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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CASAMENTO TENTADOR / Max Du Veuzit
CASAMENTO TENTADOR / Max Du Veuzit

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

CASAMENTO TENTADOR

 

Às seis horas, o impedido, forte rapagão de olhos de azeviche, entrou no quarto do tenente Rodolfo de Fragon.

com máximo cuidado, colocou em cima de uma cadeira o fato que sacudira; em seguida, correu as cortinas, abriu as persianas que rangeram, e, escancarando de par em par a janela que dava para o jardim, aproximou-se da cama:

- Já deram seis horas, meu tenente!

O mancebo não dormia.

com o pensamento entorpecido, o corpo prostrado, de olhos entreabertos, seguira os movimentos do impedido, em semi-sonolência.

A voz vibrante do rapaz tirou-o do torpor em que preguiçosamente se imobilizara.

Bocejou e ergueu-se da cama em sobressalto.

com rápido movimento, atirou para longe a roupa que o envolvia, quando, bruscamente, o pensamento desde a véspera adormecido, surgiu nítido, afastando do cérebro as últimas brumas do sono.

Foi como que escape ruidoso, como que a turbulenta entrada de alguém em sua solitária casa.

E o seu gesto principiado, ficou incompleto, os lençóis permaneceram grudados aos membros subitamente paralizados.

A tormentosa questão sobre que adormecera, depois de a haver voltado em todos os sentidos, impunha-se-lhe de novo insolúvel. Repetiu-a!

- É forçoso que hoje, até à meia-noite, encontre vinte cinco mil francos!

Infeliz tenente para quem, tendo apenas um reduzido soldo para viver, esta importância representava verdadeira fortuna!

E totalmente, na antevéspera, numa noite de loucura com camaradas, num minuto de embriaguez causada por ceia melhor do que a habitual, ele que nunca tocara numa carta... jogara...

Jogara e perdera!

Perdera sob palavra, aquela, a seus olhos, fantástica importância, importância para a qual nem um milhar possuía!

- Vinte cinco mil francos para essa noite! "Onde encontrá-los?

"A quem pedi-los emprestados?

E seria honesto pedi-los emprestados?

Nunca, mesmo que diante de si tivesse muito tempo, embora se privasse do necessário, lograria amialhar tanto dinheiro.

É preciso conhecer a vida da tropa para se compreender bem a impossibilidade material que havia em encarar discretamente o futuro reembolso.

Quando muito, esse empréstimo, dado o caso de que pudesse consegui-lo, só lhe serviria para ganhar tempo. Contemporizaria com o vencimento demasiadamente próximo, mas não ficaria, a-pesar-disso, em melhores circunstâncias.

Quanto a encontrar, por outro modo, o dinheiro de que carecia, mais impossível se tornava ainda. Todos sabem que não andam aos pontapés, como bocados de papel, as notas de banco.

Era órfão, sem parentes chegados, sem família; quem poderia interessar-se pela sua angústia para pôr-lhe à disposição tal importância?

Ninguém!

A sua honra, a sua própria vida, podiam estar em jogo; ninguém tal compreenderia, ninguém trataria de salvar uma outra cousa.

Os camaradas?

Eram todos excelentes rapazes, mas tinham também os seus dissabores, os seus encargos.

- E depois - repetia - quando inconscientemente se jogou e perdeu uma cousa que não se possui, uma cousa que não se sabe onde encontrar-se, a honradez impede que se recorra aos camaradas.

Rodolfo era, primeiro que tudo, orgulhoso; encarava severamente o seu caso, mas não queria que outros pudessem fazer o mesmo juízo.

Há verdades que não se dizem e actos irreflectidos, dos quais é vergonha deixar aperceber a leviandade.

Então?

Para qualquer lado que se voltasse, surgiam as mesmas dificuldades.

Só havia um meio de sair desta má situação: a morte.

Estremeceu.

Aos vinte e oito anos não é com calma que se encara o suicídio.

E, contudo, era a única solução que, havia dois dias, se lhe apresentara ao cérebro excitadíssimo.

com uma espécie de selvática voluptuosidade, em que o desespero se juntava ao orgulho, já em mente regulara a trágica enscenação: a hora: a meia noite; o trajo: a sua farda de gala; o cenário? o quarto que também lhe servia de estúdio; a arma? o revólver; sítio? o coração...

Queria morrer de sorriso nos lábios, a fronte calma, o ar altivo perante a adversidade, como lhe parecia dever morrer o filho de seu pai.

- Meu tenente, uma carta.

De novo, a voz meridional do soldado o fazia sobressaltar.

- Dá cá.

Era rara a correspondência que tinha e as cartas que chegavam em seu nome muito poucas.

Pegou no sobrescrito e examinou-o.

A letra era-lhe desconhecida e o carimbo do correio um pouco apagado, nada revelava...

De súbito estremeceu e o pasmo perpassou-lhe pelos olhos.

Um sinete de lacre vermelho, com as suas armas, fechava a misteriosa missiva.

- Ah!

Por minutos se manteve indeciso, com as pupilas fixas no pequeno disco vermelho.

Aquele sinete perturbava-o!

Era como se um rosto familiar lhe sorrisse... um rosto que não era o seu e no qual, no entanto, se reconhecia.

Quem lhe escrevia?

Algum parente?

Um parente que usasse do mesmo nome, visto serem as mesmas armas?

A-despeito-da sua incerteza de pouco antes, haveria em qualquer parte um membro da sua família que lhe soubesse da existência e por ele se interessasse?

A esta ideia sentiu dilatar-se-lhe o coração.

Afigurou-se-lhe essa carta como salvação, e que esse parente, fosse quem fosse, ia ser o seu libertador.

Orgulhando-se com o mesmo brazão, podia abandoná-lo em tão trágica circunstância?

Lágrimas de alívio, inconscientemente, lhe marejaram os olhos.

Como era doce, essa esperança surgir bruscamente!

Abriu o sobrescrito com cuidado para não quebrar o abençoado sinete.

E leu, a princípio com pasmo e depois com alegria, a curiosa missiva:

Ao sr, Rodolfo de Fragon, Tenente de aviação

Versalhes.

Meu querido filho

"Desde quando é que os rapazes bem educados desprezam os parentes velhos? Achas-te demasiado rico de amigos e de afectos para que ponhas de parte a única aliada que te resta?

"Teu pai, respeitador dos laços de família, muita vez te trouxe aqui. Mas a tua entrada no colégio, suprimindo essas visitas, a morte de teus pais, a vida militar, tornaram-te esquecido e indiferente. O caminho traçado pelos passos paternais nunca foi seguido por ti.

"Eu, a-pesar-do teu desleixo, continuo a lembrar-me do louro rapazinho que eras, do bonito rapaz que me tratava por tia Sofia, embora apenas seja para ti uma prima afastada.

"Vem visitar-me, Rodolfo; sei que a situação dos teus pais não era das mais desafogadas. Deves ser mais rico de orgulho do que de dinheiro. Pensei em ti numa circunstância feliz que se apresenta. É preferível que um parente meu se aproveite dela em vez de um estranho.

"Vem sem grande demora. Conversaremos.

"Tua velha prima

Sofia de Fragon

Rua S. Domingos, 28-b"

Duas vezes seguidas releu a benéfica missiva, não notando os termos enfáticos e antiquados.

Ah, como era feliz!

Que maravilhosa ressurreição após a lenta agonia das últimas quarenta e oito horas.

Que boa, que excelente, a tia Sofia!

A sua intervenção salvava-lhe a honra e a vida.

- De-certo! Irei vê-la! E ainda há-de ser hoje!

E tentou recordá-la! A tantos anos de distância, não se lembrava dela.

Tia Sofia!

Este nome nada mais lhe dizia.

Entretanto, procurando no fundo das suas reminiscências, pareceu recordar-se da alta e magra mulher, de olhar frio, de voz aguda, a casa de quem o pai o levara algumas vezes.

Mas como era cousa vaga, a indecisa imagem deixava-lhe como um bafio de cerimónia e de enleio...

Sacudiu para longe essa desagradável impressão, ao tentar persuadir-se de que, de-certo, a tia Sofia não devia ser a angulosa criatura cujos contornos a sua infiel memória se esforçava baldadamente em precisar.

Para mais, de-pressa iria ser informado. O tempo de alcançar a liberdade do dia e não seria mais do que um salto até à rua de S. Domingos, em Paris.

Jubilosamente, desta feita, de alma muitíssimo calma, saltou da cama e vestiu-se escrupulosamente.

Duas horas depois, tomava na estação de Versalhes o comboio para Paris.

 

A tia Sofia morava no quarto andar -terceiro, não contando com sobreloja-dizia a porteira do alto e triste prédio de rendimento, cuja fachada baça e nua, dava a fria impressão de antipático convento.

Os agudos latidos de um fraldiqueiro deram a conhecer aos inquilinos do prédio a presença do tenente, no patamar do quarto andar.

Ao discreto toque da campainha, acudiu a própria dona da casa que veio abrir a porta.

A princípio, no escuro do pequeno vestíbulo, apenas distinguiu uma silhueta feminina muito alta, muito magra e um pouco alquebrada; mas depois, na minúscula saleta em que foi introduzido, em seguida a ter-lhe declinado o nome e a categoria, viu melhor a idosa senhora.

E, de repente, um pouco desapontado, reconheceu Sofia de Fragon!

Era ela, de-facto, o anguloso fantasma da sua rebelde memória.

Ela, cujo aspecto desconfiado, lábios delgados e cruéis resguardando poucos dentes, o olhar fugidio dos pequenos olhos pardos, de mãos magras, de unhas compridas como garras, paralizavam de-súbito o afectuoso transporte que o juvenil oficial se propunha para com a sua única parente.

Porque, - caso estranho! - embora o semblante da velha não evocasse nele lembrança alguma precisa, tinha a sensação que o embaraço actual era feito principalmente do antigo embaraço, ressuscitado de-repente.

No primeiro minuto, a impressão que a velha prima lhe causava, era claramente antipática. Por fatalidade, essa impressão só devia acentuar-se e justificar-se em seguida.

Através dos ladridos do horrível canito, Rodolfo de Fragon tentou fazer-se ouvir. E cortesmente, esforçando-se por se tornar amável, desculpou-se:

- Perdôe-me o meu longo silêncio, minha senhora; esqueceu-me, se não o seu nome, a sua morada. Estou contente e agradeço-lhe vivamente ter tido a bondade de me recordar uma e outra cousa.

Ela não respondeu.

De pé e sem curar o seu enleio, examinava-o estranhamente, medindo-o dos pés à cabeça, com particular insistência.

Ele perdeu um pouco a presença de espírito e afigurou-se-lhe que corava sob o olhar daquelas pupilas pardas e investigadoras.

Em sua volta, girava o canito, resmungão e desconfiado, mais contribuindo para lhe aumentar o mal estar.

De boa vontade lhe daria um pontapé, para se livrar do incomodativo animal.

Contudo, quando afastou a impressão cada vez mais desagradável que sentia, indagou:

- Importuno-a neste momento, minha senhora?

A mulher teve um riso motejador e, sem responder a estas palavras, disse, continuando em voz alta o seu pensamento:

- Abelardo!... Palavra! Afigura-se-me ver Abelardo!

Estupefacto, não sabendo se era ou não um cumprimento, fitou-a.

- Abelardo era seu tio-explicou ela -e fisicamente parece-se com ele de uma maneira extraordinária... Era um belo rapagão, afianço-lhe! Infelizmente para si, não lhe possui o aprumo nem o ar vencedor.

De novo fez ouvir o seu riso irónico.

Ele agradeceu com um cumprimento, admirado da amenidade das palavras e do riso, pensando de si para si que bem pouca razão tinha, na sua presente situação, para se gloriar.

E, sem querer, a preocupação voltou.

Mentalmente, pela centésima vez quiçá, havia dois dias, repetiu para consigo:

- Preciso de arranjar vinte cinco mil francos antes da noite ou matar-me...

Não, evidentemente, essa ideia não devia dar-lhe aspecto de vencedor! Em compensação valeu-lhe evangélica paciência para com a sua interlocutora durante esse primeiro encontro.

Entretanto, a velha, depois de haver feito calar o barulhento Kikt-que assim era o nome do cão

- fizera sentar o oficial e interrogava-o.

Fazia as perguntas bruscamente, sem rodeios e sem discrição alguma.

- Que idade tem agora, meu primo?

A sua voz era seca... como os seus lábios, como o seu ar, como toda a sua pessoa I Ele respondeu:

- Vinte oito anos.

- Bem empregados... E não casou, suponho. Ele sorriu:

- Não, felizmente.

Ela arqueou as sobrancelhas, curiosa:

- Felizmente, porquê?

- Porque lastimaria bastante a pobre mulher que unisse os seus destinos aos meus, pois que a minha situação actual é das mais modestas.

- Pode tornar-se brilhante.

- Talvez... Embora, ao sair das fileiras, quási não deva esperar rápido avanço sem particulares circunstâncias.

- Então, porque escolheu a carreira militar?

- Seduzia-me. Era novo, orgulhoso, inexperiente... O prestígio da farda! Talvez também tivesse medo de descair na luta pela vida. O exército era a única porta que se abria de par em par a um homem da minha têmpera, sem conhecimentos especiais... e, principalmente, sem recursos!

- Como assim?

- Há um provérbio espanhol que diz que um fidalgo pobre só tem três caminhos na sua frente: a igreja, o exército ou o mar. Escolhi o exército!

- Mas porque enveredou pelo caminho mais difícil?

- Tinha dezoito anos quando morreu meu pai. com ele extinguira-se a pensão com a qual, até essa data, lhe era permitido prover às nossas mútuas necessidades... nada restava da fortuna de minha mãe; tive, pois, de abandonar os estudos precisamente no momento em que, entrando na Politécnica, me dispunha a terminá-los com brilho.

- E então?

- Alistei-me... para não morrer de fome. Hoje, dou conta de que, quer na indústria particular, quer no comércio, poderia chegar a conseguir situação melhor retribuída...

Breve pausa se seguiu a estas explicações dadas o mais lacònicamente possível pelo oficial.

A velha enrolava nos dedos a ponta de um chaile de lã, lançado sobre os magros ombros, e, com o canto do olho, fitava velhacamente o seu parente.

De súbito, o mesmo riso penetrante, quási irritante, de novo ressoou.

- Assim, conforme o primo confessa, o seu futuro está longe de ser brilhante.

Repentino rubor subiu às faces do tenente.

Ela tinha de facto desajeitadíssimo modo de dizer as coisas.

Contudo, o oficial conteve ainda o seu mau humor.

- Sou modesto e trabalhador! - volveu com uma espécie de feroz orgulho - Até agora, vivi descuidoso do futuro. Confiava em mim! Há aqui - e assim falando batia na testa-aqui dentro há graves problemas a resolver, bem depressa resolvidos, garanto que hão-de assegurar-me, assim espero, situação honrosa e invejável.

Os olhos penetrantes da sua interlocutora incendiaram-se de repente.

Estendeu o pescoço para ele, perguntou, avidamente:

- Algum trabalho?... - Alguma invenção?

- Sim, uma invenção. muito até... e, para mais, de sensação!

Aludia à navegação aérea que devia aperfeiçoar num sentido que, mais tarde, tão brilhantes resultados daria.

Um lampejo de orgulho passara pelas descoloridas pupilas de Sofia de Fragon.

Além de tudo o mais, essa mulher tinha o culto da raça e tudo vibrava nela à ideia de que um descendente masculino dos avós de quem ela se orgulhava, podia dar novo realce ao nome patronímico - outrora conhecido e célebre - hoje esquecido, imerso pela onda invasora dos nomes plebeus de cartaz que andam de boca em boca, sem que ao certo se saiba qual o mérito especial que os pôs em destaque.

Por momentos, o olhar comovido da velha envolveu o rapaz.

Seria possível que este fosse capaz de inventar alguma cousa? Teria realmente a alma de um criador que pudesse alcançar a celebridade e talvez ganhar montões de ouro? Neste tempo de depois da guerra, só o dinheiro parece consagrar a glória e Sofia de Fragon deslumbrava-se ante a vertigem de tal suposição.

Os lábios tremeram-lhe, parecendo balbuciar uma oração... talvez uma acção de graças, perante o futuro entrevisto!

No entanto, Rodolfo de Fragon retomara o seu aspecto acabrunhado. Ante a miséria mal disfarçada do aposento em que se encontrava, já não se atrevia a ver na velha prima, a libertadora que esperara para o tirar do apuro.

De roldão, todos os seus cuidados voltavam de novo e, agora, quereria estar só, longe daquela desanimadora casa, longe daquela mulher hostil que tão desagradàvelmente ria.

Mas a prima Sofia, saindo do seu devaneio, dignava-se interessar-se novamente por ele.

- Para inventar alguma cousa - prosseguiu para lançar, principalmente, uma invenção, é preciso dinheiro... muito dinheiro! E, se percebi bem, o primo é mais rico de ilusões do que de haveres.

O rosto do oficial mais se obscureceu: -Ai!

- Sem dúvida entreviu algum meio de o conseguir.

com a cabeça, ele acenou negativamente.

A observação retalhou-lhe a alma.

E então, não se detendo ante o estranho fulgor dos olhos que o fixavam, obedecendo a ignota força que o levava a gritar a sua angústia a um ente humano, sem olhar ao mau resultado que muito certamente, dariam as suas confidências, tudo confiou à velha prima: o seu minuto de desvairamento, o insensato jogo, a sua desesperada situação, o beco sem saída em que se metera.

Ela escutava-o atentamente, de respiração suspensa, com a testa franzida numa ruga de dureza; contudo, nos lábios delgados, fugidio sorriso parecia esboçar-se. Dir-se-ia que estava aborrecida com a modesta situação de Rodolfo, ao mesmo tempo que satisfeita com os seus embaraços financeiros.

Que projecto tenebroso teria a respeito do rapaz?

Cabisbaixo, de alma oprimida, este não deixara de continuar a sua narrativa: era a única probabilidade que tentava e o derradeiro esforço de que ainda se sentia capaz!

De antemão não se condenara já à morte Mais uma desilusão, que importava?

Entretanto, como falasse em suicídio, ela assustou-se, com as faces purpureadas sob a súbita ameaça que a feria fundo - a extinção da sua raça, pela falta daquele doidivanas!

Ah! Havia de ter graça consentir em que ele levasse a cabo essa suprema tolice!

- Matar-se? E com que direito, infeliz criança?

- bradou, fremente.

Êle levantou a cabeça e explicou com simplicidade:

- Só possuo a vida para oferecer ao meu credor! A vergonha...

Mas a prima interrompeu-o brutalmente:

- Vergonha seria o senhor deixar atrás de si essa dívida por pagar, de tal forma que alguém

se poderia gabar de ser credor eterno de um de Fragon.

Rodolfo levantou-se um pouco pálido, maquinalmente, num movimento agressivo como se tivesse algum homem na sua frente:

- Ah, proíbo-lhe...

O riso da velha de novo lhe cortou a frase. Viu o ridículo da sua atitude combativa, fez um gesto de desculpa e tornou a sentar-se, aniquilado, emquanto a prima gargalhava bruscamente:

- Proíbe? Ora, francamente! Mas quando estiver morto, quem lhe fará respeitar a proibição e impedirá que lhe maculem o nome e que suspeitem até das boas intenções do seu derradeiro gesto, a que talvez se atribuam todos os motivos... mormente os mais inconfessáveis? Por essa forma o seu suicídio já não será o que deseja que seja: uma reparação de honra; mas tornar-se-á, ao passar por todas as bocas, um acto de desesperado no limiar da infâmia.

Rodolfo fitou-a, assustado.

com que requinte o causticou essa mulher, para quem viera, cheio de confiança, gritar a sua miserável angústia! Nem sequer tivera, para lhe minorar o desgosto, uma palavra de compaixão e de conforto!

Experimentou de súbito por ela sentimentos de ódio e más palavras lhe subiram à boca que, felizmente para a sua dignidade de homem, foram ferozmente reprimidas.

No entanto, Sofia de Fragon continuava, a-despeito-da animosidade surda que lia subitamente nos olhos do oficial:

- Morrer? Não, meu primo, não lhe assiste esse direito. Quanto mais desesperada for a situação, mais deve apertar os dentes e tentar encará-la. Na sua idade luta-se contra a adversidade e torna-se glória vencer a má sorte. Emfim, não deve contentar-se com uma posição de completo repouso: deve-se ter a ambição de atingir um fim que valha o mal que se dá para o alcançar. É pobre? Muito bem: os seus esforços devem tender para ser rico... Como sabe, o dinheiro dá todos os poderes e todas as alegrias. Seja do seu tempo, Rodolfo, e como os outros, faça-se um deus do bezerro de ouro... Ah, sim! Seja rico e transmita a seus filhos, com o património de honra que sua família representa, a possibilidade de conservar a categoria a que terão direito. Não fale em morrer. É o último da sua raça e a sua vida não lhe pertence. Como pode esquecê-lo e deixar a uma fraca mulher o cuidado de lho lembrar?

Exaltada com as suas próprias palavras, aproximara-se, de olhos chamejantes, de voz ardorosa, pondo toda a alma no seu protesto.

A-pesar-da aversão que a prima lhe inspirara, Rodolfo sentiu por ela, nesse instante, uma espécie de admiração. O seu fanatismo tinha qualquer cousa de respeitável que o impressionava no mais recôndito de si mesmo.

Foi, pois, tristemente e com certo mau humor que respondeu:

- Já a mim próprio disse o que acaba de expor-me e afirmo-lhe que a minha maior tortura é não cumprir a tarefa que a vida impõe a todo o homem. Desgraçadamente, a situação que lhe expus não tem saída; já não sou senhor dos acontecimentos que com bastante pesar meu tão desastradamente se desencadeiam à volta de mim.

- Diz que a sua situação não tem saída?

- Digo.

- E se eu lhe indicar uma saída desse beco?...

- A senhora?

- Sim, eu.

- Mas como?

- Posso fornecer-lhe o meio de pagar a sua dívida há pouco confessada.

- Ah! Se fizesse isso...

Não concluiu, pois a comoção lhe cortara a palavra.

A esperança renascia numa baforada.

E como era muito recto, muito franco, muito espontâneo também, os seus sentimentos deram uma reviravolta com respeito à prima e arrependeu-se dos maus pensamentos que havia pouco tivera para com ela.

Antecipando-se, ia falar-lhe de gratidão, de reconhecimento, de todas essas cousas que ora lhe enchiam o coração; mas ela não lhe deu tempo.

- Não me agradeça, Rodolfo; é mais pelos nossos ascendentes do que por si que vou agir. No fundo do seu túmulo, não devem ter de corar pela nossa decadência... As suas confidências de nada servem para o fim que tenho em vista. Chamando-o para junto de mim, ignorava a sua verdadeira situação e, contudo, já tinha em mente um plano a respeito do seu futuro e do luzimento que quero dar-lhe. A melhor prova de reconhecimento que Pode prestar-me é não opor insuportáveis objecções aos meus projectos.

O tom áspero da sua interlocutora não feriu o moço oficial. O astro de esperança que lhe deixavam entrever as palavras, brilhava nele demasiadamente para poder discernir a secura da voz que as proferira.

- Sou todo ouvidos - respondeu simplesmente.

- Em primeiro lugar: já pensou a sério em casar-se, Rodolfo?

O tenente teve um ligeiro sobressalto.

- Não, nunca! Creio ter-lhe já dito que os meus recursos não me permitem semelhante luxo.

- Contudo, não lhe repugna a ideia do casamento e se não tem esse cuidado material da existência, aceitaria sem desgosto a ideia de criar família?

- Evidentemente, um lar nosso, filhos que nos perpetuem... todo o homem sonhou isso!

- Pois bem! Só depende de si realizar esse sonho.

Como fosse a protestar, a prima deteve-o com um gesto.

- Não, não se desculpe com a sua falta de fortuna. A menina que quero propor-lhe é rica... riquíssima até!

Rodolfo sorriu:

- Nesse caso não pode aceitar para marido um modesto oficial como eu!

- Engana-se. Em primeiro lugar, a fortuna dela permite-lhe desposar o homem que lhe agradar e estou certa de que o primo há-de ser esse homem... absolutamente certa! Depois...

Hesitou; de seguida, procurando palavras, acrescentou

- Em princípio, aceita este casamento.

- Mas essa menina não me conhece! - bradou surpreendido.

- Já lhe falei muito de si.

- E bastou isso? - volveu, atordoado.

- Bastou... Tudo quanto lhe disse de si... da sua honorabilidade, da sua mocidade... depois o seu carácter romanesco... amoroso! Emfim; o seu tutor - ela é órfã - tirou informações a seu respeito; conversámos sobre o assunto... Agradou. Em resumo. Só depende de si ser o ditoso eleito.

Rodolfo passou a mão pela testa, onde as ideias se chocavam atabalhoadamente.

- Estou abismado com a sua proposta - observou após curto silêncio - Mas, supondo que eu agrade realmente a essa menina, nada prova que haja reciprocidade e que seja ela a mulher que desejo ver sempre a meu lado. Corresponderá de facto ao ideal que criei daquela que havia de partilhar a minha vida?

Sofia deu alegre gargalhada.

- A alma gémea, não?

- Sim - volveu gravemente - aquela que se ama, se respeita e em quem se deposita toda a confiança!

A velha encolheu os ombros num gesto de compaixão.

- Criança!... Esquece que a minha protegida é rica... fabulosamente rica!

- Um casamento de dinheiro! - protestou, emquanto uma careta de desdém lhe franzia os lábios.

Pacientemente, porém, a prima rectificou:

- Casamento de conveniência, de inclinação até, visto que lhe permite satisfazer todas as ambições e sonhos. Lembre-se de que tal casamento, tirando-o da sua embaraçosa situação, lhe permite ao mesmo tempo refazer a sua casa, viver consoante a sua categoria, conforme os seus gostos, emfim, continuar os seus estudos, pôr de pé a sua invenção... numa palavra, tornar-se alguém.

Assim falando, perscrutava a fisiononia do moço oficial para tentar adivinhar-lhe os sentimentos. Pela expressão atenta e séria do rosto, percebeu que os seus argumentos tinham vingado e que só o orgulho, a dignidade, o amor-próprio lhe tapavam a boca para a aquiescência.

Contudo, o lado mau deste casamento de dinheiro aparecia, a-pesar-de tudo, a Rodolfo.

- Vejo muito bem as vantagens que tiraria desse enlace - volveu, pensativo, após alguns instantes de reflexão - mas distingo com menos facilidade as que essa menina aí encontraria.

- Esquece-se de que ela se tornaria a senhora Rodolfo de Fragon.

O oficial mordeu os beiços e súbito rubor lhe aflorou o pálido semblante.

- Sim, é verdade! Trata-se de vender o meu nome. A velha fez um gesto de impaciência.

- De o partilhar apenas com uma mulher rica, a qual lhe dará o brilho a que tem direito. Torna-se ridículo ao empregar semelhantes termos. Hoje em toda a parte se admite o casamento de dinheiro.

O tenente levantara-se e, com grandes passadas, media o estreito espaço reservado entre os móveis amontoados ao longo das paredes.

- É filha de algum comerciante enriquecido? perguntou, parando de-súbito.

- Não...

- Então! Filha de qualquer mulher?... Mas a prima não o deixou concluir:

- Cale-se! É menina da nossa sociedade. O seu nome figura em bom lugar no livro de brazões.

Ficou interdito:

- Depois ajuizará.

- Talvez doente...

Sofia soltou uma gargalhada e, ironicamente:

- Sim, tem cabeça de pau!

Depois, tornando-se séria, replicou persuasiva:

- Vamos, meu pobre pequeno, não atormente assim o cérebro para encontrar taras que não existem. Não compreendeu ainda quanto tenho o culto do passado e o orgulho do nome que conservo ferozmente em mim própria? Como pode supor que, sendo o chefe actual da nossa casa, eu lhe aconselharia um casamento que pudesse torná-lo ridículo?

Ficou convencido.

Mais do que tudo o que dissera até então, aquele veemente protesto aniquilava-lhe as veleidades de resistência.

Ela compreendeu o seu triunfo e, malhando no ferro emquanto estava quente, inquiriu:

- Então posso falar das suas intenções à família? O oficial enfadou-se, não capitulando ainda.

- Oh, não, não! Peço-lhe, não vá tão depressa!

- Esquece o que precisa de encontrar para esta noite - replicou a prima friamente.

- Põe-me a faca aos peitos!

- As suas tergiversações são extraordinárias. Consente ou não? Merecia que eu o abandonasse à sua triste sorte.

- Não se zangue! - bradou, angustiado - Estou completamente desorientado... Que diabo, trata-se da felicidade de toda a minha vida!

- Trata-se até da sua vida, visto que, se este casamento não se realizar, apenas lha restará o suicídio como supremo argumento!

- E como é que esse casamento me assegurará para esta noite o dinheiro que preciso

- Não se inquiete com isso. O assunto é delicado de mais para que o deslinde... Eu me encarrego do caso... Contanto que seja o futuro marido dessa menina, tudo irá bem.

- Mas não posso assim de-repente, tornar-me seu noivo...

- Pode sê-lo antes desta noite.

Aquela certeza impressionou o oficial que nada ousou replicar.

- Vamos, está agora resolvido?

Um lampejo de loucura brilhou nas pupilas do rapaz.

- Oh! este beco sem saída. - bradou - Não poder pagar a dívida e ficar deshonrado! Desposar essa mulher e aviltar-me; matar-me e deixar cientemente o meu nome enxovalhado, a minha raça desaparecer!

- Justamente, dos três males escolherá o menor. Para mais, nada prova que não venha a enamorar-se loucamente de sua mulher e que o casamento, principiado como negócio, não termine em idílio.

- Deus queira!

Era um grito de vencido. Rendia-se, em fim, definitivamente aos argumentos da parente. Esta levantou as mãos ao céu, como a tomá-lo por testemunha da paciência que empregara com Rodolfo.

- Até que por fim o vejo razoável! Tinha a certeza de que acabaria por ser da minha opinião. A menos que se seja insensato, não se recusa de boa vontade uma fortuna de nove milhões.

- Nove milhões?

Era para enlouquecer de alegria o homem mais calmo e, no entanto, aquela cifra formidável, para ele que nada possuía, causava-lhe medo e tinha a impressão de pesado, pesadíssimo fardo a suportar.

Como ficasse petrificado, tão absorto nos pensamentos que esquecia a presença da velha prima, esta chamou-o ao sentimento da realidade.

- É meio-dia, Rodolfo. Vá almoçar. Não o convido para partilhar da minha refeição... é magra demais e sou sozinha a serví-lo. De resto, preciso de me ocupar de si e visitar o senhor de la Saponaire o mais depressa possível.

- O senhor de la Saponaire - perguntou, maquinalmente.

- Sim, é o tutor de sua noiva.

Ela já a tratava por sua noiva e o tenente não protestava. A tia Sofia precipitou os acontecimentos com tal rapidez que já não pensava em resistir-lhe.

- Volte às cinco horas para saber novidades. E, sem esperar pela sua adesão, sem querer

ouvir-lhe os fracos protestos, impeliu-o para a saída e fechou a porta atrás dele, e tudo com tanta presteza que o oficial se encontrou na escada sem dar por isso.

- Até logo.

Através da porta fechada e emquanto compunha a farda que aquela brusca saída desordenara, pareceu-lhe ouvir ressoar o penetrante riso da velha.

E, inquieto, com o pensamento assustado, sem saber que resolução tomar, seguiu pela rua a direito, ao acaso.

- Perdão!... É ao terceiro andar que se dirige? A casa da senhora de Fragon?

Ao ouvir a voz da porteira, Rodolfo voltou-se.

- É.

- Então, não vale a pena subir! Não está lá.

- Não está - replicou surpreendido - Mas decerto volta; sabe que devo vir.

- Provavelmente foi obrigada a sair. Deixou-me uma carta para entregar ao senhor oficial.

- Ah, bem!

- É provável que fique sabendo mais alguma cousa... depois de ler.

A mulher voltou para o cubículo, emquanto de Fragon com a garganta estrangulada sob o desapontamento involuntário, tornava a descer os degraus que já subira.

- Olhe, aqui tem.

E a porteira, assomando ao limiar da porta, entregou-lhe um sobrescrito fechado.

- Obrigado...

- Até depois.

Rodolfo cumprimentou e saiu.

Só na rua é que tomou conhecimento do bilhetinho da tia Sofia e logo a seguir respirou aliviado; era assim concebido:

"Volte a ver-me às oito horas. Iremos a casa da sua noiva. Cuide do trajo porque será apresentado oficialmente à rapariga.

"Não se inquiete; tudo vai bem.

Sofia de Fragon."

- Tudo vai bem!

Por muito tempo repetiu estas três palavras que lhe faziam bem sem o tranquilizar por completo. Dava-lhe todas as interpretações possíveis, mas as suposições não lhe satisfaziam a curiosidade e lamentou que a prima não lhe fornecesse mais pormenores.

Que fizera depois do meio-dia? Quais seriam os seus passos, as suas explicações ao tutor, visto que existia tutor?

Agora que após revoltas íntimas, o seu pensamento principiava a habituar-se ao projecto de um casamento salvador, estava com pressa de saber quem era aquela mulher desconhecida que lhe destinavam para partilhar do misterioso futuro.

Tomava-o uma angústia à ideia de que talvez fosse antipática, mas, firmemente, ainda que fosse desesperada a situação, estava resolvido, a aceitar tudo, de preferência a contrair uma união que lhe repugnasse. Este ligeiro pacto que fazia com os acontecimentos rehabilitava-o um pouco a seus olhos.

- Se me agradar, já não será completamente um casamento de dinheiro...

No entanto, sentia bem que o seu eu íntimo e moral sofrera grande derrota. Sem conhecer uma mulher, habituava-se à ideia de a desposar, simplesmente por ser detentora de milhões, e dizia de si para si que seria bom se pudesse encarar o facto por modo diferente.

Às oito horas voltou a casa da velha prima. Entretanto, utilizando-se do táxi que o levara ao seu domicílio, em Versalhes, esmerara-se no vestuário, trocando a farda por impecável casaca.

Quando Sofia de Fragon o viu aparecer, não dissimulou a sua alegria.

- Muito bem, Rodolfo, é pontual! O tenente sorriu com piedade.

- A forçada pontualidade dos que já não são senhores do seu destino.

- Vamos, meu amigo, vamos, não arme em vítima. Pelo contrário, tem todas as probabilidades. A providência está verdadeiramente a seu lado neste caso.

- Ainda bem - respondeu -A mais pequena dificuldade ter-me-ia parecido enorme obstáculo no estado de espírito em que me encontro.

- O principal é que, emfim, se tenha resolvido a este casamento - observou a prática senhora

Falei há pouco com o senhor de la Saponaire; as cousas estão regularizadas com ele e pode considerar-se como aceito.

- Muito lisonjeado!

A velha encolheu os ombros ante a aflitiva cara que ele mostrava.

- Deixe esse ar lúgubre - aconselhou, rindo Não é para um enterro que vamos.

- Sim - replicou gravemente Rodolfo - Vamos enterrar esta noite toda a boa opinião que eu formava de mim.

- Ora. O enterro é de primeira classe e haverá tantas riquezas e flores espalhadas que muito mal andaria se mostrasse má cara.

Não respondeu. A prima parecia não poder compreender a revolta íntima que o agitava.

Tomaram um auto que na luminosa noite das ruas parisienses, os conduziu para a Avenida da léna, onde moravam os Saponaire.

Havia momentos, uma pergunta aguilhoava Rodolfo; contudo hesitava em a formular.

Decidiu-se por fim, com fugitivo rubor nas faces:

- Deu a conhecer ao tutor da sua amiga os meus apuros de dinheiro?

- Não! Era escusado; quero, aliás, que entre de cabeça levantada naquela família.

- Prefiro isso, mas...

Calou-se, terrivelmente perturbado para continuar.

A prima percebera.

- Não se inquiete com a sua dívida, Rodolfo. Os vinte e cinco mil francos que deve, ser-lhe-ão entregues a tempo.

- E como? - insistiu.

- Uma amiga minha coloca ao seu dispor essa importância. Apenas apresenta duas condições.

- Quais são?

- Que esta noite se torne noivo de Gilberta de la Saponaire. A outra visa o futuro reembolso.

- E então?

- Concede-lhe seis semanas para a satisfazer.

- Seis semanas. É irrisório!

- Não é; daqui até lá pode estar casado.

- Ora, vamos!

- Cem sagacidade e uma noiva que só pede para o adorar, seria preciso ser muito tolo, meu caro, para suportar demorados esponsais. A sua impaciência, de resto, só poderá ser lisonjeira.

Rodolfo calou-se; toda a questão financeira lhe causava náuseas. Oh! Ver-se na necessidade de discutir tão aviltante caso! Que descalabro na sua própria estima!...

Um silêncio caíra entre ambos. De-repente, Sofia de Fragon perguntou:

- Lembrou-se do anel?

- Que anel?

- A aliança de casamento dos de Fragons. Deve estar entre as jóias de sua mãe.

- Está, de facto, mas não me lembrei de que pudesse ser útil, hoje.

- Estouvado!

- Ora! Se este casamento tem de fazer-se, qualquer altura é boa para tirar do cofrezinho o tal anel!

Descuidoso com esse pormenor ao qual não ligava importância, quási não se inquietava; Sofia de Fragon, porém, empenhava-se em que nada faltasse para o bom êxito da empresa tão ardentemente preparada.

- De maneira alguma! - exclamou É conveniente nada guardar para depois. Visto que esta noite Gilberta lhe é oficialmente apresentada, é preciso que confirme os seus laços de noivo... O anel dado e aceite corresponde, de parte a parte a um compromisso de honra.

- Mas se é impossível! Não o tenho comigo.

- Felizmente, eu previ o esquecimento... tome

- disse a prima, entregando-lhe pequenino estojo

- Aqui tem o anel de minha mãe; deve parecer-se muito com o que possue, pois seu bisavô e meu avô eram irmãos.

Rodolfo queria recusar a preciosa dádiva.

- Não posso aceitar que se desfaça assim dessa jóia, prima.

- Sim, não tenho filho a quem o legar; sentir-me-ia feliz por ver este anel no dedo da que vai perpetuar a nossa linhagem. Aceite-o, Rodolfo; dar-me-á prazer.

- Obrigado - agradeceu simplesmente.

Abriu o estojo e um círculo de ouro, em que um brazão de esmalte azul e uma coroa de minúsculos diamantes se destacavam, apareceu, maravilhoso de delicadeza, em fundo de setim branco.

Rodolfo contemplou-o com profunda comoção.

- Sim, é perfeitamente igual - murmurou Meu pai tirou um semelhante do dedo de minha mãe que acabava de falecer.

- "Para a que mais tarde for minha filha - disse, ao fitar-me com os olhos razos de lágrimas - Oxalá possua as mesmas virtudes que tinha a admirável companheira da minha vida que acaba de partir! "

Rodolfo fechou bruscamente o escrínio e meteu-o na algibeira interior da casaca.

A vista daquele anel, ao fazer-lhe reviver a inolvidável cena da sua meninice, perturbava-lhe as mais íntimas fibras.

Por uma associação de ideias muito natural em tais circunstâncias, pensou no que deveriam ter sido as núpcias dos pais, tão enamorados um do outro, e do que deveriam ser normalmente as suas, as que se iam tornar realidade...

E penetrante sofrimento lhe confrangeu o coração e lhe crispou o rosto.

Contudo, sentia amarga satisfação ao dizer consigo que, por feliz caso, o sagrado anel da mãe não figuraria nessa iníqua paródia de casamento de amor.

Atirara-se bruscamente para o sombrio recanto do carro, tão absorvido nas tristes reflexões que Sofia de Fragon teve que lhe tocar no braço para o despertar daquele torpor.

- Já cá estamos, Rodolfo.

Silenciosamente, saltou para o passeio cimentado e ofereceu a mão à velha prima, embaraçada nas rendas do seu chaile antigo.

- Eis-nos finalmente chegados ao limiar da fortuna-murmurou-lhe ao ouvido, à maneira de cumprimento.

Ele não respondeu.

De sobrancelhas carregadas, fitava a casa onde ia decidir-se o seu futuro.

 

Em rápido relance, de Fragon examinara a grande mole de mármore que empedrado pátio e alto gradeamento dourado separavam da rua.

A larga escadaria de mármore branco, o pesado alpendre rendilhado, as lanternas forjadas, o luxo severo que se ostentava logo de entrada, parecia acolherem com certa altivez os modestos visitantes. O tenente de novo sentiu a esmagadora impressão de suportar demasiada riqueza. Os seus humildes pergaminhos de nobreza, aterravam-se com os milhões que lhe ofereciam!

Num relâmpago, o seu pensamento juxtapôs o seu pequeno aposento ao espaçoso prédio. Tornou a ver a sua banca de trabalho, os seus livros predilectos, a estreita cama em que se lhe multiplicavam os sonhos de vibrante mocidade, e grande e pesado suspiro de desgosto lhe escapou do peito opresso. Se estivesse sozinho, Rodolfo não daria provavelmente um passo mais e sem se importar com o orgulhoso lacaio de calção que do topo da escada o via avançar, arripiaria caminho e de coração desanuviado, afastar-se-ia da imponente moradia.

Mas a tia Sofia, de rosto radiante de orgulho, de narinas frementes de íntima alegria, arrastava-o atrás de si. Já conhecia o meio; nada lhe perturbava a serena quietação.

Contudo, tão perto do fim, a impaciência tomava-a e as mãos febris, emquanto desacolchetava o chaile, enervavam-se ao contacto das guarnições misturadas com as rendas.

O criado, impecável, acompanhava-a respeitosamente. Devia ter recebido instruções, porque sorria, amável à idosa senhora.

- Esperam por si, minha senhora e pelo cavalheiro... O senhor está no escritório.

Ao mesmo tempo examinou às furtadelas o rapaz que, vagarosamente, despia o sobretudo e lho estendia.

- Vamos, Rodolfo, apresse-se um pouco-disse a meia voz a tia Sofia que se movia com aprumo.

Mas ela viu-o grave, um tanto pálido e a sua exaltação tombou.

Pensou que era cedo ainda para cantar vitória. Emquanto Rodolfo não estivesse verdadeiramente comprometido, tudo era para recear da sua parte.

O acolhimento do senhor de la Saponaire foi cheio de amistosa bonomia. Levantou-se, instalou Sofia junto do fogão e apertou as mãos a Rodolfo.

- Sua prima tanto me falou de si, meu caro senhor, que tive a impressão de o conhecer à já muito tempo e de reatar simplesmente hoje consigo antigas, mas amistosas relações.

- Encantado - balbuciou Rodolfo um pouco incomodado, a-despeito-da cordialidade do acolhimento.

- Conheço-o aliás tanto melhor quanto estou em magníficas relações com o senhor d'Omble, seu coronel, um companheiro alegre e que forma belíssima opinião a seu respeito.

- O coronel é indulgente para com todos os oficiais -respondeu modestamente de Fragon, um pouco desarmado com a referência ao seu chefe, habilmente feita pelo senhor de la Saponaire; este sorrira à delicada réplica do rapaz e concluiu finamente:

- Nesse caso, admitamos que o senhor é um dos seus favoritos.

Depois, bruscamente, mudando de tom e de atitude, como homem que não gosta de perder tempo com palavras inúteis, entrou ao vivo no assunto que nessa noite reunia todos os três.

- Em resumo: tudo quanto o senhor d'Ombie me disse a seu respeito, corrobora o que a sua própria prima já me tinha dito. Creio ir ao encontro dos seus desejos, declarando-lhe que cheio de confiança no seu carácter, acolho com prazer o seu pedido. Ama minha sobrinha, sei que pelo seu lado o senhor não lhe desagrada; seria de mau gosto, sob falsos pretextos rotineiros, fazer penar quer um, quer outro. Sempre ri dos pais imbecis que julgam necessário fazerem-se rogados, quando estão satisfeitos por descobrirem marido para a filha.

Desatou a rir e Sofia de Fragon imitou-o com certo exagero. Sentia-se que tentava lisonjeá-lo.

Rodolfo aquiescera por delicadeza aos gracejos do senhor de la Saponaire; dizia consigo que aqueles dois se entendiam muito bem para o casar sem seu consentimento. Até o seu coronel parecia entrar na conspiração!

De todas as palavras do seu interlocutor, o tenente apenas retivera uma frase, mas ficara-lhe marcada no cérebro em letras de fogo:

"Ama minha sobrinha, sei que o senhor não lhe desagrada"

- E não protestei! - pensava amargamente, já não se reconhecendo no interessado pretendente que encarnava nessa noite.

Mas não era propício o momento para analizar a desanimadora reflexão; a voz do dono da casa tornou a ouvir-se:

- Conhece minha sobrinha, não me compete descrevê-la fisicamente - dizia, como homem convicto do que avançava-mas tenho de pô-lo em guarda contra certa impressão de mal-estar que o seu carácter poderia causar-lhe, emquanto não a conhecer mais intimamente.

- Ah!

Apurava o ouvido, vivamente interessado, esperando que lhe fosse revelada alguma tara moral.

- Sim - explicava tranquilamente o tutor - Gilberta é séria, demasiado séria para a idade. É uma menina muito meiga, muito amável para toda a gente, é instruída, exímia artista musical, desenha que é um encanto; mas é grave... quási glacial! Sorri rarissimamente e só parece pensar em cousas tristes. A verdade é que ficou muito combalida com a morte dos pais, sobrevinda bruscamente, posso dizer misteriosamente, há dois anos.

- Como?

- Certa manhã foram encontrados asfixiados no quarto, pelas emanações dum aparelho de gás que funcionava mal. O inquérito provou um acidente; as primeiras investigações fizeram supor suicídio ou crime, embora a dúvida prevalecesse no espírito de Gilberta.

- Pobre menina! -compadeceu-se de Fragon. O tutor pensativo, acrescentou:

- Tentei destraí-la... fi-la viajar; mas ela não esteve pelos ajustes. Procura o isolamento... Odeia-me até porque quis constrangê-la a mudar de vida; de boa vontade me acusaria de sequidão e de indiferença... Acho que se concentra demasiadamente, em si própria. Que diabo! Na sua idade deve-se reagir!

Falara com certa comoção e de Fragon concluiu que devia ser excelente criatura.

- Se não tem a confiança da sobrinha – disse consigo - é, ou porque a sua ternura foi, involuntariamente, inábil ou porque a rapariga é, muito simplesmente, uma presumida!

E esta suposição que se formulava, nada de agradável tinha para ele.

Sofia de Fragon tentara desculpar a tristeza de Gilberta.

- Melhor do que qualquer argumento, o tempo curará a pobre menina - concluiu ela.

- Sim, o tempo, mas, principalmente o casamento - volveu o tutor, um pouco rudemente um bom marido, filhos robustos, deveres sociais... Compreenderá que é o melhor que tem a fazer, de preferência a pensar em cousas lúgubres! Assim, meu querido amigo - prosseguiu dirigindo-se a Rodolfo - já fica prevenido; não se desgoste com o seu aspecto triste e com os seus demorados silêncios que a sua ternura fará desaparecer facilmente. Evite, principalmente, falar-lhe nisso. Confio no seu tacto para não lhe ferir, ao primeiro encontro, os sentimentos e as ideias.

- Esteja sossegado; a sua sobrinha encontrará em mim o mais respeitoso e o mais atencioso dos maridos.

Proferira esta curta e enérgica promessa com voz sincera e persuasiva.

E tornava-se-lhe simpática a pequena noiva sempre triste que lhe destinavam.

Capricho do coração: preferia-a isolada e incompreendida, nesse palácio silencioso, a vê-la brilhante e adulada entre festas e adulações.

O acaso fazia tão bem as cousas que aproximava moralmente, pela fraqueza de um lado e a compaixão pelo outro, a rica herdeira e o destemido soldado.

Sofia de Fragon registara mentalmente a resposta de Rodolfo e sentira grande alívio ao ver que ele próprio enveredava pelo caminho desejado.

- Agora não pode recuar. Não acaba de declarar que será bom marido?

E sorriu, não ocultando a alegria.

Ficava ainda um assunto sem resolução. Huberto de la Saponaire, com a liberdade de linguagem que nele parecia habitual, foi o primeiro a abordá-lo.

- Só me resta falar-lhe agora da situação financeira da minha pupila.

Rodolfo sentiu-se corar, mas permaneceu calado, evitando o mais pequeno gesto que pudesse trair desdém intempestivo ou fazer acreditar em refreada alegria.

O outro notou a impassibilidade do rapaz e ficou admirado.

Empregou certa ênfase em bater as palavras.

- A morte de meu irmão e de minha cunhada, colocou Gilberta, sua única filha, na posse de uma fortuna de nove milhões... Após a minha morte, minha sobrinha herdará também tudo quanto me pertence, ou seja quási o dobro desta importância... Os bens de minha sobrinha são principalmente constituídos por propriedades: o domínio de la Saponaire, o de Varengeville, muitos prédios de rendimento em Paris e o palácio que os pais habitavam em Neuilly e que está devoluto há dois anos... Sua prima não lhe falou nisso?

O tenente pôde iludir a pergunta e respondeu apenas:

- De facto, sei!

- O que talvez não saiba é que o desejo de meu irmão foi sempre casar a filha sob o regime da separação de bens. Vê nisto algum inconveniente?

íntimo estremecimento abalara Rodolfo... Tal condição afigurava-se-lhe humilhante para a sua probidade. O orgulho impediu-o de deixar transparecer esse pensamento.

- Não possuo fortuna alguma; tome todas as precauções que lhe aprouver - observou com serenidade- A minha intenção não é malbaratar o dote de minha mulher, por isso torna-se-me indiferente um ou outro regime.

- Nesse caso, tudo vai bem: gosto de cousas claras e creio que abordei todos os casos... Ah! não!... Já me esquecia!

- De quê?

- A situação militar é pouco compatível com o género de vida que é obrigado a seguir... Deve velar pelos interesses de sua mulher e a sua presença será muitas vezes útil em Verengeville e na Saponaire.

- Nesse caso?...

- Há-de ser preciso pedir a sua demissão.

- Antes do casamento?

- Pois decerto!

De Fragon ficou interdito.

- Não tinha pensado nisso - redarguiu, vagarosamente- Gostava da minha profissão por si mesma. Por modesta que seja a minha situação, parecia-me preferível a qualquer outra. Esta última condição parece-me muito violenta.

Indeciso, meneava a cabeça.

Um relâmpago de dureza brilhou nos olhos do tutor que não era homem para admitir que a sua vontade fosse discutida.

- Reflectindo bem, há-de notar que se torna indispensável - observou com conciliadora bonomia.

Sofia de Fragon interveio.

- Emfim, meu caro Rodolfo, precisa de examinar outro ponto de vista; fora do exército terá toda a liberdade e disporá de muito mais tempo para se consagrar aos seus trabalhos, para os levar a bom caminho. Para servir a França e conseguir êxito não há necessidade de usar espada.

Fora tocado em ponto fraco.

- Tem razão - concordou o rapaz, sem dificuldade.

- Combinado?

- Combinado.

Os dois homens apertaram-se as mãos, como se acabassem de debater vulgar assunto e não um casamento... o futuro de duas existências.

- Agora, vou apresentá-lo a sua noiva.

E o velho fidalgo, com a mesma decisão, levou-os por uma enfiada de salas que atravessaram com ar indiferente, mas cujo luxo, a despeito do seu desprezo pelo dinheiro, se impunha contra a vontade de Rodolfo.

 

Na grande quadra artesonada de ouro, Gilberta aguardava, de pé, junto do fogão.

Muito alta no seu vestido sombrio e justo, de fisionomia grave, com o cotovelo encostado no mármore branco estriado de veios escuros, com a têmpora apoiada no pequeno pulso, parecia orgulhosamente feroz, fazer frente a alguma desmoralizadora visão.

A entrada das visitas mal lhe fez levantar os olhos. Mergulhada na sua altiva e calculada atitude, manteve-se direita, imóvel, com o desdenhoso vinco dos lábios a acentuar-se sob o olhar de Rodolfo que sentia pesar-lhe.

De facto, os olhos inquietos do rapaz pormenorizavam-na sem escrúpulos.

Mas viu-lhe o delgado e fino pescoço, a pele muito branca, a cintura elegante, sem magreza aparente e respirou melhor: a mulher que lhe destinavam faria uma distintíssima senhora de Fragon. Sentiu que, pela certa, viria a amá-la.

No entanto, a atitude de desdém, de que não desistia, excitou o amor-próprio do tenente e, feitas as apresentações pelo conde de la Saponaire, inclinou-se, um pouco frio ante a jovem que lhe fizera quási que imperceptível cumprimento.

Quando se indireitaram, o olhar de Gilberta cruzou-se com o do rapaz. Por muito rápido que fosse a troca de olhares, este julgara ver nas pupilas da rapariga como que um relâmpago de desafio. Já seriam inimigos?

Instintivamente surpreso, o oficial examinou melhor aquela que lhe destinavam.

Era realmente a primeira vez que se encontravam e ela era-lhe desconhecida por completo. Não podia, pois, aparecer-lhe como adversário disposto a medir-se com ela.

Os seus olhos tentavam de novo encontrar os da jovem, para se certificar de que nenhuma hostilidade lia neles, de facto.

Custara-lhe muito sentir que logo no primeiro minuto, era antipático à órfã.

Os olhos de Gilberta, porém, permaneceram obstinadamente fixos noutro ponto da sala, com tal afectação de indiferença que de Fragon, ferido no seu amor-próprio e sem sequer dar por isso, se escudou em rigidez um pouco afectada.

E as frases soaram entre os parentes, sem que Gilberta e o moço oficial parecessem perceber que se tratava deles. A pretensiosa frieza de um, só se igualava à impassibilidade do outro, e, sob essa máscara de mundanismo que se impunham por orgulho, os seus destinos ligavam-se.

Uma pergunta directa que o conde de la Saponaire formulou a Gilberta, provou pela rapidez com que viraram a cara para esse lado que se desinteressavam menos do que se dizia em volta deles, do que a sua atitude podia fazê-lo supor.

- Já te dei a conhecer, minha querida filha, a atenção de que és alvo por parte do senhor de Fragon e, depois de te haver consultado, julguei poder afirmar-lhe que o seu pedido seria favoravelmente acolhido por ti. Queres, neste momento, ratificar as minhas promessas e dizer-lhe directamente que consentes em partilhar da sua vida?

Gilberta fixou por minutos os olhos do tutor e afigurou-se a Rodolfo, que a observava, que os olhos tinham qualquer cousa de hostil, de odiento, até. Entretanto, muito senhora de si, a jovem voltou-se para ele e encarou-o tranquilamente, com o mau relâmpago das pupilas de súbito apagado sob aparente firmeza.

Após curto exame que pesou deveras sobre as quatro pessoas presentes, Gilberta quebrou o silêncio a favor do moço oficial:

- O meu tutor deu-lhe a conhecer os acontecimentos que antecederam a sua visita?

Eram as primeiras palavras que proferia; aquela voz pareceu a de Fragon meigamente cativante e em completo desacordo com a altiva atitude que aparentava.

Precisava de responder-lhe, mas o senhor de la Saponaire, fazendo ligeiro sinal, falou por ele.

- Disse tudo ao senhor de Fragon e está ao corrente de todas as tuas desgraças, minha pobre Gilberta.

Nem sequer olhou para o tio e, como se não tivesse ouvido as explicações que lhe dava, os olhos ficaram cravados nos de Rodolfo.

- É realmente verdade? Sabe tudo?

- Certamente - volveu com meiguice o oficial.

- Tudo... os factos... as circunstâncias insistiu.

- Tudo.

- E nunca voltará com a palavra atrás?

- Oh! - protestou Rodolfo - Como poderá supor!

Avisado pelo senhor de la Saponaire e persuadido de que Gilberta aludia à misteriosa morte dos pais, punha toda a alma no protesto.

- Nesse caso - disse ela lentamente - consinto em ser sua mulher... e oxalá a sua lealdade nunca possa esquecer a promessa de hoje!

A voz apagara-se-lhe ao pronunciar as derradeiras palavras, emquanto súbita angústia lhe crispava o fino rosto até então impassível.

Estendeu a ponta dos dedos a Rodolfo; quando este, porém, respeitosamente, ia tomar-lhos, ela fugiu com a mão e prorrompeu em soluços.

O conde de la Saponaire levantou-se bruscamente e com agastado estalido de língua, observou:

- Realmente, Gilberta, és pouco razoável. O momento é mal escolhido para tal crise de lágrimas.

A sua voz pareceu melindrar o amor-próprio da rapariga, que ergueu a cabeça e, nervosamente, enxugou os olhos avermelhados.

- Tem razão. Não devo chorar hoje; o futuro, seja qual for, nada pode reservar-me de pior do que o maldito passado.

E, de fisionomia calma e altiva, de novo apresentou a mão a Rodolfo.

- Perdoe-me... estas lágrimas são as primeiras e também as últimas que chorarei na sua presença.

De Fragon estava muito perturbado com esta rápida cena e, embora prevenido do carácter extremamente triste de Gilberta, não conseguia ter como natural aquela súbita crise de choro.

Nascia nele a desconfiança, sem que pudesse explicar as mil suposições que lhe passavam em caleidoscópio pelo cérebro enfebrecido por tantos acontecimentos inesperados.

Tomou a mão que a donzela lhe estendia e, apertando-a nas suas, interrogou por sua vez Gilberta, com sincera benevolência:

- Disseram-lhe que eu era pobre... muito pobre...

- Bem sei.

- E a-pesar-disso, podendo aspirar aos mais elevados destinos, consente em tornar-se a mulher dum modesto oficial?

- É a única vantagem que me concede a fortuna - replicou Gilberta, cujos olhos, a despeito da sua energia, voltaram a ensombrar-se.

- Não me conhece... ou pelo menos, muito pouco.

- Temos toda a vida para nos conhecermos... De resto, dizem-no muito bom, porque não hei-de ter confiança?

- Obrigado pelas suas boas palavras - agradeceu Rodolfo, premindo a pequenina mão que não largara -Mas, diga-me, e esta será a última pergunta que ouso fazer-lhe, é de livre vontade que aceita este casamento?

- Evidentemente - respondeu ela, um pouco ennervada com tal interrogatório.

Emquanto falava, tentava desprender a mão que ele já não largava.

Mas Rodolfo insistiu com pertinácia:

- Não exerceram sobre si qualquer pressão para lhe obterem o consentimento?

- Não, nenhuma.

- É então por sua exclusiva vontade que terei direito de chamar-lhe minha mulher?

- Sim. Desejo ver concluído rapidamente este casamento.

A-pesar-das afirmações de Gilberta, de Fragon não estava satisfeito. Muitas outras perguntas lhe acudiam aos lábios. Entretanto compreendeu que não podia insistir mais sem cair no ridículo, e aceitou a situação.

Prometia de si para si interrogar a tia Sofia. A despeito dos seus ares de ironia, era mister que ela falasse!

De momento, continuou a desempenhar o seu papel de impecável namorado.

A boca aflorou os afuselados dedos que continuava a segurar.

- Está lançada a sorte; sejamos amigos e tentemos ser felizes um pelo outro.

Ela teve um sorriso um pouco triste; depois para preencher o minuto de transição que ia seguir aquela intensa cena e preceder as frases banais entre ambos, examinou com discreto interesse o simbólico anel que Rodolfo lhe enfiara no dedo.

E foi a primeira que, com ar de perfeito mundanismo, cortou o incomodativo silêncio:

- Dois leopardos rompantes são as armas da Normandia, senhor de Fragon: dar-se-á o caso de que seja descendente de Rollão, o primeiro duque da Normandia?

 

- É, então, verdade que te casas, de Fragon Nesse fim de tarde o oficial procedia em casa a

minucioso cuidado de vestuário que se eternizava em pormenores de pueril garridice, emquanto Verlaines, moço tenente promovido na mesma data em que ele o fora, estendido no divã do quarto, seguia beatificamente com os olhos as volutas de fumo do cigarro que enrolara.

à pergunta do camarada, de Fragon respondeu lacònicamente:

- Caso.

- E abandonas o exército?

- Abandono.

O outro ficou pensativo por momentos e mormurou:

- É estranho.

De Fragon virou-se para ele:

- O que é que te parece estranho, Verlaines?

- Este brusco casamento e esta não menos brusca demissão.

- E, contudo, nada tem de divertido! - volveu rindo, o rapaz.

- Sim, meu velho - sustentou o tenente - é extraordinário! Não se casa assim e não se faz o que vais fazer, sem dizer água vai! Na mess surpreendeste toda a gente e todos me assediaram com perguntas, porque me julgaram ao corrente... o que, vista a nossa amizade, nada seria mais natural.

Um pouco de ressentimento transparecia no ligeiro tom que Verlaines empregava e de Fragon percebeu a amigável censura, fez um vago gesto de pesar e, incomodado, à procura de plausível explicação que não achava, absorveu-se na confecção do nó da gravata.

- Emfim - tornou Verlaines - não te quero mal pela discrição. Assim, poderia dizer-te que fazias caixinha e censurar-te amigavelmente pelo cuidado meticuloso que puseste em ocultar-me os teus projectos; sei, porém, que te dirigiria injustificada censura.

- Ora! - fez o noivo com certa surpresa - E donde provém a tua excelente confiança em mim?

- Muito simplesmente porque ainda há dois dias não pensavas em casar-te nem em deixar-nos. Olha, ainda anteontem de manhã me falavas dos teus trabalhos, do teu futuro e concluías alegremente que, em tudo isso, não vias lugar algum para uma mulher legítima e para o casal de meninos que contas pedir-lhe.

- Mudei simplesmente de opinião - redarguiu de Fragon com pálido sorriso.

- Sim, mas depressa demais! É isso justamente o que acho estranho!

Rodolfo guardou silêncio. A insistência do amigo torturava-o.

Verlaines adivinhou o tormento que fazia nascer com as suas interrogativas e, embora a sua curiosidade fosse iludida, cortou cerce o assunto importuno para abordar outro menos violento.

- Em resumo, meu caro amigo, se algum acontecimento abreviou a tua decisão, espero que não fosses tão estouvado que dispusesses assim bruscamente de toda a tua vida!... Seja como for, desejo-te sinceramente a maior felicidade possível e peço-te, por minha parte, que não esqueças os nossos longos dias de amizade, quando daqui partires definitivamente.

Certos laivos de comoção modificaram a máscula voz do moço oficial, e de Fragon que sentia grande afecto pelo bom companheiro, dirigiu-se-lhe e apertou-lhe fortemente as mãos que se estenderam para as suas.

- Pensava tão pouco esquecer-te, meu excelente Verlaines - disse-lhe afectuosamente - que contava pedir-te para me servires de testemunha. Será para mim grande prazer ver-te a meu lado nesse dia!

- Aceito - tornou o outro cuja fisionomia se abria jovialmente - E viva a noiva! - acrescentou atirando garotamente as luvas ao teto, para depois as apanhar no ar.

Durante o colóquio, de Fragon acabara de preparar-se.

Os dois oficiais deixaram o quarto e desceram. Na rua, separaram-se.

- Vais a Paris?

- O mais breve possível.

- Feliz mortal! Esperam-te com o coração tocando a rebate!

De Fragon sorriu.

- Ignoro se o coração pulsa em redobradas palpitações- volveu - mas estou certo de que me esperam. Para um noivo de há dois dias, não se deve ser exigente.

Apertaram as mãos e afastaram-se em sentido oposto.

De facto, esperavam Rodolfo no palácio da Avenida de léna, pois o senhor de la Saponaire escrevera-lhe um bilhete a lembrar-lhe que a sobrinha e ele o veriam com prazer sentar-se todos os dias à sua mesa.

Pela primeira vez, ia desempenhar junto de Gilberta o seu papel de noivo oficial e estava um pouco inquieto com a atitude que então devia tomar.

Iria ela manter o seu ar orgulhosamente desdenhoso do primeiro dia, agora que tinham passado quarenta e oito horas de reflexão e que se havia habituado à ideia de tornar-se sua mulher?

Em caso afirmativo, não sentia o coração perturbado, nem tinha qualquer desejo carnal, pois também ele não se encontrava disposto a quebrar o gelo que se lhe opunha.

Examinava-se intimamente e, pungido por se encontrar tão estranhamente frio, confessava-se sem vontade para mudar esta situação ou, simplesmente, encaminhá-la para outro lado mais agradável para ambos.

Acedera a este casamento sem ter feito esforço algum para o ver realizado e notava que aceitaria com o mesmo desinteresse - chamava-lhe leviandade - os acontecimentos que se seguiriam.

A atitude de Gilberta seria a sua, os seus desejos seriam satisfeitos sem que nada tentasse para os modificar: houvesse o que houvesse, julgava-se possuído de uma enorme força de impassibilidade e de indiferença.

A-pesar-disso, de toda a sua alma desejava que tudo se conciliasse o melhor possível e que Gilberta, inteligentemente, não destruísse a boa vontade que para ela ainda reservava, embora fosse pouca.

A sua chegada ao palácio foi notada com sorrisos cativantes dos criados com quem se cruzou, e por isso, deduziu com satisfação que estes reflectiam parte da opinião dos patrões e que o acolhimento que lhe reservavam seria melhor do que temia.

E, de facto, assim foi.

- Ande depressa, seu retardatário! – bradou amigavelmente o conde, indo ao seu encontro logo que o anunciaram.

- Atrasado - volveu amavelmente - E eu que receava ser indiscreto aparecendo tão cedo.

- Minha sobrinha lhe dirá como se enganou.

- Será realmente verdade, Gilberta, ter a felicidade de despertar o seu benévolo acolhimento?

Ela levantou-se e estendeu a mão para Rodolfo lha beijar.

- Pois, decerto que o esperava - respondeu com pálido sorriso.

Depois como se esse esforço a tivesse esgotado, deixou-se cair dolentemente sentada e, em silêncio, retomou o bordado em que trabalhava quando ele entrou.

Afectuosamente, o senhor de la Saponaire enchia a quadra com as suas perguntas banais e sem ligação:

- A que horas saiu de Versalhes?... Que trajecto tomou? Como é que o coronel recebeu a sua demissão?

De seguida, eram explicações confusas, excusadas ou muito extensas:

- Esta noite jantaremos os três em completa intimidade... Vi há pouco sua prima... O notário de minha sobrinha que foi também o de seu pobre pai, será amanhã dos nossos. Empenho-me em que ele se ocupe imediatamente do contrato... estes negregados notários nunca aparecem a tempo e horas...

E não parava de falar...

Mercê, porém, da sua verborreia, o tutor conseguiu fazer passar o intervalo que antecedeu o jantar e assim os noivos podiam à vontade calar-se e concentrarem-se nos seus pensamentos íntimos.

Nessa noite, Rodolfo pôde examinar Gilberta melhor do que na vez anterior.

Estudou-a minuciosamente, surpreso por encontrá-la tão completamente igual de atitude à que já lhe parecera e, contudo, tão por completo diferente pela nova impressão que lhe causava.

Mantinha a mesma rijidez, a mesma reserva altiva; sentia, porém, que tal rijidez era fictícia, que tal reserva não passava de máscara imposta por dignidade cuidadosa em se concentrar em si própria.

Tudo, a despeito da sua força de dissimulação, indicava o constrangimento e uma atitude estudada.

Os longos cílios baixaram-se vivamente sob os olhos perscrutadores do oficial, mas não conseguiam velar a enorme angústia dos grandes olhos assombreados que se desviaram dos dele.

E os lábios cerrados que só pareciam conhecer o vinco de irónicos sorrisos, não se distendiam tão firmemente se não para melhor ocultarem a amargura que acusariam ao natural.

Até esse silêncio, apenas cortado por monossílabos, era uma revelação para de Fragon. Mais indiscretamente ainda do que o porte, do que os olhos, do que os lábios, a voz, pelas suas inflexões, trairia o que tão ferozmente a alma teimava em calar.

Comovido com o pouco que descortinava nesse semblante feminino cujo esforço parecia tender à dissimulação, Rodolfo sentia que se tornava grave e inquieto.

Não conseguia meter-se na pele do personagem que incarnara: um homem de boa ascendência que desposa uma herdeira de boa família.

Era realmente para ele, oficialzinho sem dinheiro, sorte demasiado bela e procurava o ponto fraco daquela mirabulante aventura.

Dois dias a fio, terminado o serviço, fora a Paris, a casa de Sofia de Fragon, para a interrogar. A prima não se encontrava lá e o oficial debalde batera e esperara à porta.

Nesse jantar, em que devia estar todo entregue à alegria de se encontrar junto da sua rica e bonita noiva, de Fragon encontrava-se pensativo, de alma inquieta e suspeitosa ante o enigma que estava persuadido lhe ocultavam e que no entanto tinha o direito de conhecer.

Suposições injuriosas acerca da jovem lhe afloravam o espírito, e, sem querer, interrogou com os olhares a silhueta feminina.

Foi obrigado a reconhecer que nada, na pessoa ou na atitude da órfã, permitia tal suspeita. A fronte era tão pura, os grandes olhos tão rectos, o rosto tão ingénuo, a cintura tão flexível, que a mais leve dúvida redundaria em ultrage, e Rodolfo concordou em que era mister procurar noutra parte a solução do problema que o inquietava.

A refeição pouco se prolongou, a-pesar-do esforço do senhor de la Saponaire para distrair as visíveis preocupações dos convivas.

Passaram à sala, Gilberta precedia-os para lhes indicar o caminho, como se quisesse evitar o braço que Rodolfo ia oferecer-lhe.

O seu comprido vestido branco ondulava harmoniosamente em torno dela, deixando adivinhar ao mais pequeno gesto, o firme busto sobre ancas ainda juvenis.

De Fragon envolveu com satisfeito olhar a forma feminina que se destacava, muito clara, das sombrias ramagens de um reposteiro, desviado com a mão.

- É, de facto, uma bonita rapariga! - verificou agradavelmente lisonjeado, ao pensarem que se fosse sua esposa não passaria despercebida a seu lado.

Dentro em breve, na sala de fumo para onde se haviam retirado para acabar a noite, os dois ficaram sós durante alguns minutos, pois o conde fora chamado ao telefone.

A princípio houve entre ambos uns instantes de silêncio constrangido. Era a sua primeira entrevista, e a reservada atitude de Gilberta dificultava qualquer início de conversa.

Mas Rodolfo levantara-se, caminhava a reflectir.

Contra a sua espectativa, a sua natureza combativa revelava-se ao contacto da órfã. Agora, sentia a necessidade de conquistar aquela alma que lhe fugia, de obrigá-la a expandir-se, a confiar-se-lhe, a destruir, emfim, aquela atmosfera superficial e de mundanismo em que se envolvia.

E, de-súbito, dirigiu-se-lhe, meigamente:

- Gilberta!

Ela levantou bruscamente a cabeça:

- Que é?

A frase foi atirada com tanta rapidez que se percebia hostil.

De Fragon, a quem animavam generosas intenções, não quis dar pela secura do tom.

- Gilberta - volveu com voz persuasiva - visto que, num futuro próximo, devemos viver juntos a íntima existência de pessoas casadas, não acha, como eu, que, desde hoje, seria mais digno de nós quebrar um pouco esta impassibilidade que nos rodeia, esta fria correcção que fingimos?...

- Eu não finjo - atalhou ela com certa altivez. Esperava tão pouco aquela orgulhosa réplica que

não pôde disfarçar a estupefacção.

- Não finge - tornou pausadamente, como se estas palavras não lhe penetrassem no espírito.

- Não! - confirmou com o mesmo laconismo.

Rodolfo fixou em Gilberta, por longos momentos, o seu olhar triste que, contudo, nenhum despeito obscurecia.

- Nesse caso-tornou, muito calmo - perdoi-me ter ousado dizer-lhe isso, visto haver-lhe parecido injurioso. Perdoi-me e permita-me não acabar o que principiara a dizer-lhe... Â minha audácia poderia irritá-la mais.

Sorriu-se, escarnecendo de si próprio:

- Quando me lembro de que, prosaicamente, ia pedir-lhe que tivesse a bondade de prestar-se a que, ambos nós, soubéssemos conhecer-nos...

Por muito rodeada que fosse a sua leve censura, ferira o orgulho de Gilberta.

Surpreendida, carregou as sobrancelhas e encarou-o bem de frente.

Depois, com a voz subitamente mais meiga, observou com melancolia:

- Conhecer-nos! Mas parece-me que, realmente, nada temos a saber um do outro! O seu nome, a sua situação, a sua família, sei tudo isso. Que poderá dizer-me que eu ainda não conheça?

- Nada, de facto, pois que isso lhe basta.

O sorriso com que acompanhou tais palavras apenas lhe aflorou os lábios.

Tornara-se muito pálido, e, a despeito da sua vontade de ficar indiferente a tudo o que podia dizer e fazer essa mulher a quem não amava, sentia em si ferver o sangue perante aquela indiferença que lhe ofendia o amor próprio.

Esquecido das singulares condições que o haviam aproximado da jovem, a-pesar-da diferença das suas situações, acabou por deixar falar a alma.

Não seria seu dever interpor entre os dois alguma simpatia?

Rodolfo era, na verdade, um orgulhoso em quem, em qualquer circunstância, o amor próprio bradava muito alto.

Os que o conheciam na intimidade sabiam que, a despeito da sua susceptibilidade, possuía leal coração e alma generosa. Os outros, porém, admiravam-se muitas vezes da sua sombria altivez.

E foi esta que as palavras de Gilberta despertaram ineptamente. De Fragon julgou que o glacial acolhimento da órfã queria apoucar as suas pretensões de noivo. Não vinha ele com generoso fim de conciliação e de protecção, ao encontro de uma mulher que parecia infeliz, não era o primeiro a oferecer-lhe uma amizade de que se desdenhava?

Em tumultuosa onda, tudo isto se lhe apresentou no cérebro enfebrecido. Julgou-se grotesco e teve a rápida visão das suas boas intenções metidas a ridículo por Gilberta.

A sua calma afigurou-se-lhe injuriosa; o seu ar altivo irritou-o e, sem que a sã reflexão lhe corrigisse a desordem do pensamento, disse consigo que essa mulher se lhe tornava odiosa e que nunca conseguiria fazer dela definitivamente a companheira da sua vida.

Felizmente, o senhor de la Saponaire voltara e a sua entrada na sala cortou cerce estas tormentosas reflexões.

Rodolfo que sentia necessidade de estar só, longe daquelas pessoas de gestos calculados, aproveitou o ensejo para se despedir, a-pesar-das instâncias do conde para o demorar.

Foi muito digno no cumprimento que dirigiu a Gilberta, tomando a precaução de manter, entre ambos, certa distância, a-fim-de que esta não fosse tentada a estender-lhe a mão e de que ele não aparentasse solicitar-lhe tal mercê.

- Até amanhã! - despediu-se amistosamente o conde, ao separarem-se.

De Fragon não respondeu... pensava que o dia seguinte vinha longe e que daqui até lá muitas resoluções poderiam ser tomadas... mesmo a de nunca mais pôr os pés naquela casa!

 

- Meu tenente, está ali um paisano à sua procura. De Fragon que conversava com Verlaines, virou-se para o soldado, e, divertido com a familiar expressão de que este se servira, interpelou-o, sorrindo benevolamente.

- E tu conheces esse paisano?

- Não, meu tenente - respondeu o outro sem se desconcertar - Mas talvez o conheça... essa pessoa tem um auto bonito... até o coronel lhe examinou pormenorizadamente a carcassa.

- Ah! o coronel...

Bruscamente, o semblante do mancebo tornara-se sério:

- Civil, automóvel rico, o coronel... Vamos, não pode deixar de ser o tutor de Gilberta.

Despediu-se do camarada e, sem pressa, pensando em que talvez o conde de la Saponaire lhe fosse pedir explicações sobre a pouca solicitude que punha em voltar à Avenida de léna, chegou à grade do portão, através do qual brilhava o verniz deslumbrante da luxuosa conduite.

De longe, ao vê-lo acercar-se, o conde de la Saponaire, porque era de facto ele, fez amistoso sinal com a mão, e Rodolfo que não queria ficar atrás em amabilidades, apressou o passo para se lhe juntar.

- Rapto-o! - gritou o conde, à maneira de cumprimento.

- Não assim, volto do exercício.

O oficial mostrava a farda salpicada de poeira nalguns pontos.

- Mas, assim mesmo, está muito bem... De resto, se o largo, não tenho a certeza de tornar a encontrá-lo.

E como de fragon não percebesse a alusão e o olhasse interrogativo, explicou:

- Há cinco dias que não dá novas suas.

- Tenho estado muito ocupado - replicou lacònicamente o rapaz.

- Bem sei - volveu o conde com calma - Tem passado as noites a jogar o bridge com os camaradas.

Rodolfo sobressaltou-se e fitou o conde com uma surpresa mesclada de inquietação. Mas tranqúilizou-se ante a sua indulgente fisionomia.

- Vamos, meu caro, não se perturbe - dizia o conde a rir - Acabo de encontrar o seu coronel que sem nada lhe perguntar, me demonstrou admiração ao vê-lo aparecer nestas últimas tardes na mess.

Quanto ao resto sossegue. Não venho matá-lo; adivinho que alguma escaramuça houve entre si e minha sobrinha. Aquela estouvada não mede por vezes as suas expressões; de vez em quando chegam-me aos ouvidos certas cousas.

- Mas engana-se - volveu Rodolfo, generosamente- Gilberta para nada é achada nas minhas preocupações destes dias.

- Ainda bem, tanto melhor... embora a sua desculpa seja natural em tais circunstâncias.

- Afianço-lhe...

Sentia escrúpulos em esclarecer as dúvidas do tutor, insistia na sua negativa; o senhor de la Saponaire, porém, interrompeu-o, delicadamente:

- Seja! Devo reconhecer, aliás, que minha sobrinha observa a mesma reserva acerca do que se passou entre ambos. Notei, contudo, que a sua ausência a espantou nos primeiros dias; depois, esse espanto mudou-se em inquietação, a ponto de, ontem, a despeito dos seus grandes ares de indiferença, me dizer...

Deteve-se de-súbito e reparou que de Fragon, tendo entreaberto o capot, fingia interessar-se pelo motor.

Sacudiu a cabeça admirado e, com certa ironia, observou:

- Deve ser cousa muito mais interessante do que saber o que minha sobrinha poderá pensar, hein?

- Tem um belíssimo carro - respondeu o rapaz sem se desconcertar.

- Vamos, suba... Vai travar melhor conhecimento com ele ajuizando da sua rapidez.

E assim falando empurrava familiarmente o oficial para o auto. Mas aquele resistia.

- Não, francamente, não posso aparecer em sua casa desta maneira. Permita-me que vá mudar de fato e volto já.

- Pois sim, dou-lhe dez minutos. Onde mora? vou pô-lo à porta e espero-o.

De Fragon tomou assento no automóvel com ar sorridente.

- É um autêntico rapto! - bradou.

- O termo é adequado e, fazendo-o, obedeço aos íntimos desejos de minha sobrinha - respondeu o conde alegremente.

E acrescentou, com motejador lance de olhar ao oficial, que se calara:

- Se prestasse atenção ao que há pouco lhe dizia, saberia que minha sobrinha ontem estava com deplorável nervosismo...

- Quê? Gilberta está doente?

- Doente, não! Apenas mal-humorada... E ainda por sua causa.

- Estou pesaroso, mas não vejo em que pudesse ser-lhe desagradável.

- Isso é outra cousa! Sempre que a interpelava a tal respeito, mandava-me passear.

- Que lhe dizia o senhor?

- Admirava-me da sua insistência em não aparecer; quanto a ela, não admitia a minha estranheza...

- A sua sobrinha tinha razão. a minha ausência era muito natural! - replicou friamente.

- Pois parece que não! - exclamou o tutor, com a mesma descuidosa bonomia - Hoje, Gilberta censurou a minha indiferença a seu respeito.

De Fragon fitou o companheiro. Perguntava de si para si se não estaria a mangar. Mas, com a maior tranquilidade possível, o conde continuava as suas confidências:

- Sim... dizia que podia estar doente ou aborrecido com o seu serviço... o meu dever, ao que parece, era informar-me... Em resumo se Gilberta não me pediu para vir procurá-lo, pelo menos achou muito natural que me decidisse, por fim, a vir saber de si.

- Seriamente Gilberta inquietou-se por minha causa - admirou-se Rodolfo, Sem querer, a sua impassibilidade diluía-se, e obscuro prazer de desforra fermentava nele à ideia de que a orgulhosa Gilberta pudesse apoquentar-se a seu respeito.

De antemão, contava com o seu triunfal e irónico acolhimento às boas vindas da sua noiva... Oh! que belo sorriso sarcástico a contrapor às desdenhosas atitudes!... E a íntima satisfação que ele sentia em só aparecer junto da jovem por esta o mandar procurar!

Tinha a impressão de haver alcançado vitória, importante vitória! Mas, em troca, não se apercebia de que também se inquietava a respeito de Gilberta. Havia cinco dias que andava enfadado, que não deixava de pensar nela, perguntando de si para si quais poderiam ser os seus sentimentos, os seus pensamentos e os seus pesares...

Julgava-se muito forte com o seu êxito e toda a sua vaidade se expandia à lembrança do resultado obtido; contudo, quando se encontrou diante da noiva, lhe viu a tristeza dos grandes olhos assustados que se esforçavam por sorrir ao vê-lo e notou o círculo azulado das pálpebras inchadas por prantos recentes, não teve coragem para gozar o seu triunfo.

Só viu na sua frente uma criatura muito fraca, vergada sob misteriosa fatalidade e que devia ser realmente desgraçada.

E, embora não lhe fosse permitido sondar-lhe o sofrimento nem profundar-lhe as causas, não experimentara por isso menos compaixão por aquela que o sentia.

Os seus dedos mal tocaram a mão que ela lhe estendia e, contra o seu costume, não levou essa mão aos lábios. Foi, aliás, o único sinal de rancor que nessa noite manifestou.

 

- O senhor Delarnois pergunta se o senhor conde quere ter a bondade de lhe conceder alguns minutos de atenção.

De la Saponaire voltou-se para o criado, e, em tom agastado, bradou:

- Outra vez? Que me quere? E naturalmente, disseste-lhe que eu estava...

E, emquanto reverente, o lacaio curvou a espinha com vagas palavras de desculpa, o conde acrescentou para Rodolfo:

- Delarnois é o meu procurador. É fino e esperto, mas tem a mania de me falar de contas que não entendo. As cifras de Delarnois nada têm de aperitivo, afianço-lhe!

Encolheu os ombros e, resignadamente, encaminhou-se para a porta.

- E justamente, agora que estava com um apetite devorador! Esperem por mim, meus filhos, volto já. o tempo de o mandar embora...

Afastou-se e os dois ficaram sozinhos mais uma vez.

De Fragon, aborrecido com aquela entrevista que não desejara ter com Gilberta, encolhia-se, descontente, no fundo da poltrona.

Como resolvera não sair da vulgaridade na conversa com sua noiva, perguntava de si para consigo, com que insípida banalidade iria principiar, quando, meiga e firme a voz de Gilberta foi a primeira a fazer-se ouvir com grande espanto seu:

- Sinto-me contente com a tardia visita que meu tio recebe, pois me permite ficar a sós consigo.

Não acreditava no que ouvia!

- Eu próprio também me sinto encantado!

O tom friamente delicado com que proferiu tais palavras fez com que o fitassem dois olhos suplicantes e inquietos.

- Projectara perguntar-lhe qualquer cousa, senhor de Fragon... qualquer cousa, mas só a si...

- Estou às suas ordens-replicou Rodolfo mais meigamente e muito surpreendido por vê-la corar na sua presença.

- A pergunta que tenho a dirigir-lhe é delicada, difícil de formular. Seja suficientemente bondoso para compreender o meu desejo por meias palavras e, sem me pedir explicações que lhe não são estranhas, mas que me custaria muito a dar-lhe...

O oficial inclinou-se em sinal de assentimento, fingindo voluntariamente não parecer interessado com o preâmbulo, e com o mesmo ar impassível e correcto, volveu:

- Sou todo ouvidos.

Gilberta agradeceu-lhe num sorriso, indicou-lhe uma cadeira mais perto e, com soberana calma que o rubor súbito das faces desmentia, prosseguiu:

- Os nossos esponsais são tão recentes que, realmente, seria para admirar ter já marcado a data do nosso casamento. E é disso, contudo, que desejo falar-lhe.

- Será aquela que lhe aprouver e afastada quanto a sua vontade o desejar.

- Afastada, não... pelo contrário!

Ele fez um movimento que não pôde evitar e que se reflectiu no bonito semblante da órfã em penosa contracção.

- Sim - tornou Gilberta, com menos firmeza - Eu desejo bastante abreviar a data... Deve calcular a minha atroz situação... Só vejo pesadelos... Emfim...

Calou-se e, sob os olhares estranhamente interrogativos de Rodolfo, concluiu em derradeiro esforço:

- Emfim, não posso viver com meu tio! É tormentoso, insustentável... de uma pessoa endoidecer!... É sofrimento superior às minhas forças! Tentei, mas já não posso mais.

- Pois quê? O senhor de la Saponaire tem o condão de assim a aborrecer - bradou estupefacto.

- Mais do que possa imaginar - confessou Gilberta.

De Fragon não podia acreditar.

- Parecia-me excelente pessoa - observou.

- Também assim o julguei durante muito tempo; mas, agora, conheço-o.

Centelha de ódio lhe brilhou no olhar de rainha.

- Oh! estar longe dele, seja onde for, mesmo na miséria! Tudo é preferível à minha vida actual.

Permanecia direita e imóvel ao falar, mas, contra a sua vontade, as lágrimas subiam-lhe aos olhos e nervosa tremura lhe agitava todos os membros.

De Fragon olhava-a perturbado. Nada percebia...

Nem lhe compreendia as palavras ambíguas, nem os inexplicados queixumes, nem sequer a violenta comoção que a tomava à lembrança de viver mais tempo junto do divertido tutor. E tudo isso era de tal maneira oposto às vis suspeitas que, por momentos, lhe acudiam ao cérebro, que se sentia quási satisfeito de ver as suas suspeições tomarem por outro caminho.

No princípio da conversa, esperava que alguma luz brotasse das explicações de Gilberta e lhe desvendassem um pouco o mistério que sentia pairar à sua volta.

Mas nada! O enigma, se é que o havia, permanecia mais indecifrável do que nunca... a menos que ela não pudesse estar dependente de um parente cujo verdadeiro carácter ele desconhecia...

Conservava-se calado, petrificado nos seus pensamentos obcecantes...

"-Que queria dizer tudo isto? Qual a razão de tal inimizade entre tio e sobrinha, entre tutor e pupila?"

As suposições formulavam-se-lhe rapidamente no cérebro que se encarniçava em descobrir a verdade.

Julgou estar na pista ao suspeitar de alguma questão de interesse, como há por vezes nas famílias. O tutor tinha talvez a mão pesada quando se tratava dos interesses da pupila e Gilberta, de-certo, não lho consentia.

A menos que se tratasse de uma questão de incompatibilidade de génio, mas o senhor de la Saponaire era jovial, quando a órfã parecia comprazer-se em pensamentos tristes.

Emfim, essa rapariga tão reservada, tão concentrada, seria capaz de amar e de se fazer amar?

Havia também o caso dos pais mortos acidentalmente...

De Fragon, de-súbito, sobressaltou-se. Acabava de lembrar-se de que talvez Gilberta suspeitasse de que o tutor se encontrava envolvido nessa morte...

Justamente, desde o início do seu colóquio, suplicou-lhe que não a interrogasse e que a compreendesse por meias palavras.

Estava então persuadida de que ele conhecia o assunto?

Ora do que ele estava ao facto, era somente da misteriosa morte dos pais de Gilberta.

Assim, era desse caso que se tratava quando falou com ódio do seu tutor e do desejo violento que sentia em fugir-lhe.

Mas o tio achar-se-ia envolvido nesse drama? Rodolfo teve imediata vontade de interrogar a noiva a este respeito. Percebia que devia estar aí a solução do enigma que procurava.

Mas, precisamente, o senhor de la Saponaire tinha-lhe recomendado que não evocasse esse doloroso caso na presença de Gilberta.

E de Fragon era generoso de mais para provocar-lhe voluntariamente qualquer desgosto; e delicado demais também para a obrigar a formular em voz alta as suspeitas que nem ela própria ousaria esboçar em pensamento.

Entretanto, essas reflexões fizeram bem a Rodolfo, porque lhe mudaram as ideias para verosímil pista, completamente alheia às vis suposições que a princípio julgara possíveis.

Como o seu devaneio se prolongasse, Gilberta interpelou-o com voz firme, embora aborrecida por insistir:

- Não me respondeu, senhor de Fragon. Posso contar consigo?

com o voo dos seus pensamentos bruscamente cortado, fitou a jovem.

E, contente por melhor lhe compreender a atitude, sorriu:

- Que tudo se faça consoante os seus desejos. Casar-nos-emos o mais breve possível. vou daqui a pouco falar no assunto ao senhor de la Saponaire.

- Agradeço-lhe e conto consigo para lhe fazer abreviar o prazo.

- Farei tudo quanto puder para isso.

Ela teve pálido sorriso de agradecimento. De seguida, mais confiante, conversou sem rispidez.

- Meu tio disse-lhe que tratara do seu caso com o ministro? Os seus negócios estão agora regulados; a sua demissão vai ser aceite e, na espectativa, uma licença excepcional libertá-lo-á de todo o serviço.

- Bem sei; o conde trocou comigo algumas palavras. Graças à sua amável intervenção, a autoridade militar não fará demorar os nossos projectos.

- Então, acha que será possível dentro de quinze dias... ou de três semanas?...

- Quinze dias? Mas isso é um prazo muito curto e não terá tudo pronto! Os seus vestidos, o seu enxoval, os convites, a cerimónia... Tudo isso vai levar tempo infinito!

E era o primeiro a assustar-se com o curto prazo, quando ela parecia encará-lo com serenidade.

- Mas sim - insistiu - Tudo pode estar concluído nessa data. Os vestidos e o enxoval estão encomendados. Os convites podem enviar-se logo que a data seja fixada... amanhã, por exemplo-. Quanto ao resto, há importantes casas em Paris que se encarregam de todos os pormenores; é muito menos fatigante e muito mais agradável que tudo decidir por si próprio.

- Sim, de facto, se prefere que outros tratem do assunto.

Espantava-se por ver a jovem milionária inquietar-se pouco pelas múltiplas preocupações do mundano enlace. Parecia até descurar muito as diversas e sucessivas cerimónias que precedem o dia nupcial.

E ele recordou-lhe a sorrir:

- E os esponsais oficiais, o contrato, a exposição do enxoval, o casamento civil? Pensou em tudo isso?

- Não - confessou ela francamente - Mas isso não tem importância alguma. Estou de luto por minha avó materna, falecida há quatro meses, e conservamo-nos em estrema reserva... Quanto. ao jantar dos esponsais realiza-se depois de amanhã.

- Ah! - interrompeu ele - não sabia.

E sorriu ironicamente. Achava deliciosa a ignorância em que o haviam deixado de cousa tão importante.

Ela pareceu surprendida.

- Realmente, meu tio nada lhe disse?... Resolveu de-repente esse jantar; estaremos numa relativa intimidade: uns trinta talheres, apenas. Depois, no sarau...

- Também haverá sarau? -inquiriu com o mesmo tom irónico.

- Sim, um baile, um lanche e não sei se mais alguma cousa ainda!... Só os amigos, duzentas pessoas, o máximo...

Ele calava-se, não querendo precisar os pensamentos que o seu orgulho de novo lhe fazia nascer:

- E para que contar com a opinião de um noivo que nada tem de seu Há necessidade de resolver com ele datas ou preparativos para uma festa, visto não ser ele quem paga?

De facto, fosse o senhor de la Saponaire ou a pupila quem resolvesse tudo aquilo, o caso é que pouco se incomodavam com ele!

Sem que desse conta dos pensamentos de Rodolfo, Gilberta prosseguiu:

- Eu não queria esta festa... Invoquei o meu luto e o encanto da intimidade. Meu tio não perfilhou a minha opinião... pretende que a sociedade criticaria a demasiada reserva e aparentaria casar-me clandestinamente, como rapariga culpada que desposa o seu cúmplice.

De Fragon examinou-a por momentos, perguntando a si próprio onde a imaginação de Gilberta a levaria, para poder distinguir a realidade das cousas de que com tanta naturalidade falava.

- O senhor de la Saponaire tem razão - observou apenas - A sua situação de família obriga-a a certas praxes sociais; não pode derrogá-las.

Gilberta sorriu.

- Então, visto que é também do seu parecer, só tenho que curvar-me perante as vossas duas vontades.

Quando concluiu, entrou o senhor de la Saponaire.

- Depressa, para a mesa, meus filhos! Conversaremos emquanto comemos. Acabo justamente de resolver muitas cousas a vosso respeito.

 

- Até que finalmente a encontro em casa, prima! Já são três vezes que em vão venho bater-lhe à porta.

- Se lhe não respondi, meu excelente primo, é porque aparentemente não estava cá. A menos que

- acrescentou com certo arzinho de zombaria - não suspeite de que não o quis receber.

- Francamente - replicou de Fragon, um pouco agastado - não sei o que possa supor. Então, para ter a certeza de a encontrar hoje, arranjei uma licença que me dá a vantagem de vir a sua casa em hora inesperada.

- É um feliz mortal, Rodolfo - observou sem se comover com a impertinente suspeita - senhor de la Saponaire dar-lhe-ia a lua, se pudesse fazê-la despendurar pelo coronel.

- Lamento que se desiluda, minha prima - replicou friamente de Fragon - Foi o comandante Marron que me disse para partir hoje, e creio que se não pudesse deixar Versalhes de dia, estaria de sentinela toda a noite, à sua porta, contanto que a visse.

- É assim tão urgente o que tem a dizer-me?

- Se é!

E sentando-se, visto que a sua velha parente não o convidava a tal, observou, trocista:

- Incrusto-me em sua casa, prima.

- Bem vejo - respondeu rindo - Você é dos tais que nunca deixa uma tolice em meio.

Rodolfo sobressaltou-se.

- É tolice vir visitá-la?

- Não, mas adivinho... Acha a posta grande de mais e, antes de a trincar, quere saber com que molho foi preparada. Ora aqui é que está a tolice.

- Não vejo porquê - protestou - A minha dignidade...

- Deixe dormir em paz a sua dignidade, meu caro Rodolfo. Esquece-se de que no outro dia estava com a corda na garganta. Precisava de vinte cinco mil francos para esse dia, ou era o suicídio. Era um belo achado semelhante soma, e não houve falsa dignidade em pedir-ma e aceitá-la da minha mão. Parece que bocado engulido já não tem sabor! Agora que a dívida está paga, está disposto a renegar as nossas convenções e a deixar-me mal colocada para o reembolso que me incumbe.

- Perdão! volveu indignado - Atribue-me sentimentos que não possuo.

- Então que vem aqui fazer? O senhor de la Saponaire não me ocultou a sua falta de assiduidade junto da pupila. Deve tornar a ir a Versalhes.

- Mas é precisamente por causa disso que venho falar-lhe.

- O que quere dizer - obtemperou a prima Sofia, desconfiada.

- Preciso que me dê algumas explicações...

- A tolice que eu previa! Quere conhecer o molho.

- Pois claro que sim. De resto, é muito natural!

De Fragon ennervava-se. E, contudo, prometera-se permanecer calmo e forçar friamente Sofia a explicar-se; mas a ironia da prima punha-o fora de si.

- Sabe que os esponsais se realizam amanhã - volveu.

- E já não são cedo - respondeu ela satisfeita.

- Pois a mim parece-me cedo de mais!

- Sempre o seu mesmo ponto de vista: bocado graúdo de mais...

- Mas, emfim, o que é que oculta semelhante urgência?

- Gilberta não lho disse? -redarguiu a velha, prudentemente.

- Aludiu à sua desharmonia com o senhor de la Saponaire. Tem pressa de estar longe dele...

- Compreendo-a um pouco. Não deve ser cómodo todos os dias, o tutor!

- Não é razão - replicou de Fragon, num encolher de ombros - Pode fugir-se de um tio severo, sem para isso comprometer a sua vida com um homem a quem não se ama... que até se despreza, porque ela não aparenta ter por mim elevada estima, a sua Gilberta.

- Não avance mais, meu excelente primo protestou Sofia de Fragon, indignada - A sua noiva é demasiado altiva, é indiscutível verdade, mas não o teria aceitado, se tivesse o mais pequeno desprezo pelo seu carácter.

- Nesse caso... -notou desapontado - Crê realmente que não lhe sou desagradável? - acrescentou, já reconciliado com esta ideia.

- Você convem-lhe, afirmou-mo ela.

- Se assim é, porque se distancia tanto?

- Não pode atirar-se-lhe ao pescoço: tem que respeitar a dignidade feminina.

- Mas a sua frieza, a sua tristeza, os seus silêncios indiferentes? E depois, em suma, esta pressa?

E fez um gesto de dolorosa dúvida.

Rodolfo estava cheio de boa vontade para levar a bom termo esse casamento que aceitara num momento de inexprimível angústia moral. Estava até resolvido a amar essa rapariga, cujo físico correspondia ao seu gosto. Queria, porém, fazê-lo livremente, com toda a tranquilidade de espírito e não sob a desmoralizadora influência de uma incerteza constantemente renovada.

- Afianço-lhe, prima, que ando mal disposto com este casamento. A minha cabeça trabalha, faço suposições desagradáveis para mim e injuriosas para minha noiva. Isto assim não pode continuar...

Sofia dirigiu-se-lhe e pôs-lhe amistosamente a mão no ombro.

- Nada compreendo dos seus tormentos, Rodolfo

- tornou Sofia, com compaixão não fingida, porque as revoltas desse rapaz lhe faziam pena - Tem a sorte de desposar uma herdeira rica: todos os homens anseiam semelhante casamento e muito poucos o conseguem. Visto que a sorte lhe é favorável, porque não rejubila?

- Porque nada posso contra o meu carácter orgulhoso e susceptível - confessou humildemente

- É mais forte do que eu! A minha dignidade revolta-se... talvez sem motivo. Afigura-se-me também que a minha consciência protesta e, no entanto, nada tenho a censurar-me, salvo essa dívida de jogo que a prima satisfez. Perdôi-me recompensar tão mal os seus esforços... devo parecer-lhe ingénuo ou criança ou, ainda, um ingrato; mas, francamente, vinte vezes por dia me sinto com vontade de acabar com tudo.

- Seria grossa asneira, Rodolfo, que lamentaria toda a vida.

- Sim... bastas vezes o digo comigo. Aqui tem porque quis falar-lhe. É preciso que me liberte da dúvida que me tortura.

- Que quere saber? -perguntou.

- As verdadeiras razões que me fizeram admitir nessa família.

Sofia de Fragon fitou-o inquieta. A exaltada natureza do primo fazia-lhe recear explosão. Precisava responder-lhe com toda a prudência, se queria esse casamento realizado. E, além disso, justamente, empenhava-se nessa união que restituiria aos de Fragon o antigo esplendor.

- A necessidade de casar Gilberta faz-se sentir há alguns meses - respondeu - Há completa desharmonia entre ela e o tutor.

- Desde a misteriosa morte dos pais?

- Precisamente-afirmou, ao recordar-se das explicações dadas ao oficial pelo senhor de la Saponaire.

- Gilberta julga-o metido nesse drama? -Foi talvez o seu causador...

A velha parente sobressaltou-se. Nunca encarara semelhante eventualidade. Mas, em tal terreno, era preciso ainda poupar a susceptibilidade do oficial.

- Não sei ao certo o que supõe Gilberta - explicou com circunspecção - Essa rapariga é muito concentrada, muito sombria... Verdade seja que pensa muitas cousas que não diz...

- Confessou-me que já não podia viver com o tutor.

- E não lhe oculto, Rodolfo, que o senhor de la Saponaire está farto da pupila até à raiz dos cabelos e encantado por se descartar dela.

Rodolfo sorriu. Mais uma vez a alma se lhe aquietou. Cousa surpreendente Não lhe parecia que pudesse sofrer o mau humor da órfã.

- É linda a prenda que me oferece o tutor, se Gilberta tiver génio terrível! - observou jovial.

- Porque se havia de mostrar desagradável consigo? - observou meigamente - Nada tem com as questões familiares nem com as desharmonias de interesse; nunca lhe conheceu os pais... Emfim, não creio que ela seja da essência bulhenta: as amigas dizem dela o melhor possível e estimam-na deveras, os pais adoravam-na. Só o tio é que chocou com a sua antipatia.

- Sim, e deve ser difícil saber donde provém os agravos.

- Gilberta é altiva de mais para acusar um parente... Mais tarde, com toda a certeza, se abrirá consigo. Precisa de ter paciência, Rodolfo, mas creia, afora essa questão íntima, que não deve tentar desvendar por emquanto, nada há que deva inquietá-lo.

O oficial pareceu satisfeito com tal afirmação. Acreditou firmemente em tudo quanto a velha prima lhe garantia; sem sequer notar que, sem dar por isso, ele próprio dirigira as respostas da tia Sofia.

 

O sarau dos esponsais estava no auge, na principesca moradia dos la Saponaire, transformada de-súbito, como sob o toque da varinha mágica, em palácio das Mil e uma noites.

A ampla sala, habitualmente severa nos seus pesados panejamentos murais, aparecia, nessa noite, deslumbrante pelo dourado reflexo das grinaldas de luminosas flores, dispersas aos milhares.

Do lustre eléctrico tombavam ondas de tons cintilantes que afogavam as mulheres decotadas e os homens em trajo de cerimónia.

Aos bizarros sons de exótica orquestra que executava febris e ennervantes valsas, os vestidos claros estreitamente abraçados às casacas, giravam docilmente em perfeita harmonia de movimentos deslizantes e flexíveis.

Parado no vão de uma janela que compridos cortinados ocultavam em parte, Rodolfo seguia com olhos sonhadores os pares dançantes.

Indispensável comparsa da comédia mundana que se representava havia já algumas horas, sentia-se espectador indiferente e alheio a toda aquela gente reunida, contudo, por sua causa.

Fatigado, rememorava a recepção, a apresentação oficial, as vagas palavras trocadas com sua noiva sentada a seu lado, durante o banquete, emfim, os exagerados cumprimentos que todos julgavam dever dirigir-lhe, e verdadeiro cansaço lhe ficara por ter suportado tudo aquilo sem encanto e sem grande interesse.

Nunca, desde que frequentava a Avenida de léna, se sentira tão estranho e tão afastado de Gilberta, como nessa noite em que todos se compraziam em juntar os seus dois nomes e em gabar a união dos seus destinos.

De longe, avistava-a, noutro extremo da sala, conversando animadamente num grupo de senhoras que a cercavam.

Aparecia-lhe muito formosa no vestido de musselina branca que a envolvia como nuvem diáfana. Apercebia-se de que era desejável e digna de ser amada com ardor... No entanto, por muito raciocínio que tivesse, não conseguia harmonizar a sua alma com a razão.

Gilberta fora a tábua de salvação aceite em hora crítica; por necessidade introduzira-a na sua vida; mas, a-pesar-da gratidão que quisera sentir a esse respeito, a jovem ficava sempre para ele aquela que lhe fora imposta, aquela que não escolhera, aquela, principalmente, que parecia desdenhar os seus modestos esforços de conciliação.

Nas poucas visitas que os aproximaram, desde o primeiro encontro, nada brotara entre ambos que lhe apertasse o laço que ia uni-los.

A sua visita a Sofia de Fragon dissipara por completo as inquietações do oficial, mas não o tinha aproximado dela cujo carácter concentrado e melancólico não se prestava a efusões.

Rodolfo quisera sentir pela noiva outra cousa que não fosse indiferença; maldizia-se por não experimentar melhores sentimentos, e o seu ódio recaindo sobre ela, acusava-a de não ter sabido fazer-se amar.

De facto, notava que ambos iam para o casamento como dois companheiros de escravidão que nenhuma afinidade liga e que são obrigados a suportar, sem revolta, em vez de prazer, a sorte que lhes é imposta.

De-súbito estremeceu.

A tia Sofia, sua velha parente, estava diante dele.

Porque se põe assim tão à parte, meu excelente sobrinho? E que significa esse ar lúgubre?

Chegava em má ocasião. Os pensamentos de Rodolfo não predispunham a muita benevolência para aquela que lhe preparara o casamento.

Ficou ennervado ao vê-la junto de si e respondeu com risada motejadora que era agressiva.

- A alegria! Sinto-me esmagado pela felicidade!

- Assim o espero! - replicou sem lhe perceber o ar trocista - Gilberta é encantadora e toda a gente o inveja.

- Sim! a fortuna brilha em volta dela. A velha sacudiu a cabeça, descontente.

- É um verdadeiro ingrato! E, o que ainda é mais, um terrível egoísta. Muito preocupado com o alto valor moral que se julga, desconhece o lado bom das pessoas e das cousas. Gilberta merecia melhor marido do que um oficialzinho pobre e ainda em cima endividado! Acredite, meu pobre amigo, não se iluda com o cavalheirismo dos seus escrúpulos; pode embrutecer e arrisca-se muito a ver voar os milhões que lhe interessam mais do que quere fazer parecer.

Satisfeita por lhe haver feito presente daquele ramo de cumprimentos, deixou-o com uma gargalhadinha seca que se assemelhava ao ranger de matraca.

Rodolfo não teve tempo para se refazer de tão singular zombaria.

Uma voz feminina, cujas inflexões altivas principiava a conhecer, soou por detrás dele.

- Nada amável, a prima! - dizia Gilberta surgida não se sabe donde.

De Fragon sentiu-se empalidecer, porque, logo, se lhe impôs ao espírito esta certeza!

- Ouviu tudo!

O seu másculo amor próprio sangrava a tal pensamento. Ainda sob o golpe das más palavras da velha, imaginava o ridículo em que ia cair no espírito de Gilberta.

Incapaz de proferir palavra, virou-se para esta.

com misterioso sorriso, com as sobrancelhas desviadas em expressão de acentuado desdém, olhava para Sofia, que se afastava. Depois pausadamente, pôs os olhos em Rodolfo, sem que o divertido vinco dos lábios se corrigisse.

Por instantes, os dois jovens examinaram-se curiosamente, e, de-repente, o riso de Gilberta estrondeou, quási infantil, com grande espanto do oficial que estava habituado a vê-la sempre triste.

- Suponho que lhe estava a pregar algum sermão! Era engraçado! O senhor ouvia-a, assustado e pregado ao chão. Ora, vamos, senhor de Fragon, ajoelhe-se a meus pés para lhe dar prazer; ela possui tão nobres sentimentos que bem lhe deve isso!

Mas o seu ar subitamente travesso não se modificava e a fisionomia conservava-se-lhe séria. Rodolfo perguntava, então, de si para si, qual a parte da gaiatice ou zombaria que havia nas palavras de Gilberta.

- Nunca ajoelhei senão ante uma única mulher

- volveu ele com gravidade.

- E era?...

- Minha mãe.

- Quando era pequenino?

- Sim. Perdi-a muito novo e há já muito tempo. Pairou um silêncio; depois, Gilberta perguntou, quási provocante:

- E diante de mim nunca ajoelharia? -Não.

- Nem com o prestígio dos meus milhões? insistiu menos ousadamente.

- Principalmente por causa da sua fortuna.

Os seus olhares encontraram-se por momentos e, mais comovidos do que queriam parecer, ambos procuravam nas pupilas um do outro os íntimos pensamentos que os lábios tão ferozmente calavam.

Mas entre ambos interpunha-se o orgulho intenso e afivelaram mutuamente uma máscara de indiferença.

- Assim - tornou Gilberta, após curta pausa - não admite que uma rapariga rica possa ser amada?

- Admito. Toda a mulher possui encantos e tesouros de ternura que merecem atrair a afeição sincera... com a condição, contudo, de que queira tornar-se amável...

- E eu não o quero? - inquiriu com voz trémula.

Ele fez vago gesto, olhou-a com fixidez, mas guardou silêncio.

- Quem cala, consente! - observou Gilberta despeitada.

Rodolfo não protestou e ela sentiu-se corar.

Continuava a sorrir, mas a boca crispava-se-lhe e, no rosto, tão animado havia pouco, tornou a aparecer-lhe a máscara da amargura.

- Esperas algum amor deste marido escolhido por teu tio, minha pobre Gilberta? - dizia consigo- não te iludas; quási não há probabilidades de felicidade para ti: este ou outro homem! Sê fatalista.

Ficaram perto um do outro, aparentemente unidos numa mesma comunhão de ideias, mas não mais falaram.

E, de olhar perdido, enlevados em desconhecidos sonhos, tentando acompanhar pensamentos perturbantes, encontrar sensações novas, deixaram correr minutos silenciosos.

No outro extremo da sala, uma velha que os examinava, inclinou-se para a vizinha e observou convicta:

- Ora, repare nos noivos! Como são gentis! E como parecem enamorados:

- Sim, um verdadeiro par de amorosos!

 

- A menina espera pelo senhor no seu quarto... Recomendou-me que fosse lá, logo que chegasse.

Um pouco admirado, Rodolfo seguiu em silêncio a criada grave, que lhe fez subir dois andares.

Perguntava a si mesmo que imprevisto acontecimento podia ter resolvido a noiva a esta intimidade tão fora do costume.

Era a primeira vez que penetrava nos aposentos especialmente destinados a Gilberta, e a sua surpresa tomava certo tom de curiosidade.

Soou juvenil voz, quási alegre, saudando a sua chegada, desde que passou a porta da minúscula sala forrada de seda azul e com mobília de laca branca.

- Venha depressa, senhor de Fragon! Estou contente por vê-lo esta tarde; receava que só viesse à noite.

Após breve relance de olhos em sua volta, Rodolfo encaminhara-se para o quarto contíguo donde partira a voz. À porta, parou, indeciso.

Gilberta, de joelhos, no meio da casa, guardava numa maleta pequenos objectos de toucador.

- Como vê, partimos!

- Para onde?

- Para a Normandia... para Jumièges. Minha tia du Flovert acaba de falecer.

E, com a mão, indicava-lhe os vestidos pretos em cima da cama, muito baixa, que se via atrás dela.

- Estava doente? - perguntou delicadamente.

- Doente? Não. Quero dizer que sofria há muito porque era velhinha.

- Nesse caso, essa morte não a surpreende muito.

- Oh, não! Calcule: oitenta e dois anos! Já o esperávamos.

- E foi hoje de manhã que soube?

- O administrador telegrafou-nos... Morreu de-repente a noite passada, reza o telegrama.

- Vivia só?

- Sim, no fundo de um solar que cheira a bafio no inverno e a queimado no verão. Recusava fazê-lo reparar e as torrezinhas estão todas arruinadas... Entretanto verá como, a-pesar-disso, a casa tem bela aparência. Torná-la-emos régia residência.

Deteve-se, virou-se para a criada grave que silenciosamente lhe estendia um monte de rendas.

- Mas eu não preciso de tanta roupa! É só ir e voltar.

E, após uma pausa:

- Agora, Hortense, telefone à modista. Não sei a que atribuir a sua demora.

Depois de dada esta ordem com brevidade, tentou, de lábios premidos pelo esforço, fechar a maleta que estava cheia de mais.

- Não posso! - reconheceu ela ao cabo de instantes, e lançando angustioso olhar a Rodolfo.

Ele inclinou-se sem proferir palavra e os dedos, nervosos, mal tocaram na minúscula fechadura da maleta, fizeram-na estalar.

Endireitando-se, sentiu pesar-lhe o profundo olhar da rapariga.

- Não me dá os parabéns? - perguntou ela com misterioso sorriso.

- Porquê?

- Mas... porque herdo!

- Ah!

Mau grado seu, a testa enrugou-se-lhe.

- Nesse caso, felicito-a - volveu com um certo esforço.

Sentia-se muito triste com a nova fortuna que vinha aumentar mais ainda a que Gilberta já tinha.

Para se ser feliz não é preciso tanto ouro e ele, que preferiria a simples felicidade ao mais importante capital, parecia não dever conhecer senão o último.

Um momento de silêncio caira entre ambos. Gilberta examinava o noivo às furtadelas, e este parecia contemplar gravemente o rico cinzelado de um guarda-jóias de prata.

Gilberta, interpretando erradamente as causas da melancolia de Rodolfo, acrescentou:

- Preciso de dizer-lhe, senhor de Fragon, que a morte de minha tia-avó em nada altera as disposições tomadas para o nosso casamento.

Ele fez vago gesto de indiferença.

- A data não será mudada - insistiu admirada

- Apenas ganhamos com o luto em casar-nos na mais completa intimidade... só com os nossos padrinhos.

- Ainda bem!

- Oh, sim! Ainda bem! Confesso-lhe que a ideia de assim nos casarmos suavizou consideràvelmente o desgosto que me causou o falecimento da minha velha parente.

Ele sorriu, mais por delicadeza do que por entusiasmo.

- Então causavam-lhe medo todas estas habituais cerimónias do casamento?

- Oh! sim! As pessoas que vêm umas após outras dizer-nos cousas que não pensam, esses homens que riem ante o ar mais ou menos estúpido da noiva e a atitude bastas vezes ennervada, por vezes aborrecida, do futuro marido, essas mulheres que criticam o vestuário, o enxoval, as prendas e essas jovens cujos lábios inocentes dilaceram impiedosamente os pobres noivos, como se tivessem em mira vingar-se deles por não estarem no seu lugar, ah! pela certa, que me sinto satisfeita por evitar tudo isso! Será agora mais agradável.

- Tem razão - volveu de Fragon - O nosso casamento parecer-se-á com o de dois namorados que apenas possuem o amor e uma cabana.

De novo se calaram, tornando-se graves à ideia das suas tristes bodas, com o coração confrangido perante a perspectiva de um futuro sem amor.

- Pode acompanhar-me onde vou - indagou de-repente Gilberta, a quem o mutismo de Rodolfo parecia paralizar.

- Se assim o deseja - respondeu sem calor.

- Meu tio partiu esta manhã, logo que chegou o telegrama. Disse-me para tomar o comboio das seis horas, consigo e com Hortense. Se não tivesse comparecido agora, teria mandado alguém buscá-lo de automóvel.

- Estou ao seu dispor - afirmou delicadamente. A ideia do senhor de la Saponaire em o deixar

viajar só com a noiva, chocava um pouco os seus preconceitos de remotos tempos. A poucos dias do casamento, não está nos hábitos modernos vigiarem os noivos. Rodolfo de Fragon, porém, não conseguiu ainda tomar a sério o seu papel e, tão perto do fim, Gilberta continuava a parecer-lhe a estranha com quem era impossível qualquer familiaridade.

- Quanto tempo nos demoraremos? - informou-se depois de reflectir.

- Três dias, o máximo... o tempo necessário para o enterro e outras formalidades. Não deve haver complicações nos negócios; sou a única herdeira de minha tia-avó, irmã de minha avó materna, falecida também há quatro meses.

- Bem sei... E calcula a quanto monta essa nova herança?

Formulou aquela pergunta tranquilamente e como se pouca importância lhe ligasse. Contudo, as pálpebras de Gilberta estremeceram ao ouvi-lo e o seu olhar penetrante imobilizou-se de-súbito, como que na espectativa de qualquer cousa de imprevisto.

- Perto de um milhão-respondeu, destacando bem a frase - Talvez mais, não sei ao certo.

- Um milhão. - repetiu ele a meia voz.

- Sim; supunha importância maior?

- A que me cita parece-me enorme, tão enorme que é do meu dever propor-lhe...

Estacou, admirado por que as tão simples palavras que queria dizer lhe custassem tanto a pronunciar.

- Propor-me o quê? -inquiriu Gilberta, cujo olhar oblíquo não o desfitava.

- A sua liberdade - concluiu de Fragon.

Esta frase, embora pequena em si, pareceu todo um drama entre eles. Ele mantinha-se sombrio; Gilberta, que não esperava aquilo, tornara-se muito pálida e ambos, agora, evitavam fitar-se e seguiam os seus próprios pensamentos.

- Acha-me rica de mais - perguntou-lhe em voz sem entoação, emquanto os lábios lhe tremiam.

- Sim, demasiadamente rica! E tenho escrúpulos em unir a sua vida à minha.

- Por não ter fortuna?

- Porque a sua situação lhe permite desposar o homem que lhe agrade, a quem amará e que a amará.

Bruscamente, as lágrimas chegaram aos olhos da órfã. Curvou a cabeça e foi colar o rosto aos vidros da janela para que não lhe notasse a súbita angústia.

Decorreram alguns segundos. Rodolfo, que esperava resposta, acercou-se de Gilberta, imóvel.

- Não me respondeu... Tenho a consciência de que não sou aquele a quem desejaria desposar... E tenho medo...

- Medo de quê?

- Medo de ser sempre para si o oficial sem fortuna que aceitou um casamento por interesse.

- E eu? Não serei também aquela que devia casar consigo?

Ele estremeceu.

- Que devia - repetiu, lentamente.

- Evidentemente! Como o senhor, que devia muito certamente, curvar-se aos desejos de sua tia Sofia.

Rodolfo mordeu os beiços para não dar alguma resposta desagradável.

- Ofereço-lhe a liberdade, Gilberta! -volveu friamente.

- Deseja principalmente recuperar a sua! ripostou Gilberta com vivacidade.

E voltava para ele o semblante altivo em que não se notava qualquer vestígio de comoção.

No entanto, aquela réplica tão impulsivamente lançada, alegrou de Fragon.

Foi com tom quebrado que redarguiu:

- Não se trata de mim, mas de si. Restituo-lhe a sua palavra.

Ela meneava a cabeça com orgulho:

- Faça o que quiser e rompa comigo, se tal é o seu intento. Quanto a mim, nunca! Não admito que possa voltar-se atrás com a palavra dada ou quebrar-se um juramento!

Emquanto falava, fazia girar no dedo a aliança de casamento, como se quisesse consolidá-la no seu lugar e impedir que ele lha retomasse. Esse gesto que talvez fosse quási inconsciente, foi notado pelo oficial. E, porque tinha a superstição de certas cousas, ficou mais sensibilizado com aquele mudo protesto do que com as veementes palavras da rapariga.

- Seja como lhe aprouver!... Será a mulher de um homem muito pobre, visto não lhe convir escolher outro.

Permaneceu meditativo durante instantes; depois, obscuramente contente, talvez, com a resposta de Gilberta, dirigiu-se-lhe e tomou-lhe a mão que levou aos lábios.

- Se soubesse quanto desejava que nos entendêssemos! Seria tão precioso, de futuro, podermos confiar um no outro!

- Então principie por não me restituir a minha palavra - observou com pálido sorriso - Para estabelecer confiança, é necessário em primeiro lugar que uma promessa seja sagrada.

- Não desejei recuperar a minha palavra - afiançou ele - Mas, ante essa inesperada herança, pareceu-me ser dever meu oferecer-lhe a sua liberdade.

- Ora, vamos - protestou ela - por um casebre arrumado e algum rendimento que me deixa a minha tia-avó, queria anular o casamento?... Parece-lhe assim cousa tão importante um pobre milhão a mais?

- Confesso - replicou Rodolfo sinceramente e a rir - que na minha situação de fortuna, um milhão me parece soma colossal.

- Pois bem! - volveu Gilberta, a rir mesmo sem querer - Seremos colossalmente ricos!

E, meneando a cabeça:

- Se só isso desse a certeza de ser um pouco feliz, seria perfeito! - concluiu, melancolicamente.

- Mas porque não? - redarguiu, entusiasmado

- Eu confio na vida.

- Então, apresse-se a separar-me do meu tutor, para que um dia pense como o senhor.

- Está perto o tempo em que posso convertê-la, Gilberta.

De novo levou aos lábios a mão da órfã.

Mas ela retirou-lhe negligentemente os dedos.

- Vá depressa tratar dos preparativos de viagem, senhor de Fragon - observou.

- vou imediatamente.

- Estará de volta, sem falta, às cinco horas?

- Assim prometo! - respondeu.

Ela viu-o afastar-se, medítativo, grave...

Esse homem, a quem não conhecia, que parecia querer possuir bons sentimentos e que, contudo, acedia a vender o seu nome, era para ela o misterioso X do destino.

Mas afugentou os dolorosos pensamentos que a invadiam.

- Seja como for!... Estamos nas mãos da Providência que torna o número da nossas alegrias maior do que o das nossas dores. O futuro não pode talvez ser pior do que o presente.

E preparou-se para envergar o seu trajo de viagem.

 

Com grande rosário de buxo polido enrolado em volta das mãos postas, de olhos fechados sob os alvos bandós que lhe aureolavam o marfim do rosto e o adoçavam harmònicamente, a morta parecia dormir, estendida no leito muito alto, que os servos haviam colocado, consoante o costume, na sala grande do palácio.

Junto do leito, duas religiosas velavam o corpo. Sentadas, cabeças inclinadas em atitude de intenso recolhimento, que as imobilizava, pareciam estátuas de cera a dormir, pelo menos tanto como a própria defunta.

No outro lado um grupo de mulheres, servas ou camponesas, ajoelhadas no tapete, murmuravam orações que o seu rude dialecto dos campos transformava pitorescamente.

Altos círios acesos e colocados em grossos castiçais de prata, iluminavam o centro da vasta sala, sem conseguir diminuir a sombra amontoada nos cantos.

As paredes, forradas de panos pretos semeados de chamas brancas, os duplos cortinados das janelas corridos para interceptar a luz, tudo se conjugava para entenebrecer a fúnebre vigília.

com a cara metida nas mãos juntas, o busto curvado ao peso de sincera mágoa em face dos restos mortais da velha tia-avó que tanta vez a amimara, Gilberta orava havia muito tempo.

Uma Mão, meigamente posta no seu ombro, despertou-a de dolorosas meditações.

E, baixinho, uma voz masculina suplicou:

- Não esteja assim, Gilberta. Venha tomar alguma cousa e descanse.

Ela encarou de Fragon com os olhos cheios de lágrimas, mostrando à luz um semblante lívido.

- Não tenho vontade - replicou com lábios trémulos.

- Contudo, não fique assim.

E os musculosos dedos de Rodolfo, tomando-a pelas axilas, obrigaram-na a levantar-se.

Mostrou-lhe a capa de viagem, o chapéu de crepe, a saia úmida, que muito ocupada com os seus deveres para com a falecida, nem sequer se dera ao trabalho de tirar quando chegou.

- Há duas horas que estamos aqui. É justo estar tanto tempo com a roupa molhada? Vá depressa mudar de vestido.

Docilmente, ela seguiu-o. No entanto, no limiar da porta, deteve-se e implorou:

- Antes, porém, deixe-me depor algumas flores no leito. Estas folhas de hera presas nos lençóis são lúgubres.

- Mas onde vai apanhar flores a esta hora?

- Na estufa.

Chegou ao vestíbulo e, emquanto lançava pela cabeça uma mantilha para proteger da chuva a pequena boina, acrescentou, com os olhos rasos de contidas lágrimas:

- Minha pobre tia adorava as flores; serão as últimas que lhe poderei colocar nas mãos!

Comovido e calado, de Fragon aprovou com a cabeça. O sincero pesar de Gilberta, as suas lágrimas discretas sensibilizaram-no mais do que ruidosas demonstrações, e felicitava-se por a conhecer sob tal aspecto. Quando a órfã abriu um dos batentes da porta de entrada, uma rajada de vento fustigou-lhe a face e engolfou-se com lento gemido pela imensa abóbada que estalou lamentosamente.

- Não me acompanhe, senhor de Fragon; está aqui muito desagradável e não traz chapéu. Eu sei o caminho e, dentro de cinco minutos, estarei de volta.

- Não está o tempo nem a hora própria para andar na rua, mas, visto que tem prazer em molhar-se, eu não acho conveniente deixá-la arrostar, sozinha, semelhantes trevas.

Gilberta não lhe agradeceu; mas, emquanto procurava no cabide qualquer abrigo para pôr sobre os ombros, conservou a porta aberta para ele poder sair.

Afastaram-se, curvados debaixo da chuva.

- Está certa de ver nesta espessa sombra? interrogou Rodolfo, sem entusiasmo por esse passeio nocturno.

- Vamos pelo jardineiro a pedir-lhe a lanterna e as chaves. Mora ao fundo das habitações dos criados, no antigo pombal que viu quando chegou.

- O quê? O jardineiro habita aqui e Gilberta é que tem o trabalho de ir apanhar flores a esta hora?

Ela encolheu os ombros.

- Pois claro; a sua tarefa diária findou! De resto, esse excelente homem é velho, sofre de reumatismo! Decerto não quere que lhe imponha semelhante tarefa num tempo assim.

De-súbito, escorregou no pavimento. Cairia se a mão do companheiro agarrando-a de-repente, não a amparasse.

- Tem vontade de travar mais amplo conhecimento com o lajedo do pátio? observou Rodolfo.

Ela não respondeu; paralizava-a certo mal-estar, sentia em volta da cintura o braço de Rodolfo que não alargava do aperto.

Não foram muito longe assim. O pequeno pavilhão habitado pelo jardineiro erguia-se a alguns passos deles.

- Oxalá que não estejam deitados! - disse Gilberta que não via luz através das fendas da janela que cortina interior devia mascarar.

Mas, logo que abriram a porta, loura claridade de candeia acesa feriu-os em cheio e uma voz fresca, acolhedora e solícita, bradou:

- Avô, é a menina e o seu conversado. Rodolfo sorriu divertido com o termo vulgar e

contudo tão gentil, proferido pelos purpurinos lábios da camponesa.

- Não incomode o avô, Mariana! -protestava a órfã - Acenda uma lanterna e dê-me as chaves da estufa; só disso é que precisamos.

Entre portas apareceu um velho. Andava partido em dois pela ladainha dos trabalhos que o haviam desde novo curvado para a terra.

- Boa noite, tio Martinho! - cumprimentou alegremente Gilberta ao vê-lo.

O velho levantou as mãos ao céu.

- Pois será possível, Deus meu, menina Gilberta vê-la tão crescida e quási tão mulher neste momento? A menina que conheci tão pequenina, que me parecia não crescer nunca!

- E aqui estou agora tão grande como o tio Martinho - replicou amavelmente a órfã a quem as exclamações do bondoso homem sensibilizavam.

- Mas é verdade que ainda está mais alta do que eu uma polegada. E é naturalmente por isso que vai agora casar.

- Foi Noél, o administrador, que anunciou o seu próximo casamento - explicou Mariana que fitava curiosamente Rodolfo.

- Então, é este juvenil senhor que é agora o nosso patrão?

O velho abanava a cabeça, olhando-os satisfeito.

- Sim, é o meu noivo - disse simplesmente Gilberta, designando o companheiro que não compreendia lá muito bem o palavriado do camponês.

E acrescentou logo:

- Quando casarmos, ver-nos-á aqui algumas vezes, tio Martinho. Sempre adorei este cantinho.

- E é justo, visto serem terras de primeira ordem. Todos ficaremos contentes em vê-los muitas vezes... A nossa pobre patroa morta tornara-se tão velha que já não havia mocidade no palácio.

- Nós a traremos de novo, tio Martinho.

- Ainda bem! Basta tê-la aqui durante alguns dias para tudo rejuvenescer!

Parou e, falando directamente a Rodolfo, explicou:

- bom é dizer-lhe que a menina Gilberta era aqui muito querida e andávamos bastante inquietos, o ano passado, ao sabermos que se ia tornar em senhora de Placeraud.

Rodolfo estremeceu e, bruscamente, todos os seus esforços tenderam para bem perceber o velho, que continuava, sem suspeitar da perturbação que causava ao seu interlocutor e da súbita angústia que invadia a noiva deste.

- Diabo! Não era conhecido! E perguntávamos se ele iria levar a nossa jovem patroa para casa dele, para a terra dele, para nunca mais no-la restituir. Os Pirinéus são belos, ao que se diz... embora eu diga que não! Mas de-certo que isso não vale a nossa região de Caux!

- Aqui estão a lanterna e as chaves. Vamos deixá-lo, tio Martinho - atalhou Gilberta que parecia estar em suplício.

- Mariana, vai acompanhá-los; levará as flores até ao palácio.

- Nada disso! Não precisamos da sua nètinha. Ao que parece iam deitar-se quando cheguei. Pois vá descansar; já os importunámos bastante.

Afectava muito à vontade na sua linguagem, mas quem a observasse notar-lhe-ia o semblante alterado e o tremor das mãos.

- Boa noite, tio Martinho; boa noite, Mariana. Amanhã encontrarão a lanterna e as chaves no escritório.

Antes de deixar o círculo iluminado da quadra, lançou olhar furtivo a de Fragon.

Viu-o um pouco pálido, com sorriso amargo ao canto dos lábios; baixou a cabeça, sentindo-se de-repente muito cansada e desanimada.

Os dois jovens sairam do pavilhão e, calados, chegaram à estufa, onde, em temperatura tropical, abundante folhagem se abria.

Gilberta fez larga colheita, sem que Rodolfo pensasse em ajudá-la ou em oferecer-lhe os seus préstimos. Parara junto da entrada e, com o cotovelo apoiado num dos taboleiros carregados de vasos, parecia interessar-se pelos minúsculos sulcos abertos pela chuva nos vidros poeirentos da abóbada transparente que servia de teto a essa pequenina floresta de plantas raras.

A órfã depressa voltou para junto dele, com os braços ajoujados de flores.

- Não posso fechar a porta. Quere ter esse cuidado, senhor de Fragon? - disse ela, precedendo-o.

- Sim - respondeu lacònicamente.

De novo se embrenharam na escuridão da noite, debaixo da chuva que redobrava de intensidade.

Os pequeninos pés de Gilberta ainda tropeçaram no caminho e várias vezes escorregou nas pedras musgosas do pátio; Rodolfo, porém, pareceu não dar por isso e o braço já não amparou a cintura que se dobrava a cada rajada de vento.

De volta ao palácio, dirigiu-se logo à sala mortuária.

Antes de franquear o limiar da porta, virou-se para o noivo que, no vestíbulo, sacudia a roupa que pingava.

- Agradeço-lhe ter-me acompanhado, senhor de Fragon. Foi um verdadeiro dilúvio. Deve estar encharcado!

- De facto - replicou Rodolfo com frieza - mais valia que não a tivesse acompanhado!

Depois, sem dar pela súbita angústia dos pobres olhos que, de-repente, se enchiam de lágrimas, encaminhou-se para a escada e subiu, para mudar de fato, ao aposento que lhe fora reservado no primeiro andar.

 

O enterro devia realizar-se às dez horas da manhã e o relógio antigo que ornava a mais alta empena do palácio, acabava de bater nove badaladas.

Já o pátio de honra se enchia de gente e nas avenidas laterais do parque se aglomeravam os veículos de todo o género, donde saíam constantemente recém-chegados, vizinhos ou amigos da falecida que tendo habitado toda a vida naquele recanto da região, era de todos conhecida num raio de mais de vinte quilómetros.

Rodolfo, abafando na enlutada atmosfera da casa, saiu cedo do quarto para dar umas voltas pelos altos soutos de castanheiros que, da janela, avistara ao longe.

com o pensamento absorvido no mesmo assunto, de boca amarga, de rosto melancólico, vagueava pelos pequenos atalhos, onde o orvalho matinal cintilava como diamantes.

As poucas palavras escapadas na véspera ao velho jardineiro haviam-lhe tirado o sono.

- Gilberta devia ter desposado um tal senhor de Placeraud!

Quem era esse homem, cujo nome ouvia pela primeira vez? Que circunstâncias particulares tinham feito quebrar esse casamento?

E porque não o haviam posto ao facto de todas essas cousas?

Não é deshonra, para noivos, quebrar um projecto de casamento que não corresponde ao que se previra. Seria preciso acreditar que havia alguma cousa de desagradável, para Gilberta, nesse rompimento?

Em todo o caso, houvesse o que houvesse, o senhor de la Saponaire devia ter-lhe falado nisso. É deveras desagradável para um homem que se possa entrelaçar o nome da sua mulher ao de outro, sem que ao certo saiba o que aquilo significa.

Todas as suposições são lícitas, em tais casos, e de Fragon não deixava de imaginar o pior...

- Mas que diabo me escondem eles Que mais devo saber ainda?

Empolgava-o de-repente uma raiva contra si próprio, que se via na necessidade de aceitar um casamento que tão misteriosas condições apresentava.

- Interrogarei Gilberta, há-de falar por força! De-súbito uma sombra lhe surgiu pela frente. Reconheceu, com íntimo frémito, o tio Martinho.

- Caiu como a sopa no mel! - pensou. Porque, logo a seguir, lhe acudira a ideia de

interrogá-lo. As primeiras palavras do velho tiraram-lhe a vontade.

- bom dia, caro senhor.

- bom dia, senhor. Estou bem contente por encontrá-lo.

- Porquê?

- Por causa do que a noite passada lhe disse. Mariana afirma que lhe causei desgosto e não era esse o meu intento.

- Não o compreendo.

Pelo contrário, compreendia-o muito bem! Mas era para ele verdadeiro sofrimento se alguém suspeitasse de que se sentia ferido no amor próprio.

- Pois -volveu o velho, humildemente - preciso de que me desculpe. Eu já sabia que o senhor era o prometido da menina Gilberta, mas não lhe sabia o nome e tomei-o... por... que cabeça a a minha... pelo que quisera desposar a menina o ano passado.

Desajeitadamente, o jardineiro repisava as desculpas que irritavam de Fragon mais do que as irreflectidas palavras da véspera.

- É compreensível o seu engano, meu bom amigo - volveu com pálido sorriso.

- Fosse como fosse, devia tê-lo desgostado.

- Nada disso. E afirmou:

- Estava ao corrente dos projectos outrora alimentados pelo senhor Placeraud e nada me disse que eu já não soubesse.

- Nesse caso, tanto melhor.

Meneando a cabeça grisalha, o velho jardineiro acrescentou com tristeza:

- Bem penalizado fiquei ao pensar que podia prejudicar a menina Gilberta que tão bondosa é para toda a gente. vou também dar-lhe as minhas desculpas, porque é preciso que acredite que falei com boa intenção.

- É escusado - redarguiu de Fragon, a quem tal insistência irritava -A menina de la Saponaire não pode querer-lhe mal por haver falado em cousas conhecidas. Nem sei mesmo se se afligiu ao ouvir proferir o nome do senhor Placeraud e suponho que diante dela se pode falar dele.

- Ah! decerto!

Percebendo emfim, pelo ar irritado de Rodolfo que agravava o seu caso ao querer desculpar-se, o jardineiro ficou interdito, de braços caídos.

- Perdôi-me; não quis dizer nunca cousa assim!

- Vamos, não falemos mais nisso. Até depois, tio Martinho.

- Até depois, meu bom senhor!

O tom seco do rapaz aniquilou o velho que pensou:

- Aqui está um senhor que vai querer-me mal... é a minha sorte! O futuro patrão!

Ficou pensativo ao ver Rodolfo afastar-se.

- Eu podia lá supor que era assim tão ciumento! Os noivos criam-se mau sangue por ninharias, pela certa! Mas, se ela casa, não tem precisão de criar bílis ao pensar no outro!

Descontente consigo e com todos, de Fragon voltara para o palácio rapidamente.

Atravessou a multidão vestida de preto que o encarava curiosamente e segredava à sua passagem; depois, entrou no salão de honra, onde os mais íntimos e a família se encontravam reunidos.

Gilberta dirigiu-se para ele, logo que o avistou.

O seu comprido vestido de crepe, tornando-a mais alta e mais delgada, flutuava em volta dela; os véus faziam-lhe sobressair a contínua palidez ao mesmo tempo que o febril brilho dos seus olhos de azeviche.

com o semblante duro ao vê-la, de Fragon notou-lhe a aproximação, tão harmoniosamente delicada nos seus atavios de luto.

- Meu tio andava há pouco à sua procura disse Gilberta em voz baixa, chamando-o de parte.

- Tinha saído - explicou secamente.

- Bem sei; o intendente encontrou-o esta manhã e disse-lho.

- O senhor de la Saponaire precisava de mim?

- Queria apresentá-lo ao senhor Lecerf, o notário de minha tia, para que ficasse ao corrente dos meus negócios na Normandia... Era trabalho adiantado para a ocasião do contrato.

Que mau génio sopra às vezes a tempestade em nossos crânios quando, amiúdadamente, não há motivo para tal efervescência?

A atitude de Gilberta, ao falar, era verdadeiramente natural, e a sua voz, com inflexões tristes, não tinha decerto desejo algum de ser agressiva; no entanto, pareceu à má disposição de Rodolfo que a serena correcção da noiva tinha fins reservados.

- Está a lembrar-me o seu dinheiro como quem atira um osso a um cão cuja mordedura receia.

Esta ideia integrou-se-lhe tão imperiosamente que todo o seu ser estremeceu de orgulho ferido.

- Foi a Gilberta quem sugeriu esse belo pensamento a seu tio? - perguntou bruscamente.

- De facto, fui eu - respondeu apenas, no mesmo tom dolente - Meu tio queixava-se da fadiga que este falecimento, coincidindo com o nosso casamento, ia dar-lhe, e então disse-lhe que só a si devia ser confiado o cuidado de zelar os meus interesses...

- Naturalmente!

Ela pareceu não ouvir aquela irónica exclamação, e concluiu:

- E não será a si que incumbirá definitivamente semelhante tarefa?

A suavidade de Gilberta não o desarmou; a sua irritação estava deveras aguda havia algumas horas, para se conter por mais tempo, e, de-súbito, estalou, com o desejo de ferir aquela que involuntariamente lha fizera nascer.

- Apenas uma cousa esqueceu - replicou surdamente às palavras da órfã - é que toda essa parte financeira do nosso casamento nunca me dirá respeito!

Parou por momentos, procurando ainda alguma maldade para dizer a Gilberta que o escutava estupefacta.

E acrescentou, com sorriso mordaz, esta ideia que desde a véspera o empolgava tão penosamente:

- Junto de si, não sou mais do que o sucessor do senhor de Placeraud.

Falava sob o império da cólera, para desabafar, numa necessidade de formular todo o seu pensamento, sem medir o alcance das palavras e arrependendo-se de as dizer depois de proferidas, porque poderiam magoar.

Contudo, não esperava vê-las produzir tal efeito.

com o rosto repentinamente transtornado, a noiva recuara um passo e fitava-o com os olhos dilatados pelo pasmo.

Julgou que Gilberta fosse gritar... o esbofeteasse... o expulsasse. Mas viu-a levar as mãos ao peito, depois à garganta e, de-repente, com os braços erguidos caía para trás, desmaiada, sem que ele tivesse tempo de acudir e amortecer-lhe a queda.

Houve um minuto de confusão na assistência. Todos se precipitaram para o sítio onde Gilberta caira e sobre quem Rodolfo se debroçou, angustiado.

- Que foi?

- Feriu-se?

- Mas como se deu?

- Não se magoaria ao cair?

Todas as exclamações se cruzaram em algazarra, sem detença, a-pesar-do aparato funéreo do lugar.

De Fragon, muito pálido, calou-se; comoção terrível lhe apertava a garganta, fazia-lhe tremer os membros, apavorava-o por completo, só lhe deixando forças para o silêncio.

Auxiliado por um dos homens presentes, estendeu Gilberta num dos grandes bancos estofados de couro. Procedia maquinalmente, quási sem consciência.

Aguda dor de remorso sentia no fundo de si mesmo, por ter posto a órfã naquele estado, de haver desencadeado quási um drama! Mas ao mesmo tempo, pesado mal-estar o envolvia e o estupidificava por não poder perceber o que nas suas palavras pudera tão fortemente chocar Gilberta.

Se nesse instante recuperasse os sentidos, ele decerto se desculparia por ter-lhe causado desgosto com palavras impensadas, mas também a interrogaria sobre a significação temível que para ela teriam essas mesmas palavras.

E, como sempre que o acaso lhe descobria em Gilberta, enigmática, misteriosa noiva que não decifrava, desejou estar livre, desligado de qualquer laço, mormente longe dali, ao abrigo desse casamento que cada vez receava mais.

Num momentâneo aniquilamento de toda a sua vontade, pertinaz apenas em manter correcta atitude em presença dessa gente disposta a registar os seus mais pequenos gestos, ouviu o senhor de la Saponaire tranquilizar todos os presentes e afirmar que só a fadiga é que vencera a sobrinha, a pé desde a véspera; vários criados, mudos, levaram a jovem que continuava inanimada. Depois, um toque de campainha, orações ditas em voz alta, cantos graves, um longo desfilar de pessoas apiedadas a quem apertou a mão com movimentos de autómato. Acompanhou toda a cerimónia ao lado do tutor de Gilberta, como num pesadelo do qual só devia conservar vagas reminiscências ou como ante um cinematógrafo que se lhe desenrolasse na sua frente, num nevoeiro, sem que pudesse distinguir-lhe os contornos. O seu ser físico estava onde era preciso que estivesse, mas a alma andava arredia, para além de tudo o que o rodeava, e o seu pensamento mergulhara em profundo, misterioso abismo... abismo que cada vez se cavava mais entre a noiva e ele...

 

- Como se encontra esta manhã Gilberta? perguntou de Fragon, no dia seguinte, logo que avistou o senhor de la Saponaire.

Este encolheu os ombros com ar resmungão:

- Suponho que melhor.

E de-repente, parando diante de Rodolfo, espantado, cruzando os braços, explodiu:

- "A menina proibiu a entrada! Está com forte enxaqueca e não quere ver ninguém" - disse-me a religiosa que ficou junto dela!... É ridículo!

Rodolfo não pôde deixar de sorrir com o aspecto furioso do velho fidalgo que continuava:

- Palavra! Tinha o ar de um intruso que mendiga um favor que lhe querem fazer! Imagine que querendo passar além do ridículo capricho de Gilberta, a religiosa aprumou-se na minha frente como se eu fosse um empestado:

- "Oh! O senhor conde decerto não quererá abusar da sua força para violar o refúgio virginal de sua sobrinha, quando esta lhe pede para estar só! "

- Esta frase bombástica de tal forma me impressionou que virei as costas, sem proferir palavra! É simplesmente parva a pobre irmã!

Mas reparou no ar jubiloso do companheiro que a custo conservava a sua seriedade, e a cólera caiu-lhe subitamente:

- Acha graça! Bem se vê que não lhe foi preciso violar o refúgio virginal de minha sobrinha! Garanto-lhe que, com semelhante dragão à sua porta, Gilberta está bem guardada!

- Mas estará realmente doente?

- Isso sim! O doutor Mourieux visitou-a ontem à noite e tranquilizou-me em absoluto: estado nervoso em consequência de fadiga, de comoção; vinte e quatro horas de repouso e fica fina!

- Então é questão de esperar.

O senhor de la Saponaire sobressaltou-se.

- Esperar? Ah! não! Ela imagina que vou ficar eternamente nesta região de selvagens! Quere queira, quere não, vou-me embora esta noite! Ela irá ter comigo quando quiser.

- Mas aqui ainda não está tudo acabado.

- Ora adeus! O notário Lecerf mais tarde se entenderá consigo. Como ontem à noite viu, os negócios da tia de Gilberta estavam bem em ordem; para fazer algumas assinaturas e liquidar direitos de herança, não vou transtornar a minha vida e enterrar-me neste ermo. Parto à noite.

- Nesse caso, parto consigo, pois a minha presença já não é necessária. Mas é aborrecido deixar Gilberta sozinha.

- Não se apoquente; minha sobrinha está bem guardada e saberá ir ter connosco, acompanhada por uma das suas guardas. Dentro de dois dias, Gilberta estará em Paris; Mourieux é infalível.

De Fragon não opôs objecção; no entanto, sentia verdadeiro mal-estar em não se ter informado melhor do estado de saúde de Gilberta.

Tinha escrúpulo em deixá-la só, cercada de cuidados mercenários quando, talvez, estivesse pior do que imaginava o seu tutor optimista.

Não lhe deu conta dos seus receios, mas prometeu-se tentar visitar Gilberta ou, pelo menos, obter das mulheres que a rodeavam mais pormenores acerca do estado dela. Justamente, vieram prevenir o senhor de la Saponaire que um castelão dos arredores pedia para lhe falar.

- Neste diabólico país não se pode estar um minuto sossegado. Quando não é um enterro ou um casamento, é o cura ou um vizinho que vem pedir a nossa contribuição para inevitáveis trabalhos. Só em Paris é que se pode estar sem fazer cousa alguma!

E com esta saída, apertou a mão de Rodolfo e deixou-o.

Este seguiu-o pensativamente com a vista.

- De facto, é uma excelente criatura - formulou baixinho o seu pensamento - mas é leviano e egoísta!

O que de Fragon ainda não sabia era a inflexível vontade de ferro ao serviço dessa leviandade e desse egoísmo que a bonomia do tutor de Gilberta ocultava.

Assim que ele se afastou, Rodolfo encaminhou-se para os aposentos da noiva.

Experimentava de-repente como que imperiosa necessidade de vê-la, de falar-lhe, de senti-la bem viva junto de si.

A alma humana tem por vezes estranhas presciências que lhe fazem adivinhar cousas que ignora ou lhe querem ocultar. A irresistível necessidade que impelia Rodolfo para Gilberta, tinha pressentimentos.

Nada na atitude do senhor de la Saponaire parecera despertar a desconfiança do rapaz e, contudo, no fundo de si próprio, surdo mal-estar, vaga apreensão subsistia, apertando-o em verdadeiro sofrimento físico.

Dirigiu-se, pois, para o quarto de Gilberta...

Perscrutou o rosto da religiosa que apareceu entre portas assim que este bateu. Mas, sob a touca branca, as feições da irmã tinham serena impassibilidade que nada parecia dever comover.

- A menina Gilberta está doente e descansa neste momento - respondeu a Rodolfo que pedia para lhe falar.

- Queira dizer-lhe que solicito dela alguns minutos de atenção.

A religiosa meneou a cabeça.

- É inútil; a menina está deitada e incapaz de se levantar.

- Mas eu não quero importuná-la; desejo só informar-me...

- Está no quarto; não pense nisso!

Rodolfo sorriu com o tom desagradável em que lhe falavam. Recordava-se dos termos pudibundos que o senhor de la Saponaire suportara e esperava também ser mimoseado com outros idênticos. Assim, não se deu por vencido.

- Perdôi-me insistir tanto, minha irmã, mas preciso absolutamente de falar com minha noiva. O que tenho a dizer-lhe é de muita urgência.

Ela fez um gesto de pesar.

- A menina Gilberta declarou-me não querer receber pessoa alguma; não posso transmitir-lhe o seu desejo.

Rodolfo irritou-se de-súbito com a atitude friamente delicada da religiosa que só parecia conhecer a sua senha e respondeu no mesmo tom:

- Muito bem, tomo nota do desejo da menina de la Saponaire; mas queira, minha irmã, transmitir o meu: e é, afirmo-lho, tão imperioso como o seu!

A religiosa levantou os olhos para ele e examinou-o com curiosidade.

- A sua insistência não é de homem delicado

- observou em tom melindrado - Sejam quais forem os motivos que o guiam, deveriam passar depois da saúde da sua noiva e qualquer outra preocupação deveria apagar-se perante isso.

- Mas, então, a menina Gilberta está assim tão doente?

- Evidentemente, muito fatigada.

- Que disse o médico?

- Não pôde pronunciar-se: receia que lhe sobrevenha alguma febre má.

Rodolfo que só pensava em amansar aquele cérebro feminino, abundando nas suas ideias, ficou descoroçoado com a alarmante resposta em contradição com a do tutor de Gilberta.

Quis, então, levar mais longe o seu interrogatório.

- Foi hoje de manhã que o doutor Mourieux veio?

- Foi.

- Às dez horas

- Sim.

Desta feita, era flagrante a mentira da religiosa.

O velho fidalgo dissera-lhe que o médico viera na véspera à noite, por outro lado, Rodolfo, que não tinha saído do palácio desde o alvorecer, estava certo de que o doutor Mourieux não pudera ir à hora indicada -ou antes, aceite -pela irmã; conversara, de resto, com o senhor de la Saponaire e este já lhe havia falado da falsa visita do discípulo de Esculápio.

Que queria dizer, então, tal mentira e tais contradições? E porque é que, desde a véspera, Gilberta teimava em guardar o quarto tão misteriosamente? Estava amuada com ele? Estaria de facto doente? Que doença era aquela que podia exigir tal luxo de precauções?

De novo sentiu em sua volta o ambiente de mistério em que a noiva se envolvia, e a sua surda irritação, por demais contida e recalcada, chegou ao paroxismo. Teve a consciência de ser um fantoche ridículo de que todos se riam impiedosamente.

Então, tornou-se irreflectido, malcriado: o homem correcto desapareceu sob a tempestade da revolta que de-súbito o fazia explodir.

com gesto calmo, mas enérgico, afastou da porta a religiosa que, surpreendida, não teve tempo para o repelir e, sem a mais pequena hesitação, atravessou o primeiro aposento e entrou no quarto de Gilberta.

Num relâmpago, os seus olhos deram volta ao aposento, examinaram a cama que estava feita, rebuscaram os mais pequenos recantos...

E motejador, irónico riso, embora dolorosamente alucinado, lhe entreabriu os lábios...

O quarto estava vazio!

 

Foi contra a religiosa, a única pessoa presente, que se virou a decepção que de Fragon sofrera.

- Assim, era para ocultar a ausência da menina de la Saponaire que tão ferozmente me impedia de entrar!

Pálido e fremente de indignação, interpelava a irmã, cuja impassibilidade não se desmentia.

- Observava as instruções dadas pelo tio de sua noiva - respondeu no seu mesmo tom tranquilo.

- Instruções que eram mentira! - bradou fora de si.

- Há mentiras necessárias para felicidade das famílias.

Ele encolheu os ombros verdadeiramente hostil a qualquer indulgência; o seu temperamento exclusivamente franco, desconhecia subterfúgios.

- Ah! sim, os famosos acordos com o céu, a que os maus crentes se referem! Sou daqueles que repelem a mentira, quando se trata de zombar de um homem honesto!

Riu depreciativamente e saiu do quarto, com a cabeça em fogo, sem compreender ainda o que tudo aquilo significava.

Na escada, chocou com o conde que subia sossegadamente, de mãos nos bolsos e de charuto na boca.

Foi obscuro alívio para de Fragon dizer consigo que tinha, emfim, um motivo para pedir explicações e que ia poder exigir-lhas naquele instante.

Sem consideração e quási provocante, lançou:

- Decerto vai ao quarto de sua sobrinha!

A rispidez das suas palavras e o seu estranho aspecto, fizeram adivinhar ao tutor uma parte da verdade.

Respondeu, iludindo a resposta directa:

- Naturalmente, o senhor vem de lá.

- Venho.

Outra pausa seguiu o laconismo brutal da resposta. Depois, o conde pareceu tirar partido da falsa situação que se criara.

Pensativamente, puxou três fumaças do charuto e bradou:

- Sabe então que Gilberta se afastou.

A simplicidade com que aceitava os acontecimentos acalmou a agitação de Rodolfo.

- Onde está? - inquiriu, mais sereno.

- Na casa de Paris.

- Desde quando?

- Desde ontem. Quando voltámos do enterro já aqui não estava.

Coube a vez de Rodolfo se tornar pensativo.

- Nesse caso não partiu sem o prevenir.

- Não, felizmente! Na sua cabeçada, teve ainda um lampejo de razão.

- Preveniu-o?

- Por um curto bilhete explicativo que a religiosa me entregou à tarde.

- Porque me ocultaram essa partida? O senhor poderia ter-me falado nisso.

O conde encolheu os ombros e, com certa rispidez acentuada de bonomia, replicou:

- Tinha escrúpulos em intervir no vosso amuo de namorados que a partida de minha sobrinha ainda podia prolongar.

De Fragon fez um movimento de surpresa que não escapou ao seu interlocutor.

- Oh! sem dúvida! Não foi em consequência de uma discussão entre o senhor e minha sobrinha, que esta partiu?

- Gilberta deu-lhe essa feição?

- Sim, pouco mais ou menos...

- Quere mostrar-me a carta?

- Da melhor vontade; venha ao meu quarto e lá lha mostrarei. De resto, estaremos aí melhor.

Calados, os dois homens entraram nos aposentos que o conde ocupava no palácio.

Rodolfo caminhava meditabundo, cabisbaixo, mal refeito da violenta comoção de há pouco, uma quietação, uma paz íntima o aliviaram de-repente.

A simplicidade com que os acontecimentos se encadeavam e se explicavam era-lhe benéfica.

Sentira pesar em sua volta o invisível trama de doloroso enigma a aclarar, e tudo parecia querer resolver-se em pueril amuo... amuo de namorados, como bem dizia o tutor de Gilberta!

- Aqui tem as explicações deixadas por minha sobrinha, nada mais sei além do que ela entendeu dizer-me. Veja com os seus próprios olhos e dê-me mais pormenores, se julgar conveniente.

Sem pronunciar palavra, Rodolfo pegou no papel que o velho fidalgo lhe apresentava e com visível presteza, percorreu-o:

"Senhor.

"Regresso a Paris neste momento, pelo comboio do meio-dia e doze. O senhor de Fragon, sem mesmo esperar que eu seja sua mulher, acaba de esquecer, na minha presença os seus compromissos e as suas promessas. Era de esperar isto da parte daquele que me escolheu para marido!

"Não me convém acompanhá-lo nesse terreno especial. Nunca condescenderei em tomar a atitude de vítima ou culpada e muito menos em suportar reprimendas ou suspeitas.

"Após as explicações que o senhor devia ter-lhe feito, o senhor de Fragon tinha que dar-se por satisfeito. Se assim não é, se ele entende as cousas de modo diferente, queira restituir-lhe a sua palavra e desligá-lo por completo de qualquer obrigação para comigo, pois de modo algum deve agir constrangido.

"É esta a minha vontade... Quanto a mim, estou pronta a tolerar as suas cóleras e aguardo-as!

Gilberta."

O pasmo passava pelos olhos de Rodolfo à medida que lia o frio e seco bilhete de Gilberta para o tio. Como não percebesse bem todos os termos hostis, virou-se para este como que a interrogá-lo.

com aspecto meditativo, o senhor de la Saponaire media o quarto a grandes passadas.

- E então, leu? - inquiriu ele.

- Li... mas nada percebi...

- Também eu não. Minha sobrinha está doida!

- Perdão, Gilberta fala de explicações que o senhor me devia ter dado.

- Já lhas dei... Era a respeito dos pais dela e da sua permanente tristeza.

- Mas em nada disso lhe falei ontem.

- O que prova bem que ela anda com a cabeça perdida.

- Não há tal... Creio, pelo contrário, que somos nós quem nada percebe!

Proferiu estas palavras repousadamente, tranquilamente, sem desfitar o seu interlocutor. O conde teve um estremecimento e encarou o moço oficial.

- Interrogue-me - volveu bruscamente - Que quere saber?

- Porque é que o nome do senhor Placeraud, proferido por mim, perturbou tão estranhamente minha noiva?

O senhor de la Saponaire ficou interdito por sua vez.

- Falou-lhe desse homem? - perguntou, por fim, com a voz alterada.

- Pois claro!

- E porquê?

- Mas... casualmente!

- Então?

- Caiu desmaiada... Sabe o resto.

Esperou alguns instantes, e como o conde se remetesse ao silêncio, replicou:

- Quere dizer-me quem era esse homem?

- Um amigo nosso.

- Creio que devia desposar Gilberta.

- Nada disso! - protestou o tio violentamente

- Ele desejava esse casamento, mas Gilberta não queria ouvir falar em tal.

- Entretanto, a sua perturbação...

- Teve qualquer outra causa.

- Perdôi-me a insistência; mas eu desejava conhecer a outra causa.

- Pois bem, aqui a tem! Esse homem morreu à sua vista, num desastre de montanha.

- Morreu - atalhou Rodolfo, ávido.

- Sim.

- Há muito tempo?

- Há já alguns meses.

- Ah!

E acrescentou:

- Como?

- Escalávamos um canto do Oberland por caminhos de cabra muito escarpados, e Gilberta ia ao lado de Placeraud quando a este faltou o pé e se despenhou no abismo. Ela teve um ataque de nervos e tive de fazê-la transportar para um posto de socorros, onde permaneceu dois dias. Ouvindo-lhe o nome, e não sei em que termos! supôs talvez que a acusava do crime; daí a comoção - natural, contudo! - que sofreu então. Minha sobrinha é orgulhosa no mais elevado grau; as suas suspeitas fizeram-na sair fora de si. Esta é a causa da sua fuga e da sua carta.

Fornecera esses pormenores lacònicamente, com verdadeiro ar impaciente. Tornava-se evidente que a zanga dos namorados o irritava mais do que queria aparentar. Sem se preocupar com o ennervamento do senhor de la Saponaire, de Fragon reflectia no que acabava de ouvir.

Recordava-se também das suas palavras da véspera que Gilberta pudera, de facto, interpretar no sentido indicado pelo seu tutor.

- Não é inverosímil - observou a meia voz, meditativo.

Voltou a pegar na carta da órfã e releu-a com atenção. Evidentemente, tudo o que Gilberta escrevia se explicava de modo normal.

Apenas um único ponto discordava da verdade.

A sua noiva parecia acreditar que ele estava ao facto das suas antigas relações com o senhor de Placeraud; ora, o conde nunca em tal lhe falara.

Fez esta observação e o outro encolheu os ombros.

- Para que havia de referir-me a esse homem? Nunca se projectou casamento entre minha sobrinha e ele! Devo falar-lhe de todos os que desejaram despojar Gilberta? É costume evocar a um noivo a lista dos pretendentes à mão de uma rapariga? Há apenas uma circunstância a salientar: a de um projecto aceito pela família e confirmado pela interessada. Não é este o caso. Sempre afastei de Gilberta esse homem indigno dela e afirmo-lhe que minha sobrinha sempre o repeliu com horror. Emfim, Placeraud morreu e não vejo que necessidade tivesse em evocar esse nome à sua noiva.

Rodolfo fez um gesto vago.

- Aqui, dizia-se que ela devia desposá-lo no ano findo e alguns criados seus tomam-me por ele e dão-me o seu nome.

- É deveras ridículo e, em vez de falar nisso a Gilberta, a quem injuria gratuitamente - veja a carta! - melhor faria vindo interrogar-me: entre homens, as cousas fazem-se sem todos esses exageros femininos que para nada servem!

De Fragon curvou a cabeça. Na realidade, o tutor tinha razão; tinha sido inábil nas suas circunstâncias.

Foi a consciência do seu disparate que o inibiu de formular novas perguntas.

De resto, o velho fidalgo previu-as... quási desafiando-o!

- Notou que minha sobrinha estava disposta a restituir-lhe a palavra!

- Notei - volveu lacònicamente o oficial.

- Não quere que a despose com sentido reservado.

- E tem razão.

- Nesse caso, que devo dizer-lhe?

- Dá-me licença que eu próprio lhe responda?

- Não me agrada! Orgulhosos como ambos são, só inàbilmente podem chocar-se.

- Mais vale que isso se dê agora do que mais tarde.

- Pois seria melhor que nunca se desse.

- Prefere que me retire?

Assim tão secamente feita, a pergunta exigia resposta afirmativa.

O conde teve tentações de a dar. Conteve-se, contudo, pois o pensamento da sobrinha veio corrigir o que a sua natural impetuosidade reclamava.

Contentou-se em encolher os ombros e, resmungando, com ar meio aborrecido, meio indulgente, concedeu:

- Proceda como lhe aprouver; lavo daí as minhas mãos! Já têm idade para se entenderem, sem que eu seja para aí chamado.

 

Deixando o senhor de la Saponaire em Jumièges, Rodolfo seguiu, com vinte e quatro horas de diferença, pelo mesmo comboio que a noiva tomara na véspera.

O conde não tentou retê-lo até à noite.

- Arranjem-se lá os dois- dissera, apertando-lhe a mão, à despedida - Minha sobrinha procede como tola; seja razoável por dois.

E, como realmente se desinteressasse do assunto, esta recomendação quási paternal fora a única reflexão que arriscara a respeito do amuo, agora explicado, entre os dois namorados.

Assim que chegou a Paris, Rodolfo encaminhou-se para a Avenida de léna.

Desejando ver Gilberta longe da influência conciliadora do tio, nem sequer se deu ao trabalho de passar por sua casa e mudar o fato de viagem por mais cuidado vestuário, e foi assim que apareceu ao cair do dia, na salinha azul, que os nossos leitores já visitaram.

Gilberta fez um movimento de surpresa ao vê-lo e ele teve a intuição de que ela não o esperava, pelo menos tão cedo. Explicou logo a sua presença no palácio:

- O senhor de la Saponaire, depois de ter tentado ocultar a sua partida, houve por bem mostrar-me esta manhã a sua carta.

Ela corou bruscamente.

- Ah! leu...

- Sim e isso foi melhor para ambos.

- Não! Meu tio não devia ter feito isso.

- Não lhe censure esse acto; foi a minha insistência que o obrigou a tal. No estado de espírito em que eu me encontrava, impunha-se a franqueza.

Houve curto silêncio incomodativo. A vontade de ambos seria não falar, receosos talvez das palavras que iam trocar.

- O senhor veio a Paris sem meu tio? - indagou Gilberta, sendo a primeira a quebrar o penoso silêncio que pesadamente pairava.

- Desejava vê-la... A sua carta autoriza-me a retirar a minha palavra; antes, porém, de a tal me resolver, cumpre certificar-me de que é esse de facto o seu desejo.

Ofegante, Gilberta ouvia-o.

- Fará o que lhe aprouver - respondeu em voz enrouquecida.

- Resposta de normanda! - replicou Rodolfo, sorrindo - A sua carta equivalia a uma ordem de rompimento; é assim que devo compreendê-la?

- Nada tenho a retirar ou a acrescentar ao que escrevi - volveu Gilberta com mais firmeza.

Mantinha-se em frente dele, muito direita, toda aprumada na sua impassível posição; evitava fitá-lo e os olhos, pertinazmente, estavam fixos no chão.

Rodolfo examinou-a por instantes, sem proferir palavra; verdadeira hesitação se lhe pintava no semblante, cuja palidez mais aumentara a habitual gravidade.

- Nesse caso - retorquiu Rodolfo pausadamente e como que pesaroso -só me resta despedir-me de si, porque não sinto coragem de escutar sem ouvir, de olhar sem ver tudo o que pode interessar aquela que há-de ser minha mulher. Perdôi-me não ter percebido mais cedo o papel neutro que tinha a destinar-me e, por conseguinte, ter-lhe deixado acreditar, por tanto tempo, que o aceitava.

Parou, dando-lhe ocasião para responder, para protestar; como, porém, se calasse, com as feições transtornadas e tão pálida que supunha vê-la desmaiar na sua presença, prosseguiu, com menos gravidade, pondo quási carícia na voz:

- Deixemo-nos como amigos, quere, Gilberta? Para a sociedade, adoptará o pretexto que lhe convier e com ele me conformarei; mas, entre nós, que não seja assim: as nossas existências estiveram prestes a unirem-se e os nossos projectos de futuro foram os mesmos durante algum tempo; nada nos separou, salvo a nossa lealdade que nos mostrou a tempo que mais tarde não nos compreenderíamos... Guardemos de nós boa lembrança; quere, Gilberta?

Tomou-lhe a mão e, deveras comovido, levou-a aos lábios.

- Adeus, Gilberta!

Quis deixar recair a mãozinha gelada que acabava de beijar; mas os frágeis dedos conservaram-se presos aos seus e demorado, firme aperto o reteve prisioneiro.

Levantou os olhos e viu o olhar um pouco irónico da órfã.

- Como deseja ver-se livre de mim, senhor de Fragon! Ao mais pequeno ensejo, põe-me à margem sem cerimónia.

Espantado, protestou.

- Mas, ao que me parece, é Gilberta agora que o faz...

Ela interrompeu-o, encolhendo os ombros, teimosamente.

- Desta feita, tomo todos os agravos à minha conta, pois que nem um único o senhor quere tomar.

- Não se trata disso!... Tenho pelo contrário muito para me fazer perdoar, pois que ontem tive a desgraça de lhe desagradar.

Melancólica nuvem assombreou por instantes o rosto de Gilberta.

- Ontem houve um mal entendido entre nós; não falemos mais nisso, quere?

Rodolfo não acreditava no que ouvia.

- Pois não falemos - concordou.

- E sejamos amigos - volveu ela sorrindo pàlidamente.

- Sejamos amigos!

Gilberta notou que ele a fitava com ar meditativo.

- Como vê, sou-lhe mais afeiçoada do que supõe.

- De facto! E isso surpreende-me - respondeu Rodolfo com franqueza.

Deteve-se; depois, com sorriso um pouco triste, prosseguiu:

- Até agora não me tinha habituado a tanta indulgência.

- Porque o conhecia mal...

Certa comoção lhe fez tremer a voz e Rodolfo viu chegarem-lhe as lágrimas aos olhos.

- Fez bem, senhor de Fragon - continuou ela em proceder assim, há pouco. Ao querer partir, renunciando a desposar-me por uma simples questão de dignidade, obrigou-me a reconhecer uma demonstração do seu carácter que o meu orgulho se recusava a ver. Agrada-me bastante notar que podia, sem decair moralmente, pôr a minha mão na sua e tornar-me sua mulher.

Rodolfo fez um movimento de surpresa.

- Mas há pouco desprezava-me, duvidava de mim... - bradou fremente.

- Não me queira mal -tornou ela humildemente - Reconheço que me enganava. Como vê

- acrescentou, ao notar-lhe o aspecto sombrio tem um grande defeito a meus olhos...

- Qual? - inquiriu com tanta vivacidade que Gilberta sorriu.

- O de haver sido escolhido por meu tio.

- Mas esse defeito, ainda o tenho e tê-lo-ei sempre.

- Não... vai-o perdendo gradualmente todos os dias.

- Deveras?

- Sinto-o tão pouco que começo a acreditar que não é contra mim.

Rodolfo não respondeu; todo um mundo de pensamentos se elevava em si, e, por verdadeira ironia, quanto mais Gilberta parecia familiarizar-se com ele e adoçar-se ao seu contacto, menos satisfação sentia; esta meia vitória parecia-lhe bem parca perante todo o caminho ainda a percorrer até à completa intimidade.

É que, a despeito da suavidade do tom da órfã, a despeito da doçura dos seus sorrisos e da cordialidade das suas palavras, sentia surgirem o esforço e o preconceito.

Apenas oito dias os separava da data aprazada para o seu casamento e, contudo, nunca Gilberta a tal aludira; pelo contrário, dir-se-ia que tinha o cuidado de evitar qualquer assunto de conversa que com isso se relacionasse e Rodolfo, conformando-se com essa atitude, preferia também fingir-se indiferente.

Por outro lado, se a órfã aparentemente se curvava e amoldava ao seu papel de noiva, se parecia tornar-se de dia para dia mais amável, mais solícita, percebia bem que nela era apenas um modo de ser para com ele, quando muito, uma máscara de benevolência que adoptava na sua presença. A antiga Gilberta continuava a viver, não menos altiva e orgulhosa do que noutros tempos e, para se convencer disso, apenas tinha de examinar-lhe o olhar de soberana, de lampejos de aço, os lábios de comissuras desdenhosas, a fronte impassível, de involuntárias crispações.

E todas essas comprovações que o seu íntimo, profundamente susceptível, sublinhava, deixavam-no perplexo, hesitante, antecipadamente alucinado.

Que ideia de-repente lhe acudiu de evocar o seu futuro enlace? Talvez por necessidade de verificar, uma vez ainda, o profundo desprendimento de Gilberta por tudo quanto se referia a essa tão importante página da sua vida... Talvez necessidade de verificar a sua própria sensibilidade... -i Sem o reconhecer e sem o notar, Rodolfo sofria com o receio de sofrer!...

- Já pensou, Gilberta, em que dentro de oito dias, por esta hora, o nosso casamento será facto consumado?

Ela estremeceu.

- já - volveu, pensativa - Dentro de oito dias estará concluído.

- E essa ideia não lhe faz medo? O futuro é tão enigmático!

- Já lhe disse: não creio que o futuro possa ser pior para mim do que o maldito passado.

De fronte grave, deixou vaguear os olhos pela janela aberta que deixava ver, não muito longe, a severa cruz de um campanário de igreja.

E mais baixo, com uma espécie de mística fé, concluiu:

- Medo, porque havia de ter medo? Não há para todos nós supremo refúgio quando se sofre demasiadamente? Não somos senhores de cortar o fio da nossa existência, quando esta se torne pesada de mais?

- Oh! - protestou - Pois pode falar assim? Gilberta fitou-o com os seus grandes olhos abertos; de seguida, sorriu tristemente.

- Tem razão! - confessou - É loucura dizer tais palavras! Contudo, se soubesse como tenho pensado nisso de há dois meses para cá... Mas o senhor reconciliou-me um pouco com a existência e, disse de mim para mim, que sempre haveria ocasião para recorrer a esse remédio... mais tarde, quando perdesse a esperança de uma migalha de felicidade.

Rodolfo ia protestar, afirmar-lhe que ambos, com um pouco de boa vontade e indulgência, poderiam ter vida calma, tranquila, suave, serena, donde não seriam excluídas as alegrias. Mas Gilberta susteve-lhe o entusiasmo.

- Não! Nada me diga, porque tudo quanto pudesse dizer já eu o disse a mim própria. O futuro não nos pertence; ignoramo-lo; será o que tiver de ser; nem eu nem o senhor podemos mudá-lo.

- Teoria de muçulmano!

- Que é também a minha, embora seja profundamente cristã.

- Cristã? E fala da morte voluntária!

- É exactamente por esse motivo que digo: é loucura pensar nisso.

- Nesse caso nunca mais pense. A órfã sorriu e prometeu:

- Tentarei.

- E sejamos amigos... sempre!

- Sim... sempre!

De novo emmudeceram, com a alma constrangida de gravidade.

Anoitecia. A lua perturbadora projectava o seu crescente de fogo no céu, onde já cintilavam misteriosas estrelas. Gilberta deu volta aos comutadores eléctricos.

De Fragon não podia demorar-se mais. Partiu após algumas frases de despedida, muito afectuosas.

Emquanto pôde vê-lo, debruçada no corrimão da escada, ela seguiu-o com os olhos, de sorriso amável e impresso nos lábios. Mas, quando o ruído da pesada porta do palácio, fechando-se atrás dele, lhe chegou aos ouvidos, as encantadoras feições distenderam-se-lhe e extremo cansaço as alterou de-súbito.

Logo que voltou para os seus aposentos, olhou em sua volta, cheia de angústia, revivendo em pensamento os minutos que acabavam de voar.

De-repente, caiu de joelhos, ante o sofá e aí, com a cabeça metida nas mãos, com as espáduas fortemente sacudidas, soluçou alucinadamente, repetindo entre pranto as palavras que pareciam crucificá-la.

- Dentro de oito dias!

 

A carruagem toda forrada de branco, deixou a igreja ao rápido trote de dois cavalos de raça. Poucos trens a seguiam; o casamento de Rodolfo e de Gilberta, em virtude do luto recente, efectuara-se na mais completa intimidade: a família e os padrinhos, ao todo apenas trinta pessoas.

No fundo branco da carruagem, a órfã destacava-se, idealizada pela palidez, no seu vestido de setim de sumptuosas incrustações. com os olhos fitos no cristal da portinhola, via melancolicamente, como em sonho, o animado desfilar das ruas, donde subiam os mil rumores das horas de actividade.

Rodolfo, um pouco inquieto, examinava às furtadelas a acabrunhada atitude da companheira.

- Tem o ar muito fatigado, Gilberta.

- Sim... uma pequena enxaqueca... dormi mal a noite.

- O cansaço destes últimos dias?

- Provavelmente.

- Pode descansar um pouco, logo, emquanto mandar aprontar as malas. O comboio só parte daqui a duas horas.

O anel simbólico, resplandecente, cintilava no dedo da órfã. De Fragon viu-o e, galantemente, pegando na pequenina mão que o levava, tocou-lhe com os lábios.

- Está satisfeita, minha amiga, por que tudo emfim acabou? -inquiriu afectuosamente, curvando-se para ela.

- Muito satisfeita - respondeu com certo laconismo, com a sua voz lenta, que parecia mergulhada na indiferença.

- E acompanha-me sem pesar? - insistiu não menos afectuoso.

- Evidentemente.

A despeito da reserva do tom, passou meigamente o braço em torno da cintura da mulher e, tentando atraí-la contra si, quis beijá-la.

Rápida como um relâmpago, Gilberta deitou-se para trás.

- Chegámos - disse - Abra a portinhola.

De Fragon reprimiu um gesto de descontentamento e, sem dar palavra, sem a fitar, esperou que a carruagem se colocasse diante do portão, depois parasse, para fazer manobrar o fecho.

Cerimoniosamente, ofereceu-lhe o braço e conduziu-a à porta do quarto.

- Até logo, Gilberta - disse ao retirar-se.

E o seu tom foi tão firme que a órfã não soube se era uma vontade, quási uma ameaça que se firmava, ou banal frase dita maquinalmente.

Duas horas depois, instalaram-se numa carruagem de primeira classe especialmente reservada para eles e, tardiamente na noite, chegaram a Lyon, onde Rodolfo quis apear-se para permitir que Gilberta descansasse antes de prosseguir viagem. Ela porém, recusou, preferindo seguir directamente para Itália; e o marido querendo contemporizar até ao fim, não se atreveu a insistir.

Poucas palavras trocaram no decurso da primeira parte da viagem. Gilberta, de olhos cerrados, conservara-se constantemente no recanto do compartimento e algumas tentativas feitas pelo marido para a tirar daquele torpor, tinham implacàvelmente chocado ante a apatia com que ela lhe respondia.

Entretanto, quando o comboio tornou a partir a toda a velocidade na noite sombria, Rodolfo tentou de novo aproximar-se da mulher e, com o pretexto de a ajudar a deitar num dos beliches da carruagem, quis tomá-la nos braços.

Gilberta teve um sobressalto e fez tão nítido movimento de recuo que ele mais uma vez se retraiu.

Grave vinco lhe enrugava a testa.

- Não queria fazer-lhe mal - não pôde deixar de dizer Rodolfo.

E como ela se calasse, de ar estranho, toda enovelada no seu canto, parecendo recear qualquer violência, Rodolfo voltou a sentar-se-lhe defronte e inquiriu então:

- Que tem, minha querida amiga? Parece apavorar-se com a minha presença!

Gilberta nada respondeu, mas o marido sentia pesar-lhe o brilho dos seus grandes olhos assustados que era a única cousa que parecia viver no seu rosto marmóreo.

- Não está doente? - volveu.

- Não. Nada tenho.

- Então, seja razoável! Nada tema de mim e estenda-se para conseguir adormecer; de modo contrário ficará aniquilada de fadiga amanhã de manhã. Velarei emquanto dorme.

- Não tenho vontade de dormir.

- E, contudo, já são horas!

- Nesse caso, durma.

- Não prefere que lhe faça companhia? Visto que não pode dormir, conversaremos amistosamente.

- Oh, não! Dói-me a cabeça.

- É pena!

Levantou-se, envolveu-se nas mantas de viagem e deitou-se no beliche superior.

De sorriso nos olhos, de voz cariciante, quis ainda quebrar a atmosfera glacial que os rodeava.

- Então, boa noite, Gilberta.

- Boa noite.

Ela não sentira a indulgente insistência que empregava em conquistá-la e toda a sua boa vontade masculina caiu sob crispação de íntima raiva.

Puxou até ao queixo o cobertor de compridos pêlos sedosos; depois, sossegadamente, como nada de anormal sentisse entre ambos, fechou os olhos e pareceu dormir.

Entretanto a tempestade fermentava-lhe no cérebro. A atitude de Gilberta, muito diferente da dos últimos dias, quási se não explicava. Sentia-a fremente de comoção e de instintivo terror que nada justificava na sua correcta solicitude.

Tal suspeição parecia-lhe injuriosa. Perguntou de si para si quanto tempo poderia suportá-la sem parecer notá-la, sem se zangar, principalmente. Sentia bem que a necessidade de ser calmo e paciente se impunha; pela sua firmeza, pela sua meiguice, podia evitar que Gilberta fizesse a desventura de ambos. Como, porém, se examinasse bem, teve de reconhecer que quási não tinha coragem para nova luta. Ainda se sentisse por essa mulher verdadeiro amor! Mas ela não se prestava a isso... nem sequer tentava tornar-lhe agradável a tarefa.

E Rodolfo, angustiado, notara que não basta que uma mulher use o nosso nome, que a sua existência -esteja ligada à nossa, para que se nos torne querida e valha as concessões de amor próprio que seria talvez mister fazer-lhe.

Esses pensamentos desenvolviam-se-lhe no espírito sem que os dirigisse, sem que até desse conta da inoportunidade que havia nesse dia de concebê-las. E de-repente, apercebia-se da reviravolta desanimadora que tinham tomado.

No dia do casamento, examinar a pouca afeição que se tem pela mulher, a antipatia que ela nos consagra, era deveras ridículo.

O seu riso motejador, irónico, esfusiou muito alto, cortando o relativo silêncio da carruagem.

Gilberta aprumou-se, surpreendida, e viu-lhe o olhar inquieto a procurar o seu.

Então, ele explicou-se, zombando da própria amargura:

- Estou a pensar na deliciosa viagem de núpcias que começamos e nos estranhos dias que vão seguir-se: Génova, Parma, Pádua, Veneza, as esplêndidas cidades de sonho! Como vamos ser ditosos aí!.

 

Chegaram na manhã seguinte a Génova, primeira etapa da sua viagem, pois a juvenil senhora não quis por princípio algum parar no caminho, e Rodolfo, fiel ao programa que a si traçara, evitou impor-lhe a sua vontade.

 demora da sua estadia nas cidades italianas, estava subordinada ao seu capricho, e por isso tinham preferido hospedar-se num hotel confortável, a instalarem-se em qualquer das numerosas vilas que os genoveses possuem mobiladas, à disposição dos abastados turistas que os visitam. Isto, de resto, simplificava para eles a questão de domesticidade inerente a qualquer instalação séria;

Hortense, a criada grave que acompanhava a patroa, e o pessoal do hotel, podiam bastar para garantir o serviço pouco exigente dos noivos.

Jantaram nos seus aposentos na primeira noite.

Rodolfo comeu pouco; estava preocupado. A nova atitude de Gilberta cada vez se lhe tornava mais inexplicável.

Estava meditativa, inquieta, observando para com ele estranha reserva, cuja oportunidade não atingia, pois as suas maneiras de proceder com a mulher, eram das mais correctas e corteses. Desde a véspera, tivera o cuidado de evitar qualquer manifestação afectuosa, visto que isso parecia assustá-la mais ainda.

Por vezes sentia pesarem sobre si os grandes olhos sombrios da jovem; voltava-se, então, para ela e sorria-lhe; mas esta baixava a cabeça, evitando-lhe o olhar.

Rodolfo não manifestava aborrecimento algum e afastava qualquer sinal de descontentamento. Entretanto, sem querer, a sua alegria habitual desaparecia e a fronte tornava-se-lhe preocupada.

Gilberta queixou-se de dores de cabeça e recolheu cedo ao quarto. Despediu-se do marido com certa cerimónia, exagerando a pressa, a frieza, com o receio de ser familiar de mais ou de prestar-se a maior intimidade.

Rodolfo não se admirou. Estava sempre à espera daquela retirada precipitada.

- Até logo, Gilberta! - disse, no entanto.

No limiar do quarto e prestes a desaparecer, parou e virou-se para ele, volvendo em tom fatigado:

- Desculpe-me, estou quebrada pela longa viagem e morro de cansaço.

- Desagrada-lhe a minha presença? Gilberta arqueou as finas sobrancelhas:

- A sua presença?... Onde?

- Mas... a seu lado! Onde havia de ser?

Afigurou-se a Rodolfo que um brilho de susto iluminara de-súbito as pupilas femininas que lhe fugiam.

Curto silêncio pairou entre ambos.

- Imaginava que me não obrigaria a tocar nesse assunto - replicou, por fim, Gilberta, importunada, ao voltar para junto do marido - A tia Sofia - pois é assim que designa sua prima a tia Sofia pô-lo ao facto dos meus desejos... das minhas intenções. Delicadamente acedeu à minha súplica e eis que, neste momento, esquece o que se combinara.

Não obstante o seu grande império sobre si mesma, Gilberta corava, muito enleada, para se exprimir.

- Não vejo motivo para a tia Sofia ser chamada a este assunto - observou de Fragon, com certa vivacidade.

- Sou órfã-redarguiu com tristeza - Não tenho mãe que possa conversar consigo em meu lugar e não posso dirigir-me a meu tio; a tia Sofia era a mais indicada para lhe falar em meu nome, Devia ter-lhe dito...

- Mas nada me disse!

- Oh! Não é possível! Afirmou-me que o senhor achara isto muito natural... que podia estar tranquila...

Deteve-se; ficara de-repente tão desapontada que roucos soluços lhe cortavam a voz.

De Fragon, a quem a irritação tomara, media a sala a largos passos. Julgava-se ridículo e grotesco perante a estranha resistência da mulher.

Conseguiu, contudo, dominar o tumultuar dos seus pensamentos após alguns minutos de custoso silêncio.

- É inútil desolar-se - volveu com afectada suavidade, parando defronte de Gilberta, que chorava- Nada tenho de carrasco e não será minha vítima. Ignoro por completo as conversas que teve com a minha velha parente; mas se tomaram compromissos em meu nome, estou pronto a mantê-los, por muito desagradável que seja para mim... Diga-me apenas de que se trata.

Conservava-se de pé em frente dela, em atitude muito benévola. Todos os seus esforços tenderam para dominar a situação, a-fim-de ter bom papel de reserva para de futuro.

- Escuto-a, Gilberta. Que espera de mim?

- O senhor prometeu esperar...

Balbuciou confusamente algumas palavras; instintivo pudor lhe paralizava a vontade e a impedia de exprimir em voz alta o seu pensamento.

- Percebi bem -redarguiu Rodolfo, com os olhos fixos nela - Não quere franquear-me o limiar do seu quarto?

- Sim.

- Causo-lhe horror! - volveu amargamente.

- Oh! não! - protestou Gilberta num soluço.

- Nesse caso...

- Mais tarde... conhecer-nos-emos melhor. Depois... Mas não, oh! não, não neste momento.

Fitava-o, de olhos rasos de lágrimas, tão trágica na sua atitude suplicante que Rodolfo fez angustiado gesto de desânimo.

- Contava melhor com a nossa mútua boa vontade... - observou desolado - Mas pesou bem a sua resolução, Gilberta?

- Oh! sim! É melhor assim.

- Encarou todas as consequências?

- Encarei.

- Nesse caso, tanto pior!

Contemplou-a demoradamente com sorriso triste.

- D'ora-avante pode ficar tranquila, Gilberta prosseguiu Rodolfo com gravidade - Nunca exigirei nada da sua obediência. Dou-lhe a minha palavra que não terá necessidade de me proibir a entrada no seu quarto. Pode dormir descansada, que não a importunarei.

- Obrigada.

Ele viu-a afastar-se, satisfeito por ter sabido dominar a sua revolta; mas tristemente surpreendido também por ver a mulher aceitar entre ambos semelhante situação.

- Parece incrível! - murmurou - Está louca I Ficara pregado no mesmo lugar, com os olhos

fitos na porta que Gilberta acabava de franquear. Não conseguia perceber que uma rapariga sensata pudesse proceder de tal maneira.

- Está louca! - repetiu - Mas que rica prenda minha tia me deu!

E riu dolorosamente.

- Quere fazer de mim novo Grande Industrial! Desgraçadamente não estou enamorado!

 

- Hortense, o senhor de Fragon ainda não voltou?

- Não, minha senhora. Interroguei o moço da cavalariça e este disse-me que o cavalo montado pelo patrão, esta manhã, ainda não lhe fora entregue.

Gilberta sufocou um suspiro.

A demora de Rodolfo surpreendia-a e inquietava-a.

Tendo saído de manhã muito cedo, sem a prevenir- antes do alvorecer, conforme lhe disseram

- ainda não voltara e já eram quatro horas da tarde.

Após a custosa explicação que ambos haviam tido, na véspera à noite, receava que Rodolfo, ferido no seu amor próprio de marido, tomasse a seu respeito alguma vexatória decisão.

Afastara-se definitivamente, abandonando-a sozinha no hotel, por exemplo Após dois dias de casamento, que humilhação e que escândalo! O seu nome, a sua reputação, a sua vida íntima de rapariga, entregues às murmurações de todos... e que suposições não faria essa gente, sempre em busca de escandalozinhos!

A tal ideia sentia o rubor queimar-lhe as faces e crispação de terror lhe convulsionava os grandes olhos negros.

Pela primeira vez entrevia a enormidade do que fizera na véspera, esse abismo cavado por suas próprias mãos entre ela e o marido! Essa anomalia de um casamento que não o fora! Essa impossível união sem intimidade, sem ternura, sem abandono, sem nada... salva a indiferença, quási ódio!

E pela primeira vez também, perguntou de si para si, se era essa a vida que, no fundo de si-mesma, a-pesar-das penosas circunstâncias, o seu coração, o seu excelente coração de rapariga amorosa, escolhera quando sonhava amor e futuro?

Fizera bem em proceder assim? Procurando o melhor não faria nascer o pior?

Como uma mãe lhe teria sido útil para a aconselhar em tais momentos!...

Falara nisso a Sofia de Fragon. Confiara-lhe as suas inquietações, as suas hesitações... e ela, que tinha a peito agradar-lhe fosse como fosse, não se preocupara com prudentes conselhos a dar-lhe. Aprovara em absoluto tudo que lhe dissera..." Era natural", dizia, e ia falar nisso a Rodolfo, que decerto aprovaria!

E a tia Sofia calara-se! E o marido que nada sabia, ficou verdadeiramente dolorido com o que se passou...

Ah! porque confiara na prima do marido? Uma celibatária poderia de facto dar algum conselho útil acerca de um caso de intimidade conjugal? Em tal circunstância, devia ter a cabeça cheia de um montão de falsos preconceitos, de puerilidades, de ignorância, em suma!

Gilberta dizia consigo, que devia ter consultado alguma boa amiga... uma mulher casada... uma mãe, principalmente! Sim, uma mulher que conhecesse os homens e tivesse filhos, dar-lhe-ia prudentes conselhos...

Mas ser-lhe-ia possível interpelar uma amiga?... Sabia bem que não. Mesmo que o desejasse, as palavras não lhe poderiam sair dos lábios...

Pesado suspiro de amargura lhe fez arfar o peito.

- Ah! por que ficara sem mãe um ano antes? Nunca soubera o que eram desgostos emquanto esta vivera... e a desgraça, a terrível desgraça que lhe devastara o futuro, não se teria dado se não estivesse órfã e entregue a despreocupado tutor...

Encostara a testa escaldante ao frio vidro da janela e, ansiosa, dissimulando mal os sustos, espiava o regresso do marido.

- A senhora está inquieta - inquiriu familiarmente a criada grave, que desconfiava de uma desharmonia entre os patrões.

- Sim, tenho medo! - confessou francamente Gilberta, quási alegre por poder dizer a alguém uma parte dos seus receios.

Acrescentou, não podendo revelar os verdadeiros motivos dos seus temores:

- Tenho medo de que o senhor de Fragon fosse vítima de algum desastre com o cavalo de aluguer, cujos vícios e hábitos desconhece.

- Esquece-se de que o patrão é um bom cavaleiro.

- Decerto; mas um desastre depressa se dá... E depois, sozinho, nesta campina italiana de que se contam tantas cousas perturbantes...

Não concluiu; Hortense levantara o dedo e fazia-lhe sinal para escutar.

Um tropear de galope feria regularmente o pátio empedrado do hotel.

Gilberta abriu a janela e debruçou-se.

Uma onda de sangue afogueou-lhe as faces pálidas.

- Emfim!

- É o patrão? Oh! que belo suspiro lhe fugia do peito! Parecia-lhe que acabava de escapar a grande perigo e, imediatamente, todas as negras ideias desapareceram visto que Rodolfo voltava, tudo se podia ainda regularizar.

Passados alguns minutos, de Fragon entrava em casa. Gilberta ouviu-o andar de um lado para outro, no quarto, a assobiar.

Pensou que o marido não era muito solícito em vir cumprimentá-la; mas estava tão contente por vê-lo de volta que não se demorou muito nesse pensamento e, impaciente por falar-lhe, foi ter com ele, entrando-lhe no quarto sem mais cerimónia.

- A sua demorada ausência inquietou-me - censurou amigavelmente.

Rodolfo voltou-se surpreendido com a familiar irrupção.

Ela recebeu em pleno rosto o brilho dos seus olhos surpreendidos que a fitavam quásí hostilmente.

- Chego de Pegli. A vila Pallavicini e o vasto parque demoraram muito a minha atenção.

O tom era correcto, mas tão frio, tão banal!...

Gilberta sentiu confranger-se-lhe o coração: como Rodolfo tinha mudado! Bastara uma noite para o transformar, a ele atencioso e previdente, no glacial gentleman, para quem ela parecera tornar-se a mais insignificante das estranhas.

- Não me preveniu do seu passeio - insistiu menos ousadamente - de maneira que esperei por si toda a manhã.

- Esperou-me, mas porquê?

- Contava visitar a catedral de Carignan, consigo.

- Estou penalizado por não a haver acompanhado - respondeu lacònicamente-E é muito bonita essa igreja?

- Dizem-na belíssima.

- Não foi vê-la?

- Sozinha? Não, Não conheço a cidade. Tornava a cuidar do vestuário que a chegada da

mulher o fizera abandonar. Parou na sua frente, para lhe dizer em tom jovial:

- Mas eu também não conheço esta região! É igualmente a primeira vez que venho aqui: uma carruagem e um guia ter-lhe-iam sido mais útil do que eu.

Gilberta meneou a cabeça.

- Nada há mais aborrecido do que visitar uma cidade, de livro na mão.

- Refiro-me a qualquer dos inúmeros cicerones que este hotel tem à nossa disposição.

- Um estranho! Obrigada! Prefiro não sair do quarto!

Como Rodolfo fizesse um gesto vago por não apresentar melhor proposta, indagou com timidez:

- E que vai agora fazer?

- vou tomar uma chávena de chá, pois mal comi ao meio-dia. De seguida, vou visitar o Observatório da Universidade com o conde de Spinola, que feliz acaso me fez encontrar esta manhã.

- Já o conhecia?

- Já; visitei-o noutros tempos em Paris, quando da minha curta passagem pela Politécnica.

- E marcou-lhe encontro para esta tarde? insistiu no mesmo tom.

- Deve vir aqui buscar-me.

- E naturalmente janta com ele.

- É possível.

- Deve ser agradável!

- Que disse?

Rápido como o relâmpago, voltara-se e examinava-a com as sobrancelhas arqueadas.

Gilberta desviou o rosto para fugir àquele penetrante olhar que nela se fixava. E, quási humilde, explicou:

- Parece esquecer que estou sozinha nesta odiosa cidade, que não posso andar por toda a parte tão livremente como o senhor, e emfim, que não tenho conde algum de Spinola para me fazer companhia à mesa.

- Mas, minha querida amiga, se lhe agrada a nossa companhia, acredite que será grande honra. Se não a convidei foi por temer que a aborrecesse. Spinola é um modesto e um sábio que sacrifica aos seus trabalhos astronómicos o mais importante do seu capital, embora bem pequeno já. A sua casa deve ser um verdadeiro observatório e não me atrevo a certificar que a sua mesa seja a de um Luculo.

- No entanto, a ela se sentará com prazer.

- Evidentemente; sinto-me contente junto dele e a alegria que sinto em vê-lo far-me-á ignorar tudo o que Gilberta não deixaria de observar a respeito da sua modesta recepção.

Tornou-se pensativo de-repente e acrescentou a meia voz:

- É um recanto da minha feliz mocidade que vou reviver esta tarde... todo um passado de recordações que Spinola e eu folhearemos juntos ao falar dos nossos vinte anos.

- Então, é melhor que eu não importune com a minha presença as suas recordações. Não o acompanharei.

- Como quiser.

Gilberta mordeu os lábios, reprimindo a sua decepção. Esperara que Rodolfo protestasse e insistisse para a resolver a acompanhá-lo. A facilidade com que lhe aceitava a recusa era-lhe desagradável, porque sentia aí melhor a indiferença do marido.

Depois de haver engulido rapidamente alguns bolos secos com a chávena de chá, de Fragon despediu-se de Gilberta.

- E sairá ainda amanhã? - inquiriu ela.

- Sim, é provável.

- Quere ter a bondade de prevenir-me para que possa acompanhá-lo... a menos que não prefira ir só?

- A sua presença de modo algum me incomodará. Esperarei por si para sair.

- Obrigada. Até amanhã.

- Até amanhã.

Separaram-se, cerimoniosamente, como estranhos.

Através das flores da janela, Gilberta viu o marido afastar-se com um homem de mediana estatura, que adivinhou ser o conde de Spinola.

com a cabeça em fogo, triste até às lágrimas, repetiu muitas vezes estas palavras que lhe vergastavam o orgulho:

- A sua presença de modo algum me incomodará...

Realmente, de Fragon tivera má inspiração ao escolher aquela frase cavalheiresca cuja amarga secura a mulher saboreava.

A sua vaidade ferida recordou-lhe de-súbito os contras do casamento:

- Tem fortuna; a mulher não o incomoda, ah! ah!

E o seu riso agudo vibrou doloroso, aflitivo de ouvir.

Em poucos minutos, todas as suas boas resoluções da tarde se haviam dissipado e surda raiva as substituira.

- A minha fortuna! Pois bem! Ainda não é dele!

Era um desafio que lançava à altiva frieza de Rodolfo.

Pobre Gilberta! Esquecia que a única arma verdadeira da mulher é a meiguice que atrai ou reconduz continuamente o marido ao lar. Se lhe fosse permitido ler no íntimo da alma do homem que se afastava, veria que a alegria de tornar a ver um amigo, era prejudicada pelo remorso de deixar Gilberta desacompanhada.

Mas estava escrito que os seus corações não deviam ainda encontrar-se num mesmo bom impulso.

 

- Diga-me, meu amigo, que rio é aquele que corre lá para baixo, ao longe?

- A rívlera dl Ponente.

- E aqueles montes?

- A cadeia dos Apeninos.

- E lá ao fundo, aquelas casas entre palmeiras?

- O Campo-Santo.

O guia pronunciou este termo tão religiosamente que Gilberta se virou para ele e observou, sorrindo:

- É bonito, o Campo-Santo?

O homem encolheu os ombros, como se a interrogação da rapariga lhe parecesse supérflua.

- É preciso ver - respondeu com laconismo.

- Iremos lá amanhã, que diz?

Como voz alguma lhe respondesse, procurou o marido com os olhos. Viu-o sentado à parte, num dos taludes de musgo, todo entregue à contemplação do magnífico panorama que se lhe desenrolava à vista.

O seu perfil enérgico, de nariz recto, de queixo voluntarioso, de lábios delgados sob o bigode cortado curto, de feições finas sob a pele mate, destacava-se nitidamente no fundo unido do céu sem nuvens.

O semblante de Rodolfo reflectia nesse momento tão intensa expressão de gravidade e de melancolia ao mesmo tempo, que Gilberta estremeceu como se a ponta de ferro em braza lhe tocasse a carne sensível. É que, no fundo de si própria, pequenina voz lastimosa parecia, de momento a momento, despertar no coração da recém-casada um eco de remorso.

Os olhos fitaram-se demoradamente, com dolorosa insistência, no másculo rosto sempre imóvel, e permanecia pensativa, atingida por essa melancolia tão próxima e contudo tão afastada e cuja causa, a despeito de si mesma, sentia.

A alguns passos deles, o guia impaciente com aquele prolongado mutismo, assobiava uma ária napolitana.

Gilberta acabou por notar a atitude desse estranho.

Acercou-se do marido e tocou-lhe no ombro para lhe chamar a atenção.

Rodolfo voltou lentamente a cabeça com ar interrogativo.

- Não deseja continuar a nossa excursão?

- Como quiser - volveu, levantando-se sem pressa, com os olhos ainda cheios da misteriosa perturbação que os enlanguescia há pouco.

Seguiram, calados, o guia que os levava por um caminho ladeado de ciprestes, de loureiros, de laranjeiras, onde o sol, peneirado pela verdura, caía em fina chuva de ouro.

A cada clareira, tornavam a parar, atraídos pelo amplo panorama que se alongava, grandioso, a perder de vista. Era um conjunto de moradias principescas, de casas de campo deslumbrantes de mármores de cores alegres e variadas; de fortificações que as emmolduravam ao correr pelas colinas, de aldeias, de povoações, de campanários extravagantes, de montanhas escarpadas, à esquerda, quando, defronte deles, mar azul de margens recortadas em inúmeros golfos, parece inorme planície em que voam barcas de grandes velas brancas, semelhantes a aves...

Tornaram a descer em Génova, utilizando a carruagem até às portas da cidade e daí foram para o hotel pelas estreitas ruas, verdadeiros corredores que o sol de Junho mal conseguia iluminar e por entre os quais enxameava laboriosa população, de dialecto meio africano.

Assim que franqueou o portão de colunelos de mármore, do hotel, zeloso criado entregou a Rodolfo um maço de cartas.

Percorreu rapidamente os indereços uniformes dos subrescritos, procurando adivinhar no nome, a remessa de alguma mão amiga.

De-repente, estremeceu. Acabava de reconhecer a letra angulosa da tia Sofia.

Antes mesmo de tomar conhecimento dessa carta, já lhe adivinhava o conteúdo: casado havia apenas oito dias, a velha parente recordava-lhe já a dívida e os compromissos.

Tornara-se preocupado e Gilberta notou-o imediatamente.

- Más novas? - interrogou antes de entrar no seu quarto e de Rodolfo chegar ao dele.

- Não - respondeu - uma carta de negócio e nada conheço de mais fastidioso.

- Posso ser-lhe útil para alguma cousa?

- Não, obrigado.

E, desejoso de fugir a qualquer insistência, deixou-a bruscamente.

Gilberta permaneceu pensativa por instantes; depois meneou a cabeça:

- Carta de negócio em papel cor de malva e de formato pequeno?...

Acudia-lhe uma dúvida. Ao pensar que talvez fosse uma mulher, uma antiga amante de Rodolfo que o perseguia, murmurou com a exagerada severidade das raparigas inexperientes:

- Oh! não, isso não! Seria demasiado!

E resolveu procurar saber. Não se tratava, acima de tudo, do homem cujo nome usava?

Assim que Rodolfo se encontrou só, percorreu a carta da tia Sofia.

Era, de facto, o que suposera. Aqui está o que escrevia:

"Meu querido filho

Perdôi-me vir perturbar-lhe a felicidade, lembrando-lhe o empréstimo que tive de fazer para lhe permitir pagar a sua dívida de jogo e, ao mesmo tempo, fazer face às múltiplas despesas que o seu papel de noivo comportava.

Estou persuadida de que, na sua actual situação, fácil lhe será reembolsar-me sem demora desta importância, bem pequena para si, agora tão rico.

Beije por mim a encantadora Gilberta e creia-me sempre, etc."

Perturbar-lhe a felicidade, a encantadora Gilberta foram as palavras que primeiro lhe saltaram à vista.

De facto, que ironia sob a pena daquela que forjara por si, tão singularmente, a extraordinária união a que se encontrava acorrentado!

A princípio acudiu-lhe a ideia de responder à ironia da tia Sofia com censuras e palavras duras que o aliviariam um pouco de todo o desprezo acumulado contra ela. Reflectiu, porém, que não devia fazer estendal dos sofrimentos íntimos. Essa pérfida mulher não tinha precisão de conhecer a dolorosa verdade; podia adivinhá-la por tudo quanto já sabia; mas eram apenas conjecturas; para que fornecer-lhe provas?

De resto, Gilberta era sua mulher perante todos... usava-lhe o nome... era o suficiente para ocultar os seus agravos e defendê-la contra todos.

Não; não escreveria à velha fidalga; contentar-se-ia em enviar-lhe a importância devida, sem sequer lhe dirigir uma palavra... como quem atira ossos a um cão esfomeado!

Esta decisão lembrou-lhe a própria soma...

Oh! como lhe repugnava mexer na bolsa de Gilberta!... de Gilberta que o desdenhava como marido ao aceitá-lo como esposo oficial!

Razão tivera em dizer que o seu casamento era um negócio; dera um nome e recebera em troca uma fortuna. Nada mais lhe pediam e nada mais lhe ofereciam...

Mas a sua requintada delicadeza repelia ainda a ideia desse negócio realizado para aviltar duas almas e ferir duas consciências.

Entretanto, não podia tergiversar mais tempo.

Chegara a ocasião de agir.

com amargura, com gesto nervoso que lhe denunciava a íntima raiva, a derrota moral, escreveu o endereço da tia Sofia. Depois, tirou da pasta um livrinho de cheques, representativo de cem mil francos enviados pelo senhor de la Saponaire algumas horas antes da sua partida de Paris, para ocorrer às primeiras despesas da viagem.

Rapidamente preencheu os claros de um talão.

De-súbito passos miúdos atrás dele fizeram-lhe voltar a cabeça.

Franziu involuntariamente as sobrancelhas ao reconhecer Gilberta.

O seu primeiro movimento, mais instintivo do que reflectido, foi colocar a mão aberta em cima do cheque pronto a partir.

Mas viu os olhos da mulher fitos no livrinho. E todo o seu orgulho lhe subiu à cabeça, numa necessidade de bravata.

Lentamente, retirou a mão que escondia a letra e, deixando apenas os dedos no rebordo da página, como para melhor afirmar a paternidade do que acabava de escrever, olhou para Gilberta, quási em ar de desafio.

Todo um drama silencioso, em que só as pupilas se moviam, se representou entre ambos.

Gilberta hesitava, querendo saber, mas não encontrando natural pretexto para desculpar o seu gesto indiscreto. Ele inquiriu:

- Deseja alguma cousa?

Ela hesitou; depois, bruscamente, resolveu-se e indagou:

- O hotel já lhe apresentou a conta?

Os seus olhares fixos no livrinho de cheques pouparam-lhe qualquer outra explicação.

Rodolfo compreendia muito bem...

Muito senhor de si, respondeu:

- Nada disso: Ainda não a pedi.

- Ah!... Mas então?... Dá-me licença?

E com firmeza que quási desconcertava Rodolfo, pegou no sobrescrito e no cheque.

O rapaz não fez um movimento para a impedir. Nesse minuto, não quis dar a entender a mais pequena hesitação nem o mais leve receio.

E com o seu ar altivo, levemente sorridente, parecia dizer:

- Não admito nem crítica, nem fiscalização, da tua parte!

o sorriso irónico dos seus olhos que pareciam seguir o jogo fisionómico de Gilberta!

Sem olhar para o marido, esta sentia-os cravados nela.

com pasmo, relera duas vezes o cheque e a direcção, sem nada perceber a princípio.

Depois, quando tornou a colocá-los em cima da pasta, compreendera-lhe o significado.

- Era, de facto, uma carta de negócios - observou com ironia.

Deu alguns passos para a porta; voltando-se, olhou para Rodolfo e desatou a rir.

- A comissão da tia Sofia! Ah! ah!

O riso sarcástico ainda soava depois dela ter abandonado o quarto.

Impassível, mas muito pálido, de Fragon dobrou o cheque, metendo-o num sobrescrito.

 

A viagem de núpcias continuou...

Arrastaram durante três semanas o seu mútuo aborrecimento através das cidades de sonho e dos encantadores paraísos que visitavam fatigados, com a alma bastante longe de todos esses esplendores de fortes evocações.

Alternadamente, percorreram Parma e o seu palácio ducal; a antiga Pádua de ruas ladeadas de arcadas; Veneza, a rainha do Adriático, os seus mil palácios e as suas pitorescas gôndolas que singravam silenciosas por entre dupla fila de imponentes e sumptuosas construções. Entraram em grande número de monumentos grandiosos cheios de obras primas.

Os seus olhares contemplaram, surpresos e encantados, infinita porção de palácios, de igrejas maravilhosas, de templos plenos de indescritível magnificência, de esculturas e pinturas inimitáveis das escolas italiana ou romana.

Foi para os seus olhos deslumbrados um inaudito luxo de esplendores e de arte que mais pareciam sonhos.

Mas nem os seus corações nem os seus cérebros participaram desse regalo visual, e tudo admiraram com palavras, sem que a sua admiração lhes passasse da boca.

Encerrados na sua couraça de orgulho, os pensamentos de ambos tinham bastante para se confinarem em si próprios, para martelarem constantemente a mesma cousa: o outro, que parecia ter-se tornado o inimigo.

E os dois, no entanto, mal somavam cinquenta anos! Possuíam a idade do amor, das quimeras e do riso!

Eram novos, formosos, ricos; tinham saúde, força, futuro; tudo era de ouro, em torno deles; para serem felizes, nada realmente lhes faltava!

Talvez um pouco mais de indulgência... Talvez também um pouco menos de vaidade!...

No céu nublado que se criavam a si mesmos, um grão de sofrimento tudo ia varrer e, roubando-lhes a felicidade que possuíam, mas não sentiam, mostrar-lhes-ia o seu verdadeiro valor.

Havia alguns dias que tinham regressado a Paris...

O palácio de Neuilly que durante tanto tempo abrigara a felicidade dos pais de Gilberta, fora preparado para receber os dois esposos.

Instalaram-se logo em seguida aí, com a satisfação de poder emfim fugir ao contínuo convívio dos comboios de luxo e das mesas dos hotéis.

A atitude um pouco fria de Rodolfo não variara; a de Gilberta permanecia distante e melancólica.

Quem pudesse estudar o juvenil casal teria decerto notado que, se o marido parecia desinteressar-se facilmente da companheira, como homem que tomou a peito a sua falsa situação, a mulher, pelo contrário, observava com muda atenção todos os actos e gestos do primeiro.

Nesse dia que devia ter tão grande influência na vida deles, almoçaram, pela primeira vez, na casa de jantar do palácio, tendo até de mandar vir de fora o almoço porque o quadro da criadagem não estava ainda completo.

Havia flores em todos os recantos da casa; belíssimo sol se coava através dos bordados tules dos cortinados; a baixela e os cristais sobressaíam da toalha de renda; Gilberta trajava elegantemente de claro, contribuindo todo o conjunto para dar ambiente festivo a esta primeira refeição familiar.

Sensível à atmosfera, às finas iguarias, aos delicados licores, o jovem marido deixava-se levar pela suavidade do momento.

Tanto luxo, tanto bem-estar, ressumavam profusamente nessa opulenta sala que o optimismo penetrava-o. Não estava ainda farto de todas as satisfações que a riqueza proporciona e tornava-se-lhe agradável pensar em que esta vida confortável e requintada ia ser a sua.

Até se surpreendeu diversas vezes a contemplar Gilberta às furtadelas e com simpatia.

Estava realmente encantadora nesse vestido de bom corte, cuja cor lhe fazia destacar tão delicadamente a fina cabeça e ele lembrava-se com certo desvanecimento de que era sua mulher. Afinal entre ambos não fora ainda proferida a última palavra. O capricho que o afastara do seu quarto nos primeiros tempos não podia durar eternamente.

Ela própria não declarara: "Mais tarde, quando se conhecessem melhor... "? O rapaz não tinha senão que se envolver numa frieza digna e aparente e aguardar os acontecimentos.

Pensava também que talvez não fosse desacertado apreciá-los. A mulher era suficientemente bonita e tornava-se muito desculpável que o jovem marido forçasse um pouco a sua vontade e fizesse com que os seus desejos prevalecessem sobre os da sua companheira.

Quanto a Gilberta, habituada desde a tenra infância a esse luxuoso meio, quási não dava pelo encanto, só se lembrando dos seus deveres de dona de casa, obrigando-a a olhar por tudo e a dirigir com arte o excelente conjunto dessa principesca moradia. Carga muito pesada para débeis ombros, mais pesada ainda quando o cérebro que os domina está ferido pelo sofrimento tornado ideia fixa.

Para bem cumprir semelhante tarefa ou para saborear a hora presente, é preciso ter o espírito liberto; ora, Gilberta trazia dentro de si invisível chaga que mão alguma pudera ainda sarar.

A gélida atitude de Rodolfo custava-lhe muito e desorientava-a como falta de tacto. De que insensibilidade monstruosa era ela formada? Após as leais explicações que o tio dera ao rapaz, parecia esperar melhor dos seus sentimentos de cavalheirismo.

E quando Gilberta, levantando a cabeça, examinava o marido, certa tristeza lhe passara pelos olhos sombrios na presença desse homem impecável, que nunca tivera compassiva palavra pela sua angústia e que a deixava sozinha carregar o fardo do imerecido desgosto.

Finda a refeição, de Fragon perguntou se podia tomar o auto, que sua mulher achava duro de guiar.

Contava ir a Versalhes buscar alguns documentos importantes que lá deixara.

- Tome o auto - acedeu Gilberta - Se eu sair, alugarei um táxi; emquanto me não entregarem o carro pequeno que me está destinado, prefiro proceder assim.

Ambos encantados com o acordo, despediram-se.

Pela primeira vez, desde o princípio do casamento, de Fragon, realmente bem disposto, levou aos lábios a mão de Gilberta.

- Até à tarde, Gilberta...

- Até à tarde, Rodolfo...

E emquanto o marido partia, alegremente, para Versalhes, a mulher corria, muito serena, para o seu trágico destino...

O táxi em que Gilberta se instalara, seguia pela avenida de Friedland, para a igreja de Santo Agostinho.

A órfã ia muito ocupada em folhear pequena agenda de algibeira em que apontara as diversas compras a fazer, quando se viu, de-repente, levantada do assento e arremessada para a frente em choque de extrema violência. Não teve tempo de notar o que acontecera; com um grito atroz, caiu sob um monte de ferragens e vidros partidos.

À esquina da rua do arrabalde Santo Honorato, o carro que a transportava, apanhado de través por pesado camião de entregas, acabava de voltar-se, quási pulverizado pelo choque.

Houve gritos de terror dos transeuntes assustados, e indignadas censuras das testemunhas que ameaçavam o enlouquecido autor do desastre.

Depois, passado o primeiro momento de terror, salvadores benévolos correram para o táxi donde partiam gemidos.

Por inexplicável acaso, o automóvel não se incendiou e pôde-se, sem muito trabalho, desprender as duas vítimas: o desgraçado condutor que parecia estar em coma e a juvenil passageira inanimada.

O hospital Beaujon ficava perto do local do desastre. Logo a seguir compareceu aí um agente que trouxera duas macas em que se puderam estender e, depois, transportar os feridos.

No grande edifício que todos os dias alberga tantos males físicos, duas novas vítimas da viação acabavam de entrar, fraternalmente unidos pelo mesmo acidente: o pobre diabo do motorista, ganhando a vida a custo e a elegante senhora milionária, de quem contava receber generosa gorgeta.

com o corpo deveras contundido, o rosto lívido, as narinas afinadas, Gilberta, sempre inanimada, foi colocada numa cama do hospital. Pela primeira vez na sua vida, repousava num dormitório onde outros leitos se alinhavam identicamente iguais ao seu. Confundida com outros infelizes, ia, número anónimo entre outros números, conhecer os mesmos cuidados judiciosos e as idênticas atenções de indiferentes enfermeiras.

com a colisão, a sua malinha de mão desaparecera e, como não se encontrasse em estado de fornecer o mais pequeno informe a respeito da sua identidade, a sua ficha só dizia estas palavras: sinistrada do cruzamento Haussmann-arrabalde Santo Honorato.

Ninguém pensou que essa mulher tinha em qualquer parte uma família a prevenir e um marido a chamar para junto dela.

Só muito tarde, a meio da noite, é que Gilberta abriu os olhos: os membros magoados recusavam-lhe qualquer concurso, uma pontada de lado impedia-a de respirar livremente, uma dor interior a contorcia atrozmente, emfim, um capacete de aço pesava-lhe na cabeça e fatigava-lhe os olhos.

Na penumbra das lamparinas, distinguiu as paredes brancas de nudez monacal, os leitos alinhados, donde partiam sopros pesados ou roncos inquietadores; em cima de uma mesa, instrumentos estranhos cintilavam no seu aço polido.

Assustou-se, não compreendendo o que lhe acontecia. Julgou-se vítima de horroroso pesadelo e quis gritar. A voz, muito fraca, parecia perder-se na imensa enfermaria.

Porque é que Hortense não acudiu ao apelo?

Chamou a si todas as forças e conseguiu soltar um grito de angústia que o sofrimento prolongou em lamentoso clamor.

Exhausta, com o seu mal despertado pelo esforço, conservou-se inerte, meio aterrorizada.

- Meu Deus! Que queria dizer isto? Porque sofria ela assim? E Hortense, que não correspondia!... Ah! seu marido... sim, seu marido!

Delirava.

Uma vigilante, atraída pelos gemidos, trouxe-lhe uma poção calmante.

Gilberta, alucinada, fitava-a. Aquela mulher desconhecida, aquele véu... porquê tanto branco em toda a parte? As paredes, o leito, a mulher!

Foi mister descerrar-lhe os lábios para a obrigar a beber; logo, porém, que tomou alguns goles, bebeu avidamente como animal febricitante ao qual a sede devora.

Só na manhã seguinte pôde dar a morada e fazer telefonar para casa.

 

Rodolfo passara uma noite terrível. A princípio, à hora da refeição, como não viu aparecer Gilberta, dissera consigo que se utilizara da liberdade que lhe concedera e, irritado com a demora, atribuindo-a a culposo desleixo da mulher, ordenava que pusessem o jantar na mesa sem esperar mais tempo.

Mas o rosário dos minutos desfiava-se e formava horas que o mostrador registava uma a uma.

Ao descontentamento do homem sucedeu o espanto e, de seguida, a inquietação.

Agarrado ao telefone, pediu notícias ao senhor de la Saponaire e depois a alguns íntimos que Gilberta podia ter ido visitar.

Perante a nulidade de tais comunicações, lembrou-se de interrogar os criados.

Estes nada sabiam. Hortense afirmou que a patroa devia ter ido à modista, depois fazer algumas compras e, por fim, voltar.

- Naturalmente aconteceu algum desastre à senhora - observou a criada grave, a soluçar.

De Fragon não estava longe de fazer idêntica suposição. Mas não queria desde logo encarar o pior; dizia consigo que talvez Gilberta exercesse represália de mau gosto. Ele mesmo, poucos dias antes, não a tinha deixado jantar sozinha, sem ter a possibilidade de avisá-la a tempo?

Supunha, portanto, com certa amargura, que a mulher se queria pagar da partida em moeda igual.

Contudo, à meia-noite, as lamentações da criada de quarto que afirmava ser a senhora incapaz de deixar voluntariamente os seus, deram razão aos mais íntimos receios.

Rodolfo telefonou para a prefeitura da polícia, donde lhe responderam, como cousa natural, darem-se em Paris mais de cinquenta desastres de viação por dia e ser difícil poder afirmar que Gilberta estivesse, ou não, incluída no número das vítimas, emquanto não tivessem recebido as participações dos diversos postos policiais.

De Fragon resolveu, pois, sem demora, visitar os diferentes comissariados da capital. O automóvel transportou-o de um a outro. Por toda a parte ouvia falar de desastres e de vítimas. Um deles indicou bem o choque do arrabalde Santo Honorato, mas, por descuido do agente que redigira o auto ou por irreflexão do escrivão que o levantara, designavam-se o homem como o freguês e a mulher como motorista.

Rodolfo não suspeitou da confusão e continuou o seu trágico passeio.

Foi apenas a meio da manhã que lhe telefonaram do hospital Beaujon.

E ficou logo desvairado. Correu para onde se encontrava Gilberta com o receio de saber se estaria mortalmente ferida ou para sempre doente ou ainda definitivamente desfigurada.

As três suposições eram atrozes: no entanto, repetia de si para si:

- Oh! Oxalá que viva! Seja como for, mas que viva! Confortá-la-ei, protegê-la-ei; mas que esteja viva! Saberei muito bem fazer-lhe esquecer a desgraça!

Sem que desse por isso, o seu subconsciente tinha necessidade da mulher e aterrava-se com a ideia de perdê-la para sempre.

A impaciência de Rodolfo em saber era tão grande que não esperou que o carro parasse por completo para se apear e correr ao hospital.

Estava irritado perante as formalidades a cumprir para visitar uma doente fora das horas regulamentares. Toda essa gente a quem se dirigia parecia não lhe compreender a angústia e foi-lhe mister preencher uma infinidade de papelada, antes de conseguir o seu alvo. Chegou emfim à porta da sala em que repousava sua mulher.

Ainda uma curta paragem: os médicos andavam na visita e era preciso esperar que a tivessem terminado.

A enfermeira-mor que lhe falava era justamente aquela que, a pedido de Gilberta, lhe telefonara pouco antes.

- É o senhor de Fragon? - inquiriu.

- Sim, minha senhora.

- Sua mulher estava muito penalizada, esta manhã, por ainda não ter sido prevenido... Como não sabíamos o seu nome...

- É grave o seu estado? - informou-se, com a garganta apertada.

- Felizmente, não... múltiplas contusões, algumas costelas partidas, um rasgão no couro cabeludo.

- É terrível! -bradou Rodolfo, aterrado com aquelas informações.

- Podia ter ficado morta... Chega a ser milagre que tão facilmente se tivesse salvo. Afianço-lhe que essa juvenil senhora esteve com sorte; o motorista morreu esta noite.

De Fragon fez um gesto horrorizado.

- Verdade seja - observou a enfermeira - que uma desgraça nunca vem só. Semelhante choque no estado de sua mulher, era fatal! A gravidez... acabou-se... tudo se concluiu esta noite. No entanto, foi um pequeno dissabor, em comparação ao que podia ter sido.

Rodolfo sentiu um arrepio de pasmo.

- A gravidez? - repetiu, transtornado.

A enfermeira sorriu, não lhe atingindo as causas da perturbação.

- Meu pobre senhor, compreendo o seu desgosto... Alegrava-se à ideia do pequenino ser que ia nascer, criava sonhos, mas a criança não podia sobreviver a tal desastre, não é assim? Emfim, o principal é que a mãezinha aí esteja viva; o senhor pode comprar outro bebé.

Rodolfo já não a ouvia.

Fulminado pela extraordinária revelação, ficara aniquilado, incapaz de pronunciar palavra, de fazer qualquer movimento. Nem sequer tinha força para um protesto, uma negativa.

- Um filho!

Estas palavras mal lhe chegavam ao espírito, de-súbito enlouquecido.

- Gilberta... um bebé!

Era qualquer cousa de fantástico, de inaudito, tão longe das cousas possíveis que não lograva encará-la.

O seu próprio pensamento se tornava rebelde e furtava-se a encarar de frente semelhante suposição.

Um filho... Falavam-lhe de um filho... Ora, vamos, era preciso reflectir, talvez mesmo compreender...

Noutros tempos, esta ideia atravessara-lhe o espírito duvidoso, mas repelira-a horrorizado como se fora sacrilégio; Gilberta era demasiado leal, demasiado pura, para ser assim maculada com tão injuriosa hipótese.

E eis que a ultrajante conjectura se tornava realidade! Falava-se de um bebé, referindo-se a sua mulher.

Julgou-se louco.

No cérebro fizera-se-lhe de-repente um grande vácuo, grande buraco sem fundo, em que para sempre mergulharia... através das trevas, de abismos... a incalculáveis profundidades!

Era como que náufrago a quem as ondas arrebatam e cegam que só vê água infindável à sua volta... água clara, transparente, que se agita, que foge... água, água sempre à direita, à esquerda, por toda a parte.

E nesse buraco enorme, nessa água sem fim, a alma agonizava-lhe na mais cruel agonia... a que arrasta consigo a amargura da vergonha, a ignomínia do logro, a cobardia da traição.

Gilberta com um filho!

Gilberta! A altiva, a orgulhosa Gilberta!

Gilberta sua mulher? Aquela que lhe usava o nome sem mácula?

Gilberta, emfim!

E então ele?

Era o comparsa benévolo, o marido ludibriado, o manto oficial comprado para a circunstância.

Ela era isso...

E ele também era isso...

A enfermeira permanecia junto do rapaz, um pouco desconcertada com a sua atitude.

Perante as suas feições alteradas, não sabia que argumento apresentar.

Precisamente nessa ocasião, o grupo de médicos e de estudantes saía da enfermaria.

Ela sentiu-se feliz por poder interpelá-los.

- Perdão, doutor, quere ter a bondade de sossegar este senhor? - perguntou ao mais idoso do grupo -é o marido dessa senhora que ficou ontem ferida no desastre do cruzamento de Santo Honorato.

Benevolamente o médico virou-se para de Fragon.

- Sossegue; sua mulher salva-se. É questão de algumas semanas; e espero que não ficarão vestígios.

- Mas a gravidez -balbuciou Rodolfo-A gravidez.

- Diabo! quanto a isso a ciência nada podia. Sua mulher salva-se; é tudo quanto podemos fazer e parece-me ser o ponto principal.

com ligeira inclinação de cabeça, o médico deixou o rapaz e afastou-se, acompanhado pelos seus internos, para outra enfermaria.

- Pode entrar - convidou condescendentemente a enfermeira a Rodolfo.

E, designando uma fila de camas:

- A direita, a cama onze.

Rodolfo para lá se encaminhou maquinalmente, sem que a reflexão lhe ajudasse os passos ou lhe guiasse os actos.

Procedia com completa insensibilidade, com o espírito totalmente transtornado pela extraordinária revelação.

- Se não fosse o desastre, Gilberta teria sido mãe.

Durante alguns instantes, manteve a mesma apatia, a mesma inconsciência, até que a fulminante verdade lhe conquistou por fim o cérebro.

Chegou junto do leito indicado e reconheceu-a. A dúvida já não era possível, não havia engano na pessoa, era bem de Gilberta que se tratava.

 

Na nívea almofada, os olhos fechados e o rosto de cera, a mulher pareceu ao marido, mais perto da morte do que da vida.

E nele, contudo, não havia pesar algum nem sequer compaixão, ao adivinhá-la tão gravemente atingida.

Contemplava-a com áspera curiosidade, o pescoço estendido e o semblante tenso, tendo apenas um único sentimento que devia dominar, naquela sala cheia de gente: a necessidade de interrogá-la, de conhecer toda a verdade.

Sentia vontade de pegar-lhe pelo braço e sacudi-la para a obrigar a falar.

Velhacamente, olhou em volta.

A sua presença excitava a curiosidade das doentes, pouco habituadas a tão elegantes visitas.

Nos seus leitos de sofrimento, no hospital, as pacientes quási que têm esta única distracção: interessar-se pelas pessoas que vêm visitar as companheiras e trazem consigo um pouco da vida exterior.

Rodolfo, que aparecia naquela sala a hora diferente da habitual de visitas, era, pois, o ponto de mira de todas essas pobres mulheres.

Dezenas de pares de olhos, saídos desses leitos igualmente brancos, seguiam-lhe os mais pequenos movimentos e como o seu orgulho não queria deixar perceber o drama que o agitava, de Fragon era obrigado a conter-se.

Tornava-se preciso vigiar pela sua atitude que todos poderiam notar e interpretar.

A doente, porém, teve a consciência de imóvel presença perto dela.

Um gemido acudiu-lhe aos lábios e abriu os olhos... dois grandes olhos ardentes de febre e que só parecia distinguirem objectos multiplicados.

As pupilas dilatadas fixaram-se no marido. Reconheceu-o e a sua silhueta familiar pôs nela como que uma meiguice que o rosto reflectia em fugidio rubor nas lívidas faces.

- Rodolfo! - balbuciou num sopro.

A este afectuoso apelo, o homem conservou-se mudo.

Obrigado a dominar-se e não se atrevendo a proferir qualquer palavra no silêncio que os rodeava, fez afluir às suas pupilas de aço todos os rancores que em si referviam.

Foi, para a doente, como que luz demasiado viva que de-repente a ferisse.

Instintivamente, fechou os olhos, depois tornou a abri-los quási logo, sob a intuitiva necessidade de verificar o estranho fenómeno que era para a sua compreensão enfraquecida o rosto feroz do marido e o seu angustioso silêncio.

Mas os olhos masculinos mantiveram a sua dureza e Gilberta sentiu uma espécie de mal-estar. Uma apreensão lhe nascia obscuramente.

As tempestades morais parece terem também o seu aroma de enxofre e, na enleante atmosfera que os cercava, a rapariga teve medo do choque eléctrico que podia produzir-se.

- Estou mal - balbuciou ela, confundindo, na sua inquietação, o mal físico com o inexprimível constrangimento do coração de que de-súbito sofria.

O seu desastre prejudicara a família? Era culpada de ter ficado ferida e ser transportada para o hospital?

De novo cerrou os olhos, com involuntário frémito de todo o ser à lembrança da horrível cena: o choque, o ruído, o amontoamento de despojos, de-repente, em volta dela. E aquele sofrimento ao lado, na perna... Ah! aquele sofrimento!

- Ah! É terrível! É terrível!

Aquele gemido arrancou o rapaz do seu inexplicável motismo.

- Ah! é horrível! - repetiu ele, com voz surda, cortada, aludindo à abominável comédia que Gilberta e os seus representavam para com ele, havia alguns meses.

Tornou a olhar em sua volta, despeitado por não poder falar naquela sala cheia de gente. Sentia torcerem-se-lhe os nervos sob a afluência de palavras, de perguntas, de censuras que desejaria proferir.

Naquele momento, grande silhueta se alongou do outro lado da cama.

O senhor de la Saponaire, prevenido pelo telefone por de Fragon, acudia à cabeceira da sobrinha.

O seu rosto, sempre jovial, dificilmente tentava tomar aspecto contristado.

- Minha pobre Gilberta, que desastre! Fiquei louco de angústia quando seu marido mo referiu há pouco.

 rapariga olhou para o tio. Não nutria por ele ternos sentimentos, mas naquele momento ficou-lhe agradecida pela cordialidade.

- Sofre muito, Gilberta? - informou-se.

- Não posso mexer-me! - volveu ela com voz débil - O mais pequeno movimento provoca-me uma dor.

- É o castigo! - murmurou de Fragon, sem dó. O tio levantou os olhos para o marido da sobrinha.

- De que castigo fala? - interrogou a meia voz, espantado.

- Decerto ignora o resultado do desastre.

- De facto, nada sei. Que foi?

- A criança morreu.

Destilara tanto veneno nestas três palavras que o senhor de la Saponaire olhou para ele, surpreso.

Por instantes, contemplou o trágico semblante do marido da sobrinha.

- Devia ser o primeiro a rejubilar com essa solução - replicou um pouco secamente.

De Fragon fulminou-o com tal olhar que o outro ficou interdito por segundos.

Ante, porém, o rosto enraivecido de Rodolfo, julgou dever observar-lhe:

- Contenha-se, que diabo! Estão a olhar para si. Nada compreendo do seu furor, mas o lugar não é próprio para explicações.

- Se o escândalo só a si atingisse ou a sua sobrinha, não hesitaria em provocá-lo!

- Torna-se ridículo, meu caro - replicou o velho com ironia - e o momento é mal escolhido para a sua demonstração.

Gilberta escutara aquela troca de amabilidades em tom baixo, mas com tal acentuação de rancor que lhe pareceu sentir o ódio esvoaçar em torno de si como sinistra ave.

Nos seus lábios de pálido coral, o sorriso vago que acolhera o tio acabara de extinguir-se, emquanto as pupilas se lhe imobilizavam no vácuo, na espectativa de alguma reflexão mais desagradável ainda.

Porque é que o marido levantava, em semelhante momento, tão custosa discussão? Então aquele assunto não ficara resolvido de uma vez para sempre antes dos seus esponsais E ela própria, vítima e não culpada, não levara a generosidade até ao ponto de não aludir ao seu estado e às indisposições que daí resultavam para ela?

Em suma, o tio tinha razão: o seu desastre e respectivas consequências terminavam tão delicado problema.

Todas essas ideias penetravam como vaga desmoralizadora na sua pobre cabeça já tão enfraquecida e grandes lágrimas lhe rolaram pelas faces, sem que tivesse força para se dominar ou escondê-las.

Pairava um silêncio sobre o grupo, quando Sofia de Fragon apareceu por sua vez.

Num relance de olhos, notou a atitude hostil dos dois homens. E, encarando ora um, ora outro, perguntou de si para si quais as imprevistas circunstâncias que os tornavam adversários à cabeceira de Gilberta, a quem o seu olhar interrogou.

De olhos fechados, a doente continuava a chorar em silêncio e havia tão trágica dor naquele pobre semblante imóvel e sulcado de lágrimas que grande piedade se apoderou do coração da idosa senhora.

Os dois visitantes, de pé, a cada um dos lados da cama, produziam-lhe o efeito de dois verdugos esperando a sua vítima, e sentiu-se deveras indignada.

Fulminou o primo com o olhar e indicou-lhe a mulher, tão pálida em cima da almofada que compadeceria um tigre. Depois tomando pelo braço o malévolo tutor, afastou-o da cama.

- Deixemos a pobre criança repousar sossegadamente. Carece de calma e nós fatigamo-la.

Quanto a si, Rodolfo antes de sair do hospital informe-se pelos médicos quando é que sua mulher pode ser transportada para uma casa de saúde. Não porque seja aqui mal cuidada, mas suponho ser dever seu, meu primo, rodeá-la de todo o bem estar possível.

O rapaz não respondeu. Contentou-se em olhar para a velha com tal malevolência que esta perguntou de si para si se não sonhava.

Mas já de Fragon se afastava do leito com uma espécie de pressa por deixar essa mulher que se lhe tornava actualmente odiosa.

- Vem daí? - interpelou o tutor - Tenho de falar-lhe e não o largo.

- Certamente - volveu o outro sem comoção Acompanho-o, meu caro, embora o senhor seja pouco conveniente, em público.

Afastaram-se um atrás do outro. Nenhum deles se lembrara de se despedir de Gilberta.

Sofia de Fragon, mais compassiva, deu à rapariga um beijo que, em família, se julga ser obrigatório depor na testa dos doentes.

- Descanse tranquilamente querida Gilberta, e não se apoquente mais com o mau humor deles. Por natureza, o homem é egoísta e tem horror a doenças... Todo este ambiente de hospital se tornou desagradável a seu tio e a Rodolfo, e não tiveram a generosidade de o ocultar.

Esforçava-se por tranquilizar a pobre doente, que não parava de chorar. Estava aborrecida com o sobrinho por causa da sua inexplicável dureza e com o senhor de la Saponaire pela sua excessiva indiferença. Agora que a rapariga se tornara sua prima, sentia maternal e devotada ternura para com ela, disposta a lutar com o mundo inteiro para a defender ou poupar-lhe qualquer desgosto.

E muito descontente com a atitude do marido de Gilberta, ela própria saía do hospital com bastante presteza, para se encontrar com de Fragon e para o repreender conforme lhe parecia justo.

Gilberta viu-a afastar-se sem que as lágrimas deixassem de rolar-lhe pelas faces pálidas. A lembrança de que o marido não tivera para ela uma palavra bondosa, nem sequer um gesto de compaixão, era-lhe dolorosa o mais possível.

com que indiferença se afastara, sem um olhar, sem um cumprimento!

E o tom venenoso com que lhe acolhera o gemido de doente:

- É o castigo!

Essa lembrança foi tão aguda que de novo lhe pareceu ouvir a voz do rapaz e grande soluço de criança lhe fez arfar o peito para lhe acabar em gemido nos lábios contraídos.

No leito próximo uma forma se moveu; depois, uma mão através do intervalo, veio estender-se para ela e tocar-lhe no ombro. Ouviu o que lhe diziam:

- Vamos, pequena, não se rale assim... Para a visita que lhe fizeram, melhor seria que a deixassem sossegada.

A sua vizinha de cama, rapariga de feições precocemente emmurchecidas, inclinara-se, compassiva, para ela.

- O mais novo era seu marido - indagou para evitar que se entregasse a pensamentos desanimadores.

- Era - respondeu Gilberta, muito intimidada.

- E o outro, seu pai?

- Não; meu tio.

Por momentos, a mulher pareceu reflectir no problema que esses parcos dados lhe apresentavam.

- Para tio, podia ser mais demonstrativo. Quanto a seu marido, está bem... É bonito rapaz, mas não parece muito bom de aturar. Co'a breca! Que secura! Se um homem viesse visitar-me com tal cara, ouviria a marcha triunfal com que o despediria.

Calou-se ao ver de novo os olhos da vizinha encherem-se de lágrimas.

- Vamos, pequena, conforme-se! Na nossa idade os namorados pululam como cogumelos e fazemos mal em nos enfreneziarmos!... Ora, vamos! Não lhe mostre que o ama porque os homens, quando se sentem amados... ah! danada vida!... Os homens são todos...

Gilberta sobressaltou-se ao ouvir o terrível vocábulo; deixou, porém, de chorar para fitar essa mulher que parecia ter poucas ilusões a respeito do outro sexo.

Instintivamente sentia que essa infeliz era uma irmã do infortúnio que, como ela, tinha a mesma ânsia de amor e encontrara iguais obstáculos ao seu desejo.

Sentia em si grande ternura por essa desconhecida que, por meias palavras, lhe compreendia a angústia, porque as sofrera idênticas.

E a elegante senhora, ferida, tanto no moral como no físico, teve para a boa rapariga, filha da rua, sofredora de iguais males, um bom sorriso de cândida simpatia.

 

As explicações trocadas entre de Fragon e o senhor de la Saponaire não foram demoradas, mas depressa se tornaram borrascosas. Logo de princípio, o tutor de Gilberta se desculpou com esta:

- O quê? Minha sobrinha não lho disse?... Desconhecia o facto! Admiro-me, realmente, porque essa rapariga é muito leal.

- Porque é que não me preveniu - replicou o rapaz com lógica.

- Sinceramente, meu caro, julguei compreender que o senhor estava ciente da verdade, porque, afinal, dei-lhe a mais ampla liberdade para se explicar com minha sobrinha. Por outro lado, sua prima era sabedora do caso e devia-lho ter participado.

- Nada me disse.

- É curiosíssimo! -observou ironicamente o tio de Gilberta - Porque, em suma, meu querido filho, eu desejaria muito conhecer quais os títulos pessoais que possuía para desposar minha sobrinha, o senhor, um oficialzinho sem dinheiro. Se não houvesse esse pequeno rasgão no virginal vestido de Gilberta, creio bem que nunca seria marido dela.

O rapaz empalidecera perante as reflexões do senhor de la Saponaire.

E, de facto, este estava na razão: a sua cegueira fora incompreensível. Lembrava-se das suas suspeitas e da sua inverosímil confiança... em acreditar que, voluntariamente, se deixara embaír!

A sua cólera aumentou. Teve de se conter para não cair de punhos cerrados sobre o velho, que, aliás, sentia prazer em exasperá-lo.

Ao ver Sofia de Fragon aproximar-se, quando chegavam à porta do hospital, deu-se pressa em indicá-la ao companheiro:

- Aí tem sua velha prima, entenda-se com ela. Estou persuadido de que lhe refrescará a memória e que reconhecerá ter sido posto ao corrente de toda esta história.

Mas a paciência de Rodolfo esgotava-se.

- Afirmo-lhe - bradou desesperado - que nada sabia e que hoje, pela primeira vez, é que ouço falar do estado de Gilberta.

- Nesse caso, realmente, o senhor é um felizardo, meu caro, porque sabe que uma cousa o incomoda precisamente na ocasião em que deixa de existir! Os meus parabéns, porque está realmente com sorte!

E virando-se para a recém-chegada:

- Deixo-a nas mãos do seu parente, querida senhora. Ao que parece, Rodolfo queixa-se de não encontrar bastantes compensações no seu casamento.

- Perdão! - protestou de Fragon-Não é assim que se escreve a história!

Mas o velho soltou uma gargalhada e, abandonando no passeio os dois interlocutores, meteu-se no seu carro, após um sinal de partida ao motorista.

Depois, pela vidraça aberta da portinhola, lançou este último golpe à embasbacada prima:

- Tente chamá-lo à razão, tia Sofia. Eu... confesso-lhe faltam-me argumentos. agora que o dote está entregue.

De Fragon deu um pulo, completamente fora de si. Os últimos sarcasmos do senhor de la Saponaire tinham-no feito sair da sua habitual correcção e de boa-vontade esbofetearia publicamente o malévolo velho.

A mão já se lhe levantava em atroz e irreflectida necessidade de vingança; mas o automóvel arrancara e o marido de Gilberta teve de recuar para não ser atropelado.

- Ainda nos havemos de encontrar senhor de la Saponaire, e então há-de ouvir-me, quer queira quer não.

A sua cólera contra o tutor de sua mulher era tanta que se esquecera da tia Sofia.

Em frases sibilantes, vingativas, pô-la ao facto de tudo quanto tinha suportado havia uma hora.

Estava lívido, de lábios trémulos, com o corpo todo sacudido de estremecimentos, e a velha prima curvava a cabeça perante aquela revolta que nunca supusera tão grande.

No seu cérebro de mulher idosa que conservava ainda o sabor dos velhos contos de fadas doutros tempos, imaginara todo um romance: de Fragon caindo perdidamente enamorado aos pés da rica esposa e esta enchendo de ouro todos aqueles que tinham trabalhado para o seu casamento.

E eis que a verdade se escrevia de modo bem Diferente!

O amor em que fundara tanta esperança, falhava, e se a dolorosa atitude de Gilberta podia prestar-se a muitas suposições a respeito dos seus íntimos pensamentos, a de Rodolfo não dava ensejo a qualquer equívoco.

O antigo tenente não amava a mulher e o amor que tudo embeleza, tudo desculpa, tudo perdoa, não vinha colocar-lhe benéfica venda nos olhos.

Nos veementes protestos do enganado marido, Sofia viu apenas amor próprio ferido e rancores masculinos desproporcionados às circunstâncias. -Este grande garoto é de desmedido orgulho. Vai transformar em catástrofe irreparável o que não passa de acidente.

E como não há pessoas mais indulgentes do que aquelas que não são atingidas directamente pelos acontecimentos que comentam, ela concluiu:

- Não faria melhor passando uma esponja sobre o caso? Só ele é que está ao facto; ganhará alguma cousa em lançar a mancha para cima da mulher?

Enganava-se porém acerca dos íntimos sentimentos de Rodolfo que de momento não pensava em tornar públicas as suas dissenções com sua mulher. Também não possuía a serena filosofia que a tia Sofia desejava.

No seu cérebro, exasperado pelas ironias do tutor de Gilberta, só pensava em atingir ambos, tio e sobrinha, sem ele próprio sofrer do resultado que daí adviesse.

E em primeiro lugar, exactamente, pois eram os verdadeiros culpados da abominável mentira de que fora ludíbrio? Sofia de Fragon sabia-a conforme lhe dera a entender o tutor. Seria ela a instigadora de toda essa comédia?

O rapaz interpelou-a sobre o assunto um pouco bruscamente.

A velha ficou um tanto perturbada. Esperava que, a cólera do primo contra o tio de Gilberta desviaria dela, até ao fim, as suspeitas de Rodolfo.

E que responder-lhe com um carácter sombrio como o do antigo tenente, não se pode falar livremente.

Daqui até que a rapariga estivesse curada e o marido pudesse ter com ela uma explicação, muitos dramas decorreriam e teria passado a cólera do rapaz.

Talvez mesmo este compreendesse que o interêsse lhe recomendava tivesse atenção para com aquela que tanto lustre podia dar-lhe à existência. E, sem querer notar que o que fazia era odioso, a tia Sofia desculpou-se, acusando Gilberta, a quem tanto queria, contudo, poupar.

- Ouça, primo - volveu persuasiva - Estava certa de que Gilberta lhe falaria... Era a ela que, realmente, cabia fazê-lo. A pobre pequena não se atreveu. Eu estava persuadida de que o faria.

Não viu o rosto do rapaz alterar-se de-súbito.

- Foi, pois, ela! - murmurou com voz sem entoação.

As afirmativas da tia Sofia acabrunharam-no mais do que queria parecer. A mulher, cuja fisionomia tão meiga, tão leal, fazia supor tanta rectidão e belos sentimentos, a mulher não cometera a pior das mentiras? Não teve a cobardia do mais ignóbil silêncio?

Pudera fazer-se desposar sem ter a coragem de confessar a sua falta, a lisura moral de a explicar e desculpar-se!...

E era essa mesma Gilberta quem, na véspera, ainda, desejara tão ardentemente conquistar...

- Ah! perversa criatura! Para ela, o dinheiro tudo permite! - bradou com desgosto - Era rica e eu pobre! Excelente presa a iludir e a explorar! Nem sequer julgou útil tomar precauções; não valia a pena.

Sofia de Fragon estremeceu sob a rispidez das palavras.

com que acentuação de desespero o rapaz não acabava de falar!

Teve a súbita consciência da sua responsabilidade e das consequências que a sua acusação injustificada podia trazer.

Observou melhor o companheiro e viu-lhe no semblante tal expressão de gravidade que logo pensou em tornar Gilberta inocente.

Receou, porém, a hostilidade aguda que nele se ia levantar.

Não, na verdade, nesse dia não ousaria retratar-se do que dissera.

O feroz aspecto de Rodolfo tinha qualquer cousa de tão anormal que apenas teve um desejo: despedir-se e fugir a mais demorada conversa.

- vou deixá-lo, Rodolfo; lembrei-me agora de que preciso visitar uma amiga que está doente e mora neste bairro.

De Fragon não a reteve; o seu pensamento andava longe dali. Nasciam nele decisões com surpreendente rapidez e impulso doentio, devido ao choque nervoso das últimas horas, levava-o a agir muito depressa, como se daí lhe proviesse algum alívio.

 

- Ah! sinto-me bem contente por poder emfim tornar a vê-la, minha senhora! Lá em casa andavam todos inquietos por não saberem notícias. vou poder dizer a todos que a senhora vai bem...

De pé, junto do leito da enferma, Hortense, debruçada para ela, falava com visível esforço de meiguice.

Havia doze dias que a criada grave não via Gilberta, a quem achava empalidecida, magra, até terrivelmente mudada.

De coração constrangido, a criada de quarto evocava a alegre partida da ama, a sua saída para o passeio após o delicado almoço, na elegante casa de jantar do rejuvenescido palácio. Evocava ver o senhor de Fragon beijar demoradamente a mão da mulher, emquanto esta conservava nos lábios dulcíssimo e como que enternecido sorriso.

E vir agora encontrar, abatida, pálida, com os olhos tornados maiores pelas fundas olheiras e a boca dolorosa, aquela a quem conhecera tão cheia de vida, parecia-lhe uma sorte tanto mais iníqua quanto inverosímil.

A reflexão da criada grave, a doente perguntou com voz longínqua que parecia surgir de um mundo de contraditórias reflexões.

- Porque não foi ver-me ao hospital, Hortense?

- Ao hospital? - exclamou a mulher, impressionada pela evocação do desastre que esse termo relembrava - A senhora esteve no hospital?

- Fui transportada para lá e aí fiquei dez dias

- volveu a enferma, simplesmente - Só ontem de tarde é que o doutor Ternon me fez admitir nesta casa de saúde.

- Mas eu não sabia, minha senhora. Não podia adivinhar! Lá em casa nada sabíamos e todos perguntávamos onde é que a senhora podia estar, pois não nos punham ao corrente...

Gilberta fechou os olhos durante alguns segundos. Depois, reabriu-os, muito abertos, interrogativos.

- Não compreendo - disse, de-repente - porque é que nada lhe disseram? O senhor de Fragon...

Não concluiu, mas Hortense percebera a pergunta e respondeu com presteza:

- O senhor de Fragon não voltou para casa desde que a senhora se feriu. Contou lacónicamente o desastre; foi tudo quanto soubemos até que o doutor Ternon nos telefonou.

Gilberta repetiu:

- Não compreendo, não percebo.

E a sua voz era infinitamente cansada.

- Vejamos - volveu ao cabo de momentos, esforçando-se por dominar a confusão dos pensamentos ante a estranha ignorância da criada grave - Explique-se claramente. Disse que o senhor de Fragon se ausentou, que nada lhe participou... Ponha-me ao facto de tudo. Fui muito atingida pelos ferimentos e a minha pobre cabeça não conseguiu fixar tudo quanto se dizia à minha volta. O que se passou na minha casa desde que a deixei?

- Oh! não se passaram grandes cousas-respondeu a criada de quarto -Â senhora saiu, mas não voltou e, à noite, o jantar esteve muito tempo à espera. Depois, o patrão, um pouco descontente, deu ordem para porem o jantar na mesa, onde se sentou sozinho. Depois da meia-noite andou pelos comissariados. Levou toda a noite a percorrer a capital de extremo a extremo.

- Não se deitou?

- Deitou-se, sim, minha senhora, mas sem um momento de repouso. O patrão estava deveras inquieto. E compreende-se, após dois meses de casado! Adivinhava que se tratava de um desastre. Em resumo: às nove horas chamaram o senhor de Fragon ao telefone e, logo depois, saltou para o auto e partiu como doido...

Gilberta lembrou-se de que o marido chegara ao hospital pelas nove e meia. Não se demorara no trajecto.

Então, se estava realmente inquieto até àquele momento, porque se lhe apresentara de semblante tão carregado ao encontrá-la seriamente ferida?

- Continuí, Hortense. Quando voltou a ver o senhor de Fragon?

- Ao meio-dia, minha senhora, à hora do almoço.

Tinha aspecto sombrio, taciturno, descontente. Sentou-se à mesa sem proferir palavra e com duro rosto que lhe não conhecíamos. Parecia nervoso, agitado; por vezes, até, fazia grandes gestos com os braços, como se não pudesse reprimir o seu ennervamento ou então crispava os punhos com olhar feroz. Pouco comeu e logo se retirou para o quarto. Ouvia-se andar de um lado para o outro em grandes passadas. Tropeçava nas cadeiras, abria as portas dos armários... Quando desceu, ninguém se atreveu a interpelá-lo. Só um pouco mais tarde, quando percebi que o patrão ia para sair sem dar notícias da senhora, é que me atrevi a perguntar-lhe por si.

- "Ficou gravemente ferida na cabeça e nos ombros"- respondeu-me lacònicamente.

- "Mas a senhora não morre, não? -inquiri, cheia de lágrimas.

"O patrão olhou para mim como pessoa que nunca se lembrou dessa eventualidade. Depois, bruscamente e como se lhe tivesse sido feita tola pergunta, encolheu os ombros e bradou em tom agastado:

- "A patroa há-de viver! Não se apoquente, que lhe há-de ser restituída. Torna-se ridícula ao chorar dessa maneira!..."

A mulher calou-se por momentos; depois, concluiu:

- Foram as únicas palavras que o patrão me disse antes de partir.

- Antes de partir-repetiu Gilberta em tom estranhamente surpreendido - Mas... depois?

- Não tornámos a vê-lo... - declarou simplesmente a criada que estava melindrada com o jovem patrão por havê-la repreendido tão vivamente; nem reflectiu se fazia bem ou mal em prevenir a patroa, assim doente, que, na sua ausência, o marido fugira de casa.

Gilberta nada respondeu. A-pesar-de muito fraca,

tinha sangue-frio bastante para não dar ensejo a comentários.

Passados momentos de reflexão, disse, contudo:

- Não percebo a razão por que o senhor de Fragon não lhe falou no hospital para onde eu fora transportada... Ter-me-iam faltado muitas cousas se as enfermeiras não tivessem tido a amabilidade de as adquirir cá fora.

Não viu o ar velhaco com que Hortense a envolveu.

- É natural que o senhor de Fragon não quisesse que eu importunasse a senhora com a minha dedicação - observou esta com certa ironia.

O tom fino fez fixar nela o melancólico olhar de Gilberta, que retorquiu mansamente:

- O senhor de Fragon ficou desolado com o terrível desastre. Por outro lado, todos os jornais falaram no caso e imaginou que Hortense o soubesse.

Dada esta última explicação, fechou os olhos como se estivesse cansada de haver falado tanto.

A verdade é que temia a curiosidade da criada grave e as perguntas insidiosas que aquela que a servia havia muito tempo pudesse formular-lhe.

Como poderia explicar que Rodolfo, ao deixar o domicílio conjugal, nem uma única vez voltara a visitá-la e parecia desinteressar-se por completo da sua sorte? Como confessar que ela própria ignorava onde se encontrava o marido?

Pelas prolixas explicações da criada, Gilberta ajuizava dos mexericos que deveriam correr pela sua casa:

- O patrão aproveita a ausência da senhora para se divertir fora do domicílio...

Era pouco agradável pensar que semelhante boato circulava por entre a criadagem, mas quanto mais desagradável não seria a difusão da verdade: Rodolfo abandonando a juvenil mulher logo depois de ter tido conhecimento do desastre do automóvel!

O que não se suspeitaria de injurioso para ela!

A própria Gilberta, embora sabendo perfeitamente que se encontrava sozinha no carro, quando do choque, não tentou procurar nas circunstâncias do desastre, a causa ignorada do descontentamento de Rodolfo?

O marido falara de castigo. Seria, pois, culpada de alguma cousa?... De alguma cousa que tivesse ligação directa com a causa dos seus ferimentos e suas consequências: a sua entrada no hospital e essa criança que não chegara a ver o sol.

Este último ponto, principalmente, obcecava-a fortemente. Rodolfo parecia proceder como se só agora tivesse sabido a verdade. E, no entanto, recordava-se da sua afirmação, na noite em que o tio os apresentara um ao outro: o oficial certificara estar conhecedor dos acontecimentos.

E mais além, em Jumièges, não lhe dirigira esta frase lapidar.

- Para si não sou mais do que o sucessor do senhor de Placeraud.

Assim nada ignorava... Então?

Quando, à força de dar voltas e reviravoltas no seu cérebro a tais perguntas, chegava a este ponto, grande cansaço a tomava. Sentia que o terreno lhe oscilava debaixo dos pés; qualquer intrusão nesse domínio arrastava-a lamentavelmente para o fundo de insondável abismo, onde tinha medo de escorregar, sem saber, sem perceber, sem nunca ter força para dele sair.

O seu pobre cérebro, decerto enfraquecido pela doença, não possuía a faculdade de continuar o seu raciocínio. Havia, de-súbito, vacuidade nas suas ideias, era ainda a impressão do precipício... sempre esse buraco a cuja beira os pensamentos tropeçavam num salto para o nada... quási na loucura.

E, instintivamente, Gilberta esforçava-se por desviar de si a imagem incoerente da cólera injustificada desse homem, cujo peso a esmagava e lhe dementava a razão.

A chegada ao quarto da enferma do doutor Ternon, afugentou de vez as dolorosas brumas que lhe obscureciam, ainda uma vez mais, o espírito.

Hortense deu-se pressa em se retirar.

Gilberta acolheu o médico com meigo sorriso, dizendo amavelmente:

- Estou contente por vê-lo, doutor.

Mas os seus olhos conservavam, ainda, no fundo das negras pupilas, longínqua bruma que lhe perturbava o brilho.

Sem responder, o recém-vindo apertou a mão da doente. Sentiu a exagerada tepidez dos dedos e tomou o pulso para melhor observar o estado febril.

- Está hoje agitada - tornou em tom zangado

- tenho de lhe proibir as visitas, pois são mais do que eu pensava.

- Seria privar-me de certa distracção - volveu Gilberta com pálido sorriso - Sabe que desde o primeiro dia e além das suas visitas quotidianas, Hortense é a única pessoa que se lembrou de vir visitar-me?

O homem quási deixou transparecer o seu espanto. Conhecia a sua cliente havia largos anos e dela cuidara em diferentes épocas da sua meninice; até lhe assistira ao casamento, poucas semanas antes; estava, pois, no direito de ficar embasbacado ante tal declaração.

- Então que fazia aquele jovem marido para não vir todos os dias à cabeceira de sua mulher?

Mas era demasiado cuidadoso com a saúde da sua doente para lhe mostrar uma surpresa que poderia causar-lhe emoção.

Pelo contrário, aferrou-se aos acontecimentos.

- Co'a breca! -bradou -proibição completa!

Sempre queria ver se alguém desobedecia às minhas ordens!

- Oh! porquê? -protestou Gilberta, angustiada

- Se soubesse quanto, às vezes, o tempo me parece longo!

- Quando estiver melhor, veremos - resingou

- Sabe que o seu estado me inspirou sérios cuidados? Estava contundida por todos os lados e perguntava a mim próprio como havíamos de cuidar desta franganita tão bem lardeada.

Fazia-se aborrecido e resmungão, mas Gilberta não se intimidava. A necessidade de saber redundava em obsessão.

Perguntou:

- Como é que o doutor soube que eu estava no hospital e carecia dos seus cuidados?

- Em nada carecia dos meus cuidados - volveu com vivacidade - Tinha recebido logo os cuidados de médicos muito competentes e habituados a tratar centenas de casos análogos e não havia necessidade dos meus conselhos.

- Mas, emfim, quem o mandou chamar?

- Seu marido, pois quem havia de ser? Gilberta repetiu lentamente:

- Meu marido... Foi então visitá-lo? -acrescentou um pouco desconfiada.

- Nada disso. Para que quere que fosse a minha casa? Telefonou-me, muito simplesmente.

- Quando?

- Na tarde do dia seguinte ao seu desastre.

- Para que fosse ao hospital? - insistiu ainda.

- Pelo contrário, para que a fizesse sair de lá. Empenhava-se em que não ficasse em Beaujon; mas entregava-me a mim o cuidado de marcar o dia e o lugar para onde devia ser transportada.

- Sabe, então, que estou aqui? Nesta casa de saúde? - inquiriu em voz baixinha, tremente.

- Como? Se sabe! Suponho que sim. Todos os dias me telefona a saber notícias suas.

Nacarada chama cobriu subitamente as faces pálidas da órfã.

- É verdade? -perguntou, de-repente, com os grandes olhos cheios de inquietação.

- O mais verdade possível. Porque lhe diria o contrário?

- Porque adivinha que me dá prazer-confessou com timidez.

O médico esfregou as mãos com ar satisfeito.

- Co'a breca! Eu já desconfiava de que isso lhe dava prazer, minha Gilberta.

- E de facto... é verdade?

- Dou-lhe a minha palavra - garantiu o médico, com gravidade, perante a angústia que lhe alterava o fino semblante.

Gilberta respirou melhor. Depois do que Hortense lhe dissera a respeito do estranho silêncio de Rodolfo que não voltara, era suave dizer consigo que, apesar das aparências, este último se interessava por ela e se informava da sua saúde.

Foi-lhe tão benéfica esta ideia que uma umidade lhe obscureceu os olhos negros.

- O doutor quere encarregar-se de uma comissão verbal para meu marido? - inquiriu com voz que sabia obter consentimento, tanta fraqueza ela encerrada.

- Às suas ordens - respondeu o médico - Que devo dizer-lhe?

- Quando lhe telefonar, ficar-lhe-ei muito agradecida se o prevenir de que importante correspondência o aguarda aqui. Hortense não viu que ele fosse buscá-la e julgou acertado trazer-ma esta tarde, e não me lembrei, quando ela se foi embora, de lhe dizer que a levasse.

- Combinado; sem falta darei conta do recado.

- Conto consigo. Quando lhe telefona ele?

- À noite... em geral, depois do jantar.

- De antemão lhe agradeço tanto o bom desejo como a sua rápida satisfação.

Acrescentou, para justificar a necessidade de recorrer ao médico em tal ocasião:

- Graças a si, meu marido será prevenido breve; nessas cartas, algumas haverá talvez, urgentes e que ele espera com impaciência.

- Fique sossegada; não me esquecerei.

Assim que o médico partiu, Gilberta repousou mais tranquilamente.

Sonhava evidentemente numa cousa deveras extraordinária: o marido depois de haver demonstrado exagerado descontentamento, abandonava o domicílio conjugal; mas, por outro lado, quando supunha que Rodolfo nada se interessava por ela, o médico afirmava-lhe que este todos os dias pedia notícias suas. E essa ideia de esperança sussurrava dentro de si, embora se recusasse a fixar-se nela:

- Talvez aqui venha amanhã buscar as cartas.

 

A esperança de Gilberta foi iludida; de Fragon não foi à casa de saúde onde a doente era tratada; como, porém, não queria que o doutor Ternon pudesse admirar-se de que não desse seguimento à comunicação, mandou o amigo Verlaines em seu lugar.

E a órfã, quando a preveniram de que um sujeito lhe desejava falar, ficou muito descoroçoada ao ver entrar o oficial em vez daquele a quem esperava.

O recém-chegado, que mal conhecia, tivera o cuidado de trazer-lhe algumas flores.

Era atenção masculina a que estava habituada e que agradeceu com vivacidade, a-pesar-da sua decepção. Depois dos primeiros momentos cerimoniosos que em geral acompanham semelhante encontro entre pessoas que nenhuma intimidade antiga aproxima, a rapariga atreveu-se a pedir ao oficial notícias do marido.

- Vai bem, vai bem-respondeu o outro, um pouco desapontado com a inesperada pergunta, pois ignorava que de Fragon não tivesse ido visitar a mulher desde alguns dias.

- Já o viu hoje?

- Não; passei ontem a noite com ele e como previra impossibilidade de sair esta tarde, pediu-me para vir aqui visitá-la em seu lugar.

- Foi amável em ter aceitado essa incumbência-replicou Gilberta, com infinita correcção.

O rapaz julgou do seu dever protestar e afirmou ser com verdadeiro prazer que viera buscar a correspondência do amigo, visto isso proporcionar-lhe ensejo de, pessoalmente, saber notícias da enferma.

Esta deixava-o falar, na esperança de que alguma palavra lhe revelasse o estado de espírito do marido. Mas nada, na voz ou nas palavras do oficial, permitia deduzir a mais pequena cousa; as frases banais que trocavam delicadamente, enganavam um pouco a esperança da jovem.

No momento em que o oficial menos esperava, Gilberta atacou abertamente o assunto que lhe tomava o coração.

- Onde se encontra neste momento meu marido?

- Em Versalhes.

- O quê, em Versalhes?

O oficial ergueu a cabeça. Aquela pergunta pareceu-lhe estranha nos lábios de Gilberta. Seria possível que não soubesse ao certo onde se encontrava o marido?

Depois lembrou-se de que ela quereria certificar-se de que o que este último lhe dissera, concordava com o que ele próprio dizia.

E sorriu a essa tàticazinha feminina que supunha inspirada por ligeiro ciúme. Foi, pois, com indulgente sorriso que se prestou a esse inquérito feito com perguntas de algibeira.

- De Fragon está em casa dele... no quarto que antigamente ocupava antes do casamento e que a precipitação dessa cerimónia impediu de deixar. Só dentro de um mês, no fim do corrente trimestre é que poderá abandoná-lo.

Sorria, exagerando de propósito a minuciosidade das explicações.

Gilberta, porém, que lhe adivinhava o pensamento, não se ofendia. Pelo contrário, entrando no jogo, sorriu maliciosamente ao formular as perguntas:

- E desde quando, pode dizer-mo, senhor Verlaines, desde quando meu marido voltou para Versalhes?

- Desde que a senhora adoeceu.

- E vive só? -Oh!

Desta feita, ele assustara-se. O ciúme da sua interlocutora parecia-lhe verdadeiramente exagerado.

A órfã desatou a rir.

- Porque hesita, senhor Verlaines? Meu marido não vive só, na sua bonita cidade de Versalhes?

- Perdão minha senhora, de Fragon vive aí absolutamente só, pelo que sei.

- Então, porque é que a minha pergunta o desorientou tanto?

Continuava a sorrir e conservava o seu tom jovial. O oficial iludiu-se.

- Por minha fé -respondeu alegremente-nem sei porquê. Talvez, muito simplesmente, porque a sua pergunta indica dúvidas que as circunstâncias não justificam... De Fragon riria também, decerto, se pudesse supor ter feito surgir tal pensamento a sua mulher.

- Riria? - volveu ela em indefinível tom.

- Ah! tenho a certeza! E se me autoriza a repetir-lho, estou certo de que ficará, ao mesmo tempo, encantado com a sua leve inquietação e contristado por havê-la podido fazer surgir.

- Talvez ria - volveu meigamente-Pois bem! Como vê, senhor Verlaines, eu não rio.

O oficial ficou indeciso. Ante a fisionomia de-repente grave de Gilberta, tornou-se sério.

- Oh! minha senhora -protestou acaloradamente- não quere dizer que suspeita em de Fragon alguma leviandade voluntária.

- As mulheres novas inquietam-se sempre muito depressa - respondeu no mesmo tom pensativo.

- Os homens, em geral, não gostam da doença e desertam voluntariamente dos lares solitários. Rodolfo tem necessidade de vida e de movimento à sua volta e eu estou aqui, ferida, quási inválida e afeiada pelo sofrimento.

- Permita-me que a interrompa, querida senhora. Em primeiro lugar, não está afeiada... pelo contrário! Depois, conheço o meu amigo há longos anos e posso afirmar-lhe que não tem razão para o englobar no lote dos homens em geral, a que acaba de referir-se. De Fragon é sensível e sincero e seria mesmo incapaz de divertir-se, enquanto a sabe doente e na impossibilidade de o acompanhar.

- Oh! -protestou, um pouco trocista -não exagere em sentido contrário a minha inquietação.

- Mas não exagero, minha senhora! vou dar-lhe a prova. Olhe, conhece seu marido e sabe quanto o seu carácter é uniforme e, em regra, jovial. Pois bem! Desde o desastre que não reconheço de Fragon. No dia seguinte ao desastre, que eu ainda ignorava, foi procurar-me à mess. Apareceu pálido, sombrio, desfigurado. Parecia realmente ferido, não falava e era presa de ideia fixa. Nessa tarde acompanhei-o a casa, muito aborrecido por senti-lo de tal maneira desanimado e custando-me deixá-lo...

Gilberta escutava-o atentamente. Assim, Rodolfo conservara todo o dia o mesmo semblante sombrio que lhe vira no hospital e de que Hortense lhe falara.

- Mas, depois-observou - meu marido refez-se e, passados dez dias, já não mais pensou no caso.

- Engana-se, minha senhora, ainda não mudou de então para cá. Está na mesma todos os dias; quando o encontro, não sei como perguntar-lhe notícias suas. Ao nomeá-la, tem como que uma crispação no rosto e não lhe oculto que me sentia satisfeito em vir visitá-la porque, de momento, me perguntava a mim-próprio se ficaria para sempre desfigurada. Ao entrar aqui, há pouco, fiquei bem contente por encontrá-la em tão bom estado: acabara por imaginar as piores cousas.

- Espero sair desta sem prejuízo de maior - replicou ela com certa gravidade.

Depois, esgrimindo com graça a confusão, fitou o oficial com grandes olhos suplicantes.

- Preciso de pedir-lhe, senhor Verlaines, que não repita a meu marido as minhas observações acerca da sua permanência em Versalhes? Ficaria desolada se ele soubesse os maus pensamentos que me passaram pela cabeça, ele que já tantos cuidados tem tido com a minha saúde.

- Oh! nada lhe direi, minha senhora - prometeu galantemente-O amor não vale sem um pouco de ciúme e compreendi muito bem o importuno pensamento que lhe atormentava o cérebro de recém-casada.

- É verdade - respondeu ela, confusa aindaQuando se está só, horas inteiras, na imobilidade de uma cama, acabamos por nos tornar injustas. Amontoam-se ideias tolas umas sobre outras e chega-se a imaginar cousas completamente desagradáveis.

- Julga-se logo que o marido se diverte - continuou jovialmente Verlaines - Vêem-se percorrer os centros de prazer ou sentar-se à mesa dos grandes restaurantes!

- Não, nada disso - protestou Gilberta-Não é tanto assim! Pensava apenas: como Rodolfo viveu em Versalhes antes de casar, devia ter contraído aí algumas amizades femininas... essas pequenas bagatelas que todos os homens têm na sua vida de solteiro... Pensava ainda em que... para passar o tempo, se conversa, não é assim... e, sem querer, reatam-se laços...

- Mais uma vez a interrompo para lhe dizer que de Fragon nunca foi o que se chama...

- Mas eu nada quero saber, meu caro senhor

- atalhou ela, rindo - Meu marido era solteiro e tinha todos os direitos e todas as liberdades. O senhor tranqúilizou-me por completo e bastou-me a sua afirmação para estar sossegada em absoluto. Confio em si, senhor Verlaines - acrescentou com o mais aliciante sorriso.

- Confie principalmente nele - ripostou, depondo os lábios nos pequeninos dedos que Gilberta lhe estendia -De Fragon é digno do seu amor voltou a garantir.

- Tenho a certeza.

Mas aquela persistente alegria era difícil de manter. Toda a melancolia das horas vividas havia doze dias, retomava-a. Quando Verlaines se despedia, pediu-lhe, e desta vez era sincera:

- Conto com a sua amizade para reconfortar meu marido. É preciso que ele não tenha também as suas ideias negras.

Verlaines prometeu e afastou-se muito perturbado com as lágrimas que vira subitamente chegarem-lhe às pupilas de azeviche.

Quanto a Gilberta, conservou-se sorridente e graciosa emquanto ele lá esteve; depois, quando a porta se fechou e ficou só, grande angústia voltou a empanar-lhe o rosto. com os olhos fechados por momentos, sobre pensamentos desanimadores, reviveu toda a conversa.

E de-súbito, dos seus lábios empalidecidos, saiu este longo queixume:

- Meu Deus! Meu Deus! Mas que poderia eu ter-lhe feito para estar tão zangado comigo?

 

Passaram-se semanas em cujo decurso de Fragon não deu sinais de vida à sua jovem mulher.

Gilberta tomara o seu partido; pelo menos já não se espantava com o silêncio do marido. Sabia que viria e já não o esperava. Em compensação, Verlaines foi visitá-la diversas vezes, trazendo-lhe flores, chocolates e livros. Essas visitas agradavam-lhe e não recebia Verlaines sem sentir pequeno baque no coração, porque era um pouco de Rodolfo que com ele entrava ali.

Talvez o oficial acabasse por notar, falando a um e a outro, que não reinava perfeito acordo no casal, mas não o deixava transparecer. Em troca, levava imparcialmente a qualquer deles notícias, sem que tivesse necessidade de perguntar-lhes alguma cousa.

Observara que Gilberta o continuava a interrogar, nunca se deixando interpelar e parecendo sempre ávida de ouvir falar do marido, quando este, pelo contrário, ouvia em silêncio o que ele dizia, sem nunca pedir qualquer pormenor nem fazer qualquer reflexão.

A convalescença de Gilberta decorrera bastante rápida; a princípio, porque a criada grave dera a direcção da casa de saúde a todas as amigas da enferma e estas iam visitá-la por turnos; depois porque o seu tratamento carecia de múltiplos cuidados para reeducação dos membros atingidos. E tomada entre as visitas e os movimentos de mecanoterapia, entre os banhos de calor eléctrico e as massagens de toda a ordem, quási não tinha ensejo para achar o tempo longo.

A data da sua saída fora, por fim, marcada, e Gilberta, caminhando pelo quarto, alegrava-se à ideia de voltar no dia seguinte para casa, quando Verlaines, a quem não contara ver nessa tarde, foi fazer-lhe a última visita.

- De Fragon confiou-me esta chave para lhe entregar - disse ele, de-repente.

Em silêncio, ela guardou a chave que o oficial lhe dera.

Era a que abria uma bonita secretária de madeira da índia, incrustada de nácar, que havia no seu quarto.

Compreendia agora a inesperada visita de Verlaines, decerto enviado pelo marido.

Se na convalescença tinha tido a esperança de que, ao entrar em casa, seria acolhida pelo marido ou pelo menos o veria juntar-se-lhe, teve que perder as ilusões.

A remessa da chave, na véspera do dia em que saía da casa de saúde, provava-lhe que de Fragon não contava modificar o procedimento que adoptara havia seis semanas.

Pela primeira vez, não fez reflexão alguma ao oficial com respeito ao ausente, e aquele, que a via de-repente entristecida, teve o cuidado de não fazer o mais leve comentário.

- Vai ser preciso continuar a visitar-me em Neuilly, senhor Verlaines - disse ela pensativamente, como que a concluir morosas ideias que ruminava baixinho. A visita de um verdadeiro amigo é sempre uma benção dos deuses que devemos tentar multiplicar...

Deteve-se, passou demoradamente a frágil mão pela testa onde uma pontinha de enxaqueca ameaçava. Depois, com voz apagada que tentava tornar firmes as fracas intonações, acrescentou:

- Sim, vá visitar-me muitas vezes... Creio que aí ainda precisarei mais de si do que aqui.

- Merece-me toda a dedicação, minha senhora - afirmou, um pouco comovido, embora se esforçasse por ficar sorridente.

É que, se era deveras amigo de Fragon, não tinha menos grande simpatia por essa mulher tão franca e tão simples, que sentia às vezes impregnada de íntima angústia.

Já a sua amizade pensava em aproximar esses dois entes que adivinhava separados por custoso equívoco. O ar frio e indiferente do amigo não lhe parecia reflectir os verdadeiros sentimentos, bem como a fingida jovialidade de Gilberta não conseguia ocultar a nuvem de tristeza que lhe percebia no âmago.

No palácio de Neuilly, Gilberta foi acolhida com alegria por todos os criados. Haviam espalhado flores por toda a parte e cada um de per si parecia ter a peito cumprir a tarefa para que a patroa ficasse bem impressionada.

Tudo estava em ordem, polido, cintilante, e a recém-vinda teve de admirar todas as cousas e a todos dar merecidos parabéns. Depois de cumprido este dever, a dona da casa dirigiu-se para o quarto com ansiosa pressa que não podia evitar.

Estava ali, agora, de pé em frente de luxuosa secretária onde arrumava a sua correspondência: pequeninas cartas de rapariga, curtos bilhetes de convite, fotos de todo o género, desde os instantâneos tirados durante uma viagem até aos preciosos retratos dos pais; tudo estava em ordem em qualquer das gavetas do frágil móvel.

Desde a véspera que perguntava a si própria se Rodolfo, à procura de algum objecto que supunha guardado na secretária, reparara nalgum papel ou foto que lhe fosse desagradável.

Daí a explicação de sua agastada atitude.

Mas por mais que esquadrinhasse a memória, não lhe pareceu que pudesse possuir objecto tão dramaticamente importante.

Nesse minuto, encontrava-se aí de chave na mão, em frente do móvel, com certa apreensão. Tinha a intuição de encontrar alguma cousa que ia causar-lhe mal e hesitava, no derradeiro momento, em afrontar esse desgosto.

Contudo acabou por introduzir a pequena chave de aço na fechadura. Ouviu-se um estalido e a prancheta baixou.

Imediatamente, os seus olhos atentos distinguiram, em cima de um monte de papeis, largo sobrescrito em que a letra do marido lhe escrevera o nome.

- Já o esperava! - balbuciou, cambaleando.

De carta em punho, teve de sentar-se, tanto, de-súbito, se sentira comovida.

Antes mesmo de conhecer o conteúdo do papel, sabia que Rodolfo ia feri-la com qualquer inverosímil censura.

- Oh! porquê? -gemeu-Não nos podemos defender contra uma carta.

Adivinhava que ele esperava que já não estivesse doente para poder lê-la. E essa precaução do ausente denotava melhor a rigorosa dureza das palavras que tivera de empregar.

- Vamos - disse apressando-se - Nada de falsa sensibilidade: Rodolfo nunca me teve amor e eu apenas o desposei porque me foi imposto por meu tio.

Quebrou o sinete, abriu o sobrescrito e tirou a carta dobrada ao meio.

Antes de a ler, ainda se deteve.

E, para criar ânimo, disse em voz alta:

- Sejamos moderna! A mocidade actual repudia o amor exclusivo, a melancolia desequilibrante e todos os bons sentimentos da idade do ouro. As do meu século devem ter razão: o egoísmo, a sequidão e a indiferença é que dão leis!

Depois, tornando a pegar na carta:

- Meu caro esposo, se quiseste fazer-me mal, enganaste-te; hoje tenho alma de garota... e não te amo!

O seu riso escarninho ressoou no vasto aposento. E, como se realmente os seus argumentos tivessem conseguido exaltar-lhe a energia, leu emfim o que o marido lhe escrevera:

"Minha senhora

"Deixo imediatamente esta casa para não mais voltar e conto não tornar a vê-la após esta separação que é definitiva.

"Queira ter a bondade de fazer seguir a minha correspondência, se a houver, para a posta restante de Versalhes, onde tenciono residir momentaneamente.

"Não faça qualquer tentativa de conciliação; estou farto de haver sido por tanto tempo joguete nas suas mãos e nas dos seus. Supunha-a acima de semelhante ignomínia e estou extremamente desiludido.

"D'ora-vante a palavra é dada aos advogados.

"Adeus minha senhora.

Rodolfo de Fragon."

- E pronto! - exclamou, arrogante, depois de haver lido duas vezes a singular carta.

Mas estava horrivelmente pálida.

- Creio que meu marido dramatiza muito os acontecimentos - monologou-O que é que os meus e eu própria poderíamos ter-lhe feito?

Levantou-se, tentou dar alguns passos pelo quarto, mas cambaleou, as pernas quebraram-se-lhe e todo o seu corpo estava agitado de nervoso tremor.

Mais estendida do que sentada em funda poltrona, teve de deixar passar alguns minutos antes de recuperar o equilíbrio, para gracejar.

Entretanto, a boa disposição não a abandonava ao pensar nas suas bravatas de há pouco.

Depois, ao cabo de instantes, acrescentou ainda com pálido sorriso:

- É um artista, meu marido, para me evitar comoções.

O exagero das censuras de Rodolfo parecia ter-lhe ultrapassado os limites da sensibilidade, sem despertar qualquer má lembrança da sua consciência pacificada.

Havia seis semanas não se perguntara em que pudera desagradar-lhe?

Entretanto, à medida que o seu nervosismo se acalmava, sentia a pouco e pouco aumentar a tristeza, dissipando-lhe as veleidades de motejo, afogando até o sobressalto de energia de que se provera.

De dentes cerrados, tornou a pegar na carta, pesou-lhe todos os termos.

A antepenúltima frase: "D'ora-avante a palavra é dada aos advogados" arrancou-lhe um gemido.

- Um divórcio? Oh! não, não! Isso não é possível!

Era qualquer cousa de incomensurável para a sua compreensão de crente.

- Mas eu nada fiz, nada fiz! -bradou com instintiva necessidade de defesa.

Não se podiam quebrar os laços do casamento sem razão de peso.

- Nunca um juiz em tal consentiria... É preciso um motivo plausível.

Lembrou-se, de-súbito, de que Rodolfo a acusava de qualquer cousa... Tinha agravos dela... agravos que ela desconhecia, mas que deviam ser terríveis, pois que a ameaçava de tal modo.

Aprumou-se aterrada, porque a certeza de que o marido lhe desconhecia todo o passado se lhe impunha agora.

- Nesse caso seria possível o divórcio?

Já não sabia o que lhe acontecia e desatou a andar pelo aposento como animal enjaulado que procura uma saída.

A súbitas, calculou que, havia seis semanas, essa carta fora escrita e que muitas cousas se podiam ter passado nesse espaço de tempo.

Teve de meter os punhos na boca para abafar o uivo de terror que surgira do seu ser terrificado com semelhante ideia.

Então, sem poder dominar mais o seu pavor pelos acontecimentos, correu a um botão eléctrico que carregou incansavelmente até que lhe apareceu a criada grave.

- A minha correspondência?

- Não há nada-respondeu a criada, pasmada.

- Levei todas as cartas à senhora à medida que vinham.

- Impressos, intimações!

- Nada vi, minha senhora. Havia catálogos, prospectos, mas nada de importância e tudo isso foi queimado ou deitado fora.

- Talvez tivesse destruído o principal - deduziu ela, enlouquecendo.

Por momentos hesitou sobre o que devia fazer: correr a um advogado a consultá-lo Ou dirigir-se a Versalhes, para falar ao marido? Este declarara abertamente que tudo acabara entre ambos; não podia, contudo, recusar-se a vê-la.

Preferiu logo esta resolução.

- Depressa, o meu carro... o novo... diga ao motorista que se avie.

- Mas não há motorista, minha senhora. O que havia foi despedido quando se soube do desastre da senhora... Só amanhã é que vem o substituto.

- Nesse caso, eu própria o guiarei. Vá, Hortense! Bem vê que estou com pressa!

A criada de quarto afastou-se, a correr. Perdia a cabeça ante a impaciência da patroa. Entretanto, voltou daí a pouco para anunciar que o carro estava pronto.

- Mas a senhora não pode guiá-lo assim, com o braço partido.

- Pelo contrário; este carro há-de distrair-me

- replicou Gilberta que serenara um pouco.

Do alto da escada, admirou a longa linha do seu seis cilindros, doze cavalos, como o fornecedor tão enfaticamente o especificara.

A-pesar-da sua íntima perturbação, evocou a compra do veículo, no seu regresso a Paris. Fora seu marido quem designara a cor sóbria da pintura e do estofo. Empenhara-se em que tudo se harmonizasse com a tez e a cor do cabelo de Gilberta...

Esta recordação comoveu-a mais do que queria.

Entre o marido e ela nunca houve amor nem verdadeira intimidade, mas o ausente tinha estranhas atenções cujo valor agora apreciava.

Meteu-se no auto, sentou-se e tomou o volante.

- Não sei a que horas voltarei - explicou à criada, cujo olhar inquieto lhe acompanhava os gestos.

E como esta pelo aspecto atormentado do rosto, parecia censurar-lhe a imprudência, acrescentou:

- Não se assuste; agora estou forte. De resto, daqui a pouco vou ver o senhor de Fragon!

Estas últimas palavras sairam-lhe dos lábios com uma espécie de volúpia. Emquanto ignora os acontecimentos, pode proclamar os laços que a unem ao marido.

Não estava casada, realmente casada? E hoje não mente ao dizer que vai ter com o marido! Quereria que todas as amigas estivessem lá para o verificar.

- vou ter com meu marido.

Palavras mágicas cujo sabor não apreciara nunca como naquele dia.

O desastre de auto de que fora vítima, parecia tê-la tornado prudente. À-pesar-da sua impaciência em chegar, adoptou um andamento prudente, com cuidadosa inspecção a qualquer cruzamento. De resto, o braço ainda estava muito ressentido e os movimentos não haviam retomado a destreza dos instintivos reflexos.

Esse moderado andamento que por necessidade é obrigada a seguir, torna-se-lhe favorável. Gilberta está agora calma e encara com sangue frio o passo que vai dar.

Dentro em pouco surgem as primeiras casas de Versalhes. Ruas, avenidas, mais ruas ainda e faz estacar o automóvel defronte da residência do marido.

Na escada que conduz aos aposentos deste, Gilberta detem-se por segundos para retomar a respiração e comprimir as precipitadas pulsações do coração que a ansiedade desperta.

Não sabe o que se dará lá em cima, mas não esquece que é adversário muito arrebatado contra ela que vai surpreender. E receoso impulso a obriga a persignar-se, para se proteger e afugentar a desgraça...

De seguida, sobe.

 

Sentado à secretária, de Fragon trabalhava...

No cataclismo conjugal que lhe devorava todos os projectos, todas as esperanças, só sentia coragem para fugir.

A sua própria vingança, esta instância em divórcio que queria introduzir tão pouco tempo depois do seu casamento, esta justa vingança não lhe compensava a perturbação moral.

Regressando a Versalhes, a esse aprazível recanto em que noutros tempos vivera tão sossegado, já não encontrava as sensações de então, e nunca se sentira tão verdadeiramente só e tão profundamente triste.

Ah! decerto a sua linha de conduta lhe parecera a princípio ser traçada pelos acontecimentos sem ter de discuti-la. Provocar o conde de la Saponaire, tentar matá-lo lealmente em duelo; divorciar-se da culpada sobrinha e partir depois, fugir para as colónias, longe, muito longe; procurar o esquecimento em perigosas expedições e talvez aí encontrar a morte, punindo assim ao mesmo tempo a diabólica tia Sofia, cujo incompreensível orgulho do nome para o qual sonhava riqueza e poder o arrastara àquele negregado caso.

Agora, que lhe decaira a cólera inicial, sentia verdadeira angústia invadi-lo por tudo quanto podia lembrar-lhe Gilberta e o seu curto casamento.

Sofria, de facto, por ter sido o seu brinquedo imbecil que, a despeito de todas as injúrias, acreditava sinceramente na sua honestidade, na sua candura, nos seus grandes olhos puros em que tanta rectidão parecia reflectir-se.

Não tivera amor à mulher, era facto certo; ela, de resto, nunca lhe dera nem tempo nem ocasião para isso, mas, em compensação, tinha-a estimado! E se, nos maus momentos de intimidade suportara dignamente as suas mudanças de humor, as suas estranhas friezas, as suas mordentes reflexões, os seus despóticos caprichos, é porque a julgava digna das suas concessões, digna também dos esforços que fazia para conquistá-la.

Ao ser tão dolorosamente enganado por ela, pensar em que lhe não merecia confiança, nem fé, era verdadeira tortura para ele.

Mais do que os próprios factos, aquela desilusão era amarga e muitas vezes perguntava a si próprio, com surda raiva contra sua mulher:

- Mas porque me ocultou? Porque não falou?... Que significa o seu silêncio? Tinha necessidade de enganar-me velhacamente, vilmente? Não estava naturalmente indicada leal confissão? Não me conhecendo, não me preferira a outros, não me tivera amor; nesse caso porque mentiu? Se, conhecedor dos factos, eu tivesse recuado ante o casamento, acharia para me substituir vinte outros pretendentes, melhores ou tão bem dotados como eu que aceitariam a situação. Não havia precisão de tanta duplicidade para alcançar semelhante resultado; um casamento logo seguido de divórcio! Escândalo, lama, ódio, aí está o que semeou!

o que concorrera ainda mais para lhe aumentar o ressentimento, é que, havia seis semanas não pudera juntar-se-lhes para lhes gritar o seu desgosto e o seu desprezo, nem o senhor de la Saponaire, nem Sofia de Fragon: o primeiro viajava fora da Europa, afirmava-se; a segunda estava nas águas: "Em Vichy - dizia a porteira - salvo se não estivesse em Châtelguyon..." Ela não sabia bem o local, mas estava para esses lados!

E Rodolfo ennervava-se por não poder vingar-se em qualquer deles de todos os dissabores por que passara.

Naquele dia consultava os planos de um avião modelo que sonhara construir noutros tempos.

Tornava a esse trabalho com uma espécie de aspereza, dizendo consigo que era essa a sua carreira e que se conseguisse realizar esse avião que imaginara, obteria, à falta da ventura íntima de família em que já não acreditava, pelo menos satisfações morais e materiais que lhe compensariam as infelicidades conjugais e apagariam, emfim, as feridas de amor próprio que o seu casamento com Gilberta lhe causara.

Bateram à porta.

- Entre! - convidou sem sequer se voltar, supondo que era o rapaz que estava ao seu serviço.

Entraram... Percebeu ruído de passos, a porta fechou-se e, como ninguém falasse, virou-se maquinalmente.

Esteve prestes a soltar um grito de surpresa.

Gilberta estava diante dele, imóvel e pálida, quási irreconhecível de tristeza contida.

Frémito de cólera sacudiu de Fragon:

- A senhora Para quê - protestou com vivacidade.

- Tinha empenho em vê-lo, em falar-lhe...

- Não valia a pena!

- Para mim, era preciso...

Calou-se intimidada pela hostilidade que lia nos olhos fixos nela.

Fitava-a com ar gélido, hesitando aceitar esta entrevista. A órfã adivinhava-lhe o pensamento, porque se conservava junto da porta, digna na sua tristeza e parecendo querer resistir a brutal despedimento, na sua impassibilidade de estátua.

Por fim, resolveu-se e, delicadamente, embora continuasse frio, indicou-lhe com a mão uma cadeira próximo.

Gilberta sentou-se. Nos grandes olhos sombrios, lágrimas dificilmente reprimidas umedeciam-lhe os cílios.

- Que mais quere de mim? - perguntou de Fragon, exagerando com um pouco de brusquidão o seu descontentamento - Esta entrevista era inútil; já nada mais tínhamos a dizer um ao outro.

- Sim; eu tinha empenho em vê-lo! Não quero que me deixe assim.

Não compreendeu o sentido das últimas palavras, porque replicou:

- Tudo quanto possa dizer não me fará mudar de opinião.

- Seja. Deixar-me-á, visto ser essa a sua intenção... Aliás, compreendo muito bem que não procure outra solução.

- Sinto-me satisfeito por assim o entender.

Ela não profundou a ironia do tom e prosseguiu, com voz firme, com altiva candura que mais importância deu ainda às suas palavras.

- Mas o que é prescindível, senhor de Fragon, é acabrunhar-me com um agravo que ignoro. Há seis semanas que procuro em vão o motivo por que pude desagradar-lhe.

- Oh! - bradou Rodolfo, indignado - Tanto aprumo na sua idade?

- Perdão - ripostou Gilberta, ferida-Antes de insultar-me, dê-me a conhecer os seus agravos.

- E o filho? -redarguiu colérico-O filho que ia nascer?

- O filho -balbuciou a órfã, corando, pois era o seu único ponto vulnerável - O filho? O senhor sabia e aceitara esse desastre.

- Ah! cale-se! - protestou veemente - Nada sabia. Nada me disseram.

Ela fitou-o com os olhos dilatados pela surpresa: o que ela temera realizava-se.

- Meu tio nada lhe disse?

- Nada, absolutamente nada.

- Nem sua prima?

- Ninguém - bradou - Não valia a pena tomarem a precaução de me prevenirem.

- É uma indignidade de que não sou cúmplice,

- afirmou acalorada.

- E como há-de convencer-me - perguntou com dureza, sem cuidar de lhe poupar aquela susceptibilidade.

- Dando-lhe a conhecer a verdade.

- É um pouco tarde.

- Sim, mas a culpa não foi minha se ignorou o facto até agora.

- Realmente!

Ria nervoso, com surda raiva dentro de si próprio.

- Não, não tentei enganá-lo, lembre-se... da primeira tarde.

- E então?

- Perguntei-lhe se sabia... se lhe haviam dito tudo... tudo! Insisti e o senhor afirmou-me tudo conhecer.

- Ora vamos! Não se tratava disso. E teria eu aceitado desposar uma mulher...

Reteve dificilmente a última palavra; mas Gilberta decerto a completou, porque baixou a cabeça, ainda pálida e as lágrimas, tanto tempo represadas, correram silenciosamente ao longo das faces, sem que tentasse enxugá-las.

Ao vê-la tão fraca, tão humilde na sua presença, de Fragon refizera-se e já se arrependia da violência da sua linguagem.

- Então, imaginou que seu tio me tinha posto ao facto do seu estado - volveu com menos dureza.

- Imaginei-o até há pouco: estava até persuadida disso; as reflexões que me fez, em Jumièges, pareceram-me prova... Por essa época, não compreendia a sua cólera; é agora que tudo se me esclarece.

Levantou a cabeça e fitou-o bem de frente.

- Juro-lhe que nunca suspeitara da sua ignorância... Se pudesse desconfiar, revelaria desde logo toda a verdade e seria a primeira a sujeitar-me a tudo o que daí resultasse para mim.

- Como se compreende que nunca aludisse à sua... posição? Desde que nos conhecemos, muita vez havia de ter ensejo para isso.

Sentia que ela falava verdade e, contudo, não se rendia ainda.

- Nunca me falou nisso...

- E para quê!... Dizia comigo que esse capítulo devia ser-lhe desagradável... que seria preciso evitar... E, olhe, para afastar de si custosos pensamentos, envergava vestidos estreitos, apertava-me a ponto de ficar indisposta, dizendo de mim para mim que era dever meu poupar-lhe a vista de... tudo o que pudesse lembrar-lhe esta situação.

De novo curvava a cabeça, humilhada com novas confissões, mas mais desanimada ainda por verificar o inútil das suas precauções e das suas boas intenções.

De Fragon ouvia-a em silêncio, com aspecto sombrio. E porque esse assunto evocara nele más visões em que Gilberta, que tão pura imaginava, estava envolvida, uma violência o empolgou e o fez bradar fora de si.

- E é a senhora que depois de haver feito isso, aparentava de pudibunda e me afastava do seu quarto!

A rapariga ergueu a fronte com orgulho.

- E bom foi que tivesse procedido assim; é a melhor prova de que não procurei iludir a sua boa fé. Cúmplice de meu tio e conhecedora da sua ignorância, veja como poderia abusar!

Ficou confundido com a justeza daquelas explicações.

Entretanto, ocorreu-lhe uma objecção.

- Então que motivos dar para a recusa de ser completamente minha mulher?

Corou, horrivelmente indisposta e balbuciou:

- Eu pedira a sua prima Sofia que lhe explicasse isso...

- Mas sabe que ela nada me disse!

- Sei. Também iludiu a minha confiança - volveu, com amargura.

- E essas razões que ela me não deu - insistiu de Fragon - não pode dar-mas?

- O filho... -murmurou como única resposta e curvando a cabeça como se, à evocação do pequenino ente que não vingara, sentisse melhor ainda o peso da fatalidade cair sobre si.

De Fragon adivinhou o pensamento de sua mulher, o instintivo pudor que a impedia de pertencer a um homem quando ia ser mãe por obra de outro. Compreendeu-lhe os sentimentos de protesto, na primeira noite, quando quis usar dos seus direitos de marido e porque ela tivera tais escrúpulos, julgou-a menos indigna na sua falta, menos vil na sua queda.

com a testa vincada de grande ruga de reflexão, pusera-se a andar ennervadamente de um lado para o outro.

Intimamente, as explicações de Gilberta tinham-lhe feito bem. Acalmaram-lhe um pouco as chagas de amor próprio, a vaidade de homem, mas evocaram também à sua lembrança penosas visões.

E de-repente, parando em frente dela, volveu de novo assombrado:

- Falou-me há pouco duma reflexão que lhe fiz em Jumièges e lhe pareceu prova das pseudo-confidências de seu tio... Foi a propósito do senhor de Placeraud... Diga-me... foi ele, não é assim?

Ela acenou afirmativamente com a cabeça.

As lágrimas continuavam a molhar-lhe os olhos cheios de desesperança. A insistência de Rodolfo em interrogá-la, em querer saber tudo, era uma verdadeira tortura. No entanto, não fugia a isso e respondia, de voz cansada, mas de coração firme, com o evidente desejo de minorar pela sua grande franqueza e pela sua sublime humilhação, a indigna comédia que o tutor representara.

De Fragon não podia suspeitar, em toda a sua grandeza, da necessidade de resgate que a curvava perante ele.

Viu as lágrimas brilharem-lhe nos olhos, não lhes compreendeu a causa e, com dureza, bradou:

- Chora porque ele morreu! Amou-o!

- Não, não o amei!

Atirou altivamente aquele protesto, mas Rodolfo acalorava-se, e ripostou com rispidez:

- Foi seu... Ela atalhou logo:

Contra minha vontade! - exclamou.

- Todas as mulheres dizem o mesmo! Gilberta fez um gesto de desânimo e redarguiu

com tristeza:

- Afirmo-lhe que é verdade. Esse homem pedira-me em casamento a meu tio, mas ele afastara-o por achá-lo pobre demais.

- Mas então não o amava?

- Não, não me agradava... Era um homem velhaco e devasso... Nunca acederia ser sua mulher.

- Diz isso agora.

- Porque assim é.

E, vibrante de orgulho, ao ver que não o convencia, bradou:

- Supõe então que, se o tivesse amado, poderia em seguida desposar outro? Oh! não! Ficaria fiel ao meu amor, à sua lembrança, e hoje não o renegaria.

Toda a altiva Gilberta, orgulhosa e soberba de independência e de rectidão, reaparecia em tais palavras. E Rodolfo compenetrou-se então da sinceridade do seu tom.

- Foi então por surpresa - acentuou ele.

- Sim, por surpresa. Vendo-se escorraçado, usou de astúcia para forçar meu tio.

- Contudo, as circunstâncias... Seria preciso que estivesse sozinha com ele.

- Estávamos na Suíça e passeávamos todos os dias. Certa manhã chegou a Brienz, onde permanecíamos. À noite partia uma caravana para Rothhorn e ele ajuntou-se-nos...

- E então?

Falava com menos altivez. Todas as más lembranças evocadas pareciam feri-la ainda e o peito arfava-lhe sob o esforço das palavras arrancadas.

- Então - insistiu Rodolfo. Gilberta continuou:

- O miserável aproveitou-se da noite e das vantagens que a excursão oferecia... A ascensão a pé é mais custosa do que perigosa; caminha-se um pouco à vontade, sem apertar de mais as filas e sem sempre segurar a corda. De-repente, a minha luz apagou-se; ofereceu-se-me para ajudar a acendê-la e, para o fazer, paramos, emquanto os outros continuavam.

- E depois?

- Senti-lhe a mão na minha boca e... e... nada mais sei, nada mais sei!

Ocultava nas mãos o seu semblante purpureado. Mas de Fragon agora queria conhecer todas as minúcias e inclinou-se para ela, agarrou-lhe os pulsos obrigando-a a mostrar o rosto, como para melhor lhe arrancar a verdade.

- Suplico-lhe! - balbuciou ela.

- Não! Acabe! - ordenou - não gritou?

- Apertava-me a boca para me evitar que gritasse por socorro... desmaiei...

- Miserável! - rugiu o rapaz.

- Quando abri os olhos - volveu Gilberta meu tio estava junto de mim... junto dele! Vi os dois, de pé!... Que atroz lembrança!

De novo tapou a cara com as mãos.

- É horrível! - balbuciou ela.

- Bateram-se? - supôs Rodolfo.

- Não... meu tio segurava-o pelas abas do casaco. sacudia-o como farrapo, enchendo-o de invectivas... e de-repente...

- De-repente...

- Arremessou-o...

- Arremessou-o?

- Do alto para o precipício... onde no dia seguinte o encontraram, irreconhecível.

De Fragon tivera um sobressalto.

- Não foi um desastre?

- O desastre foi a versão natural aceite por todos e que ninguém discutiu. Mas a verdade é o que eu disse.

- Foi seu tio?

- Foi!

- Na sua presença?

- Diante de mim... Porque adivinhou o plano do miserável para me desposar, a vileza de que era capaz, o escândalo que não deixaria de fazer. Que importa a reputação de uma mulher, a honra de uma família, quando fortuna principesca está em jogo e com a audácia fácil é a sua posse?

De Fragon concordou, após instantes de reflexão.

- Esse homem tudo tinha calculado! Seu tio andou bem em abatê-lo como quem mata um cão danado.

Ela estremeceu.

- O senhor de Placeraud era abjecto ser que merecia a sorte que teve; mas meu tio não deixou de ser homicida.

De Fragon fixou-a por momentos.

- Quere mal ao senhor de la Saponaire pelo seu gesto brutal, definitivo?

Ela hesitou; depois, tentando explicar o seu pensamento, respondeu:

- Nunca pude censurar nem aprovar por completo o seu acto vingador. Lembre-se dos escrúpulos... de que se quere fugir... que voltam quando não se esperam!... Havia dois entes em mim: a mulher que desprezava até ao ódio a memória do que lhe causara a desgraça e a mãe que se esforçava por esquecer a atroz lembrança para não amaldiçoar a criança... Tente conciliar estes dois sentimentos opostos e ajuíze de tudo quanto posso ressentir de perturbação em presença do meu tutor. Não lhe disse: a minha vida junto dele tornara-se-me odiosa... Era o tio até aí respeitado... mas era também homicida... compreende?... Era atroz!

A sua voz, ao concluir esta difícil explicação, tivera qualquer cousa de quebrada em que se revelava todo o seu desesperante romance.

Rodolfo recomeçou o seu passeio nervoso, emquanto o semblante se lhe conservava grave, circunspecto.

Gilberta seguiu-o com a vista. Fizera-se muito pequenina, afogada na grande poltrona onde mergulhara e, nessa atitude, parecia mais desamparada ainda.

- Ouça, Gilberta - volveu, após longo silêncio

- Já temos sido demasiado experimentados para retomarmos juntos a vida de outros tempos.

Ela queria protestar, mas ele não a deixou falar.

- Pelo menos, quanto a mim, sinto que isso me seria impossível. A senhora não me tem amor e eu estou na mesma para consigo. O amor poderia nascer entre nós, mas os acontecimentos opuseram-se a isso e só nos restam amarguras. Quis-lhe mal, atrozmente, pela comédia que representaram comigo e, a despeito das leais explicações que acaba de dar-me, não deixa de ser por isso a que me trouxe a maior desilusão que até agora tenho conhecido.

- E é generoso da sua parte querer-me mal por uma cousa de que não sou responsável? observou com amargura.

-E por acaso somos livres de experimentar tais vontades e sentimentos? A sua lembrança não me é simpática... que quere?

Gilberta fechou os olhos dolorosamente sob a ferida de amor próprio que estas palavras lhe faziam.

- Por outro lado-prosseguiu Rodolfo-no outro dia, seu tio tratou-me com tal desprezo que só ficarei satisfeito quando lhe fizer engulir as palavras que proferiu. E é bom observar que deu pelas minhas intenções, pois que, para fugir à minha justificada cólera, desapareceu para o fim do mundo.

- Já não está em França -bradou, espantada.

- Actualmente deve vogar pelo Índico.

E como Gilberta se calasse, atordoada com tal notícia, observou-lhe:

- Não me disse que não podia deixar de ver um homicida em seu tio?

- Oh! Causa-me horror!

- Há muitas probabilidades para pensar um dia outro tanto de mim. Asseguro-lhe que, por minha vontade, entre nós deve haver sangue, porque seu tio não me fugirá por mais que faça.

- Meu tio não merece que o senhor suje a mão levantando-a contra ele - replicou ela, num estremecimento de horror.

- Deixe-me ser o único juiz nesta causa. Gilberta meneou a cabeça, acabrunhada por tantas dificuldades a transpor.

- Então - volveu ela.

De Fragon respondeu com tristeza:

- Bem vê que tudo nos separa. Seria loucura proceder doutro modo.

Ela assustou-se.

- Quere dizer que já deu os primeiros passos com o fim desta separação que diz tão necessária?

- Não - confessou Rodolfo com sinceridade Quis e, para esse efeito, fui falar com um advogado. Mas, no momento de a acusar, hesitei. Não seria manchar-me a mim próprio confessar as condições desastrosas do meu casamento?... E fiz bem em esperar, visto como acaba de demonstrar-me que a senhora não merecia esse tratamento.

Um lampejo de comoção atravessou as sombrias pupilas de Gilberta.

- Continuo a ser sua mulher - notou ela - Nenhum passo intempestivo, dado por si num momento de lamentável cólera, vem roubar-me o meu título de esposa. Agora que conhece a verdade, Rodolfo, tem de abandonar qualquer ideia de separação.

- Ah! - perdão! - volveu com vivacidade Renunciei a atacá-la directamente, mas não à ideia de deixá-la. Calcula que, ao desertar do domicílio conjugal, quando se encontrava doente e impossibilitada de defender-se, assumi todas as responsabilidades. Ser-lhe-á fácil, agora, libertar-nos um do outro, sem que fique prejudicada.

- Há apenas um obstáculo para o seu plano observou Gilberta devagar e com súbita calma.

- Qual!

- É que as minhas convicções religiosas não me permitem concordar com o seu modo de ver: felizes ou não, os laços que formámos perante Deus são para sempre sagrados e eu não poderia renegá-los.

O agudo olhar de Rodolfo fitou-a num relâmpago.

- Ah! O nosso casamento está cheio de erros e facilmente conseguiremos anulá-lo em Roma.

- Talvez seja possível, mas nunca aceitarei tal solução e admiro-me de que um homem como Rodolfo possa assim pensar.

- É conveniente por vezes ter muita decisão.

- Diga antes que ouve, acima de tudo, a voz do seu orgulho.

- E está certa de que houve outra, sem ser essa? -replicou com amargo sorriso.

- Ah! eu!

- Pois bem! Não crê que seja o medo do qualificativo: mulher divorciada, que a fere neste caso? E se não tivesse o preconceito das palavras, não se daria por feliz em despertar amanhã livre, liberta de todos os laços, desembaraçada da lembrança do senhor de Placeraud e podendo refazer a sua vida junto de alguém que a amasse e a quem escolhesse livremente?

Por única resposta, Gilberta olhou-o fixamente.

- Vamos - insistiu o tenente, um pouco ennervado - reconheça que tenho razão e que é uma questão de precaução que a detém.

Ela, porém, não desfitou o olhar e continuou calada.

- Custa-lhe confessar tão evidente verdade observou Rodolfo, encolhendo os ombros. -As mulheres tem sempre medo do termo adequado: preferem as frases torcidas à verdade bem nua.

- É conveniente evitar juízos demasiado absolutos - observou Gilberta com suavidade.

- Emfim, que vai agora fazer se não aceita a minha solução?

Esta interrogativa tão clara pareceu descoroçoá-la.

Houve no seu mortificado semblante real expressão de perturbação.

- Não reflecti - respondeu - A minha sorte não me preocupa. O que queria era convencê-lo da minha boa fé. Desejo havê-lo conseguido!

- Sim, mas agora?

Fez um gesto de trágico desespero.

- Nada me interessa, nem no passado, nem no futuro. A minha vida está quebrada d'ora em diante, visto que a minha boa vontade não basta para apagar os vestígios de um passado maldito que me aflige e o afasta de mim... Culpada ou vítima, a minha sorte é igual: não lhe faz diferença.

De novo de Fragon pousou nela os seus olhos sombrios que, para melhor ler dentro dela, pareciam querer trespassá-la.

Depois, com rápido suspiro, atirou-se para o fundo doutra poltrona, perto dela.

Pesado silêncio caiu entre ambos.

Rodolfo, com os olhos postos na lenha ardente do fogão, seguiu nervosamente os seus pensamentos; os dedos, tamborilando nos braços da poltrona, traíam, só por si, o tumultuar do seu cérebro. Reflectia em que, se a mulher não repelisse tão claramente a ideia do divórcio, tudo se poderia harmonizar. Tornados adversários, teriam achado no seu ardor de combate a força necessária para eles próprios refazerem a vida.

Mas se ela teimava em estar-lhe unida pelos laços do casamento, como podia êle fazer prevalecer a sua vontade? A menos que o seu desejo de ser livre não pudesse satisfazer-se com outra solução. Talvez não fosse impossível viverem longe um do outro, sem que o laço legal ficasse irrevogàvelmente quebrado entre ambos?

- Ouça, Gilberta - disse Rodolfo - é forçoso que tome qualquer resolução. Careço da minha liberdade, careço de ser senhor do meu destino! É preciso que me sinta livre para proceder sem pensar que deixo uma mulher atrás de mim.

- Porquê?

- Porque actualmente estou sem dinheiro e sem posição e preciso de criar uma e outra cousa. Voltei aos meus queridos planos do tempo de solteiro. Agora esses planos são toda a minha vida, toda a minha esperança, todo o meu futuro. Só eles tenho em mente e não quero que haja qualquer outro fim, qualquer outro interesse na minha existência. Se for preciso arriscar a vida para que se consigam, quero poder fazê-lo sem que cousa alguma me retenha.

A sua voz máscula fremia de ardor e de convicção, como se tratasse de sagrado apostolado. E Gilberta fez um gesto de desânimo e angústia, tanto sentia excluída da vida desse homem. -Nunca terá o direito de esquecer-se de que vivo-protestou, contudo.

- Oh! - tornou ele apenas, como se Gilberta lhe pusesse aos ombros um fardo que todo o seu ser repelia-Viva sem mim, longe da minha presença, esquecendo-se até de que existo. Ofereci-lhe a liberdade; tome-a quando lhe aprouver. Agora, confio em si: estou persuadido de que emquanto usar o meu nome, mostrar-se-á digna dele. Por seu lado, esteja certa de que aceitarei todas as soluções que lhe permitam refazer honestamente a sua vida.

- É o abandono com todo o seu horror - balbuciou desvairada.

Mas Rodolfo tranquilamente volveu:

- Não nos atordoemos com grandes frases, minha senhora; nada de trágico existe na decisão que tomamos. Graças ao céu, não existe entre nós qualquer liame de amor e separamo-nos como nos conhecemos, como pessoas de boa sociedade que já nada têm a dizer uma à outra.

- Sim, dois estranhos que não têm qualquer obrigação recíproca - expressou-se ela como em sonho - É isso o que o senhor quere?

- É melhor assim, acredite - afirmou Rodolfo.

- Mas se nunca recorrerei ao divórcio... As minhas convicções são deveras profundas.

- Estou tranquilo: há-de afazer-se à ideia.

- E, contudo, pode acontecer que eu realmente nunca em tal consinta!

- Pois bem! -tornou o tenente a sorrir-Deixaremos ao futuro o cuidado de harmonizar as cousas. Mais tarde, quando eu tiver vencido...

Parou, não querendo formular qualquer promessa que pudesse diminuir-lhe o livre arbítrio.

- Mais tarde? -insistiu a rapariga.

- Quem sabe - concluiu o tenente-se rico algum dia e talvez célebre, não terei o orgulho de voltar com o sentimento de já não ser o noivo pobre e escarnecido. Sim-prosseguiu, levado pelo rancor e já não medindo o alcance das palavras Ser bastante rico e tornar-me seu igual em fortuna, a-fim-de que ninguém possa lançar-me em rosto que quis prostituir o meu nome dando-o a uma rapariga seduzida, para que ela o dê ao seu bastardo! o seu bastardo, cuja existência se tornara inútil! dar a perceber. Ah! ah! Bastante rico, bastante poderoso, para poder esquecer tudo isso!

Os seus punhos cerrados para o céu parecia chamarem com um tanto de ultrage, a Invisível Testemunha da sua humilhação.

Parou interdito ante o decomposto semblante de Gilberta cuja presença esquecera.

Oprimido, passou várias vezes a mão pela testa lívida a que a lucidez oportuna tinha dificuldade em voltar.

- Como vê, minha senhora -volveu com humildade- não podemos viver juntos, pois a simples evocação das cousas passadas me faz perder a cabeça, a ponto de esquecer o respeito que lhe devo.

Ela erguera-se, aprumada em dolorosa dignidade.

- Tem razão, senhor de Fragon. Já não poderia ver-me sem se lembrar. E eu-acrescentou a tremer - creio não poder ouvi-lo mais sem o odiar.

Maquinalmente, calçava as luvas, abotoava-as. Já não sabia o que fazia, nem para onde dirigir-se ao deixá-lo; sentia-se, porém, inimiga desse homem para quem fora de mão aberta em pacífico gesto.

Entretanto, nesse momento, de Fragon olhava-a muito perturbado. Acabava de magoá-la cruelmente... ela partia, aceitando o pacto que ele lhe impusera.

Ia afastar-se... Não era para lastimar que não soubesse conservar até ao fim o seu excelente papel?

Em instintivo arroubo, deu um passo para ela.

- Gilberta! - murmurou.

Mas ela estendeu os braços, afastando o com gesto aterrorizado.

- Não -tornou Gilberta -Nada mais diga: fiquei de tal modo magoada!...

Não lhe viu o olhar alucinado em que a envolvia de-súbito e continuou com voz de sonho:

- Esgotámos tudo o que tínhamos para dizer; só poderíamos ferir-nos mais ainda...

- Ouça-me, Gilberta!

Mas ela interrompeu-o com energia, quebrando-lhe o arrebatamento de inconsciente compaixão.

- Não; está tudo acabado. Vou-me embora. Viveremos, esquecendo-nos um do outro. Assim o quis e, reconheço-o, é mais prudente!

Cessou de falar a-fim-de se encaminhar para a porta.

Procedia em estado de sonambulismo, sem reparar em que de Fragon, transtornado com a sua saída, se sentia incapaz, nesse instante, de lhe opor a mais pequena resistência. Uma palavra afectuosa dela e ele talvez lhe abrisse os braços, em sublime arroubo de generosidade e esquecimento.

No limiar, voltou-se para ele. Estava terrivelmente lívida.

- Adeus, senhor de Fragon! Que o céu o proteja, a-pesar-de todos os desgostos que me causou.

- Não, não se vá embora debaixo dessa impressão - bradou correndo para ela.

Mas Gilberta não o ouviu e tornou a fechar a porta, sem que a mão hesitasse.

Oh! como fora duro e implacável!

com passo automático e com grandes olhos dementados, Gilberta desceu a escada.

- Uma rapariga seduzida... o seu bastardo!... Estava lívida, tinha a loucura nos olhos. Atirou-se para o auto e arrancou, obedecendo somente ao hábito de guiar, mas não à vontade consciente.

Rodou... rodou... horas inteiras; marchou até que, por falta de gasolina, o carro estacou.

Só então é que se lembrou de perguntar ao fornecedor de gasolina que lhe enchia o depósito, em que ponto se encontrava. Estava apenas em Chaville... a seis quilómetros de Versalhes!

Nunca soube por que caminho tomara para fazer tão curto trajecto, rodando a toda a velocidade e queimando todo o carburante.

 

Gilberta passou uma noite atroz, com o ódio na alma, a ameaça nos lábios e o peito cheio de soluços.

Só de manhã é que adormeceu e esse tardio sono quási não lhe foi reparador.

Acordou absolutamente destroçada e com a impressão de terrível vácuo à sua volta.

Toda a cólera se lhe esvaíra; apenas lhe restava uma sensação de fadiga e de desmoralização, com a obscura necessidade de fugir para longe a-fim-de se afastar do depressivo ambiente.

Ordenou a Hortense que preparasse as malas.

Essa partida era demasiado imprevista para não admirar a criada grave, que, surpreendida, inquiriu:

- A senhora parte?

Os vestígios deixados pelas lágrimas no fino rosto da patroa não lhe escapavam e a curiosidade espicaçava-a.

- vou para Jumièges passar alguns dias - explicou Gilberta, deveras admirada consigo mesma por haver tomado tão espontaneamente tal decisão.

- A mudança de ares deve fazer bem à senhora, que não tem bom aspecto. O campo é ainda o melhor reconstituinte.

A órfã fez um movimento de cansaço: a tagarelice da criada importunava-a. Contudo, disse:

- Acompanhar-me-á. Prefiro não estar só no trajecto.

- A senhora vai no auto?

- vou.

- O novo motorista ainda não veio.

- Não quere dizer nada; eu guiarei.

Jumièges era, de momento, um fim; quando estivesse cansada de lá permanecer, iria para outra parte.

Antes, porém, de mais nada, ia ser-lhe preciso estar só, reflectir, tentar pôr em ordem o pobre cérebro extenuado... a-fim-de tomar uma decisão que se impusesse... regular o género de vida que convinha adoptar... e, principalmente, saber que atitude tomar com Rodolfo... com aquele que tão implacàvelmente a repelia da sua vida, sem olhar aos mútuos compromissos ou aos seus escrúpulos de crente.

Os criados acolheram com alegria a sua visita, na Normandia; ante, porém, o seu olhar melancólico e o rosto crispado, as fisionomias tornaram-se graves e as vozes perderam a vibração.

A jovem patroa tinha cuidados... o marido não a acompanhava e Hortense contava que o patrão deixara a casa durante a doença de sua mulher.

Nada era de jubiloso... era desagradável!

As excelentes criaturas abanavam a cabeça e, instintivamente, adoptavam maneiras graves.

- Seria preciso proceder do mesmo modo que com a defunta tia da senhora que, sentindo-se enfraquecida pela idade, não queria à sua volta nem ruído, nem movimento? Não era alegre a pobre senhora, andava desgostosa; não seria melhor manterem-se quási do mesmo modo de quando havia algum doente ou algum morto na casa? Andando em bico-de-pés e falando em voz baixa, todos estavam certos de não lhes aumentar a indisposição.

Mas nem mesmo esse grande silêncio em volta dela parecia ser notado por Gilberta.

Quer estivesse fora em longos passeios solitários ou metida no palácio, em doloroso devaneio, os pensamentos giravam constantemente no mesmo sentido depressivo.

Que ia ser dela, abandonada, só com vinte anos?

A decisão do marido em separar as suas duas vidas deixava-a aniquilada e nenhuma resolução vinha satisfazer-lhe, ao mesmo tempo, os desejos, os rancores ou os preconceitos cristãos.

De-resto, era contra a sua situação de esposa abandonada que principalmente se lhe revoltava o cérebro.

A sua existência junto do senhor de la Saponaire não fora muito feliz; pelo menos decorrera em atmosfera familiar e de respeitabilidade.

Não é a mesma cousa a de uma mulher casada cujo marido se desinteressa.

Parece que uma suspeição rodeia a abandonada, mormente quando é nova e sem filhos. É tanto alvo de todos os comentários do mundo como de todas as audácias masculinas.

Não acode à ideia dos homens em geral que tenham de usar de cerimónia com uma mulher desamparada. A ela tudo se pode dizer, visto que conheceu todas as fraquezas de outro sexo, as traições e as suas cobardias. Precisa de ser um dragão de virtude para impor o respeito que lhe é devido. E ainda, quando tal consegue, sente uma espécie de reprovação cercá-la de má fama.

E, sem que compreenda o motivo, sem que cousa alguma do seu modo de proceder mereça tal sorte, a infeliz vê fecharem-se-lhe as portas.

Todas essas cousas e muitas outras, Gilberta as dissera consigo, sem lograr tomar uma resolução sobre o género de vida que devia adoptar.

De resto, à pobre cabeça exaltada por tantas reflexões amargas, ainda não voltara a calma necessária para poder traçar a sério uma linha de conduta.

A lembrança do marido, as razões que lhe ditavam tal conduta, as que se esquecera de exprimir-lhe, tudo se chocava ainda em caos no seu cérebro fatigado.

Nunca, como nesses dias apoquentadores, lamentou tanto haver perdido a mãe. Sofria com o seu isolamento e teria querido apoiar-se numa ternura certa.

No entanto, repelia instintivamente qualquer ideia que a levasse a pedir conselho a alguém mais experiente do que ela.

Acudira-lhe o pensamento do seu confessor. Demorara-se até no projecto de contar todos os seus desgostos ao excelente cura de Jumíèges, que a conhecera muito criança.

Mas, desde que esta resolução parecia precisar-se, impulso contrário a repelia para longe de qualquer confidência.

Orgulho, amor próprio, pudor instintivo, não sabia o que a retinha. Sentia apenas que o seu ser íntimo não se curvaria a nenhuma sugestão. Era só em si própria que residia a resolução a tomar e tudo quanto não proviesse dela não lhe subordinaria a vontade.

Depois de haver encarado todas as resoluções e de ter feito voltear umas poucas de vezes na cabeça todas as fases do problema, Gilberta confiou à Providência o cuidado de lhe harmonizar a vida.

Pessoalmente, sentia-se incapaz de decidir qualquer cousa, um único pensamento sobrenadava em si própria: o instintivo horror do divórcio. De resto, admitia tudo, quer uma vida alegre com o desejo de vingar-se abertamente do marido, ferindo-o no seu amor próprio, de esposo, quer uma existência austera, curvada ao duro dever da espectativa, num lar deserto, de que ficaria infatigável guardiã.

Tudo lhe era indiferente, entregava-se ao Grande Senhor dos nossos destinos para decidir por ela.

Em pequena agenda de algibeira, onde, às vezes, anotava íntimos pensamentos, escrevia uma tarde:

Não passo de um destroço levado pelas ondas. Seja o que Deus quiser.

no dia seguinte, voltou para Paris, sua criada Hortense, que se atrevia a admirar-se diante dela pela contínua ausência do dono da casa, explicou:

- Não é tão depressa que torna a ver o senhor de Fragon... As cousas talvez se harmonizem, mas meu tio discutiu com ele, durante a minha doença, e o patrão jurou não voltar para Neuilly emquanto meu tio fosse vivo.

- Ah! bem! E então a senhora - observou a criada grave, absolutamente estomagada com semelhante declaração.

- Oh! eu!. - volveu Gilberta, pensativa. Calou-se, e depois, corajosamente, disse:

- Eu, naturalmente, irei visitar meu marido. Entre nós nada mudou, embora a sua resolução me penalize bastante... Se o senhor de la Saponaire tivesse ao menos coragem de ficar em França, tudo se poderia explicar. Mas depois de haver causado tanto mal, teve a generosidade de fugir para o Egipto!

Carregava com todas as culpas para cima do tio. Esta ligeira mossa, na verdade, arranjava as cousas preparando-lhe o futuro.

Gilberta, contudo, nada esperava para mais tarde; era-lhe, porém, preciso um ponto de partida para a sua existência isolada.

A sua explicação tinha a vantagem de cortar cerce qualquer comentário. E Hortense, que detestava o senhor de la Saponaire porque se mostrava autoritário e sem indulgência com os criados, aceitou, sem pensamento reservado, que fosse o causador dos aborrecimentos da sobrinha.

Quanto às relações que Gilberta pretendia conservar com o marido, esta dizia de si para si que sempre lhe seria fácil dar-lhe aparência de verdade. Bastava deixar acreditar que o encontrava muitas vezes.

Ganhar tempo, permitir que as cousas se regularizassem, aguardar os acontecimentos futuros, foi tudo quanto a órfã achara de momento.

 

Uma tarde em que chovia e em que Gilberta não saíra de casa, Verlaines fêz-se anunciar.

A chegada do moço oficial alegrou-a um pouco. Iria ouvir falar do marido?

Mas, orgulhosamente, e embora só essa ideia tivesse no espírito, não foi a primeira a proferir-lhe o nome.

Foi Verlaines, a respeito de estudos que absorviam todos os momentos de liberdade que lhe dava a sua vida de militar, que evocou o ausente.

- Seu marido teve a gentileza de escolher-me para companheiro do seu futuro raid - explicou com ar radiante - Quere associar o meu modesto nome à sua glória. Serei o seu observador, compreende?

- Felicito-o, visto que o convite parece encantá-lo-replicou Gilberta com amabilidade-E quando contam partir? -informou-se logo.

O rosto do oficial embaciou-se.

- Hum! Infelizmente não é já!

- O que é que vos impede?

- O avião não está ainda construído.

- Isso é uma razão perentória! - observou, a sorrir - Suponho, porém, que seja cousa para algumas semanas.

- Oh! mais do que isso! Em primeiro lugar é preciso encontrar o construtor que talvez exija capitais.

Ela arqueou as finas sobrancelhas:

- Que capitais?

- Os que permitam pôr pronto o aparelho sonhado por de Fragon, assegurando a este a propriedade do seu invento.

- E decerto é necessário grande importância volveu ela, maquinalmente.

E como Gilberta, ao reflectir no que acabava de dizer, guardasse silêncio, o oficial explicou:

- Oh! não é dinheiro perdido; seu marido inventou um modelo que há-de causar sensação.

- Seriamente? -interrogou ela, arrancada aos seus pensamentos por estas últimas palavras.

- É simplesmente maravilhoso, minha senhora! De Fragon é um inventor de génio que vai revolucionar a aviação.

Falava com tanto entusiasmo que indulgente e sincero sorriso distendeu as feições paradas de Gilberta.

Não sabia ao certo o que Verlaines conhecia das suas escaramuças com o marido e mantinha-se, portanto, em prudente reserva; porém, o oficial parecia confiar tanto nela que julgara nem sequer ter-lhe notado a situação anormal de esposa desamparada.

Devia, contudo, ter percebido que Rodolfo nunca voltava para Neuilly à tarde. Que comédia representava então com ela o moço oficial?

A menos que só fosse visitá-la para lhe falar do dinheiro de que o marido podia precisar para realizar o seu invento...

Esta última ideia atravessou-lhe o cérebro como relâmpago fulgurante que a feria cruelmente.

Verlaines pareceu-lhe de-súbito, menos simpático. No seu estado de espírito, uma visita interesseira só podia magoá-la. Se a visita do oficial não era mais do que um passo financeiro, que parte teria Rodolfo nessa intervenção?

Evocou a atitude altiva do homem de quem usava o nome. Tornava a vê-lo, além, na sua viagem de núpcias, assinando o cheque para mandar à tia Sofia. Julgava ver ainda a mão fina e comprida do noivo, apoiada em cima do cheque e parecendo orgulhosamente reivindicar-lhe a assinatura.

Teve de reconhecer que aquele homem era incapaz de reclamar o seu auxílio financeiro por intermédio de outrem, quando lhe bastaria ficar junto dela para dispor livremente das quantias de que precisasse.

- Não, Rodolfo não sabe que Verlaines veio falar-me de dinheiro e talvez mesmo este o fizesse involuntariamente e sem que tivesse a mais pequena intenção...

Foi tirada das suas reflexões pela voz do visitante que explicava:

- De Fragon obteve que, com o motor parado, um avião miniatura, construído segundo os seus novos dados, se mantém no ar e só desce muito lentamente para o solo. Isto é de maravilhoso resultado; mas emquanto as experiências não forem feitas em avião de tamanho normal, decerto compreende que se fica no domínio das probabilidades.

- E como é que se saberá que o avião construído conforme os planos de meu marido pode ficar suspenso no ar?

- Muito simplesmente: experimentando-o! Gilberta levantou-se em assustado sobressalto.

- Quem ousará tentar semelhante experiência?

- De Fragon, evidentemente!

- Ele!

De olhos dilatados, fixava-se ante ela aterrorizante visão.

- É loucura... matar-se-á!

Verlaines sorriu ao ouvir aquele instintivo grito.

- Nem todos os inventores morrem, felizmente! De resto, as experiências são feitas por cima de água que oferece mais probabilidades de salvação para um bom nadador. O que é certo é que o meu amigo nunca acederá a que outro tome o seu lugar para tão perigosa experiência.

Gilberta teve de fazer um esforço para retomar a sua impassibilidade, embora não pudesse explicar-se porque se encontrava tão comovida.

De facto, que lhe importava a vida do marido que a repudiava?

Mas, baixinho, dizia consigo:

- Compreendo agora porque me disse carecer da sua liberdade, a necessidade de ser senhor da sua vida e da sua sorte. Não queria pensar que deixava uma mulher após ele.

E esta verdade muito cruel impunha-se:

- Sacrificou-me implacàvelmente aos seus trabalhos!

Como se calasse, com o olhar um pouco duro, Verlaines enganou-se com respeito aos seus verdadeiros pensamentos.

O oficial observou com entusiástica vibração na voz:

- Se o consegue, será a glória!

Gilberta, nesse instante, prosseguira outra lógica.

- A glória? Quimera! -volveu ironicamente promete o beijo àqueles que a entrevêem: uma fitinha no ataúde, discursos em sepultura aberta, é tudo quanto realiza a maior parte das vezes!

- Também, às vezes, ilumina os vivos. Porque é que de Fragon não seria englobado no número dos privilegiados? Ficaria depois tão contente por lhe dedicar o prémio do seu trabalho!

- Que horror! - bradou Gilberta - Não diga que é pensando em mim que Rodolfo alimenta tantas ambições! Não sabe, senhor Verlaines, que preferiria, a todos os riscos, um bom marido burguês, contentando-se em andar nos dois pés que o Criador lhe deu, em vez de procurar asas para escalar o céu?

O oficial sorriu um pouco céptico.

- Mais tarde tornaremos a falar nisso... se de Fragon obtiver êxito.

Calaram-se por instantes e, como Gilberta permanecesse mergulhada nos seus pensamentos, o oficial observou:

- Enfim, de momento, tudo isso é do domínio das probabilidades. Só resultará realidade se de Fragon conseguir encontrar um comanditário.

De novo Gilberta sentiu penosa impressão.

Os olhos encararam num relâmpago o oficial, mas não proferiu palavra.

Como voltasse a cabeça para a esposa de Rodolfo, Verlaines viu a bela fronte levantar-se orgulhosamente, os olhos duros imobilizarem-se ao longe, os lábios finos vincarem-se desdenhosamente e, de-súbito, teve a consciência de-haver magoado a rapariga com alguma frase desagradável.

Levantou-se.

- Perdôi, minha senhora, esta tagarelice. Conto-lhe um montão de cousas que me são queridas e desejava poder levar a cabo. De Fragon, ao fazer de mim o colaborador do seu raid, perturbou-me um pouco o cérebro com fumos de glória e de ilusão.

 órfã teve de fazer um esforço para sorrir.

- Escutei-o com infinito prazer, senhor Verlaines. Tem razão para possuir muitas ilusões; são as únicas cousas que valem a pena ser mantidas em nós. E acredite que desejo sinceramente vê-lo encontrar no seu caminho o mecenas de que precisa.

O tom era impecável e o oficial não pôde saber se o desejo formulado pela boca feminina, de intonações um pouco altivas, era realmente sincera ou se não seria irónica réplica às suas alusões.

Sentia-se indisposto ante o semblante da enigmática mulher.

Inclinou-se e pôs os lábios na nívea mão que ela lhe estendia. Depois de um último até breve, afastou-se com a pertinaz impressão de haver cometido disparate.

Por muito tempo, Gilberta conservou-se imóvel, após a sua partida. Indefinido mal-estar se encontrava nela. Sentia-se obcecada pela temível perspectiva dos perigos que Rodolfo ia ter que afrontar e, ao mesmo tempo, estava indisposta até ao sofrimento com a ideia dos capitais que este procurava.

Olhou em sua volta, viu o sumptuoso luxo que a rodeava e evocou o humilde aposento onde o marido vivia.

Esta visão foi-lhe tão desagradável que as lágrimas lhe chegaram aos olhos, como se fosse culpada de egoísmo ou de avareza.

Por mais que a si mesma dissesse ter só de Fragon para partilhar da sua opulência, não deixava por isso de sentir a impressão de ser responsável pelos apuros de dinheiro que entravavam o jovem inventor.

Dizia de si para si que deveria ter previsto isso, que o marido não lhe ocultara que estava agora sem fortuna e sem posição e que devia criar uma e outra... Não deveria logo oferecer-lhe a possibilidade de levar a bom termo os seus trabalhos?

- Mas não teria aceitado. Estou certa de que recusaria com horror qualquer proposta financeira vinda de mim.

E contudo, a-pesar-dessa certeza que tudo justificava, não estava contente consigo própria.

Durante três dias ficou inquieta e obcecada pela mesma imprecisão de remorso íntimo; depois, uma tarde, vago desejo lhe surgiu na excitada imaginação.

Nada se lhe definia no pensamento; era apenas uma combinação emmaranhada e já alegre sorriso lhe brincava nos lábios...

- Ah! se tal projecto fosse viável!...

À força de voltar a imagem entrevista, meditá-la, combiná-la, um plano bastante nítido se esboçava.

À medida que reflectia, o sorriso acentuava-se-lhe, sob feliz influência. E, pouco a pouco, a ideia nova tomava forma e expulsava-lhe o mal-estar físico e o descontentamento mental, fazendo-lhe surgir das veias íntima alegria de satisfação e triunfo.

Sim, era preciso levar a bom termo semelhante aventura.

Na pequena agenda de algibeira, escreveu primeiro uma data, a desse dia...

Lampejo de luz lhe viera iluminar os passos e lhe abria novo caminho.

Um fim!... O céu permitia-lhe que tivesse um fim na sua solitária vida!

Depois, como a única data do mês não lhe explicava suficientemente a importância do plano concebido, inscreveu:

O destroço prendeu-se em qualquer cousa... Talvez numa âncora.

Na manhã seguinte, cedo, muito ligeira e de misterioso sorriso nos lábios, saiu para passear por todos os quatro cantos da capital.

Em todo o dia, discutiu com pessoas desconfiadas, fez cair as precauções, reduziu cálculos e finalmente, fez admitir a ideia absurda, mas maravilhosa, de que, havia algumas horas, se lhe punha sol na alma.

Falaram-lhe muito de loucuras, de perigos, de inúteis temeridades, mas todos tiveram de curvar-se ante a magia de uma vontade disposta a tudo.

Saiu triunfante de todas as objecções e, ao quarto dia, quando obteve a certeza de que os seus desejos seriam realizados, estava plenamente radiante.

No auto que a reconduzia para casa, o seu riso esfusiou como canto de vitória. E até era tão grande a sua alegria, que, já não podendo contê-la, parou o carro. Tinha necessidade de um confidente... e a sua pequena agenda recebeu nova anotação:

O destroço continua a flutuar, mas vai arrastado para determinado ponto... Pequenino nada de quem ninguém se ocupa, para onde vais?

Ao escrever a lápis tais palavras de esperança e de dúvida, havia sorriso mais meigo nos lábios de Gilberta, ao mesmo tempo que dos seus grandes olhos, bastas vezes assombreados, corria, agora, grossa e pesada lágrima.

 

- Mas não, meu velho, não aceito a tua ideia. És extraordinário! Se tivesse querido recorrer a minha mulher, não teria esperado pelo dia de hoje para acabar com este negócio.

- És ridículo! Revolto-me ao ver-te andar por toda a parte à procura de capitais. Tu bem sabes onde arranjar o dinheiro e bastava-te tomá-lo.

Verlaines, arrebatado pelo assunto, nem sequer notava o furibundo aspecto do amigo.

De Fragon encolhera os ombros, impaciente. A insistência do camarada era infeliz e deslocada... mormente em tal caso! Mas podia dizer-lhe porque não lhe assistia o direito de apelar para a bolsa da mulher? Porque Gilberta era a última pessoa a quem podia dirigir-se!

- Faze o favor de mudar de conversa, Verlaines

- solicitou com voz cortante - E se desejas que a nossa amizade se conserve como tem sido até hoje, evita, de futuro, voltar ao assunto.

O outro percebeu-lhe o descontentamento.

- Ora! - replicou um pouco descoroçoado com o tom que Rodolfo empregara - Que susceptibilidade a tua! Se foi tudo quanto os meus argumentos conseguiram despertar em ti, foi um triste resultado!

- Porque não permito a ninguém meter-se na minha vida particular.

- Grande frase! Ora, vamos! Não te zangues! Tua mulher é muito mais simples quando se trata de ti!

- Minha mulher?

Espicaçado pela insistência de Verlaines, o jovem marido sentia aumentar de-súbito o ressentimento. Encarava agora o amigo com ar hostil.

- Quando a viste?

- Na quarta-feira.

- Na quarta-feira? - volveu de Fragon, encostando-se à secretária para melhor encarar o tenente

- Co'a breca! Tu vês muitas vezes a senhora de Fragon!

Embora não se sentisse culpado de qualquer incorrecção, a observação do amigo e o tom em que fora formulada, fizeram chegar às trigueiras faces do oficial violento rubor que naturalmente foi notado pelo companheiro.

- Não tornara a vê-la desde o dia em que saíra da casa de saúde - respondeu, contudo, Verlaines, esforçando-se por se conservar calmo - e permitiu-me visitá-la, no outro dia, para saber notícias.

- E foi ela quem julgou poder ostentar na tua presença a sua fortuna e as liberalidades de que era capaz?

- Oh! - protestou com energia o tenente, levantando-se quási indignado - Tens cada uma! A senhora de Fragon honrou-me infinitamente em receber-me, mas em momento algum se tratou da sua fortuna ou da sua intervenção.

- Eu sei lá em que vocês falaram! Verlaines ficou verdadeiramente atrapalhado.

- Em nada que não possas ouvir - replicou com vivacidade - Acrescento ser cousa mais natural ir saber notícias de tua mulher do que, das outras vezes, ir buscar a casa dela a tua correspondência ou entregar-lhe uma chave.

- Tens razão... talvez fizesse mal em encarregar-te de tal missão.

Mas o outro deu um pulo.

- Ah! não, meu caro! Nada de tais frases entre nós! -bradou -Respeito infinitamente a senhora de Fragon, e é lisongeiro para mim, confesso, ser recebido em sua casa, eu que não passo de um oficial sem fortuna. Mas, se tomas esse tom, cumprirei o dever de me confinar em minha casa: a nossa camaradagem data do colégio; se começas a suspeitar de mim, di-lo francamente.

De Fragon fechou os olhos, empalidecendo subitamente sob o efeito de um beliscão na alma.

- Enganas-te - volveu em seguida, após um esforço - estou satisfeito porque minha mulher te recebe bem... desolado ficaria se tal não acontecesse, São as tuas observações... essa questão de dinheiro que me ennerva... Tenho ideias, princípios; emfim, não tornes a falar nisso, se me queres ser agradável.

Por instantes, Verlaines contemplou a estranha irritação do amigo e a sua trágica palidez. Em seguida evocou, em pensamento, a meiga e piedosa fisionomia de Gilberta, altiva ante uma fatalidade que também queria dominar. E grande compaixão sentiu nascer por esses dois entes que pareciam do mesmo modo pendentes da sua afectuosa solicitude e que descobria separados por um mal-entendido. Dirigiu-se a de Fragon e pôs-lhe amistosamente a mão no ombro:

- Perdoa a minha intervenção, visto que te importuna; mas não deites as culpas para tua mulher... Dou-te a minha palavra de que entre nós não houve uma palavra que pudesse desagradar-te. Deseja sinceramente o teu êxito; foi tudo quanto me disse.

Novo olhar frio o encarou. E Verlaines parou, compreendendo que de Fragon nem sequer aceitava que lhe saísse da boca o elogio da ausente.

- Emfim, não falemos mais nisso - esforçou-se por concluir o oficial - Sou um imbecil a quem por completo falta diplomacia e estou apoquentado por ter podido magoar-te.

Nesse instante bateram à porta do aposento. Sem esperar convite para entrar, um homem deu volta ao fecho da porta e penetrou na quadra onde se encontravam os dois amigos.

O recém-chegado podia ter vinte e cinco anos. Era de mediana estatura, muito elegante, mas o seu busto, um pouco forte; apresentava-se com um fato de corte impecável.

- Desejava falar ao senhor de Fragon... disse o desconhecido - Rodolfo de Fragon...

- Sou eu - respondeu este, adiantando-se.

- Encantado por conhecê-lo - replicou o outro com firmeza.

- A quem tenho a honra...

- Permita que me apresente, Caetano de Bigarre, o filho do grande industrial muito conhecido e, infelizmente, morto há já alguns anos.

- Muito gosto... Queira dizer-me em que posso ser-lhe útil...

- Já lhe digo - replicou o desconhecido, ao sentar-se com desembaraço - é precisamente o senhor de Fragon que estudou os planos de um novo avião de que se diz o melhor possível?

O espanto passou pelos olhos do inventor.

- com efeito! - volveu um pouco reservado.

- Pode pôr-me ao corrente dos seus projectos? Ao falar, rectificara meticulosamente o vinco da

calça.

- Ah! perdão! Essa pergunta afigura-se-me um pouco indiscreta.

- Sim, evidentemente, não me compreende. Fique, pois, sabendo que sou rico, muito mais ainda do que possa imaginar, mas que, infelizmente para a memória de meu bondoso pai, tenho tanto de inútil como de rico.

Calou-se, mendigou aprovação nos olhos dos dois amigos que o fitavam com curiosidade. Acrescentou com pretensão que nada poderia desarmar:

- O estudo fatiga-me: nunca pude levar um livro até ao fim, sem ter dores de cabeça... E como. a minha saúde me parece, acima de tudo, preciosa, preferi renunciar a todos os proveitos que pudesse colher dum cansaço intelectual.

- É um modo de ver! - observou de Fragon inflexível sem querer, ante semelhante declaração de imperícia - Um homem nunca se gloria, em geral, da sua ignorância.

- Estou encantado com a sua aprovação - volveu o desconhecido, agarrando a mão do marido de Gilberta e sacudindo-a fortemente entre as suas Completamente encantado; sinto que o senhor e eu fomos feitos para nos compreendermos. Muito em breve vamos ficar de acordo.

- Mas em quê?

- Como pois ainda não compreendeu? Desejo tornar-me seu colaborador.

E como de Fragon, interdito, o fitasse surpreso, o jovem e ridículo peralta demonstrou, fazendo cintilar a mão direita, onde brilhava enorme brilhante:

- Sou rico e trago-lhe a probabilidade de pôr a trabalhar o seu aparelho.

- Disse?...

- Que quero ser conhecido, célebre, e que algum dia se fale de mim, nos jornais - resumiu plàcidamente.

- Oh! senhor! - exclamou de Fragon um pouco espicaçado com tal presunção.

Mas Verlaines, que temia alguma tolice do camarada, interveio com vivacidade:

- O meu amigo ficaria encantado se desenvolvesse melhor as suas intenções.

- Aqui tem - prosseguiu o jovem fátuo, cruzando as pernas com estudada negligência - O senhor de Fragon trabalhará, construirá o aparelho, pô-lo-á a funcionar, sem que eu tenha de cansar-me com semelhante tarefa...

- Ah!

- Sim... as experiências serão consigo. A vida

- não é assim - é bastante agradável para que me exponha a cousas de que nada percebo em absoluto. Consigo é outro caso!

- Evidentemente! - replicou de Fragon, mordendo os lábios para se conservar calmo.

Havia cinco minutos, tivera ganas de pegar no pedante pelos ombros e atirá-lo pela escada.

- Assim... -prosseguiu a estranha personagem, sem querer dar pela hostilidade do seu interlocutor

- o senhor fará tudo... eu permaneço nos bastidores, entretanto.

- Felizmente! - resmungou o marido de Gilberta.

Suave sorriso desvincou os lábios do recém-chegado.

- Compreendemo-nos muito bem, senhor de Fragon.

- Mas acabe a sua ideia - pediu Verlaines.

- Ah! sim! Pois bem! Mais nada... até à completa afinação do aparelho. Volto aqui, logo que isso esteja concluído.

- E então?

- Diabo! O senhor compreende... Não lhe ofereço agora uma fortunazinha para que me deixe ficar no cenário. Quero ser da grande viagem! E não como visita clandestina, mas, sim, como terceiro passageiro oficialmente admitido a seu lado.

- Tem empenho em ser glorificado?

- Isso mesmo!

De mãos Abertas, com ar hipócrita, contemplava os amigos, pasmados com tanta petulância.

- Decerto sabe que resolvi tentar a travessia do Oceano, em linha recta, para minha primeira viagem - observou de Fragon, numa espécie de grunhido.

O outro sorriu:

- Deve ser delicioso!

- Mas também muito arriscado - insistiu Rodolfo, com rudeza.

- Confio em si para não expor inutilmente a minha preciosa pessoa. Quando partir é porque o avião estará afinado.

- E o que é que o faz supor isso?

- Oh! Uma questão de psicologia... Sou muito forte nessa matéria.

- E achou?

- Que tendo diante de nós tempo e dinheiro, o seu amor próprio de inventor e de piloto exige uma afinação cuidadosa. Não partirá para obedecer a considerações, mas para se sair bem de cousas em que outros falharam...

- Não é desacertado o que diz - observou de Fragon, amaciando.

- Este modo de ajuizar as cousas é completamente pessoal.

- Sinto-me encantado com isso!

- Nesse caso, estamos de acordo? Negligente, tirara da algibeira um livrinho de cheques. E de Fragon, um pouco emocionado com tão surpreendente acontecimento, viu-o escrever cuidadosamente cifra tão importante que ficou transtornado.

- Perdão - exclamou, receando deixar-se tentar depressa demais - Ainda me não disse qual seria a sua atitude na América.

- Que diabo! A de um sócio... Partilharei da glória, dos banquetes, das interviews e do passeio de honra obrigatório.

- E depois, terminariam as nossas relações?

- Meu Deus! Julgo que sim. A menos que, no regressso a França, ainda haja recepções. Tendo corrido o perigo, decerto não quererá afastar-me da glória.

- Seria cruel! - aprovou Verlaines.

Caetano de Bigarre agradeceu-lhe com magnífico sorriso e depois, virando-se para de Fragon, tornou a perguntar:

- Então... Estamos de acordo, meu caro sócio? Pelo rosto do interpelado passou uma nuvem.

Era visível a sua hesitação. Este singular colaborador nem por isso o entusiasmou muito. Evidentemente, aquele janotinha embonecado, pretencioso e poltrão, nunca seria um sócio muito perigoso; mas nada parecia tão desagradável ao futuro piloto do que viajar com tão estúpido companheiro.

Verlaines adivinhou-lhe o pensamento. Voltando-se para o visitante, observou, na intenção de despertar no amigo a lembrança doutro comanditário.

- É curioso ver os acontecimentos seguirem-se para atingir o mesmo fim. Imagine que, há pouco, submetia ao meu amigo outra combinação...

Ao falar, examinava de Fragon de revés. Viu-o sobressaltar-se com esta audaciosa evocação; mas fingiu olhar para outra parte, a-fím-de poder continuar a experiência.

- Outro capitalista - inquiriu o moço milionário, assombrado com o rival que se evocava.

- Sim, outra pessoa que poderia fazer ao meu camarada propostas tão belas como as suas...

E, virando-se para este último, Verlaines acrescentou sem se perturbar e com ar simplório:

- Como vês, meu velho: só tens a dificuldade da escolha.

De Fragon fitava-o duramente, procurando no rosto do amigo a oculta intenção de o desafiar.

Mas o oficial tinha o ar tão natural, tão simplesmente solícito que o marido de Gilberta nada achou a censurar.

Entretanto, a observação de Verlaines resolvera Rodolfo a aceitar.

- Está combinado - disse ao desconhecido que lhe trazia uma fortuna -Os seus oferecimentos agradam-me; aceito o seu concurso! Será meu sócio para. a viagem e para a glória!

Os dois apertaram-se a mão.

- Assina-se um documentozinho - inquiriu tranquilamente o desconhecido - Gosto das cousas em regra. Fui tanta vez ludibriado na minha vida.

- Senhor! - protestou de Fragon, aprumando-se bruscamente, perante tão injuriosa reflexão.

- Não se zangue, senhor inventor - volveu o outro gaiatamente - o documentozinho que lhe entrego vale bem a sua assinatura por baixo de duas insignificantes linhas.

O antigo tenente passou a mão pela testa alagada. Há sociedades custosas, e aquele inexperiente, com a força do dinheiro, já lhe contendia com os nervos!

- A colaboração da senhora de Fragon talvez fosse mais elegante - arriscou Verlaines, que adivinhava os pensamentos do amigo.

Desta feita, o olhar de Rodolfo foi tão agressivo, que o oficial recuou.

- Já te pedi para não proferires esse nome na minha presença.

A voz implacável encobria insuspeitada ameaça.

- Está bem, está bem! Antes de assinares, compreendes, competia-me recordar-te todas as faces do problema.

Sem pronunciar palavra, o antigo tenente sentou-se à secretária, e, nalgumas linhas apressadas, redigiu os compromissos tomados de parte a parte.

Em seguida, assinou.

- Aqui tem! -disse nervosamente-Está pronto! Apresentava o papel ao desconhecido. Mas era

Verlaines quem o desafiava com o olhar.

Este último, de resto, não se assustou. Quis ler o contrato antes que Caetano de Bigarre o guardasse.

- Dá-me licença -tornou plàcidamente - O meu camarada esqueceu-se de lhe perguntar se tem referências financeiras... cartas de crédito... Emfim, desejamos estar certos da sua situação moral na sociedade.

- É muito natural.

com o ar satisfeito da sua pequena pessoa, o recém-vindo apresentou documentos e citou nomes que foi possível encontrar na lista do telefone.

Quási uma hora depois, o negócio estava definitivamente regulado e Verlaines felicitou calorosamente o amigo.

- Estou encantado com a transacção que te liberta de todos os cuidados. Procedeste da melhor forma; isto assegura o êxito dos teus trabalhos.

E, com a maior franqueza, abraçou Rodolfo, que se conservava grave e de lábios cerrados, sob a onda de pensamentos contraditórios que se chocavam nele a despeito da sua vontade bem defenida de não se deter em qualquer consideração exterior.

Os dois homens passaram a noite com o novo amigo, pois este convidara-os para um banquete, a-fim-de terminar, com um prazer, tão fatigante negócio como esse contrato de colaboração.

De Fragon estava muito alegre nessa noite. Tornava-se evidente que o manequim que se lhe juntava como capitalista não era precisamente aquele que esperava a princípio.

Mas era para ele tal alívio já não ter mais de se preocupar com a questão financeira que chegava a achar simpático o insignificante mas indescritível de Bigarre.

Contudo, quando, pelas duas horas da manhã, chegou o momento de deixar Verlaines, segurou por momentos a mão deste.

- Há pouco fui um tanto vivo contigo. Não me fiques com rancor. Ando de tal maneira estúpido de há um tempo para cá!

- Não penses mais nisso- volveu Verlaines, muito comovido, correspondendo ao aperto de mão.

- E, quando falares à senhora de Fragon... se foi ela que te inspirou, hoje, agradece-lhe a delicadeza da boa-vontade... sem a magoar...

- Já te dei a minha palavra de que ela não era achada neste negócio. Só a amizade que tenho por ti me ditou os conselhos que julgava necessários.

- Bem, bem! Emfim... dize-lhe algumas palavras amáveis... não a melindres!

- De resto, não há motivo algum... Não sei mesmo quando tornarei a vê-la agora.

- Está bem... Continua as tuas visitas... De contrário, julgarei que ficas zangado. Tens toda a razão em ir lá muitas vezes saber notícias suas!

Verlaines não respondeu. Notara de-repente que, a-pesar-do magnífico contrato, do delicado jantar e das taças de champanhe, de Fragon estava abominàvelmente triste.

Rememorou uma frase de certo filósofo, cujo nome não lembrou, mas em que muita vez meditara:

Para se ser um homem é preciso ter na alma pedaços cortados ao vivo e que sangrem quando se lhes toque...

Sem saber, Verlaines tocara num desses pedaços sangrando, do amigo.

O coração encheu-se-lhe de violenta comoção. Estimava e admirava ao mesmo tempo o seu camarada que, a despeito da sua indiscutível superioridade, lhe fora sempre indulgente.

Nesse minuto, sentiu uma espécie de veneração e o seu desejo era dedicar-se por ele.

Em espontâneo gesto, atraiu a si de Fragon e cingiu-o nos braços.

- Mas que tens? - bradou este surpreendido.

- Nada! Sou teu amigo e queria que vencesses!... Até breve, meu velho, até amanhã.

Mais um aperto de mão e os dois homens separaram-se. De Fragon, um pouco meditativo, seguiu-o com a vista.

- Excelente coração - murmurou - E pensar que cheguei a suspeitar dele!. E de quê!... Por Deus! Muito parvos são os homens!

 

A datar do dia em que concebeu certo misterioso projecto, Gilberta levou a vida de mulher casada, cujo marido está momentaneamente afastado e deve voltar de um dia para o outro.

Fingia dar-se bem no seu isolamento. Evitava qualquer tristeza aparente, do mesmo modo que tinha o cuidado de não esteriorizar qualquer desânimo.

Resolvera esperar, conservar o seu lugar ao ausente. E, com todo o escrúpulo, a órfã aceitara esse papel de guarda do lar e de esposa solícita.

Não ocultava dos criados os projectos do marido e pensava consigo, cheia de ansiedade, nos perigos que o ameaçavam.

Se alguém interrogasse a criada grave, ouviria Hortense afiançar que a senhora ia quási todos os dias ao encontro do marido:

"- Está todo o tempo agarrada a ele. Dir-se-ia que não pode passar sem o marido! Aflige-se de tal maneira, com todas as aventuras perigosas que ele projecta, que aproveita vê-lo emquanto ainda está vivo."

E a rapariga não teve dúvida alguma em afirmar bem alto este facto!

com efeito, Gilberta saía de automóvel várias vezes por semana. com sorriso alegre, dizia:

- vou ter com meu marido. Ou então:

- vou saber se o senhor de Fragon ainda não voou para as nuvens.

Ria, fingindo boa disposição em que todos, à sua volta, se deixavam iludir, e partia sozinha para misteriosas excursões.

Certo dia proclamara com ar vitorioso:

- Dei a volta a Paris, em avião, com o senhor de Fragon.

Se não era completamente exacto quanto ao piloto que a conduzira, pelo menos era rigorosamente autêntico quanto ao facto de ter feito o percurso.

De seguida, comprou um aparelho que ela mesmo quis guiar. E, durante semanas, aprendeu o manejo e as noções necessárias para conseguir a sua carta de piloto.

-O patrão ensinou a senhora a guiar um avião-explicou a criada, entusiasmada com a ideia de que a patroa navegava nos ares."

Não lhe tinha esta prometido subir com ela um dia, quando estivesse completamente senhora de si e não houvesse perigo em juntar uma passageira?

E Hortense, simultaneamente encantada e aterrada de tal passeio em perspectiva, punha toda a gente ao corrente da temeridade da senhora e do saber do patrão que ia impedir que os aviões caíssem.

Este estado de espírito que Gilberta mantinha à sua volta, ajudava-a a suportar o isolamento.

Ao mesmo tempo, os seus demorados estágios em Bourget, no meio de pilotos, punham-na ao corrente das cousas de aviação e isso permitia-lhe compreender melhor os trabalhos do marido.

- Quando Rodolfo voltar não terei a aparência da mesma pessoa - dizia consigo melancolicamente, ainda que no íntimo não ousasse esperar que o marido tornasse para junto dela.

Mas tinha o cuidado de não advertir Verlaines da vida que levava. Receava que de Fragon, prevenido, pudesse proibir-lhe tão perigosos passeios.

E para ter a certeza de que nenhuma indiscrição transpirava, tirara a carta de piloto em nome da mãe, Gilberta Lê Rouy, de som muito apagado, que o marido tinha muitas probabilidades de não fixar, se se pronunciasse diante dele.

Já não falava tanto agora dos riscos que o marido corria, familiarizara-se com a ideia do perigo.

Às vezes, os seus atavismos de glória e de epopeia sobrepunham-se a tudo e deixava-se arrebatar pelo fim grandioso que o inventor prosseguia.

Os seus olhos febris fitavam o céu azul onde grandes nuvens corriam. Imaginava a grande ave mecânica imóvel no espaço...

- Como seria bonito que um homem pudesse agarrar-se ao azul -dizia com voz sonhadora.

Só havia um ponto que lhe era desagradável.

- Que pena ser Rodolfo quem deva experimentar o seu primeiro avião! Se ainda partisse com algum companheiro!...

Mas esforçava-se por afugentar a ideia cruel e na agenda íntima outra frase viera gravar-se:

Um escolho barra a estrada: é terrível pensar que a cadeia possa quebrar-se...

Emquanto Gilberta dava assim rumo à sua vida solitária, Rodolfo de Fragon trabalhava silenciosamente na sua nova ave.

De Bigarre cumprira a palavra. O aviador encontrava todos os auxílios necessários e pôde levar a cabo as suas concepções.

As primeiras experiências por cima dos lagos de Holanda, na orla da floresta de Rambouillet, maravilharam o mundo da aviação. Os êxitos do antigo tenente haviam transpirado e, desde algumas semanas, os próprios jornais traziam os leitores ao facto das diferentes fases da construção dum futuro avião que se chamava: Ponto-de-Suspensão.

Os projectos do inventor pareciam tão audaciosos, as concepções de tal modo preciosas e novas, para todos os pioneiros do ar que todos os dias arriscam a vida, que ansiosa multidão aguardava o resultado com apaixonado interesse.

Tinham-se feito apostas, haviam-se formado polémicas, os construtores tinham instituído raids e os poderes públicos criavam um prémio. Da própria América afluíam maravilhosas propostas de concursos financeiros inesperados e, se de Fragon tivesse bom êxito na tarefa que se impusera, estava certo de poder assinar mirabolantes contratos. Isto que era já a Glória podia ser bem cedo a Fortuna...

No dia da experiência definitiva, milhares de cabeças se levantavam para o céu, à hora da sua passagem, procurando nas nuvens a enorme ave de alumínio, cujas asas rígidas e a longa fuselagem pareciam confundir-se numa única massa brilhante.

Viram-na passar muito alto, nas nuvens. E todos, com o coração palpitante de entusiasmo e de receio, lhe admiravam a regularidade do voo e a sua perfeita manutenção no ar.

De Fragon não estudara o aparelho com a intenção de fazer velocidade. Ficou, entretanto, encantado ao ver a facilidade com que o avião se deslocava. Sentia-o bem na mão, com certa impressão de segurança que nunca experimentara quando voava com os aparelhos construídos até então.

Foi num grande à vontade que alcançou o Hayre. Só no azul, por cima da grande cidade marítima que percorreu em zigue-zague para lhe saudar a população, foi a custo que aguardou o trágico momento em que, parados todos os motores e tornado peso morto, o Ponto-de-Suspensão iria pairar vitoriosamente no ar ou sossobrar lamentavelmente no estuário.

De Fragon, nesse derradeiro minuto, dedicou um pensamento à mulher que lhe usava o nome e a quem a sua morte, se não devesse sobreviver à experiência, cobriria de gloriosas simpatias... Depois, preparou-se.

Mais uma viragem para se colocar a meio do estuário, com a ponta do avião virada para Tancarville, em frente de França, nesse supremo instante em que o piloto fez calar os motores e deixou agir...

- Seja o que Deus quiser!...

Lá em baixo, na encosta quási a prumo que domina o rio, elevam-se as imponentes ruínas da antiga fortaleza dos sires de Tancarville. Um terraço sobrepuja a massa das pedras ennegrecidas pelo tempo e, nesse terraço, uma mulher segue ansiosamente as idas e vindas do magnífico avião que o sol matinal prateia com os seus mil lumes e que o gesto do piloto, ao parar os motores, pode transformar em engenho assassino.

com as mãos novamente cruzadas, o coração ansioso, os olhos fitos na enorme ave, cujas graciosas evoluções acompanha, Gilberta está ali a agonizar de angústia e de emoção.

Nunca os lábios proferiram uma palavra de amor para o marido; nunca o cérebro se interrogara se podia amá-lo, nunca o coração pareceu reconhecer que pulsasse por ele. Naquele trágico minuto, porém, em que o homem parece tentar Deus na sua formidável pretensão de vencer a natureza e dominar os elementos, todo o seu ser palpita em maravilhoso holocausto que se exalta em inconsciente oferenda.

- Meu Deus, fazei com que vença!... Salvai-o!... Tomai a minha vida em troca da sua que é preciosa para a humanidade.

O céu, felizmente, não tem necessidade do sacrifício das nossas existências para ser bom! Nem mesmo sequer se registou o seu fúnebre desejo. Os minutos passam e Gilberta continua a viver! Contudo, para além, no espaço, a grande ave cessou os seus formidáveis ruídos... os motores deixaram de bater no seu peito mecânico e os hélices afrouxaram, até ao esgotamento, os seus loucos giros...

Um segundo, o novo aparelho pareceu encabritar-se... um buraco sem fim debaixo dele quis absorvê-lo... finalmente, ficou suspenso no ar como se milhares de fios invisíveis o retivessem nas nuvens. O grito de horror que Gilberta estivera para soltar ao vê-lo sossobrar a princípio, transformou-se em hossana de felicidade:

- Paira! Não cai!

Sim, lá em cima, no céu, o Ponto-de-Suspensão conserva altivamente o seu nome.

Majestosamente, o aeroplano desce para o rio que se mete pelas terras. Cai lentamente, sem pressa, com uma espécie de gravidade.

A cem metros da água, o coração metálico recupera as pulsações e os hélices giram em infinitas piruetas que a óptica transforma em perfeito círculo.

- Voa! Vitória! Oh! obrigada, meu Deus!

Gilberta bate as palmas, corre, salta. Na sua louca alegria, dirige-se ao espaço, às velhas pedras, às árvores, às plantas, para gritar a sua felicidade.

Lágrimas suaves lhe acodem aos olhos encantados e está incapaz de discernir se a sua comoção provém do alívio que sente ao ver o marido sobreviver à experiência ou da sua gloriosa alegria do êxito final ou ainda da íntima chaga que dissimula consigo mesma, de ser apenas na realidade a fictícia esposa do vencedor que lhe recusa o direito de partilhar da sua vida.

O Ponto-de-Suspensão navega agora, com forte zumbido, para a cidade de sol, onde milhares de pessoas o aclamam, em baixo, freneticamente.

De Fragon, vencedor, foi aterrar no planalto da Sanvic, onde Verlaines o aguarda, emquanto Gilberta, sozinha, retoma o auto, recolhido perto, debaixo das grandes árvores seculares que abrigam a entrada da fortaleza.

Assim que o aviador conseguiu esse magnífico êxito, a rapariga readquiriu verdadeiramente confiança no futuro. O fim a que se propunha com grande mistério, já não era inverosímil. Deus abençoava-lhe os projectos, visto como protegia o piloto e o fazia vencer os seus empreendimentos.

Foi a sua habitual confidente que recebeu a confissão das suas esperanças e dos seus temores. Uma frase se alinhou na página que voltara:

A margem está visível, o fim aproxima-se... Que o céu proteja aquele que procura atingi-lo.

Foram as últimas palavras que escreveu para sempre na pequena agenda. As circunstâncias deviam arrebatar Gilberta como fazem as vagas que sem descanso envolvem os barcos abandonados. Teve de suportar os acontecimentos que o acaso lhe semeou pelo caminho, sem ter tempo ou sem sentir a necessidade de concluir as suas confidências e de anotar outras impressões...

Ventura ou desventura, vitória ou derrota, que resultado atingiu ela nessa desconhecida margem? É o que as páginas seguintes nos vão dizer e nós não queremos desvendar antes da hora própria, visto que nem mesmo Gilberta o quis anotar.

 

A partir desta época, a execução definitiva do novo avião e o seu apetrechamento, caminharam a largos passos.

Todos os dias, os três homens que deviam tripulá-lo encontravam-se no campo de Trappes e ocupavam-se dos últimos preparativos.

De Bigarre tornara-se menos importuno do que a princípio de Fragon o tinha imaginado.

Fazia mil perguntas, desorientando pela ingenuidade era ridículo de fatuidade e de presunção, mas evitava importunar os operários e só se aproximava do avião com certo respeito.

Passava parte do tempo com as mãos atrás das costas, como se tivesse medo de sujá-las; e de busto curvado, examinava cuidadosamente todas as minúcias do aparelho. Era muito raro criticar. Tudo lhe parecia bem e admirava em geral com confiança o que os outros faziam. Quando alguma cousa nova lhe feria a atenção, parava imediatamente, de monóculo assestado, e contemplava por muito tempo a novidade como se quisesse fotografá-la.

Depois, quando o seu intelecto lhe tinha provavelmente compreendido a utilidade, aprovava com a cabeça em ar satisfeito e ouviam-no murmurar com presunção:

- Muito bem! Muito bem! É perfeito...

A parte da carlinga que lhe estava especialmente destinada, atrás dos lugares do piloto e do observador, demorou-lhe por muito tempo a atenção, girou em todos os sentidos à volta desse pequeno nicho que lhe reservavam. Ia vê-lo quando chegava ao campo e não o largava emquanto não tivesse relanceado os olhos para esse lugar que ia ser o seu.

De Fragon surpreendeu-o um dia, de braços cruzados e o ar meditativo, em frente desse nicho que tanto o interessava.

- E então? Há alguma cousa que não esteja a seu gosto? - perguntou-lhe jovialmente.

- Ah! sim, sim... Só este lugarzinho... O outro desatou a rir.

- Não o acha confortável?... Tem medo de não poder encaixar aí a sua rotunda pessoa?

De Bigarre protestou com gesto assustado:

- Perdão... não se trata disso... Eu... emfim pareceu-me... nada vejo para segurar-me no lugar...

- Ah! tem empenho em não sossobrar - volveu de Fragon, alegre.

- Não tenho vontade alguma de ser atirado por cima do aparelho, como esse banqueiro cujo desastre nunca se explicou. Já lhe disse que tenho muito amor à vida.

- Toda a gente o tem, acredite, e todos calculam infinitamente preciosa a sua carcaça.

- A minha...

- Sim, sim, bem sei, tem empenho nela! Pois bem, sossegue! Ficará completamente fechado no seu nicho, pode até ficar amarrado com uma correia ao lugar, com um bom pára-quedas nas costas, como suplemento.

- Oh! não é porque tenha medo, não é assim. Suponho apenas que a prudência... uma rajada de vento... uma pirueta do Ponto-de-Suspensão. Sabe-se lá nunca o que pode acontecer.

- Tem razão, a própria brisa pode...

Nesse momento, o aviador foi interrompido. Um operário trazia-lhe, para o campo, a correspondência que chegara.

De Fragon recebeu-a e passou-a distraidamente pela vista, antes de guardar tudo na algibeira para, à noite, lê-la, com o espírito repousado.

De-súbito, uma carta lhe chamou a atenção. Julgava reconhecer a letra da mulher. Examinou-lhe o sinete, virou o sobrescrito em todos os sentidos e, por fim, abriu-o.

Junto dele, de Bigarre imobilizara-se. De monóculo encaixado na órbita, encarava de Fragon como se esperasse o fim da frase principiada.

Viu o rosto do companheiro alterar-se e com os dedos nervosos rasgar o papel do sobrescrito.

Ardente rubor subiu às faces do inventor, ao adquirir a certeza de que a carta provinha realmente de Gilberta.

Entretanto, nada de íntimo lhe dizia essa missiva, mas anunciava-lhe grande novidade:

"Senhor

"Participaram-me oficialmente a morte de meu tio de la Saponaire. Morreu no Mar Vermelho, no naufrágio do Exdmans, que foi a pique, há já algumas semanas.

"Competia-me avisá-lo imediatamente deste drama. Torna-se-me impossível regozijar-me com a trágica morte de meu tio e estou angustiada por que não tivesse podido receber os socorros da nossa religião.

"Entretanto, é-me agradável esta dor, ao pensar que o seu ressentimento já não tem razão de ser e que já não haverá entre nós a barreira de sangue que o senhor queria interpor-lhe.

"Não tenho ninguém... absolutamente ninguém que se interesse por mim.

"O senhor de la Saponaire era o único parente que me restava e estou agora só, completamente só no mundo.

"Subscrevo-me sua dedicada

Gilberta, de Fragon."

Devagar, o antigo tenente dobrou a carta e tornou a metê-la no sobrescrito.

Toda a alegria lhe fugira. Seria o anúncio dessa morte trágica de um homem que conhecera bem vivo ou a amargura de ver escapar-se-lhe a vingança ou ainda a tristeza das últimas linhas que acabara de ler? Sentia a alma completamente ensombrada.

Uma observação também que não podia deixar de fazer em tal circunstância, era, quisesse ou não, a existência do indestrutível laço que o ligava a Gilberta.

- Podemo-nos libertar do jugo da família, das leis do país, renegar os parentes, os filhos, o próprio nome! Mas a vida e a sociedade criaram laços e deveres de que não nos podemos libertar e que nos atingem na esquina de uma rua, no momento em que não pensamos nisso...

Sua mulher, correctamente, punha-o ao facto de uma notícia que lhe dizia respeito, notícia que não tinha o direito de ignorar e que a ambos interessava. Gilberta cumpria o seu dever, prevenindo-o; ele não podia desviar-se do seu, que seria o partilhar a sua dor, de qualquer maneira.

A sua dor?... Imaginou Gilberta vestida de preto... como em Jumièges... de cabeça tão interessante, tão distinta, entre sombrios véus...

Ironia das cousas! Ia reenvergar essa libré dos inconsoláveis por um homem a quem não estimara e que tantos desgostos lhe causara, e ele próprio era constrangido pelas obrigações de uma civilização que não previu o ódio contra a morte, de tornar a vestir esse uniforme, por consideração para com uma mulher que expulsara da sua vida e que já não queria conhecer.

- Então, senhor de Fragon, está combinado?

- Sim, sim - respondeu, excitado - Terá as suas correias. Há-de falar-se nisso ao mecânico... Para mim já basta por hoje: vou-me embora.

- Algum aborrecimento? -observou lacònicamente de Bigarre.

- Um luto - tornou o outro.

- Oh! os meus sentimentos... Acredite que partilho do seu desgosto...

Mas de Fragon atalhou:

- Não, guarde tudo isso!... A morte deste parente deixa-me absolutamente frio.

- Nesse caso - volveu o sócio com a mesma voz indiferente - são aborrecimentos que acontecem.

O inventor ergueu os olhos para o insignificante de Bigarre. O semblante grave que este julgara dever adoptar, contrastava com o seu rosto de boneca, habitualmente jovial, e de Fragon ficou sensibilizado nesse minuto.

- Não, meu velho - tornou com benevolência.

- Nem sequer um aborrecimento!... Simplesmente, tenho de fingir... isso não se explica. Boa-noite!

Afastou-se e voltou para casa. Assim que fechou a porta do quarto, tornou a ler a carta.

Não continha realmente cousa alguma que pudesse justificar o seu estado de espírito. Mas as impressões sentem-se voluntariamente, sem que se encomendem. Foi como que uma necessidade de lhe responder que o dominava.

Só ficou satisfeito quando se sentou à secretária, em frente de uma folha de papel. E as palavras apressadas formularam-se-lhe sob a pena, acalmando-lhe a agitação.

"Minha senhora

"Agradeço-lhe ter-me participado o falecimento de seu tio. Não levarei a hipocrisia a ponto de lhe exprimir os meus sentimentos por essa morte ou apresentar-lhe as minhas condolências.

"Creio que não é mais penoso ficar só no mundo do que possuir, como parente, um senhor de la Saponaire ou uma Sofia de Fragon.

"A tal respeito, estou tão mal servido como a senhora e também me considero só no mundo.

"Apresento-lhe aqui, minha senhora, as minhas respeitosas homenagens.

Rodolfo de Fragon."

Esta cavalheiresca resposta do marido agiu sobre o bom humor de Gilberta, com idêntica propriedade calmante, pois, no dia seguinte, o correio trouxe nova carta de Neuilly para Trappes.

Nesse dia, estava Verlaines junto de Rodolfo, e naturalmente, de Bigarre zumbia à volta deles.

Haviam resolvido partir cedo. Tudo estava pronto, até as famosas correias reclamadas pelo prudente terceiro e só esperavam uma cousa: que os ventos estivessem favoráveis. Ora os últimos boletins dos postos meteorológicos eram optimistas, embora anunciassem ainda perturbações no Atlântico.

Não era mais do que uma questão de algumas horas... de alguns dias, o máximo.

De Fragon ouvia atentamente Verlaines, a quem esta questão astronómica e meteorológica respeitava muito particularmente, quando viram de Bigarre, que, como era seu costume, girava em volta do avião, dar grandes mostras de comoção.

- Mas o que tem? Aconteceu alguma cousa?

- Ah! - volveu com ar exageradamente contristado - julgam ter pensado em tudo e, afinal, esqueceram o principal!

- Hein?

- Sim... mascote!

- Que mascote?

- O talismã, a mascote, o amuleto: um gato, um animalzinho ou qualquer número fatídico. Não podemos partir sem termos a certeza de que os deuses nos são favoráveis.

- Que disparate! - observou de Fragon, sem entusiasmo pela ideia.

Verlaines, porém, era mais indulgente.

- Vai-se ver isso, visto que lhe dá prazer.

- Quero crer que nenhum dos dois liga importância a essas bagatelas - insistiu de Fragon, que tinha horror às superstições.

- Evidentemente que não, mas, emfim, é costume. E, depois, é conveniente! Quando alguma cousa caminha mal, agarram-se ao feitiço e é ele sempre que tem a culpa! Isto consola, meu velho, e não faz mal a ninguém.

- Nesse caso - tornou o piloto, condescendente

- trataremos do assunto.

- Se quere, eu me encarrego - ofereceu-se de Bigarre - Encontrarei alguma cousa original...

Mas de Fragon fez um gesto de terror.

- Obrigado. Tenho precisamente medo da originalidade dos seus achados. De resto, é o piloto quem deve ter confiança na mascote: compete-me a mim escolhê-la.

Foi justamente nessa ocasião que entregaram a Rodolfo a segunda carta de Gilberta.

Ao conhecer a letra, a sua primeira impressão foi desagradável. Que teria ainda a dizer-lhe essa mulher? Temia más notícias, sem mesmo perceber de que lhe vinha tal receio. Começou por meter a carta na algibeira, sem a abrir.

Mas, passados alguns instantes de reflexão, a necessidade de saber foi mais forte do que a sua indecisão, e afastando-se um pouco de Verlaines, abriu o sobrescrito. Gilberta fora ainda mais concisa do que Rodolfo; ao passo que ele tentava destruir todos os laços que os ligavam, ela afirmava-lhe a indissolúvel força deles:

"Não, Rodolfo, não está sozinho no mundo. Resto-lhe eu, embora o senhor não pense em mim. Não renego nenhum dos meus juramentos e não repilo nenhum dos meus deveres.

"Bem sua, a-pesar-de tudo...

Gilberta."

Estas linhas pareceram surpreendê-lo. Carregou as finas sobrancelhas, tentando relembrar os termos exactos da sua carta para Gilberta.

Depois, um sorriso lhe descerrou os lábios ante o enérgico protesto daquela que lhe usava o nome. Aquela cartinha era gentil... Nada desagradável, como receara por momentos. Que grande criança, no fundo, essa mulher que clamava tãoalto os seus deveres e os seus juramentos! Ela não compreendia que a favorecia oferecendo-lhe a liberdade após tão estúpido casamento... Teimava em permanecer dele, embora lhe fizesse compreender que nada lhe queria... Muito divertida, a mentalidade feminina que faz com que as mulheres se agarrem aos homens que delas não querem saber... O sorriso acentuava-se-lhe. A cartinha de Gilberta dispusera-o bem.

Quando voltava para o grupo dos companheiros, julgou perceber, dirigido para ele, o inquieto olhar de Verlaines, e os seus pensamentos deram, de-repente, um salto.

A ideia de que Gilberta poderia aceitar a liberdade que tão imperiosamente lhe oferecia, impôs-se-lhe ao cérebro. Podia refazer a sua vida, escolher companheiro mais atencioso... emfim, encontrar o amor!

Sem reparar, os olhos fixaram-se em Verlaines com uma espécie de dureza, emquanto os seus pensamentos se desenrolavam rápidos.

Sua mulher tinha apenas vinte anos! Era bonita bastante para inspirar paixão a alguém... Esta situação não podia eternizar-se entre os dois; havia de chegar o instante em que seria ela a própria quem reclamaria a sua liberdade... Previra aquela reviravolta, pois fora o primeiro a tocar no assunto.

Um dia, breve talvez, a aurora do verdadeiro rompimento se ergueria.

Pois bem! Nesse momento procederia com lealdade, delicadamente, como lhe cumpria: restituiria à mulher essa liberdade que ela agora desprezava, mas que, então, procuraria. Gilberta poderia casar-se de novo, usar outro nome.

Não notou que, instintivamente, se aprumava a toda a sua altura, deitava a cabeça para trás com orgulho, parecendo desafiar invisível inimigo.

Maquinalmente puxou a carteira e guardou a carta de Gilberta.

No entanto, ela pertencia-lhe, como tão energicamente lho afirmava. Antes que fôsse demasiado tarde, havia de tomar uma decisão.

Na algibeira de dentro do casaco, junto ao peito, tornou a guardar a carteira.

- Que me saia bem o empreendimento! Que seja vencedor do Atlântico!... Depois, veremos!...

Quando de Bigarre voltou, no dia seguinte, para fazer a sua minuciosa e diária visita ao Ponto-de-Suspensão, descobriu, logo, colocado na frente do avião, defronte do lugar do piloto, um objecto que não estava lá nos dias anteriores.

Era uma pequena estrela feita de metal brilhante, cravejada de singulares cristais.

Ao examiná-la mais de perto, notou que era de facto uma jóia... uma jóia de mulher.

O que tomara por cristais de cores eram opalas...

- Uma estrela de opalas? - murmurou meditativo - Singular mascote!

De Fragon encontrava-se no outro extremo do campo; de Bigarre não podia interrogá-lo.

Mas Verlaines acabava de chegar e o jovem comanditário virou-se para o oficial e designou-lhe a jóia.

- O que é isto?

O outro curvou-se para o objecto e examinou-o um pouco surpreendido.

Reconhecera a jóia. Tinha-a visto no pescoço da senhora de Fragon durante a sua convalescença na casa de saúde.

Os olhos foram procurar ao longe, ao fundo do campo, a silhueta do camarada, e indulgente sorriso lhe descerrou os lábios.

- Emfim, não me diz o que é isto? - tornou a perguntar de Bigarre.

- Creio ser... a mascote que o senhor pedia.

- Uma jóia?

- Isso ou qualquer outra cousa, que importa? Uma estrela é um verdadeiro talismã.

- Mas as pedras são opalas.

- E então?

- As opalas são pedras que trazem desgraça.

- Hein!

- Afirmo-lhe. Toda a gente o sabe.

O tenente reflectiu alguns instantes.

Essa estrela devia estar no pescoço da dona no dia do desastre, visto que ainda a tinha na Casa de Saúde. Entretanto, a senhora de Fragon saíra viva de uma catástrofe em que outrem encontraria a morte.

E essa jóia nas mãos do amigo. essa jóia não era prova de que trazia felicidade a quem pertencia?

Porque, emfim, ele, Verlaines, não sabia bem o que se passava na intimidade do camarada; mas era certo que alguma cousa de bastante grave separava os dois esposos. A-pesar-disso, Gilberta conservava-se digna de todos os respeitos, e de Fragon vivia uma vida de trabalho e de isolamento que excluía qualquer ideia de libertinagem.

Mesmo separados, os dois comparsas desse singular matrimónio tinham conduta absolutamente irrepreensível.

A jóia, pertencente à mulher e escolhida por de Fragon, era símbolo favorável para a ausente.

Verlaines não podia deduzir outra cousa.

- As opalas nem sempre trazem desgraça observou meigamente.

- Eu preferia outra cousa! Justamente escolher pedras maléficas!

- Ora, vamos, não seja ridículo! Opalas valem bem uma caveira ou o número treze, de que tanto mal se diz.

- Evidentemente.

- E, acredite-me, de Bigarre, é melhor não falar da sua repugnância a de Fragon. Estou certo de que esta estrela é preciosa para ele e representa a seus olhos indício de vitória e de triunfo.

- Se não for apenas um desafio à desgraça!

- Que quere dizer?

- É de tal maneira temerário o seu amigo! Dir-se-ia que entre as cousas, escolhe sempre as mais perigosas.

- Como? - admirou-se sinceramente Verlaines.

- Olhe, o aparelho! Foi bem executado, está bonito! Mas além, no estuário do Sena, havia mil probabilidades para ficar com os ossos num feixe.

- Era preciso que experimentasse o novo avião que diabo!

- Evidentemente, era preciso! Mas há anos que se servem de passarolos que são perfeitamente conhecidos; de Fragon não tinha necessidade de inventar um novo.

- Ah! é a isso que chama imprudências?

- Pois claro, é temeridade! É como o raid que vai empreender... Gostes e Bellonte, venceram; que necessidade há de tentar também?

- Propõe-se outro itinerário.

- Estamos de acordo. O nosso amigo escolheu precisamente a linha recta em que os outros esbarraram. Quere mostrar que se pode ir à América com a mesma facilidade com que se vai a Inglaterra. Está provado que os ventos são contrários, que tal nunca será possível...

A voz altiva de Rodolfo, que não tinham visto chegar, ouviu-se de-repente.

- Mas diga, de Bigarre, se o meu itinerário não lhe agrada, não tem mais do que ficar em terra. Preveni-o de que seria perigoso.

- E eu disse-lhe que o acompanharia - replicou de Bigarre, colérico.

- Nesse caso - observou ironicamente o piloto

- de que se queixa?

- Não me impedirá de dizer que é um temerário e um egoísta que expõe conscientemente a vida alheia. Pouca importância liga à existência que o céu nos deu para viver na terra e não no ar.

De Fragon soltou uma gargalhada.

- O meu caro amigo é extraordinário, Visto como a sua vida lhe é preciosa, não vejo motivo para que a exponha inutilmente vindo connosco. Quem o obriga a acompanhar-nos?

- E ficaria bastante satisfeito por se ver livre de mim, não é isso? - ripostou o outro, excedendo-se.

- Não, meus caros amigos, não contem com isso: sou da sociedade e hão-de aturar-me até ao fim. O que não quere dizer que preferisse ir a Chartres em vez de Nova-York.

Esta saída reconciliou os três homens. Uma aterragem em França nada tinha, de facto, de sensacional.

- O senhor é mais pusilânime do que a senhora de Fragon - observou, entretanto, Verlaines a de Bigarre.

Os outros dois, espantados, cada um por seu motivo pessoal, com tal objecção, dirigiram ao oficial olhares interrogadores.

- Pois claro! - prosseguiu este sem se desconcertar- De Bigarre falava há pouco das tuas perigosas experiências no Havre, no outro dia. Pois bem! A senhora de Fragon teve a coragem de conhecê-las sem procurar evitá-las. Melhor do que isso, teve desejos de assistir a elas, sem conhecimento do piloto a quem a ideia da sua presença poderia perturbar no momento crítico...

- Que dizes?

- A verdade: a senhora de Fragon foi ver sozinha, sem viv'alma que pudesse confortá-la em caso de desastre. E, durante horas, sofreu a mais intolerável das inquietações, a de saber que perigo terrível ameaça um ente querido, sem ter a possibilidade de evitá-lo.

- A senhora de Fragon foi ao Havre? -repetiu Rodolfo muito perturbado.

- Ela não o disse - respondeu Verlaines, no mesmo tom de conversa - Penso não cometer indiscrição falando-te agora nisso, visto o caso estar passado.

- Quando viste a senhora de Fragon? - inquiriu o jovem marido sem aludir a qualquer dos pontos sublinhados pelo oficial.

- Alguns dias depois das tuas experiências definitivas, quando fui felicitá-la pelo teu êxito.

- Estava ao corrente?... acompanhara?...

- Sim, do terraço da fortaleza de Tancarville. Não te perdeu de vista.

Fugidio sorriso perpassou pelos lábios do piloto, que murmurou:

- Confesso que não suspeitava.

- Foi com certeza por isso que não te avisou... No fundo, fez muito bem!... A nossa profissão é muito arriscada e carecemos de sangue frio...

O outro poderia continuar a falar durante muito tempo. De Fragon, que habitualmente nunca permitia ao camarada a evocação de Gilberta, estava deveras impressionado, nesse dia, pela notícia que acabava de receber, para se zangar.

Gilberta assistira às suas experiências. Fora testemunha do seu êxito, da sua intrepidez... ele tinha o direito de empregar esta última palavra pois que toda a imprensa lha concedera. Mas tudo o que os jornais poderiam contar da sua experiência não valia, para ele, a ideia de que sua mulher fora testemunha ocular. Era íntimo triunfo que o comovia até ao fundo da alma.

A que usava o seu nome pudera ver que ele era capaz doutra cousa que não fosse desposar mulher rica, servir de capa a uma rapariga maculada.

Todo o seu ser estremecia com uma espécie de dolorosa satisfação. A chaga de orgulho não fechara ainda; mas que bálsamo não era saborear tal desforra e sentir tão próxima a vitória... quási o triunfo de glória mundial!

- Tenho pressa de partir - disse de-repente, em voz alta, com movimento de impaciência Quando poderemos pôr-nos a caminho?

- Talvez amanhã. Já te disse: duas principais perturbações reinam no Atlântico. Os ventos ser-nos-iam claramente contrários, a menos que se apoiasse com força para a esquerda.

- Esperemos. Estou impaciente, mas não quero comprometer o êxito, com pressa demasiada.

- Vamos, tenhamos paciência... apenas alguns dias mais!

 

Toda a espectativa tem um fim, mesmo quando se trata de uma questão atmosférica.

As notícias da Repartição Nacional Meteorológica foram tão nitidamente favoráveis, uma tarde, que de Fragon e Verlaines resolveram deslocar às primeiras horas da manhã seguinte, e foi logo dada ordem para começar o carregamento da essência.

Os profanos não suspeitam do trabalho necessário para deitar oito toneladas de essência nos depósitos de um avião, sem contar os trezentos litros de óleo e os indispensáveis hectolitros de água.

Foi preciso trabalhar toda a noite à luz dos projectores dos carros fotoeléctricos.

A notícia da partida do Ponto-de-Suspensão correu por Paris como rastilho de pólvora e desde a meia-noite, inúmeros autos traziam ao campo grande afluência de curiosos, constituída principalmente por personalidades do meio aeronáutico.

À forte luz dos faróis, todos queriam examinar pela última vez o célebre avião, que um cordão de soldados protegia contra a multidão que continuava a adensar-se. De Bigarre, que fora imediatamente prevenido, chegou muito açodado. Não estava quieto; andava de um lado para o outro, com ar assustado, procurando sempre um objecto que lhe faltava.

- Aposto em como não estará presente no momento da partida - observou Verlaines, a quem a atitude do peraltinha irritava.

- Tanto pior, partiremos sem ele - respondeu de Fragon, muito pouco resolvido a demorar uma hora que fosse o seu voo.

- Creio ser muito provável... Nos últimos minutos, há-de eclipsar-se para procurar qualquer cousa, e só voltará depois da partida.

- É exageradamente poltrão! Confesse que, se não vier a tempo, não lamentarei a sua falta.

- Oh! Eu também não!

Os dois animaram-se. Riram com mais gosto vendo que de Bigarre, não estando presente, deixara fugir os cineastas, vindos para fotografar os aviadores.

- Isto começa já! - observou de Fragon - Ele que tanto deseja a glória, deixa escapar uma das melhores ocasiões para ser notado.

Esta desventura do indiscritível passageiro, alegrava-os. De resto, ambos eram ousados e denotaram admirável serenidade em face do cometimento tão formidável como a aventura que iam tentar.

A todos os assistentes deram a impressão de partir em passeio. Era, ao mesmo tempo, reconfortante e de notável exemplo.

No entanto, na ocasião da descolagem, de pé na carlinga, depois de apertar inúmeras mãos, de Fragon circunvagou o olhar pela multidão.

Os seus olhos procuravam Gilberta. Afigurava-se-lhe ser impossível que não estivesse ali, pois estivera no Havre quando de uma tentativa menos perigosa.

Foi, porém, em vão que a sua vista esquadrinhou os grupos. Não a apercebia. Inclinou-se para Verlaines que abotoava o seu macaco branco.

- Viste a senhora de Fragon? -inquiriu.

- Não - redarguiu Verlaines que por sua vez se pôs a perscrutar a multidão.

- É cedo demais. Provavelmente ainda está a dormir.

A reflexão dizia-lhe bem que Gilberta não poderia ser avisada a tempo da sua partida, visto que esta só algumas horas antes é que a resolvera; contudo estava desgostoso... Nesse instante, sentia que a presença dela lhe seria animadora... Neste último minuto de separação que podia ser eterna, desejava trocar com sua mulher um olhar de paz...

Felizmente, tivera o cuidado de pôr todos os seus negócios em ordem, antes de partir. Se não voltasse, saberia de algum modo que ele perdoara e que estava disposto a tudo esquecer.

Quando tomou posse do lugar, reparou que na sua frente, preso a uma das alavancas, estava um ramo de violetas brancas.

Todo o sangue lhe subiu à cara.

As violetas brancas eram as que Gilberta preferia, as que escolhia sempre na Itália, durante a sua viagem de núpcias. Nem por momentos duvidou da procedência das flores: eram mandadas por Gilberta. que estava, então, presente... em qualquer parte, naquela turbamulta que não conseguia sondar.

Estranha alegria o invadiu: ela comparecera! E, de novo, tentou descortiná-la.

Como não a avistasse, supôs, pelo menos, que o visse. Então, tornou-se irreflectido. Tomou o ramo de violetas e levou-o aos lábios. Depois, levantando-o ao ar, agitou-o freneticamente.

Tais gestos instintivos surpreenderam-no quando deu por eles. Decerto, no minuto em que deixava o solo francês para ir defrontar-se com o Oceano, o seu subconsciente tivera que demonstrar que qualquer ideia de ódio desaparecera nele. É preciso ser generoso quando a morte nos espreita. E, de facto, visto que ela se empenhava em conservar o seu título de esposa, devia-lhe esta pequena manifestação.

Os que vão morrer te saúdam... Era a Gilberta que dedicava o seu derradeiro adeus.

A descolagem estava, agora, iminente, mas o piloto conservava-se muito animado.

Voltou a cabeça para se certificar de que tudo estava a postos atrás de si. Viu Verlaines já embebido nos mapas e tábuas náuticas. E, na retaguarda, com grande surpresa sua, notou a presença de Bigarre.

- Está ali! -pensou, maravilhado.

com a cabeça indicou-o a Verlaines, e ambos desataram a rir. Era indiscritível o terceiro passageiro! Capacete, peles, mantas, cobertores. Era a custo que se adivinhava um ente humano naquele montão de abafos.

A preciosa personalidade do moço milionário estava ao abrigo das intempéries; mas tal vestuário era ridículo.

- Contacto! -. lançou jovialmente de Fragon. A viagem anunciava-se bem.

E, emquanto o motor vibrou, a ave desatou a correr, deu ligeiro salto, descolou por fim, e o piloto pensou de-repente, que não é a estrela de opalas a verdadeira mascote do aparelho, mas a espécie de fenómeno que transporta na retaguarda.

Rodolfo nem supunha que acertara tão bem... Benéfica protecção parece espalhar-se sobre os três viajantes.

A travessia do Oceano foi demorada, por vezes difícil, mas em momento algum perigosa.

Tiveram que contornar para o sul uma depressão atmosférica que se estendia por cima do Atlântico oriental e várias vezes foram obrigados a desviar-se da recta inicial para obliquar a oeste, para não esbarrar nas nuvens que acompanhavam a depressão.

Mas, de facto, tudo decorreu bem e puderam navegar toda a noite num céu quási livre.

A atitude de Bigarre foi, pode-se dizer, exemplar nesta longa travessia. De Fragon receava-lhe a pusilanimidade e os queixumes.

Tinha-o até avisado que o deitaria pela borda fora se em caso de avaria, não guardasse as suas lamentações! Ameaça que, evidentemente, o aviador não poria em prática, mas que denotava suficientemente quanto temia as lamúrias do rapaz.

Ora de Bigarre ennovelou-se no seu ninho e não proferiu palavra. Durante toda a travessia, enroscado no fundo da carlinga, pareceu dormir. E, visto ninguém precisar dele e não ter préstimo algum, deixaram-no sossegado no seu canto.

- O ladrão é medroso! - pensava Verlaines.

O oficial, de resto, tinha mais que fazer do que ocupar-se do pouco interessante de Bigarre.

Mantinha-se em constante relação, por meio do rádio, com os barcos que lhe iam na esteira e deviam verificar a posição do avião durante a travessia.

A partir de Saint-Pierre-et-Miquelon, fácil foi aos ousados pioneiros do ar atingir a América.

A enorme ave que os transportava não tinha andamento rápido nem tão elegante aspecto como o de seu ilustre antecessor: o Ponto-de-Interrogação, mas repetindo o fabuloso empreendimento, dava, mais uma vez, o primeiro lugar à aviação francesa, confirmando o engenho inventivo da sua raça e a intrépida tenacidade dos seus pilotos.

 

Torna-se difícil descrever aqui o entusiasmo da multidão americana à chegada dos felizes aviadores.

Antes de aterrar, de Fragon lembrara-se de sobrevoar a grande cidade para lhe saudar a laboriosa população.

Depois, escoltado por aviões americanos, idos amistosamente ao encontro do Ponto-de-Suspensão, alcançou o campo de aterragem. Mas aí subindo muito alto parou os motores e deixou-se cair docemente, amparado pelas suas asas mágicas, que devagar o reconduziram para terra.

A magnífica demonstração foi acolhida com frenéticas aclamações da multidão delirante, mal contida por barreiras policiais e militares.

Apenas saíram da carlinga, vinte braços arrebataram os heróis do dia e os colocaram ante as objectivas para eles assestadas.

De Fragon, nesse minuto que lhe lembrava o da emocionante partida, não se inebriou com o triunfal acolhimento.

Fez um gesto ao seu colaborador e, na presença de todos, abraçou Verlaines. Depois, pensou em de Bigarre, O pobre diabo pagara com o seu dinheiro e com a sua presença. Fosse como fosse, como profano que nada obrigava a tal viagem, mostrara-se ousado!

De resto, desde Halifax saíra do seu torpor e, de cabeça fora do avião, abrigado do vento pelos grandes óculos protectores e pelos seus múltiplos abafos, não perdera um pormenor da travessia.

Como não o visse a seu lado, nem ao lado de Verlaines, procurou-o em volta, porque era conveniente não o conservar fora das tomadas de vistas cinematográficas, como à partida.

De pé, na carlinga, o terceiro passageiro libertava-se tranquilamente dos seus múltiplos resguardos. À medida, porém, que os abafos caíam, pareceu a de Fragon, admirado, que o busto que deles emergia era singularmente mais esbelto do que o de Bigarre.

Ainda ficava uma manta, óculos, um capacete para tirar... Em breve, mais nada houve.

Abismado, de Fragon viu surgir Gilberta... Gilberta! Sua mulher substituíra de Bigarre!

Um pouco intimidada perante tantos pares de olhos fitos nela, corada especialmente ante o olhar estupefacto do marido, sacudia as ondeadas madeixas do cabelo e cobria-as com um carapuço de feltro.

Depois, parecendo muito ocupada em ajustar bem ao corpo as pregas do seu sweater, Gilberta levantou a cabeça e ousou fitar o marido.

Como ele permanecesse imóvel, arriscou tímido sorriso. Os olhos, os lábios, tudo nela implorava indulgência para a sua audaciosa temeridade e para a sua inesperada presença...

E de Fragon sorriu, desarmado por tanta graça feminina que se lhe oferecia.

Ia correr para ela a-fim-de a ajudar a descer, quando vinte mãos a tomaram, a agarraram, a ergueram em arrojados ombros.

Viu-a transportada em triunfo, no meio de um grupo de homens, ébrios de entusiasmo, que a levavam para longe dele.

Quis juntar-se-lhe, mas foi também empolgado, ao mesmo tempo que Verlaines, por exuberante multidão, que soltava frenéticos clamores.

Uns agarravam-lhe os braços, outros as pernas. Ia, transportado, à força de braços, em posição semi-deitada, mas desagradável.

Melhor se sentiria se caminhasse pelo seu pé, mas compreendia que era a consagração da sua glória e que não podia esquivar-se a tal apoteose.

Só quando tomou o lugar num luxuoso automóvel com o seu camarada é que encontrou possibilidades de poder reflectir.

Sua mulher já fora levada para outro carro, com algumas personagens oficiais que lhe faziam guarda de honra. A-pesar-da presença das pessoas que os acompanhavam, Rodolfo pôde segredar algumas palavras a Verlaines.

- Sabias que a senhora de Fragon substituía de Bigarre?

- Nem sequer o imaginara! Fiquei deveras abismado quando há pouco a vi.

De Fragon desatou a rir.

- Até perdi o fôlego!

E, ao pensar em de Bigarre:

- Como o animal nos enrolou! Estava completamente persuadido da sua filantropia e da sua vaidade... Era para minha mulher que trabalhava!

- A senhora de Fragon aproveitou-se-lhe da cobardia para lhe tomar o lugar.

- Ora, vamos! Tudo estava perfeitamente combinado desde o primeiro dia. Já não tenho ilusões, foi ela quem financiou esta aventura.

Verlaines não ousou replicar. Lembrava-se de que de Bigarre se lhes apresentara alguns dias depois dele próprio ter falado a Gilberta acerca do comanditado necessário ao marido.

Se alguma vez de Fragon fosse posto ao facto de tal coincidência, perdoar-lhe-ia? Felizmente, os dois amigos não podiam insistir muito neste ponto.

O cortejo chegava à cidade, onde a sua travessia e a mirabolante aterragem já eram conhecidas. O simpático entusiasmo da população não os deixava. Tiveram de conservar-se de pé nos carros e corresponder com amistosos cumprimentos às vibrantes aclamações.

Contudo, como caíssem literalmente de fadiga, após dois dias de voo, a tarefa foi-lhes abreviada, levando-os logo para o hotel, onde lhes haviam reservado aposentos. Foi só à noite, após algumas horas de sono reparador, em fofa cama, que de Fragon tornou a encontrar a mulher.

Ela previra antecipadamente esta viagem e enviara para Nova-York bem fornecido guarda-roupa, o que lhe permitia apresentar-se muito elegante, a despeito do seu vestido de luto.

Mas, embora a garridice seja uma arma, não é uma solução. Gilberta estava apreensiva pelo seu primeiro encontro com o marido. Após a cena borrascosa que precedera a sua separação, havia um ano, que palavras seriam possíveis entre ambos?

De Fragon livrou-se do apuro ocultando as suas impressões pessoais sob extrema cortesia.

Assim que a viu, dirigiu-se-lhe e pediu-lhe notícias correctamente.

- Pudera descansar um pouco? Não estava ainda fatigada demais para aceitar a série de recepções e exibições que lhes iam ser impostas?

Trocadas estas palavras, pareceram nada mais terem a dizer, e o silêncio pairou entre ambos.

De Fragon foi quem tocou o assunto que, desde manhã, lhe tomava o coração.

- Quere dizer-me, Gilberta, porque é que julgou dever fazer representar a de Bigarre esta pequenina comédia?

- Se lhe tivesse pedido que me aceitasse como passageiro, teria recusado.

- Evidentemente. Não tinha empenho em expô-la aos perigos de semelhante travessia.

- Como, porém, me interessava partilhar consigo esses perigos, recorri à astúcia.

- Partilhar da minha sorte?

- Não procurei outra cousa - replicou Gilberta, orgulhosamente - Se a fatalidade o atingisse, tinha de estar a seu lado. Era o meu dever.

- É uma mulher extraordinária, Gilberta - murmurou pensativo - Não se lembrou de que a minha morte a podia tornar livre?

Ela desafiou-o com o olhar.

- A minha também podia desembaraçar-lhe a vida. Equilibrei as probabilidades e nada mais.

Contemplou-a. Era a menina Gilberta que conhecera antes do seu casamento. Os lábios continuavam a ter o vinco de desafio e os olhos a mesma fixidez altiva.

Ele, porém, já não se sentia igual ao pobre diabo doutros tempos. Estava forte com a sua glória, com o seu êxito que o tornava rico.

- E agora, Gilberta - perguntou meigamente agora que o céu nos poupou, que tenciona fazer?

Ela fitou-o sem responder. Os seus grandes olhos enigmáticos apoiaram-se nos do marido. De seguida, observou:

- É a mim que compete decidir?

- Assim me parece - volveu ele no mesmo tom de meiguice - Pois foi a senhora quem tomou a iniciativa deste encontro.

- Está bem! -tornou ela, muito aprumada Se é isso tudo o que tem para me dizer, é porque a minha presença continua a importuná-lo! Não o obrigo a suportá-la! Agora estou tranquila com respeito a este raid. Amanhã de manhã regressarei a França... um avião está à minha disposição e, dentro de dois dias, estarei em minha casa.

- Um avião? -bradou, surpreendido-Um avião pilotado por quem?

- Por mim!

Olhou para Gilberta, compreendendo, de-súbito, a que ponto aproximara a sua vida à dele; até a querer, mesmo longe, correr as mesmas aventuras. Gilberta devia ter-lhe adivinhado o pensamento porque explicou:

- Não se impõe a nossa pessoa num raid como o que empreendeu sem se ser capaz de prestar serviço, em caso de perigo. Aprendi a guiar apenas paranão ser um corpo morto junto de si.

Ele admirou-lhe a intrepidez e a valentia, mas era a sua sensibilidade feminina que desejava encontrar naquele minuto.

- Então - perguntou em tom indefinível - se eu não tiver entusiasmo pela sua presença aqui, está pronta a tornar a partir?

- Estou - respondeu, de garganta estrangulada, mas com olhar de desafio - amanhã partirei... sozinha! Sempre sozinha, visto ser essa a minha sina!

Conservava-se altiva, mas teve de fechar os olhos para dissimular as grossas lágrimas que subitamente lhe ennevoavam as pupilas.

Mas as fortes mãos de Rodolfo tomaram-na pelos ombros e reconduziram-na para diante dele.

- Para quê, esse ar de desafio, Gilberta! Ainda não proferi uma palavra que possa melindrá-la.

A sua voz grave tinha intonações que perturbaram a rapariga.

- Nem também me disse uma palavra que fosse afectuosa ou benévola.

- E, no entanto, sinto-me feliz por vê-la aqui... Sim... mais do que pode imaginar.

Calou-se por momentos a contemplá-la ardentemente. Depois, em voz baixa, acrescentou:

- Foi pensando em si que trabalhei durante um ano. Foi para a merecer, para pôr a minha fortuna a seus pés, que quis o êxito.

Esta afirmação, porém, parecia uma blasfémia.

- Não, não diga tal... lembre-se: há um ano gritava-me a sua indiferença e o seu desprezo.

- O homem confunde por vezes o mal que sente por causa de uma mulher com o amor que lhe consagra. Sofri por si atrozmente...

- Não, não foi por mim - protestou Gilberta

- Bem sabe que a culpa não foi minha.

- Foi também por sua causa que conheci as piores humilhações... Tudo sangrou dentro de mim, o meu amor próprio de marido, o meu orgulho de homem, a minha íntima vaidade, nada foi poupado.

Suspirou e de seguida confessou:

- Pois bem, Gilberta! Este sofrimento nada foi em comparação com o que senti desde há um ano em que a repeli da minha presença.

- Oh!

Parecia-lhe impossível que tivesse sofrido voluntariamente com a sua ausência, quando se lhe tornava tão fácil ir ter com ela ou chamá-la.

- Sim. o homem é orgulhoso; mortifica-se intimamente para não voltar atrás sobre uma cousa que resolveu num momento de cegueira... Era-me preciso o êxito para lhe pedir que se esquecesse e para a conquistar. O amor recompensa habitualmente os vencedores.

Ela fitou-o. Nos seus olhos havia a infinita lembrança das lágrimas vertidas inutilmente, o vago ressentimento de ter sofrido injustamente. Só aí viu dúvida.

- É preciso que me acredite, Gilberta - suplicou -Amei-a sempre... Sem saber, talvez!... Depois compreendi que tinha sido tudo para mim.

- Que diz?

- O que posso provar.

Da algibeira de fora do casaco tirou o raminho de violetas e mostrou-lho.

- Há dois dias - observou ela -ainda não convencida.

- Há também a estrela de opalas que perdeu no dia em que foi a minha casa.

- Podia tê-la guardado no fundo de uma gaveta

- respondeu ela.

Rodolfo sorriu pela sua incredulidade.

- Guardei-a porque lhe pertencia... Foi a minha mascote nesta perigosa travessia. Mas, passemos adiante... Aqui tem outra prova que, suponho, a convencerá.

Puxou pela carteira e tirou de lá um retrato de Gilberta.

- Esta foto foi tirada quando éramos noivos... Desde então nunca me abandonou. Mesmo quando a crivava de todos os meus anátemas, repugnava-me desapossar-me dela; essa obscura necessidade de conservá-la junto de mim devia esclarecer-me sobre os meus verdadeiros sentimentos. O homem é sempre igual à criança que quebra o seu brinquedo... Quebra-o, deita os bocados pela janela fora e só quando já o não tem é que nota que era aquele o único que estimava.

Puxava-a para si, aos seus braços.

- Minha querida Gilberta, precisa de perdoar e não de duvidar. Amo-a e sempre a amei.

Ela ocultava a cabeça no peito dele e soluçava de alegria! Havia muitos meses que se escudava na sua coragem, e na sua atitude indiferente havia repressamento de lágrimas acumuladas: não sabia saborear a sua felicidade sem chorar.

Aninhada nos braços do marido, não passava de pequena cousa, muito fraca, ávida de ternura.

Religiosamente, de Fragon pousava-lhe os lábios no fino cabelo e murmurava-lhe palavras carinhosas... palavras de amor que enebriam, fazem esquecer e curam.

- Amo-a, minha querida Gilberta... tão exclusivamente, tão por completo que conheci as garras de atroz ciúme... Se pudesse confiar-lhe todas as ideias que às vezes me acudiam... Imagine que certo dia... foi uma das minhas maiores tolices, mas um amante não calcula, não reflecte. Verlaines viera visitar-me ao fim de uma tarde. Estava embonecado, cuidado; afigurou-se-me magnífico! Tudo nele gritava o homem que vai visitar uma mulher, o eleito que se sabe esperado.

"E um pensamento despertou dentro de mim... vil suposição, irrespeitosa para si... emfim, um ciúme em que não pude ter mão e que tinha necessidade de alimentar-se. Então, como louco, saltei para um táxi e, a toda a velocidade, para chegar antes dele, se fosse a sua casa, fui espiá-lo defronte da sua porta. Durante horas me conservei escondido no fundo do carro, com o pesadelo dos gestos que era capaz de fazer se o tivesse visto aparecer. Verlaines não foi, evidentemente, mas esperei-o toda a noite e só parti quando vi apagar-se a luz do seu quarto...

Ela levantara a cabeça e, sorrindo:

- Será possível?... O seu melhor amigo!

- Meu camarada: um bom cão fiel e dedicado! Mas quem é que raciocina? Assim, precisava de ouvir falar de si e algumas vezes o interpelei; logo, porém, que lhe pronunciava o nome, repreendia-o de tal maneira que já não se atrevia a ir visitá-la. Vejo agora quanto eu era desagradável! Fui eu quem lhe disse que refizesse a vida e só a suposição de que podia obedecer-me me tornava feroz, Como vê, Gilberta, fui muito estúpido!

Mas ela devia achar agora que tudo isso era delicioso de ouvir, porque, como única censura, se cingiu mais contra o marido. Então, muito baixinho, ao ouvido, atreveu-se a perguntar:

- E julga poder esquecer, Rodolfo?... Nunca mais me censurará?

A sua vòzinha estava muito trémula. De Fragon abraçou a mulher com mais força.

- Sou eu, minha querida, quem te fará esquecer os maus pesadelos, sou eu quem não quere que nunca mais penses nisso...

- Creio - volveu ela com gravidade - quando se é feliz, facilmente se esquecem as horas más.

- Nesse caso, consagrar-me-ei à tua felicidade... Mas continuou com uma súplica na voz:

- eu gritei-te já o meu amor, emquanto que tu... tu nada me disseste ainda?

- E estaria eu aqui, se não lhe tivesse amor? redarguiu Gilberta, corada e toda confusa.

E foi só nesse momento, que trocaram o seu primeiro beijo.

 

Começaram em Nova-York primeiro, e depois nas grandes cidades americanas, uma digressão triunfal que quási lhes não deu tempo a conversar intimamente com Verlaines, que vibrava de felicidade ante as manifestações de ternura que demonstravam os dois cônjuges.

Certo dia, contudo, em que almoçavam juntos, o oficial informou-se de Bigarre.

- Afinal quem era esse rapaz que tão magistralmente zombou de nós?

- Um filho-família, sem fortuna... um excelente rapaz que Dorson, o meu notário, conhecia.

- Chamava-se de facto Caetano de Bigarre?

- Sim; o desgraçado estava aflito com tal nome, sem possuir meios para o fazer brilhar.

- E essa ridícula cobardia que afectava, estava-lhe realmente no carácter?

- Oh! não! Fora Dorson quem lhe recomendara que desempenhasse tal comédia... -acrescentou Gilberta rindo.

- E isso compreende-se I - aprovou de Fragon.

- Se pudesse tornar-me invulnerável aos perigos, tê-lo-ia feito; mas isso pouco me importava. Onde estava meu marido podia eu estar.

- Se de Bigarre não possui fortuna, vai ser preciso ajudá-lo a criar uma posição - pensou de Fragon em voz alta, ao lembrar-se das dificuldades com que noutros tempos esbarrara.

A mão de Gilberta veio pousar afectuosamente na do marido.

- Já principiei a auxiliar esse excelente rapaz, mas Rodolfo vai concluir a minha tarefa: um homem sabe melhor fazer aceitar essas cousas.

- De Bigarre era tão ignorante como dizia? perguntou, então, Verlaines.

Gilberta desatou a rir.

- Nada disso. Tem, pelo contrário, bela instrução. Simplesmente fingia não a ter para que não desconfiassem dele e pudesse depois contar-me tudo o que se projectava e pôr-me ao facto dos mais pequenos pormenores que dissessem respeito ao Ponto-de-Suspensão.

Sorriu para o marido a quem meigamente explicou:

- Creio, Rodolfo, que conheço tanto o avião como o senhor. Se alguma vez carecer de bom mecânico, já sabe que pode contratar-me.

- Não -volveu, contemplando a mulher com ternura - Â despeito das suas sérias qualidades de aviadora, prefiro sabê-la em terra firme. De resto, tenho um emprego de pilotagem muito importante a confiar-lhe.

- Seriamente?

- Sim, confiar-lhe-ei nossos filhos a guiar na vida e, embora os rapazes não sejam tão sólidos como o pai, não será para si uma sinecura.

- Neste caso- replicou alegremente, erguendo a taça - bebamos à saúde dos nossos descendentes. O senhor Verlaines vai ser o padrinho do primeiro rapaz, e há-de ensinar-lhe cedo a dirigir o Ponto-de-Suspensão.

- Combinado - aprovou, radiante - Mas ponto de suspensão escreve-se com três palavras: reclamo, pois, três rapazes; faremos deles homens úteis como o pai e, embora cada um invente só uma cousa tão preciosa como esta, isso prometerá à França alguns êxitos mundiais.

- Bravo!

- Hurrah...

Tocaram as taças. Em seguida, Gilberta antes de esvaziar a sua, virou-se para o marido.

- Mais uma vez, pelos seus êxitos, Rodolfo! Nãome me farto de estar deslumbrada!

Ele contemplou-a comovidamente.

- À nossa felicidade, minha querida... sempre juntos o maior tempo possível!

 

                                                                                Max Du Veuzit  

 

                      

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