A GRANDE PARADA DE LITTLE ROCE" BUFFALO-BILL" ... "WILD WEST" ...
Desde que haviam partido, de manhã cedo, de Atkins, nunca os dois cavaleiros deixaram de notar aquelas palavras impressas em letras garrafais. De cada lado da rua que conduzia a Little Rock, nas paliçadas e nas paredes dos prédios, imensos letreiros evocavam as cavalgadas e as danças guerreiras dos índios toucados com os diademas de penas de águias, tudo isso a anunciar a passagem da grande "caravana" do Coronel Cody, de nome muitas vezes repetido pelos cartazes berrantes de cor e bordados de estrelas brancas em fundo azul celeste.
Os dois cavaleiros chegaram junto da margem do Arcansas, que deslizava majestoso ao fundo do seu verdejante vale, e só então um deles - Catamount - comentou:
- Vai cair o poder do mundo em Little Rock... Como não obteve resposta do companheiro, o homem dos olhos claros insistiu:
- O Coronel não é da minha opinião? Morley retorceu, sem pressa, o bigode, num gesto muito seu, e, sob o matagal das espessas sobrancelhas, os seus olhos azuis cintilaram ao responder:
- É um felizardo esse Cody! Que no Leste triunfe, nada de mais natural, mas que venha com a companhia exibir-se e dar espectáculo em terras de índios é que ultrapassa a minha compreensão!... A gente cá do sítio deve estar farta até aos olhos de histórias de pioneiros, de diligências e de Far West...
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- Sem dúvida que isso é uma opinião - concordou o ranger - , mas a verdade é esta: Contaram-nos, deveras, em Atkins que a companhia de Buffalo Bill conquistou êxito considerável, tanto em Springfield como em Oklahoma City!... Centenas de espectadores não obtiveram lugar e muitos mostravam-se tão contrariados que ameaçaram espatifar
tudo! Quanto aos índios, acorreram, aos magotes, das Reservas, para admirarem os patrícios contratados para a companhia de Cody!
Catamount esmagou, com uma palmada, um moscardo que poisara no pescoço do seu fiel "Mesquita". Quanto a Morley, contentou-se em emitir um grunhido surdo, que tanto podia significar aprovação como discordância. Continuaram a trotar ao lado um do outro, detendo de vez em quando os olhos no Arcansas, já muito próximo. Um barco a vapor subia, sem pressa, a corrente do rio, com um penacho de fumo preto evolando-se-lhe da chaminé pintada de encarnado.
Dali a pouco, o ranger voltou-se para o que seguia a seu lado e perguntou:
- O Coronel nasceu em Little Rock? O interpelado acenou afirmativamente com a cabeça e esclareceu:
- Meus pais foram pioneiros... Quando se estabeleceram no Arcansas, ainda Little Rock ficava mesmo no centro das terras dos índios! Ainda me lembro de disparar contra
esses diabos vermelhos! É que nesses tempos não se tinha a pele tão segura como hoje!... Estava-se sempre à espera, de um momento para o outro, de que nos viessem
arrancar o escalpe...
Morley calou-se por instantes, pois havia cada vez mais movimento na estrada, onde veículos de toda a espécie roçavam com numerosos cavaleiros. Ao lendário carro
colonial sucedera-se o automòvelzito
barato e a carripana duma família de índios em mudanças. Um pouco mais adiante, um magote de vaqueiros cantava a "Suzannah". Toda aquela gente se dirigia para Little
Rock, da qual já se avistavam as primeiras casas, dominando o rio.
O Coronel explicou: - Edificaram a cidade a sessenta pés de altura, sobre um desfiladeiro de ardósia.
Da calçada que acabaram de trepar, os dois cavaleiros avistavam agora o panorama da cidade. Então o chefe dos rangers parou por instantes a montada e, estendendo
o braço, continuou:
- Vê acolá aquela ladeira que desce pelo barranco? É. por onde a cidade comunica com o seu arrabalde de Argenta, na margem esquerda do Arcansas. Olhe ali à nossa
direita para um rochedo xistoso dominando o rio, a uns trezentos pés de altura pelo menos. É Big Rock, o Grande Rochedo. A mais de duas milhas para montante, repare
naquele rochedozinho que não emerge da água mais de uns trinta pés. É Little Rock, justamente o cachopo que deu o nome à cidade!
Como gigantescos cartazes do Wild West lhes tiravam parte da vista, o homem dos olhos claros não se demorou ali mais tempo com o companheiro. Aliás, Catamount já
passara muitas vezes por Little Rock, desde que iniciara a sua existência aventurosa, e, por isso, conhecia a palmos todas aquelas terras regadas pelo Arcansas,
assim como as de Hot Springs, onde mais de setenta nascentes de água quente brotam a umas cinquenta milhas para sudoeste, atraindo todos os anos multidão cada vez
mais numerosa de turistas.
Como a afluência aumentava cada vez mais à medida que se aproximavam da cidade, Morley e Catamount tiveram de parar com a conversa, pois toda a atenção era pouca
para os cavalos, tão difícil se lhes tornava abrir caminho por entre aquela turba de momento a momento mais compacta.
Little Rock vestira-se com trajos domingueiros para
acolher Buffalo Bill e o seu Wild West. Ao jovial sol primaveril, trapejavam as bandeiras estreladas, batidas por uma aragem leve, enquanto as flâmulas e os letreiros,
estendidos a toda a largura da rua principal, desejavam as boas-vindas aos forasteiros. Por todas as paredes e muros, numa insistência obcecante, pontificava o retrato
do Coronel Cody, com a barbicha lendária, os cabelos de mosqueteiro e o impressionante chapelão de abas largas.
As esplanadas da cidade recordavam gigantescos acampamentos, onde imensas fileiras de cavalos esperavam presos às estacas. Numa das praças, um grupo de índios instalara-se,
com as mulheres a abanar o lume na preparação da comida e a criançada a brincar, correndo atrás uns dos outros até se envolverem entre as pernas dos cavalos, que,
espantados com aquela tropa miúda, se encabritavam.
- Não há dúvida de que os peles-vermelhas saíram todos, hoje, das Reservas! - comentou Morley.
Catamount acenou com a cabeça e, enquanto atravessava a praça, notou que os índios, ali aglomerados, pertenciam às várias tribos do Arcansas. Os representantes de
cada bando agrupavam-se em separado: Cheienes, Arapaoés, Kiowas, Comanches e Chicksaws, vindos de Leste; Cherokees e Choktaws, de novo chegados do Poente... Acocorados
nas mantas, envoltos nas capas em farrapos, mas majestosos como reis cobertos de púrpura, olhavam calmamente os que passavam, parecendo indiferentes ao bulício que
reinava à sua roda. Alguns fumavam pachorrentamente nos cachimbos e exibiam inverosímeis chapéus de coco, empoleirados nos altos topetes e nas tranças, enquanto
outros se ornavam ainda com os diademas de penas de águia. Mas mesmo esses pareciam já muito longe dos tempos heróicos de Sitting Bull e de Red Cloud!
Catamount e o seu chefe em breve se desinteressaram do pitoresco acampamento índio para observarem a multidão, que constantemente os impelia para o
centro de Little Rock, onde, dali a pouco, avistavam o enorme circo ambulante do Wild West, com a sua impressionante cobertura verde, que grupos de operários acabavam
de instalar para abrigar os milhares de espectadores, muitos dos quais se apinhavam cada vez mais em volta daquele amplo espaço, onde continuavam a ressoar os malhos
do pessoal. ",
Os numerosos componentes da companhia de Buffalo Bill davam a sua ajuda aos montadores e aos carpinteiros e, naqueles, havia cowboys, árabes e cossacos, de botas
lustrosas e sem esporas, Aliás, todo o ambiente parecia impregnado do cheiro de cabedal, de graxa e de poeira.
Naquele sítio, quase paralisara o trânsito e só com grande dificuldade Catamount e Morley conseguiram avançar. Como avistaram duas estacas livres perto do saloon
do "Excelsior", o chefe dos rangers inclinou-se para Catamount e exclamou:
- impossível passar daqui! Tratemos de prender ali os animais e tomar depois um refresco no saloon!
O homem dos olhos claros concordou. Desde que saíram de Atkins, onde, com o chefe, fora numa diligência informativa, haviam caminhado três horas, sob a torreira
do sol. Por isso, vinha muito a propósito o refresco. Num instante, saltou para o chão para ir dar de beber ao "Mesquita" e ao cavalo do Coronel. Depois, tratou
de se juntar a Morley, que acabara de subir os degraus de madeira de acesso à grande sala do "Excelsior".
Estava à cunha o saloon; uma turba barulhenta e mesclada mal deixava ouvir os acordes desafinados do piano mecânico. Só à força de cotovelo, Morley e Catamount conseguiram
abrir caminho até ao balcão, atrás do qual imperava o imponente bartender, James Mac Rémond.
- Dois uísques! ordenou o Coronel, fincando o cotovelo no zinco e fazendo sinal ao ranger para se instalar à sua direita.
Alguns cowpunchers encresparam as sobrancelhas, mas, como viram os galões de Morley, acalmaram logo e retomaram as conversas, interrompidas por instantes.
Primeiro, Catamount e o chefe limitaram-se a escutar o que se dizia à sua roda. Evidentemente, as conversas versavam todas mais ou menos Buffalo Bill e o seu Wild
West, Cada um dos presentes, gabava o mérito do famoso empresário, pois todos lhe conheciam a carreira aventurosa e lendária e comentavam as sensacionais atracções
que o Coronel Cody apresentaria na ocasião da sua passagem por Little Rock.
- Vão ver que ainda será melhor do que um rodeo - vaticinava um calmeirão de cabelos ruivos e rosto constelado de sardas.
- Pode ser que seja - desdenhou outro, com cara de judeu - , mas se isso é programa para deixar de boca aberta essa gente de Leste, não é nenhuma novidade para Little
Rock! O que falta por cá são cowboys! Olhem para o que para aqui vai!
- Está muito bem - admitiu o gigante, que parecia um poucochinho conflituoso. - Mas também cá têm árabes? E também cossacos? Já vi trabalhar esses russos que o Coronel
Cody traz na companhia e garanto-lhes que eles dariam lições ao melhor dos nossos domadores de cavalos!
Levantaram-se patrióticos protestos, a que o outro replicou, com a ajuda de estrondosos murros no balcão:
- Se assistirem ao espectáculo, depois me hão-de dizer se lhes estou a mentir! Os cossacos podem não saber servir-se do laço, mas desafio vocês todos a manejarem
o punhal tão bem como eles! E então a dançar são de uma destas agilidades!...
Catamount mantinha-se impassível, olhando, à socapa, ora para os vizinhos, ora para James Mac Rémond, que dava um pulo por cada soco que o orador assentava em cima
do balcão. O outro ia replicar e a conversa começava a aquecer, quando uma voz
tranquila de mulher, com um sotaque estrangeiro, distraiu os que discutiam:
- Desculpem, senhores. Dêem-me um lugarzinho aí, façam favor!
Todas as cabeças se viraram e, como por encanto, estabeleceu-se completo silêncio, apenas perturbado por uma ou outra exclamação e assobio de apreço provocados pela
jovem que, com a maior calma, se postou à esquerda de Catamount.
Com excepção das dancing-girls, raramente se via no "Excelsior" uma mulher, razão de sobra para que os olhares surpreendidos dos presentes se concentrassem todos
na recém-chegada.
Esta era uma rapariga dos seus vinte e cinco anos, vestida como as cowgirls do Oeste, com chapéu de abas largas, cinzento-claro, luvas e um desses cabelos de um
louro dourado, todo ele às ondas, que era o que mais nela despertava a atenção. No pescoço, de uma brancura leitosa, amarrava-se um lenço de furta-cores.
Foi James Mac Rémond que tomou a iniciativa de quebrar aquele silêncio, perguntando:
- Que deseja, minha senhora? - Champanhe - respondeu a recém-chegada, com a maior naturalidade.
Como se não estivesse mais ninguém no vasto recinto, tirou a cigarreira de prata da algibeira do peito, escolheu uma cigarrilha de ponta dourada, acendeu-a e expeliu,
para o tecto enegrecido, uma voluta azul de fumo.
Catamount nem pestanejara, embora impregnado do penetrante perfume a cravo que a desconhecida deixava por onde passava e que levava a melhor sobre o cheiro acre
e irritante do fumo.
Logo que olhou para ela, o batedor percebeu que se tratava de uma estrangeira. Quando chegara, exprimira-se em correcto inglês, embora carregando nos "rr". Agora,
de taça em punho até à altura dos olhos, saudava a assistência:
- A vossa saúde, cavalheiros, e ao êxito do
Wild West!
Os brindados receberam a homenagem de olhos cintilantes, e o próprio Morley retorcia maquinalmente o enorme bigode grisalho, para disfarçar a perturbação que a jovem
provocava. Esta, que percebera perfeitamente a reacção, sorriu-se imperceptivelmente, continuando a saborear, aos golinhos, o espumoso, fingindo não reparar na atenção
com que todos lhe apreciavam o vermelho dos lábios; o desenho, acentuado a lápis, das sobrancelhas; os brincos, que luziam competindo com o dourado dos seus cabelos
fartos.
De repente, a rapariga, sempre indiferente aos olhares apreciativos dos admiradores, voltou-se, ergueu-se nos bicos dos pés, proferiu quaisquer palavras numa língua
que ninguém percebeu e, a seguir, pediu, acompanhando desta vez as palavras em inglês, com um sorriso amável:
- Com licença, meus senhores. Deixem passar. Os que estavam mais próximos abriram obedientemente alas e foi então que uns dez indivíduos, em que até então não tinham
reparado, se aproximaram, avançando por sua vez até ao balcão. Quase todos eram de baixa estatura, traziam um gorro de astracã levemente inclinado, e ostentavam
o trajo dos cossacos, com o respectivo punhal de lâmina pontiaguda pendente do cinto.
- Vodka! - ordenou a loura, de olhos verdes. O bartender indicou, por sinais, que não tinha essa bebida e então a desconhecida, que parecia tão à vontade no saloon
como o mais antigo frequentador do "Excelsior", decidiu:
- Nesse caso, sirva-nos champanhe. Os cossacos, com as taças a transbordar, ergueram-nas para a rapariga e esvaziaram-nas alegremente, proferindo um brinde em língua
russa. A assistência olhava-os como a animais raros. Depois, num gesto
largo, ela procurou, com a mão enluvada, no cinto, uma nota de dez dólares, que entregou ao bartender,
- Guarde a demasia - rematou, num último sorriso.
A seguir, levando atrás de si os cossacos, que pareciam servir-lhe de guarda-costas, saiu, deixando no ar um persistente perfume a cravo.
Rebentaram então exclamações por todos os lados e o gigante esclareceu:
-É a Sandra, a que atira punhais como ninguém e que faz parte do grupo de cossacos que o Coronel Cody contratou, na Europa, para o seu Wild West!
Os assistentes aproximaram-se, cheios de curiosidade, do calmeirão, mas este soltou de repente uma praga. Antes de os demais terem tempo para lhe perguntar o que
inesperadamente o irritava, viram-no abaixar-se, estender a mão, e endireitar-se outra vez, segurando pela gola um homenzito que se agitava, desesperado, e que ergueu,
pendurado na ponta do braço, ao mesmo tempo que evidenciava malévolo contentamento ao vê-lo debater-se sem resultado.
- Estás aqui outra vez, meu anão dos assobios! Hás-de andar sempre agarrado às minhas pernas!
O pigmeu tentava debalde furtar-se ao aperto do gigante e, com o esforço, tornara-se vermelho como um tomate. De repente, tirando partido da sua baixa estatura,
conseguiu esgueirar-se, sem que o vissem, até ao balcão, encolhendo-se de tal modo que nem deram por ele. Mas agora, desesperado, soltava gritos aflitivos.
O matulão motejou para os presentes: - Dêem-me licença que lhes apresente Sua Majestade Bollobobum! Bollobobum!... Que nome este! Deve ser copiado de Barnum!...
Fenomenal! Mas é melhor que fujam dele a sete pés. Este anão tem mau olhado! Tão certo como chamar-me Tom Lartigo e pertencer também à companhia do Wild West!
Durante alguns minutos, o brutamontes levantou a vítima, que se debatia, sem resultado nenhum, por cima das cabeças dos assistentes... Ouviram-se gargalhadas...
Era tão cómica a cara do anão que ninguém dava mostras de o lastimar.
- Meus senhores e minha senhora! - berrou o gigante, levantando cada vez mais o pigmeu, à força de pulso. - Vão ver como se deita fora um traste que nos incomoda!
Olhou para a porta do saloon, aberta de par em par, e, como se se tratasse de uma bola de borracha, baloiçou o desgraçado e atirou-o com toda a força para a rua.
Estrugiram ainda mais estrondosas as gargalhadas. Para a maioria dos assistentes, aquela cena imprevista parecia tão desopilante como um intermédio de palhaços.
O anão caiu, a gemer, no sobrado, onde ficou por momentos sem se mexer. Depois, ergueu-se cambaleando, escorregou junto da porta, rebolou pelos degraus de madeira
e foi parar ao passeio, onde se levantou ainda atordoado e esfregando as costas doridas. Voltando-se para o adversário, que se postara entre portas a rir a bandeiras
despregadas, estendeu-lhe o punho cerrado e gaguejou:
- Hás-de pagá-las! Hei-de me vingar! - Como se eu tivesse medo de um micróbio! - ripostou-lhe, desdenhosamente, o gigante, encolhendo os ombros.
Voltou para dentro, gingando mais do que nunca, com as mãos enterradas nas algibeiras, e preparava-se para se encostar outra vez ao balcão, quando viu que Catamount
o media dos pés à cabeça. O batedor, ali isolado com Morley, não achara graça nenhuma à expulsão brutal do anão. Nos seus lábios delgados desenhava-se uma expressão
de desprezo e os olhos não se despregavam de Tom Lartigo.
Este pareceu não gostar da atitude nitidamente reprovativa do homem dos olhos claros. Como pararam
de rir à sua volta, endireitou-se, espetou o peito, arredou para o lado dois dos seus vizinhos e, de dedos metidos nas cavas do colete, aproximou-se de Catamount,
para lhe dizer numa inflexão provocadora:
Parece que ficou enjoado... ? O ranger não esboçou o menor movimento, continuando de olhos cravados no matulão, e ao seu tom ameaçador respondeu apenas, na mais
serena das inflexões :
- Você não passa de um covarde.
II
OS NÚMEROS DO CIRCO
Junto do balcão pesava um silêncio impressionante, enquanto os olhares de toda a assistência se conservavam voltados para os dois homens, enfrentando-se, calados,
a dois passos um do outro, Os fregueses mais próximos de Tom Lartigo e de Catamount afastaram-se prudentemente, ficando apenas Morley à espera, recostado no balcão,
enquanto o bartender, de olhar aflito, já se via ameaçado de uma zaragata em que os copos e as garrafas pela certa pagariam as favas.
O gigante ficou imóvel durante instantes, de punhos crispados e a calcular o impulso com que deveria investir, enquanto Catamount, com a maior serenidade, esperava,
pronto para todas as eventualidades.
Por fim, Tom Lartigo soltou uma praga abafada e vociferou:
- Espera aí, patife, que já mas vais pagar! Juntando o gesto à palavra, investiu, de punhos em riste, mas, ao mesmo tempo que se preparava para socar o homem dos
olhos claros, este escapou-se-lhe com uma agilidade e destreza que deixaram de boca aberta os vizinhos mais próximos. O atacante apenas encontrou na sua frente o
vácuo e, antes de poder voltar para trás para recuperar o equilíbrio um tanto abalado pela manobra falsa, o ranger entrou por sua vez em acção.
Atingido em cheio no maxilar, com um "directo" irresistível, o provocador cambaleou, agitou os braços no ar, mas tentou ainda agredir o tremendo antagonista. Novo
murro, que desta vez lhe assentou na boca do estômago, fê-lo girar devagar sobre si, com a respiração cortada, até que se estatelou ao comprido, ao som de ovações
vitoriando o vencedor.
O homem dos olhos claros ainda se manteve por momentos imóvel, aguardando a reacção, mas Tom Lartigo não dava mostras de pretender continuar a luta e, cuspindo dois
dentes e com um fio de sangue a escorrer do canto da boca, levantou-se em silêncio, apoiando-se a uma mesa. Ninguém se lembrou de o ajudar a erguer-se. Finalmente,
ainda encostado a uma cadeira, apanhou o chapéu, resmungou qualquer coisa que os presentes não perceberam e, deitando a Catamount um olhar a ressumar ódio, murmurou
em tom cavernoso:
- Fica para a próxima... Mal o desordeiro saiu e quando ainda a tranquilidade não se restabelecera na sala, ouviram-se fora os acordes retumbantes de uma filarmónica.
Toda a gente se esqueceu imediatamente da desavença entre o ranger e o algoz de Bollobobum e correu para a porta, ao mesmo tempo que o bartender soltava um suspiro
de alívio por ver que os copos e as garrafas tinham escapado.
Catamount acabou o seu uísque e depois, com toda a calma, seguiu Morley, que se encaminhou também para a porta do "Excelsior". De todos os lados se ouvia:
- É o desfile do Wild West! -É Buffalo Bill! Toda a rua aplaudia entusiasmada os cavaleiros do Wild West, desfilando atrás do seu director. Já ninguém se lembrava
de Tom Lartigo. Todos os olhares se cravavam em Buffalo Bill, curveteando à frente dos seus rudes centauros. Montado no seu cavalo "Charlie", o ilustre Coronel Cody lembrava um cavaleiro lendário, mesmo que não se tratasse, evidentemente, do moço ginete de outros tempos, autor de tantos prodígios famosos
durante a guerra da Secessão, o correio do "Pony Express", cuja audácia espantara o mundo inteiro, o caçador de búfalos do "Pacific Railway" e que conquistara o
nome abatendo sòzinho centenas e centenas de búfalos! A comprida cabeleira castanha, que lhe obtivera dos índios a designação de "Pae-has-ka", caía-lhe pelos ombros,
saindo-lhe de debaixo do chapéu de abas largas, e já luzindo com bastantes fios de prata.
Catamount olhou demoradamente o herói, de quem ouvira gabar as proezas e, entretanto, Buffalo Bill continuou cavalgando pela rua fora, agitando a mão enluvada a
saudar os admiradores e sorrindo no semblante rude e queimado, ornado de bigodes e duma barbicha imperial. Vestia-se de pele de gamo e as botas subiam-lhe até ao
joelho, Apesar da apoteose que levantava, William Frederick Cody parecia não se perturbar com as ovações.
Logo atrás do chefe, desfilavam os cavaleiros encarregados dos números mais sensacionais do programa do Wild West. Eram índios emplumados, com as caras cobertas
de extravagantes pinturas; vaqueiros, de chaps, e que soltavam impressionantes youpees, enquanto agitavam os chapelões com uma berraria que por vezes lhes encabritava
as montadas nervosas; árabes imponentes e impassíveis nos albornozes e que só deixavam a fleuma para brandir as espingardas de desconformes proporções.
De repente, Catamount, perdido entre a multidão e ao lado de Morley, interessadíssimo no desfile, estremeceu. Na cauda do cortejo trotava um último grupo: os cossacos.
De pé nas selas dos irrequietos corcéis, os cavaleiros de Kuban realizavam maravilhas de equilíbrio e de destreza, mas, ao lado deles, caracolando num magnífico
cavalo branco, o batedor reconheceu
a rapariga que, pouco antes, bebera champanhe no "Excelsior". Sempre no seu trajo de cowgirl, Sandra, a Loura, distribuía sorrisos pela assistência, e todos a aplaudiam,
impressionados, ao mesmo tempo, pelo seu porte e pela sua formosura.
- Uma linda mulher, não lhe parece? - comentou Morley, voltando-se para o ajudante.
Catamount não deu resposta; limitou-se a encolher os ombros, embora demorasse o olhar no vulto airoso da amazona, que dali a pouco se sumia entre os grupos do cortejo,
desaparecendo ao longe, com os últimos acordes da banda e o barulho de vivas e de assobios.
Então o chefe dos rangers comentou: - Cody é esplêndido, mas, quer-me parecer, a loura ainda o bate aos pontos em matéria de triunfo.
Os dois homens seguiam agora lado a lado por entre a multidão que debandava. Sob um sol escaldante, pairava no ar um cheiro forte a poeira e a cavalos.
- Guardamos para amanhã a ida para El Paso - deliberou o Coronel. - Estou com interesse em assistir ao espectáculo do Wild West. E você também, calculo eu...?
Catamount concordou que teria realmente muito prazer em travar mais amplo conhecimento com o espectáculo de Buffalo Bill. Reservaram quarto no hotel e, depois, foram
jantar a um restaurante, enquanto esperavam a sessão nocturna.
Ao cair da noite, as ruas de Little Rock estavam iluminadas, como em pleno dia, graças aos candeeiros de acetilene, de cheiro penetrante, que mostravam os magotes
de gente encaminhando-se para o imenso circo de tela do Wild West.
Apesar de montarem um bom serviço de ordem, a custo se abria caminho por entre a onda de espectadores, discutindo e empurrando-se em redor das bilheteiras, comprimindo-se contra os degraus, enquanto
projectores eléctricos eram assestados de todos os cantos sobre a grande praça formigando de gente.
Morley e o ajudante levaram quase meia hora para conseguir arranjar bilhete e, quando passaram ao interior do circo, já a maior parte dos lugares estava ocupada
por uma multidão barulhenta, rodeando a arena, que resplandecia com a luz que jorrava dos enormes focos eléctricos.
Para as bandas da larga porta que levava à pista, distinguiam-se grupos de cowboys e de índios, conversando a meia voz. Do seu lugar, Catamount avistava, volta e
meia, a alta estatura de Buffalo Bill, embrulhado numa ampla capa e a vigiar os preparativos do espectáculo, atento a tudo e consciente da sua importância e fama.
O ranger acendeu um cigarro, que o chefe lhe ofereceu, e esperou serenamente o começo da função, embora se sentisse um tanto apertado entre Morley e um avantajado
lavrador dos arredores, a discutir com os vizinhos a respeito do gado do Arcansas. Lá adiante o Coronel dava instruções a um rapaz.
O homem dos olhos claros procurou várias vezes, com a vista, Sandra, a Loura, mas não a descobriu. No estrado destinado à orquestra, os músicos, de fardas vistosas,
afinavam os instrumentos.
De repente, estalaram gargalhadas, pois, como prelúdio ao espectáculo, os palhaços davam entrada na pista. Um montava um minúsculo poldro da Islândia e deu logo
nas vistas do ranger. Reconheceu nele o malfadado anão que Tom Lartigo tão brutalmente tratara no "Excelsior".
