Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
CASÓRIO
Segunda Parte
Quando deu dez horas, as tigelas de batatas fritas já estavam vazias e todo mundo parecia meio alto.
— Não vou ouvir nem mais um minuto desta merda — anunciou Charlotte, desligando o som. — Jazz uma ova!
_— Você é tão pobre — disse Karen.
— Sou sim, e daí? — enfrentou ela, com o rosto vermelho e brilhante. — Essa música é uma merda mesmo, não tem nem melodia. Sempre que tento cantarolar junto, ela muda de ritmo e fica toda estranha. Cadê meu Simply Red?
Karen deixou Charlotte trocar o disco, o que significava que ela também já estava cheia das divagações sonoras de John Coltrane.
— Muito bem — anunciou Karen, mudando de assunto. — Com Gus ou sem Gus, já está na hora de comermos. Quero que experimentemos a deliciosa comida antes de ficarmos bêbados demais para apreciá-la. O jantar está servido! Charlotte! Lucy! — E fez um sinal com a cabeça, indicando a porta da cozinha.
Era a nossa deixa para nos transformarmos em empregadinhas.
Eu não consegui comer nada. Ainda tinha esperanças de que Gus aparecesse. Que simplesmente surgisse com uma daquelas desculpas fantásticas e absurdas. Não vou ficar chateada com você, Gus, juro que não! Sério mesmo, simplesmente apareça aqui que não vou reclamar de nada.
Depois de algum tempo, todo mundo parou de dizer coisas como "só queria saber o que está atrasando Gus" e "o que será que houve com Gus?", e também deixaram de olhar pela janela para ver se avistavam um táxi chegar com Gus dentro.
Na verdade, todos começaram a tomar todo o cuidado para sequer mencionar o nome de Gus. Já estava bem claro para todos que ele não estava meramente atrasado, ele simplesmente não viria.
Todos sabiam que eu havia levado um bolo gigantesco, e, em seu modo estranho e meio sem graça, tentavam fingir que aquilo não fora bolo nenhum e, se eu tinha levado um bolo, eles nem haviam percebido.
Eu sabia que estavam apenas querendo ser gentis, mas essa gentileza era humilhante.
A noite passava, interminável. Havia tanta comida e tantos pratos diferentes que eu achava que aquilo não ia terminar nunca. Daria tudo para ir direto para a cama, mas o orgulho me impedia.
Só mais tarde, bem mais tarde, quando todo mundo já estava bêbado de verdade, e não apenas bêbado, é que o nome de Gus veio novamente à baila.
— Dispense esse babaca — sugeriu Karen, com a voz arrastada. Seu penteado estava despencando para um dos lados. — Que cara-de-pau a dele, tratar você desse jeito. Como ele ousa? Eu o matava!
— Vamos dar-lhe uma chance — disse e sorri, tensa. — Pode ter acontecido alguma coisa com ele.
— Ah, pára com isso, Lucy — debochou Karen. — Como é que você pode ser tão idiota? Está na cara que ele deu o maior bolo em você.
É claro que estava na cara que ele me dera o bolo, mas eu continuava agarrada a um restinho de dignidade para fingir que não fora bem assim.
Daniel e Simon pareciam pouco à vontade. Simon perguntou a Daniel, com um tom animado:
— E com você, como anda o trabalho?
— Ele podia ter telefonado — disse Charlotte.
— Talvez ele tenha esquecido — disse eu, sentindo-me infeliz.
— Bem, então ele não devia ter esquecido — completou Karen, com a voz engrolada.
— Você já verificou o telefone? — gritou Charlotte, de repente. — Aposto que ele está quebrado, sem linha ou algo assim. Por isso é que ele não conseguiu ligar.
— Duvido muito — comentou Karen.
— Talvez você não tenha recolocado o fone direito — sugeriu Daniel. — Talvez ele esteja fora do gancho e ele não conseguiu entrar em contato.
Como foi Daniel que sugerira aquilo, todos lhe deram um pouco de credibilidade. Houve uma correria em direção ao corredor, comigo bem na frente, com todas as esperanças de que Daniel estivesse certo. Claro que ele não estava. Não havia nada de errado com o telefone, e o fone estava no gancho, direitinho.
Muito embaraçoso.
— Talvez tenha acontecido alguma coisa com ele — sugeri, esperançosa. — Quem sabe ele sofreu um acidente? Ele pode ter sido atropelado e estar morto — acrescentei, com novas ondas de esperança agitando-me por dentro. Era muito melhor que Gus estivesse debaixo de uma jamanta, todo quebrado e sangrando, do que ter resolvido que não gostava mais de mim.
Karen estava envolvida com Simon em uma conversa acalorada, mas difícil de acompanhar, a respeito de nacionalismo escocês, quando se ouviu uma batida na porta da frente.
— Silêncio — gritou Daniel. — Acho que tem alguém batendo na porta.
Ficamos todos calados, totalmente sem fala, mais pela surpresa do acontecido do que pelo desejo de ouvir.
Prendemos a respiração e escutamos com atenção. Daniel tinha razão.
Alguém estava mesmo batendo na porta.
Graças a Deus!, pensei, sentindo uma sensação intensa e ficando até um pouco tonta de tanto alívio.
Graças a Deus graças a Deus, graças a Deus! Pode contar comigo para trabalhos de caridade, ajuda aos pobres, contribuições para fundos de igrejas, donativos para campanhas sobre doenças de pele, qualquer coisa que o Senhor queira, e muito obrigada, Senhor, por ter me enviado Gus de volta.
— Deixe que eu atendo, Lucy. — Charlotte se colocou em pé. — Você não vai querer que ele ache que estava preocupada, vai? Fique aqui, com um jeito assim, bem casual.
— Obrigada — disse eu, correndo para o espelho, em pânico. — Será que estou com uma cara legal? Meu cabelo está direito? Ah, não, olhe só essa minha cara, como está vermelha! Rápido, rápido, alguém aí me empreste um batom!
Passei os dedos pelos cabelos e me atirei no sofá, bem à vontade, tentando parecer despreocupada, e fiquei esperando que Gus viesse até a sala, Estava tão feliz que nem conseguia me sentar direito. Estava curiosa para saber qual era a desculpa criativa e elaborada que ele ia dar. Com certeza ia ser engraçada.
Mas passou algum tempo e ele não apareceu. Dava para ouvir vozes no vestíbulo.
— Por que é que ele não entra logo? — disse, entre dentes, chegando o corpo para a frente e sentando bem na pontinha do sofá.
— Relaxe. — Daniel deu-me um tapinha amigável no joelho. Parou na mesma hora, quando Karen olhou fixamente para a mão dele, depois para ele e então para a mão dele de novo. Tinha uma expressão peculiar que parecia saltar do seu rosto. Reparei que ela estava tentando levantar as sobrancelhas de modo questionador, mas não conseguia fazê-lo devido à ação do álcool.
Mais algum tempo se passou e Gus continuava sem aparecer na sala. Saquei que alguma coisa estava errada. Talvez ele não tivesse chegado antes por estar ferido. Depois de mais alguns minutos, não agüentei mais e, jogando o verniz de despreocupação para o alto, fui até a porta para dar uma olhada.
Gus não estava ali.
Quem estava era Neil, do andar de baixo.
Neil, parecendo muito mal-humorado, reclamando da música e usando um pijama muito curto.
Eu estava tão certa de que Gus havia chegado ao prédio que levou um bom tempo até eu me dar conta de que, na verdade, ele não estava ali. Apertei os olhos um pouco vermelhos, já meio bêbada, e olhei por cima de Neil, perguntando-me por que eu não conseguia ver a figura de Gus atrás dele.
E quando acordei para o fato de que Gus não havia chegado, afinal, mal pude acreditar.
O desapontamento foi tão grande que senti o chão literalmente fugir debaixo dos meus pés. Por outro lado, a causa disso também podia ser a quantidade de vinho que eu bebera.
— ... E não precisa baixar o som, não — estava explicando Neil. — Mas, pelo amor de Deus, troque o CD. Se você tiver um pouco de compaixão, um sentimento de pena por um ser humano igual a você, por favor, troque o CD.
— Mas eu gosto do Simply Red — explicou Charlotte.
— Eu sei! Já percebi — reagiu Neil. — Por que outro motivo você tocaria o mesmo disco por oito semanas, sem parar? Por favor, Charlotte.
— Tá legal — concordou ela, meio contrariada.
— E você se importaria de tocar um pouco este CD aqui? — pediu ele, entregando-lhe um disco.
— Ei, cai fora — explodiu Charlotte. — Que cara-de-pau a sua, hein? Esse aqui é o nosso apartamento, e nós colocamos a música que a gente quiser ouvir...
— Mas é que sou obrigado a ouvir também, entende? — choramingou Neil.
Voltei cambaleando para a sala.
— Onde está o Gus? — perguntou Daniel.
— Não sei — murmurei.
Fiquei muito bêbada e, bem mais tarde, acho que já depois das duas da manhã, resolvi que ia descobrir onde Gus estava. Talvez conseguisse o seu novo telefone com o sujeito com quem eu falara, no apartamento antigo.
Saí de fininho da sala e fui até o corredor, para falar ao telefone. Se Karen e Charlotte descobrissem o que eu ia fazer, tentariam me impedir. Felizmente, todos estavam bêbados. Haviam desistido de jogar strip poker, porque Charlotte resolveu colocar uma música espanhola para tocar no som. Em seguida, demonstrou os passos que aprendera nas aulas de "flamingo", e fez questão de que todos a acompanhassem.
Sabia que o que eu estava fazendo era prova de desespero puro, mas estava bêbada, e não tinha mais força de vontade. Não tinha idéia do que ia dizer a Gus, se conseguisse achá-lo. Como explicar que insistira para saber o seu novo número e o rastreara sem parecer uma mulher obcecada? A verdade é que nem me importava.
Certamente eu tinha todo o direito de achá-lo e conversar com ele, ponderei comigo mesma, bêbada. Eu merecia uma explicação.
Mas eu não ia ficar zangada com ele, decidi. Seria amigável e simplesmente perguntaria com toda a calma por que ele não aparecera.
Havia uma vozinha bem distante dentro de mim que ainda estava ligeiramente sóbria e me dizia que eu não devia ligar para ele, que estava me comportando como uma pessoa louca, que correr atrás dele só ia servir para piorar a minha humilhação, mas eu não a escutei. Estava envolvida em uma determinação compulsiva, e não podia evitar agir daquela forma.
Ninguém atendeu o telefone. Sentei-me no chão do corredor e deixei o telefone tocar até aparecer a mensagem da companhia telefônica, informando que ninguém estava atendendo. Puxa, obrigada pelo aviso, se não fosse esse aviso eu jamais teria percebido. Frustrada, bati com o fone no gancho, com toda a força. Mal estava prestando atenção ao barulho de coisas caindo e à agitação na sala.
— Ninguém responde? — perguntou alguém. Dei um pulo. Droga! Era Daniel, de passagem para ir à cozinha, provavelmente em busca de mais vinho.
— Não — respondi, aborrecida por ter sido pega no flagra.
— Para quem você estava ligando? — perguntou ele.
— Para quem você acha que poderia ser?
— Pobre Lucy...
Eu me senti horrível. Não era como antigamente, quando Daniel ria de mim e ficava de gozação com as minhas desgraças. As coisas haviam mudado, e achava que Daniel não era mais meu amigo, não como antes. Eu tinha de esconder os meus sentimentos dele.
— Pobrezinha, puxa vida — repetiu ele.
— Ah, cale essa boca — disse eu, com a cara amarrada, olhando para ele de onde eu ainda estava, sentada no chão.
De algum modo, nós ultrapassáramos um limite. Todas aquelas brigas de mentirinha se tornaram, de repente, reais e desagradáveis.
— O que está acontecendo, Lucy? — Daniel se agachou diante de mim, que continuava largada no chão, encostada na parede.
— Ah, não começa — bufei. — Você sabe muito bem o que está acontecendo.
— Não... — explicou ele. — Estou querendo saber o que está acontecendocom nós dois.
— Como assim, não existe nenhum "nós dois". — Reagi, em parte para magoá-lo e em parte para evitar o confronto e o papo sério que senti que ia acabar rolando.
— É claro que existe. — Ele colocou a mão com delicadeza perto do meu pescoço e começou a acariciar a área embaixo da minha orelha, fazendo pequenos círculos com o polegar.
— Claro que existe — repetiu ele. Seu dedo provocou estranhos arrepios que desciam do meu pescoço e iam até o peito. De repente, já não conseguia respirar direito, e então, sem poder acreditar, senti que meus mamilos começaram a endurecer.
— Que porra é essa que você está fazendo? — cochichei, olhando para o seu rosto lindo e familiar.
Mas não me afastei. Estava bêbada, me sentindo rejeitada, e alguém estava sendo legal comigo.
— Eu não sei — disse ele, parecendo chocado. Dava para sentir o seu hálito sobre o meu rosto. Ai, meu Deus!, pensei, horrorizada, vendo que o rosto de Daniel se aproximava cada vez mais do meu. Ele vai me beijar. Daniel! Daniel vai me beijar, mesmo sabendo que a sua namorada está a poucos metros de distância... e eu estou tão bêbada ou chateada, sei lá, que vou deixá-lo fazer isso.
— Por que essa demora, Dan? — Ouvi a voz de Karen, que já estava entrando no corredor, toda agitada.
Salva pelo gongo!
— O que vocês dois estão fazendo aí, sentados no chão? — guinchou ela.
— Nada — reagiu Daniel, levantando-se na mesma hora.
— Nada — repeti, ofegante, ficando em pé também.
— Daniel, você devia estar na cozinha, pegando uma bacia de água para o tornozelo de Charlotte — disse Karen, furiosa.
— Por quê? O que aconteceu? — perguntei, feliz por ter algo para desviar a atenção de Karen, qualquer coisa, enquanto Daniel seguia para a cozinha.
— Ela levou um tombo enquanto dançava o "flamingo"... — respondeu Karen, com frieza — ... e torceu o tornozelo. Pelo jeito Daniel prefere ficar sentado no chão, batendo papo com você, a ajudar a pobre Charlotte.
Voltei para a sala, Charlotte estava esticada sobre o sofá, rindo amarelo e soltando "ais" enquanto Simon massageava seu pé e olhava por baixo do seu vestido.
Quase não sobrara vinho, só havia restinhos no fundo das garrafas, mas rodeei a mesa, colocando para dentro toda bebida que aparecia no caminho, até que ela acabou de vez. Eu continuava desesperada para beber alguma coisa, mas parecia não haver sobrado mais nada.
Então teve início uma discussão, porque Charlotte insistia que seu tornozelo estava quebrado e ela devia ser levada direto para o hospital, enquanto Simon argumentava que não estava quebrado não, com toda a certeza. Estava apenas torcido. Nesse momento Karen mandou Charlotte parar de choramingar, e então Simon a defendeu, dizendo a Karen que ela devia parar de tratar sua namorada daquela maneira, e que se Charlotte queria ir para o hospital, era isso que ia ser feito. Karen perguntou a Simon quem é que tinha preparado todo aquele jantar para ele comer, e Simon retrucou que já sabia de tudo a respeito de Karen e de todo o trabalho que ela obrigara Charlotte a fazer, e que se havia alguém a quem ele devia agradecer pela comida daquela noite, esse alguém era a própria Charlotte... e assim por diante.
Eu estava bebendo pelo gargalo quase meia garrafa de vinho tinto que encontrara abandonada atrás do sofá e continuei sentada, balançando as pernas e apreciando a briga.
Karen começou a gritar com Charlotte, por ela ter contado a Simon que foi ela que preparara todo o jantar quando, na verdade, não fizera nada. Nada! Apenas descascara algumas cenouras, nada mais...
Sorri para Daniel, esquecendo por um momento o que acontecera, ou quase acontecera, no corredor. Ele sorriu de volta e então me lembrei do que acontecera, ou quase acontecera no corredor, fiquei completamente vermelha e desviei o olhar.
Encontrei um pouco de gim por ali e matei tudo. Mesmo assim ainda não me sentia bêbada o suficiente. Tinha certeza de que havia uma garrafa de rum no armário da sala, mas procurei em toda parte e não achei.
— Gus provavelmente roubou o rum — sugeriu Karen.
— É... é bem capaz — concordei, sombria.
Finalmente, reconhecendo a derrota, fui para o quarto, sozinha, e apaguei.
Acordei assustada às sete horas da manhã. Era sábado, afinal, e imediatamente senti que alguma coisa estava errada. O que seria?
Ah, sim! Lembrei.
Ah, não! Preferia não ter lembrado.
Por sorte, a ressaca estava tão brava que consegui voltar a dormir na mesma hora.
Acordei às dez. Cair na real e me lembrar de que perdera Gus me fez sentir como se tivesse levado uma traulitada na cabeça, dada por uma frigideira. Levantei, me arrastei pelo corredor e encontrei Charlotte e Karen na cozinha, fazendo faxina. Havia tantos restos de comida por toda parte que fiquei com vontade de chorar, mas não podia fazer isso, senão elas iam pensar que eu estava chorando por causa de Gus.
— Bom-dia — disse eu.
— Bom-dia — repetiram elas.
Fiquei esperando. Prendi a respiração, na expectativa de que uma delas dissesse "ah, o Gus ligou". Mas isso não aconteceu.
Eu sabia que não ia servir de nada perguntar se ele ligara. As duas sabiam muito bem o quanto aquilo era importante para mim. Se Gus tivesse telefonado, elas teriam me contado de imediato, com a maior empolgação. Na verdade, teriam ido até o meu quarto para me dar a notícia, e teriam até me acordado para eu atender o telefone.
Mesmo sabendo de tudo isso, eu me vi perguntando, assim, como quem não quer nada:
— Alguém telefonou para mim enquanto eu estava dormindo? Não consegui evitar. Perdido por um, perdido por mil... Estava
magoada, para que negar?
— Hã... não, ninguém — murmurou Karen, sem me olhar de frente.
— Não — concordou Charlotte. — Ninguém ligou.
Eu sabia que a resposta ia ser aquela, então por que me senti tão desapontada?
— Como está o seu tornozelo? — perguntei a Charlotte.
— Está legal — respondeu, parecendo envergonhada.
— Vou dar uma saída para comprar o jornal — anunciei. — Quando voltar, vou ajudar vocês na limpeza. Alguém quer alguma coisa da rua?
— Não, obrigada.
Eu nem queria comprar jornal. O problema é que água em panela vigiada nunca ferve, e se eu fosse ficar em volta do telefone, Gus jamais ligaria.
Por conta de experiências passadas, eu sabia que assim que pusesse os pés fora de casa havia grandes chances de ele me telefonar.
Ao voltar para casa, tornei a prender a respiração, esperando que Karen ou Charlotte viessem correndo lá de dentro e dissessem, quase sem fôlego, "adivinhe só! Gus telefonou" ou "adivinhe só! Gus está aqui. Ele foi seqüestrado ontem à noite e acabaram de libertá-lo há poucos minutos".
Só que ninguém veio correndo lá de dentro quase sem fôlego e nem me disse nada. Só me restou ir até a cozinha, de cabeça baixa e o rabo entre as pernas. Elas me entregaram um pano de prato.
— Alguém telefonou para mim? — eu me vi perguntando, mais uma vez, desanimada.
Novamente, Karen e Charlotte balançaram a cabeça. Fechei a boca, com ar lúgubre. Não vou perguntar de novo, decidi. Eu estava me rasgando toda por dentro, de tanto desapontamento, e as duas pareciam meio sem graça.
Segui o conselho de milhares de revistas femininas e resolvi me manter ocupada. "Manter-se ocupada" parecia ser a melhor solução para afastar homens fujões da cabeça, e, para sorte minha, havia uma absurda quantidade de coisas que precisavam ser lavadas, depois dos excessos da noite anterior. No fundo, eu não imaginava que era eu que ia ter de fazer tudo sozinha. Tinha a esperança de receber uma dispensa, por caridade, pois, já que Gus me abandonara, todo mundo ia ser mais simpático e gentil comigo, Karen ia me oferecer um bônus especial e acabaria me liberando das tarefas. Nem pensar.
Karen não perdeu tempo em me colocar no devido lugar:
— Mantenha-se ocupada — disse ela, com ar alegre, enquanto me empurrava uma pilha de pratos sujos. — Isso vai ajudar a manter a cabeça longe dele.
Ouvir aquilo me fez sentir ainda mais aborrecida. Eu queria compaixão, queria as pessoas pisando em ovos ao lidar comigo, queria ser tratada como uma convalescente inválida. O que eu não queria era lavar pratos.
E tem mais: qualquer um que diga que "manter-se ocupada" é a melhor solução para um coração partido está enganado, porque eu me mantive extremamente ocupada o dia todo e continuei pensando em Gus o tempo inteiro. Como é que limpar restos de vômito do banheiro ia conseguir fazer com que eu me sentisse melhor? Isso era uma coisa que me intrigava. Eu apenas estava trocando um tipo de desgraça por outra.
Passei o aspirador de pó no apartamento inteiro, lavei todos os pratos e copos que não haviam quebrado. Coloquei todos os cacos dos pratos e copos em um saco de lixo e preguei um bilhetinho simpático, avisando aos lixeiros para que carregassem o lixo com cuidado, a fim de que não cortassem as mãos. Esvaziei montanhas de cinzeiros. Cobri tigelas de comida intacta com filme plástico transparente, coloquei tudo na geladeira, onde elas ficariam tomando o precioso lugar dos iogurtes sem gordura durante três semanas, até começarem a se cobrir com uma penugem de mofo e alguém finalmente jogá-las fora. Tentei raspar a cera de vela que caíra no tapete e não consegui, e então empurrei um pouco o sofá para o lado, para cobrir a mancha. E durante todo esse tempo eu pensava em Gus, sem parar.
Meus nervos estavam em frangalhos. O telefone tocou o dia inteiro, e todas as vezes eu dava um pulo, me retorcia toda de nervoso e rezava freneticamente: "Por favor, meu Deus, faça com que seja Gus!" Não tinha coragem de atender nenhuma das vezes, porque podia ser Gus. Correr para atender o telefone era o mesmo que reconhecer que eu me importava com o telefonema dele, e isso seria imperdoável. Karen ou Charlotte é que tinha de parar de raspar o resto de comida grudado nas panelas (no caso de Charlotte) ou deixar de dançar pela casa, espalhando aromatizador de ambientes (no caso de Karen) só para atender o telefone.
E, como era de esperar de uma mulher rejeitada, eu insistia que elas esperassem o telefone tocar pelo menos cinco vezes, antes de atender.
— Ainda não, ainda não! — implorava eu, todas as vezes. — Deixe que ele toque um pouco mais. Não podemos deixar que Gus fique achando que estamos esperando, ansiosas, por sua ligação.
— Mas nós estamos! — exclamou Charlotte, sem entender. — Pelo menos você está.
Não adiantou nada. Apenas um de todos aqueles telefonemas foi para mim, e era (quem mais poderia ser?) a minha mãe.
— Por que vocês demoraram tanto tempo para atender? — reclamou ela quando Charlotte me passou o fone, com a cara triste.
E, de repente, já era sábado à noite.
Sábado à noite sempre representara um papel de destaque na minha vida. Era uma coisa que tinha a ver com beleza, um ponto luminoso em um mundo escuro, só que um sábado à noite vazio, um sábado à noite sem Gus... Puxa, eu me senti chocada ao ver que estava quase atemorizada com a chegada daquele momento.
Todos os sábados à noite no decorrer das últimas... tinham sido só seis semanas?... eu havia tirado de letra, porque estava com Gus. Às vezes saíamos, outras vezes ficávamos em casa, mas qualquer coisa que fizéssemos fazíamos juntos. E agora eu tinha a impressão de que jamais tivera uma noite de sábado livre, em toda a minha vida, de tão estranha que aquela sensação me parecia.
Era muita maldade. Parecia até que alguém havia me atirado uma cobra para segurar, dizendo: "Divirta-se com isso por algumas horas."
O que fazer com aquele tempo livre? E com quem eu ia passá-lo? Todos os meus amigos já tinham companhia. Charlotte estava com Simon, Karen estava com Daniel, Daniel estava com Karen e, de qualquer modo, ele não era mais meu amigo mesmo.
Eu bem que poderia ter chamado Dennis, mas aquela era uma idéia ridícula. Afinal, era sábado à noite, ele é gay, devia estar em casa, raspando a cabeça e esquentando os motores para uma noite em busca de prazeres desenfreados.
Charlotte e Simon me convidaram para ir ao cinema com eles. Ela me explicou que um cineminha era tudo o que o seu estômago conseguia suportar depois da bebedeira da noite anterior, mas eu não quis ir com eles.
Não que estivesse com receio de ficar segurando vela, porque eu não tinha problema algum em fazer isso. Afinal, fora exatamente isso que eu fizera inúmeras vezes no passado, e só as primeiras dez mil vezes é que são as mais difíceis. A verdade é que eu estava com vergonha de contar a eles que estava preocupada em sair de casa, para o caso de Gus aparecer.
Como uma palerma, eu ainda tinha esperanças de saber notícias dele. No fundo, o que eu estava esperando de verdade era que, por volta de oito horas, ele chegasse com um blazer emprestado grande demais, a gravata com um nó todo torto, confessando achar que o jantar havia sido marcado para sábado à noite, e não na sexta.
Era bem possível que isso acontecesse, disse a mim mesma, desanimada.
Coisas como aquela aconteciam às vezes. Talvez acontecesse comigo e eu fosse salva. Podia voltar da beira do abismo às gargalhadas, porque não havia necessidade de estar lá, para começo de conversa.
Karen e Daniel não me convidaram para ir com eles, aonde quer que tivessem ido. De certo modo, eu não esperava que fizessem isso mesmo. Para ser franca, nem queria. Estava me sentindo tão pouco à vontade com Daniel que mal nos falávamos. E ficava roxa de vergonha quando me lembrava de ter pensado que ele ia me beijar na noite anterior, quando na verdade ele estava apenas querendo ser gentil, por Gus ter me dado o bolo. Como é que eu pude pensar uma coisa daquelas?, perguntava a mim mesma o tempo todo, sentindo-me humilhada. Pior ainda, como é que pude achar que aquela era uma boa idéia? O cara era o Daniel, afinal de contas. Era como achar que beijar o meu pai na boca fosse uma boa idéia. Eu, hein!
Todo mundo saiu e fiquei sozinha no apartamento em uma linda noite de sábado em pleno mês de abril.
Em algum ponto entre a entrada e a saída de Gus da minha vida, o inverno se transformara em primavera, mas eu estava ocupada demais me divertindo e me apaixonando para perceber esse fato.
Achava o sentimento de rejeição muito mais difícil de agüentar quando as noites estavam bonitas.
Pelo menos quando o tempo estava ruim, eu podia fechar as cortinas, acender a lareira, me encolher toda e ficar bem aconchegada na minha solidão. O brilho da primavera, porém, tornava tudo mais embaraçoso. Servia apenas para realçar o fracasso que eu era, pois a minha rejeição se tornava mais visível. Sentia-me como se eu fosse a única pessoa no mundo que estivesse sozinha em um sábado à noite.
O inverno era uma estação muito melhor para nos sentirmos abandonadas. Era muito mais discreto.
Depois que deu oito horas e Gus não apareceu, desci mais um dos degraus da infelicidade. Por que será que eu não conseguia despencar logo pela escada abaixo de uma vez, para acabar com a agonia? Eu compreendia muito bem a sabedoria de arrancar o curativo de uma ferida com um puxão rápido e elaborado, que enchia os olhos de lágrimas, mas doía tudo de uma vez só. Quando se tratava de assuntos sentimentais, porém, gostava de remover camada por camada, em dolorosa lentidão.
Resolvi sair para alugar um filme. E comprar uma garrafa de vinho, porque eu não ia passar a noite ali sozinha sem nada para beber, de jeito nenhum!
— Gus não vai telefonar mesmo... Gus vai estar ocupado com Mandy — repetia, brincando de "eu não ligo mesmo" com os deuses. Quando fazemos esse jogo com vontade e conseguimos convencer os deuses de que não estamos querendo aquilo que estamos doidos para ter, então, geralmente, conseguimos.
Na locadora, Adrian fez a maior festa ao me ver, como se eu fosse uma espécie de irmã sumida.
— Lucy! Por onde tem andado? — rugiu ele, do fundo da loja. — Não vejo você há séculos. Séculos!
— Oi, Adrian — fiz mímica das palavras com os lábios, esperando que ele baixasse o tom de voz para seguir o meu bom exemplo.
— Então, a que devemos o prazer desta visita? — berrou ainda mais alto. —Você... sozinha em um sábado à noite? Seu namorado deve ter dispensado você!
Dei um sorriso meio forçado e agarrei a capa do filme Cães de Aluguel.
Quando Adrian se virou de costas para pegar o filme, observei-o com toda a atenção. Eu devia isso a mim mesma, me convenci. Agora que estava novamente solteira, tinha de manter os olhos bem atentos para o marido em potencial que a Sra. Nolan previra em meu futuro. Até que ele não era mau, pensei, meio desanimada. Adrian tinha uma bundinha interessante, não havia nada de errado nela, a não ser o fato de que não era a bunda de Gus. Tinha um sorriso legal também, só que não era o sorriso de Gus.
Tudo aquilo era uma total perda de tempo. Minha cabeça estava cheia de imagens de Gus, e não conseguia olhar para nenhum outro homem.
Enfim, não acreditava, para ser franca, que tudo o que tinha com Gus estava acabado... era cedo demais. Eu precisava levar uma surra de provas na cabeça, tinha de ser nocauteada com evidências, antes de conseguir acreditar. Desistir das coisas acontece facilmente comigo. "Deixar pra lá" não era um dos meus pontos fortes.
Por um lado, eu tinha a certeza de que nunca mais tornaria a ver Gus, mas, por outro lado, não conseguia deixar de ter esperança de que houvesse uma explicação para tudo aquilo, e não importava que ela fosse absurda, pois nós iríamos continuar juntos.
Saí da locadora e entrei na loja de bebidas. Havia um monte de gente jovem e feliz por lá, comprando garrafas de vinho, latas de cerveja e montes de maços de cigarros. Subitamente me senti atingida novamente pela velha impressão de que a vida era uma festa para a qual eu não havia sido convidada. O sentimento de fazer parte de algo fizera uma rápida participação especial no filme da minha vida, durante o tempo em que eu estava com Gus. Agora, porém, me voltava a velha sensação de que eu era um fantasma rondando o banquete da vida.
Ao voltar, andando bem devagar, para o apartamento, fui invadida de repente por uma sensação de pânico, convencida de que Gus estava me telefonando naquele exato momento.
Corri feito uma desesperada pela rua e entrei voando em casa, me atirando, ofegante, para ver se a luzinha vermelha da secretária estava piscando, mas não estava. A luzinha ficou ali me olhando, me olhando e me olhando, mas não acendeu nem uma só vez.
Levou uma eternidade para o dia claro entardecer lentamente em direção ao breu total, demorou muito para as outras pessoas voltarem para casa depois de seus programas e todos irem dormir, de forma que a distância entre nós, eu e o resto do planeta, se estreitasse e eu conseguisse parar de me sentir como a única no mundo...
Enchi a cara e mais uma vez liguei para o número que Gus me dera. Ninguém atendeu... que sorte! Embora, naquele momento, eu não me sentisse nem um pouco com sorte. Estava apenas furiosa, afogada em frustração e solidão. Desejava apenas falar com ele. Se ao menos conseguisse falar com Gus, saberia que ele faria com que tudo ficasse bem.
Cheguei até mesmo a pensar, em meu estado de embriaguez, em pegar um táxi até Camden e dar umas voltas por lá a pé, para ver se conseguia encontrá-lo, ou então ficar circulando pelos pubs aos quais ele me levara. Felizmente, algo me impediu de fazer isso, talvez o terror da idéia de dar de cara com ele e vê-lo acompanhado pela misteriosa Mandy. Um pouquinho de sanidade penetrou na armadura da minha obsessão.
Acordei na quietude de domingo de manhã. Já sabia, antes mesmo de sair da cama, que eu era a única pessoa no apartamento, e que Karen e Charlotte não haviam voltado para casa na noite anterior. Eram apenas sete da manhã, eu estava completamente acordada e totalmente sozinha.
Como é que eu ia conseguir encher a minha cabeça para manter o sentimento de solidão longe de mim? Como ia conseguir me impedir de ficar louca pensando em Gus?
Podia ler alguma coisa, mas não estava com vontade, não havia nada que eu quisesse ler.
Podia assistir à tevê, mas sabia que não conseguiria me concentrar. Podia sair e dar uma corrida, talvez até aju-dsse a acabar com um pouco daquela terrível ansiedade, mas eu mal conseguia sair da cama. Estava com a cabeça zumbindo de tanta adrenalina, mas não conseguia me levantar da cama. Podia ligar para os Samaritanos, serviço de aconselhamento por via telefônica, mas ia parecer uma coisa tão tola! Imagine só dizer: "Meu namorado me abandonou, e eu achava que íamos acabar nos casando!" quando havia tanta gente de verdade ligando para eles com problemas reais!
Não foi só Gus que me largou. Os sonhos de me casar com ele também tinham ido todos para a cucuia. Livrar-me da fantasia estava sendo quase tão difícil quanto me livrar do namorado.
Claro que a culpa era toda minha. Jamais deveria ter levado as previsões da Sra. Nolan tão a sério. Logo eu, a primeira a censurar Meredia e Megan por elas acreditarem na taróloga. Assim que as duas viraram as costas, entrei na mesma onda.
Em vez de tratar aquilo como um caso sem conseqüências, eu começara a achar que Gus era o homem certo para mim, e que estávamos destinados a ficar juntos para sempre.
Não, na verdade não foi culpa minha, de certa forma, tentei me convencer. A Sra. Nolan pressentira a minha insegurança e solidão, e simplesmente me disse o que eu queria ouvir. E, embora eu não me ligasse muito no casório em si, isto é, na história do vestido branco, nas brigas com a minha mãe, na salada de presunto e tudo o mais, estava muito interessada na promessa de uma alma gêmea.
É, acho que eu tinha só a mim mesma para culpar, por acreditar em tamanha baboseira.
Fiquei deitada na cama, de barriga para cima, com a cabeça girando, me culpando, depois me absolvendo, tornando a me culpar, prestando atenção para ver se o telefone tocava, sentindo-me tomada por um ciúme assassino da desconhecida Mandy, esperando que ela fosse apenas uma amiga, achando que Gus ainda me ligaria a qualquer momento, dizendo a mim mesma para deixar de ser idiota, depois achando que não, talvez ele ligasse mesmo, afinal, para depois tornar a me xingar por ser masoquista e em seguida protestar, argumentando que eu era simplesmente romântica, e assim por diante.
Tinha a certeza de que o rebote da sensação de vazio que acontecia aos domingos de manhã jamais fora tão bravo. Imensas bolas de capim seco passeavam para cima e para baixo nas ruas desertas e empoeiradas da cidade fantasma em que se transformara a minha psique.
Como é que eu lidava com aquilo antes de conhecer o Gus?, fiquei me perguntando. Como conseguira preencher aquele espaço vazio? Eu nem me lembrava de jamais ter sentido aquele vácuo antes, mas deve ter acontecido, e eu conseguira atravessar inúmeros domingos, um após o outro, sem o Gus.
Então compreendi o que acontecera. Ele chegara, preenchera aquele espaço e, ao sair, levara mais do que trouxera. Gus conseguira entrar no meu coração, com todo aquele charme, fez com que eu confiasse nele e, quando eu estava distraída, roubou todos os meus móveis e utensílios emocionais, deixando minha sala de estar interior completamente pelada. O pior é que provavelmente ele levara tudo para um pub em Camden e vendera o lote todo por uma ninharia, bem abaixo do valor de mercado.
Tinha sido ludibriada, e não era a primeira vez.
O domingo levou uma eternidade para passar. Charlotte e Karen não voltaram para casa. O telefone não tocou nem uma só vez. Quando deu nove horas da noite, devolvi o filme, aluguei outro e comprei uma garrafa de vinho. Entornei o vinho todo, fiquei bêbada e fui dormir.
E então já era segunda de manhã. O fim de semana acabara e Gus não havia me telefonado.
A pessoa que ia ficar no lugar de Hetty começou a trabalhar conosco naquela manhã.
Já fazia seis semanas desde que Hetty fora embora, um período longo demais para três pessoas que passavam o tempo tentando desempenhar o trabalho de uma.
Ivor pedira ao Departamento de Pessoal que segurasse o contrato dela por umas duas semanas, antes de colocarem um anúncio à procura de uma nova funcionária. O pobre tolo ainda mantinha a esperança de que Hetty pudesse voltar para os seus braços curtos, gorduchos, rosados e sardentos.
Só que ela agora estava morando em Edimburgo, com o cunhado, e muito feliz, pelo que contavam. Sendo assim, ele finalmente aceitara o fato.
Nosso novo colega aconteceu de ser um rapaz. Não foi assim um puro golpe de sorte, como, à primeira vista, pode parecer. Ah, claro que não!
Meredia tinha mexido os pauzinhos para que a coisa acontecesse daquela maneira.
E eu só soube disso porque a peguei bem no flagra, no dia em que estava maquinando tudo.
Umas duas segundas-feiras antes daquela, devido a uma série de acontecimentos infelizes — o metrô estava chegando à estação no momento em que pisei na plataforma, o trem da conexão já estava literalmente esperando por mim etc. etc. —, eu chegara cedo no trabalho.
E Meredia já estava no escritório antes de mim. Aquilo era muito irregular, um espanto total, mas o mais surpreendente é que ela já estava trabalhando, organizando, toda agitada, uma pilha de formulários, separando alguns e colocando outros numa retalhadora de papéis.
— Bom-dia! — disse eu.
— Cale a boca que estou ocupada — resmungou ela.
— Meredia, o que está fazendo?
— Nada — respondeu ela, sem parar de enfiar documentos na retalhadora.
Fiquei intrigada com aquilo, porque era óbvio que ela estava armando alguma. É claro que Meredia não ia estar ali trabalhando, às quinze para as nove da manhã de uma segunda-feira, fazendo alguma coisa relacionada com trabalho de verdade.
Dei uma olhada mais de perto na pilha de papéis que estavam sobre a sua mesa.
Eram formulários de emprego.
— Meredia, de quem são estes formulários, e onde você os conseguiu?
— São os requerimentos de emprego para preencher a vaga de Hetty. O Departamento de Pessoal os mandou aqui para baixo para o Simmonds Fedorento dar uma olhada.
— Mas por que razão você os está destruindo? Não quer uma pessoa nova para trabalhar aqui conosco?
— Não estou me livrando de todos, só de alguns.
— Ah, entendi — disse eu, sem entender.
— Só estou me livrando das mulheres casadas — continuou ela. —- E eu poderia saber o porquê disso?
— Por que razão elas deveriam ter um marido e um emprego? — perguntou Meredia, com um jeito amargo.
— Você está brincando? — perguntei, com a voz fraca. — Está tentando me dizer que você está destruindo todos os formulários de emprego das mulheres que são casadas só porque elas são casadas?
— Sim — disse ela, com ar sombrio. — Estou simplesmente equilibrando a sorte do mundo. Não dá para confiar só no carma para fazer isso. Quando queremos que algo seja bem feito, temos que fazer pessoalmente.
— Mas, Meredia — protestei —, só pelo fato de elas serem casadas não significa que sejam felizes. Elas podem ser casadas com homens que as espancam, têm casos na rua ou são um porre de aturar. E também podem ser viúvas, separadas ou divorciadas.
—- Isso não me interessa — fungou Meredia. — Elas, pelo menos, tiveram o seu grande dia, ouviram a marcha nupcial enquanto caminhavam pela igreja cheia, usando vestidos lindos.
— Mas se você não quer que elas sejam felizes, a melhor coisa a fazer é torcer para uma delas conseguir este emprego. Olhe só como somos infelizes.
— Não tente me enrolar, Lucy — disse ela, analisando outra proposta. — O que acha desta aqui, uma tal de L. Rogers? Ela não colocou sra. nem srta. no formulário. Casada ou solteira?
— Sei lá. Acho que é para a gente não saber mesmo. Foi por isso que ela não colocou sra. nem srta.
— Solteira, aposto — continuou Meredia, me ignorando por completo. — Se ela não colocou sra. nem srta. foi para esconder o fato de que está sem homem. Tudo bem, ela pode ficar para a entrevista.
— Olhe só, analise por outro ângulo — sugeri. — Se arrumarmos mais uma mulher solteira para trabalhar conosco, o que acontece? Você não acha que isso ainda vai aumentar a competição pelos poucos homens disponíveis por aqui?
Eu dissera aquilo só por brincadeira, mas um espasmo de horror fez o rosto de Meredia vibrar.
— Meu Deus, você tem razão! — reagiu ela. — Eu não tinha pensado nisso.
— Na verdade — sugeri, sentindo uma vontade repentina de fazer uma grande travessura —, era melhor se livrar logo de todos os formulários preenchidos por mulheres e deixar só as propostas enviadas por homens.
Meredia gostou muito da idéia.
— Brilhante! — exclamou ela, me abraçando. — Brilhante, brilhante, brilhante!
Fiquei satisfeita. Qualquer tipo de comportamento subversivo no local de trabalho servia para amenizar o tédio.
Diante disso, corremos para olhar uma por uma as propostas, em um ritmo frenético, para dar tempo de arrancar todas as mulheres da pilha antes de Ivor chegar.
Mas a depuração não parou por aí, porque o poder de decidir sobre a vida e a morte de todas aquelas pessoas subiu à cabeça de Meredia.
— Já que estamos fazendo isso, por que vamos ter que aturar algum coroa rabugento por aqui? — perguntou ela. E passou a destruir todos os homens acima de trinta e cinco.
A pilha, originalmente imensa, foi diminuindo pouco a pouco, e Meredia fez com que ela encolhesse ainda mais ao começar a analisar a lista de hobbies e interesses pessoais dos que restaram.
— Humm... este aqui gosta de jardinagem. Bye-bye!... — cantarolou ela, atirando-o para o monte dos rejeitados.
— E este aqui faz parte do corpo de voluntários do Exército! — explicou, atirando outro longe. Quando acabou o massacre, haviam sobrado apenas quatro.
Quatro homens, todos com idades entre vinte e um e vinte e sete, que afirmaram que seus hobbies eram "ir a festas", "malhar na academia", "participar de reuniões sociais", "viajar nas férias" e "beber".
Eu tinha de reconhecer que todos pareciam muito promissores.
Se naquele dia eu ainda não estivesse vivendo no paraíso dos otários, ao lado de Gus e achando que tudo no mundo era maravilhosamente lindo, teria ficado ainda mais empolgada.
Todos quatro vieram para fazer entrevista no decorrer daquela semana. A cada um que chegava, Meredia e eu íamos fazer hora na recepção para dar uma boa olhada no candidato, antes que ele fosse conduzido dali para o Departamento de Pessoal, a fim de que Blandina pudesse perguntar-lhes onde imaginavam que estariam dali a cinco anos ("Pendurado numa forca, se ainda estiver trabalhando aqui", seria a resposta certa, embora nenhum deles soubesse desse fato. Não perdiam por esperar: assim que conseguissem o emprego, iam descobrir isso rapidinho).
Dávamos notas de um a dez para beleza de rosto, formato da bunda, tamanho da mala dianteira etc. Não, é claro, que Meredia, Megan e eu tivéssemos algum tipo de voz ativa a respeito do resultado final.
Mas isso não nos impedia de ficar discutindo as particularidades dos candidatos com grande interesse.
— Eu gostei do número dois — disse Megan. — O que achou dele, Louise?
— Meu nome é Meredia! — reagiu ela, com ferocidade. — E, para mim, o número três foi o mais gatinho até agora.
— Também gostei do dois — disse. — Ele me pareceu muito legal.
Megan gostou da descrição do número quatro, aquele que colocara "malhação" como um dos hobbies, mas, quando chegou para a entrevista, ficamos arrasadas ao ver que era um homossexual terminal. Evidentemente não foi o escolhido, porque Ivor era homofóbico ao extremo.
Quando veio até a nossa sala, depois de entrevistar o rapaz, contou um monte de piadinhas na linha de "se houvesse uma moeda de cinqüenta centavos no chão perto dele, eu é que não ia me abaixar para pegá-la" e "traseiros colados na parede, hein?", e caía na gargalhada.
— Agora, sério, garotas — continuou ele. — Não daria certo termos um gay trabalhando aqui.
— Ué, por que não? — perguntei.
Ivor fez cara de envergonhado e explicou:
— Imaginem se ele... hã... começasse a gostar... de mim.
— De você? — explodi.
— Sim, isso mesmo. De mim — confirmou Ivor, ajeitando o pouco cabelo que sobrara em sua cabeça.
— Mas ele não me pareceu mentalmente retardado — expliquei, provocando risos em Megan e Meredia.
Ivor apertou os olhos enquanto olhava para mim, mas eu nem liguei. Estava furioso.
— O que quer dizer com isso, senhorita Sullivan? — perguntou ele, com frieza.
— Quero dizer que só pelo fato de ele ser gay e você ser homem, não significa, necessariamente, que ele vai se interessar por você.
Que cara-de-pau a dele achar que alguém, homem, mulher, criança ou animal doméstico pudesse achá-lo atraente.
— Mas é claro que ele poderia se interessar por mim — murmurou Ivor. — Você sabe como essa gente é. São uns promíscuos!
Houve um coro de protestos, vindos de Meredia, Megan e de mim: "Como ousa falar assim?" e "Seu fascista!" e "Como é que você sabe que eles são todos assim, hein?".
— E se ele já tiver um namorado? — insistiu Megan. — E se ele já estiver apaixonado por alguém?
Deixem de ser ridículas — gaguejou Ivor. — E chega desse assunto, podem calar a boca todas vocês, porque nós não vamos contratá-lo e pronto. Ele que procure outro emprego por aí, como cabeleireiro ou garçom em um daqueles restaurantes de comida afrescalhada. Ele vai se dar muito melhor trabalhando em um lugar desses.
Entrou em sua sala, bateu a porta e deixou nós três fumegando de raiva.
O número dois, o simpático e sorridente rapaz de vinte e sete anos, tirou o palito mais curto. Ofereceram-lhe o cargo, e ele próprio completou a desgraça aceitando o emprego.
Seu nome era Jed e, embora não fosse o mais bonito do lote, eu tinha um bom pressentimento a seu respeito. Ele nunca parava de sorrir, seus dentes eram lindos, brancos e imensos. Os cantos de sua boca desapareciam por trás das orelhas, e seus olhos se afilavam tanto que nem se via mais. Seria interessante descobrir em quanto tempo o emprego ia arrancar aquele sorriso da cara dele.
O Sr. Simmonds estava muito empolgado:
— Vai ser ótimo ter outro homem trabalhando por aqui — vivia repetindo enquanto esfregava as mãos de contentamento e imaginava almoços regados a cerveja e papos masculinos a respeito de carros, além de ser capaz de olhar para cima e falar, com ar de deboche, "mulheres!", sabendo que receberia um sorriso cúmplice de volta.
Jed começou a trabalhar na segunda-feira que se seguiu ao fim de semana do sumiço de Gus.
Eu me surpreendi com a minha resistência naquela manhã. Consegui me levantar, tomei banho, me vesti, fui para o trabalho, continuava a pensar sobre o que poderia ter dado errado com Gus, mas não me sentia assim tão mal, embora parecesse uma morta-viva.
Megan já estava no escritório antes de mim. Acabara de chegar de um fim de semana na Escócia. Parecia uma australiana falando da viagem — "Por que ir de avião se podemos passar doze horas em um ônibus caindo aos pedaços e economizar cinco libras?". Conhecera dez cidades em menos de quarenta e oito horas, fizera algumas escaladas, conhecera uns conterrâneos, tomara o maior porre em um pub em Glasgow com eles, dormira no chão no albergue em que eles estavam e ainda encontrara tempo para mandar cartões-postais para todo mundo que já conhecera na vida. Não pregava o olho desde a véspera e, mesmo assim, continuava linda e com todo o fogo.
Chegou até a nos trazer um presente, uma barra de caramelo escocês, daquele tipo famoso, que é mais duro do que diamante e gruda os dentes de cima nos de baixo, deixando a pessoa sem poder falar.
Meredia chegou logo depois. Entrou em cena usando sua melhor cortina, em honra do novo colega, e pulou sobre o caramelo, rasgando com avidez o celofane. Caímos todas de boca nele.
Foi quando Jed chegou. Parecia um pouco tímido e nervoso, mas continuava com o sorriso todo de fora, como um idiota. Estava de terno e gravata, mas logo, logo a gente ia dar um jeito para ele sair dessa.
Ivor Veneno chegou todo agitado, pisando firme e fazendo a cena do "homem de negócios cheio de coisas importantes para resolver". Falou muito alto, trocou tapinhas e fez contatos físicos tipicamente masculinos com Jed, jogou a cabeça para trás diversas vezes, soltando poderosas gargalhadas. Copiara aquilo dos chefões lá de cima. Adorava fazer tudo igual sempre que tinha chance.
— Jed! — ladrou ele, esticando a mão com força e apertando a de Jed. — Que bom revê-lo! Fico feliz que tenha conseguido o lugar. Desculpe não estar aqui para recebê-lo, acabei preso lá em cima resolvendo alguns problemas, sabe como é... Espero que estas meninas, um bando de maus elementos... rá-rá-rá!..., estejam tomando conta direitinho de você... rá-rá-rá! Envolveu o ombro de Jed com o braço, de forma paternal, e foi levando-o através da sala, até chegar diante da minha mesa. — Caras damas...rá-rá-rá!...eu gostaria que vocês conhecessem a mais nova aquisição da nossa equipe... rá-rá-rá! Este é o Sr. Davis.
— Apenas Jed, por favor — murmurou ele.
Um silêncio sepulcral se seguiu. Nenhuma de nós podia falar. Nossos queixos estavam totalmente grudados por causa do caramelo. Mesmo assim, sorrimos muito e balançamos a cabeça de modo entusiasmado. Acho que o fizemos sentir bem-vindo.
Ivor resolveu que ia desempenhar o papel de Svengali * na vida de Jed.
Estava adorando ter alguém a quem pudesse impressionar, e exibia isso sem pudor. No fundo, sabia que as mulheres não tinham um pingo de respeito por ele.
Ficou falando sem parar da importância do nosso setor na estrutura da empresa e citou as oportunidades que Jed teria para subir na carreira, "se trabalhasse duro". Lançou um olhar de reprovação para todas nós ao dizer isso. "Um dia, quem sabe, você pode até chegar ao nível em que estou."
Encerrou a ladainha, anunciando:
— Bem, não posso ficar aqui de papo o dia todo, sou um homem muito ocupado. — Exibiu um ar tristonho do tipo "eu trabalho tanto...", deu um sorriso do tipo "nós homens nos entendemos" e entrou em sua sala, com ar de importância.
Houve um momento de silêncio. Todos ficaram sorrindo sem graça uns para os outros.
Então Jed falou, olhando para a porta que se fechara:
— Que sujeito babaca.
Ai, que alívio! Jed era um de nós! Megan, Meredia e eu trocamos olhares orgulhosos e alegres. Ele prometia. E olhem que só estava no escritório há dez minutos, hein? Nós íamos conseguir moldá-lo de forma esmerada e orientá-lo com cuidado até ele se tornar tão cínico e sarcástico como, quem sabe, até mesmo Meredia.
Tentei com toda a determinação não pensar em Gus, e funcionou. A não ser por uma sensação interna e constante de mal-estar, quase não dava para sentir o quanto eu estava infeliz. A impressão de ter engolido um bloco de chumbo e estar sem energia para arrastar o peso extra por toda parte era outra dica. Mas era só isso.
Não chorei nem nada desse tipo. Nem mesmo contei às meninas no escritório. Eu não conseguia nem me dar ao trabalho de fazer isso, porque estava desapontada demais.
Só quando o telefone tocava é que eu perdia ligeiramente o controle. A Esperança Vingadora conseguia me dar uma volta, fugia da caixa e ficava brincando de pular amarelinha dentro da minha cabeça, pisando nas minhas terminações nervosas.
Mas não conseguia fazer isso por muito tempo não. No terceiro toque do telefone eu geralmente me atracava com ela, colocava-a de volta na caixa e sentava em cima da tampa.
O único telefonema digno de nota que recebi durante toda aquela semana não era importante. Foi do meu irmão, Peter.
Eu não fazia a menor idéia do motivo pelo qual ele estava me ligando. Ele era meu irmão, e eu o amava, acho, mas não era como se gostássemos tanto assim um do outro.
— Esteve lá em casa recentemente, Lucy? — perguntou ele.
— Estive, há algumas semanas — admiti, esperando que a pergunta não fosse seguida por "bem, e você não acha que já estava mais do que na hora de voltar lá não?...".
— Estou preocupado com a mãezinha — disse ele.
— Por quê? — perguntei. — E você tem que ficar chamando a mamãe de "mãezinha"? Até parece o Al Jolson.
Quem?
— Você sabe... aquele cara que cantava "Percorreria um milhão de quilômetros por um sorriso seu".
Silêncio do outro lado da linha.
— Eu às vezes me preocupo com você, Lucy, sério mesmo. Mas olhe, escute só... a mãezinha anda meio estranha, sabe?... Meio engraçada.
— Engraçada como? — suspirei, tentando parecer interessada.
— Anda esquecendo as coisas.
— Talvez esteja com Alzheimer.
— Rá-rá! Você sempre faz piadinha com tudo, não é, Lucy?
— Não estou brincando, Peter. Talvez ela esteja com Alzheimer mesmo. Que tipo de coisas ela anda esquecendo?
— Bem, você sabe o quanto detesto champignons, não sabe?
— Hã... você detesta?
— Sim! Você sabe que detesto. Todo mundo sabe que detesto!
— Certo, está certo. Fique frio!
— Bem, o caso é que outro dia fui até lá, à noite, e ela passou molho de champignons na minha torrada!
— E daí?
— Como "e daí..."? Isso não é o cúmulo? Foi o que eu disse para ela. Falei "mãezinha, eu detesto champignons!", e ela respondeu: "É?... Então devo estar confundindo você com Christopher."
— Isso é muito grave, Pete! Fiquei chocada! — disse, com um tom seco. — Vamos ter sorte se ela chegar ao fim do mês com vida.
— Ah, vocês são todos iguais!
— Ah, vocês são todos iguais! — reagiu ele, parecendo magoado. — Mas tem mais!
— Então conte.
— Ela fez um negócio estranho no cabelo.
— Seja o que for, deve ter melhorado.
— Não, Lucy, é sério! Ele está todo ondulado e louro, ela nem se parece mais com a mãezinha!
— Ah! Agora, tudo está começando a fazer sentido — disse eu, com ar solene. — Não há motivo para preocupações, Peter, eu já sei exatamente o que está acontecendo.
— É?... O quê?
— Ela arrumou um namorado novo, seu bobo!
O pobre do Peter ficou muito aborrecido ao ouvir aquilo. Ele achava que a nossa mãe era assim uma espécie de Virgem Maria, só que mais casta e santa. Pelo menos consegui me livrar dele na mesma hora, e esperava que ele não me ligasse mais para me torrar a paciência com telefonemas ridículos como aquele. Só Deus sabe o quanto eu tinha coisas mais importantes na cabeça para resolver.
Megan e as amigas que moravam com ela iam dar uma festa no sábado à noite.
Ela dividia uma casa de três quartos com outras vinte e oito pessoas australianas, todas trabalhando em horários diferentes, de modo que havia camas suficientes para cada uma delas dormir, cada uma em um horário diferente. Acho que as camas eram utilizadas em um sistema tipo time-sharing, vinte e quatro horas por dia.
Parece que Megan dividia uma cama de solteiro com Donnie, um sujeito que consertava telhados, e um segurança de boate chamado Shane, e jamais se encontrava com nenhum dos dois. Na verdade, pelo jeito que ela falava, acho que eles jamais haviam se conhecido.
Ela jurou que haveria milhares de homens solteiros na festa (na quinta-feira acabei abrindo o jogo, meio sem graça, e contei tudo a Megan e a Meredia sobre o desaparecimento de Gus).
No sábado, eu estava me sentindo o cocô do cavalo do bandido. Sem Gus, nem promessa de casamento iminente, minha vida ficara completamente vazia.
Não havia equipamentos extras, nem acessórios humanos, nem planos de um futuro suave, nem magia arrebatadora, nada que me levantasse o astral. Eu, ali sozinha, me sentia desbotada, desenxabida, com os pés totalmente no chão e sem adereços. Estava tão sem sal que até eu perdera o interesse por mim mesma.
Não estava a fim de ir à festa porque ficaria me divertindo muito mais ali sozinha, sentindo pena de mim mesma, mas era obrigada a ir, porque combinara de me encontrar com Jed para levá-lo até lá. Não podia deixá-lo na mão, porque ele não conhecia mais ninguém na festa.
Meredia não ia estar lá (apareceu outro compromisso), mas isso até que veio bem a calhar, porque a casa era pequena.
Megan ia à festa, é claro, porque morava lá, mas acontece que ela era a anfitriã, e ia estar muito ocupada separando brigas e participando de competições de levantamento de copo para ficar paparicando Jed.
Jed e eu nos encontramos na estação do metrô em Earls Court, ou Pequena Sidney, como eu costumava chamar.
Tomar uns drinques depois do trabalho com o pessoal do escritório é uma coisa, mas sempre tive muito cuidado para não deixar que os drinques se estendessem pelo meu fim de semana adentro.
Só que com Jed era diferente. Ele era maravilhoso, excepcional*. No final da primeira semana ele já inventara um apelido para o Senhor Simmonds: "Senhor Sémens". Além disso, já chegara atrasado uma vez, ligara para uma amiga em Madri duas vezes e conseguira enfiar uma barra inteira de chocolate na boca de uma vez só! Era muito mais divertido do que Hetty jamais fora. Acho que Ivor já estava começando a se sentir tão decepcionado e traído por Jed quanto fora por Hetty.
Como Megan prometera, a festa estava entulhada de homens, todos imensos, bêbados, ruidosos e provando a todos que eram do outro lado do planeta. Eu me senti em uma floresta. Jed e eu nos separamos logo no início da festa, e não nos vimos mais pelo resto da noite. É que ele era muito baixo para ser localizado no meio dos outros.
Os gigantes tinham nomes como Kevin 0'Leary e Kevin McAllister e recordavam aos berros sobre a vez em que ficaram de porre e desceram um rio violento de caiaque, no Zâmbia. Ou a vez em que ficaram de porre e saltaram de pára-quedas em Johanesbur-go. Ou quando ficaram de porre e fizeram bungee jumping pulando do alto de umas ruínas astecas na Cidade do México.
Eles pareciam muito estranhos para mim, eram de um tipo de homem completamente diferente daqueles aos quais eu estava acostumada. Eram grandes demais, bronzeados demais, entusiasmados demais.
O pior de tudo é que vestiam os mais esquisitos jeans que eu já vi. Eram calças feitas de brim azul, certamente, mas a semelhança acabava aqui. Eram jeans, mas não da forma que conhecemos. Não identifiquei nenhuma marca famosa, e acho que Jed era o único homem na festa que usava calça com braguilha de botões, pois todos os outros usavam zíper. Uma das calças dos caras tinha um papagaio bordado no bolso de trás, outra exibia um corte no tecido, costurado com barbante, e que descia até o meio das pernas, formando uma espécie de dobra embutida. Outro sujeito tinha bolsos enfileirados, um embaixo do outro, em toda a lateral das pernas. E outro ainda vestia uma calça totalmente feita de pequenos retalhos de brim. Eram todas horríveis. No meio, havia até umas duas calças jeans muito desbotadas, mas bem comuns, só que ninguém parecia se importar.
Sempre achei que não ligava para a forma como um homem se vestia, que não fazia diferença se ele simplesmente jogasse alguma coisa velha em cima do corpo, só que naquela noite descobri que ligava sim, e muito! Claro que eu gostava de homens que se vestissem assim, tipo "dane-se o visual", de forma bem casual, só que tinha de ser um tipo muito específico de "dane-se o visual".
Todos eles tentaram chegar em mim. Alguns deles tentaram duas ou três vezes, usando as mesmas frases.
— Tá a fim de uma trepada, gata?
— Não, obrigada.
— Bem, e você se importa de ficar ali, só deitada, bem quietinha, enquanto eu faço o resto?
Ou então as cantadas eram:
— Você dorme de bruços?
— Não.
— Então se importa se eu deitar de bruços por cima de você? Depois de ter sido abordada umas cinco vezes pelo mesmo cara,
pedi:
— Kevin, me pergunte como é que eu gosto de acordar.
— Lucy, gata, como é que você gosta de acordar?
— Sem ter sido tocada por ninguém a noite toda! — berrei. — Agora, cai fora!
Eles eram impossíveis de ofender.
— Tudo bem! — E se afastavam — Sem trauma! — Simplesmente chegavam na primeira mulher que surgisse em seu campo de visão e lançavam as mesmas propostas charmosas. Mais ou menos à uma e meia da manhã eu já tinha bebido quatro milhões de latas de cerveja australiana e continuava completamente sóbria. Não consegui enxergar nem um homem atraente sequer, e sabia que as coisas só podiam piorar. Se eu ficasse por ali ia ser uma perda total de tempo. Resolvi sair fora antes de ficar alta.
Ninguém notou que eu tinha ido embora.
Fiquei parada sozinha na rua, à procura de um táxi, e me perguntando em desespero: será que é só isso? Será que isso é tudo o que posso esperar da vida? Aquilo era tudo que eu podia esperar da vida de solteira em Londres?
Mais um sábado à noite e nada que prestasse.
Meu apartamento estava quieto quando entrei. Comecei a me sentir tão deprimida que vagamente contemplei a idéia de suicídio, mas não consegui entusiasmo bastante para isso. Talvez amanhã de manhã, prometi a mim mesma. Talvez eu consiga me matar quando estiver mais animadinha.
— Você é um tremendo canalha, Gus! — Foi meu último pensamento antes de apagar. — Isso tudo é culpa sua!
Duas semanas haviam passado e Gus ainda não ligara.
Todas as manhãs eu achava que estava começando a aceitar aquilo, e todas as noites, ao me deitar, descobria que passara o dia todo prendendo a respiração, ansiosa com a expectativa de saber notícias dele.
Descobri também que eu me tornara um embaraço.
Ao me permitir ser descartada por Gus, eu desequilibrara o delicado balanceamento triplo que existia entre mim e as amigas com quem dividia o apartamento. Quando nós três estávamos namorando, as coisas corriam bem. Se um dos casais queria a sala de visitas só para eles, por qualquer motivo, tudo o que os outros casais tinham a fazer era ir para seus respectivos quartos e ficar lá, criando a própria diversão.
Agora que eu estava sozinha, no entanto, o casal que desejasse ficar a sós na sala ia se sentir culpado por me banir para um lugar com a escassez de recursos sensoriais do meu quarto, e no final iam acabar se sentindo aborrecidos com a minha presença, porque se sentir aborrecido é muito mais gratificante do que se sentir culpado. Ter sido largada por Gus era visto como culpa minha, resultado de descuido e comportamento relaxado com o relacionamento.
Charlotte resolveu que já era hora de arrumar um novo namorado para mim. Tinha um desejo meio infantil de ajudar e um outro desejo, não tão infantil, de me fazer sair de casa de vez em quando, para que ela e Simon pudessem brincar de médico e enfermeira, ou seja lá o que for que eles brincavam.
— Você devia esquecer o Gus e tentar procurar outra pessoa — disse ela para me encorajar, em uma noite em que estávamos apenas nós duas em casa.
— Vou dar um tempo — respondi.
Claro que era ela que deveria estar dizendo aquilo para mim, e não o contrário, pensei, confusa.
— Mas você não vai conhecer ninguém se ficar enfurnada aqui dentro de casa! — exclamou ela.
E, é claro, ela jamais ia conseguir transar com o Simon no chão da sala, também, se eu estivesse sempre em casa. Só que foi gentil o bastante para não dizer isso.
— Mas, Charlotte, eu sempre saio — argumentei. — Fui a uma festa no sábado passado, por exemplo.
— Podíamos colocar um anúncio nos classificados para você — sugeriu Charlotte.
— Que tipo de anúncio?
— Um anúncio na sessão de mensagens pessoais.
— Não! — Fiquei horrorizada pela idéia. — Posso estar assim meio mal, tudo bem, estou mal mesmo, mas espero jamais me rebaixar tão fundo.
— Não, Lucy — protestou Charlotte. — Você faz uma idéia totalmente errada disso. Um monte de gente age assim. Um monte de gente normal conhece seu par através das páginas dos corações solitários dos jornais.
— Você deve ter pirado — disse eu, com firmeza. — Não vou penetrar naquele mundo estranho de bares só para solteiros, lavanderias automáticas só para pessoas que moram sozinhas, homens que se descrevem ao telefone como tendo a cara de Keanu Reeves e, quando aparecem, estão mais para Van Morrison, só que sem o bom gosto para as roupas; homens que se dizem em busca de um parceiro no amor quando o que querem, na verdade, é marretar a sua cabeça com uma clava até você morrer e depois entalhar lindas estrelas na sua barriga com a faca da cozinha. De jeito nenhum. Nem pensar.
Charlotte achou aquela descrição muito engraçada.
— Você entendeu tudo errado — disse ela, ofegante de tanto rir e enxugando os olhos. — As coisas não são mais assim. Não são mesmo. Eu sei que isso era considerado baixo, vulgar e...
— Você faria isso se fosse com você? — perguntei de repente, indo direto ao centro da questão.
— Bem, é difícil dizer — gaguejou ela. — Isto é, eu tenho um namorado...
— De qualquer modo, não é a vulgaridade disso que me incomoda — exclamei, zangada —, e sim ser tachada de "Pobre Idiota Solitária". É isso que me deixa revoltada. Não entende, Charlotte, se eu tivesse que ir para a seção dos solitários no jornal para arrumar namorado, preferia estar morta. Se eu fizer isso, os poucos gramas de auto-estima que me sobraram vão desaparecer juntamente com as esperanças.
— Não seja tola — disse Charlotte, sentando-se reta no sofá e pegando uma caneta e um papel, que me pareceu ser o cardápio de entrega em domicílio do restaurante chinês.
— Vamos lá — começou ela, toda feliz. — Vamos montar uma descrição bem interessante de você, e montes de rapazes adoráveis vão responder ao anúncio. Você vai se divertir à beça.
— Não!
— Sim! — contrapôs ela, de forma gentil, mas firme. — Vamos ver,,. Como poderíamos descrever você?... Humm, que tal "baixa"?... não, "baixa" acho que não.
— Com certeza, "baixa" não. — Eu me vi concordando. — Isso vai me fazer parecer uma "anã".
— Não, não se deve mais falar "anã", Lucy.
— Verticalmente prejudicada, então.
— Hã?... o que é isso?
— Anã.
— Mas, então, por que não disse logo?
— Mas eu...
— Tudo bem. Que tal "tipo mignon"?
— Não, detesto isso de... "tipo mignon". Parece tão... tão... infantil e patético. É como se eu nem sequer conseguisse alcançar o interruptor.
— Mas você mal alcança o interruptor.
— E daí? Isso não quer dizer que eu precise ficar espalhando isso para todo o mundo.
— Tem razão. Posso pedir a Simon que escreva um anúncio para você. Afinal, ele trabalha com propaganda.
— Mas, Charlotte, ele é um designer gráfico.
Ela ficou olhando para mim sem expressão alguma no rosto.
— O que quer dizer com isso, Lucy?
— Quero dizer que ele trabalha com... hã... as imagens dos anúncios. Não escreve o texto.
— Aahh!... Então é isso que um designer gráfico faz — exclamou ela, como se tivesse acabado de descobrir que a Terra era redonda.
Às vezes Charlotte me deixava apreensiva. Eu não gostaria de morar dentro da cabeça dela, não. Lá devia ser um lugar escuro, sombrio, solitário e assustador. Acho que daria para a pessoa caminhar por quilômetros e quilômetros lá dentro sem encontrar um único pensamento inteligente.
— Já sei, já sei! Descobri. Que tal "uma Vénus de bolso"? — Charlotte se virou para mim com os olhos brilhando de prazer, pela sua criatividade.
— Não!
— Por que não? Esse título foi bom.
Porque não sou tão bonita assim. Não sou uma porcaria de "Vénus de bolso", só por isso.
— E daí? Eles não vão saber até vê-la, e depois que a conhecerem, vão descobrir como você é legal.
— Não, Charlotte, não é correto fazer isso. O tiro pode sair pela culatra. Propaganda enganosa, eles vão querer o dinheiro de volta.
— Ihhh... puxa — concordou Charlotte, desanimada. — Acho que você tem razão.
— Por favor, esqueça essa idéia — supliquei.
— Não, vamos olhar alguns anúncios pessoais aqui na revista Time Out, só para ver se tem alguém que poderia servir para você.
— Não — disse eu, já em desespero.
— Olha, olha! Aqui tem um bom... — gritou Charlotte, histérica. — Tenho alta estatura, muitos músculos e pêlos por todo o corpo... ai... puxa vida!...
— Argh!... — Eu me encolhi toda. — Esse não faz o meu gênero, nem de longe.
— Ainda bem — continuou Charlotte, meio decepcionada. — É uma lésbica. Que pena! Até eu já estava começando a gostar da descrição. Enfim, vamos em frente.
Charlotte continuou a ler. De vez em quando me perguntava algo:
— O que significa tenho muito "sdh"?
— Quer dizer que a pessoa tem muito senso de humor.
— Então, o que é "gsdh"?
— Grande senso de humor, acho.
— Ah, isso é legal!
— Não, não é, Charlotte — expliquei, aborrecida. — Significa apenas que ele se acha muito engraçado e fica rindo das próprias piadas.
— Eoqueé"bd"?
— Bem-dotado.
— Não...
— Sim.
— Nossa! Isso me parece um pouco de exibicionismo, não é? Corta logo o tesão, não corta?
— Depende. Certamente corta o meu tesão, mas talvez não seja o caso de muita gente.
— Lucy, você não estaria interessada em passar a tarde de uma quarta-feira fazendo uma grande farra em companhia de um homem e uma mulher casados?
— Charlotte! — exclamei, escandalizada. — Como é que você pode sugerir uma coisa dessas?
E acrescentei:
— Ainda mais sabendo que não posso tirar uma tarde de folga no trabalho... — Fiz uma cara rabugenta e nós duas caímos na gargalhada com aquilo.
— Que tal "homem atencioso, extremamente carinhoso e com muito amor no coração para dar à garota certa"?
— De jeito nenhum! Ele parece um perdedor total, um mané... Uma versão masculina de mim.
— É mesmo, ele parece meio inocente — concordou Charlotte. — Que tal "gatão exigente procura mulher de classe, bem atlética e flexível, para aventuras"?
—' Flexível? — guinchei. — Atlética? Aventuras? Que coisa repulsiva e baixa. Será que ele não podia ser um pouco mais abrangente sobre o que deseja de um relacionamento? Nossa!
Eu estava ficando chateada com aquilo. Era terrivelmente depressivo. Sórdido e triste. Enquanto eu vivesse, jamais iria me encontrar com um homem que tivesse conhecido através de um anúncio.
— Você está linda — elogiou Charlotte, ajeitando a minha gola.
— Você está falando isso para que eu me sinta um pouco melhor? — perguntei, com um tom amargo.
— Aposto que você vai se divertir muito — disse ela, meio hesitante.
— Pois eu tenho certeza de que vai ser horrível.
— Pense positivo.
— Pense positivo, tá bom... Por que não vai você no meu lugar?
— Porque não preciso ir. Já tenho namorado.
— E fica me esfregando isso na cara o tempo todo. Devia ir até lá.
— Mas pode ser que ele seja um cara legal — sugeriu Charlotte.
— Ele não vai ser legal.
— Não, sério mesmo. Pode ser que seja.
— Não acredito que você esteja fazendo isso comigo, Charlotte
— reagi, ainda espantada.
