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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CATAMOUNT CONTRA CATAMOUNT / Albert Bonneau
CATAMOUNT CONTRA CATAMOUNT / Albert Bonneau

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

- Atenção, velho camarada!...
com um gesto brusco Catamount fez parar Mezquita. O alazão relinchou e sacudiu a cabeça para se ver livre das moscas e dos moscardos que o atacavam desde o começo da sua cavalgada. O suor corria-lhe ao longo do magnífico pêlo. Impassível, direito sobre os seus estribos, o cavaleiro levou a mão à altura das fontes para se proteger dos raios do Sol ardente...
O homem de olhos claros olhava para o lado do norte. A Serra de Santiago erguia naquela direcção a sua feroz e rude barreira. Os seus contrafortes gretados, e quase inteiramente desprovidos de vegetação, desciam em declives desiguais, semeados de magras moitas de cactos e agaves.
Aqui e ali um aloés erguia o seu tronco solitário.
Esta decoração há-muito que era familiar a Catamount; quantas vezes não a contemplara quando se aventurava sozinho na região, ou quando combatia ao lado dos agentes  da polícia rural, comandados pelo major Morley. Lutas encarniçadas travadas contra os bandidos e contra os índios rebeldes, tinham-se desenrolado frequentemente naquelas regiões deserdadas que constituíam preciosos refúgios para os bandos de ladrões.
Contudo, há anos já que a tranquilidade voltara àquela zona. As diligências que asseguravam o serviço na margem americana para além do Presídio Norte, na grande linha do Presídio na cidade do Kansas e que contornavam a serra para atingir Haymond, na linha de Santo
António do sul do Pacífico, nunca mais tinham sido atacadas. Parecia que a ordem devia ali reinar definitivamente...

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Porém, há alguns dias que a situação ameaçava agravar-se. Corriam boatos de que as tribos Comanches vindas do outro lado da fronteira, especialmente do Lado de los
Cristianos, situado em território mexicano, tinham conseguido infiltrar-se no Estado do Texas... Informavam até que bandos cada vez mais numerosos atravessavam o
Rio Grande e se refugiavam na Serra de Santiago.
As autoridades do Texas, alarmadas com este estado de coisas e de acordo com as autoridades mexicanas, tinham tomado medidas de vigilância bastante severas. Era
precisamente por esta razão que Catamount patrulhava naquele dia um dos sectores mais difíceis da fronteira. Nos dias precedentes, os grupos de agentes enviados
pelo major Morley, tinham voltado, tanto de El Paso como de Del Rio, sem notarem nada de anormal...
Contudo persistia a impressão da existência de uma ameaça...
Eis porque o homem de olhos claros examinava com uma atenção especial o terreno que o rodeava.
Desde a sua mais tenra infância e durante uma mocidade extraordinariamente tempestuosa, Catamount aprendera a ler nas pistas e sinais. Poderia dar lições ao mais
manhoso dos Apaches ou dos Comanches. Atirador habilíssimo, era igualmente considerado pelo seu chefe e pelos camaradas como o mais hábil dos exploradores de atalhos...
- Meu bravo Mezquita, desta vez creio que vamos conseguir o que queremos...
Enquanto Catamount pronunciava estas palavras, a sua mão bronzeada acariciava o pescoço do alazão.
Acendia-se um relâmpago nos seus olhos perscrutadores. Saindo da imobilidade em que há alguns instantes se conservava, saltou lentamente da sela.
-Espera um minuto, Mezquita...
O cavalo estava admiravelmente ensinado. Nem se mexeu, contentando-se em sacudir de vez em quando as crinas. Durante este tempo o dono curvava-se e, avançando devagarinho,
continuava a observar o solo com escrupulosa atenção.
O terreno era rochoso e portanto tornava-se difícil descobrir o menor rasto; contudo, com intervalos regulares, o agente descobriu excremento de cavalo e aqui e
ali pegadas indicando que um numeroso grupo de cavaleiros passara naquelas paragens pouco tempo antes. Havia ali um certo cheiro, cheiro a cavalos, a que desde sempre
Catamount fora habituado.
O homem de olhos claros percorreu assim, pouco mais ou menos, uma distância de trinta passos, sem erguer os olhos do chão. A sua máscara crispada denunciava um interesse
mais intenso; seguia com facilidade a direcção que os cavaleiros tinham tomado e dali a pouco parou modelando um assobio leve. Sobre o declive, atrás de uma moita
de cactos, acabava de descobrir um calhau que tinha sido colocado sobre uma pedra muito maior.
Catamount conhecia a linguagem empregada pelos índios, fosse por meio de pedras, fosse com ervas, com fogos ou sinais gravados na casca das árvores. Ao primeiro
golpe de vista compreendeu que o calhau e a pedra tinham sido colocados assim por uma mão de homem.
- Continuai! ides numa boa direcção!...
O agente pronunciava estas palavras a meia voz; traduzia o que com efeito significava o calhau e a pedra sobrepostas. E quase imediatamente continuou com um leve
sorriso:
- Não há dúvida, estamos em presença de Comanches!
Os Comanches! Velhos inimigos que Catamount tantas vezes defrontara, vinte anos antes, nos tempos heróicos dos pioneiros!... Durante muito tempo estes índios nómadas
pareciam conservar-se mais pacíficos ainda que os seus congéneres, os Apaches e os Yaquis, que tantas vezes davam que falar no território mexicano de Sonora. Os
sobreviventes destas tribos pareciam ter esquecido os feitos guerreiros dos seus antepassados. Infelizmente, segundo as instruções fornecidas pelo major Morley,
alguns ataques que já se tinham produzido contra viaturas ou colonos isolados, faziam pensar que um novo alevantamento estava próximo. Vários esquadrões de cavalaria
tinham chegado já a diversos pontos da fronteira.
De momento tratava-se de localizar exactamente a zona onde os índios se reuniam. O ar de satisfação que alegrou a fisionomia de Catamount, traiu a alegria que sentia
ao descobrir, enfim, um indício, e ia dirigir-se para Mezquita quando de repente, perturbando o silêncio completo que havia naquelas paragens desertas, soaram várias
detonações... Algumas balas fizeram recochete perto do agente produzindo pequenas nuvens de pó...
Num instante Catamount correu para a moita de cactos, e deitou-se de barriga para baixo. As balas continuavam a assobiar à volta dele; eram disparadas de trás, de
um grupo de rochedos que se elevava a meio declive, a trezentos passos pouco mais ou menos, daquele que o homem dos olhos claros acabava de atingir.
As salvas prosseguiam, os projécteis rasgavam as folhas espinhosas dos cactos, mas por felicidade nenhum atingiu Catamount, que continuava escondido. Enquanto os
seus invisíveis adversários se encarniçavam em tomá-lo por alvo, levou rapidamente a mão ao seu Colt,
pronto a ripostar logo que divisasse um dos seus imprevistos adversários.
Naquele momento não aparecia ninguém. Passaram cinco minutos durante os quais as detonações foram menos numerosas. Então o agente descobriu uma silhueta que se aventurava
para fora da barreira dos rochedos. Reconheceu imediatamente um Comanche, naquele homem que avançava aos saltos, dissimulando-se rapidamente atrás dos acidentes
do terreno. Executando uma manobra rápida, o pele-vermelha procedia de forma a surpreender pelas costas o homem dos olhos claros.
- Anda lá, homenzinho... cá te espero...
com o dedo no gatilho ao seu Colt, Catamount esperava com paciência. Pensava com certa razão que o Coimanche se aventuraria cada vez mais ao verificar o silêncio
persistente do seu adversário. Dali a alguns instantes estaria a distância suficiente...
Adivinhara. O índio, à medida que avançava ao longo do declive, tornava-se mais imprudente,, encorajado pela inércia do branco. Dizia para consigo: que as aparências
indicavam que Catamount tinha sido abatido. Quando chegou a menos de cinquenta passos da moita de cactos, ia a formar de novo outro salto quando se ouviu uma detonação
seca... Atingido no meio da testa por uma bala, o índio caiu e rolou de barriga para baixo, morto instantaneamente pelo hábil atirador.
Gritos ferozes acolheram a queda do Comanche... Os outros índios, emboscados atrás dos rochedos, tinham assistido ao fim trágico do camarada; por isso nova salva
foi disparada na direcção donde partira o tiro. Catamount, que se encostara novamente ao chão, não foi atingido.
Mas não se demorou atrás da sua frágil trincheira, batendo rapidamente em retirada, arrastando-se de gatas sobre os joelhos. Esforçou-se por atingir o local em que
deixara Mezquita.
Até ali o alazão tinha estado um pouco assustado com as detonações, mas recuara apenas alguns passos. Fiel, esperava a volta do dono. De resto, é justo dizer que
os Comanches não tinham procurado disparar sobre ele. Esperavam apoderar-se do soberbo animal logo que se desembaraçassem do seu dono.
O agente acelerou a fuga. Numerosas balas assobiavam aos seus ouvidos. Os Comanches, sempre entrincheirados atrás dos rochedos, tinham-no descoberto- e disparavam
furiosamente sobre ele. Apenas uma bala atravessou a aba do chapéu que o fugitivo trazia.
- Desastrados! chacoteou Catamount pegando no chapéu que lhe caíra aos pés.
Depois, sem se importar com as salvas que continuavam, nem com o perigo que podia correr pondo-se assim a descoberto, o homem de olhos claros modelou um breve assobio.
Dali a alguns instantes Mezquita estava perto do dono. Então com uma incrível rapidez, que desconcertou os índios, o agente montou e, executando uma breve pressão
nos flancos do alazão, lançou-se numa corrida louca através do terreno gretado pelo calor.
O cavalo parecia compreender o perigo. Corria tão velozmente que as suas patas mal tocavam no solo, c deixavam para trás uma leve nuvem de pó. Os Comanches não paravam
de disparar, mas continuavam desastrados. Por várias vezes Catamount, magnífico cavaleiro, utilizou uma táctica muito usada pelos índios: deixou-se cair encostado
ao flanco do cavalo e desapareceu quase completamente aos olhos dos atiradores.
Depois de alguns minutos de corrida louca, os peles-vermelhas deixaram de disparar. Pareciam não querer sair de trás dos seus abrigos para começar a caça ao audacioso
agente. Quando este ia abrandar o andamento de Mezquita, escapou-lhe de repente uma exclamação. À sua direita, a pouca distância, ouviu gritos ferozes...
Voltou-se, com a cara a escorrer suor. A sua fisionomia
crispou-se ligeiramente. Uns cinquenta índios já chegavam a galope, esforçando-se por lhe cortar a retirada.
- Vamos, velho camarada!... Vamos pregar uma verdadeira partida a estes rapazes que, na verdade, são bastante turbulentos...
com um rápido golpe de vista circular examinou o terreno. Os Comanches começavam a desenhar uma manobra envolvente; os seus berros de alegria demonstravam que desta
vez esperavam ter completamente à sua mercê o cavaleiro. Mas era conhecer mal Catamount, julgar que ele se deixaria cercar daquela maneira. Calculando a distância
que o separava ainda dos adversários imprevistos, esporeou o cavalo dos dois lados e depois, num galope louco, esforçou-se por ganhar a dianteira aos peles-vermelhas.
Um grande espanto apoderou-se imediatamente dos Comanches. Julgaram primeiro que os ia acometer. Uma certa hesitação apoderou-se dos primeiros cavaleiros. Mais alguns
instantes e Catamount ia passar a menos de duzentos passos dali, frustrando a manobra que planeavam.
Curvado sobre o pescoço de Mexquita, conservava ainda o seu Colt na mão. Exactamente no momento em que passava a pouca distância dos primeiros índios, descarregou
a arma na sua direcção. Ouviram-se cinco detonações... Dois dos peles-vermelhas vacilaram sobre as selas e tombaram no pó.
Urros de furor responderam a esta façanha. Soaram tiros, mas Catamount tinha sabido aproveitar o espanto que acabava de provocar nos seus adversários... Corria loucamente,
encorajando Mezquita com frequentes estalos da língua.
Então começou uma feroz caça ao homem. Desejosos de se vingarem do audacioso que julgavam ter à sua mercê e que acabava de lhes escapar com tão extraordinário sangue-frio,
os Comanches desataram a galopar
brandindo as suas espingardas, perseguindo o agente numa tão grande precipitação que às vezes se chocavam uns contra os outros.
O homem de olhos claros voltou-se. Conservava, pelo menos, duzentos passos de avanço sobre os seus perseguidores. O resultado desta louca galopadia não lhe pareceu
inquietador... Quantas vezes não vencera já outros adversários bem mais temíveis que aquele bando de Comanches ladrões! Se não conseguissem atingi-lo com alguma
bala, e se outros grupos não aparecessem para lhe cortar a retirada, sairia facilmente da aventura, podendo levar daquela vez ao seu chefe todas as informações úteis
no que respeitava às verdadeiras intenções dos peles-vermelhas.
Dali em diante o agente não podia ter dúvidas: era na serra de Santiago que se reuniam, os índios rebeldes: naquele enorme abrigo natural, os ladrões podiam juntar-se
à vontade e atacar em seguida as explorações e os ranchos mais próximos. Os rebanhos eram numerosos até quarenta milhas dali. Tresmalhá-los e levá-los para além
do Rio Grande do Norte; constituía uma operação bastante fácil de executar, se os índios possuíssem um suficiente número de cavaleiros. Tanto mais que estavam armados
com carabinas de repetição, de modelo recente, pormenor este que muito admirava o fugitivo.
De momento Catamount afastou depressa todas estas considerações; antes de tudo tratava-se de salvar a pele... Dominando o ruído regular das patas de Mezquita, ouvia
os urros e os gritos furiosos dos Comanches lançados em sua perseguição. com os dentes cerrados continuava a esporear os flancos brancos da sua fiel montada, quando
de súbito lhe escapou uma ligeira exclamação:
- Louvado seja o Altíssimo! Parece que voltam para trás. Os Comanches tinham deixado de atirar
Catamount diminuiu o andamento do alazão e olhou para trás!...
contra ele e pairavam, uns após outros, envolvidos numa nuvem de pó, agitando os braços e falando com animação.
- Que diabo estarão eles a combinar? perguntou a si próprio o fugitivo.
O primeiro pensamento que lhe veio ao espírito foi que um outro grupo de Comanches aparecesse noutro ponto, facilitando o trabalho dos seus companheiros; mas por
mais que inspeccionasse os arredores não descobriu nada de anormal na planície árida, onde os aloés se erguiam como sentinelas imóveis.
- Desistem!... é curioso! Julgava-os mais cabeçudos. Catamount pensou então que podia estar à vista
qualquer destacamento de cavaleiros ou agentes da polícia rural que inspirasse aos seus perseguidores tão ajuizada decisão. Contudo os Comanches não pareciam bater
em retirada precipitada. Voltando as costas àquele que até ali perseguiam tão encarniçadamente, agrupavam-se e falavam fazendo grandes gestos.
O homem, de olhos claros parou o seu cavalo, tornou a pôr o chapéu de aba larga que lhe caíra para a nuca e, depois, muito direito sobre os estribos, pôs-se a observar
atentamente os cavaleiros índios.
Desta vez afastavam-se e abandonavam definitivamente a perseguição. Catamount sorriu e deu uma palmadinha amigável no alazão:
- Os meus cumprimentos, Mezquita! Foste notável! Quase tanto como o meu pobre velho King!
Não esquecia nunca o seu antigo cavalo que tombara durante uma das suas difíceis missões. O alazão nunca lhe fizera esquecer aquele companheiro fiel das cavalgadas
de antanho e, cada vez que se proporcionava ocasião, Catamount dedicava-lhe uma comovida recordação. Mas gostava de Mezquita, que adestrara de forma notável. Uma
vez mais, o nobre animal acabava de lhe provar a sua maravilhosa resistência!
Parece-me que ganhaste bem um torrão de açúcar.
Procurou no cinto- de coiro. Trazia sempre consigo uma provisão de açúcar porque o alazão era extraordinariamente guloso. Ainda fremente da corrida louca que acabara
de fazer, o animal saboreou a guloseima. O agente procurou nas algibeiras:
E eu também mereço um cigarro, murmurou.
Fez um, meteu-o nos lábios e acendeu-o. Mal ergueu para o céu as primeiras baforadas de fumo, as suas sobrancelhas franziram-se:
- Amigo Mezquita!... temos coisa nova!...
O seu olhar afastou-se dos Comanches que continuavam a retirar rapidamente e dirigiu-se para a cordilheira de colinas que bordeja a Serra de Santiago. A cinco milhas
dali e uma após outra, elevaram-se para o céu duas colunas de fumo negro.
- Viva Mezquita! Há bocado perguntávamos um ao outro qual seria a causa da resolução dos peles-vermelhas, agora já sabemos!... Se, pelo menos provisoriamente, abandonaram
a esperança de nos deitar a mão, é que outras ocupações mais urgentes os atraíam para outro local.
E fazendo dar meia volta ao alazão continuou a monologar:
- Dois fumos significa que existem outros Comanches na colina. Um acontecimento imprevisto produziu-se, exigindo que se juntem imediatamente todos os grupos dispersos
pela serra... Este sinal foi notado por um dos meus perseguidores. Preveniu os camaradas e foi por isso que voltaram para trás tão rapidamente.
Pegou no Colt que descarregara sobre os índios durante a sua fuga, carregou-o de novo e disse:
- Para a frente, meu velho Mezquita!.., Estou cheio de curiosidade para saber qual foi o motivo que fez acender aqueles dois fogos.
Esquecendo os riscos que há pouco acabara de
arrostar, Catamount aventurou-se a seguir a pista que os seus perseguidores tinham deixado. Estes continuavam a cavalgar. Pareciam apressados e não davam a mínima
atenção ao cavaleiro que tinham tentado cercar. Dali a pouco desapareceram atrás de um acidente de terreno.
Nem um instante Catamount imaginou que pudesse tratar-se de um estratagema. Contudo os rochedos eram numerosos de cada lado do caminho e prestavam-se a favorecer
uma emboscada... Só as colunas de fumo que continuavam a elevar-se para o céu absorviam a sua atenção. Em menos de dez minutos atingiu o local em que os adversários
tinham desaparecido. A planície estendia-se para além daquele promontório. Era a que separa a Serra de Santiago do Rio Grande do Norte. A vinte e cinco milhas dali
corria o grande rio que servia de fronteira entre os Estados Unidos e o México.
Sobre o terreno avermelhado desenhava-se nitidamente, ao longe, a fita branca de uma estrada. Era a que habitualmente seguiam as caravanas e as diligências indo
da fronteira para Haymond ou para Sanderson. Curvado sobre o pescoço de Mezquita observava atentamente a estrada que se alongava quase em linha recta e se ia perder
para além das colinas. Um ligeiro estremecimento agitou-o quando surpreendeu a pouca distância um tiroteio acompanhado de ferozes gritos de guerra.
Catamount olhou imediatamente à sua direita, enquanto o alazão, inquieto, erguia as orelhas e raspava nervosamente o solo pedregoso com a ponta das patas...
Imediatamente o homem dos olhos claros divisou uma larga nuvem de pó que escondia um ponto negro de um lado e doutro da estrada. Uma exclamação escapou-lhe e, de
novo, os seus pés apertaram os flancos do alazão que relinchou e desatou numa corrida louca.
- Maldição! - murmurou o agente. - Estão a atacar uma diligência!...
II
A diligência em perigo
Quando já ia numa corrida desvairada, Catamount compreendeu o que acabara de se passar. Fora para atacar a viatura que os Comanches tinham abandonado tão precipitadamente
a caça a que se entregavam.
Avisados pelos vigias que tinham ficado nos sítios altos, os índios tinham retrocedido sem demora. E agora lançavam-se ao ataque, certos de conseguirem uma boa presa
e um grande lucro.
O agente notou que os seus perseguidores não estavam sós... Um segundo grupo de índios chegava a galope do outro lado da estrada que ia de Haymond ao Presídio do
Norte; e um terceiro descia das montanhas. Compunha-se talvez de uns quinze homens e Catamount pensou imediatamente que se devia tratar dos Comanches que tinham
atirado sobre ele há pouco, quando se aventurava nos contrafortes da Serra de Santiago.
A diligência corria a uma enorme velocidade, puxada por cinco cavalos. Dois homens iam sentados em cima, o condutor não deixava de chicotear os animais e outro indivíduo,
armado- com uma carabina, começava a disparar contra os cavaleiros índios que chegavam com os cavalos quase de rastos tentando cercar o veículo.
Ouvia-se gritos de guerra dominando o barulho da galopada... Os Comatiches estavam persuadidos da vitória, os seus olhares ardendo em cubica pousavam nas bagagens
amontoadas no carro, cobertas com um toldo branco de pó. Os cavalos da diligência, puxando por aquele enorme peso da carga, não podiam correr tão depressa como os
dos índios...
- Desgraçados... não vão longe!...
Galopando à rédea solta, o agente estava afastado apenas uma milha do lugar da agressão e compreendeu quanto a situação dos viajantes era precária. Os índios, que
eram mais de cem, iam terminar a sua manobra envolvente. De um momento para o outro o condutor ver-se-ia forçado a parar os cavalos. E os ocupantes seriam obrigados
a sustentar um cerco em forma; a diligência constituía apenas um fraco abrigo para os proteger contra o furor daqueles diabos vermelhos.
O tiroteio continuava. Atingidos pelas balas do homem que ia sentado perto do condutor, três Comanches morderam o pó. Contudo esta vigorosa resposta não conseguiu
tirar a coragem aos outros ladrões que prosseguiram na sua manobra, disparando com raiva... Urros de triunfo partiam dos seus grupos, quando o condutor, atingido
também por uma bala em pleno peito, tombou do seu lugar. A queda foi tão desastrosa, que as rodas do veículo passaram sobre o corpo do desgraçado...
A situação dos ocupantes da viatura tornava-se crítica. As rédeas estavam abandonadas e em vão o outro homem tentou recuperá-las. Vários tiros se ouviram e, atingido
por seu turno, rolou também no solo, sendo pisado pelos cavalos dos Comanches que continuavam na sua louca galopada.
Desta vez a diligência era arrastada pelos seus cinco cavalos entregues a si próprios. Assustados pelos tiros e pelos gritos dos índios, abandonaram a estrada de
Haymond para se lançarem loucamente através da
planície. E os Comanches implacáveis continuavam a persegui-los multiplicando os seus berros de morte.
Catamount continuava a correr direito aos índios. Sem se importar com o número dos salteadores, o agente estava decidido a socorrer os viajantes. Apertando os flancos
de Mezquita aproximava-se com a rapidez de um raio.
Aquela tentativa parecia ser um empreendimento louco. Como é que um homem só podia resolver uma situação tão crítica! Mas Catamount não era daqueles que recuam diante
dos obstáculos por maiores que eles sejam. Ia atirar-se para o meio daquela confusão e já a sua mão firme apertava o Colt.
Os índios estavam tão absorvidos com o cerco à diligência que nem deram pela aproximação do homem. Disparavam contra o carro que, de tão crivado de balas, lembrava
um passador. Pela porta não se via ninguém. com certeza que os viajantes deviam estar encolhidos para se protegerem contra as balas que assobiavam aos seus ouvidos.
Um dos Comanches, executando uma hábil manobra, conseguira agarrar a rédea do primeiro cavalo da parelha. Puxando com toda a força, dispunha-se a diminuir o andamento
do animal; e os outros cavaleiros esforçavam-se por opor aos cinco cavalos uma barreira que os fizesse parar, quando de repente soou uma voz clara que se destacou
no barulho dos tiros:
- Para trás, bicheza!...
Catamount atirava-se contra os assaltantes. Surpreendidos com aquele inesperado ataque de flanco, os índios recuaram. Mezquita caiu sobre eles como um bólido...
Estendendo a mão, o agente descarregou sobre os peles-vermelhas que estavam mais próximos. Quatro cavaleiros caíram e outros dois, mortalmente feridos, agarravam-se
desesperadamente aos seus mustangs (1).
(1) Cavalos selvagens dos pampas da América do Sul.
- Para trás, bicheza!
O segundo Colt de Catamount entrava em acção fazendo novas vítimas. Uma grande confusão apoderou-se imediatamente dos grupos que se comprimiam em volta do carro.
O índio audacioso que conseguira agarrar as rédeas do cavalo jazia no chão com a nuca atravessada por uma bala de Catamount.
Durante alguns instantes a confusão reinou entre os Comanches; vários voltaram para trás, julgando que tinha chegado qualquer importante reforço, outros recuavam...
e o agente aproveitou a confusão que acabava de provocar para atingir a diligência. Mezquita continuava a galopar junto do carro que, sem condutor, de novo corria
loucamente através da planície.
Produzindo um ruído infernal, o pesado veículo dava solavancos medonhos ameaçando voltar-se a todos os instantes. Por várias vezes o homem dos olhos claros tentou
aproximar-se do lugar do cocheiro para se içar até lá e tomar conta das rédeas. Mas a própria instabilidade do veículo impediu-o de realizar o seu projecto.
Os Comanches voltavam pouco a pouco a si, depois do espanto que fizera com que se afastassem da diligência. Notavam que o cavaleiro audacioso que conseguira romper
o seu cerco e chegar até ao carro estava só. Por isso os seus gritos de morte se ergueram ainda com mais ferocidade. Queriam vingar os seus bravos companheiros que
tinham tombado na luta. Dispararam novos tiros na direcção do agente mas, na sua precipitação, nem sequer faziam pontaria. As balas assobiavam e enterravam-se na
madeira do carro.
E eis que bruscamente partiu um grito do interior deste:
- Socorro, meu Deus!... Mãe!... mãezinha!... só... A frase foi interrompida por um novo solavanco,
mas Catamount sentiu a sua energia multiplicar-se... Era uma voz de criança que acabava de se ouvir.
Arrastado pelo galope de Mezquita, não tivera tempo de reparar nos viajantes que corriam um tão terrível perigo.
Miseráveis! Atacar uma criança! Salve-nos, senhor! Suplico-lhe.
Desta vez era uma voz de homem que acabava de lançar aquele grito de angústia. Mas Catamount não se voltou para ver o viajante:
- Coragem! - berrou ele. - Escondam-se, vou tentar salvá-los!...
Tal tentativa era infinitamente perigosa e quase irrealizável. com efeito os Comanches rodeavam a diligência por todos os lados; se ainda se conservavam a distância,
pareciam contudo decididos a continuar a perseguição. Não tinham consciência das terríveis represálias que aquele acto de banditismo fazia cair sobre eles. Se o
agente pudesse observar os viajantes, veria que eram apenas dois: primeiro um homem de cinquenta anos, quando muito. Vestia uma sobrecasaca preta muito amachucada,
bem como um chapéu preto de aba larga. Trazia uma corrente donde pendia uma garra de tigre. Um colar de barba negra rodeava-lhe a cara, transtornada nesse momento
por uma expressão de profunda ansiedade. Por várias vezes tentou gritar, mas os trambolhões do carro atiravam-no para o fundo deste. Estendendo as mãos ao acaso,
agarrava-se às redes das bagagens que a pouco e pouco caíam com os solavancos. Um saco veio bater-lhe em cheio na cara, e o sangue começou imediatamente a correr-lhe
das narinas.
No fundo da carruaigem jazia debaixo dos bancos um corpo inanimado. Era uma rapariguinha de uns dez anos de idade. A pobrezita, vestida com grande simplicidade,
jazia perto de um pequeno embrulho que constituía toda a sua bagagem. A sua fisionomia estava contraída pelo sofrimento. Uma das balas atiradas pelos índios atingira-a
no ombro direito, um fio de sangue corria-lhe sobre o vestido branco com florzinhas azuis.
Tentava em vão lutar contra o sofrimento. Os tiros, os gritos de morte continuavam à volta da diligência e gelavam-na de susto.
Fora ela que gritara há .pouco quando Catamount cavalgava junto da portinhola. Agora já não tinha força para abrir os lábios. Durante intermináveis minutos lutara...
esforçara-se para afastar O horrível pesadelo que para ela era um ataque dos Comanches. Tais emoções eram fortes de mais para aquele ser tão frágil. E, pouco a pouco,
parecia-lhe que a vida a abandonava... os objectos à sua volta tornavam-se indecisos... metida entre o banco e o sobrado, meia escondida debaixo das bagagens, abandonava-se
ao seu destino...
- Estamos perdidos!... é o fim!...
A resignação da rapariguita fazia contraste com a desorientação do homem da garra de tigre. A sua fisionomia rubicunda escorria em suor e estava crispada. Um estremeção
mais violento que os outros arrancou-lhe nova exclamação. Fechou os olhos, esperando a todo o instante ver surgir na portinhola os diabos vermelhos... Mas ninguém
apareceu. A corrida louca prolongou-se acompanhada .pelos sinistros clamores dos índios. Perto do carro galopava um cavalo sem cavaleiro. Era Mezquita! Catamount
conseguira por fim executar o seu perigoso intento... Multiplicando em seguida os esforços para conservar o equilíbrio, abaixou-se para agarrar as rédeas que pendiam
abandonadas.
Estalaram novos tiros. Ao notarem a habilidade do adversário os índios esforçavam-se por atingi-lo. Mas parecia na verdade que um encantamento o protegia... Nenhum
dos projécteis o atingiu. Um foi quebrar o vidro da portinhola e o viajante pôs-se então a gritar e a vociferar...
- Que animal!... resmungou o homem de olhos claros agarrando nas rédeas. E então a perseguição tomou outro carácter. O agente estimulava os cinco cavalos cujo andamento,
que diminuíra um pouco, era agora
novamente num louco galope. Mezquita continuava a seguir o carro sempre acompanhado pela turba mortífera dos Comanches...;
com os dentes cerrados, o homem dos olhos claros dirigia a carruagem para a estrada próxima... Durante três minutos continuou a guiar os cavalos. Os urros de raiva
dos peles-vermelhas redobravam. Alguns instantes mais e os miseráveis conseguiriam fazer parar os cavalos e pôr fim àquela corrida diabólica.
Catamount não tirava os olhos da fita branca da estrada de Haymoint que desejava atingir. Calculando a sua velocidade, incitou novamente os cinco animais. Um solavanco
violento produziu-se e esteve quase a tombar para o fosso; mas a providência protegia-o. O grande carro tornou a endireitar-se e continuou a rodar.
De repente, no próprio momento em que tudo parecia ir acabar e o agente atingira o limite das forças humanas, escapou-lhe um grito feroz... o seu olhar iluminou-se
subitamente. Na frente, a menos de uma milha, na estrada, acabava de notar uma nuvem de pó. Eram cavaleiros que se aproximavam, à rédea solta e desta vez não se
tratava de índios...
- Viva! berrou ele... Estamos salvos!...
Os Comanches também tinham notado a aparição daquela nuvem de pó que aumentava rapidamente. Durante alguns segundos continuaram ainda a galopar e depois, a um sinal
do chefe dispersaram-se através da planície...
Um sorriso de triunfo iluminou a fisionomia de Catamount, manchada de suor e de poeira. As suas mãos de ferro continuavam a apertar as rédeas, mas, sentindo o perigo
afastar-se, diminuiu um pouco o andamento dos cavalos.
- O que se passa? gritou a voz do viajante do interior do carro.
- Simplesmente isto: que nos vêm socorrer!...
- Então estamos salvos?...
- Os peles-vermelhas bateram as asas. Parece-me que idesta vez não nos arrancarão o coiro cabeludo!...
Mezquita continuava a trotar perto do carro e isto bastou para serenar a expressão do dono.
- Deus seja louvado! Salvamo-nos com um mínimo de perdas! - exclamou ele ainda. - Imaginei que tinha chegado o momento de irmos caçar nos bem-aventurados territórios
das caças eternas, como dizem os nossos bons amigos índios!...
O grupo dos cavaleiros aproximava-se e Catamount pôde ver que vestiam os uniformes da cavalaria americana. Tratava-se de um pelotão comandado por um tenente. Em
menos de cinco minutos tinham chegado junto da diligência. No seu lugar, branco de poeira, tendo perdido o chapéu durante aquela correria louca, Catamount fizera
parar os cinco cavalos...
- Pode dizer-se que chegam a tempo! declarou ele dirigindo-se ao oficial... Se os índios nos perseguissem durante mais uma milha seria a última viagem deste carro.
- Nunca supusemos que aqueles demónios vermelhos levariam a audácia até atacar a malaposta dos E. U.!...
- Palavra de honra! Julgo que nenhum escrúpulo os embaraça...
-. Vamos escoltá-los até Haymond! disse o oficial.
- É inútil, tenente. Fará melhor se perseguir esses patifes, para lhes tirar a vontade de passear assim no território do Estado do Texas!
O tenente deu imediatamente ordens aos seus cavaleiros e a maior parte do destacamento rompeu, a galope, na direcção tomada pelos índios.
- Tiveram mortes? perguntou o oficial.
- O condutor e o homem que o acompanhava, respondeu Catamount; quanto aos viajantes ignoro como estão.
Esta resposta espantou o oficial. O agente apressou-se a explicar os factos:
- Corri a socorrer a diligência, meu tenente, quando passava aqui perto.
- E conseguiu saltar para o lugar do cocheiro em pleno galope?
O oficial parecia pasmado com tal feito e fitou Catamount com uma surpresa cheia de admiração.
- Quem é você, então?
Tinha o hábito de recorrer a um nome de empréstimo quando cumpria qualquer missão. Este subterfúgio dera-lhe sempre resultado e até lhe permitira desmascarar os
piores marotos. Eis porque, apesar de estar em presença de um oficial, deu o primeiro nome que lhe passou pela cabeça.
- Mas pouco importa a minha pessoa, acrescentou, pensemos antes nos infelizes que estão dentro da diligência e que acabam de ser bem sacudidos...
Algumas detonações que naquele momento se ouviram ao longe fizeram voltar os dois cavaleiros.
- Parece-me que desta vez os Comanches vão receber uma boa lição! disse o agente sorrindo. Um novo gemido saído do carro impediu os dois homens de continuarem a
observar a perseguição.
Catamount saltou do seu lugar e enquanto o oficial descia do cavalo, abriu a portinhola. Deparou com uma desandem indescritível. No meio de um amontoado de malas,
de sacos e de bagagem de toda a espécie, aparecia uma cabeça, a do viajante; o sangue tinha corrido abundantemente das suas narinas, manchando a camisa branca. Agarrado
à rede o infeliz tentava erguer-se...
- Miseráveis! gemeu ele, julguei que nos iam assassinar!... Mas não levarão isso com eles para o paraíso!... Hei-de-lhes fazer pagar bem caro a imprudência!...
III
Cecília
E antes mesmo que Catamount, o oficial e os soldados que rodeavam a carruagem tivessem tempo de dizer qualquer palavra, o viajante anunciou:
- Sou Hobart Gills... o senador Hobart Gills!... Entre o grupo houve imediatamente uma curiosidade
intensa. O nome de Hobart Gills era conhecido no Texas. Tratava-se de uma das personalidades mais em evidência em todo o Estado. A sua fisionomia era familiar a
muita gente, mas o estado lamentável em que se encontrava tornava-o quase irreconhecível...
- Às suas ordens senhor Gills!... onde está ferido? Aqueles demónios vermelhos acertaram-lhe?
- Nem sei... cães malditos!...
Enquanto o senador continuava a lamentar-se tentavam socorrê-lo; Catamount curvou-se sobre ele e pegando-lhe pelos sovacos, conseguiu puxá-lo para fora do carro.
Hobart Gills dava gemidos profundos enquanto os soldados e o oficial o amparavam levando-o para junto de um rochedo próximo onde se sentou.
- O estojo de farmácia! Depressa!... ordenou o oficial.
Mas Catamount já não se inquietava com o senador; deixando ao tenente e aos soldados o cuidado de o socorrer, entrava no carro todo crivado de balas.
Debaixo do montão das bagagens e caixas caídas, ouvia-se nitidamente um lamento. Lembrou-se do grito lancinante que ouvira. Estava inquieto por saber o que tinha
acontecido aos outros viajantes.
Conseguiu aliviar um pouco o interior do carro. Escapou-lhe uma exclamação quando descobriu uma mãozinha que se estendia para ele enquanto se ouviam grandes soluços.
- Coragem! exclamou ele, vou socorrê-la! Paciência por mais alguns instantes!... E dali a pouco conseguiu libertar a viajante.
- bom Deus! Uma criança... e está ferida! Que selvagens!...
Catamount via agora o corpo da rapariguita que se escondera debaixo do banco. A pobrezinha gemia. Tinha o ombro direito todo coberto de sangue. com mil precauções,
para lhe evitar sofrimento, o homem dos olhos claros passou-lhe O braço por baixo e puxando-a devagarinho para ele, conseguiu levantá-la.
A fisionomia da pequena apareceu então à claridade. Estava pálida do sofrimento e contraída pelo terror que sentia ao lembrar-se do ataque dos índios. Tinha algumas
sardas e uma testa larga emoldurada por uma cabeleira fulva muito arripiada caindo em tranças sobre os ombros. Soluçava perdidamente e Catamount não conseguia consolá-la.
