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CASANOVA / Stefan Zweig
CASANOVA / Stefan Zweig

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

CASANOVA

 

Casanova é, dentro da literatura universal, um caso extraordinário, um caso único de sorte, pois que o seu nome - nome de charlatão - desliza, sem nenhum direito a isso, para dentro do Pantheon do gênio criador, como o nome de Pôncio Pilatos penetrando no Credo. A obra literária de Casanova não é mais sólida do que o seu título de Cavalheiro de Seingalt, que não passa de uma combinação de letras preparadas com todo o desplante. Toda a sua produção literária limita-se a um par de versos rapidamente improvisados, entre a mesa de jogo e o leito - versos acadêmicos, viscosos e saturados de almíscar. Para se ler até o fim o seu livro Isokameron é preciso ser-se um asno e um cordeiro ao mesmo tempo; e quando o nosso bom Jacob começa a fazer suas filosofias, somos forçados a cerrar os dentes com força para evitar uma série de bocejos. Não; não pertence à nobreza literária. Nesta - como na outra: a do Gotha - é um parasita, um adventício, sem nenhuma classificação e sem nenhuma autoridade.

Mas, durante toda a sua vida, Casanova, pobre filho de um comediante, vagabundo expulso, militar degradado, jogador exímio e "fameux filou"; - famoso trapaceiro - Assim seu espírito, através do espaço, colocou-se entre os imortais, vindo a ombrear com imperadores e reis, e morre, afinal, nos braços aristocráticos do Príncipe de Ligne. Depois de morto, seu espírito, através do espaço, colocou-se entre os imortais, embora apenas como "belo espírito" - multis - como cinza levada pelo vento dos séculos! E o que é curioso: os seus contemporâneos, os seus mais célebres compatriotas, os poetas da Arcádia, o divino Metastásio, o nobre Parini e tutti quanti, tornaram-se relíquias de bibliotecas ou alimento de filólogos; mas ele, Casanova, não! seu nome anda hoje em todos os lábios e todos sorriem ao pronunciá-lo!

Conforme todas as probabilidades, sua "ilíada" erótica perdurará para sempre e encontrará ansiosos leitores, enquanto a Jerusalém Libertada e o Pastor Fiel há muito tempo se cobriram de pó nas estantes, como quaisquer antiqualhas ou simples curiosidades históricas. O exímio jogador ganhou, num lance magnífico da sorte, contra todos os poetas italianos, desde Dante a Boccacio!

E em tudo isso há alguma coisa mais insensata ainda: - para tão imenso lucro o emérito jogador nada arriscou na parada; meteu simplesmente a imortalidade no bolso, sem perguntar o seu preço. Nunca esse jongleur sentiu a responsabilidade que atormenta todo artista ao medir a profundidade obscura e sinistra do seu longo trabalho. Casanova ignora o prazer misturado de angústia, de quem cria uma obra de arte, de quem tem a sede eterna e inextinguível, a sede de triunfo e de temor. Não conhece o magnífico mergulho em busca da verdadeira forma ou da harmonia no equilíbrio. Ignora as noites de vigília e os dias inteiros passados no trabalho minucioso e exaustivo de forjar e polir a frase para que a idéia, o sentido puro e irisado possa realçar-se em meio da linguagem. Desconhece o trabalho insano do poeta, trabalho obscuro, quase nunca recompensado e que as vezes só é percebido depois de várias gerações. Desconhece a heróica renúncia a todo conforto e a toda a expansão do próprio ser.

Casanova - Deus o sabe! - só procurou a vida fácil. Nunca sacrificou à deusa Imortalidade nem uma partícula da sua alegria, nem um átomo de prazer, nem uma hora de sono, nem um minuto de diversão. Em toda a sua vida não move um dedo para alcançar a Glória ou a Fama, porém ela - oh! feliz pupilo da Fortuna! - esta se precipita para os seus braços. Enquanto existe uma gota de azeite na lâmpada do amor, enquanto a realidade lhe oferece todos os prazeres - ele não pensa no espírito fantástico da Arte nem mancha os seus dedos de tinta. Só quando lhe fecham todas as portas, quando o abandonam as mulheres, quando se sente sozinho, miserável, impotente; quando é, enfim, apenas uma sombra de existência passada que nunca mais voltará, só então se refugia como um velho baboso e rabugento, no trabalho, como um consolo na sua vida, e fá-lo apenas por aborrecimento, irritado pela cólera como um velho mastim desdentado e sarnento.

Então, rabugento e queixoso, decide-se a nos contar a sua vida, isto é, contá-la a si próprio. Mas, na verdade, que vida a sua! São cinco novelas, vinte comédias, sessenta narrativas, encantadoras situações em trechos esparsos, saborosas anedotas: tudo isso e outras coisas ainda rolam na torrente densa e tumultuária dessa vida vulgar. Não se pode exigir nenhum engenho ao narrador; a sua vida, por si só, enche todas as páginas pomposas como uma obra de arte. E é esse o segredo da sua fama.

Casanova não é um gênio pelo modo com que descreve sua existência, e sim pelo modo de vivê-la. Na sua própria vida está toda a trama fina do artista: matéria e forma simultaneamente. E é a essa obra de arte que ele se entrega de todo o coração, como os poetas se entregam aos seus versos, com ardor, decididos a encontrar a forma de expressão mais alta, mais dramática de cada incerto lance. Ele viveu realmente tudo o que os outros poderiam imaginar; respirou esse ambiente, e aquilo que outros teriam de vivificar com a imaginação, ele o viveu plenamente com o seu corpo débil e voluptuoso. Por isso as suas narrativas não precisam de adornos; nada pode acrescentar à fantasia ou à pena - basta-lhe ir traduzindo, declarando no papel a própria vida.

Nenhum autor em tempo algum (talvez apenas Balzac) pôde imaginar tantas situações como as que ele viveu, e, por outro lado, nenhuma outra vida, em todo o século, descreve curvas tão audaciosas como as da vida de Jacob Casanova! Se se estabelece uma comparação entre as biografias de Goethe, de J. J. Rousseau e a de outras personagens da época, com a sua, cingindo-se apenas ao seu conteúdo episódico e não à sua profundeza, ou à sua essência, as vidas desses grandes homens parecem-nos candidamente retilíneas, estreitas, minguadas, provincianas, por assim dizer, em face da sua vida tumultuosa, vida de aventureiro que muda de cidade, de país, de estado, de profissão, de mulheres e de ambiente social com a mesma facilidade com que se muda de roupa.

Está em todas as partes como se estivesse na sua própria casa, preparado sempre para novas surpresas, dilettante do prazer, tal como aqueles (Goethe e Rousseau) foram dilettanti da criação, plasmando as suas obras.

Estes viveram dentro da tragédia intelectual, atraídos à plenitude da vida, atados às suas tarefas, ligados aos deveres impostos a si próprios, amarrados à ordem e ao prosaísmo da existência.

Todo o verdadeiro artista passa a metade da sua vida sozinho, em luta com as suas criações, e apenas pode desfrutá-la, na ansiedade de viver, olhando-a através do reflexo das suas produções. Assim, pois, verdadeiro gozador só pode ser àquele que vive para "viver" e que se entrega à vida livremente e prodigamente. Todo aquele que se dirige para uma meta, apenas roça pela vida; o artista, em geral, plasma aquilo que não consegue viver, que extraiu da sua imaginação e que passa bem longe de sua vida real.

O caso oposto, o caso do que vive imerso no gozo, é uma antítese.

Falta-lhe sempre a força de dar forma ao que imagina. Essa classe de espírito dilui-se no momento, na realidade, e esse momento é efêmero porque logo se intercala com outros sucessos. Em compensação, o verdadeiro artista sabe eternizar o mais insignificante acontecimento. Assim, esses extremos estão afastados, isolados, em vez de se fecundarem mutuamente: a um falta o vinho, ao outro, o copo.

Paradoxo sem solução: os homens de ação, os gozadores, teriam muito mais que contar do que os poetas, mas não lhes é dado fazê-lo. Os espíritos criadores, ao contrário, vêem-se forçados a imaginar, porque o que lhes sucede na vida não basta para as suas narrativas. Bem poucas vezes a vida do poeta merece ser contada; em troca, bem poucos homens de vida acidentada tem capacidade para descrevê-la.

É o que acontece no caso soberbo, único, de Casanova; caso em que um apaixonado do prazer, um "gourmet" da vida, um homem beneficiado pelo destino com toda sorte de fantásticas aventuras; um homem que não conheceu obstáculos, e que, além de tudo, possuía uma prodigiosa memória, narra a sua inaudita existência, e o faz sem eufemismos de moral, sem adornos poéticos, sem rendilhados filosóficos - tal como foi: real, passional, perigosa, desnuda, e o faz galantemente, sem considerações nem decência, cinicamente, sem freios, mas sempre com espontaneidade e com ânimo.

Além disso, não escreve por pretensão literária ou por jactância dogmática, nem tampouco por arrependimento como exibicionismo de confissão; e sim com naturalidade, como um velho soldado que, sentado à mesa de um albergue onde pousa, com o cachimbo na boca, contasse as suas aventuras para regalar os ouvidos dos circunstantes, sem nenhum preconceito, sem pensar que o que diz é picante ou ardente. A sua narrativa não é fantasia ou imaginação: é a novela magistral que não se pode imitar, isto é, a própria vida que jamais pode ser suplantada pelos voos da fantasia. Tem apenas um trabalho, o mais modesto que cabe a um artista: fazer acreditar no que parece impossível! Toda a sua força e toda a sua arte, apesar do seu barroco francês, seguem essa diretriz.

Mas nem por sonho poderia imaginar esse ancião achacado e vacilante, martirizado pela gota, na sua sinecura em Dux, que sobre as suas memórias um dia se inclinariam personalidades respeitáveis, filólogos e historiadores, como sobre o mais precioso palimpsesto. E muito embora Casanova tivesse a vaidade de dar apreço a si próprio, tomaria decerto como uma grosseira chalaça do seu grande antagonista Teltkirchner, se lhe dissessem que cento e vinte anos depois da sua morte se fundaria em Paris (cidade que lhe fora interdita pela polícia!) a Sociedade Casanoviana, com o fim de submeter a estudos minuciosos todo o papel, todo o pequenino bilhete escrito pelas suas mãos, para poder seguir os rastros de cada um dos nomes de mulheres tão agradavelmente comprometidas por ele!

E devemos dar graças porque esse homem tão vaidoso não adivinhou o futuro, porque se assim fosse, não se teriam libertado a psicologia e o pathos na sua narrativa, que perderia, então, a elementar sinceridade.

Descuidado, como sempre, Casanova, o velho jogador, sentou-se à sua mesa de Dux, como se sentaria a uma mesa de jogo, e na última parada jogou as suas memórias. Depois, levantou-se dessa mesa e a morte levou-o antes que pudesse ver o resultado desse último "golpe". E foi precisamente com essa jogada que ele ganhou a imortalidade - e na imortalidade continua o velho bibliotecário de Dux, junto a Voltaire e junto a outros grandes autores!

Sobre ele ainda se poderão escrever muitos livros, porque, um século depois da sua morte, sua vida continua atraindo novelescamente os nossos escritores.

Sim; certamente ganhou a parada esse velho "comediante sem fortuna", e contra ele não é permitida a ênfase de um protesto. Poder-se-á depreciar o nosso "honrado" amigo pela sua falta de moral ou pelo limitado de sua seriedade; poder-se-á refutá-lo e desautorizá-lo como historiador e reprová-lo como artista - mas o que não se pode fazer é dá-lo por morto, porque, apesar de todos os novelistas e poetas, o mundo, desde então, não conseguiu encontrar nenhuma novela mais novelesca do que a sua vida, nem nenhuma personagem mais fantástica do que a sua fantástica personalidade!

 

                   Imagem do jovem Casanova

 

Saiba: O senhor é um belo homem.

Frederico, o Grande, no Parque de Sans Sonci, a Casanova.

Teatro de uma pequena cidade; residência real. Uma cantora termina uma ária interpretada com sentimento. Das galerias vêm os aplausos com estrépitos de uma chuva de granizo. Agora, durante a lenta declamação, as atenções dos espectadores perdem a intensidade. Os peralvilhos andam por toda parte; as damas tem olhares impertinentes e tomam os deliciosos gelati ou os sorvetes de laranja com colherinhas de prata. Por entre as mesas Arlequim dança vertiginosamente, enquanto Colombina faz piruetas.

De súbito todos os olhares se voltam para um estrangeiro que, com aprumo, pisando forte, entra retardado, com a desenvoltura de um homem eminente.

Ninguém o conhece. Seu vulto hercúleo está envolto em trajes de luxo; traz um casaco magnífico de veludo que ao abrir-se exibe um colete de brocado com preciosos alamares; galões dourados enfeitam sua vestimenta desde o pescoço, onde formam um broche, até as meias de seda. Leva na mão, descuidado, um luxuoso chapéu com uma pluma branca. Um perfume suave e fino de rosas envolve essa elegante personagem. Apóia-se agora no anteparo da primeira fila; uma das mãos cheias de anéis está no punho da espada feita do melhor aço inglês e adornada de pedras preciosas.

Como se percebesse a atenção que despertava em torno, o estrangeiro ergue sua lente de ouro para observar com afetada indiferença as pessoas que estão no palco.

De todos os lugares, de todos os recantos do teatro, levanta-se um murmúrio de curiosidade: "Um príncipe?" "Um estrangeiro rico?" As cabeças inclinam-se umas para as outras; com respeito comenta-se a insígnia que, orlada de diamantes, pende do seu peito, presa a uma fita carmesim. Há nela pedras preciosas em excesso para que não se possa saber logo que se trata da Ordem Papal da Espada de Ouro, que na verdade nada exprime. No palco todos os artistas notam que a atenção do público foi desviada, e a declamação perde toda a sua intensidade, porque olhando através dos violinos, as bailarinas procuram adivinhar se se trata de algum duque que vai ali em busca de uma noite de prazer.

Mas antes de se resolver o enigma do estrangeiro e da sua procedência, as damas, desde o palco ao recinto, percebem outra coisa que as confunde agradavelmente: é um homem formoso! Como é belo! E que homem de alta estatura, ombros largos, mãos fortes. Não há, em todo o seu vulto, o mais insignificante traço de delicadeza feminina. Seu corpo é viril, forte, resistente como o aço.

Ali está, com a cabeça ligeiramente inclinada. De perfil, o seu rosto faz lembrar o de uma moeda romana; tão enérgica é a linha de sua cabeça, que seria o orgulho de qualquer poeta, envolta em formosa cabeleira ondulada, de um belo castanho. O nariz é aquilino, o bigode farto. Na garganta vê-se o pomo-de-adão de bom tamanho, e isso, na crença das damas, é a garantia de uma esplendida virilidade. Cada linha de sua face dá a idéia da audácia, da conquista, da decisão. Apenas os lábios, carnudos e sensuais têm uma curva delicada, porém ampla, e deixam ver, como um romã entreaberta, a brancura dos dentes.

O estranho percorre todo o recinto com o olhar; sob as sobrancelhas negras, firmes e arqueadas, brilham as pupilas escuras e cintilantes com inquietação; - olhar de caçador, olhar de águia que se prepara para lançar-se sobre a presa. Agora seus olhos não deitam chamas; mas percorrem lentamente toda a sala, e desprezando os homens, parecem despir as mulheres, pousar na brancura das carnes femininas, naquela meia penumbra de teatro. Olha as damas, uma após outra, com visão de perito que escolhe, e ao sentir-se observado, distende num leve sorriso os lábios carnudos, e a sua boca de meridional deixa ver a dentadura forte, branca e brilhante.

Esse sorriso não se dirige especialmente a nenhuma mulher; é para todas elas, é para a mulher, para a fêmea que se esconde num vestido!

Repentinamente descobre alguém que conheceu outrora num teatro; seu olhar concentra-se; seus olhos, até aquele momento inquietos e cínicos, se enchem de luz suave; sua mão larga o punho da espada, e com o chapéu na destra avança decidido, enquanto os lábios murmuram palavras amáveis de saudação. Inclina com graça o peito robusto para beijar a mão que se lhe estende, entre serenas cortesias.

Certa perturbação no rosto da dama nos diz como é profunda a impressão que lhe produz a sonoridade dessa voz que a envolve em galanterias. Confusa, recua um pouco e apresenta o estrangeiro aos seus amigos - O Cavalheiro de Seingalt...

Reverências, cumprimentos. Oferecem-lhe um lugar, e ele entra na conversação. Pouco a pouco a sua voz vai-se acentuando e dominando todas as outras. Pronuncia as vezes suavemente, como os atores, e faz soar ritmicamente as consoantes. Sua voz eleva-se cada vez mais, pois os curiosos em torno querem ouvi-la, admirando a perfeição com que fala o francês e o italiano e com que oportunidade engenhosa sabe fazer citações clássicas. Como se fosse um gesto indiferente, coloca a mão cheia de anéis no rebordo de uma cadeira, para que vejam seus punhos magníficos e, sobretudo, o esplendente "solitário" gigantesco que cintila num dos seus dedos.

Oferece o seu rapé mexicano, abrindo a tabaqueira incrustada de pedras.

"Meu amigo, o embaixador espanhol, mandou-me ontem este tabaco pelo correio" (ouve-se isso até certa distância).

Um dos cavalheiros admira a tabaqueira luxuosa; ele, então, negligentemente, mas com a voz bem elevada para que seja ouvido em grande parte do recinto, retruca - Um presente de Sua Alteza o Príncipe de Colônia.

Parece falar com simplicidade, mas não: fala com evidente fanfarronice, espreitando à direita e à esquerda, como uma ave de rapina, o efeito das suas palavras. Todos o admiram; as mulheres olham-no curiosas. Ele, por sua vez, sente essa admiração, esse respeito, e é isso precisamente o que o torna mais audacioso.

Com manhosa habilidade sabe mudar a palestra, fá-la ir até mais adiante, aonde está a favorita do príncipe, que escuta com complacência e devoção o "parisiense" autêntico em que se exprime o elegante estrangeiro. (Ele notou o fato imediatamente). Ao falar a uma formosa mulher, sabe dizer uma linda galanteria e a diz mirando-a fixamente; ela, lisonjeada, sorri. No dia seguinte, estará à mesa da gente mais distinta do lugar; à noite, proporá, em qualquer dos palácios, uma partida de Faraón e vencerá o seu contendor, e dormirá com uma dessas mulheres desnudadas pelo seu olhar na véspera.

Tudo isso, deve-o à sua entrada atrevida, enérgica e segura, e sobretudo, à formosura varonil do seu rosto a que tudo deve na vida: - o sorriso das mulheres, o magnífico "solitário" da sua mão, a grossa corrente de ouro que prende o seu relógio, mais do que tudo isso - a liberdade absoluta na Vida!

Entretanto, a primadonna prepara-se para cantar uma ária. Depois de uma grave inclinação com a cabeça, convidado pelos cavalheiros que admiram sua conversação mundana, citado pela favorita, Casanova volta ao seu lugar e senta-se, com a bela cabeça curvada para diante num gesto de quem deseja com todo o interesse ouvir a ária anunciada.

Atrás do seu vulto ressoam perguntas e respostas rumorosas de boca em boca.

- O Cavalheiro de Seingalt...

Ninguém sabe mais do que isso. Ignora-se de onde veio e para onde vai.

Apenas o seu nome perpassa pelo recinto e aos poucos vai percorrendo todo o teatro até chegar ao palco onde estão as bailarinas mortas de curiosidade.

De súbito, uma pequena bailarina veneziana sorri.

- Cavalheiro de Seingalt? Oh! Que velhaco! Esse é Casanova, o filho de Buranella, que há cinco anos seduziu a minha irmã. É o bufão de Bragadino, do velho Bragadino. Oh! Fanfarrão, canalha, aventureiro!

Mas, sem dúvida, dir-se-ia que a bailarina não o leva a mal, esquecendo mesmo das suas velhacarias, pois de lá mesmo, do palco, dirige-lhe o olhar, ergue-se nas pontas dos pés, leva os dedos à boca, no gesto de um beijo atirado. Ele a observa, recorda-se dela depois; mas não se preocupa, não irá prejudicá-lo e, decerto, em vez de desmoralizá-lo na farsa que prepara na pequena cidade, para os simplórios da nobreza, ela preferirá, com certeza, dormir com ele essa noite!