Eu realmente não conseguia acreditar naquilo. Charlotte me traíra. A vaca marcou um encontro com um cara que achou na coluna de corações solitários. Sem nem ao menos ter a decência de me consultar, marcara um encontro, em meu nome, com um sujeito que era americano. É claro que, quando descobri, fiquei possessa.
Apesar disso, minha reação não foi tão extrema quanto a de Karen. Ao descobrir sobre a história do meu "encontro às escuras", como Charlotte insistia em chamá-lo, Karen chegou a chorar de tanto rir.
Conseguiu parar de rir apenas o tempo suficiente para ligar para Daniel e contar a ele todo o evento, e depois continuou a rir convulsivamente por mais vinte minutos.
— Deus do céu! Você está desesperada mesmo, Lucy — comentou ela ao desligar o telefone e enxugar as lágrimas que escorriam pelo rosto.
— Essas coisas não têm nada a ver comigo — protestei, zangada.
— E eu não vou.
— Mas, agora, você tem que ir — disse Charlotte. — Não seria justo com o rapaz.
— Sua cabeça tapada está completamente desaparafusada — reagi.
Ela olhou para mim com tristeza e seus imensos olhos azuis se encheram de lágrimas.
— Desculpe o que falei, Charlotte — disse eu, meio sem graça. — Você não é tapada.
Simon a chamara de "tapada" alguns dias antes, e o chefe dela a chamava de "tapada" o tempo todo, então ela estava meio sensível a alegações relacionadas com "tapadice".
— Olhe, Charlotte, falando sério — disse eu, bem alto, tentando me manter firme. — Não vou sair com esse cara. Não ligo a mínima para o fato de ele parecer legal ou normal.
— Eu só estava tentando ajudar — fungou ela, com as lágrimas escorrendo pelos cantos dos olhos. — Simplesmente achei que seria legal para você conhecer um homem bem doce e atencioso.
— Eu sei! — Estiquei o braço e o coloquei em volta do ombro dela, já me sentindo culpada. — Eu sei disso, Charlotte.
— Não fique tão brava assim comigo, por favor, Lucy — ela soluçou.
— Não estou brava — reagi, abraçando-a. — Ah, Charlotte, por favor, não chore.
Eu detestava ver alguém chorando, com a única exceção da minha mãe, só que eu prometera a mim mesma que, não importava o que acontecesse, não importava o quanto ela chorasse, eu não ia ceder aos apelos de Charlotte, e não ia me encontrar com aquele tal de Chuck.
Cedi aos apelos de Charlotte e concordei em me encontrar com aquele tal de Chuck. Não tenho muita certeza do motivo que me fez concordar, mas o fato é que concordei.
Apesar disso, mantive um restinho de auto-estima e fiquei reclamando daquilo o tempo todo.
— Tenho certeza de que ele vai ser um sujeito totalmente repulsivo — assegurei a Charlotte enquanto me preparava para sair. — Meu visual está legal?
— Estou lhe dizendo, Lucy, você está linda. Não está, Simon?
— Quê? Ah, sim, sim... linda — concordou Simon, com a maior empolgação. Ele estava doido para me ver pelas costas, para poder transar com Charlotte.
— Lucy, ele pode ser um cara legal — repetiu ela.
— Vai ser horroroso — garanti.
— Nunca se sabe... — voltou Charlotte com ar sério enquanto balançava o dedo na minha direção. — Ele pode ser aquele que apareceu nas cartas.
Para o meu horror, eu me vi concordando com ela ou, ao menos, esperando que ela estivesse certa. Charlotte podia estar com a razão: era bem capaz de ele ser um cara legal, podia ser a exceção que confirma a regra. Quem sabe ele não era um bunda-mole, nem um assassino com machado escondido em casa, nem estonteantemente horroroso, nem um aleijado emocional.
A Esperança, uma criatura instável, uma velha filha pródiga, resolveu de repente fazer uma breve aparição, como convidada especial na novela que era a minha vida.
Apesar de todas as vezes que ela me deixara na mão no passado, decidi dar-lhe mais uma chance.
Será que algum dia eu ia aprender?
Será que tenho algum tipo de dependência por desapontamentos?, perguntei a mim mesma.
Mas então uma onda de empolgação já circulava por dentro de mim. E se ele fosse um tipo solitário? E se ele fosse alguém parecido com Gus, só que um pouco mais normal, menos aloprado e sem a abordagem minimalista no que se referia a ligações telefônicas? Não seria maravilhoso? Além do mais, supondo que eu gostasse dele e tudo acabasse dando certo, eu ainda estaria dentro do prazo que a Sra. Nolan determinara. Dava tempo suficiente para eu viajar até os Estados Unidos, a fim de conhecer a família dele, e organizar o casamento, tudo em menos de seis meses.
Eu devia encontrá-lo às oito horas em ponto, na porta de uma daquelas churrascarias sem graça que existem aos montes no centro de Londres, e que servem para alimentar as multidões e multidões de americanos que visitam a cidade todos os anos.
Chuck avisara — por um instante minha cabeça pareceu girar, porque eu mal acreditava que estava me preparando para jantar com um sujeito chamado Chuck —, bem, Chuck avisara que seria fácil reconhecê-lo, pois ele estaria usando uma capa azul-marinho e teria revista Time Out nas mãos.
(E todos os que o virem o reconhecerão através de sua capa azul-marinho e de seu exemplar de Time Out.) Não tinha a mínima intenção de ficar circulando por ali do lado fora do restaurante, esperando por ele e colocando-me à sua mercê, caso ele fosse extremamente medonho. Em vez disso, me misturei a um monte de gente do outro lado da rua e fingi que estava esperando o ônibus. Com a gola do meu casaco levantada, mantinha os olhos grudados na porta do restaurante, em frente. Estava um pouco nervosa, porque, apesar de esperar que ele fosse horroroso, havia uma pequena possibilidade de ele ser bonito. Às cinco para as oito o sujeito chegou, com a capa azul-marinho exemplar de Time Out em punho, tudo certinho. Do meu posto de vigia, até que ele me pareceu legal. Bem, pelo menos me pareceu bem normal. Tinha apenas uma cabeça, nenhuma deformidade aparente, nenhum membro a mais, nenhum membro a menos, pelo menos não que eu conseguisse ver. Não dava para ter certeza com relação aos dedos dos pés ou ao pênis dele, a partir de um contato tão recente. Atravessei a rua para dar uma olhada nele mais de perto.
Não era mau. Não, nem um pouco.
Na verdade, daria até para descrevê-lo como bonito. Altura média, bronzeado, olhos castanho-escuros, ossatura firme, um rosto forte. O todo dele me fazia lembrar alguém... quem seria? Mais tarde eu ia descobrir.
A Esperança começou a zumbir dentro do meu peito. Ele não era o meu tipo de homem favorito, mas as coisas jamais deram certo com os meus tipos favoritos de homem, então, que diabos, eu podia dar uma chance a ele.
Talvez, no fim, eu acabe lhe agradecendo muito, Charlotte, pensei.
Ele já me vira. E reparara no meu exemplar de Time Out.
Falou comigo. Nenhum respingo de cuspe me atingiu o rosto. Isso era bom sinal.
— Você deve ser a Lucy — disse ele. Nenhum ponto extra por originalidade, e sete milhões de pontos a menos pelas calças baratas, muito vagabundas. Enfim, os americanos são assim mesmo. E nota dez por não ter lábio leporino, não falar gaguejando nem ficar com baba escorrendo pelo canto da boca.
Ainda.
— E você deve ser o Chuck — afirmei, sem contribuir muito para a abertura de novos horizontes na área de primeiros contatos.
— Chuck Thaddeus Mullerbraun, o Segundo, vindo diretamente de Redridge, Tucson, Arizona. — E sorriu, estendendo-me a mão e me dando um aperto muito entusiasmado em estilo "torno mecânico".
Oh-oh, pensei.
Na mesma hora me segurei para não achá-lo estranho. Aquilo não era culpa dele, os americanos sempre agiam daquele jeito. Pode perguntar qualquer coisa a eles, qualquer coisa, desde "Deus existe?" a "poderia me passar o saleiro, por favor?", e a primeira coisa que eles fazem é informar seu nome completo e endereço. E como se eles tivessem medo de que, se não ficassem repetindo o tempo todo quem são e de onde vêm, pudessem desaparecer no ar.
Eu achava aquilo meio esquisito. Imagine se alguém me parasse na rua para perguntar as horas e eu respondesse: "Lucy Carmel Sullivan, a Primeira, vinda diretamente do apartamento no último andar, o 43D, da rua Bassett Crescent, em Ladbroke Grove, Zona Oeste, Londres, Inglaterra, Grã-Bretanha, Europa, desculpe, não tenho relógio, mas deve ser mais ou menos uma e quinze."
Aquele era apenas um costume diferente, lembrei a mim mesma, como os espanhóis jantando às duas da manhã, e eu devia estar recebendo bem a oportunidade de travar contato com uma cultura diferente. Vive la différence!
Lucy Mullerbraun?
Eu preferia Lucy Lavan, pensei, divagando um pouco, mas não havia sentido em seguir aquela linha de pensamento naquele momento em particular.
Ou em qualquer outro momento, pensando melhor.
— Podemos entrar? — sugeriu ele, de forma educada, indicando a porta do restaurante.
— Por que não?
Entramos no imenso restaurante e um pequeno sujeito porto-riquenho instalou-nos a uma mesa ao lado da janela. Eu me sentei.
Chuck sentou-se em frente a mim. Trocamos olhares inseguros e nervosos.
Resolvemos dizer alguma coisa e, ao abrirmos a boca, começamos a falar ao mesmo tempo. Então nós dois nos calamos e nenhum dos dois disse mais nada por alguns instantes. Então, ao mesmo tempo, nós dois dissemos: "Fale você, primeiro", então nós dois rimos e repetimos, novamente em uníssono: "Por favor, você primeiro, sério."
Até que foi bonitinho. Quebrou o gelo.
— Por favor — disse eu, tomando a iniciativa e com medo de que aquilo continuasse por toda a noite —, fale você primeiro, Chuck, eu insisto.
— Então está bem — sorriu ele. — Eu queria apenas dizer que você tem olhos lindos.
— Obrigada. — Sorri de volta, vermelha de vergonha e satisfação.
— Adoro olhos castanhos — explicou ele.
— Eu também — concordei. Até ali, tudo bem. Pelo jeito, tínhamos algumas coisas em comum.
— Minha mulher tem olhos castanhos — completou ele.
O quê?
— Sua mulher? — foi o que perguntei, com a voz fraca.
— Bem, ex-mulher, na verdade — corrigiu ele. — Nos divorciamos recentemente, mas vivo esquecendo.
O que será que eu devia responder a uma frase dessas? Eu não sabia que ele fora casado. Mas, e daí?, decidi, tentando manter o controle. Todo mundo tem um passado, e ele não afirmara no anúncio que não era casado.
— Já superei a crise — disse ele.
— Hã... bom... que bom — disse, tentando parecer encorajadora.
— Desejo que ela seja feliz.
— Isso é maravilhoso — disse eu, com honestidade. Houve uma pausa.
— Não sou um sujeito amargo por causa disso — disse ele, com um tom de amargura na voz, enquanto olhava com ar amargo para a toalha da mesa.
Mais uma pausa.
— Meg — suspirou.
— Co... como disse? — perguntei.
— Meg — repetiu ele. — Era esse o nome dela. Bem, na verdade era Margaret, mas eu sempre a chamava de Meg. Um apelido carinhoso, entende?
— Que simpático — comentei, baixinho.
— Sim — disse ele, dando um sorriso irônico e distante. — Era mesmo.
Um estranho silêncio se seguiu.
Ouvi um barulho de alguma coisa em volta que parecia afundar, submergindo rapidamente. Levei um momento para compreender que aquilo era o barulho do meu coração. Era o som dele indo a toda a velocidade, tipo "viagem expressa só de ida" para a sola das minhas botas.
Mas talvez eu estivesse sendo negativa.
Talvez conseguíssemos curar os corações quebrados um do outro. Talvez tudo o que ele precisasse fosse o amor de uma boa mulher. E talvez tudo que eu precisasse fosse o amor de Chuck Thaddeus Mullerbraun, que veio de — onde era mesmo a cidade dele? — ... sei lá, um lugar do Arizona.
A garçonete chegou para anotar o pedido das bebidas.
— Para mim, um copo da sua mais fina água da torneira — disse Chuck, recostando-se na cadeira e dando um tapinha no estômago. Olhei para aquilo e tive a terríveí impressão de que a camisa dele era de poliéster.
A garçonete lançou um olhar de desprezo para ele. Sabia reconhecer um pão-duro assim que colocava os olhos em um.
Ele certamente não queria que eu o acompanhasse e pedisse água da bica também, não é?
Bem, sinto muito, mas, por mim, ele que fosse para o inferno, porque eu queria um drinque, Um drinque de verdade.
É melhor começarmos as coisas logo de cara do mesmo jeito que vamos mantê-las.
— Um Bacardi e uma Coca light — disse eu, tentando fazer aquilo parecer um pedido bem razoável.
A mulher foi embora e Chuck se inclinou para a mesa na minha direção e falou:
— Eu não sabia que você bebia álcool.
Talvez nós não fôssemos curar o coração um do outro, afinal.
Do jeito que ele usou as palavras, cheio de aversão e nojo, era como se estivesse dizendo que não sabia que eu fazia sexo com crianças pequenas.
— Sim — disse, com um leve tom de desafio —, por que não? Aprecio um drinque de vez em quando.
— Tudo bem — disse ele, lentamente. — Tudo bem, tudo bem. Para mim está ótimo. Legal.
— Você não bebe? — perguntei.
— Sim, bebo sim — respondeu ele. Graças a Deus.
— Bebo água — continuou ele. — Bebo refrigerantes. Isso é tudo o que preciso beber na vida. O melhor drinque do mundo é um bom copo de água geladinha. Não preciso de álcool.
Eu me segurei. Se ele me dissesse que a vida já é o maior barato que se pode curtir, eu ia embota, jurei para mim mesma. Infelizmente, porém, isso não aconteceu. E a conversa continuou, na mesma linha.
— A sua... hã... Meg não bebe? — perguntei. — Álcool — acrescentei correndo, antes que ele começasse a brincar com as palavras novamente.
— Não, ela jamais tocou em álcool, nunca precisou — respondeu, elevando o tom da voz.
— Bem, mas não é o caso de eu precisar da bebida — disse eu, perguntando a mim mesma por que estava me dando ao trabalho de tentar me defender.
— Olha... — Ele olhou fixamente para mim. — Você deve perguntar isso é a você mesma. Quem está tentando convencer, afinal, a mim ou você?
Pensando melhor, agora que eu estava olhando de perto para seu rosto, ele não parecia tão bronzeado assim, a cor estava mais para alaranjada.
O tom de sua pele não era dourado, não, parecia mais cor de tangerina.
Nossos drinques chegaram. O copo de água da bica para Chuck e o meu Instrumento de Satanás acompanhado pela Coca light.
— E aí, estão preparados para fazer o pedido? — perguntou a garçonete.
— Ei, a gente mal se sentou — reagiu Chuck, de forma rude.
A mulher deu as costas e foi embora. Senti vontade de correr atrás dela e pedir desculpas, mas Chuck me alugou com um papo que só de brincadeira poderia ser chamado de conversa.
— Você já foi casada, Lindy? — perguntou ele.
— Lucy — corrigi.
— Como disse? — quis saber ele.
— Lucy — repeti. — Meu nome é Lucy. Um olhar sem expressão veio de Chuck.
— Não é Lindy — acrescentei, à guisa de explicação.
— Ah, entendo — disse ele, com uma gargalhada explosiva e jovial. — Desculpe, desculpe. Já saquei. Sim, sim... Lucy.
E caiu na risada de novo, dando um barulhento tapa na coxa. Levou bastante tempo, na verdade, para ele parar de rir. Ficava balançando a cabeça, como se não estivesse acreditando naquilo, e repetia, olhando para mim:
— Lindy! Essa foi boa, hein? Rá-rá-rá! Lindy! Dá pra acreditar?
Então engrenou um sotaque de caipira e disse algo que me pareceu: "Uai! Vamo laça o porco e dispois se empanturra de melado!"
Pelo menos eu acho que foi isso que ele disse.
E o rosto que me pareceu tão forte à primeira vista era, na verdade, sem expressão, imóvel, rígido.
Fiquei ali, sentada, com um sorriso colado na cara, esperando que ele se acalmasse, para então falar:
— Em resposta à sua pergunta, Brad, não, eu nunca fui casada.
— Ei, ei, ei — disse ele, com o rosto se fechando de repente, de aborrecimento. — O nome é Chuck. Quem é esse tal de Brad?
— Foi uma piadinha — expliquei bem depressa. — Sabe como é... você me chamou de Lindy, eu chamei você de Brad.
— Ah. Certo. — E ficou olhando para mim como se eu fosse completamente maluca. Seu rosto parecia uma sessão de slides: uma imagem estática atrás da outra, com pequenos períodos de branco, enquanto ele retirava uma emoção e ficava esperando outra aparecer.
— Escute, dona — quis saber ele —, você é algum tipo de doido-na? Porque não estou com espaço para doidonas na minha vida neste momento não.
Tranquei a boca e me segurei para não perguntar quando é que ele achava que ia arrumar algum espaço para doidonas na vida dele, mas fazer isso foi bem difícil.
— Foi só uma brincadeira — expliquei, com delicadeza. Achei que era melhor tentar apaziguá-lo, porque estava me sentindo um pouco preocupada com as suas abruptas mudanças de humor.
Ele provavelmente pertencia a algum clube de tiro. Havia um jeito meio maníaco e esquisito na forma de ele olhar que eu não reparara assim que o vira. E também havia algo de muito estranho com o seu cabelo... o que seria?
Ele fixou o olhar em mim, balançou a cabeça lentamente (não pude deixar de reparar que, apesar de a cabeça dele se mexer para a frente e para trás, o cabelo ficava no mesmo lugar) e disse:
— O.k., entendi agora. Isso foi um lance de humor, então, certo? E sorriu de orelha a orelha para mim, exibindo a boca cheia de
dentes. Tudo isso para provar que ele apreciava o meu tipo de humor.
... Ele secara aquele cabelo com um secador bem quente, era óbvio, e os fios estavam meio de lado...
— Isso então foi um exemplo do seu humor, não é? Sim, foi muito legal.
... E alguns dos tufos estavam duros de tanto laque...
— Gostei da piada sim, sim, gostei mesmo. Você é uma garota engraçada, então, não é?
... Será que aquilo era uma peruca?...
— Hummm... — murmurei. Estava com medo de abrir a boca para falar alguma coisa e acabar vomitando em cima dele, bem no colo de sua surrada calça de brim.
... Aquilo na cabeça dele parecia mais um capacete. Na verdade, era todo duro e com cara de pegajoso.
Ele pegou um pão, enfiou tudo na boca de uma só vez e ficou mastigando, mastigando e mastigando sem parar, como uma vaca ruminando capim. Foi nojento.
Mas não acreditei no que ele fez em seguida.
Não é que ele tenha exatamente soltado um pum. Parecia mais uma explosão rouca e longa que fez estremecer o ambiente.
Sim, para falar a verdade foi um tremendo peido, bem alto. demorado e sem pedido de desculpas.
Ainda estava tentando me refazer do choque daquilo quando a pobre da garçonete tornou a aparecer para anotar o pedido, embora eu estivesse certa de que ia vomitar ali mesmo se alguém me oferecesse alguma coisa para comer. Com o apetite de Chuck, porém não parecia haver nada de errado.
Ele pediu o maior bife do cardápio e ainda exigiu que viesse muito malpassado.
— Por que não pede que a moça traga logo a vaca inteira ainda viva até aqui? Você pode tentar fazer com que ela suba na mesa e se sente no seu prato para ser degustada — sugeri.
Eu não tinha nada contra pessoas que comem carne vermelha, mas era tão agradável ser cruel com ele que não consegui resistir à chance de falar aquilo.
Infelizmente, ele apenas soltou uma gargalhada.
Uma pena, um desperdício total de uma frase cheia de veneno.
Foi então que ele resolveu que já estava na hora de nos conhecermos melhor. Chegara o momento de trocarmos experiências de vida.
— Ei, você já foi ao Caribe? — ladrou ele, na minha direção. E, sem esperar pela minha resposta, passou direto à descrição das areias brancas, dos habitantes hospitaleiros, da fantástica loja do free shop, da maravilhosa cozinha, do pacote cheio de descontos e com tudo incluído que ele conseguiu porque o cunhado trabalhava em uma agência de viagens...
— Bem, tecnicamente, ele não é mais seu cunhado, agora que Meg se divorciou de você, não é mesmo? — interrompi, mas ele preferiu não me ouvir. Toda a sua atenção estava focada nele mesmo.
E a descrição lírica continuava, sem pinta de terminar. O espetacular chalé em que ele se hospedara, a fosforescência dos peixes tropicais... Agüentei tudo aquilo com a maior paciência, até que lotou! De forma bem rude, interrompi a descrição da água limpa, clara e muito azul sobre a qual ele velejou dentro de um barco com fundo de vidro.
— Deixe-me adivinhar — disse eu, com sarcasmo. — Você foi até lá em companhia de Meg.
Ele olhou para mim na mesma hora, enquanto o slide da suspeita apareceu na tela imóvel do seu rosto.
Então exibi um sorriso fulgurante para ele, só para deixá-lo confuso.
— Ei, como foi que você adivinhou? — E sorriu para mim. Enfiei a mão debaixo da coxa para resistir à tentação de dar um
soco na cara dele.
— Ah... acho que é intuição feminina — disse, soltando uma risadinha delicada e quase sentindo o vômito subir até a garganta e ficar bem atrás dos meus dentes.
... £ por falar em dentes, o que havia de errado com os dele? Será que ele usava dentadura?,..
— E então, você gostaria de tentar um relacionamento comigo, Lisa?
— Hã... — Como poderia dizer a ele que eu preferia ter um relacionamento com um leproso sem ofendê-lo?
Sem ofender o leproso, é claro.
— É melhor você ficar logo sabendo — sorriu ele. — Eu sou um cara muito exigente.
Onde estava o meu jantar? Eu já nem ligava mais.
— Mas você até que é bonitinha, sabia?
— Obrigada — murmurei. Não se dê a esse trabalho, por favor.
— É sim, muito bonitinha. Em uma escala de um a dez, eu lhe daria nota... deixe ver... é... eu lhe daria um sete. Não, vamos dizer seis e meio. Tenho que deduzir meio por cento porque você bebeu álcool logo no primeiro encontro.
— Acho que você quer dizer meio ponto, e não meio por cento, porque a escala que você usou foi de dez, não de cem. E o que há de errado em beber no primeiro encontro? Se não fosse o primeiro encontro, estaria tudo bem? — quis saber, com frieza na voz.
Ele franziu os olhos e disse:
— Você fala demais. Faz um monte de perguntas, sabia?
— Não, sério mesmo, Chuck. Estou muito interessada em saber por que motivo perdi meio ponto com você.
— Certo, certo. Eu lhe conto, eu lhe conto. Claro que conto. Consegue perceber quais são os sinais que você envia ao seu acompanhante quando bebe logo no primeiro encontro, Lisa? Imagina que tipo de afirmação está fazendo a respeito de si mesma?
Olhei para ele sem expressão.
— Não — disse, com doçura. — Por favor, ilumine a minha mente.
— O quê?
— Ilumi... hã, por favor, me conte.
— D-E-S-P-O-N-í-V-E-L — soletrou ele, lentamente.
— Como disse? — falei, meio confusa.
— Disponível — explicou, impaciente. — A imagem que eu faço é a de que você está disponível.
— Ah, disponível — disse eu, compreendendo então. — Bem, talvez se você tivesse soletrado a palavra direito eu tivesse entendido logo de cara o que você queria dizer.
Seus olhos se estreitaram.
— Ei, está insinuando o quê? Que você é mais esperta do que eu ou algo assim?
— Nada disso — expliquei, com educação. — Estava apenas informando a você que a letra E só aparece uma vez na palavra "disponível".
Nossa! Ele era insuportável!
— Nenhum homem tem respeito algum por uma mulher bêbada — afirmou ele, olhando com os olhos apertados para o meu Bacardi, e depois para mim.
Aquilo só podia ser piada. Tinha de ser alguma armação, era a única explicação. Olhei em torno do restaurante, quase esperando ver Daniel sentado a uma das outras mesas, ou algum apresentador famoso da televisão anunciando que aquilo tudo era uma pegadinha.
Mas isso não aconteceu.
Ai, meu Deus! Suspirei para mim mesma. Gostaria que tudo isso já tivesse acabado. Que desperdício de noite! Especialmente uma noite de sexta-feira, quando passavam programas tão interessantes na tevê.
"Sabe de uma coisa, você não é obrigada a aturar isso não", sussurrou uma vozinha rebelde dentro da minha cabeça.
"Claro que é obrigada!", cochichou outra vozinha interna, essa mais ponderada e zelosa.
"Não, francamente não é não", replicou a primeira voz.
"Mas, mas... concordei em vir até aqui para conhecê-lo, tenho de ficar por todo o período combinado. Não posso ir embora. Seria uma falta de educação", protestou a minha porção "certinha".
"Falta de educação", rosnou a voz rebelde, "Falta de educação! E por acaso ele é educado? Os americanos que pulverizaram Hiroshima provavelmente eram mais educados."
"Sim, mas acontece que não tive muitas oportunidades de conhecer homens diferentes, e de cavalo dado não se olha os dentes", explicou minha porção "comportada".
"Não acredito no que você está falando!", disse a porção "rebelada", parecendo genuinamente chocada. "Você tem de si mesma uma imagem assim tão baixa a ponto de preferir estar com um homem desses a ficar sozinha?"
"Mas eu estou tão sozinha...", disse a vozinha boa.
"Você quer dizer desesperada", debochou a voz rebelde.
"Já que você está colocando as coisas desse jeito,..", ponderou a porção bondosa de forma relutante, recusando-se a dispensar um homem, qualquer homem, até mesmo um sujeito horrível como aquele.
"Eu insisto nisso", disse a porção "rebelada", com firmeza.
"Bem, então tudo bem. Acho que posso fingir que estou enjoada", disse a voz educada. "Posso simular um tombo e dizer que quebrei a perna, que estou com apendicite supurada ou algo desse tipo."
"Não, claro que não!", disse a porção "rebelde". "Para que poupá-lo? Se está disposta a cair fora, faça isso em grande estilo. Deixe que ele perceba o quanto é desagradável e o quanto você o achou repulsivo e antipático. Defenda suas razões! Use o ato para fazer uma declaração!"
"Não, não posso...", protestou a parte zelosa.
A voz rebelde continuou em silêncio.
"Ou será que posso?..."
"Claro que pode!", exclamou minha voz rebelde, toda empolgada.
"Mas... mas... o que devo fazer?", quis saber a porção boa, já com uma coceirinha na boca do estômago.
"Tenho certeza de que você vai conseguir pensar em algo. Aliás, devo lembrá-la de que, se você cair fora agora mesmo, dá para chegar em casa antes de o seriado do Rab C. Nesbitt começar", aconselhou a voz rebelada.
Chuck continuava a falar sem parar:
— Hoje eu estava no metrô e vou te contar, Lizzie... Eu era o único cara branco do vagão!...
Certo! Chega! Não agüento mais!
"Mas estou com medo dele", explicou minha voz boa. "E se ele me seguir, torturar e depois me matar? Vamos ser francos, ele bem que parece ser desse tipo."
"Não se preocupe", disse a voz rebelde. "Ele não faz idéia de onde você mora, nem mesmo tem o número do seu telefone. Tudo o que tem é o número da sua caixa postal. Vá em frente! Não há com o que se preocupar,"
Sentindo-me leve com aquela sensação de poder à qual não estava acostumada, eu me levantei, pegando o casaco e a bolsa.
— Desculpe-me. — Sorri docemente, interrompendo o discurso de Chuck sobre como deveria haver um controle mais eficiente da imigração e como apenas as pessoas brancas deveriam ter direito a voto. — Vou até o toalete das meninas.
— E você precisa levar o casaco para o banheiro? — estranhou fChuck.
— Preciso, Chuck — respondi, com doçura.
— Tudo bem. Panaca!
Fui saindo de fininho, com as pernas tremendo. Estava com medo, mas também estava feliz.
Passei ao lado da garçonete que estava nos servindo. Ela estava limpando uma das mesas e eu estava com tanta adrenalina no sangue que nem conseguia falar direito.
— Desculpe — disse para ela, com as palavras parecendo meio embaralhadas e sentindo a língua maior do que a boca. — Estou naquela mesa ao lado da janela, e o cavalheiro que está comigo pediu que lhe seja servida uma garrafa do seu champanhe mais caro, por favor.
— Claro — disse a mulher.
— Obrigada. — Sorri e fui em frente.
Decidi que assim que chegasse em casa ia telefonar para o restaurante, a fim de me certificar de que nenhum dos funcionários ia ter de pagar pelo champanhe do próprio bolso.
Cheguei à porta do banheiro feminino, hesitei apenas por um momento e continuei andando. Parecia que eu estava sonhando. Só quando atravessei o portal da entrada do restaurante e saí na rua chuvosa foi que acreditei que havia conseguido, e que já estava livre.
Meu plano inicial era simplesmente sair e ir para casa, deixando a longa passagem de tempo servir de indicação para Chuck de que eu nunca mais ia aparecer. Isso, porém, não seria correto. O jantar dele ia ficar frio durante o tempo em que ele ia ficar esperando pela minha volta. Esperando, esperando...
Supondo que aquele homem revoltante tivesse a educação de esperar que eu voltasse para a mesa antes de mergulhar no prato e devorar o seu animal recém-abatido.
Apesar de tudo, resolvi dar a ele o benefício da dúvida.
Vesti o casaco e, apesar de ser uma noite chuvosa de sexta-feira, consegui pegar um táxi na mesma hora.
Os deuses estavam sorrindo para mim. Aquele era o tipo de sinal do qual eu precisava para sentir que fizera a coisa certa.
— Ladbroke Grove — indiquei ao motorista, toda empolgada, assim que entrei no carro. — Antes, porém, será que o senhor poderia me fazer um favor?
— Depende... — afirmou ele, desconfiado. Os taxistas de Londres são assim mesmo.
— É que acabei de terminar com o meu namorado. Ele está indo embora para sempre. Está sentado junto à janela daquele restaurante ali. Será que o senhor poderia passar bem devagarzinho com o carro até que ele me veja, para que eu possa acenar para ele uma última vez?
O taxista pareceu sinceramente comovido pelo meu pedido.
— Puxa, parece aquele filme com Frank Sinatra e Ava Gardner. E eu que achei que o romantismo estava morto... — disse ele, com a voz rouca e falha. — Não tem problema, querida. Simplesmente me diga quem é ele.
— É aquele... hã... rapaz bronzeado e bonito bem ali — disse eu, apontando para o lugar em que Chuck estava sentado, admirando o próprio reflexo em uma faca enquanto me esperava voltar do banheiro.
O táxi foi passando bem devagar na frente da janela onde Chuck estava e comecei a abaixar o vidro.
— Vou ligar a luz interna do carro, moça, para ele poder vê-la melhor — disse o taxista.
— Obrigada.
Chuck estava girando a faca diante do rosto, afastando-a e depois aproximando-a, para poder ver o rosto de diferentes distâncias.
— Ele gosta de se apreciar — comentou o motorista.
— Como gosta!
— Tem certeza de que é ele, moça? — perguntou o motorista, meio em dúvida.
— Absoluta.
Chuck já estava começando a mostrar cara de chateado. Pelo jeito eu estava levando mais tempo no banheiro do que Meg, e ele parecia não aprovar aquilo.
— Quer que eu dê um toque na buzina, moça? — perguntou meu leal motorista.
— Por que não?
O taxista apertou a buzina com toda a força e Chuck olhou para fora, para ver que barulheira era aquela. Eu me debrucei para fora e acenei de forma espalhafatosa.
Ele sorriu, com alegria, reconhecendo o meu rosto assim que me viu e levantou a mão para me acenar de volta.
Nesse instante a confusão começou a se instalar lenta e dolorosamente em sua cara idiota, no momento em que ele reparou que a pessoa que lhe parecia familiar e que estava acenando para ele de um táxi era, na verdade, a sua acompanhante daquela noite, a mulher com quem ele estava jantando, a criatura cuja lagosta à moda da casa estava, naquele exato momento, sendo reverentemente colocada diante de uma cadeira vazia, e que a citada criatura estava dentro de um táxi que se preparava para deixar o local. O aceno que preparava não chegou a se completar, e ele parou com a mão no ar.
Franziu sua testa alaranjada. Não compreendia aquilo. Os dados não combinavam.
E então a ficha caiu.
A expressão que se formou em seu rosto valeu toda a cena. O instante em que ele compreendeu que eu não estava no toalete das meninas, e sim efetuando uma fuga em um táxi, foi maravilhoso, nem mais nem menos. Valeu a pena ficar ali por todo aquele tempo terrível só para poder apreciar o ar de descrença, ódio e fúria que surgiu em seu rosto convencido, esquisito e bronzeado. Ele deu um pulo da cadeira e deixou cair a faca com a qual estava se admirando até há poucos segundos.
Não consegui segurar o riso.
— Mas que mer...? — fez ele com os lábios, em mímica, o rosto retorcido de tanta fúria, Quase parecia ter vida.
— Vá... se... fo-der! — fiz com os lábios, devolvendo a mímica. Então, enfiei os dois braços para fora do carro na noite molhada e coloquei a mão direita espalmada sobre o braço esquerdo, puxando-o para trás, dando-lhe uma banana para o caso de a sua leitura labial não ser muito boa. Fiquei sacudindo os braços para cima por uns dez segundos, reforçando o gesto, enquanto ele continuava olhando para mim com fúria impotente através da vidraça.
— Pode seguir! — ordenei.
O motorista começou a acelerar no momento em que dois garçons apareciam por trás de Chuck, um carregando um balde de gelo com um guardanapo sobre o braço e o outro com uma garrafa de champanhe.
No táxi descobri quem Chuck me fizera lembrar: Donny Osmond!
Donny Osmond cantando "Amor de cachorrinho".
O alaranjado, sincero e comovente Donny Osmond com olhos de bichinho de estimação para combinar com o seu amor de cachorrinho. Só que o Donny Osmond do restaurante estava meio embaçado, passara por maus pedaços na vida, era um Donny Osmond para quem todas as coisas tinham dado errado, um Donny amargo, sem senso de humor e de extrema direita.
Muito antes de chegar em casa eu jà estava me sentindo culpada por causa de Chuck e a garrafa de champanhe. Não era justo que ele tivesse de pagar por ela. Só pelo fato de ele ser uma pessoa detestável e horrível isso não me dava o direito de agir da mesma forma. Assim, no momento em que coloquei os pés dentro de casa, liguei para o restaurante.
— Hã... alô — disse eu, meio nervosa. — Será que o senhor poderia me dar uma ajuda? Eu estava em seu restaurante até ainda há pouco e precisei ir embora correndo, de forma não planejada, só que antes de sair pedi uma garrafa de champanhe para o cavalheiro que estava comigo. Era para ser uma... hã... surpresa, e acho que ele não deve ter concordado em pagar por ela. Gostaria de ter certeza de que a garçonete não vai ter a garrafa descontada do salário, nem nada desse tipo...
— O cavalheiro americano? — perguntou uma voz masculina.
— Sim — confirmei, relutante. Cavalheiro uma ova!
— E a senhorita deve ser a mulher com problemas mentais? — quis saber a voz.
Que cara-de-pau do atendente. Como é que ele ousava insinuar que eu era maluca?
— O americano explicou que a senhorita faz coisas desse tipo com freqüência, que não consegue se controlar.
Engoli minha raiva.
— Quero pagar pelo champanhe — murmurei.
— Não há necessidade — disse a voz. — Nós jà combinamos com o americano que não vamos cobrar os danos que ele causou à nossa mobília, desde que pague pelo champanhe.
— Mas não é justo ser obrigado a pagar por algo que não consumiu — expliquei.
— Consumiu sim, ele bebeu — informou a voz.
— Mas ele não bebe — protestei.
— Olha, ele bebe sim — confirmou a voz. — Pode vir e ver com os próprios olhos, se não acredita.
— Quer dizer que ele ainda está aí?
— Ah, sim! E aquilo que ele está bebendo neste instante não é tequila sem álcool não.
Ai, meu Deus! Agora eu tinha mais isso na consciência. Transformara Chuck em um bebum. Ah, que se dane! Talvez isso seja a melhor coisa que já aconteceu a ele.
Certo, agora vamos direto para a televisão!
Para minha total decepção, Karen e Daniel estavam na sala de visitas. Dividiam uma garrafa de vinho e estavam de mãozinhas dadas, assistindo aos meus programas, na minha televisão. Era de embrulhar o estômago.
— Você voltou cedo — comentou Karen, aborrecida.
— Hummmmm — respondi, de forma esquiva.
Eu também estava chateada. Aquilo significava que eu não ia ver Rab C. Nesbitt. Não podia ficar ali na mesma sala, junto de Karen e Daniel, enquanto eles ficavam de beijinhos e abraços.
Eu ia ter de ir para o meu quarto e ficar sentada lá, enquanto eles continuavam ocupando o sofá todo, Karen deitada com a cabeça no colo de Daniel. Ele ficava acariciando a cabeça dela enquanto ela ficava acariciando o... bem, o que quer que eles estivessem a fim de fazer, aquilo era uma coisa na qual eu não estava a fim de pensar.
Eles andavam tão apaixonados, feito dois pombinhos, que chegava a me causar nojo.
Charlotte e Simon nunca me faziam sentir estranha, não sei por que acontecia aquilo quando a coisa era entre Daniel e Karen.
— Como é que você está? — perguntou Daniel, parecendo todo metido a superior.
— Estou bem — respondi, meio distraída.
— E como foi o encontro às escuras com o americano? — perguntou Daniel.
— Ele era louco.
— É mesmo?
— É mesmo.
— Ah, Lucy, de novo não — suspirou Karen. — Você já está transformando esse tipo de situação em hábito.
— Vou para a cama — anunciei.
— Finalmente! — exclamou Karen, piscando sensualmente para Daniel.
— Rá-rá! — reagi, tentando aparentar um espírito esportivo. — Boa-noite.
— Lucy, não fique achando que você tem de sair da sala só porque estamos aqui — disse Daniel, educado como sempre.
— Fique sim — corrigiu Karen.
— Não vá embora — pediu Daniel.
— Vá sim. — Riu Karen.
— Karen, não seja mal-educada — disse Daniel, parecendo sem graça.
— Mas eu não estou sendo mal-educada — sorriu Karen. — Estou só sendo honesta. Estou mostrando a Lucy a posição em que ela se encontra.
Saí da sala com os olhos cheios de lágrimas, inexplicavelmente.
— Ah, por falar nisso, Lucy — gritou Karen, na minha direção.
— Que foi? — perguntei, encostada no portal.
— Ligaram para você.
— E quem era?
— Gus.
Senti como se estivesse me livrando de um peso imenso e soltei o ar em um longo e delicioso suspiro. Estava esperando para fazer aquilo há três semanas.
— Bem, e o que foi que ele disse? — perguntei, empolgada.
— Que ia tornar a ligar dali a uma hora, e se você ainda não tivesse voltado ia continuar ligando de hora em hora, até você chegar.
Uma onda de felicidade me lavou por dentro. Ele não me abandonara, eu não fizera nada de errado, minha posição não tinha sido ocupada por Mandy.
Um pensamento me passou pela cabeça.
— Onde foi que você disse que eu estava? — perguntei, ofegante.
— Falei que tinha saído.
— Saído com um homem?
— Foi.
— Ótimo. Isso vai deixá-lo preocupado. A que horas completa uma hora que ele ligou?
Karen se sentou reta no sofá e olhou para mim.
— Por que quer saber? — perguntou. — E claro que você não vai atender a ligação dele, vai?
— Hã... vou, vou sim — disse, meio envergonhada, trocando o peso do corpo de um pé para outro.
Daniel balançou a cabeça em uma expressão do tipo "quando será que ela vai aprender?", e me lançou um sorriso meio irritado. Que coragem a dele! O que sabia ele sobre as agonias do amor não correspondido, ou semicorrespondido?
— Você não tem amor-próprio?—perguntou Karen, sem acreditar.
— Não — respondi, distraída, meditando sobre que tipo de tom eu deveria adotar com Gus... Divertido? Chateado? Severo?
Eu já sabia que ia perdoá-lo. A questão agora era quanto eu ia me fazer de difícil para obrigá-lo a lutar por aquilo.
— Bem, o funeral é seu — disse Karen, virando as costas para mim. — Ele deve tornar a ligar daqui a uns vinte minutos.
Entrei no meu quarto e fiquei dando pulinhos sem sair do lugar. Vinte minutos, como é que eu ia me segurar?
Mas eu tinha de permanecer calma, não podia deixar que ele soubesse que eu estava empolgada daquele jeito, então me forcei a respirar fundo e pausadamente.
Mas não conseguia parar de sorrir. Às cinco para as dez eu estaria falando com Gus.
Gus, que achei que perdera para sempre, e que agora mal conseguia esperar.
Quando meu despertador digital mostrou nove e cinqüenta e cinco, coloquei os pés juntos no chão, preparados, esperando a largada.
E esperei.
E esperei...
Ele não ligou.
É claro que ele não ligou.
Como é que pude achar que ele ia ligar?
Então, já que eu não ia chorar, comecei a preparar para mim mesma as desculpas de sempre.
Meu relógio estava adiantado. Gus não conseguia muito bem calcular a diferença entre cinco minutos e uma hora; provavelmente ele estava em um pub onde, se é que havia telefone, provavelmente estava quebrado; se o telefone não estava quebrado, devia ter alguma mulher de Galway pendurada nele, ligando para casa e disputando uma maratona de lágrimas.
Depois de onze horas admiti a derrota e fui para a cama.
"Aquele canalha", pensei, muito zangada. "Teve a chance de voltar e a estragou. Quando ele ligar, eu não vou atender. E se atender, vai ser só para informar a ele que não vou atender."
Algum tempo mais tarde, escutei o interfone tocar, e me sentei na cama, horrorizada. Ah, não! Ele está aqui, entrando no prédio, chegando da rua, e tirei toda a maquiagem! Que desastre! Pulei da cama e ouvi Karen ou Daniel atendendo a chamada e apertando o controle para abrir o portão, lá embaixo.
— Puxe assunto com ele para eu ganhar algum tempo — sussurrei para Karen, enfiando a cabeça para fora do quarto. — Vou me aprontar em cinco minutos.
— Puxar assunto com quem? — perguntou ela.
— Com Gus, é claro!
— Por que, ele está aqui?
— Está subindo. Você acabou de abrir o portão lá embaixo para
ele.
— Eu não — disse ela.
— Sim, claro que sim — insisti. — Você acabou de fazer isso. Karen estava se comportando de modo estranho, só que não
parecia bêbada.
— Não, não abri não! — insistiu ela, olhando para mim mais de perto. — Você está bem, Lucy?
— Estou ótima — respondi. — Você é que está me deixando preocupada. Se não era o Gus, então para quem você acabou de abrir o portão?
— Para o cara da pizza.
— Que cara da pizza?
— O cara da pizza que veio entregar a pizza que eu e Daniel pedimos.
— Mas onde?
— Aqui — disse ela, escancarando a porta da frente e revelando a figura de um homem que usava macacão impermeável vermelho, capacete e segurava uma caixa baixa, de papelão, nas mãos.
— Daniel — gritou ela —, pode preparar os pratos e os copos.
— Já entendi — sussurrei e mergulhei de novo na cama.
Por que será que Gus se dera ao trabalho de telefonar, para início de conversa?, perguntei a mim mesma com os olhos cheios de lágrimas. O que aquilo me trouxera de bom? Nada! Só serviu para provocar preocupação e tumulto dentro de mim.
Horas mais tarde, quando todo mundo já estava na cama e o apartamento envolto em completa escuridão, o telefone tocou. Acordei na mesma hora — mesmo quando eu dormia, meus nervos continuavam em alerta total, esperando pelo telefonema de Gus. Fui cambaleando de sono até o corredor para atender, porque eu sabia que só podia ser o Gus — ninguém mais ia ligar a uma hora daquelas, só que eu estava sonolenta demais para me sentir feliz com aquilo. Gus parecia bêbado.
— Posso ir até aí, Lucy? — Foi a primeira coisa que disse.
— Não! — respondi, perguntando-me o que será que havia acontecido com o velho "oi, Lucy".
— Porém, eu preciso muito vê-la, Lucy! — gritou ele, de forma veemente.
— E eu preciso dormir.
— Lucy, Lucy, onde está o seu fogo, a sua paixão pelas coisas? Dormir? Fala sério!... Você pode dormir em qualquer outra hora. Só que não é todo dia que temos a chance de estarmos juntos.
Eu sabia daquilo bem demais até.
— Lucy, por favor — insistiu ele. — Você está chateada comigo, não é?
— Sim, estou muito chateada com você — respondi, no mesmo tom de voz, tentando não parecer chateada demais para não espantá-lo.
— Mas, por favor, Lucy, eu tenho uma desculpa — garantiu ele.
— Então vamos ouvi-la.
— O cachorro comeu todo o meu dever de casa, o despertador não tocou e a minha bicicleta furou o pneu.
Não achei graça nenhuma.
— Ô-ô... — cantarolou ele. — Ela ficou totalmente muda, então significa que continua chateada — disse. — Sério mesmo, Lucy, eu tenho uma desculpa...
— Então, por favor, me diga qual.é.
— Não pelo telefone. Preferia ir até aí para ver você.
— Pois você não vai me ver até eu ouvir sua desculpa — disse eu.
— Você é muito durona, Lucy Sullivan! — gritou, com a voz triste. — Implacável! Cruel!
— E a desculpa?... — perguntei, educadamente.
— Olhe, vai ser muito melhor se eu explicar pessoalmente, ao vivo e em cores. Vozes sem corpo atravessando o espaço não são tão boas para essas coisas — explicou ele, de forma sedutora. — Por favor, Lucy, eu odeio conversar pelo telefone.
Eu sabia disso muito bem.
— Então apareça aqui amanhã, Gus. Agora já está muito tarde.
— Tarde? Lucy Sullivan, desde quando o tempo representou alguma coisa para nós dois? Você é como eu, um espírito livre que não é limitado pelo horário informado por aquele grupo de pesquisadores sem coração do Observatório de Greenwich. O que aconteceu com você? Será que a sua alma foi seqüestrada pelos duendes que acorrentam as pessoas ao relógio?
Ele fez uma pausa por um segundo, e então disse em tons de horror contido:
— Por Deus, Lucy, não me diga que você saiu à rua e comprou um... Comprou um relógio!?
Eu ri. O pequeno canalha. Como é que eu ia assustá-lo se ele estava me fazendo rir?
— Apareça aqui amanhã de manhã, Gus. — Tentei fazer a voz soar ríspida e autoritária. — Então, vamos conversar.
— Não existe momento melhor do que o agora — anunciou ele, com a voz alegre.
— Não, Gus. Amanhã.
— Quem sabe o que nos reserva o amanhã, Lucy? Amanhã é outro dia, e quem poderá saber onde estaremos?
Não sei se ele teve a intenção, mas eu reconhecia uma ameaça quando ouvia uma. Era possível que ele não me ligasse no dia seguinte. Era bem capaz de eu nunca mais ouvir falar dele. Ali, porém, naquele momento, ele queria me ver.
Era meu, e eu tornei a me lembrar de que não se deve olhar os dentes de um cavalo dado, nem chutar a bola quando ela ainda está quicando, e eu já devia ter aprendido a diferença entre um pássaro na mão e dois voando.
Você vai mesmo aceitá-lo nestes termos?, perguntou a vozinha dentro da minha cabeça.
Vou!, repliquei, com ar cansado.
Mas você não tem amor-pró...?
Não, não tenho! Quantas vezes vou ter que lhe dizer isto?
— Tá legal, Gus — suspirei, fingindo que acabara de ceder, embora, é claro, já soubesse, no fundo, o tempo todo, que era aquilo que ia acabar acontecendo. — Pode vir.
— Já estou indo — disse ele.
Isso podia significar qualquer período de tempo, de quinze minutos a quatro meses, e o meu grande dilema era: será que eu devia me maquiar para recebê-lo ou ficar assim mesmo, como estava?
Sabia muito bem dos perigos de se testar o destino. Se eu colocasse maquiagem, ele não ia aparecer. Se eu não colocasse maquiagem, ele viria, com certeza, mas ficaria tão chocado ao ver a minha cara lavada que ia fugir correndo.
— O que está acontecendo? — sussurrou uma voz. Era Karen. — Quem estava ao telefone? Era o Gus?
— Desculpe por acordar você. — Concordei com a cabeça.
— Você mandou ele ir embora e se foder?
— Hã... não. Sabe, é que não ouvi a história toda ainda. Ele... hã... está vindo aí para me contar o que aconteceu.
— Agora!? Às duas e meia da manhã?
— Não existe melhor momento do que o agora — disse, baixinho.
— Em outras palavras, ele estava em uma festa, não conseguiu arrumar ninguém e está a fim de uma transa. Essa foi legal, Lucy, você está mesmo se valorizando ao se fazer de tão difícil desse jeito.
— Não é bem isso... — disse, com o estômago já ficando embrulhado.
— Boa-noite, Lucy — suspirou ela, me ignorando por completo. — Vou voltar para a cama. Com Daniel — acrescentou, com cara de convencida.
Eu sabia que ela ia contar a Daniel tudo o que acabara de acontecer, porque ela contava a Daniel tudo o que acontecia comigo.
Bem, pelo menos contava os vexames, micos diversos e lances embaraçosos. Eu não tinha privacidade, detestava o fato de ele saber tanta coisa a meu respeito e se mostrar complacente e crítico.
Ele vivia no nosso apartamento, era como se morasse lá, conosco. Por que Daniel e Karen não podiam ir para o apartamento dele, de vez em quando, só para me deixar um pouco em paz?
Eu adoraria se eles terminassem o namoro, pensei, de forma cruel.
Decidi ludibriar o destino, já estava farta de vê-lo exercer sozinho todo aquele poder, e assim, apesar de colocar um pouco de maquiagem, não troquei de roupa.
Logo depois, a campainha do interfone ecoou por todo o apartamento de um jeito capaz de acordar até os mortos. O barulho parou por um breve tempo, oferecendo uma bendita oportunidade de apreciarmos as maravilhas do silêncio, e depois voltou a atacar, agredindo nossos ouvidos por mais alguns segundos intermináveis que nos pareceram horas. Gus chegara.
Abri o portão da rua e fiquei esperando que aparecesse, subindo as escadas, mas isso não aconteceu. De repente, ouvi vozes alteradas no corredor, alguns andares abaixo do nosso. Finalmente, ele surgiu, cambaleando, subindo o lance de escadas, parecendo lindo, sexy, descabelado e bêbado.
Eu estava perdida, de forma irremediável e completa. Só no momento em que o vi compreendi o quanto sentira a sua falta.
— Nossa, Lucy — resmungou ele, enquanto passava por mim, meio tonto, e entrava no apartamento. — Aquele seu vizinho tem um gênio muito bravo. Qualquer um pode se enganar de porta.
— O que aconteceu, Gus? — perguntei.
— Toquei a campainha errada — disse com ar ressentido, arrastando-se direto para o meu quarto.
Ei, ei, espere um minutinho!, pensei. Ele está parecendo muito atirado e seguro de si. Não pode entrar valsando assim aqui dentro, depois de ficar sem dar as caras por três semanas e ainda achar que pode pular direto na cama comigo.
Aparentemente, ele podia. Já estava sentado na beira da cama, tirando as botas.
— Gus... — tentei falar, prestes a dar início à palestra que preparara. Vocês sabem, o texto de sempre... como ousa me tratar desse jeito, quem você pensa que é, quem você pensa que sou, tenho muito respeito por mim mesma (uma mentira), não vou aturar uma coisa dessas (outra mentira) etc. etc.
— E então, Lucy, eu disse para o seu vizinho: "Eu apenas acordei você. Até parece que estou invadindo a Polônia!" Rá-rá, eu sabia que isso ia deixá-lo desarmado. Ele é alemão, não é?
— Não, Gus, não é. É austríaco.
— Claro, dá no mesmo. Não são aqueles caras grandes, louros, que só comem salsichas?
E então conseguiu focar os olhos errantes e injetados de vermelho em mim, notando meu rosto pela primeira vez desde que invadira o apartamento.
— Lucy! Minha querida Lucy, você está linda! Levantou-se da cama de um pulo e correu até onde eu estava. O
cheiro dele ativou em mim uma carência e um apetite que me pegaram de surpresa, pela intensidade.
Hummmmm, Lucy, senti muitas saudades — disse ele, esfregando o nariz no meu pescoço e enfiando a mão por baixo do meu paletó de pijama. O toque da mão dele na minha pele nua me fez começar a estremecer, despertando um desejo que dormia dentro de mim a sono solto havia três semanas, mas, em um gesto supremo de autocontrole, eu o empurrei para longe.
Chega pra lá!, pensei. Você ainda não ouviu o meu sermão.
— Ah, Lucy, Lucy — murmurou ele, tornando a me atacar. — Nunca mais vamos nos separar, nunca mais.
Enlaçou minha cintura fortemente com um braço, apertando-a com a mão, enquanto começava a desabotoar o meu pijama com a outra. Eu me desvencilhei, tentando fechá-lo de novo, mas era só para fazer gênero.
Não conseguia me controlar. Ele era sexy demais. Lindo, perigoso e muito malandro. E tinha um cheiro tão gostoso, tão tipicamente Gus.
— Gus! — Lutei com ele enquanto ele tentava tirar a parte de cima do meu pijama. — Você não me ligou por três sema...
— Eu sei, Lucy, sinto muito — replicou ele, enfiando os dedos com mais força. — Eu não queria que isso tivesse acontecido. Nossa, você é linda!
— Eu mereço uma explicação, sabia? — Resisti com mais força, enquanto ele me empurrava em direção à cama.
— Claro que merece, Lucy, claro que merece — concordou vagamente, enquanto fazia pressão sobre os meus ombros para me obrigar a dobrar as pernas. — Mas isso não pode ser feito amanhã de manhã?
— Gus, você jura solenemente que tem uma boa desculpa e que amanhã de manhã vai me contar tudo o que houve?
— Juro — afirmou, olhando fixamente para os meus olhos e ao mesmo tempo enfiando os dedos com mais força, tentando arriar minha calça de pijama. — E você pode me esculachar, me dar um esporro. Pode até me fazer chorar — garantiu ele.
Então fomos para a cama.
Eu me lembrava do que Karen dissera, mas discordava dela. Não me sentia usada. Queria que Gus tivesse vontade de transar comigo. Isso provava que ele ainda gostava de mim, que não desistira de ficar comigo, e que, embora tivesse sumido por três semanas, a culpa não fora minha.
Decidi que o sermão podia ficar para de manhã. Assim, cedi ao desejo: Gus e eu começamos a transar. Só que eu havia esquecido que Gus era assim meio "bateu-valeu, muito obrigado". A transa mal começara e já tinha acabado. Como no passado, Gus gozou em questão de segundos. O que deixou bastante tempo de sobra para que eu ouvisse as suas desculpas. Mas ele caiu no sono na mesma hora. Finalmente, eu peguei no sono também.
Quando amanheceu, Gus não se mostrou mais fácil de se deixar segurar, a fim de ouvir o sermão.
Considerando-se o quanto estava bêbado na noite anterior, ele acordou surpreendentemente cheio de energia. Pela ordem natural das coisas, ele devia estar chapado de costas, com ressaca, morrendo de sede e jurando nunca mais tornar a beber, como qualquer pessoa normal. Em vez disso, já estava acordado aos primeiros raios da manhã, comendo biscoitos. Quando o carteiro chegou, ele foi correndo até a porta para pegar a correspondência e, fazendo uma barulhada danada enquanto manuseava os envelopes, rasgou com estardalhaço os envelopes das cartas endereçadas a mim e me informou o que havia nelas.
— Ora, muito bem, Lucy, grande garota! — Ele parecia orgulhoso. — Fico satisfeito em saber que você está devendo ao pessoal do cartão de crédito muito mais do que antes. Agora, tudo o que tem a fazer é se mudar daqui sem avisar a eles.
Fiquei deitada na cama, desejando vagamente que ele acalmasse o facho. Ou pelo menos parasse de me lembrar do quanto eu devia na praça.
— Que loja é essa... Russell & Bromley? — quis saber ele. — É aquele seu velho problema de novo?
— É. — Um par de botas de camurça preta que iam até os joelhos e umas sandálias sexy, de pele de cobra, para ser mais exata. — Agora, Gus — tentei falar com firmeza para atrair a sua atenção —, nós temos que conver...
— E o que é isto aqui, Lucy? — acenou com um envelope para mim. — Parece que é o extrato bancário da Karen. Você não quer dar uma olhadinha?
Nossa, aquilo era tentador! Charlotte e eu desconfiávamos de que Karen tinha milhares de libras aplicadas, sem contar para ninguém, e eu adoraria ter a confirmação disso.
Mas tinha outro trabalho a fazer.
— Deixe o extrato de Karen pra lá, Gus. — Tentei novamente. — Você disse que tinha uma boa desculpa, na noite passada, e que...
— Posso tomar um banho, Lucy? — interrompeu ele. — Acho que estou fedendo um pouco.
Levantou o braço e enfiou o nariz na axila.
— Puuff... — reagiu, fazendo cara de nojo. — Estou fedendo, logo existo... — filosofou.
Para mim, ele estava com cheiro bom.
— Você pode tomar um banho daqui a pouco, Gus. Passe esse envelope para cá.
— Mas nós podemos abri-lo no vapor, e Karen jamais vai descobrir...
Era óbvio que, a despeito das suas promessas entusiasmadas da noite anterior, ele não tinha a menor intenção de me explicar coisa alguma.
E eu estava tão maravilhada por ele ter voltado que não queria espantá-lo exigindo explicações e pedidos de desculpas.
Ao mesmo tempo, ele precisava entender que não podia escapar impune depois de me tratar tão mal.
É claro que ele podia escapar impune depois de me tratar mal, na verdade acabara de conseguir isso. Mas eu precisava, pelo menos, lançar o meu protesto, e agir como se tivesse respeito por mim mesma. Na esperança de que, apesar de não conseguir me enganar, eu conseguisse enganá-lo.
Eu ia ter de enganá-lo para chegar à velha Conversa Séria. O que aconteceu ia ter de ser arrancado dele aos poucos, eom muita paciência e persuasão, para que ele nem sentisse que estava entregando o ouro.
Gus jamais cooperaria se fosse abordado assim de frente, cara a cara.
Eu ia ter de me mostrar muito, muito gentil, mas com um fundo de firmeza e determinação.
Virei-me para Gus, que estava esticado em cima da cama, lendo a oferta de um plano de previdencia privada que o banco me enviara.
— Gus, preciso muito conversar com você — declarei, tentando fazer com que aquilo soasse agradavelmente firme ou, na falta disso, firmemente agradável.
Devo ter exagerado na firmeza, porque ele disse "ô-ô..." e fez uma cara de "ô-ô...". Pulou da cama na mesma hora e se enfiou todo encolhido, com cara de assustado, no espaço entre o guarda-roupa e a parede, choramingando:
— Tô com medinho...
— Ora, vamos lá, Gus, não há razão para ficar assustado.
— Não estou assustado. Estou só com medinho...
— Com medinho, então. Não precisa ficar.
Mas ele não estava levando nada daquilo a sério. Continuava a colocar a cabeça cheia de cabelos cacheados para fora do buraco, mostrando os olhinhos brilhantes por um segundo, e então se escondia outra vez, começando a murmurar, baixinho:
— Ai, eu tô lascado, tô ferrado, já era... ela vai fazer picadinho de mim!
Então ele começou a cantar uma canção, alguma coisa sobre manter o bastão sempre ereto e assobiar uma melodia alegre quando se sentisse amedrontado, para que ninguém suspeitasse de que ele estava com medo.*
— Gus, pare com isso e saia daí, não precisa ter medo! Tentei rir, para provar como eu era bem-humorada, mas era
muito difícil manter a paciência. Seria maravilhoso poder gritar com ele.
— Vamos lá, Gus, eu não assusto ninguém, você sabe disso.
— A única coisa que devemos temer é o próprio medo, não é? — perguntou a voz atrás do armário.
— Exato — concordei, olhando para o guarda-roupa.
— O problema, Lucy — a voz continuou —, é que eu morro de medo do medo.
— Bem, então pode parar de ter medo. Não há nada a temer comigo.
Ele colocou a cabeça para fora, parecendo um gatinho.
— Você não vai gritar comigo?
— Não — fui obrigada a prometer a ele. — Não vou gritar com você. Só que preciso saber onde foi que esteve nas últimas três semanas.
— Tem tanto tempo assim?
— Ah, qual é, Gus? A última vez em que tive notícias suas foi na terça-feira, antes da reunião que a Karen ofereceu aqui em casa. O que tem feito por aí?
— Ah, uma coisa e outra... — explicou, de forma bem vaga.
— Você não pode simplesmente desaparecer por três semanas, sabia? — Mas disse isso com todo o jeitinho, para que ele não ficasse aborrecido e mandasse eu me catar, dizendo que ia sumir por quanto tempo quisesse e não havia nada que eu pudesse fazer para evitar isso.
— Tudo bem, então... eu conto — disse ele. Eu me inclinei em sua direção, ávida, na esperança de ouvir histórias de desastres naturais e atos de Deus. Assim, nem eu nem Gus seríamos responsáveis pela separação de três semanas.
— Meu irmão chegou para me visitar, vindo da Irlanda, e nós festejamos com uma rodada de bebidas.
— Uma rodada que durou três semanas? — perguntei, sem acreditar. Não estava gostando daquela história de ficar falando "três semanas" sem parar, senti que devia ser mais vaga a respeito do período de tempo. Não queria que ele ficasse achando que fiquei em casa, contando os dias desde que ele sumira, o que, é claro, fora exatamente o que eu havia feito.
— Foi, uma rodada que durou três semanas — confirmou ele, parecendo surpreso. — O que há de errado nisso?
— O que há de errado nisso? — ecoei, com voz de deboche.
— Já andei desaparecido, perdido em ação, por muito mais do que três semanas — afirmou ele, parecendo confuso.
— Você está tentando me dizer, então, que esteve bebendo sem parar durantetrês semanas?
E subitamente me senti estarrecida comigo mesma. Estava parecendo a minha mãe, com o mesmo tom de voz, o ar de acusação e até as palavras que estava usando.
— Opa, desculpe, Lucy, gatinha... — disse Gus. — A coisa não é assim tão má quanto parece. Eu me esqueci da festa de Karen, e quando lembrei, fiquei com medo de telefonar para você, porque sabia que você devia estar por conta comigo.
— Mas, então, por que não me telefonou no dia seguinte? — perguntei, encolhendo-me de dor ao lembrar da agonia pela qual eu passara, esperando por ele.
— Porque eu me senti arrasado por ter me esquecido da festa e ter deixado você aborrecida, e então Stevie disse para mim: "Só tem uma coisa que pode resolver isso, garoto..."
—... Mais uma dose, sem dúvida — completei a frase para ele.
— Exato! E quando chegou o dia seguinte...
—... Você se sentiu tão mal por não ter me telefonado na véspera que teve que tomar mais um porre para se sentir bem a respeito do problema...
— Não — reagiu ele, parecendo surpreso. — No dia seguinte ia haver um grande festival em Kentish Town, que começava às onze da manhã. Eu e o meu irmão fomos até lá e enchemos a cara. Foi um porre federal, Lucy. Federal! Aposto que você nunca viu uma pessoa tão bêbada. Eu nem sabia qual era o meu nome.
— Isso não é desculpa! — exclamei, e então parei de falar na hora ao ouvir saindo da minha boca, novamente, a voz da minha mãe.
— Você sabe que não me incomodo de você ficar bêbado. — Tentei fazer a voz parecer bem calma. — Mas não está certo simplesmente desaparecer e depois voltar agindo como se não houvesse nada de errado.
— Desculpe! — exclamou ele. — Desculpe, desculpe, desculpe! Então eu me preparei para a pergunta mais difícil de todas:
— Gus, quem é Mandy?
Fiquei olhando bem firme para o seu rosto, para ver se conseguia tirar alguma conclusão pela reação dele.
Foi minha imaginação ou ele pareceu um pouco assustado?
Pode ter sido minha imaginação. Afinal, ele não deixou cair o queixo nem enterrou o rosto nas mãos, soluçando e dizendo: "Eu sabia que este dia ia chegar."
Na verdade, tudo o que fez foi parecer irritado, e respondeu:
— Ninguém.
— Ela não pode ser "ninguém". É uma pessoa. — Sorri com vontade para convencê-lo de que não o estava acusando de nada, e que a minha raiva era totalmente amigável.
— Ela não é ninguém em especial. Apenas uma amiga.
— Gus — disse eu, sentindo o coração bater mais depressa —, não há necessidade de mentir para mim.
— Mas eu não estou mentindo. — Ele parecia ofendido, magoado.
— Não estou dizendo que você está. Mas, se você está saindo com mais alguém, eu gostaria de saber.
Eu não disse "se você está saindo com mais alguém, quero que vá se foder", que é o que eu devia ter dito. Não queria cometer o pecado capital de parecer me importar. Reza a sabedoria popular que as mulheres ficam desesperadas para prender os homens, e que os homens morrem de medo de se sentirem presos. Portanto, a melhor maneira de prendê-los é fingir que não quer prendê-los.
Entretanto, esse tiro havia saído pela culatra mais vezes do que eu gostava de lembrar, comigo dizendo "você não é propriedade minha, mas, se está se encontrando com mais alguém, eu gostaria de saber". E então encontrando o tal namorado em uma festa, todo enroscado em volta de outra mulher enquanto oferecia um drinque a outras duas, para no fim me dizer: "Mas você disse que não se importava."
— Lucy, não estou saindo com nenhuma outra garota — disse Gus. Não estava mais na defensiva e tinha um ar de sinceridade nos olhos verdes.
Parecia se importar comigo. E mesmo com o receio de ser ingrata, forcei um pouco mais:
— Gus, você estava saindo com outra pessoa quando, hã... nós começamos a sair juntos?
Ele pareceu intrigado por um momento, enquanto traduzia a minha pergunta para a língua dele. Finalmente sacou.
— Você quer saber se eu estava chifrando você? — pareceu horrorizado. — Pois eu NÃO estava.
Sempre havia a chance de ele estar falando a verdade. Pensando bem, provavelmente estava, pois não possuía a capacidade organizacional para levar uma vida dupla. Do jeito que ele era, já era um triunfo ele se lembrar de continuar respirando quando acordava, todas as manhãs.
— Como ousa? — reagiu ele. — Que tipo de pessoa você acha que sou?
A combinação de suas negativas enérgicas e o meu desejo desesperado de acreditar nele resolveu o problema. O alívio me fez ficar alegre e com a cabeça bem mais leve.
Então ele me beijou e eu me senti com a cabeça ainda mais leve.
Então ele me beijou e eu me senti com a cabeça ainda mais leve.
— Lucy — afirmou ele —, eu jamais faria nada que pudesse magoar você.
Acreditei nele. Seria grosseiro trazer à baila o fato de que ele já me magoara. O importante é o fato de que ele não fizera aquilo de propósito.
— Agora, posso tomar uma chuveirada? — perguntou ele, humilde.
E foi para o banheiro, enquanto fiquei pensando em minha mãe. Ficara muito apavorada por me ouvir falando as coisas que ela dizia. Ia tentar ser cada vez mais liberal, prometi a mim mesma.
Ouvi quando Daniel e Karen cumprimentaram Gus, no momento em que ele saía do banheiro.
— Bom-dia, Gus — disse Daniel. Será que havia um certo tom de divertimento em seu tom de voz? Analisei, na defensiva.
— Bom-dia, Daniel, meu garoto. Bom-dia, senhorita Morag McVitie — disse Gus, bem jovial, dirigindo-se a Karen, como se nunca tivesse desaparecido dali.
— Bom-dia, senhor Bronco McBronca — respondeu Karen para Gus.
— Bom-dia, senhorita Invocada McCroquete — disse Gus para Karen.
— Bom-dia, senhor Pirado McZureta — disse Karen para Gus.
— Bom-dia, senhorita Mão-Fechada McSeanConnery — disse Gus para Karen.
— Bom-dia, senhor Maria do Rosário McSemtex * — disse Karen para Gus.
— Bom-dia, senhorita Ronald McDonald — disse Gus para Karen.
Ouvi-os se dobrando de tanto rir. A porta do banheiro era, certamente, o lugar mais divertido da casa.
Uma amiga que dividia o apartamento comigo e seu namorado já haviam conseguido reatar a amizade com Gus de forma bem-sucedida, e ninguém se sentia constrangido, exceto eu mesma.
Assim, Gus e eu voltamos a ficar juntos.
Tentei relaxar e afrouxar um pouco a corda em volta do pescoço dele.
Gus era um espírito livre, eu vivia me lembrando. Regras normais não se aplicavam a ele. Só porque ele se atrasava ou ficava conversando durante horas com alguém em uma festa na qual ele me levara e na qual eu não conhecia ninguém não significava que ele não ligava para mim.
Não que eu estivesse baixando o nível das minhas expectativas, decidi. Simplesmente estava mudando o ângulo de ver as coisas.
Sabia que ele gostava de mim porque voltara depois de um hiato de três semanas. Ele não tinha de fazer isso, ninguém o obrigara.
Assim, com minha nova atitude, Gus e eu nos dávamos maravilhosamente bem. Ele se comportava de modo impecável. Bem, tão impecável quanto ele conseguia sem deixar de ser Gus.
Era verão e, para variar, parecia um verão de verdade.
O tempo em Londres estava quente e ensolarado, tão diferente de suas características que muitas pessoas viam naquilo um sinal de que o mundo estava próximo do fim.
Era um dia dourado atrás do outro, com céu azul e calor, mas a população da cidade já havia sido traída tantas vezes pelo tempo que todos esperavam que a onda de calor fosse se dissipar a qualquer momento.
Todos balançavam a cabeça e previam, com ar sombrio: "Esse tempo não vai durar muito não." Só que durou, e parecia que o sol ia brilhar para sempre.
Lembro-me daquela época como idílica.
Semanas e semanas durante as quais a vida parecia paradisíaca, e eu sentia como se estivesse vivendo dentro de um pequeno casulo dourado.
Meu quarto era inundado por uma quente luz amarela todas as manhãs, de modo que era quase um prazer me levantar e tocar a vida.
Minha depressão sempre diminuía no verão, e até mesmo ir para o trabalho não me parecia tão penoso. Especialmente depois que armamos um minimotim e o Departamento de Manutenção foi obrigado a nos comprar um ventilador.
Na maioria dos dias, na hora do almoço, Jed e eu íamos à praça Soho, onde nos misturávamos com milhares de outros empregados de escritório em busca de um metro quadrado de grama no qual pudéssemos lagartear ao sol e ler nossos livros.
Jed era a melhor pessoa para fazer isso, porque se ele tentasse falar comigo eu podia simplesmente mandá-lo calar a boca, e ele calava. Ficávamos então ali, estendidos, em um silêncio cheio de companheirismo.
Pelo menos eu considerava companheirismo. Meredia nunca ia conosco, porque odiava o sol. Passava sua hora de almoço enfiada no escritório, com as persianas abaixadas, tentando lançar uma praga no clima, para que chovesse. Todo dia ela lia a previsão do tempo, na maior ansiedade, esperando por notícias a respeito de uma queda na temperatura, revoltando-se quando as imensas nuvens negras que vinham da Irlanda passavam direto pela Grã-Bretanha e seguiam em frente, em direção à França.