- Estavas sozinha ali dentro? Os teus pais não estão contigo?
A rapariguinha abanou negativamente a cabeça.
- Como te chamas?
- Cecília Clarkson! respondeu com um novo soluço.
- Pois bem, Cecília Clarkson, já nada tens a temer dos homens maus que te atacaram. Os soldados estão aqui para te proteger; vamos tratar de ti e daqui a pouco estarás
curada. Onde te dói?...
- Aqui! declarou simplesmente a garota apontando para o ombro direito. Grandes lágrimas corriam-lhe pelas
faces, por isso o homem não lhe fez mais perguntas. Estava esgotada. Não a deviam fatigar, antes tratá-la e fazer parar a hemorragia. Depois se veria o que havia
a fazer.
Sem se importar com o senador que conversava com os soldados e cujo nariz já não sangrava, começou a tratar de Cecília. Mezquita tinha parado perto dali, por isso
foi procurar nas algibeiras da sela uma caixinha que trazia sempre consigo.
- Escuta, Cecília, não chores!... sou teu amigo e vou-te curar! Mostra-me que já és uma rapariga grande...
Falava com doçura. A pequena estava estendida à sombra de um bloco de rochedos que havia à borda da estrada e fitava-o atentamente. Na verdade o aspecto daquele
homem, não era muito agradável à primeira vista. Há bem quinze dias que não fazia a barba e esta tornava-o irreconhecível. Mas o que chamava a atenção naquela fisionomia
era o brilho dos seus olhos de aço. A voz, habitualmente áspera tornava-se infinitamente meiga e a sua mão passava docemente sobre o ombro ferido.
- Dói-me! disse a criança inquieta...
- Deixa-me tratar-te! Sou teu amigo! Mostra-me que és corajosa.
O tom era convincente e Cecília resignou-se. Devagarinho Catamount afastou o humilde vestido de algodão descobrindo o ombro magoado. Tirou um frasco da caixinha,
lavou a ferida, e depois apalpando as carnes e parando quando a garota fazia uma careta, examinou-a.
- Ora bem, tens sorte, Cecília Clarkson, declarou dando uma palmadinha nas faces da pequena. É um dói-dói que não vale nada! A bala atravessou a carne sem causar
prejuízo grave. De toda esta aventura ficarás apenas com uma pequena cicatriz! E mais tarde sentirás orgulho em a mostrar e contar como escapaste aos peles-vermelhas.
Ao pronunciar estas palavras ia ligando o ferimento. A rapariguita sorriu então pela primeira vez. Sentia um alívio profundo.
O senhor é bom, murmurou, mas não deixa de
não ter uma aparência terrível!...
- É preciso ser terrível para pôr os índios em fuga.
- Como se chama?
- Chamo-me Jajck Doyle.
- Gosto de si, sabe?... Os meus pais vão ficar tão contentes quando me tornarem a ver!...
- Ah! então tem pais...
- Sim, vivem em Haymond! Eu tinha ido passar três meses a casa dos meus avós que são criadores de gado e vivem na fronteira mexicana.
- E viajavas sozinha como uma pessoa grande?
- Não é a primeira vez que isso sucede, mas até aqui os índios nunca tinham atacado a diligência...
- Parece-me que não o farão outra vez... deves ter tido muito medo...
- Olá, homem! Quando acabar de tratar da pequena venha cá.
A voz breve do tenente veio interromper a conversa da rapariga e do seu salvador, Catamount voltou-se.
- O senador Gills quer agradecer-lhe, insistiu o tenente.
A pouca pressa, que mostrou ao dirigir-se para o grupo, mostrou bem que tinha muito mais interesse por Cecília do que por aquela personagem política.
- Os meus cumprimentos! Devo-lhe muito! Foi verdadeiramente admirável!
Hobart Gills estendia a mão direita ao seu salvador, enquanto com a esquerda apertava um lenço contra as narinas. Os dois homens trocaram um rápido aperto de mão.
- Nada tem que me agradecer, senhor senador, respondeu o outro com simplicidade. Ao socorrê-lo a si e àquela pequenita, não fiz mais do que o meu dever;
a minha pena foi de não ter chegado também a tempo de salvar os outros dois.
- Mantenho o que disse! Deu provas de uma coragem excepcional. Olhe que conheço os homens! A sua dedicação não ficará sem recompensa, fique certo disso!
Já Hobart Gills levava a mão à carteira, quando Catamount o fez parar com um gesto:
- Inútil, senador, magoar-me-ia, asseguro-lhe!... Uma expressão de grande espanto desenhou-se na
fisionomia de Gills, O desinteresse que naquela ocorrência manifestava o seu salvador, deixava-o estupefacto. Fitou-o durante uns momentos como se estivesse em presença
de um verdadeiro fenómeno. Catamount tinha um aspecto feroz. A sua cara barbuda, coberta de suor e de pó, uma madeixa de cabelos avermelhados colando-se na testa
e dissimulando uma cicatriz que tinha na fonte, o nariz em bico de águia e sobretudo o olhar penetrante causaram uma profunda impressão no senador, intrigando igualmente
o oficial e os soldados.
- Ao menos gostaria de saber o seu nome, insistiu Hobart Gills embaraçado com a reserva do homem.
Ao pronunciar estas palavras o senador pensava:
- Aqui está um homem às direitas! Contudo a sua atitude, aquela reserva desconcertante, fazem pensar que deve ter alguns pecados na consciência. Tudo nos seus modos
e na sua maneira de vestir mostra que há algum tempo já devia vigiar os arredores da Serra de Santiago.
- Chamo-me Jack Doyle, respondeu Catamount.
- E passeava sozinho nestas passagens perigosas?...
- Imagino que ninguém me tinha proibido o seu acesso...
O tom seco da resposta fez compreender ao senador que era perigoso fazer prolongar a conversa,
- Nunca me esquecerei do seu nome, Jack Doyle! declarou ele. No Texas toda a gente sabe que o senador Gills não é um ingrato!... Em todo o caso, volta connosco para
Haymond?
O homem de olhos claros hesitou durante alguns instantes antes de responder. Tinha bastante vontade de ficar ali e de se afastar, mas viu Cecília que esperava e
o observava com insistência. Não quis deixar a pequena antes de a entregar nas mãos dos pais.
- Sim, irei a Haymond, mas por pouco tempo, respondeu com simplicidade.
Vários tiros que se ouviram para os lados das montanhas fizeram voltar toda a gente.
- Aquilo lá em baixo aquece!... disse o senador.
- Se os meus homens pudessem infligir aos Comanches uma dura lição, esses bandidos não voltariam tão depressa! vou ter com eles. Se o senhor Doyle quisesse guiar
o carro até Haymond, prestar-nos-ia um grande
serviço.
- De boa vontade, respondeu ele, podem contar
comigo!
O oficial e os seus homens afastaram-se a cavalo e só Mezquita ficou .perto do carro.
- Pode subir, senador, exclamou o agente, vou levar a pequena e deitá-la perto de si.
O outro concordou.
- E agora, disse voltando-se para a criança com um sorriso convidativo, temos apenas que nos deixar
levar,
A garota fez uma careta; não parecia apreciar muito a companhia daquele viajante cuja atitude fora tão pouco corajosa durante o ataque. Preocupado em preservar a
sua própria vida, não se preocupara com a sua jovem companheira. O tom doce que agora empregava não iludia Cecília.
- Ela tem muita necessidade de repouso. Deixe-a dormir, senador, disse Catamount.
Pegou nas rédeas, saltou para o banco e envolvendo os cinco cavalos com uma chicotada, tomou o caminho de Haymond, que ainda distava dali umas cinco milhas.
Docilmente, Mezquita trotava junto do carro e o senador, ao examiná-lo, não pôde deixar de gritar para o condutor improvizado:
- Que soberbo animal que você tem, Doyle! Sou conhecedor...
O outro respondeu apenas com um movimento de cabeça.
- Este diabo não é comunicativo, resmungou o senador atirando-se para o fundo do carro.
E a maior parte do trajecto fez-se sem que o agente e o viajante trocassem a menor palavra. Do- seu lugar Catamount divisava as primeiras casas de Haymond, quando
um ruído de cavalos a galopar lhe fez voltar a cabeça. O senador também espreitou curiosamente pela portinhola.
- São os soldados que voltam. Parece terem dado uma lição aos nossos amigos peles-vermelhas...
com efeito o destacamento voltava. Dois dos cavaleiros tinham colocados, atravessados sobre as selas, os cadáveres do condutor e do ajudante; uns trinta mustangs
galopavam atrás, escoltados por três cavaleiros, indicando que o combate tinha sido sério e que os Comanches deviam ter tido bastantes baixas.
- Então, tenente, disse Hobart Gills quando o oficial chegou perto da diligência, deram uma boa lição àqueles cavalheiros?
- Empurrámo-los até ao Rio Grande, que atravessaram numa grande desordem! Não me parece que se atrevam a executar nova incursão por estes tempos mais próximos...
- As minhas felicitações, tenente! Saberei falar de si aos seus superiores.
O oficial sorriu, parecendo ficar muito mais cativado com aqueles cumprimentos do que Catamount. Estavam a entrar em Haymond. Já havia grupos na avenida principal.
com efeito a diligência chegava com uma boa
meia hora de atraso e já se receava que tivesse acontecido qualquer desgraça.
A presença do destacamento de cavaleiros atrás do carro, do pseudo Jack Doyle no lugar do cocheiro, e o estado lamentável da carruagem, deram a conhecer aos -curiosos
que algo de anormal se passara. Interrogaram o agente mas este aumentou a velocidade do carro e foi parar diante da estação, onde umas trezentas pessoas aguardavam.
Todos gritaram ao mesmo tempo. A nova do ataque dos Comanches espalhara-se na cidade com a rapidez de um relâmpago. Queriam pormenores. O destacamento teve que rodear
o carro.
- Afastem-se! gritou o tenente.
Uma dúzia de soldados desmontaram e Catamount pôde então descarregar à vontade os sacos de correspondência que estavam guardados numa caixa debaixo do seu lugar.
Entretanto o senador apeava-se com um ar tão importante como se tivesse sido o herói principal do drama que se desenrolara perto da Serra de Santiago.
Hobart Gills apressou-se a satisfazer os curiosos e fez-lhes uma narrativa colorida do ataque. Evidentemente que aumentou o número dos índios e exaltou a coragem
que ele, Gills, mostrara sem contudo esquecer e louvar o audacioso Jack Doyle, cuja intervenção, no fim de contas, tinha sido decisiva. Enquanto o senador discursava,
Catamount pegou na rapariguinha. Mal saía do carro ouviu exclamar entre a multidão:
- Cecília!
- Minha filha!
A criança ergueu-se subitamente e o seu olhar iluminou-se:
- Mamã!... Paizinho! exclamou.
Dali a dois minutos abraçava os pais, cuja ansiedade se imagina.
A senhora Clarkson, sua mãe, perdia a cabeça ao ver as ligaduras que a filha trazia.
- Tranquilize-se, minha senhora, declarou o agente, a sua filha foi atingida por uma bala no ombro direito! mas o projéctil só lhe atravessou a carne. Daqui a pouco
tempo a ferida estará cicatrizada.
- Foi este senhor que me protegeu contra os demónios vermelhos! disse a criança designando o homem dos olhos claros.
Eric Clarkson, pai de Cecília, pegou na mão de Catamount e apertou-lha com tanta força que o magoou.
- Venha para nossa casa, fazemos empenho em o hospedar. Como se chama?
- Sou Jack Doyle!
- Pois bem, senhor Doyle, contamos consigo para jantar e para dormir! A nossa casa será a sua!
A senhora Clarkson insistiu tanto que o agente aceitou o convite para almoçar. Mas o senador puxava-lhe pela manga:
- Está ali o xerife que quer proceder a um inquérito e o seu depoimento é indispensável.
Cecília parecia desapontada:
- Então não vem connosco, senhor Doyle?
- Não vou ainda, mas prometo logo ir ter consigo.
- Moramos na Avenida, 114.
- Até logo!
Os Clarkson afastaram-se. Hobart Gills queria por força levar o agente para dentro da estação, mas o outro fê-lo parar com um gesto:
- Um minuto-, senador... vou levar o meu cavalo para a cavalariça da estação. E depois estarei à vossa disposição.
O tom não admitia réplicas. Catamount dirigiu-se para as cocheiras.
- Ganhaste bem a tua aveia, Mezquita, murmurou atando o cavalo à mangedoura. Agora descansa.
Cinco minutos depois entrava na sala da estação, que servia ao mesmo tempo de armazém. A multidão
era cada vez maior à volta da diligência. Catamount esquivou-se às perguntas que lhe dirigiam e entrou. O senador e o tenente conversavam com Stevê Morrei, o xerife,
um homenzinho barrigudo, que usava lunetas.
- Aqui está o nosso homem! declarou Gills apontando para o agente.
IV
O Rei do Colt
Catamount aproximou-se. Custava-lhe a dominar o acanhamento que sentia naquele instante. Era a primeira vez que se achava em presença de Steve Morrei, mas receava
ser conhecido. Por felicidade a sua barba curta transformava-lhe tão profundamente a fisionomia, que o xerife, apesar de o examinar atentamente, não suspeitou que
estava em presença do mais hábil auxiliar do major Morley.
-Chama-se Doyle? Aproxime-se...
- Já o disse várias vezes, respondeu friamente Catamount, chamo-me Jack Doyle.
.- Tem consigo os seus papéis? Hobart Gills, que observava o agente, notou no seu olhar um certo embaraço. Por isso apressou-se a intervir:
- Nada de zelos importunos, xerife! Jack Doyle, que eu saiba, não tem culpas no cartório... bem pelo contrário!... Prestou-me um enorme serviço: devo-lhe a vida!...
Eis porque lhe ficaria reconhecido se você lhe poupasse todas essas formalidades desagradáveis.
-. Visto que assim é, senador, evitaremos as habituais formalidades.
- A palavra do senhor Doyle deve bastar-lhe.
Neste momento Gills dirigiu a Catamount um olhar significativo; parecia dizer: "Como vê a minha influência evitou-lhe complicações . Para o futuro, conte comigo".
Catamount agradeceu com um ligeiro movimento de cabeça. A atitude do senador intrigava-o. Nunca estivera na sua presença, mas não ignorava a reputação de Gills,
de quem contavam coisas extraordinárias a respeito da sua falta de escrúpulos.
- Pois bem, visto que o senhor Gills fica por fiador da sua boa-fé e da sua identidade, disse o xerife, conte-me como se deu o ataque.
O homem de olhos claros fê-lo com a maior das simplicidades. Parecia que o que tinha feito tinha sido uma coisa natural e sem importância.
Via-se que o tenente estava bem impressionado com a descrição e modéstia do falso Jack Doyle. Até o próprio Steve Morrei abandonara a atitude desconfiada que manifestara
de começo.
- É um herói, declarou ele no fim do relato. A companhia recompensá-lo-á!...
- Agradeço imenso, mas não reclamo recompensa alguma. Fiz o meu dever e acho-me plenamente satisfeito com o resultado obtido!...
- Podia ter perdido a vida nessa aventura, observou Gills.
- A vida foi sempre pouca coisa para mim, respondeu o homem dos olhos claros com grande calma... Agora já não precisam de mim?
- Está livre! declarou o xerife, não lhe tomo mais tempo.
Gills queria convidá-lo para almoçar, mas o agente já prometera ir a casa dos Clarkson.
O senador teve uma decepção com a recusa.
- Pois bem, seja! respondeu ele, mas não havemos de nos separar assim. Gostava de o conhecer melhor...
e, quem sabe, talvez pudesse falar-lhe de certo negócio susceptível de o interessar.
E acompanhava estas palavras com um olhar significativo. Catamount esteve quase a recusar mas sentiu-se tão intrigado com aquela mímica que declarou:
- Combinado. Tornarei a vê-lo à noite, antes de deixar Haymond.
- Julgava que dormia em casa dos Clarkson.
- Só lá almoçarei.
- Tem assim tanta pressa de partir?
O olhar investigador do senador demorava-se na fisionomia rude do agente, como que a querer desvendar os seus pensamentos secretos.
- Tenho de partir, respondeu Catamount secamente.
- Nessas condições, não insisto. Devo presidir esta tarde, às quatro horas, ao concurso de tiro na alameda de Washington. Vá lá e encontrar-me-á no estrado.
O senador afastou-se e Catamount saiu num passo rápido. Aquele borborinho entontecia-o. Dali a pouco parava no número 114 e batia à porta.
Cecília veio abrir. O pai vinha atrás dela.
- A pequena contou-nos tudo, exclamou o excelente homem. Não sabemos como lhe agradecer! Quando pensamos nos perigos que ela correu...
- Isso são histórias velhas, respondeu Catamount pegando na pequena ao colo e dando-lhe dois beijos nas faces.
Cecília fez uma careta... A barba intonsa do agente picava-a. Apareceu a senhora Clarkson com um grande avental de quadrados:
- O almoço está pronto! O senhor Doyle chegou atrasado.
- Diabo, toda a vida teria remorsos se fizesse com que ele se queimasse, respondeu alegremente o agente sorvendo com prazer o bom cheiro que vinha da cozinha.
A mesa estava posta e a toalha era de uma brancura imaculada. A senhora Clarkson pusera a baixela dos dias solenes para receber o salvador da filha. Era uma boa
mulher gorda e de faces frescas que parecia estar sempre de excelente humor. Fez sentar o pseudo Doyle no lugar de honra, ao lado de Cecília, e depois do marido
se ter instalado trouxe um magnífico prato de tomates recheados acompanhados com um guizado de carneiro.
- Parece-me que vou ter um apetite de leão...
Saboreou os cozinhados da senhora Clarkson enquanto falavam do ataque dos Comanches. Pronunciaram o nome do senador. Então Eric Clarkson deu
um murro na mesa.
-Esse Gills é um pássaro de mau agoiro, senhor Doyle, declarou ele. Se soubéssemos que ele vinha na diligência não teríamos consentido que a nossa filha viajasse
em tal companhia!
E a voz do excelente homem tremia ligeiramente ao dizer isto. O agente disse:
- Diabo! Parece que não tem grande estima pelo senador...
- Como é que hei-de respeitar esse político tarado?... Prendem bandidos que certamente têm menos crimes na consciência!... E olhe que não exagero, continuou o pai
de Cecília, muita gente está persuadida que Gills deve ter sido eleito com a ajuda de meios criminosos. Sabem O que ele vale... Os seus artigos são vis. Nem sequer
tem a coragem de se desembaraçar ele próprio dos seus adversários!... Fá-lo empregando cúmplices!... Assim foram assassinados Emil Kenner, director do jornal Novo
Texas, adversário encarniçado de Gills; Norman Lemblin, que teve a veleidade de se apresentar como candidato contra Gills... tinha todas as probabilidades de vencer
porque era muito estimado no Texas! Como sabe foi encontrado o seu cadáver, uma noite, na rua de Santo António, perto de uma
retrete e o infame jornal de Gills insinuou que tinha maus hábitos e fora vítima de uma conduta escandalosa! Nunca foi possível encontrar o seu assassino. Porquê?
Simplesmente porque Hobart Gills tem na mão grande parte da polícia!
?-Exageras, Eric! objectou a senhora Clarkson... não houve nenhuma prova...
- Não houve prova, na verdade, mas tão certo como Deus existir, repito que o senador Gills é um patife e um assassino!... E tenho a certeza que se a polícia rural
quisesse tratar deste caso, faria descobertas realmente interessantes, porque os seus agentes são rapazes que não se deixam intimidar com facilidade!
Catamount nem sequer esboçou qualquer contracção quando o seu interlocutor fez assim alusão aos audazes cavaleiros do major Morley. Há muito que conhecia todos os
factos que o pai de Cecília acabava de relatar. E, ainda mais, há perto de três anos o seu chefe chamara-lhe a atenção e tinha-lhe pedido para fazer um inquérito
a respeito de um certo António que era protegido de Gills. Sobre esse maroto recaíam suspeitas de ter assassinado Norman Lemblin, mas fora solto por ordem do senador,
que tinha pouca vontade de ver o miserável entrar no caminho das confissões.
- Tome cuidado com Hobart Gills, insistiu Eric Clarkson, é uma serpente venenosa que muitos desejariam esmagar de vez. Os Comanches são menos perigosos, atacam francamente
e sabemos como havemos de lhes responder.
O tom do pai de Cecília tornou-se mais ameno quando veio o café.
- Visto que à noite estará com o senador, quis avisá-lo para estar em guarda. Agora tenho muita vontade de assistir ao concurso de tiro. Enquanto a minha mulher
fica aqui com Cecília, interessá-lo-ia acompanhar-me, senhor Doyle?
Catamount disse que sim. Depois de ter abraçado Cecília, que continuava muito pálida, prometeu fazer-lhe uma visita quando voltasse a Haymond; e saiu acompanhado
de Clarkson.
A cidade apresentava agora um aspecto completamente diferente. Os habitantes deviam ter esquecido o ataque dos Comanches e numerosos grupos se dirigiam para a Praça
onde deviam realizar-se as provas de tiro.
Quando os dois homens chegaram, uma enorme multidão se acumulava nos estrados, e dos lados do rectângulo onde se deviam defrontar os melhores atiradores do Texas.
Milicianos de uniforme organizavam o melhor possível o serviço de ordem. Havia bandeirolas e várias inscrições com a palavras Bem-vindos! Bandeiras estreladas flutuavam
à leve brisa. O Sol queimava, o que parecia não incomodar os amadores de tiro.
No estrado central tinham tomado lugar as notabilidades em destaque do distrito. Catamount, que dificilmente conseguia avançar no meio daquele mar humano, avistou
logo o senador, que estava no lugar de honra. Trazia o peito cheio de condecorações. O belo sexo também estava amplamente representado. Contudo a multidão reunida
na Praça não fazia caso daqueles notáveis e concentrava toda a sua atenção nos principais concorrentes. Os melhores atiradores reuniam-se; a maior parte deles era
gente do Oeste, cavaleiros dos ranchos vestindo o pitoresco fato dos Cow-boys do Far-West. Distinguiam-se sobretudo pela forma e cor dos seus chapéus de abas largas
e todos usavam com orgulho cintos de armas que pareciam arsenais ambulantes.
Um estremecimento percorreu a multidão. Como todos os lugares do estrado estavam ocupados, Catamount e o pai de Cecília foram colocar-se na primeira fila e esperaram
que fosse dado o sinal de começo das provas,
Até que este soou. A filarmónica de Haymond atacou o hino nacional que foi ouvido de pé. Depois apareceu o árbitro, explicando as condições do concurso. Toda a gente
podia nele participar e rivalizar com os melhores atiradores do Texas que se tinham inscrito. A luta devia ser renhida. Catamount conhecia vários dos concorrentes,
mas a sua barba fazia com que o não reconhecessem. Começaram as primeiras provas, provas de principiantes, sem interesse, e o agente aproveitou para observar atentamente
o senador. A sua atitude era majestosa e um sorriso brincava-lhe nos lábios. Decidiu não o procurar enquanto estivesse no estrado. Reparou que por várias vezes Gills
consultava o relógio, manifestando certa impaciência e examinando atentamente a multidão, como quem procura alguém. E bruscamente o político endireitou-se: acabava
de descobrir o pseudo Doyle.
Este voltou a cabeça parecendo não notar a atitude do senador, mas como lhe fizesse sinais com bastante insistência, teve que se resignar a ir para perto dele.
- Até breve, disse ele apertando a mão de Clarkson. -. Não se esqueça das minhas recomendações! Desconfie desse homem.
Este conselho era supérfluo. Catamount não era destes homens que se aventuram com os olhos fechados até ao fundo de uma ratoeira. Sentou-se perto de Gills. A sua
aparição quase passou despercebida. O concurso ia agora nas provas mais difíceis, dali a pouco ouviram-se grandes aplausos. Acabava de aparecer um grande rapagão,
alto e moreno. As ovações aumentaram:
- Viva Ben Kenny! Viva o rei do Colt! Catamount conhecia a reputação daquele homem,
um dos melhores atiradores do Texas. Tinha entrado em várias competições, tanto no Texas como no Arizona, como no Novo México. Avançava em passo lento, agradecendo
com um sorriso e com a mão aos seus admiradores. Dez concorrentes alinharam junto de Ben Kenny.
O campeão bateu-os a todos. Servia-se do revólver com uma notável destreza, extraordinária até para a gente do Oeste. Entre ele e o seu rival mais temível a diferença
foi de 43 pontos!...
O agente não dizia nada, examinava as provas como conhecedor; contudo nos seus lábios havia um sorriso furtivo quando Ben Kenny falhou três vezes.
A ovação nem por isso foi menos ensurdecedora. Dois cow-boys puseram o vencedor aos ombros e dispunham-se a levá-lo em triunfo, quando o senador se ergueu e fez
sinal que queria falar.
Fizeram um relativo silêncio. E antes que os espectadores voltassem a si da surpresa, Gills pegou num porta-voz e declarou:
- Senhoras e Senhores! Tenho a honra de estar sentado ao lado de um dos mais admiráveis cavaleiros que encontrei durante toda a minha vida. Permitam-me que lhes
apresente Jack Doyle, o herói que tão corajosamente defendeu a diligência atacada pelos Comanches esta manhã, o homem a quem devo a vida!...
O agente endireitou-se:
- Peço-lhe, senhor Gills, começou ele, puxando-lhe pela manga. Não quero...
Mas o senador continuava... Então Doyle quis fugir, mas não conseguiu. Todas as pessoas próximas lhe barravam o caminho: - Viva Jack Doyle! Viva o herói da diligência!...
A manifestação foi enorme. Não se tratava de uma dívida de gratidão que o político quisesse pagar publicamente ao seu salvador; mas sentia-se feliz por ter uma ocasião
de aumentar a sua popularidade. Continuava:
- Jack Doyle, que hoje é hóspede de Haymond, quererá com certeza entrar no campeonato. Vi-o abater os Comanches com uma extraordinária destreza.
Calorosas ovações acolheram estas palavras. Só Ben Kenny fez uma careta. Não apreciava muito aquele
concorrente intempestivo. Mas acabou por encolher os ombros. Afinal de contas, que poderia ele recear de Doyle, daquele desconhecido? O herói do dia com certeza
não manejava tão bem o seu revólver como ele próprio. E como as aclamações redobrassem, o rei do Colt avançou e declarou agitando o chapéu:
- Viva... Aceito o desafio! Será uma honra para mim medir-me com o corajoso cavaleiro Jack Doyle!
Um concurso de tiro que acaba em pugilato
Desta vez Catamount compreendeu que não podia esquivar-se. As aclamações continuavam; toda a gente olhava para ele. O senador disse-lhe com ar satisfeito:
- Vê, amigo Doyle, o que é a popularidade?...
- Confesso-lhe que me sentiria muito mais feliz sem esta manifestação, tenho horror à popularidade!
- Você é modesto de mais!... Que quer? tenho empenho em que o seu mérito e bravura sejam conhecidos..
Enquanto arrastava o agente, dando-lhe amigavelmente o braço, ouvia à sua volta gritos de Viva Gills, misturados aos vivas a Jack Doyle. E como o gaio enfeitado
com penas de pavão do bom La Fontaine, o senador não se esquecia de atribuir a si próprio parte do mérito do corajoso cavaleiro. Podia tornar-se de uma incontestável
utilidade durante a próxima campanha
eleitoral.
Dali a pouco Catamount chegou ao recinto ocupado
pelos concorrentes.
- Vivam, meus rapazes! Um aperto de mão, Doyle! Parece-me inútil apresentar-lhe o Rei do Colt. Você já teve ocasião de o admirar.
Ben Kenny impertigava-se orgulhosamente. Deu ao agente um vigoroso aperto de mão. Contudo o seu sorriso
desdenhoso fez compreender a Doyle que ele o considerava um adversário de medíocre importância.
Então, quase instantaneamente uma mudança profunda se operou no agente. A sorte estava lançada. A atitude desdenhosa do campeão aborreceu-o, e prometeu a si próprio
dar-lhe uma severa lição.
Era evidente que se Ben Kenny soubesse que estava em presença do célebre Catamount, com certeza que não se prestaria àquela competição. O homem de olhos claros tinha
fama de ser um atirador de primeira ordem. Mas habituado a transformar-se, estava irreconhecível. Só o brilho do seu olhar de aço podia surpreender e chamar a atenção,
mas afectava a maior calma. Era Jack Doyle e não Catamount! Entre a numerosa assistência havia com certeza muita gente que o conhecia, contudo ninguém o identificou
nem suspeitou que um dos mais bravos defensores da Justiça se disfarçava sob a identidade de Jack Doyle.
- Ele aceita!... Vão poder aplaudi-lo!
O árbitro avançou. O senador voltou para o seu lugar no estrado depois de ter apertado a mão a Doyle, desejando-lhe boa sorte. No seu íntimo Gills não tinha esperança
na vitória, mas esperava tirar qualquer proveito daquela exibição imprevista e sensacional.
- Está pronto? perguntou o árbitro aproximando-se de Catamount.
- Estou.
-. Mostre-me os seus revólveres.
Entregou imediatamente os dois Colt ao seu interlocutor, que os examinou cuidadosamente dando um ligeiro assobio:
- Belas armas!...
E explicou as provas a que o seu dono tinha de se submeter.
- Submeta-me a todas as provas de que há bocado Ben Kenny triunfou, declarou o agente.
O rei do Colt, que estava parado perto, não
reprimiu um sorriso; uma expressão de comiseração espalhou-se-lhe na sua fisionomia, quando o falso Doyle escutava atentamente as explicações que o árbitro lhe dava.
À roda o silêncio era quase completo. Todos os olhares curiosos convergiam para Catamount. Este, com um ar de indiferença, media os passos que o separavam dos alvos
que devia atingir. Estes eram variados. Depois dos inevitáveis cartões, o atirador devia atingir alvos imprevistos, pássaros a voar, diferentes objectos designados
pelos espectadores, etc.
- Pare, não vá mais longe!
O homem de olhos claros estava sobre um risco branco, indiferente à presença daquele povo que há bocado tanto o importunava. As aclamações tinham cessado. Gills
examinava com satisfação o seu "protegido".
Ouviu-se um assobio estridente. Era o sinal de acção. Catamount endireitou-se, muito calmo, com um Colt em cada mão e dali a trinta segundos todos os alvos colocados
tinham sido atingidos em pleno centro!
- Dez!
O árbitro marcava os pontos. Curvando-se sobre os cartões que o atirador acabava de atravessar, não conseguiu dominar a surpresa que sentia com tal virtuosidade.
Ouviam-se de novo aplausos. O Rei do Colt franzira ligeiramente a testa. Notava que não estava em presença de um antagonista trivial. Mas o homem de olhos claros
parecia nada notar. Imóvel, esperava, depois de ter tornado a carregar os dois revólveres.
As provas continuaram. Todas as balas disparadas pelo falso Doyle atingiram o alvo. Tão depressa era um pombo que caía atingido em pleno voo, como a corda de um
laço cortada rente aos dedos da pessoa que o lançava. Ovos colocados sobre um poste rolaram em estilhaços; pedras minúsculas alinhadas no chão, foram sucessivamente
deslocadas com uma virtuosidade prodigiosa. O árbitro, muito atento, estava espantado: nem
uma falta desde o princípio das provas! E à medida que prosseguiam aqueles tiros diabólicos, os espectadores, de boca aberta, perguntavam a si próprios se não estariam
a sonhar. Tinham aplaudido muitos campeões, mas nunca haviam admirado nada semelhante! Catamount parecia um ser sobrenatural, a sua destreza e golpe de vista só
eram igualados pela sua rapidez. À medida que a exibição continuava, a fisionomia de Ben Kenny tornava-se mais sombria. Ainda foi pior quando o árbitro depois de
terminar a competição, levantou a mão direita, designando com insistência o agente sempre imóvel no seu lugar:
- Duzentos pontos! Jack Doyle conseguiu duzentos pontos!...
- Duzentos pontos! Ben Kenny só obteve cento e noventa!...
Não havia dúvida possível, o campeão de Haymond, o célebre Rei do Colt, tinha que se confessar vencido. No momento em que se dispunha a gozar a sua vitória, o inesperado
concorrente que o senador apresentara, roubava-lhe o título com uma habilidade tão prodigiosa que até lhe custava a acreditar naquela realidade...
- Viva Jack Doyle!... Glória ao rei dos atiradores!... A multidão berrava e aclamava freneticamente o
vencedor. Catamount, muito calmo, dispunha-se a sair do recinto. No estrado via Hobart Gills em pé, aplaudindo com todas as suas forças. O político exultava atribuindo
a si próprio parte da vitória; não fora ele que obrigara Doyle a exibir os seus talentos? Mais uma vez renderiam homenagem ao seu golpe de vista... com certeza acariciava
ainda outras esperanças, porque uma expressão de grande satisfação se espalhou pela sua fisionomia.
Dirigia-se ao encontro de Catamount quando um acidente o obrigou a parar. Rompendo bruscamente com a reserva que observava desde que a sua derrota fora proclamada,
Ben Kenny avançava para Catamount.
Os assistentes pensaram primeiro que o Rei do Colt ia dirigir ao seu feliz rival as felicitações que merecia, mas nada disso! com a fisionomia contraída pela cólera,
incapaz de dominar por mais tempo o forte despeito que sentia, Ben Kenny berrou ao agente:
- O árbitro mostrou-se de uma escandalosa condescendência para consigo...
- Estou pronto a recomeçar as provas, se o exigirem, respondeu Catamount sem perder a calma.
Ouvira-se protestos indignados. Ao notarem a intervenção intempestiva do Rei do Colt, os espectadores tomavam o partido do agente. Então o antigo campeão perdeu
a cabeça. Violento e impulsivo levou a mão ao seu Colt, apoderou-se da arma com extraordinária rapidez, e dispunha-se a disparar sobre o agente...
Ouviram-se exclamações. Todos julgaram que Jack Doyle estava perdido. Mas conheciam-no mal... Já há alguns instantes que notava a raiva que se apoderava do seu rival
infeliz e esperava já um ataque daquele género. Antes que Ben Kenny, que apontava a arma em direcção de Catamount, tivesse tido tempo de carregar no gatilho, ouviu-se
um tiro seguido de uma praga medonha. A bala maravilhosamente dirigida, atingia Ben Kenny entre o polegar e o indicador obrigando-o a largar o revólver. Surpreendido
pela dor que foi tão violenta como a que provocaria uma chicotada, o miserável empalideceu.
Levou a mão esquerda à coronha do outro revólver que trazia no cinto:
- Mãos ao alto! Senão desta vez apontarei à testa!...
Era um argumento sem réplica... Ben Kenny compreendeu que o seu inimigo estava decidido a realizar a sua ameaça. Dominado, obedeceu e levantou rapidamente as duas
mãos. Um fio de sangue corria-lhe dos dedos.
Entre os espectadores havia um silêncio de morte. A cena passara-se com tal rapidez que quase duvidavam
dela. Mas depressa se aperceberam que não tinham sonhado! Catamount, sempre imóvel e com um maravilhoso sangue-frio, mantinha o Rei do Colt sob a ameaça do seu revólver.
E dali a pouco a sua voz clara soou:
- Querias brincar comigo, Ben Kenny!... Pois bem, vamos rir!... vou executar diante da respeitável assistência um número que te espantará e que não esquecerás enquanto
viveres!...
Ben Kenny estava lívido e grandes bagas de suor lhe corriam pela cara. O seu olhar não deixava de fitar Catamount, mas lia-lhe nos olhos de aço uma fria resolução...
O árbitro queria intervir, mas o agente não o deixou:
- Ben Kenny fez contra mim uma tentativa de cobarde assassinato!... Ben Kenny merece uma lição!...
E sem esperar mais acrescentou implacàvelmente:
- Para a frente, vamos dançar!...
Catamount recuara alguns passos e pusera-se a atirar na direcção de Ben Kenny... Então receoso que os projécteis que o terrível atirador disparava viessem a atingi-lo,
o campeão pôs-se a executar uma dança de louco. De todos os lados se ouviram gargalhadas...
A fisionomia de Kenny exprimia um grande medo, mas cada um dos seus saltos provocava maior hilaridade. O falso Jack Doyle mostrava-se daquela vez tão bom atirador
como nas provas do concurso. Evitou cuidadosamente atingir o seu rival, mas Ben Kenny teria preferido mil vezes que ele o ferisse! A atitude grotesca que o outro
o obrigava a tomar em presença de milhares de espectadores, era um atentado grotesco contra o seu prestígio. Desaparecera a sua glória de campeão! Aquela vergonha
com certeza o obrigaria a abandonar aquela região onde até ali fora considerado personagem importante.
- Salta à direita, Kenny!... Salta à esquerda!... Dócil e pálido de desespero o miserável teve que
obedecer. Mas quando Catamount descarregou as suas
armas e as colocou nos estojos, Ben Kenny abandonoul a sua atitude de medo e humildade. Esquecendo toda a prudência, querendo unicamente vingar-se da humilhação
infligida em público, correu para o agente, de punhos cerrados.
Começou então um pugilato que ninguém esperava; Catamount atingido em pleno peito pela cabeça do seu adversário, cambaleou; mas depressa passou ao contra-ataque.
Ben Kenny pôde certificar-se que ele era tão hábil pugilista como atirador. Cego pelo furor atacava sem regra, impaciente por dar cabo do adversário, mas de todas
as vezes os seus punhos encontravam apenas o vácuo. O homem de olhos claros sabia furtar-se com extraordinária agilidade...
Os espectadores estavam fora de si; em pé nos seus lugares, assistiam àquele combate inesperado agitando as mãos e encorajando os pugilistas. Todos os votos de vitória
iam para Catamount porque eram unânimes em censurar a atitude pérfida e cobarde de Ben Kenny. O árbitro, depois de ter fingido que queria separar os combatentes,
afastara-se alguns passos para deixar o campo livre. A vontade geral era, com efeito, que deixassem acabar a luta.
Mas agora já não havia a menor dúvida sobre o resultado. Catamount dominava bem o seu adversário. Todos se admiravam que ele deixasse a luta prolongar-se. O homem
de olhos claros parecia com efeito sentir um prazer malicioso vendo o seu inimigo encarniçar-se contra ele, sem sucesso. Até ali limitara-se apenas à defensiva.
Os risos que acolhiam os esforços de Ben fizeram com que abandonasse toda a prudência. com a cara a escorrer suor e a mão ensanguentada voltava continuamente à carga;
mas o agente furtava-se... Decorreram três minutos.
- Miserável cobarde! Recuarás sempre assim? Vociferou Kenny impaciente.
O Rei do Colt não teve tempo para prosseguir nos seus desafios. O braço do agente estendeu-se com uma rapidez fulminante. Atingido nos queixos por um murro magistral,
Ben Kenny vacilou sobre as pernas e deu dois passos para trás... Durante alguns segundos os espectadores viram-no agitar os braços desesperadamente para conservar
o equilíbrio, e depois cair pesadamente de costas, ficando com os braços em cruz, a cara tumefacta e um ligeiro fio de sangue escorrendo-lhe dos cantos da boca.
Uma formidável ovação se seguiu à queda. Os assistentes aplaudiam loucamente mais uma vitória do homem dos olhos claros. Impassível, Catamount esperava a dois passos
do seu adversário vencido, com as mãos nas ancas pronto a repelir qualquer novo ataque que o Rei do Colt pudesse tentar.
Mas não tentou mais reagir. O árbitro em pé perto dele, contava exactamente como se estivesse em qualquer campeonato de boxe:
- Sete!... Oito!... Nove!... Dez!... Fora!...
- Fora! pediu a assembleia em coro.
As ovações ultrapassaram então tudo o que se possa imaginar, os chapéus eram lançados para o recinto da luta e vinham cair aos pés do agente. Imperturbável, Catamount
contentou-se em ir buscar o chapéu que lhe caíra no começo do pugilato; pô-lo na cabeça e preparava-se para sair quando um grupo de admiradores entusiastas o rodeou:
- Peço-lhes que me deixem sair, protestou o agente.
- Viva Jack Doyle!... Viva o vencedor! Catamount compreendeu que não podia lutar contra
aquela maré humana que o rodeava. Não resistiu. Sentiu-se levantado e içado sobre os ombros vigorosos. E à volta era a multidão entusiasta celebrando a sua vitória
de forma ensurdecedora.
- Para o Salão Estrela!... gritaram várias vozes.
- Levem-no para o Salão Estrela!...
- Convém celebrar dignamente o seu triunfo!...
A resistência era inútil. O Sol ofuscava-o, as nuvens de pó sufocavam-no. Sentia-se levado e sacudido por uma onda violenta... As mulheres lançavam-lhe flores...
Nunca mais viu nem o senador nem Eric Clarkson. E enquanto se afastava no meio de ovações triunfais, Ben Kenny levantava-se sozinho. Ninguém pensara em socorrer
o irascível campeão. Ainda estonteado pelo magistral soco que lhe dera o seu feliz adversário, o miserável apalpou o peito dorido. A mão doía-lhe. Pôs-se em pé a
custo, e afastou-se. O chão estava juncado de flores que lhe lembravam a vitória do seu vencedor.
Dificilmente atingiu uma das saídas. Ouvia o clamor dos espectadores. Então um rictus amargo crispou-lhe as feições: Tem cuidado, Jack Doyle, murmurou baixinho.
Há-de chegar um dia em que os nossos caminhos se hão-de cruzar outra vez!... Então nada darei pela tua pele...
Pela última vez o campeão vencido olhou na direcção em que se tinham afastado Catamount e os seus admiradores; depois raivosamente, abandonou o local onde se consumara
a sua derrota esmagadora.
VI
Uma proposta desconcertante
Havia uma enorme multidão no Salão Estrela quando o vencedor lá entrou sempre aos ombros sólidos dos seus admiradores. À sua passagem as aclamações eram delirantes.
A sua dupla vitória parecia ter electrizado os habitantes de Haymond. O nome de Jack Doyle era repetido por todas as bocas. Desconhecido algumas horas antes, o agente
devia pagar um pesado tributo à popularidade.
- Depressa!... whisky!
- E do melhor!...
À roda do balcão havia tanta gente que o caixeiro se mexia com dificuldade. Todos queriam pagar uma bebida ao vencedor. Em vão Catamount se defendeu; os gritos das
pessoas próximas cobriam-lhe a voz. Começavam discussões e já estava a recear que alguns dos seus admiradores entusiastas chegasse a vias de facto, quando uma voz
forte gritou à entrada do salão:
- Para trás! Deixem passar o senador Gills!...
E Catamount viu a silhueta escura no extremo da sala.
- Vivam! disse a voz grossa do senador, Doyle é meu protegido fui eu que o incitei a combater. Honro-me de ser seu amigo. com certeza me permitem dirigir-lhe de
viva voz as minhas felicitações. São todos meus convidados.
Esta declaração provocou uma satisfação geral.
Vamos Joé! Quero whisky do melhor.
Chegara perto do agente e pondo-lhe as duas mãos nos ombros fitou-o nos olhos:
Maravilhoso! Você foi maravilhoso! Nunca vi atirador tão notável. É verdade que durante o ataque daqueles demónios vermelhos mostrara já parte dos seus talentos
contudo nunca julguei que tivesse tal golpe de vista.
- Meu Deus, senhor Gills, nem por isso era muito difícil...
- Não era difícil! É modesto! Eu teria feito bem triste figura se estivesse no seu lugar. Pode gabar-se de ter arrancado Ben Kenny do seu pedestal! Quando penso
que esse indivíduo inspirava um terror tão profundo a toda a gente de Haymond! E você reduziu-o ao estado de espantalho!...
- Apenas me defendi.
Quanto mais os outros mostravam um barulhento entusiasmo, mais ele conservava uma reserva absoluta. No seu íntimo maldizia os acontecimentos imprevistos que acabavam
de se desenrolar. Tudo isto o afastava grandemente da missão que lhe tinha confiado o major Morley. Receava ser reconhecido por alguém.
Durante meia hora vitoriaram o homem dos olhos claros. Este pôde uma vez mais notar a habilidade do senador em aumentar a popularidade. Falava familiarmente com
todos, e parecia interessar-se pelas necessidades de cada um, multiplicando as suas promessas.
A atmosfera tornava-se irrespirável. Uma espécie de nuvem de fumo invadira a sala. Muitos cantavam. Tal agitação começava a indispor extraordinariamente Catamount,
que procurava um pretexto para se esquivar, quando sentiu uma mão pesada no ombro:
- Doyle, queria falar-lhe em particular.
Fora o senador que pronunciara aquelas palavras,
- Quere-me falar em particular? repetiu o agente visivelmente intrigado.
- A sós! insistiu o senador piscando o olho.
As pestanas do falso Jack Doyle franziram-se ligeiramente. A atitude do seu interlocutor espantava-o e enchia-o de inquietação. Sentia pouca simpatia pelo senador
e vinha-lhe à memória a conversa que tivera com Clarkson.
- Não vejo que o possamos fazer no meio desta multidão, murmurou.
- Sou freguês habitual da casa, respondeu o político sorrindo. Tenho sempre um gabinete à minha disposição. Venha comigo e poderemos falar lá, longe dos ouvidos
indiscretos.
E como o homem dos olhos claros parecesse hesitar, insistiu:
- Vai ver, não se há-de arrepender de responder ao meu apelo.
O falso Doyle estava decidido mais do que nunca a tomar cuidado, e pensou que talvez pudesse vir a saber qualquer coisa interessante...
Por vezes durante a sua carreira tão movimentada, simples conversas, encontros imprevistos tinham-no levado a descobrir pistas valiosas. Quem sabe se desta vez não
viria a ter conhecimento de algum pormenor respeitante à nefasta actividade daquele senador pouco escrupuloso?...
- Venha comigo, tenho pressa porque já é tarde. Como alguns dos bebedores mostrassem decepção ao
ver partir Doyle, Hobart Gills declarou:
- Não chorem!... Devolver-vos-ei o vosso campeão. Preciso agora de conversar com ele.
Saíram do salão e tomaram por uma escada que havia à direita. O senador parou diante de uma porta no fundo de um corredor bastante escuro. Fez sinal ao companheiro
para que parasse também, e tirou uma chave da algibeira das calças.
- Como vê estou em minha casa, e ninguém entra neste gabinete durante a minha ausência.
Abriu a porta, entrou primeiro e depois encostou-se à parede para deixar passar Catamount. Este fechou a porta e, não se dando ao trabalho de abrir as portas das
janelas, acendeu a electricidade.
O homem de olhos claros pôde então observar que acabava de entrar numa divisão bastante grande, mobilada com uma secretária cheia de papéis e com três poltronas
de pele. Nas estantes estavam livros atirados. Por todos os lados, nas paredes, cartazes de uma recente campanha eleitoral onde o nome de Hobart Gills aparecia em
letras enormes. Gabavam-lhe os títulos, os méritos e o desinteresse de político.
- O meu quartel-general durante o período das eleições, é aqui, explicou o senador. Esta divisão já tem assistido a certa efervescência. Até nova ordem está calma...
Cheira um pouco a pó...
Ao pronunciar estas palavras Hobart Gills apontava ao seu companheiro uma poltrona que estava em frente da mesa de trabalho, depois ofereceu-lhe charutos:
- Um charuto, Doyle!... São havanos verdadeiros. Catamount deu um assobio significativo:
- Nada lhefalta, senador!... "Aguilas" com anel doirado!
- Saboreie e depois me dirá...
Um sorriso malicioso veio aos lábios grossos do político. O homem de olhos claros dissimulava a impressão desfavorável que lhe causava este início de conversa. Cada
vez antipatizava mais com o senador, mas estava decidido a continuar imperturbável. A insistência que o outro mostrara em o levar até àquela divisão continuava a
intrigá-lo. Foi bem pior ainda quando o senador, depois de lhe ter acendido o charuto, se curvou para ele e lhe perguntou com um sorriso indefinível:
- Agora que estamos sós, trata-se de fazer jogo franco! Você chama-se tanto. Doyle como eu sou Abraão Lincoln!...
O agente estremeceu levemente. O primeiro
pensamento que lhe veio ao espírito foi que o político adivinhara a sua identidade e que sabia que ele pertencia ao corpo do major Morley.
Contudo reagiu depressa e fingindo uma completa ignorância:
- Na verdade, senador, ignoro absolutamente o que quer insinuar!...
- Não insinuo nada!... Sou uma raposa velha, vê você, e é inútil procurar enganar-me.
E enquanto Catamount adoptava uma atitude evasiva Hobart Gills continuava sem tirar os olhos do seu interlocutor:
- Vamos, confesse, você não se chama Jack Doyle, mas sim Sam Win ter!...
- Sam Winter?
Este nome não era desconhecido do agente. Quantas vezes o ouvira pronunciar tanto em El Paso como em Del Rio. Sam Winter era um -perigoso bandido cuja captura há
muito fora posta a preço-. Em vão os xerifes e os polícias rurais tinham organizado expedições para se apoderarem do miserável. Conseguira sempre escapar-se com
uma habilidade e uma manha verdadeiramente prodigiosa!
Já há sete meses que não se ouvia falar dele. Alguns afirmavam que morrera no México, em Durango, numa rixa; outros asseguravam que caíra numa emboscada armada pelos
Yaquis revoltados. Mas ninguém conseguira provas nem de uma nem de outra hipótese. E as únicas probabilidades que havia da morte de Sam Winter era aquela ausência
prolongada num país onde o bandido tanta vez dera que falar.
- Pois bem, como vê adivinhei.
O olhar malicioso do senador fitava com insistência o seu interlocutor. Parecia orgulhoso da sua sagacidade. Quanto a Catamount, apesar de não deixar transparecer
os seus sentimentos, sentia um verdadeiro alívio.
Preferia assumir essa estranha personalidade, a ser
identificado pelo senador. A atitude deste era estranha: tanto as suas funções como a situação que ocupava no estado do Texas, o obrigavam a acusar o facínoro e
a denunciá-lo às autoridades. Porque é que em lugar de o fazer, chamar o bandido de parte, conversando com ele a sós, como se desejasse tornar-se seu cúmplice?
- Confesse que estava longe de esperar por esta... Catamount fez um gesto evasivo e, muito calmo,
lançou para o tecto uma bafurada de fumo azul do seu charuto.
- Confesso-o humildemente, senador. Estava a cem léguas de o saber tão sagaz.
- Vê bem que o tinha adivinhado... Confessa!...
- Nada tenho a confessar.
- Que diz? Não é essa a minha opinião...
- Mas, enfim, como é que chegou a fazer uma dedução tão sensacional?
A conversa prosseguiu entre os dois homens que desempenhavam admiravelmente o seu papel. Desejoso de saber a verdade e de descobrir os projectos misteriosos do político,
Catamount não procurava negar. Tudo na sua atitude encorajava Gilis a acreditar que estava em presença do verdadeiro Sam Winter.
- Tenho bons olhos, continuou o senador. Primeiro sabia que o Winter apesar de ser um grande bandido, não era desprovido de coragem. Quando o vi defender a diligência
na Serra de Santiago, atacando sozinho, disse para comigo: esta proeza só podia ser tentada pelo Sam Winter.
- Exagera. Winter não tem o exclusivo da coragem.
- Adiante, mas lembre-se de que quando chegámos a Haymond também ouve o caso dos papéis!
- Que papéis?
- Os papéis de identidade. Não tente ser mais fino do que eu. Não lhe disse já que podia considerar-me seu amigo? Da minha parte nada tem a recear. Continue. Notei
que quando o xerife lhe pediu os papéis
você ficou embaraçado. Eis porque tratei de intervir imediatamente. Depois tornou-se célebre em Haymond e vi nisso nova prova da sua verdadeira identidade...
- Sabe, senador, que é um verdadeiro psicólogo?!... - Sam Winter é um admirável atirador; só ele podia
vencer Ben Kenny. Não negue! Exijo-lhe agora a maior franqueza.
- Naturalmente se eu falar vai-me entregar imediatamente...
- Não seja louco! Não o trouxe até aqui para lhe fazer a proposta mais interessante que jamais ouviu durante toda a sua vida e para depois o denunciar.
O homem de olhos claros estava contentíssimo com a forma como se lhe revelava aquela identidade. Abandonando a atitude hipócrita que mantinha diante dos seus eleitores,
desmascarava-se em presença do homem que julgava ser o temível bandido.
- Você sempre tem uns pecaditos na consciência... Se o apanhassem, seria para lhe lançarem ao pescoço a corda de linho... Por isso não deve embaraçar-se com escrúpulos.
A vida de um homem para si é pouca coisa. Quantos teriam caído ceifados pelas suas balas...
O agente teve um gesto vago:
- Ver-me-ia embaraçado se os quisesse contar, mesmo que não acrescentasse os Comanches a quem fiz morder o pó quando atacaram a diligência.
- Mas vamos ao que importa, Winter, se estamos em frente um do outro e se eu lhe prometi formalmente que poderia gozar da mais completa das impunidades foi unicamente
porque tenho precisão de um homem que saiba atirar admiravelmente ao revólver. A cena que vi há bocado dá-me a certeza de que não poderia achar melhor atirador do
que você.
- Confunde-me...
- Nada de palavras inúteis!... Ofereço-lhe dois mil dólares por mês. Aceita de se tornar meu instrumento e de me obedecer cegamente?...
- Apre! -bem se vê que o senador ocupa uma posição
lucrativa...
- Seja sério. Detesto brincadeiras quando se trata de coisas de importância primordial.
- Estou a ouvi-lo, senador, e confesso-lhe que aceitarei de boa-vontade as suas condições. Contudo deixe-me perguntar-lhe antes qual será o meu papel. Se se mostra
tão generoso é porque a missão é difícil e perigosa!
Gosa!.... com certeza receia ser vítima de um atentado e necessita de um guarda-corpo para o proteger em todas as circunstâncias?...
- Não é exactamente isso, Winter, precisou Gills. Não digo que não recorra a si no perigo das eleições para me proteger contra um possível atentado. Contudo se desde
já quero assegurar os seus serviços, é para me desembaraçar de um homem cuja presença representa para mim o mais terrível dos perigos!...
- Um homem... Se pudesse dizer-me onde está e como se chama!.
O agente afectava a maior das despreocupações e serenidades. com um gesto significativo fez compreender ao senador que suprimiria o indivíduo em questão com a maior
das facilidades.
- Atenção Winter, é que o tal personagem não é tão inofensivo como julga. Também é um admirável atirador!... Ben Kenny é um pigmeu comparado com o homem que desejo
suprimir! E é necessário ser armado de uma energia enorme para triunfar de tal adversário! Foi preciso ver as suas obras para me decidir a fazer-lhe este oferecimento.
- Entendo, senador... Mas saberei triunfar dos piores obstáculos... E antes de mais nada, diga-me o nome dessa ave rara...
- Chama-se Catamount! respondeu Hobart Gills...
VII
O homem que deve ser batido
O agente era dificilmente impressionável, contudo aquela declaração causou-lhe uma surpresa que facilmente se pode imaginar. Chegou a pensar durante alguns instantes
que o seu interlocutor descobrira a sua verdadeira identidade e aquilo era um estratagema para o obrigar a revelar-se. Mas Gills, sem notar a impressão que causara,
continuou sacudindo a cinza do charuto:
- com certeza que você conhece bem Catamount...
- Refere-se ao célebre agente da polícia rural?
- Sim, é um dos homens mais fortes que a roda do Sol cobre e por isso mesmo um dos mais perigosos, tanto mais que contraiu o mau hábito de meter o nariz nos negócios
dos outros.
Tal animosidade da parte do senador era coisa para surpreender o homem de olhos claros. Se conhecia a má reputação de Gills, nunca estivera na sua presença nem o
major Morley jamais o encarregara de qualquer missão que interessasse directamente o senador. É verdade que existia António, esse aventureiro que a si próprio prometera
vigiar, mas tal indivíduo devia ser apenas um comparsa. Até ali os apoios poderosos de que o político gozava e a alta situação que ocupava, colocavam-no acima de
qualquer acusação.
- Esse homem causou-lhe dificuldades? perguntou o agente com calma.
- Dificuldades? não é precisamente isso; mas podem surgir de um momento para o outro!...
Exprimira-se em voz baixa, como se receasse que as suas palavras fossem ouvidas por ouvidos indiscretos.
- Oiça-me bem, Winter, murmurou curvando-se mais para Catamount. Vou-lhe explicar qual é a nossa situação... Sem mim você não poderia gozar senão de uma segurança
precária! A sua captura seria posta a preço. Se eu não estivesse próximo de si para garantir a sua identidade, estaria agora em maus lençóis...
- Já me disse isso, objectou tranquilamente Catamount.
- Bem sei, mas há coisas que se devem marcar e
até mesmo repetir!
- Não tenho pouca memória, senador, e pelo meu lado posso declarar-lhe que se eu fosse tão timorato como parece supor, ter-me-ia sido fácil manter-me afastado e
não me ocupar com os negócios dos outros!...
"Nessas condições, neste momento o seu crânio com certeza iria pendurado à cintura de qualquer guerreiro
Comanche!...
Hobart Gills sentiu um arrepio desagradável percorrer-lhe a pele. Compreendeu que as suas insinuações não tinham conseguido intimidar o seu interlocutor, por isso
a voz se lhe tornou mais mansa:
- Em resumo, Winter, continuou, necessitamos um do outro! Posso permitir-lhe adquirir definitivamente uma nova identidade! Será efectivamente para toda a gente Jack
Doyle, o campeão do revólver, o vencedor de Ben Kenny... Enterremos o bandido Sam Winter nos desertos de Sonora...
"Tive ocasião de admirar a sua habilidade e maravilhoso sangue-frio... A sua actividade não deve ficar desaproveitada. E posso orientá-la para fins muito
nítidos.
- Se o estou a compreender, senador, o senhor quer
ser a cabeça, enquanto que eu serei a mão!...
- Bravo! compreendeu perfeitamente!... Catamount calou-se durante uns instantes, fixando
os olhos no tecto. O outro observava-o com insistência e lia-se na sua fisionomia uma certa inquietação. com efeito perguntava a si próprio se Winter não iria recusar-se.
Nessas condições a sua situação seria delicada.
Mas estes receios desvaneceram-se como por encanto ao ouvir o companheiro declarar:
- Conclusão, o agente da polícia incomoda-o e conta absolutamente comigo para ficar livre para sempre da sua ameaça.
"Pois bem, aceito, Senador, dentro de oito dias hei-de trazer-lhe Catamount!...
- Assim é que eu gosto de ouvir falar! Você é um homem!...
Mas o outro não lhe deixou acabar a frase:
- Mais devagar, ponho uma condição!
- Então acha pouco dois mil dólares por mês?!...
- Não se trata do preço mas se deseja que cheguemos a um resultado definitivo, convém-me que me ponha um pouco ao corrente da situação. Se recorre à minha ajuda,
eu necessito da sua confiança!...
Gills mordeu os lábios e mostrou uma certa hesitação. Custava-lhe fazer confidências àquele homem que poucas horas antes era ainda um desconhecido; mas compreendeu
a importância dos serviços que lhe ia prestar e decidiu-se.
- Pois bem, seja. vou exigir de si uma jura. É que nada do que lhe vou dizer será repetido- noutro sítio! Guardará segredo desta conversa. E mesmo que alguém afirme
ser meu partidário, deve manter para com essa pessoa a mais prudente das reservas.
Desta vez foi Catamount quem hesitou. Era homem de palavra e mesmo vis-à-vis daquele patife, manteria a sua jura.
- Palavra de honra! declarou por fim. Pode contar com a minha discrição.
Media perfeitamente a gravidade destas palvras e a de obrigar-se a combater sozinho o senador e a sua coorte criminosa. Mas isto não era tarefa para fazer recuar
Catamount.
A providência tinha querido que ele surpreendesse aqueles segredos, por isso aproveitaria a ocasião. O seu instinto dizia-lhe que se iam passar acontecimentos da
mais alta importância.
Gills pareceu ter ficado satisfeito com a resposta que o pseudo Doyle lhe dera. Sentiu nela franqueza e gravidade, e isto afastou as suas últimas suspeitas:
- Visto que promete ser discreto e obedecer-me cegamente, convém que conheça exactamente a situação.
- Primeiro: em que é que Catamount o ameaça?
- Amigo Winter, possuo um serviço de informações da maior importância... estou ao corrente de tudo o que se prepara nos meios da polícia... muitos documentos passam
debaixo dos meus olhos, e mantenho espiões seguros nos meios mais diversos.
- Compreendo, mas Catamount é um agente da polícia rural e sempre tenho ouvido dizer que a polícia rural é incorruptível.
O homem de olhos claros naquele instante sentia um grande receio, de que o político lhe confessasse a traição de algum dos seus camaradas.
Mas o senador declarou-lhe:
- Tive conhecimento de uma informação vinda de Santo António: que O major Morley, chefe da polícia rural de El Paso, vigiava de perto um tal António...,
Catamount afectou a maior das ignorâncias, mas as suas recordações a este respeito eram precisas. Recordava-se até que durante o almoço em casa dos Clarkson este
lhe disse haver suspeitas de ter sido esse António o assassino do jornalista Norman Lemblin, encarniçado
adversário de Gills. Chegara a ser preso mas nunca conseguiram obter a menor informação e foram obrigados a soltá-lo.
Mas o político continuava a falar, por isso o agente interrompeu as reflexões.
- Esse António anda a meu mando, esclareceu, e a sua atitude por vezes tem sido pouco- hábil. Apesar de posto em liberdade por minha intervenção, sei que o chefe
da polícia não ficará por ali. Soube também que espera apenas que Catamount regresse de uma missão na fronteira para o encarregar de esclarecer aquele assunto...
Compreende ?...
- O senhor não quer que Catamount se encarregue de levar a bom termo essa missão!
- Quero que ele desapareça mesmo antes de começar o seu inquérito, porque conheço a reputação desse homem dos diabos! Parece protegido por um malefício... Descobrirá
a pista de António...
- E a pista de António vai ter a outra, mais importante ainda, que é a sua, senador, disse o agente tranquilamente.
- É tal como diz!... Eis porque quero evitar o perigo, eis porque recorri à ajuda enérgica de um homem como você. Vi O seu trabalho e compreendi que poderia suprimir
aquele maldito agente em tempo oportuno!...
Catamount afectava a maior das calmas. Contudo, por maiores que tivessem sido até ali as suas aventuras, era a primeira vez que lhe acontecia receber ordem de um
patife para que se suprimisse a si próprio! Realmente a situação tinha o seu sabor... Por felicidade o homem de olhos claros tinha grandes qualidades para o jogo.
Sabia aproveitar todas as facilidades de uma posição tão desconcertante. Daquele duelo travado de Catamount contra Catamount, resultaria o senador ser desmascarado,
e confessar-se malfeitor muito mais perigoso ainda por ocupar situações de destaque; e ainda
mais a destruição da quadrilha que trabalhava sob as suas ordens. Deste bando o agente apenas conhecia um membro: o célebre António.
As poucas informações que Gills lhe acabava de dar bastavam para edificar Catamount e para rasgar o véu de mistério que escondia ainda vários casos bastante escuros,
particularmente a morte de Emil Kenner, director do "Novo Texas", e a de Norman Lemblin, o adversário mais encarniçado do político, cup assassínio fora praticado
a tempo de lhe permitir o triunfo nas eleições para senador.
A perturbação que então se produzira nas fileiras dos partidários de Lemblin e a campanha bem organizada por Gills, tinham-lhe permitido conservar o lugar de senador.
- O negócio será rapidamente levado a cabo, assegurou o falso Doyle. Catamount não me faz medo!...
- Ora ainda bem que você não é como António! Começava a tremer mal o nome de Catamount era pronunciado, eis porque não podia de forma alguma confiar-lhe a tarefa
de o suprimir.
- Então António conhecia Catamount?
- Conhecia a sua reputação de atirador e de terrível brigão, e isso bastava-lhe. Durante os seus interrogatórios em El Paso nunca foi posto em presença de Catamount.
E felicito-me por isso: o diabo do agente era capaz de desconfiar de alguma coisa e com certeza arranjaria forma de o fazer falar!
O homem de olhos claros sentia uma satisfação profunda. O facto de António nunca ter visto Catamount simplificava bastante as coisas. Não se arriscaria a ser reconhecido.
- Actualmente onde é que estará Catamount? perguntou ele.
Hobart Gills encolheu os ombros:
- Só Deus o sabe!...
- Texas é muito vasto e eu perderia um tempo precioso a procurá-lo.
- Catamount com certeza há-de voltar para El Paso, pois que é lá o quartel-general do major Morley. A não ser que se produzam complicações e que a revolta dos Comanches
retenha o nosso homem nas margens do Rio-Grande.
- Então é para El Paso que eu devo ir?
- Sim. De resto tenho lá agentes que poderão dar-lhe as informações necessárias, visto que estão constantemente de vigia.
- Muito bem! As minhas felicitações, senador. Vejo que não se fiou na sorte...
O outro bufou cheio de orgulho:
- Como vê, caro Winter, parece que somos feitos para nos entendermos. Nunca será demais fazer-lhe notar as vantagens que poderá tirar do facto de me obedecer cegamente!...
E como Doyle respondesse apenas com uma ligeira tossidela, continuou:
- Ora reflita bem! Que era você antes de chegar à minha presença? Um bandido cuja captura estava posta a preço, um homem que de um dia para o outro se arriscava
a que lhe atassem em volta do pescoço certo nó corredio...
-. Desculpe, mas... objectou o falso Doyle sorrindo, parece-me que até aqui tenho conseguido despistar esses senhores!...
Evidentemente, amigo Winter, com certeza você conhece o provérbio: "Tanta vez a bilha vai à fonte, até que se parte!..." As autoridades estavam alerta e no momento
em que você se arriscasse para além da fronteira mexicana, podia esperar graves complicações. Tive debaixo dos meus olhos certa ordem que me provou que as autoridades
não se descuidavam a seu respeito! Eram oferecidos cinco mil dólares a quem o entregasse morto ou vivo.
Uma certa tristeza perpassou nos olhos do falso Doyle que representava às mil maravilhas o seu papel. O senador continuou num tom adocicado:
- Mas Hobart Gills estava ali para o abrigar com a sua alta protecção, amigo Winter!... Reconheceu-o imediatamente, quando você hesitava ao ouvir o xerife pedir-lhe
os papéis. Compreendeu que Jack Doyle existia apenas na sua imaginação e tirou-o de apuros porque sabia o que podia vir a lucrar com isso... E agora, em lugar de
ser um miserável perseguido, você estará a salvo sob a minha poderosa protecção. Prometi dar-lhe dois mil dólares por mês. Aqui estão eles; com certeza lhe estarão
a fazer falta para se reconfortar um pouco e para comprar um fato que cheire menos a bandido do que esse que traz vestido.
Tirou a carteira e estendeu as notas em cima da mesa. O outro não dizia palavra. Fumava tranquilamente.
- Dois mil dólares por mês é uma bonita soma! Mas você ainda pode ganhar mais... De tempos a tempos aparecerão excelentes pechinchas que não deixaremos perder...
A situação que disfruto permite-me ser avisado a .tempo de coisas extraordinariamente interessantes!... E assim., neste momento, prepara-se certo negócio que se
tiver sucesso encherá as minhas algibeiras e as daqueles que me derem uma ajuda eficaz!...
Os olhos do agente encheram-se de brilho...
- Isto deve interessá-lo, amigo Winter! disse o outro sorrindo maliciosamente. com certeza que mede todas as vantagens que pode vir a ter... Pode gabar-se de ter
sorte... e quanto a mim confesso que estou encantado. O acaso sabe fazer as coisas...
-. Esteja descansado, creio que ficará satisfeito com os meus serviços.
- Então, combinado?
- Combinado.
O senador estendeu a mão ao seu interlocutor sem
hesitação alguma. Catamount respondeu a este gesto. Custava-lhe a apertar a mão de um indivíduo que sabia criminoso, mas estava firmemente resolvido a aproveitar
a ocasião excepcional que se lhe oferecia. Tomaria ele próprio a iniciativa das operações. Sabia que o major Morley habitualmente lhe confiava a iniciativa dos inquéritos.
Ao contrário dos seus camaradas gozava de uma certa independência, e esta liberdade de movimentos permitia-lhe triunfar muitas vezes em circunstâncias em que os
seus camaradas teriam desistido. Sentia mais do que nunca estar persuadido que possuía mais probabilidades que um grupo completo de cavaleiros escolhidos.
- vou partir imediatamente para El Paso.
- Está bem, mas antes de partir quero pedir-lhe que me faça um outro serviço.
- Escuto-o, senador.
-Sabe onde é Joshua Bluff?
- Joshua Bluff é uma falésia bastante alta que há a meio caminho entre Haymond e a fronteira. Chamam-lhe assim porque os seus declives escarpados são semeados de
cactus que têm a forma de árvores de Josué.
- Sim, senhor! Vejo que conhece admiravelmente a região!
- Que quer que eu faça em Joshua Bluff?
- Quero simplesmente que leve António até lá, porque tem uma entrevista nesse local.
- António? Será o homem de quem falou à bocado?
- Precisamente. Deve estar a chegar, porque já são seis horas.
Olhou para o relógio que trazia à roda do pulso. Catamount ia levantar-se para sair, mas exclamou:
- Não, quero que fique, Winter! É absolutamente necessário que trave conhecimento com António. Terão que trabalhar juntos muitas vezes.
O homem dos olhos claros sentou-se confortàvelmente na poltrona que ocupava desde o começo da
conversa. Pegou nas notas que o outro colocara sobre a mesa, contou-as e guardou-as no cinto de couro.
- Então, estamos entendidos, exclamou o político, estamos de acordo.
- Pode contar comigo, se não se der nada de anormal; eu próprio lhe trarei Gatamount morto ou vivo.
- Assim é que gosto de ouvir falar!... Mas prefiro que me traga o seu cadáver!... Os homens daquele calibre têm uma vida extraordinária.
- Deixe-o por minha conta!...
A segurança que o homem dos olhos claros mostrava ao falar do caso, tranquilizou completamente o senador. Já não duvidava que os seus projectos criminosos se realizassem.
Uma vez que Catamount desaparecesse, poderia abordar sem hesitações a empresa a que aludira.
O falso Winter, intrigado, ia arriscar uma pergunta a este respeito, quando se ouviu bater discretamente à porta do refúgio:
- Entre! respondeu imediatamente Hobart Gills.
VIII
António
A porta abriu-se. Apareceu um homem. Estava vestido da mesma maneira que a gente do Oeste, saiões de couro, chapéu de aba larga, camisa de flanela de quadrados -brancos
e verdes, lenço de cores berrantes, mas tanto a sua fisionomia como os seus modos traíam uma origem mexicana. De altura média, tom de pele esverdeado, olhos em amêndoa
extremamente móveis, deu uns passos depois de ter fechado a porta atrás de si. Parou perto da secretária, atrás da qual o esperava Hobant Gills. Escapou-lhe uima
exclamação:
- Viva, António! Que tens?
- Julgava que estava sozinho, senhor, respondeu apontando para Catainount que continuava imóvel na sua poltrona com o charuto nos lábios.
E já o mexicano se preparava para sair, quando o senador o fez parar com um gesto:
- Fica, António, quero apresentar-te o Winter! -O Winter!...
António parara interdito, sempre de chapéu na cabeça. Uma expressão de desconfiança lia-se-lhe na fisionomia, e o seu olhar fixou com insistência Catamount. Este
aguentou com firmeza o exame do mexicano e pelo seu lado também o observou com calma. O bigodinho preto que António usava, o negro de azeviche dos seus
cabelos, e sobretudo a expressão inquieta da sua fisionomia, chamaram-lhe a atenção.
- Quem é Winter, senhor? Insistiu voltando-se para Gills que esperava imóvel.
- Não há dúvida, hás-de ser sempre o maior dos imbecis! Então não conheces Sam Winter? nunca ouviste falar dele?
-.Quererá referir-se ao condenado?
Os olhos do mexicano abriram-se cheios de espanto; o receio que manifestara desde o princípio não parecia ter-se dissipado. Havia nele a desconfiança instintiva
que um mexicano sente sempre pelo homem de outra raça; e depois esperava tão pouco encontrar um estranho no escritório do senador...
- A partir de agora, Sam Winter é dos nossos, explicou Gills que compreendia o mal-estar do seu sócio. Ficará encarregado de missões difíceis, das que nunca quiseste
desempenhar-te com a rapidez necessária!...
Cavou-se uma ruga na fronte de António. A lembrança do seu insucesso feria-lhe o amor próprio. Custava-lhe que o chefe falasse assim diante de um estranho. O seu
punho crispou-se mas como o olhar de aço do agente continuasse fixo nele, esforçou-se por reagir.
- Mas até aqui não conhecíamos este homem, senhor, arriscou ele... Creio que nunca o vi.
- Sem dúvida, mas sabes bem que tenho dedo para conhecer os homens. Há pouco tive ocasião de avaliar o valor de Winter... Se me vês vivo nesta sala é a ele que o
devo!
O mexicano, que acabara de chegar a Haymond, ignorava todos os acontecimentos que se tinham desenrolado, primeiro na serra de Santiago, depois no recinto do campeonato.
Escutava atentamente, mas a sua atitude continuava reservada. Examinava a máscara fria do agente.
Este, impassível, continuava a esperar, receando ainda que a sua manha fosse descoberta. Mas António
nem sequer suspeitou que estivesse em presença do corajoso e célebre auxiliar do major Morley!
- Então, aperta a mão a Winter! disse-lhe Gills. O mexicano dominou a sua repugnância e aproximou-se do falso Doyle; este sem a menor pressa pegou na mão mole e
flácida de António.
- Winter deve ir desempenhar uma missão a El Paso, continuou o senador. Mas antes acompanhar-te-á até Joshua Bluff. Não é aí que ficaste de te encontrar com os outros?
- Sim, senhor.
António não deixara ainda de estar inquieto. Admirava-se que o seu chefe recorresse aos serviços daquele estranho, cujas proezas ouvira contar, mas diante de quem
se mantinha cheio de cautelas.
Felizmente para Catamount, Gills era uma pessoa segura de si. Traçara o seu plano felicitando-se a si próprio da sua sagacidade.
- Tenho razões para pensar que as informações que te darão lá em baixo, António, serão de uma importância decisiva. Espero a todo o momento a mensagem do Presídio
do Norte! Géo Malterr e Slim Burgess estão a postos!... Os lingotes devem partir breve e saberemos exactamente o tempo oportuno, em que comboio e em que vagão eles
serão despachados. Contam recebê-los dentro em breve na sucursal do Banco Federal de Forte Worth!
Catamount ouvira esta declaração em silêncio. E contudo a impressão que sentia era extraordinária. As palavras que Gills acabara de pronunciar permitiam que avaliasse
a importância do caso que preparavam. Não havia dúvida que o senador, de cumplicidade com outros miseráveis, se dispunha a organizar nova perfídia. Gills acrescentava:
- As informações que me deram nas altas esferas são precisas. O governo mexicano contraiu certas dívidas vis-à-vis da Tesouraria Americana, em seguida à
recente revolta dos Yaques. Fez compras de armas cujo prazo de pagamento termina no fim do mês. E é em lingotes de ouro que o pagamento deve efectuar-se por intermédio
da Agência do Banco Federal de Forte Worth.
Contava assim as informações de importância primordial que lhe tinha sido dado colher nos meios políticos e financeiros do Texas. A alta situação que ocupava permitia-lhe
estar ao corrente das transacções secretas, só conhecidas nas altas esferas e na Casa Branca. Fora directamente interessado nesse negócio de armas na sua qualidade
de membro da comissão Senatorial das Finanças.
E sem a menor hesitação divulgava aos dois acólitos informações que deviam ser segredos do Estado!...
Catamount conservava com dificuldade o sangue-frio. com efeito podia agora medir toda a infâmia do político. Mas este, até ali, tinha sido hábil em manobrar nos
bastidores. Enquanto a desconfiança recaía apenas sobre cúmplices que mais tarde ou mais cedo ele cobria com a sua protecção, ia atingindo um a um os fins criminosos
que se propusera.
- Não tem mais instruções para me dar, senhor? perguntou o mexicano.
- Não, apenas te quero dizer que pedi a Winter para te acompanhar até Joshua Bluff. Conhece a estrada e levar-te-á pelo caminho mais curto. Estas palavras não encantaram
António e a sua hesitação impacientou o senador.
- Que diabo! exclamou ele dando um violento murro na mesa. Sabes ir até lá com os olhos fechados?
- Não, senhor.
- Não foste tu próprio que me pediste para te arranjar um guia?
- É verdade, senhor.
- Então que significam estas esquisitices? Sabes bem que não gosto que discutam as minhas ordens!
Compreendo, receias ser destronado por Winter! Tens medo dele, meu idiota! Podes estar descansado, daqui em diante Winter pertence-nos. Desempenhará as mais delicadas
missões muito melhor do que tu, que tens sempre o eterno receio das complicações!... E voltando-se para Catamount:
- Quer que ponha um cavalo à sua disposição ?
- É inútil, senador, deixei o meu alazão na cavalariça da estação.
- É verdade, já me esquecia, você tem um animal magnífico que se comportou de forma maravilhosa durante o ataque à diligência. Aqueles bravos índios! Nem você pode
imaginar como a sua intervenção veio a propósito...
Estas palavras acharam o agente um pouco interdito.
- Que quer dizer, senador? perguntou ele. O outro piscou os olhos com malícia:
- Tenha paciência Winter e a sua curiosidade ficará amplamente satisfeita, asseguro-lhe. Neste momento só posso dizer-lhe que a revolta dos Comanches não está no
fim; vão dar que fazer às autoridades do Texas! Tanto melhor para nós. Teremos a vantagem apreciável de pescar em águas turvas.
A organização do senador parecia ter uma importância excepcional. A alusão que acabava de fazer à recente revolta dos Comanches, interessava imenso Catamount. A
missão empreendida na região da Fronteira tinha sobretudo por fim descobrir qual seria a causa dessa revolta. Agora .perguntava a si próprio como é que a insurreição
era favorável aos projectos secretos do político.
- Lamento você ter de ir antes para El Paso, Winter, mas importa pôr-nos a coberto de um ataque de flanco! Catamount deve ser suprimido antes da nossa ofensiva se
desencadear. É o fim essencial que há a atingir, e testemunho-lhe uma confiança excepcional
encarregando-o de suprimir pura e simplesmente esse maldito agente.
- Não se há-de arrepender disso, a missão será cumprida.
- Louvado seja o Altíssimo! Neste momento não queria estar na pele do citado Catamount!...
E Gills esfregou alegremente as mãos. Tudo agora lhe parecia fácil.
- E já falamos bastante, declarou levantando-se. Toca a trabalhar! Vão-me acompanhar até à sala que há atrás do salão, onde lhes mandarei servir um jantar. Depois
de anoitecer, partirão os dois para Joshua Bluff.
-Devo esperar lá por António?
- É inútil. Pode partir imediatamente para El Paso.
- E como é que hei-de informá-lo do resultado da minha missão?
- Venha você próprio dar-me conta disso! Deve-se evitar o mais possível recorrer ao telégrafo. Há sempre que contar com os indiscretos. Se soubesse com que ódios
e com que invejas eu luto actualmente... Hoje inúmeros adversários trabalham para causar a minha perda. Se eles desconfiassem da manobra que preparamos...
O (político fez uma mímica significativa... com as costas da mão simulou uma enérgica vassourada, e depois deu uma gargalhada:
- Mas Hobart Gills é uma raposa velha, Winter!... Mais uma vez há-de vencê-los todos e se se lembrassem de recomeçar a campanha das calúnias, não tardariam a ter
sorte igual à de Emil Kenner a respeito do qual António lhe poderia contar coisas interessantes.
Esta alusão não foi agradável ao mexicano, que fez uma careta; mas o senador continuava de excelente humor:
- Ora, ora, exclamou ele dando palmadinhas amigáveis nos ombros dos seus interlocutores. Quando a inevitável desconfiança do começo de relações se dissipar, estou
persuadido que vocês serão bons camaradas.
Dirigiram-se para a porta. Atravessaram o corredor e esperaram que Gills fechasse cuidadosamente à chave o seu quartel-general.
Continuavam a tocar e a beber no Salão Estrela. A música de uma orquestra deu-lhes a saber que se dançava.
- Sigam-me, rapazes!
Giíls parecia conhecer maravilhosamente aquela casa; meteu por um corredor adjacente e depois, marchando à frente dos companheiros, afastou um reposteiro, descobrindo
uma porta que abriu. E os três homens tornaram a aparecer na sala de trás. Esta divisão estava transformada em restaurante. Certo número de clientes já estavam sentados,
servidos por um criado de casaco branco.
O silêncio quase completo que havia naquela sala, fazia contraste com o tumulto que reinava no salão. Sentaram-se a uma mesa, Catamount sempre calmo e António visivelmente
preocupado.
- Bill!... traz a lista! Tenho dois convidados e quero que sejam admiravelmente tratados.
Os cumprimentos que o criado fez e os bons-dias solícitos que lhe dirigiam certos clientes aos quais o político respondia com um gestozinho protector, elucidaram
Catamount a respeito da autoridade que ele tinha naquele estabelecimento.
O agente notou também outro pormenor: uns dez clientes continuaram obstinadamente colados às suas cadeiras. Nas suas fisionomias havia uma expressão de profundo
desprezo. Mais uma vez o homem de olhos claros recordou as palavras de Clarkson; Hobart Gills não tinha só amigos em Haymond!
O criado serviu e os três homens iniciaram o ataque ao jantar. Catamount tinha um apetite magnífico; e ainda para mais sabia que se preparavam acontecimentos importantes.
À medida que a refeição se
prolongava os clientes chegavam, cada vez mais numerosos. A cara iluminada, radiante, do senador procurava dissimular a sua profunda satisfação. Tornava-se mais
comunicativo.
-. Ora diga lá, murmurou curvando-se para o agente, se eu me pusesse de repente a gritar nesta sala: Atenção! Sam Win ter está aqui!..." não acha que isso produziria
o efeito de uma bomba?...
- com certeza, respondeu Catamount com muita calma, mas sei muito bem que o não fará!
E pensava para consigo que a estupefacção do político seria ainda maior se soubesse que jantava com o próprio Catamount, cuja morte já decretara!
Esta situação não deixava de ser interessante e António parecia muito mais sagaz que o patrão: De vez em quando dissimuladamente lançava olhares furtivos para o
novo camarada. A sua convivência não lhe agradava, e só o olhar imperioso do senador conseguiu que o mexicano se tornasse mais afável.
Era noite fechada quando Gills e os companheiros saíram do Salão Estrela. Quando atravessaram a sala, o agente teve de novo que suportar os testemunhos de admiração
do grande número de assistentes que o aclamavam recordando a sua vitória. Teve dificuldade em chegar à saída.
Mal se achou cá fora, o homem de olhos claros lamentou não poder dizer adeus aos Clarkson e saber se Cecília estava melhor. -Mas compreendeu que não devia demorar-se
mais tempo naquela terra. Tinha pressa de saber qual era a entrevista de Joshua Bluff.
- vou buscar o meu cavalo e volto, disse ele aos dois companheiros.
E afastou-se em direcção à estação. António, aproveitando a escuridão, voltou-se para o senador:
- Tome cuidado com este homem, senhor, disse ele... É perigoso!...
- É -precisamente por isso que eu decidi aproveitar os seus serviços, respondeu o político encolhendo os ombros. Não necessito de um medricas para me desembaraçar
de Catamount e de outros parecidos com ele...
E como o mexicano se dispunha a apresentar novos argumentos, fê-lo calar com um gesto:
- Fazes mal em .protestar, rapaz, as tuas últimas proezas não foram lá muito brilhantes!... Se não fosse a minha intervenção a teu favor, estarias agora jazendo
na palha húmida de um cárcere. Pouco faltou para que adivinhassem que Lemblin tinha sido atacado...
- Silêncio, senhor, podem ouvir!...
- Bem vês... mais vale confiar a outro as missões perigosas. Tens sempre medo das complicações...
O mexicano não insistiu, esperou pacientemente, com o senador, que o pseudo Winter voltasse da cavalariça. Dali a pouco viram-no surgir com o cavalo pela arreata.
- Então, estão prontos? perguntou Gills.
- Eu estou mais que pronto. Só espero pelo amigo António.
- Então, até à vista e boa sorte!
- Conte comigo, torno a repetir-lhe que lhe trarei Catamount!
- Schiu! não fale tão alto! António tem sempre medo dos ouvidos indiscretos.
O agente e o senador trocaram um rápido aperto de mão. António montara já no seu cavalo. Catamount pôs o pé no estribo e dando um estalinho com a língua fez com
que Mezquita partisse. O alazão- relinchou alegremente pois já estava farto da inacção a que o tinham obrigado.
António seguiu imediatamente o companheiro. Continuava a não parecer muito entusiasmado com a perspectiva daquele passeio até Joshua Bluff em companhia de um estranho.
- Adeus! - repetiu Gills, imóvel.
Pela última vez viu o falso Doyle agitar a mão na sua direcção e depois os dois cavaleiros apagarem-se nas trevas. Voltou para o Salão Estrela. A sua fisionomia
tinha um ar de satisfação. Esfregou as mãos:
- Muito bem!... parece-me que acabo de fazer um bom trabalho!...
IX
A entrevista
Catamount e António cavalgaram em bom andamento e dali a pouco ultrapassaram as últimas casas de Haymond. Depois de algumas quintas, era a solidão hostil e feroz.
A planície estendia-se ao luar, quase a perder de vista, interrompida por vezes por pequenas eminências. Ao longe uma leve bruma dissimulava a barreira da Serra
de Santiago.
O mexicano parecia de carácter pouco comunicativo e como Catamount também não era muito pródigo em palavras, cavalgaram durante muito tempo sem falar. O agente ia
contente, podia assim deixar vagabundear à vontade os seus pensamentos e analisar uma situação que na véspera não tinha podido prever quando se aventurava nos territórios
da fronteira.
Quantos acontecimentos se tinham desenrolado naquelas últimas vinte e quatro horas! com uma desconcertante ironia do destino, os factos sucediam-se ditando ao homem
dos olhos claros um plano definido. Uma vez mais ia travar luta sozinho!... Podia na verdade prevenir imediatamente o major Morley, mas apesar da criminosa responsabilidade
do adversário que desejava bater, apesar dos meios poderosos de que Gills dispunha, o agente queria ser fiel à sua palavra. Palavra dada a um malandro, a um patife,
é verdade, mas não
importava: o homem dos olhos claros estava convencido de que podia vencer sem trair o segredo que o criminoso lhe comunicara. Não diria nada a ninguém, mas ele próprio
tomaria todas as precauções susceptíveis de prevenir as manobras nefastas do patife e dar-lhe um golpe decisivo.
O senador falara com o falso Winter sobre os diferentes aspectos da situação, mas nada combinara a respeito da misteriosa entrevista de António em Joshua Bluff,
que afinal parecia ter uma importância considerável.
O senador declarara preferir que não lhe mandassem mensagens, mas o agente pensava agora que com certeza seria obrigado a utilizar este meio. Amadurecia o seu plano
enquanto o mexicano de vez em quando lhe deitava certos olhares; custasse o que custasse prometia a si próprio ficar a saber qual era o encontro preparado pelo mexicano
e pelo seu chefe.
- Olá, rapaz!... Perdeste a língua?
Depois de uma meia hora de cavalgada o agente decidiu-se a entabular conversa com o companheiro. Este endireitou-se na sela e murmurou umas palavras ininteligíveis.
- Ainda teremos que andar mais de duas horas até chegar a Joshua Bluff, insistiu o homem de olhos claros sem perder a calma. Façamos votos para que daqui até lá
não tenhamos que nos entender com os nossos amigos Comanches.
-. Oxalá assim seja, senhor! respondeu António.
- É que este terreno é extraordinariamente propício às emboscadas e não me admiraria se esses senhores surgissem de um momento para o outro. Cuidado com os nossos
crânios, rapaz!...
Mas tudo parecia tranquilo nos arredores; só por vezes, dominando o ruído das patas dos cavalos, se ouviam latidos ao longe. Os lobos andavam esfomeados. Por várias
vezes Catamoont notou que o seu vizinho
levava a mão à coronha do revólver. com certeza que as palavras do companheiro lhe tinham causado certos receios.
A voz clara de Catamount interrompeu as meditações de António:
- Olha lá, rapaz, suponho que não vais ter uma entrevista com uma mulher bonita?...
- Que lhe importa, senhor? O caso é comigo.
- Está bem. Afinal isso é-me indiferente. Apenas noto que o senador confia mais em mim...
- O chefe tem liberdade para cometer imprudências... Quanto a mim tive sempre o hábito de manter os estranhos à parte, e tenho-me dado bem.
.- Coisa instintiva, sem dúvida. Pois bem, velho amigo, não te importunarei mais com as minhas conversas. Cavalgaremos em silêncio até Joshua Bluff e em seguida
separar-nos-emos indo cada um para o lugar que lhe foi indicado.
Assim sucedeu.. O passeio prosseguiu monótono através de um cenário desta vez mais feroz. O luar dava um aspecto irreal aos blocos de rochas que se erguiam de ambos
os lados da estrada. Pareciam gigantes impedindo o acesso àquela região. Mezquita avançava em bom andamento e o cavalo do mexicano fazia o mesmo. Catamount cada
vez se sentia mais intrigado com a estranha missão do companheiro. Mais do que nunca tentava abrir os olhos... Fingiria indiferença, e se o caso lhe parecesse ter
um interesse especial, apressar-se-ia a vigiar António e os seus acólitos. Pelo seu lado o mexicano esperava impacientemente o momento de se ver livre daquele guia
suspeito. Nem um só instante conseguira afastar aquela instintiva desconfiança que se apoderara de todo o seu ser. Era em vão que tentava ser razoável. Sentia pelo
falso Winter uma profunda aversão.
Por Fim a subida tornou-se mais íngreme, às moitas de cactus de aloés sucediam-se agora as árvores de
Josué; e aparecia, ainda imprecisa, uma espécie de falésia rochosa nos contrafortes da Serra de Santiago cujos cimos alvejavam ao luar.
Catamount conhecia admiravelmente aquela região e sabia que se aproximava agora de Joshua Bluff. Era aquela falésia. Mais uns minutos e António chegaria ao local
da entrevista.
E eis que de repente o agente estremeceu: o seu olhar agudo acabara de notar numa volta do caminho, certo ponto luminoso.
- Rapaz, exclamou ele voltando-se para António, não és o primeiro a chegar. Já ali estão à tua espera.
O mexicano respondeu com um grunhido. Examinou longamente o ponto brilhante e voltando-se bruscamente para o homem de olhos claros exclamou:
- É inútil ir mais longe, visto que o senhor vai para El Paso. Buena noche!... Já sei onde me devo dirigir.
- Sim, Joshua Bluff é ali, respondeu o pseudo Winter, contudo o fogo poderia ter sido acendido pelos Comanches... Não receias ir imprudentemente meter-te na goela
do lobo?...
Este aviso não pareceu impressionar António. Fez um gesto de indiferença:
- Se houver perigo defender-me-ei. Mas agora é inútil cavalgar mais tempo juntos. Temos que nos separar.
- À tua vontade; visto que tens tanta pressa de te afastares, desejo-te boa sorte.
- Buena noche.
Foram as últimas palavras que António dirigiu ao agente. Quando chegou a uma encruzilhada a coisa de uns vinte passos, esporeou o cavalo e desatou a correr de tal
maneira para Joshua Bluff, que era como se levasse o diabo atrás de si.
Durante alguns instantes Catamount ficou imóvel na sela vendo afastar o mexicano. Um sorriso furtivo franziu-lhe os lábios.
- Desconfio que lá em baixo hão-de dizer-se coisas interessantes... Não achas, Mezquita?
E acariciava o pescoço do seu cavalo. Este raspava o solo rochoso com certa impaciência.
- Agora toca a trabalhar! - exclamou o dono depois de ter examinado rapidamente o terreno que o rodeava.
- Tenho que saber exactamente o que significa esta entrevista. Temos muito tempo para nos desembaraçarmos do tal Catamount...
Esteve quase a tomar a mesma direcção que António, mas compreendeu que esta iniciativa tinha seus perigos. O outro era desconfiado e nem sequer dissimulara a hostilidade
que mantinha a seu respeito. Podia muito bem emboscar-se em qualquer sítio antes de chegar a Joshua Bluff apenas com o fim de se certificar das intenções do falso
Winter.
- Camarada, temos que fazer um desvio.
Metendo-se por um atalho que serpenteava em declives à sua esquerda, podia contornar a falésia, e executando depois uma rápida escalada, tentaria chegar a Joshua
Bluff dominando o local onde o mexicano tinha a entrevista. A empresa era arriscada por causa do terreno, mas estes obstáculos não faziam recuar Catamount.
- Depressa, para a frente! Para a frente velho camarada !
Mezquita meteu-se pelo atalho. Havia grande escuridão. O caminho desaparecia entre os rochedos e por vezes as patas do alazão escorregavam sobre a superfície poída
dos pedregulhos, mas a mão firme do cavaleiro ia-o segurando. Por fim chegaram a uma espécie de planalto onde o avanço se tornou mais fácil. A massa da falésia não
deixava ver a fogueira agora acesa em Joshua Bluff. Para chegar aonde estava o mexicano, Catamount ia começar uma perigosa escalada.
- Vais esperar por mim um bocado, disse ele saltando da sela e acariciando o pescoço do seu cavalo.
Este, muito dócil, parou na sombra. Então o dono pegou no laço que trazia sempre na sela e dirigiu-se para os rochedos da falésia. Parou a vinte passos daquela muralha
natural. Várias arestas se recortavam no céu estrelado. Calculando a distância, agitou o laço e fazendo-o andar de roda durante alguns instantes por cima da sua
cabeça, lançou-o e conseguiu enrolar o nó corredio à volta de um daqueles suportes providenciais. Puxando com toda a sua força experimentou se o bloco era suficientemente
resistente para aguentar com o seu peso. A pedra não estremeceu.
Cuspiu nas mãos e empreendeu a arriscada ascensão. Subia pela corda encostando os dois "pés contra o flanco da falésia. Em menos de três minutos atingiu a aresta
rochosa na qual se escarranchou e agarrando-se com força olhou para baixo. Mezquita esperava imóvel onde o deixara. Limpando com a mão o suor que lhe corria da testa,
desatou o nó corredio e lançou novamente o seu laço. Esta tentativa foi tão feliz como a primeira. Agora estava só a alguns pés do alto da falésia; reunindo as suas
forças tornou a pegar no laço, escalou a distância que o separava do topo. Chegou ao alto.
Daquele observatório natural via-se toda a região vizinha. Não levou muito tempo para descobrir a fogueira que os amigos desconhecidos de António tinham acendido
no sopé: de Joshua Bluff.
Estendeu-se de barriga para baixo à borda da muralha rochosa. A fogueira continuava a arder pouco mais ou menos a trezentos pés abaixo donde ele estava. Via nitidamente
as silhuetas dos homens acocorados à volta de um acampamento. Um pouco adiante estavam os cavalos, ao luar, e o agente reconheceu o de António.
- Muito bem! continuam o palavriado!...
A curiosidade do agente cada vez era maior. Agora
tinha de descer e de se dissimular entre os numerosos montes de rochedos.
O terreno oferecia vários esconderijos mas era necessário que Catamount conseguisse descer sem fazer o menor ruído para não chamar a atenção daqueles que queria
surpreender. Tratou imediatamente de procurar um apoio para prender o seu laço: descobriu um arbusto solidamente enraizado ao qual atou o cabo. Atirou-o para o vácuo
e dali a pouco descia sustendo-se à força de pulso.
As cordas iam-lhe rasgando as palmas das mãos. Mas insensível ao sofrimento, só pensava em surpreender os planos dos bandidos; continuou pois a deixar-se escorregar,
e quando chegou à extremidade do laço sentiu debaixo dos -pés uma superfície sólida... Então tomou balanço, saltou e caiu rolando, agarrando-se às asperezas do terreno,
até que parou no meio de uma moita de cactus, cujos espinhos lhe rasgaram as carnes. Mas, estóico, fincou os dentes ainda um pouco atordoado pela descida precipitada
e ergueu-se de ouvido à escuta receando que o barulho da sua queda tivesse chamado a atenção de António e seus acólitos.
Por felicidade continuava a reinar a calma. A pouca distância ouviu ruído de vozes. Os desconhecidos continuavam a discutir sem suspeitarem da chegada inesperada
daquele adversário.
Parou durante uns instantes estudando a posição do local. Aqui e ali apareciam árvores de Josué, e algumas magras moitas de cactus punham manchas escuras nos declives.
Um aloés erguia o seu pé altivo.
Durante a descida precipitada, Catamount rasgara a manga e esfolara-se um pouco, O chapéu fora cair a três passos de distância. Pegou-lhe e tacteando o cinto das
armas, assegurou-se de que os seus dois Colt estavam ali carregados e intactos!
Tinha agora que se aproximar do acampamento, o que lhe foi fácil, pois que usava precauções dignas
de um índio; aventurou-se rastejando pelo declive, enfiando-se sem ruído entre os rochedos, andando sobre as mãos e sobre os joelhos...
As vozes tornavam-se cada vez mais distintas mas não conseguia ainda compreender o que diziam António e os seus interlocutores. Aventurou-se um pouco mais longe;
vendo uma árvore de Josué que se erguia a uns dez passos do local onde os desconhecidos estavam instalados, parou, e pegando com a mão direita num dos Colt, o dedo
sobre o gatilho, imobilizou-se escutando ansiosamente.
As silhuetas recortavam-se nitidamente diante das chamas da fogueira. Eram cinco... reconheceu logo António. O mexicano falava com fluência, fazendo grandes gestos.
O agente examinou os outros homens. Pareciam ser todos mexicanos. Falavam em espanhol, língua que Catamount conhecia tão bem como o inglês. Os cintos de armas que
traziam, provavam que não se tinham aventurado sem precauções através daquelas regiões perigosas.
Contudo os olhares de Catamount pousaram sobre o quarto personagem e um relâmpago brilhou no seu olhar. O homem que estava acocorado à direita de António, não estava
vestido como os outros. Era um índio... Uma espécie de fita à qual estavam presas penas de águia, rodeava-lhe a testa.
Os numerosos gestos que o pele-vermelha fazia, mostravam que a discussão se tornava cada vez mais animada.
- Diabo!... é um Comanche, disse para consigo Catamount. O agente não podia enganar-se, tratava-se de um Comanche ipertencente à tribo da fronteira. Parte da cara
desaparecida sob pinturas de guerra. Ainda se exprimia com mais força que os seus vizinhos.
A presença do índio intrigou imenso Catamount. Recordava as recentes lutas dos Comanches com as
forças americanas agrupadas na fronteira do Texas. Veio-lhe à lembrança o ataque recente à diligência.
E as suas suspeitas acentuaram-se...
Os cinco homens não tinham notado a chegada do agente. Acabavam a sua refeição e um belo cheiro a café espalhava-se no ar.
António colocara a sua carabina perto dele e os outros três mexicanos conservavam os seus revólveres perto da mão, exactamente como se estivessem preparados para
se defenderem de um ataque.
O índio trazia uma carabina a tiracolo.
Mas Catamount depressa deixou de examinar o grupo. As vozes chegavam-lhe muito nítidas. Imóvel, dobrado, pronto ao ataque, escutou...
x
Discussão à roda de uma fogueira
- E esse tal Winter partiu para El Paso? interrogava um dos mexicanos.
- Prometeu ao senador matar Catamount!...
- Se o conseguir será um valentão! Olha que eu nada daria pelas nossas peles se esse agente maldito se lembrasse de tratar dos nossos assuntos.
- Parece-me que estão a falar de mim, disse para consigo o homem de olhos claros...
Mas a discussão continuou.
- Conheço a reputação de Sana Winter, dizia o terceiro mexicano. Conta muitas proezas no seu activo! Contudo há muitos meses que se não fala de tal pessoa. Como
é ele?
- É um estrangeiro, um gringo, respondeu António mordendo os lábios com desprezo. Não gosto de trabalhar com gringos! Julgam-se sempre superiores a nós e não perdem
a ocasião para nos humilhar.
- Deixa-lo! Se Sain Winter jurou desembaraçar-nos de Catamount, estou persuadido de que cumprirá a sua palavra!
- A não ser que o agente, que é velhaco como uma raposa, consiga frustar-lhe as tentativas.
- Pela minha parte, continuou o quarto mexicano, parece-me que o senador é bastante imprudente,
querendo meter-se assim com os agentes da polícia rural. Devia esperar que os cavaleiros do major Morley iniciassem a luta.
- Não acho! retorquiu António. Mais vale prevenir do que remediar. Se os agentes se aventurarem na nossa pista e se suspeitarem de alguma coisa, ninguém poderá fazê-los
parar e impedir de nos perseguirem até ao fim. Não são homens triviais, nem se deixam convencer com argumentos de política. Cumprem o seu dever, e se pensarem que
têm o dever de nos prender, nada lhes tirará isso da cabeça.
Um murmúrio de aprovação acolheu estas palavras, só o índio continuava pensativo e silencioso. Dali a pouco António deu-lhe uma cotovelada:
- Então, José! reflectiste na nossa proposta? O senador mostra-se generoso...
O Comanche abanou lentamente a cabeça:
- Dois mil dólares é dinheiro, mas se os meus irmãos suspeitassem...
- Ninguém lhes dirá quais são as intenções...
- Talvez!... Mas deve concordar que o primeiro trabalho que o senador lhes mandou fazer, acabou para eles de forma sangrenta! Tivemos sessenta mortos!... Os cavaleiros
americanos empurraram-nos brutalmente para além do Rio-Grande!...
- Não se faz uma omelette sem partir ovos, retorquiu António. Aquele ataque à diligência era absolutamente indispensável, antes de mais para evitar que recaísse
a menor suspeita sobre Hobart Gills. Tendo o senador estado quase a ser vítima dos Comanches, não pode de forma alguma suspeitar-se de ter ele próprio fomentado
a sua revolta dando-lhes armas e munições!... Está de ver. E quando falo de "munições" faço alusão ao mesmo tempo às carabinas, aos cartuchos e aos dólares!...
Catamount, no seu esconderijo ouviu estas palavras sem a menor exclamação, apesar de serem para ele uma
verdadeira revelação... Nunca suspeitara que a revolta dos Comanches fosse fomentada pelo próprio senador. Na verdade certa alusão que este lhe fizera no Salão Estrela,
parecera-lhe estranha.
Mas não teve tempo para continuar a reflectir; a discussão continuava:
-Escuta, José, o sr. Gills tomou todas as precauções necessárias. Os teus guerreiros poderão infiltrar-se ao longo da via férrea sem que encontrem a menor resistência...
- Mas qual é a data prevista? perguntou o pele-vermelha.
- Ainda não sabemos. O Banco Federal está desconfiado e toma certas precauções. Um transporte desta natureza não deve ser anunciado com antecedência. Quantos apetites
iria acordar! Mas temos espiões no Presídio do Norte e logo que saibamos que o ouro vai partir com destino a Forte Worth um correio irá procurar-te e dar-te-á sinal.
- com certeza que o comboio trará uma escolta importante... objectou ainda José, que parecia estar difícil de convencer...
- Os dois guardas, Géo Malterr e Slim Burgess são da nossa gente. Facilitar-nos-ão o trabalho. Mas compreendem bem que para que possamos obter completo êxito, convém
que vocês organizem o vosso ataque!... É indispensável para despistar os inquéritos.
- O local designado continua a ser Junction Point?
- Já há bocado te disse. Junction Point parece-nos ser o sítio ideal para o ataque. A via férrea está em reparação nesse local. Será fácil encontrar vagonetas e
pranchas para obrigar o comboio a parar, para mais a curva que a linha ali faz favorece maravilhosamente os nossos planos!...
Catamount continuava a escutar com o maior interesse. Já fora testemunha de vários ataques a comboios, e conseguira inutilizar os criminosos projectos do Tigre
do Rio-Grande; mas desta vez o caso anunciava-se de forma inesperada. O papel nefasto que o senador representava surgia agora em plena luz.
Na verdade, o negócio estava magistralmente contado!...
Não havia dúvida que António e os seus cúmplices já há um bocado que deviam estar a discutir, mas Catamount chegara a tempo para conhecer os seus planos. Imaginava
com facilidade a teia tenebrosa que se preparava...
Gills é um combatente perigoso, disse para consigo o agente. Mandando suprimir Catamount provoca certa desorganização nas fileiras dos seus adversários eventuais;
depois fazendo entrar os índios na dança, consegue embrulhar as cartas... Como poderão censurar ao miserável político o ele aproveitar-se da situação e pescar em
águas turvas, se ele próprio, pelo menos aparentemente, esteve quase a ser vítima dos Comanches? De resto o ataque, devia estar organizado de forma que o senador
saísse são e salvo. Só os seus companheiros de viagem corriam perigo terrível. O condutor e o ajudante tinham sucumbido e a pobre Cecília vira a morte de bem perto.
Mas isso pouco importava a esse patife sem escrúpulos!... Quantos crimes o teriam ajudado já a conservar e a melhorar a sua situação importante?!...
Contudo, por melhor organizado que estivesse o caso, o José ainda se não sentia tranquilo. Os argumentos de António e dos seus acólitos não pareciam tê-lo convencido
- Já sei muito bem como tudo isso acabará! Deitarão as culpas para cima de nós e sofreremos ainda perdas importantes, enquanto o senador e a sua gente dividem a
presa!...
Nada disso, amigo! protestou António. Esse ataque ao comboio nada será em comparação com o caso
da diligência! O sr. Gills saberá prever e evitar qualquer complicação!
El Barbido, o homem de barba que interveio
poderá aparecer outra vez...
- Já te repeti que se tratava de um mal entendido estúpido. El Barbido, como dizes, não é dos nossos! Apareceu ali por acaso. Demais a mais os teus cavaleiros foram
suficientemente imprudentes em disparar sobre ele e persegui-lo...
- Queríamos desembaraçar-nos de um importuno!
- O resultado dessa iniciativa não foi realmente muito próprio para encorajar... mas não nos tornes unicamente responsáveis pelo que se passou. Para a próxima vez
El Barbido será dos nossos. O senhor Gills mandou-o a El Paso desempenhar uma missão: matar Catamount, o mais perigoso de todos os agentes da polícia rural.
O Comanche fez uma careta.
- José já ouviu falar de Catamount! é um adversário terrível!
- Suponho que El Barbido é tão perigoso como ele... Os teus heróis aprenderam-no à sua custa!
O argumento era bom e o índio pareceu um pouco convencido.
- Junction Point está situado a pouca distância da fronteira, a menos de quinze milhas, julgo eu, entre o Presídio do Norte e Alamito. Logo que o ataque seja efectuado,
ser-vos-á fácil bater rapidamente em retirada para território mexicano. Neste sítio, o Rio-Grande não é muito largo, nesse sítio do seu percurso.
- Este maroto vermelho sabe-o muito bem, comentou outro mexicano. Muitas vezes o atravessou para vir roubar animais ao território do Texas!...
- O que me embaraça é vocês não saberem ainda nem a hora nem a data, insistiu o Comanche que procurava novos argumentos para opor aos seus interlocutores.
- Já te disse e torno a repetir-te: a data e a hora serão comunicadas pelo senhor Gills em tempo oportuno e tu serás imediatamente avisado! Em seguida terás apenas
que te preparar e aos teus homens. Afinal de contas uma pequena incursão de duas horas para além do Rio-Grande e um simulacro de combate não são bichos de sete cabeças...
- com certeza, mas hão-de acusar-nos do roubo do ouro!...
- E que importa, visto que vocês terão voltado para território mexicano onde poderão gozar a mais completa das impunidades! De resto, as autoridades de lá poderão
procurar na vossa tribo o ouro roubado. Mas será trabalho vão... visto que já estará em lugar seguro! Esperaremos muito perto de Junction Point para tomarmos conta
do precioso depósito!
- Esta discussão não tem fim? resmungou um dos mexicanos. Estou cheio de sono!...
- Caràil... também eu!... Galopámos debaixo de um tal calor para vir ter contigo, António!...
- Contudo convém que nada seja tratado à ligeira, exclamou o cúmplice de Hobart Gills. A mais pequena imprudência podia comprometer tudo. Não se esqueçam que jogamos
jogo forte!... mas tenho a certeza que havemos de ganhar!...
- Enquanto esperamos, o patrão encarregou-me de te entregar estes mil dólares que te provarão a sua boa-fé e o desejo ardente que tem de te ser agradável.
As pupilas do índio brilharam.
- Mil dólares a mais do que tinha prometido? arriscou ele com uma voz que a comoção tornava baixa.
-Naturalmente! Mil dólares apenas para te dar coragem.
Este donativo bastou para apagar as últimas inquietações do pele-vermelha. Guardou as notas:
Podem contar com José, declarou ele. Esperará
do outro lado do Rio-Grande que lhe mandem as instruções necessárias!
- Ora até que enfim! Estamos completamente de acordo!
Ao ver o índio erguer-se António perguntou: - Partes?
- José não pode passar a noite aqui, tem que ir ter com os seus irmãos e expor-lhe o nosso acordo.
- É natural. Pois bem, amigo, podes partir e repetir aos teus heróis que Hobart -Gills saberá recompensá-los magnificamente. Explica-lhe o lamentável engano que
houve durante o ataque à diligência... A intervenção daquele a quem chamas El Barbido não estava prevista. Eles compreenderão e deixarão de recear pelo futuro!
O índio levantou-se, apertou as mãos que os quatro mexicanos lhe estendiam e, deixando-os a enrolar-se nas mantas para passar o resto da noite perto da fogueira,
dirigiu-se para o sítio onde os cavalos estavam presos. Dali a pouco saltou sobre a sela e desapareceu na noite, em direcção ao Rio-Grande.
Catamount não esperou pela partida do Comanche para bater em retirada. Apressou-se em chegar ao local em que o laço continuava pendurado, solidamente preso à parede
da falésia. Sem "perder um instante terminou a sua escalada, e depois, voltando rapidamente para trás, tornou a fazer em sentido contrário o percurso que já efectuara.
Sentia-se elucidado a respeito das intenções do senador. A providência quisera que Catamount tivesse actualmente nas mãos todos os fios da conspiração. Por isso
tinha de agir sem demora.
Continuava a não querer dar o alarme ao seu chefe e aos seus camaradas. Travaria a luta sozinho contra o bando, sozinho desmascararia o político odioso que sob a
aparência de honorabilidade cometia tantos crimes e se dispunha a executar novos roubos.
Catamount vira o Comanche levantar-se. Decidiu portanto tratar dele primeiro... Do seu esconderijo surpreendera o "pouco entusiasmo que ele sentia em renovar um
ataque... o caso da diligência tornava-o cauteloso.
Quando dez minutos mais tarde voltou para o lugar onde deixara Mezquita, este deu um relincho de alegria ao ver o dono.
-. Depressa, velho camarada. Temos que galopar e agarrar aquele Comanche antes que tenha tempo de atravessar o Rio-Grande.
Colocou o laço no seu lugar, montou, aventurou-se novamente através do atalho de cabras, até que atingiu os declives em sentido oposto. Então lançou Mezquita para
o sul, a todo o galope. Sabia bem a direcção que José devia ter tomado. Venceu assim uma distância de duas milhas. À medida que se afastava, o terreno tornava-se
menos selvagem. Contornava a Serra de Santiago e .já divisava entre os rochedos a fita de prata do rio reflectindo o céu estrelado.
Receava que o índio tivesse chegado primeiro que ele ao Rio-Grande, mas serenou ao lobrigar à sua esquerda a silhueta de um cavaleiro a galopar.
- Deus seja louvado!... Ei-lo!
Teve que diminuir o andamento do seu cavalo, pois sabia que o outro tinha bom ouvido e podia surpreender a sua presença.
- Camarada, vamos precedê-lo e esperá-lo na margem do Rio-Grande, murmurou.
A manobra do homem de olhos claros explicava-se facilmente: queria chegar à frente de José, impedindo-lhi a retirada. Curvado sobre o pescoço do cavalo desatou a
galopar perdidamente.
José cavalgava recordando a longa discussão que tivera em Joshus Bluff. O donativo de mil dólares dissipava os seus temores e atenuava a sua desconfiança. Esquecia
quase a terrível derrota que há pouco sofrera
com os seus homens, prestando-se de boa vontade a ajudar os tenebrosos projectos de Hobart Gills.
Mil dólares!
Esta soma, acrescentada aos dois mil que os Comanches receberiam depois do ataque ao comboio de Forte Worth, com certeza (permitiria que comprassem vários tonéis
de água de fogo! As suas pupilas brilharam. Havia a juntar a isto as armas aperfeiçoadas que Gills lhes mandara.
Agua de fogo, Whisky, carabinas do último modelo, cartuchos e mantas de lã multicores, tudo isto era suficiente para apaziguar as dúvidas e os receios de José. Felicitava-se
por ao princípio ter posto tantas reticências... António e os amigos haviam sido mais pródigos.
Dispunha-se a fazer com que o seu cavalo andasse mais, quando de repente se endireitou na sela. Tomou um ar inquieto. Parecia-lhe ter ouvido um ruído estranho...
Instintivamente a mão do índio pousou na coronha da espingarda que levava a tiracolo, quando ouviu uma voz clara gritar-lhe em espanhol:
- Pára, José! Não irás mais longe.
Intrigado, o Comanche ia pegar na sua arma e apontá-la para o homem que acabava de o interpretar de forma tão intempestiva, quando se ouviu um assobio. De repente
o índio sentiu os dois braços presos contra o corpo, a arma escapou-lhe e sentiu-se arrebatado da sela com uma assustadora rapidez... Enquanto o seu cavalo, espantado
por este ataque imprevisto, fugia a galope para o rio, o Comanche caiu pesadamente no chão.
Atordoado pela queda, tentou endireitar-se e alargar o nó corredio do laço que se lhe enrolara à roda do corpo, paralisando-lhe os movimentos. Mas as sacudidelas
da corda provaram-lhe que o seu adversário segurava a outra extremidade e não estava disposto a largá-la. Lançou uma exclamação de raiva,
perguntando a si próprio o que significaria aquela agressão, quando ouviu uma voz muito perto dele:
- Nem um gesto, amigo José, senão serei obrigado a fazer-lhe ir os miolos pelo ar, o que seria lamentável!...
Surgiu uma figura por detrás dos rochedos. Na sua destra brandia um revólver apontado na direcção do índio... e na esquerda conservava o laço de que tão habilmente
acabava de servir-se.
José compreendeu que estava à completa mercê do seu agressor. Era um branco, um homem que não tardou a reconhecer. Um raio de lua iluminava-lhe em cheio a fisionomia.
- Maldição... El Barbido!...
Mas já Catamount se aproximava da sua vítima e, curvado sobre ela, encostando-lhe o Colt ao peito, disse muito calmo:
- Conversemos, amigo José!
XI
José muda de campo
O Comanche não voltara a ainda a si da surpresa e fitava o agente com uma expressão de espanto indescritível. El Barbido! Mesmo entre mil teria reconhecido o seu
agressor e contudo só com breves intervalos o vira durante o ataque à diligência. Não havia dúvida que José era corajoso. Nem o receio do perigo nem o escrúpulo
o embaraçavam, contudo aquele homem parecia-lhe um personagem quase sobrenatural. As circunstâncias em que lhe aparecera, enchiam-no de um terror quase supersticioso.
O agente notou-lhe uma expressão de desorientação.
- Escuta, José! Queres ser meu amigo ou meu inimigo ?
Apesar do tom calmo do seu interlocutor o Comanche ficou perplexo, receava que o seu agressor lhe armasse uma ratoeira.
- Vamos, responde! Não tens um segundo a perder. Insistia. Exprimia-se em espanhol, língua que o
Comanche falava correntemente. E este compreendeu que não podia furtar-se durante mais tempo.
- José nada fez a El Barbido! E contudo El Barbido matou bastantes dos seus heróicos companheiros.
- Se os teus heróicos companheiros não tivessem agido como criminosos e não fossem culpados dos assassinatos
do condutor da diligência e do seu ajudante, não teriam tido perdas tão grandes nem tão grande castigo por parte dos soldados... De resto, José sabia muito bem ao
que se expunha agindo como um bandido!
Os dois homens estavam acocorados um perto do outro. O cavalo de José parara um pouco mais longe, mesmo na margem do rio, e Mezquita aguardava tranquilamente, a
cerca de quatro passos que o dono o chamasse. Apesar da calma que aparentava, o agente não abandonara a sua atitude ameaçadora; continuava, de dedo no gatilho, a
apontar o revólver ao seu Vizinho.
, Catamount sabia qual devia ser o seu dever em tempo vulgar. Na qualidade de chefe dos Comanches, José devia ser inculpado em seguida ao recente ataque. O agente
devia pôr-lhe as algemas nos pulsos e levá-lo o mais depressa possível para El Paso! Mas o homem de olhos claros conhecia a gravidade da situação e a importância
da luta que ia travar sozinho contra Hobart Gills e os seus comparsas.
Na ignorância do major Morley, e igualmente de todos os seus corajosos camaradas, ia esforçar-se por esclarecer uma situação das mais turvas, e desmascarar o político,
chefe de toda aquela criminosa quadrilha.
E para atingir um tal fim, que não -podia deixar de ter repercussões consideráveis, Catamount compreendia que devia aliar-se a José. Só a ajuda do índio poderia,
com efeito, permitir-lhe obter uma vitória o mais rapidamente possível e frustar os projectos daqueles patifes. O que ouvira em Joshua Bluff provava-lhe que o Comanche
era apenas um comparsa. Por ele convinha, portanto, atingir a cabeça daquela tenebrosa organização.
Eis porque preferia contemporizar com o índio e fazer dele um aliado. Pelo ligeiro tremor do pele-vermelha, compreendia que podia fazer dele o que quisesse.
Vamos, sê franco, declarou ele, conta-me tudo.
É o único meio que tens para escapar à forca!
Estas palavras produziram efeito. Instintivamente o homem levou a mão ao pescoço, como se sentisse já o nó corredio.
- El Barbido não entregará José para que o enforquem! balbuciou com voz trémula.
- El Barbido procederá consoante a resposta de José, respondeu o agente com frieza. Se José quiser falar a verdade, se consentir em ajudar El Barbido, não só não
será castigado, como ainda poderão entregar-lhe uma recompensa. Senão, se recusar, pôr-lhe-ei as algemas e levá-lo-ei para a prisão de El Paso.
O índio tomou rapidamente um partido:
- O maior desejo de José é ser amigo de El Barbido!
-. Bueno! Agora José vai responder às minhas perguntas! Sobretudo que não procure enganar-me!... Lerei nos seus olhos se fala verdade.
- José dirá a verdade!... Por Cristo o jura!... Tal jura da parte de um Comanche não satisfaria
o homem de olhos claros em tempo habitual; contudo notou o enorme terror que exercia sobre o índio. Aproveitou para intensificar a sua pressão:
- Porque é que atacaste a diligência de Haymond com os teus cavaleiros?
- Foi António que veio procurar-me do outro lado do Rio-Grande! Prometeu-me muito dinheiro!... E já nos tinha fornecido armas...
- Mas ele não te fez recomendação alguma antes de te mandar fazer o ataque?
-. Fez. Recomendou-me que poupasse os viajantes, o senhor Gills, o poderoso senador...
- E António não tinha acrescentado que nada tinhas) a recear depois?
- António tinha afirmado a José que o senador
impediria os soldados de perseguir José e os seus Comanches!
- Parece-me que António mentiu!...
O pele-vermelha mordeu os lábios. Recordava a derrota terrível que os soldados lhes tinham infligido. Catamount insistiu:
- E tu acreditarás ainda nesse patife que te arrastou para tão nefasta aventura? Julgas que ele manterá as suas promessas?
- António pagou a José, quis ainda protestar o índio.
- Eu sei, entregou-te mil dólares em notas do banco.
O outro olhou para Catamount com a maior das surpresas. Para saber aquilo El Barbido devia ser bruxo!
E foi ainda pior quando o agente continuou sem deixar de o ameaçar com o Colt:
- E a esses mil dólares devem, dentro em pouco, juntar-se mais dois mil. José não está completamente satisfeito com o castigo magistral que lhe infligiram os soldados.
Quer recomeçar. Nem sequer pensa que desta vez se exporia às mais terríveis represálias.
- Então El Barbido sabe?
- El Barbido sabe tudo... e provou-o quando fez a sua intervenção no momento em que vocês atacavam a diligência de Haymond! E agora, quando tu te preparas para arrastar
os teus homens para um negócio desastroso, ele diz-te: "Toma cuidado!... Desta vez não há dúvida que a forca te espera se te obstinares em fazer-te cúmplice de uma
quadrilha de criminosos!..."
Um arrepio desagradável percorreu a epiderme do Comanche. Contudo ainda objectou:
- O senador Gills é um homem poderoso, conseguirá proteger-nos com a sua autoridade!...
- Hobart Gills é o maior dos canalhas, respondeu o agente com frieza. Até aqui as suas pérfidas
maquinações e alta situação que ocupa entre os políticos permitiram-lhe escapar ao castigo... Mas acredita em mim, José, aproxima-se a hora em que esse patife será
desmascarado e toda a sua quadrilha destruída! É tão certo como dois e dois serem quatro! Nestas condições seria mais prudente para ti e para os teus bravos companheiros,
colocarem-se já ao lado dos vencedores! E como José parecia querer ainda fazer qualquer
objecção:
- Sou eu, El Barbido, quem trava luta contra Gills e os seus acólitos. Eis porque te venho fazer esta proposta: ou tu te obstinas em querer ajudar os desígnios desses
patifes e então pôr-te-ei imediatamente as algemas e levar-te-ei para El Paso, onde serás entregue às autoridades ou então aceitarás obedecer-me cegamente... e então,
de futuro, só terás que te felicitar de ter tomado tal decisão que te trará a alegria, a riqueza e a segurança!
O Comanche compreendeu pelo tom do seu interlocutor que estas palavras não eram vãs. Naquele momento jogava-se a sua sorte. Os argumentos do agente tinham-no abalado
profundamente, contudo ainda
arriscou:
- Mas, admitindo que eu me torne teu aliado,
El Barbido... que vantagens terei?
-. Primeiro não ser enforcado, o que com certeza achas coisa apreciável... e depois receberás uma quantia bastante maior do que te prometia o senador!
- Quanto? insistiu José.
- Bueno! Visto que gostas de coisas precisas, dir-te-ei que o jornal "New Texas" prometeu dar um prémio de dois mil dólares a quem permitisse prender o assassino
do seu saudoso director Bmil Kenner... Pelo seu lado, a família de Norman Lemblin, o adversário político de Gills, que foi assassinado em condições que continuam
misteriosas, mandou anunciar que oferecia cinco mil dólares a quem a ajudasse a castigar
os culpados!... Dois mil dólares e cinco mil dólares fazem sete mil dólares!...
Estas palavras desconcertaram o Comanche:
- José não compreende o que El Barbido quer dizer...
- É bem simples! Evidentemente que os infelizes cujos nomes acabei de pronunciar dois foram mandados matar pelo senador Gills que tinha todo o interesse em que eles
desaparecessem. Portanto, se eu conseguir provar que Gills é na verdade culpado, receberei os dois prémios! E como não dou aos dólares a importância que para ti
parecem ter, entregar-te-ei os sete mil dólares como recompensa... Mas com a condição de que antes tenhamos conseguido desmascarar Gills e a sua quadrilha!
As pupilas do Comanche brilharam de cobiça. Agora compreendia... Ainda perguntou:
- José e os seus cavaleiros ainda serão perseguidos pelos soldados e pelos agentes da polícia rural?
- Isso é um ponto que eu me esforçarei por esclarecer, em todo o caso podes estar certo de uma coisa: se me servires fielmente e me permitires atingir o fim que
desejo, mais ninguém procurará importunar-te, com a condição que de futuro te conserves ajuizadamente em território mexicano!
- Mas quem és tu então, El Barbido, para fazeres promessas dessas?
- Que te baste saber que o meu poder pode ultrapassar bastante o do senador Gills; mas para atingir este resultado, é preciso que a criminosa responsabilidade desse
miserável seja nitidamente provada. Ambos temos tudo a ganhar se atingirmos esse fim!
- Então, objectou José, o negócio que preparam...
- Queres falar do ataque ao comboio em Junction Point?
O índio ficou sem respiração e antes que ele pudesse fazer qualquer pergunta o agente insistiu:
Sei que te deves prestar a fazer um novo ataque
com os teus Comanches, e que tudo isso se prepara sob a direcção de Gills!
José não o fará.
- Perdão! José fará absolutamente como se nada disto se tivesse passado!
- Como, El Barbido consente?
- El Barbido quer que nada seja mudado nos teus planos e em todo o dispositivo do ataque actualmente em organização. Sei que tudo está pronto e que vocês só esperam
que lhes façam um sinal.
- Então, quando António nos fizer esse sinal?...
- Vocês obedecerão como se tu nunca me tivesses encontrado.
- E então...
- Eu estarei lá e dirigirei o ataque contigo! compreende bem, José, é preciso que nem por um instante eles desconfiem que se produziu qualquer mudança no dispositivo
previsto! Como sempre, Hobart Gills deve julgar-se certo da mais absoluta das impunidades... É preciso que ele vá até ao fim persuadido de que tudo se passa consoante
os seus desejos! E será esta mesma certeza na impunidade e no triunfo que o arrastará à sua perda e precipitará o seu castigo!...
- Podes contar com José e com os seus homens, El Barbido! Faremos conforme as tuas ordens.
- Ora até que enfim, isso é que é falar bem!... Catamount retirou então o seu Colt da posição em
que até ali o mantivera, isto é: apontado ao índio. Este suspirou de satisfação. Por muito corajoso que fosse, esta constante ameaça inquietava-o.
- Leio nos teus pensamentos e julgo que és sincero! Repito-te, tens tudo a ganhar se me servires fielmente!
- E José receberá os sete mil dólares?
- José receberá os sete mil dólares, mas fica bem entendido que para isso devem ser encontradas todas
as provas da culpabilidade do senador. Se me deres a tua ajuda e a tua discrição, encarrego-me de as descobrir.
O homem de olhos claros parecia agora absolutamente convencido do seu êxito. Tinha a certeza de que José ajudaria a sua causa. Já frequentes vezes fizera combinações
com os índios e sabia que costumavam honrar as suas promessas.
- Então José pode-se ir embora? perguntou o Comanche.
- Tens muita pressa... Tenho ainda que te fazer umas perguntas e depois não nos separaremos tão depressa. Tenho vontade de te acompanhar até lá abaixo ao outro lado
do Rio-Grande.
- El Barbido será bem-vindo entre os Comanches, verá como daqui em diante poderá contar com o seu apoio.
- Conto com isso, mas diz-me agora como é que os teus cavaleiros conseguiram arranjar tão belas armas. Tinhas-me falado de António...
As explicações que o outro lhe deu nada admiraram o agente. Fora António que conseguira passar as caixas com as armas e os cartuchos para o outro lado da fronteira,
a fim de alimentar a revolta que faria nascer uma diversão providencial no momento em que Gills preparava nova proeza: o roubo dos lingotes do Banco Federal!
José exprimia-se com ingenuidade explicando quantos tonéis de água de fogo António conseguira para os seus súbditos. E Catamount podia assim avaliar a considerável
e nefasta actividade desses patifes que não hesitavam em recorrer a tais processos para levar a bom fim as suas empresas!
Decididamente a Providência fazia bem as coisas!... Se na véspera Catamount não estivesse por acaso nas proximidades da Serra de Santiago, todas as culpas seriam
lançadas sobre os Comanches revoltados. A
perturbação, que evidentemente não se podia prolongar muito tempo depois do inevitável envio de reforços, teria permitido a Gills e aos seus cúmplices apoderarem-se
de um frutuoso lucro. E com toda a naturalidade estas proezas seriam imputadas aos índios, essas ovelhas ranhosas de quem vinha todo o mal!...
Mas Catamount não era daqueles que vendem a pele do urso antes de o matar... O resultado que acabara de obter era de importância capital, mas não esquecia que os
lingotes de ouro, objecto de tanta cobiça, se encontravam ainda nos cofres da sucursal do Banco Federal no Presídio do Norte... De um dia para o outro iam partir
com destino a Forte Worth.
Tratava-se portanto de pôr -tudo em andamento para que a preciosa presa não caísse nas mãos daqueles bandidos!
- Os guardas que ocupam o vagão, explicou José, são homens do senador. Não devem opor-nos resistência.
- Carai, tudo isso está bem imaginado... mas mesmo na mais bem imaginada das máquinas, basta um grão de areia para fazer com que não funcione... Em pé, amigo José!
Vamos continuar a nossa conversa na outra margem do Rio-Grande e pôr os teus cavaleiros ao corrente de tudo. Em seguida prepararemos activamente a contra-ofensiva
que se impõe.
- Podes apertar a mão de José, El Barbido! Daqui em diante considera-se teu amigo!
O Comanche estendia a destra na direcção do seu agressor de há pouco; trocaram um cordial aperto de mão. O agente tornou a pôr o Colt no seu estojo. A paz estava
feita...
Três minutos mais tarde os homens tinham montado e dirigiam-se para o rio. Avançaram ao longo da margem sem dizer palavra. Pensamentos bem diferentes lhes enchiam
o espírito. José, livre já do grande medo que sentira, estava completamente decidido a ajudar El Barbido, que considerava um personagem sobrenatural.
Quanto a Catamount, arquitectava maduramente o seu plano. Na verdade seria fácil avisar imediatamente o major Morley da tenebrosa conspiração que se tramava nos
bastidores. Seriam tomadas rapidamente medidas excepcionais de vigilância; os guardas mudados e o ataque ao comboio tornado coisa impossível. Mas o agente sabia
que se seguisse esta táctica o senador e os seus acólitos poderiam escapar ao castigo!... Uma vez esta tentativa frustrada, preparariam outra e assim seria um simples
episódio do qual o grande culpado escaparia mais uma vez, graças à sua infernal habilidade, duplicidade e talento de comediante!...
Não. O que Catamount desejava a todo o custo era esvaziar o abcesso, fossem quais fossem as dificuldades que se lhe oferecessem para conseguir tal resultado!...
Seria necessário que o roubo se efectuasse e produzisse uma enorme sensação. Convinha igualmente que Gills não suspeitasse da réplica que se preparava secretamente
contra ele. À comédia trágica que o senador imaginara, o agente ia opor uma outra comédia. E mais do que nunca se sentia disposto a fazer um jogo cerrado, e levar
ao fim os seus planos que por outro qualquer seriam considerados de uma audácia louca!...
Contudo, o homem de olhos claros, por mais terríveis que fossem as dificuldades, continuava seguro de si!... Corajosamente ia iniciar uma nova luta contra o crime,
uma das mais formidáveis que manteria durante a sua carreira sempre tão preenchida e tão movimentada!...
XII
Os despojos de Catamount
- Continua a não haver notícias de Winter?
- Nenhumas.
Hobart Gills fez um gesto de raiva e trincou o charuto que acabava de acender. Pôs-se a andar para cá e para lá na divisão que ocupava no Salão Estrela, com os polegares
enfiados nas cavas do colete, a testa cheia de rugas e a fisionomia preocupada.
Imóvel, num canto, António olhava para o chefe. Também se não sentia muito tranquilo. Notara que Gills estava de mau humor desde o começo da manhã. Contudo esforçou-se
por acalmar o seu interlocutor.
- Não vejo por que razão está a mortificar-se, senhor. As coisas estão prontas!... Há três dias que esperamos... tornei a falar a José... Os Comanches só esperam
o nosso sinal e o senhor acaba de me dizer que o comboio estava para partir do Presídio do Norte. Temos apenas que, no momento oportuno, prevenir os peles-vermelhas
e desencadear o ataque em Junction Point! Géo Malters e Slim Burgess estão prevenidos?
- Estão dispostos a ajudar-nos.
- Nessas condições não compreendo porque é que o senhor está assim preocupado...
- Queria sentir-me sossegado a respeito de Catamount!...
- Desculpe que lhe lembre: Win ter pediu-lhe oito dias para liquidar o agente. Não sinto simpatia alguma pelo gringo, contudo parece-me que não deve exigir dele
um impossível.
Mas estas palavras não acalmaram o senador: -Se atacamos antes que Catamount seja posto fora de combate, podem surgir as piores complicações.
- Estamos à espera de Nestório Gallego que volta de El Paso. Elucidar-nos-á a tal respeito.
- Já devia ter chegado esta manhã; demora bastante a vir!
Pela quinta vez em pouco tempo, Gills consultou o seu relógio de bolso e ia continuar a falar quando se ouviu bater à porta...
- Vai abrir, António.
Alguns instantes depois entrou na sala um indivíduo.
- Deus seja louvado! exclamou Gills, é Nestório Gallego!
.E dirigiu-se para o visitante. Este parecia ter feito uma longa cavalgada, trazia os safões e o chapéu cheios de pó e o suor escorria-lhe pela cara. Parou e Gills
pegou-lhe imediatamente na manga que sacudiu com força:
- Então, fala, Gallego, voltas de El Paso?
O cavaleiro deixou-se cair na poltrona e durante alguns instantes passou a mão pela testa como se quisesse coordenar as ideias.
Então o senador dirigiu-se para um móvel que lhe servia para guardar bebidas, pegou num copito, e enchendo-o de whisky deu-o ao recém-chegado:
- Bebe .depressa e depois me contarás.
O homem engoliu o líquido de um trago e dando um profundo suspiro exclamou:
- Madre de Dios!... agora estou melhor, muito melhor!
- Fala, por favor! Que há de novo por lá?
Gallego continuou calado e depois disse:
Não notei nada de anormal. Mas que tem, senhor,
parece estar sobre brasas...
Em poucas palavras o senador explicou-lhe a missão
delicada que confiara a Sam Winter. O outro respondeu
com as sobrancelhas carregadas:
- Não conheço Winter senão de nome, senhor, mas não ouvi falar dele em El Paso! É justo acrescentar que, mesmo que esteja lá, deve estar incógnito! Tem todo o interesse
em que as autoridades não saibam da sua presença... Contudo há um pormenor que consegui saber e que pode levar-nos a acreditar que o seu homem conseguiu atingir
o fim que se propunha. Catamount não voltou, e começam a estar seriamente inquietos com a sua ausência...
A fisionomia do político alegrou-se.
- Tens a certeza de que não te enganas?
- Absoluta, senhor. Como sabe, sempre que estou em El Paso, frequento os sítios onde os agentes vão comer... Foi assim que ouvi pronunciar várias vezes o nome de
Catamount. Nem de vista o conheço, mas ninguém ignora a sua reputação.
- E que ouviste a respeito dele?
- Simplesmente isto, mas que tem imenso valor por ter sido pronunciado pelo major Morley em pessoa!
- Pelo major Morley!... O que é que ele disse?
O senador esquecia os transes por que acabava de passar e curvava-se para o outro a fim de ouvir mais atentamente...
- Na própria manhã em que saí de El Paso, quer dizer, ontem, estava eu sentado ao lado da mesa onde almoçava o major Morley e dois dos seus agentes. Voltava-lhe
as costas e assim consegui ouvir parte da conversa do chefe dos gringos e seus acólitos.
- Que diziam?
- Simplesmente que estavam inquietos com a ausência cada vez mais prolongada de Catamount... O agente
fora enviado em missão para a região fronteiriça da Serra de Santiago, a fim de inquirir a respeito das frequentes revoltas dos Comanohes.
O político não conseguiu reprimir um sobressalto:
- Ai! murmurou, eu bem tinha razão em desconfiar!... Aquilo começava a cheirar a chamusco...
- E porquê, senhor? perguntou o Gallego.
- Simplesmente porque a pista do Comanches podia muito bem levar Catamount até à de António e dos seus outros camaradas... e daí a chegarem até min não ia grande
distância...
- Caramba! O senhor é poderoso!
- Talvez, mas Catamount é tenaz! Tem fama de nunca abandonar um inquérito sem conseguir levá-lo a bom termo! Eis porque tendo o acaso feito com que eu deparasse
com um adversário digno dele, me apressei a lançá-lo em sua perseguição.
- Winter era na verdade muito hábil!
- Porque é que dizes era?
- Porque há muitos meses que estavam .persuadidos que o maroto terminara a sua carreira do outro lado da fronteira!...
- Está com tanta saúde como eu, amigo! Mas passemos adiante, estavas a falar-me das inquietações do major Morley. Que mais dizia ele?
- O major não sabia explicar o silêncio daquele seu auxiliar. Habitualmente, Catamount não o deixa sem notícias, e agora há perto de três semanas nada recebia dele.
- Hum! Na verdade Morley tem razão para estar inquieto...
- Ouvi-o até dizer que esperara por Catamount na ante-véspera. O agente prometera-lhe estar em El Paso naquela data para lhe dar as informações que tivesse colhido.
- Mas, se não voltou, evidentemente é um excelente agoiro!... Louvado seja o Altíssimo!... Amigo,
nem sabes que peso me tiras de cima dos ombros! Há todas as probabilidades de que o caminho de Winter se cruzasse com o de Catamount... Mas por que será que Winter
não vem dar-me conta do sucesso da sua missão?
Tem que se lhe deixar tempo para se desembaraçar, senhor! objectou António.
O senador tirou um lenço da algibeira e começou a limpar o suor que lhe inundava a testa.
- Deve ter um pouco mais de sangue-frio, senhor, disse Gallego. Nunca o vi em tal estado.
- Na verdade é estúpido, respondeu o político. Mas que querem, amigos, é mais forte do que eu, há dois dias que não vivo! Parece-me que nos vai acontecer qualquer
desgraça!...
- O senhor que habitualmente é tão destemido!... -? É verdade; é estranho, mas nestes últimos tempos
tenho sido assaltado por pressentimentos sinistros. Tenho a impressão que a atmosfera já não é a mesma!... Os outros tentaram sossegá-lo, mas replicou:
- É mais forte do que eu... A lembrança de Catamount não me sai do espírito. E contudo nunca vi esse homem! Há poucos dias ainda nem sequer pensava em dar cabo dele.
E agora parece-me que a sua morte é para nós todos de uma importância vital!...
-. As informações que lhe trouxe são para sossegar, insinuou Nestório.
- Sem dúvida, mas são simples probabilidades. E eu queria ter provas! E como a partida do comboio para Forte Wortto. pode dar-se daqui a algumas horas, que faremos
se Catamount ainda viver?
- O senhor falou de Winter e parece-me que é ele que aí vem...
Mal António acabou de dizer estas palavras o senador ergueu-se bruscamente e, agarrando no braço do mexicano, exclamou:
- Que dizes, amigo!
- Ora veja com os seus próprios olhos... não há dúvida que é Winter que aí vem!
Dali a alguns instantes estavam os três à janela... A figura de um cavaleiro que se aproximava chamou imediatamente a atenção do trio.
-.Santo Deus! murmurou o político. Não há engano possível, é Sam Winter!...
Gallego examinava o recém-chegado com grande atenção:
- Aquele tipo é Win ter? .perguntou ele com as sobrancelhas franzidas.
- Sam Winter em carne e osso, insistiu o senador, apresento-vo-lo em liberdade, o que não é dado a toda a gente!...,
O mexicano continuava a fitar o cavaleiro e este, sem suspeitar a atenção de que era alvo, saltava do alazão. O pêlo deste, branco de espuma e o fato empoeirado
do cavaleiro, provavam que tinham ambos feito grande jornada. Os saiões de Winter estavam riscados pelos espinhos dos cactos.
-Olha, parece que traz um embrulho...
Trazia com efeito uma espécie de saco ao ombro; depois de ter atado o cavalo perto dos outros dirigiu-se para o Salão.
- Depressa, António! exclamou Gills, vai ao seu encontro e diz-lhe que desejo falar com ele imediatamente.
O outro assim fez.
O político ficou sozinho com Gallego e, vendo que este abanava lentamente a cabeça, perguntou:
- Que tens tu, amigo?
- Pouca coisa... mas é curioso! Não fazia ideia que Winter fosse assim... aquele andar arrastado...
- Não tem remédio senão tornar-se diferente para afastar as suspeitas dos xerifes e dos polícias que andam na sua peugada. Só a barba bastava para o tornar irreconhecível.
Ouviram-se uns passos pesados, o que lhes deu a saber que António voltava trazendo consigo Winter. E dali a pouco a figura deste surgiu na moldura da
porta. Viva, senhor Gills! com certeza não esperava
ver-me tão cedo!... Diga antes que eu ardia de impaciência por saber
o que era feito de si, respondeu o senador.
- Então eu não lhe tinha pedido um prazo de oito dias?...
-. E também me tinha prometido trazer o nosso homem morto ou vivo!...
- Shiu... não fale tão alto!... murmurou Winter, enquanto António fechava a porta.
Houve um silêncio. Nestório continuava a observar atentamente o visitante. Este também reparou nele e as suas sobrancelhas franziram-se... Gills achou que devia
intervir:
- Tem razão, esquecia-me de os apresentar. Sam Winter apresento-lhe Nestório Gallego, camarada que volta de El Paso e que eu tinha mandado vigiar um pouco o que
se passava com os agentes.
Catamount fitou o mexicano durante alguns segundos.
- Tem a certeza da sinceridade deste homem, indagou ele.
Gallego ia protestar com veemência quando um gesto de Winter o fez parar:
- É que o que eu vou dizer é tão importante que acho que valia mais que conversássemos os dois a sós.
- Esteja descansado. Você já conhece António e Nestório é também um amigo seguro; não tenho segredos para os dois.
- Que importa! Prefiro que estejamos sós!
O homem de olhos claros insistia de tal forma que o senador compreendeu que não podia hesitar mais
tempo. Ele não falaria enquanto os mexicanos ali estivessem.
- Então vocês podem esperar por mim na sala grande; não me demorarei.
Os outros saíram de má catadura.
O falso Winter esperou que o ruído dos passos se afastasse; e para ter a certeza foi espreitar pela greta da porta...
Gills olhava para aquilo tudo, interdito:
- Que grandes precauções!... exclamou ele. Poderá dizerme, meu rapaz, o que é que tudo isto significa?
- Só cá vim para isso! respondeu o agente com uma voz muito calma, mas, por maior que fosse a confiança que deposita nestes dois homens, não queria que eles nos
perturbassem. Ao pronunciar estas palavras aproximava-se da mesa atrás da qual o senador acabava de se sentar. Lentamente pegou no saco de couro que trazia ao ombro,
e abriu-o; durante alguns segundos Gills viu-o procurar no interior do saco e depois pousar perto dele um embrulho de pano preto.
- Desculpe eu não ter podido trazer-lhe o corpo, senador, mas deve concordar que era difícil de transportar, e que a boa gente de Haymond não deixaria de se admirar!...
- O corpo?... balbuciou Gills, confesso-lhe que não compreendo...
- Depressa compreenderá, olhe!...
Desatou o pacote preto, e apresentou ao senador alguns objectos que o deixaram pasmado...
- Examine de mais perto, senhor Gills, continuou o homem de olhos claros. O que é essa placazinha de metal prateado que aí está?
O outro pegou no objecto indicado e examinou-o com atenção:
. Santo Deus! Que eu fique ceguinho se isto não
é a insígnia de um polícia rural... e que número tem?
- O número 73!...
Pode verificar e colher todas as informações
necessárias, e saberá, senador, que o número 73 pertence ao célebre Catamount.
E sem dar tempo a que o outro o interrogasse continuou:
- Aqui estão também as esporas de Catamount, a sua carteira, os seus papéis, e, para completar o love, trago-lhe o seu cinto de armas com as suas iniciais e os seus
dois revólveres!... Não vê o C gravado em prata nas coronhas de marfim dos Colt de calibre 45, o único calibre que o agente usava!...
Hobart Gills pegava no cinto e nos estojos que o seu interlocutor acabava de tirar da sacola de couro... examinava-os cotn uma atenção apaixonada. As armas com uma
atenção apaixonada. As armas eram magníficas mas não podiam servir de objectos de convicção por ser a primeira vez que ele as via. Contudo o exame dos papéis de
identidade convenceram-no imediatamente... Estavam ali, com efeito, os papéis que diziam respeito a Catamount...
- Meu Deus! Como é que você encontrou tudo isto? murmurou ele levantando a cabeça.
O agente contentou-se em tirar tranquilamente um charuto da caixa que estava em cima da mesa, e depois de acender um fósforo curvou-se e fitou os olhos do político.
- Senador, acha que um espertalhão como Catamount possa consentir que lhe arranquem os seus papéis, a sua insígnia e as suas armas sem ser vencido?...
Aquele argumento não tinha resposta... No cúmulo da emoção, Hobart Gills balbuciou:
- Então, sempre conseguiu matá-lo?
O homem de olhos claros abanou a cabeça afirmativamente:
- Já nada tem a temer de Catamount, disse ele com simplicidade.
XIII
A ordem de ataque
Durante um momento o senador examinou ainda os papéis. Não havia dúvida possível. Todos pertenciam ao célebre agente e, para que estivessem em poder de Sam Winter,
com certeza fora necessário que este tivesse dado cabo de Catamount. Não se podiam exigir provas mais indiscutíveis.
- Como é que você conseguiu surpreendê-lo? indagou Gills voltando-se para o visitante que esperava, impassível, do outro lado da mesa.
O homem de olhos claros lançou uma bafurada de fumo para o tecto. Veio-lhe aos lábios um sorriso enigmático:
- Por agora guardo segredo disso, senador. Será informado de tudo em tempo oportuno, mas, para o sucesso do seu plano e do meu, tenho que ser o mais discreto possível.
- Compreendo a sua discrição, meu rapaz, contudo acho que comigo...
- Repito-lhe que não tardará muito que me não felicite por trabalhar assim... Prometi trazer-lhe Catamount morto ou vivo antes de oito dias! Já aí tem os papéis
dele e dentro em pouco vê-lo-á em pessoa!
- Mas se você o abateu...
- Hei-de trazer-lhe o seu corpo! Tinha-lhe pedido oito dias. E se antecipei, é porque calculei que o
senador estivesse impaciente... Agora calculo que esteja satisfeito!...
Catamount exprimira-se com a maior calma e isto impressionara Gills favoravelmente. Recordava as informações que lhe trouxera Nestório e que concordavam absolutamente
com as breves declarações do falso Winter. Se o agente não tinha voltado para El Paso e o major Morley começava a sentir grandes inquietações a seu respeito, era
simplesmente porque lhe tinham dado cabo da pele...
- Na verdade, Winter, você é um homem estranho!...
- Não gosto de deixar arrastar as coisas, respondeu com a entoação mais tranquila do Mundo. Agora já sabe em que ponto estamos... Vou-lhe pedir uma coisa!...
Gills ia a levar a mão à carteira porque já esperava que o outro lhe fizesse pagar caro aquela façanha. Mas Winter, que compreendera o seu gesto, abanou negativamente
a cabeça:
.- Mande para o diabo os seus dólares, senador! Agora que eu lhe trouxe provas indiscutíveis do meu feito quero pedir-lhe simplesmente que me torne a dar os papéis,
o cinto, os revólveres e o distintivo.
O político pareceu ter estranhado este pedido, mas o outro insistiu:
- Peço-lhe isto, primeiro, porque gostaria de conservar estes trofeus como recordação da minha vítima. Depois, julgo que seria perigoso para si guardá-los na sua
secretária! Poderiam suspeitar de imensas coisas e fazerem-lhe em seguida perguntas que o embaraçassem!
((Porque não há dúvida que o major Morley revolverá céu e terra para tentar encontrar o seu precioso auxiliar!...
- Eu poderia dar-lhe o mesmo conselho, respondeu
Gills. Admitamos que viessem a reconhecer o cinto ou os revólveres do agente...
- Esteja tranquilo, saberei furtar-me a todas as perseguições!...
- Nessas condições fique com tudo.
O homem de olhos claros apressou-se a guardar os objectos no saco de couro.
- E agora, continuou ele, que devo fazer para lhe ser útil?
Gills hesitou: pensou primeiro pedir-lhe para ficar à sua disposição e ajudar os seus acólitos que se preparavam para atacar o comboio de Forte Worth; mas António
e mais três já estavam comprometidos no caso e perfeitamente de acordo com José... A entrada deste no assunto talvez complicasse a situação, tanto mais que os mexicanos
não sentiam grande simpatia por Winter.
- Não se afaste muito de Haymond, disse ele. De momento não vejo em que é que me poderia ser útil, mas posso precisar de si de um momento para o outro.
- Combinado! Estarei à sua disposição e todos os dias virei ao Salão Estrela.
- Seja prudente. Steve Morrei, o xerife, é frequentador desta casa e não parecia ter muito boas intenções a seu respeito.
- Pode estar descansado, senador. Morrei não é para mim um adversário perigoso.
- Mas também há Ben Kenny, o rei do Colt, a quem você infligiu tão grande derrota. Olhe que ele é vingativo e capaz de atacar à traição.
- Dar-lhe-ei outra lição...
E ao pronunciar estas palavras acariciava as armas que trazia no cinto. Gills não pôde deixar de admirar o seu maravilhoso sangue-frio.
Você é um ás, Winter.
O homem de olhos claros dispunha-se a despedir-se do senador quando se ouviram duas pancadas na porta.
Entre! disse Gills.
Apareceu-lhe António trazendo na mão direita um papel. Vinha nervoso.
- Trouxeram-no agora mesmo, disse ele entregando o papel ao chefe. O agente surpreendeu neste momento uma espécie de relâmpago no olhar do político. Rasgou o sobrescrito
e leu rapidamente o conteúdo. Mas a sua máscara contraída serenou:
- É esta noite, amigo! disse ele. O comboio estará em Junction Point à meia-noite e dez. Previne imediatamente José para que estejam prontos. Géo Malterr e Slim
Burgess prepararam tudo!
O mexicano, que voltava as costas a Catamount, fazia sinal ao senador de que seria imprudente continuar a falar na frente de Winter. Gills encolheu os ombros. Não
desconfiava do seu acólito. Contudo, voltou-se para o homem dos olhos claros:
- Não lhe tomo mais tempo, meu rapaz. Catamount não insistiu, apertou a mão a Gills,
deixando-os todos a discutir.
As poucas palavras que o político acabava de pronunciar deixaram-no elucidado... Por José conhecia todos os .pormenores da tentativa audaciosa que se preparava e
de que os Comanches deviam ser os principais autores. O comboio de Forte Worth que passaria à meia-noite em Junction Point levaria os lingotes de ouro do Banco Federal
do Presídio do Norte.
Completamente descansado a respeito de Catamount, Gills podia actuar com o espírito tranquilo.
Catamount chegou rapidamente à grande sala do Salão Estrela. A assistência era numerosa, custou-lhe a alcançar a saída. Quando já estava próximo desta olhou para
o balcão e viu um homem encostado, um pouco à parte. Reconheceu imediatamente Ben Kenny.
O rei do Colt também reconheceu o seu vencedor
e a fisionomia crispou-se-lhe; mas o agente já tinha desaparecido no meio da multidão. No momento em que descia os poucos degraus que levavam à sala, cruzou-se com
um segundo indivíduo que reconheceu imediatamente. Era Steve Morrei, o xerife. Sem se -perturbar passou junto dele e levou rapidamente a mão ao chapéu. Mas o representante
da autoridade fê-lo parar bruscamente.
- Encantado por o encontrar, senhor Doyle! Intencionalmente destacava o apelido e o seu olhar
não largava Catamount. Parecia querer descobrir nele qualquer sinal de desconfiança ou receio. Mas nada disso sucedeu: o homem de olhos claros estava imperturbável,
- Também me sinto feliz por o ver, xerife! Trocaram um aperto de mão.
- Que tem feito desde outro dia?
- Tenho passeado nos arredores.
Mas esta breve explicação pareceu não ter satisfeito o seu interlocutor.
- Contudo você não tem ar de um turista...
- O seu cargo já lhe deve ter feito saber que por vezes é perigoso fiarmo-nos nas aparências, respondeu o agente com um sorriso quase imperceptível. Chega-se a cometer
grandes erros!
Morrei franziu ligeiramente as sobrancelhas. Esta resposta tinha toda a aparência de uma lição...
- Você vaime explicar o que quer dizer com... Mas o outro não lhe deixou acabar a frase:
- Neste momento é impossível, xerife. Estou com pressa. Se desejar outros esclarecimentos, dirija-se ao senador Gills.
O nome do político atenuou a irritação profunda que o agente da autoridade estava sentindo. Pronunciou uma exclamação abafada, mas já Catamount descia rapidamente
os degraus e ia buscar o alazão.
Que homem tão atrevido! Hei-de-lhe dar uma
lição! murmurou o xerife furioso.
Olá, xerife! Tenho a certeza que algumas pessoas
davam este mundo e o outro para saber exactamente quem é este figurão!...
O xerife voltou-se para ver quem lhe falava:
Ah! é você, Ben Kenny, que tem feito?
O rei do Colt limitou-se a emitir uma espécie de grunhido e Morrei não insistiu. As cicatrizes e numerosas marcas que Kenny conservava do seu recente pugilato, estavam
ainda suficientemente aparentes para explicar a demorada ausência que tinha feito...
- Evidentemente, murmurou o xerife piscando o olho, você deve ter uma amizade ao Doyle...
- Saberei tirar a minha desforra, xerife, respondeu o antigo campeão em voz sibilante. Este maroto precisa de uma lição e tenho a certeza que se metermos o nariz
no seu passado encontraremos alguns episódios que a si, como xerife, devem interessar extraordinariamente!...
Morrei coçou a cabeça muito embaraçado.
com certeza que se dependesse apenas dele, mostraria mais entusiasmo em conhecer a identidade do homem de olhos claros, mas não esquecia que Gills afiançara Jack
Doyle, e como o senador era seu protector e podia influir decisivamente nas próximas eleições, era portanto prudente ficar na reserva...
- Se eu tivesse provas da culpabilidade daquele indivíduo, metê-lo-ia na cadeia com grande prazer! contentou-se em responder.
- Conte comigo para lhe fornecer provas edificantes, xerife, declarou Ben Kenny. O nosso homem não tardará a voltar para Haymond, e então seguir-lhe-ei os passos
e conseguirei...
- Viva, xerife! Que tem feito? Não consegui encontrá-lo esta manhã. Morrei teve que acabar com a conversa. Reconhecia a voz do senador. Gills aparecia
à entrada do salão, precedido por António e por Nestório.
Ao ver o representante da autoridade, o político compreendeu que tinha que assegurar a retirada dos seus dois cúmplices sem levantar suspeitas. Sobretudo, por causa
da empresa criminosa que preparava, desejava arranjar um alibi.
-Desta vez, xerife, não o largo, declarou ele. Mandei pôr de parte uma garrafa de Champanhe e o cozinheiro do Estrela fará maravilhas. Em seguida poderemos passar
juntos parte da noite e fazermos uma boa partidinha de poker.
Ben Kenny voltou para o balcão, onde continuou sozinho a ruminar as suas ideias de vingança. E enquanto o senador e o xerife entravam de braço dado na sala, António
e Nestório dirigiram-se para o local onde estavam os cavalos. Três homens esperavam sentados no chão a jogar as cartas. Eram os três mexicanos que tinham ido ter
com António a Joshua Bluff.
- Então, amigo, perguntou um deles levantando-se precipitadamente.
Sem dar uma explicação, António ordenou:
- Todos a cavalo! É esta noite!...
E dali a pouco galopavam em direcção à Serra de Santiago.
Mas um homem já os tinha precedido. Catamount corria levado pelo seu fiel Mezquita.
-. Coragem, velho camarada, desta vez vamos jogar uma partida importante.
O agente soubera tomar as suas disposições. Tinha a certeza que podia contar com a ajuda de José e dos seus Comanches. Estes últimos, parecendo seguir as indicações
dos agentes de Gills, obedecer-lhe-iam mais desejosos do que nunca de ganhar os prémios prometidos. Em poucas horas a diplomacia de Catamount vencera os tenebrosos
manejos do político. O chefe dos Comanches ficara primeiro impressionado com a ameaça
do homem de olhos claros; mas dentro em pouco compreendera toda a vantagem que podia tirar colaborando com ele. A recordação desagradável do que tinham sofrido durante
o primeiro ataque à diligência, incitava-os a alinhar ao lado do mais forte, tanto mais que o agente prometera arranjar as coisas e afastar qualquer represália.
O sol ia esconder-se atrás da Serra. Catamount, sem diminuir o andamento do alazão, olhou para trás:
-. Ninguém, murmurou ele, vamos com um avanço suficiente. Mas convém que nos apressemos mais, porque os nossos bons amigos não tardarão a chegar às proximidades
de Junction Point!
Catamount sabia onde encontrar José. Sabia também que os acontecimentos se iam precipitar durante a noite. Às vezes sorria ao pensar nas conversas que tivera com
Gills, que nem sequer tivera a mínima suspeita da sua verdadeira identidade.
Dali a pouco afastou-se da pista que seguia desde a sua partida de Haymond, e guiou Mezquita através dum terreno bravio, parecido com os declives da Serra de Santiago.
A escuridão chegou por fim e o agente ficou satisfeito com ela. A noite era com efeito para ele a melhor das aliadas. Durante uma hora continuou a cavalgar até que
chegou a um maciço de cactus onde fez para o cavalo. Acariciou o seu pescoço húmido e imitou por três vezes o piar da coruja.
Respondeu-lhe a pouca distância idêntico sinal e alguns segundos mais tarde apareceu um cavaleiro por detrás dum grupo de rochedos. Era José. Dali a pouco estavam
juntos.
- Podes preparar-te, amigo! Os homens de Gills não tardarão a chegar! É esta noite!... e eles não devem suspeitar...
- Não suspeitarão de nada, José preveniu os seus irmãos!
- José trouxe os fatos e o cavalo?
- Está tudo ali em baixo, na escuridão. -. Muito bem!
Dirigiram-se para o sítio indicado. Estava lá um cavalo baio selado à indiana. Tinha em cima uma trouxa volumosa.
O homem de olhos claros desmontou e abriu o pacote. Encontrou calçado de índio, umas calças, um zarape, uma tira para a cabeça e algumas penas de águia.
-. Parece-me que farei um Comanche muito apresentável!
Enquanto o pele-vermelha segurava Mezquita, Catamount tirou o fato e vestiu o disfarce que lhe trouxera o seu companheiro. Em menos de cinco minutos operou-se uma
transformação completa.
- É pena não ter um espelho, disse Catamount rindo. Devo estar irresistível!...
- E a tua barba, El Barbido!
- Está descansado, saberei remediar esse inconveniente, e ninguém desconfiará de nada.
E tirando do seu saco de couro um lenço preto, atou-o à volta da cara por debaixo dos olhos, deixando apenas o espaço suficiente para ver.
- Dirás aos teus homens que tomem a mesma precaução, e ninguém me reconhecerá entre o grupo.
-. Que hás-de fazer ao teu cavalo?
- Deixá-lo-ei aqui. E virei buscá-lo quando o caso estiver terminado. E foi prender Mezquita atrás duns rochedos. Fez-lhe umas festas para o tranquilizar.
- Tornaremos a ver-nos antes do fim da noite, velho camarada; mas é absolutamente necessário que aqueles gentlemen não possam reconhecer-me. Tu comprometerias tudo!
Embrulhou o fato que tirara, colocou-o perto de Mezquita, montou no baio e dois minutos mais tarde seguia já em companhia de José em direcção a Junction Point.
XIV
O negócio de Junction Point
O comboio corria através da noite. No vagão blindado Géo Malterr e Slim Burgess esperavam, com a carabina entre as pernas. Os dois guardas que tinham sido propostos
para vigiar os lingotes de ouro que o Banco Federal do Presídio do Norte enviava à sucursal do Forte Wbrth, esperavam sentados perto da caixa que continha o precioso
metal.
Uma única lâmpada eléctrica iluminava o recinto. Os dois homens pareciam ansiosos. O comboio acabava apenas de sair do posto da fronteira do Rio-Grande e já se sentiam
cheios de apreensões.
- Oxalá não suspeitem de nada na Direcção! balbuciou Malterr que parecia ser menos enérgico.
- Podes estar descansado, Gills com certeza que previu tudo. E mesmo que viéssemos a perder o nosso emprego, o senador arranjar-nos-ia outro ainda mais lucrativo.
E os mil dólares que prometeu a cada um de nós são uma recompensa tentadora!
- Não há dúvida, mas quem nos diz a nós que os índios não fingirão apenas um ataque? Naquela confusão podem muito bem ferir-nos, matar-nos... O caso da diligência
não se passou sem bordoada, não te lembras?...
Com um gesto maquinal Malterr afastou o chapéu que trazia e passou a mão sobre a cabeça.
- Olá, rapaz! disse Slim rindo-se, terás medo de ficar sem o teu crânio?
Como o outro fizesse uma careta, insistiu rindo:
- Os Comanches progrediram bastante, tem a certeza, e Gills prometeu-nos que tudo se passaria sem dificuldades.
- Sim, mas temos que fingir que combatemos para provar que oferecemos resistência e que nos defendemos o melhor possível. Pela minha parte aceitarei de boa vontade
alguns galos que me permitirão colher uma boa provisão de dólares! Quanto às complicações possíveis num futuro próximo, com certeza serão compensadas com as gratificações
do senador!
Falara com eloquência mas o companheiro não se mostrou convencido. Continuou:
- O senador tem que nos pagar bem... Bastaria uma pequena indiscreção da nossa parte para a sua situação ficar irremediavelmente comprometida. Mas nós todos temos
o maior interesse em continuar ao seu serviço. Paga bem aos empregados!... Ora vamos, um pouco de coragem.
E a discussão ficou -por aqui.
Malterr de vez em quando consultava o relógio:
- Meia-noite menos dez, murmurou. Ainda estamos a um quarto de hora de Junction Point. Quem me dera que já tivessem passado algumas horas!...
- Tudo correrá bem e tu próprio rirás dessas apreensões.
Géo abanou a cabeça. Sentia-se cada vez mais obsecado por sombrios pressentimentos; o seu olhar pousou-se no cofrezito de madeira selado com lacre vermelho. Era
naquela caixa de pequenas dimensões que estava fechada uma verdadeira fortuna. E o guarda lembrou-se que para se apoderarem dela havia naquele momento homens embuscados,
prontos a atacar.
Passaram mais alguns minutos, imensamente lentos para a vontade dos dois homens. Slim saiu do silêncio
que mantinha e declarou um pouco alto, de forma a cobrir o ruído das rodas e dos eixos:
Então está entendido? Quando eles atacarem, tu
deixarás roubar a caixa depois dum simples simulacro de -resistência ...
- Entendido!
O comboio prosseguiu o seu caminho através da noite. Era composto por uns quarenta vagãos de mercadorias e vagãos tanques. Havia mais quatro guardas, um mecânico
e um motorista; e era todo o pessoal; fraco efectivo, na verdade, para enfrentar o ataque de José e dos seus homens!
A agulha do relógio de Géo Malterr indicava meia-noite e três, quando se ouviu um leve ranger seguido dum brusco estremeção...
-. O comboio vai a parar, murmurou Slim ao ouvido do camarada.
O guarda adivinhava... No momento em que se aproximava da curva de Junction Point, o maquinista acabava de notar uma travessa de madeira posta na linha. Então, para
evitar que o comboio, que ia com velocidade, descarrilasse, travou bruscamente.
A locomotiva deslizou ainda sobre os carris numa distância talvez de cem passos, e depois .parou no meio de uma nuvem de vapor e de fumo, a alguns metros apenas
do madeiro...
Ou viram-se gritos na noite... Enquanto a locomotiva continuava a resfolegar, os empregados, munidos de lanternas, esforçavam-se por descobrir as razões que tinham
motivado aquela paragem.
Na noite ouviu-se um assobio estridente.
- Atenção! murmurou Slim. Creio que chegou o momento...
Os dois homens correram para a porta do vagão e dando a volta às enormes fechaduras, fizeram-nas deslizar; depois, ansiosamente, espreitaram para fora.
Os carris brilhavam ao luar. Não se via ninguém
no terreno rochoso que rodeava a linha, quando, de repente, perturbando o grande silêncio que se seguira ao assobio do maquinista, se ouviram berros ferozes seguidos
de muitos tiros.
- São os Comanches! murmurou Géo ao ouvido do companheiro.
Ao acaso, atirando para o ar, os dois guardas descarregaram as suas armas. As trevas povoavam-se de ruídos, de gritos selvagens, de clamores, de detonações intermitentes...
Grande número de homens que estavam emboscados atrás dos taludes intervinham.
Surpreendidos por este ataque, os guardas do comboio dispararam, mas as silhuetas dos assaltantes disfarçavam-se facilmente na escuridão.
Os índios puderam escapar aos tiros dos empregados do comboio prosseguindo rapidamente na sua manobra. Localizaram logo o vagão blindado que os guardas tinham entreaberto.
Viam-se nitidamente as duas sentinelas: Géo e Slim Burgess.
E eis que de repente se ergueu uma sombra diante dos dois homens... com um revólver na mão e a cara dissimulada por um largo lenço preto, o índio apontava-lhes a
arma:
- Nem uma palavra, nem um gesto! comandou ele, senão mato-os.
Aquele tom imperativo desconsertou até o próprio Slim.
- Permita, começou ele... somos Burgess e Malterr... estava entendido...
- Deitem as suas armas para a linha!... O tom empregado não autorizava réplicas. Tremendo de medo Malterr fez o que lhe mandavam e o companheiro imitou-o.
Muito bem, agora não se mexam!
O índio continuou de pé perto da entrada do vagão e deu imediatamente um ligeiro assobio. Apareceram
quatro silhuetas de Comanches que também tinham a cara tapada e se içavam para dentro do vagão:
. Sabem o que "têm a fazer, amigos! disse o primeiro em espanhol.
Os outros não responderam e apressaram-se a levantar a caixa dos lingotes que levaram imediatamente para fora, pousando-a na linha.
Os dois guardas, de mãos erguidas, imaginavam que a comédia ficaria por ali, mas mal os quatro peles-vermelhas saltaram para as trevas levando com eles a preciosa
presa, o desconhecido ordenou-lhes, mais enérgico do que nunca:
- E agora, saltem!...
- Como, balbuciou Slim, quer que saltemos... mas eu julgava...
- Saltem! Ordem do senador! insistiu o homem. Os dois guardas calaram-se e obedeceram pensando que o político tinha modificado o plano primitivo. Mas mal os seus
pés tocaram no cascalho, surgiram à roda deles numerosas sombras; e antes que pudessem tentar a menor resistência, sentiram-se amordaçados e com os movimentos presos.
- Pronto, comandou a voz do homem que os mantivera em respeito... Levem-nos para onde sabem!...
Atabafados, sentiram-se erguidos e transportados a uma .certa distância. O resfolegar da máquina indicava-lhes que o comboio continuava parado; ouviram ainda alguns
tiros.
De ambos os lados da via os índios operavam agora uma rápida retirada. Deixando alguns Comanches escoltar os dois prisioneiros, o indivíduo que parecia comandar
o ataque juntou um grupo de trinta índios, e em poucos momentos correram para o local onde tinham deixado os cavalos. A caixa preciosa foi levada, colocada no chão
e o chefe do bando arrancou os selos de lacre e a tampa da caixa, enquanto mãos ávidas se estendiam para os lingotes..,
Enquanto esta cena se passava, cinco cavaleiros esperavam a menos de uma milha de distância dali. Estavam todos a cavalo, atentos ao menor ruído, e olhando em direcção
da via férrea do Presídio do Norte a Forte Worth...
Tratava-se de António e dos seus quatro acólitos. Seguindo à letra as instruções que tinham recebido do chefe, esperavam que o ataque ao comboio fosse bem sucedido;
porque tinham cuidado em não tomar parte activa na acção..O plano de Hobart Gills exigia que esta nova proeza fosse posta no activo dos Comanches em revolta. Depois
de terem conversado com José e seus homens, com quem tinham ido ter pouco tempo depois de Catamount ter partido de Hayimond, os miseráveis começavam a sentir um
certo nervosismo e olhavam ansiosamente na direcção do Norte. Tinham ouvido" as detonações e acharam que os defensores do comboio tinham oposto pouca resistência.
Passaram dez minutos e já não se ouviam tiros..
- Carài! resmungou o mexicano, vão dar tempo a que os -reforços cheguem; que estarão a fazer?
- Atenção! disse Nestório, parece-me ouvir o galope de vários cavalos.
Não se enganava. Começaram a divisar um grupo talvez de uns dez cavaleiros que se aproximavam rapidamente. No meio vinha um cavalo com uma albarda..
- Enfim! exclamou António, lá vem o ouro!...
A fisionomia do mexicano serenou mais ainda, ao reconhecer José. Dali a pouco este chegou junto do grupo.
- Então, perguntou-lhe ansiosamente; tudo- bem?
- Muy bien! respondeu o índio.
- Trazes a caixa?
- A caixa está ali, mas embrulhámo-la para não levantar suspeitas e causar-vos complicações.
Excelente ideia, embora fosse muito curioso contar os lingotes..,
Vêem-nos e contam-nos quando chegarem junto
do sr. Gills! Quanto a nós compreendem muito bem que temos de voltar o mais depressa possível para o lado de Já da fronteira. Damo-vos o cavalo onde está a caixa,
façam dele o que quiserem, porque o senhor Gills foi muito generoso para nós!
- Amanhã ao meio-dia estarei no sítio combinado, com os dólares.
- Buenas noches, amigo!
José contentou-se em deixar o fardo e o cavalo e fazendo um sinal aos companheiros desataram a galopar. Iam na direcção do Rio-Grande onde já os tinham precedido
os outros cavaleiros que haviam tomado parte no ataque ao comboio.
A -pouca distância para os lados de Junction Point, ouviam-se os silvos estridentes da locomotiva, por isso os mexicanos .acharam prudente não se demorar mais na
região. E desataram a correr a toda a brida para os lados de Haymond. De vez em quando olhavam para trás mas nada notaram de anormal; pareciam levar o diabo atrás...
Por fim apareceram as luzes da cidade. António parou e fez sinal aos companheiros para que fizessem o mesmo:
- Parem, amigos, temos agora que combinar. Voltar de noite, duas horas depois do ataque ao comboio e do roubo dos lingotes, podia levantar suspeitas...
- O sr. Gills espera no Salão, declarou António, está a jogar o poker com o xerife.
-. Mas para onde havemos de levar a caixa? perguntou Nestório.
- Para a cabana de Rio-Tingel! Bem sabes que o senador recomendou isso.
A cabana de Rio-Tingel era uma espécie de pardieiro construído em adobe e que era a cinco milhas dali, na região das colinas. O senador reunia-se por vezes lá com
os seus cúmplices.
- Agora podemos respirar um pouco, disse António, já nada temos a temer!...
- Quanto tempo ficaremos lá?
- Só até ao fim da tarde. com certeza que o senador não tardará a ir ter connosco. Mas agora deve afastar as desconfianças! E há-de consegui-lo como das outras vezes,
quando se tratou da morte de Kenner e de Lemblin. Também se não descobrirão os verdadeiros ladrões dos lingotes. As culpas do caso serão atiradas para cima dos Comanches;
por isso podemos dormir descansados.
António falava com convicção e os seus quatro companheiros também estavam serenos; iam quase a voltar à direita, para o caminho que os levaria à barraca do Rio-Tingel,
quando Nestório lembrou:
- Não vamos tão depressa, amigos! Antes de nos afastarmos, porque é que não havemos de deitar uma olhadela aos tais lindos lingotes?!...
com um rápido golpe de vista os mexicanos certificaram-se que os arredores continuavam desertos e que de momento nada tinham a temer. Aprovaram a ideia do companheiro.
- É verdade, fugimos tão depressa que nem tivemos tempo de ver o que nos deu tanto trabalho!...
Saltaram dos cavalos, desataram o cofre, puseram-se no chão e, ajoelhados, começaram a tirar os panos que os Comanches tinham enrolado para dissimular a presa.
O cofre apareceu enfim... Os selos de lacre tinham sido quebrados, mas este pormenor não surpreendeu ninguém, e mãos ávidas levantaram a tampa.
E eis que de repente se ouviu uma praga formidável lançada por António:
- Não estão cá os lingotes!...
Os mexicanos despejaram o conteúdo da caixa e viram então que estavam na presença de pedras.
O ouro do Banco Federal tinha desaparecido misteriosamente !...
XV
A ameaça do nó corredio
Malter e Slim Burgess continuavam a sentir-se levados através da noite. Por várias vezes tinham tentado libertar-se, mas os nós estavam bem dados e todos os solavancos
que os cavalos davam causavam-lhes grandes dores. Vendo que os seus esforços só complicavam a sua situação, os dois guardas resignaram-se a ficar imóveis. Sentiam
na cabeça um turbilhão de pensamentos. Recordavam-se das directrizes que o chefe lhes tinha dado. Tinham-nas cumprido e por isso aquela prisão, seguida de uma cavalgada
através da noite, os enchia de apreensões.
Os Comanches continuavam a galopar em silêncio. A cavalgada prolongou-se durante mais de uma hora; depois Malterr e Slim notaram que os cavaleiros diminuíam o andamento.
Do galope passaram a trote, depois a passo e dali a pouco os prisioneiros ouviram um barulho de água que identificaram imediatamente. Perto deles corria um rio e
os Comanches seguiam -pela margem.
Não podiam ter dúvidas: chegavam à fronteira. O rio era o Rio-Grande, que os raptores iam atravessar a vau para se porem em segurança em território mexicano.
Desta vez o .medo que sentiam transformou-se em angústia. Pensavam que logo que (passassem os limites entre o Texas e o México ficavam completamente à mercê dos homens que os tinham raptado! Tentaram novamente libertar-se mas estes esforços tornaram-se vãos.
Ouviu-se uma ordem breve. Os índios pararam e começaram a atravessar o rio uns atrás dos outros. Malterr e o companheiro sentiram as "pernas mergulhadas na água
e recearam afogar-se. Mas os cavalos (retomaram pé. com o coração a bater, os guardas esperaram ainda que se desse qualquer intervenção. Os agentes da .polícia rural
podiam patrulhar aquele local e dar combate aos Comanches. Mas esta esperança depressa se desvaneceu: os arredores estavam desertos...
Quando chegaram ao outro lado do rio os peles-vermelhas reuniram-se. Nova ordem do comando e a marcha continuou mais lentamente. Passou-se coisa de um quarto de
hora e o chefe mandou parar os cavaleiros. Géo e Slim ouviram-nos desmontar e sentiram-se agarrados e colocados no chão. Estavam extenuados, mas as emoções não tinham
ainda acabado. A mesma voz breve, que já por várias vezes tinham ouvido, tornou a soar. Pronunciou algumas palavras em espanhol.
Os prisioneiros foram postos em pé por mãos vigorosas, em seguida tiraram-lhes os lenços que lhes tinham atado à volta da cabeça .para que não vissem. Uma leve brisa
acariciou-lhes a testa húmida de suor.
- E agora vamo-nos explicar, caros amigos! Mas primeiro quero avisá-los de que só ganharão em ser sinceros.
Géo Malterr e Slim Burgess voltaram-se para o homem que lhes dirigira estas palavras. Escapou-lhes uma exclamação de surpresa. Quem lhes falava assim em bom inglês
era aquele Comanche que se lhes dirigira em espanhol, no comboio, e usava um lenço a tapar a cara. Notaram que agora já o tinha tirado. Uma barba curta rodeava-lhe
as faces tisnadas pelo sol.
Não era um índio, mas um branco cuja fisionomia rude e feroz traía uma resolução indomável.
Os Comanches agrupavam-se à volta. Os seus olhares implacáveis convergiam para os dois prisioneiros que cada vez se sentiam mais angustiados. -. Olhem para a vossa
esquerda! Os dois homens estremeceram e uma palidez súbita invadiu-lhes a fisionomia. Viram duas árvores erguidas no meio dos rochedos. Eram dois belos algodoeiros
e imediatamente notaram um pormenor. Ambos os algodoeiros tinham enrolado, num dos seus ramos mais altos, uma corda sólida que .pendia tendo na extremidade um nó
corredio.
O mesmo pensamento assaltou os dois companheiros: Aqueles nós corredios tinham sido preparados para eles! De um momento para o outro os seus adversários dispunham-se
a passar-lhos à roda do pescoço, para os enforcar.
- Pensei que vocês gostam de situações altas, disse o desconhecido com ironia.
Catamount, porque o Comanche de cara tapada era ele, adivinhou imediatamente as preocupações que assaltavam os dois companheiros. Aproximou-se deles e fitando-os
disse-lhes:
- Eu não sou um assassino, mas sim um amigo da verdade. Se forem sinceros, evitarão a morte! E desgraçados de vocês se quiserem enganar-me!
Os dois companheiros não responderam logo. Pelo tom do seu interlocutor comprendiam que aquilo não era uma ameaça vã. Por isso Malterr disse numa voz que queria
ser calma:
- Ignoro absolutamente o que você quer insinuar, e protesto...
- Não admito protestos! Estamos com pressa e não ha tempo para tolerar palavras inúteis.
Seguiu-se um silêncio impressionante. Os índios formavam círculo à roda dos prisioneiros e tudo na sua
atitude feroz indicava que estavam prontos a ajudar o chefe misterioso. A Lua iluminava com a sua pálida claridade esta estranha assembleia. Um pouco mais longe
os cavalos esperavam, repousando das fadigas da sua recente cavalgada.
- Repito-vos que não sabemos do que se trata, repetiu Géo, vocês são bandidos! Atacaram-nos e fizeram-nos prisioneiros... Nada temos a dizer!
- Mais uma vez os aviso de que é perigoso brincar connosco! São acusados e têm apenas que responder às perguntas que vou fazer-lhes se quiserem conservar a vida.
Os dois homens trocaram um olhar. Sentiam-se cada vez mais inquietos e foi ainda pior quando o homem dos olhos claros ordenou aos Comanches:
- Levem esses marotos para debaixo dos algodoeiros e metam-lhes O pescoço naquele nó.
Os prisioneiros quiseram protestar, mas foram levados e dali a minutos, apesar da sua resistência desesperada, estavam ambos imóveis com a corda no pescoço.
- Agora já não há equívocos... ou dizem a verdade ou os vossos cadáveres se balançarão daqui a alguns instantes um bocado acima do chão!
Os prisioneiros estremeceram e Malterr disse em voz trémula:
- Não sei o que é que o senhor quer dizer... que deseja de nós?
- Quero saber simplesmente quem lhes deu as ordens para organizar o roubo dos lingotes de ouro!
Os homens tornaram a olhar um para o outro cheios de estupefacção e Géo respondeu:
- Na verdade, ignoro absolutamente o que quer dizer...
- Basta!... Icem esses patifes!...
Atrás dos prisioneiros três Comanches começaram a puxar os cabos... Géo e Slim sentiram imediatamente
os nós corredios apertarem-se-lhe à roda do pescoço. Transtornados, levantaram-se nos bicos dos pés... Falarei! balbuciou Burgess.
- Ora até que enfim! Dêem um pouco de descanso a esses patifes....
Os índios deixaram de puxar as cordas.
- Não vos peço para dar explicações inúteis, declarou então Catamount, Têm apenas que responder às perguntas que vos vou fazer e que bastarão para vos refrescar
a memória... Saibam que, se quiserem enganar-me, os nós corredios intervêm novamente, mas desta vez subirão para não descer.
Os dois prisioneiros baixaram a cabeça. Viam que nada havia a fazer senão dizer a verdade, .porque nem um nem outro sentiam a grandeza de alma e o sangue-frio dos
heróis...
-.Foi Gills que comandou tudo isto?
.- Foi ele, com efeito, respondeu Géo.
;;Slím aprovou.
.- E como é que ele conseguiu obter o vosso consentimento?
- António já há dias tinha ido ao Presídio do Norte.
- Vocês já sabiam que os lingotes deviam ser transferidos para Forte Worth?
- Ainda não tínhamos sido informados, mas o senador soubera no conselho que essa transferência devia ser feita em breve. A decisão fora tomada dentro do maior segredo
pelo conselho de administração do Banco Federal, a fim de evitar qualquer ataque.
-. Hobart Gills faz parte do conselho?
- Faz, foi por isso que ainda foi informado primeiro que o pessoal.
- Mas como é que vocês puderam aceitar o oferecimento desse bandido? Não sabiam a tremenda responsabilidade que tinham? O ataque à mão armada pode ser punido com
trabalhos forçados por toda a vida ou até mesmo com a cadeira eléctrica!
No olhar dos dois prisioneiros passou uma sombra. E Slim comentou:
- Eu bem dizia que esta história não trazia sorte... Se me tivessem querido ouvir...
- Mas isso não fez com que você deixasse de ouvir as propostas do senador!... Hobart Gills deve ter oferecido um bom prémio para conseguir empregados zelosos como
vocês dois!... Há muito tempo que estavam ao serviço do Banco Federal?
- Eu estava ao serviço de Forte Worth há sete anos, disse Malterr.
- E eu há cinco, continuou Slim.
- Então devem ter comboiado até aqui um certo número de carregamentos de ouro?
- Sim, um certo número já, e tudo se passou admiravelmente, confessou Malterr.
-? Excelentes razões para trair as pessoas que tinham confiado em vocês! Esperavam que o vosso passado de honradez vos evitasse complicações futuras!... E diziam
para convosco que a protecção de um homem tão influente como o senador faria com que pudessem gozar certa impunidade e meter na algibeira uma boa quantia! Quanto
é que Gills lhe tinha prometido?
- Cinco mil dólares a cada um.
- Era generoso... mas deve-se acrescentar que o carregamento de ouro dava para isso...
- Tenho três filhos, respondeu Burgess. A vida está difícil...
-. A vida é difícil para muita gente honesta que se conforma e não pensa em tomar parte num roubo à mão armada. Vocês deviam ter ouvido primeiro a voz da consciência!
Os dois acusados nem sequer tentaram protestar. Compreendiam que estavam em presença de um adversário terrível que se apercebera perfeitamente do jogo que faziam.
Agora bem vêem que estão à minha mercê. Basta-me levantar um dedo para que os executem imediatamente.
Tenho três filhos, tornou a gemer Burgess.
- Devia ter pensado neles antes de se meter nesta aventura. Mas acreditando que vocês tenham sido apenas cúmplices neste negócio, devem admitir que o principal culpado
seja desmascarado e tenha o seu castigo.
Os dois prisioneiros calaram-se.
- Enquanto vocês se debatem aqui numa situação que nada tem de agradável, Hobart Gills goza de todas as honras e vantagens! Consideram-no personagem importante.
Se vocês não derem todas as provas necessárias para que a verdade seja estabelecida, ele sairá outra vez desta aventura sem o peso das responsabilidades. Eis porque
lhes aconselho a ajudarem-me!
- Mas quem é então o senhor? interrogou Malterr. Quem nos diz a nós que não quer também aproveitar-se desta ocasião.
- Não tenho explicações a dar-vos, basta-vos saber que estou decidido a fazer justiça a todos os ladrões e bandidos que infestam a região. Por mais alto que esteja
colocado o culpado, arrancar-lhe-ei a máscara e apontá-lo-ei à reprovação pública! Não se esqueçam que são vocês que têm de me dar contas e não eu que justificar
a minha conduta.
- Que quer então?
- Exijo um testemunho por escrito. São empregados do Banco Federal e devem saber escrever! Portanto vão agora redigir, num estilo muito claro, um resumo simples
do caso, fixando todas as responsabilidades.
- Queria que nós acusássemos Gills?
- É o vosso dever de homens honestos, mas ainda assim faço-lhes notar que é esse o vosso interesse!
- Gills é poderoso!..,
- A verdade esmagá-lo-á e colocá-lo-á em estado de não poder prejudicar ninguém!
- Negará e hão-de acreditá-lo!... exclamou Slim.
- De forma alguma! Bastará que vocês mostrem certa franqueza e coragem.De resto, enquanto eu for vivo juro-vos que nada terão a temer desse político tarado e miserável!
A voz clara de Catamount impôs-se aos dois homens,
que não hesitaram. Por grande que fosse o medo que o
senador lhes causava, só tinham um meio de salvar as
suas existências gravemente comprometidas: submeteram-se cegamente ao ultimato daquele homem.
-. Aceito, murmurou Burgess baixinho.
E Géo também abanou afirmativamente a cabeça.
Catamount voltou-se então para os Comanches de José, que esperavam à roda, prontos a executar as suas ordens. Fez-lhes sinal para desatarem as mãos dos prisioneiros.
José aproximou-se do agente:
-Vês, amigo. José foi fiel à palavra dada!
- José de futuro há-de regozijar-se por ter procedido assim! Compreenderá que se tudo se passasse segundo os desejos do senador, José e os seus homens arrostariam
com a -responsabilidade do roubo dos lingotes de ouro e isso faria desencadear imediatamente uma campanha contra os índios, tão séria que o castigo que os soldados
lhe infligiram, quando do assalto à diligência, parecerá um jogo de crianças...
O agente tirou então da algibeira duas folhas de papel cuidadosamente dobradas e entregou-as aos prisioneiros. Deu-lhes também uma caneta de tinta permanente e dali
a pouco as acusações estavam feitas. Eram formais, tanto contra Gills como contra António e os outros. Constituíam provas esmagadoras.
Catamount releu cuidadosamente as duas acusações e fê-los assinar. Depois dobrou as folhas e meteu-as debaixo do cinto de couro.
- Agora vocês só têm que esperar, não perdendo a
esperança, que se faça justiça o mais rapidamente possível!
Que vai fazer de nós?
Terão que ter paciência e ficar junto dos nossos
amigos Comanches. Quando chegar a altura de deporem como testemunhas, irão a Haymond e prometo intervir eficazmente para atenuar as penalidades a que vos podem condenar.
Não esquecerei que a importância dos testemunhos de vocês apressou o desfecho deste caso. Mas está entendido que tomarão todas as responsabilidades necessárias...
Consideram-se actualmente como se estivessem à disposição da Justiça!
Catamount não se demorou mais. Trocou algumas palavras em voz baixa com José e depois saltou para o cavalo e, acompanhado de um Comanche, partiu, deixando os cativos
guardados pelos novos aliados. Uma hora mais tarde o agente, depois de ter atravessado o Rio-Grande, foi ter ao local onde deixara Mezquita. O alazão lá estava à
sua espera atrás dos rochedos. Escavava o chão com impaciência e manifestou a sua satisfação ao ver o dono.
Este fez-lhe festas, e depois tornou a vestir o seu fato, entregando ao Comanche que o acompanhava o disfarce de índio e o seu cavalo baio.
- Podes voltar para o pé de José, disse ele.
O homem partiu então a galope para o Sul. Catamount verificou se a cela e as rédeas estavam em ordem, montou e desatou a galopar para Haymond.
- Agora vais-te haver comigo, Hobart Gills! murmurou. Parece-me que a hora do ajuste de contas não tardará a soar!...
XVI
A grande cólera do senador
- Vocês são imbecis, burros albardados!... deixaram-se enganar como crianças!...
Imóveis, na divisão que servia de quartel-general ao senador no Salão Estrela de Hayimond, António, Nestório e os seus três acólitos esperavam de cabeça baixa. Eram
oito da manhã e acabavam de chegar, dissimulando dificilmente a consternação que lhes causara o desaparecimento dos lingotes de ouro.
Gills esperara toda a noite. Estivera a jogar o poker. Esta precaução permitia-lhe gozar depois de um precioso alibi. Ninguém em Haymond o podia acusar de ter organizado
o ataque a Forte Worth. Um pouco antes das quatro foram procurar o xerife a toda a pressa, para lhe anunciar o ataque dos Comanches em Junction Point. Apesar da
hora avançada começou a haver no estabelecimento grande efervescência. A notícia do atentado e do roubo dos lingotes do Banco Federal espalhou-se com surpreendente
rapidez.
-. Tenho de lá ir, custe o que custar, disse o xerife. Trinta cavaleiros partiram portanto com Morrei para Junction Point, enquanto o senador rompia em imprecações
contra os Comanches que, afirmava ele, precisavam de receber uma severa lição.
E por detrás daquela falsa indignação, ia notando que tudo se passava segundo as suas previsões.
Acusavam abertamente os índios de ser os autores desta proeza. A enorme impressão provocada pelo ataque à diligência de Haymond ainda não se tinha dissipado.
vou dirigir uma queixa em regra ao governo do
Washington, declarara Gills.
E fizera realmente um longo relatório, denunciando a nefasta actividade dos bandidos vermelhos que infestavam as regiões perto da Serra de Santiago.
Contudo, Gills esperava impacientemente a volta dos seus cúmplices. Bem sabia que os lingotes deviam actualmente estar nas mãos de António e dos companheiros; esperava
portanto que regressariam o mais depressa possível da cabana do Rio-Tingel, onde deviam ter ido esconder a presa.
Por isso concebe-se com facilidade o desespero que se apoderou do político quando os cinco mexicanos lhe vieram explicar como é que tinham encontrado pedras em lugar
de ouro.
-. Suas bestas! gritava Gills fora de si. A primeira precaução que deviam ter tomado antes de mais nada em Junction Point, era terem verificado se levavam convosco
os lingotes.
-. José enrolou-nos!... Tínhamos confiança nele.
-. Pois já se sabe, só José é que podia ter feito essa canalhice! Quando me lembro que me fiava nesse pulha desse Comanche!... Agora o patife deve estar a rir-se
da nossa ingenuidade. Refugiou-se do lado de lá da fronteira com os lingotes e não há-de querer vir explicar-se connosco!...
- Calma, senhor! Podem suspeitar de qualquer coisa...
O senador falava tão alto que António apressou-se a intervir. Ouvidos indiscretos podiam surpreender algumas palavras e aquela situação já tão inquietante ainda
se complicaria mais.
- Vocês são uns incapazes! murmurou Gills um pouco mais baixo. Se eu tivesse suspeitado o que se
viria a passar, ter-me-ia dirigido a Sam Winter. Esse é que é um homem às direitas! Mas António não podia com ele!... Desconfiava do gringo. Vocês são uns imbecis!
Ele sozinho era capaz de vos meter a todos cinco num chinelo!
Ao pronunciar estas palavras, Gills viera encostar-se à janela. Grandes bagas de suor corriam-lhe -pela face congestionada. A sua decepção era aniquiladora. Nunca
fora tão magistralmente enganado e a ideia de que José soubera tão habilmente trair a sua confiança e destruir-lhe a esperança, ainda mais o exasperava.
Lá fora o Sol acabara de nascer; numerosos grupos estacionavam na avenida de Haymond discutindo os acontecimentos da noite.
Gills não prestou atenção a esta efervescência. Encostou ao vidro a testa que escaldava.
- Ter sido enganado por um pele-vermelha! Que humilhação! Quando penso que nem por um instante suspeitei desse maldito Comanche...
Fez-se um silêncio. Os cinco mexicanos não abriram a boca com receio de atrair sobre eles a cólera do chefe. Bem procurava meio de reagir, mas naquele momento estava
completamente desarmado. O inquérito que as forças da polícia começariam imediatamente, obrigava-o a conservar-se prudentemente na reserva. A única coisa que podia
fazer era uma violenta campanha contra os bandidos vermelhos. E quanto a recuperar os lingotes de ouro, nem pensar nisso! A menor tentativa podia causar suspeitas.
De repente o senador parou e escapou-lhe esta exclamação:
-. Deus seja louvado! Vem ali Winter!
António fez uma careta.
Não vejo em que é que a intervenção desse
gringo poderá diminuir o nosso embaraço... Não tem nenhuma varinha mágica que faça com que os lingotes
nos sejam devolvidos. Até aqui tinhamo-lo prudentemente deixado fora deste caso...
E não há dúvida que foi uma grande asneira.
Sou de opinião do senhor Gills, disse Nestório.
Esse homem conseguiu que nos víssemos livres de Catamount, que faríamos agora se encarregassem o agente de tratar do inquérito? O seu desaparecimento livra-nos de
um grande peso!...
Gills, ao ver Winter entrar no Salão Estrela, voltou-se para o grupo:
- Eu tinha recomendado a Winter que se não afastasse de Haymond, a fim de estar à nossa disposição. com certeza que vem saber novidades!
- Pela minha parte não lhe direi palavra do nosso caso... Já é tarde demais para reagir. E não posso deixar de sentir uma grande desconfiança por esse maldito gringo!
- Vi Winter trabalhar.1 respondeu o senador. Quando se compara a sua actividade à tua, amigo, é-se obrigado a concordar que é de melhor têmpera e podemos esperar
dele muito mais do que de ti!
António não insistiu. Bateram à porta.
-. Entre! disse o senador.
O homem de olhos claros entrou. Ao primeiro golpe de vista notou o pânico que reinava no grupo. A máscara congestionada de Gills, as caras desapontadas dos mexicanos,
fizeram com que adivinhasse a cena que acabava de se passar. Contudo, ficou imperturbável, não deixando transparecer a sua profunda satisfação.
- Viva, Winter! Então, vem de passear?
Gills tentava sorrir e apontava para o chapéu e para os safões cobertos de poeira.
-. Na verdade venho de Junction Point, respondeu ele; com certeza sabem o que lá se passou...
- Sabemos. Esses patifes dos Comanches fizeram outra vez das suas!
- Julgam que foram eles que levaram os lingotes?
O olhar inquieto do senador não se tirava do falso Winter, que respondeu no tom mais tranquilo do Mundo:
- Quem seria então?
Tinha surpreendido, na verdade, as conversas edificantes que António tivera com o seu chefe, mas fingia ignorância. Acrescentou:
- Enquanto o xerife e o seu destacamento conversavam com outros grupos vindos dos distritos de Alamito e do Presídio do Norte, fui até ao Rio-Grande e notei uma
coisa importante, uma coisa, que podia causar os maiores prejuízos aos organizadores desta façanha...
- E o que é que notou? (perguntou o senador, que dificilmente dissimulava a sua impaciência.
- Simplesmente isto: que os dois guardas que vinham a vigiar os lingotes foram raptados pelos índios e levados com eles para o outro lado da fronteira!
- Tem a certeza disso? - Tenho.
O senador ficou pensativo, parecia reflectir, com as sobrancelhas franzidas.
À sua volta, António e os mexicanos não ousavam falar.
Por fim o político decidiu-se a declarar:
- Não vejo a importância que o rapto desses dois homens possa ter. Seria mais natural tratarmos dos lingotes.
- Tem razão, senador, respondeu o falso Winter, os lingotes devem ser encontrados, custe o que custar! Estou convencido que o serão!...
Havia uma tal força de convicção nestas palavras do agente disfarçado, que os seis homens estremeceram, interrogando-o ansiosamente com os olhos.
- Como! exclamou Gills, em que é que pode fundar uma tal certeza?
Na minha convicção firmemente estabelecida de
que os Comanches serão absolutamente incapazes de conservar a sua presa!
Seria necessário ser extraordinariamente audaz
para lha retomar!...
O homem de olhos claros sorriu:
O senhor já me viu trabalhar, senador... quando
houve o ataque à diligência, esses índios nada me intimidaram. E continuo a sentirme apto a enfrentá-los e a vencê-los!...
Gills dirigiu naquele momento a António um olhar que parecia significar: ((Então, não tinha eu razão? este homem tem uma vontade de ferro; podemos esperar tudo dele
e depositar inteira confiança na sua lealdade!"
O falso Winter aproximou-se mais do senador e disse-lhe a meia voz:
- O que mais me embaraça, senador, não é tornar a encontrar os lingotes, mas sim pensar nos dois guardas que estão em poder dos índios.
- As suas apreensões parecem-me exageradas, respondeu Gills. São pobres diabos que não têm importância alguma.
-? Mais valia que tivessem morrido durante o ataque ao comboio!
- Mas porquê?
- Os mortos não falam, o senhor bem o sabe... Gills tornou-se subitamente muito pálido ao ouvir
esta réplica.
- Como assim? balbuciou, supõe que esses homens irão falar?
- Não suponho, tenho a certeza!
- Mas que poderiam eles dizer?
- Ignoro! pergunta-me demais, mas estou certo que, sob a ameaça da tortura, os índios podiam-lhes fazer dizer bastantes coisas, a respeito sobretudo das circunstâncias
que acompanharam o roubo dos lingotes! Porque o senhor deve confessar que é inconcebível, mesmo para o mais estúpido dos xerifes, que os assaltantes tenham
sabido, apenas por instinto, que o ouro devia ser transportado para Forte Worth nesse comboio e que estaria no próprio vagão sobre o qual os Comanches dirigiram
os seus esforços!
- Os dois guardas podem ser cúmplices, Winter, fez notar o senador, você na verdade abre-nos novos horizontes!...
Catamount naquele instante admirou a extraordinária perspicácia do político.
Depois de ter deixado adivinhar, durante alguns instantes, o seu embaraço, recobrava completo domínio de si próprio e abordava uma suposição que à primeira vista
não podia deixar de ser absurda. Era provável que os dois guardas tivessem avisado os Comanches da transferência dos lingotes, .na ideia de, em seguida, dividirem
com eles a bela presa.
A voz do senador arrancou o agente ao seu meditar.
- Oiça, Winter, posso ter em si toda a confiança! Soube-mo provar matando Catamount... Que, para falar a verdade, eu teria preferido ver com os meus próprios olhos
os seus despojos mortais...
- Tinha-lhe pedido um prazo de oito dias para lhe trazer Catamount morto ou vivo. Esse prazo ainda não acabou... e já lhe dei provas irrefutáveis do desaparecimento
desse maldito agente. Mais tarde lhe explicarei exactamente como as coisas se passaram!
-. Mas visto que você tratou comigo estar ao meu serviço, poderia fazer um inquérito nas margens do Rio-Grande!
- Compreendo, senador, o senhor quer os lingotes! Esteja sossegado, eu já tinha compreendido porque é que queria ver-se livre do mais perigoso dos agentes. Pois
bem, escute-me, tão certo como eu estar agora diante de si, amanhã os lingotes de ouro do Banco Federal estarão em Haymond!...
- Amanhã? exclamou o político, pasmado... Está a brincar...
- Nunca brinco!...
Decididamente, você é um homem extraordinário!
Estou pronto a começar a luta e a vencer. Sei o
interesse que tem nesse ouro... contudo, durante as horas que se vão seguir, recomendo-lhe a maior reserva! Aparente a maior calma e aguarde os acontecimentos!
- Que tenciona fazer?
-. Guardo segredo! Contente-se em saber que estou mais do que nunca .persuadido que hei-de recuperar os lingotes do Banco Federal!
A tranquila serenidade daquele homem, ao pronunciar tais palavras, espantava igualmente os cinco mexicanos, que o fitavam pasmados.
- Visto que assim é, dou-lhe carta branca!
Nesta embaraçosa conjectura, o político compreendia que lhe restava apenas uma resolução aceitável: visto que os seus cúmplices não tinham estado à altura do seu
papel, tinha que se confiar inteiramente ao perigoso bandido cuja actividade tão proveitosa lhe fora já.
- Se o conseguir, receberá dois mil dólares de recompensa, declarou Gills.
- Tomo nota das suas palavras!
Inclinou ligeiramente a cabeça e saiu outra vez. Durante alguns instantes o político e os seus cinco companheiros ouviram-lhe o ruído dos passos que se afastavam
no corredor, depois, chegando à janela, viram-no ir buscar o alazão e montá-lo agilmente.
- Que homem admirável! exclamou Gills.
E os outros aprovaram. Até o próprio António se confessava vencido, apesar da sua repugnância.
- Onde diabo irá ele? disse Nestório.
- Pouco nos importa! respondeu Gills; deixemo-lo trabalhar e não lhe tolhamos os movimentos!
- Mas que vamos nós fazer durante este tempo? resmungou António.
- Primeiro que tudo, protestar cada vez mais contra
a audácia dos peles-vermelhas! Talvez quando o xerife voltar se saiba qualquer novidade.
- Se Steve Morrei fosse um tipo do género de Sam Winter, o caso marcharia muito mais depressa. Mas afinal de contas não temos que nos queixar, bem pelo contrário,
ninguém procura acusar-nos...
"O que me inquieta um pouco nisto tudo, é a alusão que Winter fez a Burgess e a Malterr! Se esses dois imbecis se lembrassem de contar aos Comanches umas certas
coisas, isso (poderia ter para nós sérias consequências. Mas para que havemos de nos estar a preocupar? Por agora Winter vai tratar do caso. Esperemos! com certeza
que terminará com vantagem para nós.
Voltou-se para os companheiros:
- E agora vão beber qualquer coisa e passem o tempo como entenderem. Aqui está isto para lhes dar um pouco de paciência...
O político deu a António uma nota de cem dólares.
Dois minutos mais tarde Hobart Gills empurrava os seus cúmplices para o corredor, fechava a porta à chave e voltava a sentar-se à sua secretária.
- Como diabo acabará isto tudo? murmurou ele, deixando-se cair na cadeira. Tinha uma ruga de inquietação na testa. Pela primeira vez, desde o início da sua carreira
criminosa, as coisas não se passavam consoante as suas previsões. Apesar da confiança que depositava em Winter, não se sentia tranquilo, estremecendo ao menor ruído
e consultando com frequência o seu relógio.
- Oxalá que aqueles dois imbecis não falem! Por fim sentiu vontade de aliviar um pouco. Deu
um arranjo ao fato, pôs o chapéu preto e, fingindo a maior das calmas, desceu até à sala grande do Salão Estrela.
XVII
As indiscrições de António
António e os seus quatro companheiros tinham precedido o chefe. Pareciam ainda desapontados com a aventura, contudo estavam mais descansados depois da conversa com
o senador. Esperavam uma reacção ainda mais severa da sua parte, e felicitavam-se pela intervenção tão oportuna do homem dos olhos claros.
Durante alguns instantes o grupo esteve silencioso. Havia uma assistência enorme no Salão Estrela. Custou-lhes a arranjar uma mesa livre.
Instalaram-se.
-Que desejam os senhores?
António voltou-se para o criado:
- Diz-me lá, amigo? Ainda cá tens daquele vinhinho de São Sebastião? As fisionomias de Nestório e dos outros iluminaram se. Aquele vinho açucarado de São Sebastião,
colhido em certa colina próxima de S. Francisco, era muito apreciado pelos amadores.
- Não há coisa melhor que o vinho de São Sebastião para levantar o moral!
Começaram a conversar. O mau humor desapareceu. Até ali tinham estado obsecados pela partida que os Comanches lhes tinham pregado. Nem por um só momento duvidavam
de que fora José e os seus índios.
- Por Ia muerte! julgava que o patrão ainda se zangasse mais...
- Não podias ver o gringo, e afinal ficaste tão feliz ao encontrá-lo. Ele é que aparou a tempestade...
- Atenção! Prudência, podem ouvir-nos... Tornaram-se mais cuidadosos. Podiam agora avaliar
a sensação que provocara na cidade o ataque ao comboio. Ainda discutiam em voz alta.
O criado trouxe o vinho e os copos. António serviu os amigos.
- À destruição e confusão desses malditos Comanches!
Saborearam o néctar.
- Famoso! exclamou António.
E as garrafas foram-se abrindo umas atrás das outras e os copos foram-se despejando também.
Pouco a pouco os mexicanos abandonaram a reserva que até ali tinham mantido. As apreensões já iam longe; sentiam agora um grande optimismo. E assim vieram a falar
mais uma vez do homem de olhos claros.
- A minha opinião é que devemos deixar o tipo agir. É na verdade um homem extraordinário!
- O que é facto é que se sai -bem de tudo em que se mete!...
Estavam tão entretidos a conversar que nem notaram que viera um homem sentar-se muito perto deles. Estava uma cadeira vaga atrás de António e foi aí que se instalou.
Estava sozinho e calado. Ninguém notara a sua entrada e contudo em Haymond todos o conheciam. Ainda dias antes uma multidão o tinha aclamado. Ben Kenny tinha sido
o ídolo de Haymond, mas a sua atitude no fim do campeonato e também a sua derrota tinham-no desacreditado bastante.
Ben Kenny, porque era ele, sentou-se com uma ruga de amargor nos lábios. Pediu um copo de cerveja. E depois continuou calado, com os dois cotovelos em cima da mesa
e a cabeça entre as mãos, absorvido nos seus pensamentos.
Desde que fora derrotado, a ideia da desforra não
o largava. Não se podia consolar da humilhação que lhe tinha sido infligida em público. Pensara várias vezes em fazer uma emboscada e matar o adversário, mas compreendeu
que o feitiço se podia voltar contra o feiticeiro... Tinha visto o seu inimigo em companhia do senador Gills. A conversa que tivera com o xerife dera-lhe a saber
que este não queria intrometer-se com uma pessoa protegida pelo senador.
Quanto a desafiar, de frente, o homem de olhos claros, nem pensava nisso... Afirmaria de novo a sua superioridade e com certeza Ben Kenny ainda ficaria mais desacreditado.
O outro era muito mais forte!... Mais uma vez fatigava o cérebro a pensar como havia de tirar a sua desforra, quando de repente se endireitou: atrás dele, António
e os companheiros falavam de Doyle.
Os vapores do vinho de São Sebastião continuavam a dissipar os receios dos mexicanos. Conversavam mais alto, esquecendo que deviam observar grande prudência.
- Tem graça, exclamava António-... se em Haymond suspeitassem de que ele se não chama Doyle!...
Ben Kenny estremeceu. Doyle, o seu vencedor! Outra vez ele! Sempre ele!
Contudo, a sua fisionomia iluminou-se. Começou a escutar atentamente. António continuava:
- E se os honrados habitantes de Haymond tivessem a mais pequena suspeita de que O homem que aclamaram loucamente se chama na realidade Sam Winter!... haveria certo
barulho em todo o distrito...
A surpresa que Ben Kenny sentiu foi tão grande que quase perdeu a cabeça, e esteve a pontos de ir interrogar os cinco mexicanos. Mas voltou a si... continuou calado
e decidiu deitar a cabeça sobre os braços cruzados para fingir que dormia.
Os mexicanos continuavam a falar:
- Atenção! Comentou Nestório em certa altura.
- Não há perigo! Ninguém nos ouve, toda a gente está entretida a tratar do caso de Junction Point. Continuando a conversa, insistiu:
- Quanto a mim, mudei completamente de opinião: o tal Doyle é um tipo extraordinário!
-Os xerifes não conseguiram apanhá-lo...
- com certeza. Quem reconheceria nele o famoso Sam Winter?...
-. Tinha corrido que ele morrera no México.
- Caramba, constava até que tinham recebido um aviso oficial dando conta disso.
- Mas afinal de contas Winter está vivo e prepara-se para pôr às aranhas os representantes da autoridade.
E os cinco homens continuaram a conversar. Ben Kenny estava ainda de costas para eles. Imóvel, evitando até mexer os pés com receio de chamar a atenção, continuou
de ouvido à escuta.
- Rapaz! Mais cinco garrafas! Realmente não há nada como o vinho de São Sebastião para afastar as ideias negras...
Ben Kenny aguardava. Tinha já uma certeza: Jack Doyle era Sam Winter, o bandido, o condenado, cuja cabeça fora posta a preço! Disse então para consigo que podia
levantar-se e ir denunciá-lo no meio do Salão. Contudo a sua intervenção podia ocasionar uma rixa e Ben Kenny tinha um certo receio daqueles mexicanos. Mais valia
ter paciência e não provocar complicações. Conseguiria preparar a desforra na sombra e a surpresa ser ainda mais fulminante.
Cinco minutos depois o vinho corria em ondas nos copos e os mexicanos cada vez faziam mais confidências. Ninguém se importava com a presença de Ben Kenny que não
tirava a cabeça de entre as mãos.
No que diz respeito a Winter, tenho a certeza
que ele há-de conseguir...
Como? Julgas que traz os lingotes?
- Não fales tão alto, imbecil.
com a mão, António fez sinal ao outro para ser mais discreto. Olhou para os lados e ficou persuadido que ninguém ouvira aquelas palavras.
Tivemos sorte de toda a gente estar tão entretida...
- Mas pergunto a mim próprio o que é que o gringo irá fazer?
- Que nos importa isso? Prometeu trazer os lingotes e há-de consegui-lo!
A palavra lingotes que o mexicano pronunciava pela segunda vez interessou extraordinariamente Ben Kenny. Levou-o a pensar que os seus vizinhos e Winter estavam implicados
no caso do roubo do ouro.
Tudo corre às mil maravilhas, .pensou o antigo campeão. Toca a escutar!
Estava radiante. Aquela conversa ia-lhe permitir esboçar um plano! Enquanto que toda a gente que ali estava fazia simples suposições a propósito do roubo de Forte
Worth, Ben Kenny descobria um indício de importância capital e a sua sorte era ainda maior porque podia ter a esperança de na mesma ocasião liquidar o homem de olhos
claros!
- Quanto a mim, disse um dos mexicanos, duvido que ele o consiga.
- O gringo é um ás! disse António um pouco mais alto.
E -para reforçar esta declaração, acrescentou: -. Quando se conseguiu dar cabo dum tipo do calibre de Catamount, pode-se empreender tudo!
- Catamount! Só teria a certeza da sua morte se visse o seu cadáver!
- O gringo deu cabo do agente! É certo, declarou Nestório. Volto de El Paso e pude eu próprio notar a inquietação em que está o major Morley! Catamount não voltou
para o .posto no momento indicado... Isto é um indício e estou certo que Morley continua a estar muito inquieto a respeito .do seu melhor colaborador!
E poderá procurá-lo durante o tempo que quiser. Sam Winter deu-lhe a conta!... É uma grande ameaça que deixou de pesar sobre nós! E foi no momento oportuno.
Houve um pequeno silêncio. Ben Kenny continuava a ressonar, embora de forma pouco sonora. Não perdia uma palavra da conversa dos mexicanos, bendizendo o acaso que
lhe permitia surpreender novidades duma importância tão extraordinária. Mas não conseguiu ouvir muito mais. Os mexicanos calaram-se bruscamente ao verem o senador
aparecer junto do balcão rodeado de gente. O político dava a sua opinião a respeito do ataque ao comboio de Forte Worth, clamava contra os índios:
-. É forçoso que façamos um acordo com o governo mexicano e se castiguem os bandidos brancos ou vermelhos de ambos os lados da fronteira!
E acrescentou com força:
- Se o inquérito não der resultado, irei eu próprio a Washington a fim de exigir nas altas esferas que tomem as medidas necessárias para proibir que se torne a dar
um escândalo desta natureza!
Sabia fingir admiravelmente aquela grande indignação; ninguém diria que tinha sido o instigador do roubo dos lingotes do Banco Federal. À sua volta só via aprovações.
Os clientes do Salão Estrela deixavam-se enganar como sempre pela aparência do bandido.
Ouviram-se vozes destacadas e grandes exclamações. Mas bruscamente a atenção voltou-se para o lado da porta. Várias pessoas levantaram-se e saíram.
Chegava um grupo de cavaleiros. Eram os agentes de Steve Morrei, e o próprio xerife que acabava de desmontar, todo empoeirado.
Por favor afastem-se! exclamava ele. Deixem-me
passar!
Teve dificuldade em se ver livre dos curiosos que o assaltavam por todos os lados. Contudo pela expressão preocupada do representante da autoridade e pelas caras
desapontadas dos seus auxiliares, compreendia-se imediatamente que o inquérito não dera resultado.
Foram os índios, não há dúvida, afirmou Morrei,
mas vão agora procurá-los do outro lado do Rio-Grande... Enquanto não houver um acordo entre o governo americano e do México, os bandidos vermelhos conseguirão sempre
safar-se para as montanhas!
- Eis porque eu acabo de dizer que tem que se agir imediatamente!
Era Gills que vinha ao encontro do xerife. Apertaram as mãos.
- Tenho a impressão que sou um cego, resmungou Steve Morrei, furioso.
- Que diabo! Mais coragem, xerife, seja razoável! E como o seu interlocutor fizesse uma careta, o
senador continuou:
-Descanse! Sei que faz o mais que pode! Se censurassem o seu insucesso, eu saberia protegê-lo...
A cara do xerife desanuviou-se. Sentia um terror profundo das responsabilidades, e preocupava-se .pensando que o considerariam, nas altas esferas, responsável por
aquele cheque. As palavras do político acabavam de dissipar os seus temores.
- Vamos, venham todos beber! Combinaremos em seguida o plano para castigar os Comanches.
Hobart Gills convidava o xerife e os seus homens. A cavalgada que tinham feito debaixo dos raios dum sol ardente, fizera-lhes sede.
António e os quatro companheiros tinham-se levantado da mesa e estavam agora a pouca distância do senador. Eis porque Ben Kenny se não demorou mais no seu lugar.
Podia considerar-se satisfeito. Tinha sabido o suficiente para poder agir e desmascarar definitivamente o malfeitor que, sob a personalidade de Jack Doyle acabava
de vencer uma proeza difícil: matar o célebre agente Catamount!... Em segundo lugar a
alusão feita pelos mexicanos aos lingotes de ouro, autorizava Ben Kenny a pensar que Sam Winter também tinha desempenhado um papel de grande importância, no caso
de Junction Point.
E, desejoso de tirar a sua desforra, decidiu-se a agir o mais depressa possível.
XVIII
A desforra de Ben Kenny
O antigo campeão levantou-se da cadeira e deu um dólar ao criado. Recusou o troco. O rapaz agradeceu mas Ben nem ouviu. Avançava por entre as cadeiras quase todas
já sem ninguém. Perguntava a si próprio o que devia fazer agora que já conseguira erguer um canto do véu... Devia ir procurar imediatamente o xerife que estava ali
a discutir com o senador?
O infeliz adversário de Catamount imaginava a profunda sensação que provocaria actualmente a denúncia que ia fazer na sala do Salão Estrela. Mas Sam Winter já ali
não estava! Porém os cinco mexicanos eram capazes de provocar complicações. Eis porque Ben Kenny decidiu contemporizar. Mais valia continuar a calar-se. E, além
disso, acreditaria o xerife nas suas acusações? Em três minutos chegou à saída do salão. Ninguém lhe prestava a menor atenção. Mas esta indiferença, naquele momento,
satisfazia-o. Pensava na emoção que mais tarde haveria quando soubessem o papel que ele tinha desempenhado na prisão dos culpados.
Porque a decisão de Ben Kenny estava tomada: denunciaria o falso Jack Doyle, não ao xerife e autoridades de Haymond, mas sim ao major Morley. Este não era pessoa
para se deixar influenciar -pela política.
Apressou o passo. Pouco depois entrou na estação do correio. Pediu uma comunicação telefónica para El Paso.
- Liguem para a Esquadra Geral da Polícia Rural, pediu ele ao empregado de serviço. E esperou encostado ao balcão. Nada na sua fisionomia impassível deixava adivinhar
a importância da luta que ia empreender e que fazia prever uma próxima e retumbante vitória.
O empregado fez-lhe um sinal. Dali a pouco o antigo campeão fechava a porta atrás de si e colocava o auscultador no ouvido:
- Está? É da Esquadra Geral da Polícia de El Paso?
Responderam afirmativamente do outro lado do fio e Ben Kenny perguntou:
-. Queria falar com urgência ao major Morley!
- É ele próprio que fala, respondeu o interlocutor invisível.
E como Ben Kenny hesitasse, o major continuou:
- Não se demore! Que quer dizer-me? Estou com muita pressa!
- Venho dar-lhe notícias de Catamount! -. O quê? Viu Catamount?
Pelo tom apressado do major, o excampeão compreendeu que continuava preocupado a respeito do seu melhor auxiliar. O agente não voltara a El Paso.
Então declarou:
- Infelizmente não, major! Não vi Catamount! Mas vim a saber de fonte segura que o seu bravo agente foi traiçoeiramente assassinado!
- Assassinado, Catamount!... Não posso acreditá-lo!
-. E contudo é verdade, major!
-. Teria você descoberto o seu cadáver?
- Não, mas conheço o seu assassino.
-O seu assassino!... Está a brincar... Quem é ele?
- com certeza que o conhece de nome. É Sam Winter!
-. Sam Winter! Está enganado! Fomos avisados oficialmente de que o cadáver de Winter foi
descoberto no deserto Mohave! O corpo estava quase devorado.
Trata-se de outro cadáver, posso-lho assegurar!
Sam Winter está bem vivo, dou-lhe a minha palavra e tudo me autoriza a pensar que acaba de desempenhar um dos principais papéis no ataque ao comboio do Presídio
do Norte. com certeza que o major já foi informado do roubo dos lingotes?
- Fui, mas julgava que se tratava duma proeza dos Comanches.
- Os peles-vermelhas manobraram habilmente demais para não terem sido dirigidos por um branco, chefe capaz de todas as audácias!
Ben Kenny compreendeu que tinha conseguido convencer o major Morley.
- Quem é o senhor e que conta fazer? perguntou o chefe da polícia rural.
- Sou Ben Kenny! Ficaria encantado se ganhasse os prémios prometidos a quem capturasse esse patife com quem ao mesmo tempo tenho certas contas a ajustar!
- A sua comunicação é na verdade de extraordinário interesse, mas como é que espera capturar o bandido?
- Venha a Haymond, major, e esteja cá à noite acompanhado dum numeroso grupo dos seus cavaleiros. Esperarei por si à entrada da cidade, na estrada de Alamito. Talvez
até lá haja novidades...
"Em todo o caso tenho a certeza que seguimos a boa pista. Não falei a ninguém. Verá que não me enganei, e que Sam Winter é o assassino daquele pobre Catamount, cuja
ausência o senhor tanto deplora.
- Se na verdade Winter matou Catamount, hei-de fazê-lo arrepender de ter cometido tal proeza! exclamou o major. Mas, repito-lhe que me custa a acreditar que Catamount
se tenha deixado apanhar.
- Venha, major, será informado. Esperá-lo-ei no
local combinado e não se esqueça de se fazer acompanhar por homens bem armados. Sam Winter tem cúmplices numerosos.
- Muito bem!
- E escusado será dizer que não avisarei as autoridades sem primeiro falar consigo.
E pendurou o auscultador. Um sorriso satisfeito alegrou-lhe a fisionomia. Sentia-se livre dum grande peso. Visto que o major Morley aceitava tratar ele próprio da
prisão de Sam Winter, esta estaria por horas.
Voltou para o Salão Estrela pensando:
- Oxalá que Winter volte antes da noite.
Havia grande afluência no restaurante. E Gills continuava rodeado por um grupo. As pessoas que voltavam do Oeste traziam novidades acerca do inquérito que se abrira
a respeito do caso de Junction Point. Os progressos das investigações eram muito lentos. Chegava-se a uma conclusão evidente, é que os culpados tinham sabido colocar-se
rapidamente a bom abrigo e que todas as ameaças seriam ineficazes.
Continuou sozinho e só. Pensava com alegria que as informações que conseguira obter lhe tornariam a dar a popularidade roubada pelo seu vencedor.
Passaram-se quatro horas sem que houvesse qualquer novidade. O antigo campeão continuava bastante inquieto por não ver aparecer Sam Winter e estava já verdadeiramente
angustiado quando perto das seis da tarde viu aproximar-se um cavaleiro que reconheceria entre mil... Montado no seu alazão, o homem de olhos claros vinha a chegar.
Ben Kenny escondeu-se na sombra.
Viu o falso Jack Doyle desmontar lestamente, prender o cavalo, sacudir a poeira do fato e afastar-se entre os grupos. Do lugar onde estava, Kenny conseguiu ver que
falava com o senador.
- Raposa manhosa, disse para consigo. Já conseguiu captar a confiança de Hobart Gills!...
Mas o homem de olhos claros afastava-se num passo ligeiramente arrastado. Preparou-se para o seguir. Queria saber exactamente para onde ele ia, a fim de prevenir
o major Morley. Avançou [portanto um pouco atrás dele mas de repente parou e escondeu-se numa esquina. O outro acabava de encontrar um homem e parara para lhe falar.
Era Eric Clarkson, o pai da pequena Cecília. Ouviu-lhes a conversa.
-. Até que enfim o vejo, senhor Doile! Tanto eu como minha mulher, como a pequenita, julgávamos que se tinha esquecido completamente de nós. Tínhamos prometido voltar
antes da sua partida...
- Tive muito que fazer, mas agora ia a vossa casa.
E começaram a caminhar juntos.
- Desta vez não o largo, há-de jantar connosco. E Catamount teve que aceitar.
O antigo campeão, que continuava a segui-los, não conseguiu ouvir mais, mas isto bastou-lhe. Segui-os de longe e parou quando os viu entrar numa casa da principal
avenida de Haymond.
- O senhor no outro dia esteve notável! declarou Clarkson. Mas acho que se aproxima com demasiada frequência de Gills. Quando nos encostamos a indivíduos daquela
espécie, arriscamo-nos a sujar-nos na lama que escorrem...
Esteja descansado, Clarkson, as minhas relações com o senador não são as que imagina...
-? Desconfio... Nunca será demais recomendar-lho! Pergunto até a mim próprio se Gills não terá desempenhado algum papel no caso de Junction Point...
Eric Clarkson abriu a porta da sua casa e mal o agente entrou no vestíbulo, ouviu-se um grito de alegria:
-? Ora até que enfim, cá está o senhor Doyle!
Era Cecília que testemunhava a sua alegria ao ver o seu salvador. Continuava a trazer o braço ao peito, mas tinha melhor aparência. Sentiu-se levantada pelos braços
robustos de Catamount. Este deu-lhe dois grandes
beijos nas faces e tornou a pô-la no chão para cumprimentar a senhora Clarkson que chegava.
- O senhor Doyle janta connosco, já o prometeu, exclamou o marido.
Catamount não fez objecção alguma àquela boa gente. Sentia um grande contentamento em viver algumas horas naquela atmosfera de calma e felicidade pacífica. Enquanto
a mulher preparava o jantar, Clarkson passou a conversar com o hóspede.
Falaram de várias coisas e o agente teve cuidado em não aludir às suas recentes aventuras.
Cecília brincava com uma boneca e às vezes ia até à janela onde se encostava.
Dali a um bocado correu para o pai e exclamou:
- Paizinho! Está ali um homem a espreitar.
- Um homem a espreitar? exclamou o pai admirado.
- Sim, parou no passeio aqui em frente e não deixa de olhar para mim.
-. Perdão, vou ver, senhor Clarkson. O falso Doyle levantou-se de repente e descobriu imediatamente o indivíduo em questão.
- Ou eu me engano muito ou é o meu velho amigo Ben Kenny! exclama ele.
Mas, este, vendo-se surpreendido, não se demorou mais ali por perto, desaparecendo numa rua próxima.
- Desconfie, senhor Doyle, disse Clarkson. Estava lá quando você no outro dia deu aquela lição magistral a Kenny. Mas tome cuidado! Ele com certeza pensa em vingar-se.
O outro encolheu os ombros muito despreocupado:
- Trago sempre comigo argumentos suficientes para manter aquele maroto a distância respeitosa.
E ao dizer isto acariciava a coronha dum dos seus Colt.
A dona da casa veio dizer que o jantar estava pronto, e sentaram-se à mesa. Dali a alguns instantes
esqueceram aquele incidente. Mas o homem de olhos claros ficaria muito mais preocupado se tivesse seguido Ben Kenny. Apesar de ter sido obrigado a deixar a sua perseguição,
o antigo Rei do Colt estava satisfeito. Winter ia jantar a casa dos Clarkson. Do passeio onde estava via os preparativos para a refeição. A noite estava próxima...
Dali a pouco ia ter com o major Morley e seus homens e em seguida, manobrando habilmente poderiam prender ali o falso Doyle!...
O sol acabava de se pôr atrás da cordilheira de montanhas. E o ex-campeão não perdeu tempo. Passavam vários grupos, todos a discutir o roubo de Junction Point. Comentavam
o facto de Steve Morrei não ter conseguido resultados mais para encorajar.
Isto satisfazia Ben Kenny, que assim se sentia mais certo da sua vitória.
A estrada de Alamito estava deserta, mas não tardou que começasse a ouvir um ruído característico. Escutou:
- Não há dúvida! É um grupo numeroso de cavaleiros. São eles!
Dali a pouco apareceram uns quarenta cavaleiros trazendo à frente um homem forte, com um distintivo no peito.
- O senhor é o major?
Este fazia sinal aos homens que o seguiam para pararem um instante e dirigindo-se ao antigo campeão:
- É Ben Kenny, a pessoa que me telefonou há algumas horas?
- Sou eu, mas vamos depressa. Se soubermos manobrar, o senhor poderá surpreender o assassino de Catamount. Sei onde está refugiado neste momento.
E como o major Morley se curvasse a ouvir, explicou as circunstâncias que lhe tinham permitido tornar a encontrar o falso Jack Doyle.
- O major deve surpreender a raposa na toca, concluiu o ex-campeão, mas conte com uma resistência encarniçada: Sam Winter é um atirador extraordinário!
- Mais uma vez lhe digo que duvido que se trate de Sam Winter, disse o major, mas não importa, porque o indivíduo de quem fala deve ser uma pessoa perigosa. Temos
que proceder imediatamente à sua prisão impedindo-o de causar piores danos... Venha comigo e mostre-me onde ele se refugiou.
Ben Kenny obedeceu rapidamente e dali a momentos o grupo dos agentes atingia as primeiras casas de Haymond e continuava a sua cavalgada.
Um sorriso satisfeito alegrava a fisionomia de Ben Kenny... Estava agora certo que a sua desforra não lhe escaparia; com adversários tais como os agentes, Sam Winter
teria que escolher entre o render-se ou sucumbir!...
XIX
Catamount torna a ser Catamount
O jantar terminara há pouco. Enquanto a senhora Clarkson levantava a mesa, Doyle sentara Cecília sobre os joelhos e contava-lhe lindas histórias da fronteira. Dava-lhe
prazer o interesse da criança.
Ele que habitualmente era tão audacioso e tão enérgico, sentia sempre uma emoção profunda quando estava em presença duma criança.
E não tinha sido por causa duma criança lhe ter chamado Cavaleiro das Estrelas que ele se tornara agente da polícia?
A presença de Cecília fazia com que o homem de olhos claros recordasse cenas da sua infância, quando ainda não era o rapaz mau e turbulento que com tanta frequência
brincava com o revolver...
Quanto tempo teria estado assim, a conversar com a sua amiguinha, sob os olhares enternecidos de Clarkson e da mulher? Ser-lhe-ia difícil sabê-lo...
Junto da pequenita os minutos corriam céleres. E eis que de repente, o agente se endireitou. Ouvia-se lá fora um ruído crescente. Identificou-o imediatamente: era
barulho de patas de numerosos cavalos batendo no chão.
Em seguida ouviu-se uma ordem rápida que fez estremecer Catamount... Julgou-se joguete duma ilusão; aquela voz de comando era a do seu chefe, major Morley!
Cecília e os pais também tinham ouvido os cavalos e correram à janela para ver o que se passava.
-Santo Deus! exclamou Eric Clarkson. É curioso! Esta gente parece que quer cercar a casa!
com um gesto instintivo o agente levou a mão à coronha do seu Cout. Ia a aproximar-se dos três amigos quando ouviu outra voz declarar:
-. O patife está ali, major! Tenho a certeza! Cautela, não vá escapar-se!
A máscara crispada do homem dos olhos claros serenou. Compreendeu que se tratava de Ben Kenny e identificou o outro interlocutor; compreendeu a situação!
O antigo campeão querendo vingar-se dele e tendo sabido que era Sam Winter, tinha avisado os agentes de El Paso.
com certeza que as informações que dera eram de primeira ordem, visto que o major Morley não se deslocava com facilidade...
Então pegou no braço de Clarkson e disse-lhe baixinho:
- Quer me prestar um grande serviço, Clarkson? Depressa! Leve-me ao seu quarto de vestir, ponha lá um pincel, sabão de barba, água quente e uma navalha à minha disposição.
O dono da casa pensou primeiro que o hóspede tinha endoidecido; mas o outro não lhe deu tempo para lhe fazer a menor [pergunta:
- Esses cavaleiros procuram-me! Vão entrar e exigir a minha entrega. Faça-os ter um pouco de paciência!... É absolutamente necessário que eu faça a barba antes de
os receber.
E como Glarkson puxasse pela filha como receando um perigo, Catamount sossegou-o com um sorriso:
Esteja descansado! Nenhum perigo os ameaça,
bem pelo contrário!... Asseguro-lhe que não se
arrependerá de assim proceder, e que ajudará a justiça a dar um golpe magistral!
Os donos da casa admirados fizeram contudo o que ele lhes pedia.
Enquanto batiam à porta repetidas vezes, Clarkson levou a sua visita ao quarto de vestir e o homem de olhos claros começou a fazer a barba.
A dona da casa foi abrir. À -porta apareceram dois homens: o major Morley e Ben Kenny. O antigo campeão dificilmente disfarçava a alegria que sentia. -Desta vez
ia-se vingar!... Graças a ele seria preso um dos mais terríveis bandidos da fronteira e tudo levava a crer que aquele caso teria uma retumbância enorme. A derrota
do campeonato seria rapidamente esquecida.
- Que desejam os senhores?
A mãe de Cecília abria uns grandes olhos espantados; atrás dela estava a miúda, com a boneca apertada contra o peito.
- Queremos fazer uma busca! elucidou o major Morley.
-. Uma busca! Porque razão?
-. Porque a senhora dá hospitalidade a um bandido perigoso.
-. Um bandido perigoso? Os senhores devem estar enganados, exclamou a -boa senhora com voz trémula. O homem que estava a jantar connosco esta noite salvou a vida
da nossa filhinha quando os índios atacaram a diligência. com certeza que ouviram falar deste caso...
- com certeza, mas deixe-nos passar! interrompeu Ben Kenny. Trata-se do indivíduo que procuramos!
A senhora Clarkson não insistiu mais e acompanhou os visitantes até à casa de jantar. Ao entrar reparou imediatamente numa olhadela significativa que o marido lhe
deitava.
Mas o major continuou com voz ameaçadora:
- Previno-os que vimos na qualidade de representantes da justiça!... A menor má vontade da vossa
parte, a menor pretensão de favorecer a evasão de Sam Winter, poderia ter para vós consequências desastrosas.
E ao pronunciar estas palavras apontava para o distintivo que trazia pregado no peito.
-. Sam Winter? Exclamou então o pai de Cecília. Desculpem-me, mas julgo que estão em erro. O homem que está actualmente em nossa casa não se chama Winter, mas Jack
Doyle!
- Winter e Doyle são a mesma pessoa, explicou Ben Kenny. Mas basta de conversas. Acho que faríamos bem em nos colocarmos na defensiva, major! Um patife do calibre
de Winter não deve hesitar quando se sente cercado. Neste momento tenho a certeza que espera por nós escondido atrás duma porta com um revólver em cada mão!
Houve um silêncio. Ben Kenny e o major Morley examinavam minuciosamente aquela divisão; os seus olhares retiveram-se sobretudo na porta que comunicava com o resto
da casa.
Lá fora os agentes, armados até aos dentes, esperavam colocados de forma a evitar a fuga do bandido.
- Por onde saiu ele há pouco?
Fazia esta pergunta ao dono da casa, e pelo seu embaraço viu que adivinhara. Brandindo o revólver e encostando-o à porta, gritou:
-Vamos, é inútil lutar! Está apanhado! E fará melhor se se render.
Resposta alguma. Um silêncio de morte pesava sobre aquela casa.
- Parece-me que oiço qualquer coisa, disse Ben Kenny que se curvara um pouco para a frente.
O chefe dos agentes escutou e, endireitando-se, disse: -. É esquisito! Parece que está aqui ao lado alguém
a lavar-se, ouve-se correr água...
Os Clarkson continuaram calados; todos sabiam que
o seu hóspede devia estar a barbear-se.
-Mais uma vez, Sam Winter, não temos tempo a
perder com -brincadeiras! Saia ou disparamos contra essa porta atrás da qual se esconde.
O major Morley não obteve resposta como da primeira vez. Apesar da sua fleugma, começava a perder a paciência; e a Ben Kenny sucedia o mesmo.
- Pela terceira e última vez, Winter, exclamou o chefe dos agentes, intimo-o a que se renda!
O fecho da porta fez um movimento.
O major e o seu companheiro voltaram as armas naquela direcção. com certeza que o bandido resolvera render-se, mas também era capaz de querer executar uma fuga desesperada,
abatendo os que lhe impedissem o caminho.
Os gonzos rangeram. O silêncio na sala era tal que se ouviam as moscas.
Cecília encolhia-se receosa, encostando-se à mãe num canto da divisão. Todos estavam à espera que se passasse um drama terrível. Ben Kenny imaginava que ia ver aparecer
o seu rival com os revólveres em punho.
com o dedo sobre o gatilho estava pronto a defender-se.
A porta acabou de se abrir e apareceu um homem.
Ouviu-se uma exclamação.
Na verdade, à primeira vista não tinha nada de ameaçador... com a cabeça descoberta, limpava a cara a uma toalha...
Durante alguns instantes as suas feições estiveram assim escondidas, e depois bruscamente a cara ficou descoberta. Mal a viu, o major exclamou:
- Santo Deus! Estarei a sonhar? É Catamoomt!...
- Como está, chefe? Grande prazer tenho em o tornar a ver!
O homem de olhos claros estendia-lhe a mão, sorrindo.
Ainda dominado pela surpresa que esta cena teatral lhe tinha causado, Morley respondeu maquinalmente a
este gesto. Os dois homens trocaram então um vigoroso aperto de mão.
- Que parada de forças!... O que é que se passa? com um sorriso irónico nos lábios, Catamount
olhava para o chefe e para Ben Kenny.
O ex-campeão estava estupefacto. Julgara primeiro tratar-se de outra pessoa e não do homem que vira entrar em casa de Clarkson, mas naquela cara barbeada de fresco,
depressa identificou o olhar claro do seu adversário.
- O senhor engana-se, major, exclamou ele, não é Catamount, é Sam Winter!...
O chefe dos agentes respondeu, rindo:
- Penso que não quererá convencer-me... Então eu não havia de conhecer o melhor dos meus auxiliares!... E quando penso que você o acusava de se ter assassinado a
si próprio! Há-de concordar que é espantoso!
Os Clarkson também ainda não tinham voltado a si da surpresa. Conheciam de nome o célebre agente, por isso fitavam o hóspede com insistência.
Então o homem de olhos claros voltou-se para eles:
- Hãonde desculpar-me. Apresentei-me com um nome falso! Não me chamo Jack Doyle nem Sam Winter, sou Catamount; mas para que a minha missão tivesse sucesso tive que
dissimular a verdadeira personalidade.
Ben Kenny, envergonhado com esta cena, ia já a dar um passo para a porta, mas Catamount fê-lo parar com um gesto:
- Não se vá embora tão depressa!... Agora já sabe muitas coisas... visto que colaborou tão eficazmente na causa da justiça, e visto que lhe devo a presença em Haymond
do meu chefe e dos meus mais valorosos companheiros, vamos aproveitar para fazer uma limpeza importante. com certeza que terá ocasião de se distinguir!
E como o major não compreendesse estas palavras, Catamount explicou:
- É inútil chamar por mais tempo a atenção tendo à porta este enorme grupo de cavaleiros. Dê ordem aos agentes para se irem postar nas imediações do Salão Estrela;
logo os preveniremos das decisões tomadas.
O major apressou-se a obedecer. Sabia que o seu auxiliar não tomava iniciativa alguma sem que razão de força o obrigasse a isso.
Enquanto ele se ausentava alguns instantes, Catamount fitou ironicamente o antigo campeão.
- Lamento tê-lo desapontado, velho amigo, mas esteja descansado!... A sua manobra não foi inútil. Acabamos de desempenhar uma comédia e agora prepara-se um drama,
mas de tal envergadura que convém que se arme de todo o seu sangue-frio!
E enquanto o seu adversário esperava imóvel, de boca aberta, o agente estedeu-lhe a mão:
- Nada de rancores, meu rapaz!...
- Se eu soubesse que o senhor era Catamount, balbuciou o ex-campeão, nada me teria espantado.
-. Vamos, esqueçamos o passado para enfrentarmos uma situação muito delicada.
Desta vez Ben Kenny não hesitou. Compreendeu o ridículo do papel que acabara de representar. Afastando definitivamente todo o ressentimento, pegou na mão que lhe
estendia o seu ex-inimigo e apertou-a longamente.
- Não há dúvida que perde a esperança de ganhar o prémio prometido a quem prendesse Sam Winter, declarou o agente, mas poderá obter vantagens, entre outras a de
contribuir para uma vasta operação de polícia que para sempre livrará Haymond dos bandidos que a infestam!
O major voltava, depois de ter dado as ordens aos seus homens; por isso Catamount não esperou. Reuniu
à volta de Eric Clarkson, o seu chefe, Ben Kenny, e voltando-se para o pai de Cecília disse:
- O senhor tinha toda a razão! Hobart Gills é o mais abominável dos canalhas! Tenho comigo provas de que foi não somente o instigador dos crimes de que Kenner e
Lemblin foram vítimas, mas também sei que foi ele quem organizou o ataque ao comboio de Forte Worth!...
- Como?! exclamou o major, você julga que o ladrão dos lingotes do Banco Federal foi o senador?...
- Foi ele que combinou tudo com os seus cúmplices para se apoderar do ouro.
- E sabe para onde O ouro foi levado? Catamount piscou os olhos com malícia:
-? Perfeitamente! Está actualmente em meu poder. Logo que eu faça o sinal combinado, José trará os lingotes!...
-Quem? O chefe Comanche?
As palavras do homem de olhos claros pareciam tão inverosímeis que os três interlocutores olharam uns para os outros com cara desconfiada. Mas Catamount não abandonava
a sua fleugma. Tranquilamente, tirava do cinto as declarações escritas que fizera assinar a Géo Malterr e Slim Burgess.
- Os dois patifes serão postos diante de Gills quando for necessário, concluiu o agente, mas antes convém que nos apoderemos do senador!
- Sabe aonde ele está neste momento?
- Gills estabeleceu o seu quartel-general no Salão Estrela. Eis porque a minha opinião é que se proceda imediatamente à sua prisão. As provas que acabo de lhes mostrar
com certeza que são suficientes...
-. Perfeitamente suficientes, respondeu o major, mas tendo em vista a alta situação que ele disfruta...
-. Por melhor colocada que esteja uma pessoa, não deixa de estar sob a alçada da Lei, respondeu o homem de olhos claros. Não podemos esperar. A vossa chegada
inesperada a Haymond deve precipitar os acontecimentos. Se déssemos tempo aos culpados, aproveitariam para se porem fora do alcance!
E acrescentou com um sorriso significativo:
- Demais a mais prometi ao respeitável senador que dentro de oito dias lhe levaria Catamount! Convém que eu honre a minha palavra...
- Acompanho-o, exclamou Eric Clarkson. Há muito tempo que espero pelo momento em que veja desmascarar aquele bandido.
A mulher, inquieta, não queria que o marido saísse; mas Catamount sossegou-a com um gesto:
- O senhor Clarkson pode acompanhar-nos, nada tem a temer.
Dois minutos mais tarde os quatro homens dirigiam-se em passo rápido para o Salão Estrela.
A noite estava escura, mas o estabelecimento apareceu profusamente iluminado. Cá fora havia grupos. Os agentes, obedecendo às ordens do chefe, esperavam que este
lhe fizesse o sinal combinado.
com um olhar rápido, Catamount observou o local exacto das saídas que podiam ser aproveitadas por Gills e pelos cúmplices, e mandou-as -guardar por vários dos seus
camaradas e depois, conservando vinte consigo, fez um sinal ao major:
- Para a frente! exclamou Morley.
E o grupo deslocou-se. Imediatamente atrás do major e de Catamount avançaram Eric Clarkson, Ben Kenny, e depois seguiam-se os agentes, cada um com um revólver na
mão. Dali a pouco chegavam à porta do Salão.
A enorme sala estava repleta, como de costume; reinava grande animação. Continuava a comentar-se o resultado negativo do inquérito feito ao roubo de Junction Point.
Junto do balcão, Steve Morrei clamava, jurando aos seus deuses que não tardaria a estar na posse da pele de José.
Mas vários auditores confessavam abertamente o seu cepticismo... Ouviu-se de repente uma voz clara à entrada do Salão:
- Que ninguém saia!...
Bruscamente os olhares convergiram para os recém-chegados; o major Morley e Catamount apontavam as armas a todos os presentes.
- É uma brincadeira estúpida, protestou o xerife.
-. Nada disso, xerife, respondeu o major, avançando alguns passos. Já várias vezes nos encontrámos, parece-me...
- O major Morley e os seus agentes!...
O representante da autoridade identificou rapidamente os intrusos, e ia arriscar um protesto quando Morley fez um gesto brusco:
-. Reuna todos os seus homens que estejam no Salão, xerife.
Catamount voltou-se para o dono do restaurante, que se aproximava, e perguntou-lhe:
-. O senador Hobart está aqui?
- Deve estar fechado na divisão reservada para ele! Há pouco António e os outros foram -lá ter.
- Às mil maravilhas!... não podíamos desejar melhor!...
- Mas afinal quem é o senhor? perguntou Steve Morrei ao falso Jack Doyle. O xerife examinava atentamente o homem de olhos claros. A sua silhueta fazia-lhe recordar
alguém que conhecia, mas a falta da barba tornava o agente irreconhecível.
- Depois lhe apresentarei o meu auxiliar, xerife, exclamou o major Morley. Por agora siga-me, enquanto aqui fica a maior parte dos meus homens para que não deixem
sair ninguém.
Os fregueses do Salão Estrela tinham-se reunido, sob a ameaça dos revólveres dos agentes, num canto do Salão.
- Mas afinal não nos diz o que significa esta invasão?
- Significa simplesmente, xerife, respondeu Catamount, que vamos proceder à prisão do assassino de Kenner, de Lemiblin e de toda a quadrilha que organizou o ataque
ao comboio de Junction Point,
XX
Uma limpeza a preceito
-É estranho, Winter não nos dá sinal de vida!...
-. Contudo o seu alazão continua preso, com os outros cavalos, aqui em frente do Salão...
- Que estará ele a fazer? Bem sabe que ficaríamos contentes se o víssemos.
Hobart Gills dominava dificilmente o seu grande nervosismo.
A atmosfera de mistério no meio da qual já há tempo se debatia, exasperava-o e punha-o fora de si. A importância da situação que ocupava no Senado, o grande número
de pessoas a quem fizera favores, as promessas que fazia constantemente (para segurar os seus cúmplices tinham até ali tornado fácil as suas manobras. Contudo, desta
vez, Hobart Gills sentia que as coisas não se passavam como habitualmente. Um pressentimento obsecava-o. As circunstâncias enigmáticas em que tinham sido roubados
os lingotes, as pedras que os cúmplices tinham colocado no lugar do ouro e o desaparecimento de Géo Malterr e de Slim Burgess eram outras tantas causas da sua .pouca
tranquilidade.
Para mais, a atitude de pretenso Sam Winter começava a parecer-lhe desconcertante. Evidentemente o senador nem .por um só instante duvidava do sangue-frio e audácia
do célebre bandido, contudo, a reserva do homem de olhos claros, a insistência que punha em não
lhe explicar como esperava tornar a encontrar o ouro roubado pelos Comanches, tudo isto irritava o senador.
Agrupados em volta da mesa, António, Nestório e os três acólitos esperavam, perplexos e indecisos. Também não sabiam explicar a atitude do gringo. A exaltação em
que os pusera o vinho de São Sebastião estava um pouco atenuada. Restava-lhes apenas uma grande dor de cabeça que lhes tornava mais confusas as ideias... O senador
repetia pela vigésima vez as razões que tinha para não duvidar da promessa do gringo, quando de repente se endireitou... Parecia-lhe ter surpreendido uma agitação
anormal em frente do Salão Estrela.
-. Carai! resmungou António, passa-se ali qualquer coisa de anormal!
E Gills, franzindo as sobrancelhas, disse:
- Talvez seja Sam Winter que regresse. Vai ver, António.
Este levantou-se imediatamente e correu para a porta, que abriu; mas, de súbito, parou. Atrás dela estava um homem que vinha a entrar...
- Buenas tardes, amigo.
O senador estremeceu e voltou-se ao reconhecer aquela voz.
- Winter! exclamou ele. Ora até que enfim você aparece. Já me tinham dito que o seu cavalo estava ali em baixo.
Escapou-lhe uma exclamação. Ao olhar para o recém-chegado notou imediatamente a mudança que se operara na sua fisionomia. Barbeado de fresco, o pretenso bandido
não lhe parecia o mesmo homem.
- Santo Deus! Vem do barbeiro, Winter, exclamou ele com ar de graça, apesar de não estar descansado.
- Não, senador, costumo eu próprio barbear-me. Esperava por esta entrevista com grande impaciência.
- Não há dúvida, respondeu o político, muito admirado. Mas parece-me que ainda não foi há muito tempo que nos vimos a última vez...
- Porém os acontecimentos precipitaram-se e tudo se passou mais depressa do que eu contava.
- Então já tem o ouro? perguntou Gills a medo. O homem dos olhos claros abanou afirmativamente
a cabeça:
- Sei onde estão os lingotes, mas isso é uma questão secundária. Eu tinha-lhe prometido trazer Catamount.
- Muito bem! Mas não compreendo que relação possa haver entre Catamount e os lingotes...
- Trago-lhe Catamount! interrompeu mais uma vez o agente, com voz breve.
Hobart Gills fitou o seu interlocutor com um espanto que se tingiu de ironia:
- Acabemos com as brincadeiras! Já nos divertimos bastante, Sam Winter!
- Não sinto a menor vontade de brincar! Cumpro a minha promessa e trago-lhe Catamount!
- Mas você está sozinho... retorquiu o político.
- Estou sozinho, pela simples razão de que sou eu próprio Catamount!
Se uma bomba rebentasse naquela divisão, com certeza não teria provocado maior espanto que esta declaração do agente.
Durante alguns instantes Hobart Gills ficou parado em frente do seu interlocutor; ainda debaixo da influência dos vapores do álcool, os mexicanos tinham-se levantado,
de olhos espantados; julgavam estar a sonhar!...
Foi Gills o primeiro a reagir:
- Vamos! acabe com essa comédia absurda!...
- Mãos ao ar, senador, está apanhado!
E com uma rapidez desconcertante o homem de olhos claros tirou o seu Colt e apontou-o ao político. Compreendendo o perigo que os ameaçava, Nestório, António e os
companheiros iam por seu turno pegar nas armas quando soou outra voz no corredor:
- Levantem todos as mãos para o ar!...
Era o major Morley que intervinha, com Eric Clarkson, Ben Kenny e alguns agentes; vinham todos armados.
Hobart Gills tornou-se horrivelmente pálido. As circunstâncias que tinham permitido aquele desfecho de teatro continuavam para ele inexplicáveis, mas avaliava todo
o perigo.
E vendo Steve Morrei, que esperava no corredor entre os homens do major, esforçou-se por dominar a sua perturbação:
- Quero que me explique, xerife...
-. Steve Morrei não tem absolutamente nada que lhe dizer, interrompeu o major Morley. É a nós que incumbe fazer justiça...
- De resto, continuou Catamount, deixe-me ler estas duas cartas. Compreenderão, e penso que não tentarão arriscar o menor protesto.
Enquanto o político, mantido em respeito por Clarkson e Ben Kenny, levantava as mãos, Catamount leu com voz clara as linhas assinadas por Malterr e Burgess.
- Protesto, exclamou no fim Hobart Gills, isso são infames calúnias. Se esses dois miseráveis estivessem na minha frente...
- Esteja descansado, senador, não tardará que sejam postos diante de si! José e os seus homens daqui a poucas horas trarão os seus dois acólitos.
"E serão também portadores dos lingotes do Banco Federal, que os seus proprietários encontrarão intactos! A comèdiazinha .que desempenhámos, era indispensável para
vos desmascarar... Agora de nada vos servirá protestar! Está apanhado e sabemos que também mandou matar Kenner, Lemblin e outros mais. Se Catamount não foi acrescentado
a esta lista, deve concordar que não foi por culpa do senador Gills...
"Por felicidade, encarregou o agente de se matar a si próprio... Foi um erro magistral, que fez com que se desfizessem todas as suas diabólicas maquinações.
Desta vez o senador não respondeu. Tornara-se lívido. Grossas bagas de suor lhe caíam da testa. A atitude de António e dos quatro companheiros era também lamentável.
Mal se viram ameaçados pelos agentes, os mexicanos defenderam-se asperamente uns após outros, acusando Hobart Gills. E a sua violência foi tal, que o homem de olhos
claros fê-los parar com um gesto:
-. Basta! Vocês são todos uns miseráveis! Se Gills tivesse sido bem sucedido, dividiriam alegremente a presa! Esta atitude não impedirá que sofram o castigo que
merecem. Vamos, aproximem-se, para lhes pôr as algemas.
Os miseráveis não insistiram. Pela atitude enérgica de Catamount compreenderam que não conseguiriam iludi-lo a respeito da sua conduta. Passaram um a um para o corredor,
onde os agentes os algemaram.
-. Agora é a sua vez, senador!
Catamount ia voltar-se para o político quando de repente soou uma detonação. Antes que as pessoas que estavam perto pudessem prever o seu gesto, Hobart Gills, aproveitando
uma distracção dos agentes, acabava de pegar num revólver que estava na gaveta da mesa e, encostando-o ao peito, puxara o gatilho.
- Maldição!... matou-se!...
Eric Clarkson e o major correram para ele. Durante alguns instantes continuou de pé, direito, depois a sua fisionomia contraiu-se numa careta horrível causada pela
dor, e caiu entre os braços dos dois homens...
- Depressa! Deitem-no sobre a mesa!
Na sala ficaram apenas Catamount, o seu chefe, Eric Clarkson e o xerife. Os quatro homens curvaram-se para o ferido, mas Hobart Gills fitou-os longamente e, abanando
lentamente a cabeça, murmurou:
- Tarde demais! Tenho a minha conta... Catamount pegou no revólver, que caíra aos pés do
político, enquanto os outros estendiam o ferido na mesa e examinavam a ferida.
O bandido falara verdade... Restavam-lhe apenas alguns segundos de vida... O suor corria-lhe pela cara abaixo e o sangue manchava-lhe o casaco.
E como o xerife se dispunha a tirar-lhe a camisa:
- Para quê? murmurou o ferido com uma voz apenas perceptível. É muito melhor ter sido assim...
Um estremecimento agitou-lhe o corpo. Um fio de sangue corria-lhe pelos cantos da boca. Em vão tentou falar. Durante um momento o seu olhar fixou-se em Catamount,
que esperava em pé, -perto da mesa.
O vencedor e o vencido ficaram assim frente a frente. À roda deles os outros calavam-se. Tinham-se habituado a viver no perigo, mas apesar disso aquela agonia impressionava-os.
Por muito miserável que Gills tivesse sido, respeitavam os últimos instantes do criminoso .
Dali a momentos, os olhos do moribundo abriram-se desmesuradamente e a cabeça tombou pesadamente para trás.
- Tudo acabou! murmurou o xerife, aproximando-se.
Catamount verificou que o coração deixara de bater. Sempre silenciosas, as testemunhas desta cena trágica iam abandonar o corredor quando o major as fez parar com
um gesto:
- Esperem! Tenho certas recomendações a fazer-vos!
Em poucas palavras, Morrei explicou que convinha conservar segredo a respeito das circunstâncias em que se dera a morte de Gills.
- Pensem no escândalo que este fim provocaria! A situação que o senador ocupava, as suas relações, tudo poderia acarretar consequências aborrecidas! Até nova ordem,
peço-lhes para observarem a mais rigorosa discreção.
Contudo, retorquiu Clarkson, não se poderá ocultar a morte de Gills.
por agora podemos fazer acreditar que um dos
mexicanos o matou.
O major tem razão, concordou Steve Morrei, é
absolutamente necessário aguardarmos que o governo nos dê as directrizes necessárias.
De resto, disse Morley, eu recebera informações
a respeito da morte recente de Sam Winter... talvez se pudesse...
.- Pôr a morte de Gills nas contas do defunto?! declarou Catamount, sorrindo. Concordem que isto podia ser qualificado de pitoresco...
Depois, fazendo um cigarro, o homem de olhos claros, que fora para o corredor, declarou com um sorriso irónico:
- E eis como se escreve a História!...
- Que importa isso?... O importante é você ter afastado definitivamente um bandido perigoso. O resultado das suas recentes proezas terá uma importância considerável...
Catamount fez um gesto de evasiva. Evidentemente só isso importava. As mortes misteriosas do jornalista e do candidato, as numerosas más acções do político, tinham
recebido o seu castigo...
Hobart Gills, cercado, no momento de ser preso preferira fazer justiça a si próprio!...
Contudo as discussões pararam. A efervescência era grande no Salão Estrela. A nova da morte do senador espalhara-se rapidamente e os clientes do estabelecimento
continuavam a esperar, mantidos em respeito pela ameaça dos revólveres dos agentes.
António, Nestório e os três acólitos tinham sido levados para uma divisão do primeiro andar, receando-se que fossem indiscretos. O xerife submeteu-os a um apertado
interrogatório. Os miseráveis confessaram tudo, desde a morte de Kenner e Lemblin, e não houve
dificuldade em obter os nomes dos cúmplices de menor importância, sete dos quais se encontravam ainda na sala. Prenderam-nos e o resto das pessoas foram postas em
liberdade.
É inútil acrescentar que no dia seguinte Haymond inteira esteve animadíssima. O governo do Texas e as mais altas personalidades vieram em pessoa tomar parte no inquérito
com os membros do Conselho de Administração do Banco Federal.
Catamount não ficou inactivo. Depois de obter a promessa formal de que José e os seus súbditos não sofreriam represálias e seriam recompensados, dirigiu-se para
o Rio-Grande.
Na outra margem, o chefe e trinta dos seus guerreiros esperavam que lhes dirigissem o sinal combinado.
Quando o homem dos olhos claros lhes disse que nada tinham a temer por parte das autoridades americanas, atravessaram o rio a vau, trazendo com eles, em cima de
um cavalo, os lingotes de ouro.
Géo Malterr e Slirn Burgess, muito bem amarrados, faziam igualmente parte da expedição.
O caso Gills tomou proporções tão consideráveis que, ao fim de algumas horas de inquérito, as autoridades compreenderam que era impossível abafar o escândalo e esconder
o nome do principal culpado. O interrogatório dos dois guardas, as explicações do chefe dos Comanches, dirigiram as buscas da Justiça para outro caminho.
José contou como é que os agentes de Gills tinham procedido para desencadear a revolta, explicou o tráfico de armas de modelos aperfeiçoados que passavam para o
outro lado da fronteira a fim de levar os índios a tornarem-se cúmplices dos piores crimes. Em seguida a esta manobra maquiavélica do político, os peles-vermelhas
deviam ser considerados responsáveis da revolta e tratados como tal...
Por felicidade a Providência quisera que Catamount
andasse na região próxima da Serra de Santiago, no momento em que se dava o ataque à diligência de Haymond, tão engenhosamente combinado. A entrada em cena do homem
de olhos claros permitira desvendar os planos poderosos daquele bando trágico.
As prisões sucederam-se em todo o território do Texas. Aventureiros de toda a espécie, empregados sem escrúpulo, agentes políticos, propagandistas sem honra,, foram
encher as prisões de El Paso, de Forte Worth e de Santo António.
Pouco tempo depois, o que parecera constituir apenas uma simples aventura dos Comanches rebeldes contra uma diligência isolada, transformou-se num caso que apaixonou
a América inteira.
O mérito desta limpeza oportuna recaía evidentemente sobre Catamount, cuja audácia e engenho não se tinham desmentido um único instante durante estas numerosas peripécias.
Contudo, em presença da importância que o caso dia a dia tomava, o homem de olhos claros pediu ao chefe para o enviar em missão para longe dali, para as regiões
poupadas pelos escândalos e pelas discussões políticas.
Quando Catamount deixou Haymond, Ben Kenny e ele tinham-se tornado os melhores amigos do Mundo.
Eis porque, querendo favorecer a popularidade do antigo rei do Colt, o agente encarregou-o de falar com os representantes da Imprensa, que caíam em Haymond como
uma nuvem de besouros.
Ben Kenny aceitou de boa vontade, tanto mais que não se esquecia de acentuar certos episódios e pôs em evidência o papel que desempenhara no caso. Quando declarou
que tinha sido ele que dera o alarme ao major Morley e aos seus agentes, tinha sempre o cuidado em não acrescentar que fora unicamente para proceder à prisão de
um certo Sam Winter, assassino de um tal Catamount, que continuava bem vivo!...
Os Clarkson, como todos os habitantes de Haymond, estavam muito contentes com aquela saudável limpeza tão rapidamente efectuada e na qual todos três tinham desempenhado
o seu papel... E enquanto na pequena cidade discutiam apaixonadamente o escândalo Hobart Gills, longe dos ruídos e das discussões o homem de olhos claros recomeçava
as suas cavalgadas solitárias.
Montando o seu fiel Mezquita, Catamount percorria as solidões próximas do Rio-Giande, mais do que nunca decidido a prosseguir na sua tarefa desvendando as tenebrosas manobras dos bandidos e dos criminosos.

 

 

                                                                                                    Albert Bonneau

 

 

 

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