O anão vinha vestido de cowboy e fazia o cavalito trotar em volta do redondel. Estrugiam, na assistência, as gargalhadas e os dichotes. O anão agitava um chicote
de cabo curto e fazia horrendas caretas, A seguir, pulou para a sela e, agitando o chapéu, desatou a gritar num timbre agudo:
- Bollobobum!... Bollobobum!...
Esta exibição, bastante cómica, fazia a alegria das crianças que, por todos os lados nas bancadas, com as vozes jovens e frescas, gritavam por sua vez, entre as
palmas e os assobios:
- Bollobobum!... Bollobobum!... Apesar, porém, da animação demonstrada pelo palhaço, Catamount, que o não perdia de vista, notou-lhe expressão ansiosa e crispada,
sob a caracterização coberta de pó. Era evidente que Bollobobum mostrava um sorriso forçado, talvez por se lembrar da desagradável cena ocorrida, pouco antes, com
Tom Lartigo.
Mas já, num conjunto impressionante, os palhaços abandonavam a pista, enquanto os músicos tocavam uma animada peça. Ia enfim iniciar-se o espectáculo pròpriamente
dito. De toda aquela multidão estrugiram aclamações vibrantes e calorosas. Buf falo Bill aparecera montado no seu fiel "Charlie".
Cumprimentou a assistência, com um gesto largo que um mosqueteiro do Grande Século não desdenharia e, a seguir, o Coronel Cody apresentou o espectáculo, depois de
aludir, em breves palavras, à sua carreira aventurosa e bem recheada. Anunciou que o Wild West oferecia o programa mais sensacional do Universo, durante o qual os
mais hábeis cavaleiros competiriam.... etc., etc.
O ensurdecedor barulho que pouco antes enchia o enorme recinto parou
como por encanto. Apenas aqui e além se ouviram tosses isoladas, aliás reprimidas imediatamente.
Toda aquela mesclada assembleia, em que índios se encostavam a abastados lavradores e os residentes de Little Rock se comprimiam contra os cowpunchers, escutava,
com a maior atenção, o discurso do ilustre empresário, outra vez vitoriado com retumbantes ovações quando se retirou, agitando novamente o chapelão de abas largas.
Começou a representação. Os números sucederam-se atrás uns dos outros, mas, para se dizer a
verdade, a maior parte do programa compunha-se de exibições equestres. Depois da constituição de um rodeo, em que cowboys e cowgirls se exibiram entusiàsticamente,
os árabes executaram uma esplêndida fantasia. Surgiram a todo o galope, nos seus cavalitos rápidos como o vento, disparavam para o ar as compridas espingardas, depois
rodopiavam e reapareciam num turbilhão de pó, soltando ferozes gritos. No rebordo da pista, o Coronel Cody assistia, imóvel, às proezas dos seus contratados, aprovando-as,
de vez em quando, com leves acenos de cabeça.
Catamount mantinha-se também imóvel, fumando outro cigarro, e, segundo os vistos, interessadíssimo nas entradas e saídas dos árabes. De vez em quando, avistava o
anão, que aparecia entre o reposteiro da entrada e o umbral. Depois, na altura em que os moços de pista, vestidos de cowpunchers, preparavam a arena para novo número,
notou entre estes outra figura conhecida: a do brutamontes a quem chegara a roupa ao pêlo no saloon do "Excelsior". Tom Lartigo desempenhava-se da tarefa arrastando
a perna e, no semblante rude, assinalava ainda a marca da severa correcção do ranger.
Ouviam-se já, contudo, surdos murmúrios. Apagaram as luzes, com excepção de dois focos vermelhos provenientes dos projectores, e completo silêncio se estabeleceu
nos milhares de espectadores apinhados no enorme circo. Como espectros envoltos em simples calças de pele de bisão e cobertos com diademas de penas de águia, índios,
com os corpos e as caras pintados com as cores do combate, entraram em duas alas. Perfaziam uns trinta e entoavam um cântico selvagem, ao mesmo tempo que martelavam
o solo com os mocassins e marcavam o compasso com os tomaihawks.
De repente, ao sinal de um deles vestido de feiticeiro, elevaram-se duas enormes fogueiras, feitas com fogos-de-bengala e que crepitaram avermelhando o
amplo recinto, Os índios começaram logo a agitar-se num bailado que constituía um dos grandes números do espectáculo. Descreviam curvas em volta das chamas, passando
sucessivamente da sombra para a claridade, enquanto suplicavam ao Grande Manitu que lhes restituísse as terras dos antepassados e as pradarias ilimitadas por onde
trotam as incontáveis manadas de búfalos.
Durante mais de um, quarto de hora continuou a pantomima, com os focos dos projectores casando-se hàbilmente com o clarão rubro dos fogos-de-bengala, ao mesmo tempo
que os tambores de guerra rufavam num crepitar surdo e constante.
Na assistência, presa do espectáculo, eram sobretudo os índios, espalhados pelas bancadas, os que mais apaixonadamente acompanhavam aquela evocação dos tempos gloriosos
da sua história e que nunca mais voltariam.
Quando, a um sinal do feiticeiro, a dança parou, reacenderam-se as luzes, os índios desapareceram nos bastidores e o trilo duma campainha anunciou o intervalo, durante
o qual autorizavam que os espectadores fossem admirar as cavalariças do Wíld West. O público desceu os degraus e espalhou-se por todo o circo.
Catamount e Morley seguiram os espectadores mais próximos e, como conhecedores, puderam admirar os cavalos, muito bem tratados, que se alinhavam presos numa improvisada
cavalariça e vigiados por numerosos cowpunchers. O Coronel Cody, mais imponente do que nunca, fazia as honras da casa aos seus admiradores, esperando-os, ao lado
do fiel "Charlie", a martelar impacientemente o solo com o bico do casco.
Vagueando despreocupadamente ao sabor da vaga de visitantes, o ranger chegou justamente ao local onde os cossacos de Kuban alinhavam as montadas. De repente, estacou
a olhar para dois dos russos que, a poucos passos, cavaqueavam com uma mulher envolta
numa ampla capa e com os compridos cabelos louros caindo-lhe sobre os ombros.
Aquela voz feminina recordou a Catamount outra, que lhe trouxe à memória os episódios recentíssimos do "Excelsior" e a inesperada visita de Sandra, a Loura.
Os cossacos continuaram a conversar na sua língua, que o ranger nem por momentos pensou compreender, mas, de repente, franziu a testa: teve a impressão de que ouvira
proferir o nome de Tom Lartigo. Voltou-se algo intrigado e, nessa altura, os olhares cruzaram-se-lhe com os da rapariga, detendo-se por instantes imóveis. O homem
dos olhos claros parecera impressionado com a formosura de Sandra e esta, por sua vez, como que ficou surpreendida com o interesse manifestado por aquele desconhecido,
visto que nem sequer reparara nele, no saloon.
Para não prolongar uma situação perturbante, Catamount desprendeu-se do êxtase e foi logo ter com Morley, que se afastara um tanto, envolto pela turba.
- Ah, eis que aparece! - exclamou o chefe, quando o subalterno o alcançou. Brincalhão, comentou depois: - Já estava a ver que a linda Sandra o raptara!...
Como resposta, o homem dos olhos claros limitou-se a encolher os ombros. Morley estava enganado: não era a formosura da russa que o cativava; o seu enigmático procedimento
é que o intrigava.
A campainha anunciou o fim do intervalo. Convinha apressarem-se para alcançarem os seus lugares. Tarefa nada fácil e em que precisaram de empregar muito os cotovelos
para abrirem caminho. Estavam já a dois passos da sala quando Catamount sentiu um encontrão num ombro. Voltou-se, admirado da rudeza do choque, ao mesmo tempo que
uma voz o interpelava:
- By Jove! Parece que não tem olhos na cara! Era nada menos do que Tom Lartigo, que, admirado
com o encontro, ficou durante segundos a olhá-lo, numa expressão de rancor. Reconhecera o que o vencera no "Excelsior". Depois, em voz ameaçadora, resmungou:
- Não penses que me esqueci!... Os acordes estrondosos da orquestra, rompendo numa marcha triunfal, abafaram quaisquer outras palavras do brutamontes.
III
TOM LARTIGO JÁ NÃO SE MEXIA
- Aquele matulão não pode com você! Catamount encolheu os ombros a estas palavras de Morley e voltou para o seu lugar. Eram-lhe indiferentes as ameaças de Tom Lartigo
e, para mais, o interesse do espectáculo fez-lhas esquecer ràpidamente.
Chegara a altura de os campeões de laço se distinguirem a meio da arena. Uma dúzia de vaqueiros executavam proficientes variações com as cordas e os nós corredios,
operando num conjunto surpreendente, como se o mesmo mecanismo os accionasse, merecendo que a assistência, apesar de farta de ver aquele espectáculo em todos os
rodeos, os ovacionasse, entusiasmada.
Breve intervalo e logo os acordes da orquestra soaram mais graves na melodia célebre dos "Barqueiros do Volga". Uns segundos de total escuridão e logo os focos de
várias cores se projectaram sobre a entrada. Dez cossacos, montando fogosos cavalos, desembocaram a galope na pista.
Tanto os índios como toda aquela gente do Oeste assistiram então a exercícios algo desorientadores. Soltando ferozes gritos de guerra, os cossacos competiam em velocidade,
executando perigosos saltos, umas vezes de pé nos selins, outras, sem que os animais afrouxassem a corrida, agarrando-se aos flancos das montadas. Finalmente, reuniram
os cavalos, içaram-se uns sobre
os outros e formaram uma impressionante pirâmide viva, enquanto de toda a parte estrondeavam os aplausos.
- Olá! - exclamou o chefe dos rangers para Catamount, quando os dez cossacos regressaram a bastidores. - Aí tem agora a sua Sandra!
Sandra, a Loura, avançou a passo rápido, cumprimentando a assistência. Trocara o fato de cowgirl, com que aparecera no "Excelsior", e vestia agora à cossaca, embora
a farta cabeleira de ouro continuasse espalhada em ondas pelos ombros.
Risonha, começou por um bailado cossaco, prodigioso de velocidade e destreza. Depois, soltou penetrante grito e logo os dez cavaleiros seus patrícios reapareceram.
Um dispôs, ao meio da pista, uma prancha bastante larga da qual a rapariga se aproximou sob os olhares sempre interessados de Catamount, indiferente às piadas do
chefe.
Encostada à prancha colocada a pino, Sandra cruzou os braços e esperou. Depois, cada cossaco agarrou num punhal de ponta afiada e visou a jovem, sempre impassível.
Nova ordem de Sandra e, simultâneamente, as mãos seguras dos cossacos atiraram os punhais, que se foram cravar em torno daquele alvo vivo, de que desenharam os contornos,
sem ao de leve sequer aflorarem o corpo da rapariga. Esta então, risonha, quebrou a imobilidade em que se pusera e, depois de saudar de novo os espectadores, encetou
um bailado acompanhado com o cadenciado bater de mãos dos compatriotas.
- Que diz você àquilo? - perguntou Morley, sempre trocista.
O homem dos olhos claros tirou um cigarro da algibeira, acendeu-o calmamente e respondeu ao chefe:
- Digo que aquela Sandra tem um sangue-frio estupendo.
Depois da formosa russa, foi a altura de Buffalo
Bill reaparecer à entrada da pista para anunciar, após rasgado cumprimento para o público:
- Respeitáveis senhoras e cavalheiros! Vamos ter agora a honra de lhes apresentar a atracção que celebrizou o Wild West; "O assalto à diligência"!
O circo em peso aplaudiu, vibrante e barulhento, o anúncio, pois, mais do que qualquer outra coisa, era isso o que lhe interessava.
Um estalido seco fez de repente calar a orquestra. Estabeleceu-se completo silêncio, logo cortado pelo guizalhar de vários cavalos. Cinco surgiram então, puxando
uma antiga mala-posta, que os anos e as intempéries haviam deixado sem cor definida. Conduzia-a, como todas as diligências dos tempos heróicos do Far West, com detonantes
estalidos do chicote de cabo comprido, um rude boleeiro.
Catamount reconheceu imediatamente o condutor da diligência. Era aquele mesmo Tom Lartigo a quem socara valentemente e que havia pouco o ameaçara.
Mas logo a atenção do ranger se virou para o interior do veículo, onde se via a formosa Sandra, entrajada à época. Agarrado à retaguarda do carro, vinha um pobre
diabo vestido de vaqueiro e que arrancava estrepitosas gargalhadas à assistência. Era Bollobobum, o cómico da pantomima que dali a pouco se ofereceria ao público,
o qual já se rebolava só de o ver sacudido e assustado com os solavancos da mala-posta.
Seguida pelos jorros de luz dos projectores, a carruagem deu, por três vezes, a volta à arena e ia começar a quarta quando, de repente, se ouviram gritos atroadores
e um bando de trinta índios, com as pinturas de guerra, surgiu a cavalo, aos berros e aos tiros. Era o assalto ,à diligência!
Sandra, Tom Lartigo e os demais comparsas representaram muito bem o espanto ante o ataque, e o segundo chicoteou mais os cavalos, para se furtar à
perseguição dos selvagens. Todos os olhos se fixavam ansiosos no simulado drama, que se desenrolava a poucos metros deles. O realismo da cena, os tiros e os gritos
dos peles-vermelhas conseguiam mesmo assustar as crianças presentes, que se agarravam, espavoridas, às saias das mães.
Os tiros de Bollobobum eram os únicos que ripostavam aos dos assaltantes, pois Tom Lartigo só pensava em incitar os cavalos.
Do seu lugar, Catamount concordava que cena tão ao vivo merecia deveras a fama que soubera conquistar nas suas já numerosas apresentações, tão perfeita era a organização
de toda ela, tão completamente os seus intérpretes conseguiam convencer de que tudo aquilo era verdade, mesmo que o meio em que se desenrolava, apesar de já envolto
em poeira e fumo, não se parecesse com um caminho deserto ou uma pradaria selvagem. Até os índios "mortos" representavam perfeitamente, ao baquearem das selas e
ao ficarem imóveis no solo.
A perseguição demorou uns cinco minutos. Então, a pouco e pouco, o cerco dos índios estreitou-se e, embora não fossem já mais de uns quinze, dominavam incontestàvelmente
a mala-posta. Tom Lartigo esforçava-se por aguentar os animais, que se encabritavam, espantados.
De repente crepitou nova descarga dos peles-vermelhas e viram o condutor levantar-se no assento, com as feições dolorosamente contraídas, vacilar por instantes
para depois tombar pesadamente quase debaixo das patas dos animais que relinchavam de medo.
- Socorro, socorro!
Foi o brado de angústia soltado pela "passageira", entre duas detonações, enquanto o anão, também de acordo com a rubrica, se encolhia todo entre as malas, embora
a maioria dos espectadores não o visse nem a Sandra.
A pantomima estava quase a acabar. Os índios preparavam-se para a pilhagem, indiferentes à aflição da passageira. O chefe dos selvagens ia para se atirar à indefesa
menina quando inesperadamente estalou outro tiro. O pele-vermelha agitou os braços, rodopiou sobre si mesmo e caiu de borco no solo, no mesmo instante em que surgia
novo cavaleiro. Era Buffalo Bill, que acudia, montado no seu "Charlie" e de revólver em punho. Seguiam-no outros cavaleiros, que descarregavam as armas sobre os
diabos vermelhos, atordoados por tão súbita intervenção.
Por toda a sala, a multidão, entusiasmada, ovacionava delirantemente o herói, enquanto, doidos de pavor, os selvagens abalavam a fugir, sem se importar com os seus
que deixavam estendidos no terreno.
Então, magnífico de cavalheirismo, Buffalo Bill pulou da montada, abriu a porta da diligência e estendeu a mão à viajante, ainda petrificada ante todas aquelas surpresas.
Convidou-a a apear-se e, quando viram melhor a pálida e hesitante menina, os aplausos dos espectadores ainda estrugiram mas calorosos, logo modificados para fortes
gargalhadas assim que, em cima do tejadilho do carro, se levantou, hesitante e espavorida, a silhueta irresistível de Bollobobum.
O Coronel Cody, dando a mão à já sorridente Sandra, agradecia nobremente as ovações. Terminara o ataque à diligência e só faltava o desfile final que, numa apoteose,
encerrava o espectáculo. Como toda a companhia nele tomava parte, os índios que fingiram de mortos "ressuscitaram" e correram atrás uns dos outros para os bastidores.
Morley voltou-se para o ajudante, comentando.
--Não está mal arranjado aquilo, não lhe parece?
Catamount concordou com um aceno de cabeça. Realmente Cody mostrara-se insuperável na organização daquele espectáculo. De súbito, porém, o cavaleiro levantou-se,
de sobrancelhas franzidas. com efeito, a diligência, em vez de deixar a pista e voltar
para o interior do circo, continuava ainda no mesmo sítio, apesar de os cavalos, impacientes, aguardarem que o condutor os levasse dali, pois aquele, como os peles-vermelhas,
tinha de "ressuscitar" também e voltar a marinhar para a boleia.
Buffalo Bill parecia também estranhar a persistente imobilidade de tom Lartigo. Por isso, largando a mão de Sandra, igualmente intrigada, dirigiu-se para o condutor
ordenando-lhe:
- Então, tom, levanta-te!
Os espectadores começavam também a admirar-se de que o actor não saísse da mesma posição, meio contraído na areia do redondel, a dois passos dos cavalos.
Bollobobum desceu também do seu lugar, olhou primeiro para o patrão e depois para o boleeiro. Catamount e o chefe começavam a pressentir que se passava na arena
algo de irregular.
- Cheira-me - murmurou Morley - que vamos assistir a um número que não figura no programa...
Buffalo Bill, entretanto, apalpara o corpo, sempre imóvel, do empregado e depois, fazendo-se muito branco, ergueu-se e murmurou para os que o rodeavam:
- Aqui já não há nada a fazer. Está morto.
IV
A ARMA DO CRIME
Só os mais próximos de Buffalo Bill ouviram aquelas palavras, mas por sua vez concordaram com elas, pois Tom Lartigo morrera, vítima da bala que lhe entrara por
cima da orelha esquerda.
Os primeiros curiosos passavam já a perna para o interior da arena e aumentavam o magote de gente em torno do cadáver, quando Buffalo Bill ordenou:
- Depressa, corram com esta gente da pista! Não convém que a notícia se espalhe.
Mas por mais que tentassem fazer com que os estranhos voltassem para os seus lugares, para assistirem ao final da sessão, o público percebera que ocorrera qualquer
facto anormal e, por isso, mais interessado ficara. Enquanto três homens levavam para dentro o corpo de "Tom Lartigo, Buffalo Bill levantou os braços a anunciar
que tinha qualquer coisa a dizer.
Toda a gente logo se calou, interessada, e todos os olhares se cravaram no director da companhia, que declarou:
- Um dos nossos artistas sofreu um lamentável acidente. Esperemos que não seja de graves consequências. Por isso, peço ao respeitável público que se conserve calmo.
O espectáculo vai terminar com o tradicional desfile de toda a companhia.
Ouviram-se palmas e Buffalo Bill tratou logo de se dirigir para os bastidores. Aqui encontrou todo o
pessoal na maior agitação. Estenderam Tom Lartigo numa maca e um médico, depois de tentar chamá-lo à vida, acabou por reconhecer que tinham ali apenas um cadáver.
- Atingiram-no por detrás com um tiro, disparado a curta distância. A bala apanhou-o na cabeça.
Não percebo nada! - exclamou Cody. - Todas as armas estavam carregadas com pólvora seca!
- Excepto a que disparou contra este pobre diabo - emendou o médico. - Essa tinha uma bala. Isso lhe garanto eu! Como se trata portanto de um homicídio, há que avisar
o xerife e as autoridades competentes. Pela parte que me toca, é-me impossível passar-lhe desde já a certidão de óbito.
- Mas isso não pode ser! - protestou Buffalo Bill, contrariadíssimo. - Precisamos de sair esta noite de Little Rock! Estão amanhã em Mênfis à nossa espera.
- Sinto muito não lhe poder ser agradável, Coronel, mas só o xerife agora pode autorizar que se vá embora. Isso não está na minha alçada, mas sim na dos que terão
de procurar o criminoso e fazer justiça.
Fora ouviu-se a orquestra começar uma marcha. O Coronel Cody levantou a mão, detendo os protestos dos que os rodeavam, e ordenou:
- Toca a montar! É preciso que o público não desconfie de coisa alguma.
Vaqueiros, índios, árabes e cossacos obedeceram dòcilmente, Buffalo Bill saltou para "Charlie" e, fazendo toda a diligência para não deixar transparecer a perturbação
que o dominava, tomou, como de costume, o comando do cortejo e dirigiu-se para a pista onde voltaram a ouvir-se aplausos. Três vezes deram a volta ao redondel, esboçando
sorrisos
artificiais que mal escondiam o que sentiam por dentro. Little Rock deixava-lhes recordações.
Os milhares de espectadores foram deixando a pouco e pouco os seus lugares, dirigindo-se sem pressa para as numerosas saídas do circo. Dali a pouco, os candeeiros
apagaram-se e o amplo recinto, onde pouco antes um drama ocorrera, mergulhou na treva.
Entretanto, junto do corpo do morto havia já mais gente. Frank Keenan, xerife de Little Rock e em cujo peito brilhava a estrela de prata, apresentou-se ao Coronel,
o qual, antes de qualquer palavra do representante da autoridade, declarou imediatamente:
- Não percebo nada disto, xerife! Desde que criei o Wild West, é a primeira vez que me acontece uma coisa destas!
Frank Keenan acenou lentamente com a cabeça. Era um mocetão de cara vermelhaça, cercada de uma barbicha. Cobria-se de um largo chapéu preto e, no cinto, exibia poderoso
arsenal. Pausadamente articulou:
-Seja como for, com certeza o Coronel deseja que o caso se esclareça como deve ser. Tem que se apanhar e castigar o criminoso. Já cheguei à conclusão de que este
se aproveitou do espectáculo para abater a vítima. Não falhou. Uma bala foi o suficiente para conseguir o que pretendia.
- Mas, como ainda há bocado disse - protestou Cody - , todas as armas estavam carregadas com pólvora seca, precaução que sempre se toma.
- Houve esta noite uma excepção a essa regra, com certeza! - comentou Frank Keenan.
Em roda dos dois homens, o resto da companhia observava-os, em silêncio. Em todos os semblantes se via quanto era grave o que acontecera. O director dirigiu-se-lhes
então:
- Escutem lá, rapazes! Algum de vocês notou qualquer coisa de anormal aquando da reconstituição do ataque à diligência?
Todos responderam repetidamente que não, pelo que o xerife pediu por sua vez:
- Façam-me o favor, todos que há bocado entraram na cena da diligência, de me mostrar as armas que levavam. - Voltou-se para Cody e pediu: - Quer ter a bondade de
fazer a chamada do pessoal, para se ficar com a certeza de que estão aqui todos os seus empregados?
Bill encolheu, aborrecido, os ombros, resmungando: - Para que é isso bom? Já lhe disse que temos de estar amanhã em Mênfis! Até já devíamos ter começado a desmanchar
o circo!
- Tenha paciência, mas cumpre-me proceder às investigações usuais, retorquiu-lhe o xerife, com maior energia do que antes.
O Coronel não teve outro remédio senão resignar-se. Os seus contratados não se mostravam mais bem dispostos, Ninguém ali simpatizava com Tom Lartigo, um refinado
bêbado que tantas fizera que o director já o ameaçara de o despedir se não se emendasse. Contudo, a verdade era que se perpetrara um crime, que convinha esclarecer.
- Vamos, rapazes, tragam as armas! Atrás uns dos outros, todos os componentes do Wild West desfilaram diante do xerife, entregando-lhe o colt ou a carabina de que
se serviram na reconstituição do assalto à diligência. O representante da autoridade, ajudado por dois deputies, examinava sucessivamente as armas.
Ao lado do xerife, Buffalo Bill esperava, silencioso, como os subordinados, todos eles calmos como quem não tem nada de que se acusar.
Quando chegou a vez de Bollobobum, este, calado, estendeu, sem hesitar, a Frank Keenan a carabina de que se servira no espectáculo. O anão despertou atenção especial,
pois toda a gente sabia até que ponto Tom Lartigo o importunava. Houve quem lhe notasse certa ansiedade enquanto o xerife observava a arma e as duas balas que ainda
restavam no carregador,
mas depois fez-lhe sinal para que se juntasse aos colegas e não lhe dirigiu qualquer pergunta.
Chegou a vez de Sandra, que se aproximou com a maior serenidade e respondeu à estranheza do xerife, que a viu aparecer de mão vazia:
- Não sei se o senhor assistiu ao espectáculo, mas a verdade é que sou a única pessoa desarmada em todo esse número. O meu papel limita-se a agarrar-me, o melhor
que posso, ao interior da diligência e a gritar por socorro.
- É verdade - confirmou logo Buffalo Bill. - Sandra estava desarmada.
A rapariga esboçou um sorriso amável e Frank Keenan virou-se para os índios, que se aproximavam, algo assustados, sem saber o que iria resultar de tudo aquilo. Nesse
instante ouviu-se uma voz forte pedir:
- Espere um momento, xerife. Descobri agora mesmo uma coisa que me parece interessante.
Todos os olhares se viraram imediatamente para o recém-chegado e o xerife, ao dar de olhos com quem falara, exclamou, encantado:
- Olha o grande Morley! Buffalo Bill ficou a olhar, muito admirado, para o desconhecido, mas o representante da autoridade esclareceu:
- É o Coronel Morley, o comandante dos Texas Rangers!
Enquanto lhe apertava calorosamente a mão, reparou que o Coronel não vinha só e proferiu, com o mesmo entusiasmo:
- Não há dúvida! Catamount acompanha o seu chefe!
Chegou a vez de Buffalo Bill exclamar: - Catamount! O famoso ranger de quem os jornais tão frequentemente referem as proezas?
O homem dos olhos claros limitou-se a responder-lhe:
- Apenas faço, o melhor que posso, aquilo que o meu chefe me determina.
Morley atalhou, porém, apontando para o ajudante: - Justamente Catamount acaba de descobrir uma coisa, mesmo na altura em que me preparava para vir ter com vocês.
O chefe dos rangers apontava para determinado objecto que Catamount segurava na mão direita. Aquele explicou:
- Encontrei-o mesmo à entrada da pista, entalado entre o tapete e a divisória de madeira.
Frank Keenan deitou logo a mão à arma que o ranger lhe apresentava, e exclamou:
- Mas é um colt! - Calibre 44 - acrescentou Catamount. - Como pode verificar, apenas lhe falta um cartucho. O invólucro não saiu do seu lugar.
- Só um cartucho? ! Esta exclamação do xerife pareceu interessar ao máximo toda a companhia, que ficou de olhos pregados no representante da autoridade, o qual examinou
atentamente a arma, à procura de qualquer indício na coronha ou no cano.
