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CASTELÃ POR UM DIA / Max Du Veuzit
CASTELÃ POR UM DIA / Max Du Veuzit

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

CASTELÃ POR UM DIA

 

                   Lisboa 1977

                   Pont-Audemer, 18 de Março de 19...

 

               "Mademoiselle

"Peço-lhe que passe pelo meu cartório para assunto de seu interesse.

"Apresentando-lhe os meus cumprimentos, creia-me com toda a consideração

  1. Lemasle"

 

Colette Semnoz ficou a olhar para o bilhete, depois releu-o e examinou o sobrescrito. Vendo-a tão perplexa, Lina, que já tinha tirado o chapéu, perguntou:

- Algum aborrecimento?

- Ainda não sei. É uma comunicação de um notário que me pede para passar pelo seu cartório, mas não me diz para quê.

- E tu conheces esse tal notário?

Colette voltou a examinar o timbre da carta.

- Lesmale, em Pont-Audemer... Não, não conheço.

- Tencionas ir a Pont-Audemer?... Tens lá família? Porque não lhe escreves?

- Família, não tenho nessa terra, com certeza. Bem sabes que meus pais eram de Annecy, assim como todos os meus parentes, excepto minha avó materna, que nasceu em Epinal. Qualquer destes sítios fica longe de Pont-Audemer.

- Talvez tivesses um tio na América que fosse acabar os seus dias na Normandia?

- O caso deve ser muito mais simples. Trata-se, com certeza, de um erro, facto que muito me alegraria, pois gostava imenso que esta carta não me fosse dirigida. Fico sempre apreensiva quando recebo correspondência de um homem de leis. Vi tantas dessas cartas empilharem-se em cima da secretária do meu pobre pai!

Depois, como se tentasse afugentar tristes recordações, fez um gesto que significava: "As preocupações que vão para o diabo!" e rematou:

- Mas não vieste passar a tarde comigo para nos aborrecermos. Senta-te e, se quiseres, abre o rádio, enquanto eu trato do nosso jantar.

- Vou ajudar-te.

- Não venhas, não é preciso.

Ligeira, tirou o chapéu e despiu o casaco. Depois, abriu o armário que lhe servia de cozinha.

- É extraordinário como soubeste arranjar esta mansarda.

- Isto não é uma mansarda. Era o estúdio de um pintor. Infelizmente, com esta parede de vidro tive muito frio, o Inverno passado.

Lina abriu o aparelho do rádio e depois aproximou-se da larga varanda envidraçada. Milhares de luzes cintilavam na escuridão e, ao fundo, destacava-se o vulto imponente do Sacré-Coeur, iluminado também.

- É interessante ver Paris deste lado.

Colette, que descascava batatas, parou e perguntou, admirada:

- Interessante porquê?

- Considero o Sacré-Coeur como a estrela polar de Paris e, da tua casa, tenho a impressão de que a estrela mudou de hemisfério.

- Estás hoje muito poética - comentou Colette com ligeira ironia. - Continua, peço-te, mas será melhor não seres tão hermética.

- Não deves ser trocista. Compreendes muito bem o que pretendo dizer. Quando estou em minha casa ou no escritório, vejo o Sacré-Coeur ao norte; afigura-se-me ser o limite de Paris e serve-me de ponto de referência. Da tua casa, porém, com a Torre Eiffel à direita, fico desnorteada e parece-me que não estou em Paris.

- A tua explicação foi magistral. Vamos, são horas de ir pondo a mesa. Daqui a pouco podemos jantar.

Enquanto Lina se absorvia na contemplação do panorama, que para ela era sempre novo e a desorientava, Colette estendeu a toalha e dispôs os pratos.

Seguiu-se demorado silêncio e quando, intrigada, Lina se voltou, viu Colette relendo o bilhete do notário.

- Ficaste preocupada com esse papel?

Colette encolheu os ombros.

- Enerva-me, porque não me revela o motivo da convocação. Será absurdo, mas estas poucas palavras atormentam-me o espírito. Não sei bem o que fazer. Estragou-nos a noite.

Num gesto afectuoso, Lina poisou-lhe a mão no braço.

- Escuta, Colette. Vamos jantar depressa e depois iremos ao cinema para distrair ideias. Para a semana virei então passar a tarde contigo. Nessa altura já deves saber porque o notário te convocou e poderemos gozar, com o espírito tranquilo, as horas calmas que ambicionamos.

Depois de uma noite em que a insónia alternou com fantásticos pesadelos, Colette decidiu não escrever, mas telefonar para Pont-Audemer.

Bastou-lhe pensar que em breve conheceria o misterioso motivo da carta para que todas as apreensões se dissipassem. Bem disposta, preparou-se e, antes de entrar no escritório, dirigiu-se a um posto telefónico. Como começava a trabalhar às nove, tinha tempo de pedir a chamada para Pont-Audemer e ser atendida, se o cartório de Lemasle abrisse antes dessa hora.

Enquanto aguardou que estabelecessem a ligação, passeou de um lado para o outro, nervosa e inquieta, embora a todo o momento dissesse de si para si: "É preciso ter calma... é preciso ter calma!"

- Pont-Audemer, cabina N.o 9.

Estremeceu e correu para a cabina N.o 8. A empregada fez-lhe notar o erro e, envergonhada, Colette entrou naquela que lhe fora designada. Com mão trémula pegou no auscultador:

- Fala de Pont-Audemer, cartório do senhor Lemasle?

- ...

- Será possível falar-lhe?

- ...

- Perfeitamente, eu espero.

Colette esperou um momento e depois uma voz grave perguntou-lhe quem era e o que desejava.

- Sou Colette Semnoz. Não, falo-lhe de Paris... Recebi a sua carta e confesso que fiquei intrigada. Gostaria de saber o motivo da convocação... Compreendo muito bem, mas trabalho num escritório e ainda não chegou a época das férias... Se posso pedir um dia de licença ao meu patrão?... É possível, sim, mas terei de lhe dar explicações. Bastará mostrar-lhe a sua carta?... Evidentemente, mas ele pode estranhar o facto de eu não conhecer o motivo para que sou chamada. Poderia, pelo menos, revelar-mo por alto... É muito importante?... Calculo. Nesse caso, não quer, ou não pode dizer-me coisa alguma? E receber-me-á em qualquer altura?... Muito bem... Excepto quinta-feira à tarde e ao sábado... Mas não posso esperar tanto tempo... Até breve, senhor Lemasle.

Colette saiu da cabina, tão transtornada que por pouco se esquecia de pagar a chamada.

- Três períodos?... Mas eu não estive nove minutos ao telefone.

- Obteve a ligação às oito horas e cinquenta e um minutos e são oito e cinquenta e nove. Falou durante oito minutos ou seja três períodos.

- São nove horas menos um minuto!

Pagou sem mais discussões e precipitou-se para a porta. Pouco depois, toda esbaforida, chegava ao escritório.

- O patrão já te chamou, Colette.

A recém-chegada largou a mala de mão, pegou no bloco e correu para o gabinete do patrão.

Forcaud nem sequer levantou a cabeça. Continuou a escrever e limitou-se a perguntar:

- É mademoiselle Semnoz?

- Sou, sim, senhor Forcaud. Peço-lhe desculpa, mas...

- Já escreveu a carta sobre o assunto Angel?

Colette, que, ao entrar no gabinete, estava disposta a pedir dois dias de licença para ir a Pont-Audemer, respondeu que não tinha escrito a carta porque Forcaud ainda não havia indicado a hora a que podia receber Angel.

- Na quarta-feira de manhã.

- Não tem de assistir a uma cerimónia, nesse dia?

- Tem razão, o casamento de Chavanay, um amigo de meu filho. Seja então na quinta-feira, à tarde. Não há nada marcado para esse dia?

Colette consultou a agenda que estava em cima da secretária.

- Não, para quinta-feira não está nada marcado.

- Fixemos então quinta-feira, às três.

Forcaud de novo se absorveu na papelada, mas Colette permaneceu, de pé, junto da secretária. Em pensamento, repetia:

"Senhor Forcaud, preciso de dois dias de licença para ir falar com o meu notário... Senhor Forcaud seria possível dar-me... não, conceder-me... Será tão bom... tão amável? Não, assim não está bem...".

De repente, Forcaud levantou a cabeça e viu a secretária, que mexia os lábios sem falar, dava à cabeça e fazia gestos com as mãos.

Admirado, perguntou:

- Deseja alguma coisa, Colette?

Arrancada bruscamente ao ensaio mental, Colette atrapalhou-se e balbuciou:

- É por causa do notário...

- Do notário! Qual notário?

- Desculpe, senhor Forcaud. Ontem à tarde, quando regressei a casa, encontrei a carta de um notário que me pedia passasse pelo cartório dele para assunto de meu interesse. Não me dava mais explicações e...

- Por que não vai então?

- Vou, mas...

- Precisa de uma hora de licença? Está concedida.

- Não preciso de uma hora, mas de dois dias.

Forcaud franziu a testa, o que lhe dava um aspecto terrível, embora fosse o melhor dos homens.

- Dois dias! - protestou. - Mas que história é essa?

- Não me parece possível ir a Pont-Audemer num só dia.

- O notário habita em Pont-Audemer? Mas que ideia ter um notário tão longe!

- Não fui eu quem o escolheu e nem sequer lhe conhecia o nome antes de receber a carta. Telefonei-lhe antes de vir para o escritório, mas ele recusou-se a dizer-me do que se tratava. Sou obrigada a ir falar-lhe.

Forcaud encolheu os ombros e tomou o ar de uma pessoa que receia estar a ser intrujado, mas que não tem a certeza.

- Seja. Demore-se um dia, dois ou até oito. Mas fique sabendo que, se forem muitos, serão descontados na licença.

Colette agradeceu. Mas como não demonstrasse tenções de se retirar, o patrão perguntou-lhe:

- Que mais temos?

- Quando posso partir?

- Hoje mesmo, se lhe apetecer, mas não volte a falar-me no assunto.

Colette balbuciou um agradecimento e saiu logo, com receio de que o patrão se arrependesse. Acabava de se sentar diante da secretária quando a lâmpada vermelha, indicando que o patrão a chamava, voltou a acender-se.

Correu para o gabinete de Forcaud e abriu a porta.

- Antes de sair não se esqueça de escrever a carta para o Angel - recomendou-lhe o patrão.

 

Às cinco da tarde, Colette apeava-se de uma carruagem de terceira classe, na estação de Pont-Audemer.

Caía uma chuva fina, cerrada, uma dessas chuvas que, em poucos minutos, nos deixa encharcados, mas às quais a Normandia deve a riqueza das suas pastagens.

Depois de se ter informado onde ficava o cartório de Lemasle, meteu pelas ruas estreitas e pitorescas da velha cidade. No largo, perto da igreja de estilo gótico, Colette viu uma porta com a clássica chapa e apressou-se a entrar. Sacudiu o fato molhado, compôs os cabelos e penetrou no cartório.

Ao dizer o nome, não provocou a surpresa com que contava. O escrevente a quem se dirigiu e que parecia mudo, contentou-se em indicar-lhe uma cadeira e, sem mais se preocupar com ela, recomeçou a escrever em caligrafia apurada e com grande atenção, debruçado sobre a mesa e com a ponta da língua de fora.

Colette sentou-se entre um camponês barbudo e uma velhota mirrada pela idade. Entreteve-se a examinar as estantes carregadas de livros encadernados em marroquim verde, exibindo na lombada uma data. Essa colecção - orgulho do notário - vinha desde 18... Alguns volumes mais grossos indicavam anos de prosperidade. Para 19... havia até dois, por ser ano notável pelo número de registos.

De súbito, a porta dupla abriu-se e saiu uma família inteira. Então o camponês levantou-se, meteu-se por entre o grupo dos que saíam e foi apertar a mão ao notário.

Contrariamente ao que seria de esperar, o homem pouco se demorou. Quanto à velhota, foi chamada pelo primeiro escrevente, entrincheirado atrás de alto biombo.

- Mademoiselle Semnoz.

Colette saltou da cadeira. Cumprimentou discretamente Lemasle e entrou no gabinete cuja porta este conservava aberta, um pouco teatralmente.

- Tenha a bondade de se sentar, mademoiselle.

Lemasle, por sua vez, sentou-se à secretária tendo o cuidado de corrigir o vinco das calças e de pôr os óculos antes de olhar para a visitante.

- Falo com mademoiselle Semnoz, não é assim?

- A própria.

Após alguns momentos de reflexão, o notário, com gestos compassados, pegou no auscultador e pediu:

- Tragam-me o processo Letellier.

Enquanto esperavam, Colette, Intimidada, não se mexeu na cadeira. Lemasle, tendo tirado os óculos, limpava os olhos com evidente prazer.

Por fim, um escrevente trouxe o processo pedido. Lemasle abriu-o, folheou-o e, fixando Colette com olhar penetrante, começou:

- Seu pai chamava-se João José Luís Semnoz, nascido em Annecy, a 24 de Julho de 18... e sua mãe, Maria Leontina Gerlaz, nascida também em Annecy, a 31 de Dezembro de 18... Sua mãe morreu a 7 de Junho de 19... e seu pai a 9 de Março de 19... Seu avô, Jerónimo João Maria Semnoz, tinha uma irmã, chamada Lúcia Armanda Maria, e um irmão, Tomás Maria José. Este casou em primeiras núpcias com Armanda Duquesnay e em segundas com...

Colette, meio entontecida com esta avalanche de nomes e de perguntas para as quais o notário não pedia resposta, não tentou acompanhar o desenvolvimento da árvore genealógica.

Só começou a prestar atenção quando ouviu pronuciar o nome de Letellier.

- ... Anthime Ernesto Letellier, por consequência, é seu primo em terceiro grau e mademoiselle herda os seus bens em partes iguais com Francisco Gustavo Vítor Lesquent, descendente directo de Lúcia Armanda Maria Semnoz.

Colette limitou-se a soltar uma exclamação que não chegou a traduzir bem o seu espanto:

Até aquele dia ignorava a existência de Anthime Ernesto Letellier, nunca ouvira falar em Francisco Gustavo Vítor Lesquent, nem se recordava dos nomes das duas esposas do tio-avô Tomás...

- Portanto, é herdeira de metade dos bens de Anthime Ernesto Letellier - repetiu Lemasle.

Colette levantou a cabeça.

- Letellier - prosseguiu o notário - alcançou avultada fortuna com o negócio de peles e, em 19..., essa fortuna estava avaliada em vinte milhões de francos, quantia muito importante para a época. Infelizmente, a crise económica que nos atingiu de 19... a 19... arruinou-o quase por completo. Ficou reduzido a pequena fábrica de curtumes, que vendeu dois anos antes de morrer, e ao castelo de Grandlieu, para aonde se retirou e onde morreu há um ano. Não tive dificuldade em encontrar o seu primo Lesquent, mas, só depois de demoradas pesquisas, Duvignac, notário em Annecy, me deu a sua direcção, a sua antiga direcção, quero dizer. Em resumo, para não entrar em pormenores, tenho o prazer de lhe anunciar que, se a fortuna de Letellier não é tão grande como seria de esperar, restam-lhe o castelo de Grandlieu e duzentos mil francos em títulos de renda.

Colette, que estava desnorteada com o dilúvio de palavras e por tão inesperada notícia, murmurou:

- Nesse caso, sou castelã?

E imaginava já um castelo com pesadas torres, erguido no alto dum monte, dominando pequena aldeia com as casas enegrecidas pelo tempo.

Lemasle sorriu com ligeira ironia.

- Recordo-lhe que apenas lhe pertence metade do castelo. A outra é do senhor Lesquent. Além disso, terão de pagar elevados direitos de sucessão, visto Letellier ser vosso parente em terceiro grau. Portanto, é muito possível que se vejam obrigados a vender a propriedade. Nesse caso, ainda lhes renderá uma soma muito convidativa, talvez trezentos ou quatrocentos mil francos.

Colette ficou desapontada por ver o castelo desvanecer-se tão bruscamente.

- Lesquent - prosseguiu o notário - deseja vender o castelo e propõe-lhe a compra da sua parte.

Colette sorriu com tristeza.

- Mesmo que o desejasse, não poderia. Sou órfã, meu pai morreu arruinado, não tenho grandes estudos e, para viver, sou obrigada a contentar-me com modesto emprego numa casa de exportações. Não sou rica.

- Sendo assim, não se importaria de vender a sua parte?

- Absolutamente nada.

- Muito bem. Posso dizer-lhe então que já recebi propostas de diversos compradores.

E começou a folhear o processo.

- Uma Caixa de Previdência procura um castelo para instalar uma casa de repouso para crianças. Há também um particular que deseja comprá-lo. Vou escrever a ambos, pedindo-lhes para fazerem ofertas.

Lemasle fechou o processo e levantou-se dando assim a entender à visitante que a entrevista estava terminada.

Colette levantou-se também e agradeceu ao notário o amável acolhimento. Quando ele a acompanhou à porta, perguntou-lhe ainda:

- Tem alguma fotografia do castelo?

- Infelizmente não. É um castelo estilo Luís XIII, rodeado por um parque de dois hectares e meio, em parte plantado com árvores de fruto. O telhado necessita de reparações, mas o estado geral é bom.

Colette encaminhou-se para a saída.

- Onde fica? - perguntou ainda.

- A dez quilómetros daqui, na margem do Sena, perto da floresta de Brotonne.

- Agradeço-lhe, senhor Lemasle. Se puder obter uma fotografia, peço-lhe que ma envie. Gostaria de ter uma recordação do nosso castelo...

- Não deixarei de o fazer, descanse. Até à vista, mademoiselle.

Colette encontrou-se de novo no largo deserto e sombrio. A chuva não tinha deixado de tombar e, em certos pontos, enormes poças cintilavam na sombra. A porta iluminada de um café atraiu-a.

A iluminação fraca, as mesas de mármore sujo, o espelho enorme já picado, o tecto, enegrecido pelo fumo, do qual pendia um papel mata-moscas, tudo lhe causou certa repugnância, pois aspirava a basto arvoredo, tapetes de relva, janelas largamente abertas sobre um parque à francesa.

No entanto, entrou, bebeu uma chávena de café, para aquecer, e, depois de ter pago, voltou debaixo de chuva para a estação dos caminhos de ferro mal iluminada cheirando a pó e a fumo.

 

- Com que então um castelo estilo Luís XIII, na margem do Sena, com parque e floresta!

Colette, que preparava o chá, emendou:

- Perto da floresta de Brotonne, mas essa floresta não pertence ao domínio.

- Foste vê-lo?

- Não, mas gostaria de possuir uma fotografia...

As duas amigas acabavam de jantar na salinha de Colette Semnoz e, durante a refeição, a dona da casa conseguira prender a atenção da amiga descrevendo-lhe a viagem a Pont-Audemer.

- Castelã durante vinte e quatro horas - gracejou Lina.

- O castelo será vendido - continuou Colette. - Recebi esta manhã uma carta do notário, comunicando-me as propostas recebidas e aconselhando-me a esperar pela terceira, pois um industrial de Paris também lhe perguntou as condições de venda... Como vês, ainda sou castelã.

- E o teu primo?

- Qual primo?

- Lesquent. Que tal é ele?

- Não sei. Depois de ter saído do cartório lembrei-me de que nem sequer havia perguntado a Lemasle onde o meu primo habitava, o que fazia e a idade que tinha,

- Tens uma família muito estranha, deves confessar. Desconhecias a existência do primo milionário e do tal Lesquent.

- Quando era muito pequena, ouvi falar da tia Lúcia, mas raramente, e pensei que estivesse ligada a qualquer acontecimento pouco honroso. De resto, creio que não vivia em França, e ignorava que tivesse filhos. Quando voltar a falar com Lemasle pedir-lhe-ei para me dizer o que sabe a respeito da minha família. Desta vez estava muito comovida, não sabia o que dizer, não pensei em coisa alguma.

- Como será o castelo? Um velho castelo da Idade Média, com um fantasma em cada andar.

- Não sei, mas imagino-o com pesadas torres dominando o Sena, como um castelo romano.

De repente, olharam para o relógio e viram que passava da uma da manhã.

- Já não tenho "metro"! - exclamou Lina,

- Fica em minha casa. Dormirás no divã.

- Não posso. A minha mãe ficaria inquieta,

O lindo rosto de Colette velou-se de melancolia.

- Tens razão. Não me lembrava...

Lina, notando a tristeza da amiga, beijou-a carinhosamente.

- Pensa no teu castelo, castelã. E se fôssemos visitá-lo no domingo? - lembrou, querendo dissipar a nuvem que ensombrava o rosto da amiga.

- Boa ideia. Partiremos no sábado ao meio-dia para Pont-Audemer, passaremos lá a noite e, na manhã seguinte, iremos ao castelo.

- Melhor do que isso. A Páscoa está à porta. Poderemos lá passar o domingo e regressar a Paris na segunda à noite. Desta forma, serás verdadeiramente castelã, durante vinte e quatro horas.

Colette abraçou-a.

- A tua ideia é maravilhosa. Amanhã vou escrever a Lemasle, informando-o da nossa visita e perguntando-lhe onde posso obter as chaves. Está dito, minha querida Lina, pela Páscoa terei o prazer de te fazer as honras do meu castelo.

As duas raparigas trocaram uma reverência e começaram a rir.

Depois de Lina ter saído, Colette, enquanto arrumava a casa, sorria contente, antegozando o prazer daquele dia passado no campo e as vinte e quatro horas da sua vida de castelã.

 

- Mademoiselle Semnoz?

Colette acabava de regressar a casa a fim de preparar a partida para Pont-Audemer com Lina. Admirada, examinou o rapaz elegante que lhe batera à porta.

- Sou eu. Que deseja?

- Sou seu primo, Francisco Lesquent.

O rapaz atribuiu ao espanto a reserva demonstrada por Colette. E, como ela ficasse calada e atrapalhada, acrescentou:

- Pedi a sua direcção ao notário e ele disse-me que contava com a sua visita no domingo.

- Tenciono ir a Grandlieu, sim. Não quer entrar? Desculpe-me tê-lo deixado à porta. Fiquei tão surpreendida com a visita do meu desconhecido primo...

O rapaz sorriu e entrou sem-cerimónia, com ar decidido. Examinando o aposento, aproximou-se de uma fotografia para a ver melhor.

- Minha mãe - informou Colette.

- Era muito nova.

- Morreu quando eu nasci.

Lesquent olhou o mobiliário modesto, mas gracioso e comentou, indiferente:

- A sua casa é muito engraçada. Vive só?

- Vivo, desde que morreu o meu pai. Ignorava que ainda tivesse família.

- É divertida esta história da herança, não acha? Divertida para si, porque eu conheci muito bem Anthime.

Colette sorriu e perguntou:

- Conhecia? E que espécie de homem era ele?

- Uma pessoa sempre bem disposta, alegre, apreciando a boa mesa e os bons vinhos.

Enquanto falava, ia observando tudo. Por fim, inquiriu:

- Está empregada?

Colette ofereceu-lhe uma cadeira e foi explicando qual era o seu emprego.

Conversaram durante mais de uma hora. Lesquent voltou a referir-se ao passeio a Grandlieu.

- Virei buscá-la, prima. Iremos no meu carro e, dessa forma, teremos ocasião de travar mais amplo conhecimento. Sairemos daqui no sábado à tarde e chegaremos a Grandlieu à noite.

- Agradeço-lhe, mas esqueci-me de lhe dizer que não vou só.

A fisionomia de Lesquent ensombrou-se.

- Tem noivo?

- Não, trata-se de uma amiga. Combinámos passar as férias da Páscoa juntas e irmos visitar o castelo.

- Uma amiga!... Mantenho a proposta e, se a minha presença não se torna importuna, podem ir as duas no meu carro.

- Não quero abusar da sua amabilidade.

- Por forma alguma. Está combinado. Virei buscá-las aqui, às três horas. Está bem?

Despediu-se e como Colette o acompanhasse até à porta, manifestou-lhe o prazer que sentia por a ter conhecido. Quando ia a sair, pediu com simplicidade:

- Dá-me licença que a beije?

E antes que Colette pudesse responder-lhe, agarrou-a pelos ombros e beijou-a nas duas faces.

Depois, com um "Até breve", saiu e começou a descer a escada.

Só depois dele desaparecer, Colette fechou a porta.

Até ali ainda não tinha formado uma ideia definida sobre o primo, mas, mesmo vaga, não se parecia com o Lesquent em carne e osso que acabava de sair. Não contava com tanta sem-cerimónia e à-vontade.

Não sabia muito bem qual o juízo a formar a seu respeito. Não gostava dos seus modos vulgares e, no entanto, achava-o simpático. A maneira como se apresentara e examinara os móveis e todos os recantos do quarto desagradava-lhe, mas também não deixava de ser engraçada tanta simplicidade.

-Começava a lamentar ter aceite a oferta de Lesquent. Não receava passar o dia com ele e com Lina, mas tinha medo que a presença do rapaz estragasse o prazer que antegozara ao fazer o projecto do passeio.

Mais tarde também pensou:

- A Lina é curiosa ao máximo. Há-de perguntar-me o que faz o meu primo e eu não saberei responder-lhe. Falámos de tudo, excepto dele.

E Colette, que naqueles últimos dias não deixara de pensar no passeio, passou a encará-lo com menos entusiasmo. Chegou a desejar que inesperado acontecimento o impedisse. Mesmo assim, preparou fato e a pequena maleta com tudo quanto precisava para a viagem.

 

-O relógio indicava três horas.

"Três horas e a Lina ainda não apareceu - pensou Colette. - O Lesquent não tarda. Foi esta a hora marcada para nos vir buscar.

Teria preferido que Lina chegasse primeiro do que o primo a fim de lhe perguntar se a sua presença não a aborreceria. Além disso, existiam ainda outros motivos - talvez pouco definidos no seu espírito - que a levavam a desejar a presença da amiga quando ele chegasse.

Entretanto, foi verificando se não esquecera coisa alguma. Fechou o contador do gás, alisou a cobertura do divã e compôs as cortinas. Precisamente nesse momento tocaram à campainha,

"Não é a Lina. Que arrelia!"

Lesquent entrou, sorridente e um tanto emproado.

- Bom-dia, prima! Sabe o que vinha a pensar enquanto subia a escada?... Como devia cumprimentá-la. Dizer-lhe, como disse: "Bom-dia, prima" é um pouco provinciano e como dos dois sou quem vive na província, sinto-me um tanto humilhado. Portanto, ponhamos de parte as cerimónias. Vou tratá-la por Colette e peço-lhe que me trate por Francisco, está dito?

- Não vejo inconveniente algum.

- Belo. E, antes de mais nada, vou beijá-la. Com os seus modos um pouco bruscos, puxou-a para si e beijou-a, mas dessa vez o beijo foi menos rápido e Colette notou que a pressão era mais forte e o contacto dos lábios mais demorado.

"Foi talvez impressão minha - pensou. - Estou mal disposta com a demora da Lina. Tinha tanto empenho em que ela fosse a primeira a chegar..."

Mesmo assim, ficou um pouco melindrada com a forma um tanto livre como Francisco se portava.

- A sua amiga ainda não veio?

- Não, mas não deve demorar-se. Costuma ser pontual.

Lesquent arriscou alguns gracejos sobre a pontualidade das senhoras.

Depois, deu alguns passos pelo aposento e acabou por parar diante da larga janela, debruçada sobre Paris.

De súbito, voltaram a bater. Colette precipitou-se para a porta, mas em vez de Lina viu um rapazito que lhe entregou um papel azul. Era um telegrama da amiga.

Colette abriu-o rapidamente e leu:

 

                   Minha querida Colette

Um começo de gripe veio transtornar os nossos projectos. É mais sensato ficar em casa, mas não quero que deixes de fazer a tua visita ao castelo, porque, se ele for vendido em breve, nunca me consolaria por ter sido eu a causadora de não viveres as tuas vinte e quatro horas de castelã. Não vais sozinha, visto que, conforme me disseste, serás acompanhada pelo teu primo.

Até terça-feira, minha querida. Fico ansiosa por te ouvir contar o passeio.

                                                               Lina.

 

- Más notícias?

Colette ergueu os olhos e respondeu-lhe:

- A Lina não pode vir, está com gripe.

- Teve pouca sorte.

E como Colette tivesse ficado pensativa, Lesquent observou:

- Podemos seguir, não é verdade?... Está aborrecida?

- Seria pouco sincera se o negasse.

- Não é muito amável para mim.

- Desculpe. Mas eu e a Lina contávamos divertir-nos tanto com o passeio! Quase estou resolvida a ficar.

- Não me faça uma partida dessas! Passei a noite em Paris, de propósito para a levar a Grandlieu. E agora deixa-me partir sozinho?

- Não, sossegue.

Lesquent já tinha pegado na maleta.

- Vamos então - decidiu Colette, abrindo a porta.

Quando chegaram à rua, Lesquent, com presunção, designou o carro junto do passeio.

- O tempo ainda está muito fresco para levantar a capota. Mas, no Verão, um carro aberto é me agradável.

Estava muito conversador. Começou por mencionar todas as qualidades do automóvel e acabou a falar da noite que passara em Paris, ainda que em termos bastante vagos.

- Jantei num restaurante muito chique, depois fui a um music-hall e só regressei ao hotel às três da manhã. Lembrei-me que poderia tê-la convidado, mas já era tarde. Veria como se tinha divertido.

Depois de terem passado Mantes, Colette arriscou a pergunta que lhe bailava nos lábios desde que haviam saído de Paris.

- Ainda não me disse o que faz, Francisco.

- O que faço?

- Sim, qual é a sua profissão. Nem mesmo sei onde vive. Disse-me que era provinciano...

- Vivo em Grandlieu.

- No castelo?

- Exactamente, até que seja vendido.

Colette não conseguiu ocultar a surpresa.

- Que tem isso de extraordinário? Vivo ali há muitos anos... vivi sempre com Anthime.

Falava com tanta naturalidade e calma que Colette se censurou pelo seu espanto.

Era perfeitamente admissível que Lesquent vivesse com Anthime Letelier, visto ser também seu primo. A intrusa era ela, Colette. Nunca conhecera Letellier e agora ia ficar com metade da sua herança. Lesquent, tendo vivido sempre com ele, era, por assim dizer, espoliado por uma desconhecida. Legalmente, mas espoliado.

Dispunha-se a revelar ao primo estes escrúpulos quando ele lhe fez notar a beleza da paisagem.

Tinham deixado para trás Rosny e rodavam pela estrada que bordava o Sena, mesmo rente à margem, antes de subir para Bonnières. O sol, até ali encoberto, brilhava agora no céu de um azul muito suave e refulgia no rio que, naquele ponto, descrevia graciosa curva.

Lesquent propôs-lhe pararem na pousada que, à esquerda, surgia toda florida de primaveras e outras flores precoces.

Francisco arrumou o carro à beira da estrada. Saíram e deram alguns passos sem trocarem palavra.

- Naturalmente, almoçou à pressa. Não quer tomar uma chávena de chá?

- Aceito com prazer.

Entraram na pousada e enquanto esperavam que os servissem, Lesquent assobiava o Tea for two.

- Se vive em Grandlieu, deve possuir uma fotografia do castelo?

- Com certeza. Está ansiosa por conhecer a sua propriedade, não é assim?

Dispunha-se a abrir a carteira quando se arrependeu.

- Não, por enquanto, não. Está, de facto, curiosa por conhecer Grandlieu?

- Sem dúvida.

- Nesse caso, não quero estragar-lhe a surpresa. Dentro de uma hora chegaremos.

- Supõe que não sentiria tanto prazer perante a realidade se já conhecesse o castelo pela fotografia?

- Talvez. Não desejo que sofra desilusões. A fotografia que tenho na carteira favorece-o bastante! Não é tão sumptuoso como ela o representa. Mesmo assim, dar-lha-ei para a mostrar à sua amiga, para a deslumbrar.

- Desse modo, desisto - concordou Colette com leve tristeza.

Quando acabaram de tomar o chá, ainda ficaram um momento a conversar.

De repente, Colette, vendo passar uma fragata propôs:

- Se fôssemos até à margem do Sena...

Encontraram o antigo caminho da sirga e, durante algum tempo, seguiram, à beira da água.

- É extraordinário como o rio anima a paisagem. Passam barcos e, mesmo sem eles, a água com os seus cambiantes e mil reflexos, é um encanto. De Grandlieu avista-se o Sena?

- Por entre as árvores. Verá passar os grandes navios que sobem até Ruão. Mas, para mim, que habito o castelo há tantos anos, tudo isso deixou de me interessar. Já nem lhe dou atenção.

Continuaram a andar e Colette manifestou todo o prazer que lhe causava o passeio. E não deixou de ter um pensamento afectuoso para a amiga.

- Pobre Lina! Que pena não ter podido vir connosco.

- Se souber que está triste, a sua amiga, por certo, ficará aborrecida e eu também gosto mais de a ver contente como estava há pouco.

Tinha-se aproximado da prima e tentou enlaçar-lhe a cintura. Sem espalhafato, mas com firmeza, Colette tirou-lhe o braço e afastou-se dele.

- Seria melhor voltarmos para o carro - disse.

- Se lhe apetece ficar aqui mais algum tempo, não faz diferença. Ainda chegaremos a Grandlieu antes da meia-noite.

Colette, a quem a tentativa de Lesquent havia irritado, retorquiu com frieza:

- Não tenciono ir a Grandlieu esta noite.

O primo observou-a com espanto.

- Aonde quer ir então?

- Para o hotel de Pont-Audemer. Amanhã irei então visitar o castelo.

- Vai passar a noite no hotel quando tem vinte quartos à sua disposição!

- Não duvido, mas não desejo importuná-lo, e, além disso...

- Além disso?

Colette voltou a cabeça e concluiu:

- Prefiro o hotel.

Até alcançarem o carro não tornaram a falar e só muito depois recomeçaram a conversar sob assuntos banais.

Colette, que não conhecia a região, não se admirou com o caminho que tomavam até chegar junto do posto indicador que dizia: "Floresta Brotonne".

- Francisco, eu não lhe disse que desejava ir para Pont-Audemer?

- Se insiste, iremos para lá depois. Primeiro quero mostrar-lhe o castelo. Temos tempo.

