ordenar expressamente que... não, até mesmo agora fujo da palavra certa, exatamente como naquela altura o simples fato de pensar nele a fazer amor com Betsabé - a minha adorada e encantadora Betsabé - enjoava-me e revoltava-me as entranhas.

Bem, disse a mim próprio, podia vingar-me quando ele tivesse feito aquilo que tinha de fazer.

Em seguida, aflorou-me à mente o mesmo pensamento, pois via que, embora eu ansiasse por humilhá-lo e reduzi-lo a um monte de carne abjeto implorando misericórdia perante mim, não poderia fazê-lo sem abandonar Betsabé - o que era impensável.

Nessa noite não consegui dormir, e, pouco depois de amanhecer, chamei Jonadab ao meu quarto. Ele chegou a esfregar os olhos.

- Manda imediatamente alguém - disse eu - a casa de Urias, o hitita, e chama-o à minha presença. Tenho de voltar a falar com ele antes que regresse ao exército.

- Não haverá necessidade de o mandar chamar - disse ele -, pois tropecei nele quando caminhava através da sala dos guardas. Não acordou, embora eu lhe tivesse dado um pontapé na cabeça. Duvido que esteja em condições de viajar cedo. Sentir-se-á mal de mais.

- Estás a dizer-me - perguntei eu - que ele não se deitou com a esposa na noite passada?

Pensei: «ela não foi dele, talvez o tivesse recusado, incapaz de ultrapassar a repulsa que a dominava com a perspectiva dos seus abraços». Em seguida pensei: «mas, se assim foi, ela destruiu-se».

Jonadab sabia do meu caso com Betsabé. Não sabia que ela estava grávida. Por isso, quando me contou que Urias estava deitado, ébrio, na sala dos guardas, estava convencido de que me trazia notícias que eu desejava ouvir. E, uma vez que ele pensava que era assim, poderia estar a mentir. Mas não ousei mandar chamar Betsabé para perguntar.

Jonadab disse:

- Quando ele te deixou, pode ter sido sua intenção ir ter com a esposa, mas deparou com velhos companheiros entre os oficiais da guarda. Começaram a beber, e Urias a vangloriar-se das suas façanhas junto a Rabá. Uma coisa levou à outra, e, quando me retirei, Urias mal estava consciente. E assim, o idiota está deitado, embriagado. É tudo.

Sorria com feliz malícia, confiante de que me agradava. Talvez, com esse fim em vista, ele próprio tivesse tentado Urias a beber mais. Por um momento, pensei depositar nele toda a minha confiança, mas, não sendo o segredo meu mas do meu amor, não o fiz. Em vez disso, mandei-o embora, permaneci, por longos momentos, em perplexidade, não recebendo ninguém senão o meu ajudante de camareiro. Antes de Jonadab sair, todavia, encarreguei-o da tarefa de cancelar os meus compromissos para essa manhã.

- Eras para dar uma audiência a Aitofel - disse ele.

- Diz-lhe que não posso. Diz-lhe que estou maldisposto. Mas fá-lo com bons modos e sem ênfase, para que ele não fique ofendido nem curioso.

Pensei em Betsabé, feliz porque o marido não estivera com ela, aterrorizado por causa das conseqüências do fato de ele não o ter feito. Ela recusara-se a recebê-lo, e agora eu imaginava a sua brilhante coragem a escurecer à medida que o medo a invadia como um vento do deserto.

À tarde, mandei novamente chamar Urias à minha presença. Ele veio, o hálito a tresandar do deboche da noite anterior. Ri como um veterano pode rir para outro, simulando solidariedade, e mandei vir vinho. Empurrei-lhe uma taça, e eu próprio também bebi, e, olhando por cima do rebordo do meu copo, disse:

- Que indivíduo estranho me saíste que pareces tão relutante em sentir prazer com uma senhora que todos dizem que é tão bonita!

Dei-lhe uma palmadinha nas costas, e servi-lhe mais vinho.

- Meu rei e senhor - disse ele -, sou um simples soldado e não sei falar.

Fez uma pausa, e eu conheci um momento de apreensão, pois ele falava como um homem que descobriu a infidelidade da esposa, e perguntei-me que rumores é que ele poderia ter ouvido dos oficiais seus companheiros. Embora eu tivesse tomado todas as precauções possíveis para manter secreto o meu caso com Betsabé, e para a proteger da descoberta daquilo que os sacerdotes e o mundo chamariam à sua vergonha, há quase sempre em tais assuntos, no entanto, alguma coisa que se sabe, alguma suspeita que é levantada, e eu não podia ter a certeza de que Urias ainda não soubesse da sua desonra. Além disso, eu não tinha dúvidas de que Aitofel pagava a agentes dentro da minha própria casa para que lhe relatassem todas as minhas entradas e saídas. Na minha disposição sombria, eu tive subitamente a certeza de que fôramos traídos.

Mas sorri:

- Até um soldado que não sabe falar anseia por mulheres. Até o mais nobre dos guerreiros tem de satisfazer outros desejos.

- Senhor, meu rei - disse ele -, a Arca do Senhor, e Israel e Judá habitam em tendas, e eu vim do exército, onde o meu senhor Joab e os servos do meu senhor estão acampados na planície árida. Porque deveria eu então ir para minha casa, para dormir em lençóis e ter prazer com uma mulher? A idéia repugna-me, e não o farei.

A estupidez e a complacência do discurso irritou-me de tal maneira que tive dificuldade em me controlar para não lhe bater nem o prender - para lhe ensinar a ser razoável e a ter melhores maneiras. Não tinha eu, o rei, insistido para que ele visitasse a esposa, e ele não me desobedecera?

Mas sorri novamente, e atirei para o ar uma piada sobre o dever de um soldado, que se estende à criação de guerreiros.

- Mas vejo - disse eu -, que és um homem de firmes princípios. Jantaremos juntos esta noite, e aproveitarei então a oportunidade para te persuadir de que um dever, o dever que tens para com o teu rei, não exclui um outro, que tens para com a tua esposa, e que, na realidade, ambos se misturam no dever que tens para com Israel.

Passei o dia ansioso por mandar alguém a casa de Betsabé para saber como ela estava. E, contudo, não ousei fazê-lo. Ocorreu-me durante a tarde que Urias poderia ter ido ter com ela nessa altura, e perguntei a Jonadab onde ele se encontrava.

- A jogar dados com os teus oficiais e a gabar-se do favor que encontrou junto de ti, meu rei e senhor.

Servi-lhe vinho ao jantar e conduzi uma conversa obscena, falando do meu gosto por mulheres e contando histórias de amor, na esperança de que isso lhe agitasse o desejo e que fosse ter com a esposa. Mas embora Urias risse, e respondesse com histórias suas, em que não havia nem inteligência nem beleza, mas nas quais eu lia antes um ódio por mulheres e um prazer em humilhá-las, e que me faziam sentir enojado ao pensar neste bruto a fazer amor com a minha amada, ele não mostrava qualquer vontade de estar com ela.

No entanto, quando me deixou, vacilante e ébrio, eu não podia ter a certeza de que ele não iria ter com ela. E o ódio apoderou-se da minha alma.

No escuro da noite, eu revirava pensamentos negros na minha cabeça, e quando os galos cantaram, à medida que o primeiro toque da aurora iluminava o céu, eu soube que não podia estar contente enquanto Urias partilhasse a terra comigo.

Disse para mim próprio: ele vangloria-se de ser soldado... bem, deixá-lo morrer uma morte de soldado.

Pela manhã, mandei chamar Urias novamente à minha presença e ordenei-lhe que regressasse ao exército. Confiei-lhe uma mensagem que deveria entregar a Joab. Ele recebeu-a com orgulho, ignorando que carregava consigo a sua própria sentença de morte.

É claro que não ordenei a Joab que mandasse matar Urias. Não havia necessidade disso. Eu podia confiar que Joab leria entre as linhas. Era o tipo de tarefa em que ele sentia prazer. Por isso, pude consolar Betsabé com a certeza de que tudo acabaria em bem. Exprimi o meu alívio por o marido não se ter mexido para ir visitá-la, e, se ela sentia que o fato de ele não o ter feito era uma prova duvidosa dos encantos dela, depressa consegui, com o meu ardor, convencê-la de que isso era meramente prova do mau gosto de Urias. Para já, ela estava feliz por deixar que o futuro cuidasse de si próprio, por confiar em que eu a visitaria, e por colher as rosas do amor enquanto ainda estavam frescas.

Três dias depois - penso que foram três dias, mas podem bem ter sido quatro, sim, talvez fossem quatro - chegou até mim um mensageiro, enviado por Joab, do acampamento de Rabá. Era um jovem, que não reconheci, e estava sujo e parecia nervoso. Ajoelhou-se perante

mim.

- Meu rei e senhor, grande na batalha, venho da parte do meu senhor Joab, o mais fiel ao serviço de sua majestade, o rei, e, pede-me ele que te diga, que é hoje o teu mais infeliz servo. É que Rabá, que cercávamos, ainda se encontra nas mãos do inimigo, e lançamos contra as muralhas da cidade um grande ataque, que falhou.

Então, de cabeça baixa, descreveu-me como Joab lançara um ataque frontal a uma parte da muralha que ele pensava que estava mal defendida, pelo menos em comparação com outras partes. Mas, ou ele fora enganado ou os espiões tinham descoberto a sua intenção já que o ataque fora rechaçado com - ele soltou um soluço - grandes perdas humanas.

Interroguei-o intensamente, pois parecia-me que, ao expor uma parte tão significativa das suas forças a uma empresa tão dúbia Joab agira com imperdoável precipitação, arriscara desnecessariamente Uma vez que tinha apenas de manter o bloqueio da cidade para assegurar a sua captura final. Reprimi a sugestão de que as capacidades de Joab estavam a falhar, o poder de avaliação a faltar, pois não teria sido adequado expressar tais dúvidas a um simples mensageiro.

Então, como se pressentisse a minha raiva a acumular-se o jovem levantou a cabeça e disse:

- O meu senhor Joab também me disse que te informasse que para seu grande pesar, o teu servo Urias, o hitita, se encontra entre os mortos.

Eu virei costas, e toquei os olhos com um pano, como que para secar as lágrimas. Olhei por cima da cidade. O ar estava muito calmo e havia silêncio no calor do Sol da tarde, que fazia com que as folhas das oliveiras do outro lado do vale brilhassem e refulgissem. Olhei o terraço da casa de Betsabé e pensei como ela esperara, tremula com receio de ouvir os passos de Urias. Uma grande paz desceu sobre mim, e o meu coração cantou para o Senhor.

O jovem recitava agora um catálogo dos que tinham tombado na batalha, e, quando ouvi o nome de Laís entre eles, chorei a sério.

- E que os lugares escuros da terra estão cheios das habitações da crueldade - murmurei eu, e recordei a forma como ele viera ter comigo, confiante e ávido de amor. E agora a sua carne era alimento para as aves da morte. Mas quando o mensageiro concluiu com a repetição do nome de Urias, enxuguei os olhos e mandei vir vinho para que o jovem se refrescasse, e disse-lhe:

- Diz ao meu senhor Joab para não ficar desanimado e para não sentir pesar, pois esta é a sorte da guerra, e a espada devora tanto um homem como outro. Por isso exorta-o para que renove a batalha pela cidade e a vença, para que os nossos mortos não tenham tombado em vão. E diz-lhe que, agora como sempre, ele encontrou favor a meus olhos, pois sei que não há homem mais corajoso em Israel e nenhum em quem eu deposite confiança mais absoluta.

Em seguida chamei Jonadab e ordenei-lhe que mandasse informar Betsabé da morte do marido, destemido em batalha, e que lhe transmitisse as minhas condolências, e lhe pedisse que pusesse luto por um homem que morrera a servir Israel e o seu rei.

E fi-lo para que ninguém pudesse apontar um dedo a Betsabé.

Quando fui a sua casa, secretamente, nessa noite, não falámos de Urias, que era agora para ambos como palha levada pelo vento.

Ela ainda estava de luto quando se tornou visível que estava grávida, e os homens diziam que triste que era que Urias lhe tivesse sido levado antes do nascimento do filho. Disse-me Betsabé que apenas o avô, Aitofel, a olhou com curiosidade, e pareceu que queria dizer qualquer coisa.

- Não me saía da cabeça que ele me ia censurar - disse ela -, mas depois sossegou. Quando nos casarmos, gostaria que o demitisses do seu cargo e o mandasses sair de Israel. Ou, pelo menos, de Jerusalém. Perturba-me vê-lo, pois penso que ele suspeita.

- Suspeita? O que há para suspeitar? De que a criança é minha? Quando nos casarmos, quem quererá saber quem é o pai da criança?

- Penso que ele não suspeita só disso. Tomei-a nos meus braços.

- O que há para suspeitar, para além disso? Urias veio cá, eu usei-o com honra. Pedi-lhe que fosse ter contigo. Quem ousará jurar que ele não o fez, que desobedeceu à ordem do rei? Nem sequer Aitofel. E depois Urias morreu na batalha, como um bravo, teve uma morte de soldado, na batalha em que o meu íntimo, muito amado e fidelíssimo amigo Laís também tombou. O mensageiro que me trouxe a notícia das suas mortes viu-me chorar. Além disso, meu amor, Aitofel deveria ficar orgulhoso e feliz por te ver rainha.

- Mesmo assim - disse ela -, tenho medo dele.

Betsabé fez um julgamento mais sensato do que eu. Isso pode parecer estranho, pois não passava de uma menina, ignorante das coisas do mundo. Como foi que Aitofel chegou à conclusão de que eu era responsável pela morte de Urias - não sei. Mas tenho a certeza de que os rumores sobre, na menor das hipóteses, a minha cumplicidade

- rumores de que Jonadab me informou - tiveram origem naquele conselheiro que eu em tempos honrara com a minha confiança, mas que agora procurava destruir-me.

- Os homens acusam-me de assassínio? - perguntei a Jonadab.

- Não precisamente, meu rei e senhor, mas dizem que a morte de Urias foi uma felicidade para ti; e há alguns que murmuram entredentes, segundo dizem, que Joab ordenou que os homens se afastassem de Urias na batalha.

- Isso é disparate. Não sabem eles que Laís também morreu, e será que supõem que também isso «foi uma felicidade» para mim?

Mas Jonadab afastou o olhar e não respondeu a essa pergunta. E era como se eu ouvisse a voz fina de Aitofel a insinuar que David sacrificou até o seu mais querido amigo para destruir Urias, cuja esposa ele cobiçava.

