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CAPITULO 18
David permitiu que o sangue do seu pai fluísse pelas suas veias, libertando-o dos recessos e fissuras onde o mantinha contido e controlado. Permitiu que toda a sua força sinistra o percorresse.
Sieg caminhava ao seu lado enquanto ele cavalgava pelo pátio. David viu o sobrolho franzido do sueco. Sieg atribuía a culpa do desaparecimento de Christiana à sua própria negligência e não sossegaria enquanto não o ajudasse a trazê-la de volta. David iria apreciar a ajuda do seu amigo no final, mas não agora.
- As espadas, Sieg. Não te esqueças de as trazer - disse.
Sieg assentiu e David transpôs o portão. Era possível que não necessitasse dos preparativos que estava a deixar ao encargo de Sieg. Talvez ele a encontrasse noutro lado. Todavia, duvidava que assim fosse. Ainda assim, teria de o confirmar.
Fez uma pausa e lançou um olhar aos edifícios onde passara toda a sua juventude e início da idade adulta. Se as coisas corressem como esperava, não voltaria a ver esta casa.
O sangue de seu pai não se importava nada com isso. David esboçou um sorriso débil. Não, não havia ali sentimentos. Não quando se deparava com uma demanda ou com um objectivo. Ou uma vingança.
Há anos que sabia que o tinha dentro de si e o que era capaz de fazer. Durante a sua juventude, examinara os traços do seu rosto e da sua alma para saber quais as características que herdara dos Abyndon e as que herdara do outro lado. Havia tentado reconstruir o
rosto do seu pai ausente a partir das peças desconexas que não comportavam um legado dos Abyndon. O amor pela beleza. O autodomínio emocional. As sinistras maquinações. A capacidade de matar. Nem mesmo a crueldade arrogante de Gilbert era capaz de igualar a sua tendência para uma implacabilidade glacial. Esse traço, em particular, fizera sempre parte dele, uma força a ser usada e uma fraqueza a ser temida, e ultrapassava a análise sagaz ensinada como parte do ofício de mercador. O sangue da mãe suavizara-o até certo ponto, mas a forma de o controlar havia sido a maior dádiva de David Constantyn.
Fora o lado do seu pai que magoara Christiana.
Procuraria primeiro em Londres e Westminster, só para ter a certeza.
Pouco tempo depois, entrou a cavalo no pátio da casa de Gilbert de Abyndon pela primeira vez na sua vida. Um moço de estrebaria aproximou-se para lhe cuidar do cavalo,
mas ele ignorou-o e atou as rédeas a um pilar.
Estavam todos a jantar quando ele entrou no salão. Fora assim que o planeara. Não pretendia que Margaret enfrentasse a ira do marido caso ele fosse lá quando Gilbert estivesse ausente, e queria que houvesse muita gente em volta de modo a que ele não enfiasse um murro no rosto de Gilbert quando o tio o insultasse, como estava certo que ele faria.
Gilbert interrompeu a conversa quando David se aproximou da sua mesa, e dir-se-ia que o homem estava diante de uma aparição, tão grande era o choque na sua expressão. Margaret estava visivelmente pálida.
David limitou-se a dirigir um aceno ao tio e voltou a sua atenção para Margaret.
- Estou à procura de Christiana, Margaret.
- À procura? - inquiriu, franzindo o sobrolho.
- Ela saiu de casa.
- Quer dizer que se encontra melhor de saúde? Então Christiana não fizera confidências à amiga.
- Sim, mas desapareceu há dois dias, Margaret. Ela procurou-vos?
Margaret compreendeu tudo, mas ocultou-o da sua expressão. Gilbert provou ser menos discreto.
- A vossa nobre esposa já vos abandonou tão cedo? - escarneceu baixinho.
- Ela está aqui, Margaret? Ela abanou a cabeça.
- Nunca soubestes pôr-vos no vosso lugar, rapaz - vociferou Gilbert. - A audácia de desposardes uma mulher como aquela! É evidente que desapareceu. Até admira que tenha ficado tanto tempo.
David conseguiu ignorá-lo.
- Sabeis onde ela se encontra, Margaret?
A pobre Margaret abanou de novo a cabeça e fitou-o com um olhar angustiado. A mão repousava, protectora, sobre o ventre ligeiramente protuberante.
- É um prazer ver um grande orgulho rebaixar-se - troçou Gilbert com uma gargalhada. - Esse é o preço desse pecado. Procurai por ela nas camas do reino, sobrinho. Mulheres como essa não têm moral.
A mão de David estendeu-se e agarrou o tio pelo pescoço. Gilbert soltou um grito e caiu na cadeira. David afrouxou a tensão no braço até ter o homem pregado às costas da cadeira. O salão ficou subitamente silencioso, e uma dúzia de pares de olhos observavam
a cena.
- Não pronunciareis nem mais uma palavra, tio, ou libertarei a vossa jovem esposa da infelicidade deste matrimónio - preveniu.
- Agora dareis permissão a Margaret que me acompanhe até à porta e não nos seguireis. Concordais com isto?
Gilbert olhou-o fixamente e David apertou-lhe a garganta. Gilbert assentiu com a cabeça.
Margaret ergueu-se da cadeira e deu a volta à mesa. David deixou cair a mão.
- Lamento - disse, enquanto atravessavam o salão. - Não havia nada a fazer senão vir até aqui.
- Eu compreendo, não vos preocupeis. Ele irá disparatar e falar mal de vós durante alguns dias a todas as pessoas que encontrar, mas isso não é nada de novo, pois não?
David fez uma pausa junto à porta.
- Ela alguma vez vos falou de Stephen Percy?
O choque e a surpresa de Margaret eram genuínos.
- Não, David. Christiana nunca me falou de nenhum homem para além de vós e do irmão dela. Até mesmo quando descrevia um acontecimento divertido da corte, os intervenientes não tinham qualquer importância.
- Ficai bem, Margaret - disse, acenando em afirmação e voltando-se para partir.
Ela deteve-o e saiu para o pátio de modo a poder falar em privado.
- Por que razão me fazeis perguntas acerca desse homem, David? Pensais que Christiana fugiu?
- É possível.
- com esse homem? - Fitou-o, incrédula. - Sempre pensei que os homens fossem todos loucos e que vós fôsseis a excepção à regra, David. Se existe outro homem no coração dela, então eu não a conheço de verdade. Ela falava apenas em vós, com afabilidade, afeição e respeito. Se ela desapareceu, não terá sido por sua vontade, estou certa - franziu o sobrolho de aflição. - Ela está em perigo, não está? Oh, Santo Deus...
- Não me parece que ela esteja em perigo - respondeu para a tranquilizar. - Regressai agora para junto do vosso marido. Dizei-lhe que eu não permiti que saísseis de perto de mim até responderdes às minhas questões.
- Tendes de encontrá-la...
- Eu vou encontrá-la.
David estava encostado ao muro do pátio onde os cavaleiros se exercitavam, e observava Morvan Fitzwaryn brandir o seu machado de guerra e lançá-lo contra o escudo do seu adversário. O suor reluzia sobre os seus ombros e peito nus.
David sentiu um movimento atrás dele e voltou-se para ver duas mulheres a espreitarem sobre o muro à medida que caminhavam. Lançaram um olhar de apreciação ao cavaleiro alto e teceram comentários por detrás de mãos erguidas, rindo-se, antes de se afastarem.
David aguardou. Morvan já havia reparado nele. O treino não tardaria a chegar ao fim.
Em breve, terminou. O adversário de Morvan deu por findo o treino com um gesto. Os dois cavaleiros encaminharam-se para
a tina de água e começaram a lavar-se. Morvan aproximou-se,
sacudindo a água da cabeça.
- Procurais-me? - perguntou, ainda um pouco ofegante dos
exercícios.
- Sim. Há três noites, Christiana abandonou a casa. Ninguém
a viu e ela não disse a ninguém para onde ia.
Morvan ia começar a limpar a testa, mas a sua mão deteve-se.
- Ela veio para cá, Morvan?
- Não.
- Dissestes que se pudésseis a levaríeis para outro lado. Fizeste-
-lo agora?
- Se eu a tivesse afastado de vós - disse Morvan, olhando-o
fixamente - teria permitido que me vísseis a fazê-lo. David começou a afastar-se.
- Ela não foi ao encontro dele - disse Morvan atrás de si. David voltou-se. - Como sabeis?
- Porque ela me disse que não o faria.
- Isso quer dizer que recebestes mais garantias do que eu.
- Por que haveria ela de dar garantias a um homem que não acredita nelas? - inquiriu Morvan enquanto se dirigia para ele.
- Não tardarei a saber a verdade, penso eu.
Morvan olhou pensativamente para o chão. - Da última vez que ela partiu e veio para aqui, deixou-vos saber onde estava.
- Sim.
- Mas não desta vez. E ela disse-me que já não sente nada por ele. Se ela está com Percy, David, não terá sido por vontade própria.
- Já pensei nisso. Conheceis esse homem melhor do que eu. Está na natureza dele agir desta
forma? Raptá-la?
Morvan lançou um olhar absorto pelo pátio.
- Diabos me levem se sei. Ele é vaidoso e presumido e, a meu ver, um pouco lerdo. As mulheres dizem que não aceita bem a rejeição. Os homens sabem que ele é rápido num desafio se se considerar
ultrajado.
David absorveu esta informação. Deveria ter conhecido Sir Stephen ou, pelo menos, ter-se informado melhor acerca dele. O orgulho levara-o a evitá-lo, mas fora um erro. Era importante conhecer-se as forças e as fraquezas dos adversários. Até mesmo um aprendiz inexperiente sabia disso.
- Comunicar-vos-ei quando a encontrar.
- Viajareis para norte, então? - inquiriu Morvan cautelosamente.
- Sim.
- Partirei convosco.
- Irei sozinho. Por um lado, o rei necessitará de vós aqui para reunirdes as tropas, por outro, eu não planeio fazer isto à moda dos cavaleiros.
Voltou-se para partir, mas Morvan segurou-o pelo braço. David fitou os seus olhos cintilantes e inquietos, tão semelhantes àqueles outros.
- Prometei-me que, se a encontrardes lá, lhe dareis uma oportunidade de falar. Se houver uma explicação, deveis escutá-la pediu Morvan.
David fitou a mão que o segurava e depois os olhos brilhantes e intensos que examinavam o seu rosto. Teria ele o aspecto perigoso que a preocupação de Morvan sugeria?
- Escutá-la-ei, irmão.
Em seguida, foi ao encontro de Sieg e Oliver e iniciou a viagem até Northumberland. Antes disso, todavia, dirigiu-se até às escadas de pedra que conduziam aos aposentos privados de Eduardo.
David e Oliver avançavam pelo algeroz da estalagem, as costas pressionadas contra o telhado íngreme. Abaixo deles, a viela que conduzia a esta estalagem parecia estar deserta, à excepção da sombra corpulenta de um homem que repousava descontraidamente contra uma vedação. A cabeça da sombra olhou para cima para avaliar o avanço deles.
Era escusado dizer que Sieg não podia juntar-se a eles lá em cima. O peso dele poderia ter quebrado as telhas. Esperaria lá em baixo e entraria da forma normal, livrando-se, pelo caminho, de quaisquer escudeiros inconvenientes ou companheiros que pudessem tentar interferir.
- Isto faz-me recordar os tempos antigos. - Sussurrou Oliver de bom humor enquanto caminhavam cautelosamente ao longo das telhas do algeroz. - Recordais-vos de quando éramos pequenos
e entrámos no sótão da mercearia através do telhado? Enchemos os bolsos com sal.
- Não era nada assim tão útil, Oliver. Era canela, e valia mais do que o ouro. Ter-nos-iam enforcado se nos tivessem apanhado, independentemente de sermos crianças.
- Todavia, foi uma grande aventura.
- Pelo menos a tua mãe usou a que lhe levaste. A minha soube
que era roubado, deu-a e arrastou-me até ao padre.
- A sensibilidade dela nessas coisas foi sem dúvida a razão pela qual a tua vida correu pior quando te tornastes mais velho - comentou Oliver. - Refiro-me à escola e coisas do género.
- Sem dúvida.
O pé de Oliver escorregou e uma telha estatelou-se no solo. Ambos os homens se detiveram aguardando um som que indicasse que alguém havia escutado.
- Por mim já cortava a garganta deste cavaleiro só para lhe mostrar o meu descontentamento por ser tão difícil de encontrar - murmurou Oliver no silêncio.
David esboçou um sorriso. Percy fora, realmente, difícil de encontrar, e a exaustiva busca não havia melhorado muito o humor de David. O homem parecia estar a esconder-se. Não era um bom sinal.
Haviam cavalgado primeiro até à propriedade do pai, depois até à do tio, e finalmente até à propriedade que o próprio Stephen geria. Não houvera necessidade de se aproximarem dos castelos ou dos solares. Bastaram algumas horas na cidade ou na aldeia mais próxima para obterem todas as informações que procuravam. O jovem Sir Stephen não era visto pelo menos há uma semana. Finalmente, na estrada para sul, uma conversa informal com um jogral que ia de passagem revelou que Percy já estava há algum tempo a descansar numa estalagem pública algumas milhas a norte de Newcastle.
David estudou o chão abaixo dele, debilmente iluminado por um archote. Sieg olhou para cima e assentiu com a cabeça. Encontravam-se mesmo por cima das janelas do quarto de Stephen, no último piso da estalagem. Como era uma noite amena de Junho, a janela estava aberta.
A essa hora da noite, não se ouvia qualquer som da estalagem ou do quarto em baixo. David voltou-se para o telhado, agachou-se e
segurou-se à caleira. Foi descendo, esticando lentamente os braços. Os seus pés encontraram a abertura e ele entrou, caindo com um ligeiro estrondo no chão do quarto. Lançou um olhar em seu redor, para as sombras tremeluzentes lançadas por uma candeia. Havia cortinas à volta das camas nesta dispendiosa estalagem, mas neste quarto haviam sido deixadas abertas. David avistou o corpo nu de um homem e cabelo loiro. Um braço forte jazia sobre outro corpo. Longas madeixas negras espalhavam-se pelos lençóis.
Sentiu um nó no estômago. Uma fúria sanguinária obscureceu-lhe a visão. Desembainhou a adaga que trazia na anca.
Oliver balançou-se na janela e aterrou ao lado dele. Fez um gesto a David para que permanecesse imóvel, e depois encaminhou-se para a porta. Sieg aguardava do lado de fora.
com a chegada de Sieg havia pouca esperança de manterem secreta a presença deles ali. O sueco entrou como um furacão e desembainhou a espada. A cabeça de Stephen Percy levantou-se.
Sieg alcançou-o antes que ele se conseguisse virar. Pousou um dedo silenciador nos lábios de Percy e encostou-lhe a espada à garganta. Stephen imobilizou-se. A mulher ainda dormia.
David encontrou um pavio junto à lareira e acendeu-o na candeia. Atravessou o quarto e estudou o homem que lhe causara tanto incómodo.
Sobre a lâmina refulgente fitavam-no cautelosamente uns olhos verdes cintilantes. Stephen possuía feições irregulares e a sua tez parecia muito pálida, especialmente agora que parecia estar sem pingo de sangue. David foi forçado a admitir, não sem algum ressentimento, que compreendia que as mulheres pudessem considerar este homem atraente.
- Quem sois vós? - inquiriu Stephen com uma voz rouca e num tom que pretendia mostrar-se indignado.
- Sou o marido de Christiana, o mercador - respondeu David, inclinando-se mais para que ele o visse melhor.
O olhar de Stephen demorou-se sobre David, depois voltou-se para Sieg e em seguida para Oliver.
- Graças a Deus - suspirou de alívio.
Sieg franziu o sobrolho na direcção de David. Este fez um gesto na direcção de Oliver. O homem magro dirigiu-se para o outro lado da cama.
Oliver afastou as madeixas negras que caíam sobre umas costas estreitas. A rapariga despertou, sobressaltada, e voltou-se.
- Raios, David, não é ela! - exclamou Oliver, olhando fixamente para a rapariga.
- Não. Nunca pensei realmente que fosse. Ela não viria por vontade própria, e ele nunca se importou o suficiente com ela para a raptar, mas eu tinha de ter a certeza.
A rapariga havia reparado na espada na garganta de Percy, a ponta aguçada não muito longe do seu próprio pescoço. Ela abraçou-se, assustada, e olhou em volta com o terror estampado nos olhos.
David sorriu na direcção de Sir Stephen.
- Pensastes que poderíamos ser os parentes dela? Stephen encolheu levemente os ombros.
- Mais uma virgem sacrificada para satisfazer a vossa vaidade, Sir Stephen?
Os olhos de Stephen semicerraram-se.
- Perdestes algo, mercador? Podeis ver que ela não está aqui, por isso ide-vos.
- Tende-la noutro lado?
- Ela era encantadora - respondeu Stephen com uma gargalhada -, mas não valia tamanho incómodo.
Uma fúria perigosa apoderou-se de David.
- Era encantadora, é?
- Sim - respondeu com um sorriso irónico. - Extremamente encantadora. Valeu a pena a espera.
- Posso matá-lo agora, David - disse Sieg com naturalidade.
- Não. Se tiver de morrer, será às minhas mãos.
A rapariga havia começado a chorar, agarrada aos joelhos. Oliver sentou-se ao lado dela e deu-lhe uma palmadinha no ombro. Ela murmurou algo por entre os soluços.
- Tendo em conta a vossa situação, sois muito corajoso ou muito estúpido para me provocardes desta forma - disse David.
- Não sois nenhuma ameaça para mim, mercador - respondeu Stephen com uma gargalhada. - Feri um cabelo da minha cabeça e o melhor é abandonardes o reino. Se a lei
não vos enforcar, fá-lo-á a minha família. ;
- Bem visto, só que eu já tencionava abandonar o reino, por isso parece-me que não tenho nada a perder.
O sorriso presumido desapareceu do rosto de Stephen.
- David - disse Oliver -, esta menina não passa de uma criança. Olha como é pequena. Quantos anos tendes, pequenita?
- Faço catorze este Verão - respondeu, soluçando tristemente. Lançou um olhar a Stephen. - Ele ia levar-me para Londres, não é
assim?
- Iremos, minha querida - respondeu Stephen, revirando os olhos -, assim que for seguro.
- Isso não é verdade - replicou Oliver, voltando-se para ela.
- Ele abandonar-vos-á para enfrentardes a ira da vossa família, e tereis sorte se acabardes num convento. O que sois vós? Pertenceis à pequena nobreza? Sim, bem, não apresentarão queixa contra um Percy, pois não? Não, minha menina. Receio que só vos restem duas alternativas, o convento ou a prostituição.
A rapariga lamuriava-se. Percy blasfemava.
- Então, matamo-lo agora? - inquiriu Sieg.
Era rápido. Fácil. Tão tentador. David fitou, impassível o rosto grotesco procurando manter-se valente e calmo.
- Não me parece - disse finalmente.
Os olhos de Stephen fecharam-se em sinal de alívio enquanto Sieg praguejava e embainhava a espada.
- Dai-me a vossa adaga, David - pediu Sieg, segurando-lhe na mão. - A mameluca.
- Para quê?
- Em honra do amor que sinto por este país - respondeu Sieg, fungando -, e em protecção das poucas virgens que ainda existem, vou tratar deste homem.
Stephen franziu o sobrolho, perplexo.
- Recordais-vos daquele médico na prisão, David? Aquele que havia trabalhado no palácio? Bem, ele explicou-me como é que fazem com os eunucos. É muito simples, a
sério. Basta um corte rápido...
Os olhos de Stephen arregalaram-se de horror.
- Sieg... - começou David.
- A adaga, David. Tende-la sempre afiada. Sairemos daqui num ápice.
David lançou um olhar à fronte de Sir Stephen, agora coberta de suor. Olhou para a menina que chorava e para o conforto afável que Oliver lhe oferecia. Pensou na
dor de Christiana por causa deste homem.
- Se insistis - disse com suavidade.
- Sim. Oliver, ajuda-me a segurar nele.
A rapariga viu a adaga a aproximar-se e começou a dar gritinhos débeis e roucos. Stephen recuava na cama, fitando a figura implacável de Sieg que se agigantava diante
de si e voltou-se para David.
- Santo Deus, homem, não podeis estar a falar a sério!
- Tal como vos disse antes, não tenho nada a perder. Stephen soltou uma gargalhada nervosa e ergueu uma mão como
que para se proteger da adaga.
- Escutai. A sério, o que eu disse antes acerca de Christiana... estava a mentir. Não a possuí. Na verdade, nunca o fiz.
- O mais provável é que estejais a mentir agora.
- Juro-vos, eu nunca... mal lhe toquei! Tentei, admito, mas, raios, todos nós tentamos, ou não? - voltou-se freneticamente para Sieg e Oliver, procurando confirmação.
- Vejamos. Ajoelhai-vos sobre as pernas dele, David. Oliver, posicionai-vos sobre o peito dele - instruiu Sieg enquanto se aproximava do lençol.
- Jesus! - gritou Stephen. - Juro pela minha alma, ela não me quis.
David sorriu.
- Eu já sabia disso.
Sieg deu outro passo em frente. Stephen parecia prestes a desmaiar.
- Como? - resmungou Stephen enquanto fitava o comprimento ameaçador do punhal.
- Ela disse-me. - Pousou uma mão sobre o ombro de Sieg.
- Vamos, Sieg. Deixai o homem em paz.
- Raios, David, ele é nojento...
- Vamos.
Oliver ergueu-se da cama e pegou nalgumas roupas pousadas sobre um banco.
- Aguardai lá fora, nós vamos já. -Nós?
- Não podemos deixá-la aqui, pois não? Terá a vida arruinada se a encontrarem aqui. Disse-lhe que a levaríamos até Newcastle e que a deixávamos numa abadia. Poderá
dizer que recebeu uma pancada na cabeça, que perdeu a memória e que deambulou durante alguns dias até que uma alma caridosa a levou à cidade.
- Ah. A explicação da pancada na cabeça e de deambular durante uns dias já é tão antiga não vos parece?
- A família dela acreditará porque quer acreditar. No caminho explicar-lhe-ei como esconder as provas quando se casar.
- Oliver...
- Ela não passa de uma criança, David. É demasiado ingénua, só isso.
- Tu és um proxeneta, Oliver. É suposto recrutares raparigas caídas em desgraça, não salvá-las. - Lançou um olhar à rapariga, não muito mais jovem do que Joanna deveria ter sido. Suspirou e dirigiu-se para porta com Sieg.
Raios. Por este andar, nunca mais sairia de Inglaterra. Mas, por outro lado, fora esse o objectivo de o forçarem a realizar essa busca.
CAPÍTULO 19
com um puxão enérgico, Christiana certificou-se de que os lençóis e as toalhas amarrados uns aos outros se encontravam firmemente unidos. Deslizou o braço pelo meio
daquela corda de tecido e tapou tudo com a sua capa.
Funcionará, decidiu ela. Tem de funcionar. Abandonando o quarto e o edifício, atravessou o pátio em direcção ao salão. Procurou por Heloise, que se encontrava a costurar com as suas criadas e as três filhas. A bela e loira Heloise ergueu um rosto meigo quando ela se aproximou.
- Está uma bela tarde - disse Christiana no tom distante que adoptara desde a sua chegada. - vou sentar-me um pouco no jardim.
- A brisa está a arrefecer - advertiu Heloise.
- Trouxe a minha capa, para o caso de precisar. A mulher assentiu e regressou à sua conversa.
Christiana obrigou-se a abrandar para um passo indiferente. Já lá fora, apressou-se a caminhar pelo jardim vedado atrás do salão.
Deambulou entre as plantas para que não parecesse que se dirigia para um ponto específico. Lenta e deliberadamente, encaminhou-se para a árvore majestosa num canto
recôndito do jardim.
Cinco dias. Há cinco dias que era prisioneira, e não sabia a razão pela qual a haviam trazido para cá. Duvidava que Heloise também soubesse. Talvez o marido dela, o presidente da Câmara de Caen, em cuja mansão palaciana agora se encontrava alojada, tivesse a resposta, mas não lhe explicara nada. Desde o dia em que entrara aos
tropeções naquele salão, imunda e desgrenhada da jornada a cavalo e da viagem por mar, furiosamente indignada e pronta a matar ou a ser morta, ninguém lhe dissera nada. Todavia, haviam-na recebido como a uma hóspede, dando-lhe guarida e prestando-lhe todas as honras.
À excepção de uma. Não podia partir.
Bem, partiria agora. No dia anterior encontrara esta árvore. Era mais alta do que o muro e Christiana trepara-a, ansiosa, rezando para que existisse alguma estrutura junto ao muro do outro lado para onde pudesse saltar. Pairando entre os ramos e folhas, olhara para baixo, para a queda de seis metros que a aguardava. Todavia, ainda o desapontamento não desaparecera e Christiana já arquitectava um plano.
Olhou cuidadosamente à sua volta, enquanto retrocedia para a obscuridade da árvore. Ainda tinha pelo menos duas horas antes do anoitecer. Era tempo suficiente para fugir desta cidade e encontrar abrigo algures.
Içando a corda de lençóis para o ombro, trepou a árvore. Encontrou um ramo forte que se projectava sobre o cimo do muro e instalou-se nele. Retirando cuidadosamente a corda de lençóis do braço, atou uma das extremidades ao ramo e lançou a corda sobre o muro.
Christiana avançou pelo ramo e olhou para baixo. A corda branca suspensa ficava a uns três metros do chão. Se conseguisse chegar ao fim, poderia saltar em segurança.
Lançou um olhar aos lençóis e aos nós. Se não conseguissem suportar o seu peso, a queda podia estropiá-la. Rezou para que o presidente da Câmara adquirisse linho
da melhor qualidade para a sua roupa de cama.
Pousando os pés no cimo do muro, segurou-se ao primeiro nó e avançou.
Ainda tivera a esperança de conseguir caminhar pelo muro abaixo, mas as coisas não funcionavam assim. Deu por si suspensa de encontro a ele, com as mãos a agarrarem-se
firmemente ao linho branco que a suportava. Os músculos dos seus braços e ombros rebelaram-se imediatamente.
Agora só havia um caminho a seguir. Agarrando-se com todas as suas forças, começou a descer aos sacões. A meio do caminho,
escutou um alvoroço distante. Ouvia-se com uma nitidez crescente e movia-se na sua direcção.
O ruído de vozes ressoava através do muro de pedra. Havia muitas pessoas no jardim, fazendo muito barulho. Ela prosseguiu a sua dolorosa descida e ergueu o olhar receoso em direcção ao ramo da árvore, aguardando o rosto que a descobriria. As folhas deviam ter ocultado a extremidade da corda, porque os sons afastaram-se.
Havia amarrado algumas toalhas aos lençóis para alongar a corda, e estava neste momento a chegar até elas. O nó esticou-se sob o seu peso. No momento em que as suas mãos começavam a ceder, escutou o som de tecido a rasgar-se e precipitou-se para o chão. Foi uma queda de apenas dois metros e meio, mas ainda assim deixou-a atordoada. Pôs-se cautelosamente de pé e olhou em seu redor.
Diante dela viu mais um muro, de uma outra casa. Entre os dois corria uma viela muito estreita onde agora se encontrava. Numa das extremidades avistou uma confusão de telhados que sugeria que ia desembocar numa rua da cidade. O outro lado parecia livre.
Mantendo-se na sombra do muro, subiu rapidamente a viela com uma exaltação triunfante vibrando dentro dela. O que quer que fosse que o presidente da Câmara de Caen tivesse planeado para ela, podia encontrar outra mulher para o papel.
Atravessaria o rio e manter-se-ia afastada das estradas. Procuraria o caminho para a costa e para alguma cidade portuária. Talvez encontrasse algum pescador inglês ou um mercador que a ajudassem. Deteve-se perto do final do muro e aguçou os ouvidos, tentando escutar os seus perseguidores. Estava tudo em silêncio e ela avançou de novo.
Subitamente, surgiu um homem vindo do fundo do muro. Mantinha-se a uns vinte metros à sua frente com os braços cruzados sobre o peito. Ela fez uma pausa e fitou-o
à luz do entardecer.
Não se tratava claramente do presidente da Câmara, um homem baixo e corpulento. Este era demasiado alto e esguio, embora o cabelo longo fosse tão branco quanto o
dele, e as roupas igualmente requintadas. Também não era nenhum dos seus criados. Avançou cautelosamente, esperando que a presença deste homem não tivesse nada a
ver com ela, apesar da forma atenta como ele a observava a aproximar-se.
Decidira dirigir-lhe um sorriso doce e fingir que pertencia a este beco e à vizinhança quando se aproximasse o suficiente para lhe ver o rosto.
Reconheceu-o e percebeu que ele também a reconhecera. Sentiu um aperto no coração enquanto os seus pés a levavam para junto do nobre francês que se havia disfarçado
para se encontrar com David em Hampstead.
Não estivera muito próxima dele naquele dia, mas agora deteve-se a apenas alguns passos de distância e encarou-o de uma forma directa. Recordava-se mais da aparência
dele do que pensava, pois parecia-lhe muito familiar, embora de uma forma que não conseguia definir. Os seus olhos castanhos velados examinaram-na. Entre o bigode
branco e a barba aparada, formou-se um débil sorriso.
- Tendes audácia - disse. - E bom sinal. - Lançou um olhar à viela e à corda branca de lençóis e toalhas suspensa da árvore. Podíeis ter-vos magoado.
- Isso tem alguma importância?
- Tem muita importância.
- Bem, pelo menos isso é uma boa notícia.
Afastou-se para o lado e, com um gesto floreado, indicou-lhe o caminho de regresso ao cárcere.
Christiana bordava diligentemente à luz do crepúsculo que se introduzia pela janela aberta. Um fogo brando ardia na lareira, mas a tarde do início de Junho estava muito quente e o lume não seria atiçado quando a luz do dia se desvanecesse.
Lançou um olhar às mulheres e crianças sentadas em seu redor, conversando em voz baixa umas com as outras enquanto se inclinavam sobre os seus próprios bordados. Ocasionalmente, uma delas erguia o olhar para a fitar com curiosidade. Ainda não sabiam a razão pela qual a presença dela lhes havia sido imposta, nem por que razão tinham de ser amigas dela e fazer-lhe companhia, e nada, para além da cortesia que já existia antes, se havia desenvolvido ao longo dos sete dias após a sua tentativa de fuga.
Olhou para a outra extremidade do salão, para a outra lareira, e avistou os quatro homens reunidos à sua volta. Dois deles eram barões que habitavam na região e que haviam chegado durante os
últimos dias com os seus séquitos mediante as ordens do rei francês. Outros haviam chegado antes deles. A cidade estava repleta de cavaleiros e soldados. Alguns estavam acampados do outro lado do rio que servia como defesa natural a esta cidade normanda. Alguns haviam entrado no castelo, mas muitos deles tinham vindo para aqui, para a casa do presidente da Câmara, e aconselhavam-se com o homem alto e de cabelo branco sentado junto à outra lareira.
Agora já sabia o nome dele. Theobald, o comte de Senlis. Não era apenas um nobre, tal como ela previra naquele dia em Hampstead, mas um barão importante cuja posição era equivalente à de um conde inglês, e um conselheiro do rei francês. Só havia falado com ela o suficiente para se certificar de que não havia sido magoada ou molestada. Havia ignorado as suas perguntas exigentes. Todavia, ela suspeitava que havia sido trazida para cá sob a sua iniciativa e ordem, e não do presidente da Câmara.
Não obstante, era uma prisioneira. Prisioneira dele. com que objectivo e para que fim? As mulheres não sabiam. O comte não lhes revelara. Permanecia nesta casa dia
após dia, muito reservada, recusando tudo à excepção da hospitalidade necessária, e observava a chegada dos lordes e as consultas diárias na outra extremidade do salão.
A luz esmorecera. Ela ergueu-se e dirigiu-se a um banco sob a janela na parede mais longa do salão. Sentar-se-ia sozinha durante algum tempo e daria oportunidade às senhoras para que tagarelassem e especulassem a seu respeito. A-sua situação social pouco natural e forçada não ajudava a aliviar o pânico aterrador que trazia dentro de si desde que aqueles homens a haviam arrancado de sua casa. Admitia que o terror se havia intensificado desde que enfrentara o comte ao fundo da viela.
Durante os primeiros dias ali imaginara que David viesse salvá-la. Talvez trouxesse consigo Morvan e Walter Manny e outros cavaleiros para o auxiliarem. Subiriam o rio, atravessariam a ponte e entrariam na cidade a cavalo, exigindo a sua libertação. Tal como numa canção.
Fez uma careta perante a sua tolice. Se David estivesse a vir, já teria chegado. Na verdade, teria chegado antes dela. Ao regressar a casa e ver que ela não se encontrava lá podia ter saído de Londres e alcançado a costa de França antes do barco em que ela viajara.
Os seus raptores haviam-na arrastado para norte, quase até à Escócia, antes de garantirem uma travessia num porto recôndito. Uma perda de tempo que não fazia sentido, mas por outro lado, nada disto fazia sentido.
Havia fechado os olhos enquanto reflectia sobre a sua situação e o salão esbatera-se na sua mente. Uma ligeira agitação intrometia-se agora no seu devaneio.
Na lareira mais distante, o comte havia-se erguido da sua cadeira e inclinado o ouvido para um soldado que não parava de gesticular. O seu rosto iluminou-se com um grande sorriso. Voltou-se e disse algo ao presidente da Câmara. Um dos barões deu uma palmada alegre no ombro do outro.
A porta de entrada para o salão abriu-se e ela teve um vislumbre da antessala para além dele. Através da soleira viu um homem aproximar-se vindo do pátio. A luz de um archote reflectiu a sua armadura antes de a obscuridade da antessala o ocultar.
Outro barão. Vinham preparar-se para a invasão do rei Eduardo, evidentemente. Sem dúvida estavam a realizar-se por toda a França conselhos e reuniões semelhantes.
Um dos escudeiros do conde entrou primeiro, transportando um elmo e um escudo. Ela lançou um olhar ao brasão azul e dourado, recém-pintado e sem riscos. Cinco discos de ouro sobre três serpentes entrelaçadas, e uma marca no lado esquerdo do escudo simbolizando um filho bastardo.
Três serpentes entrelaçadas... um sobressalto percorreu-a e colocou-a em alerta. Sentou-se direita e olhou fixamente.
O cavaleiro entrou no salão. Alto e esguio, olhou placidamente em volta enquanto removia as luvas de couro. O seu corpo movia-se com agilidade na armadura grosseira, como se usasse uma segunda pele. Permaneceu ali de pé orgulhosamente e com um toque de arrogância. O cabelo castanho caia-lhe em desalinho sobre o rosto perfeito e queimado do sol. Os olhos azuis encontraram os dela.
Ela observava sem palavras. À sua direita, as mulheres voltaram-se para observar o recém-chegado vigoroso e atraente. À sua esquerda, o comte avançava na direcção dele, sorrindo, com as mãos estendidas.
- Bem-vindo a França, sobrinho.
David de Abyndon, o seu David, o seu mercador, voltou-se para o comte de Senlis.
Sobrinho! Assombrada, ela olhava para ele e para o conde e depois de novo para ele. Subitamente compreendeu a estranha familiaridade que sentira ao olhar para o rosto do homem mais velho.
Lançou um olhar a David, tão descontraído e natural na sua maldita armadura, assemelhando-se terrivelmente a um cavaleiro, aceitando o cumprimento familiar deste barão francês.
Evidentemente. Evidentemente. Por que razão não o havia visto antes? A estatura. A força. A ausência de deferência. Ele não lhe havia dito. Nem sequer o havia sugerido. Teve uma vontade louca de estrangular o marido.
O comte falava calmante e, com um gesto, incitou David a aproximar-se da lareira.
- Em primeiro lugar, quero ver a minha mulher - disse David e, rejeitando o interesse do tio, atravessou o salão em direcção a ela.
Ela ergueu os olhos das chapas de metal e fulminou-o com o seu olhar acusador. Ele retribuiu-lhe o olhar. Plácido. Impenetrável. Sereno.
- Estais bem e incólume?
- Para além de me sentir como uma ignorante e uma imbecil que desposou um estranho mentiroso, estou bem.
Ele inclinou-se para a beijar.
- Explicar-vos-ei tudo quando estivermos a sós - proferiu calmamente. - Agora vinde e sentai-vos junto de mim. Não leveis a peito aquilo que eu lhe disser, querida. Quero que o comte pense que não somos felizes juntos.
- Julgo ser capaz de vos ajudar nesse ponto.
O comte quis falar com David a sós. Havia dispensado a presença dos barões e do presidente da Câmara e franziu o sobrolho numa expressão de aborrecimento quando David se aproximou da lareira com Christiana.
- Graças a vós, agora estou a jogar tanto com a vida dela como com a minha - disse David. - Ela tem o direito de saber a minha situação.
Christiana sentou-se numa cadeira. David manteve-se de pé junto à lareira e ela observou-o com perplexidade, choque e ira. Todavia, de uma forma estranha, uma parte dela assentia, num gesto
de compreensão. Havia algo assustadoramente certo naquela sua aparência, como se a sombra que pairava sempre atrás dele tivesse subitamente tomado forma. Quem sois vós na realidade
Lançou um olhar ao comte e, pelo seu olhar de aprovação, constatou que ele via o mesmo que ela.
David voltou-se para o tio e permitiu que o seu descontentamento se inflamasse.
- Disse-vos que não a envolvêsseis nisto.
- Não viestes em Abril - respondeu o comte erguendo as mãos -, por isso procurei encorajar-vos.
- Não vim porque se levantaram tempestades assim que atingi as costas da Normandia. De que serviria entregar notícias que não teriam qualquer valor? A frota enfrentou grandes dificuldades para regressar a Inglaterra.
Então ele viera a França na Páscoa. Mas a verdade é que soubera disso assim que o vira entrar no salão.
- Tive homens à vossa espera em Calais e em St. Maio. Não viestes.
- Pensais que sou assim tão estúpido a ponto de correr o risco de ser reconhecido ao desembarcar num porto de comércio principal? Poderia eu ser assim tão descuidado?
O comte reflectiu sobre estas palavras e exibiu uma expressão de aceitação hesitante.
- Ainda assim, estais atrasado. Espero-vos há várias semanas. O exército está pronto para partir.
- Estou atrasado porque a minha mulher desapareceu e eu tive de procurá-la.
- Sabíeis onde ela estava.
- Não sabia nem podia sair de Inglaterra sem conhecer o seu destino.
- Eles deviam ter deixado... - disse o comte enrubescendo.
- Não me foi entregue nenhuma mensagem. - respondeu David, fitando o comte com dureza. - Enviastes Frans para fazer isto, não é verdade? Apesar do nosso acordo.
- Ele conhecia as pessoas e conhece os vossos hábitos.
- Sim. Mas confia em Lady Catherine, que não nutre qualquer afeição por mim. Mais uma vez apesar do nosso acordo. E ela tinha
para mim os seus próprios planos. Tive sorte de sair de Inglaterra com vida.
- Ela pôs a vossa vida em perigo? - inquiriu o comte ruborizando-se.
- Provavelmente assumistes que eu saberia, com mensagem ou não, que tínheis sido vós quem raptara Christiana. Que outra explicação poderia haver? O que vós não sabeis é que a minha mulher tem um amante que reside no Norte do país.
O comte lançou a Christiana um olhar fulminante de desapontamento. Ela desviou o olhar. David deveria ter uma boa razão para estar a contar tudo isto ao tio.
- Todavia, Lady Catherine sabia disto - prosseguiu David -, e por isso fez com que os homens que ela e Frans contrataram não me deixassem nenhum bilhete ou sinal, de modo a que eu me interrogasse se Christiana havia partido para os braços desse homem. Até a retiraram do país através de um porto no Norte, de modo a que eu pudesse seguir o seu rasto em direcção ao amante. E enquanto isso, o tempo ia passando e eu ainda me encontrava em Inglaterra. - Fez uma pausa e lançou-lhe um sorriso desagradável. - E durante esse tempo, Catherine foi ao encontro do rei e contou-lhe tudo a meu respeito. Tinha muito a dizer, porque Frans lhe revelara a minha relação convosco.
Uma expressão muito dura espelhou-se no rosto do comte. Christiana retrocedeu, assustada. Já vira aquela expressão, mas não no rosto deste francês.
- Encarregar-me-ei deles. Da mulher e de Frans.
- Já o fiz.
- Se a mulher vos denunciou a Eduardo, o que sabeis pode ser inútil. Ele pode alterar o porto.
As suas suspeitas estavam correctas, então. David planeava revelar a localização do porto ao conde e aos Franceses. Mas não em troca de ouro ou prata. E, como um filho de Senlis, nem sequer constituía uma traição. Todos os nobres sabiam e respeitavam a lealdade dos laços de sangue. Um juramento de preito e menagem ligava uma pessoa com igual força, mas um rei prudente ou um lorde jamais pediriam aos seus vassalos que escolhessem entre as duas obrigações.
- Pensei nisso - disse David. - E pode acontecer. Mas antes de me escapulir, soube que, mesmo duas semanas após ter escutado
a história de Catherine, o rei não havia mudado de ideias. Já havia enviado uma mensagem às forças inglesas no continente, e não houve tempo para desfazer isso.
Mas pode ter esperança de que vós penseis que ele o fez, para que não tenhais a tentação de enviar todas as vossas tropas para um mesmo lugar. Interrogo-me se ele não me terá deixado escapar com as notícias da traição de Lady Catherine de modo a lançar dúvida sobre o valor desta informação no caso de eu vo-la ter fornecido mais cedo.
Toda a atenção de David estava concentrada no tio, e aqueles olhos azuis nunca vacilaram no seu escrutínio do rosto do homem. Os olhos do próprio comte, castanhos e não azuis, e no entanto tão similares, pareciam igualmente penetrantes sempre que analisava David.
Quem sois vós realmente? Bem, agora já sabia. Estava demasiado atordoada e confusa para decifrar os seus sentimentos em relação a esta revelação surpreendente. Devia sentir-se aliviada. O seu marido não era um homem vulgar. O sangue de seu pai, o sangue que tinha importância, tinha sido de um nobre.
Então por que razão é que esta fúria pretendia, inexplicavelmente, perturbá-la?
O comte caminhava de um lado para o outro, assentindo com a cabeça.
- Creio que tendes razão. O Verão está a decorrer rapidamente. Se ele realmente vem, deverá fazê-lo agora. O exército dele já foi reunido. É demasiado tarde para alterar a rota - voltou-se na direcção de David. - Tende-lo, então?
- Tenho. Mais do que ele pensa. As estradas que ele tomará e a direcção. A dimensão dos seus exércitos. Tenho tudo.
O comte aguardou expectante.
- Tendes os documentos? - inquiriu David com um leve sorriso.
O comte soltou um suspiro de exasperação.
- Os meus estão aqui e têm testemunhas. O condestável trará os do rei assim que chegar. Mas perdemos tempo...
- Já quebrastes grande parte do nosso acordo verbal, e por causa disso, não me foi dada outra opção senão fazer isto. Não posso regressar a Inglaterra, e embora
um dia o rei Eduardo possa reconhecer a inocência de Christiana e recebê-la de volta, está agora
condenada a um futuro que também não escolheu. Não planeio começar uma vida aqui com o pouco ouro que trouxe comigo. Não vou mais longe sem os documentos.
Uma tensão perigosa pareceu paralisar os dois homens, e do comte emanava algo de ameaçador e sombrio. Christiana susteve a respiração. Também já havia sentido antes
esta presença sinistra. Interrogava-se acerca do que estaria o comte a pensar. Era tão indecifrável quanto David.
Excepto para David.
- Houve uma altura em que fui torturado no Egipto - disse David calmamente. - A mente dos Franceses não consegue competir com as invenções dos sarracenos em termos
de torturas. Não ganhareis tempo dessa forma, e tereis um herdeiro que só desejará a vossa morte.
Aqueles olhos castanhos voltaram-se subtilmente na direcção de Christiana sob umas pálpebras semicerradas. Um calafrio de horror provocou-lhe um formigueiro no pescoço.
Os olhos de David estreitaram-se.
- Não mancheis o vosso nome e o vosso sangue a pensar sequer nisso. Ela não sabe de nada, tal como a vossa esposa não saberia sob as circunstâncias.
Mas eu sei, pensou ela freneticamente. Suspeitava que este tio conseguia ler as pessoas tão bem quanto David. Baixou o olhar evitando a inspecção dele e rezou para
que ele visse apenas o terror palpável na sua face.
O comte reflectiu durante um momento e depois soltou uma gargalhada despreocupada.
- A que horas esperais o condestável?
- De manhã bem cedo.
- Também estais demasiado impaciente, então, e a considerar com demasiada rapidez a desonra. Admirais-vos que eu exija garantias por escrito?
Era uma censura perigosa para um mercador fazer a um barão, parente ou não. Carregada de desconfiança e insultos. Mas o comte parecia mais impressionado do que furioso.
- Todos os homens têm pensamentos que nunca poriam em prática, sobrinho. Considerar as várias opções não é o mesmo que optar por elas.
David franziu pensativamente o sobrolho e em seguida assentiu, como se tivesse compreendido totalmente a explicação do comte e tivesse razões para a aceitar como correcta.
Lentamente a tensão foi-se dissipando.
- Prometo que haverá tempo suficiente para mover as vossas tropas. Os navios ainda não estavam nem a meio dos preparativos para partirem - informou David.
Aquilo pareceu aligeirar ainda mais o ambiente. O comte sorriu de um modo agradável, até mesmo afável.
David encaminhou-se para ela e pegou-lhe na mão.
- Mostrai-me o nosso quarto, Christiana. Quero sair desta armadura que me provoca tanto calor após um dia inteiro ao sol.
- Enviar-vos-ei os meus escudeiros para vos auxiliarem declarou o comte -, e direi à governanta que vos prepare um banho.
Em silêncio, Christiana conduziu David pelo salão em direcção ao alto edifício ao lado onde se situavam os quartos.
- O homem deixa-me exausto - murmurou David enquanto caminhavam pela noite amena. -
É como negociar com a imagem que vejo no espelho.
CAPÍTULO 20
Os dois escudeiros removeram a armadura de David e não paravam de o tratar por vossa senhoria. Christiana observava, enfadada, o corpo imponente do marido em pé,
de pernas afastadas, enquanto a armadura ia saindo. Dir-se-ia que fizera isto uma centena de vezes.
Perto do lume brando que ardia na lareira, as criadas preparavam a água numa banheira funda de madeira. Uma das raparigas não parava de olhar para David e sorria docemente sempre que captava o olhar dele. Christiana agarrou nela pelo colarinho quando foi vertido o último balde de água.
- Ide-vos. Eu cuidarei do meu marido.
As criadas apressaram-se a sair. Os escudeiros terminaram a sua demorada tarefa e, despedindo-se alegremente, afastaram-se. David despiu as suas roupas interiores e instalou-se na banheira.
A visão do corpo dele perturbou-a mais do que pretendia admitir. Praguejou silenciosamente perante a sua fraqueza e a autonomia do seu coração traiçoeiro face à sua vontade e mente.
A nossa vida juntos tem sido uma, longa ilusão, pensou com irritação. Foi um erro pensar que poderia encontrar contentamento somente no prazer. Ele será sempre um estranho. Eu serei sempre o brinquedo que partilhará a sua cama mas não a sua vida. Dir-lhe-ei tudo o que tenho para lhe dizer e depois exigirei outro quarto.
Puxou por um banco, sentou-se e encarou-o.
- Não ides cuidar de mim? - perguntou.
- Lavai-vos - ordenou num tom perigoso, atirando-lhe com o sabão. - E falai.
- Ah - disse ele, pensativamente.
- E basta de "Ah", David. Mais um "ah" desses e afogar-vos-ei.
- Compreendo que estejais zangada, querida. Acreditai quando vos digo que passei por grandes tormentos para não vos envolver nisto. Não pretendia que soubésseis de nada. Eduardo jamais vos teria culpado pelos meus pecados. O comte surpreendeu-me com este rapto. Francamente, estou desiludido com ele.
- Estais mesmo?
- Sim. Esperava mais cavalheirismo da parte dele. Raptar e pôr em perigo a vida de uma mulher inocente... é realmente muito grosseiro.
- Ele pretende o nome do porto, David. Provavelmente matar-me-ia se pensasse que isso faria com que o revelásseis um minuto mais cedo.
- Esse é o motivo pelo qual eu pretendo que ele pense que não estamos felizes juntos. Não quero que ele comece a pensar que pode usar-vos contra mim. Assim que o condestável dEu chegar, obterei dele a garantia da vossa segurança antes de falar com eles. O condestável tem reputação de ser um homem honrado a ponto de ser estúpido.
- Comecemos pelo princípio - disse ela, revirando os olhos.
- O comte é realmente vosso parente?
- Parece que sim.
- Há quanto tempo sabeis?
- Durante quase toda a minha vida. A minha mãe falou-me do meu pai quando eu era criança, para que eu soubesse que não era um vulgar bastardo de rua.
- Por que razão não me dissestes?
- É uma afirmação fácil de fazer mas difícil de provar, Christiana. E a não ser que um bastardo seja reconhecido, não tem qualquer valor. - Ensaboou um braço, muito concentrado. - Teria adiantado, querida?
Desejava muito poder dizer que não.
- Poderia ter adiantado, no início.
- Então, lamento não vos ter dito.
- Não lamentais não. O vosso orgulho pretendia que eu vos aceitasse como mercador, não como filho de Senlis. Por vezes sois uma pessoa muito estranha, David. Não há muitos homens que pensem que o sangue nobre os pode rebaixar ao invés de elevar.
Ele lançou-lhe um olhar penetrante. Ela permitiu que ele visse a fúria que a inundava.
- Mentistes-me - disse ela. - Uma e outra vez.
- Apenas para vos proteger. Isto começou muito antes de nos conhecermos. Quis manter-vos fora disto, que o ignorásseis, de modo a serdes poupada se algo corresse mal.
- Sou vossa mulher. Ninguém acreditaria na minha ignorância.
- Sois a filha de Hugh Fitzwaryn e estivestes sob a tutela do rei. Todas as pessoas o acreditariam. Nem o rei nem os seus barões vos culpariam pelas acções do vosso marido mercador.
As desculpas fracas dele enfureceram-na. Ergueu os punhos e bateu no regaço.
- Sou vossa mulher! Se alguma coisa corresse mal eu teria de assistir enquanto despedaçavam o vosso corpo, ainda que eu fosse
poupada. Isso ainda pode vir a acontecer,
pelo que me é dado saber. Mas o pior é que vos escondestes de mim, escondestes a vossa verdadeira natureza, quem vós sois.
- Há meses que não sois minha mulher - disse, com uma dureza em redor dos olhos e da boca. - Deveria ter confiado naquela rapariga que vivia em minha casa como uma
convidada ou uma prima?
- É bem melhor ser uma convidada do que uma peça de arte valiosa. É bem melhor ser uma prima do que um fragmento de propriedade adquirido para salvar o orgulho ferido
do filho esquecido.
- Se realmente acreditais nisso - respondeu com um lampejo de fúria no olhar - então não há motivo para vos explicar nada. Independentemente de tudo o que vos disse
naquele dia, devíeis conhecer-me melhor.
- Conhecer-vos melhor? Neste momento não sei se vos conheço de todo, maldito sejais. E não insinueis que foi a nossa separação que vos obrigou a manter a mentira.
Não tínheis qualquer intenção de me dizer fosse o que fosse até estar tudo terminado, por muito submissa que eu tivesse sido. O que aconteceria então? Teríeis
ficado em França e ter-me-íeis mandado chamar? Ter-me-íeis escrito uma carta para que viesse ao vosso encontro?
- A minha intenção foi sempre, e continua a ser, dar-vos uma escolha.
- A sério? Bem, o vosso tio fechou essa porta!
- Isso é o que ainda vamos ver.
Afastou o olhar dele para se recompor e alisou a saia do vestido.
- Quero que me conteis tudo. Agora. Para que eu saiba da minha situação e das minhas opções. Desde o princípio.
Ele contou-lhe tudo enquanto se lavava.
- Começou tudo de uma forma simples. Eduardo pediu-me que elaborasse os mapas. Ocorreu-me que quando chegasse a altura, eu poderia ficar a saber o porto que ele escolhera a partir das questões que ele me colocasse acerca deles. Nunca perdoei o meu pai pelo que ele fez a Joanna. Ele destruiu-a e deixou-a à mercê do mundo. Talvez também me sentisse ressentido com ele por me ter ignorado e negligenciado. De qualquer forma, sem esperar que realmente funcionasse, comecei a cometer erros suficientes em França de modo a que alguém que estivesse a prestar atenção pudesse suspeitar do meu comportamento. E comecei a usar as três serpentes como emblema no meu selo. Estavam gravadas num anel que o meu pai deixou à minha mãe. Ela pensou que era um anel de noivado, mas eu penso que a intenção dele era pagar-lhe os seus favores.
Fez uma pausa e começou a ensaboar as mãos. O gesto distraiu-o. Christiana observou-o a examinar a espuma branca e depois a barra de sabão. Teve de sorrir. A mulher do mercador havia ficado igualmente distraída durante o seu primeiro banho naquela casa.
- Provêm de uma cidade perto do Loire - disse ela.
- Soberbo, não é? - observou enquanto aspirava o seu odor.
- Quanto será...
- Vinte barras grandes por um marco. Ele arqueou as sobrancelhas. Ela observou-o enquanto, em silêncio, David calculava o custo da importação e o lucro potencial.
- David - disse ela, chamando-o. "
- Sim. Bem, o meu plano era fazer com que o comte soubesse da minha existência, que se apercebesse da nossa ligação e depois que me abordasse por causa do porto. Eu resistiria e deixá-lo-ia persuadir-me, jogando com os laços de parentesco. Eu compadecer-me-ia
e não aceitaria qualquer pagamento, de modo a que ele pensasse que eu o estava a fazer em nome do nosso sangue, e deste modo confiasse em mim. Mas depois dar-lhe-ia o nome do porto errado. O exército francês iria numa direcção e Eduardo viria de outra, e o caminho estaria assim livre para uma vitória inglesa.
Ela fitou a expressão dele. Neutra. Indiferente. Como se os homens fizessem esse tipo de maquinações elaboradas a toda a hora e passassem anos a manipular as peças.
Ele diverte-se com isto, apercebeu-se ela. Viajou para o Continente Negro e atravessa os Alpes ano sim, ano não. Necessita da aventura, dos planos, do desafio.
- E teríeis punido essa família pelo destino da vossa mãe acrescentou ela.
- Isso também. Duvido que o comte de Senlis permanecesse no conselho do rei depois disso. Seria apenas uma perda de estatuto e honra, sem nenhum agravo de maior.
Ao contrário da queda de Joanna. Ainda assim, era alguma justiça.
- Então, o que correu mal?
- Nada. Decorreu tudo como eu havia planeado. À excepção de algumas surpresas. A uma dada altura, Honoré, o último comte, faleceu, e o seu irmão, Theobald, tomou o seu lugar.
Ela pôs-se de pé e caminhou lentamente pelo quarto. Aguardou pelo resto. David esperou ainda mais.
- O que queríeis dizer quando vos referistes ao facto de o herdeiro dele lhe desejar a morte?
- A outra surpresa. A grande surpresa. Ele não me ofereceu prata. Ofereceu-me o reconhecimento e Senlis. Os filhos de Honoré e os de Theobald estão mortos. Ofereceu-se
para jurar que o irmão dele e a minha mãe haviam feito votos secretos. Seria
uma mentira, mas garantiria o meu direito a herdar.
Ela fitou-o.
David. O seu mercador, comte de Senlis.
- Houve homens que se deixaram tentar e cometeram traições por muito menos, minha menina.
- Dissestes que não tínheis qualquer interesse em serdes cavaleiro.
- Querida - respondeu ele com uma gargalhada -, ser um
cavaleiro é uma coisa. Ser um barão proeminente e conselheiro do rei de França é outra.
- Ides fazê-lo, então?
- Ainda não decidi. O que pretendeis que decida?
- Não, David. Começastes isto há muito tempo. Não lanceis agora para cima de mim a decisão.
Ela começou de novo a caminhar, pensando em voz alta.
- Há muitos homens que juram fidelidade a dois reis ou a dois lordes. Muitos barões ingleses possuem igualmente terras em França. Todas as pessoas compreendem que, por vezes, as lealdades entram em conflito.
Ele estendeu o braço e segurou no dela no momento em que ela passava junto a si. A mão dele segurou-a com firmeza e David fitou-a, abanando a cabeça.
- Não finjamos que enfrento algo diferente daquilo que é. O que dizeis é verdade, mas há regras que decidem a forma de um homem agir nesses casos. Isto é diferente. Se eu ajudar o comte e França, se eu fizer isto, estou a trair uma confiança, uma amizade e o meu país. Pelo preço que me é oferecido, não estou longe de o fazer, mas não vou fingir que é mais bonito do que o é na realidade.
Maldito seja. Maldito, Havia ambiguidades suficientes neste caso para um bispo conseguir racionalizar as suas acções. Ele podia pelo menos deixá-la encontrar algum conforto nelas.
- A França é o vosso país, David - realçou ela. - O vosso pai era francês.
- Na verdade, descobri que não é a Inglaterra que me preocupa, ou até mesmo Eduardo. Houve barões que o trataram de forma muito pior, e ele possui uma grande capacidade para compreender e até mesmo perdoar tais coisas. Não, é Londres que tem estado na minha mente. Se não fosse pela minha cidade, não me parece que hesitasse. - Ergueu o sabão e prosseguiu. - Uma vez que dispensastes as criadas, podíeis pelo menos lavar-me as costas.
Ela ajoelhou-se atrás dele e passou-lhe o sabão sobre os músculos. Apesar do turbilhão interior, não podia deixar de reparar que era a primeira vez que tocava no corpo dele desde há vários meses. Uma ligeira tensão sob a palma da mão indicou-lhe que ele sentia o mesmo.
- Mentistes-me em Abril. Viestes a França e não a Salisbury.
- Não podia envolver- vos, daí não ter dito a verdade - replicou, lançando um olhar sobre o ombro. - Aquele dia, no quarto de vestir. As vossas questões. Quais eram as vossas suspeitas?
- Na verdade, suspeitava de quase tudo, mas não acerca do vosso pai. Escutei a primeira abordagem que Frans vos fez. Eu estava escondida na passagem secreta. Mas não tinha a certeza de que éreis vós. Soube que ele era um agente da causa francesa. Vi-o encontrar-se convosco de novo em Westminster. Quando o comte veio a Hampstead, ouvi a sua voz antes de partir. Soube que ele era francês e que era um nobre.
- Pensastes que eu ia vender os planos de Eduardo por dinheiro?
- Era uma explicação. Na verdade, só o dinheiro é que não fazia sentido. Apreciais a vossa riqueza, mas sois um homem demasiado generoso para fazerdes algo por ganãoncia.
- Se sabíeis assim tanto - disse, voltando-se para ela -, admiro-me que não tivésseis partido mais cedo, enquanto eu estive fora, para vossa própria segurança e
pela honra da vossa família. Podíeis ter-me denunciado a Eduardo com as vossas suspeitas. Por que não o fizestes?
Ela desviou o olhar daqueles olhos sagazes. Não pretendia ficar exposta à vulnerabilidade que a resposta provocaria. Além disso, era a sua vez de colocar questões.
- Dissestes que regressaríeis em Abril e eu acreditei em vós. Também mentistes acerca disso?
- Ainda não havia decidido o que faria quando aqui chegasse, mas, em qualquer dos casos, esperava regressar - respondeu sacudindo a cabeça. - Se tivesse revelado ao conde o porto de Bordéus, e ele tivesse ido para lá, Eduardo jamais teria suspeitado de mim ou de qualquer outra pessoa, ainda que toda a França aguardasse lá por ele. Metade do exército deles está já no sul a lidar com Grossmont. Os restantes podiam ter recebido relatório dos navios que desciam pela costa, ou terem ido para reforçar o cerco em Angillon. Eu tinha grandes esperanças de regressar, assumindo que Theobald o permitiria.
O olhar fixo de David, a sua voz suave e o rosto dele tão perto do seu desconcertavam-na. A determinação de Christiana começou a afrouxar. Empurrou-lhe o ombro para poder retirar o sabão, e ele voltou-se para a frente.
- Mas agora Lady Catherine denunciou-vos a Eduardo, por isso não podeis regressar. Por que razão faria ela uma coisa dessas? Estará zangada por causa da propriedade em Hampstead?
Ele não respondeu durante alguns momentos. Ela suspeitava que ele estava a reflectir sobre a resposta a dar.
- Lady Catherine e eu temos uma longa história. A questão da propriedade é recente e apenas uma parte pequena dela. Ela feriu-me gravemente quando eu era adolescente. A prova encontra-se agora debaixo dos vossos dedos. Há alguns meses atrás, respondi-lhe à altura.
Ela retrocedeu, chocada. Observou as costas fortes de David e as cicatrizes diagonais que as atravessavam. Apesar da sua determinação em tratá-lo com a mesma indiferença
com que ele a tratava, sentiu um aperto no coração.
Não precisava de ouvir a história, pois podia imaginá-la. Os seus dedos deslizaram ao longo daqueles vergões finos e permanentes. Imaginou-o a ser vergastado, ainda
um rapaz. Viu Lady Catherine, segura na imunidade que lhe concedia o seu estatuto de nobre, ordenando aquilo devido a alguma suposta descortesia ou delito. Não em
Londres, evidentemente. Mesmo como aprendiz, estaria protegido lá.
Havia respondido à altura. Será que pretendia dizer que agora a pele de Catherine possuía cicatrizes idênticas? Ela tinha esperança que sim.
Sentiu uma onda de ternura pelo jovem que havia sido tão brutalmente maltratado. Resistiu com dificuldade ao desejo de beijar aqueles vergões.
Isto é uma loucura, censurou-se. Ele não pretende compaixão ou ternura da minha parte. Não faço parte desta história nem desta vingança. E também não tenho nenhum
papel no espectáculo que agora está a desenrolar-se. Quando muito, sou uma inconveniência com a qual o comte complicou os planos dele.
- Dizeis que ainda não decidistes o que fazer, David. O que acontecerá se não lhe revelardes um porto amanhã?
Sentia-se feliz por não poder ver o rosto dele. Se ele lhe mentisse, ela não queria saber.
- O comte fez todos os possíveis para garantir que isso agora não seria uma opção. Catherine foi denunciar-me a Eduardo, tal
como eu disse, mas a surpresa do comte em relação a essa notícia era falsa. Foi ele que lhe ordenou que me traísse, para me forçar a alinhar nisto. Contudo, o plano de me manter em Londres para que Eduardo me pudesse capturar é dela. Ainda assim, ele procurou forçar-me a sair de Inglaterra, e raptou-vos para que eu tivesse de vir até aqui. com a minha vida em perigo em Inglaterra, ele sabe que esta oferta se torna muito atractiva. - Fez uma pausa - Por outro lado, parente ou não, não sei se ele me permitirá sair daqui com vida se eu lhe recusar o que ele pretende.
Ela desejou que ele lhe tivesse mentido.
- Então não tendes escolha.
- Claro que tenho.
Ela sentiu-se mal. Por um lado, esperavam-no o estatuto e a riqueza. Mais do que ele alguma vez esperara alcançar na vida. Senlis era dele por direito e dever e ele devia aceitar. Mas, santo Deus, homens que ela conhecia e amava viriam naqueles navios para França. O seu irmão, o seu rei, Thomas e outros... e agora ele acabara de dizer que Theobald o mataria se ele não cooperasse.
Esse facto não devia importar-lhe. Ele não devia ter importância para ela.
Ela quase o abraçou e pediu que encontrasse uma forma de aceitar ambas as opções e, por conseguinte, nenhuma delas.
Ela regressou para o banco.
- Estivestes realmente a ponto de serdes capturado?
- Ninguém me desafiou ou questionou. A armadura provou ser um excelente disfarce, uma vez que há imensos cavaleiros a deslocarem-se por toda a Inglaterra. Até mesmo aqui, ajudou-me a viajar sem suspeitas.