Colette não lhe respondeu. Para quê? Quando automóvel parasse, veria o que lhe competia fazer.

Seguiam por uma estrada perfeitamente recta. De um lado e outro, árvores e mais árvores. Depoisjtornou-se mais acidentada e, por entre o arvoredo apareceu o rio, ao qual a estrada corria paralela, umas vezes aproximando-se, outras afastando-se.

De súbito, Lesquent voltou à esquerda e meteu por um caminho pedregoso, que subia, uma espécie de calçada quase intransitável.

Começava a anoitecer e, debaixo das árvores desprovidas de folhas, mas bastante densas, já estava escuro.

Colette não se sentia muito segura e, se não tivesse medo de se perder na floresta imensa, teria saltado do carro.

Olhou de soslaio para o primo, muito atento ao volante para evitar as covas e as raízes que obstruíam o caminho.

Por fim, este tornou-se mais fácil e saíram da floresta.

A estrada corria agora à beira de um pomar. Seguiram até a uma cancela, diante da qual Lesquent parou.

- É aqui? - perguntou Colette.

Como se não tivesse ouvido a pergunta, o primo saltou do carro e foi abrir a cancela.

Quando voltou a sentar-se ao volante, declarou com ênfase:

- Estamos nas nossas terras, minha querida prima.

Atravessaram o pomar, plantado apenas com macieiras, e, bruscamente, desembocaram em esplêndida esplanada, tapetada de relva. Ao fundo, erguia-se o castelo.

Construído de pedra branca e tijolos vermelhos, com o telhado muito alto e chaminés à francesa, tinha majestoso aspecto. Na fachada, com rés-do-chão e primeiro andar, rasgavam-se largas janelas. De um e outro lado da monumental escadaria, uma fila de colunas suportava o frontão ornado com alegorias.

Uma espécie de zimbório coroava o conjunto, que Mansard não teria renegado.

Lesquent parou o automóvel a fim de Colette poder admirar a propriedade.

- Então que tal acha, prima?

- Maravilhoso!

Foi a única palavra que, na sua comoção, Colette conseguiu pronunciar.

- Agora olhe para a direita.

Ela obedeceu e avistou uma esplanada, sombreada por magníficas árvores, que descia até ao Sena. Na meia luz do crepúsculo, subia do rio leve nevoeiro. Um pouco mais abaixo, na curva, em direcção de Aizier e Quillebeuf, passava um navio de carga, eriçado de mastros, massa escura picada de luzes, e o trepidar das máquinas, semelhante ao rugido de qualquer animal fabuloso, era o único rumor que interrompia o silêncio calmo, profundo, da noite que descia.

Enlevada na contemplação do esplêndido quadro, Colette não notou que Lesquent se chegava mais para ela e lhe passava o braço pelos ombros. Só deu por isso quando ele a apertou contra si.

- Que diz da nossa propriedade, minha querida? -- É muito linda - replicou secamente, tentando

libertar-se.

- Está contente?

- Muito. Faça favor de me deixar, sim?

- Colette, não acha que...

- Já são horas de me levar a Pont-Audemer.

- Temos muito tempo. Ainda não viu o castelo. Para a tranquilizar, Lesquent retirou o braço e

voltou a pôr o carro em andamento. Dessa vez só parou junto da escadaria, e, sem lhe pedir opinião, saltou do carro.

Subiu os primeiros degraus e, voltando-se, perguntou:

- Então não quer vir?

Colette saiu também do automóvel, porém não foi ter com Lesquent.

- Vive aqui sozinho?

- Não. O criado de Anthime continua ao meu serviço, mas, durante o dia, vai trabalhar como jardineiro. Tenho também uma criada-governanta.

Colette, que estava de olhos baixos, notou que a erva invadia o saibro da alameda e crescia nas fendas dos degraus.

- Então não quer entrar? - insistiu Francisco.

- Antes de mais nada, desejo que entre nós não existam mal-entendidos.

- Mal-entendidos? Não compreendo, Colette.

- Pelo contrário, compreendeu muito bem. A sua atitude e gestos revelam intenções que me desagradam. Aceitei o seu convite, simplesmente, como camarada, sem pensamentos reservados, fique sabendo.

- Está a devanear, prima. Afinal, que deseja?

- Que me leve a Pont-Audemer.

- Sem visitar o castelo?

- Voltarei amanhã, de dia.

Nervoso e irritado, Francisco tornou a pôr-se ao volante. Colette sentou-se-lhe ao lado e o carro arrancou bruscamente.

Contornaram o castelo, seguiram por uma alameda ladeada por árvores frondosas e saíram pelo monumental portão. Mas a erva invadira tudo. Por toda a parte o mesmo aspecto de abandono.

Pelo caminho, Colette perguntava a si própria por que motivo o primo a levara ao castelo pelo trajecto pedregoso e difícil da floresta, em vez de escolher aquele.

Lesquent parou duas vezes o carro. Uma para abrir o portão e outra para o fechar. Seguiram então por magnífica estrada alcatroada que, em poucos minutos, os levou a Pont-Audemer.

Durante o trajecto, nem um nem outro abriu a boca.

- Tem preferência por algum hotel?

- Não. Deixe-me na praça principal que eu me arranjarei.

Na altura da despedida, Colette teve remorsos. Em voz mais suave, agradeceu, estendendo-lhe a mão:

- Obrigada, Francisco. Até amanhã.

- Até amanhã. Deseja que venha buscá-la?

- Não sei.

Sentia-se pouco orgulhosa do seu procedimento. Não teria exagerado um pouco as intenções do primo?

- Às dez horas estarei além, perto da igreja.

- Obrigada.

 

Enquanto recordava os acontecimentos do dia, Colette percorria as ruas de Pont-Audemer à procura de alojamento.

Na porta do primeiro hotel estava pendurada a tabuleta: "Completo". No segundo, nem mesmo chegou a entrar porque viu sair alguns viajantes por não terem quarto.

Arriscou-se então a entrar noutro mais luxuoso, que, de princípio, evitara.

- Não temos quarto, mademoiselle. Começava a lamentar não ter ficado em Grandlieu, quando magnífico Delahaye parou junto do passeio.

- Pode indicar-me um hotel, mademoiselle? - perguntou o condutor do carro.

- A cinquenta metros, encontrará o Hotel Plat d'Etain...

- Já lá fui e não tem quartos.

- Ia dizer-lho. Já corri três e nenhum deles tem quartos livres.

- Agradeço-lhe a informação. Sendo assim, não estou disposto a ficar por aqui. Vou até Lisieux.

Cumprimentou e, silencioso, o automóvel afastou-se.

Colette continuou nas suas tentativas para arranjar quarto.

O dono da última pensão que visitou teve dó dela.

- Não disponho de quarto para si - disse - mas posso talvez proporcionar-lhe meio de o arranjar. Estes senhores encontram-se nas mesmas condições. Também não conseguiram acomodar-se aqui e telefonaram para Vieux-Port, a onze quilómetros de Pont-Audemer, e de lá disseram-lhe que havia quartos disponíveis. Não é verdade? - acrescentou, voltando-se para um sujeito de idade.

Colette não estava muito disposta a tentar a aventura e não se mostrou entusiasmada com o projecto. Agradeceu ao dono da pensão e por certo se teria afastado, se o próprio sujeito não a chamasse.

- Vai-se embora?... Não sei porquê. Também não conseguiu encontrar quarto, já vejo. Não me admira, visto nos ter acontecido o mesmo, a mim e minha mulher. Se não se importa de ir até Vieux-Port, terei muito gosto em a levar no carro.

Colette confundiu-se em agradecimentos e, decorrido um quarto de hora, o carro dos dois idosos parava na margem do Sena, à porta da velha pensão.

- Trago-lhe mais uma hóspeda - declarou rindo, o obsequiador automobilista.

O dono da pensão coçou a cabeça.

- Quando me telefonou guardei-lhe o quarto, mas não tenho mais nenhum livre.

Vendo o rosto desolado de Colette, perguntou:

- Vêm juntos?

- Não - respondeu esta. - Mas com este tempo não posso dormir ao ar livre.

- Escute. A cem metros de distância encontrará outra pensão. Vá até lá e veja se consegue quarto. Se não houver, volte aqui. Arranjar-lhe-ei um molho de palha. Na sua idade, dorme-se bem de qualquer maneira.

Colette agradeceu-lhe a boa vontade e, depois de se ter despedido do sujeito que tão amavelmente a trouxera de Sila para Carybde, conforme pensou, pegou na maleta e dirigiu-se à pensão indicada.

Anoitecera por completo e se não fossem os faróis de um automóvel parado na estrada, Colette talvez se tivesse perdido.

O carro estava, justamente, parado diante da porta da pensão e Colette reconheceu-o como sendo o do rapaz que em Pont-Audemer lhe pedira indicação de um hotel.

Extenuada, subiu os cinco degraus que conduziam à porta.

- Quarto? - informou a senhora a quem se dirigiu. - Ainda temos um, sim.

Colette quase lhe saltou ao pescoço.

Na recepção, para preencher a sua ficha, teve de aguardar que outro viajante cumprisse a formalidade. Era um rapagão, de estatura atlética e trajando com elegância um fato castanho, de excelente corte.

Quando se voltou, teve um gesto de surpresa.

- Desculpe, mas não foi a si que me dirigi para me indicar um hotel em Pont-Audemer?

Era tão simpático e falava com tanta simplicidade, sem a mais leve nota de atrevimento, que Colette não hesitou em responder-lhe:

- Não se engana e parece-me que este encontro estava escrito, visto o senhor ter desistido de ir até Lisieux.

Riram os dois e depois de a ter cumprimentado discretamente, o rapaz afastou-se.

Solucionada a preocupação do quarto, Colette sentia-se tão feliz que lhe apetecia cantar. E como a alegria é generosa, já não estava irritada com Lesquent por causa da sua atitude.

"O rapaz não está habituado a conviver e equivocou-se. Supôs que, por ser Parisiense, eu facilmente me deixaria tentar pelo flirt. Foi um erro, meu amigo. Espero que tenhas aproveitado a lição e amanhã te comportes com a maior correcção".

Pensou então que, na manhã seguinte, às dez horas, ele esperá-la-ia junto da igreja de Pont-Audemer.

"Como poderei alcançar Pont-Audemer? E se estamos na margem do Sena, não seria mais simples ir directamente a Grandlieu? Tenho de pedir informações à dona da pensão."

Então lavou-se, penteou-se, mudou de fato e, sorridente e satisfeita, desceu para a sala de jantar.

Mal entrou, o seu olhar cruzou-se com o do dono do Delahaye. Ele sorriu-lhe, sorriso ao qual ela correspondeu com certa reserva.

A criada indicou-lhe a mesa ao canto da janela. Do seu lugar, Colette, com o olhar, abrangia a sala, cujas mesas estavam todas ocupadas.

Na mesa do meio, quatro casais riam e conversavam uns com os outros e o seu grupo muito contribuía para dar à sala grande animação. Em mesas mais pequenas dois casais de certa idade e, noutras duas, pais com crianças. Ao fundo, sozinho como ela,

o rapaz de Pont-Audemer - como em pensamento

lhe chamava Colette - jantava melancolicamente.

Pouco a pouco, os hóspedes foram retirando, primeiro os pais com as crianças, depois as pessoas de idade e, por fim, só ficaram os quatro casais, que, tendo rido e conversado, ainda estavam a comer o queijo. No seu canto, o rapaz tomava café e lia o jornal.

Colette, que fora a última a chegar, divertia-se com o espectáculo proporcionado por aquela sala de hotel de província, à qual a alegria dos oito comensais da mesa do meio dava desusada animação.

- Vocês já repararam em que estamos sozinhos, - observou uma das raparigas.

- Não de todo - replicou um rapaz.

Com uma vista de olhos pela sala, verificaram a relativa solidão e deram largas à sua alegria. Já haviam concluído o jantar. Uma das raparigas avistou o pick-up em cima de uma das mesas do canto e logo propôs para dançarem.

Colette, que também já acabara de jantar, levantou-se para não se tornar importuna.

- Se gosta de dançar, por que não fica connosco? - observou uma das raparigas.

Os outros insistiram e, quase sem ter tempo de reflectir, Colette encontrou-se dançando nos braços de um dos rapazes.

Na verdade, quanto mais assistia à alegria do animado grupo, mais lhe pesava a solidão. E, desta forma, a proposta foi bem aceite.

Passando perto da mesa do rapaz de Pont-Aude-mer, Colette viu que duas das raparigas insistiam com ele para ficar também. Depois de se ter feito rogar um pouco, acabou por ceder.

Colette soube pelo seu par que o grupo era composto por amigos, uns vivendo em Paris, outros na Normandia. Duas ou três vezes por ano reuniam-se em Vieux-Port.

À terceira dança, o rapaz de Pont-Audemer foi convidar Colette. A despeito da amabilidade dos componentes do grupo, os dois sentiam-se um pouco à margem. Não podiam compreender certas alusões e brincadeiras e isso levou-os, instintivamente, a dançarem várias vezes um com o outro.

A despeito da sua vontade, Colette não pôde deixar de comparar o seu par com Lesquent, o companheiro da tarde, comparação em que o rapaz de Pont-Audemer levou grande vantagem.

De resto, já não era para ela um desconhecido. Um dos do grupo tomara a iniciativa de fazer as apresentações e Colette sabia agora que se chamava Pedro Chavanay.

"Pedro Chavanay? Onde ouvi eu já este nome? - pensava, enquanto dançavam um samba.

Pedro era distinto, delicado, conversava com à-vontade sem ultrapassar os limites da delicadeza, era espirituoso, com uma alegria espontânea, velada por ligeiro toque de melancolia. Em resumo, Colette simpatizou imenso com o novo conhecimento.

Além disso, junto dele não se sentia deslocada. Se a morte do pai e as dificuldades materiais a tinham obrigado a contentar-se com uma espécie de mansarda em Montmartre para morada e modesto emprego como meio de vida, nem por isso deixara de receber, em pequena, apurada educação no convento das dominicanas.

Junto de Chavanay, instintivamente, retomava gestos e atitudes que a fariam alcunhar de pretensiosa pelas colegas de escritório e talvez por Lina, mas que naquele meio se tornavam perfeitamente naturais.

À meia-noite, discretamente, Pedro mandou servir champanhe e a festa prosseguiu animada, num ambiente alegre, ao som de tangos, sambas, slows e be-hop.

Passava das duas da manhã quando Colette, cansada, porém contente, se estendeu entre os lençóis rústicos, mas frescos, do seu quarto provinciano.

 

Quando despertou, o sol filtrava-se pelas persianas fechadas. Desvanecido o primeiro momento de surpresa, recordou onde se encontrava e sentiu-se completamente feliz.

Consultou o relógio de pulso, verificou serem nove horas, verificação que pôs ponto a todas as hesitações.

Seria impossível preparar-se, procurar meio de transporte e estar em Pont-Audemer às dez horas. Não tinha por onde escolher. Teria de procurar a melhor forma de se dirigir directamente a Grandlieu.

Francisco, não a vendo, talvez supusesse que ainda estava zangada e talvez o facto lhe servisse de lição.

Como a manhã estava fria, concedeu a si mesma mais alguns minutos de folga e enrolou-se na roupa.

"Se ao menos soubesse a que distância fica Grandlieu...".

Ao mesmo tempo examinava o quarto. Vendo o cordão da campainha que pendia da cabeceira da cama, chamou a criada.

- Deseja o pequeno almoço, mademoiselle?

- Sim, mas gostava que me desse uma informação. Sabe a quantos quilómetros fica Grandlieu?

- Ao certo, não sei, mas não é muito longe.

- Pode-se ir a pé?

- Com certeza. Uma hora de caminho, quando muito. Antes de atingir a floresta encontrará o castelo.

Colette agradeceu e, quando a criada lhe trouxe o almoço, concedeu a si mesma o prazer de o tomar na cama, prazer que lhe era interdito em Paris pela simples razão de ter de o preparar por suas mãos.

Esteve na cama até às dez, hora que considerou ser conveniente para o que desejava fazer. Reservaria o quarto para essa noite, iria à missa, almoçaria cedo para ter tempo de visitar o castelo de alto a baixo.

Quando descia a escada para sair, viu Pedro Chavanay, que pedia informações à dona do hotel. Falavam alto e Colette ouviu o que diziam:

- Siga pela estrada de Pont-Audemer e Mailleray - indicava a interrogada - e a quinhentos metros encontrará o portão do castelo.

A palavra "castelo" despertou-lhe a atenção.

- Não pode dar-me mais indicações sobre esse castelo? - perguntou Pedro.

- É muito bonito e o dono morreu há mais de um ano.

- Conserva-se em bom estado?

- Pareceu-me que sim, mas não posso garantir.

- Muito obrigado.

Quando se voltou, Pedro viu Colette. Cumprimentou-a e perguntou-lhe se tinha passado bem a noite. Depois, respondendo às perguntas dela, informou:

- Dormi muito bem, mas não calcula como me doeram as pernas. Há quanto tempo eu não dançava! Demora-se por cá?

- Vou dar um passeio; no entanto, ainda fico esta noite.

- Então, até logo.

Pouco depois, quando saiu, Colette avistou o carro cinzento, que se afastava em grande velocidade.

Colette seguiu exactamente o programa traçado ao acordar. Almoçou e ainda não era uma da tarde quando tomou o caminho do "seu" castelo.

A certa altura parou para pedir a uma mulher que lhe indicasse a direcção a tomar.

- Se for pela estrada ainda tem uma boa hora para andar. Mas se tomar por este atalho estará no castelo dentro de cinco minutos.

Seguiu o conselho e percorreu um atalho abrupto que, através do arvoredo, escalava a colina. Chegando lá acima, viu logo, a duzentos metros, à sua direita, o castelo rodeado de árvores. E, para lá do tabuleiro de relva, a linha escura da floresta.

Havia, portanto, três caminhos para Grandlieu. A estrada da floresta onde mal passavam os carros, a estrada principal que passava junto do portão e o atalho.

Em poucos minutos, Colette encontrou-se na esplanada.

Com grande espanto, viu o carro de Pedro Chavanay parado junto da escadaria.

"Era a Grandlieu que ele se referia quando falava com a dona do hotel - pensou. - Como vai ficar admirado quando me vir e o Francisco não o ficará menos ao verificar que nos conhecemos!"

Enquanto subia os degraus, pensava:

"Que viria ele aqui fazer? Talvez queira comprar o castelo e por isso perguntara em que estado se encontrava".

A porta, que Colette não quisera transpor na véspera, estava aberta. No hall reinava um ambiente húmido e as arcas e baús que o guarneciam estavam cobertos de poeira. Lesquent, por certo, não habitava naquela ala do castelo. Essa ideia animou Colette a entrar na sala cuja porta viu entreaberta. Os móveis achavam-se tapados com coberturas e os tapetes enrolados. Tudo indicava, se não abandono, pelo menos, desleixo. Pareceu-lhe ouvir falar e, sem hesitar, atravessou a sala. De passagem, viu uma enfiada doutros aposentos e a sala de jantar, estilo Império, onde lhe pareceu encontrarem-se o visitante e o companheiro.

Colette avançou em passo leve, no desejo de os surpreender, mas parou quando ouviu a voz de Lesquent:

- A co-proprietária não vive na região - dizia ele. - O assunto terá de ser tratado com o notário e comigo. De resto, a sua parte é muito pequena e nem sequer conhecia o falecido dono do castelo, que, por seu lado, lhe ignorava a existência.

Colette escutou com atenção. Que estava Lesquent a dizer a seu respeito?

- Por que não fica com esta propriedade? - perguntou Chavanay.

- Os direitos de sucessão são pesados e não tenho meios para os pagar. Se não fora isso, não hesitaria, porque isto rende bastante. Do castelo fazem parte dois hectares de terreno plantado com macieiras escolhidas. Além disso, Letellier alugava ainda os vinte hectares de terreno que se estendem para sul de Grandlieu. Exportava maçãs para Inglaterra.

- E o futuro proprietário do castelo poderá também alugar essas terras?

- Evidentemente.

Colette supôs que não voltariam a falar a seu respeito e dispunha-se a aparecer-lhes, quando Francisco continuou:

- Quanto ao que falámos há pouco, será bom não o referir a Lemasle. O notário declarou que desejava ignorar se havia ou não gratificação. A sua posição perante a Conservatória é delicada, compreende?

- Compreendo. Mas a co-proprietária?

- Não tem importância. Eu falarei com ela.

- Se eu me decidir a comprar, será conveniente que ela esteja presente na altura do pagamento.

- Não me parece necessário. É minha prima, tem toda a confiança em mim, posso, portanto, representá-la. Além disso, ela prefere não tratar do assunto.

"Está a mentir - pensou Colette.

Mais de uma vez esteve para entrar na sala e dizer duas verdades ao impudente. O desejo de saber até que ponto levaria Francisco as suas maquinações, uma espécie de vergonha por ter escutado às portas e o receio de que os dois homens a descobrissem, compeliram-na a conservar-se na saleta.

- Vou pensar no assunto - declarou Chavanay. - Quanto à sua proposta, de ficar aqui como administrador do castelo, é caso para pensar também. De qualquer forma, não posso tomar uma decisão imediata.

Pelo ruído das vozes, Colette adivinhou que os dois homens se aproximavam e receou que a surpreendessem. Com a vista, procurou em volta onde se ocultar. Já não tinha tempo de correr para a janela e esconder-se atrás dos cortinados. Avistou enorme poltrona Voltaire e agachou-se atrás dela.

Os dois passaram sem a ver.

Quando desapareceram, correu para a janela. Estava mais bem escondida do que atrás da poltrona e podia vigiar a partida de Chavanay. Precisava também de um momento de tranquilidade antes de se encontrar com Francisco, para pensar na curiosa conversa que havia surpreendido.

Uma coisa se tornava evidente. O primo considerava-a como um factor nulo. Mas não haveria também um plano indigno por trás de tudo aquilo, ao desejar afastá-la da venda do castelo, tanto mais que Chavanay tinha falado numa gratificação? Depois de muito pensar, decidiu confundi-lo mais tarde.

"Não lhe falo imediatamente no assunto. Se me enganei, vou humilhá-lo; por outro lado, se ele planeia roubar-me, estou prevenida."

Quando viu Colette na sala, Lesquent teve um sobressalto.

- Chegou há muito tempo?

- Não, cheguei mesmo neste instante. Vi a porta aberta, entrei e chamei por si.

- Tinha ido acompanhar um visitante que Lemasle mandou para cá. Julgo que veio mais como curioso do que como comprador.

- É desta região? - perguntou Colette com bem simulada ingenuidade.

- Ignoro-o. Creio que é de Paris.

- E a oferta foi interessante?

- Não quis revelar-ma. De resto, para nós, será melhor que o assunto seja tratado entre Lemasle e ele. Tudo será feito segundo a lei e não teremos de recear qualquer surpresa.

De boa vontade, Colette teria esbofeteado o mentiroso. Mas dominou-se e perguntou:

- Depois de vendermos o castelo para onde irá?

- Não me preocupo com isso. Conservo-me aqui apenas para o guardar. Tomara que seja vendido a fim de realizar o meu sonho mais querido: ir para África.

- Uma ideia muito curiosa - comentou Colette, para dizer alguma coisa.

Francisco, que estava ansioso por mudar de assunto, propôs-lhe a visita ao castelo.

- Este é o salão. Temos depois a sala pequena e a de jantar.

Enquanto percorriam os aposentos, Colette recordava a conversa surpreendida e a versão que o primo lhe dera. Não podia duvidar. As intenções de Francisco não eram honestas. Deveria dizer-lho imediatamente ou aguardar mais algum tempo? Se pudesse falar com Lemasle, talvez ele a aconselhasse.

Ia tão absorvida com estas preocupações que mal concedeu aos aposentos e ao seu mobiliário rico um olhar distraído. Francisco deu por isso e não insistiu, porque essa atitude provava o pouco interesse da prima pelo castelo. Tinha querido visitá-lo apenas por curiosidade e ficaria satisfeita no dia em que o notário lhe entregasse cem ou duzentos mil francos.

- Como veio até aqui? - perguntou quando desciam a escada principal.

- A pé.

- De Pont-Audemer?

Colette achou desnecessário mentir e descreveu-lhe simplesmente as inúteis tentativas para encontrar quarto e a forma como chegara a Vieux-Port.

- Nesse caso, fica esta noite no castelo?

- Não, reservei quarto no hotel.

Lesquent não insistiu e abriu pequena porta.

- Aqui tem a cozinha. A cozinheira foi para as vésperas. A porta ao fundo é a da copa, onde instalei a minha sala de jantar. A da esquerda é a do meu quarto. No tempo de Anthime Letellier era o escritório-biblioteca.

Os livros ainda lá estão. Muito bem encadernados, mas sem interesse.

Entreabriu a porta e Colette viu as estantes carregadas de livros. A um canto, um divã com a roupa em desordem. Pelo chão e por cima das cadeiras, mais roupa também.

Voltaram para o hall.

-- Gostava de dar uma volta pelo parque - disse ela.

Lesquent acedeu imediatamente e seguiram pela alameda que descia para o Sena.

--Aquelas árvores, além, são macieiras? - perguntou Colette.

- São, mas, infelizmente, não rendem, por serem muito velhas.

- Lamento não ser agora o tempo delas porque, mesmo assim, teria imenso prazer em comer uma maçã das nossas terras.

- Não tenha pena. Já lhe disse que são intragáveis. As árvores são muito velhas.

Deram ainda alguns passos.

- Uma coisa única me deixa pena quando for obrigado a abandonar o castelo. É o Sena com toda esta paisagem fresca e tão linda, não acha? - declarou Francisco numa voz onde vibrava leve nota de emoção; depois continuou:-Colette, - quero pedir-lhe desculpa. Ontem portei-me muito mal. Sou um desajeitado, um bruto. Vivendo num ambiente como este, sem o convívio do mundo, um homem embrutece. Que ideia faz de mim?

Era essa precisamente a pergunta que a si própria fazia Colette: "Que pensar de Francisco?".

Na véspera, depois das suas liberdades, julgara-o com severidade. Depois, quando sem protestos a conduzira a Pont-Audemer, conforme lhe exigira, a sua opinião modificou-se um pouco e quase teve remorsos. Naquele momento, o fenómeno repetia-se. Poucos momentos antes, tinha ficado convencida de que o primo maquinava manobras pouco honestas para a roubar. E agora, ao escutá-lo, duvidava da sua má fé.

Era tão leal e recta que não podia acreditar na duplicidade dos outros. Bastava a emoção manifestada pelo primo perante a paisagem para ela duvidar e esquecer as palavras que havia escutado. Talvez houvesse feito maus juízos...

Francisco, que aguardava a resposta, insistiu na pergunta:

- Que ideia fez de mim, ontem, Colette? Ela encolheu os ombros.

- Se o Francisco não fosse mais velho do que eu, dir-lhe-ia que o considerara um garoto.

Um sorriso iluminou o semblante do rapaz.

- Creio que tem razão--concordou. - Sou um

garoto e um garoto tímido e malcriado. Sabe uma coisa, Colette?

E como a prima o interrogasse com o olhar, continuou:

- Gosto de si. Queria dizer-lho doutra forma, com lindas palavras, mas não sei. Desde o primeiro dia em que fui a sua casa fiquei preso. À noite, ao regressar ao hotel, idealizava-a no castelo com um vestido sumptuoso, tal como usavam as damas dos tempos passados. Víamo-nos, um ao lado do outro, galopando pela floresta e regressando a casa pela cancela por onde entrámos ontem. Foi mesmo por causa dessa visão que escolhi aquele caminho. Se a magoei, não foi por atrevimento, mas sim por amor. Os tímidos quase nunca procedem segundo as regras da delicadeza.

Colette não proferira uma palavra, enquanto Francisco fazia a declaração. Parecia tão espontânea, tão natural, que não estava longe de lhe dar crédito. Por outro lado, sentia-se triste por ter provocado um sentimento ao qual não estava disposta a corresponder. Francisco era simpático, talvez fosse bom rapaz, mas, embora honesto e sincero, pelo seu procedimento havia ferido a delicadeza e sensibilidade de Colette.

Não sabia como responder-lhe e para não o magoar não quis desiludi-lo imediatamente. Como ele insistisse, declarou:

- Como deve compreender, Francisco, fiquei surpreendida com as suas palavras. Não lhe guardo rancor pela sua atitude de ontem. Talvez eu me ofendesse sem razão. Conheço-o tão pouco... Mas fiquei admirada com a sua declaração, repito, e não posso responder-lhe imediatamente. Tenho de reflectir, habituar-me à ideia. Por enquanto, somos dois estranhos um para o outro.

- A sua reserva é muito natural, Colette. Mas peço-lhe para reflectir bem. Veja estas árvores, este rio que corre a nossos pés, contemple o castelo e pense que, se não fôssemos mais do que um, a Colette e eu, o castelo, o rio e as árvores seriam o cenário das nossas vidas, a moldura do nosso amor. A Colette seria a castelã deste maravilhoso domínio.

A despeito das suas prevenções, Colette deixava-se embalar pelas lindas palavras, mas, quando ele se calou, olhou-o com espanto.

- Não compreendo. Como poderiam as nossas duas pobrezas reunidas conservar o castelo? Não o vendemos porque não temos, nem o Francisco nem eu, meios para pagar os direitos de sucessão?

- Evidentemente, minha amiguinha. Mas pense bem. Se casarmos, encontraremos solução para ficar com Grandlieu. Não haverá partilhas e a única despesa a enfrentar será a dos direitos de sucessão, e, com uma hipoteca, poderíamos obter a quantia precisa... ou venderíamos e ficaríamos como administradores. Um Parisiense será capaz de passar aqui o ano todo? Não creia em semelhante coisa. Virá para o castelo um mês ou dois e nos restantes seremos nós os donos. - Entusiasmava-se e Colette perguntava a si mesma se Francisco não iria fazer-lhe confidências sobre a proposta que fizera a Chavanay, quando ele concluiu: - Como vê, tudo tomaria outro aspecto.

Tinham atingido o princípio do atalho que Colette seguira para chegar a Grandlieu.

- Voltemos para o castelo - propôs Francisco.

- Não, estou a dois passos da estrada de Vieux-Port. Já é tarde e regresso ao hotel.

- Venha jantar comigo.

- Voltarei amanhã. Preciso de estar só para pensar no que me disse.

Francisco não insistiu, mas quando ele tentou beijá-la, Colette evitou-o. Francisco seguiu-a com a vista até que ela desapareceu na volta do caminho. Então, como já não podia vê-la, voltou para trás. Nos lábios adejava-lhe estranho sorriso.

Colette, de facto, queria estar só para reflectir e ver claro nos seus pensamentos. Várias vezes, no meio das suas reflexões, evocou a imagem que, sob consumada habilidade ou por acaso, Francisco tinha sugerido: "Idealizei-a no castelo com um vestido sumptuoso, tal como usavam as damas doutros tempos."

Via-se na sala, com um vestido de tule branco, levantando as cortinas para olhar a chuva a cair no parque. Imaginava-se sentada na relva, rodeada de amigas, tal como Winterhalter pintou a imperatriz Eugénia e as suas damas de honor. Depois expulsava da mente estas imagens ou tentava expulsá-las.

Projectos sem esperança, porque não bastava possuir Grandlieu para viver ali como castelã. Impunha-se ter meios para o fazer.

De resto, fosse como fosse, não podia admitir a ideia de casar com o primo. O motivo era obscuro, indefinido e ela não queria aprofundá-lo.

Não, a verdadeira interrogação era esta: Quando mentia Francisco?...

Ao afirmar que a riqueza de Grandlieu consistia nas suas macieiras ou ao garantir que as árvores estavam muito velhas e não davam fruto capaz?

Tinha Colette a impressão de que a resposta seria fácil de obter e suficiente para esclarecer a situação, permitindo-lhe saber a quem tentava Francisco enganar: a ela ou a Chavanay.

Se fosse a Chavanay, poderia ser na esperança de encontrar nele o Parisiense que não ocupasse o castelo mais de dois meses por ano e o deixasse senhor do domínio nos outros dez. Mas se mentira a Colette, não podia ser senão para a roubar. Chavanay compraria Grandlieu por uma insignificância e daria uma gratificação a Francisco, que a embolsaria sozinho. Porém, quer num ou noutro caso, o procedimento do primo não era honesto.

Absorta nas suas reflexões, chegou diante da igreja de Vieux-Port. Do outro lado, viu o carro de Chavanay parado diante da porta da pensão. Com um pouco de habilidade, talvez conseguisse saber o que se havia passado durante a visita a Grandlieu.

 

- Então gostou do passeio, mademoiselle? Colette sorriu para a criada, que a interpelava

na sala de jantar, ainda erma àquela hora e declarou que tinha seguido pela estrada da floresta.

- Existe ali um óptimo castelo.

- O castelo de Grandlieu, bem sei. Conheço-o muito bem. Servi lá em vida do pobre senhor Letellier.

Colette mal podia acreditar em tanta sorte. Encontrar uma criada do falecido Anthime Letellier, o primo desconhecido!

- O castelo está à venda, suponho?

- Dizem, mas com o senhor Francisco nunca se sabe.

- O actual proprietário chama-se Francisco? - perguntou Colette, com bem simulada ignorância.

A criada, sem nada a fazer, visto os hóspedes ainda não terem chegado, tomou um tom confidencial.

- Isso queria ele, ser proprietário, e fez tudo para o conseguir. Infelizmente, o notário descobriu que o testamento tinha sido falsificado e o senhor Francisco não foi reconhecido como herdeiro universal.

Colette, que, através dessas frases sibilinas, começava a adivinhar a verdade, arriscou uma pergunta banal com a esperança de que a criada entrasse em pormenores:

- Esse tal senhor Francisco é filho do antigo dono do castelo e havia mais irmãos ou irmãs?

