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Junho de 1851
Hampshire, Inglaterra
Kev Merripen não ficou surpreso com os sinais de má sorte que surgiam à medida que o dia de seu casamento se aproximava. Mas ele estava determinado a ter Win como esposa, independentemente dos obstáculos que precisasse superar.
– Nada impedirá esse casamento – disse a ela ao entrar no quarto dos dois na noite anterior à da celebração. – Eu vou me casar com você mesmo se cair um raio na igreja. Eu vou me casar com você mesmo se toda a Stony Cross for inundada, se o pastor estiver embriagado ou se houver um estouro de animais no meio da cerimônia.
Sorrindo com um olhar examinador, Win acendeu a luz e foi até ele de camisola.
– Você está achando que algo vai dar errado?
– É claro. É um casamento da família Hathaway.
Apesar de descontente, Kev sentiu os batimentos acelerarem, transformando-se em um clamor intenso, conforme Win se aproximava. Ela parecia um anjo, o corpo esguio estava envolto em renda branca e babados de seda, e os cabelos loiro-claros caíam como ondas soltas e cintilantes. Ele a adorava com uma intensidade que beirava a idolatria... e ainda assim ele a via como mulher em todos os aspectos. Sua mulher. Algo nela sempre conseguira passar pelas defesas dele, chegando à sua alma.
Envolvendo o pescoço do noivo com as mãos, Win deixou os próprios dedos brincarem suavemente com o cabelo aparado na nuca dele. Ela pressionou o corpo junto ao de Kev, moldando-o gentilmente a suas curvas femininas.
– Qual é o problema? – ela sussurrou.
Ele deixou os lábios roçarem nas mechas brilhantes de cabelo de Win.
– Beatrix encontrou uma coruja ferida pela manhã e a trouxe para casa.
– Coitadinha. Se alguém é capaz de fazer a coruja se sentir melhor, essa pessoa é Beatrix.
– Você não está entendendo – Kev disse, sorrindo de maneira relutante. – Corujas dão azar.
– Eu não acredito em azar. – Na ponta dos pés, ela roçou a ponta do nariz no dele, de brincadeira.
Kev sentiu-se compelido a argumentar:
– Também acabei vendo seu vestido de casamento enquanto Amelia costurava alguma coisa na saleta.
– Sim, mas eu não estava usando o vestido.
– Ainda assim dá azar – ele insistiu. – Depois a ordenhadora recitou um poema gadje sobre o melhor dia para se casar. Sábado não é um deles. – Gadje era o termo que os ciganos usavam para se referir a quem não era cigano.
– Sim, conheço o poema. Segunda, sanidade; terça, prosperidade; quarta é o melhor dia de todos; quinta traz aflições; sexta, perdas; e sábado, só azar.
Kev franziu a testa.
– Você conhecia esse poema, e mesmo assim escolheu um sábado para o casamento?
– No anuário estava escrito que seria um bom dia – Win protestou. – Além disso, não achei que você daria algum crédito a uma superstição gadje.
– Quando se trata do nosso casamento, eu dou!
Ela se atreveu a rir.
– Você é supersticioso demais – disse e ficou parada ao lado da cama. Lançando-lhe um olhar provocador, desamarrou a faixa da camisola e começou a abrir a fileira de pequenos botões na parte da frente. – Eu já sou sua, Kev. Não importa o que possa dar errado no casamento... a cerimônia é uma mera formalidade. Nós fizemos nossos votos e os consumamos... ou apenas imaginei que você me tomou nessa mesma cama há não muito tempo?
A lembrança chamou a atenção de Kev, exatamente como ela pretendia.
– Você não protestou – ele observou, vendo-a abrir mais um botãozinho, depois outro. Ficou instantaneamente excitado ao vislumbrar o seio dela.
– É claro que não. Estava tentando ser atacada por você havia anos.
– Sempre desejei você. – A voz dele era grave e baixa.
– Eu sabia. Mas você era muito teimoso. – Pouco a pouco, ela continuou abrindo a frente da camisola, revelando a pele macia e pálida.
Quando Win viu a reação dele à exposição, uma ponta de satisfação transpareceu em seus olhos antes que ela pudesse ocultá-la.
Kev sabia muito bem que Win lidava com ele com habilidade, a seu próprio modo suave e gentil. Sendo cigano, ele provavelmente deveria se ressentir disso. Mas ele estava encantado demais pela sedução acanhada dela para se opor. Ele foi na direção de Win, estendendo o braço para ajudar a tirar a renda e a seda de seus ombros.
– Em meu coração, você já é minha mulher – ele disse. – Mas não ficarei em paz até ser legalmente minha. Nenhum homem jamais ficou tão ansioso pelo dia do próprio casamento. – Ele baixou um pouco os olhos ao sentir a boca carinhosa dela na lateral de seu pescoço.
– Eu estou ansiosa é pela noite de núpcias – Win sussurrou.
A alegria inflou o peito de Kev.
– Por quê? Você acha que tenho algo fora do comum planejado? – Um sorrisinho tomou conta de seus lábios quando ele a sentiu acenando positivamente junto a seu pescoço. – Talvez eu tenha. Há coisas que ainda não mostrei a você.
Win se afastou e arregalou os olhos, surpresa. Ele fitou os olhos dela, sorrindo de leve ao ver o rosto da noiva corar.
– Não fizemos de tudo? – ela perguntou.
Kev fez que não.
Ela ficou ainda mais corada e soltou uma gargalhada desconcertada.
– Bem, agora estou irritada. Eu estava me sentindo muito mundana e experiente, e você vem me dizer que ainda sou uma novata?
Ele continuou sorrindo.
– Pretendo ensinar o que falta quando estiver pronta.
O momento foi delicioso. O silêncio entre eles era quente e provocante, os hálitos se misturavam, o corpo nu dela entrelaçava-se com cuidado ao corpo vestido dele.
– Ensine agora – ela sussurrou.
– Está me dando ordens? – Kev a repreendeu, com brilho nos olhos escuros. – Uma esposa cigana deve aprender a obedecer ao marido. Talvez eu devesse ter mencionado antes... Os ciganos têm um costume especial para a noite de núpcias.
– Eles têm? – perguntou, surpresa, enquanto reagia à mão quente que deslizava pelas curvas de seu traseiro.
Ele assentiu.
– O marido pega um dos calçados da esposa e o coloca no chão, do lado dele da cama.
– Por quê?
Ele apertou o traseiro dela com firmeza.
– Para que ela saiba quem manda.
Win olhou para ele com um sorriso jovial.
– É o que veremos. Tenho muito apreço pelos meus calçados e não vou cedê-los tão facilmente.
Ele gentilmente roçou sua boca na dela e a saboreou com a ponta da língua.
– Você vai ceder.
Win se afastou com um riso abafado. Apoiando-se na beirada do colchão, ela observou, fascinada, Kev tirando a camisa. Seu olhar passeou pelo torso musculoso dele, pelo brilho de seu peito liso, sem pelos. A respiração dela acelerou de excitação quando ele se aproximou.