- E o brasão no vosso escudo?
- Gostais dele? Dificilmente poderia fazer-me passar por um cavaleiro usando um escudo em branco. Felizmente, não encontrei nenhum heráldico, que teria imediatamente reconhecido que era um brasão novo e não oficial.
- Seguistes-me até ao Norte, então?
- Sim. - Ele lançou-lhe um olhar penetrante. - Não vos preocupeis. Não sofreu sequer um arranhão. Muito embora, quando Sieg ameaçou fazer dele um eunuco, eu pensei que ele fosse morrer de
medo. Uma vez que o salvei disso, é provável que agora esteja disposto a dar a sua vida por mim.
Ela lançou um olhar à lareira, pouco se importando se Sieg havia feito de Stephen um eunuco, fosse lá isso o que fosse.
- Ainda nos atrasámos mais quando Oliver insistiu em acolher a rapariga que se encontrava com Stephen sob a sua asa e tentar salvá-la da ira da família.
Ela quase não escutou o que ele dizia. Caminhou em direcção à lareira, pegou no balde de água que ali estava a aquecer e levou-o para junto da banheira.
Notou o olhar de David fixo nela.
- O que se passa? - perguntou.
- Não ouvistes o que eu disse? Não estais com ciúmes? Eu disse que havia uma rapariga com ele.
Christiana semicerrou os olhos.
- Para um homem inteligente, conseguis ser um idiota! - gritou, vertendo a água sobre a cabeça dele.
Virando o balde ao contrário, enfiou-o na cabeça de David e afastou-se tempestuosamente.
Ficou a olhar para a parede, cega de fúria. Ouviu-o sair da banheira e secar-se. Alguns momentos mais tarde ele apareceu atrás dela.
Tocou-lhe ao de leve no ombro.
- Ainda não acreditais em mim - disse num tom áspero, sacudindo-lhe a mão. - Contastes-me mentira atrás de mentira, enquanto eu só vos ofereci a verdade desde o início. Assumis que todas as pessoas vivem o mesmo tipo de imposturas que vós?
- Acredito em vós. Mas interrogo-me se ainda o amais. Nunca me dissestes que havíeis deixado de o amar.
- Disse-vos que estava terminado.
- Não é a mesma coisa.
- Se vos interrogáveis, devíeis ter-me perguntado, então. Ele aproximou-se mais e falou num tom suave.
- Não vos perguntei, da mesma forma que vós não me perguntastes acerca de França, e pelas mesmas razões. Não falámos um ao outro acerca dos assuntos que nos poderiam magoar. Nunca vos perguntei porque tinha receio da resposta. Tive esperança de que o tempo resolvesse tudo. Mas o tempo esgotou-se e eu estou a perguntar-vos agora. Ainda o amais ?
Ela fechou os olhos, desfrutando do som da sua bela voz, e desejou que os seus tons suaves não estivessem a colocar esse tipo de questões. Receava o rumo que podiam tomar.
Ainda assim, ele tinha razão. Finalmente, hoje, ele havia-lhe concedido franqueza. Ela não devia agora dar início aos seus próprios enganos. Mas a franqueza em relação a eles os dois podia muito bem deixá-la desprovida de tudo, pois destruía a frágil determinação com a qual a sua fúria dominara a paixão e o amor.
- Já não sinto nada por ele e duvido que alguma vez o tenha amado.
- Por que razão duvidais?
Porque só agora sei o que é o amor, quase respondeu.
O silêncio pulsava à medida que ele aguardava pela resposta dela. De repente, Christiana sentiu-se terrivelmente vulnerável. Esta era segunda questão que, se fosse respondida com honestidade, requereria uma confissão do seu amor.
E porque não dizer-lhe? Admitir a verdade e depois sair porta fora. Fez uma careta. Um gesto grandioso que não surtiria o drama e o impacto desejado. Ele limitar-se-ia a deixá-la-ia ir, e depois continuaria a viver a vida que escolhera para ele. Não se importava o suficiente com ela para se deixar afectar por uma confissão ou rejeição.
- Por que razão acreditais em mim agora acerca desse encontro, David? Stephen disse-vos a verdade? Acreditastes naquele louco quando não havíeis acreditado em mim?
- Ele disse-me a verdade. Porém, naquelas circunstâncias, ter-me-ia jurado ser casto desde o nascimento. Mas não fez qualquer diferença, porque eu já acreditava em vós. Sempre que pensava naquele dia, continuava a ver uma bela jovem a correr para os meus braços, repleta de alegria e não de culpa ou receio. - As mãos dele agarraram-na suavemente pelos ombros. - O que queríeis dizer-me naquele dia?
Mais uma pergunta perspicaz.
Ele suspeita, apercebeu-se, alarmada. A sua mente viu aquilo que a fúria não permitiu.
Christiana tornou-se subitamente consciente do calor e do aroma dele por trás de si. O silêncio ficava cada vez mais tenso à medida que algo mais emanava dele. Algo expectante e impaciente.
Ansiava por lhe dizer, mas recordou-se de tudo o que lhe dissera naquela tarde no quarto de ambos. Recordou-se de como o evitara, como rejeitara os seus afectos durante o noivado. Imaginou o aprendiz a ser torturado segundo os desejos da nobre Lady Catherine.
Não poderia, por isso, dizer-lhe agora. Ainda que David atribuísse pouco valor aos seus sentimentos por ele, iria pensar que esta mudança no destino, de mercador para herdeiro de um barão, fizera com que ela descobrisse repentinamente o seu amor por ele.
- Não me recordo - murmurou.
Ele permaneceu em silêncio, afagando-lhe ternamente os braços. Ela fechou os olhos, absorvendo aquele toque, a proximidade dele. A intensidade excitante que emanava dele envolvia-a de uma forma aliciante e sedutora.
Apesar do nó com que as revelações do dia haviam amarrado as suas emoções, apesar da sua decisão de abandonar este estranho, não deixou de sentir um enorme conforto com a sua terna carícia.
- Agora preciso de algumas informações da vossa parte - disse David por fim.
- Nenhuma história que eu vos conte será de perto tão interessante quanto a vossa.
- Molestaram-vos de alguma forma?
- Não, nem por isso. Cavalgámos durante alguns dias, o meu traseiro ficou dorido da sela e a minha pele avermelhada do sol do Verão, mas foi tudo. Pernoitávamos em estalagens simples, e partilhávamos um único quarto abafado, mas os homens não me incomodaram, embora um deles me fitasse de uma forma demasiado audaciosa para que eu me sentisse tranquila. A comida era horrível e a viagem por mar assustadora. Cheguei aqui parecendo a pior das camponesas, e com um odor demasiado desagradável para poder ser uma companhia decente, mas não fui molestada.
Ele voltou-a para si. Envergava uma túnica longa e folgada, algo semelhante ao que um sarraceno usaria. Fitou o rosto dele e avistou emoções ocultas sob a sua expressão calma, emoções que nunca vira nele. Preocupação. Indecisão. Dúvida. Afigurava-se-lhe muito menos controlado do que durante o banho.
- Se eu fizer isto, não necessitareis de ficar - disse, tocando-lhe no rosto. - Em breve, Eduardo aceitará que não tivestes parte nisto. Podereis regressar a casa.
- Foi por isso que colocastes as propriedades em meu nome? questionou, fitando-o, o amor que sentia por ele a apertar-lhe o coração. Aquele contacto da pele dele
na sua era o suficiente para despertar todos os seus sentidos. - Para que não pudessem ser confiscadas?
- Sim. Havia sempre a possibilidade de Eduardo escutar o suficiente para suspeitar de mim, independentemente das minhas intenções. Não quis que ficásseis dependente de alguém se este jogo perigoso corresse mal.
- Por que razão não esperastes? Para vos casardes? Dissestes que isto começou muito antes de nos conhecermos. Muito antes de terdes oferecido dinheiro por mim. Para
quê complicar as coisas desta forma para vós?
Mas no exacto momento em que pronunciava estas palavras, uma estranha sensação percorreu-lhe o corpo. Um pensamento que não desejava enfrentar intrometeu-se, impondo-se
na sua mente com determinação e firmeza. A resposta para uma das primeiras e mais pertinentes questões que alguma vez lhe haviam surgido em relação ao homem que a fitava.
Santo Deus. Santo Deus. Até mesmo isso havia sido uma mentira, uma ilusão! Não era muito, mas pelo menos, enquanto o amor que sentia procurava um compromisso com a sua vida, havia sido algo a que se agarrar.
Os dedos dele ainda permaneciam no rosto dela. Christiana contemplou, desesperada, aqueles olhos azuis e procurou o mesmo tipo de conhecimento que obtivera dele durante os momentos de maior intimidade. Perscrutou através dos véus e da intensidade, tentando ver a sua alma.
- Nunca oferecestes dinheiro por mim, pois não? - perguntou. - Foi ideia de Eduardo. Ele propôs-vos este casamento, talvez por mim, mas em especial para obter dinheiro da vossa parte. Não podíeis recusar o pedido dele.
Ele tomou o rosto dela nas suas mãos, inclinou-se mais na direcção dela e fitou-a directamente nos olhos. O controlo e o comedimento desapareceram e ele permitiu-lhe ver o que ela procurava. Permitiu que ela perscrutasse por entre as sombras e as camadas, até às profundezas do seu ser. Despido de todas as defesas e armadura, enfrentou a inspecção dela. Ela susteve a respiração perante as emoções que subitamente se expunham à sua frente.
- Não - respondeu calmamente. - Vi-vos, desejei-vos e paguei a Eduardo uma fortuna por vós. E não esperei porque não podia. Foi egoísmo da minha parte. - Os seus polegares afagaram as maçãs do rosto dela. - O meu tempo esgotou-se, Christiana. Necessito de saber quais são as minhas verdadeiras opções, e aquilo que ganho e o que perco. Se eu fizer isto, ficareis comigo?
Ela quase não escutou as palavras dele porque a assombrosa verdade escrita no seu interior tornava os motivos que haviam dado origem a este casamento subitamente irrelevantes. Não conseguia desviar-se daquele olhar afectuoso e subjugante e não queria perder esta ligação tão repleta de sentimento, este conhecimento total que ele lhe oferecia. Duvidava que alguma vez ele tivesse deixado alguém vê-lo desta forma, até mesmo a sua mãe.
Tudo estava reflectido naqueles olhos penetrantes. Tudo. A culpa de a ter exposto ao perigo. O medo de si mesmo. Os seus desejos ardentes e penosos, as suas ânsias e inclinações sinistras. Mas, iluminando todas essas sombras, aquecendo as suas gélidas profundezas, brotava uma emoção resplandecente que ela reconheceu pela sua beleza, alegria e salvação. O amor que havia dentro dela derramou-se e encaminhou-se, reconhecido, nessa direcção. Os lábios dele entreabriram-se e um calor glorioso inundou o seu olhar. De David emanou um alívio intenso e angustiado.
- Ficareis? - repetiu, com o rosto a uns milímetros do dela.
- Não partirei - murmurou, pois não poderia existir outra resposta depois do que havia visto. - Nobre ou mercador, ficarei convosco.
David puxou-a para si e envolveu-a num abraço e num beijo. Ela apertou os ombros dele e perdeu-se na emoção ardente de uma intimidade ternurenta. Durante um momento eterno e ofegante, os corpos de ambos pareceram dissolver-se naquele resplendor ofuscante.
A ligação e o entendimento eram tão completos que ela não sentia necessidade de falar. Mas David, sim.
- O que queríeis dizer-me naquele dia, Christiana? :
- Não percebestes logo? Estava certa de que conseguiríeis vê-lo imediatamente.
- A minha ira e a minha dor cegaram-me para tudo o resto. Saí daquele barco com a cabeça e o coração repletos de amor por vós,
Mas a história de Oliver dilacerou-me como uma adaga e converteu-me num louco.
Ela ergueu os olhos para os de David, tendo ficado sem saber o que dizer perante a calma articulação daquilo que acabara de ver e sentir nele. Ao ser o primeiro a pronunciar estas palavras, ele tornara as coisas mais fáceis para ela. Era algo que ele fazia sempre, e fizera-o durante todo o tempo em que haviam estado juntos. De início, talvez por simpatia e compreensão, mas mais tarde por causa do amor que sentia por ela.
Christiana tocou-lhe no rosto e permitiu que os seus dedos vagueassem pelas saliências bronzeadas das maçãs do rosto e do maxilar, e acariciou-lhe os lábios.
- Naquele dia queria dizer-vos que estava apaixonada por vós. Compreendi-o quando Catherine me entregou a Stephen. O sentimento estava ali, tão óbvio e completamente real. Soube que vos amava já há algum tempo.
Ele beijou-a novamente, com tanta suavidade e ternura que a a mera ideia do amor que ele agora lhe demonstrava a preencheu ao ponto de se sentir leve como uma pena.
Os lábios dele aproximaram-se da orelha dela.
- Eles raptaram-vos do meu quarto, no andar de cima. Geva não havia tocado em nada quando eu regressei.
A sua voz calma e bela aqueceu-a quase tanto quanto o seu hálito e o seu toque. Uma paz deliciosa fluía através dela como uma brisa. Sentiu-se grata por ele saber que ela amara David, o mercador, muito antes de saber toda a verdade acerca dele, e satisfeita por ele saber que ela havia regressado de sua livre vontade.
- Quereis-me, Christiana? Vireis agora deitar-vos comigo?
- Sabeis que sim, sabeis que o farei.
David abraçou-a e permitiu que o amor inocente e a alegria de Christiana o subjugassem. Desde que regressara a casa e vira a cama em desordem, o seu desejo físico
por ela pulsava a um ritmo profundo e constante no seu corpo e na sua alma. Agora, contudo, resistia ao impulso de a levar para a cama. O abraço terno com que ela
o envolvia confortava-o como nenhuma paixão jamais o faria.
Nobre ou mercador, ficarei convosco. Era mais do que aquilo que ele pedira e muito mais do que merecia.
Ela interrompeu o longo beijo e sorriu-lhe.
- Passou tanto tempo que vos esquecestes de como se faz?
- Sim. Talvez devesse ter continuado a praticar - disse com uma gargalhada.
O sobrolho dela elevou-se em surpresa e ele soltou outra gargalhada.
- Não houve mais ninguém. Descobri que estar sentado junto de vós à lareira é mais emocionante do que seduzir uma estranha e enfiar-me na sua cama.
- É estranho, David - respondeu ela, franzindo o sobrolho.
- Estáveis ali e amáveis-me. Eu estava ali e amava-vos. E nenhum de nós o viu. Por que razão? Vós vedes tudo. Será que as palavras cruéis e impensadas podem construir tamanhas muralhas?
- Isso acabou, não temos de...
- Mas eu quero. Eu disse o que disse para vos magoar, e vós fizestes o mesmo. Lançámos um ao outro os nossos medos e ilusões, e cada um de nós acreditou nas palavras do outro, embora a verdade estivesse ali bem à vista. - Fitou-o atentamente. - Se eu tivesse pensado com clareza nessa altura, como fiz desde então, teria sabido que vós nunca pensastes em mim como vossa propriedade. Na verdade, agíeis exactamente ao contrário. Se realmente adquiristes para vós uma prostituta nobre, nunca fizestes muito uso dela, pois não? Porquê?
Ela surpreendeu-o. Estava a amadurecer e olhos vistos, e a sua inteligência aguçada, liberta do abrigo que a isolava, tinha já começado a ver a essência das coisas.
Ele amava a rapariga. Suspeitava que iria venerar a mulher.
- Éreis muito inocente, querida.
- Não era assim tão inocente. As mulheres falam com as raparigas antes de elas se casarem. Eu sabia que os homens geralmente esperavam mais das mulheres do que vós alguma vez exigistes de mim. Eu sabia que podia haver mais coisas no acto do amor do que vós procurastes.
- Não estivemos juntos muito tempo, Christiana. Ela mordeu o lábio inferior, pensativa.
- Não me parece que tenha sido esse o motivo. Vós sabíeis quem éreis, mas eu não. Penso que receastes que eu me sentisse humilhada e usada. Devido ao vosso orgulho, David, não me tratastes como uma igual na nossa cama.
Ela deixou-o abismado. Ele havia sido muito cuidadoso com ela. Nunca havia ido para além dos actos impulsivos da noite de núpcias. O comedimento surgira naturalmente nele e nunca pensara muito nisso, mas agora tinha de admitir que existia alguma verdade nas palavras dela.
Uma expressão muito mundana e determinada tremeluziu naqueles olhos de diamante.
- Tenho sentido ciúmes, sabíeis? Não gosto de saber que fizestes coisas com Alicia e com as outras que nunca fizestes comigo. Nobre ou mercador, eu ficarei convosco, mas não como uma taça preciosa que tendes medo de quebrar.
De uma forma brincalhona, empurrou-o para trás, contra o pilar da cama. Inclinou-se na sua direcção, pressionou o corpo contra o dele, baixou-lhe a cabeça com a mão e beijou-o. Ele entregou-se àquele súbito acesso de erotismo. Como um relâmpago, a tensão cresceu e difundiu-se.
Ela olhou para cima, muito satisfeita consigo mesma. Segurou-a pelas ancas e ela roçou-se contra ele intencionalmente. As semanas de necessidade e espera provocaram nele uma resposta impetuosa e David ergueu-a para um beijo devorador e obscuro. Ela entregou-se a esse beijo e a paixão de ambos fundiu-os. Mas, em seguida, as mãos dela moveram-se sobre os ombros e pelo peito dele, empurrando-o subtilmente.
- No dia do meu casamento, uma criada deu-me umas lições muito explícitas - declarou, olhando mais para o peito dele do que para o rosto. - Ela disse-me que os homens gostam de ver as mulheres a despirem-se. Agradaria ao meu marido mercador se eu me despisse agora?
Olhou para ele e enrubesceu. Ao escutar estas palavras, David pensou que o coração lhe iria despedaçar o peito. Ela voltou-lhe as costas e afastou-se, com as mãos a desatarem os nós dos atilhos do vestido. Este gesto simples quase o descontrolou. Encostou-se contra o pilar da cama e ficou a observá-la de braços cruzados.
Havia-a visto despir-se muitas vezes, evidentemente, mas não desta forma. Ela movia-se de uma forma tão sedutora, que o súbito embaraço por se descobrir assim observada quase não se notava. Mas dava para perceber que ela sentiu imediatamente que aquilo era mais difícil de fazer do que havia imaginado. Fez os possíveis por não sorrir perante o ligeiro rubor no seu rosto e o olhar ardente nos seus olhos quando Christiana se voltou e deixou o vestido deslizar até ao chão. Baixou-se para tirar as meias.
- Não - disse ele. - Primeiro a combinação.
Ela endireitou-se. Cruzando os braços sobre o peito, e assemelhando-se muito à donzela tímida que fora recentemente, fez deslizar a combinação pelos ombros. As mãos acompanharam a sua descida, afastando-se para revelar primeiro os seios e depois as ancas e as coxas.
A peça de vestuário leve tombou aos pés de Christiana e ela libertou-se dela. Fixou o olhar no chão antes de o erguer para fitar David. O lampejo naqueles olhos de diamante disse-lhe que ela acabara de descobrir que aquilo podia excitar tanto uma mulher quanto um homem.
A beleza dela hipnotizava-o como sempre. O seu franco desejo de lhe proporcionar prazer transformou o prazer em si. Aquela necessidade desesperada de David conteve-se, não passando agora de uma tempestade ameaçadora mas controlável. Ele sabia que podia navegar indefinidamente nos seus ventos.
- Agora as meias.
Christiana baixou-se e os seus braços graciosos alcançaram a liga da sua perna estendida. David vislumbrou o movimento decrescente e progressivo do ombro até à cintura e o formato suave das suas ancas por trás. Os seios dela, tensos de ansiedade, pendiam redondos, cheios, perfeitos, à medida que ela ia enrolando a meia pela perna abaixo.
- Voltai-vos para tirardes a outra.
Ela voltou-se para ele, surpreendida, mas depois fez o que ele pedia.
As curvas graciosas das suas ancas e nádegas proporcionavam-lhe uma visão arrebatadora enquanto ela se baixava para desatar a liga. Devia ter sentido a sua vulnerabilidade, porque a coragem abandonou-a e ela desenrolou rapidamente a meia pela perna.
Endireitou-se e encarou-o com uns olhos que mais pareciam estrelas líquidas. Ele permitiu que a imagem dela ficasse gravada na sua memória. Christiana não era baixa,
nem sequer pequena, mas magnificamente constituída na sua esguia voluptuosidade.
- O vosso cabelo, Christiana. Soltai o vosso cabelo para mim. Os braços dela ergueram-se enquanto procurava os ganchos.
O movimento fez-lhe subir os seios e os seus mamilos endurecidos apontaram para cima. Desentrançou os cachos negros que começaram a espalhar-se sobre as suas costas. Ele não fez qualquer esforço para ocultar o que sentia.
- Vinde, minha rapariga, beijai-me como uma noiva apaixonada deve fazer.
Christiana encaminhou-se lentamente na direcção dele, com uma expressão convidativa que revelava a paixão, o amor e a alegria que sentia.
Mais do que ele alguma, vez esperara. Muito mais do que merecia.
A aurora estava a uma eternidade de distância.
Ela aproximou-se e pousou as mãos no peito dele. Ergueu a cabeça para David e ele baixou-se e recebeu o beijo dela com alguma contenção. Deixou que ela tomasse a iniciativa, mordendo suavemente em redor da sua boca. De uma forma delicada, mas já não tão ingénua, a boca de Christiana tocou ao de leve nos lábios dele e depois deslizou sobre eles com sensualidade.
Ele envolveu-a com o braço, comprazendo-se na sensação da pele dela sob a sua mão. O corpo de Christiana estava coberto por uma fina camada de suor e o seu calor e humidade fizeram disparar um arrepio de prazer ao longo do corpo de David.
Ele acariciou-lhe a face e interrompeu o beijo de modo a poder observar a sua mão a percorrer o corpo dela. O toque dele fê-la arquear as costas e os seios de Christiana
ergueram-se para ele. O estremecimento do corpo dela ao sentir o toque no mamilo intumescido provocou a David um prazer
angustiante.
Nenhum deles sucumbiu ao frenesim. Ambos procuravam prolongar a deliciosa expectativa.
As mãos dela ainda permaneciam no peito dele e agora afagavam os atilhos da longa túnica.
- Tem um aspecto muito exótico. Muito atraente.
- Os sarracenos sabem como vestir-se para o tempo quente.
Ela acariciou-lhe o peito, indolentemente.
- A criada disse-me que os homens também gostam de ser despidos pelas mulheres.
Ele não respondeu, mas ficou a observá-la enquanto ela desatava as fitas da túnica.
Ela acariciou-o através da abertura. David fechou os olhos ao sentir o calor daquela pequena mão. Havia decorrido muito tempo desde que ela lhe dirigira um gesto de afecto por muito pequeno que fosse.
Ela abriu-lhe a túnica quase até aos ombros, e encostou o rosto ao corpo dele. De uma forma lânguida e deliciosa, com uma atenção lenta que apenas aumentava a tensão entre eles, esfregou o rosto contra o peito dele e observou a mão que lhe deslizava pelos músculos.
- Estáveis certo - disse ela. - A abstinência é um poderoso fortificante da paixão. Uma parte de mim mal pode esperar e já grita por vós, mas outra pretende prolongar isto para sempre.
- Sabeis como termina. Nunca vos deixei ficar mal nesse ponto. Permiti que apreciemos a viagem. Não voltaremos a percorrer o mesmo caminho duas vezes.
Ela sorriu com sensualidade e assentiu. Passando as mãos pelo peito dele, fez deslizar a túnica dos ombros dele e guiou-a à medida que ela lhe descia pelas costas.
O controlo dele ameaçou dissipar-se quando ela estendeu as carícias às suas ancas e coxas.
- O que mais vos disse a criada? - inquiriu, tocando-lhe da mesma forma e sentindo o corpo dela estremecer subtilmente.
- Que os homens gostam de ser tocados e beijados, mas já percebi que isso é verdade - respondeu e, como prova disso, começou a beijar-lhe o peito. Frémitos intensos e prolongados dispararam pelo seu corpo a cada beijo e mordidela. - E outras coisas. Na altura pareceram-me chocantes, mas agora já não penso assim.
A túnica permanecia junto às ancas dele. Christiana soltou-se gentilmente do seu abraço e começou a acariciar-lhe e a beijar-lhe o corpo à medida que ia descendo.
Ele observava e aguardava, mal conseguindo respirar. Uma névoa obscura de paixão toldava-lhe a mente e via tudo e nada em simultâneo. Viu as mãos dela puxarem-lhe a túnica até aos pés e sentiu a sua carícia trémula nas coxas e pernas. Viu os dedos de Christiana
acariciarem o seu falo endurecido enquanto os lábios dela se pressionavam contra o seu ventre. O arrojo dela enternecia-o e espantava-o. Sentia-se surpreendido com a calma aparente que o seu corpo mantinha, porque o desejo começava a dilacerá-lo.
Ela acariciou-lhe a parte de trás das coxas e afastou a cabeça. Lançou-lhe um olhar inquisitivo e ele inclinou-se e ergueu-a num abraço.
- Só se quiserdes, querida, e nunca de joelhos.
- Então levai-me para a cama, mercador - proferiu, aninhando-se nos braços dele -, de modo a que possa demonstrar-vos o meu amor e veneração.
David beijou-a e ergueu-a, depois voltou-se e estendeu-a sobre a cama, deitando-se ao lado dela.
O ar cálido da noite que entrava pela janela proporcionava alguma frescura contra o calor que emanava dos seus corpos entrelaçados. David perdeu-se na intimidade do odor dela, nas suas curvas e no suor lúbrico.
Levá-la-ia numa viagem que ela jamais imaginara.
Lenta e deliberadamente, usando de todo o seu conhecimento acerca dela, David destruiu por completo o ténue autodomínio de Chnstiana. Sem nunca lhe tocar abaixo das ancas, David conseguiu arrastá-la para a plenitude. Acariciou-lhe os braços, mordiscou-lhe os mamilos, percorreu-lhe o pescoço com a sua boca devoradora, e o fogo que a consumia aumentava a cada momento. Christiana tentava, apesar do seu crescente alheamento, dar-lhe prazer também a ele, mas David não lho permitia. Escutava os gemidos débeis de abandono que Christiana emitia e sentia o seu corpo trémulo a aproximar-se da mais culminante das sensações.
- David, eu... por favor - proferiu, segurando-o pelos ombros. Ele deteve as mãos e a boca dela e abraçou-a. Ela contorceu-se
contra ele numa frustração rebelde e abriu os olhos.
- David! - exclamou, num tom acusador.
- Calma, querida, eu disse que nunca vos deixei ficar mal.
- Tencionais torturar-me até à morte? - disse, dando-lhe uma pancadinha pouco amigável no ombro.
- Só é tortura se pensardes apenas na libertação - disse, sorrindo delicadamente. - Desfrutai do prazer da própria escalada, sabendo que, mais cedo ou mais tarde, levantareis voo.
O fogo que a consumia abrandou e o frenesim esmoreceu. Os braços de Christiana rodeavam-lhe os ombros e ele voltou-se para lhe beijar a curva do braço enquanto a mão lhe caía pelas costas.
- Mais uma vez, então - disse ele.
Ela agarrou-se a ele, afastou as pernas e aceitou as suas carícias. A excitação fazia com que o sexo de Christiana palpitasse, e ele acariciou-a lentamente, de uma forma que lhe dava prazer, mas não a satisfação total. De início, ela rebelou-se e tentou que as carícias fossem mais intensas, mas depois relaxou e aceitou as vagas de prazer com arquejos rejubilantes e gemidos suaves.
Ele avistou o êxtase glorioso no seu rosto e quase perdeu o controlo. Tocou-lhe de uma forma diferente e viu-a escalar novamente, desta vez mais alto, como viria a ser de todas as outras vezes. Ele levou-a até um pico e manteve-a lá, oscilando no limite, permitindo que ela saboreasse a primeira convulsão antes de retirar a mão.
As unhas dela haviam-se cravado no seu braço e ombro. Ele beijou-a e acalmou-a com carícias suaves.
- Foi maravilhoso - murmurou. - Vai sendo sempre cada vez melhor?
- Até um certo ponto.
- Planeais fazer isto durante toda a noite?
- Duvido seriamente - respondeu com uma gargalhada. O amor tornou-me muito nobre e cavalheiresco, mas tenho os meus limites.
- Penso que ambos podemos jogar este vosso jogo - respondeu, fitando-o. - Agradar-vos-ia?
- Muito. Se assim o desejais.
Ela ergueu-se e empurrou-o pelos ombros, deitando-o sobre a cama. Lançou-lhe um sorrisinho presumido repleto de uma autoconfiança indevida. Beijou-o com vontade antes de avançar com as mãos e a boca ao longo do seu peito. Ele fechou os olhos e acariciou-lhe as costas.
- Não, David. Não permitistes que vos tocasse, por isso não podeis tocar-me.
Christiana foi descendo, beijando-o sempre com calor. Ele sentiu-a fazer uma pausa para avaliar a situação. Depois sentiu-a voltar-se, encolher as pernas e apoiar-se contra o seu ventre.
Ele havia-lhe ensinado a dar-lhe prazer com as mãos, e as carícias dela quase o levaram ao delírio. Quando Christiana fez outra pausa, David entreabriu os olhos no momento exacto em que ela baixava a cabeça.
Depois disso, todos os seus pensamentos se evaporaram. Ele observava, por entre uma neblina subjugante de prazer, as linhas eróticas das costas e nádegas de Christiana, os seus pés delicados enfiados sob o seu corpo.
David conhecia os seus limites, mas ela não. A medida que se aproximava do êxtase, esticou o braço e deslizou os dedos pela fenda do traseiro dela.
Ela gemeu e mudou de posição, aceitando o toque dele. David posicionou-se de modo a que a sua boca chegasse junto dela. Retesando-se para manter o controlo, permitiu que ambos apreciassem aquele prazer extático durante mais algum tempo, enquanto a levava tão longe quanto ela o havia levado a ele, mesmo até ao limite. Finalmente, estava a ser demasiado para ambos e ela apercebeu-se disso. Parou de o beijar e ergueu-se e, ao fazê-lo, David puxou pelo corpo dela e forçou-a a sentar-se sobre ele, as pernas abertas sobre as ancas dele.
Durante um instante, ela pareceu surpreendida por se encontrar ali. Em seguida, instintivamente e sem uma palavra, ergueu-se e atraiu-o para dentro de si.
O suspiro dele foi de encontro ao dela. Ela fechou os olhos perante a sensação, e depois, lentamente, ergueu-se e baixou-se de novo.
A paixão toldava-lhe os olhos quando os voltou a abrir.
- Isto é incrível, David - disse com um suspiro, continuando
a mexer-se.
Ele estendeu as mãos e acariciou-lhe os seios de modo a que ela pudesse ver o quão incrível podia ser e friccionou os mamilos endurecidos entre os seus dedos. A cabeça de Christiana tombou para trás e ela entregou-se com indolência a um ritmo maravilhoso e sensual, à medida que o atraía repetidamente para o seu calor ardente e o libertava. Intensificado pela abstinência e pelo amor, o prazer submergiu-o de uma forma que ele jamais experimentara.
Ele puxou-a para si.
- Vinde até mim. Chegai-vos um pouco para a frente - ordenou.
Ela deslizou para a frente mas deteve-se.
- Perderei...
- Não perdereis nada. Vinde até mim.
Christiana baixou-se e David ajudou-a a deitar-se até conseguir introduzir um dos seios dela na boca. Ela pairava sobre ele, ofegante, com o corpo ainda afastado
do dele. David sentiu que ela se agarrava a ele para o absorver mais, enlouquecendo-o com as suas carícias.
- David - proferiu, ofegante, com o corpo a tremer daquele prazer angustiante nos seus seios e entre as pernas.
Ele acariciou-lhe as costas e continuou a estimular-lhe os seios. Sentiu o primeiro tremor profundo e soube o que significava, embora ela não soubesse.
- David - bradou ela, desta vez de um modo frenético.
Ele soltou-a e ela deixou-se cair sobre o corpo dele com um gemido repleto de angústia. Enterrando o rosto no peito dele, moveu-se energicamente de novo.
- Sim, também pode acontecer assim - disse-lhe, para a tranquilizar.
Em seguida, segurou-a firmemente pelas ancas e tomou as rédeas da situação, ajudando-a a alcançar aquela plenitude diferente e mais esquiva.
Jamais vira uma mulher atingir um clímax tão violento e completo. Nos seus brados ecoavam sentimentos como surpresa, desejo e amor. Ela beijou-o com ferocidade e fitou-o directamente nos olhos à medida que a paixão atingia o auge e a sua aberta aceitação da magia fazia com que a intimidade fundisse as suas almas como sempre o fizera. Todo o seu ser parecia dobrar-se sobre si mesmo, carregando a essência de David até ao seu centro abrasador, antes de sair a voar em todas as direcções. No final, ela ergueu-se numa magnífica exibição de êxtase sensual enquanto os seus gritos exprimiam o abandono total a que se entregava.
O clímax mútuo obliterou momentaneamente o tempo, o espaço e a consciência.
Ela tombou sobre o corpo dele e David flutuou com ela naquela unidade que ambos formavam. O amor dela maravilhava-o e preenchia-o com a sua paz inocente e graça. A resposta faminta e ávida da sua própria alma surpreendeu-o.
O rosto dela permanecia aninhado no pescoço dele.
- Será que alguém nos ouviu?
- Nos?
Ela soltou uma risadinha abafada e deu-lhe uma palmadinha divertida no peito.
- Está bem, será que alguém me ouviu?
Ele pensou na janela aberta e na tranquilidade da noite lá fora na cidade. Era muito provável que toda a casa e metade de Caen a tivessem escutado. Isso deitava por terra a sua ideia de fingir que não eram felizes juntos.
Agora já não tinha importância. Se o comte estava a pensar usá-la dessa
forma, já teria tratado dos dois.
- Estou certo de que ninguém ouviu, querida.
Ela instalou-se ao lado dele. David jamais experimentara tamanha paz e satisfação, e permitiu-se saboreá-las, sabendo que não duraria muito e que poderia não voltar a acontecer.
Provavelmente, devia ter-lhe contado tudo. Teria de o fazer algum dia. Este amor não permitiria enganos a longo prazo, mesmo que fossem pelo bem dela.
- Alguma vez estivestes lá - perguntou ela -, em Senlis?
- Duas vezes. A primeira vez foi há alguns anos, e depois mais recentemente.
- Estivestes no interior?
- Sim. O comte encontrava-se ausente, e eu entrei como um mercador em viagem com artigos de luxo para vender. Ninguém se recordará disso. As mulheres distraíram-se
com os artigos, não comigo.
- Quereis Senlis?
- Quem não quereria?
Ela pôs-se de pé e fitou-o directamente nos olhos.
- Vós podeis não querer.
De qualquer forma, havia uma decisão a tomar, uma escolha a fazer.
- É o vosso destino que estou a decidir, para além do meu. Pretendo saber a vossa vontade nisto.
- A minha vontade é ter-vos comigo para sempre, vivo e inteiro. É tudo o que realmente me interessa, mas sei que não tomareis uma decisão a pensar na vossa segurança, e eu não vos exigirei isso. Quanto ao resto, é muito difícil definir o que é certo e o que
é errado, não é? Ambas as opções implicam uma certa dose de sofrimento e traição. Tanto Inglaterra como França detêm uma pretensão sobre a vossa pessoa. Tanto Eduardo
como Theobald merecem a vossa lealdade. - Fez uma pausa, reflectindo sobre o dilema. - Penso que devereis escolher a vida que nascestes para viver, seja ela qual for no vosso entender.
Chrstiana ia à essência das coisas. A vida com ela seria fascinante.
- E em relação a vós, Christiana? E em relação à vida que vós nascestes para viver?
Ela sorriu e pousou o rosto no peito dele.
- Eu nasci para desposar um nobre, David, e vós fostes desde sempre um dos homens mais nobres que já conheci.
CAPÍTULO 21
Christiana despertou numa cama vazia com a luz da alvorada que penetrava pela janela do quarto. As memórias inebriantes da noite anterior não tardaram a dissipar-se imediatamente. Ergueu-se e vestiu-se o mais depressa que pôde.
Ele estava a encontrar-se com eles nesse momento. A definição do seu futuro estava a decorrer. Não podia rezar por um desfecho ou por outro, embora soubesse bem qual deles preferiria. Ele podia revelar-lhes o porto, tornar-se o herdeiro de Senlis e viver a vida que poucos homens viviam. Ou podia recusar, ser privado da sua vida anterior, mas não lhe ser concedida uma nova, talvez até fosse assassinado. Para ela, não era uma grande opção, nem, esperava ela, para ele. Mesmo assim, apesar do estatuto de Senlis e tudo aquilo que isso implicava, não se sentia ansiosa nem entusiasmada por ir viver num lugar estranho e tão distante de casa.
Andou de um lado para o outro no quarto, mas aquele espaço confinado apenas aumentava a sua preocupação. Abandonou o quarto e procurou as escadas que conduziam ao telhado plano do edifício, com os seus muitos quartos de dormir e arrecadações. Vasos de flores estivais e trepadeiras adornavam o telhado e, no momento em que subiu para lá, escutou os sons da azáfama da cidade lá em baixo. Os sons habituais do comércio e do bulício haviam sido substituídos por um estridor de vagões, cavalos e homens a bradarem ordens.
David mantinha-se junto ao muro baixo que rodeava o telhado, fitando as ruas da cidade para oeste. Junto dele encontrava-se um homem robusto de meia-idade com longos
cabelos castanhos.
David voltou-se e reparou nela.
- Vossa senhoria, esta é a minha mulher, Christiana Fitzwaryn. Este é o condestável dEu, querida.
Christiana enfrentou o olhar avaliador do líder militar de França.
- Sou primo de Theobald, senhora, e portanto um parente de vosso marido. - Lançou um olhar a David. - Nada menos do que a filha de Hugh Fitzwaryn. Fizestes bem a Senlis. Theobald encontra-se satisfeito por uma tal descendência entrar na nossa família.
Christiana aproximou-se de David junto à muralha. Nas ruas lá em baixo via a actividade febril de um exército preparando-se para partir.
Estava feito, então. Fitou o rosto impassível de David.
- Senhora, o vosso marido permanecerá aqui em Caen - informou o condestável.
O olhar dela alternava entre os dois homens. Havia algo de errado. Pressentia-o.
- Estais a dizer que continuo prisioneira? - perguntou.
- Sois livre de partir. Tratarei de vos arranjar uma escolta até Senlis.
- Então o meu marido é agora um prisioneiro?
- Um convidado. Até os Ingleses desembarcarem. Irá ao vosso encontro nessa altura. Ele não está treinado nas artes da guerra, e esta batalha não lhe diz respeito.
- Prefiro ficar com o meu marido.
O condestável olhou para David. Este não reagiu. O homem mais velho sorriu.
- Como desejardes - disse, e afastou-se, atravessando o telhado e direcção às escadas.
Ela aguardou até ele desaparecer.
- Por que tendes de ficar, David?
- Ele não confia em mim. Receia que lhes tenha mentido, mas a vossa escolha de ficardes comigo tranquilizou-o um pouco.
- Mas de que serve ficardes aqui se o exército partir?
- Theobald conduzirá o exército. Ele já abandonou a casa. Mas o condestável decidiu permanecer em Caen com um pequeno
exército, para estar disponível no caso de Eduardo vir de uma direcção diferente. O camareiro do rei também cá está. Ele concordou que isto seria prudente.
- E o vosso tio concorda com isso?
- Nem mesmo o comte de Senlis se insurge contra o condestável e o camareiro de França. Theobald queria que eu estivesse ao seu lado, para que pudesse presenciar a gloriosa vitória dos Franceses, que ajudei a concretizar. Todavia, o condestável insistiu que ficasse aqui com ele para me ter à sua disposição no caso de eu os ter traído de alguma forma. Ele pensa que eu podia evadir-me do exército durante a viagem, ou que, se fosse caso disso, Theobald não se vingasse no seu herdeiro. - Sorriu. - O condestável não conhece bem o primo.
Ele abraçou-a e encostou a face aos seus cabelos. Ainda observava a cidade. Christiana sentiu nele um conflito de emoções e desejou poder dizer algo para o confortar. A decisão não havia sido fácil, independentemente do prémio que oferecia.
- Por que razão o condestável não confia em vós? Decerto a lógica da vossa escolha deve ser óbvia para ele. É a decisão que qualquer homem tomaria, e até haverá cavaleiros ingleses e lordes que reconhecerão a sua justiça.
- Ele acabou mesmo agora de o explicar. Quase pediu desculpa por isso. Parece que se eu fosse um cavaleiro, não teria quaisquer dúvidas acerca de mim. E o facto de eu ser um mercador e, ainda para mais, um mercador londrino, que lhe causa hesitação.
- Isso é ultrajoso. Pensará ele que os mercadores são menos honrados?
- Sem dúvida, tal como todas as outras pessoas. Ainda assim, de certa forma, ele considera-me um homem íntegro. Disse-me que conheceu muitos burgueses de Londres. Sabe que devemos lealdade em primeiro lugar à própria cidade. Não afirma compreender os homens que juram fidelidade a um lugar em vez de um homem, mas sabe que se passa isso connosco e já viu o seu poder. Ele podia aceitar
que eu traísse Eduardo, mas não Londres. E assim, enquanto ele o camareiro concordam com Theobald que o exército deve mover-se com celeridade, o condestável
ficará aqui a organizar a defesa caso eu lhes tenha mentido.
Um fluxo constante de cavaleiros e soldados a cavalo avançava pela ponte, vindo do outro lado do rio. Percorriam a cidade em direcção à zona sul. Soldados a pé, carroças, e trabalhadores marchavam com eles. As ruas assemelhavam-se a rios coloridos em movimento.
O olhar de David seguiu as filas.
- Devia ter insistido que fôsseis para Senlis, mas receava não conseguir retirar-vos de lá mais tarde. Suspeito que Theobald pode ser muito cruel quando se enfurece. Ainda assim, teria sido mais seguro para vós. O condestável garantiria a vossa segurança, mas há limites para a sua protecção.
- O que estais a dizer, David? Pensais que Eduardo mudou realmente de planos e que o condestável vos culpará de algum forma?
Ele afastou-se do muro e foi até à parte voltada para sul com o braço em redor dos ombros dela. À distância, para lá dos telhados mais baixos, conseguiam avistar o campo onde o exército estava reunido. Na dianteira, com bandeiras azuis e douradas, que não passavam de pequenos pontos aos seus olhos deles, encontravam-se três homens a cavalo.
- Theobald? - perguntou ela.
- Há cinco mil homens aqui com ele - disse, assentindo com a cabeça. - À medida que avançarem para sul, outros se unirão a eles.
- Vão a caminho de Bordéus, então? - perguntou, embora a resposta fosse óbvia. Contudo, necessitava de escutá-la, de modo a poder começar a resignar-se ao futuro que ele havia escolhido para eles.
Desejou sentir alguma alegria, mas sentia apenas um aperto estranho no estômago. Pensou na questão que ele lhe colocara na noite anterior antes de adormecerem, e na sua resposta.
Ele havia compreendido mal. Ela procurara tranquilizá-lo ao dizer-lhe que o amava independentemente do seu grau social, e que o considerara um homem nobre mesmo antes de saber acerca do pai dele.
Em grande parte, ele fez isto por mim, apercebeu-se ela. Para me restituir a vida que este matrimónio me retirou. O comte e o duque começaram a cavalgar. A grande e indisciplinada massa de homens correu lentamente atrás deles.
- Sim. Vão a caminho de Bordéus. - Confirmou.
Havia uma expressão peculiar no seu rosto, e os seus olhos semicerraram-se ao fitar as bandeiras que se afastavam.
- Mas Eduardo não.
Christiana fitou-o de boca aberta. O olhar dele nunca abandonou o campo a sul.
- Fui ao encontro de Eduardo antes de Catherine. Contei-lhe tudo, e ofereci-me para terminar o jogo da forma que o começara. Eu dar-lhes-ia um porto e o nosso exército desembarcaria noutro. Pressionei-o a considerar a Normandia, uma vez que metade do exército francês estava já no sul e, se eu falhasse, ele enfrentaria apenas uma hoste inferior. A sua experiência anterior de navegar para Bordéus já o havia inclinado a mudar de planos, e um cavaleiro normando esteve na corte nestes últimos meses, falando-lhe igualmente das cidades não fortificadas e das estradas desimpedidas.
O olhar dela seguiu o dele. Ainda conseguia ver os reflexos da armadura do comte.
- Eduardo desembarcará na Normandia? Aqui, na costa setentrional? - Sentiu um alívio tremendo, mas com ele veio um pavor medonho por David e pelo destino que ele agora enfrentava.
- Assumindo que ele não se arme em esperto no último momento, o que é perfeitamente possível. Ou que não comece a desconfiar de mim. Catherine deve ter-lhe contado histórias escabrosas da minha duplicidade, mas eu espero que Eduardo saiba o que esperar dela. Eu e Godefrey, o cavaleiro normando, conseguimos fornecer-lhe três portos possíveis, pequenos e resguardados. Ele usará aquele que o vento favorecer.
- O rei sabe acerca de Senlis e daquilo que vos foi oferecido? Se sabe, pode muito bem duvidar de vós. Não compreenderá a vossa opção.
- Contei-lhe tudo. Não podia ter a certeza de que Lady Catherine estivesse envolvida no vosso desaparecimento, ou que ela planeasse trair-me, mas suspeitava. Também não podia ter a certeza de que ela permanecia ignorante relativamente à minha relação com o comte. Fiz bem em ter falado francamente com Eduardo. Quando finalmente consegui deitar mão a Frans, vi as minhas suspeitas confirmadas.
- Então nunca estivestes em perigo em Inglaterra? E podeis regressar? - Assumindo que pudesse sair de Caen com vida.
- Sim.
- Ainda assim, tendo convencido Eduardo a desembarcar na Normandia, podíeis tê-lo traído. Quando foi que tomastes uma decisão?
O olhar dele ainda seguia o fluxo do exército.
- Esta manhã. Cavaleiro ou mercador, dissestes. Apoiei-me nas vossas palavras.
- E se eu tivesse respondido de outra forma? Se eu tivesse dito que queria ser a mulher de um
comte?
- O vosso desejo teria sido cumprido, e aprenderia a viver com a minha consciência. - Olhou para baixo e sorriu. - Suspeito que podia tê-lo justificado. É muito
provável que o poder e o luxo de Senlis consigam ofuscar qualquer culpa. Uma vida dessas tem os seus atractivos. Não vou fingir que não me senti tentado.
- Sacrificastes muito pela vossa cidade e pelo vosso rei, David
- disse Christiana, estreitando-o nos seus braços. - Eduardo deve-vos muito.
- Não me deve nada, Christiana. Vós fostes uma oferta dele para mim. A dívida é toda minha.
O olhar dele regressara ao campo distante. O comte já mal se conseguia divisar. Christiana vislumbrou de novo aquela expressão peculiar no rosto dele, e um lampejo de comiseração surgiu-lhe nos olhos.
Conseguira uma vitória brilhante, uma estratégia ousada e um jogo magnífico, mas não havia nele nenhum sinal de triunfo. Duvidava que aquela reacção contida tivesse algo a ver com o perigo que agora enfrentava. Aconchegou-se mais a ele e procurou consolá-lo.
- com o tempo, ele compreenderá, David. Ele sabe o que é a honra e as escolhas difíceis a que obriga um homem. Pode não vos perdoar, mas compreenderá.
O corpo dele retesou-se à menção do comte e dos laços de sangue que havia traído. Ela tentou de novo.
- David, eu sei que estais a sofrer. Ele é vosso tio...
Os dedos de David vieram repousar sobre os lábios dela, silenciando-a.
- Eu devia ter-vos dito ontem à noite - disse. - Temi a vossa reacção à verdade, e também não sabia se ele ia tentar apurar até onde iam os vossos conhecimentos acerca do assunto. Passei a última hora a interrogar-me se alguma vez vos diria.
Ela franziu o sobrolho, aturdida. Procurou o rosto dele para tentar obter alguma explicação.
- Theobald não é meu tio, Christiana.
As palavras dele assombraram-na. Foram necessários alguns momentos para que as implicações daquela revelação penetrassem na sua mente confusa.
- Sois assim tão astuto, David? Tão audacioso? Encontrastes um homem com quem vos pareceis minimamente e construístes este esquema elaborado? Contastes-me esta história de modo a que eu pudesse apoiar-vos com convicção caso fosse questionada?
A expressão peculiar de comiseração passou de novo pelo rosto dele.
- É muito pior do que isso - respondeu, abanando a cabeça.
- Theobald não é meu tio - prosseguiu, lançando um olhar ao homem que agora não passava agora de uma pequena mancha e que ia sendo engolido pela luz do sol e pela neblina. - É meu pai.
Christiana perdeu a noção do tempo que permaneceram ali com as palavras dele ainda suspensas no ar, mas quando ele falou de novo, os últimos soldados do exército estavam nesse momento a sair da cidade.
- Ele nem sequer se recordava do nome dela. Permaneciam encostados ao muro do telhado e David apoiou
nele os seus braços. Lançou um olhar para sul, mas agora sem se fixar em nenhum ponto em especial.
- Seduziu-a, aceitou o amor dela, deixou-a de esperanças e destruiu-lhe a vida. Eu uso o nome da minha mãe, mas este nada significa para ele. Tanto ele como Honoré haviam estado em Londres algumas vezes durante a juventude, e ele presumiu que eu tivesse sido o produto de algum dos devaneios do irmão. Foi o escárnio final à confiança eterna de Joanna.
Ela falou mais para o confortar do que para defender Theobald.
- Isso foi há trinta anos. Quando tiverdes cinquenta e cinco anos, pensais que conseguireis recordar-vos dos nomes de todas as mulheres com quem vos deitastes?
- Sim, de todas elas.
- Talvez só porque ele não o conseguiu. Ele pareceu não escutar aquelas palavras.
- Havia dois anéis, um cinzento e um cor-de-rosa. Ele presumiu que eu tinha o de Honoré, o cinzento, e nunca me pediu para o ver. Em Hampstead, ele olhou para mim e só viu o irmão.
- Conhecia o rosto do irmão melhor do que o seu. com que frequência vemos reflexos nítidos de nós próprios em vidro e metal? Ela não significou nada para ele. Era apenas uma rapariga bonita com quem ele se divertiu durante alguns momentos. Não passava da filha de um mercador que não tinha qualquer importância na vida de um filho de Senlis.
Ela não sabia o que dizer. David assistira ao sofrimento e à espera paciente de Joanna. Vivera na sombra da desilusão da mãe. Observara o mestre que ele admirava amá-la em vão. Duvidava que a sua fúria em relação a Theobald pudesse ser mitigada com palavras.
- Por que não lhe dissestes a verdade? Por que razão deixais que ele pense que sois sobrinho dele?
- Em Hampstead, quando me apercebi do engano dele, fiquei abismado. Fora isso, o meu plano tinha-se desenvolvido na perfeição. Na altura, disse a mim mesmo que corrigi-lo poderia complicar as coisas. Pelo que me era dado saber, ele podia ressentir-se do súbito aparecimento de um filho bastardo, ou até pensar que eu procurava vingança contra ele. Mas, na realidade, era a minha própria determinação que eu questionava. Encontrar-me com ele foi muito mais doloroso do que pensava. Tencionara desprezá-lo completamente. E de repente, ali estava ele. E subitamente, obtive as respostas às imensas questões não expressas que carregara na alma durante toda a minha vida. As respostas eram principalmente desagradáveis, mas, pelo menos, tinha-as. - Exibiu um sorriso triste. - A ligação e a familiaridade foram imediatas. Inesperadas e assombrosas. Se ele me tivesse reconhecido como sendo descendente dele, e tivesse falado comigo de pai para filho, eu não sei o que teria feito. Por isso, permiti o engano.
Ele não precisava de lhe ter dito isto. Ela jamais saberia ou teria suspeitado.
- Por isso, Christiana, desposastes um homem que atraiu o próprio pai para o descrédito e que o atraiçoou. É um crime grave em qualquer família, especialmente nas famílias nobres.
Ele procurou os olhos dela em busca de uma expressão de censura ou decepção. Ela soube que ele só encontraria entendimento e amor.
Pensou na comiseração que vira nele e o seu coração compadeceu-se dele.
- Estais arrependido? Ao vê-lo afastar-se, teríeis alterado as coisas?
- Só por vós teria agido de uma forma diferente e alterado o curso das coisas. Por ele, nunca. Desejaria poder dizer que lamento ter iniciado isto, mas não sou capaz. Sou o que sou, minha menina, e uma parte de mim, a parte de Senlis, está satisfeita por eu ter vingado um pouco a minha mãe.
- Odiais o vosso pai, David?
- Seria como odiar-me a mim mesmo - respondeu, sorrindo e abanando a cabeça. - Mas também não sinto afeição por ele. Theobald pode ter-me dado a vida, mas o único pai que alguma vez conheci e amei foi David Constantyn.
Ele pegou-lhe na mão e afastou-se do muro.
- E agora, David?
- Agora tenho de pensar na vossa segurança - respondeu, olhando em redor do telhado como se estivesse a inspeccioná-lo.
- O perigo que me espera da parte do comte de Senlis - disse, com um largo sorriso - não é nada comparado com o que Morvan Fitzwaryn me fará se eu deixar que algo de mal vos aconteça. Penso que deveis pedir à encantadora Heloise que me mostre a casa toda. Dizei-lhe que sinto curiosidade em saber como vivem os burgueses mais abastados de Caen.
David e Christiana fizeram o seu passeio pela casa. David examinou tudo sem subtilezas e com elogios efusivos, e Heloise resplandecia de orgulho com o apreço deste belo mercador londrino. Christiana foi da opinião de que ele exagerou um pouco, mas os seus
elogios prolongaram a tarde e deram-lhe a oportunidade de examinar todos os quartos e arrecadações, todas as janelas e cavalariças. Ele mostrou-se especialmente fascinado com um sótão no topo do edifício principal. Repleto de fazendas, sedas e outros tecidos dispendiosos, o único acesso era através de um lanço de escadas estreito ao longo da parede interior.
Finalmente, deixaram Heloise no salão e encaminharam-se para o jardim.
- Não parece haver nenhuma saída a não ser pelo portão principal, a não ser que se encoste uma escada ao muro - disse David.
- Era disso que andáveis à procura? Eu podia ter-vos dito isso. Há uma saída, mas precisamos de uma corda - começou a conduzido na direcção da árvore. Sorriu perante a solução simples. David escaparia, ela juntar-se-ia a ele, e depois... o que aconteceria? Correriam para a segurança, para Eduardo e para o seu exército. Até onde iria o poder do comte se este procurasse vingança? Talvez deixassem tanto Inglaterra como França para trás e partissem para Génova.
À medida que se aproximavam do canto do jardim, o coração dela afundou-se. Onde outrora estivera o imponente carvalho, encontraram apenas o seu coto.
- Fugi por aqui uma semana antes da vossa chegada - explicou ela. - Theobald apanhou-me. Deve ter ordenado o seu abate depois disso.
- Não tem importância. Duvido que tivéssemos conseguido atravessar a ponte.
Ela procurou consolo nos seus braços.
- Quanto tempo falta? - perguntou corajosamente, abordando o assunto que evitara. - Quando é que Eduardo desembarca?
- Pelos meus cálculos, daqui a cinco ou seis dias.
- Tendes de fugir. Não podeis estar aqui quando descobrirem. Esta noite, eu distraio os guardas no portão principal e vós...
- Não partirei sozinho.
- Então temos de descobrir uma forma - exclamou desesperadamente.
- Se existir, hei-de encontrá-la. Mas penso que está fora das nossas mãos. Quem sabe? Quando o exército inglês começar a pilhar
a Normandia, o condestável e o camareiro estarão tão ocupados a organizar a defesa que se esquecerão de mim.
Ele pronunciou aquelas palavras com tanta leveza que ela teve de sorrir. Mas não acreditava que aquilo acontecesse, e sabia que ele era da mesma opinião.
Quando despertou numa cama vazia na quarta-feira de manhã após a partida do exército, lançou um manto sobre os ombros e foi à procura dele. Descobriu-o no telhado, olhando para oeste. A luz da alvorada acabara de despontar, e a cidade ainda surgia como um conjunto de formas cinzentas aos pés deles. Apesar da tranquilidade, o ar parecia carregado de uma estranha plenitude, como se estivesse a formar-se uma tempestade algures para lá do límpido horizonte.
Aproximou-se dele. Os olhos azuis de David voltaram-se para ela, e depois voltaram a estudar o campo para lá do rio.
- Olhai ali - disse ele. - A aproximar-se da ponte.
Ela esticou-se para poder ver. A luz do dia ia-se tornando mais forte e, pelo campo, ao longo da margem oposta do rio, movia-se uma vasta sombra. Ela ficou a observá-la e depois a sombra desfez-se em pedaços e os pedaços converteram-se em pessoas. Centenas de pessoas.
Moviam-se com celeridade, transportando sacos e conduzindo animais. O sol começava a nascer e ela viu que a multidão incluía mulheres e crianças. Provinham dos edifícios do outro lado do rio, passavam pela abadia construída por Guilherme, o Conquistador e pela sua esposa Matilda, e depois começavam a amontoar-se na extremidade mais afastada da ponte, clamando para entrarem na cidade.
- Quem são eles?
- Camponeses. Burgueses. Sacerdotes. São refugiados em fuga do exército de Eduardo.
Os guardas acorriam para reforçar a vigília na ponte. A multidão de refugiados fundia-se e os seus brados elevavam-se. Na margem de cá do rio, dois homens a cavalo atravessaram as ruas desertas em direcção à casa do presidente da Câmara.
- O exército está próximo daqui? - perguntou ela.
- Presumo que esteja a apenas algumas horas de distância.
- Vem para cá? Para Caen? Devíeis ter-me dito, David. Não me teria preocupado assim tanto.
- Não podia ter a certeza. Em Abril, por acidente, encontrei um porto na península do Cotentin, mesmo a oeste. Eu e Sieg esperámos lá que os navios ingleses passassem antes de me encontrar com Theobald aqui em Caen. Durante a tempestade, um navio mercante foi empurrado para terra na direcção da cidade costeira onde aguardávamos. Aproximou-se cerca de cem metros da costa e não encalhou. O mar deve ter alterado a costa ao longo dos anos e o porto deve ter ficado mais profundo. Era perfeito para o desembarque das tropas. Ainda assim, os ventos podiam ter levado Eduardo mais para este, para um dos outros portos que descobri anteriormente.
- Não quisestes dar-me falsas esperanças - disse ela.
- Não quis dar-vos mais preocupações, querida.
- Preocupações? Isso são boas notícias! Eduardo obterá a vossa libertação. A nata da cavalaria inglesa vem em vosso salvamento disse ela com um sorriso.
- Se a cidade se render, pode suceder dessa forma.
- É evidente que a cidade se renderá. Não há outra hipótese.
- Londres não se renderia.
- Londres tem muralhas.
- Espero que estejais certa.
- O que se passa, David? O que vos preocupa?
Mas antes que ele pudesse responder, a resposta surgiu no telhado nas pessoas de dois cavaleiros do séquito do condestável.
CAPÍTULO 22
David caminhava em círculos pela pequena arrecadação. O espaço tresandava ao arenque armazenado nos barris empilhados contra uma das paredes. Uma pequena vela iluminava o compartimento sem janelas, e ele procurou calcular a passagem do tempo através da sua lenta diminuição.
Tinha sorte por ainda estar vivo. Depois de o ter confrontado no salão com a sua traição, o condestável resistira com dificuldade à vontade de o trespassar com a sua espada. O pânico e a confusão provocados pela aproximação do exército inglês haviam-lhe salvo a vida. O salão estivera num rebuliço enquanto o condestável e o camareiro procuravam organizar a defesa da cidade ao mesmo tempo que os seus escudeiros lhes atavam as correias das armaduras. Havia sido enviada uma mensagem para leste e para sul, apelando ao exército de Theobald e invocando a população geral para que se reunisse e lutasse contra esta invasão. David havia sido feito prisioneiro neste compartimento e aguardava o enforcamento após ter sido afastada a ameaça mais premente.
Antes de o levarem, havia tentado convencer o condestável e o camareiro do rei a não resistirem a Eduardo. Dissera-lhes que o exército inglês ascendia a pelo menos vinte mil homens, enquanto o condestável teria, na melhor das hipóteses, uns trezentos ainda em Caen. Recordou-lhes que a rendição pouparia as pessoas da cidade, e apenas significaria a perda da propriedade. Apenas o presidente da Câmara lhe dera ouvidos, mas a decisão não havia sido dele. O rei
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francês exigira ao condestável dEu que travasse o avanço de Eduardo, e o condestável tencionava lutar pela honra de França apesar das desvantagens. Caen não se renderia nem pediria acordos.
Esforçou-se por conseguir escutar os sons que atravessavam a espessa parede da cave. A casa havia sossegado e a actividade mais distante apenas lhe chegava como um ruído surdo e prolongado. A verdadeira batalha seria combatida na ponte. Se a cidade conseguisse manter o controlo desse único acesso, o rio revelar-se-ia mais formidável do que qualquer muralha.
Pelo bem de Christiana, ele tinha esperança de que a ponte aguentasse. Se a cidade caísse, ela não estaria a salvo dos soldados ingleses que pilhariam aquela rica cidade. Duvidava que eles escutassem as suas reivindicações de ser inglesa, tal como também não o escutariam a ele quando arrombassem a porta da arrecadação para pilharem os bens que ela continha. Fez uma careta perante ironia da situação. Sem dúvida, morreria hoje, mas se vivesse o tempo suficiente para ser enforcado, se Eduardo falhasse a conquista desta cidade, pelo menos Christiana estaria a salvo.
Deu murros à parede numa frustração furiosa por não poder ajudá-la. Havia sido enviada para junto de Heloise e das outras mulheres no momento da sua detenção. Debatera-se contra os soldados que a arrastavam. Esses cavaleiros não haviam regressado, e ele tinha esperança que eles guardassem o quarto onde as mulheres aguardavam. Pelo menos, teriam alguma protecção.
Ergueu a vela e voltou a estudar a sua minúscula prisão. Desejava que contivesse algo mais para além de arenque seco, e não só por causa do odor. Quem quer que derrubasse a porta daquele compartimento matá-lo-ia só pelo ressentimento de não encontrar nada de valioso depois de tamanha canseira.
Como que a ecoar os seus pensamentos, um som junto à porta reclamou a sua atenção. Todavia, não era o estrépito de um martelo ou o malhar de um aríete. Era o som mais subtil de metal sobre metal.
Talvez Eduardo tivesse decidido avançar. Afastou-se para a outra extremidade do compartimento e observou enquanto a porta se abria. No limiar, com o rosto pálido como um fantasma, surgiu uma macilenta Heloise. Christiana mantinha-se atrás dela, segurando a longa adaga de aço de David junto à garganta da jovem loira.
- Ela sabia que era a única coisa sensata a fazer, David, mas como não passa de uma daquelas mulheres que se limita a obedecer ao marido, tive de a encorajar - declarou Christiana. Voltou a colocar a adaga na bainha à sua cintura.
Heloise parecia prestes a desmaiar e apoiou-se contra a parede.
- O que aconteceu? - perguntou David.
- Conquistaram a ponte - explicou Christiana. O medo que ela procurava corajosamente ocultar espelhava-se no seu rosto. Os cavaleiros que nos protegiam partiram há muito tempo. O nosso exército está por toda a cidade, como um enxame. Está a acontecer como dissestes. Na vitória estão a carregar tudo o que conseguem. O povo está a lançar-lhe bancos e pedras a partir dos telhados à medida que eles passam, e isso está atrasar o seu avanço, mas não muito.
- Não resta ninguém - exclamou Heloise. - O portão está guardado apenas por alguns moços de estrebaria e criados. Quando a ponte caiu, os soldados partiram, alguns para lutarem nas ruas, outros para fugirem.