- Não, o castelo pertencia a um curtidor da região, o senhor Letellier. O senhor Francisco, muito mais novo do que ele, regressou de África há três anos. Eram primos e não se conheciam. O senhor Letellier já estava doente, pois, caso contrário, o tal Francisco não teria ficado nem um mês no castelo. Posso afirmá-lo, pois conheci o senhor quando estava de perfeita saúde. Era um homem enérgico que sabia o que queria, enquanto que o Francisco não passa de um palrador e intrujão. Na noite em que o senhor teve o ataque de coração fui chamá-lo para ir buscar um médico e sabe o que me respondeu?... "Não tinha mais nada que fazer senão sair com um tempo destes!" E o pobre senhor toda a noite sufocou e de manhã morreu.

- Parece-lhe que o médico teria conseguido salvá-lo?

- Talvez. Pelo menos, poderia dar-lhe uma injecção para o aliviar.

- Que horror! - exclamou Colette.

- Depois não é difícil adivinhar o que fez - continuou a criada: "Agora sou eu o dono disto". E como nós não conhecíamos outros parentes do morto, não nos atrevemos a protestar. Em seguida deu-se o caso do testamento. Não fui eu quem ouviu, mas sim o Ludovico, o jardineiro. Estávamos na Primavera, a janela da biblioteca ficou aberta e o Ludovico plantava rábanos num canteiro. Como se conservava de joelhos, ninguém podia dar por ele. O senhor Francisco fechara-se na biblioteca com o notário e, de repente, o jardineiro ouviu o senhor Lemasle dizer:

"- Este testamento não é válido.

"- Não é válido porquê? Foi um testamento feito pelo próprio testador e por isso não tinha de ser registado no notário.

"- De facto, os documentos desse género nunca ficam nas mãos dos notários, mas não reconheço este testamento como hológrafo, visto ter sido o senhor quem o escreveu.

"- Não nego, mas foi datado e assinado pelo meu primo. O pobre homem estava já tão doente que não se sentiu com forças para escrever e redigir. Limitou-se a assinar.

"- Foi um erro e o senhor Lesquent, que parece conhecer bem as leis, não sabe que um testamento desse género deve ser feito pelo punho do testador?

"O senhor Francisco ficou furioso, e quase chegou a ameaçar o notário, mas este mostrou-se inflexível.

"- Lesquent - já não o tratou por senhor - deseja que entregue este testamento ao Procurador da República e peça o exame da assinatura?... Sossegue e pense que talvez eu não encontre outros herdeiros e Grandlieu seja seu. É a sua única probabilidade.

"No mês seguinte, o senhor Francisco despediu-nos e nós abandonámos o castelo, sem pensar. Mais tarde, soube que não era Francisco o único herdeiro e ele próprio declarou ao distribuidor do correio que talvez voltasse para África. Não sei para que estou a contar-lhe tudo isto. São histórias que não devem interessá-la. Para nós, que não temos outras distracções, substituem o cinema e gostamos sempre de lhes conhecer o fim.

Abanou a cabeça e concluiu:

- Vai ver que o tal Francisco acaba mal. Quando penso no pobre senhor toda a noite sufocado...

A entrada de Chavanay interrompeu a conversa. Com amabilidade, perguntou a Colette como tinha passado o dia.

- Muito bem, muito obrigada. Não conhecia a região, mas estou resolvida a voltar. Fui passear para os lados da floresta e vi um belo castelo...

Colette viu o rapaz franzir a testa.

- O castelo que domina o Sena?... Visitei-o esta tarde.

- Lamento não o ter feito - observou Colette, sem conseguir ocultar um sorriso.

- Não está patente ao público, nem se prende a qualquer facto histórico. Visitei-o, porque está para vender e penso comprar uma propriedade na Normandia.

- Nesse caso, vai fazer a sua proposta?

- Ainda não sei. Interessa-me, porque está bem situado, a floresta próxima embeleza-o, embora disponha de pouco terreno. Dois hectares e meio de terras são insuficientes para darem rendimento bastante quanto à conservação e manutenção de edifício tão importante.

- Interessa-se pela vida agrícola?

- Por forma alguma. O castelo convém-me como residência de Verão e para caçar, no Outono. Mas, como ainda há pouco lhe disse, gostaria que possuísse terras cujo rendimento me indemnizasse das despesas que terei de fazer com tão principesca residência.

Com grande pesar de Colette, a chegada do grupo de que, na véspera, haviam feito parte, interrompeu as confidências de Chavanay.

- Não vão jantar sozinhos, cada um em sua mesa. Venham para a nossa.

Chavanay protestou pró-forma. Parecia desejoso de evitar a solidão e talvez até tentasse atordoar-se para esquecer preocupações. Colette, que não esquecia a atitude de Francisco, só tinha uma ideia: levar Chavanay a falar do castelo. Ficou, portanto, muito satisfeita quando o sentaram a seu lado. Infelizmente, a forma como ele se referira à compra de Grandlieu não permitia que fosse Colette a primeira a falar. Como conseguir reatar a conversa sobre um assunto que tanto a interessava?

Enquanto esfuziavam ditos espirituosos e risos, Colette pensava nas estranhas confidências da criada. Precisamente, esta servia a senhora que estava na sua frente e dirigiu-lhe um sorriso cúmplice.

"Devo falar com Lemasle. Só ele poderá confirmar as revelações da criada. Irei procurá-lo amanhã."

O jantar prolongou-se e foi bastante alegre. Depois, como na véspera, uma das raparigas exigiu música e, como seria de prever, Chavanay convidou Colette para dançar.

- Se o senhor fosse castelão - comentou ela, sorrindo - sentir-me-ia tão intimidada que não me atreveria a dançar consigo.

- Vai obrigar-me a renunciar ao projecto!

A frase, que não passava de mero galanteio, fez subir o sangue às faces de Colette. Chavanay adivinhou a sua perturbação e mudou logo de assunto.

Em toda a noite não voltaram a falar de Grandlieu.

Quando, mais tarde, Colette se encontrou sozinha no quarto, recordou uma a uma todas as informações recebidas e teve de reconhecer que nenhuma delas era favorável a Francisco Lesquent. Umas completavam as outras e conjugavam-se para provar que o primo tentara por todos os meios tornar-se senhor do castelo.

"Nada mais tenho a fazer em Grandlieu - pensou. - Irei amanhã de manhã a Pont-Audemer. Se Lemasle estiver em casa e puder falar com ele, hei-de conseguir saber se é verdade Lesquent ter falsificado o testamento. De qualquer forma, o notário poderá dizer-me se as árvores são, de facto, velhas ou se ainda dão rendimento. Isto de ser castelã é um verdadeiro quebra-cabeças!"

 

- Ir a Pont-Audemer, mademoiselle? Hoje não há transporte... Quando digo que não há, é uma maneira de falar. Pode experimentar pedir ao Hotlaville que a leve lá ou talvez algum destes senhores queira fazê-lo.

Voluntariamente, a dona do hotel levantara a voz.

Chavanay, que fumava um charuto, confortavelmente enterrado numa poltrona, levantou-se logo:

- Queria ir a Pont-Audemer?

Colette olhou-o com expressão tão desolada que o rapaz declarou com autoridade:

- Eu levo-a.

- Não sei como agradecer-lhe o incómodo...

- Em cinco minutos estaremos lá. Não se preocupe com isso, peço-lhe.

Colette agradeceu-lhe num sorriso e, seguida pelo olhar malicioso dos companheiros da véspera, subiu para o luxuoso Delahaye.

- Regressa a Paris no comboio? - perguntou Pedro, enquanto subiam a encosta de Trouville-la-Haule.

- Regresso esta tarde, mas, antes, desejo fazer uma visita.

- Se quiser, levo-a no meu carro.

Colette não acedeu logo, tão admirada ficou. Chavanay não era Lesquent; seria porém conveniente aceitar?

- Não tenciono partir tarde - insistiu ele. Colette olhou para a frente do carro, comprida e cinzenta, para os cromados cintilantes, e acomodou-se melhor no banco estofado.

- Aceito com prazer e agradeço-lhe. No mesmo instante, arrependeu-se.

"Não devia ter aceitado - pensou. - Que juízo fará ele de mim?

"Visto ter sido ele quem te ofereceu..." - dizia-lhe outra voz.

Começaram a descer o caminho para Pont-Audemer.

- Onde deseja parar?

- Deixe-me antes da ponte.

Chavanay travou e parou na margem do Risle.

- A que hora deverei vir buscá-la?

- Não sei bem. Pouco depois do almoço, talvez.

- Almoça com pessoas amigas?

- Não é bem isso, mas tenho umas voltas a dar.

Ao mesmo tempo sentia-se corar. Ficava sempre atrapalhada quando se via obrigada a mentir ou, pelo menos, a encobrir a verdade.

Chavanay consultou o relógio de pulso.

- São onze e um quarto. Virei buscá-la aqui dentro de uma hora. Convém-lhe?

Intimidada, agradeceu-lhe, enquanto ele se sentava ao volante. Ao mesmo tempo pensava:

"Mas que ideia a minha a de aceitar o oferecimento!"

O Delahaye partiu pelo caminho de Vieux-Port.

Colette pensou então na visita ao notário e, em passo maquinal, meteu pela ponte.

- Mademoiselle Semnoz?

- Sou eu, de facto, e peço-lhe desculpa por vir incomodá-lo a esta hora, mas torna-se indispensável falar-lhe e, portanto, peço-lhe me conceda alguns minutos de atenção.

O notário mostrou-se ligeiramente aborrecido.

- Seja, mas não posso conceder-lhe mais tempo do que me pede, pois preparava-me para sair.

Levou-a para a sala, indicou-lhe uma poltrona e inquiriu o motivo da visita.

- Fui visitar Grandlieu. Cheguei de Paris no sábado com Francisco Lesquent.

- Com efeito, ele pediu-me a sua direcção.

- Dessa forma, fiquei conhecendo o castelo e também o meu primo. O acaso deu-me ensejo para escutar uma conversa entre ele e um tal Chavanay, que se propõe comprar Grandlieu. é justamente a esse respeito que desejo fazer-lhe algumas perguntas. Que pensa das macieiras da propriedade?

- Das macieiras! - repetiu, com espanto, o notário.

- Exactamente. Têm valor, dão boa fruta?

- Como Normando, dir-lhe-ei que a colheita é maior ou menor, conforme os anos.

- Não foi isso o que lhe perguntei - replicou Colette, já enervada. - Gostaria de saber se as árvores são velhas ou se estão em pleno rendimento.

- A maior parte delas rendem bem.

- Nesse caso, Lesquent não passa de um patife e acabo de ter a prova de que pretendia enganar-me. Outra pergunta ainda. É verdade ter Lesquent tentado falsificar um testamento?

A atitude do notário modificou-se. Até ali havia tratado Colette com uma espécie de condescendência. Desde esse instante mostrou-se talvez mais frio, mas usou de maior deferência.

- Deve compreender que se torna impossível responder-lhe a essa pergunta, mademoiselle. Sabe, por certo, que procedi a difíceis pesquisas para conseguir encontrá-la. Julgo ter defendido os seus interesses, conforme o meu dever exigia e pode ter a certeza de que não consentirei que a prejudiquem.

E agora, precisamente para a proteger, peço-lhe que me diga tudo quanto soube a respeito de Grandlieu.

Colette descreveu-lhe então a viagem, a forma como Francisco se portara e como depois ouvira, por acaso, a conversa com Chavanay. Por fim, repetiu-lhe a conversa tida com a criada, que lhe despertara desconfianças sobre a honestidade do primo.

Por uma espécie de pudor, não confessou que o seu conhecimento com Chavanay havia ultrapassado os limites de um encontro fortuito na sala de um hotel.

- Há muito exagero na história contada pela criada - observou Lemasle com ar aborrecido. - Não deve dar-lhe muita importância. Lesquent estava no direito de se considerar herdeiro universal do primo com quem vivia há três anos. A lei, porém, estabelece que mademoiselle Semnoz, que nem sequer o conhecia, tenha direitos iguais aos do seu primo. Portanto, pode considerar-se humano que ele procure tirar as maiores vantagens da venda do castelo. Mas sossegue, eu velarei pelos seus interesses, mademoiselle, conte comigo.

- Compreendo muito bem e agradeço-lhe, Pode, porém, considerar-se Lesquent responsável pela morte de Anthime Letellier?

- A criada fez romance com o caso. É muito grave deixar morrer alguém e eu não creio Lesquent capaz de um crime. Voltando à venda do castelo, esse tal Chavanay veio falar comigo no sábado.

Aguardaremos a sua proposta, e se ele comprar Grandlieu eu velarei para que a sua parte seja igual à do seu primo. Pode estar tranquila. Não haverá gratificação à parte. Opor-me-ei.

A entrevista terminara. Lemasle acompanhou a visitante e depois de voltar a tranquilizá-la, desejou-lhe boa viagem.

Ao sair de casa do notário, Colette avistou o automóvel cinzento que se dirigia para o ponto de encontro. Instintivamente, recuou e ocultou-se na sombra, deixando-o passar.

- Fui buscar as bagagens a Vieux-Port e agora estamos livres - declarou o rapaz quando ela se lhe reuniu. - Poderíamos ir almoçar a Deauville, que fica a menos de quarenta quilómetros. Chegaremos antes de meia hora.

"Quando contar tudo isto a Lina!", pensava Colette, divertida.

Chavanay portou-se como companheiro agradável, discreto, espirituoso, deixando adivinhar nos seus comentários cultura de nível bastante elevado.

Não só não tentou saber quem era Colette Semnoz, como nunca abordou assuntos que pudessem obrigá-la a revelar as suas ocupações, onde morava, qual a sua posição social e por que razão viera sozinha passar o fim-de-semana a Vieux-Port. Também se mostrou muito reservado a seu próprio respeito.

Enquanto seguiam pela pitoresca estrada de Honfleur a Trouville, Colette não podia deixar de fazer as seguintes reflexões:

"Procedemos como velhos amigos. Mal nos conhecemos e, em vez de falarmos a nosso respeito, falamos da Normandia na Páscoa, do duro ofício de pescador, nos prazeres e aborrecimentos das termas, do último concerto Pleyel e da exposição dos impressionistas na Orangerie".

Quase sempre deixava falar Chavanay; no entanto, não se acanhava de dar a sua opinião ou mudar de rumo à conversa.

Quando o automóvel parou diante da porta do Normandy, observou com ligeiro constrangimento:

- A minha toilette não é própria para almoçar aqui.

Depois de rápido exame, Chavanay replicou:

- Isso não tem importância.

E disse-o com tanta firmeza que Colette recuperou o aprumo e entrou no restaurante com confiança, talvez por ele se encontrar a seu lado. Pelo menos, foi isso o que pensou.

Sentaram-se numa mesa junto da janela que deitava para a praia, deserta àquela hora. Ao longe, o mar irisava-se de mil cambiantes e no céu pequeninas nuvens brancas corriam na direcção do Sena.

"Daqui a uma hora ou duas a sua sombra correrá por cima de Grandlieu" - pensou Colette.

O chefe de mesa aproximou-se para apresentar a ementa. Discretamente, Colette examinou a sala.

Perto, viu duas inglesas com vestidos verdes, um verde berrante. Mais longe, alguns casais almoçavam. Atrás de Chavanay, uma mulher nova tomava café e fumava. Nenhuma delas exibia um desses vestidos extraordinários como se vêem nas fotografias das passagens de modelos. Completamente sossegada, interessou-se pelo almoço.

Naquela sala, o luxo era feito de silêncio e distinção.

Habituou-se imediatamente e à sobremesa sentia-se já perfeitamente à vontade no ambiente requintado do luxuoso hotel. O seu estado de espírito era tal que considerou necessário revelar a Chavanay os interesses que a ligavam ao castelo de Grandlieu. Mas não seria tarde? Não iria magoá-lo, dando-lhe a saber que na véspera o enganara, referindo-se ao castelo como se o desconhecesse? Talvez se zangasse ou ficasse mal disposto. Nesse caso, a sua camaradagem ressentir-se-ia e aquele dia tão belo ficaria estragado.

E adiou para mais tarde a revelação.

Depois do almoço deram um passeio pela praia, mas a temperatura estava tão desagradável que o encurtaram. Pouco depois, regressaram ao automóvel e puseram-se de novo a caminho.

"Devo dizer-lhe tudo antes de chegarmos a Paris" - pensava Colette.

Mas nem no trajecto, nem durante o chá que ele lhe ofereceu em Saint-Germain, nem tão-pouco quando se aproximavam da capital, se decidiu a falar.

Depois do almoço tinha receado estragar o regresso, e à tarde receou humilhá-lo.

"Será uma forma muito triste de lhe agradecer, deixando-o na suposição de que estive todo o dia a divertir-me à sua custa."

Chegaram à Porta Maillot.

- Onde deseja que a deixe?

- Na Etoile, se faz favor.

Quando subiam a Avenida da Grand-Armée, Chavanay insistiu:

- Posso levá-la a casa.

Por instantes, Colette reviveu o dia maravilhoso de mulher rica que ele lhe proporcionara e não admitiu o pensamento de que esse dia teria o seu epílogo no cenário modesto da rua Mont-Cenis.

- Leve-me então à Avenida Vítor Hugo.

Ao mesmo tempo corou violentamente. Com certeza que ao proferir a mentira a voz a denunciara.

"Devo dizer-lhe tudo a respeito de Grandlieu" - pensou.

Entretanto, o carro libertou-se dos outros que contornavam o Arco do Triunfo e meteu pela avenida indicada.

- Que número?

- Sessenta e oito. Indicou o número ao acaso.

Chavanay parou o carro diante de um prédio majestoso. Um dos batentes da monumental porta estava aberto.

- Não sei como agradecer-lhe...

- Por favor, não me agradeça. Não pode calcular o prazer que tive com as horas passadas na sua companhia. De resto, passar não é bem o termo. Diz-se passar horas ou matar o tempo e eu hoje vivi horas esplêndidas.

Colette pensou que Chavanay traduzia os seus próprios sentimentos. Seria ele bastante perspicaz ou mesmo adivinho, para pensar e dizer o que ela pensava ou tratar-se-ia de extraordinária comunhão de pensamentos? Ficou tão perturbada que mal pôde balbuciar algumas palavras antes de sair do carro.

- Quando tornarei a vê-la?

- Não sei, eu...

Ao mesmo tempo, pensava:

"Como justificar os meus segredinhos sobre o castelo?... Agora seria tarde para lhe dizer qualquer coisa. E a morada falsa?... Este homem habituado ao luxo e à riqueza como poderia compreender os sentimentos de uma rapariga pobre e honesta, forçada a trabalhar para ganhar a vida?"

Tinha a impressão de ter roubado aquelas horas maravilhosas e só pensou em fugir.

- Quando poderei vê-la outra vez? - insistiu o rapaz.

Para quê? As belas recordações não devem ter continuação. E então fugiu.

- Colette!...

O seu nome chegou-lhe aos ouvidos vagamente. A correr, transpôs a porta como se para lá do pesado batente pudesse encontrar refúgio. Era, na verdade, uma fuga.

Viu duas portas, uma à direita outra à esquerda. Ao fundo, ainda outra que devia dar para o pátio onde outrora as carruagens aguardavam a saída das belas damas. Escolheu a da direita e hesitou em se utilizar do minúsculo e escuro elevador, que considerou abrigo indispensável para o seu pânico. Reflectiu e pareceu-lhe mais conveniente subir a escada. Quando chegasse lá acima, desceria vagarosamente.

Decorridos cinco minutos, Colette encontrou-se de novo junto à porta da entrada e espreitou para ver se o automóvel de Chavanay já se tinha ido embora. Não o viu. Então, rapidamente, saiu e dirigiu-se para a entrada do metropolitano, que se encontrava a dois passos.

Furtivamente, enxugou duas lágrimas teimosas, filhas do seu nervosismo, supunha. Quando era pequena, depois de um belo dia de férias e de brincadeiras, chorava sempre antes de adormecer.

Por forma vaga, sentiu que chorava o amigo irremediavelmente perdido na imensa capital que tumultuava em seu redor. E, enquanto o "metro" que subia para Montmartre a embalava docemente, recordou o nome inscrito na pequena placa do carro:

PEDRO CHAVANAY Rue de la Baume.

Não descobriu o número, mas isso que importava se nunca iria à rue de la Baume!

 

- Não estarás apaixonada, Colette?

A interpelada olhou para Lina, encolheu os ombros e protestou:

- És maluca!

A outra limitou-se a sorrir, enquanto a amiga prosseguia:

- Reconheço que fui imprudente. Tive a sorte de Chavanay ser mais reservado que o meu ilustre primo. Mas não vejo, no que acabo de te contar, elementos para te levar a supor que estou apaixonada por ele.

Lina abanou a cabeça e replicou com ar sentencioso:

- Pois eu vejo.

- O quê?

- Precisamente o ardor com que te defendes. De resto, que mal poderia haver nisso? Que melhor poderia encontrar a minha castelã do que um rapaz elegante e distinto, suficientemente rico para comprar o castelo?

- Falas como um anúncio matrimonial. Fica sabendo, Lina, que para mim o casamento não se resume em encontrar um bom partido. Exijo outras qualidades, daquelas que o dinheiro não pode comprar. Além disso, não amo Chavanay e ainda que o amasse, a sua fortuna seria, justamente, um defeito.

- Bonitas ideias!

- É isto mesmo. Sou pobre e, se casasse com um homem rico, sentir-me-ia sempre perante ele numa posição inferior. Teria a impressão de ser sua governante, de estar como hóspeda na sua bela casa ou de ser sua escrava, conforme a maneira como me tratasse.

Lina ficou calada um instante como se reflectisse e, por fim, respondeu:

- Talvez tenhas razão ou talvez não... Mas, pelo menos, não terias de ter medo que ele casasse contigo pelo teu dinheiro.

COlette sorriu tristemente.

- Sim, não há esse perigo.

- De resto - continuou Lina - a fortuna não é o ponto principal, é apenas uma questão secundária e relativa. Para Chavanay podes considerar-te pobre, mas a tua posição, superior à de muitas raparigas da tua idade, pode ser considerada como fortuna por um rapaz preguiçoso. Para Francisco, por exemplo, se os seus sentimentos são tais como supões, deves representar a riqueza.

- Tens razão - concordou Colette. - Tens razão quanto à fortuna e quanto ao meu primo. Mas fixa bem estas duas coisas; nunca me casarei com um homem rico nem estou apaixonada por Chavanay, como disseste.

Lina beijou a amiga e protestou:

- Não te zangues, Colette. Pode ser que me haja enganado. Desejava simplesmente abrir-te os olhos.

Foi esta a conclusão da demorada conversa entre as duas amigas, durante a qual Colette descreveu a Lina a sua viagem à Normandia.

Reparando que era tarde, despediu-se para regressar a casa.

Ao atravessar a rua para ir tomar o autocarro, ouviu o ranger agudo de travões e saiu da sua abstracção para ver o focinho monstruoso de grande carro americano parado mesmo junto dela. Primeiro, o medo retrospectivo pregou-a no chão e depois, num salto, correu para o passeio. Soube então o que era o terror. O coração parecia querer saltar-lhe do peito e, durante breves segundos, as luzes dançaram-lhe diante dos olhos.

O enorme carro já se tinha afastado. Colette conseguiu refazer-se e, vagarosamente, seguiu a onda de gente que saía do "metro" e se encaminhava para o autocarro.

Sempre obsidiada pela visão do carro que por pouco não a havia atropelado, involuntariamente pensou no automóvel cinzento, esguio e elegante conduzido por Chavanay.

Como na tela de um cinema, viu-o parado diante da pensão, depois afastando-se, batido pelo sol doirado daquela manhã de Páscoa. Atravessava lentamente a praça de Pont-Audemer, parava junto da ponte e via-se a ela própria instalada no banco forrado de pele vermelha. Depois corria pela estrada de Deauville e as árvores ainda despidas de folhas reflectiam-se rapidamente nos cromados cintilantes. De novo, saboreava a embriaguez experimentada naquele dia maravilhoso quando forte pancada nas costas e o grito de: "ande para a frente" a despertou. Brutalmente, foi arrastada pela onda humana que corria para o autocarro parado. Quando se preparava para subir, o condutor pôs a corrente e disse: "Está completo".

Os que se encontravam atrás começaram a resmungar contra ela. Desolada, olhou para a rua, onde os automóveis corriam numa confusão de faróis vermelhos, brancos e amarelos.

"Como uma borboleta tonta, ficaste fascinada pelo automóvel. É ele que tu pretendes e não o dono, vamos, confessa" - pensava.

Os seis andares da escada nunca lhe custaram tanto a subir como naquela noite. Só a perspectiva do aconchegado refúgio da sua casa lhe deu forças para enveredar pelo corredor escuro.

Subiu, nauseada pelo cheiro a pó, pelas paredes húmidas, pelos gritos dos inquilinos do segundo andar, que discutiam, pelos choros dos pequenos do terceiro, pelo silêncio pesado do quarto, onde se abrigavam dois pobres velhos, tremendo de frio e de fome, pois havia muitos meses que não tinham dinheiro para comer mais de uma vez ao dia. Colette, de boa vontade teria chorado tanta miséria, tanta mediocridade, a sua vida triste, sem sol, o vácuo que sentia na sua própria alma.

Abriu a porta de casa e, como uma borboleta atraída pela luz, dirigiu-se para a larga varanda envidraçada, debruçada sobre Paris, o Paris nocturno sob o céu transparente, feito de blocos ciclópicos, dos prédios enormes, que escalavam a Butte, de encruzilhadas luminosas, de zonas escuras e dos jactos brilhantes e geométricos do néon azul e vermelho.

Quanto tempo permaneceu com a cabeça encostada aos vidros? Quando conseguiu afastar-se da janela para ir acender a luz, pensava:

"Que tristeza ser pobre! Se eu fosse rica, teria a certeza de gostar dele e não do carro".

 

Quando Colette chegou ao escritório, a lâmpada vermelha já estava acesa diante da sua secretária. Pegou no bloco e no lápis e dirigiu-se ao gabinete do patrão. E foi ao transpor a porta que se recordou.

"Não deve assistir hoje a uma cerimónia?"

"Devo, sim, ao casamento de Chavanay."

Havia quinze dias que trocara estas palavras com Fourcaud. Por que não se recordara mais cedo? Talvez por ter naquela altura, como nesse dia, chegado atrasada e o patrão já haver perguntado por ela.

"Chavanay não é um apelido vulgar. Deve ser ele."

A voz de Fourcaud arrancou-a às suas reflexões.

Ditou-lhe duas ou três cartas e acabou por lhe comunicar que estaria ausente dois dias. Depois deu-lhe instruções sobre os negócios pendentes.

De vez em quando, calava-se e perguntava:

- Está a perceber?

- Muito bem.

Todavia, dois ou três minutos depois, fazia uma pergunta à qual o patrão respondia com espanto:

- Acabo de lho dizer agora mesmo. E continuava.

Quando Fourcaud acabou, fechou o bloco e, manhosa, observou:

- Parece-me que na semana passada me esqueci de lhe recordar uma cerimónia.

Fourcaud apertou o queixo entre os dedos, gesto que nele significava profunda reflexão.

Colette quase se arrependeu do que dissera.

- Uma cerimónia?... Ah!... O casamento. Foi adiado. Calcule que...

Calou-se de repente e, fixando a secretária, concluiu:

- Não me esqueci, descanse.

Ia fazer confidências, mas arrependeu-se. Mudou de assunto e começou a falar na correspondência que ditara na véspera.

- Essas cartas devem ir hoje para o correio, sem falta. Amanhã não estarei aqui para as assinar.

Houvera uma avaria no metropolitano entre Notre-Dame-de-Lorette e Trinité e Colette chegava mais uma vez atrasada. Muitas vezes tinha estas séries negras, como lhes chamava, e durante três ou quatro dias seguidos chegava tarde ao escritório. Estava, precisamente, numa dessas séries. Na véspera, à tarde, entrara no escritório às duas e dez, nessa manhã às nove e cinco. Daquela vez, porém, excedia tudo, pois o relógio da estação de Saint-Lazare marcava duas horas e vinte e cinco minutos e como o patrão estava ausente o facto ainda mais a arreliava.

- Está um sujeito no gabinete do patrão - avisou uma colega quando ela entrou.

- No gabinete, porquê?

- Porque é amigo do senhor Fourcaud.

- Não lhe disseste que se tinha ausentado de Paris?

- Disse, mas ele perguntou quando voltava e eu não soube responder-lhe.

- Está bem, eu vou lá.

Arrumou a mala de mão, pendurou o casaco e dirigiu-se para o gabinete do patrão.

Logo que entrou, parou, petrificada.

Chavanay estava sentado numa das poltronas e fumava um cigarro. Quando a viu ficou espantado.

- Colette!

Colette desejaria fugir, mas, fazendo face à situação, deu alguns passos e disse, com calma:

- Pretende falar com o senhor Fourcaud, não é verdade? Ausentou-se de Paris e só regressa no sábado.

- Não calcula como fiquei contente por a encontrar aqui, mademoiselle. É secretária do meu amigo Fourcaud?

- Sou. Deseja mais alguma coisa?

- Exactamente, e fiquei radiante por a ter encontrado, pois é uma das raras pessoas que pode informar-me.

- Sobre quê?

- Pretendia saber se a pessoa que trouxe no meu carro para Paris, na segunda-feira de manhã, se chama mademoiselle Semnoz e qual a sua direcção, porque na avenida Vítor Hugo a porteira não conhece ninguém com esse nome.

Colette tomou um ar aborrecido.

- Lamento não poder informá-lo, mas essa espécie de assuntos não entram nas funções da secretária do senhor Fourcaud. É tudo quanto desejava saber?

Chavanay replicou numa voz que pretendeu tornar o mais glacial possível:

- De momento, nada mais me interessa. Diga ao senhor Fourcaud que voltarei a visitá-lo na semana próxima.

Pegou nas luvas e no chapéu, cumprimentou-a discretamente e saiu.

Colette não foi logo reunir-se às colegas. Não poderia fazê-lo. Aproximou-se da janela, ficou por momentos observando a onda de carros que seguia pela rua Tronchei, depois voltou para junto da secretária e, maquinalmente, começou a arrumar os lápis e borrachas. Por fim, com ar decidido, dirigiu-se para a porta.

Quando se preparava para abandonar o escritório, às seis e meia, felicitava-se pela sua firmeza. Não se recordava de ter visto Chavanay no gabinete de Fourcaud, desde que estava ao seu serviço, havia dois anos. Porém, como não seria impossível voltar a encontrá-lo, considerou que tinha sido sensato romper definitivamente com ele.

- Dá-me licença que a conduza à avenida Vítor Hugo?

Colette teve um sobressalto. Chavanay estava diante dela e segurava a porta do Delahaye cinzento, parado junto do passeio.

- Agradeço-lhe, mas já deve ter compreendido que não moro na avenida Vítor Hugo.

- Não tenho preferência por essa avenida. Limito-me a oferecer-me para a levar a casa.

- É inútil.

- É essa a sua opinião, mas preciso de falar-lhe. Há pouco, no gabinete de Fourcaud, não insisti porque não estava na minha casa e podia responder-me que tinha que fazer.

- E agora estou com pressa. Lamento...

- Se está com pressa, diga-me aonde devo levá-la.

- Não, eu...

Colette teve a impressão de que os transeuntes olhavam para ela. Perto, na paragem, as pessoas que aguardavam o autocarro pareciam interessar-se pela conversa. Aborrecida, aceitou.

- Está bem. Leve-me à rua... à praça de Clichy.

Começaram a andar e viram-se logo envolvidos na onda dos carros que vinham de Saint-Lazare. Chavanay seguia atento ao volante para evitar os que surgiam de todos os lados. Durante cinco minutos não trocaram palavra.

- Pedi-lhe que me levasse à praça Clichy e não é este o caminho.

- Procurei evitar os engarrafamentos da praça de Saint-Augustin.

- Nesse caso, desço aqui... nada tenho a fazer para os lados dos Champs-Elysées.

Tentou abrir a porta, mas ele impediu-a.

- Não faça tolices. Que tem a recear, no coração de Paris? Portei-me incorrectamente de Pont-Audemer a Deauville e de Deauville à avenida Vítor Hugo? Preciso de falar-lhe e não posso fazê-lo no trajecto directo de Saint-Lazare à praça Clichy.

Seguiram na direcção do Arco do Triunfo, que recortava o vulto imponente no céu doirado pelo sol do poente.

- Perdoe-me ter-lhe imposto este desvio, mas não vejo outra forma de lhe dizer o que precisa ser dito...

A imprudência de um peão obrigou-o a interromper a palavra.

Deu uma volta ao volante e o carro seguiu com majestosa serenidade, que fazia contraste com o nervosismo do seu condutor.

- Posso continuar?

Colette limitou-se a leve bater de pálpebras.

- Na segunda-feira tive uma espécie de sonho...

Falava devagar, arrastando as palavras para recuperar a calma. A voz tinha um timbre suave, envolvente, e Colette, a despeito da sua vontade, deixava-se embalar por ela. Em volta deles, a avenida triunfal agitava-se e no meio dessa agitação a voz calma de Chavanay agia como calmante.

Colette, que, desde as primeiras palavras, contava com a frase: "Amo-a, Colette", prestava a maior atenção ao que ele dizia.

- Não lhe peço para me responder imediatamente. Compreendo muito bem que...

"Não tencionava casar-se na quarta-feira?"

Colette ardia no desejo de fazer esta pergunta para lhe demonstrar que não se deixava iludir. Mas agora era tarde, porque não conseguiria dizer a frase sem chorar.

A maravilhosa recordação daquela segunda-feira submergia-se na onda de mentiras daquele homem.

"Na quarta-feira devia casar-se e na segunda convidou-me para almoçar em Deauville. Por qualquer razão, a noiva restituiu-lhe a palavra e ele pretende vingar-se dela, divertindo-se comigo, o cavalheiro!"

O ensejo era excelente e o cenário propício. O automóvel rodava pela avenida mais bela do mundo e a declaração de amor. Iriam parar ao Bois e coisa alguma se oporia ao jantar no Pré-Catelan, em Armenonville ou em qualquer outro ponto onde ele estivesse certo de serem vistos.

Com efeito, o carro contornou o Arco do Triunfo e começou a descer a Avenida Foch.

- Vejo que está equivocado, senhor Chavanay. Pare aqui e acabemos com isto, por favor.