Segurando com uma das mãos os longos cabelos de Win, Kev puxou com cuidado a cabeça dela para trás, fazendo sua boca se abrir. E arrastou os lábios ao longo do pescoço dela, usando a língua, enquanto colocava a outra mão entre suas coxas. Ele a acariciou, provocando-a, até conseguir enfiar dois dedos com facilidade. Sua boca cobriu a dela, e ele introduziu a língua profundamente, fazendo a noiva estremecer de excitação com as penetrações simultâneas.
– Kev – ela disse em um suspiro instável, agarrando o pescoço do noivo. – Me ame.
– Eu amo – ele sussurrou, com os dedos dentro dela, incitando-a. – Você é minha alma gêmea. Soube na primeira vez em que a vi.
– Eu também – ela disse, estremecendo.
– Você nunca saiu de meus pensamentos... Desejo-a para sempre...
Interrompendo o toque suave, ele a deitou na cama. Ao lado dela, acariciou a parte da frente de seu corpo com a palma da mão, a ponta dos dedos sentindo cada agitação dos nervos da amada. Curvando-se sobre seus seios, levou a língua ao bico rosado, enquanto movia a mão sobre Win por leves caminhos eróticos.
Ela se arqueou para cima sem controle quando a boca dele passou por seu corpo, por locais que ela nem imaginava que poderia produzir tais sensações. Ele a preencheu intensamente, acompanhando seu pulso e seu calor, passeando por cada doce ondulação. E chegou ao ápice com ela, glorificando-se pelo prazer compartilhado... rendendo-se à própria paixão infinita por Win.
CAPÍTULO DOIS
– Mantenha-a imóvel – Cam murmurou a Beatrix enquanto se debruçavam sobre a coruja ferida. – Se ela se soltar, vai se machucar, e provavelmente vai nos machucar também. Essas garras são como facas.
– Ela quer segurar alguma coisa – Beatrix disse em voz baixa, olhando para as patas da ave. – Você pode nos arrumar um graveto, Amelia?
– Certamente.
Amelia saiu apressada da saleta para a cozinha, encontrou uma colher de pau e a levou até onde estavam seu marido e sua irmã. Eles estavam agachados sobre o corpo de uma coruja-do-mato. Beatrix havia encontrado a ave ferida durante um de seus passeios pelo bosque. As asas da coruja estavam quebradas e Cam tentava colocá-las no lugar com uma tala.
Beatrix havia enrolado a corujinha rechonchuda em um cobertor. Desviando o olhar preocupado da ave, pegou a colher de pau que Amelia havia levado e pressionou com cuidado o cabo junto às garras da coruja. A colher foi imediatamente aceita e agarrada. Amelia podia jurar que a coruja realmente parecia aliviada.
Não pela primeira vez, ela ficou maravilhada com o jeito que Beatrix tinha com os animais, embora ainda não soubesse se aquilo era uma bênção ou uma maldição. Deixando a preocupação de lado por um instante, Amelia pegou uma cadeira e ficou observando seu marido.
Três anos antes, Amelia havia chocado toda a família – e a si própria – ao se casar com Cam Rohan, um cigano de Londres, depois de apenas algumas semanas de relacionamento. Até então, ela se orgulhava de ser uma mulher sensata que nunca tinha entendido como alguém chegava a “se apaixonar loucamente”.
Mas Cam a fez entender isso. Belo, exótico, sensual, ele não era o tipo de homem com quem todos esperavam que Amelia se casasse. Na verdade, Amelia nem sequer esperava se casar. Depois da morte de seus pais, ela havia se resignado a cuidar dos quatro irmãos: Leo, Win, Poppy e Beatrix. Mas então Cam apareceu em sua vida, compreendendo seus sonhos secretos e suas necessidades com uma perspicácia irritante. Ele havia seduzido sua mente, seu corpo e sua alma.
E havia ficado, sob a justificativa de que de vez em quando um cigano encontra seu atchentan, seu local de parada. Para Cam, amor e família tinham muito mais valor do que sua liberdade. Pouco a pouco, grande parte do peso de cuidar dos Hathaways foi passando para os ombros fortes dele.
Enquanto Cam cuidava da coruja, colocando cuidadosamente uma tala em volta da asa, uma brisa entrou pelas janelas e soprou os cachos pretos e brilhosos de sua testa. Amelia olhou para ele de maneira possessiva, apreciando a forma com que sua camisa de linho caía sobre as linhas marcadas de suas costas. Ele era um homem ridiculamente bonito, com olhos cor de âmbar e sorriso radiante. E como era paciente! As mãos hábeis e cuidadosas juntavam a asa imobilizada ao corpo da coruja.
A ave irritava-se e protestava, piando alto.
Cam disse algo em romani, palavras suaves e tranquilas, e a coruja se acalmou.
– Por que não a leva para o celeiro agora? – Cam sugeriu a Beatrix. – Ela deve estar querendo descansar na caixa.
– Devo dar água para ela?
– Pode tentar, mas ela não vai querer beber muita. Corujas costumam retirar o líquido que consomem de suas presas. O que me faz me lembrar de uma coisa: é melhor você encontrar alguns camundongos para ela.
Beatrix fez uma careta, odiando o fato de precisar alimentar a ave com camundongos vivos.
– Vou ver se consigo fazer Dodger pegar alguns. – Ela colocou uma luva de couro emprestada de Merripen e, juntos, Cam e ela desenrolaram a coruja e a fizeram se empoleirar no braço de Beatrix.
– Beatrix, antes de ir, posso falar com você? – perguntou Amelia.
– Eu fiz alguma coisa? – Beatrix lançou-lhe um olhar alegre e confuso, com os olhos azuis quase tão redondos quanto os da coruja.
Ela era uma formidável menina de 19 anos, não era dotada de uma beleza clássica como a de Win e de Poppy, mas tinha uma graça doce e vivaz, além de um apelo cativante que encantava a todos. O mais irresistível de tudo é que ela tinha um sorriso que surgia do nada, que refletia uma irreverência travessa. Beatrix era radiante, desprendida e tão curiosa quanto Dodger, seu furão de estimação.
Que tipo de homem seria ideal para Beatrix? Um jovem, talvez. Alguém que fizesse jus à sua natureza exuberante. Ou será que ficaria melhor com alguém mais velho, que refreasse sua impulsividade e a protegesse?
Ironicamente, durante as duas temporadas de eventos sociais que Beatrix e Poppy haviam passado em Londres, Beatrix havia sido infinitamente mais requisitada. E não fazia a menor questão de encontrar alguém para se casar. Enquanto a pobre Poppy, que desejava desesperadamente formar uma família, tivera pouco sucesso até agora.
– Acho que é porque Poppy fica nervosa perto dos cavalheiros e começa a falar muito rápido – Beatrix confidenciou uma vez para Amelia.
– Mas você não fica nervosa perto deles? – Amelia perguntou.
– Bem, não. Simplesmente faço perguntas para que continuem falando, e eles parecem satisfeitos com isso.