Christiana aproximou-se dele e falou suavemente.
- Ela queria levar as filhas e fugir também, mas eu convenci-a que era melhor esconder-se atrás destas paredes do que na cidade. Não são as muralhas de um castelo, e não impedirão o exército durante muito tempo, mas os soldados estão a matar todas as pessoas que encontram. Mesmo do telhado deu para ver muita gente a cair.
Ele fitou-a directamente nos olhos e apercebeu-se plenamente do perigo que ela enfrentara.
- Fizestes bem em soltar-me, madame - disse de uma forma tranquilizadora. - A sorte sorriu-me sempre, talvez ela seja igualmente generosa connosco hoje. - Afastou a mulher da parede.
- Partamos e avaliemos a nossa situação.
No pátio, aguardavam-nos más notícias. Os criados que guardavam o portão haviam fugido, e a entrada mantinha-se aberta para a rua. À distância ouviam-se os brados de uma cidade a ser saqueada.
David apressou-se a fechar e a barrar o portão. Nesse preciso momento, surgiu um grupo de seis mulheres. Pareciam ser mulheres de burgueses e lançaram-se nos braços de Heloise.
- Aquele diabólico rei inglês ordenou que todos perecessem pela espada - bradou uma delas. - Estão a despojar os corpos das
suas roupas e a cortar os dedos para furtarem os anéis. Violam as mulheres e depois cortam-lhes a garganta.
As outras mulheres juntaram-se a ela com descrições histéricas dos horrores que haviam presenciado. David barrou o portão e lançou um olhar pelo pátio. Christiana estava certa. Estas paredes não eram muralhas de um castelo e marcavam a casa como sendo a um de um mercador abastado. Chegaria o momento em que alguns soldados decidiriam derrubar o portão ou escalar os muros. Mas estavam mais seguros cá dentro do que lá fora na cidade.
Christiana mantinha-se de lado, escutando as histórias de mutilação e destruição com um rosto pálido. Os sons da pilhagem do exército aproximavam-se cada vez mais.
David dirigiu-se a ela e abraçou-a.
- Recordais-vos do sótão situado acima dos quartos? Aquele cujo acesso se faz pelas escadas estreitas? Levai-as para lá.
- E vós?
- Irei lá ter em breve. Parece que afinal sempre vou precisar daquela armadura. Nunca pensei usá-la contra os Ingleses. Parece que no final o meu pai sempre terá a sua vingança. É irónico que a minha traição para com ele vos tenha colocado a vós em tão grande perigo.
- Não vos culpeis por isso. Não fostes vós que me trouxestes para cá - respondeu, instintivamente consciente da culpa que pretendia subjugá-lo.
- Ainda assim, estais aqui - disse, hesitante, não querendo falar do horror que os ameaçava. - Se eles vierem, deixai-os saber quem sois. Falai apenas em inglês. Reclamai a protecção do vosso irmão e do rei.
- Não terá qualquer importância - disse ela, voltando-se para o grupo de mulheres ali perto. - Já assisti a isto antes, em Harclow. Havia começado antes de partirmos. O meu irmão aceitou a derrota e uma possível morte para salvar a minha mãe daquilo que enfrentamos hoje.
Aproximou-se das mulheres e explicou-lhes a situação. Gratas por receberem algumas instruções que, pelo menos, ofereciam esperança, rodearam-na enquanto ela liderava o caminho até ao edifício mais elevado e ao quarto do sótão.
David seguiu-as mas desviou-se para o quarto que partilhara com Christiana. Colocou a couraça da armadura sobre os ombros e depois ergueu as peças para os braços. Reflectia se, com a armadura e com as armas, conseguiria, sozinho, conduzir Christiana pelas ruas da cidade. Abanou a cabeça. Não possuía justilho que o identificasse como parte do séquito inglês de um barão, e o seu escudo não exibia um brasão que estes soldados reconhecessem. Considerá-lo-iam francês. Fosse como fosse, não seria capaz de abandonar todas aquelas mulheres e raparigas, nem Christiana o permitiria. Na morte, pelo menos, podia ser o marido que ela merecia. Pegando na espada com a outra mão, abriu caminho até às escadas e ao lugar onde se encontravam as mulheres escondidas.
Christiana tinha já posto as mulheres a trabalhar. Pelo chão viam-se extensões de tecido, e elas usavam a adaga dele para o retalharem.
- O que estais a fazer? - indagou poisando a armadura.
- Bandeiras - disse ela. - A branca e a verde de Harclow. As cores de Thomas Holland, as de Chandros e as de Beauchamp. Iremos dependurá-las nas janelas. Quem sabe, poderão atrair alguém que nos possa ajudar.
Lançou um olhar à armadura e aproximou-se dele.
- Eu faço isso - disse, e os seus dedos começaram a apertar as correias e as fivelas.
Demorou algum tempo até conseguir encaixar a armadura completa, e ele nem sequer tinha as placas das pernas. Depois de apertar todas as correias, Christiana desamarrou
a bainha da sua cintura e entregou-lha, depois recuperou a adaga das mãos das mulheres.
David fitou durante um momento a longa extensão da arma afiada. Os seus olhos encontraram os de Christiana.
- Não me servirá de nada contra homens armados - disse ela, fazendo-a deslizar pela bainha em redor da cintura dele. - E nem sou suficientemente corajosa para a usar noutros ou em mim.
As mulheres abriram as janelas e ostentaram as bandeiras. A brisa estival carregava os sons dos gritos de morte. Quando fecharam as janelas para prenderem as bandeiras,
ressoou no espaço confinado o som de uma grande pancada contra o portão da rua. O estrondo sobressaltou-os a todos e deixou-os no mais completo silêncio.
No compartimento pairava um odor amargo: o odor do medo dos seus ocupantes. David lançou um olhar às oito mulheres e às três raparigas. Os rostos eram agora praticamente invisíveis, no quarto obscurecido pelos panos nas janelas. Afastou Christiana para um dos lados e voltou as costas às outras mulheres.
Segurou o rosto dela entre as mãos e fechou os olhos para saborear a suavidade delicada dos seus lábios. Invadiu-o uma ternura angustiante, e o medo palpável de Christiana despedaçava-o.
- Quando eu for a Génova este ano, ireis comigo - disse ele.
- Depois disto, atravessar os Alpes parecerá algo de pouca monta. Passaremos os meses frios em Itália e viajaremos para Florença e Roma.
- Gostaria muito - sussurrou ela. - Talvez possamos atravessar o mar até terras sarracenas, e fazer amor numa tenda no deserto.
Ele beijou-lhe os olhos fechados e sentiu nos lábios o sabor das lágrimas salgadas que brotavam deles.
Os sons inconfundíveis do portão a ceder soaram no interior do compartimento.
- Olhai para mim, Christiana - disse ele. As suas pálpebras ergueram-se lentamente e ele fitou aqueles diamantes líquidos e deixou-a ver o amor que lhe ia na alma. Ela sorriu de uma forma corajosa e desolada e esticou-se para o beijar.
Os brados e o clamor de homens a entrarem pelo pátio ecoaram em redor deles. Christiana ergueu a espada e entregou-lha. Por trás dele, o quarto no sótão estava mergulhado no mais absoluto silêncio. As mulheres há muito que haviam ultrapassado a histeria. As filhas mais jovens de Heloise fitavam-no com um olhar arregalado e solene.
com um último olhar à sua bela esposa, David abriu a porta e tomou uma posição ao cimo das escadas estreitas.
O ruído primitivo de devastação e pilhagem encheu o edifício. David mantinha-se tenso no seu posto, com a espada encostada à parede ao seu lado, e aguardava que os soldados descobrissem finalmente a passagem que conduzia a estes degraus e a este sótão.
A porta atrás dele havia sido fechada, mas não podia ser barrada do lado de dentro. Assim que ele tombasse, não haveria qualquer protecção para Christiana e para as outras mulheres.
Há cerca de uma hora que andavam ocupados com os quartos de dormir, o salão e as arrecadações do piso inferior, portanto já não deviam tardar.
Se tivesse sorte, talvez os homens que haviam entrado não fossem muitos e tivessem fechado o portão de modo a guardarem só para si o rico espólio da casa do presidente da Câmara. Se ele tivesse mais sorte ainda, talvez não houvesse nenhum arqueiro entre eles. Se a Fortuna realmente o favorecesse, talvez surgisse alguém com autoridade suficiente para garantir a casa do presidente da Câmara para prazer e desfrute do rei.
Interrogava-se se haveria cavaleiros entre eles, e se adiantaria apelar à cavalaria.
Não conseguia avistar o fundo das escadas, pois estas erguiam-se na parte lateral do edifício até um patamar antes de descreverem uma curva ao longo da parede das traseiras, para junto dele. Mas escutava a agitação febril lá em baixo. E o grito de um dos homens para os seus amigos quando as descobriu.
Subiram os degraus apressadamente, repletos de entusiasmo enquanto faziam descrições das roupas, jóias e pratas que já haviam encontrado. Pelo seu discurso, dava para perceber que não eram cavaleiros. Aguardou.
Seis homens passaram a curva do patamar. Começaram a subir. O primeiro havia atingido o sétimo degrau a contar do topo quando finalmente repararam nele. Seis cabeças olharam para cima com surpresa.
- Quem sois?
- Um inglês, tal como vós. Um mercador londrino.
- Não tendes aspecto de mercador.
- Nenhum de nós hoje age como de costume ou tem o aspecto de sempre. A guerra faz isso às pessoas.
Todos esticavam o pescoço para conseguirem ver.
- O que está atrás dessa porta, mercador?
- Tecido comum e de pouco valor.
- Ele mente - disse o líder. - Estas escadas estão escondidas. Este é o compartimento que possui especiarias e ouro.
- Juro-vos que não há especiarias nem ouro neste compartimento.
- Afastai-vos e deixai-nos ver.
- Não.
Mais sons de passos nos degraus. Mais rostos se uniram aos primeiros. A fila de homens contornava a curva e desaparecia do seu campo de visão. David observava as longas adagas e espadas enquanto eles passavam a palavra de que o ouro e as especiarias os aguardavam lá em cima.
O homem mais próximo examinava-o atentamente, avaliando-o, tentando decidir se a armadura indicava uma perícia superior. Os estreitos degraus significavam que não podiam atacá-lo todos ao mesmo tempo e o primeiro a fazê-lo podia muito bem morrer.
Os homens na longa fila começaram a dar encontrões e cotoveladas uns aos outros. Uma cabeça ruiva moveu-se entre eles, impulsionando-se para a frente.
- Afastai-vos! - comandou uma jovem voz.
Os outros comprimiram-se para deixarem o jovem passar e este galgou os degraus até junto do primeiro homem. Um escudeiro, pensou David, a avaliar pela sua juventude e libré. Teria talvez vinte anos de idade. Separado do seu amo e gozando de poder e estatuto neste inferno em que Caen se havia convertido.
O escudeiro lançou um olhar à espada de David e desembainhou
a sua.
- Nós rebentámos com aquele portão. Este espólio é nosso disse.
- Como estou no primeiro degrau, é óbvio que cheguei antes de vós - replicou David.
Uma agitação de lamentos e injúrias ressoou pela escada acima. Os homens lá atrás começaram a exigir que David fosse liquidado de modo a poderem chegar ao ouro.
David lançou um olhar ao escudeiro e ao homem ao seu lado. Os brados elevavam-se e ecoavam pelas escadas. O rosto de ambos os homens endureceu à medida que os seus camaradas os incitavam a agir. David observava e aguardava, estudando a determinação deles, preparando-se para o ataque.
Será o mais jovem, pensou com pesar.
O jovem ruivo lançou-se subitamente pelas escadas acima, erguendo a longa espada. A mão de David deslocou-se até à cintura. Antes de o jovem ter tido tempo de galgar dois degraus o seu corpo endireitou-se com uma sacudidela. Os seus olhos fitavam, em choque,
a adaga de aço cravada na sua garganta. Depois o corpo tombou, bloqueando as escadas.
A multidão de soldados fez uma pausa colectiva, e depois os gritos e pragas redobraram-se. David procurou alcançar a espada.
Reparou no inexorável avanço da multidão, como se mais homens se tivessem unido aos existentes e todos eles fossem impelindo os outros para cima. Os homens da frente começaram a ser empurrados. Mãos estenderam-se e afastaram o escudeiro do caminho. O odor acre daquela ânsia por sangue pairava no espaço confinado. David permitiu que o sangue implacável de Senlis fluísse nas suas veias para lhe conceder a sua força fria.
E depois, subitamente, começou a fazer-se silêncio a partir da retaguarda. Os homens no patamar olharam para trás de si e depois uns para os outros. As pessoas comprimiam-se contra a parede, para se desviarem do caminho.
De súbito, David avistou a figura alta e o cabelo negro de um cavaleiro usando a libré do rei.
Uns olhos escuros e ferozes fitaram David com um lampejo de surpresa e divertimento. Sir Morvan aguardava calma e silenciosamente que os soldados diante de si compreendessem que pretendia passar. Empurravam-se uns aos outros, apontavam e abriam caminho para ele. Morvan subiu lentamente os degraus até chegar junto do escudeiro tombado. Olhando para David, baixou-se descontraidamente, retirou a adaga e o sangue começou a correr do ferimento. Limpou a arma ao seu justilho e juntou-se a David diante da porta.
- Este é o problema das adagas - disse-lhe delicadamente enquanto lha entregava - Assim que a lançamos contra alguém, ficamos desarmados. - O seu olhar recaiu sobre a armadura de David. - É aço do bom. É alemão?
- Flamengo.
- Não deveríeis estar em Inglaterra? Em Northumberland, não era?
- Outros assuntos trouxeram-me até aqui.
- E a minha irmã?
- Encontrei-a. Não estava com Percy.
Alguns dos homens começaram a murmurar em voz alta algo acerca de os cavaleiros ficarem sempre com a parte melhor para eles.
Morvan limitou-se a bocejar enquanto desembainhava a sua espada e os murmúrios cessaram.
- Estais numa péssima posição aqui - observou.
- Sim. Ainda bem que aparecestes. Morvan encolheu os ombros.
- Assim que a ponte cedeu, terminou a diversão. A violação e a pilhagem não me atraem, por isso decidi vir até esta casa que ostenta as cores de Harclow. - Lançou um olhar à porta. - Seja lá o que for que estais a guardar, não vale a vossa vida. Desviai-vos e permiti que estes homens o pilhem. Não podem ser controlados depois de terem sentido o odor do saque e saboreado o sangue. Eu e Thomas Holland passámos as últimas horas procurando impedir que as mulheres e as crianças fossem assassinadas ou desonradas.
- Não posso desviar-me.
- É só uma questão de tempo até eles encontrarem um arqueiro. É ouro a sério, como dizem lá em baixo?
David abanou a cabeça e com um gesto indicou-lhe a porta. Morvan abriu uma fenda, espreitou lá para dentro e retesou-se. Franziu o sobrolho e espreitou novamente. Os seus olhos voltaram-se para David enquanto fechava a porta.
- Dizei-me que a mulher que avistei ali dentro entre todas as outras não é a minha irmã.
- Se insistis. Não era a vossa irmã.
Morvan resmungou entre dentes, abriu a porta mais uma vez e fechou-a bruscamente.
- Diabos me levem! O que está ela aqui a fazer?
- A visitar amigos meus nesta cidade. Quem é que estava à espera que o nosso exército viesse saqueá-la?
- Assim que a tirar daqui, vou matar-vos.
- Se a conseguirdes retirar daqui, podeis fazê-lo - disse, com um gesto na direcção dos homens.
As lamentações impacientes e os murmúrios haviam regressado. David suspeitava que estivessem a elaborar-se planos.
- Quantos são?
- Vinte. Trinta - respondeu Morvan, encolhendo os ombros.
- Quantos ao certo? Diria que faz uma grande diferença.
- Dificilmente - respondeu Morvan com um sorriso sarcástico. - Vinte contra dois, ou trinta contra dois, é a mesma coisa.
É inútil. Eu sou muito bom, David, mas não tanto assim, e a minha libré do rei só os deterá durante mais algum tempo.
Ainda assim, voltou-se para as escadas e avaliou a sua posição para a batalha. com um suspiro de exasperação, alcançou o punho da espada de David e deu-lhe um safanão de modo a que a arma ficasse voltada para cima e não para baixo. - Tendo em conta a forma como manejais uma espada, o mais provável é serem vinte ou trinta contra um e meio. O melhor é ficardes do meu lado direito, o lugar onde posicionamos os jovens escudeiros.
Nessa altura, um estremecimento sacudiu as escadas. Repetiu-se uma e outra vez e era acompanhado por uma série de grunhidos. Os homens no patamar inferior voltavam-se para trás com os olhos arregalados e depois tentavam desaparecer junto à parede. De súbito, surgiu um corpo maciço e um rosto áspero de feições grosseiras abriu um enorme sorriso na direcção de David.
- Corrijo-me a mim próprio - disse Morvan num tom seco.
- Trinta contra dez.
- Já, mas foi um inferno encontrar-vos, David - disse Sieg enquanto subia as escadas na direcção deles. Dois homens cometeram o erro de não se afastarem suficientemente depressa. Sieg ergueu-os calmamente pelo pescoço, esmagou as suas cabeças uma na outra e depois deixou-os tombar. - Em primeiro lugar, dirigi-me ao castelo na outra margem do rio, mas o bispo que está a tomar conta dele tem-no encerrado com a um caixão. Tentei a Câmara Municipal onde o rei se instalou, depois pensei, raios, talvez ela estivesse prisioneira na casa do presidente da Câmara.
A indignação perante a forma como Sieg acabara de agir provocou afoiteza nalguns dos homens. Atrás de si foram brandidas algumas facas reluzentes. Sem se desequilibrar, Sieg voltou-se para trás e, com a sua mão enorme, agarrou no tolo mais próximo e esmagou a cabeça do homem contra a parede de pedra.
- Oliver está convosco?
O sueco riu-se e desembainhou a espada para silenciar as ameaças que se formavam lá em baixo contra ele. O seu rosto resplandecia perante a perspectiva de lutar contra todos estes homens.
- Perdi-o nas ruas. Todas estas casas abertas e todos estes bens à disposição foram mais fortes do que ele. Disse que era uma pena não estardes com ele. Tal como nos velhos tempos, disse.
Morvan ergueu um sobrolho perante esta conversa. David sorriu e encolheu os ombros.
- Ainda precisamos de alguma ajuda para retirar daqui estas mulheres - disse Morvan. - Agora que o vosso homem está aqui, vou em busca de mais alguns. Protegei-me com essa adaga, David.
Exibia uma expressão mais perigosa agora ao partir do que quando chegara e ninguém o desafiou.
- Conseguiram passar alguns mensageiros para avisarem o comíe? - perguntou David após a partida de Morvan.
- Não. Eu e Oliver permanecemos algumas milhas abaixo na estrada para sul, tal como dissestes. Eles vieram direitinhos a nós. Quando o rei enviou alguns homens para impedirem a passagem das notícias até ao exército francês, saímos dali finalmente e entregámos-lhes os mensageiros. O comte só saberá do desembarque de Eduardo daqui a muitos dias. - Fez um gesto com a espada e declarou: Agora vou fazer desaparecer estes homens.
- Procurai não os matar a todos. É suposto eles estarem do nosso lado.
Sieg desceu dois degraus de modo a poder pôr-se de pé sem se baixar. Ergueu a adaga na mão esquerda e a espada na direita, fitou furiosamente os homens que o observavam e emitiu um primitivo grito de guerra viking.
A constatação de que um cavaleiro do rei havia partido para ir buscar ajuda subjugara já os soldados. A exibição da força de Sieg desencorajou a maior parte deles. As cabeças começaram a oscilar e a virar-se à medida que os homens se voltavam e procuravam comprimir-se para descerem as escadas.
Quando Morvan regressou com Thomas Holland e dois outros amigos, a maior parte dos soldados já havia desaparecido.
David abriu a porta e conduziu-os para dentro do sótão. Uma onda de alívio percorreu as mulheres quando viram a salvação entrar pela porta. Algumas desataram num pranto, dando largas aos sentimentos contidos. Chnstiana correu para os braços de David.
- Graças a Deus estais bem! Salvastes-nos a todas, David!
- Foi a vossa bandeira quem vos salvou, minha querida. Parece que pilhar cidades aborrece o vosso irmão, e veio investigar as vossas cores.
- Morvan! - exclamou, voltando-se com surpresa para os cavaleiros. - Thomas!
Morvan avançou furtivamente e aceitou o abraço da irmã. Sobre o ombro, lançou um olhar perigoso a David. Christiana recuou a tempo de ver aquele olhar.
- Não vos atreveis, Morvan. Ele salvou-me, assim como a todas nós. Os cavaleiros e os soldados franceses abandonaram-nos e ele colocou a vida dele entre nós e o perigo. Não podíeis ter agido melhor do que ele.
A expressão de Morvan suavizou-se enquanto fitava a irmã.
- Se é como dizeis, então desta vez não o mato.
- O melhor que temos a fazer é levá-las para junto de Eduardo. Não estarão seguras em mais lado nenhum. Mas é complicado. E esta cidade... - disse Thomas Holland.
David leu a sua expressão e preocupação.
- Mantê-las-emos entre nós. Christiana, reuni as mulheres e explicai-lhes o que vamos fazer. Depois dizei-lhes para manterem os olhos baixos enquanto caminharmos.
Ela assentiu e dirigiu-se em primeiro lugar a Heloise e às suas filhas. David chamou Sieg com um gesto.
- Ireis com a mais jovem - disse. - Mas atenção: ela não pode ver os corpos.
Enquanto Christiana explicava às outras mulheres o que ia acontecer, David aproximou-se de Heloise. Não se havia movido desde que eles haviam entrado e encontrava-se sentada sobre uma pilha de tecidos com um aspecto extenuado e entorpecido. As mãos seguravam algo e sobre a sua saia pendia um objecto de um brilho enfraquecido.
Heloise ergueu o olhar para ele. As suas mãos abriram-se para revelar um colar de ouro e esmeraldas.
- Pensei que, se fosse caso disso, talvez pudesse comprar a segurança das minhas filhas.
- Elas estarão em segurança agora, madame. Estou certo de que o vosso marido também está a salvo. Provavelmente será levado para Inglaterra à espera de resgate como os restantes burgueses abastados, mas não há qualquer lucro em assassiná-los.
- Por favor, aceitai-o - disse, fitando o colar. - Em compensação do rapto da vossa esposa pelo meu marido e por nos terdes auxiliado hoje.
Ele não tinha dificuldade em calcular o valor do ouro e das esmeraldas. Mas o seu papel nos acontecimentos do dia não era tão cavalheiresco quanto a mulher imaginava, e ele não se aproveitaria disso.
- Foi a chegada do irmão da minha mulher que vos salvou. Se desejais exprimir gratidão, fazei-lo com ele. - Ajudou-a a pôr-se de pé. - Agora temos de ir. Segui as instruções que a minha mulher vos der.
Os homens conduziram as senhoras pelos degraus íngremes. No pátio, todos eles desembainharam as espadas. Sieg havia convencido a mais jovem a deixar que ele lhe vendasse os olhos, e içou-a nos seus braços enquanto ela se segurava firmemente a ele. David pousou o braço esquerdo sobre os ombros de Christiana e, desta forma, guiaram as mulheres através do inferno de morte e destruição que havia sido em tempos a gloriosa cidade de Caen.
Eduardo permanecia no edifício da Câmara Municipal, rodeado por escrivães que listavam cuidadosamente a propriedade dos espólios a serem enviados de regresso para Inglaterra. A chegada do cortejo de cavaleiros e mulheres silenciou os aposentos. Pelo caminho, outras mulheres desesperadas haviam-se juntado ao grupo. Thomas Holland teve até de se desviar do percurso para resgatar algumas. Vinte mulheres caminhavam na presença do rei, flanqueadas por cavaleiros armados com espadas.
Quaisquer que fossem as inclinações de Eduardo em relação ao destino que deveriam dar a estas destas mulheres, tornou-se irrelevante. Diante dos seus jovens cavaleiros,
não teve outra hipótese senão fazer mostra do cavalheirismo que sempre existira na sua corte. Estendeu formalmente a sua protecção às mulheres e ordenou que as enviassem para outro compartimento para segurança delas.
David voltou-se para acompanhar Christiana, mas, com um gesto, o rei ordenou-lhe que ficasse. Dispensou os homens em seu redor e encarou David sobre uma mesa repleta
de mapas, exibindo um largo sorriso.
- Um plano esplêndido, David! Céus, que vitória!
David pensou nas centenas de corpos que haviam encontrado pelas ruas. Pessoas de todas as idades e classes sociais, chacinadas
e totalmente despojadas das suas vestes. As ruas encontravam-se cobertas de sangue.
- É verdade que ordenastes a morte de todas as pessoas?
- Estava no meu direito - respondeu Eduardo, franzindo o sobrolho - quando eles não se rendiam e sabiam-no. Centenas de homens pereceram por resistirem. Não só na ponte, mas nas ruas. Aqueles malditos bancos e pedras... contudo, revoguei a ordem. Raios, deviam ter-se rendido.
Quando confrontados com vinte mil, deviam tê-lo feito. Mas Londres não se teria rendido, pensou David. Nem vós quereríeis que Londres o fizesse.
Eduardo afastou o tema da destruição de Caen como se não passassem de destroços de guerra. Irradiava satisfação e apontava para o mapa sobre a mesa.
- Teremos o caminho todo livre até Paris. O exército deles não pode regressar a tempo e ninguém nos deterá agora. Nenhum cerco nos retardará logo que as notícias sobre Caen se difundirem. Franziu ligeiramente o sobrolho. - Conheceis o rio Somme, David? Preocupa-me. Podemos ficar encurralados entre ele e o Sena, e não parece haver muitas formas de o atravessar, à excepção de umas quantas pontes. Raios, devia ter-vos pedido que fizésseis também este mapa. Os vossos são bem melhores.
David afastou-se para procurar uma pena de um dos escrivães. Regressou, inclinou-se sobre o mapa e desenhou duas linhas sobre o rio.
- Aqui podeis atravessar o rio a vau, mas a água move-se como uma maré, por isso deveis atravessar quando estiver baixa.
- Esplêndido - disse Eduardo esfregando as mãos de contente.
- Temos o condestável e o camareiro, sabíeis? vou enviá-los com os outros reféns rio abaixo amanhã pela manhã, junto com os espólios. Há navios repletos deles. A propósito, onde estão aquelas armas?
- Aqui perto na cidade de Bayeaux.
- Excelente. Iremos para lá de seguida.
- O meu homem virá e mostrar-vos-á a localização delas.
- Não sereis vós a fazê-lo? Deveis juntar-vos a nós. Esta será uma campanha gloriosa.
- A minha missão está terminada. Gostaria de regressar a Londres com a minha esposa.
Eduardo observou-o, e uma expressão diferente substituiu o seu contentamento.
- Sacrificastes muito para me permanecerdes leal, David. Não esqueço essas coisas. Durante os últimos dois dias estive a armar cavaleiros homens que nunca vi antes. Façamos isso agora. Tomai o lugar assegurado pelo vosso sangue e conquistado pela vossa lealdade.
- Sinto-me honrado pela oferta, mas prefiro que não o façais. Eduardo mostrou-se um tanto aborrecido, mas David sorriu
afavelmente.
- Todavia, preciso de outros favores da vossa parte, se tal for do vosso agrado.
As sobrancelhas do rei ergueram-se.
- Quando regressar a Londres, entregarei ao vosso tesoureiro um terço do preço da licença que me concedestes. O terço seguinte será entregue no prazo de dois anos, e o seguinte no prazo de quatro anos a partir desta data, como primeiro vos sugeri.
- Já saldastes...
- Não. Esse foi o preço da noiva. Desejo converter essa história na verdade, e
peço-vos que jamais revelareis o nosso acordo inicial. Não quero que ela saiba.
- A rapariga conquistou o vosso coração, não é verdade? inquiriu Eduardo com uma gargalhada. - Bem, seria louco se recusasse mais mil libras. Será como solicitais. E os outros favores?
- Peço que vos recordeis da vossa promessa de ajudar a recuperar Harclow, e que auxiliareis o irmão dela da forma que vos aprouver quando chegar a altura.
Eduardo baixou pensativamente o olhar antes de assentir.
- Lady Catherine deve ser afastada de Londres - acrescentou David. - Ela sabe demasiado, e o meu valor para vós, caso o desejardes, estará comprometido por ela.
- Gostaria que tivésseis estado presente quando ela me abordou com a sua história - disse Eduardo com um largo sorriso. - Permiti que ela falasse ininterruptamente. É uma mulher astuta, suspeito. Nunca me interessei muito por mulheres astutas. Já a enviei para Castle Rising para ficar ao serviço da minha mãe. Será mantida em reclusão junto dela. Podem endoidecer-se uma à outra com os seus esquemas. O mercador, Frans, está a desfrutar de umas instalações
menos cómodas até eu regressar e ele ser resgatado. São as desvantagens de se ser uni plebeu.
- Gostaria que eu e Christiana vos acompanhássemos junto com os vossos homens amanhã.
- Obviamente. Providenciar-vos-ei alguns documentos para levardes convosco. Encontrámos documentos contendo planositos para a invasão de Southampton. Ordenarei aos sacerdotes que os leiam a partir do púlpito para que o povo saiba o quanto a Inglaterra esteve perto de avistar tropas francesas no seu solo.
Nessa altura entrou o duque de Warwick, e Eduardo voltou-se para o saudar com um entusiasmo redobrado. David apresentou as despedidas e encaminhou-se para o compartimento onde se encontravam as mulheres. Sieg aguardava junto à porta.
- Ireis até Bayeaux com o rei antes de vos dirigirdes para sul
- explicou David.
- Já. Quereis que lhe mostre onde estão os canhões?
David assentiu. Procurou no seu gibão e retirou alguns pergaminhos dobrados.
- Aqui está o reconhecimento de Theobald e a permissão do rei francês para a minha sucessão de Senlis. Tendes já o anel e o projecto. Esperai até que ele saiba da minha traição. Não estareis a salvo se aparecerdes com essa notícia. Podereis não estar a salvo em qualquer dos casos quando ele vir que a pedra do anel é cor-de-rosa, e que é dele e não do irmão.
- Eu sei o que fazer.
- Voltarás para Londres depois disso? Hoje saldaste, e de que maneira, a dívida que dizes ter para comigo.
- Dificilmente, David. Aqueles mamelucos estavam dispostos a assassinar-me. Se não tivésseis planeado aquela fuga...
- Morvan e eu poderíamos não ter conseguido aguentá-los hoje.
- Já, bem, sou capaz de me juntar a esta guerra durante algum tempo. Quando os Franceses finalmente alcançarem este exército, a batalha será maravilhosa. Avisar-vos-ei se não regressar até ao Outono.
David fitou os documentos que aquela mão robusta segurava.
- Tem cuidado, meu amigo. Não faço ideia de como é que ele irá reagir.
CAPÍTULO 23
As docas encontravam-se apinhadas de homens, carregando os produtos do saque para os navios que esperavam. Os despojos haviam sido listados e avaliados, e iam agora ser transportados para Inglaterra.
David mantinha-se entre os frutos de guerra empilhados num dos embarcadouros. Uma brisa oferecia algum refrigério do fedor a morte que pairava sobre a cidade. Uma caixa aberta de loiça em prata refulgia a dez passos de distância no calor estival.
Ele observava Christiana enquanto esta caminhava pela doca em direcção ao irmão. Podia ver que esta despedida era dolorosa para ela. Havia presenciado muita da crueldade da guerra no dia anterior e sabia que Morvan podia não sobreviver a esta campanha.
David não conseguia evitar ponderar nas implicações disso. Nem sequer tentou fazê-lo. O filho de Senlis era incapaz de ignorar o facto de que era do seu interesse que Morvan jamais regressasse a Inglaterra, pois com o afastamento de Morvan, Christiana converter-se-ia na herdeira de Harclow, e um dia Eduardo reclamaria realmente as terras em nome do seu falecido amigo Hugh Fitzwaryn. Na ausência de Morvan, David de Abyndon, filho bastardo do nobre Theobald de Senlis, tornar-se-ia no senhor de Harclow como marido de Christiana.
Ser um cavaleiro inglês era uma coisa, ser um barão inglês era algo bem diferente.
Mas, na verdade, a terra e o estatuto eram o menos importante. O mercador que havia dentro dele conhecia o valor real de Harclow. Havia lá estado, da mesma forma que estivera em todas as propriedades ao longo da fronteira escocesa. Ele sabia que nas montanhas de Harclow, e noutras terras cúmbrias, havia muitas grutas, grutas primitivas, as quais haviam albergado animais desde o início dos tempos. E só nas grutas de Harclow jazia uma grande quantidade de uma substância rara conhecida como nitrato de potássio, que era essencial para fabricar a pólvora para os canhões.
E havia pago a Eduardo mil libras pelo direito de ser o agente exclusivo da coroa para a compra e venda de nitrato de potássio, e tomara Christiana Fitzwaryn como
esposa de modo a disfarçar o acordo.
Observou os irmãos enlaçarem-se num abraço. A sua mente começou involuntariamente a calcular a tremenda perda de lucros quando pagasse a Morvan pelo conteúdo daquelas
grutas.
Sim, não era mesmo nada do seu interesse que Morvan regressasse. Na verdade, se encarregasse Sieg de garantir que Morvan perecia em combate...
Christiana fitou o irmão com olhos cintilantes. Mesmo à distância, a preocupação dela era palpável.
A tristeza dela tocou-lhe o coração. A sua mente esvaziou-se de tudo para além do desejo de a confortar.
Theobald estava certo. Reconhecer as opções de cada um não era o mesmo que optar por elas. Voltaria as costas a estas oportunidades douradas que a Fortuna lhe havia caprichosamente oferecido.
Fá-lo-ia por Christiana, porque a amava.
Christiana e Morvan mantinham-se de braço dado enquanto homens carregados com espólios se acotovelavam uns aos outros para passarem.
A guerra era exactamente isto: lucro, na sua forma mais primitiva. Toda aquela conversa do cavalheirismo e honra parecia-lhe, hoje, muito falsa.
- Todas as quintas em Inglaterra terão novos utensílios de cozinha e tecidos - disse Morvan, examinando os navios que avançavam lentamente pela água.
- Algum deles é vosso?
- Não. O meu prémio é a vossa segurança. É o suficiente para mim. - Lançou um olhar a David, que aguardava a cerca de cinquenta passos de distância. - E para o vosso
mercador, penso eu. Pelo menos, desta vez.
- David. O nome dele é David.
- Sim. David.
- Sei que ainda não o aprovais, Morvan, mas ele é um bom homem. Não podeis negar que ele já o provou.
- Possui bondade dentro dele, mas muitas coisas mais. Coisas que não compreendo, mas provou que pode proteger-vos. Posso despedir-me de vós hoje com uma mente tranquila, até mesmo com um coração tranquilo.
- Não será uma despedida assim tão longa. Esta guerra não pode continuar quando o Inverno se fizer sentir.
Ele desviou a atenção do navio para a fitar.
- Seja qual for a sua duração, penso que não nos voltaremos a ver durante muitos meses. Saber que estais em segurança e que tendes um lar permite-me abandonar a corte sem preocupações. Posso não regressar com o exército. Penso que partirei em busca de aventuras quando esta campanha terminar.
O ânimo de Christiana havia sido abalado pela destruição de Caen, e agora uma nova tristeza se abatia dentro dela.
- Rezo para que mudeis de ideias - disse, beijando-o. - O meu lugar junto dele não diminui o meu amor por vós. Se deveis procurar aventura, que seja por pouco tempo. E a minha casa é a vossa casa. Por favor, acreditai nisso.
- Não será por muito tempo. Mas vós encontrastes o vosso destino, Christiana, e agora chegou a altura de eu encontrar o meu.
Incitou-a a afastar-se e sorriu-lhe.
- Devo partir agora, tenho de cumprir os meus deveres para com Eduardo. Não choreis, irmã. Esta despedida não é para sempre. Ide ao encontro do vosso marido.
Morvan afastou-se e, em breve, perdeu-se na multidão. Ela continuou a olhar, com a esperança de voltar a ver os cabelos negros mais uma vez, rezando para que as suas palavras fossem verdadeiras e que aquela não fosse a última vez que ouvia a voz dele.
David surgiu por detrás dela. Christiana sentiu a presença dele e o conforto dos seus braços a rodeá-la, estreitando-a junto ao seu corpo.
- Amo-vos - disse ele.
Era mesmo dele saber que ela necessitava de escutar essas palavras naquele momento. Mas a verdade é que aqueles olhos azuis haviam sempre visto o seu coração. Voltou-se para ele e para o santuário que aquela declaração oferecia.
- Fico preocupada com ele - disse.
- Ele é hábil e enérgico, Christiana. E nas batalhas não procuram eliminar cavaleiros, mas capturá-los para se pedir um resgate.
- Sim. Mas eu conheço o valor do resgate de um cavaleiro e não há um pai para o pagar. Poderá viver toda a sua vida no antro de uma cela francesa se Eduardo falhar.
- Se ele for capturado, eu tratarei da sua libertação.
Ela fitou-o nos olhos e soube que aquilo era verdade. Quer fosse através de dinheiro ou armas, ele fá-lo-ia por ela.
As imagens horríveis do dia anterior invadiram a sua mente. O brilho do amor e dos cuidados que ele lhe oferecia dissiparam o nevoeiro da melancolia que se havia adensado com a partida de Morvan.
- Onde está Sieg? Ele regressa connosco?
- Decidiu unir-se a esta guerra. Faz parte da sua natureza apreciar coisas do género.
- Mas em primeiro lugar, ele foi ao encontro do vosso pai, não é verdade? Pedistes-lhe que lhe restituísse os documentos, não foi? A imagem da vossa mãe havia desaparecido do livro no vosso gabinete. Também lhe enviastes isso, de modo a que ele saiba quem vós realmente sois e por que motivo fizestes isto.
Aquilo surpreendeu-o. O sorriso dele exibiu espanto. E admiração.
- Estais a tornar-vos perigosamente astuta, querida.
- Então, quanto tempo pensais que teremos?
- Estarei em Inglaterra, e por isso ele não poderá fazer-me mal.
- Claro que pode, Mas não é a isso que me refiro. Quanto tempo pensais que o comte ainda viverá? Quanto tempo falta até Senlis ser vossa?
Desta vez David não ficou apenas surpreendido, mas assombrado. Isso, em contrapartida, abismou-a. Ele não havia considerado essa possibilidade. Ele não havia realmente previsto a forma como isto iria terminar.
- Ele é um nobre, David, e o último de uma antiga linhagem. Nisso eu conheço-o melhor do que vós. Ele não pretende que a linhagem termine assim e que as terras sejam devolvidas à coroa. Homens como ele farão de tudo para se assegurarem de que têm um herdeiro. Apesar do que fizestes, não esquecerá que sois tudo o que lhe resta logo que venha a saber a verdade.
David permaneceu imóvel enquanto absorvia aquelas palavras.
- Então, quanto tempo pensais que teremos?
- Ele deve ter uns cinquenta e cinco anos. Se estiverdes certa, e eu penso que estais a subestimá-lo, ainda faltará muito tempo para que eu volte a ter essa opção
de novo.
Ele pronunciou aquelas palavras de ânimo leve, mas ela notou uma mudança nele. Sentiu que as suas emoções começaram a agitar-se. Conhecia-o agora bastante bem e
reconhecia o drama privado que a sua alma controlava e continha.
Ele vira que ela estava certa, e que, afinal, Senlis podia um dia vir a ser dele. Começara de novo a esperar. Ele era bom a esperar.
Ela esticou-se para lhe acariciar o rosto.
- Adoro a nossa vida, e não me importo que ainda demore um pouco. E amo-vos. Agradeço a Deus pelo nosso amor, David. Há beleza e bondade nele, e em vós, sempre à
minha espera.
- Qualquer bondade que vejais em mim é meramente um reflexo de vós, minha menina. Haveis-me convertido numa pessoa melhor do que aquela que eu nasci para ser.
- Isso não é verdade. Para um homem que vê com tanta clareza como vós, há partes de vós mesmo que não conheceis muito bem.
- Partes que eu jamais conheceria se não tivésseis tocado nelas. Ela começou a objectar, mas a intensidade na expressão dele
deteve-a. Talvez ele estivesse certo. Não era verdade que o amor dele lhe ensinara coisas acerca dela que ela não teria descoberto sem ele? Dois homens carregando uma cama passaram por eles, abrindo caminho aos encontrões. O ruído que se fazia sentir no porto intrometeu-se entre eles.
- Talvez o amor seja a única coisa que se interpõe contra tudo o que presenciámos aqui em Caen - disse ela. - É triste.
Ele abanou a cabeça.
- Eu compreendo as trevas que existem nos homens, de uma forma que a vossa inocência jamais o conseguirá, Christiana, e os actos de guerra são os de somenos importância. Acreditai em mim quando vos digo que o amor é um formidável inimigo. Talvez o único inimigo.
Durante um momento, o olhar dele expôs a sua alma tal como na noite do reencontro, e estava tudo ali. As sombras de que ele falava, e o poder do amor para as conter. Sim, Morvan estava certo. Havia bondade nele, mas também outras coisas.
- Então, amemo-nos o melhor que pudermos, David. Construamos uma vida repleta de esperança e luz que nunca esmorece, independentemente do que o mundo nos trouxer. Quero que o nosso amor seja a lareira no centro do nosso lar, seja ele onde for, ardendo de uma forma abrasadora para sempre. Não quero nunca olhar para trás para aquilo que partilhámos hoje aqui e interrogar-me se terá sido uma ilusão que abraçámos no nosso desespero.
- Não foi uma ilusão. O meu coração já era vosso muito antes de eu vos encontrar aqui, e será vosso para sempre. O nosso amor é, e será sempre, tão real quanto os
braços que vos enlaçam. Não sou homem para deixar escapar um bem precioso que tenha tido em meu poder.
Os lábios dele afloraram os dela num beijo lento e exigente, numa agradável lembrança da paixão que haviam encontrado. Ele estreitava-a de tal forma que os seus
corpos se moldavam num só e ostentavam uma imagem de amor entre a ganância que fervilhava nas docas.
Ele voltou-a.
- Partamos agora deste lugar. Vamos para casa.
Alguns homens interromperam o transporte do espólio para observarem os amantes. Ela enfrentou o olhar deles sem receio, e tinha esperança de que aquilo lhes recordasse do verdadeiro valor das coisas.
- Sim, David. Vamos para casa. Levai-me de regresso ao nosso jardim e à nossa cama.
Caminharam pelo embarcadouro lado a lado, sem nenhum prémio nos braços para além do amor que os unia.
CAPITULO 18
David permitiu que o sangue do seu pai fluísse pelas suas veias, libertando-o dos recessos e fissuras onde o mantinha contido e controlado. Permitiu que toda a sua força sinistra o percorresse.
Sieg caminhava ao seu lado enquanto ele cavalgava pelo pátio. David viu o sobrolho franzido do sueco. Sieg atribuía a culpa do desaparecimento de Christiana à sua própria negligência e não sossegaria enquanto não o ajudasse a trazê-la de volta. David iria apreciar a ajuda do seu amigo no final, mas não agora.
- As espadas, Sieg. Não te esqueças de as trazer - disse.
Sieg assentiu e David transpôs o portão. Era possível que não necessitasse dos preparativos que estava a deixar ao encargo de Sieg. Talvez ele a encontrasse noutro lado. Todavia, duvidava que assim fosse. Ainda assim, teria de o confirmar.
Fez uma pausa e lançou um olhar aos edifícios onde passara toda a sua juventude e início da idade adulta. Se as coisas corressem como esperava, não voltaria a ver esta casa.
O sangue de seu pai não se importava nada com isso. David esboçou um sorriso débil. Não, não havia ali sentimentos. Não quando se deparava com uma demanda ou com um objectivo. Ou uma vingança.
Há anos que sabia que o tinha dentro de si e o que era capaz de fazer. Durante a sua juventude, examinara os traços do seu rosto e da sua alma para saber quais as características que herdara dos Abyndon e as que herdara do outro lado. Havia tentado reconstruir o
rosto do seu pai ausente a partir das peças desconexas que não comportavam um legado dos Abyndon. O amor pela beleza. O autodomínio emocional. As sinistras maquinações. A capacidade de matar. Nem mesmo a crueldade arrogante de Gilbert era capaz de igualar a sua tendência para uma implacabilidade glacial. Esse traço, em particular, fizera sempre parte dele, uma força a ser usada e uma fraqueza a ser temida, e ultrapassava a análise sagaz ensinada como parte do ofício de mercador. O sangue da mãe suavizara-o até certo ponto, mas a forma de o controlar havia sido a maior dádiva de David Constantyn.
Fora o lado do seu pai que magoara Christiana.
Procuraria primeiro em Londres e Westminster, só para ter a certeza.
Pouco tempo depois, entrou a cavalo no pátio da casa de Gilbert de Abyndon pela primeira vez na sua vida. Um moço de estrebaria aproximou-se para lhe cuidar do cavalo,
mas ele ignorou-o e atou as rédeas a um pilar.
Estavam todos a jantar quando ele entrou no salão. Fora assim que o planeara. Não pretendia que Margaret enfrentasse a ira do marido caso ele fosse lá quando Gilbert estivesse ausente, e queria que houvesse muita gente em volta de modo a que ele não enfiasse um murro no rosto de Gilbert quando o tio o insultasse, como estava certo que ele faria.
Gilbert interrompeu a conversa quando David se aproximou da sua mesa, e dir-se-ia que o homem estava diante de uma aparição, tão grande era o choque na sua expressão. Margaret estava visivelmente pálida.
David limitou-se a dirigir um aceno ao tio e voltou a sua atenção para Margaret.
- Estou à procura de Christiana, Margaret.
- À procura? - inquiriu, franzindo o sobrolho.
- Ela saiu de casa.
- Quer dizer que se encontra melhor de saúde? Então Christiana não fizera confidências à amiga.
- Sim, mas desapareceu há dois dias, Margaret. Ela procurou-vos?
Margaret compreendeu tudo, mas ocultou-o da sua expressão. Gilbert provou ser menos discreto.
- A vossa nobre esposa já vos abandonou tão cedo? - escarneceu baixinho.
- Ela está aqui, Margaret? Ela abanou a cabeça.
- Nunca soubestes pôr-vos no vosso lugar, rapaz - vociferou Gilbert. - A audácia de desposardes uma mulher como aquela! É evidente que desapareceu. Até admira que tenha ficado tanto tempo.
David conseguiu ignorá-lo.
- Sabeis onde ela se encontra, Margaret?
A pobre Margaret abanou de novo a cabeça e fitou-o com um olhar angustiado. A mão repousava, protectora, sobre o ventre ligeiramente protuberante.
- É um prazer ver um grande orgulho rebaixar-se - troçou Gilbert com uma gargalhada. - Esse é o preço desse pecado. Procurai por ela nas camas do reino, sobrinho. Mulheres como essa não têm moral.
A mão de David estendeu-se e agarrou o tio pelo pescoço. Gilbert soltou um grito e caiu na cadeira. David afrouxou a tensão no braço até ter o homem pregado às costas da cadeira. O salão ficou subitamente silencioso, e uma dúzia de pares de olhos observavam
a cena.
- Não pronunciareis nem mais uma palavra, tio, ou libertarei a vossa jovem esposa da infelicidade deste matrimónio - preveniu.
- Agora dareis permissão a Margaret que me acompanhe até à porta e não nos seguireis. Concordais com isto?
Gilbert olhou-o fixamente e David apertou-lhe a garganta. Gilbert assentiu com a cabeça.
Margaret ergueu-se da cadeira e deu a volta à mesa. David deixou cair a mão.
- Lamento - disse, enquanto atravessavam o salão. - Não havia nada a fazer senão vir até aqui.
- Eu compreendo, não vos preocupeis. Ele irá disparatar e falar mal de vós durante alguns dias a todas as pessoas que encontrar, mas isso não é nada de novo, pois não?
David fez uma pausa junto à porta.
- Ela alguma vez vos falou de Stephen Percy?
O choque e a surpresa de Margaret eram genuínos.
- Não, David. Christiana nunca me falou de nenhum homem para além de vós e do irmão dela. Até mesmo quando descrevia um acontecimento divertido da corte, os intervenientes não tinham qualquer importância.
- Ficai bem, Margaret - disse, acenando em afirmação e voltando-se para partir.
Ela deteve-o e saiu para o pátio de modo a poder falar em privado.
- Por que razão me fazeis perguntas acerca desse homem, David? Pensais que Christiana fugiu?
- É possível.
- com esse homem? - Fitou-o, incrédula. - Sempre pensei que os homens fossem todos loucos e que vós fôsseis a excepção à regra, David. Se existe outro homem no coração dela, então eu não a conheço de verdade. Ela falava apenas em vós, com afabilidade, afeição e respeito. Se ela desapareceu, não terá sido por sua vontade, estou certa - franziu o sobrolho de aflição. - Ela está em perigo, não está? Oh, Santo Deus...
- Não me parece que ela esteja em perigo - respondeu para a tranquilizar. - Regressai agora para junto do vosso marido. Dizei-lhe que eu não permiti que saísseis de perto de mim até responderdes às minhas questões.
- Tendes de encontrá-la...
- Eu vou encontrá-la.
David estava encostado ao muro do pátio onde os cavaleiros se exercitavam, e observava Morvan Fitzwaryn brandir o seu machado de guerra e lançá-lo contra o escudo do seu adversário. O suor reluzia sobre os seus ombros e peito nus.
David sentiu um movimento atrás dele e voltou-se para ver duas mulheres a espreitarem sobre o muro à medida que caminhavam. Lançaram um olhar de apreciação ao cavaleiro alto e teceram comentários por detrás de mãos erguidas, rindo-se, antes de se afastarem.
David aguardou. Morvan já havia reparado nele. O treino não tardaria a chegar ao fim.
Em breve, terminou. O adversário de Morvan deu por findo o treino com um gesto. Os dois cavaleiros encaminharam-se para
a tina de água e começaram a lavar-se. Morvan aproximou-se,
sacudindo a água da cabeça.
- Procurais-me? - perguntou, ainda um pouco ofegante dos
exercícios.
- Sim. Há três noites, Christiana abandonou a casa. Ninguém
a viu e ela não disse a ninguém para onde ia.
Morvan ia começar a limpar a testa, mas a sua mão deteve-se.
- Ela veio para cá, Morvan?
- Não.
- Dissestes que se pudésseis a levaríeis para outro lado. Fizeste-
-lo agora?
- Se eu a tivesse afastado de vós - disse Morvan, olhando-o
fixamente - teria permitido que me vísseis a fazê-lo. David começou a afastar-se.
- Ela não foi ao encontro dele - disse Morvan atrás de si. David voltou-se. - Como sabeis?
- Porque ela me disse que não o faria.
- Isso quer dizer que recebestes mais garantias do que eu.
- Por que haveria ela de dar garantias a um homem que não acredita nelas? - inquiriu Morvan enquanto se dirigia para ele.
- Não tardarei a saber a verdade, penso eu.
Morvan olhou pensativamente para o chão. - Da última vez que ela partiu e veio para aqui, deixou-vos saber onde estava.
- Sim.
- Mas não desta vez. E ela disse-me que já não sente nada por ele. Se ela está com Percy, David, não terá sido por vontade própria.
- Já pensei nisso. Conheceis esse homem melhor do que eu. Está na natureza dele agir desta
forma? Raptá-la?
Morvan lançou um olhar absorto pelo pátio.
- Diabos me levem se sei. Ele é vaidoso e presumido e, a meu ver, um pouco lerdo. As mulheres dizem que não aceita bem a rejeição. Os homens sabem que ele é rápido num desafio se se considerar
ultrajado.
David absorveu esta informação. Deveria ter conhecido Sir Stephen ou, pelo menos, ter-se informado melhor acerca dele. O orgulho levara-o a evitá-lo, mas fora um erro. Era importante conhecer-se as forças e as fraquezas dos adversários. Até mesmo um aprendiz inexperiente sabia disso.
- Comunicar-vos-ei quando a encontrar.
- Viajareis para norte, então? - inquiriu Morvan cautelosamente.
- Sim.
- Partirei convosco.
- Irei sozinho. Por um lado, o rei necessitará de vós aqui para reunirdes as tropas, por outro, eu não planeio fazer isto à moda dos cavaleiros.
Voltou-se para partir, mas Morvan segurou-o pelo braço. David fitou os seus olhos cintilantes e inquietos, tão semelhantes àqueles outros.
- Prometei-me que, se a encontrardes lá, lhe dareis uma oportunidade de falar. Se houver uma explicação, deveis escutá-la pediu Morvan.
David fitou a mão que o segurava e depois os olhos brilhantes e intensos que examinavam o seu rosto. Teria ele o aspecto perigoso que a preocupação de Morvan sugeria?
- Escutá-la-ei, irmão.
Em seguida, foi ao encontro de Sieg e Oliver e iniciou a viagem até Northumberland. Antes disso, todavia, dirigiu-se até às escadas de pedra que conduziam aos aposentos privados de Eduardo.
David e Oliver avançavam pelo algeroz da estalagem, as costas pressionadas contra o telhado íngreme. Abaixo deles, a viela que conduzia a esta estalagem parecia estar deserta, à excepção da sombra corpulenta de um homem que repousava descontraidamente contra uma vedação. A cabeça da sombra olhou para cima para avaliar o avanço deles.
Era escusado dizer que Sieg não podia juntar-se a eles lá em cima. O peso dele poderia ter quebrado as telhas. Esperaria lá em baixo e entraria da forma normal, livrando-se, pelo caminho, de quaisquer escudeiros inconvenientes ou companheiros que pudessem tentar interferir.
- Isto faz-me recordar os tempos antigos. - Sussurrou Oliver de bom humor enquanto caminhavam cautelosamente ao longo das telhas do algeroz. - Recordais-vos de quando éramos pequenos
e entrámos no sótão da mercearia através do telhado? Enchemos os bolsos com sal.
- Não era nada assim tão útil, Oliver. Era canela, e valia mais do que o ouro. Ter-nos-iam enforcado se nos tivessem apanhado, independentemente de sermos crianças.
- Todavia, foi uma grande aventura.
- Pelo menos a tua mãe usou a que lhe levaste. A minha soube
que era roubado, deu-a e arrastou-me até ao padre.
- A sensibilidade dela nessas coisas foi sem dúvida a razão pela qual a tua vida correu pior quando te tornastes mais velho - comentou Oliver. - Refiro-me à escola e coisas do género.
- Sem dúvida.
O pé de Oliver escorregou e uma telha estatelou-se no solo. Ambos os homens se detiveram aguardando um som que indicasse que alguém havia escutado.
- Por mim já cortava a garganta deste cavaleiro só para lhe mostrar o meu descontentamento por ser tão difícil de encontrar - murmurou Oliver no silêncio.
David esboçou um sorriso. Percy fora, realmente, difícil de encontrar, e a exaustiva busca não havia melhorado muito o humor de David. O homem parecia estar a esconder-se. Não era um bom sinal.
Haviam cavalgado primeiro até à propriedade do pai, depois até à do tio, e finalmente até à propriedade que o próprio Stephen geria. Não houvera necessidade de se aproximarem dos castelos ou dos solares. Bastaram algumas horas na cidade ou na aldeia mais próxima para obterem todas as informações que procuravam. O jovem Sir Stephen não era visto pelo menos há uma semana. Finalmente, na estrada para sul, uma conversa informal com um jogral que ia de passagem revelou que Percy já estava há algum tempo a descansar numa estalagem pública algumas milhas a norte de Newcastle.
David estudou o chão abaixo dele, debilmente iluminado por um archote. Sieg olhou para cima e assentiu com a cabeça. Encontravam-se mesmo por cima das janelas do quarto de Stephen, no último piso da estalagem. Como era uma noite amena de Junho, a janela estava aberta.
A essa hora da noite, não se ouvia qualquer som da estalagem ou do quarto em baixo. David voltou-se para o telhado, agachou-se e
segurou-se à caleira. Foi descendo, esticando lentamente os braços. Os seus pés encontraram a abertura e ele entrou, caindo com um ligeiro estrondo no chão do quarto. Lançou um olhar em seu redor, para as sombras tremeluzentes lançadas por uma candeia. Havia cortinas à volta das camas nesta dispendiosa estalagem, mas neste quarto haviam sido deixadas abertas. David avistou o corpo nu de um homem e cabelo loiro. Um braço forte jazia sobre outro corpo. Longas madeixas negras espalhavam-se pelos lençóis.
Sentiu um nó no estômago. Uma fúria sanguinária obscureceu-lhe a visão. Desembainhou a adaga que trazia na anca.
Oliver balançou-se na janela e aterrou ao lado dele. Fez um gesto a David para que permanecesse imóvel, e depois encaminhou-se para a porta. Sieg aguardava do lado de fora.
com a chegada de Sieg havia pouca esperança de manterem secreta a presença deles ali. O sueco entrou como um furacão e desembainhou a espada. A cabeça de Stephen Percy levantou-se.
Sieg alcançou-o antes que ele se conseguisse virar. Pousou um dedo silenciador nos lábios de Percy e encostou-lhe a espada à garganta. Stephen imobilizou-se. A mulher ainda dormia.
David encontrou um pavio junto à lareira e acendeu-o na candeia. Atravessou o quarto e estudou o homem que lhe causara tanto incómodo.
Sobre a lâmina refulgente fitavam-no cautelosamente uns olhos verdes cintilantes. Stephen possuía feições irregulares e a sua tez parecia muito pálida, especialmente agora que parecia estar sem pingo de sangue. David foi forçado a admitir, não sem algum ressentimento, que compreendia que as mulheres pudessem considerar este homem atraente.
- Quem sois vós? - inquiriu Stephen com uma voz rouca e num tom que pretendia mostrar-se indignado.
- Sou o marido de Christiana, o mercador - respondeu David, inclinando-se mais para que ele o visse melhor.
O olhar de Stephen demorou-se sobre David, depois voltou-se para Sieg e em seguida para Oliver.
- Graças a Deus - suspirou de alívio.
Sieg franziu o sobrolho na direcção de David. Este fez um gesto na direcção de Oliver. O homem magro dirigiu-se para o outro lado da cama.
Oliver afastou as madeixas negras que caíam sobre umas costas estreitas. A rapariga despertou, sobressaltada, e voltou-se.
- Raios, David, não é ela! - exclamou Oliver, olhando fixamente para a rapariga.
- Não. Nunca pensei realmente que fosse. Ela não viria por vontade própria, e ele nunca se importou o suficiente com ela para a raptar, mas eu tinha de ter a certeza.
A rapariga havia reparado na espada na garganta de Percy, a ponta aguçada não muito longe do seu próprio pescoço. Ela abraçou-se, assustada, e olhou em volta com o terror estampado nos olhos.
David sorriu na direcção de Sir Stephen.
- Pensastes que poderíamos ser os parentes dela? Stephen encolheu levemente os ombros.
- Mais uma virgem sacrificada para satisfazer a vossa vaidade, Sir Stephen?
Os olhos de Stephen semicerraram-se.
- Perdestes algo, mercador? Podeis ver que ela não está aqui, por isso ide-vos.
- Tende-la noutro lado?
- Ela era encantadora - respondeu Stephen com uma gargalhada -, mas não valia tamanho incómodo.
Uma fúria perigosa apoderou-se de David.
- Era encantadora, é?
- Sim - respondeu com um sorriso irónico. - Extremamente encantadora. Valeu a pena a espera.
- Posso matá-lo agora, David - disse Sieg com naturalidade.
- Não. Se tiver de morrer, será às minhas mãos.
A rapariga havia começado a chorar, agarrada aos joelhos. Oliver sentou-se ao lado dela e deu-lhe uma palmadinha no ombro. Ela murmurou algo por entre os soluços.
- Tendo em conta a vossa situação, sois muito corajoso ou muito estúpido para me provocardes desta forma - disse David.
- Não sois nenhuma ameaça para mim, mercador - respondeu Stephen com uma gargalhada. - Feri um cabelo da minha cabeça e o melhor é abandonardes o reino. Se a lei
não vos enforcar, fá-lo-á a minha família. ;
- Bem visto, só que eu já tencionava abandonar o reino, por isso parece-me que não tenho nada a perder.
O sorriso presumido desapareceu do rosto de Stephen.
- David - disse Oliver -, esta menina não passa de uma criança. Olha como é pequena. Quantos anos tendes, pequenita?
- Faço catorze este Verão - respondeu, soluçando tristemente. Lançou um olhar a Stephen. - Ele ia levar-me para Londres, não é
assim?
- Iremos, minha querida - respondeu Stephen, revirando os olhos -, assim que for seguro.
- Isso não é verdade - replicou Oliver, voltando-se para ela.
- Ele abandonar-vos-á para enfrentardes a ira da vossa família, e tereis sorte se acabardes num convento. O que sois vós? Pertenceis à pequena nobreza? Sim, bem, não apresentarão queixa contra um Percy, pois não? Não, minha menina. Receio que só vos restem duas alternativas, o convento ou a prostituição.
A rapariga lamuriava-se. Percy blasfemava.
- Então, matamo-lo agora? - inquiriu Sieg.
Era rápido. Fácil. Tão tentador. David fitou, impassível o rosto grotesco procurando manter-se valente e calmo.
- Não me parece - disse finalmente.
Os olhos de Stephen fecharam-se em sinal de alívio enquanto Sieg praguejava e embainhava a espada.
- Dai-me a vossa adaga, David - pediu Sieg, segurando-lhe na mão. - A mameluca.
- Para quê?
- Em honra do amor que sinto por este país - respondeu Sieg, fungando -, e em protecção das poucas virgens que ainda existem, vou tratar deste homem.
Stephen franziu o sobrolho, perplexo.
- Recordais-vos daquele médico na prisão, David? Aquele que havia trabalhado no palácio? Bem, ele explicou-me como é que fazem com os eunucos. É muito simples, a
sério. Basta um corte rápido...
Os olhos de Stephen arregalaram-se de horror.
- Sieg... - começou David.
- A adaga, David. Tende-la sempre afiada. Sairemos daqui num ápice.
David lançou um olhar à fronte de Sir Stephen, agora coberta de suor. Olhou para a menina que chorava e para o conforto afável que Oliver lhe oferecia. Pensou na
dor de Christiana por causa deste homem.
- Se insistis - disse com suavidade.
- Sim. Oliver, ajuda-me a segurar nele.
A rapariga viu a adaga a aproximar-se e começou a dar gritinhos débeis e roucos. Stephen recuava na cama, fitando a figura implacável de Sieg que se agigantava diante
de si e voltou-se para David.
- Santo Deus, homem, não podeis estar a falar a sério!
- Tal como vos disse antes, não tenho nada a perder. Stephen soltou uma gargalhada nervosa e ergueu uma mão como
que para se proteger da adaga.
- Escutai. A sério, o que eu disse antes acerca de Christiana... estava a mentir. Não a possuí. Na verdade, nunca o fiz.
- O mais provável é que estejais a mentir agora.
- Juro-vos, eu nunca... mal lhe toquei! Tentei, admito, mas, raios, todos nós tentamos, ou não? - voltou-se freneticamente para Sieg e Oliver, procurando confirmação.
- Vejamos. Ajoelhai-vos sobre as pernas dele, David. Oliver, posicionai-vos sobre o peito dele - instruiu Sieg enquanto se aproximava do lençol.
- Jesus! - gritou Stephen. - Juro pela minha alma, ela não me quis.
David sorriu.
- Eu já sabia disso.
Sieg deu outro passo em frente. Stephen parecia prestes a desmaiar.
- Como? - resmungou Stephen enquanto fitava o comprimento ameaçador do punhal.
- Ela disse-me. - Pousou uma mão sobre o ombro de Sieg.
- Vamos, Sieg. Deixai o homem em paz.
- Raios, David, ele é nojento...
- Vamos.
Oliver ergueu-se da cama e pegou nalgumas roupas pousadas sobre um banco.
