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CATALINA - P.2
CATALINA - P.2

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

CATALINA - P. 2

 

Willian Somerset Maugham

 

 

 

 

XXI.

Quando a multidão se escoou para fora da igreja, em pós do bispo, Martin, que se encolhera consigo na esperança de assim não ser notado, ficou lá dentro até que se viu sozinho. Esperou ainda mais um pouco a fim de poder escapar sem ser visto, mas fê-lo com certa impaciência, pois sabia que toda aquela comoção ia atrair numerosa freguesia. Deixara a padaria entregue aos seus dois aprendizes e receava que estes não pudessem atender a multidão de clientes. Martin não só fazia pão mas também assava carne e pastelões para aqueles que não podiam fazê-lo em casa. Muita gente acharia que a Ocasião devia ser festejada. Quando, afinal, lhe pareceu que podia sair sem perigo, notou a muleta de Catalina caída no pavimento de mármore, onde ela a havia deixado e, como fosse um homem metódico que não gostava de ver rolar coisas pelo chão, apanhou-a e levou-a consigo.
Mas quando o arcipreste voltou para casa, ao sentar-se diante de um jantar que ele bem merecia e de que estava muitíssimo precisado, lembrou-se de que a muleta havia ficado na igreja. Ora, tratava-se de um objecto que não convinha perder de vista, Mandou imediatamente um criado buscá-la e aborreceu-se quando o homem lhe disse que não a pudera encontrar. Não se podia deixar extraviar objecto de tanto
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valor. Assim que terminou o jantar, portanto, enviou várias pessoas a indagar do destino que levara a muleta; mas só no dia seguinte foi informado de que esta se achava na padaria, encostada a um canto. Mandou alguém exigir a devolução. O padeiro entregou-a e o arcipreste guardou-a cuidadosamente, até que pudesse resolver sobre o uso que faria dela.
Assim que Dona Beatriz ouviu a grande notícia, mandou umas freiras à cassa de Maria Pérez para pedir uma relação circunstanciada de tudo quanto havia ocorrido, observar pessoalmente a moça e, se a encontrassem curada como se dizia, presenteá-la com uma corrente de ouro, delicadamente lavrada, que ela Lhes pôs nas mãos, e em troca solicitar a muleta que ela usara durante a sua paralisia, para que fosse colocada como oblata na capela da Virgem, na igreja do convento. Não ficou nada satisfeita quando as freiras voltaram dizendo que nem Catalina, nem sua mãe nem seu tio faziam a menor ideia do fim levado pela muleta. Estava a prioresa resolvida a consegui-la, mas, como não se tratava de assunto que ela pudesse confiar às suas freiras, mandou chamar o administrador das suas propriedades e deu-lhe ordem de averiguar quem estava de posse do precioso objecto e, em seu nome, exigir a devolução. O administrador só tornou dois dias depois, informando que a muleta estava em poder do arcipreste e este não a queria ceder.
Dona Beatriz deu mostras de viva irritação e disse redondamente ao administrador que ele não passava de um asno e um velhaco. Era, porém, mulher de grande discrição. Escreveu ao arcipreste uma carta lisonjeira em que lhe pedia, com termos melífluos, que lhe cedesse a muleta para colocar na igreja em cujos degraus a Virgem tinha aparecido a Catalina.
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Fez-lhe ver que era aquele, evidentemente, o lugar em que cumpria conservar o objecto para edificação das gerações futuras. O arcipreste não respondeu em tom menos cortês, mas obtemperava que, embora por amor a Cristo estivesse mais que disposto a conceder-lhe qualquer favor dentro das suas possibilidades, o milagre ocorrera no interior da igreja da colegiada e ele se sentia no dever de conservar, para maior glória do templo, esse sinal visível da graça divina. Salientava, além disso, que o facto de a muleta ter sido deixada no santuário indicava com toda a clareza ser intenção de Deus que ela ali permanecesse. Seguiu-se então uma troca de correspondência entre os dois, da qual foram banidas todas as expressões de cortesia e de estima pela mútua virtude e piedade religiosa. A prioresa tornava-se cada vez mais autoritária, o arcipreste cada vez mais obstinado. Várias pessoas tomaram partido nessa questão, e o que um deles dizia era repetido ao outro. A prioresa definia o arcipreste como um burrico insolente, roído de concupiscência, enquanto o arcipreste a dava como uma velha megera intrometida, cuja administração do seu convento constituía um escândalo para toda a Cristandade.
Dona Beatriz achou afinal que havia dominado a sua ira tanto quanto o exigia a caridade cristã e podia agora abandonar-se à justa indignação provocada pela conduta impertinente do arcipreste. Mandou chamar mais uma vez o seu administrador. Deu-lhe ordens para procurar o arcipreste e, tomando o cuidado de tratá-lo com todo o respeito devido à sotaina, explicou-lhe que, se ele não entregasse imediatamente a muleta, não devia contar com a protecção do duque, irmão dela, na demanda judicial em que estava envolvido, nem com as promoções na Igreja, que lhe poderia valer o favor de que
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Dona Beatriz gozava junto à corte, acrescentando que ela já não podia deixar de tomar conhecimento dos boatos escandalosos que corriam sobre as relações dele com certa mulher e seria obrigada a levar tais factos à presença do bispo diocesano. Explorava-lhe assim a prioresa, ao mesmo tempo, a cobiça, a ambição e a incontinência. Graças à influência do actual duque de Castel Rodríguez, o arcipreste fora nomeado para uma cortezia na Catedral de Sevilha e o capítulo estava-lhe movendo uma acção para forçá-lo a resignar o cargo por falta de residência. Ele não queria perder os belos emolumentos da cortezia, mas, como não tivesse por si nem a lei nem a equidade, só tinha esperança de vencer a demanda graças à poderosa intervenção do seu protector. Ademais, alimentava o desejo de prestar maiores serviços à Igreja na cadeira episcopal. Por essas razões, não podia dar-se ao luxo de provocar a inimizade da prioresa; e, sendo o seu bispo um homem de moral austera, inquietou-se ele com a ameaça de Dona Beatriz, de denunciar os pecadilhos a que o arrastara a fraqueza da carne. Não necessitou de muito tempo para perceber que fora derrotado, e como tinha de ceder foi bastante sensato para fazê-lo com elegância. Entregou a muleta ao mensageiro, acompanhada de uma carta em que, com os protestos do seu profundo respeito às virtudes de Dona Beatriz, dizia-se forçado, após madura reflexão, a concordar com ela em que o lugar indicado para o precioso objecto era, evidentemente, a igreja de Nossa Senhora do Carmelo.
A prioresa mandou encaixá-la em prata e pendurá-la na capela da Virgem, para edificação dos fiéis.

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XXII.

Na confusão que se estabeleceu quando o povo se escoou da igreja atrás do bispo, Domingo fez sair a irmã e a sobrinha por uma porta lateral e, escolhendo vielas pouco frequentadas, conduziu-as sem novidade para casa. Maria Pérez queria pôr a filha na cama, purgá-la e mandar chamar um barbeiro para lhe aplicar uma sangria, mas Catalina, radiante por ter recobrado o pleno uso dos seus membros, não se conformou com tal coisa. De puro regozijo, subia e descia as escadas a correr e, se isso não fosse indecente, teria dado cambalhotas na sala. As vizinhas vieram dar-lhe as suas felicitações e maravilhar-se ante o milagre. Ela teve de descrever um sem-número de vezes o aspecto da Santíssima Virgem ao lhe aparecer, o traje que usava e tudo quanto lhe havia dito. As outras, por sua vez, contaram-lhe o magnífico sermão do bispo, acrescentando que, empolgadas pela eloquência de Don Blasco, não tinham podido conter as suas águas, de modo que o seu arroubo foi mesclado de embaraço. Pela tarde as grandes damas da cidade mandaram chamar Catalina e fizeram-na andar para baixo e para cima, soltando gritinhos de assombro ao observá-la, como se nunca tivessem visto ninguém caminhar. Faziam-lhe presentes de lenços, mantilhas de seda, meias e até vestidos com muito pouco uso; um alfinete de ouro, brincos com pedras de certo valor e uma bracelete. Catalina jamais possuíra tantas coisas ricas e preciosas na sua vida. Finalmente advertindo-a de que não se ensoberbecesse com o facto de lhe ter sido conferido tão grande favor, mas tivesse sempre presente ao espírito que ela era de família operária
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e faria bem em jamais esquecer a sua condição humilde, despediram-na.
Caiu a noite. Maria Pérez, Domingo e Catalina cearam. Estavam ao mesmo tempo fatigados e desassossegados pelas aventuras do dia. Mãe e filha haviam tagarelado interminavelmente, até não terem mais o que dizer. Domingo insistiu com elas para que fossem deitar-se, mas Catalina respondeu que a sua1 agitação não lhe permitiria dormir. A fim de acalmar a ambas e simultaneamente, pela magia da arte, afazer-lhes o espírito à contemplação da beleza ideal, pôs-se a ler-lhes uma peça que terminara de escrever pouco antes. Catalina escutava com certa desatenção - com um só ouvido, por assim dizer. Absorvido, porém, na situação dramática e encantado com a cadência melíflua dos seus próprios versos, com o seu ritmo elegantemente variado, Domingo não reparou em nada. De repente Catalina pulou da cadeira.
- Aí está ele! - exclamou.
Domingo deteve-se, com uma carranca de exasperação na fisionomia bem-humorada. Ouvia-se na rua a toada de uma guitarra.
- Quem é? - perguntou ele cheio de contrariedade, pois não há autor que goste de ser interrompido na leitura das suas composições.
- É Diego! Mãe, eu posso ir à rótula, não posso?
- Eu julgava que tu tivesses mais energia...
Essas rótulas protegiam as janelas contra a intrusão, não tanto dos ladrões como dos galãs excessivamente empreendedores. Como jovem bem comportada, que conhecia a lascívia dos homens e sabia estar a maior glória de uma mulher na sua virgindade, jamais teria passado pela cabeça de Catalina
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receber o namorado em casa, mas era costume sentarem-se as moças às janelas de noite e, com a rótula de permeio, conversar com o objecto da sua afeição sobre os misteriosos assuntos com que os namorados costumam entreter-se.
- Ele abandonou-te quando tu ficaste doente - prosseguiu Maria Pérez. - Agora que te tornaste famosa e toda a cidade fala a teu respeito, ele volta correndo com o rabo entre as pernas.
- Oh! mãe, tu não conheces os homens tão bem como eu - disse Catalina. - São fracos e fáceis de levar. Como poderia o mundo ir para a frente se nós não fechássemos os olhos diante das tolices deles? É natural que Diego não quisesse casar comigo quando eu estava) inválida. Seus pais tinham encontrado um bom partido para ele. Ele disse-me uma centena de vezes que me quer mais do que às meninas dos seus olhos.
- Não sejas tola. Ele é um sem-vergonha e tu devias ter mais amor-próprio.
- Deixa-a ir - acudiu Domingo. - Quer bem ao rapaz e está tudo dito. Ele não me parece pior do que os demais moços desta época degenerada.
Maria Pérez levantou-se, encolheu os ombros e, apanhando a vela de sebo a cuja luz Domingo estivera a ler, disse:
- Vem ler-me o teu drama na cozinha.
- Isso é que não - respondeu ele. - Rompeu-se o fio da leitura e eu perdi a disposição. És uma excelente mulher, Maria, mas não reconheces a diferença entre um pentâmetro e o rabo de uma vaca e eu não posso fazer justiça à minha própria obra, a menos que tenha um auditório capaz de apreciar-me.
Catalina ficou a sós. Dirigiu-se para a janela e avistou,
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recortada contra as trevas da noite, uma figura que lhe fez bater com força o coração.
- Diego!
- Catalina!
E deste modo, ainda que bem tarde, introduzimos um herói na nossa história.
O pai dele era um próspero alfaiate que trabalhava para as pessoas mais notáveis da cidade, e desde verdes anos Diego aprendera a manejar a agulha, talhar calções e ajustar um gibão. Tornara-se um rapagão alto e rijo, com um belo par de pernas, cintura fina e amplas espáduas. Tinha uma magnífica cabeleira, brilhante do azeite que ele lhe aplicava generosamente, pele azeitonada, olhos pretos e ousados, boca sensual e nariz recto. Era, em suma, um mancebo de esplêndida aparência e Catalina achava-o mais belo do que a luz do dia. Era animoso e exasperava-se por ter de passar horas e horas sentado, com as pernas cruzadas, a costurar, sob o olhar exigente do pai, tecidos de lã, seda, veludo e damasco, que seriam usados por homens mais afortunados do que ele. Sentia-se talhado para coisas mais elevadas e, nos seus caprichosos devaneios, representava muito o papel grandioso no palco da vida.
Enamorou-se. Os pais sofreram um choque quando ele lhes disse que, se não lhe dessem permissão de casar com Catalina Pérez, sentaria praça e iria para os Países Baixos ou far-se-ia marujo para ir correr aventura nas Américas. A única fortuna de Catalina era a casa que ela herdaria por morte da mãe e suas únicas perspectivas de futuro, a vaga possibilidade de que seu pai voltasse um dia carregado de ouro das ignotas terras do ocidente. Mas os pais de Diego eram astutos. Ele não tinha mais de dezoito anos e julgavam que a sua fantasia leve
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de rapaz se voltaria, com o tempo, para um objecto mais digno das suas afeições. Contemporizaram, fazendo-lhe ver com muita sensatez que era absurdo iniciar a vida conjugal antes de haver terminado a sua aprendizagem, mas que se então ele persistisse no mesmo intento, encontrá-los-ia dispostos a discutir o assunto. Não se opuseram às suas idas todas as noites à janela de Catalina, que ele entretinha com serenatas e conversas amorosas. Mas quando o touro feriu a jovem e a deixou parcialmente paralisada, este facto não pôde deixar de parecer-lhes uma intercessão especial da Providência. Diego horrorizou-se com o acidente, mas foi obrigado a concordar com seus afectuosos pais em que desposar uma aleijada era coisa fora de cogitação, e quando sua mãe lhe disse pouco depois que, segundo informações fidedignas que recebera, ele havia caído nas graças da filha de um lojista abastado e esta não lhe repeliria os galanteios, ficou suficientemente lisonjeado para dedicar grande atenção à moça. Os respectivos pais dos dois jovens entrariam em entendimento e concluiriam, em princípio, que a união seria mutuamente vantajosa. Restava apenas combinar os termos e, como fossem ambos atilados negociantes, as negociações pnolongaram-se.
Tal era, pois, o estado de coisas quando Diego tornou a apresentar-se diante da janela de Catalina. Além de aprender a tomar medidas, cortar e coser, ele também aprendera nos seus poucos anos de vida que uma pessoa do sexo forte nunca deve desculpar-se e ela, ainda que muito jovem, sabia que era inútil formular censuras a um homem. Por mais detestáveis que sejam os seus actos, lançar-lhos em rosto não faz mais do que irritá-lo. A mulher sensata contenta-se em deixar que ele pese a sua culpa, na consciência e, se ele não encontra nenhuma
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é tempo perdido incriminá-lo. Não perderam tempo, por conseguinte, em ralhos da parte dela nem em escusas da parte de Diego, mas foram direito ao ponto essencial.
- Coração de minha alma! - disse ele. - Eu adoro-te!
- Meu tesouro, meu precioso amor! - respondeu ela.
É desnecessário repetir as coisas doces e ridículas que disseram um ao outro. Disseram o que costumam dizer os amantes. Diego tinha o dom da palavra e vinham-lhe aos lábios, espontaneamente, expressões que encantavam Catalina de tal forma que lhe pareceu quase ter valido a pena passar aquelas longas semanas de misérias para gozar nesse momento uma felicidade tão arrebatadora. A escuridão da sala, atrás de si, ocultava-a quase por completo às vistas de Diego, mas o som da sua voz, baixa e doce, e o cascatear do seu riso punha-lhe o sangue em fogo.
- Maldita seja esta grade que nos separa! Oh! porque não me é dado tomar-te nos braços, cobrir o teu rosto de beijos e apertar contra o teu o meu coração palpitante?
Ela sabia perfeitamente em que teria resultado isso e a ideia não lhe desagradava em absoluto. Conhecia a paixão licenciosa dos homens e sentia um estremecimento de orgulho e ao mesmo tempo um aperto no coração por se ver tão ardentemente desejada por Diego. Arquejava um pouco.
- Oh! meu querido, que podes tu desejar de mim que eu não te queira dar? Mas se me amais, não me podes pedir aquilo que seria um pecado mortal e que, em todo o caso, estas barras de ferro tornam impraticável.
- Dá-me então a tua mão.
A janela a que Catalina estava sentada ficava a certa altura da rua, de forma que para atender à solicitação do seu
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amado ela teve de ajoelhar-se no chão. Passou a mão por entre as grades e ele apertou-a contra os lábios sôfregos. As mãos de Catalina eram pequeninas, com os dedos afilados, mãos de uma dama de alta posição. Orgulhava-se delas e, para conservá-las macias e brancas, lavava-as todas as noites na sua urina. Acariciou suavemente a face de Diego, enrubesceu e riu quando ele introduziu na boca o polegar pequenino.
- Sem-vergonha! - disse ela. - Que mais tens para inventar? - E retirou a mão. - Comporta-te e conversemos como pessoas ajuizadas.
- Como posso eu conversar com juízo quando tu me arrebatas os sentidos? Pede antes, mulher, a um rio que volte atrás e torne a subir para a sua fonte.
- Então é melhor que te vás. Começa a ficar tarde e eu estou cansada. A filha do dono do armarinho deve estar à tua espera e tu não tens razão para ofendê-la.
Disse estas palavras com uma pérfida doçura, e elas provocaram a resposta que Catalina esperava.
- "La Clara"? Importo-me lá com ela! É corcunda, vesga e tem cabelos que (parecem o pêlo de um cão sarmento.
- Mentiroso! - respondeu Catalina alegremente. - É verdade que ela tem o rosto marcado de bexigas e os dentes um pouco amarelos, com falta de um, mas fora isso não é feia e tem muito bom génio. Não posso censurar teu pai por querer que cases com ela.
- Meu pai pode ir...
Aquilo que Diego dava licença ao pai de ir fazer era qualquer coisa tão grosseira que um escritor que se respeita vê-se forçado a deixá-lo à imaginação do leitor. Catalina não estava desacostumada à linguagem franca da sua época e nem
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sequer pestanejou. A expressão enfática do namorado causou-lhe até uma certa satisfação.
- Estive na igreja esta manhã - prosseguiu ele - , e quando te vii erguida em toda a tua beleza, foi como se uma espada me trespassasse o coração e compreendi que nem todos os pais do mundo me podiam separar de ti.
- Eu fiquei aturdida. Não sabia onde estava nem o que me tinha acontecido. Sentia tonturas. Depois, foi como se um milhão de alfinetes e agulhas me picassem as pernas, de tal forma que eu não poderia suportar a dor nem mais um minuto, e não tive consciência de mais nada até que dei comigo nos braços da mamã, que ria e chorava ao mesmo tempo, e eu desatei a chorar também.
- Tu correste, e quando te vimos correr todos nós gritámos de alegria e de assombro. Corrias como uma pomba que foge do caçador, corrias como corre uma ninfa dos bosques ao ouvir vozes humanas, corrias como... - Neste ponto falhou-lhe a inventiva e ele acrescentou um tanto sem graça: - Corrias como um anjo do céu. Eras mais bela do que a aurora.
Catalina escutava-o com grande contentamento e estava disposta a ouvir muito mais coisas do mesmo teor, mas a voz de sua mãe veio interrompê-los.
- Vem deitar-te, menina. Queres que toda a vizinhança se ponha a falar? Além disso, precisas de descanso.
- Boa noite, meu amado.
- Luz dos meus olhos, boa noite.

Ora, sucedeu que o pai de Diego e o lojista andavam desentendidos desde alguns dias, por causa de um pedaço de terra que o alfaiate desejava como dote da jovem, mas de que
o lojista não se podia resolver a separar-se. Com toda a probabilidade, o assunto teria sido decidido por comum acordo se o alfaiate não mostrasse de súbito uma obstinação desrazoável e (na opinião do lojista) mesquinha. Houve uma troca de más palavras e a ideia do casamento acabou por ser abandonada. Não foi sem motivo que o alfaiate recusou modificar as suas exigências: o milagre conferira a Catalina uma notoriedade que lhe seria proveitosa no negócio; eJa não só era uma menina boa e honesta, mas também hábil costureira. Dizia-se que várias damas da cidade, encantadas com a modéstia e os bonitos modos da moça, estavam dispostas a cotizar-se para lhe oferecer um dote aceitável. Chegou à conclusão de que, consentindo no enlace anteriormente condenado por ele próprio, podia tornar o filho feliz e fazer ao mesmo tempo um excelente negócio. Desaparecia, assim, o último obstáculo à felicidade dos ternos namorados.


XXIII.

Mal sabiam eles que, enquanto continuavam a conversar todas as noites através da rótula, dizendo as mesmas tolices acima descritas, com pouca variedade mas com grande satisfação mútua, uma grande dama no seu oratório, à distância de uma pedrada dali, estava arquitectando um plano que os tocava de perto.
Dona Beatriz era uma mulher devota que cumpria escrupulosamente os seus deveres. O convento que ela dirigia era um modelo para a comunidade e os inspectores que o visitavam
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jamais encontraram motivos para criticá-la. Mantinha uma disciplina perfeita. Os serviços da igreja eram conduzidos com um decoro exemplar. Tanto no procedimento como na devoção, era irrepreensível. Mas nutria no coração um ódio mortal a certa freira de Ávila, Teresa de Cepeda por nome, ódio esse que nem os preceitos da religião nem as repetidas censuras do seu confessor logravam mitigar. Essa freira, conhecida na religião como Madre Teresa de Jesus, mas jamais designada pela prioresa a não ser como "La Cepeda", ingressara no convento da Encarnação, em Ávila, onde Dona Beatriz fora primeiro aluna e depois noviça. Tinha despertado grande indignação afirmando receber graças especiais, êxtases e a visão do Nosso Senhor, com a cabeça cercada por um nimbo resplandecente; isso, para não falar numa ocasião em que escorraçara o diabo, que estava sentado em cima do seu breviário, atirando-lhe água benta. Mas a situação atingiu a culminância quando, descontente com a frouxidão da regra das carmelitas, ela deixara o convento e fundara outro, onde se seguia uma regra mais rigorosa. As freiras de quem se havia separado viram nisso um estigma lançado sobre elas e um insulto à ordem e fizeram tudo quanto estava no seu poder para que a nova instituição fosse suprimida. Mas Teresa de Cepeda era uma mulher cheia de energia, resolução e coragem; vencendo uma oposição incansável, fundou convento após convento de carmelitas descalças, como eram chamadas essas freiras porque, em lugar dos fortes sapatos usados pelos outros membros da ordem, andavam de sandálias de corda. E antes de morrer, poucos anos antes da época em que se passa esta história, tinha ela visto triunfar a sua reforma.
Ninguém a combatera com mais tenacidade do que Dona Beatriz.
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Nunca se conformara com as excessivas mortificações, visões e êxtases alegados pelas freiras de "La Cepeda". Existia um antagonismo natural entre essas duas mulheres de grande força de vontade. Quem era aquela criatura orgulhosa, intrometida, presunçosa e má para se colocar acima de todos os demais? Em certa ocasião ela fora ao ponto de pedir ao bispo que lhe permitisse fundar uma instituição em Castel Rodríguez. Já havia conquistado então muitos amigos poderosos, tanto na corte como entre o clero, e Dona Beatriz, decidida a não permitir que essa mulher colocasse pé na cidade que ela considerava como seu domínio, fora obrigada a usar de toda a sua influência para combater o plano. Seguiu-se uma luta ferrenha, cujo resultado ainda estava pendente quando Teresa de Jesus morreu.
Conquanto rezasse pela sua alma (transviada, Dona Beatriz não pôde deixar de soltar um suspiro de alívio. Convenceu-se de que, já não estando em actividade o espírito inquieto e dominador de "La Cepeda", a reforma não tardaria a cair no olvido e as freiras tornariam com o tempo à antiga regra. Não suspeitava da força da impressão deixada pela Madre Teresa de Jesus nas suas filhas espirituais e nos sacerdotes que tinham tido contacto com ela. Dentro em pouco começaram a correr histórias sobre os milagres que ela realizara em vida; e os portentos que lhe assinalaram a morte. Ao expirar, tão suave aroma se exalara do seu corpo que foi preciso abrir as janelas da cela para que as pessoas presentes não desfalecessem e, ao ser exumado nove meses depois, o corpo foi encontrado intacto e isento de corrupção, enchendo todo o convento com o mesmo aroma suave. Doentes curavam-se ao tocar nos seus restos mortais. Já muitas pessoas influentes
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se empenhavam pela sua beatificação, e Dona Beatriz acabou compreendendo que, mais cedo ou mais tarde, "La Cepeda" seria canonizada.
Havia algum tempo que esse pensamento a enchia de inquietude. Tal coisa seria um título de orgulho para a ordem dos descalços. É verdade que não faltavam santos entre os carmelitas da ordem mitigada, e ambos os seus fundadores tinham sido canonizados; mas isso acontecera muito tempo atrás, e tal era a frivolidade do povo que se sentia mais inclinado a fazer suas devoções a um santo de data recente do que àqueles que, desde séculos, estavam de posse desse sublime título. Mas, se não podia impedir que a ordem adventícia recebesse uma honra, aos seus olhos injustificada, algo podia fazer para contrabalançá-la, provendo a sua própria ordem de uma candidata à canonização. A Providência apomtara-lhe o caminho e seria um pecado não o seguir. Lázaro era santo sem que houvesse para tal, que lhe constasse, outro motivo senão o facto de ter sido objecto de um dos milagres de Nosso Senhor. Catalina era uma rapariga devota e virtuosa, e o milagre graças ao qual recobrara a saúde não fora testemunhado apenas por duas ou três freiras emotivas e padres interesseiros, mas por uma vasta multidão. Tendo recebido tão assinalada marca do favor divino, parecia muito justo que ela devotasse o resto da existência ao serviço do Senhor. Dona Beatriz ouvira dizer que ela se supunha enamorada de um rapaz da cidade, mas afastou tal coisa das suas cogitações. Não podia crer que uma mulher sensata pensasse a sério em casar com um alfaiate quando podia gozar os benefícios, tanto espirituais como mundanos, decorrentes do ingresso no Convento da Encarnação das carmelitas, de que ela era a prioresa.
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Se a rapariga correspondia à descrição que tinham feito dela as freiras que a conheciam, não podia deixar de trazer crédito ao convento e a graça que recebera acrescentaria nova distinção ao estabelecimento. Era ainda bastante moça para poder ser educada, e Dona Beatriz esperava fazer dela suma digna religiosa. Não havia motivo para supor que a Santíssima Virgem deixasse de se interessar por ela e seria muito possível que Catalina se tornasse recipiente de novas graças. A sua fama espalhar-se-ia e quando, afinal, fosse libertada do martírio desta vida, seria, sem dúvida alguma, uma candidata tão aceitável à beatificação quanto a turbulenta freira de Ávila.
Dona Beatriz ponderou durante alguns dias o seu projecto. Quanto mais o considerava, mais lhe agradava. Como era, porém, mulher de muita discrição, achou prudente não o pôr em prática sem a aprovação do seu director espiritual. Mandou-o chamar. Era um homem digno e simples, cuja piedade ela estimava mas de cuja inteligência não fazia muito alta opinião. Ele aplaudiu-lhe o desejo de dar a Nosso Senhor uma noiva a quem Sua Mãe condescendera em dispensar tão grande favor e que seria, por tal motivo, uma honra para a comunidade. E isso era natural porque, embora a prioresa se houvesse alongado sobre a gratidão que a rapariga devia sentir pela sua cura milagrosa e a sua provável boa disposição de passar o resto da vida ao serviço do Senhor, acharia desnecessário comunicar ao bom homem os motivos ocultos que constituíam a mola mestra do seu desejo. Ele levantou, todavia, uma objecção.
- Pelos estatutos deste convento, a admissão é reservada às damas de nascimento nobre. Catalina Pérez, embora de sangue limpo, é de origem modesta.
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A prioresa tinha uma resposta pronta para isto.
- Eu reputo a condescendência que Nossa Senhora mostrou por ela como uma patente de nobreza. Aos meus olhos, isso torna-a igual aos mais orgulhosos da terra.
Tal resposta, nos lábios de tão alta senhora, encheu de admiração o frade e, se possível, aumentou ainda a veneração em que tinha Dona Beatriz. Assentado o ponto principal, restava apenas considerar os meios de o pôr em prática. O plano da prioresa era mandar chamar a moça e fazer-lhe ver a utilidade, para o seu bem espiritual, de realizar um retiro de certa duração no convento, a fim de poder agradecer devidamente ao Criador os benefícios que lhe tinham sido conferidos; e prevendo que Catalina, devido à infeliz ligação que contraíra, se pudesse opor a isso, rogou ao frade que revelasse o seu plano ao confessor da jovem, levando-o a insistir com ela para que aceitasse a proposta, e mesmo a ordená-la, se fosse necessário. O director de consciência da prioresa consentíu de muito boa vontade.
No dia seguinte, pois, Dona Beatriz mandou chamar Catalina. Até então só a tinha visto uma vez:, e nessa ocasião mal olhara para ela. Impressionou-a a beleza da moça e, com um sorriso em que apenas se notava a sua habitual severidade, fez uma amável observação a respeito. Não gostava de freiras feias. Sempre achara impróprio oferecer a Nosso Senhor noivas que não aliassem à graça espiritual um exterior atraente. Ficou encantada com os modos modestos de Catalina, com a sua voz suave e a distinção da sua aparência. Nada havia nela de vulgar e a sua linguagem, graças ao ensino ministrado por Domingo, era não só correcta mas elegante. A prioresa surpreendeu-se de ver uma flor tão mimosa brotar em tão humilde solo.
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Desfizeram-se todas as dúvidas que pudesse ter nutrido sobre o acerto do seu plano: a jovem era evidentemente talhada para as honras, e que maior honra havia do que servir a Deus? Catalina sentía-se tomada de um temor respeitoso diante dessa aristocrática senhora cuja reputação de virtude e severidade ela bem conhecia, mas Dona Beatriz tratou de a pôr à vontade. O seu rosto mostrava uma expressão benigna que as freiras raramente tinham ocasião de ver, e Catalina perguntou consigo, admirada, por que motivo inspiraria tanto medo a todas elas. Era amiga de tagarelar e, vendo-se tão amavelmente encorajada, pôs-se a contar a essa simpática ouvinte toda a história da sua breve existência, com as agruras da pobreza, suas atribulações e suas alegrias, e nem por um instante suspeitou da habilidade com que a prioresa lhe guiava a narrativa para a fazer revelar as suas inclinações, a sua natureza honesta e o encanto do seu carácter. Sem um tremor, mas com benévola indulgência, Dona Beatriz ouviu-a descrever a beleza e os méritos de Diego, a sua ternura e bondade, contando como os pais dele, que dantes a viam com tão maus olhos, se haviam abrandado de tal maneira que já não restava nenhum obstáculo à felicidade de ambos. A prioresa desejou ouvir dos lábios dela como a Virgem lhe tinha aparecido, as palavras textuais que pronunciara e como, de um momento para outro, desaparecera diante dos seus olhos. Foi então que sugeriu, gravemente mas com brandura, que, numa natural gratidão da graça que recebera, Catalina devia fazer um retiro no convento para pôr as ideias em ordem e devotar-se durante algum tempo à contemplação das coisas celestes. Catalina ficou embaraçada, mas tinha o hábito de dizer a primeira coisa que lhe vinha à cabeça e já havia perdido quase completamente
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o temor que lhe inspirava a sua interlocutora, de modo que não hesitou em falar com franqueza.
- Oh! Reverenda Madre - exclamou ela - , isso é impossível! Estivemos tanto tempo separados que o coração do meu Diego se partiria se tornássemos a separar-nos agora. ele diz que só vive na espera da hora em que costumamos comversar à minha janela. Eu definharia de tristeza se deixasse de o ver todos os dias a essa hora.
- Não posso insistir consigo, menina, para que faça uma coisa que não deseja. Um retiro só lhe poderia ser benéfico se você o fizesse pelo amor de Deus e com o sincero desejo de emendar-se. Confesso que você me decepcionaria se fosse tão pouco grata à Virgem Santíssima pela sua bondade, que lhe regateasse o pouco do seu tempo necessário para lhe render graças; e não posso crer que esse moço, se a ama tanto como você diz e é tão bom assim, leve a mal que por algum tempo, talvez umas duas ou três semanas apenas, em retribuição à graça divina que os tornou a unir, você se devotasse à prece, tanto para sua salvação como dele. Mas não falemos mais nisso. Só lhe peço que consulte o seu confessor sobre o assunto. É possível que ele considere vã a minha proposta, e nesse caso a sua consciência estará em paz.
Despediu-a então, após a presentear com um rosário de contas de âmbar.


XXIV.

Não foi nenhuma sumpresa para Dona Beatriz quando, dois ou três dias depois, lhe vieram comumicar que Catalina estava na sala de visitas e pedia permissão para fazer um retiro.
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Mandou-a buscar, recebeu-a prazerosamente, beijou-a e confiou-a aos cuidados da mestra de noviças. Deram a Catalina uma cela que olhava para o bem tratado jardim das freiras. Ainda que austeramente mobilada, era espaçosa, limpa e fresca.
A prioresa escusava de pedir (e seus pedidos eram ordens que Catalina fosse tratada com indulgência e bondade, porquanto a sua beleza, modéstia e encanto cativaram imediatamente todos os corações. Freiras, noviças, irmãs leigas e pensionistas, todas a traziam nas palmas das mãos. Gostavam da sua alegria e mimavam-na como a uma criança muito querida. Embora a cama em que ela dormia fosse tal como o prescreviam as regras da ordem, era luxuosa em comparação com aquela a que estava habituada, e a comida, simples e sem temperos como convinha, era excelente e na pobreza da sua casa ela jamais provara coisas semelhantes. Peixe, galinha e caça eram fornecidos pelas propriedades da prioresa e as pensionistas convidavam-na aos seus quartos para lhe oferecer doces e outras guloseimas.
Dona Beatriz foi discreta, contentando-se em deixar que a moça percebesse por si mesma as delícias da vida conventual, com a sua paz, a sua agradável actividade e a sua protecção contra o tumulto e as preocupações do mundo. A sua monotonia era temperada pelas visitas, feitas durante a hora do recreio, de distintas damas da cidade e dignos cavalheiros, na maioria parentes da prioresa ou das freiras, e cuja conversação não se limitava inteiramente a assuntos religiosos. Catalina ficou bastante lisonjeada com as atenções de que era alvo. Tinha concordado em fazer o retiro com certo espírito de rebeldia, ante a ordem do seu confessor reforçada pela persuasão materna, mas não o estava achando nada desagradável.
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Teria sido estranho que deixasse de comparar favoravelmente a vida ditosa e bem organizada das freiras com a que ela tinha em casa, com o seu constante mourejar, sempre assombrada pelo espectro da penúria. Em certas temporadas não havia procura para o género especial de trabalhos que ela e a mãe executavam, e nessas ocasiões só os incertos ganhos de Domingo as salvavam de passar fome. Deleitava-se nos serviços religiosos a que assistia com todos os membros da comunidade na pequena mas linda igreja anexa ao convento. A prioresa tinha ouvido musical e esmerava-se para que a parte de canto não deixasse a desejar e os ritos fossem conduzidos não só com devoção mas com verdadeira pompa. Catalina, com a sua sensibilidade aguçada, encontrava nela não só um deleite para os sentidos mas um enriquecimento espiritual. Com grande surpresa sua, descobriu que a vida do convento não era uma prisão, como receava, mas antes uma libertação. Gostava de agradar, e agradava; desejava ser amimada, e era-o. Embora sentisse falta de Diego e pensasse nele constantemente, tinha de confessar a si mesma que esse retiro lhe ficaria na recordação como um dos episódios mais agradáveis da sua existência.
Todos os dias, pela tarde, Dona Beatriz mandava-a chamar e retinha-a consigo durante uma hora. Jamais mencionava o seu desejo de que Catalina entrasse para a religião, conquanto o desejasse, não apenas pelos motivos já referidos, mas porque não tardara a perceber que a moça, além de virtuosa, inteligente e de fácil compreensão, tinha personalidade e seria um ornamento para a ordem. A prioresa não lhe falava como uma alta senhora, Madre Superiora de um convento, mas como uma amiga cheia de afecto. Procurava ganhar influência sobre
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Catalina, mas sabia que era preciso agir com cautela. Contava-lhe histórias de santos para edificá-la e histórias da corte para lhe mostrar que as pessoas da religião também podiam desempenhar um papel nos negócios de estado. Falava-lhe dos assuntos do convento e da administração das suas propriedades, não sem uma certa intenção de a impressionar favoravelmente com a importância e responsabilidade ligadas ao cargo de prioresa do convento das carmelitas de Castel Rodríguez. A possibilidade de atingir essa posição bem poderia deslumbrar a filha de Maria Pérez, a costureira.
Mas é dificílimo guardar segredos num convento e, embora Dona Beatriz nunca houvesse falado a ninguém do seu plano, não tardou a tornar-se conhecido entre as freiras e pensionistas o objectivo que tinha em vista, os privilégios concedidos a Catalina e a predilecção que lhe demonstrava a temível Madre Superiora. Certo dia, uma expansiva freira disse à jovem o bem que lhe queriam todas e quanto desejavam que ela ali ficasse para sempre. Uma senhora, que se hospedara no convento porque o marido andava na guerra, disse-lhe que o seu maior desejo seria estar livre para se fazer freira.
- Se estivesse no seu lugar, menina, pediria, amanhã, à Reverenda Madre que me aceitasse como noviça.
- Oh! não, eu vou casar...
- Você terá arrependimento para o resto da vida. Os homens são por natureza brutais, infiéis e sem consideração.
A dama era corpulenta, de aspecto letárgico e tez pálida. Catalina achou no seu íntimo que, se o marido dela era tão mau assim, não deixava de ter as suas razões para tal.
- Como pode você hesitar, quando o Noivo Celeste lhe
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estende os braços para recebê-la? - prosseguiu a dama, levando um confeito à boca.
Certa ocasião, durante a hora de recreio, uma senhora da
cidade beliscou a face de Catalina e disse em tom malicioso: - Ouvi dizer que dentro em breve teremos uma linda
santinha no convento. Prometa lembrar-se de mim nas suas
orações, pois sou uma grande pecadora e contarei consigo para me conseguir a entrada no Paraíso.
Catalina atemorizou-se. Não desejava tornar-se freira e
muito menos santa. Recordou-se de certas observações fortuitas a que não havia ligado importância no momento de ouvi-las. De repente, percebeu claramente que todas aquelas mulheres esperavam que ela ingressasse na vida religiosa. Nessa tarde, ao entrar como de costume no oratório da prioresa, fê-lo cheia de inquietação. Dona Beatriz notou que qualquer coisa não conriia bem. Foi direita à questão.
- Que aconteceu, menina? - perguntou ela, interrompendo subitamente as palavras de Catalina.
A moça estremeceu e corou.
- Nada, Reverenda Madre.
- Tens medo de me dizer? Não sabes que eu te quero como se fosses minha filha? Esperava que ao menos me tivesses um pouco de afeição.
Catalina desmanchou-se em lágrimas. A prioresa estendeu os braços num gesto afectuoso.
- Vem, senta-te aqui, minha filha, e dize qual é a causa do teu aborrecimento.
Catalina foi sentar-se aos pés da prioresa.
- Quero ir para casa! - soluçou.
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Dona Beatriz empertigou-se, mas recobrou num instante a
serenidade.
- Não estás satisfeita aqui, minha querida? Temos feito tudo para tornar-te feliz. Conquistaste a estima de todas.
- Essa estima é uma prisão para mim. Sou como uma lebre apanhada numa armadilha. As freiras, as senhoras pensionistas, todas parecem ter como certo que eu vou entrar no convento. Mas eu não quero!
A prioresa foi tomada de uma cólera repentina ao ver que as tolas mulheres a tinham traído, levadas pelo seu excesso de zelo, mas não deixou que o seu rosto grave acusasse em absoluto o que sentia.
- Ninguém pode alimentar o desejo de forçar-te a fazer aquilo que só pode ser um acto livre da vontade, conduzida pela inspiração divina. Não deves censurar essas senhoras porque não queiram perder-te, na afeição que conceberam por ti. Quanto a mim, não nego que me permiti desejar que Nossa Senhora te inspirasse o desejo de tornares-te uma de nós, em reconhecimento da grande mercê que recebeste. Serias uma honra e uma glória para o nosso convento. Sei que, além de seres humilde e piedosa, tens óptima cabeça. Infelizmente, muitas das nossas freiras não chegam a aliar a inteligência à bondade. Estou velha e os encargos da minha posição já começam a pesar-me. Talvez tenha sido um pecado entregar-me a devaneios ociosos;, mas seria uma grande felicidade para mim ter-te ao meu lado, com o teu tacto, a tua bondade natural e o teu bom senso, para compartilhares os meus trabalhos e ocupar o meu lugar quando o meu Pai Celestial me chamar para junto de Si.
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Fez uma pausa, esperando a resposta. Afagou com brandura a face da jovem.
- É muito gentil comigo, Reverenda Madre. Não lhe posso agradecer suficientemente a bondade. Teria um grande desgosto se a senhora me julgasse ingrata. Sou indigna da grande honra que me tem reservada.
Se bem que nestas palavras não houvesse uma recusa clara da deslumbrante oferta, a prioresa era demasiado sagaz para deixar de perceber o que elas implicaram. Teve a impressão de que, ao lado do temor que notava em Catalina, havia também obstinação, e suspeitou que uma nova tentativa de persuadi-la não faria mais do que acirrar essa obstinação. Não se deu por vencida, mas a sua discrição sugeriu-lhe que, de momento, seria prudente operar uma retirada.
- Esse é um assunto que deves decidir por ti mesma, de acordo com os ditames da tua consciência, e estou longe de querer influenciar-te.
- Então posso ir para casa, Reverenda Madre?
- Tens liberdade de ir para onde quiseres. Peço-te como um favor, e em respeito ao teu confessor, que permaneças aqui durante o tempo que ele determinou. Tenho a certeza de que não nos podes ser desafeiçoada a ponto de nos privares do encanto e da graça da tua presença durante os poucos dias que ainda restam.
Catalina só pôde responder que se sentiria feliz em ficar e a prioresa despediu-a com um beijo afectuoso. Vendo-se novamente a sós no seu oratório, mergulhou em profunda meditação. Não era mulher que aceitasse uma derrota. Estava agastada com Catalina, mas, como se se tratasse de uma emoção sem qualquer proveito, reprimiu-a imediatamente. Tinha um
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espírito forte e inventivo, e ocorreram-lhe vários planos. Pesou cuidadosamente as vantagens e desvantagens. Sentia-se justificada em lançar mão de quaisquer meios, desde que não houvesse pecado, para garantir o bem-estar da jovem neste mundo e a sua salvação no outro, alcançando ao mesmo tempo um objectivo que traria crédito à ordem. Era evidente que, antes de mais nada, cumpria recorrer a uma persuasão mais forte do que a sua, para procurar trazer Catalina ao bom partido. Ninguém lhe pareceu mais indicado para isso do que Dom Blasco de Valero, bispo de Segóvia: fora ele que realizara o milagre de curá-la, a sua alta posição e a sua santidade impunham respeito. Sentou-se e escreveu uma carta em que pedia ao bispo que viesse conversar com ela sobre um assunto em que necessitava dos seus conselhos.


XXV.

Ele respondeu por um recado, dizendo que viria no dia seguinte, e com uma pontualidade desacostumada na Espanha. apresentou-se à hora marcada. A prioresa foi direita ao assunto.
- Desejava falar com Vossa Excelência sobre Catalina Pérez.
O bispo aceitou a cadeira que lhe oferecia Dona Beatriz, mas sentou-se na borda, como não querendo abandonar-se ao seu escasso conforto. Esperou em silêncio, com os olhos baixos, que a Reverenda Madre prosseguisse.
- A conselho do seu confessor, ela está fazendo um retiro
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na nossa casa. Tenho tido ensejo de falar com ela. Estudei-lhe o carácter e as inclinações. É mais instruída do que muitas senhoras de nascimento nobre. É muito bem educada e tem um procedimento exemplar. A sua devoção por Nossa Senhora é muito sincera. Possui todas as qualidades requeridas para a vida religiosa, e após a assinalada mercê que Deus houve por bem conferir-lhe, por intermédio de Vossa Excelência, parece ser um dever natural de gratidão da parte dela dedicar a sua existência ao serviço do Senhor. Seria um ornamento para a nossa ordem e, aipesar da sua origem modesta, eu não hesitaria em aceitá-la nesta casa.
O bispo não respondeu. Inclinou a cabeça sem erguer os olhos, .mas era impossível saber se se tratava de um gesto de aprovação ou se isso queria apenas indicar que ele estava escutando. A prioresa alçou as sobrancelhas.
- Ela é muito moça, não sabe bem o que quer, e talvez seja muito natural que se sinta atraída pelos vãos deleites do mundo. Eu sou uma mulher ignorante e pecadora, e não me pareceu que pudesse falar-lhe com proveito sobre o assunto. Ocorreu-me que seria uma digna acção da parte de Vossa Excelência falar com ela e apontar-lhe, como ninguém é capaz de fazê-lo melhor, onde se encontram ao mesmo tempo o seu dever e a sua felicidade.
Dessa vez o bispo respondeu:
- Eu não me envolvo com mulheres. Adoptei a regra de não ais receber em confissão, e nunca violei essa regra.
- Bem conheço a pouca inclinação de Vossa Excelência a ter qualquer trato com o meu sexo, mas este é um caso excepcional. O senhor restituiu-a à vida, não pode abandoná-la agora, deixando que a sua alma corra perigo por falta de
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uma palavra de advertência. Seria o mesmo que salvar um homem a ponto de afogar-se e deixá-lo na praia para morrer de fome e frio.
- Se essa menina não tem vocação para a vida religiosa, não creio que tenha o dever de instar com ela para que se faça freira.
- .Vossa Excelência deve saber que muitas mulheres o têm feito por terem perdido alguma pessoa muito chegada por não ter sido possível arranjar-lhes um marido conveniente e até por uma decepção amorosa. Nada disso impediu que se tornassem excelentes freiras.
- Não duvido disso, e sou forçado a crer que Deus por vezes arrebata a taça aos lábios dos mundanos a fim de chamá-los ao seu serviço, mas no caso dessa menina não há razão para supor que exista qualquer dos motivos mencionados por Vossa Reverência. Tomo a liberdade de lembrar-lhe que não é menos possível alcançar a salvação no mundo do que num convento.
- Mas é muito mais difícil e menos seguro. Porque teria Nossa Senhora concedido a Vossa Excelência o poder de realizar esse milagre para a sua maior glória, se não fosse com o desígnio de fazer resplandecer aos olhos de todos a auréola de luz que cerca essa menina e conduzi-los ao arrependimento?
- Não é a nós, pecadores, que compete indagar dos motivos do Omnipotente.
- Mas pelo menos podemos ter a certeza de que eles são bons.
- Podemos.
Dona Beatriz não gostou muito da lacónica brevidade do bispo. Estava mais acostumada a uma efusiva loquacidade por
parte daqueles com quem se dignava conversar. Prosseguiu com um certo tom de aspereza na voz:
- É uma retribuição mínima que lhe peço, em troca do favor e protecção que a minha família sempre dispensou à sua ordem. Recusará o meu pedido para que veja essa menina, examine as suas inclinações e lhe mostre onde está a verdadeira felicidade, caso venha a formar dela uma opinião tão alta como a que eu formei?
O bispo levantou imediatamente os olhos - não para desviá-los da prioresa e sim para olhar pela janela. Dava esta para o jardim, mas na sua absorção ele não viu nem os ciprestes que o ornavam, nem os aloendros em flor.
Intrigava-o aquela insistência,. Não lhe parecia crível que essa mulher dura e soberba tivesse em mira apenas a felicidade de uma costureirazinha. O prior do convento em que estava hospedado contara-lhe que ela havia lutado com unhas e dentes para impedir que Madre Teresa de Jesus fundasse um convento em Castel Rodríguez. Todos conheciam o ódio que as carmelitas da velha ordem nutriam para com as da nova. Brotou-lhe no espírito a suspeita de que fosse por alguma razão relacionada a isso que Dona Beatriz estava tentando seduzir Catalina a emtrar no convento; e, se recorria ao seu auxílio, era porque encontrara a jovem pouco disposta. Encarou pela primeira vez a prioresa e os seus olhos escuros e trágicos procuraram sondar-lhe os pensamentos mais íntimos. Ela suportou-lhe o olhar com altiva serenidade.
- Supondo-se que eu falasse a essa menina e chegasse à conclusão de que é meu dever persuadi-la, com a ajuda do Senhor, a ingressar na vida religiosa, eu sentir-me-ia inclinado
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a pensar que ela estaria mais a gosto num convento de carmelitas descalças do que nesta casa de senhoras da nobreza.
O súbito relâmpago de cólera, imediatamente reprimido, que ele notou nos olhos de Dona Beatriz, mostrou-lhe que havia acertado, se não com a verdade, pelo menos com algo muito próximo desta.
- Seria duro para com a mãe da menina separá-la por completo da filha única - volveu suavemente a prioresa. - As carmelitas descalças não têm casa nesta cidade.
- Unicamente, se estou bem informado, porque Vossa Reverência persuadiu o bispo a recusar permissão à Madre Teresa de Jesus para fundar um estabelecimento aqui.
- Já existem conventos de mais na cidade. "La Cepeda" não queria aceitar uma doação e assim a sua comunidade representaria um ónus para o município, que não se pode dar ao luxo de tais despesas.
- Vossa Reverência fala com pouco respeito de uma mulher cheia de santas virtudes.
- Era uma mulher de origem muito humilde.
- Engana-se, senhora. Ela era de nascimento nobre.
- Tolices! - tornou asperamente a prioresa. - O pai recebeu patente de nobreza no começo deste século. Há-de desculpar-me se não mostro mais tolerância do que o nosso falecido e venerado rei para com essa gente que, sem qualquer justificativa, assume uma posição a que não tem direito. O país está a enxamear com essa nobreza de sarjeta.
Tal era a categoria em que se encaixava o próprio bispo. Sua Excelência sorriu de leve.
- Fosse qual fosse a sua origem, não se pode negar que Madre Teresa foi uma mulher piedosa, que recebeu muitas
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graças do Alto e cujos trabalhos pela causa da religião são dignos dos maiores louvores.
Tão encolerizada estava Dona Beatriz que não notou que o bispo observava as menores mudanças de expressão do seu rosto, todos os gestos de impaciência que faziam as suas mãos delicadas.
- Vossa Excelência há-de permitir que eu discorde. Eu conheci-a e tive ensejo de falar com ela. era uma criatura inquieta e desassossegada que vivia a entreter-se com doidos caprichos sob pretexto de religião. Que necessidade havia de deixar o convento e, com escândalo dos seus concidadãos, fundar um novo? Havia excelentes e santas freiras na Encarnação, e a regra era severa.
- Essa regra, instituída por Santo Alberto e mitigada pelo Papa Eugénio IV, preceituava o jejum quatro vezes por semana, desde a festa da Exaltação da Santa Cruz, em Setembro, até ao Natal, e proibia que se comesse carne no Advento e na Quaresma,. Cada freira tinha de passar pelas disciplinas nas segundas, quartas e sextas-feiras, e devia-se observar silêncio das completas à prima. O hábito era negro e usavam-se sapatos. As camas não tinham lençóis de linho.
- Devo ser uma mulher muito estúpida - disse a prioresa, pois não vejo porque o facto de se usarem sandálias de corda em vez de sapatos de couro favoreça uma espiritualidade mais elevada, nem porque se honre mais o Senhor usando um hábito de lona em vez de sarja. "La Cepeda" dizia ter-se separado da nossa antiga ordem para ter mais tempo de se entregar à oração (mental e à contemplação, e no entanto passou toda a vida a vaguear de um lado para outro. Impunha
silêncio às suas freiras e era a maior tagarela que conheci na minha vida.
- Se Vossa Reverência lesse a vida de Madre Teiresa, escrita por ela própria, passaria sem dúvida a olhar com mais indulgência essa santa criatura - respondeu o bispo num tom frígido.
- Já li. A princesa de Eboli mandou-ma. Escrever livros não é ocupação própria de mulheres. Devem deixar isso aos homens, que são mais instruídos e têm melhor entendimento.
- Madre Teresa de Jesus escreveu-o em obediência a uma ordem do seu confessor.
A prioresa sorriu secamente.
- Não acha notável que o confessor dela nunca lhe tenha mandado fazer nada que ela não houvesse resolvido fazer de antemão?
- Lamento que Vossa Reverência considere com tanta dureza uma mulher que conquistou a afeição e a estima não só das suas freiras mas de todos aqueles que tiveram o privilégio de entrar em contacto com ela.
- Ela dividiu e ameaçou arruinar com as suas inovações a nossa antiga ordem, e não posso deixar de crer que a inspirassem a ambição e o despeito.
- Vossa Reverência sabe, sem dúvida alguma, que em razão dos milagres devidamente atestados que Madre Teresa realizou durante a sua vida-, bem como dos milagres que se verificaram por sua intercessão depois da sua morte, muitas pessoas influentes e respeitáveis já se estão empenhando junto a Sua Santidade para conseguir a sua beatificação.
- Estou informada disso.
- E não me enganarei ao supor que o seu motivo para
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desejar que a jovem Catalina Pérez entre para a sua ordem é a ideia extravagante, concebida por si, de que a notoriedade que cerca essa menina poderia, de certo modo, comtrabalamçar a fama que adviria para as carmelitas descalças da beatificação da sua fundadora?
Se a prioresa se surpreendeu com a argúcia do bispo, a sua fisionomia não o deixou perceber de modo algum.
- Temos tido suficientes santos na nossa ordem para nos mantermos serenos se Sua Santidade se deixasse transviar por pessoas interesseiras e monjas supersticiosas, ao ponto de conferir tão grande honra a uma rebelde perniciosa.
- Não respondeu à minha pergunta, senhora prioresa.
O orgulho de Dona Beatriz não lhe permitiu mentir.
- Eu não consideraria desperdiçada a minha vida se, em toda a humildade, me fosse dado auxiliar uma alma anelante a alcançar tal perfeição que se tornasse digna de ingressar na companhia dos santos. Seria um bem para todos se ela pudesse desfazer assim o mal causado por Teresa de Cepeda. Se o senhor não me quiser ajudar a fazer aquilo que é, estou convicta, um serviço meritório prestado a uma pobre alma em luta com a incerteza, terei de fazê-lo por mim mesma.
O bispo encarou-a longamente, com uma expressão severa.
- É meu dever lembrar a Vossa Reverência que obrigar quem quer que seja a entrar numa instituição religiosa contra a sua vontade constitui um crime passível de censura especial e de excomunhão "latae sontentiae".
A prioresa empalideceu mortalmente, não de medo ante essa terrível ameaça, mas de cólera por ele se ter atrevido a fazê-la. E no entanto, aquelas palavras fizeram com que um arrepio lhe percorresse a espinha. Pela primeira vez na vida
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sentia o domínio do macho. Manteve um silêncio ofendido. O bispo levamtou-se e despediu-se com as costumeiras expressões de cortesia. Ela respondeu com uma altiva inclinação de cabeça, mas ficou sentada na sua cadeira.


XXVI.

Participou com decoro dos ofícios do dia, mas podemos supor que tivesse o espírito perturbado. Não pretendia abandonar o seu projecto e já havia reflectido sobre o que fazer no caso que o bispo recusasse lançar mão da sua autoridade e poder de persuasão para auxiliá-la. Embora achasse vantajoso e honroso para a ordem que Catalina abraçasse a religião entrando no convento que seu pai tinha fundado, estava sinceramente convencida de que isso contribuiria também para o bem-estar espiritual da menina e para a edificação dos fiéis. Muito bem sabia a prioresa que o único obstáculo real era a infeliz afeição que a tola criatura devotava ao jovem alfaiate chamado Diego. Impacientava-se ao pensar que, por um motivo tão insignificante, Catalina estivesse disposta a abrir mão das grandes vantagens que a vida religiosa lhe oferecia, tanto neste mundo como no outro. Mas a pessoa sensata aceita as coisas como as encontra e, conhecendo a situação, passa a manejá-la de maneira que consiga o resultado desejado.
A prioresa começou, pois, por mandar chamar a mestra de noviças. Essa freira, Dona Ana de San José, era discreta, inteligente e digna de confiança, e porfiava pelos interesses do convento. Tão grande era a sua dedicação à prioresa,
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tão perfeita a sua obediência, que se Dona Beatriz a mandasse atirar a um rio ela o tinha feito sem um instante de vacilação. A prioresa começou por Lhe perguntar qual a opinião que formara de Catalina. Dona Ana teceu-lhe os maiores louvores. Era devota, obediente, bondosa e prestativa. Aclimatara-se à vida conventual como se tivesse sido feita para ela.
- É pena que a sua modesta estirpe a impeça de entrar na nossa comunidade.
- Deus não faz acepção de pessoas - tornou gravemente Dona Beatriz. - Aos Seus olhos não há diferença entre nobres e mal-nascidos. Se a menina tem a necessária inclinação é possível superar a dificuldade. Não há motivo para que a regra instituída por meu pai não possa ser modificada por meu irmão, em se tratando de um caso excepcional.
- As suas filhas teriam muita satisfação em recebê-la como companheira.
- Para mim também seria uma fonte de satisfação incluí-la no número das dignas mulheres à frente das quais o Senhor houve por bem colocar-me.
A prioresa deteve-se alguns momentos para escolher as palavras. Insinuou então a Dona Ana que seria bom fazer correr entre as freiras, as pensionistas ("damas de piso", como eram chamadas) e as visitas que ela estava disposta a aceitar Catalina como noviça. Aquela maravilhosa ocorrência trouxera-lhe uma fama que o tempo tornaria conhecida através da Espanha. Era natural que ela desejasse abraçar a vida religiosa e seria uma glória para a cidade se Catalina habitasse no convento das carmelitas e, pelas suas orações, conquistasse para ela o favor especial da Divindade. Não se podia, por certo, esperar que uma menina possuísse a força de vontade necessária
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para resistir à pressão da opinião pública e recusar os aplausos, a admiração mesmo, com que seria recebida a sua decisão de abandonar o mundo e os seus prazeres transitórios. Mas Dona Beatriz era uma mulher prática e não ignorava que as vantagens práticas também têm o seu peso. Mandou a obediente freira falar com Maria Pérez, comunicando-lhe a boa impressão que ela, a prioresa, tivera das virtudes e aptidões de sua filha e o que, em consequência, estava disposta a fazer por ela. Estava segura de que Dona Ana faria compreender a Maria Pérez a grande honra conferida à filha, honra que redundaria em seu crédito, e a vida muito superior, tanto material como espiritualmente, que isso proporcionaria a Catalina em lugar do casamento com um filho de família pobre, que bem podia sair-lhe um vadio, um ébrio ou um jogador. Finalmente, Dona Beatriz encarregou a freira de dizer que ela própria pagaria o dote necessário para o ingresso na vida religiosa e, como Maria Pérez estava envelhecendo e sem a ajuda da filha talvez viesse a encontrar-se em penosas circunstâncias, teriia prazer em dar-lhe uma pensão bastante grande para lhe proporcionar conforto durante o resto da vida, sem a necessidade de trabalhar.
Essas ofertas eram tão tentadoras que Dona Ana se encheu de admiração ante a caridade e munificência da sua superiora. A extraordinária mulher não esquecia nada. A prioresa despediu-a com a recomendação de escolher um momento favorável para transmitir a mensagem e fazer ver a Maria Pérez a necessidade de um sigilo absoluto, pois se ela falasse naquilo ao irmão, o dissoluto Domingo, esse endiabrado homem bem poderia persuadi-la a uma recusa.
A mestra de noviças desempenhou a sua missão com rapidez
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e habilidade, e dentro de vinte e quatro horas informou Dona Beatriz de que Maria Pérez recebera com humiildade e gratidão os seus generosos oferecimentos. Como fosse espanhola e vivesse numa época de grande devoção, não tinha dúvidas de que servir a Deus num estabelecimento religioso era a existência mais digna que se pudesse escolher. Ter uma filha freira ou um filho monge constituía uma honra para qualquer família, a quem isso conferia, ademais, uma espécie de direito sobre a indulgência divina. Mas uma distinção como essa de ter uma filha sua numa casa de damas nobres era coisa com que ela jamais havia sonhado. Sentiu um pequeno estremecimento de orgulho quando a freira lhe disse que já consideravam Catalina como uma santinha e, meio a gracejar - pois era uma criatura alegre e bem-humorada - acrescentou que se ela não desmentisse aquele começo e se a Virgem continuasse a mostrar-lhe o seu favor, não havia razão para que Maria Pérez não se tornasse um dia a mãe de uma virgem canonizada pelo papa. Pintariam então quadros de Catalina, os quais seriam colocados nos altares, e viria gente de todas as partes para tocar-lhe nas relíquias e curar-se das suas doenças. Essa perspectiva deslumbrante bastava para inflamar a ambição de qualquer mulher. Tampouco se mostrou Maria Pérez insensível à pensão que lhe era oferecida. O trabalho mediante o qual ganhava o seu sustento era fatigante e maltratava os dedos, e seria maravilhoso não ter nada que fazer de manhã à noite senão ir à igreja e ficar sentada à janela, observando os que passavam.
- Ela não falou desse rapaz que, segundo creio ter ouvido dizer, anda fazendo a corte a Catalina? - perguntou a prioresa
depois de ouvir com satisfação o que a freira tinha para lhe comunicar.
- Não gosta dele. Diz que ele se portou muito mal quando a pobre menina sofreu o acidente. Acha-o egoísta e presunçoso.
- Seria difícil encontrar um homem que não sofresse de ambos esses defeitos - disse secamente a prioresa. - O egoísmo e a presunção fazem parte da natureza masculina.
- Também não gosta da mãe dele. Parece que, quando o marido de Maria fugiu para a América, a mãe do rapaz disse a toda a gente que era bem feito, porque ela lhe dava uma vida de cachorro.
- Não duvido nada. É a vida que a maioria das mulheres dão aos seus maridos. Não lhe terá insinuado que seria bom fazer saber a Catalina, como se isso partisse dela própria, o quanto ficaria contente se a menina resolvesse entrar no convento?
- Pareceu-me que não havia nenhum mal nisso.
- Muito pelo contrário. A senhora fez muito bem, Dona Ana, e estou satisfeita com a maneira inteligente por que conduziu este assunto.
A freira corou de prazer. Dona Beatriz estava mais habituada a ralhar do que a elogiar.


XXVII.

A prioresa deixou passar alguns dias, até se espalhar a notícia de que Catalina seria recebida no convento das carmelitas se o espírito do Senhor lhe inspirasse a decisão de
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tomar o véu. A notícia foi recebida com satisfação. Todos concordaram em que tal coisa redundaria em glória para a cidade e era da mais alta conveniência que a jovem o fizesse. Não parecia bem que a recipiente de tão prodigiosa graça se tornasse esposa de um alfaiate. A mestra de noviças desempenhou-se com êxito da sua missão pessoal. Tornou a procurar Maria Pérez e advertiu-a de que devia conduzir a filha com muito tacto, sem insistir com ela, mas comparando, quando se apresentasse ocasião, a tranquilidade e a segurança da vida monástica com os perigos, trabalhos e agruras do matrimónio. Tinha Dona Beatriz o dom de conquistar a dedicação e a lealdade dos seus subordinados, e entre estes ninguém era mais leal e dedicado do que o administrador dos bens do convento e das suas propriedades particulares. Era um fidalgo chamado Don Manuel de Becedas, parente distante da prioresa. Conhecia a generosidade desta, pois administrava as suas esmolas e admirava-lhe a capacidade. Dona Beatriz tinha grande tino para negócios e sabia levar a bom termo uma transacção difícil, com tanta habilidade como qualquer homem. Era razoável, mas depois de tomar uma resolução não havia nada que a fizesse mudar. Quando isso sucedia não havia outro remédio senão obedecer-lhe, e em tais ocasiões Don Miguel obedecia cegamente. Ela mandou-o chamar e deu-lhe ordem de proceder a uma indagação completa, tanto na cidade como em Madrid, sobre os antecedentes e as actuais circunstâncias de Dom Manuel de Valero, o soldado, averiguando ao mesmo tempo tudo que se pudesse saber sobre o jovem Diego Martínez e seu pai. Quando Don Miguel trouxe as informações desejadas, a prioresa já havia mandado Catalina para casa com um lindo
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presente e os protestos da sua sólida afeição. Catalina disse-lhe adeus com lágrimas nos olhos.
- Não esqueças, minha filha, que se algum dia tiveres um aborrecimento ou te encontrares em dificuldade, será bastante que me venhas procurar e eu farei tudo quanto estiver em mim para ajudar-te.
Dona Beatriz ouviu com atenção tudo que o administrador tinha para lhe dizer e ficou satisfeita com os resultados das suas investigações. Pediu-lhe então que buscasse um ensejo de falar com Don Manuel e, no correr da conversa, lhe dissesse casualmente que ela teria prazer em receber um homem de quem ouvira dizer tanto bem.
Após o fiasco da colegiada Don Manuel fechara-se durante três dias nos seus aposentos, sem querer ver ninguém. Era vaidoso e, portanto, sensível ao ridículo. Conhecia muito bem o espírito escarninho dos seus compatriotas e não ignorava que se estavam divertindo à sua custa. Não cria que alguém se aventurasse a atirar-lhe à cara qualquer alusão à sua desventura, pois era bom esgrimista e muito valente seria aquele que se arriscasse a ser trespassado por uma espada por causa de uma pilhéria; mas não podia impedir que falassem dele pelas costas. Quando, afinal, se aventurou a mostrar-se em público, fê-lo com um ar truculento que servia de plena advertência aos presentes. Estava furioso não só por haver feito papel de tolo mas porque pusera em perigo os seus planos. Ao vir a Castel Rodríguez, como talvez se recorde o leitor, a sua intenção era encontrar uma moça casadoira, em alguma das famílias nobres mas empobrecidas do lugar, e tinha boas razões para pensar que a sua bela fortuna o tornava um partido aceitável. Mas a humilhação pública a que se expusera diminuíam-lhe
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de muito as probabilidades de êxito. A nobreza da cidade era orgulhosa - o orgulho, nesses tempos difíceis, era tudo quanto lhe restava - e teriam recusado a mão de uma de suas filhas a um homem que era alvo da galhofa geral. Afigurava-se a Don Manuel que só lhe restava ir a Madrid, na esperança de que a lamentável história ainda não tivesse chegado à capital, e ver se não podia encontrar por lá uma noiva que lhe conviesse.
Não foi pequena a sua surpresa quando Don Miguel lhe trouxe o amável recado da prioresa; sentia-se ao mesmo tempo lisonjeado, pois nunca lhe ocorrera que ela se dignasse recebê-lo. Dona Beatriz pertencia a um murado tão superior ao seu que era como se fosse uma habitante de outro planeta. Don Manuel disse que consideraria uma honra poder apresentar os seus respeitos à prioresa em qualquer ocasião que esta achasse conveniente. Respondeu o administrador que ela recebia poucas pessoas além de seus parentes e designou uma hora em que as numerosas obrigações de Dona Beatriz a deixavam livre.
- Virei buscá-lo amanhã, senhor, se assim lhe convém, e eu mesmo o conduzirei ao convento - disse ele.
A proposta convinha perfeitamente a Don Manuel.
Foi introduzido no oratório e ficou a sós com a nobre dama. Estava ela sentada à sua mesa, escrevendo, e não se levantou para recebê-lo. Don Manuel correu os olhos em redor, procurando uma cadeira, mas como a prioresa não o convidasse para sentar-se ficou em pé, um tanto sem jeito. Embora fosse um homem audaz e descarnado, a dignidade de Dona Beatriz intimidava-o. Ela falou-lhe com muita gentileza.
- Muito tenho ouvido falar, senhor, da coragem, dedicação e capacidade com que por tantos anos tem servido el-rei, e tinha curiosidade de conhecer um compatriota que, pelos seus próprios esforços,, alcançou tão altas distinções. Esperava que o senhor tivesse tempo de me visitar, a fim de poder felicitá-lo pessoalmente pelos seus grandes feitos.
- Nunca sonhei que uma visita minha pudesse ser-lhe agradável, iminha senhora - gaguejou ele.
Mas começou a sentir-se mais à vontade. Se a filha do grande duque de Castel Rodríguez lhe dirigia cumprimentos, a sua situação não podia ser tão desesperada assim. Mas a observação seguinte de Dona Beatriz, embora acompanhada de um sorriso, deixou-o um pouco desconcertado.
- Muito tem subido, Don Manuel, desde o tempo em que corria descalço pelas ruas da sua aldeia, conduzindo os porcos de seu pai!
Ele corou, mas, não sabendo o que responder, manteve-se calado. Dona Beatriz olhou-o de alto a baixo, exactamente como se se tratasse de um lacaio a quem estivesse pensando em ajustar. Se lhe notou o embaraço, não fez caso. Tinha diante de si um homem de belo físico e aparência bastante agradável, porte aprumado e um ar de virilidade. A prioresa sabia-o com quarenta e cinco anos, mas ele tinha-os muito bem conservados. Era um pouco mais alto do que seu irmão, o bispo, que por sua vez não era pequeno, e embora tivesse os ossos bem providos de carne estava longe de ser gordo. Possuía belos olhos e, apesar de se notar no seu rosto uma certa expressão de brutalidade, isso era muito natural num homem que passara tantos anos na guerra e não causava má impressão à prioresa, que não suportava os homens molengas. Na verdade, Don Manuel era arrogante, gabolas e licencioso, mas tais defeitos eram
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comuns aos próprios parentes de Dona Beatriz e, conquanto os deplorasse na sua qualidade de religiosa, na de mulher aceitava-os como traços masculinos, com a mesma resignação com que aceitava o frio penetrante do Inverno castelhano. Em conjunto, a primeira impressão que teve de Don Manuel não foi nada desfavorável.
Pareceu reparar pela primeira vez que ele ainda continuava em pé.
- Porque permanece em pé, senhor? Não me quer fazer a bondade de sentar-se?
- É muito amável, senhora. E sentou-se.
- Eu tenho uma existência muito reclusa e os meus deveres religiosos, combinados com as obrigações atinentes ao meu cargo, trazem-me ocupadíssima. Não obstante, de quando em quando chega-me alguma notícia do mundo que se estende para fora destes muros. Ouvi dizer, por exemplo, que além do dever filial o seu objectivo ao visitar a terra que o viu nascer era escolher uma noiva entre as famílias nobres da cidade.
- Após ter servido durante tantos anos o meu rei e a minha pátria, é verdade que tenho o desejo de construir um lar e gozar os prazeres da vida doméstica, de que até hoje tenho sido privado.
- Seu desejo é louvável, senhor, e acresce ainda mais a estima que me inspira a sua reputação.
- Sou um homem forte e activo e tenho uma fortuna considerável. Quer-me parecer que as aptidões que possuo serão tão úteis na corte como mostraram ser no campo de batalha.
- E, se bem o entendo, o senhor não ignora que uma
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esposa inteligente e de família influente lhe pode prestar serviços na corte.
- Não o nego, senhora.
- Tenho uma sobrinha viúva, a marquesa de Cananera, cujo marido infelizmente a deixou sem os necessários recursos. Actualmente vive nesta casa. Eu esperava que ela resolvesse adoptar a vida religiosa, tornando-se minha sucessora quando finalmente eu depuser as minhas árduas funções, pois ela teria plenos direitos ao cargo, neta que é do nosso fundador. Mas falta-lhe a vocação, e eu convenci-me de que é preciso arranjar-lhe um partido conveniente.
Don Manuel pôs-se alerta. Era um homem astuto: a possibilidade de uma aliança com tão grande família como a dos duques de Castel Rodríguez estava tão fora das suas esperanças que não pôde deixar de suspeitar alguma trapaça. Respondeu com prudência.
- Eu não pretendia casar com uma viúva, mas sim com uma jovem a quem pudesse amoldar de acordo com o meu desejo.
- A marquesa tem vinte e quatro anos, idade muito apropriada para um homem da sua - replicou Dona Beatriz com certa aspereza. - É bastante bonita e, como teve um filho, que morreu do mesmo mal que arrebatou o pai, não é certamente estéril. O facto de eu a ter escolhido para me suceder após a minha morte prova que faço alta opinião das suas capacidades. Escuso de salientar que um Don Manuel de Valero nunca poderia aspirar a um casamento com a sobrinha do duque de Castel Rodríguez. Eu teria, mesmo, de empregar todos os meus poderes de persuasão para induzir meu irmão a consentir nesse casamento.
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Don Manuel estivera a reflectir com rapidez. Escudado na influência dessa poderosa família, quem podia prever as alturas a que ele subiria? Tal aliança seria um triunfo sobre os imbecis que pretendiam ridicularizá-lo.
- O marquês de Catranera morreu sem deixar herdeiros para o título. Não seria impossível convencer el-rei a que o concedesse ao senhor. Seria muito preferível a esse miserável título italiano que possui actualmente.
Isto decidiu a questão. Embora a marquesa fosse velha, dez anos mais velha do que a noiva almejada por ele, e talvez fosse feia, as vantagens do casamento eram tão grandes que não havia hesitação possível.
- Não sei como mostrar a minha gratidão a Vossa Reverência pela honra que tenciona conferir-me.
- Eu lhe direi como - volveu ela calmamente. - Para dizer a verdade, só pretendo levar avante o projecto se o senhor der provas eficazes da sua gratidão.
Don Manuel abafou um suspiro de alívio. Era demasiado astuto para não perceber que essa inesperada proposta se baseava em motivos mais fortes do que a sua simples fortuna e reputação militar. Como tinha um espírito grosseiro, ocorreu-lhe logo a ideia de que a marquesa estivesse grávida e o houvessem escolhido para perfilhar um fruto de amores ilegítimos. Em tal caso, não tinha a certeza se aceitaria ou não o convite; esperou, pois, com alguma ansiedade que Dona Beatriz prosseguisse.
- Desejo que o senhor exerça a sua influência junto ao arquiduque Alberto, em favor de um moço desta cidade. Não teria necessidade de recorrer ao senhor se não fosse a infortunada circunstância de meu irmão ter tido uma violenta disputa
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com ele, estando por isso incapacitado de me ajudar. Ouvi dizer que o senhor é muito estimado pelo arquiduque.
- Ele tem a bondade de fazer boa opinião das minhas capacidades.
Devemos explicar que o arquiduque Alberto era nesse tempo o comandante supremo das forças espanholas nos Países Baixos.
- Seria muito proveitoso para esse moço entrar no serviço do arquiduque. É forte, corajoso, e daria sem dúvida alguma um bom soldado.
Don Manuel sentiu-se grandemente aliviado. O arquiduque devia-lhe toda a sorte de favores. Teria prazer, sem dúvida, em prestar-lhe serviço aceitando nas suas forças qualquer recomendado seu.
- Creio que não seria difícil conseguir o que Vossa Reverência deseja. Esse moço, naturalmente, é de boa família.
- É um cristão-velho de sangue limpo.
Isso, naturalmente, significava apenas que ele não tinha qualquer mácula de sangue judeu ou mouro. Don Manuel notou que a resposta não correspondia à sua pergunta.
- E como se chama ele, minha senhora?
- Diego Martínez.
- O filho do alfaiate? Nesse caso, minha senhora, é impossível satisfazer o seu pedido. Os soldados que servem no exército do arquiduque são cavalheiros, e eu não podia fazer a Sua Alteza a afronta de solicitar O que a senhora deseja.
- Já previa essa dificuldade. Tenho uma pequena propriedade a certa distância de Castél Rodríguez, propriedade que estou disposta a doar ao moço, e por intermédio de meu irmão posso obter que lhe seja conferida carta de nobreza.
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A pessoa que o senhor recomendaria ao arquiduque não seria o filho do alfaiate, mas o fidalgo Don Diego de Quintamilla.
- Não é possível, senhora prioresa.
- Nesse caso, não há mais que dizer e é inútil continuarmos a discutir o assunto ou aquele a que nos referimos anteriormente.
Don Manuel estava aborrecidíssimo. O casamento proposto pela prioresa proporcionar-Lhe-ia a posição que almejava para satisfazer as suas ambições, e suspeitava que se recusasse aceder-lhe ao pedido faria uma inimiga perigosa. Por outro lado, as consequências poderiam ser funestas para ele se viessem a descobrir a sua participação num plano que o arquiduque bem poderia considerar como um insulto pessoal. Dona Beatriz notou-lhe a perturbação.
- Que tolice, Don Manuel! Don Diego será um homem de posses e, creia-me, a sua propriedade suportará favoravelmente a comparação com as sáfaras terras que possui seu pai, Don Juan.
Don Manuel era um fanfarrão. Encolheu-se sob essa chicotada da língua de Dona Beatriz. Ela tinha o poder de arruiná-lo e não hesitaria em o fazer.
- Posso saber por que motivo Vossa Reverência se interessa tanto por esse rapaz? - perguntou em voz hesitante.
- A minha família sempre teve na conta de um privilégio, não menos que um dever, dispensar a sua protecção às pessoas merecedoras da nossa cidade.
Esta resposta cautelosa restituiu a confiança ao soldado, que sorriu. O olhar que ele lançou à prioresa, porém, era astuto.
- Ele é o namorado da Catalina Pérez, não é?
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Dona Beatriz sentiu-se insultada pela pergunta, pelo sorriso e pela astúcia do olhar de Don Manuel. Teve alguma dificuldade em conter a sua indignação.
- Ele tem importunado a pobre menina com as suas atenções.
- E é por isso que a senhora o quer mandar para os Países Baixos?
A prioresa reflectiu um instante. Com muita probabilidade ele estava informado dos seus projectos;, e era evidente que o homem não tinha nenhum tacto. Há muitas coisas que se podem compreender, mas que não convém expressar verbalmente. Respondeu-lhe, todavia, com solene dignidade.
- Ela é muito moça e não sabe o que quer. Tem uma admirável disposição para a vida religiosa e, por muitos motivos, é altamente desejável que a adopte. Não tenho dúvidas que, se não fosse a presença desse rapaz, ela não tardaria a compreender a sensatez de um acto que me proporcionaria grande satisfação, às pessoas mais importantes da cidade e à sua própria mãe.
- Mas, minha senhora, não acha muito mais prático e menos dispendioso dar cabo logo do rapaz? Seria facílimo mandá-lo degolar numa noite escura.
- Isso seria um pecado mortal, senhor, e causa-me espanto ouvir-lhe propor semelhante coisa. Provocaria escândalo na cidade, daria pasto a desagradáveis mexericos, e além disso não há a certeza de que produzisse o resultado desejado.
- Então que deseja que eu faça, minha senhora?
Ela considerou com ar pensativo. Ao menos por enquanto, parecia-lhe indispensável ao êxito do seu plano que nem ela nem pessoa alguma com ela relacionada se mostrasse
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interessada em tal coisa. Tinha de confiar a alguém mais a sua execução e não estava segura de que esse homem possuísse a necessária inteligência ou subtileza. Não havia outro remédio senão arriscar-se, e a prioresa respondeu sem mais vacilações.
- Mande fazer um traje.
Dom Manuel ficou muito surpreendido com isto,. Julgando que ela gracejasse, esperou que um sorriso lhe encrespasse os lábios resolutos. Mas a expressão do rosto da prioresa continuou fria e austera. Ela explicou:
- Mande chamar o alfaiate para lhe tomar as medidas e trazer amostras de pano. Ele ficará lisonjeado e impressionado com isso. O senhor deve procurar um ensejo de lhe falar no filho e dizer-lhe que uma pessoa influente da cidade teve boas referências dele e deseja ajudá-lo. Depois, exigindo-lhe sigilo, revele o plano que arquitectámos para encaminhar o rapaz. Peça-lhe que mande Diego falar consigo e exponha-lhe a ideia. Tenho a certeza de que ele se considera nascido para coisa melhor do que passar a vida sentado num banco de alfaiate, e sem dúvida alguma aceitará jubilosamente.
- Será um grande asno se não o fizer.
- Procure-me quando tiver alguma coisa para me comunicar. Confio no seu tacto e discrição.
- Não tenha cuidado, minha senhora. Em dois dias, no máximo, estarei em condições de a informar do êxito satisfatório do assunto.
- Pode ficar certo de que nesse caso eu desempenharei a minha parte a seu inteiro contento.

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XXVIII.