Catamount acudiu em seu auxílio, afirmando: - Nada lhe encontrei de anormal, xerife. Devem ter deitado fora o "colt, quando da balbúrdia que se seguiu ao descobrimento
da morte de Lartigo.
- Você conhecia a vítima?-perguntou-lhe Frank Keenan.
- Para lhe falar com franqueza - respondeu o interpelado - , conhecia-a há bem pouco! Por sinal, em circunstâncias impossíveis de esquecer, tanto a um
como a outro.
- Explique-se! Morley tomou a seu cuidado a descrição da merecida tareia que Catamount pregara no desordeiro. Imóveis e silenciosos, os componentes do Wild West
ouviram, interessados, a reacção resultante dos maus
tratos infligidos pela vítima a Bollobobum. Sandra não era dos menos enlevados a contemplar o justiceiro.
A chegada novamente do médico modificou a situação. Aquele trazia, entre o polegar e o indicador, um minúsculo objecto, explicando logo do que se tratava:
- Está aqui a bala que lhe extraí da caixa craniana.
O xerife agarrou logo no projéctil, um tanto amolgado, e exclamou:
- É a bala de um colt 44! - Voltou-se para o impassível Catamount e acrescentou:
"Não resta a menor dúvida! É deveras a arma do crime a que você encontrou. A bala que falta no carregador é esta!
- Disparada por quem? - perguntou Buffalo Bill. - É justamente essa a resposta que temos de encontrar o mais depressa possível! - redarguiu-lhe Frank Keenan.
A situação não sorria de maneira nenhuma ao Coronel Cody, que receava ver comprometido o seu programa de espectáculos, nem ao xerife, que se via metido numa camisa
de onze varas, muito mais séria do que as funções rotineiras do seu cargo. Optou por se virar para Morley e exclamar:
- Ainda bem que o Coronel está aqui! Forma alguma ideia a respeito deste sarilho?
V
MORLLY SUGERE CATAMOUNT
Com uma careta, o chefe dos rangers resmungou : - Você apanhou-me nas curvas, xerife! Não estou muito habituado a fazer de detective, pois o papel dos Texas Rangers
consiste, sobretudo, em vigiar a fronteira e enxotar os fora-da-lei, que a infestam. Por que não recorre aqui ao Coronel Cody, que tão brilhantemente combateu noutro
tempo toda a espécie de malandragem?
Buffalo Bill apressou-se logo a sacudir a água do capote:
- Isso era dantes. Agora estou reformado e sou empresário.
- O que não impede, Coronel - interveio Frank Keenan - , que, mesmo como empresário, nos ajude! Não nos podem subsistir dúvidas de que dispararam a bala da pista
e, por conseguinte, só poderia ter sido um dos seus empregados.
- Posso acrescentar até - observou, por sua vez, o médico - que o homicida se encontrava pertíssimo de Lartigo!
Buf falo Bill protestou, enfadado: - Conheço bem o meu pessoal. Tenho a certeza de que não contratei criminosos.
- É possível - admitiu o xerife. - Não obstante, colhi informações acerca de Tom Lartigo, que me
levam a reconhecer que esse sujeito não era dos mais recomendáveis. Há quanto tempo o tinha no Wild West?
- Desde o começo da temporada - respondeu Cody. - Com certeza que não lhe vou jurar que todos os meus empregados são irrepreensíveis santinhos, mas mesmo de Tom
Lartigo nunca tive razão de queixa, no que respeita a serviço.
- Apesar de ele ser de mão pesada... - comentou uma voz calma, que fez com que todos se virassem.
Era Catamount, que, silencioso e ,à parte, resolvera aproximar-se do grupo para emitir também uma opinião.
Frank Keenan recordou-se da cena que minutos antes Morley lhe relatara e em que o batedor tão justamente vingara o martirizado anão. De súbito, o xerife exclamou:
- Mas esperem! O anão também ia na diligência! Antes mesmo de Cody bordar qualquer comentário a esse respeito, Frank bradou:
- Depressa, depressa! Preciso de falar com esse anão!
Os componentes do Wild West olharam à sua roda e um deles gritou:
- Bollobobum, onde estás metido? - Estou aqui - respondeu o interpelado, aproximando-se hesitante e com os polegares metidos nas cavas do colete.
Todos repararam na sua palidez, mas o xerife tratou logo de o serenar:
- Não te assustes; ninguém te come! Apenas queremos que nos forneças alguns esclarecimentos a respeito da morte de Tom Lartigo.
- Mas se eu não sei nada!- exclamou Bollobobum, em timbre fanhoso. - Ia escondido debaixo da bagagem, no tejadilho da diligência. Ouvi os tiros, mas não vi coisa
nenhuma. Quando Lartigo caiu da boleia, julguei que era o que fazia em cada espectáculo,
conforme o seu papel de cocheiro. Nem sei porque hei-de eu saber mais do que os camaradas!
Apesar de tudo, Morley via perfeitamente que o homenzito estava atrapalhadíssimo.
- Espera, homem! - exclamou Frank Keenan. - É muito simples. Há dois motivos especiais para te interrogarmos: primeiro, porque eras quem estava mais perto de Lartigo
na diligência e, segundo, porque tu e ele tiveram uma discussão no "Excelsior", onde, pelo que me contou aqui o Coronel Morley, te tratou muito mal.
- Lartigo era um cobarde! - respondeu Bollobobum. - Andava sempre de ponta comigo. Vejam estas nódoas negras! - ajuntou, arregaçando as mangas da camisa. - Quando
me encontrava sem ninguém que o visse, pregava-me cada pontapé que me atirava de reboleta como se fosse uma bola!
Nos olhos do anão luzia uma implacável expressão de ódio, bem diferente do aspecto cómico com que fazia rebolar a rir os espectadores.
- Esse Lartigo-prosseguiu-era a minha sombra negra! Nem calculam como fiquei contente ao saber que acabara o meu martírio! Deus compadeceu-se enfim de mim.
- Ou serias tu que aproveitaste a ocasião para te libertares dessa sombra negra? - insinuou serenamente Keenan. - Vamos, cartas na mesa! Dispões a teu favor de circunstâncias
atenuantes. Quiseste-te vingar do teu verdugo quando o viste, de cima do tejadilho, mesmo à mão de semear. Aproveitaste-te da barulheira do ataque dos índios e dos
repetidos tiros e...
- Quer dizer na sua que disparei sobre Lartigo? - interrompeu-o Bollobobum. - É falso! Apesar de contente por alguém me ter feito justiça, não fui eu que o matei.
Só levava uma carabina carregada com pólvora seca. Com ela fiz fogo contra os índios, no
decorrer da pantomima. Mas de maneira nenhuma atirei contra Lartigo!
O xerife encolheu os ombros, pouco convencido, e o anão continuou:
- É. como lhe conto! Imagina que, se fosse eu que o matasse, não seria o primeiro a gabar-me de tal? Mas não o fiz. Demonstre-me o contrário!
- Ele tem razão-interveio Catamount.-Quando Lartigo caiu do assento, estava Bollobobum escondido debaixo da bagagem.
O anão deitou ao batedor um olhar cheio de reconhecimento, mas o representante da autoridade, nada convencido, virou-se para o ranger e disse-lhe:
- Nesse caso, como explica a morte de Lartigo? Parece-me que a minha tese é a mais admissível. Se não foi o anão, mais complicada e inexplicável fica esta trapalhada
toda.
- Havia mais gente na pista sem ser o anão - lembrou o homem dos olhos claros. - Concordo que se ofereceu a Bollobobum uma óptima oportunidade para se desembaraçar
daquele bruto, mas estou convencido de que não era só este a querer-lhe mal, e mais alguém se soube aproveitar do ensejo.
Morley sugeriu então, ao ver a indecisão de Frank Keenan:
- Por que não se interrogam todos aqueles que se encontravam na pista na ocasião do crime? Talvez se apure qualquer coisa...
O xerife concordou, embora intimamente despeitado contra o ranger, pois, na altura em que imaginava ter descoberto a solução do enigma, ele estragara-lhe o jogo.
A primeira pessoa a prestar declarações foi Sandra, que se adiantou, dizendo:
- Ia na diligência quando Lartigo caiu do assento, aliás como era sempre costume. Um solavanco atirara comigo para cima do banquinho.
- Não ouviu um tiro mesmo ali ao pé?
- Não - afirmou a rapariga. - Aliás, com toda aquela barulheira de tiros e de índios, não seria fácil! Nada notei de anormal, nem mesmo quando descia da carruagem
e vi Lartigo no chão, convencida de que continuava a fazer de morto, Só vim a saber a verdade nos bastidores. Fiquei bastante aborrecida, mesmo que Lartigo não gozasse
das simpatias de ninguém.
Sandra falara com a maior calma deste mundo, sem que, aos olhos atentos de Catamount, denunciasse a mais leve perturbação.
O xerife continuou: - Não teve a impressão de que o anão disparou contra a vítima?
- Já lhe disse que não notei coisa alguma de anormal! - confirmou a jovem russa. - Eu ia lá imaginar o que se passava!...
Frank Keenan não insistiu e passou a interrogar sucessivamente os vários componentes do Willd West, sem que nem índios nem cowboys, árabes ou cossacos, esclarecessem,
por pouco que fosse, o mistério da morte de Tom Lartigo.
Buffalo Bill, impaciente, consultava consecutivamente o relógio. A certa altura, protestou:
- Estou a ver que, com todos estes interrogatórios, não seremos nós que estaremos em Mênfis à hora marcada!
- Também, me parece, Coronel - concordou o xerife - , mas acho que o senhor está tão interessado como nós em que se desmascare o assassino...
- Decerto - concordou o empresário - mas entende que, para isso, se tenham de suspender as actividades do Wild West e deixar o pessoal à boa vida? Sabe-se lá quantos
dias isto vai ainda durar, antes de se apurar a verdade!
Sem saber que resposta lhe dar, Frank Keenan coçou desesperadamente a cabeça e virou-se, desanimado, para o chefe de Catamount:
- Que é que o Coronel diz a isto? Arranjámos um bonito sarilho!...
Morley concordou: - Realmente, as investigações têm de prosseguir, embora não veja razão para empatar o Coronel Cody.
- Está bem, mas como há-de ser isso? O crime cometeu-se exactamente aqui em Little Rock!
- Por causa disso, ficaremos em Little Rock até à consumação dos séculos? - protestou Buffalo Bill. - Mas talvez aqui o Coronel Morley, se quiser tomar a seu cargo
as investigações, encontre uma solução...
Frank Keenan mostrou-se logo encantado por sacudir a água do capote e aplaudiu imediatamente a ideia. O chefe dos rangers objectou então:
- Tenham paciência, mas preciso de estar amanhã sem falta, em El Paso. Atrasado já eu estou. Todavia, para lhes fazer a vontade, talvez possa autorizar Catamount
a ocupar-se das investigações. Pode ficar com vocês o tempo que for preciso.
- Esplêndido! - aprovou o xerife. - Maravilhosa solução! Não acha, meu rapaz?
A esta pergunta, Catamount respondeu serenamente:
- Acho apenas que é meu dever obedecer às ordens do Coronel.
Buffalo Bill secundou a boa vontade geral, afirmando:
- Catamount será tratado como se pertencesse à minha companhia e tudo farei para lhe facilitar a missão.
- Mas eu não sou detective! - objectou Catamount.
- Houve ocasiões - observou-lhe o chefe - em que você demonstrou mais faro do que o mais experimentado dos polícias! Por isso, fico convencido de que novamente confirmará
a sua reputação.
- Às suas ordens, Coronel! E o "Mesquita"? - O seu cavalo fará companhia aos nossos -
garantiu-lhe Buffalo Bill. - Descanse que o trarão nas palminhas!
Só às três da manhã ficou tudo resolvido de forma a poderem desmanchar o circo, o qual, desta vez acompanhado de Catamount, seguiria de comboio para Mênfis, enquanto
o único componente que os deixava partia para outra viagem mais séria, pois o xerife e os ajudantes encarregaram-se do enterro de Tom Lartigo.
Catamount levou pessoalmente o seu fiel alazão para o vagão que o transportaria, enquanto Buf falo Bill dirigia expeditamente o embarque.
"Mesquita", pouco habituado a viajar assim, mostrava certa relutância em entrar para o vagão. Uma voz doce proferiu por detrás das costas de Catamount:
- Os nossos cavalos farão companhia um ao outro. O homem dos olhos claros voltou-se e deu de cara com a sorridente Sandra. O primeiro estranhou:
- Também tem cavalo? - E esse aí... Ou, melhor, é aí a "Volga", essa égua branca!
À luz indecisa do interior do vagão, o batedor viu o belo animal, que a rapariga montava nos desfiles do Wild West. Estavam, porém, já ali tantos, que não atentara
bem na égua.
- É um pouco brava... - comentou o ranger, vendo o nervosismo que a égua demonstrava perante "Mesquita", que um cowpuncher prendia junto dela.
- Está sossegadinha, minha querida... - proferiu meigamente a dona, afagando-a.
Naquele momento, apareceu Buffalo Bill junto de Catamount, dizendo-lhe:
- Bem, já vão sendo horas de descansar. Vou acompanhá-lo à sua carruagem.
Dali a três minutos, o batedor pôde finalmente estender-se na cama que lhe reservaram numa carruagem ali perto.
VI
VOLGA
O balanço regular do comboio, já rodando para Leste, fez com que Catamount fechasse por fim os olhos. Apesar de cansado, não conseguiu, contudo, adormecer: o mistério
da morte de Tom Lartigo absorvia-lhe por de mais o espírito. Não lhe agradava nada a missão, nem achava que a vítima merecesse tantas maçadas. Quanto não daria para
ir naquela altura trotando ao lado do chefe, a caminho do seu querido El Paso!... O que não impedia, evidentemente, que se esforçasse por se desempenhar devidamente
do encargo de que o incumbiram. Diferia bastante este drama, que se desenrolava na sombra, dos combates que costumava travar, em campo aberto, nas imensas planuras
do Texas, quando, de pistola em punho, não hesitava em enfrentar os adversários, por numerosos que se lhe apresentassem.
Desta vez apenas de uma certeza dispunha: de que o criminoso pertencia ao pessoal do Wild West, embora, durante os interrogatórios e apesar de toda a sua atenção,
nada notasse de particular neste ou naquele. O único pormenor que o impressionara residia na geral indiferença com que todos receberam a morte trágica de Tom Lartigo,
que não provocara a menor saudade, mas sim um geral alívio.
O anão Bollobobum voltava-lhe constantemente à
ideia, bem como a cena desenrolada entre ele e Lartigo, no saloon. O infeliz dispunha de razões de sobra para abominar o brutamontes que o atormentava sem cessar.
A imagem perturbadora de Sandra aparecia também na mente do ranger. Não que Catamount ficasse perturbado com os olhares fascinadores da rapariga, mas sim porque
os seus modos enigmáticos lhe chamavam particularmente a atenção.
Só sabia que Buffalo Bill a contratara pouco tempo antes do início da digressão do circo, ao mesmo tempo que os seus compatriotas, os cossacos de Kuban. Os russos
viviam à parte, na carruagem que lhes destinaram, e só nos ensaios e espectáculos se reuniam aos americanos.
Também os árabes não conviviam com os demais, mas Catamount não alimentava a seu respeito a menor desconfiança, visto que não se davam de maneira nenhuma com Tom
Lartigo. Já o mesmo não dizia acerca dos cowpunchers e dos índios, todos eles muito capazes de lhe fornecerem quaisquer informações úteis.
No compartimento de Catamount não se deitava mais ninguém, mas as carruagens próximas iam cheias de gente a dormir, nas várias camas sobrepostas e mesmo no corredor
central. Queriam aproveitar aquelas breves horas de repouso, pois, logo que chegassem a Mênfis, cumpria-lhes, sem demora, levantar outra vez o circo e recuperar
o atraso que traziam desde Little Rock.
Quando finalmente o homem dos olhos claros parecia que ia adormecer, ouviu, de repente, rumor de passos no corredor. Rangeu uma porta, impelida por um ombro robusto,
e depois surgiu um vulto, Ao clarão fraco da lâmpada de vela, o ranger viu um rapaz de cor, que, depois de procurar às apalpadelas onde estaria Catamount, o encontrou
e o abanou nervosamente, chamando-o:
- Siõ, siô, venha espressa!
Catamount saltou logo para o chão, perguntando, admirado:
- Que aconteceu? O negro, porém, estava desnorteado de mais para lhe prestar informações concisas.
- É a "Volga" ! - murmurou. - E o eslazão também. Estão esmalucos de todo! O Joe diz para siõ lá ir espressinha!
O homem dos olhos claros concluiu daquela algaraviada que se tratava do seu cavalo e da égua branca e, por isso, enfiou logo as botas, vestiu as calças e a camisola,
enquanto o preto continuava a lamentar-se, com a cabeça entre as mãos:
- Vão espatifar tudo! Não há quem lhes tenha esmão!
- Vamos lá. Segue à frente! - ordenou-lhe o ranger, empurrando o servente para o corredor.
O negro, de pernas mal seguras, agarrava-se de vez em quando ao varão de cobre, com o ranger atrás, de pernas mais rijas para se equilibrar com os solavancos do
comboio.
O estremecer das ferragens desaparecia por vezes sob os roncos dos que dormiam por todos os cantos, habituados a bulhas e, por isso, indiferentes à passagem do preto
e do cavaleiro. Este já atravessara seis carruagens e perguntava para consigo se aquela travessia ainda demoraria por muito mais tempo quando o negro parou e disse,
apontando para o vagão a seguir:
- É acolá, siõ. Não ouve? Até asrepia! Realmente, ouviam-se enfurecidos relinchos acompanhados de coices. Aproximaram-se do vagão, onde tinham prendido o "Mesquita"
ao lado da égua branca e, vendo que o rapaz receava abrir a porta, Catamount afastou-o e penetrou no veículo.
Logo de entrada distinguiu, ao clarão da lâmpada que baloiçava do tecto, três cowboys encolhidos contra a parede.
- Até que enfim! - resmungou um deles, ao ver Catamount. - Já não era sem tempo! Vão espatifar isto tudo - ajuntou o vaqueiro, apontando para os dois animais. -
Tanto o Joe, como eu, como o Karl, fizemos toda a diligência para os separar, mas qual história! Não há quem os aparte. Se isto continua, vão ficar lindos!
Catamount não hesitou por mais tempo. Viu o seu cavalo atirar-se à égua, que se defendia ferozmente à dentada. O sangue corria já pelo pêlo de um e de outro. Não
estavam pior, porque a maior parte dos coices quebravam-se contra as baias.
-Então que vem a ser isto, meu velho? Mas o alazão estava tão enraivecido que nem conheceu o dono, fazendo-o dar um salto para trás, para se furtar a um coice.
Os demais cavalos, presos ali dentro, relinchavam de medo, puxando desesperadamente pelas prisões e surdos às palavras com que os três guardas diligenciavam serená-los.
"Volga" parecia tão exasperada como o vizinho e todo o seu desejo consistia em ferrar o dente no "Mesquita", que se defendia, furioso.
O preto, a tremer de medo, encostara-se ao tabique, junto dos colegas, que continuavam a comentar, sobressaltados, a situação, tanto mais que Catamount, em segunda
tentativa para se aproximar do alazão, não fora mais feliz que na primeira.
Entretanto, aquele tumulto acabara por acordar alguns índios e cowpunchers, a dormirem ali perto e que apareceram, intrigados com a barulheira.
Por fim, uma voz enérgica dominou os rumores e o matraquear do comboio a correr velozmente na noite:
- Deixem-me passar! Era Buffalo Bill, com a cabeleira desgrenhada. Surpreendido, o director da companhia estacou ante os esforços desesperados que Catamount empregava
para dominar o seu cavalo, enquanto, por sua vez, Joe e Karl diligenciavam acalmar a égua branca.
- Chamem a Sandra! Depressa! - ordenou Cody. O preto tratou logo de cumprir a ordem do patrão, abrindo caminho por entre o magote que já se aglomerava à entrada.
Dali a minutos, aparecia a jovem russa, intrigada com tal alarme em plena noite. Buffalo Bill informou-a imediatamente:
- Se você não acode, não respondo pela vida da "Volga"!
Contudo, Catamount, auxiliado por Joe e Karl, conseguira afastar um pouco "Mesquita" e prendê-lo a uma baia mais afastada.
- Cuidado! - gritou de repente Buffalo Bill. A égua branca, num esforço supremo, conseguira partir a correia e ia atirar-se a Catamount, deveras em maus lençóis,
quando Cody agarrou num laço ali pendurado e o enfiou pelo pescoço do animal, que, detido no impulso, caiu.
- Depressa, Sandra! - gritou Buffalo Bill. A rapariga aproximou-se então da égua e tentou amansá-la com palavras cariciosas, mas que não pareceram mais eficazes
do que os dez punhos diligenciando evitar que ela se espantasse outra vez.
Finalmente, as coisas serenaram a pouco e pouco e, quando todo o perigo passara, Sandra não deixou de exclamar, admirada:
- Não sei como explicar tudo isto! Em geral, "Volga" é mansa como um cordeirinho!
- Quem estava a tomar conta nos cavalos? - perguntou então Cody.
Joe adiantou-se, respondendo: - Era eu, patrão. Parecia tudo normal e, realmente, essa égua é muito sossegada. Estendera-me a um canto, para passar pelas brasas,
quando de repente o alazão começou a agitar-se e logo "Volga" o imitou e desatou à dentada a ele. Dali a bocado estavam tão
enraivecidos que chamei o Karl e o Ned. Nada conseguimos e, por isso, mandei chamar o ranger. - Voltou-se para este e comentou: - O seu cavalo parecia com o diabo
no corpo! Não sei que mosca lhe mordeu!
- E mosca das piores, pela certa! - concordou o homem dos olhos claros. - Normalmente, também é um bicho ajuizado.
- Quando, antes de me deitar, vim ver a "Volga" - ajuntou, por sua vez, Sandra - tudo parecia aqui sossegadíssimo.
- Esperemos que esse sossego se mantenha agora até Mênfis - disse Buffalo Bill. - Esta noite vogamos em maré de azar!
Conservaram-se ali uns minutos mais, conversando de coisas sem importância e olhando de vez em quando para os dois animais, que, presos cada um do seu lado, não
se podiam agora morder ou enfrentar. Aliás, pareciam mais tranquilos.
Catamount lavou "Mesquita" e depois apoiou-se à manjedoura, sem saber como explicar a agitação que assanhara o alazão e "Volga" e de cuja luta restavam eloquentes
provas no sangue que salpicara baias e palha.
Sandra foi a primeira a retirar-se, logo seguida de Buffalo Bill, qualquer deles no intuito de retomarem o sono tão intempestivamente interrompido. Joe e Ned partiram
depois. Ficou apenas Karl, que se acocorou na palha, para guardar os animais em vez do colega. Perguntou para Catamount:
- Não se vai também deitar? De costas voltadas e olhando fixamente para a manjedoura, o interpelado não lhe deu resposta. Viu, no fundo, um bocadito de aveia, que
guardou na mão, enquanto o cowpuncher insistia:
- Que está você para aí a magicar? Desta vez, o ranger fez-lhe sinal com a cabeça para que se aproximasse. Karl acercou-se sem pressa e um pouco a cambalear com
a oscilação do vagão; então, à luz vacilante da lâmpada do tecto, viu o cereal que o batedor lhe mostrava na cova da mão.
- Quem deitou esta aveia aos cavalos? - perguntou Catamount.
O interpelado pareceu hesitar antes de responder: - Quando cheguei, encontrei aqui só o Joe e a Sandra. Foi na altura de partirmos de Little Rock. Depois, nada notei
de anormal. Por que pergunta isso?
Como resposta, o ranger apontou com o dedo para umas bolinhas pretas que tinha na cova da mão, misturadas na aveia.
- Está tudo explicado - proferiu ele. - Deitaram qualquer droga na comida dos dois animais.
- Droga? !... - exclamou o cowpuncher, de boca aberta, completamente assombrado, e inclinando-se sobre a mão de Catamount, para ver melhor.
O que nem ele nem o batedor viram foi uma sombra furtiva que, por momentos, os observou da entrada do corredor.
Bollobobum interessava-se também pelo que se passava ali no furgão.
VII
O ESCORPIÃO
Não teve história a estadia do Wild West em Mênfis. Mal a caravana desembarcou, entraram em acção os grupos de montagem e, apesar de extenuados, num instante ergueram
a imensa lona verde ante os olhares interessados de milhares de curiosos.
Em Mênfis, como em todas as outras cidades incluídas no itinerário do Wild West, as ruas enfeitaram-se com bandeiras e flâmulas; festões e arcos triunfais decoravam
as principais artérias, incluindo as do famoso bairro negro de Beale Street. Por toda a parte, cartazes atraíam os olhares. Em todas as paredes dominavam retratos
do célebre Coronel Cody, acompanhados dos inevitáveis letreiros: BUFFALO Bill e Wild West.
Quanto a Catamount, mesmo que quase nada dormisse na noite anterior, parecia esquecido dos incidentes da viagem e resolvido, mais do que nunca, a prosseguir com
as investigações até apurar a verdade. Evitara que Buffalo Bill soubesse do que descobrira na manjedoura do furgão e que lhe permitia concluir que o assassino de
Tom Lartigo fazia parte da companhia e continuava com a caravana. Pela certa, era de sua responsabilidade o incidente, com que naquela primeira noite pretendera
complicar ainda mais a situação.
De regresso à sua cama, o batedor não encontrara mais ninguém, nem sequer o anão, que se sumira tão depressa como aparecera.
O cortejo do circo desfilava já pelas ruas de Mênfis, com o majestoso e magnífico Coronel Cody curveteando à frente. O homem dos olhos claros não se incorporara
no seu séquito e preferira rondar em volta do amplo circo de lona, admirando os operários que, indiferentes à vertigem, marinhavam como esquilos pelas cordas, que
atiravam, de uns para os outros, do cocuruto da cúpula. Dali a pouco, com espantosa rapidez, o vasto edifício cobria-se de imensas flâmulas estreladas, que drapejavam
com o vento.
Em volta dos carros e cavalariças estabelecera-se a mesma efervescência diária de índios e curiosos, entre os quais muitas crianças, a todo o instante a aventurarem-se
até aos recintos dos cavalos, com risco de apanharem algum coice e obrigando o pessoal do Wild West a recomendar-lhes constantemente prudência.
Várias vezes Catamount se ofereceu para ajudar os operários, mas dispensavam-no invariàvelmente e manifestavam mesmo certa reserva a seu respeito, o que o batedor
notava desde que se encarregara de esclarecer a morte de Tom Lartigo.