Haveria muitos, tal é a baixeza do homem, que o acreditariam.

Ordenei a Jonadab que colocasse espiões atrás de Aitofel. Ele estava claramente a espalhar o descontentamento, e havia alguns, especialmente entre os jovens, prontos para lhe darem ouvidos. Eram aqueles que tinham crescido enquanto eu era rei, que não conheciam outro e que estavam impacientes e ansiosos por uma mudança. Mas, embora eu tivesse a certeza de que Aitofel fomentava o descontentamento, não conseguia obter quaisquer provas. Por isso mantinha-o perto de mim, e no seu cargo, pensando que ele podia ser ainda mais perigoso se eu o destituísse e tornasse público o seu agravo e a minha desconfiança.

Ao mesmo tempo, eu perguntava-me se Joab falara de mais, talvez embriagado, como por vezes fazia. E mantive também contra ele esta suspeita.

Algumas semanas depois do meu casamento com Betsabé, e do nascimento do nosso filho, Natan, o profeta, um homem que eu estimava, veio visitar-me.

- Abençoado seja o Senhor Deus de Israel - disse ele, e sentou-se no chão à minha frente, puxando a barba. - David, sabes, meu rei

e senhor, que sempre te amei e servi com todo o meu coração, sob a Lei do Senhor.

- Bem sei - respondi, não gostando de algo que lia nos seus modos.

- Deixa que te conte uma história - disse ele. - Havia dois homens que viviam numa certa cidade. Um deles era extremamente rico

,$. e o outro igualmente pobre. O homem rico possuía muitos rebanhos e manadas, mas o homem pobre não tinha nada, a não ser um pequeno cordeiro, que tinha criado e de que cuidava com grande atenção e amor, como se se tratasse da sua filha ou até da sua esposa. Ora, um dia, vem um viajante ter com o homem rico, e ele tratou de o alimentar. Mas em vez de ir buscar um cordeiro ao seu próprio rebanho Natan fez uma pausa, levantou a cabeça e olhou-me nos olhos, e o seu olhar era sombrio e melancólico e parecia cheio de dor -, em vez de fazer isso, apoderou-se do cordeiro do homem pobre para dar um festim em honra do seu convidado.

Natan olhava-me, inquiridor. Eu fiquei inquieto com a sua história, e falei quase sem refletir.

- Se houver alguma justiça - disse eu -, o teu homem rico deveria ser castigado. E, uma vez que sou juiz em Israel, assim será. Diz-me quem ele é, e mandá-lo-ei chamar à minha presença.

Natan abanou a cabeça.

- Não há necessidade disso, David. Tu és esse homem rico. E levantou-se, enquanto eu ficava em silêncio, e disse:

- Esta é a palavra do Senhor dos Exércitos, o Senhor Deus de Israel: Ungi-te rei de Israel, pela mão de Samuel, Meu profeta, e, quando Saul se levantou contra ti, salvei-te da sua raiva. Fiz-te rei e dei-te esposas e grandes riquezas. Mas tu viraste-te contra mim, e fizeste mal a meus olhos, desdenhando do meu mandamento; e mataste Urias, o hitita, de modo vil, e tomaste a sua esposa, de modo vil. Por isso, jamais se afastará a espada da tua casa, porque Me desprezaste, e tomaste a esposa de Urias, o hitita. Ouve a palavra do Senhor, ó rei; vou fazer sair da tua própria casa males contra ti, e tirar-te-ei as tuas esposas, e dá-las-ei ao teu vizinho para que se deite com elas abertamente, à vista do mundo. Porque, David, fizeste isto ocultamente, mas o Senhor agirá abertamente, para que o mundo inteiro veja a tua transgressão e saiba que nem sequer o rei está acima da Lei do Senhor dos Exércitos.

Natan falou na linguagem arcaica que os sacerdotes e os profetas usam para tornar os seus discursos mais impressionantes. Tal como acontecera com Samuel, dei comigo a perguntar-me até que ponto aquelas palavras eram, de fato, do Senhor, e até que ponto eram do Seu profeta. No entanto, perturbavam-me. Quando Samuel falou contra Saul e o denunciou em nome do Senhor, nenhum ouvinte que fosse sincero pôde evitar o pensamento de que a raiva divina se encontrava anormalmente em harmonia com os próprios ciúmes que Samuel sentia em relação a Saul, que o suplantara no governo de Israel. Mas Natan sempre me apoiara. Ele reclamava apenas autoridade moral, e eu sabia que ele me amava e admirava.

Eu disse:

- Natan, de que me acusas?

- Ouviste o que eu disse - respondeu ele.

- A língua é a língua de Natan, mas as palavras soam-me como se fossem ditas por Aitofel.

- As palavras são do Senhor, meu rei.

Olhava-me com tristeza, e, à medida que o fazia, eu sentia-me a encolher, pois sabia que ele falava verdade. Eu não lamentava a morte de Urias, mas desejava tê-lo morto de uma forma mais adequada, com a minha própria mão. A maneira como eu conseguira a sua morte era mesquinha, eu não podia negá-lo. E, contudo, era impossível tê-lo feito de outro modo, sem submeter Betsabé abertamente ao insulto, e, é

claro, a algo pior.

Eu disse:

- Natan, Betsabé não sabe o que eu fiz, estando, por isso, inocente. Mas estás certo.

Afastei-me dele, e, estendendo o meu olhar na direção das montanhas, senti-me prisioneiro do meu palácio, do ato que cometera, e do meu amor.

- Pequei contra o Senhor - disse eu -, e, a seus olhos, fiz mal. Ajoelhei e gritei:

- Senhor, reconheço as minhas transgressões. O meu pecado existe até perante mim próprio. Contra Ti, ó Senhor, eu pequei, e todo o sacrifício que Te trago é um espírito atormentado, um coração despedaçado e contrito, e rezo para que não o desprezes.

Enquanto eu rezava assim, Natan tocou-me, suavemente, na cabeça, e, tendo pousado aí a mão por algum tempo, saiu e deixou-me entregue à escuridão ansiosa e à minha vergonha e ao medo do Senhor.

Mas não contei nada disto a Betsabé.

Durante algum tempo acreditei que o Senhor me tinha perdoado, e afastei a lembrança de Urias.

Quando Joab regressou, vitorioso, do cerco de Rabá, e me informou de que a cidade fora tomada e de que uma grande parte dos soldados inimigos fora morta, abracei-o em frente de todo o povo, e dei um festim em sua honra. Mas nem sequer depois de ele ter bebido houve qualquer conversa sobre Urias. No entanto, eu não me sentia à vontade com Joab, como se, pela primeira vez, ele estivesse em vantagem em relação a mim.

Pouco depois, o filho que Betsabé me dera adoeceu. A sua febre era alta. Betsabé estava sentada junto ao berço, vigiando a sua agonia, eu virei-me para o Senhor e humilhei-me perante Ele, pedindo-lhe que testemunhasse que eu me arrependia do meu pecado, e implorando-lhe que poupasse o meu filho. Durante sete dias não comi nem bebi: orava fervorosamente numa tentativa de salvar o menino.

Mas o meu pecado era demasiado grande. O Senhor não se comoveu e não teve misericórdia. A criança morreu, e, quando se encontrava perante mim, com o pequeno corpo nos braços, Betsabé soube o que se recusara a saber antes: o preço que eu pagara pela vida dela e pelo nosso amor.

Ela disse:

- Preferia ter sido apedrejada até à morte em vez de isto ter acontecido.

Virou costas e negou-se-me.

Bem, foi assim que as coisas se passaram. As nuvens e um vento frio ensombravam o nosso amor. Eu pecara por causa de Betsabé e fui castigado pelo pecado dela, e, durante muito tempo, ela não me ouviria, e negava-se-me. Voltámos a unir-nos. Concebemos outro filho, a quem chamamos Salomão - o jovem pedante que está agora à espera da minha morte. Mas nunca voltou a ser a mesma coisa. Havia um vazio no nosso amor, porque Betsabé não podia perdoar-me pelo que eu fizera por ela. Ela sabia que estava errada ao não querer perdoar-me. No entanto, não podia fazê-lo. A sombra da criança que morrera existia até no nosso leito.

 

Livro Três

 

Vi todas as obras que se produzem sob o Sol; e tudo é vaidade e tormento. Pouco depois de Salomão ter nascido, eu entrei no Outono dos anos. Alcançara tudo, e o fruto era amargo. Os reis de todas as terras que rodeavam Israel honravam-me e reconheciam a minha virtude, o meu poder e a minha sabedoria. E eu dava menos valor às suas palavras do que aos elogios que as raparigas que se reuniam em volta do poço, na minha juventude, tinham esbanjado nas minhas canções.

Disse para mim próprio: há uma estação para tudo, e uma altura própria para cada um dos objetivos a alcançar sob o firmamento.

«Quando eu era jovem», pensei, «na glória da manhã, eu agia sobre o mundo; agora é o mundo que age sobre mim, e as sombras erguem-se, gigantescas, nas areias da vida».

Na minha perplexidade, eu encontrava pouco prazer em mulheres ou em busca de sabedoria, e tão-pouco na bebida ou na dança. Betsabé já não me encantava, mas eu também não procurava prazer que a substituísse. Conversava muitas vezes com Natan, porque ele conhecia o meu coração, mas Natan não podia restituir-lhe a alegria.

Pendurei em minha casa a trombeta da guerra, e deixei as batalhas e a busca de glória para outros. Havia dias em que ansiava pela morte, e noites em que receava a sua vinda. A música que eu fazia era melancolia, e as minhas canções estavam repletas de amargura.

Um homem sensato, avançado em anos, procura prazer nos filhos, mas os meus traziam-me apenas sofrimento.

Em relação a Amnon, eu sentia-me protetor: era o meu primogênito, concebido e gerado no meio de perigos. Era o meu sucessor, aquele que devia governar o império de Israel. Aitofel procurara colocar-me contra ele. Em vão. Eu amava-o exatamente pela sua fragilidade.

Amnon não era muito sociável. Era sombrio e reservado. Não era capaz de confiar em si próprio nem de inspirar confiança nos outros. Enquanto crescia, acompanhava com jovens estouvados alguns anos mais velhos do que ele, que sentiam prazer em conhecer o filho do rei, em desencaminhá-lo, em ensiná-lo a beber e a desprezar as mulheres. Amnon, nessa altura, aprendeu a assumir modos grosseiros de soldado, e eu lia neles um profundo desejo de ser diferente do que era. Em Amnon eu via uma certa parecença com Saul, embora não houvesse ligação de sangue. Curiosamente, a única mulher com quem ele se sentia à vontade era Mical, que residia agora numa casa a alguns quilômetros de Jerusalém. Era lá que, segundo me disseram, Amnon passava muitas horas a conversar com ela. Ia ter com ela quando alguma coisa o perturbava. Talvez ela visse nele um reflexo daquele descontentamento que ela própria sempre conhecera, daquela incapacidade de esquecer ou de perder a consciência da imagem que ela, a cada momento, apresentava. Como Mical, Amnon não era capaz de se perder em ação; era como se ele observasse tudo o que fazia; e até em ação, desdenhava do que fazia e considerava-o inútil.

Eu dizia para mim próprio: «Amnon detesta-se. É minha culpa que ele seja assim?»

Que diferentes eram os filhos que eu tinha de Maaca, a minha selvagem donzela árabe do deserto do Norte! O rapaz, Absalão, era o jovem mais belo de Israel; a rapariga, Tamar, era a menina mais encantadora. Eram como reflexos um do outro, pois ambos pareciam possuir os encantos de ambos os sexos. Vê-los movimentarem-se era testemunhar uma celebração da vida.

Eu sabia que Amnon tinha ciúmes de Absalão. Acusava-me de preferir o irmão mais novo. O que podia eu dizer? Não podia dizer-lhe a verdade: que adorava Absalão pela sua perfeição, e que amava Amnon pela sua imperfeição. Por isso enganei-o com uma resposta tão vaga ao ponto de parecer falsa. Mas assegurei-lhe, mais uma vez, que era o meu sucessor, que seria rei depois de mim.

Será que o mandei embora a pensar que eu o amava apenas por dever, mas a Absalão por natureza?

Não sei. Sei apenas que estava cego, ocupado com os meus próprios pensamentos e a minha angústia cada vez maior.

Um dia, Jonadab apresentou-se a mim exibindo o seu sorriso insidioso e meneando os quartos traseiros como uma cadela ao calor. Eu confiava nele porque tinha poucos em quem confiar.

Jonadab disse:

- Meu rei e senhor, Amnon está doente. Queres ir visitá-lo? Assim fiz. E encontrei-o no seu quarto, deitado no seu leito, muito

pálido e fraco, como se não tivesse comido e estivesse com febre. Quando falou, fê-lo em voz baixa, de forma que tive de me debruçar sobre ele, e pegou na minha mão, apertando-a. Eu disse:

- Enviar-te-ei Betsabé, pois ela percebe mais de doenças do que eu.

Ele murmurou:

- Não incomodes a rainha. Pede antes a minha irmã Tamar que venha ver-me. Não tenho apetite, mas tenho grande desejo de comer aqueles bolinhos de amêndoa que ela faz.

Era um pedido estranho, mas Amnon tinha um aspecto tão pálido, débil e infeliz que não lho pude recusar. Não coloquei tal coisa em questão.

Eu nunca soube exatamente o que aconteceu a seguir, pois contaram-me diferentes versões da história.

Apercebi-me de um retraimento no ar e de um silêncio no palácio. Havia uma atmosfera de profunda ansiedade, como se tivesse ocorrido uma calamidade e ninguém ousasse contar ao rei. No entanto, Israel estava em paz. Mandei chamar Jonadab para lhe perguntar. Ele não me olhou de frente e protestou que não sabia de nada.

- Amnon morreu? - perguntei. - O meu filho morreu?

- Não, meu rei e senhor. Amnon está vivo. Eu disse:

- Vejo perfeitamente que me escondes alguma coisa de terrível.

Diz-me o que é, e não temas a minha ira, pois sei que estás inocente de qualquer ato maldoso.

- Oh, meu rei e senhor - disse ele -, quem me dera estar... E prostrou-se por terra, agarrou-me pelos joelhos e chorou.

-Jonadab - disse eu -, és o filho da minha irmã, meu parente chegado, e que eu muito estimo devido aos serviços que me tens prestado. Não precisas de recear a minha ira.

- Senhor, meu rei, sê misericordioso. O teu filho Amnon está doente, mas a sua doença é do espírito e não do corpo. Ele está doente de amor pela irmã, a sua meia-irmã, Tamar...