- Aguardai lá fora, nós vamos já. -Nós?
- Não podemos deixá-la aqui, pois não? Terá a vida arruinada se a encontrarem aqui. Disse-lhe que a levaríamos até Newcastle e que a deixávamos numa abadia. Poderá
dizer que recebeu uma pancada na cabeça, que perdeu a memória e que deambulou durante alguns dias até que uma alma caridosa a levou à cidade.
- Ah. A explicação da pancada na cabeça e de deambular durante uns dias já é tão antiga não vos parece?
- A família dela acreditará porque quer acreditar. No caminho explicar-lhe-ei como esconder as provas quando se casar.
- Oliver...
- Ela não passa de uma criança, David. É demasiado ingénua, só isso.
- Tu és um proxeneta, Oliver. É suposto recrutares raparigas caídas em desgraça, não salvá-las. - Lançou um olhar à rapariga, não muito mais jovem do que Joanna deveria ter sido. Suspirou e dirigiu-se para porta com Sieg.
Raios. Por este andar, nunca mais sairia de Inglaterra. Mas, por outro lado, fora esse o objectivo de o forçarem a realizar essa busca.
CAPÍTULO 19
com um puxão enérgico, Christiana certificou-se de que os lençóis e as toalhas amarrados uns aos outros se encontravam firmemente unidos. Deslizou o braço pelo meio
daquela corda de tecido e tapou tudo com a sua capa.
Funcionará, decidiu ela. Tem de funcionar. Abandonando o quarto e o edifício, atravessou o pátio em direcção ao salão. Procurou por Heloise, que se encontrava a costurar com as suas criadas e as três filhas. A bela e loira Heloise ergueu um rosto meigo quando ela se aproximou.
- Está uma bela tarde - disse Christiana no tom distante que adoptara desde a sua chegada. - vou sentar-me um pouco no jardim.
- A brisa está a arrefecer - advertiu Heloise.
- Trouxe a minha capa, para o caso de precisar. A mulher assentiu e regressou à sua conversa.
Christiana obrigou-se a abrandar para um passo indiferente. Já lá fora, apressou-se a caminhar pelo jardim vedado atrás do salão.
Deambulou entre as plantas para que não parecesse que se dirigia para um ponto específico. Lenta e deliberadamente, encaminhou-se para a árvore majestosa num canto
recôndito do jardim.
Cinco dias. Há cinco dias que era prisioneira, e não sabia a razão pela qual a haviam trazido para cá. Duvidava que Heloise também soubesse. Talvez o marido dela, o presidente da Câmara de Caen, em cuja mansão palaciana agora se encontrava alojada, tivesse a resposta, mas não lhe explicara nada. Desde o dia em que entrara aos
tropeções naquele salão, imunda e desgrenhada da jornada a cavalo e da viagem por mar, furiosamente indignada e pronta a matar ou a ser morta, ninguém lhe dissera nada. Todavia, haviam-na recebido como a uma hóspede, dando-lhe guarida e prestando-lhe todas as honras.
À excepção de uma. Não podia partir.
Bem, partiria agora. No dia anterior encontrara esta árvore. Era mais alta do que o muro e Christiana trepara-a, ansiosa, rezando para que existisse alguma estrutura junto ao muro do outro lado para onde pudesse saltar. Pairando entre os ramos e folhas, olhara para baixo, para a queda de seis metros que a aguardava. Todavia, ainda o desapontamento não desaparecera e Christiana já arquitectava um plano.
Olhou cuidadosamente à sua volta, enquanto retrocedia para a obscuridade da árvore. Ainda tinha pelo menos duas horas antes do anoitecer. Era tempo suficiente para fugir desta cidade e encontrar abrigo algures.
Içando a corda de lençóis para o ombro, trepou a árvore. Encontrou um ramo forte que se projectava sobre o cimo do muro e instalou-se nele. Retirando cuidadosamente a corda de lençóis do braço, atou uma das extremidades ao ramo e lançou a corda sobre o muro.
Christiana avançou pelo ramo e olhou para baixo. A corda branca suspensa ficava a uns três metros do chão. Se conseguisse chegar ao fim, poderia saltar em segurança.
Lançou um olhar aos lençóis e aos nós. Se não conseguissem suportar o seu peso, a queda podia estropiá-la. Rezou para que o presidente da Câmara adquirisse linho
da melhor qualidade para a sua roupa de cama.
Pousando os pés no cimo do muro, segurou-se ao primeiro nó e avançou.
Ainda tivera a esperança de conseguir caminhar pelo muro abaixo, mas as coisas não funcionavam assim. Deu por si suspensa de encontro a ele, com as mãos a agarrarem-se
firmemente ao linho branco que a suportava. Os músculos dos seus braços e ombros rebelaram-se imediatamente.
Agora só havia um caminho a seguir. Agarrando-se com todas as suas forças, começou a descer aos sacões. A meio do caminho,
escutou um alvoroço distante. Ouvia-se com uma nitidez crescente e movia-se na sua direcção.
O ruído de vozes ressoava através do muro de pedra. Havia muitas pessoas no jardim, fazendo muito barulho. Ela prosseguiu a sua dolorosa descida e ergueu o olhar receoso em direcção ao ramo da árvore, aguardando o rosto que a descobriria. As folhas deviam ter ocultado a extremidade da corda, porque os sons afastaram-se.
Havia amarrado algumas toalhas aos lençóis para alongar a corda, e estava neste momento a chegar até elas. O nó esticou-se sob o seu peso. No momento em que as suas mãos começavam a ceder, escutou o som de tecido a rasgar-se e precipitou-se para o chão. Foi uma queda de apenas dois metros e meio, mas ainda assim deixou-a atordoada. Pôs-se cautelosamente de pé e olhou em seu redor.
Diante dela viu mais um muro, de uma outra casa. Entre os dois corria uma viela muito estreita onde agora se encontrava. Numa das extremidades avistou uma confusão de telhados que sugeria que ia desembocar numa rua da cidade. O outro lado parecia livre.
Mantendo-se na sombra do muro, subiu rapidamente a viela com uma exaltação triunfante vibrando dentro dela. O que quer que fosse que o presidente da Câmara de Caen tivesse planeado para ela, podia encontrar outra mulher para o papel.
Atravessaria o rio e manter-se-ia afastada das estradas. Procuraria o caminho para a costa e para alguma cidade portuária. Talvez encontrasse algum pescador inglês ou um mercador que a ajudassem. Deteve-se perto do final do muro e aguçou os ouvidos, tentando escutar os seus perseguidores. Estava tudo em silêncio e ela avançou de novo.
Subitamente, surgiu um homem vindo do fundo do muro. Mantinha-se a uns vinte metros à sua frente com os braços cruzados sobre o peito. Ela fez uma pausa e fitou-o
à luz do entardecer.
Não se tratava claramente do presidente da Câmara, um homem baixo e corpulento. Este era demasiado alto e esguio, embora o cabelo longo fosse tão branco quanto o
dele, e as roupas igualmente requintadas. Também não era nenhum dos seus criados. Avançou cautelosamente, esperando que a presença deste homem não tivesse nada a
ver com ela, apesar da forma atenta como ele a observava a aproximar-se.
Decidira dirigir-lhe um sorriso doce e fingir que pertencia a este beco e à vizinhança quando se aproximasse o suficiente para lhe ver o rosto.
Reconheceu-o e percebeu que ele também a reconhecera. Sentiu um aperto no coração enquanto os seus pés a levavam para junto do nobre francês que se havia disfarçado
para se encontrar com David em Hampstead.
Não estivera muito próxima dele naquele dia, mas agora deteve-se a apenas alguns passos de distância e encarou-o de uma forma directa. Recordava-se mais da aparência
dele do que pensava, pois parecia-lhe muito familiar, embora de uma forma que não conseguia definir. Os seus olhos castanhos velados examinaram-na. Entre o bigode
branco e a barba aparada, formou-se um débil sorriso.
- Tendes audácia - disse. - E bom sinal. - Lançou um olhar à viela e à corda branca de lençóis e toalhas suspensa da árvore. Podíeis ter-vos magoado.
- Isso tem alguma importância?
- Tem muita importância.
- Bem, pelo menos isso é uma boa notícia.
Afastou-se para o lado e, com um gesto floreado, indicou-lhe o caminho de regresso ao cárcere.
Christiana bordava diligentemente à luz do crepúsculo que se introduzia pela janela aberta. Um fogo brando ardia na lareira, mas a tarde do início de Junho estava muito quente e o lume não seria atiçado quando a luz do dia se desvanecesse.
Lançou um olhar às mulheres e crianças sentadas em seu redor, conversando em voz baixa umas com as outras enquanto se inclinavam sobre os seus próprios bordados. Ocasionalmente, uma delas erguia o olhar para a fitar com curiosidade. Ainda não sabiam a razão pela qual a presença dela lhes havia sido imposta, nem por que razão tinham de ser amigas dela e fazer-lhe companhia, e nada, para além da cortesia que já existia antes, se havia desenvolvido ao longo dos sete dias após a sua tentativa de fuga.
Olhou para a outra extremidade do salão, para a outra lareira, e avistou os quatro homens reunidos à sua volta. Dois deles eram barões que habitavam na região e que haviam chegado durante os
últimos dias com os seus séquitos mediante as ordens do rei francês. Outros haviam chegado antes deles. A cidade estava repleta de cavaleiros e soldados. Alguns estavam acampados do outro lado do rio que servia como defesa natural a esta cidade normanda. Alguns haviam entrado no castelo, mas muitos deles tinham vindo para aqui, para a casa do presidente da Câmara, e aconselhavam-se com o homem alto e de cabelo branco sentado junto à outra lareira.
Agora já sabia o nome dele. Theobald, o comte de Senlis. Não era apenas um nobre, tal como ela previra naquele dia em Hampstead, mas um barão importante cuja posição era equivalente à de um conde inglês, e um conselheiro do rei francês. Só havia falado com ela o suficiente para se certificar de que não havia sido magoada ou molestada. Havia ignorado as suas perguntas exigentes. Todavia, ela suspeitava que havia sido trazida para cá sob a sua iniciativa e ordem, e não do presidente da Câmara.
Não obstante, era uma prisioneira. Prisioneira dele. com que objectivo e para que fim? As mulheres não sabiam. O comte não lhes revelara. Permanecia nesta casa dia
após dia, muito reservada, recusando tudo à excepção da hospitalidade necessária, e observava a chegada dos lordes e as consultas diárias na outra extremidade do salão.
A luz esmorecera. Ela ergueu-se e dirigiu-se a um banco sob a janela na parede mais longa do salão. Sentar-se-ia sozinha durante algum tempo e daria oportunidade às senhoras para que tagarelassem e especulassem a seu respeito. A-sua situação social pouco natural e forçada não ajudava a aliviar o pânico aterrador que trazia dentro de si desde que aqueles homens a haviam arrancado de sua casa. Admitia que o terror se havia intensificado desde que enfrentara o comte ao fundo da viela.
Durante os primeiros dias ali imaginara que David viesse salvá-la. Talvez trouxesse consigo Morvan e Walter Manny e outros cavaleiros para o auxiliarem. Subiriam o rio, atravessariam a ponte e entrariam na cidade a cavalo, exigindo a sua libertação. Tal como numa canção.
Fez uma careta perante a sua tolice. Se David estivesse a vir, já teria chegado. Na verdade, teria chegado antes dela. Ao regressar a casa e ver que ela não se encontrava lá podia ter saído de Londres e alcançado a costa de França antes do barco em que ela viajara.
Os seus raptores haviam-na arrastado para norte, quase até à Escócia, antes de garantirem uma travessia num porto recôndito. Uma perda de tempo que não fazia sentido, mas por outro lado, nada disto fazia sentido.
Havia fechado os olhos enquanto reflectia sobre a sua situação e o salão esbatera-se na sua mente. Uma ligeira agitação intrometia-se agora no seu devaneio.
Na lareira mais distante, o comte havia-se erguido da sua cadeira e inclinado o ouvido para um soldado que não parava de gesticular. O seu rosto iluminou-se com um grande sorriso. Voltou-se e disse algo ao presidente da Câmara. Um dos barões deu uma palmada alegre no ombro do outro.
A porta de entrada para o salão abriu-se e ela teve um vislumbre da antessala para além dele. Através da soleira viu um homem aproximar-se vindo do pátio. A luz de um archote reflectiu a sua armadura antes de a obscuridade da antessala o ocultar.
Outro barão. Vinham preparar-se para a invasão do rei Eduardo, evidentemente. Sem dúvida estavam a realizar-se por toda a França conselhos e reuniões semelhantes.
Um dos escudeiros do conde entrou primeiro, transportando um elmo e um escudo. Ela lançou um olhar ao brasão azul e dourado, recém-pintado e sem riscos. Cinco discos de ouro sobre três serpentes entrelaçadas, e uma marca no lado esquerdo do escudo simbolizando um filho bastardo.
Três serpentes entrelaçadas... um sobressalto percorreu-a e colocou-a em alerta. Sentou-se direita e olhou fixamente.
O cavaleiro entrou no salão. Alto e esguio, olhou placidamente em volta enquanto removia as luvas de couro. O seu corpo movia-se com agilidade na armadura grosseira, como se usasse uma segunda pele. Permaneceu ali de pé orgulhosamente e com um toque de arrogância. O cabelo castanho caia-lhe em desalinho sobre o rosto perfeito e queimado do sol. Os olhos azuis encontraram os dela.
Ela observava sem palavras. À sua direita, as mulheres voltaram-se para observar o recém-chegado vigoroso e atraente. À sua esquerda, o comte avançava na direcção dele, sorrindo, com as mãos estendidas.
- Bem-vindo a França, sobrinho.
David de Abyndon, o seu David, o seu mercador, voltou-se para o comte de Senlis.
Sobrinho! Assombrada, ela olhava para ele e para o conde e depois de novo para ele. Subitamente compreendeu a estranha familiaridade que sentira ao olhar para o rosto do homem mais velho.
Lançou um olhar a David, tão descontraído e natural na sua maldita armadura, assemelhando-se terrivelmente a um cavaleiro, aceitando o cumprimento familiar deste barão francês.
Evidentemente. Evidentemente. Por que razão não o havia visto antes? A estatura. A força. A ausência de deferência. Ele não lhe havia dito. Nem sequer o havia sugerido. Teve uma vontade louca de estrangular o marido.
O comte falava calmante e, com um gesto, incitou David a aproximar-se da lareira.
- Em primeiro lugar, quero ver a minha mulher - disse David e, rejeitando o interesse do tio, atravessou o salão em direcção a ela.
Ela ergueu os olhos das chapas de metal e fulminou-o com o seu olhar acusador. Ele retribuiu-lhe o olhar. Plácido. Impenetrável. Sereno.
- Estais bem e incólume?
- Para além de me sentir como uma ignorante e uma imbecil que desposou um estranho mentiroso, estou bem.
Ele inclinou-se para a beijar.
- Explicar-vos-ei tudo quando estivermos a sós - proferiu calmamente. - Agora vinde e sentai-vos junto de mim. Não leveis a peito aquilo que eu lhe disser, querida. Quero que o comte pense que não somos felizes juntos.
- Julgo ser capaz de vos ajudar nesse ponto.
O comte quis falar com David a sós. Havia dispensado a presença dos barões e do presidente da Câmara e franziu o sobrolho numa expressão de aborrecimento quando David se aproximou da lareira com Christiana.
- Graças a vós, agora estou a jogar tanto com a vida dela como com a minha - disse David. - Ela tem o direito de saber a minha situação.
Christiana sentou-se numa cadeira. David manteve-se de pé junto à lareira e ela observou-o com perplexidade, choque e ira. Todavia, de uma forma estranha, uma parte dela assentia, num gesto
de compreensão. Havia algo assustadoramente certo naquela sua aparência, como se a sombra que pairava sempre atrás dele tivesse subitamente tomado forma. Quem sois vós na realidade
Lançou um olhar ao comte e, pelo seu olhar de aprovação, constatou que ele via o mesmo que ela.
David voltou-se para o tio e permitiu que o seu descontentamento se inflamasse.
- Disse-vos que não a envolvêsseis nisto.
- Não viestes em Abril - respondeu o comte erguendo as mãos -, por isso procurei encorajar-vos.
- Não vim porque se levantaram tempestades assim que atingi as costas da Normandia. De que serviria entregar notícias que não teriam qualquer valor? A frota enfrentou grandes dificuldades para regressar a Inglaterra.
Então ele viera a França na Páscoa. Mas a verdade é que soubera disso assim que o vira entrar no salão.
- Tive homens à vossa espera em Calais e em St. Maio. Não viestes.
- Pensais que sou assim tão estúpido a ponto de correr o risco de ser reconhecido ao desembarcar num porto de comércio principal? Poderia eu ser assim tão descuidado?
O comte reflectiu sobre estas palavras e exibiu uma expressão de aceitação hesitante.
- Ainda assim, estais atrasado. Espero-vos há várias semanas. O exército está pronto para partir.
- Estou atrasado porque a minha mulher desapareceu e eu tive de procurá-la.
- Sabíeis onde ela estava.
- Não sabia nem podia sair de Inglaterra sem conhecer o seu destino.
- Eles deviam ter deixado... - disse o comte enrubescendo.
- Não me foi entregue nenhuma mensagem. - respondeu David, fitando o comte com dureza. - Enviastes Frans para fazer isto, não é verdade? Apesar do nosso acordo.
- Ele conhecia as pessoas e conhece os vossos hábitos.
- Sim. Mas confia em Lady Catherine, que não nutre qualquer afeição por mim. Mais uma vez apesar do nosso acordo. E ela tinha
para mim os seus próprios planos. Tive sorte de sair de Inglaterra com vida.
- Ela pôs a vossa vida em perigo? - inquiriu o comte ruborizando-se.
- Provavelmente assumistes que eu saberia, com mensagem ou não, que tínheis sido vós quem raptara Christiana. Que outra explicação poderia haver? O que vós não sabeis é que a minha mulher tem um amante que reside no Norte do país.
O comte lançou a Christiana um olhar fulminante de desapontamento. Ela desviou o olhar. David deveria ter uma boa razão para estar a contar tudo isto ao tio.
- Todavia, Lady Catherine sabia disto - prosseguiu David -, e por isso fez com que os homens que ela e Frans contrataram não me deixassem nenhum bilhete ou sinal, de modo a que eu me interrogasse se Christiana havia partido para os braços desse homem. Até a retiraram do país através de um porto no Norte, de modo a que eu pudesse seguir o seu rasto em direcção ao amante. E enquanto isso, o tempo ia passando e eu ainda me encontrava em Inglaterra. - Fez uma pausa e lançou-lhe um sorriso desagradável. - E durante esse tempo, Catherine foi ao encontro do rei e contou-lhe tudo a meu respeito. Tinha muito a dizer, porque Frans lhe revelara a minha relação convosco.
Uma expressão muito dura espelhou-se no rosto do comte. Christiana retrocedeu, assustada. Já vira aquela expressão, mas não no rosto deste francês.
- Encarregar-me-ei deles. Da mulher e de Frans.
- Já o fiz.
- Se a mulher vos denunciou a Eduardo, o que sabeis pode ser inútil. Ele pode alterar o porto.
As suas suspeitas estavam correctas, então. David planeava revelar a localização do porto ao conde e aos Franceses. Mas não em troca de ouro ou prata. E, como um filho de Senlis, nem sequer constituía uma traição. Todos os nobres sabiam e respeitavam a lealdade dos laços de sangue. Um juramento de preito e menagem ligava uma pessoa com igual força, mas um rei prudente ou um lorde jamais pediriam aos seus vassalos que escolhessem entre as duas obrigações.
- Pensei nisso - disse David. - E pode acontecer. Mas antes de me escapulir, soube que, mesmo duas semanas após ter escutado
a história de Catherine, o rei não havia mudado de ideias. Já havia enviado uma mensagem às forças inglesas no continente, e não houve tempo para desfazer isso.
Mas pode ter esperança de que vós penseis que ele o fez, para que não tenhais a tentação de enviar todas as vossas tropas para um mesmo lugar. Interrogo-me se ele não me terá deixado escapar com as notícias da traição de Lady Catherine de modo a lançar dúvida sobre o valor desta informação no caso de eu vo-la ter fornecido mais cedo.
Toda a atenção de David estava concentrada no tio, e aqueles olhos azuis nunca vacilaram no seu escrutínio do rosto do homem. Os olhos do próprio comte, castanhos e não azuis, e no entanto tão similares, pareciam igualmente penetrantes sempre que analisava David.
Quem sois vós realmente? Bem, agora já sabia. Estava demasiado atordoada e confusa para decifrar os seus sentimentos em relação a esta revelação surpreendente. Devia sentir-se aliviada. O seu marido não era um homem vulgar. O sangue de seu pai, o sangue que tinha importância, tinha sido de um nobre.
Então por que razão é que esta fúria pretendia, inexplicavelmente, perturbá-la?
O comte caminhava de um lado para o outro, assentindo com a cabeça.
- Creio que tendes razão. O Verão está a decorrer rapidamente. Se ele realmente vem, deverá fazê-lo agora. O exército dele já foi reunido. É demasiado tarde para alterar a rota - voltou-se na direcção de David. - Tende-lo, então?
- Tenho. Mais do que ele pensa. As estradas que ele tomará e a direcção. A dimensão dos seus exércitos. Tenho tudo.
O comte aguardou expectante.
- Tendes os documentos? - inquiriu David com um leve sorriso.
O comte soltou um suspiro de exasperação.
- Os meus estão aqui e têm testemunhas. O condestável trará os do rei assim que chegar. Mas perdemos tempo...
- Já quebrastes grande parte do nosso acordo verbal, e por causa disso, não me foi dada outra opção senão fazer isto. Não posso regressar a Inglaterra, e embora
um dia o rei Eduardo possa reconhecer a inocência de Christiana e recebê-la de volta, está agora
condenada a um futuro que também não escolheu. Não planeio começar uma vida aqui com o pouco ouro que trouxe comigo. Não vou mais longe sem os documentos.
Uma tensão perigosa pareceu paralisar os dois homens, e do comte emanava algo de ameaçador e sombrio. Christiana susteve a respiração. Também já havia sentido antes
esta presença sinistra. Interrogava-se acerca do que estaria o comte a pensar. Era tão indecifrável quanto David.
Excepto para David.
- Houve uma altura em que fui torturado no Egipto - disse David calmamente. - A mente dos Franceses não consegue competir com as invenções dos sarracenos em termos
de torturas. Não ganhareis tempo dessa forma, e tereis um herdeiro que só desejará a vossa morte.
Aqueles olhos castanhos voltaram-se subtilmente na direcção de Christiana sob umas pálpebras semicerradas. Um calafrio de horror provocou-lhe um formigueiro no pescoço.
Os olhos de David estreitaram-se.
- Não mancheis o vosso nome e o vosso sangue a pensar sequer nisso. Ela não sabe de nada, tal como a vossa esposa não saberia sob as circunstâncias.
Mas eu sei, pensou ela freneticamente. Suspeitava que este tio conseguia ler as pessoas tão bem quanto David. Baixou o olhar evitando a inspecção dele e rezou para
que ele visse apenas o terror palpável na sua face.
O comte reflectiu durante um momento e depois soltou uma gargalhada despreocupada.
- A que horas esperais o condestável?
- De manhã bem cedo.
- Também estais demasiado impaciente, então, e a considerar com demasiada rapidez a desonra. Admirais-vos que eu exija garantias por escrito?
Era uma censura perigosa para um mercador fazer a um barão, parente ou não. Carregada de desconfiança e insultos. Mas o comte parecia mais impressionado do que furioso.
- Todos os homens têm pensamentos que nunca poriam em prática, sobrinho. Considerar as várias opções não é o mesmo que optar por elas.
David franziu pensativamente o sobrolho e em seguida assentiu, como se tivesse compreendido totalmente a explicação do comte e tivesse razões para a aceitar como correcta.
Lentamente a tensão foi-se dissipando.
- Prometo que haverá tempo suficiente para mover as vossas tropas. Os navios ainda não estavam nem a meio dos preparativos para partirem - informou David.
Aquilo pareceu aligeirar ainda mais o ambiente. O comte sorriu de um modo agradável, até mesmo afável.
David encaminhou-se para ela e pegou-lhe na mão.
- Mostrai-me o nosso quarto, Christiana. Quero sair desta armadura que me provoca tanto calor após um dia inteiro ao sol.
- Enviar-vos-ei os meus escudeiros para vos auxiliarem declarou o comte -, e direi à governanta que vos prepare um banho.
Em silêncio, Christiana conduziu David pelo salão em direcção ao alto edifício ao lado onde se situavam os quartos.
- O homem deixa-me exausto - murmurou David enquanto caminhavam pela noite amena. -
É como negociar com a imagem que vejo no espelho.
CAPÍTULO 20
Os dois escudeiros removeram a armadura de David e não paravam de o tratar por vossa senhoria. Christiana observava, enfadada, o corpo imponente do marido em pé,
de pernas afastadas, enquanto a armadura ia saindo. Dir-se-ia que fizera isto uma centena de vezes.
Perto do lume brando que ardia na lareira, as criadas preparavam a água numa banheira funda de madeira. Uma das raparigas não parava de olhar para David e sorria docemente sempre que captava o olhar dele. Christiana agarrou nela pelo colarinho quando foi vertido o último balde de água.
- Ide-vos. Eu cuidarei do meu marido.
As criadas apressaram-se a sair. Os escudeiros terminaram a sua demorada tarefa e, despedindo-se alegremente, afastaram-se. David despiu as suas roupas interiores e instalou-se na banheira.
A visão do corpo dele perturbou-a mais do que pretendia admitir. Praguejou silenciosamente perante a sua fraqueza e a autonomia do seu coração traiçoeiro face à sua vontade e mente.
A nossa vida juntos tem sido uma, longa ilusão, pensou com irritação. Foi um erro pensar que poderia encontrar contentamento somente no prazer. Ele será sempre um estranho. Eu serei sempre o brinquedo que partilhará a sua cama mas não a sua vida. Dir-lhe-ei tudo o que tenho para lhe dizer e depois exigirei outro quarto.
Puxou por um banco, sentou-se e encarou-o.
- Não ides cuidar de mim? - perguntou.
- Lavai-vos - ordenou num tom perigoso, atirando-lhe com o sabão. - E falai.
- Ah - disse ele, pensativamente.
- E basta de "Ah", David. Mais um "ah" desses e afogar-vos-ei.
- Compreendo que estejais zangada, querida. Acreditai quando vos digo que passei por grandes tormentos para não vos envolver nisto. Não pretendia que soubésseis de nada. Eduardo jamais vos teria culpado pelos meus pecados. O comte surpreendeu-me com este rapto. Francamente, estou desiludido com ele.
- Estais mesmo?
- Sim. Esperava mais cavalheirismo da parte dele. Raptar e pôr em perigo a vida de uma mulher inocente... é realmente muito grosseiro.
- Ele pretende o nome do porto, David. Provavelmente matar-me-ia se pensasse que isso faria com que o revelásseis um minuto mais cedo.
- Esse é o motivo pelo qual eu pretendo que ele pense que não estamos felizes juntos. Não quero que ele comece a pensar que pode usar-vos contra mim. Assim que o condestável dEu chegar, obterei dele a garantia da vossa segurança antes de falar com eles. O condestável tem reputação de ser um homem honrado a ponto de ser estúpido.
- Comecemos pelo princípio - disse ela, revirando os olhos.
- O comte é realmente vosso parente?
- Parece que sim.
- Há quanto tempo sabeis?
- Durante quase toda a minha vida. A minha mãe falou-me do meu pai quando eu era criança, para que eu soubesse que não era um vulgar bastardo de rua.
- Por que razão não me dissestes?
- É uma afirmação fácil de fazer mas difícil de provar, Christiana. E a não ser que um bastardo seja reconhecido, não tem qualquer valor. - Ensaboou um braço, muito concentrado. - Teria adiantado, querida?
Desejava muito poder dizer que não.
- Poderia ter adiantado, no início.
- Então, lamento não vos ter dito.
- Não lamentais não. O vosso orgulho pretendia que eu vos aceitasse como mercador, não como filho de Senlis. Por vezes sois uma pessoa muito estranha, David. Não há muitos homens que pensem que o sangue nobre os pode rebaixar ao invés de elevar.
Ele lançou-lhe um olhar penetrante. Ela permitiu que ele visse a fúria que a inundava.
- Mentistes-me - disse ela. - Uma e outra vez.
- Apenas para vos proteger. Isto começou muito antes de nos conhecermos. Quis manter-vos fora disto, que o ignorásseis, de modo a serdes poupada se algo corresse mal.
- Sou vossa mulher. Ninguém acreditaria na minha ignorância.
- Sois a filha de Hugh Fitzwaryn e estivestes sob a tutela do rei. Todas as pessoas o acreditariam. Nem o rei nem os seus barões vos culpariam pelas acções do vosso marido mercador.
As desculpas fracas dele enfureceram-na. Ergueu os punhos e bateu no regaço.
- Sou vossa mulher! Se alguma coisa corresse mal eu teria de assistir enquanto despedaçavam o vosso corpo, ainda que eu fosse
poupada. Isso ainda pode vir a acontecer,
pelo que me é dado saber. Mas o pior é que vos escondestes de mim, escondestes a vossa verdadeira natureza, quem vós sois.
- Há meses que não sois minha mulher - disse, com uma dureza em redor dos olhos e da boca. - Deveria ter confiado naquela rapariga que vivia em minha casa como uma
convidada ou uma prima?
- É bem melhor ser uma convidada do que uma peça de arte valiosa. É bem melhor ser uma prima do que um fragmento de propriedade adquirido para salvar o orgulho ferido
do filho esquecido.
- Se realmente acreditais nisso - respondeu com um lampejo de fúria no olhar - então não há motivo para vos explicar nada. Independentemente de tudo o que vos disse
naquele dia, devíeis conhecer-me melhor.
- Conhecer-vos melhor? Neste momento não sei se vos conheço de todo, maldito sejais. E não insinueis que foi a nossa separação que vos obrigou a manter a mentira.
Não tínheis qualquer intenção de me dizer fosse o que fosse até estar tudo terminado, por muito submissa que eu tivesse sido. O que aconteceria então? Teríeis
ficado em França e ter-me-íeis mandado chamar? Ter-me-íeis escrito uma carta para que viesse ao vosso encontro?
- A minha intenção foi sempre, e continua a ser, dar-vos uma escolha.
- A sério? Bem, o vosso tio fechou essa porta!
- Isso é o que ainda vamos ver.
Afastou o olhar dele para se recompor e alisou a saia do vestido.
- Quero que me conteis tudo. Agora. Para que eu saiba da minha situação e das minhas opções. Desde o princípio.
Ele contou-lhe tudo enquanto se lavava.
- Começou tudo de uma forma simples. Eduardo pediu-me que elaborasse os mapas. Ocorreu-me que quando chegasse a altura, eu poderia ficar a saber o porto que ele escolhera a partir das questões que ele me colocasse acerca deles. Nunca perdoei o meu pai pelo que ele fez a Joanna. Ele destruiu-a e deixou-a à mercê do mundo. Talvez também me sentisse ressentido com ele por me ter ignorado e negligenciado. De qualquer forma, sem esperar que realmente funcionasse, comecei a cometer erros suficientes em França de modo a que alguém que estivesse a prestar atenção pudesse suspeitar do meu comportamento. E comecei a usar as três serpentes como emblema no meu selo. Estavam gravadas num anel que o meu pai deixou à minha mãe. Ela pensou que era um anel de noivado, mas eu penso que a intenção dele era pagar-lhe os seus favores.
Fez uma pausa e começou a ensaboar as mãos. O gesto distraiu-o. Christiana observou-o a examinar a espuma branca e depois a barra de sabão. Teve de sorrir. A mulher do mercador havia ficado igualmente distraída durante o seu primeiro banho naquela casa.
- Provêm de uma cidade perto do Loire - disse ela.
- Soberbo, não é? - observou enquanto aspirava o seu odor.
- Quanto será...
- Vinte barras grandes por um marco. Ele arqueou as sobrancelhas. Ela observou-o enquanto, em silêncio, David calculava o custo da importação e o lucro potencial.
- David - disse ela, chamando-o. "
- Sim. Bem, o meu plano era fazer com que o comte soubesse da minha existência, que se apercebesse da nossa ligação e depois que me abordasse por causa do porto. Eu resistiria e deixá-lo-ia persuadir-me, jogando com os laços de parentesco. Eu compadecer-me-ia
e não aceitaria qualquer pagamento, de modo a que ele pensasse que eu o estava a fazer em nome do nosso sangue, e deste modo confiasse em mim. Mas depois dar-lhe-ia o nome do porto errado. O exército francês iria numa direcção e Eduardo viria de outra, e o caminho estaria assim livre para uma vitória inglesa.
Ela fitou a expressão dele. Neutra. Indiferente. Como se os homens fizessem esse tipo de maquinações elaboradas a toda a hora e passassem anos a manipular as peças.
Ele diverte-se com isto, apercebeu-se ela. Viajou para o Continente Negro e atravessa os Alpes ano sim, ano não. Necessita da aventura, dos planos, do desafio.
- E teríeis punido essa família pelo destino da vossa mãe acrescentou ela.
- Isso também. Duvido que o comte de Senlis permanecesse no conselho do rei depois disso. Seria apenas uma perda de estatuto e honra, sem nenhum agravo de maior.
Ao contrário da queda de Joanna. Ainda assim, era alguma justiça.
- Então, o que correu mal?
- Nada. Decorreu tudo como eu havia planeado. À excepção de algumas surpresas. A uma dada altura, Honoré, o último comte, faleceu, e o seu irmão, Theobald, tomou o seu lugar.
Ela pôs-se de pé e caminhou lentamente pelo quarto. Aguardou pelo resto. David esperou ainda mais.
- O que queríeis dizer quando vos referistes ao facto de o herdeiro dele lhe desejar a morte?
- A outra surpresa. A grande surpresa. Ele não me ofereceu prata. Ofereceu-me o reconhecimento e Senlis. Os filhos de Honoré e os de Theobald estão mortos. Ofereceu-se
para jurar que o irmão dele e a minha mãe haviam feito votos secretos. Seria
uma mentira, mas garantiria o meu direito a herdar.
Ela fitou-o.
David. O seu mercador, comte de Senlis.
- Houve homens que se deixaram tentar e cometeram traições por muito menos, minha menina.
- Dissestes que não tínheis qualquer interesse em serdes cavaleiro.
- Querida - respondeu ele com uma gargalhada -, ser um
cavaleiro é uma coisa. Ser um barão proeminente e conselheiro do rei de França é outra.
- Ides fazê-lo, então?
- Ainda não decidi. O que pretendeis que decida?
- Não, David. Começastes isto há muito tempo. Não lanceis agora para cima de mim a decisão.
Ela começou de novo a caminhar, pensando em voz alta.
- Há muitos homens que juram fidelidade a dois reis ou a dois lordes. Muitos barões ingleses possuem igualmente terras em França. Todas as pessoas compreendem que, por vezes, as lealdades entram em conflito.
Ele estendeu o braço e segurou no dela no momento em que ela passava junto a si. A mão dele segurou-a com firmeza e David fitou-a, abanando a cabeça.
- Não finjamos que enfrento algo diferente daquilo que é. O que dizeis é verdade, mas há regras que decidem a forma de um homem agir nesses casos. Isto é diferente. Se eu ajudar o comte e França, se eu fizer isto, estou a trair uma confiança, uma amizade e o meu país. Pelo preço que me é oferecido, não estou longe de o fazer, mas não vou fingir que é mais bonito do que o é na realidade.
Maldito seja. Maldito, Havia ambiguidades suficientes neste caso para um bispo conseguir racionalizar as suas acções. Ele podia pelo menos deixá-la encontrar algum conforto nelas.
- A França é o vosso país, David - realçou ela. - O vosso pai era francês.
- Na verdade, descobri que não é a Inglaterra que me preocupa, ou até mesmo Eduardo. Houve barões que o trataram de forma muito pior, e ele possui uma grande capacidade para compreender e até mesmo perdoar tais coisas. Não, é Londres que tem estado na minha mente. Se não fosse pela minha cidade, não me parece que hesitasse. - Ergueu o sabão e prosseguiu. - Uma vez que dispensastes as criadas, podíeis pelo menos lavar-me as costas.
Ela ajoelhou-se atrás dele e passou-lhe o sabão sobre os músculos. Apesar do turbilhão interior, não podia deixar de reparar que era a primeira vez que tocava no corpo dele desde há vários meses. Uma ligeira tensão sob a palma da mão indicou-lhe que ele sentia o mesmo.
- Mentistes-me em Abril. Viestes a França e não a Salisbury.
- Não podia envolver- vos, daí não ter dito a verdade - replicou, lançando um olhar sobre o ombro. - Aquele dia, no quarto de vestir. As vossas questões. Quais eram as vossas suspeitas?
- Na verdade, suspeitava de quase tudo, mas não acerca do vosso pai. Escutei a primeira abordagem que Frans vos fez. Eu estava escondida na passagem secreta. Mas não tinha a certeza de que éreis vós. Soube que ele era um agente da causa francesa. Vi-o encontrar-se convosco de novo em Westminster. Quando o comte veio a Hampstead, ouvi a sua voz antes de partir. Soube que ele era francês e que era um nobre.
- Pensastes que eu ia vender os planos de Eduardo por dinheiro?
- Era uma explicação. Na verdade, só o dinheiro é que não fazia sentido. Apreciais a vossa riqueza, mas sois um homem demasiado generoso para fazerdes algo por ganãoncia.
- Se sabíeis assim tanto - disse, voltando-se para ela -, admiro-me que não tivésseis partido mais cedo, enquanto eu estive fora, para vossa própria segurança e
pela honra da vossa família. Podíeis ter-me denunciado a Eduardo com as vossas suspeitas. Por que não o fizestes?
Ela desviou o olhar daqueles olhos sagazes. Não pretendia ficar exposta à vulnerabilidade que a resposta provocaria. Além disso, era a sua vez de colocar questões.
- Dissestes que regressaríeis em Abril e eu acreditei em vós. Também mentistes acerca disso?
- Ainda não havia decidido o que faria quando aqui chegasse, mas, em qualquer dos casos, esperava regressar - respondeu sacudindo a cabeça. - Se tivesse revelado ao conde o porto de Bordéus, e ele tivesse ido para lá, Eduardo jamais teria suspeitado de mim ou de qualquer outra pessoa, ainda que toda a França aguardasse lá por ele. Metade do exército deles está já no sul a lidar com Grossmont. Os restantes podiam ter recebido relatório dos navios que desciam pela costa, ou terem ido para reforçar o cerco em Angillon. Eu tinha grandes esperanças de regressar, assumindo que Theobald o permitiria.
O olhar fixo de David, a sua voz suave e o rosto dele tão perto do seu desconcertavam-na. A determinação de Christiana começou a afrouxar. Empurrou-lhe o ombro para poder retirar o sabão, e ele voltou-se para a frente.
- Mas agora Lady Catherine denunciou-vos a Eduardo, por isso não podeis regressar. Por que razão faria ela uma coisa dessas? Estará zangada por causa da propriedade em Hampstead?
Ele não respondeu durante alguns momentos. Ela suspeitava que ele estava a reflectir sobre a resposta a dar.
- Lady Catherine e eu temos uma longa história. A questão da propriedade é recente e apenas uma parte pequena dela. Ela feriu-me gravemente quando eu era adolescente. A prova encontra-se agora debaixo dos vossos dedos. Há alguns meses atrás, respondi-lhe à altura.
Ela retrocedeu, chocada. Observou as costas fortes de David e as cicatrizes diagonais que as atravessavam. Apesar da sua determinação em tratá-lo com a mesma indiferença
com que ele a tratava, sentiu um aperto no coração.
Não precisava de ouvir a história, pois podia imaginá-la. Os seus dedos deslizaram ao longo daqueles vergões finos e permanentes. Imaginou-o a ser vergastado, ainda
um rapaz. Viu Lady Catherine, segura na imunidade que lhe concedia o seu estatuto de nobre, ordenando aquilo devido a alguma suposta descortesia ou delito. Não em
Londres, evidentemente. Mesmo como aprendiz, estaria protegido lá.
Havia respondido à altura. Será que pretendia dizer que agora a pele de Catherine possuía cicatrizes idênticas? Ela tinha esperança que sim.
Sentiu uma onda de ternura pelo jovem que havia sido tão brutalmente maltratado. Resistiu com dificuldade ao desejo de beijar aqueles vergões.
Isto é uma loucura, censurou-se. Ele não pretende compaixão ou ternura da minha parte. Não faço parte desta história nem desta vingança. E também não tenho nenhum
papel no espectáculo que agora está a desenrolar-se. Quando muito, sou uma inconveniência com a qual o comte complicou os planos dele.
- Dizeis que ainda não decidistes o que fazer, David. O que acontecerá se não lhe revelardes um porto amanhã?
Sentia-se feliz por não poder ver o rosto dele. Se ele lhe mentisse, ela não queria saber.
- O comte fez todos os possíveis para garantir que isso agora não seria uma opção. Catherine foi denunciar-me a Eduardo, tal
como eu disse, mas a surpresa do comte em relação a essa notícia era falsa. Foi ele que lhe ordenou que me traísse, para me forçar a alinhar nisto. Contudo, o plano de me manter em Londres para que Eduardo me pudesse capturar é dela. Ainda assim, ele procurou forçar-me a sair de Inglaterra, e raptou-vos para que eu tivesse de vir até aqui. com a minha vida em perigo em Inglaterra, ele sabe que esta oferta se torna muito atractiva. - Fez uma pausa - Por outro lado, parente ou não, não sei se ele me permitirá sair daqui com vida se eu lhe recusar o que ele pretende.
Ela desejou que ele lhe tivesse mentido.
- Então não tendes escolha.
- Claro que tenho.
Ela sentiu-se mal. Por um lado, esperavam-no o estatuto e a riqueza. Mais do que ele alguma vez esperara alcançar na vida. Senlis era dele por direito e dever e ele devia aceitar. Mas, santo Deus, homens que ela conhecia e amava viriam naqueles navios para França. O seu irmão, o seu rei, Thomas e outros... e agora ele acabara de dizer que Theobald o mataria se ele não cooperasse.
Esse facto não devia importar-lhe. Ele não devia ter importância para ela.
Ela quase o abraçou e pediu que encontrasse uma forma de aceitar ambas as opções e, por conseguinte, nenhuma delas.
Ela regressou para o banco.
- Estivestes realmente a ponto de serdes capturado?
- Ninguém me desafiou ou questionou. A armadura provou ser um excelente disfarce, uma vez que há imensos cavaleiros a deslocarem-se por toda a Inglaterra. Até mesmo aqui, ajudou-me a viajar sem suspeitas.
- E o brasão no vosso escudo?
- Gostais dele? Dificilmente poderia fazer-me passar por um cavaleiro usando um escudo em branco. Felizmente, não encontrei nenhum heráldico, que teria imediatamente reconhecido que era um brasão novo e não oficial.
- Seguistes-me até ao Norte, então?
- Sim. - Ele lançou-lhe um olhar penetrante. - Não vos preocupeis. Não sofreu sequer um arranhão. Muito embora, quando Sieg ameaçou fazer dele um eunuco, eu pensei que ele fosse morrer de
medo. Uma vez que o salvei disso, é provável que agora esteja disposto a dar a sua vida por mim.
Ela lançou um olhar à lareira, pouco se importando se Sieg havia feito de Stephen um eunuco, fosse lá isso o que fosse.
- Ainda nos atrasámos mais quando Oliver insistiu em acolher a rapariga que se encontrava com Stephen sob a sua asa e tentar salvá-la da ira da família.
Ela quase não escutou o que ele dizia. Caminhou em direcção à lareira, pegou no balde de água que ali estava a aquecer e levou-o para junto da banheira.
Notou o olhar de David fixo nela.
- O que se passa? - perguntou.
- Não ouvistes o que eu disse? Não estais com ciúmes? Eu disse que havia uma rapariga com ele.
Christiana semicerrou os olhos.
- Para um homem inteligente, conseguis ser um idiota! - gritou, vertendo a água sobre a cabeça dele.
Virando o balde ao contrário, enfiou-o na cabeça de David e afastou-se tempestuosamente.
Ficou a olhar para a parede, cega de fúria. Ouviu-o sair da banheira e secar-se. Alguns momentos mais tarde ele apareceu atrás dela.
Tocou-lhe ao de leve no ombro.
- Ainda não acreditais em mim - disse num tom áspero, sacudindo-lhe a mão. - Contastes-me mentira atrás de mentira, enquanto eu só vos ofereci a verdade desde o início. Assumis que todas as pessoas vivem o mesmo tipo de imposturas que vós?
- Acredito em vós. Mas interrogo-me se ainda o amais. Nunca me dissestes que havíeis deixado de o amar.
- Disse-vos que estava terminado.
- Não é a mesma coisa.
- Se vos interrogáveis, devíeis ter-me perguntado, então. Ele aproximou-se mais e falou num tom suave.
- Não vos perguntei, da mesma forma que vós não me perguntastes acerca de França, e pelas mesmas razões. Não falámos um ao outro acerca dos assuntos que nos poderiam magoar. Nunca vos perguntei porque tinha receio da resposta. Tive esperança de que o tempo resolvesse tudo. Mas o tempo esgotou-se e eu estou a perguntar-vos agora. Ainda o amais ?
Ela fechou os olhos, desfrutando do som da sua bela voz, e desejou que os seus tons suaves não estivessem a colocar esse tipo de questões. Receava o rumo que podiam tomar.
Ainda assim, ele tinha razão. Finalmente, hoje, ele havia-lhe concedido franqueza. Ela não devia agora dar início aos seus próprios enganos. Mas a franqueza em relação a eles os dois podia muito bem deixá-la desprovida de tudo, pois destruía a frágil determinação com a qual a sua fúria dominara a paixão e o amor.
- Já não sinto nada por ele e duvido que alguma vez o tenha amado.
- Por que razão duvidais?
Porque só agora sei o que é o amor, quase respondeu.
O silêncio pulsava à medida que ele aguardava pela resposta dela. De repente, Christiana sentiu-se terrivelmente vulnerável. Esta era segunda questão que, se fosse respondida com honestidade, requereria uma confissão do seu amor.
E porque não dizer-lhe? Admitir a verdade e depois sair porta fora. Fez uma careta. Um gesto grandioso que não surtiria o drama e o impacto desejado. Ele limitar-se-ia a deixá-la-ia ir, e depois continuaria a viver a vida que escolhera para ele. Não se importava o suficiente com ela para se deixar afectar por uma confissão ou rejeição.
- Por que razão acreditais em mim agora acerca desse encontro, David? Stephen disse-vos a verdade? Acreditastes naquele louco quando não havíeis acreditado em mim?
- Ele disse-me a verdade. Porém, naquelas circunstâncias, ter-me-ia jurado ser casto desde o nascimento. Mas não fez qualquer diferença, porque eu já acreditava em vós. Sempre que pensava naquele dia, continuava a ver uma bela jovem a correr para os meus braços, repleta de alegria e não de culpa ou receio. - As mãos dele agarraram-na suavemente pelos ombros. - O que queríeis dizer-me naquele dia?
Mais uma pergunta perspicaz.
Ele suspeita, apercebeu-se, alarmada. A sua mente viu aquilo que a fúria não permitiu.
Christiana tornou-se subitamente consciente do calor e do aroma dele por trás de si. O silêncio ficava cada vez mais tenso à medida que algo mais emanava dele. Algo expectante e impaciente.
Ansiava por lhe dizer, mas recordou-se de tudo o que lhe dissera naquela tarde no quarto de ambos. Recordou-se de como o evitara, como rejeitara os seus afectos durante o noivado. Imaginou o aprendiz a ser torturado segundo os desejos da nobre Lady Catherine.
Não poderia, por isso, dizer-lhe agora. Ainda que David atribuísse pouco valor aos seus sentimentos por ele, iria pensar que esta mudança no destino, de mercador para herdeiro de um barão, fizera com que ela descobrisse repentinamente o seu amor por ele.
- Não me recordo - murmurou.
Ele permaneceu em silêncio, afagando-lhe ternamente os braços. Ela fechou os olhos, absorvendo aquele toque, a proximidade dele. A intensidade excitante que emanava dele envolvia-a de uma forma aliciante e sedutora.
Apesar do nó com que as revelações do dia haviam amarrado as suas emoções, apesar da sua decisão de abandonar este estranho, não deixou de sentir um enorme conforto com a sua terna carícia.
- Agora preciso de algumas informações da vossa parte - disse David por fim.
- Nenhuma história que eu vos conte será de perto tão interessante quanto a vossa.
- Molestaram-vos de alguma forma?
- Não, nem por isso. Cavalgámos durante alguns dias, o meu traseiro ficou dorido da sela e a minha pele avermelhada do sol do Verão, mas foi tudo. Pernoitávamos em estalagens simples, e partilhávamos um único quarto abafado, mas os homens não me incomodaram, embora um deles me fitasse de uma forma demasiado audaciosa para que eu me sentisse tranquila. A comida era horrível e a viagem por mar assustadora. Cheguei aqui parecendo a pior das camponesas, e com um odor demasiado desagradável para poder ser uma companhia decente, mas não fui molestada.
Ele voltou-a para si. Envergava uma túnica longa e folgada, algo semelhante ao que um sarraceno usaria. Fitou o rosto dele e avistou emoções ocultas sob a sua expressão calma, emoções que nunca vira nele. Preocupação. Indecisão. Dúvida. Afigurava-se-lhe muito menos controlado do que durante o banho.
- Se eu fizer isto, não necessitareis de ficar - disse, tocando-lhe no rosto. - Em breve, Eduardo aceitará que não tivestes parte nisto. Podereis regressar a casa.
- Foi por isso que colocastes as propriedades em meu nome? questionou, fitando-o, o amor que sentia por ele a apertar-lhe o coração. Aquele contacto da pele dele
na sua era o suficiente para despertar todos os seus sentidos. - Para que não pudessem ser confiscadas?
- Sim. Havia sempre a possibilidade de Eduardo escutar o suficiente para suspeitar de mim, independentemente das minhas intenções. Não quis que ficásseis dependente de alguém se este jogo perigoso corresse mal.
- Por que razão não esperastes? Para vos casardes? Dissestes que isto começou muito antes de nos conhecermos. Muito antes de terdes oferecido dinheiro por mim. Para
quê complicar as coisas desta forma para vós?
Mas no exacto momento em que pronunciava estas palavras, uma estranha sensação percorreu-lhe o corpo. Um pensamento que não desejava enfrentar intrometeu-se, impondo-se
na sua mente com determinação e firmeza. A resposta para uma das primeiras e mais pertinentes questões que alguma vez lhe haviam surgido em relação ao homem que a fitava.
Santo Deus. Santo Deus. Até mesmo isso havia sido uma mentira, uma ilusão! Não era muito, mas pelo menos, enquanto o amor que sentia procurava um compromisso com a sua vida, havia sido algo a que se agarrar.
Os dedos dele ainda permaneciam no rosto dela. Christiana contemplou, desesperada, aqueles olhos azuis e procurou o mesmo tipo de conhecimento que obtivera dele durante os momentos de maior intimidade. Perscrutou através dos véus e da intensidade, tentando ver a sua alma.
- Nunca oferecestes dinheiro por mim, pois não? - perguntou. - Foi ideia de Eduardo. Ele propôs-vos este casamento, talvez por mim, mas em especial para obter dinheiro da vossa parte. Não podíeis recusar o pedido dele.
Ele tomou o rosto dela nas suas mãos, inclinou-se mais na direcção dela e fitou-a directamente nos olhos. O controlo e o comedimento desapareceram e ele permitiu-lhe ver o que ela procurava. Permitiu que ela perscrutasse por entre as sombras e as camadas, até às profundezas do seu ser. Despido de todas as defesas e armadura, enfrentou a inspecção dela. Ela susteve a respiração perante as emoções que subitamente se expunham à sua frente.
- Não - respondeu calmamente. - Vi-vos, desejei-vos e paguei a Eduardo uma fortuna por vós. E não esperei porque não podia. Foi egoísmo da minha parte. - Os seus polegares afagaram as maçãs do rosto dela. - O meu tempo esgotou-se, Christiana. Necessito de saber quais são as minhas verdadeiras opções, e aquilo que ganho e o que perco. Se eu fizer isto, ficareis comigo?
Ela quase não escutou as palavras dele porque a assombrosa verdade escrita no seu interior tornava os motivos que haviam dado origem a este casamento subitamente irrelevantes. Não conseguia desviar-se daquele olhar afectuoso e subjugante e não queria perder esta ligação tão repleta de sentimento, este conhecimento total que ele lhe oferecia. Duvidava que alguma vez ele tivesse deixado alguém vê-lo desta forma, até mesmo a sua mãe.
Tudo estava reflectido naqueles olhos penetrantes. Tudo. A culpa de a ter exposto ao perigo. O medo de si mesmo. Os seus desejos ardentes e penosos, as suas ânsias e inclinações sinistras. Mas, iluminando todas essas sombras, aquecendo as suas gélidas profundezas, brotava uma emoção resplandecente que ela reconheceu pela sua beleza, alegria e salvação. O amor que havia dentro dela derramou-se e encaminhou-se, reconhecido, nessa direcção. Os lábios dele entreabriram-se e um calor glorioso inundou o seu olhar. De David emanou um alívio intenso e angustiado.
- Ficareis? - repetiu, com o rosto a uns milímetros do dela.
- Não partirei - murmurou, pois não poderia existir outra resposta depois do que havia visto. - Nobre ou mercador, ficarei convosco.
David puxou-a para si e envolveu-a num abraço e num beijo. Ela apertou os ombros dele e perdeu-se na emoção ardente de uma intimidade ternurenta. Durante um momento eterno e ofegante, os corpos de ambos pareceram dissolver-se naquele resplendor ofuscante.
A ligação e o entendimento eram tão completos que ela não sentia necessidade de falar. Mas David, sim.
- O que queríeis dizer-me naquele dia, Christiana? :
- Não percebestes logo? Estava certa de que conseguiríeis vê-lo imediatamente.
- A minha ira e a minha dor cegaram-me para tudo o resto. Saí daquele barco com a cabeça e o coração repletos de amor por vós,
Mas a história de Oliver dilacerou-me como uma adaga e converteu-me num louco.
Ela ergueu os olhos para os de David, tendo ficado sem saber o que dizer perante a calma articulação daquilo que acabara de ver e sentir nele. Ao ser o primeiro a pronunciar estas palavras, ele tornara as coisas mais fáceis para ela. Era algo que ele fazia sempre, e fizera-o durante todo o tempo em que haviam estado juntos. De início, talvez por simpatia e compreensão, mas mais tarde por causa do amor que sentia por ela.
Christiana tocou-lhe no rosto e permitiu que os seus dedos vagueassem pelas saliências bronzeadas das maçãs do rosto e do maxilar, e acariciou-lhe os lábios.
- Naquele dia queria dizer-vos que estava apaixonada por vós. Compreendi-o quando Catherine me entregou a Stephen. O sentimento estava ali, tão óbvio e completamente real. Soube que vos amava já há algum tempo.
Ele beijou-a novamente, com tanta suavidade e ternura que a a mera ideia do amor que ele agora lhe demonstrava a preencheu ao ponto de se sentir leve como uma pena.
Os lábios dele aproximaram-se da orelha dela.
- Eles raptaram-vos do meu quarto, no andar de cima. Geva não havia tocado em nada quando eu regressei.
A sua voz calma e bela aqueceu-a quase tanto quanto o seu hálito e o seu toque. Uma paz deliciosa fluía através dela como uma brisa. Sentiu-se grata por ele saber que ela amara David, o mercador, muito antes de saber toda a verdade acerca dele, e satisfeita por ele saber que ela havia regressado de sua livre vontade.
- Quereis-me, Christiana? Vireis agora deitar-vos comigo?
- Sabeis que sim, sabeis que o farei.
David abraçou-a e permitiu que o amor inocente e a alegria de Christiana o subjugassem. Desde que regressara a casa e vira a cama em desordem, o seu desejo físico
por ela pulsava a um ritmo profundo e constante no seu corpo e na sua alma. Agora, contudo, resistia ao impulso de a levar para a cama. O abraço terno com que ela
o envolvia confortava-o como nenhuma paixão jamais o faria.
Nobre ou mercador, ficarei convosco. Era mais do que aquilo que ele pedira e muito mais do que merecia.
Ela interrompeu o longo beijo e sorriu-lhe.
- Passou tanto tempo que vos esquecestes de como se faz?
- Sim. Talvez devesse ter continuado a praticar - disse com uma gargalhada.
O sobrolho dela elevou-se em surpresa e ele soltou outra gargalhada.
- Não houve mais ninguém. Descobri que estar sentado junto de vós à lareira é mais emocionante do que seduzir uma estranha e enfiar-me na sua cama.
- É estranho, David - respondeu ela, franzindo o sobrolho.
- Estáveis ali e amáveis-me. Eu estava ali e amava-vos. E nenhum de nós o viu. Por que razão? Vós vedes tudo. Será que as palavras cruéis e impensadas podem construir tamanhas muralhas?
- Isso acabou, não temos de...
- Mas eu quero. Eu disse o que disse para vos magoar, e vós fizestes o mesmo. Lançámos um ao outro os nossos medos e ilusões, e cada um de nós acreditou nas palavras do outro, embora a verdade estivesse ali bem à vista. - Fitou-o atentamente. - Se eu tivesse pensado com clareza nessa altura, como fiz desde então, teria sabido que vós nunca pensastes em mim como vossa propriedade. Na verdade, agíeis exactamente ao contrário. Se realmente adquiristes para vós uma prostituta nobre, nunca fizestes muito uso dela, pois não? Porquê?
Ela surpreendeu-o. Estava a amadurecer e olhos vistos, e a sua inteligência aguçada, liberta do abrigo que a isolava, tinha já começado a ver a essência das coisas.
Ele amava a rapariga. Suspeitava que iria venerar a mulher.
- Éreis muito inocente, querida.
- Não era assim tão inocente. As mulheres falam com as raparigas antes de elas se casarem. Eu sabia que os homens geralmente esperavam mais das mulheres do que vós alguma vez exigistes de mim. Eu sabia que podia haver mais coisas no acto do amor do que vós procurastes.
- Não estivemos juntos muito tempo, Christiana. Ela mordeu o lábio inferior, pensativa.
- Não me parece que tenha sido esse o motivo. Vós sabíeis quem éreis, mas eu não. Penso que receastes que eu me sentisse humilhada e usada. Devido ao vosso orgulho, David, não me tratastes como uma igual na nossa cama.
Ela deixou-o abismado. Ele havia sido muito cuidadoso com ela. Nunca havia ido para além dos actos impulsivos da noite de núpcias. O comedimento surgira naturalmente nele e nunca pensara muito nisso, mas agora tinha de admitir que existia alguma verdade nas palavras dela.
Uma expressão muito mundana e determinada tremeluziu naqueles olhos de diamante.
- Tenho sentido ciúmes, sabíeis? Não gosto de saber que fizestes coisas com Alicia e com as outras que nunca fizestes comigo. Nobre ou mercador, eu ficarei convosco, mas não como uma taça preciosa que tendes medo de quebrar.
De uma forma brincalhona, empurrou-o para trás, contra o pilar da cama. Inclinou-se na sua direcção, pressionou o corpo contra o dele, baixou-lhe a cabeça com a mão e beijou-o. Ele entregou-se àquele súbito acesso de erotismo. Como um relâmpago, a tensão cresceu e difundiu-se.
Ela olhou para cima, muito satisfeita consigo mesma. Segurou-a pelas ancas e ela roçou-se contra ele intencionalmente. As semanas de necessidade e espera provocaram nele uma resposta impetuosa e David ergueu-a para um beijo devorador e obscuro. Ela entregou-se a esse beijo e a paixão de ambos fundiu-os. Mas, em seguida, as mãos dela moveram-se sobre os ombros e pelo peito dele, empurrando-o subtilmente.
- No dia do meu casamento, uma criada deu-me umas lições muito explícitas - declarou, olhando mais para o peito dele do que para o rosto. - Ela disse-me que os homens gostam de ver as mulheres a despirem-se. Agradaria ao meu marido mercador se eu me despisse agora?
Olhou para ele e enrubesceu. Ao escutar estas palavras, David pensou que o coração lhe iria despedaçar o peito. Ela voltou-lhe as costas e afastou-se, com as mãos a desatarem os nós dos atilhos do vestido. Este gesto simples quase o descontrolou. Encostou-se contra o pilar da cama e ficou a observá-la de braços cruzados.
Havia-a visto despir-se muitas vezes, evidentemente, mas não desta forma. Ela movia-se de uma forma tão sedutora, que o súbito embaraço por se descobrir assim observada quase não se notava. Mas dava para perceber que ela sentiu imediatamente que aquilo era mais difícil de fazer do que havia imaginado. Fez os possíveis por não sorrir perante o ligeiro rubor no seu rosto e o olhar ardente nos seus olhos quando Christiana se voltou e deixou o vestido deslizar até ao chão. Baixou-se para tirar as meias.
- Não - disse ele. - Primeiro a combinação.
Ela endireitou-se. Cruzando os braços sobre o peito, e assemelhando-se muito à donzela tímida que fora recentemente, fez deslizar a combinação pelos ombros. As mãos acompanharam a sua descida, afastando-se para revelar primeiro os seios e depois as ancas e as coxas.
A peça de vestuário leve tombou aos pés de Christiana e ela libertou-se dela. Fixou o olhar no chão antes de o erguer para fitar David. O lampejo naqueles olhos de diamante disse-lhe que ela acabara de descobrir que aquilo podia excitar tanto uma mulher quanto um homem.
A beleza dela hipnotizava-o como sempre. O seu franco desejo de lhe proporcionar prazer transformou o prazer em si. Aquela necessidade desesperada de David conteve-se, não passando agora de uma tempestade ameaçadora mas controlável. Ele sabia que podia navegar indefinidamente nos seus ventos.
- Agora as meias.
Christiana baixou-se e os seus braços graciosos alcançaram a liga da sua perna estendida. David vislumbrou o movimento decrescente e progressivo do ombro até à cintura e o formato suave das suas ancas por trás. Os seios dela, tensos de ansiedade, pendiam redondos, cheios, perfeitos, à medida que ela ia enrolando a meia pela perna abaixo.
- Voltai-vos para tirardes a outra.
Ela voltou-se para ele, surpreendida, mas depois fez o que ele pedia.
As curvas graciosas das suas ancas e nádegas proporcionavam-lhe uma visão arrebatadora enquanto ela se baixava para desatar a liga. Devia ter sentido a sua vulnerabilidade, porque a coragem abandonou-a e ela desenrolou rapidamente a meia pela perna.
Endireitou-se e encarou-o com uns olhos que mais pareciam estrelas líquidas. Ele permitiu que a imagem dela ficasse gravada na sua memória. Christiana não era baixa,
nem sequer pequena, mas magnificamente constituída na sua esguia voluptuosidade.
- O vosso cabelo, Christiana. Soltai o vosso cabelo para mim. Os braços dela ergueram-se enquanto procurava os ganchos.
O movimento fez-lhe subir os seios e os seus mamilos endurecidos apontaram para cima. Desentrançou os cachos negros que começaram a espalhar-se sobre as suas costas. Ele não fez qualquer esforço para ocultar o que sentia.
- Vinde, minha rapariga, beijai-me como uma noiva apaixonada deve fazer.
Christiana encaminhou-se lentamente na direcção dele, com uma expressão convidativa que revelava a paixão, o amor e a alegria que sentia.
Mais do que ele alguma, vez esperara. Muito mais do que merecia.
A aurora estava a uma eternidade de distância.
Ela aproximou-se e pousou as mãos no peito dele. Ergueu a cabeça para David e ele baixou-se e recebeu o beijo dela com alguma contenção. Deixou que ela tomasse a iniciativa, mordendo suavemente em redor da sua boca. De uma forma delicada, mas já não tão ingénua, a boca de Christiana tocou ao de leve nos lábios dele e depois deslizou sobre eles com sensualidade.