 

                   Os aventureiros

 

Ela sabe que a tua única fortuna é a tolice dos homens?

Casanova ao aventureiro Croce

O fim da Guerra dos Sete Anos traz à Europa um tempo de tranquilidade que permanece até à Revolução Francesa, isto é, quase um século depois. As grandes dinastias de Habsburgo, Bourbon e Hohenzollern estão saturadas de guerra. Os burgueses fumam sossegadamente e olham os anéis da fumaça que se desdobram no ar em sedutoras espirais; os soldados empoam os correames e limpam os fuzis que são agora apenas um adorno; o povo, tão castigado, pode, enfim, respirar um pouco!

Mas os príncipes aborrecem-se sem as guerras; aborrecem-se mortalmente.

Todos os reizinhos e pequenos príncipes, alemães ou italianos, bocejam nas suas residências e querem distrair-se. É terrivelmente fastidiosa, para esses reizinhos, a vida nos seus castelos rococós, apesar dos parques, das fontes, dos bosques de caça, das galerias dos museus e dos luxuosos salões.

Com o dinheiro que com extorsões tiraram do povo, entretêm-se a fazer vir de Paris mestres-salas que os ensinam a imitar como macacos a vida de Versalhes e do Trianon e o fausto da grande corte do Rei Sol. Apenas, por puro tédio, chegam à prodigalidade e a fingir serem belos espíritos.

Correspondem-se com Voltaire e Diderot, colecionam porcelanas chinesas, moedas da Idade Média, quadros barrocos. Gostam das comédias francesas, mandam buscar para as suas grandes "pequenas cortes" bailarinas ou cantores italianos.

O senhor de Weimar fez boa presa e pode reter na sua corte dois grandes alemães: Schiller e Goethe. Por toda parte há caçadas de javalis, pantomimas sobre as águas dos lagos ou diversões nos teatros, pois sempre que o mundo se encontra fatigado adquirem alta importância todas as espécies de diversões, teatros, bailes e modas; e aqueles príncipes, procurando superar uns aos outros, não se inquietam com o dinheiro que esbanjam e contratam as melhores bailarinas, os mais notáveis músicos, os melhores filósofos, os alquimistas, os organistas, etc..

Vemos por isso como Gluck e Händel, Metastásio e Hasse são escamoteados por um príncipe tal como os mágicos, as cortesãs, os fabricantes de fogos de artifícios, os escritores, os mestres-salas, porque cada um desses pequenos reis quer ter na sua corte a maior novidade, o que está em moda - e o quer, sobretudo, não pelo prazer que lhe pode dar, mas para com isso eclipsar e aborrecer algum príncipe vizinho.

Quando um desses pequenos "grandes soberanos" tem todas essas coisas, como mestre-de-cerimónias, festas, pantomimas, óperas, bailados, etc., só lhe falta uma coisa para vencer o tédio que o consome: é variar a monotonia de ver sempre os mesmos rostos dos mesmos cortesãos. E para isso precisa de receber visitas de estrangeiros eminentes, hóspedes interessantes, cosmopolitas, que dão à sua corte o aspecto de uma verídica sociedade, e são como que verdadeiras guloseimas na monotonia e no ambiente rarefeito da pequena corte.

Quando os aventureiros têm notícia de uma dessas cortes, zás! disparam no seu rumo, disfarçados de mil maneiras. Ninguém pode saber sua procedência, mas a verdade é que ali aparecem de súbito nos seus carros de viagem. Sem regatear os preços, alugam, então, os aposentos mais luxuosos dos albergues mais afamados. Fazem reluzir os mais fantásticos uniformes deste ou daquele exército indostânico ou mongólico, e usam também os nomes mais fantásticos, que são apenas como pedaços de vidro - tão falsos como o ouro das fivelas dos seus sapatos.

Sabem falar todos os idiomas: afirmam que conhecem todos os grandes príncipes ou eminentes personagens. Serviram, segundo dizem, em todos os exércitos - estudaram em todas as Universidades.

Levam as algibeiras cheias de projetos e as bocas cheias de promessas.

Imaginam loterias, idealizam novas contribuições, projetam alianças diplomáticas, oferecem mulheres, ou condecorações, ou enucos. Na verdade, não possuem nem dez moedas de ouro no bolso! Mas, em compensação - conforme dizem com toda a reserva - têm o segredo da tintura auri!

Em cada corte apresentam um novo aspecto: aqui se insinuam como franco-maçons, ou cavaleiros Rosa-Cruz; junto a algum príncipe ansioso de ouro, mostram-se cheios de ciências químicas e conhecedores dos escritos de Teofrasto; no meio dos príncipes sensuais, atuam sempre como peritos em mediações amorosas. Os príncipes guerreiros encontram neles espiões que a tudo se prestam; os pequenos reis que querem passar por belos espíritos, tem nesses homens um filósofo ou um poeta.

Sabem dominar por meio dos horóscopos os supersticiosos; prendem os crédulos com os mais estranhos projetos; com ares de grão-senhores conquistam os jogadores e os ingênuos apresentando-lhes cartas falsas.

Sabem sempre cercar qualquer dessas habilidades com uma auréola de mistério, de segredo, que as tornam mais interessantes e mais desejadas.

Como fogos-fátuos, vão e vêm, oscilantes nos ambientes das pequenas cortes, e surgem e desaparecem como fantasmas numa dança de magia!

São admitidos nessas cortes e tomados como entreteni­mento, como simples diversão. Não lhes fazem muitas perguntas sobre a pretendida nobreza, como também não exigem que suas mulheres tragam o anel simbólico do casamento; não se investiga, do mesmo modo, sobre as donzelas encantadoras que os acompanham, porque não se devem fazer excessivas perguntas àqueles que vêm dar o prazer ou pelo menos minorar o aborrecimento, mesmo por uma hora, como o seu aspecto amoral e a sua filosofia materialista.

A corte suporta-os, tal como procede com as prostitutas, enquanto prossigam divertindo e não roubem em excesso!

Muitas vezes acabam (não somente eles como também, algumas vezes, verdadeiros artistas, como o caso sucedido a Mozart) com um solene pontapé recebido na traseira, ou coisa pior ainda: passam do salão das festas para a escuridão do calabouço, como aconteceu a Afflísio, que do teatro imperial passou diretamente para as galés.

Os mais astutos sabem tomar as posições: fazem-se arrecadadores, transformam-se em amantes de alguma dama poderosa ou, se necessário, vêm a ser maridos condescendentes de alguma cortesã. Assim, em muitas ocasiões, terminam como barões autênticos, ou verdadeiros gentis-homens.

Na maioria das vezes, porém, procedem ajuizadamente' e não esperando recompensa, pois todo o seu encanto consiste na novidade e no mistério.

Quando marcam as cartas de jogo com demasiado descaramento ou roubam sem escrúpulos ou tomam excessiva liberdade, pode apresentar-se alguém que descubra a sua identidade, e mostre publicamente os sinais do chicote ou a "marca" de ladrão. Só uma constante mudança de ares é proveitosa para a sua saúde, porque os salva da forca. Por isso esses cavaleiros da sorte vão e vem continuadamente pela Europa como se fossem viajantes de um ofício secreto ou atrevidos ciganos.

Durante todo o século XVIII gira pela Europa esse alegre bando de aventureiros, composto sempre das mesmas personagens e peregrinando de Madri a São Petersburgo; de Amsterdam a Pressburgo; de Paris a Nápoles.

Não se pode denominar casualidade à freqüência com que Casanova se encontra nas mesas de jogo mais distantes e mais várias, com Talvis, Afflísio, Saint-Germain, e outros irmãos do ofício. Essa eterna peregrinação não é um prazer; é uma fuga; não podem jogar com segurança senão num prazo certo; complicando e combinando o jogo estão mais seguros, e assim se protegem uns aos outros porque formam como uma vasta parentela, como que uma maçonaria sem senha nem contra­senha. Formam, afinal, a Ordem dos Aventureiros. Onde se encontram sustentam-se mutuamente; um aventureiro mantém o outro na mesma sociedade e há como que uma identificação no fato de, na mesa de jogo, um deles reconhecer logo o companheiro que chega não se sabe de onde.

Trocam entre si suas roupas, suas mulheres e até seus nomes. Tudo, enfim, menos uma coisa: a profissão!

Todos esses parasitas da corte : atores, bailarinas, músicos, cavalheiros de indústria, prostitutas, alquimistas, forma­vam naquela época, tal como os jesuítas e os judeus, uma verdadeira corrente internacional, indo e vindo entre uma nobreza sedentária, mesquinha, ignorante, e uma burguesia obscura. Eles, esses aventureiros, não faziam parte nem de uma, nem de outra, deslizavam entre ambas essas classes, em todos os países, de modo impreciso, como corsário sem bandeira e sem pátria.

Surge entre eles uma nova arte: desde então não saqueiam os indefesos com violência; não mais assaltam as diligências - aproveitam-se suavemente dos vaidosos e dos incautos. Em vez da acometida brutal, têm a presença de espírito e o frio descaramento; não conhecem a luta corporal, e sim o domínio dos nervos e a psicologia.

Essa nova arte de esvaziar os bolsos alheios aliou-se com a burguesia e a educação; não roubam e incendeiam depois como os antigos bandidos:

preferem marcar as cartas a regularizar as letras de câmbio. Esses aventureiros são da mesma raça de onde saíram os aventureiros ousados, insensatos, que iam às Índias e se alistavam em todos os exércitos para os saques: daqueles que nunca quiseram se escravizar por nenhum preço.

Esses, como aqueles, não são servis; preferem sempre o gesto ousado, o impulso, para, de um golpe, encher as algibeiras. São sempre os mesmos em qualquer época; só mudou o modo de proceder: tornaram-se mais finos na ação e no aspecto. Não têm mais as mãos atrevidas, nem o nariz dos alcoólatras: suas mãos agem agora cheias de anéis, e empoam as faces.

Olham através do monóculo e têm movimentos de bailarinos; falam um parlando enfático como os atores; são misteriosos e dúbios como os filósofos. Com audácia, sem que seus olhos demonstrem inquietação, sabem fazer na mesa de jogo o truque necessário, e quando falam com as senhoras sabem insinuar nas palestras, excessivamente espirituais, que tem filtros de amor e jóias preciosas, falsas, naturalmente...

Não se pode negá-lo: observa-se em todos eles um rasgo, um não sei que de espiritual que os torna realmente simpáticos. Alguns deles chegam a ser geniais. A segunda metade do século XVIII constitui a sua idade áurea, a sua epopéia, o seu classicismo. Assim como em torno de Luiz XV se forma e se reúne uma plêiade brilhante de poetas franceses, ou, mais tarde, na Alemanha, surge o momento assombroso de Weimar onde o gênio criador se cristaliza em algumas grandes personalidades, assim também, nessa época, os aventureiros formam uma esplendida constelação que se ergue cintilante sobre o continente europeu.

Mas, já não lhes basta o poder de introduzir a mão nas algibeiras dos príncipes. Com atitudes decididas põem a mão no Tempo também, e fazem girar a gigantesca roleta da História.

Em vez do afetado respeito, das reverências de vassalos, da adulação servil, começam a abrir caminho a cotoveladas, nada caracteriza tanto essa época como essa estranha culminância a que atingiram esses homens!

John Law, chegado da Irlanda, atordoa as finanças francesas só com a sua assinatura. La Chevalière d'Eon, meio homem, meio mulher, dirige a política internacional. Um pequeno barão de cabeça redonda, chamado Neuhoff, chega a ser rei da Córsega e acaba depois na prisão. Cagliostro, campones siciliano, sem saber ler nem escrever, vê Paris a seus pés e estrangula-o com o seu célebre colar. O velho Trenck, mais trágico de todos, porque não conhece a vilania, termina na guilhotina e, com o seu gorro vermelho, faz o drama do herói da Liberdade. Saint-Germain, o mago que não tinha idade, vê o rei da França submisso a seus pés, e com o segredo do seu nascimento atordoa os meios científicos.

Todos tem mais poder nas suas mãos do que as mais poderosas personagens.

Atraem a atenção de todo o mundo; seduzem as mulheres, saqueiam os ricos e, sem profissão nem responsabilidade, se dedicam a puxar os fios que agitam os polichinelos políticos.

O último desses homens - não o pior deles - nosso Jacob Casanova, é o historiador desse grêmio pois, ao descrever sua vida, descreve, realmente, todo esse turbilhão de aventureiros. Casanova completa o centenário dos inolvidáveis com cem fatos e aventuras contados de modo delicioso. Cada um desses homens é mais célebre do que todos os poetas, mais dinâmico do que todos os políticos (falamos apenas da sua época) daquele mundo condenado ao aniquilamento.

Somente trinta ou quarenta anos dura essa epopéia dos aventureiros, desses grandes homens da ilusão e do cinismo. Depois, destrói-se por si mesma ao aparecer o seu gênio perfeito, o homem infernal: - Napoleão! esse gênio faz sempre as grandes coisas: não se contenta com papéis episódicos - exige para seu cenário, para ele só, o mundo inteiro! Quando aquele pobre diabo de Bonaparte se transformou depois em Napoleão, não usou covardemente - como no caso de Casanova-Seingalt ou de Balsamo-Cagliostro - a máscara hipócrita da aristocracia. Apresenta-se ao mundo do seu tempo com superioridade intelectual, exigindo o que lhe cabe por direito de conquista. Com o advento de Napoleão - gênio de aventureiro - a profissão deixa de ser dos "Cavaleiros da Fortuna", para ir até à sala do trono; e com Napoleão termina, por ter ele atingido o cimo da perfeição - porque sobe ao mais alto poder e põe admiravelmente sobre a cabeça (embora por uma hora apenas) a mais bela de todas as coroas: a coroa da Europa!

 

                   Instrução e talento

 

Diz-se que é literato, porém de espirito propenso à magia; que esteve na Inglaterra e na França; que soube tirar proveitos, não permitidos de muitas damas e cavalheiros, pois sua arte é viver à custa dos outros e iludir os crédulos à sua vontade... Quando se conhece Casanova vêem-se nele, reunidos numa só personalidade, o mais terrível dos ímpios, um embusteiro, um impudico e um sensual.

Informação secreta da Inquisição de Veneza - 1755.

Casanova não nega nunca ter sido na vida um aventureiro. Ao contrário; sem subterfúgios, vangloria-se de não ter sido um incauto, e sim, de se ter aproveitado dos incautos; de ter sido explorador, e não explorado nesse mundo onde, para os clássicos, é agradável aprender para não se ser enganado.

O que ele não admite é que possa ser confundido com essa quadrilha de estivadores de taverna que roubam grosseiramente ou saqueiam de qualquer forma, em vez de subtrair o dinheiro aos tolos com elegância e educação.

Nas suas memórias sempre se mostra superior quando tem de confessar algum encontro (negócios divididos, é verdade) com Afflísio ou com Talvis, pois, embora pareçam estar no mesmo plano, procedem de meios diferentes.

Casanova vem de cima, das classes cultas, e eles, de baixo, do nada.

Assim como Moor, o estudante bandido, cheio de ética, tal como no-lo descreve Schiller, despreza os seus companheiros, os seus cúmplices, Spiegelberg e Schufterle, porque estes exercem o ofício de bandoleiros de modo tosco e rude, ofício que para Moor é apenas uma vingança contra a mesquinhez do mundo - assim também vemos como Casanova se afasta energicamente desses camaradas de profissão que não possuem nobreza nem decência.

Nosso amigo Jacob exige qualquer coisa parecida com um título nobiliárquico para poder dedicar-se às aventuras, qualquer coisa que adorne filosoficamente o que parece indigno a pessoas decentes e indecoroso aos burgueses. Quer ser admirado pelo seu trabalho sutil, pela sua alegria de charlatão. Se se atende ao que ele diz, parece que todo filósofo tem, neste mundo, um único dever moral, que é divertir-se à custa dos tolos, enganar os vaidosos, estafar os simplórios, aliviar a algibeira dos avaros, iludir os maridos; em resumo: castigar a estupidez deste mundo como se isso fosse uma divina missão. Enganar não é para ele apenas uma arte, é também um dever moral e, por isso, vemo-lo executar esse dever com a consciência límpida e com incomparável simplicidade!

Não penseis que tenha chegado a ser aventureiro por falta de dinheiro ou por mera ociosidade, e sim porque se julga um gênio; por imperativos do temperamento. Habituado desde a infância a profissão de ator, transforma o mundo em cenário e a Europa em bambolinas. Explorar e deslumbrar os tolos, enganar, fazer toda sorte de loucuras é como se fosse parte do seu sangue e - tal como os antigos bufões - não poderia viver senão dentro dessa contínua azáfama de burla e de ardil. Cem vezes teve oportunidade de obter uma honrada e remuneradora profissão, de acolher-se em cômodas posições;

mas nada conseguia detê-lo nem emparelhá-lo a um burguês. Mesmo que se lhe oferecessem milhões, cargos e dignidades, nada quereria de tudo isso e fugiria, decerto, para o seu natural elemento. Assim é que têm o direito de ser distinguido dos outros aventureiros. Não é um aventureiro por necessidade ou desespero. Apenas por prazer.

Nem vêm de uma cabana infecta como Cagliostro, nem do desconhecido como Saint-Germain. É filho de matrimônio e mesmo de família conhecida. Sua mãe, a Buranella, era uma célebre cantora, conhecida em todos os teatros da Europa, que terminou sua carreira como bailarina no Teatro Real de Dresden. Francisco Casanova, seu irmão, figura em todas as histórias da Arte como ilustre discípulo de Mengs, "o divino", como lhe chamavam, e seus grandes quadros de batalhas andam ainda hoje pêlos museus.

Seus parentes todos exercem profissões sérias e honestas: tem togas de juízes ou hábitos de sacerdotes. Como se vê, não veio do enxurro: procede dessa mesma classe de onde saíram Mozart e Beethoven. Por isso, naturalmente, teve regular instrução em humanidades e línguas.

Apesar das suas extravagâncias e da sua precocidade no trato com as mulheres, aprende perfeitamente o grego, o francês, o hebraico, o espanhol e o inglês. Só a língua alemã não conseguiu aprender. Têm boas noções de matemática e filosofia. Aos dezesseis anos faz o seu primeiro sermão numa igreja de Veneza. Sabe tocar violino e é profissional durante todo um ano no teatro de São Samuel, e desse modo ganha a vida.

Talvez o seu título de Doutor em Direito, que obteve em Pádua, não seja verídico. Não está elucidado esse fato e os eruditos ainda investigam o assunto; mas é certo que possui uma sólida cultura acadêmica, pois entende de Química, de Medicina, de História, de Literatura e também de ciências ocultas, como Astrologia, e Alquimia. Além de tudo isso, é bailarino, esgrimista, cavaleiro e profundo em jogos de azar. Sua inteligência é brilhante, sua memória tão prodigiosa que, aos setenta anos, recorda-se de todas as fisionomias, do que ouviu e do que leu. Tudo isso lhe dá um aspecto de quase um sábio, quase um filósofo e quase um cavalheiro.

Sim; mas há sempre um quase. E isso é a nota viva e característica do seu talento. É quase tudo mas não chega a ser nada definitivo: é poeta, mas não um poeta verdadeiro, e é também um bandido, mas não um bandido completo. Roça pelas esferas espirituais mais elevadas, e ao mesmo tempo, rasteja também pelas abjeções. Mas não se fixa em nenhuma delas; não têm, afinal, nenhuma vocação. Como dilettante, sabe tudo: sabe artes, sabe ciências e sabe muito mais do que se poderia acreditar, porém, sempre lhe falta qualquer coisa para ser completo. E que carece de decisão, de vontade e de paciência.

Se tivesse passado, pêlo menos um ano, curvado sobre os livros, teria sido o melhor jurista ou o melhor historiador. Po­deria ser professor de qualquer ciência porque seu cérebro trabalhava com agudeza e facilidade assombrosas. Mas isso nunca lhe passou pela mente! Não quer jamais entender de qualquer coisa desde a base. Sua natureza - natureza de ator, de comediante e de jogador - repele tudo o que seja sério, e sua embriaguez voluptuosa da vida despreza tudo o que é honesto ou útil.