Assim sozinho, passeando de um lado para o outro, Catamount continuava obcecado com a ideia de que o criminoso, que tinha obrigação de desmascarar e prender, talvez
se encontrasse entre aqueles homens. Decerto fora ele quem deitara a tal droga na aveia de "Mesquita" e de "Volga", para os assanhar. Talvez, naquele instante, o
miserável se preparasse para novo atentado, tendente a livrar-se do importuno...
O homem dos olhos claros fumava, pensativo, um cigarro quando percebeu os primeiros acordes da fanfarra a anunciar o regresso do cortejo de propaganda. Dali a instantes,
avistou, entre vivas e palmas, o Coronel Cody e os seus cavaleiros. Terminado o passeio
pelas principais ruas de Mênfis, começaram a desmontar dos cavalos e os músicos a descer do carro-coreto.
Catamount não arredou de onde estava, até que viu Buffalo Bill aproximar-se e chamá-lo.
Esmagou o cigarro com o tacão da bota e, logo que chegou junto do Coronel Cody, este disse-lhe lacônicamente:
- Preciso de lhe falar. Venha daí. O empresário levou-o logo para o sumptuoso veículo, que lhe servia metade de sala metade de escritório e que costumava atrelar
aos reboques ou aos comboios. Era a primeira vez que o ranger ali entrava, pelo que deteve por instantes os olhos na série de cartazes revestindo as paredes do escritório
e que representavam o Coronel Cody sob variadíssimos aspectos.
O Coronel fechou a porta do carro, apontou uma cadeira ao ranger e, por seu lado, instalou-se à secretária pejada de papéis, dizendo:
- Você não faz ideia da trabalheira que dá ser-se empresário! Chego às vezes a sentir saudades dos tempos em que andava a cavalo a caçar búfalos, para fornecer a
alimentação ao pessoal da Pacific Railway! Tenho de pensar em tudo: na publicidade, na organização dos espectáculos, na vigilância do pessoal, nos contratos com
as companhias de caminho de ferro para os nossos comboios especiais. Eu sei lá! - Estendeu ao cavaleiro uma caixa de cigarros de ponta dourada e prosseguiu:
"Ora eu queria pedir-lhe um favor, mas não sei se você me vai chamar abusador...
- Fale à vontade. Sabe muito bem que estou à sua inteira disposição.
- É muito amável, mas devo informá-lo de que se trata de um favor que sai um pouco das suas atribuições...
O Coronel deteve-se por momentos para acender o cigarro do visitante e o seu, e depois, instalando-se
melhor na poltrona, expeliu para o tecto a primeira fumaça e explicou:
- Para o espectáculo desta noite, lembrei-me de arranjar um substituto para o Tom Lartigo. Precisava de quem guiasse a diligência, no número que você já conhece.
Com grande mágoa minha, o contra-regra acaba de me declarar que não conseguiu descobrir o sujeito de que necessito. Enquanto o não arranjo, você importava-se de
desempenhar esse papel? Nem calcula o favor que me prestava!
- Com todo o gosto - acedeu Catamount. - Oxalá que o público não fique de cara à banda!...
Buffalo Bill sorriu e afirmou: - Quanto a isso, não me assusto. Tanto mais que, se a assistência soubesse que quem se senta na boleia da mala-posta é o famoso Catamount
em carne e osso, nem calcula o êxito que obtinha!
Tal perspectiva não pareceu muito do agrado do ranger, o qual ia a protestar, quando o empresário, com um gesto, o conteve:
- Descanse que não cairei na asneira de o pôr assim tanto às claras! Estou também interessado em que você conclua vitoriosamente o inquérito e sei que, em tais circunstâncias,
se impõe a maior das discrições.
- Também acho essa a maneira mais segura de se resolver o problema.
Ficaram por momentos a olhar silenciosamente um para o outro até que o Coronel Cody resolveu perguntar:
- Calcula estar para breve o descobrimento do culpado? Encontrou algum indício de valor? Sabe que tudo do que precisar é só pedir por boca? Estou inteiramente à
sua disposição.
- Obrigado, Coronel, mas não preciso de nada. Só lhe peço que não modifique em coisa alguma os seus hábitos. Misturado com a companhia, espero deveras que, não perdendo
de vista o menor pormenor,
consiga, de um dia para o outro, desmascarar e deter o responsável.
- Mas até aqui não reparou em nada de especial? - Nada que autorize a esperança numa solução rápida.
Buffalo Bill, porém, insistiu: - Estive há bocado com Ned e ele falou-me de uma coisa qualquer relacionada com a aveia e que esta noite descobriram, depois de eu
os deixar. Parece que deitaram uma droga para espantar os cavalos... Se assim foi, não me admiro nada da balbúrdia da noite passada! Mas quem teria essa ideia?
Catamount esboçou um gesto indeciso, pois antes queria continuar calado até obter elementos mais esclarecedores. O Coronel é que não o largava.
- Anda desconfiado com alguém? Admiro-me de que não me contasse coisa alguma quando chegámos a Mênfis!
- Já lhe disse, Coronel - acentuou o batedor - , que acho perigoso e nocivo dar exagerado relevo a qualquer ninharia que suceda no Wild West. Pela parte que me toca,
limito-me a observar. Quando chegar a altura conveniente, procederei como deve ser.
O tom do homem dos olhos claros fez com que o empresário não insistisse mais. Chegou a altura, em compensação, de Catamount lhe dirigir uma pergunta:
- Em que circunstâncias o Coronel contratou Sandra e os cossacos?
- Valha-me Deus - exclamou Buffalo Bill - , isso já foi há uns seis meses! Estávamos em Boston e eu procurava um número que substituísse um grupo de equilibristas
japoneses, cujo contrato terminara. Sandra e os companheiros acabavam de chegar aos Estados Unidos, depois de arranjarem, segundo me parece, umas complicações quaisquer
com o governo do seu país. Com pouca vontade de uma estadia na Sibéria, preferiram vir ganhar a vida para a América. Eram todos óptimos cavaleiros e, por isso, aproveitei
a ocasião para organizar o bando dos cossacos de Kuban. Não me arrependi da ideia, pois o número despertou sincero agrado.
- Desde que tem Sandra ao seu serviço, o Coronel nunca lhe percebeu coisa alguma de anormal?
Cody esboçou um sorriso irónico e exclamou: - By Jove! Estou a ver que a garota interessa-lhe... Realmente, é de fazer andar a cabeça à roda a um homem!
- Não sinto por ela o interesse que imagina, Coronel! - protestou imediatamente o ranger. - Mas acho-lhe um aspecto um tanto misterioso...
- É que esses russos são pessoas bastante originais e fantasistas! Há-de notar, porém, que, fora das paradas e do seu número, Sandra não procura dar nas vistas.
Só sai com os compatriotas e evita cuidadosamente relacionar-se com os outros componentes da companhia.
Catamount ficou por ali e, como ouviu de fora chamarem o Coronel, aproveitou para se despedir,
Quando lhe dava um cordial shake-hand, Buffalo Bill lembrou-lhe:
- Olhe que eu conto com você para esta noite! - Esteja descansado - assegurou-lhe o cavaleiro. Dali a dois minutos, o ranger saía do carro do Coronel, mas, ainda
não descera dois dos degraus que davam acesso à viatura, surpreendeu um vulto que se esgueirou, no propósito de se esconder atrás de uns carros próximos.
- Eh lá! - gritou, vendo que se tratava de Bollobobum.
O interpelado estacou, esboçando uma leve careta a denunciar perturbação por o surpreenderem.
- Que fazes por aqui? - perguntou-lhe o ranger, aproximando-se do anão.
- Andava a passear - respondeu lacònicamente o homúnculo, que parecia pouco disposto para conversas.
Catamount não insistiu e ficou a observá-lo enquanto o anão, no seu passo bamboleante, se afastava mais depressa do que era hábito. O homem dos olhos claros pensou
para consigo:
(- Apostava a cabeça em como este melro me andava a espiar!...)
Apesar de Bollobobum lhe manifestar eloquente simpatia, grato pela intervenção do cavaleiro quando o defendeu de Tom Lartigo, o ranger várias vezes notara que inspirava
também ao anão uma curiosidade dificilmente explicável.
(- Terá o sujeito, porventura, a consciência tranquila? - continuou Catamount a pensar com os seus botões. - Será para ele que devo orientar as investigações? )
Chegou entretanto a hora do jantar, refeição rápida, comida à pressa pelos artistas do Coronel Cody, quase todos já com os fatos com que entrariam em cena. Em volta
de uma mesa imensa, engoliam a correr as doses que um servente negro e um chinês lhes serviam.
Já anoitecia e a multidão começava a formar bichas nas bilheteiras, enquanto, no estrado, se acendiam os primeiros projectores.
Catamount comia entre dois índios e, mal acabou, logo o Coronel lhe fez sinal para que o seguisse. Enfiaram ao mesmo tempo pelos bastidores do enorme recinto de
lona e aqui Cody apontou-lhe um trajo do tempo dos pioneiros, que escolhera de propósito para o seu actor eventual, a quem disse:
- Aqui tem a sua farpela. Veja já se lhe serve. O ranger vestiu-se imediatamente e reconheceu que tanto o fato, como as botas, como o chapéu de aba larga pareciam
feitos para ele.
- Vai fazer um magnífico boleeiro! - comentou, a sorrir, Cody.
Teve, porém, de ir logo juntar-se aos primeiros cavaleiros que deviam entrar na arena.
Naquela noite, o Wild West, em Mênfis, como em todas as demais terras onde se exibia, arrancou apoteótico triunfo. Não se deplorou qualquer incidente desastroso
quando do ataque à diligência, onde Catamount desempenhou brilhantemente o respectivo papel. Sandra e o anão secundaram-no, cabendo à primeira a parte sentimental
e, ao segundo, a actuação cómica, agradando tanto uma como outra.
Voltaram a desmanchar o circo e Catamount, depois de agradecer as felicitações de Cody, tratou logo de se dirigir para o camarim que lhe improvisaram. A caravana
seguiria daí a pouco para Nashville, de acordo com o itinerário fixado pelo director.
Dali a uma hora, estavam os carros na estação e os cavalos já nos vagões. Desta vez o homem dos olhos claros quis encarregar-se pessoalmente de "Mesquita", tendo
o cuidado de fazer com que, nessa noite, o alazão não ficasse preso ao lado da égua branca de Sandra. Fez algumas recomendações a Joe e depois saltou lestamente
para o cais, a fim de subir para a sua carruagem. A locomotiva arfava já, sob a enorme cobertura de ferro da estação de Mênfis. O Coronel via atentamente o pessoal
a ocupar os lugares devidos.
O batedor respirou aliviado quando se encontrou só no seu acanhado compartimento. Estava ansioso por poder reflectir tranquilamente. Por enquanto não dera um único
passo em frente a respeito do mistério da morte trágica de Lartigo.
Começou a despir-se e, de repente, soltou uma exclamação abafada: - reparou que, no tapete, havia uma manchazinha parda e em que ainda não atentara.
Um solavanco violento, acompanhado de um silvo estridente por pouco não lhe fez perder o equilíbrio. O comboio partia e Catamount, sem se preocupar com a gente que
no cais acenava adeuses aos artistas, abaixou-se, intrigado.
- Não há dúvida! - monologou. - Esteve aqui alguém, por sinal a fumar tabaco claro.
Com a testa riscada por uma ruga de preocupação, Catamount levantou-se. Não restava a menor dúvida de que estivera ali alguém durante a sua ausência. Por sinal,
começava a perceber um leve cheiro a tabaco, que até ali não notara.
Desde o que se passara na noite anterior, o ranger andava sempre com uma pedra no sapato. Deitou uma olhadela à sua roda e reconheceu que nada havia de anormal.
Mantinha-se tudo no respectivo lugar, mas, quando se debruçou sobre a cama, notou mais uma pitada de cinza no tapete. Admirado, aproximou-se e levantou com todas
as cautelas os cobertores.
De repente, ao erguer o lençol, estacou, intrigado. Na brancura do pano, meio entalada para os pés da cama, reparou numa coisa escura. Agarrou no candeeiro da mesa
de cabeceira e aproximou-o, sem que distinguisse bem do que se tratava. Ia a estender a mão para agarrar aquela esquisita coisa que parecia ter escorregado mesmo
para os pés da cama, quando deteve a mão a meio caminho. O objecto em questão mexera-se e empertigara-se. Tinha uma cauda eriçada, pronta a picar com o seu dardo.
A luz deu-lhe em cheio e Catamount exclamou, num timbre surdo:
- Santo Deus! Um escorpião!
VIII
AS CONFIDÊNCIAS DE UM ANÃO
Durante instantes, Catamount conservou-se imóvel, com os olhos cravados no insecto, o qual, espantado, se escondera no lençol, de cauda em riste e pronto a picar
o imprudente que se aproximasse.
Desta vez não restavam quaisquer dúvidas de que se tratava deveras de uma tentativa criminosa. Alguém se introduzira no compartimento antes de o comboio partir e
metera o escorpião mesmo dentro da cama. Pouco faltou para que o homem dos olhos claros, sem adivinhar o perigo que corria, caísse na mortal ratoeira que lhe armaram.
Contudo, esta surpreendente peripécia, longe de assustar Catamount pareceu, pelo contrário, que lhe agradou, pois murmurou com os seus botões:
(- Corre tudo às mil maravilhas! Estamos na boa pista. Porque o patife me julga deveras perigoso, e forte entrave para os seus planos, é que recorre a tais expedientes!)
Furtivo sorriso aflorou aos lábios do batedor. Até ali, tudo o que apurara, desde que saíra de Little Rock, reduzia-se a muito pouco. Não encontrou o menor indício
que lhe orientasse o inquérito para este ou para aquele membro da caravana do Wild West. Mas a presença. na cama, do temível escorpião servia, depois do incidente
da véspera à noite, para consolidar o ranger na firme decisão de seguir até ao fim.
- Há todas as razões para supor - continuou o nosso homem a pensar - que o sujeito vem neste comboio. Um pormenor irrefutável: fuma cigarros de tabaco claro. Parece
também um tanto imprudente, pois, se tivesse o cuidado de não entrar aqui a fumar, nunca eu desconfiaria de coisa alguma. Despia-me, metia-me na cama e depois...!)
Nem terminou a frase, imaginando as consequências do drama, pois as picadas do escorpião nunca perdoam. Antes de dar o alarme, antes de chamar os vizinhos, morreria
inevitàvelmente fulminado.
Catamount tratou então de se desenvencilhar do perigoso animal, que continuava sempre ;à espera, imóvel e ameaçador, entre as pregas do lençol, O cavaleiro reparou
na sua pistola e procurou empurrar, com o cano, o insecto para fora da cama, Conseguiu-o ao cabo de algum trabalho e, depois, mesmo na altura em que o escorpião
procurava esconder-se a um canto, esmagou-o com o tacão da bota.
- Imundo bicho! - murmurou, com repugnância. Agarrou depois, com cautela ainda, no corpo da sua vítima e, debruçando-se da janela do compartimento, atirou com o
escorpião para a linha.
Esta nova aventura deixou o ranger muito pensativo. Longo tempo se conservou imóvel, sentado na cama. Antes de mais nada, perguntou a si próprio se devia pôr ou
não Buffalo Bill ao corrente do sucedido, mas, reflectindo melhor, achou preferível calar-se, Na verdade, não via outra forma de desmascarar o misterioso adversário.
Quando o comboio chegasse a Nashville, disporia então de tempo de sobra para observar as reacções dos vários componentes da caravana. Sem dúvida repararia então
em qualquer minudência que lhe permitiria apressar a conclusão das investigações.
(- Já tivemos a aveia envenenada - monologou. - Agora foi o escorpião. Que novas surpresas me reservará esse malandrim quando verificar que errou o golpe? )
O comboio continuava a correr na noite, debaixo de chuva, cujas gotas se desfaziam contra a vidraça do compartimento, sobre a qual alastrava uma embaciada camada.
Catamount perdera por completo a vontade de dormir, pois a imaginação vagabundeava-lhe sem parar, evocando sucessivamente os vários incidentes sucedidos desde que
entrara, com o Coronel Morley, em Little Rock. Passava em revista cada contratado de Cody, pois dispunha de excelente memória para fisionomias e acorria-lhe logo
à ideia qualquer perturbação ou gesto suspeito esboçado por aqueles.
Era mais do que certo que o culpado aproveitara-se da barafunda do embarque da caravana para se esgueirar, sem dar nas vistas dos colegas, para o compartimento do
ranger.
Este pegou maquinalmente na cigarreira e procurou um cigarro, que levou aos lábios, sem pensar em despir-se. Limitou-se a descalçar as botas e a estender-se ao comprido
sobre o leito. Depois, acendeu o cigarro com o isqueiro e continuou, de pálpebras semicerradas, a analisar, em todos os aspectos, o estranho problema que se lhe
oferecia.
Não obstante, a pouco e pouco o homem dos olhos claros sentiu que uma espécie de sonolência o entorpecia a pouco e pouco. Era consequência da oscilação constante
do comboio, do rumor monótono das rodas. De repente, apesar daquele ambiente que o arrastava para o sono, sentou-se na cama, com o ouvido à escuta. Um estalido estranho
chamara-lhe a atenção.
Sem provocar o menor ruído, poisou os pés no tapete, estendeu a mão, agarrou na pistola, que nunca deixava fora do seu alcance, e, a seguir, de dedo no gatilho,
ficou parado, o corpo inclinado para a frente, nervos tensos, ouvido à escuta.
Decorreram alguns segundos, sem que Catamount
se mexesse, pronto a entrar em acção. Não notou mais nada de anormal senão o rodar do comboio e o arfar da locomotiva, a pouca distância da sua carruagem e que se
preparava para galgar uma rampa bastante íngreme. Mesmo assim, o batedor continuou alerta, pois sentia a impressão de que o espiavam, de que havia alguém no corredor,
do lado de fora da porta.
Desta maneira se passaram dois minutos, durante os quais o ranger conteve ansiosamente a respiração. Finalmente, para se tirar de dúvidas, levantou-se silenciosamente,
estendeu a mão esquerda, apalpou às escuras e conseguiu por fim correr o fecho da porta.
Um silvo agudo da máquina provocou-lhe um sobressalto, mas Catamount logo se recompôs e encostou o ouvido à almofada da porta. Em breve o sacudiu um calafrio: não
se enganara; sentiu outro estalido, que mal se percebeu, mas denunciando que alguém se encostara do lado de fora.
Desta vez varreram-se todas as dúvidas do espírito do homem dos olhos claros. Estava ali alguém! Então, interrompeu a imobilidade, agarrou cautelosamente na maçaneta
da porta e, de seguida, subitamente, abriu-a, puxando-a contra si.
Ouviu-se imediatamente um grito sufocado. O vulto escuro, que se encostava ao batente, desequilibrou-se e foi cair de cabeça dentro do compartimento.
O misterioso intruso preparava-se para recuar e fugir pelo corredor fora, mas Catamount agarrou-o logo pela gola do casaco e, apontando-lhe o colt, sussurrou-lhe:
- Nem uma palavra, nem um gesto, senão disparo! Percebes?
- Sim, senhor... - respondeu o sujeito a tremer, pois a aparição do ranger parecia tê-lo apanhado completamente desprevenido.
O homem dos olhos claros puxou-o ainda mais para si e, sem deixar de o ameaçar sempre com a pistola, conseguir accionar o interruptor eléctrico. Assim que a luz inundou o acanhado recinto, Catamount reconheceu Bollobobum naquele homem de feições contraídas
e exangues, de joelhos a seus pés, tremendo como folha sacudida pelo vento.
- O quê, és tu!? - exclamou o cavaleiro. - Que estavas ali a cheirar no corredor?
Primeiro, o anão não descerrou os lábios, como que emudecido pelo susto, e com os olhos esgazeados de pavor cravados no cano do revólver, apontado contra si. Por
fim, conseguiu gaguejar:
- Não dispare... Se o senhor soubesse... ! Apesar de o suor luzir nas fontes do homúnculo, Catamount não afrouxou a pressão no pescoço do intruso. Pelo contrário,
insistiu:
- Por que me estavas a espiar? Por que estavas deveras ali atrás da porta, pronto a praticar qualquer patifaria?
Bollobobum protestou: - Juro-lhe pelo que tenho de mais sagrado... pela memória de minha mãe... Juro-lhe que não tenho nada de que me acuse! Estava apenas ali fora
a tomar conta no senhor... para que não lhe sucedesse nenhum mal...
O homem dos olhos claros afrouxou levemente o aperto, de que o anão se aproveitou imediatamente para respirar, aliviado. Depois, em frases sacudidas por convulsivos
soluços, explicou:
- Não me esqueço... não me esquecerei nunca... de que o senhor foi a única pessoa a tomar a minha defesa contra esse infame bruto que era o Tom Lartigo!... Enquanto
os outros riam e troçavam... só o senhor acudiu. Por isso hei-de tê-lo sempre na conta do meu melhor amigo!
Havia naquelas palavras tal expressão de franqueza que o ranger reconheceu para consigo que o seu inesperado visitante não lhe mentia.
O anão continuou:
- Estou convencido de que, desde que se juntou à nossa companhia, ameaça-o um constante perigo. Por isso estou sempre de atalaia para o proteger e avisar no caso
de ameaça. Não posso fazer mais nada pelo senhor. Já vê que não tem razão para me julgar seu inimigo!
Bollobobum disse estas palavras a chorar. Grossas lágrimas deslizavam-lhe pelo rosto enrugado. O batedor baixou devagar o revólver e meteu-o no coldre, enquanto
o anão prosseguia:
- Há bocado, pareceu-me perceber um vulto suspeito caminhando no corredor. Saí então do vagão onde durmo com os cowpunchers e vim por aí fora às apalpadelas.
- Quem era a pessoa? De quem desconfiaste? O anão abanou tristemente a cabeça e murmurou: - Com certeza viu-me e por isso tratou de pisgar-se antes de eu o reconhecer.
Vim então até aqui à sua porta.
- Justamente na altura em que desempenhavas o teu papel de anjo da guarda é que eu surgi então?
Bollobobum afirmou: - Torno a afirmar-lhe que não lhe queria fazer mal algum! Pelo contrário! Se me surgir uma ocasião de sacrificar a minha vida pelo senhor, fá-lo-ei
com todo o gosto!
O homenzito deteve-se, sacudido pelos soluços e impossibilitado de acrescentar mais qualquer coisa, tão grande era a sua emoção. Catamount permaneceu, por momentos,
silencioso e perplexo. Estava intrigadíssimo por o anão aparecer logo a seguir ao descobrimento do escorpião. Fez então sinal a Bollobobum para que se sentasse na
cama e disse-lhe em tom compassivo:
- Vamos conversar um bocado e talvez me possas contar algumas coisas que me interessam. Porque estou desconfiado de que, quando te interrogaram em Little Rock, não
contaste tudo quanto sabias!
- Garanto-lhe que disse tudo quanto sabia! - protestou enèrgicamente o anão. - Seja como for, não disparei contra o Lartigo. Se o fizesse, não tinha vergonha de
o dizer, pois não podia com esse bruto! Quantas vezes não lhe desejei a morte! O que ele me fez sofrer!...
O homenzito crispava nervosamente os punhos enquanto assim falava e o seu arrebatamento representava a perfeita antítese do sangue-frio e serenidade daquele que
o interrogava. Este deixara por completo a sua atitude severa de minutos antes e, tirando a cigarreira da algibeira, ofereceu-lhe:
- Um cigarro?
- Não., obrigado - recusou o anão. - Não fumo. Esta resposta espontânea mais convenceu o batedor de que não fora Bollobobum o intruso que deixara
no compartimento, em recordação da visita, uma pitada de cinza.
- Então - inquiriu depois Catamount - por que motivo imaginas que há quem me queira mal? Desconfias de alguém? Viste alguma coisa?
Com um gesto vago, o interpelado explicou: - Vi apenas umas sombras suspeitas... Como ontem., para as bandas do furgão. Porque, tão certo como estarmos agora os
dois aqui, alguém deitou uma droga qualquer na ração dos cavalos! Depois, esta noite também... Garanto-lhe que andaram por aqui a rondar pelo corredor... alguém
que eu bem desejaria descobrir quem fosse.... Mas o senhor apareceu justamente na altura em que eu me postara aqui de
sentinela!... Porque estou plenamente certo
de que o assassino de Lartigo pertence ao pessoal do Wild West! Mas quem é? Ainda não sei, mas, como não ignoro que muitos por cá havia que lhe tinham um azar de
morte, não faltavam razões de sobra para o mandarem desta para melhor. Em todo o caso, trata-se de sujeito perigoso. Bem o demonstra só pela circunstância
de ter evitado até agora que o apanhem.
Há-de procurar suprimi-lo, pois sabe de sobejo que tem no senhor um adversário de respeito, que não descansará enquanto não desmascarar o assassino.
Catamount acenou devagar com a cabeça, totalmente convencido da inocência do anão e também de que tinha um aliado de confiança, pronto a fazer tudo o que estivesse
ao seu alcance para o ajudar a concluir o inquérito. Assim, pondo termo na reserva em que se fechara, resolveu-se a declarar-lhe:
- São fundadas as tuas desconfianças, meu rapaz! Imagina tu que há bocado...
Passou a descrever-lhe como, intrigado com a existência de cinza no tapete, dera depois com o escorpião escondido no fundo da cama. Logo que ouviu aquela novidade,
o rosto do homenzito iluminou-se e exclamou:
- Eu bem lhe dizia! Razão tinha eu para recear! - Mas caluda! - atalhou Catamount, - Não o digas seja a quem for!
- Nem mesmo ao Coronel? - Nem mesmo ao Coronel! A mais pequena indiscrição poderia atirar com tudo por água abaixo e impedir-nos de alcançar o nosso fito.
- E, agora, já acredita em mim? Olhando-o demoradamente, o anão estendeu a mão, que Catamount não hesitou em estreitar-lhe. Depois, o pobre do homem afirmou em voz
trémula:
- O senhor nem forma a mais pequena ideia do que representa ser-se diferente dos outros homens! Se soubesse quantos enxovalhos, quantas vergonhas tenho passado!...
Bollobobum começou então a falar ininterruptamente, felicíssimo por encontrar finalmente quem lhe prestasse atenção. Contou como fora a sua mocidade, filho também
de anões e contratado desde criança para a companhia do famoso Barnum. Ele e mais trinta fenómenos parecidos formavam uma aldeiazinha onde viveu durante muitos anos.
- Iam-nos ver como a animais raros. Se essa gente imaginasse quanto eu sofria!... Invejava toda aquela tropa, trocista ou indiferente, onde havia quem nos atirasse
guloseimas como quem atira pevides ou bananas aos elefantes ou aos macacos! Contudo, tinha de mostrar cara prazenteira! Quantas vezes eu ria com o coração a rebentar
de lágrimas!