Ele envolveu-a com o braço, comprazendo-se na sensação da pele dela sob a sua mão. O corpo de Christiana estava coberto por uma fina camada de suor e o seu calor e humidade fizeram disparar um arrepio de prazer ao longo do corpo de David.
Ele acariciou-lhe a face e interrompeu o beijo de modo a poder observar a sua mão a percorrer o corpo dela. O toque dele fê-la arquear as costas e os seios de Christiana
ergueram-se para ele. O estremecimento do corpo dela ao sentir o toque no mamilo intumescido provocou a David um prazer
angustiante.
Nenhum deles sucumbiu ao frenesim. Ambos procuravam prolongar a deliciosa expectativa.
As mãos dela ainda permaneciam no peito dele e agora afagavam os atilhos da longa túnica.
- Tem um aspecto muito exótico. Muito atraente.
- Os sarracenos sabem como vestir-se para o tempo quente.
Ela acariciou-lhe o peito, indolentemente.
- A criada disse-me que os homens também gostam de ser despidos pelas mulheres.
Ele não respondeu, mas ficou a observá-la enquanto ela desatava as fitas da túnica.
Ela acariciou-o através da abertura. David fechou os olhos ao sentir o calor daquela pequena mão. Havia decorrido muito tempo desde que ela lhe dirigira um gesto de afecto por muito pequeno que fosse.
Ela abriu-lhe a túnica quase até aos ombros, e encostou o rosto ao corpo dele. De uma forma lânguida e deliciosa, com uma atenção lenta que apenas aumentava a tensão entre eles, esfregou o rosto contra o peito dele e observou a mão que lhe deslizava pelos músculos.
- Estáveis certo - disse ela. - A abstinência é um poderoso fortificante da paixão. Uma parte de mim mal pode esperar e já grita por vós, mas outra pretende prolongar isto para sempre.
- Sabeis como termina. Nunca vos deixei ficar mal nesse ponto. Permiti que apreciemos a viagem. Não voltaremos a percorrer o mesmo caminho duas vezes.
Ela sorriu com sensualidade e assentiu. Passando as mãos pelo peito dele, fez deslizar a túnica dos ombros dele e guiou-a à medida que ela lhe descia pelas costas.
O controlo dele ameaçou dissipar-se quando ela estendeu as carícias às suas ancas e coxas.
- O que mais vos disse a criada? - inquiriu, tocando-lhe da mesma forma e sentindo o corpo dela estremecer subtilmente.
- Que os homens gostam de ser tocados e beijados, mas já percebi que isso é verdade - respondeu e, como prova disso, começou a beijar-lhe o peito. Frémitos intensos e prolongados dispararam pelo seu corpo a cada beijo e mordidela. - E outras coisas. Na altura pareceram-me chocantes, mas agora já não penso assim.
A túnica permanecia junto às ancas dele. Christiana soltou-se gentilmente do seu abraço e começou a acariciar-lhe e a beijar-lhe o corpo à medida que ia descendo.
Ele observava e aguardava, mal conseguindo respirar. Uma névoa obscura de paixão toldava-lhe a mente e via tudo e nada em simultâneo. Viu as mãos dela puxarem-lhe a túnica até aos pés e sentiu a sua carícia trémula nas coxas e pernas. Viu os dedos de Christiana
acariciarem o seu falo endurecido enquanto os lábios dela se pressionavam contra o seu ventre. O arrojo dela enternecia-o e espantava-o. Sentia-se surpreendido com a calma aparente que o seu corpo mantinha, porque o desejo começava a dilacerá-lo.
Ela acariciou-lhe a parte de trás das coxas e afastou a cabeça. Lançou-lhe um olhar inquisitivo e ele inclinou-se e ergueu-a num abraço.
- Só se quiserdes, querida, e nunca de joelhos.
- Então levai-me para a cama, mercador - proferiu, aninhando-se nos braços dele -, de modo a que possa demonstrar-vos o meu amor e veneração.
David beijou-a e ergueu-a, depois voltou-se e estendeu-a sobre a cama, deitando-se ao lado dela.
O ar cálido da noite que entrava pela janela proporcionava alguma frescura contra o calor que emanava dos seus corpos entrelaçados. David perdeu-se na intimidade do odor dela, nas suas curvas e no suor lúbrico.
Levá-la-ia numa viagem que ela jamais imaginara.
Lenta e deliberadamente, usando de todo o seu conhecimento acerca dela, David destruiu por completo o ténue autodomínio de Chnstiana. Sem nunca lhe tocar abaixo das ancas, David conseguiu arrastá-la para a plenitude. Acariciou-lhe os braços, mordiscou-lhe os mamilos, percorreu-lhe o pescoço com a sua boca devoradora, e o fogo que a consumia aumentava a cada momento. Christiana tentava, apesar do seu crescente alheamento, dar-lhe prazer também a ele, mas David não lho permitia. Escutava os gemidos débeis de abandono que Christiana emitia e sentia o seu corpo trémulo a aproximar-se da mais culminante das sensações.
- David, eu... por favor - proferiu, segurando-o pelos ombros. Ele deteve as mãos e a boca dela e abraçou-a. Ela contorceu-se
contra ele numa frustração rebelde e abriu os olhos.
- David! - exclamou, num tom acusador.
- Calma, querida, eu disse que nunca vos deixei ficar mal.
- Tencionais torturar-me até à morte? - disse, dando-lhe uma pancadinha pouco amigável no ombro.
- Só é tortura se pensardes apenas na libertação - disse, sorrindo delicadamente. - Desfrutai do prazer da própria escalada, sabendo que, mais cedo ou mais tarde, levantareis voo.
O fogo que a consumia abrandou e o frenesim esmoreceu. Os braços de Christiana rodeavam-lhe os ombros e ele voltou-se para lhe beijar a curva do braço enquanto a mão lhe caía pelas costas.
- Mais uma vez, então - disse ele.
Ela agarrou-se a ele, afastou as pernas e aceitou as suas carícias. A excitação fazia com que o sexo de Christiana palpitasse, e ele acariciou-a lentamente, de uma forma que lhe dava prazer, mas não a satisfação total. De início, ela rebelou-se e tentou que as carícias fossem mais intensas, mas depois relaxou e aceitou as vagas de prazer com arquejos rejubilantes e gemidos suaves.
Ele avistou o êxtase glorioso no seu rosto e quase perdeu o controlo. Tocou-lhe de uma forma diferente e viu-a escalar novamente, desta vez mais alto, como viria a ser de todas as outras vezes. Ele levou-a até um pico e manteve-a lá, oscilando no limite, permitindo que ela saboreasse a primeira convulsão antes de retirar a mão.
As unhas dela haviam-se cravado no seu braço e ombro. Ele beijou-a e acalmou-a com carícias suaves.
- Foi maravilhoso - murmurou. - Vai sendo sempre cada vez melhor?
- Até um certo ponto.
- Planeais fazer isto durante toda a noite?
- Duvido seriamente - respondeu com uma gargalhada. O amor tornou-me muito nobre e cavalheiresco, mas tenho os meus limites.
- Penso que ambos podemos jogar este vosso jogo - respondeu, fitando-o. - Agradar-vos-ia?
- Muito. Se assim o desejais.
Ela ergueu-se e empurrou-o pelos ombros, deitando-o sobre a cama. Lançou-lhe um sorrisinho presumido repleto de uma autoconfiança indevida. Beijou-o com vontade antes de avançar com as mãos e a boca ao longo do seu peito. Ele fechou os olhos e acariciou-lhe as costas.
- Não, David. Não permitistes que vos tocasse, por isso não podeis tocar-me.
Christiana foi descendo, beijando-o sempre com calor. Ele sentiu-a fazer uma pausa para avaliar a situação. Depois sentiu-a voltar-se, encolher as pernas e apoiar-se contra o seu ventre.
Ele havia-lhe ensinado a dar-lhe prazer com as mãos, e as carícias dela quase o levaram ao delírio. Quando Christiana fez outra pausa, David entreabriu os olhos no momento exacto em que ela baixava a cabeça.
Depois disso, todos os seus pensamentos se evaporaram. Ele observava, por entre uma neblina subjugante de prazer, as linhas eróticas das costas e nádegas de Christiana, os seus pés delicados enfiados sob o seu corpo.
David conhecia os seus limites, mas ela não. A medida que se aproximava do êxtase, esticou o braço e deslizou os dedos pela fenda do traseiro dela.
Ela gemeu e mudou de posição, aceitando o toque dele. David posicionou-se de modo a que a sua boca chegasse junto dela. Retesando-se para manter o controlo, permitiu que ambos apreciassem aquele prazer extático durante mais algum tempo, enquanto a levava tão longe quanto ela o havia levado a ele, mesmo até ao limite. Finalmente, estava a ser demasiado para ambos e ela apercebeu-se disso. Parou de o beijar e ergueu-se e, ao fazê-lo, David puxou pelo corpo dela e forçou-a a sentar-se sobre ele, as pernas abertas sobre as ancas dele.
Durante um instante, ela pareceu surpreendida por se encontrar ali. Em seguida, instintivamente e sem uma palavra, ergueu-se e atraiu-o para dentro de si.
O suspiro dele foi de encontro ao dela. Ela fechou os olhos perante a sensação, e depois, lentamente, ergueu-se e baixou-se de novo.
A paixão toldava-lhe os olhos quando os voltou a abrir.
- Isto é incrível, David - disse com um suspiro, continuando
a mexer-se.
Ele estendeu as mãos e acariciou-lhe os seios de modo a que ela pudesse ver o quão incrível podia ser e friccionou os mamilos endurecidos entre os seus dedos. A cabeça de Christiana tombou para trás e ela entregou-se com indolência a um ritmo maravilhoso e sensual, à medida que o atraía repetidamente para o seu calor ardente e o libertava. Intensificado pela abstinência e pelo amor, o prazer submergiu-o de uma forma que ele jamais experimentara.
Ele puxou-a para si.
- Vinde até mim. Chegai-vos um pouco para a frente - ordenou.
Ela deslizou para a frente mas deteve-se.
- Perderei...
- Não perdereis nada. Vinde até mim.
Christiana baixou-se e David ajudou-a a deitar-se até conseguir introduzir um dos seios dela na boca. Ela pairava sobre ele, ofegante, com o corpo ainda afastado
do dele. David sentiu que ela se agarrava a ele para o absorver mais, enlouquecendo-o com as suas carícias.
- David - proferiu, ofegante, com o corpo a tremer daquele prazer angustiante nos seus seios e entre as pernas.
Ele acariciou-lhe as costas e continuou a estimular-lhe os seios. Sentiu o primeiro tremor profundo e soube o que significava, embora ela não soubesse.
- David - bradou ela, desta vez de um modo frenético.
Ele soltou-a e ela deixou-se cair sobre o corpo dele com um gemido repleto de angústia. Enterrando o rosto no peito dele, moveu-se energicamente de novo.
- Sim, também pode acontecer assim - disse-lhe, para a tranquilizar.
Em seguida, segurou-a firmemente pelas ancas e tomou as rédeas da situação, ajudando-a a alcançar aquela plenitude diferente e mais esquiva.
Jamais vira uma mulher atingir um clímax tão violento e completo. Nos seus brados ecoavam sentimentos como surpresa, desejo e amor. Ela beijou-o com ferocidade e fitou-o directamente nos olhos à medida que a paixão atingia o auge e a sua aberta aceitação da magia fazia com que a intimidade fundisse as suas almas como sempre o fizera. Todo o seu ser parecia dobrar-se sobre si mesmo, carregando a essência de David até ao seu centro abrasador, antes de sair a voar em todas as direcções. No final, ela ergueu-se numa magnífica exibição de êxtase sensual enquanto os seus gritos exprimiam o abandono total a que se entregava.
O clímax mútuo obliterou momentaneamente o tempo, o espaço e a consciência.
Ela tombou sobre o corpo dele e David flutuou com ela naquela unidade que ambos formavam. O amor dela maravilhava-o e preenchia-o com a sua paz inocente e graça. A resposta faminta e ávida da sua própria alma surpreendeu-o.
O rosto dela permanecia aninhado no pescoço dele.
- Será que alguém nos ouviu?
- Nos?
Ela soltou uma risadinha abafada e deu-lhe uma palmadinha divertida no peito.
- Está bem, será que alguém me ouviu?
Ele pensou na janela aberta e na tranquilidade da noite lá fora na cidade. Era muito provável que toda a casa e metade de Caen a tivessem escutado. Isso deitava por terra a sua ideia de fingir que não eram felizes juntos.
Agora já não tinha importância. Se o comte estava a pensar usá-la dessa
forma, já teria tratado dos dois.
- Estou certo de que ninguém ouviu, querida.
Ela instalou-se ao lado dele. David jamais experimentara tamanha paz e satisfação, e permitiu-se saboreá-las, sabendo que não duraria muito e que poderia não voltar a acontecer.
Provavelmente, devia ter-lhe contado tudo. Teria de o fazer algum dia. Este amor não permitiria enganos a longo prazo, mesmo que fossem pelo bem dela.
- Alguma vez estivestes lá - perguntou ela -, em Senlis?
- Duas vezes. A primeira vez foi há alguns anos, e depois mais recentemente.
- Estivestes no interior?
- Sim. O comte encontrava-se ausente, e eu entrei como um mercador em viagem com artigos de luxo para vender. Ninguém se recordará disso. As mulheres distraíram-se
com os artigos, não comigo.
- Quereis Senlis?
- Quem não quereria?
Ela pôs-se de pé e fitou-o directamente nos olhos.
- Vós podeis não querer.
De qualquer forma, havia uma decisão a tomar, uma escolha a fazer.
- É o vosso destino que estou a decidir, para além do meu. Pretendo saber a vossa vontade nisto.
- A minha vontade é ter-vos comigo para sempre, vivo e inteiro. É tudo o que realmente me interessa, mas sei que não tomareis uma decisão a pensar na vossa segurança, e eu não vos exigirei isso. Quanto ao resto, é muito difícil definir o que é certo e o que
é errado, não é? Ambas as opções implicam uma certa dose de sofrimento e traição. Tanto Inglaterra como França detêm uma pretensão sobre a vossa pessoa. Tanto Eduardo
como Theobald merecem a vossa lealdade. - Fez uma pausa, reflectindo sobre o dilema. - Penso que devereis escolher a vida que nascestes para viver, seja ela qual for no vosso entender.
Chrstiana ia à essência das coisas. A vida com ela seria fascinante.
- E em relação a vós, Christiana? E em relação à vida que vós nascestes para viver?
Ela sorriu e pousou o rosto no peito dele.
- Eu nasci para desposar um nobre, David, e vós fostes desde sempre um dos homens mais nobres que já conheci.
CAPÍTULO 21
Christiana despertou numa cama vazia com a luz da alvorada que penetrava pela janela do quarto. As memórias inebriantes da noite anterior não tardaram a dissipar-se imediatamente. Ergueu-se e vestiu-se o mais depressa que pôde.
Ele estava a encontrar-se com eles nesse momento. A definição do seu futuro estava a decorrer. Não podia rezar por um desfecho ou por outro, embora soubesse bem qual deles preferiria. Ele podia revelar-lhes o porto, tornar-se o herdeiro de Senlis e viver a vida que poucos homens viviam. Ou podia recusar, ser privado da sua vida anterior, mas não lhe ser concedida uma nova, talvez até fosse assassinado. Para ela, não era uma grande opção, nem, esperava ela, para ele. Mesmo assim, apesar do estatuto de Senlis e tudo aquilo que isso implicava, não se sentia ansiosa nem entusiasmada por ir viver num lugar estranho e tão distante de casa.
Andou de um lado para o outro no quarto, mas aquele espaço confinado apenas aumentava a sua preocupação. Abandonou o quarto e procurou as escadas que conduziam ao telhado plano do edifício, com os seus muitos quartos de dormir e arrecadações. Vasos de flores estivais e trepadeiras adornavam o telhado e, no momento em que subiu para lá, escutou os sons da azáfama da cidade lá em baixo. Os sons habituais do comércio e do bulício haviam sido substituídos por um estridor de vagões, cavalos e homens a bradarem ordens.
David mantinha-se junto ao muro baixo que rodeava o telhado, fitando as ruas da cidade para oeste. Junto dele encontrava-se um homem robusto de meia-idade com longos
cabelos castanhos.
David voltou-se e reparou nela.
- Vossa senhoria, esta é a minha mulher, Christiana Fitzwaryn. Este é o condestável dEu, querida.
Christiana enfrentou o olhar avaliador do líder militar de França.
- Sou primo de Theobald, senhora, e portanto um parente de vosso marido. - Lançou um olhar a David. - Nada menos do que a filha de Hugh Fitzwaryn. Fizestes bem a Senlis. Theobald encontra-se satisfeito por uma tal descendência entrar na nossa família.
Christiana aproximou-se de David junto à muralha. Nas ruas lá em baixo via a actividade febril de um exército preparando-se para partir.
Estava feito, então. Fitou o rosto impassível de David.
- Senhora, o vosso marido permanecerá aqui em Caen - informou o condestável.
O olhar dela alternava entre os dois homens. Havia algo de errado. Pressentia-o.
- Estais a dizer que continuo prisioneira? - perguntou.
- Sois livre de partir. Tratarei de vos arranjar uma escolta até Senlis.
- Então o meu marido é agora um prisioneiro?
- Um convidado. Até os Ingleses desembarcarem. Irá ao vosso encontro nessa altura. Ele não está treinado nas artes da guerra, e esta batalha não lhe diz respeito.
- Prefiro ficar com o meu marido.
O condestável olhou para David. Este não reagiu. O homem mais velho sorriu.
- Como desejardes - disse, e afastou-se, atravessando o telhado e direcção às escadas.
Ela aguardou até ele desaparecer.
- Por que tendes de ficar, David?
- Ele não confia em mim. Receia que lhes tenha mentido, mas a vossa escolha de ficardes comigo tranquilizou-o um pouco.
- Mas de que serve ficardes aqui se o exército partir?
- Theobald conduzirá o exército. Ele já abandonou a casa. Mas o condestável decidiu permanecer em Caen com um pequeno
exército, para estar disponível no caso de Eduardo vir de uma direcção diferente. O camareiro do rei também cá está. Ele concordou que isto seria prudente.
- E o vosso tio concorda com isso?
- Nem mesmo o comte de Senlis se insurge contra o condestável e o camareiro de França. Theobald queria que eu estivesse ao seu lado, para que pudesse presenciar a gloriosa vitória dos Franceses, que ajudei a concretizar. Todavia, o condestável insistiu que ficasse aqui com ele para me ter à sua disposição no caso de eu os ter traído de alguma forma. Ele pensa que eu podia evadir-me do exército durante a viagem, ou que, se fosse caso disso, Theobald não se vingasse no seu herdeiro. - Sorriu. - O condestável não conhece bem o primo.
Ele abraçou-a e encostou a face aos seus cabelos. Ainda observava a cidade. Christiana sentiu nele um conflito de emoções e desejou poder dizer algo para o confortar. A decisão não havia sido fácil, independentemente do prémio que oferecia.
- Por que razão o condestável não confia em vós? Decerto a lógica da vossa escolha deve ser óbvia para ele. É a decisão que qualquer homem tomaria, e até haverá cavaleiros ingleses e lordes que reconhecerão a sua justiça.
- Ele acabou mesmo agora de o explicar. Quase pediu desculpa por isso. Parece que se eu fosse um cavaleiro, não teria quaisquer dúvidas acerca de mim. E o facto de eu ser um mercador e, ainda para mais, um mercador londrino, que lhe causa hesitação.
- Isso é ultrajoso. Pensará ele que os mercadores são menos honrados?
- Sem dúvida, tal como todas as outras pessoas. Ainda assim, de certa forma, ele considera-me um homem íntegro. Disse-me que conheceu muitos burgueses de Londres. Sabe que devemos lealdade em primeiro lugar à própria cidade. Não afirma compreender os homens que juram fidelidade a um lugar em vez de um homem, mas sabe que se passa isso connosco e já viu o seu poder. Ele podia aceitar
que eu traísse Eduardo, mas não Londres. E assim, enquanto ele o camareiro concordam com Theobald que o exército deve mover-se com celeridade, o condestável
ficará aqui a organizar a defesa caso eu lhes tenha mentido.
Um fluxo constante de cavaleiros e soldados a cavalo avançava pela ponte, vindo do outro lado do rio. Percorriam a cidade em direcção à zona sul. Soldados a pé, carroças, e trabalhadores marchavam com eles. As ruas assemelhavam-se a rios coloridos em movimento.
O olhar de David seguiu as filas.
- Devia ter insistido que fôsseis para Senlis, mas receava não conseguir retirar-vos de lá mais tarde. Suspeito que Theobald pode ser muito cruel quando se enfurece. Ainda assim, teria sido mais seguro para vós. O condestável garantiria a vossa segurança, mas há limites para a sua protecção.
- O que estais a dizer, David? Pensais que Eduardo mudou realmente de planos e que o condestável vos culpará de algum forma?
Ele afastou-se do muro e foi até à parte voltada para sul com o braço em redor dos ombros dela. À distância, para lá dos telhados mais baixos, conseguiam avistar o campo onde o exército estava reunido. Na dianteira, com bandeiras azuis e douradas, que não passavam de pequenos pontos aos seus olhos deles, encontravam-se três homens a cavalo.
- Theobald? - perguntou ela.
- Há cinco mil homens aqui com ele - disse, assentindo com a cabeça. - À medida que avançarem para sul, outros se unirão a eles.
- Vão a caminho de Bordéus, então? - perguntou, embora a resposta fosse óbvia. Contudo, necessitava de escutá-la, de modo a poder começar a resignar-se ao futuro que ele havia escolhido para eles.
Desejou sentir alguma alegria, mas sentia apenas um aperto estranho no estômago. Pensou na questão que ele lhe colocara na noite anterior antes de adormecerem, e na sua resposta.
Ele havia compreendido mal. Ela procurara tranquilizá-lo ao dizer-lhe que o amava independentemente do seu grau social, e que o considerara um homem nobre mesmo antes de saber acerca do pai dele.
Em grande parte, ele fez isto por mim, apercebeu-se ela. Para me restituir a vida que este matrimónio me retirou. O comte e o duque começaram a cavalgar. A grande e indisciplinada massa de homens correu lentamente atrás deles.
- Sim. Vão a caminho de Bordéus. - Confirmou.
Havia uma expressão peculiar no seu rosto, e os seus olhos semicerraram-se ao fitar as bandeiras que se afastavam.
- Mas Eduardo não.
Christiana fitou-o de boca aberta. O olhar dele nunca abandonou o campo a sul.
- Fui ao encontro de Eduardo antes de Catherine. Contei-lhe tudo, e ofereci-me para terminar o jogo da forma que o começara. Eu dar-lhes-ia um porto e o nosso exército desembarcaria noutro. Pressionei-o a considerar a Normandia, uma vez que metade do exército francês estava já no sul e, se eu falhasse, ele enfrentaria apenas uma hoste inferior. A sua experiência anterior de navegar para Bordéus já o havia inclinado a mudar de planos, e um cavaleiro normando esteve na corte nestes últimos meses, falando-lhe igualmente das cidades não fortificadas e das estradas desimpedidas.
O olhar dela seguiu o dele. Ainda conseguia ver os reflexos da armadura do comte.
- Eduardo desembarcará na Normandia? Aqui, na costa setentrional? - Sentiu um alívio tremendo, mas com ele veio um pavor medonho por David e pelo destino que ele agora enfrentava.
- Assumindo que ele não se arme em esperto no último momento, o que é perfeitamente possível. Ou que não comece a desconfiar de mim. Catherine deve ter-lhe contado histórias escabrosas da minha duplicidade, mas eu espero que Eduardo saiba o que esperar dela. Eu e Godefrey, o cavaleiro normando, conseguimos fornecer-lhe três portos possíveis, pequenos e resguardados. Ele usará aquele que o vento favorecer.
- O rei sabe acerca de Senlis e daquilo que vos foi oferecido? Se sabe, pode muito bem duvidar de vós. Não compreenderá a vossa opção.
- Contei-lhe tudo. Não podia ter a certeza de que Lady Catherine estivesse envolvida no vosso desaparecimento, ou que ela planeasse trair-me, mas suspeitava. Também não podia ter a certeza de que ela permanecia ignorante relativamente à minha relação com o comte. Fiz bem em ter falado francamente com Eduardo. Quando finalmente consegui deitar mão a Frans, vi as minhas suspeitas confirmadas.
- Então nunca estivestes em perigo em Inglaterra? E podeis regressar? - Assumindo que pudesse sair de Caen com vida.
- Sim.
- Ainda assim, tendo convencido Eduardo a desembarcar na Normandia, podíeis tê-lo traído. Quando foi que tomastes uma decisão?
O olhar dele ainda seguia o fluxo do exército.
- Esta manhã. Cavaleiro ou mercador, dissestes. Apoiei-me nas vossas palavras.
- E se eu tivesse respondido de outra forma? Se eu tivesse dito que queria ser a mulher de um
comte?
- O vosso desejo teria sido cumprido, e aprenderia a viver com a minha consciência. - Olhou para baixo e sorriu. - Suspeito que podia tê-lo justificado. É muito
provável que o poder e o luxo de Senlis consigam ofuscar qualquer culpa. Uma vida dessas tem os seus atractivos. Não vou fingir que não me senti tentado.
- Sacrificastes muito pela vossa cidade e pelo vosso rei, David
- disse Christiana, estreitando-o nos seus braços. - Eduardo deve-vos muito.
- Não me deve nada, Christiana. Vós fostes uma oferta dele para mim. A dívida é toda minha.
O olhar dele regressara ao campo distante. O comte já mal se conseguia divisar. Christiana vislumbrou de novo aquela expressão peculiar no rosto dele, e um lampejo de comiseração surgiu-lhe nos olhos.
Conseguira uma vitória brilhante, uma estratégia ousada e um jogo magnífico, mas não havia nele nenhum sinal de triunfo. Duvidava que aquela reacção contida tivesse algo a ver com o perigo que agora enfrentava. Aconchegou-se mais a ele e procurou consolá-lo.
- com o tempo, ele compreenderá, David. Ele sabe o que é a honra e as escolhas difíceis a que obriga um homem. Pode não vos perdoar, mas compreenderá.
O corpo dele retesou-se à menção do comte e dos laços de sangue que havia traído. Ela tentou de novo.
- David, eu sei que estais a sofrer. Ele é vosso tio...
Os dedos de David vieram repousar sobre os lábios dela, silenciando-a.
- Eu devia ter-vos dito ontem à noite - disse. - Temi a vossa reacção à verdade, e também não sabia se ele ia tentar apurar até onde iam os vossos conhecimentos acerca do assunto. Passei a última hora a interrogar-me se alguma vez vos diria.
Ela franziu o sobrolho, aturdida. Procurou o rosto dele para tentar obter alguma explicação.
- Theobald não é meu tio, Christiana.
As palavras dele assombraram-na. Foram necessários alguns momentos para que as implicações daquela revelação penetrassem na sua mente confusa.
- Sois assim tão astuto, David? Tão audacioso? Encontrastes um homem com quem vos pareceis minimamente e construístes este esquema elaborado? Contastes-me esta história de modo a que eu pudesse apoiar-vos com convicção caso fosse questionada?
A expressão peculiar de comiseração passou de novo pelo rosto dele.
- É muito pior do que isso - respondeu, abanando a cabeça.
- Theobald não é meu tio - prosseguiu, lançando um olhar ao homem que agora não passava agora de uma pequena mancha e que ia sendo engolido pela luz do sol e pela neblina. - É meu pai.
Christiana perdeu a noção do tempo que permaneceram ali com as palavras dele ainda suspensas no ar, mas quando ele falou de novo, os últimos soldados do exército estavam nesse momento a sair da cidade.
- Ele nem sequer se recordava do nome dela. Permaneciam encostados ao muro do telhado e David apoiou
nele os seus braços. Lançou um olhar para sul, mas agora sem se fixar em nenhum ponto em especial.
- Seduziu-a, aceitou o amor dela, deixou-a de esperanças e destruiu-lhe a vida. Eu uso o nome da minha mãe, mas este nada significa para ele. Tanto ele como Honoré haviam estado em Londres algumas vezes durante a juventude, e ele presumiu que eu tivesse sido o produto de algum dos devaneios do irmão. Foi o escárnio final à confiança eterna de Joanna.
Ela falou mais para o confortar do que para defender Theobald.
- Isso foi há trinta anos. Quando tiverdes cinquenta e cinco anos, pensais que conseguireis recordar-vos dos nomes de todas as mulheres com quem vos deitastes?
- Sim, de todas elas.
- Talvez só porque ele não o conseguiu. Ele pareceu não escutar aquelas palavras.
- Havia dois anéis, um cinzento e um cor-de-rosa. Ele presumiu que eu tinha o de Honoré, o cinzento, e nunca me pediu para o ver. Em Hampstead, ele olhou para mim e só viu o irmão.
- Conhecia o rosto do irmão melhor do que o seu. com que frequência vemos reflexos nítidos de nós próprios em vidro e metal? Ela não significou nada para ele. Era apenas uma rapariga bonita com quem ele se divertiu durante alguns momentos. Não passava da filha de um mercador que não tinha qualquer importância na vida de um filho de Senlis.
Ela não sabia o que dizer. David assistira ao sofrimento e à espera paciente de Joanna. Vivera na sombra da desilusão da mãe. Observara o mestre que ele admirava amá-la em vão. Duvidava que a sua fúria em relação a Theobald pudesse ser mitigada com palavras.
- Por que não lhe dissestes a verdade? Por que razão deixais que ele pense que sois sobrinho dele?
- Em Hampstead, quando me apercebi do engano dele, fiquei abismado. Fora isso, o meu plano tinha-se desenvolvido na perfeição. Na altura, disse a mim mesmo que corrigi-lo poderia complicar as coisas. Pelo que me era dado saber, ele podia ressentir-se do súbito aparecimento de um filho bastardo, ou até pensar que eu procurava vingança contra ele. Mas, na realidade, era a minha própria determinação que eu questionava. Encontrar-me com ele foi muito mais doloroso do que pensava. Tencionara desprezá-lo completamente. E de repente, ali estava ele. E subitamente, obtive as respostas às imensas questões não expressas que carregara na alma durante toda a minha vida. As respostas eram principalmente desagradáveis, mas, pelo menos, tinha-as. - Exibiu um sorriso triste. - A ligação e a familiaridade foram imediatas. Inesperadas e assombrosas. Se ele me tivesse reconhecido como sendo descendente dele, e tivesse falado comigo de pai para filho, eu não sei o que teria feito. Por isso, permiti o engano.
Ele não precisava de lhe ter dito isto. Ela jamais saberia ou teria suspeitado.
- Por isso, Christiana, desposastes um homem que atraiu o próprio pai para o descrédito e que o atraiçoou. É um crime grave em qualquer família, especialmente nas famílias nobres.
Ele procurou os olhos dela em busca de uma expressão de censura ou decepção. Ela soube que ele só encontraria entendimento e amor.
Pensou na comiseração que vira nele e o seu coração compadeceu-se dele.
- Estais arrependido? Ao vê-lo afastar-se, teríeis alterado as coisas?
- Só por vós teria agido de uma forma diferente e alterado o curso das coisas. Por ele, nunca. Desejaria poder dizer que lamento ter iniciado isto, mas não sou capaz. Sou o que sou, minha menina, e uma parte de mim, a parte de Senlis, está satisfeita por eu ter vingado um pouco a minha mãe.
- Odiais o vosso pai, David?
- Seria como odiar-me a mim mesmo - respondeu, sorrindo e abanando a cabeça. - Mas também não sinto afeição por ele. Theobald pode ter-me dado a vida, mas o único pai que alguma vez conheci e amei foi David Constantyn.
Ele pegou-lhe na mão e afastou-se do muro.
- E agora, David?
- Agora tenho de pensar na vossa segurança - respondeu, olhando em redor do telhado como se estivesse a inspeccioná-lo.
- O perigo que me espera da parte do comte de Senlis - disse, com um largo sorriso - não é nada comparado com o que Morvan Fitzwaryn me fará se eu deixar que algo de mal vos aconteça. Penso que deveis pedir à encantadora Heloise que me mostre a casa toda. Dizei-lhe que sinto curiosidade em saber como vivem os burgueses mais abastados de Caen.
David e Christiana fizeram o seu passeio pela casa. David examinou tudo sem subtilezas e com elogios efusivos, e Heloise resplandecia de orgulho com o apreço deste belo mercador londrino. Christiana foi da opinião de que ele exagerou um pouco, mas os seus
elogios prolongaram a tarde e deram-lhe a oportunidade de examinar todos os quartos e arrecadações, todas as janelas e cavalariças. Ele mostrou-se especialmente fascinado com um sótão no topo do edifício principal. Repleto de fazendas, sedas e outros tecidos dispendiosos, o único acesso era através de um lanço de escadas estreito ao longo da parede interior.
Finalmente, deixaram Heloise no salão e encaminharam-se para o jardim.
- Não parece haver nenhuma saída a não ser pelo portão principal, a não ser que se encoste uma escada ao muro - disse David.
- Era disso que andáveis à procura? Eu podia ter-vos dito isso. Há uma saída, mas precisamos de uma corda - começou a conduzido na direcção da árvore. Sorriu perante a solução simples. David escaparia, ela juntar-se-ia a ele, e depois... o que aconteceria? Correriam para a segurança, para Eduardo e para o seu exército. Até onde iria o poder do comte se este procurasse vingança? Talvez deixassem tanto Inglaterra como França para trás e partissem para Génova.
À medida que se aproximavam do canto do jardim, o coração dela afundou-se. Onde outrora estivera o imponente carvalho, encontraram apenas o seu coto.
- Fugi por aqui uma semana antes da vossa chegada - explicou ela. - Theobald apanhou-me. Deve ter ordenado o seu abate depois disso.
- Não tem importância. Duvido que tivéssemos conseguido atravessar a ponte.
Ela procurou consolo nos seus braços.
- Quanto tempo falta? - perguntou corajosamente, abordando o assunto que evitara. - Quando é que Eduardo desembarca?
- Pelos meus cálculos, daqui a cinco ou seis dias.
- Tendes de fugir. Não podeis estar aqui quando descobrirem. Esta noite, eu distraio os guardas no portão principal e vós...
- Não partirei sozinho.
- Então temos de descobrir uma forma - exclamou desesperadamente.
- Se existir, hei-de encontrá-la. Mas penso que está fora das nossas mãos. Quem sabe? Quando o exército inglês começar a pilhar
a Normandia, o condestável e o camareiro estarão tão ocupados a organizar a defesa que se esquecerão de mim.
Ele pronunciou aquelas palavras com tanta leveza que ela teve de sorrir. Mas não acreditava que aquilo acontecesse, e sabia que ele era da mesma opinião.
Quando despertou numa cama vazia na quarta-feira de manhã após a partida do exército, lançou um manto sobre os ombros e foi à procura dele. Descobriu-o no telhado, olhando para oeste. A luz da alvorada acabara de despontar, e a cidade ainda surgia como um conjunto de formas cinzentas aos pés deles. Apesar da tranquilidade, o ar parecia carregado de uma estranha plenitude, como se estivesse a formar-se uma tempestade algures para lá do límpido horizonte.
Aproximou-se dele. Os olhos azuis de David voltaram-se para ela, e depois voltaram a estudar o campo para lá do rio.
- Olhai ali - disse ele. - A aproximar-se da ponte.
Ela esticou-se para poder ver. A luz do dia ia-se tornando mais forte e, pelo campo, ao longo da margem oposta do rio, movia-se uma vasta sombra. Ela ficou a observá-la e depois a sombra desfez-se em pedaços e os pedaços converteram-se em pessoas. Centenas de pessoas.
Moviam-se com celeridade, transportando sacos e conduzindo animais. O sol começava a nascer e ela viu que a multidão incluía mulheres e crianças. Provinham dos edifícios do outro lado do rio, passavam pela abadia construída por Guilherme, o Conquistador e pela sua esposa Matilda, e depois começavam a amontoar-se na extremidade mais afastada da ponte, clamando para entrarem na cidade.
- Quem são eles?
- Camponeses. Burgueses. Sacerdotes. São refugiados em fuga do exército de Eduardo.
Os guardas acorriam para reforçar a vigília na ponte. A multidão de refugiados fundia-se e os seus brados elevavam-se. Na margem de cá do rio, dois homens a cavalo atravessaram as ruas desertas em direcção à casa do presidente da Câmara.
- O exército está próximo daqui? - perguntou ela.
- Presumo que esteja a apenas algumas horas de distância.
- Vem para cá? Para Caen? Devíeis ter-me dito, David. Não me teria preocupado assim tanto.
- Não podia ter a certeza. Em Abril, por acidente, encontrei um porto na península do Cotentin, mesmo a oeste. Eu e Sieg esperámos lá que os navios ingleses passassem antes de me encontrar com Theobald aqui em Caen. Durante a tempestade, um navio mercante foi empurrado para terra na direcção da cidade costeira onde aguardávamos. Aproximou-se cerca de cem metros da costa e não encalhou. O mar deve ter alterado a costa ao longo dos anos e o porto deve ter ficado mais profundo. Era perfeito para o desembarque das tropas. Ainda assim, os ventos podiam ter levado Eduardo mais para este, para um dos outros portos que descobri anteriormente.
- Não quisestes dar-me falsas esperanças - disse ela.
- Não quis dar-vos mais preocupações, querida.
- Preocupações? Isso são boas notícias! Eduardo obterá a vossa libertação. A nata da cavalaria inglesa vem em vosso salvamento disse ela com um sorriso.
- Se a cidade se render, pode suceder dessa forma.
- É evidente que a cidade se renderá. Não há outra hipótese.
- Londres não se renderia.
- Londres tem muralhas.
- Espero que estejais certa.
- O que se passa, David? O que vos preocupa?
Mas antes que ele pudesse responder, a resposta surgiu no telhado nas pessoas de dois cavaleiros do séquito do condestável.
CAPÍTULO 22
David caminhava em círculos pela pequena arrecadação. O espaço tresandava ao arenque armazenado nos barris empilhados contra uma das paredes. Uma pequena vela iluminava o compartimento sem janelas, e ele procurou calcular a passagem do tempo através da sua lenta diminuição.
Tinha sorte por ainda estar vivo. Depois de o ter confrontado no salão com a sua traição, o condestável resistira com dificuldade à vontade de o trespassar com a sua espada. O pânico e a confusão provocados pela aproximação do exército inglês haviam-lhe salvo a vida. O salão estivera num rebuliço enquanto o condestável e o camareiro procuravam organizar a defesa da cidade ao mesmo tempo que os seus escudeiros lhes atavam as correias das armaduras. Havia sido enviada uma mensagem para leste e para sul, apelando ao exército de Theobald e invocando a população geral para que se reunisse e lutasse contra esta invasão. David havia sido feito prisioneiro neste compartimento e aguardava o enforcamento após ter sido afastada a ameaça mais premente.
Antes de o levarem, havia tentado convencer o condestável e o camareiro do rei a não resistirem a Eduardo. Dissera-lhes que o exército inglês ascendia a pelo menos vinte mil homens, enquanto o condestável teria, na melhor das hipóteses, uns trezentos ainda em Caen. Recordou-lhes que a rendição pouparia as pessoas da cidade, e apenas significaria a perda da propriedade. Apenas o presidente da Câmara lhe dera ouvidos, mas a decisão não havia sido dele. O rei
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francês exigira ao condestável dEu que travasse o avanço de Eduardo, e o condestável tencionava lutar pela honra de França apesar das desvantagens. Caen não se renderia nem pediria acordos.
Esforçou-se por conseguir escutar os sons que atravessavam a espessa parede da cave. A casa havia sossegado e a actividade mais distante apenas lhe chegava como um ruído surdo e prolongado. A verdadeira batalha seria combatida na ponte. Se a cidade conseguisse manter o controlo desse único acesso, o rio revelar-se-ia mais formidável do que qualquer muralha.
Pelo bem de Christiana, ele tinha esperança de que a ponte aguentasse. Se a cidade caísse, ela não estaria a salvo dos soldados ingleses que pilhariam aquela rica cidade. Duvidava que eles escutassem as suas reivindicações de ser inglesa, tal como também não o escutariam a ele quando arrombassem a porta da arrecadação para pilharem os bens que ela continha. Fez uma careta perante ironia da situação. Sem dúvida, morreria hoje, mas se vivesse o tempo suficiente para ser enforcado, se Eduardo falhasse a conquista desta cidade, pelo menos Christiana estaria a salvo.
Deu murros à parede numa frustração furiosa por não poder ajudá-la. Havia sido enviada para junto de Heloise e das outras mulheres no momento da sua detenção. Debatera-se contra os soldados que a arrastavam. Esses cavaleiros não haviam regressado, e ele tinha esperança que eles guardassem o quarto onde as mulheres aguardavam. Pelo menos, teriam alguma protecção.
Ergueu a vela e voltou a estudar a sua minúscula prisão. Desejava que contivesse algo mais para além de arenque seco, e não só por causa do odor. Quem quer que derrubasse a porta daquele compartimento matá-lo-ia só pelo ressentimento de não encontrar nada de valioso depois de tamanha canseira.
Como que a ecoar os seus pensamentos, um som junto à porta reclamou a sua atenção. Todavia, não era o estrépito de um martelo ou o malhar de um aríete. Era o som mais subtil de metal sobre metal.
Talvez Eduardo tivesse decidido avançar. Afastou-se para a outra extremidade do compartimento e observou enquanto a porta se abria. No limiar, com o rosto pálido como um fantasma, surgiu uma macilenta Heloise. Christiana mantinha-se atrás dela, segurando a longa adaga de aço de David junto à garganta da jovem loira.
- Ela sabia que era a única coisa sensata a fazer, David, mas como não passa de uma daquelas mulheres que se limita a obedecer ao marido, tive de a encorajar - declarou Christiana. Voltou a colocar a adaga na bainha à sua cintura.
Heloise parecia prestes a desmaiar e apoiou-se contra a parede.
- O que aconteceu? - perguntou David.
- Conquistaram a ponte - explicou Christiana. O medo que ela procurava corajosamente ocultar espelhava-se no seu rosto. Os cavaleiros que nos protegiam partiram há muito tempo. O nosso exército está por toda a cidade, como um enxame. Está a acontecer como dissestes. Na vitória estão a carregar tudo o que conseguem. O povo está a lançar-lhe bancos e pedras a partir dos telhados à medida que eles passam, e isso está atrasar o seu avanço, mas não muito.
- Não resta ninguém - exclamou Heloise. - O portão está guardado apenas por alguns moços de estrebaria e criados. Quando a ponte caiu, os soldados partiram, alguns para lutarem nas ruas, outros para fugirem.
Christiana aproximou-se dele e falou suavemente.
- Ela queria levar as filhas e fugir também, mas eu convenci-a que era melhor esconder-se atrás destas paredes do que na cidade. Não são as muralhas de um castelo, e não impedirão o exército durante muito tempo, mas os soldados estão a matar todas as pessoas que encontram. Mesmo do telhado deu para ver muita gente a cair.
Ele fitou-a directamente nos olhos e apercebeu-se plenamente do perigo que ela enfrentara.
- Fizestes bem em soltar-me, madame - disse de uma forma tranquilizadora. - A sorte sorriu-me sempre, talvez ela seja igualmente generosa connosco hoje. - Afastou a mulher da parede.
- Partamos e avaliemos a nossa situação.
No pátio, aguardavam-nos más notícias. Os criados que guardavam o portão haviam fugido, e a entrada mantinha-se aberta para a rua. À distância ouviam-se os brados de uma cidade a ser saqueada.
David apressou-se a fechar e a barrar o portão. Nesse preciso momento, surgiu um grupo de seis mulheres. Pareciam ser mulheres de burgueses e lançaram-se nos braços de Heloise.
- Aquele diabólico rei inglês ordenou que todos perecessem pela espada - bradou uma delas. - Estão a despojar os corpos das
suas roupas e a cortar os dedos para furtarem os anéis. Violam as mulheres e depois cortam-lhes a garganta.
As outras mulheres juntaram-se a ela com descrições histéricas dos horrores que haviam presenciado. David barrou o portão e lançou um olhar pelo pátio. Christiana estava certa. Estas paredes não eram muralhas de um castelo e marcavam a casa como sendo a um de um mercador abastado. Chegaria o momento em que alguns soldados decidiriam derrubar o portão ou escalar os muros. Mas estavam mais seguros cá dentro do que lá fora na cidade.
Christiana mantinha-se de lado, escutando as histórias de mutilação e destruição com um rosto pálido. Os sons da pilhagem do exército aproximavam-se cada vez mais.
David dirigiu-se a ela e abraçou-a.
- Recordais-vos do sótão situado acima dos quartos? Aquele cujo acesso se faz pelas escadas estreitas? Levai-as para lá.
- E vós?
- Irei lá ter em breve. Parece que afinal sempre vou precisar daquela armadura. Nunca pensei usá-la contra os Ingleses. Parece que no final o meu pai sempre terá a sua vingança. É irónico que a minha traição para com ele vos tenha colocado a vós em tão grande perigo.
- Não vos culpeis por isso. Não fostes vós que me trouxestes para cá - respondeu, instintivamente consciente da culpa que pretendia subjugá-lo.
- Ainda assim, estais aqui - disse, hesitante, não querendo falar do horror que os ameaçava. - Se eles vierem, deixai-os saber quem sois. Falai apenas em inglês. Reclamai a protecção do vosso irmão e do rei.
- Não terá qualquer importância - disse ela, voltando-se para o grupo de mulheres ali perto. - Já assisti a isto antes, em Harclow. Havia começado antes de partirmos. O meu irmão aceitou a derrota e uma possível morte para salvar a minha mãe daquilo que enfrentamos hoje.
Aproximou-se das mulheres e explicou-lhes a situação. Gratas por receberem algumas instruções que, pelo menos, ofereciam esperança, rodearam-na enquanto ela liderava o caminho até ao edifício mais elevado e ao quarto do sótão.
David seguiu-as mas desviou-se para o quarto que partilhara com Christiana. Colocou a couraça da armadura sobre os ombros e depois ergueu as peças para os braços. Reflectia se, com a armadura e com as armas, conseguiria, sozinho, conduzir Christiana pelas ruas da cidade. Abanou a cabeça. Não possuía justilho que o identificasse como parte do séquito inglês de um barão, e o seu escudo não exibia um brasão que estes soldados reconhecessem. Considerá-lo-iam francês. Fosse como fosse, não seria capaz de abandonar todas aquelas mulheres e raparigas, nem Christiana o permitiria. Na morte, pelo menos, podia ser o marido que ela merecia. Pegando na espada com a outra mão, abriu caminho até às escadas e ao lugar onde se encontravam as mulheres escondidas.
Christiana tinha já posto as mulheres a trabalhar. Pelo chão viam-se extensões de tecido, e elas usavam a adaga dele para o retalharem.
- O que estais a fazer? - indagou poisando a armadura.
- Bandeiras - disse ela. - A branca e a verde de Harclow. As cores de Thomas Holland, as de Chandros e as de Beauchamp. Iremos dependurá-las nas janelas. Quem sabe, poderão atrair alguém que nos possa ajudar.
Lançou um olhar à armadura e aproximou-se dele.
- Eu faço isso - disse, e os seus dedos começaram a apertar as correias e as fivelas.
Demorou algum tempo até conseguir encaixar a armadura completa, e ele nem sequer tinha as placas das pernas. Depois de apertar todas as correias, Christiana desamarrou
a bainha da sua cintura e entregou-lha, depois recuperou a adaga das mãos das mulheres.
David fitou durante um momento a longa extensão da arma afiada. Os seus olhos encontraram os de Christiana.
- Não me servirá de nada contra homens armados - disse ela, fazendo-a deslizar pela bainha em redor da cintura dele. - E nem sou suficientemente corajosa para a usar noutros ou em mim.
As mulheres abriram as janelas e ostentaram as bandeiras. A brisa estival carregava os sons dos gritos de morte. Quando fecharam as janelas para prenderem as bandeiras,
ressoou no espaço confinado o som de uma grande pancada contra o portão da rua. O estrondo sobressaltou-os a todos e deixou-os no mais completo silêncio.
No compartimento pairava um odor amargo: o odor do medo dos seus ocupantes. David lançou um olhar às oito mulheres e às três raparigas. Os rostos eram agora praticamente invisíveis, no quarto obscurecido pelos panos nas janelas. Afastou Christiana para um dos lados e voltou as costas às outras mulheres.
Segurou o rosto dela entre as mãos e fechou os olhos para saborear a suavidade delicada dos seus lábios. Invadiu-o uma ternura angustiante, e o medo palpável de Christiana despedaçava-o.
- Quando eu for a Génova este ano, ireis comigo - disse ele.
- Depois disto, atravessar os Alpes parecerá algo de pouca monta. Passaremos os meses frios em Itália e viajaremos para Florença e Roma.
- Gostaria muito - sussurrou ela. - Talvez possamos atravessar o mar até terras sarracenas, e fazer amor numa tenda no deserto.
Ele beijou-lhe os olhos fechados e sentiu nos lábios o sabor das lágrimas salgadas que brotavam deles.
Os sons inconfundíveis do portão a ceder soaram no interior do compartimento.
- Olhai para mim, Christiana - disse ele. As suas pálpebras ergueram-se lentamente e ele fitou aqueles diamantes líquidos e deixou-a ver o amor que lhe ia na alma. Ela sorriu de uma forma corajosa e desolada e esticou-se para o beijar.
Os brados e o clamor de homens a entrarem pelo pátio ecoaram em redor deles. Christiana ergueu a espada e entregou-lha. Por trás dele, o quarto no sótão estava mergulhado no mais absoluto silêncio. As mulheres há muito que haviam ultrapassado a histeria. As filhas mais jovens de Heloise fitavam-no com um olhar arregalado e solene.
com um último olhar à sua bela esposa, David abriu a porta e tomou uma posição ao cimo das escadas estreitas.
O ruído primitivo de devastação e pilhagem encheu o edifício. David mantinha-se tenso no seu posto, com a espada encostada à parede ao seu lado, e aguardava que os soldados descobrissem finalmente a passagem que conduzia a estes degraus e a este sótão.
A porta atrás dele havia sido fechada, mas não podia ser barrada do lado de dentro. Assim que ele tombasse, não haveria qualquer protecção para Christiana e para as outras mulheres.
Há cerca de uma hora que andavam ocupados com os quartos de dormir, o salão e as arrecadações do piso inferior, portanto já não deviam tardar.
Se tivesse sorte, talvez os homens que haviam entrado não fossem muitos e tivessem fechado o portão de modo a guardarem só para si o rico espólio da casa do presidente da Câmara. Se ele tivesse mais sorte ainda, talvez não houvesse nenhum arqueiro entre eles. Se a Fortuna realmente o favorecesse, talvez surgisse alguém com autoridade suficiente para garantir a casa do presidente da Câmara para prazer e desfrute do rei.
Interrogava-se se haveria cavaleiros entre eles, e se adiantaria apelar à cavalaria.
Não conseguia avistar o fundo das escadas, pois estas erguiam-se na parte lateral do edifício até um patamar antes de descreverem uma curva ao longo da parede das traseiras, para junto dele. Mas escutava a agitação febril lá em baixo. E o grito de um dos homens para os seus amigos quando as descobriu.
Subiram os degraus apressadamente, repletos de entusiasmo enquanto faziam descrições das roupas, jóias e pratas que já haviam encontrado. Pelo seu discurso, dava para perceber que não eram cavaleiros. Aguardou.
Seis homens passaram a curva do patamar. Começaram a subir. O primeiro havia atingido o sétimo degrau a contar do topo quando finalmente repararam nele. Seis cabeças olharam para cima com surpresa.
- Quem sois?
- Um inglês, tal como vós. Um mercador londrino.
- Não tendes aspecto de mercador.
- Nenhum de nós hoje age como de costume ou tem o aspecto de sempre. A guerra faz isso às pessoas.
Todos esticavam o pescoço para conseguirem ver.
- O que está atrás dessa porta, mercador?
- Tecido comum e de pouco valor.
- Ele mente - disse o líder. - Estas escadas estão escondidas. Este é o compartimento que possui especiarias e ouro.
- Juro-vos que não há especiarias nem ouro neste compartimento.
- Afastai-vos e deixai-nos ver.
- Não.
Mais sons de passos nos degraus. Mais rostos se uniram aos primeiros. A fila de homens contornava a curva e desaparecia do seu campo de visão. David observava as longas adagas e espadas enquanto eles passavam a palavra de que o ouro e as especiarias os aguardavam lá em cima.
O homem mais próximo examinava-o atentamente, avaliando-o, tentando decidir se a armadura indicava uma perícia superior. Os estreitos degraus significavam que não podiam atacá-lo todos ao mesmo tempo e o primeiro a fazê-lo podia muito bem morrer.
Os homens na longa fila começaram a dar encontrões e cotoveladas uns aos outros. Uma cabeça ruiva moveu-se entre eles, impulsionando-se para a frente.
- Afastai-vos! - comandou uma jovem voz.
Os outros comprimiram-se para deixarem o jovem passar e este galgou os degraus até junto do primeiro homem. Um escudeiro, pensou David, a avaliar pela sua juventude e libré. Teria talvez vinte anos de idade. Separado do seu amo e gozando de poder e estatuto neste inferno em que Caen se havia convertido.
O escudeiro lançou um olhar à espada de David e desembainhou
a sua.
- Nós rebentámos com aquele portão. Este espólio é nosso disse.
- Como estou no primeiro degrau, é óbvio que cheguei antes de vós - replicou David.
Uma agitação de lamentos e injúrias ressoou pela escada acima. Os homens lá atrás começaram a exigir que David fosse liquidado de modo a poderem chegar ao ouro.
David lançou um olhar ao escudeiro e ao homem ao seu lado. Os brados elevavam-se e ecoavam pelas escadas. O rosto de ambos os homens endureceu à medida que os seus camaradas os incitavam a agir. David observava e aguardava, estudando a determinação deles, preparando-se para o ataque.
Será o mais jovem, pensou com pesar.
O jovem ruivo lançou-se subitamente pelas escadas acima, erguendo a longa espada. A mão de David deslocou-se até à cintura. Antes de o jovem ter tido tempo de galgar dois degraus o seu corpo endireitou-se com uma sacudidela. Os seus olhos fitavam, em choque,
a adaga de aço cravada na sua garganta. Depois o corpo tombou, bloqueando as escadas.
A multidão de soldados fez uma pausa colectiva, e depois os gritos e pragas redobraram-se. David procurou alcançar a espada.
Reparou no inexorável avanço da multidão, como se mais homens se tivessem unido aos existentes e todos eles fossem impelindo os outros para cima. Os homens da frente começaram a ser empurrados. Mãos estenderam-se e afastaram o escudeiro do caminho. O odor acre daquela ânsia por sangue pairava no espaço confinado. David permitiu que o sangue implacável de Senlis fluísse nas suas veias para lhe conceder a sua força fria.
E depois, subitamente, começou a fazer-se silêncio a partir da retaguarda. Os homens no patamar olharam para trás de si e depois uns para os outros. As pessoas comprimiam-se contra a parede, para se desviarem do caminho.
De súbito, David avistou a figura alta e o cabelo negro de um cavaleiro usando a libré do rei.
Uns olhos escuros e ferozes fitaram David com um lampejo de surpresa e divertimento. Sir Morvan aguardava calma e silenciosamente que os soldados diante de si compreendessem que pretendia passar. Empurravam-se uns aos outros, apontavam e abriam caminho para ele. Morvan subiu lentamente os degraus até chegar junto do escudeiro tombado. Olhando para David, baixou-se descontraidamente, retirou a adaga e o sangue começou a correr do ferimento. Limpou a arma ao seu justilho e juntou-se a David diante da porta.
- Este é o problema das adagas - disse-lhe delicadamente enquanto lha entregava - Assim que a lançamos contra alguém, ficamos desarmados. - O seu olhar recaiu sobre a armadura de David. - É aço do bom. É alemão?
- Flamengo.
- Não deveríeis estar em Inglaterra? Em Northumberland, não era?
- Outros assuntos trouxeram-me até aqui.
- E a minha irmã?
- Encontrei-a. Não estava com Percy.
Alguns dos homens começaram a murmurar em voz alta algo acerca de os cavaleiros ficarem sempre com a parte melhor para eles.
Morvan limitou-se a bocejar enquanto desembainhava a sua espada e os murmúrios cessaram.
- Estais numa péssima posição aqui - observou.
- Sim. Ainda bem que aparecestes. Morvan encolheu os ombros.
- Assim que a ponte cedeu, terminou a diversão. A violação e a pilhagem não me atraem, por isso decidi vir até esta casa que ostenta as cores de Harclow. - Lançou um olhar à porta. - Seja lá o que for que estais a guardar, não vale a vossa vida. Desviai-vos e permiti que estes homens o pilhem. Não podem ser controlados depois de terem sentido o odor do saque e saboreado o sangue. Eu e Thomas Holland passámos as últimas horas procurando impedir que as mulheres e as crianças fossem assassinadas ou desonradas.
- Não posso desviar-me.
- É só uma questão de tempo até eles encontrarem um arqueiro. É ouro a sério, como dizem lá em baixo?
David abanou a cabeça e com um gesto indicou-lhe a porta. Morvan abriu uma fenda, espreitou lá para dentro e retesou-se. Franziu o sobrolho e espreitou novamente. Os seus olhos voltaram-se para David enquanto fechava a porta.
- Dizei-me que a mulher que avistei ali dentro entre todas as outras não é a minha irmã.
- Se insistis. Não era a vossa irmã.
Morvan resmungou entre dentes, abriu a porta mais uma vez e fechou-a bruscamente.
- Diabos me levem! O que está ela aqui a fazer?
- A visitar amigos meus nesta cidade. Quem é que estava à espera que o nosso exército viesse saqueá-la?
- Assim que a tirar daqui, vou matar-vos.
- Se a conseguirdes retirar daqui, podeis fazê-lo - disse, com um gesto na direcção dos homens.
As lamentações impacientes e os murmúrios haviam regressado. David suspeitava que estivessem a elaborar-se planos.
- Quantos são?
- Vinte. Trinta - respondeu Morvan, encolhendo os ombros.
- Quantos ao certo? Diria que faz uma grande diferença.
- Dificilmente - respondeu Morvan com um sorriso sarcástico. - Vinte contra dois, ou trinta contra dois, é a mesma coisa.
É inútil. Eu sou muito bom, David, mas não tanto assim, e a minha libré do rei só os deterá durante mais algum tempo.
Ainda assim, voltou-se para as escadas e avaliou a sua posição para a batalha. com um suspiro de exasperação, alcançou o punho da espada de David e deu-lhe um safanão de modo a que a arma ficasse voltada para cima e não para baixo. - Tendo em conta a forma como manejais uma espada, o mais provável é serem vinte ou trinta contra um e meio. O melhor é ficardes do meu lado direito, o lugar onde posicionamos os jovens escudeiros.
Nessa altura, um estremecimento sacudiu as escadas. Repetiu-se uma e outra vez e era acompanhado por uma série de grunhidos. Os homens no patamar inferior voltavam-se para trás com os olhos arregalados e depois tentavam desaparecer junto à parede. De súbito, surgiu um corpo maciço e um rosto áspero de feições grosseiras abriu um enorme sorriso na direcção de David.
- Corrijo-me a mim próprio - disse Morvan num tom seco.
- Trinta contra dez.
- Já, mas foi um inferno encontrar-vos, David - disse Sieg enquanto subia as escadas na direcção deles. Dois homens cometeram o erro de não se afastarem suficientemente depressa. Sieg ergueu-os calmamente pelo pescoço, esmagou as suas cabeças uma na outra e depois deixou-os tombar. - Em primeiro lugar, dirigi-me ao castelo na outra margem do rio, mas o bispo que está a tomar conta dele tem-no encerrado com a um caixão. Tentei a Câmara Municipal onde o rei se instalou, depois pensei, raios, talvez ela estivesse prisioneira na casa do presidente da Câmara.
A indignação perante a forma como Sieg acabara de agir provocou afoiteza nalguns dos homens. Atrás de si foram brandidas algumas facas reluzentes. Sem se desequilibrar, Sieg voltou-se para trás e, com a sua mão enorme, agarrou no tolo mais próximo e esmagou a cabeça do homem contra a parede de pedra.
- Oliver está convosco?
O sueco riu-se e desembainhou a espada para silenciar as ameaças que se formavam lá em baixo contra ele. O seu rosto resplandecia perante a perspectiva de lutar contra todos estes homens.
- Perdi-o nas ruas. Todas estas casas abertas e todos estes bens à disposição foram mais fortes do que ele. Disse que era uma pena não estardes com ele. Tal como nos velhos tempos, disse.
Morvan ergueu um sobrolho perante esta conversa. David sorriu e encolheu os ombros.
- Ainda precisamos de alguma ajuda para retirar daqui estas mulheres - disse Morvan. - Agora que o vosso homem está aqui, vou em busca de mais alguns. Protegei-me com essa adaga, David.
Exibia uma expressão mais perigosa agora ao partir do que quando chegara e ninguém o desafiou.
- Conseguiram passar alguns mensageiros para avisarem o comíe? - perguntou David após a partida de Morvan.
- Não. Eu e Oliver permanecemos algumas milhas abaixo na estrada para sul, tal como dissestes. Eles vieram direitinhos a nós. Quando o rei enviou alguns homens para impedirem a passagem das notícias até ao exército francês, saímos dali finalmente e entregámos-lhes os mensageiros. O comte só saberá do desembarque de Eduardo daqui a muitos dias. - Fez um gesto com a espada e declarou: Agora vou fazer desaparecer estes homens.
- Procurai não os matar a todos. É suposto eles estarem do nosso lado.
Sieg desceu dois degraus de modo a poder pôr-se de pé sem se baixar. Ergueu a adaga na mão esquerda e a espada na direita, fitou furiosamente os homens que o observavam e emitiu um primitivo grito de guerra viking.
A constatação de que um cavaleiro do rei havia partido para ir buscar ajuda subjugara já os soldados. A exibição da força de Sieg desencorajou a maior parte deles. As cabeças começaram a oscilar e a virar-se à medida que os homens se voltavam e procuravam comprimir-se para descerem as escadas.
Quando Morvan regressou com Thomas Holland e dois outros amigos, a maior parte dos soldados já havia desaparecido.
David abriu a porta e conduziu-os para dentro do sótão. Uma onda de alívio percorreu as mulheres quando viram a salvação entrar pela porta. Algumas desataram num pranto, dando largas aos sentimentos contidos. Chnstiana correu para os braços de David.
- Graças a Deus estais bem! Salvastes-nos a todas, David!
- Foi a vossa bandeira quem vos salvou, minha querida. Parece que pilhar cidades aborrece o vosso irmão, e veio investigar as vossas cores.
- Morvan! - exclamou, voltando-se com surpresa para os cavaleiros. - Thomas!
Morvan avançou furtivamente e aceitou o abraço da irmã. Sobre o ombro, lançou um olhar perigoso a David. Christiana recuou a tempo de ver aquele olhar.
- Não vos atreveis, Morvan. Ele salvou-me, assim como a todas nós. Os cavaleiros e os soldados franceses abandonaram-nos e ele colocou a vida dele entre nós e o perigo. Não podíeis ter agido melhor do que ele.
A expressão de Morvan suavizou-se enquanto fitava a irmã.
- Se é como dizeis, então desta vez não o mato.
- O melhor que temos a fazer é levá-las para junto de Eduardo. Não estarão seguras em mais lado nenhum. Mas é complicado. E esta cidade... - disse Thomas Holland.
David leu a sua expressão e preocupação.
- Mantê-las-emos entre nós. Christiana, reuni as mulheres e explicai-lhes o que vamos fazer. Depois dizei-lhes para manterem os olhos baixos enquanto caminharmos.
Ela assentiu e dirigiu-se em primeiro lugar a Heloise e às suas filhas. David chamou Sieg com um gesto.
