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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CASAMENTO COMBINADO / Margaret Moore
CASAMENTO COMBINADO / Margaret Moore

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Seria possível que o amor vencesse?

Lady Constance não estava disposta a casar-se com o homem com o qual estava comprometida desde criança. Constance lembrava-se de Merrick de Tregellas como

um rapaz mimado e não duvidava de que se transformara num cavalheiro arrogante. Todavia, quando o enigmático cavalheiro transpôs as portas do castelo,

Constance apercebeu-se de que aquele homem não tinha nada que ver com o rapaz de que se recordava. De facto, até era possível que se apaixonasse por aquele

homem Obcecado com as recordações.

Merrick não estava disposto a regressar a Tregellas... até ver a sua futura esposa. Lady Constance despertava nele uma paixão que nunca sentira antes.

Contudo o que aconteceria quando ela soubesse a verdade?

Enquanto os seus inimigos conspiravam contra eles, só a confiança podia salvar uma relação que nunca ninguém esperara que se transformasse num grande amor.

 

 

 

Oxfordshire, 1228

O menino queria voltar para casa mais do que qualquer outra coisa no mundo. Lá conhecia as pedras e os caminhos. Lá conseguia respirar o ar fresco e salgado que vinha do mar, conseguia sentir a areia e os seixos sob os pés descalços e a corrente do riacho nos tornozelos. Lá era feliz. Lá estava a salvo.

Naquele momento, cavalgando pelo desconhecido, tinha medo.

Tinha medo dos soldados que o rodeavam, com as suas cicatrizes terríveis e as suas mãos grandes e calejadas, das suas armas, das suas espadas enormes, das adagas que tinham nos cintos e escondidas nas suas botas.

Odiava o cheiro daqueles homens. Cheiravam a suor, cerveja e a pele. Odiava como praguejavam na sua língua.

O nobre que dirigia o cortejo era ainda mais aterrador do que os soldados. Tinha o nariz curvo e os olhos sempre entreabertos,

escuros, acusadores. Sir Egbert não tinha cicatrizes, nem marcas de batalhas. Não cheirava como os soldados e, normalmente, não levantava a voz, no entanto, conseguia fazer com que o menino tremesse com um simples olhar.

Queria ir para casa!

O cortejo continuou pelo caminho enlameado e pedregoso até que chegou a uma bifurcação. Um dos desvios conduzia para um bosque escuro, o outro afastava-se das árvores e continuava para norte.

Sir Egbert levantou a mão para indicar à coluna que parasse e ordenou ao capitão dos soldados que se aproximasse.

O menino ficou imóvel e silencioso, perguntando-se porque tinham parado. As suas mãos tremiam enquanto tentava controlar o seu pónei. A erva alta que ladeava o caminho sussurrava ao vento e produzia um som parecido ao do mar. O soldado que estava junto do menino pigarreou e cuspiu, e depois disse alguma coisa que fez com que os seus companheiros se rissem.

O que estava a acontecer? Seria possível sir Egbert não ter a certeza de por que caminho deviam seguir?

O senhor fez um gesto para a estrada que levava para o bosque. O capitão franziu o sobrolho e apontou para o outro desvio.

"Por favor, meu Deus, para o bosque não", suplicou o menino. As árvores muito altas, os matagais densos, as sombras... O bosque parecia saído de uma das histórias que se contavam à volta de uma fogueira, cheio de fantasmas e de espíritos malignos.

"Por favor, meu Deus, para o bosque escuro não".

"Por favor, meu Deus, deixe-me voltar para casa!"

A voz de sir Egbert transformou-se num grito insistente, encolerizado. O capitão assentiu e, com uma expressão áspera, virou o cavalo para os seus homens.

Sir Egbert levantou a mão novamente e apontou para o bosque, para aquele lugar tenebroso e cheio de horrores. O capitão gritou uma ordem e os seus homens desembainharam as espadas.

O menino começou a rezar enquanto incitava o pónei.

"Por favor, meu Deus, salve-me. Por favor, meu Deus, deixe-me voltar para casa. Meu Deus, quero voltar para casa!"

Numa hora, o ataque acabara. Todos os membros do cortejo estavam no chão, mortos ou em agonia.

Excepto um.

 

Abril, 1243

A taberna da Cabeça do Javali gabava-se de ter as empregadas mais belas e asseadas de toda a região. As jovens eram bem-dispostas e, para além disso, satisfaziam os seus clientes de variadas maneiras, sobretudo os cavalheiros e os seus escudeiros,

que naquele momento se divertiam no bar.

As raparigas mexiam-se habilmente entre as mesas, servindo jarros de cerveja e de vinho, rindo-se e brincando com os homens, e avaliando-os, pois sabiam que podiam ganhar numa só noite o mesmo que ganhavam num mês de trabalho.

Só um daqueles homens, que estava sentado em silêncio num canto, dava a impressão de não estar interessado nas mulheres, nem na celebração. Estava encostado à parede e tinha o olhar fixo no seu copo, completamente alheio ao tumulto alegre que o

rodeava.

Outros dois cavalheiros, jovens e fortes como ele, partilhavam a sua mesa.

O mais bonito dos dois, de cabelo castanho e com um sorriso cheio de promessas, divertia-se fazendo com que as mulheres competissem pela sua atenção e se apressassem a levar-lhe o vinho.

O segundo cavalheiro, mais sóbrio, com olhos castanhos e com um olhar astuto, com o nariz direito e estreito e o cabelo avermelhado, parecia mais inclinado a observar as empregadas e a ouvir as suas brincadeiras com um certo cinismo, consciente de

que estavam a calcular quanto poderiam cobrar pelos seus serviços entre os lençóis.

- Eh, querida, onde pensas que vais com esse jarro de vinho? - perguntou sir Henry a uma das raparigas, a mais dotada de todas elas, enquanto a agarrava pelo braço e a sentava ao seu colo.

Ela deixou o jarro de vinho sobre a mesa e, rindo-se, rodeou-lhe o pescoço com os braços. Era um milagre que não abrisse mais o sutiã e revelasse as suas formas por completo, embora certamente não se tivesse importado muito.

- Para aquela mesa, onde pagam - disse a rapariga com descaramento.

- Rapariga, queres manchar a nossa honra? protestou Henry com uma indignação fingida. - É claro que vamos pagar. Eu e os meus amigos ganhámos vários prémios no torneio. Muitos dos cavalheiros aqui presentes tiveram de nos pagar para recuperar os seus cavalos e as suas armaduras depois de termos triunfado no campo de batalha. Somos ricos, garanto-te! Ricos!

O cavalheiro silencioso levantou o olhar um instante e depois voltou a fixá-lo no seu copo. Henry virou-se para o seu outro amigo, enquanto a sua mão viajava até aos seios exuberantes da empregada.

- Paga à rapariga, Ranulf.

Sir Ranulf arqueou uma sobrancelha com ironia, enquanto abria o seu porta-moedas de pele.

- Suponho que não faz sentido sugerir-te que sejas mais discreto quanto aos nossos lucros, pois não? Estás a transformar-nos no alvo preferido de todos os bandidos que há neste lugar e na Cornualha.

- Amigo, pára de te queixar como uma velha. Não existe ninguém suficientemente parvo para tentar roubar-nos aos três!

Ranulf encolheu os ombros e tirou uma moeda de prata da sua bolsa. A jovem abriu muito os olhos e esticou o braço, rápida como um raio, para pegar na moeda. No entanto, Ranulf fechou a mão antes que ela conseguisse tirar-lha.

- Traz-nos um pouco de bom vinho, em vez deste vinho aguado, e eu pago-te.

Ela assentiu com entusiasmo. Ranulf olhou para ela, divertido.

- E também terás de partilhar a cama comigo esta noite.

A rapariga levantou-se do colo de Henry.

- Eh! - protestou.

- Vamos, vai lá buscar o vinho - disse à rapariga, mostrando-lhe novamente a moeda.

- E ele? Não quer companhia? - perguntou a jovem, apontando para o terceiro cavalheiro.

O homem moreno levantou a cabeça e olhou para ela. Era muito bonito, no entanto, a sua expressão era tão severa que o sorriso da rapariga se desvaneceu enquanto dava um passo para trás.

- Não queria ofendê-lo.

- Não te preocupes com Merrick - disse Henry com um sorriso tranquilizador. - Está a chorar a perda do seu pai, sabes? Agora sê uma boa rapariga e traz-nos o vinho.

A empregada olhou para Merrick com cautela, sorriu a Henry e a Ranulf e partiu apressadamente para ir buscar o vinho. Henry deu uma palmada na mesa em frente ao seu amigo silencioso.

- Meu Deus, Merrick, isto não é um funeral. Ranulf franziu o sobrolho.

- Tem muitas coisas na cabeça, Henry. Deixa-o em paz.

Henry não prestou atenção a Ranulf.

- Não gostavas assim tanto do teu pai para agora estares tão aborrecido pela sua morte. Não foste uma única vez a casa em quinze anos.

Merrick encostou-se novamente contra a parede e cruzou os braços.

- Estou a estragar-te a diversão? - perguntou ao seu amigo.

- Sim. Certamente, nenhum homem se preocuparia tanto com o facto de ter herdado um património tão grande e saber que tem de se casar com uma mulher que não vê há anos, mas, na minha opinião, são apenas mais razões por que devias distrair-te esta noite. Tendo em conta todos os adversários que derrotaste, não me surpreenderia nada que uma destas empregadas fosse contigo por nada.

Vamos, Merrick, porque não te divertes um pouco? Conheço-te bem e sei que, quando te casares, não sairás do bom caminho, portanto agora que ainda podes aproveitar...

- Não.

- Vais ser fiel a uma dama que não vês desde que tinhas dez anos? - perguntou Henry.

- Sim.

- Então, espero que o que ouvimos seja verdade e que se trate de uma beleza.

- A sua aparência não importa.

- Mas e se não se derem bem? - insistiu Henry! com irritação. - E se te aperceberes de que não gosta de ti? O que vais fazer então?

- Aguentar-me-ei.

- É uma questão de honra, Henry - interveio Ranulf, com um olhar de advertência para Henry. Este acordo de noivado tem o mesmo valor que um casamento. É como se já estivessem casados e não é um acordo fácil de dissolver. Agora, pelo amor de Deus,

esquece isso.

- Se a honra de alguém está em jogo aqui é a do seu falecido pai, não a dele - replicou Henry, fazendo sinal a Merrick. - Merrick não concordou com este noivado.

- A sua futura esposa viveu em Tregellas desde que se comprometeram, portanto ela conhece todos os habitantes do castelo, os aldeãos e os camponeses - explicou Ranulf. - Isso será uma grande ajuda quando Merrick tomar posse da sua herança. Para além disso, ela tem um grande dote...

- o jovem olhou para Merrick. - Tem um grande dote, não tem?

Merrick assentiu.

- Então ele será ainda mais rico do que era antes de se casar. Para além disso, quererá ter herdeiros, portanto precisa de uma esposa.

Henry abanou a cabeça.

- Não sei o que acontece aos homens quando recebem uma herança. De repente, a coisa mais importante da sua vida é encontrar uma mulher que saiba gerir a casa, como se se tratasse de um mordomo.

- Vai acontecer-te o mesmo quando herdares a tua casa - replicou Ranulf. - A responsabilidade faz com que um homem mude.

- Que Deus me ajude! Espero que não me aconteça isso - disse Henry, sorrindo. - Quando me casar, quero fazê-lo com a mulher mais bonita que encontrar. Não quero saber do resto.

- Mesmo que seja pobre? - perguntou Ranulf com cepticismo.

- O meu irmão diz que a mulher dele enriqueceu a sua vida, embora ela não tenha contribuído com um único tostão para o casamento. Portanto, sim, mesmo que seja pobre.

- E se for burra e não souber gerir a tua casa?

- Terei de arranjar bons empregados. Ranulf arqueou as sobrancelhas.

- E como vais pagar-lhes?

Henry teve de parar para pensar. Então, sorriu novamente.

- Ganharei mais prémios nos torneios ou procurarei um senhor que precise de um cavalheiro ao seu serviço.

- Mas com certeza quererás uma mulher com quem possas falar, que não te enlouqueça com as suas tolices.

Henry descartou as suas objecções, abanando desdenhosamente a mão.

- Não vou dar-lhe ouvidos e mantê-la-ei demasiado ocupada para falar - afirmou e depois olhou para Merrick. - É esse o teu plano? Vais manter lady Constance demasiado ocupada para falar ou tens intenção de conversar com a tua esposa? Senão ainda vai pensar que és mudo.

Merrick arrastou o seu banco para trás e levantou-se.

- Só falo quando tenho alguma coisa para dizer. Vou para a cama.

Henry encolheu os ombros.

- Bom, se queres deixar-nos tão cedo, Merrick, vai com Deus. Melhor para nós. Assim não teremos de competir com o novo senhor de Tregellas e vencedor do torneio pelo favor das mulheres disse Henry. Depois abanou a cabeça com uma consternação falsa.

- Para um homem que não diz mais do que dez palavras de uma vez, não entendo como consegues atrair tanto o interesse das mulheres.

- Talvez porque não digo mais do que dez palavras de uma vez.

- E como normalmente não te falta a atenção feminina, deve haver alguma verdade nisso - acrescentou Ranulf.

Henry olhou para eles com indignação.

- Informo-vos que muitas mulheres consideram que tenho uma conversa encantadora - disse e depois elevou a voz para que todos o ouvissem. Merrick poderá ter ganhado o torneio e vencido no campo de batalha, mas penso que eu sou o melhor dentro do

quarto. O resto dos galhofeiros ficou em silêncio, enquanto as mulheres olhavam atentamente para ele.

- Se te consola pensar isso, tudo bem - disse Merrick calmamente. No entanto, o seu olhar deu a entender a Ranulf que estava a começar a perder a paciência.

- Cavalheiros, cavalheiros! - exclamou, levantando-se. - Já que o senhor de Tregellas e campeão do torneio de hoje deseja deixar-nos, permitamos-lhe retirar-se do campo com a honra intacta e declaremos um empate nesta questão.

Henry também se levantou do banco. Depois fez uma vénia a Merrick.

- Posso admitir que estamos ao mesmo nível. A rapariga bem dotada aproximou-se deles e apoiou o jarro de vinho que levava na mão na anca.

- Eu poderia pôr ambos à prova - ofereceu - e escolher o vencedor.

- Não é necessário. O meu amigo vai-se já embora - disse Henry.

Então tirou-lhe o jarro da mão, inclinou-o e deixou que o vinho lhe caísse na boca aberta, enquanto estendia o braço para abraçar a empregada.

Contudo, ela já não estava ali.

Estava nos braços de Merrick, a receber um beijo abrasador. A boca do seu amigo mexia-se contra a da jovem com um propósito seguro, enquanto ele deslizava uma das mãos pelas suas costas, para lhe acariciar as nádegas arredondadas.

A empregada não só respondeu de boa vontade ao beijo de Merrick, como também esfregou as ancas contra ele, como se quisesse que a possuísse naquele preciso instante.

Finalmente, Merrick parou de a beijar e deixou o corpo da ofegante empregada. Enquanto a rapariga se aproximava da cadeira mais próxima, cambaleando, e se deixava cair nela, o cavalheiro virou-se e saiu da taberna sem dizer uma única palavra.

Assim que Merrick deixou o local, houve uma erupção de gargalhadas de todos os cavalheiros bêbados e das raparigas que os acompanhavam.

- Parece-me que não devias ter insinuado que Merrick era o segundo melhor no que diz respeito às actividades no quarto - indicou Ranulf a Henry quando voltaram a sentar-se.

- É óbvio que não - respondeu Henry com um sorriso de bom perdedor, - mas pelo menos consegui que deixasse de se atormentar um pouco, não?

- Como podes estar tão calma? Eu estaria muito nervosa se fosse ver o homem com quem vou casar-me, sobretudo depois de estar quinze anos sem o ver! - exclamou Beatrice, com a cara corada de excitação, enquanto se sentava na cama da sua prima Constance.

- Estou prometida desde que tinha cinco anos, portanto tive tempo suficiente para me habituar à ideia do casamento - respondeu Constance, vendo-se ao espelho. Levantou no ar um colar de ouro para pôr ao pescoço, no entanto, teve de o descer antes que a sua prima se apercebesse de que as suas mãos estavam a tremer. - Talvez se o meu noivo tivesse vindo ver-me uma ou duas vezes nestes quinze anos, estivesse mais impaciente. No entanto, nestas circunstâncias, não sei o que esperar. Talvez não goste de mim.

De facto, ela esperava que a odiasse. Durante anos, a maior esperança de Constance fora que a longa ausência de Merrick significasse que partilhava a sua aversão pelo seu casamento combinado.

- Tenho a certeza de que vai gostar de ti - replicou a sua prima. - Toda a gente de Tregellas te aprecia. Os criados admiram-te e respeitam-te e o meu pai diz que ninguém controla o velho senhor como tu.

Constance tentou concentrar-se e não recordar os gritos do senhor, as suas maldições, o lançamento de qualquer objecto que houvesse ao seu alcance, a forma como batia em toda a gente menos nela...

- Tenho a certeza de que Merrick é um homem bom - prosseguiu Beatrice. - Ganhou muitos torneios e esteve na corte. Isso significa que sabe dançar. Pergunto-me se saberá cantar. Talvez cante uma canção de amor para ti, Constance. Não seria delicioso?

Constance olhou para o céu e pediu paciência a Deus antes de se dirigir novamente à sua faladora prima de dezasseis anos.

- Preferia que me respeitasse. Beatrice franziu o sobrolho.

- Não desejas que o teu marido te ame?

- É o que mais desejo - respondeu Constance com sinceridade. Infelizmente, não acreditava que nenhum filho de William, o Infame, conseguisse sentir aquela emoção.

- Pelo menos já se conhecem - disse Beatrice.

- Sim... Conhecemo-nos quando éramos pequenos - respondeu Constance.

No entanto, Merrick fora um menino horrível, que sempre quisera que as coisas fossem à sua maneira e sempre se certificara de conseguir o que queria. Martirizara-a até a deixar a chorar e depois chamara-lhe desdenhosamente "bebé". Nunca se responsabilizara pelas travessuras que fizera e encontrara sempre um servente indefeso a quem culpar.

Pior ainda, se fosse tão vingativo como ela recordava, certamente lhe exigiria uma compensação se ela tentasse quebrar o acordo de casamento e deixá-la-ia sem dote para outro casamento. Por essa razão, planeara conseguir fazer com que o próprio Merrick rompesse aquele compromisso. Dessa forma, não poderia dizer que ela faltara à sua palavra.

Beatrice saltou da cama e abriu uma arca de carvalho onde a sua prima Constance guardava as suas roupas.

- O que vais vestir para o receber? - perguntou a menina, enquanto olhava para as suas roupas finas.

- Este vestido.

Beatrice ficou a olhar para a sua prima como se nunca tivesse ouvido nada mais absurdo na sua vida.

- Mas a saia azul-turquesa com o corpete prateado fica muito melhor com os teus olhos e com o teu cabelo.

Constance sabia muito bem disso. Também sabia perfeitamente que a túnica verde amarelada que tinha naquele momento lhe ficava muito mal e fora por isso que a escolhera.

- Não tenho tempo para mudar de roupa - respondeu Constance, perguntando-se se era verdade.

Para confirmar a sua resposta, alguém bateu à porta dos seus aposentos. Imediatamente, o pai de Beatrice entrou, com umas vestes multicoloridas que lhe chegavam aos tornozelos, e cravou um olhar atento sobre a sua sobrinha, enquanto ignorava a sua filha.

O seu tio nunca a amara. Constance tinha a certeza disso. Se tivesse estado minimamente preocupado com a sua felicidade, teria pedido a sir William que a libertasse daquele compromisso e tê-la-ia levado para sua casa. Porém, não o fizera.

Como a sua vida teria sido diferente se a sua mãe não tivesse morrido ao trazê-la ao mundo e se o seu pai não tivesse morrido pouco depois...

- Merrick e os seus homens estão a chegar anunciou lorde Carrell.

Constance sentiu um aperto no coração.

- Quantos homens são?

- Dois.

- Só dois? - perguntou, confusa.

O Merrick que ela conhecera teria adorado demonstrar o seu poder e a sua importância, portanto, ela esperara que trouxesse uma escolta de, pelo menos, vinte homens. Com aquilo em mente, pedira aos criados que preparassem comida para esse número e avisara-os de que poderiam ser mais.

- Isso não deveria surpreender-te - respondeu o seu tio. - Ninguém da Cornualha se atreveria a atacar o senhor de Tregellas.

- Não, suponho que não - concordou Constance.

Certamente, ninguém se atrevera a atacar o pai de Merrick, cuja vingança teria sido rápida e cruel.

- Sorri, Constance - disse o seu tio com uma expressão que, conforme Constance observou, devia ser destinada a reconfortá-la, e não a mostrar condescendência. - Duvido que a tua vida possa ser pior como esposa de Merrick do que a que tinhas quando lorde William era vivo.

Não podia piorar muito, pensou ela, à excepção do detalhe de que quando se transformasse na esposa de Merrick teria de partilhar o seu leito, o que poderia ser repugnante. E, quanto à tentativa de consolo do seu tio, não seria ele quem teria de viver um inferno se estivesse enganado.

- O que sabemos sobre Merrick? - perguntou Constance, sem conseguir evitar que a consternação que sentia se reflectisse na sua voz.

- O que precisas de saber? É o teu noivo. Se tiveres alguma dificuldade, saberás enfrentá-la. És uma mulher bela e inteligente.

- E se não quiser casar-se comigo e só estiver a fazê-lo por causa do contrato?

- Tenho a certeza de que vai gostar de ti quando te vir, Constance.

Como se ela fosse uma boneca.

- Agora, vamos. Lorde Algernon já está no pátio para o receber.

Se o tio paterno de Merrick já estava à espera no pátio, não tinha outro remédio senão descer também.

Seguidos por Beatrice, Constance e o seu tio desceram apressadamente as escadas de caracol e atravessaram o grande salão, uma divisão com tectos altos, cheios de vigas. Havia uma lareira na parede, algo que só os nobres mais progressistas tinham

acrescentado aos seus castelos. O falecido lorde William nunca negara as inovações que pudessem proporcionar-lhe conforto.

Preocupada, Constance deu uma olhadela rápida à sua volta para se certificar de que estava tudo preparado para o novo senhor. Havia ervas aromáticas espalhadas pelo chão e tinham-se sacudido as tapeçarias para lhes tirar o pó e a fuligem. Os criados

tinham esfregado e encerado as mesas, tinham limpado as cadeiras e tinham reparado ou substituído as almofadas estragadas.

Quando saíram do grande salão, Constance semicerrou os olhos para se proteger da luz do sol que banhava o pátio do castelo. Lorde Algernon,

com a sua figura corpulenta envolta em camadas de fina seda e veludo, inclinou-se perante ela e dedicou-lhe um sorriso tenso.

Todos os soldados, excepto as sentinelas, estavam em posição de guarda em filas ordenadas. Havia grupos de pessoas da aldeia, mercadores, camponeses e vassalos que deviam a dízima e pagamentos de serviços ao senhor, acompanhados das suas famílias, à espera, também em silêncio.

Os criados, inquietos, formavam grupos junto às portas dos edifícios e havia uns quantos às janelas mais altas, nos aposentos familiares. De facto, parecia que até as pedras de Tregellas estavam alerta.

Então, Constance ouviu o som que sempre receara: o barulho dos cascos dos cavalos a entrar no pátio.

Apareceram três cavalheiros. Os três eram altos e com boa figura. Parecia que qualquer um dos três era capaz de se defender facilmente de dez homens ao mesmo tempo, sem demasiados esforços.

O homem à esquerda de Constance levava umas vestes verdes sobre a cota de malha, e os jaezes do seu cavalo eram da mesma cor. Constance lembrou-se de uma raposa por causa do seu nariz recto, o queixo pontiagudo e o cabelo avermelhado. Ela recordava

que Merrick era esperto como uma raposa, porém, nem os traços, nem a tez, nem o cabelo daquele homem lhe fizeram pensar que era o filho de William, o Infame.

O homem sorridente que viajava à direita levava umas vestes escarlates com brocados de ouro e de prata e os enfeites do seu corcel eram igualmente caros e chamativos. Aquele cavalheiro alegre irradiava a segurança de um nobre, porém, parecia demasiado amável e belo para ser Merrick.

Portanto, Merrick tinha de ser aquele que cavalgava entre os seus dois acompanhantes. Levava umas vestes pretas, sem enfeites. Não era nada parecido com o menino que ela recordava, nem na figura nem nos traços. Os olhos daquele homem não mostravam atrevimento e, quanto aos seus lábios, não eram magros nem tinham uma expressão de desdém, mas eram cheios e bem desenhados.

Para além disso, era o mais alto dos três, musculado e forte, e o seu cabelo preto, comprido até aos ombros, brilhava sob o sol.

Os três cavalheiros desmontaram com facilidade, como se a sua cota de malha não pesasse mais do que uma pena. O homem de preto passeou o olhar pelo pátio e por todos os presentes até que o pousou, fixamente, sobre ela, eliminando qualquer dúvida que Constance pudesse ter sobre se aquele era o filho de lorde William. O velho senhor olhara para ela daquela forma cem, não, mil vezes antes de rebentar em cólera.

A desilusão, afiada e inesperada, atravessou-a. Por um momento, o seu coração batera com uma excitação que nunca antes sentira, contudo, ela sabia a causa: Merrick transformara-se num guerreiro impressionante e, por isso, Constance pensara que estava

a olhar para um homem que poderia respeitar e até, possivelmente, admirar. Até que aqueles olhos escuros e frios lhe deram a entender uma coisa muito diferente.

Constance observou a multidão, que contemplava o seu novo senhor. Veriam o pai brutal e lascivo no filho de olhar decidido e expressão severa? Teriam medo que pudesse ser tão violento e ambicioso como o pai?

- Merrick, meu filho... ou deveria dizer milorde? - inquiriu lorde Algernon, quebrando o silêncio, enquanto descia os degraus. - Bem-vindo! Bem-vindo a Tregellas! É maravilhoso voltar a ver-te depois de tantos anos!

Merrick desviou o olhar de Constance e fixou-o no seu tio com a mesma expressão grave. Lorde Algernon parou, sobressaltado.

- Suponho que te lembras de mim, meu filho... milorde. Sou o teu tio, Algernon.

Aquilo provocou a sombra de um sorriso no rosto de Merrick.

- Sim, tio, eu lembro-me de ti.

Constance nunca ouvira uma voz assim. Era profunda e levemente rouca e, embora parecesse que falava em voz baixa, não teve dúvida nenhuma de que todos os presentes no pátio o tinham ouvido.

Lorde Carrell adiantou-se também, contudo, com mais dignidade.

- Espero que se lembre de mim, milorde. Sou lorde Carrell de Marmont, o seu vizinho e tio de Constance. Eu seria capaz de o reconhecer em qualquer lado: é o retrato vivo do seu pai.

-A sério?

Constance sabia analisar a expressão de um homem à procura de alguma emoção, para avaliar melhor o que devia fazer. Nunca conhecera uma pessoa mais difícil de interpretar, no entanto, mesmo assim, não era impossível decifrar o olhar de Merrick: fosse o que fosse o que estava a pensar sobre o seu regresso, não se sentia lisonjeado por

aquela comparação com o seu pai.

Lorde Carrell virou-se para Constance e estendeu a mão.

- Espero que também se lembre da sua noiva, lady Constance, embora, é claro, tenha mudado.

- Estou a ver - concordou Merrick, enquanto Constance se aproximava dele. Nas profundidades dos seus olhos, ela viu alguma coisa parecida a... uma faísca de reconhecimento? Ou uma faísca de outra coisa?

Constance sabia que era uma mulher atraente. Apercebera-se de como os homens olhavam para ela quando dançava e como a devoravam com o olhar quando pensavam que ela não se apercebia. Sabia como era um olhar de luxúria. Seria o filho parecido com o pai

nesse aspecto? Nesse caso, noiva ou não, manter-se-ia afastada dele.

No entanto, a sua expressão também era diferente. O desejo estava controlado, contido, como o resto do seu corpo poderoso, enquanto se mantinha imóvel.

Merrick pousou ambas as mãos nos ombros dela e puxou-a para lhe dar o beijo da paz. Ela encheu-se de coragem para não sentir nada e para não se denunciar, nem com o olhar nem com palavras.

- Eu também me lembro de si, milorde - disse calmamente, afastando-se.

Ele surpreendeu-se.

- Era muito pequena quando parti.

- Não o suficiente para não me lembrar de algumas das suas... travessuras.

Merrick franziu ligeiramente o sobrolho, como se estivesse a tentar lembrar-se.

- Tem de me perdoar, senhora, se esqueci tempos mais felizes. Aconteceram-me muitas coisas desde a última vez que a vi.

Constance pensou no ataque que o seu cortejo sofrera e sentiu uma pontada de culpa. No entanto, também lhe tinham acontecido muitas coisas e nunca esqueceria o terrível comportamento de Merrick.

Merrick virou-se para o cavalheiro do cabelo avermelhado.

- Apresento-vos o meu amigo e companheiro de armas, sir Ranulf - disse. Depois virou-se para o outro homem. - E o meu outro amigo e também companheiro de armas, sir Henry.

- Bem-vindos - disse Constance com uma vénia graciosa.

Sir Henry aproximou-se de Beatrice, que corara quando o sir Henry lhe dedicou um dos sorrisos mais encantadores que Constance alguma vez vira.

- E quem é esta jovem encantadora?

- É a minha filha, lady Beatrice - respondeu lorde Carrell.

- E minha prima - acrescentou Constance num tom de advertência. Beatrice era muito jovem e tinha a cabeça cheia de romances. Sir Henry era bonito e lisonjeador, um verdadeiro sedutor.

- Então, estou ainda mais encantado por a conhecer - disse sir Henry.

Constance percebeu o olhar que Merrick e o seu outro amigo trocaram, uma espécie de resignação paciente. Portanto, aquele sir Henry era do tipo de homem que adorava desfrutar das mulheres. Iria avisar Beatrice e as empregadas também.

- Esperava que trouxesse mais escolta, milorde - disse então, suficientemente alto para atrair a atenção de toda a gente que estava perto, incluindo sir Henry.

- Não havia necessidade - respondeu Merrick.

- Lamento não a ter informado, mas tinha outras coisas na cabeça.

Constance não soube se ele se referia ao seu casamento e a tudo o que implicava e sentiu que corava.

- E a sua bagagem, milorde?

- Um criado está encarregado dela.

- Vamos entrar, sobrinho? - perguntou lorde Algernon com umas gotas de suor na testa. - Temos um bom vinho de Bordéus à espera na sala.

- Excelente - respondeu Merrick antes de se virar para Constance. - Mas quero entrar ao lado da minha futura esposa, se ela me conceder essa honra.

Como não tinha outra opção, Constance levantou a mão e pousou-a com ligeireza sobre o antebraço de Merrick.

O seu braço era duro como o ferro.

Constance teve de lutar contra a inesperada sensação de calor que lhe percorreu o corpo. O que interessava se era forte? O seu pai também fora muito bonito nos seus dias de juventude e vira bem como acabara. Ela não devia prender-se a um homem que podia acabar de forma igual.

Quando o grupo entrou, ela levantou a mão imediatamente do braço do seu noivo.

Não lhe pareceu que Merrick se tivesse apercebido. Em vez disso, dirigiu-se a lorde Algernon.

- Não podemos ir para um lugar mais privado? Não quero falar das minhas posses nem do meu casamento aqui, onde qualquer criado ou qualquer soldado pode ouvir-nos.

O seu casamento. Então ia cumprir o acordo de casamento. Fora esperar demasiado que ele quisesse libertar-se dele. Constance teria de iniciar o seu plano para ganhar a sua liberdade e, quanto mais depressa, melhor.

- Para o escritório, talvez? - sugeriu lorde Algernon.

Merrick virou-se para os seus amigos.

- Deixo-vos aos cuidados de lady Constance.

Ela teria de ter cuidado para não perder a compostura, contudo, mal podia esperar para começar a sua campanha para a liberdade. Decidiu começar naquele preciso instante.

- Se vão falar sobre o nosso casamento, eu também devia estar presente, não é? Afinal de contas, sou a noiva.

Ao ouvir o pedido decidido de Constance, o seu tio olhou para ela com espanto, e lorde Algernon com incredulidade.

Apesar da sua evidente surpresa, o senhor de Tregellas limitou-se a levantar uma sobrancelha.

- Como queira. Lady Beatrice, importa-se de receber os meus amigos?

Beatrice corou.

- Sim... É claro, milorde - sussurrou, como se tivesse medo de falar em voz alta, enquanto sir Henry sorria como se acabassem de lhe dar um presente.

Sim, tinha de o vigiar, pensou Constance, e a sua prima também. Ela amava muito Beatrice e não queria que lhe partissem o coração. Ou, pior ainda, que um bonito sedutor, recém-chegado ao castelo, acompanhando o seu noivo, a desonrasse.

Merrick parou a caminho das escadas e olhou para trás.

- Bem, senhora, vem connosco ou não?

Ao ouvir o seu tom autoritário, ela não fez nenhum esforço por se apressar a seguir o novo senhor de Tregellas.

Pensou então que, afinal de contas, era muito parecido com o seu pai.

 

Uns instantes depois, reuniram-se todos no escritório de lorde William. Tal como no grande salão, tapeçarias coloridas penduradas nas paredes ajudavam a combater o frio e, junto da janela, havia uma mesa enorme cheia de riscos e marcas causados pelos ataques de fúria de lorde William.

A arca de madeira que continha os documentos dos vassalos e as dízimas que tinham de pagar ao seu senhor estava num canto. Dentro dessa arca, estava também uma cópia do testamento do seu pai, um documento que provocara muitos ataques de raiva antes de ser redigido à inteira satisfação de lorde William.

- Ouvimos dizer que esteve muitas vezes na corte, milorde - disse lorde Carrell, enquanto Merrick se aproximava da mesa. - Deve ter conhecido o rei e a rainha. Invejo-o. Diga-me, o que pensa do jovem monarca?

- O rei Henry é o meu soberano.

- No entanto, o vosso suserano, o conde da Cornualha, entra muitas vezes em desacordo com o seu irmão, o rei - replicou lorde Carrell. - De facto, ouvimos dizer que muitos barões temem que o rei Henry seja demasiado influenciado pela sua esposa francesa.

Merrick franziu os lábios.

- Eu não sou ninguém para questionar o que o rei faz ou deixa de fazer, nem como toma as suas decisões.

Merrick era, evidentemente, o tipo de nobre que mantinha a sua lealdade ao rei, independentemente dos seus actos, embora Henry e a sua rainha francesa estivessem a levar o país em direcção a uma revolta.

E se Merrick, como a maioria dos nobres, pensasse que o lugar de uma mulher devia ser o lar e que a sua tarefa devia ser o cuidado dos filhos e da casa? Então os comentários de Constance sobre a situação política e as suas sugestões sobre como ele

devia lidar com o conde e com o rei não seriam bem recebidos. Ao pensar nisso, ela começou a transmitir alegremente a sua opinião acerca desses assuntos ao seu futuro marido.

- Pelo que ouvi dizer sobre a corte, há muitos conflitos entre os barões ingleses e os parentes da rainha. Parece que o rei cometeu um erro grave ao conceder tanto poder aos familiares da rainha Eleanor. Quanto à insistência da rainha para que o seu

tio fosse investido arcebispo de Canterbury, haverá algum candidato mais ambicioso e com mais avareza? Se ele é um homem sagrado, então eu sou uma freira. Graças a Deus que isso ainda não foi confirmado devido às dificuldades do Papa.

Também descobrimos que é possível que o conde da Cornualha vá casar-se com a irmã de Eleanor. Sem dúvida, a rainha quer tê-lo por perto para o impedir de chefiar uma revolta, pois há muitos que preferiam que ele ocupasse o trono em vez do seu irmão.

Afinal de contas, foram os esforços diplomáticos de Richard que conseguiram libertar Henry depois da sua campanha fracassada para recuperar as suas terras em França. Por outro lado, o que devemos pensar do casamento de Simon de Montfort com a irmã

do rei? É verdade que Montfort a seduziu, ou são apenas falatórios?

Constance reparou no olhar do seu tio, contudo, não lhe prestou atenção e continuou a olhar para Merrick com as sobrancelhas levantadas, à espera da sua reacção.

- E se Henry voltar a cometer um erro e o conde não o salvar? E se Richard se virar finalmente contra ele?

Merrick endireitou-se e olhou severamente para ela.

- Está a falar de revolta e de traição, senhora. Não consentirei semelhantes palavras, nem sequer sugeridas, por nenhum motivo, em Tregellas enquanto eu for o seu senhor. Se o conde da Cornualha se revoltar contra o seu irmão, se este país for

dividido por uma guerra civil, então escolherei que posição tomar, nunca antes disso.

Então uma veia na sua testa sobressaiu, exactamente como acontecia ao seu pai antes de um dos seus ataques de cólera. Tendo suportado suficientes ataques de raiva para preencher uma vida inteira, Constance mudou de assunto. Afinal de contas, já conseguira algum sucesso no seu propósito.

- Talvez devêssemos falar sobre o casamento.

- Muito bem - respondeu Merrick, assentindo, e a sua expressão relaxou. - Quero casar-me esta mesma semana.

Constance sentiu-se horrorizada. Como ia conseguir fazer com que ele a odiasse o suficiente para romper o compromisso em apenas uma semana?

- Isso não é possível!

- Porquê? - perguntou Merrick. - Sabia que estávamos noivos, não sabia? E sabia que, assim que eu herdasse o título, me casaria consigo, ou talvez mesmo antes. Não vejo nenhum motivo para adiar o casamento.

- Mas eu vejo - disse. Então, a sua consternação transformou-se rapidamente em indignação. Precisamos de mais tempo para preparar a comida para a festa...

- As despensas estão bem cheias - interveio o seu tio. - De facto, Constance, se Merrick está impaciente...

Contudo, ela não estava nada impaciente.

- E os nossos convidados? Eu gostava de os convidar com um mês de antecedência, pelo menos, para poder receber as suas respostas e preparar os seus aposentos.

- Os únicos convidados que quero ter no meu casamento já estão aqui.

- Para além disso, o meu vestido... Merrick lançou-lhe um olhar fulminante.

- Não me importaria que se casasse com o que tem vestido neste momento.

- Mas eu importo-me, e muito, milorde. Depois de ter esperado tanto tempo, quero que o meu casamento faça com que a espera tenha valido a pena.

- Espero que sim, senhora.

Embora estivesse mais indignada do que nunca, quando Merrick disse aquelas palavras com a sua voz grave e ligeiramente rouca, Constance não conseguiu evitar sentir a excitação a percorrer o seu corpo com um arrepio.

No entanto, reprimiu aquela sensação. Aquela conversa estava a demonstrar-lhe que ele continuava a ser o mesmo rapaz egoísta e caprichoso que fora, preocupado apenas com os seus próprios desejos e necessidades.

Portanto, proporcionar-lhe-ia um motivo egoísta, se era disso que precisava para lhe fazer a vontade.

- As celebrações de um casamento são muito úteis para estabelecer alianças. O nosso casamento seria uma oportunidade muito valiosa.

- Não estava a pensar no meu casamento como uma oportunidade política.

"Apenas uma oportunidade para aumentar a sua fortuna", pensou Constance. Por que outro motivo teria tanta pressa? Se fosse realmente um cavalheiro, se estivesse realmente preocupado com os sentimentos da sua noiva, ter-lhe-ia perguntado quando deveria celebrar-se o casamento e respeitaria a sua vontade.

- Acho que tem razão, sobrinho - disse lorde Algernon com cautela. - Talvez seja melhor fazer as coisas com mais calma.

- Sim, milorde. Eu não quero que o nosso casamento seja estragado com acusações de escândalo por uma pressa indevida.

Merrick olhou para os outros dois nobres.

- Se nos desculparem, senhores, eu gostava de falar com a minha noiva. A sós.

A sós? Estaria louco? Ou demasiado seguro do seu poder?

Lorde Algernon e o seu tio trocaram um olhar breve, fizeram uma vénia e dirigiram-se apressadamente para a porta. Era demasiado esperar que a ajudassem, pensou Constance. No entanto, ela já estivera muitas vezes sozinha com um homem poderoso e

arrogante e não ia acovardar-se naquele momento, não quando o que estava em jogo era a sua liberdade.

- Não me parece correcto que fiquemos sozinhos antes de estarmos casados - declarou e virou-se para seguir os outros dois nobres. - Esta situação parece-me muito inadequada.

O senhor de Tregellas mexeu-se com rapidez e pôs-se à frente dela, impedindo que saísse do escritório.

- Milorde, é possível que não esteja preocupado com a minha reputação, mas eu preocupo-me muito, e...

- Prometo-lhe que não acontecerá nada impróprio, a menos que me dê um motivo para isso. Qualquer homem ou mulher que se atreva a insinuar que a sua reputação é alguma coisa menos do que imaculada deverá responder perante mim.

A firmeza da resposta de Merrick deixou-a espantada e sem palavras.

Então, ele apontou-lhe uma das cadeiras que havia junto da mesa.

- Por favor, sente-se, senhora. Ela cruzou os braços.

- Prefiro ficar de pé, milorde.

- Muito bem - disse Merrick. - Tem alguma objecção quanto ao casamento, senhora? Se tiver, gostava de a ouvir.

Merrick formulou aquela pergunta com tanta frieza e severidade que Constance teve a certeza de que lhe exigiria o seu dote como compensação caso se recusasse a casar-se com ele.

- Não, milorde - mentiu. - Mas preferia não casar-me tão apressadamente. Afinal de contas, passaram quinze anos desde a última vez que nos vimos. Mal nos conhecemos.

Para sua surpresa, a expressão de Merrick relaxou um pouco.

- Desculpe-me, lady Constance. A minha sugestão foi motivada pela alegria que sinto ao estar novamente em casa e na sua presença. Deixei-a quando ainda era uma linda menina e, ao voltar para Tregellas, encontrei uma mulher bela e inteligente.

Devia sentir-se lisonjeada?

- Talvez se tivesse vindo a casa durante os últimos quinze anos, a minha aparência e a minha inteligência não fossem assim tão inesperadas.

Ele endireitou-se e a veia da sua testa sobressaiu novamente.

No entanto, em vez de se deixar levar pela fúria, Merrick encolheu os ombros.

- O meu pai não fez nenhum esforço por me ver, portanto, eu decidi que também não devia fazê-lo.

E a sua prometida? Teria pensado alguma vez nela?

- De qualquer forma, era o seu pai. E, como o seu filho, o seu dever...

- Chega! - interrompeu-a Merrick.

Então, ele entreabriu os olhos e apertou os lábios.

- Não tente dizer-me qual é o meu dever, senhora - disse em voz baixa. - Pensa que a minha presença aqui teria feito alguma diferença? Pensa com sinceridade que eu teria conseguido influir no meu pai, ou conseguir fazer com que os seus últimos dias fossem melhores? O mais provável é que o tivesse matado.

Constance não conseguiu fazer outra coisa senão olhar fixamente para ele, horrorizada, ao aperceber-se de que estava a falar a sério. Ela sabia que pai e filho não se amavam, no entanto, não esperara um ódio tão cruel.

Merrick passou a mão pelo cabelo.

- Suponho que os meus vassalos e os meus servos não estavam precisamente impacientes pelo regresso do filho do meu pai.

Como acontecera tantas outras vezes, Constance sentiu preocupação por aqueles sob o poder do senhor de Tregellas e esqueceu-se dos seus próprios problemas.

- Sentem uma desconfiança compreensível, milorde. Afinal de contas, não o viram durante anos e não sabem que tipo de senhor é.

- Como a senhora, tendo conhecido o meu pai, deve estar a perguntar-se que tipo de marido serei, e provavelmente receando o pior. Não devia ter ficado surpreendido por ter solicitado mais tempo antes de celebrar a cerimónia.

Ela quase se engasgou. O que era aquele homem? Um adivinho, capaz de ler a sua mente? Ou fora ela que não conseguira disfarçar os seus sentimentos?

- Alguma vez o meu pai... - antes de continuar, Merrick hesitou durante um instante. - Alguma vez o meu pai lhe tocou?

- Parece que o meu dote era mais importante para ele do que a minha virgindade.

Merrick tremeu ao ouvir aquelas palavras.

- Esse era o tipo de pessoa que o seu pai era, milorde - disse, sem se preocupar com o facto de o magoar, pois ela também sofrera muito na sua ausência.

Merrick olhou fixamente para ela e depois falou num tom sincero:

- Sei que o meu pai tinha uma natureza pecaminosa. Há muito tempo, jurei que nunca trataria nenhuma mulher como ele. Enquanto eu for o senhor de Tregellas, nenhuma mulher terá de recear a morte ou a desonra às minhas mãos, nem precisará de ter medo de mim. Relativamente à minha esposa, ser-lhe-ei sempre fiel.

Honrá-la-ei e respeitá-la-ei. Nunca terá de suportar a violência nem a degradação.

Constance recuou. Ela preparara-se para se proteger da sua arrogância, das suas ordens altivas e da sua raiva, mas aquilo... Não tinha defesa contra aquelas palavras, sobretudo vindas de um homem que olhava para ela daquela forma e cuja voz era baixa e áspera, mas também inesperadamente gentil.

Ainda por cima, falara de respeito, o que ela mais desejava para além do amor...

Teve de se afastar dele, da sua voz profunda e do seu olhar intenso, do seu corpo poderoso que a fazia recordar coisas sobre as quais ouvira as criadas a cochichar, coisas relativas aos homens, ao prazer e às delícias secretas que se partilhavam na escuridão.

- Já que deseja esperar um mês, assim será. Constance voltou à realidade e arrependeu-se de não ter pedido seis meses.

Merrick aproximou-se da mesa e sentou-se na cadeira do senhor.

- Há um homem idoso que vive nos subúrbios da aldeia, numa casa em ruínas. Cuspiu para o chão quando eu passei. Quem é?

Apesar da alegria que Constance sentira pela prorrogação do seu casamento, sentiu um calafrio. Talvez a concessão de Merrick tivesse como objectivo suavizá-la, transformá-la num ser dócil, como se fosse uma parva fácil de enganar. Talvez pensasse que,

depois de lhe conceder o seu desejo, lhe contasse tudo o que sabia sobre o povo de Tregellas.

Tendo nascido na Cornualha, ele sabia que, durante séculos, se fizera contrabando naquelas paragens. Como súbdito leal ao rei, era provável que Merrick quisesse reforçar as leis contra o contrabando.

Muitos reis e senhores tinham tentado acabar com o contrabando antes dele, sempre sem sucesso. Podia tentar fazê-lo, porém, teria de o fazer sem a sua ajuda.

Constance levou o seu tempo antes de responder. Sentou-se numa cadeira em frente a ele e olhou para ele com uma expressão calma.

- Suponho que se refere a Peder, milorde. Tinha a certeza de que se referira a Peder.

Aquele idoso era contrabandista de estanho há muitos anos, desde antes de ela ter nascido, e odiava profundamente o senhor de Tregellas por boas razões. Constance dispôs-se a explicar os seus motivos ao filho de William, o Infame, com clareza.

- É possível que se lembre da sua filha, Tamsyn; e do filho que ela teve depois de ser violada e espancada. Mas tenho a certeza de que os rumores de que o seu atacante foi o seu pai não chegaram aos seus ouvidos.

Vira um reflexo de consternação nos seus olhos? Mesmo que o tivesse visto, ela não ia sentir compaixão por ele. Tinha de conseguir fazer com que compreendesse o motivo por que o povo odiava e receava o seu pai, e porque também estavam predispostos a odiá-lo e receá-lo a ele.

- Se isso for verdade, entendo porque Peder odiava o meu pai e porque o meu regresso não é do seu agrado - replicou Merrick. - Há provas de que esse menino era filho do meu pai?

- Ninguém que conhecesse o seu pai e visse Brendon duvidaria disso, milorde. A semelhança era demasiado grande.

- Essa mulher e o seu filho ainda vivem aqui?

- Brendon afogou-se no rio, pouco depois de o senhor ter partido de Tregellas. Desolada, Tamsyn enforcou-se. Peder encontrou-a morta na sua casa.

Novamente, uma emoção que Constance não conseguiu decifrar surgiu no rosto de Merrick, porém, desapareceu rapidamente. Depois, ele levantou-se e deu a volta à mesa, aproximando-se dela.

- O meu pai teve mais filhos bastardos?

- Não, milorde - respondeu. - Que se saiba, só teve dois filhos, o filho de Tamsyn e o senhor.

- Eu não tenho filhos, pelo menos, nenhuma mulher me informou disso.

Devia ela sentir-se entusiasmada com aquilo?

- Não esperava que fosse virgem - disse Constance e levantou-se. - E agora, milorde, espero que me dê permissão para sair. Preferia não falar consigo sobre os seus amores passados, por muito fascinante que o assunto lhe pareça.

- Há mais uma coisa.

Ela abriu a boca, contudo, nunca conseguiria lembrar-se se o fizera para respirar ou para fazer uma pergunta, porque, antes que entendesse o que estava a acontecer, Merrick abraçou-a e beijou-a.

Durante um momento, ela ficou demasiado atônita para sentir outra coisa sem ser surpresa.

Depois, sentiu-se completamente aflita.

Nunca, mesmo nos seus sonhos mais luxuriosos, imaginara aquilo. O seu sabor. O cheiro de um homem, a pele, a cavalo e a sal. A sensação dos seus braços fortes a abraçá-la, a segurá-la. Depois, a sensação da sua língua a tentar insistentemente que ela abrisse os lábios para lhe permitir a entrada.

Aquilo não podia ser correcto, pois, apesar de se sentir tão bem, o homem que estava a beijá-la era Merrick, o filho de William, o Infame.

Constance tentou libertar-se.

- Sou uma mulher honrada!

- É a minha noiva. - respondeu, enquanto a soltava. - Um beijo não tem nada de mal.

Se ela decidisse não casar-se com ele, aquilo era incorrecto.

- Prometida ou não, não lhe dei permissão para me beijar!

- Então, peço-lhe humildemente perdão, senhora - respondeu com calma e inclinou-se perante ela como o mais cortês dos cavalheiros.

Parecia que estava quase a sorrir e os seus olhos brilhavam como... Constance nem quis saber como.

- Não há nada de humildade em si, milorde, e imploro-lhe que não volte a tocar-me, a menos que eu lhe dê permissão.

O seu sorriso desvaneceu-se e o seu rosto transformou-se numa máscara impassível.

- Como desejar, senhora... até que me dê permissão.

Vilão, arrogante, insolente! Constance virou-se e saiu do escritório, batendo com a porta.

Depois de ela ter saído, Merrick passou uma mão pelo cabelo e aproximou-se da janela, da qual conseguia ver todo o pátio do castelo.

Já não era aquele menino assustado que se escondera no bosque. Era o dono e senhor de Tregellas. O seu pai morrera e ele voltara para casa, para o lugar onde conhecia todos os caminhos e os campos. Quando era menino, no entanto, as coisas eram muito mais simples.