O anão desabafava sem hesitação, pois era a primeira vez que se sentia na companhia de um amigo, o qual lhe escutou até ao fim a lastimosa odisseia... A aldeiazinha
fora dizimada pela doença e pela morte... Bollobobum, órfão... Barnum, forçado a desmanchar a companhia... O infeliz, entregue aos seus próprios recursos, mofado
por todos, foi obrigado às mais reles ocupações, passando fome, até que o Wild West se deteve em S. Francisco e o desgraçado conseguiu falar com o Coronel Cody.
Este, sempre interessado em reunir ao grupo fenómenos de sensação, acedeu a contratá-lo. Depois, desde esse dia, montado no poldrozinho de Shetland, o anão provocava
as gargalhadas das crianças e as chufas dos adultos, quando repetia constantemente aquele nome estapafúrdio: "Bollobobum! Bollobobum!"
- Desprezam-me porque sou pequeno - concluiu tristemente o infeliz. - Quando, no fim de contas, " tenho coração como qualquer outro! Sempre que falo com algum homem
ou alguma mulher, ninguém me toma a sério, sempre trocistas. E posso dar graças a Deus por não se lembrarem de fazer de mim gato-sapato! Compreendo, pois, quanto
é bom, quanto é reconfortante, verificar que, uma vez ao menos, se encontrou um amigo, alguém que de certo modo compreende o que é a vida de um anão!
Catamount ouvira aquele desabafo, sem procurar interrompê-lo. Experimentava imensa piedade, que a pouco e pouco apagara os restos de desconfiança que ainda lhe subsistiam.
Havia todas as razões para admitir
que o anão não lhe mentia. Não matara Lartigo. O culpado era outro.
Embora continuasse o mistério, o ranger percebia agora que, desta vez, marcara um ponto. Ganhara bastante, obtendo a coadjuvação de Bollobobum. Juntos, efectuariam
trabalho excelente.
Para que a ausência prolongada do anão não despertasse suspeitas aos seus companheiros de camarata e preocupasse aquele ou aqueles que pretendia desmascarar, não
o demorou por mais tempo.
- É melhor despedirmo-nos por hoje - murmurou. - Não convém que desconfiem.
- Deposita deveras confiança em mim? Como Bollobobum esperava, de olhar ansioso, a resposta, o batedor apressou-se a tranquilizá-lo:
- Deposito, sim. É melhor, contudo, que não nos vejam juntos, para não suspeitarem da nossa conversa desta noite. Continuaremos a proceder um com o outro como até
aqui, embora, quando for preciso, troquemos impressões.
Quando o anão se levantou, no rosto mais aliviado luzia um sorriso. Apertou mais uma vez a mão do ranger e, a seguir, lentamente, entreabriu a porta e deitou uma
olhadela cautelosa para o corredor.
- Não está ninguém... -sussurrou para o seu novo amigo, esgueirando-se pela estreita passagem da porta.
O homem dos olhos claros apenas levou o dedo aos lábios, a recomendar, pela última vez, silêncio e discrição ao seu estranho acólito, e ficou imóvel entre portas
até que o homenzito desapareceu pelo fole que ligava a carruagem à seguinte. Tudo parecia dormir naquele comboio, que prosseguia, pela noite dentro, a corrida para
Nashville.
Depois, Catamount regressou ao compartimento, correu cautelosamente o fecho da porta, estendeu-se outra vez na cama e, dali a momentos, adormecia, então, num sono
reparador.
IX
PRISIONEIROS DA VIA FÉRREA
A marcha triunfal do Wild West prosseguiu em Nashville e Chattanooga. De todos os lados acorreram dezenas de milhares de espectadores a aplaudir Buffalo Bill e os
seus destemidos cavaleiros. Depois do Arcansas, o Tennessee mostrava-se igualmente caloroso e, por onde a caravana desfilava, comprimiam-se magotes de curiosos e
de admiradores. Os negros, tão numerosos naquele Estado, aplaudiam, entusiasmados, o "Rei dos Escuteiros", outro consagrado título do Coronel Cody.
Catamount, por seu lado, continuava a desempenhar o seu modesto papel de boleeiro no ataque à diligência, ao mesmo tempo que, debalde, esperava novo atentado a seguir
ao do comboio,, mas sem que aquele se repetisse. Também não voltara a ver o anão senão em intervalos bastante raros. Em obediência ao que o batedor lhe determinara,
Bollobobum fingia perante ele a mais completa indiferença.
Também os outros membros da companhia continuaram a lidar da mesma maneira com o ranger: cowboys e índios manifestavam sempre certa desconfiança e evitavam falar-lhe,
os cossacos conservavam-se numa reserva prudente e só Sandra se mostrava amável, envolvendo-o em sorrisos sem conta. Chegara até, por várias vezes, a meter conversa
com ele, mas o braço direito do Coronel Morley não procurara prolongar o diálogo. Quanto aos árabes, majestosamente envoltos nos albornozes, afectavam o mais completo
desinteresse.
Quem afirmava calorosa cordialidade era Cody. Todos os dias levava para o seu escritório aquele colaborador eventual, para lhe dirigir perguntas a respeito das investigações.
Mas estas pareciam patinar e ameaçavam eternizar-se. Por muito pitoresco e curioso que se demonstrasse o ambiente do Wild West, Catamount gostaria muito mais de
se encontrar em El Paso. Nada dissera a Buffalo Bill do episódio do escorpião e, assim, o assunto da conversa girava quase sempre em volta da carreira de Cody, tão
rica em movimentadas peripécias.
As esperanças do ranger de, na manhã seguinte à do encontro do escorpião, descobrir quaisquer reacções nos contratados de Cody que o orientassem na boa pista malograram-se.
Não notou espanto ou despeito, fosse em quem fosse, quando o viram aparecer no primeiro almoço em que toda a companhia se juntava.
Não obstante, os dois últimos dias, passados na maior calma, nem por isso lhe adormeceram as desconfianças. Pelo contrário, continuou mais do que nunca de atalaia
e pronto para qualquer eventualidade. Visto o assassino de Tom Lartigo pertencer ao bando, podia, de um momento para o outro, diligenciar novamente libertar-se do
importuno que o procurava.
Sem nada que mereça menção, o Wild West chegou a Atlanta, cidade importante do percurso, em cuja enorme estação, de longe a maior e mais importante de todos os Estados
do Sul, o comboio entrou ao romper do dia.
De todos os pontos cardeais afluíam linhas à imensa estação, dotada de inúmeras plataformas. Realmente, Atlanta representava um ponto estratégico de capital importância.
Uns trinta anos antes, quando da guerra da Secessão, as tropas do General Sherman conquistaram e incendiaram a cidade.
O primeiro a saltar àgilmente para o cais foi Buffalo Bill e logo, aconchegado numa quente peliça, se preparou para vigiar o desembarque.
Como sempre sucedia, começaram por reunir os cavalos. Visto demorarem-se uma semana em Atlanta, impunham-se-lhes todas as precauções para evitarem qualquer acidente.
Catamount, que naquela manhã se sentia fresco e bem disposto, observava, do corredor, o impressionante cenário da enorme estação. Até onde a vista alcançava, entrecruzavam-se
as vias, e centenas de discos alinhavam-se em intervalos irregulares. Em vários pontos, luziam faróis vermelhos e verdes, assinalando as agulhas, e acesos ainda,
embora o sol já se erguesse no horizonte.
Magotes de viajantes pejavam as plataformas. O comboio que transportava o Wild West teve que esperar algum tempo num desvio. Parecia ter-se dado qualquer acidente
para as bandas de Decatur e o movimento sofria alguns atrasos e transtornos. O pessoal multiplicava-se, incansável, no desejo de restabelecer a normalidade, e as
linhas, provisòriamente obstruídas, começavam a descongestionar-se.
Todas estas manobras entretiveram Catamount, enquanto alguns dos companheiros de viagem, debruçados das janelas das carruagens, começavam a impacientar-se.
- Estou a ver que, com esta trapalhada, nem ao meio-dia temos os cavalos todos em terra! - resmungava um.
- E nem sequer se sabe quando se começa a montar o circo! - protestava outro.
Sem se afligir, mas sempre com o seu sorriso indefinível, Sandra apoiava-se a uma janela a seguir à de Catamount e fumava um cigarro de ponta dourada. O ranger cumprimentou-a com um simples movimento de cabeça, nada disposto a conversa, mas a sua vizinha tratou logo de a entabular.
- Está um dia bonito... começou.
- Pois está - concordou lacònicamente o homem dos olhos claros.
- O pior é este atraso. Parece que ocorreu um desastre não sei onde.
Catamount esboçou um gesto evasivo e, nada interessado naquela conversa tão banal, puxou da cigarreira, escolheu um cigarro e espetou-o entre os lábios.
- Espere, eu tenho lume! - apressou-se Sandra a dizer-lhe, ao mesmo tempo que estendia para o ranger o seu cigarro.
O rapaz agradeceu-lhe com um aceno de cabeça e, depois, curvou-se por instantes sobre o cilindrozinho de tabaco, meio consumido, que várias vezes aspirou.
A russa inquiriu:
- Continua a desempenhar o seu papel de cocheiro da diligência?
- Enquanto o Coronel não arranjar outro que substitua o Lartigo.
Catamount calou-se novamente, mas Sandra não parecia disposta a terminar a conversa que encetara, pois afirmou-lhe:
- Sabe que substitui, com muita vantagem, o Lartigo? Ele não passava de um rústico sem escrúpulos, ao passo que você...
- Que tenho de especial? -perguntou o batedor, procurando devassar o que a sua formosa vizinha escondia atrás dos olhos risonhos.
Sem se desconcertar e sempre com o seu sorriso indefinível, a interpelada respondeu-lhe pausadamente:
- Você, evidentemente, é outra coisa! Não fosse o que é e...
- Não percebo.
- Quer dizer que, se as suas ocupações normais não o forçassem a proceder de outra maneira, tenho a certeza de que o Coronel Cody só ganharia conservando-o no Wild West.
Impassível como mármore, o ranger pareceu ficar totalmente insensível ao comprimento, mal encapotado, da sua formosa colega eventual, a qual nunca se mostrara, apesar
das suas amabilidades, insinuante a tal ponto.
- Quer saber uma coisa? - continuou a eslava. - Gostaria de montar um número com você, pois cheira-me que deve ser um atirador como poucos.
- Faço o que posso. Com a diferença de que nunca me habituaria à vida de saltimbanco. Prezo muito a minha liberdade e aprecio de mais o ar livre para me sujeitar
a prisões. Pudesse dispor de mim que hoje mesmo já galoparia em direcção a El Paso.
- Aí está uma coisa que não me parece muito lisonjeira para os seus actuais companheiros!
- Poderá não ser lisonjeira, mas é deveras a expressão da verdade.
A rapariga mordeu os lábios, mostrando-se magoada com a resposta do cavaleiro. Mas logo recuperou a afabilidade e o sorriso, ao dizer:
- Ninguém o impede de partir para o seu querido El Paso! Que eu saiba, não existe qualquer contrato que o ligue, para a vida ou para a morte, ao Coronel, não é verdade?
- Pois não - concordou o batedor - , não assinei contrato algum, mas, em todo o caso, dei a minha palavra ao meu chefe de que levaria até o fim o inquérito de que
me encarregou. Por muito aborrecida que seja esta vida, estou plenamente disposto a triunfar.
Um rápido, que passou a toda a velocidade com ensurdecedor barulho, impediu, por dois minutos, Sandra de continuar, mas, assim que o comboio se afastou para as bandas do poente, voltou à carga, olhando de soslaio para o ranger:
- Cheira-me que esse seu inquérito tanto avança hoje como amanhã...
Catamount fez uma careta, expeliu uma voluta de fumo pardo e comentou:
- Que razões tem para o supor? Desta vez, a jovem corou ao de leve, a mão enluvada de pelica branca crispou-se, uma ruga de contrariedade riscou-se-lhe ao canto
dos lábios e ia dizer qualquer coisa quando Catamount atalhou:
- Não costumo desabafar seja com quem for, tanto mais que o caso de que me incumbiram é de carácter um tanto especial. Aliás, sabe muito bem que nunca é prudente
fiarmo-nos em aparências. O mais que lhe posso declarar é que, mais tarde ou mais cedo, acabarei por desmascarar o culpado.
-.Nesse caso, faço votos para que o consiga o mais depressa possível.
Sandra deitou fora o resto do cigarro que acabara de fumar e preparava-se resignadamente para voltar para o outro lado do corredor, quando reparou em alguém que,
debruçado de outra janela, a chamava. Era Igor, um dos cossacos. Sandra encolheu os ombros e afastou-se ràpidamente, deixando uma esteira daquele perfume que nunca
passava despercebido a Catamount.
Este pareceu não dar pela partida da vizinha. Para mais, um fraco solavanco sacudiu o comboio, o qual retomou a marcha lenta para a estação. Os vaqueiros, impacientes,
soltaram exclamações satisfeitas. Nem esperaram que o comboio parasse por completo para saltarem para terra.
Seguiu-se então o bulício habitual, dominado pela voz de comando de Buffalo Bill:
- Os cavalos! Tratem, antes de mais nada, dos cavalos!
Porque eram sempre os primeiros a desembarcar, vaqueiros e índios agitaram-se para os furgões, enquanto outros apareciam com as pranchas que permitiam aos animais
descer para os cais.
Catamount apeou-se também, pois queria cuidar pessoalmente de "Mesquita" e verificar se o seu fiel alazão aguentara bem a nova tirada. Atirou longe o cigarro quase
consumido e juntou-se ao grupo que cercava o Coronel Cody, indiferente à balbúrdia da estação, à actividade dos ferroviários, à chegada e partida de passageiros,
ajoujados com malas e embrulhos. À distância, um grupo de pretos empurrava carrinhos com fardos de algodão e de tabaco.
Aquela incessante actividade desnorteava um tanto o ranger. Os cavalos começaram, com certa relutância, a descer dos furgões. Buffalo Bill vigiava atentamente tudo
e intervinha sempre que era preciso.
Catamount, observando todo aquele movimento, avistou ao longe Sandra que, vestindo um elegante casaco de viagem, dava ordens aos seus cossacos, também a desembarcarem
os respectivos cavalos. Enquanto passeava de um lado para o outro da plataforma, Catamount cruzou-se, por acaso, com Bollobobum, que lhe deitou uma rápida piscadela
de olho, logo apagada pela sua máscara carrancuda e impassível.
De repente, ouviram-se gritos: - Damn! Cuidado! Não o deixem passar! Buffalo Bill agitava os braços e os que o rodeavam, cowboys e índios, abalavam a fugir por todos
os lados da plataforma.
Catamount não percebeu do que se tratava, mas não duvidou de que alguma coisa acontecera. Um dos cayuses - cavalinhos índios, bastante bravos - espantara-se com
o apito de um comboio e abalara a galope pelo cais.
Apanhados de improviso, alguns dos componentes do circo recuaram instintivamente, mas uma ordem enérgica do coronel reuniu-os outra vez para apanharem o fugitivo.
De um e do outro lado da linha, ouviram-se silvos agudos, enquanto os ferroviários acenavam com as
bandeiras vermelhas, a avisarem os vaqueiros e os índios para que tivessem cuidado com os comboios. Essa intervenção perturbou um tanto os perseguidores, e o cavalito
aproveitou-a para se afastar ainda mais.
- Maldito animal! - praguejou Buffalo Bill, - Vai ficar esmagado!
Com efeito, o cayuse trotava agora pela linha fora e a intervenção de alguns ferroviários a acenarem-lhe com as bandeiras ainda mais o desnorteou. Um comprido comboio
de mercadorias, a aproximar-se, concorreu para complicar a situação.
Do grupo destacou-se um índio até ali hesitante: - É o meu cavalo! - bradou ele. - O cavalo de "Grande Águia".
- Cautela! - avisou-o Buffalo Bill. O índio, porém, pareceu não ouvir o Coronel. Deitou a correr pela linha fora, deixando indecisos os patrícios, que não sabiam
o que fazer. A confusão das calhas e das plataformas., a aparição ininterrupta de mais comboios, os estalidos dos discos manobrados pelos agulheiros, os faróis dos
semáforos a acenderem-se e a apagarem-se, tudo isso atordoava aqueles cavaleiros, por muito corajosos que fossem.
"Grande Águia" corria pertinazmente atrás do seu bravo cayuse e, desprezando os gritos dos ferroviários, saltava de linha para linha até que atravessou uma bifurcação.
Mais de uma vez levou os dedos aos lábios, modulando um sinal a chamar pela montada, mas os silvos das locomotivas espantavam constantemente o animal, sempre a correr
e a atravessar as vias, cada vez mais complicadas à medida que se aproximavam da entrada das agulhas de Atlanta.
- Que imprudente aquele! - exclamou Buffalo Bill, que já não sabia que mais fazer para chamar o índio. - Vai-se meter debaixo de um comboio!
Mas o cayuse parecia fascinar "Grande Águia". Por duas vezes o cavalo parou e olhou para trás, hesitante
porque decerto reconhecera o dono, Infelizmente, passava outro comboio a toda a velocidade e novamente o animal se espantava e desatava a fugir.
O índio ainda correu durante alguns minutos, mas os mocassins a custo lhe permitiam deslocar-se sobre as travessas e o balastro das linhas e, mais de uma vez, tropeçou,
com risco de se estatelar ou de torcer um pé. O cavalo até parecia divertir-se a brincar às escondidas com o dono.
De repente, Buffalo Bill, ao lado de Catamount, soltou uma exclamação de desespero. Mesmo na altura em que alcançava um posto de agulhas, "Grande Águia" parou. Durante
breves instantes, viram-no empertigar-se, a seguir curvar-se, retesar-se e sacudir-se, como se quisesse libertar-se de qualquer coisa.
- By Jove! - exclamou um gigante, vestido de cowboy. - Prendeu o pé na agulha! Desastrado!
Realmente, na sua precipitação, o índio entalara o pé direito entre as duas barras da agulha, que o retinha preso, sem lograr desprender-se, por mais esforços que
empregasse.
Um empregado passou a correr, gaguejando: - Desgraçado! Está perdido! É a hora em que ali passa o comboio de Richmond!
O cayuse, culpado do desastre, estacara naquele momento, de orelhas espetadas, junto de um disco, a olhar para o dono, o qual redobrava de esforços para se libertar.
Em toda a plataforma reinava um consternado silêncio; todos pareciam petrificados, com os olhares fixos em "Grande Águia", que desesperadamente tentava afastar as
duas barras que lhe prendiam o pé como num torno.
- Tem de se tentar qualquer coisa! - balbuciou Sandra, imóvel junto dos cossacos e pálida como uma morta.
Ouviram-se mais gritos. Um homem abalara do
grupo, saltara do cais e metia, por. sua vez, a correr, pelas linhas, em socorro do aflito índio.
Catamount percebera o tremendo perigo a que o desgraçado se expusera e, incapaz de se conter por mais tempo, tentava alcançar "Grande Águia", sempre a debater-se.
O infeliz percebera efectivamente a horrível sorte para que estava guardado, pois via já ao longe o rápido de Richmond, com a máquina coroada de um penacho de fumo
branco. De todos os lados, corriam funcionários a ver se chegavam ainda a tempo ao posto das agulhas, mas sabiam já que, por mais que corressem, não lograriam já
impedir o desastre.
Catamount caminhava agora a passo largo, mesmo assim volta-e-meia a tropeçar nas chulipas e por pouco não caindo sobre as calhas. Mediu, porém, com a vista a distância
que o separava ainda do índio e redobrou de esforços. A certa altura, gritou-lhe:
- Coragem, já aí vou! O barulho ensurdecedor dos comboios abafou o brado do homem dos olhos claros. Teve de dar um salto para o lado a fim de evitar que um extenso
comboio de mercadorias o colhesse, o qual, rodando a toda a velocidade, lhe ocultou por instantes a figura de "Grande Águia".
Este esboçou um gesto de desespero. Avistara Catamount, que se aproximava a toda a pressa, mas também via o comboio de Richmond cada vez mais perto. Em menos de
um minuto, se o agulheiro não agisse, o comboio passar-lhe-ia por cima e reduzi-lo-ia a uma massa informe.
Ao longo do cais, a companhia em peso esperava, imóvel, com o coração contraído, reunida em volta do Coronel Cody, o qual, de sobrancelhas crispadas e feições tensas,
media com a vista a distância que separava Catamount de "Grande Águia", bem, como aquela, cada vez mais curta, que ia daqueles ao rápido. Acabou por gemer:
- Está tudo perdido... Já não... Interromperam-no vários gritos. Catamount, num esforço derradeiro, conseguia alcançar o índio e, reunindo ambos as forças, procurava
ajudá-lo a soltar-se.
- Valha-me Deus, já não têm tempo! Tal exclamação brotara dos lábios aflitos de Sandra, parada uns passos mais além, e, no meio de um magote de gente, mais afastado
ainda, Bollobobum via, esgazeado, a enorme máquina avançar célere. Ia produzir-se o inevitável!
Ouviu-se como que um crescente trovão ao longe. Instintivamente, todos fecharam os olhos, convencidos de que, naquele precioso instante, os dois homens sofriam um
fim atroz. Os ferroviários não chegaram a tempo ao posto das agulhas. Com o coração desfeito, os membros do Wild West viram passar o expresso, que agora obliquava
em direcção à estação. Durante alguns instantes, as carruagens esconderam-lhes da vista os dois minúsculos vultos.
Finalmente, as últimas carruagens afastaram-se pela linha fora. Com os olhos escancarados de espanto, Buffalo Bill e os companheiros perguntaram a si próprios se
não sonhavam, de tal forma lhes custava a acreditar na realidade.
Catamount conseguira libertar o índio e, depois, no preciso instante em que o rápido passava, estenderam-se ao comprido entre as calhas, encolhendo-se todos, e esperaram
que o comboio passasse por cima deles.
Agora, estavam a pôr-se em pé. "Grande Águia" deixara um dos mocassins entre as duas barras e, sofrendo horrivelmente do pé entalado, não lograva dar um passo. O
ranger carregou com ele nas robustas costas e agora, a custo, mas mesmo assim triunfante, transportava o desgraçado, que salvara de uma morte certa.
Então, incapaz de por mais tempo dominar a admiração que sentia, Buffalo Bill agitou o chapelão e, durante minutos, unindo a voz à de todos os seus entusiasmados
companheiros, aclamou arrebatadoramente o herói daquela impressionante e corajosa proeza.
x
UM VELHO AMIGO DE Bufallo-Bill
- Admirável! Você foi admirável! Tais foram as palavras com que Buffalo Bill, antes de mais ninguém, felicitou o corajoso ranger, mas este, apesar da gravidade do
perigo que correra para salvar "Grande Águia", parecia como se nada fosse com ele e apenas, quando chegou ao cais, se limitou a apontar para o índio meio inconsciente,
dizendo:
- É melhor que tratem dele, pois, com certeza, partiu o pé, na ânsia de se soltar. Apesar de, quanto a mim, ser ainda maior o susto do que o mal.
Todos logo rodearam "Grande Águia" e Joe, transportando uma vasilha de uísque, ajoelhou-se junto do pele-vermelha e fê-lo beber algumas gotas.
O álcool produziu imediatamente efeito. O índio endireitou-se, entreabriu os olhos, passeou-os pelo rosto de todos que o cercavam e o observavam atentos e, com a
voz a tremer, começou a dizer consecutivamente:
-O cavalo de ferro!... O cavalo de ferro!... O desgraçado continuava ainda obcecado com as dramáticas circunstâncias em que por pouco não perecera e tinha a impressão
de que despertava de um pesadelo. Sem dúvida que "Grande Águia" era um chefe corajoso, mas bastara-lhe ver a locomotiva a avançar sobre ele, expelindo fumo e faúlhas,
para perder todas as energias. A máquina mais lhe recordava
uma divindade maléfica e implacável do que uma obra dos homens.
Houve uma altura, porém, em que os olhos do índio se iluminaram: poisara-os em Catamount, de pé a poucos passos, todo entregue em sacudir a terra do fato amarrotado.
Estendeu a mão para o batedor e proferiu:
- "Grande Águia" nunca mais se esquecerá! - Do que o "Grande Águia" não se deve esquecer é de ir descansar umas horas, se deseja deveras voltar em breve a caminhar
- limitou-se a responder-lhe o homem dos olhos claros.
Depois, ajoelhou junto do protegido, friccionou-lhe com cuidado o tornozelo cada vez mais a inchar e, a seguir, virou-se para Buffalo Bill, inclinado à sua direita,
e recomendou-lhe:
- Isto tem que se ligar com todas as cautelas. Sobretudo, não o deixem pôr o pé no chão, nestes dias mais próximos. No fim de contas, podia ser muito pior...
-Sempre apanhei um desses arrepios!... - exclamou Cody, respirando, aliviado. - Quando vi passar o rápido, convenci-me de que vocês dois tinham ficado em papas.
Por isso, que alívio quando, dali a instantes, os vi vivos!
- Parabéns! Você foi maravilhoso! O batedor estremeceu e levantou-se de golpe, pois um acentuado perfume a cravo assinalara-lhe a presença de Sandra, que por sua
vez lhe testemunhava a sua admiração.
Catamount encolheu os ombros e respondeu, singelamente:
- Tanta bulha por tão pouca coisa! - Pouca coisa?! - protestou Buffalo Bill, indignado com tais palavras. - Está bem que se seja modesto, mas não tanto! Durante
a minha longa carreira presenciei muito acto de valentia, mas parece-me que este pode figurar entre os melhores!
- E se a gente pensasse antes nos cavalos? - atalhou Catamount, morto por mudar de conversa. - Com este percalço, perdemos mais de um quarto de hora.
Dois índios trataram de levar o chefe em charola, enquanto os cowpunchers, árabes e cossacos voltavam a ocupar-se dos animais, impacientes nos furgões.
Catamount substituiu, nesse trabalho, o índio sinistrado e, ao mesmo tempo, verificava a autêntica transformação que se produzira no pessoal da caravana. Desapareceram
todas as reservas e hostilidade e agora era ver qual o que primeiro metia conversa com ele. O corajoso acto do ranger bastara para dissipar todas as apreensões.
Também Bollobobum não ocultara um suspiro de alívio quando viu o seu amigo regressar com o índio às costas. Durante longos minutos, o anão partilhara da aflição
geral. Agora, exibia, no semblante, um sorriso de contentamento, mas, com medo de que os outros percebessem, tratou de se atirar ao trabalho, desaparecendo entre
os grupos mais atarefados.
A urgência em armarem o circo fez depressa esquecer o incidente, visto que, depois de desembarcados os cavalos, chegara a vez de descarregar os carros e todo o material
indispensável para montar as instalações para os espectáculos.