- Ireis com a mais jovem - disse. - Mas atenção: ela não pode ver os corpos.
Enquanto Christiana explicava às outras mulheres o que ia acontecer, David aproximou-se de Heloise. Não se havia movido desde que eles haviam entrado e encontrava-se sentada sobre uma pilha de tecidos com um aspecto extenuado e entorpecido. As mãos seguravam algo e sobre a sua saia pendia um objecto de um brilho enfraquecido.
Heloise ergueu o olhar para ele. As suas mãos abriram-se para revelar um colar de ouro e esmeraldas.
- Pensei que, se fosse caso disso, talvez pudesse comprar a segurança das minhas filhas.
- Elas estarão em segurança agora, madame. Estou certo de que o vosso marido também está a salvo. Provavelmente será levado para Inglaterra à espera de resgate como os restantes burgueses abastados, mas não há qualquer lucro em assassiná-los.
- Por favor, aceitai-o - disse, fitando o colar. - Em compensação do rapto da vossa esposa pelo meu marido e por nos terdes auxiliado hoje.
Ele não tinha dificuldade em calcular o valor do ouro e das esmeraldas. Mas o seu papel nos acontecimentos do dia não era tão cavalheiresco quanto a mulher imaginava, e ele não se aproveitaria disso.
- Foi a chegada do irmão da minha mulher que vos salvou. Se desejais exprimir gratidão, fazei-lo com ele. - Ajudou-a a pôr-se de pé. - Agora temos de ir. Segui as instruções que a minha mulher vos der.
Os homens conduziram as senhoras pelos degraus íngremes. No pátio, todos eles desembainharam as espadas. Sieg havia convencido a mais jovem a deixar que ele lhe vendasse os olhos, e içou-a nos seus braços enquanto ela se segurava firmemente a ele. David pousou o braço esquerdo sobre os ombros de Christiana e, desta forma, guiaram as mulheres através do inferno de morte e destruição que havia sido em tempos a gloriosa cidade de Caen.
Eduardo permanecia no edifício da Câmara Municipal, rodeado por escrivães que listavam cuidadosamente a propriedade dos espólios a serem enviados de regresso para Inglaterra. A chegada do cortejo de cavaleiros e mulheres silenciou os aposentos. Pelo caminho, outras mulheres desesperadas haviam-se juntado ao grupo. Thomas Holland teve até de se desviar do percurso para resgatar algumas. Vinte mulheres caminhavam na presença do rei, flanqueadas por cavaleiros armados com espadas.
Quaisquer que fossem as inclinações de Eduardo em relação ao destino que deveriam dar a estas destas mulheres, tornou-se irrelevante. Diante dos seus jovens cavaleiros,
não teve outra hipótese senão fazer mostra do cavalheirismo que sempre existira na sua corte. Estendeu formalmente a sua protecção às mulheres e ordenou que as enviassem para outro compartimento para segurança delas.
David voltou-se para acompanhar Christiana, mas, com um gesto, o rei ordenou-lhe que ficasse. Dispensou os homens em seu redor e encarou David sobre uma mesa repleta
de mapas, exibindo um largo sorriso.
- Um plano esplêndido, David! Céus, que vitória!
David pensou nas centenas de corpos que haviam encontrado pelas ruas. Pessoas de todas as idades e classes sociais, chacinadas
e totalmente despojadas das suas vestes. As ruas encontravam-se cobertas de sangue.
- É verdade que ordenastes a morte de todas as pessoas?
- Estava no meu direito - respondeu Eduardo, franzindo o sobrolho - quando eles não se rendiam e sabiam-no. Centenas de homens pereceram por resistirem. Não só na ponte, mas nas ruas. Aqueles malditos bancos e pedras... contudo, revoguei a ordem. Raios, deviam ter-se rendido.
Quando confrontados com vinte mil, deviam tê-lo feito. Mas Londres não se teria rendido, pensou David. Nem vós quereríeis que Londres o fizesse.
Eduardo afastou o tema da destruição de Caen como se não passassem de destroços de guerra. Irradiava satisfação e apontava para o mapa sobre a mesa.
- Teremos o caminho todo livre até Paris. O exército deles não pode regressar a tempo e ninguém nos deterá agora. Nenhum cerco nos retardará logo que as notícias sobre Caen se difundirem. Franziu ligeiramente o sobrolho. - Conheceis o rio Somme, David? Preocupa-me. Podemos ficar encurralados entre ele e o Sena, e não parece haver muitas formas de o atravessar, à excepção de umas quantas pontes. Raios, devia ter-vos pedido que fizésseis também este mapa. Os vossos são bem melhores.
David afastou-se para procurar uma pena de um dos escrivães. Regressou, inclinou-se sobre o mapa e desenhou duas linhas sobre o rio.
- Aqui podeis atravessar o rio a vau, mas a água move-se como uma maré, por isso deveis atravessar quando estiver baixa.
- Esplêndido - disse Eduardo esfregando as mãos de contente.
- Temos o condestável e o camareiro, sabíeis? vou enviá-los com os outros reféns rio abaixo amanhã pela manhã, junto com os espólios. Há navios repletos deles. A propósito, onde estão aquelas armas?
- Aqui perto na cidade de Bayeaux.
- Excelente. Iremos para lá de seguida.
- O meu homem virá e mostrar-vos-á a localização delas.
- Não sereis vós a fazê-lo? Deveis juntar-vos a nós. Esta será uma campanha gloriosa.
- A minha missão está terminada. Gostaria de regressar a Londres com a minha esposa.
Eduardo observou-o, e uma expressão diferente substituiu o seu contentamento.
- Sacrificastes muito para me permanecerdes leal, David. Não esqueço essas coisas. Durante os últimos dois dias estive a armar cavaleiros homens que nunca vi antes. Façamos isso agora. Tomai o lugar assegurado pelo vosso sangue e conquistado pela vossa lealdade.
- Sinto-me honrado pela oferta, mas prefiro que não o façais. Eduardo mostrou-se um tanto aborrecido, mas David sorriu
afavelmente.
- Todavia, preciso de outros favores da vossa parte, se tal for do vosso agrado.
As sobrancelhas do rei ergueram-se.
- Quando regressar a Londres, entregarei ao vosso tesoureiro um terço do preço da licença que me concedestes. O terço seguinte será entregue no prazo de dois anos, e o seguinte no prazo de quatro anos a partir desta data, como primeiro vos sugeri.
- Já saldastes...
- Não. Esse foi o preço da noiva. Desejo converter essa história na verdade, e
peço-vos que jamais revelareis o nosso acordo inicial. Não quero que ela saiba.
- A rapariga conquistou o vosso coração, não é verdade? inquiriu Eduardo com uma gargalhada. - Bem, seria louco se recusasse mais mil libras. Será como solicitais. E os outros favores?
- Peço que vos recordeis da vossa promessa de ajudar a recuperar Harclow, e que auxiliareis o irmão dela da forma que vos aprouver quando chegar a altura.
Eduardo baixou pensativamente o olhar antes de assentir.
- Lady Catherine deve ser afastada de Londres - acrescentou David. - Ela sabe demasiado, e o meu valor para vós, caso o desejardes, estará comprometido por ela.
- Gostaria que tivésseis estado presente quando ela me abordou com a sua história - disse Eduardo com um largo sorriso. - Permiti que ela falasse ininterruptamente. É uma mulher astuta, suspeito. Nunca me interessei muito por mulheres astutas. Já a enviei para Castle Rising para ficar ao serviço da minha mãe. Será mantida em reclusão junto dela. Podem endoidecer-se uma à outra com os seus esquemas. O mercador, Frans, está a desfrutar de umas instalações
menos cómodas até eu regressar e ele ser resgatado. São as desvantagens de se ser uni plebeu.
- Gostaria que eu e Christiana vos acompanhássemos junto com os vossos homens amanhã.
- Obviamente. Providenciar-vos-ei alguns documentos para levardes convosco. Encontrámos documentos contendo planositos para a invasão de Southampton. Ordenarei aos sacerdotes que os leiam a partir do púlpito para que o povo saiba o quanto a Inglaterra esteve perto de avistar tropas francesas no seu solo.
Nessa altura entrou o duque de Warwick, e Eduardo voltou-se para o saudar com um entusiasmo redobrado. David apresentou as despedidas e encaminhou-se para o compartimento onde se encontravam as mulheres. Sieg aguardava junto à porta.
- Ireis até Bayeaux com o rei antes de vos dirigirdes para sul
- explicou David.
- Já. Quereis que lhe mostre onde estão os canhões?
David assentiu. Procurou no seu gibão e retirou alguns pergaminhos dobrados.
- Aqui está o reconhecimento de Theobald e a permissão do rei francês para a minha sucessão de Senlis. Tendes já o anel e o projecto. Esperai até que ele saiba da minha traição. Não estareis a salvo se aparecerdes com essa notícia. Podereis não estar a salvo em qualquer dos casos quando ele vir que a pedra do anel é cor-de-rosa, e que é dele e não do irmão.
- Eu sei o que fazer.
- Voltarás para Londres depois disso? Hoje saldaste, e de que maneira, a dívida que dizes ter para comigo.
- Dificilmente, David. Aqueles mamelucos estavam dispostos a assassinar-me. Se não tivésseis planeado aquela fuga...
- Morvan e eu poderíamos não ter conseguido aguentá-los hoje.
- Já, bem, sou capaz de me juntar a esta guerra durante algum tempo. Quando os Franceses finalmente alcançarem este exército, a batalha será maravilhosa. Avisar-vos-ei se não regressar até ao Outono.
David fitou os documentos que aquela mão robusta segurava.
- Tem cuidado, meu amigo. Não faço ideia de como é que ele irá reagir.
CAPÍTULO 23
As docas encontravam-se apinhadas de homens, carregando os produtos do saque para os navios que esperavam. Os despojos haviam sido listados e avaliados, e iam agora ser transportados para Inglaterra.
David mantinha-se entre os frutos de guerra empilhados num dos embarcadouros. Uma brisa oferecia algum refrigério do fedor a morte que pairava sobre a cidade. Uma caixa aberta de loiça em prata refulgia a dez passos de distância no calor estival.
Ele observava Christiana enquanto esta caminhava pela doca em direcção ao irmão. Podia ver que esta despedida era dolorosa para ela. Havia presenciado muita da crueldade da guerra no dia anterior e sabia que Morvan podia não sobreviver a esta campanha.
David não conseguia evitar ponderar nas implicações disso. Nem sequer tentou fazê-lo. O filho de Senlis era incapaz de ignorar o facto de que era do seu interesse que Morvan jamais regressasse a Inglaterra, pois com o afastamento de Morvan, Christiana converter-se-ia na herdeira de Harclow, e um dia Eduardo reclamaria realmente as terras em nome do seu falecido amigo Hugh Fitzwaryn. Na ausência de Morvan, David de Abyndon, filho bastardo do nobre Theobald de Senlis, tornar-se-ia no senhor de Harclow como marido de Christiana.
Ser um cavaleiro inglês era uma coisa, ser um barão inglês era algo bem diferente.
Mas, na verdade, a terra e o estatuto eram o menos importante. O mercador que havia dentro dele conhecia o valor real de Harclow. Havia lá estado, da mesma forma que estivera em todas as propriedades ao longo da fronteira escocesa. Ele sabia que nas montanhas de Harclow, e noutras terras cúmbrias, havia muitas grutas, grutas primitivas, as quais haviam albergado animais desde o início dos tempos. E só nas grutas de Harclow jazia uma grande quantidade de uma substância rara conhecida como nitrato de potássio, que era essencial para fabricar a pólvora para os canhões.
E havia pago a Eduardo mil libras pelo direito de ser o agente exclusivo da coroa para a compra e venda de nitrato de potássio, e tomara Christiana Fitzwaryn como
esposa de modo a disfarçar o acordo.
Observou os irmãos enlaçarem-se num abraço. A sua mente começou involuntariamente a calcular a tremenda perda de lucros quando pagasse a Morvan pelo conteúdo daquelas
grutas.
Sim, não era mesmo nada do seu interesse que Morvan regressasse. Na verdade, se encarregasse Sieg de garantir que Morvan perecia em combate...
Christiana fitou o irmão com olhos cintilantes. Mesmo à distância, a preocupação dela era palpável.
A tristeza dela tocou-lhe o coração. A sua mente esvaziou-se de tudo para além do desejo de a confortar.
Theobald estava certo. Reconhecer as opções de cada um não era o mesmo que optar por elas. Voltaria as costas a estas oportunidades douradas que a Fortuna lhe havia caprichosamente oferecido.
Fá-lo-ia por Christiana, porque a amava.
Christiana e Morvan mantinham-se de braço dado enquanto homens carregados com espólios se acotovelavam uns aos outros para passarem.
A guerra era exactamente isto: lucro, na sua forma mais primitiva. Toda aquela conversa do cavalheirismo e honra parecia-lhe, hoje, muito falsa.
- Todas as quintas em Inglaterra terão novos utensílios de cozinha e tecidos - disse Morvan, examinando os navios que avançavam lentamente pela água.
- Algum deles é vosso?
- Não. O meu prémio é a vossa segurança. É o suficiente para mim. - Lançou um olhar a David, que aguardava a cerca de cinquenta passos de distância. - E para o vosso
mercador, penso eu. Pelo menos, desta vez.
- David. O nome dele é David.
- Sim. David.
- Sei que ainda não o aprovais, Morvan, mas ele é um bom homem. Não podeis negar que ele já o provou.
- Possui bondade dentro dele, mas muitas coisas mais. Coisas que não compreendo, mas provou que pode proteger-vos. Posso despedir-me de vós hoje com uma mente tranquila, até mesmo com um coração tranquilo.
- Não será uma despedida assim tão longa. Esta guerra não pode continuar quando o Inverno se fizer sentir.
Ele desviou a atenção do navio para a fitar.
- Seja qual for a sua duração, penso que não nos voltaremos a ver durante muitos meses. Saber que estais em segurança e que tendes um lar permite-me abandonar a corte sem preocupações. Posso não regressar com o exército. Penso que partirei em busca de aventuras quando esta campanha terminar.
O ânimo de Christiana havia sido abalado pela destruição de Caen, e agora uma nova tristeza se abatia dentro dela.
- Rezo para que mudeis de ideias - disse, beijando-o. - O meu lugar junto dele não diminui o meu amor por vós. Se deveis procurar aventura, que seja por pouco tempo. E a minha casa é a vossa casa. Por favor, acreditai nisso.
- Não será por muito tempo. Mas vós encontrastes o vosso destino, Christiana, e agora chegou a altura de eu encontrar o meu.
Incitou-a a afastar-se e sorriu-lhe.
- Devo partir agora, tenho de cumprir os meus deveres para com Eduardo. Não choreis, irmã. Esta despedida não é para sempre. Ide ao encontro do vosso marido.
Morvan afastou-se e, em breve, perdeu-se na multidão. Ela continuou a olhar, com a esperança de voltar a ver os cabelos negros mais uma vez, rezando para que as suas palavras fossem verdadeiras e que aquela não fosse a última vez que ouvia a voz dele.
David surgiu por detrás dela. Christiana sentiu a presença dele e o conforto dos seus braços a rodeá-la, estreitando-a junto ao seu corpo.
- Amo-vos - disse ele.
Era mesmo dele saber que ela necessitava de escutar essas palavras naquele momento. Mas a verdade é que aqueles olhos azuis haviam sempre visto o seu coração. Voltou-se para ele e para o santuário que aquela declaração oferecia.
- Fico preocupada com ele - disse.
- Ele é hábil e enérgico, Christiana. E nas batalhas não procuram eliminar cavaleiros, mas capturá-los para se pedir um resgate.
- Sim. Mas eu conheço o valor do resgate de um cavaleiro e não há um pai para o pagar. Poderá viver toda a sua vida no antro de uma cela francesa se Eduardo falhar.
- Se ele for capturado, eu tratarei da sua libertação.
Ela fitou-o nos olhos e soube que aquilo era verdade. Quer fosse através de dinheiro ou armas, ele fá-lo-ia por ela.
As imagens horríveis do dia anterior invadiram a sua mente. O brilho do amor e dos cuidados que ele lhe oferecia dissiparam o nevoeiro da melancolia que se havia adensado com a partida de Morvan.
- Onde está Sieg? Ele regressa connosco?
- Decidiu unir-se a esta guerra. Faz parte da sua natureza apreciar coisas do género.
- Mas em primeiro lugar, ele foi ao encontro do vosso pai, não é verdade? Pedistes-lhe que lhe restituísse os documentos, não foi? A imagem da vossa mãe havia desaparecido do livro no vosso gabinete. Também lhe enviastes isso, de modo a que ele saiba quem vós realmente sois e por que motivo fizestes isto.
Aquilo surpreendeu-o. O sorriso dele exibiu espanto. E admiração.
- Estais a tornar-vos perigosamente astuta, querida.
- Então, quanto tempo pensais que teremos?
- Estarei em Inglaterra, e por isso ele não poderá fazer-me mal.
- Claro que pode, Mas não é a isso que me refiro. Quanto tempo pensais que o comte ainda viverá? Quanto tempo falta até Senlis ser vossa?
Desta vez David não ficou apenas surpreendido, mas assombrado. Isso, em contrapartida, abismou-a. Ele não havia considerado essa possibilidade. Ele não havia realmente previsto a forma como isto iria terminar.
- Ele é um nobre, David, e o último de uma antiga linhagem. Nisso eu conheço-o melhor do que vós. Ele não pretende que a linhagem termine assim e que as terras sejam devolvidas à coroa. Homens como ele farão de tudo para se assegurarem de que têm um herdeiro. Apesar do que fizestes, não esquecerá que sois tudo o que lhe resta logo que venha a saber a verdade.
David permaneceu imóvel enquanto absorvia aquelas palavras.
- Então, quanto tempo pensais que teremos?
- Ele deve ter uns cinquenta e cinco anos. Se estiverdes certa, e eu penso que estais a subestimá-lo, ainda faltará muito tempo para que eu volte a ter essa opção
de novo.
Ele pronunciou aquelas palavras de ânimo leve, mas ela notou uma mudança nele. Sentiu que as suas emoções começaram a agitar-se. Conhecia-o agora bastante bem e
reconhecia o drama privado que a sua alma controlava e continha.
Ele vira que ela estava certa, e que, afinal, Senlis podia um dia vir a ser dele. Começara de novo a esperar. Ele era bom a esperar.
Ela esticou-se para lhe acariciar o rosto.
- Adoro a nossa vida, e não me importo que ainda demore um pouco. E amo-vos. Agradeço a Deus pelo nosso amor, David. Há beleza e bondade nele, e em vós, sempre à
minha espera.
- Qualquer bondade que vejais em mim é meramente um reflexo de vós, minha menina. Haveis-me convertido numa pessoa melhor do que aquela que eu nasci para ser.
- Isso não é verdade. Para um homem que vê com tanta clareza como vós, há partes de vós mesmo que não conheceis muito bem.
- Partes que eu jamais conheceria se não tivésseis tocado nelas. Ela começou a objectar, mas a intensidade na expressão dele
deteve-a. Talvez ele estivesse certo. Não era verdade que o amor dele lhe ensinara coisas acerca dela que ela não teria descoberto sem ele? Dois homens carregando uma cama passaram por eles, abrindo caminho aos encontrões. O ruído que se fazia sentir no porto intrometeu-se entre eles.
- Talvez o amor seja a única coisa que se interpõe contra tudo o que presenciámos aqui em Caen - disse ela. - É triste.
Ele abanou a cabeça.
- Eu compreendo as trevas que existem nos homens, de uma forma que a vossa inocência jamais o conseguirá, Christiana, e os actos de guerra são os de somenos importância. Acreditai em mim quando vos digo que o amor é um formidável inimigo. Talvez o único inimigo.
Durante um momento, o olhar dele expôs a sua alma tal como na noite do reencontro, e estava tudo ali. As sombras de que ele falava, e o poder do amor para as conter. Sim, Morvan estava certo. Havia bondade nele, mas também outras coisas.
- Então, amemo-nos o melhor que pudermos, David. Construamos uma vida repleta de esperança e luz que nunca esmorece, independentemente do que o mundo nos trouxer. Quero que o nosso amor seja a lareira no centro do nosso lar, seja ele onde for, ardendo de uma forma abrasadora para sempre. Não quero nunca olhar para trás para aquilo que partilhámos hoje aqui e interrogar-me se terá sido uma ilusão que abraçámos no nosso desespero.
- Não foi uma ilusão. O meu coração já era vosso muito antes de eu vos encontrar aqui, e será vosso para sempre. O nosso amor é, e será sempre, tão real quanto os
braços que vos enlaçam. Não sou homem para deixar escapar um bem precioso que tenha tido em meu poder.
Os lábios dele afloraram os dela num beijo lento e exigente, numa agradável lembrança da paixão que haviam encontrado. Ele estreitava-a de tal forma que os seus
corpos se moldavam num só e ostentavam uma imagem de amor entre a ganância que fervilhava nas docas.
Ele voltou-a.
- Partamos agora deste lugar. Vamos para casa.
Alguns homens interromperam o transporte do espólio para observarem os amantes. Ela enfrentou o olhar deles sem receio, e tinha esperança de que aquilo lhes recordasse do verdadeiro valor das coisas.
- Sim, David. Vamos para casa. Levai-me de regresso ao nosso jardim e à nossa cama.
Caminharam pelo embarcadouro lado a lado, sem nenhum prémio nos braços para além do amor que os unia.
CAPITULO 18
David permitiu que o sangue do seu pai fluísse pelas suas veias, libertando-o dos recessos e fissuras onde o mantinha contido e controlado. Permitiu que toda a sua força sinistra o percorresse.
Sieg caminhava ao seu lado enquanto ele cavalgava pelo pátio. David viu o sobrolho franzido do sueco. Sieg atribuía a culpa do desaparecimento de Christiana à sua própria negligência e não sossegaria enquanto não o ajudasse a trazê-la de volta. David iria apreciar a ajuda do seu amigo no final, mas não agora.
- As espadas, Sieg. Não te esqueças de as trazer - disse.
Sieg assentiu e David transpôs o portão. Era possível que não necessitasse dos preparativos que estava a deixar ao encargo de Sieg. Talvez ele a encontrasse noutro lado. Todavia, duvidava que assim fosse. Ainda assim, teria de o confirmar.
Fez uma pausa e lançou um olhar aos edifícios onde passara toda a sua juventude e início da idade adulta. Se as coisas corressem como esperava, não voltaria a ver esta casa.
O sangue de seu pai não se importava nada com isso. David esboçou um sorriso débil. Não, não havia ali sentimentos. Não quando se deparava com uma demanda ou com um objectivo. Ou uma vingança.
Há anos que sabia que o tinha dentro de si e o que era capaz de fazer. Durante a sua juventude, examinara os traços do seu rosto e da sua alma para saber quais as características que herdara dos Abyndon e as que herdara do outro lado. Havia tentado reconstruir o
rosto do seu pai ausente a partir das peças desconexas que não comportavam um legado dos Abyndon. O amor pela beleza. O autodomínio emocional. As sinistras maquinações. A capacidade de matar. Nem mesmo a crueldade arrogante de Gilbert era capaz de igualar a sua tendência para uma implacabilidade glacial. Esse traço, em particular, fizera sempre parte dele, uma força a ser usada e uma fraqueza a ser temida, e ultrapassava a análise sagaz ensinada como parte do ofício de mercador. O sangue da mãe suavizara-o até certo ponto, mas a forma de o controlar havia sido a maior dádiva de David Constantyn.
Fora o lado do seu pai que magoara Christiana.
Procuraria primeiro em Londres e Westminster, só para ter a certeza.
Pouco tempo depois, entrou a cavalo no pátio da casa de Gilbert de Abyndon pela primeira vez na sua vida. Um moço de estrebaria aproximou-se para lhe cuidar do cavalo,
mas ele ignorou-o e atou as rédeas a um pilar.
Estavam todos a jantar quando ele entrou no salão. Fora assim que o planeara. Não pretendia que Margaret enfrentasse a ira do marido caso ele fosse lá quando Gilbert estivesse ausente, e queria que houvesse muita gente em volta de modo a que ele não enfiasse um murro no rosto de Gilbert quando o tio o insultasse, como estava certo que ele faria.
Gilbert interrompeu a conversa quando David se aproximou da sua mesa, e dir-se-ia que o homem estava diante de uma aparição, tão grande era o choque na sua expressão. Margaret estava visivelmente pálida.
David limitou-se a dirigir um aceno ao tio e voltou a sua atenção para Margaret.
- Estou à procura de Christiana, Margaret.
- À procura? - inquiriu, franzindo o sobrolho.
- Ela saiu de casa.
- Quer dizer que se encontra melhor de saúde? Então Christiana não fizera confidências à amiga.
- Sim, mas desapareceu há dois dias, Margaret. Ela procurou-vos?
Margaret compreendeu tudo, mas ocultou-o da sua expressão. Gilbert provou ser menos discreto.
- A vossa nobre esposa já vos abandonou tão cedo? - escarneceu baixinho.
- Ela está aqui, Margaret? Ela abanou a cabeça.
- Nunca soubestes pôr-vos no vosso lugar, rapaz - vociferou Gilbert. - A audácia de desposardes uma mulher como aquela! É evidente que desapareceu. Até admira que tenha ficado tanto tempo.
David conseguiu ignorá-lo.
- Sabeis onde ela se encontra, Margaret?
A pobre Margaret abanou de novo a cabeça e fitou-o com um olhar angustiado. A mão repousava, protectora, sobre o ventre ligeiramente protuberante.
- É um prazer ver um grande orgulho rebaixar-se - troçou Gilbert com uma gargalhada. - Esse é o preço desse pecado. Procurai por ela nas camas do reino, sobrinho. Mulheres como essa não têm moral.
A mão de David estendeu-se e agarrou o tio pelo pescoço. Gilbert soltou um grito e caiu na cadeira. David afrouxou a tensão no braço até ter o homem pregado às costas da cadeira. O salão ficou subitamente silencioso, e uma dúzia de pares de olhos observavam
a cena.
- Não pronunciareis nem mais uma palavra, tio, ou libertarei a vossa jovem esposa da infelicidade deste matrimónio - preveniu.
- Agora dareis permissão a Margaret que me acompanhe até à porta e não nos seguireis. Concordais com isto?
Gilbert olhou-o fixamente e David apertou-lhe a garganta. Gilbert assentiu com a cabeça.
Margaret ergueu-se da cadeira e deu a volta à mesa. David deixou cair a mão.
- Lamento - disse, enquanto atravessavam o salão. - Não havia nada a fazer senão vir até aqui.
- Eu compreendo, não vos preocupeis. Ele irá disparatar e falar mal de vós durante alguns dias a todas as pessoas que encontrar, mas isso não é nada de novo, pois não?
David fez uma pausa junto à porta.
- Ela alguma vez vos falou de Stephen Percy?
O choque e a surpresa de Margaret eram genuínos.
- Não, David. Christiana nunca me falou de nenhum homem para além de vós e do irmão dela. Até mesmo quando descrevia um acontecimento divertido da corte, os intervenientes não tinham qualquer importância.
- Ficai bem, Margaret - disse, acenando em afirmação e voltando-se para partir.
Ela deteve-o e saiu para o pátio de modo a poder falar em privado.
- Por que razão me fazeis perguntas acerca desse homem, David? Pensais que Christiana fugiu?
- É possível.
- com esse homem? - Fitou-o, incrédula. - Sempre pensei que os homens fossem todos loucos e que vós fôsseis a excepção à regra, David. Se existe outro homem no coração dela, então eu não a conheço de verdade. Ela falava apenas em vós, com afabilidade, afeição e respeito. Se ela desapareceu, não terá sido por sua vontade, estou certa - franziu o sobrolho de aflição. - Ela está em perigo, não está? Oh, Santo Deus...
- Não me parece que ela esteja em perigo - respondeu para a tranquilizar. - Regressai agora para junto do vosso marido. Dizei-lhe que eu não permiti que saísseis de perto de mim até responderdes às minhas questões.
- Tendes de encontrá-la...
- Eu vou encontrá-la.
David estava encostado ao muro do pátio onde os cavaleiros se exercitavam, e observava Morvan Fitzwaryn brandir o seu machado de guerra e lançá-lo contra o escudo do seu adversário. O suor reluzia sobre os seus ombros e peito nus.
David sentiu um movimento atrás dele e voltou-se para ver duas mulheres a espreitarem sobre o muro à medida que caminhavam. Lançaram um olhar de apreciação ao cavaleiro alto e teceram comentários por detrás de mãos erguidas, rindo-se, antes de se afastarem.
David aguardou. Morvan já havia reparado nele. O treino não tardaria a chegar ao fim.
Em breve, terminou. O adversário de Morvan deu por findo o treino com um gesto. Os dois cavaleiros encaminharam-se para
a tina de água e começaram a lavar-se. Morvan aproximou-se,
sacudindo a água da cabeça.
- Procurais-me? - perguntou, ainda um pouco ofegante dos
exercícios.
- Sim. Há três noites, Christiana abandonou a casa. Ninguém
a viu e ela não disse a ninguém para onde ia.
Morvan ia começar a limpar a testa, mas a sua mão deteve-se.
- Ela veio para cá, Morvan?
- Não.
- Dissestes que se pudésseis a levaríeis para outro lado. Fizeste-
-lo agora?
- Se eu a tivesse afastado de vós - disse Morvan, olhando-o
fixamente - teria permitido que me vísseis a fazê-lo. David começou a afastar-se.
- Ela não foi ao encontro dele - disse Morvan atrás de si. David voltou-se. - Como sabeis?
- Porque ela me disse que não o faria.
- Isso quer dizer que recebestes mais garantias do que eu.
- Por que haveria ela de dar garantias a um homem que não acredita nelas? - inquiriu Morvan enquanto se dirigia para ele.
- Não tardarei a saber a verdade, penso eu.
Morvan olhou pensativamente para o chão. - Da última vez que ela partiu e veio para aqui, deixou-vos saber onde estava.
- Sim.
- Mas não desta vez. E ela disse-me que já não sente nada por ele. Se ela está com Percy, David, não terá sido por vontade própria.
- Já pensei nisso. Conheceis esse homem melhor do que eu. Está na natureza dele agir desta
forma? Raptá-la?
Morvan lançou um olhar absorto pelo pátio.
- Diabos me levem se sei. Ele é vaidoso e presumido e, a meu ver, um pouco lerdo. As mulheres dizem que não aceita bem a rejeição. Os homens sabem que ele é rápido num desafio se se considerar
ultrajado.
David absorveu esta informação. Deveria ter conhecido Sir Stephen ou, pelo menos, ter-se informado melhor acerca dele. O orgulho levara-o a evitá-lo, mas fora um erro. Era importante conhecer-se as forças e as fraquezas dos adversários. Até mesmo um aprendiz inexperiente sabia disso.
- Comunicar-vos-ei quando a encontrar.
- Viajareis para norte, então? - inquiriu Morvan cautelosamente.
- Sim.
- Partirei convosco.
- Irei sozinho. Por um lado, o rei necessitará de vós aqui para reunirdes as tropas, por outro, eu não planeio fazer isto à moda dos cavaleiros.
Voltou-se para partir, mas Morvan segurou-o pelo braço. David fitou os seus olhos cintilantes e inquietos, tão semelhantes àqueles outros.
- Prometei-me que, se a encontrardes lá, lhe dareis uma oportunidade de falar. Se houver uma explicação, deveis escutá-la pediu Morvan.
David fitou a mão que o segurava e depois os olhos brilhantes e intensos que examinavam o seu rosto. Teria ele o aspecto perigoso que a preocupação de Morvan sugeria?
- Escutá-la-ei, irmão.
Em seguida, foi ao encontro de Sieg e Oliver e iniciou a viagem até Northumberland. Antes disso, todavia, dirigiu-se até às escadas de pedra que conduziam aos aposentos privados de Eduardo.
David e Oliver avançavam pelo algeroz da estalagem, as costas pressionadas contra o telhado íngreme. Abaixo deles, a viela que conduzia a esta estalagem parecia estar deserta, à excepção da sombra corpulenta de um homem que repousava descontraidamente contra uma vedação. A cabeça da sombra olhou para cima para avaliar o avanço deles.
Era escusado dizer que Sieg não podia juntar-se a eles lá em cima. O peso dele poderia ter quebrado as telhas. Esperaria lá em baixo e entraria da forma normal, livrando-se, pelo caminho, de quaisquer escudeiros inconvenientes ou companheiros que pudessem tentar interferir.
- Isto faz-me recordar os tempos antigos. - Sussurrou Oliver de bom humor enquanto caminhavam cautelosamente ao longo das telhas do algeroz. - Recordais-vos de quando éramos pequenos
e entrámos no sótão da mercearia através do telhado? Enchemos os bolsos com sal.
- Não era nada assim tão útil, Oliver. Era canela, e valia mais do que o ouro. Ter-nos-iam enforcado se nos tivessem apanhado, independentemente de sermos crianças.
- Todavia, foi uma grande aventura.
- Pelo menos a tua mãe usou a que lhe levaste. A minha soube
que era roubado, deu-a e arrastou-me até ao padre.
- A sensibilidade dela nessas coisas foi sem dúvida a razão pela qual a tua vida correu pior quando te tornastes mais velho - comentou Oliver. - Refiro-me à escola e coisas do género.
- Sem dúvida.
O pé de Oliver escorregou e uma telha estatelou-se no solo. Ambos os homens se detiveram aguardando um som que indicasse que alguém havia escutado.
- Por mim já cortava a garganta deste cavaleiro só para lhe mostrar o meu descontentamento por ser tão difícil de encontrar - murmurou Oliver no silêncio.
David esboçou um sorriso. Percy fora, realmente, difícil de encontrar, e a exaustiva busca não havia melhorado muito o humor de David. O homem parecia estar a esconder-se. Não era um bom sinal.
Haviam cavalgado primeiro até à propriedade do pai, depois até à do tio, e finalmente até à propriedade que o próprio Stephen geria. Não houvera necessidade de se aproximarem dos castelos ou dos solares. Bastaram algumas horas na cidade ou na aldeia mais próxima para obterem todas as informações que procuravam. O jovem Sir Stephen não era visto pelo menos há uma semana. Finalmente, na estrada para sul, uma conversa informal com um jogral que ia de passagem revelou que Percy já estava há algum tempo a descansar numa estalagem pública algumas milhas a norte de Newcastle.
David estudou o chão abaixo dele, debilmente iluminado por um archote. Sieg olhou para cima e assentiu com a cabeça. Encontravam-se mesmo por cima das janelas do quarto de Stephen, no último piso da estalagem. Como era uma noite amena de Junho, a janela estava aberta.
A essa hora da noite, não se ouvia qualquer som da estalagem ou do quarto em baixo. David voltou-se para o telhado, agachou-se e
segurou-se à caleira. Foi descendo, esticando lentamente os braços. Os seus pés encontraram a abertura e ele entrou, caindo com um ligeiro estrondo no chão do quarto. Lançou um olhar em seu redor, para as sombras tremeluzentes lançadas por uma candeia. Havia cortinas à volta das camas nesta dispendiosa estalagem, mas neste quarto haviam sido deixadas abertas. David avistou o corpo nu de um homem e cabelo loiro. Um braço forte jazia sobre outro corpo. Longas madeixas negras espalhavam-se pelos lençóis.
Sentiu um nó no estômago. Uma fúria sanguinária obscureceu-lhe a visão. Desembainhou a adaga que trazia na anca.
Oliver balançou-se na janela e aterrou ao lado dele. Fez um gesto a David para que permanecesse imóvel, e depois encaminhou-se para a porta. Sieg aguardava do lado de fora.
com a chegada de Sieg havia pouca esperança de manterem secreta a presença deles ali. O sueco entrou como um furacão e desembainhou a espada. A cabeça de Stephen Percy levantou-se.
Sieg alcançou-o antes que ele se conseguisse virar. Pousou um dedo silenciador nos lábios de Percy e encostou-lhe a espada à garganta. Stephen imobilizou-se. A mulher ainda dormia.
David encontrou um pavio junto à lareira e acendeu-o na candeia. Atravessou o quarto e estudou o homem que lhe causara tanto incómodo.
Sobre a lâmina refulgente fitavam-no cautelosamente uns olhos verdes cintilantes. Stephen possuía feições irregulares e a sua tez parecia muito pálida, especialmente agora que parecia estar sem pingo de sangue. David foi forçado a admitir, não sem algum ressentimento, que compreendia que as mulheres pudessem considerar este homem atraente.
- Quem sois vós? - inquiriu Stephen com uma voz rouca e num tom que pretendia mostrar-se indignado.
- Sou o marido de Christiana, o mercador - respondeu David, inclinando-se mais para que ele o visse melhor.
O olhar de Stephen demorou-se sobre David, depois voltou-se para Sieg e em seguida para Oliver.
- Graças a Deus - suspirou de alívio.
Sieg franziu o sobrolho na direcção de David. Este fez um gesto na direcção de Oliver. O homem magro dirigiu-se para o outro lado da cama.
Oliver afastou as madeixas negras que caíam sobre umas costas estreitas. A rapariga despertou, sobressaltada, e voltou-se.
- Raios, David, não é ela! - exclamou Oliver, olhando fixamente para a rapariga.
- Não. Nunca pensei realmente que fosse. Ela não viria por vontade própria, e ele nunca se importou o suficiente com ela para a raptar, mas eu tinha de ter a certeza.
A rapariga havia reparado na espada na garganta de Percy, a ponta aguçada não muito longe do seu próprio pescoço. Ela abraçou-se, assustada, e olhou em volta com o terror estampado nos olhos.
David sorriu na direcção de Sir Stephen.
- Pensastes que poderíamos ser os parentes dela? Stephen encolheu levemente os ombros.
- Mais uma virgem sacrificada para satisfazer a vossa vaidade, Sir Stephen?
Os olhos de Stephen semicerraram-se.
- Perdestes algo, mercador? Podeis ver que ela não está aqui, por isso ide-vos.
- Tende-la noutro lado?
- Ela era encantadora - respondeu Stephen com uma gargalhada -, mas não valia tamanho incómodo.
Uma fúria perigosa apoderou-se de David.
- Era encantadora, é?
- Sim - respondeu com um sorriso irónico. - Extremamente encantadora. Valeu a pena a espera.
- Posso matá-lo agora, David - disse Sieg com naturalidade.
- Não. Se tiver de morrer, será às minhas mãos.
A rapariga havia começado a chorar, agarrada aos joelhos. Oliver sentou-se ao lado dela e deu-lhe uma palmadinha no ombro. Ela murmurou algo por entre os soluços.
- Tendo em conta a vossa situação, sois muito corajoso ou muito estúpido para me provocardes desta forma - disse David.
- Não sois nenhuma ameaça para mim, mercador - respondeu Stephen com uma gargalhada. - Feri um cabelo da minha cabeça e o melhor é abandonardes o reino. Se a lei
não vos enforcar, fá-lo-á a minha família. ;
- Bem visto, só que eu já tencionava abandonar o reino, por isso parece-me que não tenho nada a perder.
O sorriso presumido desapareceu do rosto de Stephen.
- David - disse Oliver -, esta menina não passa de uma criança. Olha como é pequena. Quantos anos tendes, pequenita?
- Faço catorze este Verão - respondeu, soluçando tristemente. Lançou um olhar a Stephen. - Ele ia levar-me para Londres, não é
assim?
- Iremos, minha querida - respondeu Stephen, revirando os olhos -, assim que for seguro.
- Isso não é verdade - replicou Oliver, voltando-se para ela.
- Ele abandonar-vos-á para enfrentardes a ira da vossa família, e tereis sorte se acabardes num convento. O que sois vós? Pertenceis à pequena nobreza? Sim, bem, não apresentarão queixa contra um Percy, pois não? Não, minha menina. Receio que só vos restem duas alternativas, o convento ou a prostituição.
A rapariga lamuriava-se. Percy blasfemava.
- Então, matamo-lo agora? - inquiriu Sieg.
Era rápido. Fácil. Tão tentador. David fitou, impassível o rosto grotesco procurando manter-se valente e calmo.
- Não me parece - disse finalmente.
Os olhos de Stephen fecharam-se em sinal de alívio enquanto Sieg praguejava e embainhava a espada.
- Dai-me a vossa adaga, David - pediu Sieg, segurando-lhe na mão. - A mameluca.
- Para quê?
- Em honra do amor que sinto por este país - respondeu Sieg, fungando -, e em protecção das poucas virgens que ainda existem, vou tratar deste homem.
Stephen franziu o sobrolho, perplexo.
- Recordais-vos daquele médico na prisão, David? Aquele que havia trabalhado no palácio? Bem, ele explicou-me como é que fazem com os eunucos. É muito simples, a
sério. Basta um corte rápido...
Os olhos de Stephen arregalaram-se de horror.
- Sieg... - começou David.
- A adaga, David. Tende-la sempre afiada. Sairemos daqui num ápice.
David lançou um olhar à fronte de Sir Stephen, agora coberta de suor. Olhou para a menina que chorava e para o conforto afável que Oliver lhe oferecia. Pensou na
dor de Christiana por causa deste homem.
- Se insistis - disse com suavidade.
- Sim. Oliver, ajuda-me a segurar nele.
A rapariga viu a adaga a aproximar-se e começou a dar gritinhos débeis e roucos. Stephen recuava na cama, fitando a figura implacável de Sieg que se agigantava diante
de si e voltou-se para David.
- Santo Deus, homem, não podeis estar a falar a sério!
- Tal como vos disse antes, não tenho nada a perder. Stephen soltou uma gargalhada nervosa e ergueu uma mão como
que para se proteger da adaga.
- Escutai. A sério, o que eu disse antes acerca de Christiana... estava a mentir. Não a possuí. Na verdade, nunca o fiz.
- O mais provável é que estejais a mentir agora.
- Juro-vos, eu nunca... mal lhe toquei! Tentei, admito, mas, raios, todos nós tentamos, ou não? - voltou-se freneticamente para Sieg e Oliver, procurando confirmação.
- Vejamos. Ajoelhai-vos sobre as pernas dele, David. Oliver, posicionai-vos sobre o peito dele - instruiu Sieg enquanto se aproximava do lençol.
- Jesus! - gritou Stephen. - Juro pela minha alma, ela não me quis.
David sorriu.
- Eu já sabia disso.
Sieg deu outro passo em frente. Stephen parecia prestes a desmaiar.
- Como? - resmungou Stephen enquanto fitava o comprimento ameaçador do punhal.
- Ela disse-me. - Pousou uma mão sobre o ombro de Sieg.
- Vamos, Sieg. Deixai o homem em paz.
- Raios, David, ele é nojento...
- Vamos.
Oliver ergueu-se da cama e pegou nalgumas roupas pousadas sobre um banco.
- Aguardai lá fora, nós vamos já. -Nós?
- Não podemos deixá-la aqui, pois não? Terá a vida arruinada se a encontrarem aqui. Disse-lhe que a levaríamos até Newcastle e que a deixávamos numa abadia. Poderá
dizer que recebeu uma pancada na cabeça, que perdeu a memória e que deambulou durante alguns dias até que uma alma caridosa a levou à cidade.
- Ah. A explicação da pancada na cabeça e de deambular durante uns dias já é tão antiga não vos parece?
- A família dela acreditará porque quer acreditar. No caminho explicar-lhe-ei como esconder as provas quando se casar.
- Oliver...
- Ela não passa de uma criança, David. É demasiado ingénua, só isso.
- Tu és um proxeneta, Oliver. É suposto recrutares raparigas caídas em desgraça, não salvá-las. - Lançou um olhar à rapariga, não muito mais jovem do que Joanna deveria ter sido. Suspirou e dirigiu-se para porta com Sieg.
Raios. Por este andar, nunca mais sairia de Inglaterra. Mas, por outro lado, fora esse o objectivo de o forçarem a realizar essa busca.
CAPÍTULO 19
com um puxão enérgico, Christiana certificou-se de que os lençóis e as toalhas amarrados uns aos outros se encontravam firmemente unidos. Deslizou o braço pelo meio
daquela corda de tecido e tapou tudo com a sua capa.
Funcionará, decidiu ela. Tem de funcionar. Abandonando o quarto e o edifício, atravessou o pátio em direcção ao salão. Procurou por Heloise, que se encontrava a costurar com as suas criadas e as três filhas. A bela e loira Heloise ergueu um rosto meigo quando ela se aproximou.
- Está uma bela tarde - disse Christiana no tom distante que adoptara desde a sua chegada. - vou sentar-me um pouco no jardim.
- A brisa está a arrefecer - advertiu Heloise.
- Trouxe a minha capa, para o caso de precisar. A mulher assentiu e regressou à sua conversa.
Christiana obrigou-se a abrandar para um passo indiferente. Já lá fora, apressou-se a caminhar pelo jardim vedado atrás do salão.
Deambulou entre as plantas para que não parecesse que se dirigia para um ponto específico. Lenta e deliberadamente, encaminhou-se para a árvore majestosa num canto
recôndito do jardim.
Cinco dias. Há cinco dias que era prisioneira, e não sabia a razão pela qual a haviam trazido para cá. Duvidava que Heloise também soubesse. Talvez o marido dela, o presidente da Câmara de Caen, em cuja mansão palaciana agora se encontrava alojada, tivesse a resposta, mas não lhe explicara nada. Desde o dia em que entrara aos
tropeções naquele salão, imunda e desgrenhada da jornada a cavalo e da viagem por mar, furiosamente indignada e pronta a matar ou a ser morta, ninguém lhe dissera nada. Todavia, haviam-na recebido como a uma hóspede, dando-lhe guarida e prestando-lhe todas as honras.
À excepção de uma. Não podia partir.
Bem, partiria agora. No dia anterior encontrara esta árvore. Era mais alta do que o muro e Christiana trepara-a, ansiosa, rezando para que existisse alguma estrutura junto ao muro do outro lado para onde pudesse saltar. Pairando entre os ramos e folhas, olhara para baixo, para a queda de seis metros que a aguardava. Todavia, ainda o desapontamento não desaparecera e Christiana já arquitectava um plano.
Olhou cuidadosamente à sua volta, enquanto retrocedia para a obscuridade da árvore. Ainda tinha pelo menos duas horas antes do anoitecer. Era tempo suficiente para fugir desta cidade e encontrar abrigo algures.
Içando a corda de lençóis para o ombro, trepou a árvore. Encontrou um ramo forte que se projectava sobre o cimo do muro e instalou-se nele. Retirando cuidadosamente a corda de lençóis do braço, atou uma das extremidades ao ramo e lançou a corda sobre o muro.
Christiana avançou pelo ramo e olhou para baixo. A corda branca suspensa ficava a uns três metros do chão. Se conseguisse chegar ao fim, poderia saltar em segurança.
Lançou um olhar aos lençóis e aos nós. Se não conseguissem suportar o seu peso, a queda podia estropiá-la. Rezou para que o presidente da Câmara adquirisse linho
da melhor qualidade para a sua roupa de cama.
Pousando os pés no cimo do muro, segurou-se ao primeiro nó e avançou.
Ainda tivera a esperança de conseguir caminhar pelo muro abaixo, mas as coisas não funcionavam assim. Deu por si suspensa de encontro a ele, com as mãos a agarrarem-se
firmemente ao linho branco que a suportava. Os músculos dos seus braços e ombros rebelaram-se imediatamente.
Agora só havia um caminho a seguir. Agarrando-se com todas as suas forças, começou a descer aos sacões. A meio do caminho,
escutou um alvoroço distante. Ouvia-se com uma nitidez crescente e movia-se na sua direcção.
O ruído de vozes ressoava através do muro de pedra. Havia muitas pessoas no jardim, fazendo muito barulho. Ela prosseguiu a sua dolorosa descida e ergueu o olhar receoso em direcção ao ramo da árvore, aguardando o rosto que a descobriria. As folhas deviam ter ocultado a extremidade da corda, porque os sons afastaram-se.
Havia amarrado algumas toalhas aos lençóis para alongar a corda, e estava neste momento a chegar até elas. O nó esticou-se sob o seu peso. No momento em que as suas mãos começavam a ceder, escutou o som de tecido a rasgar-se e precipitou-se para o chão. Foi uma queda de apenas dois metros e meio, mas ainda assim deixou-a atordoada. Pôs-se cautelosamente de pé e olhou em seu redor.
Diante dela viu mais um muro, de uma outra casa. Entre os dois corria uma viela muito estreita onde agora se encontrava. Numa das extremidades avistou uma confusão de telhados que sugeria que ia desembocar numa rua da cidade. O outro lado parecia livre.
Mantendo-se na sombra do muro, subiu rapidamente a viela com uma exaltação triunfante vibrando dentro dela. O que quer que fosse que o presidente da Câmara de Caen tivesse planeado para ela, podia encontrar outra mulher para o papel.
Atravessaria o rio e manter-se-ia afastada das estradas. Procuraria o caminho para a costa e para alguma cidade portuária. Talvez encontrasse algum pescador inglês ou um mercador que a ajudassem. Deteve-se perto do final do muro e aguçou os ouvidos, tentando escutar os seus perseguidores. Estava tudo em silêncio e ela avançou de novo.
Subitamente, surgiu um homem vindo do fundo do muro. Mantinha-se a uns vinte metros à sua frente com os braços cruzados sobre o peito. Ela fez uma pausa e fitou-o
à luz do entardecer.
Não se tratava claramente do presidente da Câmara, um homem baixo e corpulento. Este era demasiado alto e esguio, embora o cabelo longo fosse tão branco quanto o
dele, e as roupas igualmente requintadas. Também não era nenhum dos seus criados. Avançou cautelosamente, esperando que a presença deste homem não tivesse nada a
ver com ela, apesar da forma atenta como ele a observava a aproximar-se.
Decidira dirigir-lhe um sorriso doce e fingir que pertencia a este beco e à vizinhança quando se aproximasse o suficiente para lhe ver o rosto.
Reconheceu-o e percebeu que ele também a reconhecera. Sentiu um aperto no coração enquanto os seus pés a levavam para junto do nobre francês que se havia disfarçado
para se encontrar com David em Hampstead.
Não estivera muito próxima dele naquele dia, mas agora deteve-se a apenas alguns passos de distância e encarou-o de uma forma directa. Recordava-se mais da aparência
dele do que pensava, pois parecia-lhe muito familiar, embora de uma forma que não conseguia definir. Os seus olhos castanhos velados examinaram-na. Entre o bigode
branco e a barba aparada, formou-se um débil sorriso.
- Tendes audácia - disse. - E bom sinal. - Lançou um olhar à viela e à corda branca de lençóis e toalhas suspensa da árvore. Podíeis ter-vos magoado.
- Isso tem alguma importância?
- Tem muita importância.
- Bem, pelo menos isso é uma boa notícia.
Afastou-se para o lado e, com um gesto floreado, indicou-lhe o caminho de regresso ao cárcere.
Christiana bordava diligentemente à luz do crepúsculo que se introduzia pela janela aberta. Um fogo brando ardia na lareira, mas a tarde do início de Junho estava muito quente e o lume não seria atiçado quando a luz do dia se desvanecesse.
Lançou um olhar às mulheres e crianças sentadas em seu redor, conversando em voz baixa umas com as outras enquanto se inclinavam sobre os seus próprios bordados. Ocasionalmente, uma delas erguia o olhar para a fitar com curiosidade. Ainda não sabiam a razão pela qual a presença dela lhes havia sido imposta, nem por que razão tinham de ser amigas dela e fazer-lhe companhia, e nada, para além da cortesia que já existia antes, se havia desenvolvido ao longo dos sete dias após a sua tentativa de fuga.
Olhou para a outra extremidade do salão, para a outra lareira, e avistou os quatro homens reunidos à sua volta. Dois deles eram barões que habitavam na região e que haviam chegado durante os
últimos dias com os seus séquitos mediante as ordens do rei francês. Outros haviam chegado antes deles. A cidade estava repleta de cavaleiros e soldados. Alguns estavam acampados do outro lado do rio que servia como defesa natural a esta cidade normanda. Alguns haviam entrado no castelo, mas muitos deles tinham vindo para aqui, para a casa do presidente da Câmara, e aconselhavam-se com o homem alto e de cabelo branco sentado junto à outra lareira.
Agora já sabia o nome dele. Theobald, o comte de Senlis. Não era apenas um nobre, tal como ela previra naquele dia em Hampstead, mas um barão importante cuja posição era equivalente à de um conde inglês, e um conselheiro do rei francês. Só havia falado com ela o suficiente para se certificar de que não havia sido magoada ou molestada. Havia ignorado as suas perguntas exigentes. Todavia, ela suspeitava que havia sido trazida para cá sob a sua iniciativa e ordem, e não do presidente da Câmara.
Não obstante, era uma prisioneira. Prisioneira dele. com que objectivo e para que fim? As mulheres não sabiam. O comte não lhes revelara. Permanecia nesta casa dia
após dia, muito reservada, recusando tudo à excepção da hospitalidade necessária, e observava a chegada dos lordes e as consultas diárias na outra extremidade do salão.
A luz esmorecera. Ela ergueu-se e dirigiu-se a um banco sob a janela na parede mais longa do salão. Sentar-se-ia sozinha durante algum tempo e daria oportunidade às senhoras para que tagarelassem e especulassem a seu respeito. A-sua situação social pouco natural e forçada não ajudava a aliviar o pânico aterrador que trazia dentro de si desde que aqueles homens a haviam arrancado de sua casa. Admitia que o terror se havia intensificado desde que enfrentara o comte ao fundo da viela.
Durante os primeiros dias ali imaginara que David viesse salvá-la. Talvez trouxesse consigo Morvan e Walter Manny e outros cavaleiros para o auxiliarem. Subiriam o rio, atravessariam a ponte e entrariam na cidade a cavalo, exigindo a sua libertação. Tal como numa canção.
Fez uma careta perante a sua tolice. Se David estivesse a vir, já teria chegado. Na verdade, teria chegado antes dela. Ao regressar a casa e ver que ela não se encontrava lá podia ter saído de Londres e alcançado a costa de França antes do barco em que ela viajara.
Os seus raptores haviam-na arrastado para norte, quase até à Escócia, antes de garantirem uma travessia num porto recôndito. Uma perda de tempo que não fazia sentido, mas por outro lado, nada disto fazia sentido.
Havia fechado os olhos enquanto reflectia sobre a sua situação e o salão esbatera-se na sua mente. Uma ligeira agitação intrometia-se agora no seu devaneio.
Na lareira mais distante, o comte havia-se erguido da sua cadeira e inclinado o ouvido para um soldado que não parava de gesticular. O seu rosto iluminou-se com um grande sorriso. Voltou-se e disse algo ao presidente da Câmara. Um dos barões deu uma palmada alegre no ombro do outro.
A porta de entrada para o salão abriu-se e ela teve um vislumbre da antessala para além dele. Através da soleira viu um homem aproximar-se vindo do pátio. A luz de um archote reflectiu a sua armadura antes de a obscuridade da antessala o ocultar.
Outro barão. Vinham preparar-se para a invasão do rei Eduardo, evidentemente. Sem dúvida estavam a realizar-se por toda a França conselhos e reuniões semelhantes.
Um dos escudeiros do conde entrou primeiro, transportando um elmo e um escudo. Ela lançou um olhar ao brasão azul e dourado, recém-pintado e sem riscos. Cinco discos de ouro sobre três serpentes entrelaçadas, e uma marca no lado esquerdo do escudo simbolizando um filho bastardo.
Três serpentes entrelaçadas... um sobressalto percorreu-a e colocou-a em alerta. Sentou-se direita e olhou fixamente.
O cavaleiro entrou no salão. Alto e esguio, olhou placidamente em volta enquanto removia as luvas de couro. O seu corpo movia-se com agilidade na armadura grosseira, como se usasse uma segunda pele. Permaneceu ali de pé orgulhosamente e com um toque de arrogância. O cabelo castanho caia-lhe em desalinho sobre o rosto perfeito e queimado do sol. Os olhos azuis encontraram os dela.
Ela observava sem palavras. À sua direita, as mulheres voltaram-se para observar o recém-chegado vigoroso e atraente. À sua esquerda, o comte avançava na direcção dele, sorrindo, com as mãos estendidas.
- Bem-vindo a França, sobrinho.
David de Abyndon, o seu David, o seu mercador, voltou-se para o comte de Senlis.
Sobrinho! Assombrada, ela olhava para ele e para o conde e depois de novo para ele. Subitamente compreendeu a estranha familiaridade que sentira ao olhar para o rosto do homem mais velho.
Lançou um olhar a David, tão descontraído e natural na sua maldita armadura, assemelhando-se terrivelmente a um cavaleiro, aceitando o cumprimento familiar deste barão francês.
Evidentemente. Evidentemente. Por que razão não o havia visto antes? A estatura. A força. A ausência de deferência. Ele não lhe havia dito. Nem sequer o havia sugerido. Teve uma vontade louca de estrangular o marido.
O comte falava calmante e, com um gesto, incitou David a aproximar-se da lareira.
- Em primeiro lugar, quero ver a minha mulher - disse David e, rejeitando o interesse do tio, atravessou o salão em direcção a ela.
Ela ergueu os olhos das chapas de metal e fulminou-o com o seu olhar acusador. Ele retribuiu-lhe o olhar. Plácido. Impenetrável. Sereno.
- Estais bem e incólume?
- Para além de me sentir como uma ignorante e uma imbecil que desposou um estranho mentiroso, estou bem.
Ele inclinou-se para a beijar.
- Explicar-vos-ei tudo quando estivermos a sós - proferiu calmamente. - Agora vinde e sentai-vos junto de mim. Não leveis a peito aquilo que eu lhe disser, querida. Quero que o comte pense que não somos felizes juntos.
- Julgo ser capaz de vos ajudar nesse ponto.
O comte quis falar com David a sós. Havia dispensado a presença dos barões e do presidente da Câmara e franziu o sobrolho numa expressão de aborrecimento quando David se aproximou da lareira com Christiana.
- Graças a vós, agora estou a jogar tanto com a vida dela como com a minha - disse David. - Ela tem o direito de saber a minha situação.
Christiana sentou-se numa cadeira. David manteve-se de pé junto à lareira e ela observou-o com perplexidade, choque e ira. Todavia, de uma forma estranha, uma parte dela assentia, num gesto
de compreensão. Havia algo assustadoramente certo naquela sua aparência, como se a sombra que pairava sempre atrás dele tivesse subitamente tomado forma. Quem sois vós na realidade
Lançou um olhar ao comte e, pelo seu olhar de aprovação, constatou que ele via o mesmo que ela.
David voltou-se para o tio e permitiu que o seu descontentamento se inflamasse.
- Disse-vos que não a envolvêsseis nisto.
- Não viestes em Abril - respondeu o comte erguendo as mãos -, por isso procurei encorajar-vos.
- Não vim porque se levantaram tempestades assim que atingi as costas da Normandia. De que serviria entregar notícias que não teriam qualquer valor? A frota enfrentou grandes dificuldades para regressar a Inglaterra.
Então ele viera a França na Páscoa. Mas a verdade é que soubera disso assim que o vira entrar no salão.
- Tive homens à vossa espera em Calais e em St. Maio. Não viestes.
- Pensais que sou assim tão estúpido a ponto de correr o risco de ser reconhecido ao desembarcar num porto de comércio principal? Poderia eu ser assim tão descuidado?
O comte reflectiu sobre estas palavras e exibiu uma expressão de aceitação hesitante.
- Ainda assim, estais atrasado. Espero-vos há várias semanas. O exército está pronto para partir.
- Estou atrasado porque a minha mulher desapareceu e eu tive de procurá-la.
- Sabíeis onde ela estava.
- Não sabia nem podia sair de Inglaterra sem conhecer o seu destino.
- Eles deviam ter deixado... - disse o comte enrubescendo.
- Não me foi entregue nenhuma mensagem. - respondeu David, fitando o comte com dureza. - Enviastes Frans para fazer isto, não é verdade? Apesar do nosso acordo.
- Ele conhecia as pessoas e conhece os vossos hábitos.
- Sim. Mas confia em Lady Catherine, que não nutre qualquer afeição por mim. Mais uma vez apesar do nosso acordo. E ela tinha
para mim os seus próprios planos. Tive sorte de sair de Inglaterra com vida.
- Ela pôs a vossa vida em perigo? - inquiriu o comte ruborizando-se.
- Provavelmente assumistes que eu saberia, com mensagem ou não, que tínheis sido vós quem raptara Christiana. Que outra explicação poderia haver? O que vós não sabeis é que a minha mulher tem um amante que reside no Norte do país.
O comte lançou a Christiana um olhar fulminante de desapontamento. Ela desviou o olhar. David deveria ter uma boa razão para estar a contar tudo isto ao tio.
- Todavia, Lady Catherine sabia disto - prosseguiu David -, e por isso fez com que os homens que ela e Frans contrataram não me deixassem nenhum bilhete ou sinal, de modo a que eu me interrogasse se Christiana havia partido para os braços desse homem. Até a retiraram do país através de um porto no Norte, de modo a que eu pudesse seguir o seu rasto em direcção ao amante. E enquanto isso, o tempo ia passando e eu ainda me encontrava em Inglaterra. - Fez uma pausa e lançou-lhe um sorriso desagradável. - E durante esse tempo, Catherine foi ao encontro do rei e contou-lhe tudo a meu respeito. Tinha muito a dizer, porque Frans lhe revelara a minha relação convosco.
Uma expressão muito dura espelhou-se no rosto do comte. Christiana retrocedeu, assustada. Já vira aquela expressão, mas não no rosto deste francês.
- Encarregar-me-ei deles. Da mulher e de Frans.
- Já o fiz.
- Se a mulher vos denunciou a Eduardo, o que sabeis pode ser inútil. Ele pode alterar o porto.
As suas suspeitas estavam correctas, então. David planeava revelar a localização do porto ao conde e aos Franceses. Mas não em troca de ouro ou prata. E, como um filho de Senlis, nem sequer constituía uma traição. Todos os nobres sabiam e respeitavam a lealdade dos laços de sangue. Um juramento de preito e menagem ligava uma pessoa com igual força, mas um rei prudente ou um lorde jamais pediriam aos seus vassalos que escolhessem entre as duas obrigações.
- Pensei nisso - disse David. - E pode acontecer. Mas antes de me escapulir, soube que, mesmo duas semanas após ter escutado
a história de Catherine, o rei não havia mudado de ideias. Já havia enviado uma mensagem às forças inglesas no continente, e não houve tempo para desfazer isso.
Mas pode ter esperança de que vós penseis que ele o fez, para que não tenhais a tentação de enviar todas as vossas tropas para um mesmo lugar. Interrogo-me se ele não me terá deixado escapar com as notícias da traição de Lady Catherine de modo a lançar dúvida sobre o valor desta informação no caso de eu vo-la ter fornecido mais cedo.
Toda a atenção de David estava concentrada no tio, e aqueles olhos azuis nunca vacilaram no seu escrutínio do rosto do homem. Os olhos do próprio comte, castanhos e não azuis, e no entanto tão similares, pareciam igualmente penetrantes sempre que analisava David.
Quem sois vós realmente? Bem, agora já sabia. Estava demasiado atordoada e confusa para decifrar os seus sentimentos em relação a esta revelação surpreendente. Devia sentir-se aliviada. O seu marido não era um homem vulgar. O sangue de seu pai, o sangue que tinha importância, tinha sido de um nobre.
Então por que razão é que esta fúria pretendia, inexplicavelmente, perturbá-la?
O comte caminhava de um lado para o outro, assentindo com a cabeça.
- Creio que tendes razão. O Verão está a decorrer rapidamente. Se ele realmente vem, deverá fazê-lo agora. O exército dele já foi reunido. É demasiado tarde para alterar a rota - voltou-se na direcção de David. - Tende-lo, então?
- Tenho. Mais do que ele pensa. As estradas que ele tomará e a direcção. A dimensão dos seus exércitos. Tenho tudo.
O comte aguardou expectante.
- Tendes os documentos? - inquiriu David com um leve sorriso.
O comte soltou um suspiro de exasperação.