Trazendo os pensamentos de volta ao presente, Amelia sorriu para a irmã mais nova, que estava toda desarrumada, como de costume. A barra da saia de Beatrix estava suja de lama, seus cabelos castanho-escuros soltavam-se dos grampos e havia uma mancha na ponta de seu adorável nariz.
– Não, você não fez nada – Amelia disse. – Só queria mencionar que grande parte da aristocracia local comparecerá ao casamento de Win na semana que vem. – Um sorriso irônico tomou conta de seu rosto quando ela acrescentou: – E certos amigos bem-intencionados me deram a entender que alguns cavalheiros qualificados estarão presentes.
A expressão de Beatrix foi similar àquela que fez à menção do camundongo.
– Poppy pode ficar com eles. Ela tem muito mais vontade de se casar do que eu.
– Sim, mas... Bea... você também está na idade apropriada, e... – Amelia fez uma pausa, esforçando-se para encontrar palavras. – Estou pedindo para se manter aberta à possibilidade de gostar de um desses cavalheiros.
– Você quer me casar? – Beatrix perguntou, sem rodeios.
– Não, não é isso... é que vejo quanto fica ocupada com seus animais. Está empenhada em ajudá-los e a cuidar deles, e não pensa em todo o resto. Mas as oportunidades que tem agora não estarão disponíveis para sempre. As jovens que passam mais de três temporadas sociais em Londres são consideradas...
– Encalhadas? – Beatrix sugeriu.
A coruja, com a cara redonda aparentando ligeira preocupação, olhava com impaciência para Beatrix e Amelia.
Amelia fez cara feia.
– Detesto essa palavra. Como se garotas solteiras fossem livros que ninguém quer ler.
Beatrix deu de ombros.
– Prefiro ficar encalhada a me casar com qualquer um dos cavalheiros que conheci até agora. – Ela parecia genuinamente aflita. – Desculpe, Amelia. Sei que está me dando um conselho prático, como sempre. Eu até tentei gostar dos cavalheiros que conheci, mas não achei nenhum muito interessante ou atraente.
– Talvez algum deles tenha qualidades ocultas – Amelia disse, abrindo espaço para Cam se sentar a seu lado. – Fico me perguntando, Bea, se você não poderia tentar ver os cavalheiros com o mesmo interesse e a mesma empatia que sente pelos animais. Em certos aspectos, eles não são assim tão diferentes. O que quero dizer é... – Ela parou e fez cara feia para Cam, que não conseguia conter o riso. – Ah, fique quieto, você entendeu o que estou querendo dizer!
Beatrix estava tentando, sem sucesso, esconder um sorriso.
– Eu entendo, Amelia. Prometo que, de agora em diante, vou pensar nos cavalheiros como novos espécimes interessantes.
Depois que a irmã mais nova saiu, Amelia enterrou o rosto nas mãos. Um lamento escapou por entre os dedos.
– O que vamos fazer com ela?
Cam sorriu e a puxou para mais perto. Ele falou com a voz calma, não muito diferente daquela utilizada com a coruja-do-mato:
– Tire isso da cabeça, monisha. Nenhum homem comum servirá para Beatrix. Teremos que deixar que ele apareça naturalmente.
– Está demorando demais.
– Ela só tem 19 anos, meu amor.
– Eu sei disso. Mas ela precisa de alguém, Cam. De alguém só para ela. Existe uma inquietação dentro dela, uma espécie de solidão... seja o que for, faz com que queira se afastar da família. Ela passa muito tempo vagando sozinha no bosque. Mesmo depois das aulas de etiqueta da Srta. Mark, Beatrix é apenas meio civilizada.
Cam recuou um pouco de modo a olhar para ela, observando-a fixamente e com consideração.
– Obrigá-la a se casar com a pessoa errada não vai resolver o problema.
– Não, e eu certamente não quero isso. Mas se o homem certo aparecer, Beatrix estará tão ocupada aparando cascos de lhama ou resgatando texugos órfãos que nem vai perceber.
Cam sorriu.
– Ela não tem nenhuma lhama.
– Ainda. – Amelia soltou um suspiro de lamento. – Receio que essa obsessão por animais seja o modo que Beatrix encontrou para evitar risco e dor. Ela não é a mesma desde que nossos pais morreram. Ela era muito nova, e acho que perder os dois tão cedo a afetou mais do que aos outros irmãos. – Percebendo que ele havia ficado em silêncio, ela lhe lançou um olhar ansioso. – O que acha?
– Acho que Beatrix vai encontrar alguém quando chegar a hora. E você está tentando jogar o destino a seu favor; isso nunca dá certo. – Ele alisou os cabelos dela para trás e beijou sua testa. – Relaxe. Deixe sua irmã seguir o próprio caminho.
– Não sou boa em relaxar – Amelia disse, com um sorriso triste. – Sou muito melhor em me preocupar.
Cam colocou a mão protetora sobre a leve curva da barriga dela.
– Não posso permitir isso em sua condição. Suba comigo e verei se posso ajudar.
– Obrigada, mas não preciso cochilar.
– Eu não estava pensando em cochilar.
Olhando para ele, Amelia viu o brilho em seus olhos e ficou corada.
– No meio do dia? – ela perguntou em voz baixa.
Ele deixou escapar uma gargalhada. Levantou-se, puxou-a do sofá e segurou sua mão.
– Quando eu terminar, beija-flor, você não vai se lembrar do que a preocupava.
CAPÍTULO TRÊS
Beatrix manteve a jovem coruja junto ao corpo, acariciando as penas suaves de suas costas. Ela sentiu a pressão das garras da ave contra a proteção de couro. A coruja era leve, frágil e ainda assim cheia de vigor.
– Está tudo bem – falou, com calma. – Eu vou cuidar de você. Você vai melhorar logo, assim poderá voar de volta para sua família. Minha irmã está certa, sabe... – disse enquanto levava a coruja para o celeiro. – Eu preciso encontrar um companheiro. Mas já passei por duas temporadas de eventos sociais e conheci inúmeros homens. E todos eles são muito sem graça e sem vida, e a maior parte passa os dias à toa, esperando alguém morrer para que possa herdar seus bens. Eles se orgulham de ser sofisticados, o que significa que dizem o contrário do que realmente diriam, e então você deve elogiá-los por serem inteligentes. Rá. Pelo menos os machos de coruja levam comida quando vão cortejar as fêmeas.
A ave produziu um som seco e baixo, e seu corpo todo vibrou.
– Eu concordo – Beatrix disse. – É preciso aproveitar o melhor do que nos é oferecido. – Um sorriso melancólico surgiu em seus lábios e ela curvou os longos dedos de forma a proteger aquele pequeno corpo atarracado. – Mas não consigo deixar de ter esperanças de encontrar alguém que veja o mundo como eu. Essas regras são muito tolas e sem sentido. Modos, espartilho, fofoca, aspargo, garfos... e, ó céus, conversas educadas. Se não posso falar sobre algo real, prefiro nem falar.