A seguir, a vida do circo, por momentos perturbada com o acidente ocorrido a "Grande Águia", retomou o ritmo normal. Montagem, desfile, ensaios sucederam-se na forma
do costume, enquanto Atlanta, como as demais cidades do itinerário, se engalanava alegremente de bandeiras, flâmulas e metros e metros de festão.
Durante o jantar comum da companhia, de novo Catamount observou a oportuna transformação operada nos companheiros, que disputavam entre si, com o maior empenho,
um lugar a seu lado. Todos os semblantes, anteriormente carrancudos, lhe sorriam agora
com simpatia. Os índios então dispensavam-lhe tão grandes amabilidades, que estas formavam a mais completa antítese com a reserva quase desprezível de outrora. Os
próprios árabes lhe sorriam, pois, valentes por natureza, admiraram sinceramente a coragem do batedor. Só os cossacos continuavam ainda reservados, embora Sandra
o envolvesse de sorrisos e volta-e-meia procurasse meter conversa, do que Catamount sempre se esquivava o melhor que podia.
A primeira representação daquela noite alcançou retumbante triunfo. Finda ela, Catamount quis visitar "Grande Águia", para saber como este estava. Encontrou o índio
deitado no seu carro e aborrecido por não poder associar-se aos camaradas. Esperava, contudo, com o tratamento e paciência, restabelecer-se em poucos dias.
Como o Wild West se demoraria oito dias em Atlanta, a companhia tratou de se instalar mais còmodamente do que era hábito. Catamount é que, mesmo com a melhoria
de ambiente que o rodeava, continuou de pedra no sapato e, sempre que se deitava, passava minuciosa inspecção à cama. Mas tudo parecia normal.
Apesar da vida movimentada da caravana, o ranger não esquecia a verdadeira razão que o levara a associar-se àquela. Ora, desde que saíram de Little Rock, as investigações
respeitantes ao assassínio de Tom Lartigo pouco haviam progredido. Mas o homem dos olhos claros continuava convencido de que o homicida nunca deixara de seguir com
o grupo e bastava lembrar-se do atentado, que por um triz o não matou, para que andasse sempre de olho alerta.
Convencia-se de que a salvação de "Grande Águia" só concorrera para lhe facilitar a tarefa e não duvidava de que, se fosse preciso, podia contar com numerosos aliados
entre o pessoal do Wild West, isto para não falar do anão, o qual, embora sempre cautelosamente de parte, não o deixaria de prevenir se farejasse algum perigo.
Catamount passou sossegadamente a noite e conseguiu esquecer as preocupações. Depois, de manhã, desceu do carro e, no caminho para a carruagem de Buffalo Bill, teve
de corresponder a todos os bons-dias e a todos os apertos de mão dos índios e cowpunchers com que se cruzou.
Ao aproximar-se do carro do empresário, viu este acompanhado de um tipo altíssimo, todo vestido de cinzento, coberto por um chapelão de aba larga, botas altas e
cinto guarnecido como um arsenal. Parecia contar uns sessenta anos e ser decerto conhecimento velho do Coronel Cody, pois o ranger ainda chegou a tempo de assistir
às primeiras saudações dos dois.
- Olha o meu velho Slim! - Venham de lá esses ossos, meu valente Cody! Os dois homens sacudiram, durante um bom bocado, enèrgicamente, as mãos um ao outro.
- Estás na mesma! - declarou o visitante, brindando o Coronel com uma valente palmada nas costas. - Até dá gosto olhar para ti! Ainda te recordas do Major Powell?
E do Wild Bill Hickock? ... Bem como desse velho barbaças do Nick Wharton? .. .
Depois, sem deixar o seu interlocutor pronunciar uma palavra sequer, continuou:
- Lembras-te também daquela carga contra os diabos vermelhos nas margens do Platte? ... Meu malandrão!... Quantas vezes, por causa das tuas maluqueiras, ia eu ficando
com o escalpe nas mãos desses coiotes!... Também é verdade que, por três vezes, se tu lá não estivesses, correria o risco de perder esta trunfa que ainda me admiras!
Para acentuar a afirmação, o desconhecido tirara o chapéu e passava a mão pela opulenta cabeleira. O rosto encaixilhava-se-lhe numa barba curta, que não disfarçava
uma grande cicatriz.
Buffalo Bill avistou Catamount discretamente a distância e fez-lhe sinal para que se aproximasse. Depois apresentou o visitante:
- Aqui tem o Slim Melville! Um velho amigo dos tempos heróicos.
O ranger apertou efusivamente a mão ao velho e este continuou logo a conversa com Cody:
- Assim que me disseram que vinhas com os teus saltimbancos para Atlanta, disse logo com os meus botões: O meu alma do diabo, vê se aproveitas esta ocasião para
tornar a ver o teu amigo Cody! Por isso, aqui me tens e, além disso, venho com uma proposta que talvez te consiga interessar.
- Uma proposta? - estranhou o empresário. Catamount quis mais uma vez afastar-se discretamente, mas Melville deitou-lhe a mão à manga do casaco, dizendo-lhe:
- Não se vá embora! Com certeza também lhe interessa o que quero dizer aqui ao Cody.
Slim Melville não esteve com mais delongas para entrar imediatamente no assunto, embora Cody, entretanto, o encaminhasse, mais a Catamount, para a carruagem.
- Imagina tu, Buffalo, que, desde a última vez em que nos vimos, fiz-me proprietário de uma importante fazenda, o "Rancho das Acácias". Fica a menos de quinze milhas
de Atlanta, na região de Stone Moutain.
- Stone Moutain? - interrompeu-o o Coronel. - Já ouvi falar dessa região. Não fica para as bandas do Monte Olaimi, numas terras de extrema desolação?
- Sem tirar nem pôr! - confirmou o lavrador. - Por lá pelas redondezas, aparece de tudo: muros em ruínas, cavernas onde por vezes se encontram corpos mumificados...
Além disso, "As Acácias" estendem-se numa superfície de respeito. Para oeste, vão até ao rio Chatahoochee, que pelo nome não perca!
Entretanto, os três homens chegaram à carruagem da empresa e, a convite do proprietário, Slim Merville e Catamount subiram os degraus de acesso à porta. Dali a dois
minutos, sentavam-se nos confortáveis cadeirões, enquanto o Coronel se instalava à secretária, diante do seu famoso retrato, que Rosa Bonheur pintara.
Depois, voltou-se para o velho amigo e perguntou-lhe:
- Que crias tu lá nesse teu rancho? Vacas de raça Hereford, aposto!
O fazendeiro esboçou um sorriso de desdém e protestou:
- Qual história! Não estás bom da cabeça! Quero lá alguma coisa com vacas!... O que criamos nas "Acácias" são cavalos e exactamente por isso é que quero conversar
contigo.
Buffalo Bill ofereceu charutos aos dois convidados e, ao mesmo tempo muito interessado, inquiriu do velho:
- Tu crias cavalos? Slim Melville deu uma cotovelada maliciosa em Catamount e, piscando-lhe o olho, motejou:
- O meu amigo está a ouvi-lo? Quando se fala de cavalos, aqui o velho Cody fica logo aos pulos! Deu sempre a vida por cavalos. E, pelo que vi nas cavalariças, continua
a perceber disso a fundo. Aliás, não podia ser de outra maneira, pois não faço ideia de como seria o Wild West com o pessoal montado em pilecas...
- Mas vamos ao que interessa! - atalhou Buffalo Bill, começando a impacientar-se com a incansável tagarelice do amigo. - Que proposta é afinal a tua?
- Tenho um cavalo preto, de lançamento, Cody - explicou Slim Melville. - Vi muito cavalo em toda a minha vida, mas nunca encontrei nenhum que se parecesse com aquele.
Por isso, quando li nos jornais que passarias por Atlanta, disse com os meus botões: O "Demónio" está mesmo a calhar para o Wild West. Porque pusemos-lhe o nome
de "Demónio"...
- Pelo nome, estou a ver que o bicho não é dos mais mansinhos... - observou logo o Coronel.
- Tão pouco manso-concordou o fazendeiro-, que até agora não apareceu por lá ninguém que conseguisse dominá-lo. O diabo do bicho já me estropiou três homens e inutilizou-me
o capataz para o resto da vida.
Buffalo Bill não deixou de exclamar, sorrindo: - E é esse lindo presente que está guardado para mim?... Muito obrigado, mas não tenho muita pressa em andar de muletas
ou num carrinho empurrado!
- Deixa-te de graças, Cody! - protestou Melville. - Sei muito bem que foste um dos melhores calções que conheci até hoje, mas nem tu nem eu estamos já em idade de
domar feras! O reumatismo já me começa a fazer das suas. O que a gente foi e o que a gente é! Mas, adiante! Tenho a plena certeza de que esse magnífico animal te
convém às mil maravilhas. "Demónio" nasceu para provocar a admiração dos mortais. Não poderás encontrar melhor em matéria de atracções, e o valente que conseguir
que esse cavalo lhe obedeça pode alinhar com os melhores campeões de rodeo. Estou pronto a desbarretar-me diante dele.
Tirou então umas fotografias da algibeira e apresentou-as a Buffalo Bill, insistindo:
- Mas olha-me para isto! Só se encontra uma vez na vida animal como este. Olha-me para essa garupa e para esse pescoço! Um portento, não é verdade?
Com uma careta, o empresário concordou: - Realmente... O teu "Demónio" é notável. Mas eu é que não contratei para o Wild West domadores de feras, mas apenas cavaleiros!
Mesmo que me interessasse pela aventura que me propões, não posso transformar a companhia num asilo de inválidos. Lartigo morreu em circunstâncias que ainda estão
por esclarecer. Ontem, "Grande Águia" partiu estúpidamente um tornozelo. Esse cavalo preto pode muito bem aumentar o número de baixas. Tivesse eu menos
vinte anos e não me ralaria com os outros. Mas, como disseste muito bem, já não nos parecemos com o que fomos dantes.
Apesar de o amigo se recusar, Slim Melville percebia muito bem que o caso o interessava. Catamount ouvia-os calado e com olhar pensativo. Expeliu para o tecto uma
leve fumaça azulada do charuto e recordou os tempos passados em que capturara o insubstituível "King". De repente, sentiu-se transportado vinte anos atrás. Viu-se
novamente a cavalgar a galope desfechado pela barranca fora, atrás do cavalo-fantasma!
- Não me venhas dizer - exclamou o rancheiro - que não tens na companhia ninguém capaz de impor a sua vontade ao "Demónio"!
Buffalo Bill abanou lentamente a cabeça e confessou:
- Para te falar com franqueza, não tenho! Os índios só se interessam pelos seus cayuses e, quanto aos cowboys, são hábeis calções, cavaleiros extraordinários, mas
mesmo assim sem que entre eles veja algum capaz de domar um bicho bravio.
- É pena... - lamentou Slim Melville. - Lembrei-me de ti quando os meus homens conseguiram meter o animal no corral. Demoras-te uns oito dias em Atlanta. Calculo
que darás um dia de feriado ao teu pessoal...
- Precisamente não damos espectáculo na segunda e na terça-feira.
- Portanto, que te impede de ir amanhã ou na terça-feira às "Acácias"? Tanto mais que me deves uma visita! Leva contigo quem quiseres. Verás então, com os teus olhos,
o valor do bicho. Seria lastimoso que deixasses fugir uma oportunidade destas! O "Demónio" irá parar às mãos de quem souber dominá-lo.
O coronel continuava a examinar as fotografias que tinha na frente, pois sorria-lhe deveras a proposta do amigo. Como grande amador de cavalos que era,
estava morto por conhecer o famoso e indómito "Demónio", mas não tinha outro remédio senão resignar-se.
- Lamento, meu velho - repetiu - , mas não vejo ninguém...
Slim Melville esboçou um gesto de aborrecimento e ia dizer mais qualquer coisa quando Catamount, até ali silencioso, se inclinou para a frente e, sacudindo levemente
com a cabeça do dedo a cinza do cigarro, proferiu:
- Se o Coronel não vê nisso inconveniente, posso sugerir-lhe uma pessoa...
Buffalo Bill virou-se, dando mostras da maior surpresa, e exclamou:
- By Jove, se você me arranja quem... - Desejo eu próprio experimentar esse cavalo - declarou o ranger, com a maior serenidade.
XI
SANDRA ENTRA EM ACÇÃO
De entrada a proposta de Catamount pareceu surpreender os dois velhos e Slim Melville chegou a estranhar:
- O quê, você acha-se capaz...? ! - Várias vezes domei broncos iguais a esse - atalhou o batedor. - É verdade que já lá vão alguns anos sobre isso, mas terei muito
prazer em fazer agora o gosto ao dedo.
A confiança demonstrada pelo homem dos olhos claros não desvaneceu por completo o espanto do fazendeiro, o qual se voltou para Buffalo Bill, calculando que decerto
Cody trataria logo de dissuadir Catamount. O Coronel, porém, limitou-se a dizer:
- Realmente, nada me espanta da parte de Catamount! Se ele se oferece para essa proeza é porque se considera completamente à altura dela!
- Pois muito bem - declarou Melville, inclinando-se para o ranger, - se conseguir sujeitar o "Demónio", ele será seu! Tão certo como me chamar Slim Melville! Caso
contrário, não assumo qualquer responsabilidade se o animal o deixar aleijado para o resto da vida. Também o meu capataz se gabava de que conseguiria tornar o bicho
tão manso como um cordeiro e aprendeu à sua custa!
- Aceito as suas condições, Mr. Melville, - declarou
francamente Catamount, estendendo espontâneamente a mão enorme ao rancheiro, o qual imediatamente e efusivamente lha apertou.
Contudo;, na fisionomia subsistia-lhe ainda uma expressão de absoluto cepticismo acerca das possibilidades de êxito do seu excessivamente temerário interlocutor.
Buffalo Bill disse então: - Visto que só amanhã te poderemos acompanhar, esta noite assistirás ao nosso espectáculo e dormirás aqui. Colocarei ao teu dispor um compartimento
da carruagem-salão.
- O. K. ! - aceitou logo o ranchman. - Nas "Acácias", que me esperem, se quiserem, pois não é todos os dias que se nos depara a sorte de encontrar um velho amigo!
- E a tua mulher?-lembrou o Coronel.-Porque calculo que sejas casado...
- Casado, eu? ! - exclamou Slim Melville, a rir. - Estás a brincar, com certeza! Talvez lá mais para diante, vá nisso, mas por enquanto prezo de mais a minha liberdade
para me prender dessa maneira! Por ora, ainda não vi necessidade de embarcar uma mulher cá na minha vida.
A conversa animou-se ainda mais, pois Buffalo Bill tocou para que o boy lhes levasse bebidas e só mais tarde desceram do carro. O rancheiro não cessava de manifestar
a sua admiração ante a organização modelar do Wild West.
- Já me tinham dito que tudo isto estava magnífico - disse - , mas nunca imaginei que fosse a tal ponto!
No espectáculo da noite, Melville sentava-se na primeira fila e, depois de cada número, não poupava palmas aos artistas. O entusiasmo, porém, transformou-se em verdadeiro
delírio quando Sandra entrou na arena. Empalideceu enquanto a rapariga servia de alvo aos cossacos, mas, quando a viu sair ilesa do seu
lugar, levantou-se, soltando estrondosos hurrahs, que a jovem, sorridente como nunca, agradeceu com modéstia.
Logo que anunciaram o intervalo, o fazendeiro levantou-se ràpidamente do lugar e correu à procura de Buffalo Bill, que encontrou nas cavalariças.
- Cody! - gritou-lhe. - Tens, custe o que custar, de me apresentar àquela mulher!
Dali a cinco minutos, precedido do Coronel, o excelente homem irrompia pelo camarim reservado para Sandra e seus cossacos. Os cavaleiros de Kuban pareceram um tanto
espantados pela maneira como Melville foi ao encontro da sua compatriota, a qual, envolta num elegante roupão, saía do acanhado compartimento que lhe destinavam,
sempre com o cigarro de ponta dourada entre os lábios.
- Nunca, em toda a minha vida - afirmou o ranchncan - , assisti a número mais sensacional. E não é por não ter visto Barnum, quando passou por Atlanta, já lá vão
uns bons pares de anos.
- É excessivamente indulgente, cavalheiro!-agradeceu Sandra, sorrindo, para disfarçar a grande vontade de rir que lhe causava o entusiasmo do velhote.
A pouca distância, os cossacos voltavam as caras para disfarçarem a troça, mas Slim Melville não reparou, pois dirigiu-se a Cody, apontando para a jovem:
- Custe o que custar, tens que a levar às "Acácias". Terei muita honra em recebê-la lá no rancho.
Enquanto a jovem o observava numa expressão indefinível, o fazendeiro insistiu, arrebatado:
- Será muito bem recebida lá em casa, garanto-lhe. Já convidei o Cody a lá ir ao rancho. Terei muita satisfação em lhe fazer as honras das "Acácias"!
- Mas com todo o gosto! - afirmou a russa. - Nunca vi um rancho e já ando há algum tempo pela América! Contudo, só poderei aceitar se...
- Aceito todas as suas condições - atalhou imediatamente Slim Melville.
- É que nunca saio sem me fazer acompanhar de dois fiéis companheiros...
Virou-se então para os dois cossacos que esperavam ao fundo da barraca e dirigiu-lhes algumas palavras em russo. Os dois aproximaram-se e logo os apresentou ao ranchman:
- Igor e Wassili. Os apresentados inclinaram ao de leve a cabeça e Melville reconheceu neles dois dos cossacos que pouco antes atiravam punhais, com Sandra a servir-lhes
de alvo. O fazendeiro estendeu-lhes logo a mão, asseverando:
- Serão também bem-vindos nas "Acácias"! Igor e Wassili não lhe responderam, mas a rapariga tratou imediatamente de lhes traduzir as palavras do americano. Os dois
russos inclinaram-se de novo. Sandra declarou:
- Os meus amigos agradecem-lhe penhoradíssimos e aceitam acompanhar-me.
Não obstante, imóveis ao lado um do outro, os dois cossacos mantinham-se impassíveis. No conjunto, apresentavam surpreendente contraste: Igor era um autêntico colosso
louro, de rosto imberbe, olhos azuis, tipo muito característico de eslavo. Pelo contrário, Wassili era baixo e magro, um delgado bigode escuro ensombrava-lhe o lábio
e, debaixo do boné de astracã, viam-se-lhe os cabelos negros de jaspe e, por vezes, uma expressão sombria acendia clarões assustadores sob as sobrancelhas espessas.
Ouviu-se de novo a campainha e Slim Melville teve que, contrariado, voltar para o seu lugar. Todavia, as olhadelas que amiúde deitava para a cortina que fechava
a entrada da pista demonstravam a profunda impressão exercida sobre ele por Sandra.
Novamente o Wild West exibiu as suas maravilhas aos olhos deliciados de milhares de espectadores. Em Atlanta, como aliás por toda a parte, afirmava-se, completo
e entusiástico, o triunfo. Slim Melville,
que acalmara um pouco, tornou a arrebatar-se quando a diligência de Overland enfiou pela arena. Logo que avistou Sandra sorrindo à janela do veículo, acenou-lhe
vigorosamente com o chapéu.
Do seu lugar, Catamount também notou o entusiasmo com que o velho amigo de Buffalo Bill ovacionava a rapariga, e detrás dele, e em parte oculto pela bagagem, Bollobobum
multiplicava as contorções e as caretas, com imenso gáudio de grandes e pequenos.
Terminada a apoteose final, Slim Melville tratou logo de se dirigir para junto de Cody, felicitando-o:
- Muitos parabéns! Tens um programa absolutamente excepcional! Mas, quanto a mim, Sandra ultrapassa todos os outros!
O bom do homem pareceu não reparar no sorriso irónico que aflorou aos lábios do seu antigo companheiro e continuou:
- Que destemida mulher aquela! E que sangue-frio quando os punhais se espetam à sua roda! God Almighty! Pois eu tremia como varas verdes! Embora saibas muito bem
que não sou fácil de impressionar!...
Enquanto seguia com o fazendeiro para o seu próprio carro, onde aquele passaria a noite, Buffalo Bill observou-lhe, porém:
- Já te sabia valente, meu velho, mas ignorava que fosses também tão inflamável! Sobretudo depois do elogio que ainda há bocado me fizeste da vida de solteiro...
Cinco minutos depois, confortàvelmente sentados no gabinete da direcção, os dois amigos prestavam honra a uns grogues bem quentes, que Cody lhes mandara servir,
enquanto o convidado se multiplicava em elogios à linda russa e procurava colher a maior soma possível de informações a seu respeito.
O Coronel fazia o mais que podia para o satisfazer, mas não deixou de objectar:
- Concordo que Sandra é uma mulher excepcional, mas acho nela um não sei quê de esquisito...
- E que vem a ser? - Apenas que nunca se sabe quais as suas ideias. Além disso, é de raça diferente da nossa. Bem o tenho verificado quando a comparo, mais os seus
cossacos, com todos os demais da companhia.
- Sabe-se lá alguma vez quais as ideias de uma mulher, venha ela de onde vier!... - replicou Slim Melville, sorrindo-se. - Não podes negar que esta é encantadora.
E tem um destes sorrisos!...
- Sem dúvida é encantadora, mas conheci outras que não lhe ficavam atrás e nas quais eu sabia que podia depositar confiança.
"O Rei dos Escuteiros" ficou pensativo, com uma expressão melancólica no semblante, como se recordasse factos ocorridos muitos anos atrás.
- Conheceste, tão bem como eu, a Jane Calamity... Acabou de maneira desastrosa, mas era mulher com quem se podia contar! Salvou-me a vida e, em valentia, dava cartas
a muitos homens! E a Annie Oakley! Durante muito tempo foi a estrela mais aplaudida do Wild West... Não conheci mulher que soubesse servir-se melhor da espingarda.
Mas nem por isso deixava de ser mulher.
"Sandra, porém, - continuou o Coronel, esboçando um gesto de incerteza- é uma esfinge! Sempre que a vejo, ondulante e felina como uma pantera, não posso deixar de
sentir indefinível mal-estar. Não, não é uma mulher como as outras. Até me admiro de como um macaco pelado como tu se deixa perturbar como um menino de liceu. Acredita-me:
estes russos não são gente em quem se possa ter confiança, sobretudo se nos lembrarmos de que os acólitos dessa menina não parecem bons de assoar!
- Estou-me nas tintas para os acólitos! Terei muita satisfação em recebê-la nas "Acácias". Vais ver como ela se vai sentir bem lá no rancho! Se a achas esquisita
é apenas porque nunca a viste senão no ambiente
deste teu Wild West. Aqui tudo é apenas artifício e fachada.
O arrebatamento com que Slim Melville defendia a sua causa provava bem até que ponto ficara pelo beicinho. Por isso, o amigo comentou:
- Mas que entusiasmo! Estou a ver que imaginas Sandra, já como tua esposa, a dirigir a casa das "Acácias"!
O rancheiro ficou um tanto envergonhado, mas ripostou logo:
- Antes a queria a ela do que a qualquer outra. Bem sei que há a diferença de idades... mas sou rico!
- Pois eu continuo a achar mais importante a diferença de raças do que a existente entre ricos e pobres. Para mais, Sandra é de feitio principalmente nómada. Não
a julgo capaz de se aclimatar ao ambiente de um rancho, por mais amplo e rico que ele seja.
Ao ver, porém, o beicinho que o amigo fazia, Buffalo Bill apressou-se a acrescentar:
- Aliás, ignoro por completo qual a vida particular de Sandra. É assunto em que os meus contratados gozam de plena liberdade e no interior do qual nunca pretendo
penetrar, contentando-me com que cumpram as condições do contrato mutuamente acordadas. Se me aceitas um bom conselho, sugiro-te que desistas de tão extravagante
projecto. Porque, se teimares nele, muito receio que não tardes a arrepender-te e a expor-te a severa decepção!
Embora judiciosas, as objecções de Cody não pareceram convencer de modo algum o rancheiro. Não lhe saía da ideia a perturbante figura de Sandra. Parecia ainda vê-la
toda risonha. Na verdade, o espectáculo do Wild West ficara a assinalar-lhe uma data na sua existência, Slim Melville esquecia-se de tudo o mais, dos interesses
que sempre tão ciosamente defendera, das ideias que formava da vida, da sua preferência pelo celibato, só para pensar na formosa
artista que o velho amigo lhe apresentara e que parecia abrir-lhe risonhas perspectivas para o futuro.
Cody, para pôr ponto final numa conversa que ameaçava prolongar-se ainda por muito tempo, disse então:
- Já não é nada cedo! Não sei se tens sono ou não, mas a mim está-me a apetecer cama. Os meus homens já se encarregaram do teu cavalo, de maneira que não tens mais
nada a fazer senão ir deitar-te no divã que te armei na minha carruagem-salão.
Slim Melville não insistiu mais. Cody pôs-se em pé e ele imitou-o. Dali a dois minutos, passava para o acanhado mas aconchegado quartinho que o seu velho amigo lhe
preparara. Ao despedir-se, Buffalo Bill desejou-lhe:
- Faço votos para que passes bem a noite. Amanhã estaremos frescos e bem dispostos para seguirmos para as "Acácias".
O rancheiro pouco dormiu naquelas horas mais próximas. Sem dúvida achou excelente a cama, mas tinha o espírito febrilmente transtornado com a recordação da formosura
de Sandra. Atirara para trás das costas com todas as prevenções de Cody e só pensava em delinear risonhos planos para o futuro. Talvez Sandra se deixasse convencer
e, graças à visita às "Acácias", compreendesse que uma vida desafogada e segura demonstrava-se cem vezes preferível a essa existência vagabunda e incerta que levava
com os companheiros.
Transbordando de entusiasmo pela rapariga, Slim Melville dava livre curso à imaginação. Já via a russa a reinar no rancho, como ama e senhora! Poucos instantes bastaram
para que, ante a aparição da artista sob os focos dos projectores, ele perdesse de todo o sono! Mas os obstáculos que o seu velho amigo lhe apresentara, longe de
o desanimarem, ainda mais pareciam encorajá-lo a enveredar por aquele caminho incerto, bem diferente do que ele costumava percorrer.
Logo que amanheceu, o rancheiro saltou da cama e, vestido e barbeado de fresco, postou-se em frente do espelho, onde, com maior cuidado do que habitualmente, compôs
o nó da gravata. Depois, foi à procura de Buffalo Bill, a quem apareceu todo risonho. O Coronel motejou:
- Espero que não sonhasses em demasia com a perturbadora Sandra!
- É uma mulher excepcional! - exclamou Slim Melville, mais entusiasmado do que nunca. - Ainda bem que ela nos acompanha!... Quando abalamos?