Don Manuel mandou chamar o alfaiate. Sabia ser muito amável quando se dispunha a isso e, uma vez tomadas as medidas e examinadas várias amostras de tecidos, .tratou de agradar o velho Martínez. Como naturais da mesma cidade, tinham ambos certos interesses comuns e Don Manuel falou-lhe com bom humor das mudanças que se haviam operado nela durante a sua ausência. O alfaiate era um homenzinho ressequido, de nariz pontiagudo e expressão rabugenta. Mas era loquaz. Encontrando em Don Manuel um ouvinte bem disposto, alongou-se sobre a adversidade dos tempos. As guerras e a pesada tributação haviam empobrecido a todos, e cavalheiros da mais alta categoria usavam as suas roupas até ficarem no fio. Já não era tão fácil ganhar a vida como trinta anos antes, quando as caravelas chegavam regularmente da América com o seu carregamento de ouro. Algumas perguntas bem encaixadas levaram-no a confessar que estava preocupado com o filho. O justo seria que ele seguisse as pegadas do pai, mas o rapaz tinha ideias néscias e fora preciso recorrer à autoridade paterna para o forçar a entrar no ofício.
- E agora, se dão licença, anda querendo casar, apesar de ter apenas dezoito anos!
- Talvez assente o juízo.
- Foi a única razão pela qual eu consenti.
- Não duvido que o dote da moça lhe seja muito proveitoso - observou Don Manuel com malícia.
- Ela não tem dinheiro. Andam dizendo por aí que algumas senhoras estão dispostas a oferecer-lhe um dote, mas quem sabe o que resultará disso?
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O alfaiate contou então a Don Manuel quem era a jovem e como ele acabara por ceder às insistências do filho. Disso tudo, naturalmente, Don Manuel já estava inteirado.
- Eu tinha outro partido em vista para ele, mas o pai da moça não quis aceitar as minhas condições, aliás muito razoáveis, de modo que consenti no casamento do rapaz com Catalina. Depois de tudo que aconteceu e da nomeada que ela ganhou creio que me trará uma freguesia muito distinta. Minha mulher é contra isso. Pergunta-me de que serve fazer roupa para cavalheiros que não podem pagá-la.
- Uma observação muito sensata. Mas, se os negócios andam tão maus, por que razão não deixa que ele se faça soldado?
- A vida de soldado é dura e mal paga. Na oficina ele ainda pode ganhar o suficiente para ir vivendo.
- Ouça, amigo - volveu Don Manuel com uma franqueza que encantou o pobre alfaiate - , você sabe que quando eu deixei esta cidade era pobre como um rato de igreja. Agora sou Cavalheiro de Calatrava e um homem rico.
- Ah! mas Vossa Excelência era fidalgo e tinha amigos para ajudá-lo.
- Fidalgo, sim, mas os únicos amigos com que contava eram a minha mocidade, a minha força, a minha coragem e a minha inteligência.
O alfaiate sacudiu os ombros, descoroçoado. Don Manuel olhava-o com benignidade, de cima para baixo.
- Só tenho ouvido dizer bem do seu filho, e se o que dizem é verdade ele deve ser talhado para coisas mais elevadas do que você supõe. Eu também fui pobre; somos conterrâneos;
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teria prazer em prestar uma ajuda ao rapaz se tivesse a certeza de que você aprovaria.
- Não o compreendo bem, senhor.
- O arquiduque Alberto é meu amigo e fará tudo que eu lhe pedir. Se eu lhe recomendasse um moço, ele pô-lo-ia no seu regimento particular e marcá-lo-ia para futuras promoções.
O alfaiate olhava para ele, boquiaberto.
- Naturalmente, seria preciso provê-lo de certas vantagens. Tenho uma pequena propriedade não longe daqui, cujo título de posse eu lhe passaria-, e com a minha influência em Madrid posso conseguir que lhe dêem carta de nobreza. Seu filho entrará para o serviço do arquiduque como Don Diego de Quintanilla.
Como a prioresa lhe exprimira o desejo de que o seu nome não fosse mencionado, Don Manuel não via por que não arrogar-se o crédito de uma generosa acção. O alfaiate ficou tão sucumbido que o rosto se lhe contorceu todo e se pôs a chorar. Don Manuel bateu-lhe bondosamente no ombro.
- Ora, ora, isso não é motivo para ficar tão nervoso. Vá à sua casa, não diga uma palavra a ninguém e mande o seu filho falar comigo. Pode-lhe dizer que esqueceu a amostra de algum pano que talvez me agrade.
Dentro em pouco apareceu o rapaz. Don Manuel notou, aliviado, que era um jovem de bela presença. Bem vestido, passaria sem dificuldade por um cavalheiro. Não era tímido nem atrevido. Tinha um ar de segurança que levava a crer fosse capaz de se fazer respeitar em qualquer companhia. Já predisposto em seu favor, Don Manuel entabulou, após algumas frases preliminares, o assunto para que o mandara chamar.
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Conversaram durante uma hora, ao cabo da qual se separaram e Don Manuel foi ver a prioresa.
- Obedeci às suas ordens sem perda de tempo, senhora. Falei tanto com o rapaz como com o pai.
- Realmente, o senhor houve-se com muita presteza.
- Sou soldado, senhora. O pai está inteiramente de acordo com o nosso plano. Sente-se mesmo confuso com o ensejo que a generosidade de um benfeitor se dispõe a oferecer ao seu filho.
- Ele seria um asno se recebesse de outro modo a proposta.
Don Manuel, inquieto, transferiu de um pé para o outro o peso do carpo.
- Acho melhor relatar a Vossa Reverência, palavra por palavra, o que se passou entre mim e o rapaz.
A prioresa deitou-lhe um rápido olhar inquiridor e franziu o sobrolho.
- Prossiga.
- É um rapaz muito apresentável e a minha primeira impressão foi boa.
- As suas impressões não me interessam.
- Não tardei a descobrir que ele abomina e despreza o ofício em que o pôs o pai. Só o aceitou porque não tinha outro remédio.
- Isso já eu sabia.
- Eu disse-lhe que não compreendia como um rapaz disposto e inteligente, dotado de todas as qualidades necessárias para o êxito no mundo, pudesse resignar-se a desperdiçar a sua vida em tão humilde ocupação. Ele respondeu que tinha pensado muitas vezes em fugir para ir correr mundo,
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mas o que o impedia era o facto de não ter um vintém no bolso. Expliquei-lhe então que el-rei necessita de soldados e que essa carreira pode facilmente conferir posição e riqueza a um homem de coragem e expediente. Depois revelei-lhe, pouco a pouco, o que se estava projectando para permitir que ele realizasse a sua natural e louvável ambição.
- Muito bem.
- Ele acolheu a proposta com mais calma do que eu esperava, mas era evidente que se sentia tentado.
- Naturalmente. Aceitou, então?
Don Manuel hesitou um breve instante, pois sabia que Dona Beatriz não ficaria satisfeita com a sua resposta.
- Condicionalmente - respondeu.
- Que quer dizer com isso?
- Ele disse que queria casar com a namorada, mas dentro de um ano, quando ela tiver tido um filho, estará disposto a embarcar para os Países Baixos.
A prioresa enraiveceu-se. Que utilidade podia ter para ela uma mulher casada, com um bebé chorão? A virgindade de Catalina, sua virgindade perpétua, era essencial ao plano.
- Você deitou tudo a perder, seu imbecil - gritou ela.
Don Manuel fez-se rubro de cólera.
- Não é culpa minha se esse idiota está baboso pela rapariga!
- Não teve o bom senso de lhe fazer ver que era loucura recusar semelhante oportunidade?
- Tive, sim senhora. Disse-lhe que, nesta vida, quando se tem uma ocasião de melhorar de sorte, é preciso segurá-la depressa, porque se a deixamos escapar talvez nunca mais volte. Disse que era absurdo, na idade dele, arranjar uma
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esposa para se atrapalhar, e que como oficial e cavalheiro ele podia conseguir coisa muito melhor do que a filha de uma costureira sem vintém. E se quisesse uma pequena para se divertir, encontraria nos Países Baixos muitas delas, mais que dispostas a dispensar os seus favores a um moço bem-parecido, e até algumas prontas a mostrar a sua gratidão de maneira concreta.
- E que respondeu ele a isso?
- Disse que amava a sua namorada.
- Não admira que o mundo esteja perdido e o país vá por água abaixo, quando é governado pelos homens, e os homens não têm um pingo de bom senso.
Don Manuel não achou resposta para isso e, portanto, ficou calado. A prioresa considerou-o com frio desdém.
- O senhor fracassou, Don Manuel, e não vejo nenhuma utilidade em continuarmos as nossas relações.
Ele tinha suficiente sagacidade para perceber o significado destas palavras: devia renunciar a toda a esperança de casar com a marquesa viúva. Não estava disposto a desistir sem luta de uma aliança tão vantajosa.
- Vossa Reverência desanima com muita facilidade. O pai do rapaz é por nós. Esse casamento com Catalina não é muito do seu agrado e não tenho dúvida de que nos seja possível levá-lo a retirar o seu consentimento. Pode ficar certa de que ele envidará todos os esforços para convencer o rapaz a aceitar a nossa proposta.
Dona Beatriz fez um gesto de impaciência.
- O senhor conhece pouco a humanidade. A oposição paterna jamais conseguiu diminuir a afeição dos namorados.
Não é com tal disposição de espírito que eu pretendo acolher a moça nesta casa. Se o rapaz tivesse concordado na minha proposta ela veria o pouco que vale o amor de um homem em comparação com o amor divino. Sentir-se-ia infeliz, mas eu não lamentaria o facto se ele lhe ensinasse onde se encontra a única felicidade verdadeira.
- Existem vários meios de nos livrarmos de alguém que nos incomoda. Tenho homens de confiança. Pode-se agarrar o rapaz uma noite,, levá-lo para um porto de mar e embarcá-lo num navio. A mocidade é volúvel. Depois que estiver nos Países Baixos, rodeado de coisas novas, de aventuras, com a posição de um cavalheiro e as brilhantes perspectivas que lhe proporcionará o favor do arquiduque, ele há-de esquecer esse amor e não tardará a dar graças ao Céu por o ter livrado de semelhante estopada.
A prioresa não respondeu logo. Era uma mulher de consciência robusta e não se ofendeu com o que se achava implicado no plano de Don Manuel. Era coisa comum embarcar para a América, os filhos rebeldes, assim como as filhas que negavam consentimento aos desígnios matrimoniais de seus genitores eram postas num convento até que se tornassem mais razoáveis. Dona Beatriz estava plenamente convencida de que separar Diego de Catalina redundaria em proveito de ambos.
- Vossa Reverência pode estar certa de que o rapaz falará a Catalina da oferta que lhe foi feita.
- Porquê?
- Para se tornar mais precioso aos seus olhos, mostrando as vantagens de que está disposto a abrir mão por amor a ela.
- O senhor é mais arguto do que eu supunha.
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- E quando derem pela falta dele, uma dessas manhãs, Catalina suporá naturalmente que ele não pôde resistir à tentação.
- Isso é bastante provável. Mas também temos de levar em conta o pai. Não nos conviria nada que ele fosse queixar-se às autoridades.
- A fim de que ele não o faça, tenciono fazê-lo participar do segredo. Ele tem ambição pelo filho. Concordará sem hesitar no nosso plano. Saberá manter silêncio, e quando derem pela falta do rapaz já ele estará em segurança, a bordo de um navio.
A prioresa suspirou.
- O plano não me agrada:, mas é evidente que os moços são desmiolados e muitas vezes é preferível que o seu destino seja decidido por cabeças mais velhas e mais prudentes. Mas eu desejo uma garantia de que não lhe farão nenhuma violência desnecessária.
- Posso prometer a Vossa Reverência que ninguém lhe tocará num fio de cabelo. Vou fazê-lo acompanhar por um homem de confiança, para ter a certeza de que ele será bem tratado.
- Está no seu interesse fazê-lo - respondeu ela com severidade.
- Bem o sei, minha senhora. Pode deixar tudo confiadamente nas minhas mãos.
- Quando pretende pôr o plano em execução?
- Logo que tenha concluído os necessários preparativos.
Dona Beatriz guardou silêncio por alguns momentos. O desaparecimento de Diego provocaria comentários e não era improvável que estes chegassem aos ouvidos do bispo. Ela já
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tivera provas da perspicácia de Don Blasco. Este bem podia estabelecer uma conexão entre os factos e chegar à conclusão de que ela estava envolvida no assunto. Lamentou amargamente que, no decurso da sua conversa com ele, se tivesse deixado levar pela cólera a dizer coisas imprudentes. Não sabia ao certo o que o bispo poderia fazer, mas era um homem decidido e poderoso; não tinha medo dele, mas era bastante sagaz para perceber que seria preferível evitar uma ruptura franca, a qual, além de causar escândalo, também podia frustrar-lhe os desígnios.
- Quando é que seu irmão nos vai deixar, Don Manuel? A pergunta surpreendeu-o.
- Não sei, Reverenda Madre, mas se isso lhe interessa posso informar-me.
- Não desejo que se faça nada antes da sua partida.
- Porquê?
- Porque assim me apraz. Contente-se em saber que tal é o meu desejo.
- Far-se-á a sua vontade, senhora. O rapaz será raptado na noite do dia em que meu irmão deixar a cidade.
- Isso convém-me às maravilhas, Don Manuel - tornou ela amavelmente.
Deu-lhe a mão a beijar e ele despediu-se.


XXIX.

Mas, embora lhe assegurasse a razão que estava procedendo no melhor dos intuitos e era plenamente justificada no que fazia. Dona Beatriz não lograva acalmar a singular inquietação
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que se apossara dela. Tão forte era esse sentimento que por uma ou duas vezes esteve para dizer a Don Manuel que abandonasse o plano. Mas censurava a si mesma a sua fraqueza. Havia muita coisa em jogo. Andava nervosa, todavia, e as suas freiras notavam-lhe uma irritabilidade desacostumada. Uma bela manhã a subprioresa informou-a de que o bispo se tinha ido embora. A fim de não chamar atenção ele saíra pela calada ao romper do dia, com os seus secretários e criados. Uma hora depois Don Manuel mandava-lhe um recado dizendo que os preparativos estavam completos e o plano seria levado a efeito naquela noite. Isso resolvia tudo. Ela fez um exame de consciência e viu que as suas intenções eram irrepreensíveis. Pela tardinha vieram-lhe dizer que Catalina pedia permissão para lhe falar. Conduziram a jovem ao oratório. A prioresa notou, consternada, que ela estava presa de violenta agitação. Adivinhou que qualquer coisa não correra bem.
- Que foi, minha filha?
- Vossa Reverência disse-me que viesse vê-la se algum dia me visse em dificuldade.
Desfez-se em pranto. Dona Beatriz pediu-lhe que se acalmasse e lhe contasse o que tinha acontecido. Entre soluços, a jovem disse-lhe que um cavalheiro de importância na cidade oferecera mandar Diego para a guerra, com a promessa de lhe doar uma propriedade e conseguir para ele o título de Don. Diego recusara por amor a ela e, em consequência disso, tivera violenta disputa com o pai. Este havia acabado por dizer que, se ele não aceitasse a magnífica oferta como o faria qualquer homem sensato,, iria por mal ou por bem. Acrescentara que retirava a sua anuência ao casamento com Catalina. Dona Beatriz franziu o sobrolho ao ouvir repetir esta ameaça.
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O homem praticara uma tolice em fazê-la. Se Diego desaparecesse agora, a moça saberia que ele não fora embora de sua livre vontade. A prioresa havia contado com o efeito que teria sobre ela o pensar que o namorado sucumbira à tentação, abandonando-a.
- É uma boa fortuna com que ele nunca poderia ter sonhado - disse Dona Beatriz. - É um ensejo que nenhum moço hesitaria em aproveitar. Os homens são vaidosos e poltrões, e embora procedam mal fazem questão de que se julgue bem deles. Como podes saber que ele não te está enganando quando fala em ser levado à força, para que penses que ele não te abandonou por sua culpa?
- Como posso saber? Tenho a certeza disso porque ele ama-me. Ah! A senhora é uma santa,, não sabe o que é o amor. Se me tirarem o meu Diego eu morrerei.
- Até hoje ninguém morreu de amor - replicou Dona Beatriz com selvagem aspereza.
Catalina caiu de joelhos e juntou as mãos numa súplica apaixonada.
- Oh! Madre, Reverenda Madre, tenha piedade de nós. Salve-o! Não permita que o levem embora! Eu não posso viver sem ele. Oh! Minha senhora, se soubesse a angústia que eu sofria quando pensava tê-lo perdido para sempre e como chorei noite após noite, até parecer-me que ia ficar cega de tanto derramar lágrimas! Por que razão me livrou a Santíssima Virgem da minha enfermidade, se não foi para que eu me tornasse mais uma vez capaz de ser mulher dele? Ela apiedou-se de mim, e a senhora nada fará para me ajudar?
A prioresa apartou com força os braços da sua cadeira, mas não respondeu.
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- Durante todo esse tempo eu suspirei por ele. Tinha o coração partido. Não sou mais do que uma moça pobre e ignorante, mas amo-o de todo o coração.
- Ele não é ninguém. É apenas um rapaz como os outros - disse Dona Beatriz numa voz rouca que semelhava o grasnar de um corvo.
- Ah! Reverenda Madre, a senhora o diz porque nunca conheceu as aflições e as alegrias do amor. Eu quero sentir os braços em volta de mim, quero sentir o calor dos seus lábios sobre os meus, quero sentir a carícia das suas mãos no meu corpo nu. Quero que ele me possua como um amante possui a mulher amada. Quero que a sua semente me penetre nas entranhas e gere nelas um filho. Quero dar o meu peito a mamar ao seu filho!
Pôs uma mão sobre cada seio. Irradiava sensualidade, numa chama tão impetuosa que Dona Beatriz recuou diante dela. Dir-se-ia o calor de uma fornalha. Ergueu as mãos como para defender-se. Olhou para o rosto da jovem e estremeceu. Via-o singularmente demudado, pálido, e dir-se-ia que as feições estavam entumescidas. Era uma máscara de desejo. Catalina ofegava, ansiosa pelo macho. Parecia uma possessa. Havia nela qualquer coisa que não era bem humano, que era um tanto horrível, mesmo, mas tão poderoso que infundia terror. Era o sexo, nada) -mais que o sexo, violento e irresistível, o sexo na sua medonha mudez. De súbito o rosto da prioresa contorceu-se numa careta de insuportável angústia e as lágrimas entraram a correr-lhe pelas faces. Catalina soltou um grito de terror.
- Oh! Madre, que foi que eu fiz? Perdoe-me! Perdoe-me! Agarrou-se aos joelhos da prioresa. Assombravam-na essas
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mostras de emoção por parte de alguém que ela sempre tinha visto calma, séria e digna. Estava confusa. Não sabia o que fazer. Pegou nas suas aquelas duas mãos esguias e beijou-as.
- Porque chora. Reverenda Madre? Que foi que eu fiz? Dona Beatriz retirou as suas mãos e cerrou os punhos no
esforço de se conter.
- Sou uma mulher má e infeliz - gemeu ela. Inclinou-se para trás na cadeira e escondeu o rosto nas
mãos. As recordações de tempos longínquos tumultuavam no seu espírito e ela rangia os dentes para conter os soluços que lhe sacudiam a garganta. Aquela tolinha dissera que ela nunca havia conhecido o amor! Como era cruel que, depois de tantos anos, essa velha ferida sangrasse ainda;! Teve a sombra de um riso amargo ao sentir a ironia de haver devorado o seu coração por um rapaz que hoje era um sacerdote combalido e atormentado. Enxugou com um gesto vivo as lágrimas que lhe turvavam a vista e, tomando nas mãos o rosto de Catalina, contemplou-a como se fosse uma desconhecida. Já não havia vestígios da carnalidade que por um momento lhe desfigurara de tão hedionda maneira as lindas feições. Era toda ternura,, solicitude e pureza, Dona Beatriz embeveceu-se nessa contemplação. Tão jovem, tão bela e tão apaixonada! Como podia ela partir aquele coraçãozinho como fora partido o seu? Ela, que pensava ter vencido todas as fraquezas humanas, sentia-se débil, lamentavelmente débil, e contudo havia nesse sentimento qualquer coisa estranha, que exaltava, qualquer coisa que lhe aquecia o coração e ao mesmo tempo - oh tão deliciosamente! - lhe paralisava a vontade. Era como se no âmago do seu peito se houvesse desatado um nó, no seu peito que nunca sentira os lábios macios de uma criancinha à procura
da teta,
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e regozijava-se por se ver livre daquela dor que não a deixava em paz. Inclinou-se e beijou a boca vermelha da moça.
- Não tenhas receio, minha querida. Tu casarás com o homem a quem amas.
Catalina lançou um grito de alegria e derramou-se em volúveis expressões de gratidão, mas a prioresa ordenou-lhe rispidamente que se calasse. A situação era delicada e fazia-se necessário reflectir. Dentro de poucas horas iriam raptar Diego. É verdade que podia mandar chamar Don Manuel e dizer-lhe que tinha mudado de ideias, cortando cerce os seus protestos, mas isso não resolveria as dificuldades que ela própria havia criado para si. A semente fora bem semeada. Difundira-se pela cidade a opinião de que era- dever de Catalina tornar-se freira. Dona Beatriz bem conhecia a apaixonada devoção que aquele povo tinha pela fé: não só ficariam decepcionados se a moça não fizesse o que se esperava dela, mas considerariam como uma indignidade, quase como um insulto à religião, o casar-se ela com um alfaiate após ter recebido tão insigne graça. Os mundanos ririam e fariam gracejos indecentes; os piedosos ficariam indignados. No momento, Catalina era olhada com admiração e mesmo com respeito, mas seria fácil passar desses sentimentos à indignação e ao desprezo. A prioresa conhecia a índole violenta dos seus compatriotas; eram capazes de incendiar a casa em que ela vivia, eram capazes de apedrejá-la como uma devassa perdida e cravar um punhal nas costas de Diego. Só havia uma coisa que fazer, e cumpria fazê-la depressa.
- Vocês vão deixar a cidade, tu e esse rapaz, e tem de ser esta noite. Vai chamar Domingo, teu tio, e volta cá depressa com ele.
Inflamada de curiosidade, a moça quis saber o que a prioresa tinha em mente, mas Dona Beatriz replicou-lhe em tom peremptório que se deixasse de perguntas e fizesse o que lhe era mandado.
Quando Catalina tornou a aparecer com o tio, daí a poucos minutos, a prioresa mandou-a descer e esperar na sua cela, a fim de poder falar a sós com ele. Informou-o daqueles factos que lhe pareceu necessário dar-lhe a conhecer, deu-lhe certas instruções e, com estas, um bilhete que já tinha pronto, dirigido ao seu administrador. Disse-lhe então que procurasse Diego, comunicasse a este a decisão a que tinham chegado e tratasse de fazer com que ele seguisse as instruções recebidas. Após despedi-lo, chamou Catalina.
- Passarás o serão comigo, minha filha. À meia-noite far-te-ei sair por uma porta dos muros da cidade; encontrarás Domingo com um cavalo que mandei o meu administrador fornecer-lhe. Ele conduzir-te-á a um lugar combinado por nós, onde Diego estará à tua espera. Então Diego tomará o lugar de Domingo e vocês seguirão para o sul até alcançarem Sevilha. Dar-te-ei uma carta para uns amigos que tenho lá e esses amigos encontrarão um trabalho decente para ti e para ele.
- Oh! Reverenda Madre! - exclamou Catalina, emocionadíssima. - Como poderei mostrar a minha gratidão pelo que está fazendo?
- Eu to direi - respondeu a prioresa com certa severidade, - Andem depressa e não se demorem na estrada sob pretexto algum. Vocês terão de haver-se com homens prontos para tudo e é possível que eles os persigam. A castidade é a glória de uma mulher e tu deves conservá-la até que a igreja tenha abençoado essa união. As relações carnais entre pessoas
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que não estão ligadas pelo sacramento do matrimónio são um pecado mortal. Procura um padre na primeira aldeia a que vocês chegarem depois do amanhecer e pede-lhe que te una a Diego em matrimónio. Estás vendo o que eu tenho aqui? Catalina olhou e viu um anel simples de ouro.
- É o anel que eu destinava para a cerimónia da tua consagração. Será o teu anel de noivado.
Colocou-o na palma da mão de Catalina, cujo coração se pôs a bater doidamente. A prioresa passou então a instruí-la sobre os deveres e responsabilidades da vida conjugal. Ela escutou-a com a devida gravidade, mas um tanto distraída, pois estava toda emocionada e tinha o espírito mais ocupado com as delícias da mesma. Rezaram juntas. As horas passaram-se lentamente. Por fim o relógio do convento deu meia-noite.
- Está na hora - disse Dona Beatriz. Tirou um saquinho de uma. gaveta da secretária. - Aqui tens algumas moedas de ouro. Guarda o saquinho num lugar onde não possas perdê-lo e não deixes que Diego lhe ponha a mão em cima. Os homens não conhecem o valor do dinheiro e quando o têm gastam-no em tolices.
Voltando pudkamemte as costas, Catalina levantou a saia, pôs o saquinho dentro da meia e atou os cordões em volta da perna.
A prioresa acendeu uma lanterna e disse à moça que a seguisse. Percorreram de mansinho os silenciosos corredores, até chegarem ao jardim. Depois, para que alguma freira desperta não ficasse intrigada ao notar uma luz, ela apagou a lanterna e, tomando a mão de Catalina, conduziu-a pelas ruas que separavam os canteiros. Chegaram à portinha que a prioresa mandara abrir nos muros da cidade para poder deixá-la
sem ser observada, em caso de necessidade, ou para receber visitas que, por uma razão ou outra, tivessem de ser secretas. Só ela possuía a chave. Abriu a portinha. Domingo, a cavalo, esperava à sombra do muro, pois havia lua e a noite estava clara.
- Agora, vai - disse a prioresa. - Deus te abençoe, minha filha., e lembra-te de mim nas tuas orações, pois sou uma pecadora e necessito delas.
Catalina esgueirou-se pela porta, que a prioresa tornou a fechar à chave assim que ela saiu. Pôs-se à escuta, até ouvir o som dos cascos do cavalo. Eles destacaram-se muito sonoros no silêncio da noite. Com passos vagarosos, Dona Beatriz voltou para o edifício do convento. Enxergava o caminho com dificuldade, pois estava- quase cegada pelas lágrimas. Voltou ao seu oratório e passou o resto da noite em orações.


XXX.

Domingo deu a mão a Catalina e ajudou-a a subir para a garupa. A noite era serena e tépida, mas lá no alto soprava vento e as nuvenzinhas viajavam céleres através do céu, escuras mas orladas de prata pelo luar brilhante. Os campos estavam desertos. Dir-se-ia que eles cavalgavam num mundo do qual eram os únicos habitantes.
- Tio Domingo?
- Que é?
- Vou casar-me.
- Não te esqueças de fazê-lo, menina. É um sacramento
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necessário à salvação, mas do qual os homens geralmente hesitam em servir-se.
Passaram por uma povoação adormecida, além da qual havia um bosquete de árvores. Ao chegarem a estas, um vulto adiantou-se das sombras. Catalina deixou-se deslizar do lombo do cavalo e lançou-se nos braços de Diego. Domingo apeou-se.
- Vamos, vamos! - disse ele. - Vocês terão tempo de sobra para essas coisas mais tarde. Montem a cavalo os dois e ponham-se ao largo. Nos alforjes há comida e uma garrafa de vinho.
Beijou Catalina e Diego, assistiu-lhes à partida e, como as portas da cidade estivessem fechadas e ele não pudesse entrar senão depois do amanhecer, instalou-se tão confortavelmente como pôde debaixo de uma árvore. Tomara a precaução de levar vinho consigo e encostou a garrafa aos lábios. O lugar era ideal para compor versos e ele preparou-se para aguardar o dia em colóquio com a Musa. Mas ainda não chegara a resolver se devia dedicar um soneto à Lua ou tecer uma ode ao amor triunfante quando mergulhou num sono profundo e não acordou senão ao raiar do sol.
Os dois amantes cavalgaram durante uma hora. Catalina falava pelos cotovelos. Parecia que tinha um milhar de coisas para dizer, muito que contar a Diego, planos que comumicar-lhe, e como tinha um lindo jeito de contar as coisas dava àquilo tudo uma aparência muito encantadora e divertida. Diego sentia-se tão feliz que estava disposto a rir de tudo quanto ela dissesse. E Catalina nadava em êxtase. Não podia imaginar nada mais celestial do que andar a cavalo de noite, no campo aberto, com os braços em volta do seu amado.
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Tinha de fazê-lo, naturalmente, pois essa era a única maneira de segurar-se, mas achava-a muito agradável.
- Eu poderia continuar assim até ao fim do mundo - disse ela.
- Estou com fome - respondeu Diego. - Vamos parar aqui para ver o que há nos alforjes.
Estavam passando por um bosque e ele puxou as rédeas. Catalina percebia muito bem que o seu apetite, no momento, não era de comer e beber, e sentiu um arrepio de desejo percorrer-lhe o corpo. Não eram necessárias,, porém,, as advertências da prioresa nem as de Domingo para lhe fazer ver a imprudência de permitir que um homem fizesse com ela o que quisesse enquanto a união não fosse santificada pela Igreja. Sabia que os homens têm uma aversão instintiva ao casamento e conhecia casos de moças que haviam cedido aos desejos dos seus namorados e estes depois recusaram-se a cumprir a sua promessa. Não restava a elas, então, outra alternativa além do bordel.
- Continuemos a viagem, meu amor. A prioresa disse que podíamos ser perseguidos.
- Não me assusto com isso.
Passou a perna por cima da cabeça do cavalo e, deixando-se escorregar para o chão, tirou Catalina do lombo do animal. Tinha-a nos braços. Beijou-a nos olhos e na boca. Segurou a rédea e, com o braço sempre em volta da cintura de Catalina, tomou o caminho do bosque. Mas nesse momento colheu-os um forte aguaceiro. Ambos ficaram surpreendidos, pois a noite estava bonita e eles não haviam reparado nas nuvens escuras. Ora, sucede que Diego era valente como um leão e teria enfrentado intrepidamente homens armados, mas tinha
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pavor da chuva. Além disso, pusera a sua melhor roupa ao partir e não queria de modo algum que ela se molhasse.
- Ali não chove - disse ele, apontando para um lugar a certa distância no outro lado da estrada. - Corramos!
Mas nem bem haviam alcançado o lugar indicado por ele quando começou a chover ali também,, e com mais força ainda. Diego soltou uma exclamação de enfado.
- É apenas uma nuvem que passa - disse ele. - Se andarmos depressa livrar-nos-emos dela.
Montou, ajudou Catalina a subir para a garupa e, metendo as esporas nos flancos do cavalo, saiu a galope pela estrada fora. Logo que saíram do bosque, porém, a chuva parou tão repentinamente como havia começado. Diego olhou para cima. Havia nuvens para trás deles, mas para a frente o céu estava azul e sereno. Cavalgaram em silêncio. Depois de algum tempo, talvez meia hora, chegaram a um bosquezinho.
- Isto aqui serve - disse Diego, puxando a rédea do cavalo.
Mal havia pronunciado estas palavras quando uma pesada gota de chuva lhe caiu no nariz.
- Isso não é nada - disse ele, e mais uma vez passou a perna por cima da cabeça do cavalo; mas nem bem tinha posto o pé no chão quando as gotas se puseram a cair mais numerosas e amiudadas. - Isto é obra do Diabo.
Tornou a pôr o pé no estribo e seguiu caminho. A chuva parou. Catalina estava pensativa.
- Isso não é obra do Diabo - disse ela.
- Que é então?
- É a Virgem Maria.
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- Estás para aí a dizer tolices, mulher, e daqui a pouco eu to provarei.
Vigiava atentamente a estrada. Passou-se algum tempo sem que visse uma árvore à qual pudesse amarrar o cavalo.
- Eu devia ter trazido uma corda para peá-lo - disse Diego.
- Não se pode pensar em tudo - respondeu ela.
- O cavalo precisa descansar. Não seria nada mau se dormíssemos um pouco à beira da estrada.
- Eu seria incapaz de pregar olho.
- Nem sentirias vontade de fazê-lo, por isso garanto eu - volveu ele, arreganhando os dentes.
- Olha, vai chover de novo - disse Catalina. E, de facto, começaram a cair algumas gotas. - Vamos ficar encharcados.
- Umas gotinhas de chuva não nos podem fazer mal. Mal ele tinha falado, a chuva pôs-se de repente a cair a
cântaros. Diego soltou uma praga e esporeou o cavalo.
- Nunca vi coisa tão esquisita na minha vida - disse ele.
- É quase um milagre - murmurou Catalina.
Diego deu o caso por perdido. Embora houvesse parado a chuva, ambos nessa altura já estavam completamente molhados e o ardor amoroso de Diego sensivelmente arrefecido pela sua preocupação com a roupa. Como justificativa, cumpre-nos explicar que não se tratava apenas do seu melhor, mas do seu único traje, pois Domingo tinha-o advertido de que não seria prudente fugir de casa levando consigo outra coisa além da roupa do corpo. Cavalgaram o resto da noite, sem encontrar ninguém, mas avistando de tempos a tempos, ao luar, uma quinta ou algumas casitas campestres. Afinal o sol ergueu-se. Estavam no alto de um pequeno outeiro e, baixando
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o olhar, viram uma aldeiazinha na luz cinzenta da alvorada. Não podia deixar de haver ali uma estalagem, onde conseguiriam de comer e de beber, pois já então estavam ambos realmente esfaimados e sedentos. Seguiram caminho e começaram a encontrar camponeses que se dirigiam para o trabalho dos campos. Entraram na aldeia e de repente o cavalo estacou.
- Que há contigo, bruto? Toca para diante - gritou Diego, cravamdo-lhe as esporas.
Mas o cavalo não se movia. Diego golpeou-o na cabeça com as extremidades das rédeas e tornou a fazer uso das esporas. O animal continuou impassível, completamente imóvel. Parecia convertido em pedra.
- Hás-de caminhar, bruto!
Estava furioso. Bateu com toda a força na cabeça do cavalo. Este empinou-se nas patas de trás e Catalina soltou um grito agudo. Diego deu um murro na cabeça do animal, que tornou a sentar no chão as patas dianteiras, mas não havia nada que o fizesse dar um passo à frente. Dir-se-ia que criara raízes no chão. Diego, com o rosto vermelho, suava abundantemente.
- Não consigo entender isto. Por acaso o cavalo também estará com o diabo no corpo?
Catalina desatou a rir e Diego voltou-se para ela, furioso.
- Em que achas graça?
- Não te zangues comigo, meu amor. Não vês onde estamos? Diante da igreja!
Diego levantou os olhos, carrancudo, e só então notou que o cavalo tínha parado em frente da igreja, que ficava bem na entrada da aldeia.
- E que tem isso?
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- A prioresa fez-me prometer que nos casaríamos na primeira igreja que encontrássemos, nada mais.
- Teremos tempo de sobra, para isso, mais tarde - respondeu ele.
Tornou a cravar as esporas, com raiva, nos flancos do pobre animal. Este pôs-se então a corcovear e a dar coices e quando os dois cavaleiros deram por si iam a voar pelo espaço. Por sorte, foram cair num monte de feno e não se magoaram. Deixaram-se ficar deitados ali um instante, um pouco abalados e cheios de assombro. Após a estranha demonstração de energia, o cavalo imobilizou-se como antes. O padre, que acabava de dizer missa, saía da igreja nesse momento e, ao notar o acidente, acudiu correndo. Os dois levamtaram-se, sacudiram-se, e vendo que não tinham sofrido dano algum, limparam as roupas do feno que nelas se havia pegado.
- Foi uma sorte para os dois estar o feno aí - observou o padre, um homem baixo, gorducho e rubicundo. - Se houvessem chegado um pouco mais tarde ele estaria no meu celeiro.
- Foi providencial que isso tivesse ocorrido na porta da igreja - disse Catalina - pois estávamos à procura de um padre que nos casasse.
Diego deitou-lhe um olhar surpreendido, mas não disse nada.
- Casá-los? - exclamou o padre. - Vocês não são meus paroquianos! Nunca os vi na minha vida! Por certo que não os casarei! Não pus nada na boca desde a minha ceia de ontem à noite e agora vou para casa ver se como alguma coisa.
- Faça o favor de esperar um momento, padre - disse Catalina.
Virou as costas aos dois, ergueu a saia e tirou rapidamente
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uma moeda) de ouro do saquinho que a prioresa lhe dera. Com o seu sorriso feiticeiro, mostrou-a na pallma da mão. O padre olhou para a- moeda e o seu rosto fez-se ainda mais vermelho.
- Mas quem são vocês? - perguntou em tom dúbio. - Porque desejam casar num lugar estranho e com tanta pressa?
Não tirava os olhos da moeda reluzente.
- Tenha compaixão de dois namorados, padre! Nós fugimos de castel Rodríguez porque meu pai queria obrigar-me a casar com um velho rico, só por causa do dinheiro; e este moço, a quem eu estava prometida, os pais sovinas queriam fazê-lo desposar uma mulher zarolha e sem um único dente na boca.
Para tornar mais convincente a história, catalina colocou a moeda de ouro na mão do padre e pegou-lhe firmemente os dedos.
- -Você tem modos muito persuasivos moça - disse o padre - e a sua história é tão comovente que me faz vir lágrimas aos olhos.
- Não só praticará um acto meritório, padre - -prosseguiu Catalina - mas salvará dois jovens virtuosos de cometerem um pecado mortal.
- Sigam-me - disse o sacerdote, tornando a entrar na igreja. - Pepe! - chamou ele em voz alta enquanto se dirigia para o altar-mor.
- Que é? - responderam algures.
- Venha cá, seu vagabundo!
Um homem de vassoura em punho surgiu de uma capela ao lado do santuário.
- Porque não me deixa trabalhar em paz? - perguntou ele,
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mal-humorado. - Nunca sacristão algum recebeu tão miserável paga, e ainda por cima o senhor não me dá um instante de trégua. Como poderei ir ao meu campo se o senhor me interrompe no meio do trabalho?
- Põe um freio nessa língua insolente,, patife! Vou casar estes dois moços. Ah! mas serão precisas duas testemunhas - disse ele, virando-se para Catalina com um sorriso satisfeito na cara nédia. - Terão de esperar que este bêbedo vá buscar alguém à aldeia, e isso me dará tempo de comer alguma coisa.
- Eu serei a segunda testemunha.
Era uma voz de mulher que falava. Todos se viraram e a viram caminhar na direcção deles. Vestia um manto azul e tinha a cabeça coberta por uma grande mantilha branca, cujas pontas lhe caíam sobre as espáduas. O padre olhou para ela com espanto, pois não havia notado a presença de ninguém na igreja enquanto dizia missa:, mas encolheu os ombros com impaciência.
- Muito bem. Vamos terminar com isto o mais depressa possível. Quero almoçar.
Catalina fez um gesto de surpresa quando a desconhecida se acercou do grupo, e tomou na mão trémula a mão de Diego. A desconhecida, com um leve sorriso a brilhar nos olhos, levou o dedo aos lábios recomendando silêncio a Catalina. A cerimónia realizou-se com rapidez e Catalina foi unida a Diego Martínez pelos laços do santo matrimónio. Dirigiram-se para a sacristia, a fim de assinar no lavro. O padre escreveu os nomes dos recém-casados e os de seus pais. Em seguida o sacristão assinou laboriosamente o seu.
- É a única coisa que ele sabe escrever - disse o padre -, e foram-me precisos seis meses para meter as letras
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nessa cabeça de pau. Agora é a sua vez, minha senhora. Mergulhou a pena na tinta e passou-a à dama desconhecida.
- Mas eu não sei escrever nada - disse esta.
- Então faça uma cruz e eu escreverei o seu nome.
Ela apanhou a pena e fez o que lhe indicavam. Catalina observava-a, com o coração a bater forte.
- Então? Se a senhora não me disser o seu nome não poderei escrevê-lo - observou o padre com impaciência.
- Maria, filha do pastor Joaquim - respondeu a desconhecida.
Ele escreveu o nome.
- Está pronto. Agora vou comer.
Todos saíram da igreja com ele, salvo o sacristão, que entre resmungos irritados apanhou a vassoura e recomeçou a varrer. Mas os espanhóis sempre foram um povo cortês, e o padre, com a moeda de ouro bem guardada no bolso, não constituía excepção à regra.
- Meu senhor e minhas senhoras, se me fizerem a honra de vir ao meu humilde tugúrio aqui ao lado terei a maior satisfação em oferecer-lhes aquilo que estiver ao alcance da minha pobreza.
Catalina, que era muito bem-educada, sabia que um convite desse género devia ser declinado amavelmente, mas Diego estava faminto e não lhe deu tempo de falar.
- Senhor - disse ele -, nem eu nem minha mulher comemos desde ontem e, por mais pobre que seja o seu passadio, será para nós um festim.
O padre foi colhido de surpresa., mas a polidez só lhe permitiu responder que eles lhe faziam muita honra em aceitar.
Percorreram os poucos passos que os separavam da casa do padre e este introduziu-os numa sala pequena e desguarnecida que servia ao mesmo tempo de refeitório, gabinete e sala de visitas. Colocou diante deles pão, vinho, queijo de cabra e um prato de azeitonas pretas. Cortou quatro fatias de pão e encheu de vinho quatro copos de chifre. Pôs-se a comer sofregamente e Diego e Catalina seguiram-lhe o exemplo. Ele ergueu os olhos para servir-se de uma azeitona e notou que a dama desconhecida não havia tocado na comida.
- Coma, por favor, minha senhora - disse ele. - É comida simples, mas boa, e a melhor que tenho para lhes oferecer.
Ela dirigiu ao pão e ao vinho um sorriso impregnado de singular .tristeza e sacudiu a cabeça.
- Comerei uma azeitona.
Apanhou uma e mordiscou-a delicadamente com os dentes alvos. Catalina relanceou-a. Os olhos de ambas encontraram-se; os da desconhecida tinham uma expressão de infinita bondade. Nesse momento o sacristão irrompeu pela sala dentro.
- Senhor, senhor! - gritava ele, fora de si. - Roubaram a Virgem!
- -Não sou surdo,, velho imbecil! - exclamou o padre. - Em nome de Deus, que queres dizer com isso?
- Estou a dizer-lhe que roubaram a nossa Virgem. Entrei lá para varrer e o pedestal estava vazio.
- Estás doido ou bêbedo, Pepe - retrucou-lhe o padre, pulando da cadeira. - Quem seria capaz de fazer uma coisa dessas?
Arremessou-se para a porta e, seguido do sacristão, de Diego e Catalina, correu à igreja.
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- Não fui eu, não fui eu! - gritava o sacristão, agitando os braços desesperado. - Todos vão dizer que fui eu e serei posto na cadeia!
Subiram atabalhoadamente os degraus da igreja e correram à capela da Virgem. O sacristão deu um berro. Lá estava a imagem de Nossa Senhora no seu lugar do costume.
- Que significa isso? - rugiu o padre, furioso.
- Há um minuto ela não estava aí. Juro por todos os santos que o pedestal estava vazio.
- Bêbedo sem-vergonha! Velho odre de vinho!
O padre agarrou-o pela nuca e encheu de pontapés o traseiro do infeliz, até ficar exausto; depois, para completar a dose, esbofeteou-o nas duas faces com toda a força que lhe restava.
- Se tivesse uma vara aqui, quebrava-te os ossos. Quando os três voltaram à casa do padre para terminar
o frugal repasto, ficaram surpreendidos ao notar que a dama desconhecida havia desaparecido.
- Aonde poderá ela ter ido? - exclamou o padre. E, batendo na testa: - Que burro que eu sou! Agora percebo tudo. É evidente que a mulher é moura e quando Pepe veio dizer que a Virgem tinha sido roubada ela achou melhor pôr-se ao fresco. São todos ladrões e ela pensou que algum dos seus malditos compatriotas havia furtado a imagem. Notaram como não quis beber o vinho? Foram baptizados, mas não abandonaram os seus costumes pagãos. Eu tive as minhas suspeitas quando ella me deu o seu nome: aquilo não é nome de cristão que se respeite.
- Há muito que nós limpámos Castel Rodríguez de mouros - disse Diego.
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- E fizeram muito bem. Todas as noites eu rezo para que el-rei chegue a compreender os seus deveres para com a Fé e expulse do reino todos esses abomináveis hereges.
- Será um grande dia para a Espanha quando ele o fizer. Merece talvez ser registado aqui que as preces do digno
sacerdote foram atendidas, pois em 1609 todos os mouros foram expelidos da Espanha.
Já era tempo de Diego e sua esposa encetarem a viagem para Sevilha. Agradeceram a hospitalidade do padre e despediram-se. Entrementes, o cavalo banqueteara-se com o feno sobre o qual havia atirado os seus cavaleiros. Diego deu-lhe de beber e logo que montaram pôs-se a caminho, sem ser instigado, num trote confortável. Fazia um belo dia, sem uma só nuvem no céu. O padre dissera-lhes que a umas quinze milhas adiante havia uma estalagem frequentada por arrieiros e carreteiros, onde podiam conseguir pousada. Resolveram passar a noite ali. Cavalgaram em silêncio durante duas ou três milhas.
- És feliz, meu querido? - perguntou afinal Catalina.
- Naturalmente.
- Serei boa esposa. Por ti trabalharei até gastar os dedos.
- Não será preciso. Um homem inteligente pode fazer muito dinheiro em Sevilha, e ninguém até hoje me tomou por tolo.
- Bem o creio!
Tornaram a calar-se durante algum tempo. Foi Catalina quem novamente rompeu o silêncio.
- Escutai, meu amor, aquela senhora que veio ao nosso casamento não era uma moura.
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- Que queres dizer? Bastava pôr os olhos nela para ver que não era uma cristã-velha.
- Mas eu já a tinha visto uma vez.
- Tu? Onde?
- Na escada da igreja das carmelitas. Foi ela que me disse como eu podia curar-me.
Diego deteve o cavalo e virou-se para trás.
- Pobre pequena, estás doida. Foi o sol que te deu volta aos miolos.
- Estou em tão perfeito juízo quanto tu, meu querido. Digo-te que era a Santíssima Virgem, e quando ela não quis comer pão nem beber vinho eu compreendi por quê. Vi que ela se recordava da angústia indescritível por que passou.
Diego encarou-a, perplexo e carrancudo.
- A Reverenda Madre disse-me -uma centena de vezes que era mais do que certo achar-me eu sob a protecção especial de Nossa Senhora, Foi por isso que ela insistiu tanto comigo para entrar no convento. Aqueles aguaceiros repentinos da noite passada, aquela paragem do cavalo diante da igreja, a sua recusa de caminhar e os corcovos com que nos arrojou aos dois da sela... Deves compreender que todas essas coisas não podiam ter sido coincidências.
Ele considerou-a durante alguns momentos ainda e Catalina notou, aflita, que os seus olhos tinham uma expressão de enfado. Sem acrescentar nem uma palavra mais, Diego tornou a virar-se para a frente e estalou a língua para instigar o cavalo. Catalina arriscava uma observação fortuita de quando em quando, com certa timidez, mas ou ele não respondia, ou fazia-o com um monossílabo apenas.
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- Que tens, meu amor? - perguntou ela afinal, fazendo esforço para não chorar.
- Nada.
- Olha para mim, adorado. Tenho fome de um olhar teu.
- Como posso olhar para ti quando a estrada está cheia de sulcos e buracos? Se o cavalo tropeçar podemos quebrar a espinha.
- Não estás zangado comigo porque a Santíssima Virgem quis proteger a minha virtude e teve a bondade de servir de testemunha ao nosso casamemto?
- É uma honra a que eu nunca ousaria aspirar - respondeu ele secamente.
- Então porque estás aborrecido comigo? A resposta tardou um pouco a vir.
- Não augura bem para a nossa futura felicidade que todas as vezes que temos uma diferença de opinião aconteça um milagre para que tu leves a melhor. O homem deve ser o senhor da casa. É dever da mulher submeter-se aos desejos do marido, e nisso devia ela pôr a sua alegria.
Catalina tinha os braços em volta de Diego, e este sentiu-os tremer.
- Com choro não remedeias nada - disse ele.
- Não estou a chorar.
- Que estás a fazer então?
- A rir.
- A rir? Isso não é motivo para riso, mulher? É assunto muito sério e eu tenho o direito de ficar preocupado.
- És encantador,, meu querido, e eu amo-te de todo o coração, mas às vezes não és muito sensato.
- Explica - volveu ele friamente.
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- A prioresa disse-me que eu devia à minha virgindade os favores que tinha recebido de Nossa Senhora. Parece que dão muito valor a isso lá no Céu. Sem dúvida não receberei mais nenhum quando a tiver perdido.
A estas palavras Diego virou-se para trás da sela, tanto quamto lhe era possível. O seu bonito rosto abria-se num sorriso brejeiro.
- Bendita seja aquela que te pôs no mundo!- - disse ele. - Vamos pôr essa questão à prova sem mais tardança.
- O sol está a ficar quente. Seria agradável repousar um pouco à sombra das árvores, até que abrande o calor do dia.
- Era justamente essa a ideia que me tinha passado pela cabeça.
- E, a não ser que os meus olhos me enganem, a menos de uma milha daqui há um bosque que nos convém, às maravilhas.
- Se os teus olhos te enganam, os meus estão a enganar-me também.
Encostou as esporas ao cavalo, que largou a correr como uma ventania até alcançarem o bosque. Diego saltou da sela e ajudou Catalina a descer. Enquanto ele atava o cavalo a uma árvore, ela foi tirando dos alforjes o farnel de que os tinha munido a providência, quer da prioresa, quer de Domingo. Pão e queijo, salsichas, frango assado e um rotundo odre de vinho. Quem poderia desejar melhor repasto de núpcias? Estava fresco e sombrio debaixo das árvores e um fio de água corria pelo leito de pequenina e límpida torrente. O sítio era propício.

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XXXI.

Quando saíram do bosque - Diego a puxar o cavalo - já o sol chamejava com menos ferocidade.
- Fizemos bem em nos garantirmos duplamente - disse ele.
- Triplamente - murmurou Catalina, não sem uma certa satisfação desvanecida.
- Isso não é nada, menina - volveu ele com uma presunção muito perdoável. - Tu ainda não sabes de que eu sou capaz.
- És tão descarado quanto adorável - disse ela.
- Sou como Deus me fez - respondeu Diego modestamente.
Seguiram caminho devagar, subindo e descendo colinas, sem conversar muito, mas a ruminar a sua felicidade. Cavalgaram seis ou sete milhas e afinal avistaram,, à luz dourada da tardinha, uma construção desconjuntada à beira da estrada. Era, evidentemente, a estalagem de que falara o padre.
- Daqui a pouco estaremos lá. Estás cansada, meu amor?
- Cansada? - respondeu ela. - Porque havia de estar cansada? Sinto-me fresca como uma cotovia.
Haviam percorrido umas boas quarenta milhas e desde o dia anterior Catalina não dormira mais de uma hora. Mas tinha dezasseis anos.
Estavam já na planície, que se estendia amplamente de ambos os lados da estrada. Fora feita a colheita e os campos estavam secos e pardacentos. Aqui e além elevavam-se alguns robles nodosos; de longe em longe, um bosque de oliveiras centenárias. Ainda se encorutravam a menos de uma milha da
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estalagem quando avistaram, a galopar na sua direcção em meio a uma grande nuvem de pó, um cavaleiro de tão estranha aparência que os deixou estupefactos, pois o homem vestia uma armadura completa. Fez estacar bruscamente o seu cavalo ao alcançá-los e postou-se no meio da estrada. Pôs a lança em riste, firmou-se melhor na sela e, em tom altaneiro, assim falou a Diego:
- Detende-vos e, quem quer que sejais, dizei-me quem sois, de onde vindes, aonde ides e quem é a formosa princesa que levais à garupa; pois tenho razões de sobra para crer que a estais conduzindo ao vosso castelo contra a sua vontade, e cumpre que eu esteja bem informado a fim de punir o mal que fizestes e restituí-la aos seus aflitos pais.
Tão espantado estava Diego que por um momento não soube o que responder. Tinha o cavaleiro um rosto comprido e cadavérico, barba curta e intonsa,, e um imenso bigode. A sua armadura, de feitio antiquado, estava coberta de ferrugem e o seu elmo parecia-se mais com uma bacia de barbeiro do que com outra coisa. Era a montada um miserável rocim que só servia para o matadouro, e tão magro que se lhe podiam contar as costelas. Andava com a cabeça tão perdida que ameaçava cair a todo o momento, de pura fraqueza.
- Senhor - disse Diego, assumindo um ar arrogante para impressionar Catalina com o seu valor -, nós vamos a caminho da estalagem que se avista daqui e não vejo porque hei-de responder às suas despropositadas perguntas.
Dito isto, meteu as esporas no cavalo e avançou, mas o cavaleiro segurou-lhe as rédeas e obrigou-o a parar.
- Vede bem o que dizeis, soberbo e descortês cavaleiro,
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e explicai-me imediatamente quem sois ou eu vos desafio para um combate mortal.
Nesse momento um homenzinho muito gordo, com uma pança enorme, aproximou-se a trote largo num burro de pêlo rodado e, batendo significativamente com a mão na testa, procurou dar a entender aos viajantes que o cavaleiro tão estranhamente aparelhado não tinha o juízo no lugar. Mas ao ouvir aquelas palavras ameaçadoras Diego havia sacado da espada e parecia disposto a defender-se. O homenzinho gordo acelerou o passo do burro.
- Refreie a sua cólera, senhor - disse ele ao cavaleiro. - São inofensivos viajantes e esse moço, a julgar pelas aparências, é muito capaz de dar boa conta de si no caso de chegarem a vias de facto.
- Aquieta-te, vilão! - gritou o cavaleiro. - Se a aventura é perigosa, terei melhor ensejo de exercitar a minha força e provar a minha coragem.
Ao ouvir isto, Catalina desceu do cavalo e adiantou-se para o desconhecido.
- Eu responderei às suas perguntas, senhor. Este moço não é nenhum cavaleiro, mas um honrado cidadão de Castel Rodríguez e alfaiate de seu ofício. Não me conduz à força para o seu castelo, pois castelo é coisa que não tem, mas leva-me de minha livre vontade a Sevilha, onde esperamos encontrar uma ocupação digna. Fugimos da nossa cidade natal porque alguns inimigos queriam impedir que nos casássemos, o que esta manhã fizemos numa aldeia a algumas milhas daqui. Viajamos com a maior rapidez possível, com receio de sermos perseguidos, alcançados e obrigados a voltar para a nossa cidade.
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O cavaleiro volveu os olhos de Catalina para Diego, depois passou a lança ao homenzinho montado no burro. O outro apanhou-a, embora o fizesse a resmungar.
- Embainhai a espada, mancebo - disse a fantástica criatura com um gesto magnificente. - Nada tendes que temer, conquanto eu bem perceba,, pela vossa aparência, que o indigno sentimento do medo é de todo alheio ao vosso peito varonil. Talvez vos convenha assumir o humilde disfarce de alfaiate, mas a vossa atitude e procedimento traem-vos estirpe ilustre. Foi uma feliz circunstância para vós terdes cruzado o meu caminho. Sou cavaleiro andante e a minha ocupação é andar por todas as partes do mundo à cata de aventura, reparando injustiças, socorrendo a inocência ultrajada e castigando os opressores. Tomo-vos sob a minha protecção, e ainda que os vossos inimigos surgissem em número de dez mil para vos arrastar ao cativeiro, eu, com este braço, os poria em fuga. Eu próprio vos escoltarei até à estalagem, onde, por coincidência, também estou hospedado. Este meu escudeiro cavalgará convosco. É uma criatura loquaz e ignorante, mas bem intencionada, e obedecerá às vossas ordens como se partissem de mim. Eu irei um pouco atrás para que, ao ver aproximar-se um exército, possa atacá-lo e vós tenhais tempo de escapar com essa formosa donzela para lugar seguro.
Catalina saltou para a garupa, atrás do marido, e puseram-se novamente a caminho, acompanhados pelo escudeiro. Este contou-lhes que o seu amo era doido varrido - conclusão a que o casal já tinha chegado ao ouvir as falas do cavaleiro - mas acrescentou que, apesar disso, era um homem digno e bom.
- E quando não está de telha, o pobre fidalgo diz mais
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coisas sensatas numa hora do que é capaz de dizer num mês inteiro qualquer homem são da cabeça.
Chegaram à estalagem. Algumas pessoas estavam sentadas em bancos, à porta; olharam com curiosidade os dois viajantes mas não lhes prestaram mais atenção. Pareciam mergulhados em melancólico letargo. O homenzinho gordo rolou do lombo do seu burro para o chão e chamou o estalajadeiro. Este apresentou-se, mas quando Diego lhe pediu um quarto respondeu mal-humorado que não havia um só leito vago em toda a casa. Um grupo de actores havia chegado no dia anterior para dar espectáculo num castelo vizinho, cujo proprietário, um grande de Espanha, estava celebrando o casamento de seu filho e herdeiro. As pessoas sentadas nos bancos, evidentemente os actores a quem ele se referia, puseram-se a encarar o jovem casal com uma indiferença algo hostil.
- Mas é preciso que nos arranje alguma coisa, hospedeiro - disse Diego. - Passámos o dia viajando e não podemos ir mais longe.
- Estou-lhe a dizer que não tenho lugar, senhor! Há gente a dormir na cozinha, há gente a dormir nas estrebarias...
O cavaleiro aproximava-se.
- Que ouço dizer? - exclamou ele. - Negais agasalho a estas distintas pessoas? Grosseirão! Sob pena de incorrerdes no meu desagrado, ordeno-vos que lhes proporcioneis alojamento condigno.
- A casa está cheia! - berrou o estalajadeiro.
- Dai-lhes então o meu quarto.
- Isso farei se tal é o seu desejo, senhor cavaleiro, mas onde dormirá o senhor?
- Não dormirei - respondeu ele pomposamente.
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- Momtarei guarda. Este é o dia das suas bodas e a mais solene ocasião na vida de uma donzela. O apóstolo ensinou que é melhor casar do que abrasar-se. A finalidade do matrimónio não é satisfazer os apetites da carne e sim procriar filhos, e para esse fim a pudica noiva é solicitada a abandonar a modéstia natural e, nos braços de seu legítimo marido, sacrificar a preciosa pérola da sua virgindade. É dever de meu estado não somente salvaguardar o recato do seu leito conjugal contra a intrusão dos inimigos que os perseguem com os seus perversos desígnios, mas também impedir as brincadeiras de mau gosto com que o vulgo costuma dar vazão ao seu bom humor nessas ocasiões.
Estas palavras deixaram Catalina toda confusa, mas se de vergonha ou modéstia é o que se não pode afirmar com certeza.
Na Espanha daqueles tempos, os estalajadeiros só forneciam alojamento, e os viandantes tinham de levar consigo a comida. Nessa ocasião, porém, o grande fidalgo enviara aos actores, pelo seu despenseiro, um cabrito e uma posta de porco assado; e o nédio escudeiro, por métodos todos seus, adquirira dois pares de perdizes, de modo que os hóspedes podiam constar com um repasto mais sumptuoso que de costume, pois a sua refeição da tarde consistia por via de regra em simples pão e alho, com o acréscimo de um pedaço de queijo por vezes. O estalajadeiro anunciou que o jantar estaria pronto dentro de meia hora e o cavaleiro, com aprimorada cortesia, pediu aos recém-casados que lhe fizessem a honra de aceitar a sua hospedagem. Mandou o escudeiro retirar os seus pertences e conduzir os noivos à câmara em que eles celebrariam a seu tempo os ritos sagrados. Os quartos de dormir ficavam
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no andar de cima e as portas abriam-se para uma galeiria que circundava o pátio. Após terem consertado como melhor podiam a desordem da sua toilette, Diego e Catalina tornaram a descer para respirar o ar puro da tarde. Encontraram os actores sentados como os haviam deixado. Estavam de muito mau humor,, exasperados, e quando falavam entre si era em tom acerbo. Daí a pouco veio ter com eles o cavaleiro. Retirara a armadura e estava de calções e gibão de camurça, manchados pela ferrugem do peitoral, das grevas e sapatos. A fiel durindana pendia-lhe ao lado, de um cinto de pele de lobo.
O estalajadeiro chamou-os para dentro e sentaram-se a cear. O cavaleiro colocou-os à cabeceira da mesa, instalando Cattalina à sua direita-, e Diego à sua esquerda.
- E onde, -por obséquio, está Mestre Alonso? - perguntou ele, correndo os olhos em volta de si. - Não foi informado de que a ceia está na mesa?
- Ele não quer vir - disse uma mulher madura que fazia papéis de "duenas", madrastas perversas e rainhas viúvas, sendo também a encarregada do vestiário. - Diz que não tem apetite.
- Um estômago vazio não faz senão tornar duplamente cruel o infortúnio. Ide chamá-lo. Dizei-lhe que eu o considerarei culpado de grave descortesia para com os meus distintos hóspedes se me negar o prazer da sua companhia. Não comeremos nada enquanto ele não vier.
- Vai chamá-lo, Mateo - disse a "duena".
Um homenzinho magricela, de nariz comprido, boca enorme e expressiva, levantou-se e saiu. A "duena" deu um suspiro.
- É um caso triste - disse ela - mas como sensatamente
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observou o senhor cavaleiro, passar sem a ceia não remedeia nada.
- Se não fosse impertinência - disse Catalina -, gostaria de saber de que se trata.
Sentiram grande desafogo em informá-la, pois todos tinham a cabeça cheia do assunto. A companhia pertencia a Alonso Fuentes, que também era autor de muitas peças por ela levadas à cena, e sua esposa Luísa era a primeira-actriz. Fugira naquela manhã com o galã, levando consigo todo o dinheiro a que pudera deitar a mão. Era uma catástrofe, pois Luísa Fuentes fazia grande sucesso e os seus colegas não ignoravam que era ela quem atraía dinheiro para a bilheteira. Alonso estava desesperado. Não só perdera a esposa, mas também uma actriz e uma boa fonte de renda. Isso dava para transtornar qualquer um. O pessoal da companhia soltou a língua. Os homens censuravam a perfídia das mulheres e admiravam-se de uma criatura tão fina ter podido rebaixar-se com um actor medíocre como era o galã. As mulheres, por sua parte, perguntavam como se podia esperar que uma mulher preferisse um sujeito gordo e careca como Alonso, quando tinha uma oportunidade de fugir com um belo rapaz como Juanito Azuria. A conversa foi interrompida pelo aparecimento do marido enganado. Era pequeno e gorducho, já entrado em anos, com a cara elástica do actor que desempenha toda a sorte de papéis. Sentou-se lugubremente e uma grande travessa de "alia podrida" foi posta na mesa.
- Vim apenas para lhe ser gentil, senhor cavaleiro - disse ele. - Esta será a minha última refeição na Terra, pois estou resolvido a enforcar-me depois da ceia.
- Devo insistir para que espereis até amanhã - volveu
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gravemente o cavaleiro. - Este senhor e esta senhora que aqui vedes à minha direita e à minha esquerda casaram-se esta manhã e não posso permitir que a sua noite de núpcias seja perturbada por um incidente tão indecoroso como o que sugeris.
- Importo-me lá com esse senhor e essa senhora! Digo-lhe que me vou enforcar.
O cavaleiro pôs-se repentinamente em pé e desembainhou a espada.
- Se não me jurardes por todos os santos do Paraíso que não vos enforcareis esta noite, eu vos cortarei em pedacinhos com a minha espada.
Por felicidade, o atarracado escudeiro achava-se atrás do seu amo para servi-lo à mesa.
- Não tenha receio, meu senhor - disse ele. - Alonso não se enforcará esta noite porque tem de dar um espectáculo amanhã, e quem foi actor morrerá actor. Ele não decepcionará o seu público. Se reflectir um pouco, há-de lembrar-se de que a fortuna é inconstante; o que não tem remédio remediado está, e não há mal que não venha para bem.
- Basta de papaguear esses teus tolos provérbios - replicou irado o cavaleiro; mas enfiou a espada na bainha e tornou a sentar-se. - Não fica bem fazer tanto alvoroço por causa de uma desventura que tem sucedido a muitos homens de mais valimento do que esse Alonso. Com um pouco de reflexão eu vos poderia citar, tanto das Sagradas Escrituras como da história profana, os nomes de muitos homens cujas mulheres lhes enfeitaram a testa com um par de chifres; mas no momento os únicos que me ocorrem são os do rei Artur, cuja esposa
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Guinevra o traiu com o cavaleiro Lançarote do Lago, e o rei Marcos, cuja esposa Isolda o enganou com Tristão de Leónis.
- Não foi a afronta à minha honra que me arrastou ao desespero, senhor cavaleiro - disse o actor e dramaturgo -, mas a perda simultânea do dinheiro e das duas melhores figuras da minha companhia. Temos de trabalhar amanhã, e a quantia que me foi prometida seria até certo ponto uma compensação financeira, mas como poderei dar um espectáculo sem actores?
- Eu bem podia fazer o papel de Don Fernando - disse o magricela que tinha ido chamar Alonso.
- Tu? - exclamou desdenhosamente o actor-empresário.
- Gomo poderias tuu com essa cara de cavado e essa voz estridente, desempenhar o papel de um príncipe valente, atrevido, voluntarioso e apaixonado? Não, esse papel eu é que podia desempenhá-do, mas quem fará a encantadora Doroteia?
- Eu conheço o papel - disse a "diuena". - É verdade que já não sou muito moça...
- Exactamente - interrompeu Alonso. - E dá licença de lembrar-me que Doroteia é uma donzela inocente., de beleza incomparável, enquanto a tua figura de matrona dá a impressão de que a qualquer momento vais dar à luz uma ninhada de leitões.
- Será possível que se estejam referindo à "Verdade com zelo pode mover o próprio Céu"? - perguntou Catalina,, que tinha acompanhado atentamente a conversa.
- Ela mesma - disse Alonso, em certo tom de surpresa.
- Mas como foi que soube?
- É uma das peças favoritas de meu tio. Costumávamos lê-la juntos. Ouvi-lhe dizer muitas vezes que a fala de Doroteia,
quando repele indignada as indecorosas propostas de Don Fernando, é comparável ao que o grande Lope de Vega tem escrito de melhor.
- Conhece-a?
- De cor.
Pôs-se a recitar, mas, notando que o grupo a observava com curiosidade, foi tomada de um acesso de timidez, gaguejou e calou-se.
- Continue, continue! - exclamou o comediante.
Ela corou, sorriu e, cobrando coragem, começou de novo a declamar o longo discurso, que levou até ao fim com tanta graça, emoção e sinceridade que todos ficaram pasmados. Alguns até chegaram a derramar lágrimas.
- Salvos! - bradou Alonso. - A senhora representará Doroteia amanhã comigo, e eu farei Don Fernando.
- Como é possível? - respondeu ela, aterrada. - Eu morreria de medo. Nunca representei. Não, não posso. Ficaria muda diante do público.
- A sua mocidade e a sua beleza compensarão quaisquer deficiências que possa ter. Eu a ajudarei. Ouça, minha bela, só você nos pode salvar. Se recusar, não poderemos representar e não teremos dinheiro para pagar nem a nossa estada aqui nem o que comemos. Seremos reduzidos a mendigar o nosso pão pelas ruas.
Então o cavaleiro interveio na conversa,.
- Bem compreendi, gentil senhora, que a vossa modéstia vos faça hesitar ante a perspectiva de exibir-vos num teatro sob os olhares de uma multidão de desconhecidos, e não vos ficaria bem fazê-lo sem permissão de vosso nobre marido. - Metera-se na cabeça do cavaleiro que o jovem casal era de
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alta estirpe e por mais que dissessem não conseguiam persuadi-lo do contrário. - Mas não esqueçais que é próprio das naturezas elevadas socorrer os aflitos e prestar ajuda aos necessitados.
Os demais comediantes juntaram os seus rogos aos de Alonso Fuentes e afinal Catalina concordou, com o pronto consentimento de Diego, em ensaiar a peça e, se os outros a achassem satisfatória, arriscar-se a aparecer em cena. Portanto, depois da ceia, a mesa foi afastada para um lado e começou o ensaio. Catalina tinha boa memória e havia repetido tantas vezes com Domingo as cenas em que figurava Doroteia, que estava bastante segura das suas réplicas. No começo mostrou nervosismo, mas a aprovação dos comediantes deu-lhe mais desembaraço e dentro em pouco, absorvendo-se por completo no papel, perdeu o acanhamento. Mostrou -ter aproveitado as lições recebidas do tio e idisse as suas falas com incisiva sinceridade. Saiu-se notavelmente bem e Alonso confiava em que, com mais um ensaio pela manhã, ela estaria em condições de enfrentar o público. Catalina estava emocionada, feliz, e parecia tão linda que ele ficou certo de que a sua inexperiência passaria despercebida.
- Ide-vos deitar, meus filhos - disse aos seus actores -, e durmam bem. Acabaram-se as nossas dificuldades.
Mas ao verem-se livres daquela ansiedade eles foram tomados de tal alvoroço que não sentiam a menor vomtade de dormir. Pediram vinho e dispuseram-se a passar a noite festejando. Comodamente instalado numa cadeira, o cavaleiro assistira ao ensaio com um olhar crítico. Pondo-se em pé com alguma dificuldade, devido às juntas emperradas, ele chamou a "duena" de parte.
- Conduzi a bela Catalina à câmara nupcial - disse-lhe -, e visto que ela não tem mãe para lhe ensinar o que lhe cumpre saber nesta grave ocasião, compete a vós explicar-lhe, em termos que não ofendam a sua modéstia, a provação a que, como esposa obediente, é seu dever submeter-se. Em suma, deveis prepará-la para os mistérios do amor, os quais, como virgem inocente, deve ignorar.
A "duena)) pestanejou, mas prometeu fazer o que em si estava.
- Nesse ínterim - prosseguiu o cavaleiro -, eu explicarei ao jovem fidalgo, seu marido, que ele deve conter o seu ímpeto natural, pois a aversão que uma mulher virtuosa forçosamente sente pelas intimidades do congresso sexual só pode ser vencida pela paciência. Tal é a depravação dos nossos tempos que não posso supor tenha ele conservado a sua inocência até hoje.
- Sem faltar com o respeito ao senhor cavaleiro - disse a "duena" -, é preferível que o homem não seja de todo inexperiente do acto de amor,, pois nesse terreno, como nas artes e ofícios manuais, tudo depende da prática.
- Esse é um assunto em que não me aventurarei a dar opinião, minha senhora. Seja-vos bastante saber que, ao cabo de um intervalo condigno, eu próprio conduzirei o noivo ao limiar da câmara nupcial e depois, vestindo a armadura, montarei guarda no balcão para que o matrimónio se consume de forma condizente com a nobreza das partes interessadas.
Despediu a "duena" e chamou Diego, dirigindo-se-lhe nestes termos:
- Ides ingressar num estado em que poucos se portam de maneira que possam alcançar a felicidade para si mesmos
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ou dispensá-la às suas companheiras de existência; e as circunstâncias do vosso casamento são de tal natureza que me põem na conjuntura de vos dar os conselhos que, em condições ordinárias, vos seriam dados pedo vosso nobre pai. - Entrou então a falar ao rapaz dentro das linhas gerais que havia indicado à "duena", e terminou como segue: - Não condeno os prazeres necessários do corpo, que o revigoram na fadiga e não permitem que se torne muito importuno. Mas a comida, a bebida e, ainda, mais, a união dos sexos, não passam de lenitivos proporcionados ao corpo a fim de que não seja estorvado o trabalho do espírito. No entanto, ao amor sancionado pelo casamento não falta um certo impulso ascensional e, na medida em que ele o possui, conduz para o Bem as almas jovens. No casto amor que vos atraiu para essa donzela não pode deixar de existir o desejo daquela imortalidade que se encontra ao alcance dos mortais. E quando a aconchegardes ao vosso peito, pela vossa própria comunhão com a beleza, semeareis em beleza e por isso mesmo semeareis para a eternidade. Sim, porque o Belo e o Eterno são uma coisa só.
Diego escutou esta arenga com a polidez que lhe era natural mas com uma atenção distraída, pois estava impaciente por ficar a sós com Catalina. O cavaleiro tomou-o pela mão e conduziu-o ao que ele chamava a "câmara nupcial". Chamando então o seu escudeiro, revestiu os seus apetrechos marciais e passou a noite a andar de baixo para cima, absorto em meditações sobre o inacessível objecto da sua devoção pessoal.

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XXXII.

Na manhã seguinte, bem cedo, tornaram a ensaiar a peça e daí a pouco chegaram carruagens para os conduzir ao castelo do duque. Diego e o cavaleiro montaram os seus cavalos, o escudeiro o seu burro, e puseram-se a caminho. No último momento, porém, Catalina perdeu a coragem e, exclamando que não tinha forças para se submeter àquela prova, implorou a Alonso que a deixasse ficar na estalagem. O director da "troupe" enraiveceu-se e, dizendo-lhe que era tarde para recuar, meteu-a numa carruagem e sentou-se ao pé dela. Catalina debulhava-se em lágrimas, mas com a ajuda da "duena" ele conseguiu acalmá-la, e quando chegaram a moça havia recobrado suficientemente a compostura. Foram os actores recebidos com mostras de apreço e, por ordem do duque, dispensou-se-lhes a melhor hospitalidade. Mas aquele ouvira falar nas extravagâncias do cavaleiro, e, pensando que a conversa deste divertiria os seus convidados, rogou-lhe que os honrasse, a ele e à duquesa, com a sua companhia ao jantar. Erigira-se um palco no pátio e, depois que os fidalgos se fartaram de comer, os actores foram chamados a dar a sua representação. O distinto auditório achou muita graça a Alonso no papel de alegre sedutor, pois a sua aparência não tornava plausível tal coisa; ficaram, porém, encantados com a graça de Catalina, com a música da sua voz e a elegância da sua dicção, e depois de terminada a peça fizeram-lhe grandes cumprimentos. O cavaleiro havia-lhes contado a sua versão romântica da fuga do jovem casal e isso, simultaneamente, acresceu-lhes o interesse. A duquesa mandou-os chamar e todos ficaram admiradíssimos com a beleza de ambos, a sua atitude modesta e o seu garboso porte.
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A duquesa deu uma conrente de ouro a Catalina e o duque, para não lhe ficar atrás, tirou um anel do dedo e ofereceu-o a Diego. Alonso foi ricamente recompensado e a companhia, fatigada mas satisfeita, tomou o caminho da estalagem. Pouco depois foram alcançados pelo cavaleiro e pelo seu escudeiro. Apeou-se aquele com os seus movimentos rígidos e, tomando a mão de Catalina, acrescentou os seus cumprimentos aos que ela já havia recebido.
- Chegou muito a tempo, senhor cavaleiro - disse Alonso -, de me ouvir fazer uma proposta a estes moços. - E, voltando-se para Catalina: - Convido-a para fazer parte da minha "tnoupe".
- Eu? - fez Catalina, estupefacta.
- Embora ainda lhe falte aprender tudo, a senhora possui talentos que seria pecado malbaratar. Não sabe representar. Diz o seu papel como o faria na vida real. Isso é tolice. O teatro não lida com o verdadeiro, mas com o verosímil, e é só por meio do artifício que o actor pode ser natural. Os seus gestos não têm amplidão e a senhora ainda precisa de adquirir autoridade. O bom actor domina o público até com o seu silêncio. Se quiser colocar-se nas minhas mãos eu farei de si a maior actriz da Espanha.
- -A sua proposta surpreende-me de tal modo que mal posso crer seja ela feita a sério. Sou uma mulher casada e vou com meu marido para Sevilha, onde nos garantem uma ocupação honesta.
Alonso Fuentes notou o olhar que ela dirigiu a Diego e voltou-se para este com um sorriso.
- O senhor tem uma bela aparência e modos distintos,
moço. Tudo leva a crer que, com a experiência, possa tornar-se útil em papéis apropriados.
Os aplausos com que fora recebido o seu desempenho e os cumprimentos que recebera haviam emocionado Catalina, a quem essa inesperada oferta não causou pequeno alvoroço. Notou, porém, que o marido não gostara do modo displicente com que Alonso propusera incluí-lo na combinação e apressou-se a dizer:
- Ele sabe cantar como um anjo!
- Melhor ainda. São raras as peças que não contenham uma canção ou duas para animar a acção. Então, que acham? A oportunidade que lhes ofereço é, sem dúvida, mais tentadora do que a ocupação, honesta talvez, mas certamente modesta, que os espera em Sevilha.
O cavaleiro, que durante esse tempo ficara sentado em silêncio, a escutar, assumiu então a palavra:
- A proposta que Mestre Alonso acaba de vos fazer não é das que podem ser enjeitadas às pressas. Senão, reflitam: estais sendo perseguidos pela fúria de vossos pais ultrajados, que não se deterão diante de coisa alguma para vos arrancar aos braços um do outro. Mas o tempo apazigua a ira, e há-de chegar o dia em que esses pais lamentarão a vossa perda, arrependendo-se de vos ter querido impor alianças repulsivas, quer por ambição quer por cobiça. Reconquistareis não apenas o seu amor,, mas a categoria e posição a que vos dá direito o vosso alto nascimento. Enquanto isso não suceder, porém, será prudente esconder-vos, e que melhor esconderijo há para vós de que uma "troupe" de actores? E não julgueis que vos rebaixais aparecendo no palco. Tanto os que escrevem peças de teatro como os que as representam são merecedores do nosso
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afecto e estima, pois trabalham para o bem da comunidade. Colocam diante dos nossos olhos uma imagem animada da vida humana,, mostrando-nos o que somos e o que devíamos ser. Ridicularizam os vícios e fraquezas dos nossos tempos e não regateiam louvores ao que louvores merece, isto é, a honra, a virtude e a beleza. Os comediógrafos aperfeiçoam-nos a inteligência com o seu espírito e a sua sabedoria, enquanto os actores refinam os nossos costumes com a graça do seu porte e a dignidade das suas atitudes.
E nesse teor continuou a falar ainda durante algum tempo. Todos se assombravam de ver que um homem tão doido que ninguém podia achar explicação para os seus actos era, no entanto, capaz de expressar-se com tanto bom senso.
- E não esqueçamos - concluiu ele -, que uma comédia análoga às que vemos levadas à cena nos palcos dos teatros é também representada no palco do mundo. Todos nós somos actores de uma peça. A alguns cabe-lhes em sorte o papel de reis ou prelados, a outros o de mercadores, soldados ou agricultores, e cada um deve tratar de representar a parte que lhe foi designada. Escolhê-las., porém, compete a um poder mais alto.
- Que achas tu, meu amado? - perguntou Catalina com o seu sorriso mais encantador. - Como diz com muito acerto o cavaleiro, não é uma oferta que se possa enjeitar levianamente.
Na reailidade, já se havia resolvido a aceitá-la, mas não ignorava que os homens gostam de pensar que resolvem os seus assuntos por si mesmos.
- Não somente me prestarão auxílio na minha difícil situação - disse Alonso -, mas também vão lucrar muito
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com isso, pois visitarão comigo as mais famosas cidades da Espanha.
Os olhos de Diego cintilaram. Bem percebia que aquilo seria muito mais divertido do que passar doze horas por dia sentado num banco de alfaiate.
- Sempre desejei correr mundo - disse ele.
- E hás-de fazê-lo, meu querido - volveu Catalina. - Mestre Alonso, nós teremos muito prazer em ingressar na sua companhia.
- E ainda será uma grande actriz.
- Olé, olé! - gritaram os outros membros da companhia. Alonso mandou trazer vinho e todos beberam à saúde dos novos camaradas.


XXXIII.

No dia seguinte, após se despedirem cortesmente do cavaleiro, partiram os actores ambulantes para a cidade vizinha de Manzanares, onde se estava realizando uma feira e, por tal motivo, tinham a certeza de encontrar um público numeroso. Alonso havia alugado mulas para os actores montarem e para carregar as arcas onde eram transportadas as suas roupas e costumes de teatro. Catalina e Diego iam no cavalo que lhes dera Dona Beatriz. Incluindo Diego e o próprio Mestre Alonso, eram sete os homens da companhia, e além de Catalina e da "duena" havia um menino que representava papéis femininos secundários. Fazia ele também o ofício de pregoeiro, e quando chegavam a uma cidade onde pretendíam dar espectáculo, enquanto Alonso se dirigia ao prefeito para solicitar licença,
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ele percorria as ruas batendo num tambor e anunciando à população que a famosa "troupe" de Alonso Fuentes ia dar uma representação da magnífica, espiritual e imortal peça Tal-e-tal.
Como naquele tempo não houvesse teatros na Espanha, as peças eram representadas em pátios, onde as janelas e sacadas das casas circunvizinhas podiam servir de camarotes para as pessoas nobres e gradas. Fazia de tecto o céu de anil, salvo no rigor do Verão, quando se estendia de telhado a telhado um toldo contra o sol. Em frente do palco colocavam-se alguns bancos, em volta do pátio mais outros, dispostos em degraus, para a respeitável classe média. O vulgo ficava em pé, com os homens na frente e as mulheres atrás, comprimidas dentro de uma espécie de curral. Tanto por medo aos incêndios como no interesse da moral, os espectáculos realizavam-se à tarde. Consistia o cenário num simples pano preto e as mudanças de cena eram anunciadas pelos próprios actores.
A fuga da mulher de Alonso com o galã levou-o a mudar de itinerário,, e depois de trabalhar em Manzanares a companhia dirigiu-se para Sevilha, onde Alonso sabia poder encontrar um actor capaz de representar os papéis que lhe estavam vedados pela idade e pelo físico. Foram em primeiro lugar à opulenta Ciudad Real, e desta a Valdepenas. Escalaram a Sierra Morena e entraram na Andaluzia pelo rochoso desfiladeiro chamado Puerto de Despenaperras. Atravessaram o Guadalquivir e afinal chegaram a Córdova, onde deram espectáculos durante uma semana,. Descendo então por algum tempo o nobre rio, foram a Carmona, onde deram uma representação, e finalmente alcançaram Sevilha. Mestre Alonso contratou o actor que desejava e demoraram-se um mês na cidade, após o que saíram novamente em giro pelo país. Era uma dura existência.
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Dormiam em estalagens miseráveis, onde as camas eram tão duras e imundas que, embora cansados e extenuados pelo calor do Verão ou enregelados até aos ossos pelo frio do Inverno, preferiam muitas vezes deitar-se no chão. Eram picados pelas pulgas, sugados pelos mosquitos, atormentados pelos percevejos e importunados pelos piolhos. Quando iam dar um espectáculo, levantavam-se ao nascer do sol para estudar os seus papéis.. Ensaiavam das nove até ao meio-dia, almoçavam e iam para o teatro, de omde só voltavam às sete. E ainda depois disso, se a sua presença era solicitada por pessoas importantes, um prefeito, um juiz ou um nobre que estivesse a dar alguma festa, por mais moídos que estivessem tinham de deslocar-se para lá e dar mais uma representação. Alonso Fuentes era um feitor de escravos e tão cedo descobriu que Catalina era hábil na- agulha e Diego, um bom alfaiate, encarregou-os, sempre que não tivessem outra ocupação, de fazer ou reformar os costumes necessários ao repertório, que constava de dezoito peças. Não lhe foi preciso muito tempo para perceber que Diego, apesar da sua bela aparência e da sua desenvoltura, jamais daria um bom actor. Contentou-se, pois, em encarregá-lo das canções de que eram entremeadas as peças e em dar-lhe pequenos papéis. Mas, por outro lado, esforçava-se em fazer uma actriz de Catalina. Conhecia o seu ofício e possuía uma viva intuição do efeito teatral. Ela era boa aluna e tinha a (inteligência pronta, de modo que, sob o treinamento intensivo e às vezes brutal do empresário, transformou-se com o tempo, de hábil amadora, em competente profissional. Alonso teve o prémio dos seus trabalhos, pois ela caiu nas boas graças do público e trouxe prosperidade à companhia. Ele aumentou a "troupe" e estendeu o repertório.
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Entre outros, contratou uma jovem actriz chamada Rosália Vásquez, em parte para consolá-lo da perda da esposa e em parte para desempenhar papéis secundários, pois o menino que costumava fazer esses papéis já havia perdido a voz de tiple e já começava a barbear-se. Além disso, Catalina já tivera dois filhos e fazia-se necessário ter uma actriz bastante boa para a substituir nessas ocasiões em que era obrigada a desaparecer do cartaz.
Assim se passaram três amos trabalhosos e felizes. Já então Catalina havia aprendido tudo quanto Alonso Fuentes era capaz de ensinar-lhe e, como tivesse duas crianças de quem cuidar, começou a achar aborrecida aquela existência de nómada. A sua beleza e o seu talento haviam chamado a atenção de pessoas influentes, e mais de uma insinuou que ela e Diego deviam formar uma companhia própria e estabelecer-se em Madrid. Alguns, cheios de admiração pelos seus talentos, foram ao ponto de oferecer-lhes auxílio financeiro. Ora, acomtece que Afonso Fuentes não era apenas empresário, director e actor, mas também autor, e por ano - em geral durante a Quaresma, quando eram proibidas as representações teatrais - produzia duas ou três peças. Catalina não deixara de notar que nessas peças, que ele escrevia supostamente com o fim de a mostrar sob a luz mais vantajosa possível, os papéis destinados a Rosália Vásquez tendiam a adquirir uma importância cada vez maior. Na última, até, os papéis respectivos eram quase do mesmo tamanho e só o talento superior de Catalina fez com que ela parecesse mais importante. Quando ela expressou o seu desagrado, o que não hesitou fazer, Alonso encolheu os ombros e riu.
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- Minha querida, quando se dorme com uma mulher, é necessário trazê-la de bom humor.
Isto, aiinda que visivelmente verdadeiro, não era satisfatório. Embora não fosse excessivamente exigente em pontos de moral, Catalina achava justo que uma mulher casada e respeitável tivesse melhores papéis do que outra, que não passava de uma pinóia.
- Isso não pode continuar assim - disse ela a Diego.
E Diego concordou. A ideia de ter uma companhia própria era tentadora, porém Catalina bem percebia as dificuldades com que ela e Diego teriam de lutar. Era muito estimada na companhia e tinha plena certeza de que alguns dos seus camaradas acolheriam com satisfação a ideia de irem para Madrid com ela. Munida de fundos suficientes, poderia contratar outros actores por lá, comprar os costumes necessários e adquirir algumas peças. Mas a exigência do público madrileno era bem conhecida: fazia-se-lhe mister não só o dinheiro de seus amigos mas também a sua influência. Diego era inteiramente favorável à aventura;, mas sua mulher sabia que, descontente com os pequenos papéis que Alonso lhe designava, ele se consideraria, como empresário, no direito de escolher para si os papéis que lhe agradassem. Embora continuasse a amá-lo com a mesma paixão de sempre, não estava convencida de que ele tivesse competência para desempenhar os papéis de primeiro plano pelos quais suspirava, e previa que teria muito trabalho para conseguir que ele consentisse em dá-los a um actor conhecido. Hesitava. Os dois conversavam interminavelmente, sem poder chegar a uma decisão. Um belo dia Catalina teve a luminosa ideia de mandar chamar Domingo Pérez para lhe pedir conselho. Ele já fora actor, escrevera peças,
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e se finalmente resolvessem organizar uma companhia podiam incluir no repertório uma ou duas produções suas e ele sem dúvida alguma pô-los-ia em contacto com outros autores. Com a aprovação de Diego, ela escreveu-lhe. Já o tinha feito três ou quatro vezes, da primeira para lhe dizer que estava casada, bem de saúde e feliz, e das outras para anunciar o nascimento dos filhos; mas, sabendo o desgosto que isso causaria à sua mãe, achou melhor ocultar que ela e Diego se haviam tornado actores ambulantes. Dessa vez pediu-lhe, sem entretanto mencionar nenhum motivo especial para isso, que os fosse visitar a Segóvia. Estavam passando ali a Quaresma, em parte porque era a cidade natal de Alonso, mas principalmente porque a companhia fora contratada para representar na Páscoa um drama religioso na catedral e estava a ensaiá-lo. Era a mais recente produção de Alonso, que escolhera como assunto a vida de Maria Madalena.