Ela parou enquanto a coruja tagarelava.
– Que tipo de homem, você está perguntando? Não tenho a menor ideia. Gostaria de me casar com um cigano, mas é muito difícil fazer com que fiquem em um único lugar. E não quero vagar pelo mundo. Gosto de Hampshire. Sou um tanto territorial, na verdade.
Chegando ao celeiro, um grande prédio de calcário, ela foi até o palheiro superior. Era um prédio de calcário de dois andares construído em uma encosta, de modo que o primeiro e o segundo pisos eram acessíveis sem a necessidade de escadas. No andar de baixo, havia a área central de separação de grãos, uma fileira de currais e galpões embutidos para carroças e equipamentos.
Beatrix foi para um canto do palheiro e acomodou a coruja em uma caixa que lhe servia de ninho.
– Pronto – falou com carinho. – Um lugar seco e seguro para você descansar. Daqui a pouco levarei meu furão Dodger ao galpão e pegaremos seu jantar.
A luz do sol passava pelas ripas da veneziana de uma janela, lançando faixas amarelas e brilhantes pelo palheiro. Sentada ao lado da caixa, Beatrix observou a coruja limpando as próprias penas.
– Tem alguém esperando por você? – perguntou. – Alguém que esteja se perguntando onde você foi parar?
Apoiando a cabeça na parede, Beatrix fechou os olhos e respirou o cheiro reconfortante do feno e os odores de gado e celeiro.
– O problema é que não vou encontrar o homem que quero em uma sala de estar abafada de Londres. Eu quero...
Mas ela ficou em silêncio, incapaz de confessar ou descrever seu desejo intenso, o sentimento enjaulado que só seria libertado por alguém cuja força de vontade se igualasse à dela. Ela queria ser amada... ser arrebatada, desafiada, surpreendida. E não havia encontrado ninguém como seu amante imaginário na sucessão de esnobes passivos da cidade que havia conhecido durante as temporadas de eventos sociais.
Pegando uma haste de feno, ela ficou mordiscando a ponta e pensando, sentindo sua doçura seca.
– É possível que eu já o tenha encontrado, mas não tenha notado? Não consigo imaginar uma coisa dessas. Tenho certeza de que ele não é o tipo de homem que alguém poderia...
– Senhorita Beatrix! – Era a voz de um jovem rapaz, vindo da área aberta abaixo. – Senhorita Beatrix, está aí em cima?
Beatrix ergueu as sobrancelhas.
– Com licença – ela disse à coruja e foi espiar na beirada do palheiro. – Thomas! – ela exclamou ao ver um dos criados, um garoto de 11 anos. Ele morava na vila com os pais e ia trabalhar em Ramsay House todos os dias depois da escola. Criança agitada e de olhos brilhantes, ele recebia tarefas como polir botas ou a prataria, ou auxiliar os lacaios em seu trabalho. – Como você está?
Seu rosto redondo demonstrava aborrecimento.
– Terrível, senhorita.
– O que aconteceu? – Beatrix perguntou, preocupada.
– Acabei de voltar da exposição itinerante de animais de Fulloway na vila. Devia ter guardado meus dois centavos.
Beatrix concordou, franzindo a testa. Em sua opinião, essas exposições itinerantes eram criminosas em sua opinião. Animais exóticos, como tigres, leões e zebras, eram conduzidos de uma cidade a outra em chamados “vagões de feras” e mostrados ao público junto com bandas, malabaristas e outras atrações. Os animais sempre pareciam desanimados e maltratados, o que deixava Beatrix extremamente indignada. Era desumano tirar um animal de seu habitat natural e confiná-lo em uma jaula para ser observado pelo resto da vida.
– Não suporto essas exposições – disse Beatrix. – E também não gosto muito de zoológicos.
– Eu fui lá porque anunciaram Bettina, uma elefanta dançarina – afirmou Thomas. – Mas ela caiu morta quando chegaram aqui. Eles a obrigaram a andar demais, e muito rápido, segundo alguém contou. Então colocaram uma placa que dizia: “Elefante morto em exposição”, mostraram aquilo para nós e deixaram algumas pessoas cutucarem a carcaça com gravetos.
– Não preciso ouvir mais nada – disse Beatrix. – Isso é terrível, Thomas.
– Só sobrou um elefante, um menorzinho, mas ele não dança nem se levanta – o garoto acrescentou. – A banda toca música e os treinadores o espetam com um gancho de metal, mas ele só fica lá parado, gemendo.
– Ele certamente está de luto pela amiga – Beatrix disse em voz baixa.
– Disseram que é filho da elefanta que morreu.
Um sentimento de tristeza tomou conta de Beatrix, até ela mal conseguir respirar por conta da emoção. Fechando os olhos, pensou: você não pode salvar todos eles. Além disso, não podia se transformar em uma pessoa mais excêntrica do que já era.
Chega de infortúnios. Chega de arranhões.
– Sei que tem jeito com animais, Srta. Beatrix – Thomas disse. – Talvez pudesse ir até lá e fazer algo pelo elefante. Se ele se mexesse só um pouquinho, de repente eles parariam de espetá-lo com aquele gancho de metal.
– Eu não sei nada sobre elefantes – Beatrix disse. – Não posso fazer nada. Tenho certeza de que ele vai se recuperar sozinho, Thomas.
– Certo, senhorita. – Nitidamente decepcionado, o garoto foi cuidar de suas tarefas.
Beatrix resmungou e voltou a se aproximar da caixa.
– Não posso ajudá-lo – ela disse, olhando para a coruja que cochilava. – Não posso.
Mas ela não conseguia parar de pensar no jovem elefante caído de desespero, enquanto as pessoas se entretinham observando sua mãe morta ao lado.
Minha nossa, ela sabia como era perder a mãe.
O campo da vila tinha sido temporariamente fechado para a exposição de animais de Fulloway, e havia pelo menos quinze grandes trailers dispostos em um retângulo. Uma cerca claramente frágil fora construída ao norte da área delimitada, e placas e cartazes decorativos haviam sido colocados na frente para atrair potenciais compradores de ingressos. Também com esse intuito, uma banda tocava polcas e cantigas alegres sobre uma plataforma de madeira, enquanto um trio de acrobatas executava um número de equilíbrio.
Beatrix olhou com indiferença para um dos trailers amarelos, no qual havia sido pintado o retrato de George Fulloway, o organizador da exposição de animais. Fulloway era um homem de rosto avermelhado, com bochechas que pendiam como alforjes, uma barbicha branca e um bigode encaracolado que parecia puxar seu lábio superior para cima quando ele falava.
– Ele deve amar animais – Thomas comentou – para colecionar tantos assim.
Vendo as jaulas imundas dos macacos, Beatrix sorriu mal-humorada.
– Só me pergunto se está pensando no bem deles. Onde viu o pequeno elefante, Thomas?
– No redil que fica depois desses trailers. A cerca é muito frágil... não o seguraria se ele quisesse ir para algum lugar.
– Para onde ele iria? – Beatrix perguntou de maneira retórica.