Nesse momento, sem cerimônia, a porta abriu-se de rompante e Absalão entrou, sem se anunciar. Estacou ao ver Jonadab ainda com os braços em volta das minhas pernas. Levantei Jonadab e virei-me para Absalão. As suas faces tinham perdido a cor, embora tivesse nos olhos o brilho de estrelas.

- Pai - gritou ele... mas eu não sou capaz de escrever as palavras que ele pronunciou. O seu discurso estava impregnado de pragas, e ele estava meio louco de dor e fúria.

Contou-me que Tamar, de acordo com aquilo que eu determinara, fora visitar Amnon, e ele, então, mandara embora os serviçais, e, encontrando-se sozinho com a rapariga, declarou-lhe o seu amor.

- O seu amor - Absalão cuspiu as palavras. - Digamos antes o seu desejo, o seu desejo pervertido.

- E que disse ela?

- Ela disse... ela disse... ela disse que tinha pena dele.

Eu não quis ouvir mais. Absalão forçou-me a ouvir. Contou-me como Amnon agarrara então Tamar, lhe rasgara o vestido, a atirara para o leito e a violara.

- E esta coisa que está agora aqui contigo - gritou Absalão -, era o proxeneta dele, o alcoviteiro.

Jonadab choramingou uma meia negação. Eu silenciei-o com um olhar.

Após o terrível ato, disse Absalão, Amnon virara as costas a Tamar, como se com repugnância, como se ele fosse a vítima, e ordenou-lhe que saísse. Fora o próprio Absalão que a encontrara, atirando pó para a cabeça e chorando o seu desespero, na via pública. Levara-a para sua casa, e viera imediatamente ter comigo.

- Eu não sabia que era essa a intenção de Amnon - disse Jonadab. - Por favor, acredita em mim, eu não sabia.

- Ela está desonrada - gritou Absalão, e a sua voz era como o uivo de um lobo no deserto. Embora estivesse pálido como a morte, o suor escorria-lhe da testa. - Eu conheço a Lei - disse ele.

- A Lei. Isto não é assunto para a Lei.

- A Lei - a voz de Absalão era agora calma, e ele falava com autoridade. - Se um homem tomar sua irmã, a filha de seu pai, e vir a sua nudez, e se ela vir a nudez dele, é uma coisa pecaminosa, e eles serão afastados da vista das pessoas; aquele que pôs a descoberto a nudez da irmã, suportará a sua iniqüidade. Assim diz a Lei. E Amnon, que era meu irmão, fez pior do que isso, pois tomou Tamar pela força, sem o seu consentimento, e violou-a.

Nesse momento eu conheci, nitidamente, a agonia de Saul, pois parecia que o Senhor me abandonara.

Amnon era meu filho, o meu primogênito, e eu era responsável por ele, sangue do meu sangue, carne da minha carne. Se ele era culpado, eu não podia considerar-me inocente. O fantasma de Urias estava a bater à minha porta.

Jonadab disse:

- Ele só me pediu conselho sobre a forma como poderia declarar o seu amor. Nunca imaginei que...

«Pobre Amnon», pensei eu, mas não ousei dizê-lo, «para que o desespero o levasse a tal extremo». E pensei novamente em Saul.

Eu disse o que poderia ser dito para confortar e acalmar Absalão. E, em seguida, acrescentei:

- Em primeiro lugar, temos de garantir a proteção de Tamar. Ela foi violada e rejeitada, uma dupla vergonha, que, para bem dela, deve ser escondida do mundo.

- Escondida? Para bem dela?

- Absalão, meu filho, meu filho amado, queres que ela enlouqueça? Movido pela tua cólera, pela tua cólera justa, falas da Lei. Pensas que conheces a Lei tão bem como eu? Gostarias de expor a pobre rapariga ao seu rigor, à sua severidade? Gostarias que ela fosse obrigada a reconhecer a sua desonra publicamente? Nunca.

E assim eu continuei a convencê-lo, e o que eu dizia era verdade e tinha grande peso, e ele compreendeu-me. Fi-lo jurar silêncio, «por enquanto», disse eu.

- Temos inimigos - prossegui -, até em Israel, que se alimentariam avidamente deste crime.

Louvei o seu ardor. Elogiei o amor que ele sentia pela irmã e que incendiava esse ardor. Mas insisti no silêncio. Disse-lhe que tinha de consultar Betsabé, que era sensata em tais assuntos. Passou-me pela mente que talvez Amnon devesse casar com Tamar. Eu tinha a certeza que isso poderia arranjar-se - ela era apenas sua meio-irmã - mas não falei disto a Absalão. Disse-lhe que trouxesse Tamar à minha presença quando ela estivesse suficientemente bem e preparada para me ver e que, entretanto, a guardasse bem e lhe oferecesse o máximo conforto possível. Tomei-o nos meus braços, beijei-o, apertei-o contra mim, e bebi da sua juventude e da sua força.

- Ele destruiu-a - disse ele. - A rosa de Israel está desfeita e as suas pétalas espalhadas.

- Absalão, meu filho, meu muito amado filho, vai em paz e que o Senhor esteja contigo neste terrível dia.

Quando ele partiu, ordenei a Jonadab que não perdesse tempo e colocasse um guarda atrás de Amnon.

- Tira-lhe as armas - disse eu - não vá ele, no seu desespero suicidar-se.

- Devo prendê-lo?

- Não - respondi -, coloca o guarda com astúcia. O guarda está lá para proteção dele, nada mais do que isso. Mas vai tu próprio também, e diz-lhe que é meu desejo que ele se mantenha em casa até que eu vá ter com ele. Este é um assunto que exige muito tacto se é que não queremos que nos destrua a todos, que destrua a casa de David.

 

Tamar não recuperou. Estava mais bonita do que nunca, mas a sua beleza estava alterada. Era agora a beleza do Inverno: as folhas tinham sido arrancadas da sua árvore da vida, e as suas rosas lançadas ao vento forte. Ela tinha a beleza de todas as coisas boas que sabemos ter perdido. Os seus olhos vagueavam e as suas faces eram brancas como a neve da montanha. Não cuidava da sua forma de vestir nem do seu pudor. A desonra habitava agora o seu coração, e, despedaçada pelo mundo e pela carne, ela forçaria o mundo a confessar a sua crueldade. Balbuciava estranhamente. Um dia foi encontrada a tentar aliciar homens na rua, a mente transtornada, e, a partir dessa hora, fui obrigado a ordenar que ela não saísse de casa.

Só Absalão lhe inspirava confiança. Quando eu falava com ela, ela choramingava, e, ou escondia o rosto atrás do véu, ou, o que era ainda mais terrível, expunha-se a mim, como se, sendo pai de Amnon, eu também a tivesse seduzido, e, nessas alturas, era como se estivesse determinada a confrontar-me com a enormidade do ato dele. Mas agarrava-se a Absalão como uma criança pequena pode agarrar-se àqueles em quem confia. Eu receava que o desespero dela e o seu infortúnio inflamassem com nova intensidade os fogos da raiva dele por Amnon, e estive tentado a proibi-lo de estar com a irmã. Mas não ousei ceder a esta tentação, com medo da sua recusa e das conseqüências de tal recusa.

Contudo, consegui persuadir Absalão a fazer as pazes com Amnon, quando libertei o irmão da secreta prisão domiciliária que, de fato, eu lhe exigira. Abraçaram-se à minha frente, e Amnon, instruído por mim próprio e por Huchai, que tinha tanta pena dele como eu, confessou o seu pecado, e procurou o perdão do irmão.

- Para bem do nosso pai - respondeu Absalão.

Verificara-se impossível manter em segredo o que acontecera, como teria sido meu desejo.

Joab veio ter comigo e disse:

- David, até o exército está dividido. Alguns apóiam Amnon, outros Absalão. Se não resolveres a questão, as coisas piorarão. A ferida aberta criará uma úlcera. Se Amnon deve ser rei, Absalão tem de ser enviado para o exílio, pois o reino não pode albergar os dois.

Betsabé concordava com ele. Ela sentia uma grande ternura por Amnon - pelo menos foi o que me pareceu na altura - e compreendia o seu caráter difícil.

- Sim - disse ela -, Amnon errou. O que ele fez foi cruel. Mas ele foi provocado. Tu adoras Absalão e és cego quanto aos seus defeitos. Podes até nem saber como Absalão encorajou os jovens que atrai à sua volta para troçarem do irmão, como ele espalhou rumores, pelo menos em seu redor, de que Amnon era um pervertido, e como, ao mesmo tempo, encorajou Tamar a exibir os seus encantos perante ele.

Era-me difícil acreditar nela, porque - é claro - eu não desejava fazê-lo. E sabia que ela tinha ciúmes de Absalão. Talvez até naquela altura, penso eu agora, até naquela altura, embora Salomão não passasse de uma criança, ela estivesse decidida a que ele me sucedesse no trono, e visse em Absalão, e não no meu pobre Amnon, o seu principal rival. Eu não sabia se ela dizia a verdade, embora estas suspeitas me tivessem invadido na escuridão progressiva dos anos.

Aitofel também me abordou. Embora eu tivesse aprendido a não confiar nele, ainda sentia o encanto dos seus modos e do seu intelecto.

- David - disse-me ele -, temos passado por muita coisa juntos, nem sempre concordando um com o outro, mas, mesmo assim, ambos trabalhando para o bem de Israel. E sabes que eu sempre disse o que pensava, sem receio e sem esconder a verdade. É natural que o faças agora, pois Amnon é teu filho, e amá-lo como amas o seu irmão Absalão. Acredita em mim, meu velho amigo, compadeço-me de ti nesse dilema. Mas lembro-me também do rapaz que foi ao acampamento de

Saul e defrontou Golias, quando todo o exército o temia, e da forma como o mataste, embora as tuas armas fossem apenas uma funda e algumas pedras do riacho, para além de uma confiança e coragem sublimes. Bem, meu velho amigo, precisas agora dessa mesma confiança e coragem. E digo-te que Amnon, após este ato perverso, não serve para rei de Israel, pois o que ele fez foi pior do que um crime, foi um disparate, após o qual nenhum homem em Israel pode voltar a confiar nele. Lembra-te como, quando aquela disposição sombria se abateu sobre Saul, o exército tremeu e o seu espírito gelou. Assim será com Amnon. Por isso, insisto para que o envies para o exílio, e que nomeies Absalão, que o exército e os jovens adoram, teu único sucessor.

Assim, eu era atacado com conselhos contraditórios, e atormentado pelo ferrão da razão e do sentimento.

Jonadab - que vigiava o meu quarto - era agora, juntamente com Huchai, o meu principal confidente, e eu estava-lhe agradecido, pois ele não me enchia de conselhos que eu não desejava ouvir.

Assim, uma vez que não conseguia manter as palavras fechadas no meu coração, eu falava com ele, embora soubesse que ele era um bisbilhoteiro. E, na verdade, havia alguma vantagem em ser-se objeto da sua língua-de-trapos; isso permitia-me disseminar as minhas intenções sem as proclamar abertamente.

- O rei - diria Jonadab - está determinado a restaurar a concórdia na casa real e na nação. Está decidido a alcançar este objetivo, e não vai alterar a sucessão - e assim por diante.

Entretanto, eu confiava no tempo e na paciência, velhos aliados.

- As coisas têm de ser como é permitido que aconteçam - disse eu a Jonadab -, ou seja, como o Senhor desejar e prover.

Durante muito tempo, Amnon esteve relutante em encontrar-se comigo a sós. Receava o meu amor mais do que a minha reprovação.

- A culpa e a repugnância por si próprio estão misturadas na sua alma - relatou-me Jonadab.

Amnon entregou-se a exercícios religiosos e à penitência. O crime que cometera intensificou a sua melancolia natural. Nunca sorria e, quando lhe perguntavam a opinião sobre qualquer assunto, suspirava, baixava os olhos e dava a entender que sentia que um homem como ele era indigno de oferecer um juízo. A sua humildade conquistou-lhe a consideração dos sacerdotes, e havia nisso um perigo, pois parecia-me que a casa de Israel estava dividida contra si própria. Os sacerdotes apoiavam Amnon, e o exército apoiava Absalão. No entanto, enquanto Joab fosse comandante supremo, a seguir a mim, o exército

» poderia apoiar em absoluto o meu filho mais novo. Aborrecia-me sentir que dependia de Joab, mas não podia negar que, de fato, assim

era.

À medida que o tempo passava, parecia que a minha paciência era recompensada. Amnon recuperou um determinado grau de autoconfiança. Absalão comportava-se para com o irmão da forma que eu teria desejado. Embora nunca se encontrassem em privado, ele era educado e respeitoso para com ele, em conselho, mostrando-se mesmo pronto a referir-se a ele como o herdeiro do trono.

Para mim, Absalão era tão afetuoso como era antes de o crime de Amnon ter ensombrado o seu espírito. A sua presença fortalecia-me e o encanto dos seus modos era um prazer sem-fim. Assim, quando ele veio ter comigo, um dia, e me disse que pretendia fazer um grande festim na sua nova propriedade de Baal-Haçor, por altura da tosquia das ovelhas, e que esperava que eu fosse um dos convidados presentes, muito me custou recusar, mas fi-lo porque senti que a presença do rei imporia uma certa solenidade à ocasião, o que não seria bem-vindo. É um dos castigos da majestade: em ocasiões de festa, as pessoas estão ansiosas pela partida do rei. Por isso eu não iria.

Absalão expressou a sua decepção e disse:

- No entanto, espero que o meu irmão Amnon aceite o meu convite.

- Porque haveria ele de ir contigo? Sei que, embora te comportes para com ele adequadamente em público, não o amas.

- Não - disse Absalão -, não posso amá-lo. Somos feitos de matéria diferente. Mas ele é filho de meu pai, e o herdeiro do trono. O nosso afastamento já durou de mais. Além disso, as suas conseqüências são perigosas. Há agora dois partidos no Estado, ou melhor, dois partidos entre os jovens, um que me apóia a mim, e outro que apóia o meu irmão. Penso que não está certo. Sei que não é esse o teu desejo, meu pai. Por isso, espero que Amnon venha a minha casa como convidado para que eu possa mostrar a todo o povo que estamos em paz um com o outro, e que não há motivo para divisões. Assim, e uma vez que Amnon não confia em mim, ficaria agradecido, pai, se insistisses para que ele viesse.

Fiquei encantado com a nobreza dos seus sentimentos, e concordei em fazer como ele me pedia. O rosto iluminou-se-lhe de sorrisos como uma manhã de Verão. Precipitou-se em direção a mim, beijou-me a face, virou costas e saiu da minha presença, radiante, com fortes membros e uma graça que me cortava o coração. Oh, Absalão, meu filho, meu filho amado, como e onde é que eu te faltei?

Fui acordado por gritos de mulheres e pelo som de pés a correrem.

  • Empurrando a minha concubina para o lado, cobri-me com uma capa e deixei o meu quarto. À medida que o fazia, um jovem de olhos as-
  • sustados prostrou-se no chão de mármore e agarrou-me os tornozelos. Levantou a cabeça e gritou:

-Traição e assassínio! Traição e assassínio! Todos os filhos do rei

foram mortos e não resta nenhum com vida!

* Não me lembro do que se seguiu. Os cantores de baladas dizem

que me atirei para o chão, que rasguei as vestes e uivei como um cão. Posso tê-lo feito, mas não me lembro. Ouvir falar de tal tragédia aniquila-me a memória.

Mas recordo um momento de terror: porque continuava eu próprio vivo?

Em seguida encontrava-me no meu quarto. Os olhos da concubina eram escuros, ela tremia de horror, a boca aberta num pranto silencioso. Estava nua e tremia ao olhar para mim. Vindo da antecâmara, voltou a ouvir-se o queixume do luto.

Mandei a rapariga embora e ordenei que me chamassem Jonadab. Em seguida vesti-me. Lembro-me disso. Sentei-me aos pés do meu leito, e assim fiquei, segurando uma espada com ambas as mãos, a ponta para o chão, amparada entre as minhas pernas.

, Chamei uma mulher.

- Betsabé está em segurança? Manda alguém ver se está tudo bem

com Salomão.

Finalmente chegou Jonadab. Ajoelhou-se perante mim e colocou as mãos nas minhas, agarrando a lâmina da espada.

- Não é como dizem - contou ele. - Não é verdade que todos os filhos do rei tenham morrido. Só Amnon é que morreu.

- Absalão?

- Absalão - disse ele. - Absalão, meu rei e senhor, vingou-se e vingou a irmã Tamar pelo mal que sofreu. Há muito, receio, que ele o queria fazer. Mas só Amnon é que morreu. Foi morto quando estava embriagado, mas primeiro Absalão falou com ele.

Pensei, logo naquela altura: «como é que ele sabe disso? Ele não estava lá. Como é que ele sabe?».

Mas preferi não perguntar, receando a resposta. Se Jonadab fosse { desleal, onde iria eu procurar lealdade?

- Absalão?- perguntei.

- Absalão fugiu, para o Norte, para a terra de Guessur, o país da mãe.

- Vai - disse eu; mas ele não se mexeu enquanto eu não deixei a espada que segurava. Quando a vi nas mãos dele, olhei-a, pasmado.

Assim perdi dois filhos, e chorei ambos, e virei-me para o Senhor e disse:

- E assim foi vingado Urias, o hitita. Tem misericórdia do Teu servo, ó Senhor, e não me visites com mais sofrimento.

De Guessur, Absalão enviou cartas a justificar a sua conduta. Expressou repetidas vezes o seu profundo amor por mim. As suas palavras magoavam-me, pois não podia lê-las sem ver o seu rosto encantador, sem ouvir a sua voz, alegre, terna e cheia de espírito trocista, sem sentir a sua presença que tanto prazer me dava. Eu ansiava por ele como um amante chora pela pessoa amada, que partiu de viagem e que pode não regressar. O meu coração dizia-me que visitasse Absalão e o chamasse do exílio. E, contudo, não o fiz. Ele era culpado do pecado de Caim, e, mesmo enquanto lia as suas cartas, a sombra pálida do rosto infeliz de Amnon parecia tremer perante o meu olhar. E rezava ao Senhor para que Ele me guiasse nos caminhos da retidão.

Também Betsabé, segundo percebi, estava determinada a que Absalão permanecesse no exílio.

- O país - dizia ela - está mais calmo sem ele. Sei que o amas profundamente, David, como é natural, amá-lo ainda mais, talvez, porque ele é selvagem e caprichoso e, sim, perigoso como um potro por domar. Mas se considerares a tranquilidade que agora reina em Israel, tenho a certeza de que te aperceberás de que a ausência de Absalão contribui para esta calma. A verdade é que estamos todos muito melhor sem ele, e só o teu amor pelo rapaz, o teu amor mais que compreensível, a tua excessiva parcialidade, é que te faz cego perante os fatos.

Eu era impotente perante Betsabé, pois ela tinha uma capacidade de me perturbar, e uma habilidade para tornar a minha vida miserável

que eram demasiado fortes para mim. Não é bom para um homem depender de uma mulher como eu dependia de Betsabé naqueles anos. Ela desempenhava também um papel cada vez mais ativo nos assuntos do governo, para desgosto de Joab, o que não me desagradava completamente.

Israel estava em paz. Os reis vizinhos estavam felizes por prestarem homenagem à minha grandeza, e as riquezas que me enviavam eram colocadas de lado para o meu objetivo de construir uma casa digna do Senhor. Eu recrutei e treinei arquitetos, escultores, artesãos que trabalhavam em madeira e pedras preciosas, para que a obra fosse feita da forma mais magnificente e graciosa.

Naqueles anos de paz dediquei-me com renovado zelo à poesia e à música. Inaugurei uma biblioteca onde se podiam guardar coleções de versos, para que a posteridade se maravilhasse com a grandeza da obra que eu fizera. Também dei a Josafat e Seraías, escribas, o trabalho de compilarem a história dos Filhos de Israel, uma tarefa nunca antes tentada. Examinei o trabalho que tinham feito e tive ocasião de os repreender pelo tratamento que deram a Samuel e a Saul, e à desavença que surgira entre eles.

- É natural - disse eu - que vós, sacerdotes, assumais que Samuel tinha razão, mas, embora eu lhe deva muito, e embora o rei Saul me tenha declarado inimigo de Israel e tenha pretendido tirar-me a vida, não era assim. Saul fez o melhor que pôde, de acordo com a sua visão das coisas, e o ódio de Samuel por Saul teve origem no ciúme que sentia pelos seus êxitos, e não em qualquer pecado da parte de Saul. Acreditai, Saul era um grande homem em Israel e fez grandes coisas, até que a sua mente ficou obscurecida. Imploro-vos, revede estas passagens, para fazer justiça a ambos estes homens notáveis. Estou feliz por acreditar que a posteridade dirá que vos aconselhei com sensatez.

A toda a hora eu ansiava por Absalão, e o prazer que eu encontrava no meu trabalho era ensombrado e ofuscado pela sua ausência.

Em compensação, eu passava muito tempo com o meu filho seguinte, Adonias, filho de Haguite, uma rapariga de beleza suave que morrera ao dar-lhe a vida. Adonias tinha muito da graça e do encanto de Absalão, embora as mulheres idosas dissessem que ele se parecia comigo quando eu era jovem. Parecia-me que, se Absalão, para meu profundo pesar, se excluíra da sucessão ao trono através de atos por si próprio praticados, Adonias devia ser preparado em seu lugar (mas não declarei esta minha intenção a Betsabé). Havia outra razão para instruir o rapaz: Jonadab relatara que Aitofel estava a fazer a mesma coisa. Adonias era dado a um discurso impulsivo, até imprudente

- uma vez, na minha presença, observou que Salomão era um pequeno pedaço de excremento de animal de duas faces -, mas fez-me rir e sentir mais jovem. Também, e talvez mais a propósito, ele demonstrava uma aptidão para assuntos militares que conquistou até a admiração de Joab.

No entanto, não o nomeei meu sucessor, pois ainda tinha esperança no regresso de Absalão, e porque não me sentia suficientemente forte para suportar a fúria gélida com a qual eu sabia que Betsabé receberia tal notícia.

Além disso, Betsabé, quando ela queria, ainda tinha a capacidade de me dar mais prazer do que qualquer outra mulher, e eu estava amarrado a ela pelas cordas torcidas da piedade, do amor, do desejo e da culpa. ^

Um dia, uma mulher implorou que lhe desse uma audiência. Estava vestida de luto, e prostrou-se no chão perante mim.

- Sou uma pobre mulher - choramingou ela -, uma pobre viúva, e tinha dois filhos, ambos belos. Mas, embora eu amasse ambos, eles não se amavam um ao outro, e tiveram uma disputa. O mais novo matou o mais velho e, receando pela sua vida, fugiu, enquanto eu chorava e cumpria luto pelo irmão. E agora o resto da minha família, da família do meu marido, e da família do meu falecido filho, insistem para que eu suplique ao rei que procure o meu filho mais novo e que o mande matar por ter assassinado o irmão. Ó meu rei e senhor, o meu filho confessa a sua culpa, e eu confesso-a perante o rei, mas se ele for morto, ficarei sem filhos. O irmão está morto e não lhe pode ser restituída a vida, e eu fico desesperada ao pensar que perderei o meu outro filho e, dessa forma, não deixarei memória do meu marido nem de mim à superfície da terra. Por isso, imploro ao rei que intervenha e salve a vida do meu filho, para que me seja devolvido.

Não afirmo ter transmitido todas as suas palavras, nem as suas palavras exatas, pois ela exprimiu-se rapidamente, algo confusa, no seu desgosto e agitação, mas o essencial da questão era claro. Senti o amor que ela tinha pelo filho, e prometi-lhe que faria como ela me pedia e que protegeria o rapaz.

Então ela atirou para trás o véu e disse:

- Ó meu rei e meu senhor, enganei-te, pois não tenho filhos, mas tu tens, e aquele por quem sentes mais estima definha no exílio, e a sua vida é ameaçada pelos seus inimigos, tal como o filho da minha história. E, ao ouvi-la, julgaste bem e sensatamente: podes fazer menos do que isso no caso do teu próprio filho amado, Absalão?

Então eu disse:

- Será que vejo a mão de Joab nesta comédia que representaste perante mim?

É que eu sabia bem do ciúme que Joab sentia da influência de Betsabé, e eu suspeitava de que seria vantajoso para ele se Absalão regressasse. Todavia, porque a mulher me revelara o meu próprio coração, eu não fiquei zangado com Joab. Em vez disso, mandei chamá-lo, e, informando-o de que descobrira o seu embuste, sorri, e disse-lhe que trouxesse Absalão do exílio.

«O Senhor conhece as minhas iniquidades» - cantei várias vezes essa canção. «O Senhor conhece os segredos do meu coração...», e assim por diante. É verdade, acredito que assim seja. Mas uma coisa é caminharmos nus perante o Senhor; e outra coisa é despirmo-nos em frente dos homens. E, contudo, se nestes últimos dias da minha vida se espera que eu diga toda a verdade sobre mim próprio, é isso que devo fazer agora. Devo pôr a descoberto a minha vergonha.

(Ó Abisag, vem nua como a aurora, e beija os meus lábios ressequidos, reanima-me com a tua boca macia e as tuas mãos hábeis, para que, neste embaraço, eu possa pensar - não, sentir - que voltei a ser homem!)

Quase todos os homens preferem confessar um pecado e não uma fraqueza, e, neste ponto, pelo menos, não sou diferente dos demais. Poderá haver uma certa grandeza num pecado; pelo menos, é um ato, uma expressão da vontade, e, muitas vezes, da vontade de imperar, aquele alimento que restaura a vitalidade, e que acelera o apetite de que se alimenta. Mas a fraqueza é uma abnegação da vontade; a fraqueza é sempre de desprezar. E é isso que tenho de confessar.

Betsabé veio ter comigo e o seu sorriso parecia pintado nos seus lábios e era frio como a noite do deserto.

- E assim - disse ela -, Absalão vai regressar. O teu filho amado, o assassino, deve ser recebido com alegria - e eu nem sequer fui consultada. Deverá ele agora sentir-se livre para matar Salomão ou talvez Adonias?...

- Betsabé - disse eu -, por favor.

Mas ela continuou neste tom, mordaz, como um daqueles pequenos cães que os agricultores usam para matar ratazanas.

- Pensei que me amavas - gritou ela. - Muitas vezes te vangloriaste do teu amor por mim. E agora vejo o que ele vale, meras palavras.

E noutro tom (como ela queria que eu reconhecesse):

- Fazeres uma coisa destas sem me consultares, isso é que dói choramingou ela.

E continuou:

- A corte inteira sabe que eu me tenho oposto ao regresso de Absalão. Quando me perguntam, não hesito em dar a minha opinião. E agora envergonhas-me perante todo o povo, e troças de mim.

Ou:

- Acreditas que Absalão te ama? Como poderia ele fazê-lo quando matou Amnon, o teu primogênito? É essa a forma de um rapaz mostrar o amor que sente pelo pai?

Quando lhe levei a mão ao rosto e lhe toquei os lábios como costumava fazer, ou a pousei nos seus seios, ela afastou-se e negou-se-me.

- Não - gritou -, antes conquistaste-me com palavras doces e modos encantadores, mas agora sei que foi tudo um engano. Foi para isto que deixei o meu marido de direito, Urias, e que me expus a censuras por amor por ti, e que ofendi gravemente o meu avô, Aitofel, que agora recompensas ao fazer-me passar por esta vergonha...

«David - disse ela, banhada em lágrimas -, David - falava num murmúrio suave e prolongado -, David, se me amasses, não me tratarias desta maneira. Bem, tenho sido uma idiota. Dei grande valor ao teu amor, ele foi a luz do Sol no Verão da minha vida, mas agora vejo que não foi senão um meio de me conquistares, de provares o teu poder, de me submeteres à tua monstruosa vontade. Por tua causa, sofri o desdém das mulheres, deixei-me ser uma prostituta estigmatizada, e suportei tudo isso porque acreditava que me amavas.»

Pensei: «pequei por tua causa. Assassinei Urias por tua causa. Afastei-me do amor do Todo-Poderoso por tua causa. E agora...».

Mas não fui capaz de pronunciar estas palavras. Ela era demasiado forte para mim. Eu enfrentara Golias, enfrentara Saul, esmagara as hostes dos filisteus, mas quando Betsabé virava o rosto para a parede, e se me negava, a minha vontade transformava-se em água.

- Muito bem - disse eu. - Não anularei a minha decisão de que Absalão deve regressar. É demasiado tarde, e isso só levantaria descontentamento. Mas ele não verá o meu rosto. Será excluído do palácio e ficará limitado à sua própria casa, nos subúrbios da cidade. Será que isso te satisfaz? •«

Nessa altura ela pendurou-se aos meus lábios, e entregou-se-me com palavras doces. E eu voltei a conhecer o prazer, mas até no auge da minha paixão eu sentia desprezo por mim próprio, porque permitira que a minha esposa me governasse.

Mantive o meu voto durante dois anos. Absalão dirigia-me protestos e apelos, mas eu dera a minha palavra a Betsabé e não estava inclinado a quebrá-la. No entanto, sentia-me sempre infeliz. Os prazeres a que me entregava pareciam-me insípidos e inúteis. De manhã, sentia relutância em deixar o meu leito, e, à noite, ansiava por ele, embora, pela primeira vez desde criança, eu o ocupasse a maior parte das vezes sem companhia.

Quando olhava Betsabé, surpreendia muitas vezes nos seus olhos uma expressão que parecia medir-me, como se estivesse a calcular quanto tempo é que eu duraria, e quanto tempo faltaria para que a coroa passasse para Salomão. Uma vez, não muito tempo antes, eu teria ficado desolado ao ver quão mais profundo era o amor dela pelo filho do que por mim. Agora era-me indiferente.

Para minha surpresa, Aitofel concordou com a decisão que eu tomara - de que Absalão deveria permanecer afastado de mim.

- Sabes que eu tenho grande afeição pelo jovem. Quem poderá não corresponder ao seu encanto? Contudo, David, sou um velho que toda a vida serviu Israel, e acredito que tenhas encontrado algum mérito nos meus conselhos. E lamento ter de dizer que, apesar de todas as suas qualidades, Absalão é demasiado imprudente, demasiado impetuoso, para ser rei. Farias melhor ao entregar a sucessão a Salomão.

Todavia, Huchai relatava que Aitofel freqüentava a companhia de Absalão, e a dos jovens que se reuniam à sua volta.

- A velha raposa tem qualquer truque na manga - disse ele.

Pensei: «seja o que for, não quero saber».

Numa noite de Inverno em que não havia luar e o vento da montanha fustigava os terraços de Jerusalém, a minha disposição era tão negra como o céu sem estrelas. Bebia vinho, sem alegria, e invejei Joab, que procurava refúgio da preocupação e da decepção na embriaguez. Pensei: «toda a minha vida tenho servido o Senhor, realizei grandes façanhas por Israel, e agora o meu cabelo grisalho está a descer para a sepultura mergulhado em tormento. Os dias escuros abateram-se sobre mim, e todos os meus poderosos feitos não passam de vaidade».

- Meu Deus, meu Deus - gritei -, porque me abandonaste? Ó, meu Deus, choro de dia, mas Tu não ouves, e de noite, não fico em silêncio.

Em seguida pensei: «Absalão e os jovens podem troçar de mim, porque sou governado por uma mulher».

Assim, mandei chamar Jonadab, e, quando ele chegou, dei-lhe vinho a beber, e perguntei-lhe o que diziam agora os homens de mim.

Ele cravou os olhos no chão e não respondeu.

- Diz-me - pedi-lhe eu -, sabes qual é a casa em que Absalão se encontra, e poderias guiar-me até lá secretamente?

Assim, vesti um manto, cobri o rosto com as suas pregas, e Jonadab saiu comigo para a cidade. Seguíamos pelas ruas estreitas, como ladrões, e os cães ladravam-nos. Passamos por tabernas donde vinham sons de festança, nos quais eu não ouvia qualquer alegria. No entanto, à medida que continuávamos, senti que a minha má disposição me abandonava. Era como se eu me tivesse sacudido e libertado dos laços da majestade, e a minha juventude se renovasse.

- Se alguém nos saudar - sussurrei ao meu companheiro -, lembra-te de que não sou o rei, mas um viajante de uma terra distante. E, de fato, eu sentia-me como um desses viajantes, e isso enchia-me de alegria. Fomos abordados junto ao portão da casa de Absalão. Eu fiquei para trás, enquanto Jonadab negociava a nossa entrada. Por um momento, hesitei. Não desejava aparecer no meio de um grupo de amigos do meu filho.

- Preciso de me encontrar com o jovem a sós - sussurrei. Assim, deixaram-me na antecâmara, enquanto Jonadab foi à procura de Absalão. Esperei como um cliente pobre, e senti-me tão receoso como um tal cliente se deve sentir muitas vezes, pois não sabia como Absalão receberia a notícia da minha presença.

Então a cortina foi afastada para o lado, e ele estava na minha companhia. Tinha o rosto corado. Caiu à minha frente, de joelhos, e agarrou-me as pernas. Levantei-o, beijei-o e abracei-o, e, durante muito tempo, não falámos, mas eu conheci a paz.

Passamos a noite a conversar. Muito do que dissemos foram insignificâncias. Muito escapou da minha memória. Foram ditas coisas, tenho a certeza, que é melhor serem esquecidas. Então ele afirmou o amor profundo que tinha por mim, assim como a sua ausência de ressentimento. Eu implorei o seu perdão, ele o meu. Ele disse:

- Tenho sido tão tentado pelo desespero. Pensei que me tinhas abandonado. Pensei que me tinhas atirado à escuridão total.

- Meu filho amado - disse eu -, eu próprio tenho habitado o vale do desespero. Mas o desespero é-nos proibido. O desespero é um pecado contra um Deus que nos ama.

- Tenho visto poucos sinais do amor de Deus - disse ele. E pareceu-me que, com aquelas palavras, ele me acusava de uma amargura insaciável. E continuou: ,>

- Há uma... coisa... que vos devo mostrar.

Segui-o através de corredores longos e sinuosos. O caminho era apenas iluminado pela lamparina que ele levava. Descemos, então, uma escadaria e entrámos nas frias profundezas da sua casa. Ele tirou uma chave do cinto e abriu uma porta guarnecida de metal. Passamos por ela e emergimos num corredor comprido e úmido. Por um momento, tive medo, suspeitando de que Absalão - até o meu filho pretendia fazer-me mal. Aquele local era tão parecido com uma prisão...

Pressentindo a minha hesitação, ele conduziu-me pelo braço, sem

dizer nada.

Passamos por outra porta, que estava aberta, e entrámos numa pequena sala, iluminada apenas por uma lamparina de azeite. Uma velha estava sentada, a coser, num banco de três pernas, junto a uma porta de grades de ferro, que dava para uma sala interior. A mulher ergueu o olhar, e os queixos tremeram-lhe quando me reconheceu. Absalão colocou-lhe a mão no pulso.

Trouxe o meu pai para ver a minha irmã. como está ela hoje?

- Está irrequieta, meu senhor, da forma que bem conheces, gemendo e gritando durante a primeira parte da noite, e teria arranhado o rosto se eu não lhe tivesse amarrado as mãos. Mas agora dorme, sem barulho, porque o seu sono, como sabes, é sempre desassossegado, mas o sono que é possível, ela teve.

Espreitei pelas grades de ferro. Um vulto jazia sobre um leito, mas não conseguia discernir se se tratava de um homem, de uma mulher ou até de um animal.

- Tamar... - disse eu. - Mas mandaste de Guessur a notícia de que ela estava morta.

- Seria melhor se estivesse - disse ele. - Ela própria preferiria. Tem atentado muitas vezes contra a vida, e eu tenho-a impedido. Talvez tenha feito mal, mas nunca desesperei em relação à sua recuperação. Tamar, minha amada - chamou ele, na mais suave das vozes.

Voltou a chamar, e uma terceira vez. Então a rapariga deixou o seu leito e dirigiu-se a nós, num estranho movimento deslizante, como se fosse um espírito, e não carne. Tinha vestida apenas uma túnica - ou seria uma camisa? - rasgada e suja, que, àquela luz pouco distinta, me parecia cor de açafrão. O rosto tinha cicatrizes, como se de velhos golpes de faca, e sulcos de lágrimas sujas. Os olhos eram selvagens, e, contudo, distantes, mas o cabelo comprido estava penteado. A boca descaía, aberta, e, quando viu Absalão, balbuciou qualquer coisa, sons estranhos que eu não sabia interpretar, a linguagem de um animal, mais do que de uma mulher.

Agarrou as mãos de Absalão através das grades da porta, e comprimiu os lábios contra elas.

Eu não consegui falar, e virei costas, atormentado pela dor.

- Estás a ver, pai - disse Absalão, depois de termos deixado aquela cena de horror, e de termos percorrido o doloroso caminho que nos levou de volta à câmara onde ele me recebera -, estás a ver, pai, ela tem o aspecto de um monstro. Tem de estar presa, para seu próprio bem.

- Teria sido melhor se ela tivesse morrido.

- Assim é - disse ele. - Tem momentos de lucidez, e essas são as piores ocasiões, pois lembra-se do que era, e sabe o que agora é.

- Não me reconheceu - disse eu.

- Só me conhece a mim, e Anna, a mulher idosa que cuida dela. Pensei: «que pecado me sobrecarregou desta maneira?».

- Absalão - disse eu -, procedi mal para contigo. Tenho sido fraco, e tenho dado ouvidos àqueles que não te amam, e fui persuadido por Betsabé para ser injusto para contigo. O Senhor revelou-me o mal que eu fiz. Lamento verdadeiramente e estou arrependido.

Abraçamo-nos e, acompanhado por Jonadab, que extravasava em conversa à toa a sua alegria pela forma como as coisas tinham decorrido, regressei ao palácio à luz acinzentada e rosa da aurora.

Pela manhã, anunciei que Absalão recuperara o meu favor, e que agora tomaria o lugar que era seu de direito no governo de Israel.

Um chefe não pode ter iguais, nem amigos, e não deve dar confiança a ninguém, nem permitir intromissões na intimidade da sua existência. Vi que errara ao permitir que Betsabé exercesse demasiada influência sobre mim, e, por isso, decidi, dali para a frente, mantê-la à distância. Secretamente, disse a Jonadab que lhe transmitisse o meu desejo de que lhe fosse negado o acesso à minha pessoa.

O regresso de Absalão devolveu à minha governação uma popularidade que estivera em perigo de perder. Jonadab agora sentia-se suficientemente ousado para me informar de quanto Betsabé ficara ressentida com os meus conselheiros e de quanto ela se tornara impopular junto do povo. A opinião pública é, certamente, uma meretriz, facilmente influenciável e sem princípios. Contudo, o chefe sensato deseja cultivá-la e comandá-la. Eu descobria agora, através dos agentes de Huchai, a que ponto chegara o descontentamento. Informaram-me de conspirações maquinadas entre as tribos do Norte, e agi com rapidez para as suprimir e castigar os culpados.

Absalão estava ansioso por que eu o nomeasse meu sucessor. Todos os meus instintos de amor insistiam para que eu o gratificasse com tal anúncio, e, contudo, eu recuava. Para o acalmar, disse-lhe que desejava protegê-lo da inveja que tal anúncio provocaria, e que não desejava fazer dele, em particular, o objeto do ódio de Betsabé.

- Betsabé está determinada - disse eu - a que Salomão seja o meu sucessor... deixá-la sonhar, estaremos todos mais sossegados se assim continuar. Salomão não passa de um jovem estudioso, sem qualquer experiência de guerra. Penso que, quando eu morrer, não terás qualquer dificuldade com ele. Entretanto, meu filho estimado, deixa-me gozar de paz na minha velhice. Ainda amo Betsabé, embora, por tua causa, tenha ordenado que, por enquanto, ela se mantenha afastada de mim. Saberás como lidar com Salomão quando checar a hora.

A verdade era mais complicada. Eu estava consciente de que o avançar dos anos trazia consigo um declínio do vigor físico e mental, e receava que o fato de nomear um sucessor pudesse fazer alguns pensar que estava na hora de eu ser substituído. Eu não duvidava do amor e da fidelidade de Absalão, mas não podia sentir tanta certeza em relação a alguns daqueles que o rodeavam. Por isso, preferi conservar tal nomeação em reserva, para que houvesse dois partidos rivais no Estado, cada um deles mostrando incerteza em relação ao outro, e cada um deles ainda recorrendo a mim, à procura de segurança.

Mas para acalmar Absalão, e para demonstrar a confiança que depositava nele, fi-lo governador de Judá, a minha terra natal onde a lealdade para comigo era, como eu pensava - ó, com excesso de confiança -, absoluta.

E quando ele partiu para estabelecer residência em Hebron, com muitas manifestações de amor e gratidão, eu estava confiante de que agira sensatamente.

Entretanto, eu mandara vir Tamar para o palácio, e alojei-a lá como era adequado à filha de um rei. Infelizmente, ela entrou em declínio, e, pouco depois de Absalão ter partido para Hebron, recusou-se a comer e morreu. Era lastimável de ver.

O seu funeral foi celebrado com a máxima magnificência, com uma exibição da dor popular.

Betsabé continuou a dirigir-me cartas de censura, repreendendo-me pela minha crueldade e, como ela pensava, pela minha desonestidade. Respondi que ela procurara colocar-me contra Absalão, meu filho amado, que me tentara para que eu praticasse um ato de grande perversidade, e que, se ela continuasse a importunar-me daquela maneira, ordenaria que a acusassem de bruxaria. Em seguida ordenei que ela e Salomão saíssem de Jerusalém, e que se estabelecessem em Silo, pois eu estava cansado deles.

E assim, eu preparava para mim próprio uma velhice confortável, na qual as preocupações da governação não pesassem sobre os meus ombros, e eu cultivaria as artes, e prepararia a minha alma para ir ao encontro do Criador.

Estou certo de que Absalão me amava. No entanto, quando não se encontrava na minha presença, dava ouvidos às palavras dos meus inimigos. Alguns deles eram homens que me deviam muito, como, na verdade, Israel inteiro. Entre eles, o principal era Aitofel, e os seus motivos ainda me deixam confuso. Tínhamos trabalhado juntos, e eu sempre o honrara. Admirava a sua inteligência subtil, e dera-lhe um cargo elevado. Mas havia algo nele que se revoltava contra a minha grandeza. O verme do ressentimento roía-lhe a alma. Acostumado durante toda a sua vida a considerar-se mais inteligente do que todos os outros, e igualmente habituado a insistir na sua inteligência para compensar a sua total falta de valor militar, ele há muito que fingia desprezar os soldados, mesmo quando, na realidade, os invejava. Joab e ele tinham vivido em perpétua inimizade, o que não me desagradava. Mas Aitofel sentia-se confortável nessa inimizade, pois nunca duvidara da sua superioridade em relação a Joab. Isso era uma idiotice da sua parte, já que, em certos aspectos, Joab era seu mestre. Mas observei muitas vezes que aqueles que são dotados de muita inteligência têm também uma certa inclinação para a tolice. Apenas homens inteligentes, por exemplo, negam Deus, embora os estúpidos O possam esquecer.

Aitofel sentia-se diminuído por mim.

Betsabé também sugerira que, embora ele fosse seu avô, a razão que ele tinha para se opor ao nosso casamento não era só, como eu supunha, porque não fora ele próprio que o sugerira, ou maquinara o esquema; e não porque sentisse qualquer afeição por Urias, embora fosse o protetor do hitita, mas, abjetamente, porque nutria uma paixão incestuosa por ela.

- Ele não ousa confessá-lo - disse ela -, mas eu tenho visto os seus olhos a devorarem-me. Despiram o vestido do meu corpo, e regozijaram-se com a minha nudez.

No entanto, embora eu conhecesse os sentimentos de Aitofel, não fiquei ansioso quando me trouxeram a notícia de que ele era uma visita constante da casa de Absalão. Eu confiava no amor do meu filho, e sabia que ele podia aprender muito com alguém com a experiência de Aitofel em questões de estado. Mesmo quando Joab se aproximou de mim e me disse que, na sua opinião, estava a ser planeada uma traição, eu não fiquei alarmado. «Joab», pensei, «estava com ciúmes».

Olhando para o passado, sinto como se naquela altura tivesse os olhos cobertos de veludo negro, tão intensa era a escuridão em que me movimentava. Em que, na verdade, eu optara por me movimentar.

Há momentos em que pergunto a mim próprio se não terei desejado o que aconteceu.

Numa esplendorosa manhã do princípio do Verão, tomava eu banho, quando Jonadab me irrompeu pelo quarto, gritando:

- As trombetas soaram em todo o Israel, e Absalão foi proclamado rei em Hebron.

^   Era como se a luz do Todo-Poderoso se tivesse extinguido. •^ Jonadab, parecendo recear que o meu silêncio indicasse que eu não tinha compreendido, repetiu:

- Absalão foi proclamado rei em Hebron, e Judá inteira está em revolta.

- Mas Judá é minha - disse eu. -Judá é de Absalão, o coração de todos os jovens está com ele.

Não respondi, mas chamei os meus escravos para que me vestissem. Enquanto o faziam, e me perfumavam a barba, tendo tudo sido feito com a lenta formalidade da corte, eu tentava concentrar-me.

Primeiro: isto era o fim; o Senhor abandonara-me.

Em seguida: Aitofel estava por detrás disto; estava a agir em nome de Absalão. Eu disse a Jonadab:

- Manda alguém à presença de Absalão e pergunta-lhe em que termos ele aceitará a minha submissão. Poupar-me-á ele a vida?

Jonadab não se mexeu. O corpo pareceu endurecer-lhe. Era como se ele dissesse: «Não ouvi as tuas palavras, ó Rei.» Pensei: «que satisfeita ficará Betsabé? Eu disse:

- Que forças nos restam?

- Assim está melhor - respondeu Jonadab. - Não sei. vou descobrir.

- Não importa. Estamos acabados. Estou acabado. A comédia acabou. <.;

- Meu senhor, meu rei, não sabes o que dizes.

- Não, tens razão. Não sei. Ordenei-lhe que reunisse um conselho.

- Pelo menos veremos quais os meus generais e ministros que não me abandonaram.

Ao longo deste livro de memórias, não disse nada a não ser a verdade. Quem me dera agora tê-lo confiado a outro, ou tê-lo terminado mais cedo, pois confrontar-me com a verdade daquela manhã é terrível.

Durante toda a minha vida, sempre o perigo me estimulou, me acelerou o espírito e a inteligência. Mas, naquela altura, eu encontrava-me como que prostrado por uma paralisia da vontade.

E conheci o medo. Perguntei-me que morte Aitofel me destinara.

Recordei a forma como o Senhor se virara contra mim e contra a minha casa porque eu fora culpado da morte de Urias.

- Ó Senhor - gritei -, não deixes que a cabeça grisalha do Teu servo desça à sepultura envolta em pesar.

Entrei na câmara do conselho encostado ao ombro de Joab, e vi medo em todos os rostos, exceto no de Joab.

Eu disse:

- Toda a vida servi Israel e o Senhor dos Exércitos, que me abandonou na velhice.

Mergulhei numa cadeira, e fiz sinal a Joab, convidando-o a falar.

Mas eu mal podia seguir as suas palavras. Rolavam por cima de mim como o vento. Eu via apenas o rosto de Absalão, encantador e de olhos brilhantes, e um tremor abanou-me a mão. Falaram outros, e eu continuava sem conseguir forçar-me a ouvir, nem a intervir, nem a ir-me embora. As discussões colidiam como espadas por cima da minha cabeça baixa, e eu sentia o medo no ar. Então Joab bateu na mesa com a palma da mão.

Basta! - gritou ele. - É com a força que se deve ir de encontro à revolta, imediatamente, antes que se espalhe. Por isso, reunirei a minha- guarda, e marcharei decididamente contra Hebron. Não tenho dúvidas de que reuniremos mais tropas e reforços ao longo da nossa marcha, de que desbarataremos os rebeldes e de que deixaremos os seus corpos a servirem de alimento às aves do céu, os pássaros da morte.

Ergui a cabeça.

- Não - disse eu. - Não - repeti. - Fugiremos. Abandonaremos Jerusalém.

- David - disse Joab, e distingui irritação na sua voz -, conheces a força das defesas da cidade. Eu deixarei uma guarnição suficiente, e se o meu ataque for reprimido, baterei em retirada para a cidade, que pode suportar um cerco mais longo do que imagino que os rebeldes sejam capazes de manter. ..,,

- Não - disse eu, mas desta vez com decisão, pois as palavras de Joab tinham tido, pelo menos, este resultado: tinham-me trazido de volta a mim próprio. -Jerusalém é uma armadilha - disse eu, novamente. - Joab, estás com certeza lembrado de Queila, e da forma como Saul ficou satisfeito quando acreditou que nos defenderíamos lá.

Era como se as nuvens se tivessem dissolvido para revelarem a forma dura e nítida das montanhas. Eu não podia confiar em que Joab derrotaria as forças de Absalão, se marchasse contra elas - e, se ele falhasse, estávamos destruídos. Eu não podia confiar na lealdade do povo de Jerusalém, nem na sua prontidão para suportar as dificuldades de um cerco. Eu receava que a revolta se espalhasse às tribos do Norte, entre as quais havia muitas que tinham aceitado o meu reinado apenas por consentimento tácito. Parecia-me, por isso, que devia fortalecer a lealdade delas para comigo, e não havia maneira mais segura de o fazer do que juntar-me a elas com o meu exército.

E, assim, eu disse:

-<- Fugiremos e deixaremos Jerusalém a Absalão - embora eu soubesse que os meus motivos seriam mal compreendidos, e que muitos me considerariam vítima do medo; e, na verdade, o medo estava lá, alerta e inquietante.

Enviei uma mensagem a Betsabé, que se encontrava em Silo, insistindo para que ela reunisse tropas e as mantivesse à minha disposição.

Eu disse:

- Foste mais sensata do que eu no teu julgamento. Eram palavras amargas de escrever, mas necessárias.

Dei ordens a Joab para que se preparasse para marchar para fora da cidade, em direção ao norte.

Em seguida dissolvi o conselho, solicitando apenas a Huchai que permanecesse comigo.

- Tenho uma tarefa difícil e perigosa para ti, meu amigo.

- Estou às tuas ordens, meu rei e senhor.

- Quero - disse eu - que fiques na cidade. Quando o jovem Absalão entrar nela, irás ter com ele e prestar-lhe-ás homenagem como rei. Prometerás servi-lo tão lealmente como me tens servido a mim, e então usarás a tua sabedoria para confundir os conselhos de Aitofel. Desta forma, terei um amigo entre o inimigo, e encontraremos um meio de me poderes informar do que eles pretendem.

Eu sabia que estava a colocar um grande peso sobre os ombros de Huchai, pois receava, como ele próprio deve ter receado, que Aitofel suspeitasse das suas declarações, e persuadisse Absalão de que Huchai era um espião. No entanto, ele concordou sem hesitar. Foi uma das mais nobres homenagens que alguma vez me prestaram.

Combinamos que ele descobriria uma maneira de comunicar comigo através de Sadoc e Abiatar, os sacerdotes a quem eu também ordenei que ficassem na cidade.

- A Arca da Aliança do Senhor - disse-lhes eu - deve permanecer em Jerusalém, que é a cidade que eu dediquei ao Senhor.

Eu tinha duas razões para esta decisão. Em primeiro lugar, não desejava que fôssemos sobrecarregados com a necessidade de proteger a Arca; em segundo lugar, eu sabia que a minha ordem de que ela deveria permanecer em Jerusalém impressionaria os indecisos com a minha certeza de que regressaria.

No entanto, à medida que a nossa pequena cavalgada saía da cidade, quando as sombras do final da tarde caíam, e fomos informados de que a guarda de avanço de Absalão se encontrava a uns escassos cinco quilômetros da porta sul, o meu coração ficou pesado, e os meus pensamentos amargos. De novo, a única coisa que me faltava era ser dominado pela lassidão, e a tentação de voltar para trás e de me submeter a Absalão, pedindo-lhe apenas que poupasse a vida dos meus amigos e permitisse que me retirasse para um lugar santo, onde pudesse viver os meus últimos dias ao serviço do Senhor, era poderosa. «Já me basta de sangue» - o refrão ressoava nos meus ouvidos. Virei-me para trás e vi o Sol, vermelho, na muralha ocidental da cidade, e olhei para o Norte e vi a imensidão de um futuro incerto que se estendia à minha frente, para lá das areias do tempo. E fiz tudo menos chorar de pena.

Foi unicamente a idéia do triunfo de Aitofel, e a imagem do seu rosto a regozijar-se com a minha humilhação, que me impediu de abandonar o jogo.

Mas o fato de Absalão poder ter rendido a sua capacidade de julgamento e o seu amor às palavras doces e de sedução de Aitofel era um duro golpe para o meu coração. «Na verdade», pensei, «as palavras do velho eram mais suaves do que o azeite, e, contudo, eram, ao mesmo tempo, uma espada sem bainha».

Avançávamos para além do Monte das Oliveiras, à medida que a noite se fechava sobre nós. Mas eu não permitiria que a nossa pequena força descansasse ali, embora os meus próprios membros estivessem cansados, e a agitação do dia me tivesse tornado débil quase até às lágrimas. Em vez disso, ordenei a Joab, que estava sentado no seu cavalo como uma rocha, sombrio, que prosseguisse vigorosamente, embora eu próprio me encontrasse agora tão fraco que necessitava de uma liteira.

Quando romperam os primeiros raios da aurora, descíamos para Baurim, por um caminho que conduz a um vau que atravessa o Jordão. Então veio um grito das rochas, e, olhando para cima, vi uma figura, um homem idoso que reconheci como sendo Chimei, um inimigo meu e primo de Saul.

Chimei gritou-me:

- És tu, David, o inimigo da minha casa, covardemente em fuga do seu próprio filho? Foge, foge, homem sanguinário e filho de Belial, pois vejo que o indigno filho de um pai indigno é o agente do Senhor, que hoje te retribuiu por teres derramado o sangue da casa de Saul. O Senhor entregou o reino nas mãos do teu filho, do teu filho mais amado, Absalão. Foste apanhado na rede da tua própria perversidade, afogado no sangue que derramaste.

Em seguida soltou uma gargalhada ruidosa, própria do louco que era.

Abisai, que seguia a meu lado, virou-se para mim com um rosto tão sombrio como naquela noite em que me acompanhara à tenda de Saul e insistira para que eu matasse o rei.

- Porque pragueja este cão contra o rei, e porque razão tolerará o rei tal coisa? Deixa-me ir, suplico-te, acima daquela rocha e separar-lhe-ei a cabeça dos ombros, para que todo o Israel aprenda que homem algum pode insultar o rei com impunidade.

Estive tentado a permitir, pois o ódio que Chimei me dirigiu despertou em mim um forte desejo de o ver morto. Mas encontrávamo-nos agora na terra de Benjamim. Chimei, por mais louco que fosse, e vil como certamente era, também pertencia à tribo de Benjamim, da família de Saul, e tinha muitas relações. Matá-lo seria um prazer, e poderia impressionar alguns com a minha determinação. Mas poderia insurgir outros contra mim, que diriam que David anda pelo país a matar toda a gente como um lobo tresloucado; está na hora de o fazermos parar.

Por isso, disse a Abisai:

- Deixa-o. O homem é louco. Por isso me amaldiçoa. As suas pragas são leves e fáceis de suportar num dia em que o meu próprio filho se levantou contra mim e procura destruir-me e matar-me. Deixa-o, e que pragueje à vontade, pois nada do que ele diga me pode ferir mais do que já estou.

E assim continuámos a cavalo, perseguidos pelas suas pragas, e chegamos à margem do Jordão. Tomei algum vinho, à medida que Joab dispunha os homens em fila para fazerem a travessia. Chegou a notícia de que Betsabé se aproximava com uma pequena força, e olhei para o Norte, donde ela vinha; mas no olho da minha mente eu só via Absalão com toda a sua beleza, e lutei para compreender como é que ele se permitira virar-se contra o pai que o amava.

Absalão foi recebido em Jerusalém com todo o entusiasmo de que era capaz uma população instável e mal-agradecida. Esta notícia foi-me enviada por Huchai, através de dois jovens, Jónatas e Aimaás, filhos dos sacerdotes Sadoc e Abiatar.

Assim que manifestou o seu apreço pelas boas-vindas que o esperavam, Absalão chamou uma das concubinas que eu deixara no palácio, e apoderou-se dela, a conselho de Aitofel, à vista do povo, como prova de que era rei em meu lugar.

- Além disso - sugeria Huchai -, Aitofel acredita que tal insulto público à tua pessoa será imperdoável, e tenta desse modo tornar impossível a Absalão virar costas à revolta que, devo assegurar-te, é inteiramente obra do seu perverso conselheiro.

Quão pouco Aitofel compreendia da profundidade do amor de um pai pelo filho errante!

Em seguida discutiram o curso da ação a empreender. De acordo com Huchai, Aitofel era claro nos conselhos que dava. O rei retirara-se da cidade, disse ele, mas não entregara o trono a Absalão. O rei era uma raposa velha, astuto em assuntos de guerra. Ao deixar Jerusalém, surpreendera-os, e Absalão não devia supor que a coragem faltou ao pai. Não, isso fazia parte de um plano. David retirara-se simplesmente para mobilizar as suas forças e recrutar novas, e para fortalecer o seu exército. Não se lhe devia dar tempo de o fazer. De outra forma, Absalão e os seus seguidores poderiam ver-se obrigados a entrar numa batalha numa altura escolhida por David e num lugar de defesa por ele selecionado.

 

- Nenhum homem - disse Aitofel - teve alguma vez melhor olho para o terreno do que David, nem maior capacidade de defesa. E ele ainda tem consigo Joab, o homem mais experiente em guerra que Israel já conheceu, assim como o melhor preparador que um exército pode ter.

Conseqüentemente, Aitofel insistia para que não perdessem tempo, e que partissem em nossa perseguição com todas as forças que pudessem reunir, para, assim, esmagarem o nosso pequeno grupo, enquanto nos encontrávamos ainda desanimados e mal preparados.

Huchai apercebeu-se imediatamente de que o conselho de Aitofel era bom, e que, se fosse seguido, seríamos destruídos (ele era sensato nessa sua leitura da situação). No entanto, Absalão, para sua alegria e alívio, hesitou, não sabia dizer porquê (agrada-me pensar que, embora Absalão tivesse sido arrastado até este ponto pelas perversas e desonestas artimanhas de Aitofel, ele ainda era dominado pelo amor que sentia por mim, e não podia ver-se embarcar num plano que me destruiria completamente. Talvez, também, ele ainda esperasse que eu me rendesse. De qualquer maneira, ele não era capaz de se obrigar a olhar a realidade de frente, com os seus fortes imperativos).

Huchai, vendo a hesitação de Absalão, pigarreou, e perguntou modestamente (segundo o seu relato) se poderia dar a sua opinião.

- Por muito que eu respeite Aitofel, e sempre estive acostumado a submeter-me ao seu julgamento - disse ele -, desta vez discordo. O seu conselho não é bom, pois permitiu que o seu desejo muito natural de levar as coisas a um final de êxito ditasse o seu pensamento.

* Consideremos - continuou Huchai quando teve a certeza de que captara a atenção do grupo - os fatos do caso (eu podia imaginar Aitofel a franzir o sobrolho de irritação quando ouviu Huchai pronunciar esta frase suave mas enganadora). David e Joab eram os maiores comandantes da época. A força que estava com eles podia ser pequena, mas era composta de veteranos que tinham partilhado tantos triunfos, e que preferia morrer agora até ao último homem do que submeter-se à derrota. ,..]•

- A batalha - disse Huchai - é uma coisa terrível e o seu resultado nunca é certo. - Em vez disso, ele aconselhava uma consolidação da posição deles.

Este relato trouxe-me um sorriso amargo aos lábios. «Consolidação» é uma palavra que atrai sempre os tímidos, e que conforta a sua

apreensão. Em vez de arriscar tudo num encontro incerto, Huchai sugeriu que

Absalão reunisse o seu apoio vindo das tribos do Norte, para que o rei fugitivo reconhecesse o desespero da sua posição, e o seu exército perdesse o ânimo.

Aitofel protestou, mas a opinião do conselho pendia a favor de Huchai, e Absalão aceitou a decisão da maioria.

Agrada-me pensar que ele ficou satisfeito em fazê-lo, pois não posso acreditar que ele realmente desejasse atacar-me numa batalha.

Quando estas notícias chegaram até nós, Joab bateu na parte lateral do seu sabre, e gritou que o Senhor ainda estava conosco.

- Grande é o Seu nome - gritou ele -, pois Ele enlouqueceu o nosso inimigo.

E assim atravessamos o Jordão sem termos enfrentado qualquer oposição e estabelecemo-nos na floresta de Efraim.

Eu próprio retirei-me então, com o coração cheio de mágoa, para a cidade de Maanaim, donde enviei mensagens a todos os chefes de Israel, até àqueles que tinham reconhecido Absalão como rei, recordando-lhes o seu dever e a sua obediência. Eu tinha esperança de poder, assim, ser capaz de levar um número suficiente deles a desertar Absalão, para que ele próprio reconhecesse a loucura da sua revolta, e se rendesse a mim. Em seguida enviei uma mensagem a Huchai, através de um percurso secreto, dando-lhe instruções para que plantasse esta semente no coração do meu filho. Mas, infelizmente, ele achou que não o podia fazer sem se colocar em risco. E essa é a única censura que eu tenho a lançar a Huchai relativamente à sua conduta nestes dias terríveis.

Fiquei igualmente triste ao saber que o meu sobrinho Amassa me abandonara para se juntar ao primo Absalão, e fiquei ainda mais perturbado ao ser informado de que ele fora nomeado comandante do exército rebelde. Amassa era um jovem que eu próprio ensinara na arte da guerra, e receava que ele se verificasse um bom aluno.

Entretanto, Joab dedicava-se a treinar o nosso exército para a guerra na floresta, com a qual os israelitas, em geral, não estão familiarizados. É que eu determinara que deveríamos manter-nos firmes em Efraim, e convidar o inimigo a atacar-nos.

Quanto a mim, sentia-me demasiado deprimido para participar ativamente nos preparativos. Embora eu soubesse como a ação é um bom remédio para um coração ferido e um espírito prostrado, eu estava, no entanto, atormentado por uma estranha lassidão, que me fazia ficar muito tempo deitado depois de o Sol ter nascido, e que enfraquecia a minha capacidade de concentração.

Pensei, muitas vezes: «esta é uma guerra que eu deveria ficar contente por perder».

Considerei muitas vezes a hipótese de abandonar a luta e de me render a Absalão. Dizia para mim próprio: «ele é o teu filho amado, o herdeiro do trono, o adorado de Israel. Porque não ceder-lhe e passar o serão dos teus dias numa paz indolente?».

Eu dizia para mim próprio: «é a vontade do Senhor. Uma geração morre, e outra geração caminha atrás dela, mas a terra vive eternamente. Realizei grandes feitos, e procurei sabedoria, e é como o crepitar do espinheiro debaixo de um caldeiro: tudo é vaidade e tormento».

Betsabé enviou-me Salomão, seu filho, e foi como se o seu olho me tirasse as medidas da mortalha.

- Bem - disse-lhe eu -, e queres ir para o exército?

- Não, pai - respondeu ele. - Tens soldados para lutarem por ti. Compreendes, pai, que o meu irmão Absalão tem de morrer?

- O que dizes?

- Digo o que qualquer homem sensato sabe. Digo o que qualquer verdadeiro amigo teu pensa.

- Essas são as palavras da tua mãe - disse eu, e mandei-o embora. E, depois de ele ter partido, gritei ao Senhor como a minha rocha e

a minha salvação.

- Tira-me desta rede com que os meus inimigos secretamente me envolveram. - Eu rezava; mas não podia determinar quem eram os meus inimigos.

À noite, sob as estrelas, dirigi o olhar por cima dos terraços, na direção de Jerusalém, onde vivia o jovem Absalão - dominado por que pensamentos?

E eu não tinha Betsabé a meu lado, e, assim, tomei uma concubina, a filha de um taberneiro da cidade, e deitei-me com ela, para silenciar os pensamentos. Mas quando ela dormia, os pensamentos regressaram. E, à medida que eu mergulhava, insensivelmente, nos breves períodos de sono que me eram concedidos, era o rosto de Absalão que eu via, eram os olhos de Absalão que estavam fixos em mim com um olhar no qual eu lia julgamento, condenação e piedade. E então eu acordava novamente, a chorar.

O dia chegou quando uma mensagem foi enviada por Huchai para dizer que Absalão e Amassa estavam a ordenar as suas forças, e que agora se propunham marchar contra nós.

- Não é mais possível segurá-lo - dizia ele.

- Ótimo - disse Joab --, os homens estão prontos para lutar. Ele delineou a disposição das suas forças.

- Sim - disse eu -, tenho a certeza de que fizeste tudo, de que tudo está a postos.

- David - disse ele -, e continuou a expor o seu plano.

- Sim - disse eu -, o fruto daquela figueira ali está maduro para ser apanhado e tenho a certeza de que o farás.

- Esta noite cearemos em Jerusalém - disse ele.

-Joab - disse eu -, deves providenciar para que não aconteça qualquer mal ao jovem Absalão.

É estranho permanecer-se numa cidade a uma hora de marcha de um exército que trava uma batalha, e não saber de nada. Olhei em direção à floresta, e havia silêncio no calor do dia. Insistiam para que eu comesse e bebesse, mas eu afastava essas insistências com a mão, e não tirava os olhos da floresta, na escuridão distante. A sombra das muralhas da cidade agigantava-se à minha frente, à medida que o Sol mergulhava, e não chegavam notícias. Senti atrás de mim, dentro da cidade, o tremor do medo. Durante muito tempo, ninguém se aproximou de mim, e ninguém falou.

Então um grito ergueu-se, vindo das portas da cidade, e alguém veio ter comigo e disse que se via uma figura a caminhar na nossa direção. ,;

- Um homem? Um homem sozinho? Nesse caso é um mensageiro, e não um fugitivo da batalha.

Pouco depois vieram novamente e disseram que fora avistada uma segunda figura, a alguma distância da outra.

- Se também vier sozinho, é outro mensageiro, e a vitória é nossa.

Ouvi um murmúrio de alívio erguer-se das ruas apinhadas, à medida que se espalhava a palavra de que o rei falara, e que estava tudo bem. Em seguida rebentaram vivas, e o meu nome foi louvado em voz alta por aqueles que se tinham mantido afastados da revolta apenas devido ao medo ocasionado pela minha presença e pela presença do exército. Ter-me-iam enforcado às portas da cidade e dado a minha carne às aves do céu como alimento, se uma nuvem de pó tivesse revelado os nossos soldados em fuga.

Assim, sabendo que os meus homens tinham vencido uma batalha que eu gostaria também de ter perdido - se a derrota me tivesse podido garantir descanso - retirei-me para o interior da casa que tomara como minha habitação, e ordenei que o mensageiro me fosse lá levado.

Disse para mim próprio: «não há vitória que possa expulsar da minha mente a memória da minha fuga de Jerusalém, e o que então descobri sobre o ódio com que os homens me olham». E pensei: «não expurgarei esse ódio com o sangue derramado em doce vingança?». Mas outra voz soou na minha mente cansada: «A vingança é minha», disse o Senhor.

Quando o mensageiro se aproximou, reconheci-o. Era Aimaás, filho do Sacerdote Abiatar, e que, vindo de Jerusalém, servira de mensageiro de Huchai. Prostrou-se no chão perante mim, o rosto agradável a escorrer suor, e gritou:

- Abençoado seja o Senhor Deus de Israel que entregou os inimigos do rei na tua mão e tirou Israel da escuridão.

Agradeci-lhe, como era adequado, e mandei que transmitissem a notícia à cidade.

- Está tudo bem com o jovem Absalão? - inquiri. * Aimaás baixou a cabeça, e falou em voz baixa.

- Senhor, meu rei, quando Joab enviou este servo do rei para trazer a notícia da vitória do rei, havia um grande tumulto em volta dele, mas não sei o que era...

Nesse momento, o segundo mensageiro foi conduzido ao interior da câmara, à minha presença. Reconheci-o. Era um escravo etíope que pertencia à casa de Joab. ;

- Está tudo bem com o jovem Absalão?

- Os inimigos do meu rei e senhor e todos os que se levantam em guerra contra ele, que estejam como esse jovem está.

Retirei-me para uma sala mais interior, e rendi-me à dor.

Oh, Absalão, meu filho, meu filho, porque não morri em teu lugar, Absalão, meu filho, meu filho! A partir deste dia há apenas escuridão, e a alegria é banida até do topo das montanhas. Passado muito tempo mandei chamar o etíope e ordenei-lhe que me contasse como Absalão morrera.

- Preso num carvalho e trespassado por Joab.

Dei-lhe ouro porque ele me trouxera a notícia amarga que eu receava e ansiava ouvir. Poderia igualmente tê-lo mandado matar, mas havia mais desdém num presente de ouro. Em seguida ordenei que não houvesse alegria na cidade, mas respeito pela dor do rei

A noite caiu, e o sono era-me negado. Mandei embora a minha concubina, que pensara poder confortar-me, e fiquei sentado no frio da escuridão, e convidei o Senhor a mostrar-me o pecado pelo qual Ele me infligira este castigo.

Pensei: «nenhum homem alcançou mais glória em Israel do que eu; nenhum homem realizou maiores feitos; de tribos em luta, formei uma nação perante o Senhor; e agora, na velhice, provo o fruto da amargura».

E pensei também em Saul, e como o Senhor o abandonara da mesma maneira, e o levara ao extremo da razão, até para lá deste, como se vê do fato de ele se ter ligado àqueles que praticavam bruxaria, enquanto procurava conforto no seu completo desespero.

Nessa altura a cortina atrás da qual eu me escondia dos olhos dos homens foi empurrada para o lado, e Joab encontrava-se à minha frente, manchado da sujidade da batalha, e trazia, na mão direita, a espada com que matara o meu filho.

- Estás de luto pelos homens corajosos que morreram por ti hoje, David? Alcançámos uma poderosa vitória sobre os teus inimigos, e eu cheguei triunfante, esperando ver-te festejar e receber os teus agradecimentos. E que encontro eu? O rei a chorar como uma mulher, e toda a cidade me diz que é por causa do teu filho, o traidor que se levantou contra ti e que teria tomado a tua vida e o trono, se eu, Joab, não o tivesse evitado. Será que o rei, indigno desse nome neste seu choro de mulher, teria preferido que o seu corajoso e fiel exército tivesse sido destruído para que o seu indigno filho vivesse? Se assim é, David, eu não teria arriscado a minha vida por tua causa, nem os homens corajosos que lutaram por ti. Devíamos ter todos ficado nos nossos leitos, e deixado que o rei fosse levado, como objeto de desdém e troça. Terias preferido que isso tivesse acontecido? Há mulheres nesta cidade esta noite que têm razão para chorar. São as mães, as esposas e as amadas de homens corajosos que morreram para que possas ainda ser rei. O rei conforta-as? Não, ele chora pelo canalha que foi a causa das suas mortes.

David, durante toda a tua vida tens provocado largamente a minha paciência; no entanto, nenhum homem alguma vez esteve mais fiel a teu lado. Mas há um limite para toda a lealdade, até para a minha. O que dirão os teus destemidos soldados quando souberem que preferias que eles tivessem morrido, para que a vida de Absalão tivesse sido poupada? Será que não gritarão: ’David rejeitou-nos, a nós, que lutamos por ele. Assim, porque não rejeitarmos também David como rei? Bem, não é demasiado tarde para evitar isso. Eles compreenderão que lamentas a morte de teu filho, mesmo que não haja no exército um único homem que não se regozije com ela, um único homem que não se sinta grato pelo fato de o Senhor ter lutado hoje a nosso lado e por Absalão já não perturbar mais a paz de Israel. Mas só o farão se apareceres perante eles amanhã, e expressares a tua gratidão para com o exército, e proclamares um festival de ação de graças por nos termos libertado da revolta e da guerra civil.»

Submeti-me à sua razão brutal, embora a sua presença me enchesse de amargura.

Joab, no entanto, foi prematuro ao supor que a revolta chegara ao fim. Amassa, numa demonstração daquela capacidade militar precoce que fizera com que eu o marcasse como um futuro general de Israel, ainda quando me serviu pela primeira vez como ajudante-de-campo, maquinou para reagrupar e restabelecer o exército derrotado, de forma a permitir que este retirasse bem ordenado para Jerusalém.

Joab estava disposto a atacar imediatamente a cidade, e a tomar de assalto as suas muralhas. Mas eu disse:

-Já houve derramamento de sangue suficiente, e, além disso, as fortificações de Jerusalém que eu construí são fortes, e o exército que se encontrar no seu interior desesperará e não se renderá prontamente. - Assim, proibi-o e senti prazer em fazê-lo.

Em vez disso, enviei por Aimaás uma mensagem para seu pai, Abiatar, e para Sadoc, os sumo sacerdotes, que ainda se encontravam em Jerusalém a guardar a Arca da Aliança, como eu lhes ordenara, e instruí-os para que falassem com Amassa, e oferecessem um perdão a todos os que estavam envolvidos na revolta, se depusessem armas e se rendessem a mim. E acrescentei:

- Direis ao jovem que terei um cuidado especial com ele, uma vez que era amigo do primo, do meu filho Absalão, cuja morte me deixou desolado e lamento a todas as horas do dia.

Amassa compreendeu a sensatez do que eu oferecia, e apresentou-se a mim pessoalmente para me entregar a sua espada e implorar o meu perdão. Quando eu o recebera publicamente, eu disse que desejava falar com ele em privado.

Começamos por falar de Absalão, que ambos tínhamos amado, e choramos e abraçamo-nos e confortamo-nos um ao outro no nosso pesar.

Então eu disse:

- Há apenas uma outra condição, meu caro. Deves fazer com que Aitofel se renda a mim, para que eu o castigue pelo mal que fez ao seduzir o meu filho e ao conduzi-lo à destruição.

Amassa afastou para trás os seus caracóis acetinados, e abanou lentamente a cabeça.

- Aitofel escapou-se-te. Quando chegou a notícia da nossa derrota, dirigiu-se a cavalo para sul de Jerusalém, em direção às suas próprias terras, à sua própria casa, e aí, tendo colocado os seus assuntos em ordem, atirou uma corda por cima de uma viga, fez um nó e enforcou-se.

Eu disse:

- Teria preferido que ele não me tivesse escapado. Era um homem perverso. As suas palavras eram mais suaves do que o mais fino azeite, e, contudo, sacavam espadas das bainhas. Agora - continuei -, desejo, meu caro, restabelecer a paz em Israel. Tu ainda comandas os homens de Judá, e, após o relato que fizeste da retirada de Efraim, e de acordo com a tua capacidade guerreira, decidi que a melhor maneira de levar a efeito a necessária reconciliação, será colocar-te no comando do exército de todo o Israel. O que dizes?

Ele ficou confuso. Apesar das garantias que Abiatar e Sadoc lhe tinham dado, ele apresentara-se a mim com medo e ansiedade, pois não podia acreditar que a minha magnanimidade fosse ao ponto de poupar a vida de alguém que desempenhara um papel tão proeminente na revolta. Eu sentira a sua apreensão, mesmo quando o abraçava, ao chorarmos Absalão. E, por essa razão, ainda me senti mais próximo dele, admirando a coragem com que ele tentara esconder o medo.

Mas agora ele levantava a objeção que era natural. . - E Joab? - quis ele saber.

Eu respondi:

-Joab, como sempre, submeter-se-á à minha vontade.

Para o convencer, eu disse:

-Joab sabe que eu nunca esqueci o fato de ele ter assassinado Abner, e sabe que está em meu poder levá-lo a julgamento e mandá-lo matar por esse crime. E ele também sabe que não resta nada que me impeça de o fazer, uma vez que ele matou Absalão contra a minha ordem expressa.

Enquanto falava, eu não sabia o que, mais tarde, amargamente descobri: que a autoridade deserta um rei moribundo. À primeira oportunidade, Joab, agindo com a mesma crueldade que sempre demonstrara, assassinou Amassa, trespassando-o, tal como trespassara Abner e Absalão, com a sua própria espada.

Quando me trouxeram a notícia de que Amassa fora assassinado, eu não senti nada, não era capaz de chorar.

Pensei: «Tenho servido o Senhor todos os meus dias, e nos últimos, quando estou fraco, Ele visita-me com tormentos.»

Uma voz soou-me ao ouvido: «Amaldiçoa Deus e morre.»

E perguntei-me porque é que eu não o deveria fazer, já que todos conspiravam para me enganarem e me trazerem sofrimento: Absalão, que eu amava mais do que a glória, e que procurou matar-me; Amassa, que eu escolhera para ser o meu apoio nos meus últimos dias, fora brutalmente arrancado de mim, por Joab, que eu há muito odiava, e que - eu via agora - retribuía esse ódio com uma medida acrescentada.

Pensei nas horas de amor com Betsabé, e agora a minha carne cheirava mal.

Recordei as palavras de Chimei, à medida que eu fugia à frente de Absalão: «Foste apanhado na tua própria perversidade e afogas-te no sangue que derramaste.»

E, no entanto, eu não fiz senão o que tinha a fazer.

- Jonadab veio à minha presença, meneando o traseiro, contorcendo-se de prazer, como o portador de más notícias. Falou-me de traição, da forma como surpreendera Abisag com o meu filho Adonias.

Eu disse:

- Eles são jovens, e eu sou velho. É natural.

Quando a rapariga se apresentou perante mim, não a repreendi, e coloquei a boca entre os seus seios.

- Conforta-me - disse eu. - Não tenho refúgio senão em ti. Eu tinha frio e ela aqueceu-me.

- Sei que não me amas - disse eu.

Salomão entrou no meu quarto. •&

- Não - disse eu -, ainda não estou morto. Tens de esperar um pouco mais. Lamento decepcionar-te.

Ele fez uma vênia, educadamente. Trata-me com uma reverência intolerável.

Pensei: «porque não deverá Adonias suceder-me, em vez de Salomão? Porque não deverá ele casar-se com Abisag após a minha morte?».

Salomão leu-me os pensamentos. Empalideceu. Lançou-me um olhar em que, pela primeira vez, eu li algo de humano: estava impregnado de malícia. Em seguida a farsa prosseguiu. Fingiu que não sabia o que eu estava a pensar. Falava solicitamente. Mas, por um momento, perguntou-se se deveria pegar na almofada que estava atrás da minha cabeça e asfixiar-me.

Serão as minhas noites um antegosto da morte? Não estou nem a dormir nem acordado. Será esse o estado dos mortos, apanhados e condenados a viverem num mundo crepuscular, no qual os movimentos da carne são tristes e cansadas recordações, tristes porque já não são possíveis de alcançar, cansadas devido à sua persistência? Neste meio mundo, eu flutuo, das noites frias e solitárias das montanhas de Judá, onde os lobos uivam, e o pêlo áspero dos meus cães se comprime contra os meus membros, ao doce bem-estar que se seguia aos momentos de amor com Jónatas. Mical revela a sua nudez e nega-me que a possua. Betsabé rende-se completamente a mim, para que eu me torne seu prisioneiro. E Absalão, que eu amei mais do que a qual quer outro ser, vira para mim as facas aguçadas do seu olhar e diz, na voz calina da realidade inegável: «o filho matará o pai, pois assim está escrito.”

Abisag, nos meus braços ressequidos, é todos aqueles que eu amei, e nenhum deles.

Laís aperta-se contra mim, e murmura: «Se não tivesses sido rei, David, que felizes poderíamos ter sido!», e a cabeça ensangüentada de Amassa, bela como todas as coisas quebradas, vira para mim olhos de censura, mas não encontra palavras para dizer.

Ouvi um grande grito vindo da cidade, um grito de aclamação, um grito daqueles que muitas vezes conheci. Mas não sabia se era na cidade, ou se era como as minhas outras vozes.

Por isso, deixei-me ficar deitado, como uma criança pequena que receia o terror da noite.

Quando Jonadab surgiu perante mim, não ousei perguntar-lhe o que era o grito, com receio de que não tivesse havido nenhum.

- Porque choras, meu rei e senhor? Mas eu não disse nada.

- O rei ouviu um grande clamor vindo da cidade? E o rei não está ansioso por saber o que era?

Pensei: «esta criatura é minha. No entanto, há troça na sua voz».

- O meu rei e senhor não ouviu?

- Samuel falou-me - disse eu. - Ele fez de mim servo do Senhor . e instrumento da Sua vingança.

Mas talvez eu não tenha pronunciado estas palavras, pois Jonadab continuava como se eu não tivesse dito nada.

- Adonias - disse ele - estava a preparar-se para se aclamar rei. Quando Betsabé, a rainha, soube disso, ordenou que trouxessem Salomão para o local em frente da Arca da Aliança, e, a ordem sua, os sacerdotes anunciaram que tu, sendo avançado em anos, tinhas nomeado Salomão para reinar em teu lugar, e para ser rei de todo o Israel e de Judá.

- E Adonias?

- Fugiu para um refúgio, ninguém sabe onde.

Assim, disse eu - ou será que pensei? - Salomão não tem necessidade de me matar agora.

Eu disse:

- Não tenho dúvidas de que servirás Salomão como me serviste a mim.

- O rei tem alguma ordem a dar ao seu servo?

- Quem sou eu para dar ordens?

«Certamente», pensei, «que todo o homem caminha num espetáculo vão. Acumula tesouros e riquezas e não sabe quem os colherá».

E agora, Senhor, Senhor, por que espero?

Sou um hóspede aqui, como todos os meus antepassados foram, e estou pronto para a longa noite e para a escuridão que tudo cobre...

 

Epílogo

São estas as palavras de Aimaás, filho de Abiatar, o sacerdote:

O nobre rei David, servo do Senhor, morreu após ter reinado quarenta anos em Israel, sete em Hebron e trinta e três em Jerusalém.

E todo o povo chorou a sua morte, e quem mais chorou pareceu ser o rei Salomão.

Salomão reinou em seu lugar, e os homens acreditavam que era por vontade de David e, assim, aceitaram-no. E ninguém questionou a sua autoridade, nem sequer aqueles que pensavam de outra forma.

Quando Adonias, irmão do rei, que David amava, procurou a mão da concubina do pai, Abisag, a sunamita, Salomão sentiu ciúmes e ordenou que o irmão fosse condenado à morte, e assim foi imediatamente feito, pela mão ; de Benaías, filho de Joiadá, um homem sanguinário. E Salomão tomou Abisag, violou-a e atirou-a para as ruas como uma prostituta comum.

Então Salomão virou-se para o meu pai, Abiatar, o sacerdote, que servira David desde que este escapara à raiva de Saul, e enviou-o para o exílio. Não ousou matá-lo, porque ele trouxera a Arca da Aliança para Jerusalém, mas exilou-o porque ele era amigo do príncipe Adonias, declarando, no entanto, que o fazia para cumprir a palavra do Senhor em relação à casa de Eli, que é a casa de meu pai, em Silo. Mas tal não era verdade.

Em seguida Salomão matou Chimei, que amaldiçoara seu pai naqueles dias negros da revolta de Absalão contra ele, e declarou que o fizera para vingar o insulto proferido contra David; e que David lhe ordenara que o fizesse, pois David jurara poupá-lo enquanto ele próprio vivesse.

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Salomão receava, creio, sentiu um homem tímido. que a tribo de Benjamim o odiasse pela morte de Chimei, e, por isso, atribuiu a culpa a seu pai David.

Então Salomão enviou Benaías, filho de joiadá, contra Joab, o general do exército. E Joab fugiu à sua frente para o tabernáculo do Senhor e agarrou-se à armação do altar, mas Benaías matou-o aí mesmo.

E Salomão voltou a declarar que, ao ordenar tal coisa, estava a obedecer à vontade do pai, David, porque Joab assassinara Abner e Amassa, e não estava certo que esta cabeça grisalha descesse à sepultura em paz.

Mas não sei se David ordenara tal coisa, nem se Salomão dizia a verdade sobre este assunto. Se o fez, não disse toda a verdade, uma vez que, aos olhos de David, o maior crime que Joab cometeu foi o assassínio de Absalão, seu filho amado; e Salomão não mencionou tal.

Assim, parece-me que, neste aspecto, Salomão também mentiu.

Salomão virou-se igualmente contra sua mãe, Betsabé, e ordenou-lhe que se retirasse do palácio e se limitasse à sua própria casa, porque ela insistira com ele a favor do casamento de Adonias com Abisag. Ela irrompeu em fúria e jurou que ele era filho do pecado, porque ela e David tinham enganado Urias, o hitita, seu primeiro marido.

Então Salomão declarou que o Senhor lhe prometera grande prosperidade e riquezas acima das que nenhum homem em Israel gozava, e que lhe assegurara sabedoria acima de todos os outros, e que, por isso, ele construiria um templo ao Senhor, que fosse agradável aos olhos do Senhor, e que David fora proibido de construir, por ser um homem sanguinário.

E assim o templo do Senhor, como toda a glória de Salomão, foi fundado sobre uma mentira.

Eu, Aimaás, filho de Abiatar, o sacerdote, escrevo estas palavras no Egito, para onde fugi da vingança de Salomão, embora os agentes de Benaías me tivessem perseguido até aqui, e me tivessem matado, não fosse a proteção do Senhor Deus de Israel, e de outros deuses, nos quais necessito confiar enquanto residir nesta terra estrangeira, para que todos saibam através de mim que Salomão é um sepulcro caiado, e que, pela sua hipocrisia, o Senhor destruirá a sua casa, apesar dos grandes e virtuosos serviços prestados por seu pai David, cujo testamento salvei dele, para que todos conheçam Salomão por aquilo que é, e David por aquilo que foi.

E escrevi estas palavras livre de qualquer perversidade, e simplesmente para honrar o Senhor dos Exércitos, cujo nome seja abençoado, dando testemunho da Sua verdade, que sobrevive às palavras dos homens.

 

                                                                                Allan Massie  

 

                      

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