Por sua vontade, deixariam Atlanta logo ao romper da manhã, mas Buffalo Bill tinha ainda algumas ordens a deixar aos ajudantes, para o espaço de tempo em que estaria
ausente. Enquanto se encaminhava para as cavalariças, Slim fazia quarto de sentinela junto do carro onde Sandra dormia mais os seus cossacos.
- Hello, Mr. Melville - interpelou-o, nesse momento, uma voz..- Dormiu bem?
- By Jove! É o domador de broncos! - exclamou então o rancheiro ao reconhecer Catamount.
O homem dos olhos claros aproximou-se, com um leve sorriso nos lábios. Havia momentos que observava a impaciência manifestada pelo velho amigo de Buffalo Bill. Aquele,
para não enveredar por conversa que não lhe convinha, preferiu perguntar:
- Continua disposto a montar o "Demónio"? - Mais do que nunca! De repente, abriu-se a porta do carro e a aparição de Sandra interrompeu o diálogo dos dois homens.
Catamount afastou-se logo apressadamente para o estábulo, onde "Mesquita" o esperava.
Mal reconheceu o dono, o alazão soltou um alegre relincho. Aquele passou-lhe a mão pela crina e disse-lhe, como se o fiel animal o percebesse:
- Vamos, alegra-te! Voltamos um pouco para o ambiente nosso preferido, meu velho companheiro!
Será a vantajosa indemnização de todos esses cortejos e exibições espalhafatosas.
O homem dos olhos claros ficara, contudo, a pensar se não se teria arriscado de mais com a proposta que dirigira a Melville. Porque, no fim de contas, aquela visita
às "Acácias" quadrava muito pouco com a missão de que Morley o incumbira. Já que pretendia encontrar o assassino de Lartigo, esse malandrim que tentara desembaraçar-se
dele, não valeria mais ficar em Atlanta, à sombra do circo do Wild West? Quem lhe garantia que, ao afastar-se para o rancho de Melville, o criminoso não aproveitaria
a oportunidade para fugir?
Contudo, a subjugação do "Demónio" tentava-o. Não era a primeira vez que praticava daquelas proezas. Melville proporcionara-lhe o ensejo para não se esquecer desse
trabalho e desejava demonstrar ao dono das "Acácias" e aos seus copunchers que conservava a plena forma de um destemido cavaleiro.
Via agora, da entrada da cavalariça cuja lona ficara amplamente afastada, Slim Melville ao lado de Sandra. A jovem russa parecia, naquela manhã, mais risonha do
que nunca e bastante sensível às amabilidades do velho. Catamount observava-os, divertido.
Melville parecia esquecido por completo da presença do pessoal de Buffalo Bill e discursava, esboçando largos gestos, a gabar -a quantidade e qualidade dos seus
cavalos e insistindo na importância que a sua exploração imprimia a todas aquelas terras.
Catamount não deixou de sorrir, de tal modo o bom do homem se mostrava ridículo, lembrando um pavão a arredondar a cauda. Sandra trajava de amazona e parecia encorajá-lo
a falar e, por vezes, batia nervosamente, nas botas de cabedal vermelho, com a chibata, que agitava na mão delicada e de longos dedos fusiformes. Na expressão do
seu olhar, subsistia sempre a mesma sombra enigmática. Porém, aquela
endureceu de súbito ao voltar-se de repente e ao avistar Catamount, imóvel ao lado do alazão.
Contudo, logo recuperou o sangue-frio, soltou uma gargalhada e deixou com isso Melville radiante. Talvez ele se mostrasse menos satisfeito se reparasse que, não
longe dali, imóveis e calados, Igor e Wassili o observavam com uma insistência que talvez achasse estranha.
Também Catamount, de onde estava, não via os dois cossacos. Depois, apareceu alguém ao lado dele e que lhe puxou pela manga do casaco.
Voltou-se admirado e viu que era Bollobobum, que entrara silenciosamente no abrigo de lona. Com aspecto bastante preocupado, antes de o batedor lhe poder dirigir
qualquer palavra, endireitou-se, levou um dedo aos lábios e cochichou-lhe:
- Tenha cautela!
XII
"O RANCHO DAS ACÁCIAS"
Catamount ia perguntar ao anão o motivo daquele aviso, quando aquele se afastou, fingindo não lhe prestar a menor atenção. Além disso, apareceu também Ned para levar
"Charlie",, o cavalo de Buffalo Bill.
O cowpuncher comentou: - Está um dia lindo. Vocês vão-se divertir, enquanto a gente fica para aqui com esta trabalheira das cavalariças!
Queria conversar ainda mais, mas o homem dos olhos claros não desejava perder tempo com tagarelices e limitou-se a dar-lhe uma resposta distraída. Não lhe saíam
da ideia as duas palavras de prevenção proferidas por Bollobobum, e perguntava a si próprio que imperiosos motivos levariam o anão a ir ali preveni-lo.
Catamount, porém, não era daquelas pessoas que por pouca coisa se impressionam, embora os estranhos incidentes ocorridos desde que andava com a companhia do Wild
West o convencessem realmente de que, da sombra, o espiava um inimigo misterioso e temível, à espera da ocasião favorável para se desembaraçar dele. Por isso, estava
mais do que nunca disposto a conservar-se em guarda.
Mesmo assim, lamentou não poder conversar melhor com Bollobobum. Era mais do que certo que o anão surpreendera qualquer coisa, qualquer conversa que o fizera desconfiar de alguém. Sem dúvida descobrira que preparavam novo atentado contra Catamount. Mas
o anão já se sumira e Buffalo Bill apressava-se a reunir o reduzido grupo que seguiria para as "Acácias".
Slim Melville não cabia em si de contente, girando de um lado para o outro junto do seu cavalo baio e respondendo a Cody apenas por meias palavras. Igor e Wassilli,
já prontos para a viagem, esperavam a pouca distância, cada um segurando o seu cavalo pela rédea.
Catamount reuniu-se imediatamente aos quatro homens. Só Sandra parecia com pouca pressa, mas apareceu por fim trazendo "Volga", irrequieta como nunca. Slim Melville
correu logo ao encontro da russa.
Numa galante mesura, disse: - Espero que se encontre em boa forma para acompanhar a sua cavalgada...
- Uma cavalgada que percorrerá umas vinte milhas não é coisa que me amedronte - declarou a jovem, estendendo ao rancheiro a mão enluvada. - Aliás, o passeio vem
muito a propósito. Mudaremos de ambiente, durante algumas horas, pois, se a vida de circo oferece certo atractivo, acaba também por se tornar monótona.
Voltou-se depois para Buffalo Bill e para Catamount, à espera ao lado um do outro e, com um sorriso deslumbrante, afirmou: - Evidentemente não digo isto referindo-me
aos senhores! Por sinal, muito folgo em tê-los agora por companheiros.
Galanteador como nunca, o fazendeiro correu logo a ajudar Sandra a pôr o pé no estribo, o que fez com que Cody deitasse, de relance, a Catamount uma olhadela maliciosa.
Os modos de Slim Melville, parecendo incapaz de conter o entusiasmo; a expressão encantada do seu rosto; a tremura que lhe agitava os dedos
quando apertava a mão enluvada da rapariga, tudo isto divertia imenso o empresário, tanto mais que sempre considerara o seu velho amigo o mais rebelde possível pelo
belo sexo.
Era impossível adivinhar-se nos semblantes impassíveis de Igor e de Wassili, sempre imóveis e afastados, que impressão lhes causavam os requebros do fazendeiro.
Quando por fim Sandra, naquela manhã de casaco e calções de montar, se instalou na sela, voltou-se para os dois cossacos e, assim que lhes fez com a mão um sinal,
eles imediatamente saltaram para os seus cavalos.
Slim Melville poisou, por sua vez, o pé no estribo e, dali a momentos, já se encontrava à direita da russa. Deu um estalido com a língua e logo se adiantou com a
rapariga ao lado, seguindo-os imediatamente Buffalo Bill e Catamount, cavalgando também junto um do outro e com Igor e Wassili fechando o cortejo.
índios e vaqueiros do Wild West, em grupos dos dois lados da estrada, assistiram à partida do pequeno grupo. Na primeira fila da assistência, o batedor avistou Bollobobum,
mas, por mais que lhe procurasse descobrir no semblante qualquer expressão particular, nada percebeu. O homenzito mantinha-se imperturbável.
Dali a pouco, os seis cavaleiros deixavam o acampamento circense e enfiavam deliberadamente por uma das grandes ruas de Atlanta, sem que a sua passagem deixasse
de provocar certa sensação. Os transeuntes paravam nos passeios e apontavam, interessados, para o famoso Buffalo Bill. Os pretos não eram dos menos entusiastas.
Cody, porém, muito solene, agradecia-lhes de vez em quando com um cumprimento ou um aceno.
Um chorrilho de crianças negras acompanhava o grupo, mas, dali a pouco, Slim Melville franzia as sobrancelhas e resmungava:
- Para que quer a gente esta guarda de honra
de miudagem,? Espero que não os teremos como escolta até às "Acácias" !.. .
- Os pequenos são engraçados - objectou Sandra. - Temos de os desculpar. Pela parte que me toca, não tenho preconceitos de ordem racial.
A rapariga fazia toda a diligência por acalmar o ranchman, cada vez mais irritado com os pretitos, mas, assim que ultrapassaram os arrabaldes industriais de Atlanta,
os cavalos aceleraram o passo, o trânsito apareceu-lhes menos movimentado e os últimos curiosos dispersaram.
- Livra, já não era sem tempo! - exclamou Slim Melville.
Agora, de um lado e outro da estrada, as fábricas tornavam-se cada vez mais raras, para darem lugar a quintas e a herdades. Ao longe percebiam-se já alguns cerros,
recortando-se no céu, por onde lentamente deslizavam nuvenzinhas como algodão.
O criador de cavalos explicou: - É a Stone Mountain. Região bastante estapafúrdia, onde a cada passo se descobrem coisas bastante surpreendentes. Toda aquela serra
está crivada de cavernas e esconderijos. Pela certa, em tempos que já lá vão, os povos que viviam para estas bandas tinham por costume enterrar os seus mortos nos
flancos daquelas penedias. Não há mês nenhum em que não se encontrem por ali sarcófagos e corpos mumificados.
- Ora aí está uma vizinhança que não tem nada de alegre! - chasqueou a rapariga.
- Lá isso é verdade! Por sinal, dantes, os peles-vermelhas fugiam a sete pés cá destes sítios e chamavam àquelas serras as Montanhas da Superstição. Os meus cowpunchers
parecem imitá-los nesse sentido e raras vezes se aventuram para aqueles lados. Para isso, é preciso que as circunstâncias ou a caça a cavalos tresmalhados a isso
os obriguem.
Esta soma de esclarecimentos pareceu despertar a curiosidade de Sandra, que disse:
- Já eu não sou como os seus cowpunchers, Mr. Melville! Confesso que tudo que me acaba de contar me interessou vivamente. Se dispuséssemos de tempo, muito gostaria
de ver mais de perto a Stone Mountain.
Se isso lhe causa prazer, fico inteiramente ao seu dispor para a levar lá - afirmou o fazendeiro, mais entusiasmado do que nunca. - Se quiser visitar uma daquelas
grutas...
- Visitá-la-ei sem hesitação! - afirmou a formosa russa. - Garanto-lhe que não recearei de maneira nenhuma que os espíritos maus me ataquem ou atormentem!
Catamount parecia muito mais reservado do que Slim Melville e só uma vez por outra dizia qualquer coisa a Cody, sempre cavalgando à sua beira e ambos muito mais
interessados em admirar a paisagem que os rodeava. De vez em quando, cruzavam-se com bandos de negros a trabalharem nos campos. Não era o ambiente habitual da Pradaria,
que o ranger conhecia por constantemente a percorrer nas férteis planuras de Pecos ou de Brazos. As fazendas não se sucediam, como ali, a perder de vista e apenas
separadas umas das outras por vedações de arame farpado, pois aqui eram mais numerosas as casas, e a presença frequente de negros recordava que se encontravam nos
Estados do Sul.
Enquanto trotava, Catamount ia pensando que toda aquela região fora o campo das batalhas e dos encarniçados combates da Guerra da Secessão. Ali, Nordistas e Sulistas
enfrentaram-se em lutas sem tréguas e, por vezes, aqui e ali, subsistiam ainda vestígios das hostilidades quando avistavam uma casa de ruínas enegrecidas, invadida
por ervas bravas. Nunca mais se lembraram de reconstruir o prédio, embora, logo a seguir, voltassem a encontrar, por toda a parte, edifícios claros, amplas residências
no estilo colonial, marcando, com as suas manchas brancas, um sinal
de vida na verdura do arvoredo e das moitas de acácias.
Igor e Wassili continuavam trotando atrás de todos e várias vezes Catamount se voltou na sela para verificar se continuavam a segui-los. Lá iam indiferentes, numa
imobilidade de estátuas, sem ligarem a menor atenção ao panorama.
À cabeça do pequeno grupo, Slim Melville continuava a prodigalizar explicações à linda companheira, a qual o escutava acenando com a cabeça e agradecendo-lhe de
vez em quando com um provocador sorriso, O fazendeiro parecia sempre transportado de arrebatamento, sem ligar a menor atenção aos restantes companheiros e agora
todo entregue a relatar como se fixara naquelas terras.
- Olhe! - exclamou de repente. - Estamos quase a chegar aos limites das "Acácias"!
Os seis cavaleiros, depois de contornarem uma verdejante colina, subiram a passo nova ladeira e alcançaram finalmente o alto do monte, de onde então contemplaram
paisagem muito diferente da que haviam percorrido desde a saída de Atlanta.
Stone Mountain desenhava agora a sua impressionante massa de encostas riscadas pelas chuvas e pelos anos, onde apenas, num ponto ou noutro, se agarravam pobres tufos
de acácias. Para aquele lado, e o mais longe que a vista conseguia alcançar, não se avistava o mais leve vestígio de casas, nem sombra de fumo subia no céu azul.
Apenas, para lá dos píncaros do monte, a uma dúzia de milhas para a esquerda, se contorcia uma fita prateada, luzindo ao sol.
- É o rio Chattahoochee - explicou o fazendeiro. Depois, empertigando-se nos estribos, apontou, com a mão cabeluda, para a extensão de terras que se alargava agora
a perder de vista, e declarou:
- Tudo isto faz parte das "Acácias"! A seguir, majestosamente, apontou à direita para uma imensa e verdejante pradaria, abundantemente
irrigada. Aqui e além, pastavam rebanhos e, a menos de três milhas, uma série de edifícios desenhava rectângulos claros sobre o fundo verde-escuro da planície.
-É acolá o meu rancho - disse para Sandra. O grupo parara durante alguns minutos. A jovem russa analisava demoradamente o panorama que se espraiava a seus pés. Slim
Melville parecia encantado por lhe fazer as honras da sua propriedade.
Coube a Buffalo Bill quebrar o silêncio, que ameaçava prolongar-se, ao proferir:
- Dou-te os meus cumprimentos. Compreendo que te instalasses nesta região, que parece, ao mesmo tempo, fértil e agradável.
- óptimo covil para um urso velho e abrutado - chasqueou o fazendeiro.
Tal declaração provocou, com grande contentamento dele, um vigoroso protesto da sua vizinha:
- Urso velho e abrutado? ... Que exagero, Mr. Melville!
- Ai, não, não sou! - insistiu o ranchman. - Sei muito bem o que digo! Que outra coisa se espera de um diabo, como eu, que vive para aqui sòzinho? Que se transforme
num brutamontes, é o que é! Se ao menos tivesse aqui um sorriso de mulher para me alegrar a
existência!...
-Contudo - objectou a amazona, mal sustendo um sorriso - , o senhor sentiu-se muito bem neste isolamento durante estes anos todos em que tem vivido nas "Acácias"...
- Pode ser que assim fosse, mas só porque ainda não encontrara a menina...
Levando por diante a ideia que tinha fisgada, e sem reparar no sorriso trocista da formosa eslava, Slim Melville continuou, cada vez mais arrebatado:
- Imagine a riqueza que todas estas terras representam! Aquela que aceitasse o meu nome tornar-se-ia verdadeiramente a rainha destas terras. E eu seria
o escravo dos seus menores caprichos. Tudo isto lhe pertenceria!
Catamount e Buffalo Bill ouviram as últimas palavras e trocaram entre si um sorriso divertido, Não lhes restava a menor dúvida de que o fazendeiro estava mesmo
pelo beicinho. Continuava tão galanteador como um moço galã e mostrava-se completamente transtornado com o encontro com Sandra. Os únicos a presenciarem desinteressadamente
a cena eram Igor e Wassili, sempre impassíveis e mantendo a mesma reserva com que iniciaram a viagem.
Finalmente, o pequeno grupo pôs-se de novo a caminho e, dali a pouco, alcançava a vedação de arame farpado que marcava a fronteira das "Acácias". Uma cancela fechada
a meio do atalho fez com que Slim Melville saltasse logo para o chão para a ir apressadamente abrir e, de seguida, num gesto largo, apontou para a entrada dos seus
domínios e proferiu, solene:
- Sede bem-vindos! Um caminho bem tratado conduzia agora até o rancho, e Catamount, desde esse instante, convenceu-se de que efectivamente a propriedade de Slim
Melville podia rivalizar com as melhores que o ranger conhecera no Texas. As pastagens irrigavam-se cuidadosamente por meio de pequenos riachos e manadas de cavalos
pastavam a erva abundante, vigiados por cowpunchers montados em pequenos e nervosos corcéis.
Quando passava, o fazendeiro dizia adeus aos trabalhadores, que se apressavam a corresponder-lhe, acenando com os braços. Contudo, sem se deterem, os seis cavaleiros
instigaram as montadas, aproximando-se mais ràpidamente da residência de Slim Melville. Alinhadas agora em intervalos regulares, as enormes acácias ofereciam aos
recém-chegados uma sombra acolhedora, tanto mais que o Sol subia naquele momento no horizonte e o calor era de rachar.
O proprietário apontou para aquelas árvores e disse:
- Por causa daquelas acácias é que o rancho tem esse nome. Mas já cá estamos!
Adiantando-se aos convidados, Slim Melville foi desembocar num amplo pátio, a cuja direita, numa cavalariça de grandes proporções, se agitavam uns vinte cavalos.
Mais adiante, percebiam-se armazéns, uma forja, o bunkhouse, etc.
Mas o que principalmente despertou a atenção de Catamount e dos companheiros foi a residência, própriamente dita. De estilo colonial, a fachada muito branca ocultava-se
em parte com uma trepadeira briónia. No terraço, esperava-os um negro.
Slim Melville apontou-o, esclarecendo: - Aquele é o meu fiel Agamennon e que trata de tudo cá na casa.
O preto acorreu logo ao seu encontro enquanto os seis cavalos paravam a pouca distância das cavalariças. Slim Melville foi o primeiro a saltar da sela e, depois,
com as mesmas atenções de quando da partida, estendeu a mão à vizinha para a ajudar a desmontar. Aquela passeou uma olhadela atenta por ali de roda e declarou:
- Tem uma propriedade muito bonita. Lisonjeado, o dono da casa ia a responder qualquer coisa, mas da forja ali próxima apareceu um homem. Tratava-se de um mocetão
alto, de rosto enquadrado numa opulenta barba preta e que se aproximou, arrastando muito a perna direita. Trazia as mãos nas algibeiras, o semblante carrancudo sob
um chapelão de abas largas e de que as intempéries tinham comido toda a cor. De sobrancelhas franzidas, parecia pouco disposto a receber os recém-chegados. Slim
Melville, porém, chamou-o com a mão e o sujeito apressou o passo, sempre a coxear, e aproximou-se do patrão, o qual o indicou aos convidados:
- Apresento-lhes Seth Hartigan, o meu capataz. O mesmo de quem lhes falei em Atlanta e que não ficou com saudades do "Demónio".
- Diabos levem essa maldita cavalgadura! - resmungou surdamente o coxo. - Aleijou-me para o resto da vida!
- O que não impede que haja ainda quem goste de o desafiar... - insinuou o ranchman, que, apontando para Catamount, completou a frase - ... pois está aqui um concorrente
disposto a trazer o "Demónio" ao bom caminho.
Seth Hartigan não reteve uma gargalhada e chasqueou:
- Se este cavalheiro está muito empenhado em andar de muletas, que lhe faça muito bom proveito! Em todo o caso, se quiser ouvir um bom conselho, o melhor que deve
fazer é dar meia-volta o mais depressa possível! Nem sabe em que camisa de onze varas se quer meter! "Demónio" não é um animal como outro qualquer; é o diabo mesmo!
O batedor não pareceu de modo nenhum impressionado com as palavras que o capataz lhe dirigiu., pois redarguiu-lhe na mais serena das inflexões:
- Isso é o que ainda havemos de ver. Não costumo assustar-me antes de tempo. Além disso, os cavalos são de índole algo desorientadora e é bom primeiro que os saibamos
compreender.
Seth Hartigan fez uma careta, pois as palavras de Catamount pareceram melindrá-lo fortemente. De modo que, com azedume, comentou:
- Isso ou dizer que não percebo nada do meu ofício é uma e a mesma coisa. Pois fique sabendo que antes de me empregar nas "Acácias" caçava cavalos selvagens. Domei
centenas de broncos. E desafio qualquer "pipi" a que me venha dar lições!
De punhos ferozmente crispados, o capataz exprimia-se no mais ameaçador dos tons, dominando Catamount com a sua alta estatura. Mas esses modos hostis não pareceram
intimidar de maneira nenhuma o homem dos olhos claros, que se limitou a sorrir e a comentar:
- Que se ganha em perder tempo com palavras
e mais nada? O "Demónio" vai ser o primeiro a verificar se é com um "pipi" ou não que se medirá. Antes disso, julgo desnecessário armarmos discussões que para nada
servem.
Slim Melville ordenou a Seth Hartigan que se calasse, pois este ia a replicar mais qualquer coisa. Em compensação, Agamennon, tão amável quanto o capataz era irascível
e provocador, desfazia-se em atenções com as visitas do patrão, que lhe determinou:
- Colocarás ao dispor desta menina o quarto mais bonito do rancho. E trata de lhe levares tudo quanto ela te pedir!
O velho afastou-se para que Sandra lhe passasse à frente e logo a acompanhou ao interior do prédio. Antes, a russa voltou-se para os dois cossacos, naquele momento
a apearem-se, e ordenou-lhes:
- Tratem vocês da "Volga". Igor e Wassili acenaram imediatamente com a cabeça, enquanto Seth Hartigan tratava logo de levar o cavalo baio. Buffalo Bill e Catamount
começaram a desaparelhar as suas montadas, O primeiro comentou para o ranger:
- Aquele capataz não é nada amável! Está-me a parecer que o melhor é você não o perder de vista, pois é muito capaz de lhe pregar partida grossa...
O batedor encolheu despreocupadamente os ombros e, dali a três minutos, os dois companheiros entravam por sua vez na moradia aonde Slim Melville já conduzira Sandra.
XIII
Cossacos e COWPUNCHERS"
Era ampla e luxuosa a residência de Slim Melville. Entre outras dependências possuía um espaçoso vestíbulo, onde o ranchman expusera numerosos troféus de caça. Cabeças
de bisões alternavam-se com peles de urso, de pumas e de jaguares, e panóplias de exóticas armas enfeitavam as paredes.
O velho amigo de Buffalo Bill quis logo que os convidados visitassem a casa toda, parando volta e meia para explicar a Sandra, atrás da qual andava sempre como uma
sombra, as circunstâncias em que abatera este ou aquele animal.
O sobrado luzia de cera, pois Agamennon porfiava ciosamente em que todas as divisões andassem irrepreensivelmente limpas. Porém, naquela casa, faltava ainda qualquer
coisa. Logo no primeiro relance, reconhecia-se a ausência de uma mulher.
- Isto é muito diferente dos tempos em que dormíamos ao relento, com as selas a servirem de travesseiros, não é verdade, Cody amigo?
De vez em quando, o dono da casa lá se lembrava de dizer estas ou outras coisas a Buffalo Bill, que o seguia com Catamount e os dois cossacos, mas sem que perdesse
muito tempo com os companheiros, de tal modo se consagrara quase inteiramente à jovem russa. Um pouco afastado, Agamennon olhava com
certo pasmo para o amo, pois o bom do negro não cabia em si de espanto ao ouvi-lo conversar tão entusiasmado com uma mulher. Tanto mais que o patrão mostrava-se
sempre homem de poucas falas, fosse com quem fosse.
A alturas tantas, Slim. Melville voltou-se para o seu dedicado servo e ordenou-lhe:
- Acompanha esta menina ao seu quarto. Três minutos mais tarde, com o criado à frente, o dono da casa e a sua convidada subiam ao primeiro andar. Igor e Wassili
passaram para o pátio e Buffalo Bill ficou no vestíbulo com Catamount.
- Não há dúvida! - comentou o ranger, instalado num cómodo cadeirão de rotim. - Está-me a parecer que o seu amigo ficou apaixonado como um colegial!
Estendeu a cigarreira ao Coronel, que logo tirou um cigarro e se instalou ao lado do batedor; depois de acender o cigarro, este respondeu com um sorriso:
- Pois, quanto a mim, acho que Melville perde tempo e feitio. Sandra não é mulher que se prenda ou se dedique a alguém. Contudo, você bem vê que até agora não dispusemos
de um instante só para o avisar. O diacho do velho inflamou-se como este fósforo. Acho tudo isto tanto mais cómico quanto é verdade que conheço de longa data a aversão
do nosso amigo pelo belo sexo. Ainda me lembro dos virulentos protestos que desencadeávamos sempre que lhe falávamos em casamento!
- Mais uma prova de que nunca se pode garantir: "Desta água não beberei!" - limitou-se Catamount a comentar.
Durante alguns instantes, os dois homens conservaram-se calados. Ouviam por cima deles o rumor dos passos de Sandra e dos dois companheiros a andarem de um lado
para o outro, no primeiro andar, e o perfume que a rapariga deixara atrás de si ainda persistia.
Como Catamount continuava intrigado com os modos reservados e enigmáticos da russa, aproveitou a oportunidade de se encontrar a sós com Cody para quebrar o silêncio,
proferindo como quem não quer a coisa:
- Talvez não acredite, mas não consegui ainda compreender essa sua Sandra!
- Não me diga que quer fazer concorrência ao Melville! Também ficou perdidinho por ela?
A pergunta trocista de Buffalo Bill, Catamount tratou imediatamente de redarguir:
- Graças a Deus, não! Não sou já nenhuma criança para perder a cabeça sem mais nem mais! Não ignora, porém, as circunstâncias que me fizeram juntar ao Wild West.
As condições em que mataram Lartigo continuam por esclarecer e, portanto, convém-me não desprezar o mínimo indício.