Não quer ser nada, porque lhe basta a aparência, suficiente para enganar os homens - e apenas deseja enganar. Sabe de sobra que para enganar os néscios não precisa de cultura sólida. De tudo sabe um pouco, e isso lhe basta porque conta com um poderoso auxiliar que é o seu sangue frio, o seu cinismo e a sua imensa impassibilidade. Ponha-se qualquer questão diante dele e jamais se verá confessar que lhe é ignorado o assunto - toma logo uma atitude de competência. Como verdadeiro pícaro saberá transformar-se e como verdadeiro jogador baralhará tudo até que possa sair airosamente da situação e apresentar-se sempre como pessoa decente mesmo no mais indigno dos casos.

Certa vez, em Paris, perguntou-lhe o Cardeal de Bernes se sabia alguma coisa sobre loterias. Naturalmente, Casanova não tinha a menor noção da matéria, mas também naturalmente, disse que sim e desenvolveu um grande projeto perante uma comissão. A sua fada, a deusa da persuasão, está sempre ao seu lado, e desse modo a comissão fica rapidamente convencida, porque ele fala como um banqueiro que possui vinte anos de prática.

Em Valença falta o texto de uma ópera italiana: ele senta-se e dita-o sem o menor esforço. Se lhe pedissem que escrevesse a música, decerto o faria, apenas recordando alguma pequena partitura.

Junto à imperatriz da Rússia vemo-lo como reformador do calendário, como astrônomo eminente.

Na Curlândia inspeciona as minas como de um entendedor de mineralogia.

Em Veneza apresenta um novo sistema de tingir sedas e ilude com ele os próprios químicos.

Na Espanha faz projetos de colonização.

Exibe um largo estudo contra a usura ao Imperador José.

Escreve comédias para o duque de Waldstein.

Para a Duquesa de Urfé forma a "Árvore de Diana" e outros truques de alquimista.

Diante de Madame Roumains abre suas arcas com a chave de Salomão.

Compra ações para o governo francês.

Em Agsburgo apresenta-se como embaixador de Portugal; na França é às vezes industrial e às vezes um simples rufião.

Em Bolonha escreve opúsculos de Medicina.

Em Trieste escreve a história do reino da Polônia e traduz em oitavas.

Em resumo, divinal, tudo improvisa; não tem, realmente, nenhuma especialidade, e como se diz vulgarmente - se não tem cavalo favorito, sabe montar em qualquer um que se lhe apresente e o faz de tal modo que nunca desce ao ridículo. Folheando o que deixou escrito, poder-se-ia crer que foi um grande filósofo, um enciclopedista, um novo Leibnitz. Deixou uma verdadeira novela, uma ópera, Ulisses e Circe, um ensaio de matemática sobre o cubo, um diálogo político com Robespierre, e não há dúvida de que se lhe pedissem para escrever a prova teológica da existência de Deus ou um hino à castidade, não hesitaria um minuto em fazê-los!

Que dotes excepcionais! Apto para qualquer eventualidade: ciências, arte, diplomacia, negócios; tudo, enfim - em qualquer dessas coisas teria atingido grandes alturas.

Mas, Casanova conscientemente esbanja o seu talento no momentâneo, e observamos que o homem que poderia ser tudo prefere não ser nada - nada, a não ser dono do direito de ser livre. Prefere o ócio, à liberdade, a independência, a tudo o mais, e por isso não se prende a nenhuma profissão. "Só o pensamento de prender-me a qualquer coisa me foi sempre repulsivo como se o considerasse contrário à natureza".

Nada o detém, nem o cargo tão bem retribuído de arre­cadador de loterias de sua Majestade Católica, nem ser industrial, nem violinista, nem literato - nada, enfim, que fosse permanente. Apenas se senta se vê arrastado por uma, força que o faz ir à rua a esperar que passe o carro da sua sorte para tomá-lo.

Sua verdadeira profissão, conforme seus sentimentos, é não ter profissão:

prova todos os ofícios, todas as ciências, e muda logo de trabalho como o ator muda de roupa e de papel. Para toda a gravidade que prender-se? Nada quer ter; nada quer conservar. Pede somente para viver, não uma vida apenas, mas cem vidas numa só existência. Quer liberdade, algazarra, alegria das mulheres; mas isso mesmo por um momento, sem duração; e é assim que, indiferente, passa ante bens e proventos que não o interessam porque podem prendê-lo, como já tão lindamente o disse Grillparzer:

Tudo aquilo que tens te prenderá, Daquilo em que mandares serás servo.

E Casanova só quer ser escravo da sua sorte, do azar, do acaso, porque a fortuna poderá tratá-lo com rudeza em alguns momentos, mas depois, inopinadamente, sabe erguê-lo magnânima, num gesto de bom humor. Ele, para lhe permanecer fiel, corta todos os outros vínculos que poderiam atá-lo.

Seu espírito é livre, não num sentido doutrinário, mas no mais alto sentido da palavra.

"Meu maior tesouro - disse ele - é não temer a desgraça e ser senhor de mim mesmo" - esse é, na verdade, um lema bem varonil, distingue mais a nobreza desse homem do que o título de Seingalt. Nunca se preocupa com o que se possa pensar dele e sim, com encantadora agilidade, salta por sobre todas as valas da moral, indiferente às afiadas pontas do furor dos que ficam atrás e a indignação dos que vão pisando cinicamente no seu caminho.

Só no impulso, no movimento, experimenta a plenitude e a volúpia de viver.

Jamais no repouso. Graças a essa agilidade, a esse doce deixar-se levar, consegue ter uma visão do mundo bem peculiar, e os homens honrados acabam por lhe parecer ridículos ao continuarem presos, encerrados em uma mesma atividade. Também não o impressionam os homens de guerra, os militares, porque, apesar da aparência feroz, se humilham perante as palavras severas e as reprimendas do general. Não respeita tampouco os sábios que, como traças, vão devorando os livros, nem inveja os ricos que só podem dormir vigiando os seus cofres. Não o seduz nenhum estado civil, nenhum país, nenhum uniforme profissional.

Nenhuma mulher consegue retê-lo em seus braços; nenhum rei, dentro das suas fronteiras; nenhuma profissão, no aborrecimento. À procura dessa outra espécie de liberdade, sabe abrir caminho através de obstáculos, arriscando satisfeito a própria vida, antes de deixá-la criar bolor. Todo o talento, toda a força, toda a audácia, todo o espírito, tudo o que vibra no seu corpo vigoroso, oferece-o sempre a essa deusa fugitiva e variável, a deusa do acaso: a Fortuna.

Assim, nunca se anquilosará na vida; será sempre como a água corrente, saltando feliz e ruidosa como se brotasse de uma fonte e partisse depois em cascatas tumultuosas para o fundo de um abismo. Vemo-lo, desse modo, passar das mesas dos príncipes para as sombras de uma prisão; da vida luxuosa para o recurso dos objetos penhorados; da sensualidade para a continência. Passa de um estado a outro, de uma vida a outra vida, rápido como uma flecha, sempre ligeiro, sempre orgulhoso da sua felicidade, cheio de ânimo e de confiança, desprezando a própria desgraça.

A coragem é a medula de sua vida; é a sua arte, é o seu dote. Não procura guardar sua existência; ao contrário: vive a expo-la, a jogar com ela. É por isso que observamos que entre os precavidos, os cautelosos, sobe sempre aquele que é ousado, que se arrisca, que joga tudo numa cartada. A sorte ama os audaciosos que a tentam, pois o jogo é o seu elemento; e por esse motivo vemo-la favorecer mais aos cínicos e aos ousados do que aos trabalhadores; aos impetuosos mais do que aos pacientes - e, na verdade, Casanova é um dos seus eleitos.

Sim; as vezes toma esse homem destemido e lança-o por terra; arrasta-o por algum tempo, mas de súbito ergue-o e fá-lo dar uma dessas extraordinárias piruetas. Entrega-lhe mulheres, favorece-o no jogo; acaricia-o com as paixões, enche-o de esperanças e promessas, e jamais o abandona, deixando-o cair no tédio. Incansavelmente, inventa coisas novas para esse homem infatigável e presenteia o seu adorador com outras mutações, com outros acasos.

Por isso sua vida é ampla, múltipla, variada, fanática, cheia de colorido, de tal modo que dificilmente poderá encontrar-se outra semelhante no decorrer dos séculos. E quando ele se põe a narrar essa vida extraordinária, transforma-se - ele que nada queria ser - em um dos mais incomparáveis poetas da sua vida, e o é não por sua vontade, porém pela vontade dessa própria Vida!

 

                   Filosofia da superficialidade

 

Vivi como um filósofo.

Últimas palavras de Casanova.

Uma tão extensa amplitude de vida corresponde quase sempre uma profundeza limitada, um pequeno calado intelectual. Para se dançar tão habilmente sobre as vagas, é preciso ter-se uma leveza de cortiça - e é nisso precisamente que consiste toda a arte de viver de Casanova, sem nenhuma virtude singular e sem nenhuma força misteriosa. Não; a sua arte de viver é a conseqüência de qualquer coisa negativa, uma carência absoluta de todo lastro moral ou tático. Se se lhe dissecasse o espirito, não se encontraria nele um só órgão moral.

O coração, os pulmões, o fígado, o sangue, o cérebro, os músculos, e as glândulas sexuais, sobretudo, tem nele um máximo desenvolvimento; mas qualquer um ficaria surpreso ao sentir-lhe um vácuo perfeito, isto é, nada, nesse recanto do espirito onde normalmente se abrigam os princípios morais, as convicções que formam o caráter.

Poder-se-ia empregar toda espécie de reativos e de ácidos, lancetas, bisturis, microscópios, e tudo se quisesse - e não se descobriria, nesse forte organismo, nem um resquício, nem um rudimento sequer dessa substância misteriosa que se chama consciência; nada daquilo que se erguendo sobre o "eu" controla o impulso dos sentidos e rege o mundo interior. O sistema nervoso moral não existe nesse corpo, todo sensibilidade! É esse todo o segredo da leviandade de Casanova. É todo sensibilidade, mas não tem alma. Nunca navegará para um ponto determinado;

nenhuma consideração o fará parar. Para encontrar-se a si próprio precisa de um ritmo bem diferente do dos ambiciosos que se dirigem para um alvo ou do dos que estão cheios de moral e presos por dignidades sociais ou por reflexões. Disso procede o eu élan magnífico.

Para esse aventureiro não há terra firme; não está em nenhuma terra; não obedece as leis de nenhum país. É um corsário, um flibusteiro das suas paixões. Assim como esses piratas, ele não respeita as convicções sociais, nem os postulados da moral, nem os costumes. Para ele não vale um real tudo isso que para os outros é coisa sagrada. Se se procura explicar-lhe qualquer coisa sobre obrigações morais, ele as compreende tanto quanto um selvagem compreenderia metafísica. Amor à pátria? Cidadão do mundo, vivendo do acaso e não possuindo nunca na sua longa vida nem ao menos um leito próprio, bem pouco se poderia preocupar com o patriotismo.

Ubi bene, ubi pátria: onde pode encher as algibeiras, onde tem facilidade de levar mulheres para o seu leito, onde há mais ingênuos para iludir, onde a vida é mais farta, é aí, onde, num gesto de alívio, estende as pernas sob as mesas, sentindo-se em casa. "Onde se está bem, aí é a pátria".

Religião? Serve-lhe qualquer uma, desde que lhe convenha. Deixar-se-ia circuncidar, ou consentiria que lhe crescesse o rabicho como os chineses.

Tudo é indiferente, se isso lhe traz algum proveito. Mas no fundo não se deixaria convencer por nenhuma, como não se deixou convencer pelo Catolicismo, a religião do seu berço. Para que religião no que não acredita senão na vida terrena, leve e agradável? "Além da vida, nada há provavelmente; mas veremos isso na hora final" - disse ele negligentemente e sem a menor preocupação. Por isso afasta todas as teias de aranha da moral.

Carpem diem: goza o teu dia; aproveita o momento presente, espreme-o como se fosse um cacho de uvas e deixa o bagaço para os porcos - essa é a sua norma e sua divisa agarrar-se bem ao mundo; tomar o que vê, o que está ao alcance; tomar em cada minuto tudo o que houver de doce e sensual. É essa toda a sua filosofia. E por isso que afasta, sorridente, para bem longe dele, o que se chama honra, decência, dever, vergonha, fidelidade, isto é, o lastro ético que se opõe à posse do que se deseja.

Honra? Que faria com ela. Não tem para ele mais valor do que tinha para Falsfaff, que dizia não lhe servir nem para comer nem para beber. Ou como aquele outro inglês que, tendo ouvido falar constantemente da posteridade, pergunta em pleno Parlamento o que fez a posteridade para o bem da Inglaterra. A honra não pode ser gozada nem colhida, e serve apenas para por entraves ao prazer. Logo, é inútil! Não há nada que ele deteste tanto como a obrigação, ou o dever, pois para esse homem não existe, não pode existir outro dever que não seja gozar e dar ao seu corpo robusto todas as delícias possíveis. E por esse motivo nunca pergunta a si mesmo se a sua agitada existência é bem ou mal interpretada pelos outros, se lhes sabe a mel ou a vinagre, se é digna ou vergonhosa.

Vergonha? Que estranha palavra! Que quererá dizer? esse vocábulo lhe é desconhecido; não existe no seu dicionário. Com a desfaçatez de um lazzarone, apresenta-se ante o público mostrando tudo o que pode mostrar, e deixa sair de sua boca coisas que outro qualquer não se decidiria a confessar nas garras da tortura; isto é: suas velhacarias, suas torpezas, suas avarias sexuais, suas curas de sífilis. E não faz à maneira de Rousseau, com as trombetas do aparato, bradando a confissão e prevendo o assombro dos ouvintes. Declara-o naturalmente, simplesmente, em demonstrações onde falta toda sensibilidade para fazer distinções de ética. Não tem nenhum órgão de complexo moral!

Se o acusassem de ter feito trapaças ao jogo, responderia com certo assombro: "Sim; é verdade, mas eu não tinha dinheiro". Se lhe atirassem a culpa por ter seduzido uma mulher, por-se-ia a rir, dizendo: "Deixei-a bem satisfeita". Nem por pensamento trata de desculpar-se pelo fato de ter sabido arrancar dinheiro de algum cidadão honesto ou mesmo de algum dos seus companheiros. Ao contrário; quando recorda alguma velhacaria, o faz com ternura, descaradamente: "Justifica-se a razão quando se engana um tolo".

De nada se defende; de nada se arrepende - e ao chegar a sua quarta-feira de cinzas, ninguém o vê arrependido por ter deixado perder sua vida, essa vida que termina na miséria e em triste servilismo. Não, ao contrário:

velho, desdentado, não lhe ocorre senão dizer estas encantadoras palavras - encantadoras pelo egoísmo! - "Eu seria culpado se hoje estivesse rico.

Mas, nada tenho: desbaratei tudo o que possuí e isso me consola e me justifica".

Em toda a sua vida não há um só passo para o caminho do céu; de nada se privou por motivos de moral; nada lastimou. Aos setenta anos só tem recordações; essas próprias recordações não soube guardá-las; legou-as prodigamente à posteridade. Não podemos, por isso, julgá-lo um dissipador.

Toda a filosofia de Casanova caberia no côncavo de uma casca de noz.

Reduz-se a um único princípio. É preciso passar pela vida, sem preocupações; viver espontaneamente. Não se deixar enganar pela incerta possibilidade de outra vida futura em outro mundo, nem tampouco pensar na posteridade. Não há razão para perder o momento presente por causa de teorias. Devemos deixar levar-nos pelas inclinações do momento, sem pensar em razões teológicas ou práticas. Todo preconceito corrói as articulações e faz perder a liberdade do movimento. Ninguém, pois, deve parar para refletir ou meditar. Um Deus misterioso parece que nos pôs ante o mundo como ante uma mesa de jogo; e portanto, devemos aceitar as regras do jogo como são, sem indagarmos se podem ser justas, corretas ou falsas.

Na verdade, não perde nem um instante em reflexões religiosas sobre se o seu modo de proceder neste mundo é certo ou errado. "Ama a humanidade - diz a Voltaire - porém ama-a tal como ela é". Não nos metamos em assuntos que competem a Deus e que, por isso, nos são alheios. Deixemos a ele toda a responsabilidade. Não tentemos revolver a água escura desse pântano que é o mundo, e contentemo-nos em tirar delicadamente os melhores bocados.

O que pensa em excesso nos outros se esquece de si próprio; quem fica por muito tempo a contemplar como vai o mundo, perde a agilidade das pernas.

Se as coisas vão mal para os ingênuos, nada há mais lógico do que isso.

Verdade é que Deus não ajuda os diligentes: eles se ajudam a si mesmos. Se o mundo foi feito de modo tão singular, de forma que uns vão em carros e vestidos de seda e outros vão descalços, cobertos de andrajos e de estômagos vazios, isso quer simplesmente dizer que se deve tentar ser dos que sobem ao carro, pois se deve viver para si e não para os outros.

Parecerá ser isso egoísmo, é verdade; mas poder-se-ia conceber uma filosofia no prazer sem egoísmo? Pode um epicurista preocupar-se com os outros? O que quer viver para si mesmo não pode estacar indeciso ante a sorte de outrem.

Assim vive Casanova durante os setenta e três anos de sua existência;

indiferente aos outros homens, indiferente aos grandes problemas da Humanidade, porque só lhe interessa o prazer.

Quando com os seus olhos brilhantes olha à direita ou à esquerda, nada procura senão a sua própria diversão. Não dirige a ninguém perguntas impertinentes, como Job, sobre o porquê de algumas coisas. Aceita, em todo caso, a fatalidade sem tratar de registrá-la como boa ou má.

Não sente a menor excitação, apenas observa com simples curiosidade fatos como o de O'Morphi, a pobre menina holandesa, que é tão infeliz que oferece sua virgindade - virgindade de criança - por duas moedas de prata a quem queira compartilhar do seu leito cheio de piolhos, e que da noite para o dia tem o seu palácio no Paro-aux-Cerfs porque é a favorita do rei e termina como legítima mulher de um barão. E ele próprio, pobre violinista de um teatrinho de Veneza e mais tarde perfilhado por um Patrício, dono de ricas jóias, mesmo esse fato não o interessa senão como um caso um tanto curioso.

Limita-se apenas a pensar nesses fatos: "Meu Deus! Assim é o mundo;

incompreensível, porém assim; não há motivos para querer buscar complicadas leis de gravidade nessa vida tão cheia de acidentes como uma montanha russa!" Só os que são ingênuos procuram um sistema de jogar na roleta, e com isso apenas conseguem perder o prazer do jogo. O verdadeiro jogador - tanto na mesa de jogo como no mundo - saboreia no jogo justamente o imprevisto, esse incomparável encanto da sorte.

Procure-se o melhor e seja-se filósofo para si próprio e não para os outros. Tudo isso, na sua linguagem, significa lançar-se valentemente, com brio, sem nenhum entrave, na vaga do momento, e viver até esgotar o último gozo. Tudo o que está além do presente é, para ele, turvo e problemático.

Nunca se consolará de um prazer perdido com o pensamento: "será para outra vez". Há somente este mundo; este que pode ser saboreado com todos os nossos sentidos. A vida poderá ser feliz ou infeliz, mas mesmo assim é a única que tem o homem, e quem não ama a vida não é digno de viver. Só vive quem sabe sentir o prazer com prazer: o que é perceptível aos nossos sentidos, o que com eles se acaricia. Só isso é real e interessante para esse grande antimetafísico que é Casanova.

É por isso que todo o seu interesse se reduz ao organismo, aos homens.

Talvez em toda a sua vida não erguesse para o céu um olhar de interrogação. Não o impressiona a Natureza; seu coração de ritmo acelerado não sentiu jamais a grandiosidade da paisagem. Se se folheiam os dezesseis volumes das suas memórias, vê-se como ele, tão inteligente, tão vivo, percorre os países da Europa, desde Posilipo até Toledo; desde o lago de Genebra às estepes da Rússia; e esse homem tão inteligente e tão vivo - repito - não dedica uma linha sequer à beleza dessas paisagens. Não há ali uma só exclamação de prazer e de encanto. Uma criada obscena de algum sórdido tugúrio parece­lhe mais interessante do que todas as obras de Miguel Ângelo. Uma partida de jogo em qualquer cubículo obscuro é mais atraente do que um crepúsculo de Sorrento.