Não devia ter beijado Constance, nem ter sugerido que se casassem tão depressa. Devia ter mostrado um pouco mais de decoro e de moderação.

No entanto, como podia fazê-lo, se assim que a vira se sentira embargado por um desejo poderoso? Sim, ele fora muito pequeno quando partira, contudo, nunca a esquecera. Amara-a com todo o afecto que cabia no coração de um menino, e ainda a amava,

porém, não como um menino, mas como um homem desejava uma mulher, para a proteger, amar e levar para a sua cama. Mesmo assim, ainda se sentia como um rapaz na sua presença, não como um cavalheiro famoso, por cujos favores as mulheres suspiravam.

 

Ele nunca fora um sedutor deslumbrante como Henry. Nunca lhe ocorreriam as coisas que Henry dizia com tanta facilidade e tinha a certeza de que pareceria um parvo se tentasse fazê-lo.

O que sentia Constance por ele? Em parte, desejava-o, tinha a certeza.

Se o detestasse, ou o receasse, nunca o teria beijado daquela forma, despertando tanto desejo e esperança.

No entanto, ter apenas a luxúria de Constance não o satisfazia. Queria mais dela, muito mais. Queria o seu amor. Se não tivesse o seu amor e alguma vez ela descobrisse a verdade, era possível que o odiasse e aquele mero pensamento fazia com que

Merrick sofresse. Seria melhor deixá-la partir em vez de ver o ódio reflectido nos seus olhos, tal como o vira quando ela falara do seu pai.

No entanto, Merrick descobrira que não tinha forças para a deixar em liberdade. Não conseguia suportar abandonar a esperança de que, alguma vez, ela o amasse.

No fundo do seu coração, ele sabia que não era nem a sua reticência natural nem a sua natureza séria que o impedia de proclamar o que sentia por ela. Era o medo de que, ao casar-se com ela, estivesse a enganá-la.

Continuava a tentar convencer-se de que, se regesse o seu feudo sabiamente e com justiça, se amasse Constance e a tratasse bem, o seu passado não teria importância. Porém, o seu grande delito era como uma sombra preta que se erigia entre eles, uma

sombra de mentiras, de engano, de morte, de dor e de receio.

O pecado que cometera era a sua obsessão, excepto quando a sua mente e o seu corpo estavam completamente ocupados, como quando lutava num torneio ou quando jogava à bola. Ou quando beijava a sua amada Constance, que fora o anjo brilhante de todos os seus dias, mesmo dos mais escuros e solitários.

Se fosse mesmo um homem bom e honrado, confessaria o seu crime e arriscar-se-ia a perdê-la.

Como não era, guardaria o seu segredo como fizera durante quinze anos. Não diria a ninguém, nem sequer a Constance, o que fizera. Apenas ele tinha de o saber e sofrer por isso.

Enquanto Constance tentava desanimar Merrick, lorde Carrell dirigiu-se para um canto afastado do pátio, seguido de lorde Algernon. Algernon estava tão nervoso, que parecia que uma conversa em privado era a melhor forma de o acalmar.

- Em que estavas a pensar ao perguntar por Henry e pela rainha assim que entrámos no escritório? - perguntou Algernon, enquanto paravam entre as sombras, junto à muralha.

Carrell encolheu os ombros.

- Porque havíamos de esperar para saber de que lado está? É melhor saber antes de dizermos alguma coisa que o faça duvidar da nossa lealdade. Agora já sabemos que não devemos dar-lhe nenhuma razão para suspeitar de que não somos tão leais como ele.

- Eu penso que devíamos ter esperado. Tens de ter paciência ou podes estragar os nossos planos.

- Paciência? - perguntou Carrell com uma expressão desdenhosa. - Por Deus, não me digas para ter paciência. Fui paciente durante quinze anos.

- Eu esperei muito mais tempo para conseguir o que mereço - replicou Algernon, - e não quero perder tudo porque achas que tens de fazer todo o tipo de perguntas.

- Se tivesses visitado o teu sobrinho de vez em quando, eu não teria tido de perguntar nada - respondeu Carrell. - Agora já sabemos que é leal ao rei.

- Se eu tivesse tentado vê-lo, o que pensas que o meu detestável irmão teria feito? - resmungou Algernon. - Teria pensado que estávamos a conspirar contra ele e ter-me-ia mandado matar.

- Não, se tu o tivesses matado primeiro. Algernon olhou para Carrell com incredulidade.

- E como podia fazê-lo, com todos os guardas que tinha? Para além disso, quase nunca saía do castelo.

- Sim, teria sido difícil - concordou Carrell num tom conciliador.

Era uma pena que William tivesse enviado o seu outro irmão para o norte com Merrick, e que este tivesse morrido em vez de Algernon. Egbert fora um homem muito mais desumano, sobretudo quando os seus interesses estavam em jogo. Algernon era ambicioso,

fraco e estúpido, embora fosse útil naquele momento.

Algernon aproximou-se dele e, depois de se certificar de que ninguém os ouvia, desceu a voz ainda mais e perguntou:

- Tiveste notícias de Londres? Sabes quando voltarão, o rei e o seu irmão, a Inglaterra?

Carrell abanou a cabeça.

- Não. A rainha e o seu marido estão a divertir-se demasiado em Bordéus para se apressarem a voltar para Inglaterra e enfrentar os seus nobres. Penso que o conde da Cornualha tem as suas razões para ficar com eles.

- Para impedir que Henry tome mais decisões erradas - concordou Algernon.

- Eu diria que era para passar mais tempo com a irmã da rainha - replicou Carrell com um sorriso.

- Agora que a mulher de Richard morreu, precisa de outra, e a irmã de Eleanor é linda e muito dócil. Podes ter a certeza de que Eleanor estará a fazer todos os possíveis para que se produza um casamento entre ambos. Richard é a única pessoa que pode influenciar o seu marido tanto como ela e tem o apoio da maioria dos nobres. Para ela, é um rival e tem de o neutralizar. Que melhor forma de o fazer do que casando-o com a sua irmã?

- Deus nos salve dessa mulher - murmurou Algernon. - Vai ser a ruína de Inglaterra.

- Esse é o motivo por que o rei deve ser deposto, e o seu irmão, o conde da Cornualha, também, se chegar a isso. Mas deixemos que Merrick confie em nós e pense que está tudo bem. De facto, esperemos que a minha sobrinha o mantenha tão ocupado no

leito que se torne preguiçoso e despreocupado e desça a guarda. Então, será mais fácil matá-lo.

- E Constance? Garantiste-me que era a favor do casamento, mas hoje não me pareceu muito entusiasmada. Nunca a tinha ouvido a falar de uma forma tão insolente.

Carrell acariciou o punho da adaga que levava no cinto.

- É claro que se casará com ele.

- Como podes ter tanta certeza?

- Vai casar-se com ele, mesmo que seja apenas pelo bem dos seus vassalos. Já viste como os adora. Desde menina, sempre foi assim. Até um gatinho morto podia fazer com que chorasse durante todo o dia. Deixá-la aqui com o teu irmão foi uma das minhas jogadas mais inteligentes. Agora esta é a sua casa e estes camponeses são como a sua família. Nunca os abandonará, sobretudo se temer que o seu novo senhor possa prejudicá-los.

Carrell esboçou um sorriso desdenhoso.

- E, mesmo se tivesse tido alguma reserva em relação a este casamento, não achas que a afastou da sua mente no mesmo momento em que o viu? Que mulher não se sentiria tentada a partilhar a cama com o teu sobrinho? Se não fosse tão parecido com o seu

pai, eu teria jurado que fora concebido por Zeus. Não é de estranhar que tenha ganhado todos aqueles torneios. Eu tinha a certeza de que comprara os seus adversários, até que o vi a entrar a cavalo no castelo.

- Constance não se deixará levar pela luxúria objectou Algernon.

Carrell olhou para ele com um brilho de curiosidade maligna nos olhos.

- Conhecendo o teu irmão e sabendo que era um depravado, achas que alguma vez houve alguma coisa entre aqueles dois?

- Meu Deus, não - respondeu Algernon. - Se tivesse acontecido, eu saberia disso.

William não teria conseguido evitar contar-me. Desde pequenos, sempre me obrigou a ouvir as descrições, com todos os detalhes, de todas as conquistas que fazia.

- Suponho que seja verdade - disse Carrell. Não me parece que Merrick gostasse de se casar com a amante do seu pai.

- Não o Merrick que conhecemos hoje - concordou Algernon. Depois, olhou para ambos os lados do pátio e perguntou num sussurro: - Também temos de matar Constance?

- Se Constance não morrer, talvez o rei queira casá-la com outra pessoa, e então Tregellas ficará fora do teu alcance. Merrick e a sua mulher têm de morrer se queres herdar tudo. E depois, casar-te-ás com Beatrice. Uniremos as nossas famílias e o

nosso poder, tal como sempre planeámos. Somos aliados, Algernon. Eu não me esqueci disso e espero que tu também não.

- Não - garantiu Algernon. - Eu respeitarei o nosso acordo.

- Óptimo. Agora temos de voltar para a sala antes que reparem na nossa ausência. Não te preocupes. Em breve terás Tregellas e a minha filha.

 

Uns dias depois, Constance e Alan de Vem estavam na despensa contígua à cozinha, observando os barris de vinho que tinham chegado para o casamento.

- Lorde Merrick diz que temos de ter o melhor vinho para a festa do casamento - disse Alan com uma pronúncia parisiense marcada. - Disse-me que queria vinho de Bordéus para todos os convidados do grande salão e muita cerveja para a vila.

- Mas isso vai custar uma pequena fortuna! exclamou Constance, enquanto esfregava as mãos para se aquecer.

Também seria um gesto de generosidade, pensou. Tal como aquele beijo fora uma demonstração da sua crença de que conseguia afligi-la com a sua... masculinidade. Ele surpreendera-a. De outro modo, ela ter-lhe-ia batido.

Devia ter-lhe batido.

- É bastante caro - disse Alan. - Mas ele disse-me que tinha ganho muito ouro no seu último torneio. Também me disse exactamente qual era o limite de despesas para poder regatear no mercado. Felizmente, o mercado conformou-se com menos do que esperávamos - disse o mordomo com um sorriso. - Lorde Merrick tem boa cabeça para os números. Duvido que seja tão esbanjador como o seu pai.

- Espero que não - respondeu Constance.

- Por outro lado, Gastón está muito satisfeito com o menu do copo-d'água. Diz que é uma verdadeira oportunidade para demonstrar o seu valor. Embora tenha de dizer que as suas primeiras propostas foram demasiado extravagantes, até que lorde Merrick

falou com ele para que fosse razoável. Segundo Gastón, discutiram durante horas.

- Lorde Merrick discutiu?

Em resposta à sua incredulidade, Alan assentiu com um sorriso irónico.

- Uma mulher poderia encontrar um marido muito pior do que lorde Merrick - acrescentou.

Embora Alan fosse um bom amigo e Constance lhe tivesse pedido muitas vezes ajuda para resolver problemas com os vassalos, ela não estava disposta a partilhar os seus sentimentos mais íntimos com ele. Para além disso, um homem que impressionasse

favoravelmente um mordomo não tinha necessariamente de ser um bom marido, embora, aparentemente, também tivesse impressionado favoravelmente o comandante da guarnição, os soldados e os criados desde a sua chegada.

Naquele momento, Beatrice entrou na despensa. Levava a saia arregaçada de uma forma muito pouco própria de uma dama, e tinha a cara corada e os olhos brilhantes de excitação.

- Demelza disse-me que estavas aqui, Constance. Já soubeste? Lorde Merrick decidiu que vai haver um jogo como parte das celebrações do Dia de Maio. Os soldados jogarão contra os aldeãos. Sir Henry disse que ganharão os soldados, mas eu disse-lhe que não tivesse tanta certeza porque alguns dos aldeãos são muito bons. Ele também me disse que Merrick vai escolher a Rainha de Maio durante as celebrações.

- O quê?

Quando Constance e Alan olharam um para o outro, consternados, Beatrice franziu o sobrolho e o seu entusiasmo apagou-se um pouco.

- O que se passa? Constance suspirou.

- Como Merrick esteve ausente tantos anos, não sabe das complicações que esses eventos podem provocar - explicou à sua prima. - Tenho de falar com ele para lhe explicar. Bom dia, Alan. Até logo, Beatrice - disse, saindo apressadamente da despensa.

Depois de perguntar a um criado pelo senhor, dirigiu-se para o escritório. Naquele momento, o aguazil vinha a descer os degraus da sala. Estava mais pálido do que o habitual.

- Ruan - disse Constance.

Ele continuou a descer os degraus até que chegou junto dela com o seu habitual sorriso servil.

Tudo naquele homem lhe recordava um réptil viscoso. A sua pele pálida, a sua forma de andar, com a cabeça inclinada, as suas mãos sempre entrelaçadas e o tom suplicante da sua voz, como se tivesse de pronunciar cada frase contra a sua vontade. Sobretudo, o brilho de astúcia dos seus olhos azuis e chorosos, que face à aparência daquele homem, denunciavam a sua mente inteligente e, Constance tinha a certeza, matreira.

- Lorde Merrick ainda está no escritório?

- Sim, senhora.

- Falou-te dos seus planos para o Dia de Maio?

- Sim, senhora.

- E como achas que os aldeãos vão encarar a notícia?

Ruan franziu o sobrolho e passou a mão sobre os lábios húmidos.

- Acho que vão perguntar-se se terão de se esconder no bosque quando escolher a Rainha de Maio.

Era exactamente o mesmo que Constance estava a pensar.

- Tenho a certeza de que quererá agradar-lhes, senhora - disse Ruan em voz baixa e ela teve a sensação de que, de certo modo, o homem quisera insinuar alguma coisa. - Se lhe disserem...

- Bom dia, Ruan - disse e virou-se para as escadas do escritório.

- Bom dia, senhora - murmurou, enquanto observava a bela e altiva dama a entrar na sala.

Eles pensavam sempre que eram tão espertos e tão nobres, todos aqueles lordes e as suas senhoras. Bem, ele também era esperto.

Constance tocou com os nós dos dedos na robusta porta de madeira do escritório e entrou, sem esperar pela resposta de Merrick.

- Ouvi dizer que planeou alguns entretenimentos para o Dia de Maio - disse.

O senhor de Tregellas estava sentado na mesa da sala, que estava totalmente coberta de documentos.

O vento uivava do outro lado dos muros e as tapeçarias flutuavam devido à corrente de ar que entrava pelas persianas de tecido, que também não conseguiam impedir que a chuva entrasse na sala. As gotas grossas caíam sobre os batentes e depois

deslizavam pela parede até formarem poças no chão.

- É verdade - respondeu Merrick. Levantara o olhar dos pergaminhos e estava a observá-la com atenção. Com um gesto, indicou-lhe que se sentasse.

Aquela conversa podia demorar bastante tempo, portanto Constance sentou-se, graciosamente, sobre um banco.

- Devia ter consultado Alan de Vern ou ter falado comigo antes de fazer planos para as celebrações.

Ele pousou as mãos sobre a mesa e recostou-se nas costas da cadeira.

- Porquê? Lembro-me dessas actividades da minha infância e presumi que continuavam a celebrar-se nos dias de hoje.

- Houve algumas mudanças desde a sua infância, milorde.

Merrick passeou o olhar pelo seu corpo.

- Sim, já tinha percebido.

Ela franziu o sobrolho.

- Milorde, este é um assunto muito sério e devia ouvir-me.

Então, a preocupação reflectiu-se na sua expressão.

- Muito bem, senhora. Explique-me o que mudou.

Sem saber como conseguiria fazer com que compreendesse, começou a explicar-lhe porque não devia haver uma competição entre os aldeãos e os soldados da guarnição e, sobretudo, porque não devia escolher a Rainha de Maio.

- Os soldados são homens fortes e, por vezes, podem ser brutais. Isso pode ser muito benéfico na batalha, mas pode causar problemas no desporto. Da última vez que houve um jogo entre os soldados e os aldeãos, um dos guardas do seu pai quase matou o

filho do ferreiro.

Merrick levantou-se da cadeira sem dizer uma única palavra e aproximou o braseiro quente do banco de Constance. Ela sentiu-se agradecida pelo calor e, enquanto ele se mexia, tentou não reparar na elegância e na ligeireza das suas acções. Quando Merrick se aproximou de um jarro de vinho e de vários copos, Constance passou o olhar pelas suas ancas e pelas suas pernas musculadas.

- Vinho,senhora?

Ela corou como uma menina que tivesse sido surpreendida a fazer alguma coisa errada e depois afastou novamente o olhar para disfarçar a sua reacção estúpida.

- Não, obrigada.

Ele serviu-se de um copo e voltou para a mesa.

- Essas actividades são benéficas para os homens. Estimulam a camaradagem e servem para infundir neles respeito pelas habilidades dos aldeãos, cujo sangue, se não me engano, também ferve com facilidade. Lembro-me de que eram competições duras. Isso mudou?

Ela hesitou antes de responder, pois Merrick tinha razão. Se o jovem Eric não tivesse estado tão obcecado em colocar a bola entre os dois postes no campo, não teria chocado com aquele mercenário e não teria ficado inconsciente por causa da contusão que sofreu na cabeça.

- Então? - perguntou Merrick.

- Acho que os aldeãos conseguirão competir com os seus homens e é precisamente isso que me preocupa. Este desporto pode acabar por se transformar num distúrbio.

- Não permitirei que aconteça algo do género.

- Se é que será capaz de o impedir.

- Acho que Henry, Ranulf e eu podemos controlar os meus homens, sobretudo, se estiverem cansados de correr atrás de uma bola. Essa é outra das razões por que quero organizar o jogo. Vai cansar os meus soldados e impedi-los-á de empregar a sua energia

noutras ocupações mais perigosas durante as festividades.

Constance não pensara naquilo. No entanto, não estava disposta a ceder.

- E também vai dar-lhes sede. Poderemos acabar com os soldados bêbados a fazerem estragos na aldeia.

- Se acontecer algo do género, serão severamente castigados. Também pensei em servir carne na festa dos aldeãos, para além de cerveja. Também vou garantir-lhes que, se algum dos meus homens danificar alguma propriedade, o afectado será bem compensado pelas suas perdas.

Aquilo era muito generoso para a maioria dos senhores e muito mais, muitíssimo mais generoso do que o seu pai alguma vez fora. Talvez Merrick pensasse que, com aquele gesto, conseguiria ganhar a aprovação dos aldeãos. Se assim era, enganava-se.

O povo da Cornualha era demasiado independente para se deixar comprar.

- Tenho outra razão - disse ele e bebeu um gole de vinho antes de continuar: - Essas competições ajudam a manter os soldados em forma para a batalha ou para uma longa marcha.

- Sejam quais forem as suas razões, senhor, isto poderia provocar mais problemas do que pensa e, ganhe quem ganhar, duvido que os aldeãos se inclinem a ver os vossos soldados mais favoravelmente.

- Se o meu povo for honesto, não tem motivo nenhum para recear os meus soldados. Embora espere ser clemente, não permitirei que os meus vassalos desobedeçam às leis do rei, por exemplo, quanto ao contrabando. Castigarei os contrabandistas e confiscarei as suas mercadorias para o rei.

- Se fazem contrabando, milorde, é porque querem evitar pagar impostos severos e injustos - explicou, apoiando o seu povo como tantas vezes fizera. - Os exploradores de estanho da Cornualha pagam duas vezes mais do que os de Devonshire, pela estúpida razão de que na Cornualha se fala uma língua diferente. Portanto, segundo as mentes perspicazes de Westminster, a Cornualha deve ser um país estrangeiro. Mas se fosse um país estrangeiro, o rei não teria direito a cobrar impostos. Pergunto-lhe se isto é justo. É assim tão estranho que os homens que extraem o estanho da terra pensem que têm o direito de ocultar parte dos seus lucros à Coroa?

Merrick, evidentemente, não se deixou comover pelos seus argumentos.

- Os exploradores de estanho não pagam a dízima, estão isentos de prestar serviços no exército e têm os seus próprios tribunais. Têm muitos mais direitos do que os outros. Estariam de acordo em renunciar a esses direitos e deixar de fazer contrabando, se o rei lhes reduzisse os impostos?

Ela mexeu-se com desconforto sobre o banco.

- Está muito bem informado sobre os direitos e privilégios dos exploradores de estanho.

- Passei aqui os primeiros dez anos da minha vida. Mas também sou um cavaleiro que jurou lealdade ao rei e farei cumprir as suas leis.

Constance ouviu o seu tom de voz implacável, viu a determinação reflectida nos seus olhos. Se o pressionasse mais naquele assunto, era possível que tivesse um ataque de fúria e havia ainda outra coisa que tinham de resolver.

- Muito bem, milorde. Realize o jogo de bola e castigue os contrabandistas de acordo com a lei real. No entanto, penso que não deve escolher a Rainha de Maio.

- Porquê?

- Porque, milorde, da última vez que os aldeãos permitiram que o vosso pai a escolhesse, fez o que quis com ela e depois passou-a aos seus guardas para que se entretivessem também.

Constance presenciara, aterrorizada, como William, o Infame, arrastara a jovem rapariga, que gritava e chorava, para os seus aposentos. Os ferozes mercenários que formavam a sua guarda pessoal, uns homens depravados e miseráveis que ela mesma

expulsara de Tregellas assim que ele morrera, tinham-no seguido, rindo-se e fazendo brincadeiras nojentas sobre o senhor e a sua rainha.

- Oh, meu Deus - murmurou Merrick. Apoiou as mãos sobre a mesa e baixou a cabeça. - Devia ter imaginado... O meu pai deixou-me um legado acrescentou depois de um momento de silêncio. Depois olhou para Constance com aquela expressão de firmeza que começava a ser-lhe muito familiar e disse com solenidade: - Dou-lhe a minha palavra, Constance, de que as mulheres de Tregellas nunca deverão recear-me. Não precisam de se esconder de mim. Como senhor de Tregellas, é o meu dever protegê-las e é o que farei, mesmo que me custe a vida.

A sua voz era forte, decidida, e nos seus olhos, Constance viu uma honestidade total. Quem não acreditaria nele?

Merrick endireitou-se e aproximou-se dela.

- Talvez, ao escolher a Rainha de Maio, demonstre que sou diferente do meu pai, e que não têm de me recear - disse e inclinou-se para Constance.

Pegou na mão dela e, puxando-a suavemente, fez com que se levantasse. - Se estiver ao meu lado quando for à vila escolher a Rainha, todos verão que a única mulher que desejo é aquela com quem vou casar-me.

Meu Deus! Porque tivera de lhe tocar? Porque tivera de dizer aquilo com a sua voz profunda e grave, com aquela voz que parecia tão íntima, como se estivesse a sussurrar-lhe ao ouvido na cama? Porque tinha de olhar para ela daquela forma?

Se a beijasse novamente, esbofeteá-lo-ia.

- Talvez pudesse dizer-me quem deveria escolher como Rainha - sugeriu. - Sei que a escolha de uma mulher pode causar tensões e conflitos e o vosso conhecimento dos aldeãos e da vila pode guiar-me para a escolha menos controversa.

Se ela se recusasse a ajudá-lo, era possível que ele continuasse a tentar convencê-la, e que fosse ainda mais persuasivo.

- Como queira, milorde - disse Constance. Reflectiu um instante e respondeu: - Annice, a filha do veleiro. É muito bonita e muito querida na vila, e está noiva do filho do ferreiro, Eric.

- O rapaz que esteve quase a morrer no jogo de bola?

- Sim. Isso foi há dez anos, milorde. Agora já está em idade de se casar.

- Porque não se casaram ainda? - perguntou Merrick. - A família da rapariga tem objecções?

- Não se casaram porque o seu pai morreu e, como vassalos de Tregellas, precisam da permissão do senhor do feudo para o fazer. Provavelmente vão pedir-lhe o seu consentimento na próxima assembleia - explicou. Depois de uma pausa, perguntou-lhe: - Vai autorizar o casamento?

- Porque não havia de o fazer? Se as famílias estiverem de acordo, eu não interferirei nesse assunto.

O alívio acalmou a tensão de Constance e ela voltou a tomar consciência de que ele estava a segurar-lhe as mãos entre as suas.

- Suponho que também haverá uma fogueira na noite do Dia de Maio - disse Merrick, - e que a gente jovem entrará no bosque para ir apanhar flores e ramos, e que haverá música e baile - os olhos de Merrick brilharam e, suavemente, apertou-lhe as mãos.

- Adoraria vê-la a dançar, Constance.

Atónita, Constance viu como se inclinava lentamente para ela e sentiu como lhe punha as mãos sobre os ombros. Ia beijá-la. Ela devia retirar-se. Devia virar-se e fugir. No entanto, quando ele lhe tocava, sentia-se tão... e ele parecia tão...

Merrick beijou-a e, assim que os seus lábios se uniram, Constance sentiu um desejo descarado e ardente que destruiu o seu raciocínio.

Enquanto a beijava, ele apertou-a contra o seu corpo duro e rodeou-a com um braço, enquanto com o outro lhe acariciava a barriga e, mais acima, o seu peito.

Aquilo era errado. Sabia que devia pará-lo, no entanto, fazia com que se sentisse tão... bem. Quando lhe acariciou o mamilo endurecido com o polegar, Constance sentiu que perdia a força nas pernas e gemeu.

Ele, lentamente, interrompeu o beijo, embora continuasse a abraçá-la. Ela abriu os olhos e viu-o a olhar para ela com desejo e necessidade.

- Um mês é demasiado tempo de espera, senhora.

Então, foi como se a tempestade tivesse entrado na divisão. O que sabia ela sobre ele, excepto que era o filho do seu pai e que fizera muitas promessas e declarações, que poderiam ser mentiras quando ela se transformasse na sua esposa e ele tivesse o seu dote?

Era uma parva! Uma tola!

Merrick não fez nenhum esforço por a aprisionar quando ela se afastou dele e cambaleou para trás.

- Disse-lhe para não me tocar a menos que lhe desse permissão.

- Não gostou, senhora? Pareço-lhe assim tão repugnante?

- Sim! Não! - exclamou, enquanto tentava recuperar o controlo sobre si mesma e recordar o seu plano de conseguir fazer com que a odiasse. Quando me casar consigo, milorde, poderá beijar-me sempre que quiser. Até então...

- Até então, tenho de ignorar o desejo que inspira em mim? Tenho de fingir que não a desejo? Que a acho repelente?

Merrick abriu os braços.

- Eu respeito-a e admiro-a, não só pela sua beleza, mas também pela sua inteligência e bom coração. Alan de Vern, Ruan, o comandante da guarnição, os criados... Todos falam muito bem da sua senhora.

Ela engoliu em seco e tentou controlar a raiva que sentia.

- Então, por favor, respeite os meus desejos e não me beije. Ou sir Henry não é o único sedutor experiente em Tregellas?

Merrick franziu o sobrolho com aborrecimento.

- Pensa que tinha motivos ocultos para a beijar? - perguntou.

- Não sei o que queria quando me beijou - replicou. - Não o conheço.

- Não, não me conhece, senhora, ou nunca me teria acusado de tentar seduzi-la. As mulheres com quem estive vieram ter comigo voluntariamente, e todas sabiam que não deviam esperar mais do que uma noite de prazer.

- Que generoso da sua parte, milorde.

- Preferia que fosse como Henry? Que dissesse palavras lisonjeadoras e doces sem significado? Que murmurasse palavras de amor?

- Quero que pare de me beijar! Ainda não sou a sua esposa.

- Não, é verdade.

- E quero que ordene a sir Ranulf e a sir Henry que se mantenham longe de Beatrice.

- São ambos cavalheiros honrados e nunca lhe tocarão de forma alguma - respondeu friamente. Confio completamente nos meus amigos.

- Mas eu não - replicou Constance. - Sir Henry parece o típico homem que só se preocupa com os seus próprios desejos, sem querer saber do mal que possa causar a uma dama. Quanto a sir Ranulf, parece muito capaz de fazer qualquer coisa para conseguir

o que quer.

Eles que tenham cuidado se fizerem mal aos que eu amo!

- Vamos esclarecer as coisas, senhora - disse Merrick num tom calmo. - Eu confio absolutamente nos meus amigos, ou não seriam meus amigos. Espero poder confiar na minha mulher da mesma forma.

- E se não puder? - perguntou Constance. Tinha a liberdade ao seu alcance. A única coisa que tinha de fazer era dizer-lhe que não seria fiel. Que desrespeitaria os votos matrimoniais ou que já não era virgem. A única coisa que tinha de fazer era mentir e dizer que o envergonharia.

Então, porque hesitava? A sua honra ou a sua liberdade. Porque não escolher e acabar com aquilo?

- Não quero uma esposa que seja minha esposa por obrigação, Constance - disse suavemente e aproximou-se dela. - Se a ofendi com as minhas decisões ou sente afecto por outra pessoa, diga-me agora e libertá-la-ei.

Talvez o fizesse, porém, a que preço?

- Qual seria a penalização se o rejeitasse? O meu dote?

Ele ficou surpreendido.

- Nada. Não lhe pediria nada, senhora.

Ela não conseguia acreditar que ele fosse tão generoso e que estivesse disposto a deixá-la livre sem uma compensação.

- Se assim for, não é o mesmo rapaz que partiu daqui há quinze anos.

- Não, não sou.

"Diz-lhe que queres ser livre!", gritou a sua mente.

No entanto, ela não conseguiu pronunciar as palavras.

Passara tanto tempo a pensar que tinha a certeza do que queria... No entanto, aquele era um homem muito diferente do menino que saíra de Tregellas. Era um cavalheiro cortês, um senhor justo, um homem que ela poderia respeitar, e até amar. Na verdade, ele acendia o seu desejo como nenhum outro homem fizera.

Contudo, poderia confiar nele? Apesar da sua sinceridade aparente, podia acreditar que, na verdade, a deixaria ir com tanta facilidade, que renunciaria ao seu dote e à ligação com a sua família?

Não, não podia. Pelo menos, ainda não.

- Sim ou não, Constance? Quer ser a minha esposa, ou não? Aceitarei a sua resposta seja qual for, senhora.

- Apesar da sua habilidade para seduzir, meu senhor - disse, - preciso de mais tempo para me decidir.

Depois saiu do escritório e tentou ao máximo evitá-lo até ao Dia de Maio.

 

Na manhã do Dia de Maio, Constance estava junto de Merrick no palco que se montara junto da praça da aldeia.

O poste de Maio estava no meio da praça, com os seus laços brilhantes e as suas grinaldas de flores, e, à sua volta, estavam os aldeãos e vassalos de Tregellas e os soldados da guarnição que não estavam de serviço. Os malabaristas e os acrobatas estavam também na praça, esticando-se e preparando-se enquanto esperavam que o senhor escolhesse a Rainha de Maio.

Os seus tios, Henry, Ranulf e Beatrice estavam também no palco.

- Quem é Annice? - perguntou Merrick a Constance.

Abanando-se com a mão, porque o dia estava muito quente, Constance respondeu:

- Está junto da oficina do veleiro.

- O jovem que está ao seu lado é Eric?

- Sim.

- Merrick, porque não te despachas a escolher a Rainha de Maio?

- sugeriu Henry, aproximando-se.

- Estou cheio de calor.

Merrick assentiu e, inesperadamente, agarrou na mão de Constance, um gesto que, sem dúvida, seria interpretado pela vila toda como sinal de que ela estava ansiosa por tê-lo como marido.

Infelizmente, ele segurou-a com força e, como não queria escapar dele com um puxão forte, não tinha outro remédio senão permitir que continuasse a agarrar na sua mão.

- Boa gente de Tregellas - disse Merrick em voz alta, - é uma honra para mim poder escolher a Rainha de Maio. Depois de consultar a minha senhora Constance, tomei uma decisão. Este ano, a vossa rainha será Annice, a filha do veleiro.

A multidão irrompeu em aplausos e Constance relaxou um pouco. Pelo menos, a sua escolha fora tão bem recebida como ela esperava.

Merrick também parecia muito satisfeito. Olhou para Constance e apertou-lhe a mão. Dado o que aquele aperto significava, ela devia ter-se sentido incomodada, no entanto, isso não aconteceu, até que se perguntou se aquele gesto firme não significaria também possessão.

Eric conduziu Annice, muito corada, até ao palco. Ambos tinham uma atitude cautelosa. Quando chegaram junto de Merrick, este ofereceu um simples anel de prata à rapariga, algo que Constance não sabia que ia acontecer. Não sabia bem o que pensar daquele presente, enquanto Annice, a tremer, estendeu a mão para aceitar o anel, com os seus grandes olhos verdes cravados nos olhos castanhos de Merrick.

- Não tenhas medo, Annice - disse Merrick suavemente, enquanto lhe entregava o anel. - A tua virtude está a salvo de mim e dos meus homens.

Depois, o senhor de Tregellas virou-se para todos os presentes e, com a sua voz profunda e grave, começou a falar:

- Quero que todos saibam que as mulheres de Tregellas não têm nada que recear de mim. Como vosso senhor, protegerei a sua honra, não a destruirei. Se algum dos meus homens, alguma vez, tiver um comportamento hostil para algum dos habitantes do meu feudo, poderão contar-me sem medo. Desde que obedeçam à lei, prometo-vos que farei tudo o que estiver ao meu alcance por cumprir a minha responsabilidade para convosco e espero que vocês cumpram as vossas para comigo.

Novamente, pegou na mão de Constance.

- Com a minha bela esposa e senhora ao meu lado para me guiar, espero ser um bom senhor, justo e clemente, não como o meu pai foi.

A multidão rebentou em gritos de alegria e Constance puxou finalmente a mão para se livrar dele. Falava como se ela já tivesse aceitado ser a sua mulher, ou como se a sua oferta de lhe conceder a liberdade tivesse sido uma mentira.

Indignada e furiosa, amaldiçoou-se por não ter força de vontade e por se deixar confundir pela luxúria. Apesar de os desejos e as carícias de Merrick acenderem o seu desejo, ela não devia esquecer o que mais receava: que aquele homem fosse uma segunda versão do seu odiado pai.

Enquanto alguns aldeãos rodeavam Annice e Eric para admirar o anel da rapariga, outros retiraram-se para a cervejaria e para a taberna. O taberneiro dispusera as mesas e os bancos fora do seu estabelecimento para que os clientes pudessem assistir ao espectáculo dos saltimbancos. Vários casais já tinham começado a dançar à volta do poste de Maio e os meninos formavam grupos por aqui e por ali, esperando com impaciência que a festa começasse.

Sir Henry e sir Ranulf encaminharam-se para a cervejaria e lorde Carrell e lorde Algernon seguiram-nos apressadamente, seguidos de Beatrice. Então, inesperadamente, Merrick virou-se para Constance.

- Quero conhecer Peder - disse para surpresa e desgosto dela, pois tivera a esperança de poder afastar-se dele.

- Não o vejo entre a multidão, milorde - respondeu.

Merrick apontou para a ferraria.

- Não é aquele que está sentado fora da oficina do ferreiro?

Como Merrick tinha razão, infelizmente, Constance teve de assentir.

- Sim, mas não me parece que precise de mim para...

- Preferia que viesse comigo.

Pelo seu tom de voz, Constance soube que não admitiria uma negativa e começou a caminhar silenciosamente para a ferraria, avançando com facilidade porque toda a gente se afastava para os deixar passar.

Peder, cuja vista era muito aguda para um homem da sua idade, logo se apercebeu de que os senhores se dirigiam para ele. Levantou-se, sorriu e fez uma vénia a Constance.

- Senhora.

No entanto, a sua expressão endureceu quando cumprimentou Merrick.

- Milorde.

- Por favor, senta-te - disse Merrick na língua da Cornualha, depois de Constance ter feito as apresentações.

Peder e Constance olharam um para o outro com surpresa, enquanto Peder obedecia.

- Passei os primeiros dez anos da minha vida aqui - disse Merrick em resposta à sua pergunta silenciosa, - portanto não é estranho que fale a língua da minha terra.

- Passaram quinze anos - replicou Peder, como se suspeitasse que era algum truque.

- Praticava com as minhas orações - explicou Merrick. - Mas não é sobre isto que desejo falar contigo, Peder. Ouvi dizer que lady Constance confia em ti para solicitar informação sobre os aldeãos.

Perante tal ofensa, Constance olhou para ele com consternação. Como teria chegado àquela conclusão tão revoltante? Nunca lhe dissera tal coisa e nunca trairia a confiança dos habitantes de Tregellas.

- Lady Constance e eu somos amigos desde que era uma menina - respondeu Peder com desprezo.

- E nenhum dos dois fala sobre a vida dos outros.

- Não queria insultar ninguém - respondeu Merrick, olhando para Constance antes de se dirigir novamente a Peder.

Ela perguntou-se se ele se teria apercebido de que a ofendera.

- Agradeço qualquer ajuda para saber como governar o meu povo - disse. - Sobretudo, se vier de um homem que passou toda a sua vida aqui e que tem o respeito de toda a gente.

Seria uma observação sincera, ou queria apenas lisonjear Peder para que cooperasse com ele? Ao aperceber-se da tensão do corpo de Merrick, Constance percebeu que a opinião de Peder era de facto importante.

O aldeão olhou fixamente para o nobre, sem qualquer sinal de receio ou de servilismo, e Constance detectou um orgulho no seu tom de voz quando respondeu:

- Suponho que seja difícil saber o que pensam os que estão sob a sua autoridade quando se é um grande senhor. Muitos deles só dirão o que quer ouvir.

- Um homem poderoso precisa de conselheiros dignos de confiança - concordou Merrick, com o corpo ainda tenso.

- Portanto quer que eu o aconselhe, é isso? perguntou Peder, sem tentar disfarçar o seu cepticismo.

Merrick franziu o sobrolho, no entanto, Constance apercebeu-se de que a emoção que os seus olhos reflectiram foi desilusão, e não raiva.

- Lembro-me de ti quando era menino - disse ao aldeão.

- Considerava-te um bom homem. Preciso da ajuda de um homem de bem.

Constance esperava que Merrick nunca descobrisse que Peder fazia contrabando de estanho há anos.

- Com a ajuda de Deus, serei sempre um bom homem, apesar de vivermos tempos difíceis - respondeu Peder. Depois, a expressão do seu rosto endureceu. - Mas recuso-me a espiar os meus amigos.

Merrick ficou verdadeiramente surpreendido.

- Pedi-te que fizesses isso? Então, o que queria que fizesse?

- Como já disse, lembro-me de ti da minha infância - continuou Merrick. - Quero a tua ajuda, se tu estiveres disposto a dar-ma. Queiras ou não, eu também quero ajudar-te - disse sem hesitação, olhando directamente para Peder,

procurando nos seus olhos... o quê? Compreensão? - O meu pai pecou com a tua filha, Peder, e infligiu muita dor à tua família. Lamento profundamente a tua perda. Embora não haja nada que substitua a tua filha e o teu neto,

se houver alguma coisa que possa fazer para que a tua vida seja mais confortável, só tens de falar com Constance ou comigo, e eu tratarei de tudo.

Perdão? Era aquilo que queria ver na cara envelhecida de Peder? Não o conseguiu. Peder lançou-lhe um olhar irado.

- Isso não poderá compensar-me pelo que o seu pai fez.

Merrick ficou aborrecido.

- No entanto, a minha oferta continua de pé disse, mesmo antes de uns gritos de alegria que provinham do outro lado do prado fazerem com que os três olhassem para lá. - A menos que me engane, senhora - disse Merrick a Constance, está quase a começar o baile. Não se esqueça de que tem de participar.

- Lady Constance poderá continuar a visitar-me? - perguntou Peder. Merrick assentiu.

- É claro. Não vejo razão para o proibir. Sinto-me agradecido por lady Constance ter tido em ti um amigo enquanto o meu pai esteve vivo.

Peder levantou-se.

- Então, se não se importa, vou levá-la ao baile, milorde.

Merrick assentiu.

- Muito bem. Eu vou falar sobre os limites do campo com sir Ranulf.

- Bom dia, milorde - disse Peder e depois piscou um olho a Constance.

- Bom dia para ti também, Peder - respondeu Merrick antes de se dirigir para a taberna, onde sir Ranulf e sir Henry estavam a conversar animadamente.

- Olha o filho do demónio - murmurou Peder, enquanto observava Merrick a afastar-se. - Canalha arrogante. É bonito como o seu pai e provavelmente tão pecador como ele - acrescentou. Depois olhou para Constance. - Talvez não devesse ter sido tão franco com as minhas opiniões.

Constance não podia culpar Peder pelo ódio que sentia pelo filho de William, o Infame, nem contra os vícios que pensava que possuiria. Ela mesma desconfiara dele. No entanto, Merrick não agira como um depravado desde que chegara. A única mulher com quem tentara intimar fora com ela, pelo menos que ela soubesse.

- Lorde Merrick deu-me a sua palavra de que respeitará a honra de todas as mulheres.

Peder franziu o sobrolho.

- E acreditou nele?

Constance recordou o tom de voz de Merrick e o seu olhar quando lhe prometera que a respeitaria e que protegeria as mulheres de Tregellas.

- Sim. Pelo menos, espero que seja verdade, e até agora não fez nada que contradissesse as suas palavras. Talvez lorde Leonard o tenha ensinado a ser um homem melhor do que o seu pai.

- Tal pai, tal filho, senhora, e sou suficientemente velho para o saber - declarou Peder. - Se este for o Merrick que partiu de Tregellas há quinze anos, não devia casar-se com este homem. Vai fazê-la infeliz, como o seu pai fez com a sua pobre mãe.

Ela era uma mulher bondosa e pensava que conseguiria mudar o seu marido. Logo descobriu que nunca conseguiria fazê-lo e muitos de nós pensámos que foi uma graça dos Céus quando morreu no parto do seu filho - Peder fez uma pausa e, quando começou

novamente, tinha a voz rouca por causa da emoção. - Já sabe o que o seu pai fez à minha filha, senhora, e o que lhe aconteceu. Desespero, tristeza e depois...

- Sim, Peder, eu lembro-me bem - disse suavemente e apertou-lhe o braço com suavidade.

- Vou ter cuidado com ele, prometo. E há mais uma coisa que tenho de te dizer, agora que tenho a oportunidade. Merrick está decidido a aplicar as leis do rei para impedir o contrabando e castigar os que o praticam.

Devias parar, pelo menos por enquanto, e pagar os impostos.

- E dar todo aquele dinheiro a um rei normando?

- Certamente, lorde Merrick não deve ser tão cruel e vingativo como o seu pai, mas até termos a certeza, penso que é melhor ter cautela. Sei que isso significa que terás menos dinheiro, mas isso é melhor do que a morte, não é?

- Esse imposto não é justo.

- Por esse motivo, Alan de Vern e eu sempre virámos a cara. Talvez, com o tempo, lorde Merrick também o faça, mas até esse momento, receio pela tua segurança se continuares. Por favor, Peder, fá-lo por mim. Tu és como um avô para mim e se te

acontecesse alguma coisa...

Peder olhou para ela com os seus olhos castanhos cheios de amor.

- E a senhora é tão querida para mim como uma neta - disse. Depois desceu tanto a voz que ela teve de fazer um esforço para o ouvir. - Acho que devia fugir de Merrick, senhora, tão rapidamente quanto puder.

- Já pensei nisso, Peder - respondeu também em voz baixa. - Mas como? Para onde iria? De que viveria?

- Eu não sou o único da aldeia que a aprecia como se fosse da minha família, senhora.

Sabemos quantas vezes acalmou o velho senhor quando tinha um dos seus ataques de raiva e sabemos que isso salvou a vida de muitos homens e a honra de muitas mulheres. Se quiser fugir, venha ter comigo. Ajudá-la-emos a fugir.

Embora Constance sentisse gratidão pela sua oferta, não sentiu alívio nem alegria. Se partisse, teria de viajar até muito longe para poder ter a certeza de que estava a salvo. Ficaria sozinha, numa terra estranha, entre estrangeiros. Seria pobre,

pois não poderia pedir muito aos aldeãos, que já tinham demasiado pouco.

Naquele momento, aquele destino parecia-lhe muito mais solitário e doloroso do que ficar em Tregellas.

No entanto, ao ver como Peder estava ansioso, esboçou um sorriso de agradecimento.

- Prometo, Peder, que se decidir partir, irei ter contigo.

- Despacha-te, Constance, o jogo deve estar a acabar! - exclamou Beatrice, enquanto guiava a sua prima pelo atalho que havia junto do rio.

- Acho que ainda falta muito tempo para acabar - respondeu Constance, enquanto a seguia, contrariada. Não tinha vontade nenhuma de apoiar uma coisa que, certamente, ia acabar em desastre.

Enquanto se aproximavam do moinho, ouviu o rugido da multidão e teve a certeza de que havia um distúrbio.

Agarrou nas saias e começou a correr.

- Espera! Espera por mim! - gritou Beatrice, correndo atrás dela.

- Volta para o castelo! - ordenou Beatrice por cima do ombro. A última coisa que queria era que Beatrice se visse entre...

Uma multidão entusiasmada e animada, que gritava com força, apoiando a sua equipa?

Descobriu os aldeãos agrupados no limite norte da pradaria, incentivando a equipa da vila. Os soldados que não estavam a jogar formavam grupos animados do outro lado do campo, incentivando e gritando conselhos aos jogadores da sua equipa.

Ela parou, ofegando. Estava muito contente por se ter enganado, é claro, contudo, mesmo assim, sabia que o mínimo golpe poderia originar problemas.

Beatrice parou junto dela.

- Também não precisávamos de correr - disse, tentando recuperar o fôlego.

- Meu Deus, pensei que os homens estivessem a lutar - admitiu Constance.

- Oh... - murmurou Beatrice, cuja atenção já estava concentrada no jogo.

Ou, pelo menos, nos jogadores seminus, reparou Constance. Porque os homens estavam seminus e todos suados e Constance pensou que aquela visão era desconcertante aos olhos de uma dama.

- Espero que ninguém esteja ferido - disse ela.

- Aquele não é Merrick? - perguntou Beatrice, apontando para o campo.

É claro que não, pensou Constance enquanto seguia o olhar da sua prima.

No entanto, a menos que estivesse a ficar cega, o homem que ia a comandar a sua equipa atrás da bola, com o cabelo preto e comprido, era o senhor de Tregellas.

Constance mal conseguia acreditar. E não eram sir Ranulf e sir Henry que corriam ao seu lado?

- Meu Deus - murmurou, perplexa ao ver um senhor envolvido em semelhante jogo e também ao ver o corpo maravilhoso do seu noivo.

- Oh, olha! É sir Henry! - exclamou Beatrice, saltando de emoção. - Tem a bola!

Henry passou-a novamente a Merrick, que continuou a correr pelo campo sem perder o controlo da bola.

Quem estaria a ganhar? Era difícil dizer porque, tanto os aldeãos como os soldados, estavam a apoiar a sua equipa como a sua vida dependesse disso. Constance viu Talek, o comandante da guarnição, entre os soldados. Pegou na manga do vestido de

Beatrice e abriu caminho entre a multidão de homens que as rodeava. Estavam tão concentrados no jogo que nem sequer se apercebiam de quem os empurrava.

Constance deu uma palmadinha a Talek no braço para chamar a sua atenção.

- Quem está a ganhar? - gritou.

- Estão empatados - respondeu o soldado. Mas nós temos a sua senhoria, portanto vamos ganhar. Nunca tinha visto um jogador tão bom...

As suas palavras foram abafadas por um rugido do público. Merrick tropeçara e quase caíra, porém, endireitou-se com agilidade e começou a correr novamente, ainda com mais rapidez.

Já quase chegara aos dois postes que marcavam a baliza. Os soldados estavam a gritar. Os aldeãos apoiavam igualmente os seus jogadores e alguns estavam a resmungar de consternação.

Constance tentou não se deixar apanhar pela excitação do jogo. Afinal de contas, ela era uma dama e devia comportar-se com decoro e dignidade. Para além disso, aquilo era apenas um jogo. Não importava quem fosse o vencedor, desde que não acabasse

tudo numa discussão.

Naquele momento, Merrick conseguiu colocar a bola entre os dois paus.

- Boa! - gritou Constance enquanto saltava de alegria. Então, tapou a boca com a mão.

Como era possível que tivesse reagido com tão pouco decoro?

Beatrice, ao seu lado, não tinha os mesmos reparos, e dançava ao seu lado, satisfeita.

- Sabia que íamos ganhar! Sabia! - exclamou, aplaudindo.

Enquanto os soldados, dirigidos por Talek invadiam o campo, Constance tentou recuperar a compostura.

- Sim, bom, foi um jogo interessante - disse. Beatrice olhou para ela com espanto.

- Interessante? Foi maravilhoso! Merrick foi muito rápido. Quem teria pensado que conseguia correr tão depressa?

- É verdade - murmurou Constance, enquanto os soldados rodeavam o seu senhor, enquanto este bebia um gole de um enorme jarro de cerveja que um dos seus homens lhe estendera.

Lorde William nunca se teria dignado a permitir que um dos seus soldados se aproximasse tanto dele.

Então, Merrick fez uma coisa ainda mais surpreendente: aproximou-se da equipa dos aldeãos e felicitou-os pelos seus esforços. Os seus homens seguiram-no, rindo-se e gabando-se, bem-humorados, tal como os homens da vila, que estavam orgulhosos e

felizes.

Era óbvio que Merrick conhecia as reacções dos homens melhor do que ela e que estava disposto a misturar-se com o seu povo, coisa que o seu pai nunca teria feito.

Que tipo de homem era o novo senhor de Tregellas? Poderia ser, verdadeiramente, assim tão diferente do seu pai e do menino que deixara Tregellas há tanto tempo?

- Vamos, Beatrice - disse.

- Não queres ir felicitar Merrick? - perguntou a sua prima.

- Não, não é necessário.

Beatrice franziu o sobrolho e então Constance apercebeu-se de que Merrick, ainda seminu, embora levasse a camisa na mão, estava a andar em direcção a ela, enquanto os seus homens o rodeavam como se fosse um rei.

 

Durante um breve instante, Constance pensou em fugir. No entanto, o que pensariam os homens, e Beatrice, se o fizesse? Não enfrentara William, o Infame, mais de uma vez?

Beatrice, no entanto, desculpou-se para se ir embora.

- Acho que vou mudar de vestido para o jantar - murmurou.

Então partiu e deixou Constance sentindo-se como um soldado solitário no meio do campo de batalha, esperando pelo exército inimigo.

No entanto, era o jovem, bonito e viril homem com o qual estava comprometida, o mesmo homem que tinha um sorriso de satisfação nos lábios, que se dirigia para ela.

Estava contente porque os seus homens e ele tinham ganhado... Porque não vestia a camisa? Estava a tentar fazer com que ela se sentisse incomodada? Se assim fosse, subestimara-a.

Constance endireitou os ombros e preparou-se para lhe demonstrar como estava enganado.