XXXIV.

Domingo, sempre satisfeito com uma oportunidade de dar um passeio, alugou um cavalo assim que recebeu a carta de Catalina, meteu um farnel e um par de camisas nos alforjes e pôs-se na estrada. Ao chegar a Segóvia ficou satisfeito de encontrar Catalina, o marido e os dois filhos instalados num alojamento condigno e encantou-se de vê-la ainda mais bonita que antes. Tinha ela então dezanove anos. O êxito, a felicidade e a maternidade combinavam-se para lhe dar confiança em si e uma certa dignidade, mas ao mesmo tempo
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notava-se-lhe um quê de terno e voluptuoso que era extremamente sedutor. O seu rosto havia perdido o tocante ar infantil, mas ganhara maior perfeição de linhas. A sua figura era esbelta como sempre e ela movia-se com uma graça enfeitiçadora. Era uma mulher, mulher muito moça sem dúvida, mas mulher de carácter, segura de si e cônscia da sua beleza.
- Vocês têm um ar muito próspero, minha querida - disse ele. - Como ganham a vida?
- Depois falaremos nisso - respondeu Catalina. - Primeiro diga-me como vai minha mãe, como vão todos em Cas-tel Rodríguez, o que aconteceu depois da nossa fuga e como vai Dona Beatriz.
- Uma coisa de cada vez, pequena! - sorriu ele. - E não esqueças que eu fiz uma longa jornada e estou com sede.
- Corre a casa do Rodrigo buscar uma garrafa de vinho, meu querido - disse Catalina. Domingo sorriu ao vê-la remexer debaixo das saias e, tirando dali uma bolsa, dar algumas moedas a Diego.
- Não demoro nem um minuto - disse este, saindo.
- Vejo que és prudente, minha querida - observou Domingo arreganhando os dentes.
- Não tardei muito a descobrir que não se pode confiar dinheiro aos homens, e quando um homem não tem dinheiro não pode fazer asneiras - riu ela. - Mas responda agora às minhas perguntas.
- A tua mãe está com saúde, manda-te lembranças, a sua
piedade é exemplar, e é sem dúvida por esse motivo que a
prioresa lhe dá uma pensão e ela já não é obrigada a trabalhar.
Disse estas coisas com os olhos a cintilar, e Catalina riu-se
de novo. Esse riso era tão franco e ao mesmo tempo tão
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musical que Domingo, no seu estilo poético, o comparou ao rumorejar da água numa torrente das montanhas.
- Houve grande comoção em Castel Rodríguez depois que desapareceste - continuou ele. - Já não havia ninguém que te defendesse, minha pobre pequena, e tua mãe estava desesperada. Somente quando a freira Dona Ana veio dizer que a prioresa tencionava prestar-lhe auxílio financeiro é que tua mãe pôde consolar-se do teu mau procedimento. Durante dez dias não se falou em outra coisa. As freiras ficaram horrorizadas ao ver que, depois da bondade que Dona Beatriz tinha mostrado para contigo, depois do grande favor que estava disposta a prestar-te, tinhas a coragem de lhe fazer semelhante afronta. As pessoas importantes da cidade foram ao convento apresentar-lhe as suas expressões de simpatia, porém ela estava tão contristada que não quis recebê-las. Consentiu, entretanto em falar com Don Manuel, e ninguém sabe o que se passou entre eles, A irmã leiga que a( serve ouviu vozes acaloradas e enfurecidas, mas embora aguçasse o ouvido não pôde distinguir Uma só palavra, e pouco depois Don Manuel saiu da cidade. Há muito tempo que eu te haveria escrito contando essas coisas se me tivesses dado o teu endereço.
- Impossível! Andávamos de um lugar para outro e eu só sabia para onde íamos no momento em que nos púnhamos a caminho.
- Mas porquê isso?
- Não adivinha? Quantas vezes me falou no tempo em que vagueava por toda a Espanha,, sob o sol escaldante do Verão, no frio enregelador do Inverno, descalço não porque quisesse poupar os sapatos mas porque tinha gasto o único par que possuía, e com uma só camisa para vestir?
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- Deus do céu, vocês por acaso serão actores ambulantes?
- Meu pobre tio, eu sou a actriz principal da célebre companhia de Alonso Fuentes, enquanto Diego é camtor e dançarino, e muito melhor actor do que Alonso quer reconhecer.
- Porque não me contaste isso antes? - exclamou Domingo. - Eu teria trazido comigo uma dúzia de peças.
Nesse momento Diego voltou com o vinho e, enquanto Domingo bebia, Catalina contou-lhe como se haviam tornado actores.
- E todos acham - concluiu ela -, que eu sou actualmente a melhor actriz da Espanha. É verdade ou não é, Diego da minha alma?
- Eu me encarrego de cortar a goela de qualquer um que se atreva a negá-lo.
- Não resta dúvida de que estou malbaratando o meu talento na província.
- Vivo dizendo à rapariga que o nosso lugar é em Madrid - disse Diego. - Alonso tem ciúmes de mim e não me quer dar os papéis em que eu teria ocasião de distinguir-me.
Como se vê, nenhum dos dois sofria dessa falsa modéstia que muitas vezes é o flagelo de um artista. Passaram então a expor a Domingo os seus planos. Este era um homem prudente e, depois que terminaram de falar, disse que não podia aconselhá-los enquanto não os visse trabalhar.
- Venha ao ensaio amanhã - disse Catalina. - Estou a fazer de Maria Madalena na nova peça de Alonso.
- Não faltarei. Gostas do papel? Ela encolheu os ombros.
- Nem tanto. É bastante bom no começo, mas cai no último acto. Eu não apareço nas três últimas cenas. Disse a
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Alonso que, como sou o assunto da peça, devia aparecer ao fim, mas ele respondeu que tinha de se ater à Santa Escritura. A verdade é que o pobre homem não tem imaginação.
Diego conduziu Domingo à taberna frequentada por Alomso Fuentes e outros componentes da "troupe", e apresentou-o não só como tio de Catalina mas também como antigo actor e actualmemte comediógrafo. Alonso recebeu-o com muita cortesia e o velho escrevinhador não tardou a conquistar as simpatias da "troupe" com o seu espírito, e seu bom humor e as histórias da dura existência que levava um actor ambulante nos velhos tempos, Alonso consentiu em que ele assistisse a um ensaio e Domingo lá foi no dia seguinte.
Admirou-se da naturalidade com que Catalina dizia as suas réplicas, da eloquência dos seus gestos e da graça dos seus movimentos,. Alonso fora bom mestre. Ela possuía bom ouvido para a poesia e uma voz encantadora. Tinha alegria e patético. Tinha sinceridade. Tinha força. Era pasmoso que em três anos houvesse aprendido tão completamente a -técnica da sua arte. Parecia incapaz de dar um tom falso. Nela, os dotes naturais, a perícia adquirida, o autodomínio que a experiência lhe ensinara,, tudo era maravilhosamente realçado pela sua grande beleza.
Terminado o ensaio, Domingo beijou-a nas duas faces.
- Minha preciosa, tu és quase tão boa actriz quanto julgas ser.
Ela atirou-lhe os braços em volta do pescoço.
- Oh! tio, tio! Quem diria, quando eu era criança e nós costumávamos recitar as cenas de Lope de Vega, que um dia haviam de disputar os lugares para me ver representar? E o
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senhor por enquanto só assistiu a um ensaio. Espere até que me veja diante do público!
Diego fazia João, o Discípulo Amado, um papel pequeno. Ele era um tipo simpático, mas sem cor. Quando se apresentou um ensejo, Domingo perguntou a Alonso o que pensava dele.
- Tem boa apresentação., mas nunca será um actor. Só o deixo trabalhar para ser agradável a Catalina. Que bom seria se os actores e as actrizes não casassem entre si! Isso é o que atormenta a vida dos empresários.
Tal opinião, porém, não impediu que Domingo aconselhasse Catalina e Diego a que abandonassem Alonso sem receio e se instalassem por conta própria em Madrid. Durante as vinte e quatro horas que passara com eles tinha observado a sensatez de Catalina e estava seguro de que ela não poria em perigo o seu êxito deixando Diego representar papéis aos quais não pudesse fazer justiça. Fosse como fosse, ela havia de dispor as coisas de modo que redundassem em mútua satisfação.
Não era,, todavia, apenas o desejo de ver a sobrinha, e o marido desta que levara Domingo a empreender a árdua jornada de Castel Rodríguez a Segóvia. Esperava encontrar-se também com o seu velho amigo,, Don Blasco de Valero. Estava curioso de saber como se havia o bispo na sua elevada posição. Durante os próximos dias, pois, enquanto Diego e Caitalina se atarefavam com os ensaios, andou ele vagueando pela cidade e, com o seu dom de entabular agradáveis palestras, conseguiu travar conhecimento com muitas pessoas. Soube, por estas, que a grande maioria dos habitantes olhava o bispo com veneração. Admiravam-lhe a piedade e a vida austera. A notícia dos milagrosos acontecimentos de Castel Rodríguez havia alcançado Segóvia e o povo enchera-se de pasmo e respeito. Mas
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também contaram a Domingo que ele provocara a hostilidade do capítulo e do oleiro da cidade. Indignara-se ante a licença dos seus costumes e a negligência com que muitos deles cumpriam os seus deveres religiosos. Com muito zelo, mas pouco tacto, deu início a uma veemente campanha de reforma. Não tinha contemplação com aqueles que não se emendavam e, como outrora em Valência, não queria saber com quem estava tratando. O oleiro, com poucas excepções, ressentiu-se amargamente dessa áspera intolerânciai e lançou mão de todos os métodos que a sua subtileza podia imaginar para estorvar-lhe a actuação. Os ousados desafiavam-no abertamente, o resto contentava-se com uma resistência passiva. O povo aprovava-lhe o rigor., justificado pela sua virtude, e fazia o possível para ajudá-lo. Houvera em razão disso algumas ocorrências lamentáveis e as autoridades foram obrigadas a intervir. Ele não trouxera- paz a Segóvia, mas espada.
Domingo tinha chegado no começo da Semana Santa e sabia que durante esse período os deveres do cargo impediriam o bispo de recebê-lo. Foi só na quarta-Feira seguinte, portanto, que se apresentou no palácio episcopal. Era um edifício importante e severo, com uma fachada de granito. Domingo deu o nome ao porteiro e, ao cabo de alguma espera, fizeram-no subir uma escadaria de pedra, atravessar frios aposentos de tecto elevado, escassamente mobilados e onde se viam, pelas paredes, quadros religiosos de um tom escuro e sombrio. Mas o aposento em que afinal o introduziram não era maior do que uma cela. Não tinha outros móveis além de uma mesa de escrever e duas cadeiras de encosto alto. Sobre a parede pendia a cruz negra dos dominicanos. O bispo levantou-se e abraçou calorosamente Domingo.
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- Cuidei que nunca mais nos tornássemos a encontrar, irmão - disse ele com uma cordialidade afectuosa que surpreendeu Domingo. - Que foi que te trouxe a esta cidade?
- Sou um tipo irrequieto, tenho veia de andarilho.
O bispo, que trajava como sempre o hábito da sua ordem, havia envelhecido. Estava emaciado, o rosto cheio de rugas tinha um ar atormentado e os olhos haviam perdido a chama. Não obstante esses sinais de decrepitude,, porém, havia qualquer coisa de luminoso no seu aspecto, uma mudança de expressão que Domingo percebia mas não podia definir. Não saberia explicar porquê, mas aquilo lembrava-lhe o arrebol da tarde, quando o sol se pôs ao cabo de um longo dia de Verão. O bispo convidouo para sentar-se.
- Há quanto tempo estás aqui, Domingo?
- Uma semana.
- E esperaste tanto para me visitar? Não foste gentil.
- Não queria importunar-te, mas vi-te mais de uma vez. Nas procissões da Semana Santa,, na catedral, tanto na Sexta-Feira de Paixão como na Páscoa, e por último durante o espectáculo.
- Tenho horror a essas representações na Casa do Senhor. Em outras cidades de Espanha isso faz-se na praça, por ocasião das festas da Igreja, e eu não as condeno, visto que edificam o povo, mas o Aragão é tenaz na observância dos seus antigos costumes, e a despeito dos meus protestos o capítulo insistiu em que elas se realizassem na catedral, como se vem fazendo desde tempos imemoriais,. Só fui assistir porque era meu dever de ofício.
- A peça era muito reverente, querido Blasco. Nada havia nela que te pudesse ofender.
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A fronte do bispo contraiu-se numa carranca.
- Quando cheguei aqui, reinava uma horrível incúria entre aqueles cujo dever é desempenhar as suas funções e dar bom exemplo ao povo. Alguns cónegos da catedral havia anos que estavam ausentes da cidade, grande parte do clero secular viviam em franca imoralidade, nos conventos a regra não era observada com o devido rigor e a Inquisição tinha renunciado à sua vigilância.. Resolvi pôr termo a esses abusos, mas tive de fazer frente ao ódio, à malícia e à obstrução. Consegui restabelecer um certo decoro, mas queria que eles se portassem bem por amor a Deus: se se portam de maneira menos escandalosa do que antes, é apenas por temor a mim.
- Ouvi falar disso na cidade - respondeu Domingo. - Contaram-me que tinham procurado afastar-te daqui.
- Se soubessem como eu ficaria contente se o tivessem conseguido!
- Mas tens esse consolo, meu bom amigo: o povo estima-te e venera-te.
- Pobres criaturas, mal sabem o quanto eu sou indigno da sua veneração.
- Eles louvam o ascetismo da tua vida e a tua caridade para com os pobres. Ouviram falar do milagre de Castel Rodríguez. Consideram-te um santo, irmão, e quem sou eu para censurá-los?
- Não mofes de mim, Domingo.
- Ah! meu caro amigo, eu quero-te de mais para isso!
- Não seria a primeira vez - volveu o bispo com um sorriso que tinha qualquer coisa de patético. - Durante estes três anos, muitas vezes tenho pensado no nosso último encontro e no que tu me disseste. Naquela ocasião não me detive a
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considerá-lo. Parecia-me apenas uma daquelas conversas cínicas e paradoxais a que sempre foste dado. Mas depois que vim para cá, na solidão deste palácio, vivo sob a obsessão das tuas palavras. Tenho sido torturado pela dúvida. Tenho perguntado a mim mesmo se é possível que meu irmão, o padeiro, cumprindo modestamente o seu dever na posição humilde que ele escolheu, tenha servido a Deus melhor do que eu, que entre preces e mortificações devotei a minha vida ao Seu serviço. Nesse caso, pensem os outros o que quiserem, e apesar do que eu próprio julguei num momento de arroubo, não fui eu quem realizou aquele milagre, e sim Martin.
O bispo calou-se e considerou Domingo com um olhar perscrutador.
- Fala - pediu ele. - Fala, e pelo amor que me tiveste outrora dize a verdade.
- Que queres que eu te diga?
- Estavas seguro, naquela ocasião, de que a pessoa escolhida para efectuar a cura da pobre menina era meu irmão. Ainda tens a certeza disso?
- A mesma certeza.
- Então porque me foi concedido aquele sinal que dissipou as minhas tímidas hesitações? Por que motivo a Santíssima Virgem fez uso de palavras a que era tão fácil dar uma interpretação errada?
Tão grande era a sua angústia, que, como já sucedera uma vez, Domingo sentiu-se tomado de piedade. Queria consolá-lo, mas tinha escrúpulo de dizer o que pensava. Conhecia a inflexível integridade de Don Blasco e não era nada improvável que o seu sentimento de dever o obrigasse a comunicar ao Samto Ofício toda a palavra, mesmo pronunciada por um
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amigo, que parecesse requerer investigação. O velho seminarista não tinha o menor desejo de ser mártir das suas opiniões.
- És um homem com quem é difícil falar franco, meu caro. Eu não quero dizer nada que possa ofender-te.
- Fala, fala! - exclamou o bispo, com certa impaciência.
- Lembras-te que, na ocasião a que te referiste há pouco, eu te disse o quanto me admirava de que entre os infinitos atributos que os homens dão a Deus, nunca houvessem pensado em incluir o senso comum? Mas há outro ainda que lhes passou inteiramente despercebido, e no entanto, se é que uma criatura pode abalançar-se a julgar dessas coisas, ele é ainda mais valioso do que o outro. Sem ele, a omnisciência seria incompleta e a compaixão repulsiva. É a veia humorística.
O bispo teve um leve estremecimento e abriu a boca para falar, mas conteve-se.
- Escandalizei-te, irmão? - perguntou Domingo em tom sério, mas com uma centelha apenas perceptível no olhar. - O riso não é a menos preciosa entre as dádivas que Deus nos concedeu. Ele alivia os fardos que temos de carregar às costas neste mundo adverso e permite que suportemos com fortaleza de ânimo muitas das nossas aflições. Porque negar o senso de humor a Deus? Será irreverência supor que Ele sorria lá no Seu íntimo quando fala em enigmas para dar uma lição salutar aos homens que se enganam ao interpretá-lo?
- Tu exprimes essas coisas de modo muito estranho, Domingo, e contudo não encontro no que dizes nada que um bom cristão deva rejeitar.
- Estás mudado, irmão! Será possível que a velhice te haja ensinado a ser tolerante?
O bispo lançou-lhe um olhar rápido e inquiridor, como se.
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surpreendido com aquela observação, perguntasse consigo o que queria dizer o seu amigo. Baixou depois o olhar para o pavimento de pedra nua. Parecia mergulhado em reflexão. Ao cabo de algum tempo alçou os olhos e fixou-os em Domingo, como se desejasse falar, mas sem poder decidir-se.
- Aconteceu-me uma coisa muito estranha - disse afinal -, e até agora não ousei falar nisso a ninguém. Talvez a Providência te haja enviado hoje aqui para permitir que eu desabafe contigo, pois tu, meu pobre Domingo, és o único homem do mundo a que posso dar o nome de amigo.
Tornou a hesitar. Domingo esperava, observando-o com atenção.
- Como bispo da diocese, fui obrigado a assistir ao espectáculo dado na minha catedral. Alguém me disse que se tratava da vida de Santa Maria Madalena, mas eu não era obrigado a ouvir nem a olhar. Alheei o espírito e rezei. Mas tinha a alma cansada e inquieta. Assim tem sido sempre, desde que vim para esta cidade. Tenho sofrido de distracção e dissipação espiritual. Sentia-me despojado de tudo, incapaz de amor e de esperança. O meu entendimento estava toldado, a fonte da minha vontade como que havia secado e eu não encontrava consolação nas coisas divinas. Rezava, como nunca havia rezado até então, para que Ele houvesse por bem socorrer-me na minha profunda angústia. Não prestava atenção às coisas que me cercavam. Estava a sós com a minha mágoa. De repente fui surpreendido por um grito e lembrei-me do lugar onde me achava. Era um grito tão comovente, tão prenhe de significação que fui forçado a escutar mau grado meu. Recordei-me então de que estavam representando um drama. Ignoro o que se tinha passado antes, mas comecei a escutar e compreendi
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que eles haviam chegado ao ponto em que Maria Madalena e Maria, mãe de Tiago, levando aromas e bálsamo, se dirigiram para o sepulcro onde José de Arimaiteia depositara o corpo de Jesus e viram que a pedra tinha sido afastada. Penetraram no interior do sepulcro e não encontraram o corpo de Jesus. E como estivessem ali, cheias de perplexidade, um viandante, discípulo de Jesus, aproximou-se delas e Maria Madalena disse-lhe o que ela e a outra Maria tinham visto. Então, como esse homem ignorasse por completo os terríveis acontecimentos que se haviam passado, ela contou-lhe a captura, o julgamento e a ignominiosa morte do Filho de Deus. A descrição era tão vívida, as palavras tão bem escolhidas e o verso tão melífluo que, ainda que não quisesse, eu teria sido forçado a escutar.
Domingo, com a respiração presa, inclinou-se sofregamente para ele.
- Ah! como estava acertado o nosso grande imperador Carlos ao dizer que o espanhol era a única língua em que nos devíamos dirigir ao Senhor! A narração seguia o seu curso, verso após verso. Havia uma ardente indignação na voz da mulher que representava Maria Madalena quando ela falou da traição feita a Jesus; uma cólera furiosa apossou-se da multidão na catedral, e puseram-se a rogar pragas ao traidor; a voz dela embargou-se de angústia quando contou como haviam fustigado Nosso Senhor, e o povo exclamava de horror; mas quando ela falou da agonia na cruz, eles puseram-se a bater no peito e a soluçar em voz alta. Tamanha era a dor que vibrava naquela voz de ouro, tal era a sua emoção dilacerante que as lágrimas deslizaram-me pelas faces. A minha alma estava em tumulto. Meu espírito tremia como tremem as folhas de uma árvore a uma súbita rajada de vento. Sentia que qualquer coisa
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de estranho estava prestes a acontecer-me e tinha medo. Ergui os olhos e fiteinos na moça que pronunciava aquelas palavras adoráveis e cruéis. Era de uma beleza como nunca vi igual na terra. Não era uma mulher que estava ali a torcer as mãos, com os olhos banhados de lágrimas; não era uma actriz, mas um anjo descido dos Céus. E enquanto eu olhava, como que enfeitiçado, de repente um raio de luz trespassou a escuridão em que a minha alma havia definhado por tanto tempo; penetrou-me no coração e fui arrebatado em êxtase. Era uma dor tão grande que pensei morrer, mas ao mesmo tempo era um prazer tão delicioso! Sentia-me libertado do corpo e completamente alheio à carne. Naquele ditoso momento experimentei a maravilhosa paz que sobrepuja todo o entendimento. Bebi da sabedoria divina e conheci os Seus segredos. Sentia-me repleto de tudo quanto é bem e vazio de tudo quanto é mal. Não posso descrever esse estado de ventura. Não tenho palavras para exprimir o que vi, o que senti e o que compreendi. Possuía a Deus e, n'Ele possuía todas as coisas.
O bispo reclinou-se na cadeira e o seu rosto iluminou-se à recordação dessa grande experiência.
- Os anseios da esperança já não afligem a minha alma. Ela satisfaz-se na união com Deus, tamto quanto isso é possível nesta vida, e já nada tem para esperar deste mundo e nenhum bem espiritual que desejar. Escrevi uma carta a Sua Majestade rogando-lhe que me permita renunciar aos meus cargos e dignidades eclesiásticas;, a fim de poder retirar-me para um convento da minha ordem e ali passar o resto da vida em preces e em contemplação.
Domingo não pôde mais conter-se.
- Blasco, Blasco, a moça que fez o papel de Maria Madalena
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é minha sobrinha Catalina Pérez! Ao fugir de Castel Bodriguez ela entrou para a companhia de Alonso Fuentes.
O bispo encarou-o com assombro. Estava estupefacto. Depois sorriu com uma doçura que Domingo nunca lhe havia notado.
- Na verdade, os caminhos de Deus são inescrutáveis. De que estranhos instrumentos lançou Ele mão para me conduzir à minha meta! Através dela feriu-me, e através dela curou-me. Bendita seja aquela que a pôs no mundo e toda a glória seja rendida ao Senhor, pois quando ela disse aquelas palavras celestiais era Ele que a inspirava,. Até ao último dia lembrar-me-ei dessa moça nas minhas gratas orações.
Nesse momento entrou na cela padre António, que ainda era secretário do bispo. Relanceou os olhos para Domingo, mas não deu sinal de reconhecê-lo. Dirigiu-se ao bispo, murmurando-lhe qualquer coisa ao ouvido. Don Blasco suspirou.
- Está bem, vou recebê-lo. - E a Domingo: - Sinto muito ter que despedir-me de ti, meu querido amigo. Mas tornaremos a ver-nos.
- Infelizmente, é impossível. Volto amanhã para Castel Rodríguez.
- Quanto o lastimo!
Domingo ajoelhou-se para beijar o anel do bispo, mas este ergueu-o do chão e beijou-o na face.

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XXXV.

Domingo voltou para a casa onde estava hospedado: um homem idoso e magriço, com grandes bolsas debaixo dos olhos, nariz avermelhado e menos de uma dúzia de dentes na boca, um velho réprobo de batina remendada, esverdeada pelos anos, coberta de manchas de vinho e gordura. Mas parecia andar nos ares. Nesse momento, como já dissera uma vez ao bispo, não teria trocado de lugar com o imperador ou com o papa. Falava sozinho em voz alta agitando os braços, e os passantes julgavam-no bêbedo. Estava-o com efeito, mas não de vinho.
- A magia da arte! - ria ele alegremente. - A arte também faz os seus milagres. "Et ego in Arcádia natus"!
Sim, porque era ele, o comediógrafo desprezado, o estróina e dissoluto, o autor daqueles versos que tão profunda impressão haviam causado no bispo. Eis como a coisa se havia passado:
Catalina não estava descontente com os dois primeiros actos da peça que Alonso tinha escrito para ela. O autor fazia-a amante de Pôncio Pilatos e no primeiro acto Maria Madalena aparecia sumptuosamente ajaezada, ufana da sua vida de pecado, extravagante, caprichosa, lasciva e mercenária. A sua conversão ocorria no segundo acto; havia ali uma boa cena em que, sabendo estar Jesus a jantar em casa de um fariseu, ela trazia um cofre de alabastro com unguento, lavava-Lhe os pés e ungia-os. O último acto passava-se no terceiro dia após a Crucifixão. Havia uma cena em que a mulher de Pilatos o censurava por ter permitido que se matasse um inocente, outra em que os discípulos lamentavam a morte do Mestre, e ainda outra em que Judas Iscariote ia à presença dos
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anciãos do Templo e arrojava ao chão as trinta moedas de prata que deles recebera para trair Jesus. Maria Madalena, porém, só aparecia no momento em que ela e Maria, mãe de Tiago, chegavam ao sepulcro e o encontravam vazio. Terminava a peça com os dois discípulos dirigindo-se para Emaús e sendo abordados por um desconhecido, em quem a seguir reconheciam Jesus ressuscitado.
Não era em vão que Catalina vinha fazendo papéis principais havia três anos. Quando descobriu que aparecia tão pouco no último acto, ficou indignada. Queixou-se a Alonso com acrimónia.
- Mas que é que eu posso fazer? - exclamou ele. - Nos dois primeiros actos quase não sais do palco. No terceiro não há ocasião para apareceres, a não ser nessa cena.
- Mas isso não tem nada que ver com o caso. O assunto da peça sou eu ou não sou? O público quererá ver-me, e se eu não aparecer a sua peça está perdida.
- Mas, minha querida, esta não é uma peça em que eu possa soltar as asas à imaginação. Tenho de me ater aos factos.
- Não nego, mas você é o autor. Se entende do seu ofício, deve ser capaz de imaginar alguma coisa em que eu tenha de entrar. Porque não poderia eu, por exemplo, entrar na cena entre Pôncio Pilatos e a mulher? Basta empregar um pouco de engenho.
Alonso começava a agastar-se.
- Mas, minha boa Catalina, tu és a amante de Pilatos. Achas provável que estivesses no palácio e presente a uma conversa íntima entre ele e a mulher?
- Não vejo porque não. Posso ter uma cena primeiro
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com a mulher de Pilatos, e será por causa do que eu lhe disse que ela irá censurar o marido.
- Nunca ouvi maior disparate! Se tentasses aproximar-te da mulher de Pilatos ela mandar-te-ia açoitar.
- Não, se eu me prostrasse aos pés dela e lhe pedisse perdão das minhas culpas passadas. Eu seria tão comovente que ela não poderia deixar de abrandar-se.
- Não, não, não! - gritou ele.
- Então porque não posso ir com os dois discípulos a Emaús? Sendo mulher, eu adivinharia quem é o desconhecido e ele, sabendo que eu o reconhecera, levaria o dedo aos lábios para me recomendar silêncio.
- Já te disse que não podes ir com os dois discípulos a Emaús! - rugiu Alonso. - Simplesmente porque tu não estavas com eles, de contrário isso viria no Evangelho. Desde quando escreves as minhas peças para mim!
Separaram-se um tanto acalorados nesse dia. Catalina estava inclinada a recusar o papel, mas sabia que nesse caso Alonso o daria a Rosália-, e nos dois primeiros actos o papel era tão sensacional que ela bem podia fazer sucesso com ele.
- Se ele tivesse escrito o papel para Rosália, não se atreveria a dar-lhe tão pouco que fazer no último acto - disse Catalina a Diego.
- Isso nem tem dúvida. Ele não está a tratar-te bem. Não te dá o devido valor.
- Tenho essa impressão desde que Rosália entrou na companhia.
Cheia de aborrecimento, Catallina queixou-se a Domingo antes mesmo de este ter visto a peça. Ele ouviu-a com simpatia e pediu para a ler. Cada actor só recebia o seu papel, enquanto
Alonso tinha o original completo, que ele guardava ciosamente a fim de evitar que alguém o copiasse para o vender a outro empresário.
- Alonso é vaidoso como um pavão - disse Catalina. - Vá procurá-lo amanhã depois do ensaio e diga-lhe que achou a peça tão maravilhosa que não descansará enquanto não a ler toda. Ele não resistirá à lisonja e emprestar-lhe-á o manuscrito.
Assim fez Domingo, e Alonso, desvanecido, mas sempre prudente, emprestou-lhe o manuscrito sob condição de restituí-lo dentro de duas horas. Depois de o ler, Domingo foi dar um passeio e ao voltar fez uma proposta a Catalina. Esta atirou-se nos seus braços e beijou-o.
- Tio da minha alma, o senhor é um génio!
- Um génio ignorado, como muitos outros - fez ele, arreganhando os dentes. - Mas ouve, minha filha, não vás cochichar a ninguém, nem mesmo a Diego, o que eu tenciono fazer, e no ensaio põe todo o teu talento no papel. Mostras-te amável e gentil para com Alonso, como se nunca tivesse havido um desentendimento entre vocês, e ele pensará que estás disposta a perdoar. Ensaiarás de maneira tão maravilhosa, que ele ficará contentíssimo contigo!
Haveria dois ensaios no sábado e mais um no Domingo de Páscoa, de manhã cedo. No sábado, após o primeiro ensaio, quando a companhia se dispersou para ir jantar, Catalina dirigiu-se a Alonso com os seus modos mais sedutores.
- Escreveste uma peça magnífica, meu Alonso. Quanto mais a conheço, mais extraordinário me parece o teu génio. Nem o grande Lope de Vega te supera. És um grande, um imenso poeta!
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Alonso desfez-se em sorrisos.
- Confesso que não estou de todo descontente com ela.
- Só lhe encontrei um pequenino defeito.
Alonso estremeceu e franziu o sobrolho, pois tal é a índole dos escritores que um grão de censura tem muito mais peso na balança do que uma arroba de louvor. Mas Catalina, toda genital, não lhe prestou atenção.
- Quanto mais ensaiio, mais me convenço de que cometeste um erro em não me dar maiores oportunidades no terceiro acto.
Alonso teve um gesto de irritação.
- Já discutimos isso que chega. Eu disse-te uma dúzia de vezes que nesse acto não há nenhum lugar onde possas ser encaixada.
- E tinhas razão, mil vezes razão! Mas escuta: eu sou actriz e sinto no fundo da alma que, quando estou junto ao sepulcro de Nosso Senhor ressuscitado, devia ter mais para dizer do que aquilo que tu me deste.
- E que queres tu dizer, por favor? - perguntou ele, indignado.
- Bem, ocorreu-me que faria excelente efeito se eu narrasse a história da traição, julgamento, crucifixão e morte de Nosso Senhor. Uns cem versos bastariam.
- E quem supões tu que escutará uma fala de cem versos nesse ponto da peça?
- Toda a gente, se eu os disser - replicou Catalina. - Farei o auditório bater no peito, chorar e exclamar. Um dramaturgo como tu não pode deixar de perceber o quanto seria impressionante uma cena assim naquele justo momento.
- Isso está fora de questão! - exclamou ele com impaciência.
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- Vamos representar amanhã. Como seria possível escrever cem versos e ensaiá-los em tão pouco tempo? Como poderias tu aprendê-los?
Catalina teve um sorriso encantador.
- Bem, acontece que meu tio e eu estivemos a conversar a esse respeito, e a beleza da peça inspirou-o a escrever os versos que, também na opinião dele, a cena exigia. E eu aprendi-os de cor.
- Você? - exclamou o empresário, dirigindo-se a Domingo.
- A eloquência da sua peça emocionou-me - respondeu este -, e fui como que possuído do seu espírito, de modo que a bem dizer era você quem segurara a minha pena.
O olhar de Alonso ia de um ao outro. Catalina notou que ele estava indeciso e tomou-lhe a mão.
- Não permites que eu te diga os versos? Se não gostares, prometo não falar mais nisso. Oh! Alonso, faze-me esse favor! Bem sei o quamto te devo, mas não esqueças que nunca me poupei a canseiras para te ser agradável.
- Dize então esses malditos versos - gritou ele com raiva -, e deixa-me ir jantar.
Tornou a sentar-se, carrancudo, e dispôs-se a escutar. Catalina começou. Naqueles três anos a voz da moça tornara-se mais rica e ela exercia um maravilhoso domínio sobre as suas modulações. As emoções apropriadas à narrativa sucediam-se na sua fisionomia móvel, que exprimia apreensão, terror, receio, indignação, honra, sofrimento, amgústia e pesar, sem exageros mas com incisiva veracidade. Ainda que encolerizado, Alonso era um dramaturgo dos mais competentes e logo percebeu que os versos estavam bem escritos e a maneira
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por que os dizia Catalina, a eloquência dos seus gestos, as inflexões tocantes da sua voz, arrebatariam qualquer auditório. Curvou-se para a frente e entrelaçou as mãos. Dentro em pouco escutava como que enfeitiçado. Depois, tão patético era o desempenho de Catalina, tão tocante a sua sinceridade, que já não se pôde dominar: desatou a soluçar e grossas lágrimas lhe escorreram pelas faces. Por fim ela terminou e Alonso enxugou os olhos com a manga. Notou que Domingo também chorava.
- Então? - disse Catalina com um sorriso de triunfo. Depois de pronunciar o último verso saíra do seu papel
e estava tão tranquila como se houvesse recitado o alfabeto. Alonso encolheu os ombros. Procurou assumir um tom metódico e rabugento.
- Os versos são passáveis, para um amador. Vamos ensaiar a cena esta tarde e se eu ficar satisfeito com ela, tu a representarás amanhã.
- Coração da minha alma, eu adoro-te! - disse Catalina.
- Vou padecer é com Rosália - resmungou ele, macambúzio.
A cena foi ensaiada e representada, tendo sobre o bispo o efeito de que o leitor já tomou conhecimento. Não foi, todavia, esse o seu único efeito. Rosália vituperou violentamente a Alonso a sua parcialidade para com Catalina e ele teve de fazer um sem-número de promessas para a apaziguar, algumas das quais sabia que teria de cumprir. Isto aborrecia-o, mas ainda por outra razão não estava muito satisfeito com o que sucedera, pois muitas pessoas salientavam com especial louvor os cem versos de Domingo, cuidando que ele próprio os tivesse escrito, e diziam-lhe que, tanto pela linguagem como pela versificação,
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esse trecho sobrepujava todo o resto da peça. Quando Diego fez saber, com muita indiscrição, quem era o verdadeiro autor daqueles versos, Alomso ficou profundamente mortificado. Como desforra,, disse aos amigos que Catalina não tinha nem a décima parte do talento que julgava possuir e, se não o tivesse a ele para a dirigir, não tardaria a mostrar que era uma actriz muito medíocre. Assim que estas palavras foram transmitidas a Catalina, ela resolveu de vez pôr em prática o que vinha planeando. Conforme disse a Diego, uma mulher não deve esquecer o respeito próprio. Cortou relações com o ingrato empresário e partiu com o marido e os filhos para Madrid.


XXXVI.

Aceita a sua demissão, Don Blasco retirou-se para um longínquo convento da sua ordem com a "tenção de devotar os anos de vida que lhe restavam àquela contemplação que Aristóteles diz ser o objectivo da existência e que os místicos têm julgado preciosa aos olhos de Deus. Não quis aceitar os favores e privilégios que lhe eram oferecidos, em atenção às elevadas posições que exercera, e insistiu para que lhe dessem uma cela semelhante às ocupadas pelos outros monges, fazendo questão de ser tratado como eles em tudo. Ao cabo de alguns anos começaram a falecer-lhe as forças e, embora não parecesse sofrer de nenhuma moléstia definida, era evidente aos que o cercavam que ele não tardaria a deixar o cárcere do corpo. Padre António, que o tinha acompanhado ao convento, e o prior imploraram-lhe que abandonasse as mais severas mortficações,
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mas ele recusou. Persistiu em observar a regra da ordem com o máximo rigor e só consentiu em abster-se de assistir às matinas no frio cortante da madrugada quando o prior, em vista da crescente debilidade de frei Blasco, fez uso da sua autoridade proibindo-lhe tal coisa. Pouco a pouco a sua fraqueza foi chegando a um ponto em que era forçado a passar a maior parte do dia na cama, mas não parecia estar em perigo iminente de morte. A sua vida era como uma vela bruxuleante que qualquer sopro de vento pode apagar, mas posta ao abrigo, ainda continua a iluminar. O fim veio repentinamente.
Uma manhã padre António, depois de ter cumprido os seus deveres religiosos, foi à cela do seu mestre para ver como ia este. Era Inverno e tinha caído neve. Fazia na cela um frio terrível. Padre António admirou-se de encontrá-lo corado, os olhos brilhantes, e rejubilou-se porque havia semanas que ele não mostrava tão bom aspecto. Nasceu-lhe a esperança de que o velho tivesse melhorado, e talvez fosse até possível restituir-lhe a saúde. Rezou, mentalmemte, uma breve acção de graças.
- Está com boas cores esta manhã, senhor - disse ele, pois havia muito que frei Blasco lhe exprimira o desejo de não ser mais tratado como bispo. - Há dias que não o vejo com tão boa aparência.
- Sinto-me muito bem. Acabo de falar com o grego Demétrios.
Padre António reprimiu um estremecimento de assombro, pois sabia, naturalmente, que Demétrios tivera anos atrás a imerecida morte na fogueira.
- Em sonhos, senhor?
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- Não, não! Ele entrou por essa porta, parou aí junto da minha cama e falou-me. Estava vestido tal qual sempre o conheci, com aquele mesmo manto puído que usava, e com o mesmo ar de benignidade mo rosto. Eu reconheci-o imediatamente.
- Era o Diabo, Excelência Reverendíssima! - exclamou o padre António, esquecendo a recomendação que lhe fizera o seu mestre. - Expulsou-o da sua presença?
Frei Blasco sorriu.
- Isso seria descortesia, meu filho. Não creio que fosse o Diabo. Era o próprio Demétrios.
- Mas ele está no Inferno, sofrendo o justo castigo da sua execrável heresia!
- Era o que eu pensava, mas não é assim.
Padre António ouvia-o cada vez mais consternado. Tudo lhe parecia indicar que Dom Blasco tivera uma visão infernal. Pedro de Alcântara e Madre Teresa de Jesus haviam tido numerosos encontros com demónios e Madre Teresa até conservava consigo um pouco de água benta com o fim expresso de expulsá-los, atirando-lha para cima. Mas a atitude do seu velho mestre era tão terrificante que só lhe restava esperar que não estivesse ele no seu juízo perfeito.
- Perguntei-lhe como ia e ele respondeu que bem. Quando lhe contei as cruéis angústias que tinha sofrido por sabê-lo no Inferno, riu-se de leve e disse-me que, ainda antes de lhe terem as chamas consumido o corpo, a sua alma voara para a campina, na encruzilhada dos caminhos, e, como ele tinha vivido na virtude e na verdade, Radamamto enviara-o para as Ilhas Bem-aventuradas. Ali encontrou Sócrates, cercado como sempre de moços de bela aparência, a formular e a responder
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a perguntas: viu Platão e Aristóteles passeando lado a lado em amistosa conversa, como se já não houvesse a menor diferença de opinião entre eles; mas Ésquilo e Sófocles ralhavam afectuosamente com Eurípides por ter arruinado o drama com as suas inovações. E muitos mais, tão numerosos que não era possível mencioná-los todos.
Padre António ficou consternado. Era evidente que o seu velho e venerado amigo estava preso de delírio. Eis aí o que significavam aquelas faces coradas e aqueles olhos cintilantes! O velho monge não sabia o que dizia, mas a pobre e honesta criatura deu graças aos Céus por não estar outra pessoa ali para ouvi-lo. Tremia ao considerar o que pensariam os demais frades se ouvissem aquele a quem consideravam um santo pronunciar palavras que eram quase blasfemas. Torturava o cérebro à procura de uma resposta, mas na sua agitação não lhe ocorria nada.
- E depois de termos conversado durante algum tempo, no mesmo tom amigável em que costumávamos conversar há muitos anos, em Valência, o galo cantou e ele disse que era obrigado a deixar-me.
Padre António achou melhor comprazer ao doente.
- E disse por que motivo tinha vindo vê-lo? - gaguejou.
- Perguntei-lhe, e ele respondeu que me tinha vindo dizer adeus, pois nunca mais nos tornaríamos a encontrar. "Amanhã", disse ele, "quando já não for noite e ainda não for dia, quando mal puderes distinguir a forma da tua mão, a tua alma será libertada do corpo."
- Isso prova que foi mau espírito que visitou Vossa Excelência! - exclamou padre António. - O médico disse que Vossa Excelência não tinha nenhuma doença mortal e há
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muitos dias que não se sente tão bem como esta manhã. Deixe-me dar-lhe o remédio que ele mandou, e o barbeiro vai-lhe fazer uma sangria.
- Não tomo mais remédio algum e não quero que me sangrem. Porque estás tão ansioso por me deter, quando a minha alma anseia fugir à prisão que ela por tanto tempo habitou? Vai dizer ao nosso caro prior que desejo confessar-me e receber o Santíssimo Sacramento. Digo-te que amanhã, à hora em que eu começar a distinguir a forma da minha mão, me despedirei desta vida.
- Foi um sonho, senhor! - gritou o pobre frade, desesperado. - Suplico-lhe que me acredite: foi um sonho!
Don Blasco emitiu um som que em qualquer outra pessoa chamaríamos um riso abafado.
- Não digas absurdos, meu filho. Aquilo não era mais sonho do que o é o estar eu falando contigo neste momento. Não era mais sonho do que o é a vida inteira, com os seus pecados e sofrimentos, com as suas perguntas angustiosas e os seus misteriosos segredos - um sonho de que acordaremos para entrar na vida eterna, a única que é real. Vai agora, e faze o que te pedi.
Padre António virou-se com um suspiro e saiu. Don Blasco fez a sua confissão e recebeu o Santíssimo Sacramento. Depois de celebrados os derradeiros ritos da Igreja, despediu-se dos frades com quem tinha convivido durante vários anos e deu-lhes a sua bênção. Já então ia o dia bastante adiantado. Ele exprimiu o desejo de que o deixassem a sós, mas padre António rogou-lhe com tal premência que o aceitasse na sua companhia, que ele consentiu com um doce sorriso, sob a condição de ficar o outro calado. Estava Don Blasco deitado de costas na dura
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enxerga, coberta de um fino colchão, que a regra da ordem prescrevia, e apesar do frio penetrante não tinha sobre si mais do que um leve cobertor. De quando em quando dormitava. Padre António estava preso de profunda aflição. Abalara-o a certeza de que se mostrava possuído Don Blasco e já então ele estava meio convencido de que a morte do seu santo mestre correria como este havia predito. Passavam-se as horas. A cela era tenuememte iluminada por um único círio, que padre António espevitava de tempos a tempos. O sino tocou as matinas. Ele teve um estremecimento ao ouvir Don Blasco romper o longo silêncio.
- Vai, meu filho. Não deves negligenciar por minha causa os teus deveres religiosos.
- Não posso deixá-lo agora, meu senhor - respondeu o frade.
- Vai. Ainda estarei aqui quando voltares.
O longo hábito da obediência fez-se sentir e padre António foi às matinas. Quando voltou, Don Blasco tinha adormecido e no primeiro instante o frade julgou que estivesse morto. Mas ele respirava tranquilamente e no peito do outro brotou a leve esperança de que esse sono lhe restaurasse as forças e talvez mesmo ele se restabelecesse. Ajoelhou-se diante da cama e rezou. O círio espirrou e apagou-se. Era noite escura. Passaram-se as horas. Por fim Don Blasco fez um ligeiro movimento. Naquela escuridão profunda padre António nada podia ver, mas teve a intuição de que o seu venerado amigo procurava às apalpadelas o crucifixo que trazia preso ao pescoço por um cordel. Colocou-o nas mãos do velho, mas quando quis retirar a sua sentiu que ele a segurava debilmente. Escapou-se-lhe um soluço da garganta. Depois de tantos anos, era o primeiro
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sinal de afeição que lhe dava Don Blasco. Tentou escrutar aqueles olhos que outrora brilhavam com uma luz tão intensa, e embora nada pudesse ver sabia que eles estavam abertos. Baixou os seus para a mão que prendia suavemente a sua, por cima do crucifixo, e percebeu que a escuridão da noite já não era tão impenetrável. Continuou a olhar e de súbito distinguiu, aterrado, a forma de uma mão emaciada. Um leve suspiro exalou-se dos lábios de Don Blasco e qualquer coisa, que ele não saberia dizer o que era, disse ao frade que o seu amado mestre estava morto. Rompeu a chorar impetuosamente.
A esse tempo, fazia já alguns anos que Don Manuel estava a viver em Madrid. Dona Beatriz recusara levar avante o plano aventado por ela própria,, de que ele desposasse a sua sobrinha, a marquesa de Caranera, e como não foi possível encontrar um marido que lhe conviesse, a viúva fez-se religiosa e era agora subprioresa do convento carmelita de Castel Rodríguez. Don Manuel sentia-se maltratado por Dona Beatriz, pois não fora por culpa sua que falhara o plano arquitectado por ambos, mas não era homem para ficar a lastimar-se. Foi para Madrid e, depois de tornar conhecidos os seus projectos matrimoniais e a extensão da sua fortuna, não tardou a encontrar um partido muito satisfatório. Ligou-se ao duque de Lerma, o favorito de Filipe III, e, graças ao exercício da subserviência, lisonja, duplicidade, falta de escrúpulos e venalidade, logrou afinal tornar-se altamente respeitado. Don Blasco deixara após si uma reputação de santidade e Don Manuel foi bastante astuto para compreender o proveito que lhe -traria a beatificação do irmão e, à reputação da sua família (pois Deus abençoara-lhe o matrimónio com dois belos filhos homens), a eventual canonização daquele. Tratou de coligir as necessárias provas.
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Ninguém poderia negar que o antigo bispo de Segóvia tivesse sido um homem de piedade exemplar. Não faltavam testemunhas para afirmar que fragmentos do seu velho hábito, usados em escapulário, as haviam impedido de contrair a varíola e o mal venéreo, e os vários sucessos milagrosos de Castel Rodríguez estavam todos autenticados. Mas a Congregação dos Ritos, em Roma, exigia provas de dois milagres importantes realizados pelas relíquias do candidato após a sua morte, e foi impossível obtê-las. Os advogados que Don Manuel contratara eram homens honestos, pois sendo ele mesmo um velhaco, tinha demasiada astúcia para recorrer aos serviços de outros velhacos: informaram-no de que, embora fosse possível conseguir a beatificação de Don Blasco, eram pequenas as probabilidades de fazer incluir o seu nome no cânone. Enfureceu-se quando lhe disseram isto e acusou-os de incompetência, mas pensando melhor chegou à conclusão de que deviam estar acertados. Já havia gasto boas quantias nas indagações preliminares e não via utilidade alguma em continuar a enterrar dinheiro naquilo. Depois de reflectir a sangue-frio, portanto, concluiu que a beatificação do irmão não valia as despesas que teria com ela e contentou-se em mandar trasladar os restos mortais do bispo para a igreja colegiada de Castel Rodríguez, onde erigiu um sumptuoso monumento, se não para perpetuar a memória do filho mais velho de seu pai, ao menos para dar uma prova da sua munificência.
Talvez seja interessante mencionar, de passagem,, que Martin de Valero, o terceiro filho de Don Juan, tornou a mergulhar na obscuridade de onde o havia tirado momentaneamente a visita de seus dois ilustres irmãos. Continuou a fazer pão, e nada mais podemos dizer dele. Jamais lhe ocorreu, como
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na verdade jamais ocorreu aos seus concidadãos, que em dado momento a Santíssima Virgem lhe tinha concedido o poder de realizar um milagre.
Dona Beatriz alcançou uma idade avançada, em pleno gozo das suas faculdades, e poderia ter vivido alguns anos mais se não fosse um funesto incidente. Ao ser informada da beatificação de sua velha inimiga, a Madre Teresa de Jesus, ficou açaimada durante três dias; mas quando, em 1622, recebeu a notícia da canonização, enfureceu-se a tal ponto que teve um ataque. Recobrou a consciência, mas um lado do corpo ficou completamente paralisado e era evidente que o seu fim estava próximo. Não conhecia o medo e permaneceu calma e senhora de si. Mandou chamar o seu frade favorito para a ouvir em confissão, feito o que reuniu em torno de si as suas freiras e lhes deu oportunos conselhos no tocante à sua futura conduta. Algumas horas depois pediu o Santíssimo Sacramento. Foram de novo buscar o sacerdote. Dona Beatriz solicitou perdão dos seus pecados e rogou às chorosas freiras que orassem por ela. Ficou algum tempo imóvel e em silêncio. De repente, proferiu em voz alta:
- Uma mulher de origem muito humilde!
As freiras que a ouviram julgavam que se referisse a si própria e, como não ignorassem que nas suas veias corria o sangue real de Castela e que a sua mãe pertencia à ilustre casa de Braganza, ficaram profundamente comovidas com esse sinal de humildade. Mas a sua sobrinha, a subprioresa, não se deixou enganar. Sabia que aquelas palavras diziam respeito à freira rebelde que se havia tornado Santa Teresa de Ávila. Foram elas as últimas que pronunciou Dona Beatriz Henríquez y Braganza,
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na religião Beatriz de San Domingo. Administraram-se-lhe os santos óleos e pouco depois entregava ela a alma ao Criador.


XXXVII.

Quando chegou a Madrid, Catalina ainda tinha o ouro que lhe dera Dona Beatriz; além disso, como era uma mulher económica-, havia poupado dinheiro durante aqueles três anos passados a andar de um lado para outro, de modo que, apesar dos gostos extravagantes de Diego, não tinha preocupações quanto ao futuro imediato. Dirigiram-se às pessoas que haviam prometido auxiliá-los com a sua influência e dinheiro e, encontrando-as dispostas a cumprir a promessa, conseguiram organizar uma companhia. O êxito que obtiveram ultrapassou as suas próprias esperanças. Catalina tornou-se o ídolo da capital. Muitos cavalheiros elegantes procuraram obter-lhe os favores, mas, ainda que ela lhes aceitasse os presentes com gratidão, não conseguiam em troca mais do que um sorriso dos seus belos olhos, acompanhado de bonitas falas. Passou a ser tão admirada pela sua virtude quanto pela beleza e pelo génio. Mandou chamar Domingo, que veio com uma dúzia de peças nos alforjes. Catalina levou duas delas à cena. Foram vaiadas e, segundo o costume de então, o público mostrou o seu desagrado com assobios agudos, fiaus e injúrias obscenas. Furioso e humilhado, Domingo foi para casa e pouco depois morria - não se sabendo, porém, com a certeza, se devido à decepção ou à bebida. Alguns anos mais tarde Catallina, já então aclamada a maior actriz de Espanha, segura da sua influência sobre
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o público, resolveu levar à cena mais uma das peças de Domingo, em homenagem à memória deste. Mas fê-lo anonimamente para que ela não sofresse com o mau êxito das outras duas. A peça agradou. Era, mesmo, tão boa que foi atribuída a Lope de Vega, e conquanto este negasse a sua autoria ninguém lhe deu crédito, de modo que a peça tem sido publicada até hoje entre as suas obras. E assim o pobre Domingo foi esbulhado até desse fogo-fátuo que tem consolado muito escritor da indiferença dos seus contemporâneos: a celebridade póstuma.
Apesar do seu garbo e da sua bela presença, Diego nunca passou de um actor medíocre. Mas, por felicidade, revelou-se bom homem de negócios e empresário eficiente, acabando por enriquecer com o tempo. Havia muito, tinham ambos concordado que seria imprudência falar dos acontecimentos sobrenaturais de que fora centro Catalina,, de forma que nem quando andavam com os actores ambulantes, nem mais tarde, pessoa alguma veio a saber que havia qualquer relação entre ela e esses factos, que durante algum tempo foram muito comentados. Embora, como Catalina havia previsto, não ocorressem novos milagres para perturbar a paz da sua vida matrimonial, Diego nunca foi, como ele achava justo e apropriado, o senhor da sua própria casa; mas Catalina tinha a habilidade de lhe fazer crer que o era e ele vivia satisfeito e feliz. Era um tanto infiel à esposa, mas sabendo que outra coisa não se pode esperar dos homens, e contanto que essas aventuras fossem efémeras e não custassem muito dinheiro, ela aceitava-lhe com candura as infidelidades. Formavam, na verdade, um par dos mais felizes. Catalina teve seis filhos do marido e, como era uma actriz conscienciosa, não queria decepcionar o seu público
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e continuava a representar virgens perseguidas e princesas austeramente castas até aos últimos instantes da gravidez. Continuou a desempenhar tais papéis até uma idade avançada, e um viajante holamdês que esteve na Espanha em fins do reinado de Filipe III regista que, embora ela se tivesse tornado uma mulher corpulenta e já fosse várias vezes avó, tão grande era a sua graça pessoal, o feitiço da sua voz melodiosa e a magia da sua personalidade, que cinco minutos depois de ela aparecer no palco o espectador esquecia-lhe a idade e a aparência, aceitando-a sem disputa como a ardente jovem de dezasseis anos que ela representava.
E assim, com Catalina, como começou, termina esta narrativa estranha e quase incrível, mas edificante.

XXI.

Quando a multidão se escoou para fora da igreja, em pós do bispo, Martin, que se encolhera consigo na esperança de assim não ser notado, ficou lá dentro até que se viu sozinho. Esperou ainda mais um pouco a fim de poder escapar sem ser visto, mas fê-lo com certa impaciência, pois sabia que toda aquela comoção ia atrair numerosa freguesia. Deixara a padaria entregue aos seus dois aprendizes e receava que estes não pudessem atender a multidão de clientes. Martin não só fazia pão mas também assava carne e pastelões para aqueles que não podiam fazê-lo em casa. Muita gente acharia que a Ocasião devia ser festejada. Quando, afinal, lhe pareceu que podia sair sem perigo, notou a muleta de Catalina caída no pavimento de mármore, onde ela a havia deixado e, como fosse um homem metódico que não gostava de ver rolar coisas pelo chão, apanhou-a e levou-a consigo.
Mas quando o arcipreste voltou para casa, ao sentar-se diante de um jantar que ele bem merecia e de que estava muitíssimo precisado, lembrou-se de que a muleta havia ficado na igreja. Ora, tratava-se de um objecto que não convinha perder de vista, Mandou imediatamente um criado buscá-la e aborreceu-se quando o homem lhe disse que não a pudera encontrar. Não se podia deixar extraviar objecto de tanto
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valor. Assim que terminou o jantar, portanto, enviou várias pessoas a indagar do destino que levara a muleta; mas só no dia seguinte foi informado de que esta se achava na padaria, encostada a um canto. Mandou alguém exigir a devolução. O padeiro entregou-a e o arcipreste guardou-a cuidadosamente, até que pudesse resolver sobre o uso que faria dela.
Assim que Dona Beatriz ouviu a grande notícia, mandou umas freiras à cassa de Maria Pérez para pedir uma relação circunstanciada de tudo quanto havia ocorrido, observar pessoalmente a moça e, se a encontrassem curada como se dizia, presenteá-la com uma corrente de ouro, delicadamente lavrada, que ela Lhes pôs nas mãos, e em troca solicitar a muleta que ela usara durante a sua paralisia, para que fosse colocada como oblata na capela da Virgem, na igreja do convento. Não ficou nada satisfeita quando as freiras voltaram dizendo que nem Catalina, nem sua mãe nem seu tio faziam a menor ideia do fim levado pela muleta. Estava a prioresa resolvida a consegui-la, mas, como não se tratava de assunto que ela pudesse confiar às suas freiras, mandou chamar o administrador das suas propriedades e deu-lhe ordem de averiguar quem estava de posse do precioso objecto e, em seu nome, exigir a devolução. O administrador só tornou dois dias depois, informando que a muleta estava em poder do arcipreste e este não a queria ceder.
Dona Beatriz deu mostras de viva irritação e disse redondamente ao administrador que ele não passava de um asno e um velhaco. Era, porém, mulher de grande discrição. Escreveu ao arcipreste uma carta lisonjeira em que lhe pedia, com termos melífluos, que lhe cedesse a muleta para colocar na igreja em cujos degraus a Virgem tinha aparecido a Catalina.
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Fez-lhe ver que era aquele, evidentemente, o lugar em que cumpria conservar o objecto para edificação das gerações futuras. O arcipreste não respondeu em tom menos cortês, mas obtemperava que, embora por amor a Cristo estivesse mais que disposto a conceder-lhe qualquer favor dentro das suas possibilidades, o milagre ocorrera no interior da igreja da colegiada e ele se sentia no dever de conservar, para maior glória do templo, esse sinal visível da graça divina. Salientava, além disso, que o facto de a muleta ter sido deixada no santuário indicava com toda a clareza ser intenção de Deus que ela ali permanecesse. Seguiu-se então uma troca de correspondência entre os dois, da qual foram banidas todas as expressões de cortesia e de estima pela mútua virtude e piedade religiosa. A prioresa tornava-se cada vez mais autoritária, o arcipreste cada vez mais obstinado. Várias pessoas tomaram partido nessa questão, e o que um deles dizia era repetido ao outro. A prioresa definia o arcipreste como um burrico insolente, roído de concupiscência, enquanto o arcipreste a dava como uma velha megera intrometida, cuja administração do seu convento constituía um escândalo para toda a Cristandade.
Dona Beatriz achou afinal que havia dominado a sua ira tanto quanto o exigia a caridade cristã e podia agora abandonar-se à justa indignação provocada pela conduta impertinente do arcipreste. Mandou chamar mais uma vez o seu administrador. Deu-lhe ordens para procurar o arcipreste e, tomando o cuidado de tratá-lo com todo o respeito devido à sotaina, explicou-lhe que, se ele não entregasse imediatamente a muleta, não devia contar com a protecção do duque, irmão dela, na demanda judicial em que estava envolvido, nem com as promoções na Igreja, que lhe poderia valer o favor de que
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Dona Beatriz gozava junto à corte, acrescentando que ela já não podia deixar de tomar conhecimento dos boatos escandalosos que corriam sobre as relações dele com certa mulher e seria obrigada a levar tais factos à presença do bispo diocesano. Explorava-lhe assim a prioresa, ao mesmo tempo, a cobiça, a ambição e a incontinência. Graças à influência do actual duque de Castel Rodríguez, o arcipreste fora nomeado para uma cortezia na Catedral de Sevilha e o capítulo estava-lhe movendo uma acção para forçá-lo a resignar o cargo por falta de residência. Ele não queria perder os belos emolumentos da cortezia, mas, como não tivesse por si nem a lei nem a equidade, só tinha esperança de vencer a demanda graças à poderosa intervenção do seu protector. Ademais, alimentava o desejo de prestar maiores serviços à Igreja na cadeira episcopal. Por essas razões, não podia dar-se ao luxo de provocar a inimizade da prioresa; e, sendo o seu bispo um homem de moral austera, inquietou-se ele com a ameaça de Dona Beatriz, de denunciar os pecadilhos a que o arrastara a fraqueza da carne. Não necessitou de muito tempo para perceber que fora derrotado, e como tinha de ceder foi bastante sensato para fazê-lo com elegância. Entregou a muleta ao mensageiro, acompanhada de uma carta em que, com os protestos do seu profundo respeito às virtudes de Dona Beatriz, dizia-se forçado, após madura reflexão, a concordar com ela em que o lugar indicado para o precioso objecto era, evidentemente, a igreja de Nossa Senhora do Carmelo.
A prioresa mandou encaixá-la em prata e pendurá-la na capela da Virgem, para edificação dos fiéis.

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XXII.

Na confusão que se estabeleceu quando o povo se escoou da igreja atrás do bispo, Domingo fez sair a irmã e a sobrinha por uma porta lateral e, escolhendo vielas pouco frequentadas, conduziu-as sem novidade para casa. Maria Pérez queria pôr a filha na cama, purgá-la e mandar chamar um barbeiro para lhe aplicar uma sangria, mas Catalina, radiante por ter recobrado o pleno uso dos seus membros, não se conformou com tal coisa. De puro regozijo, subia e descia as escadas a correr e, se isso não fosse indecente, teria dado cambalhotas na sala. As vizinhas vieram dar-lhe as suas felicitações e maravilhar-se ante o milagre. Ela teve de descrever um sem-número de vezes o aspecto da Santíssima Virgem ao lhe aparecer, o traje que usava e tudo quanto lhe havia dito. As outras, por sua vez, contaram-lhe o magnífico sermão do bispo, acrescentando que, empolgadas pela eloquência de Don Blasco, não tinham podido conter as suas águas, de modo que o seu arroubo foi mesclado de embaraço. Pela tarde as grandes damas da cidade mandaram chamar Catalina e fizeram-na andar para baixo e para cima, soltando gritinhos de assombro ao observá-la, como se nunca tivessem visto ninguém caminhar. Faziam-lhe presentes de lenços, mantilhas de seda, meias e até vestidos com muito pouco uso; um alfinete de ouro, brincos com pedras de certo valor e uma bracelete. Catalina jamais possuíra tantas coisas ricas e preciosas na sua vida. Finalmente advertindo-a de que não se ensoberbecesse com o facto de lhe ter sido conferido tão grande favor, mas tivesse sempre presente ao espírito que ela era de família operária
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e faria bem em jamais esquecer a sua condição humilde, despediram-na.
Caiu a noite. Maria Pérez, Domingo e Catalina cearam. Estavam ao mesmo tempo fatigados e desassossegados pelas aventuras do dia. Mãe e filha haviam tagarelado interminavelmente, até não terem mais o que dizer. Domingo insistiu com elas para que fossem deitar-se, mas Catalina respondeu que a sua1 agitação não lhe permitiria dormir. A fim de acalmar a ambas e simultaneamente, pela magia da arte, afazer-lhes o espírito à contemplação da beleza ideal, pôs-se a ler-lhes uma peça que terminara de escrever pouco antes. Catalina escutava com certa desatenção - com um só ouvido, por assim dizer. Absorvido, porém, na situação dramática e encantado com a cadência melíflua dos seus próprios versos, com o seu ritmo elegantemente variado, Domingo não reparou em nada. De repente Catalina pulou da cadeira.
- Aí está ele! - exclamou.
Domingo deteve-se, com uma carranca de exasperação na fisionomia bem-humorada. Ouvia-se na rua a toada de uma guitarra.
- Quem é? - perguntou ele cheio de contrariedade, pois não há autor que goste de ser interrompido na leitura das suas composições.
- É Diego! Mãe, eu posso ir à rótula, não posso?
- Eu julgava que tu tivesses mais energia...
Essas rótulas protegiam as janelas contra a intrusão, não tanto dos ladrões como dos galãs excessivamente empreendedores. Como jovem bem comportada, que conhecia a lascívia dos homens e sabia estar a maior glória de uma mulher na sua virgindade, jamais teria passado pela cabeça de Catalina
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receber o namorado em casa, mas era costume sentarem-se as moças às janelas de noite e, com a rótula de permeio, conversar com o objecto da sua afeição sobre os misteriosos assuntos com que os namorados costumam entreter-se.
- Ele abandonou-te quando tu ficaste doente - prosseguiu Maria Pérez. - Agora que te tornaste famosa e toda a cidade fala a teu respeito, ele volta correndo com o rabo entre as pernas.
- Oh! mãe, tu não conheces os homens tão bem como eu - disse Catalina. - São fracos e fáceis de levar. Como poderia o mundo ir para a frente se nós não fechássemos os olhos diante das tolices deles? É natural que Diego não quisesse casar comigo quando eu estava) inválida. Seus pais tinham encontrado um bom partido para ele. Ele disse-me uma centena de vezes que me quer mais do que às meninas dos seus olhos.
- Não sejas tola. Ele é um sem-vergonha e tu devias ter mais amor-próprio.
- Deixa-a ir - acudiu Domingo. - Quer bem ao rapaz e está tudo dito. Ele não me parece pior do que os demais moços desta época degenerada.
Maria Pérez levantou-se, encolheu os ombros e, apanhando a vela de sebo a cuja luz Domingo estivera a ler, disse:
- Vem ler-me o teu drama na cozinha.
- Isso é que não - respondeu ele. - Rompeu-se o fio da leitura e eu perdi a disposição. És uma excelente mulher, Maria, mas não reconheces a diferença entre um pentâmetro e o rabo de uma vaca e eu não posso fazer justiça à minha própria obra, a menos que tenha um auditório capaz de apreciar-me.
Catalina ficou a sós. Dirigiu-se para a janela e avistou,
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recortada contra as trevas da noite, uma figura que lhe fez bater com força o coração.
- Diego!
- Catalina!
E deste modo, ainda que bem tarde, introduzimos um herói na nossa história.
O pai dele era um próspero alfaiate que trabalhava para as pessoas mais notáveis da cidade, e desde verdes anos Diego aprendera a manejar a agulha, talhar calções e ajustar um gibão. Tornara-se um rapagão alto e rijo, com um belo par de pernas, cintura fina e amplas espáduas. Tinha uma magnífica cabeleira, brilhante do azeite que ele lhe aplicava generosamente, pele azeitonada, olhos pretos e ousados, boca sensual e nariz recto. Era, em suma, um mancebo de esplêndida aparência e Catalina achava-o mais belo do que a luz do dia. Era animoso e exasperava-se por ter de passar horas e horas sentado, com as pernas cruzadas, a costurar, sob o olhar exigente do pai, tecidos de lã, seda, veludo e damasco, que seriam usados por homens mais afortunados do que ele. Sentia-se talhado para coisas mais elevadas e, nos seus caprichosos devaneios, representava muito o papel grandioso no palco da vida.
Enamorou-se. Os pais sofreram um choque quando ele lhes disse que, se não lhe dessem permissão de casar com Catalina Pérez, sentaria praça e iria para os Países Baixos ou far-se-ia marujo para ir correr aventura nas Américas. A única fortuna de Catalina era a casa que ela herdaria por morte da mãe e suas únicas perspectivas de futuro, a vaga possibilidade de que seu pai voltasse um dia carregado de ouro das ignotas terras do ocidente. Mas os pais de Diego eram astutos. Ele não tinha mais de dezoito anos e julgavam que a sua fantasia leve
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de rapaz se voltaria, com o tempo, para um objecto mais digno das suas afeições. Contemporizaram, fazendo-lhe ver com muita sensatez que era absurdo iniciar a vida conjugal antes de haver terminado a sua aprendizagem, mas que se então ele persistisse no mesmo intento, encontrá-los-ia dispostos a discutir o assunto. Não se opuseram às suas idas todas as noites à janela de Catalina, que ele entretinha com serenatas e conversas amorosas. Mas quando o touro feriu a jovem e a deixou parcialmente paralisada, este facto não pôde deixar de parecer-lhes uma intercessão especial da Providência. Diego horrorizou-se com o acidente, mas foi obrigado a concordar com seus afectuosos pais em que desposar uma aleijada era coisa fora de cogitação, e quando sua mãe lhe disse pouco depois que, segundo informações fidedignas que recebera, ele havia caído nas graças da filha de um lojista abastado e esta não lhe repeliria os galanteios, ficou suficientemente lisonjeado para dedicar grande atenção à moça. Os respectivos pais dos dois jovens entrariam em entendimento e concluiriam, em princípio, que a união seria mutuamente vantajosa. Restava apenas combinar os termos e, como fossem ambos atilados negociantes, as negociações pnolongaram-se.
Tal era, pois, o estado de coisas quando Diego tornou a apresentar-se diante da janela de Catalina. Além de aprender a tomar medidas, cortar e coser, ele também aprendera nos seus poucos anos de vida que uma pessoa do sexo forte nunca deve desculpar-se e ela, ainda que muito jovem, sabia que era inútil formular censuras a um homem. Por mais detestáveis que sejam os seus actos, lançar-lhos em rosto não faz mais do que irritá-lo. A mulher sensata contenta-se em deixar que ele pese a sua culpa, na consciência e, se ele não encontra nenhuma
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é tempo perdido incriminá-lo. Não perderam tempo, por conseguinte, em ralhos da parte dela nem em escusas da parte de Diego, mas foram direito ao ponto essencial.
- Coração de minha alma! - disse ele. - Eu adoro-te!
- Meu tesouro, meu precioso amor! - respondeu ela.
É desnecessário repetir as coisas doces e ridículas que disseram um ao outro. Disseram o que costumam dizer os amantes. Diego tinha o dom da palavra e vinham-lhe aos lábios, espontaneamente, expressões que encantavam Catalina de tal forma que lhe pareceu quase ter valido a pena passar aquelas longas semanas de misérias para gozar nesse momento uma felicidade tão arrebatadora. A escuridão da sala, atrás de si, ocultava-a quase por completo às vistas de Diego, mas o som da sua voz, baixa e doce, e o cascatear do seu riso punha-lhe o sangue em fogo.
- Maldita seja esta grade que nos separa! Oh! porque não me é dado tomar-te nos braços, cobrir o teu rosto de beijos e apertar contra o teu o meu coração palpitante?
Ela sabia perfeitamente em que teria resultado isso e a ideia não lhe desagradava em absoluto. Conhecia a paixão licenciosa dos homens e sentia um estremecimento de orgulho e ao mesmo tempo um aperto no coração por se ver tão ardentemente desejada por Diego. Arquejava um pouco.
- Oh! meu querido, que podes tu desejar de mim que eu não te queira dar? Mas se me amais, não me podes pedir aquilo que seria um pecado mortal e que, em todo o caso, estas barras de ferro tornam impraticável.
- Dá-me então a tua mão.
A janela a que Catalina estava sentada ficava a certa altura da rua, de forma que para atender à solicitação do seu
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amado ela teve de ajoelhar-se no chão. Passou a mão por entre as grades e ele apertou-a contra os lábios sôfregos. As mãos de Catalina eram pequeninas, com os dedos afilados, mãos de uma dama de alta posição. Orgulhava-se delas e, para conservá-las macias e brancas, lavava-as todas as noites na sua urina. Acariciou suavemente a face de Diego, enrubesceu e riu quando ele introduziu na boca o polegar pequenino.
- Sem-vergonha! - disse ela. - Que mais tens para inventar? - E retirou a mão. - Comporta-te e conversemos como pessoas ajuizadas.
- Como posso eu conversar com juízo quando tu me arrebatas os sentidos? Pede antes, mulher, a um rio que volte atrás e torne a subir para a sua fonte.
- Então é melhor que te vás. Começa a ficar tarde e eu estou cansada. A filha do dono do armarinho deve estar à tua espera e tu não tens razão para ofendê-la.
Disse estas palavras com uma pérfida doçura, e elas provocaram a resposta que Catalina esperava.
- "La Clara"? Importo-me lá com ela! É corcunda, vesga e tem cabelos que (parecem o pêlo de um cão sarmento.
- Mentiroso! - respondeu Catalina alegremente. - É verdade que ela tem o rosto marcado de bexigas e os dentes um pouco amarelos, com falta de um, mas fora isso não é feia e tem muito bom génio. Não posso censurar teu pai por querer que cases com ela.
- Meu pai pode ir...
Aquilo que Diego dava licença ao pai de ir fazer era qualquer coisa tão grosseira que um escritor que se respeita vê-se forçado a deixá-lo à imaginação do leitor. Catalina não estava desacostumada à linguagem franca da sua época e nem
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sequer pestanejou. A expressão enfática do namorado causou-lhe até uma certa satisfação.
- Estive na igreja esta manhã - prosseguiu ele - , e quando te vii erguida em toda a tua beleza, foi como se uma espada me trespassasse o coração e compreendi que nem todos os pais do mundo me podiam separar de ti.
- Eu fiquei aturdida. Não sabia onde estava nem o que me tinha acontecido. Sentia tonturas. Depois, foi como se um milhão de alfinetes e agulhas me picassem as pernas, de tal forma que eu não poderia suportar a dor nem mais um minuto, e não tive consciência de mais nada até que dei comigo nos braços da mamã, que ria e chorava ao mesmo tempo, e eu desatei a chorar também.
- Tu correste, e quando te vimos correr todos nós gritámos de alegria e de assombro. Corrias como uma pomba que foge do caçador, corrias como corre uma ninfa dos bosques ao ouvir vozes humanas, corrias como... - Neste ponto falhou-lhe a inventiva e ele acrescentou um tanto sem graça: - Corrias como um anjo do céu. Eras mais bela do que a aurora.
Catalina escutava-o com grande contentamento e estava disposta a ouvir muito mais coisas do mesmo teor, mas a voz de sua mãe veio interrompê-los.
- Vem deitar-te, menina. Queres que toda a vizinhança se ponha a falar? Além disso, precisas de descanso.
- Boa noite, meu amado.
- Luz dos meus olhos, boa noite.

Ora, sucedeu que o pai de Diego e o lojista andavam desentendidos desde alguns dias, por causa de um pedaço de terra que o alfaiate desejava como dote da jovem, mas de que
o lojista não se podia resolver a separar-se. Com toda a probabilidade, o assunto teria sido decidido por comum acordo se o alfaiate não mostrasse de súbito uma obstinação desrazoável e (na opinião do lojista) mesquinha. Houve uma troca de más palavras e a ideia do casamento acabou por ser abandonada. Não foi sem motivo que o alfaiate recusou modificar as suas exigências: o milagre conferira a Catalina uma notoriedade que lhe seria proveitosa no negócio; eJa não só era uma menina boa e honesta, mas também hábil costureira. Dizia-se que várias damas da cidade, encantadas com a modéstia e os bonitos modos da moça, estavam dispostas a cotizar-se para lhe oferecer um dote aceitável. Chegou à conclusão de que, consentindo no enlace anteriormente condenado por ele próprio, podia tornar o filho feliz e fazer ao mesmo tempo um excelente negócio. Desaparecia, assim, o último obstáculo à felicidade dos ternos namorados.


XXIII.

Mal sabiam eles que, enquanto continuavam a conversar todas as noites através da rótula, dizendo as mesmas tolices acima descritas, com pouca variedade mas com grande satisfação mútua, uma grande dama no seu oratório, à distância de uma pedrada dali, estava arquitectando um plano que os tocava de perto.
Dona Beatriz era uma mulher devota que cumpria escrupulosamente os seus deveres. O convento que ela dirigia era um modelo para a comunidade e os inspectores que o visitavam
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jamais encontraram motivos para criticá-la. Mantinha uma disciplina perfeita. Os serviços da igreja eram conduzidos com um decoro exemplar. Tanto no procedimento como na devoção, era irrepreensível. Mas nutria no coração um ódio mortal a certa freira de Ávila, Teresa de Cepeda por nome, ódio esse que nem os preceitos da religião nem as repetidas censuras do seu confessor logravam mitigar. Essa freira, conhecida na religião como Madre Teresa de Jesus, mas jamais designada pela prioresa a não ser como "La Cepeda", ingressara no convento da Encarnação, em Ávila, onde Dona Beatriz fora primeiro aluna e depois noviça. Tinha despertado grande indignação afirmando receber graças especiais, êxtases e a visão do Nosso Senhor, com a cabeça cercada por um nimbo resplandecente; isso, para não falar numa ocasião em que escorraçara o diabo, que estava sentado em cima do seu breviário, atirando-lhe água benta. Mas a situação atingiu a culminância quando, descontente com a frouxidão da regra das carmelitas, ela deixara o convento e fundara outro, onde se seguia uma regra mais rigorosa. As freiras de quem se havia separado viram nisso um estigma lançado sobre elas e um insulto à ordem e fizeram tudo quanto estava no seu poder para que a nova instituição fosse suprimida. Mas Teresa de Cepeda era uma mulher cheia de energia, resolução e coragem; vencendo uma oposição incansável, fundou convento após convento de carmelitas descalças, como eram chamadas essas freiras porque, em lugar dos fortes sapatos usados pelos outros membros da ordem, andavam de sandálias de corda. E antes de morrer, poucos anos antes da época em que se passa esta história, tinha ela visto triunfar a sua reforma.
Ninguém a combatera com mais tenacidade do que Dona Beatriz.
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Nunca se conformara com as excessivas mortificações, visões e êxtases alegados pelas freiras de "La Cepeda". Existia um antagonismo natural entre essas duas mulheres de grande força de vontade. Quem era aquela criatura orgulhosa, intrometida, presunçosa e má para se colocar acima de todos os demais? Em certa ocasião ela fora ao ponto de pedir ao bispo que lhe permitisse fundar uma instituição em Castel Rodríguez. Já havia conquistado então muitos amigos poderosos, tanto na corte como entre o clero, e Dona Beatriz, decidida a não permitir que essa mulher colocasse pé na cidade que ela considerava como seu domínio, fora obrigada a usar de toda a sua influência para combater o plano. Seguiu-se uma luta ferrenha, cujo resultado ainda estava pendente quando Teresa de Jesus morreu.
Conquanto rezasse pela sua alma (transviada, Dona Beatriz não pôde deixar de soltar um suspiro de alívio. Convenceu-se de que, já não estando em actividade o espírito inquieto e dominador de "La Cepeda", a reforma não tardaria a cair no olvido e as freiras tornariam com o tempo à antiga regra. Não suspeitava da força da impressão deixada pela Madre Teresa de Jesus nas suas filhas espirituais e nos sacerdotes que tinham tido contacto com ela. Dentro em pouco começaram a correr histórias sobre os milagres que ela realizara em vida; e os portentos que lhe assinalaram a morte. Ao expirar, tão suave aroma se exalara do seu corpo que foi preciso abrir as janelas da cela para que as pessoas presentes não desfalecessem e, ao ser exumado nove meses depois, o corpo foi encontrado intacto e isento de corrupção, enchendo todo o convento com o mesmo aroma suave. Doentes curavam-se ao tocar nos seus restos mortais. Já muitas pessoas influentes
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se empenhavam pela sua beatificação, e Dona Beatriz acabou compreendendo que, mais cedo ou mais tarde, "La Cepeda" seria canonizada.
Havia algum tempo que esse pensamento a enchia de inquietude. Tal coisa seria um título de orgulho para a ordem dos descalços. É verdade que não faltavam santos entre os carmelitas da ordem mitigada, e ambos os seus fundadores tinham sido canonizados; mas isso acontecera muito tempo atrás, e tal era a frivolidade do povo que se sentia mais inclinado a fazer suas devoções a um santo de data recente do que àqueles que, desde séculos, estavam de posse desse sublime título. Mas, se não podia impedir que a ordem adventícia recebesse uma honra, aos seus olhos injustificada, algo podia fazer para contrabalançá-la, provendo a sua própria ordem de uma candidata à canonização. A Providência apomtara-lhe o caminho e seria um pecado não o seguir. Lázaro era santo sem que houvesse para tal, que lhe constasse, outro motivo senão o facto de ter sido objecto de um dos milagres de Nosso Senhor. Catalina era uma rapariga devota e virtuosa, e o milagre graças ao qual recobrara a saúde não fora testemunhado apenas por duas ou três freiras emotivas e padres interesseiros, mas por uma vasta multidão. Tendo recebido tão assinalada marca do favor divino, parecia muito justo que ela devotasse o resto da existência ao serviço do Senhor. Dona Beatriz ouvira dizer que ela se supunha enamorada de um rapaz da cidade, mas afastou tal coisa das suas cogitações. Não podia crer que uma mulher sensata pensasse a sério em casar com um alfaiate quando podia gozar os benefícios, tanto espirituais como mundanos, decorrentes do ingresso no Convento da Encarnação das carmelitas, de que ela era a prioresa.
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Se a rapariga correspondia à descrição que tinham feito dela as freiras que a conheciam, não podia deixar de trazer crédito ao convento e a graça que recebera acrescentaria nova distinção ao estabelecimento. Era ainda bastante moça para poder ser educada, e Dona Beatriz esperava fazer dela suma digna religiosa. Não havia motivo para supor que a Santíssima Virgem deixasse de se interessar por ela e seria muito possível que Catalina se tornasse recipiente de novas graças. A sua fama espalhar-se-ia e quando, afinal, fosse libertada do martírio desta vida, seria, sem dúvida alguma, uma candidata tão aceitável à beatificação quanto a turbulenta freira de Ávila.
Dona Beatriz ponderou durante alguns dias o seu projecto. Quanto mais o considerava, mais lhe agradava. Como era, porém, mulher de muita discrição, achou prudente não o pôr em prática sem a aprovação do seu director espiritual. Mandou-o chamar. Era um homem digno e simples, cuja piedade ela estimava mas de cuja inteligência não fazia muito alta opinião. Ele aplaudiu-lhe o desejo de dar a Nosso Senhor uma noiva a quem Sua Mãe condescendera em dispensar tão grande favor e que seria, por tal motivo, uma honra para a comunidade. E isso era natural porque, embora a prioresa se houvesse alongado sobre a gratidão que a rapariga devia sentir pela sua cura milagrosa e a sua provável boa disposição de passar o resto da vida ao serviço do Senhor, acharia desnecessário comunicar ao bom homem os motivos ocultos que constituíam a mola mestra do seu desejo. Ele levantou, todavia, uma objecção.
- Pelos estatutos deste convento, a admissão é reservada às damas de nascimento nobre. Catalina Pérez, embora de sangue limpo, é de origem modesta.
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A prioresa tinha uma resposta pronta para isto.
- Eu reputo a condescendência que Nossa Senhora mostrou por ela como uma patente de nobreza. Aos meus olhos, isso torna-a igual aos mais orgulhosos da terra.
Tal resposta, nos lábios de tão alta senhora, encheu de admiração o frade e, se possível, aumentou ainda a veneração em que tinha Dona Beatriz. Assentado o ponto principal, restava apenas considerar os meios de o pôr em prática. O plano da prioresa era mandar chamar a moça e fazer-lhe ver a utilidade, para o seu bem espiritual, de realizar um retiro de certa duração no convento, a fim de poder agradecer devidamente ao Criador os benefícios que lhe tinham sido conferidos; e prevendo que Catalina, devido à infeliz ligação que contraíra, se pudesse opor a isso, rogou ao frade que revelasse o seu plano ao confessor da jovem, levando-o a insistir com ela para que aceitasse a proposta, e mesmo a ordená-la, se fosse necessário. O director de consciência da prioresa consentíu de muito boa vontade.
No dia seguinte, pois, Dona Beatriz mandou chamar Catalina. Até então só a tinha visto uma vez:, e nessa ocasião mal olhara para ela. Impressionou-a a beleza da moça e, com um sorriso em que apenas se notava a sua habitual severidade, fez uma amável observação a respeito. Não gostava de freiras feias. Sempre achara impróprio oferecer a Nosso Senhor noivas que não aliassem à graça espiritual um exterior atraente. Ficou encantada com os modos modestos de Catalina, com a sua voz suave e a distinção da sua aparência. Nada havia nela de vulgar e a sua linguagem, graças ao ensino ministrado por Domingo, era não só correcta mas elegante. A prioresa surpreendeu-se de ver uma flor tão mimosa brotar em tão humilde solo.
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Desfizeram-se todas as dúvidas que pudesse ter nutrido sobre o acerto do seu plano: a jovem era evidentemente talhada para as honras, e que maior honra havia do que servir a Deus? Catalina sentía-se tomada de um temor respeitoso diante dessa aristocrática senhora cuja reputação de virtude e severidade ela bem conhecia, mas Dona Beatriz tratou de a pôr à vontade. O seu rosto mostrava uma expressão benigna que as freiras raramente tinham ocasião de ver, e Catalina perguntou consigo, admirada, por que motivo inspiraria tanto medo a todas elas. Era amiga de tagarelar e, vendo-se tão amavelmente encorajada, pôs-se a contar a essa simpática ouvinte toda a história da sua breve existência, com as agruras da pobreza, suas atribulações e suas alegrias, e nem por um instante suspeitou da habilidade com que a prioresa lhe guiava a narrativa para a fazer revelar as suas inclinações, a sua natureza honesta e o encanto do seu carácter. Sem um tremor, mas com benévola indulgência, Dona Beatriz ouviu-a descrever a beleza e os méritos de Diego, a sua ternura e bondade, contando como os pais dele, que dantes a viam com tão maus olhos, se haviam abrandado de tal maneira que já não restava nenhum obstáculo à felicidade de ambos. A prioresa desejou ouvir dos lábios dela como a Virgem lhe tinha aparecido, as palavras textuais que pronunciara e como, de um momento para outro, desaparecera diante dos seus olhos. Foi então que sugeriu, gravemente mas com brandura, que, numa natural gratidão da graça que recebera, Catalina devia fazer um retiro no convento para pôr as ideias em ordem e devotar-se durante algum tempo à contemplação das coisas celestes. Catalina ficou embaraçada, mas tinha o hábito de dizer a primeira coisa que lhe vinha à cabeça e já havia perdido quase completamente
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o temor que lhe inspirava a sua interlocutora, de modo que não hesitou em falar com franqueza.
- Oh! Reverenda Madre - exclamou ela - , isso é impossível! Estivemos tanto tempo separados que o coração do meu Diego se partiria se tornássemos a separar-nos agora. ele diz que só vive na espera da hora em que costumamos comversar à minha janela. Eu definharia de tristeza se deixasse de o ver todos os dias a essa hora.
- Não posso insistir consigo, menina, para que faça uma coisa que não deseja. Um retiro só lhe poderia ser benéfico se você o fizesse pelo amor de Deus e com o sincero desejo de emendar-se. Confesso que você me decepcionaria se fosse tão pouco grata à Virgem Santíssima pela sua bondade, que lhe regateasse o pouco do seu tempo necessário para lhe render graças; e não posso crer que esse moço, se a ama tanto como você diz e é tão bom assim, leve a mal que por algum tempo, talvez umas duas ou três semanas apenas, em retribuição à graça divina que os tornou a unir, você se devotasse à prece, tanto para sua salvação como dele. Mas não falemos mais nisso. Só lhe peço que consulte o seu confessor sobre o assunto. É possível que ele considere vã a minha proposta, e nesse caso a sua consciência estará em paz.
Despediu-a então, após a presentear com um rosário de contas de âmbar.