Não observa a Natureza nem a arquitetura porque lhe falta o órgão para apreciá-las: a alma. Nunca vê nos prados verdes cintilando de orvalho mais que um lugar onde os camponeses, como torpes animais, trabalham curvados para que os príncipes possam ter dinheiro nos bolsos. Pequenos bosques deliciosos, ou lindas alamedas não representam para ele mais do que um esconderijo próprio para gozar uma mulher. As flores servem para se fazer gentilezas e, em algumas ocasiões, para sinal secreto na mesa de jogo;

ele, porém, é cego para a beleza pura, a beleza sem utilidade.

Para esse homem o mundo é um conjunto de cidades onde há jardins e recantos onde passeiam carros, ninhos suaves de belas mulheres, tabernas onde espera uma partida em que se possa depenar alguém, ópera, bordéis, lugares onde é fácil obter-se agradável carne feminina, onde há bons pratos que são toda a poesia e vinhos que se assemelham a música.

Apenas as cidades constituem o mundo, porque é nelas onde se esconde o acaso, com as suas mil facetas, dispostas para as mais várias e encantadoras surpresas. Não ama as cidades apenas porque são lugares de aglomeração humana: ali vivem as mulheres no sentido que ele estima: em pluralidade. Dentro das cidades esse aventureiro prefere as altas esferas onde há o luxo e a sensualidade está tão sublimada que se transforma em coisa artística; porque é preciso compreender-se que esse homem robusto, todo sensual, não é de nenhum modo um indivíduo pouco educado, um homem sensualmente grosseiro.

Encanta-o uma ária bem cantada; as vezes uma poesia o torna feliz; o que mais lhe agrada é uma conversação culta diante de uma garrafa de bom vinho; gosta de falar com pessoas inteligentes sobre algum livro; escuta uma boa música num teatro em penumbra, junto de uma mulher sedutora. Tudo isso aumenta o seu prazer de viver, a sua volúpia da existência.

Mas não nos iludamos com essas coisas; o seu amor pela arte não é mais do que um passatempo. O espírito servir-lhe-á sempre para a vida, mas nunca a vida para o espírito. Ama a arte como o mais delicado afrodisíaco, como um meio agradável de excitar os sentidos, como um prelúdio do gozo, para ir até ele discretamente, alcançando-o, enfim, num impulso definitivo.

Amavelmente fará uma composição qualquer dedicada a uma dama que deseja e a entregará maliciosamente presa a uma liga. Recitará Ariosto para enternecê-la. Falará sobre Voltaire e Montesquieu com outros cavalheiros para demonstrar que é um intelectual e poder preparar com toda a confiança um assalto ao bolso alheio.

Esse ardente meridional, sem dúvida, nada entende de arte ou de ciência se lhe exigem profundeza, trabalho ou constância, ou se, deixando de ser um jogo, desvia o seu sentido de vida. Instintivamente evita e foge da profundidade porque sua natureza só ama o superficial. Há de ser sempre eterno gozador da espuma da vida, do aroma da existência, eterno dilettante do acaso. Por isso é tão frívolo, tão vazio, tão vago. Como a Fortuna de Dilrer, também percorre a terra com os pés nus sobre a esfera rolante do mundo, levado pelo impulso variável do acaso, em nada prendendo a atenção, nunca descansando, infiel para todos; - é assim o mundo para ele, homem de eternas mudanças. A variabilidade, a troca, são o sal da sua vida, o sal do prazer, pois para ele a vida é o prazer.

Ligeiro como uma libélula, vazio como uma bolha de sabão, passa pelo mundo brilhando ao reflexo dos sucessos. Nunca puderam deter esse aventureiro incansável, e poucos são os que conseguiram adivinhar a diretriz da sua vida.

Como é, na realidade, Casanova? Bom ou mau? Honrado ou embusteiro? Herói ou miserável? Nem uma nem outra coisa; é o que determina o momento, colore-se conforme as circunstâncias e transforma-se com as transformações do instante que passa. Quando está bem de finanças, ninguém é mais distinto do que ele; de ânimo alegre e amável, com grandeza, sorridente como um alto prelado, pródigo, vai espalhando dinheiro a mancheias: "a economia, não a conheci" - diz-nos. Convida generosamente a todos para a sua mesa, como um mecenas, e cerca­se de gente desconhecida; presenteia os amigos com preciosas tabaqueiras ou mesmo com dinheiro; concede-lhes crédito e despeja em torno as fulgurações do seu talento como fogos de artifícios.

Mas quando os seus bolsos estão vazios, ou quando está cheio de dívidas, oh! nesse caso, o melhor conselho seria que não se tomasse muito a sério esse gentil-homem à mesa do jogo! Deve-se esperar, nessa circunstância, qualquer mau truque, ou fazer deslizar alguma nota falsa, ou vender sua amante ou ainda piores velhacarias. Variável, cheia de surpre­sas como o jogo, é sua existência. Hoje será magnífico, encantador, espiritual, porém amanhã será menos que um bandoleiro. Numa segunda-feira saberá entusiasmar uma mulher com a ternura de um Abelardo, porém na terça saberá encaminhá-la para o leito de algum lorde por menos de dez libras, como faria o mais desavergonhado rufião!

Não; não é um bom; também não é um mau: o caráter ou a espiritualidade lhe são tão alheios como o pudor: não o conhece. Não age moral ou imoralmente:

Suas decisões nascem da sua carne, dos seus nervos ou das suas veias, sem que tenham a menor influência a razão, a lógica, a moral. E apenas um amoral. Quando deseja uma mulher, o sangue martela-lhe as artérias e corre para ela, cego, impetuoso, conforme o seu temperamento. Quando vê uma mesa de jogo, a mão vai inconscientemente para o seu bolso, sem que o queira ou deixe de querer, e de súbito o seu dinheiro está sobre a mesa. Apodera-se dele a cólera, e suas veias intumescem-se como se fossem estalar, a bílis sobe-lhe à boca, os olhos se orlam de vermelho, as mãos se fecham convulsivamente, e lança-se ao ataque cegamente, leva o seu compatriota Benevenuto Cellini.

Por isso, decerto, Casanova não é responsável: é o sangue que o domina e é impotente contra o furacão das paixões. "Nunca fui capaz de dominar minhas paixões; nem o serei nunca". Não obtempera nem prejulga, mas quando está liberto dessas paixões, brotam da sua mente inspirações agudas e muitas vezes geniais que o salvam da situação; porém é por demais impaciente para se por a calcular alguma coisa. Cem vezes se vê confirmado nas suas memórias que as decisões mais transcendentes da sua vida, suas maiores extravagâncias ou suas mais engenhosas velhacarias nascem nele inopinadamente, como uma chispa, de um só golpe. Jamais provêm de um momento de reflexão.

De repente deixa, um dia, o traje religioso. De repente manda o seu cavalo - quando é soldado - para o inimigo e entrega-se como prisioneiro. Vai à Rússia ou à Espanha, conforme seu olfato, sem nenhuma colocação, sem recomendações, sem informações, e, ó que é mais estranho: sem saber por que vai. Suas decisões são como explosões dos seus nervos, procedem do seu humor, do seu aborrecimento. E assim se vê lançado de uma situação para outra bem diferente, de tal forma que ele próprio esfrega os olhos espantado.

Essa falta de diretriz é o que lhe permite viver plenamente, pois não é more lógico que alguém se faz aventureiro, e se se quer ter um sistema de estratégia se deixa de ser senhor e dono da vida.

Nada há, pois, mais incongruente do que esse esforço que fazem e fizeram tantos autores para atribuir a Casanova uma alma desperta e reflexiva, uma alma fausto-mefistofélica, quando lançam mão desse aventureiro para alguma das suas produções. E isso é um erro crasso, pois ele é todo impulso e negação absoluta de toda reflexão. Se nele se encontrassem, embora, apenas três gotas de sentimentalismo, se lhe atribuíssem consciência e responsabilidade, deixaria de ser Casanova.

Querer prendê-lo em roupagens tétricas e injetar-lhe uma consciência, seria o mesmo que encerrá-lo numa pele que não fosse a sua. É antes de tudo, a negação do demoníaco; é uma criança que estende a mão para o brinquedo; é o eterno rapaz irrefletido que procura a mulher, o prazer e o dinheiro. Mas nunca demoníaco. O único demônio que encerra dentro de si Jacob Casanova tem um nome bem burguês, é de cara grossa e fofa, e chama-se tédio.

Está sempre completamente vazio; não tem substância anímica e por isso, para se não devorar interiormente, deve encher esse vácuo interior com o exterior: isto é, com acontecimentos.

Precisa do oxigênio da aventura para não morrer de asfixia; daí vem esse desejo indomável para o que não possui ainda; daí essa volúpia que há na sua curiosidade; daí o incessante olhar ansioso desse eterno faminto de aventuras. Nada produzindo interiormente, vive reunindo material de vida, mas esse desejo está bem longe do demoníaco, do desejo demoníaco de um Napoleão que quer um país e mais outro e mais outro ainda porque aspira ao infinito; ou como Don Juan que se sente arrastado a seduzir mulheres para ser senhor de um mundo feminino.

O homem do prazer não procura esses superlativos, altos como montanhas, e sim a quantidade, a continuidade do gozo. Não se sente levado por uma fanática ilusão para o heróico, como se dá com os homens de espírito.

Tampouco se vê guiado pelo sentimento; o homem do prazer, como ele, busca a agradável modalidade do gozo, a alegria inquieta do jogo, aventuras, mais aventuras, sempre aventuras.

Precisa ocupar o seu "eu", fortalecer sua vida; não ficar nunca consigo mesmo, não tiritar no frio do vácuo. Nada de solidão !

Se se observa Casanova sem diversões, sem distrações, vê­se logo como sua tranqüilidade e seu aprumo se transformam na mais espantosa inquietação.

Chega à noite a uma cidade estranha, desconhecida; não fica nem uma hora no seu aposento consigo mesmo ou com um livro. Aspira o ar, vagueia, procura um divertimento, ou, pelo menos, tenta seduzir a criada para levá-la ao seu leito nessa noite. Começará a palestrar com os outros hóspedes, sejam quais forem, preparará algum plano com qualquer outro aventureiro, passará a noite com a mais miserável rameira; mas sempre veremos como o vácuo interior o impulsiona para a agitação, para a sociedade dos homens, pois só assim pode satisfazer sua própria vitalidade.

Quando está só é um dos tipos mais entediados que se podem imaginar; adivinha-se isso no que escreve - com exceção das suas Memórias - e ao referir-se aos anos solitários de Dux, diz que é um tormento infernal que "Dante se esqueceu de descrever!" Assim como um pião precisa de receber contínuas laçadas para se por a andar, assim, ele também precisa do contínuo acontecimento, o sucesso, a aventura, para conservar sua forma ágil e encantadora. Se não recebe o impulso exterior, lança-se em queixumes na terra. É aventureiro por falta de força criadora.

E por isso que, quando a tensão da vida se relaxa, interca­la, logo, como substitutivo, a tensão artificial do jogo. O jogo é um extrato, uma síntese da tensão da vida; é um resumo do destino; por esse motivo, o jogo é o asilo de todos os homens que vivem do momento e a eterna distração dos ociosos. Graças ao jogo pode-se viver como em miniatura e sentir em pequena escala, num vaso de água, o fluxo e o refluxo do sentimento.

Os momentos vazios podem assim se encher artificialmente, de medo, de espera. Nada como o jogo - nem mesmo a mulher - consegue ressuscitar com aparentes aventuras o homem já esgotado de si próprio. Nada como o jogo como entretenimento insubstituível dos eternos ociosos, dos desocupados interiormente; e para ele mais do que para ninguém.

Assim como, quando vê uma mulher, a deseja, assim também não pode possuir dinheiro sem que seus dedos não estremeçam na ânsia de jogá-lo, embora veja na banca um conhecido trapaceiro, um companheiro de trapaças. Mesmo assim, sabendo-se perdido, entrega tudo o que tem.

Casanova foi, sem dúvida, o mais astuto e hábil trapaceiro do seu tempo.

Não o dizem suas Memórias, é verdade; faz mil rodeios para não lançar essa confissão. Mas divulgaram essa qualidade os registros da polícia; e não se pode negar: foi esse o artifício que principalmente lhe permitiu viver com dinheiro. É isso o que faz ressaltar ainda mais sua grande paixão pelo jogo, seu furor para jogar sempre, fosse como fosse.

Ele, que é intrinsecamente um trapaceiro, deixa-se cair em armadilhas, permite ser enganado, e o faz porque a tentação do jogo, a tentação de provar a sorte, é superior as suas forças.

Assim como uma prostituta entrega ao rufião o dinheiro que ganhou fingindo amor, para assim poder vir a ter realmente o que fingiu com todos os outros, assim também ele sacrifica o que subtraiu com trapaças, e se deixa roubar por qualquer astuto companheiro; e não uma só vez, porém vinte, cem vezes, para viver realmente o azar do jogo. É isso o que lhe põe o selo de verdadeiro jogador. Não joga para ganhar - isso seria fastidioso; joga por jogar! Não vive para ser rico, feliz, ou outra qualquer coisa agradável;

vive para viver; joga para jogar; e isso é, na verdade, ser jogador no jogo e jogador na vida, mas sempre verdadeiro jogador!

Não procura ou persegue uma tensão; é o estado de tensão que vive nele rapidamente, se é preciso, na mesa de jogo, e no vermelho e preto, nos ouros ou nos ases, nas oscilações da sorte, sente como palpita o mundo inteiro, a própria existência, porque precisa pela própria natureza do contraste do ganho ou da perda, o possuir e abandonar as mulheres, o ser rico e pobre em seguida; isto é, a aventura que se estende até ao infinito.

E como sua vida, sendo tão dinâmica, tão múltipla, apresenta também, é certo, seus intervalos de repouso, lapsos de tempo em que escasseiam as surpresas, é necessário preencher essas lacunas com a tensão artificial do jogo, e com as bruscas variações do jogo, substituir em parte os acidentes da existência, esses altos e baixos que agitam os nervos e são a verdadeira vida: hoje rico, grand seigneur, dois lacaios na boléia do carro; amanhã, tudo vendido precipitadamente a um judeu, até a roupa. Não é fantasia; encontraram-se recibos: a própria roupa foi penhorada em uma casa de empréstimo de Zurich.

Mas Casanova o que deseja precisamente é que sua vida seja isto: uma vida fragmentada pelas explosões repentinas de felicidade ou desespero, e para o conseguir, joga veementemente todo o seu ser!

Dez vezes um duelo coloca-o nas proximidades da morte; dezenas de vezes está na iminência de ir para o cárcere ou para as galés; chovem milhões sobre suas mãos e se escorrem depois rapidamente sem que ele faça o menor movimento para retê-los. Mas é justamente porque se entrega de todo a cada aventura, a cada jogo, a cada mulher - que ganha sempre. Poderá morrer miseravelmente no estrangeiro, mas mesmo assim ganha redondamente o mais alto, o mais desejado: - a plenitude da Vida!

 

                   Homo Eroticus

 

Seduzi alguma vez? Não, aceitava a recíproca logo que a Natureza oferecia seu precioso encanto. Também nunca abandonei nenhuma mulher: Todas eternamente ficaram no meu coração agradecido.

Arthur Schnitlzler, Casanova in Spa

Casanova é um dilettante em todas as artes criadas por Deus: escreve versos toscos, faz filosofemas soporíferos, arranha o violino e, quando conversa, no melhor dos casos, o faz como um enciclopedista. Mas é profundo nos jogos que o diabo inventou: faraón, biribi, dados, dominó, alquimia, diplomacia. Mestre, porém, verdadeiro mestre, mago indiscutível, é apenas numa coisa: no amor!

Todos os seus talentos dispersos, seus múltiplos dotes, se reúnem, como mágica alquimia, para formar o talento puro de perfeito erótico; ele que é dilettante em tudo, é, no amor, um gênio perfeito. Seu corpo parece ter sido criado para o serviço de Vênus. A Natureza, geralmente tão avara, pôs neste caso, como num crisol, tudo o que podia ser agradável: sensualidade, força, beleza, e com isso formou um homem destinado ao prazer das mulheres; um macho, um varão robusto e atraente: um exemplar forte e ardente do sexo masculino. Nele o molde é perfeito e perfeita também a fundição.

Nada mais distante da verdade se se imagina Casanova como o tipo de beleza que chamamos moderno, isto é esbelto, beld'uomo, efebo. Não; é um verdadeiro macho, com ombros de Hércules, músculos de lutador romano, beleza morena de zíngaro, cinismo de condottiere, e com o ardor de um fauno. Seu corpo parece metal e resume força e potência. Várias vezes é atacado pela sífilis, em duas ocasiões se envenena, recebe uma dúzia de estocadas, passa anos de obscuridade nos imundos calabouços espanhóis. Faz viagens rápidas da Sicília de clima quente aos frios da Rússia; e tudo isso não reduz de um átomo a sua virilidade. Basta-lhe receber o fulgor de um olhar, um simples contato, apenas a aproximação de uma mulher e logo todo se inflama e desperta de súbito toda a sua invencível sensualidade.

Durante um quarto de século, apesar da infatigável atividade, conserva sempre o legendário "challos" pronto e disposto, sempre pronto , como a personagem da farsa italiana; está sempre disposto a ensinar a mais alta ciência às mulheres e ao completar os quarenta anos, só conhece por informação o desagradável fiasco que Stendhal dedica todo um capítulo do seu tratado de L'Amour.

Nunca se esgota seu corpo; quando um desejo está satisfeito, procura logo outro; seus nervos semcre estão despertos para o feminino; sua paixão, apesar de todas as dissecações mais terríveis, nunca esmorece; vive num eterno impulso. Realmente, poucas vezes a Natureza ofereceu a um maestro um instrumento tão perfeito como o fez com ele. Poucas vezes construiu uma viola d'amore como essa!

Mas essa maestria tão completa precisa outra condição para conservar toda a sua força inata, e isto é a entrega sem condições, a concentração máxima da paixão. Só a concentração exclusiva em uma única diretriz pode dar o rendimento completo. Assim como para o músico a música há de ser o mais importante dos objetos; como para o poeta a poesia; para o avaro o dinheiro; para o sportman recorde, assim também para o erótico perfeito o desejo é o mais importante, e com ele a conquista e a posse da mulher.

Deve entregar-se unicamente a essa paixão, sem condições, completamente, abraçá-la, absorvê-la, e encontrar assim o verdadeiro sentido dentro do infinito do mundo em que vive.

Casanova, sempre infiel, permanece, sem dúvida, fiel à mulher. Se se lhe oferecesse o anel dos Doges de Veneza, os tesouros dos lendários Fugger;

se lhe brindassem dons da mais alta nobreza, palácios, luxo, glórias, mandos, fama imortal de poeta ele, pródigo, estouvado, arrojaria tudo para longe de si em troca do aroma de uma epiderme feminina ou do momento doce e incomparável de uma resistência que se quebra e se entrega depois. Tudo daria em troca de uns olhos cheios de desejo ou pelo sublime prazer da primeira posse de uma mulher.

Todas as coisas do mundo: honras, dignidade, tempo, saúde - tudo deixaria partir, como o fumo do cigarro, por uma aventura, pois não precisa estar enamorado para sentir o desejo irresistível; apenas a proximidade ou a possibilidade de uma aventura lhe acende a imaginação com o gozo pressentido.

Há sobre esse caso mais de cem exemplos nas suas memórias, mas citarei um somente.

Casanova dirige-se rapidamente para Nápoles, numa diligência do correio, para um assunto urgentíssimo. Pelo caminho, numa hospedaria, no quarto vizinho ao seu, numa cama que não é a sua, junto a um capitão húngaro, vê uma formosa mulher; ainda não sabe, realmente, se é formosa, pois viu-a através dos cobertores da cama; mas ouviu uma risada juvenil, um riso de mulher, e as asas do seu nariz vibram logo numa tensão de desejo. Nada sabe sobre ela, se é ou não formosa, agradável ou desagradável, fácil ou resistente, livre ou casada, jovem ou velha - mas, resolve logo, atira para debaixo da mesa a sua maleta e fica em Parma porque já está louco pela probabilidade minúscula, imprecisa, insignificante, de uma aventura.