- Portanto, senhora - disse, - toda a sua preocupação era em vão. Não houve mortos nem feridos, nenhuma lesão, nem distúrbios. Os meus soldados estão contentes, excepto aqueles que apostaram contra nós, e os aldeãos foram um rival à altura e podem

retirar-se com honra.

Ela não tinha intenção de deixar que se vangloriasse.

- Sei que é o senhor de Tregellas, mas não acha que correr atrás de uma bola é levar as coisas demasiado longe? - perguntou enquanto Ranulf, Henry, Talek e outros soldados passavam ao seu lado a caminho do moinho.

- Suponho que tenha sido ideia de sir Henry. Parece ser do tipo de homem que consegue fazer com que os seus amigos se comportem com pouca dignidade.

O sorriso petulante de Merrick desapareceu dos seus lábios e franziu o sobrolho.

- Pensa que Henry é capaz de me levar por maus caminhos?

De repente, Constance achou uma estupidez pensar, que alguém pudesse conduzir aquele homem para algum lado, no entanto, uma vez que começara, tinha de continuar.

- Acho que tenta e que muitas vezes consegue.

- Quando me conhecer melhor, vai perceber que essa opinião é absurda. Acusaria também Ranulf de tentar levar-me por maus caminhos?

- Não sei do que sir Ranulf é capaz. Merrick olhou para ela, furioso.

- Não vejo que seja indigno fazer qualquercoisa que uns homens que dariam a vida por mim me peçam.

Constance apercebeu-se de que estava a andar sobre uma fina camada de gelo, por isso, calou-se.

- Seja o que for que esteja a tentar fazer, senhora - disse Merrick, aproximando-se dela, - tem de entender isto: não permitirei que questione as minhas acções nem as minhas decisões na presença dos meus homens. Eu sou o senhor aqui, não a senhora, e

não consinto que me critiquem em público.

Enquanto ela corava, ele começou a vestir-se. Depois desceu a voz até um gemido suave, como o ronrono de um felino enorme.

- No entanto, quando estivermos sozinhos, pode criticar-me o quanto quiser.

Não era possível que estivesse a ser sincero.

- Não está a falar a sério.

- Se não estivesse a falar a sério, não o diria. Ela não conseguia acreditar que um nobre fosse tão razoável, muito menos aquele.

- E não ficará ofendido?

- É possível que sim, mas não a castigarei por isso.

Ela arqueou uma sobrancelha com ironia.

- Como posso acreditar nisso?

- Porque eu estou a dar-lhe a minha palavra.

- E se lhe recusar os seus direitos no leito? perguntou Constance, certa de que encontrara alguma coisa que o tiraria do sério.

- Esperarei que me explique o motivo da sua rejeição para poder resolver o problema.

Constance deu dois passos para trás. Não se atrevia a continuar perto dele, pois Merrick era incrivelmente viril, e estava a fazer umas cedências surpreendentes e aparentemente sinceras.

- Se me dá licença, milorde, tenho... tenho coisas para fazer.

Era uma desculpa patética e Constance sentiu-se como uma covarde, porém, era aquilo ou... beijá-lo.

O vinho e o jantar do Dia de Maio foram os melhores que Constance recordava ter provado em toda a sua vida. A sopa, o guisado, a carne, os bolos, legumes e pães e, para acabar, as sobremesas e as frutas, tudo estava delicioso. Depois, um trovador

amenizou a sobremesa com canções sobre o rei Arthur e os seus cavalheiros e, mais tarde, outros músicos tocaram o alaúde e o tamboril para o baile e, é claro, houve mais vinho.

Depois de uma dança especialmente enérgica com Henry, Constance tirou o véu, porque estava demasiado calor, e soltou os ganchos com que segurava as tranças à cabeça.

Henry era um companheiro muito divertido e, enquanto Ranulf e ele conversavam sobre a relação entre Arthur, Guinevere e Lancelot, Henry argumentando que Arthur estivera demasiado ocupado para prestar atenção à sua esposa, e Ranulf mantendo que

Lancelot era um tipo imoral, Constance mal conseguia respirar. Até Merrick emitira uma gargalhada que acariciara os ouvidos da sua noiva.

Beatrice rira-se até que começara a chorar e o seu pai, com um olhar de desaprovação, mandara-a para a cama.

Constance sorrira com indulgência enquanto Beatrice percorria em ziguezague o caminho para as escadas, com a ajuda de Demelza, a sua aia. Lorde Carrell deixara de prestar atenção à sua filha e voltara a concentrar-se na conversa que estava a ter com

lorde Algernon sobre cães de caça.

Constance sentia-se livre e deliciosamente feliz, mesmo com Merrick ao seu lado, tão bonito, com as suas vestes pretas e o seu cabelo comprido, espesso e escuro, com os seus traços magníficos, com os seus lábios bem desenhados.

Se ele quisesse dar-lhe a mão naquele momento, era possível que até lhe agradasse.

- Meu Deus, como está calor aqui! - murmurou para ninguém em particular e levantou o seu copo para que o escanção voltasse a enchê-lo de vinho.

Merrick puxou-lhe a mão.

Como estava de bom humor, em vez de se zangar, dedicou-lhe um sorriso descarado enquanto tentava recuperar o seu copo.

- Tenho sede, milorde.

Ele manteve o copo fora do seu alcance.

- Não bebeu já vinho suficiente para apaziguar a sua sede, ou ainda tem a garganta seca por ter apoiado hoje os jogadores durante o jogo? - perguntou, com uma sobrancelha levantada.

- Estava a apoiá-lo, milorde - protestou. - Foi magnífico. Sem dúvida, os soldados teriam perdido sem o senhor na equipa deles. No entanto, eu nunca pensei que jogasse. Imaginava-o mais a dar ordens à bola como se fosse um dos seus homens continuou e depois desceu a voz para imitar a de Merrick: - Bola, anda cá! Bola, ordeno-te que pares de rolar! Bola, obedece ou atravessar-te-ei com a minha adaga!

Divertida com a sua própria brincadeira, soltou um risinho. No entanto, não parecia que Merrick estivesse a achar piada.

- Acho que está na hora de se retirar, senhora. Ela abriu muito os olhos, para demonstrar a sua surpresa e, ao mesmo tempo, para focar melhor a cara de Merrick, que, de algum modo, parecia imprecisa.

- A noite ainda é jovem, milorde - disse com o seu melhor sorriso. - E vai haver mais baile.

- Acho que para si não.

Constance inclinou-se para ele para falar e reparou que o seu peito se esmagava contra o antebraço de Merrick. A sensação foi bastante agradável. Até excitante.

- Diz que devo retirar-me, tio - queixou-se, interrompendo a conversa que lorde Carrell mantinha com lorde Algernon sobre a pureza de sangue dos seus cães de caça. - Diga-lhe que já sou suficientemente crescida para decidir quando quero ir deitar-me.

Para seu desgosto, lorde Carrell olhou para Merrick antes de responder.

- Acho, querida, que já tiveste entretenimento suficiente por um dia.

- Não é verdade - disse. Decidida a não ser expulsa do grande salão como se fosse uma menina travessa, sorriu a Merrick.

- Não quer dançar comigo, milorde?

- Não, nestas condições. Vamos, senhora, retire-se antes que faça uma figura ridícula.

Ela irritou-se ao ouvir aquelas palavras.

- Eu nunca fiz nenhuma figura ridícula.

- Há sempre uma primeira vez para tudo. Ofendida, Constance levantou-se com toda a dignidade que conseguiu reunir por causa do vinho.

- Muito bem, milorde, não quero que se envergonhe de mim.

Infelizmente, parecia que o chão se tornara instável durante o jantar. Constance estendeu o braço para se apoiar nas costas de uma cadeira, porém, em vez disso, viu-se nos braços de Merrick. Emitiu um gritinho de protesto e rodeou-lhe o pescoço com

as mãos para não cair.

- Cavalheiros, se nos desculparem - disse, dirigindo-se aos seus tios e aos seus amigos, sentados à mesa.

Ela não bebera assim tanto para achar aquilo aceitável, embora lhe parecesse... bastante delicioso.

- Ponha-me no chão!

- Não quero que caia e que parta uma perna antes do casamento - respondeu Merrick, enquanto descia do palco e começava a atravessar o grande salão.

Os convidados começaram a rir-se e Constance irritou-se ainda mais.

- Ponha-me no chão, burro! - sussurrou ao ouvido de Merrick, enquanto ele avançava por entre as mesas. - O que vão dizer as pessoas?

- Acho que já têm o suficiente para falar de si e de mim - disse ao chegar às escadas. - Se estava preocupada com o escândalo, devia ter controlado a quantidade de vinho que consumiu. Parecia uma bêbada.

- Ponha-me no chão! - insistiu. Aquilo fora demasiado longe. - Ponha-me no chão! - repetiu. Ele não o fez, portanto ela esbofeteou-o.

Todo o salão emitiu um suspiro em uníssono e ela apercebeu-se imediatamente da gravidade do que fizera. Embora ele tivesse aguentado a bofetada em silêncio, Constance viu a marca vermelha da sua mão sobre a face dele.

- Milorde... eu... eu...

Sem dizer uma palavra, ele agarrou-a com força e começou a subir os degraus de dois em dois. Ela agarrou-se ao seu pescoço, receando que Merrick a deixasse cair e sentindo-se muito assustada pelo que ia acontecer quando chegassem aos seus aposentos.

- Milorde, perdoe-me!

- Não diga nada, Constance - resmungou. Não diga nada até estarmos sozinhos.

Teria sorte se ele se limitasse a devolver-lhe a bofetada.

Constance deixou cair uma lágrima e depois outra. Se lhe batesse, saberia que era igual ao seu pai e ela não queria que fosse como o seu pai. Queria que fosse o homem que começara a respeitar. A admirar. A...

Então chegaram aos seus aposentos e ele abriu a porta, empurrando-a com o ombro. No meio do quarto, deixou-a no chão. Consternada, atemorizada e ainda um pouco ébria, Constance caiu ao chão.

- Levante-se - ordenou.

- Não... não consigo.

Ele baixou-se e ajudou-a a levantar-se. Segurando-a pelos ombros, lançou-lhe um olhar de cólera. Então, nos seus olhos escuros enormes viu espanto.

- Está a chorar?

- Vai bater-me?

- Eu nunca bati numa mulher! Ela soluçou de alívio.

- Eu nunca a magoaria, Constance. Nunca! sussurrou enquanto a abraçava.

Constance percebeu a sinceridade do seu tom de voz, sentiu-a no seu corpo tenso, e acreditou nele. Ele não ia magoá-la. Nunca.

Então, relaxou e abraçou-o. Fechou os olhos e respirou fundo. Depois apoiou a face contra o seu peito. Sentia-se segura nos seus braços. Protegida.

Ele afastou-se e ela esperou encontrar afecto no seu olhar, contudo, só viu preocupação.

- Vou deixá-la sozinha.

Ela não queria que se fosse embora, por isso manteve os braços à volta do seu corpo.

- É verdade que bebi demasiado vinho. É diferente quando um homem se embebeda. Ninguém o considera inadequado.

O sorriso de Merrick transmitiu-lhe calor.

- Eu nunca me embebedei - disse ele.

- Nunca?

- Não - respondeu, enquanto lhe acariciava a face com a mão. Era uma carícia de homem. A suave carícia de um guerreiro. - Constance - perguntou Merrick, - quer casar-se comigo?

- Como? - perguntou, tentando assimilar o que lhe dissera e não concentrar-se apenas nos seus lábios.

- Estou a perguntar-lhe se quer ser a minha esposa.

Ela não respondeu. Não conseguia. Era-lhe demasiado difícil pensar naquele momento, saber o que dizer.

A expressão de Merrick endureceu. Afastou a mão da sua face e disse:

- Claramente, tem objecções. Talvez devesse encarar isto como uma negativa.

- Sim... não!

Ele levantou as sobrancelhas.

A verdade surgiu com angústia dos seus lábios.

- Não sei o que quero!

- Precisa de mais tempo para tomar uma decisão? Ela agarrou-se àquela sugestão.

-Sim!

- Então, terá mais tempo - respondeu Merrick com uma calma que contrastava com a tempestade que Constance estava a sentir.

No entanto, quando olhou para ele nos olhos, viu neles uma esperança quase desesperada. Significava assim tanto a sua resposta para ele? Seria possível que ele sentisse afecto por ela?

As suas especulações não duraram muito, pois Merrick abraçou-a e beijou-a com paixão, com desejo. Depois percorreu-lhe a face com os lábios até ao ouvido, e sussurrou, esquecendo todas as formalidades:

- Pensei em ti todos os dias, Constance, estivesse onde estivesse, fizesse o que fizesse. Recordava-te sentada no campo, depois da colheita do feno, entre a erva, com o cabelo comprido e solto, observando um bichinho que havia no chão com tanta atenção que nem te apercebias do que se passava à tua volta. Levantaste a mão para pôr uma madeixa de cabelo atrás da orelha e foi o gesto mais gracioso que vi em toda a minha vida.

Merrick segurou-lhe no queixo suavemente.

- Na altura não eras mais do que uma menina, mas eu já sabia que te transformarias numa mulher bela e elegante. Agora descobri que és muito mais do que isso... Mesmo que não tivesse havido nenhum contrato, eu ter-te-ia procurado para que fosses a

minha esposa. Quero casar-me contigo, Constance. Prometo-te que farei tudo o que estiver ao meu alcance para te fazer feliz. Diz-me, Constance, queres casar-te comigo?

Amava-a? Seria possível que a amasse?

- Não quero tomar uma decisão errada e passar o resto da minha vida a lamentá-la - respondeu com sinceridade. - Entendes?

- Respeito a tua franqueza - respondeu Merrick, porém, virou a cabeça como se ela lhe tivesse batido outra vez. - E manterei a esperança de que decidas a meu favor.

- Se fores sempre justo e generoso, acho que poderia fazê-lo - disse Constance e, com delicadeza, fez com que virasse a cara para ela. Depois pôs-se em bicos de pés e beijou-o.

Enquanto ela o beijava e o acariciava, ele devolveu-lhe o beijo e explorou o seu corpo com as mãos. Constance sentiu que todo o seu ódio e todo o seu ressentimento se desvaneciam. A tortura dos seus dias passados desaparecera. Conseguia acreditar que

os seus dias de medo e de preocupação, de ter de controlar cada palavra que dizia e cada um dos seus olhares, de ter de adivinhar cada possível mudança de humor, tinham acabado.

Era livre.

Excitada, exultante e encorajada, desceu as mãos para lhe acariciar a dura prova do seu desejo. Sem parar de a beijar, ele soltou um gemido.

Então Merrick procurou um dos seus seios e, com suavidade, acariciou-o com a palma da mão, enquanto com a outra a agarrava pelo rabo para a manter encostada a ele. Ela abandonou a sua erecção e colocou as mãos debaixo da sua roupa larga e da sua

camisa para lhe acariciar a pele quente, nua. Encontrou um dos seus mamilos e esfregou-o com os nós dos dedos.

Ele interrompeu o beijo e agarrou-lhe na mão.

-Constance!

- O que foi? - perguntou, confusa, sem saber o que fizera de errado. - Não gostas?

Os seus olhos brilharam à luz suave das velas que iluminavam o quarto.

- Demasiado, Constance. A menos que queiras perder a tua virgindade esta noite, devo ir-me embora - disse e, subitamente, afastou-se dela.

Depois de lhe dar um último e rápido beijo, dirigiu-se para a porta e, com um olhar ardente, conseguiu fazer com que o coração dela acelerasse.

- Boa noite, senhora.

Sozinha, Constance aproximou-se da cama e deixou-se cair nela. Meu Deus, o que ia fazer? Devia casar-se com Merrick ou não? Devia obedecer à sua cabeça, que lhe dizia que seguisse o caminho da cautela e que recusasse, ou seguir o seu desejo e aceitar?

 

Três dias depois, Merrick saiu para o pátio acompanhado de Ranulf e Henry, para receber lorde Jowan, senhor do feudo de Penderston, a oeste de Tregellas, e o seu filho Kiernan, que acabavam de chegar.

Lorde Jowan, um homem robusto de cabelo grisalho e faces coradas, montava um bonito cavalo castrado, e o seu filho, um jovem esbelto de pele pálida, loiro e com um rosto atraente, um excelente corcel. Vinham acompanhados por uma tropa de vinte homens, que claramente estavam à espera Que o seu senhor lhes fizesse o sinal de que podiam desmontar.

- Bem-vindos a Tregellas - disse Merrick, sem prestar atenção ao olhar fixo e escrutinador do nobre e à expressão altiva do seu filho. - Suponho Que tenho a honra de cumprimentar lorde Jowan de Penderston e o seu filho.

- Certo, milorde, certo - respondeu lorde Jowan, com uma voz grave e afável.

Merrick não a reconheceu, nem o homem.

Lorde Jowan ordenou aos seus soldados que desmontassem e os nobres fizeram o mesmo. Merrick observou o jovem e apercebeu-se de que fora a Tregellas completamente armado e com a cota de malha. Interessante, sobretudo tendo em conta que o seu pai não o

imitara.

- Fico contente com o seu regresso a Tregellas, milorde. Espero que se lembre de mim.

- Lembro-me - mentiu Merrick. Se alguma vez vira lorde Jowan, não o recordava. No entanto, não viu nenhuma razão para o dizer. - Apresento-lhe os meus amigos, sir Henry e sir Ranulf. Armaram-se cavaleiros comigo, sob a tutela de lorde Leonard de Brissy.

- Eu também me lembro de si, milorde - interveio Kiernan num tom de voz que deixou claro que não devia sentir-se lisonjeado por isso.

Ele também não se lembrava de Kiernan, contudo, aquilo não era nada surpreendente. Merrick perguntou-se quantas vezes teriam visitado Tregellas, antes e depois de ele ter partido. Desconfiava que não muitas.

Por outro lado, Kiernan devia ter a mesma idade que Constance, mais ou menos, e ela era suficientemente atraente para fazer com que os homens arriscassem muito para estar ao seu lado. Kiernan era jovem, de uma família proeminente e, claramente,

contava com o amor do seu pai. Não tinha rugas de preocupação por pecados antigos na testa e, certamente, nenhum segredo se interpunha entre ele e a mulher que ele amava.

Onde estaria Constance naquele momento? Na cozinha?

Na despensa? Como cumprimentaria ela aqueles visitantes?

Merrick recordou-se que era ele, e não Kiernan, que estava comprometido com Constance, e que ela ainda não o rejeitara. Tinha de controlar os ciúmes e não permitir que a sua expressão traísse as suas emoções.

- Por favor, acompanhem-me à sala - disse aos seus convidados.

Assim que entraram, Demelza apressou-se a levar-lhes vinho, pão e queijo, sem que ninguém tivesse de lhe pedir. Constance ensinara bem os criados.

Houve um momento de silêncio embaraçoso, enquanto esperavam pelo lanche, que Henry quebrou finalmente.

- Conte-nos, lorde Jowan, a sua família tem terras na Cornualha há muito tempo?

- Desde antes da Conquista - respondeu o nobre, com a sua voz cheia de orgulho.

- A sério? E William não destruiu a sua linhagem? Pergunto-me como aconteceu isso.

- Por um casamento, senhor - respondeu lorde Jowan com cara de poucos amigos. - Uma das mulheres da família casou-se com um normando. Assim pudemos conservar as terras. E como conseguiu a sua família as suas terras em Inglaterra?

- Perdoe-me se o ofendi, milorde - disse Henry, enquanto Merrick tomava nota, em silêncio, de como era fácil ferir o orgulho de lorde Jowan. - Só perguntei devido à minha curiosidade natural.

Ranulf assentiu.

- Está sempre a perguntar aos nobres como conseguiram as suas terras, porque ele não tem nada - explicou a lorde Jowan.

Henry sorriu.

- Infelizmente, lorde Jowan, isso é verdade. A minha família não tem nada em Inglaterra. Tínhamos terras na Normandia, mas o meu pai perdeu tudo por causa de umas alianças imprudentes e de uma tendência incontrolável para as apostas. O meu irmão tem

um lindo feudo na Escócia, embora a mim, isso não me sirva de nada - continuou a explicar e depois lançou um olhar cheio de esperança ao nobre. - Por acaso, não conhece nenhuma donzela com terras na Cornualha, ou uma viúva que precise de um marido?

Lorde Jowan deixou de franzir o sobrolho e riu-se.

- Não, não conheço nenhuma, mas se a conhecesse apresentar-lha-ia.

Era orgulhoso, porém, não era rancoroso.

No entanto, o filho lançou um olhar de condenação ao pai. Merrick perguntou-se se o jovem teria um orgulho ainda mais feroz do que o seu pai ou se, simplesmente, se sentia ódio pelos normandos. Ou talvez apenas não gostasse de Henry e do seu encanto espontâneo.

- Com as suas maneiras, não permanecerá solteiro e sem terras durante muito tempo - garantiu lorde Jowan a Henry. Aparentemente, não reparara na reacção do seu filho. - Surpreende-me que uma mulher ainda não o tenha apanhado.

- Estou à espera de me apaixonar - disse Henry com um sorriso. - O meu irmão e a minha irmã recomendaram-me isso como requisito para o casamento.

- E o senhor, milorde? - perguntou Kiernan a Merrick. - Considera que o amor é um requisito importante para o casamento?

Merrick deu-lhe uma resposta honrada. -Não.

Aquela negativa tão clara provocou outro silêncio incómodo, até que Kiernan falou novamente.

- Onde está lady Constance?

- Não sei - respondeu o senhor de Tregellas. Kiernan levantou-se.

- Então, se me desculpar, vou ver se a encontro. Somos amigos há muito tempo e gostava de lhe desejar felicidades para o seu casamento, depois de todos estes anos de espera.

Henry e Ranulf olharam um para o outro e Merrick sorriu ligeiramente.

- Tem a minha permissão para ir procurá-la.

- Obrigado, senhor - respondeu o jovem. Depois inclinou-se para ele e saiu da sala.

- Ficarão até ao casamento? - perguntou Merrick a lorde Jowan. - Eu gostava de conhecer melhor os meus vizinhos.

- Ficaríamos com muito prazer, mas não trouxemos bagagem - respondeu lorde Jowan com um pouco de insegurança. - Na verdade, milorde, não estava à espera de um convite tão amável da parte do senhor de Tregellas.

- Podemos enviar os criados para irem buscar ao vosso castelo tudo o que precisarem.

Parecia que Lorde Jowan não sabia se devia sentir-se agradado ou desconfiado. Finalmente, decidiu sentir-se agradado.

- Ficaremos, milorde, e com muito gosto.

-Constance!

Sobressaltada e desgostada, Constance levantou-se rapidamente. Assim que se informara de que lorde Jowan e o seu filho estavam na ponte levadiça e, sabendo que o padre estava a visitar os doentes da vila, refugiara-se no seu trabalho de bordado na

pequena capela do castelo. Queria evitar Kiernan, os seus suspiros e os seus olhares apaixonados até ter de se encontrar com ele por obrigação no jantar daquela noite.

- O que estás a fazer aqui? - perguntou, enquanto ele se aproximava apressadamente. - Tens de sair daqui agora mesmo!

- Tinha de falar contigo. Ninguém me viu.

- Não podes ficar aqui. Se te apanharem... -Amo-te! - exclamou e tentou abraçá-la. Constance afastou-o. Aquilo não era amor. Aquilo

era loucura ou um acto de uma pessoa egoísta e imatura. Um homem que a amasse não a poria em perigo de perder a sua reputação quando já estava comprometida com outro homem.

- Se realmente me amas, tens de sair daqui disse. - O que pensaria Merrick desta situação? E o meu tio? Poderiam pensar que te chamei aqui.

Kiernan olhou para ela com os olhos brilhantes de esperança.

- E o que aconteceria? Apenas teríamos de nos casar, mais nada.

- Não quero ser forçada a casar-me com ninguém e preferia que nada pudesse manchar a minha honra - respondeu. - E se Merrick te encontra aqui, terás sorte se conseguires escapar com vida.

- Não quero saber!

- Mas eu quero! Não pensaste no que poderia acontecer-me? Com escândalo ou sem escândalo, Merrick poderia casar-se comigo, mas sempre pensaria que o traíra. Que vida teria eu então?

- Podes rejeitá-lo - disse Kiernan. - Porque não o fizeste já? Não podes sentir-te obrigada a executar um contrato que foi assinado quando tu eras uma menina e não podias expressar a tua vontade.

- Deixa-me, Kiernan.

- Não percebes, Constance? Ele só quer o teu dote e o poder de uma aliança com a tua família. Vai tratar-te mal e fazer-te infeliz. Eu nunca faria isso, nunca! - Kiernan agarrou-a pelos ombros e abraçou-a. - Amo-te, Constance, e sei que tu me amas.

Constance sentiu raiva, desgosto, indignação e repugnância, e contorceu-se até que conseguiu libertar-se de Kiernan.

- Eu não te amo e nunca te amei. Agora vai-te embora e não voltes a tentar falar comigo a sós.

Kiernan olhou para ela com espanto e os seus olhos encheram-se de lágrimas.

- E os sorrisos, as horas felizes que passámos a conversar, e a tua alegria quando eu vinha visitar-te?

- Gostava da tua companhia, como gostaria da companhia de qualquer amigo. Agora, por favor, vai-te embora.

- Não acredito que queiras casar-te com ele insistiu Kiernan. - Sentes-te obrigada pela palavra do teu pai e pela necessidade de proteger as pessoas de Tregellas.

- Não presumas saber o que sinto. A única coisa que tens de saber é que, mesmo que fosse livre, não me casaria contigo.

Quando Kiernan baixou a cabeça, a raiva de Constance transformou-se em compreensão. Por causa da amizade que partilhavam, falou-lhe com gentileza.

- Quero que sejas feliz, Kiernan. Quero que tenhas uma mulher que te ame com toda a sua alma. Eu não sou essa mulher. E agora, por favor, vai-te embora antes que as nossas vidas fiquem destruídas.

- Não me dás nenhuma esperança, Constance?

- perguntou.

- Não - respondeu Constance com firmeza, mas sem crueldade, enquanto se aproximava da porta para ver se alguém estava por perto.

A expressão de Kiernan endureceu.

- Algum dia gostarás de ter a minha companhia novamente - disse e saiu apressadamente da capela.

Suspirando, Constance pegou no seu trabalho. Já não tinha de se esconder ali. Oxalá Kiernan e o seu pai não tivessem ido a Tregellas! Seria melhor que estivessem em Londres ou na peregrinação a Roma.

Saiu da capela e, ao passar junto da torre de homenagem, viu Beatrice sentada no pequeno banco de pedra do jardim.

A sua prima tinha a cabeça baixa e a face apoiada numa mão. Era a viva imagem da tristeza. Aquilo era tão impróprio de Beatrice, que Constance se dirigiu apressadamente para o banco onde estava a sua prima.

Não era um grande jardim, pois lorde William sempre o considerara uma despesa inútil. Havia três roseiras que tentavam subir pelo muro e um pequeno grupo de flores começara a brotar.

A sua preocupação aumentou ao aperceber-se de que Beatrice não reparava na sua proximidade.

- Beatrice? - perguntou Constance suavemente, enquanto se sentava ao seu lado. - O que se passa? Estás doente?

Beatrice olhou para ela e abanou a cabeça com tristeza.

- Não estou doente. Estou um pouco angustiada. Constance, achas que poderia ficar aqui contigo um pouco depois do teu casamento e não ir logo para casa com o meu pai?

Antes que Constance pudesse responder, Beatrice continuou a explicar.

- Não terei ninguém que me faça companhia, excepto Maloren, e ela fala tanto que vai enlouquecer-me.

- Pensava que gostavas de Maloren.

- Oh, gosto muito dela! - exclamou Beatrice.

- Mas também quero aprender como ser uma boa senhora, como tu, para quando me casar. Importas-te que fique?

- Receio que essa decisão não seja minha - respondeu Constance lentamente. - Teria de perguntar a Merrick.

Beatrice juntou as palmas das mãos num gesto de súplica.

- Podes falar com ele? Por favor, fá-lo por mim... Tenho a certeza de que dirá que sim se tu lhe pedires!

A sua prima estava tão esperançada, que Constance não conseguiu dizer-lhe que não.

- Está bem, eu falo com ele.

- Oh, obrigada! - exclamou Beatrice e abraçou-a efusivamente.

De repente, Constance sentiu uma pontada de apreensão ao perguntar-se se sir Henry teria alguma coisa que ver com aquele desejo de Beatrice.

Não era possível que tivesse estado tão perdida nas suas próprias preocupações para ter descuidado a sua jovem e impressionável prima. Constance ficaria desgostada se Henry, ou qualquer outro homem, desonrasse ou enganasse a sua prima.

- Compreendo que queiras ficar aqui - disse com delicadeza. - Talvez a presença de pessoas jovens como Ranulf e Henry seja um divertimento. Parece que eles desfrutam da tua companhia.

- E eu gosto da companhia deles! - admitiu Beatrice. - São muito divertidos, embora de forma diferente, claro. Henry esteve por toda a Inglaterra e na Escócia, com o seu irmão. Também conhece o País de Gales. Esteve muitas vezes na corte e conheceu pessoas muito importantes - explicou. Então suspirou. - Devem achar-me terrivelmente ignorante.

Constance sabia muito bem que alguns homens do mundo gostavam de raparigas ignorantes, precisamente por o serem.

- Ele é alguns anos mais velho do que tu disse. - É um homem encantador e agradável. Infelizmente, receio que sir Henry também é capaz de seduzir uma mulher só para se divertir.

Beatrice olhou para Constance.

- A mim? Tu achas que quer seduzir-me? - perguntou, sem conseguir evitar esboçar um sorriso.

Aquela não era a reacção que Constance queria presenciar.

- Isso não é nada bom. Beatrice desviou o olhar.

- Não, não, claro que não. Só que nunca teria imaginado... - respirou fundo. - Tu achas que só estava a ser agradável comigo porque queria seduzir-me?

Constance passou o braço pelos ombros esbeltos da sua prima.

- Não quero desiludir-te e é possível que esteja enganada, mas tu já não és uma menina. Transformaste-te numa jovenzinha muito bonita e nós não sabemos muito a respeito de sir Henry. Nem de sir Ranulf.

- Mas eles são amigos de Merrick.

- De qualquer forma, não podemos estar certas da sua moralidade, sobretudo se tu estiveres aqui para os tentar. Seria terrível que um cavalheiro encantador te desonrasse.

- Sim, eu entendo - respondeu Beatrice lentamente. Novamente, abraçou-se à sua prima. - És tão boa para mim... como outra mãe. Quando estiveres casada e muito ocupada com os teus próprios filhos, vou ter muitas saudades tuas.

Constance soltou-se suavemente dos braços de Beatrice.

- Estarei casada, não morta - disse, com a esperança de que aquilo não acontecesse em breve. - E agora, vamos para dentro. Tenho a certeza de que lorde Jowan está a perguntar-se onde estás. Tu sempre foste uma das suas pessoas favoritas.

Beatrice riu-se e a sua alegria habitual voltou a reflectir-se nos seus olhos.

- Também gosto dele. Ouve sempre tudo o que digo, mesmo que sejam tolices.

- Este tal Kiernan... - murmurou Henry naquela noite, enquanto estava sentado na sua cama, no pequeno quarto que partilhava com Ranulf. - O que pensas dele?

Ranulf encolheu os ombros.

- Nada, na verdade. O seu pai parece agradável e mais disposto a ficar do lado de Merrick do que ser seu inimigo.

- Vou dizer-te o que eu penso. O rapaz está apaixonado por lady Constance, ou pelo menos, pensa que está.

Ranulf soltou uma gargalhada desdenhosa.

- Porque pensas isso?

- Por causa da forma como olha para ela. Parece que está a jurar-lhe devoção eterna.

- E, caso tenhas razão - disse Ranulf, com cautela, - achas que ela corresponde aos seus afectos?

- Esse é o problema. Não sei. Mas se lhe corresponde, então é óbvio que Merrick não deve casar-se com ela, com dote ou sem dote. Não quero que tenha uma esposa adúltera.

- E Deus sabe que tu tens muita experiência com esse tipo de esposas.

- Por esse motivo não quero que Merrick se case com uma mulher que vá traí-lo. A honra e o dever são tudo para ele e se sofrer uma desonra...

- Seria um desastre - concordou Ranulf, assentindo. - Mas também é possível que estejas a ver um problema onde não há. Que mulher, com um mínimo de bom senso, preferiria o jovem Kiernan a Merrick? E eu não vejo sinais de que ela corresponda à teimosia desse rapaz.

Henry deitou-se na cama, de costas, e apoiou a cabeça na mão enquanto observava Ranulf.

- Não confio nela, nem em Kiernan.

Ranulf também não, porém, deviam falar a Merrick das suas suspeitas? E se aquilo causasse ainda mais fricção entre o seu amigo e a sua prometida? Porque era óbvio que existia fricção. Afinal de contas, que provas tinham para a acusar? E se Henry estivesse enganado?

- Se descobrirmos que lady Constance sente alguma coisa por Kiernan, devemos avisar Merrick - disse então.

- Mas por enquanto, devíamos guardar as nossas suspeitas para nós.

Henry não ficou contente com a sua resposta.

- Não quero que Merrick cometa um erro e se case com uma mulher que lhe arruine a vida.

- Nem eu. Mas também não quero criar desconfiança se não houver motivo para isso.

- Porque ele a ama - disse Henry. Ranulf não disfarçou a sua surpresa.

- Ele disse-te isso?

- Não. Nem uma palavra. Mas conheço-o há quinze anos e já o vi com outras mulheres. Nunca foi tão atencioso com nenhuma. Para além disso, não ofereceu a lady Constance a possibilidade de quebrar o seu compromisso. Se não a amasse, tê-lo-ia feito.

- Ena, Henry, acho que tens razão - disse Ranulf, espantado.

- Acho que devemos vigiá-la - sugeriu Henry. Temos de ver se se encontra com Kiernan em segredo ou se há outros sinais de que ela corresponda aos seus sentimentos. Vou dizer-te o que pensei: podíamos usar Beatrice.

Ranulf ficou tenso.

- Como?

- Tenho um plano perfeito. Eu vou estar demasiado ocupado para passar tempo com lady Beatrice e vou sugerir que Kiernan jogue xadrez com ela, ou que a acompanhe para montar a cavalo. Assim, poderemos ver se lady Constance fica de mau humor, ou se fica aliviada com a ausência do rapaz.

- Não sei se isso é boa ideia - disse Ranulf lentamente.

- É claro que é boa ideia - insistiu Henry. Queres que Merrick seja feliz, não é?

-Sim.

- Então, vamos certificar-nos de que lady Constance não lhe parte o coração.

Ranulf não mostrou o seu desacordo nem revelou as suas objecções ao plano de Henry.

No entanto, não se sentia muito entusiasmado ao pensar que Henry ia incentivar Kiernan a fazer companhia à bela e faladora Beatrice.

Ao mesmo tempo que Henry estava a falar sobre as suas preocupações com Ranulf, lorde Jowan estava a falar com o seu filho no quarto que usariam durante a sua estadia em Tregellas.

- Meu Deus, utiliza o bom senso! - exclamou o nobre, olhando para o seu filho com irritação e angústia ao mesmo tempo. - Filho, tens de disfarçar os teus sentimentos ou esse homem vai matar-te.

Kiernan levantou a cabeça e olhou para o seu pai com uma expressão funesta.

- Como posso evitar amá-la?

- É melhor que o faças - disse lorde Jowan, sentando-se em frente ao seu filho. - Vão casar-se e não podes fazer nada para o evitar.

Kiernan levantou-se e começou a passear pelo quarto.

- Nem sequer lhe presta atenção - resmungou enquanto batia na palma da mão com o punho.

- Tu mesmo pudeste comprová-lo esta noite. Mal lhe dirigiu a palavra.

- Mal dirigiu a palavra a alguém.

- Não quero saber do contrato que assinaram. Ele não a merece.

Lorde Jowan levantou-se também e pôs-se em frente ao seu filho para o impedir de andar de um lado para o outro.

- Independentemente do que pensamos dele, há um acordo de casamento, e as únicas pessoas que podem rompê-lo são lorde Merrick e lady Constance.

- Sabes que ela não vai fazer isso - murmurou Kiernan, deitando-se na cama. - A honra da sua família é demasiado importante para ela e está ansiosa por evitar que os vassalos sofram. Olha tudo o que suportou com William, o Infame.

- Mas quem és tu para interferir na sua decisão? Constance deu-te alguma razão para pensares que quer romper este acordo? Disse-te alguma vez que te ama e que quer casar-se contigo?

Kiernan não conseguiu olhar para o seu pai nos olhos.

- É possível que ainda não me ame, mas com o tempo...

- Isso não chega - interrompeu-o o seu pai. - Se não te ama, não devias tentar meter-te entre lorde Merrick e ela.

Kiernan levantou a cabeça e olhou para lorde Jowan. A sua expressão reflectia consternação e angústia.

- Preferia morrer a vê-la casada com aquela besta.

Naquele momento, o nobre sentiu verdadeiro medo pelo seu obstinado e querido filho.

- Se o desafiares, morrerás. Ouve-me, Kiernan. Se interferires neste casamento, se desafiares Merrick, matar-te-á sem remorsos. Como poderias ajudar então Constance? Como a trataria ele depois se pensasse que havia alguma coisa entre vocês, quando na verdade, não existe nada? Seria justo ou bom para ela? - perguntou. Imediatamente, a ferocidade do seu filho acalmou. - Meu filho, ela tem o direito de não aceitar o casamento se não o desejar, e tu sabes tão bem como eu que Constance não é uma

mulher que possa ser forçada a casar-se. Se se casar com esse homem, será porque quer fazê-lo.

- Não. Será porque está preocupada com os vassalos e os aldeãos.

- Seja qual for o motivo, se a amas e a respeitas, não piores as coisas para ela, nem sequer com a melhor das intenções - rogou o seu pai.

- Não consigo suportar pensar que vai casar-se com aquele patife normando.

- Eu sei, eu sei, meu filho - disse o seu pai com suavidade. No fundo do seu coração sentia dor ao ver o seu filho a sofrer. - Mas se a amas de verdade, tens de permitir que escolha o seu futuro por si mesma. Ouviste-me, Kiernan?

Kiernan assentiu.

- Dás-me a tua palavra de que não interferirás? Novamente, Kiernan assentiu.

- Então, pára de pensar nisso e vamos dormir rogou o seu pai. - Se Constance quiser que a ajudemos, tenho a certeza de que nos pedirá ajuda.

Kiernan começou a despir-se obedientemente. Depois lavou-se e deitou-se.

No entanto, não conseguiu adormecer.

 

Constance levantou a vista do seu trabalho e olhou para Beatrice, que estava sentada em frente a ela, trabalhando numa toalha para o altar da capela. Bordava com desinteresse e Constance pensou que, daquela forma, a toalha não estaria acabada nem dentro de um ano. Para além disso, Beatrice estivera em silêncio desde que se sentara.

- Sei que estás triste por não teres podido ir à caça, Beatrice - disse Constance, tentando consolá-la. - Mas a sério, há demasiada lama para que possamos cavalgar. Tenho a certeza de que haverá mais oportunidades. Precisaremos de muita carne para o copo-d'água do casamento.

Casamento que se celebraria dentro de uma semana.

Uma semana. Aquele era todo o tempo de que Constance dispunha para decidir se queria casar-se ou não com o senhor de Tregellas. Aquela decisão sempre lhe parecera muito fácil e, no entanto, nos últimos dias transformara-se na decisão mais difícil da sua vida.

Beatrice suspirou como se a vida fosse demasiado trágica para ela e olhou para a sua prima com melancolia.

- Oxalá não tivesse chovido ontem à noite.

- Estamos na Cornualha - replicou Constance com um sorriso benevolente. - Para além disso, o céu já está limpo. Se continuar a fazer bom tempo, talvez possamos ir andar a cavalo hoje à tarde.

Naquele momento, ouviram o som dos cascos dos cavalos a entrarem no pátio do castelo e as vozes dos homens. Imediatamente, Beatrice levantou-se com um salto, sorrindo, encantada.

-Já voltaram!

Constance deixou o seu trabalho e levantou-se também, mas com mais calma.

- Que estranho. Saíram há pouco tempo. Espero que não...

De repente, as portas do grande salão abriram-se de repente e Merrick, com o cabelo despenteado e uma expressão de irritação, entrou apressadamente. Tinha a manga do braço direito encharcada em sangue.

- O que aconteceu? - gritou Constance, correndo para ele, enquanto o resto do grupo entrava no salão. - Houve um ataque?

- Não - respondeu Merrick, enquanto continuava a andar para as escadas sem sequer se dignar a olhar para ela.

Então, fora um acidente de caça, ou talvez o ataque de um javali enfurecido.

- Vou buscar os meus remédios para tratar da sua ferida.

Aquilo fez com que ele parasse.

- Não. Eu trato disto sozinho - resmungou e seguiu o seu caminho.

Constance ficou imóvel, espantada com aquela resposta tão áspera. Naquele momento, Henry apareceu ao seu lado.

- Apanhámos um javali. Talek feriu Merrick no braço com a sua lança e é por isso que está tão irritado. Não me parece que a ferida seja grave. No entanto, não sei o que pensaria se tivesse visto Merrick a gritar e a amaldiçoar Talek e tudo o que se aproximasse dele. Não fique triste, senhora disse Henry suavemente a Constance, ao ver que ela fechava os olhos, imaginando a cena e recordando os gritos de raiva do anterior senhor de Tregellas. - Garanto-lhe que não está gravemente ferido e que se comporta sempre assim quando está doente ou ferido. Detesta que as pessoas se preocupem com ele.

- Henry tem razão - afirmou Ranulf, que se aproximara deles. - Ele é mesmo assim. Mas não é parvo, se pensasse que a ferida era grave, mandaria chamar o curandeiro.

Constance conhecia bem o seu dever como senhora. Tinha de cuidar dos homens feridos e não confiar a sua saúde ao destino ou à habilidade duvidosa de um curandeiro.

- Eu mesma vou curar lorde Merrick - disse.

- Está muito zangado, Constance - disse lorde Algernon com cautela, - e se os seus amigos pensam que é melhor deixá-lo sozinho...

- O meu dever é tratar dele.

O comandante da guarnição, mais pálido do que ela alguma vez o vira, aproximou-se apressadamente dela.

- Por favor, senhora, diga-lhe que foi um acidente - rogou Talek a Constance. - Estava a apontar para o javali e ele meteu-se no meu caminho.

Constance pôs-lhe a mão sobre o ombro para o reconfortar.

- Não te preocupes. Certificar-me-ei de que entende.

Com o tempo, e se Merrick não fosse verdadeiramente como o seu pai, que conseguia guardar rancor a uma pessoa para o resto da sua vida, perdoaria o seu comandante.

Constance dirigiu-se rapidamente para os seus aposentos para ir buscar os seus remédios, as agulhas e o fio de que precisaria para coser a ferida de Merrick e as tiras de linho limpo para fazer a ligadura. Beatrice, ansiosa, apareceu à soleira da sua porta.

- Posso fazer alguma coisa?

Aquela podia ser uma boa oportunidade para que a sua prima aprendesse um pouco acerca do cuidado de um homem ferido.

- Pede a algum criado que leve água quente aos aposentos de lorde Merrick.

Beatrice assentiu e saiu a correr.

Constance, por sua vez, encaminhou-se para o quarto de Merrick, contudo, quando chegou à porta, hesitou. O que aconteceria se fosse como o seu pai quando tinha um dos seus ataques de raiva?

Se ele fosse assim, quanto mais depressa descobrisse, melhor.

Respirou fundo e bateu à porta com energia.

- Quem é? - perguntou Merrick.

- Constance. Vim ajudá-lo.

A porta abriu-se completamente. Merrick, seminu, abriu a porta. Estava despenteado e tinha os olhos brilhantes. O corte que tinha no braço estava a pingar sangue.

- Não quero que ninguém me ajude - disse com um gemido.

- Não quero saber - respondeu Constance com determinação. - Vou coser essa ferida antes que te esvaias em sangue.

- Não preciso de ser cosido.

- Talvez sim, talvez não - disse, enquanto entrava no quarto.

Enquanto deixava a sua cesta de remédios na mesa, viu uma bacia cheia de água ensanguentada, a camisa de Merrick, encharcada em sangue, estava no chão, e que havia umas tiras de tecido na cama.

- Como fizeste essas ligaduras? - perguntou. Com os dentes?

- Já te disse que eu sei cuidar de mim. Ela aproximou uma cadeira da bacia.

- Não vou sair daqui enquanto não te ajudar. Não podes coser a ferida sozinho, portanto será melhor que te sentes e me deixes fazer isso.

- O corte não é assim tão profundo. Constance pôs-se de joelhos.

- Suponho que também não queres o unguento que trouxe, que tem a propriedade de parar as hemorragias, que acelera a cicatrização e que alivia a dor. És assim tão obstinado?

Depois de um momento em que ambos se observaram com um olhar feroz e determinado, Merrick, finalmente, e para alívio de Constance, deixou-se cair sobre a cadeira e estendeu o braço.

- Está bem. Dou-te permissão para que me toques.

Que arrogância!

Então, Merrick olhou para ela.

- Tu disseste-me que tinha de pedir permissão para te tocar, portanto, parece-me justo que tu também precises de consentimento para me tocar.

Ela arqueou uma sobrancelha com desprezo enquanto pegava no braço dele e o virava suavemente para examinar a ferida. Felizmente, não era profunda. O funcionamento da mão e do braço não seria afectado.

- Talek mantém a lança afiada. Isso é bom sinal.

- Bom sinal? Aquele homem podia ter-me matado.

- Uma ferida rasgada é pior do que uma ferida limpa - replicou. Depois levantou a cabeça e, ao olhar para ele, apercebeu-se de que estava um pouco pálido. - Mas, já que tu mesmo curas as tuas feridas, devias saber disso.

- Constance?

Beatrice, mordendo o lábio, apareceu no quarto, com uma bacia de água quente e mais tecidos limpos no braço.

- Ah, excelente - disse Constance, aproximando-se rapidamente da sua prima para pegar na água e nos tecidos.

Beatrice parou ao ver a expressão de Merrick.

- Meu Deus, tenho de ter público? - perguntou, irritado.

Talvez aquela não fosse a melhor ocasião para que Beatrice aprendesse a curar as feridas de um guerreiro.

- Obrigada, Beatrice. Podes sair.

Beatrice assentiu e desapareceu imediatamente.

- Não precisavas de ser tão grosseiro, mesmo que tenhas dores. Beatrice só queria ajudar - disse Constance num tom reprovador.

Merrick fez uma expressão de dor quando ela começou a lavar-lhe a ferida.

- Gostavas que um soldado olhasse para ti enquanto eu te curava uma ferida no braço?

- Beatrice tem o dever de aprender a cuidar dos homens feridos. Se não o fizer, como poderá cuidar do seu marido e dos seus filhos, ou dos cavaleiros que estejam ao seu cuidado, se estiverem feridos?

- Terá de aprender com outro.

Constance apertou os lábios, concentrada na tarefa de limpar a ferida. Merrick ficou imóvel, sem fazer um único gesto, quando ela começou a coser o corte. Pelo menos, o seu estoicismo não era fingido.

- Já me apercebi, Constance, de que o mordomo te tem em grande estima - disse, enquanto ela, com cuidado, empurrava a agulha através da sua pele.

- É um amigo em quem confio - respondeu, mordendo o lábio enquanto puxava o fio para dar o primeiro ponto.

- Entendo o motivo. Parece que é um homem honesto e de confiança.

- Sim, é verdade - confirmou Constance.

Constance tentava conseguir a máxima concentração enquanto trabalhava e pensou em pedir-lhe que se mantivesse em silêncio, no entanto, depois apercebeu-se de que, talvez, Merrick estivesse a fazer conversa para se abstrair da dor.

- Vi uma casa na vila - continuou, - que não estava lá quando eu era menino. É um edifício muito grande, de pedra, com uma galeria de madeira.

- É de Ruan, o teu aguazil. Mandou-a construir há três anos.

- Não te agrada. Porquê?

Ela encolheu os ombros enquanto dava outro ponto.

- Embora não haja provas de que não tenha sido honrado alguma vez, por vezes tem um comportamento esquisito... Fala de uma forma ambígua, como se estivesse a enganar-te e tu estivesses consciente disso, mas não conseguisses descobrir como ou em que questão.

- Portanto o teu problema contra o aguazil apoia-se somente numa sensação.

Como poderia Constance ter provas se Ruan era ou não honrado?

- Sim.

- Não posso despedir um homem com base numa sensação, sobretudo porque ainda não vi nada que pudesse denunciá-lo como ladrão.

- Perguntaste-me o que pensava e eu dei-te a minha opinião - respondeu, desiludida por ele não ter a sua resposta em conta.

- Algumas vezes, um sentimento é uma advertência e vale a pena prestar-lhe atenção. Por causa da tua aparente desconfiança, revi as contas minuciosamente. No entanto, não encontrei nada estranho.

Concentrada na sua tarefa, Constance sentiu uma satisfação inesperada ao ouvir as palavras de Merrick. Lorde William desprezara sem dissimulação todas as suas opiniões e Constance sabia que, embora o seu tio a ouvisse, tinha as suas observações em pouca estima.

- Talvez - sugeriu, - esteja tão preocupado, com medo de que alguém consiga descobri-lo que tenha tido muito cuidado. Essa não é a melhor razão para desconfiar de um homem, mas...

- Mas explicaria porque não encontro nada questionável nas contas, embora ele não pareça digno de confiança.

- E talvez eu não devesse condenar um homem só pela sua aparência.

Merrick tremeu. Ela olhou para ele na cara e apercebeu-se de que estava cada vez mais pálido.

- Lamento muito.

Merrick fez um gesto negativo com a cabeça.

- Já tive feridas piores e não contava com os cuidados de uma enfermeira tão encantadora e cuidadosa.

Ela corou, enquanto fazia o último ponto e tentava não se deixar afectar pela sua proximidade.

Nem observar o seu cabelo despenteado, ou deixar-se excitar pela sua voz baixa, áspera, tão perto do seu ouvido. Nem distrair-se com os seus lábios, a poucos centímetros de distância.

- Muito bem - observou, enquanto ela acabava de coser a ferida. - Não voltarei a rejeitar a tua ajuda.

- Muito obrigada. No entanto, tenho de te dizer que não te permiti que a rejeitasses - disse, enquanto punha o unguento de ervas medicinais sobre a ferida. - Felizmente, é preciso um pouco mais do que um humor de cães e umas palavras desagradáveis

para impedir que eu faça alguma coisa que considere necessária.

- Parece que sim. Terei isso em conta.

Enquanto o cheiro a menta do unguento se estendia pelos seus aposentos, ela começou a ligar-lhe o braço, pensando que seria melhor acabar com aquilo o mais depressa possível.

- Antes que te deites, terás de mudar a ligadura e aplicar novamente o unguento. Também terás de o fazer outra vez de manhã.

Depois de Constance atar a ligadura, ele levantou-se sem dizer uma única palavra e aproximou-se do baú de madeira do seu quarto. Levantou a tampa e, ao baixar-se para tirar uma camisa lavada, cambaleou ligeiramente, como se estivesse enjoado.

"Tolo, orgulhoso e obstinado", pensou Constance com indulgência, dirigindo-se apressadamente para ele, ignorando as tentativas de Merrick por a afastar do seu lado. Às vezes, os homens comportavam-se como crianças, pensou Constance.

- Senta-te antes que caias - ordenou Constance.

- Aqui não há ninguém que tenhas de impressionar com a tua força e a tua dignidade.

- Excepto tu.

- Eu já estou impressionada. Agora, senta-te. Ele tirou a camisa e depois, obedientemente, deixou-se cair aos pés da cama.

- És sempre assim tão teimosa? - perguntou. Ela voltou para a mesa e começou a guardar as ligaduras na cesta.

- Quando estou a lidar com um homem obstinado, sim.

- Eu não sou obstinado.

Constance olhou para ele com cepticismo.

- Eu não gosto que se preocupem comigo.

- Já me tinham dito.

Depois de arrumar os seus utensílios e de os colocar ordenadamente na cesta, Constance começou a limpar o quarto, deitando fora a água ensanguentada e os panos que usara para limpar a ferida.

- Espero que não guardes rancor de Talek pelo que aconteceu hoje - disse enquanto trabalhava. É um bom soldado e muito leal.

- Ocupar-me-ei de Talek no seu momento.

A voz de Merrick tinha um tom tão severo e inflexível que ela ficou gelada.

- O que vais fazer?

- Terá de sair de Tregellas antes que anoiteça e nunca mais poderá voltar.

Ela olhou fixamente para ele, horrorizada, pois a sua reacção fora implacável.

- Mas... Porquê? Porque falhou e te acertou em vez de acertar no javali? Garanto-te que Talek é um bom homem.

Merrick levantou-se e olhou para ela, frustrado e impassível.

- É possível que Talek seja um bom soldado, mas, como comandante da guarnição, tem o controlo dos soldados e da defesa deste castelo. Se tiver a menor dúvida sobre as suas habilidades, a sua lealdade ou o seu desejo de me proteger, a mim e aos meus,

não pode ficar aqui e terá de partir. É o melhor.

- Que motivo teria ele para querer fazer-te mal?

- Não sei. -Então, porquê...

- Porque me feriu. Quisesse fazê-lo ou não, eu não posso ignorar o que aconteceu e deixar passar uma situação como esta.

- Mas... expulsá-lo daqui, envergonhar um homem tão leal...

- O que queres que faça? Que o despromova? Que o transforme num soldado raso? Não seria isso muito mais vergonhoso para ele?

Constance teve de admitir que aquilo era verdade. No entanto...

- Ele não queria matar-te, tenho a certeza disso.

- Estás suficientemente convicta para arriscar a tua vida, a minha e a de toda a gente de Tregellas? Lamento muito, Constance, mas eu não tenho assim tanta fé nele. Terá de se ir embora.

Era óbvio que Merrick não levava as suas opiniões verdadeiramente a sério e que todos os anos de serviço de Talek não significavam nada para ele.

A expressão de severidade de Merrick suavizou-se um pouco.

- Tenho motivos para tomar as decisões que tomo, Constance. É possível que não os entendas, ou que às vezes estejas em desacordo comigo, mas eu não ajo por capricho, nem sem uma boa razão. Protegerei o que é meu, seja a minha vida, o meu castelo ou a minha esposa. Protegerei aquilo que amo.

Estaria a dizer que a amava, ou apenas que lutaria para proteger o que considerava que eram posses suas, incluindo a sua esposa?

No entanto, ao olhar para ele, apercebeu-se de que o brilho feroz dos seus olhos se transformara noutro tipo de olhar. Ela tentou não se deixar afectar, contudo, o desejo que o olhar de Merrick acendeu nela foi mais forte do que a sua vontade. O seu

coração acelerou de excitação. Ele estava a apenas uns centímetros dela. Só teria de esticar o braço para o acariciar. Reparou que a sua determinação de resistir à sua atracção se desvanecia e que se derretia sob o calor do olhar de Merrick.

Ele agarrou-a e puxou-a para o seu corpo.

Se a beijasse novamente, ela render-se-ia, e talvez para sempre. Aceitaria ser uma propriedade sua.

Afastou-se.

A expressão de Merrick endureceu novamente e, mais uma vez, o inflexível senhor de Tregellas ergueu-se perante ela.

- Vai chamar Talek. Diz-lhe que quero falar com ele no escritório. Agora mesmo.

- Farei o que me ordenas porque és o senhor aqui - respondeu, - mas continuo a pensar que estás a cometer um grande erro.

Pouco depois, Merrick lançou a Talek um olhar tão desumano que o comandante da guarnição, que não era um covarde, começou a tremer.

- Perdoe-me, milorde! Foi um acidente.

- Pedi-te explicações?

Merrick não gritou, nem sequer levantou a voz, no entanto, o seu tom frio e firme assustou ainda mais Talek.

- Não querias ferir-me? - perguntou o senhor de Tregellas.

- Não, milorde!

- Não me viste?

Talek tentou engolir em seco, porém, tinha a boca seca.

- Não, milorde, mas estava toda a gente à volta do javali e, às vezes, acontecem acidentes como este durante a caça - explicou o soldado. Depois caiu de joelhos. - Milorde, porque quereria matá-lo?

Merrick cruzou os braços e levantou uma sobrancelha.

- Sou o seu servidor mais leal, milorde! Não se lembra de quando era menino? Também fui leal ao seu pai.

Pergunte a lady Constance. Ela responderá por mim, milorde.

- Ela já me garantiu que és leal.

Talek sentiu a sua esperança renascer e começou a falar com um entusiasmo frenético.

- Sabia que o faria, milorde. Servi em Tregellas durante vinte anos e...

- Eu sei. Eu lembro-me de ti, Talek.

Talek voltou a sentir-se gelado, no entanto, agarrou-se à esperança e à sua história com o filho de William, o Infame.

- Fui seu amigo quando era apenas um rapaz, não é verdade, milorde? Nunca questionei o que queria, não foi?

- Sim, foste um bom amigo do filho do teu senhor - confirmou Merrick. No entanto, parecia que, mais do que um louvor, aquela confirmação era uma condenação.

- E também cumprirei qualquer ordem que queira dar-me sem a questionar, milorde - prometeu Talek.

Merrick olhou para ele sem pestanejar.

- Qualquer ordem?

Talek empalideceu, no entanto, assentiu com veemência.

- Sim, milorde, qualquer ordem.

- Óptimo. Volta para a sala e diz a sir Ranulf que quero vê-lo. Depois, desaparece de Tregellas imediatamente e nunca mais voltes - disse Merrick, olhando para Talek como se fosse uma criatura odiosa que estava prestes a destruir. - E ouve bem o que

vou dizer, Talek. Se algum homem tentar alguma vez fazer-me mal, a mim, ou à minha família, apanhá-lo-ei e matá-lo-ei mais lentamente do que o meu pai teria feito.

- Milorde! - exclamou Talek com um fio de voz, completamente pálido. - Foi um acidente. Juro pela minha vida!

Merrick não teve compaixão.

- Alegra-te de que não te mande executar por tentares assassinar-me. Agora vai-te embora antes que mude de ideias.

Talek obedeceu, contudo, enquanto deixava o escritório, o ódio substituiu o medo no seu olhar.

 

- Aqui estou Merrick. Querias ver-me? - inquiriu Ranulf enquanto entrava na sala. - O que decidiste finalmente em relação ao comandante da guarnição? Quando falou comigo, não tinha aspecto de estar muito contente, mas também não ia rodeado de guardas.

- Talek irá sair de Tregellas e não voltará. Ranulf sentou-se em frente a Merrick sem esperar um convite para o fazer.

- Vais deixá-lo livre?

- Não tenho provas de que quisesse matar-me, mas não vou correr riscos, caso essa fosse a sua verdadeira intenção.

- Entendo, é melhor assim - respondeu Ranulf.

- No entanto, não me parece que a tua prometida partilhe o teu ponto de vista. Estava muito desgostada quando saiu da sala. Pelo que ouvi dizer, Talek é um dos poucos homens que foi verdadeiramente leal para ela. Talvez até o considere um amigo.

Embora Ranulf fosse seu amigo, Merrick não tinha intenção de lhe dizer até que ponto também ele ficara aborrecido com a reacção de Constance.

Dada a preocupação que demonstrava pelos outros, ele pensara que entenderia que a sua decisão era necessária e sentira-se profundamente decepcionado ao receber,

em vez disso, a sua raiva. No entanto, sem dúvida, eventualmente iria aperceber-se de que ele tinha razão...

- Embora incomode Constance, aquele homem tem de se Ir embora.

- Não estou a questionar isso - disse Ranulf. O que quero saber é se vais falar com ela para tentar explicar-lhe os teus motivos ou se deixarás que isto fique entre vocês e se transforme numa ferida diferente.

Merrick não agradeceu a Ranulf o seu conselho, pois a discussão com Constance não fora culpa dele.

- Estás a dar-me conselhos sobre mulheres? Pensava que isso era coisa de Henry.

Ranulf corou e a sua expressão de neutralidade desapareceu.

- Estou a tentar ajudar-te.

- Óptimo, porque tenho um pedido a fazer-te respondeu Merrick, mudando de assunto de boa vontade.

Ranulf arqueou uma sobrancelha com curiosidade.

- Isto pode ser interessante. Acho que nunca me pediste nenhum favor. Pelo menos, não me lembro de que o tenhas feito.

Não, nunca o fizera, pois, tal como Ranulf e Henry, ele tinha o seu orgulho. No entanto, não havia outra pessoa a quem pudesse pedir aquele favor, para além de Henry. E, embora fossem ambos amigos leais, Merrick sabia que Ranulf seria a melhor escolha para aquela ocasião.

- Como Talek se foi embora, preciso de um novo comandante para a guarnição. Gostava que tu ocupasses esse lugar.

Ranulf engasgou-se e Merrick soube que não foi por modéstia.

- Eu não sou um soldado nem um mercenário - respondeu o seu amigo num tom gelado.

- Não queria faltar-te ao respeito - disse Merrick. - Até conseguir decidir quem, de todos os soldados de Tregellas, merece essa responsabilidade, preciso de alguém em quem possa confiar esta tarefa. Essa pessoa és tu.

- Entendo - respondeu Ranulf sem se comprometer.

- Se não quiseres, não há problema nenhum, é claro.

Depois do que Merrick pensou ser uma eternidade, Ranulf sorriu calorosamente e encolheu os ombros.

- Está bem, meu amigo. Serei o comandante da tua guarnição, mas só até encontrares outro. E espero que seja em breve.

Merrick reprimiu um suspiro de alívio e sentiu-se tão contente, que deu a volta à mesa e deu umas palmadas no ombro do seu amigo, num estranho gesto de camaradagem.

- Obrigado, Ranulf. Nunca vou esquecer isto.

- Irmãos até à morte - respondeu Ranulf com solenidade.

- Irmãos até à morte - repetiu Merrick.

- Então, milorde, que ordens tens para mim?

- Eu mesmo vou dizer aos meus homens a decisão que tomei relativamente a Talek e que tu vais ocupar o seu lugar. Quanto a Henry, terás de falar tu com ele.

- Como queiras, milorde. Mais alguma coisa?

- Não.

- Então, posso ir-me embora?

- Sim, Ranulf, é claro. A menos que queiras falar-me de alguma coisa.

- Não, milorde - respondeu Ranulf.

Depois levantou-se e saiu da sala com o seu passo ágil e atlético do costume, sem mostrar nenhum sinal de ofensa. No entanto, Merrick sabia que aborrecera o seu amigo. Conhecia Ranulf há demasiado tempo para se deixar enganar pela sua atitude de indiferença.

Depois de Ranulf ter saído, Merrick deixou-se cair sobre a cadeira e tentou controlar a sua fúria. Porque ninguém conseguia perceber que as suas decisões eram necessárias? Já tinham tentado matar o herdeiro de Tregellas antes e poderiam tentar fazê-lo novamente. E, se levassem a sua avante, o que aconteceria à sua esposa, aos seus amigos e a todos os seus vassalos?

O seu dever era protegê-los e iria fazê-lo, mesmo que ninguém aprovasse ou entendesse os seus métodos.

Constance passeava de um lado para o outro no jardim, demasiado agitada para se sentar. Tinha a cabeça cheia de pensamentos tumultuosos sobre o que acabara de acontecer.

Porque Merrick não lhe dera ouvidos? Ela vivia ali há anos e conhecia muito bem as pessoas. Merrick era um homem inteligente. Então, porque não entendia isso e não dava ouvidos à sua opinião? Porque estava tão certo de que Talek era uma ameaça?

- Senhora?

Meu Deus. Naquele preciso momento, a última coisa que queria era que Henry a incomodasse.

Infelizmente e, embora lhe tivesse lançado um olhar que dizia claramente que queria estar sozinha, ele dirigiu-se a ela.

- Vim falar consigo sobre lorde Merrick - disse.

Ela estava quase a pedir-lhe que saísse, no entanto, pensou melhor. Merrick continuava a ser um mistério para ela e, certamente, Henry poderia proporcionar-lhe algumas respostas.

- Suponho que discutiram por causa da expulsão do comandante - continuou.

- Tem razão. Talek foi um soldado leal durante vinte anos. Merrick não tem razões para pensar que o feriu deliberadamente.

Henry olhou para ela com seriedade e, pela primeira vez, Constance não viu rasto de alegria no seu olhar.

- Receio, senhora, que o seu noivo seja desconfiado por natureza. Não tenho a certeza de que confie sequer em Ranulf e em mim e somos amigos dele há quinze anos.

- Para além disso, fizemos um juramento de fidelidade entre os três.

Ela sentou-se no banco de pedra do jardim e fez-lhe um gesto para que a acompanhasse.

- Quinze anos? Então devem ter-se conhecido no castelo de lorde Leonard, pouco depois de o cortejo de Merrick ter sido atacado.

Henry assentiu.

- Eu acabava de chegar.

- Lorde Leonard escreveu-nos a contar-nos o que acontecera e para nos garantir que Merrick não estava em perigo de morte. Depois escreveu a perguntar porque lorde William não fora visitar o seu filho.

Lorde William disse que Merrick não era um bebé que precisasse de ser mimado e que lorde Leonard devia cuidar dele, como era o seu dever.

Como lorde William fora desumano. Que egoísta! Que cruel! Nem sequer quando o seu filho estivera quase a ser assassinado fora capaz de mostrar alguma humanidade.

- Talvez fosse porque Merrick não tinha feridas graves - sugeriu Henry. - Mesmo assim, ele não falou com ninguém, nem mesmo com lorde Leonard, durante semanas. Temiam que tivesse sofrido alguma lesão na cabeça, pois não tinha nenhuma ferida na garganta. O médico pensou que a sua mudez era consequência do pânico que sentira durante o ataque. Já vira coisas assim noutros meninos. Sabe? Só encontraram Merrick no dia depois do ataque. Passou horas sozinho na escuridão do bosque, escondendo-se dos homens que tinham matado o seu tio e o resto da escolta.

- Não sabia disso - confessou. Merrick devia ter-se sentido aterrorizado, sozinho e perdido a meio da noite, com os corpos de todos aqueles que deviam protegê-lo à sua volta. Não era de estranhar que receasse ser assassinado. - O que foi que fez com

que falasse finalmente? - perguntou, depois de um momento.

- Eu - respondeu Henry com um sorriso tímido.

- Disse-me para estar calado.

Apesar da sua consternação, Constance não conseguiu evitar sorrir ao imaginar um muito jovem e incomodado Merrick a perder a paciência perante um Henry também jovem e muito animado.

- Depois de ter recuperado o suficiente para começar a treinar com os outros meninos, eu irritava-o sem piedade. Não parava de lhe pedir que me ajudasse - disse Henry e o seu sorriso transformou-se numa expressão de melancolia. - Mesmo nessa altura,

já era óbvio que ele era o melhor de todos os guerreiros.

Aquilo não surpreendeu Constance. No entanto, ao ver que a confissão de Henry ia acompanhada de um suspiro, ela apercebeu-se de como devia ter sido cansativo ver-se sempre superado por Merrick.

- Tenho a certeza de que o senhor também é um excelente cavaleiro - disse, no mesmo tom de voz que usava para reconfortar Beatrice.

Os olhos de Henry iluminaram-se de prazer.

- É muito agradável da sua parte dizer-me isso, senhora! - exclamou e a sua expressão suavizou-se.

- Embora, na verdade, a senhora seja sempre muito amável e generosa.

De repente, Constance sentiu-se um pouco desconfortável. Henry não dissera nem fizera nada que a fizesse desconfiar de que os seus motivos para estar ali não fossem honrados, no entanto...

-Ah, aqui estás, Henry... - disse Ranulf, aproximando-se pelo atalho.

Constance levantou-se e imaginou o que aquilo devia parecer, sobretudo para um cavalheiro cínico como Ranulf.

Henry também se levantou, enquanto Constance tentava recuperar a sua compostura. Afinal de contas, ela não fizera nada de errado e não deveria agir como se assim fosse.

- Não precisa de se preocupar, senhora - disse Henry com um sorriso. - Ranulf sabe que eu não tenho nenhuma intenção de a seduzir.

- Ainda bem, milorde - respondeu ela com aspereza, - porque se tivesse segundas intenções, não lhe serviriam de nada.

Ranulf levantou as sobrancelhas. Constance não viu a reacção de Henry, pois nem sequer olhou para ele.

- Vês, Ranulf? - perguntou Henry, num tom tão alegre como sempre. - Mesmo que fosse o sedutor mais irresistível de Inglaterra, não teria nenhuma hipótese com ela - acrescentou e, ao ver que Constance olhava para ele, pôs a mão sobre o coração. Tenho

de reconhecer que me fere o orgulho ouvir semelhante coisa desses lindos lábios.

Constance franziu o sobrolho. Seria possível que aquele homem não tivesse juízo?

- Milorde, não estou com humor para ouvir as suas brincadeiras.

- Ai! - gritou com uma angústia fingida. - Um golpe das suas mãos doeria menos!

Constance já ouvira o suficiente de Henry.

- Se me desculparem, cavalheiros, tenho coisas para fazer - disse e dirigiu-se para casa.

Depois de lady Constance desaparecer, Ranulf virou-se para Henry.

- O que raios estavas a fazer?

- Não fiques assim. Só queria falar com ela sobre Merrick, para ver se podia fazer com que se reconciliassem depois da sua discussão. E penso, meu amigo, que talvez tenha tido sucesso.

Ranulf relaxou.

- Óptimo, mas pelo amor de Deus, tem cuidado. Se alguém vos tivesse visto aqui, sozinhos a conversarem, quem sabe o que poderias ter causado.

- E tu? Tiveste melhor sorte com Merrick?

- Não me parece. Tentei, mas ele queria falar sobre outro assunto comigo - disse Ranulf e, com uma expressão angustiada, estendeu os braços. Felicita-me, amigo. Estás na presença do novo comandante da guarnição de Tregellas.

Henry olhou para ele sem conseguir acreditar no que acabava de ouvir.

- O quê?

- Como Merrick ficou sem comandante para os seus homens, pediu-me que ocupasse esse lugar até conseguir encontrar alguém de confiança.

- Como se fosses um soldado ou um mercenário? - perguntou Henry.

- Não. Pediu-me porque sou um amigo em quem confia.

- Nesse caso, porque não me pediu a mim?

- Porque precisa de alguém que dirija e comande as suas tropas, não precisa de alguém que passe a vida na taberna e a seduzir raparigas por aí com os soldados - respondeu Ranulf com um sorriso irónico.

- Eu não... Bom, está bem, talvez fizesse isso reconheceu Henry com um sorriso envergonhado. Depois deu uma palmada no ombro do seu amigo.

- O que te parece? Vamos à taberna da vila celebrar o teu novo cargo?

- Henry, és completamente incorrigível.

- É por isso que gostas tanto de mim - concordou Henry com um sorriso de alegria.

Naquela noite, Talek estava a olhar para a lareira na casa de pedra de Peder. Estava vestido como um viajante comum, com um casaco, umas calças de montar e umas botas. Levava o porta-moedas bem cheio, metido no cinto de pele e uma espada pendurada a um lado da cintura.

- Servi o senhor de Tregellas durante vinte anos... Vinte anos! E agora expulsam-me daqui como se tivesse chegado ontem. Não fui um bom servente para ele quando era um menino? Não o segui como se fosse um cão, exactamente como me tinham ordenado, embora ele fosse a criança mais malcomportada e travessa de todo o país? Oxalá o tivesse atravessado intencionalmente com a lança!

- Se o tivesses feito, agora estarias morto - replicou Peder.

Talek bebeu outro gole de cerveja. Peder inclinou-se para a frente para ver melhor Talek.

- Então, foi mesmo um acidente?

- Sim - murmurou Talek. - Porque havia de querer matá-lo?

- Porque ele quer acabar com o contrabando? sugeriu Peder.

Talek soltou uma gargalhada seca.

- Não vai conseguir acabar com o contrabando por muito que tente. Esta costa é demasiado difícil de patrulhar, por muito grande que o seu exército seja. Não vai conseguir fazer mais do que o seu pai.

- Talvez, então, porq quisesses ajudar lady Constance a libertar-se dele.

- Os meus homens e eu teríamos ficado do lado da senhora se ela nos tivesse pedido para o fazermos.

- Talvez ela esteja com medo da sua reacção se o rejeitar.

- Ela? Medo? Se não teve medo do velho senhor, porque iria ter medo deste?

- Lady Constance não estava prometida ao antigo senhor. Agora perdeu um homem que a teria protegido se ela precisasse.

Talek praguejou.

- Aquele maldito canalha.

Peder serviu mais cerveja para os dois e depois espreguiçou-se, tentando encontrar a posição mais confortável para que os seus músculos descansassem.

- Para onde irás?

Talek sorriu. Nos seus olhos, Peder viu o brilho da determinação.

- Não irei longe.

 

Duas noites depois, uma hora antes que amanhecesse, Constance acordou por causa de um barulho distante, persistente. Sobressaltada, levantou-se com intenção de descobrir o que estava a acontecer. Quando os seus pés tocaram no chão gelado, respirou fundo bruscamente.

Espreitou à janela e apercebeu-se de que o pátio estava deserto e de que também não havia guardas na guarita. Onde estavam os soldados? Onde estava Merrick?

De repente, um grupo de homens atravessou o pátio a correr, meio vestidos e desarmados. Estariam a ser atacados? Teria começado a guerra civil?

Fumo. Havia fumo no ar. De onde vinha? Ela olhou com atenção para o pátio e para os edifícios que a rodeavam. Não havia fumo a sair da cozinha nem dos estábulos. Não havia fogo em nenhuma parte do castelo.

Então, viu um resplendor contra o céu escuro da noite e apercebeu-se do que aquilo significava.

O moinho estava a arder!

Sem pensar duas vezes, Constance calçou os sapatos e tirou a cesta de remédios da arca onde a guardava. Talvez precisasse deles. Depois vestiu rapidamente uma saia sobre a camisa de dormir, agarrou na cesta e saiu em direcção ao quarto de Merrick.

No entanto, ele já saíra. Devia ter ouvido o movimento antes de ela ter acordado. Então, Beatrice abriu a porta dos seus aposentos, esfregando os olhos.

- O que se passa? - perguntou, ensonada.

- Há um incêndio no moinho. Tenho de ir ver se posso ajudar em alguma coisa.

Beatrice abriu muito os olhos.

- Oh, meu Deus. O que posso fazer?

- Vai à cozinha. Diz a Gastón para fazer sopa e guisado de carne. Muito.

- Porque...

Constance não ficou para responder. A única coisa em que conseguia pensar era na horrível possibilidade de que alguém fosse ferido, ou talvez morto.

Com a cesta nas mãos, desceu para o pátio e correu para o moinho o mais depressa que conseguiu.

Enquanto se aproximava do rio, o que os seus olhos viam ia confirmando os seus piores receios. As partes de madeira do moinho estavam a arder. As chamas saíam pelas janelas e pela porta aberta e fugiam pelas frestas do telhado, dando a entender

a Constance que as vigas estavam também a arder.

O fumo subia pelo céu e ocultava a lua e as estrelas.

Estava uma noite clara e precisavam tanto que chovesse...

À volta do moinho, iluminados pelas chamas, tossindo por causa do fumo, vários homens e mulheres estavam imóveis, observando com espanto o desastre que estava a desenvolver-se perante eles.

Outros, graças a Deus, tinham formado uma fila do canal até ao moinho para tentar apagar as chamas com baldes de água. Os meninos pegavam nos baldes vazios e voltavam a levá-los para o canal.

Seria Ranulf aquele que estava a dobrar-se e a tirar baldes de água apressadamente? Onde estava Merrick? E Henry?

De repente, as pessoas gritaram ao ver o telhado do moinho a ruir. As chamas elevaram-se pelo céu escuro. Durante um momento, toda a gente ficou imóvel, até que a voz de Merrick, poderosa e grave, deu uma ordem:

- Mais água! Não parem!

Estava a oeste, seminu, ajudando a apagar o telhado do abrigo onde se armazenava o sebo que se usava para engordurar a engrenagem das rodas do moinho. Aquilo também estava a arder e estava a mandar cinzas para a casa do moleiro. Se mandassem o

telhado abaixo, conseguiriam apagar as chamas e evitar que a casa corresse mais perigo.

Constance procurou a mulher do moleiro com o olhar e, quando a encontrou, indicou-lhe que pedisse ajuda para tirar os seus objectos mais valiosos de dentro de casa, caso esta também ardesse.

- Sim, senhora, porém, o que nos acontecerá se a nossa casa arder? - perguntou a moleira, reprimindo um soluço.

- Lorde Merrick mandará construir outra casa para vocês - respondeu Constance sem hesitar. Não tenhas medo, não ficarão sem lar.

Naquele momento, ouviu-se outro grito da fila. Alguém caíra ao chão.

Tossindo, Constance correu para ajudar o homem, abrindo caminho com cotoveladas entre as pessoas que se juntaram numa roda, à volta do homem cansado.

- Peder! - gritou com o coração encolhido ao ver de quem se tratava. Ajoelhou-se junto do seu amigo, que tinha a cara cansada e coberta de fuligem.

Constance dirigiu-se a um dos serventes do castelo.

- Por favor, que alguém me ajude a levá-lo...

De repente, duas mãos fortes e familiares apareceram perante os seus olhos e levantaram Peder. Constance levantou o olhar e viu Merrick pegar em Peder nos seus braços como se fosse um menino e, sem dizer uma única palavra, afastou-o do fogo e do fumo.

Constance correu atrás deles.

- Senta-o aqui - disse a Merrick quando chegaram a um suave aterro onde a cabeça de Peder podia permanecer elevada.

Merrick pousou o homem no chão com tanta delicadeza como se fosse um menino a dormir.

Quando Peder ficou deitado, limpou-lhe a fuligem da cara com a manga da sua roupa larga.

- Está morto? - perguntou Merrick, com a voz tão gelada como o vento do norte.

- Não. Está a respirar. Acho... espero... que tenha apenas desmaiado do esforço de carregar os baldes cheios de água - respondeu Constance, enquanto examinava o rosto de Peder.

Quando olhou para cima, Merrick já desaparecera. Logo voltou a ouvir a sua voz a incentivar os seus homens a trabalhar com mais força e mais depressa.

Enquanto o telhado do abrigo desabava, deu água a Peder. Ele tossiu e suspirou e depois abriu muito os olhos.

- O que aconteceu?

- Desmaiaste.

Ele tentou endireitar-se.

- Não desmaiei nada.

- Caíste ao chão, inconsciente. A isso chama-se desmaiar - disse ela com firmeza e obrigou-o a deitar-se novamente. - Doem-te os braços ou o peito?

-Não.

- Tens a certeza, Peder?

- Dói-me um pouco as costas.

- Tens de descansar e manter-te afastado do fumo.

- Estou a dizer que estou bem - insistiu ele.

- E eu estou a dizer que não. É preciso chamar lorde Merrick outra vez para que te ordene a ficar aqui?

- Lorde Merrick? O que...

- Ele trouxe-te para aqui nos braços. Peder franziu o sobrolho.

-Não.

- Sim e, a menos que queiras que te peça explicações sobre porque queres arriscar-te a sofrer outro desmaio, ficarás aqui e descansarás.

Antes que ele conseguisse responder, outros dois homens aproximaram-se deles, segurando um terceiro que vinha a coxear.

- Uma das telhas do telhado caiu em cima do meu pé - explicou o homem com uma expressão de dor, enquanto os seus companheiros o ajudavam. - Acho que parti o pé, senhora.

Depois de ter visto a ferida daquele homem, chegou outro com uma queimadura num braço. Depois outro com um tornozelo torcido. Quando o sol estava a chegar ao ponto mais alto do céu, Constance apercebeu-se de que, finalmente, o fogo fora apagado e de que a casa do moleiro continuava de pé.

Mais à frente do pequeno círculo de feridos, os homens e as mulheres que tinham transportado os baldes e lutado contra o fogo de diversas maneiras estavam deitados ou sentados pelo chão, exaustos, incluindo Ranulf e Henry, que, aparentemente, estava

demasiado cansado para falar.

Demelza e outros criados do castelo chegaram com água, cerveja e tigelas de sopa e guisado. Beatrice fizera bem o seu trabalho.

Constance devia falar com Merrick sobre os feridos que tratara e sobre o que devia fazer-se com eles durante os próximos dias.

- Viram lorde Merrick? - perguntou a Ranulf.

- Está no moinho - respondeu o cavalheiro, apontando para o edifício enegrecido.

- Provavelmente, está a tentar descobrir como começou o incêndio - disse Henry, enquanto esfregava a testa coberta de fuligem com as costas da mão. - Graças a Deus que não morreu ninguém.

- Sim, graças a Deus - disse Constance. Depois virou-se e encaminhou-se para o moinho.

- Milorde? - perguntou quando entrou no moinho.

O que restava da porta estava pendurado por uma dobradiça. A luz do sol penetrava pelo que fora o tecto e iluminava a madeira carbonizada e os muros de pedra sujos do fumo. Constance franziu o nariz ao sentir o cheiro intenso da madeira queimada.

- Estou aqui.

Merrick estava junto das enormes rodas do moinho, que tinham caído ao chão, partindo-se em duas. Tinha as mãos apoiadas nas ancas e estava cheio de fuligem dos pés à cabeça, com manchas de suor pelo peito e pelos braços.

Parecia um deus escuro, poderoso, que ardia com a mesma raiva que ela sentia.

- Alguns dos soldados vão precisar de ajuda para voltar para o castelo - disse, enquanto se aproximava. - E terão de descansar durante uns dias. Felizmente, as suas feridas não são muito graves.

- Gostava que os danos que o moinho sofreu também não fossem graves.

Pareceu-lhe que os muros ainda estavam firmes.

- Não pode ser reparado?

- Não sou pedreiro, mas receio que o calor tenha estragado o morteiro e rachado algumas das pedras - disse ele. Depois tocou nas rodas partidas com o pé e acrescentou: - Para além disso, é preciso substituir estas.

Então, Constance teve uma ideia.

- Lorde Jowan esteve a elogiar o pedreiro que dirigiu os trabalhos de reconstrução do lado norte da sua muralha. Talvez ele conseguisse reparar os muros do moinho.

- Perguntarei a lorde Jowan se pode emprestar-nos o seu pedreiro durante alguns dias - concordou Merrick.

- Agora tens de voltar para o castelo. Tens de comer e descansar.

- E lavar-me - acrescentou ele, olhando para o seu peito sujo de fuligem.

Depois olhou para ela. Constance não tinha cinto e a sua saia pendurava do seu corpo livremente. Para além disso, não tivera tempo de cobrir o cabelo e estava despenteado.

- Tu também deves estar muito cansada. Ela não negou.

- Como está Peder? - perguntou Merrick.

- Muito melhor. Acho que fez demasiado esforço para a sua idade. Embora seja um homem forte, algumas vezes esquece-se de que já não é jovem.

Merrick assentiu e depois ficou pensativo.

- Quando estavas a cuidar dos feridos, ouviste alguma coisa a respeito de como pôde começar o incêndio?

Ela abanou a cabeça.

- Acho que o fogo teve origem no abrigo do feno e depois estendeu-se até aqui - disse ele. Mas, como pode ter começado um incêndio ali?

- Achas que foi provocado? - perguntou.

- Sim. Estou convencido de que foi um incêndio provocado para prejudicar Tregellas. Para me fazer mal a mim.

- Talvez tenha sido apenas um acidente - disse, com mais esperança do que certeza.

- Não. Um homem furioso ou malvado faria qualquer coisa para se vingar ou para ganhar vantagem, e não se importaria com o sofrimento das pessoas inocentes - replicou.

- Como é que a destruição do moinho é uma vantagem para alguém?

- Porque debilitaria Tregellas. Agora teremos de moer o grão noutro lugar, até conseguirmos reparar ou reconstruir o moinho. Isso custará muito dinheiro. Dinheiro que poderíamos gastar em homens ou em armas para a nossa defesa. Para além disso, terei

de pagar a reconstrução.

- Desconfias de alguém?

- Existem aqueles que pensam que serei tão mau senhor como o meu pai foi. Também existem aqueles que temem que apoie uma conspiração contra o rei e os que pensam que não o farei. Também é possível que haja outros que, simplesmente, queiram que seja

vulnerável. Talvez até haja pessoas com razões pessoais, como Talek.

- Mas ele foi-se embora.

- É possível que não tenha ido longe.

Com um suspiro de angústia ao pensar que o seu antigo amigo tivesse conseguido fazer algo do género, Constance olhou fixamente para Merrick.

- Tenho de ajudar os feridos a voltarem para o castelo ou para as suas casas.

Então viu que ele tinha uma expressão de dor e, de repente, recordou o corte que Talek lhe fizera com a lança.

- O que aconteceu aos pontos que fiz no teu braço? - gritou, assombrada, ao ver como estava o corte no seu braço.

- Tirei-os.

Ela olhou para ele novamente, horrorizada.

- Sozinho?

Ele encolheu os ombros como se não tivesse feito nada digno de ser mencionado.

- Já te disse que estou habituado a curar as minhas feridas.

Constance aproximou-se para lhe examinar o braço, no entanto, ele indicou-lhe que parasse, levantando a mão à sua frente.

- Vai cuidar dos feridos primeiro. Depois poderás tratar do meu braço.

Pelo seu tom de voz, Constance soube que não faria sentido protestar.

- Muito bem - disse, contrariada. - Desde que me dês a tua palavra de que depois me permitirás fazê-lo.

Ele sorriu, mostrando os seus dentes branquíssimos, em contraste com o negrume da fuligem na sua pele, e fez uma vénia galante.

- Dou-lhe a minha palavra, senhora.

Depois de o deixar, Constance foi directamente ver Peder, que estava sentado numa manta que a moleira lhe proporcionara. Felizmente, não havia ninguém ao seu lado, portanto ninguém ouviria a sua conversa. Ele sorriu ao vê-la, no entanto, ela não estava com humor para lhe devolver o sorriso.

- Talek saiu mesmo de Tregellas? - perguntou Constance num sussurro, enquanto se baixava ao seu lado.

Ela sabia muito bem que Talek e Peder eram amigos e, para além disso, também partilhavam alguns dos lucros que Peder ganhava com o contrabando de estanho. Peder extraía o metal da terra e preparava-o para o seu transporte para França. Talek

certificava-se de que o contrabando de Peder nunca era descoberto e de, que os franceses não eram capturados quando se aproximavam de terra para ir buscar a sua carga de contrabando.

Peder ficou surpreendido pela pergunta de Constance.

- Porque está a perguntar-me isso, senhora?

- Achas que estaria suficientemente furioso para incendiar o moinho?

- Não! - respondeu Peder, espantado. -Apostaria o meu lucro do estanho em como não foi Talek.

- Então, quem pensas que possa ter sido? Peder coçou o queixo.

- Não conheço ninguém que possa fazer uma coisa tão terrível, excepto um normando. Este é o tipo de coisas que esses canalhas fazem. Eh... peço-lhe perdão, senhora.

- Por vingança, ou em tempo de guerra, talvez. No entanto, Merrick não está em guerra com ninguém.

- Ainda não - disse Peder. - Fala-se muito sobre o que ele faria se o conde se levantasse contra o rei. Talvez alguns queiram impedi-lo de ajudar o grupo contrário.

- Isso é o que... - Constance calou-se. Talvez fosse melhor não dizer o que Merrick suspeitava. Isso é o que eu estava a pensar.

Como Peder não sabia muito mais do que ela, Constance levantou-se.

- Falei com Elowen para que fique em tua casa até estares bem. Acho que já começou a sentir saudades de Eric.

- O rapaz ainda não se casou - disse Peder com um sorriso. - O que fará quando ele sair de casa definitivamente?

- Suponho que irá acolher animais abandonados.

- Ou ajudar velhos que não têm ninguém, não é?

Constance arrependeu-se de ter feito aquele comentário tão desafortunado e inclinou-se para dar um beijo na testa ao seu amigo.

- Desculpa-me, Peder. Lorde Merrick não te disse que poderias pedir-lhe ajuda se precisasses de alguma coisa? Tenho a certeza de que estava a falar a sério.

Peder franziu o sobrolho.

- Sim, também me pareceu - murmurou ele. Então, pela primeira vez, não cuspiu para o chão quando falou do senhor de Tregellas.

Quando Constance se certificou de que todos os doentes estavam bem cuidados, apercebeu-se de que precisava de se lavar e de descansar. Sentia-se um pouco envergonhada pelo seu aspecto descuidado e sujo e tentou que ninguém a visse a subir as escadas

para os seus aposentos.

Parou uns segundos para falar em voz baixa com Demelza, que lhe garantiu que havia água quente no seu quarto. Lady Beatrice assim lhe ordenara assim que sir Henry e os outros tinham voltado.

Beatrice estava a demonstrar que era muito eficiente.

- E lorde Merrick? Também tem água quente no seu quarto?

- Sim, senhora. Ele pediu um banho completo. Tendo em conta como estava sujo, Constance entendeu a sua atitude.

Depois de se despedir de Demelza, Constance foi lavar-se, pentear-se e vestir roupa lavada. Depois examinaria o braço de Merrick e certificar-se-ia de que não piorara.

Quando já estava preparada, pegou na cesta dos remédios e foi para o quarto de Merrick. Perguntava-se se estaria a dormir. Devia estar exausto depois de todo o esforço que fizera naquela noite.

Constance não queria acordá-lo caso estivesse a descansar, portanto não bateu à porta, e entrou sem fazer barulho.

Então, encontrou Merrick dentro da enorme banheira de madeira, cheia de água, com os seus braços musculados caídos de ambos os lados, a cabeça apoiada num almofadão, o cabelo molhado e os olhos fechados.

 

Constance pensou que podia examinar o corte do seu braço se ele continuasse a dormir e entrou sigilosamente nos aposentos de Merrick, tentando manter o olhar afastado da água e do que havia sob a superfície.

No entanto, perante a imagem de Merrick adormecido e nu, não conseguiu evitar que a sua pulsação acelerasse. Se se casassem, partilhariam o leito e fariam muito mais do que apenas dormir.

Voltou a olhar para Merrick e, naquele instante, ele abriu os olhos.

- Vais ficar doente se continuares dentro dessa água - disse, tentando disfarçar o seu sobressalto.

- Então vou sair agora - respondeu e começou a levantar-se.

Meu Deus, estava nu como um bebé recém-nascido, porém, era um homem feito e magnífico. Rapidamente, Constance virou-se.

- Vim examinar o teu braço e certificar-me de que não tens mais feridas - explicou, enquanto o ouvia a sair da tina, entornando água no chão.

- Estou perfeitamente bem.

- A tua ideia de estar perfeitamente bem pode ser muito diferente da minha.

- Então, examina-me.

Não conseguiu evitar corar ao vê-lo a secar-se com uma toalha de linho, sem fazer qualquer esforço por esconder nenhuma parte do seu corpo.

Constance disse para si que não devia ser tão tola e aproximou-se dele.

- Deixa-me ver o teu braço. Ele estendeu-o à frente dela.

- Não piorou, graças a Deus - observou. Constance passeou o olhar, atentamente, pelo

seu corpo magnífico, tentando não se concentrar mais do que o necessário em certas partes.

- Vês alguma coisa que te desagrade?

Ela olhou para ele bruscamente, no entanto, Merrick estava perfeitamente sério.

- Não parece que tenhas nenhuma outra lesão respondeu Constance.

Ele aproximou-se da sua arca e abriu a tampa. Como era óbvio que a sua presença já não era necessária ali, não havia razão para ficar...

- E os meus homens e os vassalos que estiveram a ajudar? Já comeram? - perguntou, enquanto tirava também uns calções e começava a vesti-los.

- Sim. Beatrice fez um trabalho excelente. Deixei-a a organizar a cozinha.

- Parece que é uma rapariga esperta, quando pára de falar - comentou enquanto atava o cinto.

Constance irritou-se e saiu em defesa da sua Prima.

- Nem todos podemos ser tão calados como tu.

- Eu falo quando tenho alguma coisa para dizer - respondeu Merrick.

Constance teve a sensação de que não era a primeira vez que ele tinha de se justificar pelo seu carácter. No entanto, não tinha vontade de entrar numa discussão sobre a sua habilidade para conversar, ou a sua falta dela.

- Perguntaste a lorde Jowan pelo seu pedreiro?

- Sim. Disse que o enviará para nos ajudar. O filho de lorde Jowan, no entanto, não ficou satisfeito com a generosidade do seu pai - disse ele, enquanto vestia uma camisa. - Suponho que o jovem Kiernan não gosta de mim. Na verdade, suponho que não gostaria de nenhum homem que estivesse comprometido contigo.

- Independentemente do que Kiernan sente por mim, eu nunca o incentivei a que me considerasse mais do que uma amiga. Não o amo e nunca o amei. A única coisa que sinto por Kiernan é afecto e amizade.

- Ele não deve ser o teu único admirador.

- Houve outros - admitiu com honestidade. Alguns jovens atrevidos pensaram que seria fácil para mim faltar à palavra do meu tio e que poderiam persuadir-me a fazê-lo. No entanto, depois de conhecerem o teu pai, mudavam de opinião.

- Então eram covardes?

- Eu diria que eram sábios.

Ele aproximou-se dela, olhando para ela com intensidade e com dúvidas.

- Não quero que me aceites como marido pelo teu sentido de obrigação ou de dever, Constance.

Ela ansiava dizer-lhe a verdade, falar-lhe das suas esperanças e dos seus medos e do que mais desejava: um marido a quem poder amar, que a considerasse uma amiga e não uma menina em que poderia mandar e tratar com condescendência. Constance observou atentamente o seu rosto e os seus olhos. Poderia Merrick ser o seu marido ideal?

Merrick desceu o olhar e virou-se para vestir a túnica folgada de lã cinzenta.

- Espero que não continues zangada por causa da decisão relativamente ao castigo de Talek.

Depois da sua conversa com Henry, que Constance não mencionou, não conseguia continuar a culpá-lo pelas suas suspeitas.

- Embora ainda pense que cometeste um erro, estava demasiado desgostada para recordar o ataque que o teu cortejo sofreu há quinze anos e o motivo por que poderias recear uma nova tentativa de assassinato.

Ele franziu o sobrolho.

- Consegues entender porque sou assim? - perguntou, aproximando-se de Constance.

Ela abanou a cabeça.

- Não, mas entendo porque pensaste que tinhas de expulsar Talek.

- Então, sentes desagrado por mim por algum outro motivo?

- Eu... tu não me desagradas.

- Mas estás sempre a evitar-me ou a discutir comigo - replicou. - Estaria certo de que queres romper o compromisso comigo se não tivesses recusado a oportunidade que te dei e se os teus beijos não me dissessem que me desejas, pelo menos no leito. Diz-me, Constance, lamentas o nosso compromisso? Queres ver-te livre de mim? Se assim for, por favor, diz-me.

Senão, se queres ser a minha esposa, também gostava de te ouvir dizer isso. Eu nunca serei como o meu pai. Não te maltratarei, nem te serei infiel, e cumprirei todas as promessas que te fizer. Portanto, pergunto-te uma última vez, queres ser a minha mulher?

Num segundo, todas as razões por que não devia responder afirmativamente àquela pergunta passaram a voar pela mente de Constance. Recordou o jovem Merrick, um rapaz cruel e caprichoso tão parecido com o seu pai.

No entanto, conhecera um Merrick muito diferente, um homem que lhe mostrara muito pouco dos seus sentimentos, mas que lhe mostrara alguma coisa que ela sabia que ninguém mais conhecia: uma ligeira dúvida, uma sombra de vulnerabilidade, a ideia de que

ela conseguiria magoá-lo profundamente se o rejeitasse. No entanto, também sabia que podia transformá-lo no homem mais feliz do mundo se aceitasse casar-se com ele.

Desde que chegara a Tregellas, tratara-a com respeito, ouvira-a e comportara-se honradamente.

E, acima de tudo, Constance sabia que nenhum outro homem lhe infundia tanto desejo, e nenhum conseguia fazer com que se sentisse tão precisada e desejada como ele.

- Sim, Merrick, casar-me-ei contigo.

Com uma exclamação de espanto involuntária, ele abraçou-a e beijou-a com ternura, pedindo-lhe que lhe correspondesse.

Então ela respondeu de boa vontade. Assim que os seus lábios se tocaram, Constance sentiu que o seu corpo se acendia de desejo. A fome, a necessidade que ele lhe provocava eram aflitivas e maravilhosas ao mesmo tempo.

- Obrigado - disse depois de a beijar, com a voz embargada pela emoção.

Embora Constance ansiasse por muito mais do que o que significara aquela pequena amostra de paixão, Merrick afastou-se dela e olhou para ela com seriedade.

- Embora nada me fizesse mais feliz do que ficar aqui contigo, penso que devo ir fazer averiguações sobre o incêndio. Cheira a chuva e, embora pudesse ser benéfico para que a água apague qualquer brasa que tenha ficado acesa, também poderia destruir as pistas sobre o que aconteceu na verdade.

Constance ficou um pouco desiludida, contudo, não podia culpá-lo por querer descobrir quem provocara aquele incêndio, portanto sorriu.

- Muito bem. Vai tratar dos teus assuntos e eu vou tratar dos meus. Vemo-nos no jantar esta noite e espero que partilhes as tuas descobertas comigo, sejam boas ou más.

- É claro que o farei.

Ele deu-lhe a mão e beijou-a mais uma vez. Depois, desceram as escadas juntos.

Embora tentasse concentrar-se no que devia fazer a seguir, Merrick sentia-se cheio de felicidade. Constance concordara em casar-se com ele, por vontade própria e não por um contrato assinado anos antes, quando ela ainda era uma menina. Dera-lhe a liberdade de o recusar e ela não o fizera. Aquilo tinha de ser um sinal de que Deus o perdoara pelo seu crime, de que, afinal de contas, ele era digno

dela, independentemente do que fizera.

Na manhã seguinte, Constance foi ao escritório de Merrick. Ele fora com alguns soldados aos arredores do moinho para procurar pistas e ordenara que várias patrulhas vigiassem os limites do feudo. Não podia demorar muito tempo a voltar, porém, caso demorasse, Constance preferia estar ali sozinha, por isso, fugira da companhia de Beatrice.

Ao princípio, a sua prima perguntara timidamente a Constance se pedira permissão a Merrick para que ela pudesse ficar em Tregellas durante algum tempo depois do casamento, em vez de ter de voltar para casa com o seu pai. Constance confessara-lhe que, com todo o caos que o incêndio provocara, se esquecera de o mencionar e Beatrice ficara um pouco magoada. No entanto, recuperara rápidamente e depois começara a falar sobre o incêndio e a fazer especulações sobre qual poderia ter sido a sua causa. Finalmente, e apesar de amar muito a sua prima, Constance quase lhe pedira que se calasse.

Aproximou-se da mesa e observou os pergaminhos. Ao ver algumas notas que havia junto das quantias que Alan de Vern escrevera, Constance pensou que aquela devia ser a letra de Merrick. Era de traços firmes, bem desenhados. Como ele.

Constance sentou-se na sua cadeira. Quantas vezes estivera do outro lado daquela mesa, à espera que lorde William começasse a gritar ou lhe atirasse com alguma coisa? Quantas vezes lhe gritara com fúria e dissera que toda a gente queria destruí-lo?

Acusara o seu irmão Algernon de cobiçar as suas posses e gritara que tinha legiões de inimigos que estavam a planear o seu assassinato. No final, os gritos tinham-se transformado em gemidos fracos que, com frequência, acabavam em soluços de autocompaixão.

Constance fechou os olhos e respirou fundo. Aqueles dias de medo, os dias em que vivera sempre assustada, tinham mesmo acabado...

De repente, sentiu que alguém lhe beijava a testa e acordou. Quando abriu os olhos, sobressaltada, viu Merrick inclinado sobre ela com uma expressão muito séria.

Constance agarrou-se aos braços da poltrona.

- O que se passa?

Ele sorriu e os seus olhos brilharam com afecto.

- Nada. Apenas não pude resistir à tentação de te dar um beijo.

Constance pôs a mão sobre o coração.

- Assustaste-me - disse. Então apercebeu-se de onde estava sentada e levantou-se imediatamente.

- Lamento. Adormeci.

Ele aproximou-se de uma pequena mesa de pedra e serviu-se de um pouco de vinho.

- Não precisas de te levantar da minha cadeira disse a Constance, aproximando-se dela e oferecendo-lhe um copo de vinho.

Ela tinha sede, portanto não declinou a oferta e, como estava cansada, sentou-se.

- Têm alguma pista de quem provocou o incêndio?

Merrick abanou a cabeça enquanto se servia de outro copo.

- O chão estava enlameado por causa da chuva e, se tinha ficado alguma pista no abrigo, foi destruída.

- E na vila não viram ninguém a rondar pelo moinho antes que começasse o fogo?

- Não. Dizem que não viram nada. E se viram, estão a proteger o culpado, da mesma forma que protegem os contrabandistas.

Constance sentiu-se tensa e respondeu.

- Isso é diferente, Merrick. Incendiar o moinho prejudica toda a gente que come pão. Os contrabandistas pensam que a única pessoa a quem estão a roubar é ao rei, que os considera estrangeiros e os sobrecarrega com impostos injustos - disse. Então, recordou uma das numerosas sugestões que Beatrice fizera um momento antes. - Beatrice perguntava-se se não teria sido provocado por algum bêbado a caminho de casa.

- O moleiro diz que o abrigo está sempre fechado e encontrámos o que restava da fechadura de ferro no chão. Estava partida em dois, mas não sabemos se se partiu antes ou durante o incêndio. Se o fizeram antes, não me parece que tenha sido um homem bêbado. De qualquer forma, a noite estava clara. Porque havia um homem de querer refugiar-se no abrigo?

- Talvez não quisesse que ninguém soubesse que estava bêbado.

- Tens alguém em mente? Ela abanou a cabeça. -Não.

Merrick suspirou.

- Acho que aconteceu o que eu suspeito: o incêndio foi provocado intencionalmente. Não te ocorre nenhum aldeão ou vassalo de Tregellas que pudesse ser capaz de semelhante crime? Talvez um amante traído ou um soldado descontente? Parece-me possível que um homem que sente a amargura da rejeição se veja obrigado a vingar-se de algum modo.

Ela imaginou a que duas pessoas Merrick estava a referir-se.

- Kiernan não. Ele não é mau... nem faz as coisas de forma furtiva.

- Concordo que ele é o menos suspeito. Seria mais próprio desafiar-me directamente.

- Fez isso?

- Não.

- Óptimo - disse com um suspiro de alívio. Estaria louco se pensasse que pode vencer-te.

Merrick lançou-lhe um sorriso que causou uma agradável sensação de calor interior a Constance.

- Tomarei isso como um elogio - disse. Depois, o seu sorriso desapareceu. - E Talek?

Constance mexeu-se com desconforto na cadeira.

- Eu gostava de pensar que não, mas...

- Concordo. Devia tê-lo escoltado até aos limites do feudo.

- Constance, eu... oh, lamento muito! - exclamou Beatrice, que parou à soleira da porta e ficou coradíssima. - Não sabia que tinha voltado, milorde, nem que estava aqui. Perdoe-me.

Quando Merrick se virou para ela, a expressão de Beatrice tornou-se decidida e, antes que Constance pudesse imaginar porquê, Beatrice juntou ambas as mãos como se estivesse a rezar e dirigiu-se novamente a Merrick, entrando no escritório.

- Já que está aqui, milorde, queria fazer-lhe um pedido. Eu gostava muitíssimo de poder ficar aqui depois do vosso casamento. Sei que é um abuso, mas vamos ser parentes. Senão, quando voltar para casa, só terei a minha aia, Maloren, como companhia, e ficarei muito triste. Não pode imaginar como fala muito. Vai aborrecer-me sem descanso para que lhe dê todos os detalhes da festa, até que fique louca. O meu pai não vai sentir a minha falta. A sua amante gere o castelo muito melhor do que eu de qualquer forma e...

De repente, Beatrice abriu muito os olhos e tapou a boca com a mão.

- Não queria dizer... não devia ter dito... Oh, o meu pai vai ficar muitíssimo zangado comigo!

Constance levantou-se e aproximou-se rapidamente da sua prima para tentar aliviar a sua angústia.

- Eu já sabia qual era a posição de Eloisa na casa há muito tempo, Beatrice. Para além disso, muitos homens têm amantes - garantiu-lhe antes de olhar para Merrick, cuja expressão era imperturbável. - Não é verdade, milorde?

Quando ele assentiu, ela tentou não se perguntar se ele alguma vez teria tido uma amante.

Merrick dissera-lhe que lhe seria fiel quando se casassem, o que era muito mais importante do que qualquer relação que tivesse tido no passado.

- Podes ficar, Beatrice - disse.

A sua prima correu para Merrick, abraçou-o e apoiou a cabeça no seu peito.

- Oh, obrigada, obrigada!

Ele ficou completamente perplexo e Constance apressou-se a afastar a sua impetuosa prima.

Horrorizada com o que acabava de fazer, Beatrice olhou para Merrick com uma expressão de espanto e de medo.

- Oh, lamento muito! É que estou muito feliz e muito agradecida! - exclamou, enquanto se dirigia para a porta. - Vou pedir autorização ao meu pai para ficar e dizer-lhe que o senhor me deu permissão. Obrigada, milorde, obrigada!

Depois de Beatrice ter saído, Merrick levantou uma sobrancelha, contudo, Constance apercebeu-se de que estava quase a rir-se da situação.

- Receio que possa vir a arrepender-me deste momento de generosidade, mas não posso recusar nada a uma mulher quando esta suplica.

- É jovem, Merrick.

- Em certos sentidos, é muito jovem - concordou, assentindo, contudo, a diversão desapareceu rapidamente do seu olhar. - Como tu e eu não pudemos ser.

As suas palavras calmas comoveram Constance. Não, ela nunca pudera ser tão despreocupada como Beatrice e há muito tempo que perdera a sua ingenuidade.

No entanto, naquele momento, apercebeu-se de que Merrick também carregara um fardo, não mais leve do que o seu, sobre os ombros.

- Eu acrescento a minha gratidão à dela, Merrick - disse suavemente.

Então, ele aproximou-se e sussurrou-lhe ao ouvido:

- Talvez não devesse ter-te revelado a minha incapacidade para resistir aos pedidos de uma mulher. Talvez o uses contra mim no futuro.

- Não, Merrick. Agrada-me saber que tens uma fraqueza.

- Garanto-te que tenho uma - confirmou, enquanto a abraçava. - E chama-se Constance.

Efectivamente, pensou Constance, qualquer relação que Merrick tivesse tido no passado, pertencia ao passado, ou, de outro modo, ele não olharia para ela daquela forma. Não a abraçaria assim e não a beijaria com tanta intensidade.

Com um suspiro de rendição, ela relaxou nos seus braços, enquanto Merrick lhe roçava os lábios como se fosse uma pena.

Infelizmente, o seu beijo não durou muito tempo e ele afastou-se com um suspiro.

- Tenho de voltar para o moinho para ver o que pode salvar-se.

Então, beijou-a novamente na testa e saiu. Ela apoiou-se na beira da mesa e pensou como pudera tê-lo considerado um homem frio...

Merrick e os seus homens não encontraram provas de quem poderia ter sido o responsável pelo incêndio do moinho durante os dias precedentes ao casamento do senhor de Tregellas. No entanto, nenhum outro problema perturbou a sua paz de espírito e ele atreveu-se a pensar que talvez o incêndio tivesse sido um acidente, afinal de contas.

O povo começou a ganhar segurança e a olhar para o seu senhor com respeito, devido à forma como se juntara à aldeia e aos vassalos para apagar o fogo. Diziam que, claramente, era um homem severo, pois, se lady Constance o tratava com afecto, pois no castelo a mudança de atitude da senhora não passara despercebida e aquela notícia espalhara-se pela vila e pelo feudo, então lorde Merrick devia ser um bom homem.

Até Constance, ocupada com a chegada dos convidados e com os preparativos para o casamento, começara a albergar a esperança de que Merrick estivesse errado e que as suas vidas continuariam a ser tão tranquilas na medida do possível naqueles tempos

difíceis. As suas dúvidas e as suas preocupações atenuavam-se com cada momento que passava na companhia daquele homem por quem estava a apaixonar-se cada vez mais.

Só Merrick, silencioso e sério, excepto nas poucas horas que passava com Constance, acreditava que aquilo era uma pausa momentânea e alegre, e que o pior ainda estava por chegar.

 

No dia do casamento de lady Constance e lorde Merrick, Tregellas amanheceu nebulosa e fria para um dia de Maio, contudo, nada pôde conter o entusiasmo de Beatrice nem atenuar a emoção da noiva.

Enquanto Constance vestia o seu vestido de noiva, uma longa túnica azul, debruada com fio de ouro, e punha uma linda grinalda de ouro que Merrick lhe oferecera, sentia-se como uma rainha. Mais do que uma rainha. Sentia-se mais feliz do que qualquer rainha alguma vez se sentira.

Durante a cerimónia, que se celebrou perante as suas famílias e convidados, Merrick manteve-se ao seu lado, incrivelmente bonito e sedutor, embora a sua roupa larga preta carecesse de qualquer tipo de enfeite. Aquela simplicidade acentuava o poder que a sua figura irradiava mais do que qualquer jóia. O coração de Constance acelerou quando o viu, como sempre e, quando selaram a sua união com um beijo, Constance mal conseguia esperar para ficar sozinha com ele.

Durante o magnífico copo-d'água, Constance recordou todos os motivos por que aceitara casar-se com ele: a vulnerabilidade e o desejo que vira no seu olhar quando lhe pedira que fosse sua. A forma como a tratava. A sua generosidade com Beatrice. A sua promessa de proteger as pessoas de Tregellas. A certeza que Constance sentia de que nenhuma mulher teria de recear nada dele.

Entretanto, Merrick conversava com os seus convidados sobre caça e sobre as responsabilidades que implicava ser o senhor de um feudo. Ela apercebeu-se de que mal mencionava o rei e a rainha. Quando os seus olhares se cruzaram, Constance soube que ele estava tão ansioso como ela por abandonar a celebração.

No entanto, até chegar o momento de se recolherem, teriam de estar presentes durante todo o jantar, os brindes em sua honra e o baile.

Então, finalmente, chegou o momento de a noiva se retirar. Embora tivesse estado horas à espera daquele momento, Constance corou enquanto subia para os aposentos de Merrick, que tinham passado a ser também os seus, seguida por Beatrice, que mal conseguia respirar por causa dos seus risinhos nervosos, e acompanhada pelas empregadas.

Beatrice continuou a rir-se e a conversar alegremente enquanto as donzelas preparavam Constance para a sua noite de núpcias. Embora a maioria dos comentários fosse feita com inocência, as raparigas trocavam olhares que lhes conferiam um duplo significado de luxúria.

Constance não sabia se devia rir-se ou expulsá-las do quarto.

- Oh, estou a ouvir os homens! - gritou de repente Beatrice, levantando-se da sua cadeira. Vêm aí, vêm aí! Rápido, Constance, para a cama!

A jovem empurrou ansiosamente Constance para o leito de Merrick, acabado de fazer com lençóis brancos de linho e perfumado com ervas aromáticas.

Horrorizada por os homens poderem vê-la em camisa de dormir, Constance atirou-se para a cama e tapou-se rapidamente, de uma forma muito pouco elegante. Aquilo fez com que Beatrice rebentasse novamente em risinhos e Constance teve a sensação de que a sua prima ia desmaiar.

Contudo, esqueceu-se de Beatrice no mesmo instante em que Merrick apareceu à porta com Henry, Ranulf e outros cavalheiros.

Henry, rindo-se, empurrou Merrick para o interior dos aposentos.

- Aqui o tem, senhora. Bebeu pouco, garanto-lhe.

Certamente, Merrick estava perfeitamente sóbrio, ao contrário dos seus acompanhantes.

Os olhos de Henry brilharam com atrevimento.

- Dei-lhe muitos bons conselhos para esta noite, senhora - garantiu a Constance. - Penso que não vai decepcioná-la.

Constance corou e olhou para o seu marido para ver como estava a encarar as brincadeiras do seu amigo e as gargalhadas dos presentes.

Parecia que Merrick mal ouvia o que estavam a dizer-lhe.

Aproximou-se e serviu-se de um copo de vinho.

Uns minutos depois, depois de Ranulf e de Henry terem felicitado o seu amigo pela vigésima vez, Merrick pediu a todos que o deixassem sozinho com a sua esposa e, entre gargalhadas e comentários descarados, os homens saíram do quarto. Lorde Carrell levou a sua filha pelo braço, que continuava a rir-se, e lorde Algernon inclinou-se repetidas vezes perante o seu sobrinho. Ranulf saiu, empurrando suavemente Henry e, finalmente, fez-se silêncio nos aposentos.

Constance, assombrada, viu que Merrick bebia o vinho de um gole. Depois, encheu novamente o copo.

Iria embebedar-se?

Ele levou o copo aos lábios, hesitou e olhou para ela.

- Queres beber um pouco de vinho?

Ela abanou a cabeça.

Com o copo na mão, ele sentou-se junto do toucador de Constance e pousou o copo, sem beber.

O coração de Constance estava muito acelerado e, recordando os beijos e as carícias que tinham partilhado, perguntava-se porque ele não começava a despir-se. Constance tinha a sensação de que ele a desejara profundamente antes de o padre lhes ter dado a sua bênção e não compreendia a sua atitude naquele momento.

Enquanto continuava o silêncio e Merrick olhava para o seu copo, Constance sentia-se cada vez mais incomodada. Teria mudado de opinião e estaria arrependido do seu casamento? Se não queria casar-se, ele poderia ter quebrado o compromisso. Certamente, dera-lhe motivos, pelo menos ao princípio. Não se mostrara ansioso, quase desesperado, por que ela o aceitasse? Então, por que razão estava tão reticente naquele momento? Seria uma tentativa de aumentar a sua impaciência pelo que ia acontecer?

Talvez aquela fosse a sua forma de lhe demonstrar que era ele quem mandava verdadeiramente nos aposentos.

Se aquilo fosse verdade, ainda não aprendera Merrick que ela não era uma mulher dócil, que aceitasse ficar sentada, enquanto lhe diziam o que tinha de fazer?

Levantou-se e aproximou-se da mesa lentamente, consciente de que a luz da vela que havia junto à cama fazia com que a sua camisa de dormir fosse quase transparente. Merrick olhou para ela e ela viu a sua surpresa e depois o seu desejo, avivado num segundo.

Com as mãos trémulas, Constance pegou no jarro.

- Talvez queira um pouco de vinho. Naquele momento, Merrick aproximou-se da janela e abriu a cortina de linho, apenas o suficiente para ver as muralhas de Tregellas.

Respirou profundamente, como se estivesse arrasado por algum motivo. Constance baixou a cabeça, decepcionada.

- O que se passa, Merrick? Porque estás assim na nossa noite de núpcias? Arrependeste-te e preferirias que não nos tivéssemos casado?

Se assim for, a nossa união ainda pode ser anulada - sussurrou.

Merrick olhou para ela, atordoado e surpreendido, e não disse uma única palavra. Com grande rapidez, aproximou-se dela, abraçou-a e beijou-a com uma paixão furiosa, roubando-lhe a capacidade de pensar e de respirar. Freneticamente, acariciou-lhe o corpo e enredou as mãos nas madeixas do seu cabelo, excitando tanto o desejo de Constance que ela teve de se agarrar ao seu corpo para não cair.

Sem parar de a beijar profundamente, levou-a até à cama nos braços e deitou-a. Depois afastou-se e começou a despir-se.

- Entendo, portanto - disse ela com a respiração ofegante, - que não queres anular o nosso casamento...

Enquanto se inclinava para tirar as botas, ele levantou o olhar para ela. A intensidade do seu desejo acelerou o coração de Constance. Engoliu em seco e deitou-se num lado da cama para deixar espaço para ele, para o seu marido.

- Tira a camisa de dormir - ordenou. - Quero ver-te.

Espantada com a sua ordem, ela começou a despir-se, com as mãos tremulas.

Entretanto, ouviu-o a tirar os calções e a atirá-los para o chão. Depois sentiu o peso de Merrick sobre a cama quando ele se ajoelhou ao seu lado. Então pegou-lhe numa mão para que parasse de se despir.

- Preferes ficar vestida? - perguntou com ternura.

Ela não sabia o que fazer.

Merrick soltou-lhe a mão e praguejou, virando-se e sentando-se na beira da cama. À luz dourada da vela que havia na mesinha, Constance viu várias pequenas cicatrizes nas suas costas. Merrick deixou cair os ombros e deixou escapar um suspiro.

- Lamento muito.

- Porquê? - perguntou Constance, cautelosamente.

- Por te assustar. Isso era a última coisa que queria fazer.

Ela não esperava aquele remorso.

- Só me apanhaste de surpresa. Foste muito... firme.

Ele suspirou novamente e respondeu sem olhar para ela.

- Sou um homem sério, Constance. Se era um marido alegre que querias, eu não sou assim.

- Quero mais do que diversão. Não quero estar casada com um homem que só sabe fazer brincadeiras, como Henry.

- Sou demasiado sério, demasiado áspero. Não sei dizer palavras doces, como algumas mulheres gostam.

- Referes-te ao facto de não dizeres tolices sem sentido e não fazeres promessas falsas, fingindo sentir amor? - perguntou, com o coração cheio de medo. - É só isso, Merrick? Ou reflectiste e chegaste à conclusão de que já não me queres como esposa?

- Estar contigo é o que sempre quis - replicou, com a voz cheia de desejo e os olhos cheios de angústia, como se receasse que ela não o quisesse a ele. - Mas eu não te mereço.

- Porquê? - perguntou, assustada. - Tu és um senhor, um cavaleiro poderoso, campeão de torneios. Duvido que haja um homem melhor do que tu em toda a Inglaterra e, se falarmos sobre quem merece quem, talvez seja eu quem não está à tua altura.

Ele corou e desviou o olhar.

- Não estás a falar a sério.

- Claro que estou - insistiu. - Tu és tudo o que eu desejava quando sonhava com um marido. Queria um homem que pudesse respeitar e que me respeitasse, que me fizesse sentir amada e segura. Tu consegues tudo isso e muito mais. Remexes-me o coração e acendes o meu desejo, muito mais do que alguma vez sonhei, e não precisas de palavras para o fazer.

Merrick olhou para ela. O seu olhar reflectiu alívio e felicidade e mais alguma coisa, que fez com que Constance tremesse. Merrick acariciou-lhe a face com ternura.

- Oxalá eu conseguisse encontrar as palavras para te dizer o que sinto por ti, para te explicar o quanto te desejo e preciso de ti.

Então, Constance começou a despir-se.

- Então mostra-me - sussurrou.

 

Merrick não precisou que dissesse mais nada. Enquanto ele acabava de se despir, Constance levantou-se e apagou as velas das mesinhas, deixando apenas uma delas para que os iluminasse.

Depois olhou para Merrick com um sorriso descarado e sedutor.

- Antes de apagar esta última vela, quero admirar o meu marido tal como ele quer admirar-me.

Em frente a ela, com toda a sua masculinidade magnífica, Merrick tinha os olhos cheios de desejo, escuros e brilhantes. Constance passeou o olhar pelo seu corpo, desde a sua testa limpa e ampla, passando pelos seus olhos apaixonados, as suas maçãs do rosto bem delineadas e os seus lábios sensuais. Depois desceu pelo seu pescoço, o seu peito e os seus ombros largos. Tinha algumas cicatrizes no peito, como as que vira nas costas. A volta dos seus mamilos tinha pêlos escuros e suaves. Depois passou

pelo seu umbigo e desceu até ao seu membro, que se erguia atrevidamente, anunciando o seu desejo. Tinha as pernas musculadas e fortes por passar horas a andar a cavalo.

- Tenho a sua aprovação, senhora? - perguntou com a voz rouca.

Ela olhou para ele com uma admiração descarada.

- É claro que sim - disse. Então, deixou que a sua camisa de dormir deslizasse pelos ombros e caísse aos seus pés, deixando-a num círculo de tecido. - E eu, milorde? Tenho a sua?

Ele devorou-a com os olhos.

- És a mulher mais bela que alguma vez vi.

- E sou tua - murmurou Constance. Aproximou-se dele e abraçou-o. - Sou a tua esposa.

- Minha - sussurrou Merrick, enquanto inclinava a cabeça para a beijar, enquanto os seus corpos se encontravam. - Mal me atrevo a sonhar...

As suas palavras sossegaram-se por causa do beijo.

Não se atrevia a sonhar o quê?, perguntou-se Constance, enquanto se rendia à força do seu desejo. Que estivessem casados? Que ela fosse sua? Contudo, aquilo estava planeado há anos e anos...

Então, Constance parou de se fazer perguntas e concentrou-se apenas nele, na sensação que o tacto da sua pele lhe produzia. Era como estar junto do calor de uma chama. Os seus seios estavam apertados contra o peito dele, e o seu membro erecto encaixava entre as suas coxas nuas. Constance reparou que todo o corpo de Merrick estava tenso, como se aquelas sensações o tivessem apanhado de surpresa.

No entanto, foi apenas um instante, porque, no instante seguinte, ele deitou-a sobre a cama. Deslizou o joelho entre as suas pernas para que as abrisse, enquanto os seus braços fortes a deitavam sobre a colcha e as almofadas. Ele deitou-se sobre ela, com cuidado, e beijou-a.

Constance reparou que ele estava a conter a sua necessidade e perguntou-se porquê, até que ele disse.

- Não tenhas medo, Constance - murmurou, enquanto os lábios dele viajavam até à sua orelha, deixando um rasto de calor na sua face. - Vou certificar-me de que estás preparada para mim.

- Já estou - disse, decidida.

- Ainda não - respondeu, deslizando os lábios para baixo, enquanto levantava as ancas e mudava o peso para os seus braços. - Ainda não.

Merrick apoiou-se numa só mão e deixou a outra livre para a acariciar, começando pela sua perna. Roçou-a do joelho até à coxa e passou como uma pena pelo lugar onde as suas coxas se encontravam. Aquilo foi o suficiente para que ela gemesse. Depois continuou para cima, até que chegou aos seus seios.

Merrick tocou-lhe com delicadeza, deixando que o seu peso descansasse sobre a palma da sua mão, antes de lhe acariciar o mamilo endurecido com as pontas dos dedos. Ela não conseguiu conter um suspiro quando ele baixou a cabeça e aprisionou o seu mamilo entre os lábios quentes e húmidos.

Constance tremeu e contorceu-se de prazer, rendendo-se às sensações que os lábios, os dedos e a língua do seu marido criavam.

Ele abandonou os seus seios e beijou-a novamente, daquela vez, quase incapaz de conter o seu apetite. Constance reparou que ele estava a perder o controlo e sabia que não conseguiria esperar muito mais, pois ela também não conseguia esperar.

Afastou as pernas e dobrou os joelhos, convidando-o em silêncio para que a possuísse, preparada para sacrificar alegremente a sua virgindade perante a sua masculinidade poderosa.

Merrick não esperou mais. Pôs-se entre as suas pernas, juntando as suas ancas às de Constance, e pôs as mãos sobre a almofada, atrás da cabeça dela. Ela agarrou-se aos seus ombros e ele, cuidadosamente, penetrou-a.

Houve um momento de resistência até que ele conseguiu entrar. A dor foi aguda, rápida, como o corte de uma faca. Ele ficou imóvel e olhou para ela.

- Não pares - sussurrou Constance, agarrando-se aos seus ombros com força. - Por favor... não pares!

- Como queira, minha senhora - respondeu e então, com um gemido de puro prazer animal, penetrou-a novamente.

Constance levantou a cabeça e, envolvendo-o com os seus braços, encontrou o seu mamilo e lambeu-o enquanto ele se mexia sobre ela. A respiração de Merrick e os seus movimentos, cada vez mais fortes e rápidos, incentivaram Constance, e as suas carícias tornaram-se cada vez mais atrevidas.

Até que as sensações que o toque do seu membro estavam a provocar-lhe, o ardor que sentia, apagaram tudo à sua volta. Ela caiu para trás, arrastando-o com ela, rodeando-o com os braços e as pernas, beijando e lambendo cada centímetro da pele de Merrick que estivesse ao seu alcance.

Apertou os dentes e ofegou.

Então... uma força explodiu dentro dela e ela endireitou-se, levantando os ombros sem se aperceber do que fazia, entre gemidos de êxtase que se misturavam com as suaves exclamações de prazer de Merrick, que alcançara, também, o clímax.

Depois de as ondas de prazer desaparecerem, ela relaxou e deitou-se, ainda ofegando, sentindo o peso de Merrick sobre ela. Constance acariciou-lhe o cabelo com ternura até que ele se afastou.

Merrick caiu sobre a almofada e ficou a olhar para o dossel da cama enquanto ela se aninhava nele.

- Quando podemos voltar a fazê-lo?

- Quando? - repetiu Merrick, surpreendido. Ela brincou com os pêlos escuros do seu peito.

- Sim.

- Não te sentes... não te sentes um pouco dorida?

Constance não parou para pensar.

- Bom, sim, um pouco - confessou.

Ele levantou a cabeça, apoiou-se sobre o cotovelo e olhou para o lençol, que estava sujo de sangue da virgindade perdida de Constance. Depois voltou a deitar-se e olhou novamente para o dossel.

- Acho que esta noite não, Constance, por muito que eu me sinta tentado a fazê-lo.

- A tua mulher está aqui, Merrick, não sobre o dossel da cama - disse. - Ou tens assuntos mais importantes com que te preocupares neste momento?

Ele lançou-lhe um sorriso de arrependimento, uma expressão que ela nunca vira no seu rosto e que adorou.

- Perdoa-me, Constance. Estava a pensar que não mereço esta felicidade.

- Sim, mereces - respondeu com firmeza. Então, teve um momento de hesitação. - Estás feliz?

A resposta de Merrick foi um beijo longo e apaixonado.

Sorrindo, Constance aninhou-se novamente junto dele, suspirou e fechou os olhos.

- Eu também estou muito feliz, milorde.

Muito depois de Constance ter adormecido num sono feliz e satisfeito, Merrick continuou acordado, sentindo-se culpado, com a sua amada esposa ao seu lado.

Antes de se casar, pensara que amava Constance com todo o seu coração. No entanto, naquele momento, depois de ter experimentado a união física mais excitante e ditosa da sua vida, amava-a ainda mais.

Aquilo fazia com que a sua mentira fosse ainda pior. Ao não ter sido honesto com ela, roubara-lhe uma coisa que nunca conseguiria devolver-lhe, que Constance nunca poderia recuperar. Se ela descobrisse a verdade, pensaria que ele era um descarado egoísta e repugnante, um homem que a enganara, desonrara e desgraçara.

Constance não podia saber a verdade. Ele teria de estar mais atento do que alguma vez estivera. Se se denunciasse, perderia a sua amada para sempre.

No dia seguinte, Merrick e Constance acordaram quando o sol já estava alto no céu. Limparam-se e vestiram-se com urgência, pois sabiam que, em breve, os tios e outros convidados apareceriam para comprovar a prova da virgindade da esposa do senhor de Tregellas.

Pouco depois do meio-dia, alguém bateu à porta dos aposentos e, enquanto Constance permanecia junto da janela, Merrick aproximou-se para abrir a porta. Uma fila de nobres ensonados entrou no quarto com passo hesitante. Atrás de lorde Carrell e de lorde Algernon estavam lorde Jowan e sir Ranulf. Havia mais gente, no entanto, ela não queria fazer um inventário de todos os que tinham aparecido para inspeccionar a prova da perda da sua virgindade, com uma excepção.

Não viu Kiernan e sentiu-se aliviada. Na verdade, também não o vira no grupo que acompanhara Merrick até ao quarto na noite anterior.

- Viemos... - começou a dizer lorde Algernon. Então, calou-se, engoliu em seco e balançou-se um pouco antes de continuar. - Viemos examinar a... então ficou silencioso e empalideceu um pouco.

Merrick fez-lhe um gesto para que avançassem e afastou-se do seu caminho.

Embora Constance soubesse que aquilo tinha de acontecer, corou e desviou o olhar enquanto eles partiam em procissão para a cama.

- Satisfeitos? - perguntou Merrick calmamente.

- Sim, completamente - respondeu o seu tio rapidamente, retirando-se.

Ainda corada, Constance deixou escapar todo o ar que tinha nos pulmões e levantou o olhar, para se encontrar, frente a frente, com o olhar inesperado e furioso de Kiernan. Ela apertou os lábios e respondeu com outro olhar de aborrecimento. Constance sabia que não fizera nada de vergonhoso ou desonesto. Fizera amor com o seu legítimo marido. Casara-se cumprindo um contrato de compromisso, e não se arrependia disso.

Os olhos de Kiernan encheram-se de lágrimas, no entanto, continuou a olhar para ela até que Merrick se interpôs entre os dois. Ele acompanhou todos os homens para fora dos seus aposentos, falando em voz baixa com Ranulf.

Quando saíram, ela deixou-se cair sobre a cadeira do toucador, tremendo.

- Estás bem? - perguntou Merrick.

- Sim, não te preocupes.

- Vais permitir que aquele rapaz te perturbe? perguntou, depois de um momento.

- Se estás a falar de Kiernan, apenas fiquei um pouco espantada por o ver aqui precisamente nesta manhã.

- Eu gostei. Agora já sabe que estamos casados de verdade e que tem de perder todas as esperanças. És minha em todos os sentidos.

Ela estudou o seu marido com os olhos muito abertos.

- Sim, sou tua, e terei de fazer o que me ordenares - disse lentamente e, sem conseguir evitar, sentiu uma ligeira pontada de medo.

- Estás comigo, para o bem e para o mal. Aquilo também era verdade e Constance sentiu ainda mais receio.

- De que coisas más estás à espera?

- Da rebelião. Da guerra.

Ela olhou para ele, horrorizada. Embora estivesse a par das tensões e dos conflitos que se desenvolviam na corte, não queria acreditar que ele tivesse razão. A guerra era brutal, feia, apenas provocava destruição e morte e, algumas vezes, reportava muitos poucos benefícios ao vencedor.

- Achas mesmo que vai haver uma rebelião?

- Acho que poderia acontecer e, se acontecer, eu estou vinculado por lealdade tanto ao rei como ao conde da Cornualha. Serei obrigado a quebrar o juramento que fiz a um dos dois, a favor do outro, e se a minha escolha fracassar...

Merrick não teve de acabar a frase. Ela sabia qual seria o resultado. Ele perderia tudo, inclusive a vida.

- Não queria assustar-te, mas perguntaste-me de que coisas más estava a falar. Ela levantou-se e escondeu as mãos entre as suas saias.

- Sim, é verdade.

Como na noite anterior, Constance viu nos olhos de Merrick um olhar intenso, angustiado.

- Agora arrependes-te de te teres casado comigo? - perguntou.

- Não - respondeu com firmeza e sinceridade. Se me tratares como uma amiga em quem podes confiar e me amares como ontem à noite, estarei mais do que contente. E, quanto ao juramento de lealdade que fizeste a dois homens diferentes, não és o único nobre do reino que se encontra nessa posição. Lorde Jowan também jurou a sua fidelidade ao rei e ao conde, e há muitos outros.

Enquanto a ouvia, a expressão de Merrick transformara-se numa que emocionou Constance.

- Vais ser mais do que feliz - disse e beijou-a com ternura.

- Oxalá não tivesses estado quinze anos longe de Tregellas - disse com pena.

- Oxalá. Mas tinha medo de te ver outra vez.

- Medo? - repetiu com incredulidade. - De me ver?

- Tinha medo de que me dissesses que não querias casar-te comigo.

Ela sorriu com ironia.

- Não queria - confessou. - Odiava-te quando éramos meninos. Mas quando voltaste para casa, vi que eras muito diferente da pessoa que eu recordava.

- Em que sou diferente? - perguntou com curiosidade.

- No teu aspecto.

- Transformei-me num adulto, sim.

- Não, não é isso. És mais alto do que esperava, e os teus olhos...

Ele voltou a beijá-la.

- Tu também mudaste. Eras tão tímida...

- E tu eras um menino insuportável - disse ela.

- Nunca teria conseguido amar aquele rapaz, mas consigo amar-te a ti. Amo-te.

Merrick ficou imóvel, observando-a com incredulidade.

Ela dissera que o amava e era a verdade.

- Sim, Merrick - repetiu em voz baixa. Amo-te. Se não te amasse, não me teria casado contigo.

Enquanto ele olhava para ela, hesitante, Constance sentiu um aperto no coração. Teria sido aquela revelação inconveniente? Teria ele pensado que ela não o amava?

- Sei que é possível que tu não me ames - disse, completamente decepcionada, - que te tenhas casado comigo pelo contrato, mas esperava... ainda espero que algum dia...

Ele abraçou-a com força.

- Oh, meu Deus - murmurou. - Constance, meu amor, amei-te desde que tinha dez anos e te vi sentada naquele campo de feno. Sempre desejei que fosses feliz e se, em vez disso, te fizer infeliz, amaldiçoar-me-ei para sempre...

Constance sentiu alegria e alívio quando se beijaram, com ternura ao princípio, até que o seu beijo se tornou apaixonado.

- Eu também espero fazer-te muito feliz, meu amor.

- Já me fizeste mais feliz do que mereço - respondeu.

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Então, voltou a beijá-la, longa e apaixonadamente, até que, contrariado, se afastou dela.

- E se não me for embora agora, é possível que nunca mais o faça.

- Talvez seja esse o meu plano, milorde - brincou. - Talvez queira prender-te novamente com o meu desejo.

- Ah, mas eu tenho de resistir - respondeu, enquanto se encaminhava com relutância para a porta. Antes de sair, lançou-lhe aquele sorriso que fazia sempre com que perdesse a força nas pernas.

- Por enquanto.

 

Uns dias depois, Merrick levantou o olhar do pergaminho que estava a ler e sorriu quando Constance espreitou à porta do escritório.

Como sempre, ele sentiu um aperto no coração ao vê-la. No entanto, aquele sentimento foi rapidamente substituído pela culpa.

- Pensava que Alan e Ruan nunca sairiam daqui - disse ao entrar. - Deviam ter muito de que falar.

- Sim. Este feudo é maior do que eu recordava - admitiu Merrick, recostando-se na cadeira. Estendeu os braços para ela e Constance entendeu o seu pedido e sentou-se no seu colo.

- Descobriste alguma coisa sobre quem provocou o incêndio? - perguntou, brincando com uma madeixa do seu cabelo.

Merrick abanou a cabeça.

- Não, embora tenha a certeza de que Alan está a fazer tudo o que pode por descobrir o culpado, respondeu, acariciando-lhe a face. - Confio menos no entusiasmo de Ranulf, mas talvez já seja demasiado tarde para descobrir alguma coisa.

É possível que o culpado já esteja longe.

- Peder também não ouviu nada. Ele sorriu com tristeza.

- Pensava que partilhar essa informação com o senhor de Tregellas ia contra a noção de honra de Peder.

- Isto é diferente - disse ela. - O incêndio causou prejuízos a toda a gente, não só ao rei ou ao senhor de Tregellas.

- Como está o velho Peder?

- Bem, embora espere que não tenha de apagar mais incêndios.

Merrick também esperava que não e que Peder continuasse com boa saúde durante muitos anos.

- Rezemos para que não haja mais desastres murmurou Merrick. A preocupação, por um momento, atenuou um pouco o prazer de partilhar aqueles momentos com Constance.

- Com o meu dote, teremos dinheiro suficiente para pagar a reconstrução do moinho?

- Sim, graças a Deus.

- E se nos víssemos em dificuldades, tenho a certeza de que poderíamos pedir dinheiro aos nossos tios - acrescentou Constance. Ele começou a beijar-lhe a face e o pescoço suavemente e ela deixou escapar um suspiro. - Embora esteja contente por terem ido para casa.

- Eu estaria mais contente se Beatrice tivesse ido com eles.

Constance endireitou-se entre os seus braços.

- Ela não está a causar problemas, pois não?

Merrick não resistiu à tentação de a provocar.

- Quando está calada, não. Claramente, Constance não achou graça.

- Ultimamente não fala muito - comentou com o sobrolho franzido. - Nunca pensei que sentisse falta do seu falatório constante, mas tenho de confessar que este novo comportamento me preocupa. Dantes contava-me tudo, mesmo que fosse um detalhe sem importância, e agora, bom, deixou de o fazer.

- Talvez seja um sinal, simplesmente, de que está a transformar-se numa adulta, ou de que aprendeu a comportar-se mais como uma dama do que como uma menina que anda sempre a rir-se. Já tem idade suficiente para se casar, Constance.

- Eu sei. Só espero que não esteja a esconder-me nada grave enquanto está ao nosso cuidado e à nossa responsabilidade.

Merrick detestava ver Constance preocupada. Beijou-lhe a testa e pensou que seria capaz de fazer qualquer coisa para a acalmar.

- Sei que a amas e que te preocupas com ela, mas digo-te novamente que não tens nada que recear de Henry.

- Eu não mencionei Henry.

- Não tens de o fazer. Já vi como o vigias quando está a falar com Beatrice, mas garanto-te que ele nunca tentaria seduzir uma mulher da minha família ou que esteja sob a minha protecção.

- Estou a tentar ser menos desconfiada - disse, hesitando. Merrick perguntou-se o que seria que tinha na sua cabeça, até que Constance voltou a falar. - É verdade que tem uma amante em Londres?

Meu Deus, como...

- Quem te disse isso?

- Beatrice.

- Onde foi ela buscar essa ideia?

- Suponho que foi Henry que lhe disse durante as suas conversas.

Henry devia aprender a ter a boca fechada, sobretudo quando estava na companhia de uma jovem tão curiosa como Beatrice.

- Ele nunca me disse nada sobre isso - admitiu Merrick. - Mas isso não quer dizer que não a tenha.

- Não te confiaria isso?

- Todos os homens têm segredos, mesmo os melhores amigos - respondeu.

No entanto, aquela conversa estava a ir por caminhos perigosos, portanto ele mudou de assunto.

- Por exemplo, eu nunca contaria a Henry que vieste para o meu escritório hoje, que me seduziste desavergonhadamente e que me distraíste dos meus deveres - disse, começando a acariciar-lhe os seios, enquanto apertava os lábios contra a pele do seu pescoço, com a esperança de a distrair das suas preocupações.

Ela sorriu e fechou os olhos e então, para o seduzir, rebolou as ancas sugestivamente sobre o seu colo.

- Tu acusas-me de tentar seduzir-te descaradamente, mas tenho de te recordar que estamos casados - ronronou, pondo as mãos sobre o seu peito. Então, não me parece que isto seja uma sedução, não te parece?

- Seja o que for, será o nosso segredo - murmurou e reparou que a sua respiração acelerava e que o seu membro respondia ao significado das palavras de Constance, ao tom da sua voz e ao movimento do seu corpo.

Ele deslizou a mão pelo seu braço e depois para o seu seio novamente. Ela continuou a mexer-se e a fricção do seu corpo contra o seu membro endurecido fez com que gemesse e se mexesse outra vez, enquanto ele continuava a acariciar-lhe os seios e a explorar a boca com a sua língua.

Então, ela interrompeu o beijo e soltou um gemido de frustração.

- O que se passa? - perguntou com a voz ofegante.

- É melhor pararmos, Merrick - disse. - Este não é o lugar adequado para o que tenho em mente.

Merrick não conseguia pensar num lugar mais adequado para o que ele queria fazer. Na verdade, para o que estava a pensar, quase qualquer lugar era bom, desde que estivessem sozinhos.

- A mesa é grande e sólida e não vai partir-se sugeriu com a voz rouca. - Ou podíamos ficar sobre esta cadeira - acrescentou, acariciando-a.

- A sério? - sussurrou, excitada. - Parece um pecado num sítio tão pouco adequado...

- Como tu mesma disseste, estamos casados. Não pode ser um pecado.

- Tens razão - concordou com os olhos brilhantes de excitação e passou-lhe a língua pelos lábios, ligeiramente, num convite silencioso.

Ele não precisou de mais incentivos. Levantou-a e, com um movimento rápido, tirou os pergaminhos da mesa. Agarrou-a pela cintura, e, enquanto a beijava nos lábios e nas faces, deitou-a sobre a mesa.

Enquanto a atormentava com a língua, avivando o seu desejo, Merrick agarrou-a pelas nádegas e levantou-a para a sentar na beira da mesa. Ela rodeou-o com os braços e puxou-o para o seu corpo, até que sentiu a sua virilidade, preparada para o prazer que se adivinhava.

Ele levantou-lhe a saia e, com um sussurro entrecortado pela necessidade, pediu-lhe que lhe abrisse os calções. Constance satisfez o seu pedido sem perder um segundo. Depois, agarrou-se aos seus ombros fortes.

Não foi uma união suave e pausada. Com um movimento rápido, ele ficou dentro do seu corpo, rodeado pelo seu calor húmido. Constance apertou os lábios contra o seu corpo para abafar o grito exultante quando ele a possuiu. E depois, outra vez. Depois de se retirar um pouco, ele voltou a perder-se nela e, mais uma vez, as sensações embargaram-no.

Ela apertou os dentes e, ofegando, reprimiu os gemidos do clímax enquanto os dois o alcançavam em uníssono, enquanto a tensão crepitava e os seus gritos mudos se estendiam pelo ar.

Apoiado contra ela, exausto e satisfeito, Merrick fechou os olhos e abraçou-a com força. Constance. O seu amor. A sua esposa.

A sua fraqueza.

Naquela noite, uma mão tapou a boca do velho, acordando-o imediatamente. Sem ver nada, Peder começou a espernear e a lutar, tentando morder e dar murros ao ladrão fedorento que entrara na sua casa.

- Sou eu! - exclamou uma voz que não esperava voltar a ouvir. - Talek.

Quando Peder parou de lutar, Talek tirou a mão da sua boca com cautela. Peder endireitou-se e olhou para ele à luz ténue das brasas. Talek tinha a roupa suja de terra e rasgada, como se tivesse estado a viver numa caverna, e cheirava imenso a cerveja.

- O que estás a fazer aqui? - perguntou Peder. Alguém te viu?

- Ninguém me viu - respondeu Talek enquanto se baixava junto do fogo para se aquecer. Tinha as mãos sujas e as unhas partidas. - Meu Deus, oxalá tivesse ido para França quando tive a oportunidade. Poderia ter-me encontrado com Pierre na última vez em que veio. Mas desde que houve o incêndio, aquele canalha do castelo pôs patrulhas em todas as estradas e no bosque, e não consigo aproximar-me do mar.

Peder aproximou-se também para poder aquecer-se e ver melhor Talek. Não precisava de o cheirar mais para saber qual era parte do problema daquele homem. As suas mãos tremiam como um bêbado e tinha os olhos vermelhos.

- Pensei que ias ficar aqui, caso lady Constance precisasse da tua ajuda.

- E fiquei, não vês? - resmungou Talek. - Mas ela casou-se com aquele desgraçado. Já não faz sentido ficar aqui e arriscar a minha vida. Portanto, agora preciso da tua ajuda. Tenho de embarcar num navio para França, ou para qualquer lado longe daqui.

Se aquele desgraçado me encontrar, sou um homem morto.

- Não te matou antes.

- Provavelmente porque não queria desgostar lady Constance. Mas agora que já é a sua mulher, provavelmente não vai querer saber do que ela gosta ou não. Matar-me-á assim que me vir.

- Há uns tempos teria pensado que sim, mas agora... - Peder abanou a cabeça. - Não nos deu nenhum motivo para pensar que é um miserável sem coração como o seu pai.

De repente, Peder inclinou a cabeça e olhou fixamente para o seu amigo.

- Onde estavas quando começou o incêndio?

- Não estava por perto - respondeu Talek. - Estava no bosque, na gruta onde escondes o estanho.

- Não, não é verdade - respondeu Peder lentamente. - Eu estava lá a ver se o contrabando estava a salvo quando vi as chamas - o velho olhou fixamente para Talek. - Só vou perguntar-te mais uma vez, Talek, e é melhor que me digas a verdade. Onde estavas quando o moinho se incendiou?

- Está bem... Estava bêbado - murmurou Talek e desviou o olhar. - Bêbado como um senhor, bêbado como William, o Infame. E também estava zangado. Zangado e estúpido - baixou a cabeça e acrescentou num sussurro: - Nunca o teria feito se tivesse estado sóbrio. Só queria causar problemas àquele desgraçado antes de me ir embora, foi só isso. Juro pela saúde da minha mãe.

Peder levantou-se e olhou para Talek com fúria.

- Foste tu? Tu incendiaste o moinho?

- Não! - gritou Talek e endireitou-se com um salto. - Só o abrigo. Só isso. Só que... O incêndio descontrolou-se e...

- Descontrolou-se? - repetiu Peder. - Destruíste-o e vão demorar semanas a reconstruí-lo. Em que raios estavas a pensar?

- Queria vingar-me! Vinte anos a servir lorde William. Vinte anos! Fiz o trabalho sujo dele. Cuidei daquele miúdo insuportável que tinha por filho. Vinte anos, e expulsa-me como se fosse um cão...

- Bêbado estúpido! Fizeste muito mais mal às pessoas de Tregellas do que a ele. Ele pode comprar tudo o que precisar, mas os outros não podem. Os agricultores perderam o grão e as mulheres têm de moer o trigo à mão para fazer o pão para as suas famílias. Devia levar-te ao castelo e fechar-te eu mesmo numa masmorra!

Talek levou a mão ao punho da espada. Nos seus olhos havia um brilho feroz.

- Se eu fosse a ti, não tentava fazer isso e não diria a ninguém que me viste. De facto, velho, tens de me ajudar a fugir, porque se me apanharem, vou acusar-te. Sei onde guardas a tua mercadoria e sei tudo sobre Pierre. Se tiver de o fazer, direi tudo o que sei àquele desgraçado do castelo.

Peder apertou os punhos com fúria.

- Farias isso? Serias capaz de nos trair a todos?

- Se tivesse de o fazer, sim. Agora, dá-me todo o dinheiro que tenhas e ajuda-me a sair de Tregellas.

Peder abanou a cabeça.

- Não vou mexer um dedo para te ajudar. Talek tirou a espada.

- É melhor que o faças, velho, ou mato-te disse a Peder. Bateu no velho com a ponta da espada e depois aproximou-se dele, puxou-lhe o braço e abanou-o. - Se não me ajudares de boa vontade, levo-te comigo.

Peder virou-se e aproximou-se da sua cama. Colocou a mão sob a almofada e tirou uma adaga italiana que Pierre lhe oferecera, longa e afiada. Quando Talek levantou o braço para o atingir com a sua espada, Peder virou-se e afundou-lhe a adaga no estômago.

A espada caiu ao chão e fez um ruído metálico. Talek agarrou no punho da adaga com ambas as mãos e cambaleou para trás até que tropeçou num banco e caiu contra a parede da casa.

Tremendo, Peder levantou-se e deu uns passos para ele, mantendo-se à distância.

- Miserável - sussurrou Talek, vomitando sangue. Depois, esboçou um sorriso terrível e cruel. Agora nunca te direi onde estão os ossos do teu neto.

Com um grito de desespero, Peder ajoelhou-se junto do homem moribundo.

- Onde está? Meu Deus, diz-me! Deixa-me enterrá-lo no cemitério. Se tiveres um rasto de piedade...

- Que piedade tiveste tu comigo? - perguntou Talek. - Não haverá cemitério para ele, tal como não houve para a tua filha. Aquela filha que tu pensas que era uma santa... Agora está a arder no inferno. Embora tivesse ido para o inferno de qualquer

forma, porque era uma prostituta. Não resistiu muito quando eu a segurei para que William, o Infame, pudesse possuí-la.

Peder voltou a gritar e agarrou no punho da adaga que sobressaía do estômago de Talek. Tirou-a e cravou-a directamente no seu coração.

Talek esperneou uma vez antes de ficar imóvel.

Ofegando, Peder afastou-se uns passos até ao armário onde guardava o vinho para as ocasiões especiais. Tirou a garrafa e bebeu um gole. Depois passou a manga pelos lábios e encostou-se contra o armário, com os olhos fechados, esperando que,o seu coração recuperasse o seu ritmo normal.

O que ia fazer? Não sentia remorsos pelo que fizera. Talek tivera o que merecia e ele estava contente por o ter castigado. Certamente, Deus entenderia e perdoaria o que fizera. Contudo, como iria explicar a presença de Talek em sua casa? O senhor de Tregellas iria perguntar por que motivo Talek estava ali e iria pensar que Peder lhe dera refúgio. Para além disso, mesmo que explicasse que matara Talek porque ele o ameaçara e que Talek fora o responsável pelo incêndio no moinho, iriam lady Constance e Merrick acreditar nele?

O ódio que Peder sentia pelos senhores de Tregellas era bem conhecido. Era possível que Merrick pensasse que ele incendiara o moinho, ou sozinho, ou com ajuda de Talek, e que estava a usar a morte daquele homem para encobrir a sua própria culpa.

Para além disso, porque não deixar que o senhor continuasse a perguntar-se quem fora o causador do incêndio? Porque não deixá-lo continuar à procura do culpado durante o maior tempo possível, tal como ele continuava angustiado pelo desaparecimento do seu neto, que, naquele momento, mais do que nunca, parecia que não fora um acidente, afinal de contas.

Peder cuspiu.

Lady Constance, no entanto... Ela não merecia viver com o medo de pensar que tinham um inimigo desconhecido, talvez entre o seu povo. Se ele conseguisse encontrar uma forma de lhe dizer, ela sabia guardar um segredo...

Porém, fá-lo-ia? Talvez se sentisse obrigada pelo dever de dizer ao seu marido.

Não. O melhor seria que não falasse com ninguém sobre a morte e o crime de Talek. Guardaria aquele segredo para sempre.

Peder abriu os olhos e a primeira coisa que viu foi a cara ensanguentada de Talek.

Quando se aproximou do morto, rezou. Não para suplicar por perdão, nem por piedade.

Rezou, pedindo a Deus que um dia lhe mostrasse o lugar onde descansava o seu neto, para poder levá-lo para casa e enterrá-lo decentemente. Rezou também para ter força suficiente e conseguir esconder o corpo de uma cobra mentirosa e traidora.

 

Uns dias mais tarde, celebrava-se a assembleia de Tregellas. O céu estava nublado e prometia chuva. Se o tempo piorasse, todos teriam de entrar, contudo, Constance sabia que o grande salão não era suficientemente espaçoso para albergar a multidão que se agrupara no pátio do castelo à espera que a reunião começasse.

Até Beatrice estava silenciosa, embora aquilo já não fosse muito estranho ultimamente. Henry dissera que se aborreceria com semelhante assunto e fora caçar e Ranulf estava no pátio das armas, ensinando um grupo de homens a utilizar uns longos arcos galeses que Merrick decidira juntar ao arsenal da defesa do castelo.

Constance olhou de esguelha para o seu marido, enquanto ambos esperavam sentados numas cadeiras dispostas sobre um palco, que começassem as petições e os requerimentos de justiça. Merrick teria de fazer os seus julgamentos e conceder ou negar os pedidos. Tal como ela sempre esperara, ambos tinham falado muito sobre os conflitos mais prováveis que iriam ser expostos pelos vassalos e pelos aldeãos.

Ele perguntara-lhe pelas pessoas envolvidas e pedira-lhe a sua opinião.

Ela já o conhecia suficientemente bem para ver no seu pescoço e no seu queixo os sinais da tensão que sentia. De certa forma, Constance estava contente, pois aquilo implicava falta de certeza e de arrogância, e significava que ele não acreditava na sua própria infalibilidade.

Constance pousou a mão no seu antebraço e lançou-lhe um sorriso reconfortante. A expressão grave de Merrick permaneceu impassível, no entanto, os seus músculos relaxaram.

Felizmente, os casos mais sérios resolveram-se com rapidez. Merrick ouviu atentamente as queixas e os argumentos dos que se defendiam delas e depois comunicou as suas decisões com firmeza.

Finalmente, só faltava que Merrick desse a sua aprovação para que se celebrasse o casamento de Annice e de Eric. Como ninguém duvidava que Merrick não poria objecção alguma, Constance pensou que a assembleia acabaria dentro de poucos minutos. Então,

Merrick e ela poderiam...

De repente, um movimento entre as sombras chamou a sua atenção e, ao ver o rosto de Kiernan, Constance ficou preocupada.

O que estava a fazer ali escondido? Como vizinho, ele era bem-vindo nas assembleias e não precisava de se esconder como um ladrão ou um foragido.

No entanto, Constance teve de se recordar que Kiernan era um homem jovem e apaixonado e, como ela sabia pelos seus anos de amizade, também obstinado. Era possível que continuasse a sentir alguma coisa por ela e apenas quisesse vê-la novamente. Ou então, talvez a sua presença tivesse um motivo mais sinistro...

Eric adiantou-se, de mão dada com Annice. Annice mantinha a cabeça baixa, com modéstia, e não levantou o olhar quando Eric disse:

- Milorde, vim solicitar a sua permissão para me casar com Annice, a filha do veleiro.

Constance olhou novamente para as sombras. Não havia nem rasto de Kiernan. Talvez se tivesse enganado e o rapaz não estivesse ali. No meio das sombras, poderia ter sido qualquer outra pessoa.

De repente, apercebeu-se de que no pátio reinava o silêncio e de que Merrick ainda não respondera a Eric.

O sorriso do jovem desaparecera. Annice começou a chorar e a multidão começou a murmurar entre confusão e impaciência.

O que estava Merrick a fazer?

O seu marido levantou-se.

- Quero falar a sós com Annice.

Constance ficou boquiaberta ao ver que Merrick estendia o braço à rapariga como se fosse uma nobre. A jovem pousou a sua mão trémula no antebraço do senhor de Tregellas, enquanto as lágrimas deslizavam pelas suas faces, e ambos se afastaram um pouco e começaram a falar em voz baixa sem que ninguém conseguisse ouvir o que diziam.

Enquanto Constance observava a cena, o medo e a dúvida avivaram-se no seu interior. Annice tinha a cabeça baixa e Merrick estava inclinado para ela, como se estivesse ansioso por ouvir cada uma das suas palavras.

Era uma pose desconcertantemente íntima e Constance teve de se controlar para não se contorcer de consternação, nem deixar entrever às pessoas que estava inquieta.

Afinal de contas, a multidão também conseguia vê-la a ela.

Novamente, olhou para as sombras, porém, não viu ninguém.

Então, Merrick acompanhou Annice ao palco. Ele pôs a sua mão sobre a da jovem, outro gesto íntimo, e enfrentou a multidão.

- Proíbo este casamento.

Constance olhou para ele com estupefacção. Annice soluçou, afastou-se de Merrick e desatou a correr perante o povo, igualmente perplexo.

- Milorde! - gritou Eric, consternado. - Porquê, milorde? Porquê?

Merrick olhou para ele com desprezo.

- Como te atreves a questionar a minha decisão?

A multidão emitiu murmúrios de aborrecimento. Os homens e as mulheres olharam para ele, furiosos e atemorizados, e a expressão dos seus rostos recordou a Constance os dias de William, o Infame.

- Porque não dá uma explicação, milorde, do motivo por que quer proibir um casamento que estava planeado há tanto tempo? - perguntou Constance, procurando uma resposta que acalmasse também os seus medos.

Os olhos escuros e enormes de Merrick pareciam duas brasas cintilantes quando olhou para ela.

Depois, dirigiu-se à multidão encolerizada e falou em voz alta e potente.

- A assembleia acabou. Vão para casa. Ele começou a descer do palco.

- Roubou-me! - gritou Eric. - Possuiu-a! É tal como o seu pai!

Merrick desembainhou a espada e dirigiu-se para o jovem.

- Por acaso estás a pôr em dúvida a minha honra?

Constance interpôs-se entre eles. -Milorde!

Merrick continuou com o olhar cravado em Eric, como se Constance não estivesse ali.

- Se voltares a fazer uma acusação assim, matar-te-ei. Não te concederei permissão para te casares com ela e é a última coisa que tenho a dizer.

Com a espada na mão, entrou no castelo.

Constance não hesitou nem por um segundo. Apressou-se a segui-lo até ao escritório e, embora ele tivesse fechado a porta, ela entrou sem pedir permissão.

Merrick estava junto da janela com os punhos apertados.

- Porque não permitiste o casamento?

O seu rosto era uma máscara imperturbável quando, finalmente, se virou e olhou para ela.

- Porque não conseguia permiti-lo e viver com a minha consciência.

- Porque não ias conseguir viver com a tua consciência por permitires que duas pessoas se casem?

Toda a gente sabe que só estavam à espera que o pai de Eric lhe cedesse a forja.

- Parece-te que Annice é uma mulher feliz e que está impaciente por se casar? - replicou Merrick. Eu sei quando uma pessoa está a tentar ocultar alguma coisa e ela não se comportava como uma noiva cheia de alegria. Nem sequer olhava para Eric, nem levantava os olhos.

Ela recordou ter visto Annice durante a assembleia. Haveria outros motivos para a sua atitude modesta? No entanto, a decisão de Merrick tinha de ter mais motivos do que aquele.

- O que te disse?

- Isso ficará entre mim e Annice.

Aquelas palavras foram como uma bofetada e Constance ficou profundamente magoada.

- Nem sequer vais dizer à tua mulher?

- Annice pediu-me para manter os seus motivos em segredo e eu dei-lhe a minha palavra de que o faria.

- Se não vai dar-me mais explicações, milorde - disse, - as pessoas pensarão que quer Annice para si.

- Mesmo que o seu pai não tivesse sido o senhor de Tregellas, muitos nobres normandos possuem as mulheres à força, sem se importar com os seus compromissos nem com os seus casamentos, nem com a sua vontade.

- O que vão pensar os seus vassalos quando esteve a sussurrar com Annice em frente a toda a gente, enquanto ela chorava? Que outra coisa vamos pensar todos, excepto que há alguma coisa entre o senhor e ela?

Merrick corou.

- Apesar de te ter prometido que honraria os nossos votos matrimoniais e, apesar da forma como te tratei, ainda pensas que eu sou um hipócrita mentiroso e luxurioso? Que eu me interporia entre duas pessoas que desejam casar-se de livre vontade?

Aquelas palavras coléricas partiram o coração de Constance e fizeram com que se sentisse culpada por o acusar, no entanto...

- É o que parece, milorde.

Merrick sentiu raiva e não se incomodou em disfarçá-la.

- Claramente fui um estúpido ao pensar que poderia ganhar a confiança e o respeito do meu povo e da minha esposa. Nunca serei outra coisa senão o filho de William, o Infame, independentemente do que faça para o mudar - disse e depois perguntou-lhe com fúria: - Ou estás contente por poder acusar-me porque tu também tens um segredo?

- O quê?

- Vi Kiernan, como se fosse um adolescente apaixonado.

- A questão é mesmo essa, é um rapaz apaixonado, é só isso! Eu sou uma mulher honrada.

- E eu sou um homem honrado - replicou. Embora pareça que tu não acreditas em mim. Porque hei-de eu acreditar em ti, então?

- Porque eu te dei a minha palavra.

- Portanto, embora a minha palavra não seja suficientemente valiosa, a tua é?

- Se te julguei mal, lamento muito, mas não conseguirás mais desculpas da minha parte - disse.

- Há anos que jurei que nenhum homem me faria suplicar piedade nem perdão, portanto não vou fazê-lo. Mas se descobrir que me foste infiel, então terás quebrado os votos de casamento, e já não me considerarei obrigada por eles. Entretanto, cumprirei com o meu dever, como sempre fiz, mesmo no nosso leito.

Uma vez que deixou claro o que pensava, Constance dirigiu-se para a porta.

- Meu Deus, ela pediu-me que não consentisse o casamento! - gritou Merrick.

Espantada, tanto pelas suas palavras como pelo seu tom de desespero, Constance hesitou. Depois virou-se e viu Merrick a cair sobre a sua cadeira.

- Annice soube que Eric tinha uma amante em Truro enquanto lhe jurava que a amava e que lhe seria fiel. Quando lhe disse que tinha descoberto e que não se casaria com ele, ele ficou furioso e disse-lhe que não ia permitir que o envergonhasse.

Portanto violou-a e ainda pensa que ela quer casar-se com ele. Annice não quer, mas está cheia de vergonha e não vê outra saída.

Com um suspiro, Constance sentou-se na cadeira mais próxima, enquanto Merrick se levantava. Começou a caminhar pela sala como um soldado à espera de um ataque a qualquer momento.

- Disse-lhe que era ele quem devia envergonhar-se, e não ela. Ofereci-me para prender Eric e levá-lo perante a justiça do rei, acusado de violação, mas ela não quis. Apesar de tudo o que eu lhe disse, culpa-se a si mesma e implorou-me que não contasse a ninguém o que aconteceu - disse Merrick.

- Provavelmente, ele pensa que não será castigado porque ela não vai acusá-lo publicamente acrescentou, furioso. - Mas juro que, um dia, ele vai pagar pelo que lhe fez.

Espantada pelo que Eric fizera, com pena de Annice, e arrependida pelas acusações que fizera contra Merrick, Constance levantou-se e aproximou-se do seu marido.

- Merrick, lamento muito...

Ele indicou-lhe que não se aproximasse.

- Lamentas? Lamentas não ter confiado em mim? Lamentas ter pensado com tanta facilidade que eu era capaz do pior? Lamentas ter-me obrigado a quebrar a promessa que fiz a Annice?

O seu tom acusador, a sua expressão de raiva... Ela já vivera aquela situação antes e jamais recearia enfrentar o senhor de Tregellas.

- Já te disse, Merrick, apesar de estar arrependida, não vou humilhar-me.

Merrick apontou para a porta.

- Vai-te embora.

Com a cabeça erguida Constance saiu do escritório.

Quando fechou a porta, ouviu um som que recordava muito bem. Merrick atirara um copo contra a parede.

Merrick estava à janela do escritório, encostado à parede, olhando para o pátio do castelo.

Ouviu a porta a abrir-se e, durante um breve instante, teve a esperança de que Constance tivesse voltado.

No entanto, o som de uns passos familiares anunciou um visitante diferente.

- Pelo amor de Deus, Merrick, o que disseste a Constance? - perguntou Henry. - Estava pálida. Discutiram por causa daquela mulher? Explicaste-lhe porque falaste em voz baixa com a filha do veleiro como se fossem dois amantes?

Ele virou-se lentamente para o seu amigo, apertando o punho da sua espada com força, enquanto tentava controlar-se.

- Pensava que me conhecias melhor, Henry disse, tentando que o seu desespero não se notasse na sua voz, tentando fingir que era forte, que já não era um menino assustado no meio do bosque. - Eu nunca trairia os votos matrimoniais que fiz à minha mulher.

- E o que esperavas? - perguntou Henry com incredulidade. - O que esperavas que os aldeãos pensassem sobre a tua conversa com a rapariga? E sobre o teu anúncio de que não podiam casar-se?

Merrick apertou o queixo.

- Esperava que pensassem que sou um homem honrado.

- Pensavas mesmo que ias ganhar a confiança do povo em apenas algumas semanas, depois de todos os anos de abusos que sofreram com o teu pai?

- Eu não sou o meu pai! - gritou Merrick e deu um murro na mesa. - Quantas vezes tenho de dizer isso?

Atónito ao ver aquela explosão de raiva, Henry afastou-se e fez um gesto para acalmar o seu amigo.

- Está bem, tu não és o teu pai e não há nada entre ti e aquela mulher. Eu acredito em ti, é claro, mas eu não sou a tua esposa. É natural que ela esteja com ciúmes.

- Não tem nenhum motivo para estar.

- É uma mulher. Elas não precisam de muitos motivos para terem ciúmes.

- Não preciso que tu me dês conselhos sobre mulheres.

- Pois seria melhor que ouvisses alguém ou ainda vais perder a tua esposa.

Era possível que já a tivesse perdido, pensou Merrick, e sentiu um aperto no coração perante aquela ideia.

- Vai-te embora, Henry - disse. Queria estar sozinho para enfrentar a sua agonia à sua maneira, como fizera durante quinze anos.

- Pensas que vais mudar alguma coisa expulsando-me daqui?

- Não, claro que não, porque tu vais falar e falar, mesmo que eu não te ouça, e vais dar-me conselhos que não quero, como se fosses o melhor amante do mundo e os outros homens fossem todos imbecis.

Henry corou.

-Só estou atentar...

- Não quero saber o que estás a tentar fazer!

A dor reflectiu-se nos olhos de Henry, no entanto, Merrick não estava minimamente preocupado com o sofrimento do seu amigo.

- Porque continuas em Tregellas, Henry? Encontraste alguma oportunidade de fazer um bom casamento?

Beatrice é jovem e ingénua, porém, o que é isso para um grande amante como tu? Tu vais ensiná-la bem ou procurarás satisfação com outra, esquecendo os teus votos matrimoniais. Henry empalideceu.

- Eu não tenho semelhante propósito...

- Então, porque não te foste embora? Ficaste para me dar conselhos que não quero ouvir? Para viver nas minhas terras, comer a minha comida, beber o meu vinho e olhar para a minha esposa? Talvez seja Constance quem desejas, e não a sua prima.

- Merrick, estás a abusar.

- A sério?

- Eu não esqueci o juramento de lealdade que fizemos - disse Henry. - E tu? Deves tê-lo esquecido, porque, senão, não me dirias estas coisas e não humilharias Ranulf como fizeste, tratando-o como se fosse um mercenário ou um lacaio. Ele é teu amigo, meu Deus, e eu também. Por isso te digo a verdade, mesmo que não queiras ouvi-la.

- E tu és o único que sabe a verdade? - perguntou Merrick. - Tu sabes tudo, não é? Bem, pois não sabes quem sou. Não me conheces.

- Não, Merrick, parece que não - disse Henry, abanando lentamente a cabeça. - Já não te conheço. Pergunto-me até que ponto tu me conheces a mim, para me teres acusado de querer roubar-te a tua esposa.

- Vi-te a perseguir e a seduzir as esposas de outros homens. Ouvi-te a gabares-te das tuas conquistas, como se enganar um homem fosse uma façanha da qual te orgulhavas.

- Eu não tinha feito um juramento de lealdade com esses homens e as suas mulheres estavam dispostas, ou melhor ansiosas, por partilhar o leito comigo.

- Portanto a culpa foi toda delas e tu não tiveste responsabilidade nenhuma? - perguntou Merrick com sarcasmo. - Isso é uma desculpa conveniente para um homem que não é honrado.

- Então é isso que realmente pensas de mim disse Henry calmamente, até com demasiada calma, enquanto se dirigia para a porta. Pôs a mão sobre a maçaneta e olhou para Merrick. - Vou-me embora antes do anoitecer.

- Óptimo - disse Merrick, enquanto a porta se fechava.

Depois, o senhor de Tregellas deixou-se cair na cadeira do seu pai e ficou a olhar para a parede, sozinho com os seus pensamentos caóticos.

Um momento depois, jjoís Merrick perdera a noção do tempo, depois de gritar a Demelza que saísse quando a empregada lhe fora dizer que o jantar estava servido, levantou o olhar da mesa e focou a vista num homem que entrava no escritório sem ter sido convidado.

- Sabes que Henry partiu de Tregellas? - perguntou Ranulf.

Ranulf... o seu amigo, a quem ele nomeara comandante da sua guarnição temporariamente. Também não podia confiar nele. Queria fazê-lo, contudo, sabia que seria um erro.

- Sim, eu disse-lhe para se ir embora - disse Merrick que, de repente, tinha dificuldade para pronunciar as palavras e para ver Ranulf com clareza. - Não quero falar sobre o que aconteceu.

- Pelo amor de Deus, estás bêbado! - exclamou Ranulf, por uma vez na sua vida, atónito.

- A sério? - perguntou Merrick, enjoado, como se tivesse batido com a cabeça, e olhou para o copo que tinha na mão. - Devo estar - murmurou e atirou o copo para o chão. - Isso explicaria... esquece - olhou novamente para o seu amigo e perguntou:

- O que queres? Tu também vais questionar as minhas decisões?

Ranulf arqueou as sobrancelhas.

- Eu não disse uma única palavra sobre nenhuma decisão que tenhas tomado recentemente. Foi isso que Henry fez? Foi por isso que lhe pediste para se ir embora?

- Eu não tenho de te dar explicações - disse Merrick e apontou com um dedo hesitante para a porta. - Vai-te embora!

Em vez de sair, Ranulf apoiou-se na beira da mesa e cruzou os braços enquanto continuava a observar o seu amigo com o seu habitual sangue-frio.

- Atrever-me-ei a dizer que tudo isto é por causa da rapariga que ia casar-se com o filho do ferreiro. Ouvi dizer que a Rainha de Maio e esse homem planeavam casar-se há muito tempo.

Merrick apoiou as costas nas costas da cadeira e olhou para ele com os olhos avermelhados.

- Eu não a desejo. Nunca a desejei.

- Ninguém te culparia por o fazeres. É uma mulher muito bonita.

Merrick levantou-se imediatamente. A cadeira caiu para trás e ele teve de se segurar à mesa para se manter de pé.

- Não a desejo! Porque ninguém acredita em mim?

- Não me parece que Henry te tenha acusado de desejar aquela mulher, estando casado com lady Constance.

- Ele disse que era o que toda a gente pensava resmungou Merrick.

- Toda a gente que não te conheça bem - concordou Ranulf. No entanto, aquilo não era suficiente para conseguir fazer com que Merrick se embebedasse depois de tantos anos sem beber. Henry sugeriu-te que Constance também poderia pensar o mesmo?

- Ele não teve de o fazer. Ela mesma me disse isso.

- Então discutiste com a tua esposa por causa daquela mulher e depois com Henry e foi por isso que Henry partiu de Tregellas.

Merrick assentiu, sombrio. Pensou na acusação que Henry lhe fizera quanto a Ranulf e depois disse para si que Ranulf não teria de sofrer durante muito mais tempo o facto de ser comandante da guarnição de Tregellas. Em breve, ele encontraria um homem de confiança para que ocupasse aquele posto.

- Não me surpreende que as pessoas não saibam o que pensar dessa decisão. Tu não deste nenhuma explicação e é uma situação difícil de interpretar.

- Não posso dizer-te porque proibi o casamento - murmurou Merrick.

- Não te pedi isso. Eu sei que tens uma boa razão, que não tem nada que ver com a luxúria. Mas eu conheço-te desde que tínhamos dez anos e os outros não.

- Não deviam acusar-me de desejar a mulher de outro homem.

- Muitos homens fazem isso e, para além disso, existe o caso do teu falecido pai que, aparentemente, não é muito apreciado por aqui.

- Não precisas de me recordar isso.

- Pois parece que sim. Talvez estejas a pedir demasiado a esta gente e à tua esposa se esperas que aceitem as tuas acções tão rapidamente.

- Isso foi o que Henry disse.

- Tem razão.

- Eu não queria os conselhos de Henry e também não quero os teus - balbuciou Merrick.

- Porque estás a ir muito bem sozinho.

Do que Merrick menos precisava naquele momento era do sarcasmo de Ranulf.

- Tu também podes ir-te embora de Tregellas, se quiseres.

- E se me for embora, quem dirigirá a tua guarnição?

- Alguém - respondeu Merrick, franzindo o sobrolho.

- Não vais ver-te livre de mim assim com tanta facilidade. Por acaso estou a divertir-me e, como tu mesmo disseste, precisas de um homem em quem possas confiar a responsabilidade de dirigir os teus soldados.

Para além disso, fizemos um juramento de lealdade e tenho intenção de o manter.

- Henry também tinha - recordou Merrick.

- Eu não sou a ama de Henry.

- Nem a minha.

- Não, é verdade. Mas sou teu amigo e, até me dizeres na cara que não precisas de mim, ficarei, Merrick inclinou-se sobre a mesa e escondeu a cara entre os braços, enquanto os seus olhos se enchiam de lágrimas de gratidão.

- Continuo a ser teu amigo? Merrick assentiu silenciosamente.

- Óptimo. Agora, pára de beber e, quando estiveres sóbrio, vai falar com a tua esposa.

 

Apesar da sua intenção de seguir o conselho de Ranulf, Merrick só foi à procura de Constance já muito tarde naquela noite.

Quando chegou aos seus aposentos, ele já estava sóbrio e já se sentia capaz de manter uma conversa racional com a sua esposa, se ela ainda estivesse acordada.

Constance não estava a dormir. Estava sentada no toucador, a ver-se ao espelho, enquanto escovava o seu cabelo maravilhoso, que lhe caía pelas costas como uma cortina dourada. A sua camisa de dormir branca e fina não escondia nada e desenhava todas as curvas do seu corpo com nitidez.

Merrick ficou com dificuldade em respirar, como se fosse novamente um menino que estava a olhar para uma rapariga que nunca esqueceria. Constance era tão bela, tão perfeita...

E ele era tão indigno dela... sempre o fora.

- Fecha a porta, por favor. Há corrente de ar.

Merrick obrigou-se a permanecer calmo, dizendo para si que, se alguém cometera um erro, fora ele. Por isso, fez o que lhe pedira.

Ela levantou-se da cadeira e aproximou-se dele, com uma expressão quase neutra, enquanto lhe percorria o corpo com o olhar.

Merrick viu desejo no seu olhar.

Pensasse o que pensasse da sua decisão, soube que ela ainda o desejava.

Constance começou a soltar as tiras da camisa de dormir e deixou-a cair ao chão. Os seus mamilos endureceram ao sentir o ar frio, porém, de resto, parecia que a sua pele brilhava com o calor da luz das velas, enquanto ela permanecia imóvel, com um olhar que parecia não dizer nada.

- Vai ficar, milorde?

Meu Deus. Como podia sair quando ela estava à frente dele, nua e bela?

- Queres que fique? - conseguiu perguntar Merrick.

Ela aproximou-se mais ainda.

- Estes são os seus aposentos, milorde. Tem o direito de estar aqui.

Era verdade e ela era a sua esposa. Não lhe fechara a porta, nem lhe ordenara que saísse. Em vez disso, estava a oferecer-lhe o seu corpo.

No entanto, apesar de o seu bom senso ser superado pelo seu desejo, ele sabia que as coisas não estavam bem entre eles. A vida perfeita que tinham desfrutado desde que se tinham casado desfizera-se irremediavelmente.

Constance parou a centímetros dele. Estava linda, com aqueles olhos azuis e brilhantes, com o seu cabelo suave, com os seus lábios rosados, cheios, quentes.

Com um gemido de derrota perante o desejo que não conseguia controlar, ele abraçou-a e beijou-a com paixão.

Ela não resistiu quando ele a levou para a cama e não emitiu nenhum som de protesto quando ele a deitou sobre o colchão.

Se aquela era a única forma de ele conseguir demonstrar-lhe o quanto precisava dela, fá-lo-ia assim. Porque ele precisava mais dela do que ela alguma vez poderia imaginar.

No entanto, não houve palavras suaves nem carícias ternas, apesar das suas boas intenções. Aparentemente, ela não queria nenhuma das duas coisas, pois agarrou-se a ele com uma paixão frenética e o seu desejo excitou o desejo do seu marido. Com a esperança de que aquilo significasse que ela continuava a confiar nele, Merrick tentou fazer as coisas devagar, com ternura.

No entanto, não conseguiu fazê-lo, pois ela começou a puxá-lo, a atraí-lo para o seu corpo como se não conseguisse esperar. Ou como se não quisesse fazê-lo.

Tudo acabou num momento, porém, não antes de os gemidos de prazer de ambos encherem o quarto. Merrick caiu sobre ela com a respiração ofegante quando acabou. Talvez tudo estivesse resolvido ou, pelo menos, assim esperava, até que Constance começou a contorcer-se e Merrick não teve outro remédio senão afastar-se dela. Então, ela virou-lhe as costas.

Oh, meu Deus, Constance oferecera-se a ele apenas porque desejava o seu corpo?

Ele levantou-se e vestiu-se. Sem dizer uma única palavra, saiu do quarto.

Então, estendeu as mãos contra a pedra fria da parede, baixou a cabeça e exalou um suspiro profundo.

Ele era o senhor de Tregellas, não era um menino assustado e sozinho no meio do bosque. Constance era a senhora de Tregellas.

Gostasse ou não.

Depois de Merrick ter saído, Constance fechou os olhos e sentiu outra onda de vergonha, de consternação, de desilusão. Sim, ele quisera possuí-la, porém, não como fizera antes. Dantes houvera ternura, afecto e alegria. Dantes houvera amor.

Apesar da sua decisão de não lhe pedir perdão, ela tentara demonstrar-lhe que se sentia arrependida de o ter acusado injustamente, contudo, sentira-se tão tensa, tão ansiosa, que mal conseguira falar e as poucas palavras que pronunciara tinham soado frias. Portanto, deliberadamente, atraíra-o e entregara-se a ele com ânsia.

Ele possuíra-a como se fosse a prostituta mais reles de Londres. Não lhe dissera palavras de perdão nem de compreensão. Não houvera expressões de afecto, nem sussurros de súplica.

Ela transformara-se na sua mulher, para ser usada quando e como quisesse. Era uma posse, o que sempre temera ser.

- Meu Deus! Nem consegui acreditar quando ouvi, mas se está aqui, deve ser verdade - disse lorde Carrell, enquanto se sentava junto de Henry na sala principal da taberna de Truro, uma semana depois de Henry ter saído de Tregellas.

Henry lançou um sorriso despreocupado ao nobre e levantou o seu copo de cerveja em jeito de saudação.

- Saudações, senhor. O que o traz por este alegre lugar? - perguntou.

Depois, riu-se do seu próprio comentário. Aquela taberna estava longe de ser o melhor estabelecimento de Truro. No entanto, tinha as vantagens de ser barato e de não estar infestado de pulgas.

Lorde Carrell olhou para ele com pena.

- Devo dizer, sir Henry, que é triste que um homem do seu berço e com as suas habilidades tenha de ficar alojado num lugar como este.

Com o orgulho ferido, Henry encolheu os ombros como se o comentário de lorde Carrell não o tivesse incomodado.

- Deixei Tregellas por vontade própria. Lorde Carrell sorriu de forma compreensiva.

- Ouvi dizer que sim, mas um homem como o senhor deve ter muitos amigos dispostos a oferecer-lhe a sua hospitalidade, visto que lorde Merrick não quis fazê-lo.

- É verdade - respondeu Henry. - Estou a caminho da propriedade do meu irmão - disse, embora o último lugar para onde quisesse ir fosse a Escócia.

- Ah, óptimo, a perda de lorde Merrick será o ganho do vosso irmão.

Dado o carácter conflituoso dos escoceses, tenho a certeza de que agradecerá a sua ajuda.

Henry franziu o sobrolho enquanto olhava para o seu copo. Nicholas não queria, nem precisava, da sua ajuda.

Lorde Carrell abanou a cabeça e suspirou.

- Receio que o meu sobrinho me tenha decepcionado.

Henry inquietou-se.

- Tinha muitas esperanças de que, sob a tutela de lorde Leonard, se tivesse transformado num homem honrado, mas...

- Porque pensa que Merrick não é honrado? perguntou Henry com o sobrolho franzido.

Lorde Carrell tapou a boca com os dedos e adoptou uma atitude contrita.

- Receio que tenha falado mais do que devia. Henry fez uma expressão desdenhosa.

- Bom, não é preciso que me diga porque não é honrado - disse ao nobre. - Sabe que temos um juramento de lealdade, que nos obriga a ser irmãos de armas e leais até à morte? Apesar de tudo, expulsou-me do castelo.

Lorde Carrell recostou-se na cadeira com surpresa.

- Expulsou-o?

- Bom, foi como se o tivesse feito - respondeu Henry. - E eu que só estava a tentar ajudar aquele desgraçado ingrato. Na verdade, nunca mais voltarei a ajudá-lo, garanto-lhe. Por mim, pode apodrecer no inferno.

- Sabia que não estava a conseguir conquistar os seus vassalos, mas não fazia ideia de que seria capaz de quebrar um juramento e de expulsar do castelo um amigo tão leal como o senhor sempre lhe foi.

Henry remexeu-se no banco com desconforto.

- Não posso dizer que o tenha quebrado. Lorde Carrell não chegou a ouvir aquela afirmação, pois já estava a pensar noutra coisa.

- Agora arrependo-me de não ter adiado o casamento da minha sobrinha até o termos conhecido melhor. Se Constance sofrer por causa dele, nunca me perdoarei por isso. A pobre rapariga merece alguma coisa melhor. Passou muitos anos a suportar os ataques de raiva de lorde William - disse com outro suspiro. - Constance merece alguém mais parecido com o senhor.

Henry era capaz de reconhecer um elogio quando o ouvia.

- Não me parece que o senhor estivesse muito ansioso por casar a sua sobrinha com um nobre sem um tostão, como eu.

- Tenho muitos castelos. Poderia ceder algum, sem dificuldade, a um parente.

- Seria capaz de me ceder um castelo se o servisse?

- Adoraria que um homem como o senhor me jurasse fidelidade e que administrasse um dos meus castelos em meu nome.

Henry brincou com o seu copo, contudo, não respondeu.

Lorde Carrell inclinou-se para ele.

- Acho, sir Henry, que o senhor também está preocupado com o bem-estar da minha bela sobrinha. Deste modo, se ela precisasse de ajuda, o senhor estaria por perto.

Henry passou o copo de uma mão para a outra.

- E se, por acaso, Merrick morresse mais cedo do que tarde, ela seria livre para voltar a casar-se. Então poderia fazê-lo com um homem leal ao seu tio.

- Ou Merrick poderia viver até aos oitenta anos - assinalou Henry.

- Diga-me, lorde Carrell, pareço-lhe um homem cuja lealdade pode ser comprada com um castelo?

Lorde Carrell deslizou para o lado contrário do banco para se afastar de Henry.

- Não queria faltar-lhe ao respeito e, se me enganei quanto aos seus sentimentos para com a minha adorável sobrinha, peço-lhe que me perdoe disse e levantou-se. - Desejo-lhe um bom dia.

Henry agarrou nas vestes do homem e puxou-as para o obrigar a sentar-se novamente.

- Que tamanho teria o castelo e quantos homens teria ao meu comando?

- Alan de Vern disse-me que desejava ver-me, milorde - disse Constance com frieza, ao entrar no escritório, uns dias depois.

Merrick assentiu sem olhar para ela.

- Recebi uma mensagem do rei - disse Merrick, apontando para um pergaminho que tinha à sua frente. - Felicita-me pelo meu casamento e diz que espera que consiga controlar o contrabando nesta zona.

Constance ficou tensa, como sempre que lhe falava sobre o contrabando. Felizmente, nenhum contrabandista fora detido desde que ele chegara, embora ela não soubesse se era porque tinham parado de o fazer ou porque estavam à espera que ele diminuísse o

número de patrulhas que aumentara pelo seu feudo. Constance não fora recentemente à aldeia, pois não queria ver Annice, nem Eric, nem sequer Peder.

- O que podes dizer-me sobre este assunto?

- Que existe contrabando há séculos e que será difícil erradicá-lo - respondeu.

Ele olhou para ela fixamente.

- Por favor, não te faças de parva comigo, Constance. Tu conheces estas terras e esta gente e eles confiam em ti. Tenho a certeza de que sabes quem faz contrabando e quais são as praias onde se realizam as transacções. Quais são, Constance?

Ela devolveu-lhe o olhar sem pestanejar.

- Tal como deu a sua palavra a Annice, eu dei a minha palavra aos meus amigos. São boa gente que se sente enganada e oprimida por um rei que utiliza o dinheiro que lhes confisca para viver no esplendor ou para pagar as suas guerras em França. Eles pagariam com prazer o que lhes pedisse com honestidade, mas como as coisas são...

- Consideram que devem situar-se acima da lei. Em muitos sentidos, já estão nessa posição, contudo, isso não os satisfaz.

- Também lhes é difícil entender porque os homens que extraem o estanho da terra em Devonshire pagam impostos inferiores.

Os mineiros da Cornualha sentem-se explorados.

- Eu fiz um juramento de lealdade para com o rei e farei cumprir as suas leis.

- Tu fizeste esse juramento. Eu não - respondeu Constance, perdendo a paciência. - A confiança dos meus amigos significa tanto para rriim como a confiança dos teus amigos significa para ti, portanto não me peças que os traia. Se Henry ou Ranulf quebrassem a lei...

- Consideraria que tinham quebrado o nosso juramento e certificar-me-ia de que eram levados perante a justiça - replicou Merrick. Depois recostou-se na cadeira e cruzou os braços. - Se soubesses quem incendiou o moinho, dir-me-ias?

- Sim - respondeu sem hesitar. - Não há justificação para um acto semelhante.

- Mesmo que fosse um amigo teu?

- Sim.

Com uma expressão inescrutável, Merrick apontou para outro pergaminho.

- Também recebi o aviso de que, dentro de pouco tempo, teremos um visitante em Tregellas. Lorde Osgoode, um nobre que volta para Inglaterra, juntamente com o conde da Cornualha.

Constance pareceu surpreendida. Aquela era a primeira notícia que tinha de que Richard ia voltar para Inglaterra e também seria a primeira vez, desde que se tinham casado, que teriam um hóspede tão importante no castelo.

- Espero que faças tudo o que for necessário para que o nosso hóspede esteja confortável e para que a sua estadia em Tregellas seja o mais agradável possível.

- Como tu conheces o teu dever - replicou, - eu conheço o meu.

Merrick pegou na pena e fixou o olhar nas contas que tinha no pergaminho à sua frente.

- Bom dia, Constance.

Ela virou-se e saiu do escritório sem dizer uma única palavra.

Ranulf sorriu a Beatrice, que se mexia nervosamente à porta do estábulo.

- Posso ajudá-la em alguma coisa, senhora? Beatrice olhou à sua volta como se receasse que alguém a visse.

- Posso falar consigo?

O primeiro impulso de Ranulf foi dizer-lhe que tinha coisas mais importantes para fazer, no entanto, Beatrice parecia muito preocupada, portanto decidiu conceder-lhe uns minutos. Afinal de contas, podia sempre interromper a conversa e partir.

- É claro, senhora - disse. Pôs as rédeas do cavalo sobre a parede do compartimento e foi ter com ela. - Suponho que se trate de uma coisa importante.

Ela assentiu e olhou furtivamente à sua volta.

- Sim. É sobre Constance e Merrick.

- O que se passa com eles?

Beatrice corou e mordeu o lábio. Depois olhou novamente para ambos os lados e sussurrou para que ninguém a ouvisse:

- Constance está muito infeliz.

Aquilo não era novidade nenhuma para Ranulf. Qualquer pessoa com um pouco de bom senso se teria apercebido de que se passava alguma coisa muito grave entre Merrick e a sua esposa.

- Merrick também está infeliz? - perguntou.

- Merrick não fala comigo sobre os seus sentimentos, senhora.

- Mas conhecem-se melhor do que ninguém. Não sabe como se sente?

Claro que sabia, contudo, não estava disposto a falar sobre as suas preocupações com Beatrice, que provavelmente não seria capaz de guardar um segredo, nem para salvar a sua própria vida.

- O que se passa entre eles é apenas entre eles, senhora.

Os olhos de Beatrice encheram-se de lágrimas.

- Só quero ajudar - murmurou, chorosa. - Não suporto ver Constance tão triste. Já passou por muitas coisas e estava tão feliz depois do seu casamento... e agora...

- Eu gostaria de ajudar mas não posso - respondeu com honestidade. - Merrick odeia que lhe dêem conselhos, mesmo que seja com boa intenção - acrescentou. Depois, perguntou-se o que seria que levara Beatrice a falar com ele sobre os problemas do senhor de Tregellas e da sua esposa.

- Por acaso lady Constance disse-lhe alguma coisa sobre o que aconteceu?

Beatrice abanou a cabeça.

- Nem uma palavra. É como quando William, o... como quando lorde William estava vivo.

Também não falava muito dele - disse a rapariga e os seus olhos encheram-se de lágrimas novamente. Pensava que esses dias tinham ficado para trás.

Então começou a chorar.

Ranulf deu-lhe umas palmadinhas no braço para tentar consolá-la.

- Vamos, vamos. Tenho a certeza de que vai correr tudo bem. Os maridos e as esposas discutem com frequência. Os meus pais eram assim.

- Eu não me lembro da minha mãe - disse. Morreu quando eu era muito pequena - acrescentou e olhou para ele com tristeza. - Há dias que se celebrou a assembleia e tudo continua igualmente mal entre eles. Merrick mal dirige a palavra a Constance.

Com intenção de conseguir fazer com que Beatrice se sentisse melhor, Ranulf tentou fingir que a situação não era assim tão grave.

- Merrick mal fala com alguém. Beatrice dedicou-lhe um olhar severo.

- Isto não é engraçado - disse entre lágrimas. E se pensa que sim...

- Não, não - garantiu imediatamente, um pouco envergonhado por lhe ter dado a entender que não se preocupava com a felicidade do seu amigo.

- Então, o que podemos fazer? Tem de haver alguma coisa... - disse, olhando para ele com os seus olhos azuis enormes, com os lábios entreabertos e com os seios arredondados a mexerem-se suavemente por causa da sua respiração.

Ranulf sentiu-se como um jovem tonto ao perceber aqueles detalhes e tentou concentrar-se no assunto que tinha entre mãos.

- Penso que devemos deixar que Constance e Merrick resolvam os seus próprios problemas. Embora tenhamos boas intenções, não me parece que façamos nenhum bem interferindo na relação deles. O melhor que pode fazer é estar junto da sua prima, para que saiba que tem uma amiga em quem se apoiar.

- E o senhor estará junto de lorde Merrick perguntou suavemente, - para que também saiba que tem um amigo em quem se apoiar?

Contra a sua vontade, Ranulf olhou para os lábios suaves da rapariga. Inclinou-se para ela e então recordou quem eram e onde estavam, e afastou-se bruscamente de Beatrice.

- Só vou partir de Tregellas quando Merrick encontrar um bom comandante para a sua guarnição. Agora, desejo-lhe um bom dia, senhora.

Com aquilo, encaminhou-se para a sala de armas para se afastar o mais depressa possível de lady Beatrice e dos seus olhos azuis enormes.

Antes de voltar a esquecer-se de que ele era amigo de Merrick e que ela era doce e pura.

 

Passaram quinze dias até que Constance se viu junto de Merrick no palco do grande salão para receber lorde Osgoode. Era um homem alto e largo de ombros, com o cabelo cinzento como o aço e uma cara limpa e sorridente. As suas vestes e enfeites eram coloridos e caros, como correspondia a um homem de grande riqueza e influência na corte.

Merrick não estava tão elegantemente vestido, embora levasse as suas melhores vestes: pretas com bordados em ouro que Constance lhe fizera nos primeiros dias do seu casamento, quando ainda eram felizes. Sob as suas vestes, levava uma camisa branca e uns calções também pretos, e calçava umas botas de pele preta e brilhante.

Ela vestira uma túnica verde-esmeralda de manga comprida, com grossos brocados no pescoço. Beatrice, que não era mais do que uma sombra de si mesma naqueles dias, dissera que lhe doía a cabeça e pedira permissão para não se apresentar na recepção.

Ranulf estava a dirigir uma patrulha de vigilância a norte do estado.

- Seja bem-vindo, milorde - disse Merrick. Bem-vindo a Tregellas. Por favor, sente-se e esteja à vontade.

Lorde Osgoode sorriu.

- Obrigado, milorde - disse e virou-se para Constance. - E suponho que estou na presença da senhora de Tregellas...

- Certamente, milorde. Tem de perdoar o esquecimento do meu marido. Somos recém-casados e, às vezes, penso que se esquece de mim.

- Se eu tivesse uma esposa como a senhora, seria incapaz de me esquecer de si por um segundo respondeu lorde Osgoode com a facilidade de adulação que os cortesãos tinham.

Merrick ficou tenso.

Sem prestar atenção ao seu marido, Constance apontou para uma cadeira que havia junto da lareira.

- Por favor, conte-nos como está o conde.

- Está muito bem - respondeu lorde Osgoode, enquanto se sentava. - Está muito satisfeito com este casamento, assim como com os relatórios que recebeu sobre o seu feudo, milorde.

Merrick entreabriu ligeiramente os olhos.

- Relatórios? - perguntou, sentando-se junto do seu hóspede.

- Naturalmente, o conde preocupa-se com os seus vassalos e com a forma como administram os seus feudos. Esteve em contacto com o seu tio e também com o seu, minha senhora. Ambos falam muito positivamente da forma como gere as coisas em Tregellas, milorde.

- Fico contente por contar com a aprovação do conde.

Lorde Osgoode riu-se e pegou no copo de vinho que Demelza lhe ofereceu.

- Certamente, devem saber que, apesar de o conde da Cornualha não estar sempre na Cornualha, se mantém bem informado do que se passa nas suas terras. De outra forma, seria um senhor negligente.

Merrick inclinou a cabeça, reconhecendo a verdade.

- Mas não falemos mais sobre política quando há uma mulher tão adorável na nossa presença disse lorde Osgoode, sorrindo a Constance.

No entanto, ela não queria que o tema de conversa se concentrasse em mexericos banais.

- Gosto sempre de conhecer as notícias da corte.

- Lamento muito, senhora, mas não prestei muita atenção às últimas modas - respondeu Lorde Osgoode, rindo-se.

Constance apertou os dentes e recordou-se que a maioria dos homens pensava como aquele nobre.

- A minha esposa não estava a referir-se a isso interveio Merrick. - Ela sabe das tensões existentes na corte. O senhor pode falar sobre o que quiser na sua presença.

Aquela afirmação foi tão inesperada, que Constance se sobressaltou e, imediatamente, continuou a comportar-se como se tudo fosse perfeitamente normal.

Lorde Osgoode franziu o sobrolho.

- Mas é uma mulher.

Merrick limitou-se a levantar uma sobrancelha.

- Tenho perfeita noção disso, milorde.

- As mulheres não entendem os assuntos dos homens.

- Esta mulher entende.

Lorde Osgoode riu-se e a tensão dissipou-se.

-Ah, os recém-casados! Com que facilidade pensam o melhor das suas esposas!

Constance apertou os punhos por debaixo das mangas.

- O meu marido é um homem inteligente e generoso, milorde, e pensa que, para tomar uma decisão acertada, é preciso ter em conta várias opiniões, mesmo as opiniões das mulheres. Não faz sentido que uma mulher que é capaz de gerir uma grande casa seja

incapaz de compreender os conflitos e os problemas que surgem no governo de um reino.

Lorde Osgoode olhou para ela com surpresa.

- Um reino é muito maior do que um castelo, senhora, e os criados não são comparáveis aos nobres e aos cavaleiros.

- Se o rei respeitar a Magna Carta, haverá pouca diferença.

Lorde Osgoode respirou fundo e olhou para Merrick com total perplexidade.

- A minha esposa gosta das conversas animadas - disse com calma, - e às vezes procura o desacordo para as conseguir. Garanto-lhe que não está a falar necessariamente por mim, nem que a sua opinião vá ser a mesma amanhã.

Ela estava quase a refutar aquela mentira quando um olhar de advertência de Merrick fez com que se mantivesse em silêncio.

Ao ver a expressão de lorde Osgoode, pensou que faria melhor em não o deixar mais boquiaberto com os seus comentários políticos.

O nobre pôs uma mão na bolsa de pele que levava no cinto.

- O conde quer que esteja presente na assembleia de Tintagel, milorde. Irá estar presente?

Merrick aceitou o pergaminho enrolado e respondeu.

- É claro.

Depois abriu-o e, depois de o ler, entregou-o a Gonstance sem fazer qualquer comentário.

- O conde diz-nos que temos de estar lá dentro de quinze dias - disse Constance depois de ler. Convocou todos os seus vassalos?

- Sim, senhora - respondeu Osgoode.

- Então, haverá muitos assistentes. Pergunto-me se o conde tem intenção de os alojar a todos e quem será o responsável, dado que ele não tem esposa... ainda.

Lorde Osgoode pareceu surpreendido. Constance sorriu com doçura.

- Um grande senhor como o conde não pode permanecer sem esposa durante muito tempo. Eu pensei que já estaria comprometido novamente.

- Não, não está - respondeu o nobre. - Embora haja muitas damas dispostas a aceitar a sua possível proposta. Penso que até há cavalheiros que estão a tentar subornar o rei para que o obrigue a aceitar uma das suas irmãs ou filhas.

- O irmão do rei seria um grande prémio, sobretudo porque goza da confiança do monarca - concordou Constance. - Espero que a esposa que escolha seja boa para ele e, desse modo, para Inglaterra.

Lorde Osgoode olhou para ela com os olhos entreabertos.

- Não sei se entendi bem as suas palavras. Merrick mexeu-se quase imperceptivelmente no seu lugar, sentindo-se incomodado com a situação.

Era óbvio que não se sentia confortável com os seus comentários, ou talvez estivesse preocupado que ela estivesse a dizer as coisas erradas àquele homem. Assim, Constance decidiu evitar qualquer possível perigo de que lorde Osgoode chegasse a conclusões erradas e esboçou um sorriso esplêndido.

- Só queria dizer que, se o conde da Cornualha tiver um casamento feliz, estará mais contente, e assim mais disposto a permanecer em casa. Isso, sem dúvida, é o melhor para Inglaterra.

Deu uma palmadinha no joelho de Merrick e ele ficou tenso. Sem prestar atenção à reacção do seu marido, Constance concentrou-se no nobre.

- Oxalá todos os casamentos fossem tão felizes como o meu com o meu marido, ou o do rei e da rainha. Henry e Eleanor são muito felizes, não são? - afirmou e olhou para lorde Osgoode com um olhar sedutor. - E ele informa a sua esposa dos assuntos de estado, não é verdade? Também dizem que lhe pergunta a sua opinião.

Lorde Osgoode riu-se.

- Touché, senhora! É verdade, com efeito. Embora alguns digam que ela se envolve demasiado nos assuntos de estado. Mas claro, o rei é jovem e, como a senhora disse, está muito apaixonado.

- Portanto, é claro, ele quer agradar-lhe - disse alegremente, como se fosse a esposa mais feliz do mundo.

Depois de desempenhar o seu papel durante algum tempo, Constance decidiu ausentar-se e deixar que Merrick conversasse a sós com lorde Osgoode.

- Por muito interessante que seja falar consigo, milorde, devo retirar-me para me certificar de que os seus aposentos estão preparados. Pensei que estaria demasiado fatigado para assistir a uma festa hoje, portanto celebraremos a sua chegada amanhã.

Espero que fique confortável nos aposentos que pusemos à sua disposição, milorde...

- Isso é magnífico e agradeço muito a sua preocupação - respondeu lorde Osgoode.

- Vai desejar tomar um banho?

- Isso também seria óptimo, depois da interminável cavalgada de hoje.

- Então irão preparar-lhe um e enviarei uma aia para que o assista.

Os olhos de lorde Osgoode brilharam de prazer.

- Agradeço-lhe profundamente a sua hospitalidade tão amável, senhora.

Era óbvio que aquele nobre tinha a sua própria opinião do que significava ter uma aia exclusivamente ao seu serviço. Constance também tinha a sua, portanto enviaria Demelza, e não uma das raparigas jovens.

No entanto, fez-lhe um gesto cortês com a cabeça para lhe devolver a sua expressão de gratidão e saiu do grande salão para se certificar de que estava tudo preparado.

- Como te sentes? - perguntou Constance a Beatrice, quando entrou nos seus aposentos, depois de deixar tudo preparado para lorde Osgoode.

Beatrice endireitou-se e recostou-se na cama. Estava pálida e tinha umas olheiras muito pronunciadas. Passara os últimos dias um pouco apática e silenciosa e mal tocara na comida. Ocupada com os seus deveres e com a chegada de lorde Osgoode,

Constance pensara que não seria nada grave, no entanto, ao vê-la naquele momento, sentiu um aperto no coração de medo.

- Queres que mande avisar o teu pai? Ou Maloren?

Beatrice abanou imediatamente a cabeça.

- O falatório de Maloren só serviria para que me sentisse pior. Penso que uma boa noite de descanso será o suficiente para eu melhorar. A infusão de casca de salgueiro caiu-me muito bem e já quase não me dói a cabeça. Como é lorde Osgoode?

Um pouco menos preocupada, Constance encolheu os ombros e sentou-se aos pés da cama da sua prima para lhe contar as novidades.

- Demasiado petulante para o meu gosto, como a maioria dos cortesãos.

- E que notícias trazia?

- Convocaram Merrick para ir a Tintagel.

- Tu também vais?

- Tenho muito que fazer aqui - respondeu, embora não fosse verdade. Sob a supervisão de Alan de Vem, a casa podia funcionar perfeitamente durante vários dias. - Precisas de alguma coisa? Há alguma coisa que possa trazer-te para que descanses mais ou te sintas melhor?

Beatrice olhou para as suas mãos.

- Não consigo dormir e, quando consigo, tenho pesadelos. Depois acordo antes do amanhecer e não consigo voltar a adormecer.

Talvez a sua pobre prima estivesse apenas exausta pela falta de sono, pensou Constance, esperançada. Embora, na verdade, aquilo também fosse preocupante.

- O que te preocupa? O que te desgosta tanto para que não consigas dormir?

Beatrice levantou os olhos e o olhar que dirigiu a Constance foi tão perspicaz e tão adulto, que ela se sentiu tensa.

- O que se passa contigo, Constance? - perguntou Beatrice. - Estavas muito feliz depois do casamento, e agora...

- Não se passa nada - mentiu Constance.

- Sei que se passa alguma coisa entre os dois. Constance levantou-se da cama. Não ia falar com a sua prima sobre Merrick, nem sobre o seu casamento. Beatrice não entenderia o que estava a acontecer.

- Tenho a certeza de que todos os casais têm momentos de desacordo e de ansiedade.

- Sei que discutiste com Merrick depois da assembleia e que Henry discutiu com Merrick antes de partir, provavelmente por tua causa.

- As dificuldades que eu possa ter com o meu marido não têm nada que ver com sir Henry.

- É por causa de Annice, não é? Constance dirigiu-se para a porta.

- Não quero falar sobre isto.

Beatrice levantou-se da cama e correu para ela.

- Estava na assembleia, Constance - disse com a voz trémula e os olhos cheios de lágrimas. - Vi o que aconteceu. Não me surpreende que tenhas discutido com Merrick por causa do que fez. Passei horas e horas a tentar entender porque Merrick agiu daquela forma.

Até fui à aldeia falar com Annice para obter uma resposta, mas ela não quis falar comigo sobre esse assunto. No entanto, tenho a certeza absoluta de que Merrick não fez nada desonesto e acredito que ele não era capaz de te trair. Ele ama-te.

- Ame-me ou não - respondeu Constance friamente, - eu nunca disse que me tinha sido infiel. Sei que ele tinha outro motivo, um bom motivo, para proibir o casamento entre Annice e Eric. Embora não possa contar-te o que sei, sei que Merrick não tem nenhum interesse luxurioso em Annice como todos podem pensar.

- Então, porque as coisas não podem ser como eram?

Constance sentiu-se exasperada pelas perguntas da sua prima e perdeu a paciência.

- Simplesmente não podem - respondeu com brusquidão.

Beatrice ficou a olhar para ela com os olhos muito abertos e começou a chorar.

- Só quero ajudar.

Constance arrependeu-se imediatamente da sua resposta dura e dirigiu-se a Beatrice com doçura, tentando acalmar a sua prima.

- Agradeço-te muito a tua preocupação, a sério, Beatrice. Mas se há... dificuldades entre mim e Merrick, nós temos de as resolver sozinhos. Os casamentos são difíceis e não podes esperar que as coisas sejam sempre fáceis - disse, embora não conseguisse evitar o tom de amargura da sua voz. Se as pessoas forem felizes no seu casamento, mesmo que seja apenas um pouco, devem agradecer a Deus por isso.

- E não há nada que eu possa fazer para te ajudar? - perguntou Beatrice.

Constance secou as lágrimas da sua prima com a manga do seu vestido.

- Não. Mas talvez, para ti, as coisas sejam muito diferentes.

- Acho que seria melhor que não me casasse disse Beatrice, chorando suavemente. - Prefiro viver e morrer no celibato a sofrer como tu estás a sofrer agora.

Constance abraçou a sua prima e não disse nada.

- Suponho que o nosso hóspede já se retirou disse Constance naquela noite, quando Merrick chegou aos seus aposentos.

Apesar das suas tentativas por não sentir nada quando ele se aproximava, reparou que sentia um aperto no coração, enquanto Merrick começava a despir-se e dobrava a roupa com cuidado.

- Sim.

- Já o conhecias?

- Não.

Deveria ter sabido que seria inútil tentar conversar com o seu marido. No entanto, havia certas coisas que precisava de saber.

- Quando vais para Tintagel?

Ele deixou a camisa sobre o baú, já meio nu.

- Partimos dentro de dois dias.

Ela não tinha vontade de percorrer a Cornualha a cavalo apenas porque ele assim queria. Sua esposa ou não, tinha de se certificar de que tinha um certo nível de independência.

- Eu não posso ir. Não posso deixar Beatrice sozinha.

Merrick sentou-se na cama e começou a tirar as botas.

- Está muito doente?

- Não, não me parece que esteja muito mal respondeu. Como não tinha vontade de ir com ele a Tintagel, não lhe disse que pensava que a doença de Beatrice era mais produto da ansiedade do que de uma doença física. - Mas, embora não esteja em perigo, tenho de ficar aqui até se sentir melhor e seria inadequado que ela ficasse sozinha em Tregellas se eu não estiver presente. Pediria ao seu pai que viesse buscá-la, mas como ele também foi chamado a Tintagel, não temos outra escolha senão eu ficar com ela.

- Quero que venhas comigo - disse Merrick, como se não a tivesse ouvido.

- Eu já te disse que não posso ir.

- Enviarei uma mensagem a lorde Carrell. A sua filha é responsabilidade dele, não nossa. Pode enviar alguém para vir buscá-la.

- Não devia ver-se obrigada a viajar.

- Pensava que tinhas dito que a sua doença não é grave.

- Disse que não me parece que o seja, mas tenho a certeza de que uma viagem não será benéfica para a saúde dela.

- Ordeno-te expressamente que me acompanhes a Tintagel - disse Merrick, já totalmente nu, enquanto afastava a manta da cama. - Preciso de ti.

- Para quê, para te aquecer a cama? - replicou com desdém, apesar do desejo que estava a sentir.

- Aquece uma pedra e deita-te com ela.

Ele deitou-se sobre o colchão e tapou-se.

- Quero que vás para que me digas o que as outras esposas e filhas ouviram dizer sobre a situação entre o rei e os seus barões.

- Queres que eu seja o teu espião? - perguntou e, com orgulho, levantou o queixo. - Como te disse Peder, não o farei.

- Quero a tua ajuda.

- Para que ouça atrás das portas e tente apanhar um pequeno retalho de informação valiosa de horas de mexericos inúteis?

Ele arqueou uma sobrancelha com uma expressão irónica.

- Eu pensei que ias ficar feliz por poderes ir a Tintagel para teres a oportunidade de expressar as tuas opiniões políticas perante um público maior.

Claramente estavas ansiosa por soltar a língua em frente a lorde Osgoode, embora as tuas ideias o tenham feito desconfiar que o senhor de Tregellas está a tramar uma rebelião.

Ela sentiu-se culpada ao recordar tudo o que dissera a lorde Osgoode naquela primeira reunião. No entanto, não podia ser tão mau como Merrick estava a insinuar.

- Não me parece que ele tenha pensado isso. Para além disso, o que eu disse sobre o rei é verdade - replicou.

- Na tua opinião, talvez sim. Para outros, é traição, e a maioria dos homens presumiria que eu partilho das tuas opiniões, pois nenhuma mulher se atreveria a expressar pensamentos opostos aos do seu marido.

- Eu sim.

Merrick saltou da cama.

- Sim, tu sim, embora isso possa trazer-nos muitos problemas. Mas os homens como Osgoode não sabem que tu és a excepção à regra.

- A culpa não é minha...

- Meu Deus, mulher, não consegues entender?

- perguntou, com as mãos nas ancas, apesar de estar nu. - Gostes ou não, o mundo é assim e, ao expressares as tuas opiniões com vaidade e arrogância perante um homem que não conhecemos, puseste-nos em perigo.

- Não - disse, tentando conter as lágrimas de raiva e de consternação, tentando convencer-se de que ele estava errado.

Tinha de estar errado. Ela tentava sempre proteger o seu povo, não pô-lo em perigo. - Tu explicaste a lorde Õsgoode que eu não falava por ti.

- Tu obrigaste-me a que lhe desse uma desculpa e pareceu-me que ele a aceitou, mas os homens como ele não se esquecem de nada. Se eu fizer alguma coisa, qualquer coisa que pareça suspeita, ele recordará tudo o que ouviu aqui. E, mesmo que eu estivesse de acordo contigo em que Henry é um mau rei, quererias que arriscasse a minha vida, a tua e a de toda a gente de Tregellas para o descobrir? Tens a certeza absoluta de que Richard será melhor? Se tiveres, tens um ponto de vista muito benévolo sobre a humanidade. O conde poderia ser muito pior do que o seu irmão.

Dito aquilo, Merrick vestiu os calções e agarrou nas botas.

Embora ela estivesse espantada por aquelas palavras tão duras, entendeu que Merrick tinha razão. Em que estivera a pensar quando insinuara a destituição do rei na presença de lorde Osgoode?

No entanto, o seu orgulho ferido impôs-se e, quando viu Merrick a dirigir-se altivamente para a porta, disse para si que não devia suplicar-lhe. Mesmo que ele tivesse razão, não ia humilhar-se para que ficasse com ela.

- Para onde vais?

Ele olhou para trás por cima do seu ombro com a expressão mais fria que ela alguma vez vira.

- Vou dormir para outro sítio - respondeu e sorriu com desdém. - Tens medo de ficar sozinha?

Talvez possas conseguir algum consolo em Kiernan, ou em outro nobre que te faça promessas vazias e te diga palavras fúteis.

Espantada, magoada e indignada, Constance pegou no pente de marfim que tinha junto da cama e atirou-o à cabeça dele com todas as suas forças.

O objecto errou o alvo por poucos centímetros e foi contra a porta. Depois caiu ao chão e partiu-se em pedacinhos.

- Vejo que, afinal de contas, aprendeste alguma coisa com o meu pai - resmungou, enquanto saía.

- Dentro de dois dias, quer queiras, quer não, vais comigo para Tintagel, e Beatrice será escoltada até sua casa.

 

- Esperas problemas?

- Sempre - respondeu Merrick olhando para Ranulf com uma compostura fria, enquanto os dois estavam na sala de armas.

O seu cortejo ia sair para Tintagel ao amanhecer do dia seguinte e Merrick queria certificar-se de que estava tudo preparado.

- Tintagel não é assim tão longe - observou Ranulf. - Tens a certeza de que precisas de uma escolta de tantos homens? Entre os soldados de lorde Osgoode e os nossos, serão mais de cinquenta homens.

As palavras de Ranulf não conseguiram acalmar aquele medo odioso que Merrick sentia desde menino. Uma viagem. Um caminho. Um bosque. Os mortos e o sangue no chão.

Tentou afastar tudo aquilo da sua mente.

- Quero levar todos esses homens. Ou parece-te que estou a deixar Tregellas desprotegida?

- Não, claro que não. Este lugar está muito bem fortificado.

- Estarão prontos para partir assim que amanheça?

- Sim. A tua esposa também?

Merrick fechou os olhos durante um segundo ao recordar a sua última discussão. A raiva que ele sentira. As suas palavras duras.

- Sim.

- Pensei que talvez quisesses que ficasse aqui.

- Não. Mais uns ouvidos, sobretudo para ouvir o que as mulheres dizem, serão muito valiosos.

- Ela está ao corrente do que queres que faça?

Constance sabia, no entanto, isso não significava que quisesse fazê-lo. No entanto, em vez de responder, Merrick pegou numa espada e começou a praticar alguns movimentos.

- Receava que já não te importasses com o que ela pensasse, depois do que aconteceu na assembleia - disse Ranulf e Merrick sentiu uma verdadeira preocupação no tom de voz do seu amigo.

No entanto, por muito boa vontade que o seu amigo tivesse, Ranulf nunca o entenderia, tal como Henry.

Portanto Merrick não respondeu, com a esperança de que Ranulf entendesse que não queria falar e mudasse de assunto.

No entanto, não o fez.

- Então, apesar das aparências, está tudo bem entre vocês?

Se aquilo era uma batalha de vontades, Ranulf ia perder, pensou Merrick, contrariado, enquanto fazia uma ameaça defensiva.

- São felizes juntos?

Merrick virou-se e lançou um golpe de ataque a um oponente imaginário.

- Já imaginava que não. As coisas não estão bem desde a assembleia. De facto, eu diria que és o homem mais infeliz de Tregellas.

- Enganas-te - respondeu Merrick, voltando a pôr a espada no seu sítio.

Ranulf abriu muito os olhos com uma surpresa exagerada.

- Ah, portanto andas por aí a bufar como um touro furioso e a resmungar com toda a gente porque estás num delírio de felicidade e Constance anda a flutuar pelo castelo como um fantasma desgraçado porque está louca de alegria.

- A minha esposa não flutua.

- Eu sei. Vais falar com ela para resolver a situação, ou vais deixar que a distância se torne cada vez maior até ao ponto de não conseguirem voltar atrás e emendarem os seus erros?

- A minha relação com Constance não te diz respeito.

- É verdade, mas estás a destruí-la. Ela está muito infeliz.

Merrick dirigiu-se para a porta.

- Não vou falar contigo sobre o meu casamento. Ranulf dirigiu-se para ele.

- Bom, mas tens de falar com alguém, preferivelmente com a tua mulher e, quanto mais depressa, melhor.

Merrick perdeu a paciência e esboçou um sorriso sardónico.

- Para um homem cuja história com as mulheres não é a melhor, falas muito.

- É verdade, aprendi muito com a minha história patética com as mulheres - respondeu Ranulf e os seus olhos castanhos reflectiram a dor que sentia, enquanto punha uma mão no antebraço do seu amigo. - Acredita em mim, Merrick, estás a cometer um erro

muito grave ao esconder os teus sentimentos da tua esposa e à espera que ela seja capaz de ler a tua mente para entender tudo o que pensas e porque fazes tudo o que fazes.

- Eu não espero que Constance leia os meus pensamentos - replicou Merrick enquanto afastava o braço. - Esperava que pensasse que sou um homem honrado, pois nunca lhe dei razão para pensar o contrário.

- Por causa disso vais estar de mau humor até que um dos dois morra?

Merrick zangou-se.

- Não estou de mau humor!

- Muito bem - concordou Ranulf, encolhendo os ombros, sem que, aparentemente, a raiva do seu amigo o afectasse. - Não estás de mau humor. Estás amargurado. Deprimido. Usa a palavra que quiseres.

Merrick passou à frente dele.

- Isto é inútil.

Novamente, Ranulf bloqueou-lhe o caminho.

- Seria inútil se eu não acreditasse que a amas. Mas tu amas a tua esposa.

Amigo ou não, Merrick não ia falar sobre a sua esposa com Ranulf.

- Deixa-me passar.

- Meu Deus, Merrick, se a amas, faz as pazes com ela!

- Não me digas como tenho de viver a minha vida! - respondeu Merrick. - Tu és o comandante da minha guarnição, não o meu senhor.

- Pensava que era teu amigo.

As palavras calmas de Ranulf foram como um murro no peito para Merrick. Perdera Constance. Perdera Henry. Perderia também Ranulf?

No entanto, sabia que não podia ser sincero com o seu amigo, por muito que o desejasse. Era possível que acabasse por revelar demasiada informação.

- Certifica-te de que os homens e as carruagens estejam prontas ao amanhecer - disse.

Quando Merrick abriu a porta, Ranulf deixou escapar um suspiro.

- E lady Beatrice? - perguntou. - Quantos homens devem escoltá-la até casa?

- Dez - respondeu Merrick.

- Assim será, milorde - murmurou Ranulf enquanto ele fechava a porta.

Constance fora infeliz durante dias, no entanto, naquele momento, montada na sua égua à chuva, sentia-se completamente desgraçada. Oxalá tivesse podido ficar em casa, onde, pelo menos, estaria quente e seca, e não teria de recear o que ia acontecer

em Tintagel. O seu marido ia ignorá-la durante todos aqueles dias e, certamente, uma das outras mulheres, maravilhada pela beleza de Merrick e percebendo o distanciamento que havia entre a sua esposa e ele, tentaria oferecer-lhe consolo para conseguir algum favor no leito.

Se tivesse ficado em casa, não teria de suportar aquilo.

Se tivesse ficado em casa, Beatrice não teria tido de partir de Tregellas. Vira a sua pobre prima a chorar desconsoladamente ao subir para a carruagem que teria de a levar para o castelo do seu pai.

A amizade entre Ranulf e Merrick também estava a ressentir-se. Enquanto Beatrice se despedia, Ranulf estava tão sério como a morte.

Por outro lado, quando chegasse a Tintagel, teria de ter cuidado com o que dizia. Gostasse ou não, Merrick tinha razão. A maioria dos homens pensaria que as suas opiniões eram também as do seu marido, portanto ela deveria ter cuidado para não se misturar na agitação da corte.

Felizmente, a única coisa que tinha de fazer era tagarelar como Beatrice e dar várias opiniões contraditórias sobre o estado do reino para que lorde Osgoode e toda a gente em Tintagel presumisse que era uma cabeça oca que tentava parecer menos ignorante do que era na verdade. Até ao momento, tivera sucesso. Lorde Osgoode tratava-a com uma completa condescendência.

Constance não sabia o que Merrick pensava do seu novo comportamento. Embora não tivesse voltado a passar a noite fora dos seus aposentos e a mistura de palha e de feno que tivera no cabelo e na roupa no dia seguinte dera a entender a Constance que dormira no estábulo depois da discussão, parecia-lhe, mais do que nunca, um estranho.

Suspirou. Todas as suas esperanças e os seus sonhos de felicidade e de segurança estavam em ruínas, tal como o moinho depois do incêndio. Feitos em pedacinhos, como o seu pente de marfim.

Olhou para Merrick, que ia a liderar o cortejo, levando a cota de malha completa, o escudo na mão esquerda e a espada à cintura. A sua postura era direita, rígida, preparada para uma possível batalha inesperada.

- Pergunto-me se vai parar de chover ou se vai piorar antes de chegarmos a Tintagel - especulou lorde Osgoode, que cavalgava junto de Constance.

Constance deixou de olhar para o seu marido e disse com um risinho tolo:

- Espero que melhore, ou receio que as minhas vestes se estragarão e parecerei um desastre quando chegarmos a Tintagel.

- A senhora nunca poderá parecer outra coisa senão muito bela - garantiu lorde Osgoode.

Constance tentou disfarçar o desprezo que sentia por aquele homem, que deixava Henry à altura de um principiante no que dizia respeito à forma como lisonjeava as mulheres.

- Falta muito para chegar? - perguntou. - Receio que não seja muito viajante. Nunca cavalguei muito para além do castelo de lorde Carrell.

- Duvido que cheguemos hoje - respondeu o nobre. Ouvi dizer que há um mosteiro não muito longe daqui e tenho a certeza de que o seu marido quererá passar lá a noite para que possa descansar.

Constance receou que Merrick não estivesse muito preocupado com a sua fadiga nem com a sua comodidade.

Pouco depois, Merrick levantou a mão para indicar ao cortejo que parasse.

- Pergunto-me porque parámos - murmurou lorde Osgoode e aproximou-se da cabeça do grupo.

Ela também se perguntou porquê, portanto imitou o nobre. Lorde Osgoode repetiu a pergunta a Merrick, que estava a observar atentamente o espesso bosque de carvalhos do qual estavam a aproximar-se.

- Este é um lugar muito propício para uma emboscada - disse Merrick.

Não foram as suas palavras, mas o seu tom de voz, que fez com que Constance tremesse.

- Que estúpidos iriam fazer-nos uma emboscada, milorde? - perguntou lorde Osgoode com incredulidade. - Temos uma escolta com mais de cinquenta homens.

Merrick virou-se sobre a sua sela e olhou para os seus soldados como se quisesse confirmar que estavam ali. Constance nunca o vira tão pálido.

- É óbvio que nunca sofreu uma emboscada, milorde, nem nunca viu morrer todos aqueles que o acompanhavam - respondeu. - Eu já vi e não me arriscarei a voltar a passar por essa situação.

Aquilo silenciou lorde Osgoode.

Fosse o que fosse que Merrick estava a recordar, chamou um soldado e ordenou-lhe que dividisse os homens em três grupos, um para que liderasse o cortejo, o outro para que cavalgasse junto de lady Constance e de lorde Osgoode, e o terceiro para que guardasse a cauda do cortejo.

Quando todos estiveram em posição, Merrick levantou a mão novamente e ordenou o reinício da marcha.

Merrick arriscara-se a morrer e a ser ferido muitas vezes nos torneios, durante o seu treino e em algumas batalhas que tivera de lutar junto de lorde Leonard para submeter algum vassalo rebelde. Em nenhuma daquelas vezes sentira medo, o que sentira fora uma determinação forte de provar a si mesmo o que valia.

Aquelas batalhas, no entanto, tinham sido realizadas em campo aberto, ou nos muros de um castelo, em zonas abertas, e nunca rodeadas de árvores.

Algumas vezes, era apenas necessário que sentisse o cheiro a terra e a folhas molhadas para sentir novamente o terror. Para ouvir os gritos dos feridos e dos moribundos. Para ver lorde Egbert deitado no chão, olhando para o céu com os olhos bem abertos e frágeis de um morto. Para recordar o capitão dos soldados, duro e aterrador, a gritar ordens, tentando fazer virar o seu cavalo. E recordá-lo depois, a gritar de dor enquanto lhe cortavam o braço. Os criados tinham sido assassinados, sem respeitar a idade nem a patente, no mesmo sítio onde tinham ficado imóveis, espantados, perante a cena que presenciavam.

E àquele menino, que tinha a sua mesma idade, tinham cortado o pescoço. O seu sangue ensopara as suas vestes de aldeão.

Por todos os lados, apenas havia sangue.

Merrick recordava que se deslocara para as árvores e recordava como os arbustos lhe tinham arranhado as pernas até que, exausto, quando já não conseguia correr mais, caíra ao chão entre os arbustos.

Naquele momento, Merrick agarrou no punho da sua espada com força e tentou afastar tudo aquilo da sua mente enquanto entravam no bosque. Ele ganhara torneios. Era um bom guerreiro e estava bem armado. Para cair, teria de ter muito azar ou cometer um erro muito grave.

Os soldados que o acompanhavam eram homens experientes. Até lorde Osgoode tinha o treino necessário para se defender.

No entanto, apesar daqueles pensamentos tranquilizadores, o suor deslizava pelas suas costas e fazia com que a camisa que levava debaixo da cota de malha se colasse à sua pele.

Porque, maior do que o seu medo do bosque escuro e húmido era o seu medo pela segurança de Constance, talvez pela sua vida. Em silêncio, amaldiçoou-se por ter sido um idiota obstinado e ter insistido em que ela o acompanhasse. Devia tê-la deixado em Tregellas, onde seria muito mais difícil ser ferida por um inimigo. Mesmo que o resto dos nobres e o conde tivessem achado estranho e tivesse causado especulações, ele devia tê-la deixado em casa.

Quanto faltava para que acabasse aquele bosque?

Nunca devia ter-se casado com ela. Não devia tê-la convertido na esposa de um homem que os aldeãos e os vassalos detestavam, nem fazê-la viver com o medo de que houvesse uma rebelião.

Nunca devia ter-lhe pedido que traísse a confiança daquelas pessoas e devia ter-lhe dito como se sentia aliviado e orgulhoso por ela se ter recusado, porque, de outra forma, ele mesmo também não conseguiria confiar nela.

Confiava em Constance, apenas tanto como confiava em qualquer pessoa.

Nunca completamente. Não se atrevia a fazê-lo. O seu segredo era demasiado terrível. Os seus amigos desprezá-lo-iam, o conde despojá-lo-ia do seu feudo e Constance... ela desejaria vê-lo no inferno.

O cavalo de Merrick mexeu-se nervosamente e ele apercebeu-se de que estava a apertá-lo demasiado com os joelhos. Relaxou as pernas e olhou para a frente.

Ao longe, o atalho começava a alargar-se e o bosque começava a dissipar-se. Graças a Deus. Já não faltava muito.

As lembranças começaram a esconder-se no lugar onde ele as conservava, juntamente com o medo de ser descoberto que o obcecava dia e noite. Deu meia volta na sela para olhar para Constance e viu que ela estava a observá-lo atentamente.

Olhou para a frente e amaldiçoou-se pela sua estupidez. Era um idiota e, se precisasse de alguma prova disso, só tinha de olhar para a mulher que estava a fazer infeliz.

Finalmente saíram do bosque. À sua esquerda estendia-se um penhasco pedregoso que descia até ao mar. À sua direita, o terreno fora clareado para obter pastos, desde o atalho até ao ponto mais alto do penhasco que discorria em paralelo ao caminho.

Para além daqueles pastos, continuava o bosque. Ao longe avistou uma casa de pedra com um estábulo e um celeiro. O desvio para o mosteiro onde iriam ficar alojados naquela noite não devia ficar a mais de um quilómetro de distância.

Merrick ordenou aos homens que desembainhassem as espadas e ele fez o mesmo.

Enquanto continuavam a marcha, o ar pareceu imóvel, e os únicos sons que se ouviam eram os do cortejo: o chiado das rodas das carruagens, os passos dos homens a pé, os cascos dos cavalos e o tinido das peças de metal dos seus arreios. Àquela hora, os homens estavam demasiado cansados para conversar. Também já não ouvia o suave murmúrio da voz de Constance e os tons mais graves da voz de lorde Osgoode enquanto falava com ela.

Constance estivera a comportar-se de forma estranha desde que ele a repreendera pelos comentários que fizera a Osgoode. Embora receasse que pudessem acusá-lo de tentar roubar a coroa ao rei, e embora não confiasse em Osgoode, Merrick sabia que não devia ter perdido a calma. Apesar de tudo, Constance devia ter pensado que ele tinha razão e quisera reparar o mal que causara, comportando-se como uma parva.

Apenas um homem com os preconceitos de lorde Osgoode não se teria apercebido de que ela estava a fingir que era tola.

Merrick reparara que Ranulf ficara a olhar para ela com perplexidade e que Beatrice também a observara com uma expressão confusa.

Mais adiante, na quinta, não havia muita actividade.

Onde estava o agricultor? E a sua esposa? E os seus filhos? Nem sequer se ouvia o latido dos cães, avisando o seu dono de que se aproximava um grupo a cavalo pela estrada.

Merrick virou a cabeça para olhar para o campo.

Uma emboscada!

Não acontecera no bosque, tal como ele receava. Ia acontecer ali, onde ele pensava que estariam a salvo. Um número de homens equivalente ao que ele levava no cortejo aproximou-se a galopar do bosque e pelo penhasco. Com lanças.

Lanças que podiam atravessar uma cota de malha e derrubar um homem de um só golpe e eles não levavam nenhuma.

Imediatamente esqueceu-se das lanças ao ouvir o grito de Constance.

Tudo o resto lhe pareceu insignificante. Até a sua própria segurança. Constance era a sua mulher, a sua amada, e não permitiria que lhe tocassem num único cabelo.

Merrick gritou aos soldados e, ao fazê-lo, apercebeu-se de que os homens já estavam a formar frentes de batalha, enquanto um grupo de vinte homens rodeava Constance e lorde Osgoode.

Merrick gritou aos soldados que levassem Constance e o nobre para o mosteiro, acontecesse o que acontecesse.

Depois levantou a espada e, com as rédeas na mão esquerda e o escudo levantado, incitou o cavalo rapidamente e dirigiu-se para a batalha. Bateu na primeira lança que conseguiu com a espada e destruiu-lhe a ponta. Recuperou suficientemente rápido para atingir o cavaleiro, porém, falhou e quase caiu ao inclinar-se demasiado para a frente.

Recuperou o equilíbrio e com um golpe forte dos joelhos, fez com que o seu cavalo se virasse. Três dos seus homens a cavalo tinham caído e também dois dos atacantes.

Rapidamente procurou Constance. Viu lorde Osgoode e os seus guardas a lutarem contra um grupo igual em número, no entanto, onde estava Constance?

Ali! Conseguira afastar-se do grupo que lutava e estava a galopar pelo atalho. Perdera o véu e a touca, e levava o cabelo solto.

Merrick viveu um momento de alegria ao ver que conseguira fugir, contudo, imediatamente, sentiu um aperto no coração, pois viu que um dos atacantes se afastara do grupo que rodeava Osgoode e a seguira.

Merrick reconheceu-o imediatamente. Vira-o nos torneios, vira-o a praticar e conhecia bem a sua forma de montar.

- Traidor! - gritou Merrick com toda a sua alma e incentivou o cavalo a persegui-lo. - Traidor!

A morte era demasiado benévola para Henry.

Outros seis homens a cavalo apareceram à frente dele, dois deles com lanças e o resto com espadas reluzentes.

Com raiva, Merrick carregou contra o mais próximo, brandindo a espada como um louco, e com incrível destreza, feriu e desmontou os seus seis oponentes, enquanto o seu cavalo dava coices entre os golpes.

Quando o último dos homens gritou e caiu do cavalo, Merrick levantou-se, magoado e ensanguentado, sobre os estribos.

Constance! Onde estava Constance?

Ali, jazendo no chão. Lorde Osgoode estava ajoelhado ao seu lado.

Não tinham conseguido levá-la. Não tinham conseguido levá-la! Porém, meu Deus, se estivesse morta...

Cavalgou até ela e nem se apercebeu de que os seus homens tinham conseguido repelir o ataque e que estavam novamente em segurança.

Quando chegou ao seu lado, parou, desmontou com um salto e caiu de joelhos junto da sua esposa. Constance estava pálida e imóvel e Merrick esqueceu-se de tudo ao ver o seu rosto branco.

- Está morta? - balbuciou.

- Não, não morreu - respondeu lorde Osgoode.

- Caiu do cavalo ao tentar fugir. Não me parece que tenha partido nada, mas receio que tenha batido com a cabeça.

Merrick sentiu uma punhalada de dor. Um braço partido podia entalar-se, uma ferida podia coser-se, mas um golpe na cabeça... As vezes não eram nada, contudo, por vezes causavam uma morte lenta.

- E o homem que tentou raptá-la?

- Lamento, milorde, mas fugiu. Merrick levantou-se.

- Não durante muito tempo - disse num tom de voz que fez com que Osgoode tremesse.

- Levem a minha esposa para o mosteiro - ordenou Merrick, enquanto montava novamente, com o coração endurecido pela determinação.

Ia encontrar Henry, que, por sua vez, descobriria quão desumano conseguia ser o filho de William, o Infame.

 

As vozes pareciam abafadas, como se estivessem debaixo de água. Ou como se ela estivesse muito longe.

- Milorde, não deve incomodá-la - disse um homem.

Ela não reconheceu a sua voz, porém, era a voz de uma pessoa instruída. De meia-idade.

- Tenho de a ver.

Aquele era Merrick. Estava vivo! Graças a Deus.

- Milorde, imploro-lhe. Administrei-lhe uma droga muito forte e devíamos...

- Vai sobreviver?

- Isso está nas mãos de Deus, milorde.

- Tenho de a ver antes de partir.

Partir? Para onde? Para Tintagel? Não estavam já lá?

Onde estava ela?

De repente, uma mão pegou na sua. Era uma mão calejada, áspera. A mão de um homem, segurando a sua com delicadeza.

- Lamento - sussurrou com a voz entrecortada.

- Constance, meu amor, se morreres, nunca conseguirei perdoar-me.

Ela tentou abrir os olhos, porém, não conseguiu. Porque não conseguia abrir os olhos?

- Nunca devia ter-me casado contigo. Constance permaneceu imóvel, demasiado angustiada para tentar mexer-se.

- Menti-te, Constance - sussurrou-lhe ao ouvido.

Cheirava a suor, a pele e a sangue.

A batalha. Tinham sofrido um ataque e havia qualquer coisa importante em relação àquela batalha que tinha de lhe dizer...

Ele encostou a testa ao seu ombro.

- Nunca devia ter posto a tua vida em perigo. Doeu-lhe a alma ao ouvir o seu tom de dor.

Oxalá pudesse consolá-lo.

- Menti-te, Constance. Não tinha o direito de me casar contigo. Não tinha o direito de reclamar Tregellas.

Devia estar a sonhar. Tinha de estar a sonhar. Sim, era isso. Estava a sonhar e era um pesadelo.

Merrick continuou a falar.

- Mas tinha levado a tua imagem no coração durante tanto tempo... tinha-te amado durante tanto tempo que, quando te vi, fui demasiado fraco para te libertar.

Libertá-la? Ela não queria que a libertasse. Só queria dormir um pouco mais para não sentir aquela dor de cabeça horrível.

- Quando acordares, quando estiveres melhor, prometo-te que irei falar com o rei e irei à Igreja e a todos os lugares necessários para dissolver o nosso casamento para que sejas livre outra vez, como deve ser. Pequei, Constance, e espero...

Imploro a Deus que um dia consigas perdoar-me.

Ela tentou, mais uma vez, abrir a boca, dizer o seu nome, no entanto, estava a ir novamente para a escuridão e não podia. Ainda não.

- Milorde, por favor, imploro-lhe! - suplicou a voz suave um pouco mais longe. - Tem de deixar a sua esposa descansar.

Com todas as suas forças, Constance tentou falar, abrir os olhos.

- Hen... ry - sussurrou.

Merrick respirou fundo bruscamente e depois soltou-lhe a mão.

Ouvira-a.

Ela queria dizer mais, queria dizer que Henry tentara ajudá-la, porém, o esforço que fizera para tentar falar acabara com todas as suas forças.

- Milorde, por favor!

- Vou-me embora. Façam o que puderem. Enviem uma mensagem para Tintagel. Tenho assuntos para tratar, assuntos que não podem esperar.

- O outro homem que trouxe, milorde. Está ferido e devia...

- Devia estar morto e em breve estará, mas não antes de eu ter acabado com ele.

- Que Deus tenha piedade da sua alma - disse o outro homem tristemente.

A última coisa que Constance ouviu antes de perder a consciência foi a resposta do seu marido:

- Que Deus tenha piedade dos dois.

- Senhora?

Constance abriu os olhos. Doía-lhe a cabeça, mas não muito. Olhou para as paredes do quarto, sentiu o linho e a lã da manta na sua pele, e reparou num crucifixo que havia na parede oposta à sua cama.

Por último, apercebeu-se de que Ranulf estava sentado ao seu lado, com uma expressão muito séria.

- Tome, senhora, beba isto.

Ela não vira o outro homem, porém, reconheceu a sua voz. Era o homem que falara com Merrick quando ele fora vê-la. Um Merrick triste, consternado, decidido.

Constance virou ligeiramente a cabeça e viu um monge com uma expressão agradável, que estava a oferecer-lhe uma tigela.

- Este é o irmão Paul - explicou Ranulf. - É o médico do mosteiro e esteve a cuidar de si. Caiu do cavalo.

- Sim, eu lembro-me do que aconteceu - disse e pôs a mão sobre a testa, como se estivesse a recordar mais coisas.

Constance tentou endireitar-se, com a ajuda do médico. Pegou na tigela que lhe dera e bebeu um pouco de vinho quente, que lhe serviria de calmante, enquanto Ranulf a observava com preocupação.

- Porque veio? - perguntou, devolvendo a tigela ao monge com as mãos trémulas. - Há algum problema em Tregellas?

Ranulf abanou a cabeça.

- Não. Vim buscá-la, senhora.

- Merrick avisou-o de que o nosso cortejo foi atacado?

- Não. Henry enviou-me uma mensagem onde me informava de tudo.

Ela sentou-se sobre o colchão.

- Henry apareceu durante o ataque e tomou as rédeas do meu cavalo. Tentou ajudar-me a fugir mas eu caí e bati com a cabeça.

- Talvez possa esperar para falarem noutra altura, sir Ranulf - sugeriu o irmão Paul. - A senhora não está bem...

- Sim, estou bem - disse Constance e voltou a concentrar-se em Ranulf. - Henry sabia do ataque?

- Sim, mas suponho que o seu resgate não teve sucesso, porque, senão, ele também estaria aqui.

- Não sei o que aconteceu depois de ter caído do cavalo - disse. Depois franziu o sobrolho, tentando recordar a primeira vez em que recuperara os sentidos. - Merrick esteve aqui. Disse...

Dissera que mentira. Dissera que não tinha o direito de estar casado com ela.

- Tentei dizer-lhe que Henry tentou ajudar-me, mas não consegui falar. Sabe onde está Henry?

- Não sei. Vim assim que recebi a mensagem dele. Dizia que estaria aqui à minha espera.

- Porque não enviou a mensagem a Merrick? Porque a enviou a si?

- Receava que Merrick não acreditasse nele.

- E sabia que o senhor ia acreditar?

- Eu não tenho nenhum motivo para não o fazer e continuo a ser amigo de Merrick. Henry tinha planeado salvá-la durante o ataque e trazê-la para aqui, onde eu a encontraria. Mais tarde, devia ir procurar Merrick e contar-lhe tudo o que Henry descobriu.

Henry pensava que Merrick estaria mais disposto a acreditar nele depois da emboscada.

- E Merrick? O que teria acontecido se tivesse sido ferido ou se o tivessem matado?

Ranulf sorriu.

- Tendo visto Merrick a lutar, Henry não pensou que fosse muito provável que acontecesse algo do género ao seu marido.

Constance não teria tido tanta certeza disso, embora parecesse que Henry e Ranulf tinham razão. Merrick não morrera.

- O que descobriu Henry?

- Talvez, senhora - disse Ranulf com um olhar significativo, - seja melhor manter esta conversa entre nós dois, pois diz respeito a assuntos políticos importantes.

- Tem razão - concordou Constance, perguntando-se a que assuntos se referiria Ranulf. - Se não se importa, irmão Paul, eu gostava de ficar a sós com sir Ranulf. Pode deixar a porta aberta e vigiar do corredor. Ranulf avisá-lo-á se me sentir doente ou desmaiar.

O irmão Paul franziu o sobrolho, porém, assentiu. Depois levantou-se silenciosamente e saiu do quarto, deixando a porta entreaberta.

- Agora, Ranulf, conte-me tudo - pediu com ansiedade e impaciência.

- A mensagem de Henry informava-me que tinha descoberto uma conspiração.

- Contra o rei ou contra o conde da Cornualha?

- Contra ambos. E também contra a senhora e o seu marido.

Ela entendia facilmente porque os seus inimigos quereriam ver Merrick morto, pois conseguia ser um adversário implacável.

- Mas porquê contra mim? - perguntou-se em voz alta. - Eu seria mais valiosa com vida, porque poderiam pedir um resgate por mim, ou garantir o silêncio ou a cooperação do meu marido.

- Se isto fosse uma conspiração estritamente política, sim.

- E não é?

Ranulf abanou a cabeça.

- Lamento ser o mensageiro de notícias tão tristes, mas são a avareza e a ambição que movem os seus inimigos.

- E quem são eles?

- O seu tio e o tio de Merrick.

- Lorde Carrell? - perguntou.

Aquela notícia deixou-a surpreendida. Enjoada, Constance fechou os olhos e tentou não desmaiar. Ouviu Ranulf a levantar-se.

- Não! - gritou suavemente enquanto o agarrava pelo braço. - Estou bem. Por favor, fique.

- Está doente, senhora. Contei-lhe demasiadas coisas, demasiado cedo. O resto pode esperar.

Ela não o soltou.

- Por favor!

Contrariado, Ranulf voltou a sentar-se.

- Parece que lorde Algernon quer ficar com Tregellas e lorde Carrell concedeu-lhe a sua ajuda para o conseguir.

Lorde William afirmara muitas vezes que Algernon invejava Tregellas e que seria capaz de fazer qualquer coisa para conseguir o feudo. Portanto, era possível que Algernon estivesse envolvido, mas...

- O meu tio nunca seria capaz de me fazer mal. Ranulf levantou uma sobrancelha.

- Mas deixou-a aos cuidados de um homem que, segundo ouvi, não era melhor do que Calígula.

- Eu estava comprometida com o filho de lorde William.

- Esse acordo foi assinado antes de a filha de lorde Carrell ter nascido. Depois, o acordo não podia ser dissolvido sem uma penalização.

Ela estava a par daquele detalhe e de que o seu tio conseguia ser um miserável.

- Talvez ele tivesse esperança de que o seu futuro sogro lhe fizesse o trabalho sujo e a matasse num dos seus ataques de raiva - sugeriu Ranulf.

Aquilo explicaria porque a deixara em Tregellas durante todos aqueles anos, apesar de tudo o que lorde William fizera.

- Se Merrick e eu estivermos mortos, lorde Algernon herdará Tregellas, porém, qual é o papel do meu tio?

- O seu tio quer casar a sua filha com o senhor de Tregellas, em vez de a sua sobrinha.

Constance ficou com falta de ar ao deduzir quais eram as respostas a outras perguntas que se fizera com frequência. Entendeu porque o seu tio nunca lhe falara sobre arranjar um casamento para Beatrice e também a quantidade de olhares que os dois homens trocavam e o porquê das suas conversas sussurradas.

- Não há nenhuma razão para que não possa casar Beatrice com Algernon neste momento.

- Excepto que lorde Algernon ainda não possui Tregellas e está tudo relacionado. Algernon conseguirá Beatrice e um vínculo de sangue com lorde Carrell apenas depois de ter herdado o feudo.

Tudo parecia incrível, porém, mesmo assim, Constance acreditou em sir Ranulf.

- E como descobriu Henry tudo isto?

- Depois de partir de Tregellas, encontrou-se com o seu tio, que já se informara da sua discussão com Merrick. O seu tio ofereceu-lhe um castelo. Ao desconfiar dos comentários e da oferta do seu tio, Henry aceitou. Então descobriu provas de que estava a planear uma conspiração e até reuniu várias cartas comprometedoras. Eu vi-as e receio que não haja dúvida nenhuma de que o seu tio é culpado, senhora.

- E como conseguiu Henry essas cartas?

- Provavelmente, é melhor não perguntar isso respondeu Ranulf com um sorriso envergonhado. Henry é muito hábil para entrar nos castelos sem ser visto.

A caminho dos seus encontros amorosos, sem dúvida.

- Não sei como as conseguiu, mas estou-lhe muito agradecida.

Ranulf tinha os olhos muito brilhantes.

- No entanto, lorde Algernon não sabe que, se Beatrice ficar viúva, o seu pai controlará Tregellas e ficará com todo o poder dessas terras.

Sem se preocupar com a presença de Ranulf, Constance afastou a manta e saiu da cama em camisa de dormir.

- O que pensa que está a fazer? - perguntou Ranulf, demasiado perplexo para ser cortês.

- Temos de ir imediatamente para Tintagel disse.

Tinha de ver o seu marido o mais depressa possível, não só para lhe dizer o que Henry descobrira. Ela tinha de saber o que Merrick quisera dizer quando lhe falara de uma mentira e porque dissera que a libertaria do seu casamento.

- Assim que recebi a mensagem de Henry, enviei um mensageiro à Merrick para lhe dar a conhecer que existia uma conspiração contra vocês.

Constance não se sentiu reconfortada.

- É óbvio que não conhece o meu tio. Mesmo que o mensageiro tenha conseguido chegar a Tintagel com vida, mesmo que tenha conseguido dar essa mensagem a Merrick, o meu tio é suficientemente esperto para fazer com que o conde acredite que Merrick é o conspirador, que planeou trair o rei. Ou então culpará Algernon de tudo. Temos de ir imediatamente para Tintagel. Onde está Henry?

- Não sei. Só me disse que tentaria trazê-la para aqui.

Não me disse quais eram os seus planos para depois.

- Rezemos para que esteja a salvo e o encontremos.

Henry sentiu um balde de água fria na cara, ensopando-lhe a roupa suja e rota, e ensopando também a palha fria e húmida onde estava deitado. Tossindo e ofegando com os lábios arroxeados e cortados, gritou ao sentir outra dor terrível quando tentou mexer-se. Certamente, tinha várias costelas partidas. Uns grilhões de ferro aprisionavam-lhe os pulsos e tinha as pernas presas também...

Alguém lhe deu um pontapé no tornozelo.

- Acorda, miserável.

Henry abriu as pálpebras inchadas e viu Merrick a olhar para ele como se fosse um anjo vingador à hesitante luz da tocha, com a espada numa mão.

Merrick, que o perseguira e encurralara, que o atacara ferozmente e que não o ouvira quando ele tentara explicar-lhe...

Merrick voltou a bater-lhe.

- Sei que estás acordado. Henry tentou levantar-se.

Merrick obrigou-o a permanecer de joelhos.

- Não tens o direito de te pôr de pé perante mim, cão traidor.

- Não entendes...

- Entendo! Vi-te com os meus próprios olhos a tentar levar a minha esposa.

- Não... - tentou protestar Henry.

Mais uma vez, Merrick deu-lhe um pontapé.

- Mentiroso! Traidor! Não há nada que tivesses podido fazer para que te odiasse mais.

- Juro-te que...

- Vais fazer outro juramento? - perguntou Merrick depreciativamente. - O que aconteceu ao que fizeste, que te obrigava a ser-me leal como um irmão?

- Cumpri-o...

- Tentando raptar a minha mulher? - Merrick apoiou a ponta da espada mesmo debaixo do olho esquerdo de Henry. - A morte é demasiado boa para um homem como tu.

- Ouve-me! - implorou Henry com desespero.

- Estava a tentar salvá-la.

- De quem? De mim?

- De lorde Carrell - respondeu Henry, ofegando devido ao esforço. - E de lorde Algernon. Eles planearam a emboscada, não eu.

A ponta da espada rasgou a pele de Henry.

- Será que a tua vilania não tem limites e ainda te atreves a acusar os nossos parentes?

- É verdade - insistiu Henry. - Lorde Carrell e lorde Algernon não são apenas teus inimigos. Estão a conspirar contra o rei. Tenho provas, cartas que Carrell enviou a outros conspiradores do norte.

- E como conseguiste essas cartas? Por acaso lorde Carrell mandou-te entregá-las?

- Não... Eu tinha outra função. Ele descobriu da nossa discussão e foi procurar-me. Ofereceu-me um lugar ao seu serviço. Eu pensei que havia mais alguma coisa escondida e que não devia confiar nele.

Logo me demonstrou que tinha razão para desconfiar. Ofereceu-me Constance se o servisse e se participasse na emboscada. -Mentiroso!

- Pergunta a Ranulf se não acreditas em mim. Eu enviei-lhe uma mensagem a contar-lhe tudo. Ele ia encontrar-se com Constance e comigo no mosteiro depois de eu a ter levado para lá. Depois iríamos contar-te o que eu tinha descoberto. Enviei-lhe as

cartas para que soubesse que eu estava a dizer a verdade e para que as guardasse num lugar seguro. Deve estar no mosteiro. Espera por ele antes de me matares, Merrick, por favor...

Novamente, a espada rasgou a pele de Henry e uma gota de sangue deslizou pela sua face.

- Porque enviaste as provas a Ranulf e não a mim?

- Porque pensava que seria mais fácil convencer-te se Ranulf já soubesse de tudo. Mas tens de acreditar em mim. Lorde Carrell e lorde Algernon são teus inimigos, não eu.

- Que forma mais hábil de ganhar tempo, acusando os outros. Embora não entenda como podes pensar que isso te vai ajudar nesta situação. Sabes onde estás?

Henry olhou para os muros húmidos de pedra que o rodeavam.

- Numa masmorra.

- Estás em Tintagel. O conde da Cornualha em pessoa vai julgar-te. Será melhor que pares de mentir, Henry. Não vai salvar-te a vida.

- Meu Deus, estou a dizer a verdade! O teu tio quer ficar com Tregellas.

- E ele disse-te isso, tal como Carrell te ofereceu Constance? - a espada mexeu-se até ao pescoço de Henry. - Devia matar-te aqui mesmo.

- Não estou a mentir! Ele disse-me que poderia ter Constance quando tu estivesses morto, mas era apenas um truque para que eu concordasse em servi-lo.

- E parece que conseguiu.

- Ele tinha a certeza de que, por causa da nossa discussão, eu me viraria contra ti.

- E não me surpreende, depois da forma como me traíste.

- Não te traí! Eu estava zangado, sim, e aborrecido contigo, mas nunca trairia o nosso juramento nem a nossa amizade. Concordei em servi-lo para te proteger!

- Foi por isso que dirigiste uma emboscada para me atacares, aos meus homens e à minha mulher.

- Porque se não o fizesse, não poderia salvar Constance.

- Tinhas planeado salvá-la, raptando-a e levando-a. Para onde? O que ias fazer? Vi muitas vezes a forma como olhavas para ela, Henry.

- É uma mulher bonita e, se fosse livre, faria qualquer coisa para a ter para mim.Mas juro, Merrick, que nunca tentaria seduzir a tua esposa. Meu Deus, pela amizade que partilhámos durante todos estes anos, ouve-me! Carrell não só quer matar-te a ti.

Também quer matar Constance.

- Com que propósito?

- Desse modo, Algernon herdaria Tregellas. Depois, casaria Beatrice com o teu tio, de modo que Carrell e Algernon ficariam vinculados por laços de sangue.

- É uma história muito boa.

- Sabia que tu poderias defender-te numa emboscada, portanto tentei pôr Constance a salvo. E teria conseguido se ela não tivesse caído do cavalo.

Merrick apertou ainda mais a espada contra o peito de Henry.

- Sim, caiu do cavalo e agora está inconsciente. Se ela morrer, eu mato-te. Lentamente.

Henry empalideceu.

- Juro-te pela minha vida, Merrick, que estava a tentar salvá-la.

Merrick afastou-se com uma expressão de repugnância.

Henry engasgou-se com um soluço de angústia.

- Com que facilidade pensaste que sou capaz de te trair. Achas mesmo que sou um homem desonrado?

Merrick chamou o guarda.

- Pelo amor de Deus, Merrick, tens de acreditar em mim! - implorou Henry quando a porta da masmorra se abriu. - Estão a conspirar contra ti e contra o rei! Assim que conseguirem Tregellas, vão iniciar uma rebelião.

Espera por Ranulf! Meu Deus, Merrick, espera por Ranulf!

Merrick saiu sem olhar para trás e, atrás dele, a porta fechou-se com um estrondo.

 

Embora conhecesse a pouca perícia de cavaleiro do irmão Paul, que insistira em acompanhá-los até Tintagel, Constance incentivou o seu cavalo a avançar ligeiramente mais depressa, enquanto Ranulf, o monge e ela, escoltados por um guarda de Tregellas, atravessavam o vale estreito que conduzia à fortaleza do conde da Cornualha. Mais à frente, Constance avistou as enormes muralhas de pedra e a porta de entrada, ladeada por duas torres quadradas.

Pouco depois chegaram à ponte levadiça. A porta, Ranulf deu a contra-senha e os guardas abriram-lhes os portões para lhes permitir a entrada. Finalmente, entraram no pátio principal, que bulia de actividade, cheio de criados e soldados a andarem de

um lado para o outro, muito ocupados, indicação clara de que o conde estava na sua residência.

O irmão Paul olhou à sua volta, impressionado. Ranulf desmontou e apressou-se a ajudar Constance, que não recusou a sua ajuda. Não se sentia enjoada, no entanto, não queria arriscar-se a sofrer um desmaio.

Ranulf chamou um rapaz e deu algumas ordens aos seus homens. Falou com o criado e depois virou-se para Constance.

- Parece que chegámos em boa altura. Os nobres estão reunidos no grande salão. Eu tinha medo de que Merrick tivesse saído para caçar ou se tivesse afastado do castelo.

- Não podemos perder mais tempo - disse Constance, dirigindo-se com determinação para o salão onde se encontravam os nobres.

Quando entraram, Constance não parou para admirar o tamanho do salão, nem os estandartes pendurados nas vigas do tecto, nem as tapeçarias lindíssimas. Em vez disso, dirigiu a sua atenção para o grupo de homens que permanecia sentado junto da lareira, do outro lado do salão.

- Constance!

Merrick afastou-se do grupo e correu para ela, com um sorriso de felicidade nos lábios. Ela mal conseguia acreditar que aquele era o mesmo homem com quem estivera apenas uns dias antes.

Imediatamente, Merrick abraçou-a.

- Constance - sussurrou. - Estás viva! Graças a Deus!

- Sugiro-te que a soltes e que a deixes respirar recomendou Ranulf. - Ainda não está completamente recuperada.

Merrick soltou-a rapidamente.

- Só tenho uma ligeira dor de cabeça, mais nada - garantiu Constance, emocionada com aquele encontro emocionante.

- Graças a Deus que estão aqui - murmurou Merrick, enquanto os seus olhos devoravam cada detalhe da sua esposa.

Ranulf deu umas palmadinhas a Merrick no ombro e fez sinal com a cabeça para o grupo de homens que estava a observá-los.

- Interrompemos o conselho? Merrick assentiu.

- Sim. Venham, vou apresentar-vos. Ranulf não o seguiu.

- Onde estão lorde Algernon e lorde Carrell?

Constance observou rapidamente o grupo, procurando os seus parentes. Não viu os seus tios, contudo, distinguiu Kiernan, com cara de poucos amigos, e o seu pai junto dele.

Merrick franziu o sobrolho.

- Estavam aqui há bocado.

- Não podem sair daqui - disse Ranulf. - Estão a conspirar contra ti, contra o conde e contra o rei.

Merrick entreabriu os olhos.

- Que provas...

- Henry enviou-me umas cartas que interceptou. Têm a assinatura e o selo de lorde Carrell. Foram os culpados da emboscada, Merrick.

- O teu pai acusava frequentemente os seus irmãos de quererem tirar-lhe Tregellas - acrescentou Constance. - Dizia que estavam dispostos a fazer qualquer coisa para conseguirem o que queriam. Eu pensava que era apenas mais uma das suas birras ou uma

desconfiança causada pela sua doença. No entanto, agora tenho a certeza de que tinha razão, pois Henry descobriu provas de uma conspiração.

- Henry atacou...

- Estava a ajudar-me a fugir da luta. Quis dizer-te isso no mosteiro, mas partiste antes que conseguisse fazê-lo.

Merrick empalideceu.

- Oh, meu Deus. O que fiz eu?

- Lorde Merrick - disse um homem alto e bonito, de uma cadeira estofada com veludo. - Não vai apresentar-nos estes visitantes?

Constance não conhecia o conde da Cornualha, contudo, naquele momento soube que estava na sua presença.

- Sim... não... Tenho de ir, milorde - respondeu Merrick. - Desculpem-me.

Então, virou-se e saiu a correr.

 

Enquanto Constance e Ranulf olhavam para ele com perplexidade, a voz de Kiernan quebrou o silêncio e o espanto dos presentes.

- É a esposa de lorde Merrick, milorde, e quem a acompanha é o comandante da sua guarnição.

O orgulho e a raiva avivaram-se no peito de Constance. Pegou no braço de Ranulf e avançou para o conde e para os outros nobres.

- Sou lady Constance de Tregellas, meu senhor conde - anunciou. - E ele é o mais leal dos amigos do meu marido, sir Ranulf. Viemos trazer-lhes provas de uma conspiração contra o senhor e o seu irmão, o rei.

Henry ouviu alguma coisa fora do calabouço. Levantou a cabeça e ouviu com atenção. Seria o carcereiro com uma refeição ou iria conduzi-lo para a sua execução?

Ou melhor, para uma morte lenta e dolorosa?

 

Talvez fossem apenas os ratos. Se estivessem à procura de comida, não a encontrariam ali, a menos que considerassem que ele era um bom alimento.

Naquele momento, uma chave virou na fechadura enferrujada da porta.

Aparentemente, não eram ratos.

Foi lorde Carrell quem entrou. Assim que o fez, franziu o nariz por causa do fedor que reinava na masmorra.

O que queria? Confessar, não. Henry tinha a certeza disso.

Odiava pensar que ia morrer enquanto aquele vilão ia permanecer vivo, contudo, não deixou entrever nenhum sinal de desespero ou de angústia quando falou.

- Saudações, traidor. Por acaso veio unir-se a mim no confinamento?

- Continua a ser um cavalheiro encantador, não é? - respondeu lorde Carrell.

A sua voz pareceu ligeiramente abafada por causa do pano que tirou da manga das suas vestes compridas e que apertava contra o seu nariz.

- Um cavalheiro de verdade comporta-se sempre como tal, independentemente das circunstâncias - explicou Henry com ironia. - Claro que, como o senhor não é um cavalheiro, não pode saber disso, verme traidor.

- Diga o que quiser. Eu sou livre e o senhor vai morrer.

O seu antigo amigo está decidido a levá-lo perante a justiça do rei. Ainda pensa que é um mentiroso e um traidor desprezível. Henry apertou os dentes.

 

- Por enquanto. Saberá a verdade quando Ranulf chegar.

Lorde Carrell ficou surpreendido. Então Ranulf ainda não chegara. Não tivera a oportunidade de contar a Merrick sobre as cartas, nem de lhe mostrar as provas que demonstravam que ele, Henry, não o traíra. Por isso continuava naquela masmorra.

- Os meus planos foram ligeiramente afectados, mas não tanto como os seus, milorde - disse Henry, com a esperança de que Ranulf chegasse a Tintagel em breve.- Sim, milorde, receio que as cartas que enviou aos seus cúmplices do norte nem sequer tenham

chegado aos limites do seu feudo. O pobre homem foi interceptado e obrigado a entregar a sua bolsa. Depois, o seu conteúdo foi enviado a Ranulf. Os seus planos foram muito mais afectados, senhor, e, dentro de pouco tempo, ocupará o meu lugar aqui.

- Idiota! - resmungou Carrell. - Acha mesmo que pode derrotar-me com umas cartas?

- Tendo em conta o que se diz nelas, eu começaria a rezar neste preciso instante, se fosse a si.

Carrell fez uma careta de desprezo.

- Pensa que é muito esperto, não é? - perguntou e começou a torcer o pano que tinha nas mãos. - É uma desgraça que vá sucumbir às suas feridas antes de conseguir contar essas mentiras perante o conde.

Quando o nobre se aproximou de Henry, o jovem pegou no balde dos excrementos e bateu na cabeça de Carrell com ele. Carrell cambaleou, levou uma mão à cabeça e, com a outra, tirou uma adaga do cinto. Henry levantou novamente o balde e bateu no braço do seu inimigo. Praguejando, Carrell soltou a adaga, que caiu sobre a palha.

- Guarda! Guarda! - gritou Henry, enquanto tentava desesperadamente alcançar a adaga.

Carrell apercebeu-se do que estava a fazer e baixou-se para apanhar a arma primeiro. Henry puxou as correntes, tentando não prestar atenção à dor que sentia nos seus pulsos, no entanto, a adaga estava demasiado longe.

Naquele momento, a porta abriu-se e Merrick entrou a correr na masmorra. Instintivamente, deu um pontapé na arma para a pôr fora do alcance de ambos os homens.

- Tentou matar-me! - gritou Carrell, com a testa avermelhada por causa do golpe que tinha recebido.

- Estava a defender-me - respondeu Henry, ofegando, enquanto se levantava. - Tenho provas da sua traição.

- Eu sei. Ranulf acaba de chegar.

Enquanto Henry desabava contra a parede, suspirando de alívio, lorde Carrell massajava o braço.

- Essas supostas provas são falsas! - exclamou.

- As cartas são uma falsificação.

- Com a sua assinatura? Com o selo que leva sempre no dedo? - perguntou Henry.

- Qualquer pessoa poderia copiar um selo disse lorde Carrell, cada vez mais pálido.

- Está a mentir! - gritou a Merrick. - Está a tentar salvar a sua pele, acusando-me!

- Isso é o rei que vai decidir, mas receio que não sairá impune disto, milorde - disse Merrick. - Há demasiadas provas contra o senhor, incluindo a palavra de sir Henry.

Com um gemido de raiva, Carrell saltou sobre Merrick, tentando afastá-lo do caminho para poder fugir pela porta. No entanto, foi o mesmo que tentar mexer uma montanha. Merrick agarrou-o pelos ombros, fê-lo virar-se e pôs-lhe os braços atrás das costas.

- Não haverá escapatória para si, milorde. Carrell fez uma expressão de dor e depois desmaiou nos braços de Merrick.

Merrick chamou o guarda e, quando este apareceu, o senhor de Tregellas deixou o nobre inconsciente no chão.

- Pede ajuda e diz a quem vier para cuidar dele. Quero que este homem viva para que seja submetido a julgamento. Mas primeiro, dá-me as chaves destes grilhões.

O guarda estendeu a argola das chaves a Merrick, indicando-lhe qual era a chave correcta e saiu do calabouço.

- Receava que fosses matar-me antes de Ranulf chegar - disse Henry, ainda ofegante, enquanto Merrick o soltava.

Merrick olhou para o seu amigo nos olhos. - Poderia tê-lo feito - admitiu. Depois, pôs o braço do seu amigo sobre os seus ombros. - Que Deus me perdoe.

Henry apoiou-se nele com dificuldade.

- E Constance?

- Está bem. Veio com Ranulf.

- Graças a Deus. Tentei ajudá-la, Merrick.

- Eu sei - respondeu Merrick. - Não fales mais. O irmão Paul, um médico, veio do mosteiro com Constance, e ele vai cuidar de ti. É muito habilidoso.

- Óptimo. Acho que tenho uma ou duas costelas partidas.

- Lamento imenso, Henry. Perdoa-me. Por favor, não fales mais e poupa as forças.

Henry sorriu enquanto começavam a subir as escadas para a saída do calabouço.

- Perdoar-te-ei assim que me deres alguma coisa para beber.

Embora estivesse deitada na cama de um quarto lindo, Constance não estava a dormir. O irmão Paul insistira para que descansasse e o conde deixara muito claro, com a sua expressão de aborrecimento, que não queria que ela permanecesse no grande salão

enquanto falavam sobre a traição de lorde Carrell e de lorde Algernon.

Talvez também não lhe agradasse que a rainha estivesse presente nas conversas políticas do seu marido, o rei.

Na verdade, ela sentira-se aliviada por não ter de estar presente. Estar junto de Merrick sem poder falar com ele em privado seria horrível.

Que mentira podia ter-lhe dito, o que podia ter feito, para falar com a sua esposa com tanto remorso e tanta angústia?

Constance imaginava muitas respostas e, cada uma delas, mais terrível do que a anterior.

Alguém bateu à porta.

- Senhora?

Era Kiernan. Iria sempre ser uma pedra no seu sapato e aparecer quando menos queria vê-lo?

Fingiria que estava a dormir. Fechou os olhos e começou a respirar profunda e ritmicamente. Então ouviu a porta a fechar-se...

- O que está a fazer junto da cama da minha esposa? - perguntou Merrick. A sua voz parecia apagada, pois ele também estava no corredor.

- Vim ver lady Constance - replicou Kiernan, cujo tom de voz era tenso, mas decidido. - Ficará bem?

- O irmão Paul pensa que vai recuperar em breve. Portanto, pode ir.

- Estive na assembleia de Tregellas...

- Eu sei. Vi-o nas sombras.

- Então diga-me, milorde, se tem uma amante...

Constance afastou a manta e começou a endireitar-se. Kiernan já lhe causara alguns problemas, no entanto, era seu amigo e devia ajudá-lo se precisasse.

- Eu não tenho nenhuma amante. Estou mais do que contente com a minha esposa para ter de recorrer a outras mulheres.

- Mas Constance está tão...

- Constance sabe porque tomei aquela decisão e não vou dizer mais nada a esse respeito.

- Se a magoou, milorde...

- Eu morreria antes de lhe fazer mal - respondeu Merrick e a sua voz adquiriu um tom de acusação. - E o senhor, Kiernan? Seria capaz de destruir um moinho para aliviar o seu orgulho ferido, independentemente de quem pudesse sofrer com tal acção?

- Não, meu Deus! - gritou Kiernan, completamente espantado com aquela acusação.

- Constance sabia que não podia ter sido o senhor e, no fundo, eu também.

Houve um momento de silêncio e ela teria dado qualquer coisa para os ver, em vez de apenas ouvi-los.

- Os nossos feudos são vizinhos, Kiernan, e espero que haja paz entre as nossas famílias. Sei que tem grande estima por Constance e que ela valoriza a sua amizade. Ninguém sabe o que nos proporcionará o futuro e é possível que ela precise de um bom

amigo nos dias que estão por vir. Eu estaria mais tranquilo se soubesse que continuaria a ser amigo dela.

- Eu... milorde... eu sempre serei amigo de lady Constance - gaguejou Kiernan que, evidentemente, ficara tão espantado como ela ao ouvir as palavras de Merrick. - Se precisar de alguma coisa, o que quer que seja, poderá sempre contar comigo.

De que futuro estava Merrick a falar? Porque pensava que ela ia precisar de um amigo?

- Parece que o julguei mal, senhor - disse Kiernan.

- Muitos o fizeram - respondeu Merrick. - E agora, se me desculpar, preciso de ver como está a minha esposa.

Quando Merrick entrou nos aposentos, Constance estava sentada na cama, com o coração acelerado devido à incerteza.

- Espero não vir incomodar - disse.

- Não.

- Ainda te dói a cabeça?

- Não.

Ele assentiu e virou-se para sair do quarto.

Ela levantou-se e pegou no robe, prestes a perguntar-lhe sobre o que lhe mentira, quando ele olhou para ela com os seus olhos frios e escuros.

- Onde está Henry? - perguntou.

- Agora que trataram das suas feridas, está a comer na cozinha - respondeu Merrick e a sua expressão obscureceu. - Há muito tempo que não comia.

- Está livre?

- Sim.

- Ele deve entender que as coisas pareciam ser muito diferentes.

Merrick desviou o olhar.

- Eu não devia ter duvidado dele. Nunca. Ela vestiu o robe.

- E lorde Carrell e o teu tio?

- Estão a caminho da Torre de Londres.

- O que vai acontecer a Beatrice?

- A sua família será despojada de todas as suas terras, mas ela conservará o título. Solicitei ao conde que a pusesse sob a minha protecção.

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Aquele acto de generosidade inesperado só serviu para a confundir ainda mais sobre o mistério que o seu marido era.

Que tipo de homem era? Um vilão capaz de cometer um acto horrível, ou um nobre generoso capaz de ter piedade de uma jovem que ia sofrer por causa da traição do seu pai?

Tinha de descobrir. Constance não conseguia viver nem mais um segundo com todas aquelas perguntas na sua mente.

- O que querias dizer no mosteiro, quando me disseste que tinhas mentido e que dissolverias o nosso casamento? Cometeste algum crime?

Merrick ficou imóvel como uma estátua. Baixou a cabeça e, depois de um momento, quando olhou para ela, ela viu tantos remorsos e tanta angústia no seu olhar, que mal conseguiu reconhecer o seu marido.

- Menti-te, Constance. Menti a toda a gente. Eu não sou Merrick.

 

- Sou Brendon, o filho de Tamsyn. O neto de Peder.

Impossível! Aquele menino morrera. Afogara-se no rio. Estava morto.

Enquanto tentava entender o que Merrick dissera e o motivo da sua atitude de arrependimento, Constance deixou-se cair na cama.

- Mas ele... ele morreu! Toda a gente sabe que se afogou no rio.

Merrick abanou a cabeça.

- Não, não me afoguei.

- Mas... se ele não morreu...

- Isso não aconteceu.

- Então, o que aconteceu de verdade? Como passaste a ser Merrick? - Constance suspirou e cobriu a boca com a mão. - O que lhe aconteceu a ele?

- Ele morreu na emboscada que nos fizeram a caminho do castelo de lorde Leonard - disse Merrick. Depois respirou fundo e as palavras começaram a sair da sua boca. - Eu fui pescar ao rio e encontrei um homem. Era um nobre e ia vestido com

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uma riqueza que eu nunca tinha visto na minha vida. Perguntou-me se queria conhecer o meu pai e, como eu era um menino curioso, disse-lhe que sim. Aquele homem era lorde Egbert. No entanto, ele não me levou a ver o meu pai. Cavalgámos durante algum

tempo até que nos juntámos a um cortejo. Nesse cortejo, havia outro menino, que era Merrick. Tinha a minha altura e a minha cor de cabelo e de olhos. Eles vestiram-me as suas roupas e deram-lhe as minhas. Merrick protestou por ter de o fazer.

Lorde Egbert disse-me que ia montar num pónei e que, acontecesse o que acontecesse, eu não devia dizer uma única palavra.

Merrick continuou, concentrado na sua história.

- Depois do ataque, eu fugi, corri até que não aguentei mais e, no dia seguinte, uma patrulha do castelo de lorde Leonard encontrou-me. Eu estava demasiado exausto para explicar o que tinha acontecido. Como estava vestido com as roupas de Merrick e

não havia ninguém que pudesse dizer o contrário, pensaram que eu era o herdeiro de Tregellas. No entanto... - as suas palavras apagaram-se ao olhar para ela. Ela estava demasiado espantada e confusa para falar. - Nunca se encontrou o corpo de Brendon,

pois não? E ele desapareceu mesmo depois de o filho de lorde William ter sido enviado para o norte para se fazer cavaleiro.

- Sim, mas... mas tu conhecias o castelo quando chegaste a Tregellas. Nem perguntaste onde era o escritório.

- Supus. Os castelos normandos são muito parecidos.

- Reconheceste lorde Jowan.

- Não. Menti.

- E Talek?

- Conhecia-o. Tínha-o visto muitas vezes, quando vinha para a aldeia com o filho de lorde William. A minha mãe disse-me muitas vezes para me manter afastado dos dois e assim fiz.

Ela observou a sua cara, as suas mãos.

- És o retrato vivo de lorde William.

- Não sou Merrick, mas sou filho de William, o Infame. Embora a minha mãe não admitisse a minha paternidade perante mais ninguém, ela disse-me a verdade e fez-me prometer-lhe que guardaria o seu segredo. Queria que eu soubesse que tinha sangue nobre.

- Portanto fizeste-te passar por Merrick? Merrick assentiu.

- Embora não soubesse na altura, mais tarde apercebi-me de que fora servir de isco caso fôssemos atacados. O verdadeiro Merrick ia vestido com as minhas roupas entre os criados, entre as carruagens da bagagem, certamente para a sua segurança.

- E foi ele quem morreu, em vez de morreres tu. Todos morreram.

- Todos, excepto eu - disse Merrick e respirou fundo. - Quando compreendi o engano, tive medo de dizer a verdade. E se lorde Leonard pensasse que eu tinha feito de propósito? E se pensassem que eu os tinha enganado intencionalmente? Estava tão

assustado, que não sabia o que fazer, excepto transformar-me em Merrick e rezar para que lorde William não fosse visitá-lo.

Se o fizesse, eu tentaria fugir.

- Mas não o fez.

- Não. Quando me apercebi de que isso não ia acontecer, senti-me um pouco mais seguro, mas nunca totalmente confortável.

- Foi por isso que não falaste durante tanto tempo depois do ataque?

Ele assentiu.

- Não entendia a língua normanda, portanto não me atrevi a dizer nada até ter aprendido o suficiente e, quando pensei que conseguia passar pelo filho de um nobre normando, comecei a falar novamente. De qualquer forma, nunca falava muito, com medo de

me denunciar.

Não era estranho que se mostrasse tão tímido e calado, mesmo no presente.

- Mais tarde, não podia arriscar-me a ir para casa, caso a minha mentira fosse descoberta, embora sentisse falta da minha mãe e do meu avô. Sabia que estariam muito preocupados comigo, perguntando-se o que acontecera. Oxalá tivesse conseguido

encontrar uma forma de lhes dizer.

Merrick baixou a cabeça.

- Quando me disseste que a minha mãe se tinha suicidado ao pensar que eu estava morto... - a sua voz transformou-se num sussurro atormentado. Agora vai sofrer eternamente por causa da minha mentira.

Constance levantou-se e abraçou-o.

- Vamos rezar muito pela alma dela - prometeu.

- Tenho a certeza de que Deus entenderá o que aconteceu.

É como se os homens que roubaram o seu filho e fizeram com que pensasse que estava morto a tivessem matado.

Merrick abraçou Constance com força, como se estivesse a cair e ela fosse uma corda à qual podia agarrar-se.

- Tu és demasiado boa para mim, Constance. Demasiado boa - murmurou, antes de se afastar dela e aproximar-se da janela. Quando olhou para ela outra vez, pigarreou e, com voz firme, voltou a falar.

- Tinha decidido, antes de voltar para Tregellas, que acabaria com o acordo e que te libertaria dessa obrigação. No entanto, quando te vi, descobri que não tinha a força necessária para o fazer. E, durante os primeiros dias do nosso casamento, quis

revelar-te o meu segredo, mas estava demasiado envergonhado.

Receava que me odiasses por te ter enganado e não conseguia resistir à necessidade de estar contigo, de te acariciar e de te beijar. Amo-te, Constance. Faria qualquer coisa por ti, excepto dizer-te a verdade.

No entanto, foi um erro não o fazer, porque fiz com que corresses muitos riscos. Como esposa de Merrick, estás sempre em perigo.

Aproximou-se dela e pegou nas suas mãos, olhando para ela com toda a intensidade da sua natureza apaixonada.

- Mas tens de estar a salvo, Constance, e tens de ser livre. Casaste-te por causa de uma mentira, portanto nenhuma lei te obrigará a ficar nesta união.

Constance foi inundada por sentimentos de compreensão, de compaixão, de amor.

- Amas-me? - perguntou suavemente. Merrick desceu o olhar até às suas mãos.

- Amo-te desde que tinha dez anos e vou amar-te até ao dia em que morrer.

- Eu também te amo, Merrick.

- Não é possível. Depois de saberes a verdade, continuas a amar-me?

- Sim. Amo-te com toda a minha alma - respondeu. Suavemente, puxou as suas mãos e fez com que se sentasse junto dela na cama. - Não quero acabar com o nosso casamento, meu amor. Não há necessidade de que tu saias de Tregellas, porque, sejas Merrick

ou Brendon, o feudo é teu por direito. És o único filho vivo de lorde William. Não leste o testamento do teu pai?

Nele, lorde William dizia que, se morresse sem descendência legítima e se encontrassem com vida o filho ilegítimo que tinha tido com Tamsyn, então esse filho devia herdar Tregellas.

Merrick... Brendon, olhou para ela com incredulidade.

- Algernon nunca me disse que o meu pai tinha feito um testamento.

- Talvez não soubesse - respondeu Constance.

- Ele estava em York quando o teu pai o redigiu e talvez o teu pai nunca tivesse dito ao seu irmão porque o odiava. Talvez tenha pensado que, se Algernon conhecesse a existência do testamento e o seu conteúdo, tentaria roubá-lo ou destruí-lo.

- É possível que o tenha feito - sugeriu Merrick, como se não se atrevesse a ter nenhuma esperança.

- Duvido.O teu pai levava sempre ao pescoço a chave do cofre onde guardava todos os documentos importantes. Para além disso, fechava sempre o escritório à chave quando não estava. Algernon não teve oportunidade de entrar ali antes de tu teres chegado.

Merrick olhou para ela com consternação.

- Se eu soubesse que o testamento estava nesse cofre, também o teria mantido fechado à chave. E também o escritório. Mas não o fiz e é muito possível que Algernon tenha encontrado o testamento depois de eu ter chegado.

- De qualquer forma, o teu pai enviou uma cópia para a catedral de Canterbury e outra para Westminster - disse Constance. - E, caso isso não seja suficiente, Alan de Vern foi testemunha da redacção do documento e o escrivão a quem lorde William o

ditou continua vivo. De certeza que se recorda de tudo, porque o teu pai era um homem muito difícil de agradar.

Apesar de todas aquelas revelações, Merrick não se sentiu aliviado nem alegre. Constance apressou-se a reconfortá-lo.

- És o senhor de Tregellas por direito de nascimento, porque não há outro filho vivo de lorde William, meu amor. Para além disso, és o senhor de Tregellas porque mereces.

- Espero que o conde pense o mesmo que tu e o rei também.

- Não é necessário contares o que aconteceu...

- Sim - insistiu. - Amo-te, Constance, e não Permitirei que vivas na sombra deste segredo.

- Mas eu não me importo de o fazer - respondeu.

Não entendia porque tinham de contar tudo aquilo às outras pessoas. Aqueles que não tivessem conhecido William, o Infame, poderiam questionar os motivos por que ele mentira durante tanto tempo.

Então, Constance pensou noutra possível explicação, e sentiu um aperto no estômago.

- Tens medo de que te traia?

- Sei que não o farias - disse suavemente. - No entanto, também sei o que é viver com o medo de cometer um erro e ser apanhado. Sobretudo, receio que acabes por lamentar ter de guardar esse segredo e, por isso, acabes por me odiar.

- Não! - jurou ela.

- Oxalá pudesse ter tanta certeza como tu, mas eu estaria sempre à procura dos sinais de que estarias cansada de carregar esse fardo pesado, tal como durante quinze anos eu procurei sinais de que as pessoas que me rodeavam suspeitassem que não era

nobre de berço, como eles. Vou dizer a verdade ao conde da Cornualha e a Peder. Quero que saiba que o seu neto continua com vida.

Quando Constance se apercebeu de que a decisão de Merrick era firme, soube que não conseguiria dissuadi-lo. Aquilo fazia parte do carácter do homem com quem se casara.

- Acompanhar-te-ei quando falares com o conde, para lhe dizer que, aconteça o que acontecer, continuarei a ser tua esposa. Amo-te, seja qual for o teu nome.

- E se me prender? - Então, milorde - disse, tão decidida como ele, - será melhor que o conde se prepare para enfrentar a pior batalha da sua vida.

Tu és o herdeiro de lorde William. Para além disso, eu não me preocupo apenas contigo. O povo de Tregellas é muito importante para mim. Eu iria para a guerra para ganhar os teus direitos legítimos e manter Tregellas longe das mãos do rei e da rainha.

Então, ele sorriu de uma forma que ela nunca vira. Foi como se se tivesse livrado do fardo pesado que carregara durante anos e se sentisse livre.

- Penso que poderia derrotar até o rei e todos os seus nobres. Contigo ao meu lado, como poderia perder?

- Então, lutarás para conseguir o que é teu?

- Sim - sussurrou e inclinou-se para a beijar. Constance sentiu uma paixão parecida com a que sentira nos seus primeiros dias de casados.

O desejo que tentara reprimir durante aquelas últimas semanas fluiu com liberdade e, ao senti-lo, ela riu-se, alegre, enquanto se beijavam. Ele afastou-se dela, confuso.

- Estou feliz. Então, ele sorriu.

- Eu também estou feliz. Verdadeiramente feliz.

- E, aconteça o que acontecer, sou tua para sempre, Merr... Brendon.

- E eu sou teu - sussurrou com a voz rouca de desejo, enquanto lhe abria o robe e acariciava o seu corpo através do tecido fino da camisa de dormir. - E sou Merrick há tantos anos, que já quase não me lembro do meu nome verdadeiro.

Sinto-me como se estivesses a falar com outro se me chamares Brendon.

Ela tirou o robe.

- Muito bem... Merrick.

Richard da Comualha franziu o sobrolho, olhando para Constance e para Merrick. Ambos estavam perante o conde na grande sala de Tintagel.

- O senhor não é o senhor de Tregellas. Está a dizer que é um impostor? - perguntou. - E fingiu que era o filho de lorde William durante quinze anos?

- É possível que não seja o filho legítimo de lorde William - interveio Constance, decidida a fazer com que Richard entendesse o mais importante, - mas é filho de lorde William. De acordo com as disposições do seu testamento, o filho ilegítimo de

lorde William precede a todos os outros na herança, excepto o seu filho legítimo, que morreu há quinze anos.

O conde observou Merrick.

- Então, porque mentiu?

- Porque eu não conhecia os termos do testamento do meu pai e porque, na primeira vez em que menti sobre a minha identidade, eu não era mais do que um menino assustado. Depois, tive medo de que fosse demasiado tarde para dizer a verdade.

- E agora decidiu que quer dizer a verdade?

- Sim, milorde. Agora sim. Agora tenho de o fazer. Preferia que continuasse a mentir?

O conde recostou-se na sua cadeira.

- Não, mas tenho de admitir que não vejo nenhum motivo para que viesse contar-me esta história se não fosse verdade.

Eu também ouvi falar das... peculiaridades de lorde William e, portanto, acredito que estivesse suficientemente louco para redigir uma cláusula assim no seu testamento. E, embora tivesse podido sentir algum cepticismo se esta história

tivesse chegado aos meus ouvidos por outras fontes, o facto de o próprio senhor ter vindo contar-me a verdade fala a seu favor.

Constance olhou para o seu marido, cuja expressão, como habitualmente, era indecifrável. Contudo, a tensão do seu corpo e a força com que lhe agarrava na mão eram diferentes.

- Também estou a par da lealdade que tem pelo rei e por mim - continuou o conde. - Seria uma idiotice da minha parte perder um comandante tão valioso, sobretudo se o testamento do seu pai é como dizem. Portanto, irei a Tregellas para inspeccionar

o documento por mim mesmo. Se tudo estiver correcto, não vejo razão para o deserdar, nem para que a verdade permaneça oculta. Mas se estiver a mentir... sofrerá as consequências.

Constance deu um passo em frente.

- Milorde, eu...

O conde levantou-se e dirigiu-se para a porta.

- Não quero ouvir falar mais deste assunto até chegarmos a Tregellas.

 

No dia seguinte, o conde da Cornualha dirigiu o grupo que viajava para Tregellas, com Merrick e Constance ao seu lado. Henry e Ranulf viajavam mais atrás e, ainda atrás deles, vinha um grupo de nobres, incluindo lorde Jowan e o seu filho. Lorde

Osgoode preferira permanecer em Tintagel, desfrutando dos cuidados da sua amante.

O irmão Paul levantara o olhar para o céu com resignação ao descobrir que Henry queria viajar para Tregellas e dissera que não conseguia entender os jovens. Todos pareciam muito ansiosos por desobedecer aos seus sábios conselhos.

No entanto, nem sequer uma ordem divina conseguiria fazer com que Henry ficasse em Tintagel. Queria partir daquele castelo o mais depressa possível.

- Depois disto, nada conseguirá surpreender-me - disse a Ranulf. - Nada. Um dia ainda vamos descobrir que o rei abdicou do trono para entrar na Igreja.

- Se isso acontecer, que Deus ajude a Igreja ironizou Ranulf.

- Suponho que tudo isto explica muitas coisas a respeito de Merrick - murmurou Henry um momento depois.

- Sim - concordou Ranulf. - O seu silêncio é um exemplo. Tal como o facto de recusar ouvir a palavra rebelião a respeito do rei.

- Porquê?

- Certamente, sentia-se tão culpado por ter usurpado o direito de nascimento de outro homem, que não queria ajudar ninguém a roubar o direito de outro homem.

Henry emitiu um assobio e depois fez uma expressão de dor, pois as suas feridas nos lábios ainda não tinham sarado completamente.

- Tens razão - disse e fez sinal para Constance.

- Pelo menos, parece que os problemas com a sua mulher ficaram resolvidos. Achas que lhe pediu desculpa?

- Não sei, mas parecem felizes.

- Sim. Merrick está tão bem casado como o meu irmão, e isso quer dizer bastante.

Ranulf pensou que já tinham falado o suficiente sobre amor.

- Então, continuas decidido a deixar-nos no próximo cruzamento?

- Já adiei demasiado tempo a visita ao meu irmão.

- Merrick está sinceramente arrependido por te ter acusado de traição.

- É o que diz.

- Perdoaste-o?

- Estou aqui com ele, não estou?

Ranulf levantou uma sobrancelha com cepticismo e Henry franziu o sobrolho.

- Não é um interrogador muito amável.

- Estava muito aborrecido por causa da sua esposa.

- Eu entendo, mas... foi muito rápido a pensar o pior de mim. Nem sequer hesitou.

- Talvez porque parece que tu nunca levas nada a sério.

- Eu levo o nosso juramento muito a sério - replicou Henry e lançou um olhar interrogativo ao seu amigo. - Tu confias em mim, não confias?

- Sim.

Henry suspirou de alívio e depois disse, um pouco irritado:

- Isso é mais do que Merrick faz. Ele nunca confiou verdadeiramente em nós, pois não? Senão, ter-nos-ia contado a verdade.

- Eu penso que confiava em nós tanto como lhe era possível.

- Que não era muito.

- Terias contado a alguém semelhante segredo, sabendo que havia a possibilidade de que perdesses tudo?

Henry mexeu-se com desconforto na sela. No entanto, daquela vez o seu incómodo era mental, não físico.

- Não, e eu também não o teria feito - disse Ranulf.

Cavalgaram em silêncio durante mais algum tempo, cada um absorto nos seus pensamentos, até que Henry voltou a falar.

- Vais continuar a ser comandante da guarnição de Tregellas?

- Por enquanto, sim.

- Se eu fosse a ti, não esperaria muito para pedir a mão de Beatrice.

Ranulf sobressaltou-se e o seu cavalo relinchou como protesto.

- O que disseste?

Os olhos de Henry brilharam com humor.

- Sabes que queres fazê-lo.

- Não sejas idiota - resmungou Ranulf. - Ainda é uma menina e fala demasiado.

Henry virou-se para olhar para o resto do cortejo e depois olhou novamente para o seu amigo.

- Parece que o jovem Kiernan já superou a sua paixão por lady Constance. Não me surpreenderia que agora dirigisse os seus afectos para outra jovenzinha faladora que, devo assinalar, não é nenhuma menina e que, para além disso, cada vez se parece mais

com a sua bela prima.

Ranulf apertou os dentes.

- Gostava que guardasses as tuas especulações para ti.

- Poderás perdê-la se não te esforçares mais.

- Fecha a boca - resmungou Ranulf, - ou, com costelas partidas ou sem elas, empurro-te do cavalo.

- Oh, muito bem - disse Henry com uma gargalhada seca. - Não tens o mínimo interesse na animada e encantadora lady Beatrice e eu vou renunciar às mulheres para o resto da minha vida.

- Bem-vindos a casa, milorde, senhora. Conde Richard, é uma honra recebê-lo - declarou Alan de Vern, enquanto o cortejo entrava no pátio do castelo de Tregellas, na manhã seguinte.

O conde desmontou ao mesmo tempo que Merrick e olhou à sua volta.

- Uma fortaleza impressionante - comentou. Acho que passo demasiado tempo em França. Devia prestar mais atenção ao que se passa na Cornualha.

Uma Beatrice pálida e ansiosa aproximou-se apressadamente de Constance assim que ela desmontou.

- Espero que não te importes que tenha vindo, apesar do que o meu pai fez - disse a sua prima com preocupação. - Mas, entre as lamentações de Maloren e os protestos da sua amante, não conseguia suportar estar ali sozinha por muito mais tempo.

- Fico contente de que tenhas vindo. Tu serás sempre bem-vinda na minha casa - garantiu Constance.

Beatrice sorriu.

- Obrigada. Estou muito agradecida, Constance. Se houver alguma coisa que possa fazer para te compensar pela tua bondade...

Constance sorriu com afecto.

- Podes prometer-me que virás sempre ter comigo quando estiveres preocupada com alguma coisa. Amo-te como se fosses minha irmã, Beatrice, e as irmãs ajudam-se sempre umas às outras.

Beatrice abraçou-a, chorando suavemente. Enquanto acariciava as costas da sua prima, Constance procurou Merrick com o olhar.

Ranulf estava de costas para eles, dando ordens aos soldados da escolta, porém, com um olhar, deu a entender a Constance que presenciara a angústia de Beatrice. Sorriu-lhe também, para lhe garantir que Beatrice era bem-vinda em Tregellas.

Depois, viu o seu marido a caminhar para Alan, seguido do conde.

- Recebeste a minha mensagem? - perguntou Merrick ao mordomo.

- Sim, milorde - respondeu Alan. - Mas não consegui encontrar o testamento.

Alarmada, Constance soltou Beatrice.

- Não estava no cofre do escritório, na caixinha de cedro?

Alan abanou a cabeça.

- Não havia nenhuma caixa de cedro. Apesar da sua consternação, Constance pensou em todas as possibilidades, à procura de uma explicação.

- Talvez um dos criados tivesse mexido nela enquanto estava a limpar. Vou perguntar a Demelza...

- Era uma caixa esculpida com folhas de parra?

- perguntou Merrick.

- Sim! - respondeu Constance, aliviada. Viste-a?

- Ruan tem essa caixa. Vi-a no dia em que fui a sua casa para falar com ele sobre a reconstrução do moinho.

O conde bateu com o pé no chão para mostrar a sua impaciência.

- Quem é esse Ruan?

- O aguazil, milorde - respondeu Merrick e rapidamente passeou o olhar pelo pátio. - Não está aqui.

Então, fez um gesto a Ranulf para que se aproximasse e pediu-lhe que fosse a casa de Ruan e procurasse a caixa, que vira junto da lareira.

- Traz a caixa, Ranulf, e traz também Ruan.

- Eu vou com ele - disse Constance. - Sei exactamente como é.

- Vamos todos - declarou o conde. - Quero resolver este assunto o mais depressa possível.

Assim, os aldeãos de Tregellas viram o senhor e a sua esposa a atravessar a vila, juntamente com os soldados, o mordomo e outro homem, para eles desconhecido, que também era um nobre, a julgar pelo seu aspecto. Em poucos minutos, os soldados tiraram

Ruan da sua casa e Merrick encontrou a caixa onde a vira. O homem roubara a caixa sem saber que continha o testamento, pois também continha jóias e moedas de ouro. As riquezas tinham desaparecido, porém o pergaminho estava no seu interior.

Perante o interrogatório severo de Merrick, Ruan acabou por confessar que há anos que roubava no castelo.

- Pensa que era fácil ser o aguazil de Tregellas, com o seu pai como senhor? - perguntou a Merrick, soluçando. - Pensa que eu gostava de cumprir as suas ordens e depois ouvir as queixas dos vassalos? Atiravam-me pedras e lama. Gozavam comigo e

desprezavam-me - disse. A sua autocompaixão transformou-se, de repente, em raiva.

- E para quê? Por umas miseráveis moedas e uns pontapés quando tinha um dos seus ataques de raiva! Então, apontou para Constance com o dedo.

- Perguntem-lhe como as coisas eram!

- Sim, eu estava aqui e sei como eram - respondeu Constance, entristecida por ver Ruan reduzido àquele estado. - Mas se a situação lhe parecia tão detestável, podia ter deixado o cargo.

Cansado de tantas explicações, o conde ordenou que lhe entregasse o testamento. Enquanto Ruan continuava a soluçar, Richard desenrolou-o e começou a lê-lo.

Constance susteve a respiração, rezando para que o documento fosse tal como ela o recordava.

Depois de um momento, em que pareceu que todos os presentes, incluindo os aldeãos, estavam a conter a respiração, o conde levantou o olhar do pergaminho e declarou:

- É exactamente como dizia, senhora. Embora ele não seja o filho legítimo do senhor de Tregellas, o seu marido é o herdeiro legítimo do feudo.

Os aldeãos olharam para Merrick com espanto.

- Não sou Merrick - anunciou. A sua voz ecoou no silêncio. - Sou Brendon, o filho de lorde William e da filha de Peder, Tamsyn. Tiraram-me da margem do rio e puseram-me no lugar de Merrick no seu cortejo. Ele foi assassinado, mas eu...

De repente, ouviu-se um grito entre a multidão. Constance nunca tinha ouvido um grito assim, de alegria e também de angústia, de felicidade e de tristeza. Então, Peder abriu caminho entre as pessoas.

- O meu rapaz! O meu bendito rapaz! - gritou o velho com as faces cheias de lágrimas. Aproximou-se de Merrick e segurou a sua cara entre as mãos. - Quando me falaste na ferraria, pensei... Meu Deus, pensei que estava a enlouquecer. Mas o teu olhar...

tens o mesmo olhar que Tamsyn... Brendon, meu filho, és mesmo tu?

Merrick pousou as mãos nos ombros do seu avô. Naquele momento, Constance reparou nas semelhanças que os dois homens partilhavam. Os seus olhos castanhos e decididos. A sua altura. A forma do seu queixo.

- Sim, avô, sou eu.

- Não te afogaste? Merrick abanou a cabeça.

- Não, avô.

O conde pigarreou.

- Tudo isto é muito comovente, mas estou cansado e tenho sede. Calhar-me-ia bem um pouco de vinho. Vamos voltar ao castelo, senhor? A vossa querida esposa também tem aspecto de estar cansada, tal como este idoso que, conforme deduzo, é o seu avô,

não é assim?

- Eu estou óptimo! - exclamou Peder, agarrando-se ao seu neto como se receasse que pudesse desaparecer novamente.

- Constance devia descansar - disse Merrick. Portanto vamos, avô. Vem para casa comigo.

- Esta história parece que foi tirada da canção de um trovador - disse Beatrice, enquanto observava Constance a preparar-se para se deitar naquela noite.

- Ele é como o filho pródigo, mas não é na verdade. Não partiu por vontade própria. Mas depois, não se atrevia a voltar.

Parecia a mesma Beatrice de sempre, porém, tinha um olhar que deu a entender a Constance que a sua inocência infantil desaparecera. Transformara-se numa mulher, numa mulher que teria de carregar a vergonha dos actos do seu pai durante o resto da sua vida.

Até que, talvez, encontrasse alguém que quisesse partilhar aquele fardo com ela.

- Ainda bem que o conde te deixou à nossa responsabilidade - disse Constance. - A tua ajuda será preciosa.

- Agradeço-te. Vou ajudar-te em tudo o que puder. Só precisas de me dizer.

Constance reprimiu um sorriso, pensando que precisaria de mais umas mãos dentro de uns meses, quando estivesse ocupada com uma maravilhosa e nova tarefa. No entanto ainda não contara ao seu marido, portanto também não queria dizer nada a Beatrice.

- Obrigada. Sei que tu também encontrarás um bom marido e terás a tua própria casa algum dia.

Beatrice corou e afastou-se para a janela para olhar para o céu da noite.

- Eu nunca vou casar-me. Sou à filha sem dote de um traidor.

Constance aproximou-se dela e passou-lhe o braço pelos ombros.

- Tu és a prima, pelo meu casamento, do senhor de Tregellas. Nós poderemos dar-te um dote para que faças um bom casamento. Beatrice abanou a cabeça.

- Não posso pedir-te algo do género.

- Não estás a pedir-me. Só estou a explicar-te como as coisas são - replicou Constance com um sorriso. - Se houver um homem com quem desejes casar-te e se ele partilhar o teu desejo, faremos todos os possíveis para que o casamento se celebre.

- És demasiado boa para mim - sussurrou Beatrice enquanto abraçava a sua prima.

Uma voz masculina, grave e profunda, interrompeu-as.

- Não tivemos já lágrimas suficientes por hoje? Constance olhou para trás e viu o seu marido à porta dos seus aposentos.

Fosse qual fosse o seu nome, o coração de Constance acelerava só de olhar para ele e sentia o calor do desejo a percorrer o seu corpo todo.

Beatrice dirigiu-se apressadamente para a porta.

- Vou deixar-vos sozinhos - murmurou e saiu a chorar.

- Tenho pena que Beatrice comece a chorar sempre que me vê - comentou Merrick enquanto se aproximava da sua esposa.

- Tem motivos para estar triste por causa do que aconteceu e está preocupada com o seu futuro. Disse-lhe que nós lhe proporcionaríamos um dote para que pudesse casar-se.

- Porquê?

- Precisa de um dote para ter um bom casamento. Tu queres que tenha um bom casamento, não queres?

- Casá-la-ia amanhã, se pudesse. Constance franziu o sobrolho.

- Não gostas de Beatrice? Ou é por causa dos crimes do seu pai?

- Eu sou a última pessoa que culparia um filho pelos pecados do seu pai - disse Merrick. - É claro que gosto dela. Mas, sempre que me vê, fica nervosa ou começa a chorar.

- É que intimidas um pouco as pessoas e não me digas que não sabes disso. De facto, és um homem imponente - disse enquanto o abraçava pela cintura e lhe dedicava um sorriso cheio de atrevimento. - Acho que sabes muito bem que és assim e que até tentas reforçar essa reacção.

Merrick não lhe devolveu o sorriso.

- Mantém as pessoas à distância.

- Já não tens necessidade de fazer isso, pois não? Ele beijou-a levemente e depois sorriu.

- Não. Excepto com os meus inimigos, claro.

- Claro. Com eles podes ser severo e inflexível à vontade.

- Fico contente por poder contar com a sua permissão, senhora.

A sua resposta teve um tom que, apesar de ser na brincadeira, inquietou Constance.

- O que se passa? O conde disse-te alguma coisa?

- O conde não - respondeu Merrick. - O meu avô tinha notícias para me contar. Foi Talek quem incendiou o moinho.

Constance deixou-se cair na cama. Enganara-se naquilo, tal como se enganara em tantas outras coisas...

- Porque o despediste?

- Sim.

- Tens de o encontrar e levá-lo perante a justiça.

- A justiça foi cumprida. Talek morreu às mãos do meu avô. Parece que Talek tinha cometido outros crimes piores. Se o meu avô não o tivesse matado, tê-lo-ia feito eu.

Constance olhou para o chão. Talek também fora amigo de Peder. Se Peder acreditava na sua culpa, então não havia dúvidas de que era culpado.

- Como descobriu Peder?

- Talek confessou. Depois ameaçou o meu avô com... - então, Merrick olhou para a sua esposa com curiosidade. - Quanto sabes tu sobre o contrabando em Tregellas?

- O suficiente para imaginar qual foi a ameaça de Talek - respondeu Constance. Era muito provável que Talek tivesse dito a Peder que iria denunciá-lo. - Mas os impostos são realmente injustos e...

- Vou fazer o que puder para mudar essa situação - disse Merrick com os olhos brilhantes de satisfação. - Mas se as minhas patrulhas não tiverem sorte enquanto procuram os contrabandistas, bom... esta costa é muito difícil de vigiar.

Constance olhou para ele com desconfiança.

- Está a dizer-me, milorde, que deixará que os exploradores de estanho continuem a enganar as leis reais?

- Meu amor, não só o farei, como já o fiz - respondeu, sorrindo perante a surpresa da sua esposa.

- Lembra-te de que cresci aqui, com um avô que há anos que trafica estanho. Conheço todas as praias e baías da costa. As que podem ser usadas e as que não... Portanto, se os meus homens não tiveram sorte... - encolheu os ombros e sorriu inocentemente.

Constance riu-se com vontade e abanou a cabeça.

- Estou sempre a descobrir coisas espantosas sobre o meu marido.

- Mas estes serão os únicos delitos perante os quais farei vista grossa - disse com firmeza.

- Estes são os únicos que eu permito que aconteçam - concordou ela. - Embora, se pudesse escolher, te impedisse de assistir a torneios. Podes ser ferido.

- Mas se isso acontecer, curar-me-ás, não é?

- Bom, vendo as coisas desse modo... Merrick beijou-a e depois recuperou a seriedade.

- Peder deu-me mais notícias. Parece que Eric forçou uma rapariga em Truro. Foi preso e está na prisão da vila à espera de ser julgado.

- Óptimo!

- Pelo menos, não engravidou Annice - disse Merrick. - Bom, não quero falar sobre esse assunto hoje - disse e, soltando a sua esposa, começou a dar palmadinhas nas suas vestes.

- Trouxe-te um presente para... para te compensar por muitos erros que cometi.

- Eu também cometi alguns erros.

- Não como os meus - disse e desceu a voz até que pareceu como um sussurro sedutor. - Queres vir buscá-lo?

Em resposta, ela esboçou um sorriso cheio de sensualidade.

- Está nos seus calções, milorde?

- A tua ousadia não pára de me espantar, meu amor - respondeu ele.

- O teu corpo não pára de me espantar - sussurrou, enquanto colocava suavemente a mão sob as vestes do seu marido.

- Tem cuidado. Tem picos. Ela parou e olhou para ele.

- Mas não vai magoar-te. Espero que gostes disse.

- Tenho a certeza de que sim - respondeu Constance, enquanto continuava a mexer a mão pelo seu peito, mais do que o necessário, até que sentiu alguma coisa envolta num pano de veludo. Tirou-o e, ao desembrulhá-lo, viu um lindo pente, de marfim,

maravilhosamente lavrado com pequenas flores.

- Merrick, é lindo! - exclamou, acariciando o pente com os nós dos dedos.

- Posso? - perguntou, estendendo a mão.

Ela olhou para ele sem compreender, porém, imediatamente se apercebeu das suas intenções. Entregou-lhe o pente e sentou-se na cadeira que havia em frente ao toucador. Ele seguiu-a e começou a pentear o seu cabelo dourado, o cabelo que tantas vezes

admirara quando era um menino de dez anos.

Constance fechou os olhos.

- Espero que não te importes mesmo que Beatrice esteja aqui. Agora é muito mais calada do que era dantes.

- Não é o facto de falar tanto que me preocupa. É uma rapariga muito divertida. Apenas não gosto da ideia de ter de lidar com todos os jovens cavalheiros que virão visitá-la e os que teremos de hospedar. Está a transformar-se numa jovem muito bela e encantadora.

- Bela? Sei que é uma menina bonita, mas... Merrick inclinou-se para a frente e beijou-lhe a testa.

- Tu vês Beatrice com os olhos de uma prima. Eu vejo-a com os olhos de um homem e tens de acreditar em mim, meu amor, está a transformar-se no tipo de mulher pela qual os cavalheiros são capazes de lutar. Não te apercebeste de como é parecida contigo?

Na verdade, Constance não reparara nisso.

- Talvez seja verdade. Um pouco. Tem o cabelo mais escuro e os olhos de um azul muito mais profundo.

- Nenhuma mulher poderá ser tão bela para mim como tu, mas ela é encantadora. E eu preferiria não ter todos esses jovenzinhos apaixonados por Beatrice na nossa sala.

- Então, talvez devamos encontrar-lhe um marido - propôs Constance. - Um marido que a ame como ela merece.

- E tens algum candidato em mente?

- Ranulf.

Aquilo surpreendeu Merrick.

- Ranulf?

- Uma vez, Beatrice disse-me que pensava que Ranulf escondia um coração ferido e que, por esse motivo, tinha uma atitude tão cínica perante o amor.

- É possível que ela estivesse disposta, porém, Ranulf? Diz sempre que nunca se apaixonará por uma mulher o suficiente para se casar com ela.

- E tu não sabes porquê? - perguntou Constance com curiosidade.

- Se soubesse, dir-te-ia, mas não sei. Nem sequer Henry conseguiu descobrir mais sobre a sua atitude.

- Bom, pois se ele não quiser, o que te pareceria Henry? - sugeriu Constance. - Acho que me enganei muito a respeito dele.

O seu marido suspirou.

- Eu também. Receio que Henry nunca vá perdoar-me por o acusar de me trair e de tentar fazer-te mal.

- Tenho a certeza de que te perdoará, com o tempo.

- Viverei com essa esperança - disse, enquanto se sentava sobre a cama. - Oxalá tivesse dito a verdade aos meus amigos há muito tempo.

- Oxalá me tivesses dito também há muito tempo. Terias poupado muita tristeza. Promete-me que não haverá mais segredos entre nós.

- Prometo.

- Então, agora tenho de te contar o meu segredo.

A expressão de Merrick reflectiu uma preocupação súbita.

- Por acaso a tua ferida é mais grave do que o irmão Paul pensava?

- Não. Estou grávida.

Merrick olhou para ela sem acreditar no que acabava de ouvir.

- Vais ser pai - respondeu, sorrindo e cheia de felicidade.

Merrick abraçou-a com todas as suas forças.

- Não posso acreditar!

Ela afastou-se um pouco para trás para olhar para ele.

- Achas que não fizemos amor vezes suficientes para isso?

- Sim, mas... oh, Constance, meu amor! Não mereço isso!

- Claro que sim. Mereces ser feliz, por tudo o que suportaste, pela carga que carregaste sobre os ombros e pela dor que sofreste. E eu farei tudo o que puder para te ajudar a ser feliz durante toda a minha vida.

- Constance, já me deste muito mais do que esperava ter. É maravilhoso! Sou muito feliz. E tu? Estás bem? Devíamos chamar o irmão Paul? Ou talvez uma parteira experiente? Ou preferes que chame um médico?

Ela calou-o, pondo-lhe o dedo indicador sobre os lábios.

- Sinto-me melhor e mais feliz do que nunca garantiu. - Encontrei um amor e uma alegria que nunca esperei ter. E agora, por favor, cala-te, querido, e faz amor comigo.

A gargalhada de Merrick encheu os seus aposentos.

- É a primeira vez na minha vida em que me pedem para me calar.

Depois, sussurrou ao ouvido da sua esposa:

- Não desejo outra coisa senão dar-lhe prazer e obedecerei rapidamente a ambas as ordens, minha amada senhora.

 

 

                                                                  Margaret Moore

 

 

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