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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CASAMENTO / Pearl S. Buck
CASAMENTO / Pearl S. Buck

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Um casamento é feliz, porquê? Todos os homens e todas as mulheres fazem entre si a mesma pergunta. Eles e elas procuram encontrar a resposta para os seus próprios matrimónios. Há casais que a procuram e não a encontram; outros que são bem sucedidos. Às vezes, criaturas manifestamente desiguais são felicíssimas no casamento.
A resposta encontra-se, creio eu, na mútua descoberta, feita pelos cônjuges, da necessidade mais profunda do temperamento um do outro, e na sua satisfação. Esta deve ser recíproca, evidentemente. Não pode ser feliz o casamento baseado no sacrifício. Nem mesmo na boa vontade. Tem de basear-se na alegria.

 

 

 

 

Era em Junho. A paisagem da Pensilvânia desdobrava-se numa infinidade de quadros. O jovem Guilherme Barton examinava o panorama, do cimo de pequeno outeiro, à sombra de um velho freixo, e não havia maneira de se decidir. Qual devia pintar?... Estava sentado na erva, cingindo os joelhos com os braços. Para a direita, além, deslizava o Delaware, suave corrente de prata, entre margens verdejantes. Para a esquerda, cavava-se um vale, onde se escondia uma aldeia, mostrando apenas as agulhas da igreja e os telhados, quase a pique, entre o arvoredo. Em baixo, situava-se uma herdade, passeavam vacas em prados, ondulava uma seara de trigo e via-se uma granja pintada de encarnado, perto de um velho casal. Num retalho de terra vermelho-escura, um homem andava a lavrar para a sementeira do milho.
Barton olhava em redor e perguntava a si mesmo se tanta opulência e luxuriante beleza não seriam, talvez, ricas demais para uma tela. Tanta exuberância não se tornaria também monótona? Faltava-lhe um tema.
Como resposta à sua íntima aspiração, o motivo apareceu-lhe. A porta do casal abriu-se e uma rapariga de vestido azul e avental branco, saiu vivamente, surgindo no esplendor do sol. Empunhava uma sineta, que fez soar, com gestos amplos e vigorosos. As badaladas galgaram a colina, nítidas e sonoras.
"Já será meio-dia?" perguntou, de si para si. Não trouxera relógio. Dizia sempre que não gostava de dar pelo tempo, quando pintava. Se já era meio-dia, então deixara passar a manhã sem fazer nada. Levantou a cabeça e olhou para o céu, através da folhagem verde. O sol rutilava no zénite, acima da rama da árvore. Além disso, sentia-se com apetite. A manhã findara, não havia dúvida.
Um tanto envergonhado de si mesmo, levantou-se, pôs às costas o saco onde trazia as tintas e os pincéis, agarrou no cavalete elástico e começou a descer o monte, em direcção ao casal. Pediria de almoçar, e talvez então, para descargo de consciência, encontrasse nas perspectivas mais próximas do casal o quadro que procurava e que não fora capaz de ver, no meio de toda a variedade da exuberante paisagem que vicejava à sua volta.
Atravessou um prado, e, seguindo depois por estreita vereda, entre sebes baixas e assimétricas de teixo, aproximou-se da porta por onde a rapariga desaparecera. Quando estava mais perto, cheirou-lhe a carne assada. Sentiu uma fome devoradora. Precisava de comer fosse como fosse, quer houvesse trabalhado quer não! Bateu à porta, uma porta à moda holandesa, antiga. A parte de cima estava aberta. Ficou à espera, sem nada na cabeça, ao sol; não usava chapéu quando ia para o campo. Momentos depois, ouviu passos rápidos e firmes ressoar em chão lajeado, passos de rapariga nova e robusta. Logo a seguir, apareceu ela, no vestíbulo escuso, detendo-se à entrada da porta entreaberta.
- Que deseja? - perguntou.
Era a mesma rapariga. Reconheceu-a logo pelo vestido azul e o avental branco. Mas agora, mais perto, viu que tinha as faces rosadas, os olhos azuis e o cabelo castanho. Era deveras bonita. Os olhos, calmos e rasgados, fixavam-no a direito, aguardando resposta.
- Podia... - começou ele - quero dizer... e espero que não lhe pareça isto atrevimento da parte duma pessoa absolutamente estranha, mas, por acaso, vi-a a tocar a sineta e, de repente, senti-me com fome... Não lhe seria possível arranjar-me alguma coisa de comer?...
O seu rosto, um tanto decidido, assumiu expressão grave. Quem lhe falava não era nenhum mendigo - diziam

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os seus olhos ingénuos - porque vestia bem e não falava como qualquer valdevinos.
- Não fazemos comida para fora - respondeu hesitante.
Guilherme riu-se. Adivinhara o pensamento da rapariga.
- Sou uma pessoa séria - disse. - Acontece, porém, que sou pintor de quadros e ando a dar uma volta, a ver se pinto alguma coisa: eis tudo. O que comer, pagarei... faça-me esse favor.
- Não é isso - redarguiu ela, ruborizando-se toda. É que... Espere um momento, vou falar com meu pai.
A pequena desapareceu e Guilherme ficou à espera, olhando em redor, satisfeito. A casa era de pedra tosca, entre acastanhada e vermelho-escura, com veios de oiro velho. Na lareira havia uma cercadura oval, com esta inscrição: "T. H. e M. H. 1805". Acima do pórtico marinhava uma trepadeira, cheia de folhas, mas ainda sem flores.
- Entre! - exclamou uma voz de homem.
Guilherme voltou-se, com um ligeiro sorriso. Um homem de barba grisalha, com aspecto de lavrador, caminhava para a porta.
- Entre e jante alguma coisa! - bradou.
E, abrindo a parte inferior da porta, ficou parado; era de baixa estatura e vestia de ganga azul; a camisa, aberta no pescoço, deixava ver uma mecha de pêlo ruivo.
- Dá-me licença? - disse Guilherme, agradecido.
À noite, quando chegasse a casa, já teria que contar aos pais - pensou no mesmo instante.
"Que interessante!", diria a mãe.
"Absolutamente europeu", concordaria o pai.
Ambos conheciam melhor os camponeses da Europa do que os fazendeiros do Estado onde viviam. Irritara-se com uma discussão que tivera com o pai, dias antes, sobre o assunto, e fora isso que o levara a sair de casa, para pintar. Afirmara que nos campos americanos havia bons quadros à espera de pintores. E defendera o seu ponto de vista com calor, em parte porque não queria passar o Verão na Europa, como sucedera noutros anos.

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- O campo, aqui, ainda está cru - dissera o pai, com a habitual segurança sobre qualquer assunto relativo a arte. - Não tem profundidade. Ainda não se viveu nele o bastante.
- Gostava de lhe mostrar que não é assim, meu pai - respondera Guilherme.
O sorriso incrédulo do pai levara-o a tentar a demonstração. Guilherme era de feitio muito voluntarioso. Na sua opinião, saía à mãe. Penetrou no vestíbulo cheio de sombras. A casa, de pedra, era fresca como uma cave.
- Entre - disse o fazendeiro, cordialmente. - Chamo-me Harnsbarger e a casa é nossa. Há quatro gerações que vive aqui a nossa gente, e a dos meus filhos será a quinta. Comemos na cozinha... vá andando em frente, a direito, e, depois de descer, volte à esquerda.
- Muito obrigado - disse Guilherme. Sentia-se perfeitamente à vontade com aquele homem. Gostava de pessoas simples; davam-lhe oportunidade para se mostrar como era.
A cozinha era espaçosa e lajeada. A meio da parede do fundo abria-se uma grande lareira, onde haviam posto um fogão. Por cima, viam-se grossas traves de carvalho castanho-escuro, devido ao fumo. Perto de uma janela, a mesa estava posta; uma mulher, de vestido castanho, com saia de grande roda, cortava pão às fatias. A menina bonita esperava, de pé, no seu lugar.
- Ruth, põe mais um prato - ordenou o senhor Harnsbarger. - Sente-se - disse para Guilherme.
- Esta é a senhora Harnsbarger - disse o pintor, com o seu vivo sorriso, indicando a mulher.
Ela fez que sim com a cabeça, muito envergonhada, incapaz de sorrir ou falar.
- Quanto a esta - continuou Guilherme, dirigindo-se à rapariga - é a menina Ruth Harnsbarger.
- Pois sou - respondeu a jovem, calmamente.
Sentaram-se e começaram a comer. Era simples e deliciosa a comida. Ninguém disse nada, antes de satisfazer o primeiro apetite. Era assim que as pessoas deviam comer - pensava Guilherme, enquanto o excelente repasto lhe

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tirava gradualmente toda a sensação de fome. Muitas vezes se aborrecia com as exigências da etiqueta, que lhe impunham uma conversação inútil, às refeições, em casa dos pais, onde a comida parecia ser considerada coisa sem importância. Gostava de ver os pratos dispostos na mesa, diante dos olhos, em vez de lhos servirem de lado, numa bandeja de prata. Crescia-lhe o apetite à medida que se servia.
- É daqui destes sítios? - perguntou, de súbito, o senhor Harnsbarger, que depressa esvaziara o seu prato e o estendera à mulher para lho encher outra vez.
- A minha casa é em Filadélfia.
- A família tem lá o seu modo de vida? - insistiu o senhor Harnsbarger.
- Meu pai dirige uma empresa ferroviária - respondeu Guilherme, que não via, há anos, o pai fazer qualquer coisa a que se pudesse chamar trabalho.
- E o negócio é bom? - continuou o senhor Harnsbarger, agarrando numa perna de frango com vivo apetite.
- Parece que sim - respondeu Guilherme, que nunca fizera ao pai semelhante pergunta. Dos dividendos do caminho de ferro - supunha ele - devia sair o dinheiro para manter a enorme casa e os jardins tão lindamente tratados e tranquilos, o dinheiro para pagar os quadros que seu pai comprava, e as suas despesas, durante os anos que ele próprio passara em Paris, assim como a educação musical de sua irmã Luísa. Esta casara no Inverno passado; o caminho de ferro também devia ter pago o enxoval e a boda.
- Não percebo nada dessa casta de negócios - disse, francamente, o senhor Harnsbarger, enquanto esburgava o osso da perna da ave.
Guilherme desviou a vista e sucedeu muito naturalmente ir dar com os olhos no rosto da pessoa sentada do outro lado da mesa. "Que linda cara!", disse consigo outra vez. De repente, pensou que estava ali o quadro que procurava. Porque não? Uma velha cozinha cheia de sombra... Como fundo, a vasta lareira escura e a frontaria da chaminé... Uma tela holandesa de interior, com os seus efeitos

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de luz e sombra, e ainda para mais com aquela profundidade especial, a três dimensões, segredo de uma técnica muito sua, que principiava a afirmar, e que os críticos já diziam ser o seu contributo pessoal para a pintura americana. Detestava as raparigas bonitas banais, que pareciam encher o mundo em que vivia; mas a beleza daquele rosto era invulgar. A boca, de lábios vermelhos, indicava firmeza. Os olhos, azuis e calmos, irradiavam uma vontade esclarecida e ardente. As faces cheias e rosadas, o queixo suave e forte, a fronte rasgada e o nariz correcto harmonizavam-se na perfeição. Nada havia de extraordinário nestas feições - mas revelavam carácter.
De repente, Guilherme tomou uma das suas impetuosas decisões.
- Gostaria de pintar o seu retrato - disse com entusiasmo, inclinando-se para ela sobre a mesa.
Todos o olharam, perplexos. O senhor Harnsbarger até largou a perna do frango.
- Pintava-o aqui mesmo, na cozinha... - continuou.
- Na cozinha! - exclamou a rapariga.
Como lhe parecesse que ficara humilhada, apressou-se a explicar:
- Olhe que é uma bela casa para pintar. A luz que vem daquelas janelinhas produz bons efeitos de sombra... acolá a lareira, mais escura, e depois a menina, de azul e branco...
- Com certeza que não a ia pintar com aqueles trapos velhos - observou a senhora Harnsbarger. Era a primeira vez que dizia qualquer coisa.
- Não podem ser melhores - respondeu Guilherme. Os donos da casa hesitavam, era evidente, mas sentiam-se lisonjeados. O pintor instava com eles, ansiando pelo quadro, cada vez com mais interesse.
- Por favor! Tenho andado por toda a parte à procura de assunto para pintar, e encontrei-o aqui. Não a incomodarei... quase nada. Posso pintá-la a trabalhar.
- Não sei como há-de ser... - disse Ruth, hesitante.
- Então diga como gostaria de ficar - pediu Guilherme com ansiedade. E, sem lhe dar tempo a responder,

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pôs-se de pé num pulo, e começou a desarredar uma pequena mesa, velha e pesada, para junto da janela, perto da lareira.
- Podia ficar assim aqui, a pôr margaridas numa jarra... Não, a cortar fatias de pão é que deve ser!
Ela estava contente, mas ainda hesitava um bocadinho, ora olhando para o pai, ora para a mãe.
- Eu, por mim, não me importo - disse o pai na sua voz forte. - "Deixar as mulheres fazer a sua vontade", é o meu sistema. Bem, tenho que voltar para o trabalho... Bom dia, senhor!
- Bom dia! - respondeu Guilherme, satisfeitíssimo. As mulheres saberia ele convencê-las.
- Vejam lá assim... - e, pegando no braço nu e torneado da pequena, conduziu-a delicadamente até junto da mesa. - Assim... - continuou, enquanto a colocava na pose desejada, tocando-lhe ao de leve nos ombros, na cabeça, nas mãos.
A senhora Harnsbarger olhava-o sem dizer palavra. Mas o pintor nem dava por ela. Observava, atentamente, qualquer coisa nos olhos da rapariga - um embaraço, um princípio de acanhamento, que os tornava húmidos, que lhe fazia contrair a boca suave e tremer os lábios.
- Oh, a menina... a menina é adorável! - segredou-lhe, com um suspiro. Depois correu para a porta, agarrou na caixa das tintas e no cavalete, e fixou a tela. - Não se mexa! - pediu-lhe. - Deixe-se estar como está!
E começou a pintar.
...De súbito, reparou, contrariado, que principiava a escurecer na cozinha. Pintara toda a tarde, esquecido de tudo até mesmo da rapariga postada na sua frente. A senhora Harnsbarger viera por duas vezes até à porta, donde ficara a olhar para eles uns momentos, acabando por tornar a ir-se embora. Também não lhe dirigira a palavra. E agora só a dissolução dos tons no lusco-fusco o obrigava a parar. Poisando o pincel, lembrou-se então da rapariga.

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- Oh, que distracção a minha! - exclamou. Só nessa altura reparou que a pequena se conservava pacientemente na mesma pose. - Como deve estar cansada!
A rapariga moveu-se e murmurou:
- Parece que o corpo não se devia cansar, estando sem fazer nada.
Calou-se, à espera.
- Oh, mas não fazer nada é muito fatigante! - disse-lhe, com vivacidade, enquanto examinava em todos os sentidos a sua tela. Era boa - pensava, com alvoroço, muito boa! Teria orgulho em a mostrar, mesmo ao pai. Mas não se arriscaria a submetê-la aos seus olhos exigentes antes de a acabar.
- Posso cá deixar o quadro até amanhã? - perguntou. - Não gosto de andar com os quadros de um lado para o outro enquanto estão húmidos.
- Não faz mal nenhum se o quiser deixar ficar - respondeu a jovem.
- Onde é que o havemos de pôr, para não estorvar?
- Acho que o melhor seria na casa de fora.
E com graciosa desenvoltura saiu da cozinha, atravessando, seguida por ele, um corredor estreito, que dava para uma sala quadrada, de gelosias corridas. Ruth acendeu um candeeiro, em cima de uma mesa, e Guilherme pôde então ver a mobília, pesada e escura, e, pelas paredes, retratos velhos da família desenhados a carvão.
- Ninguém aqui vem - elucidou a rapariga.
- Voltarei amanhã - informou ele. E, enquanto assentava o cavalete, percorreu com os olhos, de relance, a extraordinária sala, que pensou logo em descrever também aos pais, nessa noite, ao jantar.
Mas, ao entrar outra vez na cozinha, ficou impressionado de novo com a sua beleza. Decerto era por ser o local onde se permanecia mais. A casa onde passamos a maior parte da nossa vida de todos os dias ganha uma beleza que transcende a que lhe imprimimos.
- Gosto desta casa - disse o pintor, enquanto limpava os pincéis.

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Ela observava-o, e, ao ouvir estas palavras, ergueu os olhos, que se encontraram com os dele.
- Desta cozinha velha?!
- Desta cozinha velha, sim - repetiu, sorrindo, enquanto arrumava as tintas. Valeria a pena explicar-lhe o que era a beleza? Decidiu que não. Além disso, para que explicar-lhe uma coisa que possuía como rainha? Olhou-a, descobrindo-lhe novos encantos, e os seus olhos sorriram nos dela. Depois, agarrando no saco das tintas e dos pincéis, atirou-o para as costas, e disse: -Adeus.
Como resposta, ela esboçou um vago sorriso. Ao vê-lo, Guilherme compreendeu que, pela primeira vez, se alterava a pura e grave serenidade daquele rosto. Surpreendido com tal mudança, deteve-se.
- Até amanhã - disse depois de uma pausa.
Ruth ficou sem dizer palavra, sem se mover, com o mesmo sorriso no rosto. E ele partiu, com aquele olhar tão nítido na sua mente, como o quadro que deixara por acabar.
Levou todo o caminho até casa a pensar naquele sorriso. Devia fixá-lo no quadro? Resolveu não o fazer. Por muito belo que fosse o sorriso, a sua gravidade era mais bela ainda.
Ia tão absorto nestas reflexões, que nem deu por chegar ao seu destino. A casa paterna pareceu-lhe estranha e distante. E, todavia, era bem aquele o vestíbulo por onde passara, ano após ano, toda a sua vida. Abriu-se uma porta, por onde o mordomo entrou sem ruído, pegando em seguida no saco e no pau ferrado.
- Quer que lhe trate dos pincéis, senhor? Guilherme hesitou. Sentia sempre muito pouca vontade de tratar dos pincéis. Por isso mesmo ensinara, havia bastante tempo, o velho Martinho a limpá-los. Nessa noite, porém, queria ser ele a fazê-lo, sem saber porquê.
- Não, obrigado; eu trato deles. Preciso de dar uma vista de olhos a um ou dois.
- Muito bem, senhor. Eu levo-os para cima.
- Não é preciso, obrigado.

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Tornou a pôr o saco às costas, e começou a subir os degraus da escada, que descrevia grande curva e se prolongava por três lances. Em cima ficavam o seu quarto de dormir e o estúdio, onde pendurara pelas paredes os primeiros quadros que fizera, desde que começara a pintar, aos oito anos. Conservava-os ali por sentir, susceptibilizado, que o pai não considerava nenhum deles bastante bom para figurar na galeria da ala sul do palácio. O pai, tão sensível como ele, dizia-lhe de vez em quando:
- Qualquer dia hás-de fazer um quadro para mim, meu rapaz.
- Não sei se chegarei a ser capaz de o fazer, meu pai.
- És capaz, és, sim - insistia o velho senhor. E, quando estava a sós com a esposa, balbuciava, indeciso: - "O Guilherme tem técnica, Henriqueta, mas ainda não encontrou a inspiração".
A senhora Barton respondia a isto com a sua habitual segurança: - "Só espero que, quando a encontrar, seja uma inspiração verdadeira".
Agora, no seu quarto, Guilherme sentia uma curiosa sensação de espanto. Estava muito cansado. Nunca pintara com tanto afinco durante tantas horas. Nada, até então, lograra nunca fazer-lhes esquecer o tempo e a fadiga. "Estava inspirado", pensava maravilhado, com uma certa excitação. Perguntava a si mesmo: seria aquilo o princípio de qualquer coisa de novo na sua arte, de qualquer coisa para o que tudo quanto fizera até ali fora apenas a preparação? Tomara-o a sensação de um "poder" que começava a despertar em si. Talvez houvesse encontrado, por fim, a verdadeira sensibilidade. Não havia dúvida que pintara, nesse dia, com espontaneidade e segurança. Mas seria perfeito o que fizera? Arrependia-se de não haver trazido o quadro consigo. Estava ansioso por examiná-lo, para ver se realmente era bom. Ou ter-se-ia apenas iludido com a simplicidade do assunto? Começou a ansiar pelo dia seguinte, com receio de se ter enganado.
Nesta incerteza preferiu não dizer absolutamente nada ao jantar. Não contaria a sua aventura. Não podia falar

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nisso - decidiu, num dos impulsos que o caracterizavam, quando estava indeciso. E se nada significasse o que fizera?
Ficou satisfeito por haver tomado tal resolução. Quando desceu, encontrou sua irmã Luísa com o marido, Montrose Hubberd, que tinham chegado inesperadamente a Filadélfia. Sabia que estavam de regresso a Nova York, depois de passarem uma prolongada lua de mel em Itália, mas a sua primeira visita ficara combinada para fins de Junho, de modo que os pais pudessem voltar com Luísa a Bar Harbor. Ainda a descer a escada já ouvia a voz aguda da irmã:
- Oh, gostámos muito da Itália, não é verdade, Monty?!
O marido respondeu com um murmúrio. Guilherme não gostava do cunhado, sem se preocupar com descobrir porquê. Alto, vestindo bem, embora com elegância convencional, Monty constituía sempre um motivo decorativo no fundo de qualquer quadro mundano, mas nunca se destacava do seu lugar. Quando se lembrava, de vez em quando, daquela cara pálida, de faces cavadas e bigode preto, Guilherme perguntava a si mesmo o que teria sido a lua de mel da irmã. Haveria mulher capaz de gozar uma lua de mel com Monty? Mas, também, haveria homem capaz de gozar com Luísa? O problema era difícil, e Guilherme acabava por sorrir, desistindo de o resolver.
Entrou com desenvoltura na sala de estar de sua mãe, decorada a branco e oiro, que, naquele momento, com todo o seu aparato, parecia uma banal aguarela do século XVIII. Mas, quando a mãe lhe falou, a vulgaridade desapareceu por encanto.
- Guilherme, vens atrasado!
- Desculpe, minha mãe! - e curvou-se para a face que a irmã lhe oferecia, cumprimentando quase ao mesmo tempo, com um leve aceno de cabeça, o cunhado. - Então, Luísa?... Como passou, Monty?...
Monty inclinou a cabeça negra e bem penteada. Luísa quase que parecia bonita - a sua palidez, um tanto macilenta,

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era atenuada pelo vestido cor de vinho. A senhora Barton levantou-se da cadeira e disse:
- Queres dar-me o braço, Guilherme?
Em seguida encaminharam-se todos para a porta da sala de jantar.
- Onde estiveste, meu filho?
- A trabalhar, minha mãe.
No mesmo instante arrependeu-se das suas palavras. Porque dissera à mãe que estivera a trabalhar? Agora, havia de perguntar-lhe onde estivera, o que pintara - tudo aquilo, enfim, que não queria dizer.
- A trabalhar?! Aonde?
- Longe daqui... no campo.
- Por aí não encontras nada. Guilherme sentiu uma leve irritação.
- Pois encontrei...
- O quê?
- Uma velha casa... um casal.
- Ora!... uma estampa barata.
- Não, minha mãe; o motivo era bom.
A senhora Barton não respondeu. Chegara junto da sua cadeira e começou a indicar os lugares a cada um.
- Tu, Luísa, à direita de teu pai, pois já és uma senhora casada. Guilherme, senta-te à esquerda de tua irmã. Monty fica só, do outro lado da mesa. Lembra-te, Harold, de que não deves tocar no vinho tinto. Vejo que o Martinho te pôs um copo... Mas eu disse-lhe claramente que o não fizesse, Martinho!
- Sim, minha senhora.
O mordomo retirou o copo. O senhor Barton deu um suspiro, e sentou-se.
"Já se esqueceu de mim", pensou Guilherme, com alívio, enquanto serviram a sopa e o peixe.
A mãe alvejava com perguntas Luísa e Monty, apertando-os com amável teimosia até conseguir saber o que pretendia.
- Luísa, foste a São Marcos, em Veneza? Ao domingo, é claro... Em qualquer outro dia, já se sabe, a igreja é uma

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curiosidade para turistas. Mas para o culto!... Sempre tenho dito que não se pode aspirar o verdadeiro perfume de uma igreja sem se assistir a qualquer acto de culto, ou orar, lá dentro. Isto para mim, que sou religiosa; mas para ti, que o não és... Nem sabes o que perdes! Espero que a sua influência, Monty, a não torne pior ainda... Para que serve isso? Não, eu discordo de todas essas coisas. Acho que pedras e sermões são coisas que nada têm que ver uma com a outra e os madeiramentos são atreitos à humidade. Tens de arranjar um lar espiritual em Nova York, Luísa.
Os dois recém-casados escutavam-na, como sempre, quais duas criancinhas um tanto pálidas, muito bem criadas, naquele lar calmo e magnífico.
Guilherme nunca fora capaz de descobrir se Luísa se aborrecia, como tantas vezes lhe sucedera. Dantes, em certos dias de Primavera, quando contemplava, da alta janela, a praça cheia de sol, sentia o coração palpitar com uma vida estranha - como criatura separada de si. Um dia, o coração era capaz de fugir-lhe - pensava - de lhe saltar do peito e partir, sozinho, deixando-o ao abandono, como carcaça vazia. Como seria o seu coração?... Que forma teria?...
A mãe veio despertá-lo do devaneio:
- A propósito, Guilherme, que disseste tu que pintaste esta tarde?...
- Não cheguei a dizer nada, minha mãe - respondeu ele, enquanto se servia de pato recheado com maçãs.
- Então?... - insistiu a mãe.
- Pensei que seria melhor mostrar-lho quando estivesse pronto.
- Ora... ora... tolices!...
- Foi o que resolvi fazer, realmente, minha mãe. Guilherme observou que a resposta a surpreendera e
irritara um tanto. Ao mesmo tempo sentiu-se envergonhado. Experimentara um ligeiro frémito de medo, igual ao que sentia em criança, na presença da mãe.
- Está bem, Guilherme... mas estranho-te.

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Luísa não lhe deu tempo a responder; começou a falar... com volubilidade - como era costume, quando queria neutralizar um momento difícil entre a mãe e qualquer pessoa.
- Sabe, mãe?... eu e o Monty estivemos a pensar... no que diria, se comprássemos uma dessas carruagens modernas, sem cavalos...
A senhora Barton esqueceu-se de tudo quanto estava a pensar, para dizer, sentenciosamente, volvendo os olhos, com intenção, para o genro:
- Diria que vocês não tinham juízo nenhum! Com certeza que Monty não iria arriscar-se a andar, mais a Luísa, em coisa tão perigosa!
Antes de responder, Monty bebeu uma gota de vinho.
- Agora ouve-se falar muito nesses carros - acabou por dizer, como quem pede desculpa.
- Isso não é razão para imitar essa súcia de doidos! - retorquiu a senhora Barton. A sua mão esquerda, onde brilhavam anéis, segurava naquele momento o pé do copo do vinho - era seca, mas vigorosa como um músculo, embora em toda a sua vida não houvesse tocado em trabalho mais rude do que lavar o seu serviço de chá de Spode.
Monty sorriu e não deu resposta. Desde que viera procurar o sogro para o convencer a colocar num negócio alguns dos seus milhões, tinha mais que fazer do que contrariar a velha senhora. Além disso, Luísa dissera-lhe muitas coisas sobre o feitio da mãe.
Interrompendo o silêncio que se fizera, a senhora Barton voltou-se outra vez para o filho. Ao sentir a irradiação fria daqueles olhos cinzentos que o fitavam, Guilherme preparou-se para defrontar o assalto que se avizinhava. "Não lhe direi nada acerca de Ruth", decidiu no seu foro íntimo.
Mas, quando ia a falar, a mãe deu com os olhos no marido, que levava à boca um copo cheio de vinho.
- Harold! Que vais fazer?...
A mão do senhor Barton estremeceu, mas não deixou de beber dois goles, apressados, antes de poisar o copo.

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- Estava só a provar o vinho de Luísa, minha querida. O senhor Barton falava com doçura e tinha uns olhos meigos de criança.
- Não devias ter feito isso! - disse-lhe a esposa, severamente. - Se te digo isto, é para teu bem, Harold!
- Bem sei, minha querida; descansa, que não tornarei a tocar-lhe.
E olhou de soslaio para os dois filhos, mas todos três baixaram os olhos para o manjar branco, acabado de servir. Guilherme sabia, como se tivesse visto a manobra, que Luísa é que pusera o copo do seu lado esquerdo, de forma que o pai pudesse beber o vinho, se porventura a sorte o consentisse. Mas a fortuna mostrara-se adversa, e tiveram de se resignar, como sucedera tantas outras vezes.
Pensando mais tarde no seu caso, enquanto preguiçava pelo quarto antes de se deitar, Guilherme sentia-se, apesar de tudo, descontente. A mãe esquecera-se dele, por causa do acidente do vinho. E se tivesse voltado à carga? Teria sido capaz de se calar a respeito de Ruth?... Jamais o saberia.
...Ruth não podia dormir, o que lhe sucedia pela primeira vez na vida. Calmamente estendida na cama, sentia-se maravilhada e surpresa. Não lhe doía nada, não estava aflita, nem nervosa, mas não podia deixar de pensar nele... naquele rapaz. Nem o seu nome sabia. Ninguém lho perguntara nem ele o dissera. Nem ela pensara nisso, arroubada como estivera toda a tarde, até o pai a interrogar, à mesa, à hora da ceia:
- Ele já te disse como se chamava, Ruth? Ela respondera, surpreendida:
- Nem sequer pensei em perguntar-lho.
- Pois pensei eu - redarguira o pai - mas disse cá para comigo: "Não se deve indagar o nome dum homem quando este se não quer dar a conhecer. Disse-lhe que me chamava Harnsbarger, e ele nada..." Parece-me que nesta conformidade, qualquer pessoa daria em resposta o seu nome; mas o sujeito não.

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Ruth nada retorquira a isto, consternada intimamente. E se nunca mais ele voltasse? E se nunca viesse a saber o seu nome? Mas a verdade é que o quadro lá estava ainda na sala.
- Acabou o quadro? - perguntara o pai, abruptamente, depois da ceia.
- Não, ficou de voltar cá amanhã - respondera, começando a levantar os pratos da mesa para o lava-loiças.
- Levou-o?
- Não, deixou-o cá ficar... está na sala.
- Então vou deitar-lhe uma vista de olhos.
Depois, o pai pegara na candeia de azeite, retirando-a da estreita prateleira por cima da chaminé, e dirigira-se para a sala, sem ruído, só com as meias nos pés. Ela seguira atrás dele, mais a mãe. Chegados à sala, os três ficaram um bocado a admirar a pintura.
- A toalha sobressai muito bem - declarara a senhora Harnsbarger.
- O retrato não se parece muito contigo - dissera o pai.
- Está muito bonito, não está? - apressara-se Ruth a atalhar, sem convicção nenhuma.
- Está... - concordara o pai, abanando a cabeça. - Quem sabe?... Talvez ele te veja assim.
Em seguida tinham voltado para a cozinha, onde o pai bocejou umas quantas vezes antes de se ir deitar. Como de costume, ela e a mãe haviam lavado a loiça em silêncio, limpo a cozinha e tornado a pôr a mesa, para o almoço do dia seguinte. Só quando ia já para subir os degraus da escada empinada, que levava ao andar onde dormiam, é que a mãe lhe dissera:
- Acho que devíamos fazer amanhã o sabão, Ruth. O caneco da gordura já está cheio.
- Oh, mãe, amanhã não!...
A mãe fitara-a demoradamente, estivera para lhe dizer qualquer coisa, mas não proferira uma palavra. Voltara-lhe as costas e começara a subir as escadas devagar. Ficando só na cozinha, Ruth acabara o seu serviço ràpidamente.

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Não estava cansada. Nunca se fatigava, aliás, mas naquela noite sentia-se cheia de força, de energia.
"Quem me dera poder fazer agora o sabão", suspirara, com pena de não realizar o seu desejo. Abrira depois a porta e ali ficara por momentos, perscrutando a noite. Se fizesse luar, talvez houvesse ainda dado um pulo até ao lavadouro, onde estavam guardadas a lixívia e a gordura.
As estrelas cintilavam, suaves e enormes, mas a noite estava escura. Não tivera coragem e acabara por fechar a porta e subir as escadas para o seu quarto. À luz da candeia se lavara e vestira a camisa de dormir, de algodão, com mangas, se penteara e entrançara o cabelo, soprara a luz e se estendera na cama, um velho catre que já fora de sua avó. Fechara os olhos, esperando mergulhar logo num sono profundo, como sempre sucedera. Mas o sono não vinha. Estava naquela expectativa, nem inquieta, nem impaciente, apenas a pensar. E enquanto esperava, de olhos fechados, viu, através do céu opaco das pálpebras, o rosto dele, que tão demoradamente fitara, durante horas, nesse dia.
"Nunca vi uma fisionomia com tanta clareza como esta!", pensava.
...Quando o avistou a descer o caminho da colina, no dia seguinte, já a tarde ia alta. Aguardara-o em vão, todo o dia, e acabara por desistir; depois, desesperada consigo mesma, por haver esperado tanto, começara, a meio da tarde, a mexer a gordura para fazer o sabão.
- É tarde, não é? - objectara a mãe. - Daqui a pouco são horas de jantar.
- Eu faço isto depressa - respondera. E, sem poder conter-se, acrescentara: - A mãe sabe, aquele senhor pintor... disse que vinha hoje, com certeza, e... Foi por isso que pensei que não valia a pena começar com o sabão. Mas agora, já não deve vir, e não quero deixar passar o dia sem ter feito nada.
A mãe não levantara os olhos de cima da costura, mas respondera, após breve silêncio:

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- Está bem, lá irei também ajudar-te, quando acabar de remendar esta meia.
- Não é preciso. Cá me arranjarei sozinha - dissera Ruth.
Mas, à saída da porta, a voz da mãe fizera-a parar:
- Parece-me não ser pessoa da nossa igualha, Ruth. Ela repelira, prontamente, a insinuação oculta nas palavras da mãe.
- Não é por ele que me ralo... o que não gosto é de pessoas que faltam ao que prometem.
- Era isso que eu queria dizer - respondera a mãe, sem levantar os olhos da longa agulha diligente que passava e repassava, através do cruzamento das linhas no remendo.
Declinava a tarde, quando o viu chegar, sem chapéu, de mãos nos bolsos, descendo a vereda em direcção à casa.
- Estou aqui! - anunciou ela.
Ao ouvir a voz de Ruth, o mancebo voltou-se, e, dando com os olhos nela, apressou-se a ir ao seu encontro.
- Já não o esperava - disse-lhe a jovem, antes de mais nada.
A gordura fervia numa grande panela de ferro, suspensa sobre o fogo. Já lhe deitara dentro a necessária porção de lixívia e agora mexia a mistura com uma colher tosca de pau.
Guilherme parou, a observá-la.
- Que está a fazer?
- Sabão.
Ela mexia lentamente, sentindo a mistura a engrossar.
- Pensava que viesse mais cedo - continuou, olhando-o de soslaio. "E não trazia as tintas nem os pincéis!" observou, alarmada. - Onde estão as suas coisas para pintar?
- Não as trouxe.
- Porquê!... Não pensa em acabar o quadro?
- Hoje não me sentia disposto para trabalhar. Estava tão irritada com ele, que nem sequer tentou compreender porquê.

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- Chama trabalho, talvez, a isso de pintar quadros?...
- Sim... de certa maneira... chamo. Pelo menos, é esse o meu trabalho.
Ruth não podia parar de mexer, um instante só que fosse, porque a mistura estava quase pronta para ser vazada.
- Eu estou habituada a trabalhar a sério - ripostou secamente.
- De que maneira? - inquiriu Guilherme, um tanto agastado.
- Lavrar... mungir... caiar a granja...
- Considere então o meu trabalho como, por exemplo, a pintura do seu celeiro - redarguiu-lhe.
- Ajude-me a tirar isto do lume. Está pronto para ser vazado.
Guilherme aproximou-se e ajudou-a a tirar a panela trípode, erguendo-a do braço de ferro que a suspendia, e a poisá-la no chão. Os recipientes estavam já preparados, dispostos em filas. A moça começou logo a enchê-los da cheirosa substância, com uma concha. Ele observava-a, embora pensando, como ela podia ver, noutra coisa.
- E isso endurece?
- Quando arrefecer.
- Cheira bem!
- Cheira a sabão, mais nada!
Estava a meio da tarefa, quando o rapaz falou de novo:
- Ruth, creia que tenciono acabar o quadro. Ela ergueu os olhos e disse:
- Agradecia-lhe que não me tratasse pelo meu nome de baptismo, pelo menos antes de me dar a saber o seu.
Ele sorriu de leve:
- Chamo-me Guilherme.
- Guilherme, quê?...
- Guilherme Barton.
- Nunca ouvi tal nome.
Sentiu uma alegria íntima. Se sua mãe a ouvisse!
- Por que razão o havia de ter ouvido?
- Por nenhuma razão, acho eu - confessou ela.

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Não tornaram a falar até os recipientes ficarem cheios. O sol declinava no horizonte em poalha rubra, entre nuvens baixas e transparentes.
- Porque veio, então, se não estava disposto para pintar?
- Não sei. Talvez para ver se seria tão bonita como ontem a julguei.
Ruth pestanejou e fez-se corada.
- Antes queria que não... - murmurou.
- Que não, quê?...
- Que... não me dissesse nada.
Sentiu apertar-se-lhe um tanto o coração. Porque tinha vindo, afinal, se sabia que não era para trabalhar?
- Vamos ver como está o quadro - disse de chofre. Seguiu à frente dela. Era a hora de ordenhar. Os pais
de Ruth, debaixo do telheiro da casa das vacas, mungiam os animais. O casal estava deserto. Avançou a passos largos para a sala, irritado por sentir o andar firme e ligeiro da rapariga atrás de si. Levantou uma das cortinas e a luz do poente iluminou o quadro. Invadiu-o uma alegria pura, que o tomou inteiramente. Esqueceu todo o dia aborrecido que passara até se resolver a voltar àquele sítio. Luísa estragara-lhe o dia. Entrara-lhe furtivamente no quarto, antes de se levantar. Acordara ao sentir-lhe a pequena mão fria a acariciá-lo. Abrindo os olhos, vira a irmã na sua frente, em roupão de cetim azul baço, com os cabelos loiros enrolados em ganchos, sob a touca de renda.
- Vim incomodar-te, Guilherme?
- Que é?
- Ouve, Guilherme... eu queria falar contigo ontem à noite, mas a mãe estava tão... Escuta, Guilherme, queres ajudar-nos, ao Monty e a mim?
- Como?... o quê?... espera um pouco! Afugentara o sono, esfregando os olhos, e dissera:
- Conta lá: que sucedeu?
- Sabes, querido... o Monty está completamente arruinado.
- Arruinado! - Sentara-se na cama, ainda a bocejar.

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- Como assim?! Julgava que o pai tinha tirado informações a respeito dele, e tudo o mais.
- Mas não é isso, querido... Foi depois de casarmos. Um negócio de minas ou coisa que o valha. Dizia-se que estavam cheias de diamantes, e afinal não havia lá nada. Parece-te que poderás falar ao pai?... a sós, já se vê...
- Mas, que pode o pai fazer a respeito de diamantes, Luísa?
- Não, querido, não é de diamantes que se trata, agora... mas de confiar algum capital ao pobre Monty, só para o animar. Anda tão deprimido!
- Não dei por isso.
- Oh, mas está! Esconde os seus sentimentos admiravelmente, mas eu é que sei.
Depois, saltara da cama, passando à casa de banho. Todo o tempo que demorara a lavar-se, a fazer a barba e a vestir-se, tivera de ouvir a irmã falar-lhe no assunto, através da porta entreaberta do quarto. E assim se passara quase todo o dia, por causa dos absurdos planos de Luísa, e na conversa com o pai. Hesitara em se desempenhar da missão. Por um lado, a lealdade que devia a Luísa e a seu pai; por outro, as dúvidas inconfessadas que sentia de que talvez Monty não fosse digno de confiança. Ficara aliviado, quando o pai, com a sua habitual perspicácia, lhe dissera que mandasse Monty falar com os seus advogados. Assim se passara a manhã. Depois, Luísa chorara muito ao pé dele, e, como era seu amigo, não tivera coragem de a deixar só com as suas lágrimas. Deste modo, perdera a vontade impetuosa de trabalhar, à medida que o dia avançava.
- Hás-de compreender isto quando fores casado, Guilherme. O casamento é uma coisa tão estranha!... É como se vivêssemos a vida de outra pessoa. Quando Monty sofre - eu sofro também!
Acabara por descarregar toda a sua impaciência para cima de Luísa.
- Acaba lá com isso! - ordenara-lhe. Luísa era daquelas mulheres a quem um homem tem, por força, de dominar.
- Apesar de tudo, não havemos de deixar que tu sofras.

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- Não é em mim que eu penso... é nele - balbuciara, entre soluços. - Custa-lhe tanto esta decepção, logo ao princípio da nossa vida de casados!
- Ah, o Monty?!... Ele se arranjará.
Então ela acusara-o, a chorar, de não compreender o casamento.
- Concordo contigo... - contemporizara ele, com ironia.
- Um dia compreenderás - ameaçara ela, a enxugar as lágrimas e tentando sorrir-lhe. - Ouve cá, meu querido: ainda não pensas em ninguém? Que é feito da linda Elisa Vanderwort?
- Não penso nela há meses.
No mesmo instante sentira vontade de tomar ar e apanhar um bocado de sol.
- O melhor que tens a fazer é ir arranjar-te, senão a mãe, se te vê assim, percebe tudo - dissera, para se ver livre da irmã. O que mais lhes custara, aliás, durante o dia, fora ocultar da mãe o que se passava.
Finalmente pudera sair de casa, dirigir-se à estação, saltar para o primeiro comboio, e estar ali, uma hora depois, diante do seu quadro.
- Volto amanhã, com certeza... - exclamou, desviando a vista do retrato e voltando-se para o modelo. - Ruth... porque não hei-de chamar-lhe Ruth?... Eu chamo-me Guilherme, já sabe... Guilherme, simplesmente.
- Está bem... Está bem... Guilherme.
Junho, Julho, Agosto. Ruth continuara a posar para o retrato, horas e horas, imóvel, - ela, uma rapariga forte, cheia de energia. Assim decorrera o Verão, no arrastar dessas horas e desses dias. Nunca julgara que o tempo custasse tanto a passar. As lides da casa e do campo não tinham fim. Agora conhecia o valor do tempo. Quando Guilherme não vinha, embora andasse activa, de um lado para o outro, com a sua calma habitual, as horas pareciam-lhe durar o dobro; à noite, sentia-se exausta de tanto esperar, lá por dentro.
A sua angústia era nunca ter a certeza de quando ele

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vinha. Às vezes deixava de aparecer dias e dias - e depois, de repente, surgia-lhe cheio de impaciência, como se, porventura, fosse a culpada de não estar pronta e à espera dele, ao pé da janela. E, no entanto, estava sempre pronta e à espera, porque sabia bem quanto o amava, desde o primeiro dia, desde a primeira hora. Amava-o até ao ponto de lhe doer o coração. O retrato estava quase acabado. Que seria dela, depois? Ele ir-se-ia embora e nunca mais o tornaria a ver. Acabariam as longas tardes, na cozinha, com ele a pintar e ela a contemplá-lo. Nunca mais teria ocasião de o observar, enquanto ele trabalhava, olhando para ela sem a ver, com aqueles seus olhos escuros... Ele só via a rapariga do retrato - era a sua impressão, às vezes - e então tinha ciúmes:
- Ela é mais bonita do que eu, não é? - perguntava nessas ocasiões, só para o ouvir dizer-lhe que não.
- Não... não é. Está é muito parecida.
- Eu não tenho os olhos assim tão azuis!
- Não há no mundo olhos mais azuis, e eu nem sequer sei reproduzir metade da sua luz!
Ficava, então, mais sossegada, recaindo no seu mutismo, enquanto Guilherme continuava a trabalhar.
Em meados de Agosto, o quadro estava pronto, por assim dizer. Ele continuava a retocá-lo, mas ambos sabiam que estava acabado.
- Mais uma semana - disse o pintor um dia, subitamente - e ficará pronto de todo.
- Depois não tornarei mais a vê-lo - dissera Ruth, em voz baixa, mas distintamente.
- Porque não? - respondera, risonho. Revolvera-se-lhe o coração ao ouvir as palavras de Ruth, mas não lho quis dar a perceber. Conhecia bem o ardor do seu temperamento, e sabia que não era capaz de resistir à beleza e ao amor. E Ruth era tão meiga! Era exactamente como a imaginara, tal como parecia! Não era delicioso?
Aquele estranho Verão estava quase a acabar. Guilherme viera ao casal durante dias seguidos. Outras vezes

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não aparecera. Passara mesmo duas semanas em Bar Harbor e reatara as suas relações superficiais com Elisa. Ignorava o que o pai resolvera para ajudar Monty; quando lhe era possível, fugia sempre de questões de família. Mas alguma coisa se fizera, sem dúvida. Que sua mãe dirigira as operações nesse sentido, era fácil de deduzir do incremento da sua autoridade sobre Monty. E ficara um tanto admirado, ao ver a maneira como este aceitara a situação, embora lhe não interessasse saber mais nada a tal respeito.
Elisa era uma linda mulher, mas nunca a desejara pintar. Beijara-a, no entanto, uma ou duas vezes. A primeira fora num baile, em casa dela. Levara-a para o terraço que dava para o mar, como quase todos os terraços locais. A casa do pai dele também tinha um, bem mais interessante até do que o outro, onde estivera com Elisa, naquela noite de brisa serena, quando, instigado pela lua e pelo mar, a cingira e beijara. Fora um beijo suave, perfumado e quente. Ela esperara um momento, em silêncio, aguardando uma palavra sua. Se então lhe houvesse proposto casamento, ela aceitaria, com certeza. Mas, em vez da palavra esperada, ele murmurara apenas, num suspiro:
- Perdoa!
Ela esperara mais um instante ainda; depois desviara-se, delicadamente.
- Não há nada a perdoar - dissera com singeleza. Nunca estivera tão perto de a amar, como então.
- Olha! Andará ali algum barquito, a estas horas, no mar?
Sem dizer nada, Elisa afastara-se, abandonando o terraço.
Beijara-a ainda, mais uma vez, outra noite, e também nada lhe dissera. Abandonara-se-lhe, simplesmente, nos braços e, com surpresa sua, retribuíra-lhe o beijo. Se não o houvesse beijado - perguntara a si próprio várias vezes - ter-se-ia resolvido a casar com ela? Elisa era muito bela, duma beleza que mais ainda se acentuava e brilhava com o soberbo aprumo que sabia imprimir às palavras e aos gestos.

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Sentir ceder esse orgulho e desvanecer-se esse aprumo à pressão dos seus lábios, seria de perder a cabeça. Mas Guilherme repelira a tentação. Havia um pedido naquele beijo, e ele furtava-se a todas as solicitações. Sentira então que nunca poderia casar com Elisa. Na manhã seguinte, partira e voltara ao casal.
Quando se encontrava junto de Ruth, era como se estivesse só. Nada lhe perturbava o pensamento. E, todavia, quando a fitava - ela lá estava, silenciosa, à espera.
- O senhor tem decerto muito que fazer na cidade - dissera-lhe Ruth. - Não se devia incomodar em vir aqui.
Ele nada prometeu. Conhecendo o ardor do seu temperamento, sabia muito bem que tal ardor, numa natureza como a sua, podia esfriar num momento de desagrado, como de facto sucedera com Elisa. Via agora aquela casa e aquela cozinha, a própria Ruth, com todo o apreço. Mas não podia abstrair, também, de coisas que não eram belas e lhe causavam viva impressão - como o pai e a mãe dela, cujo bom natural os satisfazia, mas que talvez não fosse o bastante para si. O senhor Harnsbarger falava, tossia e escarrava com impulsiva liberdade; quanto à senhora Harnsbarger, era uma pobre mulher. Às vezes perguntava a si mesmo como fora possível Ruth haver nascido daquelas duas criaturas. Ruth tinha um irmão, chamado Tomás, que trabalhava no alquilador da aldeia. Guilherme conhecera-o num dia tempestuoso e de chuva.
- Pergunte pelo Tomás na aldeia... ele o levará de carro à estação - dissera-lhe a senhora Harnsbarger.
Dentro do ligeiro veículo, de dois lugares, tivera tempo, numa hora, de sondar o íntimo do rapaz. Era um simplório, de bom coração e muito falador, que só vivia para os cavalos.
- Ainda pensei, em tempos, em vir a ser veterinário confessara-lhe - mas o meu velho não mostrou muita vontade de largar o dinheiro para eu aprender a tratar de animais. Por isso arranjei este emprego nas cocheiras. Parece-me que foi o melhor que tive a fazer. Penso em casar

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com uma rapariga que tem qualquer coisa de seu. Chama-se Linda Hofsammer, e queremos montar um negócio por nossa conta.
- Mais dia, menos dia, o automóvel virá a prejudicar o vosso negócio - disse-lhe Guilherme.
- Não me parece que as pessoas normais possam passar sem cavalos - respondera Tomás, jovialmente.
Nessa noite - recordava-se perfeitamente - chegara a casa tão tarde, que se vira obrigado a contar à mãe o que fizera. Havia convidados para o jantar e a demora do filho aborrecera-a. E assim, em virtude dum velho temor pueril, a que deixara de ligar importância, mas que, no entanto, ainda não conseguira vencer, faltara à sua promessa de nada dizer à mãe a respeito de Ruth.
- Estive a pintar, minha mãe, e por causa da trovoada demorei-me.
- Fazes o favor de me dizer onde está esse maravilhoso quadro?
Sentada à cabeceira da comprida mesa de mógono, a senhora Barton parecia nessa noite mais alta, por trazer na cabeça um pequeno diadema de diamantes. Ao vê-la, Guilherme não pôde dominar um estremecimento de coração, como costumava acontecer quando era criança, e ela lhe entrava de rompante no quarto, vestida para sair, e o repreendia por qualquer falta cometida durante o dia.
- Está num casal, a algumas milhas distante daqui - dissera ele, vivamente. - É maravilhoso... uma velha cozinha, escurecida pelo fumo, e uma linda camponesa.
- Trá-lo cá para eu ver - ordenara-lhe a mãe.
Trouxera o quadro para casa, nessa noite, com a intenção de trabalhar nele, no dia seguinte, se chovesse. Assim, não teve outro remédio senão ir buscá-lo, lá acima, ao estúdio, arriscando-se aos comentários dos presentes. Se a mãe gostara ou não, ignorava-o. A senhora Barton erguera as lunetas de aros de oiro e fixara o quadro... fitando exclusivamente - bem o sentira - a figura de Ruth. O pai limitara-se a murmurar qualquer coisa acerca das sombras que se viam sob as traves. Não lhe disseram mais.

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nada, nessa ocasião, nem mais tarde. Mas ouvira a mãe repetir, desde então, às pessoas das suas relações:
- Venham cá ver um quadro do Guilherme... Vai apresentá-lo na Academia, este Inverno... é uma pequena camponesa! Dir-se-ia que foi pintada lá fora, mas o mais extraordinário é que não foi. É uma rapariga duma herdade da Pensilvânia.
- Está muito bonito - concordava o pai, sentenciosamente.
E muitas vezes Guilherme tivera de estar junto da tela, obrigado a mostrá-la, e sempre um tanto ou quanto irritado contra essas belas mulheres, elegantemente vestidas, amigas de sua mãe, e envergonhado perante o silêncio do pai.
- "Que lindo!" - suspiravam as senhoras. - "Bonita pequena..." "Como a cozinha é curiosa!" "Podia ser flamenga". "Ou bretã". "Não, é holandesa".
E, contudo, nenhuma daquelas criaturas deixaria de se sentir horrorizada, se ele dissesse: - "Eis a rapariga a quem eu amo".
Ainda bem que não estava... muito apaixonado por ela.
- Vou-lhe mandar um passe para andar nos comboios da companhia de meu pai - dissera uma vez a Ruth - e ainda se há-de ver a si, um dia, numa exposição de pintura, em Nova York.
- E o senhor estará lá?
- Claro que hei-de estar - respondera Guilherme, com aquele sorriso pelo qual, tão penosamente, Ruth se habituara a esperar por ele, um sorriso que a tornava triste, e, ao mesmo tempo, a fazia feliz. Se não pudesse tornar a vê-lo, antes queria morrer. Se, porventura, ele se fosse embora, se nunca mais o voltasse a contemplar, toda a gente morreria para ela.
Um dia, em princípios de Setembro, o quadro ficou pronto, finalmente. Guilherme não podia continuar a pretender o contrário, nem a esconder o verdadeiro motivo das suas visitas ao casal. Não podia lá voltar outra vez, sem confessar a si mesmo a realidade do que nessa manhã

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negara à mãe. A senhora Barton acabara por lhe falar no assunto. Ia ele a descer para o pequeno almoço, quando o chamara do quarto, à sua maneira, directa e autoritária:
- Guilherme! Anda cá, fazes favor!
Quando entrou, estava a mãe a tomar a refeição na cama, os cabelos, já grisalhos, finamente enrolados, uma casaquinha de renda pelos ombros.
- Bom dia, minha mãe.
- Senta-te - respondera ela, antes de lhe dizer: Guilherme, estou preocupada por ver que não acabas esse quadro. Nunca levaste tanto tempo a pintar qualquer outro. Não estarás a comprometer-te com essa rapariga?
- Decerto que não - retorquira, indignado.
- Isso nunca daria resultado, sabes? - insistira a mãe, partindo um bocado de torrada e barrando-a de manteiga.
- Serias muito infeliz. O casamento só é tolerável entre pessoas da mesma classe. E, mesmo assim, nem sempre...
Mais nada respondera. Descobrira há muito que o silêncio era o melhor processo para se libertar da mãe.
- Bem, vai ao teu almoço; mas, antes disso, parece-me que me podes dar um beijo.
Quando se aproximara, ela agarrara-lhe subitamente na mão, segurando-a na sua, delgada mas forte, e instara ainda:
- com certeza?
- Não seja tontinha, minha mãe - negara ele, com impaciência, inclinando-se para a beijar. - Como se fosse possível!
E saíra de junto da mãe, convencido de que, na realidade, tal coisa lhe não podia acontecer.
Já a tarde ia avançada, quando dera o último retoque na tela. Quisera tornar ainda mais profundo o azul dos olhos de Ruth. Por fim, poisara os pincéis e dissera:
- Pronto! Venha ver como ficou.
Ela veio pôr-se a seu lado e ficara a olhar o quadro um momento, pensativa.
- É assim que eu lhe pareço? - perguntou.
- É.

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O que Ruth via era uma rapariga rosada e robusta, cheia de saúde, de vestido azul e avental branco. Lá estavam também as suas mãos, as suas mãos um tanto rudes, que sempre a envergonhavam. Ele não lhas poupara.
- Vão talvez rir-se de mim, em Nova York.
- Vão achá-la bonita.
- Afinal, podia muito bem ter posto o meu vestido dos domingos.
- Pois não devia usar nada que não fosse azul, para condizer com a cor dos seus olhos - disse ele, acrescentando, como que a brincar: - É capaz de me prometer uma coisa?
- O que é? - perguntou vivamente, com o coração suspenso. Que podia ele querer senão confessar-lhe o seu amor?
- Não use nada senão azul.
- A emoção foi tão forte que esteve a ponto de chorar. Afinal, não era nada do que pensara.
- Não posso prometer... O meu vestido melhor é cor-de-rosa - balbuciou.
- Eu estava a brincar - apressou-se ele a dizer.
- Além disso - teve ela coragem para acrescentar - que lhe importa isso, se não nos tornamos a ver?
- Não se esqueça de que vai a Nova York - disse-lhe, risonho.
Guilherme ocupara-se, entretanto, a arrumar os pincéis e as tintas. Depois de dobrar o cavalete, pegou no quadro, que não era muito grande, e meteu-o num caixilho da sua inventiva, para proteger as telas ainda húmidas.
Estava pronto a partir.
- Não lhe direi adeus - disse o mancebo - porque nos voltaremos a ver.
Ruth nada disse. Estendeu-lhe a mão, esforçando-se por não chorar. Ele viu-lhe lágrimas nos olhos, mas não quis ter a galantaria de a confortar. Apertou-lhe a mão, nervosamente.
- Quando abrir a minha exposição, escrevo-lhe - disse-lhe ainda, no mesmo tom jovial.

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Ruth percebia tão pouco de exposições de pintura que mal o ouvia. Guilherme ia-se embora - eis tudo - e ela amava-o. E ele, vendo-lhe nos olhos tudo quanto sentia, estremeceu, hesitou, quis estar longe dali, ou que viesse alguém naquele momento, ou que, pelo menos, ela não fosse tão linda, que o seu hálito não fosse tão suave, que Ruth representasse menos para ele... Ou, então, mais! Esteve um segundo indeciso; depois, irritado consigo mesmo, agarrou-a pela cintura, com o braço que tinha livre, e beijou-a... um instante apenas. Logo a seguir, abandonou a casa, precipitadamente, metendo pela vereda abaixo.
- Com mil diabos! - dizia pelo caminho, furioso por sentir o coração a bater-lhe desordenadamente.
Quando Guilherme entrou no belo e cerimonioso vestíbulo de sua casa, viu brilhar as chamas dum lume vivo, por entre os reposteiros de veludo escuro da sala de estar. Para lá se dirigiu, indo encontrar os pais junto do fogo, aguardando que o jantar fosse servido. Ficou de pé, pois estava em fato de passeio, com o quadro debaixo do braço.
- Já o acabei - anunciou.
- Mas acabaste de vez? - perguntou a mãe.
- Completamente - respondeu, percebendo o segundo sentido daquelas palavras.
- Nesse caso, deixa-o cá ver - disse o pai.
Guilherme aliviou a prensa que segurava a tela e foi pôr o quadro sobre a prateleira do fogão, entre os castiçais de prata acesos. A luz era boa. Dava excelentes contrastes de sombra e relevo ao quadro. Nunca a sua técnica tridimensional resultara tão bem. O pai levantou-se para examinar a tela.
- É a melhor coisa que fizeste até agora - acabou por dizer.
- Eu sei... - respondeu Guilherme. Fora, de facto, o único trabalho que o satisfizera completamente quando o acabara. O pai devia estar a ponderar, de si para si, naquele momento, se o quadro seria suficientemente bom para figurar na sua colecção.

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- É na realidade bom - acrescentou o pai, um tanto hesitante. - Falta-lhe qualquer coisa, talvez, para ser uma obra da maturidade dum artista... mas o tempo corrigirá esse defeito.
- Ah, não é uma obra perfeita, evidentemente! - concordou Guilherme, a rir. - Sei que não está à altura de figurar entre os seus imortais. Mas hei-de conseguir chegar lá um dia!
O pai sentiu-se aliviado com a jovialidade do rapaz.
- Estou certo que sim, meu filho.
- Agora que tens os quadros prontos para a exposição - disse a mãe - queria saber se gostarias de passar o Inverno em Nova York... já falámos nisso, eu e teu pai... talvez te conviesse arranjar um apartamento de solteiro, em qualquer ponto da cidade, onde pudesses receber os teus amigos, e trabalhar também.
Percebia perfeitamente o plano da mãe, e esteve vai não vai para lho dizer, rindo outra vez, quando lhe ocorreu que talvez lhe conviesse ter casa própria em Nova York.
- Obrigado... aceitarei com prazer o seu interesse, minha mãe - agradeceu, simplesmente. - Agora vou-me vestir para o jantar. É só um minuto.
Não tirou o quadro de sobre o fogão, repeso e divertido, ao mesmo tempo, com a sua instintiva relutância em o deixar a sós com eles. Sabia muito bem que mal virasse costas haviam de examinar, com ansiedade, a figura de Ruth. Ela, porém, saberia sustentar os seus olhares inquisidores - pensou de si para si. Não seriam capazes de perturbar a sua serenidade. Sentiu-se um tanto envergonhado com o beijo que lhe dera. Mas não seria ela capaz de suportar isso, também? Como os seus lábios haviam sido doces, como eram tímidos e suaves! Lembrou-se do beijo langoroso de Elisa, com súbita aversão. Os lábios de Ruth eram como lábios de criança. Àquela distância, no seu quarto familiar e aquecido, o beijo nada lhe parecia já. Não fizera mal nenhum à pequena, e sentia, por isso, um certo orgulho. Nem todos os homens seriam capazes de portar-se tão correctamente com uma criatura tão ingénua

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e linda. Retirara-se até sem promessa definida de se encontrar de novo com ela. Assim, iria adiando, de dia para dia, esse encontro, até de todo se extinguir o desejo de a tornar a ver. Então, ser-lhe-ia fácil esquecer que lhe dissera para ir a Nova York. Desta maneira sossegava o coração. Por outro lado - pensava - se lhe custasse muito não a tornar a ver mais, se tal desejo não fosse fácil de repelir, sempre podia chamá-la à cidade. Tudo era possível. Não fechara nenhuma porta. Tudo dependia do que sentisse. E, antevendo todas as possibilidades de satisfazer qualquer necessidade do seu coração, acabou por serenar. Desceu, ligeiro, as escadas, feliz, excepcionalmente bem disposto. O retrato dela lá estava, sobre a prateleira, mostrando os seus olhos firmes, azuis-escuros, erguidos, num momento em que parara de cortar o pão, que segurava numa das mãos, em cima da mesa da cozinha. Quando entrou na sala, pareceu-lhe que naquele instante ela levantara os olhos à sua chegada.
- Que título vais dar ao quadro? - perguntou-lhe o pai. Guilherme deteve-se, fitando os olhos resolutos de Ruth. Nunca pensara nisso.
- "O pão nosso de cada dia nos dai hoje!" - disse o rapaz, sentindo que não podia encontrar título mais justo.
No casal, depois da ceia, Ruth andava dum lado para o outro na cozinha, forçando a imaginação para fazer uma ideia do que seria a casa dele. Estava a peneirar farinha, a misturar banha de porco com leite, e a pesar fermento para fazer pão. Em cima da mesma mesa, junto da qual passara tantas horas enquanto ele a pintava, Ruth estava agora mexendo a massa no alguidar de barro escuro, e a virá-la sobre a tábua para a primeira amassadura. E, enquanto fazia isto, os seus pensamentos tentavam, penosamente, ver o que nunca vira, em que espécie de casa vivia ele e que fatos usava. O jantar era à noite. Sabia isto porque lhe ouvira dizer muitas vezes: "Não me posso demorar... não quero chegar atrasado para o jantar... meus pais não gostam".

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- Jantar?!... Ceia, quer dizer... - exclamara, da primeira vez. Ele, então, explicara-lhe.
Lá em casa, todas as noites, ele e os pais vestiam trajos de cerimónia, e depois é que se sentavam à mesa... Era coisa que não havia meio de compreender!
- Não vão a qualquer lado, quando se vestem assim? - perguntara, pasmada.
Ele rira-se, e respondera:
- Só às vezes.
Imaginava-os em casa, sentados, muito bem postos. Que fariam eles? Vivendo todos na mesma casa, não teriam muito que dizer uns aos outros. Ela e os pais pouco falavam, durante horas a fio, a não ser a respeito do trabalho.
Dava suspiros, enquanto amassava o pão com as suas mãos fortes, enterrando os polegares na massa tenra, a dobrá-la. O fermento não tardou a produzir o seu efeito. Pequenas bolhas apareciam na massa. O pão começava a levedar. Enrolou a massa, tornou a pô-la no alguidar, e cobriu-a com uma toalha limpa. Deu, em seguida, mais umas voltas pela cozinha, apagou o lume, e pôs os pratos na mesa para o almoço do dia seguinte, logo de manhã cedo. Esses trabalhos simples deixavam-lhe a mente livre para pensar em Guilherme. Apesar das suas tentativas, não conseguia ver onde este estava. Só o via ali, naquela cozinha, onde passara horas e horas a contemplá-la. Para melhor o recordar, foi-se pôr ao pé da mesa, na atitude em que ele a colocara, e ficou-se a olhar para o sítio onde Guilherme sempre estivera, de modo a não interceptar a luz que passava pela porta aberta e vinha incidir na tela.
Mas não, ele não estava ali; e para além da porta, fechada, só havia a noite.
"Nunca mais aqui virá", pensou, esforçando-se por acreditar na sugestão. "Está tudo acabado", dizia de si para si, ao subir as escadas, para o seu quarto. "E é melhor assim", concluiu consigo mesma, despindo-se e metendo-se na camita baixinha, "porque não sou da sua condição".

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E para ali ficou acordada, sem chorar, mas muito triste e muito humilde, a convencer-se da implacável realidade.
"O pior de tudo - dizia Guilherme consigo próprio, irritado - era não poder pintar em Nova York". Com efeito, nos seus aposentos, com boa luz, do lado norte, a entrar pela sala que transformara em estúdio, não conseguia pintar. A cidade oferecia-lhe inúmeros motivos. Via-os por toda a parte. Mas, ao pegar nos pincéis, fugia-lhe a inspiração. Não sentia coragem para trabalhar.
A princípio, atribuíra a sua inquietação, simplesmente, ao facto de estranhar o novo local e à excitação que lhe dera o êxito. Devia o sucesso, em grande parte, a Luísa, grata pelo pretexto, que lhe proporcionara o irmão, de poder convidar para sua casa pessoas que, de outra forma, não teriam motivo para ir jantar com ela e Monty. Luísa achara a sociedade de Nova York fria e reservada. Filadélfia parecia-lhe ficar noutro continente. Descobrira, também, que Monty tinha inimigos. Todas as vezes que perdia dinheiro em proveito do povo, mais o detestavam.
- Mas porquê - lamentara-se uma vez a Guilherme
- se ele tem feito todo o possível para os enriquecer? Monty perde o seu dinheiro, também, mas parece que nunca dão por isso.
Guilherme gostara de representar o papel de uma espécie de jovem leão da moda. Era elegante - tinham-lho dito. A própria Elisa confirmara, à sua maneira, um tanto desenvolta, que fazia parte do seu encanto, discreto mas ardente.
- Estás muito mais bonito - confessara-lhe, no primeiro jantar em casa de Luísa, em que ficara à sua direita.
- Dás-te bem com os ares do campo.
Reflectira um momento, e depois respondera no mesmo tom, recebendo com um sorriso o olhar de relance que lhe deitara Elisa com as suas pupilas de âmbar:
- Vamos a ver se me darei bem com os ares de Nova York.
Quando ela voltara a cabeça, como resposta, também não estranhara o gesto. À sua direita sentava-se outra

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linda rapariga, bela a valer, que também o não impressionou. Nova York estava cheia de formosas raparigas, não havia dúvida. Quando do seu primeiro êxito, vira-as andar à sua volta, como um enxame de abelhas, e bem pouco reparara nelas.
Precisava de ser austero para realizar a sua obra. A exposição fora altamente apreciada. Vendera quase uma dúzia de quadros. Recebera inúmeras ofertas pelo retrato de Ruth, mas respondera sempre que o quadro não era para negócio. Adivinhara, no entanto, que teria de o vender o mais depressa possivel. Enquanto o conservasse em seu poder, não conseguiria esquecer-se de Ruth, e agora resolvera olvidá-la. O quadro estava pendurado na parede fronteira à entrada da galeria. Contemplava-o a sós, vezes sem conta, para ver aqueles olhos azuis a fixá-lo. Às vezes, deixava-se ficar diante da tela, a examinar o carácter da sua arte... ou, pelo menos, era isso o que pensava. Mas, sempre que tal sucedia, julgava encontrar-se, de novo, com Ruth, sentir a presença dessa estuante e robusta saúde, que purificava com a sua simplicidade tudo quanto a cercava. Nessas ocasiões custava-lhe separar-se dela. "Tenho de o vender", dizia consigo, por compreender que Ruth não era feita para aquele meio. E era ali, em Nova York - começava a acreditar - que precisava de fazer a sua vida.
Mas, à medida que se prolongava a exposição, cada vez se sentia com menos coragem para se desfazer do quadro. Por fim, num acesso agudo de ciúme, retirou-o da galeria. Muitos homens paravam a admirá-lo, olhando-o fixamente. O organizador da exposição protestara.
- Esse quadro foi elogiado por toda a crítica. Porque faz isso, quando o público vem cá especialmente para o ver?
- É por isso mesmo que o retiro.
- O senhor ainda é mais doido que a maioria dos artistas que conheço - replicara o director do certame.
Mas Guilherme não lhe dera ouvidos. O quadro estava agora no seu quarto, ao abrigo dos olhares profanos de outros homens. A principal razão por que o retirara da galeria fora ter visto dois amigos seus a admirá-lo.

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- O modelo é pessoa tua amiga? - perguntara-lhe um deles.
- É a filha dum lavrador que por acaso encontrei, este Verão, numa das minhas excursões, e que retratei na própria cozinha - respondera, friamente.
- És capaz de nos dar a sua morada, meu velho? - pedira o outro, com ar trocista. - Podia dar-se o caso de passarmos por lá...
A conversa não podia ser mais insignificante, mas, de súbito, sentira-se irritado e tomara-a a sério, como um insensato.
- Isso seria uma incorrecção! - retorquira. Nesse mesmo dia retirara o quadro.
Agora, ao acordar de manhã, a primeira coisa que via era Ruth, com os olhos postos nele, e, ao deitar-se, antes de apagar a luz, o retrato era também a última imagem que lhe ficava na retina. Gostava da dispersão da sua vida diurna, mas, à noite, sentia que Ruth o chamava para casa.
Certa noite em que, por qualquer razão, não conseguia conciliar o sono, resolveu escrever-lhe, na esperança de ficar mais aliviado comunicando com ela. Sentou-se à secretária e expandiu os seus sentimentos numa carta animada e vibrante. Queria que Ruth soubesse que não se desfizera do retrato, que o pendurara no seu quarto, que não podia separar-se dele. Qualquer dia iria vê-la, só para se inteirar de que estava viva e sã.
Meteu a carta no correio, sem a tornar a ler, receando achá-la ardente demais, lida de dia. Enquanto esperava pela resposta, punha-se a imaginar a espécie de missiva que Ruth lhe escreveria - ingénua, certamente, cheia de saudade, ditada pela sua inocência. Mas as semanas foram passando e a resposta não chegou. Quando perdeu a esperança de a receber, sofreu com isso. Aquele silêncio surpreendia-o; perguntava a si mesmo se Ruth o não esquecera.
Não descobria o verdadeiro motivo da falta de resposta. Quando recebera a carta, Ruth sentia-se tão infeliz que não tivera coragem para responder. Depois, mal compreendia

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a letra de Guilherme. Era uma linda carta, muito bem escrita, mas, para ela, habituada apenas a uma prosa singela e infantil, sem literatura, a missiva era de todo quase ininteligível. E, com a sua instintiva reserva, em parte resultante da ignorância, que a levava a guardar todas as coisas da sua vida íntima só para si, não a mostrara a ninguém. Passava horas na sua mansarda, tentando descobrir o sentido oculto do conteúdo da carta, copiando cada preciosa palavra que conseguia decifrar. Quando a leu até onde pôde, chegou à triste conclusão de que nunca seria capaz de lhe responder. A sua letra só serviria para a fazer diminuir no conceito de Guilherme - e a ortografia era deplorável. Fizera apenas exame de primeiro grau, na escola da aldeia. Quando devia continuar os estudos, a mãe caíra de cama, em virtude de uma queda, e o pai tirara-a da escola, por necessitar dos seus serviços.
"Estou muito abaixo dele, em todos os sentidos", dizia de si para si. Um dia, dobrou a carta em muitas voltas, até a fazer pequenina, coseu-a num retalhinho de seda encarnada, prendeu-lhe um fio e pendurou-a ao pescoço como um amuleto.
Se Ruth lhe tivesse escrito, talvez a sua carta o deixasse indiferente. Assim, parecia-lhe que devia tornar a vê-la, quando mais não fosse para certificar-se de que não a amava. Às vezes comparava-a, intencionalmente, com Elisa. Depois de esperar todo um Inverno, esta acabara por anunciar, de repente, o seu casamento com um inglês que ninguém conhecia. Dissera-o a Guilherme, de chofre, um dia em que se encontraram na avenida. Acabara de visitar, mais uma vez, a sua exposição - confessara-lhe também.
- Mas não pintaste mais nada! - acrescentara ainda.
- Tenho lá ido de vez em quando, a ver se vejo algum quadro novo, e...
- É verdade - atalhara, confuso - e não sei explicar porquê. Sinto vontade de pintar, mas quando pego na paleta, perco a coragem.
- Não há aqui nada que te inspire.

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Dissera isto convictamente, como descoberta sua. E, depois de uma pausa breve, prosseguira:
- Calculava encontrar-te hoje. Queria que fosses o primeiro a saber... Vou-me casar com Ronnie Bartram... Não o conheces. É inglês... um dos filhos mais novos de Sir Roger Bartram. Iremos viver para Londres.
Elisa dissera tudo isto, calmamente, diante dele.
Soprava uma brisa forte que lhe fazia ondular a saia escarlate e lhe crispava a enorme gola de peles do casaco preto. Levara a mão ao minúsculo chapéu encarnado para o segurar, e, nesse momento, ele viu quanto era bonita - o cabelo quase preto, os olhos de âmbar, a epiderme doirada, a boca vermelho-cereja. Reparara também que por detrás dela havia muitas flores. Era a montra de uma florista. O "quadro" fora escolhido de propósito? Nunca sabia dizer ao certo quais eram as intenções de Elisa - e de novo se sentiu afastado dela.
Insinuou-se-lhe, mais uma vez, no ânimo, o temor da sua infância, o temor que lhe produziam os olhos vigilantes da mãe, que tudo perscrutavam e o faziam sentir-se como prisioneiro. A espontaneidade desaparecera-lhe diante de Elisa, como costumava suceder-lhe em presença da mãe. Essa ideia irritou-o. Não havia motivo, realmente, para Elisa ser assim, tão voluntariamente intencional, em tudo quanto dizia e fazia. Há muito que se conheciam, para estarem com evasivas um para o outro. Não lhe disse nada, no entanto, por saber que teria de a ouvir argumentar sem fim, em resposta a qualquer queixa que formulasse.
Apesar da sua irritação, parecia-lhe que nada tinha a dizer, e, contudo, sentia-se absurdamente triste ao pensar que tudo estava acabado entre eles. Haviam crescido juntos no círculo fechado da sua casta.
- Desejo de todo o coração que sejas muito feliz, Elisa - acabara por lhe dizer.
- Não o desejas mais do que eu - retorquira ela. Sem saber como, atrapalhara-se.
- Não te parece... não irás tu... talvez... fazer uma tolice, Elisa?...

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- Não sei o que possas entender por tolice.
Depois encostara-se à montra, metera as mãos no regalo preto e acrescentara:
- Nós, as mulheres, temos de casar, bem sabes. Nenhuma pode prever se será feliz ou não. Enquanto não descobrimos se acertámos ou nos enganámos...
Poucas vezes a vira assim tão séria, que ficou embaraçado.
- Nesse caso... deixa-me desejar-te, mais do que nunca, felicidades - dissera ainda.
- Obrigada - respondera ela, estendendo-lhe a mão pequenina, enluvada de preto. Ele reteve-a um momento e apertou-a, querendo dizer mais qualquer coisa, embora soubesse que nada mais havia a dizer. Elisa retirara a mão vivamente, despedira-se com um aceno de cabeça e afastara-se.
- Ele deitara um olhar à sua figura graciosa, de ombros leves como asas e de cabeça aprumada. Sentiu a sua irritação dissipar-se, e, de repente, julgou-se capaz de a amar como nunca. Era uma mulher da sua condição e do seu mundo. Havia grandes afinidades entre os dois. Teve vontade de correr atrás dela, mas dominou-se. Para quê persegui-la? Que lhe diria? Não lhe interessava convencer ninguém de coisa alguma.
Voltando a casa, ficara muito tempo a contemplar o retrato de Ruth, a compará-la com Elisa, feição por feição, a distinguir em ambas todas as diferenças, e, das duas, acabou por escolher Ruth. Elegeu-a pela sua franqueza e simplicidade. Os seus silêncios não dissimulavam provocações, e, quando ela falava, podia aceitar as suas palavras tais como eram e não pelo que deixavam por dizer. Queria libertar-se para sempre da opressão que sofria desde criança.
"Ela saberá conservar-se pura", pensou ternamente. E imaginou-a como a um jardim de delícias fechado, uma beleza que só ele e mais ninguém conhecia.
Chegada a Primavera, não pôde resistir mais à saudade.

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A pintura era apenas um pretexto para a visitar. Ruth era deste mundo e podia ir vê-la.
Partiu em Maio, sem ir a casa dos pais nem dizer a ninguém que saía da cidade. No trajecto ia rogando a todos os deuses para a encontrar só - e na cozinha, para ver o seu quadro com vida. Afervorou a prece à medida que se aproximava do casal. Não levava pincéis nem tintas. Desta vez não ia com intenção de pintar. Ia vê-la.
Arranjara as coisas para lá chegar a meio da tarde. Lembrara-se que Ruth costumava estar mais despachada a essa hora. Ao aproximar-se da porta da cozinha, o coração pulsava-lhe com força. A porta aberta... Olhou para dentro. Ela não estava - não havia ali ninguém. O coração desfaleceu-lhe, tão precipitadamente, que julgou ir perder os sentidos. Entrou. A casa estava limpa e sossegada. Pareceu-lhe que Ruth saíra dali momentos antes. A sua perturbação ainda o fazia senti-la mais perto de si. Sentou-se, esperando vê-la entrar, em vez do pai ou da mãe. Conservava, no entanto, consciência do seu estado; era preferível, sabia muito bem, que viesse primeiro qualquer dos dois para o chamarem à realidade. Sentia-se aterrado com a força e a profundidade do seu desejo, e não seria capaz de explicar a sua visita, senão dizendo que viera, simplesmente, para a ver. Como lhe pareceria ela, agora, um Inverno depois, um Inverno passado entre gente tão diferente?
Olhou em redor. Tudo na mesma, excepto a mesa, junto da qual Ruth posara. Costumava estar ao pé da lareira, mas via-se agora perto da janela, onde a colocara. Lá estava o móvel, sem nada em cima, mostrando o tampo velho e polido pelo uso. Observara tudo isto com um estranho sentimento de regresso ao lar, como se houvesse nascido e passado a infância naquela casa. O silêncio amplo e profundo, o ligeiro tiquetaque do relógio de caixa alta, ao canto, o sol a entrar pela porta, a chaleira luzidia em cima do fogão, as cadeiras brunidas pelo uso, os panos da loiça pendurados no seu gancho - parecia lembrar-se de tudo aquilo desde a infância. Com dificuldade podia imaginar

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sítio mais diferente daquele onde realmente nascera e vivera em criança. Não conseguia compreender aquele sentimento de regresso ao lar, que nunca experimentara.
Passado algum tempo, entreviu Ruth pela porta aberta. Vinha a descer o caminho do pomar, em direcção à cozinha. Numa das mãos trazia um sacho e na outra uma cesta. Caminhava direito a ele, a cabeça levemente inclinada, a luz do sol a dar-lhe nos cabelos castanhos, com expressão grave no rosto. Estava mais delgada, mas mais adorável do que nunca. Ele levantou-se e ficou à espera, o coração a bater-lhe, palpitante de felicidade por encontrá-la. Como atraída por força irresistível, Ruth ergueu a cabeça e viu Guilherme. Largou a alfaia mais o cesto e foi direita a ele sem a menor hesitação. Não disseram palavra. Fitaram-se nos olhos. Ele a atraí-la, ela obedecendo à atracção, até ficarem face a face. Ele, então, abriu os braços e Ruth caiu neles. Guilherme encostou a cara aos seus cabelos. Assim estiveram largo tempo, abraçados. Não fora esse o seu desígnio, mas assim o desejara. E ela sentia o mesmo.
Depois, pegou-lhe no queixo, fê-la erguer o rosto, docemente, e beijou-a. Assim, sem uma palavra, lhe descobriu e declarou o seu amor.
...A senhora Harnsbarger transpôs a casa de entrada, sem ruído, com as suas pantufas silenciosas, de feltro, e parou à porta da cozinha. Esquecera-se de pôr as batatas de molho, para o fermento. O que viu fez-lhe esquecer tudo, de repente. Era a sua Ruth, e um homem tinha-a nos braços!
- Então, então - disse ela, repreensivamente. Separaram-se logo, ficando apenas de mãos dadas.
Guilherme começou a gaguejar:
- Eu... eu... não admira que fique surpreendida, senhora Harnsbarger.
- Surpreendida, não é bem... - respondeu esta, devagar. - Pasmada!
O que vira só podia significar uma coisa, para ela.

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- Achei que não podia passar sem Ruth - declarou Guilherme, olhando-a, sorrindo.
Ruth, porém, estava séria e nada dizia. A senhora Harnsbarger sentou-se.
- Bem, meu rapaz - começou por dizer, sem ter coragem de prosseguir.
Ruth continuava calada. Sem retirar a mão, olhava para Guilherme, com os seus grandes olhos límpidos. Perante aquele silêncio, sentiu-se obrigado a falar. Tentou fazê-lo com a maior dignidade possível, embora sentisse, de certa maneira, o absurdo da situação.
- É claro que tencionava pedir-lhe autorização, minha senhora... e a seu marido. Mas isto acaba de nos acontecer agora mesmo.
- Não sei o que ele dirá - volveu a senhora Harnsbarger.
Guilherme sentiu-se contrariado.
- Espero que não me faça objecções - retorquiu, ao mesmo tempo que pensava, com desdém, como seria divertido ver-se reprovado por aquele rústico e mais a estúpida consorte!
- Nós tencionávamos casá-la com alguém que nos pudesse ajudar nos trabalhos da fazenda - continuou a senhora Harnsbarger, timidamente. - Alguém como o Henrique Fasthauser, sabes... - explicou, voltando-se para a filha.
- Só me casarei com Guilherme - retorquiu Ruth. O jovem puxou-a para si.
- Como vê - exclamou - queremos a mesma coisa! Sentia-se puerilmente grato por semelhante atitude.
Era gentil da sua parte havê-lo escolhido, mesmo quando o seu rival era apenas um certo Henrique Fasthauser. Perguntava, ao mesmo tempo, de si para si, quem seria o homem - se Ruth pensara nele, alguma vez. Enquanto assim discorria, apertava com força, na sua mão, a da moça, mão firme e robusta, no estreitar.
- De qualquer maneira, não há-de ser fácil, com teu pai - concluiu a senhora Harnsbarger.

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E, após um momento de mais prolongado silêncio, levantou-se e disse, suspirando:
- Parece-me que posso, entretanto, ir tratar do fermento.
Deixando a senhora Harnsbarger entregue à sua tarefa, Ruth e Guilherme dirigiram-se para a porta. Mas, antes de a transpor, Guilherme deteve-se. A lavradeira voltou a cabeça.
- Apesar disso, fale-lhe em meu favor, senhora Harnsbarger- disse-lhe com o seu mais cativante sorriso.
- Parece-me que Ruth conseguirá o que quer - respondeu ela, sem desviar os olhos do que estava a fazer.
- Tem levado sempre a sua avante.
Guilherme riu-se, mas a senhora Harnsbarger ficou séria, na mesma, de lábios contraídos, a preparar o fermento.
- Anda, Guillierme - disse Ruth com decisão.
Meteram pela horta, caminhando, cautelosamente, por entre filas de vegetais, e, passado o galinheiro, entraram no pomar. Agora, esclarecida a situação entre os dois, oprimia-os o peso do que tinham a dizer e a combinar. Além disso, cada um tinha o seu problema íntimo e grave a resolver. Ele pensava: "Como vou eu dizer isto a meus pais?" Ela conjecturava: "Como vou aprender o bastante, e depressa, para ser sua mulher?"
Nem um nem o outro encontravam resposta para tais perguntas, pelo que se refugiavam mais ardentemente na simplicidade do amor. Temendo, no íntimo, pelo que tinham concedido mutuamente, desejavam estar mais seguramente unidos para que ninguém os separasse. Uma vez no pomar, sentaram-se na erva alta e, assim escondidos, esqueceram todas as preocupações, entregues apenas à liberdade que fruíam naquele momento. Era mais fácil amar do que pensar. Ela ofereceu os lábios, com ávida delícia, ao esposo prometido. E este encheu-a de carícias, afagou-lhe o doce seio e os braços lisos, beijou-lhe as palmas das mãos. Cheiravam bem. Eram mãos lavadas, sem perfume. Ela retirou-as.

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- Tenho vergonha das minhas mãos - disse. - Não são próprias para as beijares.
- Mas eu gosto delas - respondeu Guilherme, apaixonadamente. - São fortes, abençoadas e belas. Quando as tenho nas minhas, sinto que possuo qualquer coisa.
E beijou-as de novo, levando-as ao rosto para as sentir melhor.
- Minha querida! Meu amor! - murmurava.
Ruth não encontrava palavras para lhe responder. Só podia ouvir, toda trémula. As palavras dele eram música, eram cânticos.
- Gosto de tudo em ti, da curva das tuas pestanas, do teu cabelo, dos teus seios. Quando caminhas, lembras-me a brisa que corre sobre a seara de trigo. És como a terra e a água, és como o pão e a luz!
Ela não fazia ideia nenhuma das palavras dele, mas adivinhava-o pelo tremor dos lábios, pelo fogo dos seus olhos profundos. E, quando a tomou nos braços, ela entregou-se-lhe. Porque não? Não iam casar? Não o desejara ardentemente? Naquela terra generosa não era pecado a união do homem e da mulher, quando o casamento devia sagrar o seu amor. Guilherme eliminou com vigor toda a ideia de precaução, qualquer possibilidade de arrependimento. Sentia que se encontrara a si mesmo - todo o seu ser.
- Não te quero fazer mal - murmurou com voz rouca. - Dize-me se te magoo.
Mas a jovem teria suportado qualquer dor, assim associada àquele prazer que a invadia, que lhe dava força e lha tirava, em que se perdia e encontrava, ao mesmo tempo.
Já não precisavam de falar. As palavras retardam e embaraçam a acção. Ela calara-se e ele não precisava de a ouvir. Bastava-lhe o seu corpo virgem e forte. Era o bastante para o satisfazer e lhe saciar a sede mais ardente. Depois invadiu-o uma paz como nunca sentira. Entre a terra e o céu, só estava ele.
Acabou por adormecer, com a cabeça deitada no colo de Ruth, que não fazia o mais leve movimento, mas se sentia

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desperta como nunca. Estava ali o seu marido. Estreitou-o com tão impetuosa ternura, que magoou os seios. Como ele estava acima dela! Mas este sentimento, que a fizera tremer, já não a assustava. Sabia agora como o confortar e aquietar. Não saberia dizer palavras de amor, mas dispunha de outros meios.
"Hei-de ser boa para ele... como ninguém seria capaz. Nunca lhe faltará o meu amor".
Quando voltou a casa, naquela noite, opôs à surpresa dos pais fingida naturalidade.
- Devias ter telegrafado, a dizer em que comboio vinhas, Guilherme - disse-lhe a mãe. - Podíamos ter ido esperar-te.
- Não sabia ao certo quando vinha.
Sentia-se inebriado com a suprema iniciação de amor que recebera naquela tarde. Via tudo ainda através desse véu de encantamento. Ruth e ele haviam regressado, à noitinha, ao casal, onde encontraram o pai dela, ciente já do que se passava, mas aguardando o pedido.
- Espero que se não oponha ao nosso casamento - dissera o rapaz.
- Não vale a pena, se Ruth assim o quer - respondera o pai - embora eu esperasse alguém para me ajudar na fazenda, depois que meu filho voltou as costas a isto.
E logo acrescentara:
- Mas olhe que eu estraguei-a, Guilherme... Ela é teimosa. Não a contrarie.
Depois, haviam começado a fazer projectos para o noivado. Reparara, então, que os pais dela, sim, e mesmo Ruth, estavam embaraçados com os seus planos. Ele não era um noivo vulgar. Como haviam de meter um homem da sua qualidade numa boda de aldeia? Mas, depois de alvitrar que não se realizasse nenhuma cerimónia, desistira imediatamente da sugestão. Devia haver uma festa - reconhecia-o - ou então não achariam o casamento digno. Ficou a cerimónia marcada para daí a uma semana. Não havia conveniência alguma em demoras. Ruth tinha pronto há muito tempo o seu enxoval, como todas as raparigas

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casadoiras daqueles sítios. Mandaria fazer um vestido novo, que servisse para o casamento e para usar depois.
- Mas azul - impusera Guilherme.
- Azul - concordara ela.
E quando Ruth o acompanhara até à porta para lhe dar as boas-noites, ele segredara-lhe:
- Nós já estamos casados, sabes, querida?
Ela fizera que sim com a cabeça, os olhos a brilharem-lhe de íntima alegria.
...- Como está Nova York? - perguntou-lhe a mãe.
A sala cheirava a rosas frescas. Um lume de lenha ardia no fogão, embora as janelas estivessem abertas.
- Bem - respondeu ele, sem saber por onde começar.
- Que estás a pintar agora? - indagou o pai. Guilherme poisou o cigarro que acendera e respondeu:
- Nada. A verdade é que... não pude trabalhar em Nova York.
- É singular - replicou o pai, soerguendo as sobrancelhas grisalhas. - Julguei que o estímulo intelectual...
- Vejo que não sou capaz de pintar numa atmosfera intelectual - retorquiu Guilherme, sem rodeios. - Só sei pintar inspirado na terra, nas searas, na água... e na luz...
Repetiu estas palavras, religiosamente, com amor:
- Mas vou continuar a pintar.
- Agrada-me ouvir-te falar assim - disse o pai, prudentemente.
O filho inquietava-o naquela noite. Teria ele bebido?
Guilherme sentou-se num cadeirão escuro, de carvalho, a observar aqueles dois semblantes, já idosos, mas ainda belos. Tinha de esclarecer a situação de uma vez para sempre.
- Estou apaixonado - começou por dizer. - Vou-me casar com Ruth Harnsbarger.
Já haviam esquecido o nome dela. Por isso olharam-no atónitos.
- É a rapariga que pintei o Verão passado - informou.
- Não aquela campónia! - exclamou a mãe.

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-- Ruth não é nenhuma campónia. É filha dum lavrador... o que é muito diferente, mãe, na nossa terra.
- Que disparate! - respondeu, escandalizada. E voltando-se para o marido, retorquiu:
- Harold, porque não falas? Porque estás aí sentado com esse ar estúpido?... Não ouves este absurdo!
- Não sei que dizer - gaguejou o pai. - A tua mãe tem razão, não há dúvida, Guilherme. Não sei se será absurdo, se perigoso. Sim, é isso... perigoso, é o termo.
- É absurdo! - interrompeu a mãe. - Uma rapariga que eu não queria na minha cozinha... ignorante...
- Não diga mais... - atalhou Guilherme, secamente. - Eu é que sei quanto vale. É daquelas mulheres que fazem feliz um homem toda a vida. Não preciso de mais nada.
Dito isto, levantou-se, abandonou a sala e subiu ao seu quarto. Nem sequer reconheceu a natural prudência dos pais. "Como os velhos são vaidosos e falsos! Que maldade!" - disse, de si para si, com amargura.
Despiu o trajo de cerimónia que vestira para o jantar, e tornou a pôr o seu fato castanho de passeio, já usado. Queria ser simples e modesto, parecer rude e franco. Desejava fugir da moleza dos tapetes e dos reposteiros de veludo, da pintura antiga, dos pais velhos e ricos. Nunca seria capaz de construir obra sólida naquela casa!
"Vou ter com Ruth", pensou. "Sempre lá hão-de ter uma cama para me dar".
E abandonou a casa paterna e a cidade.
...À medida que se aproximava do casal, mais vontade sentia de lhes dizer, também, o que se passara. Ao chegar à granja, deu a volta e entrou pela porta da cozinha. Lá estavam os três. Embora em sua casa, àquela hora, pouco passasse da hora do jantar, ali já se preparavam para dormir. O senhor Harnsbarger dava corda ao relógio e Ruth estava a pôr o pão a levedar. A senhora Harnsbarger, sentada ao pé do fogão, cabeceava com sono.
- Têm por aí uma cama onde eu possa ficar? - perguntou com desenvoltura. - Zanguei-me com meus pais.

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- Foi por minha causa! - exclamou Ruth, aflita. Guilherme acenou que não com a cabeça, acrescentando:
- Como, se não te conhecem?
O velhote mostrou má catadura.
- Quem julgam eles que são? A minha gente é de boa raça. Há quatro gerações que temos esta fazenda e nunca pedimos nada a ninguém. O senhor não é obrigado a casar com Ruth. Pretendentes não lhe faltam.
- Caso com Ruth, sim, senhor - respondeu Guilherme.
- Onde é que posso ficar?
A senhora Harnsbarger, que despertara entretanto, estava assustadíssima.
- A sua família não o mandará buscar pela polícia? - perguntou.
Guilherme deu uma gargalhada.
- Duvido muito!
O senhor Harnsbarger acabou de dar corda ao relógio e fechou, meticulosamente, o mostrador. Agradava-lhe a coragem do rapaz e admirava a sua atitude. Não esperava tanto de um pintor. Além disso, punha-o de bom humor pensar que um filho de gente rica, da cidade, houvesse abandonado os pais para lhe pedir agasalho em sua casa.
- Pode ficar no quarto de Tomás - disse, por fim. - Vai mostrar-lho, Ruth.
Esta não dissera mais nada, depois da exclamação que soltara, ao saber da zanga de Guilherme com os pais. Conduziu o noivo sem dizer uma palavra. Ao subirem a escada, ele quis abraçá-la, mas Ruth afastou-se.
- Que tens? - perguntou Guilherme.
- Desagrada-me que teus pais não gostem de mim.
- A única coisa que conta é eu querer-te.
E tentou beijá-la. Ela cedeu, após ligeira resistência. Ele, então, quis que Ruth o beijasse também. Mas, à porta do quarto, ela parou.
- Não entro.
- Porquê?
- Não me sinto com disposição.

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- Olha lá, tu não estarás a condenar-me por causa de meus pais?
Ruth abanou a cabeça.
- Julgo que tu és... bom... em me quereres - disse, num suspiro, com ar pensativo.
Guilherme correu para ela, levantou-a nos braços, estreitou-a contra si, e exclamou com veemência:
- Nunca tornes a dizer semelhante coisa! Nunca, ouviste? O que sinto por ti não é bondade... é só amor...
Teve-a assim nos braços, suspensa, um longo instante, antes de a deixar ir embora.
Ruth correu logo para o seu quarto. Despiu-se, pôs o singelo roupão de algodão branco e meteu-se na cama. Mas as horas passavam e não conseguia dormir. O seu pensamento trabalhava, penosamente, à procura de uma saída, sem a encontrar.
"Devia ter-lhe dito que não me casaria com ele, se os pais não quisessem. Ficaria a saber a sua ideia. Não quero pensar que tem de casar comigo à força. Mas... tem de casar comigo, porque lhe quero muito. Por ele, farei tudo. Juro-o perante Deus".
Saltou da cama, ajoelhou-se e exclamou:
- Juro-te, ó meu Deus, que farei tudo por ele!
Casaram-se uma semana depois daquele dia. Guilherme não foi mais a casa, nem escreveu aos pais a dizer onde estava. Estes não tinham meio de saber onde o encontrar. Nunca lhe haviam perguntado onde ficava a fazenda. Era como se o houvessem perdido. Contava escrever-lhes mais tarde, mas só depois de casado e de voltar a Nova York. Haviam combinado ir viver para o seu apartamento, na cidade. Ela fizera-lhe todas as vontades. Bastava-lhe formular um desejo, para concordar logo.
Guilherme, profundamente feliz, levou toda a semana a pintar. Sentia-se impelido a trabalhar, dominado por uma febre criadora, depois de longo período de inactividade. Começou a pintar um grande sicómoro que ficava junto da extremidade poente do casal, uma velha árvore estranha,

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pintalgada como um plátano, que fizera tal esforço para se libertar da terra, que as raízes, à mostra, pareciam braços enclavinhados, na ânsia de agarrarem qualquer coisa. Trabalhou com tal ardor que nem deu pelo tempo. Tinha pressa de acabar o quadro antes do casamento. Queria tê-lo pronto, por sentir que não seria capaz de o largar, mesmo em plena lua de mel. Conseguiu acabá-lo antes da cerimónia nupcial, a que presidiu um pastor luterano. A sala encheu-se de gente da aldeia, pasmada com tal enlace. Eram todos amigos dos Harnsbargers, mas sentiam-se penalizados por verem Rurh casar-se com um estranho, que a roubava ao seu convívio.
No fim da cerimónia todos apertaram a mão a Guilherme, cerimoniosamente. Sentiam-se acanhados. Comeram e beberam em silêncio, sem proferirem qualquer dos gracejos que teriam dito, se Ruth houvesse casado com algum deles. Era com reserva que dirigiam cumprimentos ao noivo, com medo de que não lhe caíssem bem ou não fossem os que porventura esperava.
Guilherme, nervoso, ainda tentou vencer o embaraço dos convidados, rindo e gracejando. Mas não era coisa fácil e acabou por desistir. Também a cerimónia depressa estaria acabada. Não tardaria a partir com Ruth para Nova York. Assim que lá chegassem, começaria logo a trabalhar. Queria fazer um nu. Nunca ficara satisfeito com os seus nus. Os modelos mercenários não tinham corpo que prestasse... nada, a não ser as caras. Mas o corpo de Ruth daria um belo nu, instintivo, amoroso, cheio de paixão juvenil, em toda a plenitude da sua carne preciosa, alvinitente, cheia de luz. Caiu em meditação a imaginar o quadro e esqueceu tudo o mais. E, pouco a pouco, os convidados foram saindo.
"Um sujeito esquisito", disseram uns. "Pelo menos não é como a gente", acrescentaram outros, abanando a cabeça. Mas todos falaram a Ruth com bondade, porque tinham muita pena dela.

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SEGUNDA PARTE

Ruth parou de varrer, para olhar pela janela da cozinha. Fixou os olhos azuis, vivos e vigilantes, no filho mais velho, um gaiato de catorze anos, que tosquiava cá fora, preguiçosamente, a erva.
- Hal! - chamou.
- Que é, mamã? - respondeu o garoto, mostrando uma cara redonda, muito aborrecida.
- Se não andas mais depressa, estás aí toda a tarde e nunca mais te despachas!
O rapazito não respondeu. Pôs-se de catadura amuada e teimosa, e mexeu-se um pouco mais. Ruth contraiu os lábios e começou a varrer com vigor. Maria e Jill nunca a tinham ralado tanto como Harold, embora só ela os aturasse a todos, sozinha, para não importunar Guilherme. Mas do rapaz é que não sabia que fazer! Já na meninice fora desinquieto e agora era quase impossível fazê-lo acabar qualquer trabalho. Em pequeno, a mãe pensara que a turbulência do seu único filho devia ser indício de qualquer faculdade excepcional. Ainda o esperava, agora, mas não tinha a certeza. Na escola era indolente. Os professores não davam dele boas referências.
"Harold parece não mostrar interesse por nenhuma disciplina". Era esta, sempre, pouco mais ou menos, a conclusão a que chegavam os mestres, ano após ano, acerca do aproveitamento do seu aluno. Às vezes, Ruth pretendia ver se desvendava o que se dissimularia por detrás daquele rosto bochechudo de garoto.
Quando o tinha seguro, ao pregar-lhe um botão que caíra, ou pôr-lhe um trapo à volta de um dedo em que se

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cortara, costumava dizer-lhe: "Hal, olha que já é tempo de começares a pensar no que fazes e como te portas. Já pensaste no que será de ti, quando fores um homem?"
- Não, mamã.
Nem a voz nem as palavras traíam o menor interesse.
- Então, porquê, Hal? Olha que teu pai não é rico. A isto não costumava ele dar resposta. Uma vez, todavia, retorquira:
- Mas é o avô.
- Não temos nada com isso, Hal - dissera-lhe a mãe, repreensivamente.
Harold, porém, era teimoso, e insistiu:
- Mas, parece que sendo nós os seus únicos netos...
- Onde é que tu foste ouvir essas coisas? - atalhara a mãe. - Cá em casa não foi, com certeza!
- Foi na tenda. Ouvi lá dizer a umas pessoas que ficávamos todos ricos, quando o velho do papá morresse.
- Só o que sabem é falar. Hão-de estar com os dentes a cair, e a falar...
- Mas não é verdade? - tornara Harold.
- Se é, nunca ouvi falar em tal - respondera-lhe secamente, mandando-o embora.
Resolvera, há muito, que nunca, enquanto vivesse, perguntaria nada a Guilherme sobre os pais e a sua casa, ou a sua vida, antes de a conhecer. Às vezes recebia cartas pelo correio, menos agora do que de princípio, mas Ruth entregava-lhas sem as abrir e ele metia-as na algibeira. Nunca o surpreendera a ler nenhuma. Mas, nessas ocasiões, quando as recebia, passava a maior parte do dia sozinho, a pintar. Ninguém lhe punha a vista em cima, nem mesmo as crianças. Guilherme era tão singular com elas! Às vezes estava tão farta dos filhos, que lhe pedia para a ajudar a educá-los. Mas Guilherme esquivava-se e dizia sempre:
- De que serviria impor a minha vontade a outrem!
- Mas temos de os ensinar a ser bons - teimara ela, uma vez.
- Deixo isso ao teu cuidado - respondera ele, com um sorriso.

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As pequenas eram boazinhas; Maria, principalmente, a mais velha. Mas o rapaz! Nunca estava sossegada a seu respeito. Enquanto varria, observava-o. Hal abandonara o que estava a fazer, e, de súbito, desaparecera por trás dumas macieiras bravas, na extremidade do campo relvado.
Ruth encostou a vassoura à porta e desceu rapidamente o carreiro que levava até lá. Mas o garoto desaparecera como por encanto.
"Não posso andar atrás dele com este calor", murmurou Ruth, de si para si, irritada. Ia já a voltar para a cozinha, quando viu Guilherme, na colina em frente, a pintar, à sombra de um grande freixo. Estava de pé, diante do cavalete. Na sua figura, alta e impassível, destacava-se o azul vivo da camisa, em contraste com o verde das árvores. Como a sua vida era fácil! Nunca lhe perguntava como ela fazia as coisas. Era ela quem criava os filhos, quem tomava conta deles, governava a casa e olhava por tudo, até mesmo pela terra, que arrendara, enquanto ele pintava quadros. Ao vê-lo entre as sombras verdes, pensou, amargamente, que naquele dia era sábado, que não acabara as limpezas e que o jantar estava ainda por fazer. À tardinha, quando entrasse em casa, ele esperaria encontrar tudo pronto e a seu gosto.
"Desta vez não hei-de ser eu só a ralar-me com o rapaz", decidiu.
A cólera redobrava-lhe o vigor, enquanto subia a encosta suave em direcção ao pomar. Guilherme nem dera por ela - imaginava Ruth. Não via nada, quando trabalhava. Talvez nunca tivesse mesmo visto nada. Vivia a sonhar - pensava muitas vezes.
Mas Ruth enganava-se. Enquanto fixava na tela o branco forte do rio prateado, estava a vê-la, como via todas as mudanças, todas as expressões da paisagem que tinha em frente. Observava-a com o profundo interesse do artista, apreciando o seu valor naquele quadro natural, tão intensamente como naquele dia em que a tinha visto, pela primeira vez, no campo. Estava um pouco mais forte do que em rapariga, mas também mais sedutora. Nunca

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viria a ser a repelente massa de carne em que se tornara a mãe antes de morrer. Ruth saía mais ao pai. Era dotada da sua rija têmpera, e de um vigor que lhe conservava a graciosidade.
"É muito linda", dizia consigo, com arrebatamento, ao passo que ela se aproximava. Agora podia ver-lhe o rosto firme, de faces rosadas, que nunca haviam conhecido pó-de-arroz, pintura ou qualquer outra espécie de artifício. Os cabelos ainda eram escuros, os lábios ainda viçosos, e os olhos mais azuis do que nunca, na face atrigueirada pela vida ao ar livre. Quando chegou ao pé dele, segurando ainda a saia que soerguera um pouco, por causa da roda, ao subir a colina, Guilherme saudou-a, como sempre, gentil:
- Bom dia, querida.
Não cessara de pintar, reproduzindo agora as ribas verdejantes, acima do rio.
- Guilherme! - exclamou ela. - Não sei o que havemos de fazer àquele rapaz. Desobedeceu-me e fugiu não sei para onde!
Guilherme riu-se. Intimamente, nunca se convencera de que as três juvenis e robustas criaturinhas que viviam naquela casa tivessem alguma coisa que ver com ele. Eram seus filhos, evidentemente. Isto é, qualquer coisa que confiara a Ruth, dera a esta o ensejo de haver criado, inteiramente - sentia-o - da substância da sua ancestralidade, aquelas três robustas e estúpidas crianças. A mãe ficava muito ofendida quando ele lhes chamava estúpidas; mas, evidentemente, que o eram, apesar de boas e agradáveis para com ele. Jill, a mais novinha, talvez fosse a menos tapada das três.
- Não devias obrigar o pequeno a trabalhar ao sábado de manhã, meu amor - disse Guilherme, com carinho.
Ruth estava tão linda, que lhe apeteceu beijá-la na boca. No mundo não devia haver uma mulher - pensou, apaixonadamente - capaz de fazer esquecer a um homem - como a ele, Ruth - que se casara com ela havia aqueles anos todos. Por isso, ao vê-la aparecer assim, de súbito, a seu lado, em plena luz, naquela manhã de estio,

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desejou ardentemente beijá-la, como da primeira vez. Conhecia-lhe intimamente todas as linhas, todas as curvas do corpo, que, no entanto, parecia ser sempre uma novidade para ele. Pensava nisto muitas vezes. Qual seria o segredo da sua perpétua mocidade? Não residia no seu espírito. Adivinhava-lhe todos os pensamentos sem esforço. Nunca surpreendera qualquer palavra ou expressão inesperada. Mas a novidade da sua presença era um perpétuo encantamento. Talvez fosse apenas devido ao facto de a esquecer, habitualmente, quando não estava com ela. Ao tornar a vê-la, era sempre como se fosse um novo conhecimento. Ou seria, talvez, por ela mudar constantemente, ao sabor das impressões de todos os pequenos nadas do seu dia a dia? Assim como agora, em que a indignação lhe nimbava a beleza com fulgor. Trazia os cabelos puxados para trás. O azul dos olhos, muito abertos, rivalizava com o do céu. Os lábios vermelhos, irritados, deixavam ver a alvura saudável dos dentes. Guilherme tornou a rir-se.
- Vem cá e deixa-me dar-te um beijo!
Mas, no mesmo instante, uma borboleta foi bater com as asas na parte verde da tela e ficou presa à tinta húmida. Esqueceu-se de tudo.
- Pobrezinha! - exclamou, aflito. - Olha para isto, Ruth! Que havemos de fazer? Quebrou as asitas!
Ruth acorreu logo, tirou um gancho dos cabelos, e, com todo o cuidado, levantou a borboleta.
--A pintura ficou estragada? - perguntou, inquieta.
- Oh, isso não interessa! Como havemos de limpar-lhe as asas?
- Não há nada a fazer - volveu Ruth, desembaraçadamente, pondo o insecto em cima da erva.
Guilherme baixou-se a examiná-lo, e exclamou, penalizado:
- Minha querida, não vês que não pode voar?
- Não te aflijas. Vou levá-la para casa. Talvez lhe possa valer.
Tencionava destruí-la quando chegasse a casa, longe

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das vistas dele. Muitas coisas tivera de destruir assim, sem o seu conhecimento... os ratos, em casa; as ratazanas, no celeiro; um cão moribundo, um pássaro ferido, gatinhos recém-nascidos, que não podia sustentar. Aprendera a proceder dessa maneira, havia anos, num dia em que, sem reparar, metera quatro gatinhos num saco e o atara a uma pedra. Sucedera, nessa ocasião, ele olhar pela janela duma sala devoluta, que convertera em estúdio... Descera precipitadamente as escadas e gritara-lhe:
- Ruth, que vais fazer?!...
Ela voltara-se, espantada com aquela agitação, e dissera:
- Vou afogar estes gatos, mais nada.
- Afogá-los?! Ficara lívido.
- Porque não? - perguntara ela.
Como resposta, afastara-se e fora encostar-se a uma árvore, escondendo a cabeça com as mãos.
Assustada, deixara cair o saco dos gatos, que ficaram a miar.
- Que tens, Guilherme? Que sucedeu? Não querias que os afogasse? Mas já temos no celeiro mais gatos do que devíamos. Seis gatos dão muitos gatinhos. Só teríamos gatos, dentro de pouco tempo, se ficássemos com todos.
- É verdade - dissera ele, deixando cair os braços com desalento, enquanto olhava fixamente para o saco a mexer.
- Olha, Guilherme, vou soltá-los.
- Vais? - perguntara, transfigurado. - Pois claro, solta-os. Deixa-me ajudar-te.
Baixara-se e desatara o cordel que fechava o saco, enquanto ela o segurava e os animaizinhos saíam cá para fora, rastejando. A mãe, doida de alegria, mal os ouvira, atravessara o jardim, correndo, a miar. Guilherme observara em silêncio. A gata lambera os filhos e depois deitara-se para lhes oferecer as tetitas. Num instante haviam sossegado, agarrados a elas, a mamar. A mãe ficara-se a olhá-los, ronronando com orgulho.
- Olha como está vaidosa! - dissera ele, rindo.

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Ruth não respondera. Alguém tinha, no entanto, de matar os gatinhos - pensava. Tinha de ser. Não podia sustentar centenas de gatos. Teria de os matar mais tarde, quando ele não visse.
Depois de o fazer, perguntara a si mesma se ele daria pela falta dos gatinhos, vendo a gata à procura e ouvindo-a miar. Mas não, não dera por coisa alguma, e isto surpreendeu-a mais uma vez. Não era porque se importasse, de qualquer maneira, com os gatos. Nunca lhes dera de comer nem reparava neles. Ruth acabara por concluir, simplesmente: "Guilherme não gosta de ver matar". Desde então dispusera sempre as coisas de maneira a matar fosse o que fosse, mesmo a criação, quando o marido não estivesse em casa. Porque nem isso gostava de ver! Torcia o pescoço a um frango com tal facilidade e presteza que o volátil quase não sentia nada. A princípio, matava a criação diante dele, sem reparar. Mas um dia vira-lhe a tal expressão nos olhos - e nunca mais o fizera, embora se defendesse, dizendo:
- Como havíamos de comer carne, se não fosse assim? Guilherme envergonhara-se.
- É certo, mas não sei... não gosto de te ver fazer isso, Ruth. Não o devias fazer... tu, que nasceste para dar vida!
Como não sabia que responder, nada dissera. Mas, daquele dia em diante, arranjara sempre as coisas de modo que nunca mais a visse matar um bico.
Agora com a borboleta, era a mesma coisa.
- Talvez se possa limpar-lhe as asas com terebintina - lembrou-se de lhe dizer.
- Vê lá - pediu ele, com reconhecimento. - Nunca me aconteceu uma coisa assim!
Estava perturbadíssimo. Era inútil falar-lhe do filho, naquele momento. Ruth apanhou a borboleta, meteu-a na algibeira do avental, e deixou-o só.
Quando Hal voltasse à noite para casa, castigá-lo-ia. Alguém o havia de ensinar!
Guilherme perdera a disposição para trabalhar. Surpreendera no semblante de Ruth aquele olhar que nunca

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pudera compreender inteiramente. Era um olhar paciente, resignado, com uma ligeiríssima expressão de revolta, quando fazia ou dizia qualquer coisa que Ruth não alcançava atingir. Perguntava às vezes a si mesmo se não o desprezaria... E neste estado de espírito a abordava, desconfiado, de quando em quando. Mas nunca, por nunca ser, ela deixara de corresponder ao seu amor. Era essa a grandeza de Ruth. Fosse como fosse que se sentisse, deixasse-a como a deixasse, podia voltar com a certeza de não a achar mudada. Quando voltava para ela, esquecia-se de si mesmo, do seu eu - que lhe pesava como um fardo, tantas vezes - dos seus maus humores, da sua melancolia, das suas indecisões, da sua estranha, infatigável energia. Ela não o compreendia, mas ele não queria compreensão, nem a esperava. A última vez que falara com Elisa em casa do pai, esta perguntara-lhe, naquele tom semi-indirecto que tacitamente haviam adoptado para falarem um com o outro, depois do casamento:
- Encontraste qualquer compreensão na tua vida? Antes de satisfazer a pergunta, ponderara na resposta:
- Digamos antes que encontrei... o que precisava.
Não era de compreensão que precisava, necessariamente, nem tão pouco de companhia. Há muito sabia que só era deveras feliz quando estava só, mais feliz por se sentir mais livre. Não precisava de sentir nenhum espírito a correr atrás do seu, nem de nenhuma imaginação a galopar ao lado da sua. Se tivesse casado com Elisa, a despeito da sua boa vontade, teria arranjado maneira de se lhe evadir. Mas, com Ruth, não precisava fugir, podia alhear-se dela quando quisesse, de espírito e de corpo, embora, presentemente, as suas evasões fossem muito mais raras. Já não precisava de se separar dela fisicamente, porque mentalmente abstraía da mulher quando desejava. Bastava-lhe refugiar-se no seu quarto, ou subir aquela colina e pegar nos pincéis, para se sentir muito longe dali. Se fosse casado com Elisa, teria, porém, de a ter a seu lado, e, as mais das vezes, ele não podia ver ninguém.
Assim, quando chegava a altura inevitável de se sentir

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cansado de isolamento, assustado até - o universo é vasto demais para a alma sozinha - bastava-lhe também sair do quarto, pôr de parte os pincéis, descer a colina, e voltar a ver Ruth. E nesse regresso encontrava de novo o bulício do lar, o cheiro a pão quente, o ritmo da batedeira da manteiga, o riso das crianças e o barulho que faziam a brincar, a comida fumegante na mesa, pronta a comer - e a esposa sempre ao seu dispor. Oh, a doçura das suas noites! O prazer que lhe dava o corpo ardente e robusto da companheira! Pensava nisto tudo, contemplando os montes, os campos fartos, as agulhas das igrejas das pacíficas aldeias em redor.
"Meu Deus, como sou feliz!", murmurou consigo.
...Entrando na cozinha, a primeira coisa que Ruth fez foi deitar no caixote do lixo a borboleta. Depois retomou a lida da casa, absorvida nos seus pensamentos. Daí a pouco chegaram as pequenas. Tinham ido às amoras. A mãe deu-lhes as ordens necessárias, com voz calma, sem palavras inúteis.
- Ponham aí os cestos. Daqui a pouco preciso que me venham ajudar a fazer a compota. Mas primeiro vão-se lavar. O pai quer ver tudo pronto quando chega.
Assim educara os filhos. Aquela expressão - o pai era mágica.
Guilherme, que nunca lhes dera ordens, dirigia-os por intermédio da mãe. As crianças gostavam muito do pai, e suspiravam por andar com ele, mas Ruth afastava-as do seu convívio, ameaçando-as com o marido: "O pai não quer ouvir tanto barulho". "O pai não quer que as meninas andem descalças". "O pai quer que tu sejas bom e trabalhador, Harold". Nenhum deles ouvira tais coisas da boca do próprio, mas acreditavam no que dizia a mãe, e o amor que tinham a Guilherme era ensombrado pelo receio. As crianças, aliás, sentiam-se mais da mãe. Eram feitas da sua massa. Ruth falava como elas. Imitavam-lhes as maneiras, e nunca as do pai. Faziam-no sem dar por isso, e, se lhes perguntassem porquê, teriam dito, surpreendidas:

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- "Mas ninguém fala como o Ppá... que fala como um livro. A Mmã é que fala como deve ser".
Igualmente os modos da mãe à mesa, e o seu jeito de comer, lhes pareciam os verdadeiros; Ruth agarrava num bocado de frango e comia-o à mão, como elas faziam. Nenhuma cortava a carne em bocadinhos, a exemplo do pai. Como ela, bebiam leite, em vez dos vinhos estrangeiros, guardados pelo pai na fria cave, debaixo do chão. Nem mesmo Hal provara nunca, às escondidas, aquele vinho nem a Guilherme ocorrera oferecer-lho. Quase não tomava parte na vida delas - as crianças sentiam-no, sem o saber explicar - na vida que tão abertamente faziam com a mãe.
Queriam-lhe com delicadeza, mas com uma certa deferência, como a qualquer coisa de valioso e belo, que não sabiam como tratar. E, sem dar por isso, Guilherme, com a sua cortesia, alargava ainda mais a distância entre si e os filhos. Embora imitassem a mãe, notavam como o pai era diferente deles pelas suas maneiras à mesa, pelo escrupuloso asseio da sua pessoa, pela maneira como falava. E a delicadeza do seu espírito, que não podiam compreender, impedia-o de os julgar, receando com isso poder dar a impressão de criticar a mãe. Resolvera não alterar o feitio de Ruth. "Não a quero mudada. Quero que seja como é".
- Qual é o ofício do Ppá?...
- Artista, bem sabes... e não chames ao pai Ppá... mesmo diante de mim. Ele não gosta.
- E ser artista é ofício?
- Pois com certeza que é.
Mas, no seu foro íntimo, Ruih desejara muitas vezes que o marido tivesse uma arte a valer, que fosse lavrador, como Henrique Fasthauser, ou dono de uma garagem, como Tomás. Seu irmão fora bastante esperto em comprar a cocheira ao patrão, vender os cavalos, e montar uma das primeiras garagens, na região. Toda a gente havia de ter automóvel dentro de pouco tempo. Tomás ganhava bom dinheiro. Ao passo que pintar quadros, não era trabalho

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de rendimento certo. Mesmo quando Guilherme vendia quatro ou cinco quadros por ano, ela aborrecia-se com a maneira como o dinheiro vinha.
"Antes queria ter quinze dólares por semana, certos, todo o ano, do que várias centenas de dólares, de repente", pensava muitas vezes.
Por isso observava atentamente os filhos, a ver se descobria neles algum interesse pela pintura, disposta a contrariar, com todas as suas forças, uma tendência que se resignara a admitir, por ser inevitável, em Guilherme. Mas as crianças não davam sinais de gostar de tintas.
...Guilherme entrou em casa para almoçar, com o prazer habitual. Ruth trazia a casa sempre limpa, conservando-a quente de Inverno e fresca no Verão. O pintor fizera obras no casal.
Agora sentia-se tanto em sua casa como Ruth. Não se se pudera tocar em nada, evidentemente, em vida dos velhotes. Passara muitas horas a planear as alterações que tencionava fazer - ouvindo o senhor Harnsbarger contar-lhe, vezes sem conto, as mesmas histórias da sua mocidade, naquela mesma fazenda - como havia de substituir as velhas traves do tecto, deitar abaixo os tabiques, fazer as divisões mais espaçosas, e tornar a pôr os tijolos da primitiva no piso da casa de jantar. Durante anos, pareceu que o senhor Harnsbarger havia de viver para sempre, depois que sua mulher morrera de hidropisia. Mas a velha estrada que ficava para lá do prado transformara-se, entretanto, numa via de grande circulação. Uma vez, o velhote atravessara-se na frente de um camião, e morrera atropelado. Contava então oitenta e um anos. Nessa manhã almoçara com o seu peculiar apetite e bom humor, pusera o velho chapéu de palha na cabeça, e dissera a Ruth, como costumava: - -"Parece-me que vou dar uma voltinha". - "Está bem, Ppá".
Guilherme, ao vir para casa, mais tarde, como era seu hábito, a fim de almoçar depois do velho falador ter acabado, chegara a tempo de ver um robusto rapaz, que não

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era daqueles sítios, trazer nos braços uma coisa informe, que depôs em cima do sofá, na casa de fora. Era o velho Harnsbarger. O rosto não sofrera uma beliscadura, mas o corpo franzino do ancião ficara esmagado.
Guilherme envergonhara-se de si mesmo, nessa altura, porque o seu primeiro pensamento involuntário, que repelira, aliás, no mesmo instante, fora o da perspectiva de poder transformar a casa a seu gosto.
Mas tivera de fazer o que queria dentro de certas condições. Já que Ruth não podia fazer parte do seu mundo, tinha que se adaptar ao da mulher. Ou porque não quisesse ou não pudesse, nunca o saberia, porque resolvera não aprofundar o problema. Se Ruth não fosse feliz, que interessava saber porquê? Fazê-la ditosa era o essencial para a felicidade de ambos. E, como nunca se queixava, ele sentia logo as mudanças da sua voz e do seu olhar. Quando voltava para casa, tinha de a ver contente. A sua alma vivia da felicidade de Ruth.
- O jantar está pronto? - perguntou, alegremente, mal entrou em casa.
Ruth veio de dentro da cozinha. Trazia as mãos enfarinhadas. - Não vens hoje um bocadinho mais cedo, Guilherme? - inquiriu, ansiosa. - Estava mesmo agora a fazer os bolinhos.
- Não há pressa - disse ele vivamente. - Ainda tenho de me ir lavar. A borboleta ficou boa?
- A borboleta?... - repetiu, lembrando-se de repente do insecto. - Ficou óptima! Bateu as asas, como se não fosse nada com ela.
Havia muito que fizera um pacto com a sua consciência, a fim de esconder o que fosse necessário para a tranquilidade do marido.
- Ainda bem - murmurou este, reconhecidamente. As filhas vinham a subir, nesse momento, a escada da adega. Ao vê-las, saudou-as com ternura:
- Bom-dia!

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- Bom-dia, paizinho - respondeu Maria. A outra nada disse.
- Venham cá dar-me um beijo.
Correram para ele, com alvoroço, oferecendo-lhe as caritas. Beijou-as na testa. Gostavam das carícias do pai. A mãe nunca as beijava; elas também tinham acanhamento em beijá-la, por sentirem a sua reserva. Porquê? Nunca tinham pensado em tal coisa. Ruth vivia tão intimamente com elas, que faziam parte da sua carne. Talvez fosse por isso. Mas Guilherme beijava os filhos muita vez, mesmo o Hal, a quem deixara, havia pouco tempo, de beijar, ao dar-lhe as boas-noites, por ver que o rapaz se não sentia à vontade. Desde que dera pelo pudor do filho, não o tornara a beijar. Sem lhe dizer nada, na noite seguinte, em vez do beijo, cingiu-o com um abraço, pelos ombros, num breve amplexo, dizendo:
- Boa-noite, meu filho.
Hal era muito novo para dissimular o seu alívio. O pai lera-lhe nos olhos a sua satisfação, e pensara, um tanto tristemente: "Não os quero ver oprimidos, por me sentirem diferente deles".
Mas as raparigas gostavam dos seus carinhos e ofereciam-lhe, sem reservas, as faces rosadas e as frontes puras.
- Como as meninas cheiram bem! a terra e a sol, como a mamã! É o melhor perfume que pode usar uma mulher. Querem limpar os meus pincéis?
- Queremos! - respondeu Jill, entusiasmada.
- óptimo... então, assim, só preciso de me lavar.
Deu-lhes os pincéis e subiu à casa de banho. Mandara-a fazer pouco depois de casar. O pai de Ruth não se opusera, embora continuasse a tomar o seu banho, ao sábado à noite, na sua tina de zinco; de Verão, na casa da lenha, e, de Inverno, na cozinha. Coisa curiosa: com a idade, o velhote parecia haver perdido o recato. Quando chegava ao sábado, à noite, queria tomar o banho, fosse como fosse, sem se importar com a presença de ninguém. Ruth, às vezes, ralhava com ele.

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- O pai devia trancar a porta da cozinha, ou avisar a gente, quando se está a lavar!
- Importo-me lá com isso! - disse ele, a rir. - Quem não quiser ver, tape os olhos, que eu não me ralo.
Guilherme, para quem a noite de sábado era como outra qualquer, habituara-se a entrar na cozinha, quando o rijo ancião, todo nu, se estava a lavar. Uma vez ficara diante dele, a admirá-lo, impressionado pela beleza pitoresca da cena: um velho a tomar banho.
- Devia deixar-me pintá-lo assim - sugerira ao sogro.
Mas o velhote atirara-lhe com o sabão, num súbito acesso de pudor, e vociferara:
- Saia-me já daqui para fora com essa conversa! Quero lá agora ser retratado todo nu, e posto numa parede, à vista de toda a gente!
Guilherme rira com o episódio, mas ficara com pena de não poder pintar a tela visionada. Custava-lhe sempre, quando perdia a ocasião de pintar um quadro.
Fizera meia dúzia de retratos do senhor Harnsbarger, mas lamentara sempre aquela recusa do velho. Não se esquecia da beleza da cena, dos efeitos da água e dos reflexos do fogo aceso, na lareira, incidindo no corpo do octogenário. Pensava em tudo isto, a assobiar baixinho, enquanto desencascava as mãos no lavatório.
Sentia-se agradavelmente cansado, com muito apetite, e quase satisfeito com o trabalho da manhã. Habituara-se, embora não completamente, àquela sensação de relativo apreço pelo seu trabalho. Nunca sentira plena satisfação com o que fazia. Porquê? Não o saberia dizer.
Depois de se lavar entrou no quarto, foi sentar-se no cadeirão ao pé da janela, e puxou pelo cachimbo. Não era porque se esquivasse ao exame do seu estado de espírito. Não se cansava de se analisar, interiormente, vezes sem conta. Tinha ou não a certeza do valor do seu trabalho? Pensara, por vezes, em falar com o pai a tal respeito. Nunca mais houvera nenhuma referência à possibilidade de um quadro seu vir a figurar na galeria da grande casa que deixara de ser sua.

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Mas este facto não dissipava as suas dúvidas. Mesmo quando ele e o pai estavam sós, havia de se interpor a separá-los, qual montanha, a desaprovação da mãe, e, na realidade, a de seu pai também - desaprovação enérgica e sensível, pelo facto de a mãe querer negá-la, radicalmente, e, por isso, a avolumar imenso.
Ainda se tivesse conquistado maiores prémios, obtido grandes encomendas, valorizado os seus quadros, talvez houvesse ganho confiança em si próprio. Mas preferira ir viver para ali, junto de Ruth, longe dos meios onde se conseguem prémios e arranjam encomendas. E tinha experiência bastante para saber que, tanto em pintura como em qualquer outra parte, os prémios e os trabalhos não eram dados apenas ao mérito. Não! O mérito, para valer alguma coisa, devia aliar-se à influência e à adulação. Em resumo - concluía com rudeza - renunciara a tudo isso. O que desejava, ardentemente, não era receber este ou aquele prémio, por este ou aquele trabalho. Queria simplesmente saber, em absoluto, qual era o valor da sua obra. Era boa? Podia ser melhor? Seria superior se não houvesse casado com Ruth? Nunca formulara o problema perante a consciência, porque não podia conceber a sua existência sem Ruth. E se tivesse ficado em Nova York?... Que teria pintado? Paisagens, não, com certeza. Estava a fazer um nu, quando deixara a cidade. Não o acabara, porque descobrira, uma vez, inesperadamente, o que Ruth sentia enquanto posava.
- Não te tires do sol - dissera-lhe, nessa manhã. Quero ver a luz brilhar na tua carne.
Ela obedecera, expondo o corpo nu aos feixes luminosos que entravam pela janela. Lutava para se não importar com isso. Era mulher dele. Nada podia haver de mau entre ela e Guilherme, não era assim? Que mal podia haver em se despir, à luz do dia, diante do marido, desde que as portas estavam fechadas? Que mal podia haver?
- Está bem - dissera ele, febril. - É assim mesmo que eu quero. Agora, imagina que a luz do sol é um manto. Finge que te estás cobrindo com ele...

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Ela obedecera ainda, estendendo e encurvando os braços, como se puxasse para si, dobra por dobra, um véu aracnídio e cintilante.
- O manto de oiro! - murmurara ele, maravilhado. - O manto de luz... - Começara, então, a pintar com ardor. Ela não fazia o mínimo movimento. A réstia de sol não chegaria a durar uma hora. Um edifício alto interceptava-a depois. Vestir-se-ia, então, para principiar a lida da casa... isto, se ele a deixasse. Mas não a deixara. Quando o sol desapareceu, como se alguém lhe houvesse tocado, Guilherme poisou a paleta e o pincel. Ruth já se voltara e estendia o braço para alcançar as roupas.
- Espera!... Não te vistas ainda! - murmurou-lhe quase em segredo.
- Mas tenho de tratar da casa - escapou-lhe sem querer.
- Ah, isso pode esperar!
- Gosto de fazer as minhas obrigações de manhã.
- As tuas obrigações! - redarguira ele, com afectuosa ironia. Ao mesmo tempo tomara nos braços o seu adorável corpo nu, aquele belo corpo, que, momentos antes, sob a carícia do sol havia sido luz e tema de arte, e agora só era motivo de amor. Mas Ruth não cedia e não estava na sua natureza forçá-la a entregar-se-lhe.
- Que é, meu amor? Que tens tu?
Ela deixara pender a cabeça. Os longos cabelos castanhos cobriam-lhe o rosto.
- Não gosto dessas coisas... de dia. Parece-me que não... está bem.
- Não está bem! - repetira ele. - Mas, querida, pode haver algum mal entre nós?
Descobrira que sim. Ouvira o seu tímido argumento, e sentira ao mesmo tempo a magia exalar-se do seu corpo, como um perfume.
- Gente como deve ser não faz... estas coisas, de dia.
- Como sabes? E o que é como deve ser?
- Não sei... não me sinto bem... quando as fazemos.
- Ah, isso é outra coisa!... Isso já tem importância.

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Tivera-a entre os braços uns momentos ainda. Depois, deixara-a vestir-se e pegara outra vez no pincel e na paleta e trabalhara muito tempo em silêncio, no fundo negro da tela, sob o nu luminoso. Enquanto pintara, estivera atento aos movimentos de Ruth, atarefada na sua lida, a varrer as casas, a limpar o pó, a fazer o almoço. Mas aquela casa, que, por vezes lhe servira de nave a todos os seus sonhos, convertera-se num aposento vulgar. Duas ou três vezes se dirigira à mulher, jovialmente:
- Ruth, vamos jantar fora esta noite?
- Como quiseres.
- Assim não, Ruth... dize o que te apetece.
- Quero tudo o que tu quiseres - tornara ela; e, como ele não respondesse logo, insistira, inquieta: - É verdade, Guilherme... podes crer!
Era sincera, bem o sabia. Ruth dera-se-lhe toda. Porventura se podia queixar? Os seus lindos olhos traduziam uma constante súplica de amor.
- Então iremos - dissera ele, carinhosamente. Haviam jantado num restaurante ao ar livre, perto de um jardim, donde se ouvia uma banda a tocar. Ao chegarem a casa, à noite, Ruth, protegida pela sombra, resgatara-se. Fora consciente a reparação? Não o podia saber. Mas estava crente que não. Ruth nada fazia por cálculo. As suas palavras, os seus silêncios, os seus movimentos obedeciam apenas ao impulso instintivo do momento. Era esse - pensava muitas vezes - o seu encanto infindo. Fizesse o que fizesse, era sempre sentido profundamente. Assim, antegozara, com deliciosa acuidade, o suave ardor da sua boca, ao regressarem naquela noite. Ela despira-se devagar, quase languidamente, estendendo os braços, sacudindo para as costas as suas longas tranças escuras. Ela observara-lhe todos os movimentos, a sua ingenuidade, até ficar nua... Quando ia a vestir o roupão, os cabelos soltos cobrindo-lhe um ombro e um dos seios, Guilherme ordenara:
- Espera.
Ruth erguera a cabeça num gesto adorável.

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- Anda cá.
Contemplara-a, extasiado. O artista elevava o homem na admiração daquele corpo perfeito. Estendera os braços e ela correra para eles. Sentira, então, mais uma vez, a novidade do seu ser. Ruth era eternamente nova para ele. Todas as vezes que se lhe entregava era outra. Nunca se repetia. Se raciocinasse, seria menos instintiva, deixaria de ser como era. Que pujança, que generosidade, que total abandono de si mesma, nos braços dele! Esquecia tudo, quando se lhe abandonava. Por maior necessidade que sentisse, saciava-o sempre.
Ruth não sabia dissimular. Quando se enfastiara da cidade, logo o sentira - embora lhe não dissesse uma palavra. Os seus instintos estavam doentes e era através destes que podia entendê-la. Na passagem da Primavera para o Verão, repelira-o, quando a procurava. Este repúdio não o traduzia em palavras, transmitia-o em silêncios. Ausentava-se dele. Era capaz de posar horas e horas, mas passivamente, como se não tivesse consciência do lugar onde estava, e ele, ao pintá-la, tinha a sensação de copiar outro quadro e não a de trabalhar com um modelo vivo na sua frente.
Um dia, gritara-lhe:
- Ruth, desperta!
Mas não mudara de pose, as mãos cruzadas no regaço. Apenas, nos olhos, qualquer coisa regressara de longe.
- Onde estavas tu?
Não respondera. Então, arremessara a paleta e o pincel, fora direito a ela, pegara-lhe ao colo. - Tu não és feliz!
- Sou, sim... Pelo menos, não seria feliz onde tu não estivesses.
- Qual era o sítio onde gostarias mais de viver comigo?
- Oh, em casa!
Fora então que descobrira que Ruth detestava a cidade, o apartamento e a vida que fazia. Não podia ver a gente que lhe levava para a conhecerem, odiava até as pessoas

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que via nas ruas. Finalmente, compreendia o seu ar ausente quando alguém os visitava. Julgara que fosse acanhamento, e, a princípio, debatera a questão com ela.
- São meus amigos, Ruth, e os meus amigos teus amigos são.
- Não... meus, não - respondera ela, admirada.
- O que tens é medo! - lançara-lhe ele, outra vez.
- Para mim, é gente estranha.
Adquirira a certeza de que Ruth os detestava, simplesmente, instintivamente, porque faziam parte da cidade. Todo o tempo que vivera em Nova York, de dia e de noite, cada vez mais a sua repulsa aumentara.
- Mal posso respirar, aqui - suspirava ela. - Falta-me o ar!
- Mas há muita gente que respira aqui - retorquira Guilherme.
- É por isso mesmo - replicara. - Respiraram o ar todo. Estou habituada ao ar puro, que vem dos montes. Além disso, é das pessoas que eu não gosto.
- Mas, Ruth, ninguém aqui te quer mal!
Uma das coisas adoráveis, para ele, em Nova York apesar da grandeza e do egoísmo da cidade - era poder falar, com qualquer pessoa, amigavelmente, num trem, numa loja, na rua.
- Detesto toda esta gente - dizia, obstinada.
- Mas, porquê?! - interrogava o marido.
- Não são da minha espécie.
Sentia-se totalmente sem defesa perante aquela suave e irredutível teimosia. A sua atitude era só instinto, fechado à razão, contra o qual se via como homem perdido em noite escura e silenciosa, sem luz para o guiar a qualquer ponto.
- Mas, Ruth, não me disseste nada, antes...
- Porque tu... gostas disto aqui - balbuciara. Deixara de novo pender a cabeça para o peito e ele contemplara por instantes os seus cílios negros e húmidos. Também ela não era capaz de se defender dos próprios instintos - compreendera de súbito.

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- Não posso gostar de um sítio onde não sejas feliz - respondera, por fim.
- Gostas, sim... tenho-te ouvido falar da beleza de Nova York - continuara Ruth, começando a soluçar - mas para mim isto é horrível. É... como se vivêssemos todos juntos, no fundo de um poço. Por cima, apenas se vê uma nesguita do céu. Estou habituada a ver o céu todo.
Sentara-se, em silêncio, e encostara-lhe a cabeça ao ombro. Era verdade. Nos últimos meses, começara a compreender melhor a beleza da cidade. Por isso combatera a aversão que Ruth nutria por Nova York. Estava constantemente a mostrar-lhe as coisas belas que descobria, as linhas audaciosas dos edifícios, o rio, o sussurro do tráfego ao longo das ruas, os vendedores nos passeios, as raças diversas que viviam na urbe. Sentia despertar nele uma onda crescente e vibrante de energia criadora. Finalmente, estava a sair de si mesmo e a libertar-se até dos estreitos limites do amor.
Mas fora ela quem primeiro o despertara. Até a encontrar, naquele dia, estivera aferrolhado em si mesmo. Ruth libertara-o - forçara-o a abandonar a casa do pai e a começar uma vida nova, para ele e para ela. Agora já se sentia bastante forte para tentar nova fuga, e evadir-se-lhe. Não que pensasse em abandoná-la ou a deixar de lhe querer. Isso era impossível. Adivinhava-lhe a consciência de que, de um momento para o outro, deixaria de a pintar só a ela, partindo à procura de novos motivos entre os milhões de almas que o cercavam. O que desejava pintar, agora, eram tipos, e não paisagens. E essa vontade transformara-se em certeza naquele momento, enquanto a cingia e escutava os seus soluços.
- Caluda... caluda... - murmurara baixinho.
Não falaram mais naquela noite. Deitaram-se e ela envolvera-se toda nele, e entregara-se-lhe como já o não fazia há meses, maravilhando-o com a ternura e a impetuosidade do seu amor. Ele correspondeu-lhe, com surpresa, deliciado. A frieza de Ruth desaparecera por completo. Era toda ardor, suavidade e loucura por ele.

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Podia renunciar a tudo, menos àquela mulher.
Mas, ao chegar o Verão, sentira-se, dia após dia, consternado com o que descobrira, e taciturno por a saber incapaz de reagir contra o ódio que votara à cidade.
Começava a compreender que Ruth era daquelas criaturas que pertencem ao solo onde nasceram. Todo o seu ser se fanava e envelhecia, transplantado da terra natal. Não lhe apetecia fazer nada, e, no entanto, o trabalho era-lhe essencial à saúde, tanto do corpo como da alma. Reparara, alarmado, que Ruth perdera, realmente, o viço da beleza que possuía antes de vir para a cidade. Começou, então, a pensar se devia ou não abandonar Nova York, Para que precisava de viver? O seu talento era bastante forte para trabalhar em qualquer parte... ou devia ser, se tinha algum valor.
Num dia de Junho, fazendo estas reflexões, entrou numa galeria de arte, onde deixara ficar seis telas, para as vender. Há semanas que não recebia notícias do seu bom ou mau destino. Era tempo de saber o que se passava com os seus quadros. O negociante não estava - disse-lhe a menina do balcão - mas podia entrar e ver as suas telas. Uma - disse-lhe - fora comprada por um senhor da cidade, que entrara havia coisa de uma hora e que talvez ainda lá estivesse. Pelo menos não o vira sair - pois, entretanto, havia ido almoçar.
- Como se chama?
A rapariga folheou as páginas de um registo, percorreu com o dedo uma das colunas, e disse, por fim:
- Cá está.
Guilherme inclinou-se e leu o nome do pai - Harold James Barton. Não disse nada. Sentia-se muito emocionado para revelar àquela caixeirita banal, que mascava pastilhas elásticas, o que para ele representava aquele nome. Olhou para o título do quadro. Era uma das suas telas menores - e não um retrato de Ruth - uma coisita que fizera de improviso, numa manhã de Primavera: uma carroça carregada de flores, que um jardineiro italiano levava à cidade para vender.

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A troco de um dólar, o homem acedera a posar, de perna traçada, numa atitude indolente. Depois comprara um vaso de primaveras para oferecer a Ruth. O quadrito era pequeno, mas fixara-lhe bem a luz, e a cara do velho italiano era alegre e sagaz.
- Diz que esse senhor ainda talvez se encontre cá? - perguntou, tornando a olhar para o nome do pai.
- Quando aqui vem, costuma demorar-se a ver os quadros - disse a rapariga, arrumando o livro.
Hesitou. Quereria ver o pai? Não via os pais nem tinha notícia deles, nem de Luísa, desde o seu casamento. Qualquer dia - pensava às vezes - este silêncio tem de acabar. Era um absurdo um filho estar separado dos pais por causa de uma criatura tão bela como Ruth. Bastava-lhe combinar um encontro e tudo ficaria bem, outra vez. Estava tão seguro disto, que fora adiando de dia para dia a resolução. Mas agora já era tempo de o fazer. Se conseguisse que seu pai se encontrasse com Ruth, este levaria a boa nova à mãe. Obedecendo a súbito impulso, entrou na galeria. Havia, quando muito, uma dúzia de pessoas. Encontrou o pai facilmente, sentado numa cadeirinha, que recuara a distância adequada da parede onde os quadros do filho estavam pendurados. Observava-os, de costas para a porta, de cabeça levantada, as mãos enluvadas descansando no castão de prata da bengala.
Guilherme aproximou-se devagar.
- Viva, meu pai... Bom-dia!
O pai estremeceu, soerguendo-se de leve na cadeira, mas tornou a sentar-se.
- Ah, és tu!
- Em pessoa - volveu Guilherme, gentilmente.
O pai parecia-lhe cansado. Mas depois lembrou-se de que, naquela altura do ano, o pai costumava parecer sempre fatigado, pouco antes de irem para Bar Harbor.
- Tem passado bem de saúde?
- Quem?... Eu?
Ficou surpreendido com a pergunta, mas logo tornara:
- Sinto-me bem.

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- E a mãe?
- Vamos andando, como de costume. E observou:
- Tu pareces bom de saúde.
Guilherme sorriu.
- Excelente.
- Tens visto a Luísa?
- Não... não a tenho visto.
O pai voltara-se para a pintura e abanara a cabeça.
- É tua mulher?
- É, sim, senhor.
Depois, pusera-se ao lado do pai, e haviam ficado os dois em contemplação diante do lindo e juvenil rosto de Ruth. Surpreendera-a num dos seus momentos de tímido pudor, porque, embora só a cabeça se lhe visse, ela posara nua para ele, à luz matinal.
- Parece muito nova.
- Não tem mais de vinte anos.
E como julgasse ouvir o pai dizer qualquer coisa, que não entendeu, continuou:
- Gostaria que fosse lá a casa comigo.
- Casa?...
O pai dissera isto com um ar ausente.
- Quero dizer, à nossa casa.
- Ah! - exclamou então, como se compreendesse, acrescentando: - É que... sabes... não tenho muito tempo.
- Por favor, pai! Não é longe... E teria tanta importância para nós...
Acabaram por tomar um trem e foram. Era perto do meio-dia e Ruth estava a fazer o almoço, no seu fogãozinho de gás. Ao ouvir bater à porta, acorrera logo e depois ficara parada, como uma criança diante dum estranho.
- Ruth, apresento-te meu pai.
Ficara perplexo com a sua transformação. Perdera a cor. Depois estendera a mão, canhestramente.
- Muito prazer... em conhecê-lo - tartamudeou, demorando a mão pesada na mão finíssima do visitante.
Guilherme, porém, apressara-se a modificar a situação.

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- Entre e descanse um bocadinho... Quer almoçar connosco? Tenho a certeza de que Ruth deve ter qualquer coisa boa para nos dar. Cozinha muito bem, sabe?
Levara-os na sua frente, sem dar atenção à cara aflita que Ruth fizera ao ouvir falar em almoço. O pai também reparara na sua expressão - e respondera logo:
- Não me posso demorar, Guilherme. Tua mãe e Luísa esperam-me, à uma hora, no Sherry. Parece-me que Monty me quer apresentar alguém de Wall Street, por causa de umas colocações de capital. Os caminhos de ferro já não são nada do que eram, Guilherme.
- Tenho pena que...
- É por causa dos automóveis - acudira o pai. Depois sentara-se, todo ele muito delicado e frágil, e
falara a Ruth com bondade:
-. Guilherme deve levá-la, qualquer dia, lá a casa, minha filha... Quando voltarmos de fora, no Outono.
Ruth nada dizia. Voltava os olhos suplicantes para Guilherme.
- Terás muito prazer, não é verdade, querida? - dissera para a animar.
Ela fizera que sim com a cabeça.
O pai demorara-se apenas uns minutos. Afinal, a visita não tivera o efeito que esperava. O pai não adiantara coisa alguma, com as suas maneiras polidas e agradáveis, e Ruth nada mais dissera além de um inexpressivo "adeus".
- Porque não falaste? - perguntara-lhe, depois da porta fechada.
- Oh, Guilherme, perdoa... mas não pude!
A vida voltara a animar-lhe o azul dos olhos e a avivar-lhe o rosado das faces.
- Mas, porquê, criatura de Deus?
- Nunca tinha visto ninguém assim, como ele!
- É meu pai, Ruth. Devias ter tentado.
Ela pressentia a sua irritação e grandes lágrimas marejaram-lhe os olhos.
- Estava incapaz de pensar, Guilherme. Esforcei-me... tentei, mas não podia!

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- Está bem... acabou-se... não chores. Que temos para comer?...
- Cabrito estufado.
- Vamos a ele!
Almoçaram quase em silêncio. Foram precisos dias para se esquecer do incidente. Concorreu, para o olvidar, vê-la cair quase em desmaio, sob a pressão de tremenda vaga de calor, num domingo de Junho. Estava sentada ao pé da janela aberta, sem olhar para a rua; apertara-se-lhe o coração ao ver-lhe a palidez do rosto.
- Minha querida, precisamos de espairecer. Vou mostrar-te Coney Island.
- Onde é?
- Ao pé do mar. Apanharemos ar fresco, pelo menos. Contrariava-o sair de casa por se sentir com óptima disposição para trabalhar, naquela manhã. Mas pusera de parte os pincéis, e lá haviam ido, embora o passeio lhe não houvesse feito a ela muito bem. A multidão intimidava-a.
- Não haverá um lugar onde a gente possa estar só, um ao pé do outro?
- Não numa praia pública - respondera, laconicamente.
Haviam passado a tarde, sentados, a apanhar a aragem fresca, mas nem um momento ela deixara de se sentir inquieta com a presença de gente à sua volta. E ele ora sentira simpatia, ora aversão, pelo que Ruth apenas detestava. Por isso, às vezes, via a cidade, como ela, como um lugar ruidoso onde só havia confusão e zaragata. As pessoas pareciam-lhe monstruosas. "Toda a gente me parece uma visão de pesadelo" - pensava, ao passar pelos transeuntes, na rua, ao olhar para as pessoas, sentado no comprido banco de algum carro eléctrico. Mas havia outras ocasiões em que os mesmos semblantes lhe falavam e não eram desagradáveis. Para ela, porém, antipáticas ou não, eram sempre caras estranhas.
O regresso ao casal não fora decidido de repente, nem com intenção de se demorarem. A mãe de Ruth adoecera e o pai escrevera à filha, a pedir-lhe que voltasse lá para

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casa uns tempos, até as coisas correrem melhor. Era em Julho e a cidade abrasava.
- Nada nos impede de irmos os dois - dissera ele, com boa vontade. - Também lá posso pintar.
- Oh, Guilherme, não te importas?! - exclamara, e pela primeira vez, depois de muitos dias, agarrara-se a ele aos beijos. Ela não se queixara, mas de tanto não precisava para a compreender. Cada fibra do seu ser pressentia-a com penetrante agudeza. Não ignorava que Ruth vivia num suplício permanente.
Haviam deixado tudo exactamente como estava no apartamento. Nenhum deles falou em voltar ou não. Foram-se embora, simplesmente. E ela, à medida que o comboio se afastava da cidade, parecia uma convalescente a recuperar a saúde. Observara-a. Seria então capaz de dizer, pelo brilho dos seus olhos, pela maneira decidida como voltava e movia a cabeça, em que altura o comboio deixara para trás a cidade e entrava de novo nos campos. Começara a falar, ela que nunca encontrara, em Nova York, motivo digno de comentário ou interesse.
- Olha, Guilherme, repara naquela terra de milho! Nunca vi nenhuma assim. Devem-no ter semeado cedo, na altura própria. Sempre disse a meu pai que ele semeava muito tarde as coisas, todos os anos. Oh, Guilherme, não vês os patos? Deus queira que tenham patos lá em casa, este ano. Mas, se calhar como a mãe está doente, foram capazes de não os ter deitado. E, agora, já é tarde! Olha, Guilherme, aquele celeiro... verde! Quem é que se lembraria de ter pintado de verde - um celeiro, em vez de encarnado? Deve ter sido gente da cidade, com certeza!
Os anéis castanhos do cabelo emolduravam-lhe o rosto afogueado, cheio de cores. Apertara-lhe a mão e ele sentira a vida penetrá-lo. Ruth renascia e fazia-o viver também. O próprio odor do seu corpo cheirava bem. Lembrara-se, nesse momento, de uma história que lera algures, em que se falava da concubina de um imperador chinês, a quem o soberano amara só por ela cheirar bem quando fazia calor.

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Amando Ruth, compreendia perfeitamente que se pudesse gostar de uma mulher, só por cheirar bem, naturalmente.
Uma vez no casal, Ruth correra tudo, soltando exclamações jubilosas e dando profundos suspiros. Tudo na mesma. Nada mudara ali havia um século. Tudo, porém, era novo para ela, porque nunca se ausentara de casa até ir para Nova York. Uma hora depois, no seu meio familiar, Ruth mudara completamente. A rapariga definhada, de rosto pálido já um tanto habituado a ver, parecia-lhe que nunca existira ou se transformara. Esta era agora a mesma rapariga por quem se enamorara e a quem desposara naquela velha casa. Passados dias, também começara a sentir que nunca estivera ausente. Pusera de parte a tela inacabada que trouxera, e principiara a pintar um novo quadro - o velho plátano à sombra do qual se sentara naquele dia de Verão, um ano antes. Não fora capaz, nessa altura, de encontrar um motivo. Perguntava agora a si mesmo porquê. "Porque não pintei simplesmente o que tinha diante dos olhos?" Parecia-lhe haver encontrado o segredo da pintura.
Fora pagando, todo aquele Verão, a renda do apartamento, mas não voltaram a Nova York. Nem mesmo, depois de prolongados debates íntimos, se resolvera a regressar sozinho. Se para lá voltasse sem ela, não seria capaz de trabalhar. Só conseguia trabalhar ao pé de Ruth. Necessitava de viver com ela para a esquecer, como um homem, depois de comer e de dormir, recuperadas as forças, se esquece destas necessidades e se consagra com prazer e alegria à sua tarefa predilecta. Descobriu que podia deixá-la com facilidade naquela casa. Em Nova York, sentia-se sempre inquieto quando não estava junto dela. A princípio, levara-a mesmo consigo a festas e soirées para as quais o convidavam. Mas isso fora antes de lhe conhecer a aversão que votava a qualquer estranho. Comprara-lhe vestidos e chapéus próprios para essas ocasiões.
- Agora deves ser natural, estar à vontade - ordenara-lhe. - É fácil, bem sabes; basta afirmares a ti mesma:

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"Sou a mulher mais bonita de todas. Guilherme assim o diz".
Mas nem vestidos nem galanteios haviam servido de nada. Não se sentira à vontade. E, após algumas tentativas, ao ver-lhe as mãos crispadas, como que tolhidas, o rosto muito encarnado, deixara-a ficar em casa e fora sozinho. Depois, era ele que não estava sossegado. Pensava apenas em voltar para casa, não só por se sentir verdadeiramente feliz junto dela, como por ser incapaz de suportar a ideia do seu isolamento e abandono.
Ali, porém, no casal, nunca se sentia só. Sem qualquer espécie de ciúme, sabia que Ruth era mais livre, que não estava tão presa a ele. Dar de comer à criação, mungir as vacas, tudo quanto gostava de fazer a entretinha. Ainda podia ter ciúmes, talvez, se Ruth o não continuasse a amar com a mesma paixão de sempre. Era-lhe indispensável, pelo menos, para o amor. A sua alegria era imensa e ela transfundia-a no amor que lhe dedicava. Apesar de todos os seus afazeres, de tratar da mãe enferma, constantemente, além dos inúmeros cuidados domésticos, nunca estava cansada para o marido.
À parte esta necessidade puramente física, era-lhe fácil deixá-la só. Um dia, nos princípios do Outono, obedecendo a súbito impulso, fora ver os pais.
- Importas-te que vá ver meu pai e minha mãe? Entrara na cozinha, onde Ruth estava a amassar pão, e fizera-lhe a pergunta bruscamente. Ela respondera-lhe com toda a sinceridade - tinha a certeza.
- Porquê? Claro que não, Guilherme.
Parara de mexer a massa enfarinhada e ficara-se a olhá-lo.
- Se te importas, não vou.
- Não sei por que razão... é natural que os vás ver, de vez em quando... e hoje está um dia lindo. Vens cear a casa?...
- Sim... isto é, talvez queiram que eu fique para jantar.
- Jantar?...
Mais uma vez se equivocara. Depois, rira-se.

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- Já me esquecia de que a tua família chama jantar à ceia. Bem, de qualquer maneira, à noite estarás em casa, não é assim? Parece-me que não poderia dormir se ficasses fora de casa pela primeira vez.
- Também eu.
Inclinara-se para a beijar e sentira outra vez o seu habitual perfume a essência de rosas.
- Diria que te sustentavas a pétalas de rosa, se não soubesse que precisas de mais sólido alimento.
Ela sorrira apenas, como de todas as vezes que lhe ouvia qualquer fino galanteio, e retomara a sua tarefa, batendo com os punhos robustos a massa, para a fazer levedar. Assim a deixara.
Depois metera-se num comboio na estação local. Quando chegou à casa paterna, foi como se nunca estivesse ausente. Veio abrir-lhe a porta o velho mordomo.
- O senhor Guilherme!
- Olá! Está alguém em casa?
- O senhor e a senhora Barton foram à Academia, mas não devem tardar. O chá está servido, na biblioteca.
- Então vou para lá esperá-los.
Mas não fora. Ao encaminhar-se para a sala, mudara de rumo, e descera pela passagem que levava à galeria de pintura, onde examinara os quadros um a um. Eram duzentos, nem mais nem menos. Quando seu pai encontrava um quadro superior a qualquer dos que possuía, tirava o condenado da parede e oferecia-o ao museu da cidade. Após a sua morte, também toda aquela colecção iria para lá. Manifestara bem essa vontade a todos os seus, dizendo que não queria chicanas, quando morresse, a respeito do destino que resolvera dar ao seu espólio artístico.
Guilherme percorreu devagar a galeria, examinando cada uma das telas já suas conhecidas. Não havia nada de novo. Perguntava a si mesmo, embora reconhecesse a sua insensatez, se o quadro que seu pai comprara não estaria ali também. Não ficara desapontado ao ver, simplesmente, que não estava lá nenhum quadro seu. Já o esperava, aliás. Mas, pela mesma razão, embora absurda, sentira-se magoado

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no seu amor próprio, como um insensato, e determinara no foro íntimo que qualquer dia um quadro da sua autoria havia de figurar entre aqueles.
Sairá da galeria, animado pela resolução que lhe inspirava o seu orgulho ofendido, e entrara, de cabeça levantada, na sala da biblioteca, onde já se encontravam os pais à sua espera.
- Olá, Guilherme - disse-lhe a mãe, estendendo-lhe a mão e oferecendo-lhe a face. Ao beijá-la, sentira outra vez aquele seu cheiro seco, a pó, que conhecia desde criança.
- Como passou, minha mãe?
- Bem, muito obrigada, meu filho. Sentimo-nos sempre bem, quando voltamos de Bar Harbor. É dos ares.
A mãe não lhe perguntara como estava.
- Então, Guilherme? - dissera simplesmente o pai. Estava a mexer o chá e não lhe estendera a mão.
- Está com melhor parecer do que da última vez que nos vimos.
- Sinto-me bem, obrigado.
Sentara-se, pegara na xícara que sua mãe lhe ofereceu e servira-se de umas finas sanduíches de frango. Não tardara em descobrir que nada tinha para dizer aos pais. Via-os dispostos a não lhe fazerem perguntas. Nesse caso, também nada diria.
Então, contra sua vontade, começara a sentir-se menos intransigente. Apesar de tudo, aquela casa era a sua. E o lar influenciara-o com a sua doce e ordenada beleza. Não compreendia como pudera escapar-lhe aquele particular encanto, os velhos livros encadernados a primor, o fogo a arder na chaminé, sob a talha da guarnição, e o quadro grande de Corot, por cima, como a nota dominante da sala. Os verdes profundos e musgosos da pintura condiziam com os da carpete e dos reposteiros. Apercebera, de relance, um reflexo fugitivo de cor a um canto mais escuro, e vira o seu quadrinho.
- Foi então ali que o puseram! - falara num impulso.
O pai e a mãe haviam seguido o seu olhar.
- É um encanto - dissera a mãe.

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- Não há dúvida - concordara o pai.
Era a primeira vez que seu pai pendurava um quadro seu em qualquer parte da casa. Involuntariamente, sentira-se lisonjeado.
- Estou contente por ver que o julgaram digno de o pôr aqui.
- Pensámos que faltava àquele canto qualquer coisa que lhe desse luz - dissera a mãe.
Depois sentira que seria indelicado continuar a manter-se silencioso, e perguntara:
- Como está a Luísa?
- Está bem... isto é, tão bem quanto se pode esperar, no seu estado.
- Ah, ela está...
- Sim, lá para Abril... Tenho pena que não tivesse esperado mais um tempo. Sempre tive para mim ser de melhor gosto esperar uns anos.
A senhora Barton franzira a testa e mudara de conversa. O marido, por delicadeza, não dissera nada. Bebera um gole de chá, e deitara em seguida mais água quente na xícara. Depois, dissera:
- Elisa casou-se este Verão em Bar Harbor.
- Ah, casou?... - perguntara tolamente.
- Não recebeste convite?... - indagou a mãe.
- Não recebi nada. - É esquisito!
A voz tornara-se-lhe aguda ao dizer isto.
- Toda a gente foi convidada.
- Foi um lindo casamento - dissera o pai.
- Muita gente - comentara a mãe, contraindo a boca.
- Era natural. Elisa tem muitas relações - volvera o pai docemente.
"Como seria o marido de Elisa?" pensara, sem exprimir, no entanto, a sua interrogação. Para quê fazer perguntas, se lhe não interessava o assunto? Mas o pai, como se, precisamente, ele houvesse feito a pergunta, dissera:
- Casou com um homem de qualidade... imponente, não achas, Henriqueta?

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- Muito distinto - reforçara a mãe.
- Parece-me que a Elisa vai viver para Inglaterra, não vai?
Fizera a pergunta sem curiosidade, mas sempre havia de mostrar algum interesse pela conversa.
- Vai - respondera a mãe - mas só partem para o mês que vem. Ela quer que o marido conheça melhor a América - a sua terra - antes de a deixarem.
Aquelas palavras estavam tão de harmonia com o modo de ver de Elisa, que lhe parecera estar a ouvi-la. Esta, gostava tanto da sua terra, que perguntara a si mesmo se porventura ela se daria bem no estrangeiro.
Depois de se ter ido embora, é que pensara que na conversa com os pais o mais importante ficara por dizer.
Adiantara, contudo, alguma coisa. A mãe dissera-lhe à despedida, num tom indiferente:
- É verdade, Guilherme, talvez fosse melhor deixares ficar a tua direcção... isto, no caso de não voltares já para Nova York.
- Não sei ainda quando voltaremos. Ruth não se deu lá muito bem. Portanto, por agora, basta escrever para Hessers Corners - "Casal Harnsbarger".
Nunca o rosto da mãe lhe parecera tão impenetrável como ao ouvi-lo pronunciar o nome de Ruth. Mas havia bondade na sua voz.
- Muito bem, meu rapaz.
Estendera-lhe a mão, e o pai acompanhara-o até à porta da biblioteca.
Mas fora Elisa quem o decidira, finalmente, a ficar a viver onde estava. Uma manhã, depois da visita à mãe, saíra de casa e fora até à encosta da colina, disposto a pintar. Sentira-se, porém, aturdido com a paisagem à roda do casal, como da primeira vez. Não era capaz de abstrair da indefinida variedade e riqueza de pormenores do quadro. As curvas dos montes, o gado gordo, os enormes celeiros, as casas planturosas e pesadonas, os maciços mosqueados das árvores nos campos férteis - tudo lhe parecia monótono pela abundância de cor e de vida. Quisera

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pintar Ruth, outra vez, dentro de casa, mas também esta deixara de ser um motivo; fazia parte de tudo quanto a cercava.
"Também Millet, afinal, só pintou quase campónios toda a sua vida", murmurava consigo. Mas os camponeses de Millet significavam qualquer coisa por si - pensara também. Eram lutadores e combatiam pela terra que estremeciam, lutavam com ela e arrancavam-lhe o pão à custa da sua pertinácia. Ali não havia luta. A terra era tão boa que produzia quase espontaneamente. O homem não precisava de a violentar à força de braços e de enxada. Marchava por cima dela, destorroando-a com os dentes agudos de uma máquina - e a gleba submetia-se com docilidade. Não havia sinais de tortura nas caras anafadas e luzidias dos aldeões. Até a rotunda face do senhor Harnsbarger era a viva demonstração de muitos anos de abundância. Pensara em fazer o retrato do velhote, com as farripas brancas a cobrir-lhe a testa, mas desistira. "Quem teria interesse em ver uma cara vulgar de rústico, bem comido e bem bebido?"
Acabara por fechar a caixa das tintas e dobrar o cavalete, passando a manhã no bosque para lá da colina a observar as árvores.
Ao meio-dia, quando descera, a caminho de casa, encontrara uma carta na caixa da correspondência, junto da estrada. Era do pai. A letra, tremida, denunciava que o pai envelhecia.
"Meu caro Guilherme:
"Elisa e o marido vêm passar o fim de semana connosco, antes de partirem para a Europa. Tua mãe e eu lembrámo-nos de que talvez gostasses de a ver. Queres vir passar umas horas com a gente, meu rapaz? Seria um prazer.
"Muitas saudades de tua mãe.
Teu Pai".
Queriam que visse Elisa - foi o seu primeiro pensamento. A mãe fora hábil em escrever-lhe. Dissera, decerto,

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ao pai para lhe enviar aquela carta, muito gentil, mas sem a mínima referência a Ruth. Ficara assim um tempo na estrada, a olhar para a caligrafia pouco firme do pai. Não, assim não o iludiam. Afinal, o que receavam era novas situações. Seu pai falara com certeza à mãe no encontro que tivera com Ruth, na maneira como esta ficara interdita, "Parecia uma criada" - imaginava estar a ouvir o pai a dizer. Porquê? Porque pensava também a mesma coisa - compreendera de repente, com angústia - apesar de todo o seu amor e de toda a sua boa vontade.
- Oh, minha querida mulher! - exclamara, então, com veemência, apostrofando o céu azul e silencioso.
Mas compreendia os pais. Não era por snobismo que procediam assim. Não se sentiam à vontade, simplesmente, com pessoas que não estavam no seu lugar - deste modo o entendiam. Facilmente se perturbavam, também, com semelhante situação. Seu pai sentira-se tão confuso como Ruth.
Depois, encaminhara-se para casa, trepando a vereda cheia de sol, com a carta, aberta, na mão. Corria uma brisa forte.
- Ruth!
A mulher estava nas traseiras da casa, a pendurar lençóis, brancos como neve, numa corda. O vento enfunava a roupa, e ela, de braços erguidos, esforçava-se por a segurar com as molas.
- Que lindo quadro! - exclamara Guilherme.
- Deixa-te de pensar em quadros por um momento e vem aqui ajudar-me.
Mas não tinha jeito nenhum para aquilo. As suas mãos, tão ágeis e destras a manejar os pincéis, atrapalhavam-se com as molas e estranhavam o contacto com a roupa molhada.
- Está bem... - dissera a mulher, bem humorada - vai-te embora.
Metera a carta na algibeira, mas o vento arrebatara-lha e tivera de correr para a apanhar.
- É verdade, Ruth, quero que me dês a tua opinião... E lera-lhe a carta. Durante a leitura observara-lhe o

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franzir das sobrancelhas, olhando-a de soslaio por cima da folha de papel. Depois, ela fitara-o e dissera:
- Que tencionas fazer?
- O que for da tua vontade.
Ela fixara a carta outra vez e inquirira:
- Quem é essa...
- ...Elisa? Uma velha amiga.
- Particular? Alguém de especial?
- Não...
- Desejas tornar a vê-la?
- Nem por isso...
- Então porque mo perguntas?
- É por causa de meus pais. Gostariam de me ver.
O sol batia-lhe em cheio na pele fina, branca e rosada, sem um defeito. A limpidez do azul e do branco dos olhos era também impecável. Via-se-lhe, distintamente, a curva subtil que descreviam as pestanas escuras, uma a uma, partindo das pálpebras delicadas, sob o arco suave das sobrancelhas espessas. Pelos lábios entreabertos, a luz brilhava-lhe na alvura dos dentes. Respirava saúde. Toda a sua beleza era perfeita e saudável. Baixou as pálpebras e curvou-se para pegar noutra peça de roupa torcida e húmida.
- Não me cabe a mim dizer como deves proceder para com teus pais.
Ele admirara-lhe a nuca, imaculada e branca, sob o rolo brilhante dos cabelos castanhos.
- O que me diz respeito interessa a ambos, não achas?
- Tudo quanto faças estará sempre bem, julgo eu. Anda, segura aqui nesta peça de roupa; quero escorrê-la melhor.
Guilherme obedecera e pegara numa ponta da pesada peça molhada, enquanto a mulher a torcia.
- Se realmente assim pensas, querida, então irei.
- Eu só digo o que sinto.
Ruth respondera-lhe secamente, ou fora ilusão sua?
- Bem sei, meu amor.
Enquanto ela pendurava o enorme lençol agitado pelo

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vento, e que toda a encobria, ele curvara-se, beijara-lhe a cabeça - e partira.
Era agradável dormir na casa onde nascera e passara a meninice? À medida que repetia velhos hábitos e gestos esquecidos, sondava-se a si mesmo. Gostaria mais daquela casa do que pensava? Observara-se, examinando as suas emoções, medindo a intensidade do seu prazer. Havia ali, decerto, muitas coisas que apreciava. Era mais do que a satisfação física de tomar posse dos seus antigos aposentos, de tornar a ver os seus livros, de ter contacto com os móveis a que estava habituado. Era qualquer coisa que pairava na atmosfera de toda a casa. A gente que lá vivera - os seus avós - os seus pais, Luísa, e mesmo ele e todos os amigos da família haviam ali deixado os ecos das suas palavras, a sombra dos seus corpos, a aura dos seus pensamentos e a vibração do seu ser, assim como o casal de Ruth estava cheio de todos os Harnsbargers.
Gozava, conscientemente, esta atmosfera muito sua, perguntando a si mesmo se não estaria a trair Ruth. Mas, naquela espécie de temporário desprendimento, quisera experimentar se seria capaz de lhe ser desleal. Se fosse, também isso teria o seu significado. Era muito deste mundo para não medir a profundidade do seu amor pela mulher.
Entregara-se, por isso, de todo o coração àquela casa. Nem seu Pai nem sua mãe lhe falavam de Ruth. Ele, também nada dizia. Era exactamente como se tivesse regressado ao lar, após longa viagem, com a diferença de que ninguém lhe perguntara onde fora nem o que vira. Percorrera a casa em todos os sentidos, observando tudo outra vez, depois a sua ausência. Tocara piano, examinara os quadros, discutira com a mãe o sítio onde havia de ficar um novo roseiral para a Primavera. Seu pai andava, então, entusiasmado com a venda de um Ticiano, em Itália, e telegrafava com intermitências de poucas horas ao seu fornecedor em Roma. Nada mudara.
Vou telefonar para ver se Luísa e Monty podem vir cá passar o domingo. Será uma verdadeira reunião de família.

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- Seria interessante - dissera ele, naturalmente. Queria ver o que lhe parecia agora a família, depois de haver conhecido Ruth.
Assim pensando e discorrendo, fora nessa tarde esperar Elisa e o marido. Ficaria ou não, impressionado, quando a visse descer do comboio com outro homem? O pai mandara buscar os noivos a Nova York, na sua carruagem particular, atrelada ao comboio. Por isso, encaminhara-se para o extremo da plataforma da estação, onde a carruagem devia ficar, pouco mais ou menos. Conhecia-a muito bem, desde pequeno. Levara-os muitas vezes para a Florida, no Inverno, e de lá os trouxera. Uma ocasião, viera nela, expressamente, de Groton para Filadélfia, muito atacado de gripe, por a mãe querer que só o seu médico assistente o tratasse. A senhora Barton não confiava em mais nenhum. Como ele não morrera, a opinião da mãe, de certo modo, justificava-se, embora o médico escolar considerasse absurda tal atitude.
Esperara uns momentos. Depois, a locomotiva precipitara-se na estação e passara por ele arquejante, a fumegar. A pesada carruagem parara quase na sua frente. A porta não tardara a abrir-se, e o velho carregador preto, que sempre tivera a seu cargo o serviço do vagão especial, descera os degraus. Elisa mostrara-se logo a seguir. Parecia mais elegante do que nunca - envergava um casaco preto de peles, com uma camélia vermelha na gola. O seu rosto, de lábios carminados, pálido e frio, embora agradável, iluminara-se ao vê-lo. O gelo quebrara-se de repente, e, com os olhos a rir, exclamara:
- Guilherme, que linda surpresa! Mas eu nem sonhava... Ronnie, apresento-te Guilherme!
Um inglês alto e magro, de sobretudo cintado, surgira por trás dela, e estendera-lhe a mão comprida e fina, com vigorosa energia.
- Como passou? - murmurara Ronnie, mexendo, quase imperceptivelmente, os lábios debaixo do bigodinho loiro.
Era tão igual a tantos outros ingleses que vira em diversas partes do mundo, que não podia compreender como

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Elisa o escolhera entre a espécie. Mas devia haver uma razão.
- Como passou? - repetira ele, retirando a mão.
Perguntara, um instante, a si mesmo, se Ronnie repararia no júbilo da mulher. Ao atravessarem a plataforma da gare, Elisa manifestara exuberante alegria. Nunca fora assim tão expansiva. Parecia que só agora ousava ser franca, por estar protegida pelo casamento.
- Guilherme, se alguém me perguntasse há momentos o que mais desejava neste mundo, teria dito que era ver-te!
Sorrira, sem saber que dizer ou fazer, e indagando no íntimo se teria reagido melhor, se não visse ao lado de Elisa, do seu rosto radioso, o perfil glabro de Ronnie. Mas fora-lhe fácil abstrair de Ronnie. Aquele homem desprendido, com as mãos sempre nos bolsos, mantivera-se afastado, amavelmente silencioso, em segundo plano, rindo, de súbito, ao ouvir um dito engraçado, respondendo a qualquer pergunta com o menor número de palavras, sem nunca encetar uma conversa. Por isso lhe fora mais fácil aquele encontro com ela. Nunca, até ali, se tinham sentido tão à vontade um com o outro.
Não a julgara capaz de tanta alegria. Elisa nunca fora assim jovial; oprimira-a sempre qualquer coisa que não quisera compreender. Mas, nesse dia, dançara com ele, acompanhara-o ao piano com a sua profunda e suave voz de contralto, apoiara-lhe várias vezes a mão no seu braço, deambulando pela casa, sentara-se-lhe ao lado no carro, e à noite, com grande espanto seu, agarrara-lhe na mão por sob a manga do casaco de peles. Ele apertara-lha com força, um segundo, mas depois, dando pelo vulto de Ronnie, mesmo ao lado dela, no escuro, largara-a. Mas tivera tempo de sentir nesse instante, surpreso, a pequenez daquela mão, que se podia apertar como a um punhado de pétalas. Não era a mão robusta e calorosa de Ruth, capaz de apertar-lhe a sua tão vigorosamente como ele.
No domingo, com a chegada de Luísa e de Monty, a família estava completa - ou quase. Eram sete à mesa - número imperfeito, dissera a mãe - mas não havia outro

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remédio. Ele ficara entre Elisa e Monty. Como não fazia grande caso do cunhado, facilmente dera toda a atenção a Elisa. Ninguém proferira o nome de Ruth. Esperava que Luísa lhe perguntasse por ela, a sós, e dera-lhe ensejo várias vezes para isso, mas a irmã deixara passar sempre a ocasião. Por fim, convencera-se de que também Luísa estava resolvida a não falar de Ruth. Ordens da mãe, talvez. Na noite de domingo, começara a sentir a necessidade de ouvir alguém referir-se a sua mulher. Se ninguém o fizesse, falaria ele então. Diria como ela era boa e adorável. Se fosse capaz de falar de Ruth, demonstraria, assim, perante si mesmo, a sua lealdade para com esta. Mas pareceu que tinham visto a possibilidade de ouvir falar no nome da esposa e haviam começado uma conversa estranha. Sua mãe evocara um fenómeno, passado com ela em Inglaterra, havia muitos anos. Guilherme ouvira-a rir-se.
- Não sou nenhum médium... mas estava eu em Fairfax..., Ronnie?...
- Um pouco - dissera o inglês, tirando o cachimbo da boca. Parecera-lhe, nesse instante, vagamente animado, como se fosse a dizer mais qualquer coisa, mas tornara a fumar e a calar-se.
- Subia eu aquelas intermináveis escadas, para o meu quarto, com intenção de me deitar. Lembro-me de que já era muito tarde. Tínhamos dançado toda a noite. Precisamente quando cheguei lá acima, ouvi um roçagar de saias, que não eram de seda. Voltei-me e vi duas freiras. Fiquei estupefacto. Fiz uma vénia e as irmãs passaram por mim, sorrindo. Na manhã seguinte perguntei ao velho conde: "Quem são as freirinhas?"
- "Freiras?" - disse ele, sem a mínima surpresa. - "Viu-as?"
- "Vi duas" - disse eu.
- "Sabe... viveram aqui freiras há novecentos anos. Fairfax era um convento".
Ronnie tirara outra vez o cachimbo da boca.
- Há uma janela em Fairfax que não se sabe a que sala pertence.

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- Como pode ser isso, Ronnie? - dissera Elisa, procurando, com olhos maliciosos, os de Guilherme.
- Assisti lá uma vez a uma festa - continuara Ronnie com a maior calma. - Percorremos todas as salas do castelo e pusemos toalhas em todas as janelas. Depois, saímos e... havia uma janela sem toalha. Disseram-nos que muita gente, antes de nós, havia feito a mesma coisa, e sempre com o mesmo resultado.
Monty abrira os olhos sonolentos para a mulher.
- Não é onde tu disseste que tocavam sinos na sala de baile, ao amanhecer?
- É... ouvi-os tocar, uma vez! - respondera Luísa.
- A sala de baile era dantes a capela.
- Tudo isso é natural - dissera o senhor Barton. As pessoas continuam a viver nos lugares a que pertencem.
- Vamos dançar - dissera Elisa, de repente.
E, momentos depois, Guilherme dançava com ela.
- Não sei se terei coragem de viver na Inglaterra... - dissera-lhe, enquanto dançavam. - Serei capaz de vir a acreditar ainda um dia em fantasmas?...
- Não me parece - volvera ele, sorrindo.
E então, entre toda a gente naquela sala, fora ela a primeira e a única pessoa a falar-lhe da esposa.
- És feliz, Guilherme?
- Queres dizer... agora?...
- Não... bem sabes que não... Quero dizer, com tua mulher. Chama-se Ruth, não é?...
- É... e sou feliz.
- Completamente?
- Perfeitamente.
- Eu gostaria dela, se a visse?
- Não há ninguém que não goste dela.
- Posso ir vê-la?
- Não sei... isso é contigo.
- Agora não, Guilherme... talvez quando voltar, para o ano. Tenciono vir à América todos os anos. Ronnie prometeu-me.
- A Inglaterra será depois a tua pátria.

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- Como o sabes?...
- Porque... de certa maneira... também eu fui viver para muito longe, embora a poucos quilómetros de distância daqui.
- É assim tão diferente disto?
- É.
- Mas sentes-te como em tua casa?
- Onde está Ruth, está a minha casa.
Ela dera um suspiro, e quase a seguir, dizendo estar cansada, deixara de dançar. Depois, estendera-lhe a mão.
- Quando partes, Guilherme?
Não pensara nisso até então. Mas, de súbito, sentira que tudo ali morrera para si - aquela casa, aquela gente, aquela vida.
- Amanhã cedo, depois do primeiro almoço.
Todos haviam olhado para ele, mas ninguém, a não ser Elisa, dissera coisa alguma.
- Então adeus, Guilherme.
- Adeus.
Subira para o seu quarto pouco depois. Ninguém mais lhe dissera adeus, e, contudo, sabia - como todos eles - que nunca mais os tornaria a ver... naquelas circunstâncias. Olhando ao redor do quarto que fora o refúgio da sua vida de rapaz, decidira, de repente, não dormir mais debaixo daqueles tectos, nem mesmo nessa noite. Mudara de fato, e, quando sentira tudo silencioso, descera a escada, abrira uma porta lateral que dava para o jardim, trepara um muro baixo e encontrara-se na rua deserta que ficava nas traseiras da casa. Três quarteirões mais adiante apanhara o último carro, que o conduzira à estação. Esperara uma hora na gare. Por fim, aparecera um comboio de mercadorias, que o levara até perto da fazenda.
A porta do casal nunca se fechava de noite. "Nunca fechei a porta da minha casa" - costumava gabar-se o velho Harnsbarger. - "Só a gente da cidade se aferrolha". A porta estava aberta e ele entrara no casal sem dificuldade. Mas não o fizera logo. Estivera a admirar a beleza da noite. Não fazia vento. As árvores e os arbustos estavam

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imóveis. O luar, de prata, era tão nítido que lhe parecia ver as coisas a medrar na noite ampla e calada. Eram seus aqueles vales e outeiros, suas as árvores e a ribeira, mais a lagoa no sopé do monte, e atrás de si estava a casa, o seu lar - e Ruth!
Ao abrir a porta, quando entrara em casa, sentira o odor familiar da madeira velha, das paredes caiadas de fresco e dos condimentos empregados na cozinha. Subira a escada à luz do luar, levantara o fecho de ferro da porta do quarto, e entrara. Talvez Ruth estivesse acordada à sua espera - julgara ele, andando em bicos de pés, em direcção à cama. Mas Ruth dormia, com as longas tranças soltas sobre a almofada. Entre a gola aberta do roupão, o seu rosto sorria, adorável e calmo como um semblante de criança. Mas não era uma carita infantil, era o rosto de Ruth, de lábios vermelhos, carnudos e resolutos, de sobrancelhas espessas, de uma mulher lúcida e forte.
- Oh, meu amor! - suspirara ele.
E todas as outras fisionomias no mundo, o próprio rosto de Elisa, se dissiparam num momento. Aquela era a sua mulher. Despira-se e metera-se na cama, a seu lado. Ela acordara, mas sem dizer nada, sem proferir exclamações pelo seu regresso. Envolvera-o com os seus braços, para o receber, para o possuir mais uma vez.
Quando acordara, na manhã seguinte, sentira que só ali, ao lado dela, estava o seu lar.
Guilherme não vira a mãe de Ruth, durante as semanas que tinham precedido a sua morte. A filha não o deixara entrar no quarto da doente. "Não é bom vê-la agora" dissera-lhe apenas, laconicamente. Mas percebera, pela gravidade da expressão de Ruth, uma tarde, quando regressava de pintar de ao pé do rio, que não andava longe a morte. Perguntara a si mesmo se seria capaz de a ajudar a suportar a sua dor - e, no entanto, sentiria ela alguma coisa? A sua voz era tão calma quando falava! Uma noite, ao deitarem-se, abordara francamente a hipótese da morte da senhora Harnsbarger, a fim de conhecer a sua reacção.
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- Tua mãe está a morrer, minha querida?
- Creio bem que sim... pode durar um dia, uma hora. Foi o que me disse o médico, a semana passada.
- Mas, minha querida, porque me não disseste?
Esperava pela resposta, no meio do silêncio e da noite.
Ao responder, a voz de Ruth denotara total e sincera surpresa.
- Não sei porquê, Guilherme!
- Não quero que sofras sozinha, meu amor.
Ela reflectira, e depois dissera:
- É curioso, mas não me parece um mal, para a minha pobre mãe, o morrer. É claro que desejava que não fosse assim... Mas, no estado em que a vejo... acho que a morte é o melhor para ela. Se fosse nova, custar-me-ia muito. Quando uma coisa está certa e tem de ser, julgo que não nos devíamos lamentar. É simplesmente natural.
Ruth falara de acordo com a profunda harmonia do seu ser, em vibração com toda a vida terrestre. Ele nada dissera. Chegara-se a ela, para melhor respirar a sua saúde plena, a sua perfeita calma, e de novo se sentira sereno e simples. Era esse o segredo de Ruth; na sua presença, todas as suas perplexidades e agitações se transformavam e convertiam no essencial. Tudo o mais desaparecia.
No dia da morte da senhora Harnsbarger mal sentira a sombra lúgubre pairar na casa silenciosa. O que sucedera, era apenas o fim previsto e preestabelecido. Ruth preparara tudo para o aceitar. Parecera até que já conhecia a hora exacta do desenlace. Viera do quarto da mãe, uma vez, à noitinha - acabavam eles de cear - e anunciara:
- Pai, a mãe morreu.
O senhor Harnsbarger abandonara a gazeta agrícola que estava a ler e correra ao quarto da mulher. Guilherme levantara-se e estendera os braços a Ruth. Assim abraçados, sentira-a resistir, por momentos, contra as lágrimas, e dissera-lhe meigamente:
- Chora à vontade, minha querida.
Ruth chorara, mas pouco tempo. Depressa enxugara as lágrimas.

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- Parece-me que estou a chorar por mim... e não por ela... Ela morreu bem - fechou os olhos, suspirou e partiu... Mas lembrei-me de que nunca mais a tornarei a ver, e é por isso...
Dentro de instantes voltara a ser a mesma Ruth, e não a tornara a ver chorar, nem mesmo na igrejinha, onde, durante o singelo serviço fúnebre, haviam escutado um sermão sobre a morta, que jazia no caixão aberto, ao lado do púlpito.
"A nossa vizinha era mulher de poucas palavras, mas de muitas e boas obras" - exclamara o pregador, um pastor de cara redonda e de ventre rotundo, que não queriam só dizer apetite, porque parte do que recebia dos irmãos era em géneros e via-se obrigado a comer o que lhe davam - chouriços e salsichas, empadas e bolos, carne de porco e sacas de batatas. Com a morte da senhora Harnsbarger, perdia as suas filhós. Duas vezes por mês, costumava mandar-lhas, e, nas Quartas-Feiras de Cinzas, o dobro da dose. "Aqui jaz, tendo ganho o seu eterno descanso" concluíra, solenemente, após uma hora de pregação.
Depois fora o enterro. A tarde estava límpida e fria. O sol iluminava a campa e mostrava as diferentes camadas de solo, no corte da cova. Por cima, a terra preta, fecunda, com dois pés de espessura. A seguir, argila encarnada. Mais abaixo, a camada xistosa onde assentavam os caboucos de todas as casas da região. O fundo da campa era também de xisto, mas infiltrara-se na rocha um veio de água, e, para o caixão não ficar inundado, o velho coveiro cortara dois toros de cedro e atravessara-os nas extremidades do coval.
Junto da sepultura todos haviam entoado um salmo e ouvido a voz do pastor ler e orar. Era quase calvo, só com uma longa madeixa de cabelo desbotado, que o vento desgrenhara, até ele vasculhar nas algibeiras e encontrar um pequeno solidéu que pusera na cabeça, sem se deter nas suas rezas. Guilherme, incapaz de curvar a cabeça, observara a cena e depois examinara as velhas campas, as lousas profundamente enterradas no solo, os outeiros

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e córregos em redor. Pegada ao cemitério, havia uma pedreira há muito abandonada. A congregação movera uma acção contra o proprietário, para o impedir de fazer tiros debaixo dos sepulcros - e ganhara o processo. Do sítio onde estava, Guilherme podia ver a beira do abismo, cavado a pique no jazigo de ardósia.
Depois do funeral, de regresso a casa, às pessoas que tinham acompanhado a defunta ao cemitério fora oferecido de comer e beber - bolos e vinho. Enquanto comiam, falavam em voz baixa, das coisas de todos os dias. Houvera mesmo umas risadas discretas. Ruth circulara entre toda aquela gente, muito à vontade e senhora de si, olhando por tudo. Ao partir, os convidados haviam apertado a mão as pessoas da família.
"Esteve tudo muito bem. Como se ela cá estivesse", fora a opinião de todos.
Cada um voltara para casa, a tratar da vida como dantes, e no casal tudo continuara, também, a correr da mesma maneira. Tomás, o irmão de Ruth, e que ficara com eles uns dois dias. Mas só pensara, durante esse tempo, em voltar para a aldeia. Debatera com todos o problema se devia ou não meter-se no negócio de automóveis, que principiava a concorrer com o dos cavalos.
- Uma novidade... uma extravagância da moda que não há-de durar muito tempo - resmungara o senhor Harnsbarger - Sempre houve e há-de haver cavalos.
- isso diz o pai! - redarguira Tomás, bem humorado.
O irmão de Ruth parecia-se com qualquer dos homens do vale. Nada o distinguia, especialmente, como irmão de Ruth. Guilherme não sentia por ele a mínima afinidade de parentesco. Mas, a esse respeito, também se sentia estranho a todos. Enquanto vivesse, havia de tratar sempre o sogro por senhor Harnsbarger. O lavrador envelhecera de um dia para o outro. Quisera que lhe prometessem que ficariam a viver sempre no casal.
- Não seria a mesma coisa se o Guilherme tivesse um
trabalho certo - dissera. - Mas o que faz tanto pode ser executado aqui como em qualquer outro lado.

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Era surpreendente a mudança operada no velhote e Guilherme sentia-se com especial agudeza. Teria jurado que a senhora Harnsbarger nada significara, durante anos, para o marido. Aqueles dois entes não chegavam a trocar uma dúzia de palavras durante o dia, e quando ele falava era a resmungar, embora a mulher não lhe prestasse atenção. E, contudo, depois desta morrer, parecia como que mutilado.
- Nunca pensei em vir a ficar viúvo - dissera, tristemente, a Ruth.
- Se o pai não ficasse viúvo, ficava viúva a mãe - respondera-lhe a filha.
- É certo - concordara, surpreendido - mas nunca pensei que fosse assim, desta maneira.
Ruminara consigo este pensamento algumas vezes, nos dias seguintes ao funeral - e tal ideia parecia consolá-lo pelo seu carácter de inevitável.
- O que disseste, está muito certo - murmurara por fim, um dia.
Fora depois disso que pedira a Guilherme para ficarem a viver no casal. Mas, à noite, a própria Ruth lhe falara, à sua maneira directa e delicada, como costumava dirigir-se-lhe. Ruth não falava assim a mais ninguém, naquele tom tímido, meigo e sincero.
- Em primeiro lugar estás tu, Guilherme. Se queres sair daqui, sairemos... O pai sempre há-de arranjar alguém que trate das coisas, embora eu peça a Deus para não irmos viver para a cidade.
- Fiquemos então mais um tempo - respondera ele, conciliatoriamente. - Talvez eu possa trabalhar aqui tão bem como em qualquer outro lado.
Numa semana tudo voltara à normalidade, como se nunca a morte houvesse entrado naquela casa.
Parecia que a senhora Harnsbarger não partira dali, que lá continuava ainda. Ruth tomara o lugar da mãe, à sua maneira. Não que se parecesse com ela em qualquer coisa, mas por se mover mais calmamente. Andava muito menos apressada e já não saltava donde estivesse, como

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uma rapariga; erguia-se graciosamente, devagar, como senhora compenetrada dos seus deveres. É assim, talvez, que os mortos continuam a viver nos vivos.
Mas Guilherme gostava ainda mais apaixonadamente daquela Ruth do que da primeira, em donzela. Deixara de executar certo número de pequenas coisas que sempre fizera. Agora esperava, à mesa, que Ruth lhe enchesse o prato ou trouxesse o cangirão do café, e, de manhã, no quarto, era ela quem lhe levava a camisa lavada, ou o boné e o casaco, quando saía. Não dera, porém, por esta mudança em si mesmo. Sabia apenas que Ruth lhe fazia tudo, e que já não era capaz de passar sem ela.
Ruth nunca estivera tão linda, nem parecia tão feliz. A alegria fizera-a desabrochar. Havia ocasiões em que não podia manter-se calmo em presença da sua beleza. Tinha de a cortejar e possuir, então, a qualquer hora que fosse. E ali, no refúgio do seu lar, ela entregava-se-lhe inteiramente, na plenitude da sua alegria. O seu noivado recomeçara, depois da casa ser deles. Parecia-lhe que descobrira, pela primeira vez, a profundidade do amor de Ruth. E então ela concebera o primeiro filho.
Fora pela Primavera do segundo ano de casados. Sem dizerem um ao outro que ficariam no casal, ele sabia que, por amor de Ruth, nunca mais a privaria do lar nem da herdade. Aquela terra nutria-lhe as raízes de todo o seu ser. O trabalho, que a encantava, fazia-a crescer em beleza, tão luxuriantemente, que não era lícito perturbar o desenvolvimento daquela florescência sagrada.
"Pessoalmente", pensara ele, "convém-me a sua perfeição. Posso vir a trabalhar... com perfeição, também!"
Começara a estudar, então, a paisagem e os tipos susceptíveis de lhe darem quadros. Por duas vezes retratara o senhor Harnsbarger: uma, com o velhote sentado na sua antiga cadeira de braços; outra, ao ar livre, junto da granja encarnada, com a brisa estival a ondular-lhe a barba branca. Mandara os quadros para Nova York, onde os haviam recebido como prenúncio de nova fase na sua obra futura.

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"Há uma certa moleza nestes quadros, que constitui novidade na pintura de Guilherme Barton" - lera ele nas críticas. Este juízo enfurecera-o.
"com a breca! estou repleto demais" - reflectira, por momentos. Ainda irritado, afastara essa ideia. Afirmara uma tradição que a Arte não podia germinar na abundância e na paz. Mas a plenitude e a paz eram boas. Porque não havia de provar que também eram tão bom e fecundo terreno para a criação como qualquer outro? As artes - e a Arte em si - floresceram sempre nas épocas em que os homens estão ao abrigo do medo e da miséria.
Entregara-se, por isso, completamente, àquela paisagem, resolvido a possuí-la na total exaltação de toda a sua fecunda beleza. Mas decidira não pintar mais retratos. As caras que via na aldeia e nas herdades das redondezas não lhe solicitavam a paleta e o pincel. Eram plácidas, luzidias, satisfeitas demais. A amenidade da terra criara-as todas do mesmo feitio. Voltara-se para o céu e para os montes; para os torturados sicómoros brancos, torcidos pelos ventos, e que súbitas inundações haviam dilacerado e empreendido submergir; para os frágeis vidoeiros na floresta, pela Primavera; para os raros rochedos que rematavam um ou outro monte. Não havia muitas rochas na região. Debaixo da rica superfície do solo, jaziam, ocultos, os sedimentos laminados que formavam o fundo xistoso das correntes de água. Mas a camada negra e humosa da terra escondia-lhes todas as arestas, toda a rudeza, excepto, às vezes, na crista de um serro, onde um esporão avermelhado irrompia. Um dos seus quadros, que fora notado esse ano, intitulava-se: "Rocha Vermelha na Pensilvânia".
E, no entanto, sabia que mais longe, a umas centenas de quilómetros apenas, o jazigo de xisto, que se espalhava por debaixo de toda a comarca, para o norte e a oeste do casal, continha ferro e carvão. Se houvesse transposto essa curta distância, teria tornado a encontrar tipos dignos do seu pincel. Mas Guilherme não queria afastar-se de Ruth.
Esperava o nascimento do primeiro filho, com mais curiosidade por si do que pela mulher. Um filho era mais

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uma dádiva da esposa. Era tão natural para ela conceber, atingir a maternidade, esperar o nascimento de um filho como se fosse uma festa, que não estranhava nada a nova situação.
Mas Guilherme sentia-se mudado, só na previsão da chegada de uma nova criatura, que passaria a viver naquela casa com Ruth e mais ele. Considerava-se, contravontade, integrado nas gerações dos Harnsbargers, como se o génio da família, para servir os seus fins, o houvesse ali atraído, e depois, quando a levara do casal, a chamara outra vez, e a ele com ela, até alcançar os seus desígnios - mais uma geração.
- Seis gerações - exultara o senhor Harnsbarger. Há-de ser um rapaz... Tivemos sempre rapazes, primeiro.
E fora um rapaz. Guilherme debruçara-se sobre o berço a examinar aquela carita redonda, tentando compreender que tinha diante de si um filho seu. Mas na nova face só via a imagem de todas as gerações nascidas naquela casa.
Ruth, recostada no leito, mostrara-se calma e radiosa. Acertara e ele enganara-se. Quisera interná-la num hospital de Filadélfia, para ter a criança. Mas Ruth dissera que devia e desejava dar à luz em casa, como sua mãe. A senhora Laubscher a trataria.
- Mas se houver alguma novidade?
- Sei que não haverá - respondera Ruth. E nada sucedera.
A boa senhora Laubscher fizera tudo como devia ser. Até mesmo trouxera escondida, debaixo do avental - não a fosse ver Guilherme - uma machadinha, destinada a cortar o cordão umbilical do nené, para este vir a ser um bom lenhador. E a própria Ruth, durante todo o tempo de pejo, escutara sempre com atenção tudo quanto lhe dissera a aparadeira. Passeara debaixo da corda da roupa, a fim de evitar que o cordão umbilical se enrolasse ao pescoço do menino. Tudo correra bem desde o princípio. Ficara a saber quando seria a sua hora, um domingo, em que se sentira todo o dia muito contente, quando tudo correra bem, a partir do momento que se levantara. O pão ficara

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muito bem cozido no sábado. Deitara-se muito satisfeita nessa noite.
- Esta criança foi gerada a um domingo, com certeza - dissera a senhora Laubscher, depois de a aparar. Saltou ao nascer!... É muito forte!
- E foi - respondera Ruth. - Lembro-me de estar muito contente nesse dia.
- Por isso é já tão bonito - afirmara a senhora Laubscher. Embrulhara o infante num cobertor e erguera-o nos braços, mostrando uma criancinha de cabecita redonda.
- Agora, vou meter-lhe as mãozinhas e os pèzinhos em água de nascente - dissera em seguida, a velhota.
E mergulhara, com efeito, os minúsculos punhos fechados da criança, um após outro, e depois os pezitos, num alguidar de água posto em cima da mesa.
- Assim, nunca apanhará frieiras.
Lavara o menino e arrumara o quarto, e, quando Guilherme entrara, saíra a correr, com a placenta atada a um trapo, e fora enterrá-la debaixo de uma roseira, para Ruth se conservar sempre bela.
- Uma boa e linda rapariga - murmurara, enquanto alisava a terra por cima das raízes da planta.
No fim da operação, erguera-se ofegante, por ser muito gorda, e limpara as mãos sujas de terra. Concedera ao novo pai uns minutos para ver o filho. A seguir agarrara na criança, indo com ela até ao sótão da casa, para ter a certeza de que o recém-nascido subira antes de descer.
- As pessoas esquecem-se destas coisas - murmurara também - e depois não sabem porque têm pouca sorte!
No quarto, Guilherme ficara a olhar para o filho. Viu, naquele instante, que nunca seria um bom pai. Não se sentia prolongar naquela criancinha.
- Não estará gordo demais? - perguntara. Ruth rira-se.
- É um lindo bebé gordinho - dissera, feliz.
Em vez de fixar a criança, olhara para a mãe. Estava mais bonita do que nunca.
- Creio que tiveste uma boa hora.

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- Lá isso tive.
- Julgava que as mulheres tinham que sofrer, ou qualquer coisa assim - resmungara, com fingida censura. Ela rira-se outra vez. Tivera, então, de se conter para não a apertar nos braços.
- Fiquemos por aqui - dissera-lhe com ciúmes.
- Para que serviria um só? Ele tem que ter alguém com quem brincar.
- Porquê? - insistira o marido.
- És tonto - respondera Ruth, sorrindo. - Que nome lhe vamos pôr, Guilherme?
- Harold, que é o nome de meu pai. Ruth pensara no nome, e depois dissera:
- Nunca houve aqui nenhum Harold.
- Então passará a haver agora.
Ruth dera-lhe mais dois filhos - duas raparigas, uma atrás da outra. Era o bastante - declarara ele. Os filhos eram a felicidade dela, a sua beleza remoçava no meio daquelas três crianças. Retratara-a assim uma vez, e ficara surpreendido por os críticos não terem verificado nenhum progresso na sua obra.
- É a melhor coisa que fiz até hoje - dissera, irritado, para Ruth.
- É verdade - concordara esta vivamente. - Mas essa gente pensa que tudo tem de ser feito em Nova York, senão não presta.
- É certo - confirmara ele, intimamente surpreendido com a sagacidade da mulher.
Decidira, então, na sua cólera, mostrar-lhes de quanto era capaz. Não tornaria a mandar quadros para Nova York. Organizaria ele mesmo as suas exposições. Havia de pintar tais quadros, que toda a gente viria vê-los.
E começara a pintar, aturadamente, expondo todos os anos as suas telas no palácio municipal. As crianças das escolas eram levadas pelos professores à exposição e a imprensa local referia-se, todos os anos, lealmente, aos quadros. Costumavam aparecer, também, alguns jornalistas

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de Filadélfia. Uma vez lera, num jornal de Nova York, como se fosse a notícia da sua morte, uma coluna de prosa, assinada por um grande crítico. O articulista deplorava a sua perda. "A promessa de Guilherme Barton, iniciada sob tão brilhantes auspícios, não se cumpriu" - lia-se no artigo. Deitara fogo ao jornal, para que Ruth nunca o visse. Mas não podia reduzir a cinzas a memória que retinha as inolvidáveis palavras.
Haviam-lhe sido úteis, aliás. Todas as vezes que se sentia sem vontade de trabalhar e sem inspiração, lembrava-se da crítica e começava novo quadro. Oito horas por dia eram o seu mínimo - dizia às pessoas que lhe perguntavam quantas horas trabalhava. "Trabalho com regularidade - afirmava - porque é o único meio de realizar qualquer coisa".
Durante doze anos pintara, ininterruptamente, sem acreditar, sempre com a mesma obstinação, que de ano para ano ia caindo mais no olvido total.
- Paizinho? - chamou Jill, do fundo da escada.
- Que é, minha filha? - respondeu, do quarto.
- O jantar está na mesa... e já limpei os pincéis.
- Está bem, meu amor.
Penteou-se e limpou um pingo de tinta, que lhe caíra na camisa, com a rolha de vidro de um frasquinho de benzina que Ruth lhe pusera no aposento. Jill continuava à sua espera.
- Posso entrar? - perguntou.
- Podes.
A pequena entrou no quarto e ficou a observá-lo, um tanto acanhada, mas com desejo de estar à vontade com o pai. Este, porém, era incapaz de estar sem embaraço diante dela. Por qualquer capricho da natureza, a criança tinha os olhos pequenos e cinzentos, exactamente como o avô, o senhor Harnsbarger; todas as vezes que Guilherme olhava para a filha parecia ver a alma do velho na sua frente. Mesmo quando sentia a ternura íntima da filha por ele, ao ver aqueles olhos, ficava-lhe com aversão.

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- O paizinho tem muito que fazer, esta tarde?
Nada planeara, mas, ao ouvir a pergunta da filha, lembrou-se de repente que já havia muito tempo não via os pais.
- Estava a pensar em ir à cidade. - Sentiu remorsos. - Porquê?... Tinhas algum projecto?
- Pensei que talvez o paizinho se lembrasse de alguma coisa para nós.
Se Jill lhe apresentasse qualquer ideia sua, ainda teria anuído. Mas assim... Aquela pobreza de imaginação irritava-o. Nenhum dos seus três filhos possuía qualquer espécie de imaginação!
- Tenciono ir visitar meu pai - disse-lhe com bondade. Jill não respondeu. Para a consolar, cingiu-a a si, pelos ombros, enquanto desciam as escadas. Levara os filhos, um de cada vez, a ver os avós, mas não fora bem sucedido. As crianças, rosadas e saudáveis no casal, pareciam labrostes na sala de sua mãe. As suas maneiras reflectiam as instruções de Ruth.
"Sim, minha senhora" - "Muito gosto em conhecê-la", ensinara-as a dizer. Guilherme não tivera a coragem de lhe explicar que tais frases não eram as que lhe tinham ensinado, em pequeno, nem que sua mãe, embora sem dizer nada, sorrira com ironia, ao ouvir os netos dizer aquelas coisas, muito atrapalhados com receio de se enganarem. Nunca mais os levara, por isso, lá a casa, desde que, no ano passado, Harold entornara o copo do vinho do avô por cima da toalha bordada da mesa, e sua mãe dissera: "Não tem importância... a criança não sabe o que faz".
- Onde está o Hal? - perguntou ele, depois de se sentar à mesa.
- Anda aí não sei por onde - respondeu Ruth, contraindo os seus lindos lábios carnudos, enquanto trinchava e servia com presteza o frango corado. - Quando vier, há-de apanhar com o chicote. Eu bem lhe recomendei que não devia ir brincar, enquanto não acabasse o trabalho.
- Vamos, Ruth... Bem sabes que detesto isso.

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Ela ia para falar, mas não abriu boca. "Alguém tem que fazer alguma coisa", estivera para proclamar. Mas aprendera a calar-se. Relanceou a vista pela mesa, para ver se tudo estava em ordem, e não deu resposta.
Na sua biblioteca, o senhor Barton examinava, atentamente, o quadro que seu filho Guilherme acabara nessa manhã. Assaltado pela dúvida, Guilherme trouxera-o para saber a opinião do pai. Talvez fosse bom - ou talvez não... O velho amador recuou uns passos, sem dizer palavra.
- Uma espécie de paisagem, muito americana - disse Guilherme, pouco à vontade.
- Ah! - exclamou o pai. - Sim, é isso.
- Aconteceu-me uma coisa curiosa com este quadro - continuou Guilherme. - Uma borboleta foi de encontro à pintura e largou o pó das asas na tinta... Tive a impressão de a ter pintado na tela.
O senhor Barton olhou para o filho. Tirara os óculos e sentara-se, para descansar as pernas. Estava agora muito alquebrado e tivera sempre o pavor de falar em coisas desagradáveis. Mas debatera, muitas vezes, com a mulher, a questão de ter uma conversa com o filho.
- Não há vantagem alguma em ocultar-lhe a verdade - dissera ela, com firmeza, ainda nessa manhã, ao pequeno-almoço. Com a idade, tornara-se mais intransigente, insensível e desconfiada, como sucede, em geral, com as mulheres. O senhor Barton não a podia compreender. À medida que passavam os anos, mais amável e cordial se sentia, como sucede também com os homens, em geral.
De repente, resolveu falar ao filho, depois do jantar, quando estivessem a sós. O fim da velhice, afinal, era morrer. Depois de morto, já nada diria.
- Guilherme - disse-lhe - tens um belo talento. Em certa altura, cheguei mesmo a suspeitar que fosses um génio.
Relanceou a vista pela sala. Ao cantinho, lá estava ainda a pequena tela do filho.
- Pensava às vezes no dia em que um quadro teu daria

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ingresso na minha colecção - continuou. - E também em pendurá-lo no lugar onde está o último Corot que comprei. Tencionava fazer uma cerimónia, nesse dia... Tirá-lo de lá e pôr o teu no seu lugar.
Guilherme teve um riso forçado.
- Nunca chegarei a tanto.
- Mas porque não? - perguntou o velho crítico, surpreendido.- Porque não?...
- O meu talento, se o tenho, é de segunda ordem - disse Guilherme, implacavelmente, embora sangrasse com o próprio juízo que de si fazia.
- Não... - disse o pai - não... tu tens talento, e de primeira ordem... O que está é atabafado pela facilidade.
Tornou a olhar para a tela.
- Terra excelente demais... verde pletórico, luxuriante. A forma essencial não existe. Onde não há forma, não há expressão. Só a técnica, por muito boa que seja, nada quer dizer, Guilherme.
- Fale à vontade, meu pai - disse o pintor, corajosamente.
- Então, ouve: parte imediatamente, sozinho, para qualquer lado, e vê se consegues pintar. Mas vai já; dentro em pouco será tarde demais.
Dito isto, levantou-se, e muito simplesmente, sem dramatizar a situação, voltou a face pintada da tela para a parede.
- Obrigado, meu pai - disse Guilherme, lentamente.
- Vamos ter com tua mãe?
- Vamos.
...Era muito tarde quando saiu de casa do pai. Sua irmã aparecera com o marido e mais dois amigos, uma senhora nova, muito morena, acompanhada por um homem. Guilherme via Luísa e Monty apenas duas ou três vezes por ano, o bastante para não perder o contacto com eles, e, contudo, naquele dia, sentiu-se estranho.
- Como passou? - murmurou Monty, estendendo-lhe a mão comprida e mole.

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Não lhe deu atenção, lembrando-se de súbito de que não gostava do cunhado, que sempre antipatizara com ele. Monty estava a triunfar, a triunfar absurdamente. Fizera uma grande fortuna, não se sabia bem como. A banca internacional - segundo parecia - dera-lhe oportunidade para vencer.
Passava com a mulher metade do ano em Paris. O senhor Barton, ouvindo falar na riqueza de Monty e vendo a prova disso no valor fabuloso e crescente das jóias que Luísa ostentava, pediu-lhe que comprasse quadros.
- Não há nada como um bom quadro para aplicar bem o capital - disse-lhe muito a sério. - Dá-nos prazer, e é sempre dinheiro garantido.
Mas Monty ficara insensível a olhar, sem os ver, para os quadros que o sogro adorava. Monty era incapaz de contrariar alguém, mas fazia sempre apenas o que tinha na vontade.
Luísa tentara vencer aquele homem pálido e calado, mas perdera a partida, e resignara-se a aceitá-lo como era, e até mesmo conseguira sentir por ele certo orgulho, desde que o êxito o impusera. Os seus amigos é que a inquietavam. Monty relacionava-se com uma gente esquisita, igual àquela que levara a casa do pai. Onde fora ele descobrir aquela morena, e aquele homem que nem era seu irmão nem seu marido?
- Ouve lá, ó Lu, a tua família diria alguma coisa se eu levasse duas pessoas amigas a jantar lá a casa, amanhã? - perguntara-lhe Monty.
Era tudo quanto sabia daquele homem e daquela mulher.
- A mãe não gosta de receber gente estranha - respondeu, friamente.
- Dize-lhe que são meus primos.
- Mas se não são, Monty!
Ele sorrira-lhe de soslaio, dizendo com voz melíflua:
- Não sejas como a tua mãe, Lu. Não gostava nada de me ver obrigado a começar também a mentir-te, minha querida.

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Eis o que receava, que de um momento para o outro lhe começasse a mentir, também, e assim o perdesse.
Assim, ainda lhe ia dizendo - pelo menos supunha-o...
- tudo o que fazia ou tencionasse fazer, e ainda a atendia - ou era também ilusão sua? - quando a margem da probidade não era muito apertada.
- Deves ser sincero, Monty.
Ele sorria e concordava:
- Evidentemente.
Mas a margem era tão apertada que, por vezes, quando estava só, sentia-se feliz por não ter filhos. O único filho que tivera nascera morto, e não queria tornar a sofrer as mesmas dores de parto. Se conseguisse manter o marido no caminho da rectidão enquanto os pais dela vivessem, talvez depois pudesse sossegar. Mas separada ou junto de Monty? Não o sabia dizer. Pelo menos, não havia filhos.
Olhando para Guilherme, pensava: "Onde teria ele vivido todos aqueles anos?" Não era grande, no entanto, a sua curiosidade a respeito do irmão. A maior parte das vezes fatigava-a perguntar pelas outras pessoas. Além disso, concordara com a atitude da mãe - "era melhor fazer de conta que a família de Guilherme não existia". Teu irmão sabe que será sempre bem recebido, aqui, em sua casa - dissera a mãe, e achara isto admirável.
Mas Guilherme parecia agora cansado e triste também. As pessoas ficariam simplesmente assim, com aspecto fatigado, quando deixavam de ser novas? Ou teria Guilherme desgostos? Não podia dizer que Monty fosse para si um motivo de desgosto, mas viver com ele era o mesmo que viver na sombra de tempestade iminente. Nunca se sabia... Aquela guerra que se anunciava, por exemplo. Ninguém pensava ainda em conflito armado na Europa, senão Monty. Mas ouvira falar em conflagração, a alguém, em qualquer lado, e acreditara logo no rumor.
- Uma guerra, Monty? - perguntara ela, bruscamente surpreendida. - Mas as guerras acabaram!
- Não será já, minha filha - redarguira ele - mas daqui a uns três anos...
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- Como sabes isso!?
Monty não respondera. Devia-o ter ouvido - calculou - a algum daqueles seus amigos esquisitos de Constantinopla, Viena, Berlim ou Paris.
Suspirou, e a sua leve curiosidade a respeito de Guilherme desvaneceu-se. Também tinha as suas apreensões, vivendo por esse mundo fora com o marido. Quando sua mãe lhe perguntara quem era aquela gente, respondera com a mesma desenvoltura que teria respondido Monty:
- São uma espécie de primos... É claro que, se prefere não os receber... Mas eles visitam-nos.
- Se são vossas visitas, podem trazê-los - dissera a mãe, com dignidade.
Bem via o seu espanto, diante daquele casal suspeito, mas a senhora Barton, que tinha fama de receber bem, sabia dissimular. Saíra da sua habitual e taciturna reserva e suscitava a conversa entre todos. A sala animara-se. Até Guilherme parecia interessado em ouvir o que se dizia, mas a conversa era rápida demais para ele. Os assuntos sucediam-se uns aos outros: acabou por perder o fio à conversa e calar-se. A mãe reparou no seu silêncio.
- Sabes, Guilherme, devias sair do teu verdejante retiro - disse-lhe com uma ponta de malícia.
E voltando-se para a visitante estrangeira:
- Meu filho é bucólico, sabe... Casou-se com a filha de um lavrador, e pinta tudo quanto vê das janelas da casa da mulher.
- Ó mãe!...
Esta nunca lhe falara assim tão directamente.
- É verdade, Guilherme!... E tens-te tornado um sensaborão para toda a gente.
A dureza das suas palavras era atenuada pela malícia intencional da velhice amimada, mas bem sentia a profunda irritação da mãe contra ele, a mesma intolerância que, em criança, lhe desolava a alma, como o sopro árido dum vento de deserto. Duvidou de si num momento. Estava amargamente deprimido, quando a jovem visitante lhe disse, fitando-o com os olhos semicerrados:

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- Devia ir à Áustria. Teria lá muito que pintar.
- Eu não sou o que julga, minha senhora... Apenas me considero um pintor de modestos recursos - respondeu, sorrindo.
Não podia continuar ali depois do que dissera e ouvira. Perdeu de novo o rumo da conversa, que se dispersou. Ouviu citar nomes de lugares e de indivíduos que definiam uma época a que renunciara sem saber bem porquê.
Ouviu Luísa dizer, na sua voz queixosa e irritante: "Monty afirma que vamos ter uma guerra mundial".
Todos olharam para ela. O jovem estrangeiro fez-se de púrpura, tornado de cólera, mas conteve-se e olhou para Monty, que de súbito empalidecera.
- Isto é absurdo! - disse a senhora Barton. - Já não somos nenhuns selvagens. Que te faz pensar assim, Monty?
- Não se explica, sente-se...
.- Gostaria de apanhar, antes disso, um Rafael que trago debaixo de olho, se realmente tais coisas estão para acontecer - observou o senhor Barton.
- Onde está o quadro? - perguntou o homem moreno.
- Em Espanha, imagine. Poucos o conhecem! - volveu o dono da casa.
- Espanha! - repetiu o outro. - Não, a Espanha não é lugar seguro, tenho a certeza.
Guilherme sentia-se infinitamente alheio a tudo aquilo. Momentos depois levantou-se, deu as boas-noites e foi para casa. Teria perdido, afinal, a vida indispensável para alimentar o seu espírito?
"Ruth aceitaria de bom grado a sua ausência de casa por algum tempo?" perguntava a si mesmo, a caminho do lar. De súbito, sentiu a necessidade de viver, com sacrifício e abnegação, entre povos rudes e infelizes, de participar das suas misérias e das suas dores.
A sua aflição por causa da borboleta, naquela manhã, parecia-lhe agora ridícula e pueril. Deu por si a pensar na dureza da guerra, em privações, em perigos e sacrifícios de carácter físico. Em tais condições, o espírito era forçado a elevar-se. Que mais o poderia estimular?

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Caminhando através da noite sem luar e dos campos há muito adormecidos, sentia-se inteiramente seu, A sua alma estava intacta como espada virgem que nunca fora desembainhada. Como devia manejá-la? Era preciso, primeiro, uma razão, um sentimento forte que transcendesse a sua individualidade. Apesar dos seus quarenta e sete anos, sentia-se jovem, bastante novo, com uma obra imperfeita, por que não chegara ainda à maturidade. O seu cérebro precisava de estímulo.
"Se abandonasse agora a casa de Ruth, sem saber se lá voltava, para onde iria?" perguntava a si mesmo.
A casa surgia diante dele, na noite quente e macia. As janelas da cozinha tinham luz. Foi pelo caminho do jardim, que já conhecia maquinalmente. Abriu a porta da cozinha.
Ruth estava ainda a pé. Tinha na mão um chicote. Hal, encontrava-se em frente da mãe, de bruços sobre a mesa, de braços estendidos, apoiando as mãos na tábua. Ruth falava, mas calou-se quando o viu entrar.
- Vai-te embora, Guilherme - disse-lhe, voltando-se para ele.
Mas, indignado com o que via, ele exclamou, esquecendo tudo o mais:
- Não, não consinto, Ruth! Tu... Isso não são maneiras de educar um rapaz!
O rosto de Ruth endureceu, como nunca supusera. Pela primeira vez lhe pareceu feia.
- Hei-de fazer o que me parece justo, como sempre até aqui - respondeu, calmamente.
E num repente, antes de lhe dar tempo a falar ou de a deter, caminhou para o filho, brandiu o chicote e vergastou-lhe as costas três vezes, com força. Hal estremeceu e deixou pender a cabeça.
- Ruth! - bradou Guilherme, correndo para a mulher e arrancando-lhe o chicote das mãos.
- Deixe-a! - atalhou Hal. Não chorava, mas tinha os olhos marejados, com a violência da dor. - A mãe disse que me batia, e eu já esperava apanhar.
- Não consinto - replicou o pai, com autoridade, atirando

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o chicote para o chão. - E não compreendo, Hal... como tu podes...
- Não o admitiria a mais ninguém - redarguiu o rapaz.
Um filete de sangue principiava a aparecer-lhe na camisa.
- Despe essa camisa, filho - ordenou Ruth. - Vou já tratar-te.
- Não - respondeu o rapaz - isto não é nada!
Mas tirou a camisa, enquanto a mãe foi buscar uma bacia de água fria e um pano limpo. Depois Ruth lavou-lhe, com doçura, os vergões azulados que sangravam.
- Teve que ser assim, meu filho - dizia-lhe - se não te batesse com força, não serviria de nada.
- Bem sei - respondeu Hal.
Tinha-se esquecido de Guilherme. Parecia que o castigo aproximara mais a mãe e o filho. O rapaz deixou-a lavar-lhe as feridas até o sangue parar, e depois tornou a vestir a camisa.
- Tenho que dormir de bruços esta noite, mamã - disse, fazendo uma careta risonha. - A mãe tem força, não haja dúvida!
Deu-lhe um beijo depois, e ela, cingindo-o a si, num súbito impulso, disse-lhe:
- Quero fazer de ti um homem!
- Pois decerto. Boa-noite, pai.
Acenou com a cabeça a Guilherme e saiu da cozinha. Durante uns momentos ficaram calados, a ouvi-lo subir a escada, vagarosamente, para o quarto.
Guilherme levantou o chicote do chão e estendeu-o a Ruth.
- Não quero tornar a ver aqui uma coisa destas.
Ela pegou no açoite, e sem dizer palavra, foi pô-lo no cimo do armário. Deu ainda as habituais voltas pela cozinha, a preparar as coisas para o dia seguinte. Pouco depois subiram as escadas, em silêncio.
Observou-a, enquanto ela se despiu, lavou e pôs o roupão de dormir. Deitara-se primeiro, ficando a vê-la pentear,

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antes de fazer as tranças, os longos cabelos soltos, virgens de tesoura. Todos os seus movimentos o fascinavam ainda, depois de tantos anos, e apesar do que sucedera naquela noite. Mas não era só amor o que sentia. Ruth também lhe era antipática. Nunca reconhecera isso até ali, mas pouco antes, quando a vira fustigar o garoto, descobrira o aspecto antipático do carácter de Ruth. Uma mulher mais sensível não seria capaz de levantar assim, três vezes, com tanta firmeza, um chicote, nem bater com tanta força até fazer sangue, em alguém. Não voltaria a nutrir por ela o que já sentira.
E, no entanto, amava-a - porque tudo quanto fazia estava certo e era coerente com o seu modo de ser, sem artifício. Comparou-a com a mulher esbelta, de olhos pretos, que vira à noite em casa da mãe. A seu lado, a outra era uma nulidade. A presença de Ruth fazia-o sentir a realidade das coisas como ninguém. Toda a noite que passara junto dos pais se reduzia, agora, a nada, naquele quarto, apenas alumiado por um candeeiro de petróleo. O grande leito, a mobília fora de moda, as cortinas brancas das janelas - eis o centro da realidade. Ruth curvou-se sobre a luz para a apagar. À claridade, viu-lhe num relance o contorno cheio, de linhas suaves, do rosto sempre belo. A sua face estava agora calma. Involuntariamente comparou-a com a expressão que lhe vira momentos antes, quando castigara o filho. Ruth era capaz de ser incrivelmente dura, até mesmo cruel - pensou. Como seria, no fundo? Apagada a luz, ela meteu-se na cama. Sentiu o contacto das suas coxas firmes e roliças. A mulher passara-lhe um braço por debaixo da cabeça e chegara-se-lhe muito.
- Passaste bem a noite? - perguntou, às escuras, com voz natural.
- Havia lá umas pessoas - respondeu evasivamente. Nunca lhe falava nas visitas a casa dos pais. Ruth, também, nada lhe perguntava. Era melhor assim. Como lhe explicaria - se tivesse de o fazer - para atingir, o efeito que lhe produziam tais visitas?

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- A tua família está bem? - insistiu. Durante todos aqueles anos nunca mostrara vontade de ir ver os sogros. Uma vez o marido convidara-a a acompanhá-lo, mas recusara, alegando:
- "Não me daria bem com tua mãe". - E acrescentara:- "Somos ambas orgulhosas; ela não cederia e eu também não. É melhor vivermos à parte".
Não a contradissera.
- Está bem, obrigado - respondeu, quase simultaneamente a estas reflexões.
Ela bocejou com sono. Guardaram silêncio alguns minutos. Ruth sentia-se salutarmente cansada, depois de um dia de trabalho intenso. Podia dormir já, se quisesse. Mas a sua sensibilidade estava desperta por causa do seu homem. Sabia, por experiência de muitos anos, que todas as vezes que Guilherme voltava de visitar os pais vinha mudado. Era o que sucedia agora. Sentia-o pela maneira como estava deitado, o corpo junto do seu, mas como se não a conhecesse. Aquela modificação despertava-lhe sempre ciúmes, embora ele acabasse por a procurar, reconquistado. E havia de voltar sempre - tinha agora a certeza - apesar de, nos primeiros anos de casada, haver receado muito a possibilidade de talvez a abandonar um dia. Costumava perguntar a si mesma se Guilherme teria gostado de mais alguém, de alguma mulher da sua classe, antes dela. Mas tanto era o pavor de tal ideia, que nunca tivera a coragem de lho perguntar. Agora já lhe importava o que tivesse feito antes de a conhecer. Pertencia-lhe. Não lhe interessava indagar o seu passado. Que pena ele ter vindo antes de arrumada a questão com o filho! Mas não o pudera evitar. Voltou-se e enconchou-se toda nele. Gostava cada vez mais do marido, à medida que passavam os anos. Não havia coisa de que mais gostasse. Mas, com espanto seu, o corpo de Guilherme continuava hirto, indiferente. Não se mexia. De repente, assaltou-a uma onda de ciúme por aquela noite passada longe dela. Todos os zelos que julgara esquecidos tornavam a aparecer.
- Que tens tu? - perguntou, afastando o corpo.

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- Ruth - respondeu ele - meu pai disse-me que devia sair daqui, para qualquer lado.
Não respondeu logo. Demorou uns segundos a compreender. Atingida na sua ternura, ficou petrificada pelo terror. Pronto, aí estava o que sempre temera! Se porventura a deixasse, em breve reconheceria o valor de todas as coisas que perdera por haver casado com ela. Porque, sem conhecer o que seriam essas coisas, o seu espírito atemorizado avolumava-as, à medida que passava o tempo, com receio de que ele as descobrisse um dia. Lembrava-se ainda, com ciúmes, de certa fotografia que lhe mostrara uma vez o marido, representando a casa dos pais. Chamava-lhe o seu "estadão". Punha-lhe defeitos. "Não gostaria nada de ter que tratar dum casarão desses... Nem de lá viver... Parece um hotel". Gostava de o ouvir dizer, com indiferença: "Também gosto mais do nosso casal". A maioria das vezes acreditava no que ele dizia. Como nunca vivera de outra maneira, julgava que só havia uma única forma de viver, que era a sua. Mas, às vezes, lembrava-se de que o marido fora criado na outra casa, e ficava apreensiva.
- Para quê? - respondeu, por fim, depois de pensar tudo isto num momento. - Não estás doente... Além disso, para onde havíamos de ir?... E como poderia eu tratar das coisas, aqui... - perguntou com a garganta seca.
- Meu pai é de opinião que devo partir sozinho.
- Para quê? - insistiu, cheia de súbita cólera contra o velho.
- Diz que preciso de ver coisas novas, que já não trabalho como trabalhava.
Estava a fazê-la sofrer - bem via - mas nessa noite não lhe faltava a coragem de que sempre carecera. E isso por causa do filho. Não se podia esquecer da maneira decidida como ela levantara o chicote três vezes, na sua frente, apesar dos seus protestos veementes, enquanto assistia à cena que não pudera impedir. Não conseguira esquecer, em parte, por ela ter feito a sua vontade contra a dele, mas, principalmente, por se ter revelado má.

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- Se me deixas, nunca mais voltas para mim - murmurou.
- Volto, sim. Claro, que voltarei!
- Não voltas, não... tenho a certeza.
- Não sejas tontinha, meu amor.
- Tudo o que faço é por ti. Quase não penso em mais nada. Se deixaste tudo por minha causa, também eu faço outro tanto, Guilherme.
- Vamos, Ruth, estás a fazer um bicho de sete cabeças duma coisa de nada. Os artistas viajam em toda a parte e as suas mulheres têm de se resignar. Tenho sido sempre teu amigo, parece-me.
Queria levar a coisa a brincar.
Sentiu-se tremer toda, estranhamente, aquela mulher sólida, robusta, de meia idade, a sua esposa!
- Que é isso, meu amor? - exclamou, voltando-se para ela e envolvendo-a nos braços, invadido por uma ternura que lhe parecia nova pelo carácter de protecção que revestia.
Ruth, até ali, nunca lhe parecera precisar de protecção.
- Que é isso, minha... pequenina? - murmurou ainda. Nunca a tratara assim.
De súbito, Ruth começou a chorar, desabafando tudo quanto guardara só para si.
- Eu bem sei que é por minha causa que te queres ir embora! Não te mereço. É por isso que teu pai quer que me deixes. Já sabia, quando casei contigo, que não o devia fazer. Sempre receei isto. Devia ter casado com alguém da minha igualha, a quem pudesse servir e não prejudicar. Tenho-me dedicado a afazer-me a ti, tentado tudo para te comprazer, sem pensar em mim. Se me deixares, de nada terá servido tudo quanto fiz!
- Cala-te - disse-lhe ele, baixinho - cala-te, Ruth! As crianças podem ouvir.
- Não quero saber! - replicou ela, continuando a chorar.
Deixou-a chorar nos seus braços, mas conservando a coragem bastante para não lhe confessar que não partiria.

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Sentia-se profundamente abalado, mas não queria mostrar-lhe até que ponto. Nem ele mesmo o sabia. Seu pai também o perturbara, mas não sabia qual dos dois - Ruth ou o pai - o perturbara mais. No dia seguinte, de manhã, quando subisse à colina e pudesse pensar, sozinho, à vontade, encontraria a solução das suas perplexidades.
Quando, depois de haver chorado e de esperar ouvi-lo prometer-lhe que não partiria, ela compreendeu o seu silêncio, ficou aterrada. Este pavor exacerbou-lhe a paixão e o desejo de possuir Guilherme com o máximo ardor.
- Quero-te - murmurou, como em segredo - quero-te... quero-te...
Mas, ainda mesmo na febre do amor, ele nada lhe prometeu. Manteve-se fiel à decisão de nada resolver antes da manhã seguinte. Apesar da ternura e da beleza que Ruth irradiava naquele instante, não podia esquecer-se da sua cara quando erguera o chicote. Num momento, a mulher tornara-se-lhe estranha, antipática. Um instante bastara para a sentir alheia.
Ruth ficou ainda acordada muito tempo depois de Guilherme adormecer. Estava mudado! - pensava com pavor. Ficava sempre assustada quando notava qualquer mudança no seu humor habitual. Não conhecia nem era capaz de desvendar-lhe o espírito, mas conhecia-lhe perfeitamente o corpo, e, pelo seu estado, media a satisfação da sua alma. Quando ele comia, bebia e dormia, e depois a procurava com apaixonado ardor, então ficava contente. No seu foro íntimo não considerava trabalho - isso de pintar quadros. Guilherme vendia alguns, todos os anos, mas o que recebia mal chegava para satisfazer as suas necessidades pessoais. Era ela quem os mantinha a todos, na fazenda. Sentia-se orgulhosa pelo facto, e também por saber que muita gente a lamentava por ter casado com um homem incapaz de a sustentar. A essas pessoas era muito competente de declarar o que proibira aos filhos de repetir:
- "O pai de Guilherme é um homem muito rico. Meu marido será rico também, quando o velhote morrer".
Esta possibilidade, com o curioso respeito que sentiam

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pelas incompreensíveis extravagâncias dos artistas, mitigavam a compaixão daquela gente. Ficavam-se a olhar para os quadros de Guilherme, perguntando a si mesmos porque teria ele escolhido uma azinhaga enlameada pelos aguaceiros primaveris para a fixar numa tela, toda a vida!
- Parece que temos coisas mais bonitas - murmuravam.
Também Ruth sentia o mesmo respeito e desdém pelas pinturas do marido. Mas sabia que só a pintar era feliz. Sentia-se mais sossegada quando ele começava um novo quadro, por ver o seu contentamento. Andava sempre alegre e cheio de esperanças, quando principiava nova tela. Nessas ocasiões trabalhava com afinco; depois, à medida que progredia, faltava-lhe o entusiasmo, de modo que já receava vê-lo acabar qualquer pintura. Nunca ficava satisfeito ao findar o trabalho. E, quando não estava contente, vivia inquieto. Tudo quanto lhe dissesse, então, era inútil.
- Acho tão bom este quadro como qualquer dos outros que tens feito - dissera-lhe ainda na manhã do dia anterior, embora fosse incapaz de notar qualquer diferença nos seus trabalhos.
- Oh, Ruth! - gemera Guilherme.
Mais uma vez se enganara no que dissera. Mas era tão difícil adivinhar o que ele queria ouvir...
Só o amor acalmava a sua inquietação. Muitos dias esperara pela noite para o sossegar. Mas naquela, pela primeira vez, o amor não bastara. Sentia-o ainda longe de si. Até a dormir ele se afastara do seu corpo. Cheia de apreensões, continuou a pensar no problema, à sua maneira prática e directa.
"Tivera muitas coisas a contrariá-lo naquele dia... acabara o quadro e fora ver a família, depois viera para casa, e, como nunca chegara a compreender o feitio de Hal... Amanhã lhe explicarei, de qualquer maneira, o que se passou".
Voltou-se com todo o cuidado e envolveu-o com um braço. A Lua, que nascera tarde, iluminava o quarto e o vulto de Guilherme, com o seu pálido fulgor. Contemplou-o

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apaixonadamente. Como lhe queria! Que lhe importava que não fosse um bom chefe de familia ou não a ajudasse a cuidar dos filhos? Quando precisava de saber alguma coisa sobre a fazenda, podia recorrer a Henrique Fasthauser. Este comprara a herdade pegada com a sua e era um excelente vizinho, embora houvesse casado com uma pobre rapariga incapaz do arranjo da casa e de lhe dar um filho saudável.
Devíamos ter casado um com o outro, Ruth - costumava dizer-lhe, todas as vezes que discutiam uma sementeira de milho, ou a maneira de lavrar a terra depois de uma chuvada.
- Cala a boca, Henrique!
Já te disse - teimara ele, ainda no dia anterior. -
O teu marido e a minha mulher é que estavam a calhar um para o outro. Não valem nada!
- Cala-te! - Nunca teria sido capaz de gostar daquele rústico, e muito menos depois de conhecer Guilherme! Também nenhuma mulher teria sido capaz de amar Guilherme como ela. Oh, outras mulheres o deviam ter amado, mulheres como aquelas que vira, há muito tempo, em Nova York! Seria algumas dessas que o desinquietava agora de casa? Devia ser isso, porque só outra mulher seria capaz de o tornar assim indiferente aos seus encantos. Ouvira, às vezes as comadres da vizinhança falarem no assunto. "Quando o homem não procura a mulher como é costume, indaguem, porque há novidade".
Doía-lhe o coração, de amor e de ciúme. Oh, ainda as outras podiam procurar à sua volta para descobrir a rival, mas já ela não podia fazer o mesmo! Ele descera do céu, como um anjo, para viver com ela, e, se porventura se fosse embora, como havia de o seguir?
"Meu amor..." - ciciou.
Ele chamava-lhe lindos nomes, mas só aquele ela sabia dizer. Murmurou-o ainda muitas vezes, com o coração a trasbordar de amor. Não, não o deixaria partir.
Na manhã seguinte, que por sinal era domingo, esperaram

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à mesa por Hal, para almoçar. As pequenas tinham posto os seus vestidos novos de musselina, já preparadas para ir à escola dominical. Ruth pusera sobre o vestido de linho um avental para não se sujar. Guilherme não ia nunca à igreja. Gostava de passar as manhãs de domingo, sozinho, no casal, quando a família saía. Nessa manhã acordara lúcido, pensando na decisão que devia tomar, satisfeito com as horas de sossego e isolamento que tinha diante de si. Então se decidiria. Encarava com calma a hipótese, à medida que subia o sol no horizonte, de seguir o conselho do pai e partir.
"Se já me não satisfaz o que tenho - pensava - então preciso de descobrir o que posso fazer noutro lado".
Ruth levantara-se cedo, como sempre, e descera à cozinha, deixando-o ainda a dormir. Estava sozinho no quarto conjugal, mas sentia toda a casa viver à sua volta. Gostava muito do casal. Era sólido, confortável e belo na sua simplicidade. Cheirava-lhe, naquele momento, a toucinho frito e a café. Ouvia as vozes das pequenas, que deixariam de falar, mal aparecesse.
Estendido na velha e grande cama, sentia-se leve, desprendido e liberto. Quebrara-se qualquer coisa que o prendia. Sentira-o nessa noite. Pela primeira vez na sua vida de casados, fora Ruth quem o importunara. Havia nisto uma diferença tão profunda que não lograva compreendê-la ainda inteiramente. Isso dava-lhe a liberdade de pensar nas extremas possibilidades de realizar o que lhe dissera o pai. Se este lhe observasse que era tempo de regressar ao mundo em que nascera, teria negado com veemência tal necessidade. Mas o pai notara-lhe que chegara a altura de voltar a encontrar-se a si mesmo... antes de ser tarde demais. O que estava em causa não era este ou aquele meio, mas o seu verdadeiro eu. No dia antecedente, esse eu despertara com as palavras do pai, como o fantasma de um morto.
Acabou por se levantar, tomar banho, vestir-se e descer para o almoço. Ruth e as pequenas estavam à sua espera. Por muito tarde que chegasse, Ruth esperava-o sempre.

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Era uma das suas pequenas intransigências - querer ver todos à mesa, às refeições. "As famílias não devem comer separadas, de qualquer maneira", dizia sempre. Mas Hal ainda não aparecera.
- Que estará a fazer aquele rapaz? - disse Ruth, com impaciência. - Maria, vai lá acima chamá-lo.
- Deve estar ainda cansado da noite passada - observou Guilherme, intencionalmente.
Sentou-se primeiro, seguindo-se Jill, e depois Ruth, que não lhe respondeu nem olhou para ele.
- Porque não o deixas dormir ao menos uma vez? - insistiu.
De repente, ouviram Maria soltar um grito estridente.
- Mãezinha!
Ruth levantou-se de um salto, foi direita à sala e galgou as escadas.
"Que vem a ser isto?" - murmurou Guilherme consigo. Levantou-se e foi no encalço de Ruth, com Jill atrás de si. Ouviu vozes lá em cima.
- O Hal não está cá! - afirmava Maria, ofegante.
- Tem de estar! - pretendia Ruth, convicta.
Foi encontrá-las já no quarto do rapaz. A cama estava feita - e intacta. Ruth abriu o armário da parede, onde guardava as roupas do filho. Estava vazio.
- Ele não há-de ser tão doido que!... - exclamou ela. Mas, quase no mesmo instante, empalideceu e os lábios perderam a cor.
- Vou ver se a bicicleta dele está cá - lembrou-se de dizer Jill, correndo acto contínuo pelas escadas abaixo.
Num momento, estava de volta e anunciou:
- Levou-a.
- Ora um idiota daqueles! - vociferou Ruth, relanceando a vista pelo quarto, à procura de qualquer bilhete deixado pelo rapaz.
Mas nada descobriu. Desceram a escada. Guilherme reflectia no partido a tomar.
- Devíamos avisar a polícia, imediatamente - sugeriu. Mas Ruth tinha o medo que todos os campónios sentem

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pela polícia e pela opinião pública. Além disso, cada vez estava mais irritada com o filho, à medida que compreendia a sua acção.
- Quando chegar a noite, voltará - retorquiu. Quando a fome o apertar, hão-de ver...
Nesse domingo não foram à igreja. Ruth subiu ao quarto, pôs o vestido azul, de trabalho, e, quando as filhas lhe pediram para ficar em casa, fez-lhes a vontade.
Conservaram-se em casa todo o dia, ocupados em tarefas supérfluas. Guilherme não sentia ânimo para pintar, mas, para fazer qualquer coisa, entreteve-se a limpar a paleta e a caixa das tintas. Arredou uma pequena mesa para junto da janela, alegando que via melhor assim. Mas, na realidade, era porque da janela podia observar o que se passava na estrada.
- Os rapazes muitas vezes escapam-se de casa - disse para Ruth, carinhosamente.
Mas, em rapaz, nunca pensara em fugir. Cumprira sempre, com regularidade, as instruções da mãe. Depois, lembrou-se de que, realmente, também ele se escapara de casa um dia... Naquele em que vira Ruth pela primeira vez. Todos os seus instintos de evasão, durante muito tempo recalcados, se tinham convertido num grande voo que durava ainda. Era assim que seus pais interpretavam a sua saída de casa, sem dúvida. Haviam de comunicar de vez em quando, com certeza, um ao outro, as suas esperanças de ver regressar a casa, um dia, o filho.
- É melhor ele fazer isto enquanto é criança... - disse para Ruth, sem lhe denunciar os seus pensamentos.
-- O Hal não tinha razão alguma para sair da sua bela casa - retorquiu ela, com secura.
Puxou o lustro aos móveis, esfregou as escadas e subiu à mansarda para a limpar também, porque das janelas se alcançava um grande horizonte. Guilherme acompanhou-a, para fazer uma escolha a uns montes de revistas velhas que lá tinha guardadas. Não a censurava, porque sabia, como se Ruth lho dissesse por palavras, quanto se recriminava intimamente.

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Os remorsos cada vez a sufocavam mais, à medida que declinava o dia. Não queria oprimi-la mais ainda. A sua irritação contra o filho desaparecera. Quando a noite chegou, toda ela tremia, cheia de medo. Nunca a vira naquele estado, quando, por fim, as sombras da noite amortalharam a estrada e Hal não apareceu. Voltou-se para o marido, na mansarda, onde não se via um pozinho, encostou a cabeça ao seu peito e murmurou:
- Sou muito má, Guilherme. Não foi para seu bem que lhe bati, ontem. Castiguei-o, porque estava irritada com ele, e Deus levou-mo para me castigar!
Eliminou todos os sentimentos do coração, menos a súbita e grande vaga de amor tutelar que sentia por aquela mulher suplicante, que se fazia pequena nos seus braços.
- Não digas tolices, meu amor.
E tentou consolá-la, afagando-lhe os cabelos e a testa.
- Ainda nem sequer começámos a procurá-lo.
Era inútil discutir com ela a ideia de Deus. Todo o seu racionalismo fácil não lograra nunca alterar a crença de Ruth num Deus incessantemente justiceiro.
- Vamos avisar a polícia, primeiro. A polícia tem muitos meios de descobrir o paradeiro das pessoas que desaparecem.
Desceu a escada com ela e fê-la sentar na cadeira de baloiço, na sala.
- Descansa um bocadinho. Trabalhaste muito todo o dia, não comeste quase nada, e só te tens afligido.
Depois, saiu, para telefonar à polícia.
Ficou um tanto perturbado quando lhe perguntaram quais eram os sinais do filho. Nunca o observara muito bem... "Alto para a idade, cabelo castanho-ruivo e olhos castanhos, com sardas no nariz, corado, lábios carnudos... como a mãe".
Quando voltou, foi encontrar Ruth, com os lábios trémulos, contemplando a grande Bíblia da família, aberta sobre os joelhos.
- Guilherme! - exclamou, ao vê-lo. - Hal escreveu aqui isto...

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Correu para ela, e olhou para o livro, por cima dos seus ombros. Leu estas palavras escritas por mão infantil, debaixo da data do nascimento do filho: "Saí de casa no dia 13 de Julho de 1913".
- Peguei na Bíblia, para ler alguma coisa que me confortasse - disse a soluçar - e encontrei isto!...
O pesado volume escorregou-lhe do regaço e caiu no chão. Prorrompeu em amargo choro. Guilherme ajoelhou-se-lhe aos pés, cingindo-a com os braços, e deixou-a chorar.
Durante um mês a polícia procurou, por toda a comarca e todo o Estado, um rapaz de cabelos e olhos castanhos. Em seguida, pelo espaço de seis meses, primeiro, e depois, de um ano, as autoridades procuraram-no por todo o país, sem o encontrar.
- Guilherme nunca deixou Ruth sozinha uma hora sequer. Quando ia pintar para o alto do monte e não a via sair de vez em quando da cozinha, com o avental a ondular ao vento, descia até cá baixo e procurava-a por toda a casa, até a encontrar.
- Sentes-te bem, minha querida? - perguntava-lhe.
- Porquê?... Estou bem, Guilherme - respondia, sempre calma.
Ele compreendia o que significavam as suas palavras. Só se sentiria bem quando lhe encontrassem o filho. Intimamente, Guilherme receava, e às vezes convencia-se de que o filho estivesse morto, mas nunca o dissera a Ruth, que se lhe referia sempre como a um vivo. Nunca, nem mesmo nos recessos mais íntimos do coração, podia admitir a hipótese da morte do filho. Arranjava-lhe o quarto e tinha-o sempre pronto à espera dele, arejando as roupas da cama e lavando os lençóis, de tempos a tempos, como se o filho continuasse a dormir em casa. Qualquer dia entrava-lhe pela porta dentro, com o seu sorriso travesso!... Sorria ao pensar nisso.
- De que está a mãe a rir-se? - perguntava Jill. Esta crescera muito, desde que o irmão fugira de casa.

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A sua sensibilidade, consciente da aflição da mãe, despertara. Estava muito mudada. Imitava o pai em tudo - nas maneiras, na linguagem.
- De nada - respondia a mãe, abstracta.
Na aparência, Ruth parecia ser a mesma pessoa, mas, no íntimo, mudara. Era mais meiga e humilde para Guilherme, mas tornara-se mais severa para as filhas. Era às vezes tão ríspida, que lhe custava a ele ver as crianças assim tratadas. Não a censurava, porém, como fizera quando castigara Hal. Porque Ruth não esquecera ainda a sua censura. Às vezes acordava de noite, sentindo-a desperta a seu lado.
- Não tens sono? - perguntava.
- Estou a pensar.
Isto queria dizer que cismava no filho.
- Se te tivesse ouvido - dizia, amargamente - se tivesse feito o que me disseste naquela noite e não tivesse levantado a mão para ele...
- Não deves insistir em matutar nessa noite, Ruth. Além disso, o rapaz não estava zangado contigo. Lembro-me de que fiquei impressionado pela maneira como... como compreendeu a necessidade que tinhas de o castigar.
- Foi por isso que me fugiu - gemia ela. - Se ficasse zangado comigo, teria acabado por lhe passar a cólera e tudo acabaria em bem. Mas foi para a cama a pensar que tinha um feitio diferente do meu e que não nos podíamos entender.
A sua subtileza espantava-o. Hal seria assim tão sagaz? Mal o podia crer, em rapaz tão estouvado. Mas talvez a mulher tivesse razão.
- Se o rapaz te compreende assim tão bem, então deve saber quanto lhe queres e há-de voltar para casa. Ruth, meu amor, não te atormentes. Preciso de ti.
Abraçava-a e dizia-lhe:
- Minha querida, estamos no melhor tempo da nossa vida. Se não formos agora felizes, quando é que o seremos?
- Tu não gostaste nunca do Hal como eu.
- É verdade - admitia ele, desfazendo o abraço.

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- Creio que não gostei nunca das crianças como tu. Mas talvez eu te tenha querido mais do que tu a mim. Todo o meu amor foi para ti.
Ouvindo isto, ficava com medo, como sempre acontecia quando as palavras do marido ultrapassavam a sua capacidade de compreensão.
- Não sei como possa haver alguém capaz de querer tanto a um homem - disse uma vez.
Custava tanto àquela mulher declarar-lhe directamente o seu amor, que, subitamente, nessa noite, sentou-se na cama, às escuras, e, inclinando-se para ela, ordenou:
- Dize que gostas de mim!
- Guilherme, não sejas assim tão...
- Gostas ou não gostas, Ruth?
- Está visto que sim.
- Então, porque não o dizes? Eu estou sempre a dizer-to.
- Não fui habituada a falar como tu.
- Pensas que não sinto o que digo, Ruth?
- Não, mas...
- Então dize: "Amo-te, Guilherme".
- Se não gostasse de ti, seria a tua serva como sou?
- A sua voz tremia como se fosse de cólera. - Haverá alguma mulher que faça o que eu faço? É a casa, é a fazenda, são os filhos, tudo vem para cima de mim! Teria coragem para tanto, se não... Será preciso dizê-lo?
- Queres dizer que não te sirvo para nada!
- Não, mas não és como os outros homens destes sítios.
- Queres dizer que não sou como o Henrique Fasthauser.
Ficou surpreendido com as suas palavras. Não tivera ciúmes do homem. Sabia há muitos anos que Ruth o procurava para lhe pedir qualquer conselho ou opinião acerca da fazenda. Mas o homem era atarracado e careca, de tal maneira boçal e vulgar, que, por verdadeiro desdém, nunca teria descido a mostrar-se ciumento por semelhante criatura. Todas as vezes que via Henrique Fasthauser experimentava

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um agradável sentimento de distinção, comparando com a do rústico a sua figura elegante e os seus belos e abundantes cabelos grisalhos.
Ruth respondeu com dignidade e firmeza:
- Guilherme, que vergonha! Bem sabes que não sou mulher para olhar para outro homem a não ser o meu marido.
A resposta enterneceu-o. Encostou a cabeça ao seu seio:
- Bem sei, Ruth.
Sentia o coração bater-lhe precipitadamente e por isso não a abraçou.
- Se me julgas assim - continuou ela - então não serviu de nada o que tenho feito por ti, embora tudo o que faço seja por tua causa. Governo a casa da maneira que tu gostas. Nunca faço bolos ou ponho o pão a levedar, sem dizer para comigo: "Isto é para Guilherme". Noite e dia é este o meu pensamento.
Durante toda a sua vida de casados, nunca lhe dissera tanto.
- Bem sei - murmurou Guilherme, baixinho. - Não digas mais nada, minha querida. Eu compreendo-te. Sou tão insensato! Tu dás-me tudo.
- Esforço-me por isso... mas se são palavras que tu queres...
- Não, meu amor... não digas mais nada!
- Mas, se são palavras que tu queres, então... - continuou Ruth, decidida a vencer o seu pudor, mas com tanto custo, que se sentiram confusos e envergonhados - então... amo-te!
Foi como se tivesse sofrido um golpe, em vez dele. Guilherme tocou-lhe no peito e sentiu-o húmido de suor. Mas exultava de alegria. Conseguira fazê-la confessar o seu amor. Forçara-a a sair de si mesma e do seu mutismo. Era agora mais sua. Riu-se com gosto.
- Minha querida! - exclamou.
Aquela mulher de meia idade, laboriosa e reservada, toda entregue à casa e aos filhos, ainda não deixara de ser a mesma rapariga tímida e solitária, e só ele o sabia. Acendeu

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o candeeiro da mesinha de cabeceira. Com gestos rápidos, arrancou-lhe o roupão. Mais uma vez pôde contemplar a sua beleza perfeita, muito mais bela agora do que fora antes de Ruth ser dona.
- Que lindo corpo, Ruth! - exclamou. - E os teus seios!
A mulher nada dizia, mas o seu corpo retesava-se e estremecia, suplicante.
E com todo o cerimonial, que tanto o sensibilizava, consumou, uma vez mais, o seu triunfo.
Ela era forte; ele também. Ruth chegara, como o companheiro, à maturidade. Guilherme recordou-se do escasso amor dos seus primeiros anos de casados - vago prenúncio da paixão forte que os dominava agora. Juntos se fundiram no abismo. Juntos emergiram da profundidade insondável do êxtase.
- Foi bom?
- Foi - respondeu Ruth.
Já calmo, pela meia-noite, sorriu intimamente ao lembrar-se de que pensara em abandonar a sua casa para ir mundo em fora, à procura... de quê? Ele mesmo o dissera, ele mesmo o pensara. Mas, se o houvesse feito, teria deixado atrás de si o seu próprio eu. Não deixara Ruth, no dia em que lhe fugira o filho, porque não tivera forças para tanto. Adquirira a certeza de que não a abandonaria nunca mais. Ela, a casa, tudo aquilo - era ele.
Mais de dois anos passaram, sem palavra ou notícia, sem carta ou postal do rapaz. Guilherme convenceu-se de que o filho estava morto, mas nada disse à mulher. Maria e Jill estavam já quase de todo esquecidas das feições do irmão. Sabiam apenas que o pai o considerava morto e a mãe o julgava vivo ainda.
- Que dizes tu? - perguntava Jill a Maria.
- Penso como a mamã - dizia esta.
- Pois eu penso como o pai - dizia Jill, que queria parecer-se em tudo com o pai. Idolatrava-o, e tinha sempre receio de não ser bastante elegante para agradar-lhe. Gostaria

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de ser bonita. Nem ela nem Maria eram realmente belas, mas esta era mais interessante. Jill queria ser linda para agradar ao pai, por ver quanto ele admirava a beleza de sua mãe. Às vezes, a meio das refeições, ou quando estavam todos sentados, à noite, em volta da lareira, exclamava subitamente: "És muito bonita, Ruth! Elas olhavam para a mãe e reconheciam a justiça do louvor. A mãe era linda, de facto: cingia-lhe a fronte um diadema de cabelos castanhos anelados; as orelhas eram pequeninas, as faces rosadas, os olhos azuis. Ao senti-los a olharem-na, Ruth ruborizava-se toda.
- Não olhem assim para mim - costumava dizer. - Guilherme, devias ter juízo!
- Porquê?
- Por causa das pequenas! - volvia, repreensiva.
- Mas se já sabem que és bonita!
- Não é por isso - replicava, corando ainda mais.
- Então, porque é?
- Oh... Guilherme!
Ficava sempre sem saber que dizer, quando o marido insistia com ela para lhe desvendar o seu pensamento íntimo. E nessas ocasiões, não a largava, até a arreliar.
- Não queres que saibam que estou apaixonado por ti? Mas devem sabê-lo... é conveniente que o saibam. Devem começar a aprender o que é estar apaixonado.
- Guilherme!
Só quando a voz de Ruth atingia um certo grau de desespero, a deixava de atormentar.
Mas não era só brincadeira do pai. Elas bem o sabiam! Maria tomava sempre o partido da mãe. As duas raparigas costumavam debater a questão, depois.
- O ppá não devia dizer aquelas coisas à mãe. Ela não gosta - começava Maria.
- Ah, eu acho tão interessante! Os outros homens são estúpidos. Vê lá o gordalhudo do Henrique Fasthauser! Aposto em como só sabe falar de vacas e de milho.
- A Ellie diz que ele também gostava da mmã - insinuou Maria uma vez.

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Ellie era a mulher de Tomás.
Os olhinhos cinzentos de Jill fitaram com espanto a irmã.
- Queres dizer que... ele podia ter sido nosso... pai?
Maria acenou que sim com a cabeça.
- Oh, que horror! - exclamara Jill.
- Nós não o saberíamos.
- Oh, eu havia de saber! Não sermos filhas do nosso verdadeiro pai!
Mas, intimamente, não tinha bem a certeza de ser filha de Guilherme. Via-se, melancolicamente, ao espelho, a tentar descobrir em si qualquer parecença. Mas nada encontrava no seu rosto de semelhante ao pai.
- Nenhuma de nós se parece com o pai? - perguntou um dia à mãe, enquanto lavavam a loiça.
- Só o Hal - respondera Ruth, laconicamente. - Mas não é, realmente, parecido... dá uns ares.
- Nenhum deles estava preparado para ver a surpreendente semelhança do filho com o pai, quando um dia, de repente, Hal surgiu à entrada da porta holandesa, meio aberta, da sala que Guilherme transformara em casa de jantar. Era a um sábado, à hora do meio-dia, e estavam à mesa. Sucedeu que tudo se calara naquele momento. Ruth cortava às fatias uma torta de cereja. Ouviu-se uma voz indolente pedir:
- Há de comer para um viandante?
Todos ergueram os olhos. Viram na sua frente um rapaz. Guilherme sofreu um abalo. Contemplava a sua própria imagem. Aquele rosto... era-lhe mais familiar do que o semblante que via todas as manhãs ao espelho! Ruth soltou um grito dilacerante, pela primeira vez na sua vida:
- Hal!
O recém-vindo moveu, com vagar, uma perna, e depois outra, por cima da soleira da porta, e entrou.
- Oh, Hal!
Ruth soergueu-se, recaiu na cadeira, e fez-se lívida. De repente, prorrompeu num choro convulso. Guilherme levantou-se num ímpeto.

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- Acudam à mãe, meninas - ordenou. Em seguida, pegou no seu copo de vinho e levou-o aos lábios de Ruth.
- Não te envergonhas! - disse, severamente, para o filho - de aparecer a tua mãe, desta maneira, depois de tantos anos de ausência?!
Num repente, ficou furioso contra o filho por tudo de quanto era culpado, pelo mal que fizera em casa, pelo seu regresso, que tanto afligira a mãe, e, principalmente bem o sentia - por ser o seu vivo retrato de há uns trinta anos. Como o detestava por causa disto!
Mas Ruth voltou-se contra ele, ainda a chorar.
- Cala-te, Guilherme! Que importância tem isso, agora? Ai, Hal, Hal, sempre voltaste!
Grossas lágrimas caíam-lhe ainda pelas faces. Afastou-se do marido, que a amparava, e levou a mão ao rosto do filho, que a afagou.
- Pois claro que voltei, mmã. Era bem de ver que tinha de voltar, qualquer dia. Não saí de casa para sempre!
- Podias ter mandado dizer isso numa carta a tua mãe - retorquiu Guilherme, secamente.
O rapaz estava mais alto do que ele na sua idade. E mais belo, também. Teria sido assim tão belo quando era novo? Recordou-se de ter ouvido uma vez Elisa dizer-lhe, na sua maneira atrevida e directa: "Estás bonito demais para estares bem, Guilherme. Que tens tu?"
- Sabe... eu não tenho lá muito jeito para escrever volveu Hal, a rir, em resposta ao pai. - Todas as vezes que ia para escrever, não havia maneira de encarreirar...
- Hal, por onde tens andado? - indagou Ruth.
- Por toda a parte. Mas não me obriguem a contar a minha vida até agora antes de me darem de comer.
A ideia do filho estar com fome chamou-a à realidade.
- Senta-te - ordenou. - Maria... Jill... vão buscar um prato e cortem um bocado de carne... tragam tudo quanto houver de comer. Ainda bem que fiz a torta. É a torta de que mais gostas, meu filho. Quando a fiz, esta manhã, pensei em ti. Mas não me pode esquecer, Hal, como pudeste estar tanto tempo sem mandar dizer coisa alguma!

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Os lábios, vermelhos, tremiam-lhe. Hal, que metera um grande pedaço de pão na boca, parou de mastigar.
- Tem razão, mmã - tartamudeou, engolindo logo a seguir o bocado. - Vejo agora que não andei bem. Mas, coa breca, o tempo passava tão depressa... e sucediam tantas coisas!
Meteu outro bocado de pão na boca.
- Que foi que te fez voltar para casa? - perguntou Guilherme.
Tornara a sentar-se à cabeceira da mesa. A sua voz era ríspida. Não conseguia falar de outra maneira. Mas o filho ergueu a vista e fitou-o com os olhos límpidos e sinceros.
- A guerra, meu pai... Vamos entrar na guerra. "Três anos" - dissera Monty. Levara menos tempo ainda. Havia quase três anos que principiara a guerra, numa pequena cidade da Europa, e já infestava muitas nações, como um cancro. Mas aquele conflito nunca tivera qualquer realidade para ele, que só considerava real a sua vida com Ruth. Passava os olhos pelos títulos da gazeta local, duas ou três vezes por semana, e comprava, um domingo ou outro, o jornal de Filadélfia. Sem sentir nada de especial, lia nomes de países conhecidos, que sucumbiam, um após outro, à Alemanha. Gostava dessa nação. A jornada que fizera, a pé, durante um mês, através da Floresta Negra, fora um dos seus maiores prazeres. Que mal havia em aquele país alargar as suas fronteiras? A guerra era um drama sombrio, que se representava do outro lado do mundo, e o tempo passava por si como corrente de água clara e inebriante, de modo que não o vira nem sentira.
Mas os anos haviam passado, sem dúvida - reconhecia, agora, surpreendido - considerando os filhos sentados à mesa. Hal estava um homem. Maria uma senhora e Jill uma esbelta rapariga de catorze anos. Voltou-se para Ruth, e, no mesmo instante, a paz da sua presença sossegou-o de novo.
Ela não envelhecera. Os anos haviam-na poupado. Os

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cabelos continuavam castanhos e os olhos, azuis - vivos como sempre. Naquele momento brilhavam, assustados.
- Mas esta guerra não é com a gente, não é verdade, Hal? - perguntou-lhe a mãe.
- Talvez seja - respondeu este.
Tinha o prato cheio diante de si e comia a grandes garfadas. Quando lhe caía algum bocado do garfo, servia-se do polegar para amparar a comida.
- Não acredito - tornou Ruth, poisando o seu garfo.
- Talvez seja - insistiu Hal. - É por isso que voltei. Alistei-me como voluntário.
- Hal, que fizeste?!
Olhou para a mãe, viu a expressão do seu rosto, e poisou o garfo no prato.
- Mmã, de qualquer maneira, eu era recrutado. Vai haver mobilização.
- Não era motivo para te adiantares.
- É, sim, mmã... além disso, eu quero ir... gosto de ver terras.
- Mas não para morrer!
Hal deu uma gargalhada.
- Não hei-de morrer, mmã! A gente só morre quando tem de ser...
Guilherme interveio.
- Mas que mal te fizeram os alemães?
- Nenhum! - redarguiu Hal. - Absolutamente nenhum. Vou, por achar graça.
Riu-se, e as irmãs, sem consciência da situação, contagiadas por ele, riram também. Mas Ruth e Guilherme entreolharam-se com expressão grave.
- De que se riem? - perguntou o pai severamente. Puseram-se sérios no mesmo instante, olhando uns para os outros, surpreendidos pela repreensão. Porque estariam os pais tão sisudos?
- O caso não é para graças - disse Ruth.
Guilherme pensava que Ruth voltaria a ser a mesma, quando Hal se fosse embora. Estava disposto a ser paciente

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iente com ela. Sempre era mulher, e a mãe, que teria de dizer adeus ao filho, daí a pouco, e ficar sem este durante meses ou anos, ou talvez mesmo para sempre.
Sentia-se envergonhado por desejar, com tanta impaciência, ver partir o filho - e ele ficar ali em casa, desfrutando a vida que sempre levara. Ocultou a Ruth este sentimento egoísta e culposo. Reconhecia a insensatez dos seus ciúmes por ver a mulher alheada de si. Tinha ciúmes de a ver toda entregue àquele tipo alto e bonito, que era seu filho. Tinha vontade de o pôr fora de casa, de o separar da sua vida com Ruth, de a recuperar inteiramente para si. Não gostava de a ver rir tanto com as partidas e as graçolas estúpidas do rapaz. Hal era um farsista vulgar, um espírito de contradição, irritante. Só Jill o sentia. Guilherme começou a andar mais com a sensível pequena.
- Vamos dar um passeio? - disse-lhe o pai, um dia, à tardinha, depois da ceia. Sentia-se inquieto e constrangido diante do mancebo. Que se devia fazer - perguntava a si mesmo - quando um pai descobria que detestava a espécie de homem que viria a ser o filho?
O rosto inocente de Jill iluminou-se com o convite do pai.
- Gostava tanto!
Atravessaram o prado e desceram a vereda. Sensibilizavam-no os esforços da filha para lhe fazer companhia. Jill caminhava com toda a atenção, regulando o passo pela cadência despreocupada do andar do pai, embora a sua marcha habitual fosse uma espécie de trote, como o de todas as raparigas da sua idade.
- Vou muito devagar? - perguntou Guilherme.
- Oh, não! - respondeu, solícita. - Eu gosto de ir devagar... Assim, vê-se tudo. Às vezes, quando ando sozinha, vou devagar, para ver tudo muito bem.
Não sabia como falar com a filha, embora tivesse a certeza de que lhe custava muito mais a ela manter a conversa, pelos corajosos esforços que fazia, abordando este e aquele assunto. Deixou-a falar. Jill estava a revelar-se no que lhe dizia. Nunca sentira curiosidade de saber como

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eram os filhos, mas o instinto adivinhava-lhe que esta era a única dos três que valia a pena conhecer. Por fim, ela calou-se, triste e desanimada, por ver que não conseguira distraí-lo. Para a estimular, disse-lhe:
- Não sei se sabes que gosto um tanto de ti... como se gosta de uma pessoa, completamente à parte do facto de ser teu pai.
Ela ergueu os olhos para ele, com as feições animadas por alegria indescritível. Assim seria o seu olhar - pensou - quando chegasse a ocasião de ouvir dizer, ao homem de quem gostasse, aquelas palavras, mais ou menos.
- Oh!... - balbuciou Jill - o pai gosta de mim? - Acto contínuo, agarrou-se-lhe ao braço. - Sabe, pai... tenho perguntado tantas vezes a mim mesma se o paizinho gostaria de mim! Porque nós, eu e a Maria, pensávamos que talvez o pai não gostasse... Não é que o pai não seja para nós um grande homem... o pai é um grande homem para toda a gente.
As palavras da filha divertiam-no.
- Não quero obrigar ninguém a ocupar-se de mim. Tenho como princípio que não se é obrigado a gostar de uma pessoa, só por ser nossa parente. Não gostaria de que pensasses que tens de gostar de mim, porque sou teu pai. É por mero acaso que és minha filha.
Haviam chegado ao valado que limitava a fazenda. Na terra do vizinho, viram Henrique Fasthauser, que conduzia as vacas para o pasto da noite.
- Aquele homem, por exemplo, podia ter sido vosso pai, como eu... Só por acaso o não foi - continuou Guilherme.
Jill chegou-se mais a ele, apertando-lhe o braço.
- Se o tio Fasthauser fosse meu pai... eu morria - murmurou.
- Mas não é mais velho do que eu!
- O pai nunca há-de ser velho! - exclamou, com exaltação. - O paizinho há-de ser sempre assim, como é agora, o mais bonito homem que eu conheço!
- Não te comprometas comigo, minha filha - disse-lhe,

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a sorrir. - Reserva-te para o rapaz que mais dia menos dia te vier pedir namoro. Olha que talvez não se pareça nada comigo.
- Então, não o quero - declarou ela. - Tem de ser como o paizinho.
Ele tornou a rir-se, com júbilo, encantado, enternecido, um poucochinho curioso, com aquela rapariga - sua filha, afinal. Os seus olhitos fitavam-no como a um ídolo, à luz do crepúsculo, e a sua boca estremecia de afecto.
- Gostava de saber dizer o que sinto por si. O pai não é como os outros homens. O paizinho faz com que me sinta outra pessoa. Não quero ser como toda a gente... por causa do pai. Tenho tanto orgulho em ser sua filha!
Guilherme apertou-lhe a mãozita febril contra o braço.
- Às vezes não me sinto lá muito diferente dos outros.
Jill replicou prontamente:
- Isso é que é! Toda a gente o reconhece... e pensa como eu. Todos sabem que o pai é... diferente.
Guilherme suspirou. Era diferente! Essa diferença isolava-o. Sentiu-se, de súbito, um tanto só, abandonado.
- Começa a arrefecer... vamos para casa, ter com a mãe.
Mas, como sentisse Jill retirar o braço, afagou-lhe a mãozita e disse-lhe:
- És uma boa rapariga, uma excelente rapariga, minha filha.
Sentia, no entanto, que nenhum dos seus filhos podia fazer parte da sua vida.
Entrou em casa a chamar pela mulher:
- Ruth, onde estás tu? Ruth... Ruth!
- Estou aqui - respondeu-lhe uma voz sumida, que vinha do sótão.
Subiu as escadas devagar, resmungando, e foi dar com ela, de joelhos, ao pé de um baú. Uma vela, fixada num pires, bruxuleava a seu lado.
- Que diabo estás tu a fazer aqui, a estas horas? Ainda largas fogo à casa com a vela.
- Estou a arranjar este baú para o Hal.

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- Um baú! Ele pode lá levar um baú para o acampamento!
Ruth sentou-se nos calcanhares, e perguntou:
- Não pode?...
Estava tão bonita, assim ajoelhada, com a luz a iluminar-lhe o perfil, que não resistiu... Inclinou-se, pegou-lhe na cintura, levantou-a e abraçou-a com ardor.
- Estou farto de tudo isto... - murmurou. - Já é tempo de me dares mais atenção.
Ruth afagou-lhe o rosto e a cabeça com as mãos.
- Casei contigo para quê?...
E beijou-a repetidas vezes, delicada mas ardentemente.
- Não sei - disse ela, rindo.
- Não foi para os miúdos... foi só para mim... Durante um momento premiu com força os lábios dela contra os seus. Depois, levantou a cabeça e agarrou-a pelos ombros, fitou-a e disse-lhe:
- Quero uma mulher que seja minha esposa.
- E que seria de nossos filhos?
Guilherme riu-se, olhando-a, e retorquiu:
- Que têm os filhos que ver comigo e contigo?
E, sem esperar qualquer resposta, tornou a descer as escadas.
Mas a sua atitude - ficou ela a pensar, ajoelhada, sozinha, no sótão - demonstrava a diferença que distingue os homens das mulheres. A mulher sente-se responsável. Suponhamos que só pensava em Guilherme. Quem trataria, então, das crianças e da herdade? Mas, quanto à fazenda, era só por causa do marido. Se tivesse casado com Henrique, nunca precisaria de se ralar com a fazenda - só com ele. Mas Henrique havia de querer ser tratado, também, em primeiro lugar, e ela não seria capaz disso.
"Ainda bem que casei com um homem de quem gosto. Seria terrível ter de fazer uma coisa sem gostar" - murmurou de si para si. Quando desceu as escadas e voltou à cozinha, sem saber porquê, foi ríspida para com Hal, que preguiçava ao pé do fogão. Guilherme passeava lá fora, fumando cachimbo. A sua figura recortava-se, nitidamente,

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no céu da tarde, iluminado pelos derradeiros reflexos do poente.
- Vai acender a luz na sala, para o teu pai - ordenou-lhe. - Deve estar a arrefecer, lá fora, e quando vir a luz acesa, vem para casa.
No seu quarto, as duas pequenas preparavam-se para se deitar. O silêncio dependia sempre de Jill. Se falasse, havia conversa. Se não abrisse a boca, Maria despia-se, sem dizer nada, sonolenta, bocejando lentas e repetidas vezes. Nessa noite Jill nada disse. Despiu-se rapidamente, lavou a cara e os dentes, penteou os longos cabelos anelados e dobrou as fitas vermelhas com que os prendia. Depois meteu-se na cama e puxou a roupa para si. Maria demorou-se o dobro do tempo. Jill olhou de relance para o lindo corpo torneado da irmã, apenas coberto pela camisa. Maria gostava de Joel Fasthauser, o segundo filho do ti Henrique. Sabia-o, porque Maria lho confessara. A irmã só esperava a declaração. Haviam discutido as duas o facto, e perguntado ambas quando e como se daria.
- Maria, deves-me dizer quando for! Não havias de ser tão mesquinha que não me dissesses nada, depois de tanto termos conversado a tal respeito.
Mas Maria fizera-se encarnada como uma papoila, e negara-se a fazer semelhante promessa.
- Talvez ache que não deva repetir, nem mesmo a ti, o que me disser.
- Isso é absolutamente mesquinho! - redarguiu Jill.
Assim considerara até então semelhante atitude. Mas, nessa noite, compreendera-a de certa maneira. Também ela estava impossibilitada de falar à irmã no passeio que dera, no que sentira, que não era exactamente pelo pai, mas por alguém que nunca tinha visto, por alguém que devia ser como o pai, mas muito mais novo, embora, por outro lado, fosse precisamente como ele. Todo o seu ser estava possuído do delicado desejo, da aspiração profunda de ser melhor, mais fina, mais inteligente, mais bela do que era.
"Devo fazer tudo para me preparar para ele", pensava;

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não para o pai, mas para aquele outro como ele, que só seria mais novo e a procurava, ardentemente. "Nunca, nunca seria capaz de me casar com alguém como Joel". Mas como podia dizer isto à irmã?
Hal tornou-se a personificação da guerra para Guilherme e Ruth. Mas só Guilherme deu por isso. A metamorfose verificou-se no último dia que o filho passou em casa. Nunca o tinham visto de uniforme. O rapaz usava por casa uma velha camisola azul, sempre desbotada no pescoço, e umas calças cuja cor original desaparecera há muito. O cabelo, castanho-ruivo, era ainda tão crespo como aos dez anos. Por casa, andava de pé descalço. Assim se sentou à mesa, no último dia. Nem os pais nem as irmãs seriam capazes de o imaginar diferente da sua habitual aparência: um rapazola indolente, trocista, desleixado, que só estava bem a beliscar e a arreliar as irmãs, e até a mãe. Guilherme dominou um ímpeto de verdadeira cólera quando viu o filho inclinar-se para Ruth e, por graça, puxar-lhe, de brincadeira, as orelhas minúsculas e bem feitas.
- Deixa tua mãe sossegada! - ordenou-lhe, de súbito. Olharam-no todos com surpresa.
- Isso não são maneiras de tratar tua mãe - censurou ainda, com uma aspereza que não lhe era habitual. Lia o mesmo espanto nos olhos de Ruth e dos filhos. - Nunca me passaria pela cabeça fazer à minha mãe semelhante coisa!
- Não faz mal - disse Ruth, muito admirada. - Conheço o Hal... sei que faz isto por brincadeira.
- Tem razão, mmã - confirmou Hal, a rir. O rapaz falava num tom arrastado, com um vozeirão amável. Mas aquela voz irritava-lhe os tímpanos. Quando Hal fugira de casa, a sua voz era ainda hesitante e desigual. Sentia uma expressão quase patética na sua voz incerta de garoto. Mas não havia agora indecisão naquela voz sonora, de timbre ordinário. Era uma voz de homem - que seria sempre para ele um estranho.

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Depois do jantar, Hal subiu ao seu quarto para vestir a farda. Tinha menos de uma hora para se arranjar e partir. Devia comparecer em Hessers Corners, para entrar na parada. Outros dois rapazes da sua idade também iam para a guerra. Um era seu amigo. Os três haviam assentado praça, voluntariamente, por influência um dos outros.
- Os Três Mosqueteiros, hem? - dissera Guilherme, em tom sorridente, quando soubera do trio.
- É verdade - respondeu Hal, com ar tolo. Guilherme dominou a sua instintiva irritação. Hal, que nunca lera um livro, que nunca lhe pedira nenhum para ler, que nem uma vez sequer olhara para as prateleiras carregadas de volumes que pusera em várias paredes da casa, não conhecia Os Três Mosqueteiros. Porque não o confessara? Tinha toda a teimosia do rústico, para ceder à evidência. Guilherme voltara-lhe as costas, dizendo:
- Trata-se de um livro, Hal. Quer-me parecer que não fazes ideia do que eu estou a dizer.
- Pensei que talvez fosse - ripostara Hal, sem consciência do que dizia.
Nenhum deles esperava ver o Hal que surgiu na sua frente. Ruth estava a arrumar a cozinha, depois de lavar a loiça. Jill subira para o seu quarto. Maria andava a varrer as migalhas caídas no chão da casa de jantar. Guilherme, junto da porta, apreciava os efeitos da luz da tarde sobre a relva, em frente da casa. A porta abriu-se, e Hal perguntou:
- Então, que tal pareço?
Todos se voltaram. Guilherme viu um outro Hal diante de si, um rapaz diferente, limpo, elegante, no seu fardamento novo, penteado, de cores saudáveis, largo de ombros, espadaúdo.
- Oh, Hal! - exclamou Ruth, caminhando para ele, com os olhos azuis, vivos e ardentes, fitos no filho. Passou-o em revista, tocando-lhe na farda, aqui e ali, para ter a certeza de que tudo estava como devia ser, embora o achasse impecável. Depois, pôs-lhe as mãos nos ombros e fixou-o. A cabeça de Ruth dava-lhe pelo pescoço.

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- Sê bom rapaz, Hal. - A voz tremia-lhe. - Não te esqueças do que te tenho dito, e porta-te como deve ser.
- Fique descansada mmã - curvou-se e beijou-a. Que rico cheiro a mãe deita... Como sempre. Ainda me lembro de quando ia, em pequeno, cheirar-lhe os vestidos ao armário da roupa.
- Oh, Hal, não te esqueças de ser bom rapaz!... - suplicou outra vez.
- Está bem, mmã.
De súbito, Guilherme sentiu que não podia suportar mais o espectáculo do afecto de Ruth por aquele homem tão novo e tão forte, mais do que ninguém ligado a ela, por lhe correr o seu sangue nas veias.
Por isso os pais tinham ciúmes dos filhos. Estes estavam presos aos corações das mães pelos laços sanguíneos; um pai era sempre um estranho para eles, sob esse aspecto. E o sangue era um vínculo para a mulher.
Chegou ao pé de Ruth e puxou-a, meigamente, para si:
- Hal tem que partir, Ruth. É tempo já de irmos andando, se queremos ver a parada.
Troçara da parada, antes disso, e nunca pensara em assistir à pequena concentração de tropas.
Mas acabara por se resolver a ir. Queria estar com Ruth, mal o filho se fosse embora.
- O ppá vai? - perguntou o rapaz.
- Afinal, sempre vou.
- Magnífico! - exclamou Hal.
Guilherme não respondeu. Mas o seu silêncio pareceu-lhe falta de lealdade para com o filho. Por fim, disse-lhe:
- A farda fica-te bem.
- Menos mal, julgo eu.
Assistira, depois, à paradazita, vendo com profundo desdém, mas sem trair os seus sentimentos, as escassas forças militares da região, com a banda de música à frente desfilar pela única rua da aldeia.
Ruth chorou. Ele cingiu-a pela cintura e continuou a fumar, tranquilamente, o seu cachimbo. Maria reprimiu as lágrimas. Jill manteve-se calma. Depois de verem partir os

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três recrutas, arrebanhados no comboio, regressaram a casa, em silêncio. Ruth disse por fim:
- Hal era o mais bonito dos três, não era?
- Era, sim - respondeu Guilherme.
Desciam, nesse momento, a vereda, no fundo da qual ficava a casa. Era uma moradia pesada, solidamente construída. Ainda às vezes, ao entrar naquela casa, como agora, se sentia emocionado. Coisa estranha! Anos antes, por mera casualidade, batera à porta daquela habitação, a pedir de comer - uma simples refeição. Depois encontrara ali o pão de cada dia para o resto da existência. Afinal, a sua vida fora determinada por um acidente fortuito - o acaso de um instante decidira do destino de Ruth e dera origem a três novas vidas, que, por sua vez, continuariam a multiplicar os efeitos desse encontro eventual. Quando o acaso era, assim, o verdadeiro início daqueles entes, quem podia indagar a razão de ser das suas existências?
- Em que está a pensar, paizinho?
A voz cristalina de Jill - o seu único dote de beleza chamou-o à realidade. Olhou para a filha, mas desviou logo a vista. Nesse momento, Jill, apesar de nova e diferente, pareceu-lhe o vivo retrato do pai de Ruth. O velho estava morto, mas era horrível. Os novos não deviam parecer-se com os velhos nem ter os seus modos. Deviam ser únicos! Afinal, o que era aquilo se não acaso, também? Se tivesse casado com Elisa, em vez do velho Harnsbarger, teria por sogro, simplesmente, o senhor Vanderwort.
- Guilherme!
Pareceu-lhe ouvir a voz de Ruth vinda de longe.
- Ouviste o que disse Jill?
Guilherme sorriu de leve.
- Estava a pensar se um nariz aquilino seria mais bonito que um achatado.
Olharam umas para as outras, intrigadas.
- O paizinho não podia estar a pensar numa coisa tão tola!
- Estava tal! - sustentou ele. - E se julgam que não, é porque não sabem como sou tolo.

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As pequenas riam, mas Ruth manteve a sua expressão grave. O seu espírito evadia-se sempre que Guilherme começava a falar assim. Embora fosse insensatez, aturava-lhe aquelas coisas para o ver satisfeito. Quando ele estava contente, não queria que coisa alguma lhe perturbasse a boa disposição. Pensou nas mil e uma coisas que tinha a fazer em casa. Deu um suspiro, lembrando-se mais uma vez de que podia ter tido outro filho, visto Hal ser como era. Devia ter Insistido. Mas Guilherme era tão singular com os filhos! Não compreendia os seus deveres de mãe; uma mulher tem de amar os filhos, e ela nem sempre conseguia dividir os seus afectos. Na realidade assim o fazia, mas necessariamente era forçada a dedicar mais tempo e atenção aos filhos. Nada mais natural. Só quando andava apreensiva com Guilherme, esquecia os filhos completamente, por causa do marido; este ainda a preocupava às vezes, embora nunca mais houvesse falado em sair de casa.
Devia-o agradecer à fuga do filho. Tornou a suspirar, pensando naqueles anos todos passados fora de casa. Que teria visto, que teria feito Hal? Ainda tentara desvendar o mistério desse longo período, mas parecia que tanto tempo não deixara o menor vestígio da sua passagem na vida dele. Vagabundeara um tempo, arranjara facilmente trabalho, no caminho até à outra costa, e no regresso, sem nunca se demorar muito no mesmo sítio. Um ano chegara mesmo a ir até o Alasca.
- Foi um bom tempo, esse - disse ele.
- E perdeste todos esses anos de escola!
O rapaz olhara-a com expressão maliciosa.
- Mas aprendi um bocado - replicara, sem dizer o quê.
Enfim, fosse como fosse, nunca fora preso - garantira-lhe muitas vezes. E agora era soldado. O exército era o lugar mais seguro para um rapaz como ele. Lá faziam-nos trabalhar e ensinavam-nos a evitar perigosos contactos com mulheres de má vida. Pedira a Guilherme para falar ao filho, embora considerasse de antemão a diligência

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inútil. Guilherme limitara-se a dizer: "De que serve falar-lhe... se nunca aprendeu nada comigo?" Assim, deixara-o partir, dizendo-lhe apenas que fosse boa pessoa. Lá o ensinariam na tropa.
De repente, lembrou-se que tinha de mandar cobrir sem demora umas três das suas vacas de casta Ayrshire. Henrique Fasthauser, dissera-lhe que mandara vir um boi daquela raça. Se quisesse, poderia levar as vacas lá ao estábulo, que se dava um jeito. Assim, pouparia a despesa com o aluguer de um boi de cobrição. Se tivesse um homem capaz de a ajudar nos trabalhos da fazenda, não teria vendido o boi do seu estábulo. Mas só podia contar com auxílio eventual e com o trabalho das raparigas. Ajudavam-na muito, principalmente Jill, embora tivessem de ir à escola. Às vezes perguntava a si mesma se Guilherme teria alguma ideia do trabalho que dava a fazenda, mesmo quando a trazia arrendada quase toda. Olhou-o de relance. Ia a assobiar, devagarinho, uma ária, que já ouvira, não sabia quando. Estava mais belo, à medida que envelhecia. Hal parecia-se muito com ele.
- Que canção é essa? - perguntou Jill, dando o braço ao pai.
- "Abre-se-me o coração à tua voz".
- Mas donde é? - insistiu a pequena.
- Sansõo e Dalila.
- Os da Bíblia?
- Os mesmos, mas a canção não é da Bíblia... Um dia hás-de ir comigo à ópera.
- Palavra, paizinho? - perguntou Jill, com alvoroço apertando-lhe o braço.
- Vamos a ver.
Que sensação teria, se voltasse a Nova York? Acontecia-lhe o mesmo, com certeza, que sucedera a Rip Van Winkle, o velho da conhecida história, que morrera, depois de dormir muitos anos, ao acordar e ver como o mundo progredira, sem ele. Talvez se arrependesse de ter acordado.
Ouviu-se de repente, no silêncio da noite, mugir uma vaca.

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- Porque estará aquela maldita a berrar? - perguntou. Detestava vacas.
- Amanhã se verá - respondeu Ruth. As pequenas sabiam o que tinha a vaca, mas por coisa nenhuma deste mundo seria capaz de o dizer diante delas ao marido. Nem mesmo a sós lho diria. Ele não gostava de ver animais com cio. Era esquisito, tratando-se de coisa tão natural. Mas era assim. Uma vez haviam encontrado, no pomar, um casal de cachorros enleados, e ele fugira, com repugnância. Ainda momentos antes a conhecera mais uma vez, e de repente parecia ter nojo de uma coisa daquelas!
Pensava em tudo isto, enquanto preparava a ceia. Guilherme era um delicado. Às vezes, quando chegava a noite, ela sentia vontade de ir logo para a cama e dormir. Mas não era possível! A luz tinha de estar, nem muito forte nem muito baixa, e não podia pensar em adormecer sem ele.
A vaca tornou a mugir, no silêncio nocturno. Ruth voltou-se para Jill.
- Vai-a buscar e prende-a a uma árvore do pomar. Teu pai não a pode ouvir.
Jill saiu a correr, para cumprir a ordem da mãe.
...Guilherme recomeçara a trabalhar com ardor excepcional. A casa, sem Hal, parecia mais tranquila e desafogada. Um dia, depois do almoço, beijou Ruth, e saiu com a ideia de pintar uma tela cheia de azul, com nuvens brancas, dominando um retrato de verde viçoso, a enquadrar a delicada miniatura de casais e agulhas de campanários, tão minúsculos como casas de bonecas. Assim vira o mundo, nessa manhã, da janela do quarto.
"E eis o Universo - murmurara em êxtase - a imensidade do céu por cima de uma nesga de verde e umas casas de bonecas!"
Estava pintando esta visão do Universo, na colina sobranceira ao casal, já o sol ia alto, quando olhou para baixo e viu a figura tosca e pesada de Henrique Fasthauser, a meio caminho da subida. Poisou o pincel. O homem vociferava. Depois reparou que lhe fazia sinais para descer.

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"Porque diabo não vem aquele idiota cá acima?" murmurou. Aborrecia-o ter que largar o quadro no ponto onde estava. A tinta fresca e fluida depressa secava e ele teria de refundir tudo de novo. Mas não havia outro remédio. Henrique, em baixo, continuava a agitar, desordenadamente, os braços no espaço. Só quando viu Guilherme a descer, recomeçou a subir a colina, indo ao seu encontro. Já mais perto um do outro, Henrique gritou-lhe, e Guilherme ouviu o nome de Ruth... Ruth? Apressou o passo.
- Há alguma novidade! - bradou.
- Foi colhida... está muito mal! - bramiu o campónio. Ouvindo isto, deitou a correr. Passado um momento, corriam os dois em direcção ao casal. Guilherme, delgado e ágil, ganhava-lhe facilmente a dianteira. Atrás dele, o atarracado lapuz deitava os bofes pela boca.
- Ela trouxe a vaca esta manhã. Se eu soubesse, teria cá trazido o meu boi. Não conheço mulher nas redondezas que trabalhe tanto como ela...
Estava tão irritado com Guilherme, que resolvera dizer-lhe o que pensava dele, por consentir que sua mulher levasse uma vaca ao boi! Ruth ficara envergonhada.
"Se fosse com outra pessoa, não era capaz disto", dissera-lhe Ruth. "Não contava tão cedo com a vaca, assim, nesse estado. O meu filho podia-a ter cá trazido, se eu tivesse pensado nisso, ontem. Mas só esta noite o bicho começou a berrar, e Guilherme não pode ouvir..."
- Ela disse-me que o senhor não podia ouvir os mugidos do animal... - gritou-lhe o rústico, a correr - por isso o foi lá levar hoje. Não quis mandar as raparigas... e como sabe que pode contar comigo...
- Vá para o diabo que o leve!... Afinal o que foi? - increpou Guilherme, voltando-se, irritado.
- Que foi?!... Apanhou uma cornada! - vociferou o labroste. - Recomendei-lhe que saísse depressa do curral, mas não o fez tão rápido como era preciso, e... o boi apanhou-a pelas costas, atirou-a ao ar... e deu uma grande queda. Depois, peguei-lhe ao colo e vim cá trazê-la.
- Meu Deus! - gemeu Guilherme. Correu a toda a

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velocidade, como nos seus tempos de escola. Num momento, desceu a colina, atravessou o pomar e o jardim, e irrompeu na cozinha. Parecia não haver vivalma em casa.
- Coa breca! - exclamou. - Ruth!... Ruth!...
Jill desceu ruidosamente as escadas. A sua carita morena estava branca como a cal da parede.
- A mãezinha está mal. O doutor já veio. Diz que se fosse um pouco mais para a direita, a mãezinha ficaria com um rim perfurado.
Guilherme não deu atenção ao que lhe dizia a filha, galgou as escadas e correu ao quarto. Ruth estava estendida na cama, de bruços. O médico sondava-lhe a horrível ferida. Maria, muito pálida, segurava nas mãos, toda a tremer, uma bacia. O doutor não tirou os olhos do que estava a fazer, quando Guilherme entrou.
- Corre... perigo? - perguntou com voz alterada.
- Por enquanto, nada posso dizer.
O médico era um sujeito gordo, de meia idade. Sondava a ferida com os dedos grossos. Ruth gemeu. Guilherme inclinou-se para ela.
- Minha querida! - murmurou baixinho.
- Esteja calado - ordenou o médico.
Ficou-se a olhar, em silêncio, para as lindas pestanas de Ruth, para a sua face exangue. De súbito, a doente perdeu os sentidos. Assim, não sentiria nada; mas porque desmaiara? Não podia fazer perguntas antes do médico desinfectar e coser a ferida. Depois acompanhou-o até cá baixo. Henrique Fasthauser ainda lá estava, à espera, na sala de entrada, mas Guilherme voltou-se para o médico e não lhe deu atenção.
- Qual é o verdadeiro estado de minha mulher, doutor?
- Não é tão grave como seria se a haste do animal a tivesse atingido mais para a esquerda ou para a direita. Por sorte, só lhe apanhou tecido muscular. Mas é preciso cuidado. Seria melhor mandá-la para o hospital ou chamar uma enfermeira.
- Há-de querer ficar em casa... mande-me uma enfermeira, ou duas, se for preciso. Mas está em perigo de vida?

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- Não, se tudo correr bem.
- Hei-de fazer o possível. Henrique Fasthauser rosnou:
- Depois de burro morto...
Guilherme sentiu a sua aflição por Ruth converter-se em cólera contra o homenzinho.
- Saia-me daqui para fora! - bradou.
Os olhos amarelados de Henrique chisparam-lhe um momento na carantonha apoplética.
- Eu? Mas antes há-de ouvir-me umas palavrinhas, senhorito! Em primeiro lugar, se vossemecê fosse um homem que fizesse a sua obrigação como a gente destes sítios, isto não acontecia! Uma mulher não deve fazer as coisas que Ruth tem sido obrigada a fazer. Se ela fosse minha mulher... como devia ser, e seria há muito tempo já, se vossemecê não tivesse aparecido, todo tirado das canelas, com as suas pinturas e os seus modos lá da cidade, para vir viver à custa dela o resto da sua vida... eu dava-lhe outro trato... Porque não a leva para o palácio de seu pai, e não olha por ela, para a fazer feliz?
Guilherme atalhou, friamente, o ardor de Fasthauser.
- Ficaria encantado com isso, mas Ruth não quer... Prefere viver aqui. Meta-se na sua vida e deixe a dos outros, sim?
O médico estava entretido em arrumar os frascos e os aparelhos no seu estojo. Vivia ali, no vale, há trinta anos, e não havia nada que não conhecesse de toda aquela gente. Entrara diversas vezes naquela casa, chamado por causa das crianças, mas sempre por coisas ligeiras... porque a família era saudável. Perguntara, algumas vezes, a si mesmo, se Guilherme seria feliz. A mulher era-o, evidentemente. Uma mulher infeliz não teria a aparência de Ruth. Conhecia-a desde pequena, sempre bonita e saudável, mas muito senhora da sua vontade. Era-lhe fácil imaginar ouvi-la dizer que não queria sair dali, e levar a sua avante.
- Bem, vou-me andando - anunciou, placidamente. vou mandar-lhe uma enfermeira... Uma, chega. As nossas enfermeiras estão habituadas a trabalhar. Dê à sua senhora

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três destes comprimidos, de hora a hora. Servirão para lhe aliviar as dores, se as tiver. Mas creio que não terá muitas. Uma coisa pode atingir profundamente a parte vital de alguém, e o espírito quase não dar por isso. Coisa singular! O espírito e o corpo não dependem tanto um do outro como se julga.
Despediu-se dos dois homens com o mesmo aceno de cabeça, sem distinção. "Espero que não tenha de voltar atrás para consertar a cabeça a alguém", pensou. Pelo caminho, enquanto o conta-quilómetros do seu velho carro oscilava à volta dos setenta, foi discorrendo sobre Henrique e Guilherme. "O primeiro gostara sempre de Ruth. Deus fora indulgente com ele, apesar de desejar a mulher do próximo. Julgava que Ruth lhe pertencia. Teria sido melhor se assim fosse, no entanto".
Parou na aldeia, para telefonar por causa da enfermeira. Depois, entrou à pressa num casalito, de aparência descuidada, onde assistiu a uma parturiente, que deu à luz um rechonchudo nené. Fizera tantas vezes a mesma operação, que já lhe perdera o conto. Agora dizia lá consigo: "Parece-me que vamos precisar deles todos, se a guerra continuar".
Entretanto, no casal, Guilherme recuperara a serenidade. Detestava aquele lapúrdio, que talvez ainda gostasse de Ruth, à sua maneira obtusa. Mas não tinha ciúmes dele. Sabia a mulher que tinha. Qual seria a mulher capaz de o trocar por Henrique Fasthauser? As mãos do homenzinho eram horríveis, como cepos, disformes, sem feitio humano, em tudo impróprias para tocar num corpo de mulher. Meteu as suas belas mãos nas algibeiras e ergueu a cabeça com altivez.
- Senhor Fasthauser, parece-me que seria melhor para ambos não voltarmos a falar.
- Se o tenho feito, não é pelo interesse... é por causa de Ruth. Como vai agora o senhor amanhar-se com os trabalhos da fazenda?...
- Costumamos meter um homem, na Primavera. Descanse, cá nos arranjaremos.

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- Se é no Gus Sigafoos que está a pensar, só para a semana é que pode vir.
- Cá nos havemos de arranjar, obrigado. Também sou capaz de fazer alguma coisa, apesar do que pensa a meu respeito.
- Não se trata de si, mas de Ruth - respondeu Henrique, secamente. - O que vou fazer é mandar-lhe o meu rapaz, o Joel, até que o Gus Sigafoos possa vir.
Guilherme desejava dizer: "Não é preciso". Mas era bastante sincero para repudiar a oferta. Por isso, sorriu conformando-se com a realidade.
- Dá-me vontade de lhe dizer que não quero cá ver o seu Joel, mas seria insensato se o fizesse. Gostaria de ter aprendido na Universidade a mungir vacas e a criar porcos, mas não aprendi.
E aquele homem, que reagira tão rápido à cólera de Guilherme, não teve coragem de dizer mais uma palavra, quando este lhe sorriu, de mãos nas algibeiras, perfeitamente à vontade diante dele. Fitando Guilherme, pouco a pouco percebeu a diferença que os separava. As mulheres gostavam de homens assim, e Ruth era mulher. Podia servir-se de homens como ele, e vir pedir-lhe conselho sobre as sementeiras e as colheitas... Mas aquele era o homem com quem queria viver. Dissipou-se-lhe toda a cólera, como se o abandonassem as forças. Sentiu-se fraco e fatigado.
- Bem, vou andando - disse por entre dentes. Tenho muito que fazer.
- Obrigado por tudo - agradeceu Guilherme.
- Não tem importância. Cá mandarei o meu Joel.
- Mais uma vez, obrigado.
Henrique tinha vontade de lhe pedir: "Deixe-me ver como ela está", mas não se sentiu com coragem. Ruth escolhera de sua vontade aquele homem. Ainda lhe queria.
- Bem, adeus.
- Adeus.
Fasthauser deixou o casal, no seu passo pesado e lento de campónio. Guilherme sentiu-se, ao mesmo tempo, condoído e triunfante ao ver partir aquele homem, rústico, mas

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bom. Depois, correu pela escada acima, entrou no quarto e ajoelhou-se ao lado da cama onde jazia Ruth. Esta abriu os olhos, como quem desperta dum sonho, e murmurou:
- Que sucedeu?
- Minha querida, não te mexas. Nunca devias ter ido sozinha aonde foste... devias ter-mo dito, pelo menos.
- Não te queria... incomodar.
- Como podias tu incomodar-me, minha querida? - Afagou-lhe as mãos com ardor. - Sou tão mau marido, minha pobre mulher!
Ela sorriu palidamente.
- És o... único... a quem quero.
Deitou a cabeça na mão dela. Sim, era verdade. Pelo estranho desígnio que pela primeira vez o conduzira até àquela casa e onde o cativara, ambos continuavam a querer-se ainda um ao outro.
Longe dali, o mundo girava na vertigem da guerra. Ruth media a rapidez do conflito pelas deslocações do filho. Deitada na cama, pensava nas suas cartas lacónicas. A guerra estava muito longe, por Hal permanecer ainda num campo do norte das Carolinas, ou avizinhava-se, por o seu regimento ser, talvez, o próximo a ir para fora.
Horas antes do dia da partida, veio a casa. Ruth, restabelecida, já se levantava, mas o médico recomendara-lhe que não descesse do quarto ainda por uns dias. Estava a arrumar nas gavetas da cómoda a sua roupa branca de algodão, quando Hal lhe entrou pela casa dentro. Envergava o seu novo uniforme. Vieram-lhe as lágrimas aos olhos, vendo o filho. Hal curvou-se para a beijar, enquanto ela lhe abriu os braços, numa inesperada manifestação de ternura.
- Viva, mmã... outra vez a arrumar coisas! Sempre a lidar, hem!
- Não posso estar sem fazer nada. ó Hal, não podias deixar de ir?
- Sou eu que quero, mmã...
Guilherme, ao vê-los assim juntos, sentiu-os intimamente

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unidos pela carne, como ele e Ruth nunca podiam
estar. Deixou-os sós e afastou-se. Não tinha vontade de
trabalhar, por se sentir só, abandonado. Era singular!
Como um homem apaixonado podia entregar o filho a uma mulher e privar-se do seu amor com tal renúncia! Hal era a sua carne convertida na sua imagem, mas sem aquele aspecto que, em Guilherme, era estranho a Ruth. Hal era um Guilherme nascido e criado naquela casa, segundo os princípios de Ruth. Tudo quanto ela não compreendia no marido não se manifestava em Hal. Dominava-a inteiramente a mocidade do filho, que se reflectia, como se fosse o corpo do marido, no seu espírito.
Guilherme só voltou para casa à noite. Joel, no estábulo, mungia as vacas. Maria levava e trazia as vasilhas do leite. Quando a viu carreava em cada mão dois baldes cheios, a fumegar. O seu rosto, habitualmente plácido, sorria, transfigurado. Nem deu pelo pai.
- Maria! - foi preciso ele chamá-la.
A rapariga estremeceu. Com o susto, entornou um pouco de leite.
- Pai! Onde tem estado? A mmã perguntou por si. Tem estado inquieta por sua causa.
- Julguei que teu irmão cá estivesse.
- Já se foi embora há muito tempo. Por onde tem andado, pai?
- A passear, por aí...
Ela fitou-o com os seus grandes olhos azuis.
- A fazer o quê?
- A escolher um trecho para pintar um novo quadro.
- Ah!... Não quer cear?
- Quero.
- A mmã já ceou.
- Está bem.
Os olhos dela perderam a expressão. Depois, tornou a pegar nos baldes e partiu. Na casa das vacas, Joel começou a assobiar, vibrante e sonoro, como um melro. Guilherme entrou em casa e subiu as escadas para o sobrado. Jill veio ao seu encontro.
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- Ó pai! Por onde tem andado?
Agarrou-se-lhe com alvoroço, estreitando-lhe a cintura com os braços morenos e franzinos. Ele cingiu-a por um momento.
- A dar umas voltas por aí...
- A mãezinha perguntou por si, não sei quantas vezes. Já está deitada. O Hal foi-se embora.
- Já sei.
Entrou no quarto em bicos de pés, mas Ruth pressentiu-o e chamou por ele em voz alta:
- Guilherme! És tu?
- Sou, sim, meu amor.
- Guilherme! Por onde tens andado?
Sentou-se na cama, a seu lado.
- Julguei que quisesses estar um bocadinho a sós com Hal. Mas não te sentes pior, pois não, minha querida?
Ruth ergueu a cabeça e fixou-o com aqueles seus olhos límpidos e azuis, tão brilhantes ainda como da primeira vez em que os fitara.
- Não, o que me sinto é cansada. Mas... por que razão havia eu de querer estar sozinha com o nosso filho?
- Julguei que quisesses.
- Fizeste-me falta, sabes?... Devias estar aqui quando ele partiu.
- Não sentiu a minha falta.
- Mas senti eu.
Tremeram-lhe os lábios e assomaram-lhe lágrimas aos olhos, fitos nele, mais profundos e azuis do que nunca.
- Oh, Guilherme! E se nos morre? Não me larga esta ideia... Quem sabe se não o beijei pela última vez? Ai, esta horrível guerra! Ainda se fosse para combater por alguma coisa da nossa terra!... Mas agora sair daqui por causa de terras que nos são estranhas!...
- De lá vieram os nossos avós, meu amor. Não são assim tão estranhas como isso.
Tinha a mão dela entre as suas, aquela mão que a idade tornara mais firme, mão robusta e calorosa, apertada entre as suas, mais flexíveis.

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- Que me importa! - exclamou num assomo de revolta. - Que tenho eu que ver com o que se passa na terra dos outros? Só me interessa o que se passa na nossa casa. Hal não tinha precisão nenhuma de ir.
- Mas, minha querida, não tardará muito que todos os rapazes novos tenham de partir também. É a guerra!
O lindo rosto de Ruth contraiu-se num espasmo para chorar. Guilherme inclinou-se para a tomar nos braços.
- Não chores, meu amor!
Mas Ruth não resistiu e começou a soluçar, a cabeça encostada ao peito dele, sem uma palavra, com amargura. Guilherme não a desamparou e deixou-a chorar. Quando sofria, era ele o seu refúgio. Ruth era tão forte para a vida, para o trabalho! Raras vezes dava provas de fraqueza ou chorava. Aquele momento era de êxtase. Recuperara-a inteiramente. Depois de desabafar, esteve um tempo silenciosa, com a cabeça apoiada ao ombro dele.
- A guerra entrou na nossa casa - disse Ruth, por fim, balbuciando como uma criança.
- A guerra entrou em muitas casas e há-de entrar em muitas mais ainda - respondeu-lhe o marido com doçura.
- Mas só a minha me interessa - insistiu, teimosamente. Depois agarrou-o com paixão, exclamando: - Mas ainda te tenho a ti. Nada nos pode separar, Guilherme!
- Nada - repetiu este, gravemente - nada nos pode separar.
- Nós não vamos morrer! Havemos de viver sempre, sempre! - exclamou, num arrebatamento.
- Havemos, sim... - repetiu ele, como um eco das suas palavras.
Os dois corpos estreitaram-se com ardor; mais uma vez o homem lhe sentiu nas veias, nos nervos e nos músculos, o apelo da paixão.
- Meu amor! - ciciou Guilherme.
Ruth levou-lhe a mão ao seio e ergueu as pálpebras devagar. Aquele lento mover das suas pestanas bastas e escuras estimulavam-no. Curvou-se e esmagou-lhe a boca com um beijo. A união íntima da sua carne com a carne

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dela era agora infinitamente mais intensa do que nunca! Primeiro, fora a satisfação do desejo bárbaro de carne e de sangue. Depois, vontade de procriar. Corpo com corpo, haviam engendrado os filhos. Mas já não sentiam a mesma voracidade. A carne estava há muito satisfeita, e não haveria mais filhos. Agora, era uma verdadeira comunhão, corpo com corpo, coração com coração, alma com alma, dois seres integrados num só ser, real e simbolicamente.
Já a noite ia avançada, quando por fim ele se levantou, correu a tranqueta da porta e saiu do quarto. A casa estava às escuras. As pequenas tinham ido para a cama. Só por baixo da porta do quarto de Jill, ao fundo da sala, se via um ténue fio de luz. Mas não foi até lá. Queria estar só. A casa, assim, era mais sua. Desceu à cozinha, acendeu um candeeiro e procurou de comer. Havia pão e queijo, doce de maçã e vinho. Comeu com apetite. Findo o repasto, levantou-se, bocejou e espreguiçou-se. Depois, apagou a luz e foi até à porta da cozinha, que nunca se fechava, e ali ficou a contemplar a noite escura e cálida. As noites de Verão eram sempre suaves. O rio mantinha o ar fresco e agradável, bom para dormir. Não corria aragem. Parecia impossível que no mundo, algures, os homens se entregassem à loucura de lutar e morrer! Nada disso era a vida. A vida estava ali, naquela casa, com Ruth e mais ele.
Voltou para cima, subindo as escadas devagar e entrando no quarto sem fazer ruído.
- Já dormes? - perguntou.
- Ainda não. Estava à tua espera. Não queria adormecer sem ti.
...Quando se restabeleceu e voltou às lides da casa, como dantes, Ruth descobriu logo o que Guilherme fora incapaz de ver durante um mês. Maria e Joel estavam enamorados. Ficou muito satisfeita com o idílio. Gostava de Joel, que era outro pai. A mãe fora simples instrumento para o engendrar, um veículo do seu corpo, nada mais. Ao nascer, fora como se ficasse livre, sem nunca mais ter que ver com ela. Era um mocetão robusto, de rosto franco

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sem vestígios do ar tonto e da beleza deslavada da mãe, com habilidade para tudo que dissesse respeito à lavoura e aos animais.
- Cá este meu rapaz - costumava o pai gabar-se - é capaz de tirar uma colheita seja do que ror. Tudo quanto lhe ficar debaixo de olho se cria que é uma beleza!
Mal pôde sair, Ruth percorreu a horta e o celeiro, os estábulos e as capoeiras, e os campos até onde a sua vista podia alcançar, examinando tudo com os seus olhos experientes.
Encontrava tudo melhor do que deixara. As vacas, limpas e fartas. As prestes a dar à luz gozavam saúde. Mais duas haviam ficado ocupadas há pouco tempo. Outras duas estavam a dar leite. Três porcas tinham parido e das barrigas só dois leitõezinhos havia perdidos. Pequenos trabalhos, que nunca tivera tempo de fazer, via-os agora feitos, as capoeiras limpas, o depósito da lenha cheio, as celhas da água escasqueadas, os dois cavalos ferrados de novo.
Quando Joel veio, à noite, para mungir, saiu e foi falar-lhe.
- Fizeste maravilhas, Joel! Nunca o esquecerei e hei-de agradecer também ao teu pai.
- Não vale a pena. O que fiz, foi de vontade. Enquanto mungia, apoiava a testa ao flanco da vaca.
- Então ainda mais valor tem.
Foi nesse momento que Maria apareceu, trazendo os baldes para o leite. Joel pressentiu-a e levantou a cabeça, vivamente. A maneira como ele olhou para ela revelou a Ruth os sentimentos que Joel nutria pela rapariga. E esta gostaria dele? O acanhamento de Maria era manifesto.
- ó mãe, não lhe fará mal andar muito tempo cá por fora?
- Não hei-de estar sempre parada. Maria riu-se para Joel, e disse-lhe:
- Minha mãe gosta muito de fazer a sua vontade!
- E tu serás assim também? - replicou o rapaz a rir. Os risos, os olhares vivos, às furtadelas, dos dois, revelaram-lhe tudo: "Ela também o ama, quer-me parecer".

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- Bem, vou para casa - anunciou de súbito. O que ficara a saber era importante. Guilherme estaria de acordo? Sim, devia estar, porque se tratava de uma coisa justa. Maria e Joel estavam bem um para o outro. Podiam casar. Ela não pudera casar com o pai de Joel, porque Guilherme surgira um dia na sua vida. Não era o caso de Maria. Como se parecia consigo nos olhos! Mas em mais nada. Maria nunca teria sido capaz de descobrir um rapaz como Guilherme, fosse onde fosse.
- Vá descansar um bocadinho, minha mãe - pediu Maria.
- Sim, talvez vá.
Voltando a casa, deitou-se no canapé da sala de jantar, à espera de Guilherme, que não chegara ainda. Jill estava na cozinha a fazer a ceia. Saberia porventura o que se passava entre a irmã e Joel? Fosse como fosse, não falaria a ninguém no caso, antes de o contar ao marido. Pensou em Henrique Fasthauser. Coisa curiosa e singular: como o sangue se cruzava e encontrava através das gerações! Uma parte do seu sangue, por intermédio da filha, iria aliar-se, afinal, com o de Henrique. Não se importava. Maria era aquela parte de si mesma que podia, indiferentemente, haver casado com Henrique, se Guilherme lhe não tivesse aparecido.
Pela porta aberta, Ruth viu-o, nesse momento, a descer o caminho, despreocupado, com a mochila das tintas a tiracolo. Assim devia ter aparecido, naquele dia, quando pela primeira vez descera o mesmo atalho. Agora, porém, já os seus cabelos branqueavam. Sentia-se contente com ele. Durante anos nunca a deixara, nem mesmo para ir à cidade. Não era que não recebesse, por vezes, cartas do pai e de outras pessoas. Bem o sabia, mas não dava importância a isso. De vez em quando encontrava-lhas nas algibeiras, quando limpava os fatos, mas não sentia a mínima tentação de as ler. Não lhe interessavam. Cartas! Significavam tão pouco... A única realidade era viver com as pessoas. De súbito, lembrou-se de uma coisa há muitos anos esquecida - da carta que Guilherme lhe escrevera

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uma vez. Trouxera-a ao pescoço até à noite do seu casamento.
Recebeu-o com um sorriso.
- De que estás tu a rir-te? - perguntou ele.
- Cá duma coisa!
Desembaraçou-se do saco das tintas e sentou-se ao lado da mulher.
- Qual coisa?
- Lembras-te da carta que me escreveste uma vez de Nova York?
- A única, por sinal, que te escrevi e a que nunca me respondeste!
--Tinha medo!
Hesitou em lhe dizer porquê. Até então nunca a vira escrever. Nunca escrevera a ninguém senão a Hal.
- Como sabes tudo a meu respeito, parece-me que te posso dizer... Tive medo de te responder.
- Porquê, minha querida?
- Tu escrevias tão bem, e eu não era capaz... Por isso, tinha medo que me desprezasses.
- Ruth!
Impressionava-o imaginar aquela humilde rapariguinha com medo dele, por causa de lhe querer.
- Nem sequer compreendi bem o que escreveste.
- Não, meu amor? Então o que fizeste?
Afagou-a, sem reparar que tinha os dedos sujos de tinta. Conhecia-lhe tão bem as formas nobres da cabeça, só pelo tacto, que se sentia às vezes capaz de a modelar como um escultor amolda a argila.
- Embrulhei-a num pedacito de seda encarnada, para me dar sorte.
Riu-se, ao lembrar-se da rapariga que fora e que não deixara, aliás, de ser ainda, um tanto envergonhada de si mesma, sem saber se também ele estaria envergonhado por sua causa. Mas Guilherme só estava comovido.
- Porque não me falaste nisso há mais tempo? Guardaste só para ti uma coisa dessas, tantos anos! Nunca mais te conheço... quantas coisas não terás para me dizer?
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- Já estava esquecida.
- E que foi que te fez lembrar?
- Não sei. Espera, parece-me que foi a Maria e o Joel. Sabes, Guilherme?... Eles namoram-se!...
- Ah, sim!...
Retirou vivamente a mão. Não suspeitara de nada.
- Foram eles que to disseram?
- Não, não precisaram de mo dizer!
Reflectiu um momento, fitando-a, e depois disse:
- Não sei se me importará ligar-me com o tio Fasthauser.
- Não é com ele... é com Joel.
- Parece-se muito com o pai.
- E Maria parece-se comigo.
- Nem por isso a coisa me agrada mais!
Levantou-se e começou a andar para trás e para diante,
ao longo da sala, de mãos nas algibeiras.
- É assim que tu sujas os bolsos todos de tinta! - exclamou Ruth.
Tirou as mãos das algibeiras.
- Um rústico daqueles!
- Joel é um bom lavrador.
Não lhe deu resposta. Nunca lhe ocorrera, até então, que os filhos de Ruth, e também seus, haviam de casar com... alguém.
- Com quem havia de casar a pequena, senão com um rapaz como o Joel? - perguntou Ruth. - Onde encontraria outro noivo, diferente?
A pergunta não tinha resposta. Houvesse ele sido diferente e arrancado Ruth àquele meio, em vez de ir viver para ali, já as suas filhas agora podiam encontrar rapazes de outra espécie.
- Parece-me que tens razão - acabou por dizer.
- Não há outro remédio!
Dirigiu-se para a cozinha, a fim de se lavar, sem saber que dizer mais, de momento.
Jill, muito encarniçada por causa do calor do fogão, retirava do forno uma enorme torta de maçãs.

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- Que sabes tu a respeito de tua irmã e de Joel? - perguntou Guilherme, de chofre.
Jill poisou o tabuleiro no chão, fechou a porta do forno, e disse, olhando para o pai:
- É uma coisa horrível! Não posso compreender como a Maria... Ai!... ele cheira tanto a... vacas!...
Pegou no tabuleiro e foi pô-lo em cima da mesa.
- ó pai, porque não impede uma coisa dessas?
Guilherme começou a desencardir as mãos no lava-
-loiças.
- Que tenho eu de melhor para oferecer a Maria?
- Mas ele é tão repugnante!
-. Parece-me que tua irmã não é da mesma opinião. E tua mãe está de acordo. Acha-o bom...
- Lá isso é verdade, o Joel é bom rapaz! Mas para casar...
Hesitou, lutando para traduzir em palavras o pudor da sua feminilidade. Guilherme ficou surpreendido com a súbita revelação da delicadeza do seu sentir. Para que lhe serviria a sensibilidade naquele meio tão simplório? Que supérflua coisa legara àquela filha!
- E tu, Jill?
- Eu? Que quer o pai dizer com isso?
- Que queres tu fazer?
- Não sei...
- Quero ajudar-te no que quiseres.
-Já sabia, paizinho. Mas o pior é que nem eu sei... A Maria nunca teve dúvidas.
Jill tremia. Voltou a cara para o lado da janela, em frente da mesa, junto da qual se encontrava.
- Queres dizer que Maria alcançou o que desejava, mas que não gostas... da mesma coisa.
- É certo. Maria sempre disse que queria casar com um lavrador. Eu sou diferente.
Aproximou-se da jovem e cingiu-lhe com um braço os ombros estreitos e delicados.
- Diferente, Jill?
- Sim. Não acho as coisas tão simples como ela.

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- Quais coisas?
- Eu mesma... talvez.
Dizendo isto, a pequena desviou os olhos - aqueles olhos pequeninos e cinzentos, que o desorientavam. Guilherme deixou pender o braço que a cingia. Como se misturara, confusamente, com o seu, o sangue de Ruth nos filhos! Podia classificá-los assim: os olhos de Jill e o rosto de Maria provinham do sangue de Ruth, mas, na segunda, era a sua figura que predominava; Jill, de configuração exterior totalmente diferente da sua, fora dotada, no todo ou em parte, com o seu espírito; Hal herdara-lhe o corpo, excepto as mãos, iguais às da mãe, mas o temperamento inquieto do rapaz era o seu! Oh, se pudesse separar tudo isto e juntar tudo outra vez, mas conscientemente, para fazer deles seres humanos completos!
Trazia na algibeira, naquele momento, uma carta de Elisa. Estivera sem lhe escrever aqueles anos todos. Fizera-o agora para lhe dizer que tinha os dois filhos em França e que, talvez, como Hal também iria para lá, se pudessem encontrar os três. Pedia-lhe para dar ao filho os nomes dos seus. Mandava-lhe os retratos dos rapazes. Contemplou, demoradamente, os pequenos instantâneos dos dois mancebos - um loiro, outro moreno, ambos muito ingleses e muito risonhos. Decidiu não os mandar a Hal. Era melhor não se encontrarem - seu filho e os de Elisa.
- Quero ajudar-te - disse, concluindo estes pensamentos, para Jill.
Brilhou nos olhitos da pequena uma chama de verdadeira adoração.
- Bem sei... Já o sabia há muito, paizinho.
...A guerra crescia e alastrava, mas Hal continuava bem. Enquanto vivesse, a guerra para Ruth era suportável: não queria saber quem estava a ganhar, lá nesses países estrangeiros e distantes. Pouco lhe importava conhecer quem era o vencido ou o vencedor. Todo o desenlace da guerra, na qual morriam e ficavam feridos e mutilados milhões de criaturas, em que as nações se afundavam como
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navios, tudo isso dependia da forma de um homem a quem ela dera o ser. Hal estava vivo. Então, continuava a ganhar a guerra. Se lhe morresse o filho, a guerra estaria perdida para si.
Chegou a vez de Joel partir também. Todos os rapazes da sua idade haviam sido mobilizados. Mas, primeiro, devia realizar-se o casamento, para os noivos passarem, ao menos, uma semana juntos.
- Queremos casar aqui mesmo - dissera Maria. - Não precisamos de sair daqui. Depois irei para casa dele, e mais nada. Ficarei com a sua família, quando Joel se for embora.
Mais uma vez houve um casamento no casal. Guilherme assistiu, como pai, à cerimónia, na mesma sala onde muitos anos antes figurara como nubente. Por mero acaso, o vestido de Maria era azul. Nesse momento, parecia-se, extraordinariamente, com a mesma Ruth daquele dia distante. Experimentou a estranha sensação de dar Ruth em casamento àquele jovem e robusto lavrador, metido num fato preto, acanhado. Mas suportou tudo de boa vontade e até jovialmente. Quando a cerimónia acabou, sentiu que se partira qualquer coisa entre si e a filha. Os laços que o prendiam a Maria, laços, aliás, sempre ténues e frágeis, desfizeram-se de todo quando a viu ao lado do marido, no meio da pequena multidão dos convidados. Maria pensava apenas em si e Joel. Nunca se preocuparia com mais ninguém, dali em diante. Teve, de súbito, a clara percepção daquela mulher nova que fora sua filha durante todos aqueles anos - um coraçãozinho estreito que ajudara a fazer, um coração pequeno, com capacidade só para se conter a si mesmo. Maria havia de defender o marido, quer tivesse ou não razão, só por ser seu marido; havia de amar os filhos, não porque fossem crianças, mas porque lhe pertenciam. Toda a escassa dedicação que votara ao pai e à mãe seria transferida agora para o que só era seu. Sem uma palavra, disse-lhe adeus intimamente.
Não era muito fácil a renúncia. Sempre era perdê-la, embora Maria nunca tivesse sido para o seu feitio o que se chama uma filha. Desejou, vagamente, possuir um verdadeiro

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filho, mas seu, com quem pudesse falar e entender-se. Lembrou-se de Jill. Naquele momento vinha esta a entrar, trazendo pratos e copos, a grande boca de lábios finos, fechada, muito atenta ao que fazia. Não foi, porém, ao seu encontro. Os convidados vinham falar-lhe, um tanto hesitantes. Aquela gente, entre a qual vivera como um estranho, durante tantos anos, ainda se sentia acanhada na sua presença. Aprendera, todavia, a lidar com eles, a ouvi-los, a sorrir-lhes, a responder às suas perguntas com meia dúzia de lugares comuns. A inteligência assustava-os. Deixara, por isso, de a manifestar.
- Olá, senhor Sieger! Como vai o seu esplêndido neto? O senhor Sieger era o carniceiro, cujo rosto de púrpura parecia estalar com sorrisos.
- Magnífico! Já anda vai para seis meses. Faço votos por que o seu primeiro neto seja assim também, senhor Barton!
Neto! Nunca pensara em netos. Ele e Ruth avós! Mas teria de ser assim, evidentemente.
- Oxalá eu tenha essa sorte, senhor Sieger.
- Não sei porque não a há-de ter - volveu o senhor Sieger, com um risinho. - Sempre lhe digo que fazem um belo par.
Guilherme sorriu. Os olhos azuis e brilhantes do carniceiro fixavam Joel e Maria. Sim, os dois formavam uma sólida parelha. Não devia haver complicações com aquela aliança. Mas, e se o seu sangue, reprimido em Maria, irrompesse no filho que viessem a ter? Era esse o processo pérfido da Natureza, que troça sempre, por trás, das humanas criaturas a quem une pelo amor.
Sentiu-se, de repente, intoleravelmente só, no meio daquela turba pitoresca de aldeões.
Ruth estava distante, ao fundo da sala, toda atarefada com o bolo de noivado, que Maria se preparava para cortar. Viu-lhe o rosto muito corado, toda entregue à sua tarefa. Fora ela quem fizera o bolo, tal como sua mãe o seu, há muitos anos. A receita era a mesma. O resultado seria tão bom?

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Guilherme infiltrou-se por entre os convidados, sem ninguém dar por ele, até à escada. Subiu ao quarto onde costumava guardar os quadros concluídos e as telas novas. Tinha lá uma secretária, a que se sentou. Durante algum tempo tentou lembrar-se de alguém com quem comunicar. De súbito, puxou de uma folha de papel e começou a escrever uma carta a Elisa.
...Hal fora-se embora e Maria também. A casa fechou-se sobre os seus vultos ausentes, como se nunca um e outro houvessem existido. Joel partiu para a guerra. Ruth e Maria conversavam muito, sozinhas as duas. Embora a filha os visitasse muita vez, Guilherme sentia que Maria deixara de fazer parte da casa.
- Como passou, meu pai? - perguntava-lhe, às vezes, quando o via.
- Bem, muito obrigado, Maria - respondia, calmamente.
Passaram os meses e viu-a pejada; mas para si era como se se tratasse da mulher de qualquer campónio do sítio. Era das tais coisas de que Ruth não gostava de falar. Quando chegasse a ocasião, viria dizer-lhe com toda a naturalidade:
- "Maria teve um menino... ou uma menina".
E perguntaria, também, com a mesma calma, sem dizer mais nada:
- "Correu tudo bem?"
Quase não dava por Jill, porque naquele ano se pusera a trabalhar com muita intensidade. Sentia-se com óptima disposição e cheio de vigor, talvez em parte por aquele ano ser excepcionalmente seco. Escrevia, também, com regularidade, a Elisa, cujas extensas cartas, numa letra miudinha, lhe estimulavam e mantinham a vivacidade do espírito. Numa, que recebera em fins de Abril, Elisa participava-lhe a morte de Reginaldo, o filho mais novo, o que era louro. Ao receber a notícia, tirou duma gaveta a pequena fotografia e examinou-a com toda a atenção. Como fora efémera aquela juvenil existência! Experimentava

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uma estranha sensação de lutuoso pesar, porque, recentemente, às suas cartas Elisa juntara algumas escritas pelos filhos, de Don e Rex, como lhes chamava. Extraordinárias cartas, que revelavam o carácter dos dois jovens soldados, o espírito brilhante, ágil e eloquente daqueles rapazes, tão conscientes da vida e da morte, de toda a beleza que os cercava. Via, às vezes, as cartas que Ruth recebia do filho. Hal só sabia escrever cartas breves, a contar à mãe o que comera e o que bebera, como passara os últimos dias de licença, e a pedir coisas. Mas contentavam Ruth, porque lhe diziam que o filho estava vivo e são.
Guilherme, a sós no seu quarto, tornou a reler todas as cartas de Rex. Como este morrera, devia devolvê-las a Elisa. Ser-lhe-iam agora preciosas. Mas, antes de lhas mandar, passou horas a transcrever páginas inteiras, a extrair os períodos e os pensamentos que mais lhe pareciam conter a alma daquele rapaz, embora o seu corpo houvesse deixado de existir e tivesse desaparecido.
"Agora que sei como a vida pode trazer-nos a cada momento a morte, é que posso avaliar o seu inestimável preço. O valor da vida está tão acima de tudo o mais, que pergunto, às vezes, porque não deito eu a espingarda fora e não fujo daqui. Era fácil. Conheço bem o terreno. Nada mais natural do que perder-me, em qualquer noite, quando estivesse de sentinela; despir a farda, falar francês ou alemão, se fosse preciso. Falo qualquer das duas línguas tão bem como o inglês. Sei que no meu íntimo prezo a vida mais do que tudo - mais do que a pátria ou a honra, ou qualquer outro palavrão. Quero muito aos meus cinco sentidos, ao meu corpo, à minha individualidade física. E, todavia, sinto que só não deserto por haver qualquer coisa em mim que prezo mais que tudo isto. Se cumpro com o meu dever, não é por ser patriota - não o sou - nem por ser digno, na acepção convencional do termo, mas simplesmente porque desertar seria destruir qualquer coisa mais que também sou eu, como o meu corpo".
"...Assisto ao pôr do Sol, minha mãe. Na contra-luz só vejo ruínas, mas o astro flameja, sempre o mesmo. Eterno,

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no Universo - continua, inalterável, façamos o que fizermos sobre a Terra".
"...Gostaria de estar realmente enamorado, antes de vir para esta guerra. Não me quero referir ao capricho por qualquer rapariga. Falo do facto real, do amor, do casamento, dos filhos, de um estado para sempre, para toda a vida. Aspiro a qualquer coisa de belo, de perpétuo, que me sobreviva".
Em todas as suas cartas, insistia nesta ardente aspiração de eternidade. Enquanto copiava as confissões do mancebo, traçadas numa bela caligrafia rectilínea, Guilherme reflectiu nesta necessidade. Teria encontrado a satisfação do seu desejo nas trevas infindáveis em que mergulhara? Quem o podia dizer?
Devolveu as cartas a Elisa, acompanhadas de um comentário seu, mas impessoal, como tudo quanto escreviam um ao outro. Sabia, porém, que tais palavras serviriam para a confortar. Já não precisavam da pessoa um do outro. O que procuravam permutar entre si era a confirmação de certezas dos seus espíritos.
"Julgo-te capaz de compreenderes a morte, minha boa Elisa", escreveu ele. "Não preciso de falar na morte de Rex. Interessa-me muito mais a sua continuidade espiritual. O ser subsiste, quando as qualidades da alma são mais positivas do que o corpo. Como?... - não sei; como?... - ninguém sabe. Mas tenho a firme certeza de que certas criaturas - nem todas - sobrevivem à morte do corpo, e sinto que teu filho deve ser assim".
Desceu a escada, nessa noite, com um daqueles habituais acessos de desolada melancolia que o assaltavam, depois de andar muito tempo alheado de Ruth.
- Ruth, Ruth! - chamou, por toda a casa. Encontrou-a cá fora, na horta, a debulhar milho para a ceia.
- Que é?... Onde tens estado metido, Guilherme?
- Lá em cima.
Suspendeu o que estava a fazer, para o observar.
- Sentes-te bem? Pareces esquisito, espantado, ou coisa que o valha. Não terias hoje apanhado sol demais?

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- Preciso de ti, apenas.
Nunca percebia lá muito bem o que lhe queria dizer com isso, mas sabia como resolver a situação.
- Ajuda-me a arranjar isto para a ceia. Hoje atrasei-me. Uma galinha fugiu-me do choco e não descansei enquanto não a apanhei.
- E onde a achaste?
- Tinha ido meter-se na pocilga, dentro daquela celha velha que já não serve para nada.
Guilherme sentou-se a seu lado, num banco tosco - um toro rachado ao meio, com quatro pernas, e começou a descamisar as maçarocas, rasgando devagar as bainhas verdes que forravam os grãos do milho.
- Como é belo!
A película, fina como seda, aderia por igual a todos os grãos; metodicamente, ia-a arrancando, devagar.
"Seria capaz - perguntou de si para si nessa noite, antes de adormecer - de me deitar assim com Elisa, todas as noites, satisfeito?" Sentia que não. A simplicidade de Ruth era o vivo manancial em que se retemperava. A seu lado, em silêncio, meditava, a ver se descobria qual era exactamente a espécie de paz que o seu espírito nela encontrava. Qualquer coisa de calmante e de dormente, o envolvia. Não era nada de natureza forte ou violenta, mas um fluido caricioso que o restituía a si mesmo. Não precisava de pensar, de fazer perguntas ou discutir; não carecia de falar, a não ser que o desejasse. Conversavam muito pouco um com o outro, cada vez menos, à medida que decorriam os anos. Quando ela falava, ouvia-a sem a escutar, e o que Ruth lhe dizia, com a sua voz doce e sonora, ainda mais acentuava a tranquilidade transmitida pela sua presença. Habituara-se a depender em tudo da mulher. Só lhe restava a íntima inquietação do seu espírito. Agora, Elisa voltara. A guerra havia-a atirado outra vez para a sua vida.
Mas, com Elisa, nunca teria sido capaz de recuperar a consciência de si mesmo, como sucedia com Ruth. Ter-lhe-ia sido impossível alhear-se de Elisa. Para onde fosse,

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Elisa havia de ir também - confundir-se-ia consigo e ele com ela - e nunca teria havido nem repouso nem pausa na infalibilidade da sua união absoluta. Ainda bem que o oceano os separava!
Num vasto jardim rectangular, à inglesa, nas traseiras de uma casa quadrada, também inglesa, no condado de Kent, Elisa estava a ler a missiva que recebera, naquele dia, de Guilherme, a acompanhar as cartas de Rex.
Lia-a e relia-a. Aquelas palavras traziam-lhe o único conforto que alguém seria capaz de lhe dar, após o segundo e terrível golpe que sofrera na manhã do dia anterior.
Estava também, como agora, no jardim. Não podia permanecer dentro de casa, nem tinha vontade de comer nem de dormir. Fazia um tempo maravilhoso - dias sem vento e sem nuvens, muito agradáveis. Se chovesse, ainda teria posto uma capa e saído. Seria isso em parte porque Ronnie estava em casa? Gostavam muito um do outro, mas habituara-se a respeitar o silêncio em que ele preferia viver, e para si era mais fácil conservar-se silenciosa, sozinha, andando cá fora.
Mas nem o silêncio, nem a calma artificial, nem a tranquilidade forçada na conversa haviam produzido qualquer resultado.
Quando a criada lhe trouxe o segundo telegrama, viu logo o que sempre no íntimo adivinhara viria a suceder. Sim, já o sabia, mesmo quando o coração lhe segredara loucamente, ao ler o primeiro telegrama, que talvez não fosse Don o sacrificado.
Mas, agora, coubera a vez a Don, também.
Leu o telegrama, a participação da praxe, que lhe comunicava, com pesar, que seu filho Don fora morto em combate.
Endureceram-se-lhe os lábios e o queixo começou a tremer-lhe!
- Bem, Minnie... - tentou dizer para a criada.
- Ai, minha rica senhora, não pode ser o menino Donaldo!

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Fez que sim com a cabeça. Depois, levantou-se, toda trémula, e saiu do jardim. Ronnie tinha de saber. Fora ela quem recebera, das duas vezes, os telegramas. Desta vez não era preciso dizer mais. Apenas lhe estenderia a triste mensagem. Rex fora o favorito do pai, e, dessa vez, sentira que devia confortá-lo. Mas, agora, nenhuma consolação era possível.
Subiu, depressa, a escadaria do terraço, para atravessar depois o pavimento lajeado, em direcção às portas-janelas da biblioteca onde Ronnie estava a ler. Estendeu-lhe o telegrama. Ronnie, depois de o ler, levantou-se da cadeira, deixando cair o livro que tinha em cima dos joelhos, e abraçou-a. Encostou a cabeça ao ombro protector e ficou hirta, sem quase poder respirar, de olhos fechados. Retinha os músculos e os nervos para não chorar.
- Pronto, minha filha - murmurou Ronnie - não chores. Temos de nos manter de pé, firmes, não é verdade? Chegámos ao fim. Agora... nada mais temos a perder!
Sim, era isso. Nada mais tinham a perder. Ambos os filhos mortos! Não havia consolação alguma nesta ideia, mas a sua própria amargura era um tónico. Reprimiu com violência esmagadora o coração que lhe estalava no peito. Em seguida afastaram-se, sabendo que podiam suportar a sua dor em silêncio. Ronnie tirou os óculos, que pusera para ler, e começou a limpá-los devagar, com uma expressão de profunda tristeza no rosto já cansado. Ela sentou-se e ficou a olhar, abstracta, para o tapete da sala.
- Agora, depois disto, julgo que também devo fazer alguma coisa - declarou Ronnie.
- Que pensas fazer? - perguntou Elisa, fitando um fino arabesco encarnado, no belo e minucioso desenho do tapete persa.
- Há muitas coisas que posso fazer. Mas... e tu? Não queria deixar-te aqui, sozinha, neste casarão.
- É muito grande, não é?... Importavas-te que eu fosse para casa?
- Para casa?
- Sim, para a América.

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- Não queres... ficar aqui?
- Não.
- Está bem... talvez seja o melhor.
Assim ficara decidido. Permaneceriam ali ainda mais uns dias, enquanto Ronnie não arranjava a sua vida. A casa ficaria para um hospital. Apartou algumas coisas que desejava conservar, e resolveu deixar o resto, renunciando a tudo sem sacrifício. Depois viera sentar-se cá fora, no jardim, outra vez, lendo e relendo a carta de Guilherme. Seria também capaz de escrever assim de Don? Rex escrevia-lhe muitas vezes, mas Don quase nunca. E, no entanto, gostava mais de Don, o primogénito. Pertenceria ele àquela espécie de almas que não morrem? Não sendo assim, não lhe interessava a eternidade.
"Hei-de perguntar a Guilherme" - disse de si para si.
E passou aqueles dias sentada no jardim, sob a luz branda do sol de Inglaterra, a pensar nos filhos mortos e em Guilherme. Quando voltasse a vê-lo, havia de chorar muito, muito. Ronnie não a deixava chorar. Guilherme não seria assim - tinha a certeza. "Guilherme... Guilherme!" - murmurava baixinho, e ao som deste nome vinham-lhe lágrimas aos olhos, que ficavam marejados, prestes a transbordar.
Hal continuava incólume. O primeiro ano de guerra findara, dando lugar ao segundo; batalha após batalha fora ganha ou perdida; a todas sobrevivera, indemne. Escreveu à mãe, a gabar-se de que o inimigo não fundira ainda a bala para o alvejar. Joel ficara ferido e recolhera a casa, com o ombro direito deitado abaixo.
- Enquanto eu tiver o lado esquerdo em bom estado, para trabalhar na fazenda, a coisa não vai mal - dissera, a arreganhar os dentes, num sorriso.
Chegava-lhe e sobrava-lhe o lado esquerdo. Não tardou que Maria ocupasse outra vez. O seu primeiro filho chamava-se Henrique, como o avô. Guilherme olhava às vezes para a criança com ironia. Henrique Fasthauser, seu neto! Raras vezes encontrava o tio Henrique, mas, quando

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se viam, era sempre nos melhores termos. Ruth arrendara-lhe quase toda a herdade.
- É a melhor maneira de te ajudar - dissera-lhe, quando Joel partira para a guerra.
- Também me parece que sim - respondera-lhe, reconhecido. Tinham olhado um para o outro, com vontade de dizer mais qualquer coisa, mas não haviam ido mais além. Que serviço podia prestar-lhe, em compensação? Ainda estivera para lho perguntar. Mas nada podia fazer. Por isso se calara. Amava Guilherme e havia de o amar até à morte. Porquê? Não o saberia dizer. Não havia nada que pagasse os sacrifícios que fazia por ele. Mas, se trabalhava, era por sua causa, e tanto bastava para valorizar o seu esforço. O que recebia de Guilherme em troca não era capaz de o traduzir por palavras: qualquer coisa que para si mais nenhum homem possuía. Casara-se com alguém de classe mais elevada do que a sua, mas fizera o marido ditoso.
Guilherme parecia-lhe mais feliz do que nunca, naqueles dias da segunda Primavera da guerra. Era em princípios de Junho. Os morangos bravos estavam já maduros e ela apanhara um cesto deles, embora não fosse fácil colhê-los. Mas Guilherme gostava muito de doce de morango. A tarde ia em cheio. Sentara-se na soleira da porta da entrada, à sombra do velho sicómoro, a arranjar os delicados frutos. Tinha os dedos tingidos de encarnado. Ia-se entrar no segundo Verão daquela maldita guerra - pensava. Mas Hal estava vivo e são. Guilherme há muito tempo que se não sentia tão feliz. Não deixara o lar durante aqueles anos todos, nem mesmo para ir à cidade, ver os pais, depois daquela vez, pouco antes de Hal haver fugido de casa.
Devia ter-se zangado com o pai, embora nunca lhe tivesse perguntado nada. Mas lembrava-se de Guilherme lhe haver falado muitas vezes em partir. Pois bem, não a abandonara, e, embora pintasse menos, os seus quadros eram melhores. Mesmo ela podia ver qualquer coisa de novo nas suas telas. Perdia, porém, muito tempo a passear,

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a ler, a pensar, a escrever. Transformara a sala de entrada em biblioteca. Os livros cobriam as paredes até ao tecto. Que não diriam seu pai e sua mãe, se fossem vivos, ao ver tal desperdício em livros - tal quantidade, que ninguém, a não ser Guilherme, seria capaz de ler - embora Jill houvesse começado também a ler muitíssimo. Jill preocupava-a. Ninguém dava nada por ela. Não devia haver muitos homens capazes de ver o que se ocultava sob os seus olhitos tristes e cinzentos e a sua boca desengraçada. Tinha umas lindas mãos, finas e delicadas, como as do pai. Mas onde haveria homem, naqueles sítios, que soubesse apreciar, pela beleza, as mãos de uma mulher?
Como sempre, era Ruth quem confortava Maria, que tinha a vida ocupada, como uma verdadeira dona de casa, depois que Joel voltara da guerra só com o ombro esquerdo válido. O resto estava são, como dantes, aliás; podia muito bem trabalhar no campo e dar à mulher um rancho de filhos, mas nenhum mais bonito do que o pequeno Henrique. Tanto a avó como o avô paterno depositavam as melhores esperanças naquele forte e resoluto rapaz. Sorria, ao lembrar-se do que lhe dissera o velho Henrique, ainda um dia antes, com os seus modos descarados. Chamavam-lhe velho, só para o distinguirem do neto, pois aquele estava ainda longe de ser um ancião.
Fora ter com a filha, por causa de uma receita de doce, e encontrara os dois Henriques no eido da herdade. O velho estava a podar um maciço de lilases, e o pequeno entretinha-se brincando com os troncos decepados. Ficara uns momentos, parada, a observar o rapazinho, belo e rosado, de quem toda a gente afirmava que se parecia com ela. E na realidade assim era. Bem o via, mas não lhe ficava bem dizê-lo, por ele ser um bonito rapaz. O seu antigo pretendente dissera-lhe, então, com um sorriso rasgado:
- Afinal, Ruth, sempre acabámos por nos ligar um ao outro, embora duma maneira muito desviada. Eu teria tomado outro caminho, muito mais curto.
- Tem vergonha, Fasthauser! - censurou-lhe, embora dissesse intimamente, muitas vezes, que tais coisas já nada

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significavam para si. Por isso, acrescentou, com severidade: - Estamos a ir para velhos, Henrique, e isso já não é próprio da nossa idade.
- Enquanto eu for homem e tu mulher, posso dizer coisas - retorquiu-lhe, malicioso.
Voltara-lhe as costas. Ninguém seria capaz de dizer que não fora sempre uma mulher séria, sem ideia em mais nenhum homem a não ser o seu marido.
...Súbito, ouviu ruído de automóvel na estrada. Tomás dizia que circulavam muitos carros, mas ainda nenhum parara à porta do casal. Ergueu os olhos de cima das amoras, e viu uma mulher alta, de casaco de linho, sair do carro. Um grande véu cobria-lhe, de viés, o chapéu enorme, de tal maneira que Ruth não lhe podia ver a cara. Mas a desconhecida marchava a passo largo, como as estrangeiras, e Ruth viu-lhe, em dado momento, o rosto, um rosto fino e trigueiro, de olhos negros, rasgados.
- É aqui que vive o senhor Guilherme Barton? - perguntou a recém-chegada. A sua voz era bela, bem timbrada, como se fosse de cantora.
- É, sim - respondeu Ruth, sem interromper a tarefa.
- Quer ter a bondade de lhe dizer que está aqui uma pessoa, sua velha amiga, para o ver?...
- Não sei bem onde andará neste momento - volveu Ruth, poisando a tigela dos morangos no chão, e levantando-se. - Desculpe-me de não a cumprimentar - disse-lhe mostrando as mãos tingidas de encarnado.
A visitante encarou-a, surpreendida.
- Ah, a senhora é que?...
- Sou a senhora Barton - disse Ruth com gravidade.
- Ah! - repetiu a outra, fitando-a com os seus grandes olhos negros, muito abertos.
- Entre - convidou Ruth. - Se quiser sentar-se e esperar, enquanto eu vou ver se o encontro...
Conduziu a visita até à sala que Guilherme forrara de novo e mobilara com algumas coisas velhas, deixadas pela senhora Harnsbarger.

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- Eis a casa de Guilherme - murmurou a visitante.
- A minha gente sempre aqui tem vivido, vai já Para duzentos anos - respondeu Ruth.
Depois deixou-a só e dirigiu-se à cozinha, onde tocou a sineta para chamar o marido. Se pudesse, lealmente, não o encontrar, ficaria satisfeita. Gostaria de ter uma desculpa, para voltar e dizer àquela mulher que Guilherme não estava visível.
Mas Guilherme, andando a passear num bosquezito de bétulas, perto da lagoa, ouviu a sineta distintamente, e, passados momentos, Ruth viu-o caminhar em direcção a casa. Voltou para dentro e pôs-se a desencascar as Mãos no lava-loiças.
- Há alguma novidade? - perguntou, ao transpor a porta.
- Está aí uma senhora estrangeira que te quer ver... Diz ser uma velha amiga.
Ruth não levantou os olhos.
- Mas eu não tenho amigos velhos - disse Guilherme, admirado. Pensou de repente em Elisa, mas logo se lembrou do oceano que os separava.
- Não sei... foi o que disse - retorquiu Ruth.
- Onde está?
- Na sala.
- Bem... vou ver quem seja.
Deu dois passos em direcção à sala, mas depois, talvez por haver pensado em Elisa tão subitamente, voltou atrás, abraçou-se a Ruth e beijou-a na boca.
- Cheiras a sol e a morangos!
Pegou-lhe nas mãos, limpou-as à toalha de linho e beijou-lhe as palmas ainda tintas pelos frutos.
- Sabes que gosto muito das tuas mãos? Ruborizou-se, entre um sorriso, e retirou-as, envergonhada.
- Vai lá, anda, Guilherme... Essa senhora já está à espera há muito tempo. Achas que lhe devo oferecer do nosso vinho e uns bolos?
- Pois decerto. Onde está Jill?

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- Deve estar a ler, com certeza. Agora não faz outra coisa.
- Chama-a para te ajudar.
Afastou-se vivamente, atravessou a casa de jantar e abriu a porta que dava para a sala: reconheceu logo a visitante. Esta levantara o véu. O seu rosto, sob o grande chapéu, pareceu-lhe o da mesma rapariga que vira a última vez.
- Elisa!
Correu para ela e estreitou-lhe a mão.
- Lembrei-me que fosses tu, quando Ruth me disse que uma velha amiga me queria ver, mas julguei impossível.
- Don morreu, Guilherme!
Num momento, Elisa compreendeu que viera até ali só para lhe dar a viva voz a notícia. Não era isso o que planeara dizer-lhe, mas, quando viu os olhos castanhos de Guilherme, inalteráveis, soube porque viera.
- Oh, Elisa!
Sentou-se no sofá, a seu lado, conservando-lhe a mão entre as suas.
- Minha boa Elisa! Quando soubeste?...
- Pouco antes de partir.
Até ali ainda não derramara uma lágrima, mas de repente sentiu vontade de chorar. Irresistível vaga emotiva irrompeu-lhe do coração. Com os olhos rasos de água, as lágrimas começaram a rolar-lhe pela cara abaixo.
- Morto... em acção - balbuciou. - Não sei mais nada.
- E teu marido?
- Alistou-se voluntariamente nos serviços auxiliares de guerra. A nossa casa ficou vazia...
Tremeram-lhe os lábios, soltou um grito, cobriu o rosto com as mãos e prorrompeu a soluçar nervosamente.
Guilherme não disse palavra. Tirou-lhe o chapéu, carinhosamente. Comoveu-se ao ver-lhe o cabelo, que fora preto, todo grisalho. Mas também o seu estava branco. Os anos tinham passado por ambos. Parecia impossível, pela maneira tão natural como voltara a ver Elisa. Mas não era.

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Uma vida passara. Aquela mulher fora solteira e noiva, depois casara, tivera dois filhos, e perdera-os. No entanto, ela continuava a ser a Elisa e ele o Guilherme, que se conheciam desde crianças. Cingiu-lhe os ombros num abraço.
- Chora, que te faz bem - disse-lhe com meiguice. Pobre Elisa, sempre quiseste reprimir as tuas emoções, embora isso te custasse muito, lembras-te?
- Ainda te recordas de como eu era?...
Ergueu os olhos para ele, com o rosto em pranto. Viu-a então mais velha do que lhe parecera. As lágrimas mostraram-lhe a sua verdadeira idade. Seria sempre bela pela sua configuração óssea. Quando já da sua carne nada restasse, o seu esqueleto ainda seria belo. Mas a sua boca estava triste e cansada; em volta dos olhos, apareciam rugas; um sulco profundo, entre as sobrancelhas denotava o hábito de as carregar. Não era um semblante de mulher feliz. E fora a Vida e não a Morte que o modelara assim.
- Lembro-me - disse-lhe simplesmente.
A porta abriu-se e Ruth apareceu, trazendo, numa bandeja, uns pequenos cálices antigos, com vinho, e uma salva de prata com biscoitos agridoces, que sempre costumava fazer e guardar para ocasiões de cerimónia.
Olhou para os dois com os olhos azuis muito abertos.
- Posso entrar, Guilherme?
- Pois decerto - acudiu este, vivamente. Reparou que tinha o braço por cima dos ombros de Elisa, e retirou-o, precipitadamente. Sentiu vontade de se desculpar perante Ruth, gritando-lhe: "Esta mulher perdeu os seus dois únicos filhos..." mas dominou-se. Para Ruth, Elisa era uma estranha.
- Bebe um pouco deste vinho, Elisa. É feito por Ruth. Há-de fazer-te bem.
Sem olhar para a mulher, recebeu-lhe a bandeja, que pôs em cima da mesa, pegou num cálice e ofereceu-o a Elisa. Mas, ao voltar-se para pegar noutro e oferecê-lo à esposa, verificou, estupefacto, que Ruth desaparecera. Deixara a bandeja, voltara-lhes simplesmente as costas e saíra da sala. Ficou irritado e surpreendido, ao mesmo

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tempo, por não ser costume zangar-se com a mulher. Nunca se malquistara com Ruth.
Tornou a sentar-se, provou o licor e poisou o copo em cima da mesa.
Elisa não podia beber. Os soluços não a deixavam. Sentia necessidade de expandir a sua dor, de lhe contar tudo a respeito de Don; de lhe descrever o seu aspecto como era forte e inteligente, que nunca lhe dera um desgosto, como conquistara prémios em Cambridge. A sua vontade era entrar na política, segundo a tradição da família do pai. Mas, afinal, tudo acabara... antes de principiar.
- Mas porquê, Guilherme? Porquê?... porquê?... - perguntava, entre soluços.
- Não sei... Se o soubesse!... É tudo a sorte da pessoa, parece-me... Sorte ao nascer, sorte na vida e sorte na morte.
- Mas na tua carta a respeito de Rex - disse-lhe com expressão de meter dó - falavas na sobrevivência além da morte, para algumas pessoas, pelo menos. Tens alguma coisa que te guie nesse sentido?... Haverá maneira de saber quais são as pessoas com esse privilégio?... Porquê Rex e não Don, por exemplo? Bem sei que Rex era mais delicado... que Don gostava mais da vida do que Rex, realmente - da vida física, de comer, de beber, de desportos. Preocupava-me muito por andar sempre enamorado. Mas nada de sério. Costumava dizer que era só para estudar o tipo de mulher de quem gostaria, um dia, a valer.
Ouviu-a sem a interromper. Lentamente, das suas palavras, ia surgindo, ante os seus olhos, a imagem do jovem forte e varonil.
- Guardaste aquelas fotografias que te mandei? perguntou Elisa, a certa altura. - Ainda as terás? Julgava que tinha mais algumas, mas não as achei. Sempre gostei muito delas, especialmente do retrato de Don.
- Pois claro que tenho. Um momento, que vou buscá-las.
Levantou-se, atravessou a casa de fora e dirigiu-se para a sala que transformara em biblioteca. A casa estava

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silenciosa, como se mais ninguém, a não ser ele e Elisa, lá estivesse. Onde se encontraria Ruth? Naquele momento não podia ir procurá-la.
Ao abrir a porta da biblioteca deu com os olhos em Jill. Só se lhe via a cabeça. O corpo franzino quase desaparecia num dos dois cadeirões que Guilherme comprara ao mandar pôr o fogão na livraria.
- Adeus, paizinho.
- Ah, estás aí?
- Quem é aquela senhora, paizinho?
- Uma velha amiga.
Abriu a gaveta da secretária onde guardava as cartas de Elisa, e pusera também as fotografias, ao acaso, sem as meter num sobrescrito, como devia. Encontrou logo a de Rex, mas não viu a de Don. Tornou a procurar. Estava certo de lá a ter posto. Mas não havia meio de a encontrar. Procurou-a por entre as cartas. Não estava em nenhuma.
"É singular! - murmurou entre dentes. - Onde a teria eu posto?"
Voltou-se para Jill e perguntou-lhe:
- Não viste por aí uma fotografia? Deve ter-me caído para o chão. Era o retrato de um rapaz alto e moreno, vestido à militar, de soldado inglês...
- Fui eu que a tirei.
- Tiraste-a! Mas, porquê? Não era de ninguém que tu conhecesses!
- É que... o seu rosto agradava-me. - Curvou a cabeça sobre o livro, folheando-o ao acaso. Depois fechou-o e encarou o pai com decisão.
- Andava há muito para lhe perguntar... quem era.
- Quando é que tiraste daqui a fotografia?
- Há umas semanas.
- E estiveste este tempo todo sem me dizer nada?!...
- Receei que me julgasse tola.
Os lábios tremiam-lhe. Não sabia que dizer nem fazer. O pai continuava a fitá-la, interdito.
- Acho estranho... vir tirar uma fotografia à gaveta da minha secretária.

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Jill levantou-se vivamente e explicou:
- Eu estava a arrumá-la, por ordem da mãe. Ao pôr em ordem as gavetas, encontrei as fotografias. Primeiro, pareceu-me que o moreno era o pai, em novo, quando andou lá por fora, pelo estrangeiro, antes de conhecer a mãe, como nos tem contado. Depois vi que realmente não era. Mas havia qualquer coisa no retrato que mo fez desejar. Eu sei que lhe devia pedir licença... mas tive vergonha.
- Ainda o tens?
Jill fez que sim com a cabeça.
- Quer que o vá buscar?
- Era favor, Jill.
Ficou à espera, encostado à secretária. Que significava a atitude de Jill? Talvez, apenas, um impulso romântico de rapariga solitária. Mas encontrara sempre, em todos os impulsos de Jill, uma justificação. Sentia, estranhamente, a filha ameaçada por qualquer drama, por qualquer coisa de frustrado, de defeituoso.
Jill não tardou a voltar, trazendo na mão uma espécie de sobrescritozinho brilhante. A pequena envolvera o retrato em papel prateado. Guilherme não o abriu. Mas ao recebê-lo, os olhos dela exprimiam qualquer coisa que o obrigaram, por assim dizer, a participar-lhe que o mancebo estava morto.
- Preciso do retrato, porque a senhora que me veio visitar é a mãe do rapaz. Casou com um inglês, de quem teve dois filhos. Ambos foram mortos na guerra e a mãe não possui outros retratos iguais a estes.
O rosto ruborizado de Jill empalideceu. Até os seus lábios perderam a cor.
- Ah, é horrível! - murmurou. Qualquer rapariga teria dito o mesmo.
Guilherme observou, porém, nos olhos e na rigidez do corpo de Jill, mais alguma coisa do que podia significar a banalidade das suas palavras.
- É, de facto, terrível - aquiesceu, com gravidade. Em seguida encaminhou-se para a porta, deixando a filha no meio da sala, impressionada.

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Mas, andados uns passos, a porta abriu-se atrás de si, e sentiu Jill agarrar-lhe num braço.
- Pai, posso ir consigo e falar a essa senhora?
- Anda...
Jill entrou com ele na sala. Apesar de muito envergonhada, tirou o retrato das mãos do pai e deu-o a Elisa.
- Oh, tenho tanta... pena! - disse-lhe impulsivamente. Sentou-se ao lado da visitante e pegou-lhe nas mãos.
- É como se o conhecesse. Pode dizer-se que o conhecia. Contemplei este retrato muitas vezes, todos os dias. Desejava conhecê-lo, pessoalmente. Agora... ficarei sem o conhecer... nunca mais!
Enquanto dizia isto, olhava para Elisa, suplicante, com receio de não ser compreendida. Depois, como se já fossem íntimas, num súbito impulso, caíram nos braços uma da outra, a chorar.
Guilherme, muito admirado e confuso, deixou-as sós, saindo da sala devagar. Voltando à biblioteca, pôs-se a pensar no sentido da presença de Elisa naquela casa.
Entretanto, na sala, Elisa desprendeu-se um pouco de Jill, mas só o bastante para ver bem o rosto daquela rapariguita que chorava pela morte de Don.
- A menina é filha de Guilherme?
- Sou... sim... sou a Jill.
- Chora como se tivesse conhecido meu filho!
- É verdade!
Jill examinou aquele rosto cansado e triste. Era a mãe dele!
- Tive uma singular sensação, quando descobri o retrato numa gaveta. Pareceu-me conhecê-lo, que já o vira não sei onde. À primeira vista, julguei que fosse um retrato de meu pai em novo.
- Também reparou que se parecia com Guilherme? Oh, ainda ninguém observara isso senão eu! Nunca tive coragem de o dizer!...
- Reparei, sim. Depois vi que não era o meu pai, mas outra pessoa. Guardei o retrato, pensando descobrir de quem seria. Conservei-o até agora em meu poder e contemplava-o

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muitas vezes - confessou, com um riso nervoso, que não era de alegria - quase como se fosse sua namorada.
Olharam uma para a outra, trémulas, pensando nessa possibilidade.
Depois Jill suspirou.
- Não diria isto... se fosse vivo.
- Compreendo.
Invadiu-as uma estranha sensação de doçura e certeza. Apertaram as mãos, instintivamente, uma à outra. Elisa, então, falou:
- A menina é a primeira pessoa que encontrei que me deu alívio. Quero contar-lhe tudo acerca dele, desde que nasceu. Quero-a junto de mim. Acha que seu pai a deixaria ir comigo?
- Com certeza. Minha mãe é que não sei...
- Ah, já me esquecia!...
As suas mãos deixaram de se apertar um momento. - Faça o possível! Por mim! Tenho vivido tão triste. Não tenho ninguém.
- Está bem - prometeu Jill.
O seu coração incerto e anelante, ávido de amar alguém, apaixonadamente, esvoaçava em redor daquela mulher qual ave pairando perto do ninho.
- Quero viver com a senhora. Talvez eu encontre o meio a que pertenço.
"Não", repetia Ruth consigo mesma.
Elisa ia-se embora. Da janela do sótão, estava a vê-la entrar para o carro, ajudada por Guilherme, embora um homem fardado, mas não à militar, lá estivesse para o fazer. Mas Jill também lá estava. Que fazia ali? Porque se curvava aquela mulher para fora do carro, e, tomando o rosto de Jill entre as mãos, o beijava? Invadiu-a um singular sentimento de ciúme.
Uma estranha não tinha nada que beijar os seus filhos!
Desceu as escadas, aparentemente calma, embora, no íntimo, o coração lhe pulsasse com furor.

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Encontrou Guilherme e Jill na casa de fora.
- Onde estiveste? - perguntou-lhe o marido. - Queria que ficasses a conhecer Elisa. Mas, quando me voltei, tinhas desaparecido!...
- Fui dar uma limpeza ao sótão. Não tinha tempo para estar cá em baixo. Jill, as amoras já estão em açúcar. Podes fazer o doce esta tarde. Tem cuidado, não o deixes pegar. O doce de amoras não presta se souber a queimado.
- Pois sim, minha mãe.
Mas Jill olhou para o pai, à espera de qualquer coisa. Guilherme correspondeu ao seu olhar.
- Que é isso, que têm os dois? - perguntou Ruth, com aspereza.
- Mãe, posso ir fazer uma visita àquela senhora? - pediu Jill, precipitadamente, a medo.
- Essa mulher é uma estranha!
- Não é, não - atalhou Guilherme. - É uma velha amiga. Conheço-a muito bem. Quer que Jill vá passar uma temporada com ela.
- Não! - replicou Ruth.
Não quisera recusar tão categoricamente, mas a palavra saíra-lhe, sem querer, lá de dentro.
- Oh, mãe! - suplicou Jill.
- Sossega, Jill - ordenou Guilherme. - Deixa-me explicar as coisas.
Houve um silêncio, que Ruth interrompeu, para dizer à filha:
- Vai fazer o doce.
- Está bem, mãezinha.
Ficaram os dois sós. Guilherme fitou-a nos olhos, aqueles olhos azuis em que nunca encontrara a mínima hostilidade. Mas encontrava-a agora.
- Anda cá, minha querida.
Cingiu-a, delicadamente, pela cintura, maravilhado com a bela dureza daquele corpo, enquanto, sem uma palavra, ela lhe obedecia, acompanhando-o até à sala da biblioteca, onde entraram. Guilherme fechou a porta atrás de si.
- Ora vamos lá conversar.

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Ruth parou no meio da casa, em atitude de desafio. No cabelo castanho e brilhante alvejavam-lhe apenas duas madeixas brancas, dos lados da testa. O pescoço nu e forte, as faces rosadas e sem rugas, o corpo flexível e elástico. Era admirável! Conhecia-a agora inteiramente: a sua ignorância e o seu saber, os seus preconceitos e as suas ilimitadas generosidades, a sua saúde de corpo e de alma - e, acima de tudo, a sua robusta e imperecível beleza.
Que desejas tu perguntar-me, primeiro? - disse-lhe serenamente.
- Nada! - volveu ela. - Não quero fazer pergunta alguma.
Ficou muito surpreendido com a resposta.
- Porquê, Ruth?
- Há muito que resolvi nada te perguntar, além do que me dissesse respeito.
Os olhos firmes brilhavam-lhe, límpidos, como dia claro.
- Vi logo, quando entraste a primeira vez nesta casa, que vinhas de um mundo que eu não conhecia... que não podia conhecer, porque não era o meu. Costumava pensar que, talvez, um dia tu quisesses voltar para lá. Pois bem, se voltasses, perdia-te. Foi o que primeiro disse comigo. Agora - depois de todos estes anos de vida juntos - farei todo o possível para te conservar, seja como for. Se deixo Jill partir... será, de certa maneira, deixar que tu te vás embora também. Não, não posso consentir!
- Nunca te deixarei, Ruth - afirmou Guilherme, apesar de não sentir desejos de contacto, naquele momento.
- Sabes lá o que podes vir a fazer! - respondeu ela, também sem vontade de se aproximar. Não tinha disposição. Nessa manhã, uma linda mulher, de aspecto altivo, viera visitar Guilherme, donde e porquê, não sabia nem lhe interessava saber. Mas o que não consentiria é que tal criatura lhe levasse qualquer coisa de casa.
- Se não concedes isto à tua filha, roubas-lhe muito - disse ele, com voz indistinta.

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Jill apareceu-lhe sob um novo e solene aspecto. Que direito tinha Ruth de vedar a Jill o acesso a um mundo para o qual talvez nascera?
- Nada posso fazer.
Como Ruth era intransigente e teimosa! Sentiu-se subitamente desesperado, por amor de Jill.
- Jill nasceu nesta casa e aqui há-de viver, até arranjar um bom marido.
- E se não casar? - replicou ele friamente.
- Então ficará para me ajudar. Estamos a ir para velhos...
As suas palavras pareciam interceder, mas a sua voz não. Era positivamente negativa.
- Guilherme, não vale a pena continuarmos - acabou por dizer.
- Vale, sim, Ruth - teimou, resolvido a não desistir.
- Havemos de falar nisto tantas vezes quantas as necessárias, até veres o caso como eu. Desta vez tens de me compreender.
À noite, quando a casa recaiu no silêncio, Guilherme tentou fazer entrever a Ruth como era o mundo a que por seu amor renunciara. Sentia Jill acordada, no seu quarto, à espera que se resolvesse o seu destino. Nunca a pequena desejara tão ardentemente qualquer coisa, como partir com Elisa. Chamara-o de parte, naquela tarde, agarrara-se-lhe com as mãos lambuzadas de doce, e esforçara-se por lhe mostrar o desejo desesperado que sentia de partir.
- Há muito que sonho em abalar, não sei para onde... Parece-me que toda a minha vida desejei viver em qualquer parte, menos aqui. Não sou como a Maria. Não me resigno a ser dona de casa, simplesmente, a mungir vacas e a criar galinhas. Há outras coisas... deve haver outras coisas, não é verdade, pai?
- Sim, há muitas outras coisas...
- A mãe julga sempre que vê tudo melhor do que ninguém - protestara a pequena com veemência - mas como pode saber o que me convém?

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- Sim, não pode.
- Morro se não sair daqui, meu pai!
- Morrer não morres, mas o que podes é viver mais, saindo daqui.
Pensou no estranho acaso que levara Jill a encontrar o retrato do filho de Elisa. A vida a que renunciara, afinal, sempre viera procurá-lo com os seus longos tentáculos naquela casa tranquila. Suspirou.
Jill, de testa franzida, concentrada nos seus pensamentos, nem dera por isso e exclamara:
- É como se porventura um homem que eu não conhecesse... que nunca mais virei a conhecer, embora o tivesse conhecido de certa maneira... um homem como nenhum outro, me chamasse. Esse homem abriu-me uma porta, não a quero fechar.
- Não acredito em portas fechadas. Farei por ti o que puder, sem melindrar tua mãe.
- O pai pensa sempre primeiro na mãe.
- Sempre pensei.
Jill lançara-lhe uma das suas olhadelas sombrias e furtivas e afastara-se.
Agora, deitado ao lado de Ruth, na velha cama grande, onde haviam dormido dois terços da sua vida juntos, esforçava-se, por amor de Jill, em reconstituir um mundo que julgava ter esquecido.
Ruth escutava, desfazendo esse mundo à medida que ele o construía.
- Guilherme, eu só compreendo as coisas com simplicidade. Terias casado com essa... mulher, se não me tivesses conhecido?
- Mas encontrei-te, minha querida.
- Terias ou não casado?
- Talvez, como tu terias casado com Henrique Fasthauser, se não me tivesses conhecido.
- Sim, é razoável - concordou, depois de pensar um momento.
Prosseguiu ainda mais algum tempo nas suas reflexões. "Elisa era diferente de todas as mulheres que conhecia.

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Seria como Guilherme, por dentro? Que diriam os dois um ao outro?"
- Entre essas cartas que tens recebido, há algumas dela?
- Há - respondeu Guilherme.
Depois, como Ruth se calasse, perguntou-lhe:
- Queres lê-las?
Empreendeu na proposta e revolveu-a na mente muitas vezes, Por fim, declarou:
- Não, não vale a pena.
"E se não as entendesse, como sucedera com a carta de Guilherme, há muitos anos?" - disse de si para si, sem lhe comunicar o seu pensamento. Sentia-se profundamente magoada, sem saber onde, e desorientada também, por ser incapaz de descobrir quem a magoara. Não tinha razões para se zangar com Guilherme. Era tão meigo e paciente! Mas sentia-se irritada em qualquer ponto do seu íntimo, de certa maneira, por ele julgar que precisava de ser meigo e paciente com ela. Gostaria de estar zangada com o marido, francamente, para poder observar a profunda ferida que a fazia sofrer.
- Se Jill for viver com essa mulher, nunca mais quererá voltar - disse por fim.
- Julgas isso? Mas olha que talvez aconteça, precisamente, o contrário. Talvez depois goste mais disto. Lembra-te que eu preferi viver aqui.
- Contigo foi diferente... eras obrigado a submeter-te àquela vida, e agradava-te veres-te livre... Mas Jill só conhece esta e há-de gostar mais da outra.
- E temos o direito de lha negar?
- Temos, se for para seu bem!
- E é a nós que compete decidir qual é o seu bem?
- É, sim... Ela pertence-nos!
- Não - sentenciou ele, lentamente - nenhum ser humano pertence a outro.
Houve um silêncio demorado. Depois, nas trevas, a voz de Ruth fez-se ouvir de novo:
- Se pensas assim, porque vives comigo?

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- Porque gosto de viver contigo, Ruth! - exclamou com toda a veemência do seu ser, envolvendo-a com os braços.
Resistiu-lhe uns momentos, negando-se a ser consolada tão facilmente, mas acabou por ceder. Raras vezes carecia de carinho, mas, quando se sentia magoada, era profundamente, e a ferida não cicatrizava com facilidade. Guilherme acendeu o candeeiro, para lhe ver o rosto e observar a expressão alterada do semblante, habitualmente calmo. E determinou reconquistá-la, convencê-la a confiar nele e a ter a certeza de que nunca a deixaria.
Em todas as palavras ternas, meigas e amorosas que lhe disse, enquanto lhe prometia viver com ela até à morte, experimentou a sensação de que parte de si mesmo fugia a Ruth, através de Jill. Esta ia ser libertada, e consigo um pouco do seu ser deixaria, também, aquela casa.
Não falaram mais na filha. Na manhã seguinte, ao almoço, anunciou, serenamente, com o ar mais natural deste mundo:
- É verdade, Jill, tua mãe e eu resolvemos, esta noite, que tu partisses.
Ergueu os olhos e encontrou os de Ruth, indignados. Mas sustentou-os, com fixa e afirmativa insistência, sem os desviar, prosseguindo:
- Parece-nos que tens o direito de decidir do teu destino. Foi o que fizemos quando éramos novos.
Assim deu sua filha a Elisa.
Depois da partida de Jill, não tardou a observar que tanto ele como Ruth já tinham vivido meia idade. Estavam a envelhecer. Nada no mundo que lhes dissesse respeito o interessava já grandemente. Elisa continuou a escrever-lhe, mas as suas cartas já o não importunavam com problemas pessoais. Só falavam de Jill. "Jill precisa de vestidos novos. Jill vai receber lições de belo canto". Sabia, porventura, que Jill tinha uma bela voz de contralto? Estavam em Nova York. Luísa ajudava ao enxoval de Jill e a arranjar-lhe bons mestres. Monty enriquecera fabulosamente com

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a guerra. E quanto mais a guerra durasse mais rico seria. Mostrava-se deveras generoso para com Jill. Luísa dizia que era uma vergonha Guilherme ter-se assim separado de toda a família. Seus pais estavam muito velhos e alquebrados. Quando Jill estivesse preparada, levá-la-iam a Filadélfia. Quereria ir encontrar-se lá com eles?
Guilherme lia estas cartas, atentamente, comparando-as com as da filha. As de Jill eram escritas para a mãe ler. Pouco se depreendia do seu conteúdo a não ser que as lições de canto a obrigavam a trabalhar muito.
- Sabias que Jill era capaz de cantar? - perguntou, um dia, a Ruth.
- Na igreja cantava os hinos muito bem, mas nunca pensei que fosse capaz de nada disso.
- Ah, agora vejo que devia ter frequentado a igreja! - volveu ele, a rir. Mas logo tornou, com expressão grave:
- Que terrível coisa teria sido, se não a tivéssemos deixado partir!
Mas Ruth ainda não concordou.
- Nem por isso acho que seja boa vida para uma mulher cantar num palco, diante de toda a gente.
- Mas para Jill deve ser boa, com certeza - sustentou ele.
Não fez referência à projectada visita de Jill a casa dos avós. Bastaria falar nisso quando chegasse a altura de decidir se devia ir ou não.
Entretanto, a guerra acabou e Ruth esqueceu Jill para pensar no filho, que voltava. Estaria em casa pelo Natal? Limpou a vivenda de cima a baixo, e forrou de novo a papel o quarto de Hal. Uma nova paz enchia a casa - uma paz que nada tinha que ver com a paz oficial que sucedera à guerra. A guerra, para si, personificara-se no filho. Hal atravessara-a sem uma beliscadura e gabava-se de ter crescido uma polegada e aumentado sete quilos.
- Deve estar muito bonito - dizia Ruth. - Quais serão os seus projectos? - E levou muito tempo a pensar nisto. - É claro, se quisesse cá ficar na fazenda... Mas isso era bom demais.

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- Também me parece - disse Guilherme. - Não contes com os filhos, meu amor. Não vale a pena.
- Não sei por que motivo os meus filhos hão-de ser diferentes - respondeu-lhe com tristeza. - Os filhos das outras pessoas parecem arrumar-se o melhor que podem. Mas os meus... Só a Maria é como toda a gente.
Ele riu-se.
- Os teus filhos têm um pai um tanto esquisito, minha querida.
Ela lançou-lhe um dos seus raros olhares maliciosos.
- Foi pena eu não ter pensado nisso quando apareceste, a primeira vez, cá em casa!
- Foi pena?...
Talvez fosse esta profunda incerteza - pensava às vezes - que os fazia eternamente apaixonados um pelo outro.
- Com pena ou sem ela, não estou arrependida - replicou Ruth.
Gozaram, naqueles dias que precederam o Natal, uma verdadeira lua de mel. Embora sós em casa, não estavam isolados, e a próxima chegada de Hal, que significava o fim da guerra mundial, dava-lhes uma alegria imensa.
Hal não chegou antes do Natal, mas a alegria manteve-se. Talvez para o Ano Novo viesse. Mas chegou o Ano Novo e este não o trouxe também. Depois surgiu a Primavera e ainda a felicidade continuou a reinar naquela casa. Jill era muito feliz. Maria tivera mais um menino, o segundo, que devia chamar-se Tomás, e Hal estava a chegar de um dia para o outro.
A alegria dos dois dissipou-se, bruscamente, num dia de Abril, quando chegou uma carta, escrita na caligrafia pueril de Hal. Mandava dizer que não vinha. Casara com uma rapariga francesa, que vivera em Paris toda a sua vida e não queria deixar a cidade. Quanto a si, também gostava muito de Paris. Talvez os pais quisessem qualquer dia ir vê-lo mais a Mimi. Se não pudessem, então havia de ver se lá podia dar uma saltada, de qualquer maneira.
Guilherme encontrara a carta na caixa do correio e

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fora logo levá-la a Ruth, sem a abrir. Ruth estava na horta, a arranjar o solo para semear. Com as mãos sujas de terra, rasgou o sobrescrito e leu as poucas linhas em que o filho punha termo a todas as suas esperanças. Estendeu-a a Guilherme, que por sua vez a leu também. Ruth perdera a fala. Pegou-lhe pela mão e levou-a para casa, onde a fez sentar. Depois, foi buscar um cálice de licor de ginja e deu-lho a beber, ao mesmo tempo que procurava sossegá-la.
- Eu bem te disse, meu amor, que não devias fazer contas com os filhos. Fazem o que querem. Deixa lá, temo-nos um ao outro.
Por fim, Ruth encontrou palavras para dizer o que sentia.
- Guilherme! Uma francesa!...
Não era o casamento do filho que a mortificava. Era o facto, de haver casado com uma estrangeira, com uma mulher com quem não podia, mesmo se a visse, trocar uma simples palavra.
- Os franceses são exactamente como os outros povos, minha querida. Eu costumava passar as férias de Verão em França, quando era pequeno... falava tão bem francês como inglês, e apreciava-os. Não te rales com isso.
Mas ralava-se. Que tinha que ver com a vida que fizera Guilherme antes de a conhecer? Com uma francesa não podia comunicar.
- E como serão os seus filhos?... - gemia. - Não serão nossos!
- Hás-de vê-los um dia e talvez os estremeças. Mas Ruth abanou a cabeça, dizendo:
-Como hei-de gostar, se não me pertencem?... Tinha os olhos rasos de água.
- Se soubesse, não lhe tinha forrado de novo o quarto. Agora, nunca mais se servirá dele.
"Tua mãe sofreu um grande desgosto, por não voltares para casa", escreveu ao filho, "por isso, enquanto não estiver melhor, passarei eu a escrever-te".
Assim, Guilherme e o filho principiaram a trocar corpondência.

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Por isso, também, começou a dirigir cartas à nora. Um dia terminou uma carta para Hal, com uma saudação em francês dirigida à mulher deste. Mimi, ao lê-la, no seu pequeno apartamento de Paris, ficou encantada com a pureza da linguagem.
- Ora aqui está um verdadeiro milagre! - exclamou para o marido. - Em todo o teu regimento, logo fui escolher um homem com um pai inteligente!
- Ignorava que o velhote soubesse francês! - disse ele, pasmado.
- Não sabes o pai que tens! - tornou a esposa a exclamar, quando Hal lhe disse que a família do pai era rica.
Começou instando com Guilherme para os visitar. Teria o maior prazer em receber o pai do seu querido esposo, como se fosse o seu. Paris havia progredido muito, depois da sua mocidade, quando a visitara, segundo lhe mandara dizer. Estava ansiosa por lhe mostrar tudo.
Guilherme não traduzia estas cartas a Ruth. Lia-as, divertido. Eram alegres, egoístas, e nem sempre a ortografia era correcta. Via, nitidamente, através do seu estilo, como era a francesita com quem Hal se casara. Por isso, ao receber um dia um retrato do filho à paisana, ao lado de uma pequena criatura, de tez trigueira e aspecto voluntarioso, com um vestido de pregas, não ficou surpreendido. Pensou que devia preparar Ruth para não tornar a ver o filho, nunca mais, talvez... Não lho diria com muitas palavras, mas esforçar-se-ia por fazê-la feliz por todos os meios ao seu alcance. Hal nunca mais a podia fazer feliz.
...Como podia deixá-la, para voltar à sua velha casa de Filadélfia, mesmo para encontrar-se com Jill? Ainda se porventura o pai estivesse em estado de o reconhecer, teria pensado três vezes, embora chegasse à mesma conclusão. Mas Luísa escrevera-lhe, por causa de Jill, avisando-o de que não esperasse ser reconhecido pelo decrépito ancião. Não conhecia ninguém, absolutamente, nem mesmo a esposa. Os seus companheiros eram agora aqueles com

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quem sempre realmente convivera, os grandes pintores do passado. Monologava, entre dentes, por muito tempo, diante dos quadros de Corot e Ticiano, e discutia com Velasquez a qualidade de algumas das suas pinturas.
"O pai não dará pela tua presença", mandara-lhe dizer Luísa.
Lembrou-se, com tristeza, dos desejos e dos conselhos do pai a seu respeito. Agora já não se preocuparia com a possibilidade de qualquer dia um quadro do filho vir a figurar na sua colecção, nem em saber se cumprira o seu aviso de partir à descoberta do que devia pintar. Com uma espécie de amarga auto-avaliação, Guilherme olhava para todas as suas telas. Vendia, todos os anos, certo número de quadros, depois da exposição. Estava convencido de que, de ano para ano, mais gente vinha ver os seus trabalhos. Tornara-se conhecido pelas suas paisagens da Pensilvânia embora em todas as suas produções forcejasse por ir mais longe. Insurgia-se contra os americanos pela tendência em etiquetar, por uma questão de comodidade cultural, a obra de qualquer criador, mas o facto é que os seus compatriotas significavam muito para si. Continuava a ser incompreendido o que se esforçara por demonstrar: que uma paisagem valia mais espiritual do que geograficamente. Não lhe dava qualquer satisfação ouvir elogiarem-no como o melhor pintor dos campos da região onde vivia. Desdenhando do seu trabalho, concluía, por isso, contra as suas esperanças, que, de todas as telas que pintara, a única que nunca pusera à venda, o seu primeiro retrato de Ruth, era ainda o melhor.
"Ainda o melhor", pensava, melancolicamente, porque o findara havia trinta e cinco anos. Era terrível ter que admitir que o seu melhor trabalho fora o primeiro que fizera. Para quê, ir visitar o pai?
Ao saber que sua mãe, muito caduca, atacada de paralisia, mas na posse completa das suas faculdades mentais, ainda se negava a conhecer Ruth, depois de ter visto Jill, resolveu que não a iria visitar, estivesse como estivesse.
- Não andarás doente? - perguntou Ruth.

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- Não, não estou doente.
Não lhe dissera nada acerca da luta e das indecisões do seu espírito, motivadas pelas cartas de Luísa. Nem mesmo tinha a certeza se gostaria de ver a irmã e o cunhado, triunfantes e cheios de dinheiro. Monty e Luísa estavam a "fazer tudo" por Jill, mas faziam-no por caprichoso prazer. Esta aceitava a situação de bom grado. As suas cartas, felizes e sinceras, diziam-lho. Falava de Luísa com bondade; humoristicamente, de Monty, que passara a usar monóculo e um enorme chapeirão de aba larga, à Vandyke, e estava muito surdo; generosamente, da avó; e sempre, com entranhado afecto, de Elisa.
"Tenho às vezes a estranha sensação de que Elisa é minha mãe", escrevia.
Por sua vez, Elisa dizia: "Esta tua querida filha é agora como se fosse minha. Tenho a estranha convicção de que, se Don fosse vivo, de qualquer maneira, ambos haviam de se entender. Ela sente o mesmo. Duvido que venha a casar".
Ficou aflito quando leu isto e escreveu logo uma carta a Jill, a exortá-la e a pedir-lhe que não se deixasse influenciar por Elisa contra o casamento.
"O casamento - escreveu - é uma grande experiência. Lamentaria muito se a perdesses. Sucede às vezes duas pessoas não acertarem uma com a outra, mas, ainda assim, é uma grande coisa. Antes te quero ver mal casada do que solteira".
Ela respondeu: "Se tiver alguma vez vontade de casar, não digo que não. Mas parece-me que nunca terei disposição para o fazer... Estou-me preparando para cantar no Metropolitano. Lembra-se - Abre-se-me o coração à tua voz?... - Estou a aprendê-la. Se a cantar no palco, um dia, já sabe, tem de me vir ouvir. O pai prometeu-me que iríamos os dois à ópera!"
Mas, durante todo esse tempo não resolveu, definitivamente, se iria visitar ou não a mãe, mais uma vez. Se fosse, seria a última, e só por causa de Jill.
A senhora Barton dera-lhe para gostar da neta. Elisa

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escreveu a dizer-lho: "Tua mãe reclama a presença de Jill. Mas é evidente que Jill não pode ir viver para Filadélfia".
Marcaram para o encontro um dos primeiros dias de Setembro, antes de começar a temporada da ópera em Nova York. Luísa e Monty, mais Elisa e Jill, viriam de automóvel. Ser-lhe-ia fácil a ele ir também. A estação de automóveis pertencia ao irmão de Ruth e era dirigida pelos seus dois filhos, que faziam a carreira para Filadélfia tão facilmente, como, nos velhos tempos, iam à aldeia mais próxima. Se quisesse, um dos rapazes de Tomás iria lá levá-lo e buscá-lo. Adiou mais uma vez a decisão, com a facilidade crescente com que o fazia nos últimos tempos. "Nada de pressas", dizia para si; "ainda não estou velho".
Além disso, vivendo naquela casa, só com Ruth, era-lhe fácil evitar qualquer decisão. Ela enchia-lhe a vida quando estava contente; era a luz do seu universo, que se ofuscava quando a via triste.
Não gostava agora de a deixar sozinha em casa. Noutro tempo, quando costumava ir ver os pais, tinha três filhos para lhe fazerem companhia. Agora, deixá-la-ia solitária e abandonada. E depois, quando viesse, que lhe diria? Como explicar-lhe, agora, tudo quanto nunca lhe explicara? Batera-se por Jill e ganhara a partida, mas, lutar por si, quase não valia a pena. Não era porque receasse Ruth - dizia consigo - como receara sua mãe. Não. Gostava de Ruth e queria vê-la feliz, nada mais. E, se a deixasse sozinha, mesmo só por um dia que fosse, havia de lhe custar.
Por conseguinte, quando o dia quatro de Setembro mal rompeu com uma chuvinha miúda e cerrada, pareceu-lhe grande sacrifício ter que participar a Ruth que nesse dia precisava de sair, em visita à casa paterna. Depois de tantos anos!
Estendido na cama, de manhã cedo, a ver cair a chuva, que batia devagar nas ardósias do telhado, Guilherme perguntava a si mesmo se valia a pena levantar-se. Tudo quanto estremecia, estava ali em casa. Ruth dormia ainda.

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Ergueu-se, com cautela, sobre o cotovelo, ficando a contemplá-la. O seu sono era sempre profundo. Ele tinha o sono leve e agitado, mas Ruth já não estranhava. Enquanto a admirava, assim adormecida, toda a substância íntima daquela mulher irrompia no seu ser, através dos pequenos meandros dos dias e dos anos passados em comum. Aquela mulher dera-lhe toda a sua vida, desde a juventude até agora. Não a fizera mudar nem a queria ver mudada. Ruth era uma criatura completa, que cumprira os desígnios do seu destino. Deixou de pensar no seu caso.
"Tenho sido um homem feliz", murmurou. A felicidade era um estado de ser, primitivo e simples, um estado físico e mental, primeiro que tudo, inteiramente liberto de preocupações. Sim, Ruth dera-lhe liberdade de pensar, de imaginar e sonhar. Feliz vida vivera com ela. Muito poucos homens da sua idade, com os filhos já criados e fora de casa, podiam, como ele, ver diante de si, com tranquilo êxtase, os anos ainda a viver, com as velhas esposas a seu lado!
Ruth, velha! Os únicos vestígios de velhice que lhe descobria eram as duas madeixas brancas no cabelo. O seu lindo rosto adormecido não acusava uma ruga - não era novo; mas velho, de maneira nenhuma também! A sua pele ainda era fina, os seus lábios vermelhos, os seus dentes brancos e sadios. Inclinou-se mais para ela, e aspirou a fragrância daquele corpo, tão activa como na noite do casamento.
Tornou a deitar-se para baixo. Sentiu o corpo quente e robusto da mulher a seu lado. Fechou os olhos, para ouvir melhor a chuva cair, surdamente, no telhado. A sua casa, a sua casa... fizera-a sua, aquela casa. Agora nunca mais a deixaria até morrer.

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TERCEIRA PARTE

- Guilherme, nunca te pedi nada para mim, a bem dizer, estes anos todos - disse Ruth.
- Mas as nossas bodas de oiro, minha querida, pertencem-nos... ou não?
Guilherme acrescentou as duas últimas palavras, ao ver-lhe a expressão obstinada do rosto rosado. Estavam os dois sentados na sala, numa manhã de Verão. Apesar de idosa, continuava a ser bela. Os cabelos brancos, sedosos e anelados, emolduravam-lhe o rosto ainda fresco. Engordara o suficiente para evitar as rugas da velhice. Ele mirava-se, todas as manhãs, ao espelho, e só via rugas no rosto magro e trigueiro. Parecia vinte anos mais velho do que ela. Naquele momento estava a pôr-lhe um calcanhar novo numa das suas peúgas castanhas de lã. Os seus olhos azuis conservavam o mesmo brilho e não usava óculos.
Como Ruth se calasse, continuou:
- As bodas pertencem às mulheres, sempre assim foi. Sem lhe responder, a companheira monologou: "Há-de
ser tudo em amarelo... a toalha da mesa e os guardanapos. E as flores hão-de ser rosas amarelas, também".
- Pois põe tudo de amarelo, se quiseres - respondeu-lhe com impaciência - mas as coisas deixam de ser amarelas se não convidares toda a gente da região?
- Toda a vizinhança espera assistir às nossas bodas de oiro... e bodas de oiro não se festejam todos os dias.
Ruth continuou a costurar, mas o marido viu assomarem-lhe, de súbito, lágrimas aos olhos. Inclinou-se para a esposa, pegou-lhe nas mãos e disse-lhe:
- Mas, querida, desejas realmente dar essa... festa?

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- Não desejo dar festa nenhuma, Guilherme... são as nossas bodas de oiro.
- Mas, Ruth, que necessidade temos nós de partilhar as nossas bodas com toda a vizinhança?
- É uma coisa que nos deve orgulhar, Guilherme... umas bodas de oiro!
Ele riu-se, largou-lhe as mãos, e levantou-se.
- Pronto, está bem, querida. Dou-me por vencido!
- Guilherme, não te deves rir dos convidados. Toda esta gente te considera muito.
- Eu, rir-me? Garanto-te que foi sem intenção...
Ficou de pé, diante da mulher, inquieto e um tanto irritado, como lhe sucedia há uns tempos. Talvez fosse da idade, a sua pressa de fazer as coisas, aquela impaciência pelo que demorava mais tempo do que desejava.
- Bem, parece-me que me vou andando, Ruth.
- Vais subir outra vez essa colina com esta soalheira?
- O sol faz-me bem. Aquece-me. Ergueu os olhos, subitamente inquieta.
- Sentes frio, Guilherme?
- Não... não te apoquentes comigo.
- Não percebo que necessidade tens de subir ainda aquela colina - repreendeu-o. - Não estás bom para isso.
- Bom, nunca mais estarei.
- Está bem... mas depois não me venhas dizer que não te aconselhei - advertiu ainda, depois de o ver sair de ao pé de si. Guilherme era assim. Quando não gostava duma coisa, voltava as costas e ia-se embora.
- Guilherme! - chamou.
- Que é? - respondeu ele, parando à saída da porta.
- Não leves o saco das tintas.
- Vamos a ver.
- É melhor não ires carregado com esse peso até lá acima... O teu coração não aguenta.
Não obteve resposta. Ouviu-o a remexer na casa de entrada, à procura da bengala. Esteve para se levantar e ir ajudá-lo, mas resistiu ao impulso. Ele já fazia tão pouco, ultimamente... Deixá-lo lá fazer alguma coisa...

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Nunca se oferecia para lhe limpar a loiça. Era preciso pedir-lhe todas as vezes. Agora necessitava do seu auxílio. Não era como no tempo em que tinha as filhas em casa. Também não tinha nada que fazer, e, além disso, ela já não era criança nenhuma! Continuava a lamentar aquela mania da pintura, inútil passatempo que sempre o impedira de se dedicar a um trabalho sério, próprio de um homem! De que servia pintar mais quadros, quando cerca de cem telas jaziam, empilhadas, no celeiro, por vender?
Depois, a vida era uma ilusão, dissessem o que dissessem. Sofrera desilusões sobre desilusões. Seu filho Hal, que ficara em França, nunca mais regressaria. Já quase se não lembrava das suas feições. Era pai de duas meninas, morenas e delgaditas. Tinha as fotografias das crianças em cima da guarnição da lareira, na casa de entrada.
"São como se não me fossem nada", pensava, sempre que sacudia o pó aos retratos, uma vez por semana. Deu um suspiro, contraiu os lábios e apressou mais o andamento da agulha. "Para um homem que não faz nada", disse para si, "Guilherme rompe meias que é uma beleza!"
...Guilherme não tinha a certeza de poder atingir o alto da colina, mas queria tentar. Desejava, ardentemente, observar, lá de cima, o horizonte, para além das árvores verdes que tornavam sombrio o casal. Conhecera-as já grandes; agora, porém, tantos anos passados, estavam enormes! Cobriam o céu por cima da sua cabeça; debaixo da vasta ramaria, sentia-se afrontado.
- Deitemo-las abaixo! - dissera a Ruth, várias vezes.
- Quê!... As árvores plantadas pelo pai do meu avô? - exclamara Ruth, de todas as vezes, horrorizada. - Até se levantaria do túmulo para protestar!
- Então, deixa-as estar como estão, acabou-se! - replicava-lhe, com uma ironia cujo alcance a mulher não lograva surpreender.
...Havia só uma pessoa, naquela sua família, capaz talvez de lhe compreender as ironias. Era o pequeno Ricardo,

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o filho mais novo de Maria. Observava, às vezes, nos olhos pretos do garoto - que só há pouco tempo ainda, parecia-lhe, atingira a altura para chegar à mesa grande onde ceavam aos domingos - qualquer coisa de tão inteligente, de tão vivo e jovial, mesmo perante ligeiras e inexpressivas graças de velho, que perguntava a si mesmo se algum germe da sua própria maneira de ser, arrastado pelo forte caudal do sangue de Ruth, não fora, porventura, transmitido ao rapazito? Mas não tinha a certeza. Ricardo estava sempre sério e abstracto, quando lhe dirigia a palavra. O garoto completara, havia pouco, dez anos. Maria devia estar quase a atingir o período de não poder ter mais filhos. Seis, bastavam. A vida parecia galopar nos últimos tempos. Maria engordara muito, Joel estava grisalho, o velho Fasthauser morrera, havia seis anos, com um ataque de icterícia e o jovem Henrique acabara o liceu. Andava agora a estudar Direito. Fora ele quem insistira em mandar Henrique para o colégio. Joel entendia-se bem com as duas herdades, e não se ganhava nada em não deixar o rapaz seguir uma carreira. Todas as batalhas agora travadas por Guilherme eram por causa dos netos, que queria ver educados.
Começou a trepar a colina... Jill, é claro, consagrara-se inteiramente a Elisa, que morrera havia um ano, já velha, vítima de desastre de automóvel, em Londres. Depois que Jill fora viver com ela, nunca mais voltara para a companhia de Ronnie. Não houvera divórcio, nem tão-pouco separação. Ronnie vinha vê-la de tempos a tempos. O marido de Elisa estava sempre a dizer que se daria ainda outra guerra mundial, mas ninguém o queria crer.
"Não se faz nada pela paz", insistia; mas a maioria das pessoas, sem lhe dar ouvidos, pensava que Ronnie ficara um tanto desarranjado da cabeça com a última guerra.
Quanto a Hal, lá estava em França. Era motorista de táxi, em Paris, segundo parecia. Estranho ofício para um filho seu! Mas Guilherme já não se lembrava lá muito bem dos filhos. Agora não via outra coisa senão os netos, e os mais pequenos, principalmente Ricardo.

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- Como está, avô? - dizia o pequeno invariavelmente.
- Como estás, Ricardo? - respondia Guilherme, invariavelmente também. Apertavam as mãos e pronto. Ficava muito satisfeito por ver que dos seis filhos de Maria e Joel, pelo menos Ricardo se não esquecia nunca da maneira como gostava que lhe falassem.
Parou um momento na encosta da colina, para tomar fôlego. As gigantescas árvores ainda lhe vedavam a vista do horizonte. Mas não havia outro remédio senão deixá-las ficar onde estavam. Ninguém no sítio seria capaz de as deitar abaixo. Joel piorara do ombro, com a idade, e nenhum dos filhos era capaz de manejar o machado ou a serra como o pai. Ruth nunca mais metera ninguém ao serviço, depois do velho Gus Sigafoos haver morrido na guerra - pobre tio Gus, que mal sabia ler e escrever, que nem sabia porque se combatera! Fora morto no derradeiro minuto, já depois de assinado o armistício!
Guilherme nem encarava a hipótese de poder derrubar as árvores. Até mesmo o pincel o fatigava já, nos últimos tempos. Mal chegava a pintar uma tela por ano, embora não fosse só por estar cansado. Sabia avaliar o que pintava. Os seus produtos eram de velho; não o iludiam. Há muito que perdera o jeito de dar aqueles efeitos de luz e profundidade, que despertavam o entusiasmo dos seus admiradores, outrora. Como e quando perdera essa faculdade - ignorava-o. Os seus quadros agora, eram superficiais. Os professores costumavam levar as crianças a vê-los, todos os anos, e as gentes da região admiravam-no. As suas telas viam-se em muitas casas das redondezas. Às vezes lá cobrava cem dólares por um quadro, mas habitualmente pedia apenas vinte cinco a trinta por trabalho, e, na maioria dos casos, vendia-os a dez cada um. As pessoas daqueles sítios orgulhavam-se dele, no entanto. "O nosso artista", era como lhe chamavam. Pintara fielmente as quatro Estações e os seus efeitos na paisagem da terra em que vivera até então. Mas agora estava velho.
Às vezes afligia-se por ser pobre - não por si, mas por causa de Ruth, evidentemente. Dissuadira os filhos de pensar

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na herança de seu pai, embora esperasse receber alguma coisa. Mas o velhote, por um testamento antigo, feito pouco depois do seu casamento com Ruth e nunca alterado, deixara a fortuna quase toda para fundar e manter um museu de arte, cujo recheio inicial seria a sua própria colecção de quadros. A soma legada não fora suficiente para construir o grande edifício de mármore, para o qual o testador deixara minuciosos planos, traçados por um famoso arquitecto francês. "A herança tem muito menos valor do que esperávamos", mandara-lhe dizer Luísa. "Desde que o caminho de ferro foi mobilizado pelo governo, perdeu o valor. Não admira que queiram tornar a restituí-lo à iniciativa privada!" Tanto Luísa como Monty quase não pensavam noutra coisa senão em criticar o governo, que desaprovavam inteiramente.
Guilherme recebera, deixado em testamento pelo pai, depois da morte da mãe, o bastante apenas para uma pessoa comer e se vestir - nada que chegasse para sustentar uma família. Tomás, o irmão de Ruth, tentara convencê-lo a impugnar a validade do testamento, mas não o quisera fazer, embora não lhe dissesse porquê.
"Desiludi muito meu pai", pensara com melancólica e íntima ternura. "Não quero furtar-lhe, ainda por cima, os seus quadros".
Continuava a subir a colina. Chegara a meio do caminho. Ruth tinha razão. Não devia ter vindo. Prosseguiu na ascensão, penosamente, durante mais cinco minutos. Não aguentava mais tempo de cada vez. Sentou-se para descansar, ofegante. O coração fazia-o estremecer todo. Se tinha força bastante para o abalar tanto, porque não o serviria melhor, o coração? E pensar que mal considerara aquilo uma colina, em tempos idos! Galgara-a tanta vez, carregado com o cavalete, a tela e as tintas, impaciente por começar o seu dia de trabalho! Agora, porém, regressara aos dias da sua infância. A colina dominava-o. Descansou mais um bocadinho. Mesmo assim, do ponto onde se sentara, ainda mal enxergava o horizonte acima e além da cumieira das árvores. Mas demorara tanto tempo a

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subir até ali para contemplar o panorama, que julgava estar muito alto. Podia ver já no entanto a extensa região, suavemente ondulada e verdejante. Um turista de Nova Inglaterra chamara-lhe monótona - no último Verão. Irritara-o ouvir depreciar assim a sua paisagem.
"Não está retalhada em pequenos cabeços, como a sua terra", respondera friamente. "Tem muito mais majestade. Possui a grandeza do oceano".
Sentia agora a sua vasta e alterosa abundância, que as herdades repartiam em robustas células de vida humana. Lá estava a fazenda de Maria. Todas as herdades se pareciam umas com as outras - celeiros enormes e pesadas casas de cantaria, como a sua e de Ruth. Visto de outra altura, aquele lugar, ali a seus pés, onde passara a sua vida com ela, havia de ser igual aos outros. A diferença não estava em se dizer que a sua vida não era como outra qualquer. Nem a sua vida era diferente - a não ser por se sentir sempre, invariavelmente, diferente em si mesmo.
Tal diferença sentia-a agora em velho, quando ia à cidadezita que era sede da comarca. As vozes, ligeiramente chocarreiras, que costumava ouvir à sua volta, em novo, calara-as o silêncio da morte. Os homens e as mulheres que viviam na aldeia haviam nascido já depois de ter ido viver para ali, para a casa de Ruth. Consideravam-no como fazendo parte da região. Tendo ouvido falar, todavia, aos pais, nos tempos em que ele ia à feira, passava pelas festas de carnaval dos bombeiros, ou aparecia numa reunião de conselho escolar; os cumprimentos que lhe apresentavam não eram exactamente os mesmos que dirigiam uns aos outros. Às vezes apreciava tal distinção; outras, esse tratamento fazia-o sentir-se isolado.
Naquele dia, ali na encosta, considerava-se só e abandonado. Sentia, de certa maneira, a falta que lhe fazia o mundo. Tinha a noção do que perdera. Jill escrevia-lhe, a falar nesse mundo que presentemente era o seu. Mandava-lhe cartas de todos os países e de metade da Europa. A sua próxima viagem seria à América do Sul. Falava-se muito na América do Sul - dizia - porque, rebentando

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nova guerra mundial, os Estados Unidos deviam ter aliados nas regiões do Sul. Jill não casara, nem mesmo depois de Elisa ter morrido. Toda a gente agora possuía automóvel. Mas nem ele nem Ruth haviam comprado nenhum. A mulher ia à igreja, todos os domingos, no carro de Joel, mas, enquanto a não via chegar a casa, não sossegava.
"É uma maneira estúpida de desafiar a morte", pensava. Agora, na velhice, meditava muito no assunto mas não tanto pela morte, como pelo que sucederia depois de morrer. Considerava a morte uma parte da vida, o termo de uma coisa e o início de outra. Fosse como fosse, Elisa sabia agora mais do que ele, embora recebesse grande alívio com uma carta que lhe mandara uma vez, quando o filho mais novo morrera na guerra. Já não se lembrava do nome... Do mais velho recordava-se, por Jill se lhe referir exactamente como se houvesse casado com o mancebo. Tinha a certeza de que Jill dizia às pessoas que fora noiva de Don, pelo menos agora, que chegara a meio da vida sem nunca ter tido namorado, que soubesse. Jill triunfara e continuava a ter êxito, a dar crédito ao extravagante aparelho que lhe tinham oferecido os netos pelo Natal. Ainda no último domingo, à noite, dera uma volta ao botão e ouvira um locutor apresentar sua filha como o primeiro contralto da América, e depois a voz profunda de Jill irromper na sala... um tanto guindada - parecera-lhe. Adoptara o nome de Judite, por ser mais digno. Judite ficava-lhe melhor, havia que reconhecer. Jill era alta e delgada, cheia de aprumo e de graça. A julgar pelo que diziam os jornais, tinha mau génio.
Viera algumas vezes visitá-los. Da última, trazia nos dedos um grande brilhante e uma aliança de casamento,
- Que é isso? - perguntara-lhe.
- Deu-mos Elisa - respondera, ruborizando-se toda.
- Pediu-me para os usar, quando viu, pouco antes de morrer, que não podia salvar-se.
Usava aquelas coisas para se convencer mais da realidade daquele ténue e imaginário noivado com o defunto filho de Elisa. Descobrira, então, que Jill gastava uma fortuna com os espíritas. Estava convencida - confessara-o

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mesmo - de comunicar com Don, do Além. E daí, talvez comunicasse. Seria a última das pessoas a considerar isso impossível, agora que tanto lhe interessava a sobrevivência do seu próprio ser.
Dando um suspiro, levantou-se para subir mais um pouco. Algures, perto do cimo do monte, ouviu restolhar na erva. Parou, contente com o pretexto para descansar. "Algum faisão", calculou. O rumor repetiu-se. Era ruidoso demais para ser produzido por faisão. Talvez fosse algum cabrito. Olhou para o lado donde vinha o vento e viu, em vez de cabrito - primeiro, uma cabeça preta de garoto, e depois, a cara e os ombros de Ricardo, o filho de Maria.
- Olá! - disse ofegante. - Também hoje por aqui!
- É verdade, avô - respondeu Ricardo, saltando por cima da erva, para vir ao seu encontro.
Guilherme ficou um instante sufocado com a surpresa. - Posso levar as suas tintas, avô? - pediu o rapazito.
- Se tiveres cuidado - disse Guilherme, sem manifestar a sua satisfação por se ver livre daquele peso.
De repente, suspeitou de Ruth.
- Alguém te mandou vir atrás de mim?
- Ninguém - respondeu Ricardo, dando a mão ao avô. - Estava a brincar no pomar quando o vi a subir.
- Se alguém te houvesse cá mandado, voltavas pelo mesmo caminho.
Estava contente, porém, por ter o rapazinho ao pé de si. Verificara, alarmado, que não via bem. Mal distinguia as feições do neto.
- Que vai fazer o avô?
- Subir... até lá cima.
Queria concluir a penosa ascensão, apesar de já reconhecer que não devia continuar. Mil agulhas picavam-lhe o coração.
- Tenho um ninho lá em cima! - disse o gaiato com alvoroço.
- Vens aqui muitas vezes?
- Todos os dias, a bem dizer, mas não sabia que o avô também vinha.

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- Também eu costumava cá vir todos os dias - murmurou Guilherme.
Sentia-se muito mal, na realidade, mas, se não continuasse agora, nunca mais tornaria a ir lá cima, tinha a certeza. Reuniu todas as forças que pôde.
- Anda, acabemos com isto, que já falta pouco. Vou-me apoiar ao teu ombro, para subir mais depressa.
- Pois sim, avô.
Lá foram subindo devagar, passo a passo. O pequeno ia todo orgulhoso com a sua responsabilidade, esforçando-se por diminuir o andamento, para acompanhar os passos morosos do avô. Guilherme sentia, debaixo da mão, aquele corpo franzino adiantar-se, impaciente, a despeito da vontade do pequeno para se conter.
- Devagar, Ricardo - murmurou entre dentes. - Só devagar, agora, conseguirei chegar ao fim.
Ruth parou de limpar o pó, para vir à porta atender o carteiro.
- É uma carta para si... do seu filho Hal. Vim cá trazê-la acima. Ele já não lhe escreve tantas vezes, pois não? Oxalá não seja nada de mau.
- As últimas notícias eram boas - disse, calmamente.
- É esquisito, não voltar daquela terra lá de fora.
- Aquilo é um vagabundo - volveu Ruth, que não queria abrir a carta enquanto o correio ali estivesse.
- Quando era garoto abalou de casa, não foi? - disse o homem, a rir.
- É verdade... - confirmou Ruth, desejosa de acabar com a conversa, mas sem que deixasse de a acrescentar, com orgulho - e lá conseguiu arranjar-se e viver uns poucos de anos... Quando voltou vinha gordo e com saúde, depois de ter percorrido toda a costa ocidental, chegando a ir até o Alasca.
- Lá para isso foi esperto - concordou o boletineiro.
- Pena é que não volte, agora, para os ajudar um bocadinho nos trabalhos da fazenda. O senhor Barton não tem passado lá muito bem nestes últimos tempos, pois não?...

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- Está fraco - respondeu Ruth. - É do coração. Mas come e dorme muito bem.
- As pessoas que sofrem do coração não têm energia. Hal já sabe como está o pai? A senhora Barton devia mandar-lhe dizer. Talvez voltasse para casa.
- O senhor Barton não gosta de se fazer lembrado aos filhos. Não quer que pensem que precisa de alguma coisa...
- Ah, sim?!... Bem, adeus, senhora Barton, cá me vou andando.
Mal o homem voltou costas, sentou-se para ler a carta do filho. Era remetida de Paris - França. Hal ainda vivia lá, com a mulher e as duas pequenitas, Germana e Angela. Escrevia raras vezes - só pelo Natal, ou no 14 de Julho, ou em qualquer outro dia de festa. Aquela carta era escrita no Dia da Mãe, mandava-lhe dizer. Inclusas, vinham duas fotografias das garotas - umas crianças franzinas e tímidas, cheias de laçarotes e arrebiques.
Ruth examinou-as, uma de cada vez, sem a mínima sensação de realidade, nem mesmo a de estar a ver retratos de criaturas vivas. Não sabia pronunciar os seus nomes, nem o tentara fazer. Nunca respondia, também, às cartas que Mimi mandava, regularmente, todos os meses. Para quê, se Mimi não sabia ler inglês? As cartas eram dirigidas a Guilherme, que lhas lia, explicando o que diziam, e se encarregava de responder.
Pensava, às vezes, com rancor, que o desassossego do filho e a sua repugnância pelo lar eram devidos ao sangue de Guilherme. Mesmo agora, já velho e doente, não podia estar quieto. Aquela subida à colina, por exemplo! Só Deus sabia quanto fizera para lhe tornar a vida agradável! "Guilherme tem tido uma rica vida", murmurou de si para si.
Depois, pegando na carta do filho, desdobrou-a e pôs-se a lê-la atentamente. A carta dizia:
"Querida Mmã:
"Ao fazer desta, saiba que não posso estar melhor. Larguei os táxis e agora sou motorista dum importante personagem americano. Andámos por toda a Inglaterra, e atravessámos

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depois a Bélgica, a França, a Suíça e a Itália. Agora estamos em Espanha. Não me senti lá muito bem, ao ver os velhos campos de batalha e os cemitérios cheios de cruzes brancas, quando lá fomos, para descobrir onde estavam enterrados os filhos do patrão, que morreram em combate. Tive sorte em ter escapado a isto. Fala-se muito aqui numa nova guerra, mas desta vez não me apanham lá. Fiquei farto da outra. Por isso, a Mmã não se aflija, que eu não vou. A guerra - quer-me parecer - é uma grande intrujice.
"Pois, Mmã, nós estamos todos bem. As miúdas, óptimas. A Mimi é uma boa esposa e uma bela mãe. Gostava que viesse até cá para nos ver. Talvez, agora, neste novo serviço, a gente possa ir aos Estados Unidos, qualquer dia. Queria tornar a ver esses velhos sítios e toda a gente daí. Bem, até à vista, Mmã, e trate de si.
Hah.
"Isto é que são boas notícias, e vou já dá-las a Guilherme", murmurou a meia voz. Foi até à porta e olhou cá para fora. O pintor continuava a subir, laboriosamente, a colina, à torreira do sol. Ia apoiado ao neto. Como teria o pequeno ido ali parar?
- Guilherme! - chamou.
Mas a sua voz, apesar de sonora, não o alcançou. "Que doido é aquele homem! - disse consigo, inquieta e irritada. - Depois, aparece-me para aí mais morto que vivo, e sem ter precisão nenhuma disso". Deu um suspiro e voltou à tarefa interrompida. O melhor que tinha a fazer era despachar o seu trabalho. Mal ele voltasse para casa teria de o tratar, já sabia.
- Não te zangues assim comigo, Ruth - pediu com voz débil.
Estava tão esgotado de forças, que bastaria quase a pressão da solicitude colérica e alarmada de Ruth, para o fazer transpor o limiar, agora sempre iminente, da zona das trevas.

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- Eu não estou zangada... Estou simplesmente a dizer-te que se me tivesses dado ouvidos...
- Dei-te ouvidos, sim. Sempre te tenho dado ouvidos.
- Pois sim, mas eu disse-te que não devias subir à colina, e tu não fizeste caso... e, ainda por cima, foste carregado com as tintas!
Guilherme não lhe deu resposta. Fechou os olhos e preparou-se para resistir a novo e vigoroso assalto da dor. O doutor dissera-lhe que talvez morresse sem sofrimento. A morte viria furtivamente, de noite, quando estivesse a dormir. Não acordaria mais, simplesmente. Era a consolação que lhe restava.
Ah, aí estava o suplício! Deu um gemido, arrancando às profundezas do seu ser, um gemido de alma angustiada.
- Anda, segura-te a mim - ordenou Ruth, pegando-lhe nas mãos, segundo a maneira que já uma longa experiência indicara, a ambos, como a melhor, naquelas ocasiões. Suavam-lhe as palmas das mãos enclavinhadas nas dela. Mas Ruth não as deixava escorregar. Depois, lentamente, a agudeza da dor foi passando.
- Continuas a ser forte... como sempre... - murmurou ele, ofegante.
- Tenho de o ser - foi a sua réplica.
Mas Ruth era boa, apesar do seu feitio arrebatado. Sabia já como tratá-lo. Fazia-o tomar, precisamente na altura própria, os comprimidos, movimentava-lhe os braços e as pernas, para lhe sacudir o torpor do corpo, friccionava-o, dava-lhe a beber um pouco de leite quente, cobria-o para o proteger contra os arrepios de frio que o assaltavam depois de lhe passar a dor.
- Agora vais dormir - disse-lhe, carinhosamente. Nunca o tratara assim, com tanta meiguice. Aquele ataque fora também o pior de todos.
- Talvez ainda um dia acredites no que te diz a tua mulher - censurou-lhe com ternura. Curvou-se e beijou-lhe o rosto lívido como cinza. De repente, vieram-lhe lágrimas aos olhos. Ainda o amava, embora a fizesse zangar muito, e às vezes pensasse que nunca tivesse sido, afinal de contas,

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feliz com ele. Parecia ser muito dócil, mas, no fundo, era teimoso. Não era sequer capaz de arrancar um prego, ou de arranjar uma persiana desengonçada pelo vento. Ela é que tivera sempre de fazer tudo. Uma vez quisera ensinar-lhe a mungir as vacas, mas ele recusara-se a aprender.
- Não seria capaz - respondera.
- Alguém tem de o fazer - retorquira-lhe.
- Tenho muita pena, mas...
Era isto sempre que dizia, quando lhe recusava qualquer coisa. Era sincero - está bem - mas parecia nunca ter a consciência de que podia ser de outra maneira. Assim, habituara-se a arranjar-se sem contar com ele, porque lhe queria muito, sempre com o grande receio de que talvez o seu amor não fosse bastante para o satisfazer. Mas era tudo quanto tinha.
Guilherme abriu os olhos, vagamente, como se Ruth lhe tivesse manifestado por palavras o seu amor.
- Podias-me deixar morrer, se te causo muito estorvo - disse, um tanto intencionalmente.
Era bom sentir-se voltar de novo à vida. Era como se morresse, ao fim de cada acesso de dor, apesar do que dizia o médico. A morte andava a brincar consigo, conservando-o vivo para se divertir. Podia enganar a morte, se Ruth o deixasse. Mas as mãos dela, estreitando as suas, não o permitiam.
- Só me dás trabalhos! - queixou-se Ruth. - Mas só te tenho a ti... por isso não há outro remédio senão aturar-te.
Guilherme sorriu. Era assim o amor de Ruth.
- Agora vais dormir.
- Não posso - murmurou o doente.
Era incapaz de adormecer logo que se deitava.
- Põe a tocar o aparelho... Quero ouvir um pouco de música.
- O que tu devias...
- Ó Ruth!... - suplicou ele.
A mulher fez-lhe a vontade e ligou o aparelho, colocado ao pé da cama. Uma voz irrompeu do éter e invadiu o quarto com estridência: "Foi hoje declarado o estado de

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guerra entre a Inglaterra e a Alemanha! Os exércitos franceses estão a concentrar-se atrás da Linha Maginot..."
- Sempre a guerra! - murmurou, consternado. - Já a esperava há muitos dias, sabendo que seria inevitável, mas esquecera-a, como olvidava agora muitas outras coisas, durante horas a fio. Aí estava a guerra, outra vez, essa suprema loucura do género humano, que só servia para arrebatar rapazes como o jovem Henrique.
- Oh, meu Deus!... - gemeu, desmaiando com outro ataque.
...Ninguém em França acreditava que Paris fosse bombardeada a sério. Na última guerra, compreendia-se - mas, agora, com a Linha Maginot! Todavia, Mimi - que tinha quinze anos quando as bombas haviam caído na cidade, e, na ocasião, correra a refugiar-se com outras raparigas na capela dum convento, onde rezara com as freiras, até cessar o bombardeamento - não se sentia lá muito sossegada, naquela radiosa manhã de Setembro, no pequeno e asseado apartamento, todo o seu enlevo e toda a sua ocupação.
Dissimulava, porém, aqueles receios, por causa do seu Hal, que viera a casa passar dois dias de licença. Era sua convicção que as mulheres deviam fazer os homens felizes, e por isso consagrava-se inteiramente ao marido quando este ficava em casa, reservando o mau humor, os nervos e as irritações para as filhas.
Em consequência disto, a robustez e a boa disposição de Hal contrastavam com o aspecto de Germana e Angela, crianças pálidas, enfezadas, de olhar assustadiço. Nenhuma era bonita, o que Mimi não desconhecia, mas tentava atenuar fazendo-lhes vestidos catitas. Como gastava muito tempo a arranjar-lhos, zangava-se facilmente quando os sujavam ou rompiam. As pequenas andavam sempre com os maiores cuidados, com medo de fazer zangar a mãe. Por conseguinte, expandiam-se o menos possível. Estavam todos a almoçar, sentados perto de uma janela por onde entrava o sol, quando um avião passou sobre a cidade. O coração de Mimi deu um pulo. Agora que os alemães

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estavam, realmente, a atacar a França, não podia tornar a ouvir aviões sem sentir o coração pulsar-lhe daquele modo. Mas não queria ceder à vontade que tinha de se levantar e ir ver o que era. Em vez disso, repreendeu Germana:
- Vê lá como estás a comer esse mel, ainda o entornas por cima de ti.
Ao ouvir a voz da mãe, a pequenita atrapalhou-se, e o mel caiu-lhe da colher para cima da toalha.
- Oh, meu Deus - gemeu Mimi - já esperava isto, quando caí na patetice de dar mel às meninas!
Levantou-se vivamente para ir buscar outra toalha. Aproveitou a ocasião para olhar de soslaio pela janela aberta. Graças a Deus, era um avião francês! Mas sentia-se intoleravelmente assustada. Seria um aviso? O que queria era sair de casa, para a rua, para o ar livre, para onde pudesse ver o que se passava. Voltou à salita, com o rosto crispado. Pôs-se a esfregar a toalha.
- Eu já sabia que o mel...
- Está calada! - disse Hal. - Que importa isso?
Hal falava um francês sumário e grosseiro, que lhe servia para se fazer entender. Deu um bocado de toucinho a Germana, O seu almoço era ovos com toucinho fumado. Mas Mimi e as pequenas só tinham café com leite e pãezinhos. O mel era uma extravagância, por o pai estar em casa. A criança sorriu, com os olhos rasos de lágrimas, e pôs o acepipe no seu prato. Depois olhou para a mãe.
- Posso comer, mamã?
- Está visto que sim, já que teu pai foi tão generoso em to dar - respondeu Mimi, com secura, tornando a sentar-se.
- Al!
Não era capaz de pronunciar de outra maneira o nome do marido.
- Que é? - disse este sem levantar os olhos do prato, onde limpava o resto de um ovo.
- E se nós fôssemos para o campo e fizéssemos um piquenique, em vez de ir ao teatro?
- Estou farto do campo.

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- Está bem, mas nós é que não! - objectou-lhe a mulher.- Além disso, hoje está tanto calor!... Aqui abafa-se!... Pensava no campo... num regato onde a gente se refrescasse... a apanhar flores nas margens, com o céu por cima de nós, desanuviado.
Hal olhou para as filhas.
- Que dizem as meninas?
As pequenas consultaram a mãe com o olhar.
- Piquenique - murmurou Angela.
- Então, seja o piquenique - concluiu Hal, tirando uma colher cheia de mel. - Isto é a sobremesa - disse, lambendo a colher.
...Quem seria capaz de prever aquele dia? As horas da manhã passaram, felizes e fugazes. Mimi sentia o coração aliviado. Esqueceu, por momentos, a trágica recordação dos aviões inimigos a mergulhar sobre a cidade, a capela do convento, as súplicas frenéticas a Deus - lá nos céus, acima do espaço cheio de demónios. O delicioso dia de Verão corria suave e tranquilo. Comeram à sombra de uma árvore. Depois, ela dormiu um bocadinho a sesta. Mais tarde, foram todos juntos chapinhar para o regato. Hal escorregou numa pedra lisa e húmida e caiu. Mimi desatou a rir. Era tão divertida a cara do marido assim contrariada!
- Raios partam!...
Ela riu com mais vontade ainda.
Nisto, qualquer coisa se despenhou do céu, negra como um pássaro assanhado. Oh, bem ouvira todo o dia, por cima das suas cabeças, aviões a roncar de quando em quando! Mas voavam alto e nem os olhara. Não queria vê-los.
Mas olhou naquele momento. Deixou de rir, petrificada. Viu por cima da cabeça o distintivo dos aviões inimigos.
- Meu querido Al! - gritou. - Aí estão eles outra vez!
Não viu nem disse mais nada. Foi o fim das suas vidas. As pequenas, que tinham fugido como perdizes assustadas, escaparam por um triz à voragem do súbito vulcão de terra e água. Descalças, de mãos dadas, ficaram imóveis, enquanto o aviador que lá em cima se detivera, por um momento

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de desfastio, para estragar um inocente piquenique, partia como uma flecha a cumprir o seu verdadeiro objectivo.
De mãos dadas, no terrível silêncio que se estabeleceu, as pequenas aproximaram-se, furtivamente, da beira da cratera, para ver se lá estavam os pais. Viram apenas os seus restos, cruelmente despedaçados, a esmo, em redor do centro da medonha cova. Sem dizer palavra, sentaram-se e calçaram as meiitas e os sapatos. O cesto da comida ficara intacto e a mala de mão da mãe estava nas mesmas condições. Angela voltou-se para Germana e perguntou:
- Tornamos a levar isto para casa?
- Pois decerto. A mamã não havia de querer que deixássemos cá ficar as coisas.
Pegaram no cesto e na mala e puseram-se a caminho, maquinalmente, para a estação dos autocarros. Na bolsa havia dinheiro. Compraram os bilhetes para regressar a Paris. A cidade estava muito calma, profundamente tranquila, àquela hora avançada da tarde. As notícias da frente eram graves, muito graves. Havia gente sentada às portas das casas, a comer e a beber, comentando a perigosa situação. Ninguém prestou atenção de maior àquelas duas rapariguinhas muito limpinhas, que levavam um cesto na mão.
Só ao chegarem a casa lhes veio à mente tudo quanto acontecera. Olharam uma para a outra.
- Ai de nós! - murmurou Germana. - Já não temos pai nem mãe!
Angela abriu muito os olhitos, pardos e tristes, e, vendo o terror estampado no rosto da irmã mais velha, começou a chorar, em altos gritos, como nunca - por a mãe não consentir.
A porteira veio lá de dentro a bambolear-se.
- Que vem a ser isto? - Logo reconheceu as duas pequenitas, muito asseadinhas, filhas do grandalhão americano. - Então que têm?
Contaram-lhe, entre soluços, a inverosímil verdade.
"Era evidente - dizia a porteira para todos os vizinhos que se juntaram, ouvindo-a clamar e gritar - era evidente

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que só havia uma coisa a fazer. As crianças tinham um avô rico. Era o que dizia a mãe constantemente. Mulher de juízo, escrevia-lhe com regularidade. Gabava-se de que o seu francês era perfeito, de verdadeiro parisiense. Ora, por isso, as pequenas deviam ser mandadas imediatamente ao velho ricaço, que lhes daria luxo e carinhos. Vendidos os móveis, o dinheiro havia de chegar, decerto, para as passagens, em terceira classe. Germana, a mais crescidinha, podia olhar por Angela. Se os vizinhos concordassem, era o melhor que se tinha a fazer".
Entretanto, era bem de ver, devia mandar-se uma carta a anunciar o triste acontecimento. Assim, entre a vozearia sem nexo, inconstante e contraditória de alguns franceses, ficou decidido o destino das duas crianças, que os ouviam sem dizer nada. Madame dAubigne, que vivia no andar de cima, recolheu-as em casa e tingiu-lhes os vestidos de preto. Monsieur Albe encarregou-se da venda da mobília. Em menos de oito dias tudo estava arranjado, e as duas pequenas foram metidas no comboio para Calais.
- "Não se esqueçam de nós quando forem americanas ricas - disseram-lhes, enchendo-as de beijos e bombons. - Vejam lá, não se esqueçam!"
Foram todos à estação vê-las partir. Madame dAubigne disse com um suspiro:
- Viver na América, longe do inimigo... é bem bom!
- Não há dúvida - concordou Monsieur Albe. Regressaram a casa, deprimidos, atravessando ruas
estranhamente silenciosas. Naquele dia, com certeza, as notícias da guerra eram más. Ainda bem que as pequenas as não ouviam.
Sentado num cadeirão, à sombra do sicómoro, Guilherme lia a carta uma vez mais. Iam-lhe mandar as netas, as filhas de Hal, Germana e Angela. Seu filho estava morto e a nora também. Sabia-o havia quase duas horas, mas não o dissera ainda a Ruth. Esta viera à porta da cozinha, de vez em quando, mas fingira estar dormindo com a carta na mão. Quando veio dizer-lhe que o jantar estava pronto, viu

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que não podia por mais tempo deixar de lhe comunicar o conteúdo da carta. Duas raparigas lá em casa, francesas, e falando só francês, provavelmente! Teria que lhe dizer tudo. Devia ajudá-las por todos os meios ao seu alcance. Era o responsável pela existência das raparigas. Se não houvesse descido aquele caminho, para lá daquela mesma árvore, num dia de Verão como aquele, há muitos anos, nada daquilo teria acontecido. Hal voltaria à casa, qual outro Joel, com certeza, e as pequenas teriam ali nascido. "Germana e Angela!" - murmurou consigo, os olhos semicerrados, num momento de sonolência igual a tantos outros que nos últimos tempos o invadiam.
- Estão todos bem? - perguntou Ruth.
A voz da mulher, inesperada, fê-lo estremecer. Abriu os olhos e viu-a de pé, diante de si, o rosto trigueiro e corado, cheio de saúde, sob os cabelos brancos.
- O jantar está pronto - repetiu ela. - Algumas notícias do Hal? - acrescentou, deitando um olhar para a carta.
Devia dizer-lho já, ou depois de jantar? Mas, perderia a vontade de comer... Quando não comia, Ruth moía-se.
- Esta carta - começou devagar, pegando na fina folha pautada - traz más notícias.
Olhou-a. O rosto de Ruth assumiu a firmeza habitual, quando se dispunha a afrontar qualquer dificuldade.
- Que sucedeu a Hal?
- Uma coisa terrível... terrível... minha querida.
Ruth sentou-se no banco do jardim.
- Já o podias ter dito, Guilherme!
Este, então, leu-lhe a carta, traduzindo frase por frase as dolorosas palavras. Depois dobrou-a, meteu-a na algibeira, e, olhando para a mulher, viu pela primeira vez que Ruth envelhecera. Inclinou-se sobre o braço da cadeira e tomou-lhe as mãos nas suas, tentando assim vencer o ligeiro torpor que sentia.
- Minha querida!
Mas Ruth não disse palavra. Ficou sentada, absolutamente imóvel, como um animal ferido, fitando o vale e a larga faixa brilhante do rio que o atravessava.

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Guilherme estava meio surpreso e deprimido, por sentir muito menos a morte de Hal do que sentira a do filho mais novo de Elisa, muitos anos antes, a quando da primeira guerra mundial. Guerras mundiais! Nunca mais haveria, de futuro, senão guerras mundiais. O orbe tornara-se mais pequeno, com os comboios expressos, os automóveis e os aviões, e os inocentes seriam confundidos com os culpados. Mas, também, se a vida tinha qualquer sentido, era por os inocentes serem sempre envolvidos com os culpados.
Deus tanto mandava a chuva para o justo como para o pecador! Não que fosse agora acreditar em Deus, naquela idade avançada da sua vida. Era capaz de encarar a morte com serenidade, como acidente de ínfima importância, mesmo para si. Já lhe não interessava a sua sobrevivência para além da morte. Pensava muito nisso, todavia, e se lhe dessem a escolher, depois, sentia-se inclinado a optar pelo sono eterno. "Fui bastante feliz. Não vale a pena tornar a viver a mesma vida outra vez", dizia no seu íntimo.
Mas, com Hal, era outra coisa. Esse fora ceifado na flor da vida, antes de conhecer a velhice. Guilherme meditava no valor daqueles últimos quinze anos. Não, não queria tê-los perdido. Valiam tanto como a infância, e apreciara-os muito mais do que o tempo da sua meninice. A sua infância fora incerta e desorientada. Não conhecera, então, o que a vida seria capaz de lhe impor, dia a dia. Mas, na velhice, a vida já não lograria pregar-lhe mais partidas. Conhecia-a bem, e a morte não o aterrorizava, por ser o fim. Sim, preferia que a morte fosse o fim de tudo.
- Que vamos fazer às raparigas? - perguntou Ruth. A pergunta foi tão súbita, que o assustou. O seu espírito, sempre a cogitar na eternidade, voltou à terra.
- Bem, como são nossas, parece-me que teremos de ficar com elas.
Já se esquecera do filho, mas agora era preciso pensar naquelas duas rapariguinhas francesas, que só com ele seriam capazes de se entender naquela casa.
- Nunca serei capaz de as julgar nossas - retorquiu Ruth, peremptoriamente.

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- Oh, Ruth, lembra-te que são filhas do teu filho Hal!
Afligia-o o pensamento da vinda daquelas duas crianças, sozinhas no mundo, e de terem que se defrontar com Ruth, daquela maneira.
- Não as sinto minhas - insistiu esta.
Procurou pensar na situação, com calma, mas ainda mais se afligiu. A casa de Maria estava cheia. Além disso, com quem haviam as crianças de falar, na casa de Maria? E ele tão velho! Mesmo que ficassem ali, em casa, como podia olhar por elas? Nunca soubera lidar com crianças. Mas, também, pensou de súbito - como podia censurar Ruth? Propriamente, estava a pensar em Angela e Germana, não porque fossem as filhas de Hal ou as suas netas, mas por serem duas pequenas francesas abandonadas, que teriam de viver como estranhas numa casa de lavoura americana. Ruth nunca seria capaz de as compreender. Mas ele estivera em Paris.
O seu pensamento afastou-se das pequenas, para vagabundear, despreocupadamente, evocando a grande capital, que conhecera cinquenta anos antes. Tornava a ver a cidade, nitidamente, as ruas animadas, a gente alegre, a conversar, a rir, a comer ao sol, os pombos de papos furta-cores. Paris estava cheio de pombos.
- Não as quero cá! - insistiu Ruth. Voltou à realidade.
- Que vamos nós fazer com elas? - perguntou, perplexo.
- Não sei - e a sua voz era sombria, cheia de ressentimentos. - Hal nunca devia ter ficado nessa terra estrangeira. Se tivesse vindo para casa, já nada disto acontecia. As pessoas não devem sair do meio a que pertencem.
Guilherme sorriu discretamente.
- Acho-te graça ouvindo-te dizer isso. Onde estaria eu, agora, se ficasse onde minha mãe dizia ser o meu lugar?
- Isso é diferente - redarguiu-lhe a mulher, sem sorrir. Pensou em contradizê-la, mas desistiu. Não se sentia muitas vezes com coragem para o fazer. Pensou, antes, com toda a lucidez, no que se poderia conseguir, tendo
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como bom o que lhe dissera. O seu espírito tinha momentos de surpreendente agilidade. Estava num desses momentos.
- Jill pode ajudar-nos. Tem estado em Paris uma dúzia de vezes.
- Que faria Jill com as crianças? - perguntou Ruth, com uma expressão de alívio na voz.
- Quer-me parecer que talvez as adoptasse. Jill não tem ninguém...
Falava pouco de Jill, porque Ruth não via o seu caso como ele. A distância que separava Ruth da sua segunda filha aumentara, à medida que os anos passavam. Consigo, dera-se o contrário. Jill fazia parte dum mundo seu conhecido. Falava com ela como não falava a mais ninguém. Jill era riquíssima. Quando sua mãe, a senhora Barton, morrera, dez anos antes, já muito velha, deixara a Jill toda a sua fortuna.
- Creio que já nem sabia quem eu era - dissera-lhe Jill, quando o fora visitar, de volta do funeral. - Esquecia-se sempre de quem eu era filha. Tomava-me sempre por filha da tia Luísa. Quando me dizia: "A tua mãe..."
- referia-se-lhe sempre.
- A mim, suponho que me esquecera há muito - dissera ele, com tristeza.
- Não tanto como pretendia mostrar - respondeu Jill.
- Era uma velha orgulhosa. Deixou-me o seu dinheiro, em parte por causa do meu êxito.
- Ah, é verdade! - observara-lhe então. - Fica sabendo que não o quero.
Não, não precisava de mais nada, senão do que tinha. Interrompeu a evocação, para dizer a Ruth:
- Bem, vou escrever a Jill.
Sentia-se sonolento. O sol dava-lhe sempre sono.
Mas só ficou descansado quando recebeu notícias de Jill. O grande sobrescrito quadrado chegou-lhe no dia em que se esperava o navio com as pequenas. "Pois decerto, querido pai... fique descansado!" Era este o fundo da carta. Mas viu logo que Jill não procedia assim por amor do

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irmão. Estava pronta a recebê-las, por serem órfãs de guerra francesas. A sua letra era ilegível. No entanto, ainda pudera ler: "Pobres crianças! Oh, esta guerra! É quanto posso fazer. Não devo ir ao estrangeiro. O meu médico nem quer ouvir falar nisso. Mas isso está ao meu alcance. Irei eu mesma esperá-las... fique descansado, paizinho".
...Germana e Angela, de mãos dadas, estreitamente, com muito medo de que não estivesse alguém a aguardá-las, tinham ficado à espera, sozinhas, no convés do navio.
"Conheci-as assim que as vi", escreveu-lhe Jill mais tarde. "Duas figuritas trágicas, vestidas de preto, a ver se alguém as procurava. Abracei-as logo. Coitadinhas, não têm senão vestidos pretos! Vou comprar-lhes tudo novo, vesti-las dos pés à cabeça".
Leu esta carta uma noite à companheira, na cozinha. Passavam as noites ao pé da lareira em vez de irem para a biblioteca, já por ser mais fácil permanecerem ali no breve intervalo entre a ceia e a cama, já porque Ruth se sentia melhor na cozinha. E, de certa maneira, ele também. Fora ali, naquela casa escurecida pelo fumo, que pela primeira vez a vira, como ela era - profundamente mulher.
- Parece-me que as filhas de Hal encontraram quem olhe por elas.
- Os filhos têm que olhar uns pelos outros. Chega um tempo em que os velhos já não podem - respondeu Ruth.
Ficaram ainda mais um tempo, assim sentados no velho canapé, junto do lume. Daí a pouco, ele começou a cabecear com sono. Estava-se ali tão bem!
- Anda deitar-te - disse a esposa.
Ao ouvir-lhe a voz, levantou-se e seguiu-a. Mas, pela meia-noite, estava outra vez acordado, tão desperto como se fosse ao alvorecer. Preocupara-se, noutro tempo, com aquela espertina, julgando estar doente. Mas um dia Ruth dissera-lhe, ouvindo-o queixar-se: "Parece-me que estás a ir para velho, Guilherme. Ainda não vi uma pessoa idosa que não voltasse a ser como as crianças - com sono de dia, e esperta à noite".

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Nunca mais se queixara depois disso. Era verdade, estava velho - pensava, estendido na grande cama de colunas. Havia cem anos que tinham posto ali aquela cama, sem nunca mais a mudarem. Ao entrar naquela casa, já lá a encontrara. Devia estar contente por dormir agora tão pouco. Os velhos tinham tanto em que pensar, e tão pouco tempo...
A noite estava maravilhosamente profunda e calma. Aprendera, há muito, a apreciar as noites no campo. Fora uma das grandes compensações da sua vida. Ouvia Ruth respirar, serenamente, a seu lado. Dormia com a mesma paz de espírito que em rapariga. Todos os movimentos do seu ser eram profundamente saudáveis. Estava sã e madura, sem estar velha como ele. Porque pensava em compensações, quando tivera uma vida tão cheia? Lembrou-se de Ruth, como fora na sua primeira noite de casados. A recordação desse amor era agora só ternura, dissipada a paixão que os abrasara. Já não precisavam dela; a sua carne há muito que se fundira numa só. Se o seu espírito continuava solitário, a culpa era sua e não da mulher. Sabia muito bem que os seus repentes, as suas irritações contra ele, agravadas com os anos, até às vezes o penalizarem deveras, embora passageiramente, eram devidas ao facto de as suas almas permanecerem separadas, enquanto os seus corpos estavam unidos. Reconhecia-se o culpado. Ruth entregara-se-lhe de alma e coração, no casamento. Mas havia aquela parte de si mesmo de que Ruth prescindira. Ficara com esta intacta. Era essa parte de si mesmo que dele se desprendia e voava, como naquela noite.
Todo o mundo do seu devaneio era estranho àquela tranquila casa. Sonhava. Não com alguém que conhecesse, mas com coisas que nunca vislumbrara ou que só vira há muitos anos, em novo, e que nunca mais tornaria a ver: gente, lugares, quadros, amigos que nunca tivera, camaradagens que não conhecera. Mas não lhe pesava nada, nenhuma destas coisas. Uma vez custara-lhe, no vigor da idade. Gemera, então, escravizado às exigências da paixão de Ruth, embora fosse um sofrer agradável, também. Quando esta deixara de precisar de si, era já tarde. Agora,

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era ele quem necessitava de Ruth, como esta nunca precisara; estava inteiramente na sua dependência.
Deixou o devaneio do seu pensamento errante. Pensou na casa e em Ruth, outra vez. Sentiu-se confortado com a sua presença. Ela era forte e amava-o. Ia já longe o tempo em que nada mais fazia senão amá-la. O amor dos dois fora a realidade da sua juventude.
"Não pude pintar, naquele ano, em Nova York", pensou num dos seus lampejos de claríssima memória. "E também não teria sido capaz de pintar, se a houvesse deixado só, durante o tempo que o filho andou ausente. Eu padeceria com o seu sofrimento, se não estivesse aqui para a confortar. Precisava, então, de mim... ou Jill é que teria sofrido".
E agora, que lhe restava senão aquele terno e afectivo amor por ela e o seu forte amor por si? Se bem que muitas vezes o fizesse zangar, ainda isso era amor. Ruth integrara-se toda no seu ser - e só ele a podia perturbar como ninguém, porque fazia parte dela; e, embora lhe não pertencesse totalmente, esforçava-se por consegui-lo e desejava-o ardentemente. Não queria mais sentir-se-lhe estranho, em qualquer coisa, por encontrar plena satisfação no seu amor, agora mais vasto que a própria vida. Moveu-se um pouco; sentiu uma aguda pontada. Durante um segundo, teve medo.
- Ruth! - murmurou. Não a queria incomodar, mas se precisasse... Não podia suportar sozinho um acesso do seu mal. Mas a dor não insistiu. Esperou ainda. Estava livre da pontada. "Posso dormir", pensou, satisfeito. Sentia-se, porém, um pouco arrefecido. Voltou-se, aconchegou-se todo à companheira, à procura do calor do seu corpo, cingindo-a com um braço.
Dormiam, assim, há tantos anos, que não a acordou. Dormiam, assim, há tanto tempo, que mergulhou no sono quase instantaneamente.
Quando Ruth despertou, no dia seguinte, sentiu-se tomada pela cintura por um braço rígido e crispado. Não se podia libertar daquela pressão.

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- Guilherme! - chamou, de rijo. Mas não o acordava.
- Guilherme! - gritou, aflita.
Puxou então o braço com força, empolgada por súbito terror.
- Guilherme!... Guilherme!... Guilherme!... Voltou-o de costas. Pôde então vê-lo: estendido, ali, a
seu lado, o rosto cheio de uma grande paz, sem lhe poder dar resposta - morto.
- Oh!... - gemeu a pobre. - Oh, minha vida!... Saltou para fora da cama e correu ao telefone, para chamar o médico. Mas já não havia remédio, era evidente.
- Aconteceu... exactamente... como o doutor dizia - balbuciou ao telefone. - Foi-se embora, enquanto dormia...
- Vou já para aí, senhora Barton. Não se incomode com coisa alguma... descanse apenas.
Era lá capaz de descansar! Tinha de cuidar de Guilherme. Devia fazer alguma coisa por ele. Era preciso lavá-lo, penteá-lo, arranjar a cama...
Foi buscar água, numa bacia, que pôs em cima duma cadeira, ao pé da cama, e, sem deixar de soluçar, lavou-lhe as mãos e a cara, como fazia todas as manhãs, quando se levantava.
- Oh, meu amor! - continuava gemendo. - Chamaste-me e eu não te ouvi?... Dize!... Sou uma dorminhoca, sou muito má... Oh, Guilherme, Guilherme!...
Abraçou-se-lhe ao corpo, sentindo que pouco mais tempo teriam para estar sós os dois. Quando chegasse o doutor, quando os outros chegassem... começariam logo a... Descansou a cabeça em cima do seu peito.
- Queria agora não ser má para ti, como fui muitas vezes - murmurou. - Só agora o sinto! É horrível! Oh, quando penso que não chegámos a festejar as nossas bodas de oiro, Guilherme... meu querido Guilherme!
...Levaram-no tão cruelmente depressa! Ruth ficara a vê-los levantarem da cama o vulto imponente de Guilherme. Outras pessoas o vestiram, enquanto ela se arranjava.

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- Vá para a cozinha, mãe - disse Maria. - Agora já não pode fazer mais nada por ele.
Ambas as filhas acorreram imediatamente. Jill trouxera as duas pequenitas, mas Ruth mal olhou para as netas.
"A minha vida acabou", pensava. "Fiquei sem ele".
Esforçara-se por estar preparada para aquele momento desde que o sabia inevitável. Mas nada, realmente, seria capaz de a preparar para ver o fim de tudo para quanto trabalhara e só vivera. Não se lembrava como era aquela casa, antes de Guilherme ter aparecido naquele dia para jantar, nem imaginava como seria agora.
"Lembro-me perfeitamente do seu aspecto, no primeiro dia, aqui nesta mesma casa", pensou, olhando em volta da cozinha. Sentou-se, fitando as paredes e os móveis. Gostara dele assim que o vira. Ainda o amava.
"Mas, não sei como nem porquê, era tão desagradável para ele nos últimos tempos!" disse de si para si. Grossas lágrimas deslizaram-lhe pelas faces. "Não era bastante boa para ele", continuava a pensar. "Nunca fui boa para ele como devia ser, e afinal sabia que não o era".
Eis a sua mágoa. Toda a vida reprimira este sentimento, mas, agora que perdera Guilherme, impunha-se-lhe.
"Era muito melhor do que eu. Nem sequer se zangava comigo. Oh, Guilherme, antes queria que te tivesses zangado algumas vezes!"
Maria veio encontrá-la a soluçar convulsivamente. Acarinhou-a, com abraços e afagos.
- Então, que é isso, mãe?... Não chore! Tinha que ser. Já sabíamos que tinha de ser, e foi tão suave, quando estava a dormir!...
Ruth abanou a cabeça.
- Não é por isso que estou a chorar. Não podia, porém, explicar à filha.
- Parece-me que o melhor é ir-me arranjar - acrescentou, enquanto enxugava as lágrimas.
- Pois sim, as pessoas estão a chegar.
Henrique, o filho de Maria, entrou nesse momento, trazendo um lápis e um papel na mão.

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- ó avó, está cá um repórter do jornal da cidade, que deseja uns esclarecimentos acerca do avô. Já tem a notícia, mas precisava de elementos sobre a família. O pai do avô não era o Harold Barton, dono da companhia ferroviária?
-Era, sim - confirmou Ruth. - Mas diz a esse senhor que espere um momento. Eu mesma lhe direi tudo, como deve ser.
Subiu vivamente ao quarto, lavou-se, pôs o seu melhor vestido preto, descendo depois à sala onde estava o jornalista. Jill também lá se encontrava. Nunca vira a mãe tão bonita. Ruth entrou na sala, simples mas muito digna.
O jovem repórter levantou-se.
- A senhora Barton?
- Sou eu - respondeu Ruth.
Sim, era. Havia de ser sempre a senhora de Guilherme Barton.
...Durante três dias viveu como num sonho. A campainha da porta tocava constantemente. Ela mesma ia abrir. Os filhos, e os vizinhos também, que se tinham oferecido para a ajudar, deixavam-na à vontade, por verem que tal tarefa a aliviava.
- A senhora de Guilherme Barton?
- Sou eu - respondia com orgulho.
Ou era uma grinalda de flores brancas ou um telegrama, ou um grupo de crianças da escola, um gago ou um estropiado.
- Eu conhecia o senhor Barton, minha senhora - disse um deles - era eu quem lhe consertava o calçado. Pensei que talvez...
A todos dizia:
- Quer vê-lo?
Conduzia-os então à sala. A mesa de centro fora retirada; no seu lugar, sobre a essa, estava a urna onde jazia Guilherme. Em volta, Ruth pusera-lhe as suas mais belas plantas de vaso e todas as flores oferecidas. Algumas visitas ficavam a olhar para o corpo, sem dizer nada, mas a maioria das pessoas falava.

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- Está muito bonito, não está?
- Está como era - dizia sempre.
Sentia-se mais calma. Havia muito que fazer. Combinar com Maria o lanche para depois do funeral, dizer a Henrique para olhar pelos parentes que enchiam a casa, ler um telegrama que Jill recebia. Assim olvidava a razão de ser daquilo tudo. Era quase como se fosse uma grande reunião de família... quase, na verdade, como a festa das suas bodas de oiro, sobre a qual haviam ambos discutido tantas vezes. Embora pensasse que... Mas não tinha tempo para pensar. Os parentes eram todos do seu lado. Guilherme não tinha senão uma irmã e mesmo essa não aparecera. Jill dissera que Luísa não vinha, porque nunca ia a funerais.
- É curioso não poder vir ao funeral do irmão - comentara Ruth friamente.
- Nunca faz senão o que tem na vontade - dissera Jill. Sentia-se incapaz de explicar à mãe o carácter da tia Luísa. Não era possível estabelecer um plano de compreensão onde as duas pudessem entender-se. A gente velha era tão intransigente - pensava com tristeza. Construíam para si mundos tão diferentes, dentro do mundo que realmente era um só! Apenas seu pai compreendia os mundos de toda a gente. Ai, como sentia a sua falta! Ninguém, ninguém seria capaz de o substituir. Que teria sido de si, se não visse a sua solidão e lhe não mandasse Angela e Germana, como duas filhas? Deixara-as em casa de Maria. Estavam lá bem, com certeza, mas nem por isso deixava de pensar nelas, de ver as suas caritas que começavam a perder aquele ar angustiado - e as suas mãozinhas débeis. Os filhos de Maria, robustos e simplórios, seriam bons para as primas? Daí a pouco havia de ir lá ver como estavam. Resolvera não as cobrir de preto para o funeral. Houvera já tanto luto nas suas vidas! Em vez de preto, vestira-as de branco.
- É melhor assim - dissera ainda a mãe. - Agora, a irmã não lhe faz cá falta nenhuma. A família nunca lhe deu importância, enquanto foi vivo. Mas não posso perceber...
E prosseguiu, exaltada, nas suas considerações: "Que

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seria de Guilherme se não fosse ela, vivo ou morto? Tinha parentes que chegavam bem para ambos. Davam-se todos bem uns com os outros, como deve ser entre pessoas de família, e sempre gostaram de Guilherme, e nos últimos anos respeitavam-no também. Orgulhavam-se dele. Seu irmão Tomás estava a comprar todos os jornais e a fazer um álbum com os recortes das notícias sobre Guilherme".
- Até vêm artigos a seu respeito nos jornais de Filadélfia! - dizia com orgulho. E lia em voz alta: - "Guilherme Barton foi em tempos considerado um dos mais prometedores artistas da sua geração".
Não vinha nada nos jornais de Nova York. Era de esperar. Mas todos os jornais do distrito publicavam extensos artigos sobre Guilherme Barton. Ruth arranjava tempo de os ler todos, da primeira à última linha. "Deixa viúva a senhora Ruth Harnsbarger Barton", diziam todos, no fim. Era ela, a senhora Barton. A viúva de Guilherme era ela.
Este sentimento de dignidade ajudou-a a passar o tempo, até Guilherme ser levado de casa, na manhã do terceiro dia depois de morto, para não mais voltar. Acompanhou-o, depois, no novo e vistoso carro de Tomás, conduzido por este, devagar. Atrás, seguia a longa fila de automóveis descendo lentamente a estrada para o cemitério, que ficava em volta da igreja, na qual Guilherme se negara sempre a entrar. Agora, porém, ali ia ele, para repousar no mesmo chão onde o pai dela e os seus avós estavam enterrados. Ali ficaria para sempre, e ela, também, a seu lado, quando chegasse a sua hora, para toda a eternidade.
Reinava profundo silêncio em toda a casa. Ruth insistira em que toda a gente se fosse embora. Fora fácil convencer as filhas.
Acabada a grande recepção, em seguida ao funeral, depois de partirem os parentes e de tudo estar limpo e arranjado, dissera-lhes:
- Agora, vão para casa. As crianças devem precisar de vocês. Além disso, nada mais há aqui a fazer. Se precisar de alguém, fico com o Tomás.
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- Pois decerto - declarou este.
Por conseguinte, Maria e Jill tinham partido. O tio Tomás podia muito bem ficar - concordaram ambas. Sobrava gente para cuidar da garagem. Mas também era fácil convencer Tomás a ir-se embora.
Ruth disse-lhe simplesmente:
- Quero estar sozinha, Tomás.
- Não ficarás muito só?
- Não faz mal. Uma mulher nunca pode sentir-se só, quando esteve tanto tempo casada como eu. No fim da sua vida volta ao princípio outra vez.
Mas Tomás sentia escrúpulos em deixá-la. Ruth teve de o obrigar a partir, antes de se resolver a pôr o casaco e o chapéu e a ir-se embora. Tivera de o acompanhar até ao automóvel. Mesmo assim, já ao volante, ainda hesitara.
- Tens a certeza de que te sentes bem, Ruth?
- Tenho - respondeu-lhe, ao mesmo tempo que no seu íntimo o coração clamava: "Oh, vai-te, vai-te!", ansioso por se sentir à vontade para sofrer.
Mas Tomás era um velho de bom coração. Demorou-se uns momentos ainda, a ver se achava uma última palavra que pudesse confortar a irmã. Aquele golpe fora tão rude para ela - tinham dito os parentes, num momento em que Ruth saíra da sala - por Guilherme haver-se "traspassado" sem lhe dizer uma única palavra! Aquela gente atribuía a maior importância às derradeiras palavras dos moribundos, todos repetiam solenemente as suas últimas expressões. Tomás procurou na memória e acudiram-lhe à mente algumas palavras, de que se recordava, porque, na altura em que as ouvira a Guilherme, não compreendera o seu significado. Guilherme falava sempre de maneira singular. Ainda não as compreendia, mas talvez ela as entendesse.
- Ruth - começou o irmão - a última vez que falei com Guilherme, ouvi-lhe qualquer coisa a teu respeito, que te queria dizer.
- O que foi, Tomás?
- Disse que não sabia o que seria dele sem ti. Lembras-te

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daquele dia, no Outono passado, em que lhe vim cá trazer no carro um caixote de livros, da estação?
Ruth acenou com a cabeça, afirmativamente. Guilherme estava sempre a comprar livros com o dinheiro que recebia da venda dos quadros. Costumava zangar-se por causa disso, porque os livros não serviam para nada, mas sentia-se contente por ele ter feito a sua vontade... embora não soubesse agora o que fazer a tanto livro!
- Nessa ocasião foste buscar um xale para lhe cobrir os joelhos... lembras-te?
Acenou com a cabeça, outra vez.
- Bem... depois de tu saíres, disse que eras o seu "pão de cada dia", ou qualquer coisa assim...
- Ele disse isso, Tomás?
Observou-lhe o semblante, para ver se Ruth ficara confortada com o que lhe dissera. Parecia mais aliviada. compreendera então o sentido das palavras de Guilherme.
- Pensei que talvez tu gostasses de saber isto - acrescentou, satisfeito intimamente.
- Foi uma coisa maravilhosa o que ele disse - respondeu a irmã.
Quando Tomás se foi embora, voltou à cozinha para cear. Pão! Guilherme gostava tanto de bom pão! E dizia sempre que aquele feito pelas suas mãos era o melhor do mundo. Às vezes dizia-lhe coisas que pareciam versos, quando estava a amassar a farinha, em cima daquela mesma mesa. O pão significava qualquer coisa de especial para Guilherme. O primeiro retrato que lhe fizera, fora com ela a cortá-lo. Procurou recordar-se de tudo quanto lhe costumava dizer acerca do pão.
"Se tiver bom pão para comer, não me importo se não houver mais nada. O pão é o meu verdadeiro alimento", dizia às vezes.
"Guilherme não podia afirmar coisa mais significativa a meu respeito", pensou. De certa maneira, aquelas palavras compensavam-na de tudo. Orgulhara-se sempre de ser sua esposa, mas continuava a sentir aquela íntima dúvida quanto à plenitude do seu amor por ele.

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Mas, se fora para ele como o pão, então isso significava que Guilherme não teria sido capaz de viver sem ela.
Os olhos arrasaram-se-lhe de lágrimas, mas continuou a comer. Aquela era a primeira das muitas refeições que teria de consumir, dali em diante, sozinha. Podia tão bem habituar-se desde já à primeira como à última. A casa estava silenciosa; ter-se-ia assustado, talvez, se fosse medrosa. Mas não era. Tinha coragem para continuar a fazer tudo. Por conseguinte, devia acabar de comer a ceia.
À sua volta não se ouvia o mínimo ruído, dentro ou fora de casa. Era aquela hora, ao fim da tarde, em que as aves emudecem. Então, de súbito, sentiu-se pungida com saudades dele. Era assim que seria dali em diante - tudo silencioso, como agora, de dia e de noite, para todo o resto da sua vida. Não pôde comer mais. Pousou a colher e ficou-se a contemplar o crepúsculo lucinante. A casa estava vazia. Estranha sensação! Toda a moradia lhe parecia deserta; nem mesmo ela ali estava!
- Oh, Guilherme! - chamou, dolorosamente, em voz alta. A voz ressoou no vácuo à sua volta.
Guilherme partira realmente. De súbito, ouviu um ruído no silêncio da tarde. Era no celeiro. Caíra qualquer coisa. Levantou-se com vivacidade.
- Meu Deus, que será? - exclamou.
Saiu apressadamente da cozinha e atravessou o campo relvado, em direcção ao celeiro. A porta estava aberta.
- Quem está aí? - perguntou com autoridade. Talvez fosse algum vagabundo, pensou, mas sem medo nenhum.
- Sou eu - disse alguém de dentro.
A voz vinha da cave que ficava debaixo do palheiro, onde Guilherme guardava as pinturas.
- Santo Deus! - murmurou, e atravessando o velho sobrado tosco, espreitou lá para dentro.
No meio de diversas telas espalhadas pelo chão, estava o filho mais novo de Maria, o pequeno Ricardo.
- Ricardo, por amor de Deus! - tornou a exclamar.
- Que estás tu aqui a fazer?

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- Queria ver... as pinturas do avô - disse o rapazinho com voz trémula.
Estivera a chorar e tinha a cara suja de poeira e de lágrimas.
- Mas porque não me pediste para tas mostrar? - perguntou Ruth, sentando-se na velha cadeira de Guilherme. Ali se sentara ele diante do cavalete, nos últimos anos, quando já se fatigava estando de pé.
Ruth puxou para si o rapazinho.
- Valha-me Deus, olhem-me para esta cara! Espera, deixa-me limpar-te ao avental.
O pequeno sentia-se satisfeito com as ternas repreensões da avó, porque ninguém o via a ser assim tratado como um nené. Depois de lhe limpar a cara, Ruth beijou-o.
- Bem... e agora... queres que te mostre as pinturas do avô?
- Se julga que ele não se importaria...
- Qual!... Até havia de gostar - respondeu com vivacidade.
Pôs um quadro em cima do cavalete.
- Este que tu aqui vês, pintou-o num dia, lembro-me muito bem, em que os trabalhadores estavam a ceifar feno. Nisto veio uma trovoada... olha, aqui está o céu carregado; como podes verificar, é tal e qual!...
Uma por uma, foi exibindo as telas, recordando-se das circunstâncias em que tinham sido pintadas.
- Olha: esta aqui... dizia ele que nunca ficaria boa.
- Cá para mim acho-a boa, avó - disse Ricardo com veemência.
- Também eu - respondeu Ruth. - É maravilhosa! O avô era um grande homem... um homem admirável, Ricardo, e nós os dois nunca o havemos de esquecer, pois não, meu filho?
- Não, nunca!
Depois de verem todos os quadros, Ruth disse-lhe:
- Bem, já são horas de ires para casa, meu amor. A tua mãe deve estar em cuidados.
Arrumaram as telas em pilhas, cuidadosamente; depois

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saíram juntos, de mãos dadas. A noite estava clara. Então, o gaiato reuniu toda a sua coragem para dizer:
- Ó avó!
- Que é, meu filho?
- Posso ficar com a caixa grande das tintas do avô?
Ruth estremeceu, sustendo a respiração antes de responder:
- Bem... compreendes... é que não sei se teu avô gostaria que me desfizesse delas... Para que queres tu as tintas?...
- Para pintar quadros... Por favor, avó... quando eu for crescido... como o avô!
E ao mesmo tempo que dizia isto, o garoto agarrava-se-lhe à cintura com força.
- Santo Deus! - exclamou, pasmada. - Onde foste buscar essa ideia? Ninguém mais na nossa família pinta quadros!
- Não sei... senti sempre essa vontade, cá por dentro. Por favor, faça-me a vontade, avó!
Dentro de si! Ocorreu-lhe então, pela primeira vez, examinando o rosto suplicante do pequeno, que na verdade alguma coisa do espírito de Guilherme podia habitar ali dentro. Mas nunca pensara nisso. Olhou para o neto com expressão solene.
- Terás de ser bom, muito bom! - sentenciou.
- Hei-de ser! - afirmou o rapazito, com gravidade.
Ricardo então largou-lhe a cintura, deixou pender os braços e ficou a cismar - pequeno vulto solitário, dominado já por um pensamento, com o espírito de Guilherme a brilhar-lhe nos olhos.

 

 

                                                                  Pearl S. Buck

 

 

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