Durante o dia todo ela nos brindava regularmente com a imagem de sua saia levantada, enquanto espalhava toneladas de talco entre as coxas colossais.
— Tempo quente não é bom para gente gorda, não — explicava ela, com tom amargo, e a seguir perguntava se queríamos ver as suas assaduras.
A única coisa que a deixava mais animada era descobrir no jornal as temperaturas dos lugares onde estava mais quente do que em Londres.
— Pelo menos eu não estou em Meca — suspirava, de vez em quando. Ou então:
— Imagine só como deve estar quente no Cairo! Megan também não ia conosco para o parque.
Como uma verdadeira australiana, ela estava feliz como pinto no lixo, com aquele calor todo, e levava o seu banho de sol muito a sério. Bem mais a sério do que Jed e eu.
Debochava abertamente de mim e de todas aquelas mulheres que ficavam sentadas na grama com a saia levantada acima dos joelhos, se achando ousadas e liberadas. Ela era de outra tribo. Ia para a piscina e fazia topless.
A implicância dela com Meredia andava ainda mais forte do que o normal.
— Escute aqui, Pauline — dizia ela, entre dentes —, se você não parar de reclamar do suor nas suas coxas, vou mostrar pra todo mundo os meus mamilos queimadinhos de sol.
— Continue reclamando, não pare de reclamar — pediu Jed, todo assanhado, para Meredia. Ela jogou-lhe um olhar azedo e murmurou para Megan:
— Meu nome é Meredia!
Megan floresceu com o calor. Estava totalmente à vontade com ele. Ia trabalhar de shortinhos jeans curtos, desfiados na bainha. Não era culpa dela se parecia uma daquelas personagens do seriado S.O.S. Malibu. Não estava tentando ser provocante, simplesmente não podia deixar de ser linda.
Eu, por mim, estava contente por não ser australiana. Ficaria inibida demais se tivesse de circular pela rua seminua. Agradecia a Deu» por ter nascido em um país frio.
Quase todas as tardes havia uma rodada de sorvete, e até Ivor se juntava a nós. Como soldados inimigos que jogavam uma partida de futebol em campo neutro no Natal, aquele tempo incomum fazia com que suspendêssemos as hostilidades do dia-a-dia.
Apesar disso, não era nada agradável ter de aturar Ivor mastigando toda a cobertura de chocolate do seu Magnum para depois ver sua língua gorda e vermelha lambendo lentamente o interior cremoso.
Megan acabou sendo convocada para ir até o Departamento de Pessoal, porque houve uma queixa a respeito dos seus shorts. A reclamação devia ter sido feita por alguma funcionária. Certamente o reclamante não foi nenhum dos homens que vinham em bandos e entravam em nossa sala ao menor dos pretextos só para inspecionar as pernas de Megan, longas e douradas.
Meredia ficou toda empolgada quando soube que Megan subira. Tinha esperanças de que ela fosse despedida. Só que Megan voltou com um sorriso misterioso e satisfeito.
— Quer que nós a ajudemos a esvaziar a sua mesa? — ofereceu Meredia, esperançosa.
— Talvez, Rosemary, talvez. — Sorriu Megan, de forma afetada.
— Por que você está assim tão satisfeita? — Meredia estava confusa e desconfiada. — E o meu nome é Meredia — acrescentou, com olhar vago.
— É que talvez eu seja promovida... — Megan enfatizou bem a frase, apontando para o teto. — Acho que vou lá pra cima.
Meredia pareceu fulminada.
— O que quer dizer? — perguntou ela, com um gemido. E então, se recuperando, debochou:
— Lá para cima, no andar da fila do auxílio-desemprego?
— Ah, não — disse Megan, com aquele misterioso, enigmático e satisfeito sorriso de esfinge. — Mais acima.
Meredia estava com um olhar de quem ia morrer a qualquer momento.
— Quantos andares? — conseguiu perguntar, com a voz rouca. — Um?
Megan sorriu e balançou a cabeça.
— Dois?
Outro sorriso e outro balançar de cabeça. Meredia mal conseguiu piar, bem baixinho:
— Três?
E Megan, cruel como nunca, esperou alguns segundos, deixando-nos sem respirar por uma eternidade, antes de balançar a cabeça mais uma vez.
— Não pode... não pode ser o quarto andar — sussurrou Meredia.
— Mas é esse mesmo, gordinha. O quarto andar!
Pelo jeito, Megan e seus shorts exíguos haviam agradado a Frank Erskine, um dos velhos carecas barrigudos e flácidos da Administração E, à maneira típica com que os deuses costumavam agir, ek prometera a Megan arranjar uma posição para ela no quarto andat
— Mas que posição será essa? — perguntou Meredia, com amargura. — A posição "de costas em cima da mesa"?
A novidade se espalhou mais depressa do que piolho em escota fundamental, pois a história do curto atalho de Megan para a glórta cativou a imaginação de todos os funcionários. Aquela era a fantasia de todo mundo: ser arrancado do anonimato do Controle de Crédito, no andar térreo, e ser subitamente elevado às alturas do quarto andar. Com um aumento proporcional no salário, é claro.
As pessoas suspiravam e falavam:
— E eu que não acreditava em contos de fadas...
Meredia recebeu muito mal a notícia, ficou arrasada. Já estava ali havia oito anos, gemia, oito anos, e a piranha australiana mal desembarcara do avião! Além de, provavelmente, ser descendente de um ladrão de ovelhas.
Ou até mesmo de um cara que transava com as ovelhas... Aquela vadia!...
Sempre que alguém comentava com Meredia "ouvi dizer que Megan vai subir na vida...", ela explicava: "Vai subir na vida porque já desceu muito, se é que você me entende..." E então apertava os labios e balançava a cabeça para a frente como quem sabe das coisa.
Não levou muito tempo para as declarações insultuosas de Meredia chegarem aos ouvidos de Megan.
Megan, com os olhos afilados de tanta raiva, levou Meredia para um canto. Não estou bem certa do que disse a ela, mas, seja o que for, foi o bastante para deixar Meredia pálida e aterrorizada por uns dois dias. A partir daí, ela passou a acentuar com muita ênfase que Megan conseguira a promessa de promoção por conta unicamente dos seus méritos profissionais.
Pelo menos era o que ela falava em público.
Relembrando aquele verão, eu me recordo de que Gus sempre ia me pegar depois do trabalho, bem na hora em que o calor mais escaldante do dia começava a diminuir. E nós íamos então sentar do lado de fora de pubs, em noites agradáveis, para beber cerveja bem gelada, conversar e rir.
Às vezes havia um monte de gente conosco, outra vezes era apenas Gus e eu. Mas havia sempre aquele ar parado, morno, o bater dos copos e o zumbido das conversas.
O sol não se punha até bem tarde, e o céu nunca se transformava totalmente em um breu. O azul se fechava um pouco, se aprofundava, até assumir um tom mais escuro, e então, poucas horas mais tarde, o sol se levantava novamente, trazendo mais um dia fulgurante.
E o calor também mexia com as pessoas, deixando-as muito mais simpáticas.
Londres estava cheia de gente conversadeira e amigável, as mesmas pessoas que se arrastavam devagar de forma infeliz por todo o resto do ano. Seu estado de espírito parecia mais aberto, mais mediterrâneo, pelo fato de elas serem capazes de se sentar na calçada às onze da noite vestindo apenas uma camiseta sem morrerem congeladas.
E quando olhávamos em volta de uma taberna com mesas ao ar livre cheias de gente, estava na cara quem trabalhava e quem estava desempregado. Não apenas pelo fato de os desempregados jamais pagarem a rodada, mas pelo seu brilhante bronzeado.
Estava sempre quente demais para alguém sequer pensar em comer antes das dez ou onze da noite, hora em que íamos perambulando até algum restaurante com portas e janelas dando para a rua e bebíamos vinho barato, fingindo que estávamos em solo estrangeiro.
Todas as noites íamos para a cama com as janelas abertas, cobertos só por um lençol, e mesmo assim continuava muito quente para dormir.
Era impossível imaginar que a gente um dia ia voltar a sentir fria Uma noite estava tão quente que eu, desesperada, entornei um copo d'água em cima de mim mesma, na cama. O que foi muito agradável. E o nível de paixão que aquilo provocou em Gus foi ainda mais agradável.
Havia sempre coisas demais a fazer. A vida se resumia a um desfilar infinito de churrascos, festas e noites ao ar livre, pelo menos é como me lembro daqueles dias. Deve ter havido algumas noites em que fiquei em casa assistindo à tevê e fui para a cama cedo, mas, se houve, não me lembro delas.
Não apenas havia sempre um monte de coisas para fazer, mas um monte de pessoas com quem compartilhar tudo. Sempre havia alguém com quem sair. Isto é, além de Gus, que estava disponível em todas as noites.
Jamais havia perigo de querermos tomar um drinque e não termos com quem sair.
O pessoal do escritório saía muito em nossa companhia. Até a pobre Meredia se arrastava conosco, arquejando e se abanando toda, descrevendo o quanto se sentia fraca.
Jed e Gus se deram muito bem um com o outro, pelo menos depois de algum tempo. Quando se encontraram pela primeira vez, pareciam dois meninos tímidos que queriam brincar um com o outro, mas não sabiam como. Finalmente, aos poucos, os dois foram saindo da barra da minha saia e se conectaram. Gus deve ter se oferecido para mostrar seu estoque de baseados a Jed, ou algo assim. A partir disso, não pararam mais. Eu mal conseguia conversar com Gus nas noites em que Jed saía conosco. Os dois ficavam de papo, muito compenetrados e falando baixinho sobre algum assunto que eu achava que tinha a ver com música. Os rapazes sempre conversam sobre esse tipo de coisa. Ficam disputando uns com os outros quem lembra do nome de algum grupo obscuro com quem alguém tocava guitarra, antes de sair para tocar com outro grupo. Aquilo era capaz de distraí-los durante dias.
Quando alguém perguntava a Jed e a Gus sobre o que estavam conversando, eles respondiam misteriosamente; "É conversa de homem, você não vai entender,"
O que lhes garantia sorrisos indulgentes, até a noite em que disseram isso para Simon, o namorado de Charlotte.
Jed e Gus ficavam zoando Simon o tempo inteiro, por causa de seu interminável estoque de roupas fashion de boa qualidade, sua agenda eletrônica e o exemplar de Arena ou GQ que ele sempre carregava debaixo do braço. Só que eles não precisavam ser tão cruéis a respeito disso.
Jamais perdiam a oportunidade de implicar com o velho Simon.
— Essa camisa é nova? — perguntou Gus a Simon uma noite. Estava com uma expressão adocicada no olhar, que prometia alguma...
—- Sim, comprei na loja do Paul Smith — disse Simon, todo orgulhoso, abrindo os braços para todos darem uma boa olhada nela.
— Nós até parecemos irmãos gêmeos! — exclamou Gus, de forma encantadora. — Essa camisa é igualzinha a umas que eu comprei no camelô da Chapei Street, a uma libra cada. Só que eu acho que os caras de quem comprei não trabalhavam na loja do Paul Smith, não, porque eles foram em cana no mês passado por receptação de mercadorias roubadas. Tem certeza de que essa aí é uma Smith legítima?
— Sim — disse Simon, com a voz rígida. — Tenho certeza.
— Talvez eles já tenham saído da cadeia — comentou Gus, vagamente. E então passou para outro assunto, feliz por ter estragado a alegria de Simon e sua camisa nova.
Pintou então a tão esperada noite em que Dennis finalmente conheceu Gus. Dennis apertou a mão de Gus e sorriu, com toda a educação. Então, virou-se para mim com uma cara angustiada, enfiando os nós dos dedos na boca e dizendo:
— Quero uma palavrinha em particular com você. — E me empurrou até o fundo do pub.
— Ai, Lucy — gemeu ele. —Que foi?
Dennis colocou as duas mãos no rosto de forma histérica e sussurrou, muito dramático: - Ele parece um anjo, um anjo completo!
— Você gostou dele? — Fiquei com o peito inflado de orgulho.
— Lucy, ele é DIVINO! Eu tinha de concordar.
— É tão raro a gente encontrar um irlandês boa-pinta — comentou Dennis —, mas também, quando eles resolvem ser bonitos, arrasam!
Não que Dennis tivesse como saber disso. Pelo menos se tomase como base o que via no espelho.
Dennis alugou Gus a noite inteira, o que me deixou meio cabreira. Dennis vivia apregoando que no amor e na guerra valia tudo. Pelo menos quando ele se interessava pelo namorado de alguém, era assim que agia. E mais tarde, naquela noite, quando Gus e eu estávamos indo para casa de ônibus, Gus disse:
— Aquele seu amigo, Dennis, é um cara muito legal. Será que Gus era tão inocente assim?
— Ele tem namorada, Lucy?
— Não.
— Que pena, um cara tão legal como ele.
Eu me preparei para ouvir Gus contar que marcara um encontro com Dennis no meio da semana para uma rodada de cerveja, só para rapazes, mas felizmente ele não disse nada.
— Precisamos arrumar uma namorada para ele — sugeriu Gus. — Você tem alguma amiga que esteja solteira?
— Só Meredia e Megan.
— Bem, então podemos descartar aquela pobre criatura, a Meredia — disse Gus, querendo parecer simpático.
— Por quê? — perguntei, na defensiva.
— Bem, não é óbvio para você? — perguntou Gus.
— O quê, exatamente, é tão óbvio? — Olhei-o com desdém, preparando-me para empurrá-lo do banco para ele cair de bunda no chão do ônibus.
— Ah, qual é, Lucy, não me diga que você não reparou? — disse ele, de modo racional.
— Que ela é obesa? — Quis saber, já fula da vida. — Que grande atitude essa sua...
— Não, sua manezona — disse ele. — Não estou falando disso. Puxa, Lucy, isso que você pensou agora de mim me deixou chocado, não esperava isso de você.
— Mas sobre o que você está falando, então?
— Meredia e Jed, é claro!
— Gus — disse, bem séria —, você pirou de vez!
— Pode ser — concordou ele.
— O que quer dizer com "Meredia e Jed"?
— Quero dizer que Meredia gosta muito de Jed.
— Todas nós gostamos muito de Jed. — repliquei.
— Não, Lucy — insistiu Gus. — Estou dizendo que Meredia gostaria de colocar Jed pelado para os dois fazerem um roça-roça.
— Claro que não — debochei.
— Gostaria sim.
— Como é que você sabe? — perguntei.
— Não está na cara?
— Não para mim.
— Bem, pois para mim está — disse Gus. — E olha que você é mulher, devia ter intuição para essas coisas.
— Mas, mas... ela é velha demais para ele.
— E daí? Você é mais velha do que eu.
— Só dois anos.
— De qualquer modo, o amor não conhece idade — disse Gus, com sabedoria. — Li essa frase numa embalagem de biscoitos de Natal.
Ora, ora, ora. Que empolgante! O romance! As intrigas! O amor brotando entre as cartas de ameaça aos clientes inadimplentes.
— E ele está a fim dela? — perguntei, ansiosa, e, de repente, muito interessada.
— Sei lá. Como é que vou saber?
— Bem, tente descobrir. Você conversa com ele, e ele conversa com você.
— Ah, mas nós somos homens, não conversamos sobre esse tipo de coisa.
— Mas prometa que você pelo menos vai tentar, Gus — implorei.
— Prometo — disse ele. — Mas isso ainda não resolve o problema de Dennis não ter uma namorada.
— Que tal a Megan?
Gus fez uma careta e balançou a cabeça, dizendo:
— Ela tem mania de grandeza, aquela lá, e se acha o máximo! Provavelmente ia se achar bonita demais para namorar o Dennis, mesmo ele sendo um cara tão legal.
— Gus! Megan não é nem um pouco desse jeito.
— E sim — murmurou.
— Não é não — insisti.
— E sim — confirmou ele.
— Então está bem. Seja como você quiser — encerrei.
— Que bom, para variar — disse ele, com ar sério.
Quando interroguei o Dennis, depois daquela noite, ele me disse, em primeiro lugar, que Gus era lindo, e depois me contou que Gus era gay — até aí, nenhuma surpresa. Então ele estragou o clima de celebração me perguntando qual era a situação financeira de Gus.
— Ah, isso — respondi, sem dar importância. — Isso não é problema.
— Mas ele tem algum dinheiro?
— Não muito.
— Mas vocês dois vivem saindo o tempo todo.
— E daí?
— Você já esteve em algum dos shows em que ele toca?
— Não.
— Por quê?
— Porque é só no inverno que ele consegue trabalho.
— Tenha cuidado, Lucy — alertou Dennis. — Ele tem cara de quem arrasa corações.
— Obrigada pelo aviso, Dennis, mas já sou bem grandinha e capaz de tomar conta de mim mesma.
— Não é não.
Vimos muito Charlotte e Simon durante aquele verão. Quando a panelinha de sempre se reunia para um drinque depois do trabalho, eles quase sempre iam junto.
Então, foram para Portugal, por uma semana. Convidaram a mim e a Gus para ir com eles. Ou, melhor, Charlotte me convidou e disse que eu podia levar o Gus na viagem também, se eu quisesse.
E falou para eu não me preocupar com as implicâncias entre Gus e Simon.
O problema é que Gus e eu não tínhamos dinheiro suficiente para viajar. Não que eu me incomodasse com isso, porque a minha vida estava parecendo um período de férias, de qualquer modo.
Gus, Jed, Megan, Meredia, Dennis e eu fomos até o aeroporto para nos despedirmos deles, porque o grupo havia ficado tão grudado que não agüentávamos a idéia de nos separarmos.
Durante toda a semana em que eles estiveram fora, aconteceram muitos comentários do tipo "o que será que Charlotte e Simon estão fazendo agora?" e "será que eles estão pensando em nós aqui?".
Até mesmo Gus sentiu falta de Simon.
— Estou sem ninguém pra zoar — reclamou.
Na noite em que eles voltaram, todos nós ficamos tão empolgados que preparamos uma festa para celebrar. Bebemos todo o vinho verde que eles trouxeram do free shop. A noite era para ser um sucesso total, mas Charlotte passou mal, vomitou e teve de ser levada para a cama.
Durante todo aquele verão, as únicas pessoas que não saíram de casa para se divertir na rua foram Karen e Daniel. Eu mal os via.
Karen passava a maior parte do tempo no apartamento de Daniel. Passava lá em casa de vez em quando, para pegar uma muda de roupas, entrando e saindo na mesma hora, enquanto Daniel ficava esperando no carro.
Daniel e eu nunca mais nos encontramos a sós. Para falar a verdade, nem nos telefonávamos mais.
Eu lamentava muito isso, porque sou esse tipo de pessoa sentimental e idiota. Mas não sabia o que fazer a respeito, não havia volta para aquela situação.
Assim, tentei me focar nas coisas boas da minha vida, principalmente em Gus.
Só compreendi o quanto o namoro de Daniel e Karen ficara sério quando soube da notícia de que eles estavam planejando viajar até a Escócia, em setembro. Pelo brilho nos olhos de Karen, ela já se sentia totalmente segura com relação a Daniel. Era apenas uma questão de tempo antes de começar a brigar com a mãe sobre convidar ou não os primos de quinto grau, ou outros ainda mais afastados, e comparar os respectivos méritos da torta recheada com limão em comparação com o recheio de creme do Alasca.
Ficava me perguntando se ela me convidaria para ser dama de honra. Por algum motivo, achava que não.
Um sábado à noite, todos nós — eu, Charlotte, Simon, Gus, Dennis, Jed, Megan e até mesmo Karen e Daniel — fomos a um concerto ao ar livre nos jardins de uma mansão, ao norte de Londres.
Apesar de ser música clássica, nos divertimos muito. Esticados sobre a grama acolhedora, ouvindo o farfalhar das folhas no ar calmo da noite, tomando champanhe, comendo salsichinhas empanadas, daquelas compradas prontas, e bombinhas de chocolate.
Depois que o concerto acabou, decidimos que já nos comportáramos como adultos por muito tempo, a noite inteira, e ainda não conseguíramos arrancar uma boa dose de diversão da noite. Ainda era meia-noite, e irmos para a cama antes de o sol raiar era visto como uma prova de noite perdida.
Assim, compramos um monte de garrafas de vinho em uma loja de conveniência aberta vinte e quatro horas, que adorou vender tudo aquilo, mesmo fora do horário permitido por lei, e nos enfiamos em vários táxis, a fim de irmos para o nosso apartamento.
Não havia nenhum copo limpo, então Karen me ofereceu como voluntária para lavar alguns.
Enquanto eu estava na cozinha, enxaguando com rapidez os copos debaixo da torneira, reclamando de cada minuto da muvuca que acontecia na sala e eu estava perdendo, Daniel entrou, em busca do saca-rolhas.
— Como é que você está? — perguntei a ele. Antes de perceber, já estava sorrindo, porque velhos hábitos são difíceis de largar.
— Estou legal — respondeu ele, sem expressão. — E você?
— Legal.
Uma pausa estranha.
— Não via você há séculos — disse eu.
— Não — concordou ele.
Outra pausa. Conversar com ele estava mais difícil do que tirar leite de pedra.
— Então, você vai até a Escócia? — perguntei.
— Vou.
— Está louco para chegar o dia da viagem?
— Estou. É que eu nunca fui à Escócia — explicou, bem sucinto.
— E não é só por causa disso, é? — brinquei, com delicadeza.
— O que quer dizer? — Ele olhou para mim com frieza.
— Ah, você sabe! Conhecer a família de Karen e tudo o mais. — E balancei a cabeça com força. — E aí, o que vem depois?
— Sobre o que você está falando? — perguntou ele, com os lábios tensos.
— Você sabe — disse eu, sorrindo meio incerta.
— Não, não sei não! — reagiu ele. — É apenas uma porcaria de viagem de férias, tá legal?
— Nossa — murmurei. — Antigamente você tinha mais senso de humor.
— Desculpe, Lucy. — Ele tentou segurar o meu braço, mas me desvencilhei e saí da cozinha.
Meus olhos se encheram de lágrimas, o que era assustador, porque eu nunca chorava. Exceto quando estava na TPM, e isso não contava.
Ou então quando passava na tevê um programa sobre gêmeos siameses que tiveram de ser separados e um deles morreu. Ou quando eu via uma pessoa muito idosa capengando pela rua, sozinha. Ou quando eu chegava na sala e todo mundo berrava comigo por voltar da cozinha sem trazer os copos lavados. Aqueles filhos-da-mãe!
Apesar da honrosa presença de Meredia, Jed, Megan, Dennis, Charlotte e Simon na minha vida, não há como negar que aquele foi o verão de Gus.
Desde o momento em que ele reapareceu, depois daquelas três semanas de sumiço, quase nunca nos separávamos.
Fiz algumas tentativas superficiais de passar algumas noites sozinha, não porque quisesse, mas porque achava que era o que devia fazer.
Eu precisava fingir que era independente, que tinha vida própria mas a verdade é que mesmo as coisas que eu gostava de fazer sen Gus, gostava ainda mais quando fazia com ele.
E, nisso, ele era igual a mim.
— Hoje à noite não vamos nos ver — avisei algumas vezes. — Vou lavar minhas roupas, e tenho umas coisas para fazer.
— Mas, Lucy — choramingou ele. — Vou sentir saudades.
— Vamos tornar a nos ver amanhã — disse, fingindo estar irrita da, mas, é claro, adorando aquilo. — Você certamente consegue pas sar uma noite sem mim.
Só que todas as vezes Gus acabava aparecendo lá em casa, à nove da noite, tentando parecer envergonhado, mas sem convencer.
— Desculpe, Lucy — sorria ele. — Sei que você queria ficar un dia sozinha, mas eu precisava vir até aqui, nem que fosse por cinco minutos. Já vou embora, agora que tomei a minha dose diária de ver você.
— Não, não vá — pedia eu, todas as vezes, como ele já sabia que ia acontecer.
Era alarmante refletir que eu considerava desperdiçados todos Os minutos que não passava ao lado de Gus.
Embora tentasse não dar muita bandeira, estava na cara que eu era louca por ele. E ele parecia ser louco por mim também, a julgar pela quantidade de tempo que passávamos juntos.
O único problema, se é que se pode chamar de problema, era que ele jamais confessou que me amava. Não dissera textualmente as palavras "eu te amo, Lucy". Não que eu me preocupasse com isso bem, pelo menos não muito, porque eu sabia que as regras normais não se aplicavam a Gus. Ele provavelmente me amava, mas deve ter se esquecido de mencionar o fato. Afinal, ele era assim mesmo. Por via das dúvidas, eu achava melhor não dizer a ele que eu o amava, embora fosse verdade, até ele me dizer primeiro.
Não havia motivos para colocar o carro na frente dos bois.
Além do mais, sempre havia uma pequena chance de que ele não me amasse, e não há nada mais embaraçoso do que isso.
Bem que eu gostaria de ter conversado com ele a respeito do nosso relacionamento, a fim de saber para onde estávamos indo e qual era o nosso futuro, Ele, porém, jamais mencionou o assunto, e eu ficava sem graça de falar.
Tinha de ser paciente, mas era muito difícil fazer o jogo da paciência. Nas poucas vezes em que pintava alguma dúvida ou medo, eu me consolava com a previsão da Sra. Nolan, e me lembrava de que eu já vislumbrara o futuro, e Gus estava nele (ou eu já vislumbrara o futuro, mas Gus bebera tudo, como o estraga-prazeres do Daniel costumava dizer).
Eu me convencia de que a paciência era uma virtude, que as coisas acabavam acontecendo para aquele — ou aquela — que espera, pois quem espera sempre alcança. Lembrava esse ditado e ignorava os que me avisavam de que devemos malhar enquanto o ferro está quente, cobra que não anda não engole sapo e quem dorme no ponto perde o bonde.
Não me lembro de ter tido grandes preocupações a respeito do meu futuro com Gus por todo aquele verão mágico e dourado. Naquela época eu achava que estava feliz, e isso já era o suficiente para mim.
A manhã do dia 12 de agosto não me pareceu diferente de nenhuma outra das manhãs douradas que a precederam.
Exceto por um detalhe importante: Gus se levantou antes de mim.
Não dá para descrever o quanto isso era incomum. Todas as manhãs, quando eu saía para o trabalho, Gus ainda estava profundamente adormecido. Em algum momento, muito, muito mais tarde, ele ia embora, batendo a porta atrás de si (não antes de comer qualquer coisa que não estivesse se movendo dentro da geladeira, e depois de dar alguns telefonemas para Donegal).
O resultado disso é que o apartamento ficava com a porta da frente destrancada o resto do dia, à mercê dos gatunos e ladrões de domicílio, o que era motivo de várias brigas entre mim e Karen nas raras ocasiões em que ela passava em casa.
O problema é que eu não queria dar uma cópia das chaves a Gus, para não espantá-lo com a mensagem "vamos morar juntos".
E consolava Karen, argumentando que o nosso apartamento era tão bagunçado que se algum ladrão realmente entrasse ali, ia achar que uma gangue rival acabara de assaltar o lugar há poucos minutos. Era capaz até de encontrarmos uma tevê nova e um som mais moderno, deixados por caridade, sugeri, entusiasmada, diante do cético levantar de sobrancelhas de Karen.
Naquela manhã, Gus se levantou antes de mim, e isso acionou sirenes distantes dentro do meu cérebro.
Ele se sentou na cama enquanto calçava os sapatos e comentou, de forma casual:
— Sabe, Lucy, isso aqui está ficando meio pesado para mim.
— Hummmmm, é mesmo? — perguntei, ainda sonolenta demais para reparar que devia estar alarmada.
Mas levou apenas um segundo para eu compreender que ele não estava apenas jogando conversa fora no instante em que completou:
— Acho que a gente devia dar um tempo.
A expressão "isso está ficando meio pesado", particularmente o uso da palavra "pesado", já fizera com que meus pastores alemães -internos começassem a ladrar em sinal de alerta, junto da cerca. Quando ele disse "acho que a gente devia dar um tempo", as sirenes principais foram todas ligadas, girando loucamente, com os fachos de luz iluminando todo o terreno em volta da área de desastre iminente.
Enquanto tentava me arrastar, ainda tonta, sobre os lençóis, tentando me sentar, uma voz dentro da minha cabeça anunciou: Isto é uma emergência! Namorado tentando fugir, repito, namorado tentando fugir!
Fiquei com a sensação de estar dentro de um elevador que descia rápido demais, de forma perigosa, porque toda mulher sabe que esse papo de "dar um tempo" e "vamos ficar uns dias sem nos vermos para não enjoar" é, na verdade, a versão masculina para a frase "dê uma boa olhada em mim, porque você nunca mais vai tornar a me ver".
Tinha a esperança de conseguir entender o que estava acontecendo pela expressão no rosto dele, mas Gus não olhou para mim. Estava com a sua cabeça cheia de cabelos pretos encaracolados inclinada na direção dos pés, colocando o laço nos sapatos com um perfeccionismo jamais visto.
— Gus, você está tentando me dizer alguma coisa?
— Acho que a gente deve ficar uns dias sem se ver — murmurou
ele.
Parecia que ele treinara aquela frase, era como se estivesse lendo as palavras, meio trôpegas, em um teleprompter. Pensando melhor, parecia que ele estava lendo frases escritas no sapato. Naquela hora, no entanto, eu estava tão chocada com as implicações do que ele estava dizendo que nem reparei que aquilo não era o tipo de coisa que ele normalmente falava.
Eu devia ter notado que o próprio fato de Gus se dar ao trabalho de me comunicar que estava terminando o namoro não tinha nada a ver com o jeito dele.
— Mas por quê? — perguntei, horrorizada. — O que aconteceu? O que foi que deu errado? O que mudou entre nós?
— Nada.
Finalmente, nervoso, ele levantou a cabeça. Deve ter feito e desfeito o laço do sapato umas quarenta vezes.
Quando seu olhar meio de lado se encontrou com o meu, ele pareceu se sentir culpado, mas apenas por um breve segundo, pois logo depois explodiu:
— A culpa é sua, Lucy! Você não devia ter se envolvido tanto comigo, não devia deixar que as coisas ficassem assim tão sérias.
Eu nunca percebera que Gus era partidário da tática "a melhor defesa é o ataque" para terminar relacionamentos. Sempre achei que "fugir correndo" fazia mais o seu estilo.
Estava atordoada demais para lembrar-lhe que ele é que jamais me deixara sozinha nem por uma noite, que eu não conseguia nem mesmo depilar as pernas sem tê-lo acampado do lado de fora do banheiro, reclamando que estava com saudades, pedindo que eu cantasse para ele e perguntando quanto tempo eu ainda ia demorai
Mas eu não podia me dar ao luxo de ficar zangada com ele. Isso ia ter de esperar até mais tarde.
Enquanto eu gaguejava e tropeçava, tentando sair da cama, Gus foi em direção à porta e acenou para mim em sinal de adeus.
— Vou nessa, Lucy. Boa sorte. Que a estrada siga comigo * — Ele parecia animado e alegre. E ia ficando ainda mais, a cada metro que se afastava de mim.
— Não, Gus, espere, por favor. Vamos conversar a respeito disso. Por favor, Gus.
— Não, tenho que ir agora.
— Mas por que tanta pressa?
— Preciso ir, só isso.
— Bem, podemos nos encontrar mais tarde? Não estou compreendendo isso, por favor, fale comigo direito, Gus!
Ele parecia mal-humorado e irritado.
— Você vai me pegar depois do trabalho? — perguntei, tentando parecer calma, lutando para manter os indícios de histeria longe da voz.
Ele continuava calado.
— Por favor, Gus — pedi novamente.
— Tá legal — murmurou, saindo devagarzinho do quarto. Então a porta da frente bateu. Ele se fora e eu ainda me sentia
meio sonolenta, imaginando se estava apenas perdida dentro de um pesadelo.
Não eram nem oito da manhã.
Eu estava muito zonza para pensar em me atirar na frente dele, para impedi-lo de passar pela porta. E quando essa idéia me ocorreu, em vez de gostar dela, fiquei furiosa.
De algum modo consegui chegar ao trabalho, não que eu pudesse realizar algo de útil ao chegar lá. Sentia-me como se estivesse caminhando embaixo d'água. Tudo em volta estava meio abafado, desfocado e acontecendo em câmera lenta. As vozes pareciam vir de muito longe, roucas e distorcidas.
Não conseguia ouvi-las nem me concentrar no que elas queriam de mim.
O dia se arrastava em uma lenta agonia em direção às cinco da tarde.
De vez em quando, como o sol que sai por breves instantes de trás das nuvens, eu conseguia pensar com clareza. Quando isso acontecia, ondas de pânico me cobriam. E se ele não viesse me pegar
na saída?, perguntei a mim mesma, estarrecida e horrorizada. O que
eu faria?
Mas ele tinha de vir, considerei, usando a razão e meio desesperada. Eu precisava falar com ele, descobrir o que estava errado.
A pior parte é que eu não podia contar a ninguém no trabalho o que acontecera. Porque Gus não estava apenas me abandonando, estava abandonando Jed, Meredia e Megan também, e eu tinha medo de magoá-los. Também tinha medo de levar a culpa.
Passei o dia todo meio atordoada.
Em vez de ligar para os clientes, ameaçando processá-los se não pagassem logo o que nos deviam, eu estava em outro mundo, onde só o que importava para mim era Gus.
Por que será que ele achava que o nosso namoro estava ficando sério demais?, eu matutava. Além do fato óbvio de que estava mesmo. Mas o que havia de errado nisso?
Tentei fazer um pouco do meu serviço, mas tudo no meu trabalho parecia ter tão pouca importância...
Quem se importava se a Companhia de Pneus Vulcano estava com a fatura com vencimento em noventa dias atrasada há mais de dois anos? Eu não ligava a mínima. Tinha coisas maiores e mais importantes com que me preocupar. Qual o problema se a Roda-Viva, uma fábrica de rodas, fechara as portas, apesar de estar devendo milhares de libras à minha empresa? Qual a importância dessas pequenas questões se o meu coração estava machucado?
A falta de propósito do meu emprego sempre adquiria mais ênfase quando eu estava com o coração partido. Ser abandonada sempre fazia aparecer a niilista que havia dentro de mim.
Desanimada, eu fazia ligações, ameaçando processar pessoas e arrancar-lhes até o último tostão, mas fazia isso de forma insípida e pouco convincente, enquanto pensava: "Daqui a cem anos, nada disso vai ter importância mesmo."
Vários milênios mais tarde, o dia finalmente acabou de se arrastar e chegou ao seu letárgico fim.
As cinco horas chegaram, mas o Gus não.
Esperei, desesperada, até as seis e meia, porque estava completamente perdida sobre o que devia fazer comigo, com o meu tempo e com a minha vida.
Esperar por Gus, era só nisso que eu era boa.
E ele não apareceu.
E claro que ele não apareceu.
E enquanto eu ficava ali, imaginando o que fazer em seguida, algo que estava me incomodando de leve, bem no fundo da mente, se cristalizou em um medo consciente.
Eu não sabia onde Gus morava.
Se ele não me procurasse, eu não poderia procurá-lo. Não tinha nenhum número de telefone nem o endereço dele.
Ele jamais me levara até a sua casa. Tudo o que havíamos feito juntos — de dormir a fazer sexo e ver tevê — acontecera no meu partamento. Eu sabia que aquilo não estava certo, mas sempre que sugeria ir até a casa dele em sua companhia, Gus me enrolava com um monte de desculpas surrealistas. Histórias tão bizarras que agora eu estremecia só de lembrar da facilidade com a qual eu havia engolido tudo aquilo.
Eu não devia ter sido tão maleável com ele, pensei, em desespero. Devia ter insistido. Se tivesse sido mais exigente, não estaria naquele sufoco. Pelo menos saberia onde encontrá-lo.
Não podia acreditar no quanto fora submissa. Como é que eu nem sequer ficara com a pulga atrás da orelha?
Na verdade, agora que eu pensava naquilo, eu ficara com a pulga atrás da orelha sim. Mas me forçara a não ficar, porque isso ia agitar a plácida superfície da minha felicidade.
Deixei Gus fazer o que bem queria, sempre com a vaga e abrangente explicação de que ele era assim mesmo, diferente e excêntrico. Agora que ele desaparecera, mal podia acreditar na minha ingenuidade.
Se eu tivesse lido uma história como aquela no jornal ou em alguma revista, a respeito de uma garota que já estava com um cara há cinco meses (mais ou menos, incluindo as três semanas de maio em que ele sumiu), e visse que a garota nem mesmo sabia onde ele morava, eu iria descartá-la, chamando-a de palerma e dizendo que merecia tudo o que estava acontecendo.
Ou, no caso, não estava acontecendo.
A realidade, porém, fora bem diferente. Fiquei com medo de forçá-lo a fazer qualquer coisa, porque não queria que ele me escapasse.
De qualquer modo, achara que não havia necessidade de forçá-lo a fazer nada, porque ele se comportava como se gostasse de mim.
Agora, a frustração de não ser capaz de entrar em contato com ele era insuportável. Especialmente por saber que a culpa era toda minha.
Passaram-se alguns dias intermináveis e infernais sem que Gus aparecesse e, no fundo, eu não tinha muita esperança disso.
Porque descobri algo terrível. Eu estava esperando que ele me abandonasse. Durante todo o tempo em que estivera com ele, vivia aguardando por isso.
Meu verão idílico fora apenas uma jóia falsificada. E só naquele instante, analisando em retrospecto, eu conseguia ver tensões sob a superfície calma e ensolarada.
Jamais me sentira segura, desde que Gus sumira naquelas três semanas. Eu fingia que estava segura, porque me sentia melhor desse jeito. Mas as coisas nunca mais foram as mesmas. Aquilo fizera a balança do poder pender visivelmente para o lado de Gus — ele me tratara com total falta de respeito, e sinalizei que para mim estava tudo bem que ele agisse daquela forma. Eu lhe concedera carta branca para me tratar mal.
Ele foi muito nobre a respeito disso, jamais me lembrando do quanto eu era uma refém dele. Mas essa afirmação estava sempre em toda parte, nas entrelinhas: ele me abandonara uma vez e poderia tornar a fazer isso quando bem quisesse. Ele empunhava a sua habilidade de desaparecer como se fosse uma arma.
Entre nós dois havia uma disputa de poder que ficava sempre encoberta. Ele bancava o temerário e eu bancava a impassível. Por quanto tempo ele podia me deixar sozinha no canto em uma festa, antes de eu ficar chateada? Quanto dinheiro ele podia "pegar emprestado" comigo, antes que eu me recusasse de vez a "emprestar"? Quantas vezes ele podia ficar de flerte com Megan e quantas vezes ele precisava tocar no cabelo dela, antes de eu arrancar o sorriso pregado em minha cara?
Todo esse medo drenara muito da minha energia — eu vivia nervosa junto dele. Tensa. Toda vez que ele falava que ia me pegar em algum lugar ou se encontrar comigo, eu ficava com os nervos à flor da pele até ele aparecer.
Mas eu conseguira reprimir todos os meus questionamentos para mantê-los abaixo da superfície. Não podia deixar que eles colocassem a cabeça de fora nem para respirar, para não estragar as coisas.
Eu remendava rachaduras, colocava paninhos quentes, suprima medos e engolia insultos, uma vez que achava que tudo isso valia a pena.
E isso assim me parecia porque — pelo menos externamente — Gus e eu estávamos felizes.
Agora, porém, que ele se fora, eu compreendia que em cada momento que passara em sua companhia, tinha medo de que pudesse ser o último. Havia uma espécie de desespero em mim, uma necessidade de receber o melhor produto em troca do que pagara. Uma urgência de estocar o máximo que conseguisse de Gus na minha vida, para enfrentar o tempo em que ele tornaria a fugir.
Finalmente, tive de contar aos outros, no trabalho, que Gus e eu não estávamos mais juntos. Foi horrível. Jed e Meredia ficaram arrasados, pareciam crianças que acabaram de descobrir que Papai Noel não existe.
— Gus não gosta mais da gente? — perguntou Meredia, com uma vozinha fraca, a cabeça baixa, ajeitando a tenda que usava como saia.
— Claro que gosta — garanti a ela, com firmeza.
— Foi culpa nossa? — perguntou Jed, parecendo tão pesaroso quanto um menino de quatro anos. — Nós fizemos alguma coisa errada?
— Claro que a culpa não é de vocês — disse, de coração. — Gus e eu não podemos mais ficar juntos, mas...
Eu me segurei, antes que acabasse sentada no chão com os braços em torno deles dois, explicando que "às vezes as pessoas grandes deixam de amar uma à outra, e isso é muito triste, mas não significa que Gus não continue a amar muito vocês dois...".
Em vez disso, exclamei, com os olhos cheios d'água:
— Ai, pelo amor de Deus! Vocês não são os filhos de um casal que está se divorciando; portanto, parem de agir como se fossem. Essa é a minha tragédia — lembrei a eles, em um tom mais conciliador.
— Talvez ainda possamos continuar nos encontrando com ele. — Jed virou-se para Meredia. — Lucy não precisa estar presente.
— Obrigada, seus porcos cruéis — reagi. — Agora só falta que vocês me peçam para negociar com ele os dias de visita.
Megan foi mais direta e pouco simpática:
— Você está muito melhor sem aquele perdedor — anunciou ela, carregando ainda mais no sotaque australiano e balançando a mão com ar de pouco caso.
Ela tinha razão, é claro. Mas era difícil eu me sentir grata. Eu estava paralisada, ainda me sacudindo por dentro pela perda súbita.
A forma inesperada da partida de Gus me deixara em estado de choque. Porque eu não notara nenhum indício de que o interesse dele por mim estava diminuindo. Até os últimos instantes ele agira como se estivesse feliz.
E só podia estar feliz mesmo, pensei, me enaltecendo por dentro.
Afinal, eu não medira esforços para fazer com que tudo corresse às mil maravilhas para ele.
Naturalmente, pelo fato de eu ter a dupla desvantagem de ser mulher e ter baixa auto-estima, comecei a me culpar. Por que motivo ele me abandonara? O que eu fizera? O que eu não fizera?
Se eu soubesse, pensei, indefesa, poderia ter tentado com mais energia. Embora, para ser franca, achasse meio difícil que isso fosse possível.
A pior coisa no fato de Gus ter saído da minha vida era também a mais difícil de enfrentar, quando eu me sentia rejeitada: a quantidade imensa de tempo que sobrava. Como na última vez em que ele sumira, havia horas demais nos meus dias. Uma quarta dimensão inteira havia entrado em minha vida, um buraco sem fundo de noites intermináveis, e eu não conseguia dar conta de todo aquele tempo extra.
Eu não me lembrava de outra ocasião em que essa sensação tivesse sido tão forte. Por outro lado, era isso que eu achava todas as vezes que me sentia abandonada.
Para tentar me livrar das horas excedentes e dos minutos infindáveis, eu ia para a rua o tempo todo, tentando dispersar a minha tristeza e cremar minhas mágoas em festas. Tinha de fazer isso, eu estava agitada demais para ficar em casa. Ficar inerte era impossível.
Só que não adiantou nada, pois aquele sentimento horrível não me largava. Mesmo quando eu me sentava em pubs lotados de gente feliz e sorridente eu continuava a sentir um medo, um pânico frenético que me percorria as veias.
Não havia como escapar daquilo. Só conseguia dormir algumas horas todas as noites. Pegar no sono até que não era difícil, mas eu acordava bem cedo, ainda de madrugada, às quatro ou cinco da manhã, e perdia o sono. Não agüentava ficar sozinha. Mas também não havia ninguém com quem eu quisesse estar. O pior é que, onde quer que eu estivesse, queria sempre estar em outro lugar que não fosse ali.
Não importa com quem eu estivesse, não importa o que estivesse fazendo, não importa onde, tudo me parecia errado, e eu rejeitava.
A cada noite eu me sentava em companhia de um monte de gente e me sentia totalmente só.
Passaram-se umas duas semanas, e me pareceu que eu estava ligeiramente melhor, mas as mudanças ainda eram muito pequenas para serem notadas.
— Você vai superar isso e esquecê-lo — todos diziam para me dar força.
Mas eu não queria esquecê-lo. Continuava achando que ele era o homem mais engraçado, mais inteligente e sexy que jamais encontrara, ou jamais encontraria.
Ele era o meu ideal masculino. E se eu o esquecesse, se não o desejasse mais, era como se estivesse perdendo uma parte de mim mesma.
Eu não queria deixar a ferida cicatrizar.
Além do mais, apesar do que todos me diziam, eu sabia que jamais conseguiria esquecê-lo. Sentia tanta dor por dentro que não conseguia mais me imaginar sem senti-la.
Para piorar, a Sra. Nolan e sua maldita previsão continuavam na minha cabeça. Eu achava difícil aceitar todos aqueles sinais que gritavam nos meus ouvidos que Gus não era o homem certo para mim, porque era mais cômodo acreditar que a nossa união estava escrita nas estrelas.
— Aquele Gus é mesmo um canalha, hein? — comentou Megan certo dia, no trabalho, com descontração.
— Acho que é... — concordei, para ser educada.
— Você não vai me dizer que não tem ódio dele, vai? — Megan parecia indignada.
— Mas eu não tenho ódio dele mesmo — disse. — Talvez devesse ter, mas não tenho.
— Mas, por que não tem?
— Porque eu sei que Gus é assim mesmo, é o jeito dele. — Tentei explicar. — Se você o amasse, também iria aceitar a parte dele que é pouco confiável.
Fiquei esperando que Megan debochasse de mim, zombasse de tudo aquilo e me chamasse de covarde, fraca e infantil. E foi exatamente o que ela fez.
— Ah, deixe de ser boçal, Lucy! — E riu. — Foi culpa sua, você não devia ter aturado nenhuma das gracinhas dele. Quando se trata de animais como Gus, temos que mostrar logo de cara quem é que manda, é preciso dominá-los.
— Eu sempre faço isso — acrescentou ela.
Para Megan, aquilo podia funcionar, pois ela fora criada em uma fazenda, e uma fazenda australiana ainda por cima. Sabia tudo a respeito de prender animais com correntes, subjugá-los e domá-los.
— Eu não queria dominá-lo, Megan — argumentei. — Se ele ficasse bem comportado, deixaria de ser Gus.
— Você não pode ter as duas coisas, Lucy — disse ela.
— Mas não fiquei com nenhuma das duas — lembrei a ela.
— Vamos lá, anime-se! Você não se importa tanto assim com isso, se importa? — perguntou ela, animada.
— Eu me importo sim — respondi, abaixando a cabeça, porque uma falta de amor-próprio tão grande assim não é algo de que devamos nos orgulhar.
— Não, não acredito que se importe — zombou ela.
— Mas eu me importo.
— De verdade? — E olhou para mim com ansiedade.
— De verdade.
— Mas... por quê? — quis saber.
— Porque... porque. — Eu não conseguia me expressar. — Porque ele é tão especial! Jamais encontrei alguém como ele antes. E nunca mais vou tornar a encontrar... — funguei — ... em toda a minha vida.
Minha voz estremeceu de modo perigoso quando falei "em toda a minha vida", mas consegui a façanha de não lançar a cabeça em cima da mesa sobre os braços e soluçar amargamente.
— Quer dizer então que se ele entrasse aqui nesse instante, por aquela porta, pedindo para que você o aceitasse de volta, você o perdoaria? — perguntou Megan, continuando a me pressionar.
Não gostei das implicações daquela frase. Formei uma vaga imagem de uma mulher terrivelmente infeliz, espancada o tempo todo pelo marido, que roubava todo o seu dinheiro e ainda tinha casos com suas amigas.
— Megan — respondi, ansiosa —, não sou uma daquelas mulheres que são maltratadas pelos homens a vida inteira e mesmo assim continuam aceitando-os de volta todas as vezes.
— Essa é boa — disse Megan —, porque você está agindo exatamente dessa maneira,
— Só por Gus — expliquei, — Só no caso dele. Não faria isso por nenhum outro homem que já tenha encontrado. Essa é uma exceção.
— Gus é alguém por quem vale a pena quebrarmos as regras — acrescentei.
— Pelo jeito, parece que sim — comentou ela.
Senti uma estranha vontade de dar um soco na cara dela.
— Mas tudo bem — disse ela, em voz alta, de forma decididamente empolgada. — Você vai superar isso e esquecê-lo. Em mais duas semanas você não vai nem se lembrar do nome dele, e não vai mais nem lembrar o motivo de todo esse drama.
Dava para ouvir os gritos três andares abaixo do nosso, como se fossem os pavorosos sons de um animal em agonia, uma mulher dando à luz ou uma criança sendo escaldada.
Algo de terrível acontecera no prédio e, ao subir as escadas, percebi que os urros vinham do nosso apartamento.
— Ai, Lucy — disse Charlotte, ofegante, assim que apareci na porta. — Que bom que você chegou.
Ela estava com sorte. Eu só tinha ido direto para casa depois do trabalho porque não havia ninguém com quem tomar um drinque, a não ser Barney e Slayer, as duas pré-históricas figuras do setor de postagem,
— O que houve? — perguntei, horrorizada.
— Foi a Karen — disse ela.
— Onde ela está? Está ferida? O que foi?
Karen irrompeu na sala, vindo do quarto, com as roupas em desalinho, a cara muito vermelha, inchada de chorar, e atirou um copo na parede, o qual se estilhaçou em mil pedaços por toda a sala.
— Aquele canalha, aquele canalha! Canalha! — guinchava. Alguma coisa de muito desagradável acontecera com Karen, mas pelo menos não me pareceu haver nada de errado com ela fisicamente, apesar do cabelo, que estava precisando com urgência de um pente. Havia um cheiro muito forte de álcool, que vinha dela. Então ela notou a minha presença.
— Você é que foi a culpada disso, Lucy, sua vaca! — berrou.
— Fui culpada de quê? Eu não fiz nada —protestei, sentindo-me culpada e assustada.
— Fez sim!... Foi você que me apresentou a ele. Se eu não o tivesse conhecido, não teria me apaixonado por ele. Não que eu esteja apaixonada por ele, eu o odeio com todas as minhas forças! — rugiu ela, entrando de volta no quarto e atirando-se de bruços na cama. Charlotte e eu fomos atrás dela.
— Isso tem alguma coisa a ver com o Daniel? — cochichei para Charlotte.
— Não pronuncie o nome dele! — guinchou Karen. — Nunca mais quero ouvir o nome dele sequer mencionado dentro deste apartamento, nunca mais!
— Lembra o dia em que você virou a única solteirona do pedaço? — sussurrou Charlotte para mim.
Concordei com a cabeça.
— Bem, agora você não é mais a única.
Então acontecera um rompimento no namoro de Daniel e Karen.
— O que houve? — perguntei a Karen, com toda a delicadeza.
— Eu terminei com ele! — Engoliu em seco, esticando a mão para pegar a garrafa de conhaque que estava ao lado da cama, e bebeu direto do gargalo. Mais da metade da garrafa já tinha ido embora.
— Mas por que você terminou com ele? — perguntei, intrigada. Eu achava que ela realmente gostava dele.
— Nunca se esqueça disso, Lucy. Eu terminei com ele, e não o contrário.
— Tudo bem — disse, meio nervosa. — Mas... por quê?
— Porque... porque... — As lágrimas começaram a escorrer novamente pelo seu rosto. — Porque eu perguntei se ele me amava e ele respondeu, ele respondeu que... que... que...
Charlotte e eu esperamos educadamente ela completar a frase.
— ... que NÃO ME AMAVA — finalmente conseguiu soltar, e começou a emitir aqueles horrendos gritos de desespero novamente.
— Ele não me ama — continuou ela, fixando em mim os olhos infelizes e um pouco fora de foco. — Dá pra acreditar? Ele me disse que não me ama!
— Se serve de alguma ajuda, Karen, eu sei como você está se sentindo. Gus terminou comigo tem só duas semanas, lembra?
— Deixe de ser tola — disse ela, com a voz meio engrolada por entre as lágrimas. — O caso entre você e Gus não era sério, o meu namoro com Daniel era!
— Pois eu levava Gus muito a sério — repliquei, com firmeza.
— Então era idiota — disse Karen. — Qualquer um podia ver que ele era maluco, pouco confiável e irresponsável. Daniel, não... ele tem um... um BOM EMPREGO!
E tornou a falar coisas incoerentes misturadas com os soluços, e não dava para entender nada do que ela estava dizendo. Era alguma coisa sobre Daniel ter o próprio apartamento, e usar algo de uma marca muito cara... o que era mesmo?... cigarro?!... não, não, desculpem. Era um carro!
— Coisas como essa não acontecem comigo — soluçou ela. — Isso não estava nos planos.
— Mas elas acontecem com todo mundo — disse eu, tentando ser gentil.
— Não, não mesmo. Não acontecem comigo.
— Karen, escute só... isso acontece com todo mundo — insisti. — Veja só o que aconteceu comigo e Gus...
— Não me compare com você — gritou ela. — Eu sou totalmente diferente. — Os homens terminam com você... e com você também. — Balançou a cabeça, incluindo Charlotte no insulto. — Só que eles jamais terminam comigo. Eu não permito que isso aconteça.
Isso nos deixou sem fala, a mim e Charlotte.
— Ai, meu Deus — recomeçou Karen, com uma nova rodada de lamúrias. — Como é que eu posso ir à Escócia agora? Já contei pra todo mundo a respeito do Daniel e do quanto ele é rico. íamos até lá no carro dele. Agora vou ser obrigada a pagar a minha própria passagem, e aquele blazer que eu ia comprar no caminho, quando passássemos em Morgans, não vou mais poder comprar. Aquele canalha!
Pegou novamente a garrafa de conhaque.
Era um conhaque muito antigo, de uma marca caríssima, daquele tipo que os homens de negócios oferecem uns aos outros no Natal; o tipo de bebida que não é para bebermos de verdade. Deve ficar só como peça decorativa, como forma de ostentação de riqueza, e não como algo que misturamos com alguma outra coisa e bebemos.
— Onde arranjou essa bebida? — perguntei a Karen.
— Peguei no apartamento do filho-da-mãe, ao sair — disse ela, com ferocidade. — Só me arrependi de não ter trazido mais.
Então vieram mais lágrimas.
— E aquele é um apartamento tão lindo... — uivou ela. — Eu ia redecorá-lo todo, ia fazer com que ele comprasse uma cama de ferro toda trabalhada que vi na edição de decoração da Elle. Ele é mesmo um canalha!
Sim, sim, sim, muito.
— Temos que colocá-la sóbria — disse eu,
— Talvez possamos fazer com que ela coma alguma coisa — sugeriu Charlotte. — Eu estou com vontade de comer.
O problema é que, como sempre, não havia nada em casa, a não ser iogurte light vencido.
Assim, fomos ao Curryfour e provocamos o maior rebuliço e preocupação entre os garçons, porque a vida inteira só tínhamos ido lá aos domingos.
— Puxa, eu podia jurar que hoje era segunda — disse Pavel para Karim, em idioma bengali, assim que nos viu entrando e sentando à nossa mesa de sempre.
— Nossa, eu também — concordou Karim. — Mas só pode ser domingo. Que bom, o restaurante fecha uma hora mais cedo hoje. Então, vamos correr! Você pega o vinho para elas e eu digo ao chef que elas chegaram e que ele já pode preparar o frango ao molho picante com masalas. Elas nos pegaram desprevenidos, com certeza.
— Vamos querer uma garrafa de vinho branco, por favor — pedi a Mahmood, mas Pavel já estava atrás do balcão, abrindo-a para nós. Sempre comíamos exatamente a mesma coisa no restaurante indiano, eles nem nos traziam mais o cardápio. Era sempre um biria-ni de legumes, dois frangos ao molho picante com masalas, arroz de forno com especiarias e vinho branco. Só o número de garrafas de vinho é que variava, mas tomávamos sempre, pelo menos, duas.
Enquanto esperávamos pela comida, conseguimos descobrir exatamente o que acontecera com Karen e Daniel.
Pelo jeito, Karen estava certa de que Daniel se apaixonara por ela e resolveu que já estava na hora de receber uma declaração formal disso. Assim eles teriam tempo suficiente para comprar um anel de noivado, antes de irem para a Escócia, quando então comunicariam as boas novas aos pais de Karen. O problema é que Daniel se mostrou desagradavelmente reticente com a tal declaração, e então Karen resolveu que era melhor tomar as rédeas dos acontecimentos, já que a viagem para a Escócia estava bem próxima. Assim, com toda a certeza de que a resposta de Daniel seria afirmativa, Karen perguntou-lhe se ele a amava. E Daniel embolou o meio de campo ao lhe dizer que gostava muito dela.
E Karen disse "que bom que você gosta", e quis saber se ele a amava.
E Daniel falou que era sempre uma satisfação e uma alegria para ele estar ao lado de uma mulher tão linda.
"Eu sei de tudo isso", anunciou Karen, com cara de desdém. "Mas eu quero saber se você me ama!"
"Quem pode explicar o que é o amor?", perguntou Daniel, sem dúvida cada vez mais desesperado.
"Responda apenas im ou não", exigiu Karen. "VOCÊ ME AMA?"
"Receio que a minha resposta teria que ser não", disse Daniel.
Entraram em cena os sonhos despedaçados, uma briga violenta, o roubo de uma caríssima garrafa de conhaque, a busca por um táxi e os votos de que Daniel queimasse no inferno; seguiu-se a saída de Karen do apartamento de Daniel e a sua chegada ao nosso.
— Ele é um canalha — soluçou Karen.
Mahmood, Karim, Pavel e mais outro que disse se chamar Michael balançaram a cabeça juntos, em solidariedade. Estavam escutando atentamente cada palavra da história de Karen. Pavel parecia à beira das lágrimas.
Karen entornou um cálice de vinho de uma vez só, deixando escorrer um pouco pelo queixo, e imediatamente tornou a encher o cálice.
— Otra-arrafa! — pediu, lançando a que acabara de esvaziar em direção aos garçons, que continuavam aglomerados.
Charlotte e eu trocamos olhares que diziam "Acho que ela já bebeu demais!", mas nenhuma das duas ousou falar aquilo em voz alta.
Karim nos trouxe mais vinho e, ao colocar a garrafa sobre a mesa, murmurou:
— Essa é por conta da casa, com as nossas condolências. Charlotte e eu acabamos ficando bêbadas também, porque na
tentativa de evitar que Karen ficasse ainda mais alta, bebemos o máximo de vinho que havia na mesa. Isso não adiantou nada, pois Karen rugia pedindo outra garrafa assim que a anterior era esvaziada, e o processo começava todo de novo.
Embora, a essa altura, eu já estivesse começando a me divertir.
Karen foi ficando cada vez mais bêbada. Acendeu o cigarro pelo lado do filtro duas vezes, enfiou os punhos do blazer no prato, derrubou um copo de água dentro do meu biriani de legumes, e falou, com a voz arrastada:
— Isso já estava com aspecto nojento mesmo.
E então, para meu horror total, ficou com os olhos vidrados e foi inclinando o corpo lentamente para a frente, até cair de cara em cima do frango ao molho com masalas e arroz.
— Depressa, depressa, Charlotte — comandei, em pânico. — Vamos levantá-la, tire a cara dela do prato, senão ela vai se afogar no molho.
Charlotte puxou a cabeça de Karen pelos cabelos, e Karen olhou-a com um aspecto confuso e bêbado, perguntando:
— Que porra é essa que você está fazendo? — quis saber. Tinha molho vermelho na testa e grãos de arroz nos cabelos.
— Karen, você desmaiou — arfei. — Acabou de desabar em cima do prato. E melhor nós irmos para casa.
— Sai pra lá — disse, com a língua enrolada. — Num foi nada dizzo. É queu dejei o cigarro caí no chaum e tive que mabaixá papegá.
— Ah — disse eu, aliviada e meio sem graça.
— Zua abaca — murmurou Karen, agressiva. — Tá dizeno quea num consigo segura meu drinque?
— Vem cá, ocê! — convocou Mahmood. — Cê acha queu sô atraente? Heinnn?
— Muito atraente — concordou ele, caloroso, achando por um segundo que ia se dar bem.
— Claro queu sou — disse Karen. — Claro queu sou!
— Ocê num é não — acrescentou, olhando para ele.
O garçom pareceu magoado, então acabei dando uma gorjeta maior do que a habitual na hora em que saímos. Acabei tendo de pagar a conta, porque Charlotte esquecera de pegar a bolsa na correria, e Karen, embora tentasse preencher um cheque, estava bêbada demais para conseguir segurar a caneta.
Levamos Karen para casa, trocamos a roupa dela e a colocamos na cama.
— Vamos, beba um pouquinho de água, Karen... isso, boa menina... Assim você não vai se sentir tão mal quando acordar de manhã — disse Charlotte, empurrando um copo d'água embaixo do nariz de Karen. Charlotte estava longe de parecer sóbria.
— Nunnn-ca, nunn-ca mais quero me levantar — disse Karen, falando arrastado.
Começou então a soltar alguns gemidos curtos e engraçados, e depois de algum tempo percebi que ela estava cantando. Mais ou menos.
— Você é tão vaidoso... aposto que está achando que esta canção foi feita pra você... não está?... não está?... —, gemia ela, murmurando a letra de uma antiga canção de Carly Simon.
— Vamos lá, Karen, por favorl — implorou Charlotte, voltando a atacar com o copo d'água.
— Num minterrompe qdo eu tô cantano... Tô cantano u'a música que fala do Daniel. Vamo canta todo muno junto. "Você é tão vaidoso... aposto... achando... que esta eanção..." Vamos lá! — berrou ela, agressiva. — Cantem comigo!
— Karen, por favor — murmurei, para acalmá-la.
— Num vem me trata feito criança não — reagiu ela. — Cantem a porra da música! "Você é tão vaidoso..." Vamos lá, todo muno!
— Hã... Você é tão vaidoso — cantamos juntas, Charlotte e eu, nos sentindo tolas. — Hã... Aposto que você está achando que esta canção foi feita pra você...
Karen apagou antes do verso seguinte.
— Ai, Lucy — gemeu Charlotte. —- Estou tão preocupada...
— Não fique assim não — disse eu, animando-a com uma confiança que eu mesma não sentia. —Tenho certeza de que ela vai ficar legal. Vai se sentir em forma logo, logo...
— Não é com ela — explicou Charlotte. — Estou preocupada comigo.
—- Por quê?
— Primeiro foi o Gus, agora o Daniel, e se o Simon for o próximo a cair fora?
— Mas por que cargas d'água ele seria o próximo? Isso não é uma doença contagiosa.
— Mas as coisas ruins sempre acontecem em grupos de três — explicou Charlotte, com o rosto rosado todo franzido de preocupação.
— Talvez as coisas sejam assim em Yorkshire — disse eu, com carinho —, mas você agora está em Londres, portanto não se preocupe.
— Você tem razão — reagiu ela, mais animada —, e tem mais uma coisa... Gus dispensou você duas vezes, então contando o rompimento de Daniel e Karen, já temos as três vezes.
— É... foi uma pena Gus não ter me dispensado uma terceira vez, porque então eu pouparia Karen de toda essa tristeza — comentei, com sarcasmo.
— Não se torture com isso — disse Charlotte. — Você não tinha como adivinhar.
E então aconteceu a terceira vez.
Apesar de ser meio tapada, o instinto de Charlotte se mostrou totalmente correto. Simon não ligou para o trabalho dela na terça-feira, e ele normalmente telefonava todos os dias, às vezes duas vezes no mesmo dia.
Quando ela ligou para ele na terça à noite, ele não estava em casa, e o amigo com quem dividia o apartamento, normalmente gentil, parecia meio sem graça e pouco informativo a respeito do paradeiro de Simon.
— Lucy, estou com um mau pressentimento a respeito disso — disse Charlotte.
Ela tornou a ligar para o trabalho dele na quarta-feira, mas Simon não atendeu a ligação. Quem atendeu foi uma mulher, e quando Charlotte pediu para chamá-lo, ela perguntou: "Quem deseja?..." Quando Charlotte disse seu nome, a mulher na mesma hora disse: "Simon não pode atender porque está em reunião..."
Charlotte tornou a ligar mais ou menos uma hora depois, e aconteceu exatamente a mesma coisa.
Então, na mesma hora, Charlotte pediu para Jennifer, sua colega, telefonar, e de repente Simon já estava atendendo os telefonemas, pois pegou o fone para falar com "Jennifer Morris".
Jennifer passou o fone para Charlotte assim que Simon disse "alô". Ela perguntou:
— Simon, o que está havendo? Você está tentando me evitar? Simon riu, meio nervoso, e, com um jeito bem jovial, respondeu:
— Não, deveras não, deveras. Não, deveras.
Charlotte disse que foi nesse instante que ela realmente sacou que havia algo errado, porque Simon normalmente jamais falaria "Não, deveras".
— Vamos nos encontrar para almoçarmos juntos, Simon — disse Charlotte.
— Eu adoraria, adoraria... — disse Simon — ... mas não vai ser possível.
— Por que você está falando desse jeito? — perguntou Charlotte.
— De que jeito? — quis saber Simon.
— Como um babaca parado na rua com um celular na mão para parecer importante — disse Charlotte.
(O que achei extremamente irônico, porque eu sempre achei que Simon falava que nem um babaca parado na rua com um celular na mão para parecer importante, mas não falei isso para Charlotte quando ela me contou a história, porque não queria deixá-la ainda mais chateada.)
— Não tenho idéia do que você está falando — disse Simon.
— Tudo bem, então nos vemos à noite — suspirou Charlotte.
— Receio que isto seja impossível — replicou ele.
— Por quê?
— Trabalho, Charlotte, trabalho — disse Simon, bem devagar.
— Mas você nunca teve que trabalhar à noite — argumentou Charlotte.
— Sempre existe uma primeira vez para tudo — explicou Simon, em voz baixa.
— Bem, então quando é que vou poder ver você? — quis saber Charlotte.
— Más notícias, Charlie — disse Simon. — Não vamos poder nos encontrar.
— Até quando? — perguntou ela.
— Você não está facilitando nem um pouco as coisas para nós dois, não é verdade? — perguntou ele, falando ainda mais baixo.
— Sobre o que você está falando?
— Estou falando, Charlotte, que nunca mais vamos poder nos encontrar.
— Por que não?
— Porque acabou... A-C-A-B-O-U!
— Acabou? A gente? Você está me dizendo que terminamos o namoro? — perguntou ela.
Bravo! — E riu. — A luz finalmente acendeu.
— E quando é que você estava planejando me comunicar isso? — perguntou ela.
— Acabei de comunicar, não acabei? — disse ele, de forma sensata.
— Mas só porque liguei para você. Quando é que você ia ligar para mim? Ou você ia deixar que eu acabasse descobrindo por mim mesma?
— Você ia descobrir logo, logo... — disse ele.
— Mas por quê? — perguntou Charlotte, com a voz tremendo. — Você não, você não... gosta mais de mim?
— Ora, Charlotte, não faça papel de boba — disse ele. — Foi um lance legal, nos divertimos juntos, só que agora encontrei outra pessoa com quem me divertir.
— Mas, e quanto a mim? — quis saber Charlotte. — Com quem eu vou me divertir agora?
— Isso não é problema meu — disse Simon. — Enfim, de qualquer modo, vai aparecer outra pessoa, rapidinho. E não vai demorar muito, com esses peitos que você tem.
— Mas eu não quero me divertir com mais ninguém — implorou Charlotte. — Quero me divertir com você.
— É pena — disse ele, todo animado. —Seu tempo acabou. Não seja egoísta, Charlotte, deixe que as outras garotas tenham uma chance também.
— Mas eu achava que era importante para você —disse ela.
— Bem, não devia ter levado as coisas tão a sério — replicou ele.
— Então isso é tudo? — perguntou ela, com os olhos cheios de lágrimas.
— Isso é tudo — concordou ele.
— Lucy, ele parecia uma pessoa totalmente estranha. — comentou ela, mais tarde. — E eu achava que o conhecia... achava que ele se importava comigo, não consigo acreditar que ele tenha me descartado assim, tão de repente.
— Não consigo descobrir o porquê disso — repetiu ela, diversas vezes. — O que foi que eu fiz de errado? Por que ele me largou? Talvez eu tenha engordado um pouco. Eu engordei, Lucy? Ou será ue enchi muito o saco dele, reclamando dos problemas no meu trabalho?... Se pelo menos eu soubesse...
E balançou a cabeça, em total perplexidade.
— Não há nada mais esquisito do que os homens — suspirou. Pelo menos ela não ficou se torturando com imagens daquela mulher lendária que perturba a imaginação das mulheres de pouco busto quando são rejeitadas: a Garota com Peitos Maiores. Charlotte não tinha esse problema, porque ela já era a própria Garota com Peitos Maiores.
Mas era insegura em todas as outras áreas.
Charlotte forçou a maior barra para se encontrar com Simon. Ficou de tocaia e o perseguiu com uma tenacidade e uma determinação que ninguém julgava possível ao ver o seu rostinho redondo e inocente pela primeira vez. Acampou do lado de fora do prédio em que ele trabalhava por uns dois dias, e ficava atenta na hora em que ele saía para ir embora, até que Simon finalmente concordou em tomar um drinque com ela, na esperança de que ela o deixasse em paz.
Um drinque leva a outro e levou a muitos outros. Os dois ficaram completamente bêbados, acabaram indo para o apartamento de Simon e transaram.
Então, de manhã, Simon disse:
— Foi muito agradável, Charlotte. Agora, pare de rodear o prédio onde trabalho. É uma situação embaraçosa para você.
Isso pegou Charlotte totalmente de surpresa. Ela ainda era inexperiente o bastante no ringue do amor para imaginar que, pelo fato de Simon ter dormido com ela, isso significava que o romance entre eles ia entrar de novo nos eixos.
— Mas... mas... — disse ela. — E o que aconteceu ontem à noite entre nós? Não serviu para...?
— NÃO, Charlotte — interrompeu Simon, com impaciência. — Não significou coisa alguma para mim. Uma transa é só uma transa. Agora, por favor, vista-se e pegue o seu cartão vermelho na saída.
— E o pior, Lucy — ela se queixou, depois que tudo aconteceu —, é que eu continuo sem saber por que ele terminou comigo.
— Como assim?
— Esqueci de perguntar.
— E o que vocês ficaram fazendo a noite toda? — perguntei, surpresa. — Não, não, não precisa me contar, eu imagino.
— Eu sou muito jovem para ser a mais nova Solteirona do Pedaço — afirmou Charlotte, de forma sombria.
— Nunca somos jovens demais para isso — afirmei, com sabedoria.
Megan ia assumir seu novo cargo naquela semana, mas houve complicações. Bem, na verdade, apenas uma.
Para o conhecimento de todos: a saúde mental de Frank Erskine.
Os médicos da empresa não estavam muito satisfeitos com o comportamento de um dos diretores.
A oferta da criação de um novo cargo para uma jovem bronzeada e atraente que usava shorts no trabalho foi encarada como um ato constrangedor para a empresa, feito por um homem de meia-idade que devia dar o exemplo. A empresa fervilhava com os rumores de que ele estava tendo uma combinação de crise da meia-idade com colapso nervoso e não era capaz de pensar de forma racional.
Foi persuadido (na verdade, forçado, de acordo com as minhas fontes do Departamento de Pessoal) a tirar uma licença por motivo de saúde. Por sorte, sua mulher concordou em lhe dar todo o apoio, e o rastilho de fofocas não foi em frente.
Quando ele voltasse — embora ninguém estivesse achando que ele fosse mesmo voltar —, a Gerência Geral teria todo o prazer de conversar com Megan a respeito da promoção prometida.
Enquanto isso não acontecia, Megan estava condenada a apodrecer na Seção de Controle de Crédito. Meredia quase vomitou de tanto júbilo.
Três corações estavam arrasados.
Parecia que todas nós havíamos sido atingidas por alguma praga. Nosso apartamento devia urgentemente ser isolado por uma cortina preta, e depois deviam pregar na porta uma cruz também preta. Em toda a volta havia um ar de trevas terríveis, de doença e morte.
Todas as vezes que eu voltava para casa, esperava ouvir cantos fúnebres e réquiens tocados em um órgão, vindos do sótão.
— Um soturno flagelo desceu sobre esta casa — comentei, e as outras duas concordaram plenamente, com ar de tristeza.
Então Charlotte perguntou o que era um "soturno flagelo".
Embora ainda estivéssemos no meio do verão, todo mundo que cruzava o portal do nosso apartamento notava que ali dentro era inverno, triste e desolador.
Um domingo, na hora do almoço, Karen e Charlotte foram para o pub, a fim de se embebedarem e zombarem dos ex-namorados uma com a outra, de forma venenosa, comentando o quanto os pênis de Simon e Daniel eram, na verdade, minúsculos, e como o sexo com eles tinha sido uma bosta, além do fato de que nenhuma das duas jamais teve um orgasmo sequer durante o namoro, simplesmente fingiram o tempo todo.
Eu adoraria ir com elas, mas resolvera me colocar em estado de prisão domiciliar voluntária.
Estava um pouco preocupada com a exagerada quantidade de bebida que andava tomando, tanto durante quanto, especialmente, depois de Gus. Portanto, resolvi que ia sair daquela fossa por outro caminho.
Estava lendo um ótimo livro que pegara em um estande da Oxfam. * O livro era sobre mulheres que amavam demais. Fiquei surpresa, tentando imaginar a razão de aquele livro jamais ter passado pelas minhas mãos. Talvez fosse pelo fato de que ele havia sido publicado uns dez anos antes, quando eu ainda era novata no ofício de me tornar neurótica, e mal começava a compreender as coisas.
O telefone tocou.
— Daniel — disse eu, pois era ele. — O que você quer, seu galinha sem-vergonha?
— Lucy... — disse ele, falando baixinho e com pressa — ... ela está aí?
— Quem está aqui? — perguntei, com frieza.
— A Karen?
— Não, não está. Pode deixar que eu aviso a Karen que você ligou. Mas não fique sentado ao lado do telefone, esperando que ela ligue de volta, não.
— Não, Lucy. — Ele parecia assustado. — Não conte a ela que eu telefonei, não. Eu queria falar é com você mesmo.
— Ah, é?... Pois eu não quero falar com você — reagi.
— Por favor, Lucy.
— Não, vá ver se estou na esquina! — atirei. — Tenho minhas lealdades, sabia? Você não pode sacanear a minha amiga, partir o coração dela e ainda ficar esperando que eu continue a ser a sua velha amiga do peito.
Fiquei esperando que ele soltasse alguma piadinha sobre o meu peito, mas ele não disse nada.
— Mas, Lucy... — argumentou ele —... você já era minha amiga antes dela.
— Pois é uma pena — repliquei. — Você conhece as regras: rapaz namora garota, rapaz termina com garota, rapaz fica jurado de morte pelas amigas da garota.
— Lucy — disse Daniel, parecendo muito sério. — Tenho uma coisa para falar com você.
— Então fale, mas fale depressa.
— Bem... eu jamais achei que ia me ouvir dizendo isso, mas... bem... estou sentindo a sua falta, Lucy.
Senti uma fisgada de dor por ele. Mas isso era a coisa mais comum para mim.
— Você não me telefonou durante todo o verão — lembrei a ele.
— E você também não telefonou para mim.
— Ah, é? E como é que eu podia ligar? Você estava saindo com outra pessoa, e essa pessoa ia me matar se eu ligasse para você.
— E você também estava saindo com outra pessoa — observou Daniel.
— Rá! Essa é boa. Gus não era exatamente uma ameaça física para você, era?
— Eu não diria isso.
— Entendo o que quer dizer — disse toda melosa ao me lembrar de Gus. — Embora ele não fosse muito alto, Daniel, aposto que era capaz de se defender no braço muito bem, se fosse preciso.
— Não quis dizer isso — continuou Daniel. — Ele não precisa bater em ninguém. Era capaz de me deixar completamente imobilizado só com cinco minutos daquela conversa chata dele.
Fiquei indignada. Que desaforo, Daniel dizer que Gus era chato Era tão ridículo que nem valia a pena contestar.
— Desculpe — voltou Daniel. — Eu não devia ter falado uma coisa dessas. Ele era um cara divertido, de verdade.
— Você está falando de coração?
— Não. Mas, se eu não disser isso, você vai bater com o fone na minha cara e se recusar a me ver.
— Pois você está muito certo em achar isso — disse eu —, porque não tenho a mínima intenção de ver você.
— Por favor, Lucy — pediu ele.
— De que serve isso? Você é um sujeito patético, sabia, Daniel? Está momentaneamente sem mulher e o seu ego não consegue lidar com isso, então você telefona para a velha Lucy e...
— Qual é? — reclamou ele. — Se eu estivesse precisando de alguém para inflar o meu ego, você seria a última pessoa no mundo para procurar.
— Então, por que quer me ver?
— Porque estou com saudade.
Por um momento, acabou meu estoque de insultos contra ele, e Daniel aproveitou a brecha.
— Não estou entediado — continuou ele. — Não estou me sentindo sozinho, não estou em busca de companhia feminina nem de alguém para inflar o meu ego. Queria simplesmente ver você. Mais ninguém, só você.
Houve uma pausa. O ar reverberou por um momento com a sua sinceridade, e quase acreditei nele.
Com toda a minha arrogância, porém, senti a sensação de alguma coisa a mais. Alívio, talvez? Apesar disso, continuava disposta a não ceder. Isso ia deixá-lo desapontado.
— Daniel, você sabe que toda a sua lábia e suas palavras doces não funcionam comigo — lembrei a ele.
— Sim, eu sei — concordou. — E sei também que, se você concordar em se encontrar comigo, vai me tratar muito mal.
— Ah, sabe?
— Vai me chamar de galinha e... e...
— Um cara desprezível? — ajudei, esperançosa.
— Isso mesmo. Um cara desprezível. E um conquistador barato?
— Claro, isso também. Você nem imagina os outros títulos que tenho para você.
— Tudo bem.
— Você é doente, Daniel Watson.
— Mas você vem me ver?
— Mas estou bem, aqui em casa, sozinha...
— O que está fazendo?
— Estou deitada, descansando...
— Você pode descansar aqui.
— Estou comendo chocolate...
— Posso comprar todo o chocolate que quiser.
— Mas estou lendo um livro ótimo, e você vai ficar puxando conversa comigo.
— Não vou, prometo.
— E estou sem maquiagem, com a cara horrível.
— E daí?
— Como vou fazer para chegar aí? — ao perguntar isso, minha rendição foi completa.
— Vou até aí de carro e pego você — ofereceu Daniel.
Ao ouvir isso, joguei a cabeça para trás e soltei uma gargalhada de ironia.
— Qual é a graça? — perguntou ele.
— Daniel, caia na real. Como é que você acha que a Karen vai se sentir se avistar o seu carro parado bem na porta aqui de casa?
— Ah, é! É verdade... — murmurou Daniel, parecendo envergonhado. — Como é que pude ser tão insensível?
— Não seja bobo — debochei. — Todo mundo já sabe que você é insensível. Afinal, você é homem... não, o que quero dizer é que se ela descobrir que você veio até aqui para me ver, e não a ela, Karen vai tentar matar você. E vai tentar me matar também — acrescentei, sentindo-me subitamente tocada pela mão fria do medo.
— É mesmo... Vamos ter que pensar em algum outro modo, então — concordou Daniel.
Esperei um pouco para ver se ele reconhecia que não dava para nos encontrarmos.
— Já sei! — anunciou, todo empolgado. — Vou pegar você na esquina, bem no sinal de trânsito. Ela jamais vai conseguir me ver lá...
— Daniel! — gritei, indignada. — Como é que você consegue ser tão...? Tudo bem, nos encontramos na esquina.
Enquanto me arrumava, tive uma sensação de suspense com aquele subterfúgio, que era assustador e ao mesmo tempo empolgante.
Karen não me proibira de ver Daniel. Não proibira, em termos... Mas eu sabia que ela esperava que eu o odiasse pelo que fizera com ela. A velha solidariedade entre amigas que dividem apartamento ditava que, "se uma sai de campo, todas saem junto". Isso era para acontecer sempre que um namorado dispensava uma de nós. Se eles terminavam com uma das três, eram obrigados a abrir mão do prazer da companhia das outras duas também.
Só que, depois de conversar com Daniel pelo telefone, reparei no quanto sentia falta dele também. Agora que voltáramos a ser amigos, era seguro reconhecer isso. Eu estava com aquela sensação acre-doce que experimentamos sempre que fazemos as pazes com alguém.
Daniel era divertido, e alegria era uma mercadoria que andava muito em baixa na praça naquelas semanas.
Já estava cheia de andar pela casa com o rosto franzido, junto com Karen e Charlotte, sem comer quase nada. Nós pegávamos um biscoito, mordiscávamos uma pontinha e depois o deixávamos de lado, nos esquecendo por completo do coitado.
E também já estava saturada dos filmes violentos que Karen andava alugando. Carrie, a Estranha, Beleza Fatal e qualquer outra história que mostrasse mulheres conseguindo vingança de forma brutal e sanguinolenta.
E Charlotte teve uma regressão brava. Achávamos que havíamos dado adeus para sempre a Christopher Plummer e suas calças justas. Charlotte, porém, teve uma recaída terrível, e assistia à Noviça Rebelde sempre que Karen não estava enchendo a telinha com imagens de sangue e dor. Sangue e dor masculinos, de preferência.
Eu estava cansada de morar em uma casa que vivia de luto. Queria colocar um vestido vermelho e ir a uma festa.
Mas eu não estava sendo justa. Foi um puro golpe de sorte que o meu namorado tivesse enjoado de mim antes do namorado de Charlotte ou o de Karen sentirem o mesmo, pois graças a isso eu já estava umas duas semanas à frente delas no processo de recuperação emocional.
Como a gente esquece rápido.
Na verdade, havia só dez dias desde que eu estivera sentada naquele mesmo sofá, fungando, com o controle remoto na mão, assistindo à cena de O Exterminador do Futuro em que ele fala: "Vim do futuro e viajei pelo tempo apenas por você." Então, voltava a cena e assistia a ela de novo. Então, voltava a cena e assistia a ela de novo, Então, voltava a cena...
São assustadoras as coisas que fazemos depois de uma desilusão amorosa.
Bem, pelo menos a crise significava que os negócios estavam indo de vento em popa para Adrian.
Daniel parecia atento e nervoso enquanto esperava por mim no carro, bem na esquina, em frente ao sinal de trânsito.
— Não fique esperando que eu fale com você — avisei assim que entrei no carro.
Tinha de admitir que Daniel parecia muito atraente, para quem gosta daquele gênero de beleza.
Graças a Deus não era o meu caso.
Em vez do terno que normalmente eu o via usar, estava de calça jeans desbotada e um suéter cinza muito bonito.
Bonito de verdade, pensei. Talvez ele me emprestasse.
E eu jamais reparara antes como os cílios dele eram compridos e espessos. Assim como o suéter, aqueles cílios iam cair muito melhor em mim do que nele.
Comecei a me sentir meio tímida e sem graça. Já fazia tanto tempo que eu o vira pela última vez assim, só nós dois, que eu me esqueci de como devia me comportar.
Pela sensação de carinho e amizade que senti por ele, porém, vi que aquilo só podia ser alegria por revê-lo.
— Quer dirigir? — perguntou ele. A sensação de afeição se intensificou dentro de mim.
— Você deixa? — perguntei, rouca de empolgação.
Eu fizera algumas aulas de direção e tirara carteira de motorista mais ou menos um ano antes, embora não tivesse carro nem dinheiro para comprar um, e nem mesmo precisasse de um carro.
Fiz isso só para me sentir poderosa, uma das muitas coisas que tentara para me sentir mais satisfeita com a vida. Claro que não adiantou nada. Um dos efeitos colaterais daquilo, no entanto, foi que descobri que adorava dirigir. E Daniel tinha um automóvel lindo, esportivo, muito sexy. Não sei dizer qual era a marca nem o modelo, afinal sou mulher. Mas sabia de duas coisas importantes: o carro era lindo e muito veloz.
As mulheres o adoravam.
Só para implicar com Daniel, eu batizara o carro de "fodomó-vel" ou "o carrão do garanhão", e vivia dizendo que as garotas só saíam com ele por causa do carro.
Então saltamos, trocamos de lugar e ele me atirou as chaves por cima do veículo.
Dirigi por toda Londres até o apartamento de Daniel, e passei os melhores momentos da minha vida, desde aquela última noite em que transara com Gus.
Embora não planejasse isso, saí dirigindo que nem uma louca. Já fazia muito tempo desde a última vez em que eu me vira diante de um volante. Tempo demais, talvez.
Fiz todas as coisas imprudentes que parecem maravilhosas quando estamos dirigindo um carro veloz. Saía na frente dos outros carros no sinal, cantando pneus, provocando cara feia nos motoristas. Isso se chamava "deixar os outros na poeira", informou Daniel. Ultrapassava os carros e ia para a outra pista. Daniel me informou que isso se chamava "costurar no trânsito". No momento em que ficamos parados em um pequeno congestionamento, comecei a piscar e a sorrir para os homens bonitos dos outros carros. Daniel disse que isso se chamava "ficar de galinhagem".
Eu me senti ligeiramente chocada quando os outros motoristas começaram a me xingar e a fazer gestos obscenos sempre que eu os deixava para trás ou os cortava, mas isso foi só no início.
Logo, logo me adaptei à etiqueta que existe entre os motoristas. Assim, sempre que alguém me cortava, eu berrava, furiosa: "Babaca!", e tentava baixar o vidro para fazer gestos obscenos para ele, só que não conseguia achar a manivela.
Ele ia embora com um ar de medo nos olhos e, subitamente, como uma névoa que se desfaz, descobri como é que eu devia estar parecendo aos outros, isto é, tão babaca quanto eles. Fiquei abalada. Jamais pensei que pudesse ser tão agressiva. Pior, jamais achei que pudesse gostar tanto daquilo.
Olhei para o lado, com medo de que Daniel ficasse chateado comigo. Afinal, o sujeito podia ter saído do carro para nos agredir. Violência nas ruas estava tão na moda que as pessoas se sentiam quase obrigadas a agredir alguém. Achavam que não estavam aproveitando todas as vantagens que a carteira de motorista lhes dava se, pelo menos uma vez por semana, não chegassem em casa com a camisa rasgada depois de se atracarem com outro motorista em um engarrafamento.
— Desculpe por ter dito aquilo, Daniel — murmurei, lançando um olhar de lado, meio nervoso, para ele, mas ele estava rindo.
— Viu só a cara daquele sujeito? — ele estava ofegante de tanto rir. — Ele parecia não acreditar que fora xingado.
Continuou a rir tanto que algumas lágrimas escorreram pelo seu rosto, e finalmente conseguiu dizer:
— A propósito, o botão para mover os vidros elétricos são esses aqui.
Ao chegarmos à rua onde Daniel morava, falei, depois de estacionar a um metro do meio-fio:
— Obrigada, Daniel. Foi a coisa mais divertida que fiz em várias semanas.
Eu não era má motorista, mas meu forte não era estacionar.
— De nada — disse ele. — Você é boa na direção. Você e o carro combinam um com o outro.
Fiquei vermelha e sorri, sentindo-me feliz e um pouco sem graça.
— Foi divertido, mas acabou muito depressa — reclamei.
— Bem, se você quiser — disse ele —, na semana que vem eu levo você para um passeio pelo campo, e vai poder deixar todo mundo na poeira, pela estrada.
— Hummmmm — disse eu, sem me comprometer a aceitar. Havia alguma coisa no jeito como ele disse "eu levo você" em vez de "podemos ir" que me fez sentir estranha. Não exatamente nervosa... bem, talvez não só nervosa.
— Hã, Lucy... — Que foi?
— Você ficaria muito ofendida se eu estacionasse o carro um pouquinho só mais perto da calçada?
— Não. — De repente, senti a necessidade de sorrir para ele. — Nem um pouco.
Eu não ia ao apartamento de Daniel há séculos. Da última vez em que estivera lá, o lugar parecia estar em obras, porque Daniel tentara instalar umas prateleiras na sala e tudo havia despencado no chão, inclusive partes da tinta e do reboco. Mal dava para ver o carpete, de tanta poeira e pedaços de gesso.
Naquele dia, porém, estava tudo arrumado. Nem dava para perceber que era o apartamento de um rapaz. Não parecia um terreno cheio de sucata, nem o interior da mochila de um atleta depois do treino. Não havia peças de moto espalhadas em cima da mesa da cozinha, nem pedaços de caixas de papelão espalhados pelo chão, nem raquetes de badminton em cima do sofá, nem uma fileira daquelas petecas de jogar badminton em cima da tevê.
Ao dizer tudo isso, não estou querendo dar a impressão de que o apartamento de Daniel era legal. A mobília era um pouco estranha, porque ele herdara muita coisa do irmão mais velho, Paul, que se divorciou e foi trabalhar na Arábia Saudita, e muita coisa veio também da avó dele, quando ela vestiu o paletó de madeira. Acho que a melhor coisa que eu poderia dizer a respeito da mobília de Daniel é que ela não tinha uma personalidade suficiente o bastante para ser ofensiva.
Aqui e ali, como oásis no deserto, havia alguns objetos que eram realmente interessantes: um suporte para CDs com o formato de uma girafa vermelha, um candelabro avulso, o tipo de coisa que entulhava o apartamento de Simon, por exemplo. Só que se você dissesse "prateleira legal, esta" para Simon, ele não diria simplesmente "obrigado".
Em vez disso, recitava a árvore genealógica da peça. "Foi do Antiquário Conran, é uma peça Ron Arad, de edição limitada, vai estar valendo uma fortuna qualquer dia desses." O que podia ser verdade, mas, por algum motivo, me parecia... como dizer... pouco masculino. Todos os artigos inanimados de Simon possuíam pedigrees e linhagens, e ele era capaz de traçar a origem deles até o antepassado, sempre um Le Corbusier ou um Bauhaus.
Simon jamais dizia "coloque a água na chaleira para ferver". Em vez disso, falava "por favor, acenda com todo o cuidado o bico de gás do fogão laqueado em turquesa, que é uma reprodução genuína de um original dos anos 50, e coloque sobre ele a minha chaleira Alessi de aço inoxidável com design premiado, em forma de pirâmide, e se você fizer um arranhãozinho sequer em sua tampa de prata polida eu vou matá-la com a faca mais comprida do meu faqueiro Sabatier completo".
Se eu não tivesse sido informada do contrário, poderia jurar que Simon era gay.
Ele tinha uma paixão por "coisas do lar" que eu costumava associar, de forma justa ou injusta, com membros da comunidade homossexual.
Os objetos legais da casa de Daniel eram uma mistura estranha. Algumas peças pareciam antigüidades, enquanto outras eram coloridas, brilhantes e modernas.
— Ai, que lindo aquele despertador — disse eu, pegando o objeto em cima de uma mesinha com cara de velha que era parte da sua herança. — Adorei! Onde foi que você comprou?
— Hã... foi a Graça que me deu de presente.
— Ah, sei. — Então avistei outra coisa que amei.
— Olha só que espelho lindo — disse, prendendo a respiração e correndo para tocar a trabalhada moldura de madeira pintada de verde com uma cobiça quase explícita. — Onde conseguiu isso?
— Hã... foi a Karen que me deu — explicou ele, meio encabulado.
Aquilo explicava o caleidoscópio de peças, a miscelânea de estilos diferentes no apartamento.
As namoradas de Daniel deviam ter tentado, cada uma a seu tempo, deixar a sua marca pessoal nos objetos de decoração do lugar. O problema é que cada uma delas tinha um gosto diferente.
— Estou surpresa por Karen não exigir este espelho de volta — disse eu.
— Na verdade, ela o quis de volta sim - admitiu Daniel, baixinho.
— Então, por que ele ainda está aqui?
— Ela desligou o telefone na minha cara depois de me comunicar que o queria de volta, e desde então tem se recusado a atender os meus telefonemas, de modo que não sei como devolvê-lo.
— Eu posso levá-lo para casa, mais tarde — sugeri, toda animada, já imaginando aquele espelho pendurado na parede do meu quarto.
— Não, não... — completei, depressa. — Não posso levar não. Ela ia descobrir que estive aqui, e acho que não ia ficar nem um pouco satisfeita.
— Lucy, você tem todo o direito de estar aqui... — disse Daniel, mas o ignorei. Sabia que tinha todo o direito de estar ali, mas tinha certeza de que Karen ia encarar isso de forma diferente.
— Vamos ver agora o cômodo mais importante da casa — disse, encaminhando-me para o quarto. — O que comprou de novidades?
Atirei-me com determinação na cama de Daniel e fiquei rolando um pouco ali, de um lado para outro.
— Então é aqui que tudo acontece, não é? — perguntei.
— Não sei do que você está falando — murmurou ele —, a não ser que seja dormir.
— Mas o que é isso aqui? — quis saber, beliscando o edredom e puxando-o para cima com dois dedos. — Isso tem toda a pinta de ter vindo daquela loja de cama e mesa, a Habitat. Eu achava que máquinas de fazer amor como você tinham colchas feitas de pele sobre a cama. Não que eu saiba a diferença exata entre uma colcha e um edredom.
— Bem, eu tenho uma dessas, mas a tirei e deixei guardada quando você falou que vinha aqui em casa. E retirei o espelho do teto também. Só não tive tempo ainda de desmontar a câmera de vídeo, que fica escondida.
— Você é repulsivo, sabia? — disse, distraída. Ele sorriu de leve.
— Imagine só — continuei, olhando para ele de onde estava, estendida na cama. — Estou na cama de Daniel Watson. Bem, por cima das cobertas, pelo menos, o que já deve servir para alguma coisa. Milhares de mulheres estão morrendo de inveja de mim.
— Pelo menos duas, com certeza — completei, pensando em Karen e Charlotte.
Então fiz o que sempre fazia quando me via no quarto do Daniel.
— Adivinhe quem sou, Daniel — provoquei. Então comecei a me retorcer toda, fazendo pequenos gemidos de êxtase.
— Ai, Daniel... ai, Daniel... — arfava, baixinho.
Esperei que ele começasse a rir, como fazia normalmente, mas continuou sério.
— Adivinhou quem é? — quis saber.
— Não.
— Dennis — respondi, triunfante.
Ele sorriu sem muita vontade. Lembrei que eu já havia feito aquela piadinha muitas vezes antes.
— Então, qual é a sua atual companheira de cama? — perguntei, mudando de assunto.
— Ah, deixe pra lá.
— Mas existe alguma atualmente?
— Não exatamente.
— Mas como? Quer dizer que você paquerou uma mulher por mais de quatro horas e não conseguiu seduzi-la com o seu papo tipo "sou tão inocente, não sou um devasso como os outros, sou um cara muito legal", depois de uma dose extra de charme? Você deve estar perdendo o seu toque de mestre, Daniel! — exclamei.
— Devo estar.
Ele não estava sorrindo como fazia sempre. Simplesmente saiu do quarto. Aquilo era alarmante. Então, pulei da cama e corri atrás dele.
— E como é que pode o seu apartamento estar tão limpo e arrumadinho? — perguntei, desconfiada, quando chegamos de volta à sala.
Estava me sentindo envergonhada, porque, apesar de Karen, Charlotte e eu fazermos rodízio para faxinar o apartamento todas as semanas, ele continuava uma zona.
Sempre começávamos cheias de boas intenções, mas, depois de um ou dois dias, nossa determinação para manter o apartamento impecável começava a perder fôlego, e falávamos coisas como:
"Charlotte, se você limpar o banheiro no meu lugar, empresto o meu vestido de camurça pra você usar na festa de sexta à noite" e "Não enche o saco, Karen, eu limpei isso, sim senhora... quer dizer, não deu pra limpar com esponja de aço, né?... A Charlotte acabou com o nosso estoque: usou tudo nela, depois que dormiu com aquele dinamarquês. Não é minha culpa que não tenha saído tudo, não foi por falta de esfregar" e "Eu sei que hoje é domingo à noite, estamos todas esticadas no sofá e nas poltronas vendo tevê e estamos em um estado de relaxamento tão grande que é quase comatoso, mas vou ter que passar o aspirador na sala. Portanto, sinto muito, mas vocês vão ter que sair daí, e também têm que desligar a tevê, porque preciso usar a tomada... ei, não gritem comigo! Não gritem! Se vai atrapalhar tanto assim, acho que posso deixar a limpeza pra outra hora. não que eu queira, mas se vocês têm certeza de que preferem que eu não limpe agora...".
O que precisávamos mesmo era pagar a alguém que fizesse a faxina, pelo menos uma vez por semana, mas Karen vetava a idéia todas as vezes que ela surgia. "Por que pagar para alguém fazer uma coisa que nós mesmas podemos fazer?", argumentava ela. "Somos jovens, fortes e capazes para o serviço!"
Só que a gente não fazia o serviço nunca,
— Daniel, você tem alguma refugiada filipina de dezesseis anos que já é casada e para quem você paga menos de um salário mínimo para vir até aqui fazer toda a faxina para você?
— Claro que não — respondeu ele, ofendido.
— Nem mesmo uma daquelas coitadas que fazem ponta era novela, em papel de empregada, com avental, lenço na cabeça, problemas de coluna e o joelho vermelho, que vem aqui de vez em quando para espanar o pó, beber chá e reclamar da vida?
— Não — garantiu Daniel. — Eu faço toda a limpeza, na verdade.
— Sei... — disse eu, sem acreditar. — Então aposto que você pega a sua atual namorada pra Cristo e a obriga a passar sua roupa toda e lavar o banheiro.
— Não faço nada disso.
— Ué, por que não? — quis saber. — Tenho certeza de que elas adorariam. Se qualquer pessoa aparecesse na minha frente e se oferecesse para passar a minha roupa em troca de favores sexuais, eu não conseguiria recusar.
— Lucy, eu me ofereço para passar toda a sua roupa em troca de favores sexuais — disse Daniel na mesma hora.
— Qualquer pessoa menos você, devo ter esquecido de mencionar — corrigi.
— Sério, Lucy, é que na verdade gosto de fazer trabalhos domésticos — disse ele.
Lancei-lhe um olhar de deboche e disse:
— E você ainda diz que eu é que sou estranha...
— Eu não digo isso, Lucy — disse ele, parecendo magoado.
— Não? — perguntei, surpresa. — Pois devia... Quanto a mim, odeio trabalhos domésticos. Se existe um inferno sendo preparado para quando eu morrer, e não vejo razão para achar que não exista, com certeza isso vai incluir eu ter que passar todas as roupas de Satanás. E passar aspirador de pó, isso é que é o pior! É a Sala 101 * dos trabalhos domésticos, para mim, e vou ser obrigada a passar aspirador de pó no inferno todos os dias.
— Eu sou como a Mãe Natureza — acrescentei.
— Como assim? — perguntou Daniel.
— A Mãe Natureza rejeita os aspiradores de pó, é por isso que não existem aspiradores de pó naturais. Só que nem ela rejeita esse aparelho com tanta força quanto eu.
Daniel deu uma risada. Graças a Deus, pensei. Ele estava muito sério, o que era estranho.
— Vamos lá, venha até aqui, Lucy — disse Daniel, colocando o braço em volta da minha cintura. Senti uma fisgada de pânico até compreender que ele estava apenas me empurrando pela sala até onde estava o sofá.
— Você não queria ficar deitada? — lembrou ele.
— Queria.
— Pois este é o lugar certo para isso.
— E quanto ao chocolate que você me prometeu? — quis saber, sem aceitar ser enrolada. Ficar deitada não tinha graça nenhuma sem chocolate. E chocolate é muito mais gostoso de se comer quando a gente está deitada.
— Já está vindo. — E saiu da sala para ir pegar.
Esse foi o dia em que o tempo virou.
Estávamos no fim de agosto, e embora o calor não estivesse mais sufocante, ainda estava muito quente, e todas as janelas da sala de Daniel estavam abertas.
De repente, como se um interruptor tivesse sido ligado, o vento começou, o farfalhar das folhas se intensificou, o céu escureceu e ouvimos o primeiro troar ameaçador da tempestade.
— Isso foi um trovão? — perguntei, esperançosa.
— Parece que sim.
Corri para a janela e me debrucei para fora. Um saco plástico que provavelmente estivera na calçada o verão inteiro sem ser perturbado começou a rodopiar na brisa. Em poucos segundos, a chuva começou e o mundo se transformou.
As ruas e os jardins, que eram de cor bege, secos e empoeirados, se transformaram em escuros e luzidios, e o esverdeado brilhante das folhas ficou preto, quase de repente.
Era lindo.
O ar ficou com um odor de verde, muito perfumado e fresco. O cheiro de terra molhada subia até onde eu estava, e eu me debruçava ainda mais, de modo cada vez mais precário, para fora da janela.
De vez em quando meu rosto era atingido por gotas de chuva tão grossas que pareciam pedradas.
Eu amava os temporais. O único momento em que realmente me sentia em paz comigo mesma era durante uma tempestade. Todo aquele alvoroço exuberante conseguia me acalmar.
Aparentemente isso não acontecia apenas porque eu era esquisita. Havia uma explicação científica para esse fato. Tempestades com relâmpagos enchiam o ar com íons negativos, embora eu não tenha certeza de o que eles são. Só sei que fazem nos sentirmos bem. Quando soube disso, cheguei a comprar um ionizador, só para tentar recriar o efeito de uma tempestade sempre que quisesse.
Mas nada se comparava à coisa real.
Houve mais um trovejar forte, e a sala foi cortada por uma luz prateada, com uma vibração muito intensa.
Durante o efêmero espocar da luz prateada, a mesa de Daniel, as cadeiras e todas as outras coisas em volta pareceram perplexas, como pessoas acordadas subitamente por alguém que acendeu a luz do quarto.
A chuva caía em cascatas e dava para eu sentir o ribombar dos trovões bem no fundo de mim.
— Isso não é demais? — perguntei, virando-me para trás e sorrindo para Daniel.
Ele estava em pé, poucos metros atrás de mim, me observando. Olhava-me fixamente, com uma intensidade estranha e curiosidade no olhar.
Na mesma hora me senti sem graça. Ele achou que eu ficara completamente doida, ali, curtindo a chuvarada.
Então, o olhar intenso e engraçado desapareceu de seu rosto e ele sorriu, dizendo:
— Eu havia me esquecido de que você sempre gostou de chuva — disse ele. — Uma vez você me disse que, quando chove, sente que a sua parte de dentro e a parte de fora combinam e se completam.
— Eu disse isso? — Fiquei embaraçada. — Não é de admirar que você ache que sou doida.
— Mas eu não acho isso — disse ele.
Sorri para ele. Ele sorriu de volta, um sorriso meio torto, engraçado.
— Acho você incrível, Lucy. Isso me desmontou.
Houve um longo intervalo. Tentei pensar em algo que servisse de insulto a ele ou a mim, mas não me veio nada à cabeça. Qualquer coisa servia para dissolver a tensão. Mas não consegui dizer uma palavra. Fiquei muda. Tinha a certeza de que ele dissera "incrível" como um elogio, mas não sabia como responder a isso.
— Saia da janela — disse ele, afinal. — Não quero que você seja atingida por um raio.
— Ora, Daniel, temos que reconhecer, se é possível que isso aconteça com alguém, é bem capaz de acontecer comigo — disse eu, e nós dois rimos com muita vontade.
Embora continuássemos afastados um do outro. Ele fechou as janelas, abafando os sons da tempestade.
Mesmo assim, os trovões reclamavam, rugiam e explodiam sobre as nossas cabeças. A chuva continuava, torrencial, e quando deu cinco horas da tarde estava quase tão escuro como se estivesse de noite. Exceto quando um relâmpago brilhava e clareava a sala toda, iluminando-a por um ofuscante segundo. A água escorria pelas vidraças.
— Isso está me parecendo o fim do verão — disse Daniel. Senti um pouco de tristeza, mas só por um momento.
Eu sempre soube que o verão não ia durar para sempre, e que era hora de tocar a vida para a frente.
De qualquer modo, eu também gostava do outono. O outono era a estação das botas novas.
Finalmente, todas as emoções do temporal se esvaziaram, e a chuva se acomodou em um tamborilar leve e constante. Calmante, hipnotizante, aconchegante. Enfiei-me debaixo de um edredom, no sofá, aproveitando o deleite de me sentir bem acomodada, confortável e segura.
Li meu livro e comi chocolate.
Daniel ficou sentado na poltrona, comendo biscoitos salgadinhos, lendo os jornais e assistindo à tevê com o som bem baixinho.
Acho que ficamos duas horas sem dizer uma palavra um ao outro.
De vez em quando eu suspirava, me espreguiçava e dizia: "Deus, isso é bom demais" ou "Sirva-me de outra uva, Copernicus". Daniel sorria para mim quando, eu falava essas coisas, mas não acho que isso conte como conversa.
A sensação de fome foi a única que, finalmente, foi capaz de fazer com que nos comunicássemos.
— Daniel, estou morrendo de fome.
— Bem...
— E não venha me dizer que fiquei aqui comendo chocolate a tarde inteira e não é possível que eu esteja com fome.
— Eu não ia falar isso. — Ele pareceu surpreso. — Sei que você tem um segundo estômago só para biscoitos e doces. Quer que eu leve você a algum lugar para comermos alguma coisa?
— Eu vou ter que sair do sofá para isso?
— Ah, já entendi o seu problema. — Riu ele. — Quer uma pizza?
— Com pão de alho pra acompanhar? — perguntei, esperançosa.
— E queijo — completou ele, com a voz suave.
Que grande sujeito!
Abrindo a gaveta de um armário modulado sofisticado, Daniel pegou montes de cardápios e folhetos de pizzarias.
— Dê uma olhada nestes aqui e resolva qual você quer.
— Tenho que fazer isso?
— Não, só se quiser.
— Mas, se eu não der uma olhada neles, como é que vou poder escolher entre os diferentes tipos?
Assim, ele leu para mim em voz alta todos os sabores e ingredientes.
— Massa fina ou tradicional, Lucy?
— Fina.
— Farinha comum ou integral?
— Comum! Farinha integral?... que idéia revoltante.
— Pequena, média ou grande?
— Pequena — respondi. Ele ficou em silêncio.
— Tá legal, então... média.
Depois que o pedido foi efetuado, a conversa parou novamente.
Assistimos à tevê, comemos, quase não falamos. Eu não me lembrava de me sentir tão feliz assim em muito tempo.
Não que isso signifique muito, se considerarmos que eu andara à beira do suicídio por semanas.
Durante toda a tarde e a noite, o telefone só tocou duas vezes, mas quando Daniel atendia, a pessoa desligava. Eu desconfiava de que provavelmente era uma das centenas de ex-namoradas dele. Isso fez com que eu me sentisse desconfortável, porque aquilo me fazia lembrar do tempo em que u também costumava fazer isso com qualquer homem que terminasse comigo. Se eu soubesse o novo telefone de Gus, teria feito exatamente aquilo no mínimo umas dez vezes por dia.
Mais tarde, Daniel me deixou em casa. Insisti para saltar na esquina, no sinal de trânsito.
— Não — argumentou ele. — Você vai ficar ensopada.
— Por favor, Daniel — implorei. — Estou com medo de que Karen veja o seu carro.
— E o que há de errado com isso?
— Ela vai transformar a minha vida em um inferno.
— Mas nós temos todo o direito de vermos um ao outro.
— Talvez — concordei. — Mas sou eu que tenho que conviver com ela. Você não seria tão valente se ela fosse a sua companheira de apartamento.
— Então vou entrar com você e acertar as coisas com ela — ameaçou.
— Não! — exclamei. — Isso ia ser terrível.
— Escute, Daniel — disse, um pouco mais calma. — Eu converso com ela sobre isso, tudo vai ficar bem.
Enquanto eu corria pela rua cheia de poças, com a chuva escorrendo pelo corpo, fiquei agoniada sobre o que deveria dizer a Karen quando ela me perguntasse por onde eu andara. A coisa mais fácil seria mentir, é claro, só que ela ia acabar descobrindo.
De qualquer modo, por que deveria mentir? Eu não fizera nada de errado, disse a mim mesma.
Tinha todo o direito de ver Daniel, ele era meu amigo, já era meu amigo há muitos anos, muito antes de ele conhecer a Karen, muito antes de eu mesma conhecer Karen, por falar nisso.
Tudo me parecia perfeitamente razoável quando era dito dessa forma.
Porém, assim que enfiei a chave na porta, minha coragem fugiu correndo.
— Em que porra de lugar você esteve?
Karen estava me esperando, seu rosto parecia um trovão e havia um cinzeiro com um metro de cinzas e guimbas na mesa, na frente dela.
— Hã...
Eu poderia ter mentido, tranqüilamente, mas era óbvio que ela já sabia.
Como é que ela sabia? Quem será que me entregara?
Descobri mais tarde, por Charlotte, que tinha sido o Adrian. Depois que o pub fechara, Karen e Charlotte resolveram alugar um filme para ajudar a passar algumas horas do domingo à tarde, e Adrian perguntara a elas quem era "o palhaço pintoso com o tremendo carrão" com quem eu tinha saído.
— Ele parecia à beira das lágrimas — disse Charlotte. — Acho que ele gosta de você, Lucy.
Tudo tinha sido culpa minha, é claro. Se eu tivesse me encontrado com Daniel no meu apartamento, em vez de armar todo aquele esquema, não teria sido descoberta daquele jeito. Honestidade era sempre a melhor política. Ou então cobrir os rastros de forma decente.
— Então, o que está havendo? — quis saber Karen, com a voz aguda. Seu rosto estava muito pálido, a não ser pelas bochechas, que estavam muito vermelhas. Ela parecia uma demente de tanta fúria, nervos ou algo assim.
— Não está havendo nada — afirmei, louca para tranqüilizá-la. Não apenas por preocupação com a minha segurança física, mas por conhecer bem o inferno que é quando desconfiamos de que o homem que amamos encontrou outra pessoa.
— Não me venha com essa.
— Sério, Karen, só dei uma passada no apartamento dele. Foi uma visita totalmente inocente.
— Inocente, sei... Nada do que aquele homem faz é inocente. E sabe quem foi que me avisou sobre isso? Você mesma, Lucy Sullivan!
— Comigo é diferente...
— Ah, não, não é não, Lucy. — E deu um sorriso amargo. — Não fique aí se achando o máximo.
— Mas eu não estou me achando...
— Está sim! É assim mesmo que ele faz. Ele me fez sentir como se eu fosse a única garota do mundo.
— Não, não é disso que estou falando, Karen. Eu quis dizer que comigo é diferente porque não estou interessada nele, nem ele em mim, somos apenas amigos.
— Não seja tão ingênua... Enfim, sempre suspeitei de você, fazendo questão o tempo todo de dizer que não o achava lindo...
— Estava sendo apenas lúcida...
— ... Além do mais, ele não ia se dar ao trabalho de perder tempo com você se não pretendesse ganhar esse troféu. Ele não resiste a um desafio. Vai tentar uma transa só pelo fato de você agir o tempo todo como se não estivesse a fim.
Abri a boca, mas não consegui falar nada.
— E é verdade que ele deixou que você dirigisse o carro dele?
- É.
— Canalha! Ele nunca me deixou dirigir. Em seis meses, ele não me deixou dirigir nem uma vezinha.
— Mas você não sabe dirigir.
— Ah, mas ele podia ter me ensinado, não podia? Se tivesse o mínimo de decência, ele teria dado umas aulas de direção para mim.
— Hã...
— E então, ele já está saindo com outra mulher por aí? — perguntou, torcendo o rosto todo ao tentar sorrir.
— Acho que não — disse, para tranqüilizá-la. — Não se preocupe.
— Eu não estou preocupada com isso — ridicularizou ela. — Por que estaria preocupada? Afinal, fui eu que terminei com ele.
— Claro. — Era difícil saber o que dizer.
— Você não vai tornar a se encontrar com ele. Não vai trazer meu ex-namorado para dentro da minha própria casa.
— Mas eu não faria isso. — Achei que estava sendo cuidadosa, mostrando consideração pelos sentimentos dela, mas Karen fez com que eu me sentisse insensível e egoísta.
— E aposto que ele meteu o pau em mim...
Não sabia o que responder. Tinha receio de que ela ficaria magoada se eu dissesse que ele nem tocara no nome dela.
— ... Olhe, não quero que ele saiba de nada do que acontece na minha vida. Como é que posso ter um pouco de privacidade se a amiga com quem divido o apartamento está saindo com o meu ex?
— Mas não é nada disso...
Eu me sentia arrasada com a culpa e o remorso. Odiava a mim mesma por estar provocando aquele sofrimento em Karen, e já não conseguia compreender como pudera considerar aquilo justificável.
Então o raio me atingiu:
— Eu proíbo você de se encontrar com ele! — Karen falou isso olhando dentro dos meus olhos.
Aquela era a minha deixa para levantar os ombros, engolir em seco e dizer a Karen que ela não tinha o direito de proibir que eu me encontrasse com ninguém.
Mas não fiz nada disso.
Estava me sentindo culpada demais para enfrentá-la. Não tinha o direito de me colocar contra ela. Eu era uma amiga-da-onça, uma péssima companheira de moradia, um ser humano desprezível. Não pensei em como seria ficar sem ver Daniel nunca mais, porque queria apenas resolver as coisas com Karen.
— Tudo bem — concordei, abaixando a cabeça e saindo da sala.
Tornei a sair com Daniel na noite seguinte. Não sei o que estava acontecendo comigo. Sabia muito bem que estava proibida de vê-lo, e estava morrendo de medo de Karen, estava petrificada.
Só que, quando ele me telefonou e perguntou se poderia me levar a algum lugar para jantarmos depois do expediente, por algum motivo respondi que sim. O mais provável é que eu tenha concordado simplesmente pelo fato de que fazia séculos desde a última vez que alguém me levara para jantar e pagara a conta.
Embora, pensando melhor, talvez fosse uma espécie de rebelião, ainda que secreta e particular. Um desafio, como se eu estivesse debochando de Karen balançando dois dedos bem debaixo do seu nariz, embora estivesse usando luvas de pegar panelas para isso.
Pouco antes de Daniel chegar à minha sala, resolvi retocar a maquiagem. Apesar de estar saindo com Daniel, um programa noturno era sempre um programa noturno, e nunca dava para saber quem poderíamos conhecer de interessante. Ao pegar o delineador, fiquei preocupada ao reparar que estava me sentindo meio nervosa e trêmula. Pelo amor de Deus, é claro que eu não estava a fim de Daniel!, pensei, horrorizada. Então me tranqüilizei, vendo que aquilo era apenas o meu velho conhecido, o pavor. Pavor de Karen e do que ela poderia fazer comigo se descobrisse. Ai, que alívio! Era muito melhor estar nervosa de medo e não de empolgação.
Quando Daniel entrou na minha sala, às cinco horas (usando um crachá de visitante, pois ele jamais faria papel de Gus), eu me senti tão feliz por vê-lo, apesar do terno, que senti uma fisgada de raiva compreensível contra Karen. Cheguei a pensar em bater de frente com ela, mas a idéia se dissolveu na mesma hora.
— Vamos a um pub antes de jantar — avisei Meredia, Megan e Jed. — Vocês podem ir conosco, se quiserem.
Mas eles recusaram o convite. Meredia e Jed estavam com aquela cara de "ele não é o Gus", e me olhavam com olhares desconfiados e de censura enquanto eu vestia o casaco.
Mamãe arranjou um novo namorado, e eles queriam que mamãe voltasse para papai.
Idiotas.
Mamãe também queria voltar para o papai, mas o que é que ela podia fazer? Recusar uma refeição grátis ia trazer Gus de volta, correndo?
Megan recusou a oferta, anunciando para Daniel, com ar satisfeito:
— Obrigada pelo convite, e espero que fiquem bastante ofendidos se eu dispensar a saída com vocês. O problema é que não estou a fim de passar a noite com um cara assim todo certinho como você, Daniel. Marquei um encontro com um homem de verdade.
Como eu, Megan sentia uma forte necessidade de punir Daniel por ele ser bonito, simpático e transformar mulheres inteligentes em palermas derretidas. Mesmo assim, aquilo me pareceu meio grosseiro. E quem seria esse tal de homem de verdade de quem ela estava enchendo a bola? Provavelmente um daqueles gigantes tosquiadores de ovelhas que não se barbeavam há muitos dias e não trocavam de cueca há mais tempo ainda.
Assim, Daniel e eu fomos ao pub sozinhos.
— Karen me telefonou — informou ele, assim que nos sentamos.
— Ah. — Senti um friozinho na barriga. — O que foi que ela queria?
Será que eles dois iam reatar?
— Ela me mandou ficar longe de você — disse ele.
— Mas que cara-de-pau a dela, hein? — explodi, aliviada. — E você, o que respondeu?
— Respondi que nós dois éramos adultos e podíamos fazer o que nos desse na telha.
— Ai, por que você teve que dizer isso pra ela? — choraminguei.
— E por que não?
— Para você está tudo bem, ser um adulto e fazer o quer der na telha... Você não tem que conviver com ela. Se eu tentar ser adulta e fazer o que me der na telha, ela me mata.
— Mas...
— Qual foi a reação dela quando você falou isso? — perguntei.
— Ela pareceu muito chateada comigo.
— Como assim? — Fiquei desanimada.
— Ela me disse... deixe-me ver se consigo lembrar exatamente quais as palavras que ela usou. Ah!... disse que sou horrível na cama. E, é claro, disse que o meu pênis é um dos menores que ela já viu na vida.
— Naturalmente — concordei.
— E que a única vez em que ela viu um menor foi no sobrinho dela de dois meses, e que não era de espantar que eu tenha tantas namoradas, porque é óbvio que estou apenas tentando provar a mim mesmo que sou homem.
Todo aquele papo de membro pequeno fazia parte do repertório de uma mulher largada pelo namorado, mas havia o perigo de Daniel ficar preocupado pelo desencadear de "toda a fúria do Inferno", segundo a versão de Karen. Porém, pelo jeito como ele sorria ao contar aquilo, não parecia preocupado.
— O que mais ela falou para mim, aos berros?... — disse ele, tentando lembrar, pensativo. — Bem que eu gostaria de me lembrar de tudo, porque a cena foi muito boa, mas posso perguntar a qualquer um do escritório, porque todos ouviram junto comigo.
— Mas entendi que ela tinha apenas telefonado para você... — comentei, intrigada.
— E telefonou mesmo. Mas todo mundo em minha sala conseguiu ouvir. Ah, consegui lembrar mais um pouco!... Ela jura que viu dois pêlos pubianos grisalhos em mim, e disse que só saía comigo porque eu a levava de carro até o trabalho e ela economizava a passagem. Disse também que o meu cabelo está ficando ralo na parte de trás da cabeça, e que vou ficar tão careca quanto o Right Said Fred antes dos trinta e cinco anos, e nenhuma garota vai querer chegar perto de mim.
— Que vaca — disse eu. Aquela de ficar tão careca quanto o vocalista do Right Said Fred foi muito baixo.
Tínhamos de tirar o chapéu para Karen.
— E que coisas horríveis ela falou a meu respeito? — Cruzei os braços com força, para me preparar para o que vinha.
— Nada.
— Sério?
— Sério.
Daniel estava mentindo. Quando Karen ficava furiosa, atacava todo mundo, indiscriminadamente.
— Não acredito em você, Daniel. Vamos lá, o que ela falou de mim?
— Nada, Lucy.
— Eu sei que você está mentindo, Daniel. Aposto que ela contou que às vezes encho meu sutiã com pedaços de algodão.
— Ah, isso ela contou, mas eu já sabia.
— Como?! Não, não me conte, não quero nem saber. Tudo bem, aposto que ela falou que devo ser horrível de cama, porque sou inibida demais. Ela sabe que isso ia me deixar muito chateada.
Daniel parecia agoniado.
— Ela falou isso? — fiz questão de saber.
— Algo parecido — murmurou.
— O quê, exatamente, ela disse?
— Ela disse que a gente ia se dar muito bem um com o outro, porque provavelmente um é tão horrível na cama quanto o outro — admitiu ele.
— Safada, sem-vergonha — disse, mostrando admiração por ela.
— Karen é muito boa em saber o que machuca mais as pessoas.
— Mas ela não estava falando sério sobre você —- atalhei em seguida, ansiosa para tranqüilizar Daniel. — Ela sempre me falou que você era ótimo de cama, e que o seu pênis é bonito e muito grande.
Os dois operários da mesa ao lado da nossa, no pub, olharam para nós com muito interesse.
— Obrigado pela força, Lucy — disse Daniel, de forma calorosa.
— E eu já soube também, por uma fonte confiável, que você também é muito boa de cama.
— Gerry Baker? — perguntei. Gerry Baker era um colega de Daniel com que eu ficara por alguns dias.
— Gerry Baker — confirmou Daniel, meio sem graça.
— Eu avisei a você para não perguntar a Gerry sobre o meu desempenho na cama — reclamei, zangada.
— Mas eu não perguntei — protestou Daniel, meio nervoso. — Apenas aconteceu de ele mencionar de passagem que você era boa de cama e...
Um dos operários piscou para mim e disse:
— Eu acredito nisso, querida.
O outro operário pareceu indignado e na mesma hora pediu desculpas a Daniel:
— Sinto muito, amigo, desculpe o meu companheiro. Ele andou bebendo mais do que devia. Não quis faltar ao respeito com a sua namorada.
— Tudo bem — respondi, bem depressa, antes que Daniel se sentisse obrigado a defender a minha honra. — Não sou a namorada dele não.
O que era o mesmo que dizer que estava tudo bem se ele me insultasse.
Os operários sorriram aliviados, mas ainda levou mais algum tempo para convencer Daniel de que eu não me ofendera com eles.
— É com você que estou pau da vida — expliquei.
— Mas eu não perguntei nada a Gerry — murmurou Daniel. Ficou com cara de muito envergonhado, como era de esperar. — Ele deixou isso escapar sem querer, e não falou com a intenção de...
— Tá bom, chega — interrompi. — Você está com muita sorte. Estou muito revoltada com o que Karen falou de mim para me preocupar com você e Gerry trocando idéias sobre as minhas calcinhas.
— Gerry sequer mencionou suas calcinhas — tranqüilizou-me ele.
— Ótimo.
— Pelo que ouvi, você não as usava por tempo suficiente para que ele reparasse nelas...
— Brincadeira... — avisou correndo quando viu o olhar de ódio que lancei para ele.
De volta a Karen, eu disse:
— Ela não está achando realmente que está rolando alguma coisa entre nós dois. Sabe muito bem que somos apenas amigos.
— Exato! — confirmou Daniel na mesma hora. — Foi isso exatamente o que falei para ela, que éramos apenas bons amigos.
E nós dois rimos daquilo, com vontade.
Se eu não estivesse tão revoltada com Karen, jamais teria participado da Grande Sessão de Fofocas que aconteceu em seguida.
Aquilo não era uma coisa honrada nem ética, fazer fofoca e meter o malho na minha amiga, colega de apartamento e companheira do sexo feminino. Pior ainda era fofocar com um homem. Enfim... sou apenas humana.
Uma bosta na cama, não é? Que cara-de-pau gigantesca a dela.
É claro que não sai nada de construtivo de um festival de fofocas. Mais tarde eu ia me odiar por aquilo, vocês sabem como é, o que vai sempre volta para nós, o meu carma negativo ia retornar triplicado, pe-re-ré, pe-re-ré e assim por diante. Mas resolvi que conseguia viver com aquele peso.
Fazer fofoca era o mesmo que ir ao McDonald's para a minha psique. Eu não conseguia resistir na hora, e depois de comer sempre ficava com uma sensação de enjôo... E a fome voltava dali a dez minutos.
— Fale-me sobre o namoro de você com a Karen. O que você fez para deixá-la com tanto ódio assim? — perguntei a Daniel.
— Não sei — afirmou ele.
— Imagino que seja o fato de você ser egocêntrico, um canalha egoísta que quebrou o coração dela.
— E eu sou assim, Lucy? É isso o que você pensa de mim? — E fez cara de chateado.
— Bem... É, eu acho.
— Mas, Lucy — insistiu ele. — Eu não sou não. Não sou nada disso. As coisas entre nós não eram desse jeito.
— Então, como é que era? Quero saber por que foi que você não falou para ela que a amava — disse, arregaçando as mangas para fofocar melhor.
Ela ia ver só!... Insinuar que sou uma inútil na cama.
— Eu não disse a Karen que a amava simplesmente porque não a amava — suspirou ele.
— Mas, por que você não a amava? — indaguei. — O que havia de errado com ela?
Nesse ponto, prendi a respiração. Apesar do que Karen dissera a respeito de Daniel, e de mim, era muito importante que ele não dissesse coisas cruéis a respeito dela, ele tinha de tratá-la com respeito. Era importante que ele se comportasse como um cavalheiro.
Eu não me esquecera de que ele era um homem e, portanto, era basicamente o inimigo.
Por mim estava tudo bem se ele destruísse a reputação de Karen, divulgando alguns segredos bem escolhidos, mas Daniel não tinha permissão de tratá-la de outra forma que não fosse o mais extremo respeito. Pelo menos até que eu resolvesse o contrário.
— Lucy — disse ele com todo o cuidado, escolhendo bem as palavras e olhando para mim, para avaliar a reação em meu rosto. — Não quero dizer nada a respeito de Karen que possa ser mal interpretado e pareça detestável.
Resposta certa.
Nós dois sorrimos, aliviados.
— Compreendo a sua situação, Daniel — afirmei, balançando a cabeça, muito séria.
Pronto, agora já era o bastante de todo aquele papo. Já havíamos observado as formalidades usuais, e a partir daquele instante eu queria saber tudo a respeito de Karen. Quanto mais escandaloso, melhor.
— Tudo bem, Daniel — continuei, falando rápido. — Eu não vou interpretar nada errado. Pode me contar tudo.
— Lucy — disse ele, meio constrangido. — Não sei não... Isso não me parece correto...
— Tudo bem, Daniel, você já me convenceu de que é um cara realmente legal — tranqüilizei-o.
— Mesmo, de verdade? — perguntou.
— Mesmo — afirmei, sem sinceridade. — Agora quer me contar logo de uma vez a porcaria da história? Daniel, como todos os homens, precisava ser persuadido com paciência. Os homens gostam de apregoar que não é da natureza deles fazer fofocas, mas, como todos sabem, eles adoram arrasar com uma pessoa pelas costas, e quanto mais sangue, melhor.
Os homens me fazem rir quando atiram os olhos para cima e com a maior cara de santinhos dizem "ai, essa doeu!", sempre que uma mulher faz um comentário desagradável sobre alguém. Os homens são muito mais fofoqueiros do que as mulheres.
— Lucy, qualquer coisa que eu venha a lhe contar, e veja bem, não estou dizendo que vou contar, não é para você passar adiantr para ninguém — afirmou ele, com expressão austera.
— Claro que não — concordei, com a cara séria. Será que Charlotte ainda vai estar acordada quando eu chegar em casa?
— Nem mesmo para Charlotte — acrescentou ele. Cretino!
— Ah, puxa... deixe pelo menos que eu conte para a Charlotte — pedi, com cara de emburrada.
— Não.
— Por favor.
— Não, Lucy. E se você não prometer, não vou lhe contar nada.
— Prometo... — disse, com a voz cantarolada.
Não havia problema. Falar era fácil, e eu não estava sob juramento.
Dei uma olhada rápida em Daniel e reparei que ele mal estava conseguindo manter o rosto sério e compenetrado. Tentava segurar o riso, mas não estava conseguindo. Senti uma onda de satisfação ao perceber que eu ainda era capaz de fazê-lo rir.
— Puxa, Lucy. — Ele respirou fundo e finalmente começou a contar. — Você sabe que não quero falar mal de Karen.
— Ótimo — reagi, decidida. — Nem eu gostaria que você fizesse isso.
Nossos olhos se cruzaram mais uma vez e sua boca se torceu ligeiramente. Ele olhou para os dois lados por cima dos ombros, fingindo avaliar o pub, mas eu sabia que ele estava apenas tentando disfarçar o sorriso.
Fora um erro muito grande de Karen insultar Daniel e a mim ao mesmo tempo, porque aquilo nos unira contra ela. Até que o ferrão das ofensas dela parasse de doer, seríamos aliados. Nada une mais duas pessoas de forma tão completa e dedicada quanto o ressentimento contra uma terceira pessoa.
Finalmente, Daniel pigarreou e começou a falar:
— Vai parecer que estou tentando jogar toda a culpa do que aconteceu nas costas dela — disse ele —, mas Karen na verdade não se importava muito comigo. Ela nem mesmo gostava muito de mim.
— Parece que você está tentando jogar toda a culpa do que aconteceu nas costas dela — olhei firmemente para ele.
— Mas é verdade, Lucy, com toda a honestidade! Ela não estava nem aí para mim.
— Seu mentiroso de cara lavada — debochei. — Ela estava completamente cativada por você.
— Não, não estava — afirmou ele, com um ar amargo que me pegou de surpresa. — Ela estava completamente cativada pela minha conta bancária, ou pelo menos pela conta bancária que ela imaginava que eu tinha. Deve ter confundido o valor total das minhas dívidas com o saldo das minhas aplicações.
— Ah, Daniel, sem essa. Nenhuma mulher sai com um homem por causa do dinheiro dele. Isso é história da carochinha — afirmei.
— Karen saía. Sim, o tamanho era importante para ela. No caso, aqui, o tamanho da minha carteira.
Fiquei com vontade de soltar uma gargalhada, mas me pareceu muito triste.
— E ela vivia tentando me modificar — continuou ele, ainda triste. — Não gostava de mim do jeito que eu era. Ficou desapontada porque descobriu que levou gato por lebre.
— Acho que isso está mais me parecendo a história de um gato que fugiu dela mais depressa do que uma lebre. — Não consegui resistir à piadinha.
— Eu não fiz isso — reclamou ele, ofendido.
— De que modo ela tentava modificar você? — perguntei, bem gentil. Não queria que ele ficasse tão ofendido que parasse de me contar as coisas.
— Ela me dizia que eu não levava o meu emprego muito a sério. Disse que eu devia ser mais ambicioso. E vivia tentando fazer com que eu aprendesse a jogar golfe. Dizia que mais acordos eram fechados no campo de golfe do que numa mesa de reuniões.
— Mas você trabalha com outro lance, na área de pesquisas. Você não fecha acordos com ninguém, fecha?
— Exatamente — disse ele.
— E você se lembra de quando a levei para aquela festa com o pessoal do meu trabalho, na última semana de julho?
— Não — respondi, conseguindo morder a língua antes de gritar para ele "como é que eu ia saber aonde é que você a levava? Você nem me telefonava mais, para me manter atualizada sobre o que acontecia na sua vida...".
— Bem, Lucy, você precisava ver o jeito como ela se comportou na festa.
Senti um tremor de empolgação e cheguei mais para perto, o mais possível, para ouvir as coisas horríveis que ele estava a ponto de me contar.
— O jeito como ela se jogou em cima de Joe...
— Joe, o seu chefe, é esse Joe? — perguntei.
— ... Esse mesmo. Foi horrível, Lucy. Ela praticamente se ofereceu para dormir com ele, em troca de melhores perspectivas de promoção para mim.
— Meu Deus, isso é terrível — disse, ficando vermelha de vergonha por ela. — Logo Joe, entre tanta gente. Você não tentou impedi-la de pagar esse mico?
— Claro que tentei, mas você sabe como ela é cabeça-dura.
— Que tortura, meu Deus, que situação. — Torci as mãos de aflição.
— Lucy, morri de vergonha por ela — disse Daniel. Ficou pálido e suado, só de lembrar do caso. — Eu me senti realmente horrível pela situação dela.
— Aposto que sim.
Joe era gay.
Ficamos sentados ali, em silêncio. Nossos pensamentos estavam ocupados por imagens da pobre Karen sacudindo a peitaria diante de Joe, e sacudindo em vão.
— Mas, tirando os problemas da sua carreira e do dinheiro, vocês se divertiam juntos? — quis saber. — Você gostava dela?
— Ah, sim — respondeu ele, com firmeza.
Fiquei calada.
— Bem, ela era uma pessoa legal, acho — e suspirou. — O que ela não tinha muito é senso de humor. Nenhum, na verdade.
— Isso não é verdade, — Senti que tinha que falar aquilo.
— Não, você tem razão, Lucy. Ela tinha senso de humor sim. É daquele tipo de pessoa que morre de rir diante de gente que escorrega em cascas de banana.
O sentimento de culpa lutava dentro de mim com a vontade de arrasar com ela.
A culpa venceu a batalha,
— Mas ela é muito bonita. Não é? — perguntei.
— Muito — concordou ele,
— E tem um corpo lindo, não tem? — perguntei, pressionando-o. Ele me olhou com uma cara estranha.
— Tem — respondeu. — Acho que tem.
— Então, por que você desistiu de tudo isso?
— Porque não estava mais a fim dela. Soltei uma risada de ironia.
— Rá! Até parece. Uma loura peituda...
— Mas ela era fria — protestou ele. — É o maior corta-tesão quando a pessoa com quem você transa nem mesmo gosta de você. Lucy, ao contrário do que você pensa a meu respeito, e a respeito dos homens em geral, peitos grandes e muito sexo não são as coisas mais importantes na minha lista de prioridades. Existem outros fatores também.
— Como o quê? —perguntei, desconfiada.
— Bem, senso de humor é um deles, E também seria legal se eu não tivesse que pagar sozinho por tudo o que a gente fazia.
— Daniel, por que você de repente ficou assim tão estranho com essa história de dinheiro, heín? — Eu estava surpresa. —Não é do seu feitio ser tão pão-duro.
— Não é pela grana, o problema é o dinheiro. — E riu. — Não, Lucy, falando sério, eu não me importo com o dinheiro, mas o problema é que ela jamais se ofereceu, pelo menos, para dividir alguma coisa. Isso é que me deixava injuriado. Seria legal se ela tivesse me levado a algum lugar e pagado a conta, só para variar.
— Mas talvez ela não tenha assim tanta grana —sugeri, meio em dúvida.
— Ah. — Aquilo fez com que ele parasse de falar. Ficou pensativo e calado por algum tempo. — Não... — finalmente disse.
— Não o quê?
— Mesmo assim eu não a amo.
Comecei a rir. Não consegui evitar. Deus ia me castigar por aquilo.
— Acho que, no fundo — explicou Daniel, com ar triste —, é que eu já estava de saco cheio dela.
— De novo? — perguntei.
— O que quer dizer com "de novo", Lucy?
— E que foi exatamente isso que você falou sobre a Graça: que ela o deixava entediado, de saco cheio. Talvez você tenha um limiar de tédio muito baixo.
— Não, não tenho. Você nunca me deixa entediado.
— Nem o seu carro. Mas ele também não é a sua namorada — argumentei, com esperteza.
— Mas...
— E essa misteriosa namorada nova que você ainda não conseguiu levar para a cama... Ela o deixa entediado? — perguntei, de forma simpática.
— Não.
— Ah, dá um tempo, Daniel... Aposto que daqui a três meses você vai estar reclamando comigo sobre o quanto ela é sacal.
— Provavelmente você tem razão — disse ele. — Você geralmente está certa.
— Ótimo. Agora leve-me a algum lugar e me dê comida. Qualquer comida, menos pizza.
Essa fora uma das maiores desvantagens de Gus, seu medo de qualquer rango estrangeiro. A única comida da qual ele não tinha medo era pizza.
Fomos ao restaurante indiano que ficava ao lado do pub.
Queria ficar séria e desabafar um pouco com Daniel a respeito de Gus. O problema é que não consegui fazê-lo ficar quieto para um papo sério. Sempre que eu lhe fazia uma pergunta, ele cantarolava algum provérbio, fazendo trocadilho com o nome da comida. Aquilo, sem dúvida, era muito divertido, mas eu queria falar sobre assuntos sérios, coisas do coração. Do meu coração. Mas Daniel não era Gus, Pelo menos havia uma boa chance de ele não me espoliar até o último centavo. Isso era um lado positivo.
— Daniel, você acha que Gus e eu nos víamos demais? — perguntei no momento em que o garçom serviu o arroz pillau, feito no forno e acompanhado de pequenos bhajees com cebola.
— Não se â-bhajee demais que o traseiro aparece — comentou Daniel, colocando os bhajees lado a lado. — Não sei como responder a isso, Lucy, não sei mesmo.
Aquele alto astral todo de Daniel parecia um pouco estranho. Mas, não, talvez não fosse. Ele costumava ser assim mesmo, engraçado, antes de minhas amigas começarem a dar em cima dele. Na verdade ele ainda era muito engraçado, mas aquele não era o momento para ficar de brincadeira, meu dever era discipliná-lo. Reconheçamos, ninguém mais conseguiria fazer isso.
— No fundo — continuei —, não acho que o meu problema com Gus tenha sido nos vermos demais, não. Às vezes eu queria ficar com ele menos do que ele queria ficar comigo e...
— Sua vez... — interrompeu ele. — Fale um provérbio.
Olhei para um prato de frango grelhado que o garçom carregava e soltei:
— Quando pobre come frango, um dos dois está doente. — Apontei para o frango que passava para ele saber do que eu estava falando. — E então, Daniel, você acha que vou conseguir superar isso?
— Olhe, aí vem o korma que a gente pediu — anunciou ele, apontando para o prato com castanhas, amêndoas, creme de leite e condimentos. — Não devore a comida, korma devagar: a pressa é inimiga da refeição — acrescentou ele, chegando o prato para mais perto de mim e afastando-o em seguida. — Claro que você vai conseguir superar a perda de Gus, Lucy. Vamos, é a sua vez de inventar um provérbio.
Olhei para a mesa ao lado e vi um prato de tarka daal, lentilhas com alho, gengibre e coentro. Na mesma hora me veio a inspiração:
— Quem daal aos pobres ou empresta... adeus. Quando é que você acha que vou superar esse problema, Daniel?
— Deixe-me ver — disse ele, com cuidado. — Vou ter que pensar bastante agora, Lucy. Ah, sim. Já sei.
Meu coração deu um pulo de esperança. Será que Daniel sabia quando é que eu ia conseguir superar a perda de Gus?
— Quem não arrisca não pe-tikka. Essa foi boa, não foi? — E sorriu.
Fiz cara de quem não entendeu nada.
— Tikka de pescado — explicou ele, com toda a paciência, para a minha cara aparvalhada. — Filé de peixe com creme de leite, maçã e champignons.
— Tá bom, mas e quanto ao meu problema com Gus? — perguntei, com a voz fraca. — Ah, que se dane. Não vale a pena tentar levar um papo sério com você. O que é isto aqui?
— Vegetais com molho curry.
— O.k. Quem curry cansa, quem anda, alcança.
Ele levou mais um momento para pensar em outro provérbio. Viu no cardápio a descrição de dhorme de camarão e anunciou:
— Camarão que dhorme, a onda leva.
Parei um garçom que passava e pedi uma porção de nan, pequenos pãezinhos indianos. Na mesma hora falei:
— Nan se fala de corda em casa de enforcado.
— Nan se deixa para amanan o que se pode fazer depois de ama-nan — completou Daniel.
Passamos o resto da noite em convulsões de riso. Sabíamos que estávamos nos divertindo muito porque as pessoas da mesa ao lado foram reclamar de nós com o maître. Nem me lembrava da última vez em que me divertira tanto. Bem, provavelmente fora uma das noites em que saíra com Gus.
Quando cheguei em casa, Karen não estava esperando por mim, já tinha ido dormir.
Essa era uma das grandes vantagens de ela não ter nenhum respeito por mim. Significava que eu podia fazer as coisas debaixo do nariz dela, desobedecendo às suas ordens explícitas, e jamais passaria pela sua cabeça que eu faria isso.
Na manhã seguinte, quando cheguei ao trabalho, Megan disse:
— Aquele asqueroso do Daniel acabou de ligar. Disse que vai tornar a ligar mais tarde.
— O que foi que ele fez contra você, Megan? — perguntei, surpresa.
— Nada. — Foi a vez dela de parecer surpresa.
— Então por que você se referiu a ele desse jeito? — Havia um tom de defesa na minha voz.
— Mas é essa palavra que você usa para falar dele... — protestou Megan.
— Ah! — Fiquei abalada. — Acho que é mesmo. Tecnicamente ela estava certa, sem dúvida. Eu era muito cruel
quando falava de Daniel, é claro que sim, o tempo todo, mas não falava nada daquilo a sério.
— É assim que nós duas sempre nos referimos a ele, Lucy — lembrou-me ela. Parecia preocupada, e não era para menos. Quando Megan conheceu Daniel e foi logo afirmando que não gostava muito do gênero supergato que ele fazia e não conseguia ver motivo para tanta empolgação por parte de todo mundo, eu me animei. Ela subiu no meu conceito, como um exemplo de mulher inteligente, e era assim que eu falava dela para quem quisesse ouvir. "Megan disse que Daniel não ia ter a menor chance na Austrália", comentava alegremente com todo mundo, inclusive com o próprio Daniel. "Megan disse que ele é certinho demais, muito arrumadinho, e que ela gosta de homens mais selvagens e rudes do que ele."
Agora, Megan estava preocupada, achando que eu modificara as regras. A temporada de caça a Daniel estava fechada.
Eu não modificara regra alguma, pensei, sentindo-me desconfortável, mas me soou estranho ouvir Megan chamar Daniel de asqueroso. Foi horrível, para falar a verdade. Senti como se eu estivesse sendo desleal com ele, especialmente depois de ele ter sido tão legal comigo, além de ter pago pelo jantar.
Nesse momento Meredia entrou, fazendo tudo estremecer, seguida por Jed, e acabei esquecendo o Daniel, porque Jed era muito engraçado. Logo ao chegar ele pendurou o casaco, olhou em volta para Megan, para Meredia e depois para mim, esfregou os olhos e disse:
— Ah, não... Então é tudo verdade, eu não sonhei. Achei que tudo fora um pesadelo. Isso é horrível, HORRÍVEL!
Ele fazia aquilo quase todas as manhãs. Todas nós ficávamos orgulhosas dele. O dia prosseguia.
Eu mal acabara de ligar o meu computador (o que significa que já deviam ser umas dez para as onze) quando a minha mãe telefonou e disse que estava vindo para o centro da cidade e gostaria de se encontrar comigo.
Não gostei nem um pouco daquilo, mas ela insistiu.
— Preciso lhe contar uma coisa — disse, toda misteriosa.
— Mal posso esperar — respondi, com toda a paciência. As "coisas" que ela precisava me contar geralmente eram a respeito do vizinho da casa ao lado que roubara a tampa de nossa lata de lixo ou dos gatos que tentavam abrir as tampas das embalagens de leite com a unha, embora ela já estivesse cansada de pedir ao leiteiro que fechasse o portão quando saísse, ou algo igualmente devastador.
O toque estranho era ela estar vindo até a cidade. Ela jamais fazia isso, embora morasse a apenas trinta quilômetros do centro de Londres.
Trinta quilômetros e cinqüenta anos de distância.
Eu não estava nem um pouco a fim de me encontrar com ela, mas achei que devia, porque não a via desde o início do verão. Não que a culpa fosse minha. Eu tinha ido visitá-la um monte de vezes... Bem, uma ou duas, pelo menos, e só encontrara papai em casa.
Concordei em me encontrar com ela para almoçarmos juntas, embora não exatamente nesses termos, pois acho que ela não estava a par do conceito exato de "almoço".
Era uma mulher do tipo "vamos pedir só um chá com sanduíches".
— Encontre-se comigo no pub do outro lado da rua, aqui em frente ao prédio em que trabalho, à uma hora — sugeri.
Mas ela ficou escandalizada com a idéia de se sentar desacompanhada em um pub para esperar por mim.
— O que as pessoas vão pensar? — perguntou, alarmada.
— Tudo bem — suspirei. — Chegarei lá um pouco antes, e então a senhora não vai ter que ficar esperando sozinha.
— Não — disse ela, parecendo em pânico, — Essa idéia é tão má quanto a outra. Imagine uma mulher solteira sozinha em um lugar público,
— O que há de errado com isso? — zombei, começando a contar a ela que eu vivia indo a pubs sozinha, mas resolvi não falar nada. senão ela ia começar a soltas lástimas, do tipo "ai, acabei criando uma garota de vida largada!...".
— Eu queria apenas um lugarzinho qualquer onde pudéssemos tomar uma xícara de chá — tornou a sugerir.
— Tudo bem, então. Tem uma cafeteria perto da...
— Nada que seja muito sofisticado — interrompeu ela, ansiosa, apavorada com a possibilidade de se ver em uma situação do tipo "qual desses cinco garfos devo usar?". Só que ela não precisava se preocupar com isso, pois eu também não me sentia muito à vontade nesse tipo de lugar,
— A cafeteria não é muito sofisticada, não — tranqüilizei-a. — É um local bem agradável, relaxe.
— E o que eles servem lá?
— Comida normal — acalmei-a. — Sanduíches, cheesecake, coisas desse tipo.
— Será que tem bolo Floresta Negra? — perguntou, esperançosa. Ela conhecia bolo Floresta Negra.
— Provavelmente — afirmei. — Se não tiver, deve ter alguma coisa parecida.
— E eu tenho que pedir o chá no balcão ou é preciso...?
— A senhora se senta à mesa, mamãe, e a garçonete anota o seu pedido.
— E posso simplesmente ir entrando e me sentar onde quiser ou tenho que...
— Espere até que a moça a acompanhe até uma das mesas vagas — aconselhei.
Quando cheguei, ela já estava sentadinha à mesa, parecendo uma matuta na cidade grande, pouco à vontade, como se achasse que não tinha o direito de estar ali. Usava um sorriso nervoso do gênero "estou bem" e mantinha a bolsa bem apertada debaixo do braço, a salvo dos assaltantes que, segundo ouvira, atacavam em todo lugar em Londres. "Eles não vão se dar bem à minha custa não", era o que suas mãozinhas miúdas pareciam anunciar.
E havia também algo estranho com a sua roupa. Ela era... era... como dizer? Era bonita.
Ainda por cima, estava usando batom vermelho. Ela jamais usava batom, exceto em casamentos. E às vezes em funerais, quando não gostava da pessoa que falecera.
Eu me sentei do lado oposto da mesa, em frente a ela, sorri meio sem jeito e me perguntei o que será que ela poderia estar querendo me contar.
Ela estava se separando do meu pai.
Era isso que ela queria me contar (não era exatamente o caso de ela querer me contar, seria mais exato afirmar que ela tinha de me contar).
O choque me provocou náuseas, literalmente. Fiquei surpresa por ela ter esperado eu pedir um sanduíche antes de me dar a notícia, pois detestava desperdício.
— Não acredito — disse, com a voz rouca, buscando em seu rosto um sinal de que aquilo não era verdade. Tudo o que notei, porém, foi que ela estava usando delineador, com pontinha virada para cima no canto do olho e tudo.
— Sinto muito — disse ela, humilde.
O mundo pareceu desmoronar em volta, e me senti confusa. Eu me via como uma mulher independente, de vinte e seis anos, que já deixara a casa dos pais, construíra a própria vida, e não tinha mais nenhum interesse nas peripécias sexuais que seus pais pudessem estar aprontando. Só que, naquele momento, senti receio e raiva, como se fosse uma menina com quatro anos e abandonada.
— Mas por quê? — perguntei. — Por que a senhora está deixando o papai? Como pode?
— Porque, Lucy, aquele tem sido um casamento apenas de aparência há muitos anos. Lucy, é claro que você já sabia disso, não sabia? — perguntou ela, encorajando-me a concordar.
— Não, eu não sabia de nada disso — respondi. — Para mim é novidade.
— Lucy, mas você deve ter reparado — insistiu ela.
Minha mãe estava exagerando um pouco, me chamando de "Lucy" o tempo todo. Ficava tentando pegar no meu braço, como se estivesse implorando alguma coisa.
— Pois não reparei e não sabia de nada — repeti. Ela não ia conseguir me fazer concordar com ela, não importa o quanto tentasse.
O que estava acontecendo?, perguntei a mim mesma, horrorizada. Os pais das outras pessoas se separavam, mas os meus não. Especialmente pelo fato de os meus serem católicos.
Um lar estável era o único motivo de eu ter aturado pais católicos e suas tolices por tanto tempo. Isso era um acordo tácito.
Minha parte envolvia, entre outras coisas, ir à missa todos os domingos, jamais usar sapatos de verniz em um encontro e me abster de doces por quarenta dias antes da Páscoa. Em troca, os meus pais tinham de permanecer eternamente juntos, mesmo que odiassem um ao outro profundamente.
— Pobre Lucy... — suspirou ela. — Você jamais conseguiu encarar de frente nada que fosse desagradável, não é? Sempre fugia ou enfiava o nariz em um livro quando a coisa ficava feia.
— Ai, que foda — reagi, zangada. — Pare de pegar no meu pé. A senhora é que é a errada nessa história, sabia?
— Desculpe — disse ela, com toda a gentileza. — Não devia ter falado isso.
Aquilo me deixou ainda mais chocada. Uma coisa era ela me dizer que estava abandonando o meu pai, mas o que acabara de acontecer era algo totalmente inusitado. Não só ela não berrara comigo, ralhando por eu ter soltado um palavrão, como também pediu desculpas para mim?
Olhei fixamente para ela, paralisada de pavor. A coisa devia ser mesmo muito séria.
— Lucy — tornou ela a dizer, ainda mais gentil —, seu pai e eu já não nos amávamos há anos. Sinto muito que isto represente um choque tão grande para você.
Eu nem conseguia falar. Estava testemunhando o momento da destruição do meu lar e de mim mesma. Meu senso de identidade já era amorfo sem precisar de mais essa. Tinha medo de desaparecer no ar por completo se uma das minhas principais referências de autode-finição se desintegrasse.
— Mas, por que agora? — apelei, depois de ficarmos sentadas sem falar nada por alguns momentos. — Se vocês já não se amavam mais há anos, no que não acredito, de qualquer modo, por que a senhora escolheu este momento em especial para largá-lo?
E de repente me bateu o motivo. O penteado diferente, a maquiagem, as roupas novas, tudo começava a se encaixar.
— Ai, meu Deus — disse eu. — Eu não acredito. A senhora conheceu alguém, não foi? Arranjou um... um... namorado.
Ela não me olhou nos olhos, a megera, e senti que acertara na mosca.
— Lucy — implorou ela. — Eu me sentia tão solitária...
— Solitária? — perguntei, sem acreditar. — Como é que a senhora podia se sentir solitária se tinha o papai?
— Lucy, por favor, compreenda — suplicou ela. — Viver com : seu pai era como viver com uma criança.
— Não — reagi. — Não tente colocar a culpa nele. Foi a senhora que criou o problema, a culpa é sua.
Ela fixou o olhar nas próprias mãos e não disse nada para se defender.
— Afinal, quem é ele? Quem é esse seu... esse seu... novo namorado? — Joguei na cara dela.
— Por favor, Lucy — murmurou ela. Sua suavidade estava me incomodando, eu me sentia muito mais à vontade quando ela me alfinetava e criticava.
— Conte logo — exigi.
Ela ficou me olhando sem dizer nada, com lágrimas nos olhos. Por que não queria me contar quem era?
— É alguém que eu conheço, não é? — perguntei, ligando as antenas.
— Sim, Lucy. Sinto muito, Lucy, jamais imaginei que isso pudesse acontecer...
— Então me diga simplesmente quem é — pedi, com a respiração já curta e ofegante.
— É...
— Sim? -É o...
— QUEEEM? — quase gritei.
— É o Ken Kearns — revelou ela.
— Quem? — Fiquei pensando no nome, meio tonta. Quem é Ken Kearns?
— Ken Kearns. Você o conhece, é o Sr. Kearns, da lavanderia.
— Ah, o senhor Kearns — disse, lembrando-me vagamente do velho careca com casaco de lã, sapatos de plástico e dentadura postiça que parecia ter vida própria.
Que alívio. Por mais ridículo que possa parecer, por alguns momentos fiquei morrendo de medo de que o novo namorado de minha mãe fosse Daniel. Especialmente por ele andar tão misterioso a respeito de sua nova namorada, e ainda mais com a minha mãe flertando com Daniel quando ele foi visitá-la comigo aquela vez e, depois, pelo jeito de ele falar que a minha mãe era uma mulher bonita...
Ótimo, fiquei feliz por não ser Daniel, mas, fala sério, o Sr. Kearns, da lavanderia?! Ela não ia conseguir achar alguém mais horroroso nem que tentasse.
— Deixe ver se entendi isso direito — disse, meio zonza. — O Sr. Kearns, aquele com dentadura postiça grande demais, é o seu novo namorado.
— Ele está trocando a dentadura — comentou ela, cheia de lágrimas.
— Isso me dá nojo — disse eu, balançando a cabeça. — A senhora realmente me deixa enojada.
Ela não gritou comigo nem me repreendeu como normalmente fazia quando eu lhe dizia algo desrespeitoso. Em vez disso, se mostrou toda martirizada e humilde.
— Lucy, olhe para mim, por favor — pediu ela, as lágrimas escorrendo pelos cantos dos olhos. — Ken faz com que eu me sinta uma adolescente, não entende?... Eu sou uma mulher, uma mulher com carências...
— Não quero saber a respeito das suas carências repugnantes, muito obrigada — disse, tentando apagar da minha mente a ultrajante imagem de minha mãe se esfregando com o Sr. Kearns entre os cabides da loja.
Ela continuava sem mover um só músculo para se defender, mas eu a conhecia bem. Mais cedo ou mais tarde ela ia acabar reagindo.
— Lucy, estou com cinqüenta e três anos, esta talvez seja a minha última chance de encontrar a felicidade. Certamente você não pode me negar isso, não é?
— A senhora e a sua felicidade. Bem, e quanto a papai? E quanto à felicidade dele?
— Eu tentei fazê-lo feliz — defendeu-se ela, baixinho —, ma$ nada funcionou.
— Conversa fiada — reagi. — A senhora sempre tentou transformar a vida dele em um inferno. Por que cargas d'água não caiu fora alguns anos atrás?
— Mas... — disse ela, com a voz fraca.
— Onde é que a senhora vai morar? — interrompi, sentindo enjôo.
— Com Ken — sussurrou ela.
— E onde é que ele mora?
— Naquela casa amarela em frente à escola. — Ela tentou, mas não conseguiu esconder o tom de orgulho na voz. Ken, o Rei das Lavanderias, pelo visto tinha alguma grana.
— E quanto aos seus votos de casamento? — perguntei. Eu sabia que dizer aquilo era tocar bem na ferida. — E quanto às promessas que a senhora fez, em uma igreja, de que ficaria com papai para sempre, na saúde e na doença, nas horas boas e nas ruins?
— Por favor, Lucy — disse, numa voz quase inaudível. — Não consigo descrever o quanto lutei com a minha consciência. Rezei, rezei tanto, pedindo uma orientação...
— A senhora é uma hipócrita — exclamei. Não que aquilo me importasse em algum nível moral, mas eu sabia que ia atingi-la, e aquela era a minha prioridade. — A senhora me enfiou pela goela abaixo os ensinamentos da Igreja Católica a vida toda. Vivia malhando as mães solteiras e as mulheres que faziam abortos, e acabou fazendo uma coisa tão terrível quanto elas. A senhora é uma adúltera, quebrou o seu precioso sétimo mandamento.
— Sexto — retrucou ela, com a velha cara azeda fazendo uma participação especial na cena.
Ah-ah!! Eu sabia que conseguiria dobrá-la.
— O que foi? — perguntei, com cara de nojo.
— Eu quebrei o sexto mandamento. O sétimo é "não furtar", você não aprendeu nada naquelas aulas de catecismo, não é?
— Viu só, viu só? — vociferei, com aquela sensação amarga de triunfo. — Lá vem a senhora de novo, julgando os outros, colocando-se como sentinela moral. Bem, que aquele que não tem nenhum pecado atire a primeira pedra.
Ela levantou a cabeça e torceu as mãos. De volta ao papel de mártir.
— E o que o padre Colm tem a dizer sobre isso? — quis saber. — Aposto que ele não está mais tão amiguinho da senhora agora, depois que a senhora se transformou em uma... em uma... uma destruidora de lares.
— E então? — tornei a perguntar, ao ver que ela não respondia.
— Eles me disseram para eu não preparar mais os arranjos de flores do altar — finalmente admitiu. Uma lágrima solitária lhe descia lentamente pelo rosto, deixando atrás de si uma trilha esbranquiçada ao escorrer pela base mal aplicada.
— Fizeram muito bem — bufei.
— E o comitê para obras de caridade não quer mais a torta de maçã que eu sempre fazia para o bazar — disse ela, com outras lágrimas começando a escorrer pela sua face. Seu rosto ficou listrado como um pijama.
— Fizeram muito bem também! — afirmei, enfurecida.
— Acho que eles pensaram que isso podia ser algo contagioso — disse ela, dando um pequeno sorriso. Fiquei olhando com frieza para ela e, depois de alguns segundos, o sorriso se desfez.
— E que hora maravilhosa a senhora escolheu para me contar, hein?... — acusei-a, de forma injusta. — Como é que vou poder voltar para o trabalho agora e realizar o meu serviço da tarde com tranqüilidade depois de ouvir isso?
Essa alegação era mais do que injusta, porque Ivor estava fora e eu ia passar a tarde toda sem fazer nada mesmo, mas isso não vinha ao caso.
— Lucy, desculpe — pediu ela, baixinho —, mas preferi contar a você logo de cara. Não queria que descobrisse por outra pessoa.
— Tudo bem — disse eu, de forma brusca. — Agora já contou. Agradeço muitíssimo, e agora, adeus.
Não coloquei dinheiro algum sobre a mesa. Ela que pagasse pelo meu sanduíche, já que tinha sido a causa de eu não conseguir comê-lo.
— Espere, por favor — pediu, elevando a voz. — Não vá embora ainda, Lucy, espere mais um pouco. Por favor, me dê a oportunidade de explicar tudo, é só o que lhe peço.
— Então vá em frente — afirmei. — Aposto que isso é bem engraçado.
Ela respirou fundo e começou:
— Lucy, sei muito bem que você sempre amou muito mais o seu pai do que a mim...
Fez uma pausa, para o caso de eu precisar contradizê-la. Continuei calada.
— ... Mas tudo foi sempre muito difícil para mim — continuou. — Eu precisava ser a parte forte, tinha que ser a disciplinadora, porque ele não fazia esse papel. Sei perfeitamente que você o considerava muito divertido, e que eu era a mesquinha e cruel, mas um dos dois tinha que fazer o papel de mãe ou pai de vocês.
— Como ousa?... — reagi. — Papai foi um pai duas, dez vezes melhor do que a mãe que a senhora foi.
— Mas ele era tão irresponsável... — começou ela a protestar.
— Não fale comigo a respeito de responsabilidade — interrompi. — E quanto às suas responsabilidades? Quem vai tomar conta do papai? — perguntei.
Embora já soubesse a resposta para essa pergunta.
— Por que alguém deveria tomar conta do seu pai? — perguntou ela. — Ele tem apenas cinqüenta e quatro anos, e não tem nenhuma doença.
— A senhora sabe que ele precisa de alguém para tomar conta dele — disse eu. — Sabe muito bem que ele é incapaz de cuidar de si mesmo.
— E qual o motivo de isso ser dessa forma, Lucy? — perguntou ela. — Muitos homens vivem sozinhos, homens muito mais velhos do que o seu pai, e que, no entanto, são capazes de tomar conta de si próprios.
— Mas papai não é como os outros homens, e a senhora sabe disso — argumentei. — Não pense que pode fugir da raia assim tão fácil.
— E por que o seu pai não é como os outros homens? — perguntou ela.
— A senhora sabe por quê — respondi, zangada.
— Não, não sei. Conte-me o motivo.
— Não vou mais ficar aqui conversando sobre esse assunto com a senhora — reagi. — A senhora sabe que papai precisa de alguém que olhe por ele, apenas isso.
— Você não consegue encarar a verdade de frente, não é, Lucy? — perguntou ela, olhando para mim com aquela carinha de santa e os olhos de bichinho sofredor que me deixavam enfurecida. Era pura compaixão fingida aquela cara preocupada de assistente social.
— Não consigo encarar que verdade? — perguntei. — Não há nada para encarar, a senhora está falando coisas ainda mais sem sentido do que de costume.
— Ele é alcoólatra — disse ela, com suavidade. — É isso que você não consegue encarar.
— Quem é alcoólatra? — perguntei, enojada das manipulações dela. — Papai não é um alcoólatra. Já entendi qual é a sua... Acha que pode xingar o meu pai e dizer coisas terríveis a respeito dele, para que as pessoas possam sentir pena da senhora e digam que é muito correto abandoná-lo. Bem, a mim a senhora não engana.
— Lucy, ele é alcoólatra há muitos anos, provavelmente já era antes mesmo de casarmos, mas eu ainda não conhecia os sintomas naquela época.
— Isso é papo-furado — bufei. — Ele não é alcoólatra, a senhora deve me achar uma perfeita idiota. Alcoólatras são aqueles homens que vagueiam pelas ruas com casacos imundos e barbas grandes, falando sozinhos.
— Lucy, os alcoólatras existem de muitas formas e maneiras diferentes. Aqueles homens que andam pelas ruas são exatamente iguais ao seu pai, a única diferença é que eles têm um pouco menos de sorte.
— Ninguém tem tão pouca sorte quanto uma pessoa que é casada com a senhora — atirei na cara dela.
— Lucy, você nega que o seu pai bebe muito?
— Ele bebe um pouco — admiti. — Por que não deveria beber? A senhora o fez infeliz por todos esses anos. Minhas lembranças mais antigas são da senhora gritando com ele, sabia?
— Desculpe, Lucy — disse ela, com as lágrimas voltando a rolar pelo rosto. — Nossa vida era tão difícil, jamais tínhamos dinheiro algum, seu pai não conseguia arrumar emprego, pegava o pouco dinheiro que eu escondia para comprar comida para você e seus irmãos, e o gastava todo em bebida. Eu era obrigada a ir até a mercearia e dar a eles alguma desculpa esfarrapada, dizendo que não conseguira passar no banco antes de a agência fechar, e eles me vendiam fiado. Eles sabiam muito bem do meu problema, entenda, e eu tinha o meu orgulho, Lucy, sabia? Aquilo não era nada fácil para mim. Tinha sido criada para esperar muito mais da vida do que aquilo.
Ela estava chorando sem parar agora, mas eu não me compadeci. Aquilo não significava nada para mim.
— E eu o amava, amava de verdade — soluçou ela. — Eu tinha apenas vinte e dois anos e o achava lindo. Ele vivia me dizendo que ia parar de beber e eu vivia na esperança de que as coisas fossem melhorar. Acreditava nele todas as vezes, e todas as vezes ele me decepcionava.
E minha mãe foi em frente, desfiando a ladainha, um catálogo de acusações. Contou como ele já estava bêbado na manhã seguinte ao casamento.
Relatou como ela entrou em trabalho de parto para ter Chris e teve que ir para o hospital sozinha, porque ele estava sumido, provavelmente caído, bêbado, em algum lugar. Contou como ele ficou nos fundos da igreja durante toda a cerimônia de crisma de Peter, cantarolando: "Os homens do outro lado da cerca"...
Eu não queria nem ouvir. Resolvi que já estava na hora de voltar para o trabalho.
Ao me levantar para sair, disse:
— Sei que a senhora não está nem aí para isso, mas pode deixar que vou cuidar dele. Provavelmente vou fazer um trabalho bem melhor do que a senhora jamais fez.
— Está falando sério, Lucy? — Ela pareceu pouco impressionada.
— Estou.
— Boa sorte, então. Você vai precisar.
— Como assim?
— Você é boa para lavar lençóis? — perguntou, enigmática.
— Do que a senhora está falando?
— Você vai descobrir — encerrou ela, com ar cansado. — Você vai descobrir.
Voltei para o trabalho em estado de choque,
A primeira coisa que fiz foi ligar para papai, para me certificar de que ele estava bem, mas ele me pareceu incoerente e confuso, o que me deixou doente de tão preocupada.
— Vou direto para aí assim que sair do trabalho, logo mais, papai — prometi. — Tudo vai ficar bem, por favor, não se preocupe.
— Quem vai tomar conta de mim, Lucy? — perguntou, parecendo muito, muito velho. Senti vontade de matar a minha mãe.
— Eu tomarei conta do senhor — prometi, fervorosa. — Vou cuidar do senhor para sempre, não se preocupe.
— Você não vai me abandonar? — perguntou ele, de forma patética.
— Nunca — afirmei, sincera como jamais fora na vida.
— Você vai passar a noite aqui? — perguntou.
— Claro que vou, vou ficar sempre com o senhor.
Depois liguei para Peter. Ele não estava no trabalho, então presumi que mamãe já tivesse lhe dado a notícia, e ele, um edipiano idiota como nenhum outro, devia ter ido para casa e àquela altura estava deitado em um quarto escuro, esperando morrer de desgosto.
Para confirmar minha idéia, liguei para a casa dele, e ele mesmo atendeu o telefone, com uma voz rouca e um pesar profundo. Garantiu-me que ele, também, odiava a nossa mãe. Só que eu sabia muito bem que ele a odiava por motivos totalmente diferentes dos meus e, portanto, não tínhamos nada em comum. Peter estava se sentindo arrasado não pelo fato de minha mãe ter trocado meu pai por outro homem, e sim por ela não ter trocado meu pai por ele.
Em seguida, liguei para Chris e soube que mamãe já o informara da novidade logo de manhã cedo. Fiquei aborrecida por ele não ter me ligado, me preparando com antecedência para o que eu ia ter de enfrentar. Por conta disso, armamos um pequeno barraco pelo telefone, o que foi ótimo, pois consegui tirar papai da cabeça por algum tempo. Chris se mostrou tremendamente aliviado quando eu disse que ia passar a noite com papai. ("Puxa, Lucy, valeu mesmo, vou ficar lhe devendo essa.") Chris e a Responsabilidade não se conheciam muito bem, acho que jamais haviam se encontrado cara a cara.
Depois, liguei para Daniel e contei a ele o que acontecera. Ele era uma pessoa boa para contarmos essas coisas, porque era totalmente solidário. Além do mais, ele sempre demonstrou gostar muito da minha mãe. Eu estava satisfeita por dar a ele a oportunidade de constatar a megera que ela era.
Daniel não comentou nada sobre a minha mãe fujona. Simplesmente se ofereceu para me levar de carro até meu pai.
— Não — recusei.
— Sim — disse ele.
— De jeito nenhum — tornei a recusar. — Estou muito transtornada, não sou uma boa companhia. Além do mais, a viagem é longa e cansativa, e quando eu chegar lá, vou querer ficar sozinha com o meu pai.
— Tudo bem — disse ele. — Mesmo assim, eu gostaria de estar com você.
— Daniel — suspirei —, é obvio que você deve estar precisando de ajuda psiquiátrica, e estou sem tempo agora para lidar com os seus problemas mentais.
— Lucy, seja sensata — disse ele, com firmeza.
Demos uma boa risada diante dessa idéia.
— Daniel, você está me pedindo algo impossível. Pare de criar expectativas inalcançáveis para mim, senão você vai se decepcionar.
— Agora me escute — gritou ele. — Eu tenho carro, é um longo caminho até lá, você vai ter que passar no seu apartamento para pegar algumas roupas e outras coisas. Não tenho nenhum compromisso para hoje à noite. Vou levar você de carro até Uxbridge e não quero ouvir mais recusas, já está decidido!
— Uau! — reagi, divertida e ligeiramente impressionada com ele, apesar das circunstâncias terríveis. — Você está parecendo um daqueles heróis machões de romances açucarados! Dê uma olhada em suas coxas. Aposto que elas ficaram todas musculosas só com esse discurso.
Daniel não tinha a menor idéia de sobre o que eu estava falando.
Estranho, eu jamais pensara nas coxas de Daniel até aquele momento. Tinha uma vaga suspeita de que elas já eram musculosas. Senti uma espécie de nervoso, e então parei com a zoação.
— Obrigada, Daniel — desisti. — Se realmente não se incomoda, ia ser de muita ajuda se você pudesse me levar até lá.
O terror de mamãe abandonando papai não fizera desaparecer o medo que eu tinha de Karen, ou do que ela faria se descobrisse que Daniel estava me acompanhando até Uxbridge. Para sorte minha, ela ainda não havia voltado do trabalho quando Daniel e eu saímos do apartamento.
Passamos no supermercado, a caminho de casa, para comprar mantimentos para o papai. Gastei uma fortuna, comprando tudo o que lembrava que talvez ele gostasse. Guloseimas, bolinhos de frutas, macarrão de letrinhas, torrinhas inglesas, mães-bentas, balinhas coloridas e uma garrafa de uísque. Não ligava a mínima para o que a minha mãe dissera sobre ele ser alcoólatra. Não acreditava naquilo. E mesmo se acreditasse, não me importava. Teria dado a ele qualquer coisa que o fizesse se sentir um pouco melhor, sabendo que ainda havia alguém que o amava.
Ia montar um novo lar para ele, todo feito de amor, pensava eu, com zelo missionário.
Estava até gostando daquilo. Ia mostrar à minha mãe como é que se fazia.
Ao chegarmos lá, Daniel e eu encontramos papai jogado em uma poltrona, bêbado e choroso. Fiquei abalada ao vê-lo assim tão aborrecido, porque, de certa forma, achava que ele ia ficar feliz por mamãe ter caído fora da sua vida, deixando-o em paz. Quase esperava encontrá-lo aliviado, já que agora íamos ser apenas ele e eu.
— Pobre papai, pobrezinho. — Larguei as sacolas em cima da mesa e corri para onde ele estava.
— Ah, Lucy — disse ele ao me ver, balançando a cabeça lentamente. — Ah, Lucy, o que vai ser de mim agora?
— Vou tomar conta do senhor. Olhe aqui, tome um drinque, papai — sugeri, fazendo gestos para Daniel pegar a garrafa de uísque.
— Puxa, seria muito bom, Lucy — concordou papai, com o rosto tristonho. — Seria ótimo.
— Tem certeza, Lucy? — perguntou Daniel, baixinho.
— Não comece... — sussurrei, irritada. — A mulher dele acabou de abandoná-lo, deixe-o beber a porcaria de um drinque.
— Calma, Lucy — disse ele, pegando uma garrafa vazia de uísque ao lado da poltrona onde papai estava e estendendo-a na minha direção. — É que eu simplesmente não quero matar o seu pai.
— Mais uma dose não vai fazer mal — afirmei, teimosa. Subitamente, senti pena de mim mesma e de papai. Antes de perceber o que estava acontecendo, já estava tendo um pequeno chilique.
— Pelo amor de Deus, Daniel! — berrei. Então saí da sala e bati a porta atrás de mim.
Escancarei a porta do quarto "bom" que dava para a rua e me atirei, no auge do chilique, em cima do sofá "de boa qualidade" que havia ali, com estrutura de metal e forrado de veludo cotelê. Aquele quarto vivia fechado, à espera de visitas. Como jamais tínhamos visitas, porém, ele permanecia intacto e imaculado, nas mesmas condições em que fora montado, em 1973. Era como entrar no túnel do tempo.
Sentei-me e comecei a chorar, sentindo-me ao mesmo tempo ousada por estar sobre o sofá bom, reservado apenas para padres e parentes da Irlanda, que eram os únicos autorizados a sentar ali.
Em poucos momentos Daniel entrou, como eu já sabia que faria.
— Já serviu o drinque a ele? — perguntei, em tom de acusação.
— Já — afirmou ele, passando a mão por sobre a mesinha com tampo de vidro fumê. Sentou-se a seguir no sofá fossilizado. Colocou o braço em volta do meu ombro, como eu sabia que ele faria. Daniel era bom para aquele tipo de coisa, era simpático e previsível. Eu sempre tinha certeza de que ele faria a coisa certa.
Então ele me puxou para junto dele e colocou-me no colo, com uma das mãos em volta dos meus ombros e a outra por trás dos joelhos. Eu não esperava aquilo, mas fiquei feliz em aceitar. Um monte de demonstrações de carinho, era disso que eu estava precisando.
Eu me permiti aproveitar o momento e me aninhei nos braços dele, chorando mais um pouco. Daniel era ótimo para chorarmos e desabafarmos, porque havia algo de muito tranqüilizador e protetor nele. Deixei-me levar e enfiei o rosto no ombro do terno dele, enquanto ele levantava a mão e me fazia um cafuné carinhoso, enquanto falava coisas como "pronto, pronto, Lucy, não chore...". Foi muito agradável.
Ele tinha um cheiro gostoso. Meu nariz estava grudado no pescoço dele e o seu perfume era envolvente. Másculo e doce.
Muito sexy, na verdade, avaliei, com surpresa. Pelo menos seria sexy se não estivesse vindo de Daniel.
Distraída, me pus a imaginar como seria o gosto dele. Na verdade, eu estava tão junto dele que tudo o que tinha de fazer era colocar a ponta da língua para fora e lamber a pele do seu pescoço.
Parei com aquilo na mesma hora. Não podia sair por aí lambendo homens, mesmo sendo apenas Daniel.
Ele continuava acariciando o meu cabelo com uma das mãos e enfiou a outra por trás da minha nuca, onde começou a fazer uma espécie de massagem gostosa com o polegar e o indicador.
Suspirei e me senti ainda mais relaxada junto dele. Era maravilhoso, muito tranqüilizante.
Hummmm, pensei, sentindo um conforto agradável e um ligeiro tremor por dentro. Gostoso e assim meio...
De repente me toquei de que não estava mais chorando. Entrei em pânico, compreendendo que precisava me soltar dos braços de Daniel imediatamente. Eu só deveria me aconchegar a homens com os quais estivesse emocionalmente envolvida, ou se estivesse consolando algum amigo, e não era o caso ali. Estava nos braços de Daniel sob falsos pretextos, pois minha fragilidade se acabara junto com as lágrimas.
Torcendo para ele não achar que eu era ingrata, tentei me desvencilhar dos braços dele.
Ele sorriu para mim, seu rosto junto do meu, como se soubesse de algo que eu desconhecia. Ou talvez algo que eu deveria saber.
Às vezes a beleza de seu rosto, do tipo que se via a toda hora em revistas, me deixava irritada e chateada, pensei. E os dentes dele pareciam mais brancos do que de costume, ele devia ter ido ao dentista há pouco tempo. Aquilo me irritava também.
Senti um calor desconfortável, não sabia por quê.
Devia ser por havermos chegado a um estado esquisito de explosão emocional. A enxurrada de felicidade ou tristeza já passara, e ficar ali de mãos dadas, ou abraçados, ou vertendo um restinho de lágrimas ou qualquer coisa desse tipo se tornou terrivelmente embaraçoso. Talvez por isso é que eu sentia que precisava escapar dele, pensei, em busca de uma razão para o sentimento.
Não me sentia muito à vontade com demonstrações explícitas de afeto.
Pelo menos não quando estava sóbria.
Daniel, porém, nem parecia notar que eu queria escapar dos seus braços. Tentei empurrar o corpo para fora do círculo dos braços dele, mas nada aconteceu. Outra onda de pânico me atingiu.
— Obrigada — funguei, olhando para ele e tentando fazer o agradecimento soar bem normal. E, mais uma vez, torci o corpo, em uma nova tentativa de me afastar dele. — Desculpe pela cena, Daniel.
Eu tinha de escapar dali, pensei, de modo frenético. Estava me sentindo sem graça e estranha nos braços dele, embora não fosse o tipo normal de estranheza e embaraço.
Ele estava me deixando perturbada.
Comecei a perceber uma porção de coisas nele que não reparara durante os momentos em que estava ocupada, chorando.
Como, por exemplo, o fato de ele ser tão grande. Eu estava acostumada com homens menores. Era diferente ser abraçada por alguém tão grande quanto Daniel.
Diferente assim, no sentido de aterrorizante.
— Não se desculpe — disse ele.
Fiquei esperando que ele me lançasse um sorriso meio debochado, mas isso não aconteceu. Ele continuou olhando para mim com olhos sombrios e sérios, e não se moveu.
Olhei fixamente para ele de volta. Uma tranqüilidade baixou entre nós. Uma espera. Momentos antes, eu sentira segurança. Agora eu sentia tudo, menos isso. E não conseguia prender a respiração, estava toda ofegante.
Daniel se inclinou ligeiramente e dei um pulo. Mas ele estava apenas afastando o cabelo que me caíra sobre a testa. O toque de sua mão lançou um arrepio que me percorreu o corpo todo.
— Mas eu tenho que me desculpar — consegui balbuciar, nervosa, incapaz de encará-lo. — Você me conhece. Sabe que adoro me sentir culpada.
Ele não riu. Mau sinal.
E continuou agarrado, sem me soltar. Um sinal ainda pior.
Para o meu horror, senti um poderoso surto de atração sexual por ele, que quase me derrubou do seu colo.
Fiz mais uma tentativa para me desvencilhar dele.
Acho que não me esforcei o bastante.
— Lucy — disse ele, colocando a mão no meu queixo e levantando bem de leve o meu rosto, para me obrigar a olhar para ele. — Eu não vou soltar você; portanto, pare de tentar escapar.
Ai, meu Deus, pensei. As cartas estavam abertas em cima da mesa. Não estava gostando do tom de sua voz. Bem, na verdade estava gostando sim, até muito... Se eu não estivesse tão apavorada sobre o que aquilo significava, teria adorado até.
Algo de muito estranho estava rolando ali. Por que a Atração Sexual estava batendo à nossa porta, chamando a mim e a Daniel para brincar lá fora? Por que logo agora?
— Por que você não vai me soltar? — gaguejei, olhando para ele, tentando ganhar tempo. Fiquei vagamente distraída pelas pestanas dele. Eram indecentes de tão longas e grossas. E a boca de Daniel sempre fora assim tão sexy? Ele estava com uma cor linda na pele, levemente bronzeada em contraste com a brancura da camisa.
— Porque — explicou ele, olhando para mim — eu quero você. Caraca! Minhas entranhas se retorceram todas com uma espécie
de emoção apavorada. Estávamos chegando perto de um limite, prestes a cruzar a fronteira de uma terra desconhecida. Se eu tivesse um pingo de bom senso, iria dar um basta naquilo, naquele exato momento.
Só que não tinha senso algum. Não consegui me segurar.
E, mesmo que quisesse, certamente não conseguiria impedi-lo.
Por séculos antes de acontecer, eu já sabia que ele ia me beijar.
Seu rosto pairou no ar, nossas bocas quase se tocando, aproximando-se cada vez mais, milímetro a milímetro.
Durante anos o seu rosto fora tão familiar para mim, e agora ele me parecia um estranho, um estranho muito atraente.
Era aterrorizador.
De um jeito muito gostoso.
Finalmente, quando meus nervos já estavam retesados a ponto de eu gritar, e eu tinha certeza de que não agüentaria esperar nem mais um segundo, ele inclinou a cabeça e colocou os lábios sobre os meus. Seu beijo me inundou por dentro como uma bebida borbulhante.
Retribuí o beijo.
Porque — é uma vergonha admitir isso — eu queria beijá-lo também.
Detestei a situação, porque foi maravilhoso.
Foi o beijo mais fantástico que experimentara em toda a minha vida, e vinha de Daniel. Que coisa horrível sentir aquilo. Se ele descobrisse, seu ego ia entrar em órbita. Tinha de cuidar para que ele jamais ficasse sabendo disso, pensei na hora.
Reparei em um monte de coisas nas quais jamais reparara. Notei como as costas dele eram largas e firmes, enquanto passava as mãos ao longo do tecido encorpado de seu terno.
Por séculos antes de acontecer, eu já sabia que ele ia me beijar.
Seu rosto pairou no ar, nossas bocas quase se tocando, aproximando-se cada vez mais, milímetro a milímetro.
Durante anos o seu rosto fora tão familiar para mim, e agora ele me parecia um estranho, um estranho muito atraente.
Era aterrorizador.
De um jeito muito gostoso.
Finalmente, quando meus nervos já estavam retesados a ponto de eu gritar, e eu tinha certeza de que não agüentaria esperar nem mais um segundo, ele inclinou a cabeça e colocou os lábios sobre os meus. Seu beijo me inundou por dentro como uma bebida borbulhante.
Retribuí o beijo.
Porque — é uma vergonha admitir isso — eu queria beijá-lo também.
Detestei a situação, porque foi maravilhoso.
Foi o beijo mais fantástico que experimentara em toda a minha vida, e vinha de Daniel. Que coisa horrível sentir aquilo. Se ele descobrisse, seu ego ia entrar em órbita. Tinha de cuidar para que ele jamais ficasse sabendo disso, pensei na hora.
Reparei em um monte de coisas nas quais jamais reparara. Notei como as costas dele eram largas e firmes, enquanto passava as mãos ao longo do tecido encorpado de seu terno.
Não era de admirar que ele soubesse beijar assim tão bem, considerando-se a sua prática, pensei, enquanto tentava me afastar aos poucos.
Então ele tornou a me beijar e eu pensei: Ah, o mal já está feito mesmo; perdido por um, perdido por mil, é melhor aproveitar de uma vez.
Ele era delicioso. Tinha uma boca perfeita e a pele era suave. Tinha um cheiro sexy de almíscar.
Era um homem, um homem de verdade.
Ai, meu Deus, pensei na mesma hora... Nunca vou superar essa mancada.
Ele jamais vai me deixar esquecer esse mico. Que vergonha. Depois de todas as zoações que eu fizera com ele, por sua galinhagem.
Se eu não estivesse tão ligada, poderia até cair na risada por tudo aquilo.
Karen ia me matar, percebi. Já podia me considerar morta. Como permiti que isso acontecesse?, perguntei a mim mesma, chocada.
Mas... como conseguiria evitar?
Todos esses pensamentos entravam por um lado, passavam voando pela minha cabeça e saíam pelo outro lado, enquanto meu desejo por ele ia aumentando a cada vez.
De vez em quando uma vozinha lá no fundo me lembrava: "Sabe quem é esse cara? Esse é o Daniel, caso você ainda não tenha reparado. E já se ligou no lugar em que vocês estão? Sim, exatamente, vocês estão no quarto bom da casa. Em cima do sofá do padre Colm."
Eu tremia por dentro, completamente a fim dele. Queria transar com ele ali mesmo, naquela hora, no sofá do padre Colm e com papai no cômodo ao lado. Não me importava.
Tudo o que Daniel fazia era me beijar. Beijava minha boca e me acariciava nos lugares mais recatados. Eu não sabia se estava impressionada ou chateada por ele não estar tentando me palmear toda, nem me empurrar de costas no sofá, enfiando a mão por baixo da minha saia.
Finalmente ele se afastou de mim e disse:
— Lucy, você não imagina há quanto tempo eu esperava por isso.
Tínhamos que reconhecer: ele era bom naquilo. Parecia intenso e apaixonado. E parecia lindo! Suas pupilas estavam totalmente dilatadas. Seus olhos estavam quase pretos e seu cabelo estava todo em desalinho, muito sexy, bem diferente do visual bem penteado de sempre. A expressão do seu rosto é que era o melhor de tudo: ele parecia mesmo um homem apaixonado ou, pelo menos, cheio de tesão.
Não era de espantar que tantas mulheres ficassem caidinhas por
ele.
— Tá bom, Daniel... — reagi, com a voz trêmula, tentando sorrir — ... aposto que você fala isso para todas as garotas.
— Não, estou falando sério, Lucy — disse ele, com a voz séria e um tom sério, olhando para mim com seriedade.
— Eu também — disse, em um tom leve.
A sanidade, pelo jeito, já começava a voltar, relutante, para a minha cabeça inconstante. Embora todo o meu corpo continuasse tremendo de desejos não saciados.
Olhei para Daniel, querendo acreditar nele, embora soubesse que jamais poderia.
Ficamos sentados lado a lado, um pouco mais separados, ele parecendo triste, eu parecendo triste, mas ainda em seus braços, sabendo que já ficara ali tempo demais, mas sem querer ir embora.
— Por favor, Lucy — disse ele, colocando as duas mãos no meu rosto, segurando-o com tanto carinho e cuidado como se a minha cabeça fosse um balde de ácido sulfúrico transbordante.
Nesse momento a porta se abriu e papai entrou no quarto, cambaleando. Embora Daniel e eu tenhamos dado um pulo para cima, como se fôssemos ágeis cabritos, papai conseguiu perceber o que estava rolando e fez uma cara de choque e aborrecimento.
— Meu bom Deus — rugiu. — Vocês estão se agarrando, é?... Esta casa virou Sodoma e Gomorra.
Minha vida mudou muito nos dias que se seguiram. De uma hora para outra eu tinha uma casa nova, ou uma velha, dependendo do ponto de vista. Resolvera dar a notícia de imediato para as amigas do apartamento, pois estava louca para começar logo a minha nova vida, ansiosa para mostrar a todos o quanto eu estava comprometida com aquilo.
Alguém tinha de se mudar para a casa de meu pai, para tomar conta dele, Eu era a candidata óbvia.
Mesmo que Chris e Peter tivessem se oferecido, eu teria insistido em assumir o lugar, por mim mesma. Não que eles tivessem se oferecido, os patifes preguiçosos. Ficaram indignados diante da possibilidade. Até que ia ser muito bom para qualquer um dos dois. Minha mãe sempre fizera tudo por eles, desde o dia em que nasceram, e devido a isso eles mal sabiam preparar um banho, muito menos administrar uma casa. Era um milagre que tivessem conseguido aprender a dar laço no cadarço dos próprios sapatos. Não que eu fosse muito melhor na área de prendas do lar, porém, de algum modo, conseguia me virar. E estava disposta a aprender como preparar iscas de peixe, pensava, arrebatada. Seria um trabalho de puro amor.
Todo mundo tentou me convencer a não voltar a morar em Uxbridge. Karen e Charlotte não queriam que eu fosse embora, quanto mais não fosse, pela trabalheira que ia dar ter de arrumar uma nova pessoa que servisse para dividir o apartamento.
— Mas não há nada de errado com o seu pai — comentou Karen, intrigada. — Muitos homens conseguem viver por conta própria, Por que você tem que ir morar com ele, literalmente? Não dá para passar lá dia sim, dia não, sabe com é, pedir a um vizinho para ficar de olho, revezar com os seus irmãos, esse tipo de coisa?
Eu não ia conseguir explicar o problema a Karen. Fazer as coisas pela metade não ia me satisfazer, eu tinha de resolver tudo direito. Resolvera me mudar de volta para aquela casa, a fim de cuidar do meu pai como ninguém jamais cuidara dele, como sempre deveria ter sido. Estava contente, satisfeita por tê-lo todinho para mim, íamos ser apenas nós dois. Estava me sentindo amarga e zangada com a minha mãe por sua leviandade, mas isso era de esperar dela. Sentia alívio por ela ter saído de cena, finalmente.
— Mas deve ser horrível para você voltar a morar com seus pais — disse Charlotte, parecendo horrorizada. — Quer dizer, pai... — acrescentou ela, depressa. — Pense só, Lucy, como é que você vai conseguir transar com seus namorados? Não tem medo de que seu pai entre enfurecido no quarto, pegue você no ato e comece a berrar, dizendo que você não pode fazer esse tipo de coisa debaixo daquele teto?
— Será que ele vai determinar a que horas você vai ter que chegar em casa? — continuou ela, jogando conversa fora, sem reparar que eu estava me encolhendo toda. — Será que ele vai dizer "você não pode ir para a rua vestida desse jeito" ou "parece uma prostituta com essa maquiagem toda" e outras coisas desse tipo? — perguntou. — Você pirou.
O problema de Charlotte é que ela conseguira escapar da casa dos pais há pouco tempo. As lembranças de viver sob o jugo do pai ainda estavam muito frescas em sua cabeça.
Ela ainda estava curtindo a liberdade recém-adquirida. Isto é, nos dias em que não se sentia à beira do suicídio, corroída pela culpa.
—- E se o seu pai arrumar uma nova namorada? — continuou ela. — Não vai ser nojento se você entrar em casa e pegá-lo no flagra, transando?
— Mas... — tentei interromper. A idéia do pobre papai arrumando uma namorada nova era quase cômica. Tão engraçada quanto a idéia de eu mesma começar a namorar alguém.
Um namorado não estava no cardápio. O beijo em Daniel fora um fato isolado. Uma chance única que jamais se repetiria na vida. Venham, corram todos, porque o produto está acabando!
Naquele dia, depois que papai nos pegou em pleno pós-beijo, olhou para nós com os olhos vidrados, por algum tempo. Ficamos encolhidos, como devíamos, debaixo do seu olhar de desaprovação. Então ele se retirou do quarto, enquanto Daniel e eu nos recompúnhamos. Esperei um pouco para meu coração disparado voltar ao normal e minha respiração se acalmar. Daniel esperou um pouco para a sua ereção baixar e ele voltar a caminhar direito (descobri isso algum tempo depois).
Ficamos sentados lado a lado no sofá, a imagem perfeita de uma timidez muda.
Fiquei com vontade de morrer.
Tudo aquilo era tão horrível.
Ficar me esfregando com Daniel! Me esfregando com Daniel. Me esfregando com... Daniel. E ser pega no flagra por papai, que humilhação. Uma parte de mim sempre ia ter catorze anos.
De qualquer modo, eu estava em estado de choque, com mamãe abandonando papai. E, de certo modo, estava além do choque por Daniel ter se agarrado comigo.
Aquilo era esquisito demais só de pensar.
Não sei explicar por que razão ele teve um efeito tão grande em mim. Decidi que estava provavelmente me sentindo vulnerável, devido à desintegração da unidade familiar.
Quanto aos motivos do Daniel, bem, quem sabe? Ele era um homem, eu era uma mulher (bem, mais ou menos, no fundo eu me sentia mais como uma garotinha). Acho que, basicamente, eu simplesmente estava ali.
Tudo ficou bagunçado na minha cabeça, era muita agitação para um dia só, e eu queria que Daniel e eu voltássemos ao normal. A melhor maneira de fazer isso era agir de forma normal. Assim, resolvi insultá-lo:
— Você se aproveitou de mim — resmunguei. — Seu canalha, grosso — acrescentei, só por garantia.
— Eu me aproveitei? — perguntou ele, surpreso.
— Isso mesmo — reagi. — Você sabia que eu estava abalada por causa do pobre do meu pai. E então me insultou com aquele papo suave que costuma jogar para cima de todas as garotas e me agarrou.
— Desculpe — disse ele, parecendo horrorizado. — Não foi essa a minha intenção.
— Esquece — suspirei, com cara de virtuosa. — Vamos simplesmente esquecer o que aconteceu. Mas não podemos deixar que aconteça de novo.
Aquilo era maldade minha, eu bem sabia, porque a culpa era dois, para dançar o tango são necessárias duas pessoas etc. etc, eu já estava com a cabeça cheia demais, e não precisava ficar e cada tentando decidir se gostava dele.
Não ia mais pensar naquilo, resolvi. Eu era boa nessa história de não pensar nas coisas desagradáveis.
Naquela época eu nem desconfiava do quanto era boa nisso.
Depois de uns dez minutos, Daniel saiu de fininho, morrendo de vergonha. Papai ficou na porta, quase sacudindo os punhos pelas costas dele enquanto o observava ir embora, até se certificar de que Daniel já fora de vez. Nós não chegamos nem a oferecer a ele uma xícara de chá de despedida. Minha mãe ia se virar no túmulo se soubesse disso.
Eu torcia para que isso acontecesse.
Daniel apareceu em Uxbridge para me ver uns dois dias depois do episódio do grande amasso. Eu estava tão envergonhada e confusa que ficaria feliz se nunca mais tornasse a vê-lo, mas ele havia me perturbado.
Primeiro, telefonou para o meu trabalho, logo no dia seguinte, e me pediu que o encontrasse para almoçar. Eu lhe disse que não queria.
— Por favor, Lucy — tornou a pedir.
— Por quê? — perguntei. — Ah, não!...
— Ah, não o quê?
— Se vier me dizer que nós precisamos conversar, eu mato você
— avisei.
Megan, Meredia e Jed levantaram a cabeça tão depressa que quase ficaram vesgos de tão interessados.
— Na verdade, precisamos realmente conversar — disse Daniel
— a respeito do seu apartamento. Meu apartamento?
— O que é que tem o meu apartamento? — Estava surpresa.
— Pelo menos me deixe falar com você.
Aquilo era, evidentemente, uma desculpa, mas resolvi deixar a coisa rolar.
— Passe lá em casa amanhã à noite, então — concordei, finalmente.
Para minha preocupação, me senti animada e feliz diante da perspectiva de vê-lo. Tinha de parar com aquilo.
— Eu passo aí e a pego depois do trabalho — ofereceu ele.
— Não — reagi, depressa. De jeito nenhum eu ia querer agüentar uma viagem inteira de metrô com ele. Ia acabar sofrendo combustão instantânea de tão embaraçada que ia ficar.
Assim que coloquei o fone no gancho, Megan, Meredia e Jed caíram em cima de mim como urubus.
— Quem era?
— Era Gus?
— O que está havendo?
— Você e ele estão transando de novo? — clamaram.
Eu estava tremendamente nervosa enquanto esperava a chegada de Daniel.
Minha cabeça ficava pesando os prós e os contras... Bem, na verdade, os contras e os contras de tudo aquilo. Ficar de amassos com Daniel fora um grande erro. Qualquer esfrega-esfrega adicional seria levar a falta de cuidado ao extremo.
Tudo bem, eu achava que estava gostando dele, mas sabia que não era verdade.
O choque de ver minha mãe abandonar meu pai tinha confundido as minhas emoções, e eu simplesmente estava achando que gostava dele.
O beijo de Daniel fora o resultado de um conjunto de circunstâncias muito incomuns.
Vamos encarar os fatos de forma objetiva, pensei, enquanto escovava os cabelos com força. Papai me olhava com olhar terno. Não ficaria tão terno quando descobrisse para quem eu estava escovando os cabelos.
De um lado, lá estava eu, imaginei, de forma teatral. Confusa, vulnerável, carente, uma criança recém-saída de um lar destroçado, pronta para se apaixonar pela primeira pessoa que lhe oferecesse um pouco de afeto.
Do outro, estava Daniel. Um homem habituado a muito sexo, e que já não transava há alguns dias. Devido a isso, naturalmente, ele não era muito exigente a respeito de quem agarrar. Eu estava bem ali... e ele me agarrou.
Viu só? Uma prova de que ele era pouco exigente.
Além do mais, Daniel era um homem que adorava um desafio. O que Karen me revelara aos gritos na noite de domingo serviu para confirmar o que eu sempre soube: Daniel era capaz de tentar agarrar a própria mãe se sentisse que ela ia reagir e brigar com vontade.
Mas não vou sucumbir, pensei, com ar sombrio.
Pelo menos naquela vez eu ia resistir ao impulso autodestrutivo. Não ia me interessar por Daniel. Ia bancar a diferente.
Assim que abri a porta da frente para ele, minha resolução de não me interessar por ele fraquejou, depois se dissolveu. Ele estava lindo, muito atraente, o que foi uma espécie de choque desagradável. Como era possível ele me parecer tão sexy de uma hora para outra? Ele jamais conseguira passar essa impressão antes. Pelo menos não para mim. Para meu grande desapontamento, me comportei de forma assanhada, parecendo uma garotinha tímida, rindo feito uma idiota.
— Oi — cumprimentei, encarando o nó da sua gravata.
Ele se inclinou para me beijar, e um berro veio lá de dentro da cozinha:
— Ei, você! — Era papai. —Deixe minha menininha em paz, seu verme.
Daniel recuou na mesma hora. Eu me senti como uma pessoa faminta que acabara de ver um saco de batatas fritas passar bem debaixo do seu nariz para depois ser recolhido.
— Entre —convidei, falando para o colarinho dele.
Eu estava terrivelmente sem graça. Ao guiá-lo pelo vestíbulo, bati com o quadril de forma violenta na quina da mesinha do telefone, mas fingi que não doeu. Não queria que ele oferecesse um beijinho para a dor passar, porque eu ia acabar aceitando.
— Tire o paletó. — Encarei o bolso do terno.
Fiquei revoltada pelo efeito que ele estava conseguindo sobre mim. Estava na cara que eu tinha dificuldades para respirar direito, embora apenas por alguns instantes, é claro. A causa era a separação dos meus pais, mas mesmo assim eu não podia dar bandeira.
Resolvi que não ficaria a sós com ele e, depois que ele fosse embora, jamais ia revê-lo, nunca mais, ia manter a decisão para sempre. Bem, talvez não para sempre, mas pelo menos por um bom tempo. Até eu voltar ao meu normal, o que quer que isso significasse.
Como parte do meu plano astuto, forcei Daniel a ir para a cozinha, onde meu pai estava sentado, de antenas ligadas.
— Boa-noite, Sr. Sullivan — cumprimentou Daniel, nervoso.
— Você tem mesmo a maior cara-de-pau, não é, rapaz? — rugiu papai. - Voltar aqui depois de ter se comportado como se a minha casa fosse um... fosse um puteiro.
— Por favor, papai. — Eu estava morrendo de vergonha. — Não vai tornar a acontecer.
— É preciso ter colhões de aço para agir com esse descaramento — murmurou papai.
Então, graças a Deus, ele calou a boca.
— Você gostaria de uma xícara de chá? — perguntei ao ombro de Daniel.
— Quando é que você vai servir os crepes? — interrompeu papai, sem a menor cerimônia.
— Que crepes?
— Sempre comemos crepes às quartas.
— Mas hoje é quinta.
— Ah, é? Bem, então, quando é que você vai servir o cozido? — E olhou para mim com ar desolado.
— Desculpe, papai, prometo entrar na rotina da casa a partir da semana que vem. Dá para nos ajeitarmos com uma pizza hoje ã noite?
— Uma pizza daquelas que as pessoas pedem pelo telefone? — subitamente ele se interessou.
— Claro. — Que outro tipo poderia haver?, perguntei a mim mesma.
— Não é uma daquelas congeladas? — O olhar esperançoso que exibiu era de cortar o coração.
— Nossa, não.
— Ótimo — afirmou, com alegria. — E podemos tomar uma cervejinha para acompanhar?
— Claro.
Desconfiei que ele estava realizando um antigo sonho. Minha mãe teria torcido o nariz diante de uma extravagância como aquela.
Quando liguei para a pizzaria, papai insistiu em falar pessoalmente com o homem que preparava as pizzas, a fim de discutir quais os ingredientes disponíveis,
— O que são anchovas? Ah, é? Então vou querer um pouco sim, claro. O que são alcaparras? Ah... pode espalhar um pouco disso, então. Escute, você acha que as anchovas (ele pronunciava heinchovas) vão combinar com o abacaxi?
Eu tinha de reconhecer a paciência de Daniel, embora continuasse sem conseguir olhar nos seus olhos.
Quando as pizzas e as cervejas chegaram, nós três nos sentamos em torno da mesa da cozinha. Tão logo acabou de comer, papai recomeçou a olhar fixamente para Daniel. A tensão era insuportável.
Papai não olhava direto para Daniel. Olhava com cara feia sempre que Daniel estava olhando para outro lugar, mas desviava o olhar depressa na hora em que Daniel jogava os olhos nele. Daniel desconfiou que meu pai estava lhe lançando olhares ameaçadores, e tentou pegar papai no ato. Ficava bebendo a cerveja, descontraído e então, em um microssegundo, girava a cabeça e olhava para papai, a fim de flagrar a careta. Nesse instante, em outro microssegundo, papai também girava a cabeça e molhava o bico na cerveja com a cara mais inocente, parecendo um anjo.
Aquilo rolou durante horas. Pelo menos foi assim que me pareceu.
A atmosfera estava tão carregada que, quando acabamos com a cerveja, entramos com a maior disposição no uísque.
Nas poucas vezes em que papai se virava para gritar insultos para algum político que aparecia na televisão (coloque a língua para fora, para vermos como ela está preta de tanta mentira que você fala!), Daniel fazia um monte de caretas e gestos enérgicos com a cabeça, indicando a porta e sugerindo que saíssemos dali e fôssemos para outro cômodo da casa. Provavelmente a sala de estar, para um repeteco do esfrega-esfrega.
Eu o ignorava.
Finalmente, porém, meu pai resolveu ir para a cama. Todos nós já estávamos bem altos a essa altura.
— Você vai ficar aqui a noite toda? — papai quis saber, dirigindo-se a Daniel.
— Não — respondeu ele.
— Bem, então, caia fora — enxotou ele, se levantando.
— O senhor se importaria se eu trocasse uma palavrinha com Lucy a sós, Sr. Sullivan? — pediu Daniel.
— Se eu me importaria? Imagine. — E começou a tropeçar nas palavras. — Depois da forma como vocês dois se comportaram na outra noite, é claro que eu me importo.
— Sinto muito pelo que houve — disse Daniel, com humildade — Posso assegurar ao senhor que aquilo não vai tornar a acontecer.
— Promete? — pediu papai, muito sério.
— Prometo — afirmou Daniel, solenemente.
— Tudo bem, então — aceitou papai.
— Obrigado — disse Daniel.
— Veja bem, estou confiando em vocês dois, hein? — completo* papai, balançando o indicador na nossa direção. — Nada de ficar com altas gracinhas, viu?
— Nenhuma — prometeu Daniel. — Não vamos fazer gracinhas de nenhum tipo, nem altas, nem médias, nem baixas.
Papai lançou-lhe um olhar desconfiado, enquanto parecia avaliar se Daniel não o estava levando na brincadeira. Daniel, no entanto, exibiu a expressão mais honesta, do tipo "o senhor pode confiar em mim quanto à sua filha, Sr. Sullivan".
Ainda não completamente convencido, papai foi para a cama.
É claro que eu esperava que Daniel pulasse em cima de mim no instante em que papai fechou a porta. Fiquei meio decepcionada quando isso não aconteceu. Estava louca para lutar contra ele, tentando afastá-lo, para depois ficar a noite toda chamando-o de tarado.
Ele me confundiu toda ao pegar na minha mão com suavidade e falar com carinho.
— Lucy — disse ele. — Preciso conversar com você sobre uma coisa muito importante.
— Ah, claro... — exclamei, com sarcasmo, — Conversar sobre a minha... — risadinha —... moradia.
Conhecia um pretexto de longe, como qualquer mulher.
— Isso mesmo — confirmou ele. — Espero que você não pense que estou me metendo na sua vida. Na verdade eu sei que você vai achar que estou me metendo de qualquer modo, mas, por favor, não entregue as chaves, não abra mão da sua vaga no apartamento assim tão depressa.
Aquilo me derrubou. Eu realmente não estava imaginando que ele viesse mesmo conversar sobre os meus problemas de moradia.
— Mas, por que não? — perguntei.
— O que estou dizendo é que você não deve se precipitar e fazer algo que não vai poder desfazer depois — explicou.
— Eu não estou fazendo isso — argumentei.
— Está sim — afirmou Daniel. Que coragem a dele! — Lucy, você está muito confusa neste momento para tomar uma decisão racional.
— Não, não estou — neguei, já com os olhos cheios de lágrimas. Talvez ele tivesse razão, mas eu não podia reconhecer esse fato
sem brigar um pouco antes.
Tomei um gole bem grande de uísque.
— Não faz sentido algum, faz? — perguntei. — Morar com meu pai e pagar o aluguel de um apartamento no centro?
— Mas pode ser que você não queira mais ficar morando com o seu pai daqui a algum tempo — sugeriu ele.
— Deixe de bobagens — reagi.
— Bem, sua mãe pode resolver voltar para casa. Pode acertar as coisas com o seu pai — disse ele.
Essa idéia me deixou preocupada.
— E pouco provável — explodi.
— Bem, e se acontecer de uma noite você estar na cidade, perder o último metrô para casa e não quiser gastar mil libras de táxi até Uxbridge? Não seria mais sensato ter um cantinho para dormir em Ladbroke Grove? — sugeriu ele.
— Mas, Daniel — argumentei, desesperada —, eu não vou mais fazer noitadas na cidade. Essa parte da minha vida se encerrou. Quer mais uísque?
— Sim, obrigado. Lucy, estou muito preocupado com você — disse ele, exibindo uma cara inquieta.
— Pois não fique — retruquei, chateada e frustrada. — E não me venha com essa cara bonitinha, porque eu não sou uma das suas... das suas... mulheres! Obviamente você não faz idéia da seriedade do que acaba de acontecer com a minha família. Minha mãe abandonou o meu pai e tenho responsabilidades pela frente.
— A mãe de um monte de gente abandona o marido todo dia. E o pai dessas pessoas segue com a vida — garantiu Daniel. — Eles não precisam que as filhas desistam de tudo e passem a agir como se tivessem entrado em um convento.
— Daniel, eu quero fazer isso, não é sacrifício algum. Preciso fazer isso, não tenho outra escolha. Não me importo se não puder mais sair para me divertir. Além do mais, eu já não estava mais me divertindo mesmo.
Meus olhos estavam à beira das lágrimas diante da idéia de tanta bondade e devoção filial.
— Por favor, Lucy, espere pelo menos um ou dois meses. — Ele não pareceu tão comovido com a história quanto eu.
— Ah, tá bom, então... — concordei.
— Isso é uma promessa?
— Acho que sim.
E então levantei os olhos e fitei Daniel bem nos olhos. Nossa, ele era muito bonito, um pedaço de homem. Quase entornei o uísque.
Estava louca para a sessão de assédio começar. Tinha tanta certeza de que ele tinha armado tudo aquilo só para me ver, a fim de tentar ficar de esfregação, que queria só ver se ele ia embora sem pelo menos tentar.
O que fiz em seguida foi algo fora do meu feitio.
Agora, coloco a culpa na quantidade de bebida que tomara. Combinada com o trauma. Somada com o fato de que eu não transava há séculos.
Sabem aquela força de vontade quando estamos a fim de uma pessoa, no duro, mas conseguimos nos segurar porque temos certeza de que não vai ser uma boa? Pois esse tipo de força de vontade não existe na vida real. Pelo menos não no meu caso. O coração sempre governou a minha cabeça.
O tesão sempre governou a minha cabeça.
— Talvez já esteja na hora de eu começar — disse, com a voz mole.
— Começar o quê?
— A me divertir.
De modo intencional, ainda que um pouco instável, eu me levantei, encarei Daniel bem nos olhos e andei em torno da mesa até o lugar em que ele estava. Enquanto ele continuava sentado, olhando meio desconfiado para mim, puxei uma mecha do meu cabelo, colocando-a na frente de um dos olhos, de forma sedutora, rebolei de forma devassa e me sentei no colo dele, colocando os braços em volta de seu pescoço.
Cheguei meu rosto bem perto do dele.
Nossa, ele era lindo! Olhe só para essa boca maravilhosa, Lucy, a qualquer segundo ela vai estar beijando você. Era daquilo que eu precisava, um pouco de sexo descontraído e muito carinho. E quem melhor para isso do que Daniel?
Claro que eu não estava apaixonada por ele. Estava apaixonada pelo Gus. Mas eu era uma mulher, e tinha minhas necessidades. Por que só os homens tinham direito a uma trepadinha sem compromisso? Eu também queria uma dessas, o que quer que isso significasse.
— Lucy, o que está fazendo? — perguntou ele.
— O que está lhe parecendo? — Tentei fazer minha voz soar rouca e sexy.
Ele não me enlaçou com os braços. Eu me agitei e cheguei ainda mais perto dele.
— Olha lá, você prometeu ao seu pai... — Ele parecia preocupado.
— Não, não fui eu. Foi você que prometeu.
— Fui eu? Tudo bem então, eu prometi ao seu pai.
— Você mentiu — disse eu. Novos tons baixos e ardentes. Esse jogo de sedução era muito divertido, decidi. E incrivelmente fácil de armar.
Eu estava doida por aquilo. Ia me divertir como não me divertia há séculos.
— Lucy, não — disse ele.
Não? Não?! Eu estava ouvindo coisas?
Ele se levantou e escorreguei do colo dele.
Caí sentada no chão, ligeiramente tonta. A humilhação devastadora ainda não chegara. Foi impedida de entrar pela minha intoxicação. Com certeza, porém, estava a caminho.
Aquilo era doloroso demais. Daniel podia agarrar qualquer mulher que quisesse. O que havia de errado comigo? Eu não era assim tão repugnante, era?
— Lucy, considero tudo isso um elogio, mas...
Nesse momento fiquei injuriada.
— Elogio?! — rugi. — Não me venha com essa de ser condescendente não, seu cretino. Você gosta de dar, mas não gosta de receber. Flerta comigo e, quando eu pago pra ver, foge da raia.
— Lucy, não se trata disso. Você está muito aborrecida, confusa e seria tirar vantagem...
— Eu decido isso — afirmei
— Olhe, Lucy, sinto muita atração por você...
— Mas não quer transar comigo — terminei a frase por ele.
— Isso mesmo, não quero transar com você.
— Caramba, isso é que é ser humilhada — murmurei
Então, contra-ataquei.
— Qual foi aquela da outra noite? — exigi saber. — Aquela protuberância na sua calça não era um revólver. Você certamente provou que a cobra estava pronta para dar o bote.
O rosto dele se contorceu, e a princípio achei que era de aversão, até que percebi que Daniel estava prendendo o riso.
— Com quem você aprendeu essa expressão, Lucy?
— Com você mesmo, pelo que lembro.
— Sério? Ahn, acho que foi mesmo.
Fez-se um instante de silêncio e olhei para os pés. Eles pareciam ser quatro. Não, dois. Não, eram quatro de novo.
— Lucy, olhe para mim com atenção — persuadiu-me ele, com paciência. — Quero falar uma coisa para você.
Levantei o rosto vermelho de vergonha a fim de olhar para ele.
— Quero deixar bem claro que não quero transar com você — explicou. — Porém, assim que as coisas assentarem e a poeira baixar, você não estiver tão abalada e sua vida não estiver tão tumultuada, eu gostaria de fazer amor com você.
Essa foi muito boa.
Comecei a rir, e ri sem parar.
— Qual foi a graça? — Ele parecia confuso.
— Ah, Daniel, dá um tempo! Que coisa ridícula e safada de se dizer. "Gostaria de fazer amorrr com você, mas não no momento." Por favor, deixe eu gastar um pouco do meu semancol. Consigo sacar quando estou sendo rejeitada.
— Você não está sendo rejeitada!
— Então deixe ver se entendi a coisa direito. Você gostaria de fazer amorrr comigo — imitei a sua voz, com crueldade.
— Isso mesmo — confirmou ele, baixinho.
— Mas não agora. Se isso não é rejeição, não sei o que pode ser. Gargalhei novamente.
Ele me magoara e me humilhara, e eu queria pagar na mesma moeda.
— Por favor, Lucy, me escute...
— Não!
Nesse ponto, ou fiquei mais sóbria ou consegui me acalmar um pouco.
— Olhe, Daniel, sinto muito por tudo o que aconteceu. Não estou com o controle total das minhas faculdades mentais. Foi um erro terrível.
— Não, não foi...
— E agora acho que já está na hora de você ir embora, é um longo caminho até a sua casa.
Ele me olhou com um ar muito triste.
— Você está legal? — perguntou.
— Ah, qual é? Pare de se considerar tão importante — reagi, rabugenta. —Já fui rejeitada por homens muito mais bonitos do que você. Assim que a humilhação suicida passar, vou ficar bem.
Ele abriu a boca para soltar uma nova rodada de lugares-comuns.
— Adeus, Daniel — disse, com firmeza.
Ele me beijou no rosto. Fiquei dura, como se fosse de pedra.
— Ligo para você amanhã — avisou ele, quando chegou à porta
da rua.
Dei de ombros.
As coisas nunca mais seriam as mesmas. Nossa, eu estava deprimida.
No dia seguinte, fiz minha mudança oficial do apartamento de Ladbroke Grove. Charlotte e Karen ficaram na porta, dando-me adeuzinhos, depois de Karen ter me obrigado a deixar uma montanha de cheques pré-datados para garantir o aluguel.
— Adeus, Karen. Pode ser que eu nunca mais veja você — disse eu, na esperança de fazê-la se sentir culpada.
— Ai, não fale assim, Lucy. — Era Charlotte, à beira das lágrimas. Ela era toda sentimental.
— Vamos nos ver sim — replicou Karen —, quando a conta do telefone chegar.
— Minha vida está acabada — afirmei, com frieza.
— Mas — acrescentei —, se o Gus telefonar, não deixem de informar para ele o número lá de casa.
Morar com papai não foi do jeito que imaginei que fosse.
Achei que queríamos as mesmas coisas. Eu ia devotar a minha vida à missão de tomar conta dele e fazê-lo feliz, e ele ia me retribuir, permitindo a si mesmo ser bem cuidado e permanecendo feliz.
Algo, porém, havia saído errado, porque eu não o estava fazendo feliz. Ele nem mesmo parecia querer ficar feliz.
Vivia chorando, e eu não conseguia compreender por quê. Achava que ele devia estar contente por ter se livrado da minha mãe, pois estava bem melhor comigo ali.
Eu não sentia saudades dela e não entendia por que ele sentia.
Eu transbordava de amor e preocupação por ele, e estava bem preparada para fazer qualquer coisa por ele, passar o tempo que fosse necessário com ele, paparicá-lo, cozinhar para ele, trazer-lhe qualquer coisa que quisesse ou de que necessitasse. A única coisa que eu não queria era ouvi-lo dizer o quanto a amara.
Só queria tomar conta dele se ele fosse ficar feliz com isso.
— Talvez ela volte para mim — repetia ele o tempo todo.
— Talvez — murmurava eu, pensando: O que há de errado com ele?
Apesar disso, felizmente, ele jamais fez nada prático para tentar reconquistá-la. Não fez grandes demonstrações de paixão, como ficar do lado de fora da casinha amarela de Ken, berrando desaforos para ele, até acordar os vizinhos. Ou grafitar a porta da frente do rival, pintando a palavra "adúltera" em letras verdes fluorescentes. Ou esvaziar as latas de lixo de toda a vizinhança bem na calçada de Ken, para que, quando ele saísse de manhã, para mais uma árdua jornada de trabalho na tinturaria, acabasse atolado até os tornozelos em cascas de batatas e latas enferrujadas e sujas. Ou fazer um piquete na porta da tinturaria, com cartazes dizendo: "Esse homem roubou a minha mulher. Não lavem suas camisas aqui".
Embora não conseguisse compreender sua dor, eu tentava amenizá-la. Mas tudo o que conseguia fazer era empurrar comida e bebida nele, além de tratá-lo como um convalescente inválido, sugerindo algumas das (poucas) amenidades e distrações oferecidas pela nossa casa. Tipo assim, perguntando a ele, em tom carinhoso, se queria assistir à tevê. Futebol? Novela? Ou sugerindo que ele fosse para a cama descansar um pouco.
Cama e tevê eram as nossas únicas atividades recreativas.
Ele quase não comia, não importa o quanto eu insistisse. Nem eu. Porém, apesar de saber que eu ficaria legal, receava que ele começasse a definhar.
Antes do fim da primeira semana, eu já estava exausta.
Achava que o meu amor por ele serviria para me dar uma energia ilimitada, e que quanto mais ele exigisse de mim, melhor eu ia me sentir, e quanto mais eu fizesse por ele, mais eu ia querer fazer.
Tentei com todas as forças agradá-lo, e isso me desgastou, exigindo uma quantidade absurda de energia.
Eu o observava com avidez, prevendo qualquer necessidade que ele pudesse sentir, e fazia as coisas para ele, mesmo quando ele me assegurava de que não era preciso.
De repente fiquei surpresa ao notar que me sentia um caco.
As menores atividades já representavam uma dificuldade imensa para mim.
Como o fato de eu levar pelo menos uma hora e meia de viagem para o trabalho todas as manhãs. Eu ficara mal acostumada com a viagem de meia hora que fazia quando morava em Ladbroke Grove, lugar onde eu tinha inúmeras linhas de metrô, ônibus e táxis para escolher.
Já havia esquecido como era ter de fazer baldeações entre as linhas ao vir do subúrbio, onde havia apenas um trem disponível e, se eu o perdesse, a espera pelo seguinte seria de vinte minutos.
No passado eu fora uma especialista na antiga arte de escolher as melhores estações de transferência entre as linhas do metrô, para chegar mais rápido. O problema é que eu morara na cidade por muito tempo e perdera a maioria dessas habilidades.
Esquecera como cheirar o ar, olhar para o alto (e para o painel eletrônico) e sentir que o meu trem ia sair em um minuto e não ia dar tempo de comprar o jornal. Já não conseguia sentir as vibrações de uma plataforma lotada e notar em um relance que três trens seguidos passaram lotados e, se estivesse a fim de entrar no seguinte, tinha de começar a empurrar e me espremer entre as pessoas para ficar bem na frente da porta de entrada do que ia chegar.
Eu costumava saber dessas coisas por instinto. Passava de uma linha para outra quase como se estivesse unida em um mesmo corpo com o sistema de trens subterrâneos, ser humano e máquinas trabalhando em sincronia e harmonia perfeitas.
Aquele tempo terminara.
Embora antes eu sempre chegasse atrasada no trabalho, poderia chegar a tempo, se quisesse. Agora, não tinha escolha. Encontrava-me à mercê da companhia do metrô de Londres e seus vários mecanismos para provocar atrasos, objetos obstruindo as linhas, corpos atirados sobre os trilhos, problemas de sinalização e tráfego intenso, ou alguém que esquecera um pacdte cheio de sanduíches de queijo sobre um banco e provocara um alarme de bomba.
Tinha de acordar muito cedo. Antes de a primeira semana terminar, descobri que papai tinha um pequeno problema noturno, e tornou-se óbvio que eu teria de me levantar ainda mais cedo.
No trabalho, eu ficava o tempo todo preocupada com ele, pois logo ficou bem claro que ele não podia ser deixado sozinho em casa por nenhum período de tempo. Tomar conta de papai era parecido com vigiar uma criança. Do mesmo jeito que uma criança, ele não tinha medo nem avaliava as conseqüências dos seus atos. Achava que não havia nada de mais em sair de casa e deixar a porta aberta. Não simplesmente destrancada, mas escancarada. Não que ele tivesse muito o que roubar, mas, enfim...
Assim que eu saía do trabalho, ia voando para casa. Qualquer coisa poderia ter acontecido. Quase todo dia havia uma crise de algum tipo.
Perdi a conta das vezes em que ele dormiu deixando a torneira da banheira aberta ou o gás ligado. Ou uma panela fervendo ou seca, queimando, esquecida sobre uma das bocas do fogão. Ou sentado com o cigarro aceso lentamente incendiando a almofada sobre a qual estava recostado.
Muitas vezes eu chegava do trabalho exausta e encontrava água quente escorrendo e pingando do teto da cozinha. Ou sentia um cheiro de queimado e encontrava uma frigideira toda preta, com o fundo carbonizado, sobre o fogão aceso, enquanto papai dormia a sono solto, desmoronado na poltrona.
Não havia mais noites na cidade para mim. Achei que não ia ligar, e estava envergonhada por descobrir que me importava, sim.
Ir para a cama cedo também não garantia que eu ia dormir o suficiente, porque papai normalmente me acordava no meio da noite e eu tinha de levantar para ajudá-lo.
Papai urinou na cama na primeira noite em que voltei para casa.
A tristeza que senti quase me atirou além dos limites da sanidade.
"Não consigo suportar isso, não consigo!", pensei, desesperada. "Por favor, meu Deus, ajude-me a suportar essa dor."
Testemunhar a perda de toda a dignidade de meu pai era quase insuportável para mim.
Ele me acordou mais ou menos às três da manhã para me contar o que acontecera.
— Sinto muito, Lucy — disse ele, parecendo humilhado. — Sinto muito, me desculpe.
— Está tudo bem — acalmei-o —, pare de se desculpar.
Dei uma rápida olhada em sua cama e vi que não havia condições de ele continuar a dormir ali.
— Por que não vai dormir no quarto dos meninos enquanto, o senhor sabe, limpo a sua cama? — sugeri.
— Pode deixar que eu vou — concordou.
— Então vá — encorajei.
— Você não ficou brava comigo? — perguntou ele, com a voz mansa.
— Brava? — respondi. — Mas por que eu ficaria brava com o senhor?
— Você vai até lá para me dar boa-noite?
— Claro que vou.
Então ele deitou na cama de solteiro de Chris e puxou as cobertas até o queixo, sua pele enrugada de velho cheia de pontas brancas da barba por fazer.
Acariciei seu cabelo grisalho, já ralo, e o beijei na testa, inundada na mesma hora por um forte sentimento de orgulho, e a sensação de o quanto estava cuidando bem dele. Ninguém jamais poderia cuidar de nenhuma pessoa tão bem quanto eu ia cuidar de papai.
Assim que ele tornou a pegar no sono, arranquei os lençóis da cama e os coloquei para lavar. Em seguida, peguei uma bacia com água quente, sabão e desinfetante e esfreguei o colchão com força, para limpá-lo.
A única coisa que me deixou preocupada em toda aquela história foi que, na manhã seguinte, quando papai acordou e se viu na cama de Chris, ficou confuso e assustado. Não sabia como tinha ido parar ali, pois não se lembrava de nada do que acontecera durante a noite.
Quando ele molhou a cama, na noite em que cheguei, achei que aquilo tinha acontecido pelo fato de ele estar chateado, e que se tratava de um evento isolado. Mas não era.
Acontecia quase todas as noites. Às vezes mais de uma vez. Às vezes na cama de Chris também.
Quando isso acontecia, eu fazia com que ele se mudasse para a cama de Peter. Felizmente ele conseguia se segurar e nunca molhou a cama de Peter, porque não havia mais nenhuma cama para onde ele pudesse ir, a não ser a minha.
Ele sempre ia me acordar para me contar o que acontecera e, nas primeiras vezes, eu levantava, o consolava e o trocava de cama.
Depois das primeiras noites eu já estava tão exausta que resolvi deixar a minha limpeza noturna para fazer de manhã, antes de ir para o trabalho.
Eu não podia deixar aquilo sem desinfetar até a noite seguinte, e pedir para papai ajudar na limpeza do colchão estava fora de questão.
Em vez disso, coloquei o despertador para tocar trinta minutos antes da minha nova hora de levantar, que já era terrivelmente cedo. Assim, dava tempo de limpar o que precisasse ser limpo ou lavado a cada manhã.
Quando ele me acordava para avisar que molhara a cama, eu simplesmente o mandava trocar de cama e tentava pegar no sono novamente.
Só que isso era muito difícil, porque ele ficava arrasado, sentindo-se culpado toda vez que aquilo acontecia, e queria conversar, dizendo que estava muito chateado por causa daquilo e queria ter certeza de que eu não estava brava com ele. Às vezes ele ficava nessa cantilena durante horas, chorando e dizendo que era um fracasso, mas ia tentar fazer com que aquilo nunca mais tornasse a acontecer. Por estar tão cansada, eu achava difícil não perder a paciência com ele. Isso, porém, ia arrasá-lo ainda mais, e eu sabia que, se estourasse, ia acabar me sentir corroída pela culpa, por isso ouvia tudo, dormia cada vez menos horas e ficava ainda mais impaciente quando tudo se repetia.
E todas as vezes, como se fossem cochichos no fundo da minha cabeça, me vinha a lembrança do que minha mãe dissera a respeito de ele ser alcoólatra. Vigiava tudo o que ele bebia. E me parecia que era demais. Bem mais do que eu me lembrava de vê-lo beber quando eu era mais jovem. Por outro lado, eu não sabia se estava sendo apenas influenciada pelo que minha mãe dissera, então tentava empurrar essa idéia para fora da cabeça.
Talvez ele realmente estivesse bebendo demais, sim, mas e daí? Sua mulher tinha acabado de abandoná-lo, por que ele não deveria beber?
Rapidamente, desenvolvi uma nova rotina na minha vida.
De noite, ia correndo até a lavanderia para secar os lençóis que deixara para lavar antes de ir para o trabalho. Depois, preparava o jantar dele. Sempre havia alguma pequena crise para resolver, porque papai vivia queimando as coisas, quebrando-as ou perdendo-as.
Não sei bem em que momento o cansaço se transformou em ressentimento. Mantive essa mudança escondida por muito tempo, porque sentia vergonha dela. Usando um poço de sentimento de culpa e orgulho mal colocado, consegui esconder o sentimento até de mim mesma por algum tempo.
Comecei a sentir falta da minha vida antiga.
Queria sair, tomar um porre, ficar acordada até tarde, pegar as roupas de Karen e Charlotte emprestadas e jogar conversa fora com as meninas, especulando se os rapazes eram bem-dotados ou não.
Estava cansada de ficar vigilante o tempo todo, e de sempre ter de estar por perto para ajudar meu pai.
Uma grande parte do problema era o fato de que eu queria ser perfeita para ele. Queria ser a pessoa que tomava conta dele melhor do que qualquer outra.
Só que eu não podia fazer tudo sozinha e, depois de algum tempo, também não queria. Aquilo deixara de ser um desafio e se transformara em um fardo.
Eu tinha consciência de que era uma mulher jovem, e que cuidar de papai não era responsabilidade minha.
Mas preferia morrer a ter de admitir isso.
Tomar conta de nós dois me parecia muito mais difícil do que cuidar apenas de mim. Aquilo era muito mais do que apenas o dobro.
E as despesas eram muito mais do que o dobro também.
Em pouco tempo, o dinheiro se transformou em uma preocupação real. Antes, eu achava que tinha problemas financeiros, sempre sentia que não havia grana suficiente para comprar coisas essenciais, do tipo sapatos novos e roupas. Agora, no entanto, estava aterrorizada por descobrir que não tinha o suficiente nem para cobrir as despesas essenciais do tipo comida para nós dois.
Não conseguia descobrir para onde aquele dinheiro todo estava indo. Pela primeira vez na vida, fiquei com medo de perder o emprego, um medo real.
Tudo se modificara agora que eu tinha um dependente. Subitamente compreendi por que os noivos sempre prometiam durante o casamento "até que a morte nos separe". Deviam estar falando da morte financeira.
Só que eu não era casada com o meu pai.
Era fácil ser generosa com o dinheiro quando eu estava com bastante grana. Jamais imaginei que poderia ter ressentimentos com o meu pai. Sempre achei que, se ele precisasse, eu lhe daria até mesmo a minha roupa do corpo.
Mas isso não era verdade. À medida que o dinheiro ficava mais curto, eu me ressentia de ter de dar alguma grana a ele. Sentia má vontade quando ele dizia para mim todas as manhãs, antes de eu ir para o trabalho: "Lucy, meu amor, dá pra você deixar um dinheirinho em cima da mesa? Umas dez libras, se você tiver."
Ressentia-me com as preocupações. Detestava ter de pegar empréstimos no banco. Não gostava de ficar sem dinheiro para gastar comigo mesma.
E odiava o que aquilo tudo estava fazendo comigo: a mesquinharia de ficar vigiando cada garfada que ele dava, ou ficar vigiando cada garfada que ele não dava. Já que eu me dava ao trabalho de comprar comida para ele e prepará-la, o mínimo que ele podia fazer era comer a droga da comida, pensava, zangada.
Papai recebia auxílio-desemprego a cada duas semanas, mas eu não sabia onde é que ele enfiava o dinheiro. Eu bancava todas as despesas da casa só com o meu salário.
"Será que ele não podia, pelo menos, comprar um litro de leite?", pensava às vezes, com uma raiva impotente.
Comecei a me sentir cada vez mais isolada. Tirando o pessoa! que trabalhava comigo, a única pessoa que eu via era o meu pai.
Nunca mais tornara a sair com os amigos com quem costumava me encontrar. Não havia tempo, porque era muito importante ir direto para casa assim que o expediente terminava. Karen e Charlotte viviam dizendo que iam até lá em casa para me fazer uma visitinha, mas, pelo jeito como falavam, parecia que aquela era uma viagem para um país longínquo. De qualquer modo, era até um alívio que elas não aparecessem. Acho que não ia conseguir fingir que estava feliz por duas horas inteiras.
Morria de saudades de Gus. Criava fantasias nas quais ele aparecia para me resgatar. Só que não havia a mínima chance de eu me encontrar com ele por acaso enquanto estivesse morando em Uxbridge.
A única pessoa da minha outra vida que eu via de vez em quando era Daniel. Ele estava sempre "dando uma passadinha", e eu odiava aquilo.
Todas as vezes que eu atendia a campainha e era Daniel, o meu primeiro pensamento era o quanto ele era grande, sexy e atraente. Então, logo em seguida, pensava na noite em que tentara me jogar para cima dele e ele se recusara a me levar para a cama. Ficava vermelha de vergonha só de lembrar a cena.
Para piorar, como isso já não fosse o suficiente para aturar, ele fazia perguntas constrangedoras o tempo todo:
"Por que você está tão abatida?" e "Você vai até a lavanderia outra vez?" e "Por que as panelas estão todas queimadas e com os cabos quebrados?".
"Posso fazer alguma coisa para ajudar?", Daniel vivia perguntando o tempo todo. Mas o meu orgulho me impedia de contar a ele o quanto as coisas estavam difíceis com o meu pai.
Eu respondia apenas: "Vá embora, Daniel, não há nada para você fazer aqui."
A situação da grana piorou.
A coisa mais sensata a fazer seria desistir da minha parte no apartamento em Ladbroke Grove. Afinal, o que eu tinha a ganhar ajudando a pagar o aluguel de um lugar aonde eu jamais ia?
Subitamente, porém, compreendi que não queria fazer isso e ficava apavorada com a possibilidade de acabar tendo de tomar essa atitude. Meu apartamento no centro era o último elo que eu tinha com a minha antiga vida. Se aquilo desaparecesse, isso seria um sinal de que eu nunca mais voltaria, que ia ficar presa em Uxbridge para sempre.
No fim de algum tempo, por puro desespero, fui fazer uma consulta com o clínico geral do bairro, que, aliás, era o Dr. Thornton, o mesmo homem que me receitara antidepressivos muitos anos antes.
Para todos os efeitos, eu ia em busca de conselhos a respeito do fato de papai molhar a cama toda noite, mas, na realidade, era um velho e simples pedido de socorro. Uma esperança de que ele me dissesse que o fato que eu sabia ser verdade na realidade não era.
Eu detestava ir ao consultório do Dr. Thornton. Não só porque ele era um velho rabugento, que já devia estar aposentado há muitos anos, mas também, principalmente, porque ele achava que toda a nossa família era constituída de malucos. Ele já havia lidado comigo e com a minha depressão. E houve aquela outra vez, quando Peter estava com quinze anos e caiu-lhe nas mãos, por acaso, uma enciclopédia médica. Peter ficou convencido de que tinha todas as doenças que vira no livro. Mamãe ficava com ele para cima e para baixo no ambulatório, enquanto ele ia trilhando de forma hipocondríaca o caminho de todas as doenças, em ordem alfabética. Exibiu sintomas de Acne, Agorafobia, Alzheimer, Angina, Ansiedade e Antrax, até que finalmente alguém o dedurou. Nem mesmo a Acne era real. Embora a Ansiedade fosse verdade, por medo de que a mamãe arrancasse o couro dele.
A sala de espera do médico parecia a ante-sala do Juízo Final, entulhada de gente até as sancas, junto do teto (modo de falar, porque paredes divisórias não têm sancas). Havia um monte de crianças brigando umas com as outras, mães berrando enlouquecidas e velhos tossindo os pulmões para fora.
Quando finalmente me foi concedida uma audiência com Sua Alteza Curandeiríssima, ele estava apoiado na mesa, parecendo exausto e mal-humorado, já com a caneta posicionada sobre o bloco de receitas.
— Em que posso ajudá-la, Lucy? — perguntou, com ar cansado. Eu sabia que o que ele estava querendo dizer na realidade era:
"Eu me lembro de você, menina. Você é uma daquelas malucas da família Sullivan, não é? O que houve, pirou de novo?"
— Bem, na verdade o problema não é comigo — comecei, um pouco hesitante.
Na mesma hora eíe pareceu interessado.
— Trata-se de uma amiga sua? —perguntou ele, esperançoso.
— Mais ou menos — concordei.
— Ela acha que pode estar grávida? — perguntou. — É isso, não é?
— Não, é...
—Ela está com um sangramento misterioso?—interrompeu ele, animado.
— Não, não, nada disso...
— Menstruações muito longas?
— Não...
— Caroço no seio?
— Não — respondi, quase rindo. — Não sou eu, não... sério. Trata-se do meu pai,
— Ah, ele — exclamou ele, meio aborrecido. — Bem, e por que ele não veio? Você não pode simplesmente vir no lugar do doente, não faço diagnósticos virtuais.
— Como assim?
— Já estou farto disso — explodiu. — Agora é tudo na base do telefone celular, da Internet, são só joguinhos de computador e vôos simulados. Nenhum de vocês quer saber mais da realidade.
— Hã... — disse, chocada, sem saber como reagir diante dessa overdose de sarcasmo típica do luddismo,* Ele estava ainda mais excêntrico desde que o vira pela última vez.
— Todos vocês acham que não precisam fazer nada — continuou ele, em voz alta. Seu rosto estava vermelho. — Podem simplesmente ficar sentados em casa, com seus modems e seus computadores, crentes que estão vivendo, achando que não precisam levantar os traseiros preguiçosos da cadeira nem para interagir com outros seres humanos. Basta mandar um e-mail para o médico, descrevendo os sintomas, não é assim?
Eu, hein! Médico, cura-te a ti mesmo. Acho que o Dr. Thornton estava com um parafuso a menos.
De repente, tão subitamente quanto surgira, a agitação desapareceu do seu rosto.
— Muito bem... Diga-me então, o que há de errado com o seu pai? — E suspirou, recostando-se na cadeira.
— É um pouco embaraçoso — disse eu, meio sem graça.
— Por quê?
— Bem, ele não acha que esteja acontecendo alguma coisa de errado com ele... — comecei, tentando relatar com cuidado a complicada história.
— Olhe, se ele não acha que há coisa alguma de errado com ele, e você acha que há, quem está com problema é você — disse o Dr. Thornton, de forma brusca.
— Não, escute, o senhor não está entendendo...
— Estou sim — interrompeu. — Não há nada de errado com Jamsie Sullivan. Se ele parar de beber, vai ficar ótimo.
— Talvez não fique assim tão ótimo — acrescentou, analisando melhor, como se estivesse falando para si mesmo. — Só Deus sabe em que estado o fígado dele está agora. Provavelmente em estado desesperador.
— Mas...
— Lucy, você está me fazendo perder tempo. Estou com uma sala de espera lotada lá fora, gente doente de verdade, que precisa de cuidados. Em vez disso, recebo todas as mulheres da família Sullivan entrando em minha sala como uma praga, em busca de cura para um homem que já decidiu que vai beber até cair duro, mortinho da silva.
— Como assim, todas as mulheres da família Sullivan? — perguntei.
— Você... sua mãe. A sua mãe já é considerada parte da mobília por aqui.
— Sério? — perguntei, com a voz aguda, pega de surpresa.
— Bem, para falar a verdade, agora que estamos falando nela, já não a vejo há algum tempo. Resolveu mandar a filha no lugar, não foi?
— Hã... não foi isso não.
— O que foi então? O que aconteceu?
— Ela largou o meu pai — informei, esperando um olhar compreensivo.
Em vez disso, ele soltou uma gargalhada. Ou quase isso. O Dr. Thornton estava realmente se comportando de uma forma muito estranha.
— Então ela finalmente tomou coragem — disse ele, abafando uma risadinha enquanto eu olhava para ele, com a cabeça meio de lado, perguntando-me o que havia de errado com aquele homem.
E que papo era aquele de dizer que papai resolvera beber até cair duro? Por que o assunto voltava sempre para papai e a bebida?
Alguma coisa no fundo da minha mente começou a descer lentamente e se encaixar no lugar, e isso me assustou.
— E você assumiu a casa a partir do momento em que a sua mãe caiu fora, não foi? — perguntou ele.
— Se o senhor está querendo saber se estou cuidando do meu pai, a resposta é sim — afirmei.
— Lucy, vá para casa — suspirou ele. — Não há nada que você possa fazer pelo seu pai, já tentamos de tudo. Até ele próprio resolver parar de beber, ninguém mais vai poder fazer nada por ele.
Mais coisas se encaixaram na minha cabeça.
— Olhe, o senhor entendeu tudo errado — afirmei, lutando contra uma coisa que eu já sabia que era verdade. — Não vim aqui para falar da bebida dele. Vim consultá-lo porque há uma coisa errada com ele, que não tem nada a ver com bebida.
— Ah, é? O quê? — perguntou o médico, com impaciência.
— Ele anda molhando a cama.
Fez-se silêncio. Aquilo o obrigaria a calar a boca, pensei, nervosa, esperando que fosse verdade.
— Urinar na cama é um problema emocional — continuei, esperançosa. — Não tem. nada a ver com bebida.
— Lucy — ele me olhou com ar sombrio —, isso tem tudo a ver com a bebida.
— Não sei do que o senhor está falando — reagi, sentindo-me enjoada com tanta apreensão. — Não compreendo por que o senhor está me dizendo todas essas coisas sobre o meu pai e a bebida.
— Não sabe? — Ele franziu a testa. — Mas você deve saber, é claro que sabe. Como é que pode morar com ele na mesma casa e não saber?
— Eu não moro com ele — disse —, pelo menos não morava há anos. Acabei de voltar.
— Mas a sua mãe não lhe contou tudo a respeito do...? — perguntou ele, olhando para o meu rosto contorcido de ansiedade. — Ah. Ah, entendo. Ela não contou.
Senti um tremor nas pernas, porque já pressentia o que ele estava prestes a me contar. Aquele era o desastre que andei a vida inteira evitando, e agora estava cara a cara com ele. Esse era o problemão. Quase senti alívio por não poder mais fugir para evitá-lo.
— Bem — suspirou o Dr. Thornton —, seu pai é um alcoólatra crônico.
Meu estômago se retorceu todo. Eu já sabia e, no entanto, não tinha a confirmação final.
— O senhor tem certeza? — perguntei.
— Você realmente não sabia, não é? — perguntou ele, de forma menos mal-humorada.
— Não — disse eu, — Agora, porém, que o senhor está me dizendo, não consigo entender como é que só fui descobrir agora.
— Isso é muito comum — explicou ele, com ar cansado. — Vejo isso o tempo todo, todo mundo sabe que alguma coisa de muito irregular está acontecendo em uma casa e age como se não houvesse nada errado.
— Oh! — exclamei,
— É como se as pessoas tivessem um elefante circulando pela sala de estar. Todos ficam andando na ponta dos pés em volta dele, fingindo que não o enxergam.
— Ah, é? — tornei a exclamar. — Bem, e o que posso fazer?
— Para ser bem franco, Lucy — ele disse —, essa não é bem a minha especialidade. Conheço apenas remédios contra males físicos. Se o seu pai tivesse, digamos, uma unha encravada ou problemas de intestino, eu poderia sugerir um monte de tratamentos. Esse, porém, é um caso de terapia familiar, psicodrama e problemas de relacionamento e confronto. Não é o tipo de coisa com a qual eu esteja familiarizado. Tudo isso apareceu depois que me formei.
— Ah.
é um caso de terapia familiar, psicodrama e problemas de relacionamento e confronto. Não é o tipo de coisa com a qual eu esteja familiarizado. Tudo isso apareceu depois que me formei.
— Ah.
— Mas você está se sentindo bem? — perguntou, esperançoso.
— Esta revelação foi um choque para você? Porque de choque entendo, isso eu sei tratar.
— Vou ficar bem — disse, levantando-me para sair. Precisava sair dali para lidar com as coisas que ele acabara de me contar. Tinha de sair bem depressa.
— Espere um instante — sugeriu ele, falando mais rápido. — Eu posso lhe passar uma receita.
— Receita para o quê? — respondi. — Para um pai novo? Um que não seja alcoólatra?
— Não fique assim.,. — disse ele. — Quer remédios para dormir? Tranqüilizantes? Antidepressivos?
— Não, obrigada.
— Bem, tenho mais uma sugestão que pode ser de alguma ajuda — anunciou ele, pensativo.
Senti a esperança ricochetear dentro do peito.
— Sim? — perguntei, quase sem fôlego.
— Forros de plástico para o colchão.
— Forros de plástico? — perguntei, desanimada.
— Sim, você sabe para que servem, eles evitam que a urina penetre no colchão e...
Saí da sala.
Fui para casa em estado de choque. Quando cheguei, papai estava dormindo sentado, com um buraco de brasa recém-aplicado no braço da poltrona. Ele esticou o pescoço para trás quando entrei.
— Será que você podia dar um pulinho no bar para mim, Lucy?
— pediu ele.
— Tudo bem — concordei, chocada demais para argumentar. — O que quer que eu traga de lá?
— Qualquer coisa que você consiga comprar serve — respondeu ele, humilde.
— Ah, sei... — disse, com frieza. — Então o senhor quer que eu ainda pague pela bebida.
— Bem... — disse ele, com o olhar vago.
— Mas o senhor recebeu o auxílio-desemprego há menos de dois dias — reagi. — O que fez com ele?
— Ah, Lucy. — E riu, de um jeito meio cruel. — Mas você é mesmo igualzinha à sua mãe, cuspida e escarrada.
Saí de casa, abalada e enjoada. Será que eu era igualzinha à minha mãe? Fiquei com aquilo na cabeça. Quando cheguei ao bar, comprei para ele uma garrafa de uísque decente, em vez daquele troço vagabundo do Leste Europeu que ele geralmente consumia. Mas continuava aflita, doida para gastar mais dinheiro com ele, então comprei dois maços de cigarros, quatro barras de chocolate e dois sacos de batatas fritas.
Quando minha despesa atingiu a marca das vinte libras, consegui respirar tranqüila de novo, certa de que a minha extravagância acabara de destruir qualquer semelhança que houvesse entre mim e minha mãe.
Não conseguia parar de pensar no que o Dr. Thornton me contara. Não queria acreditar nele, mas não havia outro jeito. Tentei analisar papai do jeito que costumava vê-lo e, a seguir, sob a luz do alcoolismo, e o ângulo do alcoolismo combinava melhor. Serviu nele como uma luva.
A revelação do Dr. Thornton derrubara o primeiro dominó, e o resto estava caindo sucessivamente, em uma velocidade espantosa.
Como vinho tinto derrubado por sobre uma toalha branca, aquele novo conhecimento foi se espalhando e preenchendo toda a minha vida, de volta às minhas lembranças mais antigas, manchando tudo por dentro.
E as coisas deviam, mesmo, parecer manchadas. Elas estavam manchadas.
Fiquei analisando a minha vida, o meu pai, toda a minha família, virando-a de cabeça para baixo, e de repente tudo fez sentido. Estava detestando enxergar as coisas do jeito que realmente eram.
O pior é que papai começou a me parecer diferente. Como uma pessoa que eu jamais tivesse visto antes. Eu não queria que a imagem do homem que eu amava tanto começasse a oscilar e a desaparecer bem diante dos meus olhos. Precisava amá-lo. Ele era tudo o que me restara.
Continuei a olhar para ele, disfarçadamente, pensando em todas as coisas que haviam acontecido, todos os sinais. Tentei controlar aquilo, ou pelo menos olhar para um pedacinho da minha vida de cada vez, a fim de dosar as partes desagradáveis, dividindo-as em fragmentos fáceis de engolir. Tentava me proteger, para não me sentir massacrada pela perda de tudo.
Mas não conseguia evitar a sensação de vê-lo com outros olhos.
Ele já não me parecia mais tão adorável, bonito, fofinho e divertido. Eu o via bêbado, torto, gaguejante, totalmente incapaz e muito egoísta.
Não queria pensar essas coisas do meu pai, aquilo era insuportável. Ele era a pessoa que eu mais amara no mundo, talvez a única que eu tivesse realmente amado em toda a minha vida. E de repente descobria que a pessoa que eu adorara por tanto tempo nem sequer existia.
Não era de admirar que eu o achasse tão engraçado quando menina. É fácil sermos brincalhões quando estamos bêbados. Não era à toa que ele cantava tanto. Não era de espantar que ele gritasse tanto.
A única coisa que me impedia de pirar era a esperança de que talvez eu pudesse modificá-lo.
Só conseguia admitir para mim mesma, de forma relutante, que ele tinha um problema de bebida se pudesse me convencer de que era um problema solucionável.
Eu já ouvira a respeito de pessoas com problemas de bebidas e que melhoraram. O que eu precisava era descobrir tudo a respeito daquilo. Eu ia cuidar dele. Meu pai conseguiria voltar, curado, e todos viveriam felizes para sempre.
Então resolvi marcar outra consulta com o Dr. Thornton. Estava cheia de esperanças, convencida de que havia um jeito de salvar papai,
— Será que o senhor não pode lhe receitar um remédio para que ele não sinta mais vontade de beber? — perguntei, confiante de que devia existir no mercado um medicamento contra isso.
— Lucy — disse ele —, não posso receitar nada que você possa dar para ele,
— Certo — concordei na mesma hora. — Pode deixar que eu vou trazê-lo até aqui em pessoa, e então o senhor vai poder receitar.
— Não — disse ele, aborrecido. — Você não entendeu. Não existe cura para o alcoolismo.
— Não fale essa palavra.
— Por que não, Lucy? É o nome do problema.
— Mas então... o que vai acontecer?
— Simplesmente ele vai morrer se não parar de beber logo — respondeu o médico.
O medo me deixou zonza.
— Mas, então, temos que fazê-lo parar — disse, desesperada. — Tenho certeza de que já soube de gente que bebia demais e conseguiu parar. Como é que eles conseguiram?
— A única coisa que sei que pode funcionar é o AA — afirmou ele.
— O que é iss...? Ah, o senhor quer dizer os Alcoólicos Anônimos? — perguntei, compreendendo, — Bem, acho que ele não precisa ir até lá. Isto é, aquele lugar é cheio de... de... alcoólatras.
— Exato!
— Mas, não, vamos falar sério. — Quase ri. — Homens fedorentos, com calças presas na cintura por pedaços de corda grossa e sacos plásticos em volta dos pés? Ora, doutor, o meu pai não é nem um pouco desse jeito.
Embora, pensando bem, meu pai vivia com um cheiro meio estranho, parecia não tomar tantos banhos quanto deveria, mas eu não ia contar nada disso ao Dr. Thornton.
— Lucy — disse ele —, alcoólatras existem de todas as formas e tamanhos, homens e mulheres, velhos e jovens, fedorentos e perfumados.
— Sério? — perguntei, cética.
— Sério.
— Até mulheres?
— Sim. Mulheres com casas lindas, maridos, empregos, filhos, roupas chiques, sapatos elegantes, perfumes caros e cabelos maravilhosos... — E parou de falar abruptamente, como se tivesse se lembrado de alguém em particular.
— Mas, quando eles vão a esse lugar, o AA, o que acontece?
— Eles não bebem mais.
— Nunca mais?
— Nunca mais.
— Nem mesmo no Natal, em festas de casamento, nas férias e coisas desse tipo?
— Não.
— Acho que ele não ia topar isso não — declarei, meio em dúvida,
— É tudo ou nada — explicou o médico. — No caso do seu pai, tem que ser nada.
— Tudo bem — suspirei, — Se esta é a nossa única opção, vamos contar a ele a respeito dessa organização, os Alcoólicos Anônimos.
— Lucy — disse o Dr. Thornton, parecendo novamente aborrecido. — Ele sabe do AA. Seu pai já sabe disso há muitos anos.
Tentei trazer o assunto à baila naquela mesma noite, como quem não quer nada. Fiquei tentando rodear a hora de falar sobre aquilo até que, no fim, papai já estava bêbado antes que eu começasse a falar.
— Papai — chamei-o, com a voz meio trêmula —, o senhor não acha que anda bebendo um pouco demais?
Ele apertou os olhos e olhou para mim. Jamais o vira daquela maneira. Ele parecia diferente. Como um velho bêbado, desagradável e cruel, um daqueles que vemos largado pelas ruas, cambaleando, berrando insultos ininteligíveis e tentando bater em todos, mas em situação de tão completa bebedeira que não consegue atingir ninguém.
Ele estava me observando, analisando-me com atenção, como se eu fosse o inimigo.
— Minha mulher acabou de me abandonar — disse, de forma agressiva. — Você vai me negar um drinque depois disso?
— Não — respondi. — Claro que não. Eu não era muito boa nessas coisas.
— Entenda uma coisa, papai — continuei, cautelosa, detestando cada segundo daquela conversa. Eu não era mãe dele, era sua filha. Não era eu que devia estar ralhando com ele, devia ser o contrário.
— O problema é o dinheiro — continuei, quase sem voz.
— Já entendi, já entendi! — reagiu ele, elevando a voz. — Dinheiro, dinheiro, dinheiro. Você é mesmo igualzinha à sua mãe. Então por que não me abandona também? Vá, ande logo, pode ir. A porta é bem ali.
Isso colocou um fim na conversa.
— É claro que não vou abandoná-lo — sussurrei. —Jamais vou abandonar o senhor.
Não ia admitir, de jeito nenhum, que a minha mãe estava certa em fazer o que fez.
Só que, pouco depois desse incidente, papai pareceu piorar muito. Ou talvez eu é que estivesse mais alerta a essa altura. Tornou-se óbvio que ele bebia todas as manhãs. E provocava brigas no pub perto de casa. E umas duas vezes a polícia o trouxe para casa, no meio da noite.
Mesmo assim, eu procurava me segurar. Não podia me deixar esfacelar porque não havia ninguém para ajudar a recolher meus cacos de volta.
Voltei ao Dr. Thornton mais uma vez, e ele simplesmente balançou a cabeça de repente, assim que me viu entrar na sala, e disse:
— Desculpe, mas não inventaram nenhuma cura milagrosa. A não ser que isso tenha acontecido hoje de manhã.
— Não, espere! — disse, nervosa. — Andei lendo a respeito de hipnose. Será que o meu pai não poderia ser hipnotizado para parar de beber? Sabe como é, do mesmo jeito que as pessoas são hipnotizadas para parar de fumar ou de comer chocolates?
— Não, Lucy — assegurou ele, parecendo chateado. — Não há provas científicas de que a hipnose funcione nesses casos, e, mesmo que houvesse, a pessoa que vai ser hipnotizada tem que desejar desistir dos cigarros ou lá o que seja. Seu pai nem ao menos admite que bebe demais, portanto não há a mínima chance de ele chegar à conclusão de que deve parar.
— Além do mais — acrescentou, com um ar presunçoso —, se ele quiser parar de beber, então já estará pronto para o AA.
Virei os olhos para cima. Ele e a droga dos Alcoólicos Anônimos.
— Tudo bem — disse, desencorajada. — Esqueça a hipnose. Que tal acupuntura?
— O que é que tem? — perguntou ele, sem expressão.
— Será que não podíamos fazer isso? Levá-lo a alguém que lhe espete uma agulhinha na orelha? Ou em algum outro lugar?
— Em algum outro lugar pode ser... — murmurou. Achei aquilo detestável.
— Não, Lucy — encerrou ele.
Assim, como último recurso, peguei o telefone dos Alcoólicos Anônimos no catálogo e liguei, a fim de perguntar como eu devia proceder com o meu pai. Embora eles tenham me atendido de forma muito gentil e simpática, disseram-me que não poderiam fazer nada pelo meu pai até o momento em que ele admitisse que tinha um problema. Aquilo me fez lembrar que, realmente, eu já sabia disso de algum lugar, de ouvir falar ou ler em uma revista. E disseram mais uma coisa: se a pessoa admitir que tem um problema, metade do problema já está resolvido. Só que não acreditei naquilo.
— Ora, vamos lá... — argumentei, contrariada. — O pessoal da organização de vocês existe para fazer as pessoas pararem de beber, então vocês devem ter como fazê-lo parar.
— Sinto muito — disse a mulher com quem eu estava falando. — Ninguém pode fazer isso, a não ser ele próprio.
— Mas ele é alcoólatra — explodi. — Ninguém espera que um alcoólatra consiga parar de beber por conta própria.
— Não — concordou ela. — Mesmo assim, eles têm que resolver parar por conta própria.
— Escute, acho que você não compreendeu o problema — expliquei. — Ele sempre teve uma vida muito difícil, a mulher dele acabou de abandoná-lo e, de certa forma, ele tem que beber para superar isso.
— Não, não tem — retrucou ela. De forma gentil.
— Isso é ridículo — exclamei. — Será que posso falar com o seu chefe? Preciso conversar com um especialista no problema. Meu pai é um caso muito especial.
Ela riu. Isso me deixou ainda mais chateada.
— Todos nós achávamos que éramos casos muito especiais — disse ela. — Se eu tivesse ganho um centavo para cada alcoólatra que já me falou isso, estaria rica.
— Do que você está falando? — perguntei, com frieza.
— Bem, eu sou alcoólatra — explicou ela.
— É mesmo? — perguntei, surpresa. — Sua voz não demonstra.
— E como você acha que a minha voz deveria parecer? — perguntou ela.
— Bem... devia parecer arrastada, meio bêbada, imagino.
— Não tomo um drinque sequer há muito tempo, quase dois anos — explicou ela.
— Nadinha?
— Nadinha.
— Ah, fala sério... nadinha mesmo?
— Não. Nadinha mesmo.
Ela não devia beber muito, pensei, se conseguiu se manter abstêmia por dois anos. Provavelmente era aquele tipo de pessoa que bebe umas quatro doses de sidra na sexta-feira à noite.
— Olha, eu lhe agradeço — disse eu, já me preparando para desligar. — Acho que o meu pai não é nem um pouco como você. Ele bebe uísque, e começa a beber logo de manhã cedo — expliquei, quase como se estivesse contando vantagem. — Para ele ia ser muito mais difícil parar. Jamais conseguiria ficar sem uma dose de bebida por dois anos.
— Eu começava a beber logo de manhã cedo — afirmou a mulher.
Engoli em seco. Não acreditava nela.
— Meu drinque favorito era conhaque. Puro — continuou ela.
— Uma garrafa por dia — acrescentou quando viu que eu continuava sem dizer nada. — Não era nem um pouco diferente do seu pai.
— Mas ele é velho... — expliquei, em desespero. — Você não me parece velha.
— Há gente de todas as idades no AA. Muitas pessoas aqui são velhas. Olha, posso enviar alguém até aí para conversar com o seu pai — sugeriu.
Só que pensei na mesma hora no quanto ele ficaria zangado por causa daquilo, e como ia se sentir humilhado, e achei melhor não.
Nesse momento, ela me deu o telefone de outro grupo chamado Al-Anon, e disse que era uma organização que auxiliava amigos e familiares de alcoólatras, e que eles poderiam me ajudar.
Assim, como último recurso, liguei para eles. Cheguei até mesmo a ir a uma de suas reuniões, na expectativa de receber todo tipo de dica para ajudar papai a parar de beber: como esconder a birita em pontos estratégicos da casa, como batizar as bebidas, completando-as com água, como persuadi-lo a ficar sem beber até depois das oito da noite, esse tipo de coisa.
Fiquei revoltada ao ver que não havia nada desse tipo.
Todos ali ficavam falando o tempo todo sobre como estavam tentando abandonar o marido alcoólatra, namorado, esposa, filha, amigo ou sei lá mais quem a ficar por conta própria, para que eles próprios conseguissem viver as suas vidas. Um sujeito falou sobre a sua mãe, que vivia bêbada, e como ele sempre acabava se apaixonando perdidamente por mulheres que também tinham problemas com a bebida.
Todos falavam de uma coisa chamada "co-dependência", conceito que eu conhecia, por ter lido tantos livros de auto-ajuda, mas não conseguia enxergar como poderia ser aplicado ao meu caso e ao de meu pai.
— Você não pode modificar o seu pai — disse-me uma mulher. — Ao fazer isso, você está apenas tentando evitar os próprios problemas.
— Mas o meu pai é o meu problema — retruquei, com cara de ofendida.
— Não, não é — rebateu ela.
— Como vocês podem ser tão insensíveis? — perguntei. — Eu amo o meu pai.
— Você não acha que tem direito a uma vida melhor? — quis saber ela.
— Mas não posso simplesmente abandoná-lo — continuei, falando com firmeza.
— Isso talvez seja a melhor coisa que você vai fazer, em toda a sua vida.
— A culpa ia me matar — argumentei, com cara de santa.
— Culpa é apenas auto-indulgência — disse ela.
— Como ousa dizer isso? — reclamei. — Não faço idéia do que você está falando.
— Fui casada com um alcoólatra — informou ela. — Sei exatamente o que você está enfrentando.
— Sou apenas uma pessoa normal que, por acaso, tem um pai com problemas com a bebida. Não sou como vocês, que são um bando de...de...perdedores que precisam vir a reuniões idiotas como essa para conversar sobre como vão fazer para se livrar do alcoólatra que existe em suas vidas.
— Foi exatamente isso o que eu disse logo que vim para cá —rebateu ela.
— Meu Deus — repliquei, zangada. — Tudo o que quero é ajudá-lo a parar de beber. O que há de tão errado nisso?
— O que há de errado é que você não pode ajudá-lo — respondeu ela. — Você é totalmente impotente com relação a ele e ao álcool que ele consome. Mas não é impotente com relação à sua vida.
— Eu tenho responsabilidades.
— Com você mesma. As coisas nunca são assim tão simples. Quando a pessoa parar de beber, o co-dependente não fica automaticamente bem.
— O que quer dizer com isso?
— Bem, que tipo de relacionamento você tem com outros homens?
Não respondi.
— Muitas mulheres como nós — continuou ela — passam um sufoco para conseguir relacionamentos felizes.
— Eu não sou uma mulher como você — disse, em tom de deboche.
— Você ficaria abismada ao descobrir quantas de nós têm o tipo errado de relacionamentos, sempre com o tipo errado de homens — disse ela, com delicadeza. — Isso é devido ao fato de que as nossas expectativas no relacionamento sempre se baseiam no que aprendemos convivendo com o álcool em nossas vidas.
— Olhe, vou lhe dar o meu telefone — completou. — Ligue para mim se precisar conversar com alguém. A qualquer hora.
Fui embora sem pegar o número.
Mais um caminho explorado. Mais um beco sem saída.
Agora, o que é que eu ia fazer?
Tentei dar menos dinheiro ao meu pai. Mas ele implorava, chorava, e a culpa que eu sentia era tão horrível que acabava entregando-lhe a quantia que ele pedia, mesmo sabendo que eu de fato não tinha aquele dinheiro.
Oscilava entre a sensação de estar furiosa e uma tristeza tão profunda que parecia que o meu coração ia se partir. Às vezes eu odiava o meu pai, e às vezes o amava.
Fui me sentindo cada vez mais aprisionada e desesperada.
O Natal foi horrível. Não pude ir a nenhuma das centenas de festas e porres coletivos para os quais fui convidada. Enquanto todo mundo usava roupas curtas, pretas e cintilantes (inclusive alguns homens), eu estava no trem, a caminho de casa, em Uxbridge. Enquanto todas as garotas estavam metendo o pau no chefe, ou se agarrando com ele, eu estava em casa, pedindo pelo amor de Deus a papai que ele voltasse para a cama, garantindo-lhe que não tinha importância que ele tivesse molhado a cama mais uma vez.
Acho que minha fada madrinha deve ter entendido errado as instruções, porque, em vez de ela me dizer "você vai dançar no salão a noite toda!", ela falou "você vai limpar o xixi do salão a noite toda!".
Mesmo que eu tivesse alguma outra pessoa que tomasse conta de papai, não dava para eu ir a lugar nenhum, porque estava dura demais para pagar uma rodada de drinques.
Papai começou a beber ainda mais, animado pela época das festas de fim de ano. Não sei exatamente por que aconteceu isso. Afinal de contas, ele não precisava de um pretexto para beber mais.
Para piorar o meu estado de autopiedade, só recebi dois cartões de Natal. Um de Daniel e outro de Adrian, da locadora.
O Dia de Natal propriamente dito foi o pior de todos. Chris e Peter não apareceram nem para me ver nem para ver papai.
— Não quero que pareça que estou tomando partido. — Foi a desculpa de Chris.
— Não quero deixar mãezinha chateada. — Foi a desculpa de Al Jolson, isto é, de Peter.
Foi um dia horrível. A melhor coisa que aconteceu é que papai já estava quase em coma alcoólico às onze da manhã.
Estava tão desesperada para ter alguém com quem conversar e desabafar, qualquer pessoa que servisse para diluir a presença de papai, que me senti quase ansiosa para voltar ao trabalho.
Já que o Natal fora tão terrível, eu, tolamente, esperava a chegada do Ano-Novo com um pouco mais de esperança.
No dia 4 de janeiro, porém, papai embarcou em um porre federal, um dos maiores das últimas semanas. Ele obviamente planejara com cuidado a forma de obter a grana para a bebida, porque, quando tentei comprar um pacote de jujubas no caminho do trabalho, vi que todo o meu dinheiro sumira da bolsa. Poderia ter corrido de volta para casa e tentado evitar que ele bebesse a grana toda, porém, por algum motivo, não quis me dar àquele trabalho.
Ao chegar à cidade, tentei sacar um pouco de dinheiro em um caixa eletrônico, mas a máquina engoliu o meu cartão. "Você está com sua conta no vermelho, espantosamente além do limite, entre em contato com o seu gerente o mais rápido possível", era o que a mensagem piscava na tela. Jamais farei isso, pensei. Se eles me querem, vão ter de vir até aqui para me pegar (jamais conseguirão me agarrar com vida etc. etc).
Tive de pedir dez libras emprestadas a Megan.
Ao voltar para casa, encontrei debaixo da porta uma carta oficial com palavras ameaçadoras. Era do meu banco, instruindo-me a devolver o talão de cheques imediatamente.
As coisas começaram a escapar ao meu controle. Tentava superar o medo glacial que crescia dentro de mim. Onde tudo aquilo ia parar?
Ao me encaminhar para a cozinha, alguma coisa estalou debaixo dos meus sapatos. Olhei para baixo e vi que todo o carpete da sala estava coberto de cacos de vidro. O piso da cozinha também. A mesa estava cheia de cacos, pratos quebrados, pires e tigelas. No quarto da frente, o tampo de vidro fume da mesinha lateral estava em mil pedacinhos, livros e fitas estavam todos espalhados pelo cômodo. Toda a parte de baixo da casa (ou o que sobrara dela) estava em pedaços.
Obra de papai.
Ele já ensaiara algumas sessões de quebradeira antes, mas nada tão espetacular quanto aquilo.
Naturalmente, ele não estava em parte alguma.
Fui da cozinha para o quarto da frente e voltei para a cozinha outra vez, sem conseguir acreditar na extensão dos estragos. Se alguma coisa era quebrável, ele a quebrara. Mesmo que não fosse que-brável, ele tentara quebrá-la. Havia uma bacia amarela, de plástico, no chão da cozinha, e papai tinha, pelo jeito, tentado destruí-la de todas as formas, a julgar pela borda cheia de pontas e dobras. No quarto da frente havia uma prateleira cheia de medonhos bibelôs de porcelana, cãezinhos, meninos e sinos, dos quais minha mãe gostava tanto. Pois o meu pai eliminara todos da face da Terra. Senti uma fisgada de tristeza pela minha mãe. Ele sabia muito bem o que aquelas pecínhas significavam para ela.
Nem consegui chorar. Simplesmente comecei a limpar tudo.
Quando estava agachada, recolhendo os caquinhos de porcelana quebrada de cima do carpete, o telefone tocou. Era a polícia, informando que papai acabara de ser preso. Fui cordialmente convidada a ir até a delegacia para soltá-lo, sob fiança.
Estava sem dinheiro e sem energia.
Resolvi chorar.
Depois, decidi ligar para Daniel.
Milagrosamente, ele estava em casa. Não sei o que teria feito se ele não estivesse.
Eu estava chorando tanto ao telefone que ele não conseguiu entender nada do que eu estava dizendo.
— É o papai, — Chorava, sem conseguir falar direito.
— O que aconteceu com ele?
— Nada... tudo.
— Lucy, o que houve, afinal? Aconteceu ou não alguma coisa com ele?
— Ai, pelo amor de Deus, dá pra você vir até aqui agora mesmo?
— Vou o mais rápido que puder — prometeu ele.
— Traga um monte de dinheiro — acrescentei.
Ele chegou dois cãezinhos de porcelana, um sininho e meia mesinha mais tarde.
— Desculpe a demora, Lucy — pediu ele, assim que abri a porta. — Custei a compreender você. É algum problema com o seu pai?
Ele chegou mais perto para colocar os braços em volta de mim, mas eu me afastei, meio zonza. A última coisa que minha panela fervente de emoções precisava era de um acesso de atração sexual.
— Foi sim, um problema com o meu pai — confirmei enquanto as lágrimas escorriam pelo meu rosto. — Ele está...
— Ferido? — completou ele, para mim. — Sei, deu para perceber que era algo desse tipo. Desculpe, mas não deu para entender muita coisa, mas... nossa. O que aconteceu nesta casa? Um terremoto?
— Não, é que...
— Vocês foram assaltados. Não toque em coisa alguma, Lucy.
— Não, nós não fomos assaltados porcaria nenhuma — explodi, com nova crise de choro. — Aquele idiota, canalha e bêbado do meu pai é que destruiu todas essas coisas.
— Não acredito, Lucy. — Ele parecia horrorizado de verdade, o que fez com que eu me sentisse ainda pior.
— Mas, por quê? — perguntou Daniel, passando as mãos pelos cabelos.
— Sei lá. Mas as coisas ficaram ainda piores. Ele foi preso.
— Desde quando a polícia prende uma pessoa por quebrar coisas na própria casa? Nossa, este país está se parecendo cada dia mais com uma grande delegacia. Qualquer dia vai ser considerado ilegal deixar a torrada queimar ou então comer sorvete direto da caixa, e...
— Cale a boca, seu liberal de araque, leitor de jornais conservadores. — E comecei a rir, sem conseguir evitar. — Ele não foi preso por quebrar bibelôs. Nem sei o motivo de sua prisão, mas tremo só de pensar.
— Então ele vai ter que ser solto sob fiança?
— Isso mesmo.
— Certo, Lucy, direto para o fodomóvel. Vamos salvá-lo. Papai tinha sido acusado de um milhão de coisas. Bebedeira,
causar desordem nas ruas, provocar tumultos, acarretar danos à propriedade alheia, tentativa de agressão, comportamento obsceno, e a lista seguia, interminável. Jamais imaginei que chegaria o dia em que eu ia ter de comparecer a uma delegacia para liberar meu próprio pai sob fiança, depois de sua prisão.
Quando papai foi libertado da cela, estava manso como um cor-deirinho, toda a energia e agressividade se fora. Daniel e eu o levamos para casa e o colocamos na cama.
Então, preparei uma xícara de chá para Daniel.
— Muito bem, Lucy... e agora, o que nós vamos fazer a respeito disso? — perguntou ele.
— Nós? "Nós" quem? — perguntei, na defensiva.
— Você e eu.
— O que isso tudo tem a ver com você?
— Pelo menos uma vez na vida, Lucy, só essa vezinha, será que dá para você parar de entrar em confronto comigo? Estou apenas querendo ajudar.
— Não quero a sua ajuda.
— Quer sim — afirmou ele. — Se não quisesse, não teria me telefonado. Não é vergonha alguma, Lucy — acrescentou. — Não há necessidade de você se mostrar tão melindrada.
— Você também ficaria melindrado se o seu pai fosse alcoólatra — exclamei, enquanto as lágrimas me escorriam pelo rosto novamente. — Bem, talvez ele não seja propriamente alcoólatra e...
— Ele é alcoólatra. — Daniel estava com ar sombrio.
— Pode chamá-lo do que quiser — solucei. — Estou cagando e andando para ele ser alcoólatra ou não. Tudo o que sei é que meu pai é um bêbado que está arruinando a minha vida.
Solucei por mais algum tempo, colocando para fora o fardo de meses e meses de estresse, e deixei tudo escorrer rosto abaixo.
— Você sabia? — perguntei a Daniel. — Já sabia a respeito do meu pai?
— Hã, eu... já.
— Mas como?
— Chris me contou.
— E por que ninguém contou para mim?
— Eles contaram.
— Bem, então por que ninguém veio me ajudar?
— Eles tentaram. Você não deixou.
— E o que vou fazer agora?
— Que tal sair fora e deixar outra pessoa tomando conta dele?
— Ah, isso não — reagi, com medo.
— Tudo bem. Se você não quiser se mudar daqui, não precisa fazer isso, mas há um monte de gente que tem condições de ajudá-la. Além dos seus irmãos, há pessoas que vêm prestar esse serviço em casa, assistentes sociais, empresas de cuidados domiciliares e vários profissionais desse tipo. Você vai continuar sendo capaz de cuidar dele, mas não precisa mais fazer isso sozinha.
— Vou pensar no assunto.
À meia-noite, enquanto Daniel e eu ainda estávamos sentados, com cara desgostosa, à mesa da cozinha, o telefone tocou.
— O que será agora? — perguntei, receosa.
— Alô? — atendi.
— Será que eu poderia falar com Lucy Sullivan? — gritou uma voz que me pareceu familiar.
— Gus? — perguntei, sentindo a alegria me inundar por dentro.
— Aqui fala o próprio — berrou ele.
— Oi!! — Fiquei com vontade de sair dançando. — Como foi que você conseguiu meu telefone?
— Encontrei aquela branqueia loura com cara de assustada no McMullens, e ela me contou que você estava morando onde Judas perdeu as botas. E, veja só... não é que tenho pensado muito em você e sentido saudades?
— Sério? — Estava quase chorando de alegria.
— Sério, Lucy. Então eu falei para ela: "Diga para mim o número do telefone da Lucy, que vou ligar e convidá-la para dar uma saída comigo." Portanto, aqui estou, Lucy, ligando e convidando você para dar uma saída comigo.
— Que ótimo — disse, maravilhada. — Eu adoraria me encontrar com você.
— Então está certo. Fale qual é o seu endereço e eu vou para aí já, já.
— Você quer dizer, neste instante?
— E quando mais?
— Olhe, agora não é um bom momento, Gus. — Eu me senti muito ingrata.
— Bem, quando pode ser, então?
— Depois de amanhã,
— Combinado. Quinta-feira, depois do seu trabalho. Eu passo lá para pegar você.
— Ótimo.
Desliguei e me virei para Daniel, com os olhos brilhando.
— Era o Gus — informei, quase sem fôlego.
— Deu pra sacar.
— Ele estava pensando em mim.
— Estava, é?...
— Quer me ver.
— Que sorte a dele você ser tão compreensiva.
— Por que você está tão pau da vida, hein?
— Será que não lhe ocorreu fazer um pouco de jogo duro com ele, Lucy? Eu ficaria mais satisfeito se você não tivesse cedido assim tão fácil.
— Daniel, o fato de Gus ter ligado foi a melhor coisa que me aconteceu em muitos meses. Não estou com energia para ficar brincando de joguinhos com ele.
Daniel deu um sorriso rápido e tenso.
— Então é melhor preparar toda a sua energia para brincar de joguinhos com ele na quinta à noite — avisou ele, bem direto.
— E daí se isso acontecer? — perguntei, zangada. — Eu tenho direito a uma boa transa, sabia? Por que você está com esse papo de pai antiquado pra cima de mim?
— Porque você merece muito mais do que ele. E levantou-se da cadeira, perguntando:
— Tem certeza de que não precisa que eu passe a noite aqui?
— Tenho sim, obrigada.
— E você vai pensar sobre aquilo que eu disse, a respeito de arrumar ajuda para cuidar do seu pai?
— Tá, vou pensar.
— Eu ligo amanhã. Até logo.
Quando ele se inclinou para me dar um beijo... no rosto... eu disse:
— Ahn... Daniel... dá para você me emprestar alguma grana?
— Quanto?
— Ahn... vinte, se você puder. Ele me deu sessenta libras.
— Divirta-se com Gus — disse ao sair.
— Este dinheiro não é para gastar com Gus — repliquei, na defensiva.
— Eu não disse que era.
Fiquei além da empolgação só de pensar que ia rever o Gus. Obviamente, pelo fato de eu ter estado fora de circulação por uns três meses, um pouco da animação era devido à velha síndrome do confinamento. Mas não se tratava disso, apenas. Eu ainda era louca por ele. Jamais perdera as esperanças de que as coisas poderiam dar certo para nós. Estava tão animada que consegui deixar minhas preocupações com meu pai em compasso de espera.
Quando contei ao pessoal do escritório que ia me encontrar com Gus, foi um rebuliço. Meredia e Jed soltaram um suspiro de alegria, depois deram os braços um ao outro e vieram pulando pela sala, derrubando uma cadeira pelo caminho. Então, ao mudar de direção, o generoso quadril de Meredia esbarrou em um porta-objetos que saiu voando e foi parar no chão, espalhando clipes, rolos de fita adesiva, canetas e marca-textos por toda parte.
Eles ficaram quase tão agitados quanto eu, provavelmente porque tanto sua vida social quanto a romântica andavam monótonas, como a minha, e eles estavam contentes por algum tipo de diversão, pessoal ou por tabela.
Só Megan pareceu não gostar da notícia.
— Gus? — perguntou ela. — Você vai tornar a sair com Gus} O que aconteceu? Onde foi que você o achou?
— Eu não o achei, ele ligou para mim.
— Ele é um canalha mesmo — exclamou.
Houve um coro de discordância em uníssono de todos nós.
— Não, ele não é canalha não! — berrou Meredia.
— Deixe-o em paz, ele é um grande sujeito! — gritou Jed.
— Então, o que houve? — quis saber Megan, ignorando-os. — Ele ligou para você... e depois?
— Pediu para sair comigo — disse eu.
— E explicou o porquê desse pedido? — interrogou ela. — Ele falou o que queria de você?
— Não.
— E você vai se encontrar com ele?
— Vou.
— Quando?
— Amanhã.
— Podemos ir junto? — implorou Meredia, enquanto se agachava para recolher um monte de grampos do chão.
— Não, Meredia, dessa vez não — determinei.
— Não acontece nada de interessante conosco — reclamou ela, fazendo beicinho.
— Ah, não diga isso — lembrou Jed, de forma jovial, tentando animá-la. — E quanto à simulação de incêndio?
Tínhamos passado por uma simulação de incêndio no prédio, uma semana antes, e, para ser justa, foi muito divertido. Especialmente porque fomos avisados por antecipação. É que Gary, do Departamento de Segurança do edifício, deu a dica para Megan, em uma inútil tentativa de conseguir algum avanço em suas investidas sexuais sobre ela. Assim, duas horas antes de o alarme disparar, já estávamos com os casacos, bolsas e sacolas prontinhos, em cima da mesa, preparados para a largada.
De acordo com o memorando que circulara algum tempo antes, eu deveria ser monitora no caso de combate a incêndios, mas não tinha a menor idéia de como proceder, e ninguém me explicou nada. Assim, em vez de ficar por ali, aproveitamos a muvuca completa que se instalou e fomos correndo para a Oxford Street, a fim de visitar algumas lojas de sapatos.
— Não se encontre com ele, Lucy — disse Megan. Parecia preocupada.
— Está tudo bem — tranqüilizei-a, comovida por sua atitude protetora. — Eu sei cuidar de mim.
Mas ela balançou a cabeça, afirmando:
— Ele não é flor que se cheire, Lucy.
E em seguida permaneceu estranhamente calada.
No dia seguinte, quando Jed chegou para trabalhar, informou que não conseguira pregar o olho a noite toda, de tanta empolgação. Depois, reclamou o dia inteiro que estava com friozinhos na barriga.
Fez questão de examinar cuidadosamente minha aparência, antes de meu encontro com Gus.
— Boa sorte, agente Sullivan — desejou-me. — Todos nós contamos com você.
Já fazia muito tempo desde que eu me sentira assim tão jovem e feliz. Como se a vida apresentasse novas possibilidades.
Gus estava me esperando do lado de fora do prédio, e dava a impressão de estar trocando insultos com Winston e Harry (depois descobri que estava mesmo). Assim que eu o vi, meu estômago deu uma cambalhota. Ele estava lindo, com o cabelo preto e brilhante caindo por sobre os olhos verdes.
Os quatro meses que haviam se passado não prejudicaram em nada o seu jeito atraente.
— Lucy! — berrou ele assim que me viu, e veio caminhando lentamente na minha direção, com um balanço sexy, abrindo os braços.
— Gus — sorri, quase sem fôlego, torcendo para que ele não reparasse que as minhas pernas estavam tremendo de excitação e nervoso.
Ele atirou os braços em torno do meu corpo e me abraçou com força, mas a minha felicidade, já pronta para decolar, freou bruscamente ao sentir o cheiro de álcool que emanava dele.
Não era nem um pouco estranho para Gus feder a álcool. Na verdade, era mais estranho quando ele não fedia a álcool. Aquela era uma das coisas que eu achava atraente nele.
Ou, melhor, havia, no passado, achado atraente nele.
Pelo jeito, aquilo mudara em mim.
Por um momento senti uma fisgada bem definida de raiva: se eu estivesse a fim de passar a noite com um bêbado fedorento, poderia ter ficado em casa mesmo, com papai. Minha noitada com Gus era para ser a Grande Escapada, e não uma figurinha repetida.
Ele recuou um pouco para poder me olhar melhor, mas manteve os braços em volta de mim enquanto sorria, sorria, sorria sem parar.
Acabei me animando.
Estava tonta por me sentir assim tão perto dele, apenas a um beijo de distância daquele rosto lindo e sexy.
Estou com Gus, pensei, sem acreditar. Estou com o homem dos meus sonhos nos braços.
— Vamos beber alguma coisa, Lucy — sugeriu ele.
Senti aquela sensação de novo, uma fisgada de aborrecimento.
Ora, surpresa!... surpresa!, pensei, chateada. Imaginara que íamos fazer alguma coisa mais criativa na noite da nossa reconciliação. Eu era mesmo uma idiota.
— Vamos lá! — Ele me agarrou e começou a caminhar bem depressa. Para falar a verdade, ele quase saiu correndo. Devia estar doido para tomar um drinque, pensei, enquanto eu tropeçava, correndo atrás dele. Chegamos a um pub próximo, onde já havíamos estado uma montanha de vezes no passado. Era um dos pubs favoritos de Gus, ele conhecia o barman e quase toda a clientela.
Ao passar pela porta, atrás do apressado Gus, subitamente me dei conta... Eu odeio este pub. Jamais reparara naquilo antes, mas sempre me sentira pouco à vontade ali.
O lugar era sujo e ninguém limpava as mesas, nunca. Vivia cheio de homens que ficavam me encarando sempre que eu entrava, e os atendentes eram extremamente grosseiros com as mulheres. Ou talvez agissem assim apenas comigo.
Tentei manter uma atitude positiva, porém.
Estava ali com Gus, e ele continuava lindo. Era uma graça, muito divertido e sexy. Apesar de continuar usando aquele casaco de pele de carneiro medonho, que eu suspeitava que tinha pulgas.
Houve uma momentânea quebra da tradição no momento em que Gus pediu o primeiro drinque: foi ele que pagou.
E transformou aquele gesto em uma superprodução cheia de efeitos especiais.
Foi assim:
Naturalmente, assim que nós entramos, sentamo-nos à mesa e eu peguei a bolsa na mesma hora, como sempre fazia quando estava com Gus. Quando estava com todo mundo, lembrei, com ar sombrio. Em vez de me dizer o que queria beber, como normalmente fazia, ele deu um pulo e só faltou rugir, dizendo:
— NÃO, NÃO! De jeito nenhum!
— O que foi? — perguntei, meio irritada.
— Guarde o seu dinheiro, guarde o seu dinheiro — disse, fazendo amplos gestos com o braço e acenando para mim no estilo "deixe que eu pago", do mesmo jeito que os tios bêbados fazem em casamentos. — Essa rodada é por minha conta!
Aquilo foi como um raio de sol que saía das nuvens. Gus tinha dinheiro. Era um sinal que significava que tudo ia acabar bem, que Gus ia cuidar direitinho de mim.
— Está bem — sorri.
— Não, eu insisto — disse, falando mais alto, fazendo movimentos com as mãos para a frente e para trás na direção da minha bolsa.
— O.k. — disse eu.
— Vou me sentir insultado se você não me deixar pagar a bebida. Vou considerar uma ofensa pessoal se você não me permitir pagar essa rodada — insistiu ele, magnânimo.
—- Gus —- disse eu. — Eu não estou discutindo.
— Oh... oh... tudo bem, então. — E pareceu meio decepcionado. — O que você vai querer?
— Um gim-tônica — murmurei, humilde,
Ele voltou logo depois com o meu gim, uma tulipa de cerveja e uma dose de uísque para ele.
Seu rosto estava contorcido de indignação.
— Puxa vida — reclamou. — Isso é roubo em plena luz do dia. Sabe quanto é que me cobraram por esse gim-tônica?
Muito menos do que vou ter de gastar para pagar a próxima rodada, pensei. Por que será que ele precisava sempre tomar dois drinques de cada vez, quando todo mundo tomava apenas um?
Tudo o que respondi, porém, foi um fraco "desculpe", porque eu não queria arruinar a noite com a qual sonhara tanto.
O mau humor dele não durou muito. Nunca durava.
— Saúde, Lucy. — Sorriu, brindando com a tulipa dele de encontro ao meu gim de custo exorbitante.
— Saúde. — Acompanhei, tentando aparentar sinceridade.
— Bebo, logo existo -— filosofou ele, dando um sorriso e bebendo metade da cerveja de um gole só.
Sorri, mas tive de fazer um esforço. Normalmente eu adorava as observações geniais que ele fazia, mas não naquela noite.
As coisas não estavam caminhando do jeito que eu imaginara.
Eu não sabia exatamente o que conversar com Gus, e ele, pelo jeito, nem queria se dar ao trabalho de falar também. Antes, sempre tínhamos um monte de coisas sobre o que conversar, lembrei, com melancolia. De repente, ali havia apenas um clima estranho e silêncios tensos, pelo menos de minha parte.
Queria desesperadamente que tudo desse certo, queria forçar as coisas para quebrar aquela barreira de tensão, mas não estava com disposição nem de dar a partida na conversa.
Gus também não fazia esforço algum nesse sentido. Na verdade, ele nem parecia estar reparando no silêncio. Não estava reparando em mim também, conforme descobri depois de algum tempo.
Era um homem em paz consigo mesmo e com o mundo, bem acomodado em sua cadeira, com seus drinques e seus cigarros, confortável, satisfeito com tudo aquilo, inspecionando o pub, acenando com a cabeça e piscando para as pessoas que conhecia, um espectador do mundo.
Tão relaxado quanto um lagarto ao sol.
Sorrindo, ele matou os dois drinques em uma velocidade recorde, foi até o bar e voltou com mais duas doses.
Nem ao menos me ofereceu uma bebida. Nem uma dose pequena. Por falar nisso, agora que eu estava lembrando o fato, ele quase nunca havia me oferecido coisa alguma. Só que eu não me lembrava de ter me incomodado com aquilo antes. Bem, certamente me sentia incomodada naquele momento.
Ficamos sentados ali, calados, eu sem dizer uma palavra, muda devido às minhas expectativas não alcançadas, enquanto ele bebia seus dois drinques e fumava um cigarro. De repente, entornou de um só gole o que restava da cerveja e, antes mesmo de terminar de engolir, falou, ofegante:
— Agora é a sua vez, Lucy.
Como um robô, levantei-me da cadeira e perguntei o que ele queria.
— Uma cerveja e uma dose de uísque — pediu ele, com cara de inocente.
— Algo mais? — perguntei, sarcástica.
— Muito obrigado, Lucy — replicou ele, parecendo deliciado. — Já que você é uma garota tão legal, podia me trazer um pouco de fumo.
— Fumo?
— Cigarros.
— Ah, cigarros? De que marca?
— Benson and Hedges.
— Quantos? Uns mil?
Ele pareceu achar aquilo muito engraçado.
— Apenas os vinte que vêm no maço, a não ser que você queira realmente me comprar mais.
— Não, Gus, não quero — disse, com frieza.
Enquanto esperava para ser atendida no bar, fiquei tentando descobrir por que estava tão pau da vida.
A culpa era só minha, decidi. Eu mesma preparara o meu desapontamento. Chegara ali com tantas expectativas, e tão carente...
Ansiava que Gus fosse legal comigo, me cobrisse de atenções, me dissesse que sentiu saudades, que eu era linda e que ele estava loucamente apaixonado por mim.
E ele não fizera nada disso. Não perguntou como eu estava, não explicou por onde andara nem por que não me procurara por quase quatro meses.
Mas talvez eu exigisse demais dele. Estava me sentindo tão infeliz com o resto da minha vida que tinha a esperança de que Gus pudesse ser o meu salvador. Alguém que cuidasse de mim, alguém a quem eu pudesse entregar a minha vida, dizendo "tome, cuide disso".
Queria o serviço completo.
Relaxe, aconselhei a mim mesma enquanto tentava olhar fixamente para o barman. Divirta-se. Pelo menos você está com ele. Ele não apareceu de volta? E continua o mesmo cara esperto e divertido que sempre foi. Então, o que mais você quer?
Voltei para a mesa, carregada de drinques e esperanças renovadas.
— Muito bem, Lucy — recebeu-me Gus, e caiu de boca nos copos com a avidez de uma mulher no período pré-menstrual que se vê diante de uma tigela de creme de nozes.
Segundos depois, anunciou:
— Vamos tomar mais um. E lembrou de acrescentar:
— Você paga!
Alguma coisa despencou dentro de mim e se despedaçou no chão.
Eu não era uma instituição de caridade. Pelo menos deixara de ser.
— E mesmo? — perguntei, sem conseguir esconder a minha raiva. —Desde quando eles começaram a aceitar ar fresco como moeda corrente?
— Sobre o que está falando, Lucy? — perguntou ele, olhando para mim, desconfiado. Sentiu algo em mim com o qual ele não estava nem um pouco familiarizado.
— Gus — expliquei, com uma satisfação amarga. — Fiquei dura. Aquilo não era bem verdade, sobrara um pouco para eu voltar
para casa, e até mesmo para comprar um pacote de batatas fritas no caminho, mas eu não queria contar, pois ele ia tentar me adular para conseguir tudo se soubesse que ainda havia algum.
— Você é uma mulher muito cruel. — Riu ele. — Imagine, tentando me apavorar desse jeito...
— Estou falando sério.
— Ah, sai dessa, pára com isso, Lucy — exclamou, em tom de brincadeira. — Sei que você tem um daqueles cartões mágicos que fazem a maquininha cuspir dinheiro pelo buraco e tocar um sininho.
— Sim, mas...
— Bem, e então, o que estamos esperando? Vá até lá, Lucy, avante, não temos tempo a perder. Corra até lá e pegue a bufunfa enquanto fico aqui tomando conta do nosso lugar.
— E quanto a você, Gus?
— Bem, acho que vou aceitar mais uma cerveja enquanto você vai até lá, obrigado.
— Não, estou perguntando se você não tem um cartão eletrônico, Gus.
— Eu?!... — Ele deu um urro e começou a rir sem parar. — Você está falando sério?
Ele ria e ria, sem parar, e de repente fez cara de quem achava que eu tinha pirado.
Fiquei sentada, em silêncio, esperando que ele terminasse a cena.
— Não, Lucy — continuou ele, limpando a garganta e finalmente se acalmando, embora a sua boca continuasse tentando rir. — Não tenho um cartão desses não, Lucy.
— Bem, nem eu, Gus.
— Eu sei que você tem — ele debochou. —Já vi você usando um.
— Mas eu não tenho mais.
— Ah, pára com isso.
— Sério, Gus.
— Ué... por que você não tem mais?
— A máquina engoliu o meu cartão. Ele foi bloqueado, porque eu não tinha mais dinheiro algum na conta.
— É mesmo? — Ele pareceu aturdido.
Aquilo ia mostrar a ele, pensei, com uma certa satisfação.
Depois, me senti envergonhada. Não era justo descontar tudo em Gus só porque eu estava chateada com papai.
Subitamente me deu vontade de contar a Gus tudo o que estava me acontecendo, explicar a ele o motivo de eu estar assim tão estranha e mal-humorada. Queria compreensão e perdão, solidariedade e afeto. Assim, sem esperar nem mais um segundo, lancei sobre ele toda a saga, detalhando como eu tinha ido morar com o meu pai, estava bancando tudo em casa e dava dinheiro para ele, até ficar sem nada para mim...
— Lucy — interrompeu Gus, de forma gentil.
— Sim? — atendi, esperançosa, já esperando um pouco de apoio.
— Já sei o que vamos fazer — concluiu ele, com um sorriso brilhante.
— Sabe? — Que bom!, pensei.
— Você tem um talão de cheques, não tem? — perguntou ele. Talão de cheques. Talão de cheques?! O aue aquilo tinha a ver
com o fato de eu estar infeliz?
— Olha, é que eu conheço o barman — continuou Gus, com os olhos brilhando. — Ele pode descontar um cheque seu se eu der o meu aval.
Engoli em seco. Não era aquilo que eu esperava ouvir.
— Vamos, preencha o cheque, Lucy, e estamos novamente no páreo. — E sorriu.
— Mas, Gus. — Embora eu não devesse, estava me sentindo como uma estraga-prazeres. — Estou sem dinheiro na conta. Na verdade, já até estourei o limite do cheque especial, e estourei bonito.
— Ah, não se preocupe com isso — aconselhou Gus. — Trata-se apenas de um banco, o que podem fazer contra você? A estrutura econômica é baseada no roubo, Lucy, vamos derrotar o sistema.
— Não — disse, quase pedindo desculpas. — Eu não posso fazer isso.
— Bom, isso é uma falta de sorte sua, Lucy. Com esse cavalo manco que você está montando, é melhor voltar logo para casa — disse ele, com cara amarrada. — Tchau, Lucy, foi bom rever você.
— Ah, tá legal — suspirei, pegando a bolsa e o talão de cheques, tentando não pensar no aterrorizante telefonema que fatalmente eu ia receber do meu gerente.
Gus tinha razão, pensei. Afinal de contas, tratava-se apenas de dinheiro. Não consegui, porém, evitar a sensação de que era eu que dava e dava, sempre, o tempo todo, e de repente desejei alguém que desse alguma coisa para mim, só para variar.
Preenchi um cheque, e Gus foi direto para o balcão, com ele na mão. Pelo tempo que demorou, e pela cara do barman, acho que ele não estava sendo muito fácil de convencer.
Finalmente Gus voltou, cheio de drinques.
— Missão cumprida. — Sorriu, enfiando um monte de notas no bolso. Reparei que a braguilha de sua calça estava presa por um alfinete de fralda.
— Cadê meu troco, Gus? — pedi, tentando manter a voz sem raiva.
— Ei, o que há com você, Lucy? — resmungou ele. — Você está muito mão-fechada e implicante comigo.
— E mesmo? — Estava sentindo enjôo de tanto segurar a fúria. — Por que você acha que estou sendo pão-dura e implicante? Não fui eu que banquei quase todos os drinques que tomamos esta noite?
— Bem — disse ele, com cara de indignado. — Se você vai começar a me jogar as coisas assim na cara, me diga logo quanto é que estou lhe devendo que devolvo, assim que conseguir alguma grana.
— Ótimo! — reagi. — Vou fazer isso mesmo.
— Tome, pegue o seu troco — disse ele, jogando em cima da mesa um monte de notas amarrotadas e algumas moedas.
Chegáramos ao ponto em que ficara óbvio que a noite estava arruinada, sem salvação. Não que tivesse sido um sucesso até ali. Pelo menos, até aquele momento, eu ainda tinha esperança de que as coisas fossem melhorar.
Sabia que aquilo era um insulto, mas peguei uma por uma das notas e comecei a contar o dinheiro que sobrara.
Eu preenchera um cheque de cinqüenta libras, e ele me devolvera mais ou menos trinta. Drinques para dois, mesmo um dos dois sendo Gus, não custava vinte libras.
— Cadê o resto do meu troco? — perguntei.
— Ahn, o resto?... — Ele estava chateado, mas tentava disfarçar. — Achei que você não ia se importar e paguei um drinque para Vinnie, o barman, para que ele facilitasse as coisas e trocasse o cheque. Achei que era uma coisa justa e decente.
— E quanto ao resto?
— É que na hora em que eu estava no balcão, Keith Kennedy apareceu e achei que devia acertar as coisas com ele também.
— Acertar as coisas com ele?
— Pagar um drinque para ele, que tem sido uma pessoa tão legal comigo ultimamente, Lucy.
— Mesmo assim, ainda fica faltando um bocado de grana — afirmei, admirando a própria firmeza.
Gus deu uma risada, mas me pareceu aguda e meio forçada.
— É que eu... estava devendo dez libras para ele — admitiu, finalmente.
— Você devia dez libras a ele e resolveu pagar a dívida com o meu dinheiro? — perguntei, com a maior calma.
— Hã... foi. Não pensei que você fosse se importar. Você é igual a mim, Lucy, um espírito livre. Não dá importância ao dinheiro.
E foi em frente, começando a cantar a cançãoImagine, de John Lennon, só que o único verso do qual ele parecia se lembrar era aquele que falava como seria o mundo se ninguém tivesse posses. Gus apresentou um tremendo show, abrindo os braços com ar de súplica e fazendo caretas criativas enquanto cantava: — Ó, Lucy, imagine um mundo sem posses... imagine um mundo sem posses...
Vamos, cante comigo, você sabe a letra... Imagine... sem posses... Ta-rã-rã, dã-dã-dã-dã...
Parou de cantarolar, esperando que eu começasse a rir. Como não ri, ele continuou cantando o refrão, só que mudando a letra:
— Você diz que eu sou frouxo... Que eu não passo de um bun-dão...
No passado, eu ficaria encantada com a sua cantoria. Teria morrido de rir, por fim comentaria que ele não era fácil, e o perdoaria. Mas, naquela noite, não.
Não dei uma palavra. Não consegui. Estava cheia de tanta indignação. Sentia que era uma idiota completa. Estava envergonhada demais comigo mesma para sentir raiva.
A noite inteira fora um exercício para tentar tapar o sol com a peneira, tentando esconder de mim mesma o quanto estava chateada. Agora, a máscara caíra e tudo estava às claras.
Por que será que havia no ar a estranha sensação de que aquilo vivia acontecendo comigo?, perguntei a mim mesma. Fiz uma rápida avaliação da minha vida e compreendi que o motivo era exatamente este: aquelas coisas viviam acontecendo comigo, de verdade.
Acontecia todos os dias com o meu pai. Eu acabava me metendo em apuros financeiros só para conseguir algum dinheiro para ele.
Não era de estranhar que a situação me parecesse tão familiar.
Gus não vivia se encostando em mim para conseguir alguma grana? Ele jamais tivera um centavo.
Ficava feliz de lhe dar dinheiro, no início. Achava que o estava ajudando, que ele precisava de mim.
Perceber tudo aquilo de repente me deu enjôo. Eu era uma tola, uma babaca. Todo mundo já sabia disso, menos eu. Era uma bundo-na. Vejam, a pobre Lucy, vive tão desesperada em busca de amor e afeto que está disposta até a pagar por isso. Ela é capaz até de lhe dar a roupa do corpo, pois acha que você merece usá-la mais do que ela. Você jamais vai passar fome ao lado de Lucy, mesmo que ela própria passe. Mas e daí? O que importa ela?
Gus não era o único namorado que eu bancara financeiramente. A maioria deles não tinha empregos. E mesmo os que possuíam empregos conseguiam viver sempre duros.
Por todo o resto da noite, senti como se estivesse fora do meu corpo, olhando para mim e Gus. Ele ficou completamente bêbado.
Eu devia ter me levantado dali e ido embora, mas não consegui. Estava fascinada, repelida por aquilo, mas estarrecida com o que presenciava. Não conseguia olhar para outro lugar.
Ele queimou minha meia com o cigarro aceso e nem notou. Entornou metade de um copo de cerveja em mim e nem reparou, também falava engrolado, dizia um monte de besteiras, começava a contar uma história, dava mil voltas e esquecia sobre o que estava falando.
Ficou batendo papo com o casal da mesa ao lado e continuou a falar, mesmo quando se tornou óbvio que os estava aborrecendo.
Pegou uma nota de cinco libras do bolso, depois de ter me falado que não tinha um centavo, e interrompeu a conversa do casal da mesa ao lado, mais uma vez, balançando a nota na direção deles, apontando para a efígie da rainha Elizabeth e gritando:
— Venham ver a foto da minha namorada. Foi tirada quando ela fez vinte e um anos. Olhem só, ela não é linda?
Aquilo era o tipo de coisa que ia me deixar sem ar de tanto rir no passado. Agora, era apenas embaraçoso e, pensando melhor, simplesmente chato.
Quanto mais bêbado ele ficava, mais sóbria eu permanecia. Eu já quase não falava mais nada, e Gus não reparava ou não se importava.
Será que ele sempre fora daquele jeito?, eu me perguntava.
A resposta era sim, é claro.
Ele não mudara. Eu sim. Via as coisas de modo diferente.
Pouco importava a ele que eu estivesse ali ou não. Eu era apenas uma fonte de dinheiro.
Daniel tinha razão. Como se eu já não estivesse me sentindo desconfortável o suficiente, tinha de admitir que aquele presunçoso estava com a razão. E nunca mais ia me deixar esquecer esse fato. Embora, pensando melhor, talvez ele não me zoasse tanto... Daniel já não me parecia tão presunçoso quanto eu costumava achar. Na verdade, ele não era nem um pouco presunçoso. Era um cara legal. Pelo menos me pagava um drinque de vez em quando. E um jantar também, de vez em quando...
Fiquei ali sentada, com um copo vazio diante de mim, por mais de uma hora. Gus nem notou.
Foi ao banheiro, demorou mais de vinte minutos, não deu nenhuma explicação nem pediu desculpas pela demora ao voltar. Não havia nada de incomum naquele comportamento. As noites com Gus eram sempre daquele jeito.
De algum modo, eu vivia rodeada de homens que bebiam demais, se aproveitavam de mim e eu não conseguia entender como foi que aquilo acontecera.
Mas me dei conta de que já aturara demais!
Na hora de o pub fechar, Gus arrumou uma briga com um dos caras que serviam no balcão, uma ocorrência igualmente bem comum. Começou com o barman, que disse, a certa altura, dispensando o pessoal:
— Ei, vocês não têm casa, não?
Gus decidiu que aquilo era algo terrível de se dizer, porque acontecera um terremoto na China alguns dias antes.
— E se um chinês estivesse aqui e ouvisse você falando assim? — berrou Gus, zangado. Descrever o resto das baboseiras incoerentes que se seguiram a isso seria um tédio só, se colocado em palavras. Basta completar dizendo que o barman foi fisicamente empurrando Gus até a porta, enquanto ele se remexia todo, berrando:
— Espero que você morra implorando por um padre!
E pensar que um dia eu admirara aquele tipo de comportamento, achando que Gus era uma espécie de rebelde.
Ficamos em pé na calçada enquanto a porta do pub era batida com força às nossas costas.
— Tudo bem, Lucy. Direto para casa agora — disse Gus, cambaleando ligeiramente e olhando para mim meio fora de foco.
— Para casa? — perguntei, com educação.
— E... — disse ele.
— Tá legal, Gus — disse eu, com suavidade. Ele sorriu, o sorriso de um homem vitorioso.
— Onde é que você está morando agora? — perguntei.
— Continuo em Camden — disse ele, de modo vago. — Por quê?
— Bem, então vamos direto para Camden — decidi.
— Não — reagiu Gus, alarmado.
— Por que não? — perguntei.
— Não podemos — explicou ele. — E por que não?
— Ah, porque... porque não.
— Bem, você não vai para a minha casa, porque é a casa do meu
pai.
— Mas, por que não? Eu tenho a impressão de que o seu velho e eu íamos nos dar muito bem.
— Tenho certeza de que sim — concordei. — É isso que eu receio.
Havia alguma coisa por trás daquilo, eu desconfiava há muito tempo. Provavelmente Gus tinha uma namorada em Camden, uma mulher com quem ele vivia, algo desse tipo.
Mas eu não me importava. Não teria encostado nele nem com uma vara de pescar. Não conseguia compreender o motivo de eu ter gostado tanto dele um dia. Ele me parecia um gnomo, um duende baixinho e bêbado. Usando um casaco nojento de pele de carneiro e um suéter por baixo, marrom e imundo.
O encanto se quebrara. Tudo nele me revoltava o estômago. Até mesmo o cheiro dele era horrível. Nojento, aquele cheiro parecia o de um carpete pela manhã, depois de uma festa bem animada.
— Pode guardar as suas desculpas — disse eu. — Não precisa me explicar por que você não pode me levar até o seu apartamento. Você nunca me levou lá, na verdade. Economize suas histórias ridículas.
— Que histórias ridículas? —perguntou ele, com alguma dificuldade para pronunciar "ridículas".
— Vamos ver... — disse eu. — Você poderia me dizer que está tomando conta de uma vaca para o seu irmão, e que não há lugar algum no apartamento para ela ficar, a não ser o seu quarto, e ainda por cima ela é tímida e tem medo de estranhos.
— É mesmo? — perguntou ele, pensativo. — Sabe que você tem razão, essa história tem a minha cara mesmo. Você é uma mulher excepcional, Lucy Sullivan.
— Não, Gus, não sou não. — Sorri. — Não sou mais não. Aquilo deixou a sua cabeça já cheia de álcool ainda mais confusa.
— Então, viu só, Lucy? — argumentou. — Vamos ter que ir mesmo para a sua casa.
— Eu vou para lá — expliquei. — Você não.
— Mas... — disse ele.
— Adeuzinho — cantarolei.
— Não, espere, Lucy! — gritou, alarmado.
Eu me virei e sorri para ele, com ar benévolo, dizendo:
— Sim?
— Como é que vou fazer para chegar em casa? — perguntou.
— E eu tenho cara de quem consegue prever o futuro? — perguntei, com cara inocente.
— Mas, Lucy, eu não tenho um centavo... Coloquei o meu rosto bem diante do dele e sorri. Ele sorriu de volta.
— Francamente, meu caro — e abri um sorriso —, eu não ligo a mínima para isso.
A vida inteira eu quis falar essa frase
— O que quer dizer com isso, Lucy?
— Quero dizer, em uma linguagem que você vai compreender melhor — e fiz uma pausa para dar mais impacto, quase colando meu rosto no dele —, VÁ SE FODER, GUS!
Fiz uma pequena pausa para respirar bem fundo e continuei:
— Vá extorquir grana de outra otária, seu baixinho canalha e bêbado! Estou fechada para negócios!
Dei meia-volta e saí pela rua, com um sorriso satisfeito como o de um gato, deixando Gus olhando para mim.
Alguns segundos mais tarde, notei que estava indo na direção errada, pois a estação do metrô ficava para o outro lado. Assim, voltei pelo mesmo caminho, torcendo para que o porcalhão já não estivesse lá para me ver.
Estava transtornada de tanta raiva.
Fui até Uxbridge, mas só para pegar as minhas coisas. Os outros passageiros do metrô olhavam para mim de forma estranha e mantinham distância. Fiquei me lembrando de como eu havia sido cruel com Gus, e uma voz triunfante dentro da minha cabeça ficava repetindo que é preciso ter coragem para ser cruel.
Com um ar divertido, embora amargo, fiquei me perguntando o que será que meu pai conseguira destruir durante a minha ausência. Era bem capaz de o bêbado idiota ter colocado fogo na casa. Caso realmente ele tivesse feito isso, eu esperava que também tivesse conseguido queimar a si próprio no fogo.
Pela quantidade de álcool dentro dele, aquilo provocaria um incêndio de grandes proporções. Apesar de tudo, comecei a rir. Senti novos olhares estranhos dos outros passageiros. Iam levar mais de uma semana para conseguir apagar o meu pai. Ele ia ficar brilhando tanto no meio das chamas que era capaz de ser avistado do espaço sideral, tal e qual a Muralha da China.
Se conseguissem ligá-lo a um gerador, ele poderia fornecer eletricidade para toda a cidade de Londres por uns dois dias.
Eu o odiava.
Descobrira o quanto havia deixado Gus me tratar mal, e aquilo era uma cópia exata do jeito que meu pai me tratava. Eu só conseguia amar homens duros, bêbados e irresponsáveis. Porque foi isso o que meu pai me ensinara.
Só que agora eu já não sentia mais como se o amasse. Estava cheia. Ele podia muito bem tomar conta de si próprio dali pra frente. E eu não daria mais dinheiro para nenhum dos dois. Gus e papai haviam se fundido em uma mesma pessoa no meu caldeirão de ódio.
Papai jamais acariciara os cabelos de Megan na minha frente, mas, mesmo assim, eu estava furiosa com ele por ter feito isso. Gus não havia me enchido de lágrimas quando eu era criança, nem me dissera que o mundo era um buraco, mas isso não era motivo para eu perdoá-lo por ter feito isso.
Estava até grata, tanto a meu pai quanto a Gus, por serem tão terríveis comigo. Por terem conseguido me levar até um ponto em que eu já não me importava mais com eles. E se eu jamais tivesse conseguido isso? Se eles tivessem sido um pouco melhores comigo, a situação poderia se eternizar, e eu continuaria perdoando-os a cada vez, pelo resto da vida.
Lembranças de outros relacionamentos voltavam à minha cabeça, casos que eu achava que já havia esquecido. Outros homens, outras humilhações, outras situações em que eu resolvera transformar em missão a tarefa de cuidar de uma pessoa difícil e egoísta.
Com a raiva pouco familiar, outra emoção estranha subiu à superfície. Esse novo sentimento se chamava Autopreservação.
— Você é tão sortuda — suspirou Charlotte, com cara de inveja.
— Por quê? — perguntei, surpresa. Não conseguia descobrir ninguém que tivesse menos sorte do que eu.
— Porque agora seus problemas estão todos resolvidos — afirmou ela.
— Estão?
— Estão. Quem me dera que o meu pai fosse alcoólatra, quem me dera que eu odiasse a minha mãe.
Essa conversa bizarra com Charlotte aconteceu no dia seguinte àquele em que em deixei meu pai e voltei para o meu apartamento em Ladbroke Grove. Só esse papo já era quase o suficiente para me fazer ter vontade de voltar a morar com papai.
— Se pelo menos eu pudesse ser como você — continuou Charlotte. — Meu problema é que o meu pai quase não bebe, e eu adoro a minha mãe.
— Não é justo — acrescentou ela, com ar amargo.
— Charlotte, me explique esse seu raciocínio. Sobre o que você está falando?
— Homens, é claro. — Ela pareceu surpresa. — Garotos, caras, rapazes, gatos, aqueles com cassetetes pendurados.
— Mas o que têm eles?
— É que agora você vai encontrar o seu príncipe encantado e viver feliz para sempre.
— Vou, é? — Aquilo era gostoso de ouvir, mas fiquei pensando em onde será que ela estava conseguindo aquela informação.
— Vai sim! — E balançou um livro na minha frente. — Li tudo isso aqui. É um daqueles seus livros doidos. Fala de pessoas como você, explica por que você sempre arranja homens iguais ao seu pai... Você sabe, aqueles que bebem demais, não querem nenhum tipo de responsabilidade e tudo o mais.
Senti uma fisgada de dor, mas deixei que ela continuasse a falar.
— A culpa não é sua — explicou ela, consultando o livro. — Veja só, a criança... essa é você, Lucy, sente-se infeliz. E pelo fato de que, bem, não sei exatamente, mas pelo fato de as crianças serem burras, imagino, ficam achando que a culpa é delas. Acham que é função delas fazer o pai se sentir melhor. Viu só?
— Acho que vi. — Ela tinha razão. Eu tinha tantas lembranças de papai chorando, e jamais sabia por quê. Mas me lembrava muito bem da necessidade intensa de saber que aquilo não era culpa minha. E do medo de que ele jamais voltasse a ser feliz novamente. Teria feito qualquer coisa para ajudá-lo a se sentir melhor.
Charlotte continuava, de forma descontraída, a tentar encaixar a minha vida nas teorias do livro:
— E à medida que a criança, novamente você, Lucy, vai ficando mais velha, ela passa a sentir atração por situações em que os sentimentos da infância são... que droga de palavra é essa? Re... re... rep...?
— Replicados — completei, ajudando-a.
— Uau, Lucy! Como é que você sabia? — Ela ficou impressionada. Mas é claro que eu sabia, já lera aquele livro um monte de vezes. Bem, pelo menos, uma.
Estava bem familiarizada com as teorias dele. Só que eu jamais achara que elas se aplicavam ao meu caso, até aquele momento.
— Essa palavra significa "copiados", não é, Lucy?
— Sim, Charlotte.
— Ah, sei... então você sentia que o seu par era um bebum e tentava fazê-lo se sentir melhor. Mas não conseguia. Não que fosse culpa sua, Lucy — acrescentou, depressa. — Isto é, você era apenas uma garotinha e o que poderia fazer? Esconder as garrafas?
Esconder as garrafas.
Foi como se um sino badalasse dentro da minha cabeça, e eu voltei no tempo, mais de vinte anos antes. Subitamente me lembrei de um dia em que eu, ainda muito novinha, talvez com quatro ou cinco anos, ouvi Chris falar para mim: "Venha comigo, Lucy, vamos esconder as garrafas. Se escondermos as garrafas, eles não vão mais ter motivo para brigas."
Uma onda de tristeza me inundou ao lembrar-me da garotinha que escondeu uma garrafa de uísque que era quase do tamanho dela na cesta onde o cachorro dormia. Charlotte continuava com a matraca solta, então eu tive de guardar a lembrança para mais tarde.
— Então a criança... ainda é você, Lucy... fica adulta e conhece todo tipo de homens. Só que aqueles pelos quais ela se sente mais atraída são os que têm os mesmos problemas do pai... O seu pai, no caso, entendeu?
— Entendi.
— A mulher adulta se sente mais confortável e à vontade com um homem que bebe demais ou é irresponsável com dinheiro, ou que costuma usar de violência... —continuou ela, lendo alto.
— Meu pai jamais foi violento. — Eu estava quase às lágrimas.
— Ora, ora, Lucy. — Charlotte balançou o dedo com calma na minha direção. — Estes são apenas exemplos. Significa que se o pai sempre jantava vestindo uma fantasia de gorila, a filha cresce e se sente mais à vontade com namorados que usam casacos de pele ou têm as costas peludas. Entendeu?
— Não.
Charlotte suspirou com paciência exagerada.
— Significa que você sempre preferiu rapazes que viviam mamados, não tinham empregos fixos, às vezes eram irlandeses e faziam você se lembrar do seu pai. Só que você não conseguia fazer o seu pai mais feliz, então era como se pressentisse que aquela era uma segunda chance e achasse: "Bem, pelo menos este aqui eu posso consertar, apesar de não ter conseguido consertar o meu pai." Entendeu?
— Talvez. — Ouvir tudo aquilo era tão doloroso que eu quase pedi para ela parar.
— Com certeza — disse Charlotte, de modo firme. — Não que você tenha feito tudo isso de propósito, Lucy. Não estou dizendo que a culpa foi sua. Foi a sua consciência que fez isso.
— Você quer dizer minha subconsciencia. Ela consultou o livro e exclamou:
— Ué... é isso mesmo, foi a swèconsciência. Qual será a diferença? Eu não tinha forças para explicar.
— Foi por isso que você sempre se apaixonou por sujeitos por-ras-loucas, como Gus e Malachy, e... qual é mesmo o nome daquele que despencou da janela?
— Nick.
— Isso mesmo, Nick. Como ele está, por falar nisso?
— Ainda na cadeira de rodas, pelo que sei.
— Ai, isso é terrível — exclamou ela em tons subitamente sussurrados. — Ele ficou leijado?
— Não, Charlotte — disse, de forma brusca. — Ele está muito melhor, mas diz que a cadeira de rodas é muito mais prático para andar por aí, já que ele vive se mijando nas calças o tempo todo.
— Ah, ainda bem — suspirou Charlotte, aliviada. — Achei que o pinto dele tivesse escangalhado.
Não fazia a menor diferença se Nick tinha perdido ou não o uso dos genitais. Na maior parte do tempo ele vivia tão bêbado que nem conseguia se levantar. Se a sua carteira não tivesse sido roubada numa noite de sábado, ainda cedo, acho que o nosso relacionamento jamais teria se consumado.
Charlotte continuava:
— Agora que você sabe o motivo de escolher sempre os homens errados, não vai mais fazer isso. — E sorriu para mim. — Vai dizer a todos os sujeitos que são esponjas de bebida como Gus para cair fora da sua vida, vai conhecer o homem certo, e vocês serão felizes para sempre!
Não consegui retribuir o seu sorriso fulgurante.
— Só pelo fato de eu saber o motivo de escolher os homens errados, isso não significa que vou parar de fazer isso agora, sabia? — E ri, desesperada.
— Besteira — declarou ela.
— Pode ser que eu me transforme em uma mulher cruel e amarga, e passe a odiar todos os homens que bebem.
— Não, Lucy, você vai permitir a você mesma ser amada por um homem que seja digno de você — leu ela, devagar. — Capítulo 10.
— Só que, antes disso, vou ter que reaprender os hábitos de uma vida inteira... Não esqueçamos que eu também já li este livro. Capítulo 12.
Minha ingratidão deixou-a preocupada.
— Por que você está se comportando assim de forma tão estranha, hein? — perguntou. — Você não faz idéia de o quanto é sortuda. Eu daria qualquer coisa para ter uma família desajustada.
— Pode acreditar em mim, Charlotte, você não ia gostar.
— Ia sim — disse ela, com firmeza,
— Pelo amor de Deus, por quê? — Eu estava ficando cada vez mais perturbada com tudo aquilo.
— Porque se não há nada de errado comigo nem com a minha família, como vou poder explicar o fato de todos os meus relacionamentos serem um desastre? Não vou ter mais ninguém em quem colocar a culpa, a não ser em mim mesma.
Ela olhou novamente para mim, com um ar de inveja e ressentimento.
— Lucy, você não acha que o meu pai é um tirano cruel? — perguntou, esperançosa.
— Não — respondi. — Não o conheço muito bem, mas ele me parece ser um homem muito bom.
— Você não acha que ele é fraco, ineficiente, com pouco espírito de liderança? Não acha que ele inspira desrespeito? — continuou ela, perguntando coisas que lia em voz alta no livro.
— Ao contrário — afirmei. — Ele parece inspirar muito respeito.
— Então você diria que ele é um controlador monstruoso? — implorou ela. — Um melagomaníaco?
— A palavra é megalomaníaco e... não, eu não acho.
— Desculpe, Charlotte — acrescentei. Ela estava arrasada.
— Bem, Lucy, sei que a culpa não é sua, mas foi você que inventou todas essas coisas.
— Inventei o quê? — quis saber, já pronta para me aborrecer.
— Bem, você não as inventou, exatamente — retirou ela. — Só que eu não ia saber nada a respeito dessas coisas se não fosse por você.
— Você conseguiu colocar um monte de idéias na minha cabeça — acrescentou, com cara amarrada.
— Nesse caso, eu devia ganhar uma medalha — murmurei. -
— Isso é cruel de se dizer — reclamou ela, com os olhos brilhantes, cheios de lágrimas prontas para serem vertidas.
— Desculpe — disse eu. Pobre Charlotte. Como era horrível ser brilhante apenas o suficiente para reconhecer a extensão da própria burrice.
Mas ela nunca ficava de baixo astral por muito tempo.
— Vamos lá, conte-me novamente a parte em que você mandou o Gus se foder — pediu ela, toda empolgada.
Então, não pela primeira nem pela última vez, contei.
— E como foi que você se sentiu? — perguntou ela. — Poderosa? Vitoriosa? Eu adoraria ter a coragem de fazer a mesma coisa com aquele porco do Simon.
— Você tem falado com ele ultimamente?
— Transei com ele na terça à noite.
— Sim, mas você tem falado com ele ultimamente?
— Não exatamente. Isso a fez rir.
— Ah, Lucy, estou tão contente por você ter voltado. — E suspirou. — Senti saudades.
— Senti saudades de você também.
— E agora que você voltou, podemos ter aqueles maravilhosos papos a respeito do Fred...
— Quem? Ah, Freud.
— Hein...? Fale de novo, como é que se pronuncia mesmo?
— Como em "debilóide", só que arrastando no óide. Froyd!
— Froyd — murmurou ela. — Bem, eu estava lendo a respeito de Froyd. Então, Froyd costumava dizer que...
— Charlotte, o que está fazendo?
— Treinando para a festa de sábado. — E exibiu subitamente um ar amargo. — Já não agüento mais que os homens pensem que só porque eu tenho peitos grandes sou burra. Vou mostrar a eles. Vou dar uma aula sobre o Fred, isto é, o Froyd. Embora eu ache que eles provavelmente não vão nem notar, porque os homens nunca escutam o que eu falo, batem papo só com os meus seios.
E ficou com ar sombrio por um instante.
— E você, o que vai usar na festa? Já tem séculos desde que você saiu para ir a um lugar decente.
— Eu não vou à festa.
— O quê?
— Não vou. Ainda é cedo demais para isso. Charlotte começou a rir sem parar.
Pelo jeito como ela ria, pessoas tentando superar o pai alcoólatra disputavam a taça de mais ridículos com os que tropeçavam em mangueiras e caíam dentro de piscinas com roupa e tudo ou ficavam trancados do lado de fora no meio da noite usando uma fantasia de coelho e eram obrigados a pedir ao vizinho (que já achava que o sujeito era maluco) para usar o telefone.
— Sua grande tola — gargalhava Charlotte. — Pelo jeito como você fala, até parece que está de luto.
— E estou mesmo — repliquei, de forma recatada.
A raiva que senti na noite em que saí com Gus me impeliu a sair da casa de meu pai com o mínimo de angústia e peso na consciência. Voltei a morar com Karen e Charlotte, esperando que a vida voltasse ao normal.
Não sei como pude imaginar que ia escapar assim tão fácil.
Levou menos de um dia para que a Culpa, a velha pistoleira de aluguel, acompanhada de seus capangas, começasse a me perseguir. Eles vieram para cima de mim com tudo, e continuaram assim, dia após dia. Fiquei quase irreconhecível, e levei a maior surra do Pesar, da Raiva e da Vergonha.
Sentia como se o meu pai tivesse morrido. De certa forma, ele morrera mesmo: o homem que eu pensara que era meu pai não existia mais. Jamais existira, na verdade, só mesmo na minha cabeça. Mas eu nem podia usar luto, porque ele ainda estava vivo. Pior do que isso, estava vivo e eu optara por abandoná-lo. Perdera o direito de sentir pesar.
Daniel foi maravilhoso. Disse-me para não me preocupar com nada, que ele ia arrumar as coisas. Só que eu não podia deixar que ele fizesse isso. Tratava-se da minha família, do meu problema, e era eu que tinha de cuidar das coisas. Antes de mais nada, arranquei as cabeças de Chris e Peter de onde eles a haviam enfiado, dentro da areia, como avestruzes. Para ser justa com os dois imprestáveis, eles me disseram que iam ajudar a cuidar do papai.
Daniel sugerira contactar alguém do serviço de assistência social. Houve um tempo em que eu achava que isso era a coisa mais vergonhosa de se fazer com o papai. Agora, porém, eu estava além dessa fase, a bateria da minha vergonha ficara descarregada.
Assim, comecei a ligar para um monte de autoridades locais. No primeiro número me disseram que eu teria de ligar para outro departamento, e quando liguei para o número informado me garantiram que o pessoal do primeiro número é que era o responsável por cuidar de casos como aquele.
Então, quando tornei a ligar para o primeiro número de novo, eles me informaram que as regras haviam mudado e, a partir de agora, era realmente o pessoal do segundo número que deveria me prestar assistência.
Gastei mais ou menos um milhão de horas em tempo do meu empregador pendurada no telefone, e tudo o que ouvia era "esse caso não é da nossa área".
Finalmente, quando viram que papai era um perigo para si mesmo e para os outros, transformaram-no em prioridade, e designaram uma assistente social e uma empregada para ficar cuidando dele.
Eu estava esgotada.
— Ele vai ficar bem, Lucy — prometeu Daniel. — Está sendo bem cuidado.
— Mas não por mim. — Eu estava me sentindo dilacerada pela sensação de fracasso.
— Não é função sua cuidar pessoalmente dele — argumentava Daniel, de forma gentil.
— Eu sei, mas... — replicava, sentindo-me muito mal.
O mês de janeiro seguia. Todo mundo estava duro e deprimido.
Ninguém saía muito, mas eu não saía para lugar nenhum. A não ser com Daniel.
Pensava no meu pai o tempo todo, tentando justificar para mim mesma o que fizera.
As coisas haviam chegado a um ponto em que eu tinha de escolher entre mim e ele, decidi. Um dos dois tinha de ficar comigo, mas não havia o bastante de mim para ser dividido pelos dois.
Eu me escolhera.
A sobrevivência não era uma coisa muito bonita de se apreciar. Sobreviver à custa de outra pessoa era ainda mais desagradável. Não houve lugar para amor, nobreza ou sentimento pelo meu próximo — no caso, papai. A coisa se resumia a mim, apenas a mim.
Eu sempre me achara uma pessoa legal, simpática, generosa e altruísta. Foi um choque descobrir que, na hora em que a coisa pegava fogo, a simpatia e a generosidade eram apenas um verniz. Por trás eu era um animal selvagem e enfurecido, como todo mundo.
Não gostei muito dessa minha imagem, não gostei muito de mim, embora isso não fosse nenhuma novidade.
Meredia, Jed e Megan andavam intrigados com o meu estado de espírito. Ou, melhor, meus vários estados de espírito. A cada dia eu apresentava uma emoção diferente, e eles se chegavam loucos para saber como eu estava, a fim de oferecer conselhos e opiniões.
Como eu disse, era janeiro e ninguém saía muito.
— O que está sentindo hoje? — perguntavam em coro, assim que eu colocava os pés no escritório.
— Raiva. Raiva por não ter tido um pai decente quando era pequena.
Ou...
— Tristeza. O homem que eu amei, o homem que sempre achei que meu pai fosse acabou de morrer.
Ou...
— Incapacidade. Eu deveria ter sido capaz de cuidar dele. Ou...
— Culpa. Sinto-me tremendamente culpada por tê-lo abandonado. Ou...
— Ciúme. Sinto ciúme das pessoas que aproveitaram uma infância normal.
Ou...
— Tristeza...
— O quê? Outra vez? — reclamou Meredia. —Já tivemos tristeza uns dois dias atrás.
— É... eu sei — concordei. — Só que dessa vez é um tipo diferente de tristeza, agora é tristeza por mim mesma.
Tínhamos todo tipo de discussões maravilhosas e metafísicas. Eu os provocava com um monte de conversas a respeito de sobrevivência em circunstâncias extremas.
— Vocês se lembram daqueles rapazes que estavam no avião que caiu nos Andes? — perguntei.
— Aqueles que comeram a carne dos outros passageiros mortos para sobreviver? — perguntou Meredia.
— E foram hostilizados pelo resto da cidade, ao voltarem para casa, por terem comido seus vizinhos? — perguntou Jed.
Ali, no escritório, a gente não se limitava a ler apenas os tablóides.
— Isso mesmo — confirmei. — Então vocês acham que é melhor morrer com honra ou enfiar as mãos na lama nojenta durante a luta ignóbil pela sobrevivência?
Argumentávamos contra e a favor por horas a fio, e analisávamos questões morais da maior relevância.
— Qual será o gosto de carne humana? O que acham? — perguntava Jed. — Acho que ouvi alguém dizer que se parece um pouco com frango.
— Peito ou coxa? — perguntou Meredia, pensativa. — Porque, se for peito, até que eu não me importaria, mas se fosse coxa, eu não ia conseguir suportar.
— Nem eu — concordei. — A não ser que fosse embebida em molho de churrasco.
— Mas eles tinham algum molho para passar? Maionese, ket-chup ou algo assim? — especulou Jed.
— Será que o piloto tinha um sabor diferente dos outros passageiros? — quis saber eu.
— Ah, muito provavelmente. — Meredia confirmou com a cabeça, com ar de quem conhecia o assunto a fundo.
— E vocês acham que eles cozinharam a carne ou comeram todo mundo cru? — perguntou Megan.
— Provavelmente cru — disse eu.
— Argh! Acho que vou vomitar — reagiu Megan.
— Sério? — Todos nós olhamos para ela, surpresos. Megan não era assim tão fresca.
— Mas, Megan, você nem esteve na gandaia ontem — argumentei, confusa.
Ela estava mesmo pálida. Mas aquilo podia ser devido ao seu bronzeado que, finalmente, desaparecera.
Ela colocou a mão no peito e começou a fazer gestos com a mão para cima e para baixo, como quem vai colocar tudo para fora.
— Você vai mesmo vomitar? — perguntei, alarmada. Jed, na mesma hora, colocou um cesto de papéis no colo dela.
Nós três ficamos olhando fixamente para Megan, adorando o drama, com a esperança de que ela pudesse vomitar tudo e trazer um pouco de empolgação para o nosso dia. Mas ela não fez isso. Depois de alguns minutos de suspense, jogou o cesto de papéis no chão e sentenciou:
— Certo, já estou legal. Vamos fazer uma votação. Os que forem a favor de comer os vizinhos mortos levantem as mãos.
Três mãos se levantaram.
— Vamos lá, Lucy — pediu Jed, — Levante a mão.
— Não tenho certeza...
— Lucy, quem você permitiu que sobrevivesse? Você ou o seu pai? Hein?
Com a maior vergonha, levantei a mão. Então, enquanto Meredia ainda estava com a mão levantada, Jed fez cosquinhas embaixo do seu braço. Ela se remexeu toda, dando gritinhos e risadinhas, enquanto falava:
— Ohhhh, seu pequeno... — Sem dar bola para a platéia, começaram a se chamar de nomes estranhos enquanto fingiam estar lutando. Levantei as sobrancelhas de forma significativa e olhei para Megan, que fez a mesma coisa comigo.
Janeiro foi se arrastando, cinzento. E minha vida social continuava parada.
Reavivei o relacionamento mais regular que tinha com Adrian, da locadora de vídeos.
Tentei alugar Quando um Homem Ama uma Mulher, e acabei saindo da loja com A Dupla Vida de Veronique, de Krzysztof Kies-lowski. Quis alugar Lembranças de Hollywood e de algum modo acabei levando O Carteiro e o Poeta (versão original em italiano e sem legendas). Implorei a Adrian que me deixasse levar Despedida em Las Vegas, mas, em vez disso, ele me entregou um filme chamado Eine Sonderbare Liebe, que eu nem me dei ao trabalho de assistir.
Não precisava sair de casa, porque havia uma verdadeira novela se desenrolando, ao vivo, no trabalho.
Meredia e Jed se tornaram muito chegados. Muito chegados mesmo. Saíam sempre do trabalho exatamente na mesma hora, embora isso, por si só, não significasse muita coisa, pois todos os empregados do prédio se ejetavam das cadeiras no exato segundo que o relógio dava cinco horas. O caso é que os dois também chegavam, de forma significativa, no mesmo horário. E o seu comportamento no escritório era muito amoroso e cúmplice. Estavam sempre de gracinhas um com o outro, fingindo timidez, rindo feito bobos e ficando vermelhos. Além do mais, tinham uma brincadeirinha só entre eles, e na qual ninguém mais podia entrar, que era a de Meredia ficar atirando balinhas, jujubas e uvas para cima, formando um arco que atravessava a sala de um lado a outro, enquanto Jed tentava agarrá-las com a boca, para depois ficar aplaudindo com os braços moles, imitando foca.
Eu invejava a felicidade deles.
Estava adorando ver que eles estavam se apaixonando ali, bem diante dos meus olhos. Porque já não podia mais contar com Megan para me fornecer elementos românticos. Ela mudara. Não parecia mais a Megan de antes, e a queda brusca no número de rapazes que ficavam azarando o escritório era a prova disso. Agora, já podíamos sair da sala sem termos de empurrar um monte de caras e afastá-los do caminho, pedindo: "Dá pra dar licença, por favor?" Eu não conseguia descobrir o que havia de tão diferente nela, até que enfim me bateu: É claro! O bronzeado. Já era. O inverno finalmente conseguira derrubá-la e a despira do lindo tom dourado, iluminado por uma luz interior âmbar e translúcida. Ela desbotara e deixara de ser uma deusa magnífica para se transformar em uma garota comum e meio robusta cujos cabelos às vezes pareciam um pouco ensebados.
Mas notei que não eram apenas os seus belos atributos físicos que haviam desaparecido. Ela já não era a pessoa espevitada, feliz e cheia de energia de antes. Já não ficava tentando descobrir o verdadeiro nome de Meredia. Muitas vezes ficava irritada e mal-humorada, e isso me preocupava.
Isso era um grande avanço, se considerarmos o quanto eu andava ocupada sentindo pena de mim mesma, mas a verdade é que eu estava preocupada com ela.
Tentei descobrir o que estava errado, e não foi apenas por curiosidade mórbida. Fiquei rodeando o assunto, até que um dia, meio hesitante, lhe perguntei se ela sentia falta da Austrália. Ela se virou para mim e gritou:
— Tudo bem, Lucy, estou morrendo de saudades de casa, sim! Agora, pare de me perguntar o que há de errado comigo.
Eu sabia como ela se sentia. Passara a minha vida inteira sentindo saudades de casa. A única diferença entre nós duas era que eu não sabia onde nem o quê era a minha casa.
Assim que descobri que a felicidade de Megan era movida a energia solar, fiquei doida para lhe proporcionar um pouco de sol.
Apesar de não ter condições de lhe comprar uma passagem para a Austrália, eu podia dar a ela, de presente, um vale para uma clínica de bronzeamento artificial perto do trabalho. Mas quando o entreguei a ela, Megan ficou estarrecida. Olhou para aquilo como se fosse uma sentença de morte e finalmente soltou, com a voz embargada:
— Não, Lucy... Não posso aceitar.
E foi nesse momento que fiquei preocupada de verdade com ela. Não que Megan fosse uma pessoa pão-dura, mas ela demonstrava um grande respeito pelo dinheiro, especialmente pelas coisas que eram grátis. Mesmo assim, por mais que eu insistisse, ela continuava a dizer que era muito simpático de minha parte, mas ela jamais poderia aceitar o presente.
Assim, no fim acabei indo lá eu mesma, e tudo que o tratamento fez por mim foi acrescentar oito milhões de sardas às que eu já tinha.
A única pessoa que eu ainda via socialmente era Daniel. Ele estava sempre disponível para sair comigo, porque continuava sem namorada, no que deve ter sido o maior período sem namorada em sua vida, desde que nascera. Eu não me sentia culpada pelo tempo que ele gastava comigo, porque reconhecia que estava apenas mantendo-o afastado do caminho do mal, além de evitar que alguma pobre mulher desavisada se apaixonasse por ele.
Eu sempre gostava muito de vê-lo, mas, no fundo, sabia que era apenas porque ele preenchia o vácuo da ausência de um pai na minha vida. E achava que era muito importante dizer-lhe exatamente isso, pois não queria que ele ficasse com a idéia de que eu — Deus me livre — estivesse gostando dele. Assim, toda vez que nos encontrávamos, a primeira coisa que eu dizia era:
— É legal sair com você, Daniel, mas só pelo fato de que você está preenchendo um espaço vazio na minha vida.
E ele se mostrava estranhamente controlado, sem soltar uma daquelas piadinhas vulgares sobre qual dos meus espaços vazios ele gostaria de estar preenchendo.
Isso acabava por me deixar um pouco triste, com saudade da época em que ele falava gracinhas sugestivas como essa o tempo todo.
Usei a frase do espaço vazio tantas vezes que, no final, era ele que continuava a frase. Sempre que eu falava:
— Oi, Daniel, legal você ter vindo... — ele me interrompia, completando:
— Sim, sim, eu sei disso, Lucy, mas é só porque estou preenchendo o espaço vazio que seu pai deixou em sua vida.
Saíamos juntos duas ou três vezes por semana e, por algum motivo, jamais tive coragem de contar isso a Karen. Eu queria contar, é claro, mas estava tão preocupada em diminuir o número de vezes em que saía com Daniel que não tinha energia suficiente para enfrentar Karen.
Pelo menos era nisso que eu gostava de acreditar. E era muito difícil ficar sem ver Daniel todas essas noites.
— Pare de me chamar para sair! — ralhei com Daniel, certa vez em que ele me preparou um jantar em seu apartamento.
— Desculpe, Lucy — pediu, humildemente, enquanto picava cenouras.
— Não posso me deixar ficar muito dependente de você não — reclamei —, e há uma grande chance de isso acontecer, porque, sem o papai, abriu-se um grande vazio em minha vida...
— ... E o seu instinto imediato é preenchê-lo — terminou ele, para mim. — Você está muito vulnerável neste momento, muito carente, e não pode se dar ao luxo de se colocar muito próxima de ninguém.
Olhei para ele com admiração.
— Muito bem, Daniel. Agora, termine a frase. Especialmente, não devo ficar muito próxima de quem? De quem, especialmente, devo evitar me colocar muito próxima?
— Especialmente de um homem — disse ele, com orgulho.
— Exato — sorri para ele. — Nota dez!
Eu adorava o fato de ele saber tantas coisas daquele tipo, psico-baboseiras. Especialmente quando considerávamos o fato de que ele era um homem bonito, que adorava fazer muito sucesso com as mulheres e não tinha necessidade de ficar consumindo psicologia de revistas.
— Ah, por falar nisso — disse eu —, está a fim de ir ao cinema comigo amanhã?
— Claro que sim, Lucy, mas você não acabou de me dizer que não quer ficar muito perto de um homem e...
— Não quis dizer você — disse, distraída. — Você não conta como homem.
Ele me lançou um olhar magoado.
— Ah, você sabe o que eu quis dizer. — Fiquei irritada. — E claro que você é um homem para outras mulheres, mas, para mim, você é apenas um amigo.
— Mesmo assim sou homem — murmurou —, mesmo sendo seu amigo.
— Daniel, você não vai esquentar com isso agora, vai? Pense só... Não é muito melhor, para mim, estar em sua companhia do que com algum outro cara por quem eu possa me apaixonar? Então, não é?
— Sim, mas... — Ele parou de falar. Parecia confuso.
Ele não era o único. Eu já não sabia se estava a salvo com Daniel porque ele me deixava fora de perigo ou se eu estava me colocando em um perigo ainda mais mortal por ficar perto demais dele. Entre os prós e os contras, achei que era mais seguro com ele do que sem ele. E mantinha as barreiras levantadas simplesmente lembrando a ele que elas continuavam lá. Estava tudo bem, permanecer em companhia dele, desde que eu lembrasse a nós dois, o tempo todo, que isso não era legal. Ou algo desse tipo. No fundo, era mais fácil nem pensar nessas coisas.
De vez em quando eu me lembrava da noite em que ele tinha me beijado, e ficava mais do que feliz, ficava até mesmo empolgada só de lembrar cada um dos detalhes daquele momento. Porém, sempre que eu recordava aquela cena — e, para falar a verdade, isso era muito raro —, na mesma hora, mais do que depressa, eu lembrava também da outra noite em que ele não quis me beijar, e a sensação de vergonha que se seguia a essa lembrança colocava um ponto final na parte boa, no mesmo instante.
Enfim, Daniel e eu acabamos voltando à nossa velha fase, e ficamos tão relaxados um com o outro, tão à vontade, que já conseguíamos rir juntos do nosso rápido contato romântico/sexual.
Bem, quase.
Às vezes, quando ele me perguntava: "Quer outro drinque?", eu forçava uma risada e dispensava, como quem não quer nada, dizendo: "Não, não, já bebi muito. Afinal, não quero repetir o mico daquela noite na casa do meu pai, quando tentei seduzir você."
Eu sempre morria de rir ao dizer isso, esperando que o riso afastasse de vez qualquer resto de vergonha ou embaraço. Daniel jamais ria de verdade, quando eu falava assim, mas, por outro lado, ele não precisava, pois o mico era meu.
Janeiro se transformou em fevereiro. Os arbustos de açafrão e os pequenos sininhos brancos começaram a florir. As pessoas começavam a sair de seus casulos, especialmente depois que acabavam de receber o salário e tinham algum dinheiro pela primeira vez desde o holocausto financeiro do Natal. Meredia, Jed e Megan perderam o interesse na minha vida pessoal, agora que eles já tinham dinheiro para cair na gandaia e viver vidas próprias. O que era uma tremenda pena, porque eu ainda tinha tanto a lhes oferecer: não havia um dia sequer em que eu não estivesse me torturando, com vergonha e auto-recriminação.
Ia visitar papai uma vez por semana. Todo domingo, porque eu sempre tinha tendências suicidas aos domingos, de qualquer jeito, e seria uma pena desperdiçá-las. No entanto, por mais terrível que a minha auto-recriminação fosse, aquilo não era nada quando comparado ao ódio que papai sentia por mim. Evidentemente, eu recebia esse sentimento de desprezo e hostilidade com alegria, pois sentia que aquilo era simplesmente o que eu merecia.
Fevereiro foi se chegando para os lados de março e eu ainda era a única criatura em estado de hibernação. Mesmo sabendo que papai estava sendo bem cuidado, no sentido de cuidados físicos, eu me sentia podre, corroída pela culpa. E Daniel era a única pessoa com quem eu me sentia à vontade para me lamentar.
Não importa o que as pessoas digam, existe um limite de tempo para alguém ficar de luto, seja por um pai, por um namorado ou um par de sapatos que a loja não tinha no seu tamanho. O limite de tempo de Daniel para me agüentar, no entanto, era muito maior do que o de qualquer outra pessoa.
Ninguém mais no escritório se dava sequer ao trabalho de me ouvir. Às segundas, quando alguém perguntava: "E aí, como foi o fim de semana?", eu sempre respondia: "Horrível, gostaria de estar morta!", e nenhum deles ligava a mínima,
Acho que teria enlouquecido se não fosse por Daniel. Ele era exatamente igual a um terapeuta, só que não me cobrava quarenta libras por hora, não usava calças de veludo cotelê nem sandálias com meia.
Nem sempre eu estava sombria ou arrasada quando me encontrava com ele, mas, quando isso acontecia, ele era ótimo. Todas as vezes ele me ouvia repetir a mesma lengalenga, relatando os mesmos sentimentos de angústia.
Eu podia me encontrar com ele para tomar um drinque depois do trabalho, me largar na cadeira ao lado e dizer: "Não me interrompa se você já tiver ouvido, mas o caso é que...", e me lançava em outra saga a respeito de, digamos, uma noite insone, um domingo lacrimoso ou uma noite infeliz em que eu me sentira preocupada, culpada ou envergonhada por causa de papai. Daniel nunca reclamou nem uma vezinha da minha falta de material novo.
Jamais levantou a mão como um policial que interrompe o tráfego e diz: "Não, calma aí! Espere um instante, Lucy, acho que essa história eu já ouvi."
E ele tinha todo o direito de agir assim. Porque, se Daniel estava ouvindo uma história relacionada com os meus infortúnios e tristezas, então ele já devia tê-la ouvido um milhão de vezes. Às vezes as palavras eram ligeiramente diferentes, mas o enredo era sempre o mesmo. Pobrezinho.
— Desculpe, Daniel — dizia eu. — Bem que eu gostaria que as minhas tragédias fossem um pouco mais variadas. Deve ser um saco para você.
— Está tudo bem, Lucy. — E sorria. — Eu sou feito um peixinho dourado, tenho memória muito curta. Toda vez que eseuto uma história sua, é como se fosse a primeira vez.
— Bem, se você tem certeza disso — dizia eu, meio sem graça.
— Tenho sim — confirmava ele, com a cara animada. — Vamos lá, conte-me novamente sobre o trato imaginário que você fez com o seu pai.
Lancei-lhe um olhar rápido, meio de lado, para ver se ele não estava me zoando, mas ele não estava.
— Certo — disse, meio envergonhada, tentando (mais uma vez achar as palavras adequadas para exprimir o que eu sentia. — É como se eu tivesse feito um trato com o meu pai.
— Que tipo de trato? — dizia ele, com o mesmo tom de voz que um comediante usa para dar a deixa para a fala seguinte do colega, servindo de escada para a frase final da cena. Nós faríamos uma grande dupla, juntos.
— Está tudo na minha cabeça — explicava. — E como se eu tivesse dito: "Tudo bem, papai, sei que abandonei o senhor, mas a minha vida ficou uma porcaria depois disso, porque me odeio demais por ter salvo a mim em vez de salvar o senhor. Portanto, estamos iguais. Quites!" Isso faz algum sentido para você, Daniel?
— Totalmente — concordou ele, pela enésima vez.
Eu me surpreendia ao reparar o quanto apreciava o altruísmo de Daniel. Ele tinha sido tão bom para mim durante toda a crise com o meu pai.
— Você é um cara muito legal — disse a ele, certa noite, quando consegui parar de me lamentar para tomar fôlego.
— Não, não sou não. Eu não aturaria isso de mais ninguém, só de você. — E sorriu.
— Mesmo assim, não posso ficar dependente demais de você — acrescentei depressa. Eu não falava aquela frase há pelo menos cinco minutos, e o sorriso dele me intimidara. Precisava neutralizá-lo. — Estou no rebote emocional, sabia?
— Sim, Lucy.
— Estou tentando superar a perda do meu pai, entende?
— Sim, Lucy.
Queria que a minha vida continuasse naquele estado de crepúsculo para sempre, pois assim não precisava ter nenhum contato de verdade com ninguém, exceto o meu terapeuta, isto é, Daniel. Até o dia em que Daniel decidiu que já me aturara demais, o que ameaçou destruir o maravilhoso mundinho seguro que eu criara.
Ele nem me avisou com antecedência.
Uma noite, quando nos encontramos e eu disse o de sempre:
— Oi, Daniel, é legal vê-lo, mas só porque você está preenchendo um espaço vazio em minha vida. — Ele segurou minha mão e disse, com toda a delicadeza:
— Lucy, já não está na hora de parar com isso?
— Qu... O quê? — perguntei, sentindo que o chão me fugia de sob os pés. — Sobre o que você está falando?
— Lucy, a última coisa que eu quero é deixar você chateada, mas andei pensando e fiquei me perguntando se já não é hora de você tentar superar isso — continuou, com um tom ainda mais gentil. A expressão de meu rosto estava na linha mais baixa da escala de choque, onde está escrito rigor mortis.
— Talvez eu não devesse ter paparicado tanto você — disse ele. Parecia chateado. — Talvez isso tenha sido mau para você.
— Não, não — apressei-me em dizer. — Você foi ótimo para mim... Brilhante.
— Lucy, acho que já está na hora de você começar a sair de novo
— sugeriu ele, em um tom suave que só conseguiu me apavorar.
— Mas estou saindo, estou na rua, agora. — Estava apreensiva. Para não dizer na defensiva. Sentia que os meus dias sob o abrigo seguro estavam terminando.
— Quando eu falo em sair, é sair mesmo, sair — disse Daniel. — Quando é que vai começar a viver direito novamente? Ver outras pessoas? Ir a festas?
— Só quando a culpa que sinto pelo meu pai for embora, é claro.
— E olhei para ele, meio desconfiada. — Daniel, você devia me compreender.
— Tá... Então você não pode viver a sua vida porque se sente culpada a respeito do seu pai?
— Isso. — Esperava que, com aquilo, o assunto estivesse encerrado, mas não estava, pois Daniel replicou:
— A culpa não vai embora sozinha. Você tem que fazer com que isso aconteça.
Ah, não! Eu não queria ouvir aquilo.
Decidi influenciá-lo lançando um dos meus olhares femininos bem charmosos, dando uma piscadela recatada.
— Por favor, não olhe para mim desse jeito, Lucy — disse ele, — Isso não funciona.
— Merda — murmurei, e então fiquei sentada, embaraçada, em um silêncio mal-humorado.
Tentei lançar-lhe uma careta, mas também não funcionou. Dava para ver que ele estava falando sério.
— Lucy — disse ele —, não quero deixá-la chateada, por favor, deixe-me ajudá-la. — Para ser justa com ele, Daniel parecia mesmo bastante angustiado.
Dei um suspiro e desisti, dizendo:
— Está bem, seu patife sem coração, ajude-me então.
— Lucy, sua culpa provavelmente vai diminuir, mas não vai desaparecer de todo. Você vai ter que aprender a conviver com ela.
— Mas eu não quero isso.
— Eu sei, mas vai ter que querer. Não pode simplesmente jogar sua vida fora até que em algum momento, no futuro distante, você deixe de sentir culpa, pode ser que isso jamais aconteça.
Eu ficaria bem feliz se fosse assim.
— Você é como a Pequena Sereia, Lucy — comentou ele, subitamente mudando de assunto.
— Sou, é? — Meus olhos brilharam de prazer. Agora sim aquela conversa estava muito mais do meu agrado. E o meu cabelo parecia mesmo longo, brilhante e cacheado, agora que ele mencionara.
— Ela teve que sofrer a agonia de caminhar sobre o fio da navalha em troca de se sentir capaz de sobreviver na terra seca. Você fez o mesmo tipo de acordo: pagou pela sua liberdade com culpa.
— Ah. — Nem falou do meu cabelo.
— Você é uma boa pessoa, Lucy, não fez nada de errado e merece ter uma vida legal — explicou ele. — Pense nisso, é tudo o que lhe peço.
Então pensei no assunto. E pensei no assunto. E pensei no assunto. Fumei um cigarro e pensei no assunto. Bebi meu gim-tônica e pensei no assunto. Enquanto Daniel foi até o balcão pegar outro drinque, pensei no assunto. Finalmente, eu disse:
— Pensei no assunto, Daniel. Talvez você tenha razão. Talvez já esteja na hora de eu tocar a vida pra frente.
A verdade completa é que talvez eu estivesse ficando entediada de tanta tristeza em estado bruto. Cansada de ser auto-indulgente. E poderia ter continuado nessa por muito mais tempo, durante anos, provavelmente, se Daniel não tivesse puxado as minhas rédeas.
— Ótimo, Lucy — ele ficou empolgado. — E, já que estou sendo bem malvado com você, vou aproveitar a chance para falar que talvez já esteja na hora de você fazer uma visitinha à sua mãe,
— Que é isso? — perguntei, com a língua afiada. — Você virou a porcaria da minha consciência agora?
— E já que você está completamente pau da vida comigo — sorriu —, acho que é melhor dizer logo que já está na hora de você parar de aturar os desaforos do seu pai. Chega de ficar se punindo. Você já pagou o seu débito com a sociedade, e sua sentença já foi cumprida.
— Isso quem tem que julgar sou eu — retruquei, zangada. Chega de ficar me punindo, ora, que audácia. Era óbvio que Daniel não havia sido criado como um bom católico. Eu nem conseguia imaginar uma vida que não envolvesse muitas crises de autoflagelação.
Embora, pensando melhor, talvez dar um refresco a mim mesma fosse uma boa idéia, uma opção muito tentadora e agradável, na verdade. E, enquanto eu estava naquela linha divisória, quase cedendo, Daniel falou a seguinte frase, que mudou tudo para mim:
— Pense só, Lucy, se você se sente assim tão culpada, pode voltar a cuidar do seu pai, a qualquer hora que queira.
Essa sugestão me deixou indignada. Eu jamais faria aquilo. Nunca. E foi só nesse momento que percebi o que Daniel estava tentando me dizer. Eu escolhera a liberdade porque era isso que desejara ter. Já que a consegui, era melhor usá-la.
Olhei para ele e a compreensão disso iluminou-me o rosto.
— Você tem razão, sabia? — disse, baixinho. — A vida é para ser vivida.
— Ah, pelo amor de Deus, Lucy. — Ele pareceu chocado. — Não tinha um clichê melhor do que esse não?
— Seu palhaço. — E sorri para ele.
— Você não pode ter medo para sempre — disse ele, aproveitando o meu momento de bom humor. — Não pode ficar aí se escondendo dos próprios sentimentos, das outras pessoas.
Fez uma pausa para dar ênfase e continuou:
— Lucy, você não pode se esconder dos homens.
Nesse ponto comecei a achar que ele estava indo longe demais. Queria me fazer correr antes mesmo de eu aprender a andar.
— Um namorado! — disse, alarmada. — Você ainda quer que eu arranje um namorado depois de todos os desastres pelos quais passei?
— Por Deus, Lucy, espere um pouco — disse Daniel. Agarrou-me pelo braço como se eu estivesse a ponto de sair correndo para fora do restaurante e me oferecesse em casamento ao primeiro homem que aparecesse. — Não de imediato. Eu quis dizer em algum momento, não agora...
— Mas, Daniel — choraminguei. — Eu sou péssima para julgar homens. Você, mais do que ninguém, sabe o quanto eu sou imprestável nessa área.
— Não, Lucy, quero apenas que você pense a respeito do assunto — disse ele, com ansiedade.
— Não posso acreditar que você ache que eu já esteja pronta para um namorado — reagi, surpresa.
— Lucy, eu não quis dizer... o que estou falando é que...
— Mas eu confio na sua sensibilidade — disse, meio em dúvida. — Se você acha que é o melhor para mim, então é porque deve ser mesmo.
— É só uma sugestão, Lucy. — Daniel pareceu nervoso.
Mas alguma coisa cutucara um canto da minha mente, bem lá no fundo, a lembrança da alegria que era estar apaixonada. Vagamente, eu me lembrava de como tinha sido bom. Talvez, ao ficar cheia de estar infeliz, eu também tivesse ficado cheia de estar sem uma companhia masculina.
— Não, Daniel — disse, com ar sério e pensativo. — Agora que você tocou no assunto, talvez não seja uma má idéia.
— Espere um instante, Lucy, eu apenas disse que... Olhe, pensando melhor, é uma má idéia, sim, uma idéia péssima, me desculpe por ter falado nisso.
Levantei a mão com ar autoritário.
— Bobagem, Daniel, você tinha toda a razão em dizer tudo isso para mim. Obrigada.
— Mas...
— Sem mas nem meio mas, Daniel, você tem toda a razão. Na próxima vez que souber de uma festa, estou dentro — terminei, de forma definitiva.
Depois de alguns minutos triunfantes, perguntei, com uma voz bem fraquinha:
— Mas nós vamos continuar nos vendo, não vamos? Não todo dia, como agora, mas, você sabe...?
E ele replicou, com ar decidido:
— Claro que vamos, Lucy, claro que nós vamos continuar nos vendo.
Não me passou pela cabeça, nem por um momento, que Daniel pudesse estar com algum outro motivo para querer se afastar de mim, para querer que eu voasse com as próprias asas. Que a sua preocupação com a minha independência talvez não fosse totalmente altruísta. Que, talvez, ele tivesse uma namorada nova esperando por ele, impaciente, em algum lugar. Torcendo para que eu fizesse logo a minha reverência final para o público e caísse fora do palco para que ela pudesse assumir seu recém-conquistado posto sob os refletores. Jamais duvidei que a preocupação dele comigo fosse genuína, sincera e desinteressada. Confiei nele de forma completa. E, por causa disso, decidi ir em frente com aquilo que ele sugerira.
A nova Lucy, Uma força radiante. Independente, Renascida. De volta à cena. Mais em forma do que nunca. Um aperto de mão firme. Conhecendo gente nova. Cheia de interação social. Com muito flerte. Uma mulher forte. Uma mulher que sabe o que quer.
Nossa, era de deixar qualquer uma exausta.
E era tão chato. Até onde eu enxergava, o que Reaprender a Viver significava mesmo era simplesmente ficar longe de Daniel. Ou ao menos cortar drasticamente a quantidade de tempo gasto com ele. E eu sentia falta dele, terrivelmente. Ninguém era tão divertido quanto ele. Mas, enfim, aquilo tudo era para o meu próprio bem, até mesmo eu conseguia ver isso, e regras eram regras.
De qualquer forma, não foi o sufoco total que eu esperava, porque ele continuava a me telefonar todo dia. E eu sabia que ia me encontrar com ele no sábado seguinte, porque tínhamos combinado de sair juntos para comemorar o seu aniversário.
Essa história de Reaprender a Viver era mais fácil de falar do que de fazer. Eu estivera fora de circulação por muito tempo e não tinha mais ninguém com quem sair. Entrei de penetra em um drinque depois do expediente com Jed e Meredia, e foi um erro. Os dois se comportaram como se eu fosse invisível.
Na noite seguinte, saí com Dennis e, embora ele tivesse me prometido uma noite selvagem, de tanta agitação, aquilo também acabou sendo um desastre. Para começar, ele se recusou a ir a qualquer pub que não fosse gay, e passei a noite toda desesperadamente tentando fazê-lo olhar para mim enquanto ele se rebolava todo na cadeira, de um lado para outro, olhando para rapazes com camisetas brancas apertadas, bem por cima dos meus ombros. Mal consegui puxar assunto com ele. E quando ele, finalmente, se dignou a onversar comigo, só falou de Daniel. O que era uma irresponsabilidade da parte dele. Desse jeito, ele estava apenas alimentando o meu vício, em vez de me curar dele.
Megan ainda continuava muito desanimada com a sua Desordem Afetiva Sazonal, pois, quando sugeri sair para tomar um porre e arrumar namorados, ela simplesmente suspirou e disse que estava muito cansada.
Assim, sobraram Charlotte e Karen e, com todo o respeito, amigas que dividiam o apartamento eram uma espécie de último recurso, pois eu podia sair e ficar bêbada com elas a qualquer hora.
— Será que vocês não tinham nada melhor para a gente fazer do que vir a um pub chamado O buraco é mais embaixo para ficar rodeada de operários escoceses entornando cerveia em cima de nós? — reclamei.
— Não que eu tenha alguma coisa contra operários escoceses — acrescentei, depressa, ao notar a cara feia que Karen armou.
— Deixe comigo. — Charlotte, com ar misterioso, bateu com o dedo na ponta do nariz e, com a presteza de um mágico que tira um coelho da cartola, arrumou uma festa para irmos no sábado à noite. O primo do irmão do namorado da garota que dividia o apartamento com uma colega do mesmo andar que ela resolvera dar uma festa, porque estava sem namorada há muito tempo. Exatamente por esse motivo, Charlotte, Karen e eu éramos extremamente bem-vindas.
No sábado à noite, os preparativos para a festa eram exatamente iguais aos dos velhos tempos. Charlotte e eu abrimos uma garrafa de vinho e começamos a nos aprontar juntas, no meu quarto.
— Será que vai ter alguns caras bem legais lá hoje à noite? — perguntou Charlotte enquanto tentava passar rímel nos cílios inferiores com a mão ligeiramente bêbada.
— Estou me perguntando é se vai haver algum cara nessa festa — comentei, meio em dúvida. — Especialmente se o anfitrião está oferecendo essa tal comemoração só para ver se consegue sair com alguma garota.
— Não se preocupe — tranqüilizou-me Charlotte, balançando a mão. — Tem que ter alguns caras por lá, e um ou dois deles provavelmente vão ser legais.
— Não me importo que não sejam tão legais assim, contanto que não sejam como o Gus — disse eu.
Karen entrou quase marchando no quarto e abriu o meu guarda-roupa.
— Quer dizer que a sua fase de trazer para casa lunáticos sem um tostão no bolso que roubam nossas garrafas de tequila já acabou, Lucy? — quis saber ela, enquanto futucava por todos os meus cabides com uma rapidez impressionante.
— Sim, acabou.
— Ai, merda — exclamou Charlotte. — Alguém aí me arruma um lenço de papel, o rímel borrou meu rosto todo!
— E essa mudança toda aconteceu por causa dessa história do seu pai? — perguntou Karen, ignorando Charlotte.
— Quem sabe? Talvez eu já tenha amadurecido e terminado mesmo com a fase dos músicos sem grana — afirmei.
— É ruim, hein! — disse Charlotte, enquanto pegava um lenço de papel e o passava com todo o cuidado sobre as marcas de rímel espalhadas nas bochechas. Não estava disposta a abrir mão de sua teoria. — Vamos ser realistas, Lucy, você já não é uma garotinha. Froyd diz que...
— Ah, cale a boca, Charlotte — lançou Karen. — Volte para os seus livrinhos infantis de Enid Blyton. Lucy, onde está o seu casaco de camurça? Eu queria usá-lo esta noite.
Meio a contragosto, entreguei o casaco a ela. Finalmente, ficamos prontas.
— Lucy, você está linda! — elogiou Charlotte.
— Não estou não.
— Está sim. E eu, ficou parecendo que estou usando blush cinza?
— Não muito. De qualquer modo, você está linda.
Na verdade, dava para ver riscos do rímel no lugar onde ela o espalhara sobre o rosto, mas o táxi já estava chegando e não havia tempo para Charlotte refazer a maquiagem. Quando chegássemos à festa, eu a mandaria para o banheiro para retocar tudo.
— Karen, temos que aprender com Lucy ao vê-la em ação esta noite — disse Charlotte. — Aposto que ela vai fisgar o homem mais bonito e rico da festa, e sair de lá com ele.
— Não, não vou não. — Eu não queria deixar Charlotte desapontada. Minha transformação não podia acontecer assim, de modo miraculoso e repentino, como ela esperava. — Homens decentes já andam tão raros na praça. Por que você acha que assim, de repente, vou topar com um sujeito lindo, maravilhoso e que idolatra o chão onde piso só porque descobri que o meu pai é alcoólatra?
— Você vai, sim. — Ela estava inflexível.
— Escutem aqui uma coisa — avisou Karen. — Se tiver algum homem bonito e bem gato dando sopa por lá, podem ter certeza de que ele já está reservado para mim.
A palavra "Daniel" continuava suspensa no ar entre mim e Karen, sem ser pronunciada.
Então, de forma destemida, Karen a pronunciou:
— Lucy, você se lembra de quando eu achava que andava rolando algum lance entre você e Daniel? — perguntou, com uma risada ameaçadora. — Bem, saiba que eu ainda não estou completamente convencida de que você não tem um tesão enrustido por ele.
— Não que vá adiantar alguma coisa para você — continuou ela. — Vamos ser francas, agora, Lucy. — E lançou um olhar de loura sofisticada para o meu corpo baixo e sem peitos. Automaticamente, respondi ao seu olhar fazendo cara de envergonhada e sem valor. — Você não é exatamente o tipo de mulher de que ele gosta, é?
Na verdade, eu não era. Isso era uma versão oficial. O próprio Daniel já me informara disso. A lembrança da noite em que ele me dispensara continuava bem marcada na minha cabeça.
Assim que cheguei à festa, avistei alguém especial, um cara por quem eu me interessaria na mesma hora, em minha outra vida. Era jovem, com cabelos alourados pelo sol, típicos de surfista, e longos o bastante para indicar que ele não era corretor da Bolsa. Ele era bonito e agitado, difícil de encarar, e tinha olhos brilhantes que faiscavam. As centelhas que saíam de seus olhos provavelmente haviam sido obtidas por meios químicos. Dava para ver, só de olhar para ele, que jamais conseguira chegar na hora em um único lugar em toda a sua vida.
Seu suéter era o que eu no passado poderia ter descrito como "com personalidade" e "diferente", quando a palavra horrível teria funcionado melhor. Falava alto e estava animado, contando uma história que envolvia movimentos grandes e largos com os braços. O grupo em volta dele estava se dobrando de tanto rir. Por outro lado, todos pareciam drogados. Provavelmente ele estava contando a eles sobre uma das vezes em que havia sido preso, pensei, de forma cruel.
Tentei me segurar. Quando foi que eu começara a ficar assim tão amarga? Não era justo encaixar todo cara mal vestido e com o cabelo comprido na mesma categoria de Gus.
Aquele sujeito louro ali, por exemplo, podia até ser legal, generoso, com um bom coração e muita grana.
Olhei para ele e pensei: "Sabe de uma coisa, ele é uma gracinha."
Ele me pegou bem na hora em que estava olhando para ele, piscou e sorriu para mim. Eu virei a cara.
Alguns minutos mais tarde, alguém bateu em meu ombro. Eu me virei e era ele: o canarinho louro bonitinho e que falava alto.
— Oi! — berrou ele. Seus olhos tinham um surpreendente tom prateado, bem brilhante. O padrão de seu suéter parecia ter sido idealizado durante um ataque epiléptico.
— Oi. — Sorri. Não pude evitar, foi uma coisa totalmente automática.
— Saquei você lá do outro lado da sala — sorriu —, e saquei que você estava me sacando também. Fiquei imaginando se você não estava a fim de ir comigo até a varanda, a fim de fumar uma tora de baseado da melhor qualidade e...
Parou de falar na mesma hora quando viu que eu fiquei olhando para ele fixamente. Não queria ser mal-educada, mas tinha que verificar meus sinais vitais para saber se estava me sentindo atraída por ele. Só que não me aconteceu nada por dentro, eu continuava fria como uma pedra.
— Hã... acho melhor não... — desculpou-se ele. — Foi só uma idéia. — Afastou-se de mim, andando de costas, e o sorriso fora substituído por um olhar de apreensão e nervoso. — Idiotice minha eu falar isso, porque não transo drogas, nem chego perto... "Recuse sempre!" é o meu lema.
Voltou correndo para os amigos e o ouvi falar que eu era uma policial disfarçada. Todos ficaram com uma cor acinzentada no rosto e, como se fossem um corpo único, saíram de fininho da sala.
O que quer que ele imaginara ter reconhecido em mim —os sinais que eu costumava emitir para atrair homens daquele tipo — havia sumido. Deve ter sido apenas o fantasma do meu antigo jeito que surgira por alguns centésimos de segundo e o induzira ao erro.
Uma pena, pensei, porque ele era mesmo uma graça.
Mais tarde, ouvi alguém reclamar de que não havia ninguém na festa vendendo drogas. Tive a gentileza de me sentir culpada.
Era uma festa horrorosa, caidaça... Os vizinhos nem chamaram a polícia. A música era horrível, não havia quase nada para se beber nem um homem, um sequer, que fosse interessante.
Pelo menos ninguém por quem eu me interessasse.
Karen ficou logo com as calcinhas pegando fogo por causa de um cara grande, com o corpo muito malhado, cujo pai, diziam na festa, era muito rico. Com sua determinação habitual, ela foi apresentada a alguém que sabia de uma pessoa que era amiga de outra que conhecia o Mister América grandalhão, e acabou conseguindo ficar de papo com ele.
Charlotte e eu ficamos sentadas no sofá enquanto todo mundo em volta ignorava a gente por completo. Eu estava de saco cheio daquele lugar, chegava a arrastá-lo pelo chão. Charlotte mantinha um contínuo sistema de comentários sobre todo mundo que passava, do tipo "olhe aquele ali, Lucy, o jeito como ele fica com os braços estendidos ao longo do corpo, uma clássica demonstração de fixação anal tentativa" e "veja aquela outra, Lucy, parece desesperada pelo afeto do cara ao lado; quando era bebê, não deve ter sido alimentada no seio".
E eu resmungava:
— E "fixação anal retentiva" que se fala, e o cara de mãos dadas com a mulher carente é o marido dela.
Como eu lamentava o dia em que Charlotte colocara as mãos nos meus livros de psicologia prática para mulheres infelizes.
O tédio continuava. Pelo menos havia a caminhada até o ponto de táxi e o churrasco grego na esquina para curtirmos depois que saíssemos dali.
Karen circulava como um cisne em volta do touro premiado.
— Garotas! — disse para Charlotte e para mim, com uma cara de "sou tão charmosa, vocês não acham?". — Este aqui é o Tom. Ele queria que eu o apresentasse a vocês duas... sabe lá Deus por quê.
Charlotte e eu rimos. Porque sabíamos que estaríamos em apuros se não o fizéssemos.
— Tom, esta é a Charlotte e esta é a Lucy.
De perto até que ele não parecia tão mau, na verdade. Olhos castanhos, cabelos castanhos, um rosto bem simpático. O problema é que eu não conseguia parar de imaginá-lo todo coberto de molho de churrasco, pronto para ser servido.
A pessoa que estava ao meu lado no sofá se levantou para acudir uma amiga que desabara dentro do banheiro. Tom perguntou a Karen se ela não queria se sentar no lugar que vagara.
— Não — garantiu ela. Porque preferia ficar ali em pé ao lado dele, é claro.
— Tem certeza? — perguntou ele, intrigado.
— Absoluta. — E ria alegremente para ele. — Adoro ficar em pé.
— Tudo bem — respondeu ele, muito intrigado a essa altura. Para completar, e para o horror de Karen, que deixou cair o queixo de espanto, ele se sentou bem ao meu lado.
Rápida como um raio, em um exercício estratégico de diminuição de danos, Karen se sentou no braço do sofá, junto de Charlotte. Na verdade, ela se sentou em cima de Charlotte. Então se debruçou toda por cima de nós, para poder conversar com o Senhor Filé, quase apagando a mim e Charlotte.
Mas ela estava desperdiçando o seu tempo.
— Fiquei tão feliz por ter sido apresentado a Karen — comentou Tom comigo.
Sorri, de modo educado.
— Porque — continuou ele — andei observando você a noite toda, e estava tentando arrumar coragem para chegar em você e puxar assunto.
Sorri, de modo educado, novamente.
Caramba! Karen ia me trucidar.
— Então eu mal pude acreditar na minha sorte quando acabei conhecendo a sua amiga,
— Sobre o que vocês estão falando? — sorriu Karen.
— Estava só contando a Lucy como fiquei contente quando consegui ser apresentado a você — disse Tom.
Karen jogou os cabelos para trás, em um gesto de triunfo.
— É que passei a noite toda me perguntando como conseguiria me aproximar de Lucy — explicou ele
Karen congelou o movimento, com os cabelos no ar. Até as pontas dos fios pareciam ter ficado rígidas de repente.
Jogou aquele olhar estilo: "Lucy, você vai morrer por causa disso, sua vaca", para cima de mim.
Eu me encolhi toda no sofá. Alguns dias mais tarde, me contaram que todas as plantas do apartamento morreram naquela mesma noite.
Eu não achava Tom nem remotamente atraente. Afinal, eu era quase vegetariana.
— Que bom que servi de alguma coisa para você, Tom — disse Karen, com um tom corrosivo. Ficou em pé e foi, a passos largos, para o outro lado da sala.
Tom e eu olhamos um para o outro, ele em choque, eu morrendo de medo. Então, de repente, nós dois caímos na gargalhada.
Era bem típico que Tom estivesse a fim de mim. Porque eu não estava a fim dele. Eu nem sequer reparara nele. Sempre achei que a melhor forma de fazer os homens ficarem interessados em mim era não me interessar por eles. Só que a coisa tinha de ser a sério. Fingir que não estava a fim jamais funcionava. Os homens sempre sacavam que, quando os ignorava e levantava o queixo de forma altaneira e esnobe, eu estava, na verdade, quase babando por eles (ouvi essa frase de um deles, exatamente desse jeito).
Charlotte, obviamente em uma manobra suicida, correu atrás de Karen, e me deixou ali batendo papo com o musculoso Tom. Fiquei comovida pela sua pequena confissão a respeito daquela história de ficar todo nervoso para falar comigo etc. etc. E ele me pareceu um cara legal. E claro que pareceu: queria me levar para a cama... quase estremeci só de pensar. Ele era tão... grande, seria como transar com um boi.
Não era como Daniel. Ele também era grande, mas era grande assim, de um jeito legal. Distraída, me pus a pensar onde é que ele deveria estar naquela noite. De repente me veio um pensamento horrível: talvez ele estivesse em uma festa como aquela, fazendo o papel de Tom, tentando convencer alguma garota a voltar para casa com ele. Meu estômago se contorceu todo de medo e me deu uma vontade louca de ligar correndo para ele, na esperança de que pudesse encontrá-lo em casa, já na cama... sozinho.
— Ah, não — disse para mim mesma, horrorizada. — Eu bem que avisei você, Lucy, de que era capaz de isso acontecer.
Será que, mesmo depois de tudo o que eu dissera, acabara ficando dependente demais de Daniel?
Forcei a mim mesma a ficar sentada ali, bem quietinha. Não podia simplesmente telefonar para ele só para perguntar se ele estava na cama com alguém. E, por falar nisso, por que é que eu queria tanto saber?
Isso me apavorou tanto que serviu para me acalmar. Eu jamais havia sido possessiva com Daniel. Jamais me importara com as pessoas com as quais ele batia papo, ou quem ele seduzia, quem levava para casa, colocava em cima da cama e começava a tirar as roupas dela, devagar e...
O pânico começou a surgir de novo. Ele já estava sem namorada há muito tempo, e aquilo não podia continuar para sempre. Ia acabar acontecendo, ele ia encontrar alguma garota legal, em algum momento. Mas... se ele começasse a sair com alguém, o que ia acontecer comigo? Como é que eu ia me encaixar na vida dele?
O que estava acontecendo?, perguntei a mim mesma, cheia de medo. Eu estava agindo como se estivesse com ciúmes, como se... como se... como se eu gostasse de Daniel. Não, não, não queria nem pensar! NÃO IA PENSAR NAQUILO, quase berrei, bem alto.
Minha cabeça voltou ao presente. Tentei focalizar o pobre Tom, porque ele me perguntara alguma coisa e parecia estar esperando avidamente por uma resposta.
— O quê? — perguntei, me sentindo meio tonta.
— Lucy, nós dois podemos sair juntos uma noite dessas?
— Mas eu não estou a fim de você, Tom — soltei, sem querer. Na verdade o que eu quis dizer foi "não é de você que estou a fim".
Ele me pareceu meio desbundado.
— Desculpe — disse eu. — É que eu não estava prestando atenção...
Mas eu estava prestando atenção, sim. Descobri que ficara muito possessiva com Daniel, e obviamente Daniel sentira aquilo. Provavelmente ele estava achando que eu estava a fim dele. Que cara-de-pau.
— Quero apenas levá-la para jantar, Lucy — disse Tom, humildemente. — Você precisa estar a fim de mim para isso?
— Desculpe, Tom.
Eu mal conseguia falar com ele. Daniel queria era se ver livre de mim, compreendi, então. Esse era o motivo de todo aquele papo de eu precisar começar a viver de novo. Pequena Sereia, francamente! Ele estava apenas tentando desgrudar as minhas mãos de cima dele, dedo por dedo. De repente, senti uma pontada de humilhação, que rapidamente se transformou em raiva. Tudo bem, então, pensei, enfurecida, não quero mais papo com Daniel, de jeito nenhum. Ia arranjar um namorado novo só para mostrar a ele. Ia aceitar sair com Tom, nos apaixonaríamos e seríamos felizes de verdade.
— Tom, eu adoraria sair com você — disse. Fiquei com vontade de estar morta.
— Que legal. — Sorriu Tom. Se eu não estivesse com tanta pena dele, até que seria legal dar-lhe um soco na cara.
— Quando você quer sair comigo? — perguntei, tentando enfiar à força um pouco de entusiasmo na voz.
— Que tal agora? — perguntou ele, cheio de esperança, Apenas com um pequeno levantar de sobrancelha consegui
transmitir a Tom que ele estava correndo o perigo de morrer ali, em questão de segundos.
— Desculpe — pediu ele, amedrontado. — Desculpe, desculpe, desculpe. Que tal amanhã à noite?
— O.k.
Então ficou combinado. E bem na hora, porque a festa logo a seguir caiu do galho, deu dois suspiros e depois morreu.
Eu estava decidida a nunca mais tornar a ver Daniel. O único problema é que, no dia seguinte, tínhamos combinado de sair para almoçar, em comemoração ao seu aniversário. Senti que não podia cancelar aquilo. Não apenas era algo que já fora combinado há semanas, como, enfim, era o aniversário dele.
Talvez eu me sentisse aliviada, mas tentava não pensar no assunto. Isso era fácil, porque a atmosfera entre mim e Karen ficara péssima. Ela estava sem falar comigo, e andava de um lado para outro pelo apartamento, abrindo todas as portas só para poder batê-las, logo em seguida, fazendo um estrondo.
Era muito desagradável. Eu me arrependi amargamente de ter comentado que ia sair com Tom. Devia estar fora de mim quando aceitei. Tom era horrível, Karen seria a companhia ideal para ele. Eu tinha certeza de que não ia me apaixonar por ele nem provar nada para Daniel.
O medo terrível de que Daniel tivesse conhecido uma nova garota voltou de mansinho enquanto eu dormia. Eu tinha certeza de que o terror que eu sentira na noite anterior era uma suspeita. Já não era apenas uma idéia, se transmutara em premonição.
Tentei me comportar de forma sensata enquanto me aprontava para sair. Tinha quase certeza de que não estava a fim de Daniel, de certo modo. O que sentia por ele não era nada romântico nem sexual. Na mesma hora, lembranças do Grande Beijo voltaram, sem convite, mas eu as bloqueei (eu ainda era muito boa nessa coisa de bloquear as lembranças indesejáveis, era uma habilidade maravilhosa). Mas será que eu acabara ficando dependente demais dele, como amigo? Na esteira da desintegração da minha família, será que eu começara a gostar dele?
Bem, se era isso, aquilo tinha de ter um fim.
Eu estava satisfeita comigo mesma por ser tão sensata. Embora tudo aquilo durasse apenas um minuto. O pânico voltava quase na mesma hora.
E se ele estivesse na cama com elanaquele exato momento?
No fim, acabei telefonando para ele. Não consegui me segurar. Fingi que estava ligando só para confirmar o lugar onde ia me encontrar com ele, embora estivesse farta de saber que era na Estação Green Park do metrô, às duas horas. Para meu alívio, ele não estava com voz de quem tinha uma mulher na cama, ao seu lado. Embora nunca pudéssemos ter certeza. A vida de Daniel não era como naqueles filmes idiotas em que as mulheres ficam dando griti-nhos e risadinhas quando estão na cama.
Foi uma bênção eu estar às turras com Karen, porque assim não foi preciso inventar desculpas elaboradas quando saí para me encontrar com Daniel.
Se ela estivesse falando comigo, ia acabar desconfiando de alguma coisa, porque, em uma tentativa de provar a Daniel que eu não era uma bundona na cola dele, me produzi toda. Meu vestido curtinho com casaquinho combinando não eram uma proteção apropriada para um dia frio de março como aquele, mas eu não ligava. O orgulho ia me manter aquecida.
Ele já estava esperando do lado de fora da entrada da Estação Green Park, no horário marcado. Quando apareci, toda agitada, tremendo de frio, correndo na direção dele com minhas sandálias de tirinhas, ele me lançou um sorriso tão intenso e fulgurante que quase perdi o equilíbrio e torci o tornozelo. Fiquei chateada e meio desconfiada. De que ele estava rindo tanto? Será que era a alegria de ter uma nova namorada secreta em sua vida que o fazia dar um sorriso tão largo? Será que era algum tipo de brilho pós-transa que fazia com que ele parecesse tão lindo?
— Lucy, você está maravilhosa — disse ele. Depois, me deu um beijo no rosto e minha pele se arrepiou toda. — Você não está com frio?
— Nem um pouco — disse, com ar vago, enquanto examinava discretamente o pescoço dele, em busca de marcas de chupão, batom, arranhões, dentadas etc.
— Aonde vamos, Lucy? — perguntou ele.
Não consegui descobrir nenhum sinal de recente atividade sexual nele, mas, como a maior parte de seu corpo estava coberta por um casacão de inverno, não havia motivos para respirar aliviada.
— É surpresa — informei, enquanto imaginava se ele colocara a gola do casaco para cima a fim de esconder o pescoço cheio de marcas vermelhas. — Vamos logo, porque estou morrendo de frio!
Droga!, pensei, ao ver que falara a verdade sem querer. Nossos olhos se encontraram, e a sua boca começou a tremer nos cantos, enquanto ele tentava segurar o riso.
— Nem pense em me zoar — ameacei.
— Eu não ia fazer isso — disse ele, com humildade.
Levei-o até a rua Arbroath, e quando chegamos à porta do restaurante Shore apontei para a vitrine e disse:
— Ta-rám!
Ele pareceu impressionado, e fiquei feliz. O restaurante Shore era um dos mais novos e badalados de Londres, freqüentado por modelos e atrizes. Pelo menos era o que as revistas diziam. Aquela, provavelmente, ia ser a primeira e última vez que eu ia lá.
Assim que colocamos o pé lá dentro, percebi que tinha subestimado a informação de que o Shore era um lugar descolado, badalado e chique. Foi a grosseria dos funcionários que provou o quanto o lugar era realmente o máximo!
O recepcionista, um rapaz jovem com cara triste, olhou para mim de cima a baixo como se eu tivesse acabado de fazer xixi na entrada, de cócoras.
— Sim? — sibilou ele.
— Uma mesa para dois, no nome de...
— Reservaram a mesa com antecedência? — ele me interrompeu. Imediatamente me deu vontade de dizer:
"Escute aqui, seu babaca, você é apenas o recepcionista, sabia? Sinto muito pelo fato de que vou gastar mais em uma refeição aqui do que você ganha em uma semana de ralação, mas tentar estragar o nosso almoço não vai ajudar em nada a distribuição de renda no país. Já pensou em fazer algum curso noturno para subir na vida? Podia voltar a estudar e tentar passar em alguns concursos. Aí, talvez, conseguisse um emprego mais decente."
Porém, como era o aniversário de Daniel e eu queria que tudo corresse maravilhosamente bem, humildemente respondi:
— Sim, reservei uma mesa. Está no nome de Sullivan.
Mas eu disse essa frase para o ar. Ele já saíra de trás do seu pequeno pódio e estava beijando o ar em volta de uma mulher toda vestida de Gucci, que chegara atrás de nós.
— Kiki, querida — cumprimentou ele, com um jeito fresco. — Como estava Barbados?
— Sabe como é... apenas Barbados! — E passou na minha frente. — Acabamos de pousar. David está estacionando o avião.
Ela deu uma olhada em volta do restaurante. Daniel e eu, na mesma hora, nos encostamos à parede.
— Somos apenas nós dois — informou ela. — Uma mesa junto da janela seria ótimo.
— Você... hã... reservou mesa? — Tossiu discretamente o recepcionista.
— Ai, que distração! — E sorriu de forma gélida. — Sei que eu devia ter ligado do celular, mas tenho toda a confiança em você, Raymond.
— Hã... o nome é Maurice — disse Raymond. Ele pronunciou "Môôôrriiiss".
— Que seja — ela acenou, dispensando a informação. — Simplesmente nos arrume uma mesa, e depressa. David está morrendo de fome.
— Sem problemas, meu bem, vamos encontrar um lugarzinho para vocês em algum lugar. — E sorriu. — Deixe tudo por conta de Môôôrriiiss,
Verificou seu livro de reservas. Era como se Daniel e eu tivéssemos nos mesclado com o padrão do papel de parede. Mesmo que não houvesse nenhum.
— Vamos ver... — murmurava Maurice, ansioso. — Mesa dez! Eles estão saindo...
Continuava a me ignorar e a Daniel. Odeio você!, pensei.
Se eu estivesse ah sozinha, teria esperado por toda a eternidade. Mas estávamos ali por causa do aniversário de Daniel, e eu queria que ele se divertisse e, portanto, decidi assumir o problema e resolvê-lo com as próprias mãos.
— Desculpe-me, Maurice — pronunciei Morris. — Daniel está morrendo de fome também. Para falar a verdade, ele está quase tão faminto quanto David. Gostaríamos de ir logo para a nossa mesa, por favor. Aquela que nós deixamos reservada.
Daniel deu uma gargalhada. Maurice virou os olhos vidrados para mim. Arrancou dois menus à força de seu montinho e lançou para Kiki um olhar do tipo "meu Deus, dá pra acreditar?", e saiu na nossa frente pelo restaurante, em alta velocidade. Parecia ter uma moeda de dez centavos espetada entre as nádegas de sua bunda magra, e lhe doía muito não deixá-la cair. Apertado. Muito apertado, travado... Era tenso o rapaz.
Arremessou os menus em uma mesinha e sumiu. Queria se livrar da gente o mais depressa possível. Pessoas comuns, argh!
Daniel e eu nos sentamos. Daniel não parava de rir.
— Essa foi grande, Lucy!
— Desculpe a cena, Daniel. — Sentia-me quase às lágrimas. — E que eu queria muito que você curtisse este almoço, porque é o seu aniversário, você tem sido muito bom para mim, tenho tanto para lhe agradecer, o que andou fazendo a noite passada?
— Como? — Ele pareceu confuso. — Você quer saber o que eu fiz ontem à noite?
— Hã... quero — assumi. Não planejei soltar aquilo tão de repente.
— Saí para tomar umas cervejas com Chris.
— E quem mais?
— Mais ninguém. Ufa!
O alívio foi grande, mas durou apenas trinta segundos, só até eu descobrir que haveria milhares de outras noites de sábado no futuro, estendendo-se até a eternidade. E em cada uma delas havia uma chance de que Daniel conhecesse uma mulher.
Aquilo me deixou com o farol tão baixo que mal conseguia ouvir o que ele dizia. Parece que estava falando sobre nós irmos à apresentação de um comediante naquela noite.
— Não, Daniel, espere — disse eu, bem depressa —, eu não posso sair com você esta noite.
— Não pode?
Aquilo era desapontamento?, perguntei a mim mesma, esperançosa.
— Marquei um encontro com um cara quente — respondi.
— Sério? Isso é muito legal, Lucy. — Ele precisava parecer assim tão empolgado por causa daquilo?
— Sim, é ótimo. — Eu me sentia na defensiva e zangada. — Ele não é um bêbado nem um vagabundo sem grana. Tem um emprego, um carro e Karen estava a fim dele.
— Que legal — disse ele. De novo! Confirmei com a cabeça, em um gesto rápido.
— Bom trabalho — elogiou ele, com entusiasmo.
Bom trabalho?, pensei, com raiva. Será que eu estava em um estado tão patético?
O dia subitamente pareceu nublado. Fiquei sentada ah, em silêncio. Aniversário dele ou não, eu me sentia muito revoltada com Daniel para ser simpática.
— Portanto — avisei —, acho que você não vai me ver muito de agora em diante.
— Entendo, Lucy — disse ele, gentil. Eu queria chorar.
Continuei sentada, com a cara amarrada, olhando para a mesa. Daniel deve ter entrado no meu clima, porque, de forma pouco comum para ele, também ficou muito calado.
Apesar da grosseria dos atendentes, o almoço não foi um sucesso. A comida estava boa, mas eu não queria comer nada. Estava muito pau da vida com Daniel. Como ele ousava ficar assim tão feliz por mim? Como se eu fosse a aleijada que arrumou um namorado ou algo assim.
Felizmente, o comportamento rude dos garçons nos deu a oportunidade de ter alguma coisa sobre o que conversar. Todos eles eram tão condescendentes, com ar de superioridade, e alguns, pura e simplesmente, grossos à moda antiga, que, perto do fim do almoço, começamos, com hesitação, a nos comunicar de novo.
— Babaca! — Daniel me lançou um sorriso enquanto o nosso garçom ignorava acintosamente o nosso chamado para pedir o café,
— Canalha estúpido — concordei, sorrindo. Quando a conta chegou, voamos em cima dela.
— Não, Daniel — insisti —, deixe que eu pago, pelo seu aniversário.
— Tem certeza?
— Tenho. — Sorri. Mas não por muito tempo, ao ver o valor que ia ter de pagar.
— Deixe que eu pague a metade — sugeriu Daniel ao ver minha cara de estarrecida.
— De jeito nenhum.
Novas briguinhas. Daniel tentava pegar a conta da minha mão, eu a afastava dele etc. No final, ele, de forma gentil, deixou que eu pagasse.
— Obrigado por um almoço adorável, Lucy.
— Não foi assim tão adorável, foi? — perguntei, tristonha.
— Foi, sim — confirmou ele, de forma vigorosa e honrada. — Eu queria mesmo vir até aqui para conhecer o lugar, e agora já sei como ele é.
— Prometa-me uma coisa, Daniel — pedi, com ar fervoroso.
— Qualquer coisa.
— Que você jamais vai voltar aqui por vontade própria, sob hipótese alguma.
— Prometo, Lucy.
Caminhamos juntos até a estação do metrô, e então fui até o ponto do ônibus. Estava me sentindo muito deprimida.
Tom se mostrou um perfeito cavalheiro.
Tocou a campainha às sete em ponto, como combinado. E, também como combinado, não subiu até o apartamento. O que lhe faltava em graça, elegância e feições suaves ele mais do que compensava com instinto de autopreservação.
Não era nada bobo, e suspeitava que Karen era má perdedora e vingativa.
Desci correndo as escadas e fui até onde ele estava me esperando, no carro. Senti um pequeno choque ao vê-lo sentado atrás do volante.
Não havia nada de errado, só que ele tinha um jeito de quem estaria mais à vontade pendurado no gancho em um açougue, para exibição. Ainda tornava as coisas piores por usar uma camisa vermelha. Torci para que ele jamais colocasse piercing no nariz.
Ele me levou a um restaurante. Foi o mesmo restaurante A Roupa Nova do Imperador ao qual eu fora com o Daniel no almoço. Maurice estava lá, seu turno ainda não acabara. Ele olhou com aversão e sem querer acreditar no que via quando Tom entrou como um estouro de boiada porta adentro e veio arranhando o chão com o casco, trazendo-me a seu lado.
Tom me ofereceu jantar, me deu vinho, depois tentou me carregar para o seu apartamento, com idéias de fazer "sessenta-e-nove" comigo, imagino.
Não tinha a menor chance.
Era um cara legal, mas eu não iria para a cama com ele nem que fosse o último homem do planeta. Ele me adorava por isso.
Seus olhos brilhavam de admiração por mim enquanto eu o dispensava.
— Gostaria de tornar a sair comigo durante a semana, Lucy? — perguntou, com avidez. — Poderíamos ir ao teatro.
— Talvez... — concordei, meio em dúvida.
— Bem, não precisa ser teatro — continuou ele, ansioso. — Podemos ir jogar boliche. Ou andar de kart. O que você escolher, na verdade.
— Vamos ver — disse eu, sentindo-me mal. — Eu telefono para você.
— O.k. — concordou ele. — Aqui está o meu número. E este aqui é o telefone do meu trabalho. Este outro é o meu celular. Este aqui embaixo é o fax. O último é o meu e-mail. E aqui está o meu endereço.
— Obrigada.
— Ligue a qualquer hora — disse, com fervor. — A qualquer hora do dia ou da noite.
Charlotte soltou a bomba na quinta à noite. Chegou correndo do trabalho, toda afobada.
— Adivinhe quem foi que encontrei? — guinchou ela.
— Quem? — Karen e eu perguntamos, em uníssono.
— Daniel — sorriu ela. — E ele está de namorada nova! Eu não podia ver meu rosto, mas senti que fiquei pálida.
— Está de o quê nova? — sibilou Karen. Não parecia assim tão abalada.
— Namorada — confirmou Charlotte. — E ele estava lindo. Pareceu muito feliz por me ver.
— E como é que ela era, a piranha? — perguntou Karen, entre dentes.
Graças a Deus por Karen. Ela estava perguntando todas as coisas horríveis que eu não conseguia fazer passar pela garganta.
— Linda — descreveu Charlotte, com entusiasmo. — É toda mignon e delicada, eu me senti uma elefanta perto dela. Tem um monte de cabelos pretos, bem cacheados. Parece uma boneca, e faz lembrar a Lucy. E Daniel está louco por ela, vocês deviam ter visto a linguagem corporal dele...
— Lucy não parece uma boneca — interrompeu Karen.
— Ah, parece sim.
— Não parece não. Há uma diferença entre ser baixinha e parecer uma boneca, sua tonta.
— Bem, ela se parecia com Lucy, de rosto. E o cabelo também — berrou Charlotte.
— Mas pensei ter ouvido você dizer que ela era linda — fungou Karen.
A princípio, achei que ela estava fungando daquele jeito só para mostrar desprezo. Quando, porém, começou a fungar sem parar e balançar os ombros, seguindo-se uma sessão de soluços, percebi que ela estava chorando.
Sorte a dela. Em sua posição de ex-namorada, lhe era permitido chorar por ele. Eu não tinha aquele direito.
— O nojento, asqueroso, canalha safado! — fumegou ela. — Como ele ousa estar feliz longe de mim? Ele não devia conhecer ninguém, era para acabar descobrindo que não conseguiria viver sem a minha presença. Tomara que ele perca o emprego, que sua casa pegue fogo e desabe, quero que ele pegue sífilis... não, não, espere... AIDS, não, não... pior ainda... acne, ele ia detestar isso.
Tomara que sofra um acidente de carro e seu fodomóvel sofra perda total, e seu pinto fique preso nas ferragens de uma moedora de carne e depois ele ainda seja preso por um crime que não cometeu e...
As coisas normais que falamos quando descobrimos que o ex-namorado teve a audácia de estar namorando outra pessoa.
Charlotte dava tapinhas nas costas dela para acalmá-la, mas eu saí de fininho. Não sentia nada por ela, estava muito ocupada, sofrendo por mim mesma.
Estava em estado de choque.
Acabara de descobrir que estava apaixonada por Daniel.
Mal podia acreditar na minha estupidez, sem mencionar a minha falta de mancômetro. Suspeitara, por algum tempo, que gostava dele. Deixar aquilo passar já fora muito descuido. Mas estar apaixonada por ele, apaixonada, e não ter me dado conta disso já era negligência criminal.
E pensar no quanto eu gargalhara ao ver todas as mulheres que haviam se apaixonado por ele no decorrer dos anos. Mal sabia que um dia aquilo ia acontecer comigo. Sem dúvida, havia alguma grande lição a ser aprendida daquilo: "Não zoe os outros para não ser zoada", ou algo assim.
Não conseguia raciocinar direito, porque as fisgadas provocadas pelas lágrimas de ciúme estavam me colocando em estado de demência.
Pior do que o ciúme era o medo de que eu tivesse perdido Daniel para sempre. Já fazia tanto tempo que ele não saía com ninguém que eu começara a pensar nele como propriedade minha.
Grande erro.
Então, fiz a coisa mais idiota que poderia fazer: liguei para ele.
Ele era a única pessoa que ia conseguir me confortar e aplacar a minha dor, mesmo tendo sido a mesma pessoa que a causara.
Aquilo era uma atitude estranha, chorar no ombro de um amigo por causa de um coração partido, quando a pessoa no ombro de quem eu estava chorando era, na verdade, a mesma pessoa que fizera o estrago. Mas eu jamais conseguia fazer as coisas do jeito normal mesmo.
— Daniel, você está sozinho? — Esperava que ele fosse dizer que não.
— Estou.
— Posso dar uma passada aí?
Ele não disse "está tarde" ou "o que é que você quer?", nem "não dá para esperar até amanhã?". Simplesmente disse:
— Pode deixar que eu passo aí e apanho você.
— Não — reagi. — Eu pego um táxi, a gente se vê já, já.
— Aonde você vai? — Karen me pegou no flagra, tentando escapar sorrateiramente pela porta da frente.
— Sair — respondi, com um fiapo de desacato. A infelicidade tinha me tirado um pouco o medo dela.
— Sair para onde?
— Simplesmente sair.
— Você vai se encontrar com Daniel, não vai?
Ou ela era muito observadora ou altamente paranóica e obsessiva.
— Vou. — Encarei-a de frente.
— Sua babaca burra, você não tem a mínima chance com ele.
— Eu sei. — E desci as escadas.
— Mesmo assim você vai? — perguntou ela, com surpresa e um pouco de zanga na voz.
— Vou.
— Você não pode ir lá! — ladrou ela, falando sílaba por sílaba.
— Quem é que disse? — A essa altura, eu já estava no meio do segundo lance de escadas, de onde era muito mais fácil ser valente.
— Eu proíbo você de ir lá!
— Já estou indo...
Ela ficou incandescente de tanta raiva. Mal conseguia falar.
— Não quero que você faça papel de idiota — finalmente conseguiu articular.
— Pode ser que não, mas acho que você adoraria me ver fazer papel de idiota.
— Volte aqui!
— Se manca — disse, corajosa, e caí fora.
— Vou esperar por você! — berrou. — É melhor voltar para casa...
No táxi, pelo caminho, decidi que a única coisa que podia fazer era contar a Daniel o motivo de eu estar tão abalada, embora um coro de tragédia grega dentro da minha cabeça ficasse me implorando para que eu não fizesse aquilo.
"Você sabe que a última coisa que uma mulher deve dizer para o homem que ama é que ela o ama!", cantava o coro na minha cabeça, e clamava: "Especialmente quando ele não está apaixonado por voce.
— Eu sei! — reagi, desesperada. — Mas é diferente, comigo e com Daniel. Ele é meu amigo, ele vai me tirar dessa. Vai me lembrar do quanto ele é terrível com as namoradas.
"Procure outra pessoa com quem desabafar", cantava o coro grego. "O mundo está cheio de gente, por que contar logo para ele?"
— Ele vai me livrar da dor, vai fazer com que eu me sinta melhor. "Mas..."
— Ele é o único capaz disso — disse, com firmeza e determinação. "Você não nos engana...", cantou o coro. "Sabemos que você
está aprontando alguma."
— Calem a boca, não estou, não — protestei.
Eu conhecia bem aquela história vitoriana. "Ele não pode descobrir, jamais, o quanto o amo, pois não suportaria que ele sentisse pena de mim." Especialmente se o cara não fosse muito legal, começasse a rir do caso e contasse a história toda aos amigos, quando eles saíssem para caçar gansos. Mas nada daquilo se aplicava a mim, decidi. Não precisava manter a dignidade com Daniel.
Quando ele abriu a porta para mim, senti-me tão feliz de vê-lo que meu coração deu um pulo.
Droga, pensei, então é verdade mesmo, eu realmente estou apaixonada por ele.
Corri direto para os seus braços. Ser amiga dele tinha um monte de vantagens das quais eu não tinha a mínima intenção de desistir só porque ele arranjara uma namorada nova.
Pendurei-me no pescoço de Daniel com toda a força, e ele, justiça seja feita, me abraçou bem apertado.
Ele deve ter achado que eu estava me comportando de modo muito estranho, mas, sendo o cara decente que era, não tocou no assunto. Eu ia explicar tudo a ele logo em seguida, decidi. Por enquanto, porém, queria ficar bem ali onde estava. Ele ainda era meu amigo, eu ainda tinha o direito de ser abraçada por ele. E por alguns momentos eu podia ficar ali, fingindo que ele era meu amante.
— Desculpe por tudo isso, Daniel, mas preciso que você seja meu amigo neste momento.
Mentira, é claro, mas não podia dizer "desculpe por tudo isso, Daniel, mas quero me casar com você e ser a mãe dos seus filhos".
— Eu vou ser sempre seu amigo, Lucy — murmurou ele enquanto acariciava o meu cabelo.
Grande coisa!, pensei, de modo amargo, mas só por um momento. Ele era um grande amigo. Não era sua culpa que eu fosse idiota o suficiente para me apaixonar por ele.
Depois de algum tempo, senti-me forte o bastante para me desembaraçar dele.
— Então, o que há de errado com você? — perguntou-me ele. — É alguma coisa com o seu pai?
— Ah, não, nada desse tipo.
— Tom?
— Quem? Ah, não, coitado do Tom, não é nada com ele. Por que as pessoas por quem não nos apaixonamos sempre se apaixonam por nós, Daniel?
— Não sei dizer, Lucy, mas é assim que as coisas são.
E você não sabe nem metade da história, pensei, nervosa. Tomei fôlego e disse:
— Daniel, preciso falar com você.
Mas quando tentei contar a ele o que havia de errado comigo, não foi tão fácil quanto imaginei que seria. Na verdade, foi esquisito e embaraçoso.
A idéia romântica que eu construíra de voar nos braços dele, esperando que me beijasse e magicamente acabasse com a minha dor, se evaporara, Ele tinha uma nova namorada, pelo amor de Deus! Eu não tinha direito algum sobre ele. O que poderia falar? "Olha, Daniel, quero que você termine com a sua nova namorada"? Claro que não!
— Hã... Lucy, o que você quer falar comigo? — perguntou, depois que os segundos começaram a passar e eu continuava sem dizer nada,
Fiquei olhando para minhas mãos durante séculos, tentando achar as palavras certas.
— Charlotte me disse que você arranjou uma namorada nova, e eu fiquei... hã... com ciúmes — consegui soltar, finalmente. Não conseguia olhar para ele nos olhos e me encolhi toda.
Talvez contar aquilo a ele não fosse uma boa idéia. Talvez fosse uma péssima idéia.
Eu não devia ter ido até lá. Compreendi que só podia estar doída. Devia ter ido para a cama e esperado, quieta. A dor ia acabar passando.
— Só porque ela é baixinha e tem cabelo escuro — acrescentei, depressa, em uma tentativa de recuperar um pouco do terreno e da dignidade perdida. Eu estava errada a respeito da dignidade: precisava manter a minha com ele.
Não tenho problemas quando você transa com louras peitudas, mas fico me lembrando o tempo todo daquela noite na casa do meu pai, quando você me dispensou e fiquei achando que era porque eu não era o seu tipo. Não me senti muito bem quando Charlotte contou que a garota nova que você conheceu se parecia um pouco comigo, porque fiquei pensando... O que havia de errado comigo naquela noite, então?...
— Ah, Lucy. — Ele deu uma espécie de risada. Estava rindo de mim ou para mim? Aquilo era bom ou mau?
— Acho que a Sascha realmente se parece um pouco com você — disse ele. — Eu nem tinha reparado, mas, agora que você mencionou o fato...
Sascha. Tinha de ser um nome assim. Por que ela não podia se chamar Madge?
— Enfim, era isso que havia de errado comigo — disse, falando depressa, em uma tentativa atrasada de recuperar o terreno perdido. — Nada de importante, reagi com exagero ao fato, como sempre. Você sabe como é que sou. Bem, de qualquer modo, foi bom desabafar. Agora, tenho que ir andando...
Levantei-me para ir embora, e se tivesse saído naquela hora, naquele segundo, teria evitado a chegada da minha raiva. Mas não, acabamos nos encontrando bem na porta, e ela chegou cambaleando, suada e ofegante, cansada da longa jornada do outro lado da cidade.
"Desculpe por ter me atrasado", disse ela, quase sem fôlego, apertando o peito. "O engarrafamento estava horrível! Mas, agora, cheguei!...", e, com isso, girei o corpo e fiquei de frente para Daniel, furiosa, dizendo:
— Você podia ter me contado, sabia, que tinha arranjado uma namorada nova. Em vez de ficar me dando aqueles conselhos todos, aquela... bosta toda — joguei na cara dele — ... me dizendo que eu precisava começar a sair mais. Bastava apenas me avisar que eu estava atrasando o seu lado e que a Sascha precisava de você mais do que eu. Eu teria compreendido, sabia?
Ele abriu a boca para falar alguma coisa, mas não deixei.
— Se você me queria fora do seu caminho, era só falar. Você acha que eu ia me importar, que ia ficar cheia de ciúmes? Que presunção a sua! Você se acha lindo, não é? Acha que toda mulher é louca por você.
Mais uma vez, ele tentou falar alguma coisa, parecia estar balançando a cabeça, tentando negar alguma coisa, mas ele não tinha a mínima chance.
— Nós éramos para ser amigos, sabia, Daniel? Como é que você pôde fazer isso, ficar fingindo que estava preocupado comigo? Que se importava comigo?
— Mas...
— Quando é óbvio que a única pessoa com quem você se importa é com você mesmo!
Essa é a parte, na maior parte das brigas, em que a troca de insultos aos berros se transforma em um lamentar choroso. E aquela não foi exceção. Dava para acertar o relógio de tanta precisão. Minha voz começou a vacilar, quase no final da escala de firmeza, e compreendi que estava perigosamente próxima de cair no choro. Mesmo assim, não fui embora. Como uma idiota, fiquei ali, parada, na esperança de que ele pudesse ser legal comigo, de que pudesse me dizer algo que fizesse com que eu me sentisse melhor.
— Eu não estava fingindo — protestou ele. — Eu estava preocupado de verdade com você.
Odiei aquele olhar de pena que senti em seus olhos.
— Bem, pois não precisava — disse, com grosseria. — Sei cuidar de mim muito bem sozinha.
— Sabe mesmo? — Ele me pareceu pateticamente esperançoso, Que ousadia!
— Claro que sei! — joguei na cara dele.
— Isso é ótimo — disse ele.
Como é que ele podia ser tão cruel?, perguntei a mim mesma, sentindo a dor me cortar ao meio.
Era fácil para ele, compreendi, então. Muito fácil. Ele já havia feito isso um monte de vezes, com um monte de mulheres, por que eu receberia tratamento especial?
— Adeus, Daniel! Espero que as coisas corram muito bem para você e a sua maravilhosa Sascha — disse eu, com sarcasmo.
— Obrigado, Lucy, e desejo também toda a sorte do mundo para você e o seu rico Tom.
— E por que você está sendo assim tão desagradável agora? — perguntei, surpresa.
— E por que você está sendo assim tão desagradável agora? — perguntei, surpresa.
— Qual é o seu palpite a respeito? — Sua voz de repente aumentou em vários decibéis.
— E como é que posso saber? — berrei de volta.
— Acha que é a única que pode ter ciúmes? — gritou ele. Parecia furioso.
— Sei que não — disse eu. — Só que, para ser franca, Daniel, não estou dando a mínima para os ciúmes de Karen neste instante.
— Mas de que diabos você está falando? — perguntou ele. — Eu estou falando de mim, Estou louco de ciúmes também! Passei meses e meses esperando pelo momento certo, esperando que você conseguisse superar os problemas com o seu pai. Fiz tudo o que pude para impedir a mim mesmo de dar uma cantada em você. Tive tanta paciência que só faltava me matar.
E fez uma pausa para tomar fôlego. Fiquei olhando para ele, sem conseguir falar. Antes de conseguir colocar tudo o que sentia para fora, ele começou a gritar de novo:
— E então! — ele rugiu na minha cara. — E então, quando finalmente consegui convencer você de que já estava na hora de voltar a ter um relacionamento com um homem, você vai e sai com outro cara! Eu queria dizer que era eu. Queria que você pensasse em ter um relacionamento comigo, e, em vez disso, um cara riquinho, sortudo de uma figa, se dá bem com você.
Minha cabeça girava enquanto eu tentava absorver tudo aquilo.
— Espere um instante, dá um tempo aqui. Por que você está dizendo que Tom é um sortudo de uma figa? — perguntei. — Só porque ele é rico?
— Não! — berrou Daniel. — Porque ele está saindo com você, é claro!
— Mas ele não está saindo comigo — reagi. — Saí com ele apenas uma vez, e fiz isso só para deixar você chateado. Não que tenha funcionado.
— Não que tenha funcionado? — soltou Daniel. — É claro que funcionou! Tomei um porre tão grande no domingo à noite que fiquei de ressaca na segunda e não fui nem trabalhar.
— Sério? — perguntei, momentaneamente distraída pela informação. — Você ficou assim, tipo vomitando? Ficou assim tão mal?
— Não consegui comer nada até terça à noite — disse ele. Houve um pequeno silêncio e, por um momento, éramos apenas
Daniel e Lucy novamente.
— E que lance foi aquele mesmo de você querer passar uma cantada em mim? — perguntei.
— Nada, esqueça aquilo — disse ele, com a cara amarrada.
— Conte logo! — berrei.
— Não há nada a contar — murmurou ele. — É que simplesmente era muito difícil manter minhas mãos longe de você, mas eu sabia que era o que eu devia fazer, porque você estava vulnerável demais. Se alguma coisa tivesse acontecido entre nós naquele momento, eu ficaria eternamente achando que você tinha topado apenas por estar confusa.
— Foi por isso que vim com aquele papo de trazer você de volta para o mundo dos vivos — continuou ele. — Queria que estivesse com a cabeça clara e tivesse condições de tomar decisões por si mesma, para que quando eu a convidasse para sair, e você aceitasse, eu não sentisse que estava me aproveitando da situação.
— Me convidar para sair? — perguntei, cautelosa.
— Para sair, para sair — disse Daniel, meio tímido. — Assim, feito namorado e namorada.
— Sério? — perguntei. — Tá falando sério? Então aquele papo todo de que eu devia conhecer gente nova não era só para me tirar do caminho para a Sascha entrar?
— Não.
— Mas, então, quem é essa tal de Sascha, afinal? — perguntei, com ciúmes.
— Uma garota do meu trabalho.
— E ela é parecida comigo?
— Acho que faz lembrar você um pouco. Embora ela não chegue nem perto de ser tão maravilhosa quanto você — comentou ele, de passagem. — Nem tão engraçada, nem tão sexy, nem tão linda ou inteligente.
Fiquei sentada, muito quieta. Aquilo estava prometendo. Mas não o bastante.
— Há quanto tempo você vem saindo com ela? — perguntei.
— Mas eu não estou saindo com ela! — Ele pareceu chateado.
— Mas a Charlotte disse que...
— Por favor! — Daniel colocou a mão na testa, como se estivesse com dor de cabeça. — Aposto que Charlotte falou um monte de coisas, e você sabe o quanto gosto dela, mas nem sempre ela entende as coisas do jeito certo.
— Então você não está saindo com a Sascha? — perguntei.
— Não.
— E por que não está?
— Achei que não seria certo sair com ela sabendo que estou apaixonado por você.
Meu cérebro entrou em estado de choque. As palavras chegaram muito antes dos sentimentos.
— Oh... — disse eu, surpresa.
Não conseguia achar nada para dizer. Para mim já teria sido bom o bastante se ele dissesse que gostava de mim. Nossa, isso era demais!
— Eu não devia ter dito isso. — Daniel pareceu arrasado.
— Por que não? Não é verdade?
— É claro que é verdade! Não saio por aí dizendo para um monte de mulheres, a torto e a direito, que estou apaixonado por elas. Só que não quero deixar você assustada. Por favor, Lucy, esqueça o que falei.
— Não esqueço não — disse, irritada. — Essa é a coisa mais legal que alguém já falou para mim.
— É mesmo? — perguntou ele, esperançoso. — Quer dizer que você também...
— Sim, sim... — E abanei a mão, distraída. Queria um tempinho para me concentrar no que ele me dissera. Não podia ficar dando atenção a ele.
— Eu amo você também — acrescentei. — Acho que o amo há séculos.
Felicidade e alívio começaram a me formigar por dentro, aumentando de intensidade até se transformar em um fluxo constante, para finalmente jorrar como se estivesse escorrendo por um cano quebrado. Mas eu precisava ter certeza.
— Você está mesmo apaixonado por mim? — perguntei, meio desconfiada.
— Ai, meu Deus, estou!
— Desde quando?
— Há muito tempo.
— Desde a época do Gus?
— Desde muito antes do Gus.
— E por que você nunca me contou isso?
— Porque você ia se acabar de tanto rir, ia me zoar, me humilhar e...
— Eu não faria isso — repliquei, ofendida.
— Ah, faria sim.
— Faria?
— Sim, Lucy.
— É... talvez fizesse mesmo — concordei, relutante.
— Puxa, desculpe, Daniel — precisava me desculpar muito com ele —, mas eu tinha que ser má e implicante com você, porque você é atraente demais!
— E isso é um elogio — acrescentei.
— Sério? — perguntou ele. — Mas todos os caras com quem você saía eram completamente diferentes de mim. Como é que eu podia competir com um cara como o Gus?
Ele tinha razão. Até há bem pouco tempo eu não suportaria um namorado que não tivesse um terrível problema de falta de grana e não bebesse demais.
Refleti um pouco mais sobre isso.
— Você está mesmo, de verdade, apaixonado por mim, Daniel?
— Sim, Lucy.
— Não, estou falando apaixonado a sério?
— Sim, a sério.
— Bem, nesse caso, será que podemos ir para a cama?
Aturdida pela minha audácia, levei-o pela mão até o quarto.
Estava dividida, cheia de tesão, por um lado, e morrendo de vergonha, por outro. Porque, no fundo, eu ainda tinha medo de que alguma coisa pudesse sair terrivelmente errada.
Era muito fácil para ele sair por aí me dizendo que me amava, mas o teste verdadeiro, o lance mais importante, era o da cama.
E se eu fosse uma merda na cama?
E quanto ao fato de que tivéramos apenas amizade por mais de dez anos? O potencial para haver inibições era alto. Como é que podíamos ficar todos melosos e românticos um com o outro sem cair na risada?
E se ele me achasse horrorosa? Daniel estava acostumado a mulheres com peitos imensos. O que diria ao ver meus seios achatados como dois ovos fritos?
Estava tão nervosa que quase mudei de idéia.
Mas também nem tanto assim.
Tinha uma oportunidade de dormir com ele e estava disposta a ir até o fim. Eu o amava. E também estava muito a fim dele.
Entretanto, após a minha iniciativa promissora, quando audaciosamente o carreguei pela mão, meu ataque de galinhagem acabou. Ao chegar ao quarto dele, fiquei sem saber exatamente o que fazer. Será que eu deveria me envolver sedutoramente com as pontas do edredom?
Será que devia empurrá-lo de costas sobre a cama e pular em cima dele? Não ia conseguir, aquilo era mortificante.
Sentei-me quieta, bem na pontinha da cama. Ele se sentou ao meu lado.
Puxa, essa parte era muito mais fácil quando eu estava bêbada. — O que foi? — sussurrou ele.
— E se você me achar medonha?
— E se você achar que eu sou medonho?
— Mas você é lindo! — Dei uma risadinha.
— Você também.
— Estou tão nervosa — cochichei.
— Eu também.
— Não acredito em você.
— Mas estou sim, sinceramente — afirmou ele. — Olhe aqui, sinta só os batimentos do meu coração.
Aquilo me deixou cabreira. No passado, sempre que eu esticava a mão para sentir os alegados batimentos do coração de um rapaz, a minha mão era colocada sobre o membro ereto do tal rapaz, e depois esfregada para cima e para baixo ao longo do citado membro, em alta velocidade.
Só que Daniel realmente colocou a minha mão sobre o seu coração. E, sim, era verdade. Parecia estar havendo um bocado de movimento dentro do seu peito.
— Eu amo você, Lucy — disse ele.
— Eu amo você também — afirmei, tímida.
— Deixe eu lhe dar um beijo — pediu ele.
— O.k. — Levantei o rosto, mas fechei os olhos. Ele beijou meus olhos, minhas sobrancelhas, foi beijando ao longo da minha testa, junto do cabelo, e depois veio descendo lentamente até o pescoço. Beijos leves e sedutores que quase não dava para agüentar de tão prazerosos. Então ele beijou o canto da minha boca e suavemente puxou meu lábio inferior com os dentes.
— Pode pular a parte de me deixar com as costas arqueadas de prazer — reclamei — e me beije direito.
— Bem, se a minha forma de beijar não está de acordo com as expectativas da madame... — E riu.
Então fez aquele jeito maroto, com a boca torta, que ele sabia fazer tão bem. E eu o beijei. Não consegui me segurar.
— Achei que você havia dito que estava nervosa — comentou ele.
— Shh... — Coloquei meu dedo sobre seus lábios. — Quase me esqueci disso por um segundo.
— Que tal se eu me deitar aqui na cama e você deitar bem aqui junto de mim, em meus braços? — perguntou ele, enquanto me puxava para trás, junto dele, por sobre a cama. — Isso é muito teatral para você?
— Não, isso foi legal, embora tenha sido feito de forma desajeitada — disse eu para o peito dele.
— Há alguma chance de você tornar a me beijar, Lucy? — sussurrou ele.
— O.k. — sussurrei de volta. — Mas não quero nenhum movimento brusco e astuto de sua parte, como arrancar o meu sutiã de uma vez só, por exemplo.
— Não se preocupe, Lucy, vou ficar só apalpando, de forma meio desajeitada.
— E não me venha com essa de perguntar: "Ora, o que é isso, Lucy?", e fazer surgir as minhas calcinhas de trás da minha orelha. Entendeu? — perguntei, com a cara feia.
— Mas esse era o meu truque especial — reclamou ele. — E a coisa mais espetacular que consigo fazer na cama.
Tornei a beijá-lo e relaxei um pouco. Era maravilhoso ficar ali deitada, tão junto dele, inalando o cheiro de Daniel, tocando o seu rosto maravilhoso. Nossa, ele era muito sexy!
— Você me ama mesmo? — tornei a perguntar.
— Lucy, eu amo você tanto, tanto...
— Não, quero saber se me ama no duro, de verdade mesmo.
— No duro, sério, de verdade mesmo — disse ele, olhando-me nos olhos. — Mais do que já amei qualquer outra pessoa, mais do que você pode imaginar.
Relaxei por um segundo. Apenas por um segundo.
— Sério mesmo? — perguntei.
— Sério.
— Não, Daniel, estou perguntando na boa, é sério mesmo}
— Sério, sério!
— O.k.
Houve um curto silêncio.
— Você não se incomoda de eu ficar perguntando toda hora, não é? — perguntei.
— Nem um pouco.
— É que preciso ter certeza total.
— Compreendo perfeitamente. Você acredita em mim?
— Acredito.
Continuamos deitados, sorrindo um para o outro.
— Lucy? — disse Daniel.
— Que foi?
— Você me ama de verdade?
— Daniel, eu amo você de verdade.
— Não, Lucy — disse ele, meio sem graça. — Eu quero saber se você me ama de verdade, sério mesmo. No duro, realmente?
— Realmente, no duro, eu amo você, Daniel.
— Sério?
— Sério.
Muito, muito devagar, ele começou a tirar as minhas roupas, conseguindo de forma magistral abrir zíperes e arrancar botões de pressão que eram difíceis de ser arrancados. A cada vez que abria um botão, me beijava por mais ou menos uma hora antes de abrir o seguinte. Ele me beijou em toda parte. Bem, quase em toda parte, graças a Deus ele deixou meus pés em paz. A Fergie, do conjunto Black Eyed Peas, ia ter muito que explicar: os homens pareciam achar que precisavam lamber os dedos dos pés das mulheres antes de completar suas tarefas na cama. Há alguns anos, a onda era cunni-lingus, que eu sempre achei a parte mais chata do sexo. Enfim, eu não gostava de homens chegando com a boca perto dos meus pés, a não ser que eu tivesse sido avisada com antecedência. Pelo menos com antecedência suficiente para ir à pedicure e dar uma caprichada.
Ele me beijou, abriu botões, continuou me beijando e abaixou a minha blusa no ombro, só de um lado, tornou a me beijar, abaixou a blusa no outro ombro, me beijou de novo, não fez comentários sobre as manchas de tinta cinza nas minhas calcinhas brancas, me beijou novamente, disse que os meus seios não pareciam ovos fritos, tornou a me beijar, disse que eles pareciam pãezinhos de hambúrguer, me beijou de novo.
— Você é tão linda, Lucy — dizia ele, sem parar. — Eu amo você. Até que fiquei sem roupa nenhuma.
Havia algo de muito erótico em estar nua enquanto ele ainda estava completamente vestido.
Cobri meus seios com os braços e me encolhi toda de lado, como uma bola.
— Coloque seu instrumento para fora — disse eu, dando uma risadinha.
— Você é tão romântica, Lucy — disse ele, tirando um dos meus braços de cima do peito, e depois o outro.
— Não fique escondendo o seu corpo — pediu. — Você é linda demais!
Com carinho, forçou meus joelhos a se afastarem do peito também.
— Pára com isso — pedi, tentando esconder minha excitação. — Como é que pode?, eu estou aqui, sem um fiapo de roupa sobre o corpo e você ainda está todo vestido?
— Posso tirar as roupas também, se você quiser — brincou ele.
— Então tire — disse eu, tentando ser esperta.
— Peça para eu tirar.
— Não.
— Então é você que vai ter de tirar minha roupa.
E eu tirei as roupas dele. Meus dedos tremiam tanto que mal consegui abrir os botões da camisa. Mas valeu a pena.
Ele tinha um peito lindo. Com a pele lisa e uma barriga perfeita, bem reta.
Tracei a linha de pêlos que saía do umbigo dele com a unha, descendo até o cinto, e um arrepio me percorreu por dentro quando o ouvi gemer.
Com o canto dos olhos, dei uma olhada rápida na parte da calça que ficava entre suas pernas e fiquei assustada e excitada, quando notei o jeito como o tecido estava esticado.
Finalmente consegui reunir coragem suficiente para começar a abrir lentamente as suas calças. O problema é que eu não estava acostumada a homens que usavam terno. As calças de Daniel tinham um sistema de botões e zíperes tão complicado que rivalizava com o sistema de segurança de Fort Knox.
Finalmente, conseguimos liberar sua ereção esticada por trás da cueca.
Ele passou no teste das roupas íntimas. O que era bem mais do que o que se podia dizer das minhas. As calcinhas que eu estava usando já tinham visto dias melhores, a maior parte deles dentro da máquina de lavar, misturadas, por engano, com roupas pretas.
Ele era lindo. E havia algo que o tornava ainda mais atraente para mim. Ele não era perfeito. Embora seu corpo fosse lindo, não era elaboradamente malhado, com a musculatura toda esculpida como a daqueles caras que passavam a vida na academia.
A sensação de sua pele sobre a minha era indescritível. Tudo me parecia tão mais sensível! A pele da parte de dentro dos meus braços parecia formigar quando eu os envolvia nas costas dele.
A sensação da firmeza de suas coxas em contato com a maciez das minhas me deixava toda mole, e sua ereção de encontro à minha umidade era explosiva.
Todo o embaraço se fora. Apenas o desejo permanecera. Quando eu via o seu olhar, não sentia mais uma necessidade de rir histericamente. Havíamos conseguido ultrapassar a linha: não éramos mais Daniel e Lucy, éramos um homem e uma mulher.
Não mencionamos controle de natalidade, mas, quando o momento chegou, nos comportamos como dois adultos responsáveis vivendo os tempos modernos do HIV positivo.
Ele fez surgir uma camisinha e eu o ajudei a colocá-la. E então, nós... hã... vocês sabem.
Ele gozou em menos de três segundos. Era de virar a cabeça, de tão erótico, ver o rosto de Daniel se contorcer todo em êxtase, êxtase provocado por mim.
— De-desculpe, Lucy — gaguejou ele. — Não consegui me segurar. Você é tão linda, e eu a desejava há tanto tempo...
— E eu achava que você fosse brilhante na cama — reclamei, para implicar com ele. — Nunca me disseram que você era uma mercadoria defeituosa, com ejaculação precoce.
— Mas eu não sou — protestou, ansioso. — Isso não acontecia desde a minha adolescência. Deixe passar uns cinco minutos e eu vou provar isso pra você.
Fiquei envolvida no círculo formado pelos seus braços e ele continuou com a constante cobertura de beijos, enquanto acariciava minhas costas, minhas coxas e o meu estômago.
E em um espaço de tempo admiravelmente curto, conseguiu se preparar para fazer amor comigo novamente.
A segunda vez levou séculos, e ele fez tudo de forma bem lenta, quase me levando à loucura, com toda a atenção focada apenas em mim, no que eu queria e sentia. Ninguém jamais fora assim tão generoso e desprendido comigo na cama. E atingi o clímax como jamais havia conseguido antes, estremecendo e vibrando involuntariamente, com os olhos arregalados de tanto choque e prazer.
Dessa vez, quando ele gozou, manteve os olhos abertos e olhou para mim. Quase me dissolvi com aquilo de tão erótico que foi.
Nós nos abraçamos fortemente, era como se não conseguíssemos ficar próximos um do outro o suficiente.
— Gostaria de poder abrir a minha pele para colocar você todinha dentro de mim — disse ele. E também senti o que ele queria dizer.
Ficamos em silêncio por algum tempo.
— E então, até que não foi assim tão mau, foi? — perguntou Daniel. — Do que é que você estava com medo?
— De um monte de coisas. — Ri. — De que você pudesse achar que eu tinha um corpo horrível. De que você pudesse me obrigar a fazer coisas estranhas.
— Você tem um corpo lindo. E que coisas estranhas são essas? Sacos plásticos e laranjas?
— Bem, não exatamente, porque você não é membro do Parlamento inglês, mas outras coisas.
— Agora eu fiquei bolado. O que é que anda rolando por aí?
— Você sabe — disse eu, meio sem graça.
— Não sei não — afirmou ele.
— Bem — expliquei —, é que tem alguns homens que falam assim, tipo "dá para você plantar uma bananeira, gata?... isso... não se preocupe com a dor, já me disseram que depois de um tempo fica mais fácil de agüentar. Agora, mantenha as suas pernas em um ângulo de cento e trinta graus uma da outra, porque vou tentar entrar por trás, e aí você vai poder mexer o corpo todo, fazendo um movimento de pinça, fechando mais ou menos oito graus, não, eu disse oito graus, você está fechando dez graus, sua burra, está querendo me matar?", esse tipo de coisa.
Ele começou a rir sem parar, e isso foi maravilhoso também. E então, agora mais sonolentos e mais relaxados, fizemos amor de novo.
— Que horas são? — perguntei, mais tarde.
— Umas duas da manhã.
— Você vai ter que trabalhar de manhã?
— Vou. Você vai também?
— Vou, acho que era melhor a gente tentar dormir um pouco — disse eu.
Mas não dormimos.
Eu estava morrendo de fome, então Daniel foi até a cozinha e voltou com um pacote de biscoitos de chocolate. Ficamos ali, deitados na cama, e comemos tudo, abraçados um ao outro, nos beijando e falando sobre muitas coisas e nada em particular.
— Acho que eu devia entrar para uma academia — disse ele, com cara de lamento, espetando o estômago com o dedo. — Se eu soubesse que isto ia acontecer, teria começado a malhar há alguns meses.
Isso, mais do que qualquer outra coisa, me fez sentir ligada a ele. Quando acabamos com os biscoitos, ele me ordenou:
— Levante-se. Eu me levantei.
Ele começou a sacudir o lençol com vigor, para limpar as migalhas.
— Não aceito que a mulher que eu amo durma sobre migalhas de biscoito de chocolate — explicou.
Enquanto eu sorria para ele, o telefone tocou e eu dei um pulo de quase um metro. Daniel atendeu.
— Alô... Oi, alô, Karen... sim, na verdade eu estou na cama. Silêncio.
— Lucy? — perguntou ele, lentamente, como se jamais tivesse escutado o meu nome. — Lucy Sullivan?
Outro silêncio.
— Lucy Sullivan, a garota que divide o apartamento com você? Essa Lucy Sullivan? Sim, ela está bem aqui, ao meu lado.
— Sim, isso mesmo, bem aqui ao meu lado, na cama — disse ele. — Você quer falar com ela?
Fiz todos os tipos de gestos frenéticos de negação, formei uma cruz com os dois dedos indicadores e os segurei com firmeza, bem diante do fone.
— Ah, sim! — respondeu Daniel, todo alegre. — Três vezes. Não foram três vezes, Lucy?
— O que foram três vezes? — perguntei.
— O número de vezes que nós fizemos amor nas últimas duas horas.
— Hã... foi sim... três — disse eu, baixinho.
— Foi sim, está confirmado, Karen... Três vezes. Mas estamos planejando fazer mais uma vez antes de o dia raiar. Há mais alguma coisa da qual você queira ser informada?
Ouvi gritos e desaforos de Karen. Deu para ouvir até o barulho do fone sendo desligado, de tanta força que ela usou para batê-lo na cara de Daniel.
— O que foi que ela disse? — perguntei.
— Que espera que peguemos Aids um do outro.
— Só isso?
— Hã... sim.
— Pára com isso, Dan, o que mais ela disse?
— Lucy, não quero deixar você chateada...
— Então, tem que me contar, agora.
— Ela disse que dormiu com o Gus enquanto você estava saindo com ele.
Daniel ficou olhando para mim com preocupação.
— Isso a deixou chateada?
— Não, estou mais é aliviada. Eu sempre senti que havia mais alguém. Mas, e você, ficou chateado?
— Por que eu deveria ficar chateado? Eu não estava saindo com o Gus...
— Não, mas estava saindo com Karen na mesma época em que eu estava saindo com o Gus. Se ela dormiu com o Gus, então...
— Ah, entendi — disse ele, com uma cara alegre. — Isso quer dizer que ela me chifrou.
— Você se importa? — perguntei, preocupada.
— É claro que não me importo. Não ligo a mínima para o fato de Karen ter dormido com ele. Era você dormindo com ele que me deixava chateado.
Continuamos em silêncio depois de nosso círculo de felicidade ter sido rompido.
— Vou ter que me mudar de lá — disse eu, finalmente.
— Pode se mudar para cá — ofereceu ele.
— Não seja ridículo — reagi. — Estamos um com o outro há apenas três horas e meia. Não é um pouco cedo para começar com esse papo de morar junto?
— Morar junto? — Daniel pareceu chocado. — Quem é que falou em morar junto?
— Você.
— Não, eu não! Tenho o maior medo da sua mãe para fazer uma sugestão como esta; viver em pecado com a sua única filha.
— Bem, nesse caso, sobre o que você está falando?
— Lucy — disse ele, meio sem graça —, é que eu estava... hã... você sabe... perguntando a mim mesmo se...
— O quê?
— Será que não haveria alguma chance...? Você sabe...?
— Alguma chance de quê?
— Você provavelmente vai achar que é muita ousadia de minha parte pedir uma coisa dessas, mas é que eu a amo tanto que...
— Daniel! — implorei. — Por favor, me conte logo sobre o lance em que você está pensando.
— Você não precisa me dar a resposta agora mesmo, nem nada assim, correndo.
— Dar a resposta para o quê?
— Pode levar o tempo que quiser pensando no assunto, leve séculos, se achar melhor.
— Pensar EM QUE ASSUNTO? — berrei.
— Desculpe, eu não queria deixar você tão irritada, mas é que eu, hã... bem...
— Daniel, o que você está tentando me dizer?
Ele fez uma pausa, respirou bem fundo e soltou, de uma vez só:
— Lucy Carmel Sullivan, você aceita se casar comigo?
Hetty nunca mais voltou ao escritório, se divorciou de Dick, abandonou Roger, se livrou das saias de tweed, comprou um monte de leggings, se matriculou em uma faculdade de estudos femininos e agora está envolvida romanticamente com uma sueca de cara sisuda chamada Agnetha. Segundo as informações de Meredia, nenhuma das duas depila os sovacos.
Frank Erskine também nunca mais voltou a trabalhar. Aposentou-se mais cedo e saiu da empresa sem festinha de despedida. Dizem que anda jogando muito golfe.
Adrian agora só trabalha na locadora nos fins de semana, pois arrumou uma vaga em um curso para cineastas, onde espera conhecer uma garota bem legal que saiba tudo a respeito de cinema, de Walt Disney a Quentin Tarantino.
A Graça, namorada de Daniel, com quem ele estava pouco antes de conhecer Karen, virou manchete no tablóide Notícias do Mundo, por fazer sexo com um famoso político.
Jed foi morar com Meredia e os dois parecem incrivelmente felizes. Apesar de sua baixa estatura, Jed se mostra um cão de guarda contra qualquer um que se aproxime da gigantesca Meredia, e está tendo muitas oportunidades de provar isso.
O verdadeiro nome de Meredia é Valerie, e ela tem trinta e oito anos. Descobri isso por acaso, quando subi para levar uma bronca no Departamento de Pessoal, por chegar atrasadíssima ao trabalho. A ficha de Meredia estava aberta bem em cima da mesa de Blandina, não consegui me segurar e olhei.
Não contei a Megan. Para falar a verdade, não contei a ninguém.
Charlotte ainda não conheceu um homem que a leve a sério, e anda falando em se submeter a uma cirurgia para redução de seios.
Vai tentar uma vaga na faculdade de psicologia. Assim que aprender como se soletra isso.
Karen começou a sair com Simon logo depois que eu e Daniel ficamos juntos, e os dois estão combinando perfeitamente os seus estilos de vida. Compram um monte de roupas caras, vão a bares badalados, daqueles que acabaram de inaugurar, e estão aparecendo em revistas de arquitetura.
Dennis ainda não encontrou seu Príncipe Encantado, embora esteja se divertindo à beça enquanto procura. Teve um choque tremendo quando soube que Michael Flatley abandonou o elenco do Riverdance, mas já se recuperou.
Megan está grávida.
E Gus é o pai. Pelo jeito, estavam juntos desde o verão em que eu ainda estava saindo com ele. Foi Megan que escreveu o discurso de despedida que Gus fez para mim. Embora eu nunca mais o tenha visto, imagino que a iminente paternidade não o tornou menos irresponsável. A pobre Megan vive constantemente exausta e parecendo infeliz. Sinto muito por ela, falando sério. Não estou dizendo isso do jeito que fazemos quando não sentimos a mínima pena da pessoa e, no fundo, até mesmo a odiamos. O meu coração se compadece dela, de verdade.
Minha mãe ainda está morando com Ken Kearns, e os dois parecem adolescentes apaixonados. Ken já está de dentadura nova, e seus dentes parecem daqueles bem caros, de luxo, top de linha. Minha mãe está cada dia mais jovem. Daqui a pouco vão se recusar a servir bebida a ela nos pubs. Mamãe e eu tivemos uma espécie de momento de reconciliação, e embora ainda não sejamos grandes amigas estamos trabalhando para isso.
Meu pai continua bebendo, mas está sendo bem cuidado. Tem uma assistente social que toma conta dele e uma empregada. Chris, Peter e eu fazemos rodízio para visitá-lo. Sempre que é a minha vez, Daniel vai até lá comigo, o que é ótimo, porque assim papai divide por nós dois os insultos que iriam só para mim. Ainda me sinto culpada, acho que sempre vou me sentir, mas é só culpa, e isso não vai me matar.
Daniel vive me pedindo para que eu me case com ele, e vivo dizendo para ele: se manca!
— Seja prático — argumentei. — Quem é que ia me entregar a você no altar? Mesmo que papai não me odiasse, ele não iria conseguir ficar sóbrio o suficiente para caminhar reto pela nave da igreja, mesmo comigo segurando seu braço.
O verdadeiro motivo pelo qual ainda não aceitei me casar com Daniel, porém, é que morro de medo de ser abandonada no altar. Obviamente ainda não me acostumei a ter um cara que é legal junto de mim o tempo todo. Daniel vive dizendo que vai me amar para sempre, jamais vai me deixar e que, tirando a remoção do seu pinto para me dar de presente, dentro de um jarro cheio de camisinhas, se casar comigo é a coisa mais radical que ele pode pensar para me convencer de sua devoção infinita.
Eu já disse a ele que vou pensar no assunto. A parte do casamento, é claro, não a remoção do dito-cujo.
E, se a gente se casar mesmo, quero que a Sra. Nolan seja a minha dama de honra.
Daniel jura que me ama. Certamente ele age como se estivesse falando sério.
E, sabem de uma coisa, estou quase acreditando nele.
De uma coisa estou certa: eu amo Daniel.
Portanto, vamos esperar para ver...
* Pessoa que serve de guru e domina outra por completo. Personagem do romance Trilby, de George Du Mauríer. (N.T.)
* Referência à letra de "I whistle a happy tune* do musical da Broadway O Rei e Eu. (N.T.)
* Semtex — Explosivo usado por grupos terroristas na Irlanda do Norte. (N.T.)
* Primeiras palavras de uma antiga bênção irlandesa. (N.T.)
* Organização não governamental britânica com fins humanitários. Tem sede em Oxford e representantes em todo o mundo. (N.T.)
* Sala 101 é o lugar onde fica guardada a pior coisa do mundo. Referência ao romance 1984, de George Orweil. (N.T,)
* Movimento inglês do século XVIII, que era contrário às máquinas, responsabilizando-as pelo desemprego e miséria social. (N.T)
Marian Keyes
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