Chavanay travou e o carro parou rente ao passeio.

- Quem está equivocada é mademoiselle Colette. Farei o que deseja, mas volto a pedir-lhe que não tome uma decisão imediata.

- Deixe-me.

- Tive a impressão de que a alegria por mim experimentada na segunda-feira com a sua companhia encontrara eco em si. E essa alegria foi tão Intensa que não podia ser uma impressão passageira. Sou um pobre apaixonado, não é verdade? Não lhe digo lindas palavras porque, à força de serem empregadas, perderam todo o valor. Mas tenho a certeza de que o sentimento delicioso que me dominou quando a tive junto de mim, na segunda-feira, era amor.

A magia das palavras começava a agir. Involuntariamente, Colette retirara a mão do fecho da porta e escutava-o.

Teve de fazer um esforço para não murmurar: "Continue a falar".

Mas outras palavras impregnadas de amargura lhe subiram aos lábios:

- Não tencionava casar-se, na quarta-feira?

Foram ditas quase num murmúrio, porém bastaram para interromper a declaração de amor de Chavanay.

- Pois sabia?

Colette saboreou o triunfo como teria saboreado um bolo envenenado: com desespero, declarou:

- O senhor Fourcaud encarrega-me não só de lhe lembrar os negócios como também os seus assuntos particulares.

- Foi por esse motivo que se recusou a ver-me? O rapaz quis prendê-la pelo braço, mas Colette, num movimento rápido, abriu a porta e saltou para o passeio.

- Escute.

- Sabendo o que sei, já o escutei demais. O que pensaria a sua noiva se nos visse?

Avaliou o sofrimento causado com estas palavras pelo que sentia e bateu com a porta.

- Colette!

Um táxi vazio aproximava-se e Colette chamou-o.

- Colette!

- Aquele senhor chama-a, mademoiselle.

- Não tem importância. Leve-me à rua do Mont-Cenis.

 

"Gostas dele, minha pobre Colette. Não tentes iludir-te. Se não gostasses, se te fosse indiferente, sentirias esse aperto no coração?"

Entrou em casa.

- O correio entregou-me este volume para si, mademoiselle - avisou a porteira, dando-lhe um embrulho. - Parece um livro.

Esperava que Colette abrisse o embrulho diante dela para saber do que se tratava, mas esta, indignada com a indiscrição, subiu imediatamente a escada.

Quando entrou em casa, examinou cuidadosamente o embrulho antes de o abrir. Não trazia o nome do remetente, e o carimbo do correio, completamente ilegível, mais lhe acicatou a curiosidade. Cortou o cordel e rasgou o papel. Tratava-se, com efeito, de um livro com este título: História do castelo de Grandlieu.

Um cartão de visita vinha entre as páginas do livro, um cartão com o nome de Francisco Lesquent, sem qualquer palavra escrita à mão. Este procedimento agradou a Colette.

"Foi muito amável, lembrando-se de me mandar o livro."

Folheou o volume, ilustrado com mapas e plantas. Por uma fotografia muito antiga ficou sabendo que, nos fins do século passado, à direita do castelo se erguia enorme carvalho.

Depois de ter percorrido o livro com a vista, Colette lembrou-se do jantar e foi prepará-lo. Enquanto ele se fazia, concluiu alguns trabalhos caseiros. Depois sentou-se à mesa, começou a comer e a ler ao mesmo tempo.

De vez em quando parava porque pensar em Chavanay a interessava mais do que a leitura; por fim, absorveu-se por completo na história, que era deveras empolgante.

Soube então que o castelo era muito antigo. Sobre as ruínas de uma casa romana, Renaud de Grandlieu construiu, na Idade Média, um pavilhão de caça.

No decorrer dos anos, incêndios sucessivos destruíram este pavilhão, sempre reconstruído. A história dizia que Agnès Sorel ali se encontrava muitas vezes com Carlos VII. Destruído mais uma vez, durante o reinado de Carlos IX, o pavilhão foi reconstruído por um senhor de Grandlieu, companheiro de Henrique de Navarra.

O filho deste transformou o pavilhão de caça num castelo, construído muito próximo do actual.

A leitura não se tornava fastidiosa. A história era esmaltada de anedotas galantes, divertidas e episódios trágicos. Um deles chamou a atenção de Colette. Contava que, durante a Revolução, Henrique de Grandlieu, conde de Boissy, conseguira fugir a todas as pesquisas da Junta Revolucionária de Salvação de Pont-Audemer, graças a um esconderijo existente no castelo. Infelizmente, certa noite foi surpreendido por uma patrulha de Azuis quando dava um passeio pela floresta, "para tomar ar" segundo dizia o autor, que acrescentava: "O esconderijo era dentro do próprio castelo e devia consistir numa passagem secreta que terminava numa espécie de cubículo praticado na espessura da parede. Henrique de Grandlieu fornecera-se com grande quantidade de provisões, porque de 17 do Pluviôse a 20 do Floreal (1) do ano II o castelo esteve ocupado por tropas e o conde foi obrigado a permanecer no esconderijo sem poder sair".

Henrique de Grandlieu foi guilhotinado e levou consigo o segredo do esconderijo e foi em vão

 

*(1) Pluviôse - Quinto mês do calendário republicano, de 20, 21 ou 22 de Janeiro a 20, 21 ou 22 de Fevereiro.

Floreal - Oitavo mês do mesmo calendário, de 20 de Abril a 19 de Maio. (N. T.)

 

que os seguintes proprietários do castelo tentaram descobri-lo. Pesquisas estas não desinteressadas porque, dizia a tradição, o infeliz conde escondera ali não só a sua fortuna pessoal, bastante elevada em 1789, como também o tesouro das abadias de Jumiège e de Saint-Wandrille.

Colette fechou o livro e, levada pela fantasia, começou a sonhar.

Coisa alguma faltava ao seu castelo. Tinha tudo, até a lenda do esconderijo, encerrando um tesoiro.

Como seria maravilhoso procurá-lo e encontrá-lo! Mas teriam de o fazer depressa, antes do castelo ser vendido.

"Amanhã escreverei a Lesquent."

Nesta decisão havia muito mais desejo de evasão do que avidez e cobiça. Uma aventura interessante e com agradável epílogo para esquecer aquela que tão tristemente acabava.

Acalmada a exaltação inicial, falou a voz da razão:

"Se nesta história existisse um fundo de verdade, como seria possível os sucessivos proprietários do castelo não terem sondado as paredes?"

Pegou no livro e voltou a folheá-lo.

Depois do capítulo consagrado à época revolucionária, a história de Grandlieu resumia-se à enumeração dos últimos proprietários até 1900 e à menção das modificações feitas no castelo.

Colette fechou o livro e, na lombada, viu a data da impressão: 1902. Depois desse ano, mais de meio século decorrido, não seria impossível que o tesoiro tivesse sido descoberto.

"Vou escrever não a Lesquent, mas a Lemasle?"

Não lhe parecia muito possível a aventura, mas no seu coração palpitava, latente, o doce perfume da esperança.

Arrumou o estúdio e dispôs-se a escrever ao notário.

No bilhete dizia-lhe que tinha lido com bastante interesse a história de Grandlieu e perguntava se lhe chegara aos ouvidos que o tesouro tivesse sido descoberto.

Ao reler estas linhas pensou:

"Vai rir-se à minha custa."

No primeiro impulso, esteve para rasgar o bilhete, mas, pensando que a noite é boa conselheira, decidiu fazê-lo no dia seguinte de manhã e deitou-se.

"Com certeza já me considerou pateta quando lhe contei os incidentes ocorridos com Lesquent e, portanto, não arrisco grande coisa" - pensou Colette, de manhã. E os dedos esguios de unhas rosadas deixaram cair a carta na caixa do correio.

Minutos depois, enquanto o metropolitano a levava para Saint-Lazare, voltou a murmurar:

"Que triste opinião Lemasle deve fazer de mim! Quando lhe falo mostro-me sempre constrangida.

Aquele ar importante intimida-me. E quando me dirijo a ele é sempre por causa de bisbilhotices. "As árvores ainda dão fruto?... Lesquent teria matado Anthyme Letellier?... Acredita na existência do tesoiro?" Em vez de escrever a Lemasle deveria ter aproveitado o domingo para ir a Grandlieu fazer uma espécie de inquérito pelos arredores. Faço ideia da cara daquela gente quando eu lhes entrasse pela porta dentro e lhes perguntasse: "É verdade estar um tesoiro escondido no castelo de Grandlieu e que ainda não o encontraram? Seria brincar aos detectives ou aos repórteres..."

Durante três dias, Colette não pensou senão na história do tesoiro. Não sabia bem porquê, mas não falou a esse respeito com Lina. No entanto, a amiga teria ficado entusiasmada com a lenda. Preferiu guardar segredo.

Na véspera, enquanto davam as duas o tradicional e aborrecido passeio de domingo pelos boulevards, voltaram a falar de Chavanay. Colette resignou-se a abordar o assunto para proteger o segredo do tesoiro. E, enquanto vagueavam de montra em montra, Lina dizia-lhe:

- Fizeste muito bem em mostrar-lhe que estavas ao facto do casamento, mas, em compensação, devias ter ouvido as suas explicações, visto ignorares as circunstâncias do rompimento.

- Isso já não tem importância. Não quero tornar a vê-lo.

Lina contentou-se em sorrir.

Caminharam durante algum tempo sem trocar palavra, pararam maquinalmente diante de uma montra e depois seguiram.

- Não, não quero tornar a vê-lo. É impossível. Iludi-me talvez e não há nada mais triste do que uma ilusão que se desvanece.

- Não será muito mais triste e cruel reconhecer um dia que se passou ao lado da felicidade e que esta ficou para trás enquanto a vida nos arrastou no seu turbilhão?

- Talvez, mas entre mim e ele ergue-se essa mulher desconhecida com quem deseja ainda casar, com certeza. Seja como for, mentiu-me.

- Mentiu-te, como?

- Ocultar a verdade não será o mesmo que mentir? Suponhamos que o casamento se desfez - facto de que não estou muito certa - e ele não mo disse.

- Não te compreendo muito bem, Colette. Tens direito de lhe fazer semelhante censura, tu, que escutaste a sua conversa com Lesquent sem denunciares a tua presença, que o obrigaste a falar no castelo sem dizeres que te pertencia?

Colette ficou melindrada.

- Tens razão, Lina. Não sou digna do seu amor e nisso consiste o meu castigo. Mas volto a dizer: Não acredito nos seus protestos. Chavanay pretendia simplesmente distrair-se com uma aventura de um dia ou mesmo de uma semana, divertir-se à minha custa.

Recordando a conversa que tivera na véspera com a amiga, chegou ao escritório, ao qual, de futuro, andaria ligada a recordação de Chavanay. Tinha a impressão de que nunca mais poderia entrar no gabinete de Fourcaud sem o ver erguer-se da poltrona onde estivera sentado. Não poderia também sair sem ver o automóvel parado junto do passeio, com a porta aberta num convite ao abandono da sua dignidade e orgulho.

Pouco depois de entrar, Fourcaud chamou-a.

Colette ainda não lhe tinha falado desde a visita de Chavanay e tornava-se forçoso comunicar-lha.

Logo que entrou no gabinete do patrão, este estendeu-lhe a mão como de costume, mas, em vez de lhe dar os bons-dias como sempre usava fazer, Colette teve a impressão de que a examinava com ar malicioso, como se naquele instante apenas a visse bem e pensasse: "É curioso, nunca reparei nela nem dei que fosse assim."

Para disfarçar a perturbação, começou imediatamente a relatar o que se passara na ausência do patrão. Apresentou-lhe a correspondência, fazendo ao mesmo tempo breve resumo do seu conteúdo.

Depois mencionou os visitantes e telefonemas recebidos; por fim, quando se dispunha a abandonar o gabinete, acrescentou:

- Esquecia-me dizer-lhe. O senhor Chavanay veio visitá-lo...

Quando ia a sair, o patrão chamou-a e perguntou com estranho sorriso:

- Que disse ele? Seria insinuação?

- Que voltaria - respondeu.

Teve ainda a impressão de que Fourcaud a fixava com insistência; enervada, saiu do gabinete.

 

Ainda arquejante por ter subido a escada a correr, Colette rasgou o sobrescrito.

Ao passar diante do cubículo da porteira, esta dissera-lhe:

- Tem aqui uma carta do notário, mademoiselle.

Disse isto como se estivesse ao corrente do assunto. Era uma tentativa para descobrir a causa da misteriosa agitação que havia alguns dias notava em Colette.

Com ansiosa curiosidade, leu estas linhas:

 

                   Mademoiselle,

"Acuso a recepção da sua carta, à qual passo a responder. Pode vender o castelo de Grandlieu sem receio, porque diversos factos passados provaram que a existência do tesoiro do conde de Boissy não passava de uma lenda. Em diversas épocas foram feitas minuciosas pesquisas.

As últimas realizaram-se em 1905, por ordem do senhor Dutoyat, nessa altura proprietário do domínio.

"Fizeram-se sondagens e os apainelados da sala e da biblioteca foram desmontados. Em 1936, o proprietário, senhor Montrion, mandou ir ao castelo um radiestesista de fama, que não obteve qualquer resultado.

"Em compensação, tenho o prazer de lhe comunicar que recebi interessante proposta do senhor Chavanay, de Paris, que oferece doze milhões pelo domínio. Nesta data escrevi ao senhor Lesquent, comunicando-lhe o facto, e a si peço-lhe que me escreva o mais depressa possível, dando-me autorização para concluir o negócio.

"Com os meus cumprimentos, creia-me com toda a consideração..."

 

De princípio, esta carta causou-lhe profundo desapontamento. Outro sonho que se desvanecia. Depois, havia no seu espírito tão grande dose de optimismo que pensou imediatamente:

"Um notário não pode acreditar em tesoiros escondidos. Para ele, a verdadeira fortuna tem de ser palpável, que se veja ou esteja mencionada num testamento, doação ou contrato de casamento. Como pode um notário admitir a existência de uma mola accionada por um botão oculto num ornato da parede, num painel que desliza e numa escada estreita e húmida que conduz à caverna de Ali-Babá?"

Encarando as coisas por este prisma, não ficou desapontada com a carta de Lemasle. Talvez um dia lhe servisse para suavizar a desilusão se, depois de ter feito novas pesquisas no castelo, tivesse de se confessar vencida.

Por outro lado, via-se forçada a dar imediatamente o seu consentimento para a venda.

"Se vou pedir uma espera de seis meses, por exemplo, rir-se-á à minha custa. Por muito que tente demorar a resposta, não conseguirei fazê-lo por mais de oito dias. Não é preferível falar com Lesquent e o mais depressa possível, visto ser ele o meu sócio imposto pelas circunstâncias?"

O som da campainha da porta arrancou-a a estas reflexões.

Quem poderia ser àquela hora? Olhou para o relógio e verificou que passava das oito. Com rápida olhadela certificou-se de que a casa estava em ordem e foi abrir.

- O senhor!

No limiar da porta estava Chavanay, de chapéu na mão.

- Pode conceder-me alguns minutos de atenção?

- Será muito preciso?

- Estaria eu aqui se não considerasse indispensável falar-lhe?

Colette afastou-se para o deixar entrar.

Chavanay deu alguns passos no aposento e, discreto, parou, voltando-se para ela.

- Foi Fourcaud quem me indicou a sua direcção. Mas, antes de mais nada, desejo afirmar-lhe que ele ignora o nosso passeio. Obtive o que desejava por meio de um estratagema, dizendo-lhe:

"- Tenho a impressão de conhecer a sua secretária. Deve morar perto da minha casa.

"- Não me parece. A casa dela fica para os lados de Montmartre.

"- Nesse caso, perto da de Isabel.

"- Também não. Mora na rua do Mont-Cenis.

- Com esta indicação vim até aqui e passei a tarde a interrogar todos os donos dos estabelecimentos e porteiras desta rua.

- Foi para me demonstrar os seus talentos de investigador que veio a minha casa?

- Não, mas desejo em absoluto isentar Fourcaud de qualquer suspeita.

- Admitamos que seja assim - replicou Colette, que, recordando-se do olhar do patrão, não acreditou uma palavra da explicação.

Depois designou-lhe uma cadeira.

- Sente-se, por favor. Como vê, é muito diferente da avenida Vítor Hugo.

Depois de observar o aposento com rápido volver de olhos, Chavanay afirmou:

- Tudo isto está encantador. Tem muito gosto e soube tirar partido deste estúdio.

Demorou um pouco o olhar na varanda envidraçada e no seu cenário nocturno e em seguida pediu:

- Consente que a trate por Colette?

- Não vejo necessidade.

- Para o que desejo revelar-lhe, seria enorme favor se me autorizasse a fazê-lo.

Colette não lhe respondeu. Nem sequer olhava para ele e parecia hipnotizada pela mesa que os separava.

- Tenho trinta anos e sou industrial de têxteis... - começou Chavanay.

Um frouxo de riso mal contido obrigou-o a erguer a vista para Colette e verificou que esta fazia inauditos esforços para dominar a hilaridade. Pensava em Lina e na descrição que muitas vezes fazia dos anúncios matrimoniais.

Chavanay apresentava-se da mesma forma. Chegava a ser cómico.

Ele calou-se, ergueu-se da cadeira e, contornando a mesa, aproximou-se dela. Colette continuava a conter o riso.

E pegou-lhe no braço.

- Deixe-me! - pediu Colette, rindo francamente.

- Por que está a rir? - inquiriu Chavanay, sacudindo-a sem rudeza, como se pretendesse levá-la a recuperar o sangue-frio. - Colette, escute-me, suplico-lhe. Amo-a profundamente. Conheço-a há muito pouco tempo, eu sei, mas desde segunda-feira não consigo pensar noutra coisa senão em si.

Pode imaginar a minha aflição quando, depois de ter voltado na terça-feira a procurá-la na avenida Vítor Hugo a supus perdida para mim e qual foi a minha alegria quando a vi entrar no gabinete de Fourcaud. Foi o destino que nos reuniu milagrosamente. Por que fugiu nesse dia sem querer ouvir-me?

Colette deixara de rir e olhava-o com gravidade.

- Em primeiro lugar, não o amo, e depois...

- Não me ama como eu a amo, Colette - atalhou Chavanay - mas não é por isso que me foge.

- Fujo-lhe porque julgo inútil tornarmos a ver-nos.

- Quer que lhe diga a verdadeira razão?

- Não, não quero - protestou Colette, quase com terror. - Deixe-me. Quero estar sozinha... sozinha.

- É por causa dessa história do casamento, não é verdade?

- Engana-se. Que me importa o seu passado, se lhe peço unicamente que me deixe em paz?

- Não sairei daqui enquanto não lhe disser a verdade.

Reparou que pelas faces de Colette corria uma lágrima e pegou-lhe nas mãos.

- Por que chora?

- Deixe-me.

- Sinto que me ama também. Entre nós existe um mal-entendido.

Quando ele se dissipar, tudo se modificará.

Adivinhava-a trémula e palpitante, porém quando pretendeu apertá-la contra si, ela conseguiu esquivar-se.

- Não tem importância, mas, visto que teima, fale - murmurou.

Chavanay agradeceu-lhe com um sorriso, ao qual Colette não correspondeu.

- Tanto para mim como para si, será doloroso abordar este passado ainda tão próximo. Doloroso para mim, pois terei de reavivar tristes recordações, doloroso para si, suponho, visto ser obrigado a falar de outra mulher...

Calou-se um instante e concluiu numa voz abafada:

- Mas será a última vez. Depois nunca mais falaremos no assunto. Nunca mais. Chamava-se Verónica...

Colette olhou-o com espanto.

- Conhece-a?... Compreendo, ouviu-me há pouco falar de Isabel, da minha irmã, que mora na rua Christiani... Verónica era uma companheira de infância. Perdi-a de vista durante muitos anos e um dia, mais tarde, encontrei-a já mulher, em casa de pessoas amigas. Quando um homem chega aos trinta anos solteiro, não pode calcular, Colette, os atentados à sua liberdade planeados por amigos e parentes. Neste caso, não era eu o único a ter trinta anos.

Verónica também os tinha. Viúva havia seis anos, desejava tornar a casar para refazer a sua vida. Os meus parentes e amigos, principalmente os Mesnager e a própria Verónica, era demasiado para um homem só. Tanto mais que Verónica tinha a seu favor a recordação dos dias que havíamos passado juntos, na infância. Em resumo, ficámos noivos e marcámos o casamento para a quarta-feira anterior à Páscoa. Passarei em claro as questões, as ofensas, as cenas dolorosas que nos levaram, pouco a pouco, à conclusão de que, se tínhamos sido bons amigos de infância, velhos camaradas, na nossa amizade não existia amor. Tivemos a sensatez ou a sorte de recuar a tempo e não realizar um casamento que teria por base a discórdia. A pretexto de uma gripe adiámos a cerimónia por um mês porque não tivemos a coragem de confessar aos nossos convidados que entre nós estava tudo acabado. Como vê, Colette, a história é simples: Se Verónica tivesse sido um rapaz, limitar-nos-íamos a evocar velhas recordações. Assim, deixei-a uma criança e vim encontrá-la mulher. Ambos nos iludimos sobre os nossos mútuos sentimentos.

Colette esteve quase para dizer: "Afinal, era só isto!"

Para ser franca, teria de confessar que estava desapontada. Uma história romântica e complicada ter-lhe-ia parecido mais natural, pois é muito mais frequente deixar consumar uma desgraça do que saber evitá-la.

- Não me responde? - insistiu Chavanay.

- Não sei o que dizer-lhe, desculpe - murmurou Colette com tristeza.

- Se lhe pedisse um encontro, que responderia?

- Não vejo obstáculos que possam impedi-lo. Chavanay desejou apertá-la nos braços, mas

Colette era tão reservada que se dominou. Limitou-se a apertar-lhe as mãos.

- Posso esperar, nesse caso?

Aquela declaração de amor era tão diferente das que idealizara! Embora ele tivesse proferido a frase sacramental: "Amo-a", essa frase sempre usada no decorrer dos séculos e muitas vezes mentirosa, embora se tivesse justificado, entre ambos erguia-se uma espécie de fantasma negro, coberto de véus, uma viúva.

- Não sei... não sei.

No cérebro cruzavam-se pensamentos contraditórios.

"Gosto dele ou da fortuna que pode proporcionar-me?... Gostará ele de mim ou será apenas despeito?"

Chavanay apertava-lhe as mãos e depois os braços. Colette queria gritar-lhe:

"Deixe-me. Não o amo. E o senhor também não me ama. Tal como aconteceu com a outra, estamos ambos iludidos."

Mas não se atreveu. Nem mesmo lhe pediu tempo para lhe dar uma resposta, tão grande foi o receio de o perder.

- Querida...

Chavanay apertou-a nos braços e ela sentia-lhe a respiração aflorar-lhe a nuca. Conservaram-se assim durante alguns segundos, comovidos e calados até que, bruscamente, a campainha da porta os despertou.

Separaram-se como se tivessem sido apanhados em falta.

- Quem poderá ser? - murmurou Colette. Furtivamente, lançou um olhar ao espelho, compôs o cabelo e foi abrir.

Ao ver Lesquent parado no patamar, estremeceu.

O primo esboçou um movimento para entrar, mas Colette impediu-o, segurando a porta.

Não queria, por forma alguma, que Lesquent e Chavanay se encontrassem.

Havia pouco, quando o segundo a apertava nos braços, pensava em revelar-lhe o seu segredo, mas não queria que fosse Lesquent a dizer-lhe que Colette era a co-proprietária do castelo.

Havia ainda outros motivos que não sabia definir e a levavam a preferir que Lesquent ignorasse o seu conhecimento com Chavanay.

- Não posso recebê-lo agora - declarou a meia voz.

- A sua amiga está aqui?

- Tenho que fazer e não posso deixá-lo entrar. Lesquent sorriu.

- Caixinha de segredos!... Nesse caso, esperá-la-ei aqui.

- É inútil, tenho trabalho até muito tarde.

- Preciso de falar consigo. Recebeu o livro?

- Recebi e agradeço-lhe. Ia escrever-lhe a esse respeito.

- Por causa do tesoiro? Colette confirmou com a cabeça.

- Precisamos de trocar impressões e não posso demorar-me. Parto para Grandlieu amanhã, às seis da manhã.

Colette reflectiu.

- Volte esta noite, mais tarde.

- À meia-noite? - perguntou Lesquent com ironia.

Colette ansiava por se ver livre dele, mas não queria intrigá-lo e levá-lo a ficar à espreita para ver quem saía de sua casa.

- Está bem. Volte à meia-noite. Esperarei por si.

Depois despediu-se rapidamente e fechou a porta.

Por discrição, Chavanay afastara-se até à janela. Ao ouvir a porta fechar-se, aproximou-se de Colette, mas dir-se-ia que o encantamento que pouco antes os reunira, se quebrara.

- Incomodo-a?

- Absolutamente nada.

Não teve a coragem de mentir e inventar a visita da porteira ou de um agente de seguros. Não sabiam o que dizer um ao outro. Para quebrar o silêncio, Chavanay propôs:

- Venha jantar comigo.

- Agradeço-lhe, mas não posso.

- Porquê?

Colette limitou-se a encolher os ombros.

Ele garantiu trazê-la a casa antes da meia-noite, provando assim que havia escutado a última parte da conversa com Lesquent. Colette corou e ficou aterrada.

- Não posso, acredite - balbuciou. - Quero estar sozinha para pensar.

- Posso então vir buscá-la outro dia?

- Pode. No sábado à tarde, se quiser. Mas não espere por mim perto do escritório. Encontrar-nos-emos na rua de Provence. .

Se ele a tivesse apertado nos braços, Colette não se esquivaria ao beijo. Chavanay, porém, limitou-se a estender-lhe a mão e saiu vagarosamente, triste como se tivesse perdido a batalha que, na verdade, acabava de ganhar.

Colette deixou-o sair sem dar um passo para a porta e, quando esta se fechou, começou a chorar.

"Nunca mais o verei" - murmurou, deixando-se cair numa cadeira.

 

Aquela noite pareceu interminável para Colette.

Depois da visita de Chavanay sentia-se incapaz de cozer um ovo que fosse.

Já tarde, como se sentisse fraca, comeu biscoitos e chocolate. Já não duvidava da sinceridade do rapaz, mas não estaria ele próprio iludido sobre a natureza dos seus sentimentos. A forma como lhe contara o seu noivado com Verónica provava a sua franqueza e lealdade, mas também a sua fraqueza. Cedera à insistência de amigos e parentes e ter-se-ia dado a catástrofe se a noiva não houvesse tido coragem de recuar a tempo e de analisar os sentimentos de ambos. Ser esposa de Chavanay seria maravilhoso, como dizia Lina, mas, dissipado o entusiasmo inicial, a sensação da sua inferioridade perante o marido não representaria um pesadelo para toda a vida? E ele não se arrependeria de ter casado com uma mulher que não era do seu meio? Sendo assim, que vida infernal seria a de ambos?

"Para que estou a atormentar-me - pensou depois -, se não devo tornar a vê-lo. A sua atitude, quando se despediu, provou-me que ouvira marcar uma entrevista para a meia-noite.

- A sua amiga já se foi embora?

Lesquent sublinhou intencionalmente a palavra "amiga" e acrescentou:

- Será preferível falarmos sem testemunhas. Pensativo, procurou na algibeira o maço de cigarros.

- Fuma?

- Desses cigarros não.

- Evidentemente - concordou o rapaz.

Tirou um cigarro, bateu-o no maço, acendeu-o, tudo isto muito calado, como se pretendesse dar maior importância ao que ia dizer.

Por fim, resolveu-se e falou:

Batendo no peito, no sítio onde se encontrava a carteira, declarou:

- Possuo provas concretas de que a existência do tesoiro não é lenda e que ainda se encontra em Grandlieu. Se não se mostrasse tão retraída, na sua primeira visita, ter-lhe-ia falado no caso. Não percebo a sua ideia de partir sem nos tornarmos a ver. Fui, talvez, um pouco rude... mas não falemos mais nisso. Em resumo, o tesoiro existe e, para o descobrir, é indispensável sermos dois. Eu e Anthyme iniciámos as pesquisas; ele morreu quando já tínhamos chegado à conclusão de que a entrada do esconderijo fica na biblioteca. Resta-nos descobrir o ponto exacto; não será muito fácil, embora o âmbito das pesquisas seja limitado.

Colette, que o escutara com atenção, observou:

- Supunha que as paredes já haviam sido sondadas...

- Foram e por isso nos abstivemos de o fazer. É essa sempre a primeira ideia porque, no cinema, o herói comprime um botão oculto num ornato da parede, o painel desliza, pondo a descoberto a entrada do subterrâneo. Mas pode muito bem acontecer que o segredo se encontre no sobrado ou em qualquer outro ponto. Seja como for, o esconderijo deve ser bom e bem oculto, visto o conde de Grandlieu ter vivido ali muito tempo sem ser descoberto. E foi, precisamente, esse facto que me levou a pensar que deveríamos ser dois a procurar. Eu explico. A forma de abrir a entrada do subterrâneo não importa. Florão que se afasta, moldura que desliza ou qualquer outra coisa. Quando o encontrarmos teremos descoberto também o subterrâneo e só nos restará lá entrar. Tenho lido muitas histórias sobre portas secretas e subterrâneos escondidos, na esperança de que me sugerissem uma ideia para entrar no de Grandlieu e sei que muitas vezes a mola que os abre funciona por si só, pelo que estou sem vontade de ficar enterrado vivo.

Pretendo ter junto de mim alguém que saiba libertar-me se tal acontecer. Eis a razão por que desejo que sejamos dois. Há ainda o tesoiro. Se o encontrarmos será bom que ninguém o saiba por muitos motivos, mas principalmente porque não desejo pagar direitos, entende?

Colette sorriu. O primo não ocultava o que era: decidido, empreendedor, consciência elástica, limitando os riscos ao mínimo.

- A aventura agrada-me - declarou por fim -, estou disposta a tentá-la.

Rindo, trocaram um aperto de mão, como dois aventureiros concluindo um pacto.

De facto, a aventura tentava-a, primeiro pelo perigo, e, acima de tudo, por outras razões mais íntimas. Se encontrasse o tesoiro, não subiria uns degraus na escala da fortuna, degraus que a aproximariam de Chavanay, o industrial?

Combinaram todos os pormenores da expedição. Colette pediria ao patrão que a dispensasse de trabalhar no sábado de manhã e, metendo-se no primeiro comboio, chegaria a Grandlieu ao meio-dia. Teriam diante deles toda a tarde e o dia de domingo para procederem às pesquisas. De Pont-Audemer saía um comboio à noite, bastante tarde. Lesquent chegou a propor trazê-la a Paris na noite de domingo, se fosse preciso.

Depois ofereceu-se para reservar um quarto na pensão de Vieux-Port, delicadeza que não estava nos seus hábitos e Colette agradeceu.

Separaram-se quais os melhores amigos do mundo, ambos radiantes.

- Irei esperá-la à estação - disse ainda Lesquent quando se despediu.

A visita do primo deixou Colette bem disposta. Que contraste com a tristeza que a esmagava depois da saída de Chavanay! E, no entanto, os seus sentimentos para com Lesquent não tinham sofrido modificação. Pelo contrário, sentia-se satisfeita por ter sabido observá-lo enquanto ele falava a respeito do tesoiro.

"Estarei alerta - pensou, antes de se deitar.

Sentia-se ansiosa por que passasse o dia seguinte. O patrão, por certo, não poria dificuldades em lhe conceder a manhã de sábado... a manhã de sábado? Mas não tinha combinado com Chavanay encontrarem-se nesse dia? Não, não podia adiar a viagem a Grandlieu. A tarde de sábado e o domingo não seriam de mais para procurar o tesoiro, ao passo que para ver Chavanay e, depois de ser rica, lhe confessar que também o amava, teria toda a vida. Desde que a perspectiva de o igualar era fortuna se precisava, deixara de ter dúvidas sobre os seus sentimentos.

"Vou escrever-lhe - pensou. - Dirijo a carta para a rua de La Beaume. Não sei o número, mas a rua não é comprida e ele deve ser muito conhecido."

A sua excitação era grande e, para a acalmar, foi imediatamente escrever a Chavanay.

Em poucas linhas, dizia-lhe que se via obrigada a partir para a província com urgência e transferia o encontro para segunda-feira.

"Não lhe revelarei logo que encontrarmos um tesoiro, mas confessar-lhe-ei que sou proprietária de Grandlieu... Mais tarde saberá a origem da minha fortuna."

A palavra "fortuna" fê-la sorrir. Já não duvidava do seu amor por Chavanay, embora também não duvidasse de que, dentro de dois dias, estaria rica.

Fechou o sobrescrito e, contente como uma criança a quem prometem o brinquedo desejado, meteu-se na cama.

 

- Está então convencido de que a entrada para o subterrâneo se encontra nesta sala?

- Tenho quase a certeza. Encontravam-se ambos na biblioteca, à qual,

para a receber, ele dera rápida arrumação. Num canto via-se o divã coberto, com uma manta verde e vermelha. A roupa e o fato tinham desaparecido. A biblioteca era um aposento vasto, com doze metros por dez. Duas das paredes estavam ocultas com as estantes dos livros. Na terceira rasgava-se a larga janela que dava para o parque e na quarta havia duas portas que conduziam uma à sala e outra ao corredor e ao hall. Entre essas duas portas via-se monumental fogão. Do lado, prateleiras com livros e, de cada lado da janela, estantes estilo Império, contendo livros raros, primorosamente encadernados.

- Sondei o soalho, o que me deu bastante que fazer - declarou Lesquent.

- Como vê, é feito de pequenos rectângulos de madeira e pareceu-me que, possivelmente, um desses rectângulos se deslocasse, patenteando a entrada do esconderijo do conde de Bodssy. Esta hipótese era tanto mais verosímil quanto é certo não existir cave por baixo desta sala, que fica ao nível da terra. Não encontrei o que desejava. Ainda tentei passar uma lâmina de aço por baixo das placas de madeira, mas tudo foi inútil. Quando fui a Paris visitá-la ainda não havia concluído este trabalho. Quando regressei, terminei-o e passei a sondar o fogão. Se quiser ajudar-me, vamos continuar.