XXIV.

Não foi nenhuma sumpresa para Dona Beatriz quando, dois ou três dias depois, lhe vieram comumicar que Catalina estava na sala de visitas e pedia permissão para fazer um retiro.
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Mandou-a buscar, recebeu-a prazerosamente, beijou-a e confiou-a aos cuidados da mestra de noviças. Deram a Catalina uma cela que olhava para o bem tratado jardim das freiras. Ainda que austeramente mobilada, era espaçosa, limpa e fresca.
A prioresa escusava de pedir (e seus pedidos eram ordens que Catalina fosse tratada com indulgência e bondade, porquanto a sua beleza, modéstia e encanto cativaram imediatamente todos os corações. Freiras, noviças, irmãs leigas e pensionistas, todas a traziam nas palmas das mãos. Gostavam da sua alegria e mimavam-na como a uma criança muito querida. Embora a cama em que ela dormia fosse tal como o prescreviam as regras da ordem, era luxuosa em comparação com aquela a que estava habituada, e a comida, simples e sem temperos como convinha, era excelente e na pobreza da sua casa ela jamais provara coisas semelhantes. Peixe, galinha e caça eram fornecidos pelas propriedades da prioresa e as pensionistas convidavam-na aos seus quartos para lhe oferecer doces e outras guloseimas.
Dona Beatriz foi discreta, contentando-se em deixar que a moça percebesse por si mesma as delícias da vida conventual, com a sua paz, a sua agradável actividade e a sua protecção contra o tumulto e as preocupações do mundo. A sua monotonia era temperada pelas visitas, feitas durante a hora do recreio, de distintas damas da cidade e dignos cavalheiros, na maioria parentes da prioresa ou das freiras, e cuja conversação não se limitava inteiramente a assuntos religiosos. Catalina ficou bastante lisonjeada com as atenções de que era alvo. Tinha concordado em fazer o retiro com certo espírito de rebeldia, ante a ordem do seu confessor reforçada pela persuasão materna, mas não o estava achando nada desagradável.
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Teria sido estranho que deixasse de comparar favoravelmente a vida ditosa e bem organizada das freiras com a que ela tinha em casa, com o seu constante mourejar, sempre assombrada pelo espectro da penúria. Em certas temporadas não havia procura para o género especial de trabalhos que ela e a mãe executavam, e nessas ocasiões só os incertos ganhos de Domingo as salvavam de passar fome. Deleitava-se nos serviços religiosos a que assistia com todos os membros da comunidade na pequena mas linda igreja anexa ao convento. A prioresa tinha ouvido musical e esmerava-se para que a parte de canto não deixasse a desejar e os ritos fossem conduzidos não só com devoção mas com verdadeira pompa. Catalina, com a sua sensibilidade aguçada, encontrava nela não só um deleite para os sentidos mas um enriquecimento espiritual. Com grande surpresa sua, descobriu que a vida do convento não era uma prisão, como receava, mas antes uma libertação. Gostava de agradar, e agradava; desejava ser amimada, e era-o. Embora sentisse falta de Diego e pensasse nele constantemente, tinha de confessar a si mesma que esse retiro lhe ficaria na recordação como um dos episódios mais agradáveis da sua existência.
Todos os dias, pela tarde, Dona Beatriz mandava-a chamar e retinha-a consigo durante uma hora. Jamais mencionava o seu desejo de que Catalina entrasse para a religião, conquanto o desejasse, não apenas pelos motivos já referidos, mas porque não tardara a perceber que a moça, além de virtuosa, inteligente e de fácil compreensão, tinha personalidade e seria um ornamento para a ordem. A prioresa não lhe falava como uma alta senhora, Madre Superiora de um convento, mas como uma amiga cheia de afecto. Procurava ganhar influência sobre
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Catalina, mas sabia que era preciso agir com cautela. Contava-lhe histórias de santos para edificá-la e histórias da corte para lhe mostrar que as pessoas da religião também podiam desempenhar um papel nos negócios de estado. Falava-lhe dos assuntos do convento e da administração das suas propriedades, não sem uma certa intenção de a impressionar favoravelmente com a importância e responsabilidade ligadas ao cargo de prioresa do convento das carmelitas de Castel Rodríguez. A possibilidade de atingir essa posição bem poderia deslumbrar a filha de Maria Pérez, a costureira.
Mas é dificílimo guardar segredos num convento e, embora Dona Beatriz nunca houvesse falado a ninguém do seu plano, não tardou a tornar-se conhecido entre as freiras e pensionistas o objectivo que tinha em vista, os privilégios concedidos a Catalina e a predilecção que lhe demonstrava a temível Madre Superiora. Certo dia, uma expansiva freira disse à jovem o bem que lhe queriam todas e quanto desejavam que ela ali ficasse para sempre. Uma senhora, que se hospedara no convento porque o marido andava na guerra, disse-lhe que o seu maior desejo seria estar livre para se fazer freira.
- Se estivesse no seu lugar, menina, pediria, amanhã, à Reverenda Madre que me aceitasse como noviça.
- Oh! não, eu vou casar...
- Você terá arrependimento para o resto da vida. Os homens são por natureza brutais, infiéis e sem consideração.
A dama era corpulenta, de aspecto letárgico e tez pálida. Catalina achou no seu íntimo que, se o marido dela era tão mau assim, não deixava de ter as suas razões para tal.
- Como pode você hesitar, quando o Noivo Celeste lhe
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estende os braços para recebê-la? - prosseguiu a dama, levando um confeito à boca.
Certa ocasião, durante a hora de recreio, uma senhora da
cidade beliscou a face de Catalina e disse em tom malicioso: - Ouvi dizer que dentro em breve teremos uma linda
santinha no convento. Prometa lembrar-se de mim nas suas
orações, pois sou uma grande pecadora e contarei consigo para me conseguir a entrada no Paraíso.
Catalina atemorizou-se. Não desejava tornar-se freira e
muito menos santa. Recordou-se de certas observações fortuitas a que não havia ligado importância no momento de ouvi-las. De repente, percebeu claramente que todas aquelas mulheres esperavam que ela ingressasse na vida religiosa. Nessa tarde, ao entrar como de costume no oratório da prioresa, fê-lo cheia de inquietação. Dona Beatriz notou que qualquer coisa não conriia bem. Foi direita à questão.
- Que aconteceu, menina? - perguntou ela, interrompendo subitamente as palavras de Catalina.
A moça estremeceu e corou.
- Nada, Reverenda Madre.
- Tens medo de me dizer? Não sabes que eu te quero como se fosses minha filha? Esperava que ao menos me tivesses um pouco de afeição.
Catalina desmanchou-se em lágrimas. A prioresa estendeu os braços num gesto afectuoso.
- Vem, senta-te aqui, minha filha, e dize qual é a causa do teu aborrecimento.
Catalina foi sentar-se aos pés da prioresa.
- Quero ir para casa! - soluçou.
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Dona Beatriz empertigou-se, mas recobrou num instante a
serenidade.
- Não estás satisfeita aqui, minha querida? Temos feito tudo para tornar-te feliz. Conquistaste a estima de todas.
- Essa estima é uma prisão para mim. Sou como uma lebre apanhada numa armadilha. As freiras, as senhoras pensionistas, todas parecem ter como certo que eu vou entrar no convento. Mas eu não quero!
A prioresa foi tomada de uma cólera repentina ao ver que as tolas mulheres a tinham traído, levadas pelo seu excesso de zelo, mas não deixou que o seu rosto grave acusasse em absoluto o que sentia.
- Ninguém pode alimentar o desejo de forçar-te a fazer aquilo que só pode ser um acto livre da vontade, conduzida pela inspiração divina. Não deves censurar essas senhoras porque não queiram perder-te, na afeição que conceberam por ti. Quanto a mim, não nego que me permiti desejar que Nossa Senhora te inspirasse o desejo de tornares-te uma de nós, em reconhecimento da grande mercê que recebeste. Serias uma honra e uma glória para o nosso convento. Sei que, além de seres humilde e piedosa, tens óptima cabeça. Infelizmente, muitas das nossas freiras não chegam a aliar a inteligência à bondade. Estou velha e os encargos da minha posição já começam a pesar-me. Talvez tenha sido um pecado entregar-me a devaneios ociosos;, mas seria uma grande felicidade para mim ter-te ao meu lado, com o teu tacto, a tua bondade natural e o teu bom senso, para compartilhares os meus trabalhos e ocupar o meu lugar quando o meu Pai Celestial me chamar para junto de Si.
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Fez uma pausa, esperando a resposta. Afagou com brandura a face da jovem.
- É muito gentil comigo, Reverenda Madre. Não lhe posso agradecer suficientemente a bondade. Teria um grande desgosto se a senhora me julgasse ingrata. Sou indigna da grande honra que me tem reservada.
Se bem que nestas palavras não houvesse uma recusa clara da deslumbrante oferta, a prioresa era demasiado sagaz para deixar de perceber o que elas implicaram. Teve a impressão de que, ao lado do temor que notava em Catalina, havia também obstinação, e suspeitou que uma nova tentativa de persuadi-la não faria mais do que acirrar essa obstinação. Não se deu por vencida, mas a sua discrição sugeriu-lhe que, de momento, seria prudente operar uma retirada.
- Esse é um assunto que deves decidir por ti mesma, de acordo com os ditames da tua consciência, e estou longe de querer influenciar-te.
- Então posso ir para casa, Reverenda Madre?
- Tens liberdade de ir para onde quiseres. Peço-te como um favor, e em respeito ao teu confessor, que permaneças aqui durante o tempo que ele determinou. Tenho a certeza de que não nos podes ser desafeiçoada a ponto de nos privares do encanto e da graça da tua presença durante os poucos dias que ainda restam.
Catalina só pôde responder que se sentiria feliz em ficar e a prioresa despediu-a com um beijo afectuoso. Vendo-se novamente a sós no seu oratório, mergulhou em profunda meditação. Não era mulher que aceitasse uma derrota. Estava agastada com Catalina, mas, como se se tratasse de uma emoção sem qualquer proveito, reprimiu-a imediatamente. Tinha um
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espírito forte e inventivo, e ocorreram-lhe vários planos. Pesou cuidadosamente as vantagens e desvantagens. Sentia-se justificada em lançar mão de quaisquer meios, desde que não houvesse pecado, para garantir o bem-estar da jovem neste mundo e a sua salvação no outro, alcançando ao mesmo tempo um objectivo que traria crédito à ordem. Era evidente que, antes de mais nada, cumpria recorrer a uma persuasão mais forte do que a sua, para procurar trazer Catalina ao bom partido. Ninguém lhe pareceu mais indicado para isso do que Dom Blasco de Valero, bispo de Segóvia: fora ele que realizara o milagre de curá-la, a sua alta posição e a sua santidade impunham respeito. Sentou-se e escreveu uma carta em que pedia ao bispo que viesse conversar com ela sobre um assunto em que necessitava dos seus conselhos.


XXV.

Ele respondeu por um recado, dizendo que viria no dia seguinte, e com uma pontualidade desacostumada na Espanha. apresentou-se à hora marcada. A prioresa foi direita ao assunto.
- Desejava falar com Vossa Excelência sobre Catalina Pérez.
O bispo aceitou a cadeira que lhe oferecia Dona Beatriz, mas sentou-se na borda, como não querendo abandonar-se ao seu escasso conforto. Esperou em silêncio, com os olhos baixos, que a Reverenda Madre prosseguisse.
- A conselho do seu confessor, ela está fazendo um retiro
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na nossa casa. Tenho tido ensejo de falar com ela. Estudei-lhe o carácter e as inclinações. É mais instruída do que muitas senhoras de nascimento nobre. É muito bem educada e tem um procedimento exemplar. A sua devoção por Nossa Senhora é muito sincera. Possui todas as qualidades requeridas para a vida religiosa, e após a assinalada mercê que Deus houve por bem conferir-lhe, por intermédio de Vossa Excelência, parece ser um dever natural de gratidão da parte dela dedicar a sua existência ao serviço do Senhor. Seria um ornamento para a nossa ordem e, aipesar da sua origem modesta, eu não hesitaria em aceitá-la nesta casa.
O bispo não respondeu. Inclinou a cabeça sem erguer os olhos, .mas era impossível saber se se tratava de um gesto de aprovação ou se isso queria apenas indicar que ele estava escutando. A prioresa alçou as sobrancelhas.
- Ela é muito moça, não sabe bem o que quer, e talvez seja muito natural que se sinta atraída pelos vãos deleites do mundo. Eu sou uma mulher ignorante e pecadora, e não me pareceu que pudesse falar-lhe com proveito sobre o assunto. Ocorreu-me que seria uma digna acção da parte de Vossa Excelência falar com ela e apontar-lhe, como ninguém é capaz de fazê-lo melhor, onde se encontram ao mesmo tempo o seu dever e a sua felicidade.
Dessa vez o bispo respondeu:
- Eu não me envolvo com mulheres. Adoptei a regra de não ais receber em confissão, e nunca violei essa regra.
- Bem conheço a pouca inclinação de Vossa Excelência a ter qualquer trato com o meu sexo, mas este é um caso excepcional. O senhor restituiu-a à vida, não pode abandoná-la agora, deixando que a sua alma corra perigo por falta de
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uma palavra de advertência. Seria o mesmo que salvar um homem a ponto de afogar-se e deixá-lo na praia para morrer de fome e frio.
- Se essa menina não tem vocação para a vida religiosa, não creio que tenha o dever de instar com ela para que se faça freira.
- .Vossa Excelência deve saber que muitas mulheres o têm feito por terem perdido alguma pessoa muito chegada por não ter sido possível arranjar-lhes um marido conveniente e até por uma decepção amorosa. Nada disso impediu que se tornassem excelentes freiras.
- Não duvido disso, e sou forçado a crer que Deus por vezes arrebata a taça aos lábios dos mundanos a fim de chamá-los ao seu serviço, mas no caso dessa menina não há razão para supor que exista qualquer dos motivos mencionados por Vossa Reverência. Tomo a liberdade de lembrar-lhe que não é menos possível alcançar a salvação no mundo do que num convento.
- Mas é muito mais difícil e menos seguro. Porque teria Nossa Senhora concedido a Vossa Excelência o poder de realizar esse milagre para a sua maior glória, se não fosse com o desígnio de fazer resplandecer aos olhos de todos a auréola de luz que cerca essa menina e conduzi-los ao arrependimento?
- Não é a nós, pecadores, que compete indagar dos motivos do Omnipotente.
- Mas pelo menos podemos ter a certeza de que eles são bons.
- Podemos.
Dona Beatriz não gostou muito da lacónica brevidade do bispo. Estava mais acostumada a uma efusiva loquacidade por
parte daqueles com quem se dignava conversar. Prosseguiu com um certo tom de aspereza na voz:
- É uma retribuição mínima que lhe peço, em troca do favor e protecção que a minha família sempre dispensou à sua ordem. Recusará o meu pedido para que veja essa menina, examine as suas inclinações e lhe mostre onde está a verdadeira felicidade, caso venha a formar dela uma opinião tão alta como a que eu formei?
O bispo levantou imediatamente os olhos - não para desviá-los da prioresa e sim para olhar pela janela. Dava esta para o jardim, mas na sua absorção ele não viu nem os ciprestes que o ornavam, nem os aloendros em flor.
Intrigava-o aquela insistência,. Não lhe parecia crível que essa mulher dura e soberba tivesse em mira apenas a felicidade de uma costureirazinha. O prior do convento em que estava hospedado contara-lhe que ela havia lutado com unhas e dentes para impedir que Madre Teresa de Jesus fundasse um convento em Castel Rodríguez. Todos conheciam o ódio que as carmelitas da velha ordem nutriam para com as da nova. Brotou-lhe no espírito a suspeita de que fosse por alguma razão relacionada a isso que Dona Beatriz estava tentando seduzir Catalina a emtrar no convento; e, se recorria ao seu auxílio, era porque encontrara a jovem pouco disposta. Encarou pela primeira vez a prioresa e os seus olhos escuros e trágicos procuraram sondar-lhe os pensamentos mais íntimos. Ela suportou-lhe o olhar com altiva serenidade.
- Supondo-se que eu falasse a essa menina e chegasse à conclusão de que é meu dever persuadi-la, com a ajuda do Senhor, a ingressar na vida religiosa, eu sentir-me-ia inclinado
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a pensar que ela estaria mais a gosto num convento de carmelitas descalças do que nesta casa de senhoras da nobreza.
O súbito relâmpago de cólera, imediatamente reprimido, que ele notou nos olhos de Dona Beatriz, mostrou-lhe que havia acertado, se não com a verdade, pelo menos com algo muito próximo desta.
- Seria duro para com a mãe da menina separá-la por completo da filha única - volveu suavemente a prioresa. - As carmelitas descalças não têm casa nesta cidade.
- Unicamente, se estou bem informado, porque Vossa Reverência persuadiu o bispo a recusar permissão à Madre Teresa de Jesus para fundar um estabelecimento aqui.
- Já existem conventos de mais na cidade. "La Cepeda" não queria aceitar uma doação e assim a sua comunidade representaria um ónus para o município, que não se pode dar ao luxo de tais despesas.
- Vossa Reverência fala com pouco respeito de uma mulher cheia de santas virtudes.
- Era uma mulher de origem muito humilde.
- Engana-se, senhora. Ela era de nascimento nobre.
- Tolices! - tornou asperamente a prioresa. - O pai recebeu patente de nobreza no começo deste século. Há-de desculpar-me se não mostro mais tolerância do que o nosso falecido e venerado rei para com essa gente que, sem qualquer justificativa, assume uma posição a que não tem direito. O país está a enxamear com essa nobreza de sarjeta.
Tal era a categoria em que se encaixava o próprio bispo. Sua Excelência sorriu de leve.
- Fosse qual fosse a sua origem, não se pode negar que Madre Teresa foi uma mulher piedosa, que recebeu muitas
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graças do Alto e cujos trabalhos pela causa da religião são dignos dos maiores louvores.
Tão encolerizada estava Dona Beatriz que não notou que o bispo observava as menores mudanças de expressão do seu rosto, todos os gestos de impaciência que faziam as suas mãos delicadas.
- Vossa Excelência há-de permitir que eu discorde. Eu conheci-a e tive ensejo de falar com ela. era uma criatura inquieta e desassossegada que vivia a entreter-se com doidos caprichos sob pretexto de religião. Que necessidade havia de deixar o convento e, com escândalo dos seus concidadãos, fundar um novo? Havia excelentes e santas freiras na Encarnação, e a regra era severa.
- Essa regra, instituída por Santo Alberto e mitigada pelo Papa Eugénio IV, preceituava o jejum quatro vezes por semana, desde a festa da Exaltação da Santa Cruz, em Setembro, até ao Natal, e proibia que se comesse carne no Advento e na Quaresma,. Cada freira tinha de passar pelas disciplinas nas segundas, quartas e sextas-feiras, e devia-se observar silêncio das completas à prima. O hábito era negro e usavam-se sapatos. As camas não tinham lençóis de linho.
- Devo ser uma mulher muito estúpida - disse a prioresa, pois não vejo porque o facto de se usarem sandálias de corda em vez de sapatos de couro favoreça uma espiritualidade mais elevada, nem porque se honre mais o Senhor usando um hábito de lona em vez de sarja. "La Cepeda" dizia ter-se separado da nossa antiga ordem para ter mais tempo de se entregar à oração (mental e à contemplação, e no entanto passou toda a vida a vaguear de um lado para outro. Impunha
silêncio às suas freiras e era a maior tagarela que conheci na minha vida.
- Se Vossa Reverência lesse a vida de Madre Teiresa, escrita por ela própria, passaria sem dúvida a olhar com mais indulgência essa santa criatura - respondeu o bispo num tom frígido.
- Já li. A princesa de Eboli mandou-ma. Escrever livros não é ocupação própria de mulheres. Devem deixar isso aos homens, que são mais instruídos e têm melhor entendimento.
- Madre Teresa de Jesus escreveu-o em obediência a uma ordem do seu confessor.
A prioresa sorriu secamente.
- Não acha notável que o confessor dela nunca lhe tenha mandado fazer nada que ela não houvesse resolvido fazer de antemão?
- Lamento que Vossa Reverência considere com tanta dureza uma mulher que conquistou a afeição e a estima não só das suas freiras mas de todos aqueles que tiveram o privilégio de entrar em contacto com ela.
- Ela dividiu e ameaçou arruinar com as suas inovações a nossa antiga ordem, e não posso deixar de crer que a inspirassem a ambição e o despeito.
- Vossa Reverência sabe, sem dúvida alguma, que em razão dos milagres devidamente atestados que Madre Teresa realizou durante a sua vida-, bem como dos milagres que se verificaram por sua intercessão depois da sua morte, muitas pessoas influentes e respeitáveis já se estão empenhando junto a Sua Santidade para conseguir a sua beatificação.
- Estou informada disso.
- E não me enganarei ao supor que o seu motivo para
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desejar que a jovem Catalina Pérez entre para a sua ordem é a ideia extravagante, concebida por si, de que a notoriedade que cerca essa menina poderia, de certo modo, comtrabalamçar a fama que adviria para as carmelitas descalças da beatificação da sua fundadora?
Se a prioresa se surpreendeu com a argúcia do bispo, a sua fisionomia não o deixou perceber de modo algum.
- Temos tido suficientes santos na nossa ordem para nos mantermos serenos se Sua Santidade se deixasse transviar por pessoas interesseiras e monjas supersticiosas, ao ponto de conferir tão grande honra a uma rebelde perniciosa.
- Não respondeu à minha pergunta, senhora prioresa.
O orgulho de Dona Beatriz não lhe permitiu mentir.
- Eu não consideraria desperdiçada a minha vida se, em toda a humildade, me fosse dado auxiliar uma alma anelante a alcançar tal perfeição que se tornasse digna de ingressar na companhia dos santos. Seria um bem para todos se ela pudesse desfazer assim o mal causado por Teresa de Cepeda. Se o senhor não me quiser ajudar a fazer aquilo que é, estou convicta, um serviço meritório prestado a uma pobre alma em luta com a incerteza, terei de fazê-lo por mim mesma.
O bispo encarou-a longamente, com uma expressão severa.
- É meu dever lembrar a Vossa Reverência que obrigar quem quer que seja a entrar numa instituição religiosa contra a sua vontade constitui um crime passível de censura especial e de excomunhão "latae sontentiae".
A prioresa empalideceu mortalmente, não de medo ante essa terrível ameaça, mas de cólera por ele se ter atrevido a fazê-la. E no entanto, aquelas palavras fizeram com que um arrepio lhe percorresse a espinha. Pela primeira vez na vida
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sentia o domínio do macho. Manteve um silêncio ofendido. O bispo levamtou-se e despediu-se com as costumeiras expressões de cortesia. Ela respondeu com uma altiva inclinação de cabeça, mas ficou sentada na sua cadeira.


XXVI.

Participou com decoro dos ofícios do dia, mas podemos supor que tivesse o espírito perturbado. Não pretendia abandonar o seu projecto e já havia reflectido sobre o que fazer no caso que o bispo recusasse lançar mão da sua autoridade e poder de persuasão para auxiliá-la. Embora achasse vantajoso e honroso para a ordem que Catalina abraçasse a religião entrando no convento que seu pai tinha fundado, estava sinceramente convencida de que isso contribuiria também para o bem-estar espiritual da menina e para a edificação dos fiéis. Muito bem sabia a prioresa que o único obstáculo real era a infeliz afeição que a tola criatura devotava ao jovem alfaiate chamado Diego. Impacientava-se ao pensar que, por um motivo tão insignificante, Catalina estivesse disposta a abrir mão das grandes vantagens que a vida religiosa lhe oferecia, tanto neste mundo como no outro. Mas a pessoa sensata aceita as coisas como as encontra e, conhecendo a situação, passa a manejá-la de maneira que consiga o resultado desejado.
A prioresa começou, pois, por mandar chamar a mestra de noviças. Essa freira, Dona Ana de San José, era discreta, inteligente e digna de confiança, e porfiava pelos interesses do convento. Tão grande era a sua dedicação à prioresa,
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tão perfeita a sua obediência, que se Dona Beatriz a mandasse atirar a um rio ela o tinha feito sem um instante de vacilação. A prioresa começou por Lhe perguntar qual a opinião que formara de Catalina. Dona Ana teceu-lhe os maiores louvores. Era devota, obediente, bondosa e prestativa. Aclimatara-se à vida conventual como se tivesse sido feita para ela.
- É pena que a sua modesta estirpe a impeça de entrar na nossa comunidade.
- Deus não faz acepção de pessoas - tornou gravemente Dona Beatriz. - Aos Seus olhos não há diferença entre nobres e mal-nascidos. Se a menina tem a necessária inclinação é possível superar a dificuldade. Não há motivo para que a regra instituída por meu pai não possa ser modificada por meu irmão, em se tratando de um caso excepcional.
- As suas filhas teriam muita satisfação em recebê-la como companheira.
- Para mim também seria uma fonte de satisfação incluí-la no número das dignas mulheres à frente das quais o Senhor houve por bem colocar-me.
A prioresa deteve-se alguns momentos para escolher as palavras. Insinuou então a Dona Ana que seria bom fazer correr entre as freiras, as pensionistas ("damas de piso", como eram chamadas) e as visitas que ela estava disposta a aceitar Catalina como noviça. Aquela maravilhosa ocorrência trouxera-lhe uma fama que o tempo tornaria conhecida através da Espanha. Era natural que ela desejasse abraçar a vida religiosa e seria uma glória para a cidade se Catalina habitasse no convento das carmelitas e, pelas suas orações, conquistasse para ela o favor especial da Divindade. Não se podia, por certo, esperar que uma menina possuísse a força de vontade necessária
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para resistir à pressão da opinião pública e recusar os aplausos, a admiração mesmo, com que seria recebida a sua decisão de abandonar o mundo e os seus prazeres transitórios. Mas Dona Beatriz era uma mulher prática e não ignorava que as vantagens práticas também têm o seu peso. Mandou a obediente freira falar com Maria Pérez, comunicando-lhe a boa impressão que ela, a prioresa, tivera das virtudes e aptidões de sua filha e o que, em consequência, estava disposta a fazer por ela. Estava segura de que Dona Ana faria compreender a Maria Pérez a grande honra conferida à filha, honra que redundaria em seu crédito, e a vida muito superior, tanto material como espiritualmente, que isso proporcionaria a Catalina em lugar do casamento com um filho de família pobre, que bem podia sair-lhe um vadio, um ébrio ou um jogador. Finalmente, Dona Beatriz encarregou a freira de dizer que ela própria pagaria o dote necessário para o ingresso na vida religiosa e, como Maria Pérez estava envelhecendo e sem a ajuda da filha talvez viesse a encontrar-se em penosas circunstâncias, teriia prazer em dar-lhe uma pensão bastante grande para lhe proporcionar conforto durante o resto da vida, sem a necessidade de trabalhar.
Essas ofertas eram tão tentadoras que Dona Ana se encheu de admiração ante a caridade e munificência da sua superiora. A extraordinária mulher não esquecia nada. A prioresa despediu-a com a recomendação de escolher um momento favorável para transmitir a mensagem e fazer ver a Maria Pérez a necessidade de um sigilo absoluto, pois se ela falasse naquilo ao irmão, o dissoluto Domingo, esse endiabrado homem bem poderia persuadi-la a uma recusa.
A mestra de noviças desempenhou a sua missão com rapidez
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e habilidade, e dentro de vinte e quatro horas informou Dona Beatriz de que Maria Pérez recebera com humiildade e gratidão os seus generosos oferecimentos. Como fosse espanhola e vivesse numa época de grande devoção, não tinha dúvidas de que servir a Deus num estabelecimento religioso era a existência mais digna que se pudesse escolher. Ter uma filha freira ou um filho monge constituía uma honra para qualquer família, a quem isso conferia, ademais, uma espécie de direito sobre a indulgência divina. Mas uma distinção como essa de ter uma filha sua numa casa de damas nobres era coisa com que ela jamais havia sonhado. Sentiu um pequeno estremecimento de orgulho quando a freira lhe disse que já consideravam Catalina como uma santinha e, meio a gracejar - pois era uma criatura alegre e bem-humorada - acrescentou que se ela não desmentisse aquele começo e se a Virgem continuasse a mostrar-lhe o seu favor, não havia razão para que Maria Pérez não se tornasse um dia a mãe de uma virgem canonizada pelo papa. Pintariam então quadros de Catalina, os quais seriam colocados nos altares, e viria gente de todas as partes para tocar-lhe nas relíquias e curar-se das suas doenças. Essa perspectiva deslumbrante bastava para inflamar a ambição de qualquer mulher. Tampouco se mostrou Maria Pérez insensível à pensão que lhe era oferecida. O trabalho mediante o qual ganhava o seu sustento era fatigante e maltratava os dedos, e seria maravilhoso não ter nada que fazer de manhã à noite senão ir à igreja e ficar sentada à janela, observando os que passavam.
- Ela não falou desse rapaz que, segundo creio ter ouvido dizer, anda fazendo a corte a Catalina? - perguntou a prioresa
depois de ouvir com satisfação o que a freira tinha para lhe comunicar.
- Não gosta dele. Diz que ele se portou muito mal quando a pobre menina sofreu o acidente. Acha-o egoísta e presunçoso.
- Seria difícil encontrar um homem que não sofresse de ambos esses defeitos - disse secamente a prioresa. - O egoísmo e a presunção fazem parte da natureza masculina.
- Também não gosta da mãe dele. Parece que, quando o marido de Maria fugiu para a América, a mãe do rapaz disse a toda a gente que era bem feito, porque ela lhe dava uma vida de cachorro.
- Não duvido nada. É a vida que a maioria das mulheres dão aos seus maridos. Não lhe terá insinuado que seria bom fazer saber a Catalina, como se isso partisse dela própria, o quanto ficaria contente se a menina resolvesse entrar no convento?
- Pareceu-me que não havia nenhum mal nisso.
- Muito pelo contrário. A senhora fez muito bem, Dona Ana, e estou satisfeita com a maneira inteligente por que conduziu este assunto.
A freira corou de prazer. Dona Beatriz estava mais habituada a ralhar do que a elogiar.


XXVII.

A prioresa deixou passar alguns dias, até se espalhar a notícia de que Catalina seria recebida no convento das carmelitas se o espírito do Senhor lhe inspirasse a decisão de
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tomar o véu. A notícia foi recebida com satisfação. Todos concordaram em que tal coisa redundaria em glória para a cidade e era da mais alta conveniência que a jovem o fizesse. Não parecia bem que a recipiente de tão prodigiosa graça se tornasse esposa de um alfaiate. A mestra de noviças desempenhou-se com êxito da sua missão pessoal. Tornou a procurar Maria Pérez e advertiu-a de que devia conduzir a filha com muito tacto, sem insistir com ela, mas comparando, quando se apresentasse ocasião, a tranquilidade e a segurança da vida monástica com os perigos, trabalhos e agruras do matrimónio. Tinha Dona Beatriz o dom de conquistar a dedicação e a lealdade dos seus subordinados, e entre estes ninguém era mais leal e dedicado do que o administrador dos bens do convento e das suas propriedades particulares. Era um fidalgo chamado Don Manuel de Becedas, parente distante da prioresa. Conhecia a generosidade desta, pois administrava as suas esmolas e admirava-lhe a capacidade. Dona Beatriz tinha grande tino para negócios e sabia levar a bom termo uma transacção difícil, com tanta habilidade como qualquer homem. Era razoável, mas depois de tomar uma resolução não havia nada que a fizesse mudar. Quando isso sucedia não havia outro remédio senão obedecer-lhe, e em tais ocasiões Don Miguel obedecia cegamente. Ela mandou-o chamar e deu-lhe ordem de proceder a uma indagação completa, tanto na cidade como em Madrid, sobre os antecedentes e as actuais circunstâncias de Dom Manuel de Valero, o soldado, averiguando ao mesmo tempo tudo que se pudesse saber sobre o jovem Diego Martínez e seu pai. Quando Don Miguel trouxe as informações desejadas, a prioresa já havia mandado Catalina para casa com um lindo
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presente e os protestos da sua sólida afeição. Catalina disse-lhe adeus com lágrimas nos olhos.
- Não esqueças, minha filha, que se algum dia tiveres um aborrecimento ou te encontrares em dificuldade, será bastante que me venhas procurar e eu farei tudo quanto estiver em mim para ajudar-te.
Dona Beatriz ouviu com atenção tudo que o administrador tinha para lhe dizer e ficou satisfeita com os resultados das suas investigações. Pediu-lhe então que buscasse um ensejo de falar com Don Manuel e, no correr da conversa, lhe dissesse casualmente que ela teria prazer em receber um homem de quem ouvira dizer tanto bem.
Após o fiasco da colegiada Don Manuel fechara-se durante três dias nos seus aposentos, sem querer ver ninguém. Era vaidoso e, portanto, sensível ao ridículo. Conhecia muito bem o espírito escarninho dos seus compatriotas e não ignorava que se estavam divertindo à sua custa. Não cria que alguém se aventurasse a atirar-lhe à cara qualquer alusão à sua desventura, pois era bom esgrimista e muito valente seria aquele que se arriscasse a ser trespassado por uma espada por causa de uma pilhéria; mas não podia impedir que falassem dele pelas costas. Quando, afinal, se aventurou a mostrar-se em público, fê-lo com um ar truculento que servia de plena advertência aos presentes. Estava furioso não só por haver feito papel de tolo mas porque pusera em perigo os seus planos. Ao vir a Castel Rodríguez, como talvez se recorde o leitor, a sua intenção era encontrar uma moça casadoira, em alguma das famílias nobres mas empobrecidas do lugar, e tinha boas razões para pensar que a sua bela fortuna o tornava um partido aceitável. Mas a humilhação pública a que se expusera diminuíam-lhe
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de muito as probabilidades de êxito. A nobreza da cidade era orgulhosa - o orgulho, nesses tempos difíceis, era tudo quanto lhe restava - e teriam recusado a mão de uma de suas filhas a um homem que era alvo da galhofa geral. Afigurava-se a Don Manuel que só lhe restava ir a Madrid, na esperança de que a lamentável história ainda não tivesse chegado à capital, e ver se não podia encontrar por lá uma noiva que lhe conviesse.
Não foi pequena a sua surpresa quando Don Miguel lhe trouxe o amável recado da prioresa; sentia-se ao mesmo tempo lisonjeado, pois nunca lhe ocorrera que ela se dignasse recebê-lo. Dona Beatriz pertencia a um murado tão superior ao seu que era como se fosse uma habitante de outro planeta. Don Manuel disse que consideraria uma honra poder apresentar os seus respeitos à prioresa em qualquer ocasião que esta achasse conveniente. Respondeu o administrador que ela recebia poucas pessoas além de seus parentes e designou uma hora em que as numerosas obrigações de Dona Beatriz a deixavam livre.
- Virei buscá-lo amanhã, senhor, se assim lhe convém, e eu mesmo o conduzirei ao convento - disse ele.
A proposta convinha perfeitamente a Don Manuel.
Foi introduzido no oratório e ficou a sós com a nobre dama. Estava ela sentada à sua mesa, escrevendo, e não se levantou para recebê-lo. Don Manuel correu os olhos em redor, procurando uma cadeira, mas como a prioresa não o convidasse para sentar-se ficou em pé, um tanto sem jeito. Embora fosse um homem audaz e descarnado, a dignidade de Dona Beatriz intimidava-o. Ela falou-lhe com muita gentileza.
- Muito tenho ouvido falar, senhor, da coragem, dedicação e capacidade com que por tantos anos tem servido el-rei, e tinha curiosidade de conhecer um compatriota que, pelos seus próprios esforços,, alcançou tão altas distinções. Esperava que o senhor tivesse tempo de me visitar, a fim de poder felicitá-lo pessoalmente pelos seus grandes feitos.
- Nunca sonhei que uma visita minha pudesse ser-lhe agradável, iminha senhora - gaguejou ele.
Mas começou a sentir-se mais à vontade. Se a filha do grande duque de Castel Rodríguez lhe dirigia cumprimentos, a sua situação não podia ser tão desesperada assim. Mas a observação seguinte de Dona Beatriz, embora acompanhada de um sorriso, deixou-o um pouco desconcertado.
- Muito tem subido, Don Manuel, desde o tempo em que corria descalço pelas ruas da sua aldeia, conduzindo os porcos de seu pai!
Ele corou, mas, não sabendo o que responder, manteve-se calado. Dona Beatriz olhou-o de alto a baixo, exactamente como se se tratasse de um lacaio a quem estivesse pensando em ajustar. Se lhe notou o embaraço, não fez caso. Tinha diante de si um homem de belo físico e aparência bastante agradável, porte aprumado e um ar de virilidade. A prioresa sabia-o com quarenta e cinco anos, mas ele tinha-os muito bem conservados. Era um pouco mais alto do que seu irmão, o bispo, que por sua vez não era pequeno, e embora tivesse os ossos bem providos de carne estava longe de ser gordo. Possuía belos olhos e, apesar de se notar no seu rosto uma certa expressão de brutalidade, isso era muito natural num homem que passara tantos anos na guerra e não causava má impressão à prioresa, que não suportava os homens molengas. Na verdade, Don Manuel era arrogante, gabolas e licencioso, mas tais defeitos eram
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comuns aos próprios parentes de Dona Beatriz e, conquanto os deplorasse na sua qualidade de religiosa, na de mulher aceitava-os como traços masculinos, com a mesma resignação com que aceitava o frio penetrante do Inverno castelhano. Em conjunto, a primeira impressão que teve de Don Manuel não foi nada desfavorável.
Pareceu reparar pela primeira vez que ele ainda continuava em pé.
- Porque permanece em pé, senhor? Não me quer fazer a bondade de sentar-se?
- É muito amável, senhora. E sentou-se.
- Eu tenho uma existência muito reclusa e os meus deveres religiosos, combinados com as obrigações atinentes ao meu cargo, trazem-me ocupadíssima. Não obstante, de quando em quando chega-me alguma notícia do mundo que se estende para fora destes muros. Ouvi dizer, por exemplo, que além do dever filial o seu objectivo ao visitar a terra que o viu nascer era escolher uma noiva entre as famílias nobres da cidade.
- Após ter servido durante tantos anos o meu rei e a minha pátria, é verdade que tenho o desejo de construir um lar e gozar os prazeres da vida doméstica, de que até hoje tenho sido privado.
- Seu desejo é louvável, senhor, e acresce ainda mais a estima que me inspira a sua reputação.
- Sou um homem forte e activo e tenho uma fortuna considerável. Quer-me parecer que as aptidões que possuo serão tão úteis na corte como mostraram ser no campo de batalha.
- E, se bem o entendo, o senhor não ignora que uma
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esposa inteligente e de família influente lhe pode prestar serviços na corte.
- Não o nego, senhora.
- Tenho uma sobrinha viúva, a marquesa de Cananera, cujo marido infelizmente a deixou sem os necessários recursos. Actualmente vive nesta casa. Eu esperava que ela resolvesse adoptar a vida religiosa, tornando-se minha sucessora quando finalmente eu depuser as minhas árduas funções, pois ela teria plenos direitos ao cargo, neta que é do nosso fundador. Mas falta-lhe a vocação, e eu convenci-me de que é preciso arranjar-lhe um partido conveniente.
Don Manuel pôs-se alerta. Era um homem astuto: a possibilidade de uma aliança com tão grande família como a dos duques de Castel Rodríguez estava tão fora das suas esperanças que não pôde deixar de suspeitar alguma trapaça. Respondeu com prudência.
- Eu não pretendia casar com uma viúva, mas sim com uma jovem a quem pudesse amoldar de acordo com o meu desejo.
- A marquesa tem vinte e quatro anos, idade muito apropriada para um homem da sua - replicou Dona Beatriz com certa aspereza. - É bastante bonita e, como teve um filho, que morreu do mesmo mal que arrebatou o pai, não é certamente estéril. O facto de eu a ter escolhido para me suceder após a minha morte prova que faço alta opinião das suas capacidades. Escuso de salientar que um Don Manuel de Valero nunca poderia aspirar a um casamento com a sobrinha do duque de Castel Rodríguez. Eu teria, mesmo, de empregar todos os meus poderes de persuasão para induzir meu irmão a consentir nesse casamento.
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Don Manuel estivera a reflectir com rapidez. Escudado na influência dessa poderosa família, quem podia prever as alturas a que ele subiria? Tal aliança seria um triunfo sobre os imbecis que pretendiam ridicularizá-lo.
- O marquês de Catranera morreu sem deixar herdeiros para o título. Não seria impossível convencer el-rei a que o concedesse ao senhor. Seria muito preferível a esse miserável título italiano que possui actualmente.
Isto decidiu a questão. Embora a marquesa fosse velha, dez anos mais velha do que a noiva almejada por ele, e talvez fosse feia, as vantagens do casamento eram tão grandes que não havia hesitação possível.
- Não sei como mostrar a minha gratidão a Vossa Reverência pela honra que tenciona conferir-me.
- Eu lhe direi como - volveu ela calmamente. - Para dizer a verdade, só pretendo levar avante o projecto se o senhor der provas eficazes da sua gratidão.
Don Manuel abafou um suspiro de alívio. Era demasiado astuto para não perceber que essa inesperada proposta se baseava em motivos mais fortes do que a sua simples fortuna e reputação militar. Como tinha um espírito grosseiro, ocorreu-lhe logo a ideia de que a marquesa estivesse grávida e o houvessem escolhido para perfilhar um fruto de amores ilegítimos. Em tal caso, não tinha a certeza se aceitaria ou não o convite; esperou, pois, com alguma ansiedade que Dona Beatriz prosseguisse.
- Desejo que o senhor exerça a sua influência junto ao arquiduque Alberto, em favor de um moço desta cidade. Não teria necessidade de recorrer ao senhor se não fosse a infortunada circunstância de meu irmão ter tido uma violenta disputa
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com ele, estando por isso incapacitado de me ajudar. Ouvi dizer que o senhor é muito estimado pelo arquiduque.
- Ele tem a bondade de fazer boa opinião das minhas capacidades.
Devemos explicar que o arquiduque Alberto era nesse tempo o comandante supremo das forças espanholas nos Países Baixos.
- Seria muito proveitoso para esse moço entrar no serviço do arquiduque. É forte, corajoso, e daria sem dúvida alguma um bom soldado.
Don Manuel sentiu-se grandemente aliviado. O arquiduque devia-lhe toda a sorte de favores. Teria prazer, sem dúvida, em prestar-lhe serviço aceitando nas suas forças qualquer recomendado seu.
- Creio que não seria difícil conseguir o que Vossa Reverência deseja. Esse moço, naturalmente, é de boa família.
- É um cristão-velho de sangue limpo.
Isso, naturalmente, significava apenas que ele não tinha qualquer mácula de sangue judeu ou mouro. Don Manuel notou que a resposta não correspondia à sua pergunta.
- E como se chama ele, minha senhora?
- Diego Martínez.
- O filho do alfaiate? Nesse caso, minha senhora, é impossível satisfazer o seu pedido. Os soldados que servem no exército do arquiduque são cavalheiros, e eu não podia fazer a Sua Alteza a afronta de solicitar O que a senhora deseja.
- Já previa essa dificuldade. Tenho uma pequena propriedade a certa distância de Castél Rodríguez, propriedade que estou disposta a doar ao moço, e por intermédio de meu irmão posso obter que lhe seja conferida carta de nobreza.
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A pessoa que o senhor recomendaria ao arquiduque não seria o filho do alfaiate, mas o fidalgo Don Diego de Quintamilla.
- Não é possível, senhora prioresa.
- Nesse caso, não há mais que dizer e é inútil continuarmos a discutir o assunto ou aquele a que nos referimos anteriormente.
Don Manuel estava aborrecidíssimo. O casamento proposto pela prioresa proporcionar-Lhe-ia a posição que almejava para satisfazer as suas ambições, e suspeitava que se recusasse aceder-lhe ao pedido faria uma inimiga perigosa. Por outro lado, as consequências poderiam ser funestas para ele se viessem a descobrir a sua participação num plano que o arquiduque bem poderia considerar como um insulto pessoal. Dona Beatriz notou-lhe a perturbação.
- Que tolice, Don Manuel! Don Diego será um homem de posses e, creia-me, a sua propriedade suportará favoravelmente a comparação com as sáfaras terras que possui seu pai, Don Juan.
Don Manuel era um fanfarrão. Encolheu-se sob essa chicotada da língua de Dona Beatriz. Ela tinha o poder de arruiná-lo e não hesitaria em o fazer.
- Posso saber por que motivo Vossa Reverência se interessa tanto por esse rapaz? - perguntou em voz hesitante.
- A minha família sempre teve na conta de um privilégio, não menos que um dever, dispensar a sua protecção às pessoas merecedoras da nossa cidade.
Esta resposta cautelosa restituiu a confiança ao soldado, que sorriu. O olhar que ele lançou à prioresa, porém, era astuto.
- Ele é o namorado da Catalina Pérez, não é?
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Dona Beatriz sentiu-se insultada pela pergunta, pelo sorriso e pela astúcia do olhar de Don Manuel. Teve alguma dificuldade em conter a sua indignação.
- Ele tem importunado a pobre menina com as suas atenções.
- E é por isso que a senhora o quer mandar para os Países Baixos?
A prioresa reflectiu um instante. Com muita probabilidade ele estava informado dos seus projectos;, e era evidente que o homem não tinha nenhum tacto. Há muitas coisas que se podem compreender, mas que não convém expressar verbalmente. Respondeu-lhe, todavia, com solene dignidade.
- Ela é muito moça e não sabe o que quer. Tem uma admirável disposição para a vida religiosa e, por muitos motivos, é altamente desejável que a adopte. Não tenho dúvidas que, se não fosse a presença desse rapaz, ela não tardaria a compreender a sensatez de um acto que me proporcionaria grande satisfação, às pessoas mais importantes da cidade e à sua própria mãe.
- Mas, minha senhora, não acha muito mais prático e menos dispendioso dar cabo logo do rapaz? Seria facílimo mandá-lo degolar numa noite escura.
- Isso seria um pecado mortal, senhor, e causa-me espanto ouvir-lhe propor semelhante coisa. Provocaria escândalo na cidade, daria pasto a desagradáveis mexericos, e além disso não há a certeza de que produzisse o resultado desejado.
- Então que deseja que eu faça, minha senhora?
Ela considerou com ar pensativo. Ao menos por enquanto, parecia-lhe indispensável ao êxito do seu plano que nem ela nem pessoa alguma com ela relacionada se mostrasse
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interessada em tal coisa. Tinha de confiar a alguém mais a sua execução e não estava segura de que esse homem possuísse a necessária inteligência ou subtileza. Não havia outro remédio senão arriscar-se, e a prioresa respondeu sem mais vacilações.
- Mande fazer um traje.
Dom Manuel ficou muito surpreendido com isto,. Julgando que ela gracejasse, esperou que um sorriso lhe encrespasse os lábios resolutos. Mas a expressão do rosto da prioresa continuou fria e austera. Ela explicou:
- Mande chamar o alfaiate para lhe tomar as medidas e trazer amostras de pano. Ele ficará lisonjeado e impressionado com isso. O senhor deve procurar um ensejo de lhe falar no filho e dizer-lhe que uma pessoa influente da cidade teve boas referências dele e deseja ajudá-lo. Depois, exigindo-lhe sigilo, revele o plano que arquitectámos para encaminhar o rapaz. Peça-lhe que mande Diego falar consigo e exponha-lhe a ideia. Tenho a certeza de que ele se considera nascido para coisa melhor do que passar a vida sentado num banco de alfaiate, e sem dúvida alguma aceitará jubilosamente.
- Será um grande asno se não o fizer.
- Procure-me quando tiver alguma coisa para me comunicar. Confio no seu tacto e discrição.
- Não tenha cuidado, minha senhora. Em dois dias, no máximo, estarei em condições de a informar do êxito satisfatório do assunto.
- Pode ficar certo de que nesse caso eu desempenharei a minha parte a seu inteiro contento.

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XXVIII.

Don Manuel mandou chamar o alfaiate. Sabia ser muito amável quando se dispunha a isso e, uma vez tomadas as medidas e examinadas várias amostras de tecidos, .tratou de agradar o velho Martínez. Como naturais da mesma cidade, tinham ambos certos interesses comuns e Don Manuel falou-lhe com bom humor das mudanças que se haviam operado nela durante a sua ausência. O alfaiate era um homenzinho ressequido, de nariz pontiagudo e expressão rabugenta. Mas era loquaz. Encontrando em Don Manuel um ouvinte bem disposto, alongou-se sobre a adversidade dos tempos. As guerras e a pesada tributação haviam empobrecido a todos, e cavalheiros da mais alta categoria usavam as suas roupas até ficarem no fio. Já não era tão fácil ganhar a vida como trinta anos antes, quando as caravelas chegavam regularmente da América com o seu carregamento de ouro. Algumas perguntas bem encaixadas levaram-no a confessar que estava preocupado com o filho. O justo seria que ele seguisse as pegadas do pai, mas o rapaz tinha ideias néscias e fora preciso recorrer à autoridade paterna para o forçar a entrar no ofício.
- E agora, se dão licença, anda querendo casar, apesar de ter apenas dezoito anos!
- Talvez assente o juízo.
- Foi a única razão pela qual eu consenti.
- Não duvido que o dote da moça lhe seja muito proveitoso - observou Don Manuel com malícia.
- Ela não tem dinheiro. Andam dizendo por aí que algumas senhoras estão dispostas a oferecer-lhe um dote, mas quem sabe o que resultará disso?
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O alfaiate contou então a Don Manuel quem era a jovem e como ele acabara por ceder às insistências do filho. Disso tudo, naturalmente, Don Manuel já estava inteirado.
- Eu tinha outro partido em vista para ele, mas o pai da moça não quis aceitar as minhas condições, aliás muito razoáveis, de modo que consenti no casamento do rapaz com Catalina. Depois de tudo que aconteceu e da nomeada que ela ganhou creio que me trará uma freguesia muito distinta. Minha mulher é contra isso. Pergunta-me de que serve fazer roupa para cavalheiros que não podem pagá-la.
- Uma observação muito sensata. Mas, se os negócios andam tão maus, por que razão não deixa que ele se faça soldado?
- A vida de soldado é dura e mal paga. Na oficina ele ainda pode ganhar o suficiente para ir vivendo.
- Ouça, amigo - volveu Don Manuel com uma franqueza que encantou o pobre alfaiate - , você sabe que quando eu deixei esta cidade era pobre como um rato de igreja. Agora sou Cavalheiro de Calatrava e um homem rico.
- Ah! mas Vossa Excelência era fidalgo e tinha amigos para ajudá-lo.
- Fidalgo, sim, mas os únicos amigos com que contava eram a minha mocidade, a minha força, a minha coragem e a minha inteligência.
O alfaiate sacudiu os ombros, descoroçoado. Don Manuel olhava-o com benignidade, de cima para baixo.
- Só tenho ouvido dizer bem do seu filho, e se o que dizem é verdade ele deve ser talhado para coisas mais elevadas do que você supõe. Eu também fui pobre; somos conterrâneos;
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teria prazer em prestar uma ajuda ao rapaz se tivesse a certeza de que você aprovaria.
- Não o compreendo bem, senhor.
- O arquiduque Alberto é meu amigo e fará tudo que eu lhe pedir. Se eu lhe recomendasse um moço, ele pô-lo-ia no seu regimento particular e marcá-lo-ia para futuras promoções.
O alfaiate olhava para ele, boquiaberto.
- Naturalmente, seria preciso provê-lo de certas vantagens. Tenho uma pequena propriedade não longe daqui, cujo título de posse eu lhe passaria-, e com a minha influência em Madrid posso conseguir que lhe dêem carta de nobreza. Seu filho entrará para o serviço do arquiduque como Don Diego de Quintanilla.
Como a prioresa lhe exprimira o desejo de que o seu nome não fosse mencionado, Don Manuel não via por que não arrogar-se o crédito de uma generosa acção. O alfaiate ficou tão sucumbido que o rosto se lhe contorceu todo e se pôs a chorar. Don Manuel bateu-lhe bondosamente no ombro.
- Ora, ora, isso não é motivo para ficar tão nervoso. Vá à sua casa, não diga uma palavra a ninguém e mande o seu filho falar comigo. Pode-lhe dizer que esqueceu a amostra de algum pano que talvez me agrade.
Dentro em pouco apareceu o rapaz. Don Manuel notou, aliviado, que era um jovem de bela presença. Bem vestido, passaria sem dificuldade por um cavalheiro. Não era tímido nem atrevido. Tinha um ar de segurança que levava a crer fosse capaz de se fazer respeitar em qualquer companhia. Já predisposto em seu favor, Don Manuel entabulou, após algumas frases preliminares, o assunto para que o mandara chamar.
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Conversaram durante uma hora, ao cabo da qual se separaram e Don Manuel foi ver a prioresa.
- Obedeci às suas ordens sem perda de tempo, senhora. Falei tanto com o rapaz como com o pai.
- Realmente, o senhor houve-se com muita presteza.
- Sou soldado, senhora. O pai está inteiramente de acordo com o nosso plano. Sente-se mesmo confuso com o ensejo que a generosidade de um benfeitor se dispõe a oferecer ao seu filho.
- Ele seria um asno se recebesse de outro modo a proposta.
Don Manuel, inquieto, transferiu de um pé para o outro o peso do carpo.
- Acho melhor relatar a Vossa Reverência, palavra por palavra, o que se passou entre mim e o rapaz.
A prioresa deitou-lhe um rápido olhar inquiridor e franziu o sobrolho.
- Prossiga.
- É um rapaz muito apresentável e a minha primeira impressão foi boa.
- As suas impressões não me interessam.
- Não tardei a descobrir que ele abomina e despreza o ofício em que o pôs o pai. Só o aceitou porque não tinha outro remédio.
- Isso já eu sabia.
- Eu disse-lhe que não compreendia como um rapaz disposto e inteligente, dotado de todas as qualidades necessárias para o êxito no mundo, pudesse resignar-se a desperdiçar a sua vida em tão humilde ocupação. Ele respondeu que tinha pensado muitas vezes em fugir para ir correr mundo,
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mas o que o impedia era o facto de não ter um vintém no bolso. Expliquei-lhe então que el-rei necessita de soldados e que essa carreira pode facilmente conferir posição e riqueza a um homem de coragem e expediente. Depois revelei-lhe, pouco a pouco, o que se estava projectando para permitir que ele realizasse a sua natural e louvável ambição.
- Muito bem.
- Ele acolheu a proposta com mais calma do que eu esperava, mas era evidente que se sentia tentado.
- Naturalmente. Aceitou, então?
Don Manuel hesitou um breve instante, pois sabia que Dona Beatriz não ficaria satisfeita com a sua resposta.
- Condicionalmente - respondeu.
- Que quer dizer com isso?
- Ele disse que queria casar com a namorada, mas dentro de um ano, quando ela tiver tido um filho, estará disposto a embarcar para os Países Baixos.
A prioresa enraiveceu-se. Que utilidade podia ter para ela uma mulher casada, com um bebé chorão? A virgindade de Catalina, sua virgindade perpétua, era essencial ao plano.
- Você deitou tudo a perder, seu imbecil - gritou ela.
Don Manuel fez-se rubro de cólera.
- Não é culpa minha se esse idiota está baboso pela rapariga!
- Não teve o bom senso de lhe fazer ver que era loucura recusar semelhante oportunidade?
- Tive, sim senhora. Disse-lhe que, nesta vida, quando se tem uma ocasião de melhorar de sorte, é preciso segurá-la depressa, porque se a deixamos escapar talvez nunca mais volte. Disse que era absurdo, na idade dele, arranjar uma
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esposa para se atrapalhar, e que como oficial e cavalheiro ele podia conseguir coisa muito melhor do que a filha de uma costureira sem vintém. E se quisesse uma pequena para se divertir, encontraria nos Países Baixos muitas delas, mais que dispostas a dispensar os seus favores a um moço bem-parecido, e até algumas prontas a mostrar a sua gratidão de maneira concreta.
- E que respondeu ele a isso?
- Disse que amava a sua namorada.
- Não admira que o mundo esteja perdido e o país vá por água abaixo, quando é governado pelos homens, e os homens não têm um pingo de bom senso.
Don Manuel não achou resposta para isso e, portanto, ficou calado. A prioresa considerou-o com frio desdém.
- O senhor fracassou, Don Manuel, e não vejo nenhuma utilidade em continuarmos as nossas relações.
Ele tinha suficiente sagacidade para perceber o significado destas palavras: devia renunciar a toda a esperança de casar com a marquesa viúva. Não estava disposto a desistir sem luta de uma aliança tão vantajosa.
- Vossa Reverência desanima com muita facilidade. O pai do rapaz é por nós. Esse casamento com Catalina não é muito do seu agrado e não tenho dúvida de que nos seja possível levá-lo a retirar o seu consentimento. Pode ficar certa de que ele envidará todos os esforços para convencer o rapaz a aceitar a nossa proposta.
Dona Beatriz fez um gesto de impaciência.
- O senhor conhece pouco a humanidade. A oposição paterna jamais conseguiu diminuir a afeição dos namorados.
Não é com tal disposição de espírito que eu pretendo acolher a moça nesta casa. Se o rapaz tivesse concordado na minha proposta ela veria o pouco que vale o amor de um homem em comparação com o amor divino. Sentir-se-ia infeliz, mas eu não lamentaria o facto se ele lhe ensinasse onde se encontra a única felicidade verdadeira.
- Existem vários meios de nos livrarmos de alguém que nos incomoda. Tenho homens de confiança. Pode-se agarrar o rapaz uma noite,, levá-lo para um porto de mar e embarcá-lo num navio. A mocidade é volúvel. Depois que estiver nos Países Baixos, rodeado de coisas novas, de aventuras, com a posição de um cavalheiro e as brilhantes perspectivas que lhe proporcionará o favor do arquiduque, ele há-de esquecer esse amor e não tardará a dar graças ao Céu por o ter livrado de semelhante estopada.
A prioresa não respondeu logo. Era uma mulher de consciência robusta e não se ofendeu com o que se achava implicado no plano de Don Manuel. Era coisa comum embarcar para a América, os filhos rebeldes, assim como as filhas que negavam consentimento aos desígnios matrimoniais de seus genitores eram postas num convento até que se tornassem mais razoáveis. Dona Beatriz estava plenamente convencida de que separar Diego de Catalina redundaria em proveito de ambos.
- Vossa Reverência pode estar certa de que o rapaz falará a Catalina da oferta que lhe foi feita.
- Porquê?
- Para se tornar mais precioso aos seus olhos, mostrando as vantagens de que está disposto a abrir mão por amor a ela.
- O senhor é mais arguto do que eu supunha.
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- E quando derem pela falta dele, uma dessas manhãs, Catalina suporá naturalmente que ele não pôde resistir à tentação.
- Isso é bastante provável. Mas também temos de levar em conta o pai. Não nos conviria nada que ele fosse queixar-se às autoridades.
- A fim de que ele não o faça, tenciono fazê-lo participar do segredo. Ele tem ambição pelo filho. Concordará sem hesitar no nosso plano. Saberá manter silêncio, e quando derem pela falta do rapaz já ele estará em segurança, a bordo de um navio.
A prioresa suspirou.
- O plano não me agrada:, mas é evidente que os moços são desmiolados e muitas vezes é preferível que o seu destino seja decidido por cabeças mais velhas e mais prudentes. Mas eu desejo uma garantia de que não lhe farão nenhuma violência desnecessária.
- Posso prometer a Vossa Reverência que ninguém lhe tocará num fio de cabelo. Vou fazê-lo acompanhar por um homem de confiança, para ter a certeza de que ele será bem tratado.
- Está no seu interesse fazê-lo - respondeu ela com severidade.
- Bem o sei, minha senhora. Pode deixar tudo confiadamente nas minhas mãos.
- Quando pretende pôr o plano em execução?
- Logo que tenha concluído os necessários preparativos.
Dona Beatriz guardou silêncio por alguns momentos. O desaparecimento de Diego provocaria comentários e não era improvável que estes chegassem aos ouvidos do bispo. Ela já
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tivera provas da perspicácia de Don Blasco. Este bem podia estabelecer uma conexão entre os factos e chegar à conclusão de que ela estava envolvida no assunto. Lamentou amargamente que, no decurso da sua conversa com ele, se tivesse deixado levar pela cólera a dizer coisas imprudentes. Não sabia ao certo o que o bispo poderia fazer, mas era um homem decidido e poderoso; não tinha medo dele, mas era bastante sagaz para perceber que seria preferível evitar uma ruptura franca, a qual, além de causar escândalo, também podia frustrar-lhe os desígnios.
- Quando é que seu irmão nos vai deixar, Don Manuel? A pergunta surpreendeu-o.
- Não sei, Reverenda Madre, mas se isso lhe interessa posso informar-me.
- Não desejo que se faça nada antes da sua partida.
- Porquê?
- Porque assim me apraz. Contente-se em saber que tal é o meu desejo.
- Far-se-á a sua vontade, senhora. O rapaz será raptado na noite do dia em que meu irmão deixar a cidade.
- Isso convém-me às maravilhas, Don Manuel - tornou ela amavelmente.
Deu-lhe a mão a beijar e ele despediu-se.


XXIX.

Mas, embora lhe assegurasse a razão que estava procedendo no melhor dos intuitos e era plenamente justificada no que fazia. Dona Beatriz não lograva acalmar a singular inquietação
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que se apossara dela. Tão forte era esse sentimento que por uma ou duas vezes esteve para dizer a Don Manuel que abandonasse o plano. Mas censurava a si mesma a sua fraqueza. Havia muita coisa em jogo. Andava nervosa, todavia, e as suas freiras notavam-lhe uma irritabilidade desacostumada. Uma bela manhã a subprioresa informou-a de que o bispo se tinha ido embora. A fim de não chamar atenção ele saíra pela calada ao romper do dia, com os seus secretários e criados. Uma hora depois Don Manuel mandava-lhe um recado dizendo que os preparativos estavam completos e o plano seria levado a efeito naquela noite. Isso resolvia tudo. Ela fez um exame de consciência e viu que as suas intenções eram irrepreensíveis. Pela tardinha vieram-lhe dizer que Catalina pedia permissão para lhe falar. Conduziram a jovem ao oratório. A prioresa notou, consternada, que ela estava presa de violenta agitação. Adivinhou que qualquer coisa não correra bem.
- Que foi, minha filha?
- Vossa Reverência disse-me que viesse vê-la se algum dia me visse em dificuldade.
Desfez-se em pranto. Dona Beatriz pediu-lhe que se acalmasse e lhe contasse o que tinha acontecido. Entre soluços, a jovem disse-lhe que um cavalheiro de importância na cidade oferecera mandar Diego para a guerra, com a promessa de lhe doar uma propriedade e conseguir para ele o título de Don. Diego recusara por amor a ela e, em consequência disso, tivera violenta disputa com o pai. Este havia acabado por dizer que, se ele não aceitasse a magnífica oferta como o faria qualquer homem sensato,, iria por mal ou por bem. Acrescentara que retirava a sua anuência ao casamento com Catalina. Dona Beatriz franziu o sobrolho ao ouvir repetir esta ameaça.
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O homem praticara uma tolice em fazê-la. Se Diego desaparecesse agora, a moça saberia que ele não fora embora de sua livre vontade. A prioresa havia contado com o efeito que teria sobre ela o pensar que o namorado sucumbira à tentação, abandonando-a.
- É uma boa fortuna com que ele nunca poderia ter sonhado - disse Dona Beatriz. - É um ensejo que nenhum moço hesitaria em aproveitar. Os homens são vaidosos e poltrões, e embora procedam mal fazem questão de que se julgue bem deles. Como podes saber que ele não te está enganando quando fala em ser levado à força, para que penses que ele não te abandonou por sua culpa?
- Como posso saber? Tenho a certeza disso porque ele ama-me. Ah! A senhora é uma santa,, não sabe o que é o amor. Se me tirarem o meu Diego eu morrerei.
- Até hoje ninguém morreu de amor - replicou Dona Beatriz com selvagem aspereza.
Catalina caiu de joelhos e juntou as mãos numa súplica apaixonada.
- Oh! Madre, Reverenda Madre, tenha piedade de nós. Salve-o! Não permita que o levem embora! Eu não posso viver sem ele. Oh! Minha senhora, se soubesse a angústia que eu sofria quando pensava tê-lo perdido para sempre e como chorei noite após noite, até parecer-me que ia ficar cega de tanto derramar lágrimas! Por que razão me livrou a Santíssima Virgem da minha enfermidade, se não foi para que eu me tornasse mais uma vez capaz de ser mulher dele? Ela apiedou-se de mim, e a senhora nada fará para me ajudar?
A prioresa apartou com força os braços da sua cadeira, mas não respondeu.
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- Durante todo esse tempo eu suspirei por ele. Tinha o coração partido. Não sou mais do que uma moça pobre e ignorante, mas amo-o de todo o coração.
- Ele não é ninguém. É apenas um rapaz como os outros - disse Dona Beatriz numa voz rouca que semelhava o grasnar de um corvo.
- Ah! Reverenda Madre, a senhora o diz porque nunca conheceu as aflições e as alegrias do amor. Eu quero sentir os braços em volta de mim, quero sentir o calor dos seus lábios sobre os meus, quero sentir a carícia das suas mãos no meu corpo nu. Quero que ele me possua como um amante possui a mulher amada. Quero que a sua semente me penetre nas entranhas e gere nelas um filho. Quero dar o meu peito a mamar ao seu filho!
Pôs uma mão sobre cada seio. Irradiava sensualidade, numa chama tão impetuosa que Dona Beatriz recuou diante dela. Dir-se-ia o calor de uma fornalha. Ergueu as mãos como para defender-se. Olhou para o rosto da jovem e estremeceu. Via-o singularmente demudado, pálido, e dir-se-ia que as feições estavam entumescidas. Era uma máscara de desejo. Catalina ofegava, ansiosa pelo macho. Parecia uma possessa. Havia nela qualquer coisa que não era bem humano, que era um tanto horrível, mesmo, mas tão poderoso que infundia terror. Era o sexo, nada) -mais que o sexo, violento e irresistível, o sexo na sua medonha mudez. De súbito o rosto da prioresa contorceu-se numa careta de insuportável angústia e as lágrimas entraram a correr-lhe pelas faces. Catalina soltou um grito de terror.
- Oh! Madre, que foi que eu fiz? Perdoe-me! Perdoe-me! Agarrou-se aos joelhos da prioresa. Assombravam-na essas
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mostras de emoção por parte de alguém que ela sempre tinha visto calma, séria e digna. Estava confusa. Não sabia o que fazer. Pegou nas suas aquelas duas mãos esguias e beijou-as.
- Porque chora. Reverenda Madre? Que foi que eu fiz? Dona Beatriz retirou as suas mãos e cerrou os punhos no
esforço de se conter.
- Sou uma mulher má e infeliz - gemeu ela. Inclinou-se para trás na cadeira e escondeu o rosto nas
mãos. As recordações de tempos longínquos tumultuavam no seu espírito e ela rangia os dentes para conter os soluços que lhe sacudiam a garganta. Aquela tolinha dissera que ela nunca havia conhecido o amor! Como era cruel que, depois de tantos anos, essa velha ferida sangrasse ainda;! Teve a sombra de um riso amargo ao sentir a ironia de haver devorado o seu coração por um rapaz que hoje era um sacerdote combalido e atormentado. Enxugou com um gesto vivo as lágrimas que lhe turvavam a vista e, tomando nas mãos o rosto de Catalina, contemplou-a como se fosse uma desconhecida. Já não havia vestígios da carnalidade que por um momento lhe desfigurara de tão hedionda maneira as lindas feições. Era toda ternura,, solicitude e pureza, Dona Beatriz embeveceu-se nessa contemplação. Tão jovem, tão bela e tão apaixonada! Como podia ela partir aquele coraçãozinho como fora partido o seu? Ela, que pensava ter vencido todas as fraquezas humanas, sentia-se débil, lamentavelmente débil, e contudo havia nesse sentimento qualquer coisa estranha, que exaltava, qualquer coisa que lhe aquecia o coração e ao mesmo tempo - oh tão deliciosamente! - lhe paralisava a vontade. Era como se no âmago do seu peito se houvesse desatado um nó, no seu peito que nunca sentira os lábios macios de uma criancinha à procura
da teta,
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e regozijava-se por se ver livre daquela dor que não a deixava em paz. Inclinou-se e beijou a boca vermelha da moça.
- Não tenhas receio, minha querida. Tu casarás com o homem a quem amas.
Catalina lançou um grito de alegria e derramou-se em volúveis expressões de gratidão, mas a prioresa ordenou-lhe rispidamente que se calasse. A situação era delicada e fazia-se necessário reflectir. Dentro de poucas horas iriam raptar Diego. É verdade que podia mandar chamar Don Manuel e dizer-lhe que tinha mudado de ideias, cortando cerce os seus protestos, mas isso não resolveria as dificuldades que ela própria havia criado para si. A semente fora bem semeada. Difundira-se pela cidade a opinião de que era- dever de Catalina tornar-se freira. Dona Beatriz bem conhecia a apaixonada devoção que aquele povo tinha pela fé: não só ficariam decepcionados se a moça não fizesse o que se esperava dela, mas considerariam como uma indignidade, quase como um insulto à religião, o casar-se ela com um alfaiate após ter recebido tão insigne graça. Os mundanos ririam e fariam gracejos indecentes; os piedosos ficariam indignados. No momento, Catalina era olhada com admiração e mesmo com respeito, mas seria fácil passar desses sentimentos à indignação e ao desprezo. A prioresa conhecia a índole violenta dos seus compatriotas; eram capazes de incendiar a casa em que ela vivia, eram capazes de apedrejá-la como uma devassa perdida e cravar um punhal nas costas de Diego. Só havia uma coisa que fazer, e cumpria fazê-la depressa.
- Vocês vão deixar a cidade, tu e esse rapaz, e tem de ser esta noite. Vai chamar Domingo, teu tio, e volta cá depressa com ele.
Inflamada de curiosidade, a moça quis saber o que a prioresa tinha em mente, mas Dona Beatriz replicou-lhe em tom peremptório que se deixasse de perguntas e fizesse o que lhe era mandado.
Quando Catalina tornou a aparecer com o tio, daí a poucos minutos, a prioresa mandou-a descer e esperar na sua cela, a fim de poder falar a sós com ele. Informou-o daqueles factos que lhe pareceu necessário dar-lhe a conhecer, deu-lhe certas instruções e, com estas, um bilhete que já tinha pronto, dirigido ao seu administrador. Disse-lhe então que procurasse Diego, comunicasse a este a decisão a que tinham chegado e tratasse de fazer com que ele seguisse as instruções recebidas. Após despedi-lo, chamou Catalina.
- Passarás o serão comigo, minha filha. À meia-noite far-te-ei sair por uma porta dos muros da cidade; encontrarás Domingo com um cavalo que mandei o meu administrador fornecer-lhe. Ele conduzir-te-á a um lugar combinado por nós, onde Diego estará à tua espera. Então Diego tomará o lugar de Domingo e vocês seguirão para o sul até alcançarem Sevilha. Dar-te-ei uma carta para uns amigos que tenho lá e esses amigos encontrarão um trabalho decente para ti e para ele.
- Oh! Reverenda Madre! - exclamou Catalina, emocionadíssima. - Como poderei mostrar a minha gratidão pelo que está fazendo?
- Eu to direi - respondeu a prioresa com certa severidade, - Andem depressa e não se demorem na estrada sob pretexto algum. Vocês terão de haver-se com homens prontos para tudo e é possível que eles os persigam. A castidade é a glória de uma mulher e tu deves conservá-la até que a igreja tenha abençoado essa união. As relações carnais entre pessoas
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que não estão ligadas pelo sacramento do matrimónio são um pecado mortal. Procura um padre na primeira aldeia a que vocês chegarem depois do amanhecer e pede-lhe que te una a Diego em matrimónio. Estás vendo o que eu tenho aqui? Catalina olhou e viu um anel simples de ouro.
- É o anel que eu destinava para a cerimónia da tua consagração. Será o teu anel de noivado.
Colocou-o na palma da mão de Catalina, cujo coração se pôs a bater doidamente. A prioresa passou então a instruí-la sobre os deveres e responsabilidades da vida conjugal. Ela escutou-a com a devida gravidade, mas um tanto distraída, pois estava toda emocionada e tinha o espírito mais ocupado com as delícias da mesma. Rezaram juntas. As horas passaram-se lentamente. Por fim o relógio do convento deu meia-noite.
- Está na hora - disse Dona Beatriz. Tirou um saquinho de uma. gaveta da secretária. - Aqui tens algumas moedas de ouro. Guarda o saquinho num lugar onde não possas perdê-lo e não deixes que Diego lhe ponha a mão em cima. Os homens não conhecem o valor do dinheiro e quando o têm gastam-no em tolices.
Voltando pudkamemte as costas, Catalina levantou a saia, pôs o saquinho dentro da meia e atou os cordões em volta da perna.
A prioresa acendeu uma lanterna e disse à moça que a seguisse. Percorreram de mansinho os silenciosos corredores, até chegarem ao jardim. Depois, para que alguma freira desperta não ficasse intrigada ao notar uma luz, ela apagou a lanterna e, tomando a mão de Catalina, conduziu-a pelas ruas que separavam os canteiros. Chegaram à portinha que a prioresa mandara abrir nos muros da cidade para poder deixá-la
sem ser observada, em caso de necessidade, ou para receber visitas que, por uma razão ou outra, tivessem de ser secretas. Só ela possuía a chave. Abriu a portinha. Domingo, a cavalo, esperava à sombra do muro, pois havia lua e a noite estava clara.
- Agora, vai - disse a prioresa. - Deus te abençoe, minha filha., e lembra-te de mim nas tuas orações, pois sou uma pecadora e necessito delas.
Catalina esgueirou-se pela porta, que a prioresa tornou a fechar à chave assim que ela saiu. Pôs-se à escuta, até ouvir o som dos cascos do cavalo. Eles destacaram-se muito sonoros no silêncio da noite. Com passos vagarosos, Dona Beatriz voltou para o edifício do convento. Enxergava o caminho com dificuldade, pois estava- quase cegada pelas lágrimas. Voltou ao seu oratório e passou o resto da noite em orações.


XXX.