- Os meus estão aqui e têm testemunhas. O condestável trará os do rei assim que chegar. Mas perdemos tempo...
- Já quebrastes grande parte do nosso acordo verbal, e por causa disso, não me foi dada outra opção senão fazer isto. Não posso regressar a Inglaterra, e embora
um dia o rei Eduardo possa reconhecer a inocência de Christiana e recebê-la de volta, está agora
condenada a um futuro que também não escolheu. Não planeio começar uma vida aqui com o pouco ouro que trouxe comigo. Não vou mais longe sem os documentos.
Uma tensão perigosa pareceu paralisar os dois homens, e do comte emanava algo de ameaçador e sombrio. Christiana susteve a respiração. Também já havia sentido antes
esta presença sinistra. Interrogava-se acerca do que estaria o comte a pensar. Era tão indecifrável quanto David.
Excepto para David.
- Houve uma altura em que fui torturado no Egipto - disse David calmamente. - A mente dos Franceses não consegue competir com as invenções dos sarracenos em termos
de torturas. Não ganhareis tempo dessa forma, e tereis um herdeiro que só desejará a vossa morte.
Aqueles olhos castanhos voltaram-se subtilmente na direcção de Christiana sob umas pálpebras semicerradas. Um calafrio de horror provocou-lhe um formigueiro no pescoço.
Os olhos de David estreitaram-se.
- Não mancheis o vosso nome e o vosso sangue a pensar sequer nisso. Ela não sabe de nada, tal como a vossa esposa não saberia sob as circunstâncias.
Mas eu sei, pensou ela freneticamente. Suspeitava que este tio conseguia ler as pessoas tão bem quanto David. Baixou o olhar evitando a inspecção dele e rezou para
que ele visse apenas o terror palpável na sua face.
O comte reflectiu durante um momento e depois soltou uma gargalhada despreocupada.
- A que horas esperais o condestável?
- De manhã bem cedo.
- Também estais demasiado impaciente, então, e a considerar com demasiada rapidez a desonra. Admirais-vos que eu exija garantias por escrito?
Era uma censura perigosa para um mercador fazer a um barão, parente ou não. Carregada de desconfiança e insultos. Mas o comte parecia mais impressionado do que furioso.
- Todos os homens têm pensamentos que nunca poriam em prática, sobrinho. Considerar as várias opções não é o mesmo que optar por elas.
David franziu pensativamente o sobrolho e em seguida assentiu, como se tivesse compreendido totalmente a explicação do comte e tivesse razões para a aceitar como correcta.
Lentamente a tensão foi-se dissipando.
- Prometo que haverá tempo suficiente para mover as vossas tropas. Os navios ainda não estavam nem a meio dos preparativos para partirem - informou David.
Aquilo pareceu aligeirar ainda mais o ambiente. O comte sorriu de um modo agradável, até mesmo afável.
David encaminhou-se para ela e pegou-lhe na mão.
- Mostrai-me o nosso quarto, Christiana. Quero sair desta armadura que me provoca tanto calor após um dia inteiro ao sol.
- Enviar-vos-ei os meus escudeiros para vos auxiliarem declarou o comte -, e direi à governanta que vos prepare um banho.
Em silêncio, Christiana conduziu David pelo salão em direcção ao alto edifício ao lado onde se situavam os quartos.
- O homem deixa-me exausto - murmurou David enquanto caminhavam pela noite amena. -
É como negociar com a imagem que vejo no espelho.
CAPÍTULO 20
Os dois escudeiros removeram a armadura de David e não paravam de o tratar por vossa senhoria. Christiana observava, enfadada, o corpo imponente do marido em pé,
de pernas afastadas, enquanto a armadura ia saindo. Dir-se-ia que fizera isto uma centena de vezes.
Perto do lume brando que ardia na lareira, as criadas preparavam a água numa banheira funda de madeira. Uma das raparigas não parava de olhar para David e sorria docemente sempre que captava o olhar dele. Christiana agarrou nela pelo colarinho quando foi vertido o último balde de água.
- Ide-vos. Eu cuidarei do meu marido.
As criadas apressaram-se a sair. Os escudeiros terminaram a sua demorada tarefa e, despedindo-se alegremente, afastaram-se. David despiu as suas roupas interiores e instalou-se na banheira.
A visão do corpo dele perturbou-a mais do que pretendia admitir. Praguejou silenciosamente perante a sua fraqueza e a autonomia do seu coração traiçoeiro face à sua vontade e mente.
A nossa vida juntos tem sido uma, longa ilusão, pensou com irritação. Foi um erro pensar que poderia encontrar contentamento somente no prazer. Ele será sempre um estranho. Eu serei sempre o brinquedo que partilhará a sua cama mas não a sua vida. Dir-lhe-ei tudo o que tenho para lhe dizer e depois exigirei outro quarto.
Puxou por um banco, sentou-se e encarou-o.
- Não ides cuidar de mim? - perguntou.
- Lavai-vos - ordenou num tom perigoso, atirando-lhe com o sabão. - E falai.
- Ah - disse ele, pensativamente.
- E basta de "Ah", David. Mais um "ah" desses e afogar-vos-ei.
- Compreendo que estejais zangada, querida. Acreditai quando vos digo que passei por grandes tormentos para não vos envolver nisto. Não pretendia que soubésseis de nada. Eduardo jamais vos teria culpado pelos meus pecados. O comte surpreendeu-me com este rapto. Francamente, estou desiludido com ele.
- Estais mesmo?
- Sim. Esperava mais cavalheirismo da parte dele. Raptar e pôr em perigo a vida de uma mulher inocente... é realmente muito grosseiro.
- Ele pretende o nome do porto, David. Provavelmente matar-me-ia se pensasse que isso faria com que o revelásseis um minuto mais cedo.
- Esse é o motivo pelo qual eu pretendo que ele pense que não estamos felizes juntos. Não quero que ele comece a pensar que pode usar-vos contra mim. Assim que o condestável dEu chegar, obterei dele a garantia da vossa segurança antes de falar com eles. O condestável tem reputação de ser um homem honrado a ponto de ser estúpido.
- Comecemos pelo princípio - disse ela, revirando os olhos.
- O comte é realmente vosso parente?
- Parece que sim.
- Há quanto tempo sabeis?
- Durante quase toda a minha vida. A minha mãe falou-me do meu pai quando eu era criança, para que eu soubesse que não era um vulgar bastardo de rua.
- Por que razão não me dissestes?
- É uma afirmação fácil de fazer mas difícil de provar, Christiana. E a não ser que um bastardo seja reconhecido, não tem qualquer valor. - Ensaboou um braço, muito concentrado. - Teria adiantado, querida?
Desejava muito poder dizer que não.
- Poderia ter adiantado, no início.
- Então, lamento não vos ter dito.
- Não lamentais não. O vosso orgulho pretendia que eu vos aceitasse como mercador, não como filho de Senlis. Por vezes sois uma pessoa muito estranha, David. Não há muitos homens que pensem que o sangue nobre os pode rebaixar ao invés de elevar.
Ele lançou-lhe um olhar penetrante. Ela permitiu que ele visse a fúria que a inundava.
- Mentistes-me - disse ela. - Uma e outra vez.
- Apenas para vos proteger. Isto começou muito antes de nos conhecermos. Quis manter-vos fora disto, que o ignorásseis, de modo a serdes poupada se algo corresse mal.
- Sou vossa mulher. Ninguém acreditaria na minha ignorância.
- Sois a filha de Hugh Fitzwaryn e estivestes sob a tutela do rei. Todas as pessoas o acreditariam. Nem o rei nem os seus barões vos culpariam pelas acções do vosso marido mercador.
As desculpas fracas dele enfureceram-na. Ergueu os punhos e bateu no regaço.
- Sou vossa mulher! Se alguma coisa corresse mal eu teria de assistir enquanto despedaçavam o vosso corpo, ainda que eu fosse
poupada. Isso ainda pode vir a acontecer,
pelo que me é dado saber. Mas o pior é que vos escondestes de mim, escondestes a vossa verdadeira natureza, quem vós sois.
- Há meses que não sois minha mulher - disse, com uma dureza em redor dos olhos e da boca. - Deveria ter confiado naquela rapariga que vivia em minha casa como uma
convidada ou uma prima?
- É bem melhor ser uma convidada do que uma peça de arte valiosa. É bem melhor ser uma prima do que um fragmento de propriedade adquirido para salvar o orgulho ferido
do filho esquecido.
- Se realmente acreditais nisso - respondeu com um lampejo de fúria no olhar - então não há motivo para vos explicar nada. Independentemente de tudo o que vos disse
naquele dia, devíeis conhecer-me melhor.
- Conhecer-vos melhor? Neste momento não sei se vos conheço de todo, maldito sejais. E não insinueis que foi a nossa separação que vos obrigou a manter a mentira.
Não tínheis qualquer intenção de me dizer fosse o que fosse até estar tudo terminado, por muito submissa que eu tivesse sido. O que aconteceria então? Teríeis
ficado em França e ter-me-íeis mandado chamar? Ter-me-íeis escrito uma carta para que viesse ao vosso encontro?
- A minha intenção foi sempre, e continua a ser, dar-vos uma escolha.
- A sério? Bem, o vosso tio fechou essa porta!
- Isso é o que ainda vamos ver.
Afastou o olhar dele para se recompor e alisou a saia do vestido.
- Quero que me conteis tudo. Agora. Para que eu saiba da minha situação e das minhas opções. Desde o princípio.
Ele contou-lhe tudo enquanto se lavava.
- Começou tudo de uma forma simples. Eduardo pediu-me que elaborasse os mapas. Ocorreu-me que quando chegasse a altura, eu poderia ficar a saber o porto que ele escolhera a partir das questões que ele me colocasse acerca deles. Nunca perdoei o meu pai pelo que ele fez a Joanna. Ele destruiu-a e deixou-a à mercê do mundo. Talvez também me sentisse ressentido com ele por me ter ignorado e negligenciado. De qualquer forma, sem esperar que realmente funcionasse, comecei a cometer erros suficientes em França de modo a que alguém que estivesse a prestar atenção pudesse suspeitar do meu comportamento. E comecei a usar as três serpentes como emblema no meu selo. Estavam gravadas num anel que o meu pai deixou à minha mãe. Ela pensou que era um anel de noivado, mas eu penso que a intenção dele era pagar-lhe os seus favores.
Fez uma pausa e começou a ensaboar as mãos. O gesto distraiu-o. Christiana observou-o a examinar a espuma branca e depois a barra de sabão. Teve de sorrir. A mulher do mercador havia ficado igualmente distraída durante o seu primeiro banho naquela casa.
- Provêm de uma cidade perto do Loire - disse ela.
- Soberbo, não é? - observou enquanto aspirava o seu odor.
- Quanto será...
- Vinte barras grandes por um marco. Ele arqueou as sobrancelhas. Ela observou-o enquanto, em silêncio, David calculava o custo da importação e o lucro potencial.
- David - disse ela, chamando-o. "
- Sim. Bem, o meu plano era fazer com que o comte soubesse da minha existência, que se apercebesse da nossa ligação e depois que me abordasse por causa do porto. Eu resistiria e deixá-lo-ia persuadir-me, jogando com os laços de parentesco. Eu compadecer-me-ia
e não aceitaria qualquer pagamento, de modo a que ele pensasse que eu o estava a fazer em nome do nosso sangue, e deste modo confiasse em mim. Mas depois dar-lhe-ia o nome do porto errado. O exército francês iria numa direcção e Eduardo viria de outra, e o caminho estaria assim livre para uma vitória inglesa.
Ela fitou a expressão dele. Neutra. Indiferente. Como se os homens fizessem esse tipo de maquinações elaboradas a toda a hora e passassem anos a manipular as peças.
Ele diverte-se com isto, apercebeu-se ela. Viajou para o Continente Negro e atravessa os Alpes ano sim, ano não. Necessita da aventura, dos planos, do desafio.
- E teríeis punido essa família pelo destino da vossa mãe acrescentou ela.
- Isso também. Duvido que o comte de Senlis permanecesse no conselho do rei depois disso. Seria apenas uma perda de estatuto e honra, sem nenhum agravo de maior.
Ao contrário da queda de Joanna. Ainda assim, era alguma justiça.
- Então, o que correu mal?
- Nada. Decorreu tudo como eu havia planeado. À excepção de algumas surpresas. A uma dada altura, Honoré, o último comte, faleceu, e o seu irmão, Theobald, tomou o seu lugar.
Ela pôs-se de pé e caminhou lentamente pelo quarto. Aguardou pelo resto. David esperou ainda mais.
- O que queríeis dizer quando vos referistes ao facto de o herdeiro dele lhe desejar a morte?
- A outra surpresa. A grande surpresa. Ele não me ofereceu prata. Ofereceu-me o reconhecimento e Senlis. Os filhos de Honoré e os de Theobald estão mortos. Ofereceu-se
para jurar que o irmão dele e a minha mãe haviam feito votos secretos. Seria
uma mentira, mas garantiria o meu direito a herdar.
Ela fitou-o.
David. O seu mercador, comte de Senlis.
- Houve homens que se deixaram tentar e cometeram traições por muito menos, minha menina.
- Dissestes que não tínheis qualquer interesse em serdes cavaleiro.
- Querida - respondeu ele com uma gargalhada -, ser um
cavaleiro é uma coisa. Ser um barão proeminente e conselheiro do rei de França é outra.
- Ides fazê-lo, então?
- Ainda não decidi. O que pretendeis que decida?
- Não, David. Começastes isto há muito tempo. Não lanceis agora para cima de mim a decisão.
Ela começou de novo a caminhar, pensando em voz alta.
- Há muitos homens que juram fidelidade a dois reis ou a dois lordes. Muitos barões ingleses possuem igualmente terras em França. Todas as pessoas compreendem que, por vezes, as lealdades entram em conflito.
Ele estendeu o braço e segurou no dela no momento em que ela passava junto a si. A mão dele segurou-a com firmeza e David fitou-a, abanando a cabeça.
- Não finjamos que enfrento algo diferente daquilo que é. O que dizeis é verdade, mas há regras que decidem a forma de um homem agir nesses casos. Isto é diferente. Se eu ajudar o comte e França, se eu fizer isto, estou a trair uma confiança, uma amizade e o meu país. Pelo preço que me é oferecido, não estou longe de o fazer, mas não vou fingir que é mais bonito do que o é na realidade.
Maldito seja. Maldito, Havia ambiguidades suficientes neste caso para um bispo conseguir racionalizar as suas acções. Ele podia pelo menos deixá-la encontrar algum conforto nelas.
- A França é o vosso país, David - realçou ela. - O vosso pai era francês.
- Na verdade, descobri que não é a Inglaterra que me preocupa, ou até mesmo Eduardo. Houve barões que o trataram de forma muito pior, e ele possui uma grande capacidade para compreender e até mesmo perdoar tais coisas. Não, é Londres que tem estado na minha mente. Se não fosse pela minha cidade, não me parece que hesitasse. - Ergueu o sabão e prosseguiu. - Uma vez que dispensastes as criadas, podíeis pelo menos lavar-me as costas.
Ela ajoelhou-se atrás dele e passou-lhe o sabão sobre os músculos. Apesar do turbilhão interior, não podia deixar de reparar que era a primeira vez que tocava no corpo dele desde há vários meses. Uma ligeira tensão sob a palma da mão indicou-lhe que ele sentia o mesmo.
- Mentistes-me em Abril. Viestes a França e não a Salisbury.
- Não podia envolver- vos, daí não ter dito a verdade - replicou, lançando um olhar sobre o ombro. - Aquele dia, no quarto de vestir. As vossas questões. Quais eram as vossas suspeitas?
- Na verdade, suspeitava de quase tudo, mas não acerca do vosso pai. Escutei a primeira abordagem que Frans vos fez. Eu estava escondida na passagem secreta. Mas não tinha a certeza de que éreis vós. Soube que ele era um agente da causa francesa. Vi-o encontrar-se convosco de novo em Westminster. Quando o comte veio a Hampstead, ouvi a sua voz antes de partir. Soube que ele era francês e que era um nobre.
- Pensastes que eu ia vender os planos de Eduardo por dinheiro?
- Era uma explicação. Na verdade, só o dinheiro é que não fazia sentido. Apreciais a vossa riqueza, mas sois um homem demasiado generoso para fazerdes algo por ganãoncia.
- Se sabíeis assim tanto - disse, voltando-se para ela -, admiro-me que não tivésseis partido mais cedo, enquanto eu estive fora, para vossa própria segurança e
pela honra da vossa família. Podíeis ter-me denunciado a Eduardo com as vossas suspeitas. Por que não o fizestes?
Ela desviou o olhar daqueles olhos sagazes. Não pretendia ficar exposta à vulnerabilidade que a resposta provocaria. Além disso, era a sua vez de colocar questões.
- Dissestes que regressaríeis em Abril e eu acreditei em vós. Também mentistes acerca disso?
- Ainda não havia decidido o que faria quando aqui chegasse, mas, em qualquer dos casos, esperava regressar - respondeu sacudindo a cabeça. - Se tivesse revelado ao conde o porto de Bordéus, e ele tivesse ido para lá, Eduardo jamais teria suspeitado de mim ou de qualquer outra pessoa, ainda que toda a França aguardasse lá por ele. Metade do exército deles está já no sul a lidar com Grossmont. Os restantes podiam ter recebido relatório dos navios que desciam pela costa, ou terem ido para reforçar o cerco em Angillon. Eu tinha grandes esperanças de regressar, assumindo que Theobald o permitiria.
O olhar fixo de David, a sua voz suave e o rosto dele tão perto do seu desconcertavam-na. A determinação de Christiana começou a afrouxar. Empurrou-lhe o ombro para poder retirar o sabão, e ele voltou-se para a frente.
- Mas agora Lady Catherine denunciou-vos a Eduardo, por isso não podeis regressar. Por que razão faria ela uma coisa dessas? Estará zangada por causa da propriedade em Hampstead?
Ele não respondeu durante alguns momentos. Ela suspeitava que ele estava a reflectir sobre a resposta a dar.
- Lady Catherine e eu temos uma longa história. A questão da propriedade é recente e apenas uma parte pequena dela. Ela feriu-me gravemente quando eu era adolescente. A prova encontra-se agora debaixo dos vossos dedos. Há alguns meses atrás, respondi-lhe à altura.
Ela retrocedeu, chocada. Observou as costas fortes de David e as cicatrizes diagonais que as atravessavam. Apesar da sua determinação em tratá-lo com a mesma indiferença
com que ele a tratava, sentiu um aperto no coração.
Não precisava de ouvir a história, pois podia imaginá-la. Os seus dedos deslizaram ao longo daqueles vergões finos e permanentes. Imaginou-o a ser vergastado, ainda
um rapaz. Viu Lady Catherine, segura na imunidade que lhe concedia o seu estatuto de nobre, ordenando aquilo devido a alguma suposta descortesia ou delito. Não em
Londres, evidentemente. Mesmo como aprendiz, estaria protegido lá.
Havia respondido à altura. Será que pretendia dizer que agora a pele de Catherine possuía cicatrizes idênticas? Ela tinha esperança que sim.
Sentiu uma onda de ternura pelo jovem que havia sido tão brutalmente maltratado. Resistiu com dificuldade ao desejo de beijar aqueles vergões.
Isto é uma loucura, censurou-se. Ele não pretende compaixão ou ternura da minha parte. Não faço parte desta história nem desta vingança. E também não tenho nenhum
papel no espectáculo que agora está a desenrolar-se. Quando muito, sou uma inconveniência com a qual o comte complicou os planos dele.
- Dizeis que ainda não decidistes o que fazer, David. O que acontecerá se não lhe revelardes um porto amanhã?
Sentia-se feliz por não poder ver o rosto dele. Se ele lhe mentisse, ela não queria saber.
- O comte fez todos os possíveis para garantir que isso agora não seria uma opção. Catherine foi denunciar-me a Eduardo, tal
como eu disse, mas a surpresa do comte em relação a essa notícia era falsa. Foi ele que lhe ordenou que me traísse, para me forçar a alinhar nisto. Contudo, o plano de me manter em Londres para que Eduardo me pudesse capturar é dela. Ainda assim, ele procurou forçar-me a sair de Inglaterra, e raptou-vos para que eu tivesse de vir até aqui. com a minha vida em perigo em Inglaterra, ele sabe que esta oferta se torna muito atractiva. - Fez uma pausa - Por outro lado, parente ou não, não sei se ele me permitirá sair daqui com vida se eu lhe recusar o que ele pretende.
Ela desejou que ele lhe tivesse mentido.
- Então não tendes escolha.
- Claro que tenho.
Ela sentiu-se mal. Por um lado, esperavam-no o estatuto e a riqueza. Mais do que ele alguma vez esperara alcançar na vida. Senlis era dele por direito e dever e ele devia aceitar. Mas, santo Deus, homens que ela conhecia e amava viriam naqueles navios para França. O seu irmão, o seu rei, Thomas e outros... e agora ele acabara de dizer que Theobald o mataria se ele não cooperasse.
Esse facto não devia importar-lhe. Ele não devia ter importância para ela.
Ela quase o abraçou e pediu que encontrasse uma forma de aceitar ambas as opções e, por conseguinte, nenhuma delas.
Ela regressou para o banco.
- Estivestes realmente a ponto de serdes capturado?
- Ninguém me desafiou ou questionou. A armadura provou ser um excelente disfarce, uma vez que há imensos cavaleiros a deslocarem-se por toda a Inglaterra. Até mesmo aqui, ajudou-me a viajar sem suspeitas.
- E o brasão no vosso escudo?
- Gostais dele? Dificilmente poderia fazer-me passar por um cavaleiro usando um escudo em branco. Felizmente, não encontrei nenhum heráldico, que teria imediatamente reconhecido que era um brasão novo e não oficial.
- Seguistes-me até ao Norte, então?
- Sim. - Ele lançou-lhe um olhar penetrante. - Não vos preocupeis. Não sofreu sequer um arranhão. Muito embora, quando Sieg ameaçou fazer dele um eunuco, eu pensei que ele fosse morrer de
medo. Uma vez que o salvei disso, é provável que agora esteja disposto a dar a sua vida por mim.
Ela lançou um olhar à lareira, pouco se importando se Sieg havia feito de Stephen um eunuco, fosse lá isso o que fosse.
- Ainda nos atrasámos mais quando Oliver insistiu em acolher a rapariga que se encontrava com Stephen sob a sua asa e tentar salvá-la da ira da família.
Ela quase não escutou o que ele dizia. Caminhou em direcção à lareira, pegou no balde de água que ali estava a aquecer e levou-o para junto da banheira.
Notou o olhar de David fixo nela.
- O que se passa? - perguntou.
- Não ouvistes o que eu disse? Não estais com ciúmes? Eu disse que havia uma rapariga com ele.
Christiana semicerrou os olhos.
- Para um homem inteligente, conseguis ser um idiota! - gritou, vertendo a água sobre a cabeça dele.
Virando o balde ao contrário, enfiou-o na cabeça de David e afastou-se tempestuosamente.
Ficou a olhar para a parede, cega de fúria. Ouviu-o sair da banheira e secar-se. Alguns momentos mais tarde ele apareceu atrás dela.
Tocou-lhe ao de leve no ombro.
- Ainda não acreditais em mim - disse num tom áspero, sacudindo-lhe a mão. - Contastes-me mentira atrás de mentira, enquanto eu só vos ofereci a verdade desde o início. Assumis que todas as pessoas vivem o mesmo tipo de imposturas que vós?
- Acredito em vós. Mas interrogo-me se ainda o amais. Nunca me dissestes que havíeis deixado de o amar.
- Disse-vos que estava terminado.
- Não é a mesma coisa.
- Se vos interrogáveis, devíeis ter-me perguntado, então. Ele aproximou-se mais e falou num tom suave.
- Não vos perguntei, da mesma forma que vós não me perguntastes acerca de França, e pelas mesmas razões. Não falámos um ao outro acerca dos assuntos que nos poderiam magoar. Nunca vos perguntei porque tinha receio da resposta. Tive esperança de que o tempo resolvesse tudo. Mas o tempo esgotou-se e eu estou a perguntar-vos agora. Ainda o amais ?
Ela fechou os olhos, desfrutando do som da sua bela voz, e desejou que os seus tons suaves não estivessem a colocar esse tipo de questões. Receava o rumo que podiam tomar.
Ainda assim, ele tinha razão. Finalmente, hoje, ele havia-lhe concedido franqueza. Ela não devia agora dar início aos seus próprios enganos. Mas a franqueza em relação a eles os dois podia muito bem deixá-la desprovida de tudo, pois destruía a frágil determinação com a qual a sua fúria dominara a paixão e o amor.
- Já não sinto nada por ele e duvido que alguma vez o tenha amado.
- Por que razão duvidais?
Porque só agora sei o que é o amor, quase respondeu.
O silêncio pulsava à medida que ele aguardava pela resposta dela. De repente, Christiana sentiu-se terrivelmente vulnerável. Esta era segunda questão que, se fosse respondida com honestidade, requereria uma confissão do seu amor.
E porque não dizer-lhe? Admitir a verdade e depois sair porta fora. Fez uma careta. Um gesto grandioso que não surtiria o drama e o impacto desejado. Ele limitar-se-ia a deixá-la-ia ir, e depois continuaria a viver a vida que escolhera para ele. Não se importava o suficiente com ela para se deixar afectar por uma confissão ou rejeição.
- Por que razão acreditais em mim agora acerca desse encontro, David? Stephen disse-vos a verdade? Acreditastes naquele louco quando não havíeis acreditado em mim?
- Ele disse-me a verdade. Porém, naquelas circunstâncias, ter-me-ia jurado ser casto desde o nascimento. Mas não fez qualquer diferença, porque eu já acreditava em vós. Sempre que pensava naquele dia, continuava a ver uma bela jovem a correr para os meus braços, repleta de alegria e não de culpa ou receio. - As mãos dele agarraram-na suavemente pelos ombros. - O que queríeis dizer-me naquele dia?
Mais uma pergunta perspicaz.
Ele suspeita, apercebeu-se, alarmada. A sua mente viu aquilo que a fúria não permitiu.
Christiana tornou-se subitamente consciente do calor e do aroma dele por trás de si. O silêncio ficava cada vez mais tenso à medida que algo mais emanava dele. Algo expectante e impaciente.
Ansiava por lhe dizer, mas recordou-se de tudo o que lhe dissera naquela tarde no quarto de ambos. Recordou-se de como o evitara, como rejeitara os seus afectos durante o noivado. Imaginou o aprendiz a ser torturado segundo os desejos da nobre Lady Catherine.
Não poderia, por isso, dizer-lhe agora. Ainda que David atribuísse pouco valor aos seus sentimentos por ele, iria pensar que esta mudança no destino, de mercador para herdeiro de um barão, fizera com que ela descobrisse repentinamente o seu amor por ele.
- Não me recordo - murmurou.
Ele permaneceu em silêncio, afagando-lhe ternamente os braços. Ela fechou os olhos, absorvendo aquele toque, a proximidade dele. A intensidade excitante que emanava dele envolvia-a de uma forma aliciante e sedutora.
Apesar do nó com que as revelações do dia haviam amarrado as suas emoções, apesar da sua decisão de abandonar este estranho, não deixou de sentir um enorme conforto com a sua terna carícia.
- Agora preciso de algumas informações da vossa parte - disse David por fim.
- Nenhuma história que eu vos conte será de perto tão interessante quanto a vossa.
- Molestaram-vos de alguma forma?
- Não, nem por isso. Cavalgámos durante alguns dias, o meu traseiro ficou dorido da sela e a minha pele avermelhada do sol do Verão, mas foi tudo. Pernoitávamos em estalagens simples, e partilhávamos um único quarto abafado, mas os homens não me incomodaram, embora um deles me fitasse de uma forma demasiado audaciosa para que eu me sentisse tranquila. A comida era horrível e a viagem por mar assustadora. Cheguei aqui parecendo a pior das camponesas, e com um odor demasiado desagradável para poder ser uma companhia decente, mas não fui molestada.
Ele voltou-a para si. Envergava uma túnica longa e folgada, algo semelhante ao que um sarraceno usaria. Fitou o rosto dele e avistou emoções ocultas sob a sua expressão calma, emoções que nunca vira nele. Preocupação. Indecisão. Dúvida. Afigurava-se-lhe muito menos controlado do que durante o banho.
- Se eu fizer isto, não necessitareis de ficar - disse, tocando-lhe no rosto. - Em breve, Eduardo aceitará que não tivestes parte nisto. Podereis regressar a casa.
- Foi por isso que colocastes as propriedades em meu nome? questionou, fitando-o, o amor que sentia por ele a apertar-lhe o coração. Aquele contacto da pele dele
na sua era o suficiente para despertar todos os seus sentidos. - Para que não pudessem ser confiscadas?
- Sim. Havia sempre a possibilidade de Eduardo escutar o suficiente para suspeitar de mim, independentemente das minhas intenções. Não quis que ficásseis dependente de alguém se este jogo perigoso corresse mal.
- Por que razão não esperastes? Para vos casardes? Dissestes que isto começou muito antes de nos conhecermos. Muito antes de terdes oferecido dinheiro por mim. Para
quê complicar as coisas desta forma para vós?
Mas no exacto momento em que pronunciava estas palavras, uma estranha sensação percorreu-lhe o corpo. Um pensamento que não desejava enfrentar intrometeu-se, impondo-se
na sua mente com determinação e firmeza. A resposta para uma das primeiras e mais pertinentes questões que alguma vez lhe haviam surgido em relação ao homem que a fitava.
Santo Deus. Santo Deus. Até mesmo isso havia sido uma mentira, uma ilusão! Não era muito, mas pelo menos, enquanto o amor que sentia procurava um compromisso com a sua vida, havia sido algo a que se agarrar.
Os dedos dele ainda permaneciam no rosto dela. Christiana contemplou, desesperada, aqueles olhos azuis e procurou o mesmo tipo de conhecimento que obtivera dele durante os momentos de maior intimidade. Perscrutou através dos véus e da intensidade, tentando ver a sua alma.
- Nunca oferecestes dinheiro por mim, pois não? - perguntou. - Foi ideia de Eduardo. Ele propôs-vos este casamento, talvez por mim, mas em especial para obter dinheiro da vossa parte. Não podíeis recusar o pedido dele.
Ele tomou o rosto dela nas suas mãos, inclinou-se mais na direcção dela e fitou-a directamente nos olhos. O controlo e o comedimento desapareceram e ele permitiu-lhe ver o que ela procurava. Permitiu que ela perscrutasse por entre as sombras e as camadas, até às profundezas do seu ser. Despido de todas as defesas e armadura, enfrentou a inspecção dela. Ela susteve a respiração perante as emoções que subitamente se expunham à sua frente.
- Não - respondeu calmamente. - Vi-vos, desejei-vos e paguei a Eduardo uma fortuna por vós. E não esperei porque não podia. Foi egoísmo da minha parte. - Os seus polegares afagaram as maçãs do rosto dela. - O meu tempo esgotou-se, Christiana. Necessito de saber quais são as minhas verdadeiras opções, e aquilo que ganho e o que perco. Se eu fizer isto, ficareis comigo?
Ela quase não escutou as palavras dele porque a assombrosa verdade escrita no seu interior tornava os motivos que haviam dado origem a este casamento subitamente irrelevantes. Não conseguia desviar-se daquele olhar afectuoso e subjugante e não queria perder esta ligação tão repleta de sentimento, este conhecimento total que ele lhe oferecia. Duvidava que alguma vez ele tivesse deixado alguém vê-lo desta forma, até mesmo a sua mãe.
Tudo estava reflectido naqueles olhos penetrantes. Tudo. A culpa de a ter exposto ao perigo. O medo de si mesmo. Os seus desejos ardentes e penosos, as suas ânsias e inclinações sinistras. Mas, iluminando todas essas sombras, aquecendo as suas gélidas profundezas, brotava uma emoção resplandecente que ela reconheceu pela sua beleza, alegria e salvação. O amor que havia dentro dela derramou-se e encaminhou-se, reconhecido, nessa direcção. Os lábios dele entreabriram-se e um calor glorioso inundou o seu olhar. De David emanou um alívio intenso e angustiado.
- Ficareis? - repetiu, com o rosto a uns milímetros do dela.
- Não partirei - murmurou, pois não poderia existir outra resposta depois do que havia visto. - Nobre ou mercador, ficarei convosco.
David puxou-a para si e envolveu-a num abraço e num beijo. Ela apertou os ombros dele e perdeu-se na emoção ardente de uma intimidade ternurenta. Durante um momento eterno e ofegante, os corpos de ambos pareceram dissolver-se naquele resplendor ofuscante.
A ligação e o entendimento eram tão completos que ela não sentia necessidade de falar. Mas David, sim.
- O que queríeis dizer-me naquele dia, Christiana? :
- Não percebestes logo? Estava certa de que conseguiríeis vê-lo imediatamente.
- A minha ira e a minha dor cegaram-me para tudo o resto. Saí daquele barco com a cabeça e o coração repletos de amor por vós,
Mas a história de Oliver dilacerou-me como uma adaga e converteu-me num louco.
Ela ergueu os olhos para os de David, tendo ficado sem saber o que dizer perante a calma articulação daquilo que acabara de ver e sentir nele. Ao ser o primeiro a pronunciar estas palavras, ele tornara as coisas mais fáceis para ela. Era algo que ele fazia sempre, e fizera-o durante todo o tempo em que haviam estado juntos. De início, talvez por simpatia e compreensão, mas mais tarde por causa do amor que sentia por ela.
Christiana tocou-lhe no rosto e permitiu que os seus dedos vagueassem pelas saliências bronzeadas das maçãs do rosto e do maxilar, e acariciou-lhe os lábios.
- Naquele dia queria dizer-vos que estava apaixonada por vós. Compreendi-o quando Catherine me entregou a Stephen. O sentimento estava ali, tão óbvio e completamente real. Soube que vos amava já há algum tempo.
Ele beijou-a novamente, com tanta suavidade e ternura que a a mera ideia do amor que ele agora lhe demonstrava a preencheu ao ponto de se sentir leve como uma pena.
Os lábios dele aproximaram-se da orelha dela.
- Eles raptaram-vos do meu quarto, no andar de cima. Geva não havia tocado em nada quando eu regressei.
A sua voz calma e bela aqueceu-a quase tanto quanto o seu hálito e o seu toque. Uma paz deliciosa fluía através dela como uma brisa. Sentiu-se grata por ele saber que ela amara David, o mercador, muito antes de saber toda a verdade acerca dele, e satisfeita por ele saber que ela havia regressado de sua livre vontade.
- Quereis-me, Christiana? Vireis agora deitar-vos comigo?
- Sabeis que sim, sabeis que o farei.
David abraçou-a e permitiu que o amor inocente e a alegria de Christiana o subjugassem. Desde que regressara a casa e vira a cama em desordem, o seu desejo físico
por ela pulsava a um ritmo profundo e constante no seu corpo e na sua alma. Agora, contudo, resistia ao impulso de a levar para a cama. O abraço terno com que ela
o envolvia confortava-o como nenhuma paixão jamais o faria.
Nobre ou mercador, ficarei convosco. Era mais do que aquilo que ele pedira e muito mais do que merecia.
Ela interrompeu o longo beijo e sorriu-lhe.
- Passou tanto tempo que vos esquecestes de como se faz?
- Sim. Talvez devesse ter continuado a praticar - disse com uma gargalhada.
O sobrolho dela elevou-se em surpresa e ele soltou outra gargalhada.
- Não houve mais ninguém. Descobri que estar sentado junto de vós à lareira é mais emocionante do que seduzir uma estranha e enfiar-me na sua cama.
- É estranho, David - respondeu ela, franzindo o sobrolho.
- Estáveis ali e amáveis-me. Eu estava ali e amava-vos. E nenhum de nós o viu. Por que razão? Vós vedes tudo. Será que as palavras cruéis e impensadas podem construir tamanhas muralhas?
- Isso acabou, não temos de...
- Mas eu quero. Eu disse o que disse para vos magoar, e vós fizestes o mesmo. Lançámos um ao outro os nossos medos e ilusões, e cada um de nós acreditou nas palavras do outro, embora a verdade estivesse ali bem à vista. - Fitou-o atentamente. - Se eu tivesse pensado com clareza nessa altura, como fiz desde então, teria sabido que vós nunca pensastes em mim como vossa propriedade. Na verdade, agíeis exactamente ao contrário. Se realmente adquiristes para vós uma prostituta nobre, nunca fizestes muito uso dela, pois não? Porquê?
Ela surpreendeu-o. Estava a amadurecer e olhos vistos, e a sua inteligência aguçada, liberta do abrigo que a isolava, tinha já começado a ver a essência das coisas.
Ele amava a rapariga. Suspeitava que iria venerar a mulher.
- Éreis muito inocente, querida.
- Não era assim tão inocente. As mulheres falam com as raparigas antes de elas se casarem. Eu sabia que os homens geralmente esperavam mais das mulheres do que vós alguma vez exigistes de mim. Eu sabia que podia haver mais coisas no acto do amor do que vós procurastes.
- Não estivemos juntos muito tempo, Christiana. Ela mordeu o lábio inferior, pensativa.
- Não me parece que tenha sido esse o motivo. Vós sabíeis quem éreis, mas eu não. Penso que receastes que eu me sentisse humilhada e usada. Devido ao vosso orgulho, David, não me tratastes como uma igual na nossa cama.
Ela deixou-o abismado. Ele havia sido muito cuidadoso com ela. Nunca havia ido para além dos actos impulsivos da noite de núpcias. O comedimento surgira naturalmente nele e nunca pensara muito nisso, mas agora tinha de admitir que existia alguma verdade nas palavras dela.
Uma expressão muito mundana e determinada tremeluziu naqueles olhos de diamante.
- Tenho sentido ciúmes, sabíeis? Não gosto de saber que fizestes coisas com Alicia e com as outras que nunca fizestes comigo. Nobre ou mercador, eu ficarei convosco, mas não como uma taça preciosa que tendes medo de quebrar.
De uma forma brincalhona, empurrou-o para trás, contra o pilar da cama. Inclinou-se na sua direcção, pressionou o corpo contra o dele, baixou-lhe a cabeça com a mão e beijou-o. Ele entregou-se àquele súbito acesso de erotismo. Como um relâmpago, a tensão cresceu e difundiu-se.
Ela olhou para cima, muito satisfeita consigo mesma. Segurou-a pelas ancas e ela roçou-se contra ele intencionalmente. As semanas de necessidade e espera provocaram nele uma resposta impetuosa e David ergueu-a para um beijo devorador e obscuro. Ela entregou-se a esse beijo e a paixão de ambos fundiu-os. Mas, em seguida, as mãos dela moveram-se sobre os ombros e pelo peito dele, empurrando-o subtilmente.
- No dia do meu casamento, uma criada deu-me umas lições muito explícitas - declarou, olhando mais para o peito dele do que para o rosto. - Ela disse-me que os homens gostam de ver as mulheres a despirem-se. Agradaria ao meu marido mercador se eu me despisse agora?
Olhou para ele e enrubesceu. Ao escutar estas palavras, David pensou que o coração lhe iria despedaçar o peito. Ela voltou-lhe as costas e afastou-se, com as mãos a desatarem os nós dos atilhos do vestido. Este gesto simples quase o descontrolou. Encostou-se contra o pilar da cama e ficou a observá-la de braços cruzados.
Havia-a visto despir-se muitas vezes, evidentemente, mas não desta forma. Ela movia-se de uma forma tão sedutora, que o súbito embaraço por se descobrir assim observada quase não se notava. Mas dava para perceber que ela sentiu imediatamente que aquilo era mais difícil de fazer do que havia imaginado. Fez os possíveis por não sorrir perante o ligeiro rubor no seu rosto e o olhar ardente nos seus olhos quando Christiana se voltou e deixou o vestido deslizar até ao chão. Baixou-se para tirar as meias.
- Não - disse ele. - Primeiro a combinação.
Ela endireitou-se. Cruzando os braços sobre o peito, e assemelhando-se muito à donzela tímida que fora recentemente, fez deslizar a combinação pelos ombros. As mãos acompanharam a sua descida, afastando-se para revelar primeiro os seios e depois as ancas e as coxas.
A peça de vestuário leve tombou aos pés de Christiana e ela libertou-se dela. Fixou o olhar no chão antes de o erguer para fitar David. O lampejo naqueles olhos de diamante disse-lhe que ela acabara de descobrir que aquilo podia excitar tanto uma mulher quanto um homem.
A beleza dela hipnotizava-o como sempre. O seu franco desejo de lhe proporcionar prazer transformou o prazer em si. Aquela necessidade desesperada de David conteve-se, não passando agora de uma tempestade ameaçadora mas controlável. Ele sabia que podia navegar indefinidamente nos seus ventos.
- Agora as meias.
Christiana baixou-se e os seus braços graciosos alcançaram a liga da sua perna estendida. David vislumbrou o movimento decrescente e progressivo do ombro até à cintura e o formato suave das suas ancas por trás. Os seios dela, tensos de ansiedade, pendiam redondos, cheios, perfeitos, à medida que ela ia enrolando a meia pela perna abaixo.
- Voltai-vos para tirardes a outra.
Ela voltou-se para ele, surpreendida, mas depois fez o que ele pedia.
As curvas graciosas das suas ancas e nádegas proporcionavam-lhe uma visão arrebatadora enquanto ela se baixava para desatar a liga. Devia ter sentido a sua vulnerabilidade, porque a coragem abandonou-a e ela desenrolou rapidamente a meia pela perna.
Endireitou-se e encarou-o com uns olhos que mais pareciam estrelas líquidas. Ele permitiu que a imagem dela ficasse gravada na sua memória. Christiana não era baixa,
nem sequer pequena, mas magnificamente constituída na sua esguia voluptuosidade.
- O vosso cabelo, Christiana. Soltai o vosso cabelo para mim. Os braços dela ergueram-se enquanto procurava os ganchos.
O movimento fez-lhe subir os seios e os seus mamilos endurecidos apontaram para cima. Desentrançou os cachos negros que começaram a espalhar-se sobre as suas costas. Ele não fez qualquer esforço para ocultar o que sentia.
- Vinde, minha rapariga, beijai-me como uma noiva apaixonada deve fazer.
Christiana encaminhou-se lentamente na direcção dele, com uma expressão convidativa que revelava a paixão, o amor e a alegria que sentia.
Mais do que ele alguma, vez esperara. Muito mais do que merecia.
A aurora estava a uma eternidade de distância.
Ela aproximou-se e pousou as mãos no peito dele. Ergueu a cabeça para David e ele baixou-se e recebeu o beijo dela com alguma contenção. Deixou que ela tomasse a iniciativa, mordendo suavemente em redor da sua boca. De uma forma delicada, mas já não tão ingénua, a boca de Christiana tocou ao de leve nos lábios dele e depois deslizou sobre eles com sensualidade.
Ele envolveu-a com o braço, comprazendo-se na sensação da pele dela sob a sua mão. O corpo de Christiana estava coberto por uma fina camada de suor e o seu calor e humidade fizeram disparar um arrepio de prazer ao longo do corpo de David.
Ele acariciou-lhe a face e interrompeu o beijo de modo a poder observar a sua mão a percorrer o corpo dela. O toque dele fê-la arquear as costas e os seios de Christiana
ergueram-se para ele. O estremecimento do corpo dela ao sentir o toque no mamilo intumescido provocou a David um prazer
angustiante.
Nenhum deles sucumbiu ao frenesim. Ambos procuravam prolongar a deliciosa expectativa.
As mãos dela ainda permaneciam no peito dele e agora afagavam os atilhos da longa túnica.
- Tem um aspecto muito exótico. Muito atraente.
- Os sarracenos sabem como vestir-se para o tempo quente.
Ela acariciou-lhe o peito, indolentemente.
- A criada disse-me que os homens também gostam de ser despidos pelas mulheres.
Ele não respondeu, mas ficou a observá-la enquanto ela desatava as fitas da túnica.
Ela acariciou-o através da abertura. David fechou os olhos ao sentir o calor daquela pequena mão. Havia decorrido muito tempo desde que ela lhe dirigira um gesto de afecto por muito pequeno que fosse.
Ela abriu-lhe a túnica quase até aos ombros, e encostou o rosto ao corpo dele. De uma forma lânguida e deliciosa, com uma atenção lenta que apenas aumentava a tensão entre eles, esfregou o rosto contra o peito dele e observou a mão que lhe deslizava pelos músculos.
- Estáveis certo - disse ela. - A abstinência é um poderoso fortificante da paixão. Uma parte de mim mal pode esperar e já grita por vós, mas outra pretende prolongar isto para sempre.
- Sabeis como termina. Nunca vos deixei ficar mal nesse ponto. Permiti que apreciemos a viagem. Não voltaremos a percorrer o mesmo caminho duas vezes.
Ela sorriu com sensualidade e assentiu. Passando as mãos pelo peito dele, fez deslizar a túnica dos ombros dele e guiou-a à medida que ela lhe descia pelas costas.
O controlo dele ameaçou dissipar-se quando ela estendeu as carícias às suas ancas e coxas.
- O que mais vos disse a criada? - inquiriu, tocando-lhe da mesma forma e sentindo o corpo dela estremecer subtilmente.
- Que os homens gostam de ser tocados e beijados, mas já percebi que isso é verdade - respondeu e, como prova disso, começou a beijar-lhe o peito. Frémitos intensos e prolongados dispararam pelo seu corpo a cada beijo e mordidela. - E outras coisas. Na altura pareceram-me chocantes, mas agora já não penso assim.
A túnica permanecia junto às ancas dele. Christiana soltou-se gentilmente do seu abraço e começou a acariciar-lhe e a beijar-lhe o corpo à medida que ia descendo.
Ele observava e aguardava, mal conseguindo respirar. Uma névoa obscura de paixão toldava-lhe a mente e via tudo e nada em simultâneo. Viu as mãos dela puxarem-lhe a túnica até aos pés e sentiu a sua carícia trémula nas coxas e pernas. Viu os dedos de Christiana
acariciarem o seu falo endurecido enquanto os lábios dela se pressionavam contra o seu ventre. O arrojo dela enternecia-o e espantava-o. Sentia-se surpreendido com a calma aparente que o seu corpo mantinha, porque o desejo começava a dilacerá-lo.
Ela acariciou-lhe a parte de trás das coxas e afastou a cabeça. Lançou-lhe um olhar inquisitivo e ele inclinou-se e ergueu-a num abraço.
- Só se quiserdes, querida, e nunca de joelhos.
- Então levai-me para a cama, mercador - proferiu, aninhando-se nos braços dele -, de modo a que possa demonstrar-vos o meu amor e veneração.
David beijou-a e ergueu-a, depois voltou-se e estendeu-a sobre a cama, deitando-se ao lado dela.
O ar cálido da noite que entrava pela janela proporcionava alguma frescura contra o calor que emanava dos seus corpos entrelaçados. David perdeu-se na intimidade do odor dela, nas suas curvas e no suor lúbrico.
Levá-la-ia numa viagem que ela jamais imaginara.
Lenta e deliberadamente, usando de todo o seu conhecimento acerca dela, David destruiu por completo o ténue autodomínio de Chnstiana. Sem nunca lhe tocar abaixo das ancas, David conseguiu arrastá-la para a plenitude. Acariciou-lhe os braços, mordiscou-lhe os mamilos, percorreu-lhe o pescoço com a sua boca devoradora, e o fogo que a consumia aumentava a cada momento. Christiana tentava, apesar do seu crescente alheamento, dar-lhe prazer também a ele, mas David não lho permitia. Escutava os gemidos débeis de abandono que Christiana emitia e sentia o seu corpo trémulo a aproximar-se da mais culminante das sensações.
- David, eu... por favor - proferiu, segurando-o pelos ombros. Ele deteve as mãos e a boca dela e abraçou-a. Ela contorceu-se
contra ele numa frustração rebelde e abriu os olhos.
- David! - exclamou, num tom acusador.
- Calma, querida, eu disse que nunca vos deixei ficar mal.
- Tencionais torturar-me até à morte? - disse, dando-lhe uma pancadinha pouco amigável no ombro.
- Só é tortura se pensardes apenas na libertação - disse, sorrindo delicadamente. - Desfrutai do prazer da própria escalada, sabendo que, mais cedo ou mais tarde, levantareis voo.
O fogo que a consumia abrandou e o frenesim esmoreceu. Os braços de Christiana rodeavam-lhe os ombros e ele voltou-se para lhe beijar a curva do braço enquanto a mão lhe caía pelas costas.
- Mais uma vez, então - disse ele.
Ela agarrou-se a ele, afastou as pernas e aceitou as suas carícias. A excitação fazia com que o sexo de Christiana palpitasse, e ele acariciou-a lentamente, de uma forma que lhe dava prazer, mas não a satisfação total. De início, ela rebelou-se e tentou que as carícias fossem mais intensas, mas depois relaxou e aceitou as vagas de prazer com arquejos rejubilantes e gemidos suaves.
Ele avistou o êxtase glorioso no seu rosto e quase perdeu o controlo. Tocou-lhe de uma forma diferente e viu-a escalar novamente, desta vez mais alto, como viria a ser de todas as outras vezes. Ele levou-a até um pico e manteve-a lá, oscilando no limite, permitindo que ela saboreasse a primeira convulsão antes de retirar a mão.
As unhas dela haviam-se cravado no seu braço e ombro. Ele beijou-a e acalmou-a com carícias suaves.
- Foi maravilhoso - murmurou. - Vai sendo sempre cada vez melhor?
- Até um certo ponto.
- Planeais fazer isto durante toda a noite?
- Duvido seriamente - respondeu com uma gargalhada. O amor tornou-me muito nobre e cavalheiresco, mas tenho os meus limites.
- Penso que ambos podemos jogar este vosso jogo - respondeu, fitando-o. - Agradar-vos-ia?
- Muito. Se assim o desejais.
Ela ergueu-se e empurrou-o pelos ombros, deitando-o sobre a cama. Lançou-lhe um sorrisinho presumido repleto de uma autoconfiança indevida. Beijou-o com vontade antes de avançar com as mãos e a boca ao longo do seu peito. Ele fechou os olhos e acariciou-lhe as costas.
- Não, David. Não permitistes que vos tocasse, por isso não podeis tocar-me.
Christiana foi descendo, beijando-o sempre com calor. Ele sentiu-a fazer uma pausa para avaliar a situação. Depois sentiu-a voltar-se, encolher as pernas e apoiar-se contra o seu ventre.
Ele havia-lhe ensinado a dar-lhe prazer com as mãos, e as carícias dela quase o levaram ao delírio. Quando Christiana fez outra pausa, David entreabriu os olhos no momento exacto em que ela baixava a cabeça.
Depois disso, todos os seus pensamentos se evaporaram. Ele observava, por entre uma neblina subjugante de prazer, as linhas eróticas das costas e nádegas de Christiana, os seus pés delicados enfiados sob o seu corpo.
David conhecia os seus limites, mas ela não. A medida que se aproximava do êxtase, esticou o braço e deslizou os dedos pela fenda do traseiro dela.
Ela gemeu e mudou de posição, aceitando o toque dele. David posicionou-se de modo a que a sua boca chegasse junto dela. Retesando-se para manter o controlo, permitiu que ambos apreciassem aquele prazer extático durante mais algum tempo, enquanto a levava tão longe quanto ela o havia levado a ele, mesmo até ao limite. Finalmente, estava a ser demasiado para ambos e ela apercebeu-se disso. Parou de o beijar e ergueu-se e, ao fazê-lo, David puxou pelo corpo dela e forçou-a a sentar-se sobre ele, as pernas abertas sobre as ancas dele.
Durante um instante, ela pareceu surpreendida por se encontrar ali. Em seguida, instintivamente e sem uma palavra, ergueu-se e atraiu-o para dentro de si.
O suspiro dele foi de encontro ao dela. Ela fechou os olhos perante a sensação, e depois, lentamente, ergueu-se e baixou-se de novo.
A paixão toldava-lhe os olhos quando os voltou a abrir.
- Isto é incrível, David - disse com um suspiro, continuando
a mexer-se.
Ele estendeu as mãos e acariciou-lhe os seios de modo a que ela pudesse ver o quão incrível podia ser e friccionou os mamilos endurecidos entre os seus dedos. A cabeça de Christiana tombou para trás e ela entregou-se com indolência a um ritmo maravilhoso e sensual, à medida que o atraía repetidamente para o seu calor ardente e o libertava. Intensificado pela abstinência e pelo amor, o prazer submergiu-o de uma forma que ele jamais experimentara.
Ele puxou-a para si.
- Vinde até mim. Chegai-vos um pouco para a frente - ordenou.
Ela deslizou para a frente mas deteve-se.
- Perderei...
- Não perdereis nada. Vinde até mim.
Christiana baixou-se e David ajudou-a a deitar-se até conseguir introduzir um dos seios dela na boca. Ela pairava sobre ele, ofegante, com o corpo ainda afastado
do dele. David sentiu que ela se agarrava a ele para o absorver mais, enlouquecendo-o com as suas carícias.
- David - proferiu, ofegante, com o corpo a tremer daquele prazer angustiante nos seus seios e entre as pernas.
Ele acariciou-lhe as costas e continuou a estimular-lhe os seios. Sentiu o primeiro tremor profundo e soube o que significava, embora ela não soubesse.
- David - bradou ela, desta vez de um modo frenético.
Ele soltou-a e ela deixou-se cair sobre o corpo dele com um gemido repleto de angústia. Enterrando o rosto no peito dele, moveu-se energicamente de novo.
- Sim, também pode acontecer assim - disse-lhe, para a tranquilizar.
Em seguida, segurou-a firmemente pelas ancas e tomou as rédeas da situação, ajudando-a a alcançar aquela plenitude diferente e mais esquiva.
Jamais vira uma mulher atingir um clímax tão violento e completo. Nos seus brados ecoavam sentimentos como surpresa, desejo e amor. Ela beijou-o com ferocidade e fitou-o directamente nos olhos à medida que a paixão atingia o auge e a sua aberta aceitação da magia fazia com que a intimidade fundisse as suas almas como sempre o fizera. Todo o seu ser parecia dobrar-se sobre si mesmo, carregando a essência de David até ao seu centro abrasador, antes de sair a voar em todas as direcções. No final, ela ergueu-se numa magnífica exibição de êxtase sensual enquanto os seus gritos exprimiam o abandono total a que se entregava.
O clímax mútuo obliterou momentaneamente o tempo, o espaço e a consciência.
Ela tombou sobre o corpo dele e David flutuou com ela naquela unidade que ambos formavam. O amor dela maravilhava-o e preenchia-o com a sua paz inocente e graça. A resposta faminta e ávida da sua própria alma surpreendeu-o.
O rosto dela permanecia aninhado no pescoço dele.
- Será que alguém nos ouviu?
- Nos?
Ela soltou uma risadinha abafada e deu-lhe uma palmadinha divertida no peito.
- Está bem, será que alguém me ouviu?
Ele pensou na janela aberta e na tranquilidade da noite lá fora na cidade. Era muito provável que toda a casa e metade de Caen a tivessem escutado. Isso deitava por terra a sua ideia de fingir que não eram felizes juntos.
Agora já não tinha importância. Se o comte estava a pensar usá-la dessa
forma, já teria tratado dos dois.
- Estou certo de que ninguém ouviu, querida.
Ela instalou-se ao lado dele. David jamais experimentara tamanha paz e satisfação, e permitiu-se saboreá-las, sabendo que não duraria muito e que poderia não voltar a acontecer.
Provavelmente, devia ter-lhe contado tudo. Teria de o fazer algum dia. Este amor não permitiria enganos a longo prazo, mesmo que fossem pelo bem dela.
- Alguma vez estivestes lá - perguntou ela -, em Senlis?
- Duas vezes. A primeira vez foi há alguns anos, e depois mais recentemente.
- Estivestes no interior?
- Sim. O comte encontrava-se ausente, e eu entrei como um mercador em viagem com artigos de luxo para vender. Ninguém se recordará disso. As mulheres distraíram-se
com os artigos, não comigo.
- Quereis Senlis?
- Quem não quereria?
Ela pôs-se de pé e fitou-o directamente nos olhos.
- Vós podeis não querer.
De qualquer forma, havia uma decisão a tomar, uma escolha a fazer.
- É o vosso destino que estou a decidir, para além do meu. Pretendo saber a vossa vontade nisto.
- A minha vontade é ter-vos comigo para sempre, vivo e inteiro. É tudo o que realmente me interessa, mas sei que não tomareis uma decisão a pensar na vossa segurança, e eu não vos exigirei isso. Quanto ao resto, é muito difícil definir o que é certo e o que
é errado, não é? Ambas as opções implicam uma certa dose de sofrimento e traição. Tanto Inglaterra como França detêm uma pretensão sobre a vossa pessoa. Tanto Eduardo
como Theobald merecem a vossa lealdade. - Fez uma pausa, reflectindo sobre o dilema. - Penso que devereis escolher a vida que nascestes para viver, seja ela qual for no vosso entender.
Chrstiana ia à essência das coisas. A vida com ela seria fascinante.
- E em relação a vós, Christiana? E em relação à vida que vós nascestes para viver?
Ela sorriu e pousou o rosto no peito dele.
- Eu nasci para desposar um nobre, David, e vós fostes desde sempre um dos homens mais nobres que já conheci.
CAPÍTULO 21
Christiana despertou numa cama vazia com a luz da alvorada que penetrava pela janela do quarto. As memórias inebriantes da noite anterior não tardaram a dissipar-se imediatamente. Ergueu-se e vestiu-se o mais depressa que pôde.
Ele estava a encontrar-se com eles nesse momento. A definição do seu futuro estava a decorrer. Não podia rezar por um desfecho ou por outro, embora soubesse bem qual deles preferiria. Ele podia revelar-lhes o porto, tornar-se o herdeiro de Senlis e viver a vida que poucos homens viviam. Ou podia recusar, ser privado da sua vida anterior, mas não lhe ser concedida uma nova, talvez até fosse assassinado. Para ela, não era uma grande opção, nem, esperava ela, para ele. Mesmo assim, apesar do estatuto de Senlis e tudo aquilo que isso implicava, não se sentia ansiosa nem entusiasmada por ir viver num lugar estranho e tão distante de casa.
Andou de um lado para o outro no quarto, mas aquele espaço confinado apenas aumentava a sua preocupação. Abandonou o quarto e procurou as escadas que conduziam ao telhado plano do edifício, com os seus muitos quartos de dormir e arrecadações. Vasos de flores estivais e trepadeiras adornavam o telhado e, no momento em que subiu para lá, escutou os sons da azáfama da cidade lá em baixo. Os sons habituais do comércio e do bulício haviam sido substituídos por um estridor de vagões, cavalos e homens a bradarem ordens.
David mantinha-se junto ao muro baixo que rodeava o telhado, fitando as ruas da cidade para oeste. Junto dele encontrava-se um homem robusto de meia-idade com longos
cabelos castanhos.
David voltou-se e reparou nela.
- Vossa senhoria, esta é a minha mulher, Christiana Fitzwaryn. Este é o condestável dEu, querida.
Christiana enfrentou o olhar avaliador do líder militar de França.
- Sou primo de Theobald, senhora, e portanto um parente de vosso marido. - Lançou um olhar a David. - Nada menos do que a filha de Hugh Fitzwaryn. Fizestes bem a Senlis. Theobald encontra-se satisfeito por uma tal descendência entrar na nossa família.
Christiana aproximou-se de David junto à muralha. Nas ruas lá em baixo via a actividade febril de um exército preparando-se para partir.
Estava feito, então. Fitou o rosto impassível de David.
- Senhora, o vosso marido permanecerá aqui em Caen - informou o condestável.
O olhar dela alternava entre os dois homens. Havia algo de errado. Pressentia-o.
- Estais a dizer que continuo prisioneira? - perguntou.
- Sois livre de partir. Tratarei de vos arranjar uma escolta até Senlis.
- Então o meu marido é agora um prisioneiro?
- Um convidado. Até os Ingleses desembarcarem. Irá ao vosso encontro nessa altura. Ele não está treinado nas artes da guerra, e esta batalha não lhe diz respeito.
- Prefiro ficar com o meu marido.
O condestável olhou para David. Este não reagiu. O homem mais velho sorriu.
- Como desejardes - disse, e afastou-se, atravessando o telhado e direcção às escadas.
Ela aguardou até ele desaparecer.
- Por que tendes de ficar, David?
- Ele não confia em mim. Receia que lhes tenha mentido, mas a vossa escolha de ficardes comigo tranquilizou-o um pouco.
- Mas de que serve ficardes aqui se o exército partir?
- Theobald conduzirá o exército. Ele já abandonou a casa. Mas o condestável decidiu permanecer em Caen com um pequeno
exército, para estar disponível no caso de Eduardo vir de uma direcção diferente. O camareiro do rei também cá está. Ele concordou que isto seria prudente.
- E o vosso tio concorda com isso?
- Nem mesmo o comte de Senlis se insurge contra o condestável e o camareiro de França. Theobald queria que eu estivesse ao seu lado, para que pudesse presenciar a gloriosa vitória dos Franceses, que ajudei a concretizar. Todavia, o condestável insistiu que ficasse aqui com ele para me ter à sua disposição no caso de eu os ter traído de alguma forma. Ele pensa que eu podia evadir-me do exército durante a viagem, ou que, se fosse caso disso, Theobald não se vingasse no seu herdeiro. - Sorriu. - O condestável não conhece bem o primo.
Ele abraçou-a e encostou a face aos seus cabelos. Ainda observava a cidade. Christiana sentiu nele um conflito de emoções e desejou poder dizer algo para o confortar. A decisão não havia sido fácil, independentemente do prémio que oferecia.
- Por que razão o condestável não confia em vós? Decerto a lógica da vossa escolha deve ser óbvia para ele. É a decisão que qualquer homem tomaria, e até haverá cavaleiros ingleses e lordes que reconhecerão a sua justiça.
- Ele acabou mesmo agora de o explicar. Quase pediu desculpa por isso. Parece que se eu fosse um cavaleiro, não teria quaisquer dúvidas acerca de mim. E o facto de eu ser um mercador e, ainda para mais, um mercador londrino, que lhe causa hesitação.
- Isso é ultrajoso. Pensará ele que os mercadores são menos honrados?
- Sem dúvida, tal como todas as outras pessoas. Ainda assim, de certa forma, ele considera-me um homem íntegro. Disse-me que conheceu muitos burgueses de Londres. Sabe que devemos lealdade em primeiro lugar à própria cidade. Não afirma compreender os homens que juram fidelidade a um lugar em vez de um homem, mas sabe que se passa isso connosco e já viu o seu poder. Ele podia aceitar
que eu traísse Eduardo, mas não Londres. E assim, enquanto ele o camareiro concordam com Theobald que o exército deve mover-se com celeridade, o condestável
ficará aqui a organizar a defesa caso eu lhes tenha mentido.
Um fluxo constante de cavaleiros e soldados a cavalo avançava pela ponte, vindo do outro lado do rio. Percorriam a cidade em direcção à zona sul. Soldados a pé, carroças, e trabalhadores marchavam com eles. As ruas assemelhavam-se a rios coloridos em movimento.
O olhar de David seguiu as filas.
- Devia ter insistido que fôsseis para Senlis, mas receava não conseguir retirar-vos de lá mais tarde. Suspeito que Theobald pode ser muito cruel quando se enfurece. Ainda assim, teria sido mais seguro para vós. O condestável garantiria a vossa segurança, mas há limites para a sua protecção.
- O que estais a dizer, David? Pensais que Eduardo mudou realmente de planos e que o condestável vos culpará de algum forma?
Ele afastou-se do muro e foi até à parte voltada para sul com o braço em redor dos ombros dela. À distância, para lá dos telhados mais baixos, conseguiam avistar o campo onde o exército estava reunido. Na dianteira, com bandeiras azuis e douradas, que não passavam de pequenos pontos aos seus olhos deles, encontravam-se três homens a cavalo.
- Theobald? - perguntou ela.