Aproximaram-se do fogão e Lesquent explicou o que tinha feito e o que, em sua opinião, convinha ainda fazer.

- Este fogão - observou - é muito antigo, mais antigo do que o resto do castelo. O livro que lhe enviei não fala a seu respeito, mas, pelo estilo, quase posso afirmar que pertenceu ao pavilhão de caça. É tão vasto que, conforme os antigos hábitos, mais de doze pessoas podiam sentar-se em volta do fogo. No regresso da caça, os caçadores assim faziam para contar as suas aventuras.

A fim de provar a sua afirmação, Lesquent entrou no fogão e Colette seguiu-o.

- Chamou-me logo a atenção esta magnífica lápide com as armas dos Grandlieu. Consegui arrancá-la, mas não encontrei coisa alguma. Como pode verificar, está mal segura. Com um pouco de gesso voltarei a colocá-la no seu lugar.

Também sondei o empedrado da lareira.

Entretanto, Colette examinava tudo com a máxima atenção. Observou a parede do fundo e depois as paredes laterais; erguendo os olhos para a abertura por onde saía o fumo, soltou um grito.

- Já reparou na existência de duas saídas?

- Duas como?

- Repare. Ao fundo, uma, cuja abertura não se vê e mais à frente outra, pela qual se avista, lá do alto, um pedacinho de cèu.

- Não notei - afirmou Lesquent numa voz mal segura.

Por sua vez olhou para cima.

- Foi talvez para conseguir melhor tiragem que fizeram duas saídas. Por esta também se vê o céu.

Colette aproximou-se e levantou a cabeça.

- Não vejo.

- Daí talvez não. Incline a cabeça para este lado... assim.

Ao mesmo tempo agarrou-lhe o braço e obrigou-a a voltar a cabeça.

Ouviu-se tremendo estrondo.

- Largue-me! - gritou Colette, tentando libertar-se.

Lesquent, porém, prendia-a com força.

Bruscamente, encontraram-se mergulhados em trevas.

- O que foi isto? - perguntou Colette.

- Caímos no esconderijo - declarou Lesquent com voz glacial.

Ao mesmo tempo, Colette sentiu-se livre e, voltando-se em todos os sentidos, não enxergou um raio de luz.

Estendendo os braços, encontrou a parede áspera.

- Quer dizer que estamos num subterrâneo?... Cala-se?... Não diz nada, porquê?

- Estou a pensar.

- Faria melhor se descobrisse o que nos aconteceu.

- Tento fazê-lo.

Às apalpadelas, Colette deu a volta ao exíguo recinto. Contou seis passos por quatro.

- Tenho a impressão - observou, tremendo - de que uma cortina de ferro desceu diante do fogão.

- Sente o contacto do ferro?

Febrilmente, Colette passou a mão por uma das paredes, depois pela outra, pela terceira e por fim pela última. Todas elas eram de pedra,

- Isto é uma loucura! Uma parede não cai assim!

- No entanto, segundo parece, foi o que nos aconteceu.

Lesquent falava com calma, com o maior sangue-frio.

- Se, como supõe, uma cortina de ferro tivesse caído diante do fogão, deveríamos ver, pelo menos, uma das saídas do fumo, aquela pela qual se avistava o céu.

Colette ergueu a cabeça. Mas, lá no alto, como em baixo, as trevas eram profundas.

- Não vejo nada, meu Deus!

- A tal cortina teria caído entre as duas condutas do fumo.

- É provável. Nesse caso, como há pouco dizia, devia ver-se alguma coisa.

- E não se vê.

- O que vai ser de nós... Tem luz?

- Responda. Tem lume?

- Estou procurando os fósforos, mas não os encontro.

- Isto é horrível! Estamos sepultados vivos.

- Diga alguma coisa. Bem vê que...

- O quê?

Colette não se atreveu a continuar, mas a ansiedade oprimia-lhe o peito, sufocava-a, paralisava-a.

Ergueu os braços, na esperança de encontrar uma das saídas do fumo. Encontrou-a, porém a outra havia desaparecido.

O gesto e o esforço despendido para compreender o que se tinha passado, acalmaram-na um pouco.

- É estranho! - observou. - O segundo cano ficava encostado à parede do fundo do fogão. Agora sinto uma aspereza e depois ainda tenho de dar dois passos para encontrar a parede...

- Tem razão e isso indica-me que a parede do fundo se levantou, descobrindo o esconderijo onde, segundo me parece, não existe nenhum tesoiro.

Colette sentiu-se de novo esmagada pelo desespero.

- Faça alguma coisa, Francisco! - suplicou. Pela primeira vez, naquele dia, o tratava pelo

nome. O rapaz deu alguns passos e a sua presença tão próxima reconfortou-a.

- Havemos de sair daqui, descanse.

Falava com uma firmeza que lhe restituiu a confiança.

- Antes de mais nada - continuou - precisamos de recuperar a calma e de raciocinar com lucidez. Veja o que encontrei.

Na parede desenhava-se pequeno círculo luminoso que não teria mais de cinco centímetros de diâmetro.

- Arranjou luz?

- Encontrei na algibeira a lampadazita eléctrica que costumo trazer no carro.

Pouco mais vale do que um cigarro meio consumido e devemos poupá-la.

- Estaremos aqui fechados por muito tempo? Lesquent não respondeu logo. Media as palavras.

- Talvez para a eternidade - respondeu por fim.

- Deixe-se de brincadeiras!... Não é este o momento mais próprio para gracejos!

- Não estou a brincar. Poderemos viver aqui alguns dias se o sistema de ventilação funcionar.

- Cale-se.

Colette ouvia-o andar de um lado para o outro. Por vezes, passava junto dela e depois, com angústia pressentia o seu afastamento.

- Não acha tudo isto muito estranho? - comentou ele a certa altura. - Repeliu as minhas propostas, por nada deste mundo consentiria em casar comigo e talvez acabemos por apodrecer aqui juntos.

- Já lhe pedi que se calasse.

- Se lhe pedisse novamente para casar comigo que diria... Isto é, se conseguíssemos sair daqui vivos, graças a mim, porque a Colette está tolhida pelo medo, incapaz de qualquer esforço, se eu lhe salvasse a vida consentiria em ser madame Lesquent?

- Tudo isso é ridículo. Em primeiro lugar, se conseguir tirar-nos daqui será para salvar a própria vida e não a minha. E se for eu a encontrar o meio de sairmos?

Lesquent deu alguns passos para um lado e para outro e acabou por dizer:

- Nunca!

- Nunca?... Que pretende dizer com isso?

- Quero dizer que, para mim, a vida não tem valor se não a tiver a si e Grandlieu. Escute, Colette.

Prendeu-a por um braço e a rapariga sentia-lhe a respiração ofegante aflorar-lhe o rosto.

- Para mim, Grandlieu e Colette estão estreitamente unidos. Serei claro. A Colette é bonita, desejável e, graças a si, poderemos ficar com Grandlieu. Lembre-se da esplanada guarnecida de árvores centenárias, tendo o Sena como pano de fundo, lembre-se da escadaria branca, da fachada imponente. Portanto, se eu não tiver a certeza de que a terei por mulher e de ficar com Grandlieu, se não me prometer, enquanto estamos aqui fechados, que...

- Está louco, Francisco!

- Talvez. Dizem que o amor enlouquece.

-O nosso casamento seria a união de duas misérias. Nenhum de nós pode pagar os direitos.

- Pediríamos emprestado, faríamos uma hipoteca, mas juro-lhe que ficaríamos com Grandlieu.

- Largue-me, não me aperte o braço. Está a magoar-me.

- Peço-lhe perdão.

Largou-a e, com a respiração arquejante, insistiu:

- Então... que resolve?

- Não sei. Sinto-me enlouquecer. Pelo amor de Deus, Francisco, faça alguma coisa enquanto é tempo, enquanto a fome, a sede e a fadiga não enfraquecem as nossas faculdades. Tentemos encontrar o segredo e sair daqui.

- Responda-me primeiro.

- Escute, Francisco. Tenho pensado muitas vezes no valor dos meus direitos sobre o castelo. São legais, mas imorais. Não conheci Letellier, ignorava até a sua existência e devia ter recusado a herança. Aceitei sem reflectir, talvez para ser castelã durante vinte e quatro horas, como dizia a minha amiga Lina. A minha leviandade está bem castigada. Abandono-lhe tudo, Francisco. O castelo é seu.

- Não me compreendeu, Colette. Não cobiço a sua parte na herança. Não pode avaliar o que Grandlieu representa para mim, tenho quase uma paixão pelo castelo, mas Grandlieu sem a Colette será como um corpo sem alma, como um desses vestidos sumptuosos que estão pendurados nos museus, tão desbotados, com os bordados tão apagados que mal podemos imaginá-los nos corpos das lindas damas de outros tempos. Não, Colette, o castelo sem a castelã é como um berço vazio.

Estas palavras acalmaram a pobre rapariga.

- O Francisco faz-me lembrar uma criança que asfixia o gatinho predilecto com carícias, por muito lhe querer.

Deve concordar que a situação em que nos encontramos não é das mais propícias para o desabrochar de ternos sentimentos.

- Se soubesse como gosto de si, Colette!

- Acredito, mas acalme-se, meu amigo. Avaliou bem o seu procedimento ao dizer-me: "Case comigo ou morreremos ambos aqui"?... É uma espécie de chantagem, uma imposição pouco elegante.

- Não pense assim, Colette...

- Se o pensasse não poderia perdoar-lhe. Mas parece-me que o conheço já um bocadinho e por isso lhe perdoo. Se eu fosse manhosa, não hesitaria em prometer o que me pede, mas uma promessa extorquida teria valor quando saíssemos daqui? Pense bem, Francisco. A recordação desta triste aventura que nos reuniu não será a base, o ponto de partida para sentimentos mais ternos? Vamos, antes de mais nada, procuremos sair deste buraco e, uma vez lá fora, falaremos.

- Perdoe-me, Colette.

Já não falava com as inflexões patéticas empregadas pouco antes. Mostrava-se até arrependido quando murmurou:

- Não me odeia muito?

- Não o odeio, garanto-lhe.

- Mas também não me ama?

Colette demorou um pouco a resposta e acabou por dizer:

- Não sei se poderei vir a gostar de si um dia, com o sentimento que me pede, mas não queira destruir a simpatia que já me inspirou.

Depois, num tom que tentava ser firme e despreocupado, acrescentou:

- Vamos ao trabalho, Francisco. Trata-se de descobrir a forma como o conde de Boissy saía daqui quando os seus inimigos dormiam.

- E se o maquinismo não funciona?

- Não funcionou já para nos enterrar?

- Diz bem... vamos então reflectir um pouco. Calaram-se. Colette sentou-se num canto, com os cotovelos apoiados nos joelhos e Francisco continuou a dar passos como um animal enjaulado.

- Não pode estar quieto um momento?

- Para o tempo que nos resta de vida, não poderei fazer o que me apetece?

- Tem razão. Continue.

Enervada, levantou-se e começou a apalpar a parede, na esperança de encontrar qualquer saliência que fosse o segredo da mola que accionava a parede do fogão. Não era assim que acontecia nos filmes? A tentativa seria demorada, tinha porém, pelo menos, a vantagem de lhe ocupar o espírito.

A certa altura, encontrou uma cavidade, espécie de nicho cavado na parede e esse nicho não estava vazio. Continha...

- Francisco, acenda a luz - pediu em voz trémula.

O círculo luminoso correu pela parede e imobilizou-se sobre o nicho, no qual estava metido um pequeno baú coberto de bolor.

Por instantes, Colette esqueceu a situação trágica em que se encontravam.

- O tesoiro!

Lesquent pegou no baú forrado de pele e guarnecido com pregos de cobre esverdeado.

- Temos de o abrir.

Ao mesmo tempo levantava a tampa, cuja fechadura enferrujada cedeu facilmente.

- Veja!

- Jóias!

- E pérolas!... Pena é que estejamos aqui fechados!

- Tinha-me esquecido.

Lesquent pôs-lhe o baú nos braços e apagou a luz.

Colette ficou imóvel, apertando contra si a pequena caixa e pensando:

"O tesoiro... Estamos ricos... estou rica!" Pensava em Chavanay quando ouviu o primo dizer:

- Tenho uma ideia. Vou tentar uma coisa, mas receio que a parede, ao mover-se, possa feri-la. Encoste-se à parede do fundo e não se mexa.

- Se entende que é necessário, assim farei.

- É indispensável. Não se mexa.

Ouviu-se de novo o tremendo ruído, mas Colette não teve medo porque esperava poder sair e viu a luz do dia.

Alastrou pelo chão, cresceu. A pobre rapariga palpitava de esperança quando a viu desvanecer. Levantou a cabeça. Estava escuro outra vez.

Tudo se passou em dois segundos.

- Que foi isto?... Francisco... Francisco?... Está ferido?

Não obteve resposta. Estendeu o braço e encontrou a parede, essa parede que, por momentos, se levantara e caíra de novo.

- Francisco... Francisco... - repetiu com voz mal segura.

Avançou às apalpadelas e reconheceu que a prisão estava mais pequena e também que o primo tinha desaparecido. Estava sozinha... sozinha.

Então, pela primeira vez na sua vida, soube o que era medo. Iria morrer sepultada naquela prisão de pedra?

Entretanto, Lesquent saía do fogão com ar vitorioso. A parede do fundo havia recuperado o seu aspecto primitivo. Deu alguns passos para a mesa e parou. Depois, curioso, voltou a entrar no fogão e examinou-o. Nada indicava que fosse móvel e que pudesse manobrar-se com tanta facilidade.

"Naquele tempo sabia-se trabalhar!" - comentou entre dentes.

Depois aproximou-se da janela e contemplou o parque, cortado ao fundo pela faixa prateada do Sena.

"Não temos pressa. Quanto mais tempo a nossa amiguinha estiver na prisão, mais valor dará ao salvamento, aos esforços que farei para libertá-la."

Sorriu com cinismo e continuou:

"O cenário foi preparado com mão de mestre. Nada faltou. Autoridade, calma, e as alusões macabras para a assustar. Ias estragando tudo com a tua precipitação, mas a querida Colette soube, com delicadeza, fazer-te compreender que era mais sensível aos belos sentimentos do que às ameaças. Procuraremos satisfazê-la. E agora que o tesoiro de Grandlieu está em sítio seguro e o castelo irá pertencer-te, já dispões de bela base como ponto de partida para a fortuna e para magnífica situação."

Espreguiçou-se, acendeu um cigarro e, tendo olhado para o relógio, decidiu deixar Colette na prisão ainda outra meia hora.

"Poderá entreter-se a acariciar as jóias e a contar as pérolas que deixei no baú. Se ela o tivesse visto ontem, quando descobri o esconderijo e a caixa estava cheia!... Então sim, abriria os olhos de espanto."

E não conseguiu resistir à tentação de ir ver de novo a parte mais valiosa do tesoiro que havia subtraído.

Atravessou o hall, subiu a escada a quatro e quatro e entrou no quarto principal, chamado o quarto do rei, porque Gontran de Grandlieu o tinha mandado arranjar na esperança de que Luís XV ali passasse uma noite. A corte mudou de itinerário e o rei nunca lá foi dormir. No entanto, o quarto conservou a designação que lhe haviam dado.

Lesquent fechou cuidadosamente a porta atrás de si. Escolheu uma chave no molho que trazia consigo e abriu uma espécie de cómoda estilo Luís XVI que, no fundo, não era mais do que um cofre-forte moderno oculto num móvel antigo. Depois de fazer rodar os botões e formar a palavra de segredo, abriu a porta blindada. Numa das prateleiras, e atiradas a granel, estavam jóias e pérolas. O patife ficou a olhar como fascinado. Depois fechou a porta e voltou para a biblioteca. Ao atravessar o hall teve um sobressalto. Alguém lhe disse:

- Desculpe se incomodo. Bati, mas como ninguém me respondeu, tomei a liberdade de entrar.

Um rapaz alto, elegante, bem trajado, que Lesquent reconheceu como um dos compradores mais interessados no castelo, encontrava-se de pé, encostado à mesa.

- O senhor Chavanay! Que bom vento o traz por cá.

O sorriso era contrafeito. Que triste ideia a de Chavanay em aparecer, precisamente no dia em que Lesquent destinara para uma das suas mais importantes manobras! De resto, já não precisava dele para a realização dos seus projectos.

"Não vou dizer-lhe desde já que não preciso dele. Ninguém deve suspeitar de que me tornei rico de repente. Preciso de ganhar tempo, é curioso como passamos a vida a desejar a riqueza e, no dia em que a obtemos, reconhecemos que não estamos preparados para a receber...

Fazendo estas reflexões, Lesquent conduziu o visitante para a biblioteca. Tomara maquinalmente esse caminho e só quando se afastou para deixar entrar Chavanay reconheceu a sua imprudência.

- Perdão - disse com a decisão que lhe era habitual. - Devíamos ter ido para a sala. Se me dá licença...

- Não vale a pena. De resto, a biblioteca é o aposento mais agradável do castelo, talvez porque estes livros preciosos formam um conjunto muito interessante...

Foi nesse instante que ambos viram o chapéu de Colette atirado para cima de uma poltrona.

"A Colette está aqui?" - pensou Chavanay com espanto.

"Maldito chapéu!..." - praguejou Lesquent.

Depois pensou que Chavanay não podia conhecê-lo e ficou mais sossegado. Retirou o chapéu e ofereceu a cadeira ao visitante.

Depois de estarem ambos sentados, perguntou:

- A que devo o prazer da sua visita?

- Estou ansioso por concluir este negócio. Lemasle deu-me a entender que a minha proposta havia sido aceite e que já tinha escrito aos dois proprietários, a si e à sua parenta. Telefonei-lhe há dias, anteontem, precisamente. Declarou-me que já tinha recebido resposta sua, mas que ainda não recebera a de... mademoiselle Larose, é esse o seu nome, creio eu. Não percebi muito bem. Decidi-me, portanto, a vir falar consigo. Pareceu-me que tinha urgência na venda e afirmou-me ter certa influência na sua prima. Peço-lhe que fale com ela.

Lesquent mostrou-se aborrecido.

- Por que não me escreveu antes de fazer a viagem? Receio que tenha tido este incómodo inutilmente. Não sabia que minha prima ainda não havia escrito ao notário, mas vou pedir-lhe urgência. Em último caso, irei falar-lhe. Dentro de uma semana, estará tudo concluído, pode ter a certeza.

Para lhe indicar que a conversa terminara, levantou-se. Chavanay, todavia, insistiu:

- Sua prima não irá levantar dificuldades?

- Estou convencido de que não o fará. Encontra-se em dificuldades e só tem um desejo: vender. A diminuta quantia que lhe caberá representará para ela uma fortuna...

Portanto, como deve calcular, não vai pôr obstáculos à venda.

- Como se chama ela?

Lesquent teve uma hesitação que não passou despercebida a Chavanay e acabou por dizer, como num desafio:

- Mademoiselle Semnoz.

Notou o espanto do visitante, que lhe perguntou:

- Vive em Paris?

Pressentindo o interesse que o industrial marcava, recuou:

- Não, vive em Pont-Audemer.

- Seria mais simples eu ir falar-lhe.

- Não a encontrará. Foi passar uma temporada na montanha, numa casa de repouso, nos Alpes. Foi essa a razão por que a resposta demorou tanto. Mas não se preocupe com isso, eu vou tratar de tudo.

Chavanay levantou-se por sua vez. Lesquent calculou que estivesse convencido.

- Muito bem, fico esperando as suas notícias. De súbito, reparou no fogão.

- A pedra de armas está solta - observou.

- Está. Vou mandar colocá-la no seu lugar.

- Este fogão é muito interessante... Examinou-o atentamente e, depois de encolher

os ombros, atitude que Lesquent não soube explicar, dirigiu-se para a porta.

- Escreva a sua prima, se sabe a sua actual direcção.

Antes de me instalar aqui com os meus amigos gostaria de fazer algumas obras.

Estendeu a mão a Lesquent e desceu a escadaria.

O patife ficou parado no patamar e quando o automóvel desapareceu voltou para a biblioteca, tendo o cuidado de fechar a porta à chave. Estava sobre brasas.

"É muito curioso este rapaz! - pensava entretanto Chavanay, referindo-se a Lesquent. - E a coincidência é estranha!"

Quando chegou ao portão abrandou e, antes de sair para a estrada, reflectiu durante alguns momentos. Depois, como se tivesse tomado uma resolução, partiu com a máxima velocidade.

 

Lesquent premiu pela terceira vez a folha de acanto que accionava o mecanismo da chaminé, mas, como das outras vezes, a parede não levantou.

Passou a mão pela testa coberta de suor e pensou, aflito:

"Se o mecanismo não funcionasse e a parede não se movesse?"

Devagar, com calma, premindo a folha sem a forçar, fez nova tentativa que teve o resultado das outras.

"Nada de perder a calma. Se não conseguir fazer levantar a parede, o pior que pode acontecer é Colette ficar ali para a eternidade... Mas a culpa não foi minha. Não a obriguei a entrar no fogão. No entanto, a polícia não deixaria de se preocupar com o seu desaparecimento. Não a encontrariam, mas não deixariam de me importunar..."

Aproximou-se da parede e bateu com força. Pareceu-lhe ouvir uma pancada surda e recomeçou a bater.

Depois encostou o ouvido à parede e percebeu distintamente novas pancadas. Para dar a perceber a Colette que tinha ouvido, bateu novamente.

"Isto sempre a anima."

Reflectiu e depois de novas e infrutuosas tentativas, decidiu optar por outros meios: deitar abaixo a parede; saiu do castelo para ir buscar as ferramentas necessárias, uma marreta, picareta e alvião.

Encontrou uma picareta coberta de ferrugem, abandonada num barracão, e foi ao automóvel buscar o martelo e um escopro. Dispunha-se a atacar a pedra com o escopro quando pensou que, por sua vez, poderia ser apanhado. Arrancando algumas pedras não iria comprometer o equilíbrio entre as duas paredes móveis? Uma das paredes ficaria mais leve, levantar-se-ia e provocaria a queda da outra e a sua. Lesquent ficaria fechado com Colette, sem possibilidade de alguém poder libertá-los.

A forma de evitar esse desastre seria escorar a parede. Dois toros de madeira serviriam para esse efeito. Calculando encontrá-los na carvoeira, abandonou a ferramenta junto do fogão e tornou a sair do castelo.

Não teve dificuldade em encontrar o que desejava. Achou dois toros com dois metros de comprimento, aproximadamente, e dez centímetros de diâmetro. Pô-los ao ombro e dispunha-se a subir a escadaria quando ouviu o rodar de um carro pelo saibro da alameda.

Voltou-se e reconheceu o carro de Chavanay.

"Outra vez! Estou tentado a dizer-lhe que o castelo já não se vende".

Chavanay, porém, não vinha ali por causa do castelo.

Saltou do carro e pelo seu nervosismo depreendia-se que não estava com disposição para gracejos.

- Preciso de falar com mademoiselle Semnoz - declarou, entrando no hall.

Lesquente, que acabava de largar os dois toros à porta da biblioteca, receou o pior. Mas não era homem para perder a calma por tão pouco e dispôs-se a persistir na mentira.

- Já lhe disse que tinha ido para a montanha ou, pelo menos, foi o que me comunicou há dias.

- Ignoro quais os motivos que o levaram a contar-me essa historieta, senhor Lesquent. Venho de casa do notário e ele não opôs dificuldades para me dizer a morada de mademoiselle. Vive na rua Mont-Cenis, em Paris.

Lesquent abriu os braços, tomou um ar conciliador e preparava-se para replicar: -Se sabe a morada, procure-a! Chavanay, porém, atalhou:

- Sei o que vai dizer, não vale a pena. E sei também que mademoiselle Semnoz se encontra no castelo.

Peço-lhe, portanto, o favor de me acompanhar ou de a chamar aqui.

Estas últimas palavras tranquilizaram Lesquent. Chavanay não suspeitava de que Colette estivesse prisioneira. Mesmo assim, desagradava-lhe a insistência do parisiense para falar com a prima. A medo, respondeu:

- Peço-lhe perdão e vou dizer-lhe tudo. Colette encontrava-se aqui há pouco e se lhe disse que estava ausente e lhe dei falsas indicações foi apenas para cumprir as ordens formais de minha prima que não deseja ser importunada com a venda do castelo.

- Comunicou-lhe a minha visita?

- Comuniquei - afirmou Lesquent com ligeira hesitação.

- E ela que respondeu? Lesquent encolheu os ombros.

- Para ser sincero, terei de lhe dizer que estou muito aborrecido, porque minha prima já não quer vender o castelo.

- Que me importa Grandlieu! Ela não mostrou desejos de me ver?

A fisionomia de Lesquent traiu o seu espanto.

- Colette não lhe disse que nos conhecíamos?

- Ignorava-o - afirmou Lesquent com evidente sinceridade.

- Peça-lhe para vir aqui.

- Volto a afirmar-lhe que se foi embora pouco depois do senhor Chavanay se retirar.

Um dos nossos vizinhos levou-a para Pont-Audemer, onde deve encontrar-se ainda.

- Senhor Lesquent, o senhor mente mal. Sei que mademoiselle Semnoz se encontra no castelo.

- Garanto-lhe...

- Quero falar-lhe.

Com esse gosto de aventura que, por vezes, sobrelevava a sua natural prudência, Lesquent replicou:

- Se tem a certeza, procure-a. Designava-lhe a escada e a sala que ficava do outro lado do hall. Chavanay, porém, empurrou-o e entrou na biblioteca.

- Partiu de cabeça descoberta o que é muito estranho com este tempo e para tão longa viagem - observou, pegando no chapéu de Colette.

Percorreu o aposento e acabou por se sentar na poltrona que, na visita anterior, Lesquent lhe oferecera.

- O seu castelo já não me interessa - declarou - mas não gosto que se riam à minha custa... Vá buscar a sua prima. A conversa será breve, mas esse pouco terá de ser dito agora.

Lesquent, que não se sentia muito seguro, pareceu reflectir.

- Acompanhe-me à sala, por favor - pediu por fim.

Chavanay seguiu-o sem uma palavra.

Quando entraram, Lesquent pediu-lhe que esperasse e dirigiu-se para a escada.

Subiu rapidamente e, inclinando-se no corrimão, espreitou, para ver se Chavanay se conservava no mesmo sítio. Como o visitante não tivesse abandonado a poltrona, afastou-se e meteu pelo corredor, gritando por Colette. Depois voltou ao seu posto de observação.

Enquanto desempenhava a comédia, perguntava a si mesmo qual seria o grau de relações entre Chavanay e Colette.

Decorrido algum tempo, voltou à sala e, desolado, afirmou:

- Não a encontrei, mas posso afirmar-lhe que minha prima não deseja vê-lo.

- Talvez...

- Se não me acredita, vá o senhor procurá-la.

A cólera que dominava Chavanay, quando chegara ao castelo, desvaneceu-se. Deu alguns passos para a porta e depois parou.

- Disse-me que já não queriam vender o castelo?

- Não posso afirmar, porque, por meu lado, não mudei de ideias. Minha prima, porém, resolveu o contrário.

- Tudo isso é muito estranho - murmurou Chavanay.

Muito pouco seguro de si, Lesquent teve de suportar o olhar penetrante do industrial, que, por fim, baixando-lhe a cabeça num cumprimento, abandonou a sala.

Lesquent certificou-se de que, de facto, ele tinha saído e depois de ter fechado à chave a porta da entrada, voltou para a biblioteca.

 

Desvairado pela cólera, Chavanay não levou duas horas a chegar a Paris. A duplicidade de Colette ultrapassava tudo quanto poderia imaginar. Desde o primeiro instante em que se tinham encontrado em Vieux-Port, mentia-lhe. Quando, ingenuamente, lhe perguntara se o castelo podia visitar-se, afirmando que só o tinha visto de longe, mentia-lhe. Tudo nela era mentira e falsidade. A sua reserva, pudor, todos os seus actos tinham sido baseados na mentira, no cálculo. Pedindo-lhe para a levar à avenida Vítor Hugo, desejara apenas ocultar-lhe a morada para evitar que ele a identificasse e também para esconder a modéstia da sua situação. (Neste ponto, Chavanay não estava muito longe da verdade, como sabemos). E agora, como ele descobrira tudo e desejava confundi-la, fugia-lhe cobardemente, vergonhosamente.

Tinha maior dificuldade em definir os laços que prendiam Colette a Lesquent, a quem considerava um patife.

Colette devia ser sua cúmplice, com mira no ganho, embora não fosse impossível que entre eles existissem sentimentos de natureza diferente e mais terna.

"Ficarei muito admirado se ela comparecer ao encontro que me marcou na segunda-feira. No entanto, não deixarei de ir, quanto mais não seja para lhe dizer duas verdades."

Depois, contradizendo-se imediatamente, vociferou:

"Que vá para o demónio! Não compreendo muito bem os seus fins nem posso calcular até onde iria o nosso idílio, mas devo felicitar-me por ter escapado de boa. Esqueçamos o passado."

Nos dias seguintes, porém, teve de confessar que era muito difícil esquecer Colette, conforme decidira num momento de cólera.

Tendo escorado a parede, Lesquent pegou no escopro e começou a atacar a argamassa que unia as pedras da prisão de Colette.

Era pedra de Caen, sólida, mas macia. Sabendo que o esforço seria demorado, trabalhava sem precipitação, mas sem descanso também. Pensava que a primeira pedra seria a mais difícil de arrancar, mas ficou desagradavelmente surpreendido quando reconheceu que a parede estava perfurada nos dois sentidos por barras de ferro que prendiam as pedras umas às outras. Impunha-se não só destruir essas pedras, como serrar as barras ferrugentas.

De tempos a tempos, suspendia o trabalho para escutar as pancadas dadas pela prima que lhe demonstrava estar viva e confiar nele.

Decorrida hora e meia de trabalho, conseguiu ver o rosto angustiado de Colette.

- Francisco... nunca poderei esquecer... não pode calcular os pensamentos que me cruzaram o cérebro enquanto aqui estive encerrada.

Soluçava e o tratante, muito comovido, considerava-se um paladino, liberando a princesa cativa.

- Vai ser demorado, mas não se aflija. Eu estou aqui. Afaste-se um bocadinho do orifício para não ser atingida pelas lascas da pedra.

- Não há perigo de ficarmos fechados os dois?

- Nenhum. Escorei uma das paredes para o mecanismo não funcionar.

Com um vigor que parecia ter redobrado com a presença mais próxima e mais visível de Colette, recomeçou a trabalhar.

Só às três da manhã conseguiu abrir um buraco com tamanho suficiente para lhe dar passagem e ainda foi preciso serrar as barras de ferro que formavam uma grade no meio da parede. Esse trabalho exigiu mais uma hora.

Finalmente, chegou o momento de Colette poder passar pelo buraco.

Já tinha fora os braços e a cabeça quando Lesquent, sorrindo, lhe lembrou:

- Não traz o tesoiro?

- Nem pensava nisso.

Desapareceu um instante e voltou com a caixa das jóias que entregou a Lesquent.

- Agora, que estou senhor do tesoiro, vou tirar as escoras para a deixar fechada nesse buraco.

- Não consegue meter-me medo.

O rapaz foi poisar a caixa em cima da mesa e depois ajudou-a a sair do túmulo, nome que mais tarde davam ao esconderijo, quando evocavam a patética aventura.

- Você é um rapaz às direitas, Francisco! - comentou Colette com os olhos cheios de lágrimas, poisando-lhe as mãos nos ombros. Lesquent mostrou-se impressionado com a comoção da prima.

- Fiz apenas o meu dever...

- Agradeço-lhe, Francisco.

Com simplicidade, beijou-o nas faces, mas quando ele tentou agarrá-la para lhe roubar um beijo, esquivou-se e protestou:

- Não estrague um dos mais belos momentos da minha vida.

Pelas pupilas do rapaz perpassou um clarão inquietante, que logo se extinguiu. Com ar contrito, murmurou:

- Tem razão. Esquecia-me de que é uma rapariga diferente das outras.

- Engana-se, não sou diferente. Todas as raparigas honestas são como eu.

Como arrependido pelo gesto desastrado, Lesquent deu alguns passos. A certa altura, porém, voltou-se e disse bruscamente:

- Conhece um tal Chavanay? Colette corou.

- Conheço.

- Por que não mo disse? Sabia que ele pretendia comprar o castelo?

- Sabia, mas ele ignorava que eu fosse a co-proprietária.

- Pois deixou de o ignorar.

- Como?

- Veio aqui enquanto a Colette esteve de castigo no quarto escuro.

- Disse-lhe...

- Sossegue... Veio aqui, pois estava admirado de não ter obtido resposta à sua proposta. Supunha que a Colette opunha dificuldades. Tentei dissuadi-lo, mas não me acreditou e pediu-me o seu nome e morada. Dei-lhas porque ignorava que se conhecessem e entre os dois existissem segredinhos.

- Revelou-lhe o que me acontecera?

- O segredo do fogão? De princípio não toquei no assunto, visto não querer pôr um estranho ao facto da história do tesoiro.

- Tê-lo-ia auxiliado a libertar-me.

- Foi o que pensei ao saber que se conheciam.

Sem lhe falar no tesoiro, disse-lhe que a Colette tinha caído numa espécie de masmorra e que não conseguia tirá-la de lá. Então começou a rir.

- A rir!

- Pelo menos, pareceu-me contente e replicou que era bem feito... Há muito tempo que se conhecem?

Colette, que estava de olhos baixos, limitou-se a abanar a cabeça.

- Gosta dele? - insistiu Lesquent.

- Não - protestou Colette, com esforço.

- E ele gosta de si?... Estava tão zangado...

- Não... foi um conhecimento de ocasião.

- A classificação é engraçada.

Com as costas da mão, Colette enxugou as lágrimas.

- Disse-lhe que eu estava em perigo?

- Não sei se o percebeu. "Minha prima estava a examinar o fogão, intrigada pela dupla saída do fumo. De repente, uma parede caiu, encerrando-a lá dentro."

- E ele recusou-lhe o seu auxílio?

- Respondeu-me: "É bem feito. Já que desejou fazer segredo comigo, deixe-a continuar no segredo..." E acrescentou: "O senhor bastará para a salvar."

Colette ficou calada, com os punhos cerrados e o olhar fixo. As lágrimas corriam-lhe pelas faces. Por fim, declarou:

- Estou cansada, Francisco. Não tenho coragem, para ir até à pensão.

- Na perspectiva de ter de ficar aqui, mandei preparar o seu quarto lá em cima.

Acompanhou-a até à porta e tendo-lhe desejado uma noite feliz, retirou-se.

Colette estava esmagada pela fadiga, pela comoção e pelo desespero.

Com movimentos de autómato, abriu a cama e deitou-se, mesmo vestida.

"É impossível! Impossível!" - repetia.

Estendeu o braço, apagou a luz e adormeceu no mesmo instante.

Ao meio-dia, barbeado de fresco, bem preparado, Lesquent subiu ao quarto da prima. Bateu discretamente e, não tendo resposta, voltou para a biblioteca.

Às duas horas fez nova tentativa e como Colette não lhe respondesse, entreabriu a porta e verificou que estava ainda a dormir.

Desceu às cinco horas e, apesar de doze horas de sono consecutivas, o seu rosto, habitualmente fresco, conservava os vestígios das angústias da véspera e da tristeza presente.

Lesquent, que não tinha esperado por ela para almoçar, serviu-lhe uma refeição ligeira, à qual Colette não fez honra.

 

Francisco simulou não dar por isso e foi buscar o tesoiro, que espalhou em cima da mesa.

- Vamos dividir isto. Não precisamos do notário. Escolha o que quiser.

- Isso não, Francisco. Não quero prejudicá-lo. Ignoramos o preço das jóias e, como ontem lhe disse, não tenho direito a estes bens. Nem sequer conhecia Anthime.

- Legalmente, tem todos os direitos. Anthime era seu primo, tanto como meu. O tesoiro permite-nos ficar com Grandlieu, fazer algumas reparações e ainda seremos ricos. Escolha.

- Não posso, afirmo-lhe.

- Julgo que uma rapariga deve gostar de jóias. Quer estes três anéis, a pulseira, o colar e estes alfinetes? Estão cravejados de diamantes e outras pedras preciosas e parece-me que o seu valor equivale ao das pérolas.

- Talvez...

- Ou prefere que se mande avaliar?

- Como queira.

- Muito bem. Fique com as jóias que eu fico com as pérolas. Quando chegarmos a Paris mando-as avaliar para ter a certeza de que não a prejudiquei.

- Está bem assim. Lesquent olhou-a com espanto.

Onde estava a Colette animada, cheia de vivacidade que ele conhecia?

- Não está satisfeita com a partilha? Prefere as pérolas?

- Não é isso, Francisco, garanto-lhe...

- Ontem à tarde pareceu-me mais entusiasmada com o tesoiro e, no entanto, estávamos enterrados vivos e a nossa vida dependia de um milagre.

- Deve ter razão, mas nessa altura tinha de agir. Agora deu-se a reacção dos nervos.

Lesquent pegou-lhe nas mãos e observou-a com olhar persistente.

- Gosta dele, não é verdade?

- Não sei... mas sofro!

Tinha as pálpebras cerradas e não pôde ver o sorriso sarcástico do primo.

- Sei muito bem o que é sofrer e compreendo-a, Colette. Não, está enganada. Gosto de si, já ontem lho disse e digo-lhe agora pela última vez. Não voltarei a falar no assunto. Referia-me a outra espécie de sofrimento.

Colette levantou a cabeça e como parecesse interessada, Lesquent hesitou, mas por fim continuou:

- Ignora quase tudo de mim. Aludia ao meu passado. Estou a aborrecê-la, não é verdade?

- Não aborrece. Ignoro quase tudo a seu respeito, é verdade. Fale-me da sua mocidade.

- Quando souber tudo, talvez me despreze. Mas a Colette é boa, órfã como eu e talvez compreenda. Já pensou o que seria a vida de um rapaz que nunca conheceu os pais, de uma criança pobre, criada por pobres para quem constituía duro encargo, apesar de andar mal comida e quase nua? Uma criança coberta de andrajos, habitando a zona mais miserável de Paris, numa espécie de cabana construída com velhas latas de gasolina? Doze anos vivi num cubículo que media a quarta parte desta sala; recebia luz da pequena janela sem vidros. No Inverno tapavam-na com papéis. Eis a minha infância e, como vê, não morri.

Batia no peito com os punhos, orgulhoso da sua força.

"Vivi nessa casa até ao dia em que os dois velhos que me criaram morreram, ela de fraqueza, ele por causa da bebida. Tinha então doze anos. Parti ao acaso com um dos filhos, que era empalhador de cadeiras e muito mais velho do que eu. Nessa altura devia ter vinte e cinco anos e aprendera o ofício na prisão. Não olhe para mim com esse ar assustado e fique sabendo que nunca fui condenado. Para uma rapariga como Colette, esse movimento de repugnância ao ouvir falar na prisão é admissível. Mas eu não tive uma infância como a sua, amimada por um pai carinhoso. Jo, o empalhador, Lulu, o camarada com quem vivi depois e muitos outros, todos tinham contas com a justiça e não eram companheiros de quem pudesse orgulhar-me.

Fez um gesto vago e concluiu:

- Basta de misérias. Já lhe disse o suficiente para a fazer avaliar o que representa para mim a posse do castelo e a sua presença.

Um castelo para um rapaz que passou a sua infância numa cabana de lata! E poder falar a uma rapariga como a Colette, sabendo que é minha prima...

Colette sentia-se profundamente comovida com estas revelações.

- E Anthime... que era tão rico?

- Sim, era rico, mas estava de mal com os meus pais. Calculo que não aceitou bem o infeliz casamento de minha mãe. Por muito tempo ignorou a sua morte. Só muito mais tarde, quando trabalhava numa exploração em África, eu tive conhecimento da sua existência e escrevi-lhe.

- Agora pode considerar-se feliz, visto já não vendermos o castelo.

- Não me fale de felicidade, Colette. Sabe agora, como eu, que não passa de uma miragem falaz.

Colette olhou-o com piedade.

- Meu pobre Francisco! Quanto devia ter sofrido para desesperar assim.

- A Colette ainda acredita na felicidade?... Tem esperança que esse tal Cha...

- Cale-se. Uma mulher já velha, a quem eu muito queria, disse-me um dia: "A nossa felicidade consiste na felicidade dos outros". Creio que tinha razão.

- Que pretende dizer com isso?

- Nada de importância.

Consultou o relógio de pulso e, recuperando a habitual energia, declarou:

- Vou-me embora... Tenho trabalho amanhã de manhã.

- A esta hora já não há comboio. Será melhor partirmos amanhã. Levo-a no automóvel.

- Não pode ser. Tenho de estar no escritório às nove da manhã.

- Então partimos imediatamente.

- Está disposto a isso?

- Com certeza. Fechamos o castelo, metemos o tesoiro no carro e a caminho para Paris. Agora, visto ser rico, estou ansioso por gastar o meu dinheiro.

Este entusiasmo animou Colette que, apesar da ferida que lhe sangrava no coração, recuperou a natural vivacidade.

Decorrida meia hora estava tudo pronto.

Pouco passava da meia-noite quando chegaram à rua do Mont-Cenis.

- Até amanhã - despediu-se Lesquent.

- Como queira - replicou Colette, subindo a escada a correr.

Finalmente, podia estar só com o seu desgosto.

 

"Fiz mal em não lhe dizer tudo mais cedo. Sempre que deixei para mais tarde a confissão e não lhe disse que o castelo era meu e que escutara a conversa dele com Lesquent na primeira visita, dava mais um passo para a minha condenação. Mais dia menos dia teria de o saber.

"Admito a sua cólera... mas que chegasse ao ponto de recusar a Francisco o seu auxílio para me libertar! Como posso acreditar em semelhante coisa? Seria capaz de me deixar afogar à sua vista sem me estender a mão... ou de me deixar morrer queimada sem tentar apagar o incêndio?... E seria menos atroz morrer sepultada viva, pela fome, pela sede ou talvez pela asfixia?"

Quantas vezes recordou todas as fases do primeiro encontro com Chavanay: o almoço em Deauville, o progressivo caminhar do amor, os seus temores, o pudor e a paixão. Mais de vinte vezes ao dia, fazia o balanço do idílio, condenado sem apelo, porque, pudesse ela provar-lhe a sua inocência no "crime", nunca mais poderia esquecer que Chavanay se recusara a auxiliar Lesquent a salvá-la. O sofrimento de Colette era causado menos pela cólera de Chavanay, que admitia e até desculpava, pela qual se sentia responsável, menos pelo gesto de recusa do que pelas palavras: "Deixe-a continuar no segredo". O dia estava prestes a romper quando, por fim, esgotada, conseguiu adormecer.

Acordou tarde e mal teve tempo de refrescar o rosto com água fria e de correr para o escritório.

- Tens uma cara! - comentou uma das colegas com quem usava de mais confiança.

O próprio Fourcaud reparou na sua palidez. Aquela segunda-feira, durante a qual fez tolice sobre tolice, pareceu-lhe interminável.

As seis horas chegaram e, apesar de tudo, encaminhou-se para o local onde combinara encontrar-se com Chavanay.

"Só para ver se ele aparece" - pensou.

Às sete, Chavanay ainda não tinha aparecido e Colette convenceu-se de que tudo estava acabado entre eles... despedaçado, como ela própria se sentia! Então pensou em Lina, não para desabafar, mas, pelo menos, para ver um rosto amigo, e dirigiu-se a casa dela.

Lina ficou admirada com o seu mau parecer.

- Que tens tu?

- A viagem fatigou-me muito.

Por duas vezes, Colette esteve decidida a contar-lhe tudo, mas, por um aespécie de pudor, calou-se. Além disso, não tinha revelado a Lina o verdadeiro motivo da viagem à Normandia e não estava com disposição para ouvir as censuras da amiga.

Havia falado vagamente na regularização de alguns pormenores sobre a herança e venda do castelo e limitou-se a dizer-lhe que o assunto se arrastava. -Chavanay não se decidiu ainda. Para mais, zangámo-nos e julgo que será preferível aguardar mais algum tempo para vendermos Grandlieu.

Quando se despediu, Lina perguntou, como sempre, quando voltavam a encontrar-se.

- Não sei ainda. Escrever-te-ei, porque esta semana tenho imenso trabalho.

Depois da amiga sair, Lina ficou preocupada. "Escondes-me alguma coisa, minha boa Colette... Que se teria passado? Rompeste com Chavanay e afirmas ter muito que fazer. Estou quase a acreditar que te apaixonaste pelo teu primo e, depois de teres dito mal dele, não ousas confessá-lo... No entanto, a tristeza do teu olhar e a expressão amargurada não são de uma rapariga apaixonada".

Prometeu a si mesma estar alerta e levar Colette a contar-lhe como tinha rompido com Chavanay.

Quando chegou a casa, Colette recordou-se de ter autorizado Lesquent a visitá-la nessa noite.

- Pobre Francisco! Nem ontem nem hoje me lembrei dele!

Encontrou-o à sua espera no patamar e ficou espantada com as primeiras palavras que ele pronunciou:

- Chavanay voltou a aparecer?... Reagiu de qualquer forma?

Colette fixou-o, admirada, e respondeu:

- Nunca mais o vi. Como queria que ele reagisse?

- Mostrou-se muito irritado consigo, anteontem. A mentira a respeito do castelo... Temia que viesse fazer-lhe cenas.

Colette voltou a cabeça para esconder as lágrimas e abriu a porta de casa.

Lesquent trazia carnes frias e fruta. Estava bem disposto, alegre e descreveu-lhe o dia passado em Paris, nos restaurantes e divertimentos caros.

- Vendi uma das pérolas por duzentos mil francos e o comprador valeu-se da situação. São uns ladrões, todos eles.

Depois passou a outro assunto.

- Vou mandar reparar o telhado de Grandlieu e depois penso instalar aquecimento central. Não estou para morrer de frio, durante o Inverno.

Fazia inúmeros projectos e, pouco depois, perguntou:

- Quando se decide a ser castelã, Colette? O lugar está ainda livre, mas em Paris não faltam lindas mulheres e não deve estar muito tempo sem ser preenchido.

Colette encolheu os ombros e Francisco não insistiu. Contentou-se, durante a visita, em fazer alusões, provando que persistia na sua proposta de casamento.

Lesquent ficou três semanas em Paris e nunca deixou passar mais de três dias sem visitar a prima.

- Vamos jantar os dois e depois levo-a ao teatro.

Outras vezes, como um garoto que pela primeira vez é senhor de dinheiro, descrevia-lhe as excessivas despesas feitas.

- Repare nesta camisa. Paguei por ela cinco mil

francos.

Vestira-se dos pés à cabeça nas melhores casas de Paris e falava em trocar o modesto carro por outro mais luxuoso.

- Dando cem mil francos e o carro velho, poderei apanhar um carro novo, mas ainda não sei se darei a preferência a um carro americano em trânsito turístico. Com cinco pérolas não será difícil obtê-lo.

Tomara o costume de contar citando pérolas.

- Quantas pérolas pode custar uma casa nos Champs-Elisées?

Colette deixava-o falar e só lhe respondia quando era forçada a fazê-lo, porque as extravagâncias do primo a desorientavam. Nunca lhe fazia perguntas, mas ficava intrigada com certas alusões e, principalmente, com o projecto da instalação de um escritório nos Champs-Elisées. Não compreendia que relação poderia ter Grandlieu com as suas macieiras e o tal escritório tão importante que ocuparia todo um andar na principal avenida de Paris. Talvez o projecto não fosse mais do que uma das muitas fantasias do primo, uma espécie de embriaguez causada pela riqueza, de castelos no ar!

Nunca se encontravam sem que Lesquent, de uma forma ou de outra, aludisse à sua proposta de casamento. Dizia, por exemplo:

- Este panorama é belo, mas, vendo bem, eu, no seu lugar, trocá-lo-ia pela paisagem que se estende para lá do parque de Grandlieu.

Outras vezes tomava atitude diferente, falava do futuro e com autoridade afirmava:

- Quando Colette for castelã de Grandlieu... Não preferia fazer a viagem de núpcias a Espanha em vez da clássica viagem a Veneza?...

Colette deixava-o falar sem protestar. Vacilava entre o reconhecimento que supunha dever-lhe e uma espécie de repugnância pela sua grosseira fatuidade.

No entanto, uma vez, quando ele a tratou por "tu", reagiu com energia.

- Tenciono regressar a Grandlieu na quinta-feira. Queres vir comigo?

Todo o sangue de Colette lhe afluiu às faces.

- Não force a nota, Francisco. Não lhe tolero que ultrapasse certos limites.

O rapaz percebeu que tinha avançado demais e não insistiu. Além desta tentativa, nunca tomou liberdades.

Entre os dois não havia intimidade. Ao chegar, ele apertava-lhe a mão e era tudo. Tanto um como o outro evitava até o mais pequeno contacto.

Uma noite, ao despedir-se, Lesquent avisou:

- Regresso às nossas terras. Não voltarei antes de dez dias.

Nos primeiros tempos, Colette admirou-se por sentir tanto a falta de Lesquent,

A ausência do primo não a entristecia, mas também não sentia alívio.

Em quinze dias, encontrara-se duas vezes com Lina e como a recordação de Chavanay pertencia ao passado, sentia-se muito só. Em compensação, já não receava a inesperada presença do primo e não precisava de estar constantemente alerta para se defender dele.

Lina fazia-lhe falta, mas, para ser sincera, teria de confessar que ainda pensava em Chavanay. O passeio a Deauville, o tempo em que ele a perseguia com as suas assiduidades e a esperava à saída do escritório, tudo isso lhe parecia um sonho, uma miragem apenas entrevista e logo desvanecida. Reconhecia a diferença entre o restaurante de Deauville e aqueles, talvez mais luxuosos, onde Lesquent a levara quase à força, o contraste entre a riqueza discreta e sólida e o brilho falso do luxo espaventoso.

Chavanay deixara entrever, com reserva e sem ostentação, a extensão das suas possibilidades, enquanto Lesquent, com vaidosa satisfação, anunciava de antemão as despesas que se propunha fazer, como, por exemplo, quantas pérolas lhe custaria a instalação de uma piscina no parque de Grandlieu.

Entre os dois homens, as comparações eram inúmeras. Colette comprazia-se em fazê-las embora com isso sofresse cruelmente, pois reabria a ferida, que, segundo pensava, nunca mais teria cura.

Havia quatro dias que Lesquent tinha saído de Paris quando, ao sair do escritório, teve a surpresa de encontrar Lina.

Em geral, a rapariga abandonava o trabalho meia hora depois de Colette, mas naquele dia pedira uma licença para poder encontrar-se ali àquela hora. Colette ficou preocupada e inquieta, sem saber o motivo que levara Lina a vir esperá-la.

- Passei três vezes por tua casa sem conseguir falar-te. Não havia outro meio de o fazer.

Ao mesmo tempo, fixava a amiga com espanto e tristeza, como se pelo seu rosto macerado lhe adivinhasse os tormentos.

Seguiram de braço dado, levadas pela onda humana que, desde as dezoito horas, corre de todos os escritórios, armazéns e oficinas.

De princípio, conversaram sobre esses pequenos nadas que constituem a vida quotidiana de todas as mulheres. As saias, naquele Verão, usar-se-iam mais curtas ou mais compridas? O verde seria a cor da moda e os penteados aproximar-se-iam dos das nossas avós? Fosse como fosse, Lina não tinha possibilidades de comprar um vestido e Colette, embora se usasse o verde, faria um amarelo, porque o verde lhe ficava mal.

Nenhuma delas dava importância à conversa fútil, pois sabiam que em breve abordariam assunto mais grave. Após algumas alusões às férias, Lina, intencionalmente, perguntou:

- Continuas a estar muito ocupada?

- Não... quero dizer, tenho muito que fazer em casa.

- Levas trabalho do escritório?

- Não é isso.

Subiam o boulevard de Malesherbe e Lina comentou com ar trocista:

- Estás talvez a pintar os teus aposentos? Colette olhou-a com espanto.

- Pintar o meu quarto para quê?

- Como tens muito que fazer... E se não levas trabalho do escritório, deves entregar-te a qualquer tarefa extraordinária e por isso me lembrei das pinturas. Mas se todo esse trabalho consiste, como dantes, no arranjo da tua casa, não compreendo o motivo do teu afastamento.

Colette não lhe respondeu. Atravessavam a rua, o que lhe proporcionou uma diversão. Pouco depois, porém, Lina voltou à carga:

- Não desabafas comigo, porquê? Tens medo que te censure?

Colette continuou calada.

- É por causa do teu primo ou de Chavanay? Não se atreviam a olhar uma para a outra. Lina, receando não ter a coragem de dizer o que jurara dizer, Colette temendo a curiosidade da amiga.

- Rompeste com Chavanay?

- Não compreendo...

- Foi o que me disseste...

- Nunca mais nos encontrámos... eis tudo. Lina ainda esteve para perguntar:

"Então quem é o rapaz que te visita quase todas as tardes?"

Fora a porteira de Colette quem a pusera ao facto das visitas. Mas limitou-se a perguntar:

- Então é Lesquent? Colette suspirou.

- Temo-nos encontrado muitas vezes, é verdade. Mas, conquanto ele ganhe muito mais agora, entre nós não há nada.

Estamos ligados apenas por interesses comuns.

- Supunha que o tal castelo tinha deixado de te interessar...

- Enganas-te. Não te disse que, se não o vendêssemos já, poderíamos obter algum rendimento?

- Sendo assim, associas-te com o teu primo?... Toma cautela. Não preciso, por certo, recordar-te que, de princípio, ele não te inspirava confiança.

- Tens razão. Porém cheguei agora à conclusão de que o Francisco é bom rapaz, apenas um pouco grosseiro.

Continuaram durante algum tempo sem trocarem palavra, cada qual absorvida nas suas reflexões. Lina estava descontente.

- O que me surpreende é a tua avidez pelo dinheiro - comentou pouco depois.

- Avidez? Não compreendo.

- Avidez não será o termo próprio. Estranho o interesse que demonstras pelo assunto. Estás muito mudada. Já olhaste bem para o espelho, nestes últimos tempos? Não para te penteares ou avivares os lábios, mas para te observares bem. Não reparaste na tristeza do olhar, no vinco amargo da boca, na expressão desolada?

Colette tentou sorrir, mas o sorriso era contrafeito.

- Que ideias vais tu buscar! Estás enganada, com certeza.

- Não estou. Limitei-me a observar e sinto-me inquieta, confesso.

- Estou um pouco fraca. A mudança de estação transtorna-me...

- O que houve entre ti e Chavanay?

Colette percebeu que não conseguiria esquivar-se. A maneira mais fácil de a tranquilizar seria dizer-lhe parte da verdade.

- Chavanay descobriu que eu era a co-proprietária do castelo e ficou zangado por lho ter ocultado.

- Não lhe explicaste as razões que te impeliram a não lho dizer imediatamente?

- Não tive ocasião para o fazer e congratulo-me com isso. O seu procedimento provou-me como os seus sentimentos eram efémeros. Não te preocupes com o assunto, Lina. E para te provar que entre nós nada mudou, vem jantar comigo amanhã.

Lina deixou transparecer na fisionomia toda a alegria provocada pelo convite e quando se separaram todas as nuvens se haviam dissipado.

No entanto, Lina não estava completamente sossegada. Reflectindo, porém, chegou à conclusão de que o desacordo entre Chavanay e Colette não passava de um arrufo de namorados, arrufo que poderia, mesmo assim, ser fatal para o amor nascente que os impelia um para o outro.

"Tenho pena de não conhecer Chavanay! Poderia dizer-lhe o que penso!"

 

Lina acabava de chegar a casa de Colette e com a sua presença esta teve a impressão de que as últimas semanas não haviam sido mais do que um pesadelo.

Radiante, tirou o chapéu, despiu o casaco e preparou-se para ajudar a amiga na preparação do jantar. Do seu rosto fresco todas as nuvens tinham desaparecido. À socapa observava Colette e achava-a mais calma, com melhor aspecto. De si para si, começava a pensar se não teria exagerado o desgosto da amiga. Em resumo, tinham regressado à época em que Colette não poderia supor vir a ser castelã, mesmo por vinte e quatro horas.

Falaram de vestidos, do trabalho, do cinema, de livros, evitando cada uma delas, por motivos diferentes aludir a Chavanay, Lesquent ou Grandlieu.

Colette, que, quando comia sozinha, se contentava com pratos simples, preparava a massa para uma empada. Lina dispunha no prato os bolos que trouxera para a sobremesa.

Tanto uma como outra se sentia feliz ao respirar essa atmosfera de amizade sincera, povoada pelas recordações das horas que haviam passado juntas.

Bruscamente, a campainha da porta tocou.

Colette mostrou-se admirada.

- Quem será?

- Vou ver.

E, nervosa, foi abrir.

- Não contava comigo? - inquiriu Lesquent, surgindo, sorridente, no limiar da porta. - Foi uma surpresa agradável, não é verdade? - prosseguiu.

Quando entrou, viu Lina.

- Perdão.

E, com o à-vontade habitual, voltou-se para Colette e pediu:

- Quer apresentar-me?

Quando proferiu o nome de Lesquent, Colette notou que pelos olhos da amiga perpassava um lampejo inquietante. Quanto a Lesquent, abanou a cabeça quando lhe apresentou a amiga.

- Lina! Tenho o maior prazer em conhecê-la. Colette falou-me muitas vezes a seu respeito.

O tom era ligeiramente trocista. Examinou Lina com atrevida insistência e acabou por dizer com ar protector:

- Não façam cerimónia. Continuem os seus trabalhos. Verifico que ainda não jantaram. Eu também não.

Lina olhou para a amiga, mas esta parecia hipnotizada pela presença do primo.

- Quer jantar connosco? - ofereceu.

Era o meio, segundo pensou, de evitar que Lesquent se convidasse a si próprio e aumentasse a antipatia que pressentia separar os dois.

Lesquent aceitou, sentou-se e acendeu um cigarro, sem pedir licença.

Lina continuava a observar Colette, tentando adivinhar as suas reacções. Com espanto, reconheceu que o rosto da amiga exprimia simplesmente resignação. Seria possível que não notasse a atitude indelicada de Lesquent?

- Não tem um aperitivo? - perguntou o rapaz.

- Deve haver ainda um resto. Não lhe toquei. Com desagrado, Lina viu-o sentar-se entre ela

e Colette. Pouco depois, dirigia-lhe galanteios que nem sempre eram delicados e Colette perguntava a si mesma se, com essa atitude, o primo não tentava provocar-lhe ciúmes. De súbito, a trovoada estalou com a impetuosidade e violência de uma trovoada de Verão. Como Lesquent acabasse de lhe dirigir um dos tais galanteios, Lina respondeu brutalmente:

- Não se canse. Se deseja saber o que penso, dir-lhe-ei que o senhor pertence ao tipo de homens que me causam horror.

Colette empalideceu ainda mais do que o primo. Contava com uma explosão de cólera, mas este limitou-se a soltar uma risadinha trocista.

- Nesse caso, não terá ciúmes quando o meu casamento com Colette se tornar oficial.

Espantada, Lina voltou-se para Colette, contando com um protesto. Esta, que não sabia como evitar a questão, ficou calada e Lina tomou o silêncio por confirmação.

- Não me tinhas dito nada! - censurou com aspereza.

- A Colette gosta de guardar segredo - comentou Lesquent, que parecia encantado com a situação.

- Fez bem, porque a escolha não a lisonjeia. Dessa vez, Lina excedeu os limites do gracejo contundente.

Colette interveio e como receava, acima de tudo, que o primo proferisse palavras irreparáveis, censurou Lina.

- As tuas palavras excederam o teu pensamento, Lina. Não vês que o Francisco estava a brincar?

- Com efeito, não dei por isso. Mas salta aos olhos que procede aqui como se fosse dono da casa. Vejo que é um patife e só pensa em se apoderar do pouco que possuis, depois de ter abusado da tua confiança.

Lesquent deu um soco na mesa e levantou-se. Estava lívido de cólera.

- Pelo amor de Deus, acalmem-se! - suplicou Colette.

Lina levantou-se também e comentou: - Belo espectáculo, o da sua cólera!

- Não posso tolerar por mais tempo os seus insultos!

- És injusta com o Francisco! - soluçou Colette, pondo-se entre os dois para evitar um gesto irreflectido por parte de Lesquent.

- E tu ainda o defendes. Casa com ele, casa. Mas, antes de o fazeres, peço-te para reflectires.

Pegou no casaco e no chapéu e, perante o espanto de Colette e de Lesquent, dirigiu-se para a porta. Tinha os olhos cheios de lágrimas. Antes de sair, disse ainda:

- Adeus, Colette, perdoa-me. E não te esqueças, reflecte...

Lesquent ainda deu alguns passos para a porta, porém Colette agarrou-o.

- Fui eu o culpado? Insultou-me quando eu tentava ser o mais correcto possível. Seja justa. Deve reconhecer que procurei por todos os modos evitar uma questão. Mas, como viu, ela embirrou logo comigo.

- Não compreendo - balbuciou Colette. - Lina é a minha melhor amiga... a minha única amiga, deveria dizer.

A pobre rapariga tinha a impressão de que em volta dela tudo ruía, destroçado por terrível desastre. O medo e a tristeza esmagavam-na.

O resto da noite foi aborrecido. Lesquent observava Colette com receio de que as palavras de Lina tivessem abalado a simpatia que a prima lhe manifestava.

Por seu lado, esta procurava compreender a atitude da amiga. Os modos um pouco bruscos de Francisco bastariam para a explicar?

De facto, o primo procedia sem-cerimónia, mas como não era a primeira vez que a visitava, tinha certa desculpa. Evidentemente, Lina tinha certas prevenções contra Lesquent, nascidas do retrato pouco lisonjeiro que Colette fizera dele depois da primeira visita a Grandlieu.

- Mostrei-me pouco delicado com ela? - insistiu Lesquent.

Colette levantou a cabeça e afirmou:

- Não... não compreendo isto. Tanto Lina como eu somos talvez um pouco pretensiosas e exigentes, enquanto que o Francisco...

- Sou uma espécie de urso mal domesticado.

- Não exagere. Tem pouca convivência, eis tudo, mas isso não basta para desculpar Lina. No entanto, tenho a certeza de que é minha amiga.

- Lamento ter sido a causa involuntária deste incidente que a desgosta.

Fixando-o com os olhos tristes, Colette murmurou:

- Não lhe quero mal, Francisco. Não teve culpa do que aconteceu.

 

Lina ficou profundamente mortificada após a cena que terminara com a sua saída de casa de Colette, cuja atitude a indignara. A forma como defendera Lesquent, censurando-a a ela e como a deixara sair sem uma palavra de despedida, tudo isso ultrapassava a sua compreensão.

Quando chegou a casa, desabafou com a mãe.

- É estranho como aquele rapaz antipático conseguiu atraí-la.

Os comentários entre Lina e as amigas, pois quase todas conheciam Colette, foram dos mais variados.

Algumas falaram em filtros, outros arriscaram gracejos duvidosos, mas nenhuma das suposições satisfez Lina.

Decidiu então ir mais uma vez procurar a amiga à saída do escritório, porém viu Lesquent ao volante de luxuoso carro e afastou-se.

Decorreram algumas semanas e voltou à rua Tronchei a tempo de ver sair uma a uma todas as colegas de Colette.

Como dessem sete horas e esta não aparecesse, retirou-se muito preocupada. No dia seguinte, voltou e dirigiu-se a Lúcia, a colega de Colette com quem tinha mais confiança.

- A Colette despediu-se há quinze dias, para ir casar. Ignorava-o?

Durante algum tempo seguiram juntas.

- Foi uma resolução brusca e o senhor Fourcaud não ficou muito contente. Diz-se que teve uma herança, mas não é só isso. Dizem também que desprezou belo casamento por causa do primo.

- O rapaz que a pretendia não era amigo do senhor Fourcaud?

- Exactamente. Chama-se Chavanay e tem três fábricas de tecelagem e uma de malhas. Era amigo do senhor Pedro, o filho do patrão que morreu há três anos, num desastre de aviação. Desde então, o senhor Fourcaud considera-o um pouco como filho. Substituí Colette no seu lugar de secretária e por isso sei muita coisa.

- Sendo assim, talvez esteja ao facto do que motivou o rompimento entre Colette e Chavanay.

- Ignoro-o. Uma vez, o patrão, referindo-se a ela, comentou: "Que pateta! Quem poderia supor semelhante disparate!" E foi tudo.

As duas raparigas, conversando, seguiram até à Concórdia, onde cada uma delas tomou o metropolitano para direcção diferente.

Todavia, a curiosidade de Lina não estava satisfeita. Sabia que Colette se tinha despedido e o casamento se confirmava. Talvez até já estivesse casada. No entanto, para se certificar, um dia que foi obrigada a ir à rua Caulaintcurt deu um salto à rua Mont-Cenis.

- Vem visitar mademoiselle Semnoz? - inquiriu a porteira, que a conhecia bem.

- Era essa a minha tenção.

- Nesse caso, não sabe que partiu para a província para se casar? No entanto, conservou o quarto aqui, apesar de muita gente o cobiçar.

- Sabia que devia casar, sim... e já teria casado?

- Não creio. Disse-me que voltaria para levar o vestido de noiva... um vestido rico, comprado num dos melhores costureiros. O futuro marido deve ter muito dinheiro, mas não tem mais nada do que isso, pois nem sequer é delicado.

Quando começava a falar, a excelente criatura não parava. Lina não conseguia dizer uma palavra e contentou-se em escutar.

- O dinheiro não basta para fazer a felicidade - continuou a porteira. - É um dito vulgar, mas mademoiselle Colette deve sabê-lo por experiência própria. Nos últimos dias andava tão triste que metia dó. Um dia, disse-lhe:

"- Uma rapariga, quando casa, deve estar contente.

"Sorriu e como o tal senhor aparecesse, despediu-se e subiu a escada.

E tomou um ar confidencial para concluir:

- Conheço mademoiselle Colette há muito tempo e sei que é uma rapariga séria, incapaz de se apaixonar pelo primeiro que lhe aparecesse ou de casar por causa do noivo ser rico. Não, disse-o à inquilina do terceiro andar e ela concordou. Neste casamento há qualquer coisa de estranho.

Abanou a cabeça com ar significativo e acrescentou:

- Noutros tempos havia beberagens, filtros, como lhes chamavam, e hoje, com todos estes inventos, devem existir drogas que...

Por muito inverosímeis que fossem, estas suposições não estavam longe das que Lina, a mãe e as amigas haviam feito. E por isso perguntou:

- As últimas vezes que falou com a Colette teve a impressão de que ela estivesse sob o efeito de alguma dessas coisas?

- Não me admiraria. Mostrava-se tão diferente do que fora!... Dir-se-ia que o casamento a horrorizava, mas que não tinha forças para o impedir.

- É horrível!

As palavras da porteira perseguiram-na todo o dia e toda a noite e ainda era nelas que pensava quando pegou no Bottin para procurar uma morada. Por curiosidade, procurou também a de Chavanay: Rua de la Beaume, 24.

Atravessou-lhe o cérebro estranho pensamento:

"Se eu lhe fosse falar?"

E todo o dia estas palavras lhe martelaram o cérebro:

"Colete está em perigo. Devo falar com Chavanay."

Mas, às sete horas, quando chegou à porta do industrial, perguntou a si mesma o que iria dizer-lhe.

Apesar disso, não hesitou e tocou.

Apareceu-lhe um criado com a cabeça toda branca.

- Queria falar com o senhor Chavanay.

- O senhor não está. Tem a bondade de me dizer o seu nome para lho transmitir?

Lina, que já perdera o aprumo quando subira a escadaria atapetada de vermelho, ficou completamente desorientada com o modo condescendente do criado.

- Preciso absolutamente de falar-lhe. Trata-se de um caso muito grave.

- Sendo assim, deixe-me o seu número do telefone.

Lina não se atreveu a confessar que não tinha telefone e replicou:

- Não serviria de nada. Posso esperar aqui por ele?

- O senhor Chavanay só volta daqui a um mês. Ausentou-se para o estrangeiro.

Lina ficou desolada. Estava com pouca sorte. Desapareceria a última probabilidade de salvar Colette?

 

                       Querida Lina,

Não posso deixar passar este dia sem te escrever. Depois da deplorável cena...

 

Colette parou de escrever. Deplorável não era bem o termo, nem tão-pouco triste. Lamentável parecia-lhe frio. Hesitou e acabou por optar pela primeira palavra e continuou:

 

... que motivou a tua partida de minha casa, nem um só dia deixei de pensar em ti. Disseste-me adeus, termo ao qual não correspondi, pois desejo de todo o coração que nos tornemos a ver...

Amanhã vou sentir a tua falta, querida. É o dia do meu casamento...

 

Mais uma vez suspendeu a redacção da carta e o olhar melancólico perdeu-se para lá da janela e fixou-se num navio que passava rente ao parque de Grandlieu e que parecia navegar num mar verdejante, pois uma depressão de terreno ocultava o Sena... Quando o navio desapareceu, recomeçou a escrever:

 

... cerimónia íntima, visto que tanto o Francisco como eu não temos família.

Tu, que tens família e pais, podes calcular quanto me entristece este abandono. E esse abandono pesou na balança do destino quando me decidi a responder afirmativamente à proposta do meu primo, devo confessá-lo.

Lamento o incidente que os separou e, reflectindo melhor, reconheço ter sido eu a única culpada. Falei-te do Francisco em termos tais e tu és tão minha amiga que não podia deixar de estar mal disposta com ele. O maior defeito dele é o arrebatamento, mas neste mundo ninguém é perfeito. Todavia, não posso deixar de reconhecer os esforços que tem feito, desde que sou sua noiva, para se dominar e para me agradar.

Meu primo exigiu contrato prévio, que foi ontem assinado no cartório ãe Lemasle, em Pont-Audemer. Casaremos com separação de bens, o que parece estranho, visto o castelo pertencer a ambos.

- Vamos ter muito que fazer porque o Francisco tem grandes projectos. Antes de mais nada, deseja restaurar o castelo, mas há ainda outros que não quis revelar-me antes do casamento. Tudo isto nos obriga a deixar para mais tarde a viagem de núpcias. Aproveitaremos o Inverno para darmos uma volta pelos países mais quentes.

Até lá, espero poder dar um salto a Paris para te ver e restabelecer a paz entre ti e o meu futuro marido...

 

O ranger da porta obrigou-a a voltar-se.

Lesquent entrou, atravessou a sala e aproximou-se da mesa diante da qual a noiva estava sentada.

- Estava a escrever?

Por cima do ombro de Colette, leu as primeiras palavras, enquanto ela respondia como se se desculpasse:

- Uma carta para Lina. Nunca mais lhe escrevi desde a tarde em que se zangaram e pensei que devia comunicar-lhe o meu casamento... É a minha única amiga! Seja como for, já estaremos casados quando ela a receber.

- Seja como for? - replicou Lesquent, com ironia. - Por mim, .digo felizmente, porque a influência dessa rapariga não é muito proveitosa para si.

Calou-se um instante e acrescentou:

- Vou a Pont-Audemer buscar as flores. Acabe a carta para eu a levar e deitar no correio.

Colette voltou-se para ele e perguntou: - Está zangado?

- Zangado, porquê? Compreendo que a Colette sinta a falta da sua amiga... para lhe escrever e dizer quanto se sente feliz...

Começou a passear de um lado para outro e esse vaivém contínuo enervou Colette. Releu a carta e verificou que bastava terminá-la por uma palavra afectuosa, o que fez imediatamente.

- Está pronta. Falta apenas fazer o sobrescrito.

- Não tenho pressa...

Depois de tudo concluído, tirou-lhe a carta das mãos antes que ela lha desse.

- Pode ficar descansada, a querida Lina em breve a receberá. Deseja que a registe?

- Não vale a pena - respondeu Colette com um sorriso, um sorriso triste, sem espontaneidade, sem alegria.

Lesquent notou-o e, nervoso, protestou:

- Que mais temos agora? Gostaria de a ver contente, Colette. Uma rapariga quando vai casar está sempre alegre. Espero que entre nós não persista qualquer mal-entendido. Reconheço a minha brutalidade e já lhe pedi perdão. Descrevi-lhe a minha infância, privada de afeições, a causa principal deste meu feitio. Tenho a impressão de que, desde que a conheço, me emendei. Por que olha para mim com esse olhar receoso?

A voz de Lesquent, de princípio suave, tornou-se dura e a última frase foi dita quase com brutalidade. Com aspereza, repetiu:

- Por que olha para mim com esse olhar receoso? Sorria. Não tem tudo quanto uma mulher pode desejar? Já lhe recusei alguma coisa?... Não lhe ofereci um vestido de noiva comprado num dos melhores costureiros, para uma cerimónia sem convidados? Teremos como testemunhas o notário e o administrador, porque dei o valor de uma pérola para os pobres.

- Não é isso, Francisco. Tenho mais do que desejo. Não pretendia um vestido luxuoso, nem lhe competia a si oferecer-me o vestido de noiva...

Lesquent encolheu os ombros.

- Não desejo que venda as suas jóias e o seu depósito na Caixa Económica não devia chegar para o comprar...

Colette esboçou um gesto de desânimo.

- Não tenho culpa de ter um carácter triste e complicado. Talvez sorrisse mais vezes se mo pedisse menos.

Enxugou as lágrimas e prosseguiu:

- É natural que uma rapariga se sinta cansada, nervosa e até comovida, na véspera do casamento. Lembro-me de minha mãe. Sinto-me tão só... e o casamento é uma coisa tão grave...

Lesquent irritou-se.

- Deixemo-nos disso. Dir-se-ia que procura motivos para desculpar as suas lágrimas... Vamos, enxugue os olhos... Muito bem, agora sorria! Assim.

E com estranho sorriso.

- Agora descanse enquanto eu vou a Pont-Au-demer. Dentro de uma hora estarei de volta.

Saiu em passo ligeiro e, ficando sozinha, Colette escondeu a cabeça entre as mãos.

"Que homem este! Gostará de mim deveras?... Talvez me ame, mas tenho de submeter-me a todas as suas vontades e sorrir quando o deseja. Para me ver sorrir seria capaz de tudo... do melhor e do pior, receio-o bem.

E sentiu-se esmagada pela estranha angústia que a oprimia muitas vezes quando pensava no casamento e no estranho noivo.

Francisco não tinha a distinção de Chavanay...

Chavanay!... Para que estava sempre a compará-los?... Talvez porque, pouco antes, Francisco lhe ferira a sensibilidade, lendo a carta que estava a escrever, como se desejasse certificar-se do que dizia a Lina. No entanto, quando, tempos antes, teria barafustado, naquela altura mostrara-se conformado e até se tinha oferecido para levar a carta.

Não podia deixar de concordar que o noivo tentava modificar-se.

No entanto, apesar de todos os seus esforços, havia nele qualquer coisa de inquietante. Os seus arrebatamentos e certa tirania causavam-lhe apreensões.

"Sorria, quero eu!..."

"Poderei eu obedecer-lhe sempre?" - pensou tristemente Colette.

Por vezes, o terrível garoto que o destino tinha feito de Lesquent, revelava-se no novo rico, calculando as despesas em jóias e pérolas.

- Com três pérolas poderei comprar um Delahaye - disse certa vez.

"Seria coincidência?" - pensou Colette, que logo se desenganou.

- Um Delahaye porquê? - perguntou com ingenuidade.

- O carro de Chavanay não é dessa marca?

A noiva corou. Aquele demónio devia ler-lhe no pensamento, pois justamente naquele instante estava a pensar em Chavanay.

E, recordando todos estes incidentes, as semanas decorridas que lhe passaram diante dos olhos como filme estranho, pensou:

"Estou maluca! Não é a vinte e quatro horas do casamento que uma rapariga pensa nestas coisas. Não posso recuar e, portanto, será melhor esquecer."

Para mudar de ideias, saiu da sala.

No corredor encontrou Anaise, a criada que Lesquent tomara ao seu serviço quando se instalara no castelo. Vinha a correr e comunicou:

- Está lá em baixo um sujeito que deseja falar com o senhor.

- Quem é?

- Não sei.

- Onde está?

- Mandei-o entrar para a sala - respondeu a rapariga com ar assustado. - Fiz mal?

- Não, não fizeste. Vou ver quem é.

O homem era baixo e magro, com a tez amarelada, o que lhe dava estranho aspecto. O fato parecendo novo, via-se que era de fazenda barata e parecia demasiado grande para o seu corpo. Nos pés trazia uns sapatos esquisitos, de cabedal vermelho.

Vendo entrar Colette, cumprimentou-a cerimoniosamente.

- Madame Lesquent?

- Ainda não.

- Peço-lhe perdão. O Sonnart saiu?

- Sonnart?

- Lesquent, queria eu dizer.

- Deve estar de volta de um momento para o outro.

Bamboleando-se, o visitante observou:

- Têm uma linda propriedade. Colette sentia-se constrangida.

- Muito linda, sim, principalmente no Verão.

- Sim, no Verão, porque no Inverno... A conversa esmoreceu.

- O que vem tratar, é pessoal? - perguntou Colette por fim.

- Pessoal!... Sim, é pessoal, muito pessoal, mesmo.

- Fiz a pergunta porque já vieram aqui muitos agentes de seguro...

O homem observou-a com curiosidade.

- Tencionam casar breve, talvez?

- Amanhã.

A porta da sala abriu-se brutalmente e Colette sentiu uma espécie de calafrio.

- Deixe-nos sós. Colette!... Não ouviu? Deixe-nos sós e espere por mim lá em cima.

O tom era o dos piores dias, quase brutal.

Colette obedeceu.

- Não me convidaste para o casamento - comentou o visitante, com sarcasmo.

Lesquent fechou a porta nas costas de Colette e replicou:

- Receio que tivesses feito esta viagem inutilmente, meu caro.

- Vives num castelo! Pensaste nisso alguma vez quando estávamos em Lambaréné?

Colette contava ouvir a resposta de Francisco, mas, em vez disso, a porta abriu-se e ele apareceu, enfurecido.

- Não sabia que tinha o hábito de escutar às portas. Não lhe disse que fosse lá para cima?

- A tua noiva não é aqui de mais! - observou o outro.

Sem lhe responder, Lesquent agarrou no braço de Colette.

- Vá lá para cima. Há espectáculos que não são próprios para uma senhora e um deles é a forma como vou obrigar este cavalheiro a sair.

- Largue-me. Subirei sozinha.

Palpitante de emoção, subiu a escada. Pressentia o drama que se ia desenrolar desde o instante em que Francisco tinha entrado na sala.

Caminhava ela como autómato, sem voltar a cabeça e quando entrou na salinha, maquinalmente fechou a porta à chave.

 

- Abra!

Novo empurrão na porta e nova ordem: - Abra!

Colette ergueu-se da poltrona.

- Que deseja?

- Abra! - repetiu Francisco em tom imperioso.

Trémula, abriu a porta e, com uma impetuosidade, uma violência que nunca lhe demonstrara, Lesquent entrou.

- Que ideia foi esta de fechar a porta à chave? Colette notou que um fio de sangue corria do

canto da boca, os cabelos estavam em desordem e as faces afogueadas.

- Está ferido?

- Não tem importância - replicou este, passando o lenço pelos lábios.

- Jogaram à pancada?

Francisco fixou-a com olhar estranho.

- Não foi bem isso, mas detesto os maçadores.

Passeava na sala como sempre que não conseguia dominar o nervosismo.

Colette, que o observava com receio, atreveu-se a aproximar-se dele. Pegou-lhe na mão e pediu:

- Sossegue, Francisco, peço-lhe. Que lhe queria aquele homem?

- Contar-lhe-ei tudo.

Retirou a mão e repetiu:

- Contar-lhe-ei tudo.

- Depois de casados?

- Exactamente.

O tom era conciso, não admitia réplica. Dirigiu-se para a porta, mas Colette deteve-o.

- Quero saber agora.

Lesquent ficou como pregado ao chão. Olhou para a noiva por cima do ombro e ficou indeciso, atrapalhado.

- Levaria muito tempo.

Longe de se encolerizar, como Colette receava, conseguiu recuperar a calma. Então ela continuou:

- Tenho o direito de saber tudo antes de ligar a minha vida à sua. Quem era aquele homem?

Daquela vez ele ia fulminá-la, por certo. Não, enganou-se. Numa dessas reviravoltas estranhas, pelo prazer da aventura, Lesquent afrontou o perigo. Já uma vez, quando Chavanay tinha vindo ao castelo na altura em que Colette se encontrava encerrada no esconderijo, provocara assim a sorte e fizera entrar o visitante para a biblioteca.

Assumindo a mesma atitude, perguntou em tom mordaz:

- Quer saber?

Abriu a cigarreira, acendeu um cigarro e sentou-se no braço de uma poltrona.

Com a garganta estrangulada, Colette assistia a estes preparativos. Recuou até um dos cantos da saleta e, trémula, arriscou:

- Aquele homem era um dos seus antigos amigos?

- Não um daqueles de quem já lhe falei. Conheci-o quando trabalhava em África... uma vida estranha, mas rude. Cortávamos árvores nas florestas e... É um pobre diabo, nunca teve um cêntimo e passa a vida a pedir emprestado a um e a outro, evidentemente, sem tenção de pagar. Mandei-o embora talvez com demasiada brutalidade e disse-lhe que não tornasse a pôr os pés aqui.

Respirou fundo e concluiu:

- Como vê, não tem importância! Uma coisa simples...

Colette levantou-se. Trémula de emoção, com as lágrimas nos olhos, aproximou-se do noivo.

- Não quis magoá-lo, Francisco. Perdoe-me. Tentarei fazê-lo esquecer os maus dias que passou. Julgo que todos nós temos o nosso quinhão de felicidade neste mundo. O Francisco ainda não encetou o seu e, portanto, tem diante de si belas perspectivas de futuro.

- Talvez... - levantou a cabeça e afirmou com ar contrito: - É muito boa, Colette. Não a mereço.

Colette protestou sinceramente. Pela primeira vez, desde que eram noivos, teve a impressão de que poderia vir a gostar dele. Lesquent encaminhou-se para a porta com modos desprendidos, como se abandonasse um café ou qualquer outro estabelecimento.

Já com a mão no puxador da porta, voltou-se.

- Ficou desapontada?

- Desapontada, porquê?

- Pela banalidade do incidente.

Colette sorriu com doçura. De repente, recordou-se.

- Esqueci-me de lhe perguntar uma coisa! Por que razão aquele homem lhe chamou Sonnart?

O semblante de Lesquent tomou uma expressão dura.

- Chamou-me Sonnart?... Quando?

- Antes da sua chegada. Perguntou-me: "O Sonnart saiu?".

- E depois? - insistiu ele com voz breve e incisiva.

- Perguntei-lhe quem era o Sonnart...

- Que mais?

- "Refiro-me ao Lesquent" - respondeu ele.

- Depois?

- Respondi-lhe que não tardaria.

- E que mais?

- Mais nada.

Lesquent prendeu-a pelos pulsos.

- Que mais disse ele?

- Mais nada, repito.

- Mente. Estiveram a falar. Que histórias lhe contou?

- Não me lembra... Falámos do castelo... eu disse-lhe que era muito bonito, principalmente no Verão.

- E ele?

- Está a magoar-me, Francisco...

- Que disse ele?

- Largue-me!

- Quero saber tudo.

- Largue-me! Endoideceu!

- Exijo que me repitas tudo quanto aquele bandido te contou.

- Francisco! - gritou Colete, fazendo-se muito pálida.

Como a onda, ao retirar-se, arrasta consigo a espuma que depositou na areia, assim a brutalidade do noivo varreu todos os sentimentos carinhosos de Colette.

As feições de Lesquent, transtornadas pela cólera, a violência das perguntas, a forma brutal como lhe agarrava os pulsos, tudo lhe inspirava horror. Com um puxão, conseguiu libertar-se.

- Receio muito que tenha destruído tudo, Francisco.

- Que quer dizer?

- Que me meteu medo e uma rapariga não pode casar com um homem que a amedronta.

- Esquece-se de que o casamento se realiza amanhã, que o padre e o administrador...

- Pouco me importa!

Contava com novo ataque de cólera, mas, em vez disso, Francisco replicou com calma:

- Casaremos amanhã, Colette, porque não pode deixar de ser.

- Não pode deixar de ser, porquê?

- Talvez ignore que somos cúmplices.

- Em que crime? - retorquiu Colette, soltando uma risada.

- Repare no seu alfinete.

- Não é um dos que me coube em parte na partilha do tesoiro?

- Justamente. E esse tesoiro pertencia-lhe legalmente? Não tenha ilusões, Colette. Não somos herdeiros do conde de Boissy e tanto esse alfinete como todas as outras jóias pertencem, de facto, à família do conde.

- Está doido, Francisco! O castelo é nosso.

- O castelo, sim, mas não o tesoiro. Devíamos ter declarado a descoberta, conforme ordena o código. Não tente adormecer a consciência, Colette. Somos cúmplices no desvio do tesoiro, e da não-declaração.

Deu um passo para ela e tentou atraí-la a si.

- Não quero, Francisco!

- Que mal tem, se amanhã seremos marido e mulher, se a Colette será madame Lesquent?... Somos uns noivos muito estranhos.

Conseguiu agarrar-lhe as mãos e apertou-a nos braços.

- Estranhos noivos, repito, que nunca se beijaram senão como irmãos.

- Deixe-me, Francisco. Como quer que, depois de tudo quanto acaba de passar-se, eu sinta por si amor ou sequer simpatia?

- Isso não me importa. Eu amo-te e chega.

- E eu odeio-o!

Embora esta palavra fosse a expressão sincera do seu pensamento, Colette ficou estupefacta por a ter deixado escapar e compreendeu que com ela destruíra a possibilidade de afeição entre ela e Francisco.

Com brusco safanão, conseguiu fugir-lhe e, com um salto, refugiou-se atrás de uma mesa.

- Não me toque!

Tremia toda, não de medo, mas de cólera. Muito calmo, Lesquent repetiu:

- Casaremos amanhã.

- Não!

Lesquent teve um sobressalto.

- Não, porquê? Já te disse que, sem ti e sem o castelo, a vida para mim não teria sentido.

- Mate-me, então!

- Deixemo-nos de dramas. Prefiro saber-te na prisão, embora tenha de ser preso também. Cinco ou dez anos levar-te-ão a reflectir.

- é um monstro, Francisco... Sabe muito bem que estou inocente. Ignorava que devêssemos participar a descoberta do tesoiro. Foi o Francisco quem insistiu para que o dividíssemos sem intervenção do notário. Compreendo agora o seu jogo.

Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas e os soluços sufocavam-na.

- Casaremos amanhã, Colette. A voz tornara-se-lhe melíflua.

- É impossível, Francisco. Sabe que não o amo... Esta cena abriu-me os olhos. A vida inteira juntos, pense bem. Uma vida começada sem amor em breve se transformará num inferno.

- Reflecte, já te disse. Se amanhã te recusares a acompanhar-me à mairie, irei sozinho para me constituir prisioneiro e denunciar-te-ei como minha cúmplice.

- Francisco!

Sem lhe responder, Lesquent saiu, batendo com a porta, e Colette caiu de joelhos. "Não posso... não posso".

 

"É impossível! Impossível!".

Era noite quando Colette ergueu a cabeça. Com as mãos contraídas, olhava para o parque mergulhado em trevas, que pareciam penetrá-la até à alma. Com desespero, procurava uma luz que lhe indicasse o caminho.

"É impossível! Os juízes não podem considerar-me culpada".

Não conseguia admitir a possibilidade de casar com Lesquent.

"Não podem, de facto. Mas não há tantos erros judiciais e não é assim que eles nascem? Ainda nestes últimos dias os jornais falaram de um forçado que esteve vinte anos nas galés, sendo inocente. Vinte anos, mesmo dez ou cinco... cinco anos numa prisão, sozinha ou tendo como companheira uma ladra ou uma assassina... É impossível. Se ao menos tivesse alguém com quem me aconselhar... uma amiga."

Pensou em Lina, mas logo pôs a ideia de parte. "Um padre... sim, um padre, o cura da aldeia..." Apesar das troças de Lesquent, conseguira que ele consentisse em casar na igreja e, portanto, conhecia o cura, por já lhe ter falado e não por só o ver na missa, ao domingo. Lesquent não podia impedi-la de ir à igreja.

Levantou-se e pôs uma mantilha.

- Vais sair? - interpelou Lesquent, que se encontrava na biblioteca e a viu passar.

- Vou à igreja.

- Ter com o padre? - ironizou ele. Colette mentiu:

- Preciso de falar-lhe por causa de amanhã.

- Já passaste duas horas com ele, esta manhã. Não chegou?

- Não; quero falar-lhe novamente.

- Para lhe contar o incidente de há pouco, não é assim? Tem paciência, mas não consinto.

- Afirmo-lhe que...

- Casaremos amanhã?

- Com certeza.

- A palavra não basta. Escuta. Não quero contrariar as tuas ideias religiosas, já to disse. Não sou crente, mas, se me opusesse, podia acontecer-me desgraça. Se precisas de falar com o cura, vai. Mas antes tens de jurar diante de Deus que casarás comigo amanhã.

Colette hesitou e tentou tergiversar.

- Não depende só de mim.

- Depende e tu bem sabes, visto que eu não desejo outra coisa.

- A noite é muito comprida, Francisco.

- Não compreendo o que pretendes dizer com isso.

- Que, daqui até amanhã, ignoramos o que o futuro nos reserva.

Lesquent ficou assustado com estas palavras. Que sentido oculto poderiam significar? Reflectiu por momentos e depois, receando uma cilada, exclamou:

- Histórias! Jura casar comigo amanhã ou volta para o teu quarto.

- Juro sobre quê?

- Sobre quê? Não entendo.

- O meu juramento não seria válido... Um instante, eu vou buscar...

Correu para a escada e Lesquent, muito admirado, deixou-a ir.

"Está decidida, vai jurar" - murmurou.

Perdido nas suas reflexões, ficou no hall aguardando o regresso de Colette.

Por fim, teve a impressão de que se demorava muito.

Aguardou ainda algum tempo. Duas vezes consultou o relógio. Cinco minutos passaram. Era demais. Que procurava ela? Não teria estado a zombar dele?

Subiu a escada a quatro e quatro. A porta da salinha de Colette encontrava-se fechada. Bateu uma, duas vezes e como não obtivesse resposta, abriu. Estava tudo escuro. Procurou o interruptor e acendeu a luz. O quarto estava vazio.

- Colette!

Sentiu passar uma corrente de ar e, quando se dirigia para a janela para a fechar, a porta bateu.

- Colette!

Voltou ao corredor, procurou nos quartos vizinhos e tornou a chamar:

- Colette! Colette!

Começou a descer a escada e, mesmo lá do alto, viu a porta do hall aberta e adivinhou tudo.

Verificando que Lesquent não a deixaria sair sem fazer um juramento que não podia cumprir, Colette não perdeu o sangue-frio. A iminência do perigo sugeriu-lhe um estratagema.

Sem dar tempo ao seu carcereiro para reagir, subiu a escada a correr, mas em vez de entrar no quarto, ocultou-se naquele que ficava mais próximo da escada. Por uma frincha, viu passar Lesquent e, mal ele transpôs a porta do seu próprio quarto, correu para a escada. Com a precipitação, esqueceu-se de fechar a porta do hall e foi a corrente de ar provocada por ela que fez bater a porta de cima.

Tendo conseguido sair, correu como louca, com medo de que o seu terrível primo a perseguisse.

Ia a meio do relvado quando ouviu Lesquent chamá-la. Em três saltos refugiou-se no arvoredo e meteu pelo atalho que conduzia a Aizier. De espaço a espaço, parava um instante para respirar e escutar. Como não ouvisse ruído algum, continuou o seu caminho para a aldeia, em passo rápido, mas sem correr.

Chegando à residência do padre, bateu à porta e logo perguntou a quem veio abrir:

- O senhor cura está?

A criada velha examinou-a com espanto. Se eram termos de se apresentar a um padre! Um rasgão no vestido, outro nas meias, os braços cobertos de arranhões, eis o resultado da louca correria. Além disso, parecia esbaforida e os cabelos saíam em desordem da mantilha desatada.

- É para assunto urgente.

- Trata-se de um doente?

- Não, mas preciso de falar imediatamente com o senhor cura.

- Entre!

Afastou-se para a deixar passar, olhando-a da cabeça aos pés. Depois abriu-lhe a porta da sala de jantar.

- Sente-se.

Colette pensou que Lesquent poderia vir até ali, porém não se atreveria por certo a entrar em casa do padre.

Escolheu um canto donde não podia ser vista da rua e aguardou a chegada do cura.

O padre Fouquier era um homem dos seus cinquenta anos, robusto, filho de camponeses, calmo a ponto de parecer vagaroso, enérgico sem ser obstinado. Não tinha o entusiasmo impetuoso nem a untuosidade de certos padres, antes uma força tranquila e firmeza inquebrantável.

- Que deseja, mademoiselle? - perguntou quando entrou na sala.

- Senhor cura, venho dizer-lhe que não me caso amanhã.

O padre deu um pulo na cadeira.

- O que diz?

- Não sei, não sei. Estou esgotada, com a cabeça perdida, eu...

E não conseguiu dominar por mais tempo os soluços que a sufocavam.

O padre obrigou-a a sentar-se e deixou passar a crise de choro. Depois, quando, pouco a pouco, os soluços foram acalmando, pediu:

- Conte-me tudo, minha filha. Teve uma discussão com o seu noivo, não é verdade?

Colette abanou a cabeça. Depois começou a contar a história desde o dia em que recebera a carta de Lemasle. Quando acabou, o padre observou:

- Não compreendo como uma rapariga sensata como parece ser, depois de tantas provas de brutalidade e grosseria desse rapaz, aceitasse casar com ele. Confesso que isso ultrapassa o meu entendimento.

- Estava certa de que ele gostava de mim. O padre ergueu os braços ao céu.

- Repare, senhor cura. Ele nunca foi feliz e considerava-me a única pessoa capaz de lhe dar a felicidade que nunca havia conhecido. Embora não lhe tivesse amor, não quis roubar-lhe as esperanças.

- Bonitos sentimentos de caridade. Mas adiante. Gostaria ele de si, de facto? Não estou muito apto a analisar sentimentos dessa natureza, porém, parece-me que, se ele lhe tivesse amor, não a teria ameaçado como o fez há pouco.

- Foram, justamente, as suas ameaças que me abriram os olhos. Quando o conheci, considerei-o um rústico, uma pessoa pouco agradável para conviver, mas não mau. Mais tarde, tive, por vezes, dúvidas sobre a sua honestidade, mas todos os maus juízos que pudesse fazer a seu respeito, esqueci-os quando me salvou de uma morte horrível. Quando me contou a sua infância desgraçada, tive pena dele. Por outro lado, estava sozinha. Uma decepção sentimental e o abandono de uma amiga, levaram-me ao desânimo e impeliram-me a aceitar o casamento com Lesquent. Agora recuso-me a fazê-lo, reconheço ser impossível; ele ameaça-me.

- Não conheço bem as leis, no entanto, parece-me extraordinário que a justiça possa interferir nesse caso da descoberta do tesoiro. Quem o encontrou?

- O Francisco.

- Seja como for, estava no castelo e parece-me que, quando alguém encontra alguma coisa em sua casa, pode considerá-la propriedade sua.

- O tesoiro foi escondido pelo conde de Boissy; deve pertencer aos seus descendentes, se existem ainda. Pode considerar-se uma herança, propriedade, portanto, dos herdeiros, excepto, bem entendido, uma parte para quem o encontrou.

- Não posso dizer-lhe coisa alguma. Todavia, a minha amiguinha estava de boa fé e os juízes devem levar-lhe isso em conta.

- Talvez... mas tenho medo.

- Concordo, mas tem mais medo de Lesquent do que da justiça. Se dos sentimentos que diz ter por ele subtrairmos a compaixão, ficará unicamente o medo. Reaja, faça o possível por se dominar. Antes de mais nada, deve regressar a Paris. Não pode ficar sob o domínio daquele homem. Tem família?

- Ninguém.

- Nem amigos?

- Uma só: Lina. Escrevi-lhe esta tarde. Saiu de minha casa zangada depois de ter uma discussão com o Francisco.

- Se essa menina é, verdadeiramente, sua amiga, recebê-la-á. Caso contrário...

- Acolher-me-á, tenho a certeza. Antes de partir, porém, devo ir à pensão de Vieux-Port, onde tenho um quarto reservado.

- Muito bem. Como sabe, existem casas religiosas para protecção às raparigas. Vou dar-lhe uma carta de recomendação para uma delas, no caso de lhe ser precisa.

Quando estiver ao abrigo das perseguições desse Lesquent, pode reflectir com calma e informar-se sobre essa história do tesoiro. Agora vou tratar de arranjar alguém que a leve a Pont-Audemer, passando pela pensão... talvez o Horlaville. Como não deve demorar-se muito aqui na terra, vou dizer à minha governanta que lhe dê o jantar.

Contrariamente ao que era de esperar, Colette comeu com apetite. Depois de conversar com o bondoso sacerdote, tinha a impressão de que as ameaças de Lesquent estavam conjuradas.

Estava a acabar quando o cura regressou.

- Tudo arranjado - declarou. - O Horlaville prontificou-se a levá-la à estação. Não tarda com o carro. Estive a observar os arredores, mas não vi sinais do seu carrasco.

- Quando chegar a Paris, escrevo-lhe.

- Para quê?

- Para lhe dizer que não caso com ele. O cura mal reprimiu um sorriso.

- A sua fuga bastará para lho provar. Não lhe escreva por enquanto. Daqui a alguns dias, com mais sossego, verá o que lhe convém fazer.

Quando ouviu bater à porta, Colette deu um pulo.

- Não se assuste. É o Horlaville.

A fugitiva despediu-se do cura, que lhe deu dinheiro e leve merenda para a viagem e, ligeira, entrou no automóvel.

- Chegaremos muito a tempo para apanhar o comboio, mademoiselle. Pode ir sossegada.

Quando passaram pela igreja, Colette julgou reconhecer Lesquent num homem que rondava diante do pórtico.

 

Enquanto o comboio não partiu, Colette não descansou. Logo que este largou da estação, verrumando a noite com toda a velocidade, teve a impressão de que novo capítulo da sua vida começava. Invadiu-a uma sensação de bem-estar, uma alegria imensa.

Em Glos-Montfort teve de mudar de comboio. De repente, quando seguia pelo cais, reconheceu no homem que seguia na sua frente o amigo de Francisco. Escondeu-se atrás de um grupo de soldados para não ser vista e para evitar passar diante das carruagens - pois o homem podia reconhecê-la - subiu para o primeiro compartimento onde havia um lugar vago. Pelo menos até Serquigny, onde teria de mudar novamente de comboio para tomar o rápido Cherburgo-Paris, poderia estar tranquila.

O comboio chegou atrasado a Serquigny, onde o rápido já o esperava. Este contratempo obrigou os passageiros a correrem pelas passagens subterrâneas.

Colette entrou no primeiro compartimento que encontrou. De resto, os outros levavam passageiros até nos corredores. O comboio começou a andar. Os passageiros sem lugar desfilavam pelos corredores, na esperança de encontrarem algum, e Colette viu-se obrigada a comprimir-se contra a janela para os deixar passar.

- Perdão...

Um homem parou diante dela e observou-a.

- Peço-lhe desculpa, mas tenho a impressão de que a conheço. Não a encontrei hoje em casa do Sonnart?

Colette não sabia se devia negar ou confirmar. O receio de que ele teimasse e fizesse escândalo e também uma espécie de curiosidade impediram-na de tomar uma resolução e ficou calada.

- Não é muito bom de aturar, pois não, o meu amigo Sonnart?

A meia voz, Colette pediu:

- Fale baixo, é inútil que os outros escutem o que diz.

O homem sorriu com ironia.

- Quer fazer-me acreditar que ignorava este nome?

- É alcunha?

- Não. É o seu verdadeiro nome.

Depois de muita hesitação e a pedido de Colette, contou tudo:

- Vivíamos três brancos nas margens do Ogoué.

Cortávamos árvores por conta de uma sociedade, mas não morávamos juntos. Estávamos a cinquenta quilómetros uns dos outros e tínhamos debaixo das nossas ordens uns trinta pretos. Os outros brancos viviam a mais de duzentos quilómetros. Pode calcular o que era a nossa vida. Perdidos no meio da floresta, tendo, como único contacto com a civilização, a vedeta que, de dois em dois meses, subia até Lambaréné. Como distracção reuníamo-nos todas as semanas em casa de qualquer dos três. íamos numa piroga e, em menos de dez horas, estávamos juntos, radiantes por vermos brancos. Como lhe disse, éramos três: Sonnart, um Parisiense que não se prendia com pequenas coisas e fazia gala em descrever a infância passada nos piores bairros de Paris; Lesquent, o único dos três que possuía certa instrução, e eu. Nenhum de nós tinha segredos para os outros e o nosso maior divertimento consistia em ler a correspondência de Lesquent, com um tio já velho, muito rico, a quem nem sequer conhecia. Chamávamos-lhe o tio da América, embora vivesse em França, nas margens do Sena. Mandava ao sobrinho esplêndidas encomendas e cheques que ele não utilizava porque, além de ganharmos principescamente, não tínhamos onde gastar o nosso dinheiro. A respeito do tio desconhecido, sabíamos tanto como o nosso amigo e, de brincadeira, afirmávamos muitas vezes que o primeiro a regressar a França iria vê-lo e se faria passar pelo sobrinho.

"Três meses antes de voltar para França, Lesquent foi morto pela queda de uma árvore. Sonnart encarregou-se de tudo. Tomou conta dos documentos de identidade do falecido e escreveu ao tio a fim de lhe participar a triste notícia. Pouco tempo depois rescindiu o contrato e deixou-me só. Logo após ter partido, chegou uma carta do tio dirigida a Lesquent... Calculei que o pobre homem ainda não tivesse recebido a de Sonnart e abri-a. Quando a li, percebi que o Sonnart havia abandonado tudo para regressar e apresentar-se ao tio como sendo o sobrinho. Eis o que o velhote dizia:

Vem, meu filho, espero-te de braços abertos. Estou a envelhecer e gostaria de te conhecer antes de morrer...

- Fiquei por lá - continuou o homem - e só regressei a França o ano passado. Estive muito doente e tudo quanto trazia gastei-o em médicos e remédios. Lembrei-me então de ir pedir ao Sonnart que me auxiliasse. É de crer que não tenha a consciência muito tranquila... porque me deu isto - concluiu, mostrando a pérola que tirou da algibeira.

Calou-se. Colette, voltada para a janela, via desfilar a paisagem, que, na noite, tomava aspectos fantasmagóricos.

- E a senhora... por que está aqui? - perguntou o homem.

- Não tem importância.

Calou-se um instante e perguntou-lhe ainda:

- Se um dia precisar de si, onde poderei encontrá-lo?

O homem abanou a cabeça.

- Sou daqueles que nunca é possível encontrar quando se procuram. Mas se for a Lambaréné, poderá certificar-se da morte de Lesquent e visitar a sua campa, no cemitério dos brancos.

O clarão de Paris iluminava o céu. Colette, assombrada com a inacreditável confidência, tentava ordenar as suas ideias e por muito tempo permaneceu com a fronte encostada aos vidros da janela. Quando se voltou para falar ao seu interlocutor, ele havia desaparecido.

Ainda tentou descobri-lo dentro da estação, mas a multidão era densa. Também não o avistou na sala dos Passos-Perdidos, nem na escada. Então, decidiu-se. Saiu e meteu-se num táxi.

- Colette! É ela, não há dúvida! Por onde tem andado, minha filha? Não sabe que a Lina saiu de Paris?... Deve estar ausente dois dias. O patrão, que se encontra na Touraine a passar as férias, mandou-a chamar para lhe ditar a correspondência.

A mãe de Lina não cabia em si de espanto e as suas exclamações fizeram acorrer o marido. O bom homem teve uma frase que dizia tudo:

- Isto é o regresso do filho pródigo!

As duas excelentes criaturas pediram logo a Colette para entrar e assaltaram-na com perguntas.

- Devia casar amanhã - explicou ela - mas esta tarde a verdade revelou-se inesperadamente e fugi. Venho pedir-lhes para me acolherem.

Depois contou-lhes a sua aventura, excepto certos pormenores, pois que, por discrição, não se atreveu a dizer tudo. Não só não se referiu ao homem e às confidências deste, como ocultou a ameaça de Lesquent.

Os pais de Lina eram excelentes pessoas, mas muito simples para poderem aconselhar Colette.

Horas depois, já deitada no quarto de Lina, a fugitiva reflectiu e reconheceu ser indispensável encontrar alguém que soubesse dirigi-la.

Chavanay, nem pensar; Lina só regressaria daí a dois dias e, além disso, devia saber tanto como ela.

E Fourcaud, o antigo patrão?... Não tinha ficado muito satisfeito com a forma precipitada como Colette se despedira, mas não deixaria de a acolher bem. Iria ter com ele e dir-lhe-ia tudo. Saberia aconselhá-la, guiá-la e Colette obedecer-lhe-ia.

Por fim, adormeceu.

No dia seguinte, quando se levantou, estava mais decidida do que nunca a falar com Fourcaud. Depois de almoço saiu, participando aos pais de Lina que ia visitar o seu antigo patrão.

A entrada de Colette no escritório onde tinha trabalhado dois anos causou o maior alvoroço. Tinham corrido tantos boatos a seu respeito!

Observando-a à socapa, as colegas perdiam-se em suposições. Teria casado? Onde vivia?

Simone pôs ponto ao suplício, anunciando-lhes que o patrão a esperava.

- Então que é feito de si? - perguntou Fourcaud, estendendo-lhe a mão com afabilidade.

Os olhos de Colette arrasaram-se-lhe de lágrimas, mas conseguiu dominar-se.

- Conte-me tudo...

Ela descreveu-lhe a triste odisseia, sem omitir o mais pequeno pormenor.

- Que história! - exclamou o patrão a cada revelação.

Quando ela acabou, perguntou:

- E agora, que tenciona fazer?

- Não sei. Estou desorientada, aniquilada e venho pedir-lhe para me aconselhar.

- Muito bem!

Depois de ter pensado durante breves instantes, Fourcaud decidiu:

- Antes de mais nada, torna-se indispensável saber se a ameaça é de considerar. Vou telefonar ao meu advogado.

Mesmo na presença de Colette, estabeleceu a ligação.

- Meu caro amigo, venho pedir-lhe uma informação. Apanho-o de surpresa, mas desculpe. Eis do que se trata.

Em termos precisos e claros, sem mencionar nomes, expôs o caso da descoberta do tesoiro.

- O assunto é muito simples, sem a mais pequena complicação - respondeu o advogado. - A propriedade de um tesoiro pertence a quem o encontrou na sua própria casa e é esse o caso que lhe interessa, creio eu. Se duas pessoas encontraram um tesoiro num castelo que lhes pertence em igualdade de circunstâncias, têm direito a metade, cada uma delas.

Colette ficou radiante.

- Como vê, não tem coisa alguma a recear. Armaram-lhe uma cilada um pouco grosseira, minha filha. Agora vou telefonar a um dos meus amigos que é chefe da polícia.

Colette tomou uma expressão assustada.

- Nada receie. A Colette está fora do assunto. É bom saber se a história que o homem lhe contou é verdadeira. Não precisa de ir a Lambaréné para se certificar.

E marcou outro número.

- Desejo falar com o comissário Noel... sim, é pessoal... Noel? Daqui fala Fourcaud... Bem, obrigado. Poderás receber-me hoje de manhã ou à tarde?... Sim, por causa de uma história muito curiosa... Antes de comunicar o caso à polícia gostava de falar contigo...

Às quatro, no teu gabinete? Está combinado, obrigado.

Pousou o auscultador e, voltando-se para Colette, declarou:

- O Noel recebe-nos às quatro. Venha ter comigo aqui ao escritório, às três e meia.

 

"Nada tem a recear."

Pela centésima vez, talvez pela milésima, Colette repetia estas palavras do comissário Noel, que, sendo amigo de Fourcaud, os havia recebido como amigos.

- Vou mandar um rádio para Lambaréné e amanhã já saberemos qual é a verdadeira identidade do cavalheiro. Entretanto, vou dar ordem para vigiarem o castelo. Quanto à história do tesoiro, pode estar descansada. Nada tem a recear.

Ao sair da Prefeitura, Colette tinha a impressão de que acabava de ser restituída à liberdade. O sol que refulgia nas águas do Sena pareceu-lhe mais brilhante.

- Agora pode estar tranquila - disse-lhe Fourcaud.

- Não quero pensar mais nesse horrível passado... desejo esquecê-lo como se tivesse sido um pesadelo.

De súbito, o sorriso apagou-se-lhe dos lábios.

- Que mais temos agora? - inquiriu Fourcaud. - Esqueceu-se de dizer alguma coisa ao Noel?

- Disse-lhe tudo... tudo quanto a polícia devia saber.

- Nesse caso, preocupa-a a questão de emprego?

- Talvez. Embora a parte que recebi do tesoiro me permita encarar o futuro sem preocupações, não quero viver ociosa.

- Pode voltar para o meu escritório quando quiser.

Colette agradeceu-lhe com um sorriso e como ele insistisse no desejo de conhecer a causa da sua tristeza, explicou:

- Levam muito tempo a esquecer as tristes recordações deixadas pelos pesadelos.

- Não pense mais nisso. Não tem toda a vida diante de si?

Apesar de todas as exortações, a tristeza de Colette não se dissipou. Deram alguns passos em silêncio. Fourcaud perguntou-lhe aonde queria ir.

- Antes de mais nada, a minha casa.

- Não deve lá ficar. Enquanto esse Lesquent não estiver preso, aconselho-a a ir para casa da sua amiga.

- É o que tenciono fazer. Mas devo ir a casa buscar a roupa, pois deixei quase tudo em Grandlieu.

Separando-se de Fourcaud perto de Saint- Lazare, Colette tomou o "metro", a fim de ir a casa.

Quando se viu sozinha, repetiu maquinalmente: "Nada tem a recear". Depois deixou correr o pensamento. Sim, fora um pesadelo... um pesadelo que matara o sonho.

"Pedro - murmurou. - Para que penso ainda nele quando, neste momento, deve desprezar-me."

Encontrou-se na rua Mont-Cenis com alegria, mas também amargura, reflexo do seu estado de espírito que exultava com o perigo afastado, e chorava a felicidade perdida.

Por uma destas sortes que o acaso muitas vezes nos proporciona, a porteira não a viu entrar e Colette ficou muito contente com o facto. Estava ansiosa por se encontrar no seu cantinho, de se fechar em casa para ocultar dos outros o seu desgosto e poder chorar à vontade.

"Nada tem a recear."

Repetia as palavras tranquilizadoras do comissário Noel, não porque duvidasse delas, mas para embalar a sua amargura, adormecê-la, como a mãe adormece o filhinho, cantando-lhe sempre a mesma canção.

O estúdio pareceu-lhe minúsculo. Habituada às grandes salas de Grandlieu e à vasta perspectiva do parque, tudo aquilo se lhe afigurava mesquinho. Abriu a janela e por muito tempo ficou contemplando a vastidão de Paris, como borboleta que procura espaço e luz.

"Não poderei continuar a viver aqui! - murmurou. - O peso das recordações esmagar-me-ia."

"Dê-me uma esperança, minha querida... amo-a...".

As últimas palavras de Pedro acariciaram-lhe os ouvidos com tanta realidade que, involuntariamente, se voltou. Mas no quarto não estava mais ninguém.

Como tudo aquilo lhe parecia triste nas sombras do crepúsculo! A poeira como que estendera um véu de crepe por cima dos móveis e bugigangas.

"Consente que a trate por Colette?"

Chegava a ser ridículo recordar assim todas as palavras de Pedro!

Pegou na maleta, que já estava preparada em cima de uma cadeira e abandonou a sua casa, como se fugisse. Passou tão depressa diante do cubículo da porteira que esta, apesar de estar à espreita, não teve tempo de a chamar.

Quando chegou à praça Clichy, animada pelo constante vaivém da multidão, conseguiu recuperar a calma e lembrou-se de que os pais de Lina deviam estar à sua espera.

Para eles, o único problema que devia preocupar Colette era o de arranjar emprego.

A esse respeito, ela tranquilizou-os logo.

- Fourcaud ofereceu-me para voltar para o escritório, mas só recomeço a trabalhar daqui a alguns dias.

Sentia-se triste, sem um alvo na vida. O passado voltava-lhe constantemente à ideia.

"Por que se recusou a auxiliar Lesquent quando ele pediu para me libertar?"

Estremecia, como se estivesse ainda enterrada viva, recordava a aspereza da parede que lhe esfolara as mãos, a escuridão, a sensação de asfixia...

"E ele não quis saber!" - repetia.

- Em que está a pensar, Colette? São horas de ir para a cama, é muito tarde - dizia a mãe de Lina. - Esqueça esse homem horrível.

Evidentemente, madame Lassale referia-se a Lesquent.

Na manhã seguinte, às onze, Colette voltou a falar com o comissário Noel. Depois de lhe ter apertado a mão, este mostrou-lhe um telegrama.

Administrador da Circunscrição de Lambaréné à Polícia Judiciária de Paris,

Francisco Lesquent morreu de desastre em N'Gouia, em 17 de Fevereiro de 19... Está enterrado no cemitério de Lambaréné. Segue cópia do processo verbal do acidente.

Colette pousou o telegrama em cima da secretária.

- E Sonnart?

- Fugiu. Ainda lhe seguimos a pista até Tour, mas depois não sabemos para onde foi. A busca efectuada no castelo não nos trouxe qualquer indício de importância. Fugiu, levando consigo a parte do tesoiro de que se apoderou.

- Isso não tem importância.

O comissário fez um gesto de espanto.

- Esquece que essa parte devia representar muitos milhões?

- Se nunca mais ouvir falar desse homem, não paguei muito caro o meu sossego.

- Concordo. Mas devia apresentar queixa.

- Apresentar queixa, porquê?

Desta vez o comissário Noel sorriu, divertido com tanta ingenuidade.

- Usurpação de identidade, falsificação de documentos, sequestração, apropriação ilegal de uma herança... e muito mais ainda.

- Isso basta.

- Para o mandar para a prisão, com certeza. Colette sorriu com tristeza e afirmou:

- Quero esquecer tudo isso, apagar para sempre as más recordações.

Agradeceu ao comissário todas as atenções e abandonou o gabinete.

- É curiosa, esta rapariga! - comentou o comissário Noel. - Mas, apresente queixa ou não, gostaria de travar conhecimento com o tal Sonnart.

Colette passou a tarde a fazer compras e depois foi esperar Lina à estação de Orsay.

Avistando-a, Lina hesitou, pois não podia saber que estava ali por causa dela. Porém, quando a viu dirigir-se-lhe, ficou doida de contente.

As duas amigas beijaram-se e seguiram para casa de braço dado.

- Não estavas aqui por acaso? - perguntou Lina. - Vinhas esperar alguém?

- Vinha... a ti.

Lina quase não acreditava.

Pouco depois, enquanto caminhavam pelo cais, Colette contou-lhe a sua aventura. Com delicadeza, Lina evitou censurá-la e nem sequer lhe revelou a tentativa que fizera para falar a Chavanay. No entanto, não pôde deixar de lhe mencionar o nome.

- Entre nós tudo acabou e não estou longe de pensar que Chavanay vale tanto como Sonnart. É mais elegante, mais distinto, porque sempre foi rico. Mas, como o outro, é egoísta e orgulhoso, pondo a sua pessoa acima de tudo. Não recusou o seu auxílio para me salvar de uma morte horrível? Sonnart é um aventureiro, um bandido, mas não posso esquecer que fez tudo para me tirar do buraco onde eu estava enterrada.

- Com o tesoiro...

- Com o tesoiro, sim.

- Resta saber se era a ti ou ao tesoiro que desejava salvar.

Colette sorriu ao que supunha ser uma ironia da amiga.

Transpuseram a Ponte do Carroussel e atravessaram as Tulherias. Lina voltou à carga.

- As tuas acusações a Chavanay baseiam-se apenas nas declarações de Sonnart, que, segundo tu mesma afirmas, é um bandido.

- Já pensei nisso. Mas na segunda-feira compareci ao encontro e ele não. Não, Lina, Sonnart não mentiu pela simples razão de ignorar que eu e Chavanay nos conhecíamos. Quando Chavanay lhe pediu a direcção da co-proprietária do castelo, ele, simplesmente, revelou-lhe o meu nome e então sua excelência ficou furioso. Supôs que eu tinha estado a fazer troça dele e o seu amor por mim era tão sincero que, pouco depois, quando Sonnart lhe revelou que eu corria o perigo de morrer sepultada viva, respondeu com um dito de espírito, muito engraçado: "É bem feito. Já que fez tanto segredo comigo, deixe-a continuar no segredo...". Foi o mesmo do que condenar-me a uma morte horrível como castigo por uma pequena ofensa - concluiu com as lágrimas nos olhos.

Lina teve grande dificuldade em a acalmar.

Apesar de ter encontrado de novo o conforto de uma amizade sincera, Colette tinha a impressão de que no peito se lhe rasgara uma ferida por onde se escoavam a mocidade e a alegria de viver.

 

Havia três semanas que Colette retomara o seu posto no escritório de Fourcaud quando este lhe comunicou que ia ausentar-se por alguns dias.

- Nesta altura não há assuntos de importância - declarou. - Aproveito para ir passar alguns dias com minha mulher, em Biarritz. Estive a examinar todos os negócios pendentes e não vejo nenhum que possa trazer complicações, excepto o dos fardos de algodão que enviámos para Troyes, para a fábrica Stela. O motorista comunicou-nos que alguns deles se encontram deteriorados e, se o cliente reclamar, será conveniente que a Colette vá a Troyes verificar o estado dos fardos. Vá a própria Colette, não mande ninguém. De resto, Lebaud, que costuma tratar desses assuntos, encontra-se de licença.

Colette ficou muito satisfeita, quando a manufactura Stela telefonou, pedindo a presença de um representante da casa a fim de verificar o estado de certas embalagens.

Sentia a necessidade de empreender a viagem a Troyes, a discussão, as responsabilidades a tomar, tudo constituía salutar diversão para os seus tristes pensamentos.

- Pode aproveitar o automóvel que parte amanhã para Troyes, dos nossos escritórios na rua Boétie - ofereceu o empregado da fábrica Stela.

Colette aceitou.

Para representar condignamente o patrão, escolheu um dos vestidos que melhor lhe ficava, um vestido preto, muito simples, mas comprado num bom costureiro, verdadeira loucura que cometera dias antes. Para o animar, pregou no peito um alfinete de brilhantes, proveniente do tesoiro.

Quando entrou nos escritórios Stela, deu-lhe a impressão de que estavam desertos. Mas como viu a porta aberta, foi andando até encontrar uma secretária que folheava alguns documentos.

- Se quer ter a bondade de esperar um bocadinho, é o nosso director quem pessoalmente vai levá-la a Troyes.

- O senhor Morin?

- Não. O senhor Morin é apenas o director comercial. Refiro-me ao director-geral, que desejou ocupar-se deste assunto. Segundo parece, o senhor Four-caud conhece-o e pediu-lhe para tratar consigo a questão. É muito amável e mais compreensivo do que o senhor Morin.

Colette ficou mais tranquila. Conhecia Morin como um homem rude e tinha jurado defender encarniçadamente os interesses de Fourcaud, considerando que essa seria a melhor forma de lhe manifestar a sua gratidão. Por ela ser mulher e temendo que se deixasse influenciar pelo terrível Morin, Fourcaud recorrera aos seus conhecimentos pessoais para lhe facilitar a tarefa.

- Vou avisá-lo da sua chegada - declarou a rapariga, saindo com um maço de papéis na mão.

Voltou pouco depois e anunciou:

- O senhor Chavanay não tarda.

Colette nem teve ocasião para manifestar a surpresa, porque, quase no mesmo instante, a porta abriu-se e surgiu uma figura elegante que ela muito bem conhecia.

Ao reconhecê-la, Chavanay fez um gesto de espanto.

- Continua no escritório de Fourcaud? Colette sentia-se desfalecer. Encontrava-o tal

como estava gravado na sua memória, duma elegância indiscutível e suprema distinção. No entanto, a despeito da sua habitual reserva, o industrial não conseguiu ocultar a sua perturbação. Foi Colette quem primeiro se dominou:

- Sou a secretária particular do senhor Fourcaud.

- Muito bem.

Com nervosismo, atirou com o cigarro e declarou:

- O carro está à porta. Se quiser, podemos partir.

Desceram sem trocar palavra. Com perfeita delicadeza - um dos seus maiores atractivos - Chavanay auxiliou-a a entrar no "15 CV" preto, que utilizava para tratar dos negócios.

Enquanto não saíram de Paris não trocaram palavra. Colette encontrava-se num estado de espírito tremendo, numa excitação horrível, mas saltava aos olhos que o companheiro não estava mais calmo. Os gestos eram bruscos. Por duas vezes travou tão de repente que por pouco Colette não bateu com a cabeça no pára-brisas.

Uma vez fora de Paris, o conta-quilómetros começou a marcar cem e depois cento e dez. Instintivamente, Colette contraiu os dedos na porta.

- Tem medo?

O tom era cortante e ela esforçou-se por lhe responder com calma:

- Não teria, se não verificasse que está fora de si.

- Não tem importância. Não acha que um pântano como aquele serviria bem para...

- Cale-se!

- É verdade, esquecia-me que tem amor à vida! Entraram numa curva e os pneus rangeram no

asfalto. Chavanay guiava com os olhos fixos na estrada e a contracção dos maxilares provava a sua exaltação e a tensão dos nervos.

- Pode gabar-se de ter sido a primeira mulher que brincou comigo. Faço ideia como riram à minha custa, a senhora e o seu cúmplice!

Colette não lhe respondeu. Para quê? Tinha jurado a si própria evitar discussões. Se tudo estava perdido para ela, de que serviriam?

- E eu que a julguei diferente das outras! Considerava-a um anjo de pureza, quando, afinal, não passa de uma comediante!... A mulher misteriosa que desaparece na avenida Vítor Hugo, a rapariga independente que não se importa de acompanhar um homem a Deauville, mas cuja reserva bastou para o obrigar a guardar as distâncias. A rapariga pobre, honesta, de olhos baixos, que possui um castelo na Normandia e vive modestamente num quarto em Montmartre! Como foi esplêndida a sua cólera, na avenida Foch! "Não sou daquelas que se levam ao Bosque." Enquanto que eu sou daqueles que se deixam iludir com as aparências! Que belo desempenho!...

- Quer fazer-me o favor de ir mais devagar? A calma de Colette mais o excitou.

Desciam uma encosta bastante íngreme para subir a oposta, não menos íngreme também. À frente seguia um camião que ultrapassariam num instante. Depois foi enorme tractor que vinha em sentido contrário, em grande velocidade também. Infalivelmente, o camião seria ultrapassado na altura em que cruzassem com o tractor.

Então Colette pressentiu que seriam esmagados por este.

- Mais devagar, suplico-lhe.

Ao mesmo tempo, agarrou o braço de Chavanay e o automóvel derrapou.

Chavanay, sem perder o sangue-frio, conseguiu restabelecer o equilíbrio, mas estavam a dois passos do camião. Colette fechou os olhos, ouviu o ranger dos pneus e verificou que o automóvel abrandara a velocidade.

Quando Chavanay se voltou para ela, viu-a a chorar.

O carro estava parado rente ao talude. O enorme camião já ia longe, nimbado por densa fumarada.

- Fez mal em me agarrar o braço. íamos caindo no valado quando podíamos muito bem passar.

- E fazia-lhe a vontade, pois iríamos ambos ad patres.

- Talvez. Pergunto a mim próprio se mediu as consequências dos seus actos.

- O senhor conduzia como um louco.

- Não me refiro ao que fez agora, mas ao mal que causou.

- Foi involuntário.

- Não tente enganar-me outra vez.

- Tinha jurado não responder às suas censuras... Hesitou um instante e concluiu:

- Mas não posso deixar-me acusar. Acreditei no seu amor, não receio confessá-lo, e, naquela segunda-feira, compareci ao encontro marcado. O senhor faltou. Por orgulho, já tinha recusado o seu auxílio a Sonnart quando se tratou de me libertar e depois, por amor-próprio, certo de que eu tinha estado a zombar de si, não foi encontrar-se comigo. Acreditou cegamente no que lhe disse aquele homem de quem desconfiava, mas não me deu ocasião para me justificar. Como era sincero o amor que dizia dedicar-me, um amor que não soube resistir ao orgulho masculino!

- Colette, não compreendo o que diz!... Sonnart é o Lesquent?

- É. Depois lhe explicarei tudo. Deixe-me dizer-lhe a verdade, sem tentar esconder os meus erros. Agora, já não tem importância. Quando nos separarmos, fecharei o livro e nunca mais o abrirei, fique sabendo. Talvez mais tarde voltemos a encontrar-nos, mas, para mim, será apenas o director da fábrica Stela.

"Se logo no primeiro dia eu tivesse confessado os meus direitos sobre Grandlieu, talvez se tivesse evitado tudo. Mas não o fiz. No domingo de Páscoa, cheguei a Grandlieu na altura em que o senhor falava com Sonnart, que lhe elogiava o castelo e se referia a uma gratificação. Tive sérios motivos para pensar que se preparava para me roubar e fiquei à escuta sem denunciar a minha presença. Nessa tarde, quando o acompanhei, tentei descobrir qual a sua proposta, mas no dia seguinte já lamentava o meu procedimento e a recordação desse dia tão belo, graças a si, ficou estragada.

Sempre que lhe falava, queria confessar-lhe que era proprietária de Grandlieu, porém quando ia a dizer-lho, calava-me e resolvia adiar a confissão.

- Por que razão me fez acreditar que morava na avenida Vítor Hugo?

- Por orgulho... Não para o convencer de que morava naquele luxuoso edifício, mas para não lhe dar a conhecer o miserável prédio onde habitava. Além disso, receava deixar-me arrastar por si. Era pobre e sentia-me deslumbrada pelo dia maravilhoso que vivi a seu lado. Ainda não sabia distinguir se era amor o que sentia ou apenas atracção pela riqueza.

- Foi por isso que se recusou a ouvir-me quando a fui buscar ao escritório de Fourcaud?

- Foi. Entretanto, na própria tarde em que foi buscar-me, acabava de descobrir que tinha estado para casar. Não sabia bem se gostava de si, mas tinha a certeza de que uma rapariga como eu nunca poderia vir a ser madame Chavanay. Na tarde em que foi a minha casa li um livro sobre Grandlieu e descobri a lenda que afirmava estar ali oculto um tesoiro que ninguém conseguira encontrar ainda. Se nós, eu e meu primo, conseguíssemos encontrá-lo, seria rica e teria um dote.

- Tonta!

- Talvez. No dia em que foi a minha casa, Sonnart visitou-me para me comunicar que tinha a impressão de ter descoberto a entrada do esconderijo e desejava que eu estivesse presente quando tentasse a busca decisiva. Não queria que se vissem um ao outro e por isso lhe pedi para voltar mais tarde... à meia-noite. Nessa segunda visita combinámos tudo. No dia seguinte parti para Grandlieu. Antes, escrevi-lhe a si, transferindo o nosso encontro de sábado para segunda-feira.

- E justamente por me sentir tão triste nesse sábado, resolvi, por minha vez, a viagem à Normandia.

- Ao examinar o fundo do fogão, uma parede móvel desceu como uma cortina, fechando-nos no subterrâneo, a mim e a Sonnart. Pouco depois, não sei como, ele conseguiu sair e foi nessa altura que o senhor apareceu. Queria saber a direcção da co-proprietária do castelo e, quando soube que era eu, ficou tão irritado que se recusou a auxiliar Sonnart a libertar-me. Sabia que eu estava enterrada viva e recusou...

Os soluços embargaram-lhe a voz.

- Foi Lesquent quem lhe contou essa história?

- Quem havia de ser senão ele?

- Pois enganou-a. Ignorava que estivesse em perigo. Se eu soubesse! Colette, suplico-lhe que me acredite. Por que havia eu de mentir nesta ocasião? Como disse há pouco, quando nos tivermos explicado, fecharemos o livro, encerraremos o capítulo dos nossos tristes amores... Fique sabendo que, nesse dia, fui duas vezes a Grandlieu.

Chavanay descreveu-lhe as duas visitas e repetiu-lhe as conversas com aquele a quem continuava a chamar Lesquent.

- Mentiu!... Que homem aquele!

- Mentiu-lhe a si e mentiu-me, e, no entanto, ignorava que nos conhecêssemos. Qual seria o intuito dele?

- Não queria dar a saber que tínhamos descoberto um tesoiro e ao senhor menos do que a qualquer outro, visto tencionar comprar o castelo.

Chavanay concordou.

- E de facto, descobriram alguma coisa?

- E de muito valor. Este alfinete é uma das jóias que me coube na minha parte.

Chavanay reflectiu durante algum tempo e acabou por afirmar:

- A atitude de Lesquent é muito mais simples do que parece. Apareci em Grandlieu numa altura inoportuna. Ele não queria que eu soubesse da descoberta do tesouro, mas ignorava que nos conhecíamos e disse-me o seu nome. Mas quando descobriu que eu reconhecera o seu chapéu e teve a certeza de que não éramos estranhos um ao outro, mentiu outra vez, para mascarar a primeira mentira. Quem mente vê-se preso nas malhas de uma rede cada vez mais apertada. Como conseguiu sair do subterrâneo?

- Lesquent abriu um buraco na parede, arrancou pedras e serrou barras de ferro.

- Eu teria feito tudo para a salvar se a soubesse em perigo.

Colette não podia duvidar mais, porque as pupilas do rapaz ardiam, reflectindo toda a intensidade da paixão. Ficou comovida, mas quando Chavanay tentou apertá-la nos braços, repeliu-o.

- Pelo amor de Deus! Entre nós tudo acabou.

- Mas porquê, se todos os agravos que tínhamos um contra o outro foram provocados pelas manobras daquele patife?

A voz de Colette desfaleceu, soava quase sem timbre quando continuou:

- Naquela segunda-feira, ao abandonar o ponto onde tínhamos combinado o encontro, ia desesperada. As semanas seguintes foram um verdadeiro pesadelo, a despeito de poder considerar-me rica. Quantas vezes pensei que o Destino me oferecera a riqueza com uma das mãos e com a outra me roubara a felicidade! Não sei se lhe falei em Lina, a minha única amiga. Também se afastou por causa do Lesquent, que passou a visitar-me quase todos os dias. De princípio, duvidei da sua honestidade, considerei-o um grosseirão, mas não posso deixar de pensar que lhe devo a vida, que me salvou de uma morte horrível.

- Será melhor dizer que a salvou para salvar o tesouro.

- Talvez. Nunca consegui definir a atitude daquele rapaz. Todos os seus actos eram complexos, difíceis de compreender. Tive dó dele e consentia que me visitasse. lina, mais esperta do que eu, adivinhou o patife debaixo da máscara da simplicidade. Uma tarde, como lhe disse, discutiram, e Lina saiu de minha casa zangada. Nunca mais voltou. Em poucos dias perdi amizade e amor...

Calou-se um instante e prosseguiu:

- Os homens têm muitas maneiras de atrair as mulheres: ostentação, força, riqueza ou despertando compaixão. Foi essa a forma empregada por Sonnart. Via-me só...

- E depois?

- Insistia comigo para casar com ele... Já na altura em que estivemos fechados no subterrâneo me ameaçou de nos deixar morrer os dois, ali, se não lhe prometesse desposá-lo.

- Estava doido!

- Consegui chamá-lo à razão. Mas, como lhe disse, estava sozinha, sentia-me abandonada e ele mostrava-se tão infeliz como eu, sem esperanças na vida. Despedi-me do escritório...

- Fourcaud disse-mo.

- Aluguei um quarto na pensão de Vieux-Port, mas não conseguia esquecê-lo, ali, menos do que em Paris. Quantas vezes me censurei por pensar em si quando ia casar com outro.

- Nesse caso, está casada? - perguntou Chavanay em voz trémula.

- Não; na véspera do casamento tivemos uma discussão medonha, durante a qual o meu suposto primo se mostrou tal como era: uma espécie de fera. Pode considerar-se um verdadeiro milagre que me abriu os olhos a tempo de me salvar. Fugi e, com o auxílio do cura, voltei para Paris. Entre nós nunca houve nada, posso jurar-lhe, Pedro, nem sequer um beijo. Éramos uns noivos muito singulares, pois nunca consenti que me beijasse. Pedro, cala-se, porquê?... Tenho medo! Diga alguma coisa!

- Penso que também eu devia casar com Verónica.

- Cale-se. Não combinámos nunca mais pronunciar o seu nome?

- Só se me prometer nunca mais falar no Lesquente.

- É forçoso que fale ainda para lhe contar o resto. No comboio, encontrei o homem que o visitara e foi ele quem me revelou que Lesquent, o meu verdadeiro primo, tinha morrido em África. A sinistra personagem que vivia em Grandlieu fazia-se passar pelo morto e chamava-se Sonnart.

Descreveu-lhe então a chegada a Paris, a visita a Fourcaud e ao comissário Noel e, por fim, a fuga de Lesquent.

Impressionado com estas revelações, Pedro Chavanay comentou:

- Supunha ter sofrido muito, mas a Colette sofreu muito mais do que eu. Agora, temos o futuro diante de nós, um futuro radioso porque viveremos unidos.

Muito tempo decorreu antes que os dois reparassem que continuavam parados na estrada de Troyes, com o carro arrumado junto do talude. De súbito, Chavanay observou, sorrindo:

- Compreendo agora o telefonema de Fourcaud,

insistindo comigo para ir a Troyes.

- É verdade! - exclamou Colette, a rir. - Esquecia-me de Troyes e dos fardos de algodão.

- Quero lá saber do algodão! Não deve estar tão deteriorado como dizem.

- Mesmo assim, seria bom verificar...

- Não vale a pena.

 

O Outono ainda não tocara de oiro as árvores de Grandlieu, quando Colette, vestida de branco, descia as escadarias do Sacré-Coeur pelo braço de Pedro Chavanay.

Lina, com um lindo vestido azul-pastel, era a primeira das donzelas de honor e acabava de descobrir que o Destino, malicioso como todos sabem, lhe dera o mais encantador dos pares, Luciano Chavanay, o irmão do noivo.

Fourcaud, padrinho da noiva, tinha nos lábios o seu melhor sorriso.

- Boas secretárias não faltam - dizia para quem

o queria ouvir -, mas uma noiva encantadora como esta não se encontra todos os dias, devem concordar.

E, se o seu interlocutor lhe dava um bocadinho de atenção, não se cansava de elogiar Colette.

- Sinto-me feliz por Pedro a ter encontrado e também por Colette ter encontrado Pedro.

Nessa mesma tarde, os recém-casados partiram para Veneza, donde seguiram para Atenas e para o Cairo.

Poucos dias antes de casarem, foram ao cartório do notário regular a sorte de Grandlieu. Colette, única proprietária do castelo, queria vendê-lo.

- Andam ligadas a Grandlieu muitas recordações tristes - afirmava.

- As más recordações desvanecem-se com o tempo, as boas duram sempre - respondeu Pedro. - Guardaremos Grandlieu. Transformá-lo-emos por completo e, no Verão, teremos ocasião de receber ali os nossos amigos.

Quanto ao sinistro Sonnart, ninguém mais conseguiu saber o que tinha sido feito dele, e o comissário Noel arrisca-se a esperar toda a vida para poder conhecê-lo.

 

                                                                                Max Du Veuzit  

 

                      

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