Domingo deu a mão a Catalina e ajudou-a a subir para a garupa. A noite era serena e tépida, mas lá no alto soprava vento e as nuvenzinhas viajavam céleres através do céu, escuras mas orladas de prata pelo luar brilhante. Os campos estavam desertos. Dir-se-ia que eles cavalgavam num mundo do qual eram os únicos habitantes.
- Tio Domingo?
- Que é?
- Vou casar-me.
- Não te esqueças de fazê-lo, menina. É um sacramento
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necessário à salvação, mas do qual os homens geralmente hesitam em servir-se.
Passaram por uma povoação adormecida, além da qual havia um bosquete de árvores. Ao chegarem a estas, um vulto adiantou-se das sombras. Catalina deixou-se deslizar do lombo do cavalo e lançou-se nos braços de Diego. Domingo apeou-se.
- Vamos, vamos! - disse ele. - Vocês terão tempo de sobra para essas coisas mais tarde. Montem a cavalo os dois e ponham-se ao largo. Nos alforjes há comida e uma garrafa de vinho.
Beijou Catalina e Diego, assistiu-lhes à partida e, como as portas da cidade estivessem fechadas e ele não pudesse entrar senão depois do amanhecer, instalou-se tão confortavelmente como pôde debaixo de uma árvore. Tomara a precaução de levar vinho consigo e encostou a garrafa aos lábios. O lugar era ideal para compor versos e ele preparou-se para aguardar o dia em colóquio com a Musa. Mas ainda não chegara a resolver se devia dedicar um soneto à Lua ou tecer uma ode ao amor triunfante quando mergulhou num sono profundo e não acordou senão ao raiar do sol.
Os dois amantes cavalgaram durante uma hora. Catalina falava pelos cotovelos. Parecia que tinha um milhar de coisas para dizer, muito que contar a Diego, planos que comumicar-lhe, e como tinha um lindo jeito de contar as coisas dava àquilo tudo uma aparência muito encantadora e divertida. Diego sentia-se tão feliz que estava disposto a rir de tudo quanto ela dissesse. E Catalina nadava em êxtase. Não podia imaginar nada mais celestial do que andar a cavalo de noite, no campo aberto, com os braços em volta do seu amado.
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Tinha de fazê-lo, naturalmente, pois essa era a única maneira de segurar-se, mas achava-a muito agradável.
- Eu poderia continuar assim até ao fim do mundo - disse ela.
- Estou com fome - respondeu Diego. - Vamos parar aqui para ver o que há nos alforjes.
Estavam passando por um bosque e ele puxou as rédeas. Catalina percebia muito bem que o seu apetite, no momento, não era de comer e beber, e sentiu um arrepio de desejo percorrer-lhe o corpo. Não eram necessárias,, porém,, as advertências da prioresa nem as de Domingo para lhe fazer ver a imprudência de permitir que um homem fizesse com ela o que quisesse enquanto a união não fosse santificada pela Igreja. Sabia que os homens têm uma aversão instintiva ao casamento e conhecia casos de moças que haviam cedido aos desejos dos seus namorados e estes depois recusaram-se a cumprir a sua promessa. Não restava a elas, então, outra alternativa além do bordel.
- Continuemos a viagem, meu amor. A prioresa disse que podíamos ser perseguidos.
- Não me assusto com isso.
Passou a perna por cima da cabeça do cavalo e, deixando-se escorregar para o chão, tirou Catalina do lombo do animal. Tinha-a nos braços. Beijou-a nos olhos e na boca. Segurou a rédea e, com o braço sempre em volta da cintura de Catalina, tomou o caminho do bosque. Mas nesse momento colheu-os um forte aguaceiro. Ambos ficaram surpreendidos, pois a noite estava bonita e eles não haviam reparado nas nuvens escuras. Ora, sucede que Diego era valente como um leão e teria enfrentado intrepidamente homens armados, mas tinha
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pavor da chuva. Além disso, pusera a sua melhor roupa ao partir e não queria de modo algum que ela se molhasse.
- Ali não chove - disse ele, apontando para um lugar a certa distância no outro lado da estrada. - Corramos!
Mas nem bem haviam alcançado o lugar indicado por ele quando começou a chover ali também,, e com mais força ainda. Diego soltou uma exclamação de enfado.
- É apenas uma nuvem que passa - disse ele. - Se andarmos depressa livrar-nos-emos dela.
Montou, ajudou Catalina a subir para a garupa e, metendo as esporas nos flancos do cavalo, saiu a galope pela estrada fora. Logo que saíram do bosque, porém, a chuva parou tão repentinamente como havia começado. Diego olhou para cima. Havia nuvens para trás deles, mas para a frente o céu estava azul e sereno. Cavalgaram em silêncio. Depois de algum tempo, talvez meia hora, chegaram a um bosquezinho.
- Isto aqui serve - disse Diego, puxando a rédea do cavalo.
Mal havia pronunciado estas palavras quando uma pesada gota de chuva lhe caiu no nariz.
- Isso não é nada - disse ele, e mais uma vez passou a perna por cima da cabeça do cavalo; mas nem bem tinha posto o pé no chão quando as gotas se puseram a cair mais numerosas e amiudadas. - Isto é obra do Diabo.
Tornou a pôr o pé no estribo e seguiu caminho. A chuva parou. Catalina estava pensativa.
- Isso não é obra do Diabo - disse ela.
- Que é então?
- É a Virgem Maria.
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- Estás para aí a dizer tolices, mulher, e daqui a pouco eu to provarei.
Vigiava atentamente a estrada. Passou-se algum tempo sem que visse uma árvore à qual pudesse amarrar o cavalo.
- Eu devia ter trazido uma corda para peá-lo - disse Diego.
- Não se pode pensar em tudo - respondeu ela.
- O cavalo precisa descansar. Não seria nada mau se dormíssemos um pouco à beira da estrada.
- Eu seria incapaz de pregar olho.
- Nem sentirias vontade de fazê-lo, por isso garanto eu - volveu ele, arreganhando os dentes.
- Olha, vai chover de novo - disse Catalina. E, de facto, começaram a cair algumas gotas. - Vamos ficar encharcados.
- Umas gotinhas de chuva não nos podem fazer mal. Mal ele tinha falado, a chuva pôs-se de repente a cair a
cântaros. Diego soltou uma praga e esporeou o cavalo.
- Nunca vi coisa tão esquisita na minha vida - disse ele.
- É quase um milagre - murmurou Catalina.
Diego deu o caso por perdido. Embora houvesse parado a chuva, ambos nessa altura já estavam completamente molhados e o ardor amoroso de Diego sensivelmente arrefecido pela sua preocupação com a roupa. Como justificativa, cumpre-nos explicar que não se tratava apenas do seu melhor, mas do seu único traje, pois Domingo tinha-o advertido de que não seria prudente fugir de casa levando consigo outra coisa além da roupa do corpo. Cavalgaram o resto da noite, sem encontrar ninguém, mas avistando de tempos a tempos, ao luar, uma quinta ou algumas casitas campestres. Afinal o sol ergueu-se. Estavam no alto de um pequeno outeiro e, baixando
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o olhar, viram uma aldeiazinha na luz cinzenta da alvorada. Não podia deixar de haver ali uma estalagem, onde conseguiriam de comer e de beber, pois já então estavam ambos realmente esfaimados e sedentos. Seguiram caminho e começaram a encontrar camponeses que se dirigiam para o trabalho dos campos. Entraram na aldeia e de repente o cavalo estacou.
- Que há contigo, bruto? Toca para diante - gritou Diego, cravamdo-lhe as esporas.
Mas o cavalo não se movia. Diego golpeou-o na cabeça com as extremidades das rédeas e tornou a fazer uso das esporas. O animal continuou impassível, completamente imóvel. Parecia convertido em pedra.
- Hás-de caminhar, bruto!
Estava furioso. Bateu com toda a força na cabeça do cavalo. Este empinou-se nas patas de trás e Catalina soltou um grito agudo. Diego deu um murro na cabeça do animal, que tornou a sentar no chão as patas dianteiras, mas não havia nada que o fizesse dar um passo à frente. Dir-se-ia que criara raízes no chão. Diego, com o rosto vermelho, suava abundantemente.
- Não consigo entender isto. Por acaso o cavalo também estará com o diabo no corpo?
Catalina desatou a rir e Diego voltou-se para ela, furioso.
- Em que achas graça?
- Não te zangues comigo, meu amor. Não vês onde estamos? Diante da igreja!
Diego levantou os olhos, carrancudo, e só então notou que o cavalo tínha parado em frente da igreja, que ficava bem na entrada da aldeia.
- E que tem isso?
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- A prioresa fez-me prometer que nos casaríamos na primeira igreja que encontrássemos, nada mais.
- Teremos tempo de sobra, para isso, mais tarde - respondeu ele.
Tornou a cravar as esporas, com raiva, nos flancos do pobre animal. Este pôs-se então a corcovear e a dar coices e quando os dois cavaleiros deram por si iam a voar pelo espaço. Por sorte, foram cair num monte de feno e não se magoaram. Deixaram-se ficar deitados ali um instante, um pouco abalados e cheios de assombro. Após a estranha demonstração de energia, o cavalo imobilizou-se como antes. O padre, que acabava de dizer missa, saía da igreja nesse momento e, ao notar o acidente, acudiu correndo. Os dois levamtaram-se, sacudiram-se, e vendo que não tinham sofrido dano algum, limparam as roupas do feno que nelas se havia pegado.
- Foi uma sorte para os dois estar o feno aí - observou o padre, um homem baixo, gorducho e rubicundo. - Se houvessem chegado um pouco mais tarde ele estaria no meu celeiro.
- Foi providencial que isso tivesse ocorrido na porta da igreja - disse Catalina - pois estávamos à procura de um padre que nos casasse.
Diego deitou-lhe um olhar surpreendido, mas não disse nada.
- Casá-los? - exclamou o padre. - Vocês não são meus paroquianos! Nunca os vi na minha vida! Por certo que não os casarei! Não pus nada na boca desde a minha ceia de ontem à noite e agora vou para casa ver se como alguma coisa.
- Faça o favor de esperar um momento, padre - disse Catalina.
Virou as costas aos dois, ergueu a saia e tirou rapidamente
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uma moeda) de ouro do saquinho que a prioresa lhe dera. Com o seu sorriso feiticeiro, mostrou-a na pallma da mão. O padre olhou para a- moeda e o seu rosto fez-se ainda mais vermelho.
- Mas quem são vocês? - perguntou em tom dúbio. - Porque desejam casar num lugar estranho e com tanta pressa?
Não tirava os olhos da moeda reluzente.
- Tenha compaixão de dois namorados, padre! Nós fugimos de castel Rodríguez porque meu pai queria obrigar-me a casar com um velho rico, só por causa do dinheiro; e este moço, a quem eu estava prometida, os pais sovinas queriam fazê-lo desposar uma mulher zarolha e sem um único dente na boca.
Para tornar mais convincente a história, catalina colocou a moeda de ouro na mão do padre e pegou-lhe firmemente os dedos.
- -Você tem modos muito persuasivos moça - disse o padre - e a sua história é tão comovente que me faz vir lágrimas aos olhos.
- Não só praticará um acto meritório, padre - -prosseguiu Catalina - mas salvará dois jovens virtuosos de cometerem um pecado mortal.
- Sigam-me - disse o sacerdote, tornando a entrar na igreja. - Pepe! - chamou ele em voz alta enquanto se dirigia para o altar-mor.
- Que é? - responderam algures.
- Venha cá, seu vagabundo!
Um homem de vassoura em punho surgiu de uma capela ao lado do santuário.
- Porque não me deixa trabalhar em paz? - perguntou ele,
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mal-humorado. - Nunca sacristão algum recebeu tão miserável paga, e ainda por cima o senhor não me dá um instante de trégua. Como poderei ir ao meu campo se o senhor me interrompe no meio do trabalho?
- Põe um freio nessa língua insolente,, patife! Vou casar estes dois moços. Ah! mas serão precisas duas testemunhas - disse ele, virando-se para Catalina com um sorriso satisfeito na cara nédia. - Terão de esperar que este bêbedo vá buscar alguém à aldeia, e isso me dará tempo de comer alguma coisa.
- Eu serei a segunda testemunha.
Era uma voz de mulher que falava. Todos se viraram e a viram caminhar na direcção deles. Vestia um manto azul e tinha a cabeça coberta por uma grande mantilha branca, cujas pontas lhe caíam sobre as espáduas. O padre olhou para ela com espanto, pois não havia notado a presença de ninguém na igreja enquanto dizia missa:, mas encolheu os ombros com impaciência.
- Muito bem. Vamos terminar com isto o mais depressa possível. Quero almoçar.
Catalina fez um gesto de surpresa quando a desconhecida se acercou do grupo, e tomou na mão trémula a mão de Diego. A desconhecida, com um leve sorriso a brilhar nos olhos, levou o dedo aos lábios recomendando silêncio a Catalina. A cerimónia realizou-se com rapidez e Catalina foi unida a Diego Martínez pelos laços do santo matrimónio. Dirigiram-se para a sacristia, a fim de assinar no lavro. O padre escreveu os nomes dos recém-casados e os de seus pais. Em seguida o sacristão assinou laboriosamente o seu.
- É a única coisa que ele sabe escrever - disse o padre -, e foram-me precisos seis meses para meter as letras
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nessa cabeça de pau. Agora é a sua vez, minha senhora. Mergulhou a pena na tinta e passou-a à dama desconhecida.
- Mas eu não sei escrever nada - disse esta.
- Então faça uma cruz e eu escreverei o seu nome.
Ela apanhou a pena e fez o que lhe indicavam. Catalina observava-a, com o coração a bater forte.
- Então? Se a senhora não me disser o seu nome não poderei escrevê-lo - observou o padre com impaciência.
- Maria, filha do pastor Joaquim - respondeu a desconhecida.
Ele escreveu o nome.
- Está pronto. Agora vou comer.
Todos saíram da igreja com ele, salvo o sacristão, que entre resmungos irritados apanhou a vassoura e recomeçou a varrer. Mas os espanhóis sempre foram um povo cortês, e o padre, com a moeda de ouro bem guardada no bolso, não constituía excepção à regra.
- Meu senhor e minhas senhoras, se me fizerem a honra de vir ao meu humilde tugúrio aqui ao lado terei a maior satisfação em oferecer-lhes aquilo que estiver ao alcance da minha pobreza.
Catalina, que era muito bem-educada, sabia que um convite desse género devia ser declinado amavelmente, mas Diego estava faminto e não lhe deu tempo de falar.
- Senhor - disse ele -, nem eu nem minha mulher comemos desde ontem e, por mais pobre que seja o seu passadio, será para nós um festim.
O padre foi colhido de surpresa., mas a polidez só lhe permitiu responder que eles lhe faziam muita honra em aceitar.
Percorreram os poucos passos que os separavam da casa do padre e este introduziu-os numa sala pequena e desguarnecida que servia ao mesmo tempo de refeitório, gabinete e sala de visitas. Colocou diante deles pão, vinho, queijo de cabra e um prato de azeitonas pretas. Cortou quatro fatias de pão e encheu de vinho quatro copos de chifre. Pôs-se a comer sofregamente e Diego e Catalina seguiram-lhe o exemplo. Ele ergueu os olhos para servir-se de uma azeitona e notou que a dama desconhecida não havia tocado na comida.
- Coma, por favor, minha senhora - disse ele. - É comida simples, mas boa, e a melhor que tenho para lhes oferecer.
Ela dirigiu ao pão e ao vinho um sorriso impregnado de singular .tristeza e sacudiu a cabeça.
- Comerei uma azeitona.
Apanhou uma e mordiscou-a delicadamente com os dentes alvos. Catalina relanceou-a. Os olhos de ambas encontraram-se; os da desconhecida tinham uma expressão de infinita bondade. Nesse momento o sacristão irrompeu pela sala dentro.
- Senhor, senhor! - gritava ele, fora de si. - Roubaram a Virgem!
- -Não sou surdo,, velho imbecil! - exclamou o padre. - Em nome de Deus, que queres dizer com isso?
- Estou a dizer-lhe que roubaram a nossa Virgem. Entrei lá para varrer e o pedestal estava vazio.
- Estás doido ou bêbedo, Pepe - retrucou-lhe o padre, pulando da cadeira. - Quem seria capaz de fazer uma coisa dessas?
Arremessou-se para a porta e, seguido do sacristão, de Diego e Catalina, correu à igreja.
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- Não fui eu, não fui eu! - gritava o sacristão, agitando os braços desesperado. - Todos vão dizer que fui eu e serei posto na cadeia!
Subiram atabalhoadamente os degraus da igreja e correram à capela da Virgem. O sacristão deu um berro. Lá estava a imagem de Nossa Senhora no seu lugar do costume.
- Que significa isso? - rugiu o padre, furioso.
- Há um minuto ela não estava aí. Juro por todos os santos que o pedestal estava vazio.
- Bêbedo sem-vergonha! Velho odre de vinho!
O padre agarrou-o pela nuca e encheu de pontapés o traseiro do infeliz, até ficar exausto; depois, para completar a dose, esbofeteou-o nas duas faces com toda a força que lhe restava.
- Se tivesse uma vara aqui, quebrava-te os ossos. Quando os três voltaram à casa do padre para terminar
o frugal repasto, ficaram surpreendidos ao notar que a dama desconhecida havia desaparecido.
- Aonde poderá ela ter ido? - exclamou o padre. E, batendo na testa: - Que burro que eu sou! Agora percebo tudo. É evidente que a mulher é moura e quando Pepe veio dizer que a Virgem tinha sido roubada ela achou melhor pôr-se ao fresco. São todos ladrões e ela pensou que algum dos seus malditos compatriotas havia furtado a imagem. Notaram como não quis beber o vinho? Foram baptizados, mas não abandonaram os seus costumes pagãos. Eu tive as minhas suspeitas quando ella me deu o seu nome: aquilo não é nome de cristão que se respeite.
- Há muito que nós limpámos Castel Rodríguez de mouros - disse Diego.
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- E fizeram muito bem. Todas as noites eu rezo para que el-rei chegue a compreender os seus deveres para com a Fé e expulse do reino todos esses abomináveis hereges.
- Será um grande dia para a Espanha quando ele o fizer. Merece talvez ser registado aqui que as preces do digno
sacerdote foram atendidas, pois em 1609 todos os mouros foram expelidos da Espanha.
Já era tempo de Diego e sua esposa encetarem a viagem para Sevilha. Agradeceram a hospitalidade do padre e despediram-se. Entrementes, o cavalo banqueteara-se com o feno sobre o qual havia atirado os seus cavaleiros. Diego deu-lhe de beber e logo que montaram pôs-se a caminho, sem ser instigado, num trote confortável. Fazia um belo dia, sem uma só nuvem no céu. O padre dissera-lhes que a umas quinze milhas adiante havia uma estalagem frequentada por arrieiros e carreteiros, onde podiam conseguir pousada. Resolveram passar a noite ali. Cavalgaram em silêncio durante duas ou três milhas.
- És feliz, meu querido? - perguntou afinal Catalina.
- Naturalmente.
- Serei boa esposa. Por ti trabalharei até gastar os dedos.
- Não será preciso. Um homem inteligente pode fazer muito dinheiro em Sevilha, e ninguém até hoje me tomou por tolo.
- Bem o creio!
Tornaram a calar-se durante algum tempo. Foi Catalina quem novamente rompeu o silêncio.
- Escutai, meu amor, aquela senhora que veio ao nosso casamento não era uma moura.
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- Que queres dizer? Bastava pôr os olhos nela para ver que não era uma cristã-velha.
- Mas eu já a tinha visto uma vez.
- Tu? Onde?
- Na escada da igreja das carmelitas. Foi ela que me disse como eu podia curar-me.
Diego deteve o cavalo e virou-se para trás.
- Pobre pequena, estás doida. Foi o sol que te deu volta aos miolos.
- Estou em tão perfeito juízo quanto tu, meu querido. Digo-te que era a Santíssima Virgem, e quando ela não quis comer pão nem beber vinho eu compreendi por quê. Vi que ela se recordava da angústia indescritível por que passou.
Diego encarou-a, perplexo e carrancudo.
- A Reverenda Madre disse-me -uma centena de vezes que era mais do que certo achar-me eu sob a protecção especial de Nossa Senhora, Foi por isso que ela insistiu tanto comigo para entrar no convento. Aqueles aguaceiros repentinos da noite passada, aquela paragem do cavalo diante da igreja, a sua recusa de caminhar e os corcovos com que nos arrojou aos dois da sela... Deves compreender que todas essas coisas não podiam ter sido coincidências.
Ele considerou-a durante alguns momentos ainda e Catalina notou, aflita, que os seus olhos tinham uma expressão de enfado. Sem acrescentar nem uma palavra mais, Diego tornou a virar-se para a frente e estalou a língua para instigar o cavalo. Catalina arriscava uma observação fortuita de quando em quando, com certa timidez, mas ou ele não respondia, ou fazia-o com um monossílabo apenas.
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- Que tens, meu amor? - perguntou ela afinal, fazendo esforço para não chorar.
- Nada.
- Olha para mim, adorado. Tenho fome de um olhar teu.
- Como posso olhar para ti quando a estrada está cheia de sulcos e buracos? Se o cavalo tropeçar podemos quebrar a espinha.
- Não estás zangado comigo porque a Santíssima Virgem quis proteger a minha virtude e teve a bondade de servir de testemunha ao nosso casamemto?
- É uma honra a que eu nunca ousaria aspirar - respondeu ele secamente.
- Então porque estás aborrecido comigo? A resposta tardou um pouco a vir.
- Não augura bem para a nossa futura felicidade que todas as vezes que temos uma diferença de opinião aconteça um milagre para que tu leves a melhor. O homem deve ser o senhor da casa. É dever da mulher submeter-se aos desejos do marido, e nisso devia ela pôr a sua alegria.
Catalina tinha os braços em volta de Diego, e este sentiu-os tremer.
- Com choro não remedeias nada - disse ele.
- Não estou a chorar.
- Que estás a fazer então?
- A rir.
- A rir? Isso não é motivo para riso, mulher? É assunto muito sério e eu tenho o direito de ficar preocupado.
- És encantador,, meu querido, e eu amo-te de todo o coração, mas às vezes não és muito sensato.
- Explica - volveu ele friamente.
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- A prioresa disse-me que eu devia à minha virgindade os favores que tinha recebido de Nossa Senhora. Parece que dão muito valor a isso lá no Céu. Sem dúvida não receberei mais nenhum quando a tiver perdido.
A estas palavras Diego virou-se para trás da sela, tanto quamto lhe era possível. O seu bonito rosto abria-se num sorriso brejeiro.
- Bendita seja aquela que te pôs no mundo!- - disse ele. - Vamos pôr essa questão à prova sem mais tardança.
- O sol está a ficar quente. Seria agradável repousar um pouco à sombra das árvores, até que abrande o calor do dia.
- Era justamente essa a ideia que me tinha passado pela cabeça.
- E, a não ser que os meus olhos me enganem, a menos de uma milha daqui há um bosque que nos convém, às maravilhas.
- Se os teus olhos te enganam, os meus estão a enganar-me também.
Encostou as esporas ao cavalo, que largou a correr como uma ventania até alcançarem o bosque. Diego saltou da sela e ajudou Catalina a descer. Enquanto ele atava o cavalo a uma árvore, ela foi tirando dos alforjes o farnel de que os tinha munido a providência, quer da prioresa, quer de Domingo. Pão e queijo, salsichas, frango assado e um rotundo odre de vinho. Quem poderia desejar melhor repasto de núpcias? Estava fresco e sombrio debaixo das árvores e um fio de água corria pelo leito de pequenina e límpida torrente. O sítio era propício.

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XXXI.

Quando saíram do bosque - Diego a puxar o cavalo - já o sol chamejava com menos ferocidade.
- Fizemos bem em nos garantirmos duplamente - disse ele.
- Triplamente - murmurou Catalina, não sem uma certa satisfação desvanecida.
- Isso não é nada, menina - volveu ele com uma presunção muito perdoável. - Tu ainda não sabes de que eu sou capaz.
- És tão descarado quanto adorável - disse ela.
- Sou como Deus me fez - respondeu Diego modestamente.
Seguiram caminho devagar, subindo e descendo colinas, sem conversar muito, mas a ruminar a sua felicidade. Cavalgaram seis ou sete milhas e afinal avistaram,, à luz dourada da tardinha, uma construção desconjuntada à beira da estrada. Era, evidentemente, a estalagem de que falara o padre.
- Daqui a pouco estaremos lá. Estás cansada, meu amor?
- Cansada? - respondeu ela. - Porque havia de estar cansada? Sinto-me fresca como uma cotovia.
Haviam percorrido umas boas quarenta milhas e desde o dia anterior Catalina não dormira mais de uma hora. Mas tinha dezasseis anos.
Estavam já na planície, que se estendia amplamente de ambos os lados da estrada. Fora feita a colheita e os campos estavam secos e pardacentos. Aqui e além elevavam-se alguns robles nodosos; de longe em longe, um bosque de oliveiras centenárias. Ainda se encorutravam a menos de uma milha da
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estalagem quando avistaram, a galopar na sua direcção em meio a uma grande nuvem de pó, um cavaleiro de tão estranha aparência que os deixou estupefactos, pois o homem vestia uma armadura completa. Fez estacar bruscamente o seu cavalo ao alcançá-los e postou-se no meio da estrada. Pôs a lança em riste, firmou-se melhor na sela e, em tom altaneiro, assim falou a Diego:
- Detende-vos e, quem quer que sejais, dizei-me quem sois, de onde vindes, aonde ides e quem é a formosa princesa que levais à garupa; pois tenho razões de sobra para crer que a estais conduzindo ao vosso castelo contra a sua vontade, e cumpre que eu esteja bem informado a fim de punir o mal que fizestes e restituí-la aos seus aflitos pais.
Tão espantado estava Diego que por um momento não soube o que responder. Tinha o cavaleiro um rosto comprido e cadavérico, barba curta e intonsa,, e um imenso bigode. A sua armadura, de feitio antiquado, estava coberta de ferrugem e o seu elmo parecia-se mais com uma bacia de barbeiro do que com outra coisa. Era a montada um miserável rocim que só servia para o matadouro, e tão magro que se lhe podiam contar as costelas. Andava com a cabeça tão perdida que ameaçava cair a todo o momento, de pura fraqueza.
- Senhor - disse Diego, assumindo um ar arrogante para impressionar Catalina com o seu valor -, nós vamos a caminho da estalagem que se avista daqui e não vejo porque hei-de responder às suas despropositadas perguntas.
Dito isto, meteu as esporas no cavalo e avançou, mas o cavaleiro segurou-lhe as rédeas e obrigou-o a parar.
- Vede bem o que dizeis, soberbo e descortês cavaleiro,
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e explicai-me imediatamente quem sois ou eu vos desafio para um combate mortal.
Nesse momento um homenzinho muito gordo, com uma pança enorme, aproximou-se a trote largo num burro de pêlo rodado e, batendo significativamente com a mão na testa, procurou dar a entender aos viajantes que o cavaleiro tão estranhamente aparelhado não tinha o juízo no lugar. Mas ao ouvir aquelas palavras ameaçadoras Diego havia sacado da espada e parecia disposto a defender-se. O homenzinho gordo acelerou o passo do burro.
- Refreie a sua cólera, senhor - disse ele ao cavaleiro. - São inofensivos viajantes e esse moço, a julgar pelas aparências, é muito capaz de dar boa conta de si no caso de chegarem a vias de facto.
- Aquieta-te, vilão! - gritou o cavaleiro. - Se a aventura é perigosa, terei melhor ensejo de exercitar a minha força e provar a minha coragem.
Ao ouvir isto, Catalina desceu do cavalo e adiantou-se para o desconhecido.
- Eu responderei às suas perguntas, senhor. Este moço não é nenhum cavaleiro, mas um honrado cidadão de Castel Rodríguez e alfaiate de seu ofício. Não me conduz à força para o seu castelo, pois castelo é coisa que não tem, mas leva-me de minha livre vontade a Sevilha, onde esperamos encontrar uma ocupação digna. Fugimos da nossa cidade natal porque alguns inimigos queriam impedir que nos casássemos, o que esta manhã fizemos numa aldeia a algumas milhas daqui. Viajamos com a maior rapidez possível, com receio de sermos perseguidos, alcançados e obrigados a voltar para a nossa cidade.
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O cavaleiro volveu os olhos de Catalina para Diego, depois passou a lança ao homenzinho montado no burro. O outro apanhou-a, embora o fizesse a resmungar.
- Embainhai a espada, mancebo - disse a fantástica criatura com um gesto magnificente. - Nada tendes que temer, conquanto eu bem perceba,, pela vossa aparência, que o indigno sentimento do medo é de todo alheio ao vosso peito varonil. Talvez vos convenha assumir o humilde disfarce de alfaiate, mas a vossa atitude e procedimento traem-vos estirpe ilustre. Foi uma feliz circunstância para vós terdes cruzado o meu caminho. Sou cavaleiro andante e a minha ocupação é andar por todas as partes do mundo à cata de aventura, reparando injustiças, socorrendo a inocência ultrajada e castigando os opressores. Tomo-vos sob a minha protecção, e ainda que os vossos inimigos surgissem em número de dez mil para vos arrastar ao cativeiro, eu, com este braço, os poria em fuga. Eu próprio vos escoltarei até à estalagem, onde, por coincidência, também estou hospedado. Este meu escudeiro cavalgará convosco. É uma criatura loquaz e ignorante, mas bem intencionada, e obedecerá às vossas ordens como se partissem de mim. Eu irei um pouco atrás para que, ao ver aproximar-se um exército, possa atacá-lo e vós tenhais tempo de escapar com essa formosa donzela para lugar seguro.
Catalina saltou para a garupa, atrás do marido, e puseram-se novamente a caminho, acompanhados pelo escudeiro. Este contou-lhes que o seu amo era doido varrido - conclusão a que o casal já tinha chegado ao ouvir as falas do cavaleiro - mas acrescentou que, apesar disso, era um homem digno e bom.
- E quando não está de telha, o pobre fidalgo diz mais
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coisas sensatas numa hora do que é capaz de dizer num mês inteiro qualquer homem são da cabeça.
Chegaram à estalagem. Algumas pessoas estavam sentadas em bancos, à porta; olharam com curiosidade os dois viajantes mas não lhes prestaram mais atenção. Pareciam mergulhados em melancólico letargo. O homenzinho gordo rolou do lombo do seu burro para o chão e chamou o estalajadeiro. Este apresentou-se, mas quando Diego lhe pediu um quarto respondeu mal-humorado que não havia um só leito vago em toda a casa. Um grupo de actores havia chegado no dia anterior para dar espectáculo num castelo vizinho, cujo proprietário, um grande de Espanha, estava celebrando o casamento de seu filho e herdeiro. As pessoas sentadas nos bancos, evidentemente os actores a quem ele se referia, puseram-se a encarar o jovem casal com uma indiferença algo hostil.
- Mas é preciso que nos arranje alguma coisa, hospedeiro - disse Diego. - Passámos o dia viajando e não podemos ir mais longe.
- Estou-lhe a dizer que não tenho lugar, senhor! Há gente a dormir na cozinha, há gente a dormir nas estrebarias...
O cavaleiro aproximava-se.
- Que ouço dizer? - exclamou ele. - Negais agasalho a estas distintas pessoas? Grosseirão! Sob pena de incorrerdes no meu desagrado, ordeno-vos que lhes proporcioneis alojamento condigno.
- A casa está cheia! - berrou o estalajadeiro.
- Dai-lhes então o meu quarto.
- Isso farei se tal é o seu desejo, senhor cavaleiro, mas onde dormirá o senhor?
- Não dormirei - respondeu ele pomposamente.
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- Momtarei guarda. Este é o dia das suas bodas e a mais solene ocasião na vida de uma donzela. O apóstolo ensinou que é melhor casar do que abrasar-se. A finalidade do matrimónio não é satisfazer os apetites da carne e sim procriar filhos, e para esse fim a pudica noiva é solicitada a abandonar a modéstia natural e, nos braços de seu legítimo marido, sacrificar a preciosa pérola da sua virgindade. É dever de meu estado não somente salvaguardar o recato do seu leito conjugal contra a intrusão dos inimigos que os perseguem com os seus perversos desígnios, mas também impedir as brincadeiras de mau gosto com que o vulgo costuma dar vazão ao seu bom humor nessas ocasiões.
Estas palavras deixaram Catalina toda confusa, mas se de vergonha ou modéstia é o que se não pode afirmar com certeza.
Na Espanha daqueles tempos, os estalajadeiros só forneciam alojamento, e os viandantes tinham de levar consigo a comida. Nessa ocasião, porém, o grande fidalgo enviara aos actores, pelo seu despenseiro, um cabrito e uma posta de porco assado; e o nédio escudeiro, por métodos todos seus, adquirira dois pares de perdizes, de modo que os hóspedes podiam constar com um repasto mais sumptuoso que de costume, pois a sua refeição da tarde consistia por via de regra em simples pão e alho, com o acréscimo de um pedaço de queijo por vezes. O estalajadeiro anunciou que o jantar estaria pronto dentro de meia hora e o cavaleiro, com aprimorada cortesia, pediu aos recém-casados que lhe fizessem a honra de aceitar a sua hospedagem. Mandou o escudeiro retirar os seus pertences e conduzir os noivos à câmara em que eles celebrariam a seu tempo os ritos sagrados. Os quartos de dormir ficavam
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no andar de cima e as portas abriam-se para uma galeiria que circundava o pátio. Após terem consertado como melhor podiam a desordem da sua toilette, Diego e Catalina tornaram a descer para respirar o ar puro da tarde. Encontraram os actores sentados como os haviam deixado. Estavam de muito mau humor,, exasperados, e quando falavam entre si era em tom acerbo. Daí a pouco veio ter com eles o cavaleiro. Retirara a armadura e estava de calções e gibão de camurça, manchados pela ferrugem do peitoral, das grevas e sapatos. A fiel durindana pendia-lhe ao lado, de um cinto de pele de lobo.
O estalajadeiro chamou-os para dentro e sentaram-se a cear. O cavaleiro colocou-os à cabeceira da mesa, instalando Cattalina à sua direita-, e Diego à sua esquerda.
- E onde, -por obséquio, está Mestre Alonso? - perguntou ele, correndo os olhos em volta de si. - Não foi informado de que a ceia está na mesa?
- Ele não quer vir - disse uma mulher madura que fazia papéis de "duenas", madrastas perversas e rainhas viúvas, sendo também a encarregada do vestiário. - Diz que não tem apetite.
- Um estômago vazio não faz senão tornar duplamente cruel o infortúnio. Ide chamá-lo. Dizei-lhe que eu o considerarei culpado de grave descortesia para com os meus distintos hóspedes se me negar o prazer da sua companhia. Não comeremos nada enquanto ele não vier.
- Vai chamá-lo, Mateo - disse a "duena".
Um homenzinho magricela, de nariz comprido, boca enorme e expressiva, levantou-se e saiu. A "duena" deu um suspiro.
- É um caso triste - disse ela - mas como sensatamente
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observou o senhor cavaleiro, passar sem a ceia não remedeia nada.
- Se não fosse impertinência - disse Catalina -, gostaria de saber de que se trata.
Sentiram grande desafogo em informá-la, pois todos tinham a cabeça cheia do assunto. A companhia pertencia a Alonso Fuentes, que também era autor de muitas peças por ela levadas à cena, e sua esposa Luísa era a primeira-actriz. Fugira naquela manhã com o galã, levando consigo todo o dinheiro a que pudera deitar a mão. Era uma catástrofe, pois Luísa Fuentes fazia grande sucesso e os seus colegas não ignoravam que era ela quem atraía dinheiro para a bilheteira. Alonso estava desesperado. Não só perdera a esposa, mas também uma actriz e uma boa fonte de renda. Isso dava para transtornar qualquer um. O pessoal da companhia soltou a língua. Os homens censuravam a perfídia das mulheres e admiravam-se de uma criatura tão fina ter podido rebaixar-se com um actor medíocre como era o galã. As mulheres, por sua parte, perguntavam como se podia esperar que uma mulher preferisse um sujeito gordo e careca como Alonso, quando tinha uma oportunidade de fugir com um belo rapaz como Juanito Azuria. A conversa foi interrompida pelo aparecimento do marido enganado. Era pequeno e gorducho, já entrado em anos, com a cara elástica do actor que desempenha toda a sorte de papéis. Sentou-se lugubremente e uma grande travessa de "alia podrida" foi posta na mesa.
- Vim apenas para lhe ser gentil, senhor cavaleiro - disse ele. - Esta será a minha última refeição na Terra, pois estou resolvido a enforcar-me depois da ceia.
- Devo insistir para que espereis até amanhã - volveu
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gravemente o cavaleiro. - Este senhor e esta senhora que aqui vedes à minha direita e à minha esquerda casaram-se esta manhã e não posso permitir que a sua noite de núpcias seja perturbada por um incidente tão indecoroso como o que sugeris.
- Importo-me lá com esse senhor e essa senhora! Digo-lhe que me vou enforcar.
O cavaleiro pôs-se repentinamente em pé e desembainhou a espada.
- Se não me jurardes por todos os santos do Paraíso que não vos enforcareis esta noite, eu vos cortarei em pedacinhos com a minha espada.
Por felicidade, o atarracado escudeiro achava-se atrás do seu amo para servi-lo à mesa.
- Não tenha receio, meu senhor - disse ele. - Alonso não se enforcará esta noite porque tem de dar um espectáculo amanhã, e quem foi actor morrerá actor. Ele não decepcionará o seu público. Se reflectir um pouco, há-de lembrar-se de que a fortuna é inconstante; o que não tem remédio remediado está, e não há mal que não venha para bem.
- Basta de papaguear esses teus tolos provérbios - replicou irado o cavaleiro; mas enfiou a espada na bainha e tornou a sentar-se. - Não fica bem fazer tanto alvoroço por causa de uma desventura que tem sucedido a muitos homens de mais valimento do que esse Alonso. Com um pouco de reflexão eu vos poderia citar, tanto das Sagradas Escrituras como da história profana, os nomes de muitos homens cujas mulheres lhes enfeitaram a testa com um par de chifres; mas no momento os únicos que me ocorrem são os do rei Artur, cuja esposa
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Guinevra o traiu com o cavaleiro Lançarote do Lago, e o rei Marcos, cuja esposa Isolda o enganou com Tristão de Leónis.
- Não foi a afronta à minha honra que me arrastou ao desespero, senhor cavaleiro - disse o actor e dramaturgo -, mas a perda simultânea do dinheiro e das duas melhores figuras da minha companhia. Temos de trabalhar amanhã, e a quantia que me foi prometida seria até certo ponto uma compensação financeira, mas como poderei dar um espectáculo sem actores?
- Eu bem podia fazer o papel de Don Fernando - disse o magricela que tinha ido chamar Alonso.
- Tu? - exclamou desdenhosamente o actor-empresário.
- Gomo poderias tuu com essa cara de cavado e essa voz estridente, desempenhar o papel de um príncipe valente, atrevido, voluntarioso e apaixonado? Não, esse papel eu é que podia desempenhá-do, mas quem fará a encantadora Doroteia?
- Eu conheço o papel - disse a "diuena". - É verdade que já não sou muito moça...
- Exactamente - interrompeu Alonso. - E dá licença de lembrar-me que Doroteia é uma donzela inocente., de beleza incomparável, enquanto a tua figura de matrona dá a impressão de que a qualquer momento vais dar à luz uma ninhada de leitões.
- Será possível que se estejam referindo à "Verdade com zelo pode mover o próprio Céu"? - perguntou Catalina,, que tinha acompanhado atentamente a conversa.
- Ela mesma - disse Alonso, em certo tom de surpresa.
- Mas como foi que soube?
- É uma das peças favoritas de meu tio. Costumávamos lê-la juntos. Ouvi-lhe dizer muitas vezes que a fala de Doroteia,
quando repele indignada as indecorosas propostas de Don Fernando, é comparável ao que o grande Lope de Vega tem escrito de melhor.
- Conhece-a?
- De cor.
Pôs-se a recitar, mas, notando que o grupo a observava com curiosidade, foi tomada de um acesso de timidez, gaguejou e calou-se.
- Continue, continue! - exclamou o comediante.
Ela corou, sorriu e, cobrando coragem, começou de novo a declamar o longo discurso, que levou até ao fim com tanta graça, emoção e sinceridade que todos ficaram pasmados. Alguns até chegaram a derramar lágrimas.
- Salvos! - bradou Alonso. - A senhora representará Doroteia amanhã comigo, e eu farei Don Fernando.
- Como é possível? - respondeu ela, aterrada. - Eu morreria de medo. Nunca representei. Não, não posso. Ficaria muda diante do público.
- A sua mocidade e a sua beleza compensarão quaisquer deficiências que possa ter. Eu a ajudarei. Ouça, minha bela, só você nos pode salvar. Se recusar, não poderemos representar e não teremos dinheiro para pagar nem a nossa estada aqui nem o que comemos. Seremos reduzidos a mendigar o nosso pão pelas ruas.
Então o cavaleiro interveio na conversa,.
- Bem compreendi, gentil senhora, que a vossa modéstia vos faça hesitar ante a perspectiva de exibir-vos num teatro sob os olhares de uma multidão de desconhecidos, e não vos ficaria bem fazê-lo sem permissão de vosso nobre marido. - Metera-se na cabeça do cavaleiro que o jovem casal era de
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alta estirpe e por mais que dissessem não conseguiam persuadi-lo do contrário. - Mas não esqueçais que é próprio das naturezas elevadas socorrer os aflitos e prestar ajuda aos necessitados.
Os demais comediantes juntaram os seus rogos aos de Alonso Fuentes e afinal Catalina concordou, com o pronto consentimento de Diego, em ensaiar a peça e, se os outros a achassem satisfatória, arriscar-se a aparecer em cena. Portanto, depois da ceia, a mesa foi afastada para um lado e começou o ensaio. Catalina tinha boa memória e havia repetido tantas vezes com Domingo as cenas em que figurava Doroteia, que estava bastante segura das suas réplicas. No começo mostrou nervosismo, mas a aprovação dos comediantes deu-lhe mais desembaraço e dentro em pouco, absorvendo-se por completo no papel, perdeu o acanhamento. Mostrou -ter aproveitado as lições recebidas do tio e idisse as suas falas com incisiva sinceridade. Saiu-se notavelmente bem e Alonso confiava em que, com mais um ensaio pela manhã, ela estaria em condições de enfrentar o público. Catalina estava emocionada, feliz, e parecia tão linda que ele ficou certo de que a sua inexperiência passaria despercebida.
- Ide-vos deitar, meus filhos - disse aos seus actores -, e durmam bem. Acabaram-se as nossas dificuldades.
Mas ao verem-se livres daquela ansiedade eles foram tomados de tal alvoroço que não sentiam a menor vomtade de dormir. Pediram vinho e dispuseram-se a passar a noite festejando. Comodamente instalado numa cadeira, o cavaleiro assistira ao ensaio com um olhar crítico. Pondo-se em pé com alguma dificuldade, devido às juntas emperradas, ele chamou a "duena" de parte.
- Conduzi a bela Catalina à câmara nupcial - disse-lhe -, e visto que ela não tem mãe para lhe ensinar o que lhe cumpre saber nesta grave ocasião, compete a vós explicar-lhe, em termos que não ofendam a sua modéstia, a provação a que, como esposa obediente, é seu dever submeter-se. Em suma, deveis prepará-la para os mistérios do amor, os quais, como virgem inocente, deve ignorar.
A "duena)) pestanejou, mas prometeu fazer o que em si estava.
- Nesse ínterim - prosseguiu o cavaleiro -, eu explicarei ao jovem fidalgo, seu marido, que ele deve conter o seu ímpeto natural, pois a aversão que uma mulher virtuosa forçosamente sente pelas intimidades do congresso sexual só pode ser vencida pela paciência. Tal é a depravação dos nossos tempos que não posso supor tenha ele conservado a sua inocência até hoje.
- Sem faltar com o respeito ao senhor cavaleiro - disse a "duena" -, é preferível que o homem não seja de todo inexperiente do acto de amor,, pois nesse terreno, como nas artes e ofícios manuais, tudo depende da prática.
- Esse é um assunto em que não me aventurarei a dar opinião, minha senhora. Seja-vos bastante saber que, ao cabo de um intervalo condigno, eu próprio conduzirei o noivo ao limiar da câmara nupcial e depois, vestindo a armadura, montarei guarda no balcão para que o matrimónio se consume de forma condizente com a nobreza das partes interessadas.
Despediu a "duena" e chamou Diego, dirigindo-se-lhe nestes termos:
- Ides ingressar num estado em que poucos se portam de maneira que possam alcançar a felicidade para si mesmos
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ou dispensá-la às suas companheiras de existência; e as circunstâncias do vosso casamento são de tal natureza que me põem na conjuntura de vos dar os conselhos que, em condições ordinárias, vos seriam dados pedo vosso nobre pai. - Entrou então a falar ao rapaz dentro das linhas gerais que havia indicado à "duena", e terminou como segue: - Não condeno os prazeres necessários do corpo, que o revigoram na fadiga e não permitem que se torne muito importuno. Mas a comida, a bebida e, ainda, mais, a união dos sexos, não passam de lenitivos proporcionados ao corpo a fim de que não seja estorvado o trabalho do espírito. No entanto, ao amor sancionado pelo casamento não falta um certo impulso ascensional e, na medida em que ele o possui, conduz para o Bem as almas jovens. No casto amor que vos atraiu para essa donzela não pode deixar de existir o desejo daquela imortalidade que se encontra ao alcance dos mortais. E quando a aconchegardes ao vosso peito, pela vossa própria comunhão com a beleza, semeareis em beleza e por isso mesmo semeareis para a eternidade. Sim, porque o Belo e o Eterno são uma coisa só.
Diego escutou esta arenga com a polidez que lhe era natural mas com uma atenção distraída, pois estava impaciente por ficar a sós com Catalina. O cavaleiro tomou-o pela mão e conduziu-o ao que ele chamava a "câmara nupcial". Chamando então o seu escudeiro, revestiu os seus apetrechos marciais e passou a noite a andar de baixo para cima, absorto em meditações sobre o inacessível objecto da sua devoção pessoal.

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XXXII.

Na manhã seguinte, bem cedo, tornaram a ensaiar a peça e daí a pouco chegaram carruagens para os conduzir ao castelo do duque. Diego e o cavaleiro montaram os seus cavalos, o escudeiro o seu burro, e puseram-se a caminho. No último momento, porém, Catalina perdeu a coragem e, exclamando que não tinha forças para se submeter àquela prova, implorou a Alonso que a deixasse ficar na estalagem. O director da "troupe" enraiveceu-se e, dizendo-lhe que era tarde para recuar, meteu-a numa carruagem e sentou-se ao pé dela. Catalina debulhava-se em lágrimas, mas com a ajuda da "duena" ele conseguiu acalmá-la, e quando chegaram a moça havia recobrado suficientemente a compostura. Foram os actores recebidos com mostras de apreço e, por ordem do duque, dispensou-se-lhes a melhor hospitalidade. Mas aquele ouvira falar nas extravagâncias do cavaleiro, e, pensando que a conversa deste divertiria os seus convidados, rogou-lhe que os honrasse, a ele e à duquesa, com a sua companhia ao jantar. Erigira-se um palco no pátio e, depois que os fidalgos se fartaram de comer, os actores foram chamados a dar a sua representação. O distinto auditório achou muita graça a Alonso no papel de alegre sedutor, pois a sua aparência não tornava plausível tal coisa; ficaram, porém, encantados com a graça de Catalina, com a música da sua voz e a elegância da sua dicção, e depois de terminada a peça fizeram-lhe grandes cumprimentos. O cavaleiro havia-lhes contado a sua versão romântica da fuga do jovem casal e isso, simultaneamente, acresceu-lhes o interesse. A duquesa mandou-os chamar e todos ficaram admiradíssimos com a beleza de ambos, a sua atitude modesta e o seu garboso porte.
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A duquesa deu uma conrente de ouro a Catalina e o duque, para não lhe ficar atrás, tirou um anel do dedo e ofereceu-o a Diego. Alonso foi ricamente recompensado e a companhia, fatigada mas satisfeita, tomou o caminho da estalagem. Pouco depois foram alcançados pelo cavaleiro e pelo seu escudeiro. Apeou-se aquele com os seus movimentos rígidos e, tomando a mão de Catalina, acrescentou os seus cumprimentos aos que ela já havia recebido.
- Chegou muito a tempo, senhor cavaleiro - disse Alonso -, de me ouvir fazer uma proposta a estes moços. - E, voltando-se para Catalina: - Convido-a para fazer parte da minha "tnoupe".
- Eu? - fez Catalina, estupefacta.
- Embora ainda lhe falte aprender tudo, a senhora possui talentos que seria pecado malbaratar. Não sabe representar. Diz o seu papel como o faria na vida real. Isso é tolice. O teatro não lida com o verdadeiro, mas com o verosímil, e é só por meio do artifício que o actor pode ser natural. Os seus gestos não têm amplidão e a senhora ainda precisa de adquirir autoridade. O bom actor domina o público até com o seu silêncio. Se quiser colocar-se nas minhas mãos eu farei de si a maior actriz da Espanha.
- -A sua proposta surpreende-me de tal modo que mal posso crer seja ela feita a sério. Sou uma mulher casada e vou com meu marido para Sevilha, onde nos garantem uma ocupação honesta.
Alonso Fuentes notou o olhar que ela dirigiu a Diego e voltou-se para este com um sorriso.
- O senhor tem uma bela aparência e modos distintos,
moço. Tudo leva a crer que, com a experiência, possa tornar-se útil em papéis apropriados.
Os aplausos com que fora recebido o seu desempenho e os cumprimentos que recebera haviam emocionado Catalina, a quem essa inesperada oferta não causou pequeno alvoroço. Notou, porém, que o marido não gostara do modo displicente com que Alonso propusera incluí-lo na combinação e apressou-se a dizer:
- Ele sabe cantar como um anjo!
- Melhor ainda. São raras as peças que não contenham uma canção ou duas para animar a acção. Então, que acham? A oportunidade que lhes ofereço é, sem dúvida, mais tentadora do que a ocupação, honesta talvez, mas certamente modesta, que os espera em Sevilha.
O cavaleiro, que durante esse tempo ficara sentado em silêncio, a escutar, assumiu então a palavra:
- A proposta que Mestre Alonso acaba de vos fazer não é das que podem ser enjeitadas às pressas. Senão, reflitam: estais sendo perseguidos pela fúria de vossos pais ultrajados, que não se deterão diante de coisa alguma para vos arrancar aos braços um do outro. Mas o tempo apazigua a ira, e há-de chegar o dia em que esses pais lamentarão a vossa perda, arrependendo-se de vos ter querido impor alianças repulsivas, quer por ambição quer por cobiça. Reconquistareis não apenas o seu amor,, mas a categoria e posição a que vos dá direito o vosso alto nascimento. Enquanto isso não suceder, porém, será prudente esconder-vos, e que melhor esconderijo há para vós de que uma "troupe" de actores? E não julgueis que vos rebaixais aparecendo no palco. Tanto os que escrevem peças de teatro como os que as representam são merecedores do nosso
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afecto e estima, pois trabalham para o bem da comunidade. Colocam diante dos nossos olhos uma imagem animada da vida humana,, mostrando-nos o que somos e o que devíamos ser. Ridicularizam os vícios e fraquezas dos nossos tempos e não regateiam louvores ao que louvores merece, isto é, a honra, a virtude e a beleza. Os comediógrafos aperfeiçoam-nos a inteligência com o seu espírito e a sua sabedoria, enquanto os actores refinam os nossos costumes com a graça do seu porte e a dignidade das suas atitudes.
E nesse teor continuou a falar ainda durante algum tempo. Todos se assombravam de ver que um homem tão doido que ninguém podia achar explicação para os seus actos era, no entanto, capaz de expressar-se com tanto bom senso.
- E não esqueçamos - concluiu ele -, que uma comédia análoga às que vemos levadas à cena nos palcos dos teatros é também representada no palco do mundo. Todos nós somos actores de uma peça. A alguns cabe-lhes em sorte o papel de reis ou prelados, a outros o de mercadores, soldados ou agricultores, e cada um deve tratar de representar a parte que lhe foi designada. Escolhê-las., porém, compete a um poder mais alto.
- Que achas tu, meu amado? - perguntou Catalina com o seu sorriso mais encantador. - Como diz com muito acerto o cavaleiro, não é uma oferta que se possa enjeitar levianamente.
Na reailidade, já se havia resolvido a aceitá-la, mas não ignorava que os homens gostam de pensar que resolvem os seus assuntos por si mesmos.
- Não somente me prestarão auxílio na minha difícil situação - disse Alonso -, mas também vão lucrar muito
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com isso, pois visitarão comigo as mais famosas cidades da Espanha.
Os olhos de Diego cintilaram. Bem percebia que aquilo seria muito mais divertido do que passar doze horas por dia sentado num banco de alfaiate.
- Sempre desejei correr mundo - disse ele.
- E hás-de fazê-lo, meu querido - volveu Catalina. - Mestre Alonso, nós teremos muito prazer em ingressar na sua companhia.
- E ainda será uma grande actriz.
- Olé, olé! - gritaram os outros membros da companhia. Alonso mandou trazer vinho e todos beberam à saúde dos novos camaradas.


XXXIII.

No dia seguinte, após se despedirem cortesmente do cavaleiro, partiram os actores ambulantes para a cidade vizinha de Manzanares, onde se estava realizando uma feira e, por tal motivo, tinham a certeza de encontrar um público numeroso. Alonso havia alugado mulas para os actores montarem e para carregar as arcas onde eram transportadas as suas roupas e costumes de teatro. Catalina e Diego iam no cavalo que lhes dera Dona Beatriz. Incluindo Diego e o próprio Mestre Alonso, eram sete os homens da companhia, e além de Catalina e da "duena" havia um menino que representava papéis femininos secundários. Fazia ele também o ofício de pregoeiro, e quando chegavam a uma cidade onde pretendíam dar espectáculo, enquanto Alonso se dirigia ao prefeito para solicitar licença,
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ele percorria as ruas batendo num tambor e anunciando à população que a famosa "troupe" de Alonso Fuentes ia dar uma representação da magnífica, espiritual e imortal peça Tal-e-tal.
Como naquele tempo não houvesse teatros na Espanha, as peças eram representadas em pátios, onde as janelas e sacadas das casas circunvizinhas podiam servir de camarotes para as pessoas nobres e gradas. Fazia de tecto o céu de anil, salvo no rigor do Verão, quando se estendia de telhado a telhado um toldo contra o sol. Em frente do palco colocavam-se alguns bancos, em volta do pátio mais outros, dispostos em degraus, para a respeitável classe média. O vulgo ficava em pé, com os homens na frente e as mulheres atrás, comprimidas dentro de uma espécie de curral. Tanto por medo aos incêndios como no interesse da moral, os espectáculos realizavam-se à tarde. Consistia o cenário num simples pano preto e as mudanças de cena eram anunciadas pelos próprios actores.
A fuga da mulher de Alonso com o galã levou-o a mudar de itinerário,, e depois de trabalhar em Manzanares a companhia dirigiu-se para Sevilha, onde Alonso sabia poder encontrar um actor capaz de representar os papéis que lhe estavam vedados pela idade e pelo físico. Foram em primeiro lugar à opulenta Ciudad Real, e desta a Valdepenas. Escalaram a Sierra Morena e entraram na Andaluzia pelo rochoso desfiladeiro chamado Puerto de Despenaperras. Atravessaram o Guadalquivir e afinal chegaram a Córdova, onde deram espectáculos durante uma semana,. Descendo então por algum tempo o nobre rio, foram a Carmona, onde deram uma representação, e finalmente alcançaram Sevilha. Mestre Alonso contratou o actor que desejava e demoraram-se um mês na cidade, após o que saíram novamente em giro pelo país. Era uma dura existência.
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Dormiam em estalagens miseráveis, onde as camas eram tão duras e imundas que, embora cansados e extenuados pelo calor do Verão ou enregelados até aos ossos pelo frio do Inverno, preferiam muitas vezes deitar-se no chão. Eram picados pelas pulgas, sugados pelos mosquitos, atormentados pelos percevejos e importunados pelos piolhos. Quando iam dar um espectáculo, levantavam-se ao nascer do sol para estudar os seus papéis.. Ensaiavam das nove até ao meio-dia, almoçavam e iam para o teatro, de omde só voltavam às sete. E ainda depois disso, se a sua presença era solicitada por pessoas importantes, um prefeito, um juiz ou um nobre que estivesse a dar alguma festa, por mais moídos que estivessem tinham de deslocar-se para lá e dar mais uma representação. Alonso Fuentes era um feitor de escravos e tão cedo descobriu que Catalina era hábil na- agulha e Diego, um bom alfaiate, encarregou-os, sempre que não tivessem outra ocupação, de fazer ou reformar os costumes necessários ao repertório, que constava de dezoito peças. Não lhe foi preciso muito tempo para perceber que Diego, apesar da sua bela aparência e da sua desenvoltura, jamais daria um bom actor. Contentou-se, pois, em encarregá-lo das canções de que eram entremeadas as peças e em dar-lhe pequenos papéis. Mas, por outro lado, esforçava-se em fazer uma actriz de Catalina. Conhecia o seu ofício e possuía uma viva intuição do efeito teatral. Ela era boa aluna e tinha a (inteligência pronta, de modo que, sob o treinamento intensivo e às vezes brutal do empresário, transformou-se com o tempo, de hábil amadora, em competente profissional. Alonso teve o prémio dos seus trabalhos, pois ela caiu nas boas graças do público e trouxe prosperidade à companhia. Ele aumentou a "troupe" e estendeu o repertório.
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Entre outros, contratou uma jovem actriz chamada Rosália Vásquez, em parte para consolá-lo da perda da esposa e em parte para desempenhar papéis secundários, pois o menino que costumava fazer esses papéis já havia perdido a voz de tiple e já começava a barbear-se. Além disso, Catalina já tivera dois filhos e fazia-se necessário ter uma actriz bastante boa para a substituir nessas ocasiões em que era obrigada a desaparecer do cartaz.
Assim se passaram três amos trabalhosos e felizes. Já então Catalina havia aprendido tudo quanto Alonso Fuentes era capaz de ensinar-lhe e, como tivesse duas crianças de quem cuidar, começou a achar aborrecida aquela existência de nómada. A sua beleza e o seu talento haviam chamado a atenção de pessoas influentes, e mais de uma insinuou que ela e Diego deviam formar uma companhia própria e estabelecer-se em Madrid. Alguns, cheios de admiração pelos seus talentos, foram ao ponto de oferecer-lhes auxílio financeiro. Ora, acomtece que Afonso Fuentes não era apenas empresário, director e actor, mas também autor, e por ano - em geral durante a Quaresma, quando eram proibidas as representações teatrais - produzia duas ou três peças. Catalina não deixara de notar que nessas peças, que ele escrevia supostamente com o fim de a mostrar sob a luz mais vantajosa possível, os papéis destinados a Rosália Vásquez tendiam a adquirir uma importância cada vez maior. Na última, até, os papéis respectivos eram quase do mesmo tamanho e só o talento superior de Catalina fez com que ela parecesse mais importante. Quando ela expressou o seu desagrado, o que não hesitou fazer, Alonso encolheu os ombros e riu.
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- Minha querida, quando se dorme com uma mulher, é necessário trazê-la de bom humor.
Isto, aiinda que visivelmente verdadeiro, não era satisfatório. Embora não fosse excessivamente exigente em pontos de moral, Catalina achava justo que uma mulher casada e respeitável tivesse melhores papéis do que outra, que não passava de uma pinóia.
- Isso não pode continuar assim - disse ela a Diego.
E Diego concordou. A ideia de ter uma companhia própria era tentadora, porém Catalina bem percebia as dificuldades com que ela e Diego teriam de lutar. Era muito estimada na companhia e tinha plena certeza de que alguns dos seus camaradas acolheriam com satisfação a ideia de irem para Madrid com ela. Munida de fundos suficientes, poderia contratar outros actores por lá, comprar os costumes necessários e adquirir algumas peças. Mas a exigência do público madrileno era bem conhecida: fazia-se-lhe mister não só o dinheiro de seus amigos mas também a sua influência. Diego era inteiramente favorável à aventura;, mas sua mulher sabia que, descontente com os pequenos papéis que Alonso lhe designava, ele se consideraria, como empresário, no direito de escolher para si os papéis que lhe agradassem. Embora continuasse a amá-lo com a mesma paixão de sempre, não estava convencida de que ele tivesse competência para desempenhar os papéis de primeiro plano pelos quais suspirava, e previa que teria muito trabalho para conseguir que ele consentisse em dá-los a um actor conhecido. Hesitava. Os dois conversavam interminavelmente, sem poder chegar a uma decisão. Um belo dia Catalina teve a luminosa ideia de mandar chamar Domingo Pérez para lhe pedir conselho. Ele já fora actor, escrevera peças,
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e se finalmente resolvessem organizar uma companhia podiam incluir no repertório uma ou duas produções suas e ele sem dúvida alguma pô-los-ia em contacto com outros autores. Com a aprovação de Diego, ela escreveu-lhe. Já o tinha feito três ou quatro vezes, da primeira para lhe dizer que estava casada, bem de saúde e feliz, e das outras para anunciar o nascimento dos filhos; mas, sabendo o desgosto que isso causaria à sua mãe, achou melhor ocultar que ela e Diego se haviam tornado actores ambulantes. Dessa vez pediu-lhe, sem entretanto mencionar nenhum motivo especial para isso, que os fosse visitar a Segóvia. Estavam passando ali a Quaresma, em parte porque era a cidade natal de Alonso, mas principalmente porque a companhia fora contratada para representar na Páscoa um drama religioso na catedral e estava a ensaiá-lo. Era a mais recente produção de Alonso, que escolhera como assunto a vida de Maria Madalena.


XXXIV.

Domingo, sempre satisfeito com uma oportunidade de dar um passeio, alugou um cavalo assim que recebeu a carta de Catalina, meteu um farnel e um par de camisas nos alforjes e pôs-se na estrada. Ao chegar a Segóvia ficou satisfeito de encontrar Catalina, o marido e os dois filhos instalados num alojamento condigno e encantou-se de vê-la ainda mais bonita que antes. Tinha ela então dezanove anos. O êxito, a felicidade e a maternidade combinavam-se para lhe dar confiança em si e uma certa dignidade, mas ao mesmo tempo
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notava-se-lhe um quê de terno e voluptuoso que era extremamente sedutor. O seu rosto havia perdido o tocante ar infantil, mas ganhara maior perfeição de linhas. A sua figura era esbelta como sempre e ela movia-se com uma graça enfeitiçadora. Era uma mulher, mulher muito moça sem dúvida, mas mulher de carácter, segura de si e cônscia da sua beleza.
- Vocês têm um ar muito próspero, minha querida - disse ele. - Como ganham a vida?
- Depois falaremos nisso - respondeu Catalina. - Primeiro diga-me como vai minha mãe, como vão todos em Cas-tel Rodríguez, o que aconteceu depois da nossa fuga e como vai Dona Beatriz.
- Uma coisa de cada vez, pequena! - sorriu ele. - E não esqueças que eu fiz uma longa jornada e estou com sede.
- Corre a casa do Rodrigo buscar uma garrafa de vinho, meu querido - disse Catalina. Domingo sorriu ao vê-la remexer debaixo das saias e, tirando dali uma bolsa, dar algumas moedas a Diego.
- Não demoro nem um minuto - disse este, saindo.
- Vejo que és prudente, minha querida - observou Domingo arreganhando os dentes.
- Não tardei muito a descobrir que não se pode confiar dinheiro aos homens, e quando um homem não tem dinheiro não pode fazer asneiras - riu ela. - Mas responda agora às minhas perguntas.
- A tua mãe está com saúde, manda-te lembranças, a sua
piedade é exemplar, e é sem dúvida por esse motivo que a
prioresa lhe dá uma pensão e ela já não é obrigada a trabalhar.
Disse estas coisas com os olhos a cintilar, e Catalina riu-se
de novo. Esse riso era tão franco e ao mesmo tempo tão
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musical que Domingo, no seu estilo poético, o comparou ao rumorejar da água numa torrente das montanhas.
- Houve grande comoção em Castel Rodríguez depois que desapareceste - continuou ele. - Já não havia ninguém que te defendesse, minha pobre pequena, e tua mãe estava desesperada. Somente quando a freira Dona Ana veio dizer que a prioresa tencionava prestar-lhe auxílio financeiro é que tua mãe pôde consolar-se do teu mau procedimento. Durante dez dias não se falou em outra coisa. As freiras ficaram horrorizadas ao ver que, depois da bondade que Dona Beatriz tinha mostrado para contigo, depois do grande favor que estava disposta a prestar-te, tinhas a coragem de lhe fazer semelhante afronta. As pessoas importantes da cidade foram ao convento apresentar-lhe as suas expressões de simpatia, porém ela estava tão contristada que não quis recebê-las. Consentiu, entretanto em falar com Don Manuel, e ninguém sabe o que se passou entre eles, A irmã leiga que a( serve ouviu vozes acaloradas e enfurecidas, mas embora aguçasse o ouvido não pôde distinguir Uma só palavra, e pouco depois Don Manuel saiu da cidade. Há muito tempo que eu te haveria escrito contando essas coisas se me tivesses dado o teu endereço.
- Impossível! Andávamos de um lugar para outro e eu só sabia para onde íamos no momento em que nos púnhamos a caminho.
- Mas porquê isso?
- Não adivinha? Quantas vezes me falou no tempo em que vagueava por toda a Espanha,, sob o sol escaldante do Verão, no frio enregelador do Inverno, descalço não porque quisesse poupar os sapatos mas porque tinha gasto o único par que possuía, e com uma só camisa para vestir?
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- Deus do céu, vocês por acaso serão actores ambulantes?
- Meu pobre tio, eu sou a actriz principal da célebre companhia de Alonso Fuentes, enquanto Diego é camtor e dançarino, e muito melhor actor do que Alonso quer reconhecer.
- Porque não me contaste isso antes? - exclamou Domingo. - Eu teria trazido comigo uma dúzia de peças.
Nesse momento Diego voltou com o vinho e, enquanto Domingo bebia, Catalina contou-lhe como se haviam tornado actores.
- E todos acham - concluiu ela -, que eu sou actualmente a melhor actriz da Espanha. É verdade ou não é, Diego da minha alma?
- Eu me encarrego de cortar a goela de qualquer um que se atreva a negá-lo.
- Não resta dúvida de que estou malbaratando o meu talento na província.
- Vivo dizendo à rapariga que o nosso lugar é em Madrid - disse Diego. - Alonso tem ciúmes de mim e não me quer dar os papéis em que eu teria ocasião de distinguir-me.
Como se vê, nenhum dos dois sofria dessa falsa modéstia que muitas vezes é o flagelo de um artista. Passaram então a expor a Domingo os seus planos. Este era um homem prudente e, depois que terminaram de falar, disse que não podia aconselhá-los enquanto não os visse trabalhar.
- Venha ao ensaio amanhã - disse Catalina. - Estou a fazer de Maria Madalena na nova peça de Alonso.
- Não faltarei. Gostas do papel? Ela encolheu os ombros.
- Nem tanto. É bastante bom no começo, mas cai no último acto. Eu não apareço nas três últimas cenas. Disse a
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Alonso que, como sou o assunto da peça, devia aparecer ao fim, mas ele respondeu que tinha de se ater à Santa Escritura. A verdade é que o pobre homem não tem imaginação.
Diego conduziu Domingo à taberna frequentada por Alomso Fuentes e outros componentes da "troupe", e apresentou-o não só como tio de Catalina mas também como antigo actor e actualmemte comediógrafo. Alonso recebeu-o com muita cortesia e o velho escrevinhador não tardou a conquistar as simpatias da "troupe" com o seu espírito, e seu bom humor e as histórias da dura existência que levava um actor ambulante nos velhos tempos, Alonso consentiu em que ele assistisse a um ensaio e Domingo lá foi no dia seguinte.
Admirou-se da naturalidade com que Catalina dizia as suas réplicas, da eloquência dos seus gestos e da graça dos seus movimentos,. Alonso fora bom mestre. Ela possuía bom ouvido para a poesia e uma voz encantadora. Tinha alegria e patético. Tinha sinceridade. Tinha força. Era pasmoso que em três anos houvesse aprendido tão completamente a -técnica da sua arte. Parecia incapaz de dar um tom falso. Nela, os dotes naturais, a perícia adquirida, o autodomínio que a experiência lhe ensinara,, tudo era maravilhosamente realçado pela sua grande beleza.
Terminado o ensaio, Domingo beijou-a nas duas faces.
- Minha preciosa, tu és quase tão boa actriz quanto julgas ser.
Ela atirou-lhe os braços em volta do pescoço.
- Oh! tio, tio! Quem diria, quando eu era criança e nós costumávamos recitar as cenas de Lope de Vega, que um dia haviam de disputar os lugares para me ver representar? E o
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senhor por enquanto só assistiu a um ensaio. Espere até que me veja diante do público!
Diego fazia João, o Discípulo Amado, um papel pequeno. Ele era um tipo simpático, mas sem cor. Quando se apresentou um ensejo, Domingo perguntou a Alonso o que pensava dele.
- Tem boa apresentação., mas nunca será um actor. Só o deixo trabalhar para ser agradável a Catalina. Que bom seria se os actores e as actrizes não casassem entre si! Isso é o que atormenta a vida dos empresários.
Tal opinião, porém, não impediu que Domingo aconselhasse Catalina e Diego a que abandonassem Alonso sem receio e se instalassem por conta própria em Madrid. Durante as vinte e quatro horas que passara com eles tinha observado a sensatez de Catalina e estava seguro de que ela não poria em perigo o seu êxito deixando Diego representar papéis aos quais não pudesse fazer justiça. Fosse como fosse, ela havia de dispor as coisas de modo que redundassem em mútua satisfação.
Não era,, todavia, apenas o desejo de ver a sobrinha, e o marido desta que levara Domingo a empreender a árdua jornada de Castel Rodríguez a Segóvia. Esperava encontrar-se também com o seu velho amigo,, Don Blasco de Valero. Estava curioso de saber como se havia o bispo na sua elevada posição. Durante os próximos dias, pois, enquanto Diego e Caitalina se atarefavam com os ensaios, andou ele vagueando pela cidade e, com o seu dom de entabular agradáveis palestras, conseguiu travar conhecimento com muitas pessoas. Soube, por estas, que a grande maioria dos habitantes olhava o bispo com veneração. Admiravam-lhe a piedade e a vida austera. A notícia dos milagrosos acontecimentos de Castel Rodríguez havia alcançado Segóvia e o povo enchera-se de pasmo e respeito. Mas
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também contaram a Domingo que ele provocara a hostilidade do capítulo e do oleiro da cidade. Indignara-se ante a licença dos seus costumes e a negligência com que muitos deles cumpriam os seus deveres religiosos. Com muito zelo, mas pouco tacto, deu início a uma veemente campanha de reforma. Não tinha contemplação com aqueles que não se emendavam e, como outrora em Valência, não queria saber com quem estava tratando. O oleiro, com poucas excepções, ressentiu-se amargamente dessa áspera intolerânciai e lançou mão de todos os métodos que a sua subtileza podia imaginar para estorvar-lhe a actuação. Os ousados desafiavam-no abertamente, o resto contentava-se com uma resistência passiva. O povo aprovava-lhe o rigor., justificado pela sua virtude, e fazia o possível para ajudá-lo. Houvera em razão disso algumas ocorrências lamentáveis e as autoridades foram obrigadas a intervir. Ele não trouxera- paz a Segóvia, mas espada.
Domingo tinha chegado no começo da Semana Santa e sabia que durante esse período os deveres do cargo impediriam o bispo de recebê-lo. Foi só na quarta-Feira seguinte, portanto, que se apresentou no palácio episcopal. Era um edifício importante e severo, com uma fachada de granito. Domingo deu o nome ao porteiro e, ao cabo de alguma espera, fizeram-no subir uma escadaria de pedra, atravessar frios aposentos de tecto elevado, escassamente mobilados e onde se viam, pelas paredes, quadros religiosos de um tom escuro e sombrio. Mas o aposento em que afinal o introduziram não era maior do que uma cela. Não tinha outros móveis além de uma mesa de escrever e duas cadeiras de encosto alto. Sobre a parede pendia a cruz negra dos dominicanos. O bispo levantou-se e abraçou calorosamente Domingo.
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- Cuidei que nunca mais nos tornássemos a encontrar, irmão - disse ele com uma cordialidade afectuosa que surpreendeu Domingo. - Que foi que te trouxe a esta cidade?
- Sou um tipo irrequieto, tenho veia de andarilho.
O bispo, que trajava como sempre o hábito da sua ordem, havia envelhecido. Estava emaciado, o rosto cheio de rugas tinha um ar atormentado e os olhos haviam perdido a chama. Não obstante esses sinais de decrepitude,, porém, havia qualquer coisa de luminoso no seu aspecto, uma mudança de expressão que Domingo percebia mas não podia definir. Não saberia explicar porquê, mas aquilo lembrava-lhe o arrebol da tarde, quando o sol se pôs ao cabo de um longo dia de Verão. O bispo convidouo para sentar-se.
- Há quanto tempo estás aqui, Domingo?
- Uma semana.
- E esperaste tanto para me visitar? Não foste gentil.
- Não queria importunar-te, mas vi-te mais de uma vez. Nas procissões da Semana Santa,, na catedral, tanto na Sexta-Feira de Paixão como na Páscoa, e por último durante o espectáculo.
- Tenho horror a essas representações na Casa do Senhor. Em outras cidades de Espanha isso faz-se na praça, por ocasião das festas da Igreja, e eu não as condeno, visto que edificam o povo, mas o Aragão é tenaz na observância dos seus antigos costumes, e a despeito dos meus protestos o capítulo insistiu em que elas se realizassem na catedral, como se vem fazendo desde tempos imemoriais,. Só fui assistir porque era meu dever de ofício.
- A peça era muito reverente, querido Blasco. Nada havia nela que te pudesse ofender.
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A fronte do bispo contraiu-se numa carranca.
- Quando cheguei aqui, reinava uma horrível incúria entre aqueles cujo dever é desempenhar as suas funções e dar bom exemplo ao povo. Alguns cónegos da catedral havia anos que estavam ausentes da cidade, grande parte do clero secular viviam em franca imoralidade, nos conventos a regra não era observada com o devido rigor e a Inquisição tinha renunciado à sua vigilância.. Resolvi pôr termo a esses abusos, mas tive de fazer frente ao ódio, à malícia e à obstrução. Consegui restabelecer um certo decoro, mas queria que eles se portassem bem por amor a Deus: se se portam de maneira menos escandalosa do que antes, é apenas por temor a mim.
- Ouvi falar disso na cidade - respondeu Domingo. - Contaram-me que tinham procurado afastar-te daqui.
- Se soubessem como eu ficaria contente se o tivessem conseguido!
- Mas tens esse consolo, meu bom amigo: o povo estima-te e venera-te.
- Pobres criaturas, mal sabem o quanto eu sou indigno da sua veneração.
- Eles louvam o ascetismo da tua vida e a tua caridade para com os pobres. Ouviram falar do milagre de Castel Rodríguez. Consideram-te um santo, irmão, e quem sou eu para censurá-los?
- Não mofes de mim, Domingo.
- Ah! meu caro amigo, eu quero-te de mais para isso!
- Não seria a primeira vez - volveu o bispo com um sorriso que tinha qualquer coisa de patético. - Durante estes três anos, muitas vezes tenho pensado no nosso último encontro e no que tu me disseste. Naquela ocasião não me detive a
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considerá-lo. Parecia-me apenas uma daquelas conversas cínicas e paradoxais a que sempre foste dado. Mas depois que vim para cá, na solidão deste palácio, vivo sob a obsessão das tuas palavras. Tenho sido torturado pela dúvida. Tenho perguntado a mim mesmo se é possível que meu irmão, o padeiro, cumprindo modestamente o seu dever na posição humilde que ele escolheu, tenha servido a Deus melhor do que eu, que entre preces e mortificações devotei a minha vida ao Seu serviço. Nesse caso, pensem os outros o que quiserem, e apesar do que eu próprio julguei num momento de arroubo, não fui eu quem realizou aquele milagre, e sim Martin.
O bispo calou-se e considerou Domingo com um olhar perscrutador.
- Fala - pediu ele. - Fala, e pelo amor que me tiveste outrora dize a verdade.
- Que queres que eu te diga?
- Estavas seguro, naquela ocasião, de que a pessoa escolhida para efectuar a cura da pobre menina era meu irmão. Ainda tens a certeza disso?
- A mesma certeza.
- Então porque me foi concedido aquele sinal que dissipou as minhas tímidas hesitações? Por que motivo a Santíssima Virgem fez uso de palavras a que era tão fácil dar uma interpretação errada?
Tão grande era a sua angústia, que, como já sucedera uma vez, Domingo sentiu-se tomado de piedade. Queria consolá-lo, mas tinha escrúpulo de dizer o que pensava. Conhecia a inflexível integridade de Don Blasco e não era nada improvável que o seu sentimento de dever o obrigasse a comunicar ao Samto Ofício toda a palavra, mesmo pronunciada por um
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amigo, que parecesse requerer investigação. O velho seminarista não tinha o menor desejo de ser mártir das suas opiniões.
- És um homem com quem é difícil falar franco, meu caro. Eu não quero dizer nada que possa ofender-te.
- Fala, fala! - exclamou o bispo, com certa impaciência.
- Lembras-te que, na ocasião a que te referiste há pouco, eu te disse o quanto me admirava de que entre os infinitos atributos que os homens dão a Deus, nunca houvessem pensado em incluir o senso comum? Mas há outro ainda que lhes passou inteiramente despercebido, e no entanto, se é que uma criatura pode abalançar-se a julgar dessas coisas, ele é ainda mais valioso do que o outro. Sem ele, a omnisciência seria incompleta e a compaixão repulsiva. É a veia humorística.
O bispo teve um leve estremecimento e abriu a boca para falar, mas conteve-se.
- Escandalizei-te, irmão? - perguntou Domingo em tom sério, mas com uma centelha apenas perceptível no olhar. - O riso não é a menos preciosa entre as dádivas que Deus nos concedeu. Ele alivia os fardos que temos de carregar às costas neste mundo adverso e permite que suportemos com fortaleza de ânimo muitas das nossas aflições. Porque negar o senso de humor a Deus? Será irreverência supor que Ele sorria lá no Seu íntimo quando fala em enigmas para dar uma lição salutar aos homens que se enganam ao interpretá-lo?
- Tu exprimes essas coisas de modo muito estranho, Domingo, e contudo não encontro no que dizes nada que um bom cristão deva rejeitar.
- Estás mudado, irmão! Será possível que a velhice te haja ensinado a ser tolerante?
O bispo lançou-lhe um olhar rápido e inquiridor, como se.
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surpreendido com aquela observação, perguntasse consigo o que queria dizer o seu amigo. Baixou depois o olhar para o pavimento de pedra nua. Parecia mergulhado em reflexão. Ao cabo de algum tempo alçou os olhos e fixou-os em Domingo, como se desejasse falar, mas sem poder decidir-se.
- Aconteceu-me uma coisa muito estranha - disse afinal -, e até agora não ousei falar nisso a ninguém. Talvez a Providência te haja enviado hoje aqui para permitir que eu desabafe contigo, pois tu, meu pobre Domingo, és o único homem do mundo a que posso dar o nome de amigo.
Tornou a hesitar. Domingo esperava, observando-o com atenção.
- Como bispo da diocese, fui obrigado a assistir ao espectáculo dado na minha catedral. Alguém me disse que se tratava da vida de Santa Maria Madalena, mas eu não era obrigado a ouvir nem a olhar. Alheei o espírito e rezei. Mas tinha a alma cansada e inquieta. Assim tem sido sempre, desde que vim para esta cidade. Tenho sofrido de distracção e dissipação espiritual. Sentia-me despojado de tudo, incapaz de amor e de esperança. O meu entendimento estava toldado, a fonte da minha vontade como que havia secado e eu não encontrava consolação nas coisas divinas. Rezava, como nunca havia rezado até então, para que Ele houvesse por bem socorrer-me na minha profunda angústia. Não prestava atenção às coisas que me cercavam. Estava a sós com a minha mágoa. De repente fui surpreendido por um grito e lembrei-me do lugar onde me achava. Era um grito tão comovente, tão prenhe de significação que fui forçado a escutar mau grado meu. Recordei-me então de que estavam representando um drama. Ignoro o que se tinha passado antes, mas comecei a escutar e compreendi
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que eles haviam chegado ao ponto em que Maria Madalena e Maria, mãe de Tiago, levando aromas e bálsamo, se dirigiram para o sepulcro onde José de Arimaiteia depositara o corpo de Jesus e viram que a pedra tinha sido afastada. Penetraram no interior do sepulcro e não encontraram o corpo de Jesus. E como estivessem ali, cheias de perplexidade, um viandante, discípulo de Jesus, aproximou-se delas e Maria Madalena disse-lhe o que ela e a outra Maria tinham visto. Então, como esse homem ignorasse por completo os terríveis acontecimentos que se haviam passado, ela contou-lhe a captura, o julgamento e a ignominiosa morte do Filho de Deus. A descrição era tão vívida, as palavras tão bem escolhidas e o verso tão melífluo que, ainda que não quisesse, eu teria sido forçado a escutar.
Domingo, com a respiração presa, inclinou-se sofregamente para ele.
- Ah! como estava acertado o nosso grande imperador Carlos ao dizer que o espanhol era a única língua em que nos devíamos dirigir ao Senhor! A narração seguia o seu curso, verso após verso. Havia uma ardente indignação na voz da mulher que representava Maria Madalena quando ela falou da traição feita a Jesus; uma cólera furiosa apossou-se da multidão na catedral, e puseram-se a rogar pragas ao traidor; a voz dela embargou-se de angústia quando contou como haviam fustigado Nosso Senhor, e o povo exclamava de horror; mas quando ela falou da agonia na cruz, eles puseram-se a bater no peito e a soluçar em voz alta. Tamanha era a dor que vibrava naquela voz de ouro, tal era a sua emoção dilacerante que as lágrimas deslizaram-me pelas faces. A minha alma estava em tumulto. Meu espírito tremia como tremem as folhas de uma árvore a uma súbita rajada de vento. Sentia que qualquer coisa
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de estranho estava prestes a acontecer-me e tinha medo. Ergui os olhos e fiteinos na moça que pronunciava aquelas palavras adoráveis e cruéis. Era de uma beleza como nunca vi igual na terra. Não era uma mulher que estava ali a torcer as mãos, com os olhos banhados de lágrimas; não era uma actriz, mas um anjo descido dos Céus. E enquanto eu olhava, como que enfeitiçado, de repente um raio de luz trespassou a escuridão em que a minha alma havia definhado por tanto tempo; penetrou-me no coração e fui arrebatado em êxtase. Era uma dor tão grande que pensei morrer, mas ao mesmo tempo era um prazer tão delicioso! Sentia-me libertado do corpo e completamente alheio à carne. Naquele ditoso momento experimentei a maravilhosa paz que sobrepuja todo o entendimento. Bebi da sabedoria divina e conheci os Seus segredos. Sentia-me repleto de tudo quanto é bem e vazio de tudo quanto é mal. Não posso descrever esse estado de ventura. Não tenho palavras para exprimir o que vi, o que senti e o que compreendi. Possuía a Deus e, n'Ele possuía todas as coisas.
O bispo reclinou-se na cadeira e o seu rosto iluminou-se à recordação dessa grande experiência.
- Os anseios da esperança já não afligem a minha alma. Ela satisfaz-se na união com Deus, tamto quanto isso é possível nesta vida, e já nada tem para esperar deste mundo e nenhum bem espiritual que desejar. Escrevi uma carta a Sua Majestade rogando-lhe que me permita renunciar aos meus cargos e dignidades eclesiásticas;, a fim de poder retirar-me para um convento da minha ordem e ali passar o resto da vida em preces e em contemplação.
Domingo não pôde mais conter-se.
- Blasco, Blasco, a moça que fez o papel de Maria Madalena
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é minha sobrinha Catalina Pérez! Ao fugir de Castel Bodriguez ela entrou para a companhia de Alonso Fuentes.
O bispo encarou-o com assombro. Estava estupefacto. Depois sorriu com uma doçura que Domingo nunca lhe havia notado.
- Na verdade, os caminhos de Deus são inescrutáveis. De que estranhos instrumentos lançou Ele mão para me conduzir à minha meta! Através dela feriu-me, e através dela curou-me. Bendita seja aquela que a pôs no mundo e toda a glória seja rendida ao Senhor, pois quando ela disse aquelas palavras celestiais era Ele que a inspirava,. Até ao último dia lembrar-me-ei dessa moça nas minhas gratas orações.
Nesse momento entrou na cela padre António, que ainda era secretário do bispo. Relanceou os olhos para Domingo, mas não deu sinal de reconhecê-lo. Dirigiu-se ao bispo, murmurando-lhe qualquer coisa ao ouvido. Don Blasco suspirou.
- Está bem, vou recebê-lo. - E a Domingo: - Sinto muito ter que despedir-me de ti, meu querido amigo. Mas tornaremos a ver-nos.
- Infelizmente, é impossível. Volto amanhã para Castel Rodríguez.
- Quanto o lastimo!
Domingo ajoelhou-se para beijar o anel do bispo, mas este ergueu-o do chão e beijou-o na face.

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XXXV.