- Parece-me que já lhe disse - respondeu-lhe Cody - que Sandra representa para mim uma verdadeira esfinge. Como empresário, interessa-me, antes de mais nada, contratar
bons números. Sandra não está aqui senão devido à sua habilidade espantosa, bem como à dos seus cossacos. Você teve pessoalmente ensejo de apreciar a excelência
do seu número. É de primeiríssima ordem!
- Não digo o contrário, pois esses cossacos são tão exímios cavaleiros como destros no lançamento de punhais. O que não impede que os seus modos me intriguem ao
máximo. Muitas vezes tenho perguntado a mim mesmo se as suas maneiras enigmáticas não escondem afinal qualquer coisa de mais grave...
- São russos refugiados na América, porque tiveram de fugir da sua pátria - esclareceu o Coronel. - Passaram, evidentemente, os seus maus bocados. Ora, devido à
sua índole pouco comunicativa, só entre eles conversam das suas dificuldades, que, aliás, nada me interessam.
- De qualquer maneira, conto terminar em breve o inquérito, que já se começa a eternizar.
- Ninguém se queixa disso no Wild West - afirmou imediatamente Buffalo Bill. - E eu menos do que qualquer outro! Porque você conduz-me a mala- -posta como poucos...
Ora sabe muito bem quanto me agrada tê-lo cá o mais tempo possível!
- É muito amável, mas há-de concordar que, neste momento, desempenho uma função um pouco deslocada para um Texas ranger... Até parece que ando a brincar aos polícias
e ladrões!...
- É possível, mas nem por isso se porta muito mal nesse ofício... Razão de sobra para que eu não sentisse o menor empenho em ver-me na pele do assassino de Lartigo,
visto que, apesar do mistério que continua, não me resta a mais pequena dúvida de que você há-de acabar por desmascará-lo.
Calaram-se, porque apareceram Sandra e Slim Melville. A primeira, risonha como nunca, declarou assim que penetrou na vasta sala:
- Não há dúvida! O Sr. Melville estraga-me com mimos! Acho-me lá em cima instalada como uma verdadeira princesa!
- Nem calcula a satisfação que me causa o poder ser-lhe agradável! - exclamou o dono da casa, vermelho de contentamento e indicando uma poltrona para a sua formosa visita.
Esta perguntou logo: - Igor e Wassili saíram? - Foram para o pátio - respondeu-lhe o patrão. - Com certeza quiseram relacionar-se melhor com os cowpunchers das "Acácias".
O rancheiro atalhou: - Não tarda um instante que não nos apareça aí o Agamennon a anunciar-nos que o almoço está pronto. Com certeza que este passeio, logo de manhãzinha,
lhe despertou o apetite. Oxalá que o Wang-Hi saiba dar boa conta do recado!
- Wang-Hi? - repetiu, intrigada, Sandra. -"É o cozinheiro chinês das "Acácias". Tenho-o cá em casa há já quatro anos.
Melville sentara-se diante da rapariga, a qual tirara um cigarro da cigarreira e começara a fumar. Entretanto, Catamount e Buffalo Bill conservavam-se calados, pois
o fazendeiro falava por todos, descrevendo profusamente as condições em que adquirira este ou aquele móvel, qual o preço que lhe custara este ou aquele quadro.
Só parou com as explicações quando Agamennon apareceu a informar que o almoço estava pronto. Lá fora começou a badalar uma sineta, transmitindo idêntica comunicação
ao pessoal.
Dali a dois minutos, a mulher mais os três homens passavam a uma sala de impressionante tamanho, ao centro da qual estava posta uma mesa para uns cinquenta convivas.
- Como vêem - explicou Slim Melville - , não quis alterar os hábitos da casa. Almoçaremos todos juntos. Estou mesmo empenhado em que a minha gente se associe ao
nosso contentamento.
- É muito melhor assim - concordou a rapariga. Os cowpunchers das "Acácias" começaram a aparecer na sala e entre eles Catamount viu imediatamente Igor e Wassili,
cujas indumentárias marcavam sombrio contraste com as vistosas camisas de flanela dos assalariados de Slim Melville.
Estabeleceu-se enorme bulício de cadeiras arrastadas e de pés a movimentarem-se no sobrado. Era com certa surpresa que os que entravam davam de cara com Sandra,
ficando logo indecisos sem saber onde se haviam de sentar. Alguns mais descarados arriscavam uma graçola para o companheiro, em geral envolvendo um cumprimento indirecto
para o patrão: Este acabou por lhes berrar:
- Eh, lá, amigos, caluda! O ranchman postara-se no seu lugar habitual, instalando
a russa à sua direita e Buffalo Bill, à esquerda. Catamount esperava de pé, diante dele, entre Igor e Wassili.
O burburinho foi-se acalmando a pouco e pouco e acentuando-se um penetrante cheiro a cabedal a tabaco e a suor, apesar de estarem abertas todas as janelas da sala.
Mais uma vez soou a voz rude do fazendeiro: - Tenho muita satisfação em receber, debaixo dos meus tectos, o meu velho amigo Buffalo Bill, o ilustre explorador de
quem sabeis de cor a prodigiosa carreira.
Vigorosas ovações secundaram estas palavras. Alguns vaqueiros brandiram os chapelões, mas Slim Melville mandou-os calar e, apontando para a russa, que, de pé, a
seu lado, esperava sorrindo, acrescentou:
- Cody trouxe hoje consigo a sua mais linda e extraordinária artista. Se nela há alguma coisa que ultrapasse a elegância, é a própria coragem! Em nome de vocês todos,
tomo a liberdade de lhe dar também as boas-vindas!
Novas e calorosas ovações crepitaram de todos os lados. Catamount, observando com toda a atenção os robustos mocetões que formavam o pessoal das "Acácias", reparou,
nesse momento, que alguns trocavam com outros significativas piscadelas de olhos. Não lhes era muito difícil reparar no entusiasmo, verdadeiramente anormal, que
o seu boss manifestava ao apresentar-lhes a guapa visita.
Mesmo assim, pareceram, esses rudes cavaleiros, mais interessados ainda quando o dono da casa, continuando as apresentações, apontou para Catamount, sempre de pé
na sua frente, e declarou:
- Tenho igualmente o prazer de lhes anunciar ainda outra surpresa: Vocês conhecem o "Demónio"... Sabem perfeitamente que ainda está para aparecer o primeiro que
consiga domar -esse soberbo animal. Alguns de vocês já o tentaram, mas aprenderam à sua custa que "Demónio" não é um cavalo como qualquer
outro. Pois fiquem sabendo que apareceu uma pessoa para subjugar esse endiabrado bicho... Nada menos do que um companheiro de Buffalo Bill.
Todos os olhos se voltaram então para Catamount, sempre imóvel, impassível e encantado por o dono da casa não lhe revelar a verdadeira identidade.
Desta vez romperam de todos os lados exclamações de assombro. Os cowpunchers consideravam aquele homem de olhos claros como um autêntico fenómeno. Sem perder a serenidade,
Catamount aguentava todo aquele exame, tanto mais que reparara em alguém que chegara naquele instante e se esgueirava por detrás dos convivas para ocupar o seu lugar.
Tratava-se de Seth Hartigan, o qual, caminhando nos bicos dos pés, fazia toda a diligência para que não reparassem nele.
Slim Melville parecia encantado da sensação que provocara no auditório. Começavam já a perceber-se, de uma banda e da outra da mesa, vozes rudes a exclamarem:
- Mas ele vai partir a espinha! - Montar o "Demónio"! Mais valia que procurasse chegar à Lua!...
- Já o Seth Hartigan o tentou... e o resultado sabe-se...
Desta vez, a atenção desviou-se por instantes para o capataz, que chegara ao lugar habitual e que fazia ainda toda a diligência para que não reparassem nele. Mas
todos os olhares se voltaram mais uma vez para o ranger, sempre à espera, imperturbável, e mais parecendo nada ter que ver com toda aquela questão. Os dois russos
a. seu lado mostravam igualmente a mais absoluta indiferença.
- E agora, amigos, toca para a mesa! - proferiu Slim Melville, batendo as palmas.
Todos se sentaram imediatamente, mas sem que se acalmasse a perturbação provocada pela novidade que lhes dera. Entretanto, Agamennon e dois boys apareciam com os
primeiros pratos, enquanto os cowpunchers
trocavam entre si comentários em que dominava o espanto.
Catamount comia serenamente, dando mostras de continuar insensível à curiosidade que provocara, mas não deixando, contudo, de observar volta e meia, disfarçadamente,
os russos, instalados cada um do seu lado. Pareciam extremamente reservados e só respondiam por vagos monossílabos às perguntas que os cowpunchers lhes dirigiam.
Quanto a Melville, só tinha olhos e atenções para Sandra.
Ao princípio apenas se distinguia o tilintar dos copos e dos garfos, mas depois, aquecidos pelo almoço, os convivas cada vez se tornaram mais barulhentos. O único
silencioso, tal como o ranger e os dois russos, era o capataz. Catamount, que o não perdia de vista, bem lhe notava a ruga a contrair-lhe os lábios e os olhares
prenhes de ameaças que lhe dirigia.
O homem dos olhos claros disse para consigo: (- Ora ali está um parceiro que não pode comigo nem à quinta facada!)
Desviaram-lhe, porém, a atenção várias gargalhadas e gracejos trocados de um lado para o outro da mesa. Slim Melville conversava com a sua galante vizinha, por seu
lado a afirmar que nunca provara comida mais saborosa do que a de Wang-Hi. Não tardou muito que Agamennon o fosse buscar à cozinha e, quando o chinês apareceu à
porta da sala, os olhinhos piscos esboçaram um sorriso que pouca diferença fazia de uma careta.
- Uma salva de palmas ao Wang-Hi! - propôs o ranchman. - Uma salva de palmas a este velho chim!
As ovações estrondearam entusiásticas, mas, assim que o cozinheiro desapareceu, ouviram-se vários estampidos. O fazendeiro mandara trazer garrafas de champanhe em
honra de Sandra e de Buffalo Bill, e não tardou que o espumante fervesse nas taças, as gargalhadas
se ampliassem, os gracejos se repetissem mais frequentemente.
Só Seth Hartigan evitava partilhar do contentamento geral e mal tocou com os lábios na taça. Continuava .à espera, com o olhar carregado de ameaças. Não restavam
quaisquer dúvidas de que o aleijado, tão infelizmente gorado na tentativa de dominar o "Demónio", ficara exasperado com a chegada de Catamount e com o propósito
que o animava.
- Brindo pela nossa bonita convidada e pelo nosso ilustre convidado, o meu velho amigo Cody, o "Rei dos Escuteiros"!
Após proferir, de pé, esta breve saudação, Slim Melville observou, contente, as taças a tocarem-se e, depois, todos os semblantes se iluminaram quando Sandra também
se pôs de pé, exibindo, num sorriso esplendoroso, duas filas de magníficos dentes. Mais entusiasmado do que nunca, o dono da casa anunciou:
- A nossa encantadora convidada vai-nos cantar uma canção da sua terra!
Estalaram calorosas palmas ante tal declaração e então, de rosto levemente rosado e os olhos a luzir, Sandra entoou a canção dos barqueiros do Volga. A voz subia-lhe
serena e grave, e Catamount, que nem por um instante deixava de a observar, reparou na modificação nela operada. Desaparecera a amazona calma, descuidada, ainda
pouco antes, a ouvir, indulgente, os galanteios do proprietário, para se apresentar agora uma mulher de semblante mais sério e de sobrancelhas levemente carregadas.
Evocava a pátria ausente e como que deixara de ver o rancheiro, Buffalo Bill, os cowpunchers extáticos, dominados pelo seu encanto. O pensamento vagabundeava por
muito longe daquela sala, para as bandas da Santa Rússia, de onde tivera de fugir, essa pátria tão querida e onde implacàvelmente lhe proibiam a entrada.
Impressionante silêncio pesava agora sobre toda a sala, onde só se ouvia a voz da cantora, continuando gravemente a evocar os barqueiros e a sua miséria. Agamennon,
encostado à parede, olhava enlevado para a rapariga e, a pouca distância, Wang-Hi, que regressara da cozinha, deitava uma olhadela admirada pela sala.
De boca aberta, Slim Melville não cessava de contemplar a sua vizinha de mesa e, no semblante áspero e queimado pelo sol, exibia um sorriso embevecido, ao mesmo
tempo que, a seu lado, Buffalo Bill, a fumar pensativamente um charuto, parecia muito espantado por só agora descobrir na sua contratada outra faceta de talento.
De súbito, à voz de Sandra juntaram-se duas vozes graves. Igor e Wassili, que até então se haviam conservado calados e despercebidos, puseram-se em pé e, acompanhando
a compatriota, entoavam uma melodia de autêntico encanto. Ninguém nos cowpunchers mostrava já vontade de rir ou de brincar.
Depois de Sandra se calar, subsistiram ainda alguns segundos de silêncio, pois o auditório permanecia sob a profunda comoção que a rapariga e os seus dois patrícios
nele provocaram. Por fim, antes dos demais, Slim Melville começou a bater frenèticamente as palmas.
Rebentou então uma trovoada de aplausos, aos quais o próprio Catamount se associou. Viu que Seth Hartigan aplaudia também, apesar de o capataz mostrar pouco entusiasmo
e dar a entender que continuava a pensar em coisa muito diferente.
- Maravilhoso! Maravilhoso! - bradava arrebatadamente o fazendeiro.
Sandra inclinou-se, visivelmente comovida por aquele acolhimento, e, entretanto, Buffalo Bill comentou:
- Realmente, nunca me passara pela cabeça que
a minha contratada fosse também uma cantora de tal ordem!
Com modéstia, a rapariga proferiu: - Na Rússia toda a gente gosta de cantar. E, quando se evoca o nosso tão longínquo país, dir-se-ia que dentro de nós se opera
uma extraordinária transformação.. Reparem no Igor e no Wassili...
Apesar de os dois cossacos se voltarem a sentar e retomarem a expressão grave habitual neles, os que se encontravam mais próximos notaram lágrimas a luzir-lhes nas
pálpebras. Mesmo com a sua reserva permanente, não conseguiram vencer a comoção.
Aquele ambiente de melancolia não se prolongou, contudo, pois Sandra voltou-se para o dono da casa e perguntou-lhe:
- Não tem cá no rancho um acordeão? - Um acordeão? - respondeu logo Slim Melville. - Claro que tenho! Ouve lá, Smith - disse, dirigindo-se a um dos trabalhadores.
- Vai ao bunkhouse buscar o acordeão!
O interpelado não precisou de que o patrão lho ordenasse duas vezes e voltou dali a pouco quando já os colegas haviam puxado a mesa para um lado. Sandra pediu-lhe
o instrumento.
Depois, dirigiu-se a Igor e a Wassili, sem que mais ninguém percebesse o que ela lhes disse. Compreenderam, contudo, quando, numa expressiva mímica, os dois russos
indicaram que iam dançar.
A partir daquele instante, o ambiente transformou-se por completo. Depois de alguns acordes com que Sandra, como conhecedora, experimentou o acordeão, Igor e Wassili
colocaram-se ao lado um do outro, de braços cruzados à altura do queixo, e começaram a dançar um bailado do seu país. De punhos nas ancas, avançaram lentamente em
volta do círculo formado pelos assistentes e, depois, apressaram o movimento à medida que o acordeão acelerava também o ritmo.
Primeiro, os assistentes ficaram imóveis e calados,
mas depois, quando Sandra lhes fez um sinal, puseram-se a bater palmas ao compasso das evoluções dos cossacos. Igor e Wassili continuaram infatigáveis a sua ronda
veloz e, a seguir, na ponta de um só pé puseram-se a girar como piões, soltando gritinhos agudos, pulando a seguir, elásticos e com uma ciência de ritmo unida a
uma desconcertante agilidade.
Sandra, com os olhos a luzir, tocava o acordeão com tanto virtuosismo como momentos antes cantara. Por vezes., martelava o sobrado com os pés nervosos. À sua direita,
Slim Melville não parecia deste mundo e, quanto a Buffalo Bill, não perdia pitada do imprevisto número que os seus artistas apresentavam.
O bailado findou no meio de uma trovoada de aplausos, que os dois cossacos, de caras a luzirem de transpiração, agradeceram, esvaziando, logo a seguir, as taças
cheias de champanhe que novamente lhes apresentaram.
- Estou com pena de não trazer também os meus outros compatriotas - afirmou Sandra - , mas não será a sua ausência que impedirá que se execute o mesmo número todos
os dias exibido no Wild West.
Ovações gerais aplaudiram esta declaração e, com o habitual sangue-frio e o mesmo desprezo pelo perigo sempre demonstrado na arena, a jovem foi colocar-se diante
da porta e Igor e Wassili postaram-se uma dezena de passos mais longe.
Então, logo que a formosa eslava se encostou, de braços em cruz, à almofada de madeira, os dois cossacos puxaram, cada um do seu cinto, por três punhais de lâmina
afiada. Conservaram-se imóveis durante alguns minutos, ao lado um do outro. A rapariga preparou-se uma vez mais para lhes servir de alvo e a ordem soou, rápida:
- Go! Num conjunto impressionante, os dois cossacos atiraram as armas na direcção da sua compatriota. Com a mesma certeza de que davam provas, juntamente com
os demais patrícios, quando do número do Wild West, cercaram, com as seis lâminas, o corpo de Sandra, imóvel como uma estátua, mas sem sequer com elas a roçarem.
Angustioso silêncio pesava em toda a sala; não se ouvia outra coisa senão o choque do aço ao cravar-se na madeira grossa da porta, onde ficava ainda a vibrar. O
alvo vivo não bulira e debalde procurariam surpreender-lhe o mais leve tremor no semblante plácido.
Concluído o número, Sandra desprendeu-se, risonha, da prisão de aço e adiantou-se inclinando a cabeça a agradecer a delirante ovação com que os presentes a vitoriavam.
- Inimitável! - exclamou Slim Melville. - Eu bem lhes dizia!
Quando por fim o entusiasmo acalmou, naquela sala onde reinava sufocante calor, o rancheiro convidou os assistentes a irem lá para fora, ao mesmo tempo que, com
uma piscadela de olho para o lado de Catamount, dizia:
- E, agora, vamos ter o prazer de lhes apresentar o indómito "Demónio"!
XIV
O PREGO Debaixo DA SELA
Os cowpunchers das "Acácias" espalharam-se ràpidamente pelo pátio, muitos deles a cantar, perturbados com os vapores do champanhe, outros a medirem forças ou a simularem
lutas, e tudo isso terminando entre gargalhadas estrondosas. Aquelas crianças grandes, sempre prontas a pregarem partidas umas às outras, mostravam-se encantadas
com a distracção que lhes cortara a monotonia da sua vida diária no rancho.
A decisão de Catamount parecia ter deveras impressionado aqueles rudes rapagões do Oeste e, por isso, não deixavam de comentar o facto uns com os outros e, por vezes,
em termos um tanto chocarreiros.
- Pelo visto, o nosso visitante não tem medo de nada... -
- Bem se vê que não conhece o "Demónio"! - Ficará menos senhor de si quando lhe puser o pé no estribo...
-... partindo do princípio que o consiga fazer, pois não me cheira que o endiabrado do cavalo lhe dê tempo para isso!
Catamount, de mãos nos bolsos e cigarro nos lábios, aproximou-se de Sandra, de Buffalo Bill e de Slim Melville, sem dar mostras de abandonar a sua habitual calma.
Dir-se-ia completamente estranho à perigosa prova que se preparava. Caminhava sem pressa,
bamboleando-se um pouco e de pernas levemente arqueadas como as dos cavaleiros. Tão evidente tranquilidade não deixou de surpreender a jovem russa, que lhe perguntou,
espantada:
- Mas você nem sequer está nervoso? ! - Não sei porquê! - respondeu o homem dos olhos claros,, com a maior fleuma deste mundo.
Sandra insistiu, porém: - Nunca vivi no "Far-West", mas quer-me parecer que é muito mais custoso dominar um cavalo selvagem do que conduzir a diligência de Overland...
- Afinal, pode-se fazer tão bem uma coisa como outra.
- Cuidado, Sandra - interveio então Cody. - Conheço a fama do nosso amigo e está-me a cheirar que, de bom grado, apostaria a seu favor...
- Sério? - exclamou o rancheiro, que parecia um tanto céptico.
Seth Hartigan andava por ali de roda, de olhar carrancudo, sobrancelhas crispadas, ar muito preocupado e, de vez em quando, atirando ao batedor olhares nada amistosos.
Não era, realmente, capaz de tolerar que outro se saísse bem de uma tentativa em que tão desgraçadamente falhara, e, enquanto mascava raivosamente tabaco, fazia
ardentes votos para que o concorrente imprevisto também se saísse mal da tentativa.
De repente, na altura em que os grupos se aproximavam das amplas cavalariças, vizinhas do cerrado em que os cowpunchers costumavam experimentar as suas montadas,
o capataz voltou-se de chofre. Era Slim Melville que lhe gritava:
Eh, Seth... vai buscar uma sela e rédeas! - O. K. - resmungou o coxo. Afastou-se, a arrastar a perna, para o lado dos armazéns e das cavalariças. Entretanto, o fazendeiro
voltou-se para Catamount e disse-lhe:
- E, agora, se quer travar conhecimento com o bicho...
Slim Melville apontou para o cerrado, em cujas paliçadas se começavam já a encavalitar cowpunchers, de pernas a baloiçar sob os chaparejos de cabedal e de pele de
carneiro.
Um relincho repentino dominou todos os murmúrios e o ranger, aproximando-se, por sua vez, da vedação, pôde admirar um dos mais belos cavalos que lhe fora dado ver
no decurso da sua aventurosa carreira.
- Não é uma autêntica beleza? - exclamou o fazendeiro, esquecendo-se por curtos momentos da sua beatífica admiração por Sandra.
Catamount, que observava, como conhecedor, o animal, limitou-se a acenar com a cabeça. Não alimentava a menor dúvida de que o "Demónio" não se comparava com o inesquecível
"King", mas não deixava de lhe apreciar a beleza de formas, o brilho e reflexo da pelagem sombria, a todo o instante fremente, a comprida crina flutuando-lhe ao
longo do dorso, enfim, o harmonioso perfil do animal naquele momento a espetar as orelhas como se desconfiasse de que a aproximação daquela gente toda lhe anunciava
outra e iminente provação.
Buffalo Bill não conteve um assobio de apreço e exclamou:
- By Jove! Não regatearia o dinheiro para que pudesse exibir o "Demónio" no Wild West.
-É só questão de mais um bocadinho de paciência - afiançou-lhe logo o ranger - pois conto trespassar-lho sem que lhe custe ao menos um centavo. Ficará como recordação
da minha visita à sua companhia.
Cody esfregou as mãos de contente, mas o homem dos olhos claros tratou logo de o acalmar, recomendando-lhe:
- Não deite foguetes antes de tempo! Assim como não se deve vender a pele de um urso, antes de o matar, também a deste cavalo não está, por ora, à venda.
Cada vez com maior nervosismo, "Demónio" começou por andar a pequeno trote pelo interior do cerrado para, a seguir, se encabritar e voltar para trás, soltando um
enraivecido relincho. Os olhos pretos, onde cintilavam rápidos relâmpagos, detinham-se desconfiados naqueles importunos, instalados por todos os cantos, prontos
a assistir ao combate que ele iria travar com um dos melhores cavaleiros do Texas.
- Então? - perguntou Slim Melville, poisando a mão no ombro do ranger. - Confesse que o bicho o impressiona... Se calhar, você imaginava outra coisa... Ainda está
a tempo... Olhe que o bicho já aleijou muitos dos meus homens! Ainda está a tempo de se arrepender... todos o compreenderemos...
- Mas o que não compreendem é que não sou medroso! - retorquiu-lhe, irònicamente, o homem dos olhos claros. - Enganou-se na porta! Estou mais do que nunca resolvido
a montar o seu "Demónio", sobretudo depois que o Coronel manifestou o desejo de o obter.
-Bravo! Você é um teso! Sandra também se acercara, mais o seu subtil perfume a cravo. Durante instantes, mostrou no olhar uma expressão de apreço por Catamount e,
depois, estendeu-lhe as mãos, já outra vez enluvadas, e afirmou-lhe:
- Acompanham-no os meus mais ardentes votos de triunfo!
Slim Melville esboçou uma careta a denunciar que as palavras amáveis da rapariga lhe causavam certa ciumeira. Avistou, porém, Seth Hartigan, voltando com uma sela
de cabedal claro e rédeas, e exclamou:
- Tratemos de aparelhar imediatamente o "Demónio". Depois, todos os meus desejos são para que consiga saltar-lhe para cima!
- Farei toda a diligência. O capataz aproximara-se calado, carregando o seu pesado fardo e, logo que chegou junto de Catamount, atirou-lhe com a sela e as rédeas
para os pés. Virou-lhe, depois, ostensivamente as costas e foi encostar-se, a pouca distância dali, à vedação, junto dos cowpunchers.
O ranger deitou fora o cigarro que fumava, calcando-o com o tacão da bota, e, depois, inclinou-se para apanhar a sela, colocou-a ao ombro e aproximou-se, por sua
vez, do cerrado:
- Abram! - ordenou, imediatamente, o fazendeiro.
Dois cowpunchers obedeceram, pressurosos, à ordem do patrão, impelindo vigorosamente as duas cancelas de madeira da entrada, e dando passagem a Catamount, curvado
sob o peso do fardo.
Imóveis, Sandra e os companheiros viram, da vedação a que se apoiavam, o homem dos olhos claros dar alguns passos. Também, a pouca distância, Igor e Wassili, encostados
um ao outro, observavam atentamente o ranger.
No outro extremo do cerrado, "Demónio" empertigava-se, a tremer, sacudindo os flancos com a opulenta cauda. Observava agora Catamount e percebia que o recém-chegado
ia tentar submetê-lo como tantos outros tinham procurado fazê-lo, pouco tempo antes.
Dera Catamount uns quinze passos quando, de repente, parou. Surpreendidos, os cowpunchers viram-no atirar com as rédeas para o chão ao mesmo tempo que, num movimento
de ombros, sacudia a sela. De seguida, debruçou-se para a examinar com toda a atenção.
Do intrigado grupo de assistentes partiram várias exclamações, pois não sabiam realmente explicar a razão daquela paragem repentina, logo na altura em
que o destemido cavaleiro se preparava para enfrentar o "Demónio".
O homem dos olhos claros continuava ainda inclinado a apalpar com o indicador uma parte da sela para depois meter cuidadosamente a mão por baixo da borraina.
Não lhe restava a menor dúvida de que aquele prego fora enterrado, pouco tempo antes, no cabedal, por mão criminosa, que planeara transformar em perigosa, e possivelmente
mortal, