Criar um Site Grátis Fantástico
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CASA NOBRE Volume I - P.2 / James Clavell
CASA NOBRE Volume I - P.2 / James Clavell

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

CASA NOBRE

Volume I

Segunda Parte

 

Não queria que Dunross morresse. Queria-o vivo e destruído; queria-o vivo para dar-se conta da sua destruição.

Riu baixinho, consigo mesmo. "Ora, não fui eu que apertei o botão que deu início à operação. Claro que dei um empurrãozinho no jovem Donald Nikklin, sugerindo-lhe todos os meios e modos pelos quais um pouquinho de h'eung yau nas mãos apropriadas..."

Percebeu que Paul Choy e o velho marujo esperavam, fitando-o, e todo o seu bom humor desapareceu. Afastou os pensamentos errantes e concentrou-se.

— É, claro que tem razão, Sr. Choy. Mas está partindo da premissa errada. Claro que isso tudo não passa de teoria, o Ho-Pak ainda não entrou em colapso. Talvez nem entre. Mas não há motivo para que qualquer banco fizesse o que sugeriu, nenhum o fez no passado. Cada banco fica de pé ou cai graças aos seus próprios méritos. Essa é a glória do nosso sistema de livre empresa. Um plano como o que o senhor propõe abriria um precedente perigoso. Seria certamente impossível sustentar cada banco que fosse mal administrado. Nenhum desses bancos precisa do Ho-Pak, Sr. Choy. Ambos têm um número mais do que suficiente de clientes próprios. Nenhum deles jamais adquiriu outros interesses bancários aqui, e duvido que algum deles jamais precise fazê-lo.

"Papo furado", pensava Paul Choy. "Um banco tem o compromisso de crescer, como qualquer outro negócio, e o Blacs e o Victoria são os mais rapaces de todos... exceto a Struan e a Rothwell-Gornt. Merda, e as Propriedades Asiáticas, e todas as outras hongs."

— Estou certo de que tem razão, senhor. Mas meu tio Wu agradeceria se o senhor soubesse algo, fosse o que fosse.

Virou-se para o pai e disse em haklo:

— Terminei agora, Honrado Tio. Este bárbaro concorda que o banco possa estar em dificuldades.

O rosto de Wu ficou sem cor.

— Hem? A coisa é ruim?

— Serei o primeiro da fila, amanhã. O senhor deve sacar todo o seu dinheiro, e depressa.

— Ayeeyah! Por todos os deuses! — disse Wu, a voz áspera. — Eu pessoalmente cortarei a garganta do Banqueiro Kwang se perder uma só moeda de merda, mesmo sendo meu sobrinho!

Paul Choy não tirou os olhos dele.

— Ele é?

— Os bancos são invenções de merda dos demônios estrangeiros para roubar a fortuna das pessoas honestas — esbravejava Wu. — Eu vou recuperar cada moeda de cobre, caso contrário o sangue dele vai correr! Conte-me o que ele falou do banco.

— Por favor, seja paciente, Honrado Tio. É cortês, segundo o costume dos bárbaros, não deixar este bárbaro esperando.

Wu guardou a sua ira, e disse para Gornt, num inglês execrável:

— Banco ruim, heya? Obrigado diz verdade. Banco mau costume, heya?

— Às vezes — falou Gornt, cautelosamente.

Wu Quatro Dedos abriu os punhos ossudos e procurou acalmar-se.

— Obrigado por favor... sim... também quero como filho irmã diz, heya?

— Desculpe, não estou entendendo. O que seu tio quer dizer, Sr. Choy?

Depois de falar um pouquinho com o pai, para manter ás aparências, o rapaz disse:

— Meu tio consideraria um grande favor se pudesse saber, em particular, adiantadamente, de qualquer incursão, tentativa de compra de controle ou de salvação do banco... naturalmente, isso seria estritamente confidencial.

Wu balançou a cabeça, e apenas a sua boca sorria, agora.

— Sim. Favor.

Estendeu a mão e apertou a de Gornt amistosamente, sabendo que os bárbaros apreciavam tal costume, embora ele o achasse de mau gosto e incivilizado, e contrário às boas maneiras, desde tempos imemoriais. Mas queria o filho treinado rapidamente, e tinha que ser com a Segunda Grande Companhia, e precisava da informação de Gornt. Sabia bem da importância do conhecimento antecipado. "Eee", pensou, "sem meus amigos nas forças da Polícia Marítima da Ásia, minhas frotas seriam impotentes."

— Vá para terra com ele, sobrinho. Ponha-o num táxi e depois me espere. Vá buscar Tok Duas Machadinhas e espere por mim, lá junto ao ponto de táxis.

Agradeceu a Gornt de novo, depois acompanhou-os até o convés e ficou vendo enquanto se afastavam. Sua balsa-sampana estava esperando, e eles entraram nela e dirigiram-se para terra.

Era uma noite gostosa, e ele sentiu o gosto do vento. Havia umidade nele. Chuva? Prontamente examinou as estrelas e o céu noturno, todos os seus anos de experiência se concentrando. A chuva só viria com a tempestade. Tempestade poderia significar tufão. Já estava no fim da estação, para chuvas de verão, mas as chuvas podiam chegar tarde e ser repentinas e muito fortes, e o tufão podia vir até novembro, ou começar em maio, e, se fosse a vontade dos deuses, chegar em qualquer estação do ano.

A chuva seria bem-vinda, pensou. Mas não o tufão.

Estremeceu. Estavam quase entrando no nono mês.

O nono mês lhe trazia más lembranças. Durante os anos da sua vida, o tufão o atingira dezenove vezes nesse mês, sete vezes desde que o pai morrera e ele se tornara chefe da Casa dos Wus Marítimos e Comandantes das Frotas.

Dessas sete vezes, a primeira fora naquele mesmo ano. Ventos de cento e quinze nós sopraram violentamente do nor-noroeste e afundaram uma frota inteira de cem juncos no estuário do rio Pearl. Mais de mil pessoas morreram afogadas, daquela vez... o filho mais velho dele e toda a sua família. Em 1949, quando ordenara a toda a sua armada sediada no rio Pearl que fugisse do continente comunista e se radicasse per-manentetnente nas águas de Hong Kong, fora apanhado no mar e afundado junto com noventa juncos e trezentas sampanas. Ele e a família foram salvos, mas perdera oitocentos e dezessete do seu povo. Aqueles ventos tinham vindo do leste. Doze anos atrás, novamente do leste-nordeste, e setenta juncos perdidos. Dez anos atrás, o tufão Susan, com suas rajadas de vento e chuva de oitenta nós, vindas do nordeste, mudando de direção para o leste-sudeste, dizimara a sua frota sediada em Formosa, e custara-lhe outras quinhentas vidas ali, e mais duzentas para o sul, até Cingapura, e outro filho com toda a família. O tufão Glória, em 57, rajadas de vento de chuva de cem nós, outra multidão afogada. No ano passado viera o tufão Wandâ, que destruíra Aberdeen e a maioria das aldeias marítimas haklo nos Novos Territórios. Aqueles ventos tinham vindo do nor-noroeste, voltado para o noroeste, depois mudado de direção e ido para o sul.

Wu conhecia bem os ventos, e o número dos dias também: 2, 8, 2 de novo, 18, 22, 10 de setembro, e o tufão Wanda no dia 1.°. "Ê", pensou, "e esses números somam 63, que é divisível pelo algarismo mágico 3, que dá 21, que dá 3 de novo. Será que o tufão virá no terceiro dia do nono mês, este ano? Nunca veio antes, nunca, ao que me conste, mas virá este ano? O número 63 também dá 9. Virá no nono dia?"

Provou o vento de novo. Continha umidade. Vinha chuva. O vento refrescara ligeiramente. Agora vinha do nor-nordeste.

O velho marinheiro escarrou e cuspiu. "Joss! Seja no terceiro, ou nono, ou segundo, só depende dos fados. A única coisa certa é que o tufão virá de um canto ou de outro, e virá no nono mês... ou neste mês, o que é igualmente ruim."

Observava agora a sampana, e via o filho sentado na meia-nau, ao lado do bárbaro, e ficou pensando até onde poderia confiar nele. "O rapaz é esperto, e conhece muito bem os costumes dos demônios estrangeiros", pensou, cheio de orgulho. "É, mas até onde converteu-se aos seus hábitos daninhos? Bem, logo vou descobrir. Uma vez que o rapaz passe a fazer parte da cadeia, será obediente. Ou morrerá. No passado, a Casa de Wu sempre comerciou com ópio, com ou para a Casa Nobre, e às vezes para nós mesmos. Antigamente, o ópio era honroso.

"Ainda é, para alguns. Eu, Mo Contrabandista, Lee Pó Branco, ah, e quanto a eles? Devemos formar uma irmandade ou não?

"Mas os Pós Brancos? São assim tão diferentes? Não são apenas um ópio mais forte... como a bebida alcooólica comparada à cerveja?

"Qual a diferença comercial entre os Pós Brancos e o sal? Nenhuma. Só que agora a lei cretina dos demônios estrangeiros diz que um é contrabando, e o outro não! Ayeeyah, até vinte e tantos anos atrás, quando os bárbaros perderam a sua bosta de guerra para os monstros do mar do Leste, o governo monopolizava o comércio aqui.

"O comércio de Hong Kong com a China não se baseou no ópio, alimentado apenas pelo ópio produzido na índia bárbara?

"Mas agora que destruíram seus próprios campos produtores, estão tentando fingir que o comércio nunca existiu, que é imoral e um crime terrível, passível de vinte anos de cadeia!

"Ayeeyah, como pode uma pessoa civilizada compreender um bárbaro?"

Enojado, voltou para baixo.

"Eeee", pensou, cansado, "que dia difícil! Primeiro, John Chen some. Depois aqueles dois cantonenses filhos da puta são presos no aeroporto, e meu carregamento de armas é roubado pela merda da polícia. Então, hoje à tarde, chegou a carta do tai-pan, entregue em mãos."

"Saudações, Honrado Velho Amigo. Pensando bem, sugiro que ponha o Filho Número Sete com o inimigo — melhor para ele, melhor para nós. Peça ao Barba Negra para vê-lo hoje à noite. Telefone-me depois." Estava assinada "Velho Amigo" e trazia o carimbo oficial do tai-pan.

"Velho Amigo", para um chinês, era uma pessoa ou uma companhia que lhe havia feito um favor extremo no passado, ou alguém no setor comercial que provara ser digno de confiança e lucrativo, ao longo dos anos. Às vezes, os anos abrangiam gerações.

"É", pensou Wu, "este tai-pan é um Velho Amigo." Fora ele que sugerira a certidão de nascimento e o novo nome para o Sétimo Filho, que sugerira mandá-lo para o País Dourado, e que aplainara o terreno por lá, e o terreno que levava à grande universidade, e cuidara dele lá sem que ele soubesse... o subterfúgio resolvendo o dilema de como conseguir que um de seus filhos fosse treinado nos Estados Unidos sem a mácula da ligação com o ópio.

"Que tolos são os bárbaros! É, mas mesmo assim, este tai-pan não é. Ele é verdadeiramente um Velho Amigo... e a Casa Nobre também."

Wu lembrou-se de todos os lucros que ele e a família haviam ganho secretamente durante gerações, com ou sem a ajuda da Casa Nobre, na paz e na guerra, comerciando onde os navios bárbaros não podiam: contrabando, ouro, gasolina, ópio, borracha, maquinaria, remédios, toda e qualquer coisa que estivesse em escassez. Até mesmo gente. Ajudando as pessoas a fugir do ou para o continente, sendo considerável o dinheiro da passagem. Com ou sem, mas principalmente com a assistência da Casa Nobre, com esse tai-pan e seu antecessor, o Velho Nariz Aquilino, seu velho primo, e antes dele, Cão Danado, seu pai, e antes dele o pai do primo, o clã dos Wus prosperara.

Agora, Wu Quatro Dedos possuía seis por cento da Casa Nobre, adquiridos ao longo dos anos, e escondidos com a ajuda deles num labirinto de representantes, mas mesmo assim sob seu controle exclusivo, a maior parte do seu negócio de transmissão de ouro, juntamente com grandes investimentos aqui, em Macau, Cingapura e Indonésia, e em propriedades, navegação, operações bancárias.

"Operações bancárias", pensou, com azedume. "Vou cortar a garganta do meu sobrinho, depois de fazê-lo comer o seu Saco Secreto, se perder uma moeda de cobre!"

Já estava sob o convés, e entrou na cabine principal desarrumada e nada atraente onde ele e a mulher dormiam. Ela estava deitada no grande beliche cheio de palha, e virou-se, semi-adormecida.

— Já acabou? Já vem para a cama?

— Não. Vá dormir — disse ele, bondosamente. — Tenho trabalho para fazer.

Obedientemente, ela fez o que ele mandou. Era a tai-tai dele, a sua mulher principal, e estavam casados há quarenta e sete anos.

Ele tirou as roupas, e vestiu outras: uma camisa branca limpa, meias e sapatos limpos, e as calças cinzentas estavam bem vincadas. Fechou a porta da cabine às suas costas e subiu agilmente ao convés, sentindo-se muito desconfortável e constrangido dentro das roupas.

— Volto antes do alvorecer, Quarto Neto — disse.

— Sim, Avô.

— Trate de ficar acordado!

— Sim, Avô.

Ele deu um cascudo de leve no garoto. Depois cruzou as pranchas e parou no terceiro junco.

— Poon Bom Tempo? — chamou.

— Sim... sim? — retrucou a voz sonolenta. O velho estava enrascado sobre um saco velho, cochilando.

— Reúna todos os comandantes. Volto dentro de duas horas.

Poon ficou imediatamente alerta.

— Vamos zarpar? — indagou.

— Não. Volto daqui as duas horas, reúna os comandantes! Wu continuou o seu caminho, e entrou na sua balsa-sampana pessoal, sob as reverências da tripulação. Olhou para terra. O filho estava de pé, ao lado do seu grande Rolls preto com a chapa do número da sorte — um único algarismo 8 — que comprara por cento e cinqüenta mil HK no leilão do governo, seu chofer uniformizado e seu guarda-costas, Tok Duas Machadinhas, esperando deferentemente ao lado dele. Como sempre, sentiu prazer ao ver seu grande automóvel, e isso sobrepujou sua preocupação crescente. Naturalmente, não era o único morador das aldeias marítimas que possuía um Rolls. Mas, por costume, o dele era sempre o maior e o mais novo. Oito, baat, era o número de maior sorte, porque rimava com faat, que queria dizer "prosperidade em expansão".

Sentiu o vento mudar de posição um ponto, e sua ansiedade aumentou. "Eeee, hoje foi um dia ruim, mas amanhã será pior.

"Aquele bolo de carne de cachorro, John Chen, fugiu para o País Dourado ou foi realmente seqüestrado? Sem aquele pedaço de bosta ainda sou o menino de recados do tai-pan. Estou cansado de ser um menino de recados. A recompensa de cem mil por John Chen é dinheiro bem investido. Eu pagaria doze vezes essa quantia por John Chen e sua merda de moeda. Graças a todos os deuses que coloquei espiões na casa do Chen da Casa Nobre."

Fez um sinal firme com a mão, na direção da terra.

— Ande ligeiro, velho — ordenou ao barqueiro, o rosto sombrio. — Tenho muito o que fazer antes do alvorecer!

 

               14h23h

O dia estava muito quente e muito úmido, o ar abafado, as nuvens começando a se juntar. Desde a hora em que o Ho-Pak Bank abriu, de manhã, não houvera nenhuma diminuição no movimento das multidões suadas e barulhentas, tanto dentro quanto fora da pequena agência de Aberdeen.

— Não tenho mais dinheiro para pagar, Honorável Sung — sussurrou a caixa, assustada, o suor manchando o seu cheong-sam bem-feito.

— De quanto precisa?

— De sete mil quatrocentos e cinqüenta e sete dólares para o cliente Tok-sing, mas deve haver mais umas cinqüenta pessoas esperando.

— Volte para o seu guichê — replicou o gerente, igualmente nervoso. — Protele. Finja estar examinando mais atentamente a conta... a matriz jura que mais um carregamento de dinheiro saiu de seus escritórios faz uma hora... quem sabe o tráfego... Volte para o seu guichê, srta. Pang. — Apressadamente, fechou a porta do seu gabinete atrás dela e, suando, pegou novamente no telefone: — O Honorável Richard Kwang, por favor. Depressa...

Desde que o banco abrira, às dez horas em ponto, quatrocentas ou quinhentas pessoas haviam aberto caminho até um dos três guichês e exigido o seu dinheiro e seus depósitos na poupança, integralmente, e depois, abençoando sua sorte, tinham aberto caminho aos empurrões de volta ao mundo exterior.

Aqueles que possuíam caixas de depósito bancário haviam exigido acesso a elas. De um em um, acompanhados por um funcionário, haviam descido para o cofre-forte, extáticos ou tontos de alívio. Lá embaixo, o funcionário usara a sua chave, o cliente a dele, depois o funcionário se retirara. Sozinho no ar abafado, o cliente suado abençoara os deuses porque seu destino lhe permitira ser um dos afortunados. Então, as mãos trêmulas tinham agarrado seus títulos, dinheiro vivo, barras de ouro, jóias e todas as outras coisas secretas, enfiando-os numa pasta, mala ou saco de papel... ou quem sabe nos bolsos estufados, já cheios de notas. Então, subitamente, assustado por estar de posse de tal fortuna, de modo tão aberto e tão vulnerável, toda a fortuna de seu mundo individual, a felicidade dele se evaporava, e ele se afastava cabisbaixo, dando lugar a outro cliente, igualmente nervoso, e de início igualmente ex-tático.

A fila começara a formar-se bem antes do alvorecer. O pessoal de Wu Quatro Dedos pegou os trinta primeiros lugares. A notícia logo correra pelo porto, portanto outros haviam se juntado a eles, instantaneamente, depois mais outros, depois todo mundo que tinha qualquer tipo de conta, à medida que a notícia se espalhava, aumentando a multidão. Por volta das dez horas, a aglomeração ansiosa, nervosa, assumia proporções de levante. Agora, alguns policiais fardados caminhavam por entre o povo, calados e atentos, sua presença tendo um efeito calmante. Mais policiais chegaram no decorrer do dia, seu número discreta e cuidadosamente determinado pela delegacia de Aberdeen Leste. Lá pelo meio-dia, dois camburões da polícia estacionaram num dos becos próximos, com um pelotão de combate especialmente treinado a postos. E oficiais europeus.

A maior parte da multidão era composta de pescadores e gente simples do lugar, haklos e cantonenses. Talvez um em dez tivesse nascido em Hong Kong. Os demais eram migrantes recentes da República Popular da China, o Reino Médio, como chamavam à sua terra. Tinham vindo aos montes para o santuário de Hong Kong, fugindo dos comunistas, ou dos nacionalistas, da fome, ou da simples miséria, como seus antepassados haviam feito por mais de um século. Noventa e oito por cento da população de Hong Kong eram chineses, e essa proporção se mantinha a mesma desde o início da colônia.

Cada pessoa que saía do banco dizia a quem lhe perguntasse que havia sido paga integralmente. Mesmo assim, os outros que esperavam permaneciam apreensivos. Todos se lembravam do colapso do ano anterior, e de uma vida inteira, nas suas aldeias natais, de outros colapsos e fracassos, fraudes, agiotas rapaces, desfalques, corrupção, e de como era fácil ver as economias de toda uma vida se evaporarem sem que a pessoa tivesse culpa alguma, não importa qual fosse o governo, comunista, nacionalista ou dos senhores feudais. Há quatro mil anos era a mesma coisa.

E todos odiavam sua dependência aos bancos... mas tinham que guardar seu dinheiro em algum lugar, a vida sendo o que era e os ladrões abundando como pulgas. "Dew neh loh moh para todos os bancos", pensava a maioria. Eram invenções do demônio... dos demônios estrangeiros! É. Antes dos demônios estrangeiros chegarem ao Reino Médio, não havia dinheiro de papel, só dinheiro de verdade, prata, ouro ou cobre... na maioria prata e cobre... que podiam tocar e esconder, que jamais se evaporaria. Não como o papel nojento. Os ratos podiam comer papel, os homens também. O dinheiro de papel era mais uma invenção do demônio estrangeiro. Antes da vinda deles para o Reino Médio a vida era boa. E agora... Dew neh loh moh para todos os demônios estrangeiros!

Às oito horas daquela manhã, o ansioso gerente da agência ligara para Richard Kwang.

— Mas, Honrado Senhor, já deve haver umas quinhentas pessoas, e a fila sai daqui e corre pela beira do cais.

— Não faz mal, Honorável Sung! Pague àqueles que exigirem o seu dinheiro. Não se preocupe! Fale com eles, a maioria não passa de pescadores supersticiosos. Convença-os a não sacarem. Mas pague àqueles que insistirem! O Ho-Pak é tão forte quanto o Blacs ou o Victoria! É uma mentira maliciosa que estamos em dificuldades! Pague! Verifique cuidadosamente as cadernetas de poupança deles, e não se apresse com cada cliente. Seja metódico.

E assim o gerente e os caixas do banco tentaram persuadir os seus clientes de que não havia necessidade de ficarem ansiosos, de que boatos falsos estavam sendo difundidos por gente maliciosa.

— Claro que pode tirar o seu dinheiro, mas não acha...

— Ayeeyah, dê-lhe o seu dinheiro — dizia o seguinte da fila, irritado —, ela quer o seu dinheiro, eu quero o meu, e o irmão da minha mulher atrás de mim quer o dele, e a minha tia está na fila lá fora. Ayeeyah, não posso perder o dia todo! Tenho que sair para o mar. Com este vento, não demora vai haver tempestade, e preciso fazer uma boa pescaria...

E o banco começara a fazer os pagamentos. Integrais.

Como todos os bancos, o Ho-Pak usava seus depósitos para fazer empréstimos para outras pessoas... todo tipo de empréstimos. Em Hong Kong havia poucos regulamentos e poucas leis. Alguns bancos emprestavam até oitenta por cento dos seus bens em caixa, porque tinham certeza de que os clientes jamais iriam querer o dinheiro de volta, todos de uma só vez.

Exceto naquele dia, em Aberdeen. Mas, felizmente, aquela era apenas uma das dezoito agências espalhadas pela colônia. O Ho-Pak ainda não estava ameaçado.

Três vezes durante o dia o gerente tivera que ligar para a matriz para pedir dinheiro extra. E duas vezes para pedir conselhos.

Passava um minuto das dez horas da manhã, e Wu Quatro Dedos estava sentado, de cara fechada, ao lado da mesa do gerente, junto com Paul Choy, tendo Tok Duas Machadinhas de pé atrás de si.

— Quer encerrar todas as suas contas no Ho-Pak? — exclamou o Sr. Sung, com voz trêmula.

— Quero. Agora — falou Wu, e Paul Choy concordou com um movimento de cabeça.

— Mas não temos di... — começou a dizer o gerente, com voz débil.

Wu sibilou:

— Quero todo o meu dinheiro agora. Em espécie ou em barras. Agora! Não está entendendo?

O Sr. Sung fez uma careta assustada. Ligou para Richard Kwang e explicou rapidamente.

— Sim, sim, senhor. — Estendeu o telefone. — O Honorável Kwang quer falar com o senhor, Honorável Wu.

Mas não houve conversa que conseguisse fazer o velho marujo mudar de idéia.

— Não. Agora. Meu dinheiro, e o dinheiro do meu pessoal, agora. E também daquelas contas... bem... contas especiais, estejam onde estiverem.

— Mas não há tanto dinheiro assim aí na agência, Honrado Tio — disse Richard Kwang, apaziguadoramente. — Terei prazer em dar-lhe um cheque de administração.

Wu explodiu.

— Não quero cheques, quero dinheiro! Não entendeu? Dinheiro!

Ele não sabia o que era um cheque de administração, portanto o atemorizado Sr. Sung começou a explicar. Paul Choy ficou mais animado.

— Tudo bem, Honrado Tio — disse. — Um cheque de administração...

O velho trovejou:

— Como é que um pedaço de papel pode ser igual a dinheiro de verdade? Quero dinheiro, meu dinheiro, agora!

— Por favor, deixe-me falar com o Honorável Kwang, Grande Tio — falou Paul Choy, buscando tranqüilizá-lo, compreendendo o dilema. — Talvez possa ajudar.

— Pois bem, fale — concordou Wu, azedamente —, mas consiga o meu dinheiro vivo.

Paul Choy apresentou-se ao telefone e falou:

— Talvez seja mais fácil em inglês, senhor. — Conversou durante alguns momentos. Depois, sacudiu a cabeça, satisfeito. — Só um momentinho, senhor. — A seguir, em haklo: — Grande Tio — explicou —, o Honorável Kwang lhe dará o pagamento integral em apólices do governo, ouro ou prata lá na matriz, e um pedaço de papel que o senhor poderá levar ao Blacs ou ao Victoria, para pegar o restante. Mas, se puder fazer uma sugestão, como o senhor não tem cofre para guardar todo esse montante, quem sabe devesse aceitar o cheque de administração do Honorável Kwang... com ele, posso abrir conta em qualquer dos dois bancos para o senhor. Imediatamente.

— Bancos! Bancos são armadilhas dos demônios estrangeiros para pegar lagostas civilizadas!

Paul Choy levara meia hora para convencê-lo. A seguir, haviam-se dirigido para a matriz do Ho-Pak, mas Wu deixara Tok Duas Machadinhas com o apavorado Sr. Sung.

— Fique aqui, Tok. Se eu não conseguir o meu dinheiro, você o arranca desta agência.

— Sim, senhor.

E assim, dirigiram-se à matriz, e ao meio-dia Wu Quatro Dedos tinha novas contas, metade no Blacs, metade no Victoria. Paul Choy ficara estonteado com o número de contas separadas que tiveram que ser encerradas e abertas. E com a quantia.

Vinte e tantos milhões de HK.

A despeito de todas as suas súplicas e explicações, o velho marujo se recusara a investir um pouco de dinheiro vendendo ações da Ho-Pak a descoberto, dizendo que aquilo era jogo para ladrões quai loh. Então, Paul saíra de fininho e se dirigira a todos os corretores que pudera encontrar, tentando vender a descoberto, por conta própria.

— Mas, meu caro rapaz, você não tem crédito. Claro, se me apresentar o carimbo oficial de seu tio, ou a palavra dele por escrito, então...

Descobriu que as firmas de corretagem eram quase exclusivamente européias, e na sua grande maioria britânicas. Não havia uma só chinesa. Todas as posições na Bolsa de Valores eram ocupadas por europeus, novamente britânicos em grande maioria.

— Isso não me parece direito, Sr. Smith — disse Paul Choy.

— Ah, infelizmente o pessoal local, Sr... Sr... Sr. Chee, não é?

— Choy, Paul Choy.

— Ah, sim. Infelizmente o pessoal local não se interessa realmente por práticas complicadas e modernas, como corretagem e Bolsa de Valores... como sabe, o pessoal local é todo composto de imigrantes. Quando viemos para cá, Hong Kong não passava de uma rocha estéril.

— Sei. Mas eu estou interessado, Sr. Smith. Nos Estados Unidos, um corret...

— Ah, sei, a América! Estou certo de que agem de modo diferente por lá, Sr. Chee. Bem, se me dá licença... boa tarde.

Furioso, Paul Choy fora de corretor em corretor, mas era sempre a mesma coisa. Ninguém o apoiaria sem o carimbo oficial do pai.

Agora, estava sentado num banco de praça, na Memorial Square, perto do Tribunal de Justiça e dos altos prédios da Struan e da Rothwell-Gornt, fitando a baía e pensando. A seguir, entrou na biblioteca do tribunal e passou a conversa no pedante bibliotecário.

— Sou da Sims, Dawson e Dick — falou, despreocupadamente. — Sou o novo advogado deles, dos Estados Unidos. Querem algumas informações rápidas sobre Bolsa de Valores e corretagem.

— Regulamentos do governo, senhor? — perguntou o idoso eurasiano, prestativamente.

— É.

— Não há nenhum, senhor.

— Hem?

— Bem, praticamente nenhum. — O bibliotecário foi até as prateleiras. A seção de exigências não passava de uns poucos parágrafos num tomo gigantesco.

Paul Choy fitou-o, boquiaberto.

— Mas é só isso?

— Sim, senhor.

A cabeça de Paul Choy começou a rodar.

— Mas então está totalmente aberto, o mercado está totalmente aberto!

O bibliotecário mostrou-se levemente divertido.

— Está, comparado ao de Londres, ou de Nova York. Quanto à corretagem, senhor, bem, qualquer um pode se estabelecer como corretor, desde que haja alguém que queira que ele venda ações, e haja alguém que queira que ele as compre, e ambos estejam preparados para pagar-lhe uma comissão. O problema é que, bem, as firmas existentes controlam completamente o mercado.

— Como se acaba com esse monopólio?

— Ah, não faríamos isso, senhor. Somos todos a favor do status quo, aqui em Hong Kong.

— Bem, então como se entra na "panelinha", para aproveitar também?

— Duvido que o senhor conseguisse, senhor. Os britânicos controlam tudo com muito cuidado — disse o homem, delicadamente.

— Isso não me parece direito.

O homem idoso sacudiu a cabeça e sorriu suavemente. Formou um triângulo com os dedos, simpatizando com o jovem chinês à sua frente, invejando-lhe a pureza... e a educação americana.

— Suponho que queira jogar na Bolsa por conta própria... — perguntou, em voz baixa.

— É... — Paul Choy tentou mascarar o seu erro, e gaguejou: — Pelo menos... Dawson mandou que eu...

— Ora, vamos, Sr. Choy, o senhor não pertence a Sims, Dawson e Dick — falou, admoestando-o polidamente. — Se tivessem contratado um americano (uma inovação surpreendente), eu teria sabido disso, juntamente com centenas de outras pessoas, muito antes que o senhor chegasse aqui. Deve ser o Sr. Paul Choy, sobrinho do grande Wu Sang Fang, que acaba de retornar de Harvard, nos Estados Unidos.

Paul Choy fitou-o, boquiaberto.

— Como sabia?

— Estamos em Hong Kong, Sr. Choy. É um lugarzinho minúsculo. Temos que saber o que ocorre. É assim que sobrevivemos. Quer jogar na Bolsa?

— Quero, Sr.... ?

— Manuel Pereira. Sou português de Macau. — O bibliotecário apanhou uma caneta-tinteiro e escreveu com bela caligrafia uma apresentação nas costas de um dos seus cartões de visita. — Tome. Ishwar Soorjani é um velho amigo. Seu local de trabalho fica junto da Nathan Road, em Kowloon. É um par se da índia, e lida com dinheiro e câmbio, compra e vende ações, de vez em quando. Poderá ajudá-lo... mas lembre-se de que, se ele emprestar dinheiro, será com juros altos. Portanto não deve cometer nenhum erro.

— Puxa, obrigado, Sr. Pereira. — Paul Choy estendeu a mão. Surpreso, Pereira fez o mesmo. Paul Choy apertou-lhe a mão efusivamente, depois começou a se afastar depressa, mas se deteve. — Escute, Sr. Pereira... a Bolsa de Valores. Não existe nenhum macete? Nada? Nenhum modo de faturar o meu?

Manuel Pereira tinha cabelos prateados, mãos longas e belas e feições chinesas pronunciadas. Fitou o jovem à sua frente. Depois falou, suavemente:

— Não há nada que o impeça de formar uma companhia para criar a sua própria Bolsa de Valores, uma Bolsa chinesa. Isso se enquadra nas leis de Hong Kong... ou na ausência delas. — Os velhos olhos brilhavam. — Você só precisa de dinheiro, contatos, conhecimentos e telefones...

— Meu dinheiro, por favor — sussurrou a velha amah, com voz rouca. — Aqui está a minha caderneta de poupança. — Estava com o rosto afogueado pelo calor dentro da agência do Ho-Pak em Aberdeen. Faltavam agora dez minutos para as três horas, e ela esperava desde o alvorecer. O suor manchava sua blusa branca velha e as calças negras. Uma trança comprida, suja e grisalha, lhe descia pelas costas. — Ayeeyah, não empurrem — gritou para os que estavam atrás. — Logo chegará a sua vez!

Com ar cansado, a jovem caixa apanhou a caderneta e olhou de novo para o relógio. "Ayeeyah, graças a todos os deuses que fechamos às três", pensou, e ficou se perguntando, ansiosamente, com a cabeça latejando de dor, como iam poder fechar as portas com tanta gente irritada espremida diante das caixas, empurrada pelos que se encontravam do lado de fora.

A quantia da caderneta de poupança era trezentos e vinte e três HK e quarenta e dois centavos. Cumprindo as instruções do Sr. Sung para ir com calma e ser meticulosa, caminhou até os arquivos, tentando fazer ouvidos moucos à corrente de obscenidades impacientes e resmungos que escutava há horas. Certificou-se de que a quantia estava correta, depois olhou de novo para o relógio e voltou para o seu banquinho alto, para destrancar e abrir a gaveta de dinheiro. Não havia dinheiro o bastante na sua caixa. Por isso, trancou de novo a gaveta e foi para o gabinete do gerente. Uma corrente oculta de ódio percorreu o povo que esperava. Ela era uma mulher baixa e desajeitada. Foi seguida por vários pares de olhos, que logo se desviaram para o relógio, depois retornaram para ela.

A moça bateu à porta do gerente e a fechou atrás de si.

— Não posso pagar à Velha Ah Tam — disse, desalentada. — Tenho apenas cem HK. Já protelei o quanto pude...

O gerente Sung enxugou o suor do lábio superior.

— São quase três horas. Portanto, que ela seja a sua última cliente, srta. Cho.

Conduziu-a por uma porta lateral até o cofre-forte. A porta do cofre era pesadíssima. Ela soltou uma exclamação abafada ao ver as prateleiras vazias. Nessa altura do dia, geralmente, as prateleiras estavam cheias de pilhas certinhas de notas e tubinhos de papel cheios de moedas, as notas presas em grupos de centenas, milhares e dezenas de milhares. Separar o dinheiro depois que o banco fechava era a tarefa de que ela mais gostava, além da de tocar nos maços sensuais de notas estalando de tão novas.

— Ah, mas que coisa terrível, Honorável Sung! — falou, quase chorando, os grossos óculos embaçados, o penteado desfeito.

— É só temporário, só temporário, srta. Cho. Lembre-se do que o Honorável Haply escreveu no Guardian de hoje! — Esvaziou a última prateleira, apanhando suas reservas finais, amaldiçoando o carregamento que ainda não havia chegado. — Tome.

Deu-lhe quinze mil para exibir, mandou que assinasse o recibo, e levou mais quinze mil para cada um dos outros caixas. Agora, o cofre-forte estava vazio.

Quando ele apareceu na sala principal, houve um silêncio repentino, elétrico, excitante, à visão da quantia aparentemente grande de dinheiro vivo.

Entregou o dinheiro aos outros dois caixas, depois sumiu de novo dentro do gabinete.

A srta. Cho empilhava o dinheiro meticulosamente na gaveta, todos os olhos fitos nela e nos outros caixas. Deixou uma das pilhas de mil sobre a mesa. Rasgou o selo e contou metodicamente trezentos e vinte, mais três notas de um e os trocados. Recontou-os e passou-os para o outro lado do balcão. A velha enfiou tudo dentro de um saco de papel, e o seguinte da fila veio bruscamente para a frente e enfiou sua caderneta de poupança na cara da srta. Cho.

— Tome, por todos os deuses. Quero sete mil... Naquele momento, soou o gongo das três horas, e o Sr. Sung apareceu instantaneamente e falou, em voz muito alta:

— Lamento, temos que fechar agora. Todos os caixas, cerrem suas...

O resto das suas palavras foi abafado pelo vozerio raivoso.

— Por todos os deuses, estou esperando desde o alvorecer...

— Dew neh loh moh, mas faz oito horas que estou aqui...

— Ayeeyah, paguem-me, vocês têm o bastante...

— Oh, por favor, por favor, por favor... Normalmente, o banco teria cerrado as portas e atendido aos clientes que já estavam lá dentro, mas, desta feita, obedientemente, os três caixas assustados trancaram as gavetas no meio do tumulto, colocaram o cartaz de fechado e se afastaram das mãos estendidas.

Repentinamente, a multidão dentro do banco virou uma turba.

Os que estavam na frente foram espremidos contra o balcão, enquanto outros lutavam para entrar no banco. Uma moça berrou, ao ser jogada com força contra o balcão. Mãos se estenderam para as grades, que eram mais um elemento de decoração do que de proteção. Agora, todos estavam enfurecidos; Um velho marujo, que era o seguinte da fila, tentou se esticar para abrir à força a gaveta do dinheiro. A velha amah ficou imprensada na massa fervilhante de cem ou mais pessoas, e lutou para se afastar, o dinheiro agarrado com firmeza nas mãos esquálidas. Uma moça perdeu o equilíbrio e foi pisoteada. Tentou levantar-se, mas o monte de pernas não deixava. Portanto, desesperada, mordeu uma das pernas, e conseguiu espaço suficiente para se levantar, as meias desfiadas, cheong-sam rasgado, tomada de pânico, agora. O pânico dela atiçou ainda mais a turba, depois alguém gritou:

— Matem o filho da puta sem mãe... — e logo todos repetiram: — Matemmmmmmm!

Houve uma fração de segundo de hesitação. Depois, como se fossem uma só pessoa, lançaram-se à frente.

— Parem!

A palavra irrompeu na atmosfera em inglês, depois em haklo, depois em cantonense, novamente em inglês.

Fez-se um silêncio vasto e repentino.

O inspetor-chefe fardado apareceu diante deles, calmo e desarmado, um megafone elétrico nas mãos. Viera pela porta dos fundos. Estivera numa sala interna, e agora os fitava.

— São três horas — disse suavemente, em haklo. — A lei diz que os bancos fecham às três horas. Este banco está fechado. Por favor, voltem para casa. Calmamente!

Outro silêncio, desta feita mais irado, depois o começo de uma violenta agitação, quando um homem resmungou, aborrecido:

— E quanto à porra do meu dinheiro...

Outros quase chegaram a repetir-lhe as palavras, mas o policial moveu-se rápido, muito rapidamente, na direção exata do homem, ergueu destemidamente o tampo do balcão e partiu para cima dele, metendo-se no meio da turba. A turba recuou.

— Amanhã — disse o policial, gentilmente, superando-o, e muito, em altura. — Receberá todo o seu dinheiro amanhã.

O homem baixou os olhos, odiando os olhos frios e azuis de peixe e a proximidade do demônio estrangeiro. Aborrecido, deu um passo para trás.

O policial olhou para o resto deles, para dentro dos seus olhos.

— Você, aí no fundo — ordenou, selecionando o homem instantaneamente, com cuidado infalível, a voz autoritária, mas com a mesma confiança tranqüila. — Vire-se e deixe os outros passarem.

Obedientemente, o homem fez o que lhe tinha sido ordenado. A turba voltou a ser multidão. Uma hesitação momentânea, depois outro homem se virou e começou a abrir caminho em direção à porta.

— Dew neh loh moh, não tenho o dia inteiro, ande logo — falou, com azedume.

Todos começaram a sair, resmungando, furiosos... mas individualmente, não como uma turba. Sung e os caixas enxugaram a testa suada, depois sentaram-se, trêmulos, por trás da segurança do balcão.

O inspetor-chefe ajudou a velha amah a se levantar. Havia uma gota de sangue no canto de sua boca.

— Está bem, Velha Senhora? — indagou em haklo. Ela o fitou, sem compreender. Ele repetiu a pergunta em cantonense.

— Ah, sim, sim — replicou em voz rouca, ainda agarrando o saco de papel firmemente junto ao peito. — Obrigada, Honrado Senhor.

Meteu-se no meio do povo e sumiu. A sala ficou vazia. O inglês saiu para a calçada após o último cliente e ficou parado diante da porta, assobiando desafinadamente, observando enquanto sumiam de vista.

— Sargento!

— Sim, senhor.

— Pode dispensar os homens, agora. Mande um destacamento para cá amanhã às nove horas. Instale barreiras e deixe os sacanas entrarem no banco apenas de três em três. Você e mais quatro homens serão mais do que o suficiente.

— Sim, senhor. — O sargento bateu continência. O inspetor-chefe voltou a entrar no banco. Trancou a porta da frente e sorriu para o gerente Sung. — Uma tarde bastante úmida, não é? — disse em inglês, para prestigiar Sung; todos os chineses instruídos em Hong Kong orgulhavam-se de falar o idioma internacional.

— Sim, senhor — replicou Sung, nervosamente. Normalmente, apreciava e admirava imensamente aquele inspetor-chefe. Mas aquela fora a primeira vez que vira com os próprios olhos um quai loh com mau-olhado, desafiando uma turba, sozinho como um deus malévolo de pé diante dela, desafiando-a a se mexer, para dar-lhe a oportunidade de cuspir fogo e enxofre. Sung estremeceu de novo.

— Obrigado, inspetor-chefe.

— Vamos para o seu escritório, para eu tomar uma declaração sua.

— Sim, por favor. — Sung empertigou-se diante do seu pessoal, reassumindo o comando. — Todos vocês, acertem os livros e arrumem as coisas.

Foi na frente, conduzindo o inglês, sentou-se e abriu um amplo sorriso.

— Chá, inspetor-chefe?

— Não, obrigado. — O inspetor-chefe Donald C. C. Smyth media cerca de um metro e setenta e oito, era forte, tinha os olhos azuis, cabelos louros e um rosto bronzeado, de pele esticada. Pegou um maço de papéis e colocou-os sobre a mesa. — Estas são as contas dos meus homens. Amanhã, às nove, o senhor encerrará as contas deles e lhes pagará. Virão pela porta dos fundos.

— Ora, claro. Sentir-me-ei honrado. Mas ficarei desmoralizado se tantas contas valiosas me deixarem. O banco está tão firme quanto estava ontem, inspetor-chefe.

— Claro. Nesse meio tempo, amanhã, às nove. Dinheiro vivo, por favor. — Entregou-lhe mais alguns papéis. E quatro cadernetas de poupança. — Aceitarei um cheque administrativo por todos esses. Agora.

— Mas, inspetor-chefe, hoje foi um dia extraordinário. Não há problema com o Ho-Pak. Certamente o senhor poderia...

— Agora. — Smyth sorriu docemente. — Os talões de retirada já estão todos assinados e prontos.

Sung olhou para eles. Todos eram nomes chineses que ele sabia serem representantes de representantes daquele homem cujo apelido era Cobra. As contas totalizavam quase oitocentos e cinqüenta mil HK. "E isso é só nesta agência", pensou, impressionadíssimo com a sagacidade do Cobra. "E quanto ao Victoria, e ao Blacs, e a todas as outras agências em Aberdeen?"

— Pois bem — falou, cansado. — Mas lamento muito ver tantas contas deixarem o banco.

Smyth sorriu de novo.

— O Ho-Pak inteiro ainda não está quebrado, não é mesmo?

— Oh, não, inspetor-chefe — exclamou Sung, chocado. — Temos um ativo publicado no valor de um bilhão de HK e reservas em dinheiro de muitas dezenas de milhões. É só esse pessoal simplório, um problema temporário de confiança. Leu a coluna do Sr. Haply, no Guardian?

— Li.

— Ah. — O rosto de Sung ficou sombrio. — Boatos maliciosos espalhados por tai-pans invejosos, e outros bancos! Se Haply alega isso, naturalmente é verdade.

— Naturalmente! Bem, estou um pouco atarefado, esta tarde.

— Sim, é claro. Vou fazê-los imediatamente. Ah! li no jornal que pegou um daqueles malvados Lobisomens.

— Temos um suspeito de uma tríade, Sr. Sung, só um suspeito.

Sung estremeceu.

— Demônios! Mas o senhor pegará todos eles... demônios, enviando uma orelha! Devem ser estrangeiros. Aposto que são estrangeiros, pode crer. Pronto, senhor, já preenchi os cheques...

Bateram à porta. Um cabo entrou e bateu continência.

— Com licença, senhor, há um carro blindado lá fora. Diz que é da matriz do Ho-Pak.

— Ayeeyah — falou Sung, muitíssimo aliviado —, e já não é sem tempo. Prometeram a entrega às duas. É mais dinheiro.

— Quanto? — quis saber Smyth.

— Meio milhão — informou o cabo, prontamente, entregando o manifesto de carga. Era um homem baixo e vivo, de olhos alegres.

— Ótimo — falou Smyth. — Bem, Sr. Sung, isso aliviará a pressão de cima do senhor, não é?

— É, é, sim. — Sung viu que os dois homens o fitavam e falou imediata e expansivamente. — Se não fosse pelo senhor, e os seus homens... Com sua permissão, gostaria de ligar agora para o Sr. Richard Kwang. Estou certo de que ele se sentirá honrado, como eu, em dar uma modesta contribuição ao seu fundo de caridade da polícia, em sinal de agradecimento.

— É muita gentileza, mas não é necessário, Sr. Sung.

— Mas ficarei desprestigiadíssimo se o senhor não aceitar, inspetor-chefe.

— O senhor é muito gentil — disse Smyth, sabendo que, na realidade, sem sua presença dentro do banco, e a dos seus homens do lado de fora, Sung, os caixas e muitos outros estariam mortos. — Obrigado, mas não é necessário.

Aceitou os cheques administrativos e foi embora.

O Sr. Sung insistiu com o cabo, que, finalmente, mandou buscar o seu superior. O sargento comissionado Mok também declinou da oferta.

— Vinte mil vezes — declarou.

Mas o Sr. Sung não desistia. Sabiamente. E Richard Kwang ficou igualmente encantado e honrado em aprovar o presente não solicitado. Vinte mil HK. Em dinheiro vivo.

— Com os profundos agradecimentos do banco, sargento comissionado Mok.

— Obrigado, Honorável Gerente Sung — falou Mok, cortesmente, botando o dinheiro no bolso, satisfeito por pertencer à divisão do Cobra, e totalmente impressionado, pois vinte mil era o preço justo de mercado que o Cobra considerara que valia o trabalho daquela tarde. — Espero que o seu grande banco se mantenha solvente, e que vença essa tormenta com a sua esperteza habitual. Amanhã tudo correrá ordeiramente, é claro. Estaremos aqui às nove da manhã em ponto para receber o nosso dinheiro.

A velha amah ainda estava sentada na amurada do porto, recuperando o fôlego. As costelas lhe doíam, mas, afinal, sempre doíam, pensou, cansada. Era joss. Seu nome era Ah Tam, e estava começando a se levantar quando um jovem se acercou dela e falou:

— Sente-se, Velha Senhora, quero lhe falar. — Era baixo e atarracado, tinha vinte e um anos, e o rosto marcado de cicatrizes de varíola. — O que tem nesse saco?

— Como? Que saco?

— O saco de papel que mantém grudado aos seus trapos fedorentos.

— Este? Nada, Honrado Senhor. São só minhas pobres compras que...

Ele sentou-se no banco, ao lado dela, aproximou-se mais e sibilou:

— Cale-se, Bruxa Velha! Vi você sair da porra do banco. Quanto tem aí?

A velha agarrou-se desesperadamente ao saco de papel, os olhos fechados de terror, e falou, com voz ofegante:

— São todas as minhas economias, Hon... Ele arrancou o saco das mãos dela e o abriu.

— Ayeeyah! — As notas eram velhas, e ele as contou. — Trezentos e vinte e três dólares! — exclamou, desdenhosamente. — Você é amah de quem... de um mendigo? Não foi muito esperta, nessa vida.

— Ah, sim, tem toda a razão, senhor! — replicou, os olhinhos pretos agora fitos nele.

— O meu h'eung yan é de vinte por cento — falou, começando a contar as notas.

— Mas, Honrado Senhor — disse ela, agora choramingando —, vinte por cento é alto demais. Mas eu me sentiria honrada se aceitasse cinco, com os agradecimentos de uma pobre velha.

— Quinze.

— Seis!

— Dez, e é a minha oferta final. Não posso ficar aqui o dia todo!

— Mas, senhor, é um homem moço e forte, evidentemente um 489. Os fortes devem proteger os velhos e fracos.

— É verdade, é verdade. — Ele pensou por um momento, querendo ser justo. — Está certo, sete por cento.

— Oh, como é generoso, senhor! Obrigada, obrigada.

Toda contente, ela o viu contar vinte e dois dólares, depois enfiar a mão nos bolsos do jeans e contar sessenta e um cents.

— Tome.

Devolveu à velha os trocados e o resto do seu dinheiro.

Ela lhe agradeceu efusivamente, radiante com a pechincha que fizera. "Por todos os deuses", pensou, radiante, "sete por cento, ao invés de, bem, pelo menos quinze seria justo".

— Também tem dinheiro no Ho-Pak, Honrado Senhor?

— indagou, cortesmente.

— Claro — disse o jovem, com ar de importância, como se fosse verdade. — A minha irmandade tem uma conta lá há anos. Temos... — dobrou a quantia que primeiro veio à sua cabeça — temos mais de vinte e cinco mil só nessa agência.

— Eeee! — exclamou a velha. — Ser rico desse jeito! No momento em que botei os olhos em cima de você, soube que era da 14K... e certamente um Honorável 489.

— Sou mais do que isso — falou o jovem, prontamente, cheio de orgulho e bravata. — Sou... — Mas se deteve, lembrando-se das recomendações do seu líder para ser cauteloso, e deixou de dizer: "Sou Kin Sop-ming, Kin Bexiguento, e sou um dos famosos Lobisomens, e somos em número de quatro".

— Vá andando, Velha Senhora — falou, cansando-se dela. — Tenho coisas mais importantes a fazer do que papear com você.

Ela se levantou e fez uma reverência, e então seus olhos se detiveram no homem que estivera na fila, à sua frente. Era cantonense como ela. Era um comerciante rechonchudo que ela conhecia, dono de uma barraca de aves num dos fervilhantes mercados de Aberdeen.

— Sim — falou com voz rouca —, mas se quer outro freguês, estou vendo um que é moleza. Estava na fila, na minha frente. Retirou mais de oito mil dólares.

— É, onde? Onde está ele? — indagou o jovem, imediatamente.

— Por uma comissão de quinze por «cento?

— De sete... e fim de papo, sete!

— Está bem, sete. Ali, olhe lá! — sussurrou. — O gordo, redondo como um mandarim, de camisa branca... aquele que está suando como se acabasse de curtir o Nuvens e Chuva!

— Estou vendo.

O jovem levantou-se e caminhou rapidamente para interceptar o homem. Apanhou-o na esquina. O homem parou, petrificado, barganhou por algum tempo, pagou dezesseis por cento e se mandou, bendizendo a sua argúcia. O jovem voltou para junto dela.

— Tome, Velha Senhora — falou. — O sacana tinha oito mil cento e sessenta e dois dólares; dezesseis por cento dá...

— Dá mil trezentos e cinco dólares e noventa e dois cents, e os meus sete por cento são noventa e um dólares e quarenta e um cents — replicou ela, prontamente.

Ele pagou-lhe a quantia exata, e ela concordou em voltar no dia seguinte para lhe servir de olheira.

— Como se chama? — perguntou ele.

— Ah Su, senhor — replicou, dando-lhe um nome falso. — E o senhor?

— Mo Wu-fang — disse, usando o nome de um amigo.

— Até amanhã — disse ela, satisfeita. Agradecendo-lhe mais uma vez, lá se foi, radiante com o lucro do dia.

O lucro dele também fora bom. Agora, tinha mais de três mil no bolso, e pela manhã tinha apenas o suficiente para a passagem de ônibus. E fora tudo um golpe de pura sorte, pois viera de Glessing's Point para Aberdeen apenas para enviar outra nota de resgate pelo Chen da Casa Nobre.

— É por medida de segurança — dissera-lhe o pai, o líder deles. — Para lançar um rastro falso para a porra da polícia.

— Mas isso não nos trará dinheiro — ele respondeu, aborrecido, dirigindo-se ao pai e aos outros. — Como vamos apresentar o sacana do filho, se já está morto e enterrado? Você pagaria sem alguma prova de que ele estava vivo? Claro que não! Foi um erro bater-lhe com a pá.

— Mas o cara estava tentando fugir! — disse o irmão.

— É verdade, Irmão Mais Moço. Mas o primeiro golpe não o matou, apenas entortou-lhe um pouquinho a cabeça. Você devia ter parado por ali.

— E teria parado, mas os maus espíritos entraram dentro de mim, por isso bati nele de novo. Só bati nele quatro vezes! Eeee, mas esses grã-finos têm os crânios moles!

— É, tem razão — disse o pai. Era baixo e careca, com muitos dentes de ouro, e chamava-se Kin Careca. — Dew neh loh moh, mas já está feito, portanto não resolve nada ficar lembrando. Foi azar. A culpa foi dele, por tentar fugir! Já viu a primeira edição do Times?

— Não... ainda não, Pai — replicara.

— Deixe que eu leia para você: "O chefe de polícia disse hoje que prenderam um tríade que suspeitam seja um dos Lobisomens, a perigosa quadrilha de criminosos que seqüestrou John Chen. As autoridades esperam resolver o caso a qualquer momento".

Todos riram, ele, o irmão mais moço, o pai e o último membro, seu grande amigo Chen Vincado — Pun Po Chen —, pois sabiam que era tudo mentira. Nenhum deles era tríade ou tinha ligações com as tríades, e nenhum jamais fora preso por qualquer crime, anteriormente, embora houvessem formado sua própria irmandade, e o pai costumasse dirigir, de tempos em tempos, um pequeno sindicato de jogo em North Point. Fora o pai que propusera o primeiro seqüestro. "Eeee, que esperteza!", pensou, recordando. E quando John Chen, infelizmente, buscara a própria morte ao tentar fugir, estupidamente, o pai também sugerira que lhe cortassem a orelha e a enviassem à família.

— Transformaremos o azar dele na nossa boa sorte. "Matar um para aterrorizar dez mil!" O envio da orelha aterrorizará Hong Kong inteira e nos tornará famosos e ricos!

"É", pensou, sentado ao sol em Aberdeen. "Mas ainda não ganhamos riqueza alguma." Por isso, naquela manhã, ele dissera ao pai:

— Não me incomodo de ir longe para botar a carta no correio, pai. É sensato, e é o que Humphrey Bogart ordenaria. Mas ainda não acho que isso nos traga qualquer recompensa.

— Fique quieto e escute! Tenho um novo plano digno do próprio Al Capone. Esperamos alguns dias. Depois, ligamos para o Chen da Casa Nobre. Se não recebermos o dinheiro imediatamente, seqüestramos o próprio Phillip Chen! O Grande Pão-Duro Chen em pessoa!

Todos o fitaram, assombrados.

— É, e acham que ele não vai pagar rapidinho, depois de ver a orelha do filho? Claro que lhe diremos que era a orelha do filho... quem sabe até possamos desenterrar o corpo e mostrar para ele, heya?

Kin Bexiguento sorriu de orelha a orelha, lembrando-se de como todos haviam rido. Ah, como haviam rido, segurando a barriga, quase rolando no chão do seu apartamento de cortiço.

— Bem, vamos aos negócios. Chen Vincado, precisamos dos seus conselhos de novo.

Chen Vincado era um primo afastado de John Chen, e trabalhava para ele como gerente de uma das múltiplas companhias Chen.

— Sua informação sobre o filho foi perfeita. Quem sabe não poderá nos fornecer também os movimentos do pai?

— Claro, Honrado Líder, é fácil — disse Chen Vincado. — É um homem metódico... e muito assustadiço. E sua tai-tai também... ayeeyah, aquela piranha hipócrita sabe muito bem o quanto ele vale! Pagará rapidinho para tê-lo de volta. É, estou certo de que ele agora estará muito disposto a cooperar. Mas teremos que pedir o dobro do que queremos, porque ele é um negociador de mão cheia. Trabalho para a porra da Casa de Chen desde que me entendo por gente. Portanto, conheço bem o quanto ele é pão-duro.

— Excelente. Agora, por todos os deuses, como e quando deveremos seqüestrar o Chen da Casa Nobre em pessoa?

 

                 16h01m

Sir Dunstan Barre foi conduzido ao escritório de Richard Kwang com a deferência a que achava que tinha direito. O Edifício Ho-Pak era pequeno e despretensioso, numa transversal, a Ice House Street, na zona central, e o escritório era como a maioria dos escritórios chineses: pequeno, atravancado e modesto, um lugar de trabalho, não de ostentação. Na maioria das vezes, duas ou três pessoas dividindo um único escritório, dirigindo dali dois ou três negócios separados, partilhando o mesmo telefone e a mesma secretária. E por que não?, diria um homem sensato. Um terço das despesas gerais significa mais lucro pela mesma quantidade de mão-de-obra.

Mas Richard Kwang não compartilhava o seu escritório. Sabia que aquilo não agradava aos seus clientes quai loh... e os poucos que tinha eram importantes para o banco e para ele próprio, pelo prestígio e pelos benefícios suplementares muito ambicionados que podiam trazer. Como a possível e, ah, tão importante eleição para membro com direito a voto do super-fechado Turf Club, ou o título de sócio do Hong Kong Golf Club ou do Cricket Club... ou até mesmo para o Clube... ou qualquer outro dos clubes menores, mas igualmente exclusivos, que eram firmemente controlados pelos tai-pans britânicos das grandes hongs, onde todos os negócios que realmente contavam aconteciam.

— Alô, Dunstan — cumprimentou, afavelmente. — Como vão indo as coisas?

— Bem. E com você?

— Muito bem. Meu cavalo fez um grande treino, hoje de manhã.

— É. Eu estive no prado, hoje.

— Ah, não o vi!

— Só dei uma passadinha de um ou dois minutos. Meu capão está com uma ponta de febre... talvez não possa correr no sábado. Mas Butterscotch Lass estava voando, hoje de manhã.

— Quase quebrou o recorde da pista. Vai ser dura na queda, no sábado!

Barre deu uma risadinha abafada.

— Falo com você pouco antes da hora da corrida, e você poderá me dar as dicas, então! Nunca se pode confiar em treinadores e jóqueis, não é?... os seus, os meus, ou os de qualquer outra pessoa!

Bateram papo, com naturalidade, e depois Barre chegou aonde queria.

Richard Kwang tentou disfarçar o seu choque.

— Fechar todas as contas da sua companhia?

— É, meu velho. Hoje. Lamento muito, e coisa e tal, mas a minha diretoria acha que no momento é a atitude sensata a tomar, até vocês supera...

— Mas vocês pensam mesmo que estamos em dificuldades? — Richard Kwang riu. — Não leu o artigo do Haply no Guardian? "...mentiras maliciosas difundidas por certos tai-pans e um certo grande banco..."

— Ah, sim, li. Mais baboseiras dele, diria eu. Ridículo! Espalhar boatos? Por que alguém agiria assim? Conversei tanto com Paul Havergill quanto com Southerby hoje de manhã, e eles disseram que é bom Haply se cuidar, dessa vez, pois, se insinuar que são eles, vão processá-lo por difamação. Aquele rapaz merece uma boa surra! Bem... mas eu gostaria de um cheque administrativo, agora... lamento, mas sabe como são as diretorias.

— Sim, claro que sei. — Richard Kwang manteve o sorriso na face, mas intimamente odiava o homem grande e rosado mais do que de costume. Sabia que a diretoria apenas corroborava as decisões de Barre. — Não temos problemas. Somos um banco de um bilhão de dólares. Quanto à agência de Aberdeen, aquilo não passa de uma gentinha supersticiosa.

— É, eu sei. — Barre o observava. — Ouvi dizer que teve alguns problemas na sua agência de Mong Kok, hoje à tarde, também, e em Tsim Sha Tsui... em Sha Tin, nos Novos Territórios, e até mesmo, Deus nos ajude, em Lan Tao.

A ilha de Lan Tao ficava uns dez quilômetros a leste de Hong Kong, a maior ilha do arquipélago de quase trezentas ilhas que formavam a colônia... mas quase sem população, porque não tinha água.

— Alguns clientes sacaram suas economias — declarou Richard Kwang, com escárnio. — Não há problemas.

Mas havia problemas. Ele sabia, e temia que todos soubessem. A princípio, fora apenas em Aberdeen. Depois, durante o dia, os outros gerentes começaram a ligar para ele, com ansiedade crescente. Ele tinha dezoito agências espalhadas por toda a colônia. Em quatro delas, as retiradas foram pesadas e fora do comum. Em Mong Kok, uma colméia agitada dentro da cidade fervilhante de Kowloon, formara-se uma fila no começo da tarde. Todos queriam o seu dinheiro, integralmente. Não se comparava às proporções assustadoras de Aberdeen, mas fora o suficiente para demonstrar nitidamente uma queda de confiança. Richard Kwang compreendia que as aldeias marítimas logo soubessem dos saques de Wu Quatro Dedos e se apressassem a segui-lo... mas e quanto a Mong Kok? Por que ali? E por que Lan Tao? Por que em Tsim Sha Tsui, sua agência mais rendosa, que ficava quase ao lado do movimentado Terminal da Balsa Dourada, por onde cento e cinqüenta mil pessoas passavam diariamente, indo e vindo de Hong Kong?

Devia ser uma conspiração!

"Será que meu inimigo e arquirival Ching Sorridente está por detrás disso? Será que são aqueles sacanas, aqueles sacanas invejosos do Blacs ou do Victoria?

"Será o Tubo Fino de Bosta Havergill o cérebro do ataque? Ou será Compton Southerby, do Blacs? Ele sempre me odiou. Esses quai loh nojentos! Mas por que me atacar? Claro que sou muito melhor banqueiro do que eles, e que eles me invejam, mas lido com gente civilizada e mal lhes faço concorrência. Por quê? Ou será que, de alguma forma, transpirou que, contra os meus conselhos, superando as minhas objeções, meus sócios que controlam o banco têm insistido em que eu peça emprestado a curto prazo e com juros baixos, e empreste a longo prazo e com juros altos, em transações com bens imóveis, e agora, graças à estupidez deles, estamos em dificuldades temporárias e não podemos cobrir uma corrida ao banco?"

Richard Kwang tinha vontade de gritar, berrar, arrancar os cabelos. Seus sócios secretos eram Lando Mata e Tung Pão-Duro, os maiores acionistas do sindicato de jogo e ouro de Macau, além de Mo Contrabandista. Todos o tinham ajudado a formar e financiar o Ho-Pak, há dez anos.

— Leu as previsões do Velho Cego Tung essa manhã? — perguntou, o sorriso ainda grudado no rosto.

— Não. O que foi que disse?

Richard Kwang apanhou o jornal e passou-o para o outro.

"Todos os presságios indicam que estamos prontos para uma alta repentina. O 8 da sorte está nos céus, em toda parte, e estamos no oitavo mês, meu aniversário é no dia 8 do oitavo mês..."

Barre leu a coluna. Apesar de sua descrença em videntes, estava na Ásia há tempo demais para ignorá-los totalmente. Seu coração bateu mais depressa. O Velho Cego Tung tinha uma bela reputação em Hong Kong.

— Se a gente for acreditar nele, estamos à beira da maior alta na história do mundo — falou.

— Geralmente ele é bem mais cauteloso. Ayeeyah, seria bom, heya?

— Melhor do que bom. Enquanto isso, Richard, meu velho, vamos acertando as nossas contas, está bem?

— Certamente. É tudo um tufão dentro de uma concha de ostra, Dunstan. Estamos mais fortes do que nunca... nossas ações mal caíram um ponto. — Quando a Bolsa abrira, tinha havido uma massa de pequenas ofertas de venda, que, se não sofressem uma pronta reação, teriam feito suas ações baixarem loucamente. Richard Kwang havia ordenado instantaneamente aos seus corretores para comprar e continuar comprando. Isso estabilizara as ações. Durante o dia, para manter a posição, tivera que comprar quase cinco milhões de ações, um número absurdo para ser negociado num só dia. Nenhum dos seus peritos soube precisar quem estava vendendo alto. Não havia motivo para falta de confiança, exceto pelos saques de Wu Quatro Dedos. Que todos os deuses amaldiçoassem aquele velho demônio e o sacana do seu sobrinho metido a sabido, ex-estudante de Harvard! — Por que não dei...

O telefone tocou.

— Com licença — disse. Depois, secamente, ao aparelho:

— Falei que não queria interrupções!

— É o Sr. Haply, do Guardian, disse que é importante

— falou sua secretária e sobrinha, Mary Yok. — E a secretária do tai-pan ligou. A reunião de diretoria da Nelson Trading foi antecipada para hoje, às cinco da tarde. O Sr. Mata telefonou avisando que também vai comparecer a ela.

O coração de Richard Kwang falhou três batidas. "Por quê?", perguntou-se, estupefato. "Dew neh loh moh, ela devia ser adiada para a semana que vem. Oh ko, por quê?" Afastou da cabeça rapidamente a pergunta para considerar Haply. Concluiu que atender agora, na frente de Barre, era perigoso demais.

— Ligo para ele daqui a alguns minutos. — Sorriu para o homem de rosto vermelho, à sua frente. — Deixe tudo como está por um dia ou dois, Dunstan, não estamos com problemas.

— Não posso, meu velho, desculpe. Houve uma reunião especial, tenho que resolver hoje. A diretoria insistiu.

— Temos sido generosos, no passado... vocês têm quarenta milhões do nosso dinheiro não garantido, agora... vamos investir mais setenta milhões junto com vocês, no seu' novo programa de construções.

— É verdade, Richard, e seu lucro será substancial. Mas isso é outra história, e aqueles empréstimos foram negociados em boa fé faz meses, e serão pagos em boa fé quando chegar a hora do vencimento. Nunca falhamos num pagamento ao Ho-Pak, ou a outro qualquer. — Barre devolveu o jornal e, junto com ele, documentos assinados e carimbados com o selo da companhia. — As contas são consolidadas, portanto um cheque será o bastante.

A quantia passava um pouco de nove milhões e meio.

Richard Kwang assinou o cheque administrativo e acompanhou Sir Dunstan Barre até a porta, sorrindo; depois, quando era seguro, xingou todo mundo à vista, e voltou para o seu escritório, batendo com força a porta atrás de si. Chutou a mesa, depois pegou o telefone e berrou para a sobrinha que completasse a ligação para Haply, e quase quebrou o aparelho ao repô-lo no gancho.

— Dew neh loh moh para todos os quai loh nojentos — berrou para o teto, e depois sentiu-se muito melhor. "Esse bolo de carne de cachorro! Será que... ah, será que posso pedir ao Cobra para impedir a formação de filas, amanhã? Talvez ele e seus homens pudessem quebrar alguns braços."

Sombriamente, Richard Kwang deixou o pensamento vagar. Fora uma merda de dia. Já começara mal no prado. Tinha certeza de que seu treinador (ou o jóquei) estava dando estimulantes a Butterscotch Lass para fazê-la correr mais depressa, para torná-la a favorita... depois, no sábado, cortariam os estimulantes, apostariam num azarão e ganhariam uma nota, sem que ele participasse dos lucros. "Ossos de cão sujos, todos eles! Mentirosos! Acham que sou dono de um cavalo de corrida para perder dinheiro?"

O banqueiro escarrou e cuspiu na escarradeira.

"Barre boca de verme, e Tio Wu osso de cachorro! As retiradas deles acabarão com a maioria do meu dinheiro. Não faz mal. Com Lando Mata, Mo Contrabandista, Tung Pão-Duro e o tai-pan, estou bem seguro. Ah, terei que gritar, berrar, xingar e chorar, mas nada pode realmente tocar-me, ou ao Ho-Pak. Sou importante demais para eles."

É, fora uma merda de dia. O único ponto alto fora o seu encontro matinal com Casey. Curtira olhar para ela, curtira seu jeito americano de vida ao ar livre, cheiroso, vivo, elegante. Haviam esgrimido agradavelmente sobre financiamento, e estava certo de que poderia conseguir todos, ou pelos menos parte dos seus investimentos. Era evidente que os lucros seriam imensos. "Ela é tão ingênua", pensou. "Seu conhecimento de finanças e operações bancárias é impressionante, mas não conhece coisa alguma do mundo asiático! É tão ingênua, falando abertamente dos planos deles. Graças a todos os deuses pelos americanos!"

— Adoro os Estados Unidos, srta. Casey. É. Duas vezes por ano vou até lá, para comer bons bifes e ir a Las Vegas... e para tratar de negócios, é claro.

"Eeee", pensou, satisfeito, "as prostitutas do País Dourado são as quai loh melhores e mais disponíveis do mundo, e as quai loh são tão baratas, comparadas às garotas de Hong Kong! Oh, oh, oh! Sinto-me tão bem indo para a cama com elas, com suas grandes axilas desodorizadas, suas grandes mamas, coxas e bundas! Mas, em Las Vegas, é que há as melhores. Lembra a beldade de cabelos dourados, tão mais alta que você, mas que deitada..."

Seu telefone particular tocou. Atendeu, irritado como sempre por ter tido que instalá-lo. Mas não tivera escolha. Quando sua secretária anterior, que o servira durante muitos anos, saíra para se casar, a mulher dele colocara a sobrinha favorita no lugar dela. "Claro que para me espionar", pensou, com azedume. "Eeee, o que pode um homem fazer?"

— Sim? — perguntou, imaginando o que a mulher queria, agora.

— Você não ligou para mim o dia todo... Há horas que estou esperando!

Seu coração deu um salto, ao som inesperado da voz da garota. Ignorou a petulância dela, seu cantonense doce como o seu Portão de Jade.

— Ouça, Tesourinho — falou, apaziguadoramente. — Seu pobre Pai esteve muito ocupado hoje. Tive...

— Você não quer mais a sua pobre Filha. Vou ter que me jogar na baía, ou achar outra pessoa para cuidar de mim, oh, oh, oh...

A pressão sangüínea dele subiu ao escutar o som das lágrimas da moça.

— Escute, sua bajuladorazinha, vejo você logo mais às dez horas. Vamos comer um banquete de oito pratos em Wan-chai, no meu restau...

— Dez horas é muito tarde, e não quero nenhum banquete, quero um bife e quero ir para a cobertura do Victoria e tomar champanha!

O espírito dele gemeu à idéia do perigo de ser visto e delatado secretamente para a sua tai-tai. Oh, oh, oh! Mas perante os amigos e inimigos e toda a Hong Kong ele ficaria prestigiadíssimo por levar ao Victoria a sua nova amante, a jovem e exótica estrela que subia no firmamento da TV, Vênus Poon.

— Apanho você às dez...

— Dez é muito tarde. Nove.

Rapidamente, tentou escalonar todas as suas reuniões para aquela noite, para ver como poderia encaixá-la. — Escute, Tesourinho, vou ver...

— Dez é muito tarde. Nove. Acho que vou morrer, já que você não gosta mais de mim.

— Ouça. O seu Pai tem três reuniões, e ach...

— Ah, minha cabeça dói só de pensar que você não me quer mais, oh, oh, oh. Esta pessoa abjeta terá que cortar os pulsos ou... — Ele notou a alteração na voz dela, e seu estômago se revirou com a ameaça. — Ou atender aos telefonemas de outros, inferiores ao amado Pai, é claro, mais igualmente ricos em...

— Está certo, Tesourinho. Às nove!

— Ah, você me ama, não é? — Embora estivesse falando em cantonense, Vênus Poon usou a palavra inglesa, e o coração dele deu uma cambalhota. O inglês era o idioma do amor para os chineses modernos. Não havia palavras românticas na língua deles. — Diga! — ordenou, imperiosamente. — Diga que me ama!

Ele lhe disse, abjetamente, depois desligou. "Piranha safadinha", pensou com irritação. "Mas, afinal, aos dezenove anos, ela tem o direito de ser exigente, petulante e difícil, pois você está com quase sessenta, e ela o faz se sentir como se tivesse vinte, e torna feliz o Yang Imperial. Eeee, mas Vênus Poon é a melhor que já possuí. Eeee, e tem músculos na sua Ravina Dourada iguais aos que descreveu o lendário imperador Kung!"

Sentiu o seu yang se excitar, e coçou-o, satisfeito. "Vou aprontar com aquela garota hoje", pensou. "Vou comprar um dispositivo especialmente grande, ah, sim, um anel cheio de sinos. Oh, oh, oh. Como ela vai se contorcer!

"É, mas nesse meio tempo, trate de pensar em amanhã. Como preparar-se para amanhã?

"Ligue para o seu amigo Grande Dragão, sargento comissionado Tang-po, em Tsim Sha Tsui, e peça sua ajuda para que a agência dele e todas as agências de Kowloon sejam bem policiadas. Ligue para o Blacs e para o Primo Tung, do enorme Tung Po Bank, e para o Primo Ching Sorridente e Havergill, para pedir dinheiro, dando como garantia os títulos e propriedades do Ho-Pak. Ah, sim, e telefone para o seu grande amigo, Joe Jacobson, vice-presidente do Chicago Federal and International Merchant Bank — o banco dele tem um ativo de quatro bilhões, e ele lhe deve muitos favores. Muitos. Existem muitos quai loh que têm dívidas profundas para com você, e gente civilizada. Ligue para todos!

Abruptamente, Richard Kwang acordou dos seus devaneios ao se lembrar do chamado do tai-pan. Sua alma se contorceu. Os depósitos da Nelson Trading em barra e espécie eram imensos. "Oh ko, se a Nel..."

O telefone tocou, irritantemente.

— Tio, o Sr. Haply está ao aparelho.

— Alô, Sr. Haply, que prazer falar com o senhor! Desculpe por não tê-lo atendido antes.

— Tudo bem, Sr. Kwang. Só queria verificar um ou dois fatos, se puder. Primeiro, o levante em Aberdeen. A polícia fo...

— Não se pode falar em levante, Sr. Haply. Algumas pessoas ruidosas e impacientes, só isso — falou, desprezando o sotaque canadense-americano de Haply, e a necessidade de ser cortês.

— Estou olhando para umas fotos neste momento, Sr. Kwang, as que foram publicadas no Times desta tarde... para mim parece um levante.

O banqueiro se retorceu na cadeira e lutou para manter a voz calma.

— Ah... bem, eu não estava lá... Terei que conversar com o Sr. Sung.

— Já o fiz, Sr. Kwang. Às três e meia. Passei meia hora com ele, que me contou que, se não fosse pela polícia, o povo teria destruído o banco. — Ligeira hesitação. — O senhor está certo, tentando minimizar a coisa. Mas, escute, estou tentando ajudar e não posso, sem os fatos. Portanto, seja sincero comigo... Quantas pessoas sacaram em Lan Tao?

— Dezoito — disse Richard Kwang, cortando o número pela metade.

— O nosso homem falou em trinta e seis, e oitenta e duas em Sha Tin. E quanto a Mong Kok?

— Um punhado.

— Meu informante falou em quarenta e oito, e que havia uma fila de mais de cem na hora do encerramento. E quanto a Tsim Sha Tsui?

— Ainda não estou com o número nas mãos, Sr. Haply — retrucou Richard Kwang suavemente, consumido de ansiedade, odiando aquele interrogatório em stacatto.

— Todas as edições vespertinas estão fervendo com acorrida ao Ho-Pak. Alguns jornais estão até empregando a palavra.

— Ohko...

— É isso aí. Acho melhor o senhor se preparar para um dia quente amanhã, Sr. Kwang. Diria que sua oposição está muito bem organizada. Tudo está se encaixando bem demais para ser uma simples coincidência.

— Agradeço de verdade o seu interesse. — A seguir, Richard Kwang perguntou, delicadamente: — Se houver algo que eu possa fa2er...

Novamente a risada irritante.

— Algum dos seus grandes depositantes já sacou tudo, hoje?

Richard Kwang hesitou uma fração de segundo, e ouviu Haply aproveitar rapidamente a brecha:

— Claro que já sei sobre Wu Quatro Dedos. Estou me referindo às grandes hongs britânicas.

— Não, Sr. Haply, ainda não.

— Corre um forte boato de que as Fazendas de Hong Kong e Lan Tao vão mudar de banco.

Richard Kwang sentiu uma pontada no seu Saco Secreto.

— Vamos torcer para que não seja verdade, Sr. Haply. Quem são os tai-pans e os grandes bancos? É o Victoria ou o Blacs?

— Talvez seja chinês. Lamento, mas não posso divulgar uma fonte de informações. Mas é melhor o senhor se organizar... está na cara que os grandalhões estão atrás do senhor.

 

                     16h25m

— Eles não dormem juntos, tai-pan — disse Claudia Chen.

— Hem? — falou Dunross, levantando os olhos distraidamente da pilha de papéis que estava folheando.

— Não. Pelo menos ontem não dormiram.

— Quem?

— Bartlett e a sua Cirrannousshee. Dunross parou de trabalhar.

— É?

— É. Quartos separados, camas separadas, café da manhã juntos na sala principal, os dois arrumadinhos, vestindo robes modestos, o que é interessante, já que nenhum deles veste nada para dormir.

— Verdade?

— Não, pelo menos ontem não vestiram.

Dunross abriu um sorriso, e ela ficou contente porque sua fofoca o deixara satisfeito. Era o seu primeiro sorriso real do dia. Desde que ela chegara, às oito, ele estivera trabalhando como um alucinado, saindo às pressas para reuniões, voltando novamente às pressas: a polícia, Phillip Chen, o governador, duas vezes para o banco, uma vez para a cobertura, para encontrar-se com alguém que ela ignorava. Nem tivera tempo para almoçar, e o porteiro lhe contara que o tai-pan chegara ao alvorecer.

Hoje ela vira o peso sobre o seu espírito, o peso que mais cedo ou mais tarde vergava todos os tai-pans... e às vezes os quebrava. Vira o pai de Ian ir se consumindo com as imensas perdas de navios durante a guerra, a perda catastrófica de Hong Kong, dos filhos e sobrinhos... azar em cima de azar. Fora a perda do continente chinês que finalmente o destroçara. Ela vira como Suez derrubara Alastair Struan, como esse tai-pan nunca se recuperara daquele desastre, e como azar se empilhara sobre azar, para ele, até que a corrida para a venda de suas ações, organizada por Gornt, o destroçara.

"Deve ser uma tensão terrível", pensou. "Toda a nossa gente com quem se preocupar, e a nossa Casa, todos os nossos inimigos, todas as inesperadas catástrofes da natureza e do homem, que parecem estar onipresentes... e todos os pecados, piratarias e diabruras do passado que estão esperando para saltar de dentro da nossa própria caixa de Pandora, o que acontece de vez em quando. É uma pena que os tai-pans não sejam chineses", pensou. "Então os pecados do passado seriam bem mais leves."

— O que lhe dá tanta certeza, Claudia?

— Nenhuma roupa de dormir, para nenhum dos dois... pijamas ou coisinhas transparentes.

Abriu um sorriso de orelha a orelha.

— Como sabe?

— Por favor, tai-pan, não posso revelar as minhas fontes!

— O que mais sabe?

— Ah! — exclamou, depois mudou serenamente de assunto. — A reunião de diretoria da Nelson Trading é daqui a meia hora. O senhor queria que eu lhe lembrasse. Pode me dar alguns minutos antes dela?

— Sim. Daqui a um quarto de hora. Agora — disse ele, com um tom resoluto na voz, que ela conhecia muito bem. — O que mais você sabe?

Ela soltou um suspiro, depois consultou seu bloquinho com ar de importância.

— Ela nunca se casou. Oh, muitos pretendentes, mas nenhum durou, tai-pan. Na verdade, segundo os boatos, nenhum jamais...

Dunross ergueu alto as sobrancelhas.

— Está querendo dizer que ela é virgem?

— Disso não temos certeza... sabemos apenas que não tem a reputação de ficar fora até tarde, ou de passar a noite na companhia de cavalheiros. Não. O único cavalheiro com quem sai socialmente é o Sr. Bartlett, e mesmo assim, não com muita freqüência. Exceto em viagens de negócios. Ele, a propósito, tai-pan, é um belo de um paquerador, foi o termo usado. Nada de uma só moça, mas...

— Usado por quem?

— Ah! O Sr. Bonitão Bartlett não tem uma garota especial, tai-pan. Nada firme, como dizem. Divorciou-se em 1956, no mesmo ano em que a sua Cirrrannnousshee entrou na firma dele.

— Ela não é a minha Ciranoush — disse ele.

Claudia abriu um sorriso mais amplo.

— Está com vinte e seis anos, e é sagitariana.

— Você arranjou alguém para roubar o passaporte dela... ou para dar uma espiada nele?

— Pela madrugada! Não, tai-pan. — Claudia fingiu estar chocada. — Não espiono as pessoas. Só faço perguntas. Mas aposto cem que ela e o Sr. Bartlett foram amantes, numa época ou noutra.

— Essa aposta não vale, eu ficaria atônito se não fossem. Ele está apaixonado por ela, sem dúvida... e ela por ele. Viu como dançavam juntos. Isso não é aposta que se faça.

As ruguinhas à volta dos olhos dela se aprofundaram.

— Quanto me dá de vantagem se eu apostar que nunca foram amantes?

— Hem? O que você está sabendo?.— perguntou, desconfiado.

— Quanto me dá, tai-pan?

Ele a observou, atento, depois disse:

— Mil contra... não, dou dez contra um.

— Feito! Cem. Obrigada, tai-pan. Agora, quanto à Nels...

— Onde arranjou toda essa informação, hem?

Ela extraiu um telex do meio dos papéis que carregava. O resto, colocou na bandeja de entrada de expediente, na mesa dele.

— O senhor mandou um telex para o nosso pessoal em Nova York, anteontem, pedindo que arranjassem informações sobre ela, e verificassem o dossiê de Bartlett. Isto acaba de chegar.

Ele tomou o telex das mãos dela, e correu os olhos pelo papel. Lia muito rapidamente, e tinha uma memória quase fotográfica. O telex dava as informações que Claudia relatara, em termos simples, sem a interpretação floreada dela, e acrescentava que K. C. Tcholok não tinha ficha na polícia, tinha quarenta e seis mil dólares numa caderneta de poupança no Banco de Poupança e Empréstimos de San Fernando, e oito mil e setecentos dólares na sua conta corrente no Los Angeles and Califórnia Bank.

— É chocante a facilidade com que nos Estados Unidos se descobre quanto uma pessoa tem num banco, não é, Claudia?

— Chocante. Jamais me utilizaria de um, tai-pan. Ele deu um largo sorriso.

— Exceto para pedir um empréstimo! Claudia, basta me dar o telex, da próxima vez.

— Sim, tai-pan. Mas meu jeito de contar certas coisas não é mais excitante?

— É. Mas onde é que fala aí em nudez? Foi você que inventou!

— Ah, não, isso eu soube da minha própria fonte, aqui. A Terceira Camarei...

Claudia se deteve, mas era tarde demais, e já caíra na armadilha.

O sorriso dele era angelical.

— Ora vejam só! Uma espiã no Victoria! Uma Terceira Camareira! Quem? Qual delas, Claudia?

Para não desmoralizá-lo, ela fingiu estar aborrecida.

— Ayeeyah! Uma espiã-chefe não pode revelar nada, heya? — O sorriso dela era bondoso. — Eis aqui uma lista dos seus telefonemas. Adiei o máximo que pude para amanhã... avisarei o senhor na hora da reunião.

Ele fez que sim com a cabeça, mas ela viu que o sorriso dele havia desaparecido, e estava de novo imerso em seus pensamentos. Ela saiu, e ele nem ouviu a porta se fechar. Estava pensando em espiões-chefes, Alan Medford Grant e sua reunião com Brian Kwok e Roger Crosse, pela manhã, às dez horas, e a reunião que teria às dezoito horas.

A reunião matinal fora curta, brusca e tempestuosa.

— Primeiro, alguma novidade sobre Alan Medford Grant? — indagara.

Roger Crosse respondera imediatamente:

— Aparentemente, foi mesmo um acidente. Nenhuma marca suspeita no corpo dele, ninguém foi visto nas proximidades, não havia marcas de carros, marcas de impacto ou de derrapagem... exceto as da motocicleta. Agora, Ian, quanto às pastas... oh, a propósito, sabemos agora que você tem as únicas cópias existentes.

— Lamento, mas não posso fazer o que me pedem.

— Por quê?

Havia uma nota de azedume na voz do policial.

— Ainda não estou admitindo ou negando que elas existam, mas...

— Ora, pela madrugada, Ian, não seja ridículo! Claro que as cópias existem. Acha que somos idiotas? Se elas não existissem, você teria dito logo ontem à noite, sem rodeios. Aconselho-o severamente a nos deixar copiá-las.

— E eu o aconselho severamente a controlar mais o seu mau gênio.

— Se acha que me descontrolei, Ian, então sabe muito pouco a meu respeito. Estou lhe pedindo, formalmente, que apresente esses documentos. Se recusar, usarei dos poderes que me concede a Lei dos Segredos Oficiais, às seis horas de hoje à tarde, e tai-pan ou não, da Casa Nobre ou não, amigo ou não, às seis e um você será preso, incomunicável, e nós revistaremos todos os seus documentos, cofres, caixas de depósito bancário, até encontrá-las! Agora, queira ter a gentileza de nos entregar as pastas!

Dunross lembrou-se do rosto esticado e dos olhos gelados a fitá-lo, do seu amigo verdadeiro Brian Kwok em estado de choque.

— Não.

Crosse soltara um suspiro. A ameaça contida naquele som fizera com que um arrepio o percorresse.

— Pela última vez, por quê?

— Porque, nas mãos erradas, acho que seriam prejudiciais à Sua Majes...

— Santo Deus, sou o chefe do Serviço Especial de Informações!

— Eu sei.

— Então queira fazer a gentileza de atender o meu pedido.

— Lamento. Passei a maior parte da noite tentando descobrir uma maneira segura de da...

Roger Crosse se pusera de pé.

— Voltarei logo mais, às seis horas, para buscar as pastas. Não as queime, Ian. Eu saberei se você tentar, e você será impedido. Seis horas.

Na noite anterior, enquanto a casa dormia, Dunross fora ao seu escritório e relera os relatórios. Ao relê-los agora, sabendo da morte de Alan, do seu possível assassinato, do envolvimento da MI-5 e da Ml-6, provavelmente do KGB, da ansiedade espantosa de Crosse, imaginando que talvez parte daquele material não estivesse ainda à disposição do serviço secreto, pensando na possibilidade de que muitas das coisas que ele achara exageradas demais talvez não o fossem... agora todos os relatórios ganhavam uma nova importância. Alguns deles o deixaram alucinado.

Entregar os relatórios era arriscado demais. Guardá-los, agora, era impossível.

Na quietude da noite, Dunross pensara em destruí-los. Finalmente, concluiu que era seu dever não fazê-lo. Por um momento, pensou em deixá-los abertamente sobre a sua mesa, as portas envidraçadas escancaradas dando para a escuridão do terraço, e ir para a cama dormir. Se Crosse estava tão preocupado com os papéis, então ele e seus homens o estariam vigiando. Trancá-los no cofre não era seguro. Já haviam mexido no cofre uma vez, mexeriam de novo. Nenhum cofre era à prova de um ataque profissional completo e organizado.

Lá, na escuridão, os pés para o alto, confortavelmente, sentira a excitação borbulhando, o calor magnífico, intoxicante, gostoso do perigo a cercá-lo, perigo físico. De inimigos próximos. De estar por um fio, entre a vida e o vácuo. A única coisa que atrapalhava o seu prazer era saber que a Struan estava sendo atraiçoada por gente de dentro, a mesma pergunta sempre a remoê-lo: o espião da Sevrin era o mesmo que entregara os segredos deles para Bartlett? Um dos sete? Alastair, Phillip, Andrew, Jacques, Linbar, David MacStruan, em Toronto, ou o pai dele. Impossível acreditar que fosse qualquer um deles.

Sua mente examinara cada um. Clinicamente, sem paixão. Todos tinham oportunidade, todos o mesmo motivo: inveja e ódio, nos mais variados graus. Mas nenhum deles venderia a Casa Nobre a um estranho. Nem um só deles. No entanto, um deles o tinha feito.

Quem?

As horas se passaram.

Quem? Sevrin. O que fazer com as pastas? Alan fora mesmo assassinado? Quanta coisa existente nos relatórios era verdade?

Quem?

A noite agora estava fresca, e o terraço o atraía. Caminhou sob as estrelas. A brisa e a noite lhe deram boas-vindas. Sempre adorara a noite. Voando sozinho acima das nuvens, à noite, era tão melhor do que de dia, as estrelas tão próximas, os olhos sempre atentos ao bombardeiro ou ao caça inimigo, o polegar a postos no gatilho... Ah, como a vida era simples, então. Matar ou ser morto.

Ficou parado ali, por certo tempo. Depois, descansado, voltou, trancou as pastas no cofre e ficou sentado na grande poltrona que dava para as portas envidraçadas, atento, matutando nas suas opções, escolhendo. Depois, satisfeito, cochilou cerca de uma hora, e acordou, como de costume, pouco antes da aurora.

Seu quarto de vestir dava para o escritório, que ficava ao lado do dormitório principal. Vestira-se informalmente e saíra. A estrada estava desimpedida. Abateu dezesseis segundos do seu recorde. Na cobertura da Struan, tomara banho, barbeara-se e vestira um terno de tropical. Depois dirigira-se ao seu gabinete, no andar inferior. O dia estava muito úmido, e o céu tinha uma aparência curiosa. "Uma tempestade tropical está a caminho", pensara. "Talvez tenhamos sorte e ela não passe por nós, como todas as outras, e traga chuva." Afastou-se das janelas e concentrou-se em dirigir a Casa Nobre.

Tinha que enfrentar uma pilha de telex chegados durante a noite, sobre todo tipo de negociações e empreendimentos, problemas e oportunidades comerciais em toda a colônia, e no exterior. De todos os pontos da bússola. Tão ao norte quanto o Yukon, onde a Struan tinha uma joint venture de prospecção de petróleo, junto com a gigantesca companhia canadense de madeira e mineração, a McLean-Woodley. Cingapura, Malásia, e tão ao sul quanto a Tasmânia, para frutas e minerais a serem transportados para o Japão. A oeste, para a Inglaterra, a leste, para Nova York, os tentáculos da nova Casa Nobre internacional com que Dunross sonhara estavam começando a se estender, ainda fracos, ainda especulativos e sem o sustento que ele sabia ser vital para o seu crescimento.

"Não importa. Logo serão fortes. A transação com a Par-Con fortalecerá nossa teia, Hong Kong será o centro da terra, e nós, o núcleo do centro. Graças a Deus pelo telex e pelos telefones."

— O Sr. Bartlett, por favor.

— Alô?

— Ian Dunross, bom dia. Desculpe incomodá-lo tão cedo. Poderíamos adiar o nosso encontro para as dezoito e trinta?

— Claro. Algum problema?

— Não. Só negócios. Estou com muita coisa acumulada.

— Alguma notícia de John Chen?

— Não, ainda não. Lamento. Avisarei a você logo que houver. Dê lembranças a Casey.

— Darei. Foi uma festa e tanto a de ontem à noite! Sua filha é uma graça!

— Obrigado. Chegarei ao hotel às dezoito e trinta. Naturalmente, Casey está convidada. Até logo mais, então.

Ah, Casey!, pensou.

Casey e Bartlett. Casey e Gornt. Gornt e Wu Quatro Dedos.

Naquele dia cedinho soubera notícias do encontro de Gornt com Wu Quatro Dedos, pelo último. Uma corrente de prazer correu pelo seu corpo ao saber que seu inimigo quase morrera. A Peak Road não era lugar para se perder os freios, pensou.

"Uma pena que o filho da mãe não tenha morrido. Isso me pouparia muita angústia." A seguir, deixou Gornt de lado e pensou de novo em Wu Quatro Dedos.

Juntando o inglês errado do velho marujo e o seu haklo, os dois conseguiam conversar direitinho. Wu lhe contara tudo o que pudera. O comentário de Gornt, aconselhando Wu a sacar seu dinheiro, era surpreendente. E motivo de preocupação. Aquilo, e o artigo de Haply.

"Será que o sacana do Gornt sabe de alguma coisa que não sei?"

Fora até o banco.

— Paul, o que está havendo?

— Com quê?

— Com o Ho-Pak.

— Oh, a corrida? Muito má para a nossa imagem bancária, tenho que admitir. Pobre Richard! Temos quase certeza de que ele tem todas as reservas de que precisa para superar essa crise, mas não sabemos direito a extensão dos seus compromissos. Claro que liguei para ele no momento em que li o artigo ridículo de Haply. Devo dizer-lhe, Ian, que também liguei para Christian Toxe e lhe disse, sem rodeios, que ele devia controlar os seus repórteres, e que era melhor ele cessar e desistir, senão ia ver.

— Contaram-me que havia uma fila no Tsim Sha Tsui.

— É? Dessa não sabia. Vou verificar. Mesmo assim, é certo que os bancos Ching Prosperity e Lo Fat o ajudarão. Meu Deus, ele fez do Ho-Pak uma importante instituição bancária. Se falisse, sabe lá Deus o que aconteceria. Nós mesmos tivemos algumas retiradas em Aberdeen. Não, Ian, vamos torcer para que tudo passe logo. Mudando de assunto, acha que vamos ter chuva? Está estranho, hoje, não é? O noticiário informou que pode estar chegando uma tempestade. Acha que vai chover?

— Não sei. Vamos torcer para que chova. Mas não no sábado!

— Meu Deus, isso mesmo! Se os páreos forem cancelados por causa da chuva, será terrível. Isso não pode acontecer. Oh, a propósito, Ian, a festa de ontem foi linda. Gostei de conhecer Bartlett e a namorada. Como vão indo as suas negociações com Bartlett?

— Muitíssimo bem! Ouça, Paul...

Dunross sorriu consigo mesmo, lembrando-se de como baixara o tom de voz, mesmo estando no escritório de Havergill... O referido escritório, que tinha uma vista que abrangia todo o distrito central, era forrado de livros, e à prova de som.

— Fechei meu negócio. São dois anos, inicialmente. Assinamos os papéis dentro de sete dias. Eles vão entrar com vinte milhões em dinheiro em cada um dos anos, e os anos seguintes poderão ser negociados.

— Parabéns, meu caro. Meus calorosos parabéns! E o pagamento à vista?

— Sete.

— Que maravilha! Isso cobre tudo, direitinho. Vai ser uma maravilha afastar o espectro da Toda do balanço... e com mais um milhão para o Orlin, bem, quem sabe lhe darão mais tempo, depois? Finalmente, você poderá esquecer todos os anos ruins e caminhar para um futuro muito rendoso.

— É.

— Já arranjou fretador para seus navios?

— Não. Mas terei os fretadores a tempo de saldar o nosso empréstimo.

— Notei que suas ações subiram dois pontos.

— Está só começando. Vão dobrar de valor, dentro de trinta dias.

— É. O que o faz pensar assim?

— A alta.

— Hem?

— É o que todos os sinais indicam, Paul. O pessoal está confiante. Nossa transação com a Par-Con vai liderar a alta, que já vem com atraso!

— Isso seria uma maravilha! Quando vai fazer a declaração inicial sobre a Par-Con?

— Na sexta, após o encerramento do expediente da Bolsa.

— Excelente. Concordo inteiramente. Quando chegar a segunda-feira, estará todo mundo embarcando nessa!

— Mas vamos manter o assunto em família, até lá.

— Naturalmente. Ah, você soube que Quillan quase morreu, ontem à noite? Depois da sua festa. Os freios dele falharam, na Peak Road.

— É, eu soube. Devia mesmo ter morrido... isso faria as ações da Segunda Grande Companhia subirem como um foguete, de felicidade!

— Pare com isso, Ian. Uma alta repentina, hem? Acha mesmo que vai haver?

— Sim, o bastante para comprar maciçamente. Que tal um milhão de crédito... para comprar ações da Struan?

— Pessoal... ou para a Casa?

— Pessoal.

— Ficaríamos com as ações?

— É claro.

— E se elas baixarem?

— Não baixarão.

— Mas, e se baixarem, Ian?

— O que você sugere?

— Bem, está tudo em família. Portanto acertemos assim: se estiverem dois pontos abaixo do preço do mercado no fechamento de hoje da Bolsa, podemos vender e debitar as perdas na sua conta?

— Três. A Struan vai dobrar de valor.

— Sei. Nesse meio tempo, fiquemos com dois, até você assinar o negócio com a Par-Con. A Casa já ultrapassou bastante o seu crédito. Fiquemos com dois, certo?

— Está bem.

"Estou seguro com dois", pensou Dunross novamente, tranqüilizando a si mesmo. "Acho eu."

Antes de sair do banco, passara pela sala de Johnjohn. Bruce Johnjohn, segundo vice-gerente, e futuro herdeiro de Havergill, era um sujeito atarracado e suave, com uma vitalidade de colibri. Dunross lhe contara as mesmas notícias. Johnjohn ficara igualmente satisfeito. Mas aconselhara cautela nos projetos de uma alta e, ao contrário de Havergill, ficara preocupadíssirno com a corrida ao Ho-Pak.

— Não estou gostando nada disso, Ian. Não me está cheirando bem.

— É. E quanto ao artigo de Haply?

— Qual! Tudo uma tolice. Não aprontamos esse tipo de coisa. O Blacs? A mesma bobagem. Por que desejaríamos eliminar um importante banco chinês, mesmo que pudéssemos? O Ching Bank pode ser o culpado. Quem sabe? Talvez o velho Ching Sorridente fosse capaz... há anos que ele e Richard são rivais. Podia ser uma combinação de meia dúzia de bancos, incluindo o Ching. Pode até mesmo ser que os depositantes de Richard estejam realmente assustados. Há uns três meses que ouço todo tipo de boato. Eles estão atolados em dúzias de negócios imobiliários dúbios. De qualquer modo, se ele afundar, isso nos afetará a todos. Tenha o máximo cuidado, Ian!

— Ficarei contente quando você estiver lá no andar superior, Bruce.

— Não subestime o Paul... é muito esperto, e tem sido excelente para Hong Kong e o banco. Mas tempos difíceis nos esperam na Ásia, Ian. Acho que você está agindo muito sensatamente, tentando diversificar para a América do Sul... é um mercado imenso, ainda não alcançado por nós. Já pensou na África do Sul?

— Como assim?

— Vamos almoçar juntos na semana que vem. Na quarta? Ótimo. Tenho uma idéia para você.

— É? Qual?

— Dá para esperar, amigão. Soube do que aconteceu com o Gornt?

— Soube.

— Incomum para um Rolls, não é?

— É.

— Ele está certíssimo de que pode tirar a Par-Con de você.

— Mas não vai.

— Viu Phillip, hoje?

— Phillip Chen? Não, por quê?

— Por nada.

— Por quê?

— Encontrei-o no prado. Parecia... bem, estava com uma cara horrível, muito perturbado. Ele está reagindo... está reagindo muito mal ao seqüestro de John.

— Você não sentiria o mesmo?

— Sim, sentiria. Mas nunca imaginei que ele e o Filho Número Um fossem tão unidos.

Dunross pensou em Adryon, em Glenna e no filho Duncan, que tinha quinze anos e estava de férias na fazenda de um amigo que criava ovelhas, na Austrália. "O que eu faria se um deles fosse seqüestrado? O que faria se recebesse pelo correio uma orelha mutilada?

"Ficaria louco.

"Ficaria louco de ódio. Esqueceria tudo o mais e sairia à caça dos seqüestradores, e então, então minha vingança duraria mil anos. Eu..."

Bateram à porta.

— Sim? Oh, alô, Kathy — cumprimentou, feliz como sempre ao ver a irmã mais moça.

— Desculpe interrompê-lo, Ian querido — falou Kathy Gavallan, aos borbotões, da porta da sala —, mas Claudia me disse que você tinha alguns minutos livres antes do próximo compromisso. Posso entrar?

— Claro que pode — disse ele, com uma risada, deixando de lado o memorando em que estava trabalhando.

— Ah, ótimo, obrigada.

Ela fechou a porta e sentou-se na poltrona de espaldar alto que ficava perto da janela.

Ele se espreguiçou para aliviar a dor nas costas e sorriu para ela.

— Ei, gosto do seu chapéu. — Era de palha clara, com uma faixa amarela combinando com o vestido de seda leve. — O que há?

— Estou com esclerose múltipla. Ele a fitou, apalermado.

— O quê?

— Foi o que revelaram os exames. O médico me contou ontem, mas ontem não podia contar a você ou... Hoje ele examinou os testes junto com outro especialista, e não há possibilidade de erro. — A voz dela estava calma, seu rosto calmo, e sentava-se muito ereta na cadeira, mais bonita do que ele jamais a vira. — Precisava contar para alguém. Desculpe ter contado assim, de chofre. Pensei que você poderia me ajudar a fazer um plano, não hoje, mas quando tiver tempo, quem sabe no fim de semana... — Viu a expressão do rosto dele e riu nervosamente. — A coisa não é assim tão ruim. Acho.

Dunross recostou-se na grande poltrona de couro e lutou para pôr sua mente abalada para funcionar.

— Esclerose múl... é barra pesada, não é?

— É, sim. Aparentemente, é uma coisa que ataca o sistema nervoso da gente, e que eles ainda não conseguem curar. Não sabem o que é, ou onde ou como... a gente pega.

— Vamos consultar outros especialistas. Melhor ainda, você vai para a Inglaterra com Penn. Lá haverá especialistas, ou na Europa. Tem que haver alguma forma de cura, Kathy!

— Não há, querido. Mas a Inglaterra é uma boa idéia. Eu... o dr. Tooley disse que gostaria que consultasse um especialista da Harley Street, para fazer o tratamento. Gostaria muito de ir com Penn. A doença ainda não está numa fase muito avançada, e não há com que se preocupar, se eu tomar cuidado.

— Como assim?

— Se eu me cuidar, tomar os remédios que eles mandarem, tirar um cochilo à tarde, para evitar o cansaço, ainda serei capaz de cuidar do Andrew, da casa e das crianças, e jogar um pouco de tênis ou golfe, ocasionalmente. Mas só uma partida, de manhã. Sabe, eles podem deter a moléstia, mas não podem consertar o mal que já está feito. Ele disse que se eu não me cuidar e descansar... o descanso é o mais importante, falou... se eu não descansar, ela vai recomeçar, e cada vez a gente baixa mais um degrau. É. E nunca mais se pode subi-lo de novo. Entendeu, querido?

Ele a fitava, trancando dentro de si a agonia que sentia por ela. O coração dele se retorcia dentro do peito, e ele tinha planos para ela, e pensava: "Oh, Deus, pobre Kathy!"

— Entendi. Bem, graças a Deus que você pode descansar à vontade — falou, mantendo a voz tão calma quanto a dela. — Incomoda-se se eu falar com Tooley?

— Acho que não faz mal. Não há necessidade de ficar alarmado, Ian. Ele disse que eu ficaria bem se me cuidasse, e e eu lhe disse que seria muito obediente, e que quanto a isso não precisava se preocupar.

Kathy se surpreendeu ao notar que sua voz estava calma e que as mãos e os dedos repousavam tranqüilamente em seu colo, sem deixar transparecer o horror que sentia dentro de si. Quase podia sentir os germes, micróbios ou vírus da moléstia infiltrando-se no seu organismo, alimentando-se dos seus nervos, devorando-os muito devagarinho, segundo após segundo, hora após hora, até que houvesse mais formigamento e mais dormência nos dedos das mãos e dos pés, depois nos pulsos, tornozelos e pernas e... "Ah, Deus Todo-Poderoso..."

Pegou um lencinho de papel de dentro da bolsa e enxugou suavemente os lados do nariz e a testa.

— Está um bocado úmido hoje, não é?

— Está. Kathy, por que foi tão repentino?

— Mas não foi, querido. Só que eles não conseguiam diagnosticar o que era. Para isso foi que pediram tantos exames.

A coisa começara com uma leve tontura e dores de cabeça, há uns seis meses. Ela as sentia mais quando estava jogando golfe. Ficava de pé, com a bola à sua frente, firmando-se, mas os olhos ficavam turvos, ela não conseguia focalizá-la, e depois a bola se dividia em duas ou três, depois duas de novo, e não ficava parada. Andrew achara graça, e mandara que fosse ao oculista. Mas não era necessidade de óculos, e aspirina não adiantava, nem comprimidos mais fortes. Então o querido velho Tooley, o eterno médico da família deles, mandara que ela fosse ao Matilda Hospital, no Pico, para exames e mais exames, e exames de cérebro para ver se havia algum tumor, mas eles nada revelaram, assim como todos os demais testes e exames. Apenas a horrível punção na espinha dera uma pista. Outros exames levaram à confirmação. No dia anterior. "Oh, meu Deus, foi mesmo ontem que me condenaram a uma cadeira de rodas, para acabar virando uma coisa impotente?"

— Já contou ao Andrew?

— Não, querido — respondeu, voltando mais uma vez da beira do abismo. — Ainda não contei a ele. Não pude, ainda não. O pobrezinho do Andrew fica perturbado com tanta facilidade! Vou lhe contar logo mais à noite. Não podia contar a ele antes de contar a você. Tinha que contar primeiro a você. Sempre contávamos tudo primeiro a você, não é? Lechie, Scotty e eu? Você sempre sabia em primeiro lugar...

Estava recordando a época em que eram todos jovens, todas as horas felizes ali em Hong Kong e em Ayr, no Castelo Avisyard, em sua antiga, adorável e espaçosa casa, no topo da colina, em meio ao urzal, com vista para o mar... Natal, Páscoa e as longas férias de verão, ela e Ian... e Lechie, o mais velho, e Scott, o irmão gêmeo dela... dias tão felizes quando o pai não estava presente, todos mortos de medo dele, exceto Ian, que era sempre o porta-voz deles, sempre o seu protetor, que sempre recebia os castigos... dormir sem jantar, escrever quinhentas vezes "Não vou mais discutir. As crianças só devem falar com permissão"... que levava todas as surras e não se queixava. Oh, pobres Lechie e Scotty...

— Oh, Ian — falou, as lágrimas vindo à tona, repentinamente —, que tristeza! — E então sentiu os braços dele à sua volta, sentiu-se finalmente segura, e o pesadelo tornou-se mais suave. Mas sabia que nunca acabaria. Nem agora, nem nunca. Nem seus irmãos voltariam, exceto nos seus sonhos, ou o seu querido Johnny. — Tudo bem, Ian — falou, em meio às lágrimas. — Não choro por mim. Verdade. Estava lembrando de Lechie e Scotty, da nossa casa em Ayr quando éramos pequenos, e do meu Johnny, e senti tanta tristeza, por todos eles...

Lechie fora o primeiro a morrer. Segundo-tenente, Infantaria Ligeira da Escócia. Perdera-se na França, em 1940. Nunca se encontrou resto algum dele. Num minuto estava de pé, ao lado da estrada, no seguinte tinha sumido, o ar cheio da fumaça acre do fogo de barragem que os Panzers nazistas haviam aberto sobre a pequena ponte de pedras que cruzava o riacho no caminho para Dunquerque. Durante o resto da guerra, tinham vivido com a esperança de que Lechie estivesse como prisioneiro de guerra num bom campo de concentração... não num daqueles terríveis. E, depois da guerra, os meses de busca, mas sem ter nunca uma pista, uma testemunha, nem o mais ínfimo sinal, e então eles, a família, e finalmente o pai, consagraram o espírito de Lechie ao repouso.

Scotty tinha dezesseis anos em 39, e fora para o Canadá por medida de segurança, para terminar os estudos, e então, já piloto, no dia em que fez dezoito anos, apesar dos uivos de protesto do pai, ingressara na Força Aérea Canadense, querendo vingar-se pelo que acontecera a Lechie. Recebera as asas prontamente, fora engajado em um esquadrão de bombardeiros e voltara bem a tempo para o Dia D. Alegremente, destruíra muitas cidades, grandes e pequenas, até o dia 14 de fevereiro de 1945. Então, líder de esquadrilha, DFC¹, voltando do supremo holocausto de Dresden, seu Lancaster fora atacado de surpresa por um Messerschmitt, e embora o seu co-piloto conseguisse pousar com o avião avariado na Inglaterra, Scotty estava morto no assento esquerdo.

 

¹ Distinguished Flying Cross, Medalha de Mérito Aeronáutico. (N. da T.)

 

Kathy comparecera ao enterro, e Ian também... fardado, de licença, vindo de Chungking, onde se ligara à força aérea de Chang Kai-chek, depois que fora abatido e impedido de voar. Ela chorara então no ombro de Ian, chorara por Lechie, chorara por Scotty e chorara pelo seu Johnny. Já era viúva. O capitão-aviador John Selkirk, dfc, outro alegre deus da guerra, inviolado, invencível, explodira nos céus, fora abatido no espaço, os destroços descendo em chamas até o chão.

Johnny não tivera enterro. Não sobrara nada para enterrar. Tal como Lechie. Só veio um telegrama. Um para cada um dos dois.

"Oh, Johnny, meu querido, meu querido, meu querido..."

— Que desperdício terrível, Ian, todos eles. E para quê?

— Não sei, minha pequena Kathy — falou, ainda abraçado a ela. — Não sei. E não sei por que sobrevivi e ele não.

— Ah, mas como estou feliz que tenha sobrevivido! — Ela deu-lhe um breve abraço apertado e se controlou. Deu um jeito de afastar sua tristeza por todos eles. A seguir, enxugou as lágrimas, pegou um espelhinho e se mirou. — Puxa, mas estou um horror! Desculpe.

O banheiro particular dele ficava oculto atrás de uma estante de livros, e ela foi para lá retocar a maquilagem. Quando retornou, ele ainda olhava pela janela.

— Andrew não está no escritório, no momento, mas logo que ele voltar, falarei com ele — disse Ian.

— Ah, não, querido, essa tarefa é minha. Tenho que cumpri-la. Preciso. É minha obrigação. — Sorriu para ele, e tocou-o. — Amo você, Ian.

— Amo você, Kathy.

 

                 16h55m

A caixa de papelão que os Lobisomens haviam mandado para Phillip Chen encontrava-se sobre a mesa de Roger Crosse. Ao lado da caixa estavam o bilhete de resgate, o chaveiro, a carteira de motorista, a caneta, até mesmo os pedaços amarfanhados do jornal rasgado que fora usado como envoltório. O saquinho de plástico estava lá, assim como o trapo manchado. Só faltava o seu conteúdo.

Tudo fora etiquetado.

Roger Crosse estava sozinho na sala, e fitava os objetos, fascinado. Pegou um pedaço do jornal. Cada pedaço havia sido cuidadosamente desamassado, a maioria tinha uma etiqueta com a data e o nome do jornal chinês a que pertencia. Ele o virou ao contrário, buscando informações ocultas, uma pista oculta, alguma coisa que houvesse deixado escapar. Não tendo achado nada, recolocou-o direitinho no lugar, e apoiou-se nas mãos, imerso em pensamentos.

O relatório de Alan Medford Grant também estava sobre a mesa, junto do intercomunicador. A sala estava em silêncio completo. Janelas pequenas davam para Wanchai e para parte do porto, na direção de Glessing's Point.

O telefone dele tocou.

— Pronto?

— O Sr. Rosemont, da CIA, e o Sr. Langan, do FBI, senhor.

— Ótimo.

Roger Crosse repôs o fone no gancho. Destrancou a primeira gaveta da sua escrivaninha, colocou com cuidado a pasta de Alan Medford Grant sobre o telex decifrado e trancou-a de novo. A gaveta do meio continha um gravador de excelente qualidade. Examinou-o, e tocou num botão oculto. Silenciosamente, os carreteis começaram a rodar. O intercomunicador sobre a mesa continha um potente microfone. Satisfeito, trancou também essa gaveta. Outro botão oculto na mesa fez correr silenciosamente uma tranca na porta da sala. Levantou-se e foi abrir a porta.

— Alô, pessoal. Vamos entrando, por favor — falou, amavelmente. Fechou a porta às costas dos dois americanos e apertou-lhes as mãos. Sem ser percebido, tocou no botão, e a tranca voltou ao seu lugar, na porta. — Sentem-se. Um chá?

— Não, obrigado — disse o homem da CIA.

— Em que lhes posso ser útil?

Os dois homens carregavam envelopes de papel pardo. Rosemont abriu o dele e tirou de dentro um maço de fotos 20 x 24, dividido em duas partes, presas com clipes.

— Tome — falou, passando-lhe o maço de cima.

Havia diversas fotos de Voranski correndo pelo cais, nas ruas de Kowloon, entrando e saindo de táxis, telefonando, e muitas mais dos seus assassinos chineses. Uma das fotos mostrava os dois chineses saindo da cabine telefônica, com uma visão clara do corpo caído ao fundo.

Somente a disciplina soberba de Crosse impediu-o de demonstrar assombro, depois uma fúria cega.

— Muito boas — falou, gentilmente, colocando-as sobre a mesa e fitando aquelas que Rosemont guardava nas mãos. — E então?

Rosemont e Ed Langan franziram o cenho.

— Vocês também o estavam seguindo?

— Claro — falou Crosse, mentindo com uma sinceridade maravilhosa. — Meu caro rapaz, estamos em Hong Kong. Gostaria muito que vocês nos deixassem fazer o nosso serviço, sem interferir.

— Rog, nós não... queremos interferir, queremos apenas escorá-lo.

— Talvez não precisemos de escoras — retrucou ele, e havia um toque de aspereza em sua voz.

— Claro. — Rosemont apanhou um cigarro e acendeu-o. Era alto e magro, com cabelos grisalhos cortados à escovinha e feições regulares. Tinha as mãos fortes, como todo o resto do corpo, — Sabemos onde os dois assassinos estão escondidos. Achamos que sabemos — continuou. — Um dos nossos acha que os encontrou.

— Quantos homens seus estão vigiando o navio?

— Dez. Nossos homens não notaram nenhum dos seus na cola desse sujeito. O despiste quase nos enganou, também.

— Muito bem bolado — disse Crosse, afavelmente, perguntando-se que despiste seria aquele.

— Nossos homens não chegaram a revistar os bolsos dele... sabemos que deu dois telefonemas da cabine... —

Rosemont notou que os olhos de Crosse se estreitaram de leve. "Curioso", pensou. "Crosse não sabia disso. Se não sabia disso, talvez o pessoal dele também não estivesse na cola do alvo. Talvez esteja mentindo, e o comuna esteve à solta em Hong Kong até ser apunhalado." — Mandamos uma foto dele pelo rádio para os Estados Unidos... logo teremos alguma resposta. Quem era ele?

— Seus documentos diziam Ígor Voranski, marujo de primeira classe, marinha mercante soviética.

— Tem ficha dele, Rog?

— É um pouco estranho vocês virem fazer uma visita juntos, não é? Quero dizer, no cinema sempre nos fazem crer que o FBI e a CIA vivem às turras.

Ed Langan sorriu.

— Claro que vivemos... assim como vocês e a MI-5, como o KGB, o gru e cinqüenta outras operações soviéticas. Mas às vezes os nossos casos se cruzam... operamos nos Estados Unidos, Stan, fora, mas ambos somos dedicados à mesma coisa: segurança. Pensamos... estamos perguntando se podemos todos cooperar. Este caso pode ser dos grandes, e nós... Stan e eu estamos um pouco deslocados.

— É isso aí — falou Rosemont, sem acreditar no que dizia.

— Está certo — disse Crosse, necessitando das informações deles. — Mas vocês começam.

Rosemont soltou um suspiro.

— Tá legal, Rog. Há tempos ouvimos um zunzum de que algo vai acontecer em Hong Konk... não sabemos o quê... mas que sem dúvida nenhuma tem conexões nos Estados Unidos. Imagino que a pasta de Alan Medford Grant seja o elo. Veja só: Banastasio... é da Máfia. Figuraço. Narcóticos, a coisa toda. O tal de Bartlett e as armas. Armas...

— Bartlett tem ligação com Banastasio?

— Não temos certeza. Estamos verificando. Temos certeza de que as armas foram embarcadas em Los Angeles, que é a base do avião. Armas! Armas, narcóticos, e nosso interesse crescente no Vietnam. De onde vêm os narcóticos? Do Triângulo Dourado. Vietnam, Laos, e a província de Yun-nan, na China. Agora, nos metemos no Vietnam e...

— É, e estão se metendo numa fria, meu velho... já lhe disse isso umas cinqüenta vezes.

— Não somos nós que tomamos as decisões políticas, Rog, igualzinho a você. Tem mais: nosso porta-aviões nuclear está aqui, e o maldito Soviétski Ivánov chega à noite. É conveniente demais. Quem sabe se o vazamento de informações não saiu daqui? Depois, o Ed lhe dá a dica, e pegamos as cartas malucas de Alan, de Londres, e agora há a Sevrin! Quer dizer que o KGB tem gente infiltrada por toda a Ásia, e você tem um inimigo num alto cargo, em algum lugar.

— Isso ainda não foi provado.

— Certo. Mas eu conheço o Alan. Não é nenhuma besta. Se diz que a Sevrin existe e que vocês têm um agente infiltrado, um toupeira, então vocês têm um toupeira. Claro que temos gente inimiga na CIA, também, igualzinho ao KGB. Estou certo de que o Ed tem no FBI...

— Não acredito — interrompeu Ed Langan, vivamente.

— Nosso pessoal é escolhido a dedo, e treinado. Vocês pegam os seus bombeiros vindos de onde vierem.

— Certo — concordou Rosemont. Depois acrescentou para Crosse: — Voltando aos narcóticos. A China Vermelha é a nossa grande inimiga e...

— Está errado de novo, Stanley. A República Popular da China não é a grande inimiga em parte alguma. A Rússia é que é.

— A China é comuna. Os comunas são o inimigo. Bem, seria muita esperteza inundar os Estados Unidos com narcóticos baratos, e a China Vermelha... vá lá, a República Popular da China pode abrir as comportas da represa.

— Mas não o fez. Nosso Departamento de Narcóticos é o melhor da Ásia... nunca apresentou nada para apoiar sua teoria oficial errônea de que os chineses estão por trás do tráfico. Nada. A República Popular da China é tão antidroga quanto todos nós.

— Acredito no que quiser — falou Rosemont. — Rog, tem uma ficha desse agente? É do KGB, não é?

Crosse acendeu um cigarro.

— Voranski esteve aqui no ano passado. Então, disfarçou-se sob o nome de Serguei Kudriov, novamente marujo de primeira classe, novamente do mesmo navio... não tem muita imaginação, não é? — Nenhum dos dois homens sorriu. — O nome verdadeiro dele é major Iúri Bakian, Primeiro Diretório, KGB, Departamento 6.

Rosemont soltou um pesado suspiro. O homem do FBI olhou para ele.

— Então você está certo. Tudo se encaixa.

— Pode ser. — O homem alto pensou por um momento.

— Rog, e quanto aos contatos dele do ano passado?

— Agiu como turista, ficou no Nove Dragões, em Kowloon...

— Isso consta do relatório de Alan. Esse hotel é mencionado — disse Langan.

— É. Há cerca de um ano que está sob vigilância. Não encontramos nada. Bakian (Voranski) fez as coisas comuns que todo turista faz. Mantivemo-lo sob vigilância as vinte e quatro horas do dia. Ficou aqui duas semanas, e então, pouco antes de o navio zarpar, esgueirou-se de volta para ele.

— Namorada?

— Não. Nada sério. Costumava fazer ponto no Cabaré Boa Sorte, em Wanchai. Aparentemente um garanhão, mas não fazia perguntas, e não se encontrou com ninguém fora do comum.

— Alguma vez esteve no Sinclair Towers?

— Não.

— Que pena — falou Langan —, seria bom demais. Tsu-yan tem um apartamento ali, Tsu-yan conhece Banastasio, John Chen conhece Banastasio, e estamos de volta às armas, aos narcóticos, Alan Medford Grant e Sevrin.

— É — concordou Rosemont, e depois acrescentou: — Já encontraram Tsu-yan?

— Não. Ele chegou a Taipé em segurança, depois sumiu.

— Acha que está escondido lá?

— Imagino que sim — respondeu Crosse. Mas, intimamente, acreditava que ele estivesse morto, já eliminado por nacionalistas, comunistas, mafiosos ou tríades. Seria um agente duplo... ou o demônio supremo de todos os serviços de informação, um agente triplo?

— Vocês o encontrarão... ou nós... ou os rapazes de Formosa.

— Roger, Voranski o conduziu a alguma parte? — indagou Langan.

— Não, a parte alguma, embora estejamos de olho nele há anos. Esteve ligado à Comissão Comercial Soviética em Bangkok, passou algum tempo em Hanói, em Seul, mas, ao que saibamos, nunca exerceu atividades secretas. Certa vez o sacana atrevido chegou a pedir um passaporte britânico, e quase o arranjou. Felizmente o nosso pessoal verifica todos os pedidos, e descobriu falhas no disfarce dele. Lamento que esteja morto... sabe como é difícil identificar os homens maus. Perde-se muito tempo e esforço. — Crosse fez uma pausa e acendeu um cigarro. — Seu posto de major é bem alto, o que sugere algo que não cheira nada bem. Talvez fosse apenas outro dos agentes especiais deles, que recebem ordens para viajar por toda a Ásia, mantendo-se ultra-secretos durante vinte ou trinta anos.

— Os filhos da mãe já tinham o plano do jogo pronto há muito tempo, que descarados! — suspirou Rosemont. — O que vão fazer com o cadáver? Crosse sorriu.

— Mandei um dos meus homens que falam russo ligar para o comandante do navio, Grigóri Suslev. Ele é membro do partido, é claro, mas praticamente inofensivo. Tem uma namorada esporádica num apartamento em Mong Kok... uma garota de cabaré que recebe dele uma mesada modesta e fica às suas ordens quando ele está aqui. Ele vai às corridas, ao teatro, vai jogar em Macau algumas vezes, fala bem inglês. Suslev está sob vigilância. Não quero nenhum dos seus apressadinhos se metendo com um dos nossos inimigos conhecidos.

— Quer dizer que Suslev é habitue por aqui?

— É, há anos que viaja por esses mares, tendo por base Vladivostok... A propósito, é ex-comandante de submarino. Vive aqui pela periferia, geralmente meio tocado.

— Como assim?

— Bêbado, mas não demais. Relaciona-se com alguns dos nossos britânicos "cor-de-rosa", como Sam e Molly Finn.

— Os tais que vivem escrevendo cartas para os jornais?

— É. São mais uns chatos do que propriamente uma ameaça à segurança. Bem, de qualquer modo, seguindo as minhas instruções, meu subordinado que fala russo disse ao comandante Suslev que sentíamos demais, mas que parecia que um de seus marujos sofrerá um ataque cardíaco dentro de uma cabine telefônica, no Terminal da Balsa Dourada. Suslev mostrou-se convenientemente chocado, e muito razoável. "Por acaso", havia no bolso de Voranski um relatório exato, palavra por palavra, da conversa telefônica do assassino. Escrevemo-lo em russo, para demonstrar ainda mais o nosso desprazer. Todos são profissionais, a bordo daquele navio, e sofisticados o bastante para saber que não removemos os agentes deles sem causa e provocação fora de série. Sabem que apenas vigiamos aqueles cuja existência conhecemos, e que, se ficamos realmente irritados, nós o deportamos. — Crosse lançou um olhar para Rosemont, os olhos duros, embora a voz se mantivesse natural. — Achamos que nossos métodos são mais eficazes do que a faca, o garrote, o veneno ou a bala.

O homem da CIA balançou a cabeça.

— Mas quem iria querer matá-lo?

Crosse voltou a olhar para as fotos. Não reconheceu os dois chineses, mas seus rostos eram nítidos, e o corpo ao fundo era uma prova incrível.

— Nós os encontraremos. Sejam quem forem. O que telefonou para a nossa delegacia disse que eram da 14K. Mas falava apenas xangaiense com um dialeto ningpo, portanto não é provável. Talvez fosse alguma espécie de tríade. Poderia ser um Pang Verde. Era certamente um profissional treinado... a faca foi usada à perfeição, com grande precisão... foi assassinado num piscar de olhos, sem emitir um som. Poderia ser um dos seus estagiários da CIA no serviço de informações de Chang Kai-chek. Ou quem sabe da CIA coreana, mais gente treinada por vocês... são anti-soviéticos também, não é? Possivelmente agentes da RPC, mas isso é improvável. Os agentes deles não costumam assassinar quai loh, especialmente aqui em Hong Kong.

Rosemont sacudiu a cabeça, e ignorou a censura. Entregou a Crosse as fotografias restantes, querendo a cooperação do inglês, precisando dela.

— Estas são fotos da casa em que entraram. E o nome da rua. Nosso homem não sabia ler os caracteres, mas traduzido dá "Rua da Primeira Estação, número 14". É um becozinho nojento nos fundos da rodoviária, em North Point.

Crosse começou a examiná-las com igual cuidado. Rosemont olhou para o relógio, depois levantou-se e foi até a única janela que dava para parte do porto.

— Olhem! — exclamou, com orgulho.

Os outros dois foram para junto dele. O grande porta-aviões nuclear acabava de dobrar o North Point, dirigindo-se para o arsenal, no lado de Hong Kong. Estava todo engalanado, todas as bandeiras obrigatórias ao vento, uma multidão de marujos de branco no seu imenso convés, com fileiras bem-arrumadas dos seus ferozes caças a jato. Quase oitenta e quatro mil toneladas. Nada de chaminé, apenas um complexo de ponte vasto e ameaçador, com uma pista angular de trezentos e trinta metros que podia lançar e receber jatos, simultaneamente. O primeiro de uma geração.

— É um navio e tanto — comentou Crosse, com inveja. Era a primeira vez que o colosso entrava em Hong Kong, desde que fora posto em serviço, em 1960. — Bonito — falou, odiando o fato de o navio ser americano, e não britânico. — Qual a sua velocidade máxima?

— Não sei... é segredo, assim como tudo o mais. — Rosemont virou-se para encará-lo. — Não pode mandar aquele maldito navio espião soviético sair daqui do porto?

— Posso, e poderíamos explodi-lo, o que seria uma tolice igual. Stanley, relaxe. Tem que ser um pouco mais civilizado quanto a essas coisas. O reparo desses navios (e alguns deles realmente estão precisando) é uma boa fonte de renda, e de informações, e eles pagam as contas com presteza. Nossos métodos têm sido experimentados e testados, ao longo dos anos. "É", pensava Rosemont, sem rancor, "mas seus métodos não funcionam mais. O Império Britânico não existe mais, os rajás britânicos não existem mais, e agora temos um inimigo diferente, mais esperto, mais durão, um fanático dedicado e totalitário, que não segue as regras de Queensberry, e tem um plano mundial com fundos inesgotáveis. Vocês, britânicos, agora não têm dinheiro, nem força, nem marinha, nem exército, nem aeronáutica, e seu maldito governo está cheio de socialistas e pústulas inimigos, e nós achamos que eles venderam vocês ao bandido. Vocês foram fodidos de dentro para fora, sua segurança já era, de Klaus Fuchs e Philby para baixo. Meu Deus, ganhamos as duas guerras para vocês, pagamos pela maior parte delas, e nas duas vezes vocês esculhambaram com a paz. E se não fosse pelo nosso Comando Aéreo Estratégico, nossos mísseis, nossa força de ataque nuclear, nossa marinha, nosso exército, nossa aviação, nossos contribuintes, nossa grana, vocês todos estariam mortos ou na porra da Sibéria. Entrementes, quer me agrade ou não, tenho que tratar com você. Precisamos de Hong Kong como janela, e nesse momento precisamos dos seus tiras para tomarem conta do porta-aviões."

— Rog, obrigado pelos homens extras — falou. — Ficamos muito agradecidos.

— Também não íamos querer nenhuma encrenca enquanto ele estiver aqui. Belo navio. Invejo vocês por possuírem-no.

— Seu comandante vai manter o navio e a tripulação sob rédea curta... o pessoal que vier a terra será bem instruído, e advertido, e vamos colaborar cem por cento.

— Darei a vocês uma cópia da lista de bares que sugeri que seus marujos evitassem... alguns são "pontos" conhecidos de comunistas, alguns são freqüentados pelos nossos rapazes do H.M.S. Dart. — Crosse sorriu. — São capazes de puxar uma ou outra briguinha entre si.

— Claro. Rog, este assassinato do Voranski é coincidência demais. Posso mandar um orador de Xangai para ajudar no interrogatório?

— Avisarei se precisarmos de ajuda.

— Pode nos dar agora as cópias dos outros relatórios de Alan para o tai-pan? Aí nós o deixaremos em paz.

Crosse devolveu-lhe o olhar, retorcendo-se por dentro, embora estivesse preparado para o pedido.

— Precisarei da aprovação de Whitehall. Rosemont ficou surpreso.

— Nosso homem-chefe na Inglaterra já esteve com o seu

Grande Pai Branco, e a coisa foi aprovada. Você já devia ter recebido a notícia faz uma hora.

— É?

— Claro. Pombas, não tínhamos a menor idéia de que Alan estava na folha de pagamento do tai-pan, e ainda mais que lhe estava passando informações sigilosas! Os fios de comunicação têm estado em brasa desde que Ed recebeu a cópia principal das últimas vontades e testamento de Alan. Recebemos ordens expressas de Washington para arranjar cópias dos outros relatórios, e estamos tentando localizar a chamada para a Suíça, mas...

— Como disse?

— O telefonema de Kiernan. O segundo que deu.

— Não estou entendendo. Rosemont explicou. Crosse franziu o cenho.

— Meu pessoal não me falou nele. Nem Dunross. Ora, por que Dunross mentiria... ou evitaria me contar isso? — Relatou aos outros exatamente o que Dunross lhe dissera. — Não havia motivo para ele ocultar isso, havia?

— Não. Bem, Rog: o tai-pan é legal? Crosse riu.

— Se está querendo saber se ele é um flibusteiro monarquista britânico cem por cento, fiel à sua Casa, a si mesmo e à rainha... não necessariamente nessa ordem... a resposta é um enfático sim.

— Então, Rog, se puder nos dar as nossas cópias agora, já vamos andando.

— Quando eu tiver a aprovação de Whitehall.

— Ligue para a sua sala de decifrar códigos... é uma Prioridade l-4a. Diz para você nos entregar as cópias ao receber a mensagem.

As l-4a eram muito raras. Exigiam liberação e ação imediatas.

Crosse hesitou, querendo evitar a armadilha em que se encontrava. Não ousava dizer-lhe que ainda não estava de posse dos relatórios de Alan. Pegou no telefone e discou.

— Aqui fala o Sr. Crosse. Alguma coisa para mim da Fonte? Uma l-4a?

— Não, senhor, exceto aquela que já lhe enviamos faz uma hora, cujo talão de recebimento o senhor assinou — respondeu a mulher do sei.

— Obrigado — Crosse desligou. — Nada, ainda — falou.

— Merda — resmungou Rosemont, e depois acrescentou: — Juraram que já a tinham enviado, e que estaria nas suas mãos quando chegássemos aqui. Vai chegar a qualquer segundo. Esperaremos, se não se importar.

— Tenho um encontro na Central daqui a pouquinho. Quem sabe logo mais à noite?

Os dois homens sacudiram a cabeça. Langan falou:

— Vamos esperar. Ordenaram-nos que os enviássemos de volta, imediatamente, por mensageiro, com uma guarda vinte quatro horas por dia. Um avião-transporte do exército deve chegar agora em Kai Tak, para levar o mensageiro: não podemos nem copiar os relatórios aqui.

— Não estão exagerando?

— Isso é você quem pode responder. O que há neles? Crosse brincava com o isqueiro, onde estavam gravadas as palavras "Universidade de Cambridge". Possuía-o desde antes de se formar.

— É verdade o que Alan Medford Grant disse sobre a CIA e a Máfia?

Rosemont devolveu-lhe o olhar.

— Não sei. Vocês utilizaram todo tipo de vigaristas durante a Segunda Guerra Mundial. Aprendemos com vocês a tirar vantagem do que tivéssemos... essa era a sua primeira regra. Além disso — acrescentou Rosemont, cheio de convicção —, esta guerra é nossa, e vamos ganhá-la, não importa como.

— É, é, sim, temos que ganhar — ecoou Langan, igualmente convencido. — Porque, se a perdermos, o mundo inteiro irá pro beleléu, e jamais teremos nova chance.

Na ponte envidraçada do Soviétski Ivâttov, três homens observavam com binóculos o porta-aviões nuclear. Um dos homens era civil, e usava um microfone ligado a um gravador. Estava fazendo um relatório técnico, pericial, sobre o que via. De quando em vez, os outros dois acrescentavam um comentário. Ambos usavam um uniforme naval claro. Um deles era o comandante Grigóri Suslev, o outro, seu imediato.

O porta-aviões vinha entrando direitinho no porto, com rebocadores a postos, mas sem cordas de rebocadores. Barcas, balsas e cargueiros apitavam as boas-vindas. Uma banda de fuzileiros tocava no tombadilho de popa. Marujos de branco acenavam para navios que passavam. O dia estava muito úmido, e o sol da tarde projetava longas sombras.

— O comandante é um cobra — comentou o imediato.

— É. Mas com todos aqueles radares, até uma criança poderia manejá-lo — replicou o comandante Suslev. Era um homem de ombros fortes, barbudo, os olhos eslavos castanhos e fundos, num rosto amistoso. — Aquelas varredeiras no topo dos mastros me parecem as novas ge para radar de longuíssimo alcance. São, Vassíli?

O perito técnico interrompeu momentaneamente a sua transmissão.

— Sim, camarada comandante. Mas, olhe para a popa! Há quatro interceptadores F5 estacionados no convés de pista direito.

Suslev soltou um assobio mudo.

— Não deviam estar em uso senão no ano que vem.

— Não — concordou o civil.

— Relate isso em separado logo que ele atraque. Somente essa notícia já valeu a nossa viagem.

Suslev apurou o foco do binóculo, enquanto o navio virava ligeiramente. Dava para ver as prateleiras de bombas dos aviões.

— Quantos F5 mais carregará no bojo, e quantas ogivas atômicas para eles?

Todos observaram o porta-aviões, por um momento.

— Talvez dessa vez tenhamos sorte, camarada comandante — disse o imediato.

— Espero que sim. Desse modo, a morte de Voranski não terá saído tão cara.

— Os americanos são idiotas em trazê-lo para cá... não sabem que todos os agentes na Ásia serão tentados por ele?

— Sorte nossa que sejam. Torna o nosso serviço bem mais fácil.

Mais uma vez, Suslev concentrou-se nos F5, que pareciam vespões-soldados entre outros vespões.

À sua volta, a ponte estava lotada de equipamento de vigilância avançadíssimo. Um radar varria o porto. Um marujo de cabelos grisalhos, impassível, fitava a tela, o porta-aviões representado por um blip alto e nítido, que se destacava dos demais.

O binóculo de Suslev moveu-se para o ominoso complexo da ponte do porta-aviões, depois percorreu toda a extensão do navio. Sem conseguir se controlar, estremeceu frente ao seu tamanho e potência.

— Dizem que nunca foi reabastecido... desde o seu lançamento, em 1960.

Às suas costas a porta da sala de rádio anexa à ponte se abriu e um radiotelegrafista chegou junto dele, bateu continência e estendeu um telegrama.

— Urgente, do Centro, camarada comandante.

Suslev pegou o telegrama e assinou um recibo. Era um amontoado de palavras sem sentido. Com um último olhar para o porta-aviões, ele pousou o binóculo sobre o peito e saiu em largas passadas da ponte. Seu camarote ficava no mesmo convés, um pouco mais para a popa. Havia um guarda na porta, assim como nas duas entradas da ponte.

Trancou de novo a porta do camarote atrás de si, e abriu o pequeno cofre disfarçado. Seu livro de códigos estava escondido numa parede falsa. Sentou-se à sua mesa. Rapidamente, decifrou a mensagem. Leu-a com atenção, depois ficou com o olhar perdido no espaço, por um momento.

Leu-a pela segunda vez, depois guardou o livro de códigos, fechou o cofre e queimou o original do telegrama num cinzeiro. Pegou o telefone.

— Ponte? Mandem o camarada Metkin ao meu camarote! Enquanto esperava, ficou de pé junto à vigia, imerso em pensamentos. O camarote dele estava desarrumado. Fotos de uma mulher corpulenta, que sorria constrangida, pousavam emolduradas sobre sua mesa. Havia outra foto de um jovem bem-apessoado, com a farda da marinha, e de uma garota adolescente. Livros, uma raquete de tênis e um jornal sobre o beliche desfeito.

Bateram à porta. Ele foi destrancá-la. O marujo que estivera observando a tela de radar estava à sua frente.

— Entre, Dmítri.

Suslev indicou o telegrama decifrado com um gesto e trancou novamente a porta do camarote.

O marujo era baixo e atarracado, de cabelos grisalhos e um rosto simpático. Era, oficialmente, comissário do povo, e portanto o oficial mais antigo do navio. Apanhou a mensagem decifrada. Dizia: "Prioridade Um. Grigóri Suslev. Assumirá imediatamente os deveres e responsabilidades de Voranski. Londres relata interesse máximo da CIA e da MI-6 em informações contidas em pastas de capa azul, entregues extra-oficialmente a Ian Dunross, da Struan, pelo coordenador do Serviço de Informações Britânico, Alan Medford Grant. Ordene a Arthur que obtenha cópias imediatamente. Se Dunross destruiu as cópias, mande avisar por telegrama se é exeqüível um plano para detê-lo e extrair dele o que sabe por processos químicos".

A fisionomia do marujo se fechou. Olhou para o comandante Suslev.

— Alan Medford Grant?

— É.

— Que ele arda no inferno por mil anos!

— Arderá, se existir alguma justiça neste mundo ou no outro. — Suslev deu um sorriso sombrio. Foi até um aparador, onde pegou uma garrafa de vodca pela metade e dois copos. __ Ouça, Dmítri, se eu falhar ou não voltar, assuma o comando. — Mostrou a chave. — Destranque o cofre. Lá há instruções para decifrar códigos e tudo o mais.

— Deixe-me ir hoje, em seu lugar. Você é mais impor...

— Não. Obrigado, velho amigo. — Suslev deu-lhe um abraço caloroso. — Em caso de acidente, assuma o comando e cumpra a nossa missão. Para isso fomos treinados. — Tocou com seu copo no do outro. — Não se preocupe. Tudo vai dar certo — falou, contente por poder fazer o que queria, e muito satisfeito com o seu emprego e posição na vida. Secretamente, era vice-controlador na Ásia do primeiro diretório do KGB, Departamento 6, responsável por todas as atividades sigilosas na China, na Coréia do Norte e no Vietnam; conferencista sênior no Departamento de Assuntos Externos da Universidade de Vladivostok, 2A-Contra-Informações; coronel do KGB; e, o que era o mais importante, membro destacado do partido no Extremo Oriente. — O Centro deu a ordem; você precisa vigiar a nossa retaguarda aqui. Hem?

— Claro. Não precisa se preocupar com isso, Grigóri. Posso cuidar de tudo. Mas fico preocupado com você — disse Metkin. Há anos navegavam juntos, e ele respeitava muito Suslev, embora não soubesse de que fonte provinha a sua autoridade suprema. Às vezes, sentia-se tentado a procurar descobrir. "Você está ficando velho", dizia consigo mesmo. "Vai se aposentar no ano que vem, e talvez precise de amigos poderosos, e o único meio de ter a ajuda de amigos poderosos é conhecer os seus segredos. Mas, com ou sem Suslev, sua bem-merecida aposentadoria será honrosa, tranqüila, em sua casa na Criméia." O coração de Metkin bateu mais forte ao pensar naquela linda paisagem e no clima excelente do mar Negro, na vida que levaria ao lado da mulher, e vendo de vez em quando o filho, um oficial promissor do KGB, no momento em Washington, não mais correndo riscos ou perigos, vindos de dentro ou de fora.

"Oh, Deus, proteja o meu filho de ser traído ou cometer um erro", orou fervorosamente. Logo sentiu uma onda de náusea, como sempre, temendo que seus superiores soubessem que, intimamente, era um crente, e que seus pais, camponeses, o haviam criado dentro dos ensinamentos da Igreja. Se eles soubessem, jamais haveria aposentadoria na Criméia, só um lugar remoto e gelado qualquer, e nunca um lar de verdade.

— Voranski — falou, como sempre disfarçando cuidadosamente o ódio que sentia pelo homem. — Ele era dos grandes, não? Onde foi que errou?

— Foi traído, eis o problema — falou Suslev, com ar sombrio. — Vamos achar seus assassinos, e eles pagarão. Se eu for o próximo da lista... — O homenzarrão deu de ombros, depois serviu-se de mais vodca, com uma risada repentina. — E daí, não é? Tudo em nome da causa, do partido e da Mãe Rússia!

Encostaram os copos um no outro, e os esvaziaram.

— Quando vai para terra?

Suslev sentiu o travo da bebida forte. Depois, agradecido, saboreou o gostoso calor que crescia dentro de si, e seus terrores e ansiedades pareceram menos reais. Fez um sinal para a vigia.

— Logo que ele esteja atracado e seguro — falou, com sua risada ressonante. — Ah, mas é um belo navio, não?

— Não temos nada que se iguale àquele filho da mãe, comandante, temos? Ou àqueles caças. Nada.

Suslev sorriu enquanto se servia de novo.

— Não, camarada. Mas se o inimigo não tiver força de vontade real para resistir, pode ter cem daqueles porta-aviões, não faz diferença.

— É, mas os americanos são excêntricos. Um general pode tornar-se um tanto belicoso, e eles podem nos varrer da face da terra.

— Concordo que agora possam, mas não o farão. Não têm colhões para tanto. — Suslev bebeu de novo. — E então? Só mais um tempinho e acabaremos com a alegria deles! — Soltou um suspiro. — Vai ser bom, quando começarmos.

— Vai ser terrível.

— Não; uma guerra curta, quase sem derramamento de sangue contra os Estados Unidos, e depois o resto desabará, como um cadáver cheio de pus.

— Sem derramamento de sangue? E quanto às bombas atômicas deles? Bombas de hidrogênio?

— Jamais usarão armas atômicas ou mísseis contra nós, têm medo demais, mesmo agora, dos nossos! Porque estão certos de que os usaremos.

— E usaremos?

— Não sei. Alguns comandantes usariam. Eu não sei. É certo que replicaremos com eles. Mas usá-los em primeiro lugar? Não sei. A ameaça será sempre o bastante. Estou certo de que jamais precisaremos de uma guerra de verdade. — Tocou fogo num dos cantos da mensagem decifrada e botou-a no cinzeiro. — Mais vinte anos de detente (ah, que gênio russo inventou isso) e teremos uma marinha maior e melhor que a deles, uma força aérea maior e melhor que a deles. Agora temos mais tanques e mais soldados, mas sem navios e aviões, teremos que esperar. Vinte anos não é esperar muito para que a Mãe Rússia domine a terra.

— E a China? E quanto à China?

Suslev engoliu a vodca e encheu os dois copos de novo. Agora a garrafa estava vazia, e ele a jogou sobre o beliche. Fitou o papel que ardia no cinzeiro, retorcendo-se e crepitando, morrendo.

— Talvez a China seja o único lugar onde usar nossas armas atômicas — disse, com naturalidade. — Não há ali nada de que precisemos. Nada. Isso resolveria o nosso problema chinês definitivamente. Quantos homens em idade militar tinham eles, na última estimativa?

— Cento e dezesseis milhões com idade entre dezoito e vinte e cinco.

— Imagine só! cento e dezesseis milhões de demônios amarelos partilhando oito mil quilômetros das nossas fronteiras... e depois os estrangeiros dizem que somos paranóicos quando se trata da China! — Bebericou a vodca, saboreando-a devagar, desta feita. — Armas atômicas resolveriam o nosso problema com a China. De modo rápido e permanente.

O outro homem fez que sim com a cabeça.

— E esse Dunross? Os documentos de Alan Medford Grant?

— Nós os tiraremos dele. Afinal de contas, Dmítri, um dos nossos, é gente da família dele, outro é um de seus sócios, outro trabalha no sei. Arthur e a Sevrin estão em qualquer lado para onde ele se vire, e ainda temos uns doze decadentes para quem apelar no seu Parlamento, alguns no seu governo.

Os dois desataram a rir.

— E se ele tiver destruído os papéis? Suslev deu de ombros.

— Dizem que ele tem uma memória fotográfica.

— Faria o interrogatório aqui?

— Seria perigoso utilizar as substâncias químicas, em profundidade, e depressa. Nunca fiz um serviço desses. E você?

— Não.

O comandante franziu o cenho.

— Quando fizer seu relatório, hoje à noite, diga ao Centro para deixar um perito a postos, para o caso de precisarmos — Koronski, de Vladivostok, se estiver disponível.

Dmítri concordou com a cabeça, imerso em pensamentos. O Guardian matutino, meio amassado, largado sobre o beliche do comandante, chamou sua atenção. Foi até lá pegá-lo, os olhos acesos.

— Grigóri... se tivermos que prender Dunross, por que não culpá-los? Então você teria todo o tempo que fosse preciso. — A manchete berrava suspeitos em caso de seqüestro dos lobisomens. — Se Dunross não voltar... quem sabe nosso homem seria o tai-pan! Hem?

Suslev começou a rir baixinho.

— Dmítri, você é um gênio.

Rosemont lançou um olhar ao relógio de pulso. Já esperara o bastante.

— Rog, posso usar seu telefone?

— É claro — respondeu Crosse.

O homem da CIA apagou o cigarro e ligou para o ramal central da CIA no consulado.

— Aqui é Rosemont... ligue-me com 2022. Era o número do centro de comunicações da CIA.

— 2022. Chapman... quem está falando?

— Rosemont. Alô, Phíl, alguma novidade?

— Não, exceto que o Marty Povitz relatou que há um bocado de atividade na ponte do Ivánov, binóculos superpoten-tes. Três sujeitos, Stan. Um é civil, os outros são o comandante e o imediato. Uma das suas varredeiras de radar de curto alcance está sempre operando. Quer que a gente avise ao comandante do Corregidor?

— Pombas, não, para que aborrecê-lo mais do que o necessário? Escute, Phil, tivemos confirmação do nosso 40-41?

— Claro, Stan. Chegou às... chegou às dezesseis horas e três minutos, hora local.

— Obrigado, Phil, até logo.

Rosemont acendeu outro cigarro. Azedamente, Langan, que não fumava, fitou-o, mas ficou calado, já que Crosse também estava fumando.

— Rog, que brincadeira é essa? — perguntou Rosemont, com aspereza, chocando Langan. — Você recebeu a sua Prioridade l-4a às dezesseis e três, na mesma hora que nós. Por que toda essa protelação?

— No momento, acho conveniente — retrucou Crosse, com voz agradável.

Rosemont enrubesceu, e Langan também.

— Pois eu não acho, e temos instruções, instruções oficiais, para pegarmos as nossas cópias imediatamente.

— Lamento muito, Stanley.

O pescoço de Rosemont agora estava muito vermelho, mas ele manteve o controle.

— Não vai obedecer à l-4a?

— Não no momento.

Rosemont levantou-se e dirigiu-se para a porta.

— Tudo bem, Rog, mas vão arrancar o seu couro. Jogou para trás a tranca com força, escancarou a porta e saiu. Langan se pôs de pé, de cara amarrada também.

— Qual é o motivo, Roger? — perguntou. Crosse devolveu-lhe o olhar, calmamente.

— Motivo para quê?

Ed Langan começou a ficar zangado, mas se deteve, subitamente estupefato.

— Deus, Roger, ainda não tem os papéis? É isso?

— Qual é, Ed? — replicou Crosse, tranqüilamente. — Logo você saberá como somos eficientes.

— Isso não é resposta, Roger. Tem ou não tem?

Os olhos serenos do homem do FBI se mantiveram fixos em Crosse, e não o abalaram. Depois ele saiu, fechando a porta atrás de si. Crosse tocou prontamente no botão oculto. A tranca foi para o lugar. Outro botão oculto desligou o gravador. Ele apanhou o telefone e discou.

— Brian? Já teve notícias de Dunross?

— Não, senhor.

— Encontre-se comigo lá embaixo imediatamente. Com Armstrong.

— Sim, senhor.

Crosse desligou. Apanhou o documento formal de prisão intitulado ordem de detenção segundo a lei de segredos oficiais. Rapidamente preencheu a lacuna com "Ian Struan Dunross" e assinou as duas cópias. Ficou com a primeira, a segunda trancou na sua gaveta. Correu os olhos pelo gabinete, verificando tudo. Satisfeito, colocou cuidadosamente uma nesguinha de papel na fenda da gaveta, para que somente ele pudesse saber se alguém a havia aberto, ou mexido nela. Saiu da sala. Pesadas trancas de segurança encaixaram-se na porta, às suas costas.

 

                 17h45m

Dunross estava na sala de diretoria da Struan com os outros diretores da Nelson Trading, olhando para Richard Kwang.

— Não, Richard, sinto muito. Não posso esperar até depois da hora do encerramento, amanhã.

— Não fará diferença para você, tai-pan. Para mim, fará. Richard Kwang suava. Os outros o observavam: Phillip

Chen, Lando Mata e Tung Zeppelin.

— Discordo, Richard — falou Lando Mata, vivamente. — Nossa Senhora, até parece que você não se dá conta da gravidade da corrida!

— É — concordou Tung Zeppelin, o rosto tremendo de raiva contida.

Dunross soltou um suspiro. Sabia que, se não fosse pela sua presença, estariam todos gritando e esbravejando uns com os outros, as obscenidades voando de parte a parte, como acontece em qualquer negociação formal entre os chineses, ainda mais numa tão grave quanto aquela. Mas era uma regra da Casa Nobre que todas as reuniões de diretoria fossem realizadas em inglês, e o idioma inglês inibia os xingamentos chineses e também desconcertava os chineses, o que naturalmente era o que realmente se almejava.

— O assunto tem que ser resolvido agora, Richard.

— Concordo. — Lando Mata era um português bonitão, de feições marcadas, na casa dos cinqüenta anos, o sangue chinês da mãe evidente nos olhos, nos cabelos escuros e na pele dourada. Seus dedos longos e finos tamborilavam na mesa de reunião, continuamente, e ele sabia que Richard Kwang jamais ousaria revelar que ele, Tung Pão-Duro e Mo Contrabandista controlavam o banco. "Nosso banco é um empreendimento", pensou, raivoso, "mas nossas reservas são outra história." — Não podemos arriscar o nosso ouro, o nosso dinheiro vivo!

— De jeito nenhum — falou Tung Zeppelin, nervosamente — Meu pai quer que eu deixe isso bem claro. Ele quer o seu ouro!

— Mãe de Deus, temos quase cinqüenta toneladas de ouro nos seus cofres-fortes.

— Na verdade, são mais de cinqüenta toneladas — falou Tung Zeppelin, o suor porejando-lhe a testa. — Meu velho me deu as cifras... são 1 792 668 onças em 298 778 barras de cinco taéis. — O ar no salão estava quente e úmido, as janelas, abertas. Tung Zeppelin era um homem corpulento e bem-vesti-do de quarenta anos, de olhos pequenos e estreitos, o filho mais velho de Tung Pão-Duro, e falava com sotaque britânico de gente fina. Seu apelido provinha de um filme que Pão-Duro assistira no dia em que ele nascera. — Não estão certas, Richard?

Richard Kwang mexeu na folha de agenda à sua frente, em que estavam anotados a quantidade de ouro e o saldo atual da Nelson Trading. Se tivesse que entregar o ouro e o dinheiro naquela noite, abalaria fortemente a liquidez do banco, e quando a notícia transpirasse, como era evidente que transpiraria, aquilo estremeceria os alicerces do banco.

— O que vai fazer, seu osso de cachorro idiota! — gritara-lhe a mulher pouco antes que deixasse o escritório.

— Protelar, protelar e esperar que...

— Não! Finja que está doente! Se estiver doente, não poderá lhes dar o nosso dinheiro! Não pode ir a essa reunião. Venha depressa para casa e fingiremos...

— Não posso, o tai-pan ligou pessoalmente. E o mesmo fez o Mata, aquele osso de cachorro! Não tenho coragem de faltar! Oh, oh, oh!

— Então descubra quem está nos perseguindo e pague a ele para parar! Use a cabeça! A quem ofendeu? Deve ter ofendido algum quai loh sujo. Descubra-o, pague-lhe, ou perderemos o banco, nosso título de sócio do Turf Club, perderemos os cavalos, o Rolls, o nosso prestígio para sempre! Ayeeyah! Se perdermos o banco você nunca será Sir Richard Kwang. Não que ser Lady Kwang seja importante para mim, oh, não! Faça alguma coisa! Descubra-o...

Richard Kwang sentia o suor escorrer-lhe pelas costas, mas mantinha a pose, e tentava achar uma saída do labirinto.

— O ouro está totalmente seguro, e seu dinheiro vivo também. Temos sido os banqueiros da Nelson Trading desde o seu início, nunca tivemos o menor problema. Arriscamos muito com vocês, no princípio...

— Qual é, Richard? — falou Mata, disfarçando seu desprezo. — Não há risco com ouro. Certamente não com o nosso ouro.

O ouro pertencia à Great Good Luck Company of Macao, que também possuía o monopólio da jogatina há quase trinta anos. A companhia valia atualmente mais de dois bilhões de dólares americanos; Tung Pão-Duro era dono de trinta por cento, pessoalmente, Lando Mata, de quarenta por cento, pessoalmente, e os descendentes de Mo Contrabandista, que morrera no ano anterior, dos outros trinta por cento.

"E todos juntos", pensava Mata, somos donos de cinqüenta por cento do Ho-Pak, que você, seu cretino, bosta de cachorro, deu um jeito de botar em dificuldades."

— Lamento muito, Richard, mas meu voto é para que a Nelson Trading mude de banco... pelo menos temporariamente. Tung Pão-Duro está muito nervoso... e eu tenho a procuração da família Chin.

— Mas, Lando — começou Richard Kwang —, não há motivo para preocupação. — Cutucou com o dedo o jornal entreaberto, o China Guardian, que jazia sobre a mesa. — O novo artigo de Haply ressalta de novo que estamos firmes... que tudo não passa de uma tempestade num copo d'água iniciada por banqueiros malicio...

— É possível. Mas os chineses acreditam em boatos, e a corrida ao banco é um fato — falou Mata, vivamente.

— Meu velho acredita em boatos — falou Tung Zeppelin, fervorosamente. — Também acredita em Wu Quatro Dedos. Quatro Dedos telefonou para ele, hoje à tarde, contando que havia sacado todo o seu dinheiro, e sugerindo que ele fizesse o mesmo, e dentro de uma hora nós, Lando e eu, estávamos no nosso Catalina, vindo para cá, e você sabe como eu detesto andar de avião. Richard, você sabe muitíssimo bem que se o velho quer que uma coisa seja feita agora, tem que ser agora.

É, pensou Richard Kwang, enojado, aquele velho sovina e nojento saltaria de dentro do túmulo por uma moeda de cinqüenta cents.

— Sugiro que esperemos um dia ou dois...

Dunross estava deixando que conversassem para não desprestigiá-los. Já havia decidido o que fazer. A Nelson Trading era uma subsidiária de propriedade integral da Struan, portanto os outros diretores não tinham que dar opinião, na realidade. Mas embora a Nelson Trading tivesse a licença exclusiva para importação de ouro do governo de Hong Kong, sem os negócios com o ouro da Great Good Luck Company (o que significava: sem os favores de Tung Pão-Duro e Lando Mata), os lucros da companhia seriam praticamente nulos.

A Nelson Trading ganhava uma comissão de um dólar por onça sobre cada onça importada para a companhia, entregue no molhe em Macau, e mais um dólar por onça sobre as exportações de Hong Kong. Como mais uma consideração por ter sugerido o esquema global de Hong Kong para a companhia, a Nelson Trading recebia dez por cento do lucro real. Naquele ano, o governo japonês fixara arbitrariamente a sua taxa oficial de ouro em cinqüenta e cinco dólares a onça... um lucro de quinze dólares por onça. No mercado negro, seria ainda maior. Na índia seriam quase noventa e oito dólares.

Dunross olhou para o relógio. Crosse chegaria dali a alguns minutos.

— Temos um ativo de mais de um bilhão, Lando — repetia Richard Kwang.

— Ótimo — intrometeu-se Dunross, vivamente, encerrando a reunião. — Então, Richard, não faz diferença, de qualquer maneira. Não há por que esperar. Já tomei certas providências. Nosso caminhão de transferência estará na sua porta lateral às oito em ponto.

— Mas...

— Por que tão tarde, tai-pan? — quis saber Mata. — Ainda não são seis horas.

— Já estará escuro, então, Lando. Não me agradaria transferir cinqüenta toneladas de ouro à luz do dia. Pode haver bandidos à solta. Nunca se sabe. Não é?

— Meu Deus, você acha... tríades? — Tung Zeppelin estava chocado. — Vou ligar para meu pai. Mandará alguns guardas extras.

— É — disse Mata —, ligue logo.

— Não é preciso — falou Dunross. — A polícia sugeriu que sejamos discretos. Disseram que estarão presentes, a postos.

Mata hesitou.

— Bem, você é que sabe, tai-pan. É o responsável.

— Naturalmente — disse Dunross, com polidez.

— Como ter certeza de que o Victoria é seguro?

— Se o Victoria afundar, é melhor sairmos da China. — Dunross pegou o telefone e discou para o número particular de Johnjohn, no banco. — Bruce? Ian. Vamos precisar do cofre-forte... às vinte e trinta em ponto.

— Tudo bem. Nossa segurança estará a postos para dar assistência. Use a porta lateral... a da Dirk's Street.

— Sei.

— A polícia já foi informada? -Já.

— Ótimo. A propósito, Ian, Richard ainda está com vocês?

— Sim.

— Ligue para mim quando puder... estarei em casa logo mais, à noite. Andei fazendo verificações, e as coisas não estão nada boas para o lado dele. Meus amigos banqueiros chineses estão todos muito nervosos. Até mesmo o Mok-tung sofreu uma pequena corrida lá em Aberdeen, e nós também. Claro que adiantaremos a Richard todo o dinheiro de que precisar, com os seus títulos mobiliários como garantia, títulos negociáveis em banco. Mas se eu fosse você sacaria todo o dinheiro vivo que pudesse ainda hoje. Faça com que o Blacs cuide do seu cheque em primeiro lugar, logo mais, na compensação.

Toda a compensação de cheques e empréstimos bancários era feita no porão do Blacs à meia-noite, cinco dias por semana.

— Obrigado, Bruce. Até mais ver. — A seguir, para os outros: — Tudo já está arranjado. Naturalmente, a transferência deve ser mantida em sigilo. Richard, vou precisar de um cheque administrativo para o saldo da Nelson Trading.

— E eu de um para o saldo do meu pai! — ecoou Zeppelin.

Richard Kwang disse:

— Enviarei os cheques amanhã, logo de manhã.

— Ainda hoje — declarou Mata —, para que possam ser compensados logo mais. — Suas pálpebras ficaram ainda mais fechadas. — E, naturalmente, um outro para o meu saldo pessoal.

— Não há dinheiro bastante para cobrir esses três cheques... banco algum poderia ter tal quantia — explodiu Richard Kwang. — Nem mesmo o Banco da Inglaterra.

— É claro. Por favor, ligue para quem quiser para empenhar parte dos seus títulos negociáveis. Ou para Havergill, ou para Southerby. — Os dedos de Mata pararam de tamborilar. — Estão esperando o seu telefonema.

— O quê?

— É. Conversei com ambos hoje à tarde.

Richard Kwang ficou calado. Tinha que achar um meio de evitar entregar o dinheiro naquela noite. Se não pagasse agora, ganharia os juros de um dia, e talvez no dia seguinte não fosse preciso pagar, "Dew neh loh moh para todos os quai loh e meio quai loh, que são os piores!" O sorriso dele era tão doce quanto o de Mata.

— Bem, como queiram. Se os dois se encontrarem comigo no banco dentro de uma hora...

— Melhor ainda — falou Dunross. — Phillip irá com você agora. Você poderá entregar-lhe todos os cheques. Está bem assim, Phillip?

— Ora, claro que sim, tai-pan.

— Ótimo, obrigado. Então, se os levar diretamente para o Blacs, estarão compensados à meia-noite. Richard, isso lhe dará bastante tempo, não é?

— Oh, sim, tai-pan — disse Richard Kwang, animando-se. Descobrira uma solução brilhante. Um falso infarto! "Fingirei que estou tendo um, no carro, a caminho do banco, e então..."

Foi então que notou a firmeza nos olhos de Dunross, e seu estômago se retorceu. Mudou de idéia. "Por que devem ficar com tanto dinheiro meu?", pensava, enquanto se levantava.

— Não precisam de mim para mais nada, no momento? Ótimo, então vamos, Phillip.

Os dois saíram. Fez-se um grande silêncio.

— Pobre Phillip, está com uma cara terrível — falou Mata.

— É. Não é de admirar.

— Malditas tríades — falou Tung Zeppelin, estremecendo. — Os Lobisomens devem ser estrangeiros, para enviarem uma orelha daquele jeito! — Estremeceu de novo. — Espero que não venham para Macau. Corre um forte boato de que Phillip já está tratando com eles, negociando com os Lobisomens em Macau.

— Isso não é verdade — declarou Dunross.

— Ele não lhe contaria, se estivesse negociando, tai-pan. Eu também guardaria segredo, de todo mundo. — Tung Zeppelin fitou carrancudo o telefone. — Dew neh loh moh para todos os seqüestradores nojentos.

— O Ho-Pak está acabado? — perguntou Mata.

— A não ser que Richard Kwang consiga manter a liquidez, está. Hoje à tarde Dunstan encerrou as suas contas.

— Ah, então, novamente, um boato é verdade!

— Parece que sim, infelizmente! — Dunross sentia pena de Richard Kwang e do Ho-Pak, mas no dia seguinte iria vender a descoberto. — As ações dele vão cair vertiginosamente.

— Como isso irá afetar a alta que você previu?

— Eu previ?

— Você está comprando muitas ações da Struan, ao que me consta. — Mata deu um leve sorriso. — Phillip também, a tai-tai dele e a família dela.

— Todos agem bem ao comprar as nossas ações, Lando, a qualquer hora. Estão com um preço muito baixo.

Tung Zeppelin escutava atentamente. Seu coração bateu mais depressa. Também ouvira os boatos de que os Chens da Casa Nobre estavam comprando.

— Leram a coluna do Velho Cego Tung hoje? Sobre a próxima alta? Ele falava sério, mesmo.

— É — disse Dunross, com ar solene. Quando a lera, pela manhã, dera uma risada abafada, e sua opinião sobre a influência de Dianne Chen aumentara enormemente. Mesmo a contragosto, Dunross relera o artigo, e imaginara brevemente se o vidente estava realmente prevendo a sua própria opinião.

— O Velho Cego Tung é parente seu, Zep? — perguntou.

— Não, tai-pan, não ao que eu saiba. Dew neh loh moh, mas está quente hoje. Vou ficar feliz em voltar para Macau... o clima é muito melhor em Macau. Vai participar da corrida de automóveis este ano, tai-pan?

— Espero que sim.

— Ótimo! Maldito seja o Ho-Pak! Richard nos dará os cheques administrativos, não é? Meu velho vai ter um derrame se estiver faltando um tostão.

— É — concordou Dunross, depois notou um ar estranho nos olhos de Mata. — O que há?

— Nada. — Mata olhou para Zeppelin. — Zep, é realmente importante que obtenhamos rapidamente a aprovação de seu pai. Por que você e Claudia não vão descobrir onde ele anda?

— Boa idéia.

Obedientemente, o chinês levantou-se e saiu, fechando a porta. Dunross concentrou a atenção em Mata.

— Bem?

Mata hesitou. Depois, falou, serenamente:

— Ian, estou pensando em sacar todos os meus fundos de Macau e Hong Kong e investi-los em Nova York.

Dunross fitou-o, perturbado.

— Se você fizer isso, abalará todo o nosso sistema. Se você sacar, Pão-Duro fará o mesmo, os Chins, Quatro Dedos... e todos os outros.

— O que é mais importante, tai-pan, o sistema ou o nosso dinheiro?

— Não gostaria que o sistema fosse abalado assim.

— Já fechou com a Par-Con? Dunross fitava-o.

— Verbalmente, já. Contratos daqui a sete dias. Se você sacar vai nos fazer muito mal, Lando. Muito mesmo. O que é mau para nós será mau para você e muito, muito mau para Macau.

— Levarei em consideração o que está dizendo. Com que então a Par-Con vem para Hong Kong. Ótimo... e, se realmente ocorrer a compra do controle da Hong Kong General Stores pela American Superfood, isso dará novo incremento ao mercado. Talvez o Velho Cego Tung não estivesse exagerando. Quem sabe não teremos sorte? Ele já errou antes, alguma vez?

— Não sei. Pessoalmente, não acho que ele tenha uma ligação particular com o Todo-Poderoso, embora muita gente ache.

— Uma alta seria uma coisa realmente excelente. Um cálculo de tempo perfeito. E — acrescentou Mata, de modo estranho — poderíamos adicionar um pouco de combustível à maior alta da nossa história, não?

— Você ajudaria?

— Eu e os Chins juntos daríamos dez milhões de dólares americanos... Pão-Duro não vai se interessar, que eu sei. Sugira você onde e quando...

— Meio milhão na Struan, no final do expediente de quinta-feira, o resto distribuído pela Rothwell-Gornt, Propriedades Asiáticas, Cais de Hong Kong, Força de Hong Kong, Balsa Dourada, Investimentos Kowloon e General Stores.

— Por que quinta-feira? Por que não amanhã?

— O Ho-Paíc vai fazer baixar o mercado. Se comprarmos em grandes quantidades na quinta, pouco antes do encerramento do expediente, ganharemos uma fortuna.

— Quando vai anunciar a transação com a Par-Con? Dunross hesitou. Depois, falou:

— Na sexta, depois que a Bolsa fechar.

— Ótimo. Estou nessa, Ian. Quinze milhões. Quinze, ao invés de dez. Vai vender ações do Ho-Pak a descoberto, amanhã?

— Claro. Lando, sabe quem está por trás da corrida ao Ho-Pak?

— Não. Mas Richard ultrapassou os seus limites, e não tem agido sensatamente. As pessoas falam, os chineses sempre desconfiam de qualquer banco, e reagem aos boatos. Acho que o banco vai falir.

— Meu Deus!

— É o destino. — Os dedos de Mata pararam de tamborilar. — Quero triplicar as nossas importações de ouro.

Dunross fitou-o.

— Por quê? Estão no limite da sua capacidade, agora. Se os pressionarem depressa demais, cometerão erros, e sua taxa de confisco subirá. No momento, vocês estão com tudo perfeitamente equilibrado.

— É, mas Quatro Dedos e outros nos asseguram que podem fazer alguns carregamentos substanciais de ouro em segurança.

— Não há necessidade de pressioná-los... ou ao seu mercado. Necessidade nenhuma.

— Ian, preste atenção um momento. Há encrencas na Indonésia, encrencas na China, índia, Tibete, Malásia, Cingapura, agitação nas Filipinas, e agora os americanos vão invadir o sudeste asiático, o que será maravilhoso para nós, e pavoroso para eles. A inflação vai disparar, e então, como sempre, todo comerciante sensato na Ásia, especialmente os comerciantes chineses, vai querer trocar o dinheiro-papel pelo ouro. Temos que estar prontos para atender à demanda.

— O que foi que andou ouvindo, Lando?

— Muitas coisas curiosas, tai-pan. Por exemplo, que certos generais americanos importantes estão querendo defrontar-se em alta escala com os comunistas. O Vietnam foi o local escolhido.

— Mas os americanos jamais vencerão ali. A China não poderá permitir isso, como não pôde permitir na Coréia. Qualquer livro de história lhes dirá que a China sempre cruza as suas fronteiras para proteger os seus Estados-tampão quando qualquer invasor se aproxima.

— Mesmo assim, o confronto ocorrerá.

Dunross examinou atentamente Lando Mata, cuja imensa fortuna e envolvimento antigo na honorável profissão de comerciar, como ele a descrevia, davam-lhe uma entrada fantástica nos lugares mais sigilosos.

— O que mais ouviu dizer, Lando?

— O orçamento da CIA foi dobrado.

— Isso é coisa ultra-secreta. Ninguém poderia saber disso.

— Pois é. Mas eu sei. A segurança deles é assombrosa, Ian. A CIA tem o dedo metido em tudo, no sudeste asiático. Acredito até que alguns dos seus fanáticos mal orientados estão tentando intrometer-se no comércio de ópio do Triângulo Dourado para favorecer seus grupos amistosos das montanhas Mekong... para encorajá-los a lutar contra os vietcongs.

— Santo Deus!

— É. Nossos irmãos em Formosa estão furiosos. E há uma abundância crescente de dinheiro do governo americano sendo utilizado em pistas de pouso, portos, estradas. Em Okinawa, Formosa, e especialmente no Vietnam do Sul. Certas famílias muito conceituadas politicamente estão ajudando a fornecer o cimento e o aço, sob condições muito favoráveis.

— Quais?

— Quem fabrica cimento? Talvez em... digamos, na Nova Inglaterra?

— Meu Deus, tem certeza? Mata deu um sorriso sem humor.

— Ouvi até dizer que parte de um grande empréstimo do governo para o Vietnam do Sul foi gasto num campo de pouso inexistente, que ainda é selva impenetrável. Ah, sim, Ian, os lucros já são imensos. Assim, por favor, encomende carregamentos triplos, de amanhã em diante. Vamos começar o nosso novo sistema de hidroaviões no mês que vem... isso diminuirá a viagem para Macau de três horas para setenta e cinco minutos.

— O Catalina não seria ainda mais seguro?

— Não, não creio. Os hidroaviões podem transportar muito mais ouro e podem correr mais depressa do que qualquer outra embarcação nessas águas... teremos comunicações constantes por radar, as melhores, para podermos ganhar qualquer pirata na corrida.

Após uma pausa, Dunross disse:

— Uma quantidade tão grande de ouro poderia atrair todo tipo de bandidos. Até ladrões internacionais.

Mata deu o seu sorrisinho ligeiro.

— Eles que venham. Nunca irão embora. Temos braços compridos, na Ásia. — Recomeçou o tamborilar com os dedos.

— Ian, somos velhos amigos. Gostaria de uns conselhos seus.

— Às suas ordens... qualquer coisa.

— Acredita em mudanças?

— Mudanças comerciais?

— É.

— Depende, Lando — respondeu Dunross, prontamente.

— A Casa Nobre mudou pouco, em quase um século e meio. Em outros aspectos, mudou imensamene.

Ficou olhando para o homem mais velho, e esperando. Finalmente, Mata falou:

— Dentro de algumas semanas, o governo de Macau será obrigado a pôr em leilão novamente a concessão para o jogo... — Instantaneamente, Dunross ficou totalmente concentrado. Todos os grandes negócios em Macau eram conduzidos na base de monopólio, e este era dado à pessoa ou companhia que oferecesse mais impostos por ano pelo privilégio. — Este é o quinto ano. A cada cinco anos, nosso departamento pede lances fechados. O leilão é aberto a todos, mas, na prática, examinamos minuciosamente aqueles que são convidados a dar lances. — O silêncio pesou por um momento, depois Mata continuou: — Meu velho sócio, Mo Contrabandista, já morreu.

Os rebentos dele são na maioria esbanjadores, ou estão mais interessados no mundo ocidental — cassinos no sul da França, partidas de golfe — do que na saúde e futuro do sindicato. Para os Mos, é o destino antiqüíssimo: o cule, um em dez mil, que acha ouro, guarda dinheiro, investe em terras, poupa, fica rico, compra jovens concubinas que o desgastam rapidamente. A segunda geração é descontente, gasta o dinheiro, hipoteca as terras para comprar prestígio e os favores das mulheres. A terceira geração vende as terras, vai à falência pelos mesmos favores. A quarta geração é cule de novo. — Sua voz estava calma, até meiga. — Meu velho amigo está morto, e não sinto nada pelos filhos dele, ou pelos netos. São ricos, imensamente ricos por minha causa, e encontrarão seu próprio nível; bom, mau ou péssimo. Quanto a Pão-Duro... — Os dedos pararam de se mexer, de novo. — Pão-Duro está morrendo. Dunross ficou espantado.

— Mas eu o vi faz mais ou menos uma semana, e parecia saudável, frágil como sempre, mas cheio de vida e malícia.

— Está morrendo, Ian. Sei disso porque fui seu intérprete junto aos especialistas portugueses. Não queria confiar em nenhum dos filhos... foi o que me disse. Levei meses para conseguir que fosse aos médicos, mas ambos deram o mesmo diagnóstico: câncer do cólon. O organismo dele está saturado de câncer. Deram-lhe um, dois meses de vida... isso foi há uma semana. — Mata sorriu. — O velho Pão-Duro xingou os dois, disse que estavam errados, que eram idiotas, e que jamais pagaria por um diagnóstico errado. — O português esbelto riu sem achar graça. — Ele vale mais de seiscentos milhões de dólares americanos, mas jamais pagará aquela conta médica, ou fará outra coisa senão continuar a beber chás de ervas chineses fedorentos e amargos, e a fumar o seu cachimbo de ópio ocasional. Não vai aceitar um diagnóstico ocidental, de quai loh... você o conhece. Conhece muito bem, não é?

— É.

Quando Dunross estava em férias escolares, o pai costumava mandá-lo trabalhar para certos velhos amigos. Tung Pão-Duro fora um deles, e Dunross lembrava-se do verão pavoroso que passara suando no porão nojento do banco do sindicato em Macau, tentando agradar o seu mentor e não chorar de raiva ao pensar no que estava tendo que suportar enquanto todos os seus amigos se divertiam. Mas, agora, sentia-se grato por aquele verão. Pão-Duro lhe ensinara muita coisa sobre o dinheiro... seu valor, como ganhá-lo, como ficar com ele, sobre a usura, a cobiça e a taxa de juros normal dos chineses, de dois por cento ao mês, nos bons tempos.

— Pegue o dobro da quantia necessária, mas se ele não tiver nenhuma, olhe dentro dos olhos de quem está pedindo o empréstimo! — berrava Tung para ele. — Se não houver garantia, cobre juros maiores, é claro. Agora, pense; pode confiar nele? Vai poder pagar o empréstimo? Ele é trabalhador ou vadio? Olhe para ele, pateta, ele é a sua garantia! Quanto ele quer do meu dinheiro suado? É um trabalhador esforçado? Se for, o que são dois por cento ao mês para ele... ou quatro? Nada. Mas é o meu dinheiro que fará o sacana ficar rico, se for o destino dele ficar rico. O homem em si é toda a garantia de que jamais se precisará! Empreste qualquer coisa ao filho de um homem rico, se estiver dando a sua herança como garantia, e tiver o carimbo oficial do pai... vai ser tudo gasto com piranhas, mas e daí?, o dinheiro é dele, não seu! Como se fica rico? Poupando! Poupa-se dinheiro, compra-se terra com um terço, empresta-se um terço e guarda-se um terço em dinheiro vivo. Empreste apenas à gente civilizada, e nunca confie num quai loh... — casquinava ele.

Dunross recordava-se bem daquele velho de olhos duros como pedra, quase desdentado... um analfabeto que sabia ler e escrever apenas três caracteres (os do seu nome), mas que tinha uma mente como a de um computador, que sabia, até o último tostão, quem lhe devia, e quando tinha que receber. Ninguém jamais deixara de lhe pagar uma dívida. Não valia a pena sofrer a perseguição incessante.

Naquele verão ele tinha treze anos, e Lando Mata se tornara seu amigo. Então, como agora, Mata era quase um espectro, uma presença misteriosa que entrava e saía das esferas governamentais de Macau como bem queria, sempre discretamente, uma figura que mal se via, de quem pouco se conhecia, um asiático estranho que ia e vinha quando lhe dava na telha, apanhava o que queria, colhendo riquezas incríveis como e quando tinha vontade. Mesmo hoje havia apenas um punhado de pessoas que sabia o seu nome, e menor ainda era o número dos que o conheciam pessoalmente. O próprio Dunross nunca fora à sua villa na Rua da Fonte Quebrada, o prédio baixo e espaçoso oculto por trás dos portões de ferro e muros de pedra enormes, nem sabia direito coisa alguma a seu respeito — de onde viera, quem eram seus pais ou como conseguira adquirir aqueles dois monopólios de riqueza ilimitada.

— Lamento saber sobre o velho Pão-Duro — disse Dunross. — Sempre foi um filho da mãe durão, mas não mais durão para comigo do que para com qualquer dos filhos.

— É. E está morrendo. Joss. E estou pouco ligando para os herdeiros dele. Como os Chins, serão ricos, todos eles. Até o Zeppelin — disse Lando Mata, com um ar de desdém. — Até o Zeppelin vai receber de cinqüenta a setenta e cinco milhões americanos.

— Santo Deus, quando a gente pára para pensar no dinheiro que o jogo dá...

As pálpebras de Mata se fecharam mais.

— Devo fazer uma mudança?

— Se quiser deixar um monumento, sim. Atualmente, o sindicato só permite jogos chineses: fan-tan, dominó e dados. Se o novo grupo tivesse visão, e se ele se modernizasse... se construísse um imenso cassino novo, com mesas para roleta, vinte-e-um, chemin-de-fer, até mesmo dados americanos, a Ásia inteira se dirigiria para Macau.

— Quais são as chances de o jogo ser legalizado em Hong Kong?

— Nenhuma... sabe melhor do que eu que sem o jogo e o ouro, Macau acabaria indo pro brejo, e é um ponto de honra da política comercial da Grã-Bretanha e de Hong Kong jamais permitir que isso aconteça. Temos as nossas corridas de cavalos... vocês, as mesas de jogo. Mas com proprietários com uma visão mais moderna, novos hotéis, novos jogos, novos hidroaviões, vocês ganhariam tanto que teriam que abrir o seu próprio banco.

Lando Mata apanhou um pedaço de papel, olhou para ele, depois passou-o a Dunross.

— Aqui estão quatro grupos de três nomes de pessoas que talvez tenham o direito de dar lances. Gostaria de saber sua opinião.

Dunross nem olhou para a lista.

— Quer que eu escolha o grupo de três que você já escolheu?

Mata riu.

— Ah, Ian, você me conhece bem demais! É, já escolhi o grupo que deve ser o mais bem-sucedido, se seu lance for substancial o bastante.

— Algum dos grupos está sabendo que você está pensando em tomá-lo como sócio?

— Não.

— E quanto ao Pão-Duro... e os Chins? Não vão perder o seu monopólio sem chiar.

— Se o Pão-Duro morrer antes do leilão, haverá um novo sindicato. Caso contrário, a mudança será feita, porém de modo diferente.

Dunross olhou para a lista. E soltou uma exclamação abafada. Todos os nomes eram de chineses conhecidos, de Hong Kong e Macau, tudo gente de peso, alguns com passado curioso.

— Bem, pelo menos são todos famosos, Lando.

— É. Para ganhar tanto dinheiro, para dirigir um império do jogo, é preciso homens de visão.

Dunross sorriu junto com ele.

— Concordo. Então, por que não estou na lista?

— Demita-se da Casa Nobre até o fim do mês e poderá formar o seu próprio sindicato. Garanto que o seu lance será aceito. Fico com quarenta por cento.

— Lamento, mas não é possível, Lando.

— Poderia obter uma fortuna pessoal de quinhentos milhões a um bilhão de dólares em dez anos.

— O que é o dinheiro? — falou Dunross, dando de ombros.

— Moh ching, moh mengl Sem dinheiro, não há vida.

— É, mas não há dinheiro bastante no mundo para fazer com que eu me demita. Apesar disso, farei um trato com você. A Struan dirigirá o jogo para você, por meio de representantes.

— Desculpe, não. Tem que ser tudo ou nada.

— Poderíamos fazer a coisa melhor e mais barato do que qualquer outro, e com mais classe.

— Se você se demitir. Tudo ou nada, tai-pan.

A cabeça de Dunross doía ao pensar em tanto dinheiro, mas percebeu o tom de voz resoluto e definitivo de Mata.

— É justo. Desculpe, não estou disponível — falou.

— Estou certo de que você, pessoalmente, seria bem-vindo como... como consultor.

— Se eu escolher o grupo certo?

— Talvez. — O português sorriu. — E então? Dunross se perguntava se poderia correr o risco de uma tal associação. Fazer parte do sindicato de jogo de Macau não era como pertencer ao Turf Club.

— Vou pensar no assunto, depois darei uma resposta.

— Ótimo, Ian. Diga-me qual a sua opinião dentro de dois dias, certo?

— Certo. Vai me contar qual foi o lance vencedor... se decidir mudar?

— Um associado ou consultor precisa ter conhecimento disso. Agora, um último tópico, depois eu vou indo. Acho que jamais verá de novo seu amigo Tsu-yan.

Dunross fitou-o.

— Como?

— Ele ligou para mim de Taipé, ontem de manhã, nervosíssimo. Pediu-me que mandasse o Catalina especialmente para apanhá-lo. Disse que era urgente, que explicaria quando me visse. Viria direto para a minha casa, logo que chegasse. — Mata deu de ombros e examinou as unhas muitíssimo bem-tratadas. — Tsu-yan é um velho amigo. Já atendi a velhos amigos antes, portanto autorizei o vôo. Ele não apareceu, Ian. Oh, veio com o hidroplano... meu chofer estava no molhe para apanhá-lo. — Mata ergueu os olhos. — É uma coisa incrível. Tsu-yan vestia trapos imundos de cule e um chapéu de palha. Resmungou que iria me ver logo mais, à noite, enfiou-se no primeiro táxi e arrancou como se estivesse sendo perseguido por todos os diabos do inferno. Meu chofer ficou estupefato.

— Não houve um engano? Tem certeza de que era ele?

— Ah, tenho, Tsu-yan é muito conhecido... felizmente meu chofer é português, e tem alguma iniciativa. Saiu correndo atrás dele. Disse que o táxi de Tsu-yan se dirigiu para o norte. Perto do Portão da Barreira, o táxi parou, e então Tsu-yan fugiu a pé, o mais rápido possível, cruzou o Portão da Barreira e entrou na China. Meu empregado o viu correr até chegar junto dos soldados do lado da RPC, e depois sumir dentro da casa da guarda.

Dunross fitou Mata, sem poder acreditar. Tsu-yan era um dos capitalistas e anticomunistas mais conhecidos de Hong Kong e Formosa. Antes da queda do continente, fora quase que um minissenhor da guerra na área de Xangai.

— Tsu-yan jamais seria bem-vindo na República Popular da China — disse. — Jamais! Deve estar no topo da lista negra deles.

Mata hesitou.

— A não ser que estivesse trabalhando para eles.

— Não é possível.

— Qualquer coisa é possível, na China.

Vinte andares abaixo deles, Roger Crosse e Brian Kwok estavam saindo do carro da polícia, seguidos por Robert Armstrong. Um policial à paisana do sei veio ao seu encontro.

— Dunross ainda está no escritório, senhor.

— Ótimo.

Robert Armstrong ficou na porta de entrada, os outros dois se dirigiram para o elevador. Saltaram no vigésimo andar.

— Ah, boa noite, senhor — cumprimentou Claudia, e sorriu para Brian Kwok. Tung Zeppelin esperava ao lado do telefone. Fitou os policiais, com choque repentino, obviamente reconhecendo-os.

Roger Crosse disse:

— O Sr. Dunross está me esperando.

— Sim, senhor. — Apertou o botão da sala de reuniões, e logo falou ao seu telefone: — O Sr. Crosse está aqui, tai-pan.

Dunross disse:

— Dê-me um minutinho, depois faça-o entrar, Claudia. — Recolocou o seu telefone no gancho, depois virou-se para Mata. — Crosse está aqui. Se não o vir logo mais no banco, falo com você amanhã de manhã.

— Sim, eu... por favor, ligue para mim, Ian. É. Quero alguns minutos em particular com você. Logo mais ou amanhã.

— Logo mais às nove — replicou Ian imediatamente. — Ou amanhã, a qualquer hora.

— Ligue para mim às nove. Ou amanhã. Obrigado. Mata cruzou a sala e abriu uma porta que mal se notava, camuflada como parte das estantes de livros. A porta se abria para um corredor particular que levava ao andar inferior. Ele fechou a porta atrás de si.

Dunross ficou olhando para o lugar por onde ele se fora, pensativo. O que estaria querendo? Guardou os papéis da agenda numa gaveta, trancou-a, depois recostou-se na cabeceira da mesa, tentando se concentrar, olhos fitos na porta de entrada, o coração batendo mais depressa. O telefone tocou e ele deu um pulo.

— Sim?

— Papai — falou Adryon, sempre afobada —, desculpe interromper, mas mamãe quer saber a que horas você vem jantar.

— Vou chegar tarde. Diga a ela para não esperar, que como qualquer coisa no caminho. A que horas chegou ontem à noite? — indagou, recordando-se de que ouvira o carro dela voltar pouco antes da aurora.

— Cedo — retrucou, e ele já ia dar-lhe uma bronca daquelas, quando percebeu a tristeza na voz da moça.

— O que há, meu bem? — perguntou.

— Nada.

— O que há?

— Nada, verdade. Tive um dia ótimo, almocei com o seu Linc Bartlett... fomos fazer compras. Mas aquela besta do Martin me deu o bolo.

— O quê?

— É. Esperei uma hora inteira por ele. Tínhamos combinado ir tomar chá juntos no Victoria, mas ele nem deu as caras. É uma besta!

Dunross abriu um sorriso.

— Não se pode confiar em certas pessoas, não é mesmo, Adryon? Veja só! Dar o bolo em você! Mas que audácia! — falou, adequadamente solene, radiante porque Haply ia ouvir poucas e boas.

— Ele é um monstro! Um monstro de vinte e quatro quilates!

A porta se abriu. Crosse e Brian entraram. Ele lhes fez um gesto de cabeça, chamando-os para perto. Claudia fechou a porta atrás deles.

— Tenho que desligar, agora. Ei, boneca, amo você! Tchau! — Desligou o aparelho, e não estava mais perturbado. — Boa noite — cumprimentou.

— As pastas, Ian, por favor.

— Por certo, mas primeiro temos que ir ver o governador.

— Primeiro eu quero aquelas pastas.

Crosse tirou do bolso o mandado de prisão, enquanto Dunross pegava o telefone e discava. Esperou apenas um momento.

— Boa noite, senhor. O superintendente Crosse está aqui... sim, senhor. — Estendeu o aparelho. — Para você.

Crosse hesitou, a fisionomia dura, depois pegou o aparelho.

— Superintendente Crosse — falou. Escutou durante um momento. — Sim, senhor. Pois não, senhor. — Colocou o fone no gancho. — Ora, que diabo você está aprontando?

— Nada. Estou apenas sendo cauteloso. Crosse ergueu o mandado.

— Se não me der as pastas, tenho autorização de Londres para entregar-lhe isto aqui às dezoito horas, com ou sem governador!

Dunross devolveu-lhe o olhar, igualmente duro.

— Por favor, à vontade.

— O mandado está entregue, Ian Struan Dunross! Sinto muito, mas está preso.

O queixo de Ian empinou um pouco.

— Muito bem. Mas antes, por Deus, iremos ver o governador!

 

                       18h20m

O tai-pan e Roger Crosse cruzavam o chão de pedrinhas brancas em direção à porta da frente do Palácio do Governo. Brian Kwok esperava ao lado do carro da polícia. A porta da frente se abriu e o jovem camarista com a farda da Marinha Real cumprimentou-os educadamente, depois fê-los entrar numa ante-sala exótica.

Sua Excelência, Sir Geoffrey Allison, DSO¹, OBE², era um homem de cabelos avermelhados de cinqüenta e muitos anos, impecável, de fala macia e extremamente durão. Estava sentado a uma escrivaninha antiga, e os observava.

 

¹ "Distinguished Service Order", comenda por destacados serviços. (N. da T.)

² "Order of British Empire", comenda do Império Britânico. (N. da T.)

 

— Boa noite — cumprimentou, serenamente, fazendo sinal para que se sentassem. Seu camarista fechou a porta, deixando-os a sós. — Parece que temos um problema, Roger. Ian possui legalmente certos documentos particulares que reluta em lhe entregar... e que você quer...

— Quero legalmente, senhor. Tenho autorização para isso, conferida por Londres a mim, de conformidade com a Lei dos Segredos Oficiais.

— É, eu sei, Roger. Falei com o ministro faz uma hora. Ele disse, e eu concordo, que não tem sentido prendermos o Ian e revistarmos a Casa Nobre como se fosse uma casa qualquer. Isso não ficaria bem, nem seria sensato, embora estejamos muito decididos a obter as pastas de Alan Medford Grant. E, igualmente, não ficaria bem nem seria sensato obtê-las à moda de capa-e-espada... sabe a que me refiro, não é?

Crosse retrucou:

— Com a cooperação de Ian nada disso seria necessário. Já o fiz ver que o governo de Sua Majestade está completamente envolvido. Ele parece que não quer entender, senhor. Devia cooperar.

— Concordo inteiramente. O ministro disse a mesma coisa. Naturalmente, quando Ian esteve aqui, pela manhã, explicou seus motivos para ser tão... tão cauteloso... motivos bem justos, devo dizer. O ministro também concorda. — Seus olhos cinzentos tornaram-se penetrantes. — Exatamente, quem é o agente comunista infiltrado na minha polícia? Quem são os agentes da Sevrin?

Fez-se um vasto silêncio.

— Não sei, senhor.

— Então, queira me fazer a gentileza de descobrir bem rápido. Ian foi bastante gentil, e me deixou ler o relatório de Alan Medford Grant que vocês corretamente interceptaram. — O rosto do governador ficou rubro, ao citar um trecho dele:

— "... esta informação deve ser transmitida particularmente ao comissário de polícia e ao governador, caso sejam considerados leais..." Virgem Santíssima! O que está havendo no mundo?

— Não sei, senhor.

— Mas devia saber, Roger. É. — O governador fitou-os.

— Bem, e quanto ao tal toupeira? Que tipo de homem poderia ser?

— O senhor, eu, Dunross, Havergill, Armstrong... qualquer um — replicou Crosse imediatamente. — Mas com uma característica: acho que ele se infiltrou tão fundo que provavelmente quase esqueceu quem realmente é, ou de que lado ficam seu verdadeiro interesse político e sua verdadeira lealdade. Deve ser alguém muito especial... como todo o pessoal da Sevrin. — O homem de rosto magro fitou Dunross. — Tem que ser gente muito especial. As verificações e vistorias do sei são realmente excelentes, assim como as da CIA, mas jamais tivemos sequer uma sombra de idéia da existência da Sevrin.

— Como vai pegá-lo? — perguntou Dunross.

— Como vai pegar o agente infiltrado na Struan?

— Não tenho a menor idéia. — "O espião da Sevrin será o mesmo que revelou nossos segredos a Bartlett?", perguntava-se Dunross, inquieto. — Se for do primeiro escalão, é um entre sete... todos acima de qualquer suspeita.

— Aí está — disse Crosse. — Todos acima de qualquer suspeita. Mas um deles é um espião. Se conseguirmos pegar um deles, provavelmente arrancaremos dele os nomes dos outros, se ele os souber. — Sua calma perversidade deixou os dois homens gelados. — Mas, para pegar um, alguém tem que cometer um deslize, ou teremos que ter um pouco de sorte.

O governador pensou por um momento. Depois, disse:

— Ian me assegurou que em momento algum os relatórios anteriores citam o nome de alguém... ou dão alguma pista. Sendo assim, os outros relatórios não teriam utilidade imediata para nós.

— Teriam, senhor. Em outras áreas, senhor.

— Eu sei. — As palavras foram ditas serenamente, mas significavam: "Cale a boca, sente-se e espere até eu acabar". Sir Geoffrey deixou o silêncio pesar por alguns momentos. — Portanto, nosso problema parece ser simplesmente uma questão de pedir a Ian a sua cooperação. Repito: concordo que sua precaução seja justificada. — Seu rosto enrijeceu-se. — Philby, Burgess e Maclean nos ensinaram a todos uma bela lição. Devo confessar que cada vez que telefono para Londres fico imaginando se não estarei falando com outro maldito traidor. — Assoou o nariz com um lenço de tecido. — Bem, chega dessa conversa. Ian, faça a gentileza de dizer ao Roger as circunstâncias sob as quais entregará as cópias dos relatórios de Alan Medford Grant.

— Eu as entregarei, pessoalmente, ao chefe ou subchefe da MI-6 ou da MI-5, desde que tenha a garantia por escrito de Sua Excelência de que o homem para quem as estou entregando é quem alega ser.

— O ministro concorda com isso, senhor?

— Se você concordar, Roger.

Novamente, ele falou de modo cortês, mas estava subentendido: "É melhor concordar, Roger".

— Muito bem, senhor. O Sr. Sinders concordou com o plano?

— Estará aqui na sexta-feira, se a BOAC quiser.

— Sim, senhor. — Roger Crosse olhou para Dunross. — É melhor eu ficar com as pastas, até lá. Você me dará um pacote lacra...

Dunross fez que não com a cabeça.

— Estarão em segurança até que eu as entregue. Crosse fez que não com a cabeça.

— Não. Se nós estamos sabendo, outros também estão. Os outros não jogam tão limpo quanto nós. Precisamos saber onde estão... temos que pô-las sob guarda, vinte e quatro horas por dia.

Sir Geoffrey concordou.

— Parece-lhe justo, Ian? Dunross pensou por um momento.

— Está certo. Coloquei-as numa caixa-forte do Victoria Bank. — O pescoço de Crosse ficou rosado quando Dunross tirou do bolso uma chave e colocou-a sobre a mesa. Os números haviam sido cuidadosamente apagados. — Existem cerca de mil cofres individuais. Só eu conheço o número. Esta é a única chave. Se quiser guardá-la, Sir Geoffrey... bem, é o máximo que posso fazer para evitar riscos.

— Roger?

— Sim, senhor. Se está de acordo.

— Lá estão realmente em segurança. É impossível arrombar todos eles. Ótimo, então isso está resolvido. Ian, o mandado está cancelado. Promete, Ian, entregá-las a Sinders, tão logo ele chegue? — Os olhos ficaram penetrantes de novo. — Tive uma trabalheira para resolver isso.

— Sim, senhor.

— Ótimo. Então, estamos conversados. Ainda nenhuma notícia do pobre John Chen, Roger?

— Não, senhor, estamos tentando tudo.

— Que coisa terrível. Ian, e essa história do Ho-Pak? Estão mesmo em dificuldades?

— Estão, senhor.

— Vão soçobrar?

— Não sei. Corre o boato de que vão.

— Que merda! Não estou gostando nada disso. Muito ruim para a nossa imagem. E a transação com a Par-Con?

— Parece boa. Espero ter um relatório favorável para o senhor na semana que vem.

— Excelente. Bem que podíamos usar umas boas firmas americanas por aqui. — Sorriu. — Ouvi dizer que a garota é um encanto! A propósito, a Delegação Comercial Parlamentar deve chegar de Pequim amanhã. Vou dar um jantar para eles na quinta-feira... você virá, é claro.

— Sim, senhor. O jantar será só para homens?

— É, boa idéia.

— Vou convidá-los para as corridas de sábado... o pessoal que sobrar poderá ir para o reservado do banco.

— Ótimo. Obrigado, Ian. Roger, se tiver um momentinho sobrando...

Dunross levantou-se, apertou a mão dos outros e saiu. Embora tivesse vindo com Crosse no carro da polícia, seu Rolls estava à espera. Brian Kwok interceptou-o.

— A que conclusão chegaram, Ian?

— Pediram-me para deixar que seu patrão lhe contasse.

— É justo. Ele vai demorar?

— Não sei. Está tudo bem, Brian. Não há com que se preocupar. Acho que resolvi o dilema corretamente.

— Espero que sim... que merda de situação.

— É. — Dunross entrou no banco traseiro do Silver Cloud. — Balsa Dourada — falou, vivamente.

Sir Geoffrey servia o excelente xerez em duas exóticas xícaras de porcelana casca de ovo.

— Essa história de Alan Medford Grant é bem assustadora, Roger — falou. — Infelizmente ainda não me acostumei às traições, e a toda a podridão de que o inimigo é capaz... mesmo depois de todo esse tempo. — Sir Geoffrey servira no corpo diplomático desde que começara a trabalhar, exceto na época da guerra, quando fora oficial do estado-maior do exército britânico. Falava russo, mandarim, francês e italiano. — É terrível.

— É sim, senhor. — Crosse observava-o. — Tem certeza de que pode confiar em Ian?

— Na sexta-feira você não necessitará da autorização de Londres para prosseguir. Tem uma ordem no conselho. Na sexta-feira, nós nos apossaremos das pastas.

— Sim, senhor. — Crosse aceitou a xícara de porcelana, preocupado com a sua fragilidade. — Obrigado, senhor.

— Sugiro que mantenha dois homens nas caixas-fortes ininterruptamente, um do sei e outro do DIC, para efeito de segurança, e um vigia à paisana atrás do tai-pan... discretamente, é claro.

— Providenciarei quanto ao banco antes de sair. Quanto a ele, já está sob vigilância discreta.

— Ah, já?

— Sim, senhor. Imaginei que ele manipularia a situação para ir de encontro aos seus propósitos. Ian é um sujeito muito ardiloso. Afinal, o tai-pan da Casa Nobre nunca é um tolo.

— Não. Saúde! — Tocaram as xícaras delicadamente, uma na outra. O ruído emitido era lindo. — Este tai-pan é o melhor dentre todos com quem já lidei.

— Ian mencionou se tinha relido todas as pastas recentemente, senhor? Ontem à noite, por exemplo?

— Não creio — disse Sir Geoffrey franzindo o cenho, relembrando a conversa deles, pela manhã. — Espere aí, ele falou... falou exatamente: "Quando li os relatórios de Alan pela primeira vez, achei que algumas das idéias dele eram exageradas demais. Mas agora... e agora que está morto, mudei de idéia..." Isso pode significar que ele as tenha relido recentemente. Por quê?

Crosse examinava contra a luz a xícara de porcelana delicadíssima.

— Sempre ouvi dizer que ele tem uma memória notável. Se as pastas na caixa-forte são intocáveis... bem, não gostaria que o KGB se sentisse tentado a seqüestrá-lo.

— Santo Deus, não acha que seriam burros a esse ponto, acha? O tai-pan?

— Depende da importância que dêem aos relatórios, senhor — falou Crosse, serenamente. — Talvez nossa vigilância deva ser relativamente ostensiva... isso os faria correr, caso estivessem com tal idéia. Quer explicar isso a ele, senhor?

— Mas, claro. — Sir Geoffrey tomou nota no seu bloquinho. — Boa idéia. É um caso sério. Será que os Lobisomens... será que existe algum elo entre as armas contrabandeadas e o seqüestro de John Chen?

— Não sei, senhor. Ainda. Já encarreguei Armstrong e Brian Kwok do caso. Se houver alguma ligação, eles. a encontrarão. — Ficou olhando a luz do pôr-do-sol que tocava na porcelana translúcida, azul-pálida, que parecia realçar o brilho dourado do xerez seco La Ina. — Interessante, o jogo de cores.

— É. São T'ang Ying... têm o nome do diretor da fábrica do imperador, em 1736. Na verdade, o imperador Ch'en Leung. — Sir Geoffrey ergueu os olhos para Crosse. — Um espião infiltrado na minha polícia, na minha secretaria colonial, no meu Departamento do Tesouro, na base naval, no Victoria, na companhia telefônica, e até mesmo na Casa Nobre. Poderiam paralisar-nos e criar a maior confusão entre nós e a RPC.

— Sim, senhor. — Crosse examinou a xícara. — Parece impossível que seja tão fina. Nunca vi uma xícara assim antes.

— Você é colecionador?

— Não, senhor. Infelizmente, não sei nada sobre elas.

— Essas são as minhas favoritas, Roger. Muito raras. Têm o nome de t'o t'ai: "sem corpo". São tão finas que os esmaltes, por dentro e por fora, parecem tocar-se.

— Quase me dá medo segurá-la.

— Ah, mas são bem fortes. Delicadas, é claro, mas fortes. Quem poderia ser Arthur?

Crosse soltou um suspiro.

— Não há pista alguma neste relatório. Nenhuma. Já o li cinqüenta vezes. Deve haver alguma nos outros, não importa o que Dunross ache.

— Possivelmente.

A xícara delicada parecia fascinar Crosse.

— A porcelana é uma argila, não é?

— É. Mas este tipo é feito de uma mistura de duas argilas, Roger: caulim (em homenagem à zona montanhosa de King-tehchen, onde é encontrada) e pan tun tse, os chamados bloquinhos brancos. Os chineses os chamam a carne e os ossos da porcelana. — Sir Geoffrey foi até junto da mesa de tampo de couro trabalhado que fazia as vezes de bar e trouxe de lá a garrafa de licor. Tinha uns vinte centímetros de altura, e era bastante translúcida, quase transparente. — O azul também é admirável. Quando o corpo está bem seco, sopra-se cobalto em pó sobre a porcelana com um pedaço de bambu. Na realidade, a cor é composta de milhares de pintinhas minúsculas individuais de azul. Depois, ela é vitrificada e levada ao forno... a cerca de mil e trezentos graus.

Ele a devolveu ao bar, o toque de artesanato e a visão da peça encantando-o.

— Notável.

— Sempre houve um decreto imperial proibindo a sua exportação. Nós, quai loh, tínhamos apenas direito a artigos feitos de hua shih, "pedra escorregadia", ou tun ni, "lama de tijolo". — Olhou de novo para a sua xícara, como um connaisseur. — O gênio que fez isto provavelmente ganhava cem dólares por ano.

— Talvez estivesse ganhando demais — disse Crosse, e os dois homens sorriram juntos.

— Talvez.

— Vou descobrir Arthur, senhor, e os outros. Pode contar com isso.

— Parece que tenho que contar, Roger. Tanto o ministro quanto eu estamos de acordo. Ele terá que informar ao primeiro-ministro, e aos chefes do estado-maior.

— Então a informação passará por toda espécie de mãos e línguas, e o inimigo sem dúvida descobrirá que estamos no seu rastro.

— É. Portanto, teremos que andar depressa. Comprei quatro dias de vantagem para você, Roger. O ministro não passará nada adiante durante esse período.

— Comprou, senhor?

— É um modo de falar. Na vida, obtemos e damos vales... até mesmo no corpo diplomático.

— Sim, senhor. Obrigado.

— Nada ainda sobre Bartlett e a srta. Casey?

— Não, senhor. Rosemont e Langan solicitaram dossiês atualizados. Parece haver alguma ligação entre Bartlett e Banastasio... não temos ainda certeza do que é. Tanto ele quanto a srta. Tcholok estiveram em Moscou no mês passado.

— Ah! — Sir Geoffrey voltou a encher as xícaras. — O que fez com relação àquele pobre sujeito, o Voranski?

— Devolvi o corpo ao navio, senhor.

Crosse resumiu para ele o seu encontro com Rosemont e Langan, e a história das fotos.

— Mas que golpe de sorte! Nossos primos estão ficando muito sabidos — comentou o governador. — É melhor você achar os tais assassinos antes do KGB... ou da CIA, não?

— Tenho equipes agora cercando a casa. Tão logo apareçam, nós os agarraremos. Ficarão incomunicáveis, é claro. Mandei apertar a segurança ao redor do Ivânov. Ninguém mais vai escapar pelas malhas da rede, prometo. Ninguém.

— Ótimo. O comissário de polícia me disse que mandou o DIC ficar mais alerta, também. — Sir Geoffrey pensou por um momento. — Vou mandar um memorando ao secretário explicando por que você não obedeceu à l-4a. O pessoal americano da ligação em Londres vai ficar muito aborrecido, mas, sob tais circunstâncias, como poderia você obedecer?

— Se posso fazer uma sugestão, senhor, talvez fosse melhor pedir-lhe que não mencionasse que ainda não temos as pastas, senhor. Essa informação também poderia cair em mãos erradas. Deixemos isso de lado, enquanto pudermos.

— É, concordo. — O governador bebericou o seu xerez. — Há um bocado de sabedoria no laissez-faire, não é?

— Sim, senhor.

Sir Geoffrey lançou um olhar ao relógio de pulso.

— Vou ligar para ele daqui a alguns minutos, para pegá-lo ainda antes do almoço. Bem. Mas há um problema que não posso deixar de lado: o Ivânov. Hoje de manhã soube pelo nosso intermediário não-oficial que Pequim encara a presença do tal navio aqui com a maior preocupação.

O porta-voz não-oficial da República Popular da China em Hong Kong, e o mais alto funcionário comunista, era, ao que constava, atualmente, um dos vice-presidentes da junta diretora do Banco da China, o banco central da China, pelo qual passava todo o câmbio exterior e todos os bilhões de dólares americanos ganhos com o suprimento de bens de consumo e de quase toda a comida e a água de Hong Kong. A Grã-Bretanha sempre afirmara, intransigentemente, que Hong Kong era solo britânico, uma colônia da coroa. Em toda a história de Hong Kong, desde 1841, a Grã-Bretanha jamais permitira que qualquer representante oficial da China residisse na colônia. Nenhum.

— Ele me atiçou ao máximo, com relação ao Ivânov — continuou Sir Geoffrey —, e fez questão de registrar o extremo desprazer de Pequim ao saber que um navio espião soviético estava aqui. Chegou a sugerir que eu talvez achasse de bom alvitre expulsá-lo... "Afinal de contas", disse, "soubemos que um dos espiões do KGB soviético, fazendo-se passar por marinheiro, chegou a ser morto em nosso solo." Agradeci-lhe pelo seu interesse e disse que falaria com meus superiores... na devida hora. — Sir Geoffrey bebericou um pouco de xerez. — O curioso é que não pareceu irritado com a presença do porta-aviões nuclear aqui.

— Que estranho! — Crosse ficou igualmente surpreso.

— Será que isso indica outra alteração na política... uma mudança distinta e significativa de política externa, um desejo de paz com os Estados Unidos? Não posso crer nisso. Tudo indica um ódio patológico aos Estados Unidos. Se transpirasse a existência da Sevrin, que estão infiltrados aqui... Deus todo-poderoso, eles teriam convulsões, e com toda a razão! — falou o governador com um suspiro e tornando a encher as xícaras.

— Encontraremos os traidores, senhor, não se preocupe. Nós os encontraremos!

— Será? É o que me pergunto. — Sir Geoffrey sentou-se no banco embutido sob a janela e fitou os gramados bem-trata-dos, o jardim inglês, arbustos, canteiros de flores cercados pelo muro alto e branco, o belo pôr-do-sol. Sua mulher estava cortando flores, caminhando por entre os canteiros nos fundos do jardim, seguida por um jardineiro chinês de cara amarrada. Sir Geoffrey observou-a por um momento. Estavam casados há trinta anos, tinham três filhos, todos casados, e viviam satisfeitos e em paz, mutuamente. — Sempre traidores — falou, tristemente. — Os soviéticos são mestres no emprego deles. É tão fácil para os traidores causarem uma agitação, espalharem um pouco de veneno aqui e ali, tão fácil deixar a China perturbada, a pobre China, que já é xenófoba, de qualquer modo! Ah, como é fácil balançar o nosso coreto aqui! O pior de tudo, quem é o seu espião? O espião da polícia? Tem que ser um inspetor-chefe, no mínimo, para ter acesso a essa informação.

— Não tenho idéia. Se tivesse, ele já estaria neutralizado há muito tempo.

— O que vai fazer sobre o general Jen e os seus agentes secretos nacionalistas?

— Vou deixá-los em paz... há meses que estão na nossa mira. É muito melhor deixar os agentes inimigos conhecidos onde estão do que ter de descobrir seus substitutos.

— Concordo... eles certamente seriam todos substituídos. Os deles, os nossos. Triste, muito triste! Nós o fazemos, eles o fazem. Tão triste e tão estúpido... este mundo é um paraíso, poderia ser um paraíso.

Uma abelha entrou zumbindo pelos janelões, depois voltou voando para o jardim, quando Sir Geoffrey afastou as cortinas.

— O ministro me pediu que eu me certificasse de que nossos deputados visitantes (a delegação comercial que foi à China, e que volta amanhã) tivessem a mais completa segurança, embora totalmente discreta.

— Sim, senhor. Compreendo.

— Parece que um ou dois deles poderão ser futuros ministros do governo, se o Partido Trabalhista for eleito. Seria bom para a colônia dar-lhes uma excelente impressão.

— Acha que terão uma chance na próxima vez? Quero dizer, o Partido Trabalhista?

— Não dou respostas a esse tipo de perguntas, Roger. — A voz do governador era seca, desaprovadora. — Não me interessa a política partidária... represento Sua Majestade, a rainha... mas, pessoalmente, gostaria muito que alguns dos seus extremistas fossem embora e nos deixassem viver a nossa vida, pois está claro que grande parte da sua filosofia socialista de esquerda é estranha ao modo de vida inglês. — Sir Geoffrey falou mais duramente. — É bastante óbvio que alguns deles ajudam o inimigo, de bom grado... ou como inocentes úteis. Já que estamos falando no assunto, algum dos nossos convidados é um risco para a segurança?

— Depende do que quer dizer com isso, senhor. Dois apoiam os sindicalistas de extrema esquerda, Robin Grey e Lochlin Donald McLean. McLean se vangloria abertamente da sua filiação ao Partido Comunista Britânico. Figura bem no alto da nossa lista de riscos para a segurança, lista S. Todos os outros socialistas são moderados. Os membros do Partido Conservador são moderados, da classe média, todos ex-militares. Um deles é um tanto imperialista, Hugh Guthrie, o representante do Partido Liberal.

— E os da extrema esquerda? São ex-militares?

— McLean era mineiro, pelo menos o pai era. Passou a maior parte da sua vida comunista como representante dos empregados e sindicalistas nas minas de carvão da Escócia. Robin Grey pertenceu ao exército, foi capitão da infantaria.

Sir Geoffrey ergueu os olhos.

— Não se costuma considerar ex-capitães como sindicalistas radicais, não é?

— Não, senhor. — Crosse tomou um gole do xerez, apreciando-o, saboreando ainda mais a informação que possuía. — Nem como aparentados com um tai-pan.

— Como?

— A irmã de Robin Grey é Penelope Dunross.

— Santo Deus! — Sir Geoffrey fitou-o, atônito. — Tem certeza?

— Tenho sim, senhor.

— Mas por que... por que motivo Ian não mencionou tal fato?

— Não sei, senhor. Quem sabe sinta vergonha dele. O Sr. Grey é o oposto absoluto da sra. Dunross.

— Mas... meu Deus do céu, tem certeza?

— Sim, senhor. Na verdade, foi Brian Kwok que percebeu a ligação. Por puro acaso. Os deputados tinham que dar as informações pessoais de praxe à RPC para obterem seus vistos, data do nascimento, parentes mais próximos, etc. Brian estava fazendo uma verificação de rotina para se certificar de que todos os vistos estavam em ordem, para evitar qualquer problema na fronteira. Ele notou, por acaso, que o Sr. Grey colocara como parente mais próximo "irmã, Penelope Grey", dando como endereço o Castelo Avisyard, em Ayr. Brian lembrou-se de que aquele era o endereço da casa da família Dunross. — Crosse tirou do bolso a cigarreira de prata. — Importa-se se eu fumar, senhor?

— Não, por favor, à vontade.

— Obrigado. Isso faz cerca de um mês. Achei que era importante o bastante para pesquisar a informação. Levou relativamente pouco tempo para estabelecermos que a sra. Dunross era realmente sua irmã e parente mais próxima. Segundo sabemos agora, a sra. Dunross brigou com o irmão logo após a guerra. O capitão Grey foi prisioneiro de guerra em Changi, preso em Cingapura em 1942. Voltou para casa no final de 1945... a propósito, os pais de ambos foram mortos na Blitz de Londres, em 1943. A essa altura, ela já estava casada com Dunross... haviam se casado em 43, senhor, pouco depois de ele ter sido abatido. Ela trabalhava no Corpo Auxiliar Feminino da Força Aérea. Sabemos que os dois irmãos se encontraram quando Grey foi solto. Ao que nos consta, jamais se encontraram novamente. Claro que não é da nossa conta, mas a briga deve ter sido...

Crosse interrompeu-se ao ouvir uma batida discreta. Sir Geoffrey respondeu, com certa irritação:

— O que é?

A porta se abriu.

— Com licença, senhor — disse seu assessor, cortesmente. — Lady Allison pediu-me que o avisasse de que a água acaba de ser ligada.

— Ah, que maravilha! Obrigado. — A porta se fechou.

Crosse levantou-se imediatamente, mas o governador fez-lhe sinal para que voltasse a se sentar. — Não, por favor, Roger, termine. Alguns minutos não vão fazer diferença, embora deva confessar que mal posso esperar. Gostaria de tomar uma chuveirada antes de partir?

— Obrigado, senhor, mas temos as nossas caixas-d'água no QG da polícia.

— Ah, é, tinha esquecido. Continue... você falava da briga?

— A briga deve ter sido bem séria, porque parece que foi definitiva. Um amigo íntimo de Grey contou ao nosso pessoal, faz alguns dias, que, ao que lhe constava, Robin Grey não tinha parentes vivos. Devem realmente se odiar.

Sir Geoffrey fitou a sua xícara, sem vê-la. De repente estava se lembrando da própria infância desgraçada, e de como odiara o pai. Odiara-o tanto que durante trinta anos jamais lhe telefonara, ou lhe escrevera, e, quando ele estava morrendo, no ano anterior, não se dera ao trabalho de ir procurá-lo, de fazer as pazes com o homem que lhe dera a vida.

— As pessoas são terríveis umas com as outras — resmungou, tristemente. — Eu sei. É. As brigas de família são fáceis demais. E depois, quando é tarde demais, a gente as lamenta, é, lamenta de verdade. As pessoas são terríveis umas com as outras...

Crosse observava e esperava, deixando-o divagar, deixando-o revelar-se, tomando cuidado para não fazer o menor movimento para distraí-lo, querendo conhecer os segredos do outro, as coisas vergonhosas que porventura ocultasse. Como Alan Medford Grant, Crosse colecionava segredos. "Maldito seja aquele filho da mãe e suas pastas amaldiçoadas! Maldito seja Dunross e sua astúcia diabólica! Como, em nome de Deus, posso pegar aquelas pastas antes de Sinders?"

Sir Geoffrey fitava o vazio. A seguir, a água borbulhou gostosamente nos canos das paredes, e ele voltou ao presente. Viu que Crosse o observava.

— Humm, pensando em voz alta! Mau hábito para um governador, não é?

Crosse sorriu, mas não caiu na armadilha.

— Senhor?

— Bem. Como você falou, não é mesmo da nossa conta. — O governador terminou seu drinque com ar decidido, e Crosse compreendeu que fora dispensado. Levantou-se.

— Obrigado, senhor.

Quando ficou a sós, o governador soltou um suspiro. Pensou por um momento, depois apanhou o telefone especial e deu à telefonista o número particular do ministro, em Londres.

— Aqui fala Geoffrey Allison. Ele está, por favor?

— Alô, Geoffrey!

— Alô, senhor. Acabo de estar com Roger, que me assegurou que o esconderijo e Dunross serão estreitamente vigiados. O Sr. Sinders está a caminho?

— Estará aí na sexta-feira. Presumo que não houve repercussões do acidente infeliz com aquele marinheiro...

— Não, senhor. Tudo parece estar sob controle.

— O primeiro-ministro ficou muito preocupado.

— Sim, senhor. — E acrescentou: — Quanto à l-4a... quem sabe não deveríamos contar nada aos nossos amigos, ainda.

— Já tive notícias deles. Estavam tremendamente irritados. Nosso pessoal também estava. Está certo, Geoffrey. Felizmente, esse fim de semana é mais longo, portanto eu os informarei na segunda-feira, e prepararei então a reprimenda dele.

— Obrigado, senhor.

— Geoffrey, esse senador americano que está com vocês, no momento... Acho que devia ser orientado.

O governador franziu o cenho. "Orientado" era uma palavra-código entre eles, e queria dizer "vigiado muito cuidadosamente". O senador Wilf Tillman, que ambicionava ser presidente, estava de visita a Hong Kong, a caminho de Saigon, para uma missão muito divulgada de verificação de fatos.

— Vou cuidar do assunto logo que desligar. Alguma coisa mais, senhor? — perguntou, impaciente agora para tomar banho.

— Não, basta me dar um minutinho do seu tempo para me contar qual foi o programa do senador. — "Programa" era outra palavra-código, que queria dizer "fornecer à secretaria colonial informações detalhadas". — Quando tiver tempo.

— Estará na sua mesa na sexta-feira.

— Obrigado, Geoffrey. Conversaremos amanhã, na hora de costume.

O aparelho emudeceu.

O governador recolocou o fone no gancho, pensativo. A conversa deles sofrerá interferências eletrônicas, e as interferências haviam sido eliminadas, em ambos os lados. Mesmo assim, estavam protegidos. Sabiam que o inimigo tinha o equipamento de escuta secreta mais avançado e sofisticado do mundo. Para qualquer conversa ou reunião realmente sigilosa, ele se dirigia ao quarto de concreto tipo cela, no porão, permanentemente vigiado, e que era reexaminado meticulosamente por peritos em segurança semanalmente, contra possíveis aparelhos de escuta eletrônicos.

"Mas que merda", pensou Sir Geoffrey. "Uma merda duma amolação, toda essa história de capa-e-espada! Roger? Inconcebível. Mas também era inconcebível que Philby..."

 

                 18h20m

O comandante Grigóri Suslev acenou atrevidamente para a polícia que guardava os portões do arsenal em Kowloon, seus dois detetives à paisana seguindo-o a uns cinqüenta metros de distância. Vestia trajes civis bem-cortados, e ficou parado junto ao meio-fio por um momento, observando o tráfego, depois fez sinal para um táxi que passava. O táxi arrancou, e um pequeno Jaguar cinzento, com o sargento Lee e ao volante outro homem do DIC, à paisana, saiu em seu encalço.

O táxi seguiu a Chatham Road no trânsito pesado de costume, dirigindo-se para o sul, acompanhando a linha da estrada de ferro, depois virou para o leste na Salisbury Road, na ponta mais meridional de Kowloon, passando a estação final da estrada de ferro, perto do Terminal da Balsa Dourada. Parou aí. Suslev pagou o táxi e subiu correndo os degraus do Victoria and Albert Hotel. O sargento Lee seguiu-o, enquanto o outro detetive estacionava o Jaguar da polícia.

Suslev caminhava com passadas descontraídas, e ficou parado por um momento no saguão imenso e lotado, com seu teto alto, lindo e enfeitado, e ventiladores elétricos antiquados girando lá em cima, e procurou uma mesa vazia entre inúmeras delas. A sala inteira vibrava com o tinir do gelo nos copos de bebida e as conversas. Na maioria, europeus. Uns poucos casais chineses. Suslev caminhou por entre o povo, achou uma mesa, pediu em voz alta uma vodca dupla, sentou-se e começou a ler o jornal. E então, a garota apareceu junto dele.

— Alô — disse ela.

— Ginny, doragaya! — exclamou, com um amplo sorriso, e abraçou-a, levantando seus pezinhos do chão, ante a desaprovação chocada de todas as mulheres presentes e a inveja disfarçada de todos os homens. — Há quanto tempo, golubchik.

— Ayeeyah — disse ela, sacudindo a cabeça, o cabelo curto se movendo, e sentou-se, consciente dos olhares fixos, saboreando-os, detestando-os. — Você atrasado. Por que me deixa esperar? Uma senhora não gosta esperar sozinha no Victoria, heya?

— Tem razão, golubchik! — Suslev tirou do bolso um pacote fino e entregou-o à moça, com outro amplo sorriso. — Tome, veio de Vladivostok!

— Oh! Como agradecer você? — Ginny Fu tinha vinte e oito anos de idade, e na maioria das noites trabalhava no Bar Bebedores Felizes, num beco perto de Mong Kok, a uns oitocentos metros para o norte. Algumas noites, ia ao Salão de Baile Boa Sorte. Na maioria dos dias, substituía as amigas atrás dos balcões de lojinhas dentro de lojas, quando estavam com algum cliente. Dentes brancos, cabelos negros, olhos negros e pele dourada, o cheong-sam espalhafatoso aberto até o alto das coxas longas e cobertas com meias. Olhou toda animada para o presente. — Oh, obrigada, Grigóri, muito obrigada!

Pôs o presente na bolsa grande e sorriu para ele. A seguir, seus olhos depararam com o garçom que vinha trazendo a vodca de Suslev, ostentando o claro desprezo reservado por todos os chineses a todas as jovens chinesas que se sentavam com quai loh. Era óbvio que deviam ser meretrizes de terceira classe... quem mais se sentaria com um quai loh num local público, especialmente no saguão do Vic? Ele largou o drinque sobre a mesa com insolência estudada, e fitou a moça.

— Dew neh loh moh para todos os seus ancestrais, que não passam de lavagem para porcos — sibilou ela em cantonense de sarjeta. — Meu marido aqui é um 489 na polícia, e basta eu pedir-lhe que mande arrancar esses amendoins insignificantes que você chama de colhões do seu corpo nojento uma hora após você largar o serviço, hoje à noite!

O garçom ficou sem cor.

— Hem?

— Chá quente! Traga-me uma porra dum chá quente, e se você cuspir nele, mando meu marido dar um nó nesse canudo que você chama de pau!

O garçom se retirou.

— O que foi que disse a ele? — perguntou Suslev, compreendendo apenas algumas palavras de cantonense, embora seu inglês fosse muito bom.

Ginny Fu sorriu meigamente.

— Só pedi ele trazer chá. — Sabia que o garçom automaticamente cuspiria agora no seu chá, ou mais provavelmente, por medida de segurança, mandaria um amigo fazê-lo por ele. Portanto, ela não o tomaria, e deste modo faria com que ele ficasse ainda mais desmoralizado. Osso de cachorro sujo! — Outra vez, não gosta encontrar aqui, muita gente nojenta — falou imperiosamente, olhando ao seu redor, depois franziu o nariz para um grupo de inglesas de meia-idade que a fitavam. — Fedor demais — acrescentou em voz alta, sacudindo de novo os cabelos, e riu consigo mesma ao vê-las ficarem rubras e desviarem o olhar. — Este presente, Gregy. Tão grata!

— De nada — retrucou Suslev. Sabia que ela não abriria o presente agora (nem na frente dele), o que mostrava o senso de boas maneiras chinesas, hábito muito prudente. Assim, se ela não gostasse do presente, ficasse desapontada ou xingasse em voz alta porque o que fora dado era do tamanho errado, ou da cor errada, ou amaldiçoasse a sovinice do presenteador, seu mau gosto, ou lá o que fosse, nem ele nem ela ficariam desprestigiados. — Muito sensato!

— O quê?

— Nada.

— Está bonito.

— Você também.

Fazia três meses desde a sua última visita, e embora a sua amante em Vladivostok fosse uma eurasiana filha de mãe russa branca com pai chinês, ele gostava de Ginny Fu.

— Gregy — disse ela, depois baixou a voz, o sorriso malicioso. — Acabe bebida. Começamos feriado! Tenho vodca... tenho outras coisas!

Ele lhe devolveu o sorriso.

— Ah, lá isso tem, golubchik!

— Quantos dias tem?

— Pelo menos três, mas...

— Oh!

Ela tentou ocultar o desapontamento.

—...tenho que ficar indo e vindo para o navio. Temos esta noite, quase toda, amanhã e toda a noite de amanhã. E as estrelas brilharão!

— Três meses muito tempo, Gregy.

— Vou voltar logo.

— É. — Ginny Fu escondeu seu desapontamento e voltou a ser pragmática. — Acabe bebida e começamos! — Viu o garçom que trazia apressado o seu chá. Seus olhos vararam o homem enquanto ele pousava a xícara. — Uh! Evidentemente está frio e não é fresco! — falou, com ar de nojo. — Quem sou eu? Um monte sujo de carne de cachorro dum demônio estrangeiro? Não, sou uma pessoa civilizada das Quatro Províncias, que, porque seu pai perdeu no jogo toda a sua fortuna, foi vendida por ele para ser concubina, para tornar-se a Esposa Número Dois desse chefe de polícia dos demônios estrangeiros! Então, vá para o raio que o parta!

Pôs-se de pé.

O garçom deu um passo para trás.

— O que aconteceu? — quis saber Suslev.

— Não pagar os chás, Gregy! Não quente! — falou, imperiosamente. — Não dar gorjeta!

Apesar disso, Suslev pagou. Ela tomou-lhe o braço e saíram juntos, seguidos por olhares. Ela ia de cabeça erguida, mas por dentro detestava os olhares que recebia de todos os chineses, até mesmo do jovem pajem engomado do hotel, que lhes abriu a porta... a cara do seu irmão mais moço, a quem sustentava e cujos estudos pagava.

Dunross vinha subindo as escadas. Esperou que eles passassem, com um brilho divertido no olhar, depois foi recebido com uma curvatura polida pelo pajem sorridente. Dirigiu-se para o telefone do hotel, em meio à multidão. Muitos o notaram imediatamente, e pares de olhos o seguiram. Rodeou um grupo de turistas, de máquinas fotográficas a tiracolo, e notou Jacques de Ville e a mulher Susanne numa mesa de canto. Os dois estavam de cara fechada, fitando seus copos de bebida. Sacudiu a cabeça, um tanto divertido. "O pobre velho Jacques foi pego com a boca na botija de novo, e ele está remexendo na ferida já gasta de sua infidelidade. Azar!" Quase podia ouvir o velho Chen-chen rindo.

— A vida do homem é sofrer, jovem Ian! É, é o eterno yin guerreando contra o nosso yang tão vulnerável...

Normalmente, Dunross fingiria não tê-los visto, deixando-os gozar a sua privacidade, mas algum instinto alertou-o para que agisse de outro modo.

— Alô, Jacques... Susanne. Como vão indo?

— Oh, alô, alô, tai-pan. — Jacques de Ville levantou-se, educadamente. — Quer nos fazer companhia?

— Não, obrigado, não posso. — Foi então que viu a extensão da agonia do amigo, e lembrou-se do acidente de carro na França. A filha de Jacques, Avril, e o marido! — O que aconteceu? Exatamente!...

Dunross falou como um líder o faria, exigindo uma resposta instantânea.

Jacques hesitou, depois disse:

— Exatamente, tai-pan: soube notícias de Avril. Ligou de Cannes, na hora em que eu ia saindo do escritório. Ela, ela falou: "Papai... papai, Borge está morto... Está me ouvindo? Há dois dias que tento falar com você... foi um choque de frente, e o... o outro homem estava... Meu Borge está morto... está me ouvindo?" — A voz de Jacques estava sem emoção. — Depois, o telefone emudeceu. Sabemos que ela está no hospital, em Carmes. Achei melhor que Susanne fosse para lá imediatamente. O vôo dela está atrasado, então... então resolvemos esperar aqui. Estão tentando completar uma ligação para Cannes, mas não tenho muita esperança.

— Santo Deus, sinto muito — disse Dunross, tentando ignorar a pontada que percorreu seu corpo enquanto sua mente substituía Avril por Adryon. Avril tinha apenas vinte anos, e Borge Escary era um excelente moço. Estavam casados há apenas um ano e meio, e aquelas eram suas primeiras férias depois do nascimento de um filho. — A que horas sai o vôo?

— Às oito, agora.

— Susanne, quer que cuidemos do bebê? Jacques, por que você não toma o avião... eu cuido de tudo por aqui.

— Não — replicou Jacques. — Não, obrigado. É melhor que Susanne vá. Ela trará Avril para casa.

— É — disse Susanne, e Dunross notou que ela parecia ter ficado frágil. — Temos as atnahs... ê melhor que eu vá só, tai-pan. Merci, mas não, essa é a melhor maneira. — As lágrimas começaram a escorrer pelo seu rosto. — Não é justo, não acha? Borge era um rapaz tão bom!

— É. Susanne, Penn irá a sua casa diariamente, portanto não se preocupe, cuidaremos bem do bebê, e de Jacques também. — Dunross considerou bem os dois. Concluiu que Jacques estava bem controlado. Ótimo, pensou. Depois disse, como se fosse uma ordem: — Jacques, depois que Susanne tiver embarcado, volte para o escritório. Mande um telex para o nosso homem em Marselha. Diga-lhe que reserve uma suíte no Capi-tol, vá recebê-la com um carro e dez mil dólares em francos. Diga que mandei que fique à inteira disposição dela enquanto estiver lá. Ele deverá ligar para mim amanhã, com um relatório completo sobre Avril, o acidente, quem estava dirigindo e quem era o outro motorista.

— Sim, tai-pan.

— Tem certeza de que está bem? Jacques forçou um sorriso.

— Oui. Merci, mon ami.

— Rien. Sinto tanto, Susanne... telefone a cobrar se houver algo que possamos fazer.

Foi embora. "Nosso homem em Marselha é bom", pensou. "Cuidará de tudo. E Jacques é um homem de ferro. Já cuidei de tudo? É, acho que sim. No momento, é o que se pode fazer.

"Deus proteja Adryon, Glenna, Duncan e Penn", pensou. "E Kathy e todos os outros. E eu... até que a Casa Nobre seja inviolável." Deu uma olhada no relógio. Eram exatamente dezoito e trinta. Pegou um dos telefones do hotel.

— Sr. Bartlett, por favor.

Um momento depois, ouviu a voz de Casey.

— Alô?

— Ah, alô, Ciranoush — disse Dunross. — Quer dizer a ele que estou no saguão?

— Oh, alô, claro! Não quer subir? Estamos...

— Por que não desce? Pensei que, se você não estivesse muito ocupada, poderia ir comigo ao meu próximo compromisso... poderia ser interessante para você. Poderíamos comer depois, se você estiver livre.

— Eu adoraria. Deixe-me verificar se posso.

Ouviu-a repetir o que acabara de dizer, e ficou pensando seriamente na aposta que fizera com Claudia. "É impossível que esses dois não sejam amantes", pensou, "ou não tenham sido amantes, vivendo assim tão juntos. Não seria natural!"

— Desceremos já, tai-pan!

Notou o sorriso na voz dela, enquanto desligava.

O primeiro maitre estava a rondá-lo agora, esperando pela rara honraria de sentar o tai-pan. Fora chamado pelo segundo maitre no momento em que se soubera que Dunross vinha se aproximando da porta de entrada. Chamava-se Pok Tarde, era grisalho, majestoso, e governava seu turno com um chicote de bambu.

— Ah, Honrado Senhor, mas que prazer! — falou o velho em cantonense, com uma curvatura respeitosa. — Já comeu arroz hoje?

Esse era o modo polido de dizer-se "bom dia", ou "boa noite" ou "como está?", em chinês.

— Já, obrigado, Irmão Mais Velho — replicou Dunross. Conhecera Pok Tarde quase toda a sua vida. Até onde alcançava a sua lembrança, Pok Tarde fora o garçom-chefe do saguão do meio-dia às seis, e, muitas vezes, quando Dunross era jovem, e o mandavam ao hotel para cumprir alguma incumbência, dolorido por causa de uma surra ou uns cascudos, o velho fazia-o sentar-se numa mesinha de canto, dava-lhe um docinho, batia-lhe carinhosamente na cabeça, e nunca lhe cobrava nada. — Está com uma aparência de prosperidade!

— Obrigado, tai-pan. Ah, também está com uma cara muito saudável! Mas ainda tem um filho só! Não acha que está na hora de a sua ilustre Mulher Principal arrumar-lhe uma segunda mulher?

Sorriram juntos.

— Por favor, siga-me — disse o velho, com ar importante, e foi mostrando o caminho até a mesa especial que aparecera miraculosamente num lugar espaçoso e preferencial, conseguido por quatro garçons cheios de energia que haviam espremido para os lados outros convidados e mesas. Agora estavam em pé, sorridentes, quase em posição de sentido.

— O de costume, senhor? — indagou o garçom de vinhos. — Tenho uma garrafa do 52.

— Perfeito — falou Dunross, sabendo que ela seria do La Doucette de que tanto gostava. Teria preferido tomar chá, mas era necessário prestigiar o outro, aceitando o vinho. A garrafa já estava lá, num balde de gelo. — Estou esperando o Sr. Bartlett e a srta. Tcholok.

Um outro garçom foi imediatamente esperá-los na porta do elevador.

— Se precisar de alguma coisa, por favor, chame-me. Pok Tarde curvou-se e afastou-se, cada garçom do saguão nervosamente cônscio da sua presença. Dunross sentou-se e notou Peter e Fleur Marlowe tentando controlar duas lindas garotinhas agitadas de quatro e oito anos, e soltou um suspiro, agradecendo a Deus porque suas filhas tinham passado daquela idade. Enquanto bebia o vinho, gostosamente, viu o velho Willie Tusk olhar para o lado dele e acenar. Acenou em resposta. Quando era garoto, costumava vir de Hong Kong três ou quatro vezes por semana, com pedidos comerciais para Tusk do velho Sir Ross Struan, pai de Alastair... ou, mais freqüentemente, pedidos do seu próprio pai, que, durante anos, dirigira os negócios exteriores da Casa Nobre. Ocasionalmente, Tusk servia à Casa Nobre nas áreas em que era perito — qualquer coisa que consistisse em tirar qualquer coisa da Tailândia, Birmânia ou Malásia e a enviá-la para qualquer lugar, com só um pouquinho de h'eung yau e seus honorários comerciais normais de sete e meio por cento.

— Para que é o meio por cento, Tio Tusk? — lembrava-se de ter perguntado certo dia, olhando para cima para o homem que agora sobrepujava tanto em altura.

— É o que eu chamo de dinheiro das bonecas, jovem Ian.

— O que é dinheiro das bonecas?

— É um dinheirinho extra para você gastar com as bonequinhas, as moças que você preferir.

— Mas por que você dá dinheiro para as moças?

— Essa é uma longa história, meu rapaz.

Dunross sorriu consigo mesmo. É, era uma história muito longa. Nessa parte da sua educação tivera diversas professoras, algumas boas, algumas ótimas, e algumas ruins. O velho Chen-chen providenciara para ele sua primeira amante, quando tinha catorze anos.

— Ah, está falando a sério, Tio Chen-chen?

— É, mas não deve contar a ninguém, senão seu pai vai arrancar minhas tripas! Ah... — continuara o maravilhoso velhinho — seu pai devia ter providenciado isso, ou pedido que eu providenciasse, mas não faz mal. Agora, o que...

— Mas quando é que eu, quando é... oh, tem certeza? Quero dizer, como, quanto eu pago, e quando, Tio Chen-chen? Quando? Quero dizer, antes ou... ou depois, ou quando? É isso o que não sei.

— Não sabe muita coisa! Ainda não sabe quando falar e quando ficar calado! Como posso instruí-lo se fica falando? Tenho o dia todo?

— Não, senhor.

— Eeee — dissera o velho Chen-chen, com aquele seu imenso sorriso. — Eeee, mas que sorte você tem! Sua primeira vez num Lindo Vale Estreito! Será a primeira vez, não é? Diga a verdade!

— Bem... é... bem, é... é, sim.

— Ótimo!

Passaram-se muitos anos antes que Dunross descobrisse que algumas das mais famosas casas de Hong Kong e Macau haviam feito lances, secretamente, para obterem o privilégio de servir pela "primeira vez" um futuro tai-pan e o tataraneto do Demônio de Olhos Verdes em pessoa. Além do prestígio que a casa ganharia por gerações, por ter sido a escolhida pelo representante nativo da Casa Nobre, seria também uma sorte imensa para a mulher escolhida. A Essência da Primeira Vez até da mais ínfima personagem era um elixir de valor maravilhoso... assim como, na tradição chinesa, para o homem idoso, os sumos do yin da virgem eram igualmente valorizados e procurados, para rejuvenescer o yang.

— Santo Deus, Tio Chen-chen! — explodira ele. — É verdade? Você realmente me vendeu? Está querendo me dizer que me vendeu para um maldito bordel? A mim?

— É claro. — O velho erguera os olhos para ele, e dera muitas risadinhas abafadas, agora preso ao leito na grande casa dos Chens no cume do Mirante de Struan, quase cego e próximo da morte, mas docemente tranqüilo e satisfeito. — Quem lhe contou? Quem, hem? Hem, jovem Ian?

Fora Tusk, um viúvo, grande freqüentador dos cabarés, bares e bordéis de Kowloon, que soubera da história, agora uma lenda, contada por uma das "damas", que ouvira falar sobre o costume na Casa Nobre de que o representante nativo tinha de providenciar a "primeira vez" dos descendentes do Demônio Struan de Olhos Verdes.

— É, meu velho — contara-lhe Tusk. — Dirk Struan disse a Sir Gordon Chen, o pai do velho Chen-chen, que poria o seu Mau-Olhado na Casa de Chen, se eles não escolhessem corretamente.

— Pombas — exclamara Dunross para Tusk, que continuara, constrangido, dizendo que só estava passando adiante uma lenda que agora fazia parte do folclore de Hong Kong. "Pombas, Ian, amigão, verdade ou não, sua primeira trepada valeu mil HK para aquele velho safado!"

— Acho que isso foi uma coisa horrorosa, Tio Chen-chen!

— Mas, por quê? Foi um leilão muito lucrativo. Não lhe custou nada, mas deu-lhe muito prazer. Não me custou nada, mas lucrei vinte mil HK. A casa da garota ficou prestigiadíssima, e ela também. Não lhe custou nada, mas deu-lhe anos de uma imensa clientela, que queria partilhar do que havia de especial na sua Escolha Número Um!

O único nome pelo qual ele a conhecera fora Jade Elegante. Tinha vinte e dois anos e muita prática, uma profissional desde que fora vendida ao bordel pelos pais, com a idade de doze anos. Seu bordel chamava-se Casa dos Mil Prazeres. Jade Elegante era meiga e doce... quando queria, e um verdadeiro dragão, quando queria. Ele se apaixonara loucamente por ela, e o caso deles durara dois verões, as férias do colégio interno na Inglaterra, que era o tempo do contrato feito por Chen-chen. No minuto em que voltara no primeiro dia do terceiro verão, correra para a casa, mas ela havia sumido.

Dunross nunca se esqueceu de como ficara desesperado, de como tentara encontrá-la. Mas a garota sumira sem deixar vestígio.

— O que aconteceu com ela, Tio Chen-chen? O que aconteceu de verdade?

O velho soltou um suspiro, recostado na imensa cama, agora cansado.

— Estava na hora de ela partir. É sempre fácil demais para um jovem dedicar a uma moça tempo demais, pensamentos demais. Estava na hora de ela partir... depois dela, você poderia escolher por si mesmo, e precisava concentrar-se na Casa, e não nela... Ah, não tente disfarçar o seu desejo, eu compreendo. Como compreendo! Não se preocupe, meu filho, ela foi bem paga, e você não teve filhos com ela...

— Onde está ela, agora?

— Foi para Formosa. Certifiquei-me de que tinha dinheiro bastante para começar sua própria casa. Ela disse que era o que queria fazer e... e fazia parte do meu arranjo livrá-la do seu contrato. Isso me custou acho que cinco... ou talvez dez mil... não estou lembrado... Por favor, dê-me licença agora, estou cansado. Preciso dormir um pouco. Por favor, volte amanhã, meu filho...

Dunross bebericava o seu vinho, recordando. Aquela fora a única vez que o velho Chen-chen o chamara de "meu filho", pensou. "Que magnífico velho, aquele! Se eu pudesse ser igualmente sábio, bondoso e sábio, e digno dele!"

Chen-chen morrera uma semana mais tarde. Seu enterro fora o maior que Hong Kong já vira, com mil carpideiras profissionais e tambores acompanhando o caixão até a sepultura. As mulheres vestidas de branco haviam sido pagas para acompanhar o caixão, lamentando-se em altos brados, suplicando aos deuses que facilitassem o caminho do espírito desse grande homem para o Vácuo, o renascimento ou seja lá o que acontece ao espírito dos mortos. Chen-chen era um cristão, portanto, teve dois serviços religiosos, por medida de precaução, um cristão e o outro budista...

— Alô, tai-pan!

Casey apareceu, com Linc Bartlett ao lado. Ambos sorriam, embora estivessem com uma aparência um pouco cansada.

Ele os cumprimentou, e Casey pediu um uísque com soda. Linc, uma cerveja.

— Que tal foi o seu dia? — perguntou Casey.

— Cheio de altos e baixos — respondeu, depois de uma pausa. — E o seu?

— Atarefado, mas estamos chegando lá — disse ela. — Seu advogado, Dawson, cancelou nosso encontro de hoje de manhã... e marcou outro para amanhã ao meio-dia. O resto do dia passei ao telefone e ao telex para os Estados Unidos, organizando as coisas. O serviço é bom, este é um grande hotel. Estamos prontos para completar o nosso lado do acordo.

— Ótimo. Acho que comparecerei à reunião com Dawson — disse Dunross. — Isso apressará as coisas. Direi a ele que venha aos nossos escritórios. Mandarei um barco buscá-los às onze e dez.

— Não há necessidade, tai-pan. Já sei usar as barcas — disse ela. — Andei daqui para lá durante a tarde. Os melhores cinco cents americanos que já gastei. Como conseguem manter os preços tão baixos?

— Transportamos quarenta e sete milhões de passageiros no ano passado. — Dunross olhou para Bartlett. — Vai comparecer à reunião amanhã?

— Só se você precisar de mim para alguma coisa especial — replicou, serenamente. — Casey cuida da parte legal, inicialmente. Sabe o que queremos, e além disso Seymour Steigler III chega no vôo da Pan Am de quinta-feira... é nosso principal advogado, e encarregado da parte dos impostos. Manterá tudo funcionando suavemente com seus advogados, para que possamos fechar em sete dias, facilmente.

— Excelente.

Um garçom obsequioso e sorridente trouxe as bebidas e voltou a encher o copo de Dunross. Quando estavam novamente a sós, Casey disse, serenamente:

— Tai-pan, e quanto aos seus navios? Você os quer num contrato em separado? Se os advogados o redigirem, não será particular. Como o manteremos particular?

— Eu redigirei o documento e porei nele o nosso carimbo. Isso o tornará legal e obrigatório. Assim, o contrato fica sendo um segredo entre nós três, certo?

— Como assim, um carimbo, Ian? — indagou Bartlett.

— É o equivalente a um selo. — Dunross tirou do bolso um recipiente fino e alongado de bambu, com cerca de cinco centímetros de comprimento e um centímetro e pouco de espessura, e puxou para trás a tampa justa. Tirou o carimbo, que se encaixava no recipiente forrado de seda escarlate, e mostrou-o a eles. Era feito de marfim. Havia alguns caracteres chineses entalhados em relevo na base. — Este é o meu carimbo particular... é entalhado à mão, e portanto é quase impossível falsificá-lo. Enfia-se esta extremidade na tinta... — A tinta era vermelha e quase sólida, e ficava num compartimento numa das extremidades da caixa. —...e imprime-se no papel. É muito freqüente em Hong Kong a pessoa não assinar papéis, apenas carimbá-los. A maioria deles não é legal sem um carimbo. O selo da companhia é igual a este, só que um pouquinho maior.

— O que significam os caracteres? — perguntou Casey.

— São um trocadilho com o meu nome, e o do meu ancestral. Literalmente, querem dizer "Ilustre, afiado como uma navalha, através dos nobres mares verdes". O trocadilho é sobre o Demônio de Olhos Verdes, como Dirk era chamado, a Casa Nobre e um punhal ou faca¹. — Dunross sorriu e guardou o carimbo. — Tem outros significados... o aparente é "tai-pan da Casa Nobre". Em chinês... — Olhou à sua volta ao ouvir o ruído de uma campainha de bicicleta. O jovem empregado do hotel andava pelo meio do povo com uma pequena lousa no alto de uma vara, onde se via rabiscado o nome da pessoa a quem se procurava. Não eram eles os procurados, por isso ele continuou: — Com a escrita chinesa há sempre vários níveis de significado. É o que a torna complexa e interessante.

 

¹ "Dirk" quer dizer "punhal", em inglês. (N. da T.)

 

Casey se abanava com um cardápio. Fazia calor no salão, embora os ventiladores no teto proporcionassem uma leve brisa. Ela pegou um lenço de papel e apertou-o junto ao nariz.

— É sempre tão úmido assim? — perguntou. Dunross sorriu.

— Hoje está relativamente seco. Às vezes faz trinta e dois graus e noventa e cinco por cento de umidade durante semanas a fio. O outono e a primavera são as melhores épocas aqui. Julho, agosto e setembro são quentes e úmidos. Na verdade, estão prevendo chuva, Podemos até ter um tufão. Ouvi no rádio que há uma depressão tropical se formando a sudeste. É. Se tivermos sorte, vai chover. Ainda não há racionamento de água aqui no Victoria, não é?

— Não — disse Bartlett —, mas depois de ver os baldes na sua casa ontem à noite, acho que nunca mais farei pouco-caso da água.

— Nem eu — falou Casey. — Deve ser duríssimo.

— Ah, a gente se acostuma. A propósito, minha sugestão quanto ao documento é satisfatória? — perguntou Dunross a Bartlett, querendo resolver logo aquilo, e irritado consigo mesmo porque fora forçado a perguntar. Ficou sombriamente divertido ao notar que Bartlett hesitara uma fração de segundo e lançara um olhar imperceptível para Casey antes de responder:

— Claro. Ian — continuou Bartlett —, Forrester, o chefe da nossa divisão de espuma, vem no mesmo vôo. Achei que era melhor começarmos logo a função. Não há motivo para esperar até termos os papéis, há?

— Não. — Dunross pensou por um momento e resolveu testar sua teoria. — Ele é mesmo perito?

— Um perito. Casey acrescentou:

— Charlie Forrester conhece tudo o que é preciso saber sobre espuma de poliuretano: fabricação, distribuição e vendas.

— Ótimo. — Dunross virou-se para Bartlett e disse, inocentemente: — Gostaria de levá-lo a Taipé? — Viu um lampejo perpassar pelos olhos do americano e soube que estava certo. "Vire-se, seu filho da mãe, ainda não contou a ela! Não me esqueci do aperto que você me fez passar na noite passada, com sua informação secreta. Saia dessa sem perder a moral!" — Enquanto estivermos jogando golfe, ou lá o que for, entregarei

Forrester aos meus peritos... ele poderá examinar as possíveis localizações e botar a bola em jogo.

— Boa idéia — disse Bartlett, sem demonstrar embaraço, e subiu mais na opinião de Dunross.

— Taipé? Taipé, em Formosa? — perguntou Casey, animadamente. — Vamos a Taipé? Quando?

— No domingo à tarde — falou Bartlett, a voz calma. — Vamos passar lá dois dias, Ian e...

— Perfeito, Linc — replicou ela, com um sorriso. — Enquanto você joga golfe, posso examinar as coisas com Charlie. Deixe-me jogar na próxima vez. Qual é o seu handicap, tai-pan?

— Dez — respondeu Dunross —, e já que Linc Bartlett sabe, estou certo de que você também sabe.

Ela riu.

— Tinha me esquecido deste dado significativo. O meu é 14, num dia muito bom.

— Com uma diferençazinha de uma ou duas tacadas?

— Claro. As mulheres roubam no golfe tanto quanto os homens.

— É?

— É, mas ao contrário dos homens, roubam para baixar o seu handicap. Um handicap é um símbolo de status, certo? Quanto mais baixa a contagem, maior o status! As mulheres geralmente não apostam mais do que uns poucos dólares, portanto um handicap baixo não é vital, salvo para o prestígio. Mas os homens? Já os vi lançarem uma bola deliberadamente na parte não tratada da pista para ganhar duas tacadas extras, se estivessem numa rodada crucial que baixaria o seu handicap um ponto. Claro que só se estivessem jogando essa determinada rodada a dinheiro. Quanto vocês apostam?

— Quinhentos HK. Casey assobiou.

— Por buraco?

— Pombas, não — retrucou Bartlett. — Pelo jogo.

— Mesmo assim, acho melhor ficar só olhando. Dunross perguntou:

— O que isso quer dizer?

— Observar. Se eu não tomar cuidado, Linc vai pôr em perigo a minha parte da Par-Con.

O sorriso dela aqueceu a ambos, e depois, como Dunross havia deixado Bartlett cair deliberadamente na armadilha, resolveu tirá-lo de lá.

— É uma boa idéia, Casey — falou, observando-a com cuidado. — Mas, pensando bem, talvez fosse melhor para você e Forrester examinarem Hong Kong antes de Taipé... aqui será o nosso maior mercado. E seu advogado vai chegar na quinta-feira. Você decerto vai querer passar algum tempo aqui com ele. — Olhou diretamente para Bartlett, o retrato da inocência. — Se quiser cancelar a viagem, tudo bem. Haverá tempo de sobra para você ir a Taipé. Mas eu preciso ir.

— Não — disse Bartlett. — Casey, você fica por aqui. Seymour vai precisar de toda a ajuda que lhe puder dar. Farei uma viagem preliminar dessa vez, e depois poderemos ir juntos.

Ela tomou um gole da bebida, e manteve a fisionomia serena. "Quer dizer que não fui convidada, não é?", pensou, com um lampejo de irritação.

— Quer dizer que vão no domingo?

— É — disse Dunross, certo de que sua classe havia funcionado, sem notar nenhuma mudança nela. — No domingo à tarde. Vou subir montanhas de manhã, portanto é o mais cedo que posso partir.

— Subir montanhas? Alpinismo, tai-pan?

— Ah, não. Só de carro... nos Novos Territórios. São ambos bem-vindos, se estiverem interessados. — Acrescentou para Bartlett: — Podíamos ir direto para o aeroporto. Se puder liberar seu avião, eu o farei. Vou perguntar amanhã.

— Linc — comentou Casey —, e quanto a Armstrong e à polícia? Você está detido aqui.

— Já cuidei disso hoje — disse Dunross. — Ele está sob liberdade condicional, aos meus cuidados.

Ela riu.

— Fantástico! Não vá escapulir!

— Pode deixar.

— Vão no domingo, tai-pan? E voltam quando?

— Terça-feira, a tempo de jantar.

— É na terça que assinamos?

— É.

— Linc, não é um pouco apertado?

— Não, estarei sempre em contato com você. O negócio está feito. Só falta botá-lo no papel.

— Você é quem manda, Linc. Tudo estará pronto para ser assinado quando vocês dois voltarem. Tai-pan, devo falar com Andrew se houver algum problema?

— Sim, ou com Jacques. — Dunross lançou um olhar para a mesa deles, no canto. Agora estava ocupada por outras pessoas. "Não se preocupe", disse consigo mesmo. "Tudo o que podia ser feito foi feito." — As comunicações telefônicas com Taipé são boas, portanto não há com que se preocupar. Bem, estão livres para o jantar?

— Sem dúvida — disse Bartlett.

— Que tipo de comida vão querer?

— Que tal chinesa?

— Desculpe, mas vocês têm que ser mais específicos — falou Dunross. — Isso é como dizer que querem comida européia... que pode ir da italiana até a inglesa.

— Linc, não é melhor deixarmos nas mãos do tai-pan? — disse Casey, acrescentando: — Tai-pan, tenho que confessar que gosto de agridoce, rolinhos primavera, chop suey e arroz frito. Não curto nada muito exagerado.

— Nem eu — concordou Bartlett. — Nada de cobra, cão ou qualquer coisa exótica.

— As cobras são muito boas, na época — disse Dunross. — Especialmente a bile... misturada com chá. É muito revigorante, um grande tônico! E um cachorrinho ensopado em molho de ostra é perfeito.

— Já experimentou? Experimentou cachorro?

Ela estava chocada.

— Disseram-me que era galinha. Tinha gosto de galinha. Mas nunca coma cachorro e beba uísque ao mesmo tempo, Casey. Dizem que transforma a carne em bolas de ferro que farão você passar um mau pedaço...

Ele ouvia a si próprio fazer piadinhas, conversar fiado, enquanto observava Jacques e Susanne entrarem num táxi. Emocionou-se, sentiu tanta pena deles, de Kathy e de todos os outros, que teve vontade de tomar o avião ele mesmo, correr para lá e trazer Avril de volta em segurança... uma garota tão boazinha, parte da sua família...

"Como, em nome de Deus, se pode viver como um homem, governar a Casa Nobre e não enlouquecer? Como ajudar a família, fechar negócios e viver com tudo isso?"

— Esta é a alegria e a dor de ser tai-pan — dissera-lhe Dirk Struan em sonhos, muitas vezes.

"É, mas há muito pouca alegria.

"Você está errado, e Dirk está certo, e você está sendo sério demais", falou consigo mesmo. "Os únicos problemas sérios são a Par-Con, a alta, Kathy, os documentos de Alan Medford Grant, Crosse, John Chen, a Toda, e o fato de ter recusado a oferta de Lando Mata, não necessariamente nessa ordem. Tanto dinheiro!

"O que quero da vida? Dinheiro? Poder? Ou toda a China?"

Notou que Casey e Bartlett o observavam. Depois que aqueles dois haviam chegado, pensou, só tinha tido aborrecimentos. Voltou a olhar para eles. Valia a pena olhar para ela, com suas calças justas e a blusa colante.

— Deixe comigo — falou, resolvendo que naquela noite gostaria de jantar comida cantonense.

Ouviram de novo a campainha e viram o nome na lousa: "Srta. K. C. Tchuluk".

Dunross fez sinal para o jovem.

— Ele a levará ao telefone, Casey.

— Obrigada.

Levantou-se. Pares de olhos acompanharam as pernas longas e elegantes, e o andar sensual... as mulheres com inveja, detestando-a.

— Você é um filho da puta — disse Bartlett, calmamente.

— É?

— É. — Sorriu, e com isso anulou o xingamento. — Aposto vinte contra um que Taipé foi sacanagem... mas não estou achando ruim, Ian. Não. Fui duro a noite passada. Tive que ser. Portanto, mereci o troco. Mas não faça isso uma segunda vez com Casey, caso contrário, prometo que lhe arranco a cabeça.

— Não diga!

— Digo. Ela é intocável. — Os olhos de Bartlett se voltaram para Casey. Viu que passava pela mesa dos Marlowes, parava um segundo, cumprimentava-os, e às crianças, depois seguia em frente. — Ela sabe que não foi convidada.

Dunross ficou perturbado.

— Tem certeza? Pensei... será que não disfarcei direito? No momento em que percebi que você ainda não lhe havia contado... Desculpe, pensei ter disfarçado.

— Pombas, você esteve perfeito! Mas ainda aposto cinco contra dez que ela sabe que não foi convidada.

Bartlett sorriu de novo, e mais uma vez Dunross se perguntou o que haveria sob aquele sorriso. "Preciso ficar de olho nesse sacana", pensou. "Com que então Casey é intocável, é? O que será que ele realmente quis dizer com isso?"

Dunross escolhera o saguão deliberadamente, querendo ser visto com o agora famoso (ou mal-afamado) Bartlett e sua companheira. Sabia que isso tocaria fogo nos boatos do seu negócio iminente, agitaria ainda mais a Bolsa de Valores e deixaria tontos os apostadores. Se o Ho-Pak fosse à falência, desde que não arrastasse outros bancos junto, a alta ainda poderia acontecer. "Se Bartlett e Casey cedessem um pouco", pensou, "e se eu realmente pudesse confiar neles, poderia ter o lucro dos lucros. Tantos ses. Demais. Não estou no controle dessa batalha, no momento. Bartlett e Casey estão com todo o impulso. Até onde cooperarão?"

E então algo que o superintendente Armstrong e Brian Kwok tinham dito trouxe à baila um pensamento errante, e sua ansiedade aumentou.

— O que acha daquele sujeito, o Banastasio? — perguntou, tentando manter a voz bem natural.

— Vincenzo? — perguntou Bartlett prontamente. — Sujeito interessante. Por quê?

— Curiosidade — replicou Dunross, externamente calmo, mas intimamente chocado por estar certo. — Há quanto tempo o conhece?

— Três ou quatro anos. Casey e eu fomos às corridas com ele algumas vezes... em Del Mar. É um jogador da pesada, tanto ali quanto em Las Vegas. Chega a apostar cinqüenta mil num páreo... pelo menos foi o que nos disse. Ele e John Chen se dão muito bem. É amigo seu?

— Não. Não o conheço, mas ouvi John falar nele uma ou duas vezes — falou —, e Tsu-yan.

— Como vai Tsu-yan? É outro jogador. Quando o vi em Los Angeles, mal podia esperar para ir a Las Vegas. Estava nas corridas na última vez em que estivemos lá com John Chen. Nenhuma notícia ainda sobre John ou os seqüestradores?

— Não.

— Mas que azar.

Dunross mal ouvia. O dossiê que mandara preparar sobre Bartlett não dera nenhuma indicação de ligações com a Má-fia... mas Banastasio era o elo com tudo. As armas, John Chen, Tsu-yan e Bartlett...

Máfia significava dinheiro sujo e narcóticos, com uma busca constante de fachadas legítimas para "passar a limpo" o dinheiro. Tsu-yan costumava negociar muito com suprimentos médicos, durante a Guerra da Coréia... e agora, ao que se dizia, estava profundamente metido em contrabando de ouro para Taipé, Indonésia e Malásia, com Wu Quatro Dedos. Será que Banastasio estava enviando armas para... para quem? Será que o pobre John Chen descobrira alguma coisa por acaso, e fora seqüestrado por esse motivo?

Será que isso queria dizer que parte do dinheiro da Par-Con era dinheiro da Máfia... seria a Par-Con dominada ou controlada pela Máfia?

— Parece que ouvi John dizer que Banastasio era um dos seus maiores acionistas — falou, jogando verde de novo.

— Vincenzo tem uma porção de ações. Mas não é um funcionário ou diretor. Por quê?

Dunross viu que agora os olhos azuis de Bartlett estavam concentrados, e quase podia sentir as ondas mentais a alcançá-lo, questionando-se sobre esse tipo de interrogatório. Assim, encerrou-o.

— É curioso como esse mundo é pequeno, não é?

Casey pegou o telefone, fumegando intimamente.

— Telefonista, aqui é a srta. Tcholok. Tem uma ligação para mim?

— Ah, um momento, por favor.

"Quer dizer que não fui convidada para ir a Taipé", pensava furiosamente. "Por que o tai-pan não falou logo abertamente, sem torcer as coisas, e por que Linc também não me contou? Meu Deus, ele está sob o fascínio do tai-pan, como eu estive na noite passada? Por que o segredo? O que mais estão tramando?

"Taipé, hem? Já ouvi dizer que é um lugar para homens, portanto, se o que estão planejando é só um fim de semana de sacanagem, para mim está tudo bem. Mas não se for a negócios. Por que Linc não disse nada? O que está escondendo?"

A fúria de Casey começou a crescer. Depois lembrou-se do que a francesa dissera sobre as belas chinoises, tão acessíveis, e sua fúria transformou-se numa ansiedade incomum quanto a Linc.

"Malditos homens!

"Malditos homens e o mundo que fizeram exclusivamente para ajustar-se a eles. E aqui é pior do que em qualquer outro lugar que já estive.

"Malditos ingleses! São todos distintos e elegantes, educadíssimos, cheios de 'obrigado' e 'por favor', e ficam de pé quando a gente entra, e seguram a cadeira para a gente sentar, mas, debaixo da superfície, são tão podres quanto o resto. São piores. São hipócritas, é o que são! Bem, vou à forra. Um dia ainda jogaremos golfe, Sr. tai-pan Dunross, e é melhor que seja bom, porque eu posso jogar até chegar a 10 num bom dia... aprendi cedo sobre o golfe no mundo dos homens... portanto vou esfregar o seu nariz no chão. É. Ou quem sabe um jogo de sinuca... ou bilhar. Claro, e sei dar efeito na bola, também."

Casey pensou no pai com uma súbita pontada de alegria, em como ele lhe havia ensinado os rudimentos dos dois jogos. Mas fora Linc quem lhe ensinara a dar uma tacada baixa no lado esquerdo para dar uma torcida na bola para a direita e rodear a bola oito... mostrara-lhe isso, quando, tolamente, ela o desafiara para uma partida. Ele a massacrara antes de lhe dar qualquer lição.

— Casey, tem que se certificar de que conhece todos os pontos fracos de um homem antes de lutar com ele. Arrasei com você para lhe provar uma coisa: não jogo por prazer, jogo só para ganhar. Não estou fazendo nenhum jogo com você. Quero você, nada mais importa. Vamos esquecer o trato que fizemos, vamos nos casar e...

Isso fora alguns meses depois que ela começara a trabalhar para Linc Bartlett. Tinha apenas vinte anos, e já estava apaixonada por ele. Mas ainda desejava mais a vingança contra o outro homem, e mais a independência financeira, e mais encontrar a si mesma, portanto dissera:

— Não, Linc, concordamos com sete anos. Concordamos em ir na dianteira, como iguais. Ajudarei você a ficar rico, e ficarei rica também enquanto você ganha os seus milhões, e nenhum de nós deve nada ao outro. Você pode me despedir a qualquer hora, por qualquer motivo, e eu posso ir-me embora por qualquer motivo. Somos iguais. Não nego que o amo de todo o coração, mas ainda assim não vou modificar o nosso trato. Mas se ainda estiver disposto a me pedir em casamento no meu vigésimo sétimo aniversário, eu o farei. Casarei com você, irei viver com você, deixarei você... o que você quiser. Mas não agora. É, eu o amo, mas se nos tornarmos amantes agora, nunca... jamais conseguirei... Não posso, Linc, não agora. Existem coisas demais que tenho que descobrir sobre mim mesma.

Casey soltou um suspiro. Mas que arranjo maluco e esquisito. Será que todo o poder e as transações... e todos os anos e as lágrimas e a solidão tinham valido a pena?

"Não sei; simplesmente não sei. E a Par-Con? Será que algum dia alcançarei meu objetivo: a Par-Con e Linc, ou terei que escolher entre os dois?"

— Ciranoush? — ouviu pelo telefone.

— Oh! Alô, Sr. Gornt! — Sentiu uma onda de calor. — Mas que surpresa agradável — acrescentou, controlando-se.

— Espero não estar incomodando.

— De modo algum. O que posso fazer pelo senhor?

— Será que já pode confirmar sobre este domingo, se você e o Sr. Bartlett estão disponíveis? Quero planejar «ninha festa no barco, e gostaria que vocês dois fossem meus convidados de honra.

— Lamento, Sr. Gornt, mas Linc não poderá ir. Está cheio de compromissos.

Ela ouviu a hesitação, depois o prazer disfarçado na voz dele.

— Gostaria de vir sem ele? Estava pensando em convidar algumas relações comerciais. Estou certo de que achará a festa interessante.

"Poderia ser muito bom para a Par-Con se eu fosse", pensou. "Além do mais, se Linc e o tai-pan vão para Taipé sem mim, por que não posso ir passear de barco sem eles?"

— Adoraria — disse, com calor na voz —, se tem certeza de que não vou atrapalhar.

— Claro que não. Apanharemos você no cais, bem em frente ao hotel, perto do Terminal da Balsa Dourada. Dez horas... vestida bem à vontade. Sabe nadar?

— Claro.

— Ótimo. A água é refrescante. Esqui aquático?

— Adoro!

— Excelente!

— Quer que eu leve alguma coisa? Bebida ou vinho ou qualquer coisa?

— Não. Acho que teremos tudo a bordo. Iremos para uma das ilhas externas e faremos piquenique, esqui aquático... voltaremos logo depois do pôr-do-sol.

— Sr. Gornt, gostaria de manter essa excursão entre nós. Disseram-me que Confúcio falou: "Em boca fechada não entra mosca".

— Confúcio disse muitas coisas. Uma vez comparou uma moça a um raio de luar.

Ela hesitou, sentindo os sinais de perigo. E então ouviu-se dizer, brincalhona:

— Devo levar uma dama de companhia?

— Talvez deva — replicou ele, e ela notou que ele sorria.

— Que tal Dunross para o papel?

— Ele não serviria para isso... seria apenas a destruição do que talvez pudesse ser um dia perfeito.

— Estou torcendo para que chegue o domingo, Sr. Gornt.

— Obrigado.

O telefone foi desligado instantaneamente.

"Seu filho da mãe arrogante!", quase exclamou em voz alta. "O que está pensando? Só 'obrigado' e desliga sem um 'até logo'?

"Pertenço a Linc, e não estou no mercado.

"Então por que banquei a coquete ao telefone e na festa?", perguntou a si mesma. "E por que quis que aquele filho da mãe ficasse de bico calado sobre o programa de domingo? "As mulheres também gostam de segredos", disse consigo mesma, sombriamente. "As mulheres gostam de um bocado de coisas de que os homens gostam."

 

                     20h35m

O cule estava nas sombrias caixas-fortes de ouro do Ho-Pak Bank. Era um velho miúdo, usando uma camiseta suja e rasgada, e calções esfarrapados. Enquanto os dois porteiros erguiam o saco de lona e o colocavam sobre as suas costas curvadas, ele ajustava o cabresto à testa e apoiava-se nele, suportando o peso com os músculos do pescoço, as mãos agarrando as duas tiras gastas. Agora que agüentava o peso total, sentia o coração sobrecarregado batendo forte, rebelando-se contra o fardo, as juntas gritando por alívio.

O saco pesava pouco mais de quarenta quilos... quase mais do que o seu próprio peso. Os contadores haviam acabado de lacrá-lo. Continha exatamente duzentos e cinqüenta dos pequenos lingotes de contrabandista, cada um com cinco taéis — pouco mais de cento e setenta gramas —, e bastaria um deles para mantê-lo, e à sua família, em segurança durante meses. Mas o velho nem sequer pensava em tentar roubar um só deles. Todo o seu ser estava concentrado em como dominar a agonia, como manter os pés em movimento, como fazer sua parte do trabalho, receber o seu pagamento no fim do turno e depois descansar.

— Ande logo — falou com azedume o capataz —, ainda temos mais vinte malditas toneladas para carregar. O seguinte!

O velho não replicou. Fazê-lo gastaria mais da sua preciosa energia. Tinha que poupar avaramente suas forças naquela noite, se é que pretendia terminar. Com esforço, pôs os pés em movimento, as batatas das pernas duras, cheias de varizes e cicatrizes, fruto de tantos anos de trabalho.

Outro cule tomou o seu lugar enquanto ele se arrastava devagar para fora do úmido aposento de concreto, as prateleiras abarrotadas de um suprimento aparentemente inesgotável de pilhas meticulosas de lingotes de ouro que esperavam sob os olhos atentos dos dois funcionários bem-arrumados do banco... esperavam para ser enfiados no próximo saco de lona, para ser contados e recontados, e depois lacrados, com um floreio. Na escada estreita, o velho falseou o pé. Recuperou o equilíbrio com dificuldade, depois ergueu um pé para subir mais um degrau... agora só faltavam mais vinte e oito... e depois mais outro. Mal tinha acabado de chegar ao patamar quando suas pernas cederam. Oscilou de encontro à parede, apoiando-se nela para suavizar o peso, o coração sofrendo com o esforço, agarrando as tiras com ambas as mãos, sabendo que jamais conseguiria acomodar de novo o fardo se se soltasse do cabresto, apavorado de que passasse por ali o capataz ou um subcapataz. Através do espectro da dor, ouviu passos que vinham em sua direção, e lutou para colocar o saco mais no alto das costas, e para voltar a se mover. Quase caiu de cara no chão.

— Ei, Chu Nove Quilates, está passando bem? — perguntou o outro cule em dialeto de Chantung, ajeitando o saco para ele.

— Sim... sim... — Soltou um suspiro de alívio, agradecido por ser o seu amigo, da sua aldeia bem ao norte, e o líder do seu grupo de dez. — Danem-se todos os deuses, eu... só escorreguei...

O outro homem espiou-o à luz áspera da única lâmpada nua do teto. Notou os velhos olhos torturados e lacrimejantes, os músculos estirados.

— Eu carrego esse, você descansa um momento — falou. Habilmente, tirou o saco das costas do outro e colocou-o no chão. — Direi àquele estrangeiro sem mãe que acha que tem inteligência bastante para ser capataz que você foi fazer as necessidades. — Enfiou a mão no bolso da calça rasgada e passou para o velho um dos seus pedaços pequenos e amassados de folha laminada de cigarro. — Pegue. Descontarei do seu pagamento, logo mais.

O velho resmungou seus agradecimentos. Agora mal pensava de tanta dor. O outro homem jogou o saco às costas, gemendo com o esforço, apoiou-se contra a faixa de cabeça, depois, os músculos da barriga da perna retesados, voltou a subir as escadas, satisfeito com o negócio que fizera.

O velho esgueirou-se para fora do patamar, enfiou-se numa alcova poeirenta e se agachou. Os dedos lhe tremiam enquanto desamassava o papel laminado de cigarro, com sua pitada de pó branco. Acendeu um fósforo e colocou-o cuidadosamente sob o papel laminado, para aquecê-lo. O pó começou a ficar preto e a fumegar. Cuidadosamente, segurou o pó fumegante sob as narinas e inspirou profundamente, repetidas vezes, até que cada grão tivesse desaparecido na fumaça que ele tragava tão agradecido para dentro dos pulmões.

Recostou-se na parede. Logo a dor sumiu, e veio a euforia, que o invadiu totalmente. Sentiu-se jovem de novo, forte de novo, agora sabia que terminaria seu turno perfeitamente, e nesse sábado, quando fosse às corridas, ganharia o prêmio da loteria dupla. É, aquela seria a sua semana de sorte, e ele aplicaria a maior parte dos seus ganhos num terreno. "É, um terre-ninho pequeno, a princípio, mas com a alta minha propriedade subirá de preço, e mais e mais, e depois eu a venderei e ganharei uma fortuna, e comprarei mais e mais, e então serei um ancestral, meus netos à volta dos meus joelhos..."

Levantou-se e ficou ereto; depois desceu as escadas de novo e entrou na fila, esperando sua vez com impaciência.

— Dew neh loh moh, andem depressa — falou no seu dialeto cantante de Chantung —, não tenho a noite toda! Tenho outro emprego à meia-noite.

O outro emprego era numa obra na zona central, que não ficava longe do Ho-Pak, e ele sabia que era abençoado por ter dois empregos extras numa noite, além do seu trabalho regular diurno como operário de obra. Sabia, também, que fora o dispendioso pó branco que o transformara e afastara de si a fadiga e a dor. Claro que sabia que o pó branco era perigoso. Mas era um homem sensato e cauteloso, e só fazia uso dele quando estava no limite de suas forças. O fato de estar fazendo uso dele agora quase todos os dias, duas vezes por dia, na maioria das vezes, não o preocupava. "Joss", falou consigo mesmo, colocando nas costas o novo saco de lona.

No passado fora fazendeiro, o filho mais velho de fazendeiros proprietários de terras na província setentrional de Chantung, no delta fértil e móvel do rio Amarelo, onde, durante séculos, haviam plantado cereais, frutas e soja, amendoim, tabaco e todos os legumes que podiam comer.

"Ah, nossos belos campos!", pensou, feliz, subindo agora as escadas, ignorando o coração disparado, "nossos belos campos cheios de colheitas florescentes. Tão lindo! É. Mas depois começou a Época Ruim, faz trinta anos. Os Demônios do Mar do Leste vieram com suas armas e tanques e violentaram a nossa terra, e depois, quando o senhor da guerra Mao Tsé-tung e o senhor da guerra Chang Kai-chek os expulsaram, lutaram entre si, e novamente a terra foi destroçada. Assim, fugimos da fome, eu, minha jovem mulher e meus dois filhos, e viemos para este lugar, o Porto Fragrante, para viver no meio de estranhos, bárbaros meridionais e demônios estrangeiros. Viemos a pé. Sobrevivemos. Carreguei meus filhos a maior parte do trajeto, e agora eles estão com catorze e dezesseis anos, e temos duas filhas, e todos comem arroz uma vez por dia, e este será o meu ano da sorte. É, vou ganhar a loteria, ou a dupla diária, e um dia voltaremos à minha aldeia, recuperarei minhas terras, plantarei nelas de novo. O presidente Mao nos receberá de volta ao lar, deixará que eu retome as minhas terras e viveremos tão felizes, tão ricos e tão felizes..."

Agora, já estava do lado de fora do prédio, na noite, ao lado do caminhão. Outras mãos ergueram o saco e empilharam-no junto com todos os outros sacos de ouro, mais funcionários do banco verificando e reverificando os números. Havia dois caminhões na rua lateral. Um deles já estava cheio, e esperando sob guarda. Um único policial desarmado observava despreocupado o tráfego que passava. A noite estava quente.

O velho virou-se para ir embora. Foi então que notou os três europeus, dois homens e uma mulher, que se aproximavam. Pararam perto do caminhão mais afastado, olhando para ele, que ficou de queixo caído.

— Dew neh loh moh! Olhe para aquela piranha... o monstro com o cabelo cor de palha — falou, sem se dirigir a ninguém em particular.

— Incrível! — um outro replicou.

— É — concordou ele.

— É revoltante o modo como as piranhas deles se vestem em público, não é? — comentou um velho carregador enrugado, enojado. — Exibindo suas partes íntimas com essas calças justas. Dá para a gente ver cada porra de prega nos seus lábios inferiores.

— Aposto que dava para a gente enfiar nela o punho inteiro e o braço inteiro e nunca chegar ao fundo! — riu um outro.

— E quem iria querer fazer isso? — perguntou Chu Nove Quilates, escarrando ruidosamente e cuspindo, e depois deixando a mente vagar agradavelmente para o sábado, enquanto descia de novo.

— Gostaria que eles não cuspissem desse jeito. É nojento! — comentou Casey, com o estômago embrulhado.

— É um velho costume chinês — disse Dunross. — Eles acreditam que existe um espírito mau na garganta, do qual é preciso se livrarem constantemente, para que não os sufoque. Claro que cuspir é contra a lei, mas isso nada significa para eles.

— O que foi que aquele velho falou? — perguntou Casey, vendo-o arrastar-se de volta para dentro do banco, pela porta lateral. Agora já não sentia raiva, e estava muito satisfeita de ter ido jantar fora com os dois.

— Não sei... não entendi o dialeto dele.

— Aposto que não foi um elogio.

Dunross riu.

— Essa aposta você ganharia, Casey. Eles não nos apreciam, absolutamente.

— Aquele velho deve ter no mínimo uns oitenta anos, e carregou o seu fardo como se fosse uma pena. Como eles se mantêm assim tão em forma?

Dunross deu de ombros e ficou calado. Ele sabia. Outro cule jogou sua carga para dentro do caminhão, fitou-a, escarrou, cuspiu, e foi se afastando.

— Vá tomar no rabo você também — resmungou Casey, e depois parodiou um tremendo escarro e um cuspe à distância, e eles riram com ela. O chinês apenas ficou olhando.

— Ian, do que se trata? Para que estamos aqui? — quis saber Bartlett.

— Pensei que gostariam de ver cinqüenta toneladas de ouro.

Casey soltou uma exclamação abafada.

— Esses sacos estão cheios de ouro?

— Estão. Vamos.

Dunross foi na frente, descendo as escadas sombrias que levavam à caixa-forte do banco. Os funcionários do banco cumprimentaram-no cortesmente, e os guardas desarmados e os carregadores os fitaram. Os dois americanos sentiram-se inquietos, sob os olhares fixos. Mas a inquietação deles foi sufocada pelo ouro. Pilhas certinhas de barras de ouro sobre as prateleiras de aço que os cercavam... dez em cada camada, cada pilha com dez camadas de altura.

— Posso segurar uma? — perguntou Casey.

— À vontade — falou Dunross, observando-os e tentando testar a extensão da sua cobiça. "Estou apostando alto", pensou de novo. "Tenho que conhecer até onde vão esses dois."

Casey nunca tocara em tanto ouro na sua vida. Nem Bartlett. Os dedos deles tremiam. Ela acariciou uma das barrinhas, olhos arregalados, antes de erguê-la.

— É pesada, para o tamanho — murmurou.

— São chamadas de barras de contrabandista, porque são fáceis de esconder e transportar — falou Dunross, escolhendo as palavras deliberadamente. — Os contrabandistas usam uma espécie de colete de lona com bolsinhos, que acomodam direitinho as barras. Dizem que um bom mensageiro pode carregar até trinta e seis quilos por viagem... são quase mil e trezentas onças. Claro que têm que estar em forma, e bem treinados.

Bartlett sopesava duas em cada mão, fascinado por elas.

— Quantas delas perfazem trinta e seis quilos?

— Umas duzentas, aproximadamente.

Casey olhou para ele, os olhos cor de avelã maiores do que de costume.

— É tudo seu, tai-pan?

— Santo Deus, não! Pertencem a uma firma de Macau. Estão transferindo-as daqui para o Victoria. Pela lei, os americanos ou ingleses sequer têm o direito de possuir uma delas. Mas pensei que poderiam se interessar, porque não é sempre que se vêem cinqüenta toneladas juntas num só lugar.

— Nunca me dei conta do que era o dinheiro de verdade, antes — dizia Casey. — Agora posso entender por que os olhos do meu pai e do meu tio se iluminavam quando falavam em ouro.

Dunross a observava. Não via cobiça nela, apenas assombro.

— Os bancos fazem muitas transferências como esta? — perguntou Bartlett, com voz rouca.

— Sim, o tempo todo — falou Dunross, imaginando se Bartlett havia mordido a isca e estava planejando um assalto à moda da Máfia, com seu amigo Banastasio. — Vai chegar um carregamento muito grande daqui a umas três semanas — falou, aumentando a tentação.

— Quanto valem cinqüenta toneladas? — perguntou Bartlett.

Dunross sorriu consigo mesmo, recordando Tung Zeppelin com sua exatidão de cifras. Como se isso tivesse importância!

— Legalmente, sessenta e três milhões de dólares, com uma diferença para mais ou para menos de alguns milhares.

— E vocês os estão transportando só com um bando de velhos, dois caminhões que nem sequer são blindados, e sem guardas?

— Claro. Isso não é problema em Hong Kong, o que é um dos motivos pelo qual nossa polícia é tão sensível quando se fala em armas. Se eles possuem as únicas armas da colônia, bem, o que podem os bandidos e os homens maus fazer, exceto xingar?

— Mas onde está a polícia? Só vi um guarda, e não estava armado.

— Ah, está por aí, acho eu — disse Dunross, deliberadamente bancando o indiferente.

Casey olhou para o lingote de ouro, curtindo o toque do metal.

— Parece tão fresco e permanente. Tai-pan, se elas valem legalmente sessenta e três milhões, qual o seu valor no mercado negro?

Dunross notou agora leves gotículas de suor no seu lábio superior.

— O quanto alguém estiver disposto a pagar. No momento, soube que o melhor mercado é a índia. Pagariam de oitenta a noventa dólares americanos a onça, entregues na índia.

Bartlett deu um sorriso torto e relutantemente recolocou seus quatro lingotes na pilha deles.

— É um bocado de lucro.

Ficaram olhando em silêncio enquanto outro saco de lona era lacrado, as barras verificadas e reverificadas por ambos os bancários. Novamente, o saco foi colocado sobre as costas curvadas de um homem, e ele foi embora, caminhando penosamente.

— E aquelas, o que são? — indagou Casey, apontando para umas barras bem maiores que estavam noutra parte da caixa-forte.

— São as barras regulamentares de quatrocentas onças — disse Dunross. — Pesam cerca de onze quilos cada. — A barra estava marcada com a foice e o martelo, e 99,999. — Esta é russa. É 99,99 por cento pura. O ouro da África do Sul é geralmente 99,98 por cento puro, portanto o russo é mais procurado. Claro que ambos são fáceis de comprar no mercado de ouro de Londres. — Deixou que olhassem mais um pouco, depois falou: — Vamos indo, agora?

Na rua estavam apenas um único policial e os guardas do banco desleixados e desarmados, os dois motoristas de caminhão fumando nas suas boléias. O tráfego passava por ali, ocasionalmente. Uns poucos pedestres.

Dunross ficou contente por sair do confinamento da caixa-forte. Sempre detestara porões e masmorras desde que o pai o trancara num armário, quando era muito pequeno, por um delito de que agora não se recordava. Mas recordava-se da velha Ah Tat, sua amah, salvando-o e defendendo-o... enquanto ele fitava o pai, tentando deter as lágrimas de terror que não podiam ser detidas.

— É bom estar de volta ao ar livre — falou Casey. Usou um lenço de papel. Inexoravelmente, seus olhos foram atraídos para os sacos no caminhão quase cheio. — Isso é dinheiro de verdade — murmurou, quase consigo mesma. Um leve estremecimento a percorreu, e Dunross soube imediatamente que descobrira a sua jugular.

— Estou com vontade de tomar uma cerveja — falou Bartlett. — Tanto dinheiro me dá sede.

— E eu de tomar um uísque com soda! — disse ela, e o encantamento se quebrou.

— Vamos até o Victoria ver a entrega começar a ser feita, e depois comeremos...

Dunross se interrompeu. Vira os dois homens batendo papo perto dos caminhões, parcialmente ocultos nas sombras. Enrijeceu-se ligeiramente.

Os dois homens o viram. Martin Haply, do China Guardian, e Peter Marlowe.

— Oh, alô, tai-pan — disse o jovem Martin Haply, aproximando-se dele com seu sorriso confiante. — Não esperava vê-lo aqui. Boa noite, srta. Casey, Sr. Bartlett. Tai-pan, gostaria de fazer algum comentário sobre o assunto do Ho-Pak?

— Que assunto do Ho-Pak?

— A corrida ao banco, senhor.

— Não sabia que estava havendo uma.

— Não leu a minha coluna sobre as várias agências e os boa...

— Meu caro Haply — falou Dunross, com o seu charme tranqüilo —, sabe que não procuro entrevistas, nem as dou por qualquer motivo... e nunca nas esquinas.

— Sim, senhor. — Haply fez sinal para os sacos. — Transferir todo esse ouro é um golpe duro para o Ho-Pak, não é? Será o beijo da morte para o banco, quando isso transpirar.

Dunross soltou um suspiro.

— Esqueça o Ho-Pak, Sr. Haply. Posso lhe falar em particular? — Segurou o jovem pelo cotovelo e afastou-o dali com firmeza de veludo. Quando estavam sozinhos, meio encobertos por um dos caminhões, soltou o braço do outro. Sua voz baixou. Involuntariamente, Haply se crispou e deu meio passo para trás. — Já que anda saindo com minha filha, só quero que saiba que gosto muito dela, e que entre cavalheiros existem certas regras. Estou supondo que seja um cavalheiro. Se não for, Deus o ajude. Terá que prestar contas a mim, pessoalmente, imediatamente e sem piedade. — Dunross deu meia-volta e foi juntar-se aos outros, cheio de súbita bonomia. — Boa noite, Marlowe, como vão indo as coisas?

— Muito bem, obrigado, tai-pan. — O homem alto fez um sinal de cabeça para os caminhões. — É um espanto, toda essa fortuna!

— Onde ouviu falar da transferência?

— Um amigo jornalista tocou no assunto há cerca de uma hora. Falou que umas cinqüenta toneladas de ouro estavam sendo transferidas daqui para o Victoria. Pensei que seria interessante ver como a coisa é feita. Espero que não... espero não estar pisando em nenhum calo.

— De modo algum. — Dunross virou-se para Casey e

Bartlett. — Estão vendo, não falei que Hong Kong era como uma aldeia... nunca se pode guardar segredos aqui por muito tempo. Mas tudo isso... — indicou os sacos — tudo isso é chumbo... ouro de tolos. O carregamento real foi completado há uma hora. Não eram cinqüenta toneladas, e sim alguns milhares de onças. A maior parte das reservas em ouro do Ho-Pak ainda está intacta.

Sorriu para Haply, que não estava sorrindo, mas ouvindo, de cara fechada.

— Então é tudo mentira, afinal? — exclamou Casey, com voz abafada.

Peter Marlowe riu.

— Devo confessar que achei toda essa operação um tanto descontraída!

— Bem, boa noite, vocês dois — Dunross disse despreocupadamente para Marlowe e Martin Haply. Tomou o braço de Casey, momentaneamente. — Vamos, está na hora do jantar.

Começaram a descer a rua, Bartlett ao seu lado.

— Mas, tai-pan, aquelas que nós vimos — disse Casey —, aquela que peguei, era de mentira? Teria apostado a minha vida, você não, Linc?

— É — concordou Linc. — Mas o despiste foi muito sensato. É o que eu teria feito.

Dobraram a esquina, na direção do imenso prédio do Victoria, o ar quente e pegajoso.

Casey soltou uma risada nervosa.

— Aquele metal dourado estava mexendo comigo... e era falso o tempo todo!

— Na verdade, era real — Dunross falou em voz baixa, e ela parou. — Desculpe confundi-la, Casey. Falei aquilo apenas para os ouvidos de Marlowe e Haply, para criar desconfiança na sua fonte. Eles não podiam provar nem uma coisa nem outra. Pediram-me que tomasse as providências para a transferência há pouco mais de uma hora... o que fiz, obviamente, com grande cautela.

Seu coração bateu mais depressa. Perguntou-se quantas outras pessoas sabiam dos documentos de Alan Medford Grant e da caixa-forte e do número do cofre individual na caixa-forte.

Bartlett o observava.

— Eu acreditei no que você disse, e portanto, acho que eles também acreditaram — falou, enquanto pensava: "Por que nos trouxe para ver o ouro? É o que eu gostaria de saber".

— É curioso, tai-pan — disse Casey com uma risadinha nervosa. — Eu sabia, simplesmente sabia que o ouro era de verdade, para começo de conversa. Depois acreditei em você quando disse que era falso, e agora voltei a acreditar que é real. É tão fácil falsificar ouro?

— Sim e não. Só se sabe ao certo quando se põe ácido nele. Tem que passar pelo teste do ácido. Este é o único teste verdadeiro para o ouro. Não é? — acrescentou para Bartlett, e viu o sorriso e ficou se perguntando se o americano compreendia.

— Acho que é, Ian. Para o ouro... ou para as pessoas. Dunross devolveu o sorriso. "Ótimo", pensou sombriamente, "entendemo-nos perfeitamente."

Agora era bem tarde. As barcas e balsas do Terminal da Balsa Dourada tinham parado de funcionar, e Casey e Linc Bartlett estavam numa lanchinha alugada, atravessando a baía, a noite maravilhosa, um cheiro gostoso de maresia no vento, o mar calmo. Estavam sentados num dos bancos de frente para Hong Kong, de braços dados. O jantar fora o melhor que já haviam comido, a conversa entremeada de muitas risadas, Dunross encantador. Tinham terminado a noite tomando conhaque no topo do Hilton. Ambos estavam se sentindo maravilhosamente em paz com o mundo e consigo mesmos.

Casey sentiu a ligeira pressão do braço dele, e apoiou-se de leve contra ele.

— É romântico, não é, Linc? Olhe para o Pico, e todas as luzes. Incrível. É o lugar mais lindo e excitante em que já estive.

— Melhor do que o sul da França?

— Aquilo foi muito diferente. — Haviam passado umas férias juntos na Cote d'Azur, há dois anos. Fora a primeira vez que tiraram férias juntos. E a última. Fora um esforço grande demais para ambos se manterem separados. — Ian é fantástico, não é?

— É. E você também.

— Obrigada, gentil senhor, e você também. Eles riram, felizes, juntos.

No cais, no lado de Kowloon, Linc pagou ao barqueiro e foram andando devagar até o hotel, de braços dados. Alguns garçons ainda estavam de serviço no saguão.

— Boa noite, senhor, boa noite, senholita — falou o velho ascensorista, sibilantemente, e, no andar deles, Chang Noturno saiu apressado à sua frente para abrir a porta da suíte. Automaticamente, Linc deu-lhe um dólar, e ele curvou-se enquanto eles entravam. Chang Noturno fechou a porta.

Ela a trancou.

— Uma bebida? — indagou ele.

— Não, obrigada. Iria estragar o conhaque.

Ela o viu olhando para ela. Estavam de pé no meio da sala de estar, a imensa janela panorâmica descortinando Hong Kong inteira às costas dele, seu quarto à direita, o dela à esquerda. Ela podia sentir a veia no seu pescoço pulsando, sentia-se toda molhada, e ele lhe parecia tão belo!

— Bem, é... obrigada por uma noite maravilhosa, Linc. Eu... até amanhã — falou. Mas não se mexeu.

— Faltam três meses para seu aniversário, Casey.

— Treze semanas e seis dias.

— Por que não os driblamos e nos casamos agora? Amanhã.

— Você... tem sido tão maravilhoso comigo, Linc, tão bom ao ser paciente e aturar a minha... doidice. — Ela sorriu para ele, um sorriso tentador. — Não vai demorar muito agora. Vamos fazer o que combinamos. Por favor?

Ele ficou ali parado, desejando-a. Depois, falou:

— Claro. — Quando chegou à porta, parou. — Casey, você tem razão quanto a este lugar. É romântico e excitante. Também mexeu comigo. Quem sabe... quem sabe não seria melhor você arranjar outro quarto?

Fechou a porta.

Naquela noite, ela chorou até dormir.

 

                   Quarta-feira 5h45m

Os dois cavalos de corrida fizeram a curva e entraram na reta final em grande velocidade. Era a falsa aurora, o céu ainda escuro do lado oeste, e o Hipódromo Happy Valley estava pontilhado de pessoas no treino matinal.

Dunross estava montado em Buccaneer, o grande baio capão, e corria lado a lado com Noble Star, montada pelo seu jóquei principal, Tom Leung. Noble Star corria por dentro, e os dois cavalos estavam correndo bem, com bastante reserva. Então, Dunross viu o poste de chegada adiante, e teve aquele ímpeto súbito de enfiar os calcanhares no animal e derrotar o outro. O outro jóquei pressentiu o desafio e olhou para ele. Mas os dois cavaleiros sabiam que só estavam ali para se exercitar, não para apostar corrida, estavam ali apenas para confundir a oposição, portanto Dunross abafou o seu desejo quase alucinante.

Agora, os dois cavalos tinham arriado as orelhas. Seus flanços estavam molhados de suor. Ambos sentiam o freio nos dentes. E agora, bem na reta final, dirigiam-se excitadamente para o poste de chegada, a pista interna de areia de treinamento não tão rápida quanto a de grama que a rodeava, exigindo mais deles. Os dois cavaleiros estavam de pé nos estribos, o mais alto que podiam, debruçados para a frente, com a rédea curta.

Noble Star carregava menos peso. Começou a sair na frente, Dunross automaticamente usou os calcanhares e xingou Buccaneer, que apressou o passo. A brecha começou a diminuir. A euforia dele aumentou. O galope não ultrapassou mais que meia pista, portanto Dunross achou que estava seguro. Nenhum treinador adversário poderia calcular exatamente o tempo de cada um, portanto chutou com mais força e a corrida passou a ser para valer. Os dois cavalos o sabiam. Suas passadas tornaram-se maiores. Noble Star estava com o focinho à frente, e então, sentindo que Buccaneer se acercava rapidamente, ela disparou, por conta própria, e ganhou de Dunross por meio corpo.

Então, os cavaleiros diminuíram a velocidade e, à vontade, continuaram em volta da linda pista... um pedaço de verde cercado por prédios amontoados e fileiras de apartamentos que pontilhavam as encostas das montanhas. Quando Dunross acabou de trotar de novo pela reta final, interrompeu o exercício, parou junto de onde seria normalmente o círculo do vencedor, e desmontou. Deu uma palmadinha afetuosa no pescoço do potro, e jogou suas rédeas para um cavalariço. O homem subiu na sela e continuou a exercitá-lo.

Dunross distendeu os ombros, o coração batendo gostosamente, o gosto de sangue na boca. Sentia-se bem, os músculos estirados doendo agradavelmente. Cavalgara toda a sua vida. A corrida de cavalos ainda era oficialmente um esporte amador em Hong Kong. Quando era jovem, havia competido durante duas temporadas, e teria continuado, mas fora aconselhado a deixar as pistas por seu pai, naquela época tai-pan e administrador-chefe, e novamente por Alastair Struan, quando assumiu os dois cargos, que lhe ordenou que parasse de correr sob pena de demissão imediata. Assim, parará de correr, embora continuasse a exercitar os cavalos da Struan quando lhe dava na telha. E corria na madrugada, quando sentia vontade.

Era o levantar-se quando a maior parte do mundo ainda dorme, o galopar à meia-luz... o exercício e a excitação, a velocidade e o perigo que lhe desanuviavam a cabeça.

Dunross cuspiu fora o gosto enjoativo de não ter vencido. "Assim está melhor", pensou. "Poderia ter ganho de Noble Star hoje, mas o teria feito na curva, não na reta."

Outros cavalos estavam se exercitando na pista de areia, entrando no circuito, ou deixando-o. Grupos de proprietários, treinadores e jóqueis conferenciavam, ma-foos — "cavalariços" — fazendo andar os cavalos cobertos com mantas. Viu Butter-scotch Lass, a grande égua de Richard Kwang, passar por ele a meio galope, uma estrela branca na testa, machins elegantes, seu jóquei segurando firme as rédeas, parecendo tudo muito bem. No extremo oposto, Pilot Fish, o garanhão de estimação de Gornt, saiu num galope controlado, atrás de outro animal do haras da Struan, Impatience, uma potranca nova, jovem, inexperiente, adquirida recentemente nas primeiras vendas da temporada. Dunross examinou-a com ar crítico, e achou que lhe faltava resistência. "Vamos dar-lhe uma ou duas temporadas, e depois veremos", pensou. Então Pilot Fish passou violentamente por ela, que escorregou de medo por um instante, e depois saiu a persegui-lo até que seu jóquei a controlou, ensinando-lhe a galopar segundo a vontade dele.

— E então, tai-pan? — perguntou o seu treinador. Era um imigrante russo de cara curtida, duro como aço, de sessenta e tantos anos, cabelos grisalhos. Aquela era a sua terceira temporada com a Struan.

— E então, Aleksei?

— Então você ficou com o diabo no corpo e enfiou os calcanhares nele, e viu como a Noble Star disparou à frente?

— Ela é esforçada. Noble Star é esforçada, todo mundo sabe disso — replicou Dunross, calmamente.

— É, mas eu teria preferido que somente eu e você fôssemos alertados para isso hoje, e não — o homenzinho apontou um dedo calejado para os espectadores e abriu um sorriso —...e não todo vibliadok na Ásia.

Dunross devolveu o sorriso.

— Você repara demais.

— Sou pago para reparar demais.

Aleksei Travkin suplantava qualquer homem com a metade da sua idade cavalgando, bebendo, trabalhando e resistindo. Era um solitário, entre os outros treinadores. Ao longo dos anos, contara diversas histórias sobre seu passado... como a maioria das pessoas apanhadas nos grandes tumultos da Rússia e suas revoluções, da China e suas revoluções, e que agora vagavam pelas veredas da Ásia buscando uma paz que jamais poderiam encontrar.

Aleksei Ivánovitch Travkin viera da Rússia para Harbin, na Manchúria, em 1919, depois seguira trabalhando para o sul, até o Povoado Internacional de Xangai. Lá, começou a cavalgar vencedores. Como era muito bom, e sabia mais sobre cavalos do que a maioria dos homens sabem sobre si mesmos, logo se tornou treinador. Quando o êxodo aconteceu novamente, em 49, ele fugiu para o sul, desta feita para Hong Kong, onde ficou durante alguns anos, depois se mandou de novo para o sul, para a Austrália, e os circuitos de lá. Mas a Ásia o chamava, e ele voltou. Dunross estava sem treinador, na época, e ofereceu-lhe a coudelaria da Casa Nobre.

— Aceito, tai-pan — respondera ele, prontamente.

— Ainda não discutimos dinheiro — dissera Dunross.

— O senhor é um cavalheiro, e eu também. Pagar-me-á o máximo para ficar por cima... e também porque sou o melhor.

— É?

— Por que outro motivo me ofereceria o lugar? Também não gosta de perder.

A temporada passada fora boa para ambos. A primeira não fora tão boa. Os dois sabiam que a temporada que estava prestes a se iniciar seria o teste real.

Noble Star passava devagar por eles, acomodando-se, com perfeição.

— E quanto ao sábado? — perguntou Dunross.

— Ela estará se esforçando.

— E Butterscotch Lass?

— Estará se esforçando. Assim como Pílot Fish. Assim como todos os outros... em todos os oito páreos. Será uma competição muito especial. Teremos que vigiar atentamente os nossos inscritos.

Dunross concordou. Viu Gornt conversando com Sir Dunstan Barre, junto ao círculo dos vencedores.

— Vou ficar muito puto da vida se perder para Pilot Fish. Aleksei riu, depois acrescentou, mordaz:

— Nesse caso, talvez seja melhor o senhor mesmo montar Noble Star, tai-pan. Assim, poderá empurrar Pílot Fish contra o gradil, na curva, se ele representar uma ameaça, ou chicotear os olhos do seu jóquei. Não? — O velho ergueu os olhos para ele. — Não é isso o que teria feito com Noble Star hoje, se fosse um páreo de verdade?

Dunross sorriu.

— Como não era verdade, nunca saberá... não é mesmo? Um ma-foo se aproximou e saudou Travkin, entregando-lhe um bilhete.

— Recado, senhor. O Sr. Choi gostaria que o senhor examinasse as ataduras de Chardistan, quando tiver um momentinho.

— Vou já para lá. Diga a ele para pôr farelo extra na ração de Buccaneer, hoje e amanhã. — Travkin voltou a olhar para Dunross, que observava atentamente Noble Star. Franziu o cenho. — Não está pensando em cavalgar no sábado?

— Não no momento.

— Eu não o aconselharia. Dunross riu.

— Eu sei. Até amanhã, Aleksei. Amanhã exercitarei Impatience.

Abraçou-o amistosamente e foi embora.

Aleksei Travkin ficou olhando enquanto ele se afastava; seus olhos voltaram-se depois para os cavalos sob seus cuidados, e para os adversários que estavam à vista. Sabia que esse sábado seria cheio de maldade, e que Noble Star teria que ser protegida. Sorriu consigo mesmo, satisfeito por estar num jogo cujas apostas eram tão altas.

Abriu o bilhete que estava na sua mão. Era curto, escrito em russo.

"Saudações de Kurgan, Alteza. Tenho notícias de Nestorova...

Aleksei soltou uma exclamação abafada. Seu rosto ficou sem cor. "Pelo sangue de Cristo!", tinha vontade de gritar. "Ninguém na Ásia sabe que vim de Kurgan, nas planícies às margens do rio Tobol, nem que meu pai era o príncipe de Kurgan e Tobol, nem que minha querida Nestorova, minha mulher-criança de mil vidas atrás, foi engolida pela revolução enquanto eu estava com meu regimento... Juro por Deus que jamais mencionei seu nome a ninguém, nem a mim mesmo."

Releu o bilhete, em choque. "Será mais uma tortura deles, os soviéticos... os inimigos de todos os russos? Ou será de um amigo? Ah, Santo Deus, permita que seja um amigo!"

Depois de "Nestorova", o bilhete terminava:

"Por favor, encontre-me no Restaurante Dragão Verde, no beco junto à Nathan Road, 189, na sala dos fundos, às três da tarde de hoje".

Não havia assinatura.

Do outro lado do paddock, perto do poste de chegada, Richard Kwang dirigia-se para junto do seu treinador quando viu seu primo em sexto grau, Ching Sorridente, presidente da junta diretora do imenso Ching Prosperity Bank, nas arquibancadas, os binóculos dirigidos para Pilot Fish.

— Alô, Sexto Primo — cumprimentou amavelmente, em cantonense —, já comeu arroz hoje?

O velho astuto pôs-se em guarda instantaneamente.

— Não vai arrancar nenhum dinheiro de mim — falou rudemente, os lábios afastando-se dos dentes saltados que lhe davam um ar de perpétua careta sorridente.

— Por que não? — falou Richard Kwang, com a mesma rudeza. — Tenho dezessete milhões emprestados a você e...

— É, mas vencem daqui a noventa dias, e estão bem investidos. Sempre pagamos os juros de quarenta por cento — rosnou o velho.

— Seu velho osso de cachorro miserável, ajudei-o quando precisava de dinheiro! Agora chegou a hora de retribuir!

— Retribuir o quê? O quê? — cuspiu Ching Sorridente. — Retribuí a você uma fortuna, ao longo dos anos. Assumi os riscos, e você acumulou os lucros. Esse desastre todo não podia ter acontecido numa hora pior! Estou com cada tostão de cobre investido... até o último! Não sou como certos banqueiros. Meu dinheiro está sempre bem empregado.

Empregado em narcóticos, ao que constava. Claro que Richard Kwang nunca perguntara, e ninguém sabia ao certo, mas todos acreditavam que o banco de Ching Sorridente era, secretamente, uma das principais câmaras de compensação para o comércio de drogas, a maioria proveniente de Bangkok.

— Escute, primo, pense na família — começou Richard Kwang. — É apenas um problema temporário. Esses demônios estrangeiros de merda estão nos atacando. Quando isso acontece, as pessoas civilizadas têm que se unir!

— Concordo. Mas você é o culpado da corrida ao Ho-Pak. Você. É no seu banco... não no meu. Você ofendeu os sacanas, de algum modo! Estão atrás de você! Não lê os jornais? É, e você está com todo o seu dinheiro investido nuns negócios muito ruins, ao que me contaram. Você, primo, colocou a própria cabeça na canga. Arranque dinheiro daquele maldito mestiço filho de uma puta malaia do seu sócio. Ele tem bilhões... ou do Pão-Duro... — O velho repentinamente casquinou. — Darei dez por cada um que aquele velho fornicador emprestar a você!

— Se eu entrar pelo cano, o Ching Prosperity virá atrás!

— Não me ameace! — exclamou o velho, raivosamente. Seus lábios tinham permanentemente um pouco de saliva nos cantos, depois eles cobriram os dentes uma vez e separaram-se de novo na careta habitual. — Se você entrar pelo cano, não será por minha culpa... por que desejar seu terrível azar para a minha família? Não fiz nada para prejudicá-lo... por que tentar passar seu azar para mim? Se hoje... ayeeyah, se hoje seu azar transbordar e aqueles depositantes de merda começarem uma corrida ao meu banco, não durarei um dia!

Richard Kwang sentiu-se momentaneamente melhor porque o império de Ching estava igualmente ameaçado. "Bom, muito bom. Eu poderia aproveitar todos os seus negócios... especialmente a operação Bangkok." Foi então que olhou para o grande relógio que encimava o totalizador, e gemeu. Eram pouco mais de seis horas. Às dez os bancos abririam, a Bolsa de Valores abriria, e, embora já tivessem sido tomadas providências com o Blacs, o Victoria e o Banco Oriental e de Bombaim, de Kowloon, para penhorar títulos que deviam cobrir tudo, com sobra, ainda estava nervoso. E furioso. Tivera que fazer uns tratos muito duros, que não desejava cumprir.

— Vamos lá, primo, só cinqüenta milhões durante dez dias... prorrogarei os dezessete milhões por dois anos, e acrescentarei outros vinte em trinta dias.

— Cinqüenta milhões por três dias a dez por cento de juros por dia, e o empréstimo atual como garantia. E também aceitarei a escritura da sua propriedade na zona central como garantia!

— Vá foder na orelha da sua mãe! A propriedade vale quatro vezes esse valor.

Ching Sorridente deu de ombros e voltou a focalizar os binóculos em Pilot Fish.

— O preto grande vai derrotar Butterscotch Lass, também?

Richard Kwang olhou com azedume para o cavalo de Gornt.

— Só se os cretinos do meu treinador e do meu jóquei se unirem para refreá-la ou dopá-la!

— Ladrões nojentos! Não se pode confiar num só deles! Meu cavalo nunca foi classificado. Nunca. Nem chegou em terceiro. Revoltante!

— Cinqüenta milhões por uma semana... dois por cento ao dia?

— Cinco. E mais a propriedade...

— Jamais!

— Aceitarei uma fatia de cinqüenta por cento da propriedade.

— Seis por cento — rebateu Richard Kwang.

Ching Sorridente calculou o seu risco. E seu lucro potencial. O lucro seria imenso. Se o Ho-Pak não falisse. Mas, mesmo que falisse, o empréstimo seria bem coberto pela propriedade. É, o lucro seria imenso, desde que não houvesse uma corrida ao seu próprio banco. Talvez ele pudesse arriscar e penhorar alguns carregamentos futuros e levantar os cinqüenta milhões.

— Quinze por cento, e fim de papo — falou, sabendo que retiraria a oferta, ou a modificaria ao meio-dia, depois de ter visto como estava o mercado, e a corrida... e continuaria a vender ações do Ho-Pak a descoberto e obter grande lucro. — E pode incluir também Butterscotch Lass.

Richard Kwang praguejou obscenamente, e ficaram ambos barganhando, depois concordaram que os cinqüenta milhões estariam à disposição às duas horas. Em espécie. Penhoraria também a Ching Sorridente trinta e nove por cento da sua propriedade na zona central como garantia adicional, e um quarto de participação na égua. Butterscotch Lass foi o argumento decisivo para fecharem o negócio.

— E quanto ao sábado?

— Como? — disse Richard Kwang, detestando a careta e os dentes saltados.

— Nosso cavalo está no quinto páreo, heya? Ouça, Sexto Primo, talvez devêssemos fazer um arranjo com o jóquei de Pilot Fish. Refreamos o nosso animal... será o favorito... e apostaremos em Pilot Fish e Noble Star, por segurança!

— Boa idéia. Decidiremos no sábado de manhã.

— Melhor eliminar Golden Lady também, não?

— O treinador de John Chen sugeriu isso.

— Eeee, aquele idiota, deixar-se seqüestrar! Espero que você me dê a informação real sobre quem vai vencer. Também quero o vencedor!

Sorridente escarrou e cuspiu.

— Todos os deuses defequem! Esses treinadores e jóqueis nojentos! É revoltante como nos manipulam, a nós, proprietários. Quem paga os salários deles, heya?

— O Turf Club, os proprietários, mas especialmente os apostadores que estão por fora. Ouvi dizer que você esteve no Old Vic ontem à noite, jantando comida de demônio estrangeiro.

Richard Kwang sorriu de orelha a orelha. Seu jantar com Vênus Poon fora um enorme sucesso. Ela usara o novo vestido pelos joelhos de Christian Dior que ele lhe comprara, seda negra colante, e gaze por baixo. Quando a vira saltar do Rolls dele e subir os degraus do Old Vic, seu coração dera uma cambalhota, e seu Saco Secreto tremera.

Ela ficara toda sorridente ao notar o efeito da sua entrada no saguão, suas pesadas pulseiras de ouro brilhando, e insistira em subir a ampla escadaria, ao invés de usar o elevador. O peito dele ficara apertado de alegria abafada e terror. Cruzaram por entre os comensais formais e bem-vestidos, europeus e chineses, alguns a rigor... casais, turistas e nativos, homens em jantares de negócios, amantes e candidatas a amantes de todas as idades e nacionalidades. Ele estava usando um terno novo e escuro de Savile Row, da caxemira mais leve e mais cara. Enquanto se dirigiam para a mesa especial que lhe custara uma vermelha — cem dólares —, acenara para muitos amigos, e gemera intimamente quatro vezes ao ver quatro amigos chineses muito chegados com as esposas, empetecadas e cheias de jóias. As mulheres o fitaram gelidamente.

Richard Kwang estremeceu. "As mulheres são uns verdadeiros dragões, e todas iguais", pensou. "Oh, oh, oh! E as nossas mentiras soam falsas aos seus ouvidos antes mesmo que as pronunciemos." Ainda não fora para casa enfrentar Mai-ling, que a essa altura já saberia de Vênus Poon por intermédio de pelo menos três grandes amigas. Ele deixaria que ela esbravejasse, berrasse, chorasse e arrancasse os cabelos por algum tempo, para soltar o vento do diabo, e depois diria que os inimigos haviam enchido sua cabeça de veneno... como podia acreditar naquelas mulheres tão maldosas?... e depois contar-lhe-ia humildemente sobre o casaco de vison comprido que encomendara há três semanas e que iria buscar a tempo de ela poder usá-lo para as corridas no sábado. E então haveria paz em casa... até a próxima vez.

Riu da sua perspicácia em ter encomendado o vison. O fato de tê-lo encomendado para Vênus Poon, e ter prometido naquela manhã, no calor do seu abraço, entregá-lo à noite a Mai-ling para que ela o usasse nas corridas de sábado, não o incomodava nem um pouco. "É bom demais para aquela piranha, afinal de contas", pensava. Custara-lhe quarenta mil HK. "Comprarei outro para ela. Talvez possa arranjar um de segunda mão..."

Viu Ching Sorridente olhando de esguelha para ele.

— O quê?

— Vênus Poon, heya?

— Estou pensando em produzir filmes e fazer dela uma estrela — falou altivamente, orgulhoso da história que inventara como parte da desculpa para a mulher.

Ching Sorridente ficou impressionado.

— Eeee, mas isso é um negócio arriscado, heya?

— É, mas há meios de... pôr no seguro o risco. Deu uma piscadela safada.

— Ayeeyah, quer dizer um filme pornô? Oh, avise-me quando marcar a produção. Posso investir alguma coisa. Vênus Poon nua! Ayeeyah, a Ásia inteira pagaria para ver! Que tal ela é na cama?

— Perfeita! Agora que a eduquei. Era virgem da primeira...

— Que sorte! — falou Ching Sorridente, depois acrescentou: — Quantas vezes escalou as Muralhas?

— Ontem? Três vezes... e cada vez mais forte do que a anterior! — Richard Kwang inclinou-se para a frente. — O Coração de Flor dela é o melhor que já vi. È. E o seu triângulo! Lindos cabelos sedosos e os lábios internos rosados e delicados. Eeee, e o seu Portão de Jade... o seu Portão de Jade tem mesmo o formato de um coração, e a sua "polegada quadrada" é de um oval perfeito, rosada e cheirosa, e a Pérola no Degrau também é rosada...

Richard Kwang sentiu que começava a suar ao lembrar-se de como ela abrira as pernas no sofá e lhe entregara uma grande lente de aumento.

— Tome — dissera com orgulho. — Examine a deusa que o seu monge careca está prestes a adorar.

E ele o fizera. Meticulosamente.

— A melhor parceira de cama que já tive — continuou Richard Kwang, animado, exagerando a verdade. — Estava pensando em comprar-lhe um grande anel de diamantes. A pobre Fala Macia chorou hoje de manhã quando saí do apartamento que lhe dei. Estava jurando que ia cometer suicídio, porque está apaixonada por mim.

Usou a palavra inglesa.

— Eeee, mas você é um homem de sorte!

Ching Sorridente não falava nada de inglês, exceto as palavras de amor. Sentiu um par de olhos fitos nas suas costas, e olhou para trás. Na seção seguinte das arquibancadas, a uns cinqüenta metros de distância, ligeiramente acima dele, estava o policial demônio estrangeiro Grande Montanha de Bosta, o odiado chefe do DIC de Kowloon. Os frios olhos de peixe o fitavam, e um binóculo pendia do pescoço do homem. Ayeeyah, resmungou Ching consigo mesmo, sua mente dardejando pelos diversos controles, armadilhas e saldos que protegiam sua principal fonte de renda.

— Hem? O que é? O que houve com você, Ching Sorridente?

— Nada. Só estou com vontade de mijar. Mande os papéis para mim às duas horas, se quiser meu dinheiro.

Aborrecido, virou-se para ir ao banheiro, perguntando-se se a polícia tinha conhecimento da chegada iminente do demônio estrangeiro da Montanha Dourada, um Grande Tigre dos Pós Brancos com o exótico nome de Vincenzo Banastasio.

Escarrou e cuspiu ruidosamente. "Tanto se me dá que saibam ou não. Não podem tocar em mim, sou apenas um banqueiro."

Robert Armstrong notara que Ching Sorridente estava conversando com o banqueiro Kwang e tinha certeza de que o par estava aprontando alguma. A polícia estava bem por dentro dos murmúrios sobre Ching, seu Prosperity Bank e o tráfico de narcóticos, mas até agora não tinha nenhuma prova concreta implicando-o, ou ao seu banco, nem mesmo provas circunstanciais que fizessem jus a detenção, interrogatório e deportação sumária.

"Bem, um dia desses ele vai escorregar", pensou Robert Armstrong, calmamente, e voltou a focalizar o binóculo em Pilot Fish, em Noble Star, em Butterscotch Lass, depois em Golden Lady, a égua de John Chen. Qual deles estaria em forma para vencer?

Bocejou e espreguiçou-se, cansado. Fora outra longa noite, e ele ainda não fora para a cama. Bem na hora em que estava saindo do QG da polícia em Kowloon, na véspera, houvera um alvoroço danado por causa de mais um telefonema anônimo avisando que John Chen fora visto nos Novos Territórios, na minúscula aldeia pesqueira de Sha Tau Kwok, que dividia em dois a ponta oriental da fronteira.

Ele correra para lá com uma equipe e revistara a aldeia, choça por choça. A revista tivera que ser feita com muita cautela, pois toda a área da fronteira era muito sensível, especialmente na aldeia, onde havia um dos três postos de controle da fronteira. Os aldeões eram uma turma durona, inflexível e belicosa, que queria ser deixada em paz. Especialmente pela polícia dos demônios estrangeiros. A revista provara ser apenas mais um alarme falso, embora tivessem descoberto dois alam-biques ilegais, uma pequena fábrica de heroína que transformava ópio bruto em morfina, e daí em heroína, e desmantelassem seis antros de jogatina ilegais.

Quando voltara ao QG de Kowloon, soubera de outro telefonema sobre John Chen, desta feita no lado de Hong Kong, em Wanchai, perto do Glessing's Point, na zona das docas. Aparentemente, John Chen fora visto sendo enfiado para dentro de um cortiço, com uma atadura suja cobrindo a orelha direita. Dessa vez, a pessoa que tinha ligado deixara o nome e o número de sua carteira de motorista, para poder reclamar a recompensa de cinqüenta mil HK oferecida pela Struan e pelos Chens da Casa Nobre. Novamente, Armstrong reunira unidades para cercar a área e dirigira a revista meticulosamente. Já eram cinco da madrugada quando cancelara a operação e dispensara os homens.

— Brian, vou direto para a cama — falou. — Que desperdício de outra noite fang-pi.

Brian Kwok também bocejou.

— É. Mas já que estamos deste lado, que tal tomarmos café no Para e depois irmos dar uma espiada nos exercícios matinais?

Imediatamente, quase todo o cansaço de Robert Armstrong se dissipou.

— Grande idéia!

O Restaurante Para, na Wanchai Road, perto do Hipódromo Happy Valley, estava sempre aberto. A comida era excelente, barata, e era um local de encontro costumeiro dos tríades e suas garotas. Quando os dois policiais entraram na sala grande, barulhenta, tumultuada, fez-se um súbito silêncio no ambiente. O proprietário, Ko Um Pé Só, veio mancando até eles, e acompanhou-os com um sorriso até a melhor mesa da casa.

— Dew neh loh moh para você também, Velho Amigo — falou Armstrong, sombriamente, e acrescentou algumas obscenidades escolhidas a dedo em cantonense de sarjeta, fitando intencionalmente o grupo mais próximo de jovens rufiões boquiabertos, que nervosamente lhe viraram as costas.

Ko Um Pé Só riu, mostrando os dentes estragados.

— Ah, senhores, honram o meu pobre estabelecimento. Dim sutn?

— Por que não?

Dim sum — "pequenos alimentos" — eram pequenos envelopes de massa recheados de camarões, legumes moídos ou carnes diversas e depois cozidos ou fritos, e comidos com um pouco de soja, de galinha e outras carnes em vários molhos ou pastéis de todos os tipos.

— Vossas Excelências vão ao prado?

Brian Kwok fez que sim com a cabeça, bebericando seu chá de jasmim, correndo os olhos pelos fregueses, deixando muitos deles nervosos.

— Quem vai ganhar o quinto páreo? — perguntou.

O dono do restaurante hesitou, sabendo que era melhor contar a verdade. Falou cautelosamente, em cantonense:

— Dizem que nem Golden Lady, Noble Star, Pilot Fish ou Butterscotch Lass ainda... ainda não se comentou que um tenha vantagem sobre o outro. — Viu os frios olhos castanho-escuros pousarem nele, e tentou não estremecer. — Por todos os deuses, é o que dizem!

— Ótimo. Virei aqui sábado de manhã. Ou mandarei meu sargento. Então você poderá sussurrar no ouvido dele se há boatos de jogo sujo. É. E se por acaso um desses for dopado ou cortado, e se eu não for informado no sábado de manhã... talvez as suas sopas fiquem apodrecendo por cinqüenta anos.

Um Pé Só sorriu nervosamente.

— Sim, senhor. Deixe-me agora tratar da sua comi...

— Antes de ir, quais as últimas fofocas sobre John Chen?

— Nenhuma. Ah, não há nenhuma, Honrado Senhor — disse o homem, o lábio superior perolado de suor. — O Porto Fragrante está tão limpo de informações sobre ele quanto um tesouro de virgem. Nada, senhor. Nem um peido de cachorro ou um rumor verdadeiro, embora todos estejam procurando. Ouvi dizer que há um grande prêmio extra.

— Como? Quanto?

— Cem mil dólares extras, se for descoberto dentro de três dias.

Os dois policiais soltaram um assobio.

— Oferecidos por quem? — quis saber Armstrong. Um Pé Só deu de ombros, os olhos duros.

— Ninguém sabe, senhor. Dizem que por um dos Dragões... ou todos os Dragões. Cem mil, e promoção, se for dentro de três dias... se for descoberto vivo. Por favor, agora deixe-me ir tratar da sua comida.

Ficaram olhando enquanto ele se afastava.

— Por que pressionou Um Pé Só? — perguntou Armstrong.

— Estou cheio da hipocrisia bajuladora dele... e de todos esses bandidinhos nojentos. A lei do chicote resolveria o nosso problema das tríades.

Armstrong pediu uma cerveja.

— Quando dei duro no sargento Tang-po não pensei que ia ter resultados tão rápidos. Cem mil é um bocado de grana! Isso não pode ser apenas um simples seqüestro. Santo Deus, é recompensa às pampas! Tem que haver algo de especial sobre John.

— É. Se for verdade.

Mas não haviam chegado a nenhuma conclusão, e quando chegaram ao prado Brian Kwok ligara para o QG e agora Armstrong focalizava o binóculo na égua. Butterscotch Lass estava deixando a pista para voltar para cima do morro, para os está-bulos. "Parece em grande forma", pensou. "Todos parecem. Merda, qual deles?"

— Robert?

— Oh, alô, Peter.

Peter Marlowe sorriu para ele.

— Está acordando cedo ou indo dormir tarde?

— Dormindo tarde.

— Notou como Noble Star disparou sem que seu jóquei fizesse nada?

— É bom observador.

Peter Marlowe sorriu, balançou a cabeça e indicou um grupo de homens que rodeavam um dos cavalos.

— Donald McBride me contou.

— Ah! — McBride era um organizador de corridas imensamente popular, um empresário imobiliário eurasiano que viera de Xangai para Hong Kong em 49. — Ele já lhe deu o nome do vencedor? Se alguém souber, esse alguém é ele.

— Não, mas me convidou para o seu camarote, no sábado. Vai correr?

— Mas, o que é isso? Vejo você no camarote dos sócios... eu não transo com a gente bem!

Os dois ficaram observando os cavalos durante algum tempo.

— Golden Lady parece bem.

— Todos parecem.

— Ainda nenhuma notícia de John Chen?

— Nada. — O foco do binóculo de Armstrong pegou Dunross, que conversava com alguns administradores. A pouca distância estava o guarda do sei que Crosse designara para vigiá-lo. "Que chegue logo a sexta-feira!", pensou o policial. "Quanto mais cedo virmos as tais pastas de Alan Medford Grant, melhor." Sentiu-se levemente indisposto, e não conseguiu chegar à conclusão se era de apreensão pelos papéis, pela Sevrin, ou se era apenas fadiga. Já ia estender a mão para pegar um cigarro... deteve-se. "Não precisa de um cigarro", ordenou para si mesmo. — Devia parar de fumar, Peter. Faz mal.

— É, devia mesmo. Como você está se saindo?

— Sem problema. O que me faz lembrar, Peter, que o Velho aprovou sua viagem pela estrada da fronteira. Depois de amanhã, sexta-feira, seis da manhã em ponto no QG de Kowloon. Está bem?

O coração de Peter Marlowe deu um salto. Finalmente poderia olhar para a China continental, para o desconhecido. Em toda a terra fronteiriça dos Novos Territórios havia apenas um mirante acessível que os turistas podiam usar para olhar para a China, mas a montanha ficava tão longe que não se podia ver grande coisa. Mesmo de binóculo.

— Espetacular! — exclamou, eufórico. Seguindo a sugestão de Armstrong, escrevera para o comissário, solicitando aquela permissão. A estrada da fronteira ia de costa a costa. Era proibida a todo o tráfego e todas as pessoas... exceto os habitantes locais, em certas áreas. Era uma vasta extensão de terra de ninguém, entre a colônia e a China. Uma vez por dia, era patrulhada sob circunstâncias muito controladas. O governo de Hong Kong não tinha nenhuma vontade de balançar o coreto da República Popular da China.

— Uma condição, Peter: não a mencione, nem fale nela por mais ou menos um ano.

— Tem a minha palavra. Armstrong abafou outro bocejo.

— Você vai ser o único ianque que já andou por ela, que talvez jamais andará.

— Fantástico! Obrigado.

— Por que se naturalizou americano?

Depois de uma pausa, Peter Marlowe falou:

— Sou um escritor. Toda a minha renda vem de lá, quase toda ela. Agora, as pessoas estão começando a ler o que escrevo. Talvez eu queira ter o direito de criticar.

— Já esteve em algum país da Cortina de Ferro?

— Ah, já. Estive em Moscou em julho, para o festival de cinema. Um dos roteiros que escrevi foi o do candidato americano. Por quê?

— Por nada — replicou Armstrong, lembrando-se do trânsito livre de Bartlett e Casey para Moscou. Sorriu. — Perguntei por perguntar.

— Um favor merece outro em troca. Ouvi uma fofoca sobre as armas de Bartlett.

— É? — perguntou Armstrong, instantaneamente alerta. Peter Marlowe era uma figura muito rara em Hong Kong, pelo fato de cruzar as barreiras sociais e ser aceito como amigo por muitos grupos normalmente hostis.

— Provavelmente não passa de conversa fiada, mas alguns amigos têm uma teoria...

— Amigos chineses?

— É. Acham que as armas são um carregamento para amostra, destinado a um dos nossos cidadãos piratas chineses, pelo menos, um com passado de contrabandista, para ser entregue a um dos grupos de guerrilheiros que operam no Vietnam do Sul, os vietcongues.

Armstrong resmungou.

— Excesso de imaginação, Peter. Hong Kong não é local para trânsito de armas.

— Sei, mas esse carregamento era especial, o primeiro. Foi encomendado às pressas, para ser entregue às pressas. Já ouviu falar na Força Delta?

— Não — retrucou Armstrong, abismado porque Peter Marlowe já tinha ouvido falar naquilo que Rosemont, da CIA, lhe assegurara sigilosamente que era uma operação ultra-secreta.

— Ao que sei, é um grupo de soldados de combate americanos especialmente treinados, Robert, uma força especial que está operando no Vietnam em pequenas unidades sob o controle do Grupo Técnico Americano, que é um nome sob o qual se oculta a CIA. Parece que estão se saindo tão bem que os vietcongues precisam de armas modernas rapidamente, e em grande quantidade, e estão preparados para pagar generosamente. Assim, essas foram mandadas imediatamente para cá, no avião de Bartlett.

— Ele está envolvido?

— Meus amigos duvidam que esteja — falou, depois de uma pausa. — De qualquer modo, as armas são de uso do exército americano, Robert, certo? Bem, uma vez que esse carregamento fosse aprovado, a entrega em grandes quantidades seria fácil.

— É, como?

— Os Estados Unidos vão fornecer as armas.

— O quê?

— Claro. — A fisionomia de Peter Marlowe endureceu. — É realmente muito simples: digamos que esses guerrilheiros vietcongues soubessem antecipadamente todas as datas exatas dos carregamentos americanos, pontos de destino, quantidades e tipos de armas (desde as menores até foguetes) exatos, quando chegassem ao Vietnam?

— Santo Deus!

— É. Conhece a Ásia. Um pouco de h'eung yan aqui e ali, e os assaltos constantes seriam simples.

— Seria como se eles tivessem suas próprias reservas! — exclamou Armstrong, estupefato. — Como vão ser pagas as armas? Um banco aqui?

Peter Marlowe olhou para ele.

— Ópio a granel. Entregue aqui. Um dos nossos bancos faz o financiamento.

O policial soltou um suspiro. A coisa se encaixava.

— Impecável — comentou.

— É. Um filho da mãe de um traidor nojento nos Estados Unidos simplesmente passa adiante as relações, itinerários, datas. Isso dá ao inimigo todas as armas e a munição de que precisa para acabar com nossos próprios soldados. O inimigo paga pelas armas com um veneno que nada lhe custa... imagino que seja o único artigo vendável que tenha a granel, e que possa adquirir facilmente. O ópio é entregue aqui pelo contrabandista chinês, e convertido em heroína, porque aqui é que eles têm os peritos para isso. Os traidores nos Estados Unidos fazem um trato com a Máfia, que vende a heroína com lucro enorme para mais garotos, e assim subvertem e destroem o bem mais importante que temos: os jovens.

— Como já falei, impecável! O que alguns sacanas não fazem por dinheiro! — Armstrong soltou outro suspiro, e relaxou os ombros. Pensou por um momento. A teoria fazia tudo se encaixar muito direitinho. — O nome Banastasio significa alguma coisa?

— Parece italiano.

Peter Marlowe manteve a fisionomia impassível. Seus informantes eram dois jornalistas portugueses eurasianos que detestavam a polícia. Quando Marlowe lhes perguntara se poderia passar adiante a teoria, Da Vega dissera:

— Claro, mas a polícia jamais acreditará. Não fale em nós, e nem mencione nomes, nem o de Wu Quatro Dedos, Pa Contrabandista, Ching Prosperity, Banastasio, nenhum.

Após uma pausa, Armstrong disse:

— O que mais ouviu dizer?

— Muita coisa, mas por hoje chega... é minha vez de acordar as crianças, fazer o café e mandá-las para a escola. — Peter Marlowe acendeu um cigarro, e de novo Armstrong sentiu dolorosamente a necessidade do fumo nos pulmões. — Exceto uma coisa, Robert. Um membro da imprensa, amigo meu, pediu-me que o avisasse de que ouviu falar numa grande reunião de narcóticos a ser realizada em breve em Macau.

Os olhos azuis se estreitaram.

— Quando?

— Não sei.

— Que espécie de reunião?

— Gente da pesada. "Fornecedores, importadores, exportadores, distribuidores", foi o que ele disse.

— Onde, em Macau?

— Não disse.

— Nomes?

— Nenhum. Mas acrescentou que a reunião incluirá um visitante VIP dos Estados Unidos.

— Bartlett?

— Meu Deus, Robert, não sei! E nem ele falou nisso. Linc Bartlett me parece um sujeito simpático, e corretíssimo. Acho que é tudo fofoca e inveja, tentando implicá-lo.

Armstrong sorriu seu sorriso amarelo.

— Sou apenas um tira desconfiado. Os bandidos existem nas altas esferas, assim como nos esgotos. Peter, meu velho, dê o seguinte recado ao seu amigo jornalista: se quiser me dar uma informação, ligue diretamente para mim.

— Ele tem medo de você. E eu também!

— Tem, uma ova. — Armstrong devolveu-lhe o sorriso, simpatizando com ele, muito satisfeito pela informação e pelo fato de Peter Marlowe ser um intermediário que sabia ficar de boca fechada. — Peter, pergunte-lhe onde em Macau, e quando, e quem e... — Repentinamente, Armstrong deu um tiro no escuro: — Peter, se você fosse escolher o melhor lugar da colônia para a entrada e saída de contrabando, qual seria?

— Aberdeen, ou a baía Mirs. Qualquer tolo sabe disso... são os locais que sempre foram usados primeiro, desde que existe Hong Kong.

Armstrong soltou um suspiro.

— Concordo...

"Aberdeen", pensou. "Qual contrabandista de Aberdeen? Qualquer um entre duzentos. Wu Quatro Dedos seria a primeira escolha. Quatro Dedos, com seu grande Rolls negro e chapa de sorte número 8, aquele maldito capanga Tok Duas Machadinhas e aquele seu jovem sobrinho, o que tem o passaporte ianque, o tal de Yale. É mesmo Yale? Quatro Dedos seria a primeira escolha. Depois Poon Bom Tempo, Pa Contrabandista, Ta Sap-fok, Pok Pescador... Deus, a lista é interminável, e só daqueles que conhecemos. Na baía Mirs, a nordeste dos Novos Territórios? Os Irmãos Pa, Fang Bocarra e mil outros..."

— Bem — falou, satisfeitíssimo agora pela informação... algo incomodando-o sobre Wu Quatro Dedos, embora nunca tivesse havido nenhum boato de que estava envolvido com heroína. — Um favor merece outro: diga ao seu amigo jornalista que nossos deputados visitantes, a delegação comercial, chegam hoje de Pequim... O que há?

— Nada — disse Peter Marlowe, tentando manter a fisionomia desanuviada. — O que estava dizendo?

Armstrong observou-o atentamente, depois acrescentou:

— A delegação chega no trem da tarde de Cantão. Estará na fronteira, trocando de trem, às quatro horas e trinta e dois minutos... soubemos da mudança de planos ontem à noite. Talvez seu amigo possa conseguir uma entrevista exclusiva. Parece que os deputados fizeram grandes progressos.

— Obrigado. Em nome do meu amigo. È, obrigado. Direi a ele imediatamente. Bem, tenho que ir andando...

Brian Kwok vinha caminhando apressado na direção deles.

— Alô, Peter. — Estava ofegante. — Robert, desculpe, mas Crosse quer nos ver imediatamente.

— Puta que o pariu! — disse Armstrong, cansado. — Disse a você que era melhor esperar um pouco antes de ligar para lá. Aquele sacana nunca dorme. — Esfregou o rosto para afastar a fadiga, os olhos vermelhos. — Apanhe o carro, Brian. Vou encontrá-lo na porta da frente.

— Certo.

Brian Kwok afastou-se rapidamente. Perturbado, Armstrong acompanhou-o com o olhar. Peter Marlowe falou, brincalhão:

— A prefeitura está pegando fogo?

— No nosso ramo a prefeitura está sempre pegando fogo, rapaz, em alguma parte. — O policial examinou Peter Marlowe.

— Antes de partir, Peter, gostaria de saber o que há de tão importante na delegação comercial para você.

Depois de uma pausa, o homem dos olhos curiosos falou: — Conheci um deles durante a guerra. Tenente Robin Grey. Foi o chefe da polícia militar de Changi nos dois últimos anos. — Sua voz estava seca, mais seca e gelada do que Armstrong imaginara ser possível. — Eu o odiava e ele me odiava. Só espero não encontrá-lo, isso é tudo.

Do outro lado do círculo dos vencedores, Gornt acompanhava Armstrong pelo binóculo, enquanto este ia atrás de Brian Kwok. Depois, pensativo, voltou a focalizar Peter Marlowe, que se dirigia para um grupo de treinadores e jóqueis.

— Sacana abelhudo! — disse Gornt.

— Hem? Quem? Ah, Marlowe? — Sir Dunstan Barre deu uma risadinha. — Não é abelhudo, só quer saber tudo sobre Hong Kong. É o seu passado negro que o fascina, meu velho. O seu e o do tai-pan.

— Você não tem nenhum segredo a esconder, Dunstan? — perguntou Gornt suavemente. — Está dizendo que você e sua família são imaculados?

— Deus me livre! — Barre ficou rapidamente afável, tentando transformar o súbito veneno de Gornt em mel. — Santo Deus, não! Risque o verniz de um inglês e encontrará um pirata. Somos todos suspeitos! É a vida, não é?

Gornt ficou calado. Desprezava Barre, mas precisava dele.

— Vou dar uma festinha no meu iate no domingo, Dunstan. Quer vir? Creio que achará interessante.

— É? Quem é o convidado de honra?

— Pensei em convidar só os homens... nada de mulheres, certo?

— Ah, pode contar comigo — disse Barre prontamente, animando-se. — Mas não posso levar uma amiguinha?

— Leve duas, se quiser, meu velho, quanto mais, melhor. Será um grupo pequeno, seleto, seguro. Plumm é um cara legal, e a garota dele é muito divertida. — Gornt viu Marlowe mudar de direção quando foi chamado por um grupo de administradores e organizadores dominado por Donald McBride. Depois, num súbito impulso, acrescentou: — Acho que também vou convidar Marlowe.

— Por quê, se o acha abelhudo?

— Pode ser que se interesse pelas histórias reais sobre os Struans, os nossos piratas fundadores e os dos dias de hoje.

Gornt sorriu apenas com o rosto, e Barre se perguntou que safadeza Gornt estaria planejando. O homem do rosto vermelho enxugou a testa.

— Deus, gostaria que chovesse. Sabia que Marlowe voou com os Hurricanes... derrubou três malditos boches na Batalha da Inglaterra, antes de ser mandado para Cingapura e toda aquela desgraça? Jamais perdoarei aos malditos japoneses pelo que fizeram aos nossos rapazes ali, aqui ou na China.

— Nem eu — concordou Gornt, com ar sombrio. — Sabia que meu velho esteve em Nanquim em 37, durante a pilhagem de Nanquim?

— Não. Deus, como saiu de lá?

— Alguns dos nossos conhecidos o esconderam durante alguns dias... há gerações que tínhamos associados ali. Depois, ele fingiu para os japoneses que era um correspondente amistoso do Times de Londres, e conseguiu voltar a Xangai com esse argumento. Ainda tem pesadelos com isso.

— Por falar em pesadelos, meu velho, estava tentando fazer com que Ian tivesse um, ontem à noite, aparecendo na festa dele?

— Acha que ele acertou as contas, mexendo no meu carro?

— Como? — Barre ficou abismado. — Santo Deus! Quer dizer que alguém mexeu no seu carro?

— O cilindro-mestre foi quebrado por alguma espécie de golpe. O mecânico falou que poderia ter sido feito com uma pedra que se chocasse com ele.

Barre fitou-o e sacudiu a cabeça.

— Ian não é um tolo. É louco, mas não é nenhum tolo. Isso seria tentativa de assassinato.

— Não seria a primeira vez.

— Se eu fosse você, não diria uma coisa dessas em público, meu velho.

— Você não é o público, meu velho. É?

— Não. Natural...

— Ótimo. — Gornt fixou nele os olhos escuros. — Esta é uma época em que os amigos devem se manter unidos.

— É? — Barre pôs-se em guarda, imediatamente.

— É. O mercado está muito nervoso. Essa confusão com o Ho-Pak pode atrapalhar um bocado os nossos planos.

— As minhas fazendas de Hong Kong e Lan Tao são tão sólidas quanto o Pico.

— É, desde que seus banqueiros suíços continuem a lhe conceder sua nova linha de crédito.

O rosto rosado de Barre empalideceu.

— Como?

— Sem o empréstimo deles você não poderá assumir o controle das Docas e Cais Hong Kong, da Real Seguros de Hong Kong e Malásia, expandir para Cingapura ou completar diversas outras transações escusas que tem na sua agenda... você e seu novo amigo, Mason Loft, o menino prodígio da Threadneedle Street. Certo?

Barre fitou-o, com o suor frio escorrendo pelas costas, chocado por Gornt saber dos seus segredos.

— Onde ouviu contar isso? Gornt deu uma risada.

— Tenho amigos nas altas esferas, meu velho. Não se preocupe, seu calcanhar-de-aquiles está a salvo comigo.

— Não estamos... não estão em perigo?

— Claro que não. — Gornt dirigiu o binóculo para o seu cavalo. — Ah, a propósito, Dunstan, posso precisar do seu voto na próxima assembléia.

— Para quê?

— Ainda não sei. — Gornt baixou os olhos para ele. — Só preciso saber que posso contar com você.

— Sim, claro. — Barre se perguntava nervosamente o que Gornt pretendia e onde estava o "vazamento". — Tenho sempre prazer em colaborar, meu velho.

— Obrigado. Está vendendo Ho-Pak a descoberto?

— Claro. Saquei todo o meu dinheiro ontem, graças a Deus. Por quê?

— Ouvi dizer que o negócio de Dunross com a Par-Con vai furar. Estou pensando em vender as ações dele a descoberto, também.

— É? O negócio vai furar? Por quê? Gornt sorriu sardonicamente.

— Porque, Dunstan...

— Alô, Quillan, Dunstan, desculpe interromper — disse Donad McBride, aproximando-se deles, trazendo junto dois homens. — Deixem-me apresentar-lhes o Sr. Charles Biltzmann, vice-presidente da American Superfoods. Vai dirigir a nova fusão General Stores-Superfoods, sediada na colônia, daqui para a frente. Sr. Gornt e Sir Dunstan Barre.

O americano alto, de cabelos cor de areia, usava terno e gravata cinza e óculos sem aro. Estendeu a mão, amavelmente.

— Prazer em conhecê-los. Pradozinho simpático vocês têm aqui.

Gornt apertou a mão do outro, sem entusiasmo. Ao lado de Biltzmann estava Richard Hamilton Pugmire, o atual tai-pan da General Stores de Hong Kong, um dos administradores do Turf Club, um homem baixo e arrogante de quarenta e muitos anos, que ostentava sua baixa estatura como um desafio constante.

— Alô, vocês dois! Bem, quem vai ganhar o quinto? Gornt parecia um gigante ao lado dele.

— Digo a você depois do páreo.

— Ora, qual é, Quillan? Você sabe que o resultado já estará definindo antes de os cavalos desfilarem.

— Se puder provar isso, estou certo de que todos gostaremos de saber. Eu pelo menos gostaria. E você, Donald?

— Tenho certeza de que Richard estava só brincando — replicou Donald McBride. Estava na casa dos sessenta, tinha feições eurasianas agradáveis, e o calor do seu sorriso era penetrante. Acrescentou para Biltzmann: — Sempre existem esses boatos sobre corridas com cartas marcadas, mas fazemos o que podemos, e quando pegamos alguém... cortamos-lhe a cabeça! Pelo menos, expulsamo-lo das pistas.

— Que diabo, as corridas também são "arranjadas" nos Estados Unidos, mas acho que aqui, onde têm o status amador, fica tudo mais fácil — falou Biltzmann, despreocupadamente. — Aquele seu garanhão, Quillan. É australiano, pedigree parcial, não é?

— É — retrucou Gornt abruptamente, detestando a familiaridade dele.

— Don estava me explicando algumas das regras das suas corridas. Gostaria muito de fazer parte da sua irmandade de corridas... espero poder ser sócio votante, também.

O Turf Club era muito exclusivo e fortemente controlado. Havia duzentos sócios votantes e quatro mil não-votantes. Apenas os sócios votantes podiam entrar no camarote dos sócios. Apenas os sócios votantes podiam possuir cavalos. Apenas os sócios votantes podiam propor duas pessoas por ano como sócios não-votantes. E a decisão dos administradores, fosse ela pela aprovação ou não, era definitiva, e a votação, secreta. E apenas sócios votantes podiam ser administradores.

— É — repetiu Biltzmann —, seria legal.

— Tenho certeza de que se pode dar um jeito nisso falou McBride, com um sorriso. — O clube está sempre procurando sangue novo... e cavalos novos.

— Pretende ficar em Hong Kong, Sr. Biltzmann? — perguntou Gornt.

— Chame-me de Chuck. Vou ficar aqui o tempo que for preciso — replicou o americano. — Suponho que sou o novo tai-pan da Superfoods da Ásia. Legal, não é?

— Maravilhoso! — disse Barre, ironicamente.

Biltzmann continuou alegremente, ainda não habituado ao sarcasmo inglês:

— Sou o bode expiatório da nossa diretoria em Nova York. Como disse o homem de Missouri, a transferência das responsabilidades acaba aqui. — Sorriu, mas ninguém sorriu com ele. — Vou passar pelo menos dois anos aqui, e estou ansiando por cada minuto. Estamos nos preparando para nos instalar imediatamente. Minha noiva chega amanhã e...

— É recém-casado, Sr. Biltzmann?

— Oh, não, isso é só uma expressão americana. Estamos casados há dois anos. Logo que nossa nova casa estiver arrumada a seu gosto, teríamos prazer em recebê-los para jantar. Quem sabe um churrasco? Já temos tudo bem organizado, as melhores carnes virão dos Estados Unidos de avião, uma vez por mês. E batatas de Idaho — acrescentou, com orgulho.

— Parabéns pelas batatas — disse Gornt, e os outros se acomodaram, esperando, sabendo que ele desprezava a cozinha americana, especialmente churrascos, hambúrgueres e "batatas assadas amanteigadas", como se referia a elas. — Quando a fusão será assinada?

— No fim do mês. Nossa proposta foi aceita. Tudo já está acertado. Espero realmente que nosso know-how americano se adapte a esta ilhazinha formidável.

— Suponho que vão construir uma mansão...

— Não, senhor. Dickie — continuou Blitzmann, e todos se crisparam — arranjou para nós a cobertura do apartamento da companhia na Blore Street. Portanto, estamos numa boa.

— É conveniente — comentou Gornt. Os outros sufocaram o riso. A mais antiga e mais famosa das casas de tolerância da colônia sempre fora na Blore Street, no número 1. O negócio do número 1 da Blore Street fora iniciado por uma das "garotas" da sra. Fotheringill, Nellie Blore, nos anos 1860, com dinheiro dado por Culum Struan, ao que constava, e ainda operava segundo os regulamentos originais: senhoras européias e australianas somente, e não se permitia a entrada de nativos ou cavalheiros estrangeiros. — Muito conveniente — repetiu Gornt —, mas não sei se você se enquadraria.

— Senhor?

— Nada, estou certo de que a Blore Street está bem de acordo.

— Uma linda vista, mas os encanamentos não prestam — disse Biltzmann. — Minha noiva dará um jeito nisso.

— Ela também é encanadora? — perguntou Gornt. O americano achou graça.

— Claro que não. Mas é muito jeitosa com as coisas da casa.

— Se me dá licença, tenho que ir ver meu treinador. — Gornt cumprimentou os outros com um gesto de cabeça e afastou-se, dizendo: — Donald, tem um momentinho? É sobre o sábado.

— Claro, até já, Sr. Bützmann.

— Pois não. Mas chame-me de Chuck. Tenha um bom dia. McBride emparelhou com Gornt. Quando estavam a sós,

Gornt falou:

— Não está falando a sério quando sugere que ele seja sócio votante, não é?

— Bem, estou sim. — McBride parecia constrangido. — É a primeira vez que uma grande companhia americana faz uma oferta para vir para Hong Kong. Ele seria muito importante para nós.

— Isso não é motivo para metê-lo aqui, é? Façam dele um sócio não-votante. Assim, poderá ir para as tribunas. E se você quiser convidá-lo para o seu camarote, problema seu. Mas um sócio votante? Santo Deus! Provavelmente escolherá "Superfoods" para as suas cores!

— Ele é novo, está desambientado, Quillan. Estou certo de que vai aprender. É um sujeito decente, embora cometa lá suas gafes. É muito rico e...

— E desde quando o dinheiro funcionou como "abre-te Sésamo" para o Turf Club? Santo Deus, Donald, se fosse assim, cada chinês novo-rico que tivesse ganho uma fortuna jogando no mercado imobiliário ou na Bolsa iria cair em cima de nós. Não íamos ter espaço nem para peidar.

— Não concordo. Quem sabe a solução seja aumentar o número de sócios votantes.

— Não, de modo algum. É claro que vocês, administradores, farão o que quiserem. Mas sugiro que reconsiderem.

Gornt era sócio votante, mas não administrador. Os duzentos sócios votantes elegiam anualmente os doze administradores e organizadores por voto secreto. A cada ano o nome de Gornt era colocado na lista aberta de candidatos a administrador, e a cada ano não conseguia obter os votos suficientes. A maioria dos administradores era reeleita pelos sócios automaticamente até se aposentarem, embora de quando em vez houvesse campanha eleitoral.

— Pois bem — falou McBride —, quando o nome dele for proposto, mencionarei que você se opõe.

Gornt deu um débil sorriso.

— Isso eqüivalerá a elegê-lo.

McBride deu uma risadinha.

— Acho que não, Quillan, não desta vez. Pug me pediu que o apresentasse às pessoas, e tenho que admitir que ele só dá mancada. Apresentei-o a Paul Havergill, e Biltzmann começou imediatamente a comparar os métodos bancários daqui com os dos Estados Unidos, e de um modo nada agradável. E com o tai-pan... — As sobrancelhas grisalhas de McBride ergueram-se bem alto — falou que tinha muito prazer em conhecê-lo, já que queria saber sobre a Bruxa Struan e Dirk Struan e todos os outros piratas e contrabandistas de ópio do seu passado! — Soltou um suspiro. — Ian e Paul na certa lhe darão bola preta. Portanto creio que você não precisa se preocupar. Não consigo entender por que Pug se associou a eles, afinal de contas.

— Porque não é o pai. Desde que o velho Sir Thomas morreu que a General Stores vem caindo. Apesar disso, Pug ganha seis milhões de dólares americanos pessoalmente, e tem um contrato inviolável de cinco anos; assim, tem todos os prazeres, nenhuma dor de cabeça, e a família está protegida. Quer se aposentar, ir para a Inglaterra, Ascot e tudo o mais.

— Ah, é um belo negócio para o velho Pug! — McBride ficou mais sério. — Quillan, o quinto páreo... o interesse é enorme. Estou preocupado de que haja interferência. Vamos aumentar a vigilância sobre os cavalos. Fala-se em...

— Em doping?

— É.

— Sempre há quem fale, e sempre haverá quem tente. Acho que os administradores fazem um belo trabalho.

— Os administradores concordaram, ontem à noite, em criar uma nova regra: no futuro haverá uma análise química obrigatória antes e depois de cada corrida, como fazem nos principais hipódromos da Inglaterra ou dos Estados Unidos.

— A tempo para o sábado? Como vão arranjar isso?

— O dr. Meng, patologista da polícia, concordou em ser responsável... até podermos obter um perito.

— Boa idéia — falou Gornt. McBride soltou um suspiro.

— É, mas o Poderoso Dragão não pode competir com a Serpente Local.

Virou-se e foi embora.

Gornt hesitou, depois foi até junto do seu treinador, que estava ao lado de Pilot Fish, conversando com o jóquei, outro australiano, Bluey White. Bluey White era ostensivamente o gerente de uma das divisões de navegação de Gornt... título que servia para manter sua condição de amador.

— Bom dia, Sr. Gornt — disseram. O jóquei tocou a ponta do topete.

— Bom dia. — Gornt olhou para eles por um momento, depois disse, serenamente: — Bluey, se você ganhar, terá uma bonificação de cinco mil. Se terminar atrás de Noble Star, está despedido.

O homenzinho rijo empalideceu.

— Sim, patrão.

— É melhor ir se trocar, agora — falou Gornt, para que se afastasse.

— Vou ganhar — dizia Bluey "White, enquanto ia embora.

O treinador falou, constrangido:

— Pilot Fish está em muito boa forma, Sr. Gornt. Vai tenta...

— Se Noble Star ganhar, você está despedido. Se Noble Star terminar na frente de Pilot Fish, você está despedido.

— Puxa vida, Sr. Gornt! — O homem enxugou o repentino suor que lhe cobrira a boca. — Não sou eu quem "arruma" quem vai...

— Não estou lhe sugerindo que faça nada. Só estou lhe dizendo o que vai acontecer com você.

Gornt fez um aceno afável de cabeça, e se afastou. Foi para o restaurante do clube, que dava para a pista, e pediu o seu desjejum predileto, ovos Benedict com o molho especial que guardavam para o seu uso exclusivo, e o café javanês que ele também fornecia.

Quando estava tomando a terceira xícara de café, o garçom se aproximou.

— Com licença, senhor, chamam-no ao telefone. Foi até o telefone.

— Gornt.

— Alô, Sr. Gornt, aqui é Paul Choy... o sobrinho do Sr. Wu... espero não estar incomodando.

Gornt disfarçou a surpresa.

— Está telefonando um tanto cedo, Sr. Choy.

— Sim, senhor, mas quis chegar cedo no primeiro dia — falou o rapaz, aos borbotões —, portanto eu era o único que estava aqui, há uns dois minutos, quando o telefone tocou. Era o Sr. Bartlett, Linc Bartlett, sabe, o tal das armas contrabandeadas, o milionário.

Gornt ficou espantado.

— Bartlett?

— É, sim, senhor. Disse que queria falar com o senhor, insinuou que era um tanto urgente, disse que já ligara para a sua casa. Juntei dois e dois e cheguei à conclusão de que o senhor deveria estar assistindo aos exercícios, e que era melhor eu me mexer. Espero não estar incomodando.

— Não. O que foi que ele disse? — indagou Gornt.

— Só que lhe queria falar. Perguntou se o senhor estava na cidade. Falei que não sabia, mas que ia me informar, deixar recado e depois ligar para ele.

— De onde ele estava falando?

— Do Victoria. Kowloon 662233, ramal 773... é o ramal do seu escritório, não da suíte.

Gornt ficou muito impressionado.

— Em boca fechada não entra mosca, Sr. Choy.

— Deus, Sr. Gornt, isso é uma coisa com que nunca precisa se preocupar — disse Paul Choy, fervorosamente. — Meu velho Tio Wu enfiou isso a muque na cabeça da gente.

— Ótimo. Obrigado, Sr. Choy. Até breve.

— Sim, senhor.

Gornt desligou, pensou um momento, depois ligou para o hotel.

— 773, por favor.

— Linc Bartlett.

— Bom dia, Sr. Bartlett, aqui é o Sr. Gornt. Estou às ordens.

— Ei, obrigado por responder ao meu telefonema. Soube de notícias perturbadoras que se encaixam naquilo que estivemos discutindo.

— É?

— É. As Indústrias de Navegação Toda significam alguma coisa para o senhor?

O interesse de Gornt cresceu vertiginosamente.

— A Toda é um imenso conglomerado japonês, estaleiros, siderúrgicas, engenharia pesada. A Struan tem um negócio de dois navios com eles, grandes cargueiros, se não me engano. Por quê?

— Parece que a Toda tem algumas promissórias da Struan, seis milhões de dólares em três prestações, que vencem nos dias 1.°, 11 e 15 do mês que vem, e mais outros seis em noventa dias. Há também outros seis milhões e oitocentos mil que vencem no dia 8, para o Orlin International Bank... conhece-os?

Com um grande esforço, Gornt manteve o tom de voz natural.

— É, ouvi falar neles — disse, abismado de que o americano soubesse tais detalhes das dívidas. — E daí? — perguntou.

— Daí soube que a Struan tem apenas um milhão e trezentos mil em dinheiro, sem reserva alguma, e sem fluxo de caixa suficiente para efetuar o pagamento. Não estão esperando um volume de renda significativo até obterem dezessete milhões, como sua parte em um dos negócios imobiliários da Investimentos Kowloon, e isso só em novembro, e já ultrapassaram vinte por cento dos seus limites no Victoria Bank.

— Isso... isso é estar muito por dentro — falou Gornt, com voz ofegante, o coração disparando no peito, sentindo o colarinho apertado. Sabia sobre a conta bancária a descoberto em vinte por cento. Plumm lhe contara, todos os diretores deviam saber. Mas não os detalhes da disponibilidade em dinheiro deles, nem do seu fluxo de caixa. — Por que está me contando isso, Sr. Bartlett?

— Qual é a sua liquidez?

— Já lhe disse, sou vinte vezes mais forte do que a Struan — falou automaticamente, a mentira saindo com facilidade, remoendo a oportunidade maravilhosa que toda essa informação lhe abria. — Por quê?

— Se eu for em frente no negócio com a Struan, ele estará usando o meu pagamento à vista para se livrar dos apertos com a Toda e o Orlin... se o seu banco não lhe aumentar o crédito.

— O Vic o apoiará?

— Sempre o fez. Por quê?

— Se não o fizer, ele estará com a corda no pescoço.

— A Struan é uma acionista substancial. O banco é obrigado a apoiá-la.

— Mas ele já sacou a descoberto no banco, e Havergill o odeia. Juntando as ações de Chen, da Struan e dos seus representantes, detêm vinte e um por cento...

Gornt quase deixou cair o aparelho.

— Que diabo, onde arranjou essa informação? Ninguém de fora poderia saber disso!

— É isso aí — ouviu o americano responder calmamente —, mas é verdade. Você poderia reunir os outros setenta e nove por cento?

— O quê?

— Se eu tivesse um sócio que pudesse colocar o banco contra ele, só desta vez, e ele não conseguisse obter crédito noutro lugar... abrindo o jogo: é uma questão de oportunidade. Dunross passou exageradamente dos limites, o que significa que está vulnerável. Se seu banco não lhe der crédito, terá que vender alguma coisa... ou obter uma nova linha de crédito. Em qualquer dos casos, está completamente vulnerável a um ataque e no ponto para uma compra de controle a preço de liquidação.

Gornt enxugou a testa, a cabeça rodando.

— Que diabo, onde arranjou todas essas informações?

— Depois, não agora.

— Quando?

— Quando chegarmos aos detalhes finais.

— Tem... tem mesmo certeza de que seus dados estão corretos?

— Tenho. Temos as folhas do balanço geral deles dos últimos sete anos.

A contragosto, Gornt soltou uma exclamação abafada.

— É impossível!

— Quer apostar?

Gornt agora estava abaladíssimo, e tentou pôr a mente para funcionar. "Seja cuidadoso", avisou a si mesmo. "Pelo amor de Deus, controle-se."

— Se... se tem tudo isso, se sabe isso, e se obtiver uma última coisa... a estrutura corporativa encadeada deles, se você soubesse isso, poderíamos fazer qualquer coisa que quiséssemos com a Struan.

— Também temos isso. Quer entrar no jogo?

Gornt ouviu-se respondendo calmamente, embora não se sentisse nada calmo.

— Mas claro! Quando poderíamos nos encontrar? Na hora do almoço?

— Que tal agora? Mas não aqui, nem no seu escritório. Temos que manter muita discrição.

O coração de Gornt doía dentro do peito. Sentia um gosto de estragado na boca, e perguntava-se até onde poderia realmente confiar em Bartlett.

— Posso... posso mandar um carro apanhá-lo. Poderíamos conversar no carro.

— Boa idéia, mas por que não o encontro no lado de Hong Kong? No Terminal da Balsa Dourada, dentro de uma hora.

— Excelente. Meu carro é um Jaguar... placa 8888. Estarei junto ao ponto de táxis.

Desligou e ficou olhando para o telefone por um momento, depois voltou para a mesa.

— Não foram más notícias, espero, Sr. Gornt.

— Ah, não, não mesmo. Obrigado.

— Mais um pouco do seu café especial? Foi feito agora.

— Não, não, obrigado. Quero uma meia garrafa de Taittinger Blanc de Blancs. De 55.

Recostou-se na cadeira, sentindo-se estranhíssimo. Seu inimigo estava quase nas suas mãos... se os fatos do americano fossem verídicos, e se o americano fosse de confiança, e não estivesse metido em alguma trama diabólica com Dunross.

O vinho chegou, mas ele mal o provou. Todo o seu ser estava concentrado, peneirando as coisas, preparando-se.

Gornt viu o americano alto cruzar a multidão, e por um momento invejou-lhe o corpo esbelto, em forma, e o modo esportivo e informal como se vestia (jeans, camisa desabotoada, paletó esporte) e sua evidente confiança. Viu a máquina fotográfica complicada, deu um sorriso sardônico, depois procurou Casey. Quando ficou evidente que Bartlett estava sozinho, ficou desapontado. Mas esse desapontamento não maculou a gloriosa expectativa que tomara conta dele desde que desligara o telefone.

Gornt debruçou-se e abriu a porta lateral.

— Bem-vindo ao lado de Hong Kong, Sr. Bartlett — disse com jovialidade forçada, dando partida no carro. Seguiu pela Gloucester Road, na direção do Glessing's Point e do Yacht Club. — As suas informações confidenciais são espantosas.

— Não se pode trabalhar sem espiões, não é mesmo?

— Pode-se, mas é trabalho de amador. Como vai a srta. Casey? Pensei que viria com você.

— Não está por dentro disso. Ainda não.

— É?

— É. Não, não está por dentro do ataque inicial. É mais valiosa se não souber de nada.

— Ela não está sabendo de nada disso? Nem do seu telefonema para mim?

— Não. De nada.

Depois de uma pausa, falou:

— Pensei que ela fosse a sua vice-presidente-executiva!... seu braço direito, foi como a chamou.

— E é, mas eu sou o patrão da Par-Con, Sr. Gornt. Gornt viu os olhos serenos, e, pela primeira vez, sentiu que isso era verdade, e que sua suposição inicial estava errada.

— Nunca duvidei disso — falou, esperando, os sentidos aguçados, de sobreaviso.

Então, Bartlett falou:

— Há algum lugar em que possamos estacionar... tenho algo para lhe mostrar.

— Por certo.

Gornt guiava pela Gloucester Road, à beira-mar, no tráfego cerrado de costume. Num momento encontrou um local para estacionar, perto do abrigo contra tufões da baía Cause-way, com suas ilhas flutuantes e amontoadas de barcos de todos os tamanhos.

— Tome.

Bartlett entregou-lhe uma pasta de documentos. Continha uma cópia detalhada do balanço geral do ano anterior àquele em que a companhia se tornara de capital aberto. Os olhos de Gornt percorreram rapidamente os números.

— Santo Deus! — murmurou. — Com que então o Lasting Cloud custou-lhes doze milhões!

— Quase os levou à falência. Parece que tinham todo tipo de carga maluca a bordo. Motores a jato para a China, que não estavam no seguro.

— Claro que não estariam no seguro... que diabo, como se pode pôr contrabando no seguro? — Gornt estava tentando entender todos aqueles números complicados. Estava atordoado. — Se eu tivesse sabido de metade disso, tê-los-ia apanhado da última vez. Posso ficar com ela?

— Quando tivermos fechado negócio, eu lhe darei uma cópia. — Bartlett pegou a pasta de volta, e entregou-lhe um papel. — Que tal este aqui?

Ele mostrava, graficamente, os investimentos em ações da Struan na Investimentos Kowloon, e detalhava como, através de representantes, o tai-pan da Struan exercia controle completo sobre a imensa companhia de seguros, propriedades e desembarcadouros que era, supostamente, uma companhia completamente independente e citada como tal na Bolsa.

— Maravilhoso — disse Gornt, com um suspiro, assombrado com a beleza da coisa. — A Struan possui abertamente apenas uma pequenina parcela das ações, mas retém cem por cento do controle, e sigilo perpétuo.

— Nos Estados Unidos, quem bolasse uma coisa dessas estaria na cadeia.

— Graças a Deus as leis de Hong Kong não são as mesmas, e tudo isso é perfeitamente legal, embora um tanto tortuoso.

Os dois homens riram. Bartlett embolsou o papel.

— Tenho detalhes semelhantes do resto dos bens deles.

— Falando francamente, o que tem em mente, Sr. Bartlett?

— Um ataque conjunto à Struan, a partir de hoje. Uma

Blitzkrieg. Racharemos meio a meio todo o espólio. Você fica com a Casa Grande no Pico, o prestígio, o iate... e cem por cento do camarote do Turf Club, inclusive o posto de administrador.

Gornt olhou para ele, vivamente. Bartlett sorriu.

— Sabemos como isso é importante para você. Mas todo o resto será rachado ao meio.

— Exceto as operações deles em Kai Tak. Preciso delas para a minha companhia de aviação.

— Está certo. Mas então eu quero a Investimentos Kowloon.

— Não — disse Gornt, pondo-se imediatamente em guarda. — Temos que rachar isso meio a meio, e tudo meio a meio.

— Não. Você precisa de Kai Tak, eu preciso da Investimentos Kowloon. Será um grande núcleo para o salto da Par-Con na Ásia.

— Por quê?

— Porque todas as grandes fortunas em Hong Kong têm por base os bens imóveis. A IK me dará uma base perfeita.

— Para novas incursões?

— Claro — respondeu Bartlett, calmamente. — Seu amigo Jason Plumm é o seguinte da lista. Podíamos engolir facilmente as suas Propriedades Asiáticas. Meio a meio. Certo?

Gornt ficou calado por um longo tempo.

— E depois dele?

— As Fazendas Hong Kong e Lan Tao.

O coração de Gornt deu novo salto. Sempre odiara Dun-stan Barre, e esse ódio fora triplicado no ano passado, quando Barre fora feito cavaleiro na Lista de Honra do Aniversário da Rainha — uma honraria conseguida, Gornt tinha certeza, com contribuições criteriosas para o fundo do Partido Conservador.

— E como você o engoliria?

— Há sempre uma hora em que qualquer exército, qualquer país, qualquer companhia fica vulnerável. Todo general ou presidente de companhia tem que se arriscar, numa hora qualquer, para continuar na frente. É preciso, para continuar na frente. Há sempre algum inimigo mordendo-lhe os calcanhares, desejando o que é seu, querendo o seu lugar ao sol, querendo o seu território. É preciso ter cuidado, quando se está vulnerável.

— Você está vulnerável agora?

— Não. Estive, faz dois anos, mas não agora. Agora tenho a força de que preciso... de que precisamos. Se você topar.

Um bando de aves marinhas mergulhava, ondulava e crocitava, acima deles.

— O que quer que eu faça?

— Você é o batedor, o ponta de lança. Eu defendo a retaguarda. Depois que você tiver aberto um buraco nas defesas dele, eu entro com o golpe do nocaute. Vendemos as ações da Struan a descoberto... imagino que tenha assumido uma posição quanto ao Ho-Pak.

— Vendi a descoberto, sim. Modestamente. Gornt contou tranqüilamente a mentira.

— Ótimo. Nos Estados Unidos, a gente poderia fazer com que os contadores deles "vazassem" os dados do fluxo de caixa para o falastrão certo. Logo a cidade inteira saberia. A mesma coisa não funcionaria aqui?

— Provavelmente. Mas você jamais conseguiria que os contadores deles fizessem isso.

— Nem pela quantia certa?

— Não. Mas pode-se dar início aos boatos. — Gornt deu um sorriso sombrio. — É muito ruim da parte de Dunross ocultar sua posição inepta dos seus acionistas. É. Isso seria possível. E depois?

— Você vende ações da Struan a descoberto, logo que a Bolsa abrir. Em grande quantidade.

Gornt acendeu um cigarro.

— Eu vendo a descoberto. E você, o que faz?

— Nada, abertamente. Esse será o nosso ás na manga.

— Talvez seja realmente, e eu esteja bancando o otário — falou Gornt.

— E se eu cobrir todos os prejuízos? Seria prova suficiente de que estou com você?

— Como?

— Eu pago todos os prejuízos e fico com a metade do lucro de hoje, amanhã e sexta-feira. Se ele não estiver desesperado até sexta-feira à tarde, você volta a comprar, pouco antes da hora de fechar, e nós falhamos. Se estiver parecendo que o pegamos, vendemos até o limite, pouco antes da hora de fechar. Isso o fará passar um mau pedaço no fim de semana. Na segunda, puxo o tapete de sob os pés dele, e começa a nossa Blitzkrieg. É infalível.

— É. Se você for digno de confiança.

— Depositarei dois milhões de dólares em qualquer banco suíço que você indique, até as dez horas de hoje. São dez milhões de HK, que dão de sobra para cobrir suas perdas nas vendas a descoberto. Dois milhões, limpinhos, sem documento, sem nota promissória, só sua palavra, que são para cobrir quaisquer prejuízos, e que, se ganharmos, rachamos os lucros, e o resto do negócio, como combinado... meio a meio, exceto a Investimentos Kowloon para mim, a Struan do aeroporto Kai Tak para você, e para Casey e eu, títulos de sócios votantes no Turf Club. Poremos tudo no papel na terça-feira... depois que ele tiver desabado.

— Você depositará dois milhões de dólares americanos, e a decisão é minha de quando comprar para cobrir quaisquer prejuízos?

Gornt estava incrédulo.

— É. Dois milhões é o quanto vou arriscar. Assim, como pode você sair machucado? Não pode. E como ele sabe o que você sente a seu respeito, não ficará desconfiado se você comandar o ataque, não estará preparado para uma blitz lateral da minha parte.

— Isso tudo depende de seus números estarem corretos, tanto as quantias quanto as datas.

— Verifique-as você mesmo. Tem que haver um jeito de você fazer isso... ao menos para se convencer.

— Por que a súbita mudança, Sr. Bartlett? Disse que esperaria até terça-feira... talvez mais tarde.

— Andamos fazendo umas verificações, e não gostei dos números que apareceram. Não devemos nada a Dunross. Seríamos malucos de nos unirmos a ele, quando está tão fraco. Na verdade, o que estou lhe oferecendo é uma grande jogada, grandes vantagens: a Casa Nobre contra uns míseros dois milhões. Se ganharmos, eles serão transformados em centenas de milhões.

— E se falharmos? Bartlett deu de ombros.

— Talvez eu volte para casa. Talvez possamos combinar um negócio entre a Rothwell-Gornt e a Par-Con. Às vezes a gente ganha, e perde um número de vezes bem maior. Mas esta incursão é boa demais para não ser tentada. Sem vocês, jamais funcionaria. Já vi o bastante de Hong Kong para saber que tem as suas regras especiais. Não tenho tempo para aprendê-las. Por que o faria... quando tenho você?

— Ou Dunross?

Bartlett achou graça, e Gornt não viu maldade nele.

— Você não está em dificuldades, não está vulnerável, ele está... azar dele. O que diz? A incursão está valendo?

— Diria que você é muito persuasivo. Quem lhe deu a informação... e o documento?

— Na terça-feira eu digo. Quando a Struan estiver no chão.

— Ah, tem que fazer algum pagamento para o Sr. X?

— Tem-se sempre que fazer algum pagamento. Sairá do topo, mas não será mais do que cinco por cento... se houver algo mais a ser pago, sairá da minha parte.

— Sexta-feira às duas, Sr. Bartlett? É quando eu decido recomprar e você talvez perca os seus dois milhões... ou conferenciamos e continuamos o ataque?

— Sexta às duas.

— Se continuarmos durante o fim de semana, você cobrirá qualquer risco posterior com fundos posteriores?

— Não. Não precisará de mais. Dois milhões é o máximo. Até sexta à tarde, ou as ações dele estarão lá embaixo e ele estará correndo, desesperado, ou não. Esta não é uma incursão a longo prazo, bem organizada. É uma tentativa única, de uma só vez, de burlar um oponente. — Bartlett abriu um sorriso feliz. — Arrisco dois míseros milhões num jogo que fará parte dos livros de história. Em menos de uma semana, derrubamos a Casa Nobre da Ásia!

Gornt balançou a cabeça, dividido. "Até onde posso confiar em você, Sr. Maldito Incursor, você, com a chave para o Demônio Dunross?" Olhou pela janela e viu uma criança dirigindo um barco a remo por entre os juncos, o mar tão seguro e familiar para ela quanto a terra seca.

— Vou pensar no que disse.

— Quanto tempo?

— Até as onze.

— Desculpe, esta é uma incursão, não um negócio comercial. É agora, ou nunca!

— Por quê?

— Há muita coisa a ser feita, Sr. Gornt. Quero que isso fique acertado agora, ou nunca.

Gornt olhou para o relógio. Havia tempo de sobra. Um telefonema para o jornal chinês certo, e o que quer que lhes contasse estaria nas bancas dentro de uma hora. Sorriu sombriamente consigo mesmo. O seu ás na manga era Havergill. Tudo se encaixava perfeitamente.

Uma ave marinha crocitou e voou para o interior, na direção do Pico, acompanhando alguma onda de calor. Ele a acompanhou com os olhos. Então, deparou com a Casa Grande no topo, branca, contrastando com o verde das encostas.

— Negócio fechado — falou, estendendo a mão. Bartlett apertou-a.

— Ótimo. Isso fica estritamente entre nós?

— Fica.

— Onde quer que deposite os dois milhões?

— No Banco da Suíça e Zurique, em Zurique, conta número 181819. — Gornt tateou no bolso, notando que seus dedos tremiam. — Vou anotar para você.

— Não precisa. A conta está em seu nome?

— Santo Deus, não! Canberra Limitada.

— Canberra Limitada está dois milhões mais rica! E dentro de três dias, com sorte, você será o tai-pan da Casa Nobre! Que tal? — Bartlett abriu a porta e saiu. — Até logo.

— Espere — falou Gornt, espantado. — Deixo você em...

— Não, obrigado. Preciso achar um telefone. Depois, às nove e quinze, tenho uma entrevista com sua amiga Orlanda, srta. Ramos... achei que não faria mal. Depois, quem sabe tire algumas fotos.

Acenou alegremente e se afastou.

Gornt enxugou o suor das mãos. Antes de sair do clube, ligara para Orlanda, mandando que ligasse para Bartlett e marcasse um encontro. "Isso é muito bom", pensou, ainda em choque. "Ficará de olho nele depois que se tornarem amantes, e se tornarão, com ou sem Casey. Orlanda tem muito a ganhar."

Ficou observando Bartlett, invejando-o. Num instante o americano sumira por entre as multidões de Wanchai.

Repentinamente, sentiu-se muito cansado. "É tudo certi-nho demais, arrumadinho demais, fácil demais", disse consigo mesmo. "E no entanto... no entanto!" Com mãos trêmulas, acendeu um cigarro. "Onde foi que Bartlett arranjou aqueles documentos? "

Inexoravelmente, seus olhos se voltaram para a Casa Grande do Pico. Sentia-se possuído por ela, e por um ódio tão imenso, que o fez pensar nos seus ancestrais, em Sir Morgan Brock, a quem os Struans levaram à falência, em Gorth Brock, assassinado por Dirk Struan, em Tyler Brock, cuja filha o traíra. Sem querer, renovou o juramento de vingança que fizera ao pai, que o pai fizera ao pai dele... assim sucessivamente, até Sir Morgan Brock, que, sem um tostão, destruído pela irmã, a Bruxa Struan, paralisado, uma sombra de homem, implorara por vingança, em nome de todos os fantasmas Brock, vingança da Casa Nobre e de todos os descendentes do homem mais malvado que jamais existira.

"Oh, deuses, dêem-me força", orava Quillan Gornt. "Que o americano esteja dizendo a verdade. Terei a minha vingança."

 

                       10h50m

Por entre um céu ligeiramente nublado, os raios de sol caíam sobre Aberdeen. O ar estava pesado, a temperatura era de trinta e três graus, com noventa por cento de umidade. A maré estava baixa. O cheiro de algas marinhas, peixes podres e baixios de lama aumentava o peso opressivo do dia.

Havia quinhentas ou mais pessoas carrancudas e impacientes, empurrando-se umas às outras, tentando furar o bloqueio das barreiras à frente, erigida pela polícia diante da agência do Ho-Pak. As barreiras permitiam o acesso de uma só pessoa de cada vez. Homens e mulheres de todas as idades, alguns com crianças de colo, atropelavam-se constantemente, ninguém esperando a sua vez, todos tentando mover-se para a frente, para o começo da fila.

— Olhe só para esses cretinos — dizia o inspetor-chefe Donald C. C. Smyth. — Se ficassem na fila, e não se amontoassem tanto, todos passariam mais depressa, poderíamos deixar um policial aqui para manter a ordem, e o resto de nós poderia ir almoçar, ao invés de mandar chamar o pelotão anti-motim. Faça-o!

— Sim, senhor — falou o sargento comissionado Mok, educadamente.

"Ayeeyah", pensava enquanto se dirigia para o carro-patrulha, "o pobre idiota ainda não entende que nós, chineses, não somos demônios estrangeiros burros — ou demônios do mar do Leste — para ficarmos em fila pacientemente, durante horas. Ah, não, nós, pessoas civilizadas, compreendemos a vida, e é cada um por si." Ligou o radiotransmissor da polícia.

— Sargento comissionado Mok! O inspetor-chefe quer um pelotão antimotim aqui, e rapidinho. Estacionem logo atrás do mercado de peixe, mas fiquem em contato.

— Sim, senhor.

Mok suspirou e acendeu um cigarro. Mais barreiras haviam sido levantadas do outro lado da rua, diante das agências de Aberdeen do Blacs e do Victoria, e mais outras diante do Ching Prosperity, dobrando a esquina. Seu uniforme caqui estava amassado, e havia grandes anéis de suor nas suas axilas. Estava muito preocupado. Aquela multidão era muito perigosa, e ele não queria uma repetição da véspera. Se o banco fechasse as portas antes das três, tinha certeza de que o povo destroçaria o local. Sabia que, se ainda tivesse dinheiro lá dentro, seria o primeiro a arrombar a porta para pegar o seu dinheiro. Ayeeyah, pensou, muito grato pela autoridade do Cobra, que fizera chegar às mãos deles todo o seu dinheiro, até o último tostão, pela manhã.

— Danem-se todos os bancos! — Mok resmungou, sem se dirigir a ninguém em especial. — Todos os deuses, que o Ho-Pak pague a todos os seus clientes hoje! Que falhe amanhã! Amanhã é meu dia de folga, portanto que falhe amanhã!

Apagou o cigarro.

— Sargento!

— Sim?

— Olhe ali! — exclamou, ansioso, o jovem detetive à paisana que se aproximava do sargento comissionado Mok apressadamente. Usava óculos e tinha vinte e poucos anos. — Junto do Victoria. A velha. A velha amah.

— Onde? Ah, sim, estou vendo.

Mok observou-a durante algum tempo, mas nada notou de anormal. Então, viu-a atravessar célere a multidão e sussurrar para um jovem valentão, vestindo jeans, que estava encostado a um gradil. Ela apontou para um velho que acabara de sair do banco. Imediatamente, o valentão saiu em seu encalço, e a velha amah foi abrindo caminho, espremendo-se e xingando, de volta ao começo da barreira, de onde podia ver quem entrava e quem saía.

— É a terceira vez, senhor — falou o jovem detetive. — A velha amah indica alguém que saiu do banco para o valentão, e lá vai ele. Dentro de alguns minutos, está de volta. É a terceira vez. Estou certo de que o vi passar algo para as mãos dela, uma das vezes. Acho que era dinheiro.

— Bom! Muito bom, Wu Óculos. Tem que ser um golpe das tríades. A bruxa velha provavelmente é mãe dele. Siga o jovem filho da mãe, e eu vou interceptá-lo pelo outro lado. Não o deixe vê-lo!

O sargento comissionado Mok dobrou a esquina, descendo um beco tumultuado, cheio de barracas, camelôs e lojas abertas, movendo-se cuidadosamente por entre a multidão. Virou noutro beco bem a tempo de ter uma rápida visão do velho entregando algum dinheiro. Esperou até que Wu tivesse bloqueado a outra extremidade do beco, depois adiantou-se, caminhando pesadamente.

— O que está se passando aqui?

— Como? O quê? Nada, nada mesmo — falou o velho nervosamente, o suor escorrendo-lhe pelo rosto. — O que é? Não fiz nada!

— Por que deu dinheiro para esse rapaz, heya? Eu o vi lhe dar dinheiro! — O jovem desordeiro devolveu o olhar de Mok com insolência, sem medo, sabendo que era Kin Bexiguento, um dos Lobisomens, que trazia Hong Kong inteira apavorada. — Ele o está abordando? Tentanto extorquir-lhe dinheiro? Parece um tríade!

— Oh! Eu... eu... eu lhe devia quinhentos dólares. Acabei de sacar do banco, e paguei. — O velho estava evidentemente apavorado, mas continuou: — Ele é meu primo.

Começou a juntar gente. Alguém escarrou e cuspiu.

— Por que está suando tanto?

— Todos os deuses fodam todos os porcos! Está quente! Todo mundo está suando. Todo mundo!

— Porra, é verdade — exclamou alguém.

Mok voltou a atenção para o jovem, que esperava com ar truculento.

— Como se chama?

— Sexto Filho Wong!

— Mentiroso! Esvazie os bolsos!

— Mas não fiz nada! Conheço a lei. Não pode revistar as pessoas sem um manda...

Mok estendeu o punho de aço e torceu o braço do jovem, e ele guinchou. A multidão achou graça. Ficaram calados quando Wu Óculos apareceu, surgido do nada, para revistá-lo. Mok segurava firme Kin Bexiguento. Outra onda de inquietação percorreu os espectadores, ao verem os maços de notas e as moedas.

— Onde arranjou tudo isso? — rosnou Mok.

— É meu. Sou... sou agiota, e estou recolhendo as por...

— Onde fica a sua loja?

— Na... no Terceiro Beco, transversal à Aberdeen Road.

— Vamos lá, vamos dar uma olhada.

Mok soltou o rapaz, que, destemidamente, ainda olhava para ele com raiva.

— Primeiro dê-me o meu dinheiro! — Virou-se para o povo, pedindo apoio. — Vocês o viram tirá-lo de mim! Sou um agiota honesto! Eles são criados dos demônios estrangeiros, e vocês todos os conhecem! A lei dos demônios estrangeiros proíbe que se revistem cidadãos honestos!

— Devolva-lhe a porra do dinheiro! — berrou alguém.

— Se é um agiota...

O pessoal começou a discutir entre si, e então Kin Bexiguento viu uma pequena abertura no meio do povo, e se jogou nela. A multidão se abriu para deixá-lo passar, e ele correu beco acima, sumindo no trânsito. Mas quando Wu Óculos saiu no seu encalço, ela voltou a se fechar e empurrou-o, ficando um pouco mais ameaçadora. Mok mandou que ele voltasse. Na confusão momentânea, o velho desaparecera. Cansado, Mok falou:

— Deixe o bosta sem mãe ir embora! Era só um tríade... outro bosta de tríade que se aproveita das pessoas que respeitam a lei.

— O que vai fazer com a porra do dinheiro dele? — gritou alguém, do fundo da multidão.

— Vou dá-lo a um asilo de velhas — gritou Mok com rudeza igual. — Vá defecar na orelha da sua avó!

Alguém riu, a multidão começou a se dispersar, e cada um foi cuidar da sua vida. Num instante, Mok e Wu Óculos estavam parecendo pedras num rio, com os transeuntes redemoinhando ao seu redor. Logo que voltaram à rua principal, Mok enxugou a testa.

— Dew neh loh moh!

— É. Por que são assim, sargento? — perguntou o jovem detetive. — Estamos apenas tentando ajudá-los. Por que o velho simplesmente não admitiu que o filho da mãe do tríade estava lhe extorquindo dinheiro?

— Não se aprende sobre turbas nos livros da escola — disse Mok, bondosamente, sabendo que o jovem estava ansioso por ter êxito. Wu Óculos era novo, um dos recém-formados pela universidade que entrara para a polícia. Não pertencia à unidade de Mok. — Seja paciente. Nenhum deles quis ter nada a ver conosco porque somos da polícia, e todos eles ainda acreditam que jamais os ajudaremos, apenas a nós mesmos. Tem sido a mesma coisa na China desde o primeiro policial.

— Mas estamos em Hong Kong — falou o jovem, com orgulho. — Somos diferentes. Somos policiais britânicos.

— É.

Mok sentiu uma friagem repentina. Não queria desiludir o rapaz. "Eu também era leal, leal à rainha e à bandeira quai loh. Aprendi outra coisa. Quando precisei de ajuda, proteção e segurança, não obtive nada. Nem uma só vez. Os britânicos eram ricos e poderosos, mas perderam a guerra para aqueles Demônios do Mar do Leste. A guerra os desmoralizou, os humilhou e pôs os grandes tai-pans na Prisão Stanley, como ladrões comuns... até mesmo os tai-pans da Casa Nobre e do Grande Banco, até mesmo Sua Excelência, o governador... trancafiou-os como criminosos comuns, em Stanley, com todas as suas mulheres e filhos, e tratou-os como se fossem pedaços de cocô!

"E após a guerra, embora houvessem humilhado os Demônios do Leste, nunca recuperaram o seu poder, ou o seu prestígio.

"Agora, em Hong Kong e em toda a Ásia, não é mais a mesma coisa, e nunca será como antes. Agora, a cada ano que passa, os britânicos ficam mais pobres e menos poderosos. E como poderão proteger a mim e a minha família dos malfeitores, se não forem ricos e poderosos? Pagam-me uma ninharia, e tratam-me como comida de cachorro! Agora, minha única proteção é o dinheiro, dinheiro em ouro para podermos fugir, se for o caso... ou dinheiro em terras e casas, se não for necessário fugir. Como posso educar meus filhos na Inglaterra ou nos Estados Unidos sem dinheiro? Será que o governo, agradecido, pagará? Nem uma merda duma moeda, e no entanto querem que arrisque a minha vida para manter as ruas livres dos merdas dos tríades, dos batedores de carteiras e montes de bosta leprosos e amotinados!"

Mok estremeceu. "A única segurança para a minha família está nas minhas mãos, como sempre. Oh, como são sábios os ensinamentos dos nossos ancestrais! O comissário de polícia foi leal comigo, quando precisei de dinheiro, mesmo para a passagem de terceira classe, para o meu filho ir estudar nos Estados Unidos? Não, mas o Cobra foi. Emprestou-me dez mil dólares, com juros de apenas dez por cento, e então meu filho viajou como um mandarim, de avião, pela Pan American, com dinheiro para pagar três anos de anuidade escolar, e agora é arquiteto formado com Cartão Verde, e no mês que vem terá um passaporte americano, e depois poderá voltar para cá, e ninguém poderá tocar nele. Poderá ajudar a proteger a minha geração e protegerá a sua própria, e a do seu filho, e a dos seus netos!

"É, o Cobra me deu dinheiro, pago há muito tempo com juros integrais, tirados do dinheiro que me ajudou a ganhar. Serei leal ao Cobra... até que mude de rumo. Um dia mudará, todos os quai loh mudam, todos os cobras mudam, mas agora sou um Grande Dragão, e nem os deuses nem os demônios, nem o Cobra em pessoa pode ferir minha família ou minhas contas bancárias na Suíça e no Canadá."

— Vamos indo, é melhor voltarmos, jovem Wu Óculos — disse, bondosamente. E quando chegou junto às barreiras, contou ao inspetor-chefe Smyth o que acontecera.

— Ponha o dinheiro na nossa caixinha, sargento — falou Smyth. — Encomende um grande banquete para os nossos rapazes, hoje.

— Sim, senhor.

— Foi o oficial detetive Wu? O tal que quer entrar para o sei?

— Sim, senhor. Óculos é muito dedicado. Smyth mandou chamar Wu e elogiou-o.

— Bem, e onde está a velha amah?

Wu a indicou. Viram-na olhar para a esquina que o valentão dobrara, esperando, impaciente. Depois de um minuto, ela saiu de dentro do aglomerado de gente e se afastou, resmungando obscenidades.

— Wu — ordenou Smyth —, siga-a. Não deixe que o veja. Ela o levará ao sacaninha que fugiu. Tome cuidado, e quando ela chegar lá, ligue para o sargento.

— Sim, senhor.

— Não corra nenhum risco... talvez possamos pegar o bando todo. Tem que haver um bando.

— Sim, senhor.

— Pode ir. — Eles o observaram sair atrás da velha. — Esse rapaz vai ser bom. Mas não para nós, hem, sargento?

— Não, senhor.

— Acho que vou recomendá-lo para o sei. Talvez... Subitamente fez-se um silêncio ominoso, depois ouviram-se gritos e um rugido irado. Os dois policiais dobraram correndo a esquina. Na sua ausência, a turba afastara parte das barricadas, dominando os quatro policiais, e agora estava invadindo o banco. O gerente Sung e seu assistente tentavam em vão fechar as portas, contra a turba vociferante. As barricadas começaram a ceder.

— Chame o pelotão antimotim!

Mok saiu correndo para o carro-patrulha. Destemidamente, Smyth correu para a frente da fila, com o seu megafone. O tumulto abafou sua ordem para pararem de brigar. Mais reforços vieram correndo do outro lado da rua. Rápida e eficientemente, acorreram em auxílio de Smyth, mas a turba ganhava forças. Sung e seus caixas bateram a porta, mas ela foi aberta de novo pela violência do povo. Então, surgiu um tijolo do meio da multidão, que quebrou uma das vidraças. Houve um rugido de aprovação. As pessoas da frente estavam tentando sair do caminho, e as de trás estavam tentando chegar à porta. Mais tijolos foram arremessados contra o prédio, depois pedaços de madeira tirados de um edifício em construção próximo. Outra pedra varou a vidraça, que se estilhaçou totalmente. Rugindo, a turba avançou. Uma moça caiu e foi pisoteada.

— Vamos — berrou Smyth —, ajudem-me aqui! Agarrou uma das barreiras e, junto com quatro outros policiais, usou-a como escudo, empurrando-a contra a frente da turba, forçando-a a recuar. Fazendo-se ouvir acima do vozerio, berrou para que eles usassem os ombros, e lutaram contra a multidão enlouquecida. Outros policiais seguiram-lhe o exemplo. Mais tijolos foram arremessados para dentro do banco, e então começou a gritaria:

— Matem os malditos ladrões do banco! Matem-nos! Roubaram o nosso dinheiro...

— Matem os sacanas...

— Quero o meu dinheiro...

— Matem os demônios estrangeiros...

Smyth viu que mudou o humor daqueles que estavam perto dele, e seu coração parou de bater quando eles repetiram o grito, se esqueceram do banco e estenderam as mãos na sua direção. Já tinha visto aquele olhar antes, e sabia que era um homem morto. A outra vez fora nos distúrbios de rua em 56, quando duzentos mil chineses subitamente promoveram desordens violentas e sem sentido em Kowloon. Teria sido morto por eles, se não tivesse nas mãos uma arma potente. Matara quatro homens, e abrira uma trilha para a segurança. Agora, não tinha armas e estava lutando pela vida. Arrancaram-lhe o chapéu. Alguém o agarrou pelo cinto e meteu-lhe um soco na virilha. Levou outro soco no rosto, garras buscavam-lhe os olhos. Destemidamente, Mok e outros meteram-se no meio da confusão para salvá-lo. Alguém atingiu Mok com um tijolo, outro com um pedaço de madeira, que abriu um corte feio no seu rosto. Smyth foi tragado, os braços e as mãos tentando desesperadamente proteger a cabeça. E então o camburão do pelotão antimotim, com as sirenes tocando, dobrou rapidamente a esquina. A equipe de dez homens caiu brutalmente sobre a multidão, e arrancou Smyth de lá. O sangue escorria de sua boca. Seu braço esquerdo pendia, inutilizado.

— Está bem, senhor?

— Estou, pelo amor de Deus, levantem de novo as malditas barreiras! Afastem aqueles filhos da mãe do banco... mangueiras!

Mas as mangueiras não foram necessárias. Ao primeiro ataque violento do pelotão antimotim, a frente da turba murchara, e agora o resto se afastava para uma distância segura e ficava ali parado, de cara fechada, alguns deles ainda gritando obscenidades. Smyth agarrou o megafone. Em cantonense, falou:

— Se alguém chegar a vinte metros daqui, será preso e deportado. — Tentou recobrar o fôlego. — Se alguém deseja visitar o Ho-Pak, entre na fila a cem metros de distância.

A turba carrancuda hesitou, depois, enquanto Mok e o pelotão antimotim se adiantaram velozmente, recuou às pressas e começou a se afastar, pisando uns nos outros.

— Acho que o maldito do meu ombro está deslocado — falou Smyth, e praguejou obscenamente.

— O que vamos fazer com esses filhos da mãe, senhor? — perguntou Mok, sentindo muita dor, respirando pesadamente, a face ferida e sangrando, o uniforme rasgado.

Smyth segurou o braço para suavizar a dor crescente, e olhou para o outro lado da rua, para a multidão carrancuda e embasbacada.

— Mantenha o pelotão antimotim aqui. Mande vir outro de Aberdeen Oeste, informe a central. Onde está o diabo do meu chapéu? Se botar as mãos no filh...

— Senhor! — chamou um dos seus homens. Estava ajoelhado junto à moça que fora pisoteada. Era uma garota de bar, ou de cabaré: tinha aquele ar triste, doce, ah, tão duro, jovem e velho ao mesmo tempo! O sangue escorria da sua boca, e ela respirava estertorosamente.

— Deus, chamem uma ambulância!

Enquanto Smyth olhava, impotente, a moça sufocou no próprio sangue, e morreu.

Christian Toxe, editor do Guardian, rabiscava algumas anotações, o telefone colado ao ouvido.

— Como era o nome dela, Dan? — perguntou, abafando o vozerio da redação.

— Não tenho certeza. Uma caderneta de poupança dizia Su Tzee-Ian — disse Dan Yap, o repórter do outro lado da linha, em Aberdeen. — Havia quatro mil trezentos e sessenta dólares nela... a outra estava no nome... Espere aí, a ambulância acaba de sair. Está ouvindo direito, Chris? O tráfego aqui está intenso.

— Estou. Continue. A segunda caderneta de poupança?

— A segunda caderneta estava no nome de Tak H'eung fah. Exatamente três mil, nessa.

Tak H'eung fah parecia evocar alguma lembrança.

— Algum desses nomes lhe diz alguma coisa? — perguntou Toxe. Era um homem alto e amarrotado, no seu minúsculo escritório desmazelado.

— Não. Exceto que um deles quer dizer Glicínia Su, e o outro Flor Fragrante Tak. Era bonita, Chris. Talvez fosse eurasiana...

Toxe sentiu uma repentina estocada de gelo no estômago, ao lembrar das suas três filhas, de seis, sete e oito anos, e da sua linda mulher chinesa. Tentou empurrar aquela cruz perpétua para o recesso da sua mente, a preocupação secreta quanto ao acerto de misturar o Leste e o Oeste. "O que o futuro lhes reserva, às minhas queridas, neste mundo podre, nojento, preconceituoso?"

Com esforço, voltou a concentrar-se.

— É um bocado de dinheiro para uma dançarina de cabaré, não acha?

— Acho. Eu diria que tinha um protetor. Uma coisa interessante: na sua bolsa havia um envelope amassado, datado de umas duas semanas atrás, contendo uma carta de amor melosa. Estava endereçado a... espere aí... a Tak H'eung fah, apartamento 14, Quinto Beco, Tsung-pan Street, em Aberdeen. Era sentimental, jurava amor eterno. Mas escrito por pessoa instruída.

— Em inglês? — perguntou Toxe, surpreso, anotando rapidamente.

— Não. Em caracteres. Havia algo na escrita... podia ser um quai loh.

— Arranjou uma cópia?

— A polícia não deix...

— Arranje uma fotocópia. Implore, peça emprestado ou roube uma fotocópia, a tempo de sair na edição da tarde. Gratificação de uma semana de salário, se conseguir.

— Em dinheiro, hoje à tarde?

— Está bem.

— Já a tem.

— Tem assinatura?

— "Seu único amor." "Amor" está escrito em inglês.

— Sr. Toxe! A senhora editora na linha 2! — avisou a secretária inglesa pela porta aberta. Sua mesa ficava logo do lado de fora da divisão de vidro.

— Ah, Deus, eu... ligo para ela depois. Diga-lhe que estou com uma história e tanto estourando. — Depois, falando de novo ao telefone: — Dan, fique com esta história... grude-se na polícia, vá com eles para o apartamento da moça morta, se é que é o apartamento dela. Descubra quem é o proprietário, quem é a família dela, onde mora. Depois ligue de novo para mim! — Toxe desligou e chamou o seu chefe de redação. — Ei, Mac!

O homem esguio, grisalho e azedo levantou-se da sua escrivaninha e foi entrando.

— Sim?

— Acho que devemos fazer uma edição extra. Manchete... — rabiscou num pedaço de papel. — "Turba mata Flor Fragrante!"

— Que tal "Turba assassina Flor Fragrante"?

— Ou "Primeira morte em Aberdeen"?

— "Turba assassina" é melhor.

— Tudo bem, é isso aí. Martin! — chamou Toxe. Martin Haply levantou os olhos do seu trabalho e veio juntar-se a eles. Toxe correu os dedos pelos cabelos, enquanto lhes contava o que Dan Yap relatara. — Martin, escreva mais o seguinte: "A bela jovem foi esmagada pelos pés da turba... mas quem foram seus verdadeiros matadores? Será um governo incompetente, que se recusa a regular o nosso sistema bancário ultrapassado? Os matadores serão aqueles que começaram os boatos? A corrida ao Ho-Pak será tão simples quanto parece?" E continue por aí.

— Já saquei.

Martin Haply abriu um sorriso e voltou à sua mesa, na sala principal. Engoliu uma xícara de café frio, num recipiente de plástico, e começou a datilografar, a mesa cheia de pilhas de livros de consulta, jornais chineses e boletins da Bolsa de Valores. Os teletipos soavam ao fundo. Alguns estagiários e contínuos silenciosos entregavam ou apanhavam textos.

— Ei, Martin! Qual a última da Bolsa?

Martin Haply discou um número sem olhar para o aparelho, depois respondeu ao editor:

— Ho-Pak desceu para 24,60. Baixou quatro pontos, de ontem para hoje. Struan baixou um ponto, embora tenham sido compradas muitas ações. Hong Kong Lan Tao subiu três pontos... a história acaba de ser confirmada. Dunstan Barre sacou o dinheiro deles ontem.

— Foi? Então você estava certo de novo. Merda!

— O Victoria baixou meio ponto... todos os bancos estão nervosos, e não há compradores. Corre um boato de que uma fila está se formando do lado de fora da sede do Blacs e do Victoria, na zona central.

Os dois homens soltaram exclamações abafadas.

— Mande alguém ir verificar no Vic!

Mac saiu apressado. "Meu Deus", pensou Toxe, com o estômago embrulhado. "Meu Deus, se começar uma corrida ao Vic, o diabo da ilha inteira vai desabar, e o diabo das minhas economias junto com ela."

Recostou-se na sua velha cadeira e pôs os pés em cima da mesa, adorando o seu trabalho, as pressões e a urgência.

— Quer que ligue para ela? — perguntou a secretária. Era redonda e imperturbável.

— Quem? Ora, merda, Peg, tinha esquecido... É... ligue para o Dragão.

O Dragão era a mulher do editor, Mong Pa-tok, chefe atual da imensa família Mong, dona do jornal, de três outros jornais chineses e cinco revistas, cujos antecedentes remontavam aos primeiros dias. Dizia-se que os Mongs descendiam do primeiro editor-proprietário do jornal, Morley Skinner. Contava-se que Dirk Struan dera a Skinner o controle do jornal em troca da sua ajuda contra Tyler Brock e seu filho Gorth, abafando a história da morte de Gorth em Macau. Dizia-se que Dirk Struan provocara o duelo. Os dois homens lutaram com ferros de combate. Uma vez, há muitos anos, Toxe ouvira a velha Sarah Chen, meio bêbada, relatar que, quando os Brocks vieram buscar o corpo de Gorth, não o reconheceram. A velha acrescentara que seu pai, Sir Gordon Chen, tivera que mobilizar quase todo o Bairro Chinês para impedir que os Brocks ateassem fogo aos armazéns da Struan. Tyler Brock incendiara Tai-ping Shan, em seu lugar. Apenas o grande tufão que veio naquela noite impediu que toda a cidade fosse destruída pelo fogo... o mesmo holocausto que destruíra a Casa Grande de Dirk Struan, e ele e sua mulher secreta, May-may.

— Está na linha 2.

— Hem? Ah, está bem, Peg. Toxe soltou um suspiro.

— Ah, Sr. Toxe, estava esperando o seu telefonema, heya?

— No que posso servi-la, ou ao Sr. Mong?

— Seus artigos sobre o Ho-Pak Bank, ontem e hoje, que os rumores adversos sobre o Ho-Pak são inverídicos e iniciados por tai-pans e outro grande banco. Vejo que há mais, hoje.

— É. Haply tem absoluta certeza.

— Meu marido e eu ouvimos não ser verdade. Nenhum tai-pan ou banco estão espalhando boatos, ou já espalharam boatos. Talvez sensato abandonar ataque.

— Não é um ataque, sra. Mong, só uma atitude. Sabe como os chineses são suscetíveis aos boatos. O Ho-Pak é tão forte quanto qualquer banco da colônia. Estamos certos de que os boatos foram iniciados por um gran...

— Não por tai-pans nem por grande banco. Meu marido e eu não gostamos desta atitude, faz favor. Queira mudar — falou, e ele ouviu o granito na sua voz.

— Isso é política editorial, e eu tenho controle sobre a política editorial — respondeu ele sombriamente.

— Nós somos editor. É o nosso jornal. Nós dizemos você parar, então você pára.

— Está me ordenando que pare?

— Claro que é ordem.

— Pois bem. Como ordenou, paramos.

— Ótimo! — O aparelho ficou mudo. Christian Toxe quebrou o lápis, jogou-o contra a parede, e começou a xingar. A secretária soltou um suspiro e fechou discretamente a porta; quando acabou, Toxe abriu a porta. — Peg, quer me trazer um café? Mac! Martin!

Toxe recostou-se na cadeira, que rangeu. Enxugou o suor das faces, acendeu um cigarro e tragou profundamente.

— Sim, Chris? — perguntou Haply.

— Martin, cancele o artigo que íhe pedi e faça outro sobre o sistema bancário de Hong Kong e a necessidade de se ter algum tipo de seguro bancário...

Os dois homens o fitaram, boquiabertos.

— Nosso editor não gosta do enfoque dos boatos. Martin Haply enrubesceu.

— Ora, ele que se foda! Você mesmo ouviu os caras, na festa do tai-pan.

— Isso nada prova. Você não tem provas. Vamos parar com esse enfoque. Não está provado, portanto não posso tomar posição.

— Mas, olh...

O pescoço de Toxe ficou roxo.

— Paramos e pronto! — rugiu. — Entendeu?

Haply começou a dizer qualquer coisa, mas mudou de idéia. Sufocado de raiva, girou sobre os calcanhares e se afastou. Cruzou o salão, abriu com violência a porta da frente, e bateu-a atrás de si.

Christian Toxe soltou a respiração.

— Mas que droga de gênio terrível tem esse rapaz! Apagou o cigarro e acendeu outro.

— Deus, estou fumando demais! — Ainda fervendo, seus olhos castanhos fitaram o homem mais velho. — Alguém deve ter ligado para ela, Mac. Agora, que favor você gostaria de receber em troca, se fosse a sra. Dragão Mong?

Subitamente, Mac abriu um sorriso.

— Não um título de sócio votante do Turf Club!

— Primeiro da turma!

Singh, o repórter indiano, entrou na sala, trazendo trinta centímetros de teletipo.

— Pode precisar disso para a edição extra, Chris. Era uma série de boletins Reuter do Oriente Médio. "Teerã, 8h32m. — Fontes diplomáticas de alto nível no Irã relatam que súbitas e extensas manobras militares soviéticas tiveram início junto de sua fronteira setentrional, perto da área fronteiriça petrolífera de Azerbaijão, onde mais distúrbios ocorreram. Consta que Washington pediu permissão para mandar observadores para aquela área."

O parágrafo seguinte dizia:

"Tel Aviv, 6 h. — O Parlamento israelense confirmou no fim da noite de ontem que outro imenso projeto de irrigação foi iniciado para desviar ainda mais as águas do rio Jordão para o deserto meridional de Neguev. Houve uma reação adversa e hostil imediata da Jordânia, Egito e Síria".

— Neguev? A usina atômica novinha em folha de Israel não fica no Neguev? — perguntou Toxe.

— Fica. Que bela adição para as mesas de conferências de paz. A água seria para isso?

— Não sei, Mac, mas isso com certeza vai deixar secas algumas gargantas jordanianas e palestinas. Água, água por todo canto, e nenhuma gota para se tomar um banho. Puxa vida, seria bom se chovesse! Singh, ajeite esses boletins, e nós os colocaremos na última página. Não venderão um mísero jornal. Faça um novo artigo sobre os Lobisomens para a primeira página: "A polícia estendeu uma vasta rede, mas os perversos seqüestradores do Sr. John Chen continuam a enganá-la. Segundo fontes chegadas à família de seu pai, o representante nativo da Struan, ainda não se recebeu nenhuma nota de resgate, mas espera-se uma a qualquer momento. O China Guardian pede a todos os seus leitores que ajudem na captura desses monstros..." Esse tipo de coisa.

Em Aberdeen, Wu Óculos viu a velha sair do cortiço, com uma cesta de compras na mão, e se meter no meio da multidão barulhenta, no beco estreito. Ele a seguiu cautelosamente, sentindo-se muito satisfeito consigo mesmo. Enquanto esperava que ela reaparecesse, puxara conversa com um vendedor ambulante cujo local de vendas permanente era um pedaço de calçada quebrada, do lado oposto. O ambulante vendia chá e pequenas tigelas de congee (mingau de arroz) quente. Wu pedira uma tigela, e durante a refeição o ambulante lhe falara da velha, Ah Tam, que estava no bairro desde o ano passado. Chegara à colônia vinda de uma aldeia perto de Cantão, junto com as imensas ondas de imigrantes que tinham cruzado a fronteira no verão anterior. Não tinha família, e as pessoas para quem trabalhava não tinham filhos com cerca de vinte anos, embora a tivesse visto com um rapaz dessa idade naquela manhã.

— Disse que a aldeia dela era Ning-tok...

Foi então que Wu sentiu-se animar por aquele golpe de sorte. Ning-tok era a aldeia de onde vinham seus próprios pais, e ele falava o dialeto do lugar.

Agora, estava vinte passos atrás dela, e ficou vendo-a pechinchar habilmente ao comprar legumes, selecionando apenas as melhores cebolas e verduras, todas fresquinhas, recém-chegadas dos campos dos Novos Territórios. Comprou muito pouco, e ele deduziu que a família para a qual ela trabalhava era pobre. Depois, ficou diante da barraca de aves, com suas camadas de galinhas esquálidas, que mal viviam ainda, enfiadas nas gaiolas, de pernas atadas. O barraqueiro rotundo barganhava com ela, ambos curtindo a linguagem obscena, os insultos, escolhendo esta ave, depois aquela, depois outra, cutucando-as, deixando-as de lado, até o negócio ser feito. Como era uma boa negociante, tinhosa, o homem concordou em reduzir seu lucro. Depois, estrangulou a ave habilmente, sem pensar, jogando a carcaça para a filha de cinco anos, acocorada numa pilha de penas e restos, para que a depenasse e limpasse.

— Ei, senhor vendedor — chamou Wu. — Quero uma ave pelo mesmo preço. Aquela! — Apontou para uma galinha razoável, e não ligou para os resmungos do homem. — Irmã Mais Velha — dirigiu-se a ela cortesmente —, está claro que me poupou muito dinheiro. Gostaria de tomar uma xícara de chá enquanto esperamos que nossas aves sejam limpas?

— Ah, sim, obrigada, meus velhos ossos estão cansados. Iremos para lá! — O dedo nodoso dela apontou para uma barraca em frente. — Assim, poderemos vigiar, e receber as aves por que pagamos.

O vendedor de aves resmungou uma obscenidade, e eles riram.

Ela foi abrindo caminho aos empurrões para o outro lado da rua, sentou-se num banco, pediu chá e um bolo, e não demorou estava contando a Wu como detestava Hong Kong e viver no meio de estranhos. Foi fácil para ele amolecê-la pelo uso casual de uma palavra no dialeto de Ning-tok, depois fingir surpresa quando ela passou a falar naquele dialeto e contou que vinha da mesma aldeia, e ah, que maravilha encontrar um vizinho, depois de tantos meses entre estranhos! Contou-lhe que trabalhara para a mesma família, em Ning-tok, desde os sete anos. Mas, infelizmente, há três anos, sua patroa — a criança que criara, agora uma senhora de idade igual a ela — morrera.

— Fiquei na casa, mas eles estavam passando por um período difícil. E então, no ano passado, a fome foi grande. Muitos resolveram vir para este lugar. O pessoal do presidente Mao não se incomodou. Ao contrário, nos encorajou... "Bocas Inúteis", era como eles nos chamavam. Não sei como nos separamos, e consegui cruzar a fronteira e chegar até aqui, sem tostão, faminta, sem família, sem amigos, sem saber para que lado me virar. Finalmente, arrumei um emprego, e agora trabalho como cozinheira e amah para a família Ch'ung, que é de varredores de ruas. Os miseráveis só me dão casa e comida, e a primeira mulher Ch'ung é uma bruxa desbocada, mas logo estarei livre de todos eles! Disse que seu pai veio para cá com a família há dez anos?

— É. Tínhamos um campo perto da vereda de bambus junto do rio. O nome dele era Wu Cho-tam e...

— Ah, sim, acho que me lembro da família. É, acho que sim. É, e conheço o campo. A minha família era a Wu Ting-top, e a família deles era dona da farmácia da encruzilhada há mais de cem anos.

— Ah, o Honorável Wu Farmácia? Mas claro!

Wu Óculos lembrava-se bem da família. Wu Farmácia sempre fora um simpatizante maoísta. Certa vez, tivera que fugir dos nacionalistas. Naquela aldeia de mil pessoas, fora muito apreciado e respeitado, e mantivera a vida na aldeia o mais calma e protegida dos estranhos possível.

— Quer dizer que é um dos filhos de Wu Cho-tam, Irmão Mais Moço? — dizia Ah Tam. — Eeee, antigamente era uma maravilha em Ning-tok, mas nos últimos anos... terrível.

— É. Nós tivemos sorte. Nosso campo era fértil, e cultivávamos a terra como sempre, mas após alguns anos chegou gente de fora, que acusou todos os proprietários de terras... como se fôssemos exploradores! Nós apenas cultivávamos o nosso próprio campo. Mesmo assim, de vez em quando alguns proprietários eram levados dali, outros, fuzilados. Certa noite, há dez anos, meu pai fugiu com todos nós. Agora meu pai está morto, mas moro com minha mãe, não muito distante daqui.

— Houve muitas fugas e fome no início. Ouvi dizer que agora está melhor. Também ouviu? Gente de fora chegou, não foi? Eles chegaram e foram embora. A aldeia não está tão ruim, novamente, Irmão Mais Moço, ah, não! Gente de fora nos deixou em paz. É, eles deixaram a nós e a minha patroa em paz porque o Pai era importante, e um dos simpatizantes do presidente Mao, desde o começo. O nome da minha patroa era Fang-ling, mas agora está morta. Não há nenhuma organização coletivista perto de nós, portanto a vida é como sempre foi, embora todos tenhamos que estudar o Livro vermelho do presidente Mao. A aldeia não é tão ruim, todos os meus amigos estão lá... Hong Kong é um lugar horrível, e a minha aldeia é o meu lar. A vida sem família não vale nada. Mas agora...

— A velha baixou o tom de voz, e casquinou, cheia de prazer.

— Mas agora os deuses me favoreceram. Dentro de um ou dois meses irei para casa, para sempre. Terei dinheiro bastante para me aposentar, e comprarei a casinha que fica no fim da minha rua, e quem sabe um campo pequeno e...

— Aposentar? — perguntou Wu, instigando-a a continuar. — E quem tem dinheiro para isso, Irmã Mais Velha? Disse que não lhe pagavam nada...

— Ah — replicou a velha, toda inchada —, tenho um amigo importante.

— Que espécie de amigo?

— Um amigo de negócios, muito importante, que precisa da minha ajuda! Como lhe fui muito útil, prometeu me dar uma imensa quantia...

— Está inventando tudo isso, Irmã Mais Velha — debochou. — Será que sou um estranho tonto que...

— Estou lhe dizendo que meu amigo é tão importante que pode manter a ilha inteira escravizada!

— Não existe gente assim!

— Ah, mas existe, sim! — Ela baixou a voz e murmurou, roucamente: — E quanto aos Lobisomens?

Wu Óculos fitou-a, de boca aberta.

— O quê?

Ela casquinou de novo, radiante com o impacto da sua confidencia.

— É.

O rapaz recompôs rapidamente os pedaços de sua mente baratinada. Se aquilo fosse verdade, receberia a recompensa e a promoção, e quem sabe o convite para ingressar no Serviço Especial de Informações.

— Está inventando essa história!

— E eu lá ia mentir para alguém da minha própria aldeia? Meu amigo é um deles, estou lhe dizendo. Também é um 489; e a irmandade dele vai ser a mais rica de toda a Hong Kong.

— Eeee, que sorte tem, Irmã Mais Velha! E quando o vir de novo, pergunte-lhe por favor se tem utilidade para alguém como eu. Sou lutador de rua, de profissão, embora minha tríade seja pobre, e o líder, um burro e um estrangeiro. Ele é de Ning-tok?

— Não. Ele... é meu sobrinho — disse ela, e o rapaz percebeu que era mentira. — Vou vê-lo mais tarde. É, ele vem aí, mais tarde. Está me devendo algum dinheiro.

— Eeee, que bom! Mas não o ponha no banco, especialmente no Ho-Pak ou...

— Ho-Pak? — replicou, desconfiada, os olhinhos estreitando-se subitamente nos vincos do rosto. — Por que fala no Ho-Pak? O que o Ho-Pak tem a ver comigo?

— Nada, Irmã Mais Velha — disse Wu, amaldiçoando-se pelo deslize, sabendo que agora ela fechara a guarda. — Vi as filas hoje de manhã, só isso.

Ela balançou a cabeça, sem se sentir convencida. Depois notou que sua galinha já estava pronta e embrulhada, portanto agradeceu-lhe pelo chá e o bolo e se afastou, resmungando sozinha. Com muito cuidado, ele a seguiu. De vez em quando, ela olhava para trás, mas não o viu. Tranqüilizada, foi para casa.

O homem da CIA saltou do carro e entrou rapidamente no quartel-general da polícia. O sargento uniformizado na mesa de informações cumprimentou-o.

— Boa tarde, Sr. Rosemont.

— Tenho hora marcada com o Sr. Crosse.

— Sei, ele o está esperando.

Azedamente, Rosemont dirigiu-se ao elevador. "Esta merda de ilha maldita! Tenho vontade de cagar nela, e nos malditos britânicos."

— Alô, Stanley — cumprimentou Armstrong. — O que está fazendo aqui?

— Ah, oi, Robert. Tenho um encontro com o seu chefe.

— Já tive esse desprazer hoje, uma vez. Exatamente às sete horas e um minuto.

A porta do elevador se abriu. Rosemont entrou, e Armstrong o seguiu.

— Espero que tenha boas novas para Crosse — comentou Armstrong, bocejando. — Ele está num humor terrível.

— E? Você também vai participar do encontro?

— Parece que sim. Rosemont enrubesceu.

— Merda, pedi um encontro particular.

— Sou particular.

— Claro que é, Robert. E Brian, e todo mundo. Mas tem um filho da mãe que não é.

O bom humor de Armstrong desapareceu.

— É?

— É.

Rosemont não disse mais nada. Sabia que magoara o inglês, mas não se importava. "É a verdade", pensou, com amargura. "Quanto mais cedo esses malditos ingleses abrirem os olhos, melhor."

O elevador parou. Desceram o corredor, e Brian Kwok os fe2 entrar na sala de Crosse. Rosemont sentiu as duas trancas correrem, às suas costas, e pensou: "Que idiotice inútil e desnecessária; o homem é um cretino".

— Pedi um encontro particular, Rog.

— É particular. Robert é muito particular, Brian também. O que posso fazer por você, Stanley?

Crosse estava polidamente frio.

— Pois bem, Rog, hoje tenho uma longa lista para você: primeiro, você está pessoalmente cem por cento enrascado comigo, com todo o meu departamento, até com o próprio diretor em Washington. Mandaram que eu lhe dissesse, entre outras coisas, que o seu toupeira superou a si mesmo, desta vez.

— É?

A voz de Rosemont agora estava áspera.

— Só para começar, acabamos de saber por uma das nossas fontes em Cantão que Fong-fong e todos os seus rapazes foram atingidos, ontem à noite. Foram expostos... e estão perdidos! — Armstrong e Brian Kwok pareciam chocados. Crosse devolvia-lhe o olhar, e não pôde ler nada no rosto dele. — Tem que ser o seu toupeira, Rog. Tem que ser identificado pelos documentos de Alan Medford Grant que estão em poder do tai-pan.

Crosse olhou para Brian Kwok.

— Use o código de rádio de emergência. Verifique isso! Enquanto Brian Kwok se afastava às pressas, Rosemont repetiu:

— Eles já eram, os pobres coitados!

— Vamos verificar, de qualquer forma. A seguir? Rosemont sorriu sem humor.

— A seguir: quase tudo o que estava nos relatórios de Alan que estão com o tai-pan já está espalhado pela comunidade dos agentes de informações, em Londres... do lado errado.

— Deus amaldiçoe todos os traidores — resmungou Armstrong.

— É, foi o que pensei, Robert. A seguir, outra preciosidade: a morte de Alan não foi nenhum acidente.

— Como?

— Ninguém sabe quem foi, mas todos sabemos o porquê. A moto foi atingida por um carro. Ainda não se sabe a marca, o número de série, se há testemunhas, nada, ainda, mas foi atingido... e, naturalmente, denunciado daqui.

— Então, por que não fui informado pela Fonte? Por que a informação está vindo de você? — perguntou Crosse.

A voz de Rosemont tornou-se mais cortante.

— Acabo de desligar o telefone, falando com Londres. Passa um pouco das cinco da manha, lá. Portanto talvez seu pessoal pretenda informá-lo quando chegar ao escritório, depois de comer tranqüilamente bacon com ovos, e beber uma boa xícara de chá!

Armstrong lançou um rápido olhar para Crosse, e crispou-se ao ver a cara dele.

— Provou... provou bem seu ponto de vista, Stanley — falou Crosse. — A seguir?

— As fotos que lhe demos dos caras que mataram Voranski... o que aconteceu?

— Estávamos vigiando a casa deles. Os dois homens não voltaram. Portanto invadi o local hoje de madrugada. Revistamos o cortiço inteiro, aposento por aposento, mas não encontramos ninguém que, mesmo de leve, se assemelhasse às fotos. Revistamos durante duas horas, e não havia portas secretas ou coisa semelhante. Eles não estavam lá. Talvez seu agente se tivesse enganado...

— Não desta vez. Marty Povitz tinha certeza. Cercamos o lugar tão logo deciframos o endereço. Mas houve um tempinho em que não estava sendo vigiado, na frente e atrás. Acho que foram avisados, novamente pelo seu toupeira.

Rosemont pegou uma cópia do telex, e entregou-a a Crosse. Ele a leu, ficou vermelho, e passou-a a Armstrong:

"Decifrado do diretor, Washington, para Rosemont, vice-diretor, Estação de Hong Kong: Sinders, MI-6, traz ordens da Fonte, Londres, para você ir com ele na sexta-feira assistir à entrega dos documentos e obter uma fotocópia imediata".

— Receberá a sua cópia pelo correio, hoje, Rog — disse o americano.

— Posso ficar com isso? — perguntou Crosse.

— Claro. A propósito, botamos alguém seguindo o Dunross, também. Nós...

Crosse exclamou, irado:

— Quer fazer o favor de não interferir na nossa jurisdição?

— Disse-lhe que estava atolado na merda, Rog!

Secamente, Rosemont colocou outro telegrama na mesa.

"Rosemont, Hong Kong. Entregue este telegrama pessoalmente ao chefe do sei. Até novas ordens, Rosemont está autorizado a atuar independentemente para ajudar a descobrir o inimigo, da forma que escolher. Ele, contudo, deve manter-se dentro da lei e informar-lhe pessoalmente o que está fazendo. Fonte 8-98/3."

Rosemont viu Crosse refrear uma explosão.

— O que mais você autorizou? — indagou Crosse.

— Nada. Ainda. Outro assunto: estaremos no banco na sexta-fei...

— Sabe onde Dunross colocou as pastas?

— Todo mundo sabe... toda a comunidade. Já lhe falei que seu toupeira vem fazendo serão. — Abruptamente, Rosemont explodiu: — Ora, qual é, Rog? Você sabe que é só contar uma notícia "quente" para alguém, em Londres, e toda a cidade fica sabendo! Todos temos problemas de segurança, mas os seus são piores! — Com esforço, o americano controlou-se. — Podia ter sido franco comigo sobre a mancada com Dunross... teria nos poupado muito sofrimento e constrangimento!

Crosse acendeu um cigarro.

— Talvez. Talvez não. Estava tentando manter a segurança.

— Lembra-se de mim? Estou do seu lado!

— Está?

— Pode apostar que sim, porra! — exclamou Rosemont, muito irado. — E se dependesse de mim, mandaria abrir todas as caixas de depósito individuais do banco antes do anoitecer... e danem-se as conseqüências!

— Graças a Deus não pode fazer isso.

— Pela madrugada! Estamos em guerra, e só Deus sabe o que há naquelas outras pastas. Talvez nos revelem o seu maldito toupeira, e então poderemos pôr as mãos no filho da mãe, e dar-lhe o que merece.

— É — falou Crosse, a voz cortante como uma chicotada —, ou talvez não haja nada nos documentos, afinal!

— Como assim?

— Dunross concordou em entregar as pastas a Sinders na sexta-feira. E se não houver nada nelas? E se ele tiver queimado as páginas, e nos entregar apenas as capas? Que diabo faremos, então?

Rosemont fitou-o, boquiaberto.

— Deus... e existe tal possibilidade?

— Claro que sim! Dunross é esperto. Pode ser que não estejam lá, ou que as que estão no cofre sejam falsas. Não sabemos se ele as guardou lá. É o que ele diz. Santo Deus, existem cinqüenta possibilidades. Vocês, da CIA, que são tão espertos, digam-me em qual caixa de depósito está, e eu a abrirei pessoalmente.

— Pegue a chave com o governador. Entregue-a para mim e para alguns dos meus rapazes durante cinco horas e...

— Nem pense nisso! — rosnou Crosse, o rosto subitamente vermelho.

Armstrong sentiu a violência no ar. "Pobre Stanley", pensou, "hoje você é o alvo." Abafou um estremecimento, recordando-se das vezes em que tivera que enfrentar Crosse. Logo aprendera que era melhor contar a verdade ao sujeito, contá-la logo. Se Crosse realmente se dispusesse a interrogá-lo, sabia, sem sombra de dúvida, que "abriria o jogo". Graças a Deus ele nunca tivera motivos para tentar, pensou, agradecido, e depois voltou o olhar para Rosemont, que estava vermelho de raiva. "Quem serão os informantes de Rosemont, e como ele sabe ao certo que Fong-fong e sua equipe foram dizimados?"

— Nem pense nisso — repetiu Crosse.

— Então, que diabo vamos fazer? Ficar com a bunda na cadeira até sexta?

— É. Esperamos. Mandaram que esperássemos. Mesmo que Dunross tenha arrancado páginas, ou parágrafos, ou destruído todos os documentos, não podemos botá-lo na prisão... ou forçá-lo a lembrar-se, ou a nos contar qualquer coisa.

— Se o diretor ou a Fonte resolverem que ele tem que sofrer um aperto, há maneiras. Isso é o que o inimigo faria.

Crosse e Armstrong fitaram Rosemont. Finalmente, Armstrong falou, friamente:

— Mas isso não quer dizer que é direito.

— Nem tampouco errado. Há uma coisa, mas apenas para os seus ouvidos, Rog.

Armstrong levantou-se imediatamente, mas Crosse fez sinal para que se sentasse.

— Robert é os meus ouvidos.

Armstrong disfarçou a vontade de rir que o invadiu, ante uma afirmação tão ridícula.

— Não. Desculpe, Rog, são ordens... dos seus superiores e dos meus.

Armstrong percebeu distintamente que Crosse hesitava.

— Robert, espere do lado de fora. Quando eu tocar a campainha, torne a entrar. Vá dar uma espiada no Brian.

— Sim, senhor.

Armstrong saiu e fechou a porta, lamentando não estar presente para o golpe final.

— E então?

O americano acendeu outro cigarro.

— Máximo sigilo. Às quatro horas de hoje, toda a 92.a Divisão de Pára-Quedistas saltou no Azerbaijão, apoiada por grandes unidades da Força Delta, e se espalhou ao longo da fronteira Irã-União Soviética. — Os olhos de Crosse se arregalaram. — Isso foi feito atendendo a um pedido direto do xá, em resposta a maciços preparativos militares soviéticos logo além das fronteiras, e aos costumeiros distúrbios patrocinados pelos soviéticos em todo o Irã. Meu Deus, Rog, não pode pôr um condicionador de ar aqui? — Rosemont enxugou a testa. — Há um manto de segurança cobrindo todo o Irã, agora. Às seis horas, unidades de apoio desembarcaram no aeroporto de Teerã. A nossa Sétima Frota está se dirigindo para o golfo; a Sexta, a do Mediterrâneo, já está em posição de combate perto de Israel; a Segunda, do Atlântico, dirige-se para o Báltico. A norad foi alertada, a OTAN foi alertada, e todos os Poseidons estão a um passo do Vermelho.

— Meu Deus, mas que diabo está acontecendo?

— Khruchov está tentando outra investida sobre o Irã... sempre um alvo soviético por excelência, certo? Acha que está com a vantagem. Fica bem na fronteira dele, onde suas próprias linhas de comunicação são curtas, e as nossas, imensas. Ontem, o pessoal da segurança do xá descobriu uma insurreição "socialista democrática" que deveria explodir dentro dos próximos dias em Azerbaijão. Então o Pentágono está reagindo feito um alucinado. Se o Irã cair, cai todo o golfo Pérsico, depois a Arábia Saudita, e isso acaba com o petróleo da Europa, e acaba com a Europa.

— O xá já esteve encrencado antes. Isso não é mais um pouco de exagero de vocês?

O americano ficou mais duro.

— Khruchov recuou no caso de Cuba. Foi a primeira vez em que houve um recuo soviético, pombas, porque Kennedy não estava blefando, e a única coisa que os comunas entendem é a força. Força-bruta-maciça-pra-valer! O Grande K que recue dessa vez também, ou lhe entregaremos a própria cabeça!

— Vocês vão arriscar a explosão do mundo inteiro por causa de uns birutas analfabetos, fanáticos, arruaceiros, que provavelmente têm alguma razão, no fim das contas?

— Não me interessa a política, Rog, só me interessa vencer. O petróleo iraniano, o petróleo do golfo Pérsico, o petróleo saudita são a jugular do Ocidente. Não vamos deixar que o inimigo fique com ele.

— Se o quiserem, eles o tomarão.

— Não desta vez. Chamamos a operação de Dry Run¹. A idéia é entrar de sola, assustá-los e fazer com que fujam; depois ir embora rapidamente, discretamente, para que ninguém saiba que agimos, exceto o inimigo, e especialmente para que nenhum maldito congressista ou jornalista liberal americano o saiba. O Pentágono acha que os soviéticos não acreditam que somos capazes de uma reação tão rápida, tão maciça, vinda de tão longe, portanto tomarão um choque, correrão para se abrigar, e deixarão a idéia toda de lado... até a próxima vez.

 

¹ "Exercício de tiro com pólvora seca." (N. da T.)

 

O silêncio tornou-se mais pesado. Crosse tamborilou os dedos na mesa.

— O que quer que eu faça? Por que está me contando tudo isso?

— Porque meus chefões mandaram. Querem que todos os chefes do sei aliados saibam, porque, se essa merda se espalhar, haverá motins de apoio por toda parte, como sempre, motins de fachada, bem-coordenados, e vocês terão que estar preparados. Os relatórios de Alan Medford Grant diziam que a Sevrin fora ativada aqui... Talvez haja alguma ligação. Além disso, vocês, aqui em Hong Kong, são vitais para nós. São a porta dos fundos que dá para a China, a porta dos fundos para Vladivostok e todo o leste da Rússia... e o nosso melhor atalho para as bases navais e de submarinos atômicos deles no Pacífico. — Rosemont pegou outro cigarro, com dedos trêmulos. — Ouça, Rog — falou, controlando sua raiva violenta —, vamos esquecer toda a merda burocrática, certo? Quem sabe não podemos nos ajudar mutuamente?

— Que submarinos atômicos? — falou Crosse, com um sorriso de deboche deliberado, jogando verde. — Eles ainda não têm submarinos atômicos, e...

— Santo Deus! — explodiu Rosemont. — Vocês estão com as cabeças enfiadas rabo acima, e não querem escutar. Elogiam a distensão, tentam amordaçar-nos, e eles estão rindo a bandeiras despregadas! Eles têm submarinos nucleares, postos de mísseis e bases navais espalhados por todo o mar de Okhotsk! — Rosemont levantou-se e foi até o imenso mapa da China e da Ásia que ocupava uma das paredes e cutucou a península Kamtchatka, ao norte do Japão. —... Petropavlovsk, Vladivostok... têm operações gigantescas ao longo de toda esta costa siberiana, aqui em Komsomolsk, na foz do Amur e em Sacalina. Mas Petropavlovsk é que é a tal. Daqui a dez anos, será o maior porto de guerra na Ásia, com campos de pouso de apoio, recintos para submarinos protegidos atomica-mente, pistas para caças idem e silos de mísseis. E dali ameaçarão toda a Ásia... Japão, Coréia, China, as Filipinas... sem esquecer do Havaí e da nossa costa oeste.

— As forças americanas são preponderantes, e sempre serão. Está exagerando de novo.

A fisionomia de Rosemont se fechou.

— As pessoas me chamam de falcão. Não sou. Sou apenas realista. Eles estão em pé de guerra. Os nossos Midas III indicaram toda espécie de sujeira, nossos... — Parou, e quase deu um chute em si mesmo, por ter aberto tanto o bico.

— Bem, sabemos um bocado do que eles estão fazendo nesse momento, e pode apostar que não são relhas de arado.

— Acho que está errado. Não querem a guerra, como nós não queremos.

— Quer prova? Pois a terá amanhã, logo que eu obtiver autorização! — disse o americano, irritado. — Se isso for provado, poderemos esperar cooperação?

— Pensei que já estávamos cooperando.

— Cooperará?

— Como queira. A Fonte quer que eu reaja de alguma forma específica?

— Não, apenas que fique preparado. Acho que tudo isso passará pelos canais competentes, hoje.

— É. — Crosse tornou-se repentinamente suave. — O que realmente está chateando você, Stanley?

A hostilidade de Rosemont abandonou-o.

— Perdemos um dos nossos melhores aparelhos em Berlim Oriental, ontem à noite, um bocado de caras legais. Um amigo meu foi atingido ao tentar voltar para o nosso lado, e temos certeza de que tudo tem ligação com Alan Medford Grant.

— Ah, lamento muito. Não foi Tom Owen, foi?

— Não. Ele saiu de Berlim no mês passado. Foi Frank O'Connel.

— Acho que não o conheci. Uma pena.

— Ouça, Rog, esse tal de agente infiltrado é uma merda.

— Levantou-se e foi para junto do mapa. Fitou-o durante longo tempo. — Está sabendo de Iman?

— Como?

O dedo rombudo de Rosemont indicou um local no mapa. A cidade ficava no interior, a uns duzentos e noventa quilômetros ao norte de Vladivostok, num entroncamento ferroviário.

— É um centro industrial, ferrovias, muitas fábricas.

— E daí? — quis saber Crosse.

— Sabe do campo de pouso de lá?

— Que campo de pouso?

— É subterrâneo, todo ele, pertinho da cidade, construído num labirinto gigantesco de cavernas naturais. É certamente uma das maravilhas do mundo. Tem capacidade atômica, Rog. A base inteira foi construída por mão-de-obra escrava dos japoneses e nazistas, em 45, 46 e 47. Cem mil homens, ao que consta. Fica tudo debaixo da terra, Rog, com espaço para dois mil e quinhentos aviões, tripulações e pessoal de apoio. É à prova de bombas... até atômicas... com oitenta pistas secundárias, que vão dar numa gigantesca pista que rodeia dezoito morros baixos. Um dos nossos levou nove horas para percorrê-la de carro. Isso foi em 46... Como será hoje em dia?

— Muito melhorada... se é que existe.

— Atualmente está em condições de entrar em operação. Alguns caras do serviço de informações, nosso e de vocês, até mesmo alguns dos melhores jornalistas, sabiam de sua existência já em 46. Portanto, por que o silêncio, agora? Aquela base, por si só, é uma ameaça maciça a todos nós, e ninguém dá uma porra dum berro. Até mesmo a China, que sem dúvida está sabendo sobre Iman.

— Não posso lhe dar uma resposta.

— Eu posso. Acho que essa informação está sendo abafada, deliberadamente, junto com um bocado de outras coisas. — O americano se levantou e se espreguiçou. — Meu Deus, o mundo inteiro está caindo aos pedaços, e eu estou com dor nas costas. Conhece um bom quiroprático?

— Já experimentou o dr. Thomas, na Pedder Street? Vou a ele a toda hora.

— Não o tolero. Faz a gente esperar na fila, não marca hora. Deus abençoe os quiropráticos! Estou tentando convencer meu filho a estudar isso, ao invés de formar-se em medicina.

O telefone tocou, e Crosse atendeu.

— Sim, Brian? — Rosemont ficou olhando para Crosse, enquanto este escutava. — Só um minutinho, Brian. Stanley, já acabamos?

— Claro. Só faltam umas coisinhas de rotina, sem segredo.

— Certo. Brian, entre com o Robert logo que subir. — Crosse desligou. — Não pudemos manter contato com Fong-fong. Serão DPM ou DPC em quarenta e oito horas.

— Não entendi.

— Desaparecidos Presumivelmente Mortos ou Desaparecidos Presumivelmente Capturados.

— Que azar. Desculpe trazer más notícias.

— Joss.

— Com Dry Run e Alan Medford Grant, que tal colocar Dunross sob custódia?

— Nem pensar.

— Você tem a Lei dos Segredos Oficiais.

— Nem pensar.

— Vou recomendar que seja feito. A propósito, o pessoal do FBI de Ed Langan conseguiu achar uma ligação de Banastasio com Bartlett. Ele é um grande acionista da Par-Con. Dizem que foi quem deu a grana que permitiu a última fusão que fez da Par-Con uma das grandes.

— Algo sobre os vistos de Moscou para Bartlett e Tcholok?

— Só o que pudemos saber é que entraram como turistas. Talvez fosse apenas disfarce.

— Algo sobre as armas?

Pela manhã Armstrong contara a Crosse a teoria de Peter Marlowe, e ele ordenara que Wu Quatro Dedos fosse colocado imediatamente sob vigilância, e oferecera uma grande recompensa por informações.

— O FBI tem certeza que foram colocadas a bordo em Los Angeles. Seria fácil, o hangar da Par-Con não tem segurança. Verificaram também os números de série que você nos deu. Todos faziam parte de um carregamento que foi "extraviado", indo da fábrica para Camp Pendleton, o almoxarifado dos Fuzileiros Navais no sul da Califórnia. Quem sabe não acabamos por descobrir uma grande operação de contrabando de armas? Mais de setecentos Ml4 se extraviaram nos últimos seis meses. Por falar nisso... — Interrompeu-se ao ouvir uma batida discreta. Viu Crosse tocar no interruptor. A porta se abriu, e Brian Kwok e Armstrong entraram. Crosse fez sinal para que se sentassem. — Por falar nisso, lembra-se do caso da CARE?

— A suspeita de corrupção, aqui em Hong Kong?

— Esse mesmo. Talvez tenhamos uma pista para vocês.

— Ótimo. Robert, foi você que cuidou do caso, na época, não é?

— Sim, senhor. — Robert Armstrong soltou um suspiro.

Há três meses, um dos vice-cônsules do consulado americano pedira ao DIC para investigar a administração do fundo de caridade, para ver se algum administrador mão-leve estava envolvido em manobras para obter lucro pessoal. As entrevistas e averiguações ainda continuavam. — O que é que você tem, Stanley?

Rosemont revistou os bolsos e puxou uma folha datilografada. Continha três nomes e um endereço: Thomas K. K. Lim (Lim Estrangeiro), Tak Chou-lan (Tak Mãos Grandes), Lo Tup-lin (Lo Dentuço), sala 720, Edifício Princes, centro.

— Thomas K. K. Lim é americano, cheio da nota e com boas ligações em Washington, no Vietnam e na América do Sul. Está metido em negócios com os outros dois palhaços no citado endereço. Deram-nos uma dica de que está envolvido em algumas transações escusas com a AID e que Tak Mãos Grandes está metido com a CARE. Não fica na nossa jurisdição, portanto, está entregue a vocês. — Rosemont deu de ombros e espreguiçou-se de novo. — Talvez dê em alguma coisa. O mundo inteiro está pegando fogo, e ainda temos que cuidar dos vigaristas! Uma loucura! Ficarei em contato com vocês. Lamento sobre Fong-fong e o seu pessoal.

Foi embora.

Crosse contou a Armstrong e Brian Kwok, em breves palavras, o que soubera sobre a Operação Dry Run. Brian Kwok comentou, com azedume:

— Qualquer dia um desses ianques malucos vai cometer um erro. É uma estupidez botar armas atômicas numa situação tão delicada.

Crosse olhou para eles, que fecharam a guarda.

— Quero o toupeira. Quero esse agente antes que a CIA descubra quem é. Se eles o pegarem primeiro... — O homem de rosto magro estava nitidamente irado. — Brian, vá ver Dunross. Conte-lhe que a morte de Alan Medford Grant não foi acidental, e diga-lhe para não sair sem o nosso pessoal por perto. Sob qualquer circunstância. Diga-lhe que eu preferiria que ele nos desse os papéis antes, confidencialmente. Assim, nada terá a temer.

— Sim, senhor.

Brian Kwok sabia que Dunross faria exatamente o que quisesse, mas ficou de boca fechada.

— Nosso planejamento normal antimotim cobrirá qualquer desdobramento do problema iraniano e da Dry Run. Mas é melhor alertar o DIC e... — Interrompeu-se. Robert Armstrong olhava de testa franzida para o pedaço de papel que Rosemont lhe dera. — O que foi, Robert?

— Tsu-yan não tinha um escritório no Edifício Princes?

— Brian?

— Nós o seguimos até lá várias vezes, senhor. Visitava um conhecido, relação comercial... — Brian Kwok vasculhou a memória. — Navegação. O nome dele é Ng, Vee Cee Ng, apelidado Ng Fotógrafo. Sala 721. Fizemos uma verificação sobre ele, mas tinha a ficha limpa. Vee Cee Ng dirige a Companhia de Navegação Ásia e China e cerca de cinqüenta outros pequenos negócios correlatos. Por quê?

— Neste endereço consta: sala 720. Tsu-yan pode ter ligação com John Chen, as armas, Banastasio, Bartlett... até os Lobisomens — disse Armstrong.

Crosse pegou o pedaço de papel. Depois de uma pausa, disse:

— Robert, pegue uma equipe e vá verificar as salas 720 e 721, imediatamente.

— Não ficam na minha área, senhor.

— Tem toda a razão! — disse Crosse prontamente, a voz pesada de sarcasmo. — É, eu sei. Você é do DIC de Kowloon, Robert, não da zona central. Contudo, eu autorizo a incursão. Vá fazê-la. Agora.

— Sim, senhor.

Armstrong saiu, o rosto vermelho.

O silêncio tornou-se mais denso.

Brian Kwok esperou, fitando estoicamente o tampo da mesa. Crosse escolheu um cigarro com cuidado, acendeu-o, depois recostou-se na cadeira.

— Brian! Acho que Robert é o toupeira.

 

                   13h38m

Robert Armstrong e um sargento da polícia fardado saltaram do carro-patrulha e atravessaram a multidão, dirigindo-se para o vasto interior da Arcada Princes, com suas lojas de jóias e curiosidades, de aparelhos fotográficos e rádios abarrotadas dos últimos milagres eletrônicos, que ficava no andar térreo do prédio de escritórios antigo e alto na zona central. Foram abrindo caminho até os elevadores, juntando-se ao monte de gente que esperava. Depois, ele e o sargento conseguiram espremer-se para dentro de um elevador. O ar estava pesado, fétido e nervoso. Os passageiros chineses olhavam-nos de esguelha, contrafeitos.

No sétimo andar, Armstrong e o sargento saltaram. O corredor era estreito e sujo, com portas de escritórios indefiníveis de cada lado. Armstrong parou por um momento, olhando para o quadro de indicações. Ao lado do número 720 lia-se "Empreendimentos Ping-sing Wah", ao lado do 721, "Companhia de Navegação Ásia e China". Começou a percorrer pesadamente o corredor, com o sargento Yat ao seu lado.

Ao dobrarem o corredor, viram um chinês de meia-idade, usando camisa branca e calças escuras, saindo da sala 720. Ele os viu, empalideceu e voltou depressa para dentro. Quando Armstrong chegou à porta, esperava encontrá-la trancada, mas não estava, e ele a abriu bruscamente, a tempo de ver o homem de camisa branca desaparecer pela porta dos fundos, um outro homem quase a atropelá-lo, na ânsia de fugir também. A porta dos fundos bateu, fechando-se.

Armstrong soltou um suspiro. Havia duas secretárias amarrotadas no grupo de três salas apertadas, pobres e desarrumadas, e ambas o fitaram espantadas, uma delas segurando no ar os pauzinhos, acima de uma tigela com galinha e talha-rim. O talharim escorregou dos pauzinhos e caiu dentro da sopa.

— Boa tarde — cumprimentou Armstrong.

As duas mulheres olharam boquiabertas dele para o sargento, e de novo para ele.

— Onde estão o Sr. Lim, o Sr. Tak e o Sr. Lo, por favor?

Uma das moças deu de ombros, e a outra, sem se importar, recomeçou a comer. Ruidosamente. O grupo de salas era sujo e desmazelado. Havia dois telefones, papéis jogados por toda parte, xícaras de plástico, pratos e tigelas sujos e pauzinhos de comer usados. Um bule de chá e xícaras. Latas de lixo cheias.

Armstrong pegou o mandado de busca e mostrou-o às moças.

Elas ficaram olhando para ele. Irritado, Armstrong falou com aspereza:

— Falam inglês?

As duas deram um salto.

— Sim, senhor — disseram em coro.

— Ótimo. Dêem seus nomes ao sargento e respondam às perguntas dele. O... — Nesse momento, a porta dos fundos se abriu de novo, e os dois homens entraram na sala, escoltados por dois policiais fardados de fisionomia dura que tinham estado à espera, de tocaia. — Ah, ótimo. Muito bem. Obrigado, cabo. E então, aonde iam vocês dois?

Imediatamente os dois homens começaram a protestar inocência num cantonense gárrulo.

— Calem-se! — rosnou Armstrong. Eles pararam. — Dêem-me os seus nomes! — Eles ficaram olhando para ele. Em cantonense, falou: — Digam como se chamam, e é melhor que não mintam, senão vou ficar muito puto da vida.

— Ele é Tak Chou-lan — falou o que tinha os dentes muito saltados, apontando para o outro.

— E o seu nome, qual é?

— É... Lo Tup-sop, senhor. Mas não fiz na...

— Lo Tup-sop? Não Lo Tup-lin?

— Ah, não, senhor superintendente, esse é meu irmão.

— Onde está ele?

O dentuço deu de ombros.

— Não sei. Por favor, o que está...

— Aonde ia com tanta pressa, Lo Dentuço?

— Tinha me esquecido de um compromisso, senhor. De grande importância! É urgente, e perderei uma fortuna, senhor, se não for imediatamente. Por favor, posso ir agora, Honrado Sen...

— Não! Eis aqui o mandado de busca. Vamos revistar e levar embora quaisquer papéis que...

Imediatamente, os dois homens começaram a protestar energicamente. Novamente, Armstrong os interrompeu.

— Querem ser levados para a fronteira, neste minuto? — Os dois homens empalideceram e sacudiram a cabeça. — Ótimo. Agora, onde está Thomas K. K. Lim? — Nenhum dos dois respondeu, então Armstrong cutucou com o dedo o mais jovem deles. — Você, Sr. Lo Dentuço! Onde está Thomas K. K. Lim?

— Na América do Sul, senhor — disse Lo, nervosamente.

— Onde?

— Não sei, senhor, apenas dividimos o escritório. Aquela é a droga da mesa dele. — Lo Dentuço fez um gesto nervoso com a mão para o canto da sala, onde havia uma mesa em desordem, um arquivo e um telefone. — Não fiz nada errado, senhor. Lim Estrangeiro é um estranho da Montanha Dourada. O Primo em Quarto Grau Tak aluga-lhe o espaço, senhor. Lim Estrangeiro entra e sai quando lhe dá na telha, e não tenho nada a ver com isso. Ele é um criminoso terrível? Se há alguma coisa errada, não estou sabendo de nada!

— Então, o que sabe do roubo dos fundos do programa da CARE?

— O quê? — exclamaram os dois, fitando-o, boquiabertos.

— Informantes deram-nos provas de que todos vocês estão roubando dinheiro de caridade, que pertence a mulheres e crianças famintas!

Prontamente, ambos começaram a protestar inocência.

— Chega! O juiz decidirá! Vocês irão ao quartel-general, prestar depoimento. — Voltou a falar em inglês: — Sargento, leve-os para o quartel-general. Cabo, vamos come...

— Honrado Senhor — Lo Dentuço começou a falar num inglês hesitante e nervoso —, posso conversar, no escritório, faz favor?

Indicou a sala interna, igualmente desarrumada e atulhada.

— Está bem.

Armstrong acompanhou Lo, sobrepujando-o muito em altura. O homem fechou a porta nervosamente e começou a falar em cantonense, rapidamente e em voz baixa.

— Não sei nada sobre nada criminoso, senhor. Se tem alguma coisa errada, é com aqueles dois sacanas. Sou apenas um comerciante honesto que quer ganhar dinheiro e mandar os filhos para a universidade na América e...

— Sim, naturalmente. O que queria me dizer em particular antes de ir para o quartel-general da polícia?

O homem sorriu nervosamente. Foi até a mesa e começou a destrancar uma gaveta.

— Se há um culpado, não sou eu, senhor. Não sei nada sobre coisa alguma. — Abriu a gaveta. Estava cheia de notas usadas, vermelhas, de cem dólares, presas em grupos de mil. — Se me deixar ir, senhor...

Sorriu para ele, mexendo nas notas.

O pé de Armstrong se esticou com força e a gaveta se fechou, prendendo as pontas dos dedos de Lo, e fazendo-o soltar um uivo de dor. Abriu às pressas a gaveta com a mão sã.

— Oh, oh, oh, a porra da...

Armstrong encostou a cara junto da do chinês apavorado.

— Escute aqui, seu bosta de cachorro, é contra a lei tentar subornar um policial, e se você disser que seus dedos foram feridos pela brutalidade da polícia, eu, pessoalmente, farei picadinho do seu Saco Secreto!

Apoiou-se contra a mesa, o coração disparado, um gosto de fel na garganta, furioso com a tentação e a visão de todo aquele dinheiro. Como seria fácil pegá-lo, pagar suas dívidas e ainda ter dinheiro de sobra para jogar na Bolsa e nas corridas, e depois sair de Hong Kong, antes que fosse tarde demais.

Tão fácil! Muito mais fácil pegar do que resistir... dessa vez, ou de todas as outras mil vezes. Devia haver trinta ou quarenta mil apenas naquela gaveta. "E se há uma gaveta cheia, deve haver outras, e se eu der um aperto nesse filho da mãe, ele vai cuspir dez vezes essa quantia."

Brutalmente, estendeu o braço e agarrou a mão do homem, que gritou de novo. A ponta de um dedo estava esmagada. Armstrong imaginou que Lo iria perder duas unhas, e sentir um bocado de dor, porém nada além disso. Ficou com raiva de si mesmo por ter perdido a paciência, mas estava cansado, e sabia que não era apenas o cansaço.

— O que sabe sobre Tsu-yan?

— Quem? Eu? Nada. Tsu-yan de quê? Armstrong agarrou-o e sacudiu-o.

— Tsu-yan! O contrabandista de armas Tsu-yan!

— Nada, senhor!

— Mentiroso! O Tsu-yan que visita o Sr. Ng, seu vizinho de porta!

— Tsu-yan? Ah, ele? Contrabandista de armas? Não sabia disso! Sempre pensei que fosse um comerciante. É um outro nortista, como o Ng Fotógrafo...

— Quem?

— Ng Fotógrafo, senhor. Vee Cee Ng, nosso vizinho de porta. Ele e esse Tsu-yan nunca entram aqui ou falam com a gente... Ai, preciso de um médico... ai, minha mão...

— Onde está Tsu-yan, agora?

— Não sei, senhor... ai, a porra da minha mão, oh, oh, oh... juro por todos os deuses que não o conheço... oh, oh, oh...

Com irritação, Armstrong jogou-o numa cadeira e abriu bruscamente a porta. Os três policiais e as duas secretárias fitaram-no em silêncio.

— Sargento, leve este sacana para o QG, sob a acusação de tentar subornar um policial. Olhe para isso...

Fez sinal para que entrasse, e mostrou-lhe a gaveta. Os olhos do sargento Yat se arregalaram.

— Dew neh loh moh!

— Conte-o e faça com que os dois homens assinem o recibo pela quantia exata, e leve-o para o QG com eles, e entregue ali o dinheiro.

— Sim, senhor.

— Cabo, comece a revistar os arquivos. Vou à sala ao lado. Volto já.

— Sim, senhor.

Armstrong se retirou. Sabia que o dinheiro seria contado rapidamente, assim como o restante do dinheiro que havia nas salas (se aquela gaveta estava cheia, outras também estariam), depois o dinheiro a ser entregue seria negociado rapidamente entre as partes, o sargento Yat, Lo e Tak, e o restante dividido entre eles. Lo e Tak acreditariam que ele receberia uma fatia grande, e seus próprios homens o considerariam louco por não recebê-la. Não fazia mal. Não se importava. O dinheiro era roubado, o sargento Yat e seus homens eram bons policiais, e seu salário totalmente inadequado para as suas responsabilidades. Um pouco de h'eung yau não lhes faria mal, seria um presente dos céus.

Não seria?

Na China era preciso ser pragmático, disse consigo mesmo, sombriamente, enquanto batia na porta do 721 e entrava. Uma secretária atraente ergueu os olhos do seu almoço — uma tigela de arroz branco, fatias de carne de porco assada e brócolos verdes fumegando agradavelmente.

— Boa tarde. — Armstrong mostrou rapidamente o seu cartão de identificação. — Gostaria de ver o Sr. Vee Cee Ng, por favor.

— Lamento, senhor — disse a moça, o inglês bom, e os olhos inexpressivos. — Ele saiu, foi almoçar.

— Onde?

— No clube dele, acho. Hoje não volta antes das cinco.

— Que clube?

Ela lhe disse. Jamais ouvira falar nele, o que não queria dizer nada, já que havia centenas de clubes chineses particulares para almoço, jantar ou mah-jong.

— Como se chama?

— Virgínia Tong, senhor — acrescentou, pensando melhor.

— Importa-se se eu der uma olhada por aí? — Viu os olhos dela brilharem nervosamente. — Eis aqui o meu mandado de busca.

Ela o pegou e leu, e ele pensou: "Nota 10, mocinha".

— Não pode esperar até as cinco? — indagou.

— Vou dar só uma espiadinha, agora.

Ela deu de ombros, levantou-se, e abriu a porta da sala interna. Era pequena e vazia, excetuando duas mesas desarrumadas, telefones, arquivos, cartazes de navegação e itinerários dos navios. A sala tinha duas portas internas e mais uma porta dos fundos. Abriu uma delas, no lado da 720, mas era um banheiro úmido e fétido, com uma pia suja. A porta dos fundos estava trancada com ferrolhos. Ele correu os ferrolhos e saiu para o escuro patamar das escadas de serviço, que serviam como saída de incêndio improvisada e meio alternativo de saída. Voltou a trancar a porta, observado o tempo todo por Virgínia Tong. A última porta, do outro lado, estava trancada.

— Quer abri-la, por favor?

— O Sr. Vee Cee tem a única chave, senhor. Armstrong soltou um suspiro.

— Eu tenho um mandado de busca, srta. Tong, e o direito de arrombar a porta, se necessário.

Ela apenas o fitou. Então ele deu de ombros, afastou-se da porta e preparou-se para arrombá-la com um chute. De verdade.

— Só... só um momento, senhor — gaguejou ela. — Vou... vou ver se... se ele deixou a chave antes de sair.

— Ótimo. Obrigado.

Armstrong olhou enquanto ela abria uma gaveta da mesa, e fingia procurar, depois outra gaveta, e mais outra, e então, pressentindo a impaciência dele, encontrou a chave debaixo de uma caixinha de dinheiro.

— Ah, aqui está! — exclamou, como se um milagre tivesse acontecido. Ele notou que ela estava suando. Ótimo, pensou. Ela destrancou a porta e recuou. A porta dava diretamente para uma outra. Armstrong abriu-a, e soltou um assobio involuntário. A sala que ficava do outro lado era grande, luxuosa, com carpete espesso, sofás elegantes de couro acamurçado, mobília de pau-rosa e belos quadros. Foi entrando. Virgínia Tong ficou olhando, parada à porta. A bela mesa antiga de pau-rosa, tampo de couro, estava nua, limpa e lustrada. Sobre ela apenas um vaso de flores, e algumas fotos emolduradas, todas de um chinês sorridente segurando um cavalo de corrida com uma guirlanda ao pescoço, e uma do mesmo chinês em traje a rigor, apertando a mão do governador, Dunross nas proximidades.

— Este é o Sr. Ng?

— Sim, senhor.

De um lado da sala, um toca-discos de alta qualidade e um armário alto, tipo bar. A sala tinha outra porta, que estava parcialmente aberta. Ele a empurrou, deparando com um dormitório elegante e muito feminino, com uma cama imensa e desfeita, teto de espelhos, e um banheiro adjacente todo decorado, com perfumes, loções após barba, ferragens modernas e brilhantes e muitos baldes de água.

— Interessante — comentou, e olhou para ela. Ela ficou calada, esperando.

Armstrong viu que usava meias de náilon e era muito jeitosa, com cabelos e unhas bem-tratados. Aposto que é um dragão, e dispendiosa. Deu-lhe as costas e olhou ao seu redor, pensativo. Estava claro que aquele apartamento independente ocupava a suíte adjacente. "Bem", disse para si mesmo, com um toque de inveja, "se você é rico e quer um apartamento particular e secreto para uma tarde de prazer por trás do seu escritório, não há lei que o proíba. Nenhuma. E nenhuma lei que proíba ter uma secretária atraente. Filho da mãe sortudo. Eu mesmo não acharia ruim ter um lugar desses."

Distraidamente, abriu uma gaveta da mesa. Estava vazia. Todas as gavetas estavam vazias. A seguir, vasculhou as gavetas do dormitório, mas não encontrou nada de interessante. Um dos armários continha uma boa máquina fotográfica, algum equipamento de iluminação portátil e alguns materiais de limpeza, mas nada de suspeito.

Voltou à sala principal, satisfeito por não ter deixado passar nada. Ela ainda o fitava, e embora tentasse disfarçar, ele podia sentir o seu nervosismo.

"É compreensível", falou consigo mesmo. "Se eu fosse ela, meu patrão tivesse saído e um quai loh nojento viesse bisbilhotar, também ficaria nervosa. Não há mal em ter um lugar particular como esse. Muita gente rica tem, em Hong Kong." Teve a atenção despertada pelo armário de pau-rosa, tipo bar. A chave na fechadura o atraía. Abriu a porta. Nada fora do comum. E então, seus olhos vivos e bem-treinados notaram a largura incomum das portas. Uma inspeção de momento, e abriu as portas falsas. Caiu-lhe o queixo.

As paredes laterais do armário estavam cobertas com dúzias de fotos de Portões de Jade em toda a sua glória. Cada foto estava emoldurada com capricho, e etiquetada com um nome e uma data datilografados. Involuntariamente, deixou escapar uma risada de embaraço, depois olhou ao seu redor. Virgínia Tong havia sumido. Rapidamente, correu os olhos pelos nomes. O dela era o antepenúltimo.

Outro paroxismo de riso foi contido a custo. O policial sacudiu a cabeça, desanimado. "O que certos sacanas fazem para se divertir... e certas moças por dinheiro! Pensei que já tinha visto de tudo, mas isto... Ng Fotógrafo, hem? Então, é daí que vem o apelido dele."

Tendo superado o choque inicial, examinou as fotos. Cada uma fora tirada com a mesma lente, da mesma distância.

"Santo Deus", pensou depois de um minuto, estupefato, "tem mesmo um bocado de diferença entre... Quero dizer, se a gente puder esquecer o que está vendo, e apenas olhar, bem, tem uma diferença fantástica no formato e tamanho do todo, na posição e protuberância da Pérola no Degrau, na qualidade e quantidade de pêlos púbicos... ayeeyah, tem uma aqui pat jam gai." Olhou para o nome: "Mona Leung... ora, onde ouvi esse nome antes? É curioso... geralmente os chineses consideram a falta de pêlos uma coisa azarada. Ora, por que... ah, meu Deus!" Espiou bem para a próxima etiqueta, para certificar-se. Não havia erro algum. Vênus Poon. "Ayeeyah", pensou, encantado, "então esta é a dela, é assim que ela é realmente, a queridinha da TV que diariamente projeta tão bem uma inocência assaz doce e virginal!"

Concentrou-se nela, os sentidos bestifiçados. "Suponho que, se compararmos a dela com, digamos, digamos, a de Virginia Tong, bem, ela não deixa de ter uma certa delicadeza. É, mas se quiserem a minha opinião abalizada, eu preferiria ter conservado o mistério e não ter visto nada disso. Nenhuma delas."

Indolentemente, seus olhos iam de nome em nome.

— Puta que o pariu! — exclamou, reconhecendo um deles: Elizabeth Mithy. Fora secretária da Struan, uma dos bandos de garotas das cidades pequenas da Austrália e Nova Zelândia, moças que apareciam em Hong Kong, sem destino certo, para passar algumas semanas, e ficavam durante meses, talvez anos, em empregos sem importância, até que se casavam, ou sumiam para sempre. "Ora, vejam só! Liz Mithy!"

Armstrong estava tentando ser desapaixonado, mas não pôde deixar de comparar as caucasianas com as chinesas, e não achou diferença alguma. "Graças a Deus por isso", disse com seus botões, e deu uma risadinha abafada. Mesmo assim, ficou contente pelas fotos serem em preto e branco, e não em cores.

— Bem — falou em voz alta, ainda muito encabulado —, não há lei contra tirar fotografias, ao que eu saiba, e pregá-las no próprio armário. As mocinhas devem ter cooperado... — Soltou um resmungo, divertido e enojado a um só tempo. — Macacos me mordam se vou chegar a entender os chineses! Liz Mithy, hem? — murmurou. Conhecera-a ligeiramente quando estivera na colônia, sabia que era bem "avançada". "Mas o que deu nela para posar para Ng? Se o pai dela soubesse, teria um derrame. Graças a Deus que não temos filhos, Mary e eu.

"Seja honesto, você morre de vontade de ter filhos e filhas, mas não pode tê-los, pelo menos Mary não pode, ao que dizem os médicos... portanto você não pode."

Com um esforço, Armstrong abafou de novo a eterna imprecação, trancou outra vez o armário e saiu, fechando as portas atrás de si.

Na ante-sala, Virgínia Tong passava esmalte nas unhas, evidentemente furiosa.

— Pode ligar para o Sr. Ng, por favor?

— Não, antes das quatro não — falou, de cara fechada, sem olhar para ele.

— Então, por favor, ligue para o Sr. Tsu-yan — pediu Armstrong, dando um tiro no escuro.

Sem procurar o número, ela discou, esperou impaciente, tagarelou guturalmente por um momento em cantonense, depois bateu o telefone.

— Não está. Saiu da cidade, e ninguém no seu escritório sabe onde se encontra.

— Quando o viu pela última vez?

— Há uns três ou quatro dias. — Com irritação, abriu a agenda e verificou. — Foi na sexta-feira.

— Posso dar uma olhada, por favor?

Ela hesitou, deu de ombros e passou-a para ele. Depois voltou a passar esmalte nas unhas.

Rapidamente, ele correu os olhos pelas semanas e meses. Muitos nomes conhecidos: Richard Kwang, Jason Plumm, Dunross — Dunross várias vezes —, Thomas K. K. Lim (o misterioso americano-chinês da sala vizinha), Johnjohn do Victoria Bank, Donald McBride, Mata diversas vezes. "Ora, quem é esse Mata?", perguntou-se, pois nunca ouvira o nome antes. Já ia entregar a agenda à moça, quando resolveu folhear as páginas vindouras. "Sábado, dez da manha — V. Banastasio." Seu coração se apertou. O sábado seguinte.

Não disse nada, recolocou a agenda sobre a mesa e encostou-se num dos arquivos, imerso em pensamentos. Ela não prestava atenção nele. A porta se abriu.

— Com licença, telefone para o senhor! — disse o sargento Yat. Estava com uma cara muito mais feliz, e Armstrong imaginou que as negociações deviam ter sido rendosas. Gostaria de poder saber quanto, exatamente, mas isso envolveria o seu prestígio, e ele teria que tomar uma atitude, fosse qual fosse.

— Está bem, sargento, fique aqui até que eu volte — disse, querendo certificar-se de que não seria dado nenhum telefonema secreto. Virgínia Tong não ergueu os olhos enquanto ele se retirava.

No outro escritório, Lo Dentuço ainda gemia, segurando a mão machucada, e o outro sujeito, Tak Mãos Grandes, fingia estar despreocupado, examinando alguns papéis, recriminando em altas vozes a secretária pela sua ineficiência. Quando ele entrou, os dois homens começaram a protestar em altos brados a sua inocência, e Lo gemeu com mais vigor.

— Quieto! Quem mandou prender os dedos na gaveta?

— Armstrong perguntou, e acrescentou, sem esperar resposta:

— Gente que tenta subornar policiais honestos merece ser deportada imediatamente. — No silêncio estarrecido, atendeu ao telefone. — Armstrong.

— Alô, Robert, aqui fala Don, Don Smyth de Aberdeen Leste...

— Oh, alô! — Armstrong ficou surpreso, pois não esperava ouvir o Cobra, mas manteve a voz educada, embora o detestasse, assim como ao que se suspeitava que ele fizesse na sua jurisdição. Uma coisa era os guardas e os escalões inferiores da polícia chinesa suplementarem seus ganhos com a jogatina ilícita. Outra era. um oficial de polícia britânico fazer tráfico de influência, e extorquir como um mandarim do tempo antigo. Mas embora quase todos achassem que Smyth recebia grana por fora, não havia provas, ele nunca fora apanhado, ou sequer investigado. Dizia-se que era protegido por certos vips que estavam envolvidíssimos com ele, assim como com a sua própria corrupção. — O que há? — indagou.

— Tive um pouquinho de sorte. Acho. Está encarregado do seqüestro de John Chen, não é?

— Estou. — O interesse de Armstrong aumentou vertiginosamente. A corrupção de Smyth não tinha nada a ver com a qualidade do seu trabalho policial; Aberdeen Leste tinha o índice de crimes mais baixo da colônia. — O que descobriu?

Smyth contou-lhe sobre a velha amah e o que acontecera com o sargento Mok e Wu Óculos, depois acrescentou:

— Ele é um rapaz muito vivo, Robert. Eu o recomendaria para o sei, se você quiser endossar a recomendação. Wu seguiu a velhota até o seu covil imundo, depois ligou para nós. Ele obedece ordens, também, o que é coisa rara, atualmente. Tive um palpite e mandei que esperasse e, caso ela saísse, fosse atrás dela. O que acha?

— Uma pista de vinte e quatro quilates!

— O que você prefere? Esperamos, ou vamos prendê-la para interrogatório?

— Esperamos. Aposto que o tal Lobisomem nunca vai voltar, mas vale a pena esperar até amanhã. Mantenha o local sob vigilância, e avise-me de qualquer coisa.

— Está bem, ótimo!

Armstrong ouviu Smyth casquinar no telefone, e não pôde imaginar por que estaria tão feliz. Então, lembrou-se da imensa recompensa que os Grandes Dragões haviam oferecido.

— Como está o seu braço?

— É o meu ombro. O danado está deslocado, e perdi a porra do meu chapéu predileto. Tirando isso, tudo bem. O sargento Mok está examinando todos os retratos do fichário de criminosos, e um dos meus rapazes está fazendo um retrato falado dele... acho que eu mesmo vi o sacana. O rosto dele é todo marcado de varíola. Se for fichado, botaremos as mãos nele até o anoitecer.

— Excelente. Como vão as coisas por aí?

— Tudo sob controle, mas está ruim. O Ho-Pak ainda está pagando, mas devagar demais... todo mundo sabe que estão ganhando tempo. Ouvi dizer que é a mesma coisa por toda a colônia. Estão acabados, Robert. A fila vai continuar até que todo centavo tenha sido sacado. Há outra corrida aqui no Vic, e as multidões não diminuem...

Armstrong soltou uma exclamação abafada:

— No Vic?

— É, estão entregando dinheiro aos montes, e não está entrando nada. Os tríades estão enxameando... os lucros devem estar sendo imensos. Prendemos oito batedores de carteira e acabamos com vinte e tantas brigas. Diria que a coisa está preta.

— Mas sem dúvida o Vic está bem, não?

— Não em Aberdeen, meu rapaz. Quanto a mim, tudo bem. Fechei todas as minhas contas. Saquei cada tostão. Estou numa boa. Se fosse você, faria o mesmo.

Armstrong sentiu-se nauseado. Todas as suas economias estavam no Victoria.

— O Vic tem que estar bem. Todos os fundos do governo estão depositados lá.

— É isso aí. Mas nada nos estatutos deles diz que seu dinheiro também está protegido. Bem, tenho que voltar ao trabalho.

— É. Obrigado pela informação. Lamento quanto ao seu ombro.

— Pensei que iam esmagar a minha maldita cabeça. Os sacanas começaram com a velha história: "matem os quai loh". Pensei que tinha chegado a minha hora.

Armstrong não conseguiu conter um arrepio. Desde os levantes de 56, ele tinha freqüentes pesadelos de que estava de novo no meio daquela turba enlouquecida e ululante. Fora em Kowloon. A turba tinha acabado de virar o carro em que estavam o cônsul da Suíça e a mulher e ateara fogo nele. Ele e outros policiais haviam aberto caminho à força entre a turba para salvá-los. Quando chegaram ao carro, o homem já estava morto, e a jovem mulher, em chamas. Quando conseguiram arrastá-la para fora, o fogo devorara cada peça de roupa dela, e a sua pele soltara-se inteiramente do corpo. E ao redor deles, homens, mulheres e jovens esbravejavam "Matem os quai loh..."

Ele estremeceu de novo, as narinas ainda sentindo o cheiro da carne queimada.

— Deus, que filhos da mãe!

— É, mas tudo faz parte de um dia de trabalho. Se aquele maldito Lobisomem voltar a Aberdeen, estará numa rede mais apertada do que o eu de um borrachudo.

 

                     14h20m

Phillip Chen parou de manusear sua correspondência, o rosto subitamente sem cor. No envelope estava escrito: "Sr. Phillip Chen, pessoal".

— O que foi? — perguntou a mulher.

— É da parte deles. — Com mãos trêmulas, mostrou-lho. — Dos Lobisomens.

— Oh! — Estavam à mesa do almoço, posta descuidadamente num canto da sala de estar da casa que ficava bem na crista do Mirante de Struan. Nervosamente, ela pousou a xícara de café. — Abra-a, Phillip. Mas... mas é melhor usar o lenço, para... o caso de haver impressões digitais — acrescentou, inquieta.

— É, mas é claro, Dianne, que burrice a minha! — Phillip Chen parecia muito velho. Seu casaco estava nas costas da cadeira, e a camisa, úmida. Da janela aberta às suas costas vinha uma leve brisa, mas era quente e úmida, e uma névoa vespertina pairava sobre a ilha. Cuidadosamente, ele usou um cortador de papel de marfim e desdobrou o papel. — É, é dos... Lobisomens. É... sobre o resgate.

— Leia em voz alta.

— Está bem: "Para Phillip Chen, representante nativo da Casa Nobre, saudações. Venho lhe informar agora como deve ser pago o dinheiro do resgate. Quinhentos mil para você significa tanto quanto o grito de um porco no matadouro, mas para nós, pobres agricultores, seria uma herança para os nossos..."

— Mentirosos! — sibilou Dianne, o belo colar de ouro e jade brilhando à luz de um raio de sol discreto. — Como se os agricultores fossem capazes de seqüestrar John, e mutilá-lo daquele jeito. Tríades estrangeiros sujos, nojentos! Continue, Phillip.

— "... seria uma herança para nossos netos esfaimados.

Que você já tenha consultado a polícia, para nós é a mesma coisa que mijar no oceano. Mas agora não consultará. Não. Agora manterá segredo, ou a segurança de seu filho estará ameaçada. Ele não voltará, e tudo será culpa sua. Cuidado, temos olhos em toda parte. Se tentar nos trair, o pior acontecerá, e será tudo culpa sua. Hoje à noite, às seis horas, vou lhe telefonar. Não conte a ninguém, nem à sua mulher. Nesse mei..."

— Tríades sujos! Filhos da puta sujos, tentando criar problemas entre marido e mulher — disse Dianne, com raiva.

— "... nesse meio tempo prepare o dinheiro do resgate em notas usadas de cem dólares..." — Com irritação, Phillip Chen olhou para o relógio. — Não tenho muito tempo para chegar ao banco. Terei...

— Acabe a carta!

— Está certo, seja paciente, minha querida — falou, apaziguadoramente, o coração sobrecarregado falhando uma batida, ao reconhecer a irritação na voz dela. — Onde estava? Ah, sim... "dólares. Se obedecer fielmente às minhas instruções, poderá ter seu filho de volta ainda hoje..." Ah, Deus, espero que sim — falou, interrompendo-se momentaneamente, depois continuou: — "Não consulte a polícia ou tente nos preparar uma armadilha. Nossos olhos o estão vigiando agora mesmo. Assinado: Lobisomem". — Tirou os óculos. Os olhos estavam vermelhos e cansados. A testa estava molhada de suor. — "Vigiando-o, agora mesmo"? Será que um dos criados... ou o motorista está a serviço deles?

— Não, claro que não. Há anos que estão conosco.

Ele enxugou o suor, sentindo-se muito mal, querendo John de volta, querendo que estivesse a salvo, querendo estrangulá-lo.

— Isso não quer dizer nada. Acho... melhor chamar a polícia.

— Deixe para lá! Deixe para lá até sabermos o que você tem a fazer. Vá ao banco. Pegue apenas duzentos mil... deve conseguir que eles aceitem essa quantia. Se pegar mais, pode sentir-se tentado a entregar-lhes tudo, se esta noite... se eles realmente estão falando a sério.

— É... muito sensato. Se conseguirmos que aceitem isso... — Hesitou. — E quanto ao tai-pan? Acha que devo contar ao tai-pan, Dianne? Ele, ele poderia ajudar.

— Hum! — exclamou ela, desdenhosamente. — Que ajuda pode nos dar? Estamos lidando com tríades ossos-de-cachorro, não demônios estrangeiros ladrões. Se precisarmos de ajuda, teremos que contar com a nossa gente. — Os olhos dela fitaram-no intensamente. — E agora é melhor que me conte qual é o problema, realmente. Por que ficou tão zangado, anteontem à noite, e por que tem estado como um gato irritado com um espinho no rabo, desde então, sem cuidar dos negócios?

— Tenho cuidado dos negócios — disse, na defensiva.

— Quantas ações comprou? Hem? Ações da Struan? Tirou vantagem do que o tai-pan nos contou sobre a alta vindoura? Lembra-se do que o Velho Cego Tung predisse?

— Claro, claro que lembro — gaguejou. — Eu, eu dobrei secretamente os nossos valores, e dei ordens secretas a vários corretores para dobrarem mais metade.

A mente de ábaco de Dianne Chen iluminou-se ao pensar no vasto lucro, e em todo o lucro particular que ela ganharia com todas as ações que comprara em seu próprio nome, dando como garantia toda a sua carteira de ações. Mas manteve a fisionomia fria e a voz gelada.

— E quanto pagou?

— Em média 28,90.

— Hum! Segundo os jornais de hoje, a Casa Nobre abriu a 28,80 — falou com um fungado de reprovação, furiosa porque ele pagara cinco cents menos por ação do que ela. — Devia ter estado na Bolsa hoje de manhã, ao invés de ficar aqui em casa pelos cantos, passando o tempo dormindo.

— Não estava me sentindo muito bem, querida.

— Tudo está ligado a anteontem à noite. O que o fez ficar furioso daquela maneira? Heya?

— Não foi nada. — Levantou-se, na esperança de fugir.

— Nada...

— Sente-se! Nada para que você tenha gritado comigo, sua fiel mulher, na frente dos criados? Nada para que eu fosse mandada para dentro da minha sala de jantar, como uma prostituta comum? Heya? — A voz dela começou a aumentar de volume, e ela continuou, sabendo instintivamente que aquela era a hora certa, agora que estavam sozinhos na casa, sabendo que ele estava indefeso e que ela podia tirar vantagem disso.

— Acha que não é nada o fato de me tratar mal, a mim, que lhe dei os melhores anos da minha vida, trabalhando, mourejando e cuidando de você por vinte e três anos? Eu, Dianne Mai-wei T'Chung, em cujas veias corre o sangue dó grande Dirk Struan, que o conheceu virgem, com propriedade em Wanchai, North Point e até em Lan Tao, com títulos e ações e a melhor educação na Inglaterra? Eu, que nunca reclamo dos seus roncos, das suas prevaricações, ou do moleque que teve com aquela dançarina de cabaré que mandou estudar nos Estados Unidos!

— Hem?

— É, sei tudo sobre você e ela e todas as outras, e todas as outras coisas feias que você faz, e que nunca me amou, mas só queria os meus bens e um enfeite perfeito para a sua vida insípida...

Phillip Chen estava tentando fechar os ouvidos, mas não conseguia. Seu coração batia com força. Detestava brigas, e detestava a voz aguda dela, que conseguia o tom exato para fazê-lo rilhar os dentes, que fazia com que seu cérebro oscilasse e seus intestinos ficassem revoltos. Tentou interrompê-la, mas ela não deixou, atormentando-o, acusando-o de todo tipo de prevaricações, erros e assuntos particulares. Saber o quanto ela sabia o deixou chocado.

—... e quanto ao seu clube?

— Hem, que clube?

— O clube chinês particular para almoço de quarenta e três membros, chamado 74, num quarteirão perto da Pedder Street, com um cozinheiro gourmet de Xangai, recepcionistas adolescentes, dormitórios, saunas e dispositivos que os velhotes sujos precisam para levantar os seus Talos Murchos? Hem?

— Não é nada disso — gaguejou Phillip Chen, aterrorizado ao ver que ela sabia. — É um lug...

— Não minta para mim! Você pagou oitenta e sete mil bons dólares americanos de sinal, com Shitee TChung e aqueles seus dois amigos sebosos, e continua pagando quatro mil HK de mensalidade. A troco do quê? É melhor... Aonde pensa que vai?

Humildemente, ele se sentou de novo.

— Ia... estou com vontade de ir ao banheiro.

— Hum! Sempre que temos uma discussão, quer ir ao banheiro! O que você tem é vergonha do modo como me trata, e sentimento de culpa... — Então, vendo que ele estava prestes a estourar com ela, mudou de tática rapidamente, a voz meiga e baixa. — Pobre Phillip! Pobrezinho! Por que estava tão zangado? Quem o magoou?

Então ele lhe contou, e logo que começou a contar, sentiu-se melhor. Sua angústia, medo e fúria começaram a se dissolver. As mulheres eram espertas e astutas nessas coisas, disse com seus botões, confiante, continuando a narrativa. Contou-lhe como abrira a caixa de depósito bancário de John, falou-lhe das cartas para Linc Bartlett, da duplicata da chave do próprio cofre do quarto deles.

— Trouxe todas as cartas de volta — falou, quase à beira das lágrimas. — Estão lá em cima, pode lê-las você mesma. Meu próprio filho! Ele nos traiu!

— Meu Deus, Phillip — exclamou ela —, se o tai-pan descobrir que você e o Pai Chen-chen estavam guardando... se soubesse, nos arruinaria!

— É, eu sei! Foi por isso que fiquei tão nervoso! Pelas regras do legado de Dirk, ele tem o direito e os meios. Ficaríamos arruinados. Mas, mas não é só isso. John sabia onde ficava o nosso cofre secreto no jardim e...

— O quê?

— É, e o desenterrou. Contou a ela sobre a moeda.

— Ayeeyah! — Ela o fitou em choque absoluto, metade da sua mente cheia de terror, a outra de êxtase, pois agora, quer John voltasse, quer não, ele estava destruído. John jamais herdaria, agora! Seu Kevin era o Filho Número Um, agora, e futuro representante nativo da Casa Nobre! Então, seus temores abafaram o entusiasmo, e ela murmurou, aterrorizada: — Se ainda existir a Casa dos Chens.

— Como? O que foi que disse?

— Nada, deixe para lá. Espere um momento, Phillip, deixe-me pensar. Ah, o rapaz perverso! Como pôde John fazer isso com a gente, nós que o adoramos toda a sua vida! É... é melhor você ir ao banco. Saque trezentos mil para o caso de ter que barganhar mais um pouco. Precisamos trazer o John de volta, custe o que custar. Será que guardava a moeda com ele, ou estaria na outra caixa de depósito bancário?

— Estaria na caixa... ou escondida no seu apartamento no Sinclair Towers.

A fisionomia dela se fechou.

— Como podemos revistar aquele lugar com ela morando ali? Aquela mulher dele? Aquela vagabunda da Barbara! Se ela suspeitar que estamos atrás de alguma coisa... — Sua mente agarrou um fio solto. — Phillip, seja quem for que apresente a moeda, receberá o que quiser?

— É.

— Eeeee! Que poder!

— É.

Agora, sua mente funcionava com clareza.

— Phillip — disse, novamente controlada, todo o resto esquecido —, precisamos de toda a ajuda que conseguirmos obter. Telefone para o seu primo Quatro Dedos... — Ele olhou para ela, espantado, depois começou a sorrir. — Peça a ele para mandar alguns dos seus lutadores de rua seguirem você secretamente para protegê-lo quando for pagar o resgate, depois para seguirem o Lobisomem até o covil dele, e salvarem John, custe o que custar. Haja o que houver, não mencione a moeda... só que você quer ajuda para salvar o pobre John. Só isso. Temos que trazer o pobre John de volta, custe o que custar.

— É — replicou ele, muito mais feliz, agora. — Quatro Dedos é a escolha perfeita. Deve-nos um ou dois favores. Sei onde posso encontrá-lo, hoje à tarde.

— Ótimo. Pode ir indo para o banco, mas dê-me a chave do cofre. Vou cancelar a minha hora no cabeleireiro e ler os papéis de John, agora mesmo.

— Muito bem. — Levantou-se, imediatamente. — A chave está lá em cima — mentiu, e saiu às pressas, não querendo que ela fosse bisbilhotar o cofre.

Havia lá várias coisas que não queria que ela visse. "É melhor que eu as esconda noutro lugar, por via das dúvidas", pensou, inquieto. Sua euforia desapareceu, e a ansiedade sufocante retornou. "Oh, meu pobre filho", falou consigo mesmo, quase em lágrimas. "O que deu em você? Fui um bom pai para você, e será sempre meu herdeiro, e amei-o como amei sua mãe. Pobre Jennifer, pobrezinha, morrendo de parto do meu primeiro filho. Oh, todos os deuses: permitam que o meu pobre filho volte para mim em segurança, não importa o que tenha feito, deixem que nos livremos de toda esta loucura, e dotarei um templo novo para todos vocês, igualmente!"

O cofre ficava por trás da armação da cama de metal. Ele a afastou da parede, abriu o cofre e tirou de lá todos os papéis de John, depois as suas escrituras, cartas e notas promissórias particulares, que enfiou no bolso do casaco, e desceu de novo as escadas.

— Tome as cartas de John — falou. — Quis lhe poupar o trabalho de arrastar a cama.

Ela notou o volume no bolso do casaco dele, mas ficou calada.

— Estarei de volta às cinco e meia em ponto.

— Tudo bem. Guie com cuidado — falou, distraidamente, todo o seu ser concentrado num único problema... como obter a moeda para Kevin e para si mesma. Secretamente.

O telefone tocou. Phillip Chen parou à porta de entrada, enquanto ela atendia.

— Weyyyy? — Seus olhos ficaram vidrados. — Oh, alô, tai-pan, como está?

Phillip Chen empalideceu.

— Muito bem, obrigado — respondeu Dunross. — Phillip está?

— Está, sim, um minutinho. — Podia ouvir muitas vozes ao fundo, além da de Dunross, e pensou ter notado na voz dele uma urgência velada que aumentou o seu pavor. — Phillip, é para você — disse, tentando disfarçar o nervosismo. — O tai-pan!

Estendeu-lhe o fone, fazendo um sinal silencioso para que ele o mantivesse um pouco afastado do ouvido, para ela poder escutar também.

— Sim, tai-pan?

— Alô, Phillip. Quais são seus planos para hoje à tarde?

— Nada de especial. Estava saindo para ir ao banco, por quê?

— Antes de ir, passe pela Bolsa. O mercado enlouqueceu. A corrida ao Ho-Pak agora está espalhada por toda a colônia, e as ações estão balançando, embora Richard as esteja apoiando com tudo o que tem ao seu alcance. A qualquer momento, vão cair. A corrida está se espalhando para muitos outros bancos, ao que consta... o Ching Prosperity, até mesmo o Vic... — Phillip Chen e a mulher se entreolharam, perturbados. — Parece que o Vic está com problemas em Aberdeen e na central. Tudo baixou, todas as nossas blue chips: O Victoria and Albert, Investimentos Kowloon, Companhia de Força de Hong Kong, Rothwell-Gornt, Propriedades Asiáticas, Títulos Mobiliários Zong, Tecelagem Solomon, nós... todo mundo.

— Quantos pontos baixamos?

— Desde hoje de manhã? Três pontos.

Phillip Chen soltou uma exclamação abafada e quase deixou cair o aparelho.

— Como?

— É — disse Dunross, amavelmente. — Alguém começou uns boatos a nosso respeito. O mercado todo já está sabendo que estamos encrencados, que não podemos pagar a Toda na semana que vem... nem a prestação do Orlin. Acho que estão vendendo nossas ações a descoberto.

 

                     14h45m

Gornt estava sentado ao lado do seu corretor, Joseph Stern, na Bolsa de Valores, observando radiante o grande quadro. Estava quente e muito úmido no salão lotado e ruidoso, telefones tocando, corretores suando, funcionários e operadores chineses. Normalmente a Bolsa era um local calmo. Mas não nesse dia. Todos estavam tensos e concentrados. E inquietos. Muitos haviam tirado o paletó.

As ações do próprio Gornt haviam baixado um ponto, mas aquilo não o incomodava nem um pouco. As da Struan haviam baixado 3,50, e o Ho-Pak estava balançando. "O tempo está se esgotando para a Struan", pensou, "tudo está preparado, tudo começou." O dinheiro de Bartlett fora depositado no seu banco suíço no prazo de uma hora, sem restrições... apenas dois milhões transferidos de uma conta desconhecida para a dele. Sete telefonemas tinham dado início aos rumores. Outro telefonema para o Japão confirmara a exatidão das datas de pagamento da Struan. "É", pensou, "o ataque começou."

Sua atenção prendeu-se à posição do Ho-Pak no quadro, enquanto um corretor anotava mais ofertas de venda. Não houve compradores imediatos.

Como começara a vender secretamente ações do Ho-Pak a descoberto na segunda-feira, pouco antes de a Bolsa fechar, às três horas — muito antes de. a corrida ter começado para valer —, estava milhões à frente. Na segunda-feira as ações haviam sido vendidas a 28,60, e agora, mesmo com o apoio que Richard Kwang estava dando, tinham baixado para 24,30... a cotação mais baixa de toda a sua história, desde que o banco fora fundado, há onze anos.

"4,30 vezes quinhentas mil dá dois milhões cento e cinqüenta mil", pensava Gornt, satisfeito. "Tudo em moeda corrente legítima de Hong Kong, se eu quisesse recomprar agora, o que não é nada mau para quarenta e oito horas de trabalho. Mas ainda não vou recomprar, claro que não. Ainda não. Agora tenho certeza de que as ações vão desabar, se não hoje, amanhã, quinta-feira. Se não na quinta, na sexta... o mais tardar na segunda, pois não há banco no mundo que possa agüentar uma corrida dessas. Então, quando houver a queda, recomprarei a poucos cents por dólar e ganharei vinte vezes meio milhão."

— Venda duzentas mil — disse, começando a vender a descoberto abertamente, agora... as outras ações escondidas cuidadosamente, espalhadas pelos seus representantes secretos.

— Santo Deus, Sr. Gornt — exclamou o seu corretor. — O Ho-Pak terá que levantar quase cinco milhões para cobrir isso. Vai sacudir todo o mercado.

— É — concordou, jovialmente.

— Vamos ter uma trabalheira para tomar emprestadas as ações.

— Pois faça-o.

Relutante, o corretor começou a se retirar, mas um dos telefones tocou.

— Sim? Oh, alô, Chang Diurno — falou, num cantonense passável. — O que deseja?

— Que possa salvar todo o meu dinheiro, Honorável Intermediário. A quanto está vendendo a Casa Nobre?

— 25,30.

Ouviu-se um guincho de pesar.

— Ai, ai, ai, tem só pouco mais de meia hora de movimento na Bolsa. Maldição! Ai, ai, ai! Por favor, venda! Por favor, venda imediatamente todas as companhias da Casa Nobre. Casa Nobre, Propriedades Boa Sorte e Balsa Dourada, também... a quanto está vendendo a Segunda Grande Companhia?

— 23,30.

— Ayeeyah, um ponto a menos do que hoje de manhã? Todos os deuses testemunhem o grande azar! Venda. Por favor, venda tudo imediatamente!

— Mas, Chang Diurno, o mercado está muito firme e...

— Imediatamente! Não ouviu os rumores? A Casa Nobre vai falir! Eeee, venda, não perca um minuto! Espere um momento, minha sócia Fung-tat também quer lhe falar.

— Sim, Terceira Arrumadeira Fung?

— O mesmo que disse Chang Diurno, Honorável Intermediário! Venda! Antes que eu esteja perdida! Venda e ligue-nos dando os preços, oh, oh, oh! Depressa, por favor.

Ele desligou. Fora o quinto telefonema que recebera de velhos clientes em pânico, e não estava gostando nada daquilo. "É uma burrice entrar em pânico", pensou, verificando o seu livro de ações. Juntos, Chang Diurno e a Terceira Arrumadeira Fung haviam investido mais de quarenta mil HK em diversas ações. Se ele vendesse agora, ainda levariam vantagem, exceto pelas perdas da Struan hoje, que tirariam a maior parte dos seus lucros.

Joseph Stern era o chefe da firma Stern and Jones, que estava em Hong Kong há cinqüenta anos. Fora somente depois da guerra que tinham se tornado corretores. Antes disso, tinham sido agiotas, fornecedores de navios e proprietários de uma casa de câmbio. Stern era um homem pequeno e de cabelos escuros, bastante calvo, na casa dos sessenta anos, e muita gente achava que tinha sangue chinês nas veias, de algumas gerações passadas.

Caminhou para junto do quadro e parou diante da coluna que indicava as cotações da Balsa Dourada. Escreveu o número de ações combinadas de Chang e Fung na coluna de venda. Era uma oferta pequena.

— Compro a trinta cents abaixo da cotação — disse um corretor.

— Não há corrida alguma à Balsa Dourada — replicou, vivamente.

— Não, mas é uma companhia da Struan. Sim ou não?

— Sabe muito bem que os lucros da Balsa Dourada subiram este trimestre.

— Não diga! Porra, mas como está quente! Não acha que podíamos instalar condicionadores de ar aqui na Bolsa? Como é, meu velho, sim ou não?

Joseph Stern pensou por um momento. Não queria pôr lenha na fogueira e aumentar o nervosismo. Na véspera a Balsa Dourada subira um dólar porque todo o ramo sabia que a assembléia anual deles era na semana vindoura. Fora um bom ano, e comentava-se que haveria distribuição de ações aos acionistas. Mas ele conhecia a primeira regra de todas as Bolsas: um dia não tinha nada a ver com o seguinte. O cliente dissera: "Venda".

— Vinte cents abaixo? — perguntou.

— Trinta. Minha oferta derradeira. O que lhe importa, ainda recebe o seu dinheiro. Como é, trinta?

— Está bem.

Stern foi correndo as companhias no quadro, vendendo a maioria das ações delas sem problema, embora a cada vez tivesse que ceder no preço. Com dificuldade, tomou emprestadas ações do Ho-Pak. Agora, parou diante da coluna referente ao banco. Havia muitas ordens de venda, a maioria de pequenas quantidades. Escreveu "200 000" no fim da lista da coluna de venda. Uma onda de choque varreu a sala. Ele a ignorou. Apenas olhou para Forsythe, que era o corretor de Richard Kwang. Era o único comprador das Ho-Pak.

— O Quillan está tentando acabar com o Ho-Pak? — perguntou um corretor.

— Já está sitiado. Quer comprar as ações?

— Nem por sombra! Também está vendendo Struan a descoberto?

— Não. Não estou.

— Meu Deus, não estou gostando nada disso.

— Fique calmo, Harry — falou alguém. — Pelo menos o mercado ganhou vida, é o que conta.

— Grande dia, não? — comentou com ele outro corretor. — Já começou a queda? Eu mesmo não tenho mais dinheiro aplicado, vendi tudo o que tinha hoje cedo. Vai ser mesmo uma queda?

— Não sei.

— Que coisa chocante, sobre a Struan, não é?

— Acredita em todos os boatos?

— Não, claro que não, mas para bom entendedor meia palavra basta, não é?

— Eu não acredito.

— A Struan baixou 3,50 pontos em um dia, meu velho. Muita gente acredita — interrompeu outro corretor. — Vendi tudo o que tinha da Struan hoje cedo. Será que Richard vai conseguir deter a corrida?

— Está nas mãos de... — Joseph Stern ia dizer Deus, mas sabia que o futuro de Richard Kwang estava nas mãos dos seus clientes, e que estes já haviam decidido. — Joss — disse, com tristeza.

— É. Graças a Deus recebemos as nossas comissões de qualquer maneira, na fartura ou na escassez. Tudo bem, não é?

— Tudo bem — ecoou Stern, detestando intimamente o sotaque inglês convencido, metido a besta, de gente bem, das exclusivas escolas particulares britânicas que nunca pôde freqüentar porque era judeu. Viu Forsythe desligar o telefone e olhar para o quadro. Mais uma vez, indicou sua oferta. Forsythe chamou-o. Ele cruzou a multidão, acompanhado por vários pares de olhos.

— Vai comprar? — perguntou.

— Quando chegar a hora, Joseph, meu velho! — Forsythe acrescentou baixinho: — Aqui entre nós, não há um jeito de fazer o Quillan largar o nosso pé? Tenho motivos para acreditar que está mancomunado com aquele cretino do Southerby.

— É uma acusação pública?

— Ora, qual é? É uma opinião particular, pombas! Ainda não leu a coluna do Haply? Tai-pans e um grande banco espalhando boatos? Sabe que Richard é estável. Richard é tão estável quanto... quanto os Rothschilds! Sabe que Richard tem mais de um bilhão de res...

— Eu vi a queda da Bolsa de 29, meu velho. Havia trilhões de reserva, naquela época, mas mesmo assim todo mundo faliu. É uma questão de dinheiro vivo, crédito e liquidez. E confiança. Vai comprar as nossas ofertas, sim ou não?

— Provavelmente.

— Até quando vão poder agüentar isso? Forsythe ergueu os olhos para ele.

— Para sempre. Não passo de um corretor. Obedeço ordens. Compre ou venda, ganho um quarto de um por cento.

— Se o cliente pagar.

— Tem que pagar. Temos as ações dele, não? Temos regras. Mas, por falar nisso, vá pro inferno.

Stern riu.

— Sou britânico, vou para o céu, não sabia? — Inquieto, voltou para sua mesa. — Acho que ele vai comprar antes de o mercado fechar.

Faltavam quinze para as três.

— Ótimo — disse Gornt. — Agora, quer... Calou-se. Ambos olharam para trás, ao sentirem a agitação velada. Dunross estava acompanhando Casey e Linc Bartlett até a mesa de Alan Holdbrook (o corretor da Struan), do outro lado do salão.

— Pensei que ele tivesse ido embora de vez — debochou Gornt.

— O tai-pan nunca foge da raia. Não é do feitio dele. — Stern observou-os, pensativo. — Parecem muito amigos. Talvez os boatos estejam todos errados, e Ian vá fechar o negócio com a Par-Con e fazer os pagamentos.

— Ele não pode. O negócio não vai ser realizado — disse Gornt. — Bartlett não é nenhum tolo. Bartlett seria louco de se unir a esse império oscilante.

— Eu nem sabia, até algumas horas atrás, que a Struan estava devendo ao Orlin. Ou que os pagamentos à Toda venciam dentro de mais ou menos uma semana. Ou até o boato mais absurdo de que o Vic não iria apoiar a Casa Nobre. Quanta bobagem! Liguei para Havergill, e foi isso o que ele disse.

— O que mais poderia dizer? Depois de uma pausa, Stern falou:

— É curioso que todas as notícias tenham vindo à tona hoje.

— Muito. Venda duzentas mil da Struan.

Os olhos de Stern se arregalaram, e ele puxou as sobrancelhas espessas.

— Sr. Gornt, não acha que...

— Não. Por favor, faça o que pedi.

— Acho que está errado, desta vez. O tai-pan é esperto demais. Arranjará todo o apoio de que precisa. O senhor vai se queimar.

— Os tempos mudam. As pessoas mudam. Se a Struan passou dos seus limites, e agora não pode pagar... Bem, meu caro, estamos em Hong Kong, e espero que os sacanas fiquem encurralados. Venda trezentas mil.

— Vender a que preço, Sr. Gornt?

— Ao do mercado.

— Levará tempo para tomar emprestadas as ações. Terei que vender em lotes muito menores. Terei...

— Está sugerindo que meu crédito não é bom, ou você não sabe realizar as funções normais de corretagem?

— Não. Claro que não — replicou Stern, sem querer ofender o seu maior cliente.

— Ótimo, então venda Struan a descoberto. Agora. Gornt o observou enquanto ele se afastava. Seu coração batia agradavelmente.

Stern foi até Sir Luís Basílio, da velha firma de corretagem Basílio e Filhos, que detinha, pessoalmente, um grande bloco de ações da Struan, além de ter muitos clientes substanciais que detinham número ainda maior. Tomou emprestadas as ações, depois caminhou até o quadro e escreveu a imensa oferta na coluna de venda. O giz fez muito barulho. Gradativamente, fez-se silêncio na sala. Os olhares se voltavam para Dunross e Alan Holdbrook, para os americanos, depois para Gornt, e de novo para Dunross. Gornt viu Linc Bartlett e Casey a observá-lo, e ficou contente porque ela estava lá. Casey usava saia e blusa de seda amarela, muito californiana, e um lenço de cabeça verde prendendo os cabelos. "Por que será que ela é tão sensual?", perguntou-se Gornt, distraidamente. "Uma estranha aura de convite parece cercá-la. Por quê? Será que é porque nenhum homem ainda a satisfez?"

Sorriu para ela, com um leve aceno de cabeça. Ela lhe retribuiu com um meio sorriso, e ele pensou ter notado nele uma sombra. Cumprimentou Bartlett polidamente, e recebeu de volta um cumprimento igualmente polido. Os olhos dele fixaram-se nos de Dunross, e os dois homens ficaram se fitando.

O silêncio aumentou. Alguém tossiu nervosamente. Todos estavam conscientes da imensidão da oferta, e das implicações que ela trazia.

Stern indicou com uma batidinha a sua oferta, novamente. Holdbrook inclinou-se para a frente e consultou Dunross, que alçou ligeiramente os ombros e sacudiu a cabeça, depois começou a conversar baixinho com Bartlett e Casey.

Joseph Stern esperou. Então, alguém se ofereceu para comprar uma parte, e ficaram discutindo o preço. Logo, cinqüenta mil ações tinham mudado de dono, e a nova cotação do mercado era 24,90. Ele mudou o número 300 000 para 250 000 e ficou esperando. Vendeu mais algumas, mas o grosso permaneceu. Então, como não houve compradores, voltou para o seu lugar. Estava suando.

— Se esse número ficar ali de um dia para o outro, não vai fazer nenhum bem à Struan.

— É. — Gornt ainda observava Casey, que escutava atentamente o que Dunross dizia. Ele se recostou na cadeira e pensou por um momento. — Venda mais cem mil do Ho-Pak.....e duzentas mil da Struan.

— Santo Deus, Sr. Gornt, se a Struan cair, o mercado inteiro vai balançar, até sua própria companhia vai perder.

— Haverá uma adaptação. Várias adaptações, é claro.

— Haverá um banho de sangue. Se a Struan cair, outras companhias também cairão, milhares de investidores perderão tudo e...

— Não estou precisando de um sermão sobre a economia de Hong Kong, Sr. Stern — disse Gornt, friamente. — Se não quiser seguir minhas instruções, vou procurar quem o faça.

Stern enrubesceu.

— Eu... terei que arrebanhar as ações primeiro. Um número desses... conseguir tal soma...

— Então sugiro que se apresse! Quero isso no quadro ainda hoje!

Gornt ficou olhando enquanto ele se afastava, saboreando tremendamente aquele momento. "Filho da mãe atrevido!", pensava. "Os corretores não passam de parasitas, todos eles." Sentia-se muito seguro. O dinheiro de Bartlett estava na sua conta. Podia recomprar Ho-Pak e Struan naquele momento, e ficar milhões à frente. Satisfeito, seu olhar voltou a se fixar em Casey. Ela o observava. Não pôde ler nada na fisionomia da moça.

Joseph Stern circulava por entre os corretores. Parou de novo à mesa de Basílio. Sir Luís Basílio afastou os olhos do quadro e sorriu para ele.

— Então, Joseph? Quer tomar emprestadas mais ações da Casa Nobre?

— Sim, por favor.

— Para Quillan? — perguntou Sir Luís. Era um belo velho, pequeno, elegante, muito magro, na casa dos setenta. Era o presidente do comitê que dirigia a Bolsa naquele ano.

— Sim.

— Venha sentar-se aqui, vamos conversar um momento, velho amigo. Quantas está querendo, agora?

— Duzentas mil.

Sir Luís franziu o cenho.

— Já há trezentas mil no quadro... mais duzentas? É um ataque sem quartel?

— Ele... ele não disse, mas acho que sim.

— É uma grande pena que aqueles dois não possam fazer as pazes.

— É.

O homem mais velho pensou por um momento, depois falou, em voz mais pausada:

— Estou pensando em suspender as transações com as ações do Ho-Pak e, desde a hora do almoço, com as da Casa Nobre. Estou muito preocupado. Neste exato momento, uma derrocada do Ho-Pak, juntamente com uma derrocada da Casa Nobre, poderia destruir todo o mercado. Minha nossa! É inconcebível uma derrocada da Casa Nobre. Arrastaria consigo centenas de nós, talvez toda a Hong Kong. É inconcebível.

— Talvez a Casa Nobre precise de uma vistoria. Posso tomar emprestadas duzentas mil ações?

— Primeiro me responda, sim ou não, e se for sim, quando: devemos suspender as transações com as do Ho-Pak? Devemos suspender também as da Struan? Já colhi os votos de todos os membros do comitê, exceto o seu. Estão divididos quase igualmente.

— Nenhuma delas jamais foi suspensa. Seria ruim suspender qualquer uma delas. Esta é uma sociedade livre... no melhor sentido, creio. Deixe que as coisas se ajeitem por si. Eles que se entendam, os Struans, os Gornts, e todo o resto, que os melhores atinjam o topo, e os piores... — Stern sacudiu a cabeça, cansadamente. — Ah, mas para mim é fácil falar, Luís, não sou grande investidor em nenhuma das duas.

— Onde está o seu dinheiro?

— Em diamantes. Todos os judeus precisam de coisas pequenas, coisas que possam ser carregadas e escondidas, coisas que possam ser convertidas em dinheiro vivo com facilidade.

— Não há necessidade de você ter medo aqui, Joseph. Há quantos anos a sua família está aqui, e prosperando? Olhe para Solomon... certamente ele e sua família são os mais ricos de toda a Ásia.

— Para os judeus, o medo é um estilo de vida. E ser odiado também.

Mais uma vez, o velho soltou um suspiro.

— Ah, este mundo, este belo mundo, como deveria ser belo. — Um telefone tocou, e ele atendeu delicadamente, as mãos minúsculas, seu português soando doce e líquido aos ouvidos de Stern, embora não entendesse uma palavra. Percebeu apenas "Sr. Mata" dito respeitosamente várias vezes, mas o nome nada significava para ele. Dentro de um momento, Sir Luís recolocara o fone no gancho, com ar muito pensativo, — O secretário de finanças ligou logo depois do almoço, muito perturbado. Há uma delegação do Parlamento aqui, e uma falência de banco ficaria extremamente mal para todos nós — disse. Deu um sorriso matreiro. — Sugeri que ele apresentasse ao governador legislação que regulamente os bancos, como na Inglaterra, e o pobre coitado quase teve um treco. Não devo implicar tanto com ele! — Stern sorriu junto com ele. — Como se precisássemos da interferência do governo aqui! — Seus olhos ficaram mais penetrantes. — Então, Joseph, vota para deixar as coisas como estão... ou para suspender uma, ou as duas ações, e quando?

Stern olhou para o relógio. Se fosse até o quadro agora, teria tempo de sobra para anotar as duas ofertas de venda, e ainda desafiar Forsythe. Era uma sensação gostosa saber que tinha o destino das duas casas nas mãos, ainda que temporariamente.

— Talvez fosse muito bom, talvez ruim. Como está a votação, até agora?

— Como falei, quase empatada.

Houve outra explosão de alvoroço, e os dois homens ergueram os olhos. Mais ações da Struan mudavam de mãos. A cotação baixara para 24,70. Agora, era Phillip Chen que se debruçava sobre a mesa de Holdbrook.

— Pobre Phillip, não está com uma cara nada boa — disse Sir Luís, penalizado.

— É. Uma pena a história do John. Eu gostava dele. E quanto aos Lobisomens? Acha que os jornais estão exagerando?

— Não, não acho. — Os velhos olhos brilhavam maliciosos. — Não mais do que você, Joseph.

— Como?

— Decidiu deixar como está. Quer deixar o tempo de hoje se esgotar, não é? É o que quer, não é?

— Que melhor solução poderia haver?

— Se eu não fosse tão velho, concordaria com você. Mas, sendo velho, e desconhecendo o dia de amanhã, ou se viverei para ver o amanhã, prefiro o meu drama hoje mesmo. Muito bem. Não contarei o seu voto, desta vez, e agora a votação do comitê está empatada, portanto decidirei, como me cabe por direito. Pode tomar emprestadas duzentas mil ações da Casa Nobre até sexta-feira, sexta-feira às duas. Então, poderei pedi-las de volta... tenho que pensar na minha própria Casa, não? — Os olhos vivos mas bondosos no rosto enrugado instaram Stern a se levantar. — O que vai fazer agora, meu amigo?

Joseph Stern deu um sorriso triste.

— Sou corretor.

Foi até o quadro e escreveu na coluna de venda do Ho-Pak com mão firme. Depois, no novo silêncio, foi até a coluna da Struan e escreveu o número com clareza, cônscio de que agora era o alvo de todas as atenções. Podia sentir a inveja e o ódio. Mais de quinhentas mil ações da Casa Nobre estavam em oferta agora, mais do que em qualquer época na história da Bolsa. Esperou, desejando que o tempo se esgotasse. Houve um alvoroço de interesse quando Soorjani, o parse, comprou alguns blocos de ações, mas era notório que ele era representante de muitos membros das famílias Struan e Dunross, e de seus correligionários. E embora tivesse comprado cento e cinqüenta mil, aquilo fazia pouca diferença diante da enormidade da oferta de Gornt. O silêncio chegava a doer. Faltava um minuto.

— Nós compramos!

A voz do tai-pan quebrou o silêncio.

— Todas as minhas ações? — perguntou Stern, com voz rouca, o coração disparado.

— É. As suas e todo o resto. Ao preço de mercado! Gornt se pôs de pé.

— Com o quê? — perguntou, sardonicamente. — São quase nove milhões em dinheiro.

Dunross também se pôs de pé, um meio sorriso de sarcasmo no rosto.

— A Casa Nobre tem crédito para isso... e milhões a mais. Alguém já duvidou disso?

— Eu duvido... e vendo a descoberto amanhã!

Nesse momento, a campainha de encerramento tocou, estridente, a tensão se rompeu, e ouviu-se um rugido de aprovação.

— Meu Deus, mas que dia...

— O bom e velho tai-pan...

— Não dava para eu agüentar muito mais...

— Será que o Gornt o derrota, desta vez?...

— Talvez todos aqueles malditos boatos não passem de besteira...

— Pombas, ganhei uma fortuna em comissões...

— Acho que o Ian está com medo...

— Não esqueça que ele tem cinco dias para pagar as ações...

— Não vai poder comprar assim amanhã...

— Meu Deus, amanhã! O que vai acontecer amanhã?... Casey mudou de posição na cadeira, o coração batendo loucamente. Afastou com esforço o olhar de cima de Gornt e Dunross, e fitou Bartlett, que estava simplesmente olhando para o quadro, soltando um assobio mudo. Estava assombrada... assombrada e um pouco assustada.

Pouco antes de vir encontrar-se com Dunross, Linc lhe falara dos seus planos, do seu telefonema para Gornt, do encontro que tinham tido.

— Agora, está sabendo de tudo, Casey — dissera suavemente, sorrindo para ela. — Agora, os dois foram engabelados, e nós controlamos o campo de batalha, tudo por dois milhões. Os dois estão se engalfinhando, cada um procurando a jugular do outro, prontos para se devorarem. Agora, é só esperar. Segunda-feira é o Dia D. Se Gornt ganhar, nós ganhamos. Se Dunross ganhar, nós ganhamos. Haja o que houver, seremos a Casa Nobre.

 

                   15hO3m

Aleksei Travkin, que treinava os cavalos de corrida da Casa Nobre, subiu o beco movimentado que dava para a Nathan Road, em Kowloon, e entrou no Restaurante Dragão Verde. Usava um pequeno 38 sob o braço esquerdo, e tinha o passo leve para um homem da sua idade.

O restaurante era pequeno, comum e escuro, e não havia toalhas na dúzia de mesas ali existentes. Sentados a uma delas, quatro chineses tomavam ruidosamente sopa de talharim e, quando ele entrou, um garçom entediado junto à caixa registradora ergueu os olhos do programa de corridas e começou a levantar-se, segurando um cardápio. Travkin fez que não com a cabeça e cruzou o arco que levava à parte dos fundos.

A salinha continha quatro mesas. Estava vazia, exceto pela presença de um homem.

— Zdrástvuitie!¹— disse Suslev indolentemente, nas suas roupas leves e bem-talhadas.

 

¹ “Boa tarde." Em russo no original. (N. do E.)

 

— Zdrástvuitie — replicou Travkin, seus olhos eslavos estreitando-se ainda mais. Depois, continuou, em russo: — Quem é você?

— Um amigo, Alteza.

— Por favor, não me chame assim, não sou alteza. Quem é você?

— Ainda um amigo. No passado, você foi um príncipe. Quer me fazer companhia? — Suslev indicou cortesmente uma cadeira. Havia uma garrafa de vodca aberta sobre a mesa, e dois copos. — Seu pai, Nikolai Petróvitch, também foi príncipe, como o pai dele, e diversas gerações passadas, príncipe de Kurgan e Tobol.

— Está falando por enigmas, amigo — falou Travkin, aparentemente calmo, e sentou-se diante do outro. O contato do 38 contra seu corpo diminuiu um pouco sua apreensão. — Pelo seu sotaque, é moscovita... e georgiano. Suslev riu.

— Tem bom ouvido, príncipe de Kurgan. É, sou moscovita, mas nasci na Geórgia. Meu nome não importa, mas sou um amigo que...

— Meu, da Rússia ou dos soviéticos?

— Dos três. Vodca? — perguntou Suslev, levantando a garrafa.

— Por que não? — Travkin ficou vendo o outro homem servir os dois copos, depois, sem hesitar, pegou o copo errado, aquele que estava mais longe de si, e ergueu-o. — Saúde!

Sem hesitar, Suslev pegou o outro, fez "tim-tim", esvaziou-o e encheu-o outra vez.

— Saúde!

— É o homem que me escreveu?

— Tenho notícias de sua mulher.

— Não tenho mulher. O que quer de mim, amigo?

O modo como Travkin empregou a palavra era um insulto. Viu o clarão de raiva quando Suslev ergueu os olhos do copo, e se preparou.

— Desculpo sua grosseria por esta vez, Aleksei Ivánovitch — disse Suslev, com dignidade. — Não tem motivo para ser grosseiro comigo. Nenhum. Por acaso o insultei?

— Quem é você?

— O nome de sua mulher é Nestorova Mikail, e o pai dela era o príncipe Anatóli Zergueiev, cujas terras abrangem Karaganda, que não fica muito longe das terras da sua própria família, a leste dos Urais. Ele era um casaque, não era?, um grande príncipe dos casaques, a quem algumas pessoas ainda chamam de cossacos?

Travkin manteve as mãos nodosas imóveis, e a fisionomia impassível, mas não pôde evitar que o sangue lhe fugisse do rosto. Estendeu a mão e serviu mais dois copos, a garrafa ainda cheia pela metade. Sorveu a bebida.

— Boa vodca, não como o mijo aqui de Hong Kong. Onde a conseguiu?

— Em Vladivostok.

— Ah. Estive lá, certa vez. É uma cidade chata e suja, mas a vodca é boa. Bem, qual é o seu nome verdadeiro, e o que quer?

— Conhece bem Ian Dunross? Travkin ficou surpreso.

— Treino os cavalos dele... já há... este é o meu terceiro ano, por quê?

— Gostaria de ver a princesa Nestoro...

— Santo Deus, seja você quem for, já lhe disse que não tenho mulher. Agora, pela última vez, o que quer comigo?

Suslev encheu o seu copo, e a sua voz tornou-se ainda mais bondosa.

— Aleksei Ivánovitch Travkin, sua mulher, a princesa, hoje está com sessenta anos. Mora em Iakutsk, no...

— No Lena? Na Sibéria? — Travkin sentiu que o coração ia explodir. — Em que gulag, seu bosta?

Do outro lado do arco, na outra sala, que agora estava vazia, o garçom ergueu os olhos momentaneamente, depois bocejou e continuou a ler.

— Não é um gulag, por que seria um gulag? — falou Suslev, a voz tornando-se mais dura. — A princesa foi para lá por vontade própria. Mora lá desde que saiu de Kurgan. A...

— Suslev enfiou a mão no bolso, tirando de lá a carteira. — Esta é a sua dacha, em Iakutsk — disse, pousando na mesa uma fotografia. — Creio que pertencia à família dela.

O chalé estava cercado de neve, dentro de uma clareira simpática, as árvores ao fundo, as cercas bem-cuidadas, e era bonito, com a fumaça saindo da chaminé. Uma figurinha encapotada acenava alegremente para a máquina fotográfica... longe demais para que se pudesse ver com clareza o seu rosto.

— E essa é a minha mulher? — perguntou Travkin, a voz áspera.

— É.

— Não acredito!

Suslev mostrou uma fotografia. Um retrato. A senhora era grisalha, na casa dos cinqüenta ou sessenta anos, e, embora os problemas de todo um mundo a tivessem marcado, o rosto dela era ainda elegante, ainda aristocrático. O calor de seu sorriso pareceu chegar a ele, e o arrasou.

— Seu... seu bosta do KGB — disse com voz rouca, certo de tê-la reconhecido. — Seu nojento, seu podre, seu filho da m...

— Por tê-la encontrado? — exclamou Suslev, com raiva.

— Por ter visto que cuidaram dela, deixaram-na em paz, não a incomodaram, nem a mandaram para... para os locais de correção que ela e toda a sua classe mereciam? — Irritado, serviu-se de outra bebida. — Sou russo, e tenho orgulho disso. Você emigrou, você saiu de lá. Meu pai e o pai dele foram propriedade de um dos da sua classe. Meu pai morreu nas barricadas em 1916, e minha mãe... e antes de morrerem já viviam à míngua. Eles... — Deteve-se, com esforço. Depois, falou, num tom de voz diferente: — Concordo que há muito o que perdoar e esquecer, dos dois lados, e tudo isso já passou, mas digo-lhe que nós, soviéticos, não somos todos animais... não todos nós. Não somos como o Béria Sanguinário e aquele arqui-demônio assassino, o Stálin... Não todos. — Apanhou o seu maço de cigarros. — Fuma?

— Não. Você é do KGB ou do gru?

O KGB era o Comitê para Segurança do Estado; o gru era o Diretório de Informações do Estado-Maior. Não era a primeira vez que Travkin era abordado por um deles. Antes, sempre conseguira despistá-los, disfarçado em alguém desinteressante e sem importância. Mas agora estava numa armadilha. Aquele homem sabia demais a seu respeito, verdades demais. "Quem é você, seu filho da mãe? E o que está realmente querendo?", pensou, ao ver Suslev acender um cigarro.

— Sua mulher sabe que está vivo.

— Impossível. Ela está morta. Foi assassinada pelas turbas quando o nosso pala... quando nossa casa em Kurgan foi saqueada, incendiada, destroçada... a mansão mais linda, e a mais desarmada, num raio de quilômetros.

— As massas tinham o direito de...

— Aquele não era o meu povo. Estava sendo guiado por trotskistas importados, que depois assassinaram os meus camponeses aos milhares... até que eles próprios foram todos eliminados por outros da sua própria ralé.

— Talvez sim, talvez não — disse Suslev, friamente. — Mesmo assim, príncipe de Kurgan e Tobol, ela escapou com uma velha criada e fugiu para o leste, pensando que poderia encontrá-lo, que poderia escapar atrás de você, pela Sibéria, para a Manchúria. A criada era natural da Áustria, e se chamava Pavchen.

Os pulmões de Travkin pareciam não ter mais ar.

— Mais mentiras — ouviu-se dizer, sem acreditar mais nas suas palavras, o espírito destroçado pelo lindo sorriso dela. — Minha mulher está morta. Jamais iria tanto para o norte.

— Ah, mas foi. O trem em que fugia foi desviado para o norte. Era outono. As primeiras nevadas já tinham chegado, e então ela resolveu esperar o inverno passar, em Iakutsk. Tinha que esperar... — Suslev pousou outra foto na mesa. — Estava grávida. Este é o seu filho, e a família dele. Foi tirada no ano passado. — O homem era bonito, quarentão, usando a farda de major da força aérea soviética, e sorria constrangido para a câmara, enlaçando com o braço uma bela mulher na casa dos trinta anos, com três crianças felizes, um bebê, uma garota sorridente de seis ou sete anos, com os dentes da frente faltando, e um garoto de dez anos que tentava bancar o sério.

— Sua mulher deu-lhe o nome de Piotr Ivánovitch, como seu avô.

Travkin não tocou na foto. Apenas a fitou, o rosto sem cor. Depois, desviou os olhos dela, com esforço, e serviu-se de uma bebida. A seguir, serviu também uma para Suslev.

— É... é uma reconstrução brilhante — disse, tentando ser convincente. — Brilhante.

— A criancinha se chama Viktoria, a garota é Nichola, como sua avó. O garoto é Aleksei. O major Ivánovitch é piloto de bombardeiro.

Travkin ficou calado. Seus olhos voltaram para a foto da bela senhora idosa. Estava quase chorando, mas ainda controlava a voz.

— Ela sabe que estou vivo, é?

— Sabe.

— Há quanto tempo?

— Três meses. Há uns três meses. Um dos nossos lhe contou.

— Quem são eles?

— Quer vê-la?

— Por que apenas há três meses... por que não um ano, três anos?

— Foi apenas há seis meses que descobrimos quem você é.

— Como fizeram isso?

— Esperava ficar anônimo para sempre?

— Se ela soubesse que estou vivo, se um dos seus lhe contou, ela teria me escrito... É. Eles teriam pedido a ela que o fizesse, se... — A voz de Travkin estava esquisita. Parecia estar fora de si, num pesadelo, enquanto tentava pensar com clareza. — Ela me teria escrito uma carta.

— E escreveu. Eu a darei a você dentro dos próximos dias. Quer vê-la?

Travkin forçou-se a engolir sua agonia. Indicou o retrato da família.

— E... ele também sabe que estou vivo?

— Não. Nenhum deles sabe. Isso não foi sugestão nossa, Aleksei Ivánovitch. Foi idéia da sua mulher. Por medida de segurança... para protegê-lo, pensou. Como se fôssemos nos vingar dos filhos pelos pecados dos pais! Ela passou dois invernos esperando em Iakutsk. A essa altura, a Rússia já estava em paz, e então ela ficou lá. Nessa época, imaginava que você estivesse morto, embora tivesse esperança de que ainda vivesse. O menino cresceu acreditando que você tivesse morrido, e nada sabia a seu respeito. Ainda não sabe. Como pode ver, é motivo de orgulho para vocês dois. Foi primeiro aluno da escola local, depois foi para a universidade, como vão todas as crianças bem-dotadas, hoje em dia... Sabe, Aleksei Ivánovitch, na minha época fui o primeiro de toda a minha província a freqüentar uma universidade, o primeiríssimo, de uma família de camponeses. Hoje em dia somos justos, na Rússia.

— Quantos cadáveres teve que fazer, para se tornar o que é hoje?

— Alguns — disse Suslev, de cara fechada —, todos eles criminosos ou inimigos da Rússia.

— Fale-me a respeito deles.

— Falarei. Algum dia.

— Lutou na última guerra... ou era do comissariado?

— Fui comandante do 16.° Batalhão Blindado, 45.° Exército. Estive em Sebastópol... e em Berlim. Quer ver sua mulher?

— Daria a minha vida, se esta é realmente a minha mulher, e se está viva.

— Está. Posso dar um jeito.

— Onde?

— Em Vladivostok.

— Não. Aqui em Hong Kong.

— Lamento, é impossível.

— Claro. — Travkin soltou uma risada sem humor. — Claro, amigo. Beba! — Serviu o restante da vodca, dividindo-a igualmente. — Saúde!

Suslev fitou-o. Depois, olhou para o retrato da mulher e para a foto do major da força aérea com a família, e apanhou-os, imerso em pensamentos. O silêncio aumentou. Ele cocou a barba. Depois disse, decisivamente:

— Está bem. Aqui em Hong Kong. O coração de Travkin deu um salto.

— Em troca do quê? Suslev apagou o cigarro.

— Informações. E cooperação.

— Como?

— Quero saber tudo o que você sabe sobre o tai-pan da Casa Nobre, tudo o que você fez na China, quem conhece, com quem se encontrou.

— E a cooperação?

— Isso vem depois.

— E, em troca, trará a minha mulher para Hong Kong?

— Trarei.

— Quando?

— Até o Natal.

— Como posso confiar em você?

— Não pode. Mas, se cooperar, ela estará aqui pelo Natal. — Travkin observava as duas fotos com que Suslev brincava, depois notou o olhar dele, e seu estômago se retorceu. — De qualquer maneira, tem que ser sincero comigo. Com ou sem sua mulher, príncipe de Kurgan, ainda temos o seu filho e netos como reféns.

Travkin sorveu sua bebida demoradamente.

— Agora, acredito que você seja o que é. Por onde quer começar?

— Pelo tai-pan. Mas, primeiro, vou dar uma mijada. Suslev se levantou, perguntou ao garçom onde ficava o banheiro, e saiu pela porta da cozinha.

Agora que Travkin estava sozinho, o desespero tomou conta dele. Pegou a foto do chalé que ainda estava sobre a mesa, e olhou para ela. Seus olhos encheram-se de lágrimas. Afastou-as com a mão, e sentiu a arma sob o ombro. Não o ajudaria, agora. Com toda a sua força interior resolveu ser sensato e não acreditar, mas no fundo do coração sabia que tinha visto a foto dela, e que faria qualquer coisa, arriscaria qualquer coisa para vê-la.

Durante anos tentara evitar os caçadores, sabendo que era sempre perseguido. Fora o líder dos brancos na sua área junto à Ferrovia Transiberiana, e matara muitos vermelhos. Finalmente, cansara-se das matanças e, em 1919, fora para Xangai e um novo lar, até que chegaram os exércitos japoneses. Fugira deles para se unir aos guerrilheiros chineses, abrindo caminho, sempre lutando, para o sul e para o oeste, para Chungking, onde se unira a outros saqueadores, ingleses, franceses, australianos, chineses — qualquer um que pagasse —, até que os japoneses se renderam incondicionalmente, e ele voltara para Xangai, de onde em breve fugiria outra vez. Sempre fugindo, pensou.

"Pelo sangue de Cristo, minha querida, sei que você está morta. Eu sei. Quem me contou viu a turba saquear o nosso palácio, depois cair sobre você...

"Mas, agora?

"Você está mesmo viva?"

Travkin olhou com ódio para a porta da cozinha, sabendo que se sentiria atormentado eternamente, até ter certeza quanto a ela. "Quem é este filho da puta?", pensou. "Como foi que me encontraram?"

Sombriamente, esperou e esperou, e então, num pânico repentino, foi procurá-lo. O banheiro estava vazio. Correu para a rua, mas estava cheia de outras pessoas. O homem desaparecera.

Travkin sentiu um gosto amargo na boca, e ficou doente de apreensão. "Em nome de Deus, o que ele quer com o tai-pan?"

 

                   17h50m

— Alô, Ian — disse Penelope. — Chegou cedo! Como foi o dia?

— Bom, bom — disse Dunross, distraidamente. Além de todos os outros desastres, pouco antes de sair do escritório recebera um relatório de Brian Kwok dizendo, entre outras coisas, que Alan Medford Grant fora provavelmente assassinado, e advertindo-o para tomar sérias precauções.

— Ah, foi um dia daqueles, é? — disse ela, prontamente. — Que tal uma bebida? É. Que tal um pouco de champanha?

— Boa idéia. — Então, notou o sorriso dela, retribuiu-o, e sentiu-se muito melhor. — Penn, você sabe ler pensamentos!

Jogou a pasta sobre um aparador e acompanhou-a até uma das salas de estar da Casa Grande. O champanha já estava no balde de gelo, aberto, com duas taças parcialmente cheias e outra esperando por ele, no gelo.

— Kathy está lá em cima. Está lendo uma história para Glenna dormir — disse Penelope, servindo-lhe a bebida. — Ela... ela acaba de me contar sobre... sobre a moléstia.

— Ah! — Aceitou a taça. — Obrigado. Como foi que Andrew reagiu? Ele não tocou no assunto hoje.

— Ela vai lhe contar hoje à noite. O champanha era para lhe dar alguma coragem. — Penelope ergueu os olhos para ele, angustiada. — Ela vai ficar boa, não vai, Ian?

— Acho que sim. Tive uma longa conversa com o dr. Tooley. Ele foi animador, deu-me os nomes dos três maiores especialistas da Inglaterra, e outros três dos Estados Unidos. Já telegrafei marcando hora com os três da Inglaterra, e o dr. Ferguson vai mandar pelo correio o histórico dela... estará lá quando vocês chegarem.

Ela sorveu o seu champanha. Uma leve brisa tornava o dia abafado mais ameno. As portas envidraçadas estavam abertas para o jardim. Eram quase seis horas.

— Acha que devemos ir imediatamente? Será que alguns dias farão diferença?

— Acho que não.

— Mas devemos ir?

— Se fosse você, Penn, teríamos tomado o primeiro avião.

— É. Se eu tivesse lhe contado.

— Teria me contado.

— É, suponho que sim. Fiz reservas para amanhã. Kathy também achou boa idéia. No vôo da BOAC.

Ele ficou surpreso.

— Claudia não me disse nada. Ela sorriu.

— Eu mesma as fiz. Sou bastante capaz. Fiz reservas para Glenna, Kathy e eu. Poderemos levar o histórico conosco. Achei melhor Kathy não levar nenhum dos filhos. Ficarão perfeitamente bem com as amahs.

— É, é muito melhor assim. O dr. Tooley foi inflexível sobre a questão do repouso. É o principal, disse ele, muito descanso. — Dunross sorriu para ela. — Obrigado, Penn.

Ela fitava as gotas de condensação no lado externo da garrafa e do balde de gelo.

— Que coisa horrível, não é?

— Pior, Penn. Não há cura. Ele acha... acha que a medicação deterá a doença. — Terminou de beber, e serviu novamente as duas taças. — Algum recado?

— Ah, desculpe! Sim, estão sobre o aparador. Houve um telefonema interurbano de Marselha, há pouco.

— Susanne?

— Não. Um tal Sr. Deland.

— É o nosso agente lá.

— Uma desgraça o que aconteceu com o jovem Borge.

— É.

Dunross correu os olhos pelos recados. Johnjohn, no banco, Holdbrook, Phillip Chen, e o inevitável "por favor, ligue para Claudia". Soltou um suspiro. Fazia apenas meia hora desde que deixara o escritório, e ia ligar para ela, de qualquer modo. "Os maus não têm descanso", pensou, e sorriu com os seus botões.

Gostara de ter passado a perna no Gornt, na Bolsa. O fato de não ter dinheiro no momento para pagar não o preocupava. "Tenho cinco dias de prazo", pensou. "Tudo está sob controle... com sorte. Ah, sim, com joss!"

Desde que seu corretor lhe telefonara em pânico, alguns minutos depois das dez, contando os boatos que varriam a Bolsa, e que as ações dele estavam oscilando, ele estivera guardando suas defesas contra o ataque repentino e inesperado. Junto com Phillip Chen, Holdbrook, Gavallan e De Ville, reunira todos os principais acionistas que puderam encontrar e contara-lhes que os boatos de que a Struan não poderia cumprir suas obrigações eram bobagem, e sugeriu que se recusassem a emprestar a Gornt grandes blocos de ações da Struan, mas que lhe cedessem algumas ações, aqui e ali. Contou a uns poucos escolhidos, muito confidencialmente, que o contrato com a Par-Con estava assinado, selado, e prestes a ser carimbado, e que aquela era uma oportunidade maravilhosa de esmagar para sempre a Rothwell-Gornt.

— Se o Gornt vender a descoberto, ele que o faça. Fingiremos ser vulneráveis, mas sustentaremos as ações. Então, na sexta, faremos o comunicado, nossas ações subirão vertiginosamente, e ele perderá a camisa, a gravata e as calças — dissera-lhes. — Teremos de volta a nossa companhia aérea, além da dele, e, com os navios dele e os nossos, juntos, dominaremos todo o comércio aéreo e terrestre que entra e sai da Ásia!

"Se pudéssemos realmente esmagar o Gornt", pensou fervorosamente, "ficaríamos a salvo por gerações. E poderemos, com joss, a Par-Con e mais joss! Mas vai ser um sufoco!"

Ele transpirara confiança o dia todo, sem se sentir nada confiante. Muitos dos seus grandes acionistas lhe tinham telefonado, nervosos, mas ele os acalmara. Tanto Tung Pão-Duro quanto Wu Quatro Dedos possuíam grandes blocos de ações, através de representantes tortuosos. Ele ligara para ambos, à tarde, para obter sua concordância em não emprestar ou vender seus principais títulos, durante a próxima semana. Ambos haviam concordado, mas a coisa não fora fácil com nenhum dos dois.

"Bem", pensou Dunross, "de um modo geral eu me livrei do ataque inicial. Amanhã é que se saberá a história real... ou na sexta-feira: Bartlett é um inimigo, um amigo ou um judas?"

Sentiu a raiva crescer, mas controlou-se. "Acalme-se", disse para si mesmo, "pense calmamente. É o que farei, mas é curioso que tudo o que Bartlett disse na noite da festa (todas aquelas coisas secretíssimas que apresentou tão pronta e subitamente para abalar minhas defesas) tenha hoje milagrosamente varrido o mercado como um tufão. Quem é o espião? Quem lhe deu as informações? Será o mesmo espião da Sevrin? Bem, deixe para lá, no momento tudo está sob controle. Acho eu."

Dunross foi até o telefone e pediu à telefonista uma ligação pessoal para o Sr. Deland, e que ela o chamasse quando ele estivesse na linha.

— Será que Susanne já chegou lá? — indagou Penelope.

— Acho que sim, se o avião estiver no horário. São cerca de onze horas, hora de Marselha, portanto não deve ser uma emergência. Uma tristeza o que houve com o Borge! Eu gostava dele.

— O que Avril vai fazer?

— Vai ficar tudo bem com ela. Avril vai voltar para casa para criar o filho, e logo encontrará um Príncipe Encantado, um príncipe novo, e o filho dela entrará para a Struan, e nesse meio tempo ela estará protegida e amparada.

— Acredita mesmo nisso, Ian... sobre o Príncipe Encantado?

— Sim — disse ele com firmeza. — Acredito que tudo vai dar certo. Vai dar tudo certo, Penn, para ela, para Kathy, para... para todo mundo.

— Você não pode carregar todo mundo, Ian.

— Eu sei. Mas ninguém, ninguém na família vai sentir falta de coisa alguma enquanto eu estiver vivo, e isso será para sempre.

A mulher olhou para ele, e lembrou-se da primeira vez que o vira, um jovem semelhante a um deus sentado no seu caça destroçado que deveria ter sido abatido, mas que, milagrosamente, não o fora. Ian, simplesmente sentado ali, depois saindo do avião, abafando o terror, ela vendo nos olhos dele pela primeira vez o que era a morte, mas ele a dominando, e voltando, e simplesmente aceitando a xícara de chá, dizendo: "Oh, mas que ótimo, obrigado. Você é nova aqui, não é?"

Seu lindo sotaque aristocrático era tão distante do ambiente dela!

Fazia tanto tempo, fazia mil anos, uma outra vida, pensou. Que dias maravilhosos, pavorosos, terríveis, belos, angustiantes. "Será que ele vai morrer hoje, ou voltar hoje? Será que vou morrer hoje, no bombardeio matutino ou no noturno? Onde estão papai e mamãe, e será que o telefone não está funcionando, como de costume, ou será que a casinha miserável em Streat-ham sumiu junto com outros milhares iguais a ela?"

E, certo dia, sumira, e então ela não tinha mais passado. Apenas Ian, seus braços, sua força e confiança, e ela apavorada de que ele se fosse, como os demais. Aquela fora a pior parte, disse consigo mesma. A espera, a expectativa, sabendo como os aviadores eram vulneráveis, e como todos o somos. "Meu Deus, como tivemos que crescer depressa!"

— Espero que seja para sempre, querido — falou, na sua voz fria, inexpressiva, querendo ocultar a imensidão do seu amor. — É, quero que você seja imortal!

Ele abriu um sorriso para ela, cheio de amor.

— Sou imortal, Penn, não se preocupe. Depois de morto, ainda estarei cuidando de você, Glenna, Duncan, Adryon e todo o resto.

Ela o fitou.

— Como faz Dirk Struan?

— Não — disse, agora com seriedade. — Ele é uma presença que jamais igualarei. Ele é perpétuo... eu sou temporário. — Os olhos dele a observavam. — Está um tanto séria, hoje, não está?

— Está um tanto sério, hoje, não está? Riram.

— Estava só pensando em como a vida é transitória, como é violenta, inesperada, cruel — disse ela. — Primeiro John Chen, e agora Borge, Kathy... — Um arrepio percorreu seu corpo, sempre o medo de perdê-lo. — Quem será o próximo?

— Qualquer um de nós. Nesse meio tempo, seja chinesa. Lembre-se de que, sob os céus, todos os corvos são pretos. A vida é boa. Os deuses cometem erros e vão dormir. Assim sendo, a gente faz o melhor que pode, e nunca confia num quai loh!

Ela riu, em paz novamente.

— Há momentos, Ian Struan Dunross, em que gosto muito de você. Acho...

O telefone tocou. Ela parou e pensou: "Maldito seja esse desgraçado desse telefone. Se fosse onipotente, proibiria todos os telefonemas depois das seis da tarde, mas aí o pobre do Ian ficaria maluco e a maldita Casa Nobre desmoronaria, e ela é a vida do pobre Ian. Eu estou em segundo lugar, e as crianças também, e é assim que tem que ser. Não é?"

— Oh, alô, Lando — dizia Dunross —, o que há de novo?

— Espero não estar incomodando, tai-pan.

— De modo algum — replicou, toda a sua energia concentrada. — Acabo de chegar. Em que posso ajudá-lo?

— Lamento, mas vou retirar os quinze milhões de apoio que lhe prometi para amanhã. Temporariamente. O mercado está me deixando nervoso.

— Não há com o que se preocupar — disse Dunross, o estômago se contorcendo. — É só o Gornt fazendo das dele. Só isso.

— Estou realmente muito preocupado. Não é só o Gornt. É o Ho-Pak e o modo pelo qual todo o mercado está reagindo — disse Mata. — Com a corrida aos bancos atingindo o Ching

Prosperity e até mesmo o Vic... todos os sinais são muito ruins. Portanto, quero esperar e ver.

— O dia é amanhã, Lando. Amanhã. Estava contando com você.

— Triplicou a nossa próxima remessa de ouro, como pedi?

— Sim, fiz isso pessoalmente. Tenho as confirmações por telex de Zurique no código de costume.

— Excelente, excelente!

— Vou precisar de sua carta de crédito amanhã.

— Naturalmente. Se mandar um mensageiro agora até minha casa, dar-lhe-ei o meu cheque com a quantia integral.

— Cheque pessoal? — Dunross conteve o seu espanto. — De que banco, Lando?

— Do Victoria.

— Pombas, mas é um bocado de dinheiro para retirar agora.

— Não o estou retirando, estou apenas pagando por um pouco de ouro. Prefiro ter um pouco dos meus fundos em ouro fora de Hong Kong durante a próxima semana, e este é o momento ideal para fazê-lo. Mande que avisem por telex amanhã logo cedo. Logo cedo. É. Não estou sacando fundos, Ian, apenas pagando pelo ouro. Se eu fosse você, também tentaria obter liquidez.

O estômago dele deu outra reviravolta.

— O que foi que você andou ouvindo? — perguntou, com voz controlada.

— Você me conhece. Sou mais cauteloso do que você, tai-pan. O custo do meu dinheiro é muito alto.

— Não mais do que o meu.

— É. Esperemos o dia de amanhã, depois veremos. Mas não conte com os nossos quinze milhões. Lamento.

— Você soube de alguma coisa, conheço-o muito bem. O que é? Chi pao pu chu huo. Literalmente, "O papel não pode embrulhar o fogo", isto é, não se pode manter um segredo para sempre.

Fez-se uma longa pausa, depois Mata falou em voz mais baixa:

— Confidencialmente, Ian, o velho Pão-Duro está vendendo com força total. Está se preparando para se desfazer de todos os seus títulos. O diabo velho pode estar morrendo, mas seu faro para a perda de uma moeda é tão apurado como sempre foi, e jamais soube que ele se tivesse enganado.

— Todos os seus títulos? — perguntou Dunross, vivamente. — Quando foi que falou com ele?

— Estivemos em contato o dia todo. Por quê?

— Falei com ele depois do almoço, e ele me prometeu que não venderia ou emprestaria nenhuma ação da Struan. Mudou de idéia?

— Não. Estou certo de que não. Não pode. Não tem nenhuma ação da Struan.

— Tem quatrocentas mil ações!

— Tinha, tai-pan, embora na verdade o número estivesse mais próximo de seiscentas mil. Sir Luís tinha muito poucas ações, pessoalmente, é um dos muitos representantes de Pão-Duro. Desfez-se de todas as seiscentas mil ações. Hoje.

Dunross abafou uma exclamação obscena.

— É mesmo?

— Ouça, meu jovem amigo, isto é estritamente confidencial, mas você deve estar preparado: Pão-Duro ordenou a Sir Luís que vendesse ou emprestasse todos os seus títulos da Casa Nobre no momento em que os boatos começaram, hoje de manhã. Cem mil foram distribuídos pelos corretores e vendidos prontamente, o restante... o meio milhão de ações que você comprou de Gornt eram do Pão-Duro. No momento em que ficou evidente que havia um grande ataque à casa, e que Gornt estava vendendo a descoberto, Pão-Duro ordenou a Sir Luís que emprestasse tudo, exceto mil ações simbólicas, que conservou. Para não desmoralizar você quando a Bolsa fechou, Pão-Duro estava muito satisfeito. Teve hoje quase dois milhões de lucro.

Dunross estava imóvel. Notou que sua voz estava natural, serena e controlada, e isso o deixou satisfeito, mas estava em choque. Se Pão-Duro vendera, os Chins venderiam, e mais uma dúzia de amigos lhe seguiriam o exemplo, e isso seria o caos.

— O velho sacana! — exclamou, sem raiva dele. A culpa era sua, pois não falara com Pão-Duro a tempo. — Lando, e quanto às suas trezentas mil ações?

Ouviu o português hesitar, e seu estômago se revolveu outra vez.

— Ainda as tenho. Comprei-as a 16 logo que vocês se tornaram empresa de capital aberto. Portanto, ainda não estou preocupado. Talvez Alastair Struan tivesse razão quando desaconselhou a medida... a Casa Nobre só é vulnerável por esse motivo.

— Nosso índice de crescimento é cinco vezes o de Gornt, e sem termos nos tornado empresa de capital aberto jamais teríamos podido agüentar os desastres que herdei. Temos o apoio do Victoria. Ainda temos nossas ações do banco e um voto majoritário na diretoria. Portanto, eles têm que nos apoiar.

Somos realmente muito fortes, e uma vez que esta situação temporária tenha sido resolvida, seremos o maior conglomerado da Ásia.

— Talvez. Mas talvez você tivesse agido mais sensatamente aceitando a nossa proposta, ao invés de ficar permanentemente aberto aos riscos de compras de controle e desastres de mercado.

— Não podia naquela época. Não posso agora. Nada mudou.

Dunross deu um sorriso amargo. Lando Mata, Tung Pão-Duro e Chin Jogador, coletivamente, lhe haviam oferecido vinte por cento das rendas do seu sindicato de ouro e jogo em troca de cinqüenta por cento da Struan, se ele a mantivesse como companhia totalmente particular.

— Vamos, tai-pan, seja sensato! Pão-Duro e eu lhe daremos cem milhões em espécie hoje, em troca de cinqüenta por cento da empresa. Dólares americanos. Sua posição como tai-pan será intocável, dirigirá o novo sindicato e administrará os nossos monopólios de ouro e jogo, secreta ou abertamente... com dez por cento de todos os lucros a título de honorários pessoais.

— Quem indica o próximo tai-pan?

— Você... dependendo de consulta.

— Pronto. Está vendo? É impossível. Um controle de cinqüenta por cento dá a vocês poder sobre a Struan, e isso não me é permitido dar. Isso negaria o legado de Dirk, invalidaria o meu juramento, e cederia o controle absoluto. Lamento, não é possível.

— Por causa de um juramento a um deus desconhecido e incognoscível em que você não acredita... em nome de um pirata assassino que está morto há mais de cem anos?

— Seja por que motivo for, a resposta é não, obrigado.

— Você bem que pode perder toda a companhia.

— Não. Os Struans e os Dunrosses juntos temos sessenta por cento do controle de votação, e eu sozinho voto todas as ações. O que tenho a perder são todas as coisas materiais que possuímos, e deixar de ser a Casa Nobre, e juro pelo Senhor Deus que isso também não vai acontecer.

Fez-se um longo silêncio. Depois Mata disse, a voz amistosa como sempre:

— Nossa oferta é válida por duas semanas. Se a sorte estiver contra você, e você falhar, a oferta para dirigir o novo sindicato permanece de pé. Venderei ou emprestarei minhas ações a 21.

— Abaixo de 20... não a 21.

— Vai baixar tanto assim?

— Não. É só um hábito que tenho. 20 é melhor que 21.

— É. Bem. Então, vejamos o que o amanhã trará. Desejo-lhe boa sorte. Boa noite, tai-pan.

Dunross desligou o telefone e tomou o resto do seu champanha. Estava no mato sem cachorro. "Aquele velho sacana do Pão-Duro", pensou de novo, admirando a esperteza dele. "Concordar com tanta relutância em não vender nem negociar nenhuma ação da Struan, sabendo que só lhe restavam mil, sabendo que a renda das quase seiscentas mil já estava segura... aquele velho safado é um grande negociador. É muita esperteza da parte do Lando e do Pão-Duro fazerem a nova oferta agora. Cem milhões! Santo Deus, isso faria o Gornt parar de peidar na igreja! Eu podia usar essa grana para esmagá-lo, e logo a seguir assumir o controle das Propriedades Asiáticas e aposentar o Dunstan prematuramente. A seguir, passaria a Casa para o Jacques ou o Andrew, em grande forma, e...

"E depois, o quê? O que iria fazer, então? Mudar-me para as charnecas e caçar tetrazes? Dar festancas em Londres? Ou ir para o Parlamento e dormir na bancada dos deputados novatos, enquanto os socialistas entregam o país aos comunistas? Santo Deus, iria morrer de tédio! Iria..."

— O que foi? — exclamou, espantado. — Ah, desculpe, Penn, o que foi que disse?

— Disse que parece que você teve más notícias.

— É, foi sim. — Então, Dunross abriu um sorriso e toda a sua ansiedade se desfez. — É joss! Sou o tai-pan — disse, satisfeito —, é de se esperar. — Pegou a garrafa. Estava vazia. — Acho que merecemos outra... Deixe, meu bem, eu pego. — Foi até a geladeira, embutida num imenso aparador chinês antigo, laqueado de escarlate.

— Como é que você agüenta, Ian? — perguntou ela. — Quero dizer, sempre parece acontecer algo de ruim, desde que você assumiu o cargo... e há sempre algum desastre, a cada telefonema. Você trabalha o tempo todo, nunca tira férias... desde que voltamos para Hong Kong. Primeiro seu pai, depois Alastair, e depois... será que nunca vai parar de chover a cântaros?

— Claro que não... o serviço é esse.

— E vale a pena?

Ele se concentrou na rolha, sabendo que a conversa não tinha razão de ser.

— Claro.

"Vale para você, Ian", pensou ela. "Mas não para mim." Após um momento, disse:

— Então quer dizer que posso ir?

— Sim, claro. Ficarei de olho em Adryon, e não se preocupe com Duncan. Divirta-se bastante e volte logo.

— Vai subir a montanha, no domingo?

— Vou. Depois vou para Taipé, e volto na terça-feira. Vou levar Bartlett comigo.

Ela ficou pensando em Taipé, e imaginando se haveria uma garota lá, uma garota especial, uma chinesa, com a metade da sua idade, com uma pele linda e macia, e com calor, não muito mais quente do que ela mesma, nem mais macia, nem mais esguia, mas com a metade da sua idade, com um sorriso sempre a postos, sem os terríveis anos de sobrevivência a curvá-la... os anos nojentos do crescimento, os anos bons e terríveis da guerra, os anos em que teve filhos, criou filhos, e a realidade exaustiva do casamento, mesmo com um bom homem.

"Fico pensando, pensando, pensando. Se eu fosse homem... há tantas beldades aqui, tão ansiosas por agradar, tão facilmente disponíveis! Se a gente acreditar em um décimo do que se conta..."

Ela o observou enquanto ele servia o vinho fino, as bolhas e a espuma, o rosto dele forte, vigoroso e muito agradável, e perguntou-se: "Será que alguma mulher possui qualquer homem por mais do que uns poucos anos?"

— O quê? — perguntou ele.

— Nada — disse, amando-o. Levantaram as taças e brindaram. — Cuidado na subida da montanha.

— Claro.

— Como você dá conta de ser tai-pan, Ian?

— Como você dá conta de cuidar da casa, criar as crianças, levantando-se às horas mais estranhas, ano após ano, mantendo a paz, e todas as outras coisas que teve que fazer? Eu não poderia. Jamais. Teria batido as botas há muito tempo. É parte treinamento, e parte o que a gente nasceu para fazer.

— O lugar de uma mulher é dentro de casa?

— Não sei quanto às outras, Penn, mas contanto que você esteja na minha casa, tudo vai bem no meu mundo.

Estourou a rolha com capricho.

— Obrigada, querido — disse ela, sorrindo. Depois, franziu o cenho. — Mas temo não ter muita opção, nem nunca ter tido. Claro que agora é diferente, e a próxima geração tem sorte, vai mudar as coisas, provocar uma virada e dar aos homens o troco que merecem, de uma vez por todas.

— É? — comentou ele, mais concentrado em Lando Mata, no dia seguinte, e em como obter os cem milhões sem ceder o controle.

— É, sim. As moças da nova geração não vão agüentar a chatura do "lugar de mulher é no tanque". Deus, como odeio o serviço doméstico, como toda mulher odeia o serviço doméstico! Nossas filhas vão mudar tudo isso! Pelo menos Adryon. Meu Deus, detestaria ser marido dela!

— Toda geração pensa que vai mudar o mundo — disse Dunross, enchendo as taças. — Excelente champanha. Lembra como nós pensávamos? Lembra como nos queixávamos, ainda nos queixamos, das atitudes dos nossos pais?

— É verdade. Mas nossas filhas têm a pílula, e isso muda completamente a coisa, e...

— Hem? — Dunross fitou-a, chocado. — Quer dizer que Adryon toma pílula? Santo Deus, há quanto tempo... quer dizer que ela...

— Acalme-se, Ian, e ouça. Aquela pilulazinha trancou para sempre as portas do medo para a mulher... para os homens também, de certo modo. Acho que pouquíssimas pessoas se dão conta da enorme revolução social que ela vai criar.

— Agora, todas as mulheres podem fazer amor sem medo de ficarem grávidas, podem usar seus corpos como os homens usam os deles, para a gratificação, para o prazer, e sem vergonha. — Olhou vivamente para ele. — Quanto a Adryon, toma pílulas desde os dezessete anos.

— O quê?

— Claro. Preferiria que ela tivesse um filho?

— Santo Deus, Penn, claro que não — gaguejou Dunross.

— Mas, Santo Deus, quem? Quer... quer dizer que ela está tendo um caso, teve casos ou...

— Mandei-a ao dr. Tooley. Achei melhor que fosse consultá-lo.

— Você o quê?

— É. Quando estava com dezessete anos, veio me perguntar o que fazer. Disse que a maioria das suas amigas tomava pílula. Como existem vários tipos, quis que ela tivesse orientação de um perito. O dr. Too... Por que está assim tão vermelho, Ian? Adryon está com dezenove anos, fará vinte no mês que vem. É tudo muito comum.

— Não é, por Deus que não é!

— Och, meu rapaz, mas é — falou ela, imitando o sotaque escocês da Vovó Dunross, a quem ele adorara —, e o que estou querendo enfatizar é que as moças de hoje sabem o que estão fazendo. E não ouse contar a Adryon que lhe contei, senão esquento suas calças!

Ele a fitou.

— Saúde! — Com ar satisfeito, ela ergueu a taça. — Viu o Guardian extra desta tarde?

— Não mude de assunto, Penn. Não acha que devo falar com ela?

— De jeito nenhum. Não. É... um assunto muito particular. É o corpo dela, e a vida dela. E não importa o que você diga, Ian, ela tem o direito de fazer da sua vida o que lhe aprouver, e nada do que você diga vai fazer nenhuma diferença. Será tudo muito embaraçoso para vocês dois. É uma questão de prestígio — acrescentou, satisfeita com a sua esperteza. — Claro que Adryon vai ouvir com carinho os seus pontos de vista, mas você realmente precisa ser adulto e moderno, tanto para o seu bem quanto para o dela.

Subitamente, uma onda incontrolável de calor subiu ao rosto dele.

— O que foi? — perguntou ela.

— Estava pensando em... estava só pensando.

— Em quem foi, é ou poderá ser o amante dela?

— É.

Penelope Dunross soltou um suspiro.

— Pelo bem da sua sanidade, Ian, não pense! Ela é muito sensata, tem mais de dezenove anos... bem, é bastante sensata. Por falar nisso, não a vi hoje o dia todo. A safadinha fugiu com o meu lenço novo antes que eu pudesse pegá-la. Lembra da blusa que lhe emprestei? Encontrei-a toda amassada, largada no chão do banheiro! Ficarei muito satisfeita quando ela ficar independente, morando no seu próprio apartamento.

— Ela é menina demais, pelo amor de Deus!

— Não estou de acordo, querido. Como eu dizia, não há nada que se possa fazer contra o progresso, e a pílula é um salto à frente maravilhoso, fantástico, inacreditável. Você precisa ser mais sensato. Por favor.

— É que... pombas, foi uma coisa muito repentina, só isso.

Ela deu uma risada gostosa.

— Se estivéssemos falando de Glenna, eu poderia compre... Ora, Ian, pelo amor de Deus, estou só brincando! Nunca me ocorreu que você não tivesse imaginado que Adryon era uma senhorita muito saudável, ajustada, embora com um gênio terrível, irritante, e muito frustrada, sendo que a maioria dessas frustrações deriva de tentar nos agradar, a nós, com as nossas idéias antiquadas.

— Tem razão. — Tentou parecer convincente, mas não conseguiu, e disse com azedume: — Tem razão, embora... tem razão.

— Meu rapaz, não acha que está na hora de visitar a nossa Árvore dos Gritos? — falou, com sotaque escocês, e um sorriso.

Era um costume antigo do clã, no país de origem deles, que próximo da moradia da mulher mais velha da família do chefe ficaria a Árvore dos Gritos. Quando Ian era moço, Vovó Dunross era a mais velha, e o seu chalé se situava numa clareira nas colinas atrás de Kilmarnock e Ayrshire, onde ficavam as terras dos Struans. A árvore era um grande carvalho. Era para essa árvore que a pessoa se dirigia quando estava "com o diabo no corpo", e então, sozinha, a pessoa gritava e xingava o quanto queria.

—... e assim, minha filha — a linda velhinha lhe dissera na primeira noite —...e assim, minha filha, sempre há paz no lar, e ninguém precisa xingar o marido, a mulher, o amante, o filho. É apenas uma árvore, e a árvore pode suportar todos os xingamentos que o próprio Diabo inventou.

Penelope estava se lembrando de como a velha Vovó Dunross a aceitara no clã e no seu coração, desde o primeiro momento. Fora pouco depois de eles terem se casado. Era a sua segunda visita, Ian de licença por motivos de saúde, ainda de muletas, as pernas muito queimadas, mas sarando, o resto do corpo intacto, depois da aterrissagem forçada, flamejante, e ele furioso por não mais poder voar, ela secretamente feliz, agradecendo a Deus pela trégua.

— Mas, minha menina — acrescentara Vovó Dunross com uma risadinha, naquela noite, com os ventos do inverno uivando nas charnecas, granizo do lado de fora, e eles quentinhos e aconchegados diante do fogo da lareira, a salvo dos bombardeios, bem alimentados, e sem outra preocupação que não fosse Ian ficar bom depressa —, certa vez, quando este Dunross tinha seis anos, e, puxa vida, que gênio tinha já nessa idade, e o pai dele, Colin, tinha viajado para um desses países pagãos estrangeiros, como sempre, este Dunross vinha passar as férias do colégio interno aqui em Ayr. É, e às vezes vinha me visitar, e eu lhe contava histórias do clã e do seu avô, e do seu bisavô. Mas, desta feita, nada conseguia afastar o demônio que tomara conta dele. Era uma noite igual a esta, e então eu o mandei lá para fora, o pirralhinho, é, eu o mandei para a Árvore dos Gritos... — A velhinha dera muitas risadinhas, sorvera o seu uísque e continuara: — É, e lá se foi o diabinho, todo empertigado, o vento levantando o seu saiote, e xingou a árvore. É, até os animais da floresta fugiram ante a sua ira, e depois ele voltou.

"— Deu-lhe uma boa bronca? — perguntei eu.

"— Dei — disse ele na sua vozinha. — É, vovó, dei-lhe uma boa bronca, a melhor de todas.

"— Ótimo — falei. — E agora está em paz!

"— Bem, não exatamente, vovó, mas estou cansado.

"E foi então, menina, naquele momento, que se ouviu um estrondo pavoroso, a casa inteira tremeu e pensei que era o fim do mundo, mas o pirralhinho correu para ver o que tinha acontecido e um raio fizera em pedaços a Árvore dos Gritos.

"— Puxa, vovó — disse na sua vozinha aguda, quando voltou, de olhos arregalados —, essa foi mesmo a melhor que já fiz. Posso fazer de novo?

"Ian caíra na risada.

"— Isso é história sua, não lembro de nada disso. Você está inventando, vovó!

"— Pois sim! Você estava com cinco ou seis anos, e no dia seguinte fomos escolher a nova árvore, a que você verá amanhã, menina, e a abençoamos em nome do clã, e eu disse ao jovem Ian que fosse um pouco mais cuidadoso, da próxima vez!"

Haviam rido juntos e depois, durante a noite, ela acordara e não encontrara Ian, nem suas muletas. Ficara atenta, esperando. Quando ele voltou, estava ensopado, mas cansado e em paz. Fingiu que dormia até que ele tivesse se metido na cama de novo. Aí, virou-se para ele, dando-lhe todo o calor de que era capaz.

— Lembre-se, minha menina — Vovó Dunross dissera-lhe em particular, no dia em que partiram —, se quiser manter o seu casamento, providencie para que este Dunross tenha sempre por perto uma Árvore dos Gritos. Não tenha medo. Escolha uma, sempre escolha uma, onde quer que estejam. Este Dunross precisa de uma Árvore dos Gritos por perto, embora não o admita, e só vai usá-la raramente. Ele é como Dirk. É forte demais...

E assim, aonde quer que fossem, tinham uma árvore. Penelope insistira. Certa vez, em Chungking, para onde Dunross fora mandado como oficial de ligação dos Aliados, depois que se curou, ela fizera de um bambu a Árvore dos Gritos deles. Ali em Hong Kong era um imenso jacarandá que dominava o jardim inteiro.

— Não acha que devia fazer uma visitinha a ela?

A árvore era sempre "ela" para ele, e "ele" para ela.

"Todo mundo devia ter uma Árvore dos Gritos", pensou Penelope. "Todo mundo."

— Obrigado — disse ele. — Agora estou bem.

— Como foi que Vovó Dunross teve tanta sabedoria e continuou tão maravilhosa depois de tanta tragédia na vida?

— Não sei. Vai ver que elas eram feitas de material mais forte, naquela época.

— Sinto saudade dela. — Vovó Dunross estava com oitenta e cinco anos quando morreu. Era Agnes Struan quando se casou com o primo Dirk Dunross, Dirk McCloud Dunross, cuja mãe, Winifred, única filha de Dirk Struan, dera-lhe o nome do pai, como homenagem. Dirk Dunross fora o quarto tai-pan, e morrera no mar, levando o Sunset Cloud para casa. Tinha apenas quarenta e dois anos, ao desaparecer, e ela, trinta e um. Jamais se casou de novo. Tiveram três filhos e uma filha. Dois dos filhos morreram na Primeira Guerra, o mais velho em Galípoli, com vinte e um anos, o outro em Ypres, Flandres, com dezenove. A filha Anne casara-se com Gaston de Ville, pai de Jacques. Anne morrera nos bombardeios de Londres, para onde haviam fugido todos os De Villes, exceto Jacques, que ficara na França e lutara contra os nazistas, com os maquis. Colin, o último dos seus filhos, pai de Ian, também tivera três filhos e uma filha, Kathren. Dois filhos também tinham morrido na Segunda Guerra Mundial. O primeiro marido de Kathren, líder da esquadrilha de Ian, fora morto na Batalha da Inglaterra. — Tantas mortes, mortes violentas — disse Penelope, com tristeza. — Ver todos eles nascerem, e todos morrerem... terrível! Pobre vovó! No entanto, quando morreu, pareceu partir tão serenamente, com aquele seu lindo sorriso.

— Talvez fosse joss. Mas os outros, também era o destino deles. Apenas fizeram o que tinham que fazer, Penn. Afinal de contas, nesse aspecto, a história da nossa família é bem comum. Somos britânicos. A guerra tem sido um meio de vida há séculos. Olhe só para a sua família. Um dos seus tios morreu no mar, na marinha, na Primeira Grande Guerra; outro na última, em El-Alamein; seus pais morreram na blitz... tudo muito comum. — A voz dele endureceu. — Não é fácil explicar para um estranho, é?

— Não. Todos tivemos que crescer tão depressa, não é, Ian? — Ele fez que sim com a cabeça, e depois de um momento, ela falou: — É melhor ir se vestir para o jantar, querido, vai se atrasar.

— Ora, qual é, Penn? Você leva uma hora a mais do que eu. Ficaremos só um pouco, sairemos logo depois do jantar. Quan... — O telefone tocou, e ele atendeu. — Sim? Oh, alô, Sr. Deland.

— Boa noite, tai-pan. Quero informar sobre a filha de Mme de Ville e seu genro, M. Escary.

— Por favor, prossiga.

— Sinto-me consternado por ter de dar notícias tão más. O acidente foi, como se diz, uma batida de raspão na parte de cima da Corniche, pertinho de Èze. O motorista do outro carro estava bêbado. Foi mais ou menos às duas da manhã, e quando a polícia chegou, M. Escary já estava morto, e sua mulher, inconsciente. O doutor diz que ela vai sarar, muito bem. Mas teme que os... os órgãos internos dela, seus órgãos reprodutores, possam ter sido afetados permanentemente. Pode precisar de uma operação. Ele...

— Ela está sabendo disso?

— Não, monsieur, ainda não, mas Mme de Ville sabe, o médico lhe contou. Fui recebê-la, como o senhor mandou, e cuidei de tudo. Pedi a um especialista nessas coisas, de Paris, que viesse dar o seu parecer, e ele chega ao Hospital de Nice hoje à tarde.

— Mais algum dano?

— Não externamente. Um pulso quebrado, alguns cortes, nada. Mas a pobre moça está arrasada. Foi bom... fiquei feliz por a mãe dela ter vindo, isso ajudou, ajudou. Está hospedada numa suíte no Metrópole, e fui recebê-la no aeroporto. Claro que estarei sempre em contato com ela.

— Quem dirigia?

— Mme Escary.

— E o outro motorista? Uma hesitação.

— O nome dele é Charles Sessonne. É padeiro em Èze, e ia voltando para casa, depois de uma noitada de cartas com amigos. A polícia já... Mme Escary jura que o carro dele estava na contramão. Ele não se lembra. Naturalmente, lamenta muito, e a polícia já o indiciou por dirigir bêbado, e...

— É a primeira vez?

— Non. Non, já houve uma vez em que foi detido e multado.

— O que acontecerá, segundo a lei francesa?

— Haverá um julgamento e depois... não sei, monsieur. Não houve outras testemunhas. Talvez uma multa, talvez a cadeia, não sei. Talvez ele se recorde de que estava na mão, quem sabe? Lamento muito.

Dunross pensou por um momento.

— Onde mora esse homem?

— Rue de Verte, 14, Èze.

Dunross lembrava-se bem da aldeia, não ficava longe de Monte Cario, bem no alto, e de lá se enxergava toda a Cote d'Azur, a Itália, para além de Monte Cario, e Nice, para além de Cap Ferrat.

— Obrigado, Sr. Deland. Mandei-lhe por telex dez mil dólares para as despesas de Mme de Ville e qualquer outra coisa. Faça o que for necessário. Ligue para mim, imediatamente, se houver algum problema... e por favor peça ao especialista para ligar para mim logo após ter examinado Mme Escary. Já falou com o Sr. Jacques de Ville?

— Não, tai-pan, o senhor não me deu ordens para isso. Quer que eu ligue?

— Não, eu ligo. Mais uma vez, obrigado.

Dunross desligou e contou tudo para Penelope, exceto sobre os ferimentos internos.

— Que horrível! Que coisa mais... sem sentido! Dunross estava olhando pela janela para o pôr-do-sol. Fora ele que sugerira que o jovem casal fosse para Nice e Monte Cario, onde ele e Penelope tinham se divertido tanto: comida maravilhosa, vinhos maravilhosos e um pouco de jogo. "Joss", pensou, depois acrescentou: "puta que o pariu!"

Ligou para a casa de Jacques de Ville, mas não o achou. Deixou um recado para que lhe telefonasse.

— Eu o verei logo mais, no jantar — disse, o champanha agora sem gosto. — Bem, é melhor nos vestirmos.

— Eu não vou, querido.

— Ora, mas...

— Tenho um monte de coisas para aprontar para amanhã. Arranje uma desculpa para mim... claro que você tem de ir. Estarei ocupadíssima. As coisas de escola de Glenna... e Duncan chega na segunda, e o material e roupas de escola dele têm que ser preparados. Você terá que levá-lo até o avião, e cuidado para ele não esquecer o passaporte... É fácil você arranjar uma desculpa para mim hoje, já que vou viajar.

Ele deu um débil sorriso.

— Claro, Penn, mas qual é o verdadeiro motivo?

— Vai ser uma festança. Robin estará lá.

— Eles só voltam amanhã!

— Não, estava na edição extra do Guardian. Chegaram esta tarde. A delegação inteira sem dúvida será convidada. — O banquete estava sendo oferecido por um multimilionário do mercado de imóveis, Sir Shi-teh T'Chung, em parte para comemorar o título de cavaleiro que recebera na última Lista de Honrarias, mas principalmente para dar início ao seu mais recente programa de caridade, a construção da nova ala do Elizabeth Hospital. — Não tenho mesmo vontade de ir, e contanto que você vá, tudo bem. Também estou querendo dormir cedo. Por favor.

— Está bem. Vou cuidar desses telefonemas, depois vou para lá. Mas falo com você antes de sair. — Dunross subiu as escadas e entrou no seu gabinete. Lim esperava. Usava uma túnica branca, calças pretas e sapatos macios. — Boa noite, Lim — disse Dunross em cantonense.

— Boa noite, tai-pan. — Discretamente, o velho chamou-o até a janela. Dunross podia ver dois homens, chineses, vadiando do outro lado da rua, do lado de fora do muro alto que cercava a Casa Grande, junto dos portões de ferro altos e abertos. — Há algum tempo que estão ali, tai-pan.

Dunross observou-os por um momento, inquieto. Seus próprios guardas haviam sido dispensados, e Brian Kwok, que também fora convidado para a festa de Sir Shi-teh, viria buscá-lo dali a pouco, no papel de substituto.

— Se não tiverem ido embora até o anoitecer, ligue para o gabinete do superintendente Crosse. — Anotou o número, depois acrescentou em cantonense, com a voz subitamente dura:

— Por falar nisso, Lim, se eu quiser que se mexa em algum carro de demônio estrangeiro, darei a ordem.

Viu que os velhos olhos o fitavam, impassíveis. Lim Chu estava com a família desde os sete anos, como o seu pai antes dele, e o pai dele, o primeiro da sua linhagem, que, antigamente, antes da existência de Hong Kong, fora o Empregado Número Um, e cuidara da mansão dos Struans em Macau.

— Não estou entendendo, tai-pan.

— Não se pode embrulhar fogo com papel. A polícia é esperta, e o velho Barba Negra é um grande amigo da polícia. Os peritos sabem examinar os freios e tirar toda espécie de informações.

— Não sei nada sobre a polícia. — O velho deu de ombros, depois abriu um sorriso. — Tai-pan, não subo em árvores para achar peixes. Nem o senhor. Preciso contar-lhe que, durante a noite, não pude dormir e vim para cá. Havia uma sombra no balcão. No momento em que abri a porta do gabinete, a sombra escorregou pelo cano de escoamento e sumiu no meio dos arbustos. — O velho apanhou um pedaço rasgado de pano.

— Isto aqui estava no cano.

A fazenda era comum, sem nada de especial.

Dunross examinou-a, perturbado. Lançou um olhar para o retrato de Dirk Struan, encimando a lareira. Estava na posição exata. Ele o afastou e viu que o fio de cabelo que havia equilibrado delicadamente numa dobradiça do cofre não fora tocado. Satisfeito, recolocou o quadro no lugar, depois foi verificar as trancas das portas envidraçadas. Os dois homens continuavam lá. Pela primeira vez, Dunross ficou muito contente por ter uma guarda do sei.

 

                   19h58m

Estava quente e úmido no escritório de Phillip Chen, e ele estava sentado ao lado do telefone, fitando-o nervosamente. A porta se abriu e ele deu um salto. Dianne foi entrando.

— Não há motivo para esperar mais, Phillip — falou, com irritação. — É melhor ir mudar de roupa. Aquele demônio do Lobisomem não vai ligar hoje à noite. Alguma coisa deve ter acontecido. Vamos indo! — Usava um cheong-sam de noite, no estilo mais moderno e dispendioso, o cabelo armado, e estava enfeitada de jóias como uma árvore de Natal. — É. Alguma coisa deve ter acontecido. Quem sabe a polícia... hum, é esperar demais que o tenham agarrado. O mais provável é que o demônio fang pi esteja brincando conosco. É melhor ir se vestir, ou chegaremos tarde. Se andar depres...

— Não estou com vontade de ir — falou ele bruscamente. Shitee T'Chung é um chato, e agora que virou Sir Shitee, é um chato ao quadrado. — Há anos o nome Shi-teh fora adulterado e se transformara em "Shitee", apelido usado pelos amigos íntimos. — De qualquer maneira, ainda nem são oito horas, o jantar é só às nove e meia, e ele está sempre atrasado. Os banquetes dele começam sempre uma hora atrasados, pelo menos. Pelo amor de Deus, vá você!

— Ayeeyah, você tem que ir. É uma questão de prestígio — replicou, igualmente mal-humorada. — Meu Deus, depois do que houve hoje na Bolsa... se não formos, ficaremos terrivelmente desprestigiados, e isso vai fazer com que as ações caiam mais ainda! Hong Kong inteira vai rir de nós. Mal podem esperar. Dirão que estamos com tanta vergonha de a Casa não poder pagar as suas contas que nem queremos dar as caras em público. Hum! E quanto à nova mulher de Shitee, Constance, aquela meretriz bajuladora nem pode esperar para me ver humilhada! — Estava quase guinchando. As perdas dela naquele dia ultrapassavam cem mil, dos seus dólares secretos e particulares. Quando Phillip telefonara da Bolsa, pouco depois das três, para contar-lhe o que se passara, ela quase desmaiara. — Oh ko, você tem que vir, ou ficaremos arruinados!

Com ar infeliz, o marido concordou. Sabia que fofocas e fofoqueiros abundariam no banquete. O dia todo fora inundado de perguntas, gemidos e pânico.

— Suponho que tenha razão. — Perdera quase um milhão naquele dia, e se a corrida continuasse e Gornt vencesse, sabia que seria destruído. "Oh, oh, oh, por que fui confiar no Dunross e comprar tanto?", perguntava-se, com tanta raiva que sentia vontade de dar um chute em alguém. Ergueu os olhos para a mulher. Seu coração se apertou ao notar os sinais do formidável desprazer dela em relação ao mundo em geral, e a ele em particular. Tremeu por dentro. — Está bem — disse, humildemente. — Não demoro nada.

Quando chegou à porta, o telefone tocou. Mais uma vez, seu coração se apertou, e sentiu-se nauseado. Recebera quatro telefonemas desde as seis horas. Todos tinham sido telefonemas comerciais lamentando o destino das ações, e "será que os boatos eram verdade, e oh ko, Phillip, é melhor eu vender...", cada um deles pior do que o anterior.

— Weyyyy? — atendeu, irado.

Fez-se uma breve pausa, depois uma voz igualmente rude disse num cantonense grosseiro:

— Você está de péssimo humor, seja lá quem for! Onde estão os seus bons modos, porra?

— Quem é? Quem está falando? — indagou em cantonense.

— Aqui é o Lobisomem. O Lobisomem-Chefe, por todos os deuses! Quem é você?

— Oh! — O sangue fugiu do rosto de Phillip Chen. Em pânico, fez sinal para a mulher. Ela veio depressa, e inclinou-se para ouvir também, tudo o mais esquecido, exceto a segurança da Casa. — Aqui... aqui fala o Honorável Chen — disse, cautelosamente. — Por favor, qual... qual é o seu nome?

— Está com cera nos ouvidos? Falei que era o Lobisomem. Acha que sou burro de lhe dar o meu nome?

— Des... desculpe, mas como posso saber que... que está falando a verdade?

— Como posso saber quem você é? Talvez seja um polícia comedor de bosta. Quem é você?

— Sou o Chen da Casa Nobre. Juro!

— Ótimo. Então, eu lhe escrevi uma carta dizendo que ligaria por volta das dezoito horas de hoje. Não recebeu a carta?

— Sim, recebi, sim — dizia Phillip Chen, tentando controlar um alívio a que se misturavam fúria, frustração e terror. — Deixe-me falar com meu Filho Número Um, por favor.

— Isso não é possível, não, não é possível! Um sapo pode pensar em comer um cisne? Seu filho está noutra parte da ilha... na verdade está nos Novos Territórios, longe de um telefone, mas a salvo, Chen da Casa Nobre, ah, sim, a salvo. Nada lhe falta. Tem o dinheiro do resgate?

— Tenho... pelo menos pude levantar cem mil. O...

— Todos os deuses testemunhem a porra da minha paciência! — exclamou o homem, irado. — Sabe muito bem que pedimos quinhentos mil. Quinhentos ou um milhão ainda é o mesmo que um fio de pêlo em dez bois, para você!

— Mentiras! — guinchou Phillip Chen. — Tudo mentiras e boatos difundidos por meus inimigos! Não sou tão rico assim... Não ouviu falar do que houve na Bolsa, hoje?

Phillip Chen tateou em busca de uma cadeira, o coração batendo com violência, e sentou-se, ainda segurando o fone de maneira a que Dianne também pudesse escutar.

— Ayeeyah, Bolsa! Nós, pobres agricultores, não aplicamos na Bolsa de Valores! Está querendo a outra orelha dele?

Phillip Chen empalideceu.

— Não. Mas precisamos negociar. Quinhentos é demais. Posso dar um jeito de arranjar cento e cinqüenta mil.

— Se eu aceitar cento e cinqüenta mil serei motivo de chacota de toda a China! Está me acusando de vender gato por lebre? Cento e cinqüenta pelo Filho Número Um dos Chens da Casa Nobre? Impossível! Eu ficaria desmoralizado! Certamente, pode entender isso.

Phillip Chen hesitou.

— Bem — falou, razoavelmente —, nesse ponto tem razão. Primeiro, quero saber quando vou ter meu filho de volta.

— Logo que o resgate seja pago! Prometo-lhe pelos ossos dos meus ancestrais! Poucas horas depois de recebermos o dinheiro, nós o poremos na estrada principal de Sha Tin.

— Ah, ele está em Sha Tin, agora?

— Ayeeyah, você não consegue me fazer cair em armadilhas, Chen da Casa Nobre. Estou sentindo cheiro de bosta nessa conversa! A merda da polícia está escutando? O cão está bancando o valente porque o amo está escutando? Chamou a polícia?

— Não, juro. Não chamei a polícia e não estou tentando fazê-lo cair em nenhuma armadilha, mas, por favor, preciso de garantias, garantias razoáveis. — Phillip Chen estava orvalhado de suor. — Você está seguro, tem minha palavra, não chamei a polícia. Por que chamaria? Se o fizer, como poderemos negociar?

Outra longa hesitação, depois o homem disse, um pouco apaziguado:

— Concordo. Mas estamos com o seu filho; assim, qualquer coisa que aconteça é culpa sua, não nossa. Está certo, também serei razoável. Aceitarei quatrocentos mil, mas tem que ser esta noite!

— É impossível! Está me pedindo para pescar no mar e apanhar um tigre! Só recebi sua carta depois que os bancos tinham fechado, mas tenho cem mil em notas de baixo valor... — Dianne cutucou-o e ergueu dois dedos. — Ouça, Honorável Lobisomem, quem sabe posso pedir mais emprestado, ainda hoje. Quem sabe... ouça, dou-lhe duzentos mil esta noite. Estou certo de poder levantar essa quantia, em uma hora. Duzentos mil!

— Que todos os deuses me abatam e matem, se aceitar essa merda dessa ninharia. Quero trezentos e cinqüenta mil!

— Duzentos mil dentro de uma hora!

— A outra orelha dele dentro de dois dias, ou trezentos mil esta noite!

Phillip Chen gemeu, suplicou, bajulou e xingou, e negociaram mutuamente. Os dois homens eram peritos. Logo estavam engajados numa batalha de habilidade, cada um usando todos os seus poderes, o seqüestrador usando ameaças, Phillip Chen usando malícia, lisonja e promessas. Finalmente, Phillip Chen falou:

— Você é bom demais para mim, um negociador bom demais. Pagarei duzentos mil esta noite, e mais cem mil dentro de quatro meses.

— Dentro de um mês!

— Três!

Phillip Chen ficou estarrecido com o fluxo de obscenidades que se seguiu, e perguntou-se se tinha avaliado mal o adversário.

— Dois!

Dianne cutucou-o de novo, para que concordasse.

— Pois bem, concordo. Mais cem mil em dois meses.

— Ótimo! — O homem parecia satisfeito, depois acrescentou: — Pensarei no que propôs, e ligarei depois.

— Mas, espere um momento, Honorável Lobisomem. Quando li...

— Dentro de uma hora.

— Ma... — O telefone emudeceu. Phillip Chen praguejou, depois enxugou de novo a testa. — Pensei que o tinha nas mãos. Deus amaldiçoe o bosta de cachorro sem mãe.

— É. — Dianne estava eufórica. — Agiu muito bem, Phillip! Apenas duzentos agora e mais cem daqui a dois meses! Perfeito! Tudo pode acontecer em dois meses. Quem sabe a suja da polícia os prende, e então não teremos que pagar os cem mil! — Toda feliz, pegou um lenço de papel e enxugou delicadamente o suor que lhe encimava os lábios. A seguir, seu sorriso desapareceu. — E quanto a Shitee T'Chung? Temos que ir, mas você tem que esperar.

— Ah, já sei! Leve o Kevin, eu vou depois. Haverá espaço bastante para mim, quando chegar lá. Fico... fico esperando que ele telefone de novo.

— Excelente! Como você é esperto! Temos que pegar a nossa moeda de volta. Ah, que ótimo! Talvez nossa sorte tenha mudado e a alta do mercado possa acontecer, como predisse o Velho Cego Tung. Kevin está tão preocupado com você, Phillip! O pobrezinho está muito nervoso com todos os problemas que você está tendo. Está muito preocupado com a sua saúde! — Saiu apressadamente agradecendo aos deuses, sabendo que estaria de volta muito antes de John Chen voltar em segurança. "Perfeito", pensava, "Kevin pode usar o seu novo dinner jacket branco lustroso. Está na hora de começar a viver de acordo com a sua nova posição." — Kevinnnn!

A porta se fechou. Phillip Chen soltou um suspiro. Quando conseguiu reunir forças, foi até o aparador e serviu-se de um conhaque. Depois que Dianne e Kevin foram embora, serviu-se de outro. Às quinze para as nove, o telefone tocou de novo.

— Chen da Casa Nobre?

— Sim... sim, Honorável Lobisomem?

— Aceitamos. Mas tem que ser esta noite. Phillip Chen soltou um suspiro.

— Pois bem. Agora, que...

— Pode conseguir todo o dinheiro?

— Posso.

— As notas serão de cem, como pedi?

— Sim. Tenho cem mil e posso obter mais cem com um amigo...

— Tem amigos ricos — disse o homem, desconfiado. — Mandarins.

— Ele é bookmaker — disse Phillip Chen rapidamente, amaldiçoando-se pelo deslize. — Quando você desligou, eu... entrei em contato com ele. Felizmente, hoje foi uma das suas grandes noites.

— Está bem. Escute, tome um táxi...

— Ah, mas tenho carro e...

— Sei que tem uma merda dum carro, sei qual é a placa __disse o outro com grosseria —, e sabemos tudo a seu respeito; se tentar nos atraiçoar com a polícia, jamais verá seu filho de novo, e será o próximo da nossa lista. Compreendeu?

— Sim, sim, claro, Honorável Lobisomem — disse Phillip Chen, apaziguadoramente. — Devo tomar um táxi... para onde?

— O jardim em triângulo em Kowloon Tong. Ali há uma estrada chamada Essex Road. Ali há um muro, e um buraco no muro. Uma flecha desenhada na calçada terá a ponta indicando o buraco. Enfie a mão pelo buraco e receberá uma carta. Leia-a e depois os nossos combatentes de rua se acercarão de você e dirão Tin koon chi fook, e você lhes entregará a sacola.

— Oh! Não é possível que eu a entregue ao homem errado?

— Não entregará. Entendeu a senha, e todo o resto?

— Sim... sim.

— Quanto tempo demorará para chegar lá?

— Irei imediatamente. Eu... pegarei a outra quantia no caminho, posso ir imediatamente.

— Então venha imediatamente. Venha só, não pode vir com mais ninguém. Estará sendo vigiado no momento em que sair pela porta.

Phillip Chen enxugou a testa.

— E meu filho? Quando vou...

— Obedeça às instruções! Tome cuidado e venha sozinho. Novamente o aparelho emudeceu. Os dedos dele tremiam ao pegar o copo e engolir todo o conhaque. Sentiu o calorzinho gostoso, mas aquilo não diminuiu em nada sua apreensão. Quando se sentiu mais controlado, ligou para um número muito particular.

— Quero falar com Wu Quatro Dedos — disse, no dialeto de Wu.

— Um momento, por favor. — Ouviu algumas vozes abafadas em haklo, e depois: — É o Sr. Chen, Sr. Phillip Chen? — a voz perguntou, num inglês dos Estados Unidos.

— Oh! — exclamou, espantado, depois acrescentou, cautelosamente: — Quem fala?

— Aqui é Paul Choy, Sr. Chen, sobrinho do Sr. Wu. Meu tio precisou sair, mas deixou instruções para que eu esperasse até o senhor ligar. Tomou algumas providências para o senhor. É mesmo o sr, Chen?

— Sim, sim, sou eu.

— Ah, ótimo! Teve notícias dos seqüestradores?

— Sim, sim, tive.

Phillip Chen não se sentia bem falando com um estranho, mas agora não tinha opção. Contou a Paul Choy as instruções que recebera.

— Um momentinho, senhor. — Ouviu uma mão tapando o bocal, e novamente uma conversa indistinta e abafada no dialeto haklo. — Tudo acertado, senhor. Mandaremos um táxi para a sua casa... está telefonando do Mirante de Struan?

— É, estou em casa.

— O motorista será um dos nossos. Haverá mais... gente do meu tio espalhada por Kowloon Tong, portanto não se preocupe, estará coberto a cada passo do caminho. Basta entregar o dinheiro, e eles... cuidarão de tudo. O lugar-tenen... o ajudante dele disse para não se preocupar, a área inteira estará enxameando de... Sr. Chen?

— Ainda estou aqui. Obrigado.

— O táxi chegará aí em vinte minutos.

Paul Choy desligou o aparelho.

— O Chen da Casa Nobre manda agradecer, Honorável Pai — disse para Wu Quatro Dedos, apaziguadoramente, no dialeto deles, tremendo sob o olhar de pedra do velho. O suor orvalhava-lhe o rosto. Tentou, sem êxito, disfarçar dos outros o seu medo. Estava quente e abafado na cabine principal, lotada, do junco antigo, amarrado numa vaga permanente a uma doca igualmente antiga num dos inúmeros estuários de Aberdeen. — Posso ir com seus combatentes, também?

— A gente manda um coelho lutar contra um dragão? — rosnou Wu Quatro Dedos. — Você é treinado como combatente de rua? Eu sou um idiota feito você? Traiçoeiro feito você? — Apontou um polegar caloso para Poon Bom Tempo.

— Guie os combatentes!

O homem saiu, às pressas. Os outros o seguiram.

Agora, os dois homens estavam sozinhos na cabine.

O velho estava sentado em cima de um barril de cabeça para baixo. Acendeu outro cigarro, tragou profundamente, tossiu e cuspiu ruidosamente no chão do convés. Paul Choy o fitava, com o suor escorrendo pelas costas, mais de medo do que de calor. Ao seu redor havia algumas escrivaninhas velhas, arquivos, cadeiras desconjuntadas e dois telefones, pois ali ficava o escritório e o centro de comunicações de Quatro Dedos. Era dali, principalmente, que mandavam mensagens para a sua frota. Grande parte dos seus negócios era transporte de carga legal, mas onde quer que tremulasse a bandeira com a Lótus Prateada, sua ordem para os capitães era: qualquer coisa, transportada para qualquer lugar, a qualquer hora... pelo preço certo.

O velho durão tossiu de novo e fitou-o ferozmente sob as sobrancelhas espessas.

— Eles ensinam modos curiosos na Montanha Dourada, heya?

Paul Choy ficou calado e esperou, o coração disparado, e desejou jamais ter voltado para Hong Kong, estar ainda nos Estados Unidos, ou melhor ainda, em Honolulu, surfando nas Grandes Ondas, ou deitado na areia ao lado da sua namorada. Seu espírito se retorceu ao pensar nela.

— Ensinam você a cuspir no prato em que comeu, heya?

— Não, Honrado Pai, lamen...

— Ensinam que meu dinheiro é seu, minha fortuna é sua, e meu carimbo é seu, para usar como desejar, heya?

— Não, Honrado Senhor. Lamento tê-lo desagradado — murmurou Paul Choy, fraquejando ante o peso do próprio medo.

Naquela manhã bem cedo, quando Gornt entrara animado no escritório, vindo do seu encontro com Bartlett, as secretárias ainda não tinham chegado. Portanto Paul Choy perguntou se poderia ajudá-lo em alguma coisa. Gornt mandou que ligasse para diversas pessoas. Para outras ele próprio discou, na sua linha particular. Paul Choy não dera importância, na hora, até que, por acaso, ouviu parte do que eram, obviamente, informações sigilosas da Struan sendo sussurradas confidencial-mente pelo telefone. Lembrando-se do telefonema de Bartlett, logo cedo, deduzindo que Gornt e Bartlett tinham tido um encontro (bem-sucedido, a julgar pelo bom humor de Gornt), e dando-se conta de que Gornt estava fazendo as mesmas confidencias, repetidas vezes, sua curiosidade aumentou. Mais tarde, conseguiu ouvir Gornt dizer aos seus advogados:

— "...vendendo a descoberto... Não, não se preocupe, nada vai acontecer até que eu esteja coberto, não antes das onze horas... Claro. Mando o pedido, carimbado, tão logo..."

O telefonema seguinte que Gornt solicitou que ele desse foi um interurbano para o gerente do Banco da Suíça e Zurique, ao qual, discretamente, prestou atenção.

—...estou esperando um depósito grande de dólares americanos hoje de manhã, antes das onze horas. Ligue para mim no instante preciso em que estiver na minha conta.

Assim, intrigado, juntara as diversas peças da equação e formulara uma teoria: "Se Bartlett estabeleceu uma sociedade súbita e secreta com Gornt, o inimigo declarado da Struan, para dar início a uma de suas incursões; se Bartlett também assume parte do risco, ou a sua maioria — colocando secretamente uma grande quantia em uma das contas numeradas de Gornt na Suíça, para cobrir quaisquer prejuízos com as vendas a descoberto; — e, finalmente, se convenceu Gornt a ser o testa-de-ferro enquanto ele fica em cima do muro, vai dar a maior confusão na Bolsa, e as ações da Struan vão cair."

Isso precipitou uma decisão comercial imediata: "Entre na dança depressa e venda ações da Struan a descoberto antes dos figurões, e ganhe uma nota preta!"

Lembrava-se agora como quase gemera em voz alta porque não tinha dinheiro, nem crédito, nem ações, nem meios de tomá-las emprestadas. A seguir, lembrou-se do que um dos seus instrutores na Escola de Administração de Harvard vivia martelando na cabeça deles: um coração débil jamais conquistou uma bela moça. Assim, entrou numa sala particular e ligou para o seu novo amigo, Ishwar Soorjani, o agiota e dono da casa de câmbio, a quem ficara conhecendo por intermédio do velho eurasiano da biblioteca.

— Escute, Ishwar, seu irmão é o chefe dos Corretores Soorjani, não é?

— Não, Jovem Amo. Ar jan é meu primo-irmão. Por quê?

— Se eu quisesse vender ações a descoberto, ele me apoiaria?

— Certamente, como já lhe disse antes, vendendo ou comprando eu o apoiarei integralmente, se tiver uma quantia razoável para cobrir os prejuízos... ou o equivalente. Sem dinheiro ou equivalente, nada feito.

— E se eu tiver uma informação quentíssima?

— O caminho para o inferno e para a prisão dos devedores está coalhado de informações quentíssimas, Jovem Amo. Aconselho-o a não se fiar em informações quentíssimas.

— Puxa — exclamou com tristeza Paul Choy. — Poderíamos ganhar algumas centenas de milhares antes das três.

— É? Gostaria de sussurrar o ilustre nome das ações?

— Você me apoiaria com... vinte mil dólares americanos?

— Ah, lamento, Jovem Amo, eu empresto dinheiro, não dou. Meus ancestrais o proíbem!

— Vinte mil HK?

— Nem mesmo dez dólares em dinheiro confederado.

— Puxa, Ishwar, você não está sendo de grande ajuda!

— Por que não pede ao seu ilustre tio? O carimbo dele... e eu lhe daria imediatamente até meio milhão de HK.

Paul Choy sabia que entre o dinheiro e os papéis do pai transferidos do Ho-Pak para o Victoria havia muitos certificados de ações e uma lista de títulos mobiliários nas mãos de diversos corretores. Uma delas era de cento e cinqüenta mil ações da Struan. "Meu Deus", pensou, "se eu estiver certo, o velho pode se dar mal. Se Gornt for adiante com a incursão, o velho pode entrar pelo cano."

— Boa idéia, Ishwar. Ligo depois para você! Telefonou para o pai imediatamente, mas não conseguira localizá-lo. Deixou recados onde pôde, e começou a esperar. Sua ansiedade aumentava. Pouco antes das dez, ouviu a secretária de Gornt atender ao telefone.

— Sim?... Ah, um momento, por favor... Sr. Gornt? Uma ligação pessoal de Zurique... Pode falar.

Mais uma vez tentara encontrar o pai, querendo dar-lhe a notícia urgente. Então, Gornt mandara chamá-lo.

— Sr. Choy, queira entregar isto imediatamente ao meu advogado. — Dera-lhe um envelope lacrado. — Entregue-o a ele pessoalmente.

— Sim, senhor.

Saíra do escritório. Parava a cada telefone que encontrava, tentando falar com o pai. Depois, entregara a carta em mãos, observando atentamente o rosto do advogado. Notou satisfação.

— Há resposta, senhor? — perguntou cortesmente.

— Diga apenas que tudo será feito como ele mandou. Passava um pouquinho das dez horas.

Saindo do escritório e descendo no elevador, Paul Choy pesara os prós e os contras. Com o estômago dando voltas, parou no telefone mais próximo.

— Ishwar? Escute, tenho uma ordem urgente do meu tio. Quer vender suas ações da Struan, cento e cinqüenta mil ações.

— Ah, muito sensato, os boatos mais terríveis estão correndo à solta.

— Sugeri a ele que você e Soorjani deviam cuidar disso. Cento e cinqüenta mil ações. Ele quer saber se vocês podem vendê-las imediatamente. É possível?

— Sem dúvida. Para o Estimado Quatro Dedos, iremos em frente como os Rothschilds! Onde estão as ações?

— Na caixa-forte.

— Precisarei imediatamente do carimbo dele.

— Estou indo buscá-lo, mas ele mandou vender sem mais delongas. Mandou vender em blocos pequenos, para não abalar o mercado. Quer o melhor preço. Venderá imediatamente?

— Sim, não se preocupe, imediatamente. E obteremos o melhor preço!

— Ótimo. E, o mais importante, mandou que isso ficasse em segredo.

— Sem dúvida, Jovem Amo, pode confiar em nós implicitamente. E as ações que você mesmo queria vender a descoberto?

— Bem, acho que... elas terão que esperar... até eu ter crédito, heya?

— Muito, muito sensato.

Paul Choy estremeceu. Seu coração batia fortemente agora, no silêncio, e ele ficou olhando para o cigarro do pai, não para o seu rosto irado, sabendo que aqueles olhos negros e frios o fitavam penetrantes, decidindo o seu destino. Lembrou-se de como quase gritara de entusiasmo quando as ações tinham começado a baixar quase imediatamente, controlando-as minuto a minuto, depois mandando Soorjani recomprá-las pouco antes de a Bolsa encerrar o expediente, e sentindo-se eufórico e tonto de alegria. Prontamente fora telefonar para a sua garota, gastando quase trinta dos seus valiosos dólares americanos, contando-lhe que dia fantástico tivera, e como sentia saudade dela. Ela dissera que também estava morrendo de saudade, e perguntara quando ele ia voltar para Honolulu. Ela se chamava Mika Kasunari, e era sansei, americana de terceira geração, descendente de japoneses. Os pais dela o odiavam porque era chinês, assim como ele sabia que o pai dele a odiaria porque era japonesa, só que eles eram americanos, os dois, e haviam se conhecido e apaixonado na universidade.

— Muito breve, meu bem — prometera-lhe, radiante —, até o Natal, prometo! Depois do dia de hoje, sem dúvida meu tio me dará uma gratificação...

Fez brincando o trabalho que Gornt lhe dera durante o resto do dia. No final da tarde, Poon Bom Tempo telefonara para lhe avisar que o pai o veria em Aberdeen, às dezenove e trinta. Antes de ir para lá, fora buscar o cheque de Soorjani para o pai: seiscentos e quinze mil HK, menos a comissão de corretagem.

Radiante, viera para Aberdeen e lhe entregara o cheque, e quando lhe contara o que havia feito, ficara estupefato ao constatar a extensão da fúria do pai. A bronca violenta fora interrompida pelo telefonema de Phillip Chen.

— Lamento profundamente tê-lo ofendido, Hon...

— Com que então meu carimbo é seu, minha fortuna é sua, heya? — berrou Wu Quatro Dedos subitamente.

— Não, Honrado Pai — exclamou, com voz abafada —, mas a informação era tão boa! E quis proteger suas ações, além de ganhar dinheiro para o senhor.

— Mas não para você, heya?

— Não, Honrado Pai. Era para o senhor. Para ganhar dinheiro para o senhor e ajudar a retribuir todo o dinheiro que investiu em mim... eram as suas ações, e é o seu dinheiro. Tentei...

— Isso não é porra de desculpa nenhuma! Venha comigo! Trêmulo, Paul Choy levantou-se e acompanhou o velho até o tombadilho. Wu Quatro Dedos mandou embora com um palavrão o seu guarda-costas e apontou com um dedo rombudo as águas lamacentas e fétidas do porto.

— Se não fosse meu filho — sibilou —, se não fosse meu filho, estaria alimentando os peixes ali, com os pés acorrentados, neste exato momento.

— Sim, Pai.

— Se usar o meu nome de novo, meu carimbo, seja lá o que for, sem minha aprovação, é um homem morto.

— Sim, Pai — murmurou Paul Choy, petrificado, dando-se conta de que o pai tinha os meios, a vontade e a autoridade para levar a ameaça a cabo sem medo de retaliação. — Desculpe, Pai, juro que nunca mais faço isso.

— Ótimo. Se tivesse perdido uma simples moedinha, estaria ali agora. Só está vivo agora porque ganhou, porra!

— Sim, Pai.

Wu Quatro Dedos olhou feio para o filho e continuou a esconder sua alegria com a dinheirama: seiscentos e quinze mil HK, menos uns poucos dólares. "Inacreditável! Tudo com alguns telefonemas e informações confidenciais", pensava. "Isso é tão milagroso como ver dez toneladas de ópio saltarem para a terra firme, passando sobre as cabeças dos funcionários do barco da alfândega! O rapaz pagou mais de vinte vezes pela educação que lhe dei, e mal faz três semanas que está aqui. Que esperto... mas também que perigoso!"

Estremeceu à idéia de outros subalternos tomando as próprias decisões. "Dew neh loh moh, então eu estaria nas mãos deles, e pararia na cadeia pelos erros deles, não pelos meus. E no entanto", disse, desanimado, para si mesmo, "este é o modo como os bárbaros fazem negócios. O Filho Número Sete foi treinado como bárbaro. Que todos os deuses sejam testemunhas, eu não quis criar uma víbora!"

Olhou para o filho, sem entendê-lo, odiando seu modo direto de falar, o modo dos bárbaros, não o modo sutil e oblíquo das pessoas civilizadas.

E no entanto... no entanto mais de seiscentos mil HK num só dia. Se tivesse falado antes com ele, jamais teria concordado, e teria perdido todo esse lucro! "Ayeeyah! É, minhas ações baixariam e eu perderia toda essa fortuna em um dia... oh, oh, oh!"

Tateou em busca de um caixote e sentou-se, o coração disparando com a idéia terrível.

Fitava o filho. O que fazer com ele?, perguntava-se. Podia sentir o peso do cheque no bolso. Parecia inacreditável que o filho pudesse ter ganho tal quantia para ele num espaço de poucas horas, sem tirar as ações do seu esconderijo.

— Explique-me por que aquele demônio estrangeiro de cara preta com o nome horroroso me deve tanto dinheiro!

Paul Choy explicou pacientemente o mecanismo, desesperado para agradá-lo.

O velho pensou no assunto.

— Quer dizer que amanhã devo fazer o mesmo e ganhar o mesmo?

— Não, Honrado Pai. Pegue os seus lucros, e fique com eles. Hoje, era praticamente uma certeza. Foi um ataque súbito, uma incursão. Não sabemos como a Casa Nobre vai reagir amanhã, ou se Gornt realmente pretende continuar a incursão. Ele pode recomprar e sair lucrando bastante. Seria perigoso seguir os passos de Gornt amanhã, muito perigoso.

Wu Quatro Dedos jogou fora o cigarro.

— Então, o que devo fazer amanhã?

— Esperar. O mercado de capitais dos demônios estrangeiros está nervoso e nas mãos dos demônios estrangeiros. Aconselho-o a esperar e ver o que acontece com o Ho-Pak e o Victoria. Posso usar seu nome para perguntar ao demônio estrangeiro Gornt sobre o Ho-Pak?

— Como?

Pacientemente, Paul Choy refrescou a memória do pai sobre a corrida ao banco e a possível manipulação das ações.

— Ah, sei, entendo — disse o velho altivamente. Paul Choy ficou calado, sabendo que ele não entendia. — Entre nós... então eu só espero?

— Sim, Honrado Pai.

Quatro Dedos pegou o cheque, desdenhosamente.

— E este pedaço de papel de merda? O que faço com ele?

— Converta-o em ouro, Honrado Pai. O preço varia pouquíssimo. Eu poderia falar com Ishwar Soorjani, que tem uma casa de câmbio, se o senhor quiser.

— E onde iria guardar o ouro?

Uma coisa era contrabandear o ouro dos outros, outra bem diferente era preocupar-se com o próprio.

Paul Choy explicou que não era necessário a posse física do ouro para ser dono dele.

 

— Mas não confio em bancos — disse o velho, zangado. — Se o ouro é meu, é meu, e não do banco!

— Sim, Pai. Mas o banco seria na Suíça, não em Hong Kong, e estaria completamente seguro.

— Você me dá sua vida como garantia?

— Sim, Pai.

— Ótimo. — O velho pegou uma caneta e assinou seu nome nas costas do cheque, com instruções para Soorjani convertê-lo imediatamente em ouro. Entregou-o ao filho. — Está valendo a sua cabeça, meu filho. E amanhã nós esperamos? Não ganhamos dinheiro amanhã?

— Talvez haja oportunidade para novos lucros, mas não posso garantir. Talvez eu fique sabendo lá pelo meio-dia.

— Ligue para mim aqui, ao meio-dia.

— Sim, Pai. Claro, se tivéssemos a nossa própria Bolsa, poderíamos manipular cem ações...

Paul Choy deixou a idéia pairando no ar...

— Como?

Cuidadosamente, o rapaz começou a explicar como seria fácil para eles formarem sua própria Bolsa de Valores, uma Bolsa dominada pelos chineses, e as oportunidades ilimitadas de lucro que tal empreendimento daria. Falou durante uma hora, ganhando confiança a cada minuto que passava, explicando o mais simplesmente que podia.

— Se é assim tão fácil, meu filho, por que o Tung Pão-Duro não fez isso, o Sung Barulho Grande, o Ng Ricaço, aquele contrabandista de ouro metade bárbaro de Macau, o Banqueiro Kwang, ou dezenas de outros, heya?

— Talvez nunca tenham tido a idéia, ou a coragem. Talvez prefiram trabalhar dentro do sistema dos demônios estrangeiros... o Turf Club, o Cricket Club, títulos de cavaleiro, e toda essa baboseira inglesa. Talvez tenham medo de nadar contra a maré, ou não tenham os conhecimentos necessários. Nós temos os conhecimentos e a habilidade. É. E tenho um amigo na Montanha Dourada, um bom amigo, que estudou comigo, que...

— Que amigo?

— É um xangaiense, um cobra em ações, e agora é corretor em Nova York. Juntos, com apoio financeiro, sei que teríamos êxito. Sei que sim.

— Ayeeyah! Com um bárbaro do norte? — zombou Wu Quatro Dedos. — Como poderia confiar nele?

— Acho que poderia confiar nele, Honrado Pai... naturalmente, o senhor estabeleceria os limites contra as ervas daninhas, como faz um bom horticultor.

— Mas todo o poder do ramo em Hong Kong está nas mãos dos demônios estrangeiros. As pessoas civilizadas não iriam apoiar uma Bolsa de oposição.

— Pode ser que tenha razão, Honrado Pai — concordou Paul Choy cautelosamente, não deixando transparecer o seu entusiasmo nem na fisionomia nem na voz. — Mas todos os chineses gostam de jogar. Contudo, no momento, não há um só corretor civilizado! Por que os demônios estrangeiros nos boicotam? Porque nós levaríamos a melhor sobre eles. Para nós, o mercado de capitais é a melhor profissão do mundo. Logo que o nosso povo souber que o nosso mercado em Hong Kong está totalmente aberto para as pessoas civilizadas e as suas companhias, passará para o nosso lado. Os demônios estrangeiros serão forçados a abrir a Bolsa deles também para nós. Somos melhores jogadores que eles. Afinal de contas, Honrado Pai — fez um gesto de mão abrangendo a terra, os prédios altos, os barcos, os juncos, os restaurantes flutuantes —, tudo isso poderia ser seu! É com títulos, ações e o mercado de capitais que o homem moderno possui o poder do seu mundo.

Quatro Dedos fumava sem pressa.

— E quanto custaria o seu mercado de capitais, Filho Número Sete?

— Um ano, em termos de tempo. Um investimento inicial de... não sei exatamente. — O coração do jovem se remoía. Podia sentir a avareza do pai. As implicações de se formar uma Bolsa de Valores chinesa naquela sociedade capitalista sem regras eram tão fantásticas que o deixavam tonto. Seria tão fácil, tendo tempo e... e quanto? — Posso dar-lhe uma estimativa dentro de uma semana.

Quatro Dedos fitou o filho com seus velhos olhos astutos, e podia ler a excitação do rapaz, e sua cobiça. "De dinheiro ou de poder?", perguntou-se.

"De ambos", concluiu. "O jovem tolo não sabe que ambos são a mesma coisa." Pensou no poder de Phillip Chen, no poder da Casa Nobre também, e no poder da meia moeda que John Chen roubara. "Phillip Chen e a mulher também são tolos", disse com seus botões. "Deviam lembrar-se de que há sempre ouvidos do outro lado das paredes, e que uma vez que uma mãe ciumenta fica sabendo um segredo, este deixa de ser segredo. Também não se pode guardar segredos em hotéis entre os demônios estrangeiros, que sempre imaginam que os criados não sabem falar o idioma dos bárbaros, nem têm orelhas compridas e olhos aguçados.

"Ah, filhos!", refletiu. "Os filhos são sem dúvida a riqueza de um pai... mas, às vezes, também causam a morte do pai.

"Um homem é um idiota de confiar num filho. Completamente. Heya?"

— Pois bem, meu filho — falou, com naturalidade. — Dê-me o seu plano, por escrito, e a quantia. E decidirei.

Phillip Chen saltou do táxi no triângulo de grama em Kowloon Tong, com a pasta de executivo agarrada ao peito. O motorista desligou o taxímetro e olhou para ele. Marcava dezessete HK e oitenta cents. Se dependesse de Phillip, não teria usado o mesmo táxi desde o Mirante de Struan, o que significava usar a balsa dos táxis, com o taxímetro correndo o tempo todo. Não. Teria atravessado a baía pela Balsa Dourada, por quinze cents, tomado outro táxi em Kowloon e poupado pelo menos oito dólares. Que terrível desperdício de dinheiro!, pensou.

Cuidadosamente, contou dezoito dólares. Pensando melhor, acrescentou uma gorjeta de trinta cents, sentindo-se generoso. O homem foi embora, deixando-o perto do triângulo de grama.

Kowloon Tong era apenas mais um subúrbio de Kowloon, um ninho fervilhante de prédios, cortiços, becos, gente e trânsito. Achou a Essex Road, que rodeava o jardim, e caminhou pela rua. A pasta de executivo parecia ficar cada vez mais pesada, e teve certeza de que todos sabiam que ela continha duzentos mil HK. Seu nervosismo aumentou. Numa zona como aquela, podia-se comprar a morte de um homem por algumas centenas de dólares, se se sabia a quem procurar... e por aquela quantia, podia-se contratar um exército. Os olhos dele estavam fixos na calçada quebrada. Quando já tinha dado a volta quase completa ao redor do triângulo, viu a flecha na calçada, apontando para o muro. O coração lhe pesava no peito, e doía. Estava bem escuro ali, com poucos postes de iluminação. O buraco era formado por alguns tijolos que haviam caído. Pôde ver o que parecia ser um jornal amassado dentro do buraco. Tirou-o de lá apressadamente, certificou-se de que não ficara nada lá dentro, depois caminhou até um banco sob um poste de luz e se sentou. Quando o coração começou a diminuir o ritmo e a respiração tornou-se mais calma, abriu o jornal. Dentro dele havia um envelope. O envelope era plano, e um pouco da sua ansiedade o abandonou. Ficara morto de medo de achar ali a outra orelha.

O bilhete dizia: "Ande até a Waterloo Road. Vá para o norte, na direção do acampamento do exército, mantendo-se no lado oeste da rua. Cuidado, estamos de olho em você neste momento".

Um arrepio o percorreu, e olhou ao seu redor. Ninguém parecia vigiá-lo. Nem amigo nem inimigo. Mas podia sentir os olhares. Sua pasta de executivo parecia ainda mais pesada.

"Todos os deuses me protejam", orou fervorosamente, tentando reunir coragem para continuar. "Que diabo, onde estão os homens de Wu Quatro Dedos?"

A Waterloo Road ficava perto, uma rua movimentada. Não deu importância às multidões, apenas caminhou pesadamente para o norte, sentindo-se despido, sem ver ninguém em especial. As lojas estavam todas abertas, os restaurantes, lotados, os becos, cheios de povo. No aterro próximo, um trem de carga apitou tristemente, indo para o norte, misturando seu apito às buzinas ruidosas que todos os motoristas usavam indiscriminadamente. O céu estava feio, encoberto, e a noite, muito úmida.

Cansadamente, caminhou oitocentos metros, cruzando ruas laterais e becos. Parou no meio de um monte de gente para deixar passar um caminhão, depois passou pela boca de mais um beco estreito, movendo-se para cá e para lá, ao ser empurrado pelos transeuntes. De repente, dois jovens surgiram à sua frente, impedindo-lhe o caminho, e um deles sibilou:

— Tin koon chi fook!

— Como?

Os dois usavam bonés enterrados na cabeça, óculos escuros, e tinham rostos semelhantes.

— Tin koon chi fook! — repetiu Kin Bexiguento, malevolamente. — Dew neh loh moh, passe a maleta!

— Oh! — Aparvalhado, Phillip Chen passou-a para ele. Kin Bexiguento agarrou-a.

— Não olhe à sua volta, e continue andando para o norte!

— Está bem, mas, por favor, cumpra a sua promes...

Phillip Chen se interrompeu. Os dois rapazes tinham sumido. Parecia que haviam estado à sua frente apenas uma fração de segundos. Ainda em choque, forçou os pés a se movimentarem, tentando gravar na lembrança o pouco que vira dos rostos. Então, uma mulher que vinha na direção oposta empurrou-o com rudeza, e ele praguejou, os rostos sumindo da sua memória. Então, alguém o agarrou bruscamente.

— Onde está a porra da maleta?

— O quê? — exclamou, com voz abafada, fitando o rufião com cara de mau que era Poon Bom Tempo.

— Sua maleta... cadê?

— Dois rapazes. . ,

Impotente, apontou para trás. O homem praguejou e saiu às pressas, "costurando" por entre a multidão, depois levou os dedos aos lábios e soltou um assobio agudo. Poucas pessoas prestaram-lhe atenção. Outros rufiões começaram a convergir para ele, então Poon Bom Tempo avistou os dois rapazes com a mala de executivo, quando saíam da rua principal bem-ilumi-nada e entravam num beco. Começou a correr, seguido pelos outros.

Kin Bexiguento e o Irmão Mais Moço se meteram no meio do povo, sem pressa, o beco iluminado apenas pelas lâmpadas nuas das barracas e lojas sujas. Os dois riram um para o outro. Agora completamente confiantes, tiraram os bonés e os óculos, e enfiaram-nos nos bolsos. Eram muito parecidos — quase gêmeos —, e agora se misturavam ainda mais aos fregueses ruidosos que faziam compras.

— Dew neh loh moh, mas como aquele velho parecia morto de medo! — casquinava Kin Bexiguento. — Num só passo chegamos ao céu!

— É. E na semana que vem, quando o agarrarmos, pagará com a mesma facilidade com que um cão velho peida!

Riram, pararam por um momento sob a luz de uma barraca e espiaram para dentro da maleta. Quando viram os maços de notas, ambos soltaram um suspiro.

— Ayeeyah, é verdade, chegamos ao céu com um só passo, Irmão Mais Velho. Pena que o filho esteja morto e enterrado.

Kin Bexiguento deu de ombros enquanto continuavam a andar, entrando num beco pequeno, depois noutro, sem hesitar, no labirinto cada vez mais escuro.

— O Honorável Pai tem razão. Transformamos o azar em sorte. Não foi culpa sua que a cabeça do filho da mãe fosse mole! De jeito nenhum! Quando o desenterrarmos e o deixarmos na Sha Tin Road, com o bilhete na porra do peito dele...

Parou um momento, e se afastaram para o lado, no meio do povo agitado, para deixar passar um caminhão carregado e caindo aos pedaços. Enquanto esperavam, ele olhou para trás, casualmente. No fim do beco viu três homens mudarem de direção, ao vê-lo, e depois começarem a vir depressa para o lado deles.

— Dew neh loh moh, fomos traídos — exclamou, com voz abafada, depois foi abrindo caminho aos empurrões, e botou sebo nas canelas, com o irmão logo atrás.

Os dois jovens eram muito velozes. O terror dava agilidade aos seus pés, enquanto "costuravam" por entre a multidão irada, desviando-se dos buracos inevitáveis e das barraquinhas, a escuridão a seu favor. Kin Bexiguento ia na frente.

Agachou-se entre algumas barracas e fugiu pela passagem estreita e sem iluminação, a maleta agarrada firmemente ao peito.

— Vá para casa por um caminho diferente, Irmão Mais Moço — falou, ofegante.

Na esquina seguinte, dobrou à esquerda, e o irmão continuou em frente. Seus perseguidores também se dividiram, dois deles a seguirem-no. Agora, era quase impossível enxergar, na escuridão, e os becos eram sinuosos, tortuosos, e não havia nenhum sem saída. Ele ofegava, mas levava uma boa dianteira dos seus perseguidores. Tomou um atalho e deu de cara com uma loja suja que, como as demais, servia de moradia. Indiferente à família amontoada em frente a uma televisão barulhenta, passou correndo pelo meio deles e saiu pela porta dos fundos, depois retornou para a extremidade do beco. Espiou com muita cautela para o outro lado da esquina. Algumas pessoas olhavam-no com curiosidade, mas continuavam o seu caminho sem parar, sem a menor vontade de se meterem no que, evidentemente, era alguma encrenca.

Então, esperando estar a salvo, meteu-se no meio do povo e se afastou sem pressa, de cabeça baixa. Sua respiração ainda era ofegante, e tinha a cabeça cheia de obscenidades e juramentos de vingança contra Phillip Chen por tê-los atraiçoado. "Que todos os deuses sejam testemunhas", pensou, furioso, "quando o seqüestrarmos na semana que vem, antes de o soltarmos, vou cortar fora o seu nariz! Como ousou trair-nos para a polícia! Ei, espere aí, aquela gente era da polícia?"

Pensou no assunto enquanto seguia no meio do povo, retornando sobre os passos, cautelosamente, de vez em quando, por via das dúvidas. Mas, agora, tinha certeza de que não fora seguido. Deixou o pensamento se fixar no dinheiro e abriu um amplo sorriso. "Vejamos o que farei com os meus cinqüenta mil! Darei quarenta de sinal num apartamento e o alugarei imediatamente. Ayeeyah, sou proprietário de um imóvel! Comprarei um Rolex, um revólver e uma nova faca de arremesso. Darei uma ou duas pulseiras para a minha mulher, e mais duas para Rosa Branca, na Casa dos Mil Prazeres. Hoje teremos um banquete..."

Todo feliz, seguiu seu caminho. Numa barraca de rua, comprou uma maleta barata, e num beco transferiu o dinheiro discretamente para ela. Descendo mais a rua, noutro beco escondido vendeu a bela maleta de executivo de couro de Phillip Chen para um vendedor ambulante por uma boa quantia, depois de pechinchar por cinco minutos. Agora, muito satisfeito consigo mesmo, pegou um ônibus para Kowloon City, onde o pai alugara um pequeno apartamento sob um nome falso, como um dos seus refúgios, bem distante da sua casa verdadeira, em Wanchai, perto do Glessing's Point. Não notou Poon Bom Tempo tomar o ônibus, nem os outros dois homens, ou o táxi que seguiu o ônibus.

Kowloon City era uma confusão supurante de cortiços, bueiros abertos e habitações esquálidas. Kin Bexiguento sabia que ali estava a salvo. A polícia não entrava ali, a não ser em grandes contingentes. Quando a China arrendara os Novos Territórios por noventa e nove anos, em 1898, mantivera a soberania sobre Kowloon City, perpetuamente. Em teoria, os dez acres quadrados eram território chinês. As autoridades britânicas deixavam o local em paz, desde que se mantivesse calmo. Era uma massa fervilhante de antros de ópio, escolas de jogo ilegais, qgs das tríades, e um santuário para os criminosos. De tempos em tempos, a polícia dava uma batida. No dia seguinte, Kowloon City voltava a ser o que sempre fora.

As escadas que levavam ao apartamento do quinto andar do cortiço eram desconjuntadas e sujas, o reboco, rachado e mofado. Estava cansado, agora. Bateu à porta, no seu código secreto. A porta se abriu.

— Alô, Pai, alô Chen Orelha de Cão — disse, feliz. — Eis a grana! — Foi então que viu o Irmão Mais Moço. — Ah, que bom, você também escapou?

— Claro! Polícia comedora de bosta à paisana! Devíamos matar um ou dois deles, pela sua impertinência. — Kin Pak sacudiu um 38. — Devíamos nos vingar!

— Talvez tenha razão, agora que recebemos o primeiro pagamento — disse o Pai Kin.

— Acho que não devíamos matar nenhum policial, isso os deixaria doidos — disse Chen Orelha de Cão, com voz trêmula.

— Dew neh loh moh para a polícia inteira! — falou o jovem Kin Pak, e guardou a arma no bolso.

Kin Bexiguento deu de ombros.

— Temos a grana que...

Nesse momento, a porta foi escancarada. Poon Bom Tempo e três dos seus homens estavam no aposento, de faca na mão. Todos ficaram imóveis. Abruptamente, o Pai Kin tirou uma faca da manga e se jogou para a esquerda. Mas antes que pudesse arremessá-la, a faca de Poon Bom Tempo voava pelos ares e se enfiava na sua garganta. Ele procurou agarrá-la, enquanto caía de costas. Nem Chen Orelha de Cão nem os irmãos se haviam movido. Ficaram olhando enquanto ele morria. O corpo se crispou, os músculos tiveram um espasmo momentâneo, depois tudo acabou.

— Onde está o Filho Número Um Chen? — perguntou Poon Bom Tempo, uma segunda faca na mão.

— Não conhecemos nenhum Fi...

Dois dos homens saltaram sobre Kin Bexiguento, espalmaram suas mãos em cima da mesa e as mantiveram nessa posição. Poon Bom Tempo se inclinou para a frente e cortou fora o seu indicador. Kin Bexiguento ficou cinza. Os outros dois ficaram paralisados de medo.

— Onde está o Filho Número Um Chen?

Kin Bexiguento fitava abobalhado o seu dedo cortado e o sangue que pulsava sobre a mesa. Soltou um grito quando Poon Bom Tempo fez menção de atacar de novo.

— Não, não — suplicou —, ele está morto... morto, e nós o enterramos, juro!

— Onde?

— Perto da Sha... da Sha Tin Road. Ouça — guin-chava, desesperado —, nós rachamos o dinheiro com vocês. Nós...

Imobilizou-se quando Poon Bom Tempo pôs a ponta da faca dentro da sua boca.

— Trate de responder às perguntas, seu bosta de um filho da puta, ou corto a sua língua. Onde estão as coisas do Filho Número Um? As coisas que trazia consigo?

— Nós... nós mandamos tudo para o Chen da Casa Nobre, tudo, exceto o dinheiro que estava com ele. Juro. — Choramingava de dor. Subitamente, os dois homens fizeram pressão no seu cotovelo e ele gritou: — Todos os deuses são testemunhas de que é verdade!

Berrou quando a junta cedeu, e desmaiou. Do outro lado da sala, Chen Orelha de Cão gemeu de medo. Começou a gritar, mas um dos homens deu-lhe um soco na cara. A cabeça dele bateu contra a parede, e ele caiu ao chão, inconsciente.

Agora, todos os olhos se voltaram para Kin Pak.

— É verdade — disse ele, aterrorizado com a rapidez com que tudo acontecera. — Tudo o que ele falou. É verdade!

Poon Bom Tempo xingou-o. Depois, disse:

— Vocês revistaram o Chen da Casa Nobre antes de enterrá-lo?

— Sim, senhor, pelo menos eu não, mas ele... — Com um dedo trêmulo apontou para o corpo do pai. — Ele revistou.

— Você estava lá?

O jovem hesitou. Instantaneamente, Poon lançou-se sobre ele, movendo-se com uma rapidez incrível para um homem tão idoso. A faca dele cortou de leve a face de Kin Pak, deliberadamente uma fração abaixo dos olhos, e ali permaneceu.

— Mentiroso!

— Eu estava lá, sim — disse o rapaz, com voz sufocada. — Ia contar-lhe, senhor, eu estava lá. Não lhe mentirei, juro!

— Da próxima vez que mentir será o seu olho esquerdo. Estava lá, heya?

— Sim... sim, senhor!

— Ele estava lá? — falou, apontando para Kin Bexiguento.

— Não, senhor.

— E ele?

— Estava, Orelha de Cão estava lá!

— Você revistou o corpo?

— Sim, senhor, sim, ajudei o nosso pai.

— Todos os bolsos dele, tudo?

— Sim, sim, tudo.

— Ele tinha papéis? Caderno de notas, agenda? Jóias?

O jovem hesitou, desesperado, tentando se lembrar, e a faca não se afastava do seu rosto.

— Nada, senhor, nada de que me recorde. Mandamos todas as coisas dele para o Chen da Casa Nobre, exceto... exceto o dinheiro. Ficamos com o dinheiro. E o relógio dele... tinha esquecido do relógio! É... é aquele ali!

Apontou para o relógio no pulso esticado do pai.

Poon Bom Tempo praguejou novamente. Wu Quatro Dedos mandara que ele recapturasse John Chen, que apanhasse qualquer dos seus bens que ainda estivessem nas mãos dos seqüestradores, em especial quaisquer moedas ou pedaços de moedas, e depois, com igual anonimato, que se desfizesse dos seqüestradores. "É melhor eu ligar para ele daqui a pouco. É melhor pedir novas instruções. Não quero cometer erros."

— O que fizeram com o dinheiro?

— Nós o gastamos, senhor. Havia apenas algumas centenas de dólares e uns trocados. Acabou tudo.

— Acho que ele está mentindo — disse um dos homens.

— Não estou, senhor, juro! — Kin Pak quase desatou a chorar. — Não estou. Por fa...

— Cale-se! Devo cortar a garganta deste aqui? — disse o homem, jovialmente, indicando Kin Bexiguento, que ainda estava inconsciente, largado sobre a mesa, a poça de sangue cada vez maior.

— Não, ainda não. Segure-o aí. — Poon Bom Tempo cocou suas hemorróidas enquanto pensava um momento. — Vamos desenterrar o Filho Número Um Chen. É, é o que vamos fazer. Bem, seu merdinha, quem o matou?

Imediatamente, Kin Pak apontou para o cadáver do pai.

— Foi ele. Foi terrível. Ele é nosso pai, e bateu nele com uma pá... bateu nele com uma pá quando tentou fugir, na noite... na noite em que o pegamos. — O jovem estremeceu, o rosto sem cor, o medo da faca sob o olho a consumi-lo. — Não, não foi culpa minha, senhor.

— Qual é o seu nome?

— Soo Tak-gai, senhor — disse instantaneamente, usando os nomes de emergência previamente combinados.

— E ele?

O dedo apontava para o irmão dele.

— Soo Tak-tong.

— Ele?

— Wu-tig Sup.

— E ele?

O jovem olhou para o cadáver do pai.

— Ele era Soo Dente de Ouro, senhor. Era muito mau, mas nós... nós tínhamos que obedecer. Tínhamos que obedecê-lo, era nosso... nosso pai.

— Para onde levaram o Filho Número Um Chen antes de matá-lo?

— Para Sha Tin, senhor, mas eu não o matei. Nós o pegamos em Hong Kong, depois o pusemos na traseira de um carro que roubamos e fomos para Sha Tin. Lá há um velho casebre que nosso pai alugou, juntinho da aldeia... ele planejou tudo. Tivemos que obedecer.

Poon resmungou e fez sinal para seus homens.

— Vamos revistar aqui primeiro!

Prontamente, largaram Kín Bexiguento, e o rapaz inconsciente desabou no chão, deixando atrás de si uma trilha de sangue.

— Você, amarre o dedo dele!

Rapidamente, Kin Pak agarrou um velho pano de prato e, quase vomitando, começou a fazer um torniquete tosco no coto do dedo.

Poon soltou um suspiro, sem saber o que fazer primeiro. Após um momento, abriu a mala. Todos os olhos se voltaram para a montanha de notas. Todos sentiram a cobiça. Poon mudou a faca para a outra mão e fechou a mala. Deixou-a no centro da mesa, e começou a revistar o apartamento miserável. Havia apenas uma mesa, algumas cadeiras e uma velha armação de cama de ferro, com um colchão sujo. O papel das paredes estava descascando, as janelas praticamente não tinham vidros, e estavam presas com tábuas. Virou o colchão ao contrário, revistou-o, mas nada achou. Entrou na cozinha imunda, quase vazia, e acendeu a luz. Depois foi para o banheiro fedorento. Kin Bexiguento choramingava, voltando a si.

Numa gaveta, Poon Bom Tempo encontrou papel, tinta e pincéis para escrever.

— Para que é isso? — perguntou, erguendo um dos papéis. Nele estava escrito, em caracteres: "Este Filho Número Um Chen fez a estupidez de tentar escapar de nós. Ninguém pode escapar dos Lobisomens! Que toda a Hong Kong se cuide. Nossos olhos estão em toda parte!" — Para que é isto, heya?

Kin Pak ergueu os olhos do chão, tentando desesperadamente agradar.

— Não podíamos devolvê-lo com vida para o Chen da Casa Nobre, então nosso pai ordenou que... esta noite desenterrássemos o Filho Número Um, puséssemos isto em cima do seu peito e o largássemos junto à Sha Tin Road.

Poon Bom Tempo olhou para ele.

— Quando começar a cavar, é melhor que o encontre logo — falou, com ar malévolo. — É. Caso contrário, seu merdinha, seus olhos não estarão em lugar algum.

 

                     21h30m

Orlanda Ramos subiu a larga escadaria do imenso navio-restaurante Dragão Flutuante, em Aberdeen, e foi passando por entre os convidados tagarelas e barulhentos do banquete de Sir Shi-teh T'Chung, procurando por Linc Bartlett... e Casey.

As duas horas que passara com Linc pela manhã, para a entrevista do jornal, haviam sido reveladoras, especialmente no tocante a Casey. Seus instintos lhe diziam que quanto mais cedo fosse à luta com a inimiga, melhor. Fora fácil arranjar convites para os dois naquela noite... Shi-teh era um antigo associado de Gornt e um velho amigo. A idéia agradara a Gornt.

Estavam no tombadilho superior. Um cheiro gostoso de mar entrava pelos janelões, a noite estava agradável, embora úmida, com o céu encoberto, e ao redor só se viam as luzes dos altos prédios e do município de Aberdeen. Na baía, bem próximo dali, ficavam as ilhas lúgubres de juncos, parcialmente iluminados, onde cento e cinqüenta mil pessoas viviam suas vidas.

A sala em que estavam, escarlate, ouro e verde, ocupava metade do comprimento e toda a largura do barco, e dava para a escadaria principal. Gárgulas, unicórnios e dragões, adornados, de madeira e gesso, estavam por toda parte, em todos os três tombadilhos do restaurante fartamente iluminado e lotado de comensais. Na primeira coberta, nas cozinhas apertadas, havia vinte e oito cozinheiros, um exército de ajudantes, uma dúzia de imensos caldeirões... vapor, suor e fumaça. Oitenta e dois garçons serviam no Dragão Flutuante. Havia lugares para quatrocentas pessoas em cada um dos dois primeiros tombadilhos, e para duzentas no terceiro. Sir Shi-teh alugara todo o convés superior, e agora ele estava abarrotado com os seus convidados, de pé em grupos impacientes em meio às mesas redondas para doze pessoas.

Orlanda sentia-se ótima, e muito confiante. Novamente, vestira-se com capricho para Bartlett. Pela manhã, quando o entrevistara, usara roupas americanas esportivas e pouca maquilagem, e a blusa de seda solta que escolhera com tanto cuidado não exibia seus seios sem sutiã, apenas os sugeria. Aquela moda nova e ousada a agradava imensamente, tornando-a ainda mais cônscia da sua feminilidade. Agora, à noite, usava seda branca e delicada. Sabia que seu corpo era perfeito, que era invejada por sua sensualidade franca e inconsciente.

"Foi isso o que Quillan fez por mim", pensou, a bela cabeça erguida e o curioso meio sorriso iluminando-lhe o rosto, "entre muitas coisas. Fez com que eu entendesse a sensualidade."

Havergill e a mulher estavam diante dela, e notou seus olhos fitos no seu busto. Riu sozinha, cônscia de que, embora de maneira discreta, seria a única mulher presente a ousar ser tão moderna, a imitar a moda que começara o ano passado na badalada Londres.

— Boa noite, Sr. Havergill, sra. Havergill — cumprimentou, educadamente, passando por eles, no meio da multidão. Conhecia-o bem. Muitas vezes ele fora convidado para o iate de Gornt. Às vezes o iate saía do Yacht Club, do lado de Hong Kong, levando a bordo apenas ela, Quillan e seus amigos, e ia para Kowloon, para os degraus molhados pelo mar junto da Balsa Dourada, onde as moças estavam esperando, vestindo roupas de praia ou de velejar.

No princípio do seu caso com Quillan, também ela tivera que esperar em Kowloon, honrando a regra de ouro da colônia de que a discrição era de suma importância, e que quem mora em Hong Kong diverte-se em Kowloon, quem mora em Kowloon diverte-se em Hong Kong.

Na época em que a mulher de Quillan vivia presa ao leito, e Orlanda era abertamente, embora ainda muito discretamente, sua amante, ele a levava consigo para o Japão, Cingapura e Formosa, mas nunca para Bangkok. Naquela época, Paul Havergill era Paul, ou mais provavelmente Tesudo... Tesudo Come Garotas, como era conhecido entre os seus amigos mais íntimos. Mas mesmo então, quando o encontrava em público, como naquela noite, deixava de tratá-lo por Sr. Havergill "Ele não é um mau sujeito", disse consigo mesma, recordando que, embora a maioria das suas garotas não gostasse dele, elas viviam a bajulá-lo, pois era razoavelmente generoso, e sempre dava um jeito de arranjar um empréstimo rápido a juros baixos para uma amiga, através de seus conhecidos em outros bancos, embora jamais no Vic.

"Sensato", pensou, divertida, "é uma questão de prestígio. Ah, mas eu poderia escrever um livro e tanto sobre todos eles, se quisesse. Não o farei... acho que nunca o farei. Por que o faria? Não há motivo. Mesmo depois de Macau, sempre guardei segredos. Foi outra coisa que aprendi com Quillan... discrição.

"Macau! Que desperdício! Mal me lembro da cara do rapaz, agora. Só que era muito ruim de cama, e por causa dele minha vida foi destruída. O idiota não passou de um capricho repentino, o primeiro. Foi apenas solidão, porque Quillan estava fora há um mês, e todo mundo estava fora, e foi desejo de juventude... só o corpo cheio de juventude me atraiu, e afinal provou ser tão inútil. Idiota! Como fui idiota!"

Seu coração começou a palpitar, ao pensar em todos aqueles pesadelos: ser descoberta, ser mandada para a Inglaterra, ter que ser grosseira com o rapaz, desesperada para agradar Quillan, depois voltar e encontrar Quillan tão frio, e nunca mais ir para a cama com ele. E depois, o pesadelo maior de ter que se adaptar a uma vida sem ele.

Dias pavorosos. O desejo terrível e insaciável. Sentir-se só. Sentir-se excluída. Todas as lágrimas e o sofrimento, depois tentando recomeçar, mas cautelosamente, sempre esperando que ele cedesse, se ela fosse paciente. Jamais alguém em Hong Kong, sempre sozinha em Hong Kong. E quando o desejo ficava intenso demais, ir para outro lugar e tentar, sem nunca ficar satisfeita. "Ah, Quillan, que amante você era!"

Há pouco tempo a mulher dele falecera, e então, na hora propícia, Orlanda fora procurá-lo. Para seduzi-lo, trazê-lo de volta. Naquela noite, pensara que tinha tido êxito, mas ele estava apenas se divertindo com ela.

— Vista-se, Orlanda. Só estava curioso quanto ao seu corpo. Queria ver se ainda era tão lindo quanto no meu tempo. É com prazer que lhe digo que é... você ainda é perfeita. Mas, que pena, não desejo você. — E todo o choro e as súplicas desesperadas dela não tinham surtido efeito. Ele apenas ouvira e fumara um cigarro, depois o apagara no cinzeiro. — Orlanda, por favor, jamais volte aqui sem ser convidada — dissera, com toda a suavidade. — Você escolheu Macau.

“E ele tinha razão, escolhi, desprestigiei-o publicamente. Por que ele ainda me sustenta?", perguntou a si mesma, os olhos correndo pelos convidados, à procura de Bartlett. "É preciso que se perca alguma coisa para dar-lhe o seu devido valor? Isso é que é a vida?"

— Orlanda!

Deteve-se, espantada, quando alguém parou diante dela. Viu que era Richard Hamilton Pugmire. Ele era um pouco mais baixo do que ela.

— Quero lhe apresentar Charles Biltzmann, dos Estados Unidos — dizia, com um olhar de soslaio malicioso que a deixava arrepiada. — Charles vai ser o... bem... o novo tai-pan da General Stores. Chuck, esta é Orlanda Ramos!

— Prazer em conhecê-la, senhora!

— Como vai? — respondeu cortesmente, antipatizando com ele de cara. — Desculpe...

— Chame-me de Chuck. É Orlanda? Puxa, mas que nome bonito, e que vestido bonito! — Biltzmann ofereceu-lhe o seu cartão de visitas, com um floreio. — Velho costume chinês!

Ela o aceitou, mas não retribuiu.

— Obrigada. Desculpe, Sr. Biltzmann, mas vai me dar licença. Estou procurando uns amigos e...

Antes que pudesse impedi-lo, Pugmire pegou-a pelo braço, afastou-se ligeiramente com ela e sussurrou, com voz rouca:

— Quer jantar comigo? Você está fantás...

Ela afastou bruscamente o braço, tentando não dar muito na vista.

— Vá embora, Pug.

— Escute, Orlan...

— Já lhe disse com educação, mais de cinqüenta vezes, para me deixar em paz! Agora, dew neh loh moh para você e toda a sua descendência! — falou, e Pugmire enrubesceu. Sempre o detestara, mesmo nos velhos tempos. Sempre olhava para ela com ar lascivo, por trás das costas de Quillan, e quando fora posta de lado, Pugmire dera em cima dela e tentara, por todos os meios, dormir com ela... e ainda tentava. — Se você ligar para mim ou falar comigo de novo, contarei a toda a Hong Kong sobre você e seus hábitos esquisitos.

Fez um sinal de cabeça polido para Biltzmann, deixou cair o cartão dele, discretamente, e se afastou. Daí a um momento, Pugmire voltou para junto do americano.

— Que corpo! — disse Biltzmann, os olhos ainda fixos nela.

— Ela... ela é uma das nossas prostitutas notórias — disse Pugmire, com um sorriso de desprezo. — Puxa, tomara que andem logo com a comida. Estou morto de fome.

— Ela é uma vagabunda? — indagou Biltzmann, boquiaberto.

— Aqui, nunca se sabe — Pugmire acrescentou, em voz baixa. — Estou surpreso ao ver que Shi-teh T'Chung a convidou. É, mas agora acho que está pouco se lixando, uma vez que já comprou o seu título de cavaleiro. Há anos, Orlanda era a garota de um amigo, mas ficava naquela de se vender por fora. Ele descobriu e deu-lhe a Grande C.

— A Grande C?

— A Grande Cotovelada... mandou-a passear.

Biltzmann não conseguia desviar os olhos dela.

— Pombas — murmurou —, não sei da Grande C, mas pode apostar que eu adoraria dar-lhe a Grande F, se é que me entende.

— É só uma questão de dinheiro, meu velho, mas posso lhe assegurar que ela não vale a pena. Orlanda é ruim de cama à beca, eu sei, e hoje em dia não se pode saber quem esteve lá antes, não é? — Pugmire achou graça da expressão do americano. — Depois da primeira vez, não quis mais nada com ela. Mas se vai molhar o pavio ali, é melhor tomar suas precauções.

Dunross acabara de chegar, e estava ouvindo, sem prestar muita atenção, as bazófias de Richard Kwang sobre as transações que fizera para segurar a corrida, e como havia gente suja o bastante para difundir tais boatos.

— Concordo plenamente, Richard — falou Dunross, querendo se reunir aos deputados visitantes que estavam do outro lado do aposento. — O que não falta por aí é filho da mãe. Se me dá licença...

— Claro, tai-pan. — Richard Kwang baixou o tom de voz, mas não pôde evitar que transparecesse um pouco da sua ansiedade. — Posso precisar de uma mãozinha.

— O que quiser, é claro, exceto dinheiro.

— Poderia falar com Johnjohn no Vic, para mim. Ele...

— Não o fará, você sabe disso, Richard. Sua única chance é um dos seus amigos chineses. Que tal o Ching Sorridente?

— Hum, aquele vigarista velho! Eu não pediria o seu dinheiro sujo! — disse Richard Kwang, com uma expressão de desdém. Ching Sorridente voltara atrás na sua combinação, e se recusara a lhe emprestar dinheiro... ou crédito. — Aquele velho safado merece ir para a cadeia! Está havendo uma corrida ao banco dele, também, mas é o que merece! Acho que é tudo coisa dos comunistas, estão tentando nos arruinar a todos. O Banco da China! Ouviu falar das filas no Vic, na central? E mais filas no Blacs. O Banco do Leste da Ásia e Japão, do Velho Tok Barrigudo, foi pro brejo. Não vai abrir as portas amanhã...

— Meu Deus, tem certeza?

— Ele me ligou hoje à noite, pedindo vinte milhões. Dew neh loh moh, tai-pan, a não ser que obtenhamos ajuda, Hong Kong inteira vai pro brejo. Vamos...

Então viu Vênus Poon parada à porta, de braços com Wu Quatro Dedos, e seu coração falhou oito batidas. Naauele dia ela ficara furiosa quando ele não chegara com o casaco de vison que lhe havia prometido. Chorara, gritara, sua amah se lamentara, e não queria aceitar a desculpa dele de que seu peleiro o deixara na mão, e as duas não pararam de reclamar até que ele prometeu que, antes das corridas, sem falta, lhe levaria o presente prometido.

— Vai me levar à festa de Shi-teh?

— Minha mulher mudou de idéia e agora quer ir. Portanto, não posso levar você, mas depois iremos...

— Depois, estarei cansada! Primeiro, nada de presente, e agora não posso ir à festa! Cadê o pingente de água-marinha que você me prometeu no mês passado? Cadê o meu vison? Aposto que está nas costas da sua mulher! Ayeeyah, meu cabeleireiro e o dela são amigos. Portanto, vou descobrir a verdade. Ai, ai, ai, você não tem mais amor de verdade pela sua filha. Terei que me matar ou aceitar o convite de Wu Quatro Dedos.

— Wat?

Richard Kwang se lembrava de que quase tivera um derrame ali na hora, e esbravejara, deblaterara e berrara que o apartamento dela lhe custava uma fortuna, e suas roupas custavam milhares de dólares por semana, e ela esbravejara, deblaterara e berrara também.

— E quanto à corrida ao banco? Você está solvente? E as minhas economias? Estão seguras, heya?

— Ayeeyah, sua prostituta miserável, que economias? As economias que vou botar no banco para você? Hum! Claro que estão seguras, tão seguras quanto o Banco da Inglaterra!

— Ai de mim, estou sem tostão, agora! Sua pobre filha desamparada! Terei que me vender, ou cometer suicídio. É, é isso! Veneno... é isso! Acho que vou tomar uma dose excessiva de... de aspirinas! Ah Poo! Traga-me uma dose excessiva de aspirinas!

E então ele implorara, suplicara, e ela acabara por ceder, permitindo que ele levasse embora as aspirinas, e ele prometera voltar correndo logo que o jantar terminasse; agora seus olhos estavam quase saltando das órbitas porque, parada à porta, estava Vênus Poon de braço dado com Wu Quatro Dedos, os dois resplandecentes, ele inchado de orgulho, e ela meiga e inocente, usando o vestido que ele acabara de lhe comprar.

— O que houve, Richard? — perguntou Dunross, preocupado.

Richard Kwang tentou falar, mas não conseguiu. Saiu caminhando tropegamente na direção da mulher, que tirou o olhar maligno de cima de Vênus Poon para fixá-lo nele.

— Alô, querida — disse, a espinha dorsal mole como gelatina.

— Alô, querido — replicou docemente Mai-ling Kwang. — Quem é aquela vaca?

— Qual?

— Aquela.

— Não é a... como se chama... a estrelinha da TV?

— Não se chama Coceira nas Calças Poon, a estrelinha da DV¹?

 

¹ "Doença Venérea." (N. da T.)

 

Fingiu rir junto com ela, mas tinha vontade de arrancar fora os próprios cabelos. O fato de que sua amante mais recente viera com outra pessoa teria o seu impacto em Hong Kong. Todos interpretariam aquilo como um sinal infalível de que ele estava em total dificuldade financeira, e que ela, sensatamente, abandonara o junco que afundava e procurara um abrigo seguro. E o fato de vir com o tio dele, Wu Quatro Dedos, era ainda pior. Aquilo confirmaria que toda a fortuna de Wu fora retirada do Ho-Pak, e que, portanto, o mais provável é que Lando Mata e o sindicato do ouro houvessem feito o mesmo. Toda a população civilizada de importância tinha certeza de que Wu era o principal contrabandista do sindicato, agora que Mo Contrabandista estava morto. Ai, ai, ai! Os problemas nunca vêm sozinhos.

— Hem? — perguntou, com voz cansada. — O que foi que disse?

— Perguntei se o tai-pan vai procurar o Victoria em nosso nome.

Passou a falar em cantonense, pois havia europeus próximo.

— Infelizmente, o filho da puta também está encrencado. Não, não vai nos ajudar. Estamos encrencadíssimos, o que não é culpa nossa. O dia foi terrível, exceto por uma coisa: tivemos um bom lucro hoje. Vendi todas as nossas ações da Casa Nobre.

— Excelente. A que preço?

— Ganhamos dois dólares e setenta cents por ação. Está tudo em ouro, agora, em Zurique. Vou botar tudo na nossa conta conjunta — acrescentou com cuidado, torcendo a verdade, o tempo todo imaginando um jeito de tirar a mulher da sala para que ele pudesse ir até Wu Quatro Dedos e Vênus Poon para fingir para todos que tudo estava bem.

— Ótimo. Excelente. Muito melhor. — Mai-ling brincava com o seu imenso pingente de água-marinha. Repentinamente, os testículos de Richard Kwang ficaram gelados. Aquele era o pingente que prometera a Vênus Poon. Ai, ai, ai... — Está sentindo alguma coisa? — indagou Mai-ling.

— Eu... bem... devo ter comido algum peixe estragado. Acho que preciso ir ao banheiro.

— É melhor ir logo. Imagino que o jantar não vá demorar muito. Shi-teh sempre atrasa tudo! — Ela notou que ele olhou de esguelha, nervosamente, para Vênus Poon e Tio Wu, e seu olhar tornou-se maligno de novo. — Aquela vaca é mesmo muito fascinante. Vou ficar de olho nela até você voltar.

— Por que não vamos juntos? — Tomou-lhe o braço e foi descendo com ela as escadas que conduziam à porta que dava para os banheiros, cumprimentando amigos na passagem, tentando transpirar confiança. No momento em que ela entrou no banheiro das senhoras, ele voltou depressa lá para cima, e foi para junto de Tung Zeppelin, que estava perto deles. Bateu papo por um momento, depois fingiu notar Quatro Dedos.

— Oh, alô, Honrado Tio — disse, expansivamente. — Obrigado por trazê-la aqui. Alô, sua bajuladorazinha!

— O quê? — exclamou o velho, desconfiado. — Eu a trouxe para mim, não para você.

— É, e não venha com papo furado pra cima de mim — sibilou Vênus Poon, segurando deliberadamente o braço do velho, e Richard Kwang quase cuspiu sangue. — Falei com meu cabeleireiro esta noite! Meu vison está nas costas dela! E aquele não é o meu pingente de água-marinha, que ela está usando também? E pensar que quase cometi suicídio esta noite, por achar que tinha desagradado ao meu Honrado Pai... e o tempo todo mentiras, mentiras, mentiras. Ah, quase tenho vontade de me suicidar outra vez!

— Ah, não faça isso ainda, Falinha Macia — sussurrou Wu Quatro Dedos, ansioso, tendo já fechado um negócio com ela, superando a oferta de Ching Sorridente. — Vá embora, Sobrinho, está fazendo com que ela fique com indigestão. Desse modo, ela não vai poder fazer o seu papel!

Richard Kwang forçou um sorriso amarelo, murmurou algumas amenidades, e foi embora, tropegamente. Dirigiu-se para as escadas, para esperar a mulher, e ouviu alguém dizer:

— Vejo que uma certa eguazinha largou a pastagem em troca de uma grama com mais estrume!

— Quanta bobagem! — replicou prontamente. — Claro que pedi ao velho tonto para trazê-la, já que minha mulher está aqui. Por que outro motivo ela estaria com ele? Acha que o velho idiota tem o órgão de um novilho? Ou mesmo de um garnisé? Não. Ayeeyah! Nem mesmo Vênus Poon, com toda a técnica que lhe ensinei, pode levantar o que não levanta mais!

É bom para o prestígio dele fingir que não é assim, heya? Claro, e ela queria ver o seu Velho Pai e ser vista, também!

— Eeee, que esperteza, Banqueiro Kwang! — disse o homem, afastando-se e sussurrando no ouvido de um outro, que comentou ferinamente:

— Hum, você engoliria um balde de merda se alguém lhe dissesse que era carne ensopada com molho de feijão-preto! Não sabe que o Talo do velho Quatro Dedos é tratado com os mais caros ungüentos, pomadas e ginseng que o dinheiro pode comprar? Ora, se no mês passado a sua Concubina Número Seis deu à luz um menino! Eeee, não se preocupe com ele. Antes de ele terminar, esta noite, Vênus Poon vai agüentar uma parada que vai fazer sua Ravina Dourada pedir arrego em oito dialetos!...

— Vai ficar para o jantar, tai-pan? — perguntou Brian Kwok, interceptando-o. — Quando e se ele for servido...

— Vou. Por quê?

— Desculpe, tenho que ir trabalhar. Mas virá outra pessoa para acompanhá-lo até sua casa.

— Santo Deus, Brian, vocês não estão exagerando? — perguntou Dunross, no mesmo tom de voz discreto.

Brian não alteou a voz.

— Não creio. Acabei de ligar para Crosse para saber o que houve com aqueles dois desocupados que estavam rondando a sua casa. No momento que o nosso pessoal chegou, eles deram no pé.

— Talvez fossem apenas desordeiros que não gostam da polícia.

Brian Kwok sacudiu a cabeça.

— Crosse pediu de novo para você lhe entregar os papéis de Alan Medford Grant agora.

— Sexta-feira.

— Mandou que lhe dissesse que há um navio espião soviético no porto. Já houve uma morte... um dos agentes deles, esfaqueado.

Dunross ficou chocado.

— O que isso tem a ver comigo?

— Sabe melhor do que nós. Sabe o que há naqueles relatórios. Tem que ser coisa séria, ou você mesmo não se faria de tão difícil... ou cauteloso. Crosse disse que... Deixe-o pra lá! Escute, Ian, somos velhos amigos. Estou preocupado de verdade. — Brian Kwok passou a falar em cantonense. — Até mesmo os sábios podem cair sobre espinhos... espinhos envenenados.

— Daqui a dois dias o mandarim policial vai chegar. Dois dias não é muito tempo.

— É verdade. Mas em dois dias o espião pode nos causar muito dano. Por que tentar os deuses? Eu estou pedindo.

— Não. Desculpe.

Brian Kwok fechou a cara. Em inglês, falou:

— Nossos amigos americanos nos pediram para colocá-lo sob custódia protetora.

— Que bobagem!

— Não é tanta bobagem assim, Ian. Todo mundo sabe que você tem uma memória fotográfica. Quanto mais cedo entregar os papéis, melhor. Mesmo depois, precisa ter cuidado. Por que não me diz onde estão, e nós cuidaremos de tudo?

Dunross também tinha a fisionomia dura.

— Já cuidei de tudo, Brian. Tudo continua como foi planejado.

O chinês alto soltou um suspiro. Depois, deu de ombros.

— Pois bem. Desculpe, mas depois não venha dizer que não foi avisado. Gavallan e Jacques também vão ficar para o jantar?

— Não creio. Pedi-lhes apenas que dessem uma chegadinha aqui. Por quê?

— Poderiam ir para casa com você. Por favor, não vá a lugar algum sozinho durante algum tempo, não tente despistar seus guardas. No momento, se tiver algum, . . encontro particular, avise-me.

— Eu, um encontro particular? Aqui em Hong Kong? Francamente, que idéia!

— O nome Jen não lhe diz nada?

Os olhos de Dunross ficaram duros como pedra.

— Que bando de sacanas abelhudos vocês são!

— E você parece que não se dá conta de que está num jogo muito sujo, sem regras civilizadas.

— Está bem, entendi.

— Boa noite, tai-pan.

— Boa noite, Brian. — Dunross foi até junto dos deputados, que estavam num grupo, conversando com Jacques de Ville, a um canto. Agora, eram em número de quatro, os demais descansavam após a longa viagem. Jacques de Ville fez as apresentações. Sir Charles Pennyworth, conservador; Hugh Guthrie, liberal; Julian Broadhurst e Robin Grey, trabalhistas. — Alô, Robin — cumprimentou.

— Alô, Ian. Há quanto tempo!

— É.

— Se me dão licença, vou andando — disse De Ville, a fisionomia cansada e preocupada. — Minha mulher está viajando, e meu netinho está lá em casa.

— Falou com Susanne na França? — perguntou Dunross.

— Falei, tai-pan. Ela... vai ficar boa. Obrigado por ter ligado para Deland. Até amanhã. Boa noite, senhores.

Retirou-se.

Dunross voltou a olhar para Robin Grey.

— Você não mudou nada.

— Nem você — disse Grey. Depois virou-se para Pennyworth. — Ian e eu conhecemo-nos em Londres há alguns anos, Sir Charles. Foi pouco depois da guerra, e eu acabava de me tornar representante sindical.

Robin era um homem esguio, de lábios finos, cabelos grisalhos ralos e feições marcantes.

— É, faz algum tempo — disse Dunross, polidamente, continuando a combinação feita por Penelope e pelo irmão, há tantos anos... que entre eles não havia relação alguma de parentesco. — Vai demorar muito por aqui, Robin?

— Uns poucos dias — falou Grey. O sorriso dele era seco. — Nunca estive neste paraíso dos trabalhadores antes, portanto quero visitar alguns sindicatos, ver como vivem os outros noventa e nove por cento.

Sir Charles Pennyworth, o chefe da delegação, riu. Era um homem rosado e carnudo, um ex-coronel do Regimento Escocês de Londres, com condecorações.

— Não creio que aqui liguem muito para sindicatos, Robin. Não é, tai-pan?

— A nossa mão-de-obra se dá muito bem sem eles — falou Dunross.

— Mão-de-obra explorada, tai-pan — disse Grey, prontamente. — De acordo com algumas das suas próprias estatísticas, estatísticas do governo.

— Não as nossas estatísticas, Robin, simplesmente os seus estatísticos — replicou Dunross. — O nosso pessoal é o que recebe o maiores salários da Ásia, depois dos japoneses, e esta é uma sociedade livre.

— Livre? Corta essa! — zombou Grey. — Quer dizer livre para explorar os trabalhadores. Bem, deixe pra lá. Quando o Partido Trabalhista vencer as próximas eleições, vamos mudar tudo isso.

— Ora, qual é, Robin? — falou Sir Charles. — Os trabalhistas não têm a menor chance na próxima eleição.

Grey sorriu.

— Não aposte nisso, Sir Charles. O povo da Inglaterra quer mudanças. Não fomos todos para a guerra para manter a mesma situação podre. Os trabalhistas querem as mudanças sociais... e que os trabalhadores recebam uma porção justa dos lucros que criam.

Dunross falou:

— Sempre achei injusto que os socialistas falem sobre os "trabalhadores", como se eles fizessem todo o trabalho, e nós, nenhum. Também somos trabalhadores. Trabalhamos tanto quanto eles, se não mais, períodos maiores e...

— Ah, mas você é um tai-pan, e mora numa casa imponente que herdou, juntamente com seu poder. Todo aquele capital derivou do suor de algum pobre coitado, e nem vou falar do comércio de ópio que deu origem a tudo. É justo que o capital seja dividido, justo que todos possam ter o mesmo começo. Os ricos deveriam pagar impostos maiores. Devia haver um imposto sobre o capital. Quanto mais cedo as grandes fortunas forem divididas, melhor para todos os ingleses, hem, Julian?

Julian Broadhurst era um homem alto e distinto, de quarenta e tantos anos, um defensor decidido da Sociedade Fabiana, que era o grupo de conselheiros intelectuais do movimento socialista.

— Bem, Robin — falou, na sua voz indolente, quase acanhada —, certamente não aconselho, como você, irmos todos às barricadas, mas realmente acho, Sr. Dunross, que aqui em Hong Kong faz falta um conselho de sindicatos, um salário mínimo, legisladores eleitos, sindicatos e salvaguardas, medicina socializada, indenização para os trabalhadores e todas as modernas inovações britânicas.

— Totalmente errado, Sr. Broadhurst. A China jamais concordaria com uma mudança do nosso status colonial, jamais toleraria qualquer forma de cidade-Estado na sua fronteira. Quanto ao resto, quem pagará as reformas? — perguntou Dunross. — Nosso sistema não-tolhido aqui está superando em vinte vezes a atuação da Grã-Bretanha, e...

— Vocês pagarão, dos seus lucros, Ian — disse Robin Grey, com uma risada. — Pagarão um imposto justo, não quinze por cento. Pagarão a mesma coisa que pagamos na Grã-Bretanha e...

— Deus nos livre! — exclamou Dunross, esforçando-se por não perder a paciência. — Com o excesso de impostos vocês estão acabando com os seus negócios e...

— Lucros? — o quarto deputado, o liberal Hugh Guthrie, interrompeu causticamente. — O último e infeliz governo trabalhista acabou com os nossos lucros faz anos, com malditos gastos desregrados, nacionalizações ridículas, a distribuição do império aos pedacinhos, com um abandono estúpido e insensato, despedaçando o Commonwealth e enfiando a cara da pobre da Inglaterra na lama! Um coisa ridícula! Attlee e toda aquela patuscada!

Robin Grey disse, apaziguadoramente:

— Ora, Hugh, o governo trabalhista fez o que o povo queria, o que as massas queriam.

— Bobagem! O que o inimigo queria. Os comunistas! Em dezoito anos vocês deram de bandeja o maior império que o mundo já viu, fizeram de nós uma potência de segunda classe, e permitiram que o desgraçado inimigo soviético devorasse a maior parte da Europa. Uma coisa ridícula!

— Concordo inteiramente que o comunismo é uma coisa horrível. Mas, quanto a "dar de bandeja" o nosso império, foram os ventos das mudanças, Hugh — disse Broadhurst, acalmando-o. — O colonialismo já deu tudo o que tinha que dar. Você precisa ver as coisas a longo prazo.

— E vejo. Acho que estamos no mato sem cachorro. Churchill está certo, sempre esteve.

— O povo não achou — disse Grey, sombriamente. — Por isso ele perdeu as eleições. Foram os votos dos combatentes que o derrotaram. Já estavam cheios dele. Quanto ao império, desculpe, Hugh, meu velho, mas não passava de uma desculpa para explorar nativos ignorantes. — Robin Grey olhou para seus rostos, e leu o que estava escrito neles. Estava acostumado ao ódio que o cercava. Ele os odiava mais, e fora sempre assim. Depois da guerra, quisera continuar no exército, mas fora rejeitado... havia capitães demais, na época, cheios de condecorações e uma bela folha de serviço, enquanto ele passara a guerra como prisioneiro em Changi. Então, cheio de raiva e ressentimento, entrara para a Crawley, uma imensa fábrica de automóveis, como mecânico. Logo se metera a organizar sindicatos e fora eleito representante sindical. Depois ingressara nas fileiras inferiores do Conselho Geral dos Sindicatos. Há cinco anos, fora eleito deputado trabalhista, e agora atuava no Parlamento como um membro novato, mordaz, colérico, hostil, um protegido do falecido socialista de extrema esquerda Aneurin Bevan. — É, livramo-nos de Churchill, e quando tomarmos o poder, no ano que vem, vamos botar para fora muitos outros costumes velhos e desgastados, e infecções das classes superiores. Vamos nacionalizar todas as indústrias e...

— Francamente, Robin — disse sir Charles —, estamos num banquete, não fazendo comício no Hyde Park. Todos concordamos em deixar a política de lado durante esta viagem.

— Tem razão, Sir Charles. Foi só o que o tai-pan da Casa Nobre me perguntou. — Grey virou-se para Dunross. — Como vai a Casa Nobre?

— Bem, muito bem.

— Segundo o jornal da tarde está havendo uma corrida às suas ações.

— Um dos nossos competidores está bancando o engraçadinho, só isso.

— E as corridas aos bancos? Também não são sérias?

— São sérias. — Dunross escolhia as palavras com cuidado. Sabia que havia forte campanha anti-Hong Kong no Parlamento, e que muitos deputados dos três partidos eram contrários ao seu status colonial, o status não-votante e sua natureza independente... e, principalmente, invejavam a quase ausência de impostos. "Não faz mal", pensou. "Desde 1841, sobrevivemos a Parlamentos hostis, incêndio, tufão, peste, epidemia, embargo, depressão, ocupação e às convulsões periódicas pelas quais a China passa, e sempre continuaremos sobrevivendo." — A corrida é ao Ho-Pak, um dos nossos bancos chineses — disse Dunross.

— É o maior deles, não? — indagou Grey.

— Não, mas é grande. Estamos todos torcendo para que supere o problema.

— Se ele falir, o que acontece ao dinheiro dos depositantes?

— Infelizmente, eles o perdem — respondeu Dunross, encurralado.

— Vocês precisam de leis bancárias inglesas.

— Não, pensamos que o nosso sistema funciona muito bem. O que acharam da China? — perguntou Dunross.

Antes que Sir Charles pudesse responder, Grey o fez:

— O ponto de vista da maioria é que eles são perigosos, hostis, deviam ser trancafiados, e a fronteira com Hong Kong, lacrada. Eles estão abertamente dedicados a se tornarem agentes agitadores mundiais, e o comunismo deles é simplesmente uma desculpa para a ditadura e exploração das suas massas.

Dunross e os outros yan de Hong Kong empalideceram, enquanto Sir Charles dizia vivamente:

— Qual é, Robin? Esta é apenas a sua opinião e do com... de McLean. Eu achei exatamente o contrário. Acho que a China é muito sincera ao tentar lidar com os problemas da China, que são medonhos, monumentais e, a meu ver, insolúveis.

— Graças a Deus vai haver encrenca da grossa por lá — disse Grey, com ar de escárnio. — Até os russos estão sabendo. Caso contrário, por que sairiam?

— Porque são inimigos, compartilham oito mil quilômetros de fronteiras comuns — disse Dunross, tentando conter sua ira. — Sempre desconfiaram um do outro. Porque o invasor da China sempre veio do oeste, e o da Rússia sempre do leste. A posse da China sempre foi a obsessão e preocupação da Rússia.

— Ora, o que é isso, Sr. Dunross? — começou Broad-hurst. — Sem dúvida está exagerando.

— Interessa à Rússia ver a China fraca e dividida, e Hong Kong, desintegrada. A Rússia necessita de uma China fraca como pedra angular da sua política externa.

— Pelo menos a Rússia é civilizada — falou Grey. — A China Vermelha é fanática, perigosa e paga, e devia ser isolada, especialmente daqui.

— Ridículo! — disse Dunross, secamente. — A China tem a civilização mais antiga da Terra. A China deseja desesperadamente fazer amizade com o Ocidente. A China é chinesa em primeiro lugar, e comunista em segundo.

— Hong Kong e vocês, "comerciantes", estão mantendo os comunistas no poder.

— Besteira! Mao Tsé-tung e Chu En-lai não precisam de nós, ou dos soviéticos, para ficar em Pequim!

Hugh Guthrie falou:

— No que me diz respeito, a China Vermelha e a Rússia soviética são igualmente perigosas.

— Não há comparação! — exclamou Grey. — Em Moscou come-se com garfo e faca, e compreende-se a comida! Na China não tivemos outra coisa que não comida pavorosa, hotéis pavorosos e um bocado de conversa fiada.

— Não consigo entender você, meu rapaz — disse Sir Charles, com irritação. — Lutou feito louco para fazer parte deste comitê, diz estar interessado na situação asiática, e não fez outra coisa senão reclamar.

— Criticar não é reclamar, Sir Charles. Falando francamente, sou contra dar-se qualquer ajuda à China Vermelha. Qualquer ajuda. E quando voltar, vou apresentar um projeto para mudar totalmente o status de Hong Kong: embargar qualquer produto de e para a China comunista, realizar eleições imediatas aqui, introduzir uma taxação adequada, sindicatos e justiça social britânica adequados!

O queixo de Dunross projetou-se para a frente.

— Então destruirá a nossa posição na Ásia!

— Dos tai-pans, sim, do povo, não! A Rússia tinha razão sobre a China.

— Estou falando do mundo livre! Meu Deus, devia ser evidente para todos: a Rússia soviética só visa a hegemonia, a dominação do mundo e a nossa destruição. A China, não — disse Dunross.

— Está errado, Ian. Não está vendo o todo, preso a detalhes — falou Grey.

— Escute! Se a Rússia... Broadhurst interrompeu, suavemente:

— A Rússia está apenas tentando resolver os próprios problemas, Sr. Dunross, e um deles é a política de contenção americana. Querem apenas ficar em paz, e não cercados por americanos altamente emotivos com suas mãos bem-alimentadas nos gatilhos nucleares.

— Besteira! Os ianques são os únicos amigos que temos — disse Hugh Guthrie, irado. — E quanto aos soviéticos, o que me dizem da guerra fria? Berlim? Hungria? Cuba, Egito... estão nos engolindo aos pedaços.

Sir Charles Pennyworth soltou um suspiro.

— A vida é estranha, e a memória é curta. Em 45, no dia 2 de maio, à noitinha, unimo-nos aos russos em Wismar, na Alemanha setentrional. Nunca senti tanto orgulho e felicidade na vida. É, orgulho. Cantamos, bebemos, demos vivas e fizemos brindes mútuos. Depois a minha divisão, e todos nós, na Europa, todos os aliados, ficamos durante semanas sem avançar, para deixar os russos invadirem a Alemanha, os Bálcãs, a Tchecoslováquia, a Polônia e todos os outros lugares. Na época não parei muito para pensar no assunto. Estava tão grato porque a guerra finalmente estava quase acabando, e tão orgulhoso dos nossos aliados russos. Mas, olhando para trás, agora, acho que fomos traídos, nós, os soldados, fomos traídos... inclusive os soldados russos. Fomos sacaneados. Não sei direito como aconteceu, ainda não sei, mas acredito realmente que fomos traídos, Julian, por nossos próprios líderes, os seus malditos socialistas, juntamente com Eisenhower, Roosevelt e seus assessores mal-orientados. Juro por Deus que ainda não sei como aconteceu, mas perdemos a guerra. Vencemos, mas perdemos.

— Ora, Charles, você está totalmente errado. Todos vencemos — dizia Broadhurst. — Os povos do mundo venceram quando a Alemanha nazista foi destru... — Parou, espantado, ao ver a expressão no rosto de Grey. — O que foi, Robin?

Grey olhava fixo para o outro lado da sala.

— Ian! Aquele homem ali, conversando com os chineses... conhece-o? O sacana alto, de blazer?

Igualmente espantado, Dunross olhou para o outro lado da sala.

— O sujeito de cabelos avermelhados? Está falando de Marlowe, Pete...

— Maldito Peter Marlowe! — murmurou Grey. — O que está fazendo em Hong Kong?

— Está só de visita. Veio dos Estados Unidos. É escritor. Parece que está escrevendo um livro sobre Hong Kong, ou fazendo pesquisas para o livro.

— Escritor, hem? Curioso. É amigo seu?

— Conheci-o há poucos dias. Por quê?

— Aquela é a mulher dele... a moça ao seu lado?

— É. Aquela é Fleur Marlowe. Por quê?

Grey não respondeu. Havia uma gota de saliva no canto dos seus lábios.

— Qual a ligação dele com você, Robin? — perguntou Broadhurst, estranhamente perturbado.

Com esforço, Grey desviou os olhos de Marlowe.

— Estivemos juntos em Changi, Julian, o campo de prisioneiros de guerra japonês. Eu fui chefe da polícia militar durante os dois últimos anos, encarregado da disciplina do campo. — Enxugou o suor do lábio superior. — Marlowe era um dos que transavam com o mercado negro, no campo.

— Marlowe? Dunross ficou estupefato.

— É, sim, o capitão-aviador Marlowe, o grande cavalheiro inglês — disse Grey, a voz áspera de amargura. — É. Ele e o amigão, um americano chamado King, cabo King, eram os principais. Havia também um sujeito chamado Timsen, um australiano... mas o americano era o maior de todos, era o rei¹ mesmo. Um texano. Tinha coronéis na sua folha de pagamento, todos cavalheiros ingleses... coronéis, majores, capitães. Marlowe era o intérprete deles junto aos guardas japoneses e coreanos... na sua maioria, nossos guardas eram coreanos. Eram os piores. — Grey tossiu. — Santo Deus, faz tão pouco tempo! Marlowe e o Rei viviam na fartura... os dois sacanas comiam pelo menos um ovo por dia, enquanto o resto de nós morria de fome. Não podem imaginar como...

 

¹ Referência ao nome do cabo King. "King", em inglês, "rei". (N. do E.)

 

Grey voltou a enxugar o suor dos lábios sem notar.

— Por quanto tempo foi prisioneiro de guerra? — perguntou Sir Charles, compassivamente.

— Três anos e meio.

— Terrível — disse Hugh Guthrie. — Meu primo passou o diabo na ferrovia na Birmânia. Terrível!

— Foi tudo terrível! — disse Grey. — Mas não tão terrível para aqueles que se venderam. Na ferrovia ou em Changi! — Olhou para Sir Charles, e seus olhos estavam estranhos e injetados. — Foram os Marlowes do mundo que nos traíram, às pessoas comuns sem os privilégios do berço. — A voz dele ficou ainda mais amarga. — Sem querer ofender, mas agora vocês estão todos tendo o troco que merecem, e já não é sem tempo. Meu Deus, preciso de uma bebida. Com licença, um momento.

Saiu às pressas, dirigindo-se para o bar que estava armado a um lado.

— Extraordinário — comentou Sir Charles. Guthrie falou, com uma risada ligeira e nervosa:

— Por um momento pensei que ele ia avançar sobre Marlowe.

Todos o observavam. Então Broadhurst notou a testa franzida de Dunross, a fisionomia fechada e fria.

— Não ligue para ele, Sr. Dunross. Infelizmente Grey é muito cansativo, é um chato muito vulgar. Ele... bem, não é representativo dos escalões trabalhistas, graças a Deus. O senhor gostaria do nosso novo líder, Harold Wilson, ele teria a sua aprovação. Da próxima vez que estiver em Londres, terei prazer em apresentá-lo a ele, se tiver tempo.

— Obrigado. Na verdade, estava pensando em Marlowe. É difícil acreditar que ele se tenha "vendido" ou atraiçoado alguém.

— Nunca se conhece bem as pessoas, não é?

Grey pegou um uísque com soda, voltou e cruzou a sala.

— Ora, se não é o capitão-aviador Marlowe!

Peter Marlowe virou-se, espantado. O sorriso dele desapareceu, e os dois homens se fitaram. Fleur Marlowe ficou imóvel.

— Alô, Grey — disse Marlowe, com a voz inexpressiva. — Soube que estava em Hong Kong. Na verdade, li sua entrevista no jornal da tarde. — Virou-se para a mulher. — Querida, este é o deputado Robin Grey.

Apresentou-o aos chineses, um dos quais era Sir Shi-teh T-Chung.

— Ah, Sr. Grey, que honra tê-lo aqui! — disse Shi-teh, com um sotaque inglês de Oxford. Era alto, moreno, bonitão, ligeiramente chinês, e principalmente europeu. — Esperamos que tenha uma estadia agradável em Hong Kong. Se houver algo que eu possa fazer, é só dizer.

— Tá — replicou Grey, displicentemente. Todos notaram a sua grosseria. — Então, Marlowe! Não mudou muito.

— Nem você. Tem se saído muito bem na vida. — Marlowe acrescentou para os outros: — Estivemos juntos na guerra. Não vejo Grey desde 1945.

— Fomos prisioneiros de guerra, Marlowe e eu — disse Grey, e depois acrescentou: — Estamos em lados opostos, politicamente. — Parou e saiu do caminho para deixar Orlanda Ramos passar. Ela cumprimentou Shi-teh com um sorriso, e seguiu em frente. Grey observou-a rapidamente, depois se voltou. — Marlowe, meu velho, ainda está no comércio? — Era um insulto inglês particular. "Comércio", para alguém como Marlowe, que descendia de uma linhagem de oficiais ingleses, significava tudo o que era vulgar e de classe baixa.

— Sou escritor — disse Marlowe. Voltou os olhos para a mulher, sorrindo-lhe com os olhos.

— Pensei que ainda estivesse na RAF, um oficial de carreira como seus ilustres antepassados.

— Fui reformado por invalidez, malária e tudo o mais. Uma coisa muito tediosa — disse Marlowe, acentuando deliberadamente o seu sotaque aristocrático, sabendo que deixaria Grey furioso. — E você está no Parlamento? Que sabido! Representa Streatham East? Não foi lá que nasceu?

Grey enrubesceu.

— É, foi, sim...

Shi-teh disfarçou o seu embaraço ante a tensão entre os dois homens.

— Tenho que ver... bem... como vai indo o nosso jantar.

Saiu apressadamente. Os outros chineses pediram licença e se retiraram.

Fleur Marlowe se abanava.

— Talvez devamos ir procurar a nossa mesa, Peter — falou.

— Uma boa idéia, Sr. Marlowe — disse Grey. Estava sob um controle tão severo quanto Peter Marlowe. — Como vai o Rei?

— Não sei. Não o vejo desde Changi. Marlowe olhava de cima para Grey.

— Mas você está em contato com ele, não é?

— Não. Para falar a verdade, não.

— Não sabe onde ele está?

— Não.

— É estranho, já que eram tão íntimos. — Grey desviou os olhos dele com esforço, e olhou para Fleur Marlowe, achando que era a mulher mais bonita que já vira. Tão bonita, fina, inglesa e loura como a sua ex-mulher, Trina, que se mandara com um americano pouco mais de um mês depois que ele fora dado como desaparecido em combate. Mal se passara um mês. — Sabia que fomos inimigos em Changi, sra. Marlowe? — disse, com uma suavidade que ela achou assustadora.

— Peter nunca falou de Changi comigo, Sr. Grey. Ou com qualquer outra pessoa, que eu saiba.

— Curioso. Foi uma experiência aterradora, sra. Marlowe. Não esqueci coisa alguma dela. Eu... bem, lamento interromper...

Ergueu os olhos para Marlowe. Começou a dizer qualquer coisa, mas mudou de idéia e se afastou.

— Oh, Peter, que homem horrível! — disse Fleur. — Deixou-me toda arrepiada.

— Não há com que se incomodar, querida.

— Por que vocês foram inimigos?

— Agora não, meu bem, depois. — Marlowe sorriu para ela, com amor. — Grey não significa nada para nós.

 

                   21h45m

Linc Bartlett viu Orlanda antes que ela o visse, e ela o deixou sem fôlego. Não pôde evitar compará-la com Casey, que estava ao seu lado, conversando com Andrew Gavallan. Orlanda usava um vestido longo de seda branca, de frente única, decotadíssimo nas costas, que, de um modo discreto, parecia oferecer seu corpo dourado. Casey usava o vestido verde que ele já vira diversas vezes, a cabeleira fulva cascateante.

— Vocês dois gostariam de vir à festa de Shi-teh, logo mais à noite? — perguntara Orlanda de manhã. — Poderia ser importante para você e a sua Casey estarem presentes.

— Por quê?

— Porque quase todos os negócios importantes em Hong Kong são tratados nesses acontecimentos sociais, Sr. Bartlett. Poderia ser muito importante para vocês envolverem-se com pessoas como Shi-teh... e com o Turf Club, o Cricket Club, até mesmo o Clube, embora isso seja impossível.

— Porque sou americano?

— Porque alguém tem que morrer para abrir uma vaga... um inglês ou um escocês. — Ela dera uma risada. — A lista de espera é do tamanho da Queen's Road! É exclusivo para homens, muito formal, velhas poltronas de couro, homens idosos fazendo a sesta depois de um almoço de três horas e dez doses de gim, The Times, e todo o resto!

— Pombas, parece excitante!

Ela rira outra vez. Tinha os dentes brancos, e ele não via imperfeições nela. Conversaram enquanto tomavam o café da manhã, e ele achara um prazer falar com ela. E estar com ela. Seu perfume era tentador. Casey raramente usava perfume — dizia que ele apenas distraía ainda mais os empresários com quem tinha que tratar. Com Orlanda, comera ovos com bacon bem frito, torradas e tomara café. Um desjejum à moda americana, num hotel novo em folha que ela sugerira, chamado O

Mandarim. Casey não tomava desjejum. Apenas café e torrada, às vezes, ou croissants.

A entrevista transcorrera com facilidade, e o tempo passara depressa demais. Jamais estivera na companhia de uma mulher com uma feminilidade tão franca e confiante. Casey era sempre forte, eficiente, serena, e pouco feminina. "Por escolha, escolha dela e concordância minha", lembrou a si mesmo.

— Aquela é Orlanda?

Casey olhava para ele com uma das sobrancelhas arqueada.

— É — replicou, tentando sem êxito saber o que ela estava pensando. — O que você acha?

— Acho que ela é dinamite.

— De que maneira?

Casey achou graça. Virou-se para Gavallan, que estava tentando concentrar-se e ser polido, mas cujos pensamentos estavam voltados para Kathy. Depois que Kathy lhe contara, à noitinha, não quisera sair de junto dela, mas ela insistira, dizendo que era importante para ele estar presente.

— Você a conhece, Andrew?

— Quem?

— A moça de branco.

— Onde? Ah, sim, mas só de reputação.

— É boa ou ruim?

— Bem, isso depende do ponto de vista, Casey. Ela é portuguesa, eurasiana, é claro. Orlanda foi amiga de Gornt durante vários anos.

— Quer dizer sua amante?

— É, suponho que seja a palavra certa — disse, educadamente, detestando intensamente a franqueza de Casey. — Mas foi tudo muito discreto.

— Gornt tem bom gosto. Sabia que ela foi amiguinha dele, Linc?

— Ela me disse, hoje de manhã. Eu a conheci no escritório de Gornt, faz dois dias. Ele me disse que ainda são amigos.

— Não se pode confiar em Gornt — disse Gavallan. Casey falou:

— Há muita gente forte apoiando-o, dentro e fora de Hong Kong, segundo me disseram. Ao que me consta, não está em dificuldades no momento, como vocês. Deve ter ouvido dizer que quer que fechemos negócio com ele, não com vocês.

— Não estamos em dificuldades — retrucou Gavallan. Olhou para Bartlett. — O nosso negócio está valendo?

— Assinamos na terça-feira. Se vocês estiverem prontos — falou Bartlett.

— Estamos prontos agora.

— O Ian quer que a gente fique na moita até sábado. Pra nós, tudo bem — disse Casey. — Não é, Linc?

— Certo.

Bartlett lançou um olhar para Orlanda. Casey acompanhou o movimento dos seus olhos.

Notara a moça no primeiro momento em que ela hesitara, à entrada da sala.

— Com quem ela está conversando, Andrew?

O homem tinha um ar interessante, era esbelto, elegante, na casa dos cinqüenta anos.

— Aquele é Lando Mata. Também é português, de Macau.

Gavallan se perguntava, angustiado, se Dunross conseguiria persuadir Mata a vir salvá-lo com todos os seus milhões. "O que eu faria se fosse tai-pan?", perguntou-se, cansado. "Compraria amanhã, ou fecharia o negócio com Mata e Pão-Duro, hoje. Com o dinheiro deles, a Casa Nobre ficaria a salvo por gerações, embora fora do nosso controle. Não há por que se preocupar agora. Espere até ser tai-pan." Então viu Mata sorrir para Orlanda, e ambos olharam para aquele lado, e começaram a abrir caminho entre os convidados, em sua direção. Os olhos dele fitavam os seios firmes dela, livres sob a seda. Mamilos duros. "Santo Deus", pensou, assombrado, "nem mesmo Vênus Poon ousaria tanto!" Ao chegarem até eles, Gavallan fez as apresentações e postou-se de lado para observá-los.

— Alô — Orlanda cumprimentou Casey, carinhosamente. — Linc me falou muito a seu respeito, e de como é importante para ele.

— Também me falou a seu respeito — disse Casey, no mesmo tom. — Mas não o bastante. — "Você é muito mais linda do que Linc deixou transparecer", pensou. "Muitíssimo mais. Com que então é Orlanda Ramos? Bonita, de fala macia, feminina, e uma piranha safada que está de olho no meu Linc. Meu Deus, o que faço agora?"

Ouviu a si mesma conversando fiado, mas sua mente ainda estava pesando e analisando Orlanda Ramos. "Por um lado seria bom para o Linc ter um caso. Faria com que esfriasse um pouco. Ontem à noite foi tão horrível para ele quanto para mim. Ele tinha razão sobre eu me mudar de quarto. Mas, se a magia dessa aí o envolver, será que conseguirei arrancá-lo dela? Será apenas uma garota como as outras, que nada significaram para mim e que, depois de uma semana, também nada significaram para ele?

"Essa não", concluiu Casey, decisivamente. "Tenho duas escolhas. Ou mantenho as treze semanas e quatro dias e entro na luta, ou não mantenho e entro na luta."

Sorriu.

— Orlanda, seu vestido é espetacular.

— Obrigada. Posso chamá-la de Casey?

As duas mulheres sabiam que a guerra tinha começado.

Bartlett ficou encantado ao ver que Casey simpatizara obviamente com Orlanda. Gavallan observava, fascinado pelos quatro. Havia um calor estranho entre todos. Especialmente entre Bartlett e Orlanda.

Voltou sua atenção para Mata e Casey. Mata era gentil, cheio de charme do Velho Mundo, concentrando-se em Casey, procurando fasciná-la. "Até onde ele conseguirá chegar com ela?", pensou. "É curioso que Casey não pareça se importar absolutamente com Orlanda. Será que não notou que o namorado está enrabichado? Pode ser que não. Ou pode ser que esteja se lixando, e que ela e Bartlett sejam apenas sócios comerciais e nada mais. Talvez ela não passe de um sapatão. Ou talvez seja apenas frígida, como tantas. Que pena!"

— O que está achando de Hong Kong, srta. Casey? — perguntou Mata, imaginando como ela seria na cama.

— Infelizmente ainda não vi muita coisa, embora tenha ido aos Novos Territórios, na excursão do hotel, dar uma espiada na China.

— Gostaria de ir? Quero dizer, ir mesmo para a China? Entrar lá, digamos, em Cantão? Posso dar um jeito para que a senhorita seja convidada.

Ela ficou chocada.

— Mas somos proibidos de entrar na China... nossos passaportes não são válidos.

— Ah, não teria que usar o seu passaporte. A RPC não liga para passaportes. Tão poucos quai loh entram na China que não há problema. Eles lhe dão um visto por escrito, e carimbam-no.

— Mas o nosso Departamento de Estado... acho que não iria me arriscar agora.

Bartlett concordou.

— Não devemos nem entrar na loja comunista aqui. A loja de departamentos.

— É, o seu governo é mesmo muito estranho — disse Mata. — Como se entrar numa loja fosse subversivo! Ouviu falar sobre o Hilton?

— Falar o quê?

— Dizem que compraram uma coleção maravilhosa de antigüidades chinesas para o novo hotel. — Mata sorriu. — Parece que agora os Estados Unidos decidiram que eles não poderão usar nada daquilo, nem mesmo aqui em Hong Kong. Está tudo no depósito. Pelo menos, é o que dizem.

— Não é de admirar. Quem não tem êxito, nos Estados Unidos, entra para o governo — disse Bartlett, com azedume.

— Casey, decida por si mesma — falou Mata. — Visite a loja. Chama-se China Arts and Crafts, e fica na Queen's Road. Os preços são bem razoáveis, e os comunistas não têm chifres e rabos pontudos.

— É bem diferente do que eu esperava — disse Bartlett. — Casey, você ia ficar fascinada com algumas das coisas.

— Você esteve lá? — indagou, surpresa.

— Claro.

— Levei o Sr. Bartlett lá hoje de manhã — explicou Orlanda. — íamos passando e entramos. Terei prazer em ir fazer compras com você, se quiser.

— Obrigada, gostaria muito — replicou Casey, igualmente simpática, consciente de todos os sinais de perigo. — Mas disseram-nos, em Los Angeles, que a CIA vigia os americanos que entram e saem, porque tem certeza de que é um ponto de encontro comunista.

— Para mim pareceu uma loja comum, Casey — falou Bartlett. — Só o que vi de diferente foram uns cartazes de Mao. Mas não se pode pechinchar. Todos os preços estão marcados. Coisas baratíssimas. Uma pena que não possamos levá-las para casa.

Nos Estados Unidos havia um embargo total a todas as mercadorias de origem chinesa, até mesmo antigüidades que estavam em Hong Kong há cem anos.

— Isso não é problema — falou Mata prontamente, imaginando o quanto ganharia como intermediário. — Se houver algo que deseje, terei prazer em comprar.

— Mas, ainda assim, não poderemos levar nada para os Estados Unidos, Sr. Mata — disse Casey.

— Ah, isso também é fácil. Faço-o para amigos americanos o tempo todo. Envio as compras deles para uma companhia que tenho em Cingapura ou em Manila. Por uma pequena taxa, eles as enviam para os Estados Unidos com um certificado de origem: Malásia ou Filipinas, o que preferirem.

— Mas isso é trapaça. Contrabando.

Mata, Gavallan e Orlanda riram abertamente, e Gavallan disse:

— O comércio é a graxa do mundo. Mercadorias embargadas dos Estados Unidos ou Formosa chegam à República

Popular da China, mercadorias da RPC vão para Formosa e Estados Unidos... se há procura. Claro que sim!

— Eu sei — disse Casey —, mas não acho que esteja certo.

— A Rússia soviética dedica-se à sua destruição, mas ainda assim comerciam com ela — disse Gavallan para Bartlett.

— Nós, não — retrucou Casey. — Não a Par-Con, embora nos tenham procurado para vender computadores. Gostamos muito de lucros, mas, nesse caso, negativo. O governo comercia, mas com mercadorias controladas com muito cuidado. Trigo, coisas assim.

— Onde houver um comprador disposto a comprar alguma coisa, sempre haverá um vendedor — disse Gavallan, irritado com ela. Olhou pelas janelas e desejou estar de volta a Xangai. — Vejam por exemplo o Vietnam, a sua Argélia.

— Como? — perguntou Casey. Gavallan voltou a olhar para ela.

— Quero dizer que o Vietnam sangrará a sua economia até a morte, como fez com a França, e como a Argélia fez com a França.

— Jamais entraremos no Vietnam — disse Bartlett, confiante. — Por que entraríamos? Não tem nada a ver conosco.

— Concordo — disse Mata —, mas, apesar disso, os Estados Unidos estão tendo um envolvimento crescente. Na verdade, Sr. Bartlett, acho que estão sendo sugados para o abismo.

— De que maneira?

— Acho que os soviéticos os atraíram deliberadamente para o Vietnam. Vocês enviarão tropas, mas eles, não. Vocês lutarão contra os vietnamitas e a selva, e os soviéticos serão os vencedores. A CIA já está lá com força total. Tem uma linha aérea funcionando. Já estão sendo construídos campos de pouso com dinheiro americano, armas americanas estão vindo aos borbotões. Já há soldados lutando lá.

— Não acredito — disse Casey.

— Pode acreditar. São chamadas de Forças Especiais, às vezes Força Delta. Desculpe, mas o Vietnam vai ser um grande problema para o seu governo, a não ser que ele seja muito esperto.

Bartlett falou, confiante:

— Graças a Deus, é. Kennedy cuidou de Cuba. Cuidará do Vietnam também. Fez o Grande K recuar em Cuba, e o fará de novo. Ganhamos, daquela vez. Os soviéticos retiraram seus mísseis.

Gavallan estava sombriamente divertido.

— Devia falar com o Ian sobre Cuba, meu velho, ele fica com a corda toda. Ele diz, e eu concordo, que vocês perderam. Os soviéticos sugaram vocês para outra armadilha. Vocês fizeram papel de bobos. Ele acredita que construíram as bases dos mísseis quase abertamente, querendo que vocês os detectassem, o que fizeram, e então houve um bocado de ameaças de lá e de cá, o mundo todo morto de medo, e, em troca da promessa soviética de retirar os mísseis de Cuba, seu presidente rasgou a sua Doutrina Monroe, a pedra angular de todo o seu sistema de segurança.

— Como?

— Claro. Kennedy não deu a Khruchov uma promessa por escrito de não invadir Cuba, de não permitir uma invasão vinda de território americano... ou de qualquer outro lugar no hemisfério ocidental? Por escrito, Santo Deus! Então, agora, uma potência européia inimiga, a Rússia soviética, totalmente contra a sua Doutrina Monroe, está abertamente estabelecida a cento e cinqüenta quilômetros da sua costa, num local cujas fronteiras são protegidas por escrito pelo seu próprio presidente, proteção ratificada pelo seu Congresso. O Grande K aplicou-lhes um golpe colossal, jamais igualado em toda a sua história. E tudo por nada! — A voz de Gavallan ficou mais áspera. — Agora Cuba está segura, e sem dúvida crescerá, expandir-se-á e acabará por contagiar toda a América do Sul. Segura para submarinos, navios, aviões soviéticos... Santo Deus, mas que vitória maravilhosa!

Casey olhou para Bartlett, chocada.

— Mas, Linc, claro que não é assim! Bartlett estava igualmente chocado.

— Acho que... se a gente pensar direito, é, sim. Na verdade, não lhes custou nada.

— Ian está convencido disso — falou Gavallan. — Converse com ele. Quanto ao Vietnam, aqui ninguém acha que o presidente Kennedy vai saber cuidar do assunto, por mais que o admiremos pessoalmente. A Ásia não é como a Europa, ou as Américas. Aqui se pensa diferente, se age diferente, e se tem valores diferentes.

Fez-se um silêncio repentino, rompido por Bartlett.

— Então acha que vai haver guerra? Gavallan lançou-lhe um olhar.

— Não é motivo para você se preocupar. A Par-Con vai se sair muito bem. Vocês têm indústria pesada, computadores, espuma de poliuretano, contratos do governo para equipamentos aeroespaciais, produtos petroquímicos, equipamentos de rádio... Com suas mercadorias e a nossa técnica pericial, se houver uma guerra... bem, o céu é o limite.

— Não acho que gostaria de ter lucro dessa maneira — falou Casey, irritada com ele. — É um modo nojento de se faturar.

Gavallan virou-se para ela, com raiva.

— Muitas coisas neste mundo são nojentas, erradas e injustas... — Já ia sair com quatro pedras na mão, furioso pelo modo como ela interrompia a conversa dele com Bartlett, mas resolveu que ali não era a hora nem o lugar, portanto disse, amavelmente: — Mas, claro, tem razão. Ninguém quer lucrar com a morte. Se me dão licença, tenho que ir andando... Sabem que todos têm lugares marcados? O jantar vai começar a qualquer momento. Uma questão de prestígio.

Afastou-se.

— Acho que ele não gosta nem um pouco de mim — disse Casey.

Eles acharam graça no modo como ela falou.

— O que você disse está certo, Casey — falou Orlanda. — Tem razão. A guerra é terrível.

— Esteve aqui durante a guerra? — perguntou Casey, inocentemente.

— Estive, mas em Macau. Sou portuguesa. Minha mãe me contou que lá não foi muito terrível. Os japoneses não perturbaram Macau porque Portugal era neutro. — Orlanda acrescentou, docemente: — Estou com apenas vinte e cinco anos, portanto mal me lembro da guerra. Ainda não tinha sete anos quando ela acabou. Macau é uma cidade gostosa, Casey. Tão diferente de Hong Kong! Você e Linc talvez queiram ir até lá. Vale a pena. Adoraria ser sua guia.

"Aposto que sim", pensou Casey, sentindo que seus vinte e seis anos pesavam contra os vinte e cinco de Orlanda, que tinha a pele de uma menina de dezessete.

— Seria ótimo. Mas, Lando, o que há com o Andrew? Por que estava tão bronqueado? Porque sou uma mulher vice-presidente e tudo o mais?

— Duvido. Estou certo de que você está exagerando — replicou Mata. — Acontece que ele não é muito pró-americanos, e fica doido porque o Império Britânico não existe mais. Os Estados Unidos são o árbitro dos destinos do mundo e estão cometendo erros evidentes, acha ele. A maioria do povo britânico concorda com ele, infelizmente! É em parte inveja, claro. Mas sejam pacientes com o Andrew. Afinal, seu governo entregou Hong Kong para Chang em 45... foi a marinha britânica que o impediu. Os americanos ficaram do lado dos russos, contra eles, no caso de Suez, e apoiaram os judeus contra eles na Palestina... há dúzias de exemplos. Também é verdade que aqui muitos de nós acham errada a hostilidade atual dos Estados Unidos contra a China.

— Mas eles são tão comunistas quanto a Rússia. Entraram em guerra conosco quando estávamos apenas tentando proteger a liberdade da Coréia do Sul. Não íamos atacá-los.

— Mas, historicamente, a China sempre cruzou o Yalu quando qualquer invasor estrangeiro se aproximava daquela fronteira. Sempre. O seu MacArthur tinha fama de ser historiador — disse Mata pacientemente, imaginando se ela seria assim tão ingênua na cama —, devia ter sabido. Ele... ou o seu presidente... forçou a China a tomar um caminho que não queria tomar. Tenho certeza absoluta disso.

— Mas não fomos invasores. Foi a Coréia do Norte que invadiu a do Sul. Nós só estávamos querendo ajudar um povo a ser livre. Não tínhamos nada a ganhar com a Coréia do Sul. Gastamos bilhões tentando ajudar o povo a continuar livre. Veja o que a China fez ao Tibete... e à índia, no ano passado. Parece que sempre somos o bode expiatório, e só o que queremos é proteger a liberdade. — Interrompeu-se quando um murmúrio de alívio correu a sala e as pessoas começaram a se dirigir para as suas mesas. Garçons carregando travessas com tampos de prata entravam em grande número no aposento. — Graças a Deus! Estou morta de fome!

— Eu também — disse Bartlett.

— Até que o Shitee está adiantado, hoje — disse Mata, com uma risada. — Orlanda, devia tê-los avisado de que é um velho costume fazer sempre uma boquinha antes dos banquetes de Shitee.

Orlanda apenas dirigiu-lhes seu lindo sorriso, enquanto Casey dizia:

— Orlanda avisou o Linc, que me avisou, mas achei que dava para agüentar.

Olhou para a sua inimiga, que era quase meia cabeça mais baixa do que ela, com cerca de um metro e sessenta. Pela primeira vez na vida sentiu-se grande e desajeitada. "Seja sincera", falou com seus botões, "desde que saiu do hotel para as ruas e viu todas as moças e mulheres chinesas com mãos, pés e corpos minúsculos, tão pequeninas, de olhos e cabelos escuros, sentiu-se imensa e estranha. É. Agora posso entender por que nos fitam tanto, de boca aberta. E quanto ao turista comum, barulhento, gordo, balançando as banhas...

"Mesmo assim, Orlanda Ramos, embora seja bonita e pense que é esperta, não é a garota certa para Linc Bartlett. Portanto, vá esfregar o rabo nas ostras!"

— Da próxima vez, Orlanda — falou, amavelmente —, vou dar mais atenção às suas recomendações.

— Recomendo que a gente vá comer, Casey. Também estou com fome.

Mata falou:

— Acredito que estejamos todos à mesma mesa. Devo confessar que mexi meus pauzinhos.

Satisfeito, foi mostrando o caminho, mais excitado do que nunca com o desafio de levar Casey para a cama. No momento em que pusera os olhos nela, tinha decidido isso. Em parte por causa de sua beleza, altura e lindos seios, um contraste tão agradável com a miudeza e monotonia da moça asiática normal. Em parte por causa das pistas que Orlanda lhe dera. Mas principalmente por causa de sua idéia repentina de que, rompendo a ligação Bartlett-Casey, poderia destruir a investida da Par-Con na Ásia. "É muito melhor manter os americanos, com a sua moralidade hipócrita e nada prática, e a sua intromissão, fora da nossa área o máximo possível", falou com seus botões. "E se Dunross não tiver fechado o negócio com a Par-Con, terá que me vender o controle que desejo. Então, finalmente, eu serei o tai-pan da Casa Nobre, independente de todos os Dunrosses e Struans.

"Minha Nossa Senhora, a vida é mesmo boa! Curioso que esta mulher possa ser a chave para a melhor fechadura da Ásia", pensou. A seguir, acrescentou, satisfeito: "É evidente que pode ser comprada. É apenas uma questão de preço".

 

                   23h01m

O jantar teve doze pratos. Haliote refogado com couve-de-bruxelas, fígado de galinha e molho de perdiz em fatias, sopa de barbatana de tubarão, galinha grelhada, verduras chinesas, ervilhas, brócolos e cinqüenta outras variedades de legumes com carne de siri, pele de pato de Pequim assado com molho de ameixas, cebolinhas em fatias, panquecas fininhas, cogumelos cozidos no vapor e ovas de peixe, chaputa defumado com salada, arroz à moda de Yangchow, talharim Lar Doce Lar... depois sobremesa da felicidade, sementes de lótus cristalizadas e lírios com arroz-doce. E chá, continuamente.

Mata e Orlanda ajudaram Casey e Bartlett. Fleur e Peter Marlowe eram os únicos outros europeus à mesa. Os chineses entregaram seus cartões de visita, e receberam outros em troca.

— Ah, vocês sabem comer com pauzinhos!

Todos os chineses ficaram francamente espantados, depois voltaram confortavelmente a falar em cantonense, as mulheres cheias de jóias evidentemente comentando Casey e Bartlett, e os Marlowes. Seus comentários eram ligeiramente policiados apenas devido à presença de Lando Mata e Orlanda.

— O que estão dizendo, Orlanda? — perguntou Bartlett suavemente, em meio à exuberância ruidosa, especialmente dos chineses.

— Estão impressionados com você e a srta. Casey — respondeu, cautelosamente, sem traduzir os comentários indecentes sobre o tamanho do busto de Casey, as indagações sobre onde compraria suas roupas, quanto custariam, por que não usava jóias, e como devia se sentir uma pessoa daquela altura! Quanto a Bartlett pouco falavam, exceto para se perguntarem em voz alta se pertencia mesmo à Máfia, como sugerira um dos jornais chineses.

Orlanda estava certa de que não pertencia. Mas estava certa, também, de que teria que ser muito circunspecta diante de Casey, nem avançada nem retraída demais, e nunca poderia tocá-lo. E que teria que ser meiga com ela, para tentar desconcertá-la.

A cada novo prato que era servido, removiam-se os usados, e trazia-se louça limpa, pousada ruidosamente sobre a mesa. Os garçons corriam para os aparadores na parte central, junto das escadas, para se desfazerem dos pratos sujos e pegarem os limpos, quentinhos, trazidos pelo elevador.

As cozinhas, três cobertas abaixo, eram um inferno, com imensos woks¹ de ferro, de um metro e vinte de comprimento, que se utilizavam de gás canalizado para bordo. Alguns woks serviam para ferver a comida, outros para fritar, outros para abafar, outros para ensopar, e muitos para o arroz branco simples. Havia também uma churrasqueira a lenha. Um exército de ajudantes dos vinte e oito cozinheiros estava preparando as carnes e os legumes, depenando galinhas, matando peixes, lagostas e siris frescos, limpando-os, executando as mil tarefas que a cozinha chinesa exige... pois cada prato é preparado na hora, para cada freguês.

 

¹ Utensílios de cozinha usados especialmente no preparo da comida chinesa. (N. da T.)

 

O restaurante abria às dez da manhã, e a cozinha fechava às dez e quarenta e cinco da noite, às vezes até mais tarde, quando havia alguma festa especial programada. Poderia haver danças, e até um show, se o anfitrião fosse rico. Naquela noite, embora não houvesse turno extra, show ou baile, todos sabiam que sua gorjeta seria muito boa. Shitee T'Chung era um anfitrião generoso, embora a maioria deles acreditasse que muito do dinheiro para fundos de caridade que reunia ia para sua barriga, a de seus convidados, ou para o corpo de suas amiguinhas. Ele também tinha a reputação de ser implacável com os críticos, um unha-de-fome com a família, e vingativo com os inimigos.

"Não faz mal", pensou o cozinheiro-chefe. "Um homem precisa de lábios macios e dentes duros, neste mundo, e todo mundo sabe qual vai durar mais."

— Andem logo! — berrou. — Pensam que posso esperar toda esta noite cheia de estrume? Camarões, tragam os camarões!

Um ajudante suado, de calças rasgadas, camiseta suada e velhíssima, veio correndo com uma travessa de bambu de camarões recém-pescados e recém-limpos. O cozinheiro jogou-os no vasto wok, acrescentou uma pitada de glutamato monossódico, deu duas mexidas rápidas neles e retirou-os. Colocou um punhado de ervilhas fumegantes em dois pratos e jogou por cima os camarões rosados, brilhantes e suculentos, divididos igualmente.

— Que todos os deuses urinem em cima de todos os camarões! — exclamou com azedume, sentindo a úlcera doer, os pés e a barriga das pernas pesados como chumbo, depois de dez horas de trabalho. — Mandem esses logo lá para cima, antes que estraguem! Dew neh loh moh... é meu último pedido. Hora de ir para casa!

Outros cozinheiros estavam berrando as últimas ordens, e praguejando enquanto cozinhavam. Estavam todos impacientes para ir embora.

— Andem logo com isso!

Então, um jovem ajudante carregando uma vasilha de gordura usada tropeçou, e a gordura caiu sobre um dos grandes bicos de gás, pegando fogo com um ruído alto. Houve um súbito pandemônio. Um cozinheiro berrou quando o fogo o cercou. Ele tentou afastá-lo com as mãos, o rosto e o cabelo chamuscados. Alguém jogou um balde d'água no fogo, e espalhou-o violentamente. As chamas subiram até o teto, formando ondas de fumaça. Os cozinheiros que gritavam e se empurravam para fugir ao fogo entupiam a saída. A fumaça preta, acre e gordurosa começou a encher os ares.

O homem que estava mais próximo da única escada estreita que levava ao convés superior agarrou um dos extintores de incêndio, apertou o embolo e apontou o bocal para o fogo. Nada aconteceu. Ele repetiu o processo, até que alguém o tirou de suas mãos com um palavrão, tentou sem êxito fazê-lo funcionar, depois jogou-o para o lado. O outro extintor também não funcionou. O pessoal nunca se dera ao trabalho de testá-los.

— Que todos os deuses defequem sobre essas invenções dos demônios estrangeiros sem mãe! — choramingou um cozinheiro, preparando-se para fugir se o fogo se aproximasse dele. Um cule assustado, sufocando com a fumaça do outro lado da cozinha, recuou de uma coluna de chama, bateu em alguns vidros e acabou derrubando-os. Alguns deles continham ovos-de-mil-anos, e outros, óleo de gergelim. O óleo inundou o chão e pegou fogo. O cule desapareceu no súbito lençol de chamas. Agora, o fogo dominava metade da cozinha.

Passava bastante das onze horas, e a maioria dos fregueses do restaurante já se havia retirado. O convés superior do Dragão Flutuante ainda estava parcialmente cheio. A maioria dos chineses, entre eles Wu Quatro Dedos e Vênus Poon, estava saindo ou já tinha saído, pois o último prato já fora servido há bastante tempo, e era um costume chinês de boa educação partir logo que o último prato tivesse sido servido em todas as mesas. Somente os europeus se demoravam tomando o seu conhaque, ou porto, e fumando charutos.

Por todo o barco, mesas de mah-jong estavam sendo armadas por chineses, e o barulhinho das peças de marfim batendo nas mesas começou a dominar.

— Joga mah-jong, Sr. Bartlett? — perguntou Mata.

— Não. Por favor, chame-me de Linc.

— Devia aprender, é melhor do que bridge. Joga bridge, Casey?

Linc Bartlett riu.

— É cobra no jogo, Lando. Não jogue com ela a dinheiro.

— Quem sabe possamos marcar um joguinho, qualquer hora. Você joga, não é, Orlanda? — disse Mata, lembrando-se de que Gornt era excelente jogador.

— Jogo, um pouco — respondeu Orlanda, suavemente, e Casey pensou sombriamente: "Aposto que a safada também é cobra".

— Adoraria um joguinho — disse Casey, meigamente.

— Ótimo — falou Mata. — Um dia da próxima semana... oh, alô, tai-pan!

Dunross cumprimentou a todos com seu sorriso.

— Que tal acharam a comida?

— Fantástica! — disse Casey, feliz por vê-lo e notando como estava elegante no seu traje a rigor. — Quer sentar-se conosco?

— Obrigado, mas...

— Boa noite, tai-pan — disse Dianne Chen, aproximando-se dele com o filho Kevin, um jovem baixo e corpulento, de cabelos crespos escuros e lábios cheios.

Dunross fez as apresentações.

— Onde está Phillip?

— Pretendia vir, mas ligou para avisar que houve um contratempo. Bem, boa noite...

Dianne sorriu, e Kevin também, e dirigiram-se para a porta, enquanto Casey e Orlanda ficavam embasbacadas com as jóias de Dianne.

— Bem, tenho que ir andando, também — falou Dunross.

— Que tal foi a sua mesa?

— Um tanto exasperante — disse Dunross, com uma risada contagiante. Jantara com os deputados, com Gornt, Shi-teh e a mulher na mesa número 1, e houvera explosões iradas e esporádicas abafando o barulho dos pratos. — Robin Grey é franco demais, e mal-informado, e alguns de nós nos irritamos com ele. Pela primeira vez Gornt e eu estávamos do mesmo lado. Devo confessar que serviram nossa mesa primeiro, para que o pobre e velho Shi-teh e a mulher pudessem fugir. Deram no pé feito doidos faz quinze minutos.

Todos riram com ele. Dunross observava Marlowe. Perguntava-se se Marlowe sabia que Grey era seu cunhado.

— Grey parece conhecê-lo muito bem, Sr. Marlowe.

— Ele tem boa memória, tai-pan, mas maus modos.

— Bem, quanto a isso não sei. Mas se conseguir convencer o Parlamento, Deus tenha pena de Hong Kong! Bem, só queria dizer alô a todos vocês. — Sorriu para Bartlett e Casey. — Que tal almoçarmos juntos amanhã?

— Ótimo — disse Casey. — Que tal no Vic? — Percebeu Gornt preparando-se para partir, do lado oposto da sala, e perguntou-se novamente quem venceria. — Pouco antes do jantar, Andrew estava diz...

Então, como todos eles, ela ouviu débeis gritos. Fez-se silêncio repentino, todos de ouvido atento.

— Fogo!

— Meu Deus, olhem!

Todos fitaram o aparador. Fumaça jorrava de dentro dele. Depois, uma pequena língua de fogo.

Houve uma fração de segundo de incredulidade. Em seguida todos se puseram de pé, de um salto. Aqueles que estavam mais perto da escadaria principal correram para a saída, entupindo-a, enquanto outros começavam a gritar também. Bartlett pôs-se de pé bruscamente, arrastando Casey consigo. Mata e alguns dos convidados começaram a correr para a saída entupida.

— Parem aí! — rugiu Dunross, abafando o barulho. Todos pararam. — Há tempo de sobra. Não se apressem! — ordenou. — Não há necessidade de correr, vamos com calma! Ainda não há perigo!

Sua advertência ajudou aqueles que estavam excessivamente assustados. Começaram a se afastar da saída entupida. Mas, lá embaixo, nas escadas, os gritos e a histeria tinham aumentado.

Nem todos haviam saído correndo ao primeiro grito de perigo. Gornt não se movera. Fumava o seu charuto, todos os sentidos concentrados. Havergill e a mulher tinham ido até as janelas, para olhar para fora. Outros se reuniram a eles. Podiam ver multidões cercando a entrada principal, dois tombadilhos abaixo.

— Acho que não precisamos nos preocupar, minha cara — disse Havergill. — Depois que o grosso sair, podemos segui-los calmamente.

Lady Joanna, ao lado deles, falou:

— Viu como Biltzmann saiu correndo? Que cretino! — Olhou à sua volta e viu Bartlett e Casey do outro lado da sala, esperando ao lado de Dunross. — Ora, pensei que também tivessem fugido!

Havergill falou:

— Ora, qual é, Joanna? Nem todos os ianques são covardes!

Uma súbita coluna de fogo e fumaça espessa começou a sair de dentro do aparador. Os gritos de "Depressa!" recomeçaram.

No outro lado da sala, mais perto do fogo, Bartlett disse, ansioso:

— Ian, existe outra saída?

— Não sei — retrucou Dunross. — Dê uma olhada lá fora. Eu seguro as pontas por aqui. — Bartlett saiu apressado em direção à porta de saída para o convés, e Dunross virou-se para os demais. — Não há motivo para preocupação — disse, acalmando-os e avaliando-os rapidamente. Fleur Marlowe estava pálida, mas controlada. Casey fitava, em choque, as pessoas que se comprimiam contra a saída. Orlanda estava apavorada, quase descontrolada. — Orlanda! Tudo bem — falou. — Não há perigo...

Do outro lado da sala, Gornt levantou-se e acercou-se mais da porta. Podia ver o entupimento, e sabia que as escadas lá embaixo estariam congestionadas. Gritos e alguns berros aumentavam o medo, mas Sir Charles Pennyworth estava ao lado da porta, tentando organizar a retirada pelas escadas. Mais nuvens de fumaça surgiram, e Gornt pensou: "Santo Deus, um maldito incêndio, meia centena de pessoas e uma saída". Então, notou o bar desguarnecido. Foi até lá e, aparentemente calmo, serviu-se de um uísque com soda, mas o suor escorria-lhe pelas costas.

No patamar congestionado do segundo convés, Lando Mata tropeçou e arrastou consigo um grupo inteiro, entre o qual estavam Dianne Chen e Kevin, bloqueando o único caminho de fuga. Homens e mulheres gritavam, impotentes, esmagados de encontro ao chão, enquanto outros caíam ou tropeçavam neles, numa arremetida para a segurança. Acima, na escadaria, Pugmire agarrou-se a um corrimão e conseguiu manter-se de pé, usando sua grande força para empurrar com as costas as pessoas, e impedir que mais delas caíssem. Julian Broadhurst estava ao seu lado, assustado também, mas igualmente controlado, usando sua altura e peso, juntamente com Pugmire. Os dois juntos conseguiram conter o povo momentaneamente, mas gradativa-mente o peso dos que vinham atrás venceu-os. Pugmire sentiu a mão escorregar. Dez degraus abaixo, Mata conseguiu pôr-se de pé, pisoteou algumas pessoas, no seu desespero, depois mandou-se escada abaixo, com o casaco meio arrancado do corpo. Dianne Chen também lutou bravamente para ficar de pé, arrastando Kevin consigo. Na massa humana que empurrava e lutava, não notou uma mulher que agarrou discretamente o seu pingente de brilhantes e embolsou-o, depois continuou a descer aos empurrões. As grandes nuvens de fumaça que vinham do convés inferior aumentavam a sensação de horror. Pugmire teve que soltar o corrimão. Foi empurrado contra a parede pela torrente humana, e Broadhurst falseou o pé. Começou outra pequena avalancha de gente. Agora, as escadas das duas cobertas estavam entupidas.

Wu Quatro Dedos e Vênus Poon estavam no primeiro patamar quando irrompera o grito de "Fogo!", e ele descera desabalado o último lanço e abrira caminho aos empurrões para a ponte levadiça que dava para o cais, Vênus Poon alguns passos atrás dele, apavorada. A salvo no cais, virou-se e olhou, o coração disparado, a respiração pesada. Homens e mulheres saíam aos tropeções pela porta de entrada enfeitada que dava para o molhe, algumas chamas saindo pelas vigias próximo à linha-d'água. Um policial que fazia a ronda ali por perto olhou horrorizado por um momento, depois deu no pé em busca do telefone mais próximo. Wu ainda estava tentando recobrar o fôlego quando viu Richard Kwang e a mulher saírem aos trambolhões. Começou a rir, e sentiu-se muito melhor. Vênus Poon também estava achando as pessoas muito engraçadas. Espectadores agrupavam-se em segurança, sem fazer nada para ajudar, apenas olhando. "O que é certo", pensou Wu, de passagem. "Nunca se deve interferir nas decisões dos deuses. Os deuses têm suas próprias regras, e eles decidem o destino dos humanos. Meu destino foi escapar e curtir esta prostituta esta noite. Que todos os deuses me ajudem a sustentar o meu Ferro Imperial até que ela suplique misericórdia!"

— Vamos indo, Falinha Macia — disse Quatro Dedos, com uma risadinha —, podemos deixá-los entregues ao seu destino. Estamos perdendo tempo.

— Não, Pai — disse ela, rapidamente. — A qualquer momento as câmeras de tv e a imprensa vão chegar... temos que pensar na nossa imagem, heya?

— Imagem? Vamos para a cama e a Ravína F...

— Mais tarde! — exclamou ela, imperiosamente, e ele abafou o palavrão que ia acrescentar. — Não quer ser aclamado herói? — disse vivamente. — Quem sabe até ser feito cavaleiro, como o Shitee, heya?

Rapidamente, sujou as mãos e o rosto, rasgou com cuidado uma das alças acima do seio e foi para junto da escada do costado, onde podia ver e ser vista. Quatro Dedos fitava-a, pasmado. "Uma honraria quai loh, como Shitee?", pensou, atônito. "Eeee, por que não?" Seguiu-a, prudentemente, tomando muito cuidado para não chegar perto demais do perigo.

Viram uma língua de fogo sair da chaminé do tombadilho superior, e gente assustada espiando das janelas dos três tombadilhos. Agora já havia um ajuntamento no cais. Pessoas saíam aos tropeções para a segurança, em crises histéricas, muitos tossindo por causa da fumaça, que começava a tomar conta do restaurante inteiro. Houve outro entupimento na porta de saída, alguns caíram e alguns fugiram às pressas de sob a confusão de pés, os de trás gritando para os da frente se apressarem, e novamente Quatro Dedos e outros espectadores acharam graça.

No tombadilho superior, Bartlett debruçou-se sobre a amurada e olhou para o casco e o molhe lá embaixo. Podia ver uma multidão no cais, e gente histérica se comprimindo para sair pela porta de entrada. Não havia outra escadaria, escada ou possibilidade de fuga, em qualquer dos lados. O coração dele batia com força, mas não estava com medo. "Ainda não há perigo real", pensou. "Podemos saltar na água, lá embaixo. Fácil. São... nove, doze metros... não há problema, se não se cair de barriga." Voltou correndo pelo convés que tomava metade do comprimento do barco. Fumaça negra, fagulhas e algumas chamas saíam pelas chaminés.

Abriu a porta do convés superior e fechou-a rapidamente, a fim de não criar nenhuma corrente de ar adicional. A fumaça havia aumentado, e agora as chamas que saíam do aparador eram contínuas. O cheiro de fumaça no ar era acre, e trazia consigo o cheiro de carne queimada. Quase todos estavam aglomerados junto à porta do outro extremo. Gornt estava afastado, sozinho, fitando as pessoas, e tomando um drinque. Bartlett pensou: "Meu Deus, que sangue-frio tem esse filho da mãe!" Desviou-se com cuidado do aparador, os olhos ardendo por causa da fumaça, e quase derrubou Christian Toxe, que estava dobrado sobre o telefone, berrando por sobre a barulheira:

—...estou me cagando, mande um fotógrafo para cá imediatamente, e depois chame o Corpo de Bombeiros! — Raivosamente, Toxe bateu o telefone, resmungando: — Filhos da mãe cretinos!

Depois, voltou para junto da mulher, uma chinesa matronal que o fitava inexpressivamente. Bartlett foi depressa para junto de Dunross. O tai-pan estava imóvel ao lado de Peter e Fleur Marlowe, Orlanda e Casey, soltando um assobio mudo.

— Nada, Ian — disse, calmamente, notando que sua voz soava estranha —, porra nenhuma. Nenhuma escada, nada. Mas podemos saltar com facilidade, se for preciso.

— É. Temos sorte de estar neste convés. Os outros podem não ter tanta sorte. — Dunross ficou vendo o fogo e a fumaça que brotavam do aparador perto da saída. — Em breve teremos que decidir para onde ir — falou, suavemente. — O fogo pode nos isolar do lado de fora. Se formos para fora, talvez não possamos mais voltar, e teremos que saltar. Se ficarmos aqui dentro, só nos restam as escadas.

— Meu Deus! — murmurou Casey. Estava tentando acalmar seu coração disparado e a sensação de claustrofobia que ameaçava dominá-la. Sentia a pele pegajosa, e seus olhos corriam da saída para a porta e voltavam para a saída. Bartlett enlaçou-a.

— Não tem grilo, poderemos saltar quando quisermos.

— Sim, claro, Linc.

Casey controlava-se, sombriamente.

— Sabe nadar, Casey? — quis saber Dunross.

— Sei. Eu... fiquei presa num incêndio, certa vez. Desde então, morro de medo deles. — Fora há alguns anos, quando um dos súbitos incêndios de verão tomara o caminho de sua casinha em Hollywood Hills, Los Angeles. Ela ficara presa na casa, com a estrada sinuosa do vale já queimando, lá embaixo. Ligara todos os borrifadores de água e começara a molhar o telhado da casa com a mangueira. O calor escaldante parecia querer agarrá-la. Então, o fogo se espalhara, saltando do topo de um vale para o lado oposto, alastrando-se pelos dois lados, em direção ao leito do vale, atiçado pelas rajadas de vento de cento e sessenta quilômetros por hora geradas pelo fogo. As chamas violentas destruíam árvores e casas, chegavam cada vez mais perto, e não havia para onde fugir. Apavorada, continuava a molhar o telhado com a mangueira. Gatos e cães das casas acima da sua passavam por ela, fugindo, e um pastor-alemão, apavorado, encolhera-se sob a proteção do telhado da casa. O calor, a fumaça e o terror cercaram-na. O incêndio continuou durante muito tempo, mas o fogo propriamente dito parou a cinqüenta metros dos limites da casa. Sem nenhum motivo. Acima, todas as casas à beira da estrada tinham desaparecido. A maior parte do vale, também. Uma clareira de quase oitocentos metros de largura e três quilômetros de extensão ardera durante três dias nas colinas que dividiam a cidade de Los Angeles. — Estou bem, Linc — falou, com voz trêmula.

— Eu... acho que prefiro ficar lá fora do que aqui dentro. Vamos nos mandar daqui. Uma nadadinha seria formidável.

— Eu não sei nadar!

Orlanda estava tremendo. Então, perdeu o controle e se levantou para correr para a escada. Bartlett a agarrou.

— Tudo vai dar certo. Meu Deus, nunca conseguirá sair por aquele caminho! Escute aqueles desgraçados lá embaixo, estão encrencados de verdade. Fique aqui, está bem? Pelas escadas não é boa idéia.

Ela agarrou-se a ele, petrificada.

— Tudo vai dar certo — disse Casey, compassivamente.

— É — concordou Dunross, de olho no fogo e na fumaça negra.

— Nós... bem... não estamos em má situação, não é, tai-pan? É. O fogo deve estar vindo das cozinhas. Logo o terão sob controle. Fleur, meu bem, não haverá necessidade de pular do navio — disse Marlowe.

— Não tem grilo — tranqüilizou-o Bartlett. — Há um bocado de sampanas para nos recolher!

— É, eu sei, mas ela também não sabe nadar.

Fleur pôs a mão no braço do marido.

— Sempre disse que eu devia aprender, Peter.

Dunross não prestava atenção à conversa. Estava consumido pelo medo, e tentando dominá-lo. Suas narinas estavam cheias do fedor de carne queimada que conhecia tão bem. Tinha vontade de vomitar. Estava de volta ao seu Spitfire ardente, abatido nos céus por um Messerschmitt sobre o canal da Mancha, os rochedos de Dover longe demais. Sabia que o fogo o consumiria antes que pudesse arrancar fora o teto emperrado e danificado da cabine e saltar fora, o cheiro apavorante de carne chamuscada, a sua própria, a cercá-lo. Aterrorizado, esmurrava impotente o vidro da cabine, e com o outro punho tentava afastar as chamas que cercavam seus pés e joelhos, sufocando com a fumaça acre que o cegava. Então, quando a capota se soltou, ouvira um rugido súbito e desesperado. Um inferno de chamas cercara-o, e, sem saber como, estava do lado de fora, afastando-se das chamas, sem saber se seu rosto estava destruído, a pele das mãos e dos pés, as botas e o macacão de vôo ainda fumegando. E então, a sacudidela nauseante, quando o seu pára-quedas se abriu, e depois a silhueta escura do avião inimigo vindo em sua direção, o sol às costas, e as metralhadoras em ação, e uma bala que arrancou fora parte da sua barriga da perna. Não se lembrava de mais nada, exceto do cheiro de carne queimada, o mesmo que sentia agora.

— O que acha, tai-pan?

— Como?

— Vamos ficar ou sair? — repetiu Marlowe.

— Vamos ficar, por enquanto — disse Dunross, e todos se perguntavam como podia parecer tão calmo. — Quando as escadas ficarem desimpedidas, poderemos descer. Não há necessidade de nos molharmos.

Casey lançou-lhe um sorriso hesitante.

— Esses incêndios ocorrem com freqüência?

— Aqui não, mas infelizmente ocorrem em Hong Kong. Nossos amigos chineses não ligam muito para regulamentos contra incêndios...

Fazia apenas alguns minutos que a primeira rajada violenta de fogo explodira na cozinha, mas agora o fogo a dominava completamente, e, pelo acesso do aparador, se alastrava fortemente pelas seções centrais dos três tombadilhos acima. O fogo na cozinha dividia o aposento pela metade, bloqueando o acesso à única escada existente. Vinte homens apavorados estavam presos do lado errado. O resto do pessoal há muito fugira para se reunir à massa ondulante de gente no convés superior. Havia meia dúzia de vigias, mas eram pequenas e estavam enferrujadas. Em pânico, um dos cozinheiros correu para a barreira chame-jante, berrando quando as chamas o envolveram. Quase chegou do outro lado, mas escorregou, e continuou berrando por muito tempo. Um gemido apavorado escapou da boca dos outros. Não havia outra possibilidade de fuga.

O cozinheiro-chefe também estava preso. Era um homem corpulento, e já estivera em muitos incêndios em cozinhas, portanto não entrara em pânico. Sua mente se voltava para todos os incêndios anteriores, buscando desesperadamente uma pista. Então, lembrou-se.

— Depressa — berrou —, peguem sacos de farinha de arroz... farinha... depressa!

Os outros o fitaram sem se mover, paralisados pelo terror. Então ele desceu a mão sobre alguns deles, arremessando-os para a despensa. Agarrou ele próprio um saco de vinte e dois quilos, arrancando-lhe a parte de cima.

— Fodam-se todos os incêndios! Depressa, mas esperem até eu mandar — falou, ofegante, a fumaça o sufocando e quase o cegando.

Uma das vigias se estilhaçou e a súbita corrente de ar lançou as chamas sobre eles. Aterrorizados, agarraram um saco cada um, tossindo enquanto a fumaça aumentava.

— Agora! — rugiu o cozinheiro-chefe, e jogou o saco sobre o corredor chamejante entre os fogões. O saco se rasgou e as nuvens de farinha apagaram algumas das chamas. Outros sacos seguiram o primeiro, e mais chamas foram engolidas. Outra barragem de farinha cobriu as bancadas ardentes, apagando o fogo. A passagem ficou momentaneamente livre. Imediatamente o cozinheiro-chefe liderou a investida pelas chamas restantes, e todos o seguiram, aos trambolhões, saltando sobre os dois corpos carbonizados, e chegaram às escadas do outro lado antes que as chamas voltassem a fechar a passagem. Os homens subiram desesperadamente a escada estreita e chegaram ao ar parcialmente livre do patamar, juntando-se à turba que empurrava, se atropelava, gritava e tossia, tentando passar pela fumaça negra e alcançar o ar livre.

Lágrimas corriam pela maioria dos rostos. A fumaça agora estava muito densa, nas cobertas inferiores. Então, a parede atrás do primeiro patamar, onde ficava o vão do elevador do aparador, começou a se retorcer e escurecer. Abruptamente estourou, espalhando gárgulas por toda parte, e as chamas jorraram. Os que estavam nas escadas logo abaixo começaram a empurrar para a frente, em pânico. Os que estavam no patamar procuraram recuar. Então, vendo que estavam tão perto da segurança, as primeiras fileiras lançaram-se para diante, rodeando o inferno, descendo os degraus de dois em dois. Hugh Guthrie, um dos deputados, viu uma mulher cair. Agarrou-se ao corrimão e parou para ajudá-la, mas os que vinham atrás dele derrubaram-no, e ele caiu com outros. Levantou-se, praguejando, e abriu uma clareira, com esforço, o tempo suficiente para levantar também a mulher, antes de ser engolido de novo e empurrado pelos últimos degraus até chegar em segurança à entrada.

A metade do patamar entre o convés inferior e o segundo convés ainda estava livre das chamas, embora o fogo se mantivesse firme. A multidão agora estava diminuindo, embora mais de cem pessoas ainda entupissem as portas e escadarias superiores. Os que estavam lá em cima esmurravam-se e xingavam, sem conseguir enxergar nada à frente.

— Por que estão demorando tanto, puta que o pariu...

— As escadas ainda estão impedidas... ?

— Pela madrugada, andem logo...

— Está ficando quente pra caramba, aqui...

— Que confusão desgraçada...

Grey era um dos que tinham ficado presos nas escadas do segundo convés. Podia ver as chamas brotando da parede à sua frente, e sabia que a parede próxima cederia a qualquer instante. Não conseguia decidir se devia recuar ou avançar. Então, viu uma criança encolhida nos degraus, sob o corrimão. Conseguiu tomar o garotinho nos braços, depois avançou, xingando quem estava na frente, rodeou rapidamente o fogo, e encontrou o caminho para a segurança lá embaixo ainda congestionado.

No convés superior, Gornt e os outros ouviam o pandemônio lá embaixo. Havia apenas cerca de trinta pessoas ali. Ele terminou a sua bebida, largou o copo e caminhou até o grupo que cercava Dunross. Orlanda ainda estava sentada, torcendo o lenço nas mãos, Fleur e Peter Marlowe ainda aparentavam calma, e Dunross, como sempre, mostrava-se controlado. "Ótimo", pensou, abençoando a sua própria linhagem e treinamento. Fazia parte da tradição britânica não demonstrar medo em situações de perigo, por mais apavorado que se estivesse, sob pena de ficar desprestigiado. "Além disso", lembrou a si mesmo, "quase todos nós fomos bombardeados a maior parte da vida, levamos tiros, fomos afundados, enfiados em campos de prisioneiros de guerra ou servimos nas forças armadas." A irmã de Gornt pertencera ao Corpo Feminino da Marinha Real... a mãe fora encarregada da segurança nos ataques aéreos, o pai servira ao exército, o tio morrera em Monte Cassino, e ele próprio servira com os australianos na Nova Guiné depois de fugir de Xangai, lutara para chegar à Birmânia e de lá a Cingapura.

— Ian — disse, mantendo a voz adequadamente descontraída —, parece que o fogo agora está no primeiro patamar. Sugiro uma nadadinha.

Dunross olhou para o fogo perto da porta da saída.

— Algumas das senhoras não sabem nadar. Vamos esperar mais dois minutinhos.

— Pois bem. Acho que aqueles que não se incomodam de saltar devem ir para o tombadilho. Este incêndio está mesmo muito enfadonho.

— Não estou achando nada enfadonho — disse Casey. Todos acharam graça.

— É só uma expressão — explicou Peter Marlowe. Uma explosão na primeira coberta sacudiu ligeiramente o barco. O silêncio momentâneo foi lúgubre.

Da cozinha, o fogo se alastrara para os depósitos e estava cercando os quatro tambores de cem galões de óleo restantes. O que explodira abrira um buraco imenso no chão e fizera o barco adernar. Brasas ardentes, óleo fervente e um pouco de água do mar derramavam-se nos embornais. A força da explosão rompera alguns dos grandes pedaços de madeira do casco plano de fundo, e a água se infiltrava pelas junções. Hordas de ratos surgiram buscando um meio de fuga.

Outro dos grossos tambores de metal explodiu e abriu um buraco imenso na lateral do barco, logo abaixo da linha-d'água, espalhando fogo em todas as direções. As pessoas no cais soltaram uma exclamação abafada, e algumas recuaram rapidamente, embora não houvesse perigo. Outras riram nervosamente. Mais outro tambor explodiu, e outra coluna de chamas espalhou-se por toda parte. Os suportes e as vigas do teto estavam seriamente enfraquecidos e, ensopados de óleo, começaram a arder. Acima, no primeiro convés, os pés dos fugitivos desesperados batiam neles, perigosamente.

Logo acima do primeiro patamar, Grey ainda estava com a criança no colo. Segurava o corrimão com uma das mãos, assustado, cercado por todos os lados de pessoas alucinadas. Esperou a sua vez. Depois, protegendo a criança da melhor maneira possível, rodeou as chamas no patamar e correu escada abaixo, com o caminho praticamente desimpedido. O tapete perto da soleira da porta começava a fumegar, e um homem corpulento tropeçou, com todo o chão oscilando.

— Vamos — gritou Grey desesperadamente para os que vinham atrás. Cruzou a soleira, seguido de perto pelos outros. Quando chegou à ponte levadiça, os dois últimos tambores explodiram, todo o chão por trás dele desapareceu, e ele, o menino e outros foram arremessados para a frente como se fossem palha.

Hugh Guthrie saiu do meio dos circunstantes e puxou-os para um local seguro.

— Está bem, meu velho? — exclamou, com voz abafada. Grey estava meio tonto, sem fôlego, as roupas ardendo, e Guthrie ajudou a apagar as chamas.

— É... acho que estou — disse, meio fora de si. Guthrie ergueu suavemente a criança inconsciente e olhou para ela.

— Pobre infeliz!

— Está morto?

— Acho que não. Tome... — Guthrie entregou o garotinho chinês a um dos circunstantes, e os dois homens voltaram para o portão para dar ajuda a outros que ainda estavam tontos pela explosão, e impotentes. — Deus Todo-Poderoso! — exclamou, ao ver que agora a entrada estava intransponível. Acima da barulheira, ouviram o gemido de sirenes que se aproximavam.

O fogo no convés superior, perto da saída, crescia perigosamente. Assustadas, as pessoas retornavam à sala, tossindo, forçadas a retroceder escada acima pelo fogo que agora dominava o convés inferior. Pandemônio e o fedor do medo pesavam no ar.

— Ian, é melhor a gente se arrancar — disse Bartlett.

— É. Quillan, por favor, mostre o caminho e cuide do tombadilho — falou Dunross. — Eu cuido do lado de cá.

Gornt virou-se e rugiu.

— Todo mundo por aqui! Estarão a salvo no convés... um de cada vez...

Abriu a porta e postou-se ao lado dela, tentando trazer ordem à retirada apressada... alguns chineses, o resto, na sua maioria, britânicos. Uma vez ao ar livre, todos tiveram muito menos medo e sentiram-se gratos por estar longe da fumaça.

Bartlett, esperando na sala, sentiu-se excitado, mas ainda sem medo, pois sabia que podia arrebentar quaisquer das janelas e saltar ao mar com Casey. Gente passava por ele aos tropeções. As chamas que saíam do aparador aumentaram, e ouviu-se uma explosão abafada lá embaixo.

— Como está indo, Casey?

— Tudo bem.

— Trate de sair!

— Quando você sair.

— Certo.

Bartlett sorriu para ela. A sala estava quase vazia. Ajudou Lady Joanna a atravessar a porta, depois Havergill, que mancava, e a mulher dele.

Casey viu que Orlanda ainda estava grudada à cadeira. "Pobre moça!", pensou, com pena, recordando o seu próprio terror no incêndio perto de sua casa. Foi para junto dela.

— Vamos — falou, docemente, e ajudou-a a se levantar. Os joelhos da moça tremiam. Casey enlaçou-a.

— Eu... perdi... minha bolsa — murmurou Orlanda.

— Não, ela está aqui.

Casey pegou a bolsa de cima da cadeira e continuou abraçando a moça, enquanto a empurrava para o ar livre, passando pelo fogo. O tombadilho estava lotado, mas, uma vez do lado de fora, Casey sentiu-se bem melhor.

— Está tudo bem — disse Casey, encorajadoramente. Conduziu-a à amurada. Orlanda agarrou-se a ela firmemente. Casey virou-se para procurar Bartlett, e viu que ele e Gornt a observavam da sala. Bartlett acenou para ela, que devolveu o aceno, desejando que ele também estivesse fora, ao seu lado.

Peter Marlowe acompanhou a mulher ao convés, e vieram para junto delas.

— Tudo bem, Casey?

— Claro. Como está, Fleur?

— Bem. Bem. Aqui... aqui fora está agradável, não é? — disse Fleur Marlowe, sentindo-se tonta e péssima, aterrorizada à idéia de pular daquela altura. — Acha que vai chover?

— Quanto mais cedo, melhor.

Casey olhou pela amurada. Nas águas escuras, nove metros abaixo, as sampanas começavam a se reunir. Todos os barqueiros sabiam que o pessoal lá em cima teria que saltar em breve. Da sua posição privilegiada, podiam ver que o fogo tomava conta da maior parte do primeiro e segundo tombadilhos. Algumas pessoas estavam presas ali. Então um homem arremessou uma cadeira contra uma das janelas, afastou os pedaços de vidro, pulou pelo buraco e caiu ao mar. Uma sampana veio depressa para perto dele, lançando-lhe uma corda. Outros seguiram-lhe o exemplo. Uma mulher não veio à tona.

A noite estava escura, embora as chamas iluminassem tudo por perto, lançando sombras lúgubres. A multidão no cais abriu passagem para os carros de bombeiros com as sirenes ligadas. Tão logo pararam, bombeiros chineses e oficiais britânicos puxaram as mangueiras. Outro destacamento as ligou no hidrante mais próximo e o primeiro jato d'água molhou as chamas. Ouviu-se um viva. Em segundos, seis mangueiras estavam funcionando, e dois bombeiros protegidos com roupas de amianto e equipamento respiratório preso às costas correram para a entrada e começaram a arrastar para a segurança os que estavam inconscientes. Outra imensa explosão borrifou-os com brasas candentes. Um dos bombeiros jogou água em todo mundo, depois dirigiu de novo o jato da mangueira para a entrada.

O convés superior agora estava vazio, exceto por Bartlett, Dunross e Gornt. Sentiram o chão oscilar sob seus pés, e quase caíram.

— Meu Deus — exclamou Bartlett —, vamos afundar?

— Essas explosões podem ter destruído o fundo do navio — disse Gornt, com urgência. — Vamos!

Atravessou rapidamente a porta, Bartlett atrás dele.

Agora, Dunross estava só. A fumaça era muito densa, o calor e o fedor revoltavam-lhe o estômago. Fez um esforço consciente para não fugir, dominando o seu terror. Teve um pensamento repentino e voltou correndo até a porta da escadaria principal, para certificar-se de que não havia ninguém ali. Então viu a figura inerte de um homem na escada. Havia chamas por toda parte. Sentiu o medo acometê-lo outra vez, mas dominou-o novamente. Adiantou-se, célere, e começou a arrastar o homem escada acima. O chinês era pesado, e ele não sabia se o homem estava vivo ou morto. O calor era abrasador, e novamente ele sentiu cheiro de carne queimando; sentiu o gosto da bile na boca. E então Bartlett estava ao seu lado, e os dois juntos arrastaram o homem pelo salão, até o convés.

— Obrigado — falou Dunross, com voz ofegante.

Quillan Gornt veio para junto deles, inclinou-se e virou o homem de barriga para cima. O rosto estava parcialmente queimado.

— Podia ter-se poupado o heroísmo. Está morto.

— Quem é? — perguntou Bartlett. Gornt deu de ombros.

— Não sei. Você o conhece, Ian?

Dunross fitava o cadáver.

— Conheço. É o Zep... Tung Zeppelin.

— O filho do Pão-Duro? — Gornt ficou surpreso. — Meu Deus, como engordou! Jamais o teria reconhecido. — Ficou de pé. — É melhor preparar todo mundo para saltar. Este barco é um cemitério. — Viu Casey de pé junto da amurada. — Está bem? — perguntou, acercando-se dela.

— Estou, obrigada. E você?

— Ah, estou.

Orlanda ainda estava ao lado dela, fitando desamparada as águas lá embaixo. O pessoal começava a se acotovelar no convés.

— É melhor eu ir ajudá-los a se organizarem — falou Gornt. — Volto num segundo.

Afastou-se.

Nova explosão sacudiu o barco, que começou a adernar cada vez mais. Várias pessoas subiram na amurada e saltaram. Sampanas foram recolhê-las.

Christian Toxe abraçava sua mulher chinesa, fitando as águas com azedume.

— Vai ter que pular, Christian — disse Dunross.

— Para dentro do porto de Aberdeen? Deve estar me gozando, meu velho. Se a gente não ricochetear nos eflúvios, sem dúvida vai pegar a peste!

— Ou isso, ou um rabo em fogo! — exclamou alguém rindo.

Na extremidade do convés, Sir Charles Pennyworth segurava-se à amurada, enquanto percorria o barco, encorajando todo mundo.

— Vamos, mocinha — dizia para Orlanda. — É um salto fácil.

Ela sacudia a cabeça, apavorada.

— Não... ainda não... não sei nadar.

Fleur Marlowe abraçou-a.

— Não se preocupe, também não sei nadar. Também vou ficar.

Bartlett disse:

— Peter, segure a mão dela, tudo vai dar certo. Só o que tem a fazer, Fleur, é prender a respiração.

— Ela não vai pular — disse Marlowe, suavemente. — Pelo menos, não até o último segundo.

— É seguro.

— É, mas não para ela. Está enceinte.

— Como?

— Fleur está esperando bebê. De três meses.

— Ah, meu Deus.

Chamas saíram rugindo de um dos fumeiros, em direção aos céus. Dentro do convés superior as mesas do restaurante ardiam, assim como os grandes biombos entalhados dos fundos da sala. Houve uma grande rajada de fagulhas quando a escadaria interna central desabou.

— Meu Deus, este barco todo é um perigo, em caso de incêndio. E quanto ao pessoal lá embaixo? — perguntou Casey.

— Já saíram faz um tempão — disse Dunross, sem acreditar. Agora que estava ao ar livre, sentia-se ótimo. O modo como conseguira dominar o medo deixara-o delirante. — A vista daqui é esplêndida, não acham?

Pennyworth falou, jovialmente:

— Estamos com sorte. O navio está adernando para este lado, assim, quando afundar, estaremos bem seguros. A não ser que emborque. Como nos velhos tempos — acrescentou. — Afundei três vezes no Mediterrâneo.

— Eu também — falou Marlowe —, mas foi no estreito de Bangka, perto de Sumatra.

— Não sabia disso, Peter — disse Fleur.

— Não foi nada.

— Qual é a profundidade da água, aqui? — quis saber Bartlett.

— Uns seis metros, ou mais — disse Dunross.

— Será o sufi...

Ouviu-se o cantar das sirenes quando a lancha da polícia veio chegando, passando pelas veredas estreitas entre as ilhas de barcos, o holofote iluminando aqui e ali. Quando estava quase ao lado do Dragão Flutuante, o megafone soou bem alto, primeiro em chinês:

— Todas as sampanas, desimpeçam a área, desimpeçam a área... — Depois, em inglês: — Todos os que estão no convés superior, preparem-se para abandonar o navio! O casco está furado, preparem-se para abandonar o navio!

Christian Toxe resmungou com azedume, falando sozinho:

— Pois sim que vou estragar o meu único smoking. A mulher dele puxou-lhe o braço.

— Você jamais gostou dele, mesmo, Chris.

— Mas agora gosto, querida. — Tentou sorrir. — Você também não sabe nadar, porra.

Ela deu de ombros.

— Aposto cinqüenta dólares como eu e você vamos nadar tão bem como uma enguia.

— Sra. Toxe, aposta fechada. Mas é apropriado que saltemos por último. Afinal quero um testemunho ocular.

Meteu a mão no bolso e pegou os cigarros. Deu um para ela, tentando sentir-se corajoso, temendo pela segurança dela. Procurou um fósforo, não achou. Ela meteu a mão na bolsa e mexeu aqui e ali. Acabou encontrando o isqueiro. Ele acendeu na terceira tentativa. Ambos estavam indiferentes às chamas três metros às suas costas.

Dunross disse:

— Você fuma demais, Christian.

O convés girou nauseantemente. O barco começou a afundar. A água jorrava pelo grande buraco no costado. Os bombeiros usavam as mangueiras com grande bravura, mas elas surtiam pouco efeito contra o fogo. Um murmúrio varreu a multidão quando o barco inteiro estremeceu. Dois cabos de amarração se partiram.

Pennyworth apoiava-se contra a amurada, ajudando os outros a saltar em segurança. Muitos estavam saltando, agora. Lady Joanna caiu, desajeitadamente. Paul Havergill ajudou a mulher a saltar. Quando viu que ela vinha à tona, pulou também. Da lancha da polícia ouviam-se ainda berros em cantonense, ordenando que desimpedissem a área. Marinheiros jogavam ao mar coletes salva-vidas, enquanto outros lançavam ao mar um escaler. A seguir, comandados por um jovem inspetor naval, meia dúzia de marujos mergulharam para ajudar os homens, mulheres e crianças em dificuldades. Uma sampana veio ajudar Lady Joanna, Havergill e a mulher. Agradecidos, eles subiram na embarcação desconjuntada. Outros do convés superior saltaram para dentro d'água.

O Dragão Flutuante adernava perigosamente. Alguém escorregou no convés superior e desequilibrou Pennyworth. Ele oscilou, antes de poder se reequilibrar, e caiu de costas feito uma pedra. Bateu com a cabeça na popa da sampana, partindo o pescoço. Deslizou para dentro d'água e afundou. No pandemônio, ninguém notou.

Casey segurava-se à amurada com Bartlett, Dunross, Gornt, Orlanda e os Marlowes. Próximo a eles, Toxe soltava baforadas do cigarro, tentando criar coragem. A mulher dele apagou o seu cigarro com cuidado. Chamas brotavam de dentro dos respiradouros, das clarabóias e da porta de saída. O navio encalhou pesadamente e balançou-se bruscamente quando outro dos cabos de amarração se partiu. Gornt soltou-se da grade e bateu de cabeça na amurada, ficando tonto. Toxe e a mulher se desequilibraram e caíram ao mar, desajeitadamente. Peter Marlowe conseguiu ficar agarrado à mulher, evitando que fosse esmagada de encontro a um antepara, enquanto Bartlett e Casey passaram por eles, aos trambolhões, e caíram, amontoados, junto da ba-laustrada, com Bartlett a protegê-la como podia, os saltos altos dos sapatos dela oferecendo perigo.

Lá embaixo, na água, os marinheiros ajudavam as pessoas a subir para o barco de resgate. Um deles viu Toxe e a mulher subirem à superfície por um instante, a quinze metros de distância, ofegantes, cuspindo água, antes de sufocarem e, espadanando água, voltarem a afundar. Imediatamente, mergulhou atrás deles, e, depois do que parecia ser uma eternidade, agarrou a mulher pelas roupas e empurrou-a, semi-afogada, para a superfície. O jovem tenente nadou para onde vira Toxe e mergulhou, mas não o achou na escuridão. Subiu para tomar ar e mergulhou de novo na escuridão, tateando, desesperado. Quando seus pulmões estavam quase estourando, seus dedos estendidos encontraram uma peça de roupa, e ele agarrou-a e subiu violentamente para a superfície. Toxe agarrava-se a ele, em pânico, com ânsias de vômito devido a toda a água que engolira. O rapaz soltou-se de Toxe, virou-o de barriga para cima e o foi puxando até o escaler.

Acima deles, o barco inclinava-se perigosamente, e Dunross levantou-se. Viu Gornt largado, inerte, e foi tropeçando para perto dele. Tentou levantá-lo, mas não conseguiu.

— Eu... estou bem — disse Gornt, ofegante, voltando a si, e sacudindo a cabeça, como um cachorro. — Puxa, obrigado... — Ergueu os olhos, viu que era Dunross. — Obrigado — falou, sorrindo amargamente, enquanto se levantava, trêmulo. — Ainda vou vender amanhã, e na semana que vem você estará acabado.

Dunross riu.

— Pois boa sorte! A idéia de morrer queimado ou me afogar com você me enche de igual desalento.

A dez metros dali, Bartlett estava levantando Casey. O ângulo do convés agora estava péssimo, o fogo cada vez mais forte.

— Esta banheira velha pode emborcar a qualquer segundo.

— E quanto a elas? — perguntou Casey suavemente, indicando Fleur e Orlanda.

Ele pensou por um segundo, depois disse, decisivamente:

— Salte primeiro, espere lá embaixo!

— Já saquei!

Prontamente, entregou-lhe a sua bolsinha. Ele a enfiou num dos bolsos e se afastou, enquanto ela chutava fora os sapatos, corria o zíper do vestido longo e saía de dentro dele. Imediatamente improvisou uma corda com a seda leve, amarrou-a na cintura, subiu na amurada, ficou parada na beirada por um momento, verificou cuidadosamente o seu ponto de impacto e saltou num mergulho perfeito. Gornt e Dunross observaram o seu megulho, o perigo imediato esquecido.

Bartlett agora estava ao lado de Orlanda. Viu Casey subir à tona com perfeição, e antes que Orlanda pudesse fazer alguma coisa, pegou-a no colo, passou-a por sobre a amurada e disse:

— Prenda a respiração, meu bem.

Largou-a cuidadosamente. Todos observaram sua queda. Caiu de pé, a alguns metros de distância de Casey, que já previra o local e nadara por baixo d'água. Pegou Orlanda com facilidade, subiu à tona, e Orlanda estava respirando quase antes de se dar conta de que saíra do tombadilho. Casey segurou-a com firmeza e nadou rapidamente em direção ao escaler, com controle perfeito.

Gornt e Dunross deram vivas entusiasmados. O barco balançou bruscamente de novo, e eles quase caíram, enquanto Bartlett ia aos tropeções para junto dos Marlowes.

— Peter, sabe nadar bem? — perguntou Bartlett.

— Regularmente.

— Confia em mim para cuidar dela? Fui salva-vidas, vagabundo de praia durante anos.

Antes que Marlowe pudesse dizer não, Bartlett tomou Fleur no colo, saltou por cima da grade e ficou parado por um segundo na beira da amurada.

— Prenda a respiração!

Ela enlaçou-lhe o pescoço com um braço e apertou o nariz, depois ele saltou no espaço, com Fleur aninhada em segurança nos seus braços. Mergulhou cuidadosamente no mar, protegendo-a do choque com o seu corpo, depois subiu suavemente à superfície. A cabeça dela ficou sob a água por poucos segundos, e nem estava cuspindo água, embora tivesse o coração disparado. Dali a segundos estava no escaler. Ficou agarrada no lado do escaler, e ambos olharam para trás.

Quando Peter Marlowe viu que ela estava em segurança, seu coração recomeçou a bater.

— Ah, que bom! — murmurou.

— Viu Casey mergulhar? — perguntou Dunross. — Fantástica!

— O quê? Ah, não, tai-pan.

— Só de sutiã e calcinhas com meias e nada de ligas, um mergulho de sonho. Puxa, e que corpo!

— Ah, são meias-calças — disse Marlowe, distraído, olhando para as águas lá embaixo, tomando coragem. — Acabam de ser lançadas nos Estados Unidos, estão fazendo sucesso...

Dunross mal ouvia.

— Puta que o pariu, que corpo!

— É — ecoou Gornt. — E que cojones!

O barco guinchou quando se partiu o último cabo de amarração. O convés tombou para a frente de modo nauseante.

Como se fossem um só, os três homens saltaram ao mar. Dunross e Gornt mergulharam, Peter Marlowe pulou. Os mergulhos foram bonitos, mas ambos sabiam que não se igualavam ao de Casey.

 

                   23h30m

Do outro lado da ilha, o velho táxi subia com esforço a rua estreita lá no alto do West Point, em Mid Leveis, com Suslev esparramado no banco traseiro, cheio de bebida. A noite estava escura, e ele cantava uma triste balada russa para o motorista suado, com a gravata torta, sem casaco, a camisa molhada de suor. As nuvens que cobriam o céu estavam mais espessas e baixas. A umidade estava pior, o ar, abafado.

— Matieriebiets! — resmungou, xingando o calor, depois sorriu, satisfeito com a obscenidade proferida. Olhou pela janela. As luzes da cidade e do porto lá embaixo estavam embaçadas por tufos de nuvens, Kowloon em grande parte obscurecida. — Vai chover logo, camarada — disse para o motorista, num inglês engrolado, sem se importar se o homem entendera ou não.

O táxi muito velho chiava. O motor tossiu de repente, e isso o fez lembrar-se da tosse de Arthur, e do seu próximo encontro. Sua excitação aumentou.

O táxi o pegara no Terminal da Balsa Dourada, depois subira para Mid Leveis, no Pico, virará para o oeste, rodeando o Palácio do Governo, onde morava o governador, e o Jardim Botânico. Ao passar pelo palácio, Suslev se perguntara, distraidamente, quando a bandeira da foice e do martelo tremularia no mastro de bandeira vazio. Brevemente, pensara, satisfeito. Com a ajuda de Arthur e da Sevrín... muito brevemente. Só mais alguns anos.

Olhou para o relógio de pulso. Chegaria um pouco atrasado, mas aquilo não o preocupava. Arthur estava sempre atrasado, nunca menos de dez minutos, nunca mais de vinte. "É perigoso ser um homem metódico na nossa profissão", pensou. "Mas, perigoso ou não, Arthur é de imenso valor para nós, e a Sevrin, criação dele, um instrumento brilhante e vital no armamento do nosso KGB, enterrado bem fundo, esperando pacientemente, como todas as outras Sevrins espalhadas pelo mundo.

Apenas noventa e tantos mil oficiais do KGB, como eu, e no entanto quase dominamos o mundo. Já o modificamos, já o modificamos permanentemente, já possuímos metade dele... e em tão pouco tempo, desde 1917.

"Tão poucos de nós, tantos deles. Mas agora nossos tentáculos se estendem para todo e qualquer canto. Nossos exércitos de colaboradores... informantes, idiotas, parasitas, traidores, os inocentes úteis, e os crentes deformados que deliberadamente recrutamos em todos os países, alimentando-se uns dos outros como vermes que realmente são, impulsionados pelos próprios desejos e temores egoístas, todos sacrificados, mais cedo ou mais tarde. E em toda parte um de nós, um da elite, os oficiais do KGB, no centro de cada teia, controlando, orientando, eliminando. Teias dentro de teias, até chegar ao Presidium de todos os sovietes, agora tão intimamente entrelaçadas no sistema da Mãe Rússia, a ponto de serem indestrutíveis. Nós somos a Rússia moderna", pensou, com orgulho. "Somos a ponta de lança de Lênin. Sem nós, nossas técnicas e nosso uso orquestrado do terror, não haveria a Rússia soviética, nem o império soviético, nem a força propulsora para manter os todo-poderosos do partido... e em lugar algum do mundo haveria um Estado comunista. É, somos a elite."

Seu sorriso aumentou.

Embora as janelas estivessem abertas, estava quente e abafado dentro do táxi, que serpenteava por aquela área residencial com as suas filas de grandes blocos de apartamentos sem jardins, erguidos sobre pequenos caminhos abertos nas montanhas. Uma gota de suor escorreu pelo seu queixo, e ele a enxugou, sentindo o corpo todo pegajoso.

"Adoraria tomar um banho de chuveiro", pensou, deixando o pensamento vagar. "Um banho com água fresca e doce da Geórgia, não este lixo salino que corre pelos encanamentos de Hong Kong. Adoraria estar na dacha perto de Tiflis, ah, seria formidável! É, de novo na dacha, com papai e mamãe, nadaria no riacho que corre pelas nossas terras, e depois me secaria ao sol, com um bom vinho da Geórgia conservado a uma temperatura fresca, dentro do riacho, e as montanhas bem próximas. Lá é o paraíso, se é que existe um paraíso. Montanhas e pastos, uvas e colheitas, e o ar tão puro!"

Deu uma risadinha ao se lembrar das histórias que inventara sobre seu passado para Travkin. Aquele parasita! Apenas mais um idiota, mais outro instrumento a ser usado e, depois, descartado.

O pai dele fora comunista desde os primeiros dias... primeiro na Tcheka, secretamente, e depois, desde o seu início, em 1917, no KGB. Agora com setenta e muitos anos, ainda alto e ereto, reformado honradamente, vivia como um príncipe à antiga, com criados, cavalos e guarda-costas. Suslev tinha certeza de poder herdar a mesma dacha, a mesma terra, a mesma honra, no seu devido tempo. O mesmo aconteceria com seu filho, ainda um principiante no KGB, se o seu serviço continuasse a ser excelente. Seu próprio trabalho merecia a honraria, sua folha de serviços era impressionante, e tinha apenas cinqüenta e dois anos.

"É", pensou com seus botões, Confiantemente, "daqui a treze anos devo me reformar. Mais treze anos formidáveis, ajudando o ataque a ir para a frente, nunca fraquejando, faça o inimigo o que fizer.

"E quem é o inimigo, o verdadeiro inimigo?

"Todos aqueles que nos desobedecem, todos aqueles que recusam a nossa superioridade... especialmente os russos."

Riu alto.

O jovem e cansado motorista, de fisionomia azeda, deu uma olhada rápida pelo espelho retrovisor, depois voltou a se concentrar na direção, esperando que o passageiro estivesse bêbado o bastante para ler errado o que marcava o taxímetro e dar-lhe uma bela gorjeta. Parou diante do endereço que lhe haviam dado.

Rose Court, na Kotewall Road, era um prédio de apartamentos modernos de catorze andares. Tinha três andares subterrâneos de garagens, era cercado por uma pequena faixa de concreto, e, abaixo desta, descendo um leve aterro de concreto, ficavam a Sinclair Road e o Sinclair Towers, e mais prédios de apartamentos que se aninhavam na encosta da montanha. Era uma zona privilegiada para se morar. A vista era espetacular. Os apartamentos ficavam abaixo das nuvens que freqüentemente envolviam as partes mais altas do Pico, onde as paredes suavam, as roupas de cama e mesa mofavam, e tudo parecia estar perpetuamente úmido.

O taxímetro marcava oito HK e setenta cents. Suslev olhou para um maço de notas, deu ao motorista uma de cem, ao invés de uma de dez, e saiu do carro pesadamente. Uma chinesa estava se abanando, impaciente. Ele saiu aos tropeções em direção ao porteiro eletrônico do prédio. A mulher disse ao motorista para esperar pelo marido, e ficou olhando a figura de Suslev, enojada.

Ele cambaleava. Achou o botão que queria e apertou-o: Sr. Ernest Clinker, zelador. — Pronto?

— Ernie, sou eu, Grigóri — falou, enrolando a língua e soltando um arroto. — Está em casa?

A voz com sotaque cockney achou graça.

— De jeito nenhum! Ora, claro que estou, meu chapa! Está atrasado! Parece que andou correndo os bares! Tenho cerveja, tenho vodca, e eu e Mabel estamos aqui para recebê-lo!

Suslev dirigiu-se ao elevador. Apertou o botão de descida. No subsolo, saltou na garagem aberta e dirigiu-se para o outro extremo. A porta do apartamento já estava aberta, e um homenzinho feio e rosado na casa dos sessenta anos estendia-lhe a mão.

— Puta que o pariu — disse Clinker, com um amplo sorriso que deixava ver uma dentadura postiça barata —, está meio de porre, hem?

Suslev deu-lhe um forte abraço, que foi retribuído, e os dois entraram.

O apartamento constava de dois minúsculos dormitórios, sala, cozinha e banheiro. Os aposentos eram modestamente mobiliados, mas agradáveis, e o único luxo visível era um pequeno gravador que tocava ópera a todo o volume.

— Cerveja ou vodca?

Suslev abriu um sorriso e arrotou.

— Primeiro uma mijada, depois vodca, depois... depois outra... e depois... cama.

Soltou um imenso arroto, dirigindo-se para o banheiro.

— É isso aí, comandante, meu chapa! Ei, Mabel, diga alô para o comandante! — A velha cadela buldogue, sonolenta, deitada no seu tapetinho muito mastigado, abriu um dos olhos brevemente, latiu uma vez, e quase instantaneamente dormiu ruidosamente de novo. Clinker abriu um sorriso, foi até a mesa e serviu uma dose forte de vodca e um copo d'água. Nada de gelo. Ele tomou um pouco de cerveja, depois perguntou: — Quanto tempo vai ficar, Grigóri?

— Só esta noite, tovârich¹. Talvez amanhã à noite. Amanhã... amanhã tenho que estar de novo a bordo. Mas amanhã à noite... quem sabe, hem?

 

¹ "Camarada." Em russo no original. (N. do E.)

 

— E quanto a Ginny? Botou você para fora de novo... ? No furgão comum estacionado na rua, Roger Crosse, Brian

Kwok e o técnico da polícia ouviam a conversa através de um alto-falante, graças à boa qualidade do microfone escondido, com um pouco de estática, o furgão lotado de equipamentos de vigilância por rádio. Ouviram Clinker dar uma risadinha e dizer de novo:

— Ela botou você para fora, não foi?

— Todo começo de noite a gente fuque-fuque, e ela... ela diz: "Vá ficar com o Ernie e me deixe dormir!"

— Ô seu sacana de sorte! Aquela é uma princesa. Traga-a para cá amanhã.

— Trago... trago, sim. É, ela é o máximo. Ouviram Suslev derramar um balde d'água na privada e voltar.

— Tome, amigão!

— Obrigado. — O barulho de quem bebia sofregamente. — Acho... acho que quero me deitar por... me deitar. Alguns minutos...

— Algumas horas, aposto! Não se incomode, eu preparo o desjejum. Tome, quer outra bebida?...

Os policiais no furgão prestavam cuidadosa atenção à conversa. Crosse mandara que a escuta fosse colocada no apartamento de Clinker há dois anos. Periodicamente, ele era controlado, e sempre quando Suslev estava presente. Suslev, sempre sob vigilância frouxa, conhecera Clinker num bar. Os dois homens eram marujos de submarino, e haviam feito amizade. Clinker o convidara para ficar em sua casa, e de quando em vez Suslev aceitava o convite. Imediatamente, Crosse ordenara uma verificação de segurança na pessoa de Clinker, mas ela nada revelara de incomum. Durante vinte anos Clinker fora marujo na Marinha Real. Depois da guerra, pulara de serviço em serviço na marinha mercante, através de toda a Ásia até Hong Kong, onde se radicara ao se reformar. Era um homem quieto e tranqüilo, que vivia sozinho, e já há cinco anos era o zelador do Rose Court. Suslev e Clinker formavam um belo par: bebiam muito, farreavam muito e contavam histórias um ao outro. Nenhuma das suas horas de conversa produzira coisa alguma considerada valiosa.

— Ele está de porre, como de costume, Brian — disse Crosse.

— Sim, senhor — respondeu Brian Kwok, entediado, mas procurando não demonstrar.

Na pequena sala de estar, Clinker ofereceu o ombro a Suslev.

— Vamos, está na hora da caminha.

Passou por cima do copo no chão e ajudou Suslev a entrar no pequeno dormitório. Suslev largou-se pesadamente na cama e soltou um suspiro.

Clinker fechou as cortinas, depois foi até outro pequeno gravador e ligou-o. Daí a um momento, a fita começou a emitir sons de respiração pesada e roncos. Suslev levantou-se sem fazer barulho, sem sinal da falsa bebedeira. Clinker já estava de quatro no chão. Afastou um capacho e abriu o alçapão. Suslev desceu por ele sem fazer ruído. Clinker abriu um sorriso, deu-lhe uma palmadinha nas costas e fechou a porta bem-lubrificada do alçapão atrás dele. Os degraus do alçapão levavam a um túnel tosco que rapidamente se ligava à galeria subterrânea do escoamento pluvial, grande e seca. Suslev foi seguindo cuidadosamente, utilizando-se da lanterna elétrica que ficava num suporte na base dos degraus. Dali a um momento, ouviu um carro passar pela Sinclair Road, bem acima da sua cabeça. Mais alguns degraus, e estavam embaixo do Sinclair Towers. Outro alçapão ia dar num armário de material de limpeza, que se abria para uma escada fora de uso. Começou a subir.

Roger Crosse ainda escutava a respiração pesada, misturada com ópera. O furgão era apertado e abafado, suas camisas estavam suadas. Crosse fumava.

— Parece que apagou pelo resto da noite — disse. Podiam ouvir Clinker cantarolando, e seus movimentos enquanto limpava o copo quebrado. Uma luz vermelha no painel de rádio começou a piscar. O operador ligou o transmissor.

— Radiopatrulha 1423, pronto?

— Quartel-general para o superintendente Crosse, urgente.

— Aqui fala Crosse.

— Gabinete de serviço, senhor. Acaba de chegar uma informação de que o navio-restaurante Dragão Flutuante está pegando fogo... — Brian Kwok soltou uma exclamação abafada — Os carros de bombeiros já estão lá, e o guarda disse que pelo menos vinte pessoas podem estar mortas ou afogadas. Parece que o fogo começou na cozinha. Houve diversas explosões. Arrebentaram a maior parte do casco e... Um momento, senhor, está chegando nova informação da marinha.

Esperaram. Brian Kwok rompeu o silêncio.

— Dunross?

— A festa era no convés superior? — perguntou Crosse.

— Sim, senhor.

— Ele é esperto demais para morrer queimado... ou afogado — disse Crosse, suavemente. — O incêndio foi acidental, ou deliberado?

Brian Kwok não respondeu.

A voz do QG entrou no ar de novo.

— A marinha informa que o barco emborcou. Dizem que foi um desastre e tanto, e que parece que algumas pessoas ficaram presas sob o barco.

— O nosso agente estava com o nosso VIP?

— Não, senhor, estava esperando no cais, perto do carro. Não deu tempo de chegar até ele.

— E quanto às pessoas que ficaram presas no convés superior?

— Um momentinho, vou perguntar... Novo silêncio. Brian Kwok enxugava o suor.

—...dizem que vinte ou trinta saltaram lá de cima, senhor. Infelizmente, a maioria abandonou o navio um pouco tarde, logo antes de o barco emborcar. A marinha não sabe dizer quantos ficaram presos sob o barco.

— Fique a postos. — Crosse pensou por um momento. Depois falou novamente ao microfone: — Vou mandar o superintendente Kwok para lá imediatamente neste veículo. Mande uma equipe de homens-rãs ir encontrar-se com ele. Peça à marinha para dar ajuda, Prioridade Um. Estarei em casa, se precisarem de mim. — Desligou o microfone. Depois, virando-se para Brian Kwok: — Vou a pé até minha casa. Ligue para mim no momento em que souber algo sobre Dunross. Se estiver morto, iremos aos cofres do banco imediatamente, e para o diabo as conseqüências. Vá o mais depressa que puder!

Saltou. O furgão saiu montanha acima. Aberdeen ficava acima da crista das montanhas, e para o sul. Lançou um rápido olhar para o Rose Court, depois para o outro lado da rua, para o Sinclair Towers, mais abaixo. Um das suas equipes ainda vigiava a entrada, esperando pacientemente pela volta de Tsu-yan. Onde estaria aquele filho da mãe?, perguntou-se, irritado.

Muito preocupado, começou a descer a colina. Gotas de chuva começaram a molhá-lo. Apressou o passo.

Suslev tirou uma cerveja geladíssima da geladeira moderna e abriu-a. Bebeu, agradecido. O apartamento 32 do Sinclair Towers era espaçoso, luxuoso, limpo e bem-mobiliado, com três dormitórios e uma grande sala. Ficava no décimo primeiro andar. Cada andar tinha três apartamentos, dois elevadores apertados e uma escadinha estreita. O Sr. e sra. John Chen eram os donos do 31. O 33 pertencia a um Sr. K. V. Lee. Arthur contara a Suslev que K. V. Lee era um nome falso sob o qual se escondia Ian Dunross, que, seguindo os passos dos seus antepassados, tinha acesso exclusivo a três ou quatro apartamentos particulares espalhados pela colônia.

Suslev jamais conhecera pessoalmente John Chen ou Dunross, embora os tivesse visto nas corridas, e em outros lugares, muitas vezes.

"Se tivermos que entrevistar o tai-pan, o que poderia ser mais conveniente?", perguntou-se, sombriamente. "E com o Travkin como isca alternativa..."

Uma rajada súbita de vento fustigou as cortinas corridas sobre as janelas abertas, e ele ouviu o barulho da chuva. Fechou as janelas com cuidado, e olhou para fora. Gotas grossas manchavam as vidraças. As ruas e os telhados já estavam molhados. Um raio cruzou os céus. O barulho da trovoada o acompanhou. A temperatura já baixara alguns graus. "Será um bom temporal", falou com seus botões, agradecido, satisfeito por não estar no apartamento minúsculo e modesto de Ginny Fu, no quinto andar de um prédio sem elevador, em Mong Kok, e igualmente contente por não estar na casa de Clinker.

Fora Arthur quem arranjara tudo: Clinker, Ginny Fu, aquele local seguro, o túnel que ele certamente imitaria em Vladivostok. Clinker era um marujo de submarino e um cockney e tudo o mais que se supunha que fosse, exceto que sempre detestara a classe dos oficiais. Arthur contara que fora fácil subverter Clinker para a causa deles, usando as desconfianças, os ódios e a simulação naturais do sujeito.

— O Ernie Feio sabe muito pouco a seu respeito, Grigóri, apenas que é russo, naturalmente, e comandante do Ivãnov. Quanto ao túnel, contei-lhe que você está tendo um caso com uma mulher casada no Sinclair Towers, a mulher de um dos tai-pans. Contei-lhe que os roncos gravados e o sigilo são necessários porque os peelers nojentos estão atrás de você, entraram no apartamento dele e ocultaram escutas.

— Peelers?

— Policial, em cockney. Vem de Sir Robert Peel, primeiro-ministro da Inglaterra, que fundou a primeira força policial. Os cockneys sempre odiaram os peelers, e o Ernie Feio ficaria encantado em passar-lhes a perna. Basta você ser pró-Marinha Real, e ele será seu cão fiel até a morte...

Suslev sorriu. "Clinker não é um mau sujeito", pensou, "só um chato."

Sorveu sua cerveja enquanto voltava para a sala. O jornal da tarde estava ali. Era a edição extra do Guardian, com as manchetes a berrar turba assassina flor Fragrante, e uma boa foto do levante. Sentou-se numa poltrona e leu rapidamente.

Então, seus ouvidos aguçados ouviram o elevador parar. Foi até a mesa que ficava junto da porta e tirou de baixo dela a automática carregada com silenciador. Pôs a arma no bolso e foi espiar pelo olho mágico.

A campainha soou, abafada. Ele abriu a porta e sorriu.

— Entre, velho amigo. — Abraçou Jacques de Ville carinhosamente. — Faz muito tempo.

— É, faz sim, camarada — respondeu De Ville com igual carinho. A última vez que vira Suslev fora em Cingapura, há cinco anos, num encontro secreto arranjado por Arthur, pouco depois de De Ville ter sido induzido a entrar para a Sevrin. Ele e Suslev se haviam encontrado pela primeira vez, da mesma maneira sigilosa, no grande porto de Lyon, na França, em junho de 1941, poucos dias antes de a Alemanha nazista invadir a Rússia soviética, quando os dois países ainda eram aliados, aparentemente. Naquela época, De Ville fazia parte dos maquis, e Suslev era o segundo em comando e comissário do povo secreto de um submarino soviético que estava ostensivamente no porto para reparos depois de uma patrulha no Atlântico. Foi então que perguntaram a De Ville se ele queria continuar com a guerra real, a guerra contra o inimigo capitalista, como agente secreto, depois que os fascistas tivessem sido destruídos.

Ele concordara de todo o coração.

Fora fácil para Suslev subvertê-lo. Devido à grande utilidade que De Ville poderia ter depois da guerra, o KGB o atraiçoara secretamente para a Gestapo, depois o salvara da morte numa prisão da Gestapo, através de guerrilheiros comunistas. Os guerrilheiros tinham-lhe mostrado provas falsas de que fora traído por um dos seus próprios homens, por dinheiro. De Ville tinha trinta e dois anos na época, e, como muitos, estava encantado com o socialismo e com algumas idéias de Marx e Lênin. Nunca havia ingressado no Partido Comunista francês, mas agora, graças à Sevrin, era um capitão honorário da Força de Segurança Soviética do KGB.

— Parece cansado, Frederick — disse Suslev, usando o codinome de De Ville. — Conte-me o que há de errado.

— Apenas um problema de família.

— Conte-me.

Suslev escutou atentamente a triste história sobre o genro e a filha de De Ville. Desde o seu encontro em 1941, Suslev era o controlador de De Ville. Em 1947, ordenara que ele viesse para Hong Kong, para ingressar na Struan. Antes da guerra, De Ville e o pai possuíam um negócio muito bem-sucedido de importação e exportação, com laços estreitos com a Struan — além dos laços de família —, portanto a mudança fora fácil e bem-vinda. A missão secreta de De Ville era tornar-se um membro da assembléia interna e, no futuro, tai-pan.

— Onde está sua filha, agora? — perguntou, compassivo. De Ville contou-lhe.

— E o motorista do outro carro? — Suslev guardou de cor o nome e o endereço. — Providenciarei para que cuidem dele.

— Não — disse De Ville, prontamente. — Foi... foi um acidente. Não podemos punir um homem por um acidente.

— Ele estava bêbado. Não há desculpa para quem dirige bêbado. De qualquer modo, você é importante para nós. Cuidamos da nossa gente. Eu darei um jeito no homem.

De Ville sabia que não adiantava discutir. Uma rajada de vento e chuva bateu nas vidraças.

— Merde, mas que chuva boa! A temperatura deve ter baixado uns cinco graus. Será que vai durar?

— Dizem que a frente do temporal é grande.

De Ville ficou olhando as gotas d'água que escorriam pela vidraça, imaginando por que fora chamado.

— Que tal as coisas com você?

— Muito bem. Quer uma bebida? — Suslev caminhou até o bar espelhado. — Tenho boa vodca.

— Vodca está ótimo, obrigado. Mas uma dose pequena.

— Se Dunross se aposentasse, você seria o próximo tai-pan?

— Acho que a escolha ficaria entre quatro de nós: Gavallan, David MacStruan, eu e Linbar Struan.

— Nessa ordem?

— Não sei. Exceto que Linbar provavelmente é o último. Obrigado. — De Ville aceitou a bebida. Brindaram um ao outro. — Apostaria no Gavallan.

— Quem é esse MacStruan?

— Um primo afastado. Trabalhou seus cinco anos como mercador da China. No momento está chefiando a nossa expansão no Canadá... estamos tentando diversificar, e comerciar com fibras de madeira, cobre, todos os minerais canadenses, especialmente na Colúmbia Britânica.

— Ele é bom?

— Muito bom. Muito duro. Um lutador muito sujo. Tem quarenta e um anos, ex-tenente pára-quedista. Sua mão esquerda quase foi arrancada sobrevoando a Birmânia, quando se enroscou nas cordas do pára-quedas. Ele simplesmente fez um torniquete na mão e continuou lutando. Ganhou a Cruz Militar por isso. Eu o escolheria, se fosse tai-pan. — De Ville deu de ombros. — Pela lei da nossa companhia, somente o tai-pan pode indicar seu sucessor. Pode fazê-lo na hora que quiser, até no seu testamento, se desejar. De qualquer modo, a Casa Nobre terá que acatar sua decisão. Suslev observava-o.

— Dunross já fez testamento?

— Ian é muito eficiente. Fez-se um silêncio.

— Mais uma vodca?

— Non, merci, esta chega. O Arthur vem se encontrar conosco?

— Vem. Como poderíamos influir a seu favor? De Ville hesitou, depois deu de ombros. Suslev serviu-se de outra bebida.

— Seria fácil desacreditar esse MacStruan e os outros. É fácil eliminá-los. — Suslev virou-se e olhou para ele. — Até mesmo o Dunross.

— Não. Não é a melhor solução.

— Existe outra?

— Ser paciente. — De Ville sorriu, mas seus olhos estavam muito cansados, e havia neles uma sombra à espreita. — Não gostaria de ser a causa de... de sua eliminação, ou da dos outros.

— Não é necessário matar para eliminar! — riu-se Suslev. — Será que somos bárbaros? Claro que não. — Observava atentamente seu protegido. "De Ville precisa endurecer", pensava. — Conte-me sobre o americano, Bartlett, e o negócio entre a Struan e a Par-Con.

De Ville contou-lhe tudo o que sabia.

— O dinheiro de Bartlett nos dará tudo de que precisamos.

— Esse Gornt pode efetuar uma compra de controle acionário?

— Sim e não. E possivelmente. Ele é durão e nos odeia de verdade. É uma rixa antiga...

— É, eu sei. — Suslev ficou surpreso ao ver que De Ville repetia informações que ele já conhecia. "Mau sinal", pensou, e olhou para o relógio. — Nosso amigo está vinte e cinco minutos atrasado. Não é comum.

Ambos eram traquejados demais para se preocupar. Reuniões como aquela nunca eram totalmente certas, porque ninguém podia jamais impedir que o inesperado acontecesse.

— Ouviu falar do incêndio em Aberdeen? — perguntou De Ville, tendo um pensamento súbito.

— Que incêndio?

— Ouvi o noticiário pelo rádio pouco antes de subir. — De Ville e a mulher ocupavam o apartamento 20, no sexto andar. — O Dragão Flutuante se incendiou em Aberdeen. Talvez Arthur estivesse lá.

— Você o viu? — Suslev ficou preocupado, de repente.

— Não. Mas podia ter me desencontrado dele. Saí bem antes do jantar.

Suslev sorveu sua vodca, pensativo.

— Ele já lhe contou quem são os outros na Sevrin?

— Não. Perguntei-lhe, ponderadamente, como você ordenou, mas ele nunca...

— Ordenou? Eu não lhe ordeno, továrich, apenas sugiro.

— Claro. Tudo o que ele disse foi: "Todos nos conheceremos, no seu devido tempo".

— Ambos saberemos em breve. Ele está perfeitamente correto em ser cauteloso.

Suslev quisera testar De Ville e testar Arthur. Era uma das regras básicas no KGB que nunca se pode ser cauteloso o bastante em relação aos seus espiões, não importa o quão importantes sejam. Lembrava-se do seu instrutor repetindo infinitamente outra citação direta de A arte da guerra, de Sun Tse, que era leitura obrigatória para todos os militares soviéticos: "Existem cinco classes de espiões: os locais, os internos, os convertidos, os condenados e os sobreviventes. Quando todas as cinco categorias estiverem trabalhando em uníssono, o Estado estará seguro, e o exército, inviolável. Os espiões locais são os moradores do lugar. Os internos são os funcionários do inimigo. Os convertidos são os espiões do inimigo que foram convertidos para o nosso lado. Os condenados são aqueles a quem damos informações falsas, e depois denunciamos anonimamente ao inimigo, que arrancará deles sob tortura essas informações falsas. Os sobreviventes são aqueles que trazem notícias do campo inimigo. Lembrem-se, no exército inteiro, ninguém deve ser mais liberalmente recompensado. Porém, se uma notícia secreta for divulgada por um espião antes da hora apropriada, ele deve ser morto, juntamente com a pessoa a quem o segredo foi contado".

"Se os outros relatórios de Alan Medford Grant forem iguais ao já descoberto", pensou Suslev, sem emoção, "então Dunross está com os dias contados."

Observava De Ville, avaliando-o, gostando dele, satisfeito por ele ter passado novamente no teste... assim como Arthur. O último parágrafo de A arte da guerra — um livro tão importante para a elite soviética que muitos sabiam de cor o volume fino — veio à sua mente: "Somente o governante esclarecido e o general sábio usarão as maiores inteligências do exército para espionar. Os espiões são o elemento mais importante da guerra, porque deles depende a capacidade de um exército se mover".

"E é isso o que o KGB faz", pensou, satisfeito. "Buscamos os melhores talentos entre todos os soviéticos. Nós somos a elite. Precisamos de espiões de todas as cinco categorias. Precisamos desses homens, Jacques, Arthur e todos os outros.

"É, precisamos muito deles."

— Arthur nunca deu nenhuma pista de quem são os outros. Nada — dizia De Ville —, apenas que somos sete.

— Precisamos ser pacientes — disse Suslev, aliviado por ver que Arthur também era corretamente cauteloso, pois parte do plano era que os sete nunca deviam se conhecer, nunca deviam saber que Suslev era o controlador da Sevrin, e o superior de Arthur. Suslev conhecia a identidade de todos os agentes infiltrados da Sevrin. Junto com Arthur, aprovara todos eles ao longo dos anos, testando-os continuamente, apurando sua lealdade, eliminando alguns, substituindo outros. "A gente sempre testa, e no momento em que um espião vacila, chegou a hora de neutralizá-lo, ou eliminá-lo... antes que ele o neutralize ou elimine. Até mesmo Ginny Fu", pensou, "embora não seja espiã e não saiba de nada. Nunca se pode ter confiança absoluta em ninguém, exceto em si mesmo... é o que ensina o nosso sistema soviético. É. Está na hora de levá-la na viagem que sempre lhe prometi. Uma viagem curta, na semana que vem. Para Vladivostok. Chegando lá, ela pode ser purificada, reabilitada e tornada útil, para nunca mais voltar para cá."

Sorveu sua vodca, rolando o líquido ardente na boca.

— Daremos meia hora ao Arthur. Por favor — falou indicando uma poltrona.

De Ville tirou os jornais do caminho e sentou-se na poltrona.

— Leu sobre as corridas aos bancos?

— Li, tovãricb. Uma maravilha — falou Suslev, com um amplo sorriso.

— É uma operação do KGB?

— Não que eu saiba — disse Suslev, jovialmente. — Se for, alguém vai ser promovido. — Era uma chave da política leninista dar especial atenção aos bancos ocidentais que ficavam no centro da força ocidental, infiltrar-se neles até o mais alto escalão, para encorajar outros a fomentarem desastres contra moedas ocidentais, mas, ao mesmo tempo, pedir capital emprestado a eles até o limite máximo, fossem quais fossem os juros, quanto mais longo o empréstimo, melhor, certificando-se de que nenhum soviético jamais faltasse aos pagamentos custasse o que custasse. — A ruína do Ho-Pak certamente arrastará outros bancos. Os jornais dizem que pode haver até uma corrida ao Victoria, hem?

De Ville estremeceu, sem poder se controlar, e Suslev não deixou de perceber. Sua preocupação aumentou.

— Merde, mas isso acabaria com Hong Kong — disse De Ville. — Ah, sei que quanto mais cedo melhor, mas... infiltrado tão profundamente às vezes a gente chega a esquecer quem realmente é.

— Não se preocupe com isso. Acontece com todos nós. Você está confuso por causa de sua filha. Qual o pai que não estaria? Vai passar.

— Quando poderemos agir? Estou cansado, tão cansado de esperar!

— Logo. Escute — disse Suslev para encorajá-lo. — Em janeiro estive numa reunião do escalão superior em Moscou. As transações bancárias figuravam no alto da nossa lista. Pela última contagem, devemos aos capitalistas quase trinta bilhões em empréstimos... a maior parte para os Estados Unidos.

— Minha nossa! Não fazia idéia de que tinham tido tanto êxito! — comentou De Ville, com uma exclamação abafada.

O sorriso de Suslev ficou mais amplo.

— Só a Rússia! Os nossos satélites devem mais seis bilhões e trezentos milhões. A Alemanha Oriental acaba de conseguir mais um bilhão e trezentos para comprar laminadores capitalistas, tecnologia de computadores e mais um bocado de coisas de que precisamos. — Ele riu, esvaziou o copo e serviu mais outro, o álcool lubrificando a sua língua. — Não compreendo os capitalistas. Eles se iludem. Nós estamos francamente dedicados a consumi-los, e eles nos dão os meios para isso. São espantosos. Se tivermos tempo, vinte anos (vinte no máximo), nossa dívida atingirá sessenta ou setenta bilhões, e no que lhes diz respeito, ainda seremos devedores seguros... já que nunca falhamos num pagamento, nem na guerra, nem na paz ou na depressão. — Soltou uma risada alta e repentina. — O que foi que o banqueiro suíço disse? "Empreste um pouco e você terá um devedor... empreste muito e terá um sócio!" Setenta bilhões, Jacques, velho amigo, e seremos donos deles; setenta bilhões, e poderemos torcer a política deles como nos aprouver, e então, a qualquer momento, virá o golpe final: "Mil desculpas, Sr. Banqueiro Capitalista Sionista. Lamentamos, mas estamos falidos! Ah, lamentamos muito, mas não podemos mais pagar os empréstimos, nem sequer os juros dos empréstimos. Sentimos muito, mas deste momento em diante toda a nossa moeda atual não tem valor. Nossa nova moeda é o rublo vermelho, um rublo vermelho vale cem dos seus dólares capitalistas..."

Suslev achou graça, sentindo-se muito feliz.

—...e não importa o quanto os bancos sejam ricos, coletivamente, jamais conseguirão dar baixa em setenta bilhões. Jamais. Setenta e tantos a essa altura, com todos os bilhões do bloco oriental! E se o aviso repentino for dado na hora de uma de suas inevitáveis recessões capitalistas, como o será... estarão atolados na merda do seu pânico até a ponta dos seus narizes hebraicos, suplicando que salvemos suas peles nojentas. — Acrescentou, desdenhosamente: — Os filhos da mãe cretinos merecem perder! Por que deveríamos combatê-los quando a sua própria cobiça e estupidez os está destruindo, hem?

De Ville sacudiu a cabeça, inquieto. Suslev o assustava. "Devo estar ficando velho", pensou. "No começo era fácil acreditar na causa das massas. Os gritos dos oprimidos eram tão altos e nítidos, então. Mas agora? Agora não são tão nítidos. Ainda estou comprometido, profundamente comprometido. Não lamento coisa alguma. A França será melhor quando for comunista.

"Será?

"Não sei mais, não com a certeza que costumava ter. É uma pena para todas as pessoas que tenha que haver um ismo ou outro", falou consigo mesmo, tentando disfarçar sua angústia. "Seria melhor que não houvesse ismos, apenas a minha amada Cote d'Azur curtindo o sol."

— Estou lhe dizendo, velho amigo, Stálin e Béria eram gênios — dizia Suslev. — São os maiores russos que já existiram.

De Ville conseguiu com esforço deixar que o choque não transparecesse em sua fisionomia. Lembrava-se do horror da ocupação alemã, a humilhação da França, todas as aldeias e vilas e vinhedos. Lembrava-se de que Hitler jamais ousaria ter atacado a Polônia e começar tudo aquilo sem o pacto de não-agressão de Stálin a apoiá-lo. "Sem Stálin não teria havido guerra, nem holocausto, e todos estaríamos muito melhor."

— Vinte milhões de russos? Incontáveis milhões de outros — disse.

— Um preço modesto. — Suslev serviu-se de outro drinque, seu zelo e a vodca soltando-lhe a língua. — Por causa de Stálin e Béria temos toda a Europa Oriental, do Báltico aos Bálcãs... Estônia, Lituânia, Letônia, Tchecoslováquia, Hungria, Romênia, Bulgária, toda a Polônia, a Prússia, metade da Alemanha, a Mongólia Exterior — Suslev arrotou, satisfeito —, a Coréia do Norte, e pontos de apoio por toda parte. A Operação Leão destruiu o Império Britânico. Graças ao apoio deles, nasceu a ONU, para nos dar a nossa maior arma no nosso arsenal de muitas armas. E ainda há Israel. — Começou a rir. — Meu pai foi um dos controladores desse programa. De Ville sentiu a nuca arrepiada.

— Como?

— Israel foi um golpe de proporções monumentais de Stálin e Béria! Quem ajudou, disfarçada e abertamente, o nascimento da nação? Quem a reconheceu imediatamente? Nós, e por quê? — Suslev arrotou de novo. — Para cimentar nas entranhas da Arábia um câncer perpétuo que vai supurar e destruir os dois lados, e, junto com eles, provocar a derrocada industrial do Ocidente. Judeus contra muçulmanos contra cristãos. Esses fanáticos nunca viverão em paz uns com os outros, embora o pudessem, facilmente. Jamais deixarão de lado suas diferenças, mesmo que isso lhes custe as vidas cretinas.

Ele riu e fitou o copo com olhos turvos, girando-o. De Ville o observava, odiando-o, desejando desmenti-lo, sem coragem para tal, sabendo que estava totalmente nas mãos de Suslev. Uma vez, há alguns anos, ele reclamara de ter que mandar alguns números de rotina da Struan para uma caixa postal em Berlim. Dentro de um dia, um estranho ligara para ele, em sua casa. Nunca recebera antes um telefonema desses. Fora amistoso. Mas ele entendera.

De Ville abafou um estremecimento e manteve a fisionomia desanuviada quando Suslev ergueu os olhos para ele.

— Não concorda, továrich? — disse o homem do KGB, abrindo um sorriso. — Juro que jamais entenderei os capitalistas. Fazem-se inimigos dos quatrocentos milhões de árabes que possuem todas as reservas de petróleo do mundo, de que eles necessitarão tão desesperadamente um dia. E logo teremos o Irã, o golfo Pérsico e o estreito de Ormuz. Então, estaremos com a mão na torneira dos barris do Ocidente, serão nossos, e não haverá necessidade de guerra... apenas execução.

Suslev esvaziou seu copo de vodca e serviu-se de outro.

De Ville observava-o, detestando-o agora, questionando desesperadamente seu próprio papel. "Foi para isso que fui um toupeira quase perfeito durante dezesseis anos, mantendo-me preparado e pronto, sem nenhuma suspeita recaindo sobre mim? Até mesmo Susanne de nada desconfia, e todos acreditam que sou anticomunista e pró-Struan, que é a criação arquicapitalista de toda a Ásia. Os pensamentos de Dirk Struan nos guiam. Lucro. Lucro para o tai-pan, para a Casa Nobre e para Hong Kong, nesta ordem, e para o diabo com todo mundo, exceto a Inglaterra e a China. E mesmo que não me torne o tai-pan, ainda posso fazer da Sevrin a destruidora da China que Suslev e Arthur querem que ela seja. Mas é isso o que quero, agora? Agora, que pela primeira vez enxerguei este... este monstro e toda a sua hipocrisia?"

— Stálin — disse, quase se crispando ante o olhar de Suslev. — Conheceu-o pessoalmente?

— Estive perto dele, certa vez. A três metros dele. Era baixinho, mas podia-se sentir o seu poder. Isso foi em 1953, numa festa que Béria ofereceu a alguns oficiais superiores do KGB. Meu pai foi convidado, e permitiram que eu fosse com ele. — Suslev tomou mais uma vodca, mal vendo De Ville, envolvido pelo passado e pela participação de sua família no movimento. — Stálin estava lá, Béria, Malenkov... Sabia que o nome real de Stálin era Iossif Vissarionovitch Djugatchvili? Era filho de um sapateiro, em Tiflis, minha cidade natal, destinado ao sacerdócio, mas expulso do seminário de lá. Estranho, estranho, estranho!

Fizeram "tim-tim" com os copos.

— Não precisa fazer uma cara tão solene, camarada — disse, interpretando mal De Ville. — Independente da sua perda pessoal. Você faz parte do futuro, parte da marcha para a vitória! — Suslev esvaziou o copo. — Stálin deve ter morrido feliz. Quem nos dera igual sorte, hem?

— E Béria?

— Béria tentou tomar o poder tarde demais. Fracassou. Nós, no KGB, concordamos com os japoneses em que o único pecado é o fracasso. Mas Stálin... Meu pai conta uma história que, em Yalta, quando, em troca de nenhuma concessão, Roosevelt concordou em dar a Stálin a Manchúria e as ilhas Kurilas, que nos garantiram o predomínio sobre a China e o Japão e todas as águas asiáticas, Stálin teve um derrame segurando o riso, e quase morreu!

Depois de uma pausa, De Ville disse:

— E Soljenítsin e os gulags?

— Estamos em guerra, meu amigo, existem traidores internos. Sem terror, como podem os poucos governar os muitos? Stálin sabia disso. Era um homem verdadeiramente formidável. Até mesmo sua morte nos serviu. Foi brilhante da parte de Khruchov usá-lo para "humanizar" a URSS.

— Foi apenas outro golpe? — perguntou De Ville, abalado.

— Isso é segredo de Estado. — Suslev engoliu um arroto. — Não faz mal, logo Stálin será devolvido à sua glória. Bem, e quanto a Ottawa?

— Ah! Estive em contato com Jean-Charles e...

O telefone tocou abruptamente. Um único toque. Os olhos de ambos voltaram-se para ele, e eles quase pararam de respirar. Depois de vinte e tantos segundos, houve mais um toque único. Ambos relaxaram ligeiramente. Mais vinte e tantos segundos, e o terceiro toque tornou-se contínuo. Um toque significava "Perigo, saiam imediatamente"; dois, que a reunião estava cancelada; três, que quem estivesse telefonando logo estaria ali; três, ficando contínuo, que era seguro conversar. Suslev atendeu ao telefone. Ouviu uma respiração, depois Arthur perguntou no seu curioso sotaque:

— O Sr. Lop-sing está?

— Aqui não há nenhum Lop-ting, é engano — disse Suslev, numa voz diferente, concentrando-se com esforço.

Seguiram o código cuidadosamente, Suslev ainda mais tranqüilizado pela ligeira tosse seca de Arthur. Então, Arthur falou:

— Não posso encontrá-los hoje. Sexta-feira às três seria conveniente?

"Sexta-feira" queria dizer "quinta-feira" (que era o dia seguinte), "quarta-feira" queria dizer "terça-feira", e assim por diante. O 3 era o código para o local do encontro: O Hipódro-mo Happy Valley, nos treinamentos do alvorecer.

Amanhã, ao alvorecer!

— Sim.

O telefone foi desligado. Restou apenas o som de linha desocupada.

 

                                                                                James Clavell  

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

              Voltar à Página do Autor