Domingo voltou para a casa onde estava hospedado: um homem idoso e magriço, com grandes bolsas debaixo dos olhos, nariz avermelhado e menos de uma dúzia de dentes na boca, um velho réprobo de batina remendada, esverdeada pelos anos, coberta de manchas de vinho e gordura. Mas parecia andar nos ares. Nesse momento, como já dissera uma vez ao bispo, não teria trocado de lugar com o imperador ou com o papa. Falava sozinho em voz alta agitando os braços, e os passantes julgavam-no bêbedo. Estava-o com efeito, mas não de vinho.
- A magia da arte! - ria ele alegremente. - A arte também faz os seus milagres. "Et ego in Arcádia natus"!
Sim, porque era ele, o comediógrafo desprezado, o estróina e dissoluto, o autor daqueles versos que tão profunda impressão haviam causado no bispo. Eis como a coisa se havia passado:
Catalina não estava descontente com os dois primeiros actos da peça que Alonso tinha escrito para ela. O autor fazia-a amante de Pôncio Pilatos e no primeiro acto Maria Madalena aparecia sumptuosamente ajaezada, ufana da sua vida de pecado, extravagante, caprichosa, lasciva e mercenária. A sua conversão ocorria no segundo acto; havia ali uma boa cena em que, sabendo estar Jesus a jantar em casa de um fariseu, ela trazia um cofre de alabastro com unguento, lavava-Lhe os pés e ungia-os. O último acto passava-se no terceiro dia após a Crucifixão. Havia uma cena em que a mulher de Pilatos o censurava por ter permitido que se matasse um inocente, outra em que os discípulos lamentavam a morte do Mestre, e ainda outra em que Judas Iscariote ia à presença dos
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anciãos do Templo e arrojava ao chão as trinta moedas de prata que deles recebera para trair Jesus. Maria Madalena, porém, só aparecia no momento em que ela e Maria, mãe de Tiago, chegavam ao sepulcro e o encontravam vazio. Terminava a peça com os dois discípulos dirigindo-se para Emaús e sendo abordados por um desconhecido, em quem a seguir reconheciam Jesus ressuscitado.
Não era em vão que Catalina vinha fazendo papéis principais havia três anos. Quando descobriu que aparecia tão pouco no último acto, ficou indignada. Queixou-se a Alonso com acrimónia.
- Mas que é que eu posso fazer? - exclamou ele. - Nos dois primeiros actos quase não sais do palco. No terceiro não há ocasião para apareceres, a não ser nessa cena.
- Mas isso não tem nada que ver com o caso. O assunto da peça sou eu ou não sou? O público quererá ver-me, e se eu não aparecer a sua peça está perdida.
- Mas, minha querida, esta não é uma peça em que eu possa soltar as asas à imaginação. Tenho de me ater aos factos.
- Não nego, mas você é o autor. Se entende do seu ofício, deve ser capaz de imaginar alguma coisa em que eu tenha de entrar. Porque não poderia eu, por exemplo, entrar na cena entre Pôncio Pilatos e a mulher? Basta empregar um pouco de engenho.
Alonso começava a agastar-se.
- Mas, minha boa Catalina, tu és a amante de Pilatos. Achas provável que estivesses no palácio e presente a uma conversa íntima entre ele e a mulher?
- Não vejo porque não. Posso ter uma cena primeiro
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com a mulher de Pilatos, e será por causa do que eu lhe disse que ela irá censurar o marido.
- Nunca ouvi maior disparate! Se tentasses aproximar-te da mulher de Pilatos ela mandar-te-ia açoitar.
- Não, se eu me prostrasse aos pés dela e lhe pedisse perdão das minhas culpas passadas. Eu seria tão comovente que ela não poderia deixar de abrandar-se.
- Não, não, não! - gritou ele.
- Então porque não posso ir com os dois discípulos a Emaús? Sendo mulher, eu adivinharia quem é o desconhecido e ele, sabendo que eu o reconhecera, levaria o dedo aos lábios para me recomendar silêncio.
- Já te disse que não podes ir com os dois discípulos a Emaús! - rugiu Alonso. - Simplesmente porque tu não estavas com eles, de contrário isso viria no Evangelho. Desde quando escreves as minhas peças para mim!
Separaram-se um tanto acalorados nesse dia. Catalina estava inclinada a recusar o papel, mas sabia que nesse caso Alonso o daria a Rosália-, e nos dois primeiros actos o papel era tão sensacional que ela bem podia fazer sucesso com ele.
- Se ele tivesse escrito o papel para Rosália, não se atreveria a dar-lhe tão pouco que fazer no último acto - disse Catalina a Diego.
- Isso nem tem dúvida. Ele não está a tratar-te bem. Não te dá o devido valor.
- Tenho essa impressão desde que Rosália entrou na companhia.
Cheia de aborrecimento, Catallina queixou-se a Domingo antes mesmo de este ter visto a peça. Ele ouviu-a com simpatia e pediu para a ler. Cada actor só recebia o seu papel, enquanto
Alonso tinha o original completo, que ele guardava ciosamente a fim de evitar que alguém o copiasse para o vender a outro empresário.
- Alonso é vaidoso como um pavão - disse Catalina. - Vá procurá-lo amanhã depois do ensaio e diga-lhe que achou a peça tão maravilhosa que não descansará enquanto não a ler toda. Ele não resistirá à lisonja e emprestar-lhe-á o manuscrito.
Assim fez Domingo, e Alonso, desvanecido, mas sempre prudente, emprestou-lhe o manuscrito sob condição de restituí-lo dentro de duas horas. Depois de o ler, Domingo foi dar um passeio e ao voltar fez uma proposta a Catalina. Esta atirou-se nos seus braços e beijou-o.
- Tio da minha alma, o senhor é um génio!
- Um génio ignorado, como muitos outros - fez ele, arreganhando os dentes. - Mas ouve, minha filha, não vás cochichar a ninguém, nem mesmo a Diego, o que eu tenciono fazer, e no ensaio põe todo o teu talento no papel. Mostras-te amável e gentil para com Alonso, como se nunca tivesse havido um desentendimento entre vocês, e ele pensará que estás disposta a perdoar. Ensaiarás de maneira tão maravilhosa, que ele ficará contentíssimo contigo!
Haveria dois ensaios no sábado e mais um no Domingo de Páscoa, de manhã cedo. No sábado, após o primeiro ensaio, quando a companhia se dispersou para ir jantar, Catalina dirigiu-se a Alonso com os seus modos mais sedutores.
- Escreveste uma peça magnífica, meu Alonso. Quanto mais a conheço, mais extraordinário me parece o teu génio. Nem o grande Lope de Vega te supera. És um grande, um imenso poeta!
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Alonso desfez-se em sorrisos.
- Confesso que não estou de todo descontente com ela.
- Só lhe encontrei um pequenino defeito.
Alonso estremeceu e franziu o sobrolho, pois tal é a índole dos escritores que um grão de censura tem muito mais peso na balança do que uma arroba de louvor. Mas Catalina, toda genital, não lhe prestou atenção.
- Quanto mais ensaiio, mais me convenço de que cometeste um erro em não me dar maiores oportunidades no terceiro acto.
Alonso teve um gesto de irritação.
- Já discutimos isso que chega. Eu disse-te uma dúzia de vezes que nesse acto não há nenhum lugar onde possas ser encaixada.
- E tinhas razão, mil vezes razão! Mas escuta: eu sou actriz e sinto no fundo da alma que, quando estou junto ao sepulcro de Nosso Senhor ressuscitado, devia ter mais para dizer do que aquilo que tu me deste.
- E que queres tu dizer, por favor? - perguntou ele, indignado.
- Bem, ocorreu-me que faria excelente efeito se eu narrasse a história da traição, julgamento, crucifixão e morte de Nosso Senhor. Uns cem versos bastariam.
- E quem supões tu que escutará uma fala de cem versos nesse ponto da peça?
- Toda a gente, se eu os disser - replicou Catalina. - Farei o auditório bater no peito, chorar e exclamar. Um dramaturgo como tu não pode deixar de perceber o quanto seria impressionante uma cena assim naquele justo momento.
- Isso está fora de questão! - exclamou ele com impaciência.
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- Vamos representar amanhã. Como seria possível escrever cem versos e ensaiá-los em tão pouco tempo? Como poderias tu aprendê-los?
Catalina teve um sorriso encantador.
- Bem, acontece que meu tio e eu estivemos a conversar a esse respeito, e a beleza da peça inspirou-o a escrever os versos que, também na opinião dele, a cena exigia. E eu aprendi-os de cor.
- Você? - exclamou o empresário, dirigindo-se a Domingo.
- A eloquência da sua peça emocionou-me - respondeu este -, e fui como que possuído do seu espírito, de modo que a bem dizer era você quem segurara a minha pena.
O olhar de Alonso ia de um ao outro. Catalina notou que ele estava indeciso e tomou-lhe a mão.
- Não permites que eu te diga os versos? Se não gostares, prometo não falar mais nisso. Oh! Alonso, faze-me esse favor! Bem sei o quamto te devo, mas não esqueças que nunca me poupei a canseiras para te ser agradável.
- Dize então esses malditos versos - gritou ele com raiva -, e deixa-me ir jantar.
Tornou a sentar-se, carrancudo, e dispôs-se a escutar. Catalina começou. Naqueles três anos a voz da moça tornara-se mais rica e ela exercia um maravilhoso domínio sobre as suas modulações. As emoções apropriadas à narrativa sucediam-se na sua fisionomia móvel, que exprimia apreensão, terror, receio, indignação, honra, sofrimento, amgústia e pesar, sem exageros mas com incisiva veracidade. Ainda que encolerizado, Alonso era um dramaturgo dos mais competentes e logo percebeu que os versos estavam bem escritos e a maneira
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por que os dizia Catalina, a eloquência dos seus gestos, as inflexões tocantes da sua voz, arrebatariam qualquer auditório. Curvou-se para a frente e entrelaçou as mãos. Dentro em pouco escutava como que enfeitiçado. Depois, tão patético era o desempenho de Catalina, tão tocante a sua sinceridade, que já não se pôde dominar: desatou a soluçar e grossas lágrimas lhe escorreram pelas faces. Por fim ela terminou e Alonso enxugou os olhos com a manga. Notou que Domingo também chorava.
- Então? - disse Catalina com um sorriso de triunfo. Depois de pronunciar o último verso saíra do seu papel
e estava tão tranquila como se houvesse recitado o alfabeto. Alonso encolheu os ombros. Procurou assumir um tom metódico e rabugento.
- Os versos são passáveis, para um amador. Vamos ensaiar a cena esta tarde e se eu ficar satisfeito com ela, tu a representarás amanhã.
- Coração da minha alma, eu adoro-te! - disse Catalina.
- Vou padecer é com Rosália - resmungou ele, macambúzio.
A cena foi ensaiada e representada, tendo sobre o bispo o efeito de que o leitor já tomou conhecimento. Não foi, todavia, esse o seu único efeito. Rosália vituperou violentamente a Alonso a sua parcialidade para com Catalina e ele teve de fazer um sem-número de promessas para a apaziguar, algumas das quais sabia que teria de cumprir. Isto aborrecia-o, mas ainda por outra razão não estava muito satisfeito com o que sucedera, pois muitas pessoas salientavam com especial louvor os cem versos de Domingo, cuidando que ele próprio os tivesse escrito, e diziam-lhe que, tanto pela linguagem como pela versificação,
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esse trecho sobrepujava todo o resto da peça. Quando Diego fez saber, com muita indiscrição, quem era o verdadeiro autor daqueles versos, Alomso ficou profundamente mortificado. Como desforra,, disse aos amigos que Catalina não tinha nem a décima parte do talento que julgava possuir e, se não o tivesse a ele para a dirigir, não tardaria a mostrar que era uma actriz muito medíocre. Assim que estas palavras foram transmitidas a Catalina, ela resolveu de vez pôr em prática o que vinha planeando. Conforme disse a Diego, uma mulher não deve esquecer o respeito próprio. Cortou relações com o ingrato empresário e partiu com o marido e os filhos para Madrid.


XXXVI.

Aceita a sua demissão, Don Blasco retirou-se para um longínquo convento da sua ordem com a "tenção de devotar os anos de vida que lhe restavam àquela contemplação que Aristóteles diz ser o objectivo da existência e que os místicos têm julgado preciosa aos olhos de Deus. Não quis aceitar os favores e privilégios que lhe eram oferecidos, em atenção às elevadas posições que exercera, e insistiu para que lhe dessem uma cela semelhante às ocupadas pelos outros monges, fazendo questão de ser tratado como eles em tudo. Ao cabo de alguns anos começaram a falecer-lhe as forças e, embora não parecesse sofrer de nenhuma moléstia definida, era evidente aos que o cercavam que ele não tardaria a deixar o cárcere do corpo. Padre António, que o tinha acompanhado ao convento, e o prior imploraram-lhe que abandonasse as mais severas mortficações,
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mas ele recusou. Persistiu em observar a regra da ordem com o máximo rigor e só consentiu em abster-se de assistir às matinas no frio cortante da madrugada quando o prior, em vista da crescente debilidade de frei Blasco, fez uso da sua autoridade proibindo-lhe tal coisa. Pouco a pouco a sua fraqueza foi chegando a um ponto em que era forçado a passar a maior parte do dia na cama, mas não parecia estar em perigo iminente de morte. A sua vida era como uma vela bruxuleante que qualquer sopro de vento pode apagar, mas posta ao abrigo, ainda continua a iluminar. O fim veio repentinamente.
Uma manhã padre António, depois de ter cumprido os seus deveres religiosos, foi à cela do seu mestre para ver como ia este. Era Inverno e tinha caído neve. Fazia na cela um frio terrível. Padre António admirou-se de encontrá-lo corado, os olhos brilhantes, e rejubilou-se porque havia semanas que ele não mostrava tão bom aspecto. Nasceu-lhe a esperança de que o velho tivesse melhorado, e talvez fosse até possível restituir-lhe a saúde. Rezou, mentalmemte, uma breve acção de graças.
- Está com boas cores esta manhã, senhor - disse ele, pois havia muito que frei Blasco lhe exprimira o desejo de não ser mais tratado como bispo. - Há dias que não o vejo com tão boa aparência.
- Sinto-me muito bem. Acabo de falar com o grego Demétrios.
Padre António reprimiu um estremecimento de assombro, pois sabia, naturalmente, que Demétrios tivera anos atrás a imerecida morte na fogueira.
- Em sonhos, senhor?
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- Não, não! Ele entrou por essa porta, parou aí junto da minha cama e falou-me. Estava vestido tal qual sempre o conheci, com aquele mesmo manto puído que usava, e com o mesmo ar de benignidade mo rosto. Eu reconheci-o imediatamente.
- Era o Diabo, Excelência Reverendíssima! - exclamou o padre António, esquecendo a recomendação que lhe fizera o seu mestre. - Expulsou-o da sua presença?
Frei Blasco sorriu.
- Isso seria descortesia, meu filho. Não creio que fosse o Diabo. Era o próprio Demétrios.
- Mas ele está no Inferno, sofrendo o justo castigo da sua execrável heresia!
- Era o que eu pensava, mas não é assim.
Padre António ouvia-o cada vez mais consternado. Tudo lhe parecia indicar que Dom Blasco tivera uma visão infernal. Pedro de Alcântara e Madre Teresa de Jesus haviam tido numerosos encontros com demónios e Madre Teresa até conservava consigo um pouco de água benta com o fim expresso de expulsá-los, atirando-lha para cima. Mas a atitude do seu velho mestre era tão terrificante que só lhe restava esperar que não estivesse ele no seu juízo perfeito.
- Perguntei-lhe como ia e ele respondeu que bem. Quando lhe contei as cruéis angústias que tinha sofrido por sabê-lo no Inferno, riu-se de leve e disse-me que, ainda antes de lhe terem as chamas consumido o corpo, a sua alma voara para a campina, na encruzilhada dos caminhos, e, como ele tinha vivido na virtude e na verdade, Radamamto enviara-o para as Ilhas Bem-aventuradas. Ali encontrou Sócrates, cercado como sempre de moços de bela aparência, a formular e a responder
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a perguntas: viu Platão e Aristóteles passeando lado a lado em amistosa conversa, como se já não houvesse a menor diferença de opinião entre eles; mas Ésquilo e Sófocles ralhavam afectuosamente com Eurípides por ter arruinado o drama com as suas inovações. E muitos mais, tão numerosos que não era possível mencioná-los todos.
Padre António ficou consternado. Era evidente que o seu velho e venerado amigo estava preso de delírio. Eis aí o que significavam aquelas faces coradas e aqueles olhos cintilantes! O velho monge não sabia o que dizia, mas a pobre e honesta criatura deu graças aos Céus por não estar outra pessoa ali para ouvi-lo. Tremia ao considerar o que pensariam os demais frades se ouvissem aquele a quem consideravam um santo pronunciar palavras que eram quase blasfemas. Torturava o cérebro à procura de uma resposta, mas na sua agitação não lhe ocorria nada.
- E depois de termos conversado durante algum tempo, no mesmo tom amigável em que costumávamos conversar há muitos anos, em Valência, o galo cantou e ele disse que era obrigado a deixar-me.
Padre António achou melhor comprazer ao doente.
- E disse por que motivo tinha vindo vê-lo? - gaguejou.
- Perguntei-lhe, e ele respondeu que me tinha vindo dizer adeus, pois nunca mais nos tornaríamos a encontrar. "Amanhã", disse ele, "quando já não for noite e ainda não for dia, quando mal puderes distinguir a forma da tua mão, a tua alma será libertada do corpo."
- Isso prova que foi mau espírito que visitou Vossa Excelência! - exclamou padre António. - O médico disse que Vossa Excelência não tinha nenhuma doença mortal e há
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muitos dias que não se sente tão bem como esta manhã. Deixe-me dar-lhe o remédio que ele mandou, e o barbeiro vai-lhe fazer uma sangria.
- Não tomo mais remédio algum e não quero que me sangrem. Porque estás tão ansioso por me deter, quando a minha alma anseia fugir à prisão que ela por tanto tempo habitou? Vai dizer ao nosso caro prior que desejo confessar-me e receber o Santíssimo Sacramento. Digo-te que amanhã, à hora em que eu começar a distinguir a forma da minha mão, me despedirei desta vida.
- Foi um sonho, senhor! - gritou o pobre frade, desesperado. - Suplico-lhe que me acredite: foi um sonho!
Don Blasco emitiu um som que em qualquer outra pessoa chamaríamos um riso abafado.
- Não digas absurdos, meu filho. Aquilo não era mais sonho do que o é o estar eu falando contigo neste momento. Não era mais sonho do que o é a vida inteira, com os seus pecados e sofrimentos, com as suas perguntas angustiosas e os seus misteriosos segredos - um sonho de que acordaremos para entrar na vida eterna, a única que é real. Vai agora, e faze o que te pedi.
Padre António virou-se com um suspiro e saiu. Don Blasco fez a sua confissão e recebeu o Santíssimo Sacramento. Depois de celebrados os derradeiros ritos da Igreja, despediu-se dos frades com quem tinha convivido durante vários anos e deu-lhes a sua bênção. Já então ia o dia bastante adiantado. Ele exprimiu o desejo de que o deixassem a sós, mas padre António rogou-lhe com tal premência que o aceitasse na sua companhia, que ele consentiu com um doce sorriso, sob a condição de ficar o outro calado. Estava Don Blasco deitado de costas na dura
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enxerga, coberta de um fino colchão, que a regra da ordem prescrevia, e apesar do frio penetrante não tinha sobre si mais do que um leve cobertor. De quando em quando dormitava. Padre António estava preso de profunda aflição. Abalara-o a certeza de que se mostrava possuído Don Blasco e já então ele estava meio convencido de que a morte do seu santo mestre correria como este havia predito. Passavam-se as horas. A cela era tenuememte iluminada por um único círio, que padre António espevitava de tempos a tempos. O sino tocou as matinas. Ele teve um estremecimento ao ouvir Don Blasco romper o longo silêncio.
- Vai, meu filho. Não deves negligenciar por minha causa os teus deveres religiosos.
- Não posso deixá-lo agora, meu senhor - respondeu o frade.
- Vai. Ainda estarei aqui quando voltares.
O longo hábito da obediência fez-se sentir e padre António foi às matinas. Quando voltou, Don Blasco tinha adormecido e no primeiro instante o frade julgou que estivesse morto. Mas ele respirava tranquilamente e no peito do outro brotou a leve esperança de que esse sono lhe restaurasse as forças e talvez mesmo ele se restabelecesse. Ajoelhou-se diante da cama e rezou. O círio espirrou e apagou-se. Era noite escura. Passaram-se as horas. Por fim Don Blasco fez um ligeiro movimento. Naquela escuridão profunda padre António nada podia ver, mas teve a intuição de que o seu venerado amigo procurava às apalpadelas o crucifixo que trazia preso ao pescoço por um cordel. Colocou-o nas mãos do velho, mas quando quis retirar a sua sentiu que ele a segurava debilmente. Escapou-se-lhe um soluço da garganta. Depois de tantos anos, era o primeiro
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sinal de afeição que lhe dava Don Blasco. Tentou escrutar aqueles olhos que outrora brilhavam com uma luz tão intensa, e embora nada pudesse ver sabia que eles estavam abertos. Baixou os seus para a mão que prendia suavemente a sua, por cima do crucifixo, e percebeu que a escuridão da noite já não era tão impenetrável. Continuou a olhar e de súbito distinguiu, aterrado, a forma de uma mão emaciada. Um leve suspiro exalou-se dos lábios de Don Blasco e qualquer coisa, que ele não saberia dizer o que era, disse ao frade que o seu amado mestre estava morto. Rompeu a chorar impetuosamente.
A esse tempo, fazia já alguns anos que Don Manuel estava a viver em Madrid. Dona Beatriz recusara levar avante o plano aventado por ela própria,, de que ele desposasse a sua sobrinha, a marquesa de Caranera, e como não foi possível encontrar um marido que lhe conviesse, a viúva fez-se religiosa e era agora subprioresa do convento carmelita de Castel Rodríguez. Don Manuel sentia-se maltratado por Dona Beatriz, pois não fora por culpa sua que falhara o plano arquitectado por ambos, mas não era homem para ficar a lastimar-se. Foi para Madrid e, depois de tornar conhecidos os seus projectos matrimoniais e a extensão da sua fortuna, não tardou a encontrar um partido muito satisfatório. Ligou-se ao duque de Lerma, o favorito de Filipe III, e, graças ao exercício da subserviência, lisonja, duplicidade, falta de escrúpulos e venalidade, logrou afinal tornar-se altamente respeitado. Don Blasco deixara após si uma reputação de santidade e Don Manuel foi bastante astuto para compreender o proveito que lhe -traria a beatificação do irmão e, à reputação da sua família (pois Deus abençoara-lhe o matrimónio com dois belos filhos homens), a eventual canonização daquele. Tratou de coligir as necessárias provas.
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Ninguém poderia negar que o antigo bispo de Segóvia tivesse sido um homem de piedade exemplar. Não faltavam testemunhas para afirmar que fragmentos do seu velho hábito, usados em escapulário, as haviam impedido de contrair a varíola e o mal venéreo, e os vários sucessos milagrosos de Castel Rodríguez estavam todos autenticados. Mas a Congregação dos Ritos, em Roma, exigia provas de dois milagres importantes realizados pelas relíquias do candidato após a sua morte, e foi impossível obtê-las. Os advogados que Don Manuel contratara eram homens honestos, pois sendo ele mesmo um velhaco, tinha demasiada astúcia para recorrer aos serviços de outros velhacos: informaram-no de que, embora fosse possível conseguir a beatificação de Don Blasco, eram pequenas as probabilidades de fazer incluir o seu nome no cânone. Enfureceu-se quando lhe disseram isto e acusou-os de incompetência, mas pensando melhor chegou à conclusão de que deviam estar acertados. Já havia gasto boas quantias nas indagações preliminares e não via utilidade alguma em continuar a enterrar dinheiro naquilo. Depois de reflectir a sangue-frio, portanto, concluiu que a beatificação do irmão não valia as despesas que teria com ela e contentou-se em mandar trasladar os restos mortais do bispo para a igreja colegiada de Castel Rodríguez, onde erigiu um sumptuoso monumento, se não para perpetuar a memória do filho mais velho de seu pai, ao menos para dar uma prova da sua munificência.
Talvez seja interessante mencionar, de passagem,, que Martin de Valero, o terceiro filho de Don Juan, tornou a mergulhar na obscuridade de onde o havia tirado momentaneamente a visita de seus dois ilustres irmãos. Continuou a fazer pão, e nada mais podemos dizer dele. Jamais lhe ocorreu, como
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na verdade jamais ocorreu aos seus concidadãos, que em dado momento a Santíssima Virgem lhe tinha concedido o poder de realizar um milagre.
Dona Beatriz alcançou uma idade avançada, em pleno gozo das suas faculdades, e poderia ter vivido alguns anos mais se não fosse um funesto incidente. Ao ser informada da beatificação de sua velha inimiga, a Madre Teresa de Jesus, ficou açaimada durante três dias; mas quando, em 1622, recebeu a notícia da canonização, enfureceu-se a tal ponto que teve um ataque. Recobrou a consciência, mas um lado do corpo ficou completamente paralisado e era evidente que o seu fim estava próximo. Não conhecia o medo e permaneceu calma e senhora de si. Mandou chamar o seu frade favorito para a ouvir em confissão, feito o que reuniu em torno de si as suas freiras e lhes deu oportunos conselhos no tocante à sua futura conduta. Algumas horas depois pediu o Santíssimo Sacramento. Foram de novo buscar o sacerdote. Dona Beatriz solicitou perdão dos seus pecados e rogou às chorosas freiras que orassem por ela. Ficou algum tempo imóvel e em silêncio. De repente, proferiu em voz alta:
- Uma mulher de origem muito humilde!
As freiras que a ouviram julgavam que se referisse a si própria e, como não ignorassem que nas suas veias corria o sangue real de Castela e que a sua mãe pertencia à ilustre casa de Braganza, ficaram profundamente comovidas com esse sinal de humildade. Mas a sua sobrinha, a subprioresa, não se deixou enganar. Sabia que aquelas palavras diziam respeito à freira rebelde que se havia tornado Santa Teresa de Ávila. Foram elas as últimas que pronunciou Dona Beatriz Henríquez y Braganza,
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na religião Beatriz de San Domingo. Administraram-se-lhe os santos óleos e pouco depois entregava ela a alma ao Criador.


XXXVII.

Quando chegou a Madrid, Catalina ainda tinha o ouro que lhe dera Dona Beatriz; além disso, como era uma mulher económica-, havia poupado dinheiro durante aqueles três anos passados a andar de um lado para outro, de modo que, apesar dos gostos extravagantes de Diego, não tinha preocupações quanto ao futuro imediato. Dirigiram-se às pessoas que haviam prometido auxiliá-los com a sua influência e dinheiro e, encontrando-as dispostas a cumprir a promessa, conseguiram organizar uma companhia. O êxito que obtiveram ultrapassou as suas próprias esperanças. Catalina tornou-se o ídolo da capital. Muitos cavalheiros elegantes procuraram obter-lhe os favores, mas, ainda que ela lhes aceitasse os presentes com gratidão, não conseguiam em troca mais do que um sorriso dos seus belos olhos, acompanhado de bonitas falas. Passou a ser tão admirada pela sua virtude quanto pela beleza e pelo génio. Mandou chamar Domingo, que veio com uma dúzia de peças nos alforjes. Catalina levou duas delas à cena. Foram vaiadas e, segundo o costume de então, o público mostrou o seu desagrado com assobios agudos, fiaus e injúrias obscenas. Furioso e humilhado, Domingo foi para casa e pouco depois morria - não se sabendo, porém, com a certeza, se devido à decepção ou à bebida. Alguns anos mais tarde Catallina, já então aclamada a maior actriz de Espanha, segura da sua influência sobre
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o público, resolveu levar à cena mais uma das peças de Domingo, em homenagem à memória deste. Mas fê-lo anonimamente para que ela não sofresse com o mau êxito das outras duas. A peça agradou. Era, mesmo, tão boa que foi atribuída a Lope de Vega, e conquanto este negasse a sua autoria ninguém lhe deu crédito, de modo que a peça tem sido publicada até hoje entre as suas obras. E assim o pobre Domingo foi esbulhado até desse fogo-fátuo que tem consolado muito escritor da indiferença dos seus contemporâneos: a celebridade póstuma.
Apesar do seu garbo e da sua bela presença, Diego nunca passou de um actor medíocre. Mas, por felicidade, revelou-se bom homem de negócios e empresário eficiente, acabando por enriquecer com o tempo. Havia muito, tinham ambos concordado que seria imprudência falar dos acontecimentos sobrenaturais de que fora centro Catalina,, de forma que nem quando andavam com os actores ambulantes, nem mais tarde, pessoa alguma veio a saber que havia qualquer relação entre ela e esses factos, que durante algum tempo foram muito comentados. Embora, como Catalina havia previsto, não ocorressem novos milagres para perturbar a paz da sua vida matrimonial, Diego nunca foi, como ele achava justo e apropriado, o senhor da sua própria casa; mas Catalina tinha a habilidade de lhe fazer crer que o era e ele vivia satisfeito e feliz. Era um tanto infiel à esposa, mas sabendo que outra coisa não se pode esperar dos homens, e contanto que essas aventuras fossem efémeras e não custassem muito dinheiro, ela aceitava-lhe com candura as infidelidades. Formavam, na verdade, um par dos mais felizes. Catalina teve seis filhos do marido e, como era uma actriz conscienciosa, não queria decepcionar o seu público
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e continuava a representar virgens perseguidas e princesas austeramente castas até aos últimos instantes da gravidez. Continuou a desempenhar tais papéis até uma idade avançada, e um viajante holamdês que esteve na Espanha em fins do reinado de Filipe III regista que, embora ela se tivesse tornado uma mulher corpulenta e já fosse várias vezes avó, tão grande era a sua graça pessoal, o feitiço da sua voz melodiosa e a magia da sua personalidade, que cinco minutos depois de ela aparecer no palco o espectador esquecia-lhe a idade e a aparência, aceitando-a sem disputa como a ardente jovem de dezasseis anos que ela representava.
E assim, com Catalina, como começou, termina esta narrativa estranha e quase incrível, mas edificante.

XXI.

Quando a multidão se escoou para fora da igreja, em pós do bispo, Martin, que se encolhera consigo na esperança de assim não ser notado, ficou lá dentro até que se viu sozinho. Esperou ainda mais um pouco a fim de poder escapar sem ser visto, mas fê-lo com certa impaciência, pois sabia que toda aquela comoção ia atrair numerosa freguesia. Deixara a padaria entregue aos seus dois aprendizes e receava que estes não pudessem atender a multidão de clientes. Martin não só fazia pão mas também assava carne e pastelões para aqueles que não podiam fazê-lo em casa. Muita gente acharia que a Ocasião devia ser festejada. Quando, afinal, lhe pareceu que podia sair sem perigo, notou a muleta de Catalina caída no pavimento de mármore, onde ela a havia deixado e, como fosse um homem metódico que não gostava de ver rolar coisas pelo chão, apanhou-a e levou-a consigo.
Mas quando o arcipreste voltou para casa, ao sentar-se diante de um jantar que ele bem merecia e de que estava muitíssimo precisado, lembrou-se de que a muleta havia ficado na igreja. Ora, tratava-se de um objecto que não convinha perder de vista, Mandou imediatamente um criado buscá-la e aborreceu-se quando o homem lhe disse que não a pudera encontrar. Não se podia deixar extraviar objecto de tanto
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valor. Assim que terminou o jantar, portanto, enviou várias pessoas a indagar do destino que levara a muleta; mas só no dia seguinte foi informado de que esta se achava na padaria, encostada a um canto. Mandou alguém exigir a devolução. O padeiro entregou-a e o arcipreste guardou-a cuidadosamente, até que pudesse resolver sobre o uso que faria dela.
Assim que Dona Beatriz ouviu a grande notícia, mandou umas freiras à cassa de Maria Pérez para pedir uma relação circunstanciada de tudo quanto havia ocorrido, observar pessoalmente a moça e, se a encontrassem curada como se dizia, presenteá-la com uma corrente de ouro, delicadamente lavrada, que ela Lhes pôs nas mãos, e em troca solicitar a muleta que ela usara durante a sua paralisia, para que fosse colocada como oblata na capela da Virgem, na igreja do convento. Não ficou nada satisfeita quando as freiras voltaram dizendo que nem Catalina, nem sua mãe nem seu tio faziam a menor ideia do fim levado pela muleta. Estava a prioresa resolvida a consegui-la, mas, como não se tratava de assunto que ela pudesse confiar às suas freiras, mandou chamar o administrador das suas propriedades e deu-lhe ordem de averiguar quem estava de posse do precioso objecto e, em seu nome, exigir a devolução. O administrador só tornou dois dias depois, informando que a muleta estava em poder do arcipreste e este não a queria ceder.
Dona Beatriz deu mostras de viva irritação e disse redondamente ao administrador que ele não passava de um asno e um velhaco. Era, porém, mulher de grande discrição. Escreveu ao arcipreste uma carta lisonjeira em que lhe pedia, com termos melífluos, que lhe cedesse a muleta para colocar na igreja em cujos degraus a Virgem tinha aparecido a Catalina.
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Fez-lhe ver que era aquele, evidentemente, o lugar em que cumpria conservar o objecto para edificação das gerações futuras. O arcipreste não respondeu em tom menos cortês, mas obtemperava que, embora por amor a Cristo estivesse mais que disposto a conceder-lhe qualquer favor dentro das suas possibilidades, o milagre ocorrera no interior da igreja da colegiada e ele se sentia no dever de conservar, para maior glória do templo, esse sinal visível da graça divina. Salientava, além disso, que o facto de a muleta ter sido deixada no santuário indicava com toda a clareza ser intenção de Deus que ela ali permanecesse. Seguiu-se então uma troca de correspondência entre os dois, da qual foram banidas todas as expressões de cortesia e de estima pela mútua virtude e piedade religiosa. A prioresa tornava-se cada vez mais autoritária, o arcipreste cada vez mais obstinado. Várias pessoas tomaram partido nessa questão, e o que um deles dizia era repetido ao outro. A prioresa definia o arcipreste como um burrico insolente, roído de concupiscência, enquanto o arcipreste a dava como uma velha megera intrometida, cuja administração do seu convento constituía um escândalo para toda a Cristandade.
Dona Beatriz achou afinal que havia dominado a sua ira tanto quanto o exigia a caridade cristã e podia agora abandonar-se à justa indignação provocada pela conduta impertinente do arcipreste. Mandou chamar mais uma vez o seu administrador. Deu-lhe ordens para procurar o arcipreste e, tomando o cuidado de tratá-lo com todo o respeito devido à sotaina, explicou-lhe que, se ele não entregasse imediatamente a muleta, não devia contar com a protecção do duque, irmão dela, na demanda judicial em que estava envolvido, nem com as promoções na Igreja, que lhe poderia valer o favor de que
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Dona Beatriz gozava junto à corte, acrescentando que ela já não podia deixar de tomar conhecimento dos boatos escandalosos que corriam sobre as relações dele com certa mulher e seria obrigada a levar tais factos à presença do bispo diocesano. Explorava-lhe assim a prioresa, ao mesmo tempo, a cobiça, a ambição e a incontinência. Graças à influência do actual duque de Castel Rodríguez, o arcipreste fora nomeado para uma cortezia na Catedral de Sevilha e o capítulo estava-lhe movendo uma acção para forçá-lo a resignar o cargo por falta de residência. Ele não queria perder os belos emolumentos da cortezia, mas, como não tivesse por si nem a lei nem a equidade, só tinha esperança de vencer a demanda graças à poderosa intervenção do seu protector. Ademais, alimentava o desejo de prestar maiores serviços à Igreja na cadeira episcopal. Por essas razões, não podia dar-se ao luxo de provocar a inimizade da prioresa; e, sendo o seu bispo um homem de moral austera, inquietou-se ele com a ameaça de Dona Beatriz, de denunciar os pecadilhos a que o arrastara a fraqueza da carne. Não necessitou de muito tempo para perceber que fora derrotado, e como tinha de ceder foi bastante sensato para fazê-lo com elegância. Entregou a muleta ao mensageiro, acompanhada de uma carta em que, com os protestos do seu profundo respeito às virtudes de Dona Beatriz, dizia-se forçado, após madura reflexão, a concordar com ela em que o lugar indicado para o precioso objecto era, evidentemente, a igreja de Nossa Senhora do Carmelo.
A prioresa mandou encaixá-la em prata e pendurá-la na capela da Virgem, para edificação dos fiéis.

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XXII.

Na confusão que se estabeleceu quando o povo se escoou da igreja atrás do bispo, Domingo fez sair a irmã e a sobrinha por uma porta lateral e, escolhendo vielas pouco frequentadas, conduziu-as sem novidade para casa. Maria Pérez queria pôr a filha na cama, purgá-la e mandar chamar um barbeiro para lhe aplicar uma sangria, mas Catalina, radiante por ter recobrado o pleno uso dos seus membros, não se conformou com tal coisa. De puro regozijo, subia e descia as escadas a correr e, se isso não fosse indecente, teria dado cambalhotas na sala. As vizinhas vieram dar-lhe as suas felicitações e maravilhar-se ante o milagre. Ela teve de descrever um sem-número de vezes o aspecto da Santíssima Virgem ao lhe aparecer, o traje que usava e tudo quanto lhe havia dito. As outras, por sua vez, contaram-lhe o magnífico sermão do bispo, acrescentando que, empolgadas pela eloquência de Don Blasco, não tinham podido conter as suas águas, de modo que o seu arroubo foi mesclado de embaraço. Pela tarde as grandes damas da cidade mandaram chamar Catalina e fizeram-na andar para baixo e para cima, soltando gritinhos de assombro ao observá-la, como se nunca tivessem visto ninguém caminhar. Faziam-lhe presentes de lenços, mantilhas de seda, meias e até vestidos com muito pouco uso; um alfinete de ouro, brincos com pedras de certo valor e uma bracelete. Catalina jamais possuíra tantas coisas ricas e preciosas na sua vida. Finalmente advertindo-a de que não se ensoberbecesse com o facto de lhe ter sido conferido tão grande favor, mas tivesse sempre presente ao espírito que ela era de família operária
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e faria bem em jamais esquecer a sua condição humilde, despediram-na.
Caiu a noite. Maria Pérez, Domingo e Catalina cearam. Estavam ao mesmo tempo fatigados e desassossegados pelas aventuras do dia. Mãe e filha haviam tagarelado interminavelmente, até não terem mais o que dizer. Domingo insistiu com elas para que fossem deitar-se, mas Catalina respondeu que a sua1 agitação não lhe permitiria dormir. A fim de acalmar a ambas e simultaneamente, pela magia da arte, afazer-lhes o espírito à contemplação da beleza ideal, pôs-se a ler-lhes uma peça que terminara de escrever pouco antes. Catalina escutava com certa desatenção - com um só ouvido, por assim dizer. Absorvido, porém, na situação dramática e encantado com a cadência melíflua dos seus próprios versos, com o seu ritmo elegantemente variado, Domingo não reparou em nada. De repente Catalina pulou da cadeira.
- Aí está ele! - exclamou.
Domingo deteve-se, com uma carranca de exasperação na fisionomia bem-humorada. Ouvia-se na rua a toada de uma guitarra.
- Quem é? - perguntou ele cheio de contrariedade, pois não há autor que goste de ser interrompido na leitura das suas composições.
- É Diego! Mãe, eu posso ir à rótula, não posso?
- Eu julgava que tu tivesses mais energia...
Essas rótulas protegiam as janelas contra a intrusão, não tanto dos ladrões como dos galãs excessivamente empreendedores. Como jovem bem comportada, que conhecia a lascívia dos homens e sabia estar a maior glória de uma mulher na sua virgindade, jamais teria passado pela cabeça de Catalina
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receber o namorado em casa, mas era costume sentarem-se as moças às janelas de noite e, com a rótula de permeio, conversar com o objecto da sua afeição sobre os misteriosos assuntos com que os namorados costumam entreter-se.
- Ele abandonou-te quando tu ficaste doente - prosseguiu Maria Pérez. - Agora que te tornaste famosa e toda a cidade fala a teu respeito, ele volta correndo com o rabo entre as pernas.
- Oh! mãe, tu não conheces os homens tão bem como eu - disse Catalina. - São fracos e fáceis de levar. Como poderia o mundo ir para a frente se nós não fechássemos os olhos diante das tolices deles? É natural que Diego não quisesse casar comigo quando eu estava) inválida. Seus pais tinham encontrado um bom partido para ele. Ele disse-me uma centena de vezes que me quer mais do que às meninas dos seus olhos.
- Não sejas tola. Ele é um sem-vergonha e tu devias ter mais amor-próprio.
- Deixa-a ir - acudiu Domingo. - Quer bem ao rapaz e está tudo dito. Ele não me parece pior do que os demais moços desta época degenerada.
Maria Pérez levantou-se, encolheu os ombros e, apanhando a vela de sebo a cuja luz Domingo estivera a ler, disse:
- Vem ler-me o teu drama na cozinha.
- Isso é que não - respondeu ele. - Rompeu-se o fio da leitura e eu perdi a disposição. És uma excelente mulher, Maria, mas não reconheces a diferença entre um pentâmetro e o rabo de uma vaca e eu não posso fazer justiça à minha própria obra, a menos que tenha um auditório capaz de apreciar-me.
Catalina ficou a sós. Dirigiu-se para a janela e avistou,
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recortada contra as trevas da noite, uma figura que lhe fez bater com força o coração.
- Diego!
- Catalina!
E deste modo, ainda que bem tarde, introduzimos um herói na nossa história.
O pai dele era um próspero alfaiate que trabalhava para as pessoas mais notáveis da cidade, e desde verdes anos Diego aprendera a manejar a agulha, talhar calções e ajustar um gibão. Tornara-se um rapagão alto e rijo, com um belo par de pernas, cintura fina e amplas espáduas. Tinha uma magnífica cabeleira, brilhante do azeite que ele lhe aplicava generosamente, pele azeitonada, olhos pretos e ousados, boca sensual e nariz recto. Era, em suma, um mancebo de esplêndida aparência e Catalina achava-o mais belo do que a luz do dia. Era animoso e exasperava-se por ter de passar horas e horas sentado, com as pernas cruzadas, a costurar, sob o olhar exigente do pai, tecidos de lã, seda, veludo e damasco, que seriam usados por homens mais afortunados do que ele. Sentia-se talhado para coisas mais elevadas e, nos seus caprichosos devaneios, representava muito o papel grandioso no palco da vida.
Enamorou-se. Os pais sofreram um choque quando ele lhes disse que, se não lhe dessem permissão de casar com Catalina Pérez, sentaria praça e iria para os Países Baixos ou far-se-ia marujo para ir correr aventura nas Américas. A única fortuna de Catalina era a casa que ela herdaria por morte da mãe e suas únicas perspectivas de futuro, a vaga possibilidade de que seu pai voltasse um dia carregado de ouro das ignotas terras do ocidente. Mas os pais de Diego eram astutos. Ele não tinha mais de dezoito anos e julgavam que a sua fantasia leve
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de rapaz se voltaria, com o tempo, para um objecto mais digno das suas afeições. Contemporizaram, fazendo-lhe ver com muita sensatez que era absurdo iniciar a vida conjugal antes de haver terminado a sua aprendizagem, mas que se então ele persistisse no mesmo intento, encontrá-los-ia dispostos a discutir o assunto. Não se opuseram às suas idas todas as noites à janela de Catalina, que ele entretinha com serenatas e conversas amorosas. Mas quando o touro feriu a jovem e a deixou parcialmente paralisada, este facto não pôde deixar de parecer-lhes uma intercessão especial da Providência. Diego horrorizou-se com o acidente, mas foi obrigado a concordar com seus afectuosos pais em que desposar uma aleijada era coisa fora de cogitação, e quando sua mãe lhe disse pouco depois que, segundo informações fidedignas que recebera, ele havia caído nas graças da filha de um lojista abastado e esta não lhe repeliria os galanteios, ficou suficientemente lisonjeado para dedicar grande atenção à moça. Os respectivos pais dos dois jovens entrariam em entendimento e concluiriam, em princípio, que a união seria mutuamente vantajosa. Restava apenas combinar os termos e, como fossem ambos atilados negociantes, as negociações pnolongaram-se.
Tal era, pois, o estado de coisas quando Diego tornou a apresentar-se diante da janela de Catalina. Além de aprender a tomar medidas, cortar e coser, ele também aprendera nos seus poucos anos de vida que uma pessoa do sexo forte nunca deve desculpar-se e ela, ainda que muito jovem, sabia que era inútil formular censuras a um homem. Por mais detestáveis que sejam os seus actos, lançar-lhos em rosto não faz mais do que irritá-lo. A mulher sensata contenta-se em deixar que ele pese a sua culpa, na consciência e, se ele não encontra nenhuma
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é tempo perdido incriminá-lo. Não perderam tempo, por conseguinte, em ralhos da parte dela nem em escusas da parte de Diego, mas foram direito ao ponto essencial.
- Coração de minha alma! - disse ele. - Eu adoro-te!
- Meu tesouro, meu precioso amor! - respondeu ela.
É desnecessário repetir as coisas doces e ridículas que disseram um ao outro. Disseram o que costumam dizer os amantes. Diego tinha o dom da palavra e vinham-lhe aos lábios, espontaneamente, expressões que encantavam Catalina de tal forma que lhe pareceu quase ter valido a pena passar aquelas longas semanas de misérias para gozar nesse momento uma felicidade tão arrebatadora. A escuridão da sala, atrás de si, ocultava-a quase por completo às vistas de Diego, mas o som da sua voz, baixa e doce, e o cascatear do seu riso punha-lhe o sangue em fogo.
- Maldita seja esta grade que nos separa! Oh! porque não me é dado tomar-te nos braços, cobrir o teu rosto de beijos e apertar contra o teu o meu coração palpitante?
Ela sabia perfeitamente em que teria resultado isso e a ideia não lhe desagradava em absoluto. Conhecia a paixão licenciosa dos homens e sentia um estremecimento de orgulho e ao mesmo tempo um aperto no coração por se ver tão ardentemente desejada por Diego. Arquejava um pouco.
- Oh! meu querido, que podes tu desejar de mim que eu não te queira dar? Mas se me amais, não me podes pedir aquilo que seria um pecado mortal e que, em todo o caso, estas barras de ferro tornam impraticável.
- Dá-me então a tua mão.
A janela a que Catalina estava sentada ficava a certa altura da rua, de forma que para atender à solicitação do seu
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amado ela teve de ajoelhar-se no chão. Passou a mão por entre as grades e ele apertou-a contra os lábios sôfregos. As mãos de Catalina eram pequeninas, com os dedos afilados, mãos de uma dama de alta posição. Orgulhava-se delas e, para conservá-las macias e brancas, lavava-as todas as noites na sua urina. Acariciou suavemente a face de Diego, enrubesceu e riu quando ele introduziu na boca o polegar pequenino.
- Sem-vergonha! - disse ela. - Que mais tens para inventar? - E retirou a mão. - Comporta-te e conversemos como pessoas ajuizadas.
- Como posso eu conversar com juízo quando tu me arrebatas os sentidos? Pede antes, mulher, a um rio que volte atrás e torne a subir para a sua fonte.
- Então é melhor que te vás. Começa a ficar tarde e eu estou cansada. A filha do dono do armarinho deve estar à tua espera e tu não tens razão para ofendê-la.
Disse estas palavras com uma pérfida doçura, e elas provocaram a resposta que Catalina esperava.
- "La Clara"? Importo-me lá com ela! É corcunda, vesga e tem cabelos que (parecem o pêlo de um cão sarmento.
- Mentiroso! - respondeu Catalina alegremente. - É verdade que ela tem o rosto marcado de bexigas e os dentes um pouco amarelos, com falta de um, mas fora isso não é feia e tem muito bom génio. Não posso censurar teu pai por querer que cases com ela.
- Meu pai pode ir...
Aquilo que Diego dava licença ao pai de ir fazer era qualquer coisa tão grosseira que um escritor que se respeita vê-se forçado a deixá-lo à imaginação do leitor. Catalina não estava desacostumada à linguagem franca da sua época e nem
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sequer pestanejou. A expressão enfática do namorado causou-lhe até uma certa satisfação.
- Estive na igreja esta manhã - prosseguiu ele - , e quando te vii erguida em toda a tua beleza, foi como se uma espada me trespassasse o coração e compreendi que nem todos os pais do mundo me podiam separar de ti.
- Eu fiquei aturdida. Não sabia onde estava nem o que me tinha acontecido. Sentia tonturas. Depois, foi como se um milhão de alfinetes e agulhas me picassem as pernas, de tal forma que eu não poderia suportar a dor nem mais um minuto, e não tive consciência de mais nada até que dei comigo nos braços da mamã, que ria e chorava ao mesmo tempo, e eu desatei a chorar também.
- Tu correste, e quando te vimos correr todos nós gritámos de alegria e de assombro. Corrias como uma pomba que foge do caçador, corrias como corre uma ninfa dos bosques ao ouvir vozes humanas, corrias como... - Neste ponto falhou-lhe a inventiva e ele acrescentou um tanto sem graça: - Corrias como um anjo do céu. Eras mais bela do que a aurora.
Catalina escutava-o com grande contentamento e estava disposta a ouvir muito mais coisas do mesmo teor, mas a voz de sua mãe veio interrompê-los.
- Vem deitar-te, menina. Queres que toda a vizinhança se ponha a falar? Além disso, precisas de descanso.
- Boa noite, meu amado.
- Luz dos meus olhos, boa noite.

Ora, sucedeu que o pai de Diego e o lojista andavam desentendidos desde alguns dias, por causa de um pedaço de terra que o alfaiate desejava como dote da jovem, mas de que
o lojista não se podia resolver a separar-se. Com toda a probabilidade, o assunto teria sido decidido por comum acordo se o alfaiate não mostrasse de súbito uma obstinação desrazoável e (na opinião do lojista) mesquinha. Houve uma troca de más palavras e a ideia do casamento acabou por ser abandonada. Não foi sem motivo que o alfaiate recusou modificar as suas exigências: o milagre conferira a Catalina uma notoriedade que lhe seria proveitosa no negócio; eJa não só era uma menina boa e honesta, mas também hábil costureira. Dizia-se que várias damas da cidade, encantadas com a modéstia e os bonitos modos da moça, estavam dispostas a cotizar-se para lhe oferecer um dote aceitável. Chegou à conclusão de que, consentindo no enlace anteriormente condenado por ele próprio, podia tornar o filho feliz e fazer ao mesmo tempo um excelente negócio. Desaparecia, assim, o último obstáculo à felicidade dos ternos namorados.


XXIII.

Mal sabiam eles que, enquanto continuavam a conversar todas as noites através da rótula, dizendo as mesmas tolices acima descritas, com pouca variedade mas com grande satisfação mútua, uma grande dama no seu oratório, à distância de uma pedrada dali, estava arquitectando um plano que os tocava de perto.
Dona Beatriz era uma mulher devota que cumpria escrupulosamente os seus deveres. O convento que ela dirigia era um modelo para a comunidade e os inspectores que o visitavam
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jamais encontraram motivos para criticá-la. Mantinha uma disciplina perfeita. Os serviços da igreja eram conduzidos com um decoro exemplar. Tanto no procedimento como na devoção, era irrepreensível. Mas nutria no coração um ódio mortal a certa freira de Ávila, Teresa de Cepeda por nome, ódio esse que nem os preceitos da religião nem as repetidas censuras do seu confessor logravam mitigar. Essa freira, conhecida na religião como Madre Teresa de Jesus, mas jamais designada pela prioresa a não ser como "La Cepeda", ingressara no convento da Encarnação, em Ávila, onde Dona Beatriz fora primeiro aluna e depois noviça. Tinha despertado grande indignação afirmando receber graças especiais, êxtases e a visão do Nosso Senhor, com a cabeça cercada por um nimbo resplandecente; isso, para não falar numa ocasião em que escorraçara o diabo, que estava sentado em cima do seu breviário, atirando-lhe água benta. Mas a situação atingiu a culminância quando, descontente com a frouxidão da regra das carmelitas, ela deixara o convento e fundara outro, onde se seguia uma regra mais rigorosa. As freiras de quem se havia separado viram nisso um estigma lançado sobre elas e um insulto à ordem e fizeram tudo quanto estava no seu poder para que a nova instituição fosse suprimida. Mas Teresa de Cepeda era uma mulher cheia de energia, resolução e coragem; vencendo uma oposição incansável, fundou convento após convento de carmelitas descalças, como eram chamadas essas freiras porque, em lugar dos fortes sapatos usados pelos outros membros da ordem, andavam de sandálias de corda. E antes de morrer, poucos anos antes da época em que se passa esta história, tinha ela visto triunfar a sua reforma.
Ninguém a combatera com mais tenacidade do que Dona Beatriz.
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Nunca se conformara com as excessivas mortificações, visões e êxtases alegados pelas freiras de "La Cepeda". Existia um antagonismo natural entre essas duas mulheres de grande força de vontade. Quem era aquela criatura orgulhosa, intrometida, presunçosa e má para se colocar acima de todos os demais? Em certa ocasião ela fora ao ponto de pedir ao bispo que lhe permitisse fundar uma instituição em Castel Rodríguez. Já havia conquistado então muitos amigos poderosos, tanto na corte como entre o clero, e Dona Beatriz, decidida a não permitir que essa mulher colocasse pé na cidade que ela considerava como seu domínio, fora obrigada a usar de toda a sua influência para combater o plano. Seguiu-se uma luta ferrenha, cujo resultado ainda estava pendente quando Teresa de Jesus morreu.
Conquanto rezasse pela sua alma (transviada, Dona Beatriz não pôde deixar de soltar um suspiro de alívio. Convenceu-se de que, já não estando em actividade o espírito inquieto e dominador de "La Cepeda", a reforma não tardaria a cair no olvido e as freiras tornariam com o tempo à antiga regra. Não suspeitava da força da impressão deixada pela Madre Teresa de Jesus nas suas filhas espirituais e nos sacerdotes que tinham tido contacto com ela. Dentro em pouco começaram a correr histórias sobre os milagres que ela realizara em vida; e os portentos que lhe assinalaram a morte. Ao expirar, tão suave aroma se exalara do seu corpo que foi preciso abrir as janelas da cela para que as pessoas presentes não desfalecessem e, ao ser exumado nove meses depois, o corpo foi encontrado intacto e isento de corrupção, enchendo todo o convento com o mesmo aroma suave. Doentes curavam-se ao tocar nos seus restos mortais. Já muitas pessoas influentes
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se empenhavam pela sua beatificação, e Dona Beatriz acabou compreendendo que, mais cedo ou mais tarde, "La Cepeda" seria canonizada.
Havia algum tempo que esse pensamento a enchia de inquietude. Tal coisa seria um título de orgulho para a ordem dos descalços. É verdade que não faltavam santos entre os carmelitas da ordem mitigada, e ambos os seus fundadores tinham sido canonizados; mas isso acontecera muito tempo atrás, e tal era a frivolidade do povo que se sentia mais inclinado a fazer suas devoções a um santo de data recente do que àqueles que, desde séculos, estavam de posse desse sublime título. Mas, se não podia impedir que a ordem adventícia recebesse uma honra, aos seus olhos injustificada, algo podia fazer para contrabalançá-la, provendo a sua própria ordem de uma candidata à canonização. A Providência apomtara-lhe o caminho e seria um pecado não o seguir. Lázaro era santo sem que houvesse para tal, que lhe constasse, outro motivo senão o facto de ter sido objecto de um dos milagres de Nosso Senhor. Catalina era uma rapariga devota e virtuosa, e o milagre graças ao qual recobrara a saúde não fora testemunhado apenas por duas ou três freiras emotivas e padres interesseiros, mas por uma vasta multidão. Tendo recebido tão assinalada marca do favor divino, parecia muito justo que ela devotasse o resto da existência ao serviço do Senhor. Dona Beatriz ouvira dizer que ela se supunha enamorada de um rapaz da cidade, mas afastou tal coisa das suas cogitações. Não podia crer que uma mulher sensata pensasse a sério em casar com um alfaiate quando podia gozar os benefícios, tanto espirituais como mundanos, decorrentes do ingresso no Convento da Encarnação das carmelitas, de que ela era a prioresa.
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Se a rapariga correspondia à descrição que tinham feito dela as freiras que a conheciam, não podia deixar de trazer crédito ao convento e a graça que recebera acrescentaria nova distinção ao estabelecimento. Era ainda bastante moça para poder ser educada, e Dona Beatriz esperava fazer dela suma digna religiosa. Não havia motivo para supor que a Santíssima Virgem deixasse de se interessar por ela e seria muito possível que Catalina se tornasse recipiente de novas graças. A sua fama espalhar-se-ia e quando, afinal, fosse libertada do martírio desta vida, seria, sem dúvida alguma, uma candidata tão aceitável à beatificação quanto a turbulenta freira de Ávila.
Dona Beatriz ponderou durante alguns dias o seu projecto. Quanto mais o considerava, mais lhe agradava. Como era, porém, mulher de muita discrição, achou prudente não o pôr em prática sem a aprovação do seu director espiritual. Mandou-o chamar. Era um homem digno e simples, cuja piedade ela estimava mas de cuja inteligência não fazia muito alta opinião. Ele aplaudiu-lhe o desejo de dar a Nosso Senhor uma noiva a quem Sua Mãe condescendera em dispensar tão grande favor e que seria, por tal motivo, uma honra para a comunidade. E isso era natural porque, embora a prioresa se houvesse alongado sobre a gratidão que a rapariga devia sentir pela sua cura milagrosa e a sua provável boa disposição de passar o resto da vida ao serviço do Senhor, acharia desnecessário comunicar ao bom homem os motivos ocultos que constituíam a mola mestra do seu desejo. Ele levantou, todavia, uma objecção.
- Pelos estatutos deste convento, a admissão é reservada às damas de nascimento nobre. Catalina Pérez, embora de sangue limpo, é de origem modesta.
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A prioresa tinha uma resposta pronta para isto.
- Eu reputo a condescendência que Nossa Senhora mostrou por ela como uma patente de nobreza. Aos meus olhos, isso torna-a igual aos mais orgulhosos da terra.
Tal resposta, nos lábios de tão alta senhora, encheu de admiração o frade e, se possível, aumentou ainda a veneração em que tinha Dona Beatriz. Assentado o ponto principal, restava apenas considerar os meios de o pôr em prática. O plano da prioresa era mandar chamar a moça e fazer-lhe ver a utilidade, para o seu bem espiritual, de realizar um retiro de certa duração no convento, a fim de poder agradecer devidamente ao Criador os benefícios que lhe tinham sido conferidos; e prevendo que Catalina, devido à infeliz ligação que contraíra, se pudesse opor a isso, rogou ao frade que revelasse o seu plano ao confessor da jovem, levando-o a insistir com ela para que aceitasse a proposta, e mesmo a ordená-la, se fosse necessário. O director de consciência da prioresa consentíu de muito boa vontade.
No dia seguinte, pois, Dona Beatriz mandou chamar Catalina. Até então só a tinha visto uma vez:, e nessa ocasião mal olhara para ela. Impressionou-a a beleza da moça e, com um sorriso em que apenas se notava a sua habitual severidade, fez uma amável observação a respeito. Não gostava de freiras feias. Sempre achara impróprio oferecer a Nosso Senhor noivas que não aliassem à graça espiritual um exterior atraente. Ficou encantada com os modos modestos de Catalina, com a sua voz suave e a distinção da sua aparência. Nada havia nela de vulgar e a sua linguagem, graças ao ensino ministrado por Domingo, era não só correcta mas elegante. A prioresa surpreendeu-se de ver uma flor tão mimosa brotar em tão humilde solo.
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Desfizeram-se todas as dúvidas que pudesse ter nutrido sobre o acerto do seu plano: a jovem era evidentemente talhada para as honras, e que maior honra havia do que servir a Deus? Catalina sentía-se tomada de um temor respeitoso diante dessa aristocrática senhora cuja reputação de virtude e severidade ela bem conhecia, mas Dona Beatriz tratou de a pôr à vontade. O seu rosto mostrava uma expressão benigna que as freiras raramente tinham ocasião de ver, e Catalina perguntou consigo, admirada, por que motivo inspiraria tanto medo a todas elas. Era amiga de tagarelar e, vendo-se tão amavelmente encorajada, pôs-se a contar a essa simpática ouvinte toda a história da sua breve existência, com as agruras da pobreza, suas atribulações e suas alegrias, e nem por um instante suspeitou da habilidade com que a prioresa lhe guiava a narrativa para a fazer revelar as suas inclinações, a sua natureza honesta e o encanto do seu carácter. Sem um tremor, mas com benévola indulgência, Dona Beatriz ouviu-a descrever a beleza e os méritos de Diego, a sua ternura e bondade, contando como os pais dele, que dantes a viam com tão maus olhos, se haviam abrandado de tal maneira que já não restava nenhum obstáculo à felicidade de ambos. A prioresa desejou ouvir dos lábios dela como a Virgem lhe tinha aparecido, as palavras textuais que pronunciara e como, de um momento para outro, desaparecera diante dos seus olhos. Foi então que sugeriu, gravemente mas com brandura, que, numa natural gratidão da graça que recebera, Catalina devia fazer um retiro no convento para pôr as ideias em ordem e devotar-se durante algum tempo à contemplação das coisas celestes. Catalina ficou embaraçada, mas tinha o hábito de dizer a primeira coisa que lhe vinha à cabeça e já havia perdido quase completamente
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o temor que lhe inspirava a sua interlocutora, de modo que não hesitou em falar com franqueza.
- Oh! Reverenda Madre - exclamou ela - , isso é impossível! Estivemos tanto tempo separados que o coração do meu Diego se partiria se tornássemos a separar-nos agora. ele diz que só vive na espera da hora em que costumamos comversar à minha janela. Eu definharia de tristeza se deixasse de o ver todos os dias a essa hora.
- Não posso insistir consigo, menina, para que faça uma coisa que não deseja. Um retiro só lhe poderia ser benéfico se você o fizesse pelo amor de Deus e com o sincero desejo de emendar-se. Confesso que você me decepcionaria se fosse tão pouco grata à Virgem Santíssima pela sua bondade, que lhe regateasse o pouco do seu tempo necessário para lhe render graças; e não posso crer que esse moço, se a ama tanto como você diz e é tão bom assim, leve a mal que por algum tempo, talvez umas duas ou três semanas apenas, em retribuição à graça divina que os tornou a unir, você se devotasse à prece, tanto para sua salvação como dele. Mas não falemos mais nisso. Só lhe peço que consulte o seu confessor sobre o assunto. É possível que ele considere vã a minha proposta, e nesse caso a sua consciência estará em paz.
Despediu-a então, após a presentear com um rosário de contas de âmbar.


XXIV.

Não foi nenhuma sumpresa para Dona Beatriz quando, dois ou três dias depois, lhe vieram comumicar que Catalina estava na sala de visitas e pedia permissão para fazer um retiro.
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Mandou-a buscar, recebeu-a prazerosamente, beijou-a e confiou-a aos cuidados da mestra de noviças. Deram a Catalina uma cela que olhava para o bem tratado jardim das freiras. Ainda que austeramente mobilada, era espaçosa, limpa e fresca.
A prioresa escusava de pedir (e seus pedidos eram ordens que Catalina fosse tratada com indulgência e bondade, porquanto a sua beleza, modéstia e encanto cativaram imediatamente todos os corações. Freiras, noviças, irmãs leigas e pensionistas, todas a traziam nas palmas das mãos. Gostavam da sua alegria e mimavam-na como a uma criança muito querida. Embora a cama em que ela dormia fosse tal como o prescreviam as regras da ordem, era luxuosa em comparação com aquela a que estava habituada, e a comida, simples e sem temperos como convinha, era excelente e na pobreza da sua casa ela jamais provara coisas semelhantes. Peixe, galinha e caça eram fornecidos pelas propriedades da prioresa e as pensionistas convidavam-na aos seus quartos para lhe oferecer doces e outras guloseimas.
Dona Beatriz foi discreta, contentando-se em deixar que a moça percebesse por si mesma as delícias da vida conventual, com a sua paz, a sua agradável actividade e a sua protecção contra o tumulto e as preocupações do mundo. A sua monotonia era temperada pelas visitas, feitas durante a hora do recreio, de distintas damas da cidade e dignos cavalheiros, na maioria parentes da prioresa ou das freiras, e cuja conversação não se limitava inteiramente a assuntos religiosos. Catalina ficou bastante lisonjeada com as atenções de que era alvo. Tinha concordado em fazer o retiro com certo espírito de rebeldia, ante a ordem do seu confessor reforçada pela persuasão materna, mas não o estava achando nada desagradável.
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Teria sido estranho que deixasse de comparar favoravelmente a vida ditosa e bem organizada das freiras com a que ela tinha em casa, com o seu constante mourejar, sempre assombrada pelo espectro da penúria. Em certas temporadas não havia procura para o género especial de trabalhos que ela e a mãe executavam, e nessas ocasiões só os incertos ganhos de Domingo as salvavam de passar fome. Deleitava-se nos serviços religiosos a que assistia com todos os membros da comunidade na pequena mas linda igreja anexa ao convento. A prioresa tinha ouvido musical e esmerava-se para que a parte de canto não deixasse a desejar e os ritos fossem conduzidos não só com devoção mas com verdadeira pompa. Catalina, com a sua sensibilidade aguçada, encontrava nela não só um deleite para os sentidos mas um enriquecimento espiritual. Com grande surpresa sua, descobriu que a vida do convento não era uma prisão, como receava, mas antes uma libertação. Gostava de agradar, e agradava; desejava ser amimada, e era-o. Embora sentisse falta de Diego e pensasse nele constantemente, tinha de confessar a si mesma que esse retiro lhe ficaria na recordação como um dos episódios mais agradáveis da sua existência.
Todos os dias, pela tarde, Dona Beatriz mandava-a chamar e retinha-a consigo durante uma hora. Jamais mencionava o seu desejo de que Catalina entrasse para a religião, conquanto o desejasse, não apenas pelos motivos já referidos, mas porque não tardara a perceber que a moça, além de virtuosa, inteligente e de fácil compreensão, tinha personalidade e seria um ornamento para a ordem. A prioresa não lhe falava como uma alta senhora, Madre Superiora de um convento, mas como uma amiga cheia de afecto. Procurava ganhar influência sobre
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Catalina, mas sabia que era preciso agir com cautela. Contava-lhe histórias de santos para edificá-la e histórias da corte para lhe mostrar que as pessoas da religião também podiam desempenhar um papel nos negócios de estado. Falava-lhe dos assuntos do convento e da administração das suas propriedades, não sem uma certa intenção de a impressionar favoravelmente com a importância e responsabilidade ligadas ao cargo de prioresa do convento das carmelitas de Castel Rodríguez. A possibilidade de atingir essa posição bem poderia deslumbrar a filha de Maria Pérez, a costureira.
Mas é dificílimo guardar segredos num convento e, embora Dona Beatriz nunca houvesse falado a ninguém do seu plano, não tardou a tornar-se conhecido entre as freiras e pensionistas o objectivo que tinha em vista, os privilégios concedidos a Catalina e a predilecção que lhe demonstrava a temível Madre Superiora. Certo dia, uma expansiva freira disse à jovem o bem que lhe queriam todas e quanto desejavam que ela ali ficasse para sempre. Uma senhora, que se hospedara no convento porque o marido andava na guerra, disse-lhe que o seu maior desejo seria estar livre para se fazer freira.
- Se estivesse no seu lugar, menina, pediria, amanhã, à Reverenda Madre que me aceitasse como noviça.
- Oh! não, eu vou casar...
- Você terá arrependimento para o resto da vida. Os homens são por natureza brutais, infiéis e sem consideração.
A dama era corpulenta, de aspecto letárgico e tez pálida. Catalina achou no seu íntimo que, se o marido dela era tão mau assim, não deixava de ter as suas razões para tal.
- Como pode você hesitar, quando o Noivo Celeste lhe
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estende os braços para recebê-la? - prosseguiu a dama, levando um confeito à boca.
Certa ocasião, durante a hora de recreio, uma senhora da
cidade beliscou a face de Catalina e disse em tom malicioso: - Ouvi dizer que dentro em breve teremos uma linda
santinha no convento. Prometa lembrar-se de mim nas suas
orações, pois sou uma grande pecadora e contarei consigo para me conseguir a entrada no Paraíso.
Catalina atemorizou-se. Não desejava tornar-se freira e
muito menos santa. Recordou-se de certas observações fortuitas a que não havia ligado importância no momento de ouvi-las. De repente, percebeu claramente que todas aquelas mulheres esperavam que ela ingressasse na vida religiosa. Nessa tarde, ao entrar como de costume no oratório da prioresa, fê-lo cheia de inquietação. Dona Beatriz notou que qualquer coisa não conriia bem. Foi direita à questão.
- Que aconteceu, menina? - perguntou ela, interrompendo subitamente as palavras de Catalina.
A moça estremeceu e corou.
- Nada, Reverenda Madre.
- Tens medo de me dizer? Não sabes que eu te quero como se fosses minha filha? Esperava que ao menos me tivesses um pouco de afeição.
Catalina desmanchou-se em lágrimas. A prioresa estendeu os braços num gesto afectuoso.
- Vem, senta-te aqui, minha filha, e dize qual é a causa do teu aborrecimento.
Catalina foi sentar-se aos pés da prioresa.
- Quero ir para casa! - soluçou.
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Dona Beatriz empertigou-se, mas recobrou num instante a
serenidade.
- Não estás satisfeita aqui, minha querida? Temos feito tudo para tornar-te feliz. Conquistaste a estima de todas.
- Essa estima é uma prisão para mim. Sou como uma lebre apanhada numa armadilha. As freiras, as senhoras pensionistas, todas parecem ter como certo que eu vou entrar no convento. Mas eu não quero!
A prioresa foi tomada de uma cólera repentina ao ver que as tolas mulheres a tinham traído, levadas pelo seu excesso de zelo, mas não deixou que o seu rosto grave acusasse em absoluto o que sentia.
- Ninguém pode alimentar o desejo de forçar-te a fazer aquilo que só pode ser um acto livre da vontade, conduzida pela inspiração divina. Não deves censurar essas senhoras porque não queiram perder-te, na afeição que conceberam por ti. Quanto a mim, não nego que me permiti desejar que Nossa Senhora te inspirasse o desejo de tornares-te uma de nós, em reconhecimento da grande mercê que recebeste. Serias uma honra e uma glória para o nosso convento. Sei que, além de seres humilde e piedosa, tens óptima cabeça. Infelizmente, muitas das nossas freiras não chegam a aliar a inteligência à bondade. Estou velha e os encargos da minha posição já começam a pesar-me. Talvez tenha sido um pecado entregar-me a devaneios ociosos;, mas seria uma grande felicidade para mim ter-te ao meu lado, com o teu tacto, a tua bondade natural e o teu bom senso, para compartilhares os meus trabalhos e ocupar o meu lugar quando o meu Pai Celestial me chamar para junto de Si.
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Fez uma pausa, esperando a resposta. Afagou com brandura a face da jovem.
- É muito gentil comigo, Reverenda Madre. Não lhe posso agradecer suficientemente a bondade. Teria um grande desgosto se a senhora me julgasse ingrata. Sou indigna da grande honra que me tem reservada.
Se bem que nestas palavras não houvesse uma recusa clara da deslumbrante oferta, a prioresa era demasiado sagaz para deixar de perceber o que elas implicaram. Teve a impressão de que, ao lado do temor que notava em Catalina, havia também obstinação, e suspeitou que uma nova tentativa de persuadi-la não faria mais do que acirrar essa obstinação. Não se deu por vencida, mas a sua discrição sugeriu-lhe que, de momento, seria prudente operar uma retirada.
- Esse é um assunto que deves decidir por ti mesma, de acordo com os ditames da tua consciência, e estou longe de querer influenciar-te.
- Então posso ir para casa, Reverenda Madre?
- Tens liberdade de ir para onde quiseres. Peço-te como um favor, e em respeito ao teu confessor, que permaneças aqui durante o tempo que ele determinou. Tenho a certeza de que não nos podes ser desafeiçoada a ponto de nos privares do encanto e da graça da tua presença durante os poucos dias que ainda restam.
Catalina só pôde responder que se sentiria feliz em ficar e a prioresa despediu-a com um beijo afectuoso. Vendo-se novamente a sós no seu oratório, mergulhou em profunda meditação. Não era mulher que aceitasse uma derrota. Estava agastada com Catalina, mas, como se se tratasse de uma emoção sem qualquer proveito, reprimiu-a imediatamente. Tinha um
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espírito forte e inventivo, e ocorreram-lhe vários planos. Pesou cuidadosamente as vantagens e desvantagens. Sentia-se justificada em lançar mão de quaisquer meios, desde que não houvesse pecado, para garantir o bem-estar da jovem neste mundo e a sua salvação no outro, alcançando ao mesmo tempo um objectivo que traria crédito à ordem. Era evidente que, antes de mais nada, cumpria recorrer a uma persuasão mais forte do que a sua, para procurar trazer Catalina ao bom partido. Ninguém lhe pareceu mais indicado para isso do que Dom Blasco de Valero, bispo de Segóvia: fora ele que realizara o milagre de curá-la, a sua alta posição e a sua santidade impunham respeito. Sentou-se e escreveu uma carta em que pedia ao bispo que viesse conversar com ela sobre um assunto em que necessitava dos seus conselhos.


XXV.

Ele respondeu por um recado, dizendo que viria no dia seguinte, e com uma pontualidade desacostumada na Espanha. apresentou-se à hora marcada. A prioresa foi direita ao assunto.
- Desejava falar com Vossa Excelência sobre Catalina Pérez.
O bispo aceitou a cadeira que lhe oferecia Dona Beatriz, mas sentou-se na borda, como não querendo abandonar-se ao seu escasso conforto. Esperou em silêncio, com os olhos baixos, que a Reverenda Madre prosseguisse.
- A conselho do seu confessor, ela está fazendo um retiro
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na nossa casa. Tenho tido ensejo de falar com ela. Estudei-lhe o carácter e as inclinações. É mais instruída do que muitas senhoras de nascimento nobre. É muito bem educada e tem um procedimento exemplar. A sua devoção por Nossa Senhora é muito sincera. Possui todas as qualidades requeridas para a vida religiosa, e após a assinalada mercê que Deus houve por bem conferir-lhe, por intermédio de Vossa Excelência, parece ser um dever natural de gratidão da parte dela dedicar a sua existência ao serviço do Senhor. Seria um ornamento para a nossa ordem e, aipesar da sua origem modesta, eu não hesitaria em aceitá-la nesta casa.
O bispo não respondeu. Inclinou a cabeça sem erguer os olhos, .mas era impossível saber se se tratava de um gesto de aprovação ou se isso queria apenas indicar que ele estava escutando. A prioresa alçou as sobrancelhas.
- Ela é muito moça, não sabe bem o que quer, e talvez seja muito natural que se sinta atraída pelos vãos deleites do mundo. Eu sou uma mulher ignorante e pecadora, e não me pareceu que pudesse falar-lhe com proveito sobre o assunto. Ocorreu-me que seria uma digna acção da parte de Vossa Excelência falar com ela e apontar-lhe, como ninguém é capaz de fazê-lo melhor, onde se encontram ao mesmo tempo o seu dever e a sua felicidade.
Dessa vez o bispo respondeu:
- Eu não me envolvo com mulheres. Adoptei a regra de não ais receber em confissão, e nunca violei essa regra.
- Bem conheço a pouca inclinação de Vossa Excelência a ter qualquer trato com o meu sexo, mas este é um caso excepcional. O senhor restituiu-a à vida, não pode abandoná-la agora, deixando que a sua alma corra perigo por falta de
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uma palavra de advertência. Seria o mesmo que salvar um homem a ponto de afogar-se e deixá-lo na praia para morrer de fome e frio.
- Se essa menina não tem vocação para a vida religiosa, não creio que tenha o dever de instar com ela para que se faça freira.
- .Vossa Excelência deve saber que muitas mulheres o têm feito por terem perdido alguma pessoa muito chegada por não ter sido possível arranjar-lhes um marido conveniente e até por uma decepção amorosa. Nada disso impediu que se tornassem excelentes freiras.
- Não duvido disso, e sou forçado a crer que Deus por vezes arrebata a taça aos lábios dos mundanos a fim de chamá-los ao seu serviço, mas no caso dessa menina não há razão para supor que exista qualquer dos motivos mencionados por Vossa Reverência. Tomo a liberdade de lembrar-lhe que não é menos possível alcançar a salvação no mundo do que num convento.
- Mas é muito mais difícil e menos seguro. Porque teria Nossa Senhora concedido a Vossa Excelência o poder de realizar esse milagre para a sua maior glória, se não fosse com o desígnio de fazer resplandecer aos olhos de todos a auréola de luz que cerca essa menina e conduzi-los ao arrependimento?
- Não é a nós, pecadores, que compete indagar dos motivos do Omnipotente.
- Mas pelo menos podemos ter a certeza de que eles são bons.
- Podemos.
Dona Beatriz não gostou muito da lacónica brevidade do bispo. Estava mais acostumada a uma efusiva loquacidade por
parte daqueles com quem se dignava conversar. Prosseguiu com um certo tom de aspereza na voz:
- É uma retribuição mínima que lhe peço, em troca do favor e protecção que a minha família sempre dispensou à sua ordem. Recusará o meu pedido para que veja essa menina, examine as suas inclinações e lhe mostre onde está a verdadeira felicidade, caso venha a formar dela uma opinião tão alta como a que eu formei?
O bispo levantou imediatamente os olhos - não para desviá-los da prioresa e sim para olhar pela janela. Dava esta para o jardim, mas na sua absorção ele não viu nem os ciprestes que o ornavam, nem os aloendros em flor.
Intrigava-o aquela insistência,. Não lhe parecia crível que essa mulher dura e soberba tivesse em mira apenas a felicidade de uma costureirazinha. O prior do convento em que estava hospedado contara-lhe que ela havia lutado com unhas e dentes para impedir que Madre Teresa de Jesus fundasse um convento em Castel Rodríguez. Todos conheciam o ódio que as carmelitas da velha ordem nutriam para com as da nova. Brotou-lhe no espírito a suspeita de que fosse por alguma razão relacionada a isso que Dona Beatriz estava tentando seduzir Catalina a emtrar no convento; e, se recorria ao seu auxílio, era porque encontrara a jovem pouco disposta. Encarou pela primeira vez a prioresa e os seus olhos escuros e trágicos procuraram sondar-lhe os pensamentos mais íntimos. Ela suportou-lhe o olhar com altiva serenidade.
- Supondo-se que eu falasse a essa menina e chegasse à conclusão de que é meu dever persuadi-la, com a ajuda do Senhor, a ingressar na vida religiosa, eu sentir-me-ia inclinado
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a pensar que ela estaria mais a gosto num convento de carmelitas descalças do que nesta casa de senhoras da nobreza.
O súbito relâmpago de cólera, imediatamente reprimido, que ele notou nos olhos de Dona Beatriz, mostrou-lhe que havia acertado, se não com a verdade, pelo menos com algo muito próximo desta.
- Seria duro para com a mãe da menina separá-la por completo da filha única - volveu suavemente a prioresa. - As carmelitas descalças não têm casa nesta cidade.
- Unicamente, se estou bem informado, porque Vossa Reverência persuadiu o bispo a recusar permissão à Madre Teresa de Jesus para fundar um estabelecimento aqui.
- Já existem conventos de mais na cidade. "La Cepeda" não queria aceitar uma doação e assim a sua comunidade representaria um ónus para o município, que não se pode dar ao luxo de tais despesas.
- Vossa Reverência fala com pouco respeito de uma mulher cheia de santas virtudes.
- Era uma mulher de origem muito humilde.
- Engana-se, senhora. Ela era de nascimento nobre.
- Tolices! - tornou asperamente a prioresa. - O pai recebeu patente de nobreza no começo deste século. Há-de desculpar-me se não mostro mais tolerância do que o nosso falecido e venerado rei para com essa gente que, sem qualquer justificativa, assume uma posição a que não tem direito. O país está a enxamear com essa nobreza de sarjeta.
Tal era a categoria em que se encaixava o próprio bispo. Sua Excelência sorriu de leve.
- Fosse qual fosse a sua origem, não se pode negar que Madre Teresa foi uma mulher piedosa, que recebeu muitas
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graças do Alto e cujos trabalhos pela causa da religião são dignos dos maiores louvores.
Tão encolerizada estava Dona Beatriz que não notou que o bispo observava as menores mudanças de expressão do seu rosto, todos os gestos de impaciência que faziam as suas mãos delicadas.
- Vossa Excelência há-de permitir que eu discorde. Eu conheci-a e tive ensejo de falar com ela. era uma criatura inquieta e desassossegada que vivia a entreter-se com doidos caprichos sob pretexto de religião. Que necessidade havia de deixar o convento e, com escândalo dos seus concidadãos, fundar um novo? Havia excelentes e santas freiras na Encarnação, e a regra era severa.
- Essa regra, instituída por Santo Alberto e mitigada pelo Papa Eugénio IV, preceituava o jejum quatro vezes por semana, desde a festa da Exaltação da Santa Cruz, em Setembro, até ao Natal, e proibia que se comesse carne no Advento e na Quaresma,. Cada freira tinha de passar pelas disciplinas nas segundas, quartas e sextas-feiras, e devia-se observar silêncio das completas à prima. O hábito era negro e usavam-se sapatos. As camas não tinham lençóis de linho.
- Devo ser uma mulher muito estúpida - disse a prioresa, pois não vejo porque o facto de se usarem sandálias de corda em vez de sapatos de couro favoreça uma espiritualidade mais elevada, nem porque se honre mais o Senhor usando um hábito de lona em vez de sarja. "La Cepeda" dizia ter-se separado da nossa antiga ordem para ter mais tempo de se entregar à oração (mental e à contemplação, e no entanto passou toda a vida a vaguear de um lado para outro. Impunha
silêncio às suas freiras e era a maior tagarela que conheci na minha vida.
- Se Vossa Reverência lesse a vida de Madre Teiresa, escrita por ela própria, passaria sem dúvida a olhar com mais indulgência essa santa criatura - respondeu o bispo num tom frígido.
- Já li. A princesa de Eboli mandou-ma. Escrever livros não é ocupação própria de mulheres. Devem deixar isso aos homens, que são mais instruídos e têm melhor entendimento.
- Madre Teresa de Jesus escreveu-o em obediência a uma ordem do seu confessor.
A prioresa sorriu secamente.
- Não acha notável que o confessor dela nunca lhe tenha mandado fazer nada que ela não houvesse resolvido fazer de antemão?
- Lamento que Vossa Reverência considere com tanta dureza uma mulher que conquistou a afeição e a estima não só das suas freiras mas de todos aqueles que tiveram o privilégio de entrar em contacto com ela.
- Ela dividiu e ameaçou arruinar com as suas inovações a nossa antiga ordem, e não posso deixar de crer que a inspirassem a ambição e o despeito.
- Vossa Reverência sabe, sem dúvida alguma, que em razão dos milagres devidamente atestados que Madre Teresa realizou durante a sua vida-, bem como dos milagres que se verificaram por sua intercessão depois da sua morte, muitas pessoas influentes e respeitáveis já se estão empenhando junto a Sua Santidade para conseguir a sua beatificação.
- Estou informada disso.
- E não me enganarei ao supor que o seu motivo para
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desejar que a jovem Catalina Pérez entre para a sua ordem é a ideia extravagante, concebida por si, de que a notoriedade que cerca essa menina poderia, de certo modo, comtrabalamçar a fama que adviria para as carmelitas descalças da beatificação da sua fundadora?
Se a prioresa se surpreendeu com a argúcia do bispo, a sua fisionomia não o deixou perceber de modo algum.
- Temos tido suficientes santos na nossa ordem para nos mantermos serenos se Sua Santidade se deixasse transviar por pessoas interesseiras e monjas supersticiosas, ao ponto de conferir tão grande honra a uma rebelde perniciosa.
- Não respondeu à minha pergunta, senhora prioresa.
O orgulho de Dona Beatriz não lhe permitiu mentir.
- Eu não consideraria desperdiçada a minha vida se, em toda a humildade, me fosse dado auxiliar uma alma anelante a alcançar tal perfeição que se tornasse digna de ingressar na companhia dos santos. Seria um bem para todos se ela pudesse desfazer assim o mal causado por Teresa de Cepeda. Se o senhor não me quiser ajudar a fazer aquilo que é, estou convicta, um serviço meritório prestado a uma pobre alma em luta com a incerteza, terei de fazê-lo por mim mesma.
O bispo encarou-a longamente, com uma expressão severa.
- É meu dever lembrar a Vossa Reverência que obrigar quem quer que seja a entrar numa instituição religiosa contra a sua vontade constitui um crime passível de censura especial e de excomunhão "latae sontentiae".
A prioresa empalideceu mortalmente, não de medo ante essa terrível ameaça, mas de cólera por ele se ter atrevido a fazê-la. E no entanto, aquelas palavras fizeram com que um arrepio lhe percorresse a espinha. Pela primeira vez na vida
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sentia o domínio do macho. Manteve um silêncio ofendido. O bispo levamtou-se e despediu-se com as costumeiras expressões de cortesia. Ela respondeu com uma altiva inclinação de cabeça, mas ficou sentada na sua cadeira.


XXVI.

Participou com decoro dos ofícios do dia, mas podemos supor que tivesse o espírito perturbado. Não pretendia abandonar o seu projecto e já havia reflectido sobre o que fazer no caso que o bispo recusasse lançar mão da sua autoridade e poder de persuasão para auxiliá-la. Embora achasse vantajoso e honroso para a ordem que Catalina abraçasse a religião entrando no convento que seu pai tinha fundado, estava sinceramente convencida de que isso contribuiria também para o bem-estar espiritual da menina e para a edificação dos fiéis. Muito bem sabia a prioresa que o único obstáculo real era a infeliz afeição que a tola criatura devotava ao jovem alfaiate chamado Diego. Impacientava-se ao pensar que, por um motivo tão insignificante, Catalina estivesse disposta a abrir mão das grandes vantagens que a vida religiosa lhe oferecia, tanto neste mundo como no outro. Mas a pessoa sensata aceita as coisas como as encontra e, conhecendo a situação, passa a manejá-la de maneira que consiga o resultado desejado.
A prioresa começou, pois, por mandar chamar a mestra de noviças. Essa freira, Dona Ana de San José, era discreta, inteligente e digna de confiança, e porfiava pelos interesses do convento. Tão grande era a sua dedicação à prioresa,
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tão perfeita a sua obediência, que se Dona Beatriz a mandasse atirar a um rio ela o tinha feito sem um instante de vacilação. A prioresa começou por Lhe perguntar qual a opinião que formara de Catalina. Dona Ana teceu-lhe os maiores louvores. Era devota, obediente, bondosa e prestativa. Aclimatara-se à vida conventual como se tivesse sido feita para ela.
- É pena que a sua modesta estirpe a impeça de entrar na nossa comunidade.
- Deus não faz acepção de pessoas - tornou gravemente Dona Beatriz. - Aos Seus olhos não há diferença entre nobres e mal-nascidos. Se a menina tem a necessária inclinação é possível superar a dificuldade. Não há motivo para que a regra instituída por meu pai não possa ser modificada por meu irmão, em se tratando de um caso excepcional.
- As suas filhas teriam muita satisfação em recebê-la como companheira.
- Para mim também seria uma fonte de satisfação incluí-la no número das dignas mulheres à frente das quais o Senhor houve por bem colocar-me.
A prioresa deteve-se alguns momentos para escolher as palavras. Insinuou então a Dona Ana que seria bom fazer correr entre as freiras, as pensionistas ("damas de piso", como eram chamadas) e as visitas que ela estava disposta a aceitar Catalina como noviça. Aquela maravilhosa ocorrência trouxera-lhe uma fama que o tempo tornaria conhecida através da Espanha. Era natural que ela desejasse abraçar a vida religiosa e seria uma glória para a cidade se Catalina habitasse no convento das carmelitas e, pelas suas orações, conquistasse para ela o favor especial da Divindade. Não se podia, por certo, esperar que uma menina possuísse a força de vontade necessária
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para resistir à pressão da opinião pública e recusar os aplausos, a admiração mesmo, com que seria recebida a sua decisão de abandonar o mundo e os seus prazeres transitórios. Mas Dona Beatriz era uma mulher prática e não ignorava que as vantagens práticas também têm o seu peso. Mandou a obediente freira falar com Maria Pérez, comunicando-lhe a boa impressão que ela, a prioresa, tivera das virtudes e aptidões de sua filha e o que, em consequência, estava disposta a fazer por ela. Estava segura de que Dona Ana faria compreender a Maria Pérez a grande honra conferida à filha, honra que redundaria em seu crédito, e a vida muito superior, tanto material como espiritualmente, que isso proporcionaria a Catalina em lugar do casamento com um filho de família pobre, que bem podia sair-lhe um vadio, um ébrio ou um jogador. Finalmente, Dona Beatriz encarregou a freira de dizer que ela própria pagaria o dote necessário para o ingresso na vida religiosa e, como Maria Pérez estava envelhecendo e sem a ajuda da filha talvez viesse a encontrar-se em penosas circunstâncias, teriia prazer em dar-lhe uma pensão bastante grande para lhe proporcionar conforto durante o resto da vida, sem a necessidade de trabalhar.
Essas ofertas eram tão tentadoras que Dona Ana se encheu de admiração ante a caridade e munificência da sua superiora. A extraordinária mulher não esquecia nada. A prioresa despediu-a com a recomendação de escolher um momento favorável para transmitir a mensagem e fazer ver a Maria Pérez a necessidade de um sigilo absoluto, pois se ela falasse naquilo ao irmão, o dissoluto Domingo, esse endiabrado homem bem poderia persuadi-la a uma recusa.
A mestra de noviças desempenhou a sua missão com rapidez
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e habilidade, e dentro de vinte e quatro horas informou Dona Beatriz de que Maria Pérez recebera com humiildade e gratidão os seus generosos oferecimentos. Como fosse espanhola e vivesse numa época de grande devoção, não tinha dúvidas de que servir a Deus num estabelecimento religioso era a existência mais digna que se pudesse escolher. Ter uma filha freira ou um filho monge constituía uma honra para qualquer família, a quem isso conferia, ademais, uma espécie de direito sobre a indulgência divina. Mas uma distinção como essa de ter uma filha sua numa casa de damas nobres era coisa com que ela jamais havia sonhado. Sentiu um pequeno estremecimento de orgulho quando a freira lhe disse que já consideravam Catalina como uma santinha e, meio a gracejar - pois era uma criatura alegre e bem-humorada - acrescentou que se ela não desmentisse aquele começo e se a Virgem continuasse a mostrar-lhe o seu favor, não havia razão para que Maria Pérez não se tornasse um dia a mãe de uma virgem canonizada pelo papa. Pintariam então quadros de Catalina, os quais seriam colocados nos altares, e viria gente de todas as partes para tocar-lhe nas relíquias e curar-se das suas doenças. Essa perspectiva deslumbrante bastava para inflamar a ambição de qualquer mulher. Tampouco se mostrou Maria Pérez insensível à pensão que lhe era oferecida. O trabalho mediante o qual ganhava o seu sustento era fatigante e maltratava os dedos, e seria maravilhoso não ter nada que fazer de manhã à noite senão ir à igreja e ficar sentada à janela, observando os que passavam.
- Ela não falou desse rapaz que, segundo creio ter ouvido dizer, anda fazendo a corte a Catalina? - perguntou a prioresa
depois de ouvir com satisfação o que a freira tinha para lhe comunicar.
- Não gosta dele. Diz que ele se portou muito mal quando a pobre menina sofreu o acidente. Acha-o egoísta e presunçoso.
- Seria difícil encontrar um homem que não sofresse de ambos esses defeitos - disse secamente a prioresa. - O egoísmo e a presunção fazem parte da natureza masculina.
- Também não gosta da mãe dele. Parece que, quando o marido de Maria fugiu para a América, a mãe do rapaz disse a toda a gente que era bem feito, porque ela lhe dava uma vida de cachorro.
- Não duvido nada. É a vida que a maioria das mulheres dão aos seus maridos. Não lhe terá insinuado que seria bom fazer saber a Catalina, como se isso partisse dela própria, o quanto ficaria contente se a menina resolvesse entrar no convento?
- Pareceu-me que não havia nenhum mal nisso.
- Muito pelo contrário. A senhora fez muito bem, Dona Ana, e estou satisfeita com a maneira inteligente por que conduziu este assunto.
A freira corou de prazer. Dona Beatriz estava mais habituada a ralhar do que a elogiar.


XXVII.

A prioresa deixou passar alguns dias, até se espalhar a notícia de que Catalina seria recebida no convento das carmelitas se o espírito do Senhor lhe inspirasse a decisão de
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tomar o véu. A notícia foi recebida com satisfação. Todos concordaram em que tal coisa redundaria em glória para a cidade e era da mais alta conveniência que a jovem o fizesse. Não parecia bem que a recipiente de tão prodigiosa graça se tornasse esposa de um alfaiate. A mestra de noviças desempenhou-se com êxito da sua missão pessoal. Tornou a procurar Maria Pérez e advertiu-a de que devia conduzir a filha com muito tacto, sem insistir com ela, mas comparando, quando se apresentasse ocasião, a tranquilidade e a segurança da vida monástica com os perigos, trabalhos e agruras do matrimónio. Tinha Dona Beatriz o dom de conquistar a dedicação e a lealdade dos seus subordinados, e entre estes ninguém era mais leal e dedicado do que o administrador dos bens do convento e das suas propriedades particulares. Era um fidalgo chamado Don Manuel de Becedas, parente distante da prioresa. Conhecia a generosidade desta, pois administrava as suas esmolas e admirava-lhe a capacidade. Dona Beatriz tinha grande tino para negócios e sabia levar a bom termo uma transacção difícil, com tanta habilidade como qualquer homem. Era razoável, mas depois de tomar uma resolução não havia nada que a fizesse mudar. Quando isso sucedia não havia outro remédio senão obedecer-lhe, e em tais ocasiões Don Miguel obedecia cegamente. Ela mandou-o chamar e deu-lhe ordem de proceder a uma indagação completa, tanto na cidade como em Madrid, sobre os antecedentes e as actuais circunstâncias de Dom Manuel de Valero, o soldado, averiguando ao mesmo tempo tudo que se pudesse saber sobre o jovem Diego Martínez e seu pai. Quando Don Miguel trouxe as informações desejadas, a prioresa já havia mandado Catalina para casa com um lindo
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presente e os protestos da sua sólida afeição. Catalina disse-lhe adeus com lágrimas nos olhos.
- Não esqueças, minha filha, que se algum dia tiveres um aborrecimento ou te encontrares em dificuldade, será bastante que me venhas procurar e eu farei tudo quanto estiver em mim para ajudar-te.
Dona Beatriz ouviu com atenção tudo que o administrador tinha para lhe dizer e ficou satisfeita com os resultados das suas investigações. Pediu-lhe então que buscasse um ensejo de falar com Don Manuel e, no correr da conversa, lhe dissesse casualmente que ela teria prazer em receber um homem de quem ouvira dizer tanto bem.
Após o fiasco da colegiada Don Manuel fechara-se durante três dias nos seus aposentos, sem querer ver ninguém. Era vaidoso e, portanto, sensível ao ridículo. Conhecia muito bem o espírito escarninho dos seus compatriotas e não ignorava que se estavam divertindo à sua custa. Não cria que alguém se aventurasse a atirar-lhe à cara qualquer alusão à sua desventura, pois era bom esgrimista e muito valente seria aquele que se arriscasse a ser trespassado por uma espada por causa de uma pilhéria; mas não podia impedir que falassem dele pelas costas. Quando, afinal, se aventurou a mostrar-se em público, fê-lo com um ar truculento que servia de plena advertência aos presentes. Estava furioso não só por haver feito papel de tolo mas porque pusera em perigo os seus planos. Ao vir a Castel Rodríguez, como talvez se recorde o leitor, a sua intenção era encontrar uma moça casadoira, em alguma das famílias nobres mas empobrecidas do lugar, e tinha boas razões para pensar que a sua bela fortuna o tornava um partido aceitável. Mas a humilhação pública a que se expusera diminuíam-lhe
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de muito as probabilidades de êxito. A nobreza da cidade era orgulhosa - o orgulho, nesses tempos difíceis, era tudo quanto lhe restava - e teriam recusado a mão de uma de suas filhas a um homem que era alvo da galhofa geral. Afigurava-se a Don Manuel que só lhe restava ir a Madrid, na esperança de que a lamentável história ainda não tivesse chegado à capital, e ver se não podia encontrar por lá uma noiva que lhe conviesse.
Não foi pequena a sua surpresa quando Don Miguel lhe trouxe o amável recado da prioresa; sentia-se ao mesmo tempo lisonjeado, pois nunca lhe ocorrera que ela se dignasse recebê-lo. Dona Beatriz pertencia a um murado tão superior ao seu que era como se fosse uma habitante de outro planeta. Don Manuel disse que consideraria uma honra poder apresentar os seus respeitos à prioresa em qualquer ocasião que esta achasse conveniente. Respondeu o administrador que ela recebia poucas pessoas além de seus parentes e designou uma hora em que as numerosas obrigações de Dona Beatriz a deixavam livre.
- Virei buscá-lo amanhã, senhor, se assim lhe convém, e eu mesmo o conduzirei ao convento - disse ele.
A proposta convinha perfeitamente a Don Manuel.
Foi introduzido no oratório e ficou a sós com a nobre dama. Estava ela sentada à sua mesa, escrevendo, e não se levantou para recebê-lo. Don Manuel correu os olhos em redor, procurando uma cadeira, mas como a prioresa não o convidasse para sentar-se ficou em pé, um tanto sem jeito. Embora fosse um homem audaz e descarnado, a dignidade de Dona Beatriz intimidava-o. Ela falou-lhe com muita gentileza.
- Muito tenho ouvido falar, senhor, da coragem, dedicação e capacidade com que por tantos anos tem servido el-rei, e tinha curiosidade de conhecer um compatriota que, pelos seus próprios esforços,, alcançou tão altas distinções. Esperava que o senhor tivesse tempo de me visitar, a fim de poder felicitá-lo pessoalmente pelos seus grandes feitos.
- Nunca sonhei que uma visita minha pudesse ser-lhe agradável, iminha senhora - gaguejou ele.
Mas começou a sentir-se mais à vontade. Se a filha do grande duque de Castel Rodríguez lhe dirigia cumprimentos, a sua situação não podia ser tão desesperada assim. Mas a observação seguinte de Dona Beatriz, embora acompanhada de um sorriso, deixou-o um pouco desconcertado.
- Muito tem subido, Don Manuel, desde o tempo em que corria descalço pelas ruas da sua aldeia, conduzindo os porcos de seu pai!
Ele corou, mas, não sabendo o que responder, manteve-se calado. Dona Beatriz olhou-o de alto a baixo, exactamente como se se tratasse de um lacaio a quem estivesse pensando em ajustar. Se lhe notou o embaraço, não fez caso. Tinha diante de si um homem de belo físico e aparência bastante agradável, porte aprumado e um ar de virilidade. A prioresa sabia-o com quarenta e cinco anos, mas ele tinha-os muito bem conservados. Era um pouco mais alto do que seu irmão, o bispo, que por sua vez não era pequeno, e embora tivesse os ossos bem providos de carne estava longe de ser gordo. Possuía belos olhos e, apesar de se notar no seu rosto uma certa expressão de brutalidade, isso era muito natural num homem que passara tantos anos na guerra e não causava má impressão à prioresa, que não suportava os homens molengas. Na verdade, Don Manuel era arrogante, gabolas e licencioso, mas tais defeitos eram
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comuns aos próprios parentes de Dona Beatriz e, conquanto os deplorasse na sua qualidade de religiosa, na de mulher aceitava-os como traços masculinos, com a mesma resignação com que aceitava o frio penetrante do Inverno castelhano. Em conjunto, a primeira impressão que teve de Don Manuel não foi nada desfavorável.
Pareceu reparar pela primeira vez que ele ainda continuava em pé.
- Porque permanece em pé, senhor? Não me quer fazer a bondade de sentar-se?
- É muito amável, senhora. E sentou-se.
- Eu tenho uma existência muito reclusa e os meus deveres religiosos, combinados com as obrigações atinentes ao meu cargo, trazem-me ocupadíssima. Não obstante, de quando em quando chega-me alguma notícia do mundo que se estende para fora destes muros. Ouvi dizer, por exemplo, que além do dever filial o seu objectivo ao visitar a terra que o viu nascer era escolher uma noiva entre as famílias nobres da cidade.
- Após ter servido durante tantos anos o meu rei e a minha pátria, é verdade que tenho o desejo de construir um lar e gozar os prazeres da vida doméstica, de que até hoje tenho sido privado.
- Seu desejo é louvável, senhor, e acresce ainda mais a estima que me inspira a sua reputação.
- Sou um homem forte e activo e tenho uma fortuna considerável. Quer-me parecer que as aptidões que possuo serão tão úteis na corte como mostraram ser no campo de batalha.
- E, se bem o entendo, o senhor não ignora que uma
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esposa inteligente e de família influente lhe pode prestar serviços na corte.
- Não o nego, senhora.
- Tenho uma sobrinha viúva, a marquesa de Cananera, cujo marido infelizmente a deixou sem os necessários recursos. Actualmente vive nesta casa. Eu esperava que ela resolvesse adoptar a vida religiosa, tornando-se minha sucessora quando finalmente eu depuser as minhas árduas funções, pois ela teria plenos direitos ao cargo, neta que é do nosso fundador. Mas falta-lhe a vocação, e eu convenci-me de que é preciso arranjar-lhe um partido conveniente.
Don Manuel pôs-se alerta. Era um homem astuto: a possibilidade de uma aliança com tão grande família como a dos duques de Castel Rodríguez estava tão fora das suas esperanças que não pôde deixar de suspeitar alguma trapaça. Respondeu com prudência.
- Eu não pretendia casar com uma viúva, mas sim com uma jovem a quem pudesse amoldar de acordo com o meu desejo.
- A marquesa tem vinte e quatro anos, idade muito apropriada para um homem da sua - replicou Dona Beatriz com certa aspereza. - É bastante bonita e, como teve um filho, que morreu do mesmo mal que arrebatou o pai, não é certamente estéril. O facto de eu a ter escolhido para me suceder após a minha morte prova que faço alta opinião das suas capacidades. Escuso de salientar que um Don Manuel de Valero nunca poderia aspirar a um casamento com a sobrinha do duque de Castel Rodríguez. Eu teria, mesmo, de empregar todos os meus poderes de persuasão para induzir meu irmão a consentir nesse casamento.
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Don Manuel estivera a reflectir com rapidez. Escudado na influência dessa poderosa família, quem podia prever as alturas a que ele subiria? Tal aliança seria um triunfo sobre os imbecis que pretendiam ridicularizá-lo.
- O marquês de Catranera morreu sem deixar herdeiros para o título. Não seria impossível convencer el-rei a que o concedesse ao senhor. Seria muito preferível a esse miserável título italiano que possui actualmente.
Isto decidiu a questão. Embora a marquesa fosse velha, dez anos mais velha do que a noiva almejada por ele, e talvez fosse feia, as vantagens do casamento eram tão grandes que não havia hesitação possível.
- Não sei como mostrar a minha gratidão a Vossa Reverência pela honra que tenciona conferir-me.
- Eu lhe direi como - volveu ela calmamente. - Para dizer a verdade, só pretendo levar avante o projecto se o senhor der provas eficazes da sua gratidão.
Don Manuel abafou um suspiro de alívio. Era demasiado astuto para não perceber que essa inesperada proposta se baseava em motivos mais fortes do que a sua simples fortuna e reputação militar. Como tinha um espírito grosseiro, ocorreu-lhe logo a ideia de que a marquesa estivesse grávida e o houvessem escolhido para perfilhar um fruto de amores ilegítimos. Em tal caso, não tinha a certeza se aceitaria ou não o convite; esperou, pois, com alguma ansiedade que Dona Beatriz prosseguisse.
- Desejo que o senhor exerça a sua influência junto ao arquiduque Alberto, em favor de um moço desta cidade. Não teria necessidade de recorrer ao senhor se não fosse a infortunada circunstância de meu irmão ter tido uma violenta disputa
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com ele, estando por isso incapacitado de me ajudar. Ouvi dizer que o senhor é muito estimado pelo arquiduque.
- Ele tem a bondade de fazer boa opinião das minhas capacidades.
Devemos explicar que o arquiduque Alberto era nesse tempo o comandante supremo das forças espanholas nos Países Baixos.
- Seria muito proveitoso para esse moço entrar no serviço do arquiduque. É forte, corajoso, e daria sem dúvida alguma um bom soldado.
Don Manuel sentiu-se grandemente aliviado. O arquiduque devia-lhe toda a sorte de favores. Teria prazer, sem dúvida, em prestar-lhe serviço aceitando nas suas forças qualquer recomendado seu.
- Creio que não seria difícil conseguir o que Vossa Reverência deseja. Esse moço, naturalmente, é de boa família.
- É um cristão-velho de sangue limpo.
Isso, naturalmente, significava apenas que ele não tinha qualquer mácula de sangue judeu ou mouro. Don Manuel notou que a resposta não correspondia à sua pergunta.
- E como se chama ele, minha senhora?
- Diego Martínez.
- O filho do alfaiate? Nesse caso, minha senhora, é impossível satisfazer o seu pedido. Os soldados que servem no exército do arquiduque são cavalheiros, e eu não podia fazer a Sua Alteza a afronta de solicitar O que a senhora deseja.
- Já previa essa dificuldade. Tenho uma pequena propriedade a certa distância de Castél Rodríguez, propriedade que estou disposta a doar ao moço, e por intermédio de meu irmão posso obter que lhe seja conferida carta de nobreza.
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A pessoa que o senhor recomendaria ao arquiduque não seria o filho do alfaiate, mas o fidalgo Don Diego de Quintamilla.
- Não é possível, senhora prioresa.
- Nesse caso, não há mais que dizer e é inútil continuarmos a discutir o assunto ou aquele a que nos referimos anteriormente.
Don Manuel estava aborrecidíssimo. O casamento proposto pela prioresa proporcionar-Lhe-ia a posição que almejava para satisfazer as suas ambições, e suspeitava que se recusasse aceder-lhe ao pedido faria uma inimiga perigosa. Por outro lado, as consequências poderiam ser funestas para ele se viessem a descobrir a sua participação num plano que o arquiduque bem poderia considerar como um insulto pessoal. Dona Beatriz notou-lhe a perturbação.
- Que tolice, Don Manuel! Don Diego será um homem de posses e, creia-me, a sua propriedade suportará favoravelmente a comparação com as sáfaras terras que possui seu pai, Don Juan.
Don Manuel era um fanfarrão. Encolheu-se sob essa chicotada da língua de Dona Beatriz. Ela tinha o poder de arruiná-lo e não hesitaria em o fazer.
- Posso saber por que motivo Vossa Reverência se interessa tanto por esse rapaz? - perguntou em voz hesitante.
- A minha família sempre teve na conta de um privilégio, não menos que um dever, dispensar a sua protecção às pessoas merecedoras da nossa cidade.
Esta resposta cautelosa restituiu a confiança ao soldado, que sorriu. O olhar que ele lançou à prioresa, porém, era astuto.
- Ele é o namorado da Catalina Pérez, não é?
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Dona Beatriz sentiu-se insultada pela pergunta, pelo sorriso e pela astúcia do olhar de Don Manuel. Teve alguma dificuldade em conter a sua indignação.
- Ele tem importunado a pobre menina com as suas atenções.
- E é por isso que a senhora o quer mandar para os Países Baixos?
A prioresa reflectiu um instante. Com muita probabilidade ele estava informado dos seus projectos;, e era evidente que o homem não tinha nenhum tacto. Há muitas coisas que se podem compreender, mas que não convém expressar verbalmente. Respondeu-lhe, todavia, com solene dignidade.
- Ela é muito moça e não sabe o que quer. Tem uma admirável disposição para a vida religiosa e, por muitos motivos, é altamente desejável que a adopte. Não tenho dúvidas que, se não fosse a presença desse rapaz, ela não tardaria a compreender a sensatez de um acto que me proporcionaria grande satisfação, às pessoas mais importantes da cidade e à sua própria mãe.
- Mas, minha senhora, não acha muito mais prático e menos dispendioso dar cabo logo do rapaz? Seria facílimo mandá-lo degolar numa noite escura.
- Isso seria um pecado mortal, senhor, e causa-me espanto ouvir-lhe propor semelhante coisa. Provocaria escândalo na cidade, daria pasto a desagradáveis mexericos, e além disso não há a certeza de que produzisse o resultado desejado.
- Então que deseja que eu faça, minha senhora?
Ela considerou com ar pensativo. Ao menos por enquanto, parecia-lhe indispensável ao êxito do seu plano que nem ela nem pessoa alguma com ela relacionada se mostrasse
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interessada em tal coisa. Tinha de confiar a alguém mais a sua execução e não estava segura de que esse homem possuísse a necessária inteligência ou subtileza. Não havia outro remédio senão arriscar-se, e a prioresa respondeu sem mais vacilações.
- Mande fazer um traje.
Dom Manuel ficou muito surpreendido com isto,. Julgando que ela gracejasse, esperou que um sorriso lhe encrespasse os lábios resolutos. Mas a expressão do rosto da prioresa continuou fria e austera. Ela explicou:
- Mande chamar o alfaiate para lhe tomar as medidas e trazer amostras de pano. Ele ficará lisonjeado e impressionado com isso. O senhor deve procurar um ensejo de lhe falar no filho e dizer-lhe que uma pessoa influente da cidade teve boas referências dele e deseja ajudá-lo. Depois, exigindo-lhe sigilo, revele o plano que arquitectámos para encaminhar o rapaz. Peça-lhe que mande Diego falar consigo e exponha-lhe a ideia. Tenho a certeza de que ele se considera nascido para coisa melhor do que passar a vida sentado num banco de alfaiate, e sem dúvida alguma aceitará jubilosamente.
- Será um grande asno se não o fizer.
- Procure-me quando tiver alguma coisa para me comunicar. Confio no seu tacto e discrição.
- Não tenha cuidado, minha senhora. Em dois dias, no máximo, estarei em condições de a informar do êxito satisfatório do assunto.
- Pode ficar certo de que nesse caso eu desempenharei a minha parte a seu inteiro contento.

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XXVIII.

Don Manuel mandou chamar o alfaiate. Sabia ser muito amável quando se dispunha a isso e, uma vez tomadas as medidas e examinadas várias amostras de tecidos, .tratou de agradar o velho Martínez. Como naturais da mesma cidade, tinham ambos certos interesses comuns e Don Manuel falou-lhe com bom humor das mudanças que se haviam operado nela durante a sua ausência. O alfaiate era um homenzinho ressequido, de nariz pontiagudo e expressão rabugenta. Mas era loquaz. Encontrando em Don Manuel um ouvinte bem disposto, alongou-se sobre a adversidade dos tempos. As guerras e a pesada tributação haviam empobrecido a todos, e cavalheiros da mais alta categoria usavam as suas roupas até ficarem no fio. Já não era tão fácil ganhar a vida como trinta anos antes, quando as caravelas chegavam regularmente da América com o seu carregamento de ouro. Algumas perguntas bem encaixadas levaram-no a confessar que estava preocupado com o filho. O justo seria que ele seguisse as pegadas do pai, mas o rapaz tinha ideias néscias e fora preciso recorrer à autoridade paterna para o forçar a entrar no ofício.
- E agora, se dão licença, anda querendo casar, apesar de ter apenas dezoito anos!
- Talvez assente o juízo.
- Foi a única razão pela qual eu consenti.
- Não duvido que o dote da moça lhe seja muito proveitoso - observou Don Manuel com malícia.
- Ela não tem dinheiro. Andam dizendo por aí que algumas senhoras estão dispostas a oferecer-lhe um dote, mas quem sabe o que resultará disso?
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O alfaiate contou então a Don Manuel quem era a jovem e como ele acabara por ceder às insistências do filho. Disso tudo, naturalmente, Don Manuel já estava inteirado.
- Eu tinha outro partido em vista para ele, mas o pai da moça não quis aceitar as minhas condições, aliás muito razoáveis, de modo que consenti no casamento do rapaz com Catalina. Depois de tudo que aconteceu e da nomeada que ela ganhou creio que me trará uma freguesia muito distinta. Minha mulher é contra isso. Pergunta-me de que serve fazer roupa para cavalheiros que não podem pagá-la.
- Uma observação muito sensata. Mas, se os negócios andam tão maus, por que razão não deixa que ele se faça soldado?
- A vida de soldado é dura e mal paga. Na oficina ele ainda pode ganhar o suficiente para ir vivendo.
- Ouça, amigo - volveu Don Manuel com uma franqueza que encantou o pobre alfaiate - , você sabe que quando eu deixei esta cidade era pobre como um rato de igreja. Agora sou Cavalheiro de Calatrava e um homem rico.
- Ah! mas Vossa Excelência era fidalgo e tinha amigos para ajudá-lo.
- Fidalgo, sim, mas os únicos amigos com que contava eram a minha mocidade, a minha força, a minha coragem e a minha inteligência.
O alfaiate sacudiu os ombros, descoroçoado. Don Manuel olhava-o com benignidade, de cima para baixo.
- Só tenho ouvido dizer bem do seu filho, e se o que dizem é verdade ele deve ser talhado para coisas mais elevadas do que você supõe. Eu também fui pobre; somos conterrâneos;
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teria prazer em prestar uma ajuda ao rapaz se tivesse a certeza de que você aprovaria.
- Não o compreendo bem, senhor.
- O arquiduque Alberto é meu amigo e fará tudo que eu lhe pedir. Se eu lhe recomendasse um moço, ele pô-lo-ia no seu regimento particular e marcá-lo-ia para futuras promoções.
O alfaiate olhava para ele, boquiaberto.
- Naturalmente, seria preciso provê-lo de certas vantagens. Tenho uma pequena propriedade não longe daqui, cujo título de posse eu lhe passaria-, e com a minha influência em Madrid posso conseguir que lhe dêem carta de nobreza. Seu filho entrará para o serviço do arquiduque como Don Diego de Quintanilla.
Como a prioresa lhe exprimira o desejo de que o seu nome não fosse mencionado, Don Manuel não via por que não arrogar-se o crédito de uma generosa acção. O alfaiate ficou tão sucumbido que o rosto se lhe contorceu todo e se pôs a chorar. Don Manuel bateu-lhe bondosamente no ombro.
- Ora, ora, isso não é motivo para ficar tão nervoso. Vá à sua casa, não diga uma palavra a ninguém e mande o seu filho falar comigo. Pode-lhe dizer que esqueceu a amostra de algum pano que talvez me agrade.
Dentro em pouco apareceu o rapaz. Don Manuel notou, aliviado, que era um jovem de bela presença. Bem vestido, passaria sem dificuldade por um cavalheiro. Não era tímido nem atrevido. Tinha um ar de segurança que levava a crer fosse capaz de se fazer respeitar em qualquer companhia. Já predisposto em seu favor, Don Manuel entabulou, após algumas frases preliminares, o assunto para que o mandara chamar.
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Conversaram durante uma hora, ao cabo da qual se separaram e Don Manuel foi ver a prioresa.
- Obedeci às suas ordens sem perda de tempo, senhora. Falei tanto com o rapaz como com o pai.
- Realmente, o senhor houve-se com muita presteza.
- Sou soldado, senhora. O pai está inteiramente de acordo com o nosso plano. Sente-se mesmo confuso com o ensejo que a generosidade de um benfeitor se dispõe a oferecer ao seu filho.
- Ele seria um asno se recebesse de outro modo a proposta.
Don Manuel, inquieto, transferiu de um pé para o outro o peso do carpo.
- Acho melhor relatar a Vossa Reverência, palavra por palavra, o que se passou entre mim e o rapaz.
A prioresa deitou-lhe um rápido olhar inquiridor e franziu o sobrolho.
- Prossiga.
- É um rapaz muito apresentável e a minha primeira impressão foi boa.
- As suas impressões não me interessam.
- Não tardei a descobrir que ele abomina e despreza o ofício em que o pôs o pai. Só o aceitou porque não tinha outro remédio.
- Isso já eu sabia.
- Eu disse-lhe que não compreendia como um rapaz disposto e inteligente, dotado de todas as qualidades necessárias para o êxito no mundo, pudesse resignar-se a desperdiçar a sua vida em tão humilde ocupação. Ele respondeu que tinha pensado muitas vezes em fugir para ir correr mundo,
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mas o que o impedia era o facto de não ter um vintém no bolso. Expliquei-lhe então que el-rei necessita de soldados e que essa carreira pode facilmente conferir posição e riqueza a um homem de coragem e expediente. Depois revelei-lhe, pouco a pouco, o que se estava projectando para permitir que ele realizasse a sua natural e louvável ambição.
- Muito bem.
- Ele acolheu a proposta com mais calma do que eu esperava, mas era evidente que se sentia tentado.
- Naturalmente. Aceitou, então?
Don Manuel hesitou um breve instante, pois sabia que Dona Beatriz não ficaria satisfeita com a sua resposta.
- Condicionalmente - respondeu.
- Que quer dizer com isso?
- Ele disse que queria casar com a namorada, mas dentro de um ano, quando ela tiver tido um filho, estará disposto a embarcar para os Países Baixos.
A prioresa enraiveceu-se. Que utilidade podia ter para ela uma mulher casada, com um bebé chorão? A virgindade de Catalina, sua virgindade perpétua, era essencial ao plano.
- Você deitou tudo a perder, seu imbecil - gritou ela.
Don Manuel fez-se rubro de cólera.
- Não é culpa minha se esse idiota está baboso pela rapariga!
- Não teve o bom senso de lhe fazer ver que era loucura recusar semelhante oportunidade?
- Tive, sim senhora. Disse-lhe que, nesta vida, quando se tem uma ocasião de melhorar de sorte, é preciso segurá-la depressa, porque se a deixamos escapar talvez nunca mais volte. Disse que era absurdo, na idade dele, arranjar uma
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esposa para se atrapalhar, e que como oficial e cavalheiro ele podia conseguir coisa muito melhor do que a filha de uma costureira sem vintém. E se quisesse uma pequena para se divertir, encontraria nos Países Baixos muitas delas, mais que dispostas a dispensar os seus favores a um moço bem-parecido, e até algumas prontas a mostrar a sua gratidão de maneira concreta.
- E que respondeu ele a isso?
- Disse que amava a sua namorada.
- Não admira que o mundo esteja perdido e o país vá por água abaixo, quando é governado pelos homens, e os homens não têm um pingo de bom senso.
Don Manuel não achou resposta para isso e, portanto, ficou calado. A prioresa considerou-o com frio desdém.
- O senhor fracassou, Don Manuel, e não vejo nenhuma utilidade em continuarmos as nossas relações.
Ele tinha suficiente sagacidade para perceber o significado destas palavras: devia renunciar a toda a esperança de casar com a marquesa viúva. Não estava disposto a desistir sem luta de uma aliança tão vantajosa.
- Vossa Reverência desanima com muita facilidade. O pai do rapaz é por nós. Esse casamento com Catalina não é muito do seu agrado e não tenho dúvida de que nos seja possível levá-lo a retirar o seu consentimento. Pode ficar certa de que ele envidará todos os esforços para convencer o rapaz a aceitar a nossa proposta.
Dona Beatriz fez um gesto de impaciência.
- O senhor conhece pouco a humanidade. A oposição paterna jamais conseguiu diminuir a afeição dos namorados.
Não é com tal disposição de espírito que eu pretendo acolher a moça nesta casa. Se o rapaz tivesse concordado na minha proposta ela veria o pouco que vale o amor de um homem em comparação com o amor divino. Sentir-se-ia infeliz, mas eu não lamentaria o facto se ele lhe ensinasse onde se encontra a única felicidade verdadeira.
- Existem vários meios de nos livrarmos de alguém que nos incomoda. Tenho homens de confiança. Pode-se agarrar o rapaz uma noite,, levá-lo para um porto de mar e embarcá-lo num navio. A mocidade é volúvel. Depois que estiver nos Países Baixos, rodeado de coisas novas, de aventuras, com a posição de um cavalheiro e as brilhantes perspectivas que lhe proporcionará o favor do arquiduque, ele há-de esquecer esse amor e não tardará a dar graças ao Céu por o ter livrado de semelhante estopada.
A prioresa não respondeu logo. Era uma mulher de consciência robusta e não se ofendeu com o que se achava implicado no plano de Don Manuel. Era coisa comum embarcar para a América, os filhos rebeldes, assim como as filhas que negavam consentimento aos desígnios matrimoniais de seus genitores eram postas num convento até que se tornassem mais razoáveis. Dona Beatriz estava plenamente convencida de que separar Diego de Catalina redundaria em proveito de ambos.
- Vossa Reverência pode estar certa de que o rapaz falará a Catalina da oferta que lhe foi feita.
- Porquê?
- Para se tornar mais precioso aos seus olhos, mostrando as vantagens de que está disposto a abrir mão por amor a ela.
- O senhor é mais arguto do que eu supunha.
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- E quando derem pela falta dele, uma dessas manhãs, Catalina suporá naturalmente que ele não pôde resistir à tentação.
- Isso é bastante provável. Mas também temos de levar em conta o pai. Não nos conviria nada que ele fosse queixar-se às autoridades.
- A fim de que ele não o faça, tenciono fazê-lo participar do segredo. Ele tem ambição pelo filho. Concordará sem hesitar no nosso plano. Saberá manter silêncio, e quando derem pela falta do rapaz já ele estará em segurança, a bordo de um navio.
A prioresa suspirou.
- O plano não me agrada:, mas é evidente que os moços são desmiolados e muitas vezes é preferível que o seu destino seja decidido por cabeças mais velhas e mais prudentes. Mas eu desejo uma garantia de que não lhe farão nenhuma violência desnecessária.
- Posso prometer a Vossa Reverência que ninguém lhe tocará num fio de cabelo. Vou fazê-lo acompanhar por um homem de confiança, para ter a certeza de que ele será bem tratado.
- Está no seu interesse fazê-lo - respondeu ela com severidade.
- Bem o sei, minha senhora. Pode deixar tudo confiadamente nas minhas mãos.
- Quando pretende pôr o plano em execução?
- Logo que tenha concluído os necessários preparativos.
Dona Beatriz guardou silêncio por alguns momentos. O desaparecimento de Diego provocaria comentários e não era improvável que estes chegassem aos ouvidos do bispo. Ela já
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tivera provas da perspicácia de Don Blasco. Este bem podia estabelecer uma conexão entre os factos e chegar à conclusão de que ela estava envolvida no assunto. Lamentou amargamente que, no decurso da sua conversa com ele, se tivesse deixado levar pela cólera a dizer coisas imprudentes. Não sabia ao certo o que o bispo poderia fazer, mas era um homem decidido e poderoso; não tinha medo dele, mas era bastante sagaz para perceber que seria preferível evitar uma ruptura franca, a qual, além de causar escândalo, também podia frustrar-lhe os desígnios.
- Quando é que seu irmão nos vai deixar, Don Manuel? A pergunta surpreendeu-o.
- Não sei, Reverenda Madre, mas se isso lhe interessa posso informar-me.
- Não desejo que se faça nada antes da sua partida.
- Porquê?
- Porque assim me apraz. Contente-se em saber que tal é o meu desejo.
- Far-se-á a sua vontade, senhora. O rapaz será raptado na noite do dia em que meu irmão deixar a cidade.
- Isso convém-me às maravilhas, Don Manuel - tornou ela amavelmente.
Deu-lhe a mão a beijar e ele despediu-se.


XXIX.

Mas, embora lhe assegurasse a razão que estava procedendo no melhor dos intuitos e era plenamente justificada no que fazia. Dona Beatriz não lograva acalmar a singular inquietação
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que se apossara dela. Tão forte era esse sentimento que por uma ou duas vezes esteve para dizer a Don Manuel que abandonasse o plano. Mas censurava a si mesma a sua fraqueza. Havia muita coisa em jogo. Andava nervosa, todavia, e as suas freiras notavam-lhe uma irritabilidade desacostumada. Uma bela manhã a subprioresa informou-a de que o bispo se tinha ido embora. A fim de não chamar atenção ele saíra pela calada ao romper do dia, com os seus secretários e criados. Uma hora depois Don Manuel mandava-lhe um recado dizendo que os preparativos estavam completos e o plano seria levado a efeito naquela noite. Isso resolvia tudo. Ela fez um exame de consciência e viu que as suas intenções eram irrepreensíveis. Pela tardinha vieram-lhe dizer que Catalina pedia permissão para lhe falar. Conduziram a jovem ao oratório. A prioresa notou, consternada, que ela estava presa de violenta agitação. Adivinhou que qualquer coisa não correra bem.
- Que foi, minha filha?
- Vossa Reverência disse-me que viesse vê-la se algum dia me visse em dificuldade.
Desfez-se em pranto. Dona Beatriz pediu-lhe que se acalmasse e lhe contasse o que tinha acontecido. Entre soluços, a jovem disse-lhe que um cavalheiro de importância na cidade oferecera mandar Diego para a guerra, com a promessa de lhe doar uma propriedade e conseguir para ele o título de Don. Diego recusara por amor a ela e, em consequência disso, tivera violenta disputa com o pai. Este havia acabado por dizer que, se ele não aceitasse a magnífica oferta como o faria qualquer homem sensato,, iria por mal ou por bem. Acrescentara que retirava a sua anuência ao casamento com Catalina. Dona Beatriz franziu o sobrolho ao ouvir repetir esta ameaça.
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O homem praticara uma tolice em fazê-la. Se Diego desaparecesse agora, a moça saberia que ele não fora embora de sua livre vontade. A prioresa havia contado com o efeito que teria sobre ela o pensar que o namorado sucumbira à tentação, abandonando-a.
- É uma boa fortuna com que ele nunca poderia ter sonhado - disse Dona Beatriz. - É um ensejo que nenhum moço hesitaria em aproveitar. Os homens são vaidosos e poltrões, e embora procedam mal fazem questão de que se julgue bem deles. Como podes saber que ele não te está enganando quando fala em ser levado à força, para que penses que ele não te abandonou por sua culpa?
- Como posso saber? Tenho a certeza disso porque ele ama-me. Ah! A senhora é uma santa,, não sabe o que é o amor. Se me tirarem o meu Diego eu morrerei.
- Até hoje ninguém morreu de amor - replicou Dona Beatriz com selvagem aspereza.
Catalina caiu de joelhos e juntou as mãos numa súplica apaixonada.
- Oh! Madre, Reverenda Madre, tenha piedade de nós. Salve-o! Não permita que o levem embora! Eu não posso viver sem ele. Oh! Minha senhora, se soubesse a angústia que eu sofria quando pensava tê-lo perdido para sempre e como chorei noite após noite, até parecer-me que ia ficar cega de tanto derramar lágrimas! Por que razão me livrou a Santíssima Virgem da minha enfermidade, se não foi para que eu me tornasse mais uma vez capaz de ser mulher dele? Ela apiedou-se de mim, e a senhora nada fará para me ajudar?
A prioresa apartou com força os braços da sua cadeira, mas não respondeu.
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- Durante todo esse tempo eu suspirei por ele. Tinha o coração partido. Não sou mais do que uma moça pobre e ignorante, mas amo-o de todo o coração.
- Ele não é ninguém. É apenas um rapaz como os outros - disse Dona Beatriz numa voz rouca que semelhava o grasnar de um corvo.
- Ah! Reverenda Madre, a senhora o diz porque nunca conheceu as aflições e as alegrias do amor. Eu quero sentir os braços em volta de mim, quero sentir o calor dos seus lábios sobre os meus, quero sentir a carícia das suas mãos no meu corpo nu. Quero que ele me possua como um amante possui a mulher amada. Quero que a sua semente me penetre nas entranhas e gere nelas um filho. Quero dar o meu peito a mamar ao seu filho!
Pôs uma mão sobre cada seio. Irradiava sensualidade, numa chama tão impetuosa que Dona Beatriz recuou diante dela. Dir-se-ia o calor de uma fornalha. Ergueu as mãos como para defender-se. Olhou para o rosto da jovem e estremeceu. Via-o singularmente demudado, pálido, e dir-se-ia que as feições estavam entumescidas. Era uma máscara de desejo. Catalina ofegava, ansiosa pelo macho. Parecia uma possessa. Havia nela qualquer coisa que não era bem humano, que era um tanto horrível, mesmo, mas tão poderoso que infundia terror. Era o sexo, nada) -mais que o sexo, violento e irresistível, o sexo na sua medonha mudez. De súbito o rosto da prioresa contorceu-se numa careta de insuportável angústia e as lágrimas entraram a correr-lhe pelas faces. Catalina soltou um grito de terror.
- Oh! Madre, que foi que eu fiz? Perdoe-me! Perdoe-me! Agarrou-se aos joelhos da prioresa. Assombravam-na essas
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mostras de emoção por parte de alguém que ela sempre tinha visto calma, séria e digna. Estava confusa. Não sabia o que fazer. Pegou nas suas aquelas duas mãos esguias e beijou-as.
- Porque chora. Reverenda Madre? Que foi que eu fiz? Dona Beatriz retirou as suas mãos e cerrou os punhos no
esforço de se conter.
- Sou uma mulher má e infeliz - gemeu ela. Inclinou-se para trás na cadeira e escondeu o rosto nas
mãos. As recordações de tempos longínquos tumultuavam no seu espírito e ela rangia os dentes para conter os soluços que lhe sacudiam a garganta. Aquela tolinha dissera que ela nunca havia conhecido o amor! Como era cruel que, depois de tantos anos, essa velha ferida sangrasse ainda;! Teve a sombra de um riso amargo ao sentir a ironia de haver devorado o seu coração por um rapaz que hoje era um sacerdote combalido e atormentado. Enxugou com um gesto vivo as lágrimas que lhe turvavam a vista e, tomando nas mãos o rosto de Catalina, contemplou-a como se fosse uma desconhecida. Já não havia vestígios da carnalidade que por um momento lhe desfigurara de tão hedionda maneira as lindas feições. Era toda ternura,, solicitude e pureza, Dona Beatriz embeveceu-se nessa contemplação. Tão jovem, tão bela e tão apaixonada! Como podia ela partir aquele coraçãozinho como fora partido o seu? Ela, que pensava ter vencido todas as fraquezas humanas, sentia-se débil, lamentavelmente débil, e contudo havia nesse sentimento qualquer coisa estranha, que exaltava, qualquer coisa que lhe aquecia o coração e ao mesmo tempo - oh tão deliciosamente! - lhe paralisava a vontade. Era como se no âmago do seu peito se houvesse desatado um nó, no seu peito que nunca sentira os lábios macios de uma criancinha à procura
da teta,
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e regozijava-se por se ver livre daquela dor que não a deixava em paz. Inclinou-se e beijou a boca vermelha da moça.
- Não tenhas receio, minha querida. Tu casarás com o homem a quem amas.
Catalina lançou um grito de alegria e derramou-se em volúveis expressões de gratidão, mas a prioresa ordenou-lhe rispidamente que se calasse. A situação era delicada e fazia-se necessário reflectir. Dentro de poucas horas iriam raptar Diego. É verdade que podia mandar chamar Don Manuel e dizer-lhe que tinha mudado de ideias, cortando cerce os seus protestos, mas isso não resolveria as dificuldades que ela própria havia criado para si. A semente fora bem semeada. Difundira-se pela cidade a opinião de que era- dever de Catalina tornar-se freira. Dona Beatriz bem conhecia a apaixonada devoção que aquele povo tinha pela fé: não só ficariam decepcionados se a moça não fizesse o que se esperava dela, mas considerariam como uma indignidade, quase como um insulto à religião, o casar-se ela com um alfaiate após ter recebido tão insigne graça. Os mundanos ririam e fariam gracejos indecentes; os piedosos ficariam indignados. No momento, Catalina era olhada com admiração e mesmo com respeito, mas seria fácil passar desses sentimentos à indignação e ao desprezo. A prioresa conhecia a índole violenta dos seus compatriotas; eram capazes de incendiar a casa em que ela vivia, eram capazes de apedrejá-la como uma devassa perdida e cravar um punhal nas costas de Diego. Só havia uma coisa que fazer, e cumpria fazê-la depressa.
- Vocês vão deixar a cidade, tu e esse rapaz, e tem de ser esta noite. Vai chamar Domingo, teu tio, e volta cá depressa com ele.
Inflamada de curiosidade, a moça quis saber o que a prioresa tinha em mente, mas Dona Beatriz replicou-lhe em tom peremptório que se deixasse de perguntas e fizesse o que lhe era mandado.
Quando Catalina tornou a aparecer com o tio, daí a poucos minutos, a prioresa mandou-a descer e esperar na sua cela, a fim de poder falar a sós com ele. Informou-o daqueles factos que lhe pareceu necessário dar-lhe a conhecer, deu-lhe certas instruções e, com estas, um bilhete que já tinha pronto, dirigido ao seu administrador. Disse-lhe então que procurasse Diego, comunicasse a este a decisão a que tinham chegado e tratasse de fazer com que ele seguisse as instruções recebidas. Após despedi-lo, chamou Catalina.
- Passarás o serão comigo, minha filha. À meia-noite far-te-ei sair por uma porta dos muros da cidade; encontrarás Domingo com um cavalo que mandei o meu administrador fornecer-lhe. Ele conduzir-te-á a um lugar combinado por nós, onde Diego estará à tua espera. Então Diego tomará o lugar de Domingo e vocês seguirão para o sul até alcançarem Sevilha. Dar-te-ei uma carta para uns amigos que tenho lá e esses amigos encontrarão um trabalho decente para ti e para ele.
- Oh! Reverenda Madre! - exclamou Catalina, emocionadíssima. - Como poderei mostrar a minha gratidão pelo que está fazendo?
- Eu to direi - respondeu a prioresa com certa severidade, - Andem depressa e não se demorem na estrada sob pretexto algum. Vocês terão de haver-se com homens prontos para tudo e é possível que eles os persigam. A castidade é a glória de uma mulher e tu deves conservá-la até que a igreja tenha abençoado essa união. As relações carnais entre pessoas
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que não estão ligadas pelo sacramento do matrimónio são um pecado mortal. Procura um padre na primeira aldeia a que vocês chegarem depois do amanhecer e pede-lhe que te una a Diego em matrimónio. Estás vendo o que eu tenho aqui? Catalina olhou e viu um anel simples de ouro.
- É o anel que eu destinava para a cerimónia da tua consagração. Será o teu anel de noivado.
Colocou-o na palma da mão de Catalina, cujo coração se pôs a bater doidamente. A prioresa passou então a instruí-la sobre os deveres e responsabilidades da vida conjugal. Ela escutou-a com a devida gravidade, mas um tanto distraída, pois estava toda emocionada e tinha o espírito mais ocupado com as delícias da mesma. Rezaram juntas. As horas passaram-se lentamente. Por fim o relógio do convento deu meia-noite.
- Está na hora - disse Dona Beatriz. Tirou um saquinho de uma. gaveta da secretária. - Aqui tens algumas moedas de ouro. Guarda o saquinho num lugar onde não possas perdê-lo e não deixes que Diego lhe ponha a mão em cima. Os homens não conhecem o valor do dinheiro e quando o têm gastam-no em tolices.
Voltando pudkamemte as costas, Catalina levantou a saia, pôs o saquinho dentro da meia e atou os cordões em volta da perna.
A prioresa acendeu uma lanterna e disse à moça que a seguisse. Percorreram de mansinho os silenciosos corredores, até chegarem ao jardim. Depois, para que alguma freira desperta não ficasse intrigada ao notar uma luz, ela apagou a lanterna e, tomando a mão de Catalina, conduziu-a pelas ruas que separavam os canteiros. Chegaram à portinha que a prioresa mandara abrir nos muros da cidade para poder deixá-la
sem ser observada, em caso de necessidade, ou para receber visitas que, por uma razão ou outra, tivessem de ser secretas. Só ela possuía a chave. Abriu a portinha. Domingo, a cavalo, esperava à sombra do muro, pois havia lua e a noite estava clara.
- Agora, vai - disse a prioresa. - Deus te abençoe, minha filha., e lembra-te de mim nas tuas orações, pois sou uma pecadora e necessito delas.
Catalina esgueirou-se pela porta, que a prioresa tornou a fechar à chave assim que ela saiu. Pôs-se à escuta, até ouvir o som dos cascos do cavalo. Eles destacaram-se muito sonoros no silêncio da noite. Com passos vagarosos, Dona Beatriz voltou para o edifício do convento. Enxergava o caminho com dificuldade, pois estava- quase cegada pelas lágrimas. Voltou ao seu oratório e passou o resto da noite em orações.


XXX.

Domingo deu a mão a Catalina e ajudou-a a subir para a garupa. A noite era serena e tépida, mas lá no alto soprava vento e as nuvenzinhas viajavam céleres através do céu, escuras mas orladas de prata pelo luar brilhante. Os campos estavam desertos. Dir-se-ia que eles cavalgavam num mundo do qual eram os únicos habitantes.
- Tio Domingo?
- Que é?
- Vou casar-me.
- Não te esqueças de fazê-lo, menina. É um sacramento
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necessário à salvação, mas do qual os homens geralmente hesitam em servir-se.
Passaram por uma povoação adormecida, além da qual havia um bosquete de árvores. Ao chegarem a estas, um vulto adiantou-se das sombras. Catalina deixou-se deslizar do lombo do cavalo e lançou-se nos braços de Diego. Domingo apeou-se.
- Vamos, vamos! - disse ele. - Vocês terão tempo de sobra para essas coisas mais tarde. Montem a cavalo os dois e ponham-se ao largo. Nos alforjes há comida e uma garrafa de vinho.
Beijou Catalina e Diego, assistiu-lhes à partida e, como as portas da cidade estivessem fechadas e ele não pudesse entrar senão depois do amanhecer, instalou-se tão confortavelmente como pôde debaixo de uma árvore. Tomara a precaução de levar vinho consigo e encostou a garrafa aos lábios. O lugar era ideal para compor versos e ele preparou-se para aguardar o dia em colóquio com a Musa. Mas ainda não chegara a resolver se devia dedicar um soneto à Lua ou tecer uma ode ao amor triunfante quando mergulhou num sono profundo e não acordou senão ao raiar do sol.
Os dois amantes cavalgaram durante uma hora. Catalina falava pelos cotovelos. Parecia que tinha um milhar de coisas para dizer, muito que contar a Diego, planos que comumicar-lhe, e como tinha um lindo jeito de contar as coisas dava àquilo tudo uma aparência muito encantadora e divertida. Diego sentia-se tão feliz que estava disposto a rir de tudo quanto ela dissesse. E Catalina nadava em êxtase. Não podia imaginar nada mais celestial do que andar a cavalo de noite, no campo aberto, com os braços em volta do seu amado.
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Tinha de fazê-lo, naturalmente, pois essa era a única maneira de segurar-se, mas achava-a muito agradável.
- Eu poderia continuar assim até ao fim do mundo - disse ela.
- Estou com fome - respondeu Diego. - Vamos parar aqui para ver o que há nos alforjes.
Estavam passando por um bosque e ele puxou as rédeas. Catalina percebia muito bem que o seu apetite, no momento, não era de comer e beber, e sentiu um arrepio de desejo percorrer-lhe o corpo. Não eram necessárias,, porém,, as advertências da prioresa nem as de Domingo para lhe fazer ver a imprudência de permitir que um homem fizesse com ela o que quisesse enquanto a união não fosse santificada pela Igreja. Sabia que os homens têm uma aversão instintiva ao casamento e conhecia casos de moças que haviam cedido aos desejos dos seus namorados e estes depois recusaram-se a cumprir a sua promessa. Não restava a elas, então, outra alternativa além do bordel.
- Continuemos a viagem, meu amor. A prioresa disse que podíamos ser perseguidos.
- Não me assusto com isso.
Passou a perna por cima da cabeça do cavalo e, deixando-se escorregar para o chão, tirou Catalina do lombo do animal. Tinha-a nos braços. Beijou-a nos olhos e na boca. Segurou a rédea e, com o braço sempre em volta da cintura de Catalina, tomou o caminho do bosque. Mas nesse momento colheu-os um forte aguaceiro. Ambos ficaram surpreendidos, pois a noite estava bonita e eles não haviam reparado nas nuvens escuras. Ora, sucede que Diego era valente como um leão e teria enfrentado intrepidamente homens armados, mas tinha
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pavor da chuva. Além disso, pusera a sua melhor roupa ao partir e não queria de modo algum que ela se molhasse.
- Ali não chove - disse ele, apontando para um lugar a certa distância no outro lado da estrada. - Corramos!
Mas nem bem haviam alcançado o lugar indicado por ele quando começou a chover ali também,, e com mais força ainda. Diego soltou uma exclamação de enfado.
- É apenas uma nuvem que passa - disse ele. - Se andarmos depressa livrar-nos-emos dela.
Montou, ajudou Catalina a subir para a garupa e, metendo as esporas nos flancos do cavalo, saiu a galope pela estrada fora. Logo que saíram do bosque, porém, a chuva parou tão repentinamente como havia começado. Diego olhou para cima. Havia nuvens para trás deles, mas para a frente o céu estava azul e sereno. Cavalgaram em silêncio. Depois de algum tempo, talvez meia hora, chegaram a um bosquezinho.
- Isto aqui serve - disse Diego, puxando a rédea do cavalo.
Mal havia pronunciado estas palavras quando uma pesada gota de chuva lhe caiu no nariz.
- Isso não é nada - disse ele, e mais uma vez passou a perna por cima da cabeça do cavalo; mas nem bem tinha posto o pé no chão quando as gotas se puseram a cair mais numerosas e amiudadas. - Isto é obra do Diabo.
Tornou a pôr o pé no estribo e seguiu caminho. A chuva parou. Catalina estava pensativa.
- Isso não é obra do Diabo - disse ela.
- Que é então?
- É a Virgem Maria.
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- Estás para aí a dizer tolices, mulher, e daqui a pouco eu to provarei.
Vigiava atentamente a estrada. Passou-se algum tempo sem que visse uma árvore à qual pudesse amarrar o cavalo.
- Eu devia ter trazido uma corda para peá-lo - disse Diego.
- Não se pode pensar em tudo - respondeu ela.
- O cavalo precisa descansar. Não seria nada mau se dormíssemos um pouco à beira da estrada.
- Eu seria incapaz de pregar olho.
- Nem sentirias vontade de fazê-lo, por isso garanto eu - volveu ele, arreganhando os dentes.
- Olha, vai chover de novo - disse Catalina. E, de facto, começaram a cair algumas gotas. - Vamos ficar encharcados.
- Umas gotinhas de chuva não nos podem fazer mal. Mal ele tinha falado, a chuva pôs-se de repente a cair a
cântaros. Diego soltou uma praga e esporeou o cavalo.
- Nunca vi coisa tão esquisita na minha vida - disse ele.
- É quase um milagre - murmurou Catalina.
Diego deu o caso por perdido. Embora houvesse parado a chuva, ambos nessa altura já estavam completamente molhados e o ardor amoroso de Diego sensivelmente arrefecido pela sua preocupação com a roupa. Como justificativa, cumpre-nos explicar que não se tratava apenas do seu melhor, mas do seu único traje, pois Domingo tinha-o advertido de que não seria prudente fugir de casa levando consigo outra coisa além da roupa do corpo. Cavalgaram o resto da noite, sem encontrar ninguém, mas avistando de tempos a tempos, ao luar, uma quinta ou algumas casitas campestres. Afinal o sol ergueu-se. Estavam no alto de um pequeno outeiro e, baixando
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o olhar, viram uma aldeiazinha na luz cinzenta da alvorada. Não podia deixar de haver ali uma estalagem, onde conseguiriam de comer e de beber, pois já então estavam ambos realmente esfaimados e sedentos. Seguiram caminho e começaram a encontrar camponeses que se dirigiam para o trabalho dos campos. Entraram na aldeia e de repente o cavalo estacou.
- Que há contigo, bruto? Toca para diante - gritou Diego, cravamdo-lhe as esporas.
Mas o cavalo não se movia. Diego golpeou-o na cabeça com as extremidades das rédeas e tornou a fazer uso das esporas. O animal continuou impassível, completamente imóvel. Parecia convertido em pedra.
- Hás-de caminhar, bruto!
Estava furioso. Bateu com toda a força na cabeça do cavalo. Este empinou-se nas patas de trás e Catalina soltou um grito agudo. Diego deu um murro na cabeça do animal, que tornou a sentar no chão as patas dianteiras, mas não havia nada que o fizesse dar um passo à frente. Dir-se-ia que criara raízes no chão. Diego, com o rosto vermelho, suava abundantemente.
- Não consigo entender isto. Por acaso o cavalo também estará com o diabo no corpo?
Catalina desatou a rir e Diego voltou-se para ela, furioso.
- Em que achas graça?
- Não te zangues comigo, meu amor. Não vês onde estamos? Diante da igreja!
Diego levantou os olhos, carrancudo, e só então notou que o cavalo tínha parado em frente da igreja, que ficava bem na entrada da aldeia.
- E que tem isso?
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- A prioresa fez-me prometer que nos casaríamos na primeira igreja que encontrássemos, nada mais.
- Teremos tempo de sobra, para isso, mais tarde - respondeu ele.
Tornou a cravar as esporas, com raiva, nos flancos do pobre animal. Este pôs-se então a corcovear e a dar coices e quando os dois cavaleiros deram por si iam a voar pelo espaço. Por sorte, foram cair num monte de feno e não se magoaram. Deixaram-se ficar deitados ali um instante, um pouco abalados e cheios de assombro. Após a estranha demonstração de energia, o cavalo imobilizou-se como antes. O padre, que acabava de dizer missa, saía da igreja nesse momento e, ao notar o acidente, acudiu correndo. Os dois levamtaram-se, sacudiram-se, e vendo que não tinham sofrido dano algum, limparam as roupas do feno que nelas se havia pegado.
- Foi uma sorte para os dois estar o feno aí - observou o padre, um homem baixo, gorducho e rubicundo. - Se houvessem chegado um pouco mais tarde ele estaria no meu celeiro.
- Foi providencial que isso tivesse ocorrido na porta da igreja - disse Catalina - pois estávamos à procura de um padre que nos casasse.
Diego deitou-lhe um olhar surpreendido, mas não disse nada.
- Casá-los? - exclamou o padre. - Vocês não são meus paroquianos! Nunca os vi na minha vida! Por certo que não os casarei! Não pus nada na boca desde a minha ceia de ontem à noite e agora vou para casa ver se como alguma coisa.
- Faça o favor de esperar um momento, padre - disse Catalina.
Virou as costas aos dois, ergueu a saia e tirou rapidamente
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uma moeda) de ouro do saquinho que a prioresa lhe dera. Com o seu sorriso feiticeiro, mostrou-a na pallma da mão. O padre olhou para a- moeda e o seu rosto fez-se ainda mais vermelho.
- Mas quem são vocês? - perguntou em tom dúbio. - Porque desejam casar num lugar estranho e com tanta pressa?
Não tirava os olhos da moeda reluzente.
- Tenha compaixão de dois namorados, padre! Nós fugimos de castel Rodríguez porque meu pai queria obrigar-me a casar com um velho rico, só por causa do dinheiro; e este moço, a quem eu estava prometida, os pais sovinas queriam fazê-lo desposar uma mulher zarolha e sem um único dente na boca.
Para tornar mais convincente a história, catalina colocou a moeda de ouro na mão do padre e pegou-lhe firmemente os dedos.
- -Você tem modos muito persuasivos moça - disse o padre - e a sua história é tão comovente que me faz vir lágrimas aos olhos.
- Não só praticará um acto meritório, padre - -prosseguiu Catalina - mas salvará dois jovens virtuosos de cometerem um pecado mortal.
- Sigam-me - disse o sacerdote, tornando a entrar na igreja. - Pepe! - chamou ele em voz alta enquanto se dirigia para o altar-mor.
- Que é? - responderam algures.
- Venha cá, seu vagabundo!
Um homem de vassoura em punho surgiu de uma capela ao lado do santuário.
- Porque não me deixa trabalhar em paz? - perguntou ele,
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mal-humorado. - Nunca sacristão algum recebeu tão miserável paga, e ainda por cima o senhor não me dá um instante de trégua. Como poderei ir ao meu campo se o senhor me interrompe no meio do trabalho?
- Põe um freio nessa língua insolente,, patife! Vou casar estes dois moços. Ah! mas serão precisas duas testemunhas - disse ele, virando-se para Catalina com um sorriso satisfeito na cara nédia. - Terão de esperar que este bêbedo vá buscar alguém à aldeia, e isso me dará tempo de comer alguma coisa.
- Eu serei a segunda testemunha.
Era uma voz de mulher que falava. Todos se viraram e a viram caminhar na direcção deles. Vestia um manto azul e tinha a cabeça coberta por uma grande mantilha branca, cujas pontas lhe caíam sobre as espáduas. O padre olhou para ela com espanto, pois não havia notado a presença de ninguém na igreja enquanto dizia missa:, mas encolheu os ombros com impaciência.
- Muito bem. Vamos terminar com isto o mais depressa possível. Quero almoçar.
Catalina fez um gesto de surpresa quando a desconhecida se acercou do grupo, e tomou na mão trémula a mão de Diego. A desconhecida, com um leve sorriso a brilhar nos olhos, levou o dedo aos lábios recomendando silêncio a Catalina. A cerimónia realizou-se com rapidez e Catalina foi unida a Diego Martínez pelos laços do santo matrimónio. Dirigiram-se para a sacristia, a fim de assinar no lavro. O padre escreveu os nomes dos recém-casados e os de seus pais. Em seguida o sacristão assinou laboriosamente o seu.
- É a única coisa que ele sabe escrever - disse o padre -, e foram-me precisos seis meses para meter as letras
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nessa cabeça de pau. Agora é a sua vez, minha senhora. Mergulhou a pena na tinta e passou-a à dama desconhecida.
- Mas eu não sei escrever nada - disse esta.
- Então faça uma cruz e eu escreverei o seu nome.
Ela apanhou a pena e fez o que lhe indicavam. Catalina observava-a, com o coração a bater forte.
- Então? Se a senhora não me disser o seu nome não poderei escrevê-lo - observou o padre com impaciência.
- Maria, filha do pastor Joaquim - respondeu a desconhecida.
Ele escreveu o nome.
- Está pronto. Agora vou comer.
Todos saíram da igreja com ele, salvo o sacristão, que entre resmungos irritados apanhou a vassoura e recomeçou a varrer. Mas os espanhóis sempre foram um povo cortês, e o padre, com a moeda de ouro bem guardada no bolso, não constituía excepção à regra.
- Meu senhor e minhas senhoras, se me fizerem a honra de vir ao meu humilde tugúrio aqui ao lado terei a maior satisfação em oferecer-lhes aquilo que estiver ao alcance da minha pobreza.
Catalina, que era muito bem-educada, sabia que um convite desse género devia ser declinado amavelmente, mas Diego estava faminto e não lhe deu tempo de falar.
- Senhor - disse ele -, nem eu nem minha mulher comemos desde ontem e, por mais pobre que seja o seu passadio, será para nós um festim.
O padre foi colhido de surpresa., mas a polidez só lhe permitiu responder que eles lhe faziam muita honra em aceitar.
Percorreram os poucos passos que os separavam da casa do padre e este introduziu-os numa sala pequena e desguarnecida que servia ao mesmo tempo de refeitório, gabinete e sala de visitas. Colocou diante deles pão, vinho, queijo de cabra e um prato de azeitonas pretas. Cortou quatro fatias de pão e encheu de vinho quatro copos de chifre. Pôs-se a comer sofregamente e Diego e Catalina seguiram-lhe o exemplo. Ele ergueu os olhos para servir-se de uma azeitona e notou que a dama desconhecida não havia tocado na comida.
- Coma, por favor, minha senhora - disse ele. - É comida simples, mas boa, e a melhor que tenho para lhes oferecer.
Ela dirigiu ao pão e ao vinho um sorriso impregnado de singular .tristeza e sacudiu a cabeça.
- Comerei uma azeitona.
Apanhou uma e mordiscou-a delicadamente com os dentes alvos. Catalina relanceou-a. Os olhos de ambas encontraram-se; os da desconhecida tinham uma expressão de infinita bondade. Nesse momento o sacristão irrompeu pela sala dentro.
- Senhor, senhor! - gritava ele, fora de si. - Roubaram a Virgem!
- -Não sou surdo,, velho imbecil! - exclamou o padre. - Em nome de Deus, que queres dizer com isso?
- Estou a dizer-lhe que roubaram a nossa Virgem. Entrei lá para varrer e o pedestal estava vazio.
- Estás doido ou bêbedo, Pepe - retrucou-lhe o padre, pulando da cadeira. - Quem seria capaz de fazer uma coisa dessas?
Arremessou-se para a porta e, seguido do sacristão, de Diego e Catalina, correu à igreja.
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- Não fui eu, não fui eu! - gritava o sacristão, agitando os braços desesperado. - Todos vão dizer que fui eu e serei posto na cadeia!
Subiram atabalhoadamente os degraus da igreja e correram à capela da Virgem. O sacristão deu um berro. Lá estava a imagem de Nossa Senhora no seu lugar do costume.
- Que significa isso? - rugiu o padre, furioso.
- Há um minuto ela não estava aí. Juro por todos os santos que o pedestal estava vazio.
- Bêbedo sem-vergonha! Velho odre de vinho!
O padre agarrou-o pela nuca e encheu de pontapés o traseiro do infeliz, até ficar exausto; depois, para completar a dose, esbofeteou-o nas duas faces com toda a força que lhe restava.
- Se tivesse uma vara aqui, quebrava-te os ossos. Quando os três voltaram à casa do padre para terminar
o frugal repasto, ficaram surpreendidos ao notar que a dama desconhecida havia desaparecido.
- Aonde poderá ela ter ido? - exclamou o padre. E, batendo na testa: - Que burro que eu sou! Agora percebo tudo. É evidente que a mulher é moura e quando Pepe veio dizer que a Virgem tinha sido roubada ela achou melhor pôr-se ao fresco. São todos ladrões e ela pensou que algum dos seus malditos compatriotas havia furtado a imagem. Notaram como não quis beber o vinho? Foram baptizados, mas não abandonaram os seus costumes pagãos. Eu tive as minhas suspeitas quando ella me deu o seu nome: aquilo não é nome de cristão que se respeite.
- Há muito que nós limpámos Castel Rodríguez de mouros - disse Diego.
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- E fizeram muito bem. Todas as noites eu rezo para que el-rei chegue a compreender os seus deveres para com a Fé e expulse do reino todos esses abomináveis hereges.
- Será um grande dia para a Espanha quando ele o fizer. Merece talvez ser registado aqui que as preces do digno
sacerdote foram atendidas, pois em 1609 todos os mouros foram expelidos da Espanha.
Já era tempo de Diego e sua esposa encetarem a viagem para Sevilha. Agradeceram a hospitalidade do padre e despediram-se. Entrementes, o cavalo banqueteara-se com o feno sobre o qual havia atirado os seus cavaleiros. Diego deu-lhe de beber e logo que montaram pôs-se a caminho, sem ser instigado, num trote confortável. Fazia um belo dia, sem uma só nuvem no céu. O padre dissera-lhes que a umas quinze milhas adiante havia uma estalagem frequentada por arrieiros e carreteiros, onde podiam conseguir pousada. Resolveram passar a noite ali. Cavalgaram em silêncio durante duas ou três milhas.
- És feliz, meu querido? - perguntou afinal Catalina.
- Naturalmente.
- Serei boa esposa. Por ti trabalharei até gastar os dedos.
- Não será preciso. Um homem inteligente pode fazer muito dinheiro em Sevilha, e ninguém até hoje me tomou por tolo.
- Bem o creio!
Tornaram a calar-se durante algum tempo. Foi Catalina quem novamente rompeu o silêncio.
- Escutai, meu amor, aquela senhora que veio ao nosso casamento não era uma moura.
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- Que queres dizer? Bastava pôr os olhos nela para ver que não era uma cristã-velha.
- Mas eu já a tinha visto uma vez.
- Tu? Onde?
- Na escada da igreja das carmelitas. Foi ela que me disse como eu podia curar-me.
Diego deteve o cavalo e virou-se para trás.
- Pobre pequena, estás doida. Foi o sol que te deu volta aos miolos.
- Estou em tão perfeito juízo quanto tu, meu querido. Digo-te que era a Santíssima Virgem, e quando ela não quis comer pão nem beber vinho eu compreendi por quê. Vi que ela se recordava da angústia indescritível por que passou.
Diego encarou-a, perplexo e carrancudo.
- A Reverenda Madre disse-me -uma centena de vezes que era mais do que certo achar-me eu sob a protecção especial de Nossa Senhora, Foi por isso que ela insistiu tanto comigo para entrar no convento. Aqueles aguaceiros repentinos da noite passada, aquela paragem do cavalo diante da igreja, a sua recusa de caminhar e os corcovos com que nos arrojou aos dois da sela... Deves compreender que todas essas coisas não podiam ter sido coincidências.
Ele considerou-a durante alguns momentos ainda e Catalina notou, aflita, que os seus olhos tinham uma expressão de enfado. Sem acrescentar nem uma palavra mais, Diego tornou a virar-se para a frente e estalou a língua para instigar o cavalo. Catalina arriscava uma observação fortuita de quando em quando, com certa timidez, mas ou ele não respondia, ou fazia-o com um monossílabo apenas.
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- Que tens, meu amor? - perguntou ela afinal, fazendo esforço para não chorar.
- Nada.
- Olha para mim, adorado. Tenho fome de um olhar teu.
- Como posso olhar para ti quando a estrada está cheia de sulcos e buracos? Se o cavalo tropeçar podemos quebrar a espinha.
- Não estás zangado comigo porque a Santíssima Virgem quis proteger a minha virtude e teve a bondade de servir de testemunha ao nosso casamemto?
- É uma honra a que eu nunca ousaria aspirar - respondeu ele secamente.
- Então porque estás aborrecido comigo? A resposta tardou um pouco a vir.
- Não augura bem para a nossa futura felicidade que todas as vezes que temos uma diferença de opinião aconteça um milagre para que tu leves a melhor. O homem deve ser o senhor da casa. É dever da mulher submeter-se aos desejos do marido, e nisso devia ela pôr a sua alegria.
Catalina tinha os braços em volta de Diego, e este sentiu-os tremer.
- Com choro não remedeias nada - disse ele.
- Não estou a chorar.
- Que estás a fazer então?
- A rir.
- A rir? Isso não é motivo para riso, mulher? É assunto muito sério e eu tenho o direito de ficar preocupado.
- És encantador,, meu querido, e eu amo-te de todo o coração, mas às vezes não és muito sensato.
- Explica - volveu ele friamente.
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- A prioresa disse-me que eu devia à minha virgindade os favores que tinha recebido de Nossa Senhora. Parece que dão muito valor a isso lá no Céu. Sem dúvida não receberei mais nenhum quando a tiver perdido.
A estas palavras Diego virou-se para trás da sela, tanto quamto lhe era possível. O seu bonito rosto abria-se num sorriso brejeiro.
- Bendita seja aquela que te pôs no mundo!- - disse ele. - Vamos pôr essa questão à prova sem mais tardança.
- O sol está a ficar quente. Seria agradável repousar um pouco à sombra das árvores, até que abrande o calor do dia.
- Era justamente essa a ideia que me tinha passado pela cabeça.
- E, a não ser que os meus olhos me enganem, a menos de uma milha daqui há um bosque que nos convém, às maravilhas.
- Se os teus olhos te enganam, os meus estão a enganar-me também.
Encostou as esporas ao cavalo, que largou a correr como uma ventania até alcançarem o bosque. Diego saltou da sela e ajudou Catalina a descer. Enquanto ele atava o cavalo a uma árvore, ela foi tirando dos alforjes o farnel de que os tinha munido a providência, quer da prioresa, quer de Domingo. Pão e queijo, salsichas, frango assado e um rotundo odre de vinho. Quem poderia desejar melhor repasto de núpcias? Estava fresco e sombrio debaixo das árvores e um fio de água corria pelo leito de pequenina e límpida torrente. O sítio era propício.

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XXXI.

Quando saíram do bosque - Diego a puxar o cavalo - já o sol chamejava com menos ferocidade.
- Fizemos bem em nos garantirmos duplamente - disse ele.
- Triplamente - murmurou Catalina, não sem uma certa satisfação desvanecida.
- Isso não é nada, menina - volveu ele com uma presunção muito perdoável. - Tu ainda não sabes de que eu sou capaz.
- És tão descarado quanto adorável - disse ela.
- Sou como Deus me fez - respondeu Diego modestamente.
Seguiram caminho devagar, subindo e descendo colinas, sem conversar muito, mas a ruminar a sua felicidade. Cavalgaram seis ou sete milhas e afinal avistaram,, à luz dourada da tardinha, uma construção desconjuntada à beira da estrada. Era, evidentemente, a estalagem de que falara o padre.
- Daqui a pouco estaremos lá. Estás cansada, meu amor?
- Cansada? - respondeu ela. - Porque havia de estar cansada? Sinto-me fresca como uma cotovia.
Haviam percorrido umas boas quarenta milhas e desde o dia anterior Catalina não dormira mais de uma hora. Mas tinha dezasseis anos.
Estavam já na planície, que se estendia amplamente de ambos os lados da estrada. Fora feita a colheita e os campos estavam secos e pardacentos. Aqui e além elevavam-se alguns robles nodosos; de longe em longe, um bosque de oliveiras centenárias. Ainda se encorutravam a menos de uma milha da
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estalagem quando avistaram, a galopar na sua direcção em meio a uma grande nuvem de pó, um cavaleiro de tão estranha aparência que os deixou estupefactos, pois o homem vestia uma armadura completa. Fez estacar bruscamente o seu cavalo ao alcançá-los e postou-se no meio da estrada. Pôs a lança em riste, firmou-se melhor na sela e, em tom altaneiro, assim falou a Diego:
- Detende-vos e, quem quer que sejais, dizei-me quem sois, de onde vindes, aonde ides e quem é a formosa princesa que levais à garupa; pois tenho razões de sobra para crer que a estais conduzindo ao vosso castelo contra a sua vontade, e cumpre que eu esteja bem informado a fim de punir o mal que fizestes e restituí-la aos seus aflitos pais.
Tão espantado estava Diego que por um momento não soube o que responder. Tinha o cavaleiro um rosto comprido e cadavérico, barba curta e intonsa,, e um imenso bigode. A sua armadura, de feitio antiquado, estava coberta de ferrugem e o seu elmo parecia-se mais com uma bacia de barbeiro do que com outra coisa. Era a montada um miserável rocim que só servia para o matadouro, e tão magro que se lhe podiam contar as costelas. Andava com a cabeça tão perdida que ameaçava cair a todo o momento, de pura fraqueza.
- Senhor - disse Diego, assumindo um ar arrogante para impressionar Catalina com o seu valor -, nós vamos a caminho da estalagem que se avista daqui e não vejo porque hei-de responder às suas despropositadas perguntas.
Dito isto, meteu as esporas no cavalo e avançou, mas o cavaleiro segurou-lhe as rédeas e obrigou-o a parar.
- Vede bem o que dizeis, soberbo e descortês cavaleiro,
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e explicai-me imediatamente quem sois ou eu vos desafio para um combate mortal.
Nesse momento um homenzinho muito gordo, com uma pança enorme, aproximou-se a trote largo num burro de pêlo rodado e, batendo significativamente com a mão na testa, procurou dar a entender aos viajantes que o cavaleiro tão estranhamente aparelhado não tinha o juízo no lugar. Mas ao ouvir aquelas palavras ameaçadoras Diego havia sacado da espada e parecia disposto a defender-se. O homenzinho gordo acelerou o passo do burro.
- Refreie a sua cólera, senhor - disse ele ao cavaleiro. - São inofensivos viajantes e esse moço, a julgar pelas aparências, é muito capaz de dar boa conta de si no caso de chegarem a vias de facto.
- Aquieta-te, vilão! - gritou o cavaleiro. - Se a aventura é perigosa, terei melhor ensejo de exercitar a minha força e provar a minha coragem.
Ao ouvir isto, Catalina desceu do cavalo e adiantou-se para o desconhecido.
- Eu responderei às suas perguntas, senhor. Este moço não é nenhum cavaleiro, mas um honrado cidadão de Castel Rodríguez e alfaiate de seu ofício. Não me conduz à força para o seu castelo, pois castelo é coisa que não tem, mas leva-me de minha livre vontade a Sevilha, onde esperamos encontrar uma ocupação digna. Fugimos da nossa cidade natal porque alguns inimigos queriam impedir que nos casássemos, o que esta manhã fizemos numa aldeia a algumas milhas daqui. Viajamos com a maior rapidez possível, com receio de sermos perseguidos, alcançados e obrigados a voltar para a nossa cidade.
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O cavaleiro volveu os olhos de Catalina para Diego, depois passou a lança ao homenzinho montado no burro. O outro apanhou-a, embora o fizesse a resmungar.
- Embainhai a espada, mancebo - disse a fantástica criatura com um gesto magnificente. - Nada tendes que temer, conquanto eu bem perceba,, pela vossa aparência, que o indigno sentimento do medo é de todo alheio ao vosso peito varonil. Talvez vos convenha assumir o humilde disfarce de alfaiate, mas a vossa atitude e procedimento traem-vos estirpe ilustre. Foi uma feliz circunstância para vós terdes cruzado o meu caminho. Sou cavaleiro andante e a minha ocupação é andar por todas as partes do mundo à cata de aventura, reparando injustiças, socorrendo a inocência ultrajada e castigando os opressores. Tomo-vos sob a minha protecção, e ainda que os vossos inimigos surgissem em número de dez mil para vos arrastar ao cativeiro, eu, com este braço, os poria em fuga. Eu próprio vos escoltarei até à estalagem, onde, por coincidência, também estou hospedado. Este meu escudeiro cavalgará convosco. É uma criatura loquaz e ignorante, mas bem intencionada, e obedecerá às vossas ordens como se partissem de mim. Eu irei um pouco atrás para que, ao ver aproximar-se um exército, possa atacá-lo e vós tenhais tempo de escapar com essa formosa donzela para lugar seguro.
Catalina saltou para a garupa, atrás do marido, e puseram-se novamente a caminho, acompanhados pelo escudeiro. Este contou-lhes que o seu amo era doido varrido - conclusão a que o casal já tinha chegado ao ouvir as falas do cavaleiro - mas acrescentou que, apesar disso, era um homem digno e bom.
- E quando não está de telha, o pobre fidalgo diz mais
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coisas sensatas numa hora do que é capaz de dizer num mês inteiro qualquer homem são da cabeça.
Chegaram à estalagem. Algumas pessoas estavam sentadas em bancos, à porta; olharam com curiosidade os dois viajantes mas não lhes prestaram mais atenção. Pareciam mergulhados em melancólico letargo. O homenzinho gordo rolou do lombo do seu burro para o chão e chamou o estalajadeiro. Este apresentou-se, mas quando Diego lhe pediu um quarto respondeu mal-humorado que não havia um só leito vago em toda a casa. Um grupo de actores havia chegado no dia anterior para dar espectáculo num castelo vizinho, cujo proprietário, um grande de Espanha, estava celebrando o casamento de seu filho e herdeiro. As pessoas sentadas nos bancos, evidentemente os actores a quem ele se referia, puseram-se a encarar o jovem casal com uma indiferença algo hostil.
- Mas é preciso que nos arranje alguma coisa, hospedeiro - disse Diego. - Passámos o dia viajando e não podemos ir mais longe.
- Estou-lhe a dizer que não tenho lugar, senhor! Há gente a dormir na cozinha, há gente a dormir nas estrebarias...
O cavaleiro aproximava-se.
- Que ouço dizer? - exclamou ele. - Negais agasalho a estas distintas pessoas? Grosseirão! Sob pena de incorrerdes no meu desagrado, ordeno-vos que lhes proporcioneis alojamento condigno.
- A casa está cheia! - berrou o estalajadeiro.
- Dai-lhes então o meu quarto.
- Isso farei se tal é o seu desejo, senhor cavaleiro, mas onde dormirá o senhor?
- Não dormirei - respondeu ele pomposamente.
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- Momtarei guarda. Este é o dia das suas bodas e a mais solene ocasião na vida de uma donzela. O apóstolo ensinou que é melhor casar do que abrasar-se. A finalidade do matrimónio não é satisfazer os apetites da carne e sim procriar filhos, e para esse fim a pudica noiva é solicitada a abandonar a modéstia natural e, nos braços de seu legítimo marido, sacrificar a preciosa pérola da sua virgindade. É dever de meu estado não somente salvaguardar o recato do seu leito conjugal contra a intrusão dos inimigos que os perseguem com os seus perversos desígnios, mas também impedir as brincadeiras de mau gosto com que o vulgo costuma dar vazão ao seu bom humor nessas ocasiões.
Estas palavras deixaram Catalina toda confusa, mas se de vergonha ou modéstia é o que se não pode afirmar com certeza.
Na Espanha daqueles tempos, os estalajadeiros só forneciam alojamento, e os viandantes tinham de levar consigo a comida. Nessa ocasião, porém, o grande fidalgo enviara aos actores, pelo seu despenseiro, um cabrito e uma posta de porco assado; e o nédio escudeiro, por métodos todos seus, adquirira dois pares de perdizes, de modo que os hóspedes podiam constar com um repasto mais sumptuoso que de costume, pois a sua refeição da tarde consistia por via de regra em simples pão e alho, com o acréscimo de um pedaço de queijo por vezes. O estalajadeiro anunciou que o jantar estaria pronto dentro de meia hora e o cavaleiro, com aprimorada cortesia, pediu aos recém-casados que lhe fizessem a honra de aceitar a sua hospedagem. Mandou o escudeiro retirar os seus pertences e conduzir os noivos à câmara em que eles celebrariam a seu tempo os ritos sagrados. Os quartos de dormir ficavam
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no andar de cima e as portas abriam-se para uma galeiria que circundava o pátio. Após terem consertado como melhor podiam a desordem da sua toilette, Diego e Catalina tornaram a descer para respirar o ar puro da tarde. Encontraram os actores sentados como os haviam deixado. Estavam de muito mau humor,, exasperados, e quando falavam entre si era em tom acerbo. Daí a pouco veio ter com eles o cavaleiro. Retirara a armadura e estava de calções e gibão de camurça, manchados pela ferrugem do peitoral, das grevas e sapatos. A fiel durindana pendia-lhe ao lado, de um cinto de pele de lobo.
O estalajadeiro chamou-os para dentro e sentaram-se a cear. O cavaleiro colocou-os à cabeceira da mesa, instalando Cattalina à sua direita-, e Diego à sua esquerda.
- E onde, -por obséquio, está Mestre Alonso? - perguntou ele, correndo os olhos em volta de si. - Não foi informado de que a ceia está na mesa?
- Ele não quer vir - disse uma mulher madura que fazia papéis de "duenas", madrastas perversas e rainhas viúvas, sendo também a encarregada do vestiário. - Diz que não tem apetite.
- Um estômago vazio não faz senão tornar duplamente cruel o infortúnio. Ide chamá-lo. Dizei-lhe que eu o considerarei culpado de grave descortesia para com os meus distintos hóspedes se me negar o prazer da sua companhia. Não comeremos nada enquanto ele não vier.
- Vai chamá-lo, Mateo - disse a "duena".
Um homenzinho magricela, de nariz comprido, boca enorme e expressiva, levantou-se e saiu. A "duena" deu um suspiro.
- É um caso triste - disse ela - mas como sensatamente
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observou o senhor cavaleiro, passar sem a ceia não remedeia nada.
- Se não fosse impertinência - disse Catalina -, gostaria de saber de que se trata.
Sentiram grande desafogo em informá-la, pois todos tinham a cabeça cheia do assunto. A companhia pertencia a Alonso Fuentes, que também era autor de muitas peças por ela levadas à cena, e sua esposa Luísa era a primeira-actriz. Fugira naquela manhã com o galã, levando consigo todo o dinheiro a que pudera deitar a mão. Era uma catástrofe, pois Luísa Fuentes fazia grande sucesso e os seus colegas não ignoravam que era ela quem atraía dinheiro para a bilheteira. Alonso estava desesperado. Não só perdera a esposa, mas também uma actriz e uma boa fonte de renda. Isso dava para transtornar qualquer um. O pessoal da companhia soltou a língua. Os homens censuravam a perfídia das mulheres e admiravam-se de uma criatura tão fina ter podido rebaixar-se com um actor medíocre como era o galã. As mulheres, por sua parte, perguntavam como se podia esperar que uma mulher preferisse um sujeito gordo e careca como Alonso, quando tinha uma oportunidade de fugir com um belo rapaz como Juanito Azuria. A conversa foi interrompida pelo aparecimento do marido enganado. Era pequeno e gorducho, já entrado em anos, com a cara elástica do actor que desempenha toda a sorte de papéis. Sentou-se lugubremente e uma grande travessa de "alia podrida" foi posta na mesa.
- Vim apenas para lhe ser gentil, senhor cavaleiro - disse ele. - Esta será a minha última refeição na Terra, pois estou resolvido a enforcar-me depois da ceia.
- Devo insistir para que espereis até amanhã - volveu
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gravemente o cavaleiro. - Este senhor e esta senhora que aqui vedes à minha direita e à minha esquerda casaram-se esta manhã e não posso permitir que a sua noite de núpcias seja perturbada por um incidente tão indecoroso como o que sugeris.
- Importo-me lá com esse senhor e essa senhora! Digo-lhe que me vou enforcar.
O cavaleiro pôs-se repentinamente em pé e desembainhou a espada.
- Se não me jurardes por todos os santos do Paraíso que não vos enforcareis esta noite, eu vos cortarei em pedacinhos com a minha espada.
Por felicidade, o atarracado escudeiro achava-se atrás do seu amo para servi-lo à mesa.
- Não tenha receio, meu senhor - disse ele. - Alonso não se enforcará esta noite porque tem de dar um espectáculo amanhã, e quem foi actor morrerá actor. Ele não decepcionará o seu público. Se reflectir um pouco, há-de lembrar-se de que a fortuna é inconstante; o que não tem remédio remediado está, e não há mal que não venha para bem.
- Basta de papaguear esses teus tolos provérbios - replicou irado o cavaleiro; mas enfiou a espada na bainha e tornou a sentar-se. - Não fica bem fazer tanto alvoroço por causa de uma desventura que tem sucedido a muitos homens de mais valimento do que esse Alonso. Com um pouco de reflexão eu vos poderia citar, tanto das Sagradas Escrituras como da história profana, os nomes de muitos homens cujas mulheres lhes enfeitaram a testa com um par de chifres; mas no momento os únicos que me ocorrem são os do rei Artur, cuja esposa
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Guinevra o traiu com o cavaleiro Lançarote do Lago, e o rei Marcos, cuja esposa Isolda o enganou com Tristão de Leónis.
- Não foi a afronta à minha honra que me arrastou ao desespero, senhor cavaleiro - disse o actor e dramaturgo -, mas a perda simultânea do dinheiro e das duas melhores figuras da minha companhia. Temos de trabalhar amanhã, e a quantia que me foi prometida seria até certo ponto uma compensação financeira, mas como poderei dar um espectáculo sem actores?
- Eu bem podia fazer o papel de Don Fernando - disse o magricela que tinha ido chamar Alonso.
- Tu? - exclamou desdenhosamente o actor-empresário.
- Gomo poderias tuu com essa cara de cavado e essa voz estridente, desempenhar o papel de um príncipe valente, atrevido, voluntarioso e apaixonado? Não, esse papel eu é que podia desempenhá-do, mas quem fará a encantadora Doroteia?
- Eu conheço o papel - disse a "diuena". - É verdade que já não sou muito moça...
- Exactamente - interrompeu Alonso. - E dá licença de lembrar-me que Doroteia é uma donzela inocente., de beleza incomparável, enquanto a tua figura de matrona dá a impressão de que a qualquer momento vais dar à luz uma ninhada de leitões.
- Será possível que se estejam referindo à "Verdade com zelo pode mover o próprio Céu"? - perguntou Catalina,, que tinha acompanhado atentamente a conversa.
- Ela mesma - disse Alonso, em certo tom de surpresa.
- Mas como foi que soube?
- É uma das peças favoritas de meu tio. Costumávamos lê-la juntos. Ouvi-lhe dizer muitas vezes que a fala de Doroteia,
quando repele indignada as indecorosas propostas de Don Fernando, é comparável ao que o grande Lope de Vega tem escrito de melhor.
- Conhece-a?
- De cor.
Pôs-se a recitar, mas, notando que o grupo a observava com curiosidade, foi tomada de um acesso de timidez, gaguejou e calou-se.
- Continue, continue! - exclamou o comediante.
Ela corou, sorriu e, cobrando coragem, começou de novo a declamar o longo discurso, que levou até ao fim com tanta graça, emoção e sinceridade que todos ficaram pasmados. Alguns até chegaram a derramar lágrimas.
- Salvos! - bradou Alonso. - A senhora representará Doroteia amanhã comigo, e eu farei Don Fernando.
- Como é possível? - respondeu ela, aterrada. - Eu morreria de medo. Nunca representei. Não, não posso. Ficaria muda diante do público.
- A sua mocidade e a sua beleza compensarão quaisquer deficiências que possa ter. Eu a ajudarei. Ouça, minha bela, só você nos pode salvar. Se recusar, não poderemos representar e não teremos dinheiro para pagar nem a nossa estada aqui nem o que comemos. Seremos reduzidos a mendigar o nosso pão pelas ruas.
Então o cavaleiro interveio na conversa,.
- Bem compreendi, gentil senhora, que a vossa modéstia vos faça hesitar ante a perspectiva de exibir-vos num teatro sob os olhares de uma multidão de desconhecidos, e não vos ficaria bem fazê-lo sem permissão de vosso nobre marido. - Metera-se na cabeça do cavaleiro que o jovem casal era de
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alta estirpe e por mais que dissessem não conseguiam persuadi-lo do contrário. - Mas não esqueçais que é próprio das naturezas elevadas socorrer os aflitos e prestar ajuda aos necessitados.
Os demais comediantes juntaram os seus rogos aos de Alonso Fuentes e afinal Catalina concordou, com o pronto consentimento de Diego, em ensaiar a peça e, se os outros a achassem satisfatória, arriscar-se a aparecer em cena. Portanto, depois da ceia, a mesa foi afastada para um lado e começou o ensaio. Catalina tinha boa memória e havia repetido tantas vezes com Domingo as cenas em que figurava Doroteia, que estava bastante segura das suas réplicas. No começo mostrou nervosismo, mas a aprovação dos comediantes deu-lhe mais desembaraço e dentro em pouco, absorvendo-se por completo no papel, perdeu o acanhamento. Mostrou -ter aproveitado as lições recebidas do tio e idisse as suas falas com incisiva sinceridade. Saiu-se notavelmente bem e Alonso confiava em que, com mais um ensaio pela manhã, ela estaria em condições de enfrentar o público. Catalina estava emocionada, feliz, e parecia tão linda que ele ficou certo de que a sua inexperiência passaria despercebida.
- Ide-vos deitar, meus filhos - disse aos seus actores -, e durmam bem. Acabaram-se as nossas dificuldades.
Mas ao verem-se livres daquela ansiedade eles foram tomados de tal alvoroço que não sentiam a menor vomtade de dormir. Pediram vinho e dispuseram-se a passar a noite festejando. Comodamente instalado numa cadeira, o cavaleiro assistira ao ensaio com um olhar crítico. Pondo-se em pé com alguma dificuldade, devido às juntas emperradas, ele chamou a "duena" de parte.
- Conduzi a bela Catalina à câmara nupcial - disse-lhe -, e visto que ela não tem mãe para lhe ensinar o que lhe cumpre saber nesta grave ocasião, compete a vós explicar-lhe, em termos que não ofendam a sua modéstia, a provação a que, como esposa obediente, é seu dever submeter-se. Em suma, deveis prepará-la para os mistérios do amor, os quais, como virgem inocente, deve ignorar.
A "duena)) pestanejou, mas prometeu fazer o que em si estava.
- Nesse ínterim - prosseguiu o cavaleiro -, eu explicarei ao jovem fidalgo, seu marido, que ele deve conter o seu ímpeto natural, pois a aversão que uma mulher virtuosa forçosamente sente pelas intimidades do congresso sexual só pode ser vencida pela paciência. Tal é a depravação dos nossos tempos que não posso supor tenha ele conservado a sua inocência até hoje.
- Sem faltar com o respeito ao senhor cavaleiro - disse a "duena" -, é preferível que o homem não seja de todo inexperiente do acto de amor,, pois nesse terreno, como nas artes e ofícios manuais, tudo depende da prática.
- Esse é um assunto em que não me aventurarei a dar opinião, minha senhora. Seja-vos bastante saber que, ao cabo de um intervalo condigno, eu próprio conduzirei o noivo ao limiar da câmara nupcial e depois, vestindo a armadura, montarei guarda no balcão para que o matrimónio se consume de forma condizente com a nobreza das partes interessadas.
Despediu a "duena" e chamou Diego, dirigindo-se-lhe nestes termos:
- Ides ingressar num estado em que poucos se portam de maneira que possam alcançar a felicidade para si mesmos
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ou dispensá-la às suas companheiras de existência; e as circunstâncias do vosso casamento são de tal natureza que me põem na conjuntura de vos dar os conselhos que, em condições ordinárias, vos seriam dados pedo vosso nobre pai. - Entrou então a falar ao rapaz dentro das linhas gerais que havia indicado à "duena", e terminou como segue: - Não condeno os prazeres necessários do corpo, que o revigoram na fadiga e não permitem que se torne muito importuno. Mas a comida, a bebida e, ainda, mais, a união dos sexos, não passam de lenitivos proporcionados ao corpo a fim de que não seja estorvado o trabalho do espírito. No entanto, ao amor sancionado pelo casamento não falta um certo impulso ascensional e, na medida em que ele o possui, conduz para o Bem as almas jovens. No casto amor que vos atraiu para essa donzela não pode deixar de existir o desejo daquela imortalidade que se encontra ao alcance dos mortais. E quando a aconchegardes ao vosso peito, pela vossa própria comunhão com a beleza, semeareis em beleza e por isso mesmo semeareis para a eternidade. Sim, porque o Belo e o Eterno são uma coisa só.
Diego escutou esta arenga com a polidez que lhe era natural mas com uma atenção distraída, pois estava impaciente por ficar a sós com Catalina. O cavaleiro tomou-o pela mão e conduziu-o ao que ele chamava a "câmara nupcial". Chamando então o seu escudeiro, revestiu os seus apetrechos marciais e passou a noite a andar de baixo para cima, absorto em meditações sobre o inacessível objecto da sua devoção pessoal.

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XXXII.

Na manhã seguinte, bem cedo, tornaram a ensaiar a peça e daí a pouco chegaram carruagens para os conduzir ao castelo do duque. Diego e o cavaleiro montaram os seus cavalos, o escudeiro o seu burro, e puseram-se a caminho. No último momento, porém, Catalina perdeu a coragem e, exclamando que não tinha forças para se submeter àquela prova, implorou a Alonso que a deixasse ficar na estalagem. O director da "troupe" enraiveceu-se e, dizendo-lhe que era tarde para recuar, meteu-a numa carruagem e sentou-se ao pé dela. Catalina debulhava-se em lágrimas, mas com a ajuda da "duena" ele conseguiu acalmá-la, e quando chegaram a moça havia recobrado suficientemente a compostura. Foram os actores recebidos com mostras de apreço e, por ordem do duque, dispensou-se-lhes a melhor hospitalidade. Mas aquele ouvira falar nas extravagâncias do cavaleiro, e, pensando que a conversa deste divertiria os seus convidados, rogou-lhe que os honrasse, a ele e à duquesa, com a sua companhia ao jantar. Erigira-se um palco no pátio e, depois que os fidalgos se fartaram de comer, os actores foram chamados a dar a sua representação. O distinto auditório achou muita graça a Alonso no papel de alegre sedutor, pois a sua aparência não tornava plausível tal coisa; ficaram, porém, encantados com a graça de Catalina, com a música da sua voz e a elegância da sua dicção, e depois de terminada a peça fizeram-lhe grandes cumprimentos. O cavaleiro havia-lhes contado a sua versão romântica da fuga do jovem casal e isso, simultaneamente, acresceu-lhes o interesse. A duquesa mandou-os chamar e todos ficaram admiradíssimos com a beleza de ambos, a sua atitude modesta e o seu garboso porte.
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A duquesa deu uma conrente de ouro a Catalina e o duque, para não lhe ficar atrás, tirou um anel do dedo e ofereceu-o a Diego. Alonso foi ricamente recompensado e a companhia, fatigada mas satisfeita, tomou o caminho da estalagem. Pouco depois foram alcançados pelo cavaleiro e pelo seu escudeiro. Apeou-se aquele com os seus movimentos rígidos e, tomando a mão de Catalina, acrescentou os seus cumprimentos aos que ela já havia recebido.
- Chegou muito a tempo, senhor cavaleiro - disse Alonso -, de me ouvir fazer uma proposta a estes moços. - E, voltando-se para Catalina: - Convido-a para fazer parte da minha "tnoupe".
- Eu? - fez Catalina, estupefacta.
- Embora ainda lhe falte aprender tudo, a senhora possui talentos que seria pecado malbaratar. Não sabe representar. Diz o seu papel como o faria na vida real. Isso é tolice. O teatro não lida com o verdadeiro, mas com o verosímil, e é só por meio do artifício que o actor pode ser natural. Os seus gestos não têm amplidão e a senhora ainda precisa de adquirir autoridade. O bom actor domina o público até com o seu silêncio. Se quiser colocar-se nas minhas mãos eu farei de si a maior actriz da Espanha.
- -A sua proposta surpreende-me de tal modo que mal posso crer seja ela feita a sério. Sou uma mulher casada e vou com meu marido para Sevilha, onde nos garantem uma ocupação honesta.
Alonso Fuentes notou o olhar que ela dirigiu a Diego e voltou-se para este com um sorriso.
- O senhor tem uma bela aparência e modos distintos,
moço. Tudo leva a crer que, com a experiência, possa tornar-se útil em papéis apropriados.
Os aplausos com que fora recebido o seu desempenho e os cumprimentos que recebera haviam emocionado Catalina, a quem essa inesperada oferta não causou pequeno alvoroço. Notou, porém, que o marido não gostara do modo displicente com que Alonso propusera incluí-lo na combinação e apressou-se a dizer:
- Ele sabe cantar como um anjo!
- Melhor ainda. São raras as peças que não contenham uma canção ou duas para animar a acção. Então, que acham? A oportunidade que lhes ofereço é, sem dúvida, mais tentadora do que a ocupação, honesta talvez, mas certamente modesta, que os espera em Sevilha.
O cavaleiro, que durante esse tempo ficara sentado em silêncio, a escutar, assumiu então a palavra:
- A proposta que Mestre Alonso acaba de vos fazer não é das que podem ser enjeitadas às pressas. Senão, reflitam: estais sendo perseguidos pela fúria de vossos pais ultrajados, que não se deterão diante de coisa alguma para vos arrancar aos braços um do outro. Mas o tempo apazigua a ira, e há-de chegar o dia em que esses pais lamentarão a vossa perda, arrependendo-se de vos ter querido impor alianças repulsivas, quer por ambição quer por cobiça. Reconquistareis não apenas o seu amor,, mas a categoria e posição a que vos dá direito o vosso alto nascimento. Enquanto isso não suceder, porém, será prudente esconder-vos, e que melhor esconderijo há para vós de que uma "troupe" de actores? E não julgueis que vos rebaixais aparecendo no palco. Tanto os que escrevem peças de teatro como os que as representam são merecedores do nosso
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afecto e estima, pois trabalham para o bem da comunidade. Colocam diante dos nossos olhos uma imagem animada da vida humana,, mostrando-nos o que somos e o que devíamos ser. Ridicularizam os vícios e fraquezas dos nossos tempos e não regateiam louvores ao que louvores merece, isto é, a honra, a virtude e a beleza. Os comediógrafos aperfeiçoam-nos a inteligência com o seu espírito e a sua sabedoria, enquanto os actores refinam os nossos costumes com a graça do seu porte e a dignidade das suas atitudes.
E nesse teor continuou a falar ainda durante algum tempo. Todos se assombravam de ver que um homem tão doido que ninguém podia achar explicação para os seus actos era, no entanto, capaz de expressar-se com tanto bom senso.
- E não esqueçamos - concluiu ele -, que uma comédia análoga às que vemos levadas à cena nos palcos dos teatros é também representada no palco do mundo. Todos nós somos actores de uma peça. A alguns cabe-lhes em sorte o papel de reis ou prelados, a outros o de mercadores, soldados ou agricultores, e cada um deve tratar de representar a parte que lhe foi designada. Escolhê-las., porém, compete a um poder mais alto.
- Que achas tu, meu amado? - perguntou Catalina com o seu sorriso mais encantador. - Como diz com muito acerto o cavaleiro, não é uma oferta que se possa enjeitar levianamente.
Na reailidade, já se havia resolvido a aceitá-la, mas não ignorava que os homens gostam de pensar que resolvem os seus assuntos por si mesmos.
- Não somente me prestarão auxílio na minha difícil situação - disse Alonso -, mas também vão lucrar muito
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com isso, pois visitarão comigo as mais famosas cidades da Espanha.
Os olhos de Diego cintilaram. Bem percebia que aquilo seria muito mais divertido do que passar doze horas por dia sentado num banco de alfaiate.
- Sempre desejei correr mundo - disse ele.
- E hás-de fazê-lo, meu querido - volveu Catalina. - Mestre Alonso, nós teremos muito prazer em ingressar na sua companhia.
- E ainda será uma grande actriz.
- Olé, olé! - gritaram os outros membros da companhia. Alonso mandou trazer vinho e todos beberam à saúde dos novos camaradas.


XXXIII.

No dia seguinte, após se despedirem cortesmente do cavaleiro, partiram os actores ambulantes para a cidade vizinha de Manzanares, onde se estava realizando uma feira e, por tal motivo, tinham a certeza de encontrar um público numeroso. Alonso havia alugado mulas para os actores montarem e para carregar as arcas onde eram transportadas as suas roupas e costumes de teatro. Catalina e Diego iam no cavalo que lhes dera Dona Beatriz. Incluindo Diego e o próprio Mestre Alonso, eram sete os homens da companhia, e além de Catalina e da "duena" havia um menino que representava papéis femininos secundários. Fazia ele também o ofício de pregoeiro, e quando chegavam a uma cidade onde pretendíam dar espectáculo, enquanto Alonso se dirigia ao prefeito para solicitar licença,
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ele percorria as ruas batendo num tambor e anunciando à população que a famosa "troupe" de Alonso Fuentes ia dar uma representação da magnífica, espiritual e imortal peça Tal-e-tal.
Como naquele tempo não houvesse teatros na Espanha, as peças eram representadas em pátios, onde as janelas e sacadas das casas circunvizinhas podiam servir de camarotes para as pessoas nobres e gradas. Fazia de tecto o céu de anil, salvo no rigor do Verão, quando se estendia de telhado a telhado um toldo contra o sol. Em frente do palco colocavam-se alguns bancos, em volta do pátio mais outros, dispostos em degraus, para a respeitável classe média. O vulgo ficava em pé, com os homens na frente e as mulheres atrás, comprimidas dentro de uma espécie de curral. Tanto por medo aos incêndios como no interesse da moral, os espectáculos realizavam-se à tarde. Consistia o cenário num simples pano preto e as mudanças de cena eram anunciadas pelos próprios actores.
A fuga da mulher de Alonso com o galã levou-o a mudar de itinerário,, e depois de trabalhar em Manzanares a companhia dirigiu-se para Sevilha, onde Alonso sabia poder encontrar um actor capaz de representar os papéis que lhe estavam vedados pela idade e pelo físico. Foram em primeiro lugar à opulenta Ciudad Real, e desta a Valdepenas. Escalaram a Sierra Morena e entraram na Andaluzia pelo rochoso desfiladeiro chamado Puerto de Despenaperras. Atravessaram o Guadalquivir e afinal chegaram a Córdova, onde deram espectáculos durante uma semana,. Descendo então por algum tempo o nobre rio, foram a Carmona, onde deram uma representação, e finalmente alcançaram Sevilha. Mestre Alonso contratou o actor que desejava e demoraram-se um mês na cidade, após o que saíram novamente em giro pelo país. Era uma dura existência.
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Dormiam em estalagens miseráveis, onde as camas eram tão duras e imundas que, embora cansados e extenuados pelo calor do Verão ou enregelados até aos ossos pelo frio do Inverno, preferiam muitas vezes deitar-se no chão. Eram picados pelas pulgas, sugados pelos mosquitos, atormentados pelos percevejos e importunados pelos piolhos. Quando iam dar um espectáculo, levantavam-se ao nascer do sol para estudar os seus papéis.. Ensaiavam das nove até ao meio-dia, almoçavam e iam para o teatro, de omde só voltavam às sete. E ainda depois disso, se a sua presença era solicitada por pessoas importantes, um prefeito, um juiz ou um nobre que estivesse a dar alguma festa, por mais moídos que estivessem tinham de deslocar-se para lá e dar mais uma representação. Alonso Fuentes era um feitor de escravos e tão cedo descobriu que Catalina era hábil na- agulha e Diego, um bom alfaiate, encarregou-os, sempre que não tivessem outra ocupação, de fazer ou reformar os costumes necessários ao repertório, que constava de dezoito peças. Não lhe foi preciso muito tempo para perceber que Diego, apesar da sua bela aparência e da sua desenvoltura, jamais daria um bom actor. Contentou-se, pois, em encarregá-lo das canções de que eram entremeadas as peças e em dar-lhe pequenos papéis. Mas, por outro lado, esforçava-se em fazer uma actriz de Catalina. Conhecia o seu ofício e possuía uma viva intuição do efeito teatral. Ela era boa aluna e tinha a (inteligência pronta, de modo que, sob o treinamento intensivo e às vezes brutal do empresário, transformou-se com o tempo, de hábil amadora, em competente profissional. Alonso teve o prémio dos seus trabalhos, pois ela caiu nas boas graças do público e trouxe prosperidade à companhia. Ele aumentou a "troupe" e estendeu o repertório.
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Entre outros, contratou uma jovem actriz chamada Rosália Vásquez, em parte para consolá-lo da perda da esposa e em parte para desempenhar papéis secundários, pois o menino que costumava fazer esses papéis já havia perdido a voz de tiple e já começava a barbear-se. Além disso, Catalina já tivera dois filhos e fazia-se necessário ter uma actriz bastante boa para a substituir nessas ocasiões em que era obrigada a desaparecer do cartaz.
Assim se passaram três amos trabalhosos e felizes. Já então Catalina havia aprendido tudo quanto Alonso Fuentes era capaz de ensinar-lhe e, como tivesse duas crianças de quem cuidar, começou a achar aborrecida aquela existência de nómada. A sua beleza e o seu talento haviam chamado a atenção de pessoas influentes, e mais de uma insinuou que ela e Diego deviam formar uma companhia própria e estabelecer-se em Madrid. Alguns, cheios de admiração pelos seus talentos, foram ao ponto de oferecer-lhes auxílio financeiro. Ora, acomtece que Afonso Fuentes não era apenas empresário, director e actor, mas também autor, e por ano - em geral durante a Quaresma, quando eram proibidas as representações teatrais - produzia duas ou três peças. Catalina não deixara de notar que nessas peças, que ele escrevia supostamente com o fim de a mostrar sob a luz mais vantajosa possível, os papéis destinados a Rosália Vásquez tendiam a adquirir uma importância cada vez maior. Na última, até, os papéis respectivos eram quase do mesmo tamanho e só o talento superior de Catalina fez com que ela parecesse mais importante. Quando ela expressou o seu desagrado, o que não hesitou fazer, Alonso encolheu os ombros e riu.
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- Minha querida, quando se dorme com uma mulher, é necessário trazê-la de bom humor.
Isto, aiinda que visivelmente verdadeiro, não era satisfatório. Embora não fosse excessivamente exigente em pontos de moral, Catalina achava justo que uma mulher casada e respeitável tivesse melhores papéis do que outra, que não passava de uma pinóia.
- Isso não pode continuar assim - disse ela a Diego.
E Diego concordou. A ideia de ter uma companhia própria era tentadora, porém Catalina bem percebia as dificuldades com que ela e Diego teriam de lutar. Era muito estimada na companhia e tinha plena certeza de que alguns dos seus camaradas acolheriam com satisfação a ideia de irem para Madrid com ela. Munida de fundos suficientes, poderia contratar outros actores por lá, comprar os costumes necessários e adquirir algumas peças. Mas a exigência do público madrileno era bem conhecida: fazia-se-lhe mister não só o dinheiro de seus amigos mas também a sua influência. Diego era inteiramente favorável à aventura;, mas sua mulher sabia que, descontente com os pequenos papéis que Alonso lhe designava, ele se consideraria, como empresário, no direito de escolher para si os papéis que lhe agradassem. Embora continuasse a amá-lo com a mesma paixão de sempre, não estava convencida de que ele tivesse competência para desempenhar os papéis de primeiro plano pelos quais suspirava, e previa que teria muito trabalho para conseguir que ele consentisse em dá-los a um actor conhecido. Hesitava. Os dois conversavam interminavelmente, sem poder chegar a uma decisão. Um belo dia Catalina teve a luminosa ideia de mandar chamar Domingo Pérez para lhe pedir conselho. Ele já fora actor, escrevera peças,
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e se finalmente resolvessem organizar uma companhia podiam incluir no repertório uma ou duas produções suas e ele sem dúvida alguma pô-los-ia em contacto com outros autores. Com a aprovação de Diego, ela escreveu-lhe. Já o tinha feito três ou quatro vezes, da primeira para lhe dizer que estava casada, bem de saúde e feliz, e das outras para anunciar o nascimento dos filhos; mas, sabendo o desgosto que isso causaria à sua mãe, achou melhor ocultar que ela e Diego se haviam tornado actores ambulantes. Dessa vez pediu-lhe, sem entretanto mencionar nenhum motivo especial para isso, que os fosse visitar a Segóvia. Estavam passando ali a Quaresma, em parte porque era a cidade natal de Alonso, mas principalmente porque a companhia fora contratada para representar na Páscoa um drama religioso na catedral e estava a ensaiá-lo. Era a mais recente produção de Alonso, que escolhera como assunto a vida de Maria Madalena.


XXXIV.

Domingo, sempre satisfeito com uma oportunidade de dar um passeio, alugou um cavalo assim que recebeu a carta de Catalina, meteu um farnel e um par de camisas nos alforjes e pôs-se na estrada. Ao chegar a Segóvia ficou satisfeito de encontrar Catalina, o marido e os dois filhos instalados num alojamento condigno e encantou-se de vê-la ainda mais bonita que antes. Tinha ela então dezanove anos. O êxito, a felicidade e a maternidade combinavam-se para lhe dar confiança em si e uma certa dignidade, mas ao mesmo tempo
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notava-se-lhe um quê de terno e voluptuoso que era extremamente sedutor. O seu rosto havia perdido o tocante ar infantil, mas ganhara maior perfeição de linhas. A sua figura era esbelta como sempre e ela movia-se com uma graça enfeitiçadora. Era uma mulher, mulher muito moça sem dúvida, mas mulher de carácter, segura de si e cônscia da sua beleza.
- Vocês têm um ar muito próspero, minha querida - disse ele. - Como ganham a vida?
- Depois falaremos nisso - respondeu Catalina. - Primeiro diga-me como vai minha mãe, como vão todos em Cas-tel Rodríguez, o que aconteceu depois da nossa fuga e como vai Dona Beatriz.
- Uma coisa de cada vez, pequena! - sorriu ele. - E não esqueças que eu fiz uma longa jornada e estou com sede.
- Corre a casa do Rodrigo buscar uma garrafa de vinho, meu querido - disse Catalina. Domingo sorriu ao vê-la remexer debaixo das saias e, tirando dali uma bolsa, dar algumas moedas a Diego.
- Não demoro nem um minuto - disse este, saindo.
- Vejo que és prudente, minha querida - observou Domingo arreganhando os dentes.
- Não tardei muito a descobrir que não se pode confiar dinheiro aos homens, e quando um homem não tem dinheiro não pode fazer asneiras - riu ela. - Mas responda agora às minhas perguntas.
- A tua mãe está com saúde, manda-te lembranças, a sua
piedade é exemplar, e é sem dúvida por esse motivo que a
prioresa lhe dá uma pensão e ela já não é obrigada a trabalhar.
Disse estas coisas com os olhos a cintilar, e Catalina riu-se
de novo. Esse riso era tão franco e ao mesmo tempo tão
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musical que Domingo, no seu estilo poético, o comparou ao rumorejar da água numa torrente das montanhas.
- Houve grande comoção em Castel Rodríguez depois que desapareceste - continuou ele. - Já não havia ninguém que te defendesse, minha pobre pequena, e tua mãe estava desesperada. Somente quando a freira Dona Ana veio dizer que a prioresa tencionava prestar-lhe auxílio financeiro é que tua mãe pôde consolar-se do teu mau procedimento. Durante dez dias não se falou em outra coisa. As freiras ficaram horrorizadas ao ver que, depois da bondade que Dona Beatriz tinha mostrado para contigo, depois do grande favor que estava disposta a prestar-te, tinhas a coragem de lhe fazer semelhante afronta. As pessoas importantes da cidade foram ao convento apresentar-lhe as suas expressões de simpatia, porém ela estava tão contristada que não quis recebê-las. Consentiu, entretanto em falar com Don Manuel, e ninguém sabe o que se passou entre eles, A irmã leiga que a( serve ouviu vozes acaloradas e enfurecidas, mas embora aguçasse o ouvido não pôde distinguir Uma só palavra, e pouco depois Don Manuel saiu da cidade. Há muito tempo que eu te haveria escrito contando essas coisas se me tivesses dado o teu endereço.
- Impossível! Andávamos de um lugar para outro e eu só sabia para onde íamos no momento em que nos púnhamos a caminho.
- Mas porquê isso?
- Não adivinha? Quantas vezes me falou no tempo em que vagueava por toda a Espanha,, sob o sol escaldante do Verão, no frio enregelador do Inverno, descalço não porque quisesse poupar os sapatos mas porque tinha gasto o único par que possuía, e com uma só camisa para vestir?
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- Deus do céu, vocês por acaso serão actores ambulantes?
- Meu pobre tio, eu sou a actriz principal da célebre companhia de Alonso Fuentes, enquanto Diego é camtor e dançarino, e muito melhor actor do que Alonso quer reconhecer.
- Porque não me contaste isso antes? - exclamou Domingo. - Eu teria trazido comigo uma dúzia de peças.
Nesse momento Diego voltou com o vinho e, enquanto Domingo bebia, Catalina contou-lhe como se haviam tornado actores.
- E todos acham - concluiu ela -, que eu sou actualmente a melhor actriz da Espanha. É verdade ou não é, Diego da minha alma?
- Eu me encarrego de cortar a goela de qualquer um que se atreva a negá-lo.
- Não resta dúvida de que estou malbaratando o meu talento na província.
- Vivo dizendo à rapariga que o nosso lugar é em Madrid - disse Diego. - Alonso tem ciúmes de mim e não me quer dar os papéis em que eu teria ocasião de distinguir-me.
Como se vê, nenhum dos dois sofria dessa falsa modéstia que muitas vezes é o flagelo de um artista. Passaram então a expor a Domingo os seus planos. Este era um homem prudente e, depois que terminaram de falar, disse que não podia aconselhá-los enquanto não os visse trabalhar.
- Venha ao ensaio amanhã - disse Catalina. - Estou a fazer de Maria Madalena na nova peça de Alonso.
- Não faltarei. Gostas do papel? Ela encolheu os ombros.
- Nem tanto. É bastante bom no começo, mas cai no último acto. Eu não apareço nas três últimas cenas. Disse a
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Alonso que, como sou o assunto da peça, devia aparecer ao fim, mas ele respondeu que tinha de se ater à Santa Escritura. A verdade é que o pobre homem não tem imaginação.
Diego conduziu Domingo à taberna frequentada por Alomso Fuentes e outros componentes da "troupe", e apresentou-o não só como tio de Catalina mas também como antigo actor e actualmemte comediógrafo. Alonso recebeu-o com muita cortesia e o velho escrevinhador não tardou a conquistar as simpatias da "troupe" com o seu espírito, e seu bom humor e as histórias da dura existência que levava um actor ambulante nos velhos tempos, Alonso consentiu em que ele assistisse a um ensaio e Domingo lá foi no dia seguinte.
Admirou-se da naturalidade com que Catalina dizia as suas réplicas, da eloquência dos seus gestos e da graça dos seus movimentos,. Alonso fora bom mestre. Ela possuía bom ouvido para a poesia e uma voz encantadora. Tinha alegria e patético. Tinha sinceridade. Tinha força. Era pasmoso que em três anos houvesse aprendido tão completamente a -técnica da sua arte. Parecia incapaz de dar um tom falso. Nela, os dotes naturais, a perícia adquirida, o autodomínio que a experiência lhe ensinara,, tudo era maravilhosamente realçado pela sua grande beleza.
Terminado o ensaio, Domingo beijou-a nas duas faces.
- Minha preciosa, tu és quase tão boa actriz quanto julgas ser.
Ela atirou-lhe os braços em volta do pescoço.
- Oh! tio, tio! Quem diria, quando eu era criança e nós costumávamos recitar as cenas de Lope de Vega, que um dia haviam de disputar os lugares para me ver representar? E o
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senhor por enquanto só assistiu a um ensaio. Espere até que me veja diante do público!
Diego fazia João, o Discípulo Amado, um papel pequeno. Ele era um tipo simpático, mas sem cor. Quando se apresentou um ensejo, Domingo perguntou a Alonso o que pensava dele.
- Tem boa apresentação., mas nunca será um actor. Só o deixo trabalhar para ser agradável a Catalina. Que bom seria se os actores e as actrizes não casassem entre si! Isso é o que atormenta a vida dos empresários.
Tal opinião, porém, não impediu que Domingo aconselhasse Catalina e Diego a que abandonassem Alonso sem receio e se instalassem por conta própria em Madrid. Durante as vinte e quatro horas que passara com eles tinha observado a sensatez de Catalina e estava seguro de que ela não poria em perigo o seu êxito deixando Diego representar papéis aos quais não pudesse fazer justiça. Fosse como fosse, ela havia de dispor as coisas de modo que redundassem em mútua satisfação.
Não era,, todavia, apenas o desejo de ver a sobrinha, e o marido desta que levara Domingo a empreender a árdua jornada de Castel Rodríguez a Segóvia. Esperava encontrar-se também com o seu velho amigo,, Don Blasco de Valero. Estava curioso de saber como se havia o bispo na sua elevada posição. Durante os próximos dias, pois, enquanto Diego e Caitalina se atarefavam com os ensaios, andou ele vagueando pela cidade e, com o seu dom de entabular agradáveis palestras, conseguiu travar conhecimento com muitas pessoas. Soube, por estas, que a grande maioria dos habitantes olhava o bispo com veneração. Admiravam-lhe a piedade e a vida austera. A notícia dos milagrosos acontecimentos de Castel Rodríguez havia alcançado Segóvia e o povo enchera-se de pasmo e respeito. Mas
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também contaram a Domingo que ele provocara a hostilidade do capítulo e do oleiro da cidade. Indignara-se ante a licença dos seus costumes e a negligência com que muitos deles cumpriam os seus deveres religiosos. Com muito zelo, mas pouco tacto, deu início a uma veemente campanha de reforma. Não tinha contemplação com aqueles que não se emendavam e, como outrora em Valência, não queria saber com quem estava tratando. O oleiro, com poucas excepções, ressentiu-se amargamente dessa áspera intolerânciai e lançou mão de todos os métodos que a sua subtileza podia imaginar para estorvar-lhe a actuação. Os ousados desafiavam-no abertamente, o resto contentava-se com uma resistência passiva. O povo aprovava-lhe o rigor., justificado pela sua virtude, e fazia o possível para ajudá-lo. Houvera em razão disso algumas ocorrências lamentáveis e as autoridades foram obrigadas a intervir. Ele não trouxera- paz a Segóvia, mas espada.
Domingo tinha chegado no começo da Semana Santa e sabia que durante esse período os deveres do cargo impediriam o bispo de recebê-lo. Foi só na quarta-Feira seguinte, portanto, que se apresentou no palácio episcopal. Era um edifício importante e severo, com uma fachada de granito. Domingo deu o nome ao porteiro e, ao cabo de alguma espera, fizeram-no subir uma escadaria de pedra, atravessar frios aposentos de tecto elevado, escassamente mobilados e onde se viam, pelas paredes, quadros religiosos de um tom escuro e sombrio. Mas o aposento em que afinal o introduziram não era maior do que uma cela. Não tinha outros móveis além de uma mesa de escrever e duas cadeiras de encosto alto. Sobre a parede pendia a cruz negra dos dominicanos. O bispo levantou-se e abraçou calorosamente Domingo.
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- Cuidei que nunca mais nos tornássemos a encontrar, irmão - disse ele com uma cordialidade afectuosa que surpreendeu Domingo. - Que foi que te trouxe a esta cidade?
- Sou um tipo irrequieto, tenho veia de andarilho.
O bispo, que trajava como sempre o hábito da sua ordem, havia envelhecido. Estava emaciado, o rosto cheio de rugas tinha um ar atormentado e os olhos haviam perdido a chama. Não obstante esses sinais de decrepitude,, porém, havia qualquer coisa de luminoso no seu aspecto, uma mudança de expressão que Domingo percebia mas não podia definir. Não saberia explicar porquê, mas aquilo lembrava-lhe o arrebol da tarde, quando o sol se pôs ao cabo de um longo dia de Verão. O bispo convidouo para sentar-se.
- Há quanto tempo estás aqui, Domingo?
- Uma semana.
- E esperaste tanto para me visitar? Não foste gentil.
- Não queria importunar-te, mas vi-te mais de uma vez. Nas procissões da Semana Santa,, na catedral, tanto na Sexta-Feira de Paixão como na Páscoa, e por último durante o espectáculo.
- Tenho horror a essas representações na Casa do Senhor. Em outras cidades de Espanha isso faz-se na praça, por ocasião das festas da Igreja, e eu não as condeno, visto que edificam o povo, mas o Aragão é tenaz na observância dos seus antigos costumes, e a despeito dos meus protestos o capítulo insistiu em que elas se realizassem na catedral, como se vem fazendo desde tempos imemoriais,. Só fui assistir porque era meu dever de ofício.
- A peça era muito reverente, querido Blasco. Nada havia nela que te pudesse ofender.
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A fronte do bispo contraiu-se numa carranca.
- Quando cheguei aqui, reinava uma horrível incúria entre aqueles cujo dever é desempenhar as suas funções e dar bom exemplo ao povo. Alguns cónegos da catedral havia anos que estavam ausentes da cidade, grande parte do clero secular viviam em franca imoralidade, nos conventos a regra não era observada com o devido rigor e a Inquisição tinha renunciado à sua vigilância.. Resolvi pôr termo a esses abusos, mas tive de fazer frente ao ódio, à malícia e à obstrução. Consegui restabelecer um certo decoro, mas queria que eles se portassem bem por amor a Deus: se se portam de maneira menos escandalosa do que antes, é apenas por temor a mim.
- Ouvi falar disso na cidade - respondeu Domingo. - Contaram-me que tinham procurado afastar-te daqui.
- Se soubessem como eu ficaria contente se o tivessem conseguido!
- Mas tens esse consolo, meu bom amigo: o povo estima-te e venera-te.
- Pobres criaturas, mal sabem o quanto eu sou indigno da sua veneração.
- Eles louvam o ascetismo da tua vida e a tua caridade para com os pobres. Ouviram falar do milagre de Castel Rodríguez. Consideram-te um santo, irmão, e quem sou eu para censurá-los?
- Não mofes de mim, Domingo.
- Ah! meu caro amigo, eu quero-te de mais para isso!
- Não seria a primeira vez - volveu o bispo com um sorriso que tinha qualquer coisa de patético. - Durante estes três anos, muitas vezes tenho pensado no nosso último encontro e no que tu me disseste. Naquela ocasião não me detive a
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considerá-lo. Parecia-me apenas uma daquelas conversas cínicas e paradoxais a que sempre foste dado. Mas depois que vim para cá, na solidão deste palácio, vivo sob a obsessão das tuas palavras. Tenho sido torturado pela dúvida. Tenho perguntado a mim mesmo se é possível que meu irmão, o padeiro, cumprindo modestamente o seu dever na posição humilde que ele escolheu, tenha servido a Deus melhor do que eu, que entre preces e mortificações devotei a minha vida ao Seu serviço. Nesse caso, pensem os outros o que quiserem, e apesar do que eu próprio julguei num momento de arroubo, não fui eu quem realizou aquele milagre, e sim Martin.
O bispo calou-se e considerou Domingo com um olhar perscrutador.
- Fala - pediu ele. - Fala, e pelo amor que me tiveste outrora dize a verdade.
- Que queres que eu te diga?
- Estavas seguro, naquela ocasião, de que a pessoa escolhida para efectuar a cura da pobre menina era meu irmão. Ainda tens a certeza disso?
- A mesma certeza.
- Então porque me foi concedido aquele sinal que dissipou as minhas tímidas hesitações? Por que motivo a Santíssima Virgem fez uso de palavras a que era tão fácil dar uma interpretação errada?
Tão grande era a sua angústia, que, como já sucedera uma vez, Domingo sentiu-se tomado de piedade. Queria consolá-lo, mas tinha escrúpulo de dizer o que pensava. Conhecia a inflexível integridade de Don Blasco e não era nada improvável que o seu sentimento de dever o obrigasse a comunicar ao Samto Ofício toda a palavra, mesmo pronunciada por um
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amigo, que parecesse requerer investigação. O velho seminarista não tinha o menor desejo de ser mártir das suas opiniões.
- És um homem com quem é difícil falar franco, meu caro. Eu não quero dizer nada que possa ofender-te.
- Fala, fala! - exclamou o bispo, com certa impaciência.
- Lembras-te que, na ocasião a que te referiste há pouco, eu te disse o quanto me admirava de que entre os infinitos atributos que os homens dão a Deus, nunca houvessem pensado em incluir o senso comum? Mas há outro ainda que lhes passou inteiramente despercebido, e no entanto, se é que uma criatura pode abalançar-se a julgar dessas coisas, ele é ainda mais valioso do que o outro. Sem ele, a omnisciência seria incompleta e a compaixão repulsiva. É a veia humorística.
O bispo teve um leve estremecimento e abriu a boca para falar, mas conteve-se.
- Escandalizei-te, irmão? - perguntou Domingo em tom sério, mas com uma centelha apenas perceptível no olhar. - O riso não é a menos preciosa entre as dádivas que Deus nos concedeu. Ele alivia os fardos que temos de carregar às costas neste mundo adverso e permite que suportemos com fortaleza de ânimo muitas das nossas aflições. Porque negar o senso de humor a Deus? Será irreverência supor que Ele sorria lá no Seu íntimo quando fala em enigmas para dar uma lição salutar aos homens que se enganam ao interpretá-lo?
- Tu exprimes essas coisas de modo muito estranho, Domingo, e contudo não encontro no que dizes nada que um bom cristão deva rejeitar.
- Estás mudado, irmão! Será possível que a velhice te haja ensinado a ser tolerante?
O bispo lançou-lhe um olhar rápido e inquiridor, como se.
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surpreendido com aquela observação, perguntasse consigo o que queria dizer o seu amigo. Baixou depois o olhar para o pavimento de pedra nua. Parecia mergulhado em reflexão. Ao cabo de algum tempo alçou os olhos e fixou-os em Domingo, como se desejasse falar, mas sem poder decidir-se.
- Aconteceu-me uma coisa muito estranha - disse afinal -, e até agora não ousei falar nisso a ninguém. Talvez a Providência te haja enviado hoje aqui para permitir que eu desabafe contigo, pois tu, meu pobre Domingo, és o único homem do mundo a que posso dar o nome de amigo.
Tornou a hesitar. Domingo esperava, observando-o com atenção.
- Como bispo da diocese, fui obrigado a assistir ao espectáculo dado na minha catedral. Alguém me disse que se tratava da vida de Santa Maria Madalena, mas eu não era obrigado a ouvir nem a olhar. Alheei o espírito e rezei. Mas tinha a alma cansada e inquieta. Assim tem sido sempre, desde que vim para esta cidade. Tenho sofrido de distracção e dissipação espiritual. Sentia-me despojado de tudo, incapaz de amor e de esperança. O meu entendimento estava toldado, a fonte da minha vontade como que havia secado e eu não encontrava consolação nas coisas divinas. Rezava, como nunca havia rezado até então, para que Ele houvesse por bem socorrer-me na minha profunda angústia. Não prestava atenção às coisas que me cercavam. Estava a sós com a minha mágoa. De repente fui surpreendido por um grito e lembrei-me do lugar onde me achava. Era um grito tão comovente, tão prenhe de significação que fui forçado a escutar mau grado meu. Recordei-me então de que estavam representando um drama. Ignoro o que se tinha passado antes, mas comecei a escutar e compreendi
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que eles haviam chegado ao ponto em que Maria Madalena e Maria, mãe de Tiago, levando aromas e bálsamo, se dirigiram para o sepulcro onde José de Arimaiteia depositara o corpo de Jesus e viram que a pedra tinha sido afastada. Penetraram no interior do sepulcro e não encontraram o corpo de Jesus. E como estivessem ali, cheias de perplexidade, um viandante, discípulo de Jesus, aproximou-se delas e Maria Madalena disse-lhe o que ela e a outra Maria tinham visto. Então, como esse homem ignorasse por completo os terríveis acontecimentos que se haviam passado, ela contou-lhe a captura, o julgamento e a ignominiosa morte do Filho de Deus. A descrição era tão vívida, as palavras tão bem escolhidas e o verso tão melífluo que, ainda que não quisesse, eu teria sido forçado a escutar.
Domingo, com a respiração presa, inclinou-se sofregamente para ele.
- Ah! como estava acertado o nosso grande imperador Carlos ao dizer que o espanhol era a única língua em que nos devíamos dirigir ao Senhor! A narração seguia o seu curso, verso após verso. Havia uma ardente indignação na voz da mulher que representava Maria Madalena quando ela falou da traição feita a Jesus; uma cólera furiosa apossou-se da multidão na catedral, e puseram-se a rogar pragas ao traidor; a voz dela embargou-se de angústia quando contou como haviam fustigado Nosso Senhor, e o povo exclamava de horror; mas quando ela falou da agonia na cruz, eles puseram-se a bater no peito e a soluçar em voz alta. Tamanha era a dor que vibrava naquela voz de ouro, tal era a sua emoção dilacerante que as lágrimas deslizaram-me pelas faces. A minha alma estava em tumulto. Meu espírito tremia como tremem as folhas de uma árvore a uma súbita rajada de vento. Sentia que qualquer coisa
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de estranho estava prestes a acontecer-me e tinha medo. Ergui os olhos e fiteinos na moça que pronunciava aquelas palavras adoráveis e cruéis. Era de uma beleza como nunca vi igual na terra. Não era uma mulher que estava ali a torcer as mãos, com os olhos banhados de lágrimas; não era uma actriz, mas um anjo descido dos Céus. E enquanto eu olhava, como que enfeitiçado, de repente um raio de luz trespassou a escuridão em que a minha alma havia definhado por tanto tempo; penetrou-me no coração e fui arrebatado em êxtase. Era uma dor tão grande que pensei morrer, mas ao mesmo tempo era um prazer tão delicioso! Sentia-me libertado do corpo e completamente alheio à carne. Naquele ditoso momento experimentei a maravilhosa paz que sobrepuja todo o entendimento. Bebi da sabedoria divina e conheci os Seus segredos. Sentia-me repleto de tudo quanto é bem e vazio de tudo quanto é mal. Não posso descrever esse estado de ventura. Não tenho palavras para exprimir o que vi, o que senti e o que compreendi. Possuía a Deus e, n'Ele possuía todas as coisas.
O bispo reclinou-se na cadeira e o seu rosto iluminou-se à recordação dessa grande experiência.
- Os anseios da esperança já não afligem a minha alma. Ela satisfaz-se na união com Deus, tamto quanto isso é possível nesta vida, e já nada tem para esperar deste mundo e nenhum bem espiritual que desejar. Escrevi uma carta a Sua Majestade rogando-lhe que me permita renunciar aos meus cargos e dignidades eclesiásticas;, a fim de poder retirar-me para um convento da minha ordem e ali passar o resto da vida em preces e em contemplação.
Domingo não pôde mais conter-se.
- Blasco, Blasco, a moça que fez o papel de Maria Madalena
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é minha sobrinha Catalina Pérez! Ao fugir de Castel Bodriguez ela entrou para a companhia de Alonso Fuentes.
O bispo encarou-o com assombro. Estava estupefacto. Depois sorriu com uma doçura que Domingo nunca lhe havia notado.
- Na verdade, os caminhos de Deus são inescrutáveis. De que estranhos instrumentos lançou Ele mão para me conduzir à minha meta! Através dela feriu-me, e através dela curou-me. Bendita seja aquela que a pôs no mundo e toda a glória seja rendida ao Senhor, pois quando ela disse aquelas palavras celestiais era Ele que a inspirava,. Até ao último dia lembrar-me-ei dessa moça nas minhas gratas orações.
Nesse momento entrou na cela padre António, que ainda era secretário do bispo. Relanceou os olhos para Domingo, mas não deu sinal de reconhecê-lo. Dirigiu-se ao bispo, murmurando-lhe qualquer coisa ao ouvido. Don Blasco suspirou.
- Está bem, vou recebê-lo. - E a Domingo: - Sinto muito ter que despedir-me de ti, meu querido amigo. Mas tornaremos a ver-nos.
- Infelizmente, é impossível. Volto amanhã para Castel Rodríguez.
- Quanto o lastimo!
Domingo ajoelhou-se para beijar o anel do bispo, mas este ergueu-o do chão e beijou-o na face.

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XXXV.

Domingo voltou para a casa onde estava hospedado: um homem idoso e magriço, com grandes bolsas debaixo dos olhos, nariz avermelhado e menos de uma dúzia de dentes na boca, um velho réprobo de batina remendada, esverdeada pelos anos, coberta de manchas de vinho e gordura. Mas parecia andar nos ares. Nesse momento, como já dissera uma vez ao bispo, não teria trocado de lugar com o imperador ou com o papa. Falava sozinho em voz alta agitando os braços, e os passantes julgavam-no bêbedo. Estava-o com efeito, mas não de vinho.
- A magia da arte! - ria ele alegremente. - A arte também faz os seus milagres. "Et ego in Arcádia natus"!
Sim, porque era ele, o comediógrafo desprezado, o estróina e dissoluto, o autor daqueles versos que tão profunda impressão haviam causado no bispo. Eis como a coisa se havia passado:
Catalina não estava descontente com os dois primeiros actos da peça que Alonso tinha escrito para ela. O autor fazia-a amante de Pôncio Pilatos e no primeiro acto Maria Madalena aparecia sumptuosamente ajaezada, ufana da sua vida de pecado, extravagante, caprichosa, lasciva e mercenária. A sua conversão ocorria no segundo acto; havia ali uma boa cena em que, sabendo estar Jesus a jantar em casa de um fariseu, ela trazia um cofre de alabastro com unguento, lavava-Lhe os pés e ungia-os. O último acto passava-se no terceiro dia após a Crucifixão. Havia uma cena em que a mulher de Pilatos o censurava por ter permitido que se matasse um inocente, outra em que os discípulos lamentavam a morte do Mestre, e ainda outra em que Judas Iscariote ia à presença dos
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anciãos do Templo e arrojava ao chão as trinta moedas de prata que deles recebera para trair Jesus. Maria Madalena, porém, só aparecia no momento em que ela e Maria, mãe de Tiago, chegavam ao sepulcro e o encontravam vazio. Terminava a peça com os dois discípulos dirigindo-se para Emaús e sendo abordados por um desconhecido, em quem a seguir reconheciam Jesus ressuscitado.
Não era em vão que Catalina vinha fazendo papéis principais havia três anos. Quando descobriu que aparecia tão pouco no último acto, ficou indignada. Queixou-se a Alonso com acrimónia.
- Mas que é que eu posso fazer? - exclamou ele. - Nos dois primeiros actos quase não sais do palco. No terceiro não há ocasião para apareceres, a não ser nessa cena.
- Mas isso não tem nada que ver com o caso. O assunto da peça sou eu ou não sou? O público quererá ver-me, e se eu não aparecer a sua peça está perdida.
- Mas, minha querida, esta não é uma peça em que eu possa soltar as asas à imaginação. Tenho de me ater aos factos.
- Não nego, mas você é o autor. Se entende do seu ofício, deve ser capaz de imaginar alguma coisa em que eu tenha de entrar. Porque não poderia eu, por exemplo, entrar na cena entre Pôncio Pilatos e a mulher? Basta empregar um pouco de engenho.
Alonso começava a agastar-se.
- Mas, minha boa Catalina, tu és a amante de Pilatos. Achas provável que estivesses no palácio e presente a uma conversa íntima entre ele e a mulher?
- Não vejo porque não. Posso ter uma cena primeiro
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com a mulher de Pilatos, e será por causa do que eu lhe disse que ela irá censurar o marido.
- Nunca ouvi maior disparate! Se tentasses aproximar-te da mulher de Pilatos ela mandar-te-ia açoitar.
- Não, se eu me prostrasse aos pés dela e lhe pedisse perdão das minhas culpas passadas. Eu seria tão comovente que ela não poderia deixar de abrandar-se.
- Não, não, não! - gritou ele.
- Então porque não posso ir com os dois discípulos a Emaús? Sendo mulher, eu adivinharia quem é o desconhecido e ele, sabendo que eu o reconhecera, levaria o dedo aos lábios para me recomendar silêncio.
- Já te disse que não podes ir com os dois discípulos a Emaús! - rugiu Alonso. - Simplesmente porque tu não estavas com eles, de contrário isso viria no Evangelho. Desde quando escreves as minhas peças para mim!
Separaram-se um tanto acalorados nesse dia. Catalina estava inclinada a recusar o papel, mas sabia que nesse caso Alonso o daria a Rosália-, e nos dois primeiros actos o papel era tão sensacional que ela bem podia fazer sucesso com ele.
- Se ele tivesse escrito o papel para Rosália, não se atreveria a dar-lhe tão pouco que fazer no último acto - disse Catalina a Diego.
- Isso nem tem dúvida. Ele não está a tratar-te bem. Não te dá o devido valor.
- Tenho essa impressão desde que Rosália entrou na companhia.
Cheia de aborrecimento, Catallina queixou-se a Domingo antes mesmo de este ter visto a peça. Ele ouviu-a com simpatia e pediu para a ler. Cada actor só recebia o seu papel, enquanto
Alonso tinha o original completo, que ele guardava ciosamente a fim de evitar que alguém o copiasse para o vender a outro empresário.
- Alonso é vaidoso como um pavão - disse Catalina. - Vá procurá-lo amanhã depois do ensaio e diga-lhe que achou a peça tão maravilhosa que não descansará enquanto não a ler toda. Ele não resistirá à lisonja e emprestar-lhe-á o manuscrito.
Assim fez Domingo, e Alonso, desvanecido, mas sempre prudente, emprestou-lhe o manuscrito sob condição de restituí-lo dentro de duas horas. Depois de o ler, Domingo foi dar um passeio e ao voltar fez uma proposta a Catalina. Esta atirou-se nos seus braços e beijou-o.
- Tio da minha alma, o senhor é um génio!
- Um génio ignorado, como muitos outros - fez ele, arreganhando os dentes. - Mas ouve, minha filha, não vás cochichar a ninguém, nem mesmo a Diego, o que eu tenciono fazer, e no ensaio põe todo o teu talento no papel. Mostras-te amável e gentil para com Alonso, como se nunca tivesse havido um desentendimento entre vocês, e ele pensará que estás disposta a perdoar. Ensaiarás de maneira tão maravilhosa, que ele ficará contentíssimo contigo!
Haveria dois ensaios no sábado e mais um no Domingo de Páscoa, de manhã cedo. No sábado, após o primeiro ensaio, quando a companhia se dispersou para ir jantar, Catalina dirigiu-se a Alonso com os seus modos mais sedutores.
- Escreveste uma peça magnífica, meu Alonso. Quanto mais a conheço, mais extraordinário me parece o teu génio. Nem o grande Lope de Vega te supera. És um grande, um imenso poeta!
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Alonso desfez-se em sorrisos.
- Confesso que não estou de todo descontente com ela.
- Só lhe encontrei um pequenino defeito.
Alonso estremeceu e franziu o sobrolho, pois tal é a índole dos escritores que um grão de censura tem muito mais peso na balança do que uma arroba de louvor. Mas Catalina, toda genital, não lhe prestou atenção.
- Quanto mais ensaiio, mais me convenço de que cometeste um erro em não me dar maiores oportunidades no terceiro acto.
Alonso teve um gesto de irritação.
- Já discutimos isso que chega. Eu disse-te uma dúzia de vezes que nesse acto não há nenhum lugar onde possas ser encaixada.
- E tinhas razão, mil vezes razão! Mas escuta: eu sou actriz e sinto no fundo da alma que, quando estou junto ao sepulcro de Nosso Senhor ressuscitado, devia ter mais para dizer do que aquilo que tu me deste.
- E que queres tu dizer, por favor? - perguntou ele, indignado.
- Bem, ocorreu-me que faria excelente efeito se eu narrasse a história da traição, julgamento, crucifixão e morte de Nosso Senhor. Uns cem versos bastariam.
- E quem supões tu que escutará uma fala de cem versos nesse ponto da peça?
- Toda a gente, se eu os disser - replicou Catalina. - Farei o auditório bater no peito, chorar e exclamar. Um dramaturgo como tu não pode deixar de perceber o quanto seria impressionante uma cena assim naquele justo momento.
- Isso está fora de questão! - exclamou ele com impaciência.
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- Vamos representar amanhã. Como seria possível escrever cem versos e ensaiá-los em tão pouco tempo? Como poderias tu aprendê-los?
Catalina teve um sorriso encantador.
- Bem, acontece que meu tio e eu estivemos a conversar a esse respeito, e a beleza da peça inspirou-o a escrever os versos que, também na opinião dele, a cena exigia. E eu aprendi-os de cor.
- Você? - exclamou o empresário, dirigindo-se a Domingo.
- A eloquência da sua peça emocionou-me - respondeu este -, e fui como que possuído do seu espírito, de modo que a bem dizer era você quem segurara a minha pena.
O olhar de Alonso ia de um ao outro. Catalina notou que ele estava indeciso e tomou-lhe a mão.
- Não permites que eu te diga os versos? Se não gostares, prometo não falar mais nisso. Oh! Alonso, faze-me esse favor! Bem sei o quamto te devo, mas não esqueças que nunca me poupei a canseiras para te ser agradável.
- Dize então esses malditos versos - gritou ele com raiva -, e deixa-me ir jantar.
Tornou a sentar-se, carrancudo, e dispôs-se a escutar. Catalina começou. Naqueles três anos a voz da moça tornara-se mais rica e ela exercia um maravilhoso domínio sobre as suas modulações. As emoções apropriadas à narrativa sucediam-se na sua fisionomia móvel, que exprimia apreensão, terror, receio, indignação, honra, sofrimento, amgústia e pesar, sem exageros mas com incisiva veracidade. Ainda que encolerizado, Alonso era um dramaturgo dos mais competentes e logo percebeu que os versos estavam bem escritos e a maneira
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por que os dizia Catalina, a eloquência dos seus gestos, as inflexões tocantes da sua voz, arrebatariam qualquer auditório. Curvou-se para a frente e entrelaçou as mãos. Dentro em pouco escutava como que enfeitiçado. Depois, tão patético era o desempenho de Catalina, tão tocante a sua sinceridade, que já não se pôde dominar: desatou a soluçar e grossas lágrimas lhe escorreram pelas faces. Por fim ela terminou e Alonso enxugou os olhos com a manga. Notou que Domingo também chorava.
- Então? - disse Catalina com um sorriso de triunfo. Depois de pronunciar o último verso saíra do seu papel
e estava tão tranquila como se houvesse recitado o alfabeto. Alonso encolheu os ombros. Procurou assumir um tom metódico e rabugento.
- Os versos são passáveis, para um amador. Vamos ensaiar a cena esta tarde e se eu ficar satisfeito com ela, tu a representarás amanhã.
- Coração da minha alma, eu adoro-te! - disse Catalina.
- Vou padecer é com Rosália - resmungou ele, macambúzio.
A cena foi ensaiada e representada, tendo sobre o bispo o efeito de que o leitor já tomou conhecimento. Não foi, todavia, esse o seu único efeito. Rosália vituperou violentamente a Alonso a sua parcialidade para com Catalina e ele teve de fazer um sem-número de promessas para a apaziguar, algumas das quais sabia que teria de cumprir. Isto aborrecia-o, mas ainda por outra razão não estava muito satisfeito com o que sucedera, pois muitas pessoas salientavam com especial louvor os cem versos de Domingo, cuidando que ele próprio os tivesse escrito, e diziam-lhe que, tanto pela linguagem como pela versificação,
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esse trecho sobrepujava todo o resto da peça. Quando Diego fez saber, com muita indiscrição, quem era o verdadeiro autor daqueles versos, Alomso ficou profundamente mortificado. Como desforra,, disse aos amigos que Catalina não tinha nem a décima parte do talento que julgava possuir e, se não o tivesse a ele para a dirigir, não tardaria a mostrar que era uma actriz muito medíocre. Assim que estas palavras foram transmitidas a Catalina, ela resolveu de vez pôr em prática o que vinha planeando. Conforme disse a Diego, uma mulher não deve esquecer o respeito próprio. Cortou relações com o ingrato empresário e partiu com o marido e os filhos para Madrid.


XXXVI.

Aceita a sua demissão, Don Blasco retirou-se para um longínquo convento da sua ordem com a "tenção de devotar os anos de vida que lhe restavam àquela contemplação que Aristóteles diz ser o objectivo da existência e que os místicos têm julgado preciosa aos olhos de Deus. Não quis aceitar os favores e privilégios que lhe eram oferecidos, em atenção às elevadas posições que exercera, e insistiu para que lhe dessem uma cela semelhante às ocupadas pelos outros monges, fazendo questão de ser tratado como eles em tudo. Ao cabo de alguns anos começaram a falecer-lhe as forças e, embora não parecesse sofrer de nenhuma moléstia definida, era evidente aos que o cercavam que ele não tardaria a deixar o cárcere do corpo. Padre António, que o tinha acompanhado ao convento, e o prior imploraram-lhe que abandonasse as mais severas mortficações,
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mas ele recusou. Persistiu em observar a regra da ordem com o máximo rigor e só consentiu em abster-se de assistir às matinas no frio cortante da madrugada quando o prior, em vista da crescente debilidade de frei Blasco, fez uso da sua autoridade proibindo-lhe tal coisa. Pouco a pouco a sua fraqueza foi chegando a um ponto em que era forçado a passar a maior parte do dia na cama, mas não parecia estar em perigo iminente de morte. A sua vida era como uma vela bruxuleante que qualquer sopro de vento pode apagar, mas posta ao abrigo, ainda continua a iluminar. O fim veio repentinamente.
Uma manhã padre António, depois de ter cumprido os seus deveres religiosos, foi à cela do seu mestre para ver como ia este. Era Inverno e tinha caído neve. Fazia na cela um frio terrível. Padre António admirou-se de encontrá-lo corado, os olhos brilhantes, e rejubilou-se porque havia semanas que ele não mostrava tão bom aspecto. Nasceu-lhe a esperança de que o velho tivesse melhorado, e talvez fosse até possível restituir-lhe a saúde. Rezou, mentalmemte, uma breve acção de graças.
- Está com boas cores esta manhã, senhor - disse ele, pois havia muito que frei Blasco lhe exprimira o desejo de não ser mais tratado como bispo. - Há dias que não o vejo com tão boa aparência.
- Sinto-me muito bem. Acabo de falar com o grego Demétrios.
Padre António reprimiu um estremecimento de assombro, pois sabia, naturalmente, que Demétrios tivera anos atrás a imerecida morte na fogueira.
- Em sonhos, senhor?
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- Não, não! Ele entrou por essa porta, parou aí junto da minha cama e falou-me. Estava vestido tal qual sempre o conheci, com aquele mesmo manto puído que usava, e com o mesmo ar de benignidade mo rosto. Eu reconheci-o imediatamente.
- Era o Diabo, Excelência Reverendíssima! - exclamou o padre António, esquecendo a recomendação que lhe fizera o seu mestre. - Expulsou-o da sua presença?
Frei Blasco sorriu.
- Isso seria descortesia, meu filho. Não creio que fosse o Diabo. Era o próprio Demétrios.
- Mas ele está no Inferno, sofrendo o justo castigo da sua execrável heresia!
- Era o que eu pensava, mas não é assim.
Padre António ouvia-o cada vez mais consternado. Tudo lhe parecia indicar que Dom Blasco tivera uma visão infernal. Pedro de Alcântara e Madre Teresa de Jesus haviam tido numerosos encontros com demónios e Madre Teresa até conservava consigo um pouco de água benta com o fim expresso de expulsá-los, atirando-lha para cima. Mas a atitude do seu velho mestre era tão terrificante que só lhe restava esperar que não estivesse ele no seu juízo perfeito.
- Perguntei-lhe como ia e ele respondeu que bem. Quando lhe contei as cruéis angústias que tinha sofrido por sabê-lo no Inferno, riu-se de leve e disse-me que, ainda antes de lhe terem as chamas consumido o corpo, a sua alma voara para a campina, na encruzilhada dos caminhos, e, como ele tinha vivido na virtude e na verdade, Radamamto enviara-o para as Ilhas Bem-aventuradas. Ali encontrou Sócrates, cercado como sempre de moços de bela aparência, a formular e a responder
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a perguntas: viu Platão e Aristóteles passeando lado a lado em amistosa conversa, como se já não houvesse a menor diferença de opinião entre eles; mas Ésquilo e Sófocles ralhavam afectuosamente com Eurípides por ter arruinado o drama com as suas inovações. E muitos mais, tão numerosos que não era possível mencioná-los todos.
Padre António ficou consternado. Era evidente que o seu velho e venerado amigo estava preso de delírio. Eis aí o que significavam aquelas faces coradas e aqueles olhos cintilantes! O velho monge não sabia o que dizia, mas a pobre e honesta criatura deu graças aos Céus por não estar outra pessoa ali para ouvi-lo. Tremia ao considerar o que pensariam os demais frades se ouvissem aquele a quem consideravam um santo pronunciar palavras que eram quase blasfemas. Torturava o cérebro à procura de uma resposta, mas na sua agitação não lhe ocorria nada.
- E depois de termos conversado durante algum tempo, no mesmo tom amigável em que costumávamos conversar há muitos anos, em Valência, o galo cantou e ele disse que era obrigado a deixar-me.
Padre António achou melhor comprazer ao doente.
- E disse por que motivo tinha vindo vê-lo? - gaguejou.
- Perguntei-lhe, e ele respondeu que me tinha vindo dizer adeus, pois nunca mais nos tornaríamos a encontrar. "Amanhã", disse ele, "quando já não for noite e ainda não for dia, quando mal puderes distinguir a forma da tua mão, a tua alma será libertada do corpo."
- Isso prova que foi mau espírito que visitou Vossa Excelência! - exclamou padre António. - O médico disse que Vossa Excelência não tinha nenhuma doença mortal e há
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muitos dias que não se sente tão bem como esta manhã. Deixe-me dar-lhe o remédio que ele mandou, e o barbeiro vai-lhe fazer uma sangria.
- Não tomo mais remédio algum e não quero que me sangrem. Porque estás tão ansioso por me deter, quando a minha alma anseia fugir à prisão que ela por tanto tempo habitou? Vai dizer ao nosso caro prior que desejo confessar-me e receber o Santíssimo Sacramento. Digo-te que amanhã, à hora em que eu começar a distinguir a forma da minha mão, me despedirei desta vida.
- Foi um sonho, senhor! - gritou o pobre frade, desesperado. - Suplico-lhe que me acredite: foi um sonho!
Don Blasco emitiu um som que em qualquer outra pessoa chamaríamos um riso abafado.
- Não digas absurdos, meu filho. Aquilo não era mais sonho do que o é o estar eu falando contigo neste momento. Não era mais sonho do que o é a vida inteira, com os seus pecados e sofrimentos, com as suas perguntas angustiosas e os seus misteriosos segredos - um sonho de que acordaremos para entrar na vida eterna, a única que é real. Vai agora, e faze o que te pedi.
Padre António virou-se com um suspiro e saiu. Don Blasco fez a sua confissão e recebeu o Santíssimo Sacramento. Depois de celebrados os derradeiros ritos da Igreja, despediu-se dos frades com quem tinha convivido durante vários anos e deu-lhes a sua bênção. Já então ia o dia bastante adiantado. Ele exprimiu o desejo de que o deixassem a sós, mas padre António rogou-lhe com tal premência que o aceitasse na sua companhia, que ele consentiu com um doce sorriso, sob a condição de ficar o outro calado. Estava Don Blasco deitado de costas na dura
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enxerga, coberta de um fino colchão, que a regra da ordem prescrevia, e apesar do frio penetrante não tinha sobre si mais do que um leve cobertor. De quando em quando dormitava. Padre António estava preso de profunda aflição. Abalara-o a certeza de que se mostrava possuído Don Blasco e já então ele estava meio convencido de que a morte do seu santo mestre correria como este havia predito. Passavam-se as horas. A cela era tenuememte iluminada por um único círio, que padre António espevitava de tempos a tempos. O sino tocou as matinas. Ele teve um estremecimento ao ouvir Don Blasco romper o longo silêncio.
- Vai, meu filho. Não deves negligenciar por minha causa os teus deveres religiosos.
- Não posso deixá-lo agora, meu senhor - respondeu o frade.
- Vai. Ainda estarei aqui quando voltares.
O longo hábito da obediência fez-se sentir e padre António foi às matinas. Quando voltou, Don Blasco tinha adormecido e no primeiro instante o frade julgou que estivesse morto. Mas ele respirava tranquilamente e no peito do outro brotou a leve esperança de que esse sono lhe restaurasse as forças e talvez mesmo ele se restabelecesse. Ajoelhou-se diante da cama e rezou. O círio espirrou e apagou-se. Era noite escura. Passaram-se as horas. Por fim Don Blasco fez um ligeiro movimento. Naquela escuridão profunda padre António nada podia ver, mas teve a intuição de que o seu venerado amigo procurava às apalpadelas o crucifixo que trazia preso ao pescoço por um cordel. Colocou-o nas mãos do velho, mas quando quis retirar a sua sentiu que ele a segurava debilmente. Escapou-se-lhe um soluço da garganta. Depois de tantos anos, era o primeiro
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sinal de afeição que lhe dava Don Blasco. Tentou escrutar aqueles olhos que outrora brilhavam com uma luz tão intensa, e embora nada pudesse ver sabia que eles estavam abertos. Baixou os seus para a mão que prendia suavemente a sua, por cima do crucifixo, e percebeu que a escuridão da noite já não era tão impenetrável. Continuou a olhar e de súbito distinguiu, aterrado, a forma de uma mão emaciada. Um leve suspiro exalou-se dos lábios de Don Blasco e qualquer coisa, que ele não saberia dizer o que era, disse ao frade que o seu amado mestre estava morto. Rompeu a chorar impetuosamente.
A esse tempo, fazia já alguns anos que Don Manuel estava a viver em Madrid. Dona Beatriz recusara levar avante o plano aventado por ela própria,, de que ele desposasse a sua sobrinha, a marquesa de Caranera, e como não foi possível encontrar um marido que lhe conviesse, a viúva fez-se religiosa e era agora subprioresa do convento carmelita de Castel Rodríguez. Don Manuel sentia-se maltratado por Dona Beatriz, pois não fora por culpa sua que falhara o plano arquitectado por ambos, mas não era homem para ficar a lastimar-se. Foi para Madrid e, depois de tornar conhecidos os seus projectos matrimoniais e a extensão da sua fortuna, não tardou a encontrar um partido muito satisfatório. Ligou-se ao duque de Lerma, o favorito de Filipe III, e, graças ao exercício da subserviência, lisonja, duplicidade, falta de escrúpulos e venalidade, logrou afinal tornar-se altamente respeitado. Don Blasco deixara após si uma reputação de santidade e Don Manuel foi bastante astuto para compreender o proveito que lhe -traria a beatificação do irmão e, à reputação da sua família (pois Deus abençoara-lhe o matrimónio com dois belos filhos homens), a eventual canonização daquele. Tratou de coligir as necessárias provas.
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Ninguém poderia negar que o antigo bispo de Segóvia tivesse sido um homem de piedade exemplar. Não faltavam testemunhas para afirmar que fragmentos do seu velho hábito, usados em escapulário, as haviam impedido de contrair a varíola e o mal venéreo, e os vários sucessos milagrosos de Castel Rodríguez estavam todos autenticados. Mas a Congregação dos Ritos, em Roma, exigia provas de dois milagres importantes realizados pelas relíquias do candidato após a sua morte, e foi impossível obtê-las. Os advogados que Don Manuel contratara eram homens honestos, pois sendo ele mesmo um velhaco, tinha demasiada astúcia para recorrer aos serviços de outros velhacos: informaram-no de que, embora fosse possível conseguir a beatificação de Don Blasco, eram pequenas as probabilidades de fazer incluir o seu nome no cânone. Enfureceu-se quando lhe disseram isto e acusou-os de incompetência, mas pensando melhor chegou à conclusão de que deviam estar acertados. Já havia gasto boas quantias nas indagações preliminares e não via utilidade alguma em continuar a enterrar dinheiro naquilo. Depois de reflectir a sangue-frio, portanto, concluiu que a beatificação do irmão não valia as despesas que teria com ela e contentou-se em mandar trasladar os restos mortais do bispo para a igreja colegiada de Castel Rodríguez, onde erigiu um sumptuoso monumento, se não para perpetuar a memória do filho mais velho de seu pai, ao menos para dar uma prova da sua munificência.
Talvez seja interessante mencionar, de passagem,, que Martin de Valero, o terceiro filho de Don Juan, tornou a mergulhar na obscuridade de onde o havia tirado momentaneamente a visita de seus dois ilustres irmãos. Continuou a fazer pão, e nada mais podemos dizer dele. Jamais lhe ocorreu, como
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na verdade jamais ocorreu aos seus concidadãos, que em dado momento a Santíssima Virgem lhe tinha concedido o poder de realizar um milagre.
Dona Beatriz alcançou uma idade avançada, em pleno gozo das suas faculdades, e poderia ter vivido alguns anos mais se não fosse um funesto incidente. Ao ser informada da beatificação de sua velha inimiga, a Madre Teresa de Jesus, ficou açaimada durante três dias; mas quando, em 1622, recebeu a notícia da canonização, enfureceu-se a tal ponto que teve um ataque. Recobrou a consciência, mas um lado do corpo ficou completamente paralisado e era evidente que o seu fim estava próximo. Não conhecia o medo e permaneceu calma e senhora de si. Mandou chamar o seu frade favorito para a ouvir em confissão, feito o que reuniu em torno de si as suas freiras e lhes deu oportunos conselhos no tocante à sua futura conduta. Algumas horas depois pediu o Santíssimo Sacramento. Foram de novo buscar o sacerdote. Dona Beatriz solicitou perdão dos seus pecados e rogou às chorosas freiras que orassem por ela. Ficou algum tempo imóvel e em silêncio. De repente, proferiu em voz alta:
- Uma mulher de origem muito humilde!
As freiras que a ouviram julgavam que se referisse a si própria e, como não ignorassem que nas suas veias corria o sangue real de Castela e que a sua mãe pertencia à ilustre casa de Braganza, ficaram profundamente comovidas com esse sinal de humildade. Mas a sua sobrinha, a subprioresa, não se deixou enganar. Sabia que aquelas palavras diziam respeito à freira rebelde que se havia tornado Santa Teresa de Ávila. Foram elas as últimas que pronunciou Dona Beatriz Henríquez y Braganza,
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na religião Beatriz de San Domingo. Administraram-se-lhe os santos óleos e pouco depois entregava ela a alma ao Criador.


XXXVII.

Quando chegou a Madrid, Catalina ainda tinha o ouro que lhe dera Dona Beatriz; além disso, como era uma mulher económica-, havia poupado dinheiro durante aqueles três anos passados a andar de um lado para outro, de modo que, apesar dos gostos extravagantes de Diego, não tinha preocupações quanto ao futuro imediato. Dirigiram-se às pessoas que haviam prometido auxiliá-los com a sua influência e dinheiro e, encontrando-as dispostas a cumprir a promessa, conseguiram organizar uma companhia. O êxito que obtiveram ultrapassou as suas próprias esperanças. Catalina tornou-se o ídolo da capital. Muitos cavalheiros elegantes procuraram obter-lhe os favores, mas, ainda que ela lhes aceitasse os presentes com gratidão, não conseguiam em troca mais do que um sorriso dos seus belos olhos, acompanhado de bonitas falas. Passou a ser tão admirada pela sua virtude quanto pela beleza e pelo génio. Mandou chamar Domingo, que veio com uma dúzia de peças nos alforjes. Catalina levou duas delas à cena. Foram vaiadas e, segundo o costume de então, o público mostrou o seu desagrado com assobios agudos, fiaus e injúrias obscenas. Furioso e humilhado, Domingo foi para casa e pouco depois morria - não se sabendo, porém, com a certeza, se devido à decepção ou à bebida. Alguns anos mais tarde Catallina, já então aclamada a maior actriz de Espanha, segura da sua influência sobre
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o público, resolveu levar à cena mais uma das peças de Domingo, em homenagem à memória deste. Mas fê-lo anonimamente para que ela não sofresse com o mau êxito das outras duas. A peça agradou. Era, mesmo, tão boa que foi atribuída a Lope de Vega, e conquanto este negasse a sua autoria ninguém lhe deu crédito, de modo que a peça tem sido publicada até hoje entre as suas obras. E assim o pobre Domingo foi esbulhado até desse fogo-fátuo que tem consolado muito escritor da indiferença dos seus contemporâneos: a celebridade póstuma.
Apesar do seu garbo e da sua bela presença, Diego nunca passou de um actor medíocre. Mas, por felicidade, revelou-se bom homem de negócios e empresário eficiente, acabando por enriquecer com o tempo. Havia muito, tinham ambos concordado que seria imprudência falar dos acontecimentos sobrenaturais de que fora centro Catalina,, de forma que nem quando andavam com os actores ambulantes, nem mais tarde, pessoa alguma veio a saber que havia qualquer relação entre ela e esses factos, que durante algum tempo foram muito comentados. Embora, como Catalina havia previsto, não ocorressem novos milagres para perturbar a paz da sua vida matrimonial, Diego nunca foi, como ele achava justo e apropriado, o senhor da sua própria casa; mas Catalina tinha a habilidade de lhe fazer crer que o era e ele vivia satisfeito e feliz. Era um tanto infiel à esposa, mas sabendo que outra coisa não se pode esperar dos homens, e contanto que essas aventuras fossem efémeras e não custassem muito dinheiro, ela aceitava-lhe com candura as infidelidades. Formavam, na verdade, um par dos mais felizes. Catalina teve seis filhos do marido e, como era uma actriz conscienciosa, não queria decepcionar o seu público
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e continuava a representar virgens perseguidas e princesas austeramente castas até aos últimos instantes da gravidez. Continuou a desempenhar tais papéis até uma idade avançada, e um viajante holamdês que esteve na Espanha em fins do reinado de Filipe III regista que, embora ela se tivesse tornado uma mulher corpulenta e já fosse várias vezes avó, tão grande era a sua graça pessoal, o feitiço da sua voz melodiosa e a magia da sua personalidade, que cinco minutos depois de ela aparecer no palco o espectador esquecia-lhe a idade e a aparência, aceitando-a sem disputa como a ardente jovem de dezasseis anos que ela representava.
E assim, com Catalina, como começou, termina esta narrativa estranha e quase incrível, mas edificante.

 

 

                                                                  Willian Somerset Maugham

 

 

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