Com cuidado, eles deram a volta no perímetro da cerca e viram o corpanzil triste de um elefante no chão. Ele era menor do que Beatrix esperava, certamente não tinha mais de um metro e meio. A pele era cinza e esparsamente coberta de pelos, as orelhas eram relativamente pequenas. Um elefante indiano, mais manso do que a espécie africana, segundo dizem.
Os olhos do animal estavam meio abertos e ele olhava para Beatrix enquanto ela se aproximava da cerca. Mas nem se mexeu, apenas ficou lá como se estivesse drogado ou doente.
Ou prostrado pelo luto.
– Olá, rapaz – Beatrix o chamou com calma. – Qual é o seu nome?
– Na placa está escrito que é Ollie – Thomas respondeu.
Beatrix se abaixou, olhando para o elefante pela cerca. Pegando uma maçã que havia levado, passou-a por entre as fracas ripas de madeira.
– Isso é para você, Ollie.
O jovem elefante olhou para a fruta com interesse, mas não fez nenhum movimento para pegá-la.
– Veja as cicatrizes na barriga dele – Beatrix mostrou para Thomas. – E os ferimentos recentes em volta do pescoço. Eles o espetaram com o gancho de metal em lugares que não aparecem muito.
– A pele parece bem grossa – Thomas observou. – Talvez ele não sinta.
– Você acha que não? É doloroso quando algo rasga a pele até sangrar, Thomas.
O garoto parecia lamentar. Antes que pudesse responder, no entanto, eles foram interrompidos por uma voz irritada.
– O que estão fazendo? Aposto que é algo errado, não é? Afastem-se desse animal, os dois!
Beatrix se levantou lentamente quando um homem esguio, de traços marcantes, aproximou-se deles de dentro do redil. Ele usava roupas simples e um chapéu de feltro com a parte superior arredondada. Em uma das mãos, segurava um instrumento comprido com um grande gancho de metal na ponta.
– Não pretendíamos fazer mal nenhum – Beatrix disse, tentando parecer conciliatória, mesmo estando tomada por hostilidade ao ver um homem com uma arma se aproximando de um animal indefeso.
– Se querem ver os animais, precisam pagar dois centavos como todo mundo.
– Esse elefante está doente? – Beatrix perguntou.
O homem respondeu com uma risada irônica.
– Não, ele é apenas preguiçoso. – Ele agitou o gancho de metal. – Mas vai demonstrar mais energia quando eu terminar aqui.
– Talvez ele precise de um tempo para se recuperar depois da morte da mãe.
A boca do homem torceu-se em um sorriso.
– Só podia ser mulher. Você acha que um brutamontes idiota desses tem sentimentos? Ollie só está fazendo corpo mole. E, considerando o quanto come, é melhor fazer por merecer! – Ele se aproximou da desanimada criatura, espetando-a com o gancho. – É hora de dançar, Ollie. Vai se apresentar enquanto a banda toca, ou acabo com você.
– Posso falar com ele? – Beatrix perguntou de maneira impulsiva. – Só por um instante?
– Falar com ele? – O pedido rendeu um olhar incrédulo, como se ela fosse maluca. – Quem você pensa que é?
– Ela é a Srta. Hathaway – Thomas respondeu antes que Beatrix tivesse tempo de pedir que ficasse quieto. – Os animais a amam, ela fala a língua deles. Por favor, deixe-a falar com ele, senhor!
O homem começou a rir, balançando a cabeça.
– Você fala elefantês?
– Não, senhor – Beatrix respondeu com dignidade. – Mas eu trato os animais com gentileza e respeito. A maioria responde muito bem a isso. Pode tentar, algum dia.
Ele pareceu não entender a repreensão velada.
– Vá em frente, então. Veja se consegue convencê-lo a fazer seu trabalho. Se não funcionar do seu jeito, vai funcionar do meu.
Beatrix concordou e se abaixou.
– Ollie – ela disse com suavidade. – Pobre Ollie... você precisa acreditar que sou sua amiga. – Estendendo o braço fino entre as ripas, ela apoiou a mão no chão, com a palma virada para cima. – Sei que não está com vontade de comer, dançar nem de fazer essas coisas que eles querem que você faça. Sei que está muito triste. Também perdi minha mãe quando era jovem. E a verdade é que você nunca deixará de sentir falta dela. Mas outras pessoas darão amor para você. Desejarão ajudá-lo. E eu sou uma delas.
Enquanto Beatrix falava, uma tromba curiosa se arrastou até sua mão e tocou a palma com cuidado. A jovem curvou os dedos junto à pele quente e áspera. Depois de um instante, Ollie levou a tromba ao rosto dela, procurando o odor de seu hálito.
– Eu vou ajudar você – Beatrix sussurrou. – Confie em mim. Mas por enquanto, por favor, levante-se e faça o que ele está pedindo.
O elefante pegou a maçã e a enfiou na boca. Mastigando lentamente, sentou-se como se fosse uma criança pequena, com as patas traseiras esticadas.
– Ele está obedecendo – Thomas exclamou com satisfação e maravilhamento.
O homem com o gancho de metal soltou uma gargalhada surpresa.
Ninguém ousava falar, observando Ollie levantar uma pata de cada vez. O animal encarou Beatrix, ficando o mais perto possível da cerca para vê-la com seus expressivos olhos castanhos, de cílios fartos. A tromba passou sobre a cerca, e Beatrix esticou o braço. Com cuidado, ele enrolou a tromba no braço dela, até o cotovelo. Uma espécie de aperto de mão de elefante.
– Já chega – o homem declarou, reafirmando o domínio da situação. – Se querem ver o elefante, podem pagar dois centavos e ir para a entrada com os outros visitantes.
– Nem uma palavra de agradecimento? – Thomas perguntou com indignação. – Se não fosse pela Srta. Hathaway...
– Não faz mal – Beatrix o interrompeu, desenlaçando com cuidado seu braço do elefante com cuidado, tentando ao máximo ignorar seu olhar de apelo enlutado. – Precisamos ir agora. Tchau, Ollie.
Por enquanto, ela acrescentou em voz baixa, e se forçou a ir embora.
CAPÍTULO QUATRO
Uma tempestade de verão tomou conta de Hampshire na noite anterior à do casamento de Win e Merripen, atingindo Stony Cross com chuva e fortes ventos que danificaram casas e derrubaram árvores. Felizmente, pelo que se soube na vila, não houve nenhum ferido e o dia seguinte amanheceu claro e ensolarado.
Win acordou com a vaga lembrança de Kev saindo, em algum momento após a meia-noite, para não arriscar ter o azar de ver a noiva na manhã do casamento. Meu cigano supersticioso, ela pensou com um sorriso sonolento, envolvendo com os braços o travesseiro que ele havia usado.
– Bom dia, querida – disse Amelia com a voz alegre.
– Bom dia. – Win se sentou e bocejou. – É o dia do meu casamento! Pensei que nunca fosse chegar.
– Ah, mas chegou – Amelia disse com ironia, entrando no quarto. Ela estava usando um robe branco com babados e segurava uma xícara de chá. Entregou-a a Win e se sentou com cuidado na beirada da cama.
– Você está acordada há muito tempo? – Win perguntou.
– Há mais ou menos meia hora. E tenho algumas notícias para dar.
Win ergueu as sobrancelhas finas.
– Tem alguma coisa a ver com a má sorte com que Kev estava preocupado?
– Para começar, Beatrix acordou resfriada, fungando. Acho que ela deve ter ido para o celeiro durante a tempestade para ver se a coruja estava bem. Trouxe um monte de lama e de água para dentro, e a criada está irritada.
– Pobre Bea – Win disse, preocupada, levando a xícara de chá aos lábios.
– Tem mais. O vigário mandou um menino da vila até aqui hoje de manhã para nos dizer que uma árvore caiu no telhado da igreja e derrubou parte dela. E a chuva molhou o altar e a nave principal.
– Ah, não. – Win franziu a testa. Talvez os pressentimentos de Kev estivessem certos, afinal. – Isso significa que teremos que adiar o casamento?
– Se o noivo não fosse Kev, eu diria que sim. Mas ele está sendo teimoso. Cam e Leo estão conversando com ele lá embaixo.
Ambas ficaram em silêncio por um instante, ouvindo com atenção.
– Não estou ouvindo nenhuma gritaria – disse Win.
– Kev está muito calmo, na verdade. Mas acho que está planejando, veladamente, matar alguém. Ele me pediu para vir ajudá-la a se trocar, disse que vai ter casamento. De algum jeito. Em algum lugar.
– Muito bem. – Sorrindo, Win tomou outro gole de chá. – É melhor não duvidar dele.
Acompanhando o menino de recados até a cidade, Leo avaliou os danos à igreja e falou com o vigário. Assim que voltou a Ramsay House, Leo foi conversar com Cam e Kev. Leo era alto e de olhos azuis, canalha, articulado sob pressão, sempre irreverente. Também era mestre em quebrar regras e passar por cima de regulamentos. Se houvesse algum modo de o casamento ser realizado, Leo descobriria.
– Não há como realizar a cerimônia dentro da igreja – ele relatou a Kev e Cam quando se reuniram na sala principal. – Está uma confusão lá.
– Nós nos casaremos nos degraus da igreja, então – Kev disse.
– Receio que seja impossível. – Leo pareceu pesaroso. – Segundo as instruções da igreja, a cerimônia precisa ser realizada dentro de uma capela ou igreja oficialmente licenciada. E nem o vigário nem o pároco se atrevem a agir contra a lei. As consequências são tão severas que eles podem ser suspensos por três anos. Quando perguntei onde ficava a capela licenciada mais próxima, eles olharam nos registros. Descobriram que, há cerca de cinquenta anos, a capela de nossa propriedade foi licenciada para um casamento da família, mas a licença já expirou.
– Podemos renová-la? – Cam perguntou. – Hoje?
– Perguntei isso. O pároco pareceu achar uma solução aceitável e concordou, contanto que Merripen e Win prometessem solenizar, de maneira privada, o casamento na igreja assim que o telhado for consertado.
– Mas o casamento será legalizado a partir de hoje? – Kev indagou.
– Sim, legalizado e registrado, contanto que aconteça antes de meio-dia. A igreja não reconhece casamentos que sejam realizados nem mesmo um minuto após esse horário.
– Ótimo – Kev disse de forma sucinta. – Nós nos casaremos hoje de manhã, na capela da propriedade. Pague ao pároco a quantia que ele exigir.
– Só existe um problema nesse plano – Cam disse. – Não temos capela na propriedade. Pelo menos eu nunca vi nenhuma.
Leo ficou pálido.
– Que raios aconteceu com ela?
Ambos olharam para Kev, que havia ficado encarregado da restauração da propriedade nos últimos dois anos. Ele havia derrubado muros, demolido pequenas construções e feito novas adições à casa original.
– O que você fez com a capela, phral? – Cam perguntou, apreensivo, chamando o cunhado de “irmão”.
Kev fez cara feia.
– Ninguém a estava usando, apenas alguns pássaros. Então a transformamos em um espaço para separação de grãos anexo ao celeiro. – Diante do silêncio dos dois, ele disse, na defensiva: – Mas isso não impede nada.
– Quer se casar em um espaço para separação de grãos? – Leo perguntou, sem conseguir acreditar. – Entre latas de comida de animais?
– Eu quero me casar em qualquer lugar – Kev disse. – Esse espaço é tão bom quanto qualquer outro.
Leo pareceu sarcástico.
– É melhor alguém perguntar para Win se ela está disposta a se casar em uma ex-capela que agora se resume a um galpão anexo ao celeiro. Por mais tolerante que minha irmã seja, até ela tem limites.
– Estou disposta! – A voz de Win veio da escadaria.
Cam reprimiu um sorriso.
Leo balançou a cabeça:
– É um celeiro, Win.
– Se o Nosso Senhor não se importou em nascer em um estábulo – ela respondeu com satisfação –, eu certamente não terei objeções em me casar em um celeiro.
Levantando levemente o olhar para o céu, Leo murmurou:
– Vou cuidar da taxa de renovação. Mal posso esperar para ver a cara do vigário quando ele descobrir que transformamos a capela em uma área para separação de grãos. Isso não reflete de maneira muito positiva a religiosidade dessa família, se me permite dizer.
– Você está preocupado em parecer devoto? – Kev perguntou.
– Ainda não. Continuo no processo de seguir maus caminhos. Mas quando finalmente quiser me arrepender, não terei uma maldita capela para isso.
– Pode se arrepender em nosso espaço para separação de grãos oficialmente licenciado – respondeu Cam, vestindo um casaco. Ele foi até a porta da frente, abriu-a e parou quando sons animadores de violões e vozes ciganas preencheram o local.
Juntando-se a ele na porta, Kev viu pelo menos três dúzias de seus parentes ciganos reunidos na frente da casa, usando roupas vistosas e coloridas, cantando e tocando.
– Eles deviam estar viajando – falou, perplexo. – O que estão fazendo aqui?
Cam esfregou a testa como se quisesse eliminar uma dor de cabeça inconveniente.
– Parece que eles vieram nos ajudar a celebrar seu casamento.
– Não preciso desse tipo de ajuda – disse Kev.
Leo apareceu atrás deles.
– Bem – ele observou –, a boa notícia é que quase mais nada pode dar errado agora.
Graças aos esforços e à agilidade de Amelia, Poppy, Beatrix e a dama de companhia delas, a Srta. Marks, o espaço foi enfeitado com flores e laços brancos, e uma quantidade generosa de pétalas de rosas foi espalhada sobre o piso de madeira.
Depois de uma, digamos assim, “tarifa de renovação” bem cara, o vigário não apresentou objeções em realizar a cerimônia na capela improvisada.
– Contanto que seja realizado até meio-dia – reiterou à família –, o casamento será oficializado hoje.
Precisamente às onze e meia, Kev aguardava com Cam do outro lado do espaço, que havia sido modificado com portas largas de ambos os lados para facilitar o transporte de grãos e utensílios, tal como a passagem de carroças. Música romântica tocada no violão vinha de fora, enquanto uma mistura eclética de convidados se juntava em todos os espaços disponíveis. Um corredor foi deixado livre para a noiva.
Parada na frente do espaço com a família, Beatrix encobriu um espirro com um lenço. Enquanto olhava para Merripen, sentiu uma onda avassaladora de felicidade por ele. Kev e Win se amavam havia muito tempo, e superaram muitos obstáculos aparentemente impossíveis de serem vencidos. Muitas pessoas não davam o devido valor ao casamento, mas para Merripen era uma recompensa por anos de sacrifício.
Win entrou na igreja de braço dado com Leo e prosseguiu pelo galpão. Estava imaculada e linda, usando um vestido simples de seda tão branca quanto o luar, sobreposto por renda, com o rosto parcialmente encoberto por um véu. Merripen a observava como se ela fosse uma espécie de sonho maravilhoso do qual não quisesse acordar.
Com cuidado, levantou o véu e o colocou para trás, encarando o rosto sorridente de Win. Os olhares que trocaram foram íntimos, confiantes, ardentes... demonstravam devoção, Beatrix se deu conta. O sentimento entre eles parecia lançar um feitiço sobre os convidados.
– Queridos irmãos – começou o vigário –, estamos aqui reunidos diante de Deus e dessa congregação para unir esse homem e essa mulher no sagrado matrimônio...
Beatrix desejou que o vigário se apressasse. Já era quase meio-dia.
– ...Portanto, não deve ser contraído de forma imprudente, superficial ou imoral, para satisfazer os desejos e apetites carnais dos homens, como se fossem feras brutais que não têm entendimento; mas sim de forma reverente e discreta, solene...
Sentindo a chegada de outro espirro, Beatrix enterrou o nariz no lenço rapidamente. Era um desses espirros indecisos... que permaneceu iminente, formigando e coçando, até enfim se acalmar. Beatrix ficou aliviada, porque certamente não queria atrapalhar a cerimônia com um espirro alto.
Então ela viu... uma longa tromba cinzenta surgindo de um vão entre o celeiro e o espaço que ocupavam. Os olhos de Beatrix se arregalaram. Ela não conseguiu mover nenhum músculo nem dizer nada quando a tromba delicadamente alcançou o véu e o adorno de cabeça de Win e os arrancou de sua cabeça.
Algumas arfadas e uns gritos de surpresa vieram da multidão.
Levando a mão à cabeça, Win lançou um olhar confuso na direção do vão. Kev, instintivamente, protegeu-a com o braço. Juntos, ficaram olhando para Ollie, que os observava pela abertura na parede, balançando o véu de um lado para outro como se quisesse chamar a atenção.
Todos ficaram em silêncio. O grupo todo se esforçava para compreender o que estava vendo.
Leo foi o primeiro a falar:
– Beatrix – ele disse com calma –, você quer nos contar alguma coisa?
CAPÍTULO CINCO
– Sinto muito – Beatrix disse –, mas posso explicar tudo. Vejam, esse pobre animal estava sendo terrivelmente maltratado, então eu achei...
– Beatrix – Merripen interrompeu –, estou muito interessado em ouvir sua explicação, mas só temos quinze minutos. Poderíamos... – Ele parou de falar quando Win apoiou o rosto em seu ombro e emitiu um som peculiar. A princípio, Beatrix achou que sua irmã pudesse estar chorando, mas quando Merripen passou os dedos sob o queixo de Win e levantou seu rosto, ficou evidente que ela estava segurando o riso. Merripen já não conseguiu fazer o mesmo. Com muito esforço, controlou-se e perguntou a Beatrix com calma: – A explicação poderia esperar até depois de meio-dia?
– Certamente – ela respondeu, e fez um gesto para que Ollie parasse de balançar o véu. Ele parou e assistiu à cerimônia com atenção.
O vigário olhou apreensivo para o elefante.
– Não sei se a igreja permite que animais assistam a casamentos.
– Se houver uma tarifa para isso – Leo o tranquilizou –, podemos acertar depois. Por enquanto, vamos prosseguir.
– Sim, milorde. – Pigarreando, o vigário continuou a cerimônia com todo decoro. Ao fim, ele disse: – Assim sendo, se alguém quiser demonstrar uma causa justa para que eles não possam ficar legalmente juntos, fale agora ou cale-se para sempre...
– Parem! – disse uma voz retumbante e todos se viraram para trás.
O estômago de Beatrix afundou quando ela reconheceu o distinto bigode branco e a barbicha do homem.
Era o Sr. Fulloway, organizador da exposição itinerante de animais.
Ela não se atreveu a olhar para Ollie, mas com sua visão periférica percebeu a tromba se direcionar furtivamente para o celeiro.
– Estou aqui para reaver uma propriedade roubada – Fulloway anunciou com os olhos semicerrados.
O homem que o acompanhava estava segurando um gancho de metal. Ele e Beatrix se reconheceram imediatamente.
– Lá está ela, Sr. Fulloway – ele disse. – A garota Hathaway que peguei visitando Ollie no redil ontem. Foi ela que o levou, posso garantir!
Leo deu um passo à frente, de repente incorporando o aristocrata, semblante sério, olhos azuis como geleiras.
– Sou lorde Ramsay – ele disse. – Vocês estão invadindo minha propriedade. E, caso não tenham notado, estão interrompendo um casamento.
Fulloway zombou:
– Eles não podem se casar em um celeiro.
– Isto não é um celeiro – Leo retrucou –, é a capela de nossa família. Lá está o vigário, e aquele rapaz de punhos grandes e olhar ferino é o noivo. E eu, se fosse você, não interromperia o casamento dele, ou poderia não viver para ver a luz do dia novamente.
– Eu não vou embora até encontrar meu elefante – Fulloway bradou. – Ele atrai espectadores pagantes e preciso dele para os meus negócios. Além disso, ele é meu.
– Ele está aqui, Sr. Fulloway! – gritou uma voz abafada do outro lado da parede e Beatrix se deu conta, alarmada, de que Fulloway havia mandado alguém procurar por Ollie no celeiro.
O ambiente foi tomado por um trombetear assustado. Ollie fugiu do celeiro e foi correndo para a área anexa, procurando desesperadamente por refúgio. Ao ver Beatrix, foi se esconder ao lado dela, com o corpo todo trêmulo. Ela recuou até ele de maneira protetora e olhou com cara feia para o homem com o gancho de metal que caminhava em sua direção.
– Não vai levá-lo, seu açougueiro! – ela gritou.
– Você é uma ladra! – Fulloway berrou. – Vou denunciá-la!
Todo o celeiro irrompeu em sons destoantes, gritos, ciganos entrando, enquanto Ollie trombeteava e berrava. Até mesmo o vigário falou mais alto na tentativa de ser ouvido.
Merripen viu o caos e ficou furioso e desnorteado.
– Silêncio! – ele bradou.
Todos ficaram quietos. Até mesmo o elefante.
– Pelos próximos dez minutos – Merripen alertou todos que estavam ali reunidos – ninguém vai se mover, falar, nem ao menos respirar. Tudo isso poderá ser feito depois do meio-dia. Aquele que interromper o casamento será jogado de cabeça para baixo no barril de grãos mais próximo.
Win deu o braço para ele e ambos se viraram para o vigário, que prosseguiu sob o olhar de expectativa do noivo:
– Aceita essa mulher como sua legítima esposa, para viverem juntos seguindo as leis de Deus no sagrado matrimônio? Promete ser fiel, amá-la e respeitá-la, na saúde e na doença, por todos os dias de vossas vidas?
– Sim – Merripen disse em voz baixa, porém firme.
O vigário perguntou o mesmo a Win.
– Sim. – Ela ficou ruborizada de felicidade.
E os votos continuaram:
– Na alegria e na tristeza, na riqueza e na pobreza, na saúde e na doença... com essa aliança, eu vos declaro...
Finalmente, Merripen colocou uma aliança de ouro no dedo de Win.
E o vigário finalizou:
– O que Deus uniu o homem não separa.
E em um momento muito romântico e apaixonado, incontestavelmente impróprio, Merripen se inclinou para beijar a noiva. Os braços dela, cobertos de renda, alcançaram o pescoço dele, ela o abraçou com força e a alegria dos dois irradiou pela capela improvisada.
Beatrix sorriu e secou as lágrimas. Ainda ao seu lado, Ollie sacudiu o véu da noiva rapidamente, esbarrando na lateral do corpo dela.
– Agora vou levar meu elefante – disse o Sr. Fulloway, se aproximando.
– Não – Beatrix gritou, olhando com desespero para sua família. – Eles vão matá-lo como fizeram com a mãe dele. Vejam os ferimentos em volta do pescoço e o...
– Calma – Merripen disse, fazendo um gesto para que ele parasse. Mantendo o olhar fixo em Fulloway, fez uma pausa quando Win ficou na ponta dos pés e sussurrou algo em seu ouvido. Ele sorriu com compaixão. – Tudo o que quiser – murmurou. Dando um passo adiante, Merripen se colocou entre Fulloway e o elefante. – Parece que minha mulher... – Ele hesitou de maneira quase imperceptível, parecendo saborear as últimas duas palavras – ...gostaria de ganhar o elefante como presente de casamento. O que significa que vamos negociar para comprá-lo.
– Não estou disposto a barganhar – disse Fulloway. – Ele é o único elefante que me restou e...
– Você não entendeu – Merripen o interrompeu, em tom calmo. – Não estou perguntando se podemos negociar, estou informando que vamos negociar.
O rosto de Fulloway ficou vermelho sob seus pelos brancos.
– Ninguém me diz o que fazer. Sabe quem eu sou? – Ele se virou e fez um gesto brusco para o homem que carregava o gancho.
Mas, nesse exato momento, Cam agarrou o pulso do homem com força e o gancho caiu no chão.
Atrás de Beatrix, Ollie sacudia as orelhas e parecia gargalhar.
Fulloway se viu encurralado entre Leo e Merripen.
– Já ouviu falar da lei que foi aprovada há três anos, proibindo crueldade contra animais? – Leo perguntou. – Não? Bem, eu sei tudo sobre isso, uma vez que tive que participar de sessões intermináveis no Parlamento enquanto se faziam novas emendas. E, se tornar as coisas difíceis para nós, você vai ficar tão ocupado se defendendo de processos que terá que fechar sua maldita exposição itinerante e...
– Está bem – Fulloway disse, irritado pelo olhar ameaçador de Merripen. – Estou disposto a negociar, mas quero um preço justo. Não se trata de um elefante barato!
Beatrix suspirou aliviada. Acariciou a orelha de Ollie, que estava ao lado dela, confortando-o.
– Você não vai voltar – ela murmurou. – Está seguro agora.
Sua irmã Amelia se aproximou deles, olhando para Ollie, maravilhada. Com cuidado, Amelia esticou o braço e acariciou a testa do elefante, sorrindo ao fitar os olhos castanho-claros do animal.
– Que rapazinho comportado – ela disse. – Nunca imaginei que um elefante pudesse se comportar tão bem em um casamento.
– Amelia – Beatrix disse em tom de desculpas. – Sei o que eu tinha prometido antes, mas...
– Espere – Amelia disse em tom suave. – Antes que fale qualquer coisa, Bea... Cam me aconselhou a deixá-la seguir seu próprio caminho. E ele estava certo. Não precisa mudar seu modo de ser para agradar outra pessoa. Você é perfeitamente maravilhosa assim como é. – Ela sorriu. – Só quero que seja feliz. E não acho que consiga ser se não estiver livre para seguir seu coração.
Beatrix se aproximou da irmã e a abraçou.
– Amo você – ela disse.
Enquanto se abraçavam, Ollie tentou envolvê-las com a tromba.
– Não vamos ficar com ele – Leo alertou. – Você terá que encontrar algum tipo de santuário ou refúgio para o elefante, Beatrix.
– Sim, é claro. Um lugar com outros elefantes. Ele vai querer viver entre outros de sua espécie. – Radiante, Beatrix conduziu Ollie para fora. – Mas, enquanto isso... os vizinhos não vão adorar quando eu o levar para dar uma volta?
Vestindo uma camisola branca, com os cabelos claros soltos, Win entrou no quarto e encontrou Kev esperando por ela.
Era a primeira noite que passariam como marido e mulher.
E embora Kev, em toda sua beleza morena, fosse adorado e familiar a ela, Win sentiu uma agradável onda de nervosismo.
Ele tirou a camisa, revelando um torso liso e forte, e a jogou de lado. Seu olhar queimava ao passar lentamente sobre sua mulher. Ao lado da cama, ele estendeu a mão com a palma para cima.
– Seu chinelo – ele disse.
Então ele pretendia aderir à tradição cigana, Win pensou, entretida e levemente irritada. Seu calçado seria colocado do lado dele da cama para mostrar quem mandava ali. Tudo bem. Ele podia ter sua vitória simbólica.
Embora isso não provasse nada.
Win tirou um dos chinelos e entregou a ele.
Ao fazer isso, no entanto, quase tropeçou em algo no chão. Ela parou e olhou para baixo, surpresa.
Um grande sapato preto masculino havia sido colocado do lado dela da cama.
Compreendendo, Win levantou os olhos e o viu com um sorriso no olhar.
– Mas quem vai ficar no comando?
Pegando o chinelo dela, Kev o colocou formalmente no chão, e se aproximou dela.
– Vamos nos revezar – ele disse, envolvendo-a com os braços, seu hálito quente atingindo os lábios dela pouco antes de beijá-la. – Eu vou primeiro.
Lisa Kleypas
O melhor da literatura para todos os gostos e idades