E assim procede em toda parte tão insensatamente e vão sabiamente ao mesmo tempo. Estará sempre disposto a qualquer imprudência para passar uma hora com qualquer mulher desconhecida. Quando deseja, não olha o preço: quando quer, não se inquieta com a resistência. Ao desejar rever aquela senhora alemã, que na verdade não lhe interessa, que nem ao menos sabe quem é, apresenta-se sem ter sido convidado numa reunião em Colônia, onde ninguém o deseja; e faz isso sem o mais leve rubor. Com o rosto contraído suporta as palavras do dono da casa e vê como os outros se riem dele; mas um macho excitado percebe porventura a fúria da matilha?

Suportará friamente tudo e em qualquer parte ante a possibilidade de uma hora de prazer. Dezenas de vezes expõe-se a estocadas, tiros, injúrias, enfermidades, humilhações; e tudo sofre, não por uma verdadeira amante, por uma Anadiomene, e sim por uma desconhecida, por uma qualquer, pela primeira mulher que esteja a seu alcance, pelo único fato de ser mulher, de ser de sexo oposto ao seu.

O primeiro rufião que aparecer o arrancará facilmente de todas as suas comodidades por qualquer mulher que lhe inculque. Qualquer marido de critério elástico ou qualquer irmão complacente o levará ao negócio mais torpe se seus sentidos estiverem excitados. E quando não estarão excitados os seus sentidos? Semper novarum rerum cupidos, sempre ansioso por nova presa vibra o seu desejo para o desconhecido!

Uma cidade sem aventura não é, para ele, uma cidade; o mundo sem mulheres não é mundo. Seu coroo ardente de macho robusto precisa sempre de novas provisões para o seu leito; tanto quanto necessita de oxigênio, de sono, de alimentação, assim também necessita da tensão da aventura. Não é capaz de sentir-se bem um só mês, uma só semana, um só dia, se não tem mulheres.

A continência é, para esse homem, sinônimo de embotamento e de tédio.

Não é, pois, um assombro, que, com semelhante apetite, a qualidade de alimento não seja o que devera ser. Com estômago de camelo não se pode ser um sibarita nem um gourmet; apenas um glutão. Assim, ter sido sua amante não é de forma nenhuma uma recomendação, porque para isso não se precisa ser uma Helena, nem virgem, nem casta, nem espiritual, nem educada, nem sedutora. Nada disso é necessário a sua sensualidade.

Basta-lhe que seja uma mulher, uma fêmea, o sexo oposto, a vagina, para que se satisfaça a sua sexualidade.

A beleza, o talento, a ternura - agradáveis sem dúvida - são coisas secundárias, ridiculamente secundárias ante o fato real, único e decisivo, da feminilidade que é só o que deseja. E deseja-o sob todas as formas, em todas as variantes, até nas deformações. Por isso é preciso dissecar a lenda de que as suas conquistas formam um vasto harém, um amplo cenário, romântico e estético.

Não, a sua coleção é variada, matizada, rica, pelo número, mas, Deus sabe que não é uma galeria de belezas. Há ali, decerto, algumas figuras delicadas, meigas, suaves, deliciosas, quase crianças, que poderiam ser pintadas por Guido ou Rafael; outras mereceriam o pincel de Rubens ou as tintas finas de um Boucher. Mas ao lado dessas, há verdadeiras rameiras de arrabalde londrino, cujas obscenidades só poderiam ser repetidas na linguagem de Hogarth. Não faltam velhas ardentes, verdadeiras bruxas que desafiariam a visão de Goya; caras sórdidas de prostitutas ao estilo de Toulouse-Lautrec; aldeãs, criadas, modelos próprios para Breughel - um misto de beleza e sordidez, de delicadeza e vulgaridade, uma feira em suma; tal foi o seu harém!

Esse aventureiro foi um pan-erótico e seus desejos têm um largo raio de ação, uma amplitude espantosa e incrível. Não tem preferência nos seus ímpetos e segura o que encontra ao dobrar uma esquina. Pesca em todas as águas, na corrente límpida das fontes ou nas sombras dos pântanos; em lugares permitidos ou proibidos. Seu erotismo não tem limites nem considerações. Não admite distinção de moral ou de estética, nem tampouco a decência da idade. Não vê nunca se é alto ou baixo, se é demasiado cedo ou muito tarde.

As suas aventuras alcançam desde as mulheres cuja idade está sob a proteção das leis, até as que se desfazem pelos anos. Oh! a duquesa de Urfé, velha, de setenta janeiros, cujos amores só teria o desplante de confessar!

Por todos os países, por todas as classes sociais, se estende essa noite de Walpurg, não muito clássica, decerto. Os vultos mais ternos e mais puros, ainda ruborizados pelo pudor, as damas mais elegante e ricas misturam-se com as rameiras dos mais torpes bordéis, ou dos prostíbulos de marinheiros, para essa dança diabólica. Cínicas marafonas, fêmeas ignóbeis, meninas viciosas, anciãs, todas inflamadas dão as mãos a esse sátiro. Vemos como a tia deixa o leito quente ainda para que o ocupe a sobrinha; a mãe concorre com a filha; maridos complacentes admitem em sua casa esse eterno conquistador. As mais baixas fêmeas do prazer se alternam com damas nobres nos gozos da mesma noite!

É preciso não tentar ilustrar as façanhas desse aventureiro com gravuras do século XVIII e não adorná-las com detalhes pitorescos. Não. É necessário ver tudo como é realmente, no verdadeiro pandemônio dessa sensualidade.

Uma libido tão inesgotável como a dele há de ultrapassar os limites comuns, e vemos, então, que tudo aproveita, nada perde. Sedu-lo o extraordinário, mas também o atrai o vulgar, o corrente. Não há nenhuma anomalia naquilo que o excita; nenhum absurdo que não o faça vibrar. Camas piolhentas, roupas íntimas imundas, famas equívocas, espectadores escondidos, enfermidades, tudo isso não é mais do que um detalhe - detalhe imperceptível para esse homem de ímpetos de touro bravio que, como outro Júpiter, quer abraçar o feminino sob todas as suas formas, em todas as suas deformações; curioso diante do extraordinário e curioso diante do normal, seu prazer é universal e exclusivo ao mesmo tempo.

Há, porém, qualquer coisa bem característica nesse erotismo tão masculino:

seu frenesi erótico, alucinado, nunca ultrapassa um ápice do natural. O seu instinto pára onde acaba o sexo. Estremece de nojo ao contacto de um castrado e bate impiedosamente com a sua bengala no primeiro efebo que se apresente. Todos os seus vaivéns, todas as suas perversões se movem num plano absoluto de fidelidade ao feminino que é, para ele, seu mundo completo. Aí, dentro do feminino, não encontra fronteiras, nem diques, nem dificuldades, nem interrupção no desejo que irradia do seu corpo para todas as mulheres com a embriaguez de um fauno helênico.

É isso, precisamente, o que lhe dá um poder tão monstruoso sobre as mulheres: poder que não encontra resistência possível.

Com instinto sábio, que vem do próprio sangue, as mulheres adivinham nele o homem ardente, o macho, fogo que se projeta para elas, e se deixam possuir porque ele está possuído por elas. Se caem é porque ele já caiu, não com uma apenas, porém com todas, com a pluralidade, com a mulher que há nelas todas, com o seu sexo, numa palavra.

Enfim, para ele nada há tão importante como a mulher, que coloca acima de todos os seus negócios, com o ímpeto torrencial e completo do seu ser. Não uma só, eleita, porém, todas, embora o delapidem. E é realmente assim que se entrega. Para isso está sempre disposto a dar a última gota do prazer que há no seu corpo, as últimas moedas do seu bolso; e tudo para uma qualquer, para uma mulher, porque é mulher, e isso satisfaz sua inextinguível sede de feminino.

Assim, para Casanova, o prazer de todos os prazeres é ver as mulheres felizes; vê-las entregues ao gozo, deliciosamente embriagadas de prazer, encantadas, sorridentes. Enquanto tem dinheiro nas algibeiras enche-as de presentes esquisitos e lisonjeia-as com o luxo e com a vaidade. Gosta de vesti-las luxuosamente, envolvê-las em sedas e jóias antes de desnudá-las.

Agrada-lhe dar-lhes a surpresa das guloseimas nunca vistas, deslumbrá-las com excesso de generosidade e de paixão. É certamente como um verdadeiro deus, como um Júpiter verídico, que ao mesmo tempo que inunda a sua amante com o ardor das suas veias, deixa cair sobre ela uma chuva de ouro. E como Júpiter, também, logo desaparece, fundido entre as nuvens.

"Amei oucamente as mulheres, mas sempre preferindo minha liberdade". Isso não somente não reduz seu prestígio, sua auréola, como também o aumenta, pois precisamente pelo modo tempestuoso do seu ímpeto e pelo seu desaparecimento, é que fica nelas uma viva recordação dessa extraordinária vertigem, dessa embriaguez, do arrebatamento desse aventureiro magnífico, que nunca pode ser abraçado novamente e sua paixão não se esgota, como nos outros, pela força da constância na união sexual.

Qualquer mulher adivinha que esse homem extraordinário não poderia jamais ser o esposo, o fiel Celadon, e relembra-o sempre com toda a força do seu sangue, como ao amante, como ao deus de uma noite de paixão. Mesmo que abandonasse a todas, nenhuma o quereria de outro modo, senão como ele é, como foi. Por esse motivo, não precisa fingir; basta que se apresente tal como é: honestamente infiel na sua paixão!

Um ser como ele não precisa simular coisa alguma, não precisa adornar-se, nem meditar em astúcias na arte de seduzir: não precisa mais do que deixar-se levar pelo seu desejo, pela sua paixão, e essa tudo faz por ele.

Seria inútil se os jovens quisessem aprender com esse mestre o segredo dos seus êxitos; em vão folheariam a maravilhosa ars amandi, que são suas Memórias. A arte de seduzir não se aprende nos livros, assim como de nada serve ler poemas para ser poeta. Nada se obteria estudando esse mestre, pois não há nenhuma tática, nenhum truque que lhe seja peculiar. Todo o seu segredo está na sinceridade do seu desejo e no modo de reagir da sua natureza passional.

Parece singular querer aplicar a palavra sinceridade tratando-se de um homem como Casanova. Mas assim é. No seu modo de amar é preciso reconhecer que esse grande trampolineiro, esse truão, possuía uma indiscutível sinceridade. As suas relações com as mulheres são sempre sinceras e honestas, porque saem diretamente do seu sangue, dos seus sentidos, sem nenhuma mistificação. Causa pejo dizê-lo; mas é certo que a falta de honestidade no amor nasce sempre tão rapidamente quanto nela intervêm outros sentimentos mais elevados.

O seu. corpo robusto não mente nunca, não exagera jamais sua tensão nem seus anelos, não passa nunca uma linha mais do que é realmente e pode conseguir. Só quando no amor intervém o espírito e se insinuam os sentimentos, esses sentimentos que, vazios, apontam o infinito - só então, a paixão se torna exagerada e portanto, insincera, e nas relações materiais intervêm as fantasias do espírito.

Casanova, que nunca vai além do físico, pode facilmente manter o que prometia; prometeu prazer em troca de prazer, corpo ardente contra corpo ardente, e nunca deixou nas mulheres dúvidas sentimentais. Por isso elas não se consideram enganadas post festum, porque justamente o amante só lhes pede espasmos de prazer, porque não lhes traz conflitos sentimentais - e assim nunca ficam desiludidas.

Poderão chamar como quiserem essa classe de erotismo: amor inferior, talvez; amor sexual, amor animal, se se quiser; mas não poderão negar sua sinceridade. E, com efeito, não trata esse amante apaixonado mais francamente, mais sinceramente, mais honestamente, as mulheres, do que o próprio Fausto, para dar um exemplo de amante romântico e sonhador que, com a sua sensualidade hipersensual, conjura o sol, a lua e as estrelas e mistura o próprio Deus e o Universo aos seus sentimentos amorosos por Gretchen, para terminar já de antemão o sabia Mefistófeles - de uma maneira completamente casanovesca, seduzindo a pobre menina de quatorze anos, oferecendo-lhe jóias?

No caminho da vida de Goethe ou de Byron ficam atrás muitas mulheres destroçadas, desfeitas, porque aquelas naturezas intelectuais põem em tal tensão a espiritualidade feminina, que elas, as mulheres, ao deixarem de compartilhar dessa elevada espiritualidade, não encontram mais a sua forma terrena. Mas na vida de Casanova não fica um rastro de desgraça, porque o ardor, a paixão desse aventureiro, não tem nada de sentimental, de espiritual. Não deixa atrás de si existências perdidas nem mulheres desesperadas.

Fez a felicidade de muitas, mas não deixou nenhuma histérica. Todas saem da aventura - aventura puramente sensual - ilesas e dispostas para o amor dos seus maridos ou dos seus amantes.

Não ha suicídios nem fatalismos; não se rompe o equilíbrio da alma, nem sequer ha cambaleios, porque sua paixão é retilínea, simples, sã e não rasga as camadas profundas do destino. Passa superficialmente sobre elas como um tufão e elas florescem numa nova sensualidade. Sua paixão vai até o rubro, porém não queima; conquista, mas não destrói; seduz, mas não deita a perder, e como que seu erotismo não se aprofunda além da epiderme, e portanto, não atinge ao espírito. Suas conquistas nunca foram uma catástrofe.

Por isso não é um amante demoníaco; não se transforma em herói trágico do destino, nem mesmo nos casos problemáticos. Fica sempre como o mais genial ator de episódios amorosos que o mundo conheceu!

Mas, justamente essa falta absoluta de espiritualidade faz com que alguém possa perguntar se essa libido completamente corporal, que se desencadeia apenas à vista de uma saia, poderá denominar-se, na realidade, amor! Se queremos comparar Casanova, homo eroticus ou eroticissimus, com Werther ou com Saint Preux, amantes imortais, é claro que não se poderá chamar amor ao que ele sente.

Não ha nele aquele sentimento quase piedoso e inefável que iguala a visão da amada ao universo e ao próprio Deus. O seu erro não lhe ergue o espírito numa ânsia de elevação nem uma só vez na vida. Não ha uma só carta memorável, nem também nenhum verso da sua mão, pelo qual tomem sublimidades de sentimento amoroso as suas aventuras sexuais.

Poderia mesmo falar-se da sua incapacidade para experimentar uma verdadeira paixão, pois a paixão, amour passion, como diz Stendhal, há de ser alguma coisa única na vida, e desde logo isso se opõe evidentemente ao hábito, à perene repetição com que nele se apresenta esse sentimento.

A paixão verdadeira aparece raras vezes, e em todo caso nasce de uma força sentimental que se vai acumulando e poderíamos dizer também que se libertando, mas finalmente brilha num relâmpago que ilumina e envolve a amada. Casanova, ao contrário, dissipa continuamente a sua paixão, está sempre tenso e por isso não pode ter uma paixão elevada e concentrada. Sua paixão, simplesmente erótica, não conhece o êxtase da paixão extrema e única.

Não nos devemos, pois, inquietar quando vemos esse aventureiro desesperado porque Henriqueta, essa formosa portuguesa, o abandonou. Não se deve recear que ele tome a pistola. Com efeito, dois dias depois vamos encontrá-lo abraçado a outra, ou metido num hotel. Quando a freira C. C.

não o pode seguir até ao Cassino, vemos logo aparecer, substituindo-a, a irmã H. B., pois ele se consola com uma rapidez inaudita. Ha sempre uma substituta em todos os seus casos de amor, únicas mulheres. Sua paixão dirige-se sempre para o plural, para a eterna pluralidade, para a troca incessante, para a multiplicidade da aventura.

Em certa ocasião deixa mesmo escapar uma frase perigosa "Então, compreendi, embora de um modo vago, que o amor talvez não fosse mais do que uma curiosidade mais ou menos viva". E essa definição do amor pode servir para a sua compreensão, e entenda-se a palavra curiosidade no sentido do anseio da novidade, e teremos o que é a sua paixão: desejo de novo, de novas aventuras, de novas mulheres. O vulto individual não lhe desperta a atenção, e sim a variante desse vulto, e fascina-o incessantemente a contínua combinação no cenário de eros.

Sua conquista e conseqüente abandono é nele tão natural como a respiração, e esse seu prazer puramente funcional explica por que ele, como artista, nunca consegue plasmar espiritualmente nenhuma das suas mil mulheres. Ainda mais, falando francamente, as descrições que delas nos faz levantam a suspeita de que nem mesmo chegou a ver-lhes o rosto diretamente - contemplou-as apenas sob certo ponto de vista, numa perspectiva mediana.

O que o entusiasma, o que o inflama, como meridional, é sempre a coisa que fere os seus sentidos fortemente, a coisa que salta ao seu olhar e exprime claramente a forma sexual da mulher. É sempre o "seio de alabastro", os "divinos hemisférios", o "corpo de Vênus", os "encantos secretos" que acabam por ser descobertos, isto é, tudo aquilo que excita os sentidos de todo homem robusto, hercúleo .

Assim, das suas inumeráveis Henriquetas, Irenes, Babetes, Mariúcias, Ermelindas, Inácias, Lúcias, Esteres, Saras ou Claras (poderia ser todo o calendário) fica apenas uma recordação vaga, insegura, cor-de-rosa, um só corpo voluptuoso, uma confusa bacanal de datas e números, conquistas e entregas, qualquer coisa imprecisa como a memória de alguém que, tendo dormido embriagado, se ergue no dia seguinte com a cabeça pesada e tão confusa que já nem sabe com quem esteve bebendo na noite anterior.

Os contornos de tantos corpos e ainda menos os de suas almas não conseguem projetar suas sombras psíquicas ou físicas nas suas narrativas. Amou todas elas pelo contacto, pela epiderme, sentiu-as apenas nas suas peles, conheceu-as apenas carnalmente. E melhor que sua própria vida, esse detalhe é que nos dá a medida da enorme diferença que existe entre o simplesmente erótico e o verdadeiro amor; a diferença entre aquele que tudo ganha e nada conserva e aquele que pouco obtém, mas sabe transformar com a sua força espiritual esse momento fugitivo em alguma coisa duradoura.

Um único episódio de Stendhal - esse pobre amante triste - contém mais substância espiritual que essas três mil noites de Casanova; e os dezesseis volumes de suas Memórias dão menos idéia de como o eros sabe arrebatar o espírito aos êxtases do infinito do que uma simples estrofe de Goethe. Julgando sob um ponto de vista mais elevado, as suas Memórias são mais uma narrativa do que uma novela; mais notas de campanha de um general do que um poema; um Código erótico, um Kamasutra ocidental, uma Odisséia de carne, uma Ilíada do ardor masculino pela eterna Helena. Seu valor baseia-se na quantidade; nas variantes mais do que em casos isolados, na sua multiplicidade, porém jamais na sua importância espiritual.

Mas foi justamente por causa dessa plenitude, dessa pletora de acontecimentos e de tanta façanha fisiológica, que o mundo o elevou a categoria de símbolo do triunfador fálico, e coroou seu nome famoso, tornando proverbial, porque o nosso mundo admira o recorde e não aprecia a potência intelectual.

Ser um Casanova significa hoje, em todos os idiomas europeus: vencedor de toda resistência das mulheres, conquistador incansável, mestre de sedução, e como símbolo, equivale, dentro da esfera masculina, ao que Helena, Frinéia, Ninon de Lenelos significam para a órbita feminina.

A Humanidade, para poder criar o tipo imortal dentre tantos milhões de larvas, precisa sempre fazer uma abreviatura, uma síntese, e dar-lhe uma fisionomia, um corpo. Assim fez com esse veneziano, filho de cômicos:

deu-lhe a honra inesperada de ser a encarnação do herói amoroso de todos os tempos.

É verdade que divide tal honra com outra personagem lendária: Don Juan, o fidalgo de nobre linhagem, mais complicado e mais demoníaco do que ele. Já por várias vezes se mostrou o contraste entre esses dois mestres da sedução (Oscar A. H. Schmitz com maior segurança, no meu modo de pensar) e assim como é inesgotável o estudo comparativo de Leonardo da Vince e Miguel Ângelo; de Tolstoi e Dostoiewski; de Platão e Aristóteles, porque cada geração o adapta à sua tipologia inesgotável, assim é também a comparação desses dois representantes do erotismo.

Ambos se movem na mesma direção, ambos são aves de rapina para as mulheres, ambos atacam o rebanho impetuosamente, mas sua estrutura espiritual se apresenta absolutamente diferente. Casanova é ágil, de vida fácil, sem preconceitos e diques que o estorvem. Don Juan está rigidamente preso entre muros: é fidalgo, é nobre, é espanhol e católico no fundo dos seus sentimentos. Como espanhol de puro sangue, todo o seu pensamento gira dentro do conceito da honra e, como católico da Idade Média, obedece sempre, talvez sem o perceber, ao juízo em que a igreja codifica os atos da carne, isto é, a codificação do pecado.

Todo amor fora do matrimónio significa, conforme esse conceito cristão, alguma coisa diabólica, ofensiva a Deus, proibida por ele (nisso está o seu doce encanto); significa, afinal, uma heresia da carne.

Essas idéias fariam Casanova soltar uma imensa gargalhada, pois já tem nas veias o sangue da Renascença. A mulher é, naquele conceito, o instrumento do pecado; todo o seu ser, toda a sua essência, está a serviço do Mal. Sua existência terrestre é tentação e perigo, e mesmo a aparência de absoluta virtude é, enfim, engano e esconderijo da Serpente.

;Don Juan não acredita na pureza ou na castidade de mulher nenhuma, raça diabólica. Sabe que dentro dos seus vestidos estão nuas, prontas para a sedução; e é essa fragilidade feminina que quer mostrar ao mundo em mil e três exemplos. O que o excita continuamente nas suas façanhas amorosas é mostrar a Deus e aos homens que todas essas criaturas esquivas, todas essas esposas fiéis, essas meninas sonhadoras, todas essas espôsas de Cristo, todas, sem nenhuma exceção, podem ser levadas ao leito, porque todas são à l'église et singes, anjos na igreja e macacas no leito.

Nada mais absurdo do que pretender apresentar Don Juan como o amoroso, como o amante ou o amigo da mulher. Não; ele é o seu mortal inimigo! Nunca o leva o amor ou o desejo de uma apenas, particularmente. O ódio ancestral da sua masculinidade o impulsiona diabolicamente contra o seu inimigo, que é a mulher.

Sua conquista não é nunca para si próprio; é apenas o triunfo de um anelo - arrancar a honra.

Seu prazer não irradia, como no caso de Casanova, das suas glândulas sexuais, e sim do seu cérebro, pois esse homem, espiritualmente sádico, quer, ao fazer cair uma mulher, rebaixar com isso toda a feminilidade, rebaixá-la, humilhá-la, perdê-la. Seu prazer sem rodeios é um adiantamento do outro prazer fantástico que se há de seguir depois de ver desonrada e desesperada a mulher que seduziu, a mulher que desmascarou mostrando a sua vil sensualidade.

Para Casanova, o atrativo maior é a rapidez com que a mulher se decide a despojar-se das suas roupas. Para Don Juan, o contrário, a defesa, a dificuldade, o pudor, aumentam extraordinariamente o seu gozo. Quanto mais inacessível é uma mulher, quanto menor é a possibilidade de gozá-la, tanto maior é o seu empenho, porque essa será a que há de dar mais valor à sua tese e maior razão ao seu triunfo.

Onde não há resistência Don Juan perde toda ilusão. Impossível seria para ele pensar sequer, como Casanova, numa prostituta ou num bordel. Para ele só há encantos na humilhação de uma mulher, no adultério, no defloramento ou na sedução de uma freira. Quando possui uma, assim, dá por terminada a sua experiência, e a seduzida é apenas uma cifra, um número no seu registro - porque, como se sabe, tinha uma espécie de estatística, a cargo de Leporello. Nunca sente a ternura de voltar a ver os olhos da mulher que foi sua amante na noite anterior, pois, como bom caçador, não ficará contemplando demoníaco, procurando sempre novos exemplos de fragilidade da mulher.

O seu erotismo não procura, nem encontra descanso, mesmo no prazer; como num furor sanguíneo sente a necessidade dessa guerra implacável a mulher, e para essa luta recebeu do diabo um completo equipamento: riqueza, juventude, nobreza, beleza física, e o mais importante: uma completa frieza sentimental.

As mulheres, logo que sucumbem à fria técnica de Don Juan, pensam nele como se fora o diabo, odeiam-no de toda alma, e com a mesma força com que o amaram, vêem nele o inimigo mortal. Ele, por seu lado, não tem para a seduzida senão palavras de zombaria. (Isso foi imortalizado por Mozart).

As suas vítimas envergonham-se por ter caído, enlouquecem, despedem a mais tremenda cólera contra o canalha que as enganou; e odeiam nele todo o sexo masculino. Cada uma delas - Dona Ana, Dona Elvira - todas, enfim, que sucumbiram à sua estratégia, ficam com a sua feminilidade para sempre envenenada!

As mulheres que se entregavam a Casanova, ao contrário, lembram-no como a um deus e recordam com prazer sua aventura, porque não só não foram destroçados os seus sentimentos, não só não foram humilhadas na sua feminilidade, como parece que depois dele se encontraram a si mesmas sexualmente.

Don Juan ensina as mulheres a odiar a união carnal, como humilhação, como vileza, como momento infernal, como queda; mas Casanova, como bom magister artium erotica, as faz reconhecer no gozo sexual o verdadeiro sentido, o delicioso dever primordial da sua natureza feminina.

Esse robusto epicurista, como bondoso pregador, as exorta a julgar como pecado, não a entrega, e sim a resistência, pecado grave, na verdade, contra a carne, contra as leis naturais estabelecidas por Deus; e elas, encantadas, sentem-se livres de toda culpa.

As suas manobras passionais sabem tirar a mulher todos os temores, toda a timidez. Com ele se transformam em verdadeiras mulheres logo que se entregam. Torna-as felizes porque ele é feliz, e com o seu êxtase de prazer, apaga todo o receio de culpabilidade da sua companheira de leito, pois o seu gozo só é completo quando, é compartilhado com os nervos e o sangue pela mulher que se lhe entrega. "Os quatro quintos do prazer foram sempre, para mim, fazer a mulher gozar".

Exige gozo contra gozo assim como os outros precisam do amor correspondido, e a sua força hercúlea trata de esgotar a mulher mais do que a si próprio. Por isso seria um contra-senso se esse altruísta do prazer se servisse da astúcia, ou da força para alcançar o gozo.

Ao fidalgo espanhol, interessa ter possuído, ter seduzido. A Casanova, entretanto, interessa ter desfrutado. Assim não poderíamos, realmente, denominá-lo um sedutor e, sim, melhor, um indutor ao jogo, a um jogo novo e encantador, a que quer atrair todo esse mundo adormecido, pesado, preguiçoso à força de preconceitos e de moral. No eros, como um tudo, quer sempre agilidade e movimento arrebatador (só a irreflexão é capaz de aligeirar alguém do pêlo social) e assim toda mulher que se lhe entrega torna-se mais mulher que dantes, porque muito aprendeu, porque se fez mais voluptuosa e perdeu inúmeros preconceitos.

Ensina-lhes que o corpo - o corpo da mulher - que elas até então tinham olhado com certa indiferença, é uma admirável fonte de delícias. Pela primeira vez descobrem, ao perder o pudor, toda a beleza do corpo desnudo, e começam a ver um campo mais amplo na sua feminilidade.

Casanova, mestre na arte de dissipar, ensinou-as a se entregarem inteira e generosamente, a pagar o prazer com o prazer e não pedir ao amor um sentido diverso daquele que realmente podem sentir no seu corpo. Na verdade, não obtém a mulher para si mesmo; adquire-a para uma nova revelação do prazer.

Por esse motivo elas vão sempre procurar depois novos crentes desse novo e delicioso culto: a irmã leva a irmã mais jovem para esse doce sacrifício;

a mãe conduz a filha para o leito do excelente mestre; as amantes incitam as outras para praticar o rito desse deus generoso.

Assim com em Dom Juan vemos que a que foi seduzida adverte com a fraternidade do sexo aquela que ele quer conquistar, como a mostrar um terrível inimigo advertência sempre vã, naturalmente - com Casanova se passa o contráiro, porque cada mulher que conquistou mostra as outras esse verdadeiro divinizador do seu sexo, e por isso o ama como símbolo, imagem do homem passional, como mestre, do mesmo modo que ele, ao amar alguma particularmente, ama nela o conjunto, a totalidade do feminino.

Nenhum mago, nenhum fascinador se encerra em Casanova; e o que vence nele é sempre a natureza; essa é a sua força verdadeira e direta; virilidade e masculinidade: eis aí todo o seu grande segredo.

Natural nas suas exigências e honesto na sua sensualidade, leva ao amor um excelente senso comum e um equilíbrio verdadeiro e vital. Não diviniza as mulheres, elevando-as até ao céu; não as envilece, tornando-as como demônios; apenas as deseja e ama-as humanamente, realmente, como companheiras no delicioso jogo do amor, como complemento natural da potência e do prazer do homem.

Muito embora seja mais ardente e mais vigoroso do que todos os líricos, nunca exagera a idéia de amor como sentido universal, como a causa do movimento das estrelas no firmamento, como a prova do decorrer dos séculos e de uma humanidade, afinal, que vive e morre continuamente. Não considera, enfim, o amor, como "o amém do Universo", tal como o denomina Novalis; e sim vê nele, sã e justamente, a possibilidade mais agradável, e ao mesmo tempo mais forte, do prazer.

Assim, coloca o amor na sua justa medida e, fazendo-o baixar do céu, volta a colocá-lo na terra, na mulher, onde pode ser colhido por todo aquele que tenha desejo de gozá-lo.

E no mesmo momento em que Rousseau inventa para os franceses a sentimentalidade no amor, e Werther descobre para os alemães a melancolia romântica - Casanova glorifica-o como a embriaguez da existência, como o meio melhor de tornar a Vida ligeira, fácil e amável!

 

                   Os anos de obscuridade

 

Muitas vezes fiz coisas na minha vida que me repugnavam, não podia compreender como as fazia.

É que as fazia levado por uma força misteriosa, à qual não podia opor a menor resistência.

Casanova em suas Memórias

Na verdade, não podemos nunca censurar as mulheres por terem sucumbido sem resistência diante desse grande sedutor. Nós mesmos, ao lê-lo, sentimos também a tentação de sucumbir à sua fascinação, porque, devemos confessá­lo, não é fácil a ninguém ler as Memórias de Casanova, sem sentir uma verdadeira inveja profunda.

Constantemente, o ímpeto aventureiro que possui todo homem deseja sair desse mondo tão acanhado; e é nesses momentos, que a louca existência desse homem, suas aventuras, seus prazeres, sua vida inteira de epicurista nos parece mais sábia e mais real do que os nossos conflitos intelectuais, e sua filosofia, mais vital do que toda essa vida tenebrosa de Schopenhauer, ou todo o frio dogmático de Kant. Nesses segundos de inquietação, como nos parece vazia e tola nossa existência, tão enquadrada, tão limitada, tão cheia de renúncias, se a comparamos com a plenitude da sua vida agitada!

Compreendemos, então, que toda a nossa atitude intelectual, todo o nosso esforço moral, nós o pagamos bem caro, porque é a limitação de toda espontaneidade! Justamente querendo fortalecer nossa personalidade, encerramo-nos entre quatro paredes para assim resistirmos ao furacão do mundo; e com isso apenas fazemos erguer-se alguma coisa que possa ser presa da fatalidade que estruge por sobre nossas cabeças. Sempre que tratamos de nos eternizar, de nos tornar perduráveis e elevar-nos acima do presente, tomamos toda a vitalidade do momento. Quando por íntima intensidade nos erguemos acima do tempo, é sempre a custa do gozo da vida.

Temos juízos e preconceitos: levamos arrastando atrás de nós as pesadas cadeias da consciência. Somos prisioneiros nós mesmos e por isso nossa marcha é pesada, enquanto Casanova, ligeiro, alado, rápido, consegue todas as mulheres, percorre todos os países, e tangido pelo sopro do acaso, passa por todos os céus e por todos os infernos.

Por isso não há nenhum homem - seria inútil mentir - que não leia as suas Memórias com certa inveja, e não tenha complacência para com o ilustre mestre da arte de viver; e mil vezes não prefira ser um Casanova a um Miguel Ângelo, a um Balzac, ou a um Goethe!

A princípio se sorri ligeiramente diante das libertinagens, das velhacarias desse filou, mas quando se chega ao sexto, ao sétimo ou ao último volume, está-se inclinado a tomar a filosofia da superficialidade como a sabedoria mais sensata e mais encantadora que poderia haver na terra, e ver nele o homem mais sábio do mundo.

Mas, felizmente, acabamos sempre por nos libertar dessa idéia; e isso é devido ao próprio Casanova. Nossa admiração fora um pouco prematura, na verdade, porque toda a sua arte de viver tinha um mísero ponto fraco: não se apercebe da idade! Toda a sua técnica, uma técnica epicurista, sensual, dirigida para o materialismo, está edificada exclusivamente sobre os sentidos e a resistência física; e logo que a chama começa a perder todo o brilho, toda a filosofia do prazer se evapora transformando-se em fumaça.

Só se pode dominar a vida quando se tem os dentes brancos e fortes. Mas, oh, mágoa! Assim que eles começam a cair, que os sentidos já não respondem aos apelos, também vai desaparecendo essa agradável filosofia do prazer.

Para todo homem sensual a curva de existência termina por baixar sempre, pois o que malbarata não tem reservas para por baixar sempre futuro; arde com todo o seu calor e começa a perdê-lo ao ver decair a sua potência.

O homem intelectual, ao contrário, embora aparentemente vá renunciando a tantas coisas na vida, é como um acumulador - que consegue reter em si mesmo uma grande energia. O que se entregou ao espírito experimenta, apesar dos anos (Goethe, por exemplo) transformações, sublimações, luzes novas e até visões nascentes. Do seu sangue, já frio, irradiam novas luzes intelectuais, e se perde a força de tensão, indeniza-se disso por um novo jogo de idéias.

Mas o homem puramente sensual, que segue cegamente a realidade e que se move apenas sob o impulso dos acontecimentos, fica quieto, inerte, como um moinho d'água quando lhe falta o elemento que o faz mover-se. Envelhecer, para ele, é descer para o nada. A vida, implacável credor, exige, sempre, com juros, a devolução do que se tomou demasiadamente cedo ou com excessivo estouvamento.

Assim, pois, ao terminar a felicidade de Casanova, termina também toda a sua sabedoria - e essa felicidade lhe foge logo ao vê-lo envelhecer.

Parece um sábio enquanto é formoso, forte, audaz. Provoca inveja até aos quarenta anos; daí por diante causa piedade apenas. O seu divertido carnaval, tão alegre e tão colorido como o dos venezianos, termina precocemente numa triste quarta-feira de cinzas.

Pouco a pouco se vão introduzindo sombras sinistras nas suas Memórias:

rugas, por assim dizer, que anunciam a velhice. Há sempre menos êxitos para contar e mais desgostos nos seus registros. Cada vez mais se vão misturando a sua alegria assuntos desagradáveis: letras que não foram pagas, notas falsas, jóias penhoradas. Pouco a pouco se vão fechando para ele as melhores portas das suas relações. Deve fugir de Londres à noite, as presas, justamente no instante em que ia ser preso e depois enforcado.

Escorraçam-no de Varsóvia como a um criminoso; é expulso de Viena e de Madrid; em Barcelona está na prisão durante quinze dias; é repelido em Florença. Vê-se obrigado a fugir de Paris porque há uma ordem de prisão contra ele. Ninguém o quer, todos se afastam dele como se fora um perigo ou uma imundície. Alguém perguntará assombrado que fez esse aventureiro para que o mundo - que tanto o mimoseou! - se lhe mostre com tanta severidade num estranho alarde moral! Tornou-se malvado? Perdeu sua proverbial galanteria? Por que todos lhe voltam as costas?

Não; decerto que não. Ele é o mesmo de sempre; farsante, charlatão e ;bel esprit, até ao dia em que morrer. O que lhe falta é o elemento em que se desenvolvia toda a sua tensão e todo o seu ímpeto: fugiu-lhe a consciência da sua força, o sentimento do seu vigor juvenil.

É castigado precisamente no que mais pecara. São as mulheres as que primeiramente o abandonam. Foi uma pequena Dalila quem feriu cruelmente esse Sansão do Eros, aquela miserável Charpillon de Londres.

Esse episódio é um dos melhores das suas aventuras; é o mais humano, o mais real e também o mais artístico, cheio de emoção realmente sentida e que por isso se faz sentir pelos outros. É o episódio que marca o começo da sua queda. Pela primeira vez uma mulher engana o mestre do amor; e o pior é que não se trata de uma criatura nobre e extraordinária que se nega por virtude, e sim uma comediante hábil que o enlouquece, que o explora até à última moeda, e que ele nem ao menos consegue beijar!

Casanova vê-se rechaçado, apesar de ter posto na conquista todo o seu ímpeto e todo o seu dinheiro; vê-se burlado por essa rameira, que se entrega ao mesmo tempo gratuitamente a um aprendiz de barbeiro e o faz feliz, enquanto ele fracassa, apesar do dinheiro, apesar de toda a sua astúcia e de todo o seu desejo.

E o golpe mortal para o orgulho e a confiança que tinha em si mesmo! Desde esse momento seu passo firme de triunfador se torna vacilante e inseguro.

Prematuramente, aos quarenta anos, compreende que o motor que o movia e lhe abria sempre o caminho pelo mundo, falha desta vez; e pela vez primeira lhe ocorre o pensamento angustioso de que um dia terá de parar completamente.

"Com imensa pena percebi que se aproximava, com os anos, um princípio de morosidade. Não possuía mais aquela confiança que dão a juventude e a consciência do próprio valor".

Mas que restará dele se o abandona a confiança em si próprio, sua acometida para as mulheres? Se o abandonam a potência, a beleza, o dinheiro e esse aspecto consciente de vitorioso, de favorito da fortuna?

Que será dele se perde esse triunfo no jogo da Vida? Não será, pois, mais do que um "cavalheiro de certa idade - diz-nos com melancolia - de quem nem a Fortuna nem as mulheres querem mais saber".

Um pássaro sem asas; um homem sem virilidade, um amante sem felicidade, um jogador sem dinheiro, um corpo triste sem formosura e sem força! E ao perder toda a amplitude do triunfo e do prazer, se introduz na sua filosofia, pela primeira vez, a perigosa palavra: "renúncia"!

Já passou o tempo em que fui enamorado das mulheres; agora, tenho de renunciar a todas elas ou comprar seus favores".

"Privação", "renúncia" - palavras que não tinham sentido para ele eram agora reais, pois, para comprar mulheres, precisa de dinheiro, mas o dinheiro sempre o conseguiu com as mulheres. Interrompe-se o círculo vicioso; termina o jogo. É um caso bem sério para o mestre dos aventureiros.

E assim, o pobre Casanova, o velho Casanova, transforma­se, de gozador, em parasita, de curioso perante a Vida, em espião; de jogador, em mendigo. E aquele homem que vivia sempre alegre, no bulício da sociedade, é agora um solitário narrador.

Comovente exemplo ! Esse homem desarma-se e deixa os apetrechos de guerra!

O herói de inúmeras façanhas torna-se precavido e modesto; o homem cínico e libertino faz-se tímido e retira-se cauteloso - ele, commediante in fortuna - cenário do êxito! Abandona seus trajes pelintras "que não condizem com a minha posição", e também com o seu orgulho, sacode para longe os anéis e fivelas de diamantes, repele sua filosofia como um naipe inútil na mesa do jogo; curva-se diante da lei da Vida, essa lei que transforma as rameiras de ontem em criaturas celestes de hoje, os jogadores em velhacos, e os aventureiros em lambedores de pratos.

Já que o sangue não circula com o mesmo ardor de outrora, o antigo du mondecomeça a sentir frio na imensidade do mundo e deseja sentimentalmente voltar à sua pátria.

Aquele orgulhoso de outros tempos - pobre Casanova que não soube morrer nobremente baixa a cabeça humilde e pede ao governo de Veneza que perdoe os seus erros: escreve informações pouco dignas aos inquisitores, publica um libelo patriótico, "uma refutação aos ataques dirigidos ao governo de Veneza", na qual não se envergonha de dizer que os Chumbos, onde ele definhou, são "habitações ventiladas" e quase um modelo de humanitarismo!

Não há nada sobre isso nas suas Memórias. Terminam de súbito sem nada contar desses anos de indignidade. Retira-se para a obscuridade, talvez para ocultar sua baixeza; e muitos alegram-se com isso, pois é bem triste essa sombra, essa detestável paródia, essa silhueta miserável daquele que foi um soberbo triunfador!

Como é sórdido esse galo depenado, esse eco rouco daquele cantor alegre que tanto invejamos!

Depois, durante dois anos, vai e vem pelas tabernas ouvindo atentamente o que dizem os venezianos, observando a gente suspeita; e à noite, escreve largas informações de espionagem para a Inquisição. Esses informes são assinados com nome de Angelo Pratolini. pseudônimo que esconde um zeloso espião sabe ouvir atrás das portas, e que por um par de moedas de ouro leva os estrangeiros àquelas prisões que ele conheceu quando jovem e cuja descrição o tornou célebre pela desfaçatez.

Daquele cavalheiro de Seingalt, belo, fino, atilado; daquele favorito das mulheres, de Casanova, enfim, nasceu esse Ângelo Pratolini, delator de profissão. Aquelas mãos, outrora ornadas de pedras preciosas, estão agora metidas em negócios bem sujos, salpicadas de veneno que espalham com a pena em folhas de papel - até que a própria Veneza acaba por dar um solene pontapé nesse vil espião!

Não há nenhuma notícia dos anos que se seguiram a esse fato, e ninguém sabe por que mares navegou esse peixe humano até encalhar nas costas da Boêmia. Sabe-se apenas que percorreu a Europa, fazendo piruetas diante dos aristocratas, rondando em torno dos ricos, procurando exercer seus antigos ofícios: trapaceiro, mago, arranjador de amantes...

Mas os deuses da sua juventude: o cinismo, a confiança, já o abandonaram.

As mulheres riem-se descaradamente dele e das suas rugas. Já não se atreve a andar com a fronte orgulhosamente alta; humilha-se e contenta-se com o que lhe dão. É secretário (é preciso supor que também seja espião) do embaixador em Viena, indesejável pela polícia e hóspede intruso em todas as capitais da Europa. Em Viena quer casar-se com uma ninfa saída das baixas classes para assegurar sua vida com uns ingressos de certo modo importantes. Mas até isso é um insucesso!

Finalmente, o conde de Waldstein, adepto das ciências ocultas, encontra em Paris o poète errauit de rivage en rivage.

Triste jouet des flots rebut de naufrage, e apiada-se dele. Alegra-o a conversa desse cínico charlatão já deteriorado, mas ainda agradável; e leva-o para a Boêmia, para Dux, como bibliotecário, aliás bufão. Mil florins anuais de salário e ao abrigo dos credores. É' esse o preço, não exagerado realmente, que se paga por esse curioso exemplar. Alí, em Dux, vive, ou antes, morre durante treze anos!

Em Dux reaparece o seu vulto coberto de sombras nos anos anteriores. Ali está Casanova, isto é, alguma coisa que faz lembrar Casanova - sua múmia, seca, endurecida, rígida, áspera, conservada na sua própria bile - exemplar digno de um museu que o senhor Conde gosta de possuir e mostrar aos visitantes! Uma cratera apagada, na opinião desses senhores; um velho divertido, inofensivo, que morre lentamente de aborrecimento nesse recanto da Boêmia...

Mas, outra vez ainda engana o mundo inteiro, pois, quando todos o julgavam acabado, esperando apenas o ataúde e o cemitério - o velho Casanova, reunindo as suas recordações, reconstrói a sua vida e, no último gesto de audaz aventureiro, liga-se astutamente à Imortalidade!

 

                   Imagem do velho Casanova

 

Altera nunc rerum facies, me quaero, nec adsum, Non sum, qui fueram, non putor esse fui.

Epígrafe à imagem da velhice

1797-1798. A vassoura sangrenta da Revolução varreu o século galante. As cabeças de suas majestades católicas, o rei e a rainha, estão na cesta da guilhotina e um pequeno corso mandou ao diabo dez dúzias de príncipes e pequenos reis, e com eles também os senhores Inquisidores de Veneza.

Já não se lê a Enciclopédia, nem Voltaire, nem Rousseau, e sim os comunicados do teatro da guerra. A quarta-feira de cinzas desceu sobre a Europa. Terminou o carnaval e passou o rococó das grandes casacas e as cabeleiras empoadas, as baixelas de prata e as rendas de Bruxelas. Já não se usam os luxuosos trajes de veludo: ou se anda de uniforme, ou se vestem roupas burguesas.

Mas, coisa estranha: há um homem que se esqueceu do tempo! Está além, num dos lugares mais obscuros da Boêmia como o senhor Gluck da lenda de Hoffmann, marcha pelo pedregoso caminho que vai do castelo de Dux até à aldeia. É um personagem exótico; usa jaleco de veludo com botões dourados, punhos de renda amarela e roída, meias de seda, ligas de cor e um chapéu enfeitado com uma pena branca. De acordo com o antigo costume, usa o cabelo empoado, mal empoado, é verdade (esse homem não tem criados). Sua mão, já trêmula, apóia-se solenemente a um bastão como se usava nesse tempo; um bastão de cana com a ponteira dourada, como os que se viam em 1730 no Palais Royal.

É Casanova, isto é, a sua múmia. Continua vivendo apesar da sua miséria, da sua cólera, da sua sífilis. Sua pele é como o seu nariz se curva como um bico de águia sobre os lábios secos e flácidos; a boca é mole e babosa;

as grandes sobrancelhas, brancas e revoltas.

Toda a sua pessoa ressuma velhice, bolor e pó. Apenas os olhos negros como o azeviche estão ainda cheios de inquietação e, penetrantes, malignos, olham por entre pálpebras semi­cerradas. Verdade é que se fixam no que o cerca. Vai murmurando e resmungando, pois o velho Casanova não está de bom humor desde que o destino o arrastou até esse ignoto rincão da Boêmia.

Para que olhar? Não vale a pena esforçar-se para ver todos esses pobres diabos com caras de asnos, comedores de batatas, que nunca puseram os narizes além dessa torpe aldeia, e nem sequer o saúdam, a ele, o Cavalheiro de Seingalt, que nos bons tempos, meteu uma bala no ventre de um marechal da Polônia e que recebeu das mãos do Papa a ordem da Espora de Ouro.

E o que ainda é pior: nem mesmo as mulheres o respeitam; ao contrário, põem a mão na boca para reprimir o riso plebeu quando ele passa. Verdade é que lá sabem do que se riem; as criadas contaram que esse velho gotoso tenta, seduzi­las e lhes diz, no seu modo de falar tão estranho, as coisas mais absurdas.

Mas, mesmo assim, ainda é melhor essa gente do que a canalha de lacaios que existe no castelo - esses asnos que o ridicularizam. Sobretudo, esse Feltkirchner, o mordomo-mór, e Winderholt, seu satélite. Oh! Canalhas!

Ainda ontem puseram-lhe sal na sopa e queimaram, de maldade, o macarrão.

Arrancaram o seu retrato do Isokameron, para polo no banheiro, e atreveram-se, os miseráveis, a bater na sua cadelita Melampyge, esse animalzinho que lhe dera a condessa de Roggendorf, porque fizera uma necessidade em uma da salas.

Onde estão aqueles bons tempos em que se punha toda essa gentalha no tronco e se castigavam a chicote esses aventureiros? Hoje se é obrigado a suportar suas insolências, tudo isso graças a Robespierre, que deixou subir a canalha! Os jacobinos nivelaram tudo, e ele ficou como um simples cão velho e desdentado. Para que queixar-se, resmungar, ralhar durante todo o dia? Melhor será fechar-se no seu cubículo, afastar-se dessa gente e ler Horácio.

Mas hoje nem tudo será aborrecimento! Essa pobre múmia agita-se como um boneco e vai incansavelmente de um a outro aposento. Pôs a antiga casaca, limpou cuidadosamente a sua insígnia da Espora de Ouro; penteou-se do melhor modo possível; pois hoje vem visitar o senhor Conde altas personagens, que permanecerão no Castelo: - Sua Graça von Teplitz, os Príncipes de Ligne e várias outras pessoas de alta nobreza.

Hoje durante o almoço, se falará francês e toda essa pandilha de criados terá de servi-lo com os dentes cerrados, apresentar-lhe os pratos com o dorso curvado, servilmente, e não como ontem, como todos os dias, por-lhe, sem cerimônia, à frente, um prato, com bazófias, como quem dá de comer a um cão.

Hoje, ao meio dia, há de sentar-se à mesa com os cavaleiros austríacos; e essa gente ainda sabe estimar e apreciar uma conversação bem cuidada e escutar respeitosamente um filósofo a quem o próprio Voltaire escutou com toda a atenção, e que foi recebido muitas vezes por imperadores e reis.

Provavelmente, logo que as damas se retirarem, o senhor Conde pedirá insistentemente que lhe leia qualquer coisa de certo manuscrito - sim, senhor Feltkirchner, senhor burrico; sim, o senhor Conde de Waldstein, o Marechal, o Príncipe de Ligne hão de rogar-me para que eu leia um capítulo das minhas interessantes memórias. E eu, é claro, talvez lhe conceda esse favor; talvez porque não sou nenhum criado do senhor Conde e não sou obrigado a prestar-lhe obediência. Não pertenço a esta canalha de servidores. Sou seu hóspede, seu bibliotecário e nos tratamos de igual para igual. Isso, vós outros, não podeis compreender, canalhas jacobinos!

Contarei um par de anedotas, cospetto! um par de deliciosas anedotas à moda de Crébillon, ou alguma história picante à maneira veneziana... Sim, nós somos pessoas nobres e quando falamos apreciamos os matizes das frases. Havemos de sorrir e de beber Borgonha como na corte de sua majestade católica; há de se falar sobre a guerra, sobre a alquimia, sobre livros e, sobretudo, se ouvirá o que um velho filósofo pode dizer sobre o mundo e sobre as mulheres.

Excitado, vai e vem pelos salões, como um velho e grande pássaro, os olhos expelindo chamas de orgulho. Limpa suas pedras falsas (as verdadeiras, há muito tempo que as levou um judeu) que enfeitam a insígnia da sua Ordem, alisa os cabelos, e em frente aos espelhos, faz reverências e cortesias, como se faziam na corte de Luís XV, porque aqui entre esses ganha­pães, uma pessoa pode até esquecer-se das boas maneiras.

Verdade é que seu dorso já está curvado; não foi em vão que esse corpo tanto viajou em coches, por toda a Europa; e Deus sabe a quantidade de seiva que repartiu entre as mulheres. Mas no seu crânio persiste todo o seu engenho; ainda saberá divertir os senhores e fazer-se ouvir. Com uma caligrafia larga, um pouco trêmula, escreve uma poesia de boas vindas, em francês, para a Princesa de Reck, sobre uma folha de papel; põe, além disso, uma pomposa dedicatória na sua obra de teatro de amadores; sim, também aqui, em Dux, há alguém que sabe fazer as coisas e receber corretamente uma respeitável e nobre sociedade!

E assim sucede: quando chegam os carros e ele desce com agilidade de gotoso as escadas, então o senhor Conde e seus convidados entregam suas capas, seus chapéus e suas peles aos criados; e abraça-os no estilo dos nobres, e apresenta-se aos visitantes como o célebre Cavalheiro de Seingalt.

Elogiam os seus dotes literários e as damas disputam a sua companhia na mesa. Apenas são retirados todos os pratos e os homens começam a fumar - o Príncipe, como ele previra, pede informações sobre os seus trabalhos literários, sobre suas Memórias, e todos ao mesmo tempo, cavalheiros e damas, suplicam-lhe que leia algum capítulo dessas Memórias que sem dúvida - dizem - um dia serão célebres.

Como negar esse favor ao seu protetor, ao senhor Conde? Pressuroso, o bibliotecário vai ao seu quarto, e dos seus quinze pequenos volumes escolhe um que já marcara com um sinal e pode ler em presença de senhoras:

a fuga dos Chumbos de Veneza.

Muitas vezes o aventureiro já lera esse episódio da sua vida ao Príncipe da Prússia, ao de Colônia, na Corte de Varsóvia; mas hão de ver esses senhores que Casanova sabe contar as coisas de um modo bem diferente desse insosso e seco prussiano, o senhor de Trenck, do qual tanto se falou sobre as suas Há pouco tempo introduziu nas suas Memórias umas tantas alterações, umas complicações surpreendentes e, para finalizar, uma citação bem adequada do divino Dante.

Ao terminar a leitura, soam aplausos entusiásticos; o Conde abraça-o e faz deslizar para o seu bolso, sem que ninguém veja, um maço de ducados, que muito lhe vão servir, porque, bem sabe Deus, todo o mundo já o esqueceu, todo o mundo, menos os seus credores, que o perseguem até nesse obscuro esconderijo.

Vede-o agora! Duas lágrimas correm-lhe pela face quando a Princesa o felicita meigamente, e todos bebem à sua saúde e para que em breve termine essa obra que está escrevendo.

No dia seguinte os cavalos relincham no pátio; as caleches esperam à porta do castelo, os grandes senhores partem para Praga e embora o senhor bibliotecário tenha feito várias insinuações dizendo que também precisava ir a Praga, ninguém o convida para a viagem. E ali fica, no gigantesco e frio castelo de Dux, entregue à canalha da criadagem que, apenas vê desaparecer na estrada os carros dos senhores, começa logo com as chacotas e os deboches.

Fica entre bárbaros; nenhum homem com quem possa falar em francês ou italiano e discutir sobre Ariosto ou Jean­Jacques. Não pode estar sempre a escrever cartas ao senhor de Opiz, em Czaslau, e a duas bondosas senhoras que ainda se correspondem com ele.

O aborrecimento, como uma nuvem fria e úmida, penetra outra vez nas grandes salas ressonantes, e a gota, quase esquecida ontem, volta a morder hoje suas pernas com redobrado furor. Resmungando, Casanova abandona seu traje de luxo, e pondo sobre o corpo a manta de lã turca, retorna ao seu asilo, ao seu refúgio, as suas recordações, e senta-se à mesa de trabalho.

Aí, nessa mesa, o esperam as penas já cortadas junto as brancas folhas de papel, que parecem aguardar com impaciência as suas letras. E sentado, escreve, com a mão trêmula. Bendito o aborrecimento que o levou a escrever as recordações! Escreve a História da sua Vida!

Por trás da sua fronte de aspecto seco e morto, por trás da amêndoa dentro do seu invólucro lenhoso, uma memória genial. No pequeno espaço compreendido entre a fronte e o occipital está tudo bem vivo: tudo o que seus olhos viram, tudo o que as asas voluptuosas do seu nariz respiraram e tudo o que suas mãos cobiçosas tocaram. Essas mesmas mãos, agora sarmentosas, não deixam a pena de ganso todo o dia ("treze horas diárias, que me parecem treze minutos!") e tremem ao pensar em todas as mulheres que acariciaram.

Sobre a mesa estão, revoltas, amarelentas cartas de suas primeiras amantes, notas, faturas, recordações, e como quando se apaga o fogo resta o fumo sobre ele, aqui também, sobre todos esses objetos, se ergue, incerta, uma nuvem dulcíssima de ternas memórias.

Cada abraço, cada beijo, cada deliciosa posse, desfila em louca fantasmagoria. Certamente escrever essas recordações não é um trabalho - é um grande prazer: lea plaisir de souvenir ales plaisirs. Ao pobre ancião isso traz calor aos olhos; os lábios tremem de emoção; murmura palavras entrecortadas; reconstrói diálogos meio esquecidos. Involuntariamente procura imitar as vozes que ouviu um dia e ri alto dos seus antigos gracejos.

Esquece-se de comer e de beber; esquece-se também da sua pobreza, da sua miséria, da sua humilhação, da sua impotência, da sua dor e até da sua idade, contanto que possa reviver suas lembranças. Henriqueta, Babete, Teresa, todas vão desfilando sorridentes como sombras do além e ele goza na sua necrológica presença talvez mais que na presença real.

E escreve; escreve; e vive no papel as aventuras que um dia viveu seu corpo. Fala alto, recita, sorri e se esquece de si mesmo.

Da porta entreaberta se acercam os criados e fazem sinais uns para os outros. "Com quem fala e ri esse velho louco?" Rindo também, levam um dedo à fronte para indicar que ele endoideceu, e fazem grande ruído propositadamente subindo e descendo escadas.

Ninguém sabe nada sobre ele no mundo nem os que estão ao seu lado, nem os que estão distantes. Como ave de rapina prisioneira, o velho Casanova se aninhou na velha torre do castelo de Dux, ignorado e desconhecido de toda a gente.

Quando, afinal, em junho de 1798, o coração triturado deixa de pulsar, seu corpo, no qual se abraçaram em vida milhares de mulheres se vê, então, abraçado pela terra úmida, encerrado no ataúde.

No registro paroquial ignora-se o verdadeiro nome que tinha em vida, e registram apenas Casaneus, veneziano - um nome que nem sequer é o seu, e em continuação: oitenta e quatro anos, uma idade falsa; tão desconhecido é para os que o cercam!

Ninguém se preocupa com o túmulo, ninguém pensa no que ele escreveu; seu corpo apodrece no esquecimento, suas cartas também. Os seus manuscritos vão e vem entre mãos indife­rentes e sempre desonestas; e de 1798 a 1822, isto é, durante um quarto de século, ninguém parece estar mais morto que esse morto, que está, sem dúvida, mais vivo do que os vivos!

 

                   O gênio da confissão

 

Tudo depende de ter o valor suficiente (Prólogo)

Se aventureira foi a sua vida, aventureira foi também a sua ressurreição.

No dia 13 de dezembro de 1820 - quem se lembrou de Casanova? - a conhecida casa editora Brockhaus recebe uma carta de um tal Gentzel, perguntando se lhe interessaria publicar uma obra, "História da minha vida até ao ano de 1797" - escrita por um homem que se chamou Casanova.

Os editores, respondendo com displicência, pedem para lhes ser enviado o original, que é depois lido pelos técnicos; - e pode-se compreender o entusiasmo que despertou sua leitura. O manuscrito foi logo adquirido e traduzido, mal traduzido, deformado, enxertado de pudicas folhas de parreira para que todos pudessem lê-lo.

Quando se chegou ao quarto volume, o êxito era já tão extraordinário que um pirata parisiense traduz a edição alemã para o francês, adulterando-a mais ainda. A casa Brockhaus inquieta-se com êsse fato, e por isso, logo em seguida lança no mercado uma tradução francesa por sua conta, com o fim de prejudicar a outra. Numa palavra o grande aventureiro vive de novo em todos os países e em todas as cidades. O seu manuscrito foi fechado, com toda solenidade, na arca de ferro da casa Brockhaus; e assim, só Deus e essa casa sabem tudo o que desse original foi roubado, substituído, perdido, cortado - tudo o que se falsificou e se alterou. Essa herança - como poderia ser uma herança de Casanova - foi um assunto cheio de mistérios, de aventuras, de enganos; mas que agradável milagre possuirmos hoje esse livro cínico e vivo, que com a suas aventuras se ergue sobre o tempo! O próprio autor nunca poderia acreditar nesse estranho milagre. "Há sete anos não faço outra coisa a não ser escrever minhas recordações", disse em certa ocasião o reumático eremita, "e veio a ser para mim uma verdadeira necessidade terminar este trabalho que me arrependo de ter começado. Escrevo, crente, de que minha história nunca verá a luz do dia, pois mesmo julgando que a infame censura jamais permitirá sua publicação, espero ser tão sensato que um dia queimarei todos esses originais, quando me vier a última doença". Por felicidade foi fiel à sua vida e não chegou a ser um ente sensato; e seu "rubor secundário" como ele denomina o natural rubor, que nunca sentiu, seu rubor secundário, repetimos, não o impediu de escrever treze horas por dia, com a sua formosa letra, cadernos e mais cadernos da sua mágica narrativa. Essas recordações eram, para ele, "o único meio de não enlouquecer ou morrer de desgostos, desses desgostos e dessas humilhações com que me pungem estes miseráveis que estão comigo no castelo do Conde de Waldstein".

Poder-se-á dizer que escrever Memórias como um meio de afugentar o tédio ou como remédio para não se fossilizar intelectualmente, é um motivo na verdade modesto, mas cuidado! não desdenhemos do tédio como impulso criador.

Devemos o D. Quixote aos anos de cárcere de Cervantes; as melhoras páginas de Stendhal aos seus anos de exílio nos pântanos de Civitavecchia, e talvez a própria Divina Comédia de Dante, ao seu desterro (em Florença, escrevera, provavelmente, com a espada e o machado em vez da pena). Só na câmara escura, num espaço tranquilo e sombreado, contemplar, realmente, os quadros da vida. Se o Conde de Waldstein tivesse levado o nosso pobre Jacob a Paris ou Viena, se o tivesse alimentado bem e chegasse ao seu nariz o aroma da carne das mulheres - se tivesse feito honneurs d'esprit nos salões, suas deliciosas narrações não teriam sido escritas e sim, apenas contadas, entre xícaras de chocolate e taças de sorvetes. Mas o velho pássaro está isolado num recanto da Boêmia, e, abandonado por todos, pode escrever como quem vê todas as coisas do reino da Morte. Seus amigos morreram; suas aventuras foram esquecidas; seus sentidos estão apagados; é apenas um espectro que vaga pelas frias e melancólicas salas do caste­lo.

Nenhuma mulher vem visitá-lo; já ninguém lhe demonstra apreço ou consideração; ninguém o escuta mais; e assim Casanova, como um velho bruxo, para provar a si próprio que vive ainda ou que, pelo menos, viveu no mundo, se dedica à arte das magias, como o fez na sua juventude, para desse modo evocar os vultos dos que se foram. E essa arte diabólica, pratica-a somente para si mesmo, numa viva recordação dos seus prazeres passados e perdidos para sempre.

Suas aventuras revivem admiravelmente na triste solidão. "Renovo o prazer de recordar; e rio-me das angústias que passei, pois já não as sinto".

Como uma criança, olha na câmara escura as figuras da lanterna mágica que refletem com todas as suas cores as estampas do passado.

Não procura mais nada; não pensa em mais nada. Essa indiferença que tem pela vida, na velhice, esse afastamento total de tudo é o que dá aos seus livros o grande valor psicológico, porque tudo o que diz sobre a sua vida o faz quase sempre para alguma coisa, por alguma coisa, e de certa maneira, visando o público. Coloca-se no cenário, sabendo que o vêem; inconscientemente, toma uma posição especial, interessante; estuda o efeito que pode produzir, e em muitas ocasiões tem o senso da finalidade.

Benjamin Franklin tende para uma vida didática; Bismark forma sua vida documentalmente; J. J. Rousseau busca a sensação; Goethe orienta a existência no sentido da obra de arte ou da poesia romântica; Napoleão, em Santa Helena, guia sua vida à maneira de estátua ou de monumento.

Todos eles sabem que, pela própria dimensão histórica, podem aspirar a que suas vidas tenham uma virtude, uma diretriz, seja na ordem moral, histórica ou literária; e por isso essa convicção os leva a dirigir essas vidas com o sentimento da responsabilidade. Os homens célebres nunca são espontâneos nas confissões, pois seus vultos já estão formados na fantasia, ou mesmo na realidade da vida; e assim se vêem forçados, talvez contra a vontade, a estilizar confissões, memórias e retratos de si próprios, dando-lhes um tom falso de lenda.

Os homens célebres devem ter, para o bem da sua glória, muitas coisas em conta: a pátria, os filhos, a moral, a honra; e estão sempre, por esses motivos, presos à sua dignidade.

Casanova, ao contrário, pode-se permitir o luxo de não ter entraves nem finalidade de espécie alguma, porque pode escrever com todo o cinismo de um homem que assinaria tudo com um pseudônimo, e porque também não está preso a pessoa nenhuma, nem reconhecido a ninguém: nem ao passado que já esqueceu, nem ao futuro, nem a razões de ética ou de interesse. Seus filhos estão por aí metidos em ninhos alheios, como os ovos do cuco. As mulheres que foram suas já há muito tempo apodreceram nas terras da Itália, da Espanha, da Inglaterra ou da Alemanha. Não tem uma pátria que o prenda, nem lar, nem religião! Com os diabos, então?! A quem irá dar satisfações? A si próprio?

Tudo conta, pois não poderá de nenhum modo prejudicar-se. É como se já estivesse morto, como se se colocasse além do bem e do mal, do respeito ou do interesse, do aplauso ou da censura. E' como uma estrela apagada, esquecida, que arde apenas no seu interior, no seu núcleo. "Porquê - pergunta a si mesmo - não hei de ser sincero? Ninguém engana a si próprio, nunca; e eu escrevo somente para mim".

Ser sincero não significa para ele procurar profundamente dentro de si nem abrir galerias interiores para descobrir filões psicológicos.

Não. Para Casanova ser sincero significa - falar sem pudor, sem embaraços, sem considerações. Deixa as roupas, mergulha novamente na corrente tumultuosa das sensualidades, banha-se, nada alegremente, nas suas recordações, sem pensar se há ou não espectadores.

Não conta aventuras para sua própria glória, como faz um general, um literato ou um poeta; e sim como faz contando histórias um velho pouco escrupuloso; ou como relembra seus enredos amorosos, uma velha cocote;

isto é, sem a menor sombra de pudor. "Non erubesco evangelium"; não me ruborizo com a minha confissão; isso parece ser um motto; não se pavoneia, nem se arrepende - conta apenas o que lhe sai da boca.

Não se pode estranhar que esse livro seja dos mais crus e naturais na história, de uma verdadeira sinceridade erótica, de uma franqueza clássica, como não se pode encontrar senão talvez na autobiografia do espanhol Contreras (livro pouco conhecido).

Talvez seja demasiado vivo, demasiado cínico e, para certos espíritos, talvez ali se vejam em excesso os músculos fálicos que ele ostenta com certa vaidade de atleta; mas não, mil vezes, essa exibição desavergonhada é preferível a uma torpe escamoteação ou a uma galanteria paralítica in eroticis.

Compare-se aos outros livros eróticos; a essas frivolidades rosadas e doces dos Grécourt, Crébillon ou Faublas, onde Éros vai miseravelmente vestido e o Amor parece um chassé-crosé, um joguinho inofensivo, que não pode ter sífilis nem produzir filhos. Comparem-se, dizia, esses tratados, com a alegria do prazer, do verdadeiro prazer, natural, sadio, desse homem sensual. Só na comparação poderemos observar a verdadeira masculinidade.

Em Casanova o amor não é um delicado meandro azul de águas transparentes e impolutas, que serve para que as ninfas molhem os pés; e sim uma torrente tumultuosa que deixa refletir o mundo inteiro, na sua superfície, e que arrasta nas suas águas revôltas todo o lodo e todo o lixo da terra.

Ninguém, como ele, escreve o universal, o total e o terrivelmente poderoso do ímpeto sensual.

Apareceu, finalmente, alguém que teve o valor de mostrar esse conglomerado de carne e de espírito, que é o amor de um homem. Não mostra apenas os assuntos sentimentais ou as cenas delicadas, mas também as aventuras com as rameiras dos becos, os abraços puramente da carne e do sexo: esse intrincado labirinto da sexualidade que todo homem atravessa sempre na vida.

Não significa isso que os outros grandes autobiógrafos, como Goethe ou Rousseau, não fossem corretamente sinceros, mas não há dúvida de que já é pecado de insinceridade contar as coisas pelo meio ou escondê-las de todo como fazem os demais executando-se talvez Hans Jäger.

Todos, consciente ou inconscientemente, calam os episódios realmente carnais, simplesmente sexuais de suas aventuras amorosas para, em troca, se estenderem prolixamente nos amares espirituais e passionais com as suas Claritas ou Margaridas. Apresentam nas biografias apenas aquelas mulheres que são suficientemente espirituais para poder, sem rubor, dar-lhe o braço no caminho da posteridade.

As outras mulheres ficam convenientemente esquecidas na obscuridade dos seus esconderijos. Com isso falseiam e sublimam o erotismo do homem:

Goethe, Tolstoi e mesmo Stendhal, que não é, na verdade, moleirão, passam ligeiramente, em má consciência, por sabre aventuras de leito ou encontros com a venus vulgivaga seus episódios de amor terreno, demasiadamente terreno; e se não fosse esse Casanova, francamente cínico, magnífico, desavergonhado, que levanta todos os véus, faltaria na literatura universal um quadro completo, perfeito, real, da sexualidade.

Nele vê-se todo o mecanismo sexual da sensualidade em função, o mundo da carne, sujo resvaladiço, pantanoso. Vêem­se abismos e cumes. Esse jogador, esse miserável, teve todo o valor da sinceridade, que não tiveram os nossos poetas; e assim nos mostra o mundo como um conglomerado de beleza e de imundície, de espírito e de grosseira sexualidade; e não como aqueles:

uma realidade idealizada, purificada quimicamente. Diz em sexualibus não somente a verdade, porém - enorme diferença! - toda a verdade. Seu mundo é absolutamente, profundamente real.

Casanova, sincero? Casanova, verdadeiro?

Já ouço essa interrogação dos eruditos escandalizados, que se reclinam nas suas poltronas esperando a resposta.

Sim. Realmente, durante cinqüenta anos, dirigiram suas baterias contra ele, e descobriram algumas grossas mentiras. Mas, vamos devagar e calmamente. Não há dúvida de que esse aventureiro, esse vagabundo embusteiro, nos fez algum truque hábil de baralho, nas suas Memórias, como fazia à mesa do jogo; il corrige la fortune constantemente, pondo toda a força das suas pernas ao afastar-se dos casos desagradáveis.

Ele enfeita, põe em ordem, salpica um pouquinho de pimenta e tempera seu afrodisíaco ragout com todos os ingredientes da fantasia reprimida, e o faz, talvez, inconscientemente, pois, de momento a momento, as mentiras ou os exageros que ali estão, pouco a pouco se vão legitimando, por assim dizer, na memória, e logo depois não se sabe se têm bastante fantasia ou bastante realidade.

Não esqueçamos: a sua vida era uma rapsódia - os grandes senhores sentaram-se à sua mesa para ouvi-lo, para conversar, para ouvir sua palestra cheia de interesse e de graça, as narrações de suas extraordinárias aventuras. E assim como aqueles bardos de antigamente traçavam sempre novas aventuras para não decair o sabor do seu romance, assim também, Casanova tinha a idéia de enovelar suas façanhas. Temos um exemplo: toda a vez que narrava sua fuga emocionante dos Chumbos de Veneza, acrescentava alguma coisa para torná-la mais interessante, e dava um pequeno passo para novos exageros.

Não poderia adivinhar jamais que cento e cinquenta anos depois uma verdadeira polícia "casanovesca" meteria o nariz em todas as suas cartas, em todos os seus documentos, por todos os arquivos, para comprovar todos os detalhes, todos os fatos, todos os acontecimentos que ele descreveu; e bradaria, com a férula em punho, ao descobrir uma pequena inexatidão na sua obra.

Na verdade, são um pouco vacilantes seus dados e suas datas, e se se quiser tomar as coisas com demasiada precisão, ver-se-á constantemente como se desmorona tudo como um castelo de cartas.

Assim, hoje está provado que todas as suas aventuras de Constantinopla são provavelmente um sonho voluptuoso do velho bibliotecário de Dux e que, sendo completamente inocente, colocou o pobre Cardeal de Berrais como companheiro e espectador nas suas ligações com a formosa monja M.M.

Manifesta ter encontrado personalidades eminentes em Paris e Londres em épocas em que não poderiam estar nesses lugares. Faz morrer a marquesa de Urfé dez anos antes, porque desse modo se, torna mais cômodo para sua história.

Não; não se deve ver nele um fanático da verdade nem um historiador de confiança; e quanto mais se aprofunda a sua veracidade científica, tanto mais se fica vivamente perturbado. Mas, essas pequenas inexatidões, esses erros cronológicos, mistificações e fanfarronadas, esses esquecimentos voluntários, nada significam junto à verdade monstruosa da totalidade da sua vida!

Não há dúvida de que ele, à maneira de novelista, valeu-se do espaço e do tempo para dar mais relevo as suas aventuras, mas, que significa isso junto ao modo honesto, franco e claro com que apresenta a totalidade da vida de aventureiro?

Não é ele somente; é toda uma época, todo um século que aparece brilhante e iluminado no cenário, movendo-se dramaticamente, com os seus contrastes emocionantes, seus episódios espantosos. E todas as camadas sociais, toda classe de sociedade, paisagens, ambientes, nações, se misturam em cores vivas: um quadro de costumes e de imoralidades ao mesmo tempo!

Esse defeito aparente de não querer aprofundar nem querer cristalizar sistematicamente, como fazem Goethe ou Stendhal, os grupos, as classes e as sociedades, é o que faz com que essa visão simples e total de Casanova tenha uma importância extraordinária para a cultura. Não trata de extrair leis nem cálculos daquilo que vê; expõe tudo desordenadamente, mesclado com a própria vida, como por acaso. Não classifica, nada, não faz agrupamentos nem divisões.

Tudo tem para ele o mesmo nível de importância, se serve para divertir-se.

É o único valor que sabe dar as coisas. Não conhece coisas grandes e coisas pequenas, nem no real, nem no moral.

Por isso não descreve sua conversação com Frederico, o Grande, com mais detalhes ou mais emoção do que a palestra a que, dez páginas antes, se refere como mantida com uma pequena rameira qualquer. Com as mesmas minúcias apresenta um bordel de Paris ou o suntuoso Palácio de Inverno, da Imperatriz Catarina.

Parece-lhe tão importante citar quantos ducados ganhou no jogo como quantas noites dormiu com a Dubois ou com Helena Sieger, ou descrever sua conversa com Voltaire. Para ele nada tem força estética ou moral, e fica sempre num magnífico equilíbrio da realidade.

Intelectualmente falando, as Memórias de Casanova não tem mais valor que as de um viajante que passa pelos mais variados panoramas da vida; mas, se não são uma fonte de filosofia, são, em compensação, um verdadeiro Baedeker histórico, um Cortigiano do século XVIII, uma divertida Chronique scandaleuse, um corte transversal do quotidiano de certa época.

Por ninguém, melhor do que por ele, se pode conhecer toda a vida normal do século XVIII: seus bailes, seus teatros, seus cafés, suas festas, suas salas de jogo, bordéis, caçadas, conventos, etc.. Por ele sabe-se como se viajava, como se comia, se jogava, se bailava, se vivia, se amava, se divertia: os costumes, as maneiras, o modo de falar e o modo de viver.

Essa fenomenal fonte de fatos, de realidades, se vê enriquecida por um verdadeiro tumulto de figuras que bastariam para encher vinte novelas e que seriam matéria inacabável para toda uma geração de novelistas!

Que riqueza de tipos! - soldados, príncipes, papas, reis, vagabundos, jogadores, comerciantes, notários, castrados, alcoviteiros, donzelas, prostitutas, escritores, filósofos, sábios, néscios... a ménagerie mais sortida que jamais se pode reunir em um livro! E além disso cada uma dessas figuras está interiormente intacta; nenhuma está estudada psicologicamente.

Em certa ocasião ele escreve a Opiz dizendo-lhe que não tem nenhum talento para a psicologia e que não pode chegar a ver a fisionomia interior. Por isso ninguém se pode admirar de que muitíssimos novelistas e poetas tenham ido a vindima nessa vinha farta.

Centenas de novelas e dramas devem suas personagens mais importantes e as situações mais sedutoras à obra de Casanova; e sem dúvida, essa mina formidável está intacta: assim como do Forum romano se tiraram pedras durante dez gerações para fazer novas construções - assim também as suas Memórias darão material ainda a muitas gerações literárias!

Sem dúvida a figura máxima, a figura que passou a ser lendária, a figura essencial desse livro, continua sendo o próprio Casanova mistura extraordinária de homem renascentista e moderno, bastardo de gênio e de canalha, de poeta e aventureiro: nunca ninguém se cansa de divertir-se com ele.

Direito, erguido sobre os estribos, como a estátua do seu compatriota Colleoni, assim está ele montado sobre a própria vida e olha atrevidamente para os séculos, impassível diante de toda censura, diante de toda burla.

Se há um homem que seja indiferente ao rubor, a crítica, ao riso - esse homem é Casanova. Todos podem conhecê-lo cada vez mais, podem vê-lo no mais profundo do seu coração ou das suas glândulas sexuais, como o viram seus íntimos.

Nada mais inútil do que ir surpreender-lhe esconderijos psicológicos e secretos: não conhece nada disso; fala com os ábios livres e vai desabrochando livremente tudo o que sente.

Toma o leitor pelo braço e com aquela sua façon começa a contar-lhe sem hesitações as histórias mais íntimas; leva-o a casa, mostra-lhe a cama e ensina-lhe os seus segredos de embusteiro e de alquimista. Ao primeiro que se aproxima mostra­lhe a amante, ri, ao referir-se às suas velhacarias, às suas espertezas no jogo e às suas fugas quando as coisas se põem demasiado perigosas. Mas conta-lhe tudo isso sem a perversidade de um Candaule, sem exibicionismo, ingenuamente, com essa bonhomie inata e perfeita de um homem-criança que viu a Eva nua, mas não comeu a maçã do pecado, que é o que permite que se possa distinguir o moral do imoral, o bem do mal.

A espontaneidade faz dele o perfeito narrador. Nem o psicólogo mais hábil, nem todos nós juntos, observando sua imagem, poderíamos fazer um retrato melhor do que ele fez de si próprio, com a sua encantadora nonchalance. E assim, graças à sua franqueza, o conhecemos profundamente, psicologicamente.

Vemo-lo em qualquer circunstância da vida completamente claro, tanto quanto está enfurecido, com a bile na boca, as veias dilatadas, os dentes rilhando, quanto também no perigo, sereno, com presença de espírito, colocando-se rapidamente em guarda, com um sorriso frio na boca cheia de desdém e com a mão, que não treme, no punho da espada.

Assim também o vemos em sociedade nos grandes salões: vaidoso, fanfarrão, consciente do seu valor, com o peito alto e o olhar brilhante de orgulho e de paixão. Vemo-lo falar elegantemente e olhar com voluptuosa confiança as mulheres que estão ao seu redor.

Como rapaz ou como velho, aparece diante de nós como se víssemos realmente e quem lê suas Memórias tem a sensação de que, se de repente o visse voltar uma esquina, reconhecer-lo-ia instantaneamente.

Assim sabe escrever Casanova; assim escreve esse homem que não é escritor, que não é poeta, que não é psicólogo; assim soube fazer sua própria descrição.

Nem Goethe com o seu "Werther", nem Kleist com "Kohlhaas", nem J. J.

Rousseau com "Saint Preux et Heloise", nenhum deles, nem nenhum dos demais novelistas do seu tempo, conseguiu dar a nenhuma das suas personagens tanta vida como soube fazê-lo esse >mauvais sujet ao descrever a si próprio. Em toda a literatura mundial não temos nem um só retrato tão completo como este que soube fazer um homem que não era artista, a não ser da própria vida.

Não se pode torcer o nariz ao falar dos seus dotes e do seu talento; não se pode ter atitudes de circunspecção e de moral ao falar sobre sua conduta, nem querer dar excessiva importância a bagatela das suas inexatidões. De nada serviria tudo isso: Jacob Casanova está preso à literatura universal como Villon e outras personagens; e será mais duradoura a sua fama do que a de muitos poetas e novelistas cheios de moralidade.

Tal como fez em vida, também, com as suas Memórias, post festum, fez chegar até ao absurdo muitas leis morais e estéticas: com um pontapé lançou o catecismo moral para debaixo da mesa; a solidez da sua fama faz compreender que não lhe importa não ter sido nobre, laborioso, decente, para poder estar agora na vasta sala das glórias literárias.

Casanova demonstrou-nos que se pode escrever a novela mais divertida do mundo sem se ser novelista ou historiador, pois o que importa não é o caminho, e sim o efeito, o resultado. Não importa a moral, e sim a intensidade.

Qualquer sentimento pode ser produtivo: a vergonha ou o cinismo, o caráter ou a inconstância, a maldade ou a bondade, a moralidade ou a imoralidade.

A posteridade não se interessará nunca pela forma espiritual do escritor e sim pela sua plenitude. Só a intensidade perdura, e quanto mais vital, mais forte, mais singular, mas compacta for a vida de um homem,tanto mais permanecerá sua personalidade porque a imortalidade não conhece o moral ou o imoral, o bem ou o mal. Mede as obras pela sua força e pela unidade, e não por sua pureza; pede exemplo, pede individualidade.

Para a imortalidade, a moral é nada: a intensidade é tudo!

 

                                                                                Stefan Zweig  

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

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