- Há cinco mil homens aqui com ele - disse, assentindo com a cabeça. - À medida que avançarem para sul, outros se unirão a eles.
- Vão a caminho de Bordéus, então? - perguntou, embora a resposta fosse óbvia. Contudo, necessitava de escutá-la, de modo a poder começar a resignar-se ao futuro que ele havia escolhido para eles.
Desejou sentir alguma alegria, mas sentia apenas um aperto estranho no estômago. Pensou na questão que ele lhe colocara na noite anterior antes de adormecerem, e na sua resposta.
Ele havia compreendido mal. Ela procurara tranquilizá-lo ao dizer-lhe que o amava independentemente do seu grau social, e que o considerara um homem nobre mesmo antes de saber acerca do pai dele.
Em grande parte, ele fez isto por mim, apercebeu-se ela. Para me restituir a vida que este matrimónio me retirou. O comte e o duque começaram a cavalgar. A grande e indisciplinada massa de homens correu lentamente atrás deles.
- Sim. Vão a caminho de Bordéus. - Confirmou.
Havia uma expressão peculiar no seu rosto, e os seus olhos semicerraram-se ao fitar as bandeiras que se afastavam.
- Mas Eduardo não.
Christiana fitou-o de boca aberta. O olhar dele nunca abandonou o campo a sul.
- Fui ao encontro de Eduardo antes de Catherine. Contei-lhe tudo, e ofereci-me para terminar o jogo da forma que o começara. Eu dar-lhes-ia um porto e o nosso exército desembarcaria noutro. Pressionei-o a considerar a Normandia, uma vez que metade do exército francês estava já no sul e, se eu falhasse, ele enfrentaria apenas uma hoste inferior. A sua experiência anterior de navegar para Bordéus já o havia inclinado a mudar de planos, e um cavaleiro normando esteve na corte nestes últimos meses, falando-lhe igualmente das cidades não fortificadas e das estradas desimpedidas.
O olhar dela seguiu o dele. Ainda conseguia ver os reflexos da armadura do comte.
- Eduardo desembarcará na Normandia? Aqui, na costa setentrional? - Sentiu um alívio tremendo, mas com ele veio um pavor medonho por David e pelo destino que ele agora enfrentava.
- Assumindo que ele não se arme em esperto no último momento, o que é perfeitamente possível. Ou que não comece a desconfiar de mim. Catherine deve ter-lhe contado histórias escabrosas da minha duplicidade, mas eu espero que Eduardo saiba o que esperar dela. Eu e Godefrey, o cavaleiro normando, conseguimos fornecer-lhe três portos possíveis, pequenos e resguardados. Ele usará aquele que o vento favorecer.
- O rei sabe acerca de Senlis e daquilo que vos foi oferecido? Se sabe, pode muito bem duvidar de vós. Não compreenderá a vossa opção.
- Contei-lhe tudo. Não podia ter a certeza de que Lady Catherine estivesse envolvida no vosso desaparecimento, ou que ela planeasse trair-me, mas suspeitava. Também não podia ter a certeza de que ela permanecia ignorante relativamente à minha relação com o comte. Fiz bem em ter falado francamente com Eduardo. Quando finalmente consegui deitar mão a Frans, vi as minhas suspeitas confirmadas.
- Então nunca estivestes em perigo em Inglaterra? E podeis regressar? - Assumindo que pudesse sair de Caen com vida.
- Sim.
- Ainda assim, tendo convencido Eduardo a desembarcar na Normandia, podíeis tê-lo traído. Quando foi que tomastes uma decisão?
O olhar dele ainda seguia o fluxo do exército.
- Esta manhã. Cavaleiro ou mercador, dissestes. Apoiei-me nas vossas palavras.
- E se eu tivesse respondido de outra forma? Se eu tivesse dito que queria ser a mulher de um
comte?
- O vosso desejo teria sido cumprido, e aprenderia a viver com a minha consciência. - Olhou para baixo e sorriu. - Suspeito que podia tê-lo justificado. É muito
provável que o poder e o luxo de Senlis consigam ofuscar qualquer culpa. Uma vida dessas tem os seus atractivos. Não vou fingir que não me senti tentado.
- Sacrificastes muito pela vossa cidade e pelo vosso rei, David
- disse Christiana, estreitando-o nos seus braços. - Eduardo deve-vos muito.
- Não me deve nada, Christiana. Vós fostes uma oferta dele para mim. A dívida é toda minha.
O olhar dele regressara ao campo distante. O comte já mal se conseguia divisar. Christiana vislumbrou de novo aquela expressão peculiar no rosto dele, e um lampejo de comiseração surgiu-lhe nos olhos.
Conseguira uma vitória brilhante, uma estratégia ousada e um jogo magnífico, mas não havia nele nenhum sinal de triunfo. Duvidava que aquela reacção contida tivesse algo a ver com o perigo que agora enfrentava. Aconchegou-se mais a ele e procurou consolá-lo.
- com o tempo, ele compreenderá, David. Ele sabe o que é a honra e as escolhas difíceis a que obriga um homem. Pode não vos perdoar, mas compreenderá.
O corpo dele retesou-se à menção do comte e dos laços de sangue que havia traído. Ela tentou de novo.
- David, eu sei que estais a sofrer. Ele é vosso tio...
Os dedos de David vieram repousar sobre os lábios dela, silenciando-a.
- Eu devia ter-vos dito ontem à noite - disse. - Temi a vossa reacção à verdade, e também não sabia se ele ia tentar apurar até onde iam os vossos conhecimentos acerca do assunto. Passei a última hora a interrogar-me se alguma vez vos diria.
Ela franziu o sobrolho, aturdida. Procurou o rosto dele para tentar obter alguma explicação.
- Theobald não é meu tio, Christiana.
As palavras dele assombraram-na. Foram necessários alguns momentos para que as implicações daquela revelação penetrassem na sua mente confusa.
- Sois assim tão astuto, David? Tão audacioso? Encontrastes um homem com quem vos pareceis minimamente e construístes este esquema elaborado? Contastes-me esta história de modo a que eu pudesse apoiar-vos com convicção caso fosse questionada?
A expressão peculiar de comiseração passou de novo pelo rosto dele.
- É muito pior do que isso - respondeu, abanando a cabeça.
- Theobald não é meu tio - prosseguiu, lançando um olhar ao homem que agora não passava agora de uma pequena mancha e que ia sendo engolido pela luz do sol e pela neblina. - É meu pai.
Christiana perdeu a noção do tempo que permaneceram ali com as palavras dele ainda suspensas no ar, mas quando ele falou de novo, os últimos soldados do exército estavam nesse momento a sair da cidade.
- Ele nem sequer se recordava do nome dela. Permaneciam encostados ao muro do telhado e David apoiou
nele os seus braços. Lançou um olhar para sul, mas agora sem se fixar em nenhum ponto em especial.
- Seduziu-a, aceitou o amor dela, deixou-a de esperanças e destruiu-lhe a vida. Eu uso o nome da minha mãe, mas este nada significa para ele. Tanto ele como Honoré haviam estado em Londres algumas vezes durante a juventude, e ele presumiu que eu tivesse sido o produto de algum dos devaneios do irmão. Foi o escárnio final à confiança eterna de Joanna.
Ela falou mais para o confortar do que para defender Theobald.
- Isso foi há trinta anos. Quando tiverdes cinquenta e cinco anos, pensais que conseguireis recordar-vos dos nomes de todas as mulheres com quem vos deitastes?
- Sim, de todas elas.
- Talvez só porque ele não o conseguiu. Ele pareceu não escutar aquelas palavras.
- Havia dois anéis, um cinzento e um cor-de-rosa. Ele presumiu que eu tinha o de Honoré, o cinzento, e nunca me pediu para o ver. Em Hampstead, ele olhou para mim e só viu o irmão.
- Conhecia o rosto do irmão melhor do que o seu. com que frequência vemos reflexos nítidos de nós próprios em vidro e metal? Ela não significou nada para ele. Era apenas uma rapariga bonita com quem ele se divertiu durante alguns momentos. Não passava da filha de um mercador que não tinha qualquer importância na vida de um filho de Senlis.
Ela não sabia o que dizer. David assistira ao sofrimento e à espera paciente de Joanna. Vivera na sombra da desilusão da mãe. Observara o mestre que ele admirava amá-la em vão. Duvidava que a sua fúria em relação a Theobald pudesse ser mitigada com palavras.
- Por que não lhe dissestes a verdade? Por que razão deixais que ele pense que sois sobrinho dele?
- Em Hampstead, quando me apercebi do engano dele, fiquei abismado. Fora isso, o meu plano tinha-se desenvolvido na perfeição. Na altura, disse a mim mesmo que corrigi-lo poderia complicar as coisas. Pelo que me era dado saber, ele podia ressentir-se do súbito aparecimento de um filho bastardo, ou até pensar que eu procurava vingança contra ele. Mas, na realidade, era a minha própria determinação que eu questionava. Encontrar-me com ele foi muito mais doloroso do que pensava. Tencionara desprezá-lo completamente. E de repente, ali estava ele. E subitamente, obtive as respostas às imensas questões não expressas que carregara na alma durante toda a minha vida. As respostas eram principalmente desagradáveis, mas, pelo menos, tinha-as. - Exibiu um sorriso triste. - A ligação e a familiaridade foram imediatas. Inesperadas e assombrosas. Se ele me tivesse reconhecido como sendo descendente dele, e tivesse falado comigo de pai para filho, eu não sei o que teria feito. Por isso, permiti o engano.
Ele não precisava de lhe ter dito isto. Ela jamais saberia ou teria suspeitado.
- Por isso, Christiana, desposastes um homem que atraiu o próprio pai para o descrédito e que o atraiçoou. É um crime grave em qualquer família, especialmente nas famílias nobres.
Ele procurou os olhos dela em busca de uma expressão de censura ou decepção. Ela soube que ele só encontraria entendimento e amor.
Pensou na comiseração que vira nele e o seu coração compadeceu-se dele.
- Estais arrependido? Ao vê-lo afastar-se, teríeis alterado as coisas?
- Só por vós teria agido de uma forma diferente e alterado o curso das coisas. Por ele, nunca. Desejaria poder dizer que lamento ter iniciado isto, mas não sou capaz. Sou o que sou, minha menina, e uma parte de mim, a parte de Senlis, está satisfeita por eu ter vingado um pouco a minha mãe.
- Odiais o vosso pai, David?
- Seria como odiar-me a mim mesmo - respondeu, sorrindo e abanando a cabeça. - Mas também não sinto afeição por ele. Theobald pode ter-me dado a vida, mas o único pai que alguma vez conheci e amei foi David Constantyn.
Ele pegou-lhe na mão e afastou-se do muro.
- E agora, David?
- Agora tenho de pensar na vossa segurança - respondeu, olhando em redor do telhado como se estivesse a inspeccioná-lo.
- O perigo que me espera da parte do comte de Senlis - disse, com um largo sorriso - não é nada comparado com o que Morvan Fitzwaryn me fará se eu deixar que algo de mal vos aconteça. Penso que deveis pedir à encantadora Heloise que me mostre a casa toda. Dizei-lhe que sinto curiosidade em saber como vivem os burgueses mais abastados de Caen.
David e Christiana fizeram o seu passeio pela casa. David examinou tudo sem subtilezas e com elogios efusivos, e Heloise resplandecia de orgulho com o apreço deste belo mercador londrino. Christiana foi da opinião de que ele exagerou um pouco, mas os seus
elogios prolongaram a tarde e deram-lhe a oportunidade de examinar todos os quartos e arrecadações, todas as janelas e cavalariças. Ele mostrou-se especialmente fascinado com um sótão no topo do edifício principal. Repleto de fazendas, sedas e outros tecidos dispendiosos, o único acesso era através de um lanço de escadas estreito ao longo da parede interior.
Finalmente, deixaram Heloise no salão e encaminharam-se para o jardim.
- Não parece haver nenhuma saída a não ser pelo portão principal, a não ser que se encoste uma escada ao muro - disse David.
- Era disso que andáveis à procura? Eu podia ter-vos dito isso. Há uma saída, mas precisamos de uma corda - começou a conduzido na direcção da árvore. Sorriu perante a solução simples. David escaparia, ela juntar-se-ia a ele, e depois... o que aconteceria? Correriam para a segurança, para Eduardo e para o seu exército. Até onde iria o poder do comte se este procurasse vingança? Talvez deixassem tanto Inglaterra como França para trás e partissem para Génova.
À medida que se aproximavam do canto do jardim, o coração dela afundou-se. Onde outrora estivera o imponente carvalho, encontraram apenas o seu coto.
- Fugi por aqui uma semana antes da vossa chegada - explicou ela. - Theobald apanhou-me. Deve ter ordenado o seu abate depois disso.
- Não tem importância. Duvido que tivéssemos conseguido atravessar a ponte.
Ela procurou consolo nos seus braços.
- Quanto tempo falta? - perguntou corajosamente, abordando o assunto que evitara. - Quando é que Eduardo desembarca?
- Pelos meus cálculos, daqui a cinco ou seis dias.
- Tendes de fugir. Não podeis estar aqui quando descobrirem. Esta noite, eu distraio os guardas no portão principal e vós...
- Não partirei sozinho.
- Então temos de descobrir uma forma - exclamou desesperadamente.
- Se existir, hei-de encontrá-la. Mas penso que está fora das nossas mãos. Quem sabe? Quando o exército inglês começar a pilhar
a Normandia, o condestável e o camareiro estarão tão ocupados a organizar a defesa que se esquecerão de mim.
Ele pronunciou aquelas palavras com tanta leveza que ela teve de sorrir. Mas não acreditava que aquilo acontecesse, e sabia que ele era da mesma opinião.
Quando despertou numa cama vazia na quarta-feira de manhã após a partida do exército, lançou um manto sobre os ombros e foi à procura dele. Descobriu-o no telhado, olhando para oeste. A luz da alvorada acabara de despontar, e a cidade ainda surgia como um conjunto de formas cinzentas aos pés deles. Apesar da tranquilidade, o ar parecia carregado de uma estranha plenitude, como se estivesse a formar-se uma tempestade algures para lá do límpido horizonte.
Aproximou-se dele. Os olhos azuis de David voltaram-se para ela, e depois voltaram a estudar o campo para lá do rio.
- Olhai ali - disse ele. - A aproximar-se da ponte.
Ela esticou-se para poder ver. A luz do dia ia-se tornando mais forte e, pelo campo, ao longo da margem oposta do rio, movia-se uma vasta sombra. Ela ficou a observá-la e depois a sombra desfez-se em pedaços e os pedaços converteram-se em pessoas. Centenas de pessoas.
Moviam-se com celeridade, transportando sacos e conduzindo animais. O sol começava a nascer e ela viu que a multidão incluía mulheres e crianças. Provinham dos edifícios do outro lado do rio, passavam pela abadia construída por Guilherme, o Conquistador e pela sua esposa Matilda, e depois começavam a amontoar-se na extremidade mais afastada da ponte, clamando para entrarem na cidade.
- Quem são eles?
- Camponeses. Burgueses. Sacerdotes. São refugiados em fuga do exército de Eduardo.
Os guardas acorriam para reforçar a vigília na ponte. A multidão de refugiados fundia-se e os seus brados elevavam-se. Na margem de cá do rio, dois homens a cavalo atravessaram as ruas desertas em direcção à casa do presidente da Câmara.
- O exército está próximo daqui? - perguntou ela.
- Presumo que esteja a apenas algumas horas de distância.
- Vem para cá? Para Caen? Devíeis ter-me dito, David. Não me teria preocupado assim tanto.
- Não podia ter a certeza. Em Abril, por acidente, encontrei um porto na península do Cotentin, mesmo a oeste. Eu e Sieg esperámos lá que os navios ingleses passassem antes de me encontrar com Theobald aqui em Caen. Durante a tempestade, um navio mercante foi empurrado para terra na direcção da cidade costeira onde aguardávamos. Aproximou-se cerca de cem metros da costa e não encalhou. O mar deve ter alterado a costa ao longo dos anos e o porto deve ter ficado mais profundo. Era perfeito para o desembarque das tropas. Ainda assim, os ventos podiam ter levado Eduardo mais para este, para um dos outros portos que descobri anteriormente.
- Não quisestes dar-me falsas esperanças - disse ela.
- Não quis dar-vos mais preocupações, querida.
- Preocupações? Isso são boas notícias! Eduardo obterá a vossa libertação. A nata da cavalaria inglesa vem em vosso salvamento disse ela com um sorriso.
- Se a cidade se render, pode suceder dessa forma.
- É evidente que a cidade se renderá. Não há outra hipótese.
- Londres não se renderia.
- Londres tem muralhas.
- Espero que estejais certa.
- O que se passa, David? O que vos preocupa?
Mas antes que ele pudesse responder, a resposta surgiu no telhado nas pessoas de dois cavaleiros do séquito do condestável.
CAPÍTULO 22
David caminhava em círculos pela pequena arrecadação. O espaço tresandava ao arenque armazenado nos barris empilhados contra uma das paredes. Uma pequena vela iluminava o compartimento sem janelas, e ele procurou calcular a passagem do tempo através da sua lenta diminuição.
Tinha sorte por ainda estar vivo. Depois de o ter confrontado no salão com a sua traição, o condestável resistira com dificuldade à vontade de o trespassar com a sua espada. O pânico e a confusão provocados pela aproximação do exército inglês haviam-lhe salvo a vida. O salão estivera num rebuliço enquanto o condestável e o camareiro procuravam organizar a defesa da cidade ao mesmo tempo que os seus escudeiros lhes atavam as correias das armaduras. Havia sido enviada uma mensagem para leste e para sul, apelando ao exército de Theobald e invocando a população geral para que se reunisse e lutasse contra esta invasão. David havia sido feito prisioneiro neste compartimento e aguardava o enforcamento após ter sido afastada a ameaça mais premente.
Antes de o levarem, havia tentado convencer o condestável e o camareiro do rei a não resistirem a Eduardo. Dissera-lhes que o exército inglês ascendia a pelo menos vinte mil homens, enquanto o condestável teria, na melhor das hipóteses, uns trezentos ainda em Caen. Recordou-lhes que a rendição pouparia as pessoas da cidade, e apenas significaria a perda da propriedade. Apenas o presidente da Câmara lhe dera ouvidos, mas a decisão não havia sido dele. O rei
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francês exigira ao condestável dEu que travasse o avanço de Eduardo, e o condestável tencionava lutar pela honra de França apesar das desvantagens. Caen não se renderia nem pediria acordos.
Esforçou-se por conseguir escutar os sons que atravessavam a espessa parede da cave. A casa havia sossegado e a actividade mais distante apenas lhe chegava como um ruído surdo e prolongado. A verdadeira batalha seria combatida na ponte. Se a cidade conseguisse manter o controlo desse único acesso, o rio revelar-se-ia mais formidável do que qualquer muralha.
Pelo bem de Christiana, ele tinha esperança de que a ponte aguentasse. Se a cidade caísse, ela não estaria a salvo dos soldados ingleses que pilhariam aquela rica cidade. Duvidava que eles escutassem as suas reivindicações de ser inglesa, tal como também não o escutariam a ele quando arrombassem a porta da arrecadação para pilharem os bens que ela continha. Fez uma careta perante ironia da situação. Sem dúvida, morreria hoje, mas se vivesse o tempo suficiente para ser enforcado, se Eduardo falhasse a conquista desta cidade, pelo menos Christiana estaria a salvo.
Deu murros à parede numa frustração furiosa por não poder ajudá-la. Havia sido enviada para junto de Heloise e das outras mulheres no momento da sua detenção. Debatera-se contra os soldados que a arrastavam. Esses cavaleiros não haviam regressado, e ele tinha esperança que eles guardassem o quarto onde as mulheres aguardavam. Pelo menos, teriam alguma protecção.
Ergueu a vela e voltou a estudar a sua minúscula prisão. Desejava que contivesse algo mais para além de arenque seco, e não só por causa do odor. Quem quer que derrubasse a porta daquele compartimento matá-lo-ia só pelo ressentimento de não encontrar nada de valioso depois de tamanha canseira.
Como que a ecoar os seus pensamentos, um som junto à porta reclamou a sua atenção. Todavia, não era o estrépito de um martelo ou o malhar de um aríete. Era o som mais subtil de metal sobre metal.
Talvez Eduardo tivesse decidido avançar. Afastou-se para a outra extremidade do compartimento e observou enquanto a porta se abria. No limiar, com o rosto pálido como um fantasma, surgiu uma macilenta Heloise. Christiana mantinha-se atrás dela, segurando a longa adaga de aço de David junto à garganta da jovem loira.
- Ela sabia que era a única coisa sensata a fazer, David, mas como não passa de uma daquelas mulheres que se limita a obedecer ao marido, tive de a encorajar - declarou Christiana. Voltou a colocar a adaga na bainha à sua cintura.
Heloise parecia prestes a desmaiar e apoiou-se contra a parede.
- O que aconteceu? - perguntou David.
- Conquistaram a ponte - explicou Christiana. O medo que ela procurava corajosamente ocultar espelhava-se no seu rosto. Os cavaleiros que nos protegiam partiram há muito tempo. O nosso exército está por toda a cidade, como um enxame. Está a acontecer como dissestes. Na vitória estão a carregar tudo o que conseguem. O povo está a lançar-lhe bancos e pedras a partir dos telhados à medida que eles passam, e isso está atrasar o seu avanço, mas não muito.
- Não resta ninguém - exclamou Heloise. - O portão está guardado apenas por alguns moços de estrebaria e criados. Quando a ponte caiu, os soldados partiram, alguns para lutarem nas ruas, outros para fugirem.
Christiana aproximou-se dele e falou suavemente.
- Ela queria levar as filhas e fugir também, mas eu convenci-a que era melhor esconder-se atrás destas paredes do que na cidade. Não são as muralhas de um castelo, e não impedirão o exército durante muito tempo, mas os soldados estão a matar todas as pessoas que encontram. Mesmo do telhado deu para ver muita gente a cair.
Ele fitou-a directamente nos olhos e apercebeu-se plenamente do perigo que ela enfrentara.
- Fizestes bem em soltar-me, madame - disse de uma forma tranquilizadora. - A sorte sorriu-me sempre, talvez ela seja igualmente generosa connosco hoje. - Afastou a mulher da parede.
- Partamos e avaliemos a nossa situação.
No pátio, aguardavam-nos más notícias. Os criados que guardavam o portão haviam fugido, e a entrada mantinha-se aberta para a rua. À distância ouviam-se os brados de uma cidade a ser saqueada.
David apressou-se a fechar e a barrar o portão. Nesse preciso momento, surgiu um grupo de seis mulheres. Pareciam ser mulheres de burgueses e lançaram-se nos braços de Heloise.
- Aquele diabólico rei inglês ordenou que todos perecessem pela espada - bradou uma delas. - Estão a despojar os corpos das
suas roupas e a cortar os dedos para furtarem os anéis. Violam as mulheres e depois cortam-lhes a garganta.
As outras mulheres juntaram-se a ela com descrições histéricas dos horrores que haviam presenciado. David barrou o portão e lançou um olhar pelo pátio. Christiana estava certa. Estas paredes não eram muralhas de um castelo e marcavam a casa como sendo a um de um mercador abastado. Chegaria o momento em que alguns soldados decidiriam derrubar o portão ou escalar os muros. Mas estavam mais seguros cá dentro do que lá fora na cidade.
Christiana mantinha-se de lado, escutando as histórias de mutilação e destruição com um rosto pálido. Os sons da pilhagem do exército aproximavam-se cada vez mais.
David dirigiu-se a ela e abraçou-a.
- Recordais-vos do sótão situado acima dos quartos? Aquele cujo acesso se faz pelas escadas estreitas? Levai-as para lá.
- E vós?
- Irei lá ter em breve. Parece que afinal sempre vou precisar daquela armadura. Nunca pensei usá-la contra os Ingleses. Parece que no final o meu pai sempre terá a sua vingança. É irónico que a minha traição para com ele vos tenha colocado a vós em tão grande perigo.
- Não vos culpeis por isso. Não fostes vós que me trouxestes para cá - respondeu, instintivamente consciente da culpa que pretendia subjugá-lo.
- Ainda assim, estais aqui - disse, hesitante, não querendo falar do horror que os ameaçava. - Se eles vierem, deixai-os saber quem sois. Falai apenas em inglês. Reclamai a protecção do vosso irmão e do rei.
- Não terá qualquer importância - disse ela, voltando-se para o grupo de mulheres ali perto. - Já assisti a isto antes, em Harclow. Havia começado antes de partirmos. O meu irmão aceitou a derrota e uma possível morte para salvar a minha mãe daquilo que enfrentamos hoje.
Aproximou-se das mulheres e explicou-lhes a situação. Gratas por receberem algumas instruções que, pelo menos, ofereciam esperança, rodearam-na enquanto ela liderava o caminho até ao edifício mais elevado e ao quarto do sótão.
David seguiu-as mas desviou-se para o quarto que partilhara com Christiana. Colocou a couraça da armadura sobre os ombros e depois ergueu as peças para os braços. Reflectia se, com a armadura e com as armas, conseguiria, sozinho, conduzir Christiana pelas ruas da cidade. Abanou a cabeça. Não possuía justilho que o identificasse como parte do séquito inglês de um barão, e o seu escudo não exibia um brasão que estes soldados reconhecessem. Considerá-lo-iam francês. Fosse como fosse, não seria capaz de abandonar todas aquelas mulheres e raparigas, nem Christiana o permitiria. Na morte, pelo menos, podia ser o marido que ela merecia. Pegando na espada com a outra mão, abriu caminho até às escadas e ao lugar onde se encontravam as mulheres escondidas.
Christiana tinha já posto as mulheres a trabalhar. Pelo chão viam-se extensões de tecido, e elas usavam a adaga dele para o retalharem.
- O que estais a fazer? - indagou poisando a armadura.
- Bandeiras - disse ela. - A branca e a verde de Harclow. As cores de Thomas Holland, as de Chandros e as de Beauchamp. Iremos dependurá-las nas janelas. Quem sabe, poderão atrair alguém que nos possa ajudar.
Lançou um olhar à armadura e aproximou-se dele.
- Eu faço isso - disse, e os seus dedos começaram a apertar as correias e as fivelas.
Demorou algum tempo até conseguir encaixar a armadura completa, e ele nem sequer tinha as placas das pernas. Depois de apertar todas as correias, Christiana desamarrou
a bainha da sua cintura e entregou-lha, depois recuperou a adaga das mãos das mulheres.
David fitou durante um momento a longa extensão da arma afiada. Os seus olhos encontraram os de Christiana.
- Não me servirá de nada contra homens armados - disse ela, fazendo-a deslizar pela bainha em redor da cintura dele. - E nem sou suficientemente corajosa para a usar noutros ou em mim.
As mulheres abriram as janelas e ostentaram as bandeiras. A brisa estival carregava os sons dos gritos de morte. Quando fecharam as janelas para prenderem as bandeiras,
ressoou no espaço confinado o som de uma grande pancada contra o portão da rua. O estrondo sobressaltou-os a todos e deixou-os no mais completo silêncio.
No compartimento pairava um odor amargo: o odor do medo dos seus ocupantes. David lançou um olhar às oito mulheres e às três raparigas. Os rostos eram agora praticamente invisíveis, no quarto obscurecido pelos panos nas janelas. Afastou Christiana para um dos lados e voltou as costas às outras mulheres.
Segurou o rosto dela entre as mãos e fechou os olhos para saborear a suavidade delicada dos seus lábios. Invadiu-o uma ternura angustiante, e o medo palpável de Christiana despedaçava-o.
- Quando eu for a Génova este ano, ireis comigo - disse ele.
- Depois disto, atravessar os Alpes parecerá algo de pouca monta. Passaremos os meses frios em Itália e viajaremos para Florença e Roma.
- Gostaria muito - sussurrou ela. - Talvez possamos atravessar o mar até terras sarracenas, e fazer amor numa tenda no deserto.
Ele beijou-lhe os olhos fechados e sentiu nos lábios o sabor das lágrimas salgadas que brotavam deles.
Os sons inconfundíveis do portão a ceder soaram no interior do compartimento.
- Olhai para mim, Christiana - disse ele. As suas pálpebras ergueram-se lentamente e ele fitou aqueles diamantes líquidos e deixou-a ver o amor que lhe ia na alma. Ela sorriu de uma forma corajosa e desolada e esticou-se para o beijar.
Os brados e o clamor de homens a entrarem pelo pátio ecoaram em redor deles. Christiana ergueu a espada e entregou-lha. Por trás dele, o quarto no sótão estava mergulhado no mais absoluto silêncio. As mulheres há muito que haviam ultrapassado a histeria. As filhas mais jovens de Heloise fitavam-no com um olhar arregalado e solene.
com um último olhar à sua bela esposa, David abriu a porta e tomou uma posição ao cimo das escadas estreitas.
O ruído primitivo de devastação e pilhagem encheu o edifício. David mantinha-se tenso no seu posto, com a espada encostada à parede ao seu lado, e aguardava que os soldados descobrissem finalmente a passagem que conduzia a estes degraus e a este sótão.
A porta atrás dele havia sido fechada, mas não podia ser barrada do lado de dentro. Assim que ele tombasse, não haveria qualquer protecção para Christiana e para as outras mulheres.
Há cerca de uma hora que andavam ocupados com os quartos de dormir, o salão e as arrecadações do piso inferior, portanto já não deviam tardar.
Se tivesse sorte, talvez os homens que haviam entrado não fossem muitos e tivessem fechado o portão de modo a guardarem só para si o rico espólio da casa do presidente da Câmara. Se ele tivesse mais sorte ainda, talvez não houvesse nenhum arqueiro entre eles. Se a Fortuna realmente o favorecesse, talvez surgisse alguém com autoridade suficiente para garantir a casa do presidente da Câmara para prazer e desfrute do rei.
Interrogava-se se haveria cavaleiros entre eles, e se adiantaria apelar à cavalaria.
Não conseguia avistar o fundo das escadas, pois estas erguiam-se na parte lateral do edifício até um patamar antes de descreverem uma curva ao longo da parede das traseiras, para junto dele. Mas escutava a agitação febril lá em baixo. E o grito de um dos homens para os seus amigos quando as descobriu.
Subiram os degraus apressadamente, repletos de entusiasmo enquanto faziam descrições das roupas, jóias e pratas que já haviam encontrado. Pelo seu discurso, dava para perceber que não eram cavaleiros. Aguardou.
Seis homens passaram a curva do patamar. Começaram a subir. O primeiro havia atingido o sétimo degrau a contar do topo quando finalmente repararam nele. Seis cabeças olharam para cima com surpresa.
- Quem sois?
- Um inglês, tal como vós. Um mercador londrino.
- Não tendes aspecto de mercador.
- Nenhum de nós hoje age como de costume ou tem o aspecto de sempre. A guerra faz isso às pessoas.
Todos esticavam o pescoço para conseguirem ver.
- O que está atrás dessa porta, mercador?
- Tecido comum e de pouco valor.
- Ele mente - disse o líder. - Estas escadas estão escondidas. Este é o compartimento que possui especiarias e ouro.
- Juro-vos que não há especiarias nem ouro neste compartimento.
- Afastai-vos e deixai-nos ver.
- Não.
Mais sons de passos nos degraus. Mais rostos se uniram aos primeiros. A fila de homens contornava a curva e desaparecia do seu campo de visão. David observava as longas adagas e espadas enquanto eles passavam a palavra de que o ouro e as especiarias os aguardavam lá em cima.
O homem mais próximo examinava-o atentamente, avaliando-o, tentando decidir se a armadura indicava uma perícia superior. Os estreitos degraus significavam que não podiam atacá-lo todos ao mesmo tempo e o primeiro a fazê-lo podia muito bem morrer.
Os homens na longa fila começaram a dar encontrões e cotoveladas uns aos outros. Uma cabeça ruiva moveu-se entre eles, impulsionando-se para a frente.
- Afastai-vos! - comandou uma jovem voz.
Os outros comprimiram-se para deixarem o jovem passar e este galgou os degraus até junto do primeiro homem. Um escudeiro, pensou David, a avaliar pela sua juventude e libré. Teria talvez vinte anos de idade. Separado do seu amo e gozando de poder e estatuto neste inferno em que Caen se havia convertido.
O escudeiro lançou um olhar à espada de David e desembainhou
a sua.
- Nós rebentámos com aquele portão. Este espólio é nosso disse.
- Como estou no primeiro degrau, é óbvio que cheguei antes de vós - replicou David.
Uma agitação de lamentos e injúrias ressoou pela escada acima. Os homens lá atrás começaram a exigir que David fosse liquidado de modo a poderem chegar ao ouro.
David lançou um olhar ao escudeiro e ao homem ao seu lado. Os brados elevavam-se e ecoavam pelas escadas. O rosto de ambos os homens endureceu à medida que os seus camaradas os incitavam a agir. David observava e aguardava, estudando a determinação deles, preparando-se para o ataque.
Será o mais jovem, pensou com pesar.
O jovem ruivo lançou-se subitamente pelas escadas acima, erguendo a longa espada. A mão de David deslocou-se até à cintura. Antes de o jovem ter tido tempo de galgar dois degraus o seu corpo endireitou-se com uma sacudidela. Os seus olhos fitavam, em choque,
a adaga de aço cravada na sua garganta. Depois o corpo tombou, bloqueando as escadas.
A multidão de soldados fez uma pausa colectiva, e depois os gritos e pragas redobraram-se. David procurou alcançar a espada.
Reparou no inexorável avanço da multidão, como se mais homens se tivessem unido aos existentes e todos eles fossem impelindo os outros para cima. Os homens da frente começaram a ser empurrados. Mãos estenderam-se e afastaram o escudeiro do caminho. O odor acre daquela ânsia por sangue pairava no espaço confinado. David permitiu que o sangue implacável de Senlis fluísse nas suas veias para lhe conceder a sua força fria.
E depois, subitamente, começou a fazer-se silêncio a partir da retaguarda. Os homens no patamar olharam para trás de si e depois uns para os outros. As pessoas comprimiam-se contra a parede, para se desviarem do caminho.
De súbito, David avistou a figura alta e o cabelo negro de um cavaleiro usando a libré do rei.
Uns olhos escuros e ferozes fitaram David com um lampejo de surpresa e divertimento. Sir Morvan aguardava calma e silenciosamente que os soldados diante de si compreendessem que pretendia passar. Empurravam-se uns aos outros, apontavam e abriam caminho para ele. Morvan subiu lentamente os degraus até chegar junto do escudeiro tombado. Olhando para David, baixou-se descontraidamente, retirou a adaga e o sangue começou a correr do ferimento. Limpou a arma ao seu justilho e juntou-se a David diante da porta.
- Este é o problema das adagas - disse-lhe delicadamente enquanto lha entregava - Assim que a lançamos contra alguém, ficamos desarmados. - O seu olhar recaiu sobre a armadura de David. - É aço do bom. É alemão?
- Flamengo.
- Não deveríeis estar em Inglaterra? Em Northumberland, não era?
- Outros assuntos trouxeram-me até aqui.
- E a minha irmã?
- Encontrei-a. Não estava com Percy.
Alguns dos homens começaram a murmurar em voz alta algo acerca de os cavaleiros ficarem sempre com a parte melhor para eles.
Morvan limitou-se a bocejar enquanto desembainhava a sua espada e os murmúrios cessaram.
- Estais numa péssima posição aqui - observou.
- Sim. Ainda bem que aparecestes. Morvan encolheu os ombros.
- Assim que a ponte cedeu, terminou a diversão. A violação e a pilhagem não me atraem, por isso decidi vir até esta casa que ostenta as cores de Harclow. - Lançou um olhar à porta. - Seja lá o que for que estais a guardar, não vale a vossa vida. Desviai-vos e permiti que estes homens o pilhem. Não podem ser controlados depois de terem sentido o odor do saque e saboreado o sangue. Eu e Thomas Holland passámos as últimas horas procurando impedir que as mulheres e as crianças fossem assassinadas ou desonradas.
- Não posso desviar-me.
- É só uma questão de tempo até eles encontrarem um arqueiro. É ouro a sério, como dizem lá em baixo?
David abanou a cabeça e com um gesto indicou-lhe a porta. Morvan abriu uma fenda, espreitou lá para dentro e retesou-se. Franziu o sobrolho e espreitou novamente. Os seus olhos voltaram-se para David enquanto fechava a porta.
- Dizei-me que a mulher que avistei ali dentro entre todas as outras não é a minha irmã.
- Se insistis. Não era a vossa irmã.
Morvan resmungou entre dentes, abriu a porta mais uma vez e fechou-a bruscamente.
- Diabos me levem! O que está ela aqui a fazer?
- A visitar amigos meus nesta cidade. Quem é que estava à espera que o nosso exército viesse saqueá-la?
- Assim que a tirar daqui, vou matar-vos.
- Se a conseguirdes retirar daqui, podeis fazê-lo - disse, com um gesto na direcção dos homens.
As lamentações impacientes e os murmúrios haviam regressado. David suspeitava que estivessem a elaborar-se planos.
- Quantos são?
- Vinte. Trinta - respondeu Morvan, encolhendo os ombros.
- Quantos ao certo? Diria que faz uma grande diferença.
- Dificilmente - respondeu Morvan com um sorriso sarcástico. - Vinte contra dois, ou trinta contra dois, é a mesma coisa.
É inútil. Eu sou muito bom, David, mas não tanto assim, e a minha libré do rei só os deterá durante mais algum tempo.
Ainda assim, voltou-se para as escadas e avaliou a sua posição para a batalha. com um suspiro de exasperação, alcançou o punho da espada de David e deu-lhe um safanão de modo a que a arma ficasse voltada para cima e não para baixo. - Tendo em conta a forma como manejais uma espada, o mais provável é serem vinte ou trinta contra um e meio. O melhor é ficardes do meu lado direito, o lugar onde posicionamos os jovens escudeiros.
Nessa altura, um estremecimento sacudiu as escadas. Repetiu-se uma e outra vez e era acompanhado por uma série de grunhidos. Os homens no patamar inferior voltavam-se para trás com os olhos arregalados e depois tentavam desaparecer junto à parede. De súbito, surgiu um corpo maciço e um rosto áspero de feições grosseiras abriu um enorme sorriso na direcção de David.
- Corrijo-me a mim próprio - disse Morvan num tom seco.
- Trinta contra dez.
- Já, mas foi um inferno encontrar-vos, David - disse Sieg enquanto subia as escadas na direcção deles. Dois homens cometeram o erro de não se afastarem suficientemente depressa. Sieg ergueu-os calmamente pelo pescoço, esmagou as suas cabeças uma na outra e depois deixou-os tombar. - Em primeiro lugar, dirigi-me ao castelo na outra margem do rio, mas o bispo que está a tomar conta dele tem-no encerrado com a um caixão. Tentei a Câmara Municipal onde o rei se instalou, depois pensei, raios, talvez ela estivesse prisioneira na casa do presidente da Câmara.
A indignação perante a forma como Sieg acabara de agir provocou afoiteza nalguns dos homens. Atrás de si foram brandidas algumas facas reluzentes. Sem se desequilibrar, Sieg voltou-se para trás e, com a sua mão enorme, agarrou no tolo mais próximo e esmagou a cabeça do homem contra a parede de pedra.
- Oliver está convosco?
O sueco riu-se e desembainhou a espada para silenciar as ameaças que se formavam lá em baixo contra ele. O seu rosto resplandecia perante a perspectiva de lutar contra todos estes homens.
- Perdi-o nas ruas. Todas estas casas abertas e todos estes bens à disposição foram mais fortes do que ele. Disse que era uma pena não estardes com ele. Tal como nos velhos tempos, disse.
Morvan ergueu um sobrolho perante esta conversa. David sorriu e encolheu os ombros.
- Ainda precisamos de alguma ajuda para retirar daqui estas mulheres - disse Morvan. - Agora que o vosso homem está aqui, vou em busca de mais alguns. Protegei-me com essa adaga, David.
Exibia uma expressão mais perigosa agora ao partir do que quando chegara e ninguém o desafiou.
- Conseguiram passar alguns mensageiros para avisarem o comíe? - perguntou David após a partida de Morvan.
- Não. Eu e Oliver permanecemos algumas milhas abaixo na estrada para sul, tal como dissestes. Eles vieram direitinhos a nós. Quando o rei enviou alguns homens para impedirem a passagem das notícias até ao exército francês, saímos dali finalmente e entregámos-lhes os mensageiros. O comte só saberá do desembarque de Eduardo daqui a muitos dias. - Fez um gesto com a espada e declarou: Agora vou fazer desaparecer estes homens.
- Procurai não os matar a todos. É suposto eles estarem do nosso lado.
Sieg desceu dois degraus de modo a poder pôr-se de pé sem se baixar. Ergueu a adaga na mão esquerda e a espada na direita, fitou furiosamente os homens que o observavam e emitiu um primitivo grito de guerra viking.
A constatação de que um cavaleiro do rei havia partido para ir buscar ajuda subjugara já os soldados. A exibição da força de Sieg desencorajou a maior parte deles. As cabeças começaram a oscilar e a virar-se à medida que os homens se voltavam e procuravam comprimir-se para descerem as escadas.
Quando Morvan regressou com Thomas Holland e dois outros amigos, a maior parte dos soldados já havia desaparecido.
David abriu a porta e conduziu-os para dentro do sótão. Uma onda de alívio percorreu as mulheres quando viram a salvação entrar pela porta. Algumas desataram num pranto, dando largas aos sentimentos contidos. Chnstiana correu para os braços de David.
- Graças a Deus estais bem! Salvastes-nos a todas, David!
- Foi a vossa bandeira quem vos salvou, minha querida. Parece que pilhar cidades aborrece o vosso irmão, e veio investigar as vossas cores.
- Morvan! - exclamou, voltando-se com surpresa para os cavaleiros. - Thomas!
Morvan avançou furtivamente e aceitou o abraço da irmã. Sobre o ombro, lançou um olhar perigoso a David. Christiana recuou a tempo de ver aquele olhar.
- Não vos atreveis, Morvan. Ele salvou-me, assim como a todas nós. Os cavaleiros e os soldados franceses abandonaram-nos e ele colocou a vida dele entre nós e o perigo. Não podíeis ter agido melhor do que ele.
A expressão de Morvan suavizou-se enquanto fitava a irmã.
- Se é como dizeis, então desta vez não o mato.
- O melhor que temos a fazer é levá-las para junto de Eduardo. Não estarão seguras em mais lado nenhum. Mas é complicado. E esta cidade... - disse Thomas Holland.
David leu a sua expressão e preocupação.
- Mantê-las-emos entre nós. Christiana, reuni as mulheres e explicai-lhes o que vamos fazer. Depois dizei-lhes para manterem os olhos baixos enquanto caminharmos.
Ela assentiu e dirigiu-se em primeiro lugar a Heloise e às suas filhas. David chamou Sieg com um gesto.
- Ireis com a mais jovem - disse. - Mas atenção: ela não pode ver os corpos.
Enquanto Christiana explicava às outras mulheres o que ia acontecer, David aproximou-se de Heloise. Não se havia movido desde que eles haviam entrado e encontrava-se sentada sobre uma pilha de tecidos com um aspecto extenuado e entorpecido. As mãos seguravam algo e sobre a sua saia pendia um objecto de um brilho enfraquecido.
Heloise ergueu o olhar para ele. As suas mãos abriram-se para revelar um colar de ouro e esmeraldas.
- Pensei que, se fosse caso disso, talvez pudesse comprar a segurança das minhas filhas.
- Elas estarão em segurança agora, madame. Estou certo de que o vosso marido também está a salvo. Provavelmente será levado para Inglaterra à espera de resgate como os restantes burgueses abastados, mas não há qualquer lucro em assassiná-los.
- Por favor, aceitai-o - disse, fitando o colar. - Em compensação do rapto da vossa esposa pelo meu marido e por nos terdes auxiliado hoje.
Ele não tinha dificuldade em calcular o valor do ouro e das esmeraldas. Mas o seu papel nos acontecimentos do dia não era tão cavalheiresco quanto a mulher imaginava, e ele não se aproveitaria disso.
- Foi a chegada do irmão da minha mulher que vos salvou. Se desejais exprimir gratidão, fazei-lo com ele. - Ajudou-a a pôr-se de pé. - Agora temos de ir. Segui as instruções que a minha mulher vos der.
Os homens conduziram as senhoras pelos degraus íngremes. No pátio, todos eles desembainharam as espadas. Sieg havia convencido a mais jovem a deixar que ele lhe vendasse os olhos, e içou-a nos seus braços enquanto ela se segurava firmemente a ele. David pousou o braço esquerdo sobre os ombros de Christiana e, desta forma, guiaram as mulheres através do inferno de morte e destruição que havia sido em tempos a gloriosa cidade de Caen.
Eduardo permanecia no edifício da Câmara Municipal, rodeado por escrivães que listavam cuidadosamente a propriedade dos espólios a serem enviados de regresso para Inglaterra. A chegada do cortejo de cavaleiros e mulheres silenciou os aposentos. Pelo caminho, outras mulheres desesperadas haviam-se juntado ao grupo. Thomas Holland teve até de se desviar do percurso para resgatar algumas. Vinte mulheres caminhavam na presença do rei, flanqueadas por cavaleiros armados com espadas.
Quaisquer que fossem as inclinações de Eduardo em relação ao destino que deveriam dar a estas destas mulheres, tornou-se irrelevante. Diante dos seus jovens cavaleiros,
não teve outra hipótese senão fazer mostra do cavalheirismo que sempre existira na sua corte. Estendeu formalmente a sua protecção às mulheres e ordenou que as enviassem para outro compartimento para segurança delas.
David voltou-se para acompanhar Christiana, mas, com um gesto, o rei ordenou-lhe que ficasse. Dispensou os homens em seu redor e encarou David sobre uma mesa repleta
de mapas, exibindo um largo sorriso.
- Um plano esplêndido, David! Céus, que vitória!
David pensou nas centenas de corpos que haviam encontrado pelas ruas. Pessoas de todas as idades e classes sociais, chacinadas
e totalmente despojadas das suas vestes. As ruas encontravam-se cobertas de sangue.
- É verdade que ordenastes a morte de todas as pessoas?
- Estava no meu direito - respondeu Eduardo, franzindo o sobrolho - quando eles não se rendiam e sabiam-no. Centenas de homens pereceram por resistirem. Não só na ponte, mas nas ruas. Aqueles malditos bancos e pedras... contudo, revoguei a ordem. Raios, deviam ter-se rendido.
Quando confrontados com vinte mil, deviam tê-lo feito. Mas Londres não se teria rendido, pensou David. Nem vós quereríeis que Londres o fizesse.
Eduardo afastou o tema da destruição de Caen como se não passassem de destroços de guerra. Irradiava satisfação e apontava para o mapa sobre a mesa.
- Teremos o caminho todo livre até Paris. O exército deles não pode regressar a tempo e ninguém nos deterá agora. Nenhum cerco nos retardará logo que as notícias sobre Caen se difundirem. Franziu ligeiramente o sobrolho. - Conheceis o rio Somme, David? Preocupa-me. Podemos ficar encurralados entre ele e o Sena, e não parece haver muitas formas de o atravessar, à excepção de umas quantas pontes. Raios, devia ter-vos pedido que fizésseis também este mapa. Os vossos são bem melhores.
David afastou-se para procurar uma pena de um dos escrivães. Regressou, inclinou-se sobre o mapa e desenhou duas linhas sobre o rio.
- Aqui podeis atravessar o rio a vau, mas a água move-se como uma maré, por isso deveis atravessar quando estiver baixa.
- Esplêndido - disse Eduardo esfregando as mãos de contente.
- Temos o condestável e o camareiro, sabíeis? vou enviá-los com os outros reféns rio abaixo amanhã pela manhã, junto com os espólios. Há navios repletos deles. A propósito, onde estão aquelas armas?
- Aqui perto na cidade de Bayeaux.
- Excelente. Iremos para lá de seguida.
- O meu homem virá e mostrar-vos-á a localização delas.
- Não sereis vós a fazê-lo? Deveis juntar-vos a nós. Esta será uma campanha gloriosa.
- A minha missão está terminada. Gostaria de regressar a Londres com a minha esposa.
Eduardo observou-o, e uma expressão diferente substituiu o seu contentamento.
- Sacrificastes muito para me permanecerdes leal, David. Não esqueço essas coisas. Durante os últimos dois dias estive a armar cavaleiros homens que nunca vi antes. Façamos isso agora. Tomai o lugar assegurado pelo vosso sangue e conquistado pela vossa lealdade.
- Sinto-me honrado pela oferta, mas prefiro que não o façais. Eduardo mostrou-se um tanto aborrecido, mas David sorriu
afavelmente.
- Todavia, preciso de outros favores da vossa parte, se tal for do vosso agrado.
As sobrancelhas do rei ergueram-se.
- Quando regressar a Londres, entregarei ao vosso tesoureiro um terço do preço da licença que me concedestes. O terço seguinte será entregue no prazo de dois anos, e o seguinte no prazo de quatro anos a partir desta data, como primeiro vos sugeri.
- Já saldastes...
- Não. Esse foi o preço da noiva. Desejo converter essa história na verdade, e
peço-vos que jamais revelareis o nosso acordo inicial. Não quero que ela saiba.
- A rapariga conquistou o vosso coração, não é verdade? inquiriu Eduardo com uma gargalhada. - Bem, seria louco se recusasse mais mil libras. Será como solicitais. E os outros favores?
- Peço que vos recordeis da vossa promessa de ajudar a recuperar Harclow, e que auxiliareis o irmão dela da forma que vos aprouver quando chegar a altura.
Eduardo baixou pensativamente o olhar antes de assentir.
- Lady Catherine deve ser afastada de Londres - acrescentou David. - Ela sabe demasiado, e o meu valor para vós, caso o desejardes, estará comprometido por ela.
- Gostaria que tivésseis estado presente quando ela me abordou com a sua história - disse Eduardo com um largo sorriso. - Permiti que ela falasse ininterruptamente. É uma mulher astuta, suspeito. Nunca me interessei muito por mulheres astutas. Já a enviei para Castle Rising para ficar ao serviço da minha mãe. Será mantida em reclusão junto dela. Podem endoidecer-se uma à outra com os seus esquemas. O mercador, Frans, está a desfrutar de umas instalações
menos cómodas até eu regressar e ele ser resgatado. São as desvantagens de se ser uni plebeu.
- Gostaria que eu e Christiana vos acompanhássemos junto com os vossos homens amanhã.
- Obviamente. Providenciar-vos-ei alguns documentos para levardes convosco. Encontrámos documentos contendo planositos para a invasão de Southampton. Ordenarei aos sacerdotes que os leiam a partir do púlpito para que o povo saiba o quanto a Inglaterra esteve perto de avistar tropas francesas no seu solo.
Nessa altura entrou o duque de Warwick, e Eduardo voltou-se para o saudar com um entusiasmo redobrado. David apresentou as despedidas e encaminhou-se para o compartimento onde se encontravam as mulheres. Sieg aguardava junto à porta.
- Ireis até Bayeaux com o rei antes de vos dirigirdes para sul
- explicou David.
- Já. Quereis que lhe mostre onde estão os canhões?
David assentiu. Procurou no seu gibão e retirou alguns pergaminhos dobrados.
- Aqui está o reconhecimento de Theobald e a permissão do rei francês para a minha sucessão de Senlis. Tendes já o anel e o projecto. Esperai até que ele saiba da minha traição. Não estareis a salvo se aparecerdes com essa notícia. Podereis não estar a salvo em qualquer dos casos quando ele vir que a pedra do anel é cor-de-rosa, e que é dele e não do irmão.
- Eu sei o que fazer.
- Voltarás para Londres depois disso? Hoje saldaste, e de que maneira, a dívida que dizes ter para comigo.
- Dificilmente, David. Aqueles mamelucos estavam dispostos a assassinar-me. Se não tivésseis planeado aquela fuga...
- Morvan e eu poderíamos não ter conseguido aguentá-los hoje.
- Já, bem, sou capaz de me juntar a esta guerra durante algum tempo. Quando os Franceses finalmente alcançarem este exército, a batalha será maravilhosa. Avisar-vos-ei se não regressar até ao Outono.
David fitou os documentos que aquela mão robusta segurava.
- Tem cuidado, meu amigo. Não faço ideia de como é que ele irá reagir.
CAPÍTULO 23
As docas encontravam-se apinhadas de homens, carregando os produtos do saque para os navios que esperavam. Os despojos haviam sido listados e avaliados, e iam agora ser transportados para Inglaterra.
David mantinha-se entre os frutos de guerra empilhados num dos embarcadouros. Uma brisa oferecia algum refrigério do fedor a morte que pairava sobre a cidade. Uma caixa aberta de loiça em prata refulgia a dez passos de distância no calor estival.
Ele observava Christiana enquanto esta caminhava pela doca em direcção ao irmão. Podia ver que esta despedida era dolorosa para ela. Havia presenciado muita da crueldade da guerra no dia anterior e sabia que Morvan podia não sobreviver a esta campanha.
David não conseguia evitar ponderar nas implicações disso. Nem sequer tentou fazê-lo. O filho de Senlis era incapaz de ignorar o facto de que era do seu interesse que Morvan jamais regressasse a Inglaterra, pois com o afastamento de Morvan, Christiana converter-se-ia na herdeira de Harclow, e um dia Eduardo reclamaria realmente as terras em nome do seu falecido amigo Hugh Fitzwaryn. Na ausência de Morvan, David de Abyndon, filho bastardo do nobre Theobald de Senlis, tornar-se-ia no senhor de Harclow como marido de Christiana.
Ser um cavaleiro inglês era uma coisa, ser um barão inglês era algo bem diferente.
Mas, na verdade, a terra e o estatuto eram o menos importante. O mercador que havia dentro dele conhecia o valor real de Harclow. Havia lá estado, da mesma forma que estivera em todas as propriedades ao longo da fronteira escocesa. Ele sabia que nas montanhas de Harclow, e noutras terras cúmbrias, havia muitas grutas, grutas primitivas, as quais haviam albergado animais desde o início dos tempos. E só nas grutas de Harclow jazia uma grande quantidade de uma substância rara conhecida como nitrato de potássio, que era essencial para fabricar a pólvora para os canhões.
E havia pago a Eduardo mil libras pelo direito de ser o agente exclusivo da coroa para a compra e venda de nitrato de potássio, e tomara Christiana Fitzwaryn como
esposa de modo a disfarçar o acordo.
Observou os irmãos enlaçarem-se num abraço. A sua mente começou involuntariamente a calcular a tremenda perda de lucros quando pagasse a Morvan pelo conteúdo daquelas
grutas.
Sim, não era mesmo nada do seu interesse que Morvan regressasse. Na verdade, se encarregasse Sieg de garantir que Morvan perecia em combate...
Christiana fitou o irmão com olhos cintilantes. Mesmo à distância, a preocupação dela era palpável.
A tristeza dela tocou-lhe o coração. A sua mente esvaziou-se de tudo para além do desejo de a confortar.
Theobald estava certo. Reconhecer as opções de cada um não era o mesmo que optar por elas. Voltaria as costas a estas oportunidades douradas que a Fortuna lhe havia caprichosamente oferecido.
Fá-lo-ia por Christiana, porque a amava.
Christiana e Morvan mantinham-se de braço dado enquanto homens carregados com espólios se acotovelavam uns aos outros para passarem.
A guerra era exactamente isto: lucro, na sua forma mais primitiva. Toda aquela conversa do cavalheirismo e honra parecia-lhe, hoje, muito falsa.
- Todas as quintas em Inglaterra terão novos utensílios de cozinha e tecidos - disse Morvan, examinando os navios que avançavam lentamente pela água.
- Algum deles é vosso?
- Não. O meu prémio é a vossa segurança. É o suficiente para mim. - Lançou um olhar a David, que aguardava a cerca de cinquenta passos de distância. - E para o vosso
mercador, penso eu. Pelo menos, desta vez.
- David. O nome dele é David.
- Sim. David.
- Sei que ainda não o aprovais, Morvan, mas ele é um bom homem. Não podeis negar que ele já o provou.
- Possui bondade dentro dele, mas muitas coisas mais. Coisas que não compreendo, mas provou que pode proteger-vos. Posso despedir-me de vós hoje com uma mente tranquila, até mesmo com um coração tranquilo.
- Não será uma despedida assim tão longa. Esta guerra não pode continuar quando o Inverno se fizer sentir.
Ele desviou a atenção do navio para a fitar.
- Seja qual for a sua duração, penso que não nos voltaremos a ver durante muitos meses. Saber que estais em segurança e que tendes um lar permite-me abandonar a corte sem preocupações. Posso não regressar com o exército. Penso que partirei em busca de aventuras quando esta campanha terminar.
O ânimo de Christiana havia sido abalado pela destruição de Caen, e agora uma nova tristeza se abatia dentro dela.
- Rezo para que mudeis de ideias - disse, beijando-o. - O meu lugar junto dele não diminui o meu amor por vós. Se deveis procurar aventura, que seja por pouco tempo. E a minha casa é a vossa casa. Por favor, acreditai nisso.
- Não será por muito tempo. Mas vós encontrastes o vosso destino, Christiana, e agora chegou a altura de eu encontrar o meu.
Incitou-a a afastar-se e sorriu-lhe.
- Devo partir agora, tenho de cumprir os meus deveres para com Eduardo. Não choreis, irmã. Esta despedida não é para sempre. Ide ao encontro do vosso marido.
Morvan afastou-se e, em breve, perdeu-se na multidão. Ela continuou a olhar, com a esperança de voltar a ver os cabelos negros mais uma vez, rezando para que as suas palavras fossem verdadeiras e que aquela não fosse a última vez que ouvia a voz dele.
David surgiu por detrás dela. Christiana sentiu a presença dele e o conforto dos seus braços a rodeá-la, estreitando-a junto ao seu corpo.
- Amo-vos - disse ele.
Era mesmo dele saber que ela necessitava de escutar essas palavras naquele momento. Mas a verdade é que aqueles olhos azuis haviam sempre visto o seu coração. Voltou-se para ele e para o santuário que aquela declaração oferecia.
- Fico preocupada com ele - disse.
- Ele é hábil e enérgico, Christiana. E nas batalhas não procuram eliminar cavaleiros, mas capturá-los para se pedir um resgate.
- Sim. Mas eu conheço o valor do resgate de um cavaleiro e não há um pai para o pagar. Poderá viver toda a sua vida no antro de uma cela francesa se Eduardo falhar.
- Se ele for capturado, eu tratarei da sua libertação.
Ela fitou-o nos olhos e soube que aquilo era verdade. Quer fosse através de dinheiro ou armas, ele fá-lo-ia por ela.
As imagens horríveis do dia anterior invadiram a sua mente. O brilho do amor e dos cuidados que ele lhe oferecia dissiparam o nevoeiro da melancolia que se havia adensado com a partida de Morvan.
- Onde está Sieg? Ele regressa connosco?
- Decidiu unir-se a esta guerra. Faz parte da sua natureza apreciar coisas do género.
- Mas em primeiro lugar, ele foi ao encontro do vosso pai, não é verdade? Pedistes-lhe que lhe restituísse os documentos, não foi? A imagem da vossa mãe havia desaparecido do livro no vosso gabinete. Também lhe enviastes isso, de modo a que ele saiba quem vós realmente sois e por que motivo fizestes isto.
Aquilo surpreendeu-o. O sorriso dele exibiu espanto. E admiração.
- Estais a tornar-vos perigosamente astuta, querida.
- Então, quanto tempo pensais que teremos?
- Estarei em Inglaterra, e por isso ele não poderá fazer-me mal.
- Claro que pode, Mas não é a isso que me refiro. Quanto tempo pensais que o comte ainda viverá? Quanto tempo falta até Senlis ser vossa?
Desta vez David não ficou apenas surpreendido, mas assombrado. Isso, em contrapartida, abismou-a. Ele não havia considerado essa possibilidade. Ele não havia realmente previsto a forma como isto iria terminar.
- Ele é um nobre, David, e o último de uma antiga linhagem. Nisso eu conheço-o melhor do que vós. Ele não pretende que a linhagem termine assim e que as terras sejam devolvidas à coroa. Homens como ele farão de tudo para se assegurarem de que têm um herdeiro. Apesar do que fizestes, não esquecerá que sois tudo o que lhe resta logo que venha a saber a verdade.
David permaneceu imóvel enquanto absorvia aquelas palavras.
- Então, quanto tempo pensais que teremos?
- Ele deve ter uns cinquenta e cinco anos. Se estiverdes certa, e eu penso que estais a subestimá-lo, ainda faltará muito tempo para que eu volte a ter essa opção
de novo.
Ele pronunciou aquelas palavras de ânimo leve, mas ela notou uma mudança nele. Sentiu que as suas emoções começaram a agitar-se. Conhecia-o agora bastante bem e
reconhecia o drama privado que a sua alma controlava e continha.
Ele vira que ela estava certa, e que, afinal, Senlis podia um dia vir a ser dele. Começara de novo a esperar. Ele era bom a esperar.
Ela esticou-se para lhe acariciar o rosto.
- Adoro a nossa vida, e não me importo que ainda demore um pouco. E amo-vos. Agradeço a Deus pelo nosso amor, David. Há beleza e bondade nele, e em vós, sempre à
minha espera.
- Qualquer bondade que vejais em mim é meramente um reflexo de vós, minha menina. Haveis-me convertido numa pessoa melhor do que aquela que eu nasci para ser.
- Isso não é verdade. Para um homem que vê com tanta clareza como vós, há partes de vós mesmo que não conheceis muito bem.
- Partes que eu jamais conheceria se não tivésseis tocado nelas. Ela começou a objectar, mas a intensidade na expressão dele
deteve-a. Talvez ele estivesse certo. Não era verdade que o amor dele lhe ensinara coisas acerca dela que ela não teria descoberto sem ele? Dois homens carregando uma cama passaram por eles, abrindo caminho aos encontrões. O ruído que se fazia sentir no porto intrometeu-se entre eles.
- Talvez o amor seja a única coisa que se interpõe contra tudo o que presenciámos aqui em Caen - disse ela. - É triste.
Ele abanou a cabeça.
- Eu compreendo as trevas que existem nos homens, de uma forma que a vossa inocência jamais o conseguirá, Christiana, e os actos de guerra são os de somenos importância. Acreditai em mim quando vos digo que o amor é um formidável inimigo. Talvez o único inimigo.
Durante um momento, o olhar dele expôs a sua alma tal como na noite do reencontro, e estava tudo ali. As sombras de que ele falava, e o poder do amor para as conter. Sim, Morvan estava certo. Havia bondade nele, mas também outras coisas.
- Então, amemo-nos o melhor que pudermos, David. Construamos uma vida repleta de esperança e luz que nunca esmorece, independentemente do que o mundo nos trouxer. Quero que o nosso amor seja a lareira no centro do nosso lar, seja ele onde for, ardendo de uma forma abrasadora para sempre. Não quero nunca olhar para trás para aquilo que partilhámos hoje aqui e interrogar-me se terá sido uma ilusão que abraçámos no nosso desespero.
- Não foi uma ilusão. O meu coração já era vosso muito antes de eu vos encontrar aqui, e será vosso para sempre. O nosso amor é, e será sempre, tão real quanto os
braços que vos enlaçam. Não sou homem para deixar escapar um bem precioso que tenha tido em meu poder.
Os lábios dele afloraram os dela num beijo lento e exigente, numa agradável lembrança da paixão que haviam encontrado. Ele estreitava-a de tal forma que os seus
corpos se moldavam num só e ostentavam uma imagem de amor entre a ganância que fervilhava nas docas.
Ele voltou-a.
- Partamos agora deste lugar. Vamos para casa.
Alguns homens interromperam o transporte do espólio para observarem os amantes. Ela enfrentou o olhar deles sem receio, e tinha esperança de que aquilo lhes recordasse do verdadeiro valor das coisas.
- Sim, David. Vamos para casa. Levai-me de regresso ao nosso jardim e à nossa cama.
Caminharam pelo embarcadouro lado a lado, sem nenhum prémio nos braços para além do amor que os unia.
Madeline Hunter
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