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57
SAARA, MARROCOS
Era mais alto do que Mikhail se lembrava e mais largo de peito e de costas, talvez por ter tido tempo de sobra para se recuperar das suas feridas. Ou talvez por causa da sua roupa, pensou Mikhail. Naquela noite já longínqua, vestia um fato ocidental escuro e estava sentado em frente de uma bela jovem com o cabelo escuro pintado de louro. De vez em quando, olhava de soslaio para a televisão que estava por cima do balcão para ver o resultado dos seus esforços. Tinham explodido várias bombas no Centro Nacional de Antiterrorismo de Virgínia e no Memorial de Lincoln. E não era só isso: havia mais, bem mais.
Ao ver pela primeira vez a nova cara de Saladino, Mikhail pensou de imediato que não casava com ele. Tinha as maçãs do rosto e o nariz demasiado angulosos, e aquele queixo de estrela de cinema era mais próprio de um homem vaidoso que o tinha escolhido ao folhear uma revista no consultório do cirurgião plástico. Para além disso, tinha os olhos muito retocados, mas a íris continuava a ser tal e qual Mikhail se lembrava: larga, escura e insondável, os olhos brilhavam com uma profunda inteligência. Não eram os olhos de um louco, mas os de um profissional. Não convinha tentar a sorte contra aquele olhar, nem estar sentado em frente daqueles olhos numa sala de interrogatório. Ou num acampamento nas margens do Saara, pensou Mikhail, rodeado por jihadistas bronzeados munidos de armas automáticas. Resolveu despachar rapidamente a reunião e deixar que Saladino seguisse o seu caminho. Mas sem se precipitar. Saladino estava a prestes a facultar-lhe a listagem de armas que desejava: uma informação de valor incalculável. Uma oportunidade sem precedentes. Não podia deitar tudo a perder.
As apresentações tinham sido rápidas e enérgicas. Mikhail tinha aceitado a mão que o iraquiano lhe estendia sem vacilar. A mão que tinha condenado à morte tanta gente. A mão do assassino. Era uma mão grossa e forte, muito quente ao tato. Para além de seca, observou Mikhail. Não transmitia qualquer sinal de nervosismo. Não estava ansioso, nem incómodo: estava no seu elemento. Tal como o seu homónimo, era um homem do deserto. Não obstante, era notório que o chá de hortelã-pimenta marroquino não era do seu agrado.
— Demasiado doce — disse fazendo uma careta. — Estou surpreendido por os marroquinos terem dentes.
— Não temos — afirmou Mohammad Bakkar.
Ouviram-se risos sufocados. Saladino levantou a cabeça para o céu e olhou para as estrelas.
— Ouvem isso? — perguntou passado um momento.
— O quê? — perguntou Mikhail.
— Abelhas — respondeu Saladino. — Parecem abelhas.
— Aqui não há abelhas. Moscas talvez, mas abelhas não.
— Certamente que tem razão. — Falava um inglês firme, mas com uma forte pronúncia estrangeira. Baixou o olhar e fixou-o em Mikhail. — Assumo que desfizemos qualquer dúvida com respeito à sua profissão.
— Efetivamente.
— E o senhor é mesmo russo?
— Receio bem que sim.
— Não terei isso em conta — afirmou Saladino. — O seu governo tem cometido atrocidades horríveis na Síria a tentar salvar o regime.
— No diz respeito à Síria — respondeu Mikhail —, a Rússia não tem o monopólio da atrocidade. O Estado Islâmico também tem muito sangue nas mãos.
— Para fazer uma omeleta — afirmou Saladino — é necessário partir alguns ovos.
— Ou massacrar civis inocentes?
— Nesta guerra não há ninguém inocente. Enquanto os infiéis continuarem a matar as nossas mulheres e crianças, nós continuaremos a matar as deles. — Encolheu os ombros grossos. — É simples. Para além disso, um homem que se dedica ao que o senhor se dedica não está em posição de dar sermões a ninguém a respeito de danos colaterais.
— Há uma certa diferença entre os danos colaterais e a matança deliberada de civis.
— Não há assim tanta. — Saladino bebeu um pouco de chá. — Diga-me, Monsieur Antonov, é um espião?
— Vivo no sul de França, numa mansão cheia de obras de arte. Não sou um espião.
— Na Rússia — prosseguiu Saladino sagazmente —, há espiões de todo o tipo.
— Não sou, nem nunca fui um agente da espionagem russa.
— Mas é próximo do Kremlin.
— Na realidade, faço os possíveis para não me atravessar no seu caminho.
— Ora, ora, Monsieur Antonov. Toda a gente sabe que na Rússia é o Kremlin que escolhe os vencedores e os perdedores. Ninguém se torna rico sem a permissão do Czar.
— Conhece muito bem o meu país.
— Fiz muitos acordos com a Rússia na minha vida anterior. Sei como funciona o sistema. E sei que um homem que se dedica ao que o senhor se dedica, não sobrevive sem a proteção dos seus amigos do SVR e do Kremlin.
— É verdade — afirmou Mikhail. — E é muito provável que perca esses amigos se souberem que estou a pensar em fazer negócios com alguém como o senhor.
— Isso não é lá muito lisonjeador.
— Não pretendia ser um elogio.
— Admiro a sua franqueza.
— E eu a sua — respondeu Mikhail.
— Opõe-se por princípio a fazer negócios connosco?
— Tenho poucos... princípios.
— Tenho muita pena.
— Não tenha.
Saladino sorriu.
— Desejo adquirir uma certa mercadoria para futuras operações.
— Armas?
— Não, armas, não — respondeu Saladino. — Material.
— De que tipo?
— Do tipo — prosseguiu o iraquiano — que o governo da antiga União Soviética produzia em grandes quantidades durante a Guerra Fria.
Mikhail deixou passar uns instantes antes de responder.
— Esse é um negócio muito sujo — comentou baixinho.
— Muito, sim — conveio Saladino. — E muito lucrativo.
— O que é que procura exatamente?
— Cloreto de césio.
— Suponho que pensa usá-lo para fins médicos.
— Agrícolas, na verdade.
— Tinha a impressão de que a sua organização já se tinha apoderado de material desse tipo na Síria e na Líbia.
— De onde é que tirou essa ideia?
— Do mesmo lugar de onde soube que eu era traficante de armas.
— É verdade, mas uma parte da nossa provisão desapareceu há pouco. — Saladino olhou fixamente para Jean-Luc Martel.
— E o resto? — perguntou Mikhail.
— Isso não é da sua incumbência.
— Desculpe, não pretendia...
Saladino levantou uma mão para indicar que não se sentia ofendido.
— Conseguiria o dito material? — perguntou.
— É possível — respondeu Mikhail com cautela —, embora seja extremamente arriscado.
— Nada que valha a pena está isento de risco.
— Lamento — disse Mikhail passado um momento —, mas não posso fazer parte disto.
— De quê?
Mikhail não respondeu.
— E não quer pelo menos ouvir a minha proposta?
— Não é uma questão de dinheiro.
— É sempre uma questão de dinheiro — replicou Saladino. — Diga um preço e pagar-lho-ei.
Mikhail fingiu refletir.
— Posso fazer averiguações — disse, por fim.
— Quanto tempo demorará?
— O que for necessário. Não é algo que possa fazer à pressa.
— Entendo.
— Precisa de apoio técnico?
Saladino negou com a cabeça.
— Só o material propriamente dito.
— E se o conseguir? Como é que entro em contacto consigo?
— Não será necessário — afirmou o iraquiano. — Entre em contacto com o seu amigo Monsieur Martel. Ele avisará o Mohammad. — Levantou-se bruscamente e estendeu-lhe a mão. — Espero ter notícias suas em breve.
— Tê-las-á. — Mikhail aceitou de novo a mão e apertou-a com força.
Saladino afrouxou o aperto e virou a cara para o céu mais uma vez.
— Está a ouvir isso?
— As abelhas outra vez?
Saladino não respondeu.
— O senhor deve ter um ouvido excelente — comentou Mikhail —, porque eu não ouço absolutamente nada.
O iraquiano continuava a apreciar as estrelas. Por fim, olhou para Mikhail e os seus olhos escuros semicerraram-se pensativamente.
— A sua cara é-me familiar, Monsieur Antonov. É possível que nos tenhamos visto antes?
— Não — respondeu Mikhail —, não é possível.
— Em Moscovo, talvez? Noutra vida?
Os seus olhos passaram lentamente de Mikhail para Jean-Luc Martel e deste para Mohammad Bakkar. Por fim, fixou de novo o olhar em Mikhail.
— A sua esposa não é russa — disse.
— Não, é francesa.
— Mas é muito morena de pele. Quase como uma árabe. — Saladino sorriu e depois explicou como o sabia. — Dois dos meus homens viram-na ao sol na praia, em Casablanca. E ontem também, na medina de Fez. Tinha o cabelo coberto. Os meus homens estavam muito impressionados.
— Respeita muito a cultura islâmica.
— Mas não é muçulmana.
— Não.
— É judia?
— A minha esposa — afirmou Mikhail com frieza — não é da sua incumbência.
— Talvez devesse sê-lo. Seria possível eu conhecê-la, por favor?
— Nunca misturo negócios e família.
— Sábia decisão — comentou Saladino. — Mas ainda assim gostaria de vê-la.
— Não usa um véu para cobrir a cara.
— Marrocos não é o califado, Monsieur Antonov. Inshallah o seja em breve, mas por enquanto vejo caras descobertas para onde quer que olhe.
— Como reagiria se eu fizesse questão de ver a sua esposa sem véu?
— Com toda a probabilidade, matá-lo-ia.
Roçou Mikhail ao passar ao seu lado e, sem proferir nem mais uma palavra, dirigiu-se à tenda.
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SAARA, MARROCOS
Afastou a cortina e entrou. Havia velas acesas sobre a mesa na qual Keller lia um romance de bolso e junto à cama, onde Natalie e Olivia jogavam ao backgammon, inclinadas uma de cada lado. Conversavam calmamente, como se tivessem o tempo todo do mundo à disposição.
Por fim, Keller levantou o olhar.
— Chega mesmo a tempo — disse jovialmente em francês. — Importa-se de nos trazer um pouco de chá? E uns doces. Esses empapados em mel. Faça-me esse favor.
Keller virou a página do livro. As velas tremeram quando Saladino atravessou a tenda em três rápidas passadas e parou aos pés da cama. Natalie atirou o dado no tabuleiro e, contente com o resultado, meditou sobre o seu próximo movimento. Olivia olhou para Saladino com exasperação.
— O que é que está aqui a fazer?
Ele, silencioso, estudou cuidadosamente Natalie, que tinha o olhar fixo no tabuleiro. A sua cara estava de perfil, escondida em parte por uma madeixa de cabelo louro. Quando Saladino afastou a madeixa, ela recuou bruscamente.
— Como é que se atreve a tocar-me?! — disse-lhe em francês. — Saia daqui ou chamo o meu marido!
Saladino não vacilou. Natalie olhou para ele com firmeza, sem pestanejar.
Maimónides... É tão bom voltar a ver-te...
— Deseja perguntar-me alguma coisa? — inquiriu ela com serenidade.
Saladino lançou uma olhadela a Keller antes de voltar a depositar o olhar nela.
— Desculpe — disse passado um instante. — Estava enganado.
Deu meia-volta e saiu para a noite.
Natalie olhou para Keller.
— Deverias tê-lo matado quando tiveste oportunidade.
No Buraco Negro de Langley, ouviu-se um gemido coletivo de alívio quando Saladino saiu, por fim, da tenda. Os drones viram-no a dizer umas palavras ao ouvido de Mohammad Bakkar. Depois, os dois homens regressaram ao limite do acampamento rodeados de guarda-costas e passaram um longo momento a conferenciar. Saladino assinalou várias vezes o céu. Num dado momento, pareceu olhar diretamente para a lente da câmara do Predator.
— Acabou-se o jogo — disse Kyle Taylor. — Obrigado por participar.
— Se continua vivo depois de tantos anos não é por acaso — afirmou Uzi Navot. — É um jogador excelente.
Navot viu que Mikhail entrava na tenda e aceitava de Christopher Keller um objeto invisível para as câmaras de infravermelhos. Ainda assim, Navot assumiu que os dois homens, ambos veteranos das forças especiais, estavam agora armados. E em esmagadora inferioridade numérica.
— Qual é a distância entre o Saladino e essa tenda?
— Doze metros — respondeu Taylor. — Talvez menos.
— Qual é a onda de choque de um Hellfire?
— Nem penses nisso sequer.
Mohammad Bakkar tinha voltado ao pátio central do acampamento e estava a falar com Martel. Até a uma distância de seis mil metros de altitude era evidente que estavam a discutir. À sua volta, o acampamento inteiro parecia ter-se posto em movimento. Os guardas subiam aos Land Cruisers, ligavam-se os motores, brilhavam os faróis.
— Que caralho se está a passar? — perguntou Taylor.
— Parece-me — disse Navot — que está a baralhar as cartas.
— Quem, o Bakkar?
— Não — respondeu o israelita. — O Saladino.
O iraquiano olhava de novo para o céu, a olhar fixamente para o olho sem pálpebra do drone. E, para além disso, sorria, observou Navot. Sim, não tinha qualquer dúvida: estava a sorrir. De repente, levantou um braço e quatro jipes idênticos moveram-se à sua volta no sentido das agulhas do relógio, levantando uma nuvem de areia e pó.
— Quatro veículos, dois mísseis — disse Navot. — Que probabilidades há de escolher o correto?
— Estatisticamente — afirmou Taylor —, cinquenta por cento.
— Então talvez devam disparar agora.
— A tua equipa não sobreviverá.
— Tens a certeza?
— Fiz isto duas vezes, Uzi.
— Sim — disse Navot sem deixar de olhar para o ecrã. — Mas o Saladino também.
Gabriel e Yaakov Rossman viam a mesma imagem no posto de comando de Casablanca: quatro jipes a girar em círculo à volta de um homem cuja silhueta termográfica se ia desvanecendo debaixo de um véu de areia e pó. Finalmente, os jipes diminuíram a velocidade e pararam mesmo a tempo de o homem entrar num deles: qual, era impossível saber. Depois, partiram os quatro atravessando o deserto, com uma distância suficiente uns dos outros para que um míssil de vinte e dois quilos não pudesse destruir dois com um só impacto.
O Predator seguiu-os para norte, através do deserto, enquanto o Sentinel ficava para trás a vigiar o acampamento. Os quatro guardas que guardavam o perímetro recuaram para o pátio central, onde Mohammad Bakkar estava de novo embrenhado numa animada conversação com Jean-Luc Martel. Um objeto passou da mão de Bakkar para a do estranho colaborador de Gabriel. Um objeto invisível para os sensores termográficos do drone e que Jean-Luc guardou no bolso direito do casaco.
— Merda — disse Yaakov.
— Não poderia estar mais de acordo.
— Achas que se passou para o outro bando?
— Sabê-lo-emos dentro de um minuto.
— Queres esperar? Porquê?
— Tens uma ideia melhor?
— Manda uma mensagem ao Mikhail e ao Keller. Diz-lhes para saírem daquela tenda a disparar.
— E quando os homens do Bakkar abrirem fogo com as suas Kalashnikovs?
— Nem vão ter tempo de as tirarem do ombro.
— E o Martel? — perguntou Gabriel. — E se ficar preso no meio do fogo cruzado?
— É um narcotraficante.
— Não estaríamos aqui se não fosse ele, Yaakov.
— E achas que não nos trairia para salvar a pele? O que é que achas que está a fazer neste momento? Envia essa mensagem — disse Yaakov. — Manda matá-los a todos e tira de lá a nossa gente antes que os americanos incendeiem o deserto com os seus mísseis Hellfire.
Gabriel enviou rapidamente não uma, mas duas mensagens: uma a Dina Sarid e a outra para o telemóvel via satélite de Keller. Dina respondeu de imediato. Keller não se incomodou a fazê-lo.
— Com todo o respeito, não estou de acordo — disse Yaakov.
— Tomo devida nota disso.
Gabriel olhou para a imagem que o Predator emitia. Quatro Toyotas idênticos atravessavam velozmente o deserto rumo a norte.
— Em qual é que achas que está?
— No segundo — respondeu Yaakov. — Indubitavelmente, no segundo.
— Com todo o meu respeito, não estou de acordo.
— Em qual é que está, então?
Gabriel continuou a olhar fixamente para o ecrã.
— Não faço ideia.
O Hotel Kasbah erguia-se no limite oeste do grande mar de areia de Erg Chebbi. Dina e Eli Lavon estavam a tomar chá no terraço do bar quando chegou a mensagem de Gabriel. Yossi e Rimona estavam junto à piscina. Cinco minutos depois, após deixarem os seus quartos limpos, estavam os quatro no átrio abarrotado do hotel a perguntar ao responsável pelo turno da noite o nome de alguma discoteca próxima onde pudessem ouvir música e dançar um pouco. Deu-lhes o nome de um local em Erfoud, a norte. Puseram-se, no entanto, rumo ao sul, Yossi e Rimona num Jeep Cherokee alugado e Dina e Eli Lavon num Nissan Pathfinder. Perto de Khamlia, abandonaram a estrada principal e, a caminho do deserto, esperaram que o céu se incendiasse.
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LANGLEY, VIRGÍNIA
Mas em qual dos quatro Toyotas viajava o seu alvo? Depois de meses de planificação, recrutamento e negociações, tudo se resumia àquilo. Quatro veículos, dois mísseis. As probabilidades de sucesso eram de cinquenta por cento. O preço do falhanço seria a rutura com um aliado árabe importante, ou porventura algo muito pior. O cadáver de Saladino compensaria qualquer erro cometido em segredo. O facto de ficar livre depois de um ataque frustrado com mísseis em Marrocos causaria, pelo contrário, uma catástrofe diplomática e de segurança internacional. Muitas carreiras penderiam por um fio. E muitas vidas também.
Opiniões não faltavam. Graham Seymour afirmava que era o terceiro Toyota; Paul Rousseau, que era o quarto. Adrian Carter inclinava-se para o primeiro veículo, mas também estava disposto a contemplar a possibilidade de que fosse o segundo. Dentro da Sala de Crise da Casa Branca, o presidente e os seus colaboradores mais próximos estavam igualmente divididos. O diretor da CIA, Morris Payne, tinha a certeza de ter visto Saladino entrar no terceiro veículo. Pelo contrário, o presidente, tal como Paul Rousseau, assegurava que tinha entrado no quarto. No Buraco Negro de Langley, isso bastou para que o quarto veículo ficasse descartado.
Os especialistas também não estavam de acordo. As equipas que controlavam os drones analisavam as gravações da fuga de Saladino, bem como as imagens que recebiam em tempo real e os dados dos sensores. Estes apontavam decididamente para o terceiro Toyota, embora um jovem analista estivesse convencido de que, longe de estar num daqueles jipes, Saladino tinha fugido a pé do acampamento e, naquele momento, estava a atravessar o deserto sozinho.
— Coxeia — comentou Uzi Navot mordazmente. — Demoraria mais do que Moisés e os judeus do Egito.
Finalmente, foi Kyle Taylor (o veterano chefe de operações que tinha supervisionado mais de duzentos ataques com drones no Paquistão, Afeganistão, Iraque, Síria, Líbia, Iémen e Somália) que tomou a decisão rápida e expeditamente, sem se incomodar a consultar Adrian Carter. Às 17h47, hora de Washington (eram 22h47 em Marrocos), as equipas de controlo dos drones receberam ordem para se preparem para disparar. Setenta e quatro segundos mais tarde, dois dos Toyotas Land Cruiser, o primeiro e o terceiro, explodiram com um clarão de luz branca que encandeava. Uzi Navot foi a única pessoa no Buraco Negro ou na Sala de Crise da Casa Branca que não estava a olhar.
O estrondo das explosões atingiu o acampamento um segundo ou dois depois de se ver um súbito clarão no horizonte. Keller e Mikhail já tinham empunhado as Berettas quando Jean-Luc Martel entrou na tenda.
— O que é que vão fazer? Disparar contra mim?
— Talvez — respondeu Keller.
— Seria um erro de cálculo... — Martel olhou para o norte e perguntou: — O que é que foi isto?
— A mim pareceu-me um trovão.
— Acho que o Mohammad não vai acreditar nisso. Sobretudo, depois do que o seu amigo iraquiano lhe disse antes de se ir embora.
— E o que é que lhe disse?
— Que o Dmitri e a Sophie Antonov eram agentes israelitas enviados para o matar.
— Confio que tenha tirado essa ideia da cabeça do Mohammad.
— Tentei — afirmou Martel.
— Foi por isso lhe deu uma pistola?
— Que pistola?
— A que traz no bolso direito do casaco. — Keller conseguiu esboçar um sorriso. — Os drones nunca pestanejam.
Martel tirou a arma lentamente.
— Uma FN Five-seven — disse Keller.
— A arma regulamentar do SAS.
— Na realidade, chamamos-lhe «o Regimento». — Keller segurava a Beretta com as duas mãos. Afastou a esquerda da pistola e estendeu-a a Martel. — Eu fico com ela.
O francês limitou-se a sorrir.
— Não estará a pensar em fazer alguma tolice, pois não, Jean-Luc?
— Já fiz uma tolice. Agora, vou velar pelos meus interesses. — Olhou para Olivia, que estava sentada na beira da cama, junto de Natalie. — E pelos dela, naturalmente.
Keller baixou a arma.
— Diga ao Mohammad que quero falar com ele.
— Porque é que havia de fazer isso?
— Para que possa ouvir a minha proposta.
— A sua proposta? Que proposta?
— Que possamos sair calmamente daqui em troca das vidas do Mohammad e dos seus homens.
Martel deixou escapar um riso rouco e amargo.
— Acho que não entende bem a situação. É para si que estão a apontar com várias Kalashnikovs, não para mim.
— Mas eu tenho um drone — disse Keller. — E, se algo nos acontecer, o drone converterá o Mohammad num monte de cinzas. E a si também.
— Os drones Predator têm dois mísseis Hellfire. E não tenho qualquer dúvida de que acabo de ouvir duas explosões.
— Há outro drone em cima de nós.
— Não me diga.
— Como sabia, então, que tinha uma pistola no bolso?
— Adivinhou por pura sorte.
— Se prefere pensar assim...
Martel aproximou-se dele sem se apressar e olhou-o fixamente nos olhos.
— Deixe-me explicar-lhe o que é que está prestes a acontecer — disse baixinho. — Vou-me embora daqui com a Olivia. E depois os homens do Mohammad vão fazê-lo em picadinho, a si e aos seus amigos, com as suas AK 47.
Keller não disse nada.
— Não é assim tão duro sem a proteção do don, eh?
— É um homem morto.
— Como quiser.
Martel afastou-se de Keller e estendeu a mão a Olivia. Ela ficou imóvel junto de Natalie. Martel semicerrou os olhos, enfurecido.
— Quanto é que te pagaram para me traíres, meu amor? Sei que não o fizeste por pura bondade. Tu não tens coração.
Agarrou-a pelo braço, mas ela debateu-se com um puxão.
— Quanta nobreza da tua parte — comentou Martel sarcasticamente. Depois aproximou-lhe o canhão da FN da cabeça. — Põe-te de pé.
Keller levantou a sua arma e apontou-lha ao peito.
— O que é que vai fazer? Disparar? — perguntou o francês. — Se o fizer, morreremos todos.
Keller ficou em silêncio.
— Não acredita em mim? Aperte o gatilho — disse Martel. — Para ver o que acontece.
No Buraco Negro de Langley, só Uzi Navot observava a cena que decorria no acampamento através das imagens que o Sentinel enviava. Os outros olhavam absortos para o ecrã contíguo, onde os dois Land Cruisers sinistrados ardiam como achas sobre as areias do Saara. Não eram, no entanto, os únicos veículos que tinham ficado danificados no ataque. O condutor do segundo jipe tinha perdido o controlo depois das explosões e tinha batido de frente e a grande velocidade contra um maciço de rochas. Muito danificado, o veículo estava caído sobre o lado do passageiro, com os faróis ainda ligados. Parecia que estavam dois homens lá dentro. Decorridos noventa segundos desde o impacto, nenhum dos dois se tinha mexido.
— Três pelo preço de dois — comentou Kyle Taylor, mas ninguém respondeu.
Tinham todos o olhar fixo no único jipe que tinha ficado intacto e que, depois de dar meia-volta, se estava a aproximar do veículo tombado. Um momento depois, dois homens tiraram freneticamente um terceiro dos destroços de ferro.
— Que probabilidades há de que seja o Saladino? — perguntou Kyle Taylor.
Adrian Carter viu como os dois homens colocavam, rapidamente, o ferido na parte de atrás do jipe intacto.
— Eu diria que cem por cento. A questão é se ainda está vivo ou não.
O jipe rumou a norte a toda a velocidade com os faróis desligados, seguido pelo Predator, já desprovido da sua carga mortífera. Segundo os sensores do drone, circulava a cento e quarenta e oito quilómetros por hora.
— Em pleno deserto e sem luzes — comentou Carter.
— Pelos vistos, falhámos o alvo — disse Taylor.
— Sim — conveio Carter. — E continua vivo.
Em Casablanca, Gabriel só tinha olhos para as imagens enviadas pelo Sentinel. As silhuetas esverdeadas e fantasmagóricas de Keller e Mikhail apontavam com as suas armas a Jean-Luc Martel, que segurava uma pistola junto à cabeça de uma das mulheres. Gabriel ignorava se era Olivia ou Natalie. Mohammad Bakkar e quatro dos seus homens esperavam fora da tenda, com as armas apontadas para a entrada. Devido às reduzidas dimensões do pátio central, estavam muito juntos. Gabriel calculou as probabilidades. Eram preferíveis a não fazer nada, disse a si próprio. Começou a enviar uma mensagem, mas parou e marcou um número. Segundos depois, viu que a silhueta esverdeada e espetral de Christopher Keller levava a mão ao bolso do casaco.
— Atende — disse Gabriel entredentes. — Ande o telemóvel.
Keller segurava a Beretta com a direita, enquanto o telemóvel via satélite vibrava na sua mão esquerda. O seu polegar permanecia suspenso sobre o ecrã.
— Não — sussurrou Martel roucamente.
— O que é que vai fazer, Jean-Luc?
Martel agarrou Olivia pelo cabelo e espetou-lhe o canhão da FN na têmpora. Keller tocou no ecrã táctil e aproximou rapidamente o telemóvel da orelha.
Gabriel falou com calma.
— Estão mesmo à entrada da tenda, o Bakkar e mais quatro. Muito juntos e com as armas montadas e carregadas.
— Alguma boa notícia?
— O Saladino continua vivo.
Keller baixou o telemóvel sem desligar e olhou para Mikhail.
— Estão na parte de fora da tenda à espera para nos matarem. Cinco homens, todos armados. Mesmo à entrada — acrescentou com ênfase.
— Todos? — perguntou Mikhail.
Keller fez um gesto afirmativo e olhou para Martel.
— Khalil, o iraquiano, é agora um pedaço de carne esturricado. Ou melhor, vários pedaços. Diga ao Mohammad que nos deixe sair ou ele será o próximo.
Martel arrastou Olivia para a entrada da tenda sem deixar de lhe apontar à cabeça. Keller largou o telemóvel que segurava na mão esquerda e levantou velozmente a direita. Efetuou dois disparos com o ruído seco e surdo de um profissional bem treinado. Os dois foram ter à cara de Martel. Em seguida, virou para a direita e junto com Mikhail abriu fogo contra os cinco homens parados do lado de fora.
Quando o fogo inimigo rasgou o tecido da tenda, Natalie puxou Olivia, obrigando-a a deitar-se no chão. Martel jazia junto delas com a FN ainda na mão sem vida. Natalie arrancou-lhe a pistola, apontou para a entrada e apertou o gatilho. Entretanto, na Casa dos Espiões em Casablanca, Gabriel observava e escutava. Via os membros da sua equipa a lutar para sobreviverem. Ouvia o estrépito dos disparos e os gritos de Olivia Watson.
60
SAARA, MARROCOS
Da perspetiva de Gabriel, a cena pareceu durar uma eternidade. Da de Keller, um segundo ou dois. Quando o fogo inimigo cessou fora da tenda, tirou o carregador gasto da sua Beretta e colocou outro, enquanto Mikhail fazia o mesmo ao seu lado. Depois olhou para Natalie e ficou surpreendido ao ver que tinha a arma de Martel nas mãos estendidas. Olivia gritava histérica.
— Está ferida?
Olivia tinha um lado da cara coberto de sangue e com massa encefálica. Natalie examinou-a rapidamente à procura de feridas de bala, mas não encontrou nenhuma. O sangue e os miolos eram de Martel.
— Não, está bem.
Quiçá algum dia estivesse, disse a si próprio Keller, mas esse dia demoraria a chegar. Baixou o braço e pegou no telemóvel.
— O que é que se passa aí fora?
— Pouca coisa — respondeu Gabriel.
— Algum sinal de movimento?
— O do meio. Daqui de cima, os outros parecem mortos.
— Que pena — disse Keller. — E agora?
Dezasseis quilómetros a norte dali, o último Toyota Land Cruiser atravessava velozmente uma faixa desabitada do deserto, perseguido pelo Predator.
— Que autonomia tem esse drone? — perguntou Navot.
— Oito horas e pico — respondeu Adrian Carter. — A não ser que os marroquinos descubram que levamos a cabo um ataque com drones no seu território sem a sua permissão. Então, muito menos.
— E esse? — Navot indicou a imagem do acampamento que o Sentinel enviava.
— Catorze horas.
— Até que ponto é indetetável?
— Até ao ponto de os marroquinos não o conseguirem encontrar.
Um dos telemóveis que Carter tinha à frente iluminou-se ao receber uma chamada. Carter aproximou-o da orelha, ouviu e depois murmurou uma imprecação.
— O que é que se passa?
— A NSA está a detetar muita atividade em Marrocos.
— Atividade de que tipo?
— Pelos vistos, a coisa deu para o torto.
Outro telefone iluminou-se. Desta vez, era Morris Payne a ligar da Sala de Crise.
— Entendido — disse Carter, ao fim de um momento, e desligou. Depois olhou para Navot. — O embaixador de Marrocos acaba de ligar para a Casa Branca para perguntar se os Estados Unidos atacaram o seu país.
— O que é que vão fazer?
— A autonomia desses drones acaba de reduzir-se drasticamente.
— A do Sentinel também?
— Que Sentinel?
Carter deu ordem às equipas de controlo dos drones. Um instante depois, o Predator virou bruscamente para leste, a caminho da fronteira argelina. A sua câmara termográfica continuou a focar o jipe durante dois minutos, até que finalmente as imagens de infravermelhos desapareceram dos ecrãs do Buraco Negro. De seguida, desligaram-se as do Sentinel. A última imagem que Navot viu mostrava dois homens a sair com cautela de uma tenda no deserto, com as mãos estendidas a carregarem várias armas.
Os cinco homens do pátio tinham sido abatidos, efetivamente, mas dois deles ainda estavam com vida. Um era Mohammad Bakkar. O outro, um guarda. Mikhail matou-o com um só disparo na cabeça, enquanto Keller examinava Bakkar à luz das estrelas. O produtor de haxixe marroquino fora atingido com dois disparos no peito. Tinha a camisola empapada de sangue, e tinha sangue na boca. Era evidente que não lhe restava muito tempo.
Keller agachou-se ao seu lado.
— Onde é que vai, Mohammad?
— Quem? — perguntou Bakkar, engasgando-se com o sangue.
— O Saladino.
— Não conheço ninguém com esse nome.
— Pode ser que isto te refresque a memória.
Keller apoiou o canhão da Beretta no seu tornozelo e disparou. Os gritos do marroquino ressoaram na escuridão.
— Onde é que está?
— Não sei!
— Claro que sabes, Mohammad. Acolheste-o aqui, em Marrocos, após os atentados de Washington. Deste-lhe o dinheiro de que precisava para atacar o meu país.
— Que país é esse? És francês? Ou és um maldito judeu, como ele?
Bakkar olhava para Mikhail, que se aproximava por cima do ombro de Keller. O britânico apoiou o canhão da Beretta na barriga da perna de Bakkar e apertou o gatilho.
— Sou britânico, na realidade.
— Nesse caso — respondeu o marroquino gemendo de dor —, que se foda o teu país.
Keller disparou sobre o joelho dele.
— Allahu Akbar!
— Assim seja — disse Keller com calma. — Onde é que está?
— Já disse...
Outro disparo no que lhe restava do joelho. Bakkar começava a perder os sentidos. Keller esbofeteou-o.
— Mandou-te matar-nos?
Bakkar assentiu.
— E então o que é que tinhas de fazer depois?
O marroquino fechou os olhos. Keller estava a perdê-lo.
— Onde, Mohammad? Para onde é que vai?
— Para uma das minhas... casas.
— Onde? No Rife? No Atlas?
Bakkar afogava-se no próprio sangue.
— Onde, Mohammad? — Keller abanou-o violentamente. — Diz-me para onde vai para que te possa ajudar.
— Fez — ofegou Bakkar. — Vai para Fez.
A luz ia-se apagando dos seus olhos. Apesar do sangue e da dor, parecia profundamente satisfeito.
— Estás a mentir-me, não estás, Mohammad?
— Sim.
— Para onde é que vai?
— Quem?
— O Saladino.
— Para o paraíso — disse Bakkar. — Vou para o paraíso.
— Na verdade, duvido disso — respondeu Keller.
Apoiou a pistola na testa do marroquino e apertou o gatilho pela última vez.
Dos cinco homens que jaziam mortos no pátio central do acampamento, só Mohammad Bakkar tinha um telemóvel com ele: um Samsung Galaxy guardado no bolso da frente das calças, ao qual tinha extraído o cartão SIM e a bateria. Keller voltou a colocá-los e ligou-o, enquanto Mikhail e Natalie cuidavam de Olivia. Não havia um veículo no acampamento (Saladino levara os quatro na sua desesperada tentativa de escapar), pelo que não lhes restou outro remédio senão partir a pé pelo deserto. Levaram só aquilo que podiam carregar facilmente: roupa de abrigo, telemóveis, passaportes, carteiras e duas Kalashnikovs com os carregadores cheios. Não se incomodaram a procurar uma lanterna entre os objetos do acampamento. Havia luar suficiente para alumiar o caminho.
Puseram-se em marcha às onze e cinco, hora local, e foram rumo a poente, adentrando-se no mar de areia. Keller ia à frente, seguido pelas duas mulheres e Mikhail, na retaguarda. Levava na mão direita o telemóvel de Mohammad Bakkar. Verificou o estado da bateria. Doze por cento.
— Merda — disse. — Alguém tem um carregador?
Até Olivia se conseguiu rir.
Em Casablanca, Gabriel e Yaakov Rossman avaliaram com calma o que restava da operação, cujos restos jaziam dispersos pelo deserto do sul de Marrocos desde a fronteira argelina às dunas de Erg Chebbi. Dois Toyotas Land Cruiser tinham ficado calcinados; o terceiro tinha capotado depois de se despenhar, e o quarto (onde provavelmente viajava Saladino gravemente ferido e a precisar de ajuda médica urgente) tinha sido visto, pela última vez, a circular a grande velocidade em direção a norte, para as montanhas do Médio Atlas. Jean-Luc Martel, o conhecido e corrupto empresário francês, jazia morto num acampamento remoto, junto a Mohammad Bakkar, o maior produtor de haxixe de Marrocos, e quatro dos seus homens. O telemóvel de Bakkar estava agora nas mãos de um agente da espionagem britânica. O indicador da bateria marcava menos de dez por cento, e continuava a baixar.
— Fora isso — comentou Gabriel —, saiu tudo conforme planeado.
— O Saladino estaria morto se os americanos tivessem escolhido o carro correto.
Gabriel não disse nada.
— Não estarás a pensar em...?
— Claro que sim.
Olhou para o ecrã do computador. Nele aparecia um mapa do sul de Marrocos. Duas luzes azuis avançavam para oeste desde Khamlia a atravessar o deserto. Uma luz vermelha sozinha mexia-se parcimoniosamente para oeste. Separavam-nas uns três quilómetros de distância.
— Dentro de uns minutos — disse Yaakov—, o canto sudeste de Marrocos encher-se-á de soldados e de polícias. Não demorarão muito tempo a encontrar dois Toyotas queimados e um acampamento cheio de cadáveres. E então armar-se-á uma confusão das grandes.
— Já se armou.
— Mais uma razão para que mandes a equipa deitar fora as armas e dirigir-se ao ponto de evacuação em Agadir. Com um pouco de sorte, chegarão antes de ser dia e conseguiremos tirá-los de lá em seguida. Se não, terão de alojar-se discretamente num hotel da praia e ir-se embora amanhã à noite.
— É o mais prudente.
— A verdade é que não há nada de prudente neste assunto.
— E nós? — perguntou Gabriel.
— Daqui a pouco haverá controlos nas estradas por todo o país. Mais vale ficarmos aqui esta noite e irmos embora de manhã de avião. Vamos para Paris ou para Londres e lá apanhamos um avião para o Ben Gurion.
— E o Saladino?
— O Saladino consegue desenrascar-se sozinho para voltar para casa.
— É isso que me assusta.
No ecrã do computador, as luzes azuis tinham atingido a luz vermelha e, passado um momento, as três avançaram rumo a poente atravessando o deserto, para a localidade de Khamlia.
— O que é que lhes vais dizer? — perguntou Yaakov.
Gabriel digitou rapidamente a mensagem e carregou em enviar. Só continha três palavras.
LIGA O TELEMÓVEL...
61
SAARA, MARROCOS
Não tinham maneira de fazer um download de forma segura naquela zona sem cobertura do deserto meridional, de maneira que tiveram de analisar o Samsung à moda antiga: viram as mensagens uma por uma, os telefonemas e o historial da Internet. Natalie, que era a melhor da equipa que falava e lia árabe, encarregou-se de tratar do telemóvel, enquanto Keller remetia a informação para o posto de comando de Casablanca através do telemóvel via satélite. Iam na parte de trás do Nissan Pathfinder, com Dina sentada ao volante e Eli Lavon a fazer de copiloto e vigia. Mikhail viajava no Jeep Cherokee com Olivia.
— Como é que está? — perguntou Gabriel.
— Tão bem quanto se esperaria. Mas temos de tirá-la daqui. Esta noite, se possível.
— Estou a tratar disso. Agora, dá-me o próximo número.
Ao que parece, Mohammad Bakkar não tinha o Samsung há muito tempo. O primeiro telefonema recebido que aparecia na lista era do dia anterior às 19h19. A hora correspondia ao telefonema que recebeu de Jean-Luc Martel, enquanto estava com Keller no bar do Palais Faraj, em Fez. O número também era o mesmo. Pelos vistos, a pessoa que ligou para Martel para lembrar o seu encontro no acampamento do deserto, ligou de seguida a Bakkar para o informar de que estava tudo em ordem. Posteriormente, às 19h21, Bakkar tinha feito um telefonema.
— Dá-me esse número — disse Gabriel.
Keller ditou-lho.
— Repete.
Keller obedeceu.
— É o do Nazir Bensaïd.
Bensaïd era o jihadista marroquino e integrante do ISIS que tinha seguido Martel e a equipa de Casablanca até Fez, e de Fez até às montanhas do Médio Atlas.
— O Bakkar ligou a outra pessoa uns minutos depois — disse Keller.
— Para que número?
Keller deu-lho.
— Esse número aparece novamente?
Keller transpôs a pergunta para Natalie, que rapidamente se pôs à procura no historial do telemóvel. Bakkar tinha feito outro telefonema para aquele número às 17h17 dessa mesma tarde. Tinha recebido outra chamada às 17h23.
Keller informou Gabriel.
— De quem achas que é este número?
— Do convidado de honra?
Gabriel cortou a comunicação e ligou a Adrian Carter para Langley pela linha segura.
— Onde é que está o Nazir Bensaïd? — perguntou.
— O seu telemóvel está em Fez. Que ele o tenha com ele é outra questão.
Gabriel deu-lhe o número para o qual Mohammad Bakkar tinha ligado três vezes: uma na véspera, às 19h21, e duas vezes nessa mesma tarde, antes do encontro no deserto.
— Alguma ideia de a quem pertence? — perguntou Carter.
— Deduzo — disse Gabriel — que seja do Saladino.
— Onde é que o encontraste?
— Nas informações.
— Porque é que não nos lembrámos disso? Vou já passá-lo à NSA. Entretanto — acrescentou Carter —, diz à tua equipa que não perca esse telefone.
Vinte minutos depois de deixarem para trás o acampamento de nómadas berberes, o telemóvel de Mohammad Bakkar voltou a ligar-se à rede marroquina. Não recebeu mensagens de voz, nem de texto atrasadas, nem qualquer tipo de comunicação. Keller informou Gabriel e pediu instruções. Gabriel mandou-os seguir para a N13 para norte, até à povoação de Rissani, nos arredores do oásis de Tafilalet. Uma vez lá, seguiriam pela N12 e dirigir-se-iam para oeste, para Agadir.
— Achas que o Saladino estará à nossa espera quando chegarmos?
— Duvido — respondeu Gabriel.
— Então, porque é que vamos lá?
— Porque Agadir é bem mais agradável do que a prisão de Temara.
— E as armas?
— Atirem-nas para o deserto. É muito provável que encontrem operações stop.
— E se assim for?
— Improvisem.
Cortou-se a comunicação.
— O que é que ele disse? — perguntou Eli Lavon.
— Para improvisarmos.
— E as armas?
— Diz para ficarmos com elas — disse Keller. — Por via das dúvidas.
Passava da meia-noite quando chegaram à aldeia de Khamlia. Enquanto Dina apanhava o desvio da N13 para norte passaram dois helicópteros rumo a leste.
— Pode ser uma patrulha de rotina — disse Keller.
— Pode — afirmou Eli Lavon num tom cético.
A Kalashnikov que Keller trouxera do acampamento estava escondida num saco de desporto, na mala do carro. Trazia a Beretta à cintura das calças, à altura dos rins. Olhou para trás e viu os faróis do Jeep Cherokee, que os seguia a uns cem metros de distância. Perguntava-se como é que Olivia reagiria se os polícias marroquinos a interrogassem. Mal, certamente.
Ao virar-se para a frente, viu umas luzes de emergência que se aproximavam depressa. Vários veículos passaram ao seu lado, esbatidos pela velocidade.
— Isto não me está a cheirar bem — comentou Lavon. — De certeza que o Gabriel não quer que nos desfaçamos das armas?
Keller não respondeu. Olhava fixamente para o telemóvel de Mohammad Bakkar, que vibrava na sua mão. Era uma mensagem de texto recebida escrita em árabe e enviada do mesmo número para o qual Bakkar tinha ligado nessa tarde. Keller levantou o telemóvel para que Natalie o visse. Os olhos dela dilataram-se ao ler a mensagem.
— O que é que diz? — perguntou Keller.
— Quer saber se estamos mortos.
— A sério? Pergunto-me de quem será a mensagem.
Keller pegou no telemóvel via satélite e começou a marcar, mas parou ao ver um polícia no meio da estrada com uma lanterna de sinalização na mão.
— O que é que faço? — perguntou Dina.
— Paras, claro — respondeu Keller.
Dina encostou à berma e parou o carro. Atrás deles, Yossi Gavish fez o mesmo com o Jeep Cherokee.
— O que é que lhes digo? — perguntou Dina.
— Improvisa — sugeriu Keller.
— E se não acreditarem em mim?
Keller olhou para a mensagem do telemóvel de Mohammad Bakkar.
— Se não acreditarem — disse —, morrem.
62
RISSANI, MARROCOS
Dina falou com o polícia em alemão, muito depressa e num tom assustado. Disse que ela e os seus amigos estavam a acampar no deserto e que tinham visto umas explosões e ouvido disparos. Temendo pelas suas vidas, tinham fugido do acampamento com a roupa do corpo.
— Em francês, madame. Em francês, por favor.
— Não falo francês — respondeu Dina em alemão.
— Inglês?
— Sim, inglês sim.
Mas a sua pronúncia era tão forte que parecia estar a falar alemão. Exasperado, o polícia viu o seu passaporte, enquanto o seu colega dava a volta, lentamente, ao veículo. O feixe de luz da lanterna parou uns segundos na cara de Keller, o suficiente para que o britânico pensasse fugazmente em deitar a mão à Beretta. Por fim, o polícia passou para a parte de trás do jipe e tocou com os nós dos dedos na janela.
— Abra — ordenou em árabe, mas o seu colega adiantou-se. Devolveu o passaporte a Dina e perguntou para onde iam. E quando ela respondeu em alemão, fez-lhe sinal para que continuasse a circular. E o Jeep Cherokee também.
Keller passou o telemóvel de Bakkar a Natalie.
— Responde-lhe.
— O que é que lhe digo?
— Que estamos mortos, naturalmente.
— Mas...
— Despacha-te — interrompeu-a Keller. — Já o fizemos esperar bastante.
Natalie mandou uma só palavra: aiwa. «Sim» em árabe. A pessoa que estava do outro lado da linha começou a responder de imediato. A sua mensagem apareceu uns segundos depois. Uma só palavra, também em árabe.
— O que é que diz? — perguntou Keller.
— Alhamdulillah. Quer dizer...
— Graças a Deus.
— Mais ou menos.
— Ou seja — acrescentou Keller —, já cá canta.
— Ele ou alguém muito próximo.
— Isso basta.
Keller ligou a Gabriel pelo telemóvel via satélite para informar do que acabara de acontecer.
— Deverias ter-me consultado antes de enviar essa mensagem.
— Não tive tempo.
— Tentem que continue a falar.
— Como?
— Perguntem-lhe se está ferido.
Keller disse a Natalie que mandasse a mensagem. Decorreu um minuto antes que o Samsung anunciasse com um barulhinho a chegada de uma resposta.
— Está ferido — disse Natalie.
— Pergunta-lhe se os outros morreram no ataque — mandou Gabriel.
— Estás a brincar com a sorte — comentou Keller.
— Mandem a mensagem, caramba.
Natalie obedeceu. A resposta foi imediata.
— «Quase todos os irmãos morreram» — leu.
— Pergunta-lhe quantos irmãos estão com ele.
Natalie escreveu a mensagem e enviou-a.
— Dois — disse pouco depois.
— Estão feridos?
Outra troca de mensagens.
— Não.
— Precisa de um médico?
— Cuidado — advertiu-o Keller.
— Manda — mandou Gabriel com aspereza.
A resposta demorou quase dois minutos a chegar.
— Sim — disse Natalie. — Precisa de um médico.
Fez-se outro silêncio na linha.
— Precisamos de saber para onde é que vai — disse Gabriel por fim.
— Rastreiem o telemóvel — respondeu Keller.
— Se o desligar, perdê-lo-emos. Há que lhe perguntar.
Natalie escreveu a mensagem e mandou-a. A resposta foi ambígua.
PARA O RIAD. Para casa.
— Isso não chega — disse Gabriel.
— Não podemos perguntar para que casa.
— Diz-lhe que vais mandar o Nazir para cuidar dele até que chegue o médico.
— Espero que saibas o que estás a fazer — disse Keller.
— Mandem.
Natalie assim o fez. Depois redigiu uma segunda mensagem e enviou-a para o número de Nazir Bensaïd. Tiveram de esperar cinco longos minutos até que chegou a resposta.
— Já está! — anunciou Natalie. — Vai para lá.
Keller aproximou o telemóvel via satélite do ouvido.
— Continuas a querer que vamos para Agadir?
— Nem todos — respondeu Gabriel.
— Foi uma pena o que aconteceu às armas.
— Alguma possibilidade de as conseguirem encontrar?
— Sim — disse Keller. — Acho que sei onde as procurar.
O telefonema seguinte, que receberam no posto de comando de Casablanca, era de Adrian Carter.
— Localizámos o seu telemóvel três ou quatro minutos, mas voltou a esfumar-se.
— Sim, eu sei.
— Como?
— Estava a falar connosco.
— O quê?
Gabriel explicou-lhe.
— Alguma ideia de onde é essa casa?
— Não me pareceu uma boa ideia perguntar. Para além disso, temos o Nazir Bensaïd para que nos mostre o caminho.
— Já está a caminho — disse Carter.
— Onde é que está?
— A sair de Fez, de volta ao Médio Atlas.
— Onde vai tratar do Saladino até o médico chegar — disse Gabriel.
— Estás a pensar em fazer-lhe uma visita?
— Ao estilo do Departamento.
— Pois temo que tenhas de tratar disso sozinho.
— Há alguma possibilidade de nos emprestarem uns desses drones de vigilância?
— Não, nenhuma.
— A que horas passa o vosso próximo satélite?
Carter perguntou aos gritos aos agentes reunidos no Buraco Negro. A resposta chegou logo depois.
— Haverá um pássaro a sobrevoar o leste de Marrocos às quatro da madrugada.
— Gozem o espetáculo — disse Gabriel.
— Não estás a pensar em ir lá pessoalmente, pois não?
— Não me vou embora daqui sem ele, Adrian.
— É a primeira parte dessa frase que me preocupa.
Gabriel desligou sem acrescentar mais nada e olhou para Yaakov.
— Há que limpar este lugar e sair daqui.
Yaakov não se mexeu.
— Não estás de acordo com a minha decisão?
— Não. É que...
— Não estás preocupado com esses malditos jinns, pois não?
— É suposto não fazermos barulho à noite.
Gabriel fechou o seu portátil.
— Pois não faremos barulho. Melhor assim.
Cinco minutos depois, as forças armadas e os serviços de segurança marroquinos estavam em estado de alerta máximo. Ainda assim, no meio da confusão, ignoraram dois movimentos de material e de pessoas de pouca magnitude e de vital importância: o primeiro teve lugar nos arredores da localidade de Rissani, onde um Jeep Cherokee e um Nissan Pathfinder pararam uns minutos no cruzamento de duas estradas que atravessavam o deserto, em plena noite. Aí, dois indivíduos (um baixo e com aspeto de erudito e o outro alto e desajeitado) trocaram de lugares nos respetivos veículos. De seguida, os carros retomaram a marcha, cada um para o seu lado. O Jeep Cherokee dirigiu-se para oeste, para o mar; o Nissan, para norte, para as colinas do Atlas. Os ocupantes do Cherokee sabiam o que os aguardava; os do Nissan, pelo contrário, iam ao encontro de um destino incerto. Dispunham de duas pistolas Beretta, duas Kalashnikov, passaportes, cartões de crédito, dinheiro em numerário, telemóveis e um telemóvel via satélite. E o que era mais importante: tinham em seu poder um telemóvel que tinha pertencido brevemente ao principal produtor de haxixe de Marrocos. Um telemóvel que, com sorte, os conduziria até Saladino.
A segunda deslocação teve lugar a uns seiscentos e quarenta quilómetros a noroeste de Casablanca, onde dois homens saíram com todo o sigilo de uma casa antiga e descolorida para não acordarem os demónios que nela moravam e enfiaram a sua bagagem num Peugeot alugado. Seguiram pelas avenidas desertas do bairro colonial e foram deixando para trás os decrépitos edifícios art nouveau, os modernos blocos habitacionais dos novos-ricos e os míseros bidonvilles até, por fim, chegarem à autoestrada. Coube ao mais novo dos dois conduzir. O mais velho passou o tempo a carregar e a descarregar a sua Beretta. Não tinha por que estar ali, essa era a verdade. Agora era o chefe, e um chefe tinha de saber qual era o seu lugar. Mas para tudo tinha de haver uma primeira vez.
Guardou a pistola carregada na cintura das calças, nas costas, e deu uma vista de olhos ao telemóvel. Depois contemplou as luzes infinitas de Casablanca pela janela.
— Em que é que estás a pensar? — perguntou o mais novo dos dois.
— Penso que tens de conduzir mais depressa.
— É a primeira vez que faço de motorista do chefe.
O mais velho dos dois sorriu.
— Pensavas nisso?
— Porque é que perguntas?
— Porque parecia que estavas a apertar um gatilho.
— Com que mão?
— Com a esquerda — respondeu o mais novo. — Não há dúvida, com a esquerda.
O mais velho olhou pela janela.
— Quantas vezes?
63
MONTANHAS DO MÉDIO ATLAS, MARROCOS
O telemóvel mexia-se para sul a um ritmo constante, atravessando as planícies que rodeavam Fez, para os sopés do Médio Atlas. Ignoravam se o seu portador era Nazir Bensaïd. Sem os drones, era-lhes impossível visualizar o alvo e nem a NSA, nem a Unidade 8200 tinham conseguido ativar o microfone ou a câmara do telemóvel. Até onde eles sabiam, o dispositivo ia na parte de trás de uma carrinha e Nazir Bensaïd encontrava-se em algum ponto da labiríntica medina de Fez.
Era uma e meia da manhã quando o telemóvel chegou à vila berbere de Imouzzer. O seu avanço foi mais lento ao atravessar a rua principal da aldeia. Gabriel, que recebia atualizações frequentes de Adrian Carter, perguntava-se se já estariam perto da meta. Um lugar como Imouzzer proporcionava muitas vantagens a um fugitivo, pensou. Era suficientemente pequeno para que os ocidentais chamassem a atenção e tinha, ao mesmo tempo, atividade suficiente para que um homem vestido com um turbante passasse despercebido. Os cumes desabitados do Médio Atlas não eram assim tão longe caso o fugitivo precisasse de fugir, e os deleites de Fez ficavam a uma hora de viagem de carro. Uma imagem formou-se na mente de Gabriel: a de um homem alto e corpulento, vestido com um turbante, a coxear pelos becos estreitos da medina.
Mas à uma e trinta e cinco da madrugada, o telemóvel saiu de Imouzzer e, aumentando de velocidade, dirigiu-se para Ifrane, uma estância turística que parecia ter sido arrancada dos Alpes e depositada artificialmente no Magrebe. Gabriel perguntou-se de novo se estariam perto. Dessa feita, vestiu o seu alvo com outras roupas (calças e casaco de lã, em vez do turbante) e imaginou-o a passar o inverno a seguir aos atentados de Washington num confortável hotelzinho de estilo suíço. Mas, quando o telemóvel abandonou Ifrane, Gabriel apagou aquela imagem cobrindo-a com uma camada de tinta e esperou que Adrian Carter voltasse a informá-lo da situação a partir do Buraco Negro.
— Mais depressa — disse. — Tens de conduzir mais depressa.
— Vou o mais depressa que consigo — respondeu Yaakov.
— Tu não — disse Gabriel. — Ele.
A próxima cidade pela qual o telemóvel passou foi Azrou. De lá apanhou a N13, a estrada que unia as montanhas do Médio Atlas com o Saara e pela qual, naquele momento, circulavam para o norte Keller, Mikhail, Natalie e Dina. Atravessou uma série de aldeias berberes (Timahdite, Aït Oufella, Boulaajoul) até que, finalmente, parou a uns duzentos metros da localidade de Zaida, em circunstâncias sobre as quais só podiam especular. Uma casa, uma fortaleza, uma tenda de pelo de camelo montada num descampado salpicado de penhascos. Passaram dez minutos intermináveis até que, por fim, chegou uma mensagem ao telemóvel de Mohammad Bakkar. Keller leu-a em voz alta a Gabriel.
— O Nazir diz que o irmão está muito ferido.
— Que pena.
— Diz que precisa de um médico urgentemente. Se não, pode não sobreviver.
— Tanto melhor.
— Estás a pensar em deixar a natureza seguir o seu curso?
— Não, nada disso — afirmou Gabriel. — Diz-lhe que o médico vai para lá. E que vem de Fez.
Houve um momento de silêncio, enquanto Natalie redigia a mensagem em árabe e a enviava. Segundos depois, Gabriel ouviu o barulhinho que anunciava a resposta.
— Alhamdulillah — disse Keller.
— Não poderia estar mais de acordo.
Gabriel ouviu outro barulhinho.
— O que é que diz?
— Quer saber onde estou.
— Não sabia que eram amigos.
— Acha que sou...
— Sim, eu sei — respondeu Gabriel. — Diz-lhe que demoraste mais do que esperavas a resolver o assunto do transporte. E que estarás lá daqui a duas horas, talvez menos.
Fez-se de novo silêncio, enquanto Natalie enviava a mensagem.
— Alguma resposta?
— Não.
— Está a escrever?
— Não parece.
— Diz-lhe que te preocupa a segurança do irmão.
Passaram uns segundos. Depois Keller disse:
— Enviado.
— Agora pergunta-lhe quantos irmãos há no riad.
Depois de outra troca de mensagens, Keller disse:
— Quatro.
— Perguntem-lhe se têm armas para se defenderem dos infiéis.
Um momento depois tinham a resposta.
— Parece que estão bem armados — disse Keller. — Queres perguntar mais alguma coisa?
— Não, já chega de perguntas. O pássaro dir-nos-á qualquer outra coisa que precisemos de saber.
— Onde é que estão?
Gabriel olhou para a paisagem na penumbra através da janela.
— Em Marte — disse sombriamente. — E vocês?
— Numa terra chamada Kerrandou. A uns noventa e cinco ou cem quilómetros de Zaida. Se não houver mais operações stop, dentro de hora e meia estaremos lá.
— Nós chegamos mesmo atrás.
Gabriel cortou a comunicação e ligou para o Buraco Negro de Langley.
— Já cá canta — disse a Adrian Carter.
— O pássaro sobrevoará a zona às quatro da madrugada hora local.
— Tens a certeza?
— Não te preocupes. É um satélite espião — afirmou Carter. — E lá por acima não há muito trânsito inesperado.
64
ZAIDA, MARROCOS
Era uma localidade parda e poeirenta, constituída por edifícios baixos de cor castanha. As lojas e os cafés ao longo da rua principal estavam encerrados e, àquela hora, não havia qualquer sinal de vida exceto os três homens que esperavam por um autocarro, abrigados sob uma paragem decadente. Um Jeep Cherokee repleto de rostos ocidentais mereceu a sua total atenção. As expressões austeras deixaram claro que forasteiros não eram bem-vindos, principalmente às três e meia da manhã.
— Parece um lugar ao estilo do Saladino — disse Keller.
— Achas que eles sabem da existência do iraquiano alto que vive na parte oriental da cidade? — perguntou Mikhail.
— Duvido.
— Não me importava de dar uma olhadela à propriedade, já que estamos de passagem.
— É demasiado arriscado. É melhor esperar pelo pássaro.
Ao volante, Dina atravessou o resto da povoação sem abrandar e conduziu até à desoladora zona rural, deserta de árvores. A norte, a cerca de dois quilómetros e meio, havia uma estrada de terra batida que desembocava num pequeno lago, o tipo de lugar onde uma família marroquina poderia estender um cobertor num dia fresco de outono e esquecer-se dos seus problemas durante algumas horas. Dina desligou o motor, enquanto Keller telefonava a Gabriel e lhe dizia onde os poderiam encontrar. Alguns minutos depois, tiveram notícias de Nazir Bensaïd através de uma mensagem de texto. Aparentemente, o estado de saúde do irmão estava a piorar. Quando é que chegaria o médico? Em breve, assegurou-lhe Natalie. Inshallah.
— Aí vêm eles — disse Dina.
Fez-lhes sinal de luzes e o carro que se aproximava virou para sair da estrada e parou. Keller e Natalie caminharam até ao carro e deslizaram para o banco de trás. Keller viu as horas no telefone de Mohammad Bakkar. Eram 3h45 madrugada.
— Que surpresa encontrar-vos por aqui. Que tal a viagem?
Nem Gabriel nem Yaakov responderam.
Keller fitou o exterior pela janela.
— Pergunto-me porque é que o Mohammad e o médico estarão a demorar tanto.
— Se calhar teve problemas com o carro — sugeriu Gabriel.
— Ou problemas com a perna esquerda — gracejou Keller. — Ou talvez esteja com dificuldades para pensar com clareza.
Examinou novamente o telefone: 3h46...
— Achas que os marroquinos já encontraram o acampamento?
— Diria que sim.
— Achas que já identificaram alguma das vítimas?
— Uma ou duas.
— Vai ser uma notícia bombástica, não achas? Um importantíssimo produtor de haxixe e um hoteleiro francês encontrados mortos juntos.
— Quase tão bombástica como um ataque falhado com drones em solo marroquino.
— Pergunto-me quanto tempo é que demorará a tornar-se pública. Porque se isso acontecer...
Keller deixou o pensamento inacabado.
3h47...
Gabriel telefonou a Carter às quatro em ponto. Transcorreram mais dez minutos, enquanto as câmaras e sensores do satélite avaliavam o alvo.
— É um recinto murado. Uma estrutura maior e dois anexos mais pequenos.
— Como é que são os muros?
— É difícil determinar a altura, principalmente no escuro. Vão ter de dar uma volta de reconhecimento de carro ou usar a imaginação.
— O portão está aberto ou fechado?
— Fechado — disse Carter. — E o Renault do Nazir Bensaïd está lá, sem dúvida nenhuma.
— Quantos homens?
— Dois no exterior, três no interior. Todos na estrutura principal. Estão agrupados, bastante próximos uns dos outros.
— A tratar de um homem ferido.
— Parece que sim.
— Em que sítio da casa é que estão?
— Andar de cima, canto sudeste.
— Virados para Meca.
— Detetámos muito mais calor adicional nessa divisão — disse Carter. — O Kyle acha que é equipamento informático.
— E sabe Deus que o Kyle nunca se engana.
— É possível que tenham encontrado o recinto a partir do qual o Saladino tem dirigido os atentados. Possivelmente, as joias da coroa da rede estão nesses computadores.
— Estás a sugerir que confisquemos tudo o que conseguirmos?
— Talvez não seja má ideia.
— Há mais alguma coisa que me possas dizer?
— Parece que ele tem dois cães lá dentro. Grandes — acrescentou Carter.
Gabriel praguejou suavemente. O seu medo de caninos era do conhecimento geral na irmandade internacional de espiões.
— Lamento ser o portador de más notícias — disse Carter compassivamente.
— Que género de extremista muçulmano que se preze tem cães em casa?
— O género que não confia em gatos para o avisarem de um intruso. E mais uma coisa — disse Carter. — A NSA tem estado a escutar a polícia e o exército marroquinos.
— E?
— Sabem muito bem que fizemos um ataque com drones no solo deles ontem à noite. E sabem que o Mohammad Bakkar e o Jean-Luc Martel estão mortos.
— Quanto tempo até divulgarem a notícia?
— Se tivesse de adivinhar, diria que o povo marroquino ouvirá falar disto com os cereais do pequeno-almoço.
— Então se calhar devíamos criar outro assunto.
— Nós?
— Avisa-me se houver algum movimento no recinto.
Gabriel desligou.
— Problemas? — perguntou Keller.
— Dois cães e um portão trancado.
— Quanto aos cães, não se pode fazer grande coisa, mas o portão não deve ser um problema.
Keller entregou o telefone de Mohammad Bakkar a Natalie, que escreveu uma mensagem e a enviou a Nazir Bensaïd, para o interior do recinto. A resposta tardou uns segundos.
— Está feito — disse ela.
Gabriel e Yaakov tinham trazido mais do que apenas computadores e equipamento de comunicação segura da Casa de Espiões em Casablanca. Também tinham tirado duas pistolas Jericho calibre 45 e duas submetralhadoras compactas Uzi Pro. Gabriel deu a Yaakov uma de cada e a Natalie uma Uzi Pro. Guardou unicamente uma Jericho para si.
— A arma perfeita para autodefesa — disse Keller.
— Também é perfeita para eliminar aqueles que dão conselhos indesejados.
— Não quero meter-me em assuntos familiares, mas...
— Então não te metas — disse Gabriel.
Keller pareceu refletir.
— Quantos cães é que há no recinto? Disseste um ou dois?
Gabriel não disse nada.
— Deixa-nos tratar deles, a mim e ao Mikhail. Ou, melhor ainda — disse Keller —, vamos mandar o Yaakov entrar sozinho. Tem ar de quem já fez este tipo de coisas uma ou duas vezes.
Yaakov introduziu habilmente o carregador na Uzi Pro e olhou para Gabriel.
— Ele tem razão, chefe.
— Não comeces tu também.
— Há limites quanto ao que aquele satélite nos consegue dizer. E o que não nos consegue dizer é se há esconderijos de franco-atiradores ou se aqueles rapazes estão vestidos com coletes-suicidas.
— Então, devemos presumir que sim.
Yaakov colocou uma mão sobre o ombro de Gabriel.
— Já não és um miúdo qualquer. Agora, és o chefe. Deixa-nos tratar disto, aos três. Ficas aqui com...
— Com as mulheres?
— Não foi isso que quis dizer — disse Yaakov. — Mas alguém tem de as proteger.
— A Dina esteve no exército israelita, tal como todos nós. Consegue proteger-se sozinha.
— Mas...
— Tomei a devida nota do que disseste, Yaakov. Vais conduzir ou é melhor ser eu a encarregar-me disso?
Yaakov hesitou, depois deslizou para trás do volante. Mikhail deixou-se cair no lugar do passageiro, à frente, Gabriel e Keller no banco de trás. Natalie observou enquanto o carro partia em direção a Zaida. Depois, caminhou até ao Jeep Cherokee e entrou para o lugar do passageiro. Colocou a Uzi Pro no chão entre os pés e viu as horas no telefone de Mohammad Bakkar. Eram 4h11.
— Se calhar, devíamos ouvir as notícias.
Dina ligou o rádio e tentou sintonizá-lo em algo que soasse como um noticiário matinal. Perante o som de uma voz masculina, parou e olhou para Natalie.
— Está a ler versos do Corão.
Dina voltou a girar o sintonizador.
— Melhor?
— Sim.
— De que é que ela está a falar?
— Do tempo.
— Qual é a previsão?
— Quente.
— Não me digas.
Natalie riu-se suavemente.
— Lembras-te daquele dia em Nahalal? — perguntou pouco depois. — O dia em que tentei dizer que não a tudo isto?
Dina sorriu perante a recordação.
— E agora olha para ti. És uma de nós.
Na estrada, um camião passou. Depois outro. As estrelas da metade oriental do céu estavam a começar a esmorecer.
— Como é que ele era? — perguntou Dina.
— Quem?
— O Saladino.
— Não interessa. — Natalie verificou novamente as horas. — Daqui a alguns minutos, vai estar morto.
65
ZAIDA, MARROCOS
Tal como as restantes povoações pequenas por esse mundo fora, Zaida, por natureza, não dormia até tarde. Um dos cafés na praça principal estava aberto e os passageiros na paragem em frente estavam a entrar num autocarro fumegante com destino a Fez. O fedor a gasóleo do tubo de escape invadiu o carro enquanto Yaakov, guinando para evitar uma cabra tresmalhada, passava por ele. A sua velocidade era a ideal. Não iam demasiado depressa nem, mais importante ainda, observou Gabriel, demasiado devagar. Uma mão repousava levemente no volante, a outra estava imóvel sobre a alavanca das mudanças. Por seu lado, Mikhail tamborilava no painel central do carro. Contudo, Keller parecia absolutamente indiferente ao que estava prestes a acontecer. Na verdade, se não fosse pela Kalashnikov pousada sobre as coxas, poderia muito bem ser um turista a ver as vistas numa excursão por uma terra exótica.
— Não podes, pelo menos, fingir estar um bocadinho preocupado? — disse Gabriel.
— Com o quê?
— Com essa arma, para começar. Parece uma peça de museu.
— É uma arma impecável, a Kalashnikov. Para além disso, deu conta do recado perfeitamente, no campo do deserto. Pergunta ao teu amigo Dmitri Antonov. Ele conta-te.
Mas Mikhail não estava a ouvir; continuava a tamborilar no painel no carro.
— Há alguma forma de conseguires fazê-lo parar? — perguntou Keller.
— Já tentei.
— Esforça-te mais.
Yaakov retirou a mão direita das mudanças e colocou-a sobre a de Mikhail. Os dedos detiveram-se.
— Muito agradecido — disse Keller.
Alguns metros para lá da praça, a povoação começava a reduzir-se. Atravessaram um riacho seco e entraram numa região mais baixa que separava a civilização do deserto. Alguns edifícios em ruínas brotavam da terra castanha de ambos os lados da estrada e, a leste, como uma ilha num mar de pedras, vislumbrava-se o recinto. Ao longe, era impossível perceber o que era: uma casa, uma fábrica, uma instalação governamental secreta, o esconderijo do terrorista mais perigoso do mundo. Os muros exteriores pareciam ter cerca de três a três metros e meio de altura, com espirais de arame farpado no topo. O caminho privado que fazia a ligação entre o recinto e a estrada não era pavimentado, garantindo que qualquer veículo que se aproximasse faria bastante ruído e levantaria uma nuvem de pó.
Gabriel ergueu o telefone até ao ouvido. Estava conectado a Adrian Carter, em Langley.
— Conseguem ver-nos?
— É difícil passarem despercebidos.
— Alguma alteração?
— Dois no exterior, três no interior. Estão na mesma divisão. Um deles não se mexe há bastante tempo.
Gabriel baixou o telefone. Yaakov estava a fitá-lo pelo espelho retrovisor.
— Quando virarmos — disse ele — perdemos completamente o fator surpresa.
— Mas nós não vamos surpreendê-los, Yaakov. Estão à nossa espera.
Yaakov virou para o caminho privado e avançou na direção do recinto.
— Acende os máximos — instruiu Gabriel.
Yaakov assim fez, iluminando com luz branca a paisagem inóspita e rochosa.
— Agora, estão a ver-nos.
Gabriel ergueu um segundo telefone até ao ouvido, o que estava conectado a Natalie, e disse-lhe que tocasse à campainha.
Natalie já escrevera a mensagem no telemóvel de Mohammad Bakkar. Agora, seguindo as ordens de Gabriel, premiu o botão para a enviar.
— Então? — perguntou ele.
— Está a escrever a resposta.
A mensagem finalmente apareceu.
— Diz que vão abrir o portão.
— Que gentil da parte deles. Mas diz-lhes que se despachem. O médico está muito ansioso por ver o irmão.
Natalie enviou a mensagem do Samsung de Bakkar. Depois, ligou o seu próprio telefone em modo altifalante e aguardou pelo som dos disparos.
Nesse momento, Gabriel já estava a falar com Adrian Carter em Langley.
— Alguma alteração?
— Dois homens a prepararem-se para abrir o portão, um a descer umas escadas. Parece que tem uma arma.
— Lá se vai a hospitalidade árabe — disse Gabriel, e baixou o telefone.
Estavam a uns cinquenta metros do recinto e a aproximar-se a uma velocidade moderada. Agora, os faróis iluminavam diretamente o portão. Era um modelo de batente com duas folhas, em aço inoxidável. Uma nuvem de pó assentou em redor deles como nevoeiro, enquanto Yaakov abrandava até parar. Durante vários segundos, não aconteceu nada.
Gabriel ergueu o telefone de Langley até ao ouvido.
— O que é que se passa?
— Parece que estão a destrancá-lo.
— Onde é que está o terceiro homem?
— À espera no exterior, à entrada da casa.
— E onde é que fica a entrada relativamente a nós?
— Às vossas duas horas.
Gabriel voltou a baixar o telefone, enquanto uma fenda se abria entre as folhas do portão. Transmitiu a informação do satélite aos outros três homens no interior do carro e emitiu um conjunto sucinto de instruções.
Keller franziu o sobrolho.
— Importas-te de dizer isso outra vez numa língua que eu consiga perceber?
Gabriel não se apercebera de que estava a falar hebreu.
Subitamente, o portão começou a abrir-se, puxado por dois pares de mãos. Yaakov equilibrou a Uzi Pro sobre o volante e fez pontaria para o par de mãos à direita. Mikhail apontou a Kalashnikov para as mãos à esquerda.
— Esquece — disse Keller. — Não é preciso tradução.
Finalmente, o portão abriu-se o suficiente para que coubesse um carro. Dois homens, cada um deles com uma espingarda automática na mão, caminharam para a fresta e fizeram sinal a Yaakov para que entrasse no recinto. Em vez disso, Yaakov disparou uma rajada de tiros para o homem da direita através do para-brisas. Mikhail, sentado ao seu lado, premiu várias vezes o gatilho da Kalashnikov na direção do homem da esquerda. Nenhum dos guardas conseguiu disparar uma única bala de resposta, mas, enquanto Yaakov acelerava através do portão aberto, uma arma abriu fogo a partir da entrada do edifício principal. Mikhail respondeu através da janela aberta do passageiro da frente, enquanto Gabriel, sentado atrás dele, disparou várias balas da Jericho 45. Em poucos segundos, a arma da entrada silenciou-se.
Yaakov travou abruptamente e colocou o carro em ponto-morto enquanto Mikhail e Gabriel rebolavam para fora do veículo e começavam a atravessar o pátio exterior do recinto. Mikhail afastou-se rapidamente de Gabriel e, após alguns passos, Keller também o ultrapassou. Os dois soldados de elite fizeram uma breve pausa à entrada, junto do corpo do terceiro atirador. Gabriel olhou de soslaio para baixo, para o rosto sem vida. Era Nazir Bensaïd.
Para lá da entrada, havia um pátio mourisco ornamentado, azulado pelo luar, com portas de cedro em cada um dos quatro lados. Keller e Mikhail transpuseram a porta à direita e atravessaram um hall até um lanço de escadas de pedra. Foram imediatamente recebidos com disparos de uma arma automática vindos de cima. Os dois agentes lançaram-se para o chão em busca de cobertura, um à direita, o outro à esquerda, enquanto Gabriel se mantinha agachado lá fora, no pátio. Quando os disparos cessaram, Gabriel esgueirou-se para o interior do hall e refugiou-se junto de Mikhail. Keller, precisamente do lado oposto, fez o canhão da sua Kalashnikov espreitar para a escadaria e disparou cegamente várias balas para a escuridão. Então, Mikhail fez o mesmo.
Quando pararam para recarregar, só se ouvia o silêncio vindo de cima. Gabriel espreitou em torno da extremidade da parede. O patamar no topo das escadas parecia vazio, mas, no escuro, não conseguia ter a certeza. Finalmente, Keller e Mikhail subiram o primeiro degrau. Subitamente, ouviu-se um grito lancinante. O grito de uma mulher, pensou Gabriel: duas palavras árabes com significado religioso que deixavam poucas dúvidas quanto ao que iria suceder a seguir. Agarrou na camisa de Mikhail e puxou-a com toda a força que lhe restava no corpo, enquanto Keller se lançava pelas escadas abaixo para se refugiar em segurança. Um segundo depois, a bomba explodiu. Aparentemente, Saladino tinha perdido o sentido de oportunidade.
Gabriel transportava dois telemóveis no bolso do casaco, um ligado a Adrian Carter, o outro a Natalie e Dina. Carter e os restantes agentes reunidos no Buraco Negro tinham a vantagem das câmaras e sensores do satélite, mas Natalie e Dina só dispunham de informação a partir da transmissão de áudio. A qualidade era má e os ruídos chegavam-lhes abafados. Mesmo assim, não tiveram qualquer dificuldade em perceber o que estava a acontecer no interior do recinto. Uma breve, mas intensa, troca de tiros, uma mulher a gritar «Allahu Akbar», o som inconfundível de uma bomba a explodir. Depois disso, houve apenas silêncio. Dina pôs, rapidamente, o motor a trabalhar. Pouco depois, estavam a acelerar ao longo da rua principal de Zaida, a pequena povoação à sombra das montanhas do Médio Atlas estava agora completamente desperta.
Sobre os degraus jaziam, dispersos, os restos desfeitos de uma mulher (pequena, com uns vinte a vinte e cinco anos, bonita em vida). Uma perna aqui, uma porção do tronco ali, uma mão, a direita, acolá, ainda a apertar o detonador. A cabeça rolara até ao fundo das escadas e viera repousar aos pés de Gabriel. Ele levantou o véu negro que lhe cobria o rosto e deparou-se com um conjunto de feições delicadas, agrupadas numa máscara de loucura religiosa. Os olhos eram azuis: o azul de um lago de montanha. Seria uma esposa ou uma concubina? Ou talvez uma filha? Ou seria apenas outra viúva negra, uma rapariga perdida a quem Saladino amarrara uma bomba e uma ideologia de morte?
Gabriel fechou-lhe os olhos azuis, cobriu-lhe o rosto e seguiu, silenciosamente, Keller e Mikhail pelas escadas acima. No chão do patamar superior, havia uma Kalashnikov que caíra das mãos da mulher, juntamente com os cartuchos de balas que completariam um carregador. Para a direita, um corredor espraiava-se para a escuridão. No fundo havia uma porta; e, atrás da porta, pensou Gabriel, ficava um quarto no canto sudeste da casa. Um quarto virado para Meca. Um quarto onde jazia, agora, um homem ferido que se encontrava sozinho, sem ninguém que o protegesse.
Escolheram cautelosamente o caminho através do patamar de forma a não tocar nos cartuchos de balas e deslocaram-se silenciosamente ao longo do corredor. Quando alcançaram a porta, Keller testou o puxador. Estava trancada. Trocou alguns sinais breves com Mikhail e gesticulou a Gabriel para que se afastasse, mas Gabriel rapidamente impôs a sua vontade com o seu próprio gesto. Era chefe de operações e preferia enfrentar os seus inimigos a um metro de distância do que a um quilómetro.
Keller não discutiu, não havia tempo. Em vez disso, arrombou a porta com um pontapé e, depois, seguiu Gabriel e Mikhail para o interior. Saladino estava deitado num colchão nu, no canto mais escuro, com o rosto iluminado pelo brilho de um telemóvel. Sobressaltado, esticou o braço para agarrar a Kalashnikov ao seu lado. Gabriel correu na sua direção com a Jericho nas mãos esticadas e disparou onze balas para o coração de Saladino. Depois, dobrou-se para apanhar o telefone caído. Estava a vibrar com uma mensagem recebida.
INSHALLAH, ASSIM SE FARÁ...
66
MARROCOS – LONDRES
Saladino realizara a sua derradeira ação de resistência não com uma arma, mas com um telemóvel Android Nokia 5. Havia outros espalhados à sua volta, juntamente com vários Samsung Galaxies e iPhones, oito computadores portáteis e dezenas de pens. Mikhail e Keller introduziram rapidamente os aparelhos num saco de viagem, enquanto Gabriel tirava uma fotografia ao rosto sem vida de Saladino. Não era um troféu. Queria provar, sem sombra de dúvidas, que o monstro morrera e, dessa forma, desferir um duro golpe, não só ao Estado Islâmico, mas ao movimento jihadista internacional no seu conjunto.
Dina e Natalie estavam a atravessar o portão aberto do recinto quando Gabriel, Mikhail e Keller saíram da casa. Yaakov estava a retirar outro Nokia 5 do bolso de Nazir Bensaïd. O Peugeot alugado não estava em condições de andar na estrada, com o para-brisas rebentado e orifícios de bala de uma ponta à outra do chassis, portanto amontoaram-se todos no Jeep Cherokee. No total, desde a entrada forçada até à partida apressada, estiveram no interior do recinto menos de cinco minutos.
Evidentemente, o som dos disparos e da explosão alcançara o centro de Zaida. Enquanto aceleravam ao longo da rua principal da cidade, depararam-se com alguns olhares fixos, uns curiosos, outros manifestamente hostis, mas ninguém tentou pará-los. Só quando chegaram à minúscula aldeia berbere de Aït Oufella, a uns dezasseis quilómetros de distância, ao descer a montanha, vislumbraram os primeiros gendarmes a subir o vale.
Os carros da polícia passaram por eles velozmente, sem abrandar, e prosseguiram na direção de Zaida. Daí a vinte minutos, talvez menos, entrariam no recinto. E, num quarto do primeiro andar da casa, encontrariam um árabe grande, de constituição poderosa, que jazia sozinho com onze orifícios de bala na parte frontal da jilaba. Se pudesse falar, fá-lo-ia com um característico sotaque iraquiano e, se pudesse caminhar, fá-lo-ia a coxear. Vivera uma vida de violência e morrera em conformidade. No entanto, teria esse homem, nos derradeiros segundos de vida, ordenado outro atentado? Uma última abertura das cortinas para receber a ovação do público.
Inshallah, assim se fará...
Era possível que a resposta, juntamente com outras informações cruciais, residisse algures nos telemóveis, computadores e pens que tinham retirado do quarto de Saladino. Por conseguinte, era fundamental que os aparelhos não acabassem nas mãos dos marroquinos, que estariam mais interessados em resolver o enigma de uma noite longa e violenta do que em prevenir o atentado seguinte. Ainda assim, Gabriel decretou que não fariam uma retirada conflituosa. Já houvera derramamento de sangue suficiente. E, agora que Saladino estava morto, era menos provável que os marroquinos tivessem um ataque de raiva diplomático ou fizessem algo estúpido, como julgar em tribunal o chefe dos serviços secretos israelitas por homicídio.
Eram quase sete horas quando chegaram a Fez. Dirigiram-se para norte através das montanhas do Rife, na direção da costa mediterrânica. O esconderijo era em El Jebha, mas não poderia ser utilizado antes de escurecer, pois só nesse momento seria seguro trazer os Zodiacs até terra. Isso significava que se perderia um dia inteiro, talvez mais, até os técnicos poderem começar a vasculhar os telefones e computadores em busca de informação. Gabriel decidiu que, em vez disso, deixariam Marrocos de ferry. O porto de Tânger era a escolha mais óbvia. Havia ferries regulares para Espanha, França e até mesmo Itália. Mas, a leste, havia um porto mais pequeno que dispunha de um serviço direto para o território ultramarino britânico de Gibraltar. Embarcaram, com quinze minutos de antecedência, no barco do meio-dia e um quarto. Gabriel e Keller estavam de pé, ao sol, junto do gradeamento da embarcação (Keller a fumar um cigarro, Gabriel a segurar num telemóvel), enquanto os penhascos de calcário branco do famoso rochedo de Gibraltar surgiam à sua frente.
— Finalmente em casa — disse Keller.
Mas Gabriel não estava a ouvir; estava a fitar a fotografia que tirara do rosto sem vida de Saladino.
— É a melhor fotografia que alguma vez lhe tiraram — disse Keller.
Gabriel permitiu a si próprio um breve sorriso. Depois, enviou a fotografia de forma segura para Adrian Carter, em Langley. A resposta de Carter foi instantânea.
— O que é que ele disse? — perguntou Keller.
— Alhamdulillah.
Keller atirou o cigarro para o mar.
— Veremos.
Do terminal de ferries de Gibraltar, uma curta caminhada ao longo da Winston Churchill Avenue conduziu-os até ao aeroporto, onde os aguardava um jato executivo Falcon 2000 alugado, cortesia dos Serviços Secretos de Sua Majestade. Graham Seymour abastecera o avião com várias garrafas de excelente champanhe francês, mas ninguém a bordo tinha disposição para celebrar. Assim que o avião descolou, começaram a ligar os telefones e computadores apreendidos. Estavam todos protegidos com palavras-passe, bem como as pens.
A tarde estava a terminar quando aterraram no Aeroporto London City, nas Docklands. Havia dois veículos a aguardá-los, um furgão e uma limusina Jaguar preta. O furgão levou Mikhail, Yaakov, Dina e Natalie para Heathrow, onde poderiam apanhar um voo noturno para o Ben Gurion. Gabriel e Keller seguiram no Jaguar para Vauxhall Cross, juntamente com o saco de viagem.
Entraram no edifício através do parque de estacionamento subterrâneo e transportaram o saco para o escritório de Graham Seymour. Seymour chegara de Washington algumas horas antes. Tinha um aspeto apenas ligeiramente melhor do que Gabriel e Keller.
— Eu e a Amanda Wallace concordámos numa divisão do trabalho relativamente aos telefones e aos computadores. Os serviços secretos britânicos ficam com metade e o MI5 com o restante. Os nossos respetivos laboratórios estão plenamente equipados e preparados para começar.
— Surpreende-me que tenham conseguido manter os americanos fora disto — respondeu Gabriel.
— Não conseguimos. A Agência e o FBI vão enviar agentes de ligação para nos vigiarem. Caso estivesses a interrogar-te — acrescentou Seymour —, era mesmo ele. A Agência confirmou com uma análise facial de oito pontos. — Deu a mão a Gabriel. — Mereces uma homenagem. Parabéns e obrigado.
Gabriel aceitou relutantemente a mão de Seymour.
— Não me agradeças a mim, Graham, agradece-lhe a ele. — Apontou com a cabeça na direção de Keller. — E à Olivia, claro. Nunca teríamos conseguido aproximar-nos do Saladino sem ela.
— A Royal Navy retirou-a daquele vosso falso navio de carga há cerca de uma hora — disse Seymour. — Escusado será dizer que é essencial manter o papel dela em absoluto segredo.
— Isso talvez seja difícil.
— Bastante — disse Seymour. — A Internet já está em brasa com rumores de que o Saladino está morto. A Casa Branca está ansiosa por fazer um comunicado formal antes que os marroquinos se adiantem.
— Quando?
— A tempo do telejornal da noite. Estavam a interrogar-se se o Departamento desejaria parte dos créditos.
— Meu Deus, não.
— Tinham esperança de que dissesses isso. Eventualmente, os marroquinos vão acabar por ultrapassar a questão da invasão da sua soberania por parte dos americanos, mas com os israelitas seria uma questão completamente diferente.
— Então e os britânicos?
— A lei proíbe-nos de participar em operações de homicídio com alvos específicos. Portanto, não vamos dizer nada. — Seymour olhou para Keller. — Ainda assim, os analistas estão muito interessados em falar contigo. E os advogados também.
— Isso — disse Keller — seria uma péssima ideia.
— Foste tu que...
— Não — disse Keller. — Não tive essa sorte.
Eram seis da tarde quando os peritos começaram a trabalhar nos aparelhos apreendidos. O MI5 foi o primeiro a conseguir aceder a um telefone; o MI6 a um computador. Como era esperado, todos os documentos estavam fortemente encriptados. Mas, às sete horas, técnicos de ambos os serviços estavam a descodificar os documentos sem problemas e a passá-los às equipas de análise para identificação de pistas vitais. O primeiro lote era composto por coisas de importância reduzida. Mas Gabriel e Keller, que estavam a monitorizar os trabalhos a partir do escritório de Graham Seymour, advertiram as equipas de trabalho para que não fossem complacentes. Tinham visto a expressão no olhar de Saladino enquanto enviava a sua derradeira mensagem de texto.
Às nove horas de Londres, o presidente americano e o diretor da CIA, Morris Payne, entraram a passos largos na Sala de Imprensa da Casa Branca para anunciar que o cérebro operacional do terrorismo do ISIS, conhecido como Saladino, fora assassinado durante a noite numa operação clandestina dos Estados Unidos nas Montanhas do Médio Atlas, em Marrocos. Aparentemente, a sua morte era o resultado de um meticuloso esforço americano para fazer justiça ao homem que perpetrara os atentados de Washington e provava a determinação da nova administração em eliminar o islamismo radical de uma vez por todas. Os marroquinos tinham sido antecipadamente informados da operação e tinham prestado uma assistência preciosa, mas, à exceção disso, fora uma empreitada americana do início ao fim. «E os resultados», vangloriou-se o presidente, «falam por si».
— Não estás arrependido? — perguntou Seymour.
— Não — respondeu Gabriel. — Prefiro ir e voltar sem que me vejam.
Quando o presidente e o diretor da CIA terminaram a conferência de imprensa, os jornalistas e especialistas em terrorismo contratados tentaram, rapidamente, preencher as inúmeras lacunas do relato oficial. Infelizmente para eles, a maioria da informação vinha diretamente de Adrian Carter e da sua equipa, o que significava que muito pouca se assemelhava sequer remotamente à verdade. Às dez e meia, Gabriel e Keller já tinham ouvido o suficiente. Exaustos, entraram para a limusina Jaguar e dirigiram-se para West London, do outro lado do rio. Keller encaminhou-se para a sua casa opulenta em Kensington; Gabriel, para o velho apartamento seguro do Departamento na Bayswater Road, com vista para o Hyde Park. Ao entrar, ouviu uma mulher a cantar suavemente para si própria em italiano. Fechou a porta e sorriu. Chiara cantava sempre quando estava feliz.
67
BAYSWATER, LONDRES
— Onde é que estão os miúdos?
— Quem?
— Os miúdos — repetiu Gabriel enfaticamente. — A Irene e o Raphael. Os nossos miúdos.
— Deixei-os com os Shamrons.
— Queres dizer que os deixaste com a Gilah. O Ari mal consegue tomar conta de si próprio.
— Eles estão ótimos.
Gabriel aceitou um copo de Gavi fresco e sentou-se num banco alto junto à bancada da cozinha. Chiara lavou e secou uma embalagem de cogumelos e, com um punhado de movimentos hábeis da sua faca, reduziu-os a filas de lâminas perfeitas.
— Não cozinhes — disse Gabriel. — É demasiado tarde para comer.
— Nunca é demasiado tarde para comer, querido. Para além disso, estás com ar de quem precisa de uma refeição. — Franziu o nariz. — E de um duche.
— O Hamid e o Tarek disseram que se eu tomasse banho perturbaria os jinns.
— Quem são o Hamid e o Tarek?
— Funcionários involuntários dos serviços secretos israelitas.
— E os jinns?
Gabriel explicou.
— Quem me dera poder ter estado lá contigo.
— Ainda bem que não estavas.
Chiara atirou os cogumelos para uma frigideira e, pouco depois, o aroma a azeite quente impregnou o ar. Gabriel bebeu um pouco do Gavi.
— Como é que sabias que vínhamos para Londres?
— Tenho um contacto dentro do Departamento.
— Esse teu contacto tem nome?
— Prefere manter-se anónimo.
— Claro.
— É um ex-chefe. Muito importante. — Deu uma sacudidela à frigideira e os cogumelos começaram a fritar. — Quando soube que tu e a equipa iam tentar escapar por Gibraltar, esgueirei-me para um voo com destino a Londres. A equipa de limpeza da casa teve a amabilidade de pôr algumas coisas no frigorífico.
— Porque é que ninguém informou o atual chefe de nada disto?
— Pedi-lhes que não informassem. Queria que fosse surpresa. — Chiara sorriu. — Não reparaste nos meus guarda-costas lá em baixo, na Bayswater Road?
— Estava demasiado cansado para olhar.
— Os rudimentos do ofício estão a começar a escapar-te, querido. Dizem que acontece aos que passam demasiado tempo atrás de uma secretária.
— Duvido que o Saladino concordasse contigo.
— A sério? — Chiara olhou de soslaio para a televisão ligada em silêncio sobre a bancada da cozinha. — Porque a BBC diz que foi tudo uma operação americana.
— Os americanos — disse Gabriel — foram muito prestáveis. Mas fomos nós que o apanhámos, com a ajuda crucial do Christopher Keller.
— E pensar que, em tempos, te tentou matar. — Bebeu um pouco do vinho de Gabriel.
— Quanto é que o Uzi te contou sobre o que aconteceu?
— Muito pouco, na verdade. Sei que o ataque com drones não correu como planeado e que conseguiram seguir o rasto do Saladino até um recinto nas montanhas. Depois disso, as coisas tornam-se um bocadinho nebulosas.
— Para mim também — disse Gabriel.
— Estavas lá?
Ele hesitou, depois assentiu lentamente com a cabeça.
— Foste tu que...
— Isso interessa?
Ela não disse nada.
— Sim — disse Gabriel —, fui eu. Fui eu que o matei.
E, depois, contou-lhe o resto. A mulher que se fizera explodir nas escadas. O quarto repleto de telefones e computadores no qual Saladino passara as últimas horas. A derradeira mensagem de texto.
Inshallah, assim se fará...
— Provavelmente, era só conversa — disse Chiara.
— De um homem que quase conseguiu contrabandear um carregamento de cloreto de césio para França. Cloreto de césio suficiente para fabricar várias bombas sujas. Bombas que tornariam o centro da cidade inabitável durante anos. — Fez uma pausa, depois acrescentou: — Estás a ver onde quero chegar.
Chiara esperou que os cogumelos perdessem a água antes de os temperar com sal, pimenta e tomilho acabado de picar. Depois, despejou vários punhados de fettuccini seco para uma panela de água a ferver.
— Quanto tempo planeias ficar em Londres? — perguntou ela.
— Até que os britânicos acabem de examinar os telefones e computadores que trouxemos do recinto.
— Preocupa-te que ele possa vir atrás de nós?
— O primeiro alvo dele foi o Centro Isaac Weinberg para o Estudo do Antissemitismo em França. É melhor eu ficar aqui enquanto a informação está a ser processada. É menos provável que algo lhes escape.
— Mas não quero mais heroísmos — advertiu ela.
— Não — disse Gabriel. — Agora sou o chefe.
— Também eras o chefe quando estavas em Marrocos. — Provou um fio de fettuccini. Depois olhou em redor da pequena cozinha e sorriu. — Sabes, sempre adorei este apartamento. Passámos aqui bons momentos, Gabriel.
— E maus também.
— Casámo-nos aqui, lembras-te?
— Não foi um casamento verdadeiro.
— Eu achei que sim. — A sua expressão obscureceu. — Lembro-me de tudo de forma tão nítida. Foi na noite antes de...
A sua voz esmoreceu. Adicionou vinho e natas à frigideira. Depois, despejou a mistura sobre o fettuccini e salpicou tudo com queijo ralado. Preparou apenas uma dose individual e colocou-a diante de Gabriel. Ele mergulhou um garfo e girou-o.
— Nada para ti? — perguntou ele.
— Oh, não. — Chiara olhou de soslaio para o relógio de pulso. — É demasiado tarde para comer.
Gabriel usara o apartamento seguro tantas vezes que a sua roupa estava pendurada no armário e os seus artigos de higiene enchiam o armário da casa de banho. Depois de terminar uma segunda dose de massa, tomou um duche, fez a barba e caiu na cama, exausto, ao lado de Chiara. Tinha esperança de que os sonhos se ausentassem do seu sono, mas não foi isso que aconteceu. Subia uma escada interminável, encharcada de sangue e coberta com os restos de uma mulher. E, quando encontrou a cabeça e desviou o véu, foi o rosto de Chiara que viu.
Inshallah, assim se fará...
Pouco antes das cinco, acordou subitamente, como que sobressaltado pelo ruído de uma bomba. Era apenas o seu telemóvel, que estava a deslizar pela superfície da mesa de cabeceira. Erguendo-se, vestiu-se na escuridão. E para a escuridão regressou.
68
THAMES HOUSE, LONDRES
A limusina Jaguar aguardava-o em baixo, na Bayswater Road. Deixou Gabriel não em Vauxhall Cross, mas em Thames House, o quartel-general do MI5. Miles Kent, o subdiretor, acompanhou-o enquanto subiam as escadas rapidamente até ao escritório de Amanda Wallace. Amanda aparentava estar desgastada e cansada e, de forma bastante evidente, sob enorme stresse. Graham Seymour também lá estava, ainda envergando o mesmo fato da noite anterior, mas sem gravata. Agentes mais jovens entravam e saíam apressadamente da divisão e havia uma videoconferência segura a decorrer com a Scotland Yard e Downing Street. O facto de estarem reunidos ali, e não do outro lado do rio, só poderia significar uma coisa. Alguém encontrara, nos telefones e computadores de Saladino, provas de que estava iminente um novo atentado. E Londres era, uma vez mais, o alvo.
— Há quanto tempo é que sabem? — perguntou Gabriel.
— Desenterrámos os primeiros indícios por volta das duas da manhã — disse Seymour.
— Porque é que ninguém me disse nada?
— Achámos que precisavas de dormir um pouco. Para além disso, trata-se de um problema nosso, não teu.
— Onde?
— Westminster.
— Quando?
— Esta manhã — disse Seymour. — Pensamos que por volta das nove.
— Qual é o método do atentado?
— Bombista suicida.
— Conhecem a identidade dele?
— Ainda estamos a trabalhar nisso.
— Só um? Têm a certeza?
— Parece que sim.
— Porquê só um?
Seymour entregou a Gabriel uma pilha de folhas impressas.
— Porque não precisam de mais do que um.
A mensagem de texto fora enviada às três e um quarto da madrugada anterior, hora da Marrocos, quando o provável remetente da mesma estava emocionalmente perturbado e em grande dor física. Consequentemente, não cumprira os habituais protocolos de encriptação secundária e terciária da rede, permitindo, assim, que um técnico informático do MI5 a desenterrasse de um dos telefones retirados do recinto de Zaida. A linguagem estava codificada, mas não deixava quaisquer dúvidas. Era uma ordem para levar a cabo uma operação suicida. Não havia qualquer menção a um alvo, mas a pressa aparente com que a mensagem fora enviada permitira ao técnico encontrar comunicações e documentos relacionados que tornavam perfeitamente claro o objetivo do atentado e o momento em que deveria ser executado. Tinham sido encontradas diversas fotografias do local e até um documento relativo aos ventos dominantes e ao provável padrão de dispersão do material radiológico. Os responsáveis pelo plano esperavam, com a ajuda de Deus, uma área de contaminação nuclear que se estenderia da Trafalgar Square até à própria Thames House. Os peritos do MI5, que tinham estudado cenários semelhantes, previam que um atentado com essas características tornasse a zona que constituía a sede do poder britânico inabitável durante meses, ou até mesmo anos. O custo económico, para não falar do impacto psicológico, seria catastrófico.
O recetor da mensagem fora mais cauteloso do que o remetente. Ainda assim, o erro anterior do remetente invalidara completamente o cuidado do recetor. Consequentemente, o técnico do MI5 conseguira localizar toda a troca de mensagens, juntamente com um vídeo do mártir. O sujeito dirigia-se à câmara com um sotaque londrino e o rosto oculto. Os peritos linguísticos do MI5 calcularam que se tratava de um homem do norte de Londres, nativo e, provavelmente, de linhagem egípcia. Com a ajuda do GCHQ, o serviço britânico de espionagem de comunicações, o MI5 estava a comparar freneticamente a voz do homem com a de radicais islâmicos conhecidos. Para além disso, o MI5 e o SO13, o Comando Antiterrorista da Polícia Metropolitana, estavam a monitorizar extremistas conhecidos e suspeitos de serem membros do ISIS. Em suma, toda a estrutura de segurança nacional do Reino Unido estava em discreto, mas eficiente, modo de pânico.
Às seis da manhã, enquanto os céus para lá da janela de Amanda estavam a começar a clarear, todos os esforços para identificar e localizar o bombista suicida suspeito tinham-se revelado infrutíferos. O primeiro-ministro Jonathan Lancaster, no Gabinete do Conselho do número 10, convocou uma videoconferência às seis e meia. Iniciou-a com uma questão que nenhum perito em antiterrorismo jamais gostaria de ouvir:
— Devemos criar um cordão de segurança em Westminster e ordenar uma evacuação dos distritos vizinhos?
Um por um, os seus ministros, funcionários, chefes dos serviços secretos e comissários da polícia deram as suas respostas. A recomendação foi unânime. Fechar Westminster. Interromper todo o tráfego de comboios, autocarros ou automóveis para o centro de Londres. Dar início a uma evacuação minuciosa e ordenada.
— E se for um embuste? Ou um bluff? Ou se se basear em informação que não é fiável? Vamos parecer o Chicken Little. E, da próxima vez que dissermos que o céu está a desabar, ninguém vai acreditar em nós.
A informação, concordaram todos, era tão fiável e atempada quanto poderia ser. E estavam rapidamente a esgotar-se outras opções para prevenir um desastre de proporções monumentais.
O primeiro-ministro semicerrou os olhos.
— É o senhor Allon que eu estou a ver aí?
— É, senhor primeiro-ministro.
— E o que é que lhe parece?
— Não me cabe a mim dar uma opinião, senhor primeiro-ministro.
— Por favor, deixe-se de cerimónias. O senhor e eu conhecemo-nos demasiado bem para isso. Para além disso, não há tempo.
— Na minha opinião — disse Gabriel cautelosamente —, seria um erro ordenar encerramentos e evacuações.
— Porquê?
— Porque irão desperdiçar a única oportunidade de que dispõem para impedir o atentado.
— Que é?
— Sabem a hora e o local em que vai ocorrer. E, se tentarem criar um cordão de segurança no centro de Londres, incitarão o pânico em massa e o terrorista suicida limitar-se-á a escolher um alvo secundário.
— Continue — indicou o primeiro-ministro.
— Mantenham as entradas para Westminster completamente abertas. Coloquem equipas de CBRN infiltradas e atiradores do SCO19 à paisana em pontos estratégicos em redor do Parlamento e da Whitehall.
— Montamos-lhe uma armadilha e deixamo-lo entrar? É isso que está a dizer?
— Exatamente, senhor primeiro-ministro. Não vai ser difícil identificá-lo. Vai estar vestido com excesso de roupa para o clima de verão e o detonador vai ser visível numa das mãos. Provavelmente, vai estar a suar devido aos nervos e a recitar orações. Poderá até estar a sofrer de envenenamento por radiação. E, quando passar por um contador Geiger — disse Gabriel para concluir —, vai fazê-lo disparar. Assegurem-se só de que o agente armado que vai atrás dele tem a coragem e a experiência adequadas para fazer o que é necessário.
— Algum candidato? — perguntou o primeiro-ministro.
— Só dois — disse Gabriel.
69
PARLIAMENT SQUARE, LONDRES
— Acho que este é o início de uma bela amizade.
— Ou o final.
— Porque é que és sempre tão fatalista? — perguntou Keller. — Já não estamos no Saara. Estamos no meio de Londres.
— Sim — disse Gabriel, olhando em redor. — O que é que poderia correr mal aqui?
Estavam sentados num banco na extremidade ocidental da Parliament Square. Estava uma bela manhã de verão, fresca e suave, com uma promessa de chuva para mais tarde. Mesmo atrás deles, ficava o Supremo Tribunal, o tribunal mais importante do reino. À sua direita ficavam a Abadia de Westminster e a igreja medieval de St. Margaret. E, precisamente diante deles, do outro lado do relvado verde da praça, estava o Palácio de Westminster. O relógio do icónico campanário mostrava que faltavam cinco minutos para as nove. O trânsito da hora de ponta circulava através da ponte de Westminster e para cima e para baixo da Whitehall, passando pela Autoridade Fiscal e Aduaneira de Sua Majestade, pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros e da Commonwealth, pelo Ministério da Defesa e pela entrada para Downing Street, residência oficial do primeiro-ministro. Sim, pensou novamente Gabriel. O que é que poderia correr mal?
Tinha um transmissor auricular no ouvido direito e uma arma no fundo as costas. A arma era uma Glock 17 de 9 mm, a arma padrão do SCO19, a unidade tática de atiradores da Polícia Metropolitana de Londres. O transmissor estava ligado à rede segura de comunicações da Polícia Metropolitana. O chefe do SO15, o Comando Antiterrorista, estava a dirigir as operações, com o auxílio de Amanda Wallace do MI5. Até agora, tinham identificado dois potenciais suspeitos que se aproximavam de Westminster. Um estava a atravessar a ponte vindo de Lambeth. O outro estava a caminhar ao longo da Victoria Street. Na verdade, estava, naquele preciso momento, a passar pela New Scotland Yard. Ambos os homens transportavam mochilas, o que dificilmente se poderia considerar inusitado em Londres, e ambos aparentavam ser originários do Médio Oriente ou do Sul da Ásia, algo que também não era invulgar. O homem que vinha pela ponte começara a sua viagem no bairro de Tower Hamlets, na zona leste de Londres. O que estava a passar pela New Scotland Yard viera da secção de Edgware Road, no norte de Londres. Estava vestido de forma quente e aparentava estar constipado.
— Parece ser o nosso homem — disse Gabriel. — Estou a apostar em Edgware e no vírus da gripe.
— Vamos saber daqui a um minuto. — Keller estava a folhear a edição matutina do Times. Estava repleta de notícias sobre a morte de Saladino.
— Não podes pelo menos...
— O quê?
— Esquece.
O homem vindo de Tower Hamlets atravessara a ponte e chegara a Westminster. Passou por um Caffè Nero e pela entrada da estação de metro de Westminster. Depois, passou por uma equipa de CBRN infiltrada e dois atiradores táticos à paisana. Não havia vestígios de radioatividade, nenhum detonador na mão, nenhum sinal de perturbação emocional. Era o homem errado. Atravessou a rua para a Parliament Square e juntou-se a um protesto pequeno e triste que tinha algo a ver com a guerra no Afeganistão. Ainda havia guerra no Afeganistão? Até Gabriel tinha dificuldade em acreditar.
Virou a cabeça alguns graus para a direita para observar o segundo homem (o homem da secção de Edgware Road, no norte de Londres) que caminhava ao longo da Broad Sanctuary, passando pela torre norte da abadia. Keller estava a fingir ler as notícias desportivas.
— Que ar é que ele tem?
— Tem ar de estar muito doente.
— Alguma coisa que comeu?
— Ou alguma coisa que tem vestida. Tem ar de quem brilharia no escuro.
No relvado norte da abadia, havia uma equipa de CBRN a posar para fotografias como se de um grupo de turistas normais se tratasse, juntamente com outra unidade do SCO19. A equipa de CBRN já começara a detetar níveis elevados de radiação, mas, à medida que o homem de Edgware se aproximava, os níveis dispararam de forma dramática.
— É uma maldita Chernobyl — disse Keller. — Apanhámo-lo.
Uma comoção irrompeu pelo transmissor, com várias vozes a gritarem simultaneamente. Gabriel forçou-se a desviar o olhar.
— Quais são as probabilidades? — perguntou calmamente.
— De quê?
— De ele nos escolher a nós?
— Diria que são maiores a cada minuto que passa.
O homem atravessou a Broad Sanctuary para o edifício do Supremo Tribunal e entrou na Parliament Square pelo canto sudoeste. Alguns segundos mais tarde, a suar, com os lábios a tremer, lívido como a morte, estava a aproximar-se do banco onde Gabriel e Keller estavam sentados.
— Alguém precisa de acabar com o sofrimento deste desgraçado — disse Keller.
— Não sem ordem do primeiro-ministro.
O homem passou pelo banco.
— Que nível de exposição é que acabámos de sofrer? — perguntou Keller.
— Equivalente a cerca de dez mil radiografias.
— Quantas é que tu já fizeste?
— Onze mil — respondeu Gabriel. Depois, disse calmamente: — Olha para a mão esquerda.
Keller fê-lo. Estava a agarrar um detonador.
— Olha para o polegar — disse Gabriel. — Já está a pressionar o gatilho. Sabes o que é que isso quer dizer?
— Sim — disse Keller. — Quer dizer que tem uma bomba suja com um detonador que é ativado se ele retirar o dedo.
O Big Ben estava a dar as badaladas das nove da manhã quando o mártir em espera alcançou o flanco oriental da praça. Deteve-se durante um momento para observar o protesto e pareceu a Gabriel estar a ponderar as suas opções: o Palácio de Westminster, que ficava mesmo à sua frente, ou a Whitehall, que ficava à direita. O primeiro-ministro e os assessores de segurança também estavam a ponderar as suas opções. Chegados a este ponto, havia apenas uma. Alguém tinha de conceder ao homem a morte que ele tanto desejava, enquanto outra pessoa segurava firmemente o seu polegar sobre o detonador. Caso contrário, várias pessoas morreriam e a sede da história e do poder britânicos transformar-se-ia num deserto radioativo durante muito tempo.
Finalmente, o mártir em espera virou para a esquerda na direção da Whitehall, com Gabriel e Keller no seu encalço a poucos passos de distância. Uma brisa suave soprava de norte diretamente contra os seus rostos: uma brisa que dispersaria a radioatividade por toda a zona de Westminster e Victoria se a bomba detonasse. A equipa de CBRN que estivera no Caffè Nero estava agora no exterior do edifício da Autoridade Fiscal e Aduaneira; os valores dos medidores de radiação ultrapassaram todos os limites quando o homem passou por eles. O primeiro-ministro não necessitava de mais provas.
— Abatam-no — disse ele, e o chefe do Comando Antiterrorista repetiu a ordem para Gabriel e Keller. Depois, acrescentou calmamente:
— E que Deus esteja convosco.
Mas de que lado, pensou Gabriel, estaria Deus esta manhã? Do lado do fanático com a arma de destruição maciça amarrada ao corpo ou do lado dos dois homens que tentariam impedi-lo de a detonar? O primeiro passo cabia a Keller. Tinha de agarrar na mão esquerda do mártir com um aperto de ferro antes que Gabriel disparasse o tiro certeiro. Caso contrário, o polegar do mártir enfraqueceria sobre o detonador e a bomba explodiria.
Passaram pela arcada da King Charles Street e pela entrada do Ministério dos Negócios Estrangeiros e da Commonwealth. O tráfego ao longo da Whitehall diminuiu. Evidentemente, a polícia bloqueara o trânsito para norte da Parliament Square e para sul da Trafalgar Square. O mártir em espera pareceu não reparar. Estava a caminhar na direção do destino, a caminhar na direção da morte. Gabriel sacou a pistola Glock do fundo das costas e acelerou o ritmo da sua passada, enquanto Keller, um borrão na sua visão periférica, inspirava profundamente algumas vezes.
Diante deles, o mártir, suado e doente devido à radiação, passou despercebido por um grupo de turistas e continuou a caminhar na direção do portão de segurança de Downing Street, o seu alvo aparente. Porém, abrandou até parar quando viu os agentes de polícia fardados de preto no passeio. Subitamente, reparou na peculiar ausência de carros na rua habitualmente movimentada. Então, virando-se, viu os dois homens a caminharem na sua direção, um deles com uma arma na mão. Os olhos arregalaram-se, os braços ergueram-se e esticaram-se à largura dos ombros de ambos os lados.
Keller avançou velozmente enquanto Gabriel erguia a Glock. Esperou pelo instante em que Keller agarrou na mão esquerda do suicida antes de premir o gatilho. Os primeiros dois disparos destruíram o rosto do bombista. Os restantes foram disparados depois de o homem estar no passeio. Disparou até a arma ficar vazia. Disparou como se estivesse a tentar empurrar o homem para as profundezas subterrâneas e conduzi-lo diretamente até às portas do inferno.
Subitamente, havia polícias e técnicos de desativação de bombas a correr para eles vindos de todas as direções. Um carro parou na rua, a porta traseira abriu-se. Gabriel lançou-se para o banco de trás e para os braços de Chiara. A última coisa que viu, enquanto o carro se afastava, foi Christopher Keller a segurar o polegar de um homem morto sobre um detonador.
QUARTA PARTE
GALERIA DE MEMÓRIAS
70
LONDRES
A duração da evacuação de Westminster e da Whitehall foi muito mais curta do que aquilo que Saladino poderia ter esperado, mas, ainda assim, traumática. Durante nove longos dias, o coração palpitante da política britânica, o epicentro religioso e político de uma civilização e império outrora gloriosos, foi separado por um cordão de segurança do resto do reino e manteve-se encerrado. A zona inativa estendia-se da Trafalgar Square, a norte, até à Milbank, a sul, e a leste, para a Victoria até à New Scotland Yard. Os grandiosos ministérios repousavam vazios, tal como o Parlamento e a Abadia de Westminster. O primeiro-ministro Lancaster e a sua equipa abandonaram o número 10 de Downing Street e mudaram-se para uma casa de campo cuja localização não foi revelada. A rainha, contra os seus desejos, foi levada para o castelo de Balmoral, na Escócia. Só as equipas de CBRN estavam autorizadas a entrar na área de acesso restrito, e apenas durante períodos de tempo limitados. Deslocavam-se pelas ruas e praças desertas nos seus fatos antirradiação verde-lima, farejando o ar em busca de vestígios de radioatividade, enquanto as badaladas lúgubres do Big Ben marcavam a passagem do tempo.
A reabertura realizou-se sem celebrações. O primeiro-ministro e a esposa, Diana, esgueiraram-se para o número 10 como se estivessem a arrombar a sua própria casa, enquanto, subindo e descendo a Whitehall, funcionários públicos e secretários permanentes voltavam discretamente para as suas secretárias. Na Câmara dos Comuns, houve um minuto de silêncio; na abadia, uma cerimónia religiosa. O presidente da Câmara de Londres alegou que a cidade sairia mais forte do desastre que estivera iminente, embora não tivesse oferecido qualquer explicação para justificar tal afirmação. Na capa de um tabloide conservador podia ler-se: BEM-VINDOS À NOVA NORMALIDADE.
Era quarta-feira, o que significava que o primeiro-ministro era obrigado a comparecer diante dos Comuns ao meio-dia e a submeter-se às questões da oposição, que começaram por ser corteses, inicialmente, mas não durante muito tempo. Acima de tudo, os deputados queriam saber como é que era possível que, apenas seis meses depois do atentado devastador no West End, o ISIS tivesse conseguido contrabandear para o Reino Unido o material necessário para fabricar uma bomba suja. E como é que, dado o nível elevado de ameaça, os serviços de segurança não tinham sido capazes de identificar o terrorista antes da manhã do atentado planeado. O primeiro-ministro esteve tentado a dizer que a situação de segurança quase impossível com que a Grã-Bretanha se confrontava era o resultado de erros cometidos por uma geração de líderes; erros que tinham transformado a terra de Shakespeare, Locke, Hume e Burke no mais proeminente centro da ideologia salafista-jihadista do mundo. Mas não mordeu o isco.
— O inimigo está determinado — declarou —, mas nós também.
— E a forma como o suspeito foi neutralizado? — questionou o deputado eleito pela secção de Washwood Heath, em Birmingham, uma cidade das Midlands ocidentais britânicas com grande número de muçulmanos e que produzira inúmeros terroristas e ameaças.
— Não era um suspeito — contrapôs o primeiro-ministro. — Era um terrorista armado com uma bomba e vários gramas de cloreto de césio radioativo.
— Mas não existia realmente outra forma de resolver a situação senão uma execução a sangue frio? — insistiu o deputado.
— Não foi disso que se tratou.
A posição oficial do Governo de Sua Majestade e da New Scotland Yard era que os dois homens que tinham impedido que o terrorista detonasse a bomba suja eram membros da divisão especial de atiradores da Polícia Metropolitana, o SCO19. A Polícia Metropolitana recusou tornar os seus nomes públicos e também não acedeu ao pedido dos meios de comunicação social para divulgar as imagens da operação captadas pelas câmaras de videovigilância. De alguma forma, havia apenas um único vídeo do incidente, filmado por um turista americano que, casualmente, estava no exterior do portão de segurança de Downing Street às nove horas. Desfocado e tremido, mostrava um homem a disparar várias balas para a cabeça do terrorista, enquanto outro homem segurava no detonador que havia na sua mão esquerda. O atirador abandonou imediatamente o local nas traseiras de um carro. Enquanto acelerava para subir a Whitehall, era possível vê-lo a abraçar uma mulher no banco de trás. O seu rosto não era visível, apenas uma mancha grisalha, como um borrão de cinza, na sua têmpora esquerda.
Mas foi o seu parceiro, o que segurou no polegar do terrorista sobre o detonador durante três horas enquanto os técnicos desativavam a bomba, que recebeu a maior parte da atenção mediática. De um dia para o outro, tornou-se um herói nacional; era o homem que arriscara altruisticamente a própria vida pela rainha e pelo país. Mas histórias destas raramente sobrevivem durante muito tempo (não na era implacável das atualizações constantes e das redes sociais) e rapidamente surgiram inúmeros artigos que punham em causa a sua identidade e origem. O Independent alegava que era um antigo membro do Serviço Aéreo Especial que servira de forma notável na Irlanda do Norte e na primeira Guerra do Iraque. Contudo, o Guardian contribuiu para a discussão com uma alegação duvidosa de que se tratava, na verdade, de um agente do MI6. Tinham-se esbatido os limites, dizia o jornal, ou talvez até atravessado. Graham Seymour tomou a decisão invulgar de emitir um comunicado oficial a negá-lo. Agentes dos serviços secretos britânicos, disse ele, não se envolviam em atividades policiais e poucos se davam ao trabalho de transportar armas de fogo.
— A alegação — declarou — é absolutamente ridícula.
No meio da troca de acusações, quase passou despercebido o facto de Saladino, o autor de um rasto transatlântico de sangue e edifícios destroçados, ter deixado de existir. Inicialmente, a sua legião de seguidores, incluindo alguns que caminhavam abertamente pelas ruas de Londres, recusaram-se a acreditar que tinha realmente morrido. Certamente, alegaram, tratava-se simplesmente de propaganda negra americana destinada a debilitar a influência do ISIS sobre uma geração de jovens radicais islâmicos. A fotografia do rosto cirurgicamente retocado e sem vida de Saladino não ajudou, pois ostentava reduzida semelhança com o original. Porém, quando o ISIS confirmou o seu falecimento num dos seus principais canais das redes sociais, até os seus apoiantes mais fervorosos pareceram aceitar o facto de que estava verdadeiramente morto. Os seus tenentes mais próximos não tiveram tempo para fazer o luto; estavam demasiado ocupados a tentar escapar de bombas e mísseis americanos. Londres foi a última gota. A batalha final (a que o ISIS esperava que conduzisse ao regresso do Mahdi e ao início da contagem decrescente para o final dos dias) começara.
Mas quais eram as circunstâncias exatas da morte de Saladino no recinto das montanhas do Médio Atlas, em Marrocos? A Casa Branca (e o próprio presidente) deram várias versões contraditórias da história. A complicar ainda mais a questão, surgiu, num site independente de notícias marroquino, uma notícia relacionada com três Toyota Land Cruisers encontrados na região sudeste do país, num local que não distava muito do mar de areia de Erg Chebbi. Um dos jipes parecia ter colidido com algo, mas os outros dois estavam carbonizados. O site alegava que tinham sido destruídos por um drone americano Predator, uma alegação apoiada por uma fotografia de fragmentos de um míssil Hellfire que acompanhava o artigo. A Casa Branca negou a informação da forma mais veemente possível. O governo de Marrocos fez o mesmo. Depois, por precaução, mandou encerrar o site que publicara as fotografias e enfiou o seu editor na prisão.
A alegação de um ataque com drones americano em solo marroquino incendiou protestos por todo o país, especialmente nos bidonvilles, onde os recrutadores do ISIS exerciam o seu ofício letal. A agitação quase ofuscou o brutal assassinato de Mohammad Bakkar, o maior produtor de haxixe de Marrocos e autoproclamado rei das montanhas do Rife. A condição deplorável do corpo, disseram os gendarmes, sugeria que Bakkar fora alvo de uma vingança relacionada com o narcotráfico. Mais difícil de explicar era o facto de Jean-Luc Martel, o extremamente bem-sucedido hoteleiro e empresário da restauração francês, ter sido encontrado morto a alguns centímetros de distância, com dois orifícios de bala no rosto. Os marroquinos não estavam muito interessados em tentar determinar como é que Martel tivera aquele destino ou porquê; queriam apenas desembaraçar-se do assunto tão depressa quanto possível. Entregaram o corpo à embaixada francesa, assinaram a papelada necessária e disseram um afetuoso adieu a JLM.
Todavia, em França, o violento fim de Jean-Luc Martel deu origem a uma investigação séria, tanto por parte da imprensa, como das autoridades, e a um profundo exame de consciência. As circunstâncias que rodeavam a morte sugeriam que os rumores sobre ele eram, afinal, verdadeiros, que não se tratava de um empresário com um toque de Midas, mas sim de um traficante de droga disfarçado. Enquanto os pormenores chegavam às páginas do Le Monde e Le Figaro, carreiras políticas outrora promissoras desmoronavam-se. O presidente francês foi obrigado a emitir um comunicado de arrependimento em relação à sua amizade com Martel, tal como o ministro do Interior e metade dos membros da Assembleia Nacional. Como habitualmente, a imprensa francesa abordou o assunto filosoficamente. Jean-Luc Martel era visto como uma metáfora para todos os problemas que afligiam a França moderna. Os seus pecados eram os pecados da França. Ele era a prova de que algo, algures, estava errado na Quinta República.
Pouco tempo depois, seguiram-se detenções, desde a sede da JLM Enterprises em Genebra até às ruas de Marselha. Os seus hotéis foram fechados a sete chaves, os restaurantes e estabelecimentos comerciais encerrados, as propriedade e contas bancárias expropriadas e embargadas. Na verdade, a única coisa que o Estado francês não reclamou foi o seu corpo, que definhou durante vários dias na morgue de Paris até que um familiar distante da sua aldeia na Provença finalmente o reclamou para realizar o funeral. Poucas pessoas compareceram nas cerimónias fúnebres. Particularmente notória foi a ausência de Olivia Watson, a bonita ex-modelo que fora companheira e parceira empresarial de Martel. Todos os esforços para localizar a senhora Watson por parte das autoridades francesas e dos meios de comunicação social revelaram-se infrutíferos. A sua galeria em Saint-Tropez permanecia fechada, com a montra com vista para a Place de l’Ormeau esvaziada de quadros. O mesmo sucedia com a sua boutique na Rue Gambetta. A villa que partilhara com Martel estava, aparentemente, deserta. Curiosamente, o mesmo acontecia com o extravagante palácio no lado oposto da baía.
Mas, existiria uma relação entre a morte de Jean-Luc Martel e o assassinato do cérebro operacional do terrorismo do ISIS conhecido como Saladino? Outra relação para além da semelhança de hora e lugar? Até mesmo os jornalistas mais conspiradores pensavam que isso era improvável. Ainda assim, havia suficientes elos ténues a merecerem uma observação mais atenta, e eles fizeram-na: do West End de Londres ao sétimo arrondissement de Paris, de uma galeria vazia em Saint-Tropez a um troço de passeio encharcado de sangue junto da entrada para Downing Street. Os jornalistas especializados em temas de segurança e espionagem pensavam que conseguiriam identificar um padrão. Havia fumo, diziam. E, onde havia fumo, normalmente havia o príncipe do fogo.
Com o passar do tempo, até mesmo as mentiras mais cuidadosamente tecidas acabam por se desfiar. Basta que exista uma ponta solta. Ou um homem que se sinta compelido, por motivos relacionados com a sua honra, ou talvez por um sentido de dívida, a fazer a verdade emergir. Não toda, evidentemente, pois tal não seria seguro. Apenas uma pequena parte, o suficiente para manter uma promessa. Deu a história a Samantha Cooke, do Telegraph de Londres, que conseguiu tê-la pronta a tempo de sair na edição de domingo. Numa questão de horas, incendiou as quatro capitais distantes. Os americanos ridicularizaram o relato como sendo pura fantasia, e as avaliações de britânicos e franceses foram apenas ligeiramente menos cáusticas. Só os israelitas recusaram fazer comentários, mas, afinal, era esse o seu procedimento habitual no que tocava a operações de espionagem. Tinham aprendido da pior forma que era melhor não dizer absolutamente nada do que emitir um comunicado com uma negação na qual ninguém acreditaria, fosse como fosse. Nesse caso, pelo menos, a sua reputação era merecida.
O agente que estava no centro da notícia foi visto na reunião semanal do turbulento conselho do primeiro-ministro e, mais tarde, nessa mesma noite, com a esposa e os dois filhos no restaurante Focaccia, na Rabbi Akiva Street, em Jerusalém. Quanto ao paradeiro de Olivia Watson, ex-modelo, proprietária de uma galeria e não-exatamente esposa do desacreditado Jean-Luc Martel, permanecia um mistério. Um proeminente jornalista francês especializado em crimes questionava-se sobre se estaria morta. E, embora o jornalista não pudesse sabê-lo, Olivia questionava-se exatamente sobre a mesma coisa.
71
WORMWOOD COTTAGE, DARTMOOR
Trancaram-na na Wormwood Cottage, apenas com a senhora Coventry, a governanta, como companhia, e dois guarda-costas para a vigiar. E, obviamente, o velho Parish, o guarda permanente, mas Parish mantinha-se à distância. Cuidara de todo o tipo de pessoas ao longo dos muitos anos em que trabalhara naquele local (desertores, traidores, espiões cujo disfarce fora exposto, até mesmo o estranho israelita), mas havia algo na recém-chegada que o irritava. Como era habitual, por motivos de segurança, Vauxhall Cross mantivera em segredo o nome da hóspede. Contudo, Parish sabia exatamente quem ela era. Era difícil não saber; o rosto inundava as páginas de todos os jornais do país. O corpo também, mas apenas nos tabloides mais atrevidos. Era a rapariga bonita de Norfolk que tinha ido para a América triunfar como modelo. Estivera envolvida com pilotos de fórmula um, estrelas de rock e atores e aquele horrível traficante de droga do sul de França. Era aquela que a polícia francesa supostamente procurava por todo o lado. Era a rapariga de JLM.
Tinha um aspeto pavoroso na noite em que chegou e assim permaneceu durante muito tempo. O seu longo cabelo louro pendia flácido e, nos olhos azuis nórdicos, havia uma expressão perturbada que dizia a Parish que vira algo que não deveria ter visto. Embora já fosse magra como um palito, perdeu peso. A senhora Coventry tentou cozinhar para ela (verdadeira comida inglesa), mas ela torcia o nariz aos menus. A maior parte do tempo, ficava sentada no seu quarto do primeiro andar, a fumar cigarro após cigarro e a fitar a charneca desolada. A primeira coisa que a senhora Coventry fazia, todas as manhãs, era colocar-lhe uma pilha de jornais à porta. Invariavelmente, quando recolhia os jornais ao final do dia, várias páginas tinham sido arrancadas. E, no dia em que o seu rosto apareceu no Sun debaixo de um título profundamente ofensivo, todo o jornal foi rasgado em pedaços. Apenas uma fotografia sobreviveu. Fora tirada há muitos anos, antes da queda. Escritas na sua testa, a vermelho-sangue, estavam as palavras A Rapariga de JLM.
— É bem feito, quem é que a mandou meter-se com um traficante de droga? — disse Parish em tom crítico. — E, ainda por cima, um traficante franciú.
Não tinha mais roupa para além da que cobria a sua elegante figura, portanto a senhora Coventry ofereceu-se para ir até à M&S escolher alguns artigos que a ajudassem a ultrapassar a escassez temporária. Não era aquilo a que estava acostumada, evidentemente (afinal de contas, tinha a sua própria linha de vestuário), mas era melhor do que nada. Muito melhor, como veio a revelar-se. De facto, tudo o que a senhora Coventry selecionou parecia ter sido desenhado e customizado para favorecer o seu corpo longo e esbelto.
— O que eu não daria para ter um corpo daqueles, nem que fosse durante cinco minutos.
— Mas vê lá no que isso deu — murmurou Parish.
— Sim, vê lá.
No final da primeira semana, as paredes pareciam estar a começar a sufocá-la. Aceitando a sugestão da senhora Coventry, saiu para uma curta caminhada pela charneca, acompanhada por dois guarda-costas que pareciam muito mais felizes do que o normal. Depois disso, apanhou um pouco de sol no jardim. Mais uma vez, não era aquilo a que estava acostumada, já que o sol de Dartmoor era bastante diferente do de Saint-Tropez, mas fez maravilhas pela sua aparência. Nessa noite, comeu a maior parte da maravilhosa empada de galinha que a senhora Coventry colocou diante dela e, depois, passou várias horas na sala de estar a ver as notícias na televisão. Foi na noite em que a CNN exibiu o vídeo gravado pelo telemóvel de um turista americano à entrada de Downing Street. Quando surgiu no ecrã um plano aproximado e desfocado do agente que segurara no polegar do terrorista sobre o detonador, pôs-se de pé, subitamente.
— Meu Deus, é ele!
— Quem? — perguntou a senhora Coventry.
— O homem que conheci em França. Dizia que se chamava Nicolas Carnot. Mas não é agente da polícia. É...
— Não falamos dessas coisas — disse a senhora Coventry, interrompendo-a. — Nem mesmo nesta casa.
Os belos olhos azuis de Olivia moveram-se do ecrã da televisão para o rosto da senhora Coventry.
— Também o conhece? — perguntou.
— O homem do vídeo? Oh, céus, não. Como é que poderia conhecê-lo? Sou só a cozinheira.
No dia seguinte, caminhou um pouco mais e, ao regressar à Wormwood Cottage, pediu para falar com alguém com autoridade sobre o estado do seu caso. Houve promessas que se fizeram, insistiu ela. Houve garantias que foram dadas. Insinuou que tinham vindo do próprio «C», uma alegação que Parish não considerou credível. Como se o próprio «C» alguma vez se fosse preocupar com pessoas da laia dela! Contudo, a senhora Coventry não rejeitou completamente a ideia. Tal como Parish, testemunhara muitos acontecimentos peculiares naquela casa de campo, como a noite em que um espião israelita bastante célebre recebera uma cópia de um jornal que o declarava morto. Um espião israelita que, agora que pensava nisso, tinha mais do que uma mera semelhança ténue com o homem que disparara várias balas para a cabeça de um terrorista no passeio da Whitehall. Não, pensou a senhora Coventry, não era possível.
Mas até mesmo a senhora Coventry, que ocupava o nível mais baixo na hierarquia dos serviços secretos ocidentais, sabia que era possível. E, por conseguinte, não ficou nada surpreendida por encontrar, na capa da edição de domingo do jornal Telegraph, uma longa reportagem sobre a operação que conduzira ao assassinato do cérebro operacional do terrorismo do ISIS conhecido como Saladino. Aparentemente, Jean-Luc Martel, o narcotraficante francês agora falecido e ex-companheiro da atual residente da Wormwood Cottage, tinha, afinal, relação com o caso. De facto, na opinião do Telegraph, era o herói desconhecido da operação.
A senhora Coventry colocou o jornal à porta do quarto da mulher, juntamente com o seu café. E, mais tarde nessa manhã, enquanto arrumava o quarto, encontrou o artigo, intacto e impecavelmente recortado, pousado na mesa de cabeceira. Nessa noite, enquanto um vendaval soprava intensamente em Dartmoor, um homem trepou o portão de segurança, sem produzir um som, e subiu o caminho de gravilha até à porta de entrada da casa de campo. Ao entrar, limpou os pés e pendurou o casaco encharcado no cabide.
— O que é o jantar? — perguntou.
— Empadão de carne picada — disse a senhora Coventry, a sorrir. — Uma bela chávena de chá, senhor Marlowe? Ou prefere uma coisa mais forte?
A senhora Coventry serviu-lhes o jantar na mesinha do recanto aconchegado e, depois, vestiu a capa da chuva e apertou um lenço sob o queixo.
— O senhor trata dos pratos, não trata, senhor Marlowe? E, por favor, desta vez use detergente, meu querido. Ajuda. — Pouco tempo depois, a porta da frente fechou-se com um som suave e ficaram, finalmente, sozinhos. Olivia sorriu pela primeira vez em muitos dias.
— Senhor Marlowe? — perguntou incredulamente.
— Afeiçoei-me bastante ao nome.
— Qual é o teu primeiro nome?
— Peter, aparentemente.
— Não é o nome com que nasceste?
Ele abanou a cabeça.
— E o Nicolas Carnot? — perguntou ela.
— Foi só um papel que desempenhei brevemente, com aclamação moderada.
— Desempenhaste-o bem. Muito bem, na verdade.
— Presumo que tenhas conhecido outros como ele.
— O Jean-Luc parecia atraí-los como moscas. — Estudou Keller cuidadosamente. — Então, como é que fizeste? Como é que conseguiste desempenhar o papel tão bem?
— São os detalhes que contam. — Encolheu os ombros. — Cabelo, guarda-roupa, esse tipo de coisas.
— Ou talvez fosse um papel que já tinhas desempenhado antes — sugeriu Olivia. — Talvez te tenhas limitado a repeti-lo.
— O teu jantar está a arrefecer — disse Keller sem se perturbar.
— Nunca gostei de empadão de carne picada. Lembra-me de casa — disse, franzindo o sobrolho. — De noites frias e chuvosas como esta.
— Não são assim tão más.
Olivia deu uma dentada exploratória na comida.
— Então? — perguntou Keller.
— Não é como comer no sul de França, mas suponho que terá de servir.
— Talvez isto ajude. — Keller serviu-lhe um copo de Bordéus.
Ele ergueu-o até aos lábios.
— É, definitivamente, uma coisa inusitada.
— O quê?
— Jantar com o homem que matou o meu...
Hesitou. Nem mesmo ela parecia saber como referir-se a Jean-Luc Martel.
— No início, enganaste-o. Mas, assim que lhe disseste que eras inglês, não demorou muito tempo a perceber quem realmente eras. Disse que eras um antigo agente do SAS que tinha passado vários anos escondido na Córsega. Disse que eras um...
— Já chega — interrompeu Keller.
— Ainda bem que esclarecemos isso. — Após um silêncio, Olivia disse: — Não somos assim tão diferentes, tu e eu.
— És muito mais virtuosa do que eu.
Ela sorriu.
— Nunca me julgaste?
— Nunca.
— E o teu amigo israelita?
— Pessoas com telhados de vidro.
— Vi-o naquele vídeo — disse Olivia. — A ti também. Foi ele que matou o terrorista que tinha a bomba suja. E foste tu que seguraste no detonador. Durante três horas — acrescentou suavemente. — Deve ter sido horrível.
Keller não disse nada.
— Não negas nada?
— Não.
— Porque não?
Porque não, de facto?, pensou ele. Observou a chuva que embatia contra as janelas do pequeno recanto aconchegante.
Olivia bebeu um pouco de vinho.
— Tiveste oportunidade de ler os jornais hoje?
— Não achaste incrível aquela notícia sobre a Victoria Beckham no Mail?
— Então e aquela no Telegraph sobre o assassinato do Saladino? Aquela sobre a forma como o Jean-Luc Martel ajudou os serviços secretos britânicos e israelitas a infiltrarem-se na rede do Saladino e a descobrirem a sua localização em Marrocos.
— Uma leitura interessante — disse Keller. — E verdadeira, para variar.
— Nem tudo.
— Jornalistas... — disse Keller, desdenhosamente.
— Suponho que o teu amigo israelita tenha sido o responsável.
— Normalmente, é.
— Porque é que ele fez isso? Por que motivo decidiu reabilitar a imagem do Jean-Luc depois da forma como ele agiu no campo do Saara?
— Talvez não tenhas lido o resto do artigo — disse Keller. — A parte que referia que a bonita namorada britânica do Jean-Luc não sabia como é que ele, na verdade, ganhava o seu dinheiro. A parte que referia que as autoridades britânicas não tinham qualquer interesse em investigá-la, à luz do papel de Jean-Luc na eliminação do terrorista mais perigoso do mundo.
— De facto, li essa parte — disse ela.
— Então, certamente, tens consciência de que não fez aquilo pelo Jean-Luc, fê-lo por ti. Estás limpa, agora, Olivia. — Keller fez uma pausa, depois acrescentou: — Estás restaurada.
— Como tu?
— Muito melhor, na verdade. Tens o teu inventário profissional de quadros completo, mais os cinquenta milhões que te demos pelo Basquiat e pelo Guston. Já para não falar nos trocos que encontrámos debaixo das almofadas do sofá da galeria. Só o edifício vale, no mínimo, oito milhões. Escusado será dizer — disse Keller — que és uma mulher muito rica.
— Com má reputação.
— O Telegraph não parece pensar assim. E o resto do mundo artístico londrino também não o fará. Para além disso, não passam de uma cambada de ladrões. Vais integrar-te perfeitamente.
— Uma galeria?
— Foi essa a promessa que o meu amigo te fez naquela tarde na villa de Ramatuelle — disse Keller. — Uma tela em branco na qual podes pintar a imagem que quiseres. Uma vida sem o Jean-Luc Martel.
— Sem ninguém — disse ela.
— Algo me diz que não te faltarão pretendentes.
— Quem é que vai querer alguém como eu? Sou a rapariga do...
— Come — disse Keller, interrompendo-a.
Ela provou outro pedaço de empadão.
— Quanto tempo tenho de ficar aqui?
— Até que os Serviços Secretos de Sua Majestade determinem que é seguro partires. Mesmo quando isso acontecer, talvez seja sensato contratares os serviços de uma empresa profissional de segurança. Vão selecionar uns belos rapazes que tenham servido no SAS para tomar conta de ti, do género que o Jean-Luc sempre odiou.
— Há alguma hipótese de fazeres parte do meu destacamento de segurança?
— Receio que tenha outros compromissos.
— Então nunca mais vou voltar a ver-te?
— Provavelmente é melhor que seja assim. Vai ajudar-te a esquecer as coisas que viste naquela noite em Marrocos.
— Não quero esquecer. Pelo menos, ainda não. — Afastou o prato e acendeu um cigarro. — Como é que te chamas? — perguntou.
— Marlowe. — E depois, quase como se se tratasse de uma reflexão tardia, Keller acrescentou: — Peter Marlowe.
— Soa a um nome que alguém inventou.
— Alguém o fez.
— Diz-me o teu nome verdadeiro, Peter Marlowe. O nome com que nasceste.
— Não estou autorizado a fazê-lo.
Ela esticou o braço para o outro lado da mesa e colocou a mão sobre a de Keller. Suavemente, perguntou:
— E estás autorizado a ficar aqui para não teres de ficar sozinho nesta noite inglesa fria e melancólica?
Keller desviou o olhar dos olhos azuis de Olivia e observou a chuva a fustigar as janelas.
— Não — disse ele. — Não tenho essa sorte.
72
KING STREET, LONDRES
Não tinha planos para uma inauguração faustosa, mas, de alguma forma, com o auxílio de uma mão oculta, ou talvez por magia, os planos materializaram-se. De facto, assim que o sol se pôs no segundo sábado de novembro, uma enxurrada de pessoas do mundo artístico, com toda a bagagem que trazia a tiracolo, atravessou a sua porta. Havia negociantes e colecionadores e curadores e críticos. Havia atores e realizadores de cinema, encenadores de teatro, romancistas, dramaturgos, poetas, políticos, estrelas da pop, um marquês que parecia ter acabado de sair do seu iate e mais modelos do que era possível enumerar. Oliver Dimbleby entregava o seu cartão-de-visita dourado a qualquer pobre rapariga que, casualmente, se demorasse mais do que um ou dois segundos ao alcance da sua mão húmida. Jeremy Crabbe, o último marido fiel de Londres, parecia ter ficado sem fala. Só Julian Isherwood conseguiu manter a compostura. Posicionou-se numa extremidade do balcão do bar, junto de Amelia March, da ARTnews. Amelia estava a fitar com ar reprovador Olivia Watson, que posava para os fotógrafos diante do seu Pollock, vigiada por dois guarda-costas.
— No final, correu-lhe tudo bastante bem, não achas?
— Como assim? — perguntou Isherwood.
— Envolve-se com o maior traficante de droga de França, faz milhões a gerir uma galeria suja em Saint-Tropez e, agora, instala-se em St. James, rodeada por ti e pelo Oliver e pelos restantes fósseis dos Grandes Mestres.
— E nós estaremos para sempre gratos que ela tenha feito isso — disse Isherwood, enquanto observava uma rapariga que passava, ligeira como uma gazela, junto do seu ombro.
— Não achaste nada disto estranho?
— Ao contrário de ti, fofa, adoro finais felizes.
— Eu gosto dos que têm uma pitada de verdade, e há qualquer coisa nisto que não bate certo. Aviso-te de que tenciono chegar ao fundo desta história.
— Bebe antes mais um copo. Ou, melhor ainda — disse Isherwood —, vem jantar comigo.
— Oh, Julian. — Apontou para o mar de cabeças, na direção do homem alto e pálido que se encontrava a poucos centímetros de Olivia. — Está ali o teu antigo cliente, o Dmitri Antonov.
— Ah, pois é.
— Aquela é a mulher?
— A Sophie — disse Isherwood, fazendo um gesto afirmativo com a cabeça. — Uma mulher encantadora.
— Não é o que dizem por aí. E quem é aquele ao lado dela? — perguntou. — Aquele homem atraente que parece outro guarda-costas.
— Chama-se Peter Marlowe.
— O que é que ele faz?
— Não saberia dizer-te.
Às oito e meia, Olivia pegou num microfone e disse algumas palavras. Estava satisfeita por fazer novamente parte do grandioso mundo artístico londrino, estava feliz por ter regressado a casa. Não fez qualquer menção a Jean-Luc Martel, o herói desconhecido da caça ao cérebro operacional do terrorismo do ISIS conhecido como Saladino, e nenhum dos jornalistas presentes, incluindo Amelia March, se deu ao trabalho de a questionar sobre JLM. Estava finalmente livre. Podia perfeitamente ter essa informação tatuada na testa.
Às nove em ponto, a intensidade das luzes diminuiu e a música começou, e outra vaga de convidados apertou-se para atravessar a porta. Muitos eram sobreviventes veteranos das farras na Villa Soleil. Milionários que tinham todo o tempo do mundo e cuja única preocupação era relacionar-se com os seus pares. Os Antonovs apertaram algumas das mãos mais exclusivas antes de se esgueirarem para as traseiras da sua limusina Maybach, para nunca mais serem vistos. Keller saiu pouco tempo depois, mas sem antes puxar Olivia para um local mais recatado para a felicitar e desejar-lhe uma boa noite. Nunca lhe tinha parecido mais bonita do que naquele momento.
— Gostas? — perguntou ela, radiante.
— Da galeria?
— Não. Da imagem que pintei na tela branca que o teu amigo me deu. — Puxou-o para junto de si. — Quero ver-te — sussurrou-lhe ao ouvido. — Prometo que posso tornar tudo melhor do que quer que tenha acontecido na tua vida anterior.
No exterior, estava a começar a chover. Keller apanhou um táxi na Pall Mall e dirigiu-se para o seu duplex na Queen’s Gate Terrace. Depois de pagar ao taxista, ficou de pé no passeio durante muito tempo e examinou minuciosamente as persianas das suas inúmeras janelas. Os seus instintos diziam-lhe que estava na presença de perigo. Virando-se, rastejou silenciosamente pelas escadas que conduziam à entrada do andar de baixo e sacou a Walther PPK do fundo das costas antes de destrancar a porta. Entrou na própria casa num turbilhão rodopiante, como entrara no quarto do canto sudeste daquela casa em Zaida, e apontou a arma ao homem sentado calmamente no balcão da cozinha.
— Filho da mãe — disse, baixando a arma. — Esta foi por pouco.
— Tens mesmo de parar de fazer isto.
— Aparecer sem avisar?
— Arrombar-me a casa. O que é que os vizinhos chiques do senhor Marlowe, em Kensington, pensariam se ouvissem disparos? — Keller atirou o seu sobretudo Crombie para a ilha com cobertura de mármore, onde Gabriel, iluminado pelas discretas lâmpadas embutidas, estava sentado num banco alto. — Não conseguiste encontrar nada para beber no meu frigorífico?
— Não me importava de beber um chá, obrigado.
Keller franziu o sobrolho e encheu a chaleira elétrica com água.
— O que é que te traz por cá?
— Uma reunião em Vauxhall Cross.
— Porque é que não fui convidado?
— Era altamente confidencial.
— Qual era o tema?
— Que parte de «altamente confidencial» é que não percebeste?
— Queres chá ou não queres?
— A reunião tinha a ver com certas atividades suspeitas relacionadas com o programa nuclear iraniano.
— Imaginem só.
— Custa a acreditar, eu sei.
— E a natureza dessas atividades?
— O Departamento é da opinião de que os iranianos estão a realizar investigação de armamento na Coreia do Norte. Os serviços secretos britânicos concordam. E é lógico que assim seja — acrescentou Gabriel. — Temos o mesmo informador.
— Quem é?
— Algo me diz que em breve saberás.
Keller abriu um dos armários.
— Darjeeling ou Prince of Wales?
— Não tens Earl Grey?
— Darjeeling, então. — Keller deixou cair uma saqueta de chá numa caneca e esperou que a água fervesse. — Perdeste uma festa e tanto, esta noite.
— Ouvi dizer.
— Não conseguiste arranjar tempo na tua agenda ocupadíssima?
— Achei que não seria muito sensato mostrar a minha cara numa parte de Londres onde ela é bastante conhecida. Para além disso, esforcei-me muito por tornar a Olivia novamente respeitável. Não queria estragar o meu trabalho.
— Removeste o verniz sujo — disse Keller. — Retocaste a pintura.
— Por assim dizer.
— O artigo no Telegraph foi um belo trabalho da tua parte. Com uma evidente exceção — acrescentou Keller.
— Qual?
— O retrato heroico de Jean-Luc Martel.
— Era inevitável.
— Estás a esquecer-te de que encostou uma arma à cabeça da Olivia?
— Eu vi tudo.
— Da fila de trás.
Keller colocou a caneca de chá na ilha. Gabriel não lhe tocou.
— Obviamente — disse, passado um momento —, os teus sentimentos pela Olivia estão a toldar-te o discernimento.
— Não tenho sentimentos por ela.
— Poupe-me, senhor Marlowe. Acontece que sei que te tornaste visitante assíduo da Wormwood Cottage enquanto a Olivia esteve lá.
— Foi o Graham que te disse isso?
— Na verdade, foi a senhora Coventry. Para além disso — prosseguiu Gabriel —, tive conhecimento de que tu e a Olivia partilharam um momento íntimo esta noite, na inauguração da galeria.
— Não foi íntimo.
— Queres ver a fotografia?
Sem dizer uma palavra, Keller serviu dois dedos de uísque num copo baixo de vidro ornamentado. Gabriel soprou o seu chá.
— Não tenho sido um bom amigo para ti, apesar das circunstâncias infelizes do início da nossa relação? Não te dei bons conselhos? Afinal de contas, se não fosse eu, ainda serias...
— Onde é que queres chegar? — interrompeu Keller.
— Não cometas o mesmo erro que eu cometi — disse Gabriel. — A Olivia sabe mais sobre ti do que qualquer outra mulher no mundo, exceto aquela vidente louca da Córsega, e essa é demasiado velha para ti. Para além disso, Vauxhall Cross já vasculhou toda a roupa suja dela, o que significa que os serviços secretos britânicos não vão colocar impedimentos à vossa relação. Vocês foram feitos um para o outro, Christopher. Agarra-te a ela e nunca mais a largues.
— O passado dela é...
— Nada, comparado com o teu — disse Gabriel. — E vê como te tornaste num homem decente.
Keller esticou a mão.
— O que foi? — perguntou Gabriel.
— Deixa-me vê-la.
Gabriel entregou-lhe o seu telemóvel por cima da bancada da cozinha.
— Os pombinhos — disse ele.
Keller olhou para a fotografia. Fora tirada a partir do outro lado da sala, enquanto Olivia estava a sussurrar-lhe ao ouvido.
Prometo que posso tornar tudo melhor do que quer que tenha acontecido na tua vida anterior.
— Quem é que a tirou?
— O Julian — disse Gabriel. — O verdadeiro herói da operação.
— Não te esqueças dos Antonovs — disse Keller.
— Como é que poderia esquecer-me?
— Marcaram presença de forma breve esta noite, já agora. Pareciam felizes, para variar.
— Não me digas.
— Achas que vão conseguir manter-se juntos?
— Sim — disse Gabriel. — Acho que talvez consigam.
73
AVENIDA REI SAUL, TELAVIVE
Assim sendo, restava apenas uma ponta solta. Não uma, na verdade, mas várias centenas de milhões. Já para não falar de uma casa assombrada no coração da parte antiga de Casablanca, uma villa sumptuosa na Côte d’Azur francesa e uma coleção de quadros adquirida sob o olhar profissional de Julian Isherwood. O património imobiliário foi vendido discretamente e com um prejuízo substancial, com mobiliário, funcionários permanentes e jinns incluídos. Os quadros, como prometido, encontraram o caminho até Jerusalém e até às paredes do Museu de Israel. O diretor queria chamar-lhe Coleção Dmitri e Sophie Antonov, mas Gabriel insistiu que a doação permanecesse anónima.
— Mas porquê?
— Porque o Dmitri e a Sophie na realidade não existem.
Mas a caridade dos Antonovs não se ficou por aí, já que tinham à sua disposição uma vasta soma de dinheiro que tinha de ir para algum lado. Dinheiro que tinham pedido emprestado, sem juros, ao Carniceiro de Damasco. Dinheiro que o Carniceiro pilhara ao seu povo, antes de o atacar com bombas e gás e de o dispersar por campos de refugiados na Turquia, na Jordânia e no Líbano. Os Antonovs, através dos seus representantes, doaram incontáveis milhões para alimentar, vestir, alojar e atender as necessidades médicas dos desterrados. Também ofereceram milhões para construir escolas nos territórios palestinianos (escolas que não ensinavam as crianças unicamente a odiar) e a uma instituição no Deserto do Neguev que cuidava de crianças gravemente incapacitadas, fossem elas árabes ou judias. O Centro Médico Hadassah recebeu vinte milhões de dólares para ajudar a construir uma nova ala subterrânea de salas cirúrgicas. Outros dez milhões foram para a Academia de Arte e Desenho de Bezalel, destinados à construção de um novo estúdio e à criação de um programa de bolsas para artistas israelitas promissores provenientes de famílias com baixos rendimentos.
Contudo, a maior parte da fortuna dos Antonovs, seria depositada no Banco de Israel, numa conta controlada pela agência governamental cuja sede se encontrava num edifício de escritórios anónimo na Avenida Rei Saul. A quantia era suficientemente avultada para fazer face a todos os pequenos extras da vida: assassinatos, informadores pagos, desertores, casas seguras, despesas de viagem, até mesmo uma festa de noivado. Mikhail assinou o último documento no escritório de Gabriel. Ao fazê-lo, enterrou formalmente Dmitri Antonov.
— Vou ter saudades dele. Não era mau de todo, sabes.
— Para um traficante de armas russo — disse Gabriel. — Trouxeste o anel?
Mikhail entregou-lhe a caixinha forrada de veludo. Gabriel abriu a caixa com o polegar e franziu o sobrolho.
— O que é que se passa?
— Há uma pedra aqui dentro, algures?
— De um quilate e meio — protestou Mikhail.
— Não é tão bonito como o que ela usava em Saint-Tropez.
— É verdade, mas eu não tenho o dinheiro do Dmitri.
Não, pensou Gabriel enquanto fazia deslizar a papelada para o interior da sua pasta. Agora, já não.
Chiara e as crianças estavam à espera em baixo, na garagem, no banco de trás do jipe blindado de Gabriel. Enquanto seguiam para leste através da Galileia, foram seguidos por um segundo jipe que transportava Uzi e Bella Navot e por uma caravana de carros com mais de duzentos membros da equipa operacional e analítica do Departamento. Tinha escurecido quando finalmente chegaram a Tiberíades, mas a villa de Shamron, encavalitada sobre a escarpa com vista para o lago e para o antigo campo de batalha, irradiava uma luz intensa. Mikhail e Natalie foram os últimos a chegar. O anel cintilava na mão esquerda de Natalie. Os seus olhos também cintilavam.
— É muito mais bonito do que o da Sophie, não achas?
— Oh, sim — disse Gabriel apressadamente. — Muito mais.
— Tiveste alguma coisa a ver com isto?
— Só pelo facto de te ter oferecido um trabalho que nenhuma mulher no seu perfeito juízo teria aceitado.
— E, agora, sou uma de vós — disse ela, erguendo o anel. — Até que a morte nos separe.
Faltou ao evento a devassidão das célebres festas dos Antonovs na Villa Soleil, e todos os presentes ficaram gratos por isso. Verdade seja dita, nenhum deles tinha, verdadeiramente, o hábito de beber. Ao contrário dos aliados britânicos, não utilizavam o consumo de elevadas quantidades de álcool como parte dos rudimentos do ofício. Para além disso, no dia seguinte havia escola, como gostavam de dizer, e a maioria estaria de volta à sua secretária de manhã, exceto Mikhail, que partiria ao romper da aurora para uma operação em Budapeste. A doutrina do Departamento ditava que passasse a noite num andar franco em Telavive. Gabriel e Yaakov Rossman, que iriam com ele, tinham-lhe concedido um indulto.
Ainda assim, houve música e gargalhadas e mais comida do que alguma vez conseguiriam ingerir. Todavia, Saladino não esteve longe dos seus pensamentos. Falaram dele com respeito e, mesmo na morte, com uma pitada de mau presságio. A previsão sombria de Dina Sarid sobre o futuro (um futuro de ciberjihadismo interminável) estava a concretizar-se diante dos seus olhos. O califado do ISIS estava a desvanecer-se. Demasiado lentamente, era verdade, mas estava, não obstante, a morrer. Mas isso não significava que o fim do ISIS estivesse próximo. Muito provavelmente, tornar-se-ia simplesmente noutro grupo terrorista salafista-jihadista, primeiro entre iguais, com seguidores em todo o mundo dispostos a pegar numa faca, numa bomba ou num automóvel em nome do ódio. Saladino era o seu santo padroeiro. E, graças à notícia do Telegraph, a notícia que Gabriel filtrara, Israel e os judeus da diáspora eram os alvos principais.
— Foi — entoou Shamron — um erro crasso da tua parte.
— Não foi o primeiro — respondeu Gabriel. — E tenho a certeza de que não vai ser o último.
— Espero que ela tenha sido merecedora disso.
— A Olivia Watson? Foi.
Shamron não pareceu ficar convencido.
— Talvez a tenhas utilizado meramente como desculpa para justificar as tuas revelações irresponsáveis àquela jornalista britânica tua amiga.
— Porque é que eu faria uma coisa dessas?
— Talvez quisesses que os seguidores do Saladino soubessem que quem o matou foste tu. Talvez — disse Shamron — quisesses deixar a tua assinatura.
Tinham-se retirado da festa e encontravam-se no local favorito de Shamron no terraço. O lago brilhava em tons de prata sob o luar, os céus sobre os Montes Golã cintilavam com o amarelo e branco da artilharia americana. Estavam a atingir alvos em toda a Síria.
Com o seu velho isqueiro Zippo, Shamron acendeu um cigarro.
— Será que sabem o que estão a fazer?
— Os americanos?
Shamron assentiu lentamente com a cabeça.
— Veremos — disse Gabriel.
— Não pareces muito esperançoso.
— Nunca gostei muito dessa palavra.
— Otimista — sugeriu Shamron.
— Não há grandes motivos para estar — disse Gabriel. — Vamos partir do princípio de que os americanos e os aliados eventualmente derrotarão o ISIS e acabarão com o califado. E depois? A Síria vai ser reconstruída? O Iraque vai ser reconstruído? Desta vez, os americanos vão permanecer nesses territórios para garantir a paz? Não me parece provável, o que significa que haverá vários milhões de muçulmanos sunitas marginalizados e descontentes a viverem entre o Tigre e o Eufrates. Vão ser uma fonte de instabilidade regional ao longo das próximas gerações.
— Desde o início que eram países artificiais, o Iraque e a Síria. Talvez tenha chegado o momento de traçar novas linhas na areia.
— Mais um estado árabe falhado em criação — disse Gabriel. — É mesmo aquilo de que o Médio Oriente precisa.
— Talvez, agora que o Saladino está morto, possam ter uma verdadeira oportunidade de prosperar. — Shamron olhou de soslaio para Gabriel. — Tenho de te dizer, meu filho, levaste o conceito de chefia de operações longe demais.
— Foste tu que me fizeste aquele discurso sobre fazer várias coisas ao mesmo tempo.
— Isso não queria dizer que desejava que irrompesses impetuosamente num quarto e matasses pessoalmente o Saladino. E se ele tivesse uma arma na mão, em vez de um telemóvel?
— O resultado teria sido o mesmo.
— Espero que sim.
— Lá está essa palavra outra vez.
Shamron sorriu.
— Espero que tenhas guardado algum daquele dinheiro.
— O Carniceiro de Damasco — disse Gabriel— vai financiar as operações secretas do Departamento durante muitos anos.
— Doaste uma enorme quantia para ajudar a cuidar das vítimas dele.
— Vamos retirar dividendos disso no futuro.
— A caridade começa em casa — disse Shamron em tom reprovador.
— Isso é um provérbio corso?
— Na verdade — disse Shamron —, estou bastante certo de que é meu.
— Um quarto da população síria vive fora das suas fronteiras — explicou Gabriel. — E a maioria é constituída por muçulmanos sunitas. Ajudar a cuidar deles é uma política inteligente.
— Um quarto — repetiu Shamron — e outras centenas de milhar estão mortos. E, no entanto, o mundo culpa-nos a nós pelo sofrimento dos árabes. Como se a criação de um estado palestiniano resolvesse magicamente os variadíssimos problemas do mundo árabe. A falta de educação e de empregos, os ditadores sanguinários, a repressão das mulheres.
— Isto é uma festa, Ari. Tenta divertir-te.
— Não há tempo. Pelo menos, para mim não há. — Shamron esmagou lentamente o seu cigarro. — Esta guerra terrível na Síria deveria tornar absolutamente evidente o que aconteceria se os nossos inimigos alguma vez conseguissem penetrar as nossas defesas. Se o Carniceiro de Damasco está disposto a massacrar o próprio povo, o que é que aconteceria ao nosso? Se o ISIS está disposto a matar outros muçulmanos, o que é que faria se conseguisse deitar as mãos aos judeus? — Deu uma palmadinha paternalista no joelho de Gabriel. — Mas isso agora são problemas teus, meu filho. Não são meus.
Observaram o espetáculo de luzes no céu, o ex-chefe e o atual chefe, enquanto, atrás deles, amigos, colegas e entes queridos esqueciam, por breves instantes, o mundo problemático que os rodeava.
— Quando era miúdo — disse Shamron —, tinha sonhos.
— Eu também tinha — disse Gabriel. — Ainda tenho.
O vento soprava suavemente de oeste, do antigo campo de batalha de Hittin.
— Estás a ouvir? — perguntou Shamron.
— O quê?
— O choque das espadas, os gritos dos moribundos.
— Não, Ari, só ouço música.
— És um tipo sortudo.
— Sim — disse Gabriel. — Suponho que sou.
Nota do autor
Casa de Espiões é uma obra de ficção e deve ser lida apenas como tal. Os nomes, personagens, lugares e incidentes descritos nesta história são produto da imaginação do autor ou foram ficcionados. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, negócios, empresas, acontecimentos ou locais verdadeiros é pura coincidência.
Existem muitos edifícios antigos, elegantes e absolutamente intactos, na Rue de Grenelle, em Paris, mas nenhum deles alberga uma unidade antiterrorista de elite da DGSI chamada Grupo Alpha, pois tal unidade não existe. O leitor procurará em vão o quartel-general dos serviços secretos israelitas na Avenida Rei Saul em Telavive; há muito que este foi deslocado para um local a norte da cidade. O Campus de Informação de Liberty Crossing, em McLean, Virgínia (sede do Centro Nacional de Antiterrorismo e do gabinete do diretor dos serviços secretos nacionais) foi destruído por um atentado terrorista em A Viúva Negra mas, felizmente, isso não aconteceu na vida real. Os funcionários das duas agências trabalham, dia e noite, para manterem o solo americano seguro.
Gabriel Allon e a família não residem no número 16 da Narkiss Street, em Jerusalém, mas, ocasionalmente, podem ser vistos no Focaccia ou no Mona, dois dos seus restaurantes de bairro favoritos. Existem diversas galerias de arte no centre ville de Saint-Tropez, algumas melhores do que outras, mas nenhuma exibe o nome de Olivia Watson. Quem visitar o bairro de St. James em Londres também não encontrará uma galeria de arte especializada em Grandes Mestres que seja propriedade de alguém chamado Julian Isherwood, Oliver Dimbleby ou Roddy Hutchinson. Os quadros referenciados em Casa de Espiões aparecem apenas com fins literários. O autor não tem qualquer comentário a fazer quanto à forma como foram adquiridos, nem pretende sugerir que o sanguinário governante da Síria detém uma conta no prestigiado Banco do Panamá.
O título da terceira parte de Casa de Espiões foi inspirado numa frase de O Céu Que Nos Protege, obra-prima de Paul Bowles. A frase aparece também no texto do meu romance, juntamente com uma porção da frase subsequente e o título de uma das partes do livro de Bowles. Para além disso, servi-me, a título de empréstimo, da iconografia de Bowles (e da poesia de Sting, igualmente um admirador de O Céu Que Nos Protege) na minha descrição da breve incursão ao luar de Natalie Mizrahi pelas dunas de areia do Saara. Obviamente, Gabriel saqueou O Grande Gatsby e Terna é a Noite, de F. Scott Fitzgerald, para desenhar a sua operação, que, em resultado disso, ganhou elegância. Os fãs da versão cinematográfica de 007 - Agente Secreto reconhecerão, indubitavelmente, onde é que Christopher Keller encontrou inspiração para descrever o poder de uma pistola Walther PPK.
Completei o primeiro rascunho de Casa de Espiões com a descrição de dois atentados terroristas em Londres, um deles bem-sucedido, o outro gorado, a 15 de março de 2017. A 22 de março, às 14h40, Khalid Masood, um convertido ao Islão de cinquenta e dois anos, entrou na ponte de Westminster ao volante de um Hyundai alugado. Enquanto atravessava o rio Tamisa a uma velocidade que alcançou os cento e vinte quilómetros por hora, atropelou vários peões inocentes que caminhavam pelo passeio sul e, depois disso, fez o carro embater num gradeamento da Bridge Street, no exterior do Parlamento. Aí, assassinou a punhaladas o agente da polícia Keith Palmer, de quarenta e oito anos, antes de ser abatido a tiro por um agente armado do Comando de Proteção da Polícia Metropolitana. No total, o atentado durou oitenta e dois segundos. Seis pessoas pereceram, incluindo Massod, e mais de cinquenta ficaram feridas, algumas com lesões de extrema gravidade.
O nível de ameaça na altura do atentado era «elevado», o que significava que um atentado era «altamente provável». Contudo, quatro meses antes, Andrew Parker, diretor-geral do MI5, foi ainda mais direto na sua avaliação. «Vão existir atentados terroristas na Grã-Bretanha», disse ao jornal Guardian. «É uma ameaça permanente e é, no mínimo, um desafio geracional que temos de enfrentar.» As táticas do ISIS diferem das utilizadas pela Al-Qaeda. Um colete suicida, uma arma, uma faca, um automóvel, um camião: estas são as armas do novo terrorista jihadista. Mas o ISIS tem ambições mais elevadas. A divisão de operações externas do grupo está a tentar, de forma frenética, fabricar uma bomba que possa ser introduzida num avião comercial sem ser detetada. E existem inúmeras provas que sugerem que o ISIS tem andado a tentar adquirir os componentes para o fabrico de um dispositivo de dispersão radiológica, ou «bomba suja».
Com o califado do ISIS sitiado pelos Estados Unidos e pelos parceiros de coligação, o fluxo de combatentes estrangeiros do Ocidente e de outros países do Médio Oriente reduziu-se drasticamente. Ainda assim, o ISIS demonstrou ser hábil no recrutamento de novos membros para as suas fileiras. Frequentemente, são pessoas com antecedentes criminais. O ISIS não as ostraciza. Aliás, faz exatamente o contrário: está a recrutar ativamente novos membros com cadastro, principalmente na Europa Ocidental. «Por vezes, as pessoas com o pior passado criam o melhor futuro.» Foi o que pudemos ler na publicação nas redes sociais do Rayat al-Tawheed, um grupo de combatentes do ISIS de Londres. A mensagem foi clara. O ISIS está disposto a empregar criminosos para concretizar o sonho de construir um califado islâmico mundial.
A relação entre crime e islamismo radical é uma das tendências emergentes mais perturbadoras que os agentes antiterroristas dos Estados Unidos e dos países ocidentais enfrentam atualmente. Tome-se como exemplo o caso de Abdelhamid Abaaoud, o presumível cérebro operacional do atentado de Paris, em novembro de 2015. Nascido na Bélgica e criado no bairro de Molenbeek de Bruxelas, cumpriu penas por agressão e outros crimes em, pelo menos, três estabelecimentos prisionais antes de se juntar ao ISIS. Salah Abdeslam, cúmplice e amigo de infância de Abaaoud, também cometera pequenos delitos; na verdade, tinham sido detidos juntos, uma vez, por invasão a uma garagem. Ibrahim El Bakraoui, que detonou uma bomba suicida no interior do Aeroporto de Bruxelas em março de 2016, disparou contra a polícia com uma espingarda de assalto Kalashnikov enquanto tentava assaltar uma casa de câmbios, em 2010. O seu irmão mais novo, Khalid, que detonou um dispositivo suicida numa estação de metro de Bruxelas, tinha variadíssimos antecedentes criminais que incluíam condenações em vários casos de carjacking, um assalto a um banco, rapto e posse ilegal de armas.
Diversos operacionais do ISIS vieram do mundo dos estupefacientes ilícitos, e o ISIS está ligado ao contrabando de droga na parte oriental do Mediterrâneo quase desde os seus primórdios. No entanto, atualmente existem provas que sugerem que o grupo, financeiramente asfixiado, está envolvido no lucrativo tráfico de haxixe no Norte de África. Pouco depois da queda de Muammar Kadhafi na Líbia, em 2011, a polícia da Europa Ocidental notou um acentuado aumento do fluxo de haxixe vindo de Marrocos, juntamente com uma alteração da rota de contrabando tradicional, com os portos líbios a servirem como principal ponto de partida. Teria o ISIS, que estabelecera uma presença na Líbia pós-Kadhafi, conseguido, de alguma forma, imiscuir-se no tráfico de haxixe? A polícia europeia não conseguiu afirmá-lo com certeza, mas recebeu, no final de 2016, uma boa notícia, quando as autoridades marroquinas detiveram Ziane Berhili, alegadamente um dos maiores produtores de haxixe do mundo. Berhili era proprietário de uma grande empresa de fabrico de sobremesas em Marrocos. Mas, de acordo com as autoridades italianas, ganhava a maior parte do seu dinheiro através do contrabando estimado de quatrocentas toneladas de haxixe para a Europa por ano. Essa droga atingiria, nas ruas, um valor a rondar os quatro mil milhões de dólares.
Marrocos exporta mais do que apenas droga para a Europa; também exporta terroristas. Abdelhamid Abaaoud, Salah Abdeslam, Ibrahim e Khalid El Bakraoui têm mais em comum para além dos antecedentes criminais. Todos são de etnia marroquina. Mais de mil e trezentos marroquinos juntaram-se às fileiras do ISIS, juntamente com várias centenas de combatentes de etnia marroquina vindos da Europa Ocidental, principalmente de França, Bélgica e Países Baixos. No inverno de 2017, durante uma viagem de pesquisa que fiz a Marrocos, vi um país em alerta máximo. E com razões para tal. O chefe do serviço antiterrorista de Marrocos advertiu, em abril de 2016, que a sua unidade impedira vinte e cinco planos terroristas do ISIS apenas no ano anterior, um deles envolvendo gás-mostarda. A vital indústria turística de Marrocos, que atrai milhares de ocidentais para o país todos os anos, é um dos seus alvos principais.
É previsível que os Estados Unidos e os seus parceiros vençam a batalha contra o ISIS no Iraque e na Síria. No entanto, a perda do califado significará o fim do terrorismo dirigido ou inspirado pelo ISIS? Provavelmente, a resposta é não. O califado já está a ser substituído por um califado digital onde os seus agentes recrutam e planificam na segurança e anonimato do ciberespaço. Mas haverá sangue derramado na vida real, nas estações ferroviárias, aeroportos, cafés e teatros do Ocidente. O movimento jihadista global mostrou ter uma capacidade de adaptação excecional. O Ocidente tem, igualmente, de se adaptar, e com celeridade. Caso contrário, caberá ao ISIS e à sua inevitável prole determinar a qualidade e segurança das nossas vidas na «nova normalidade».
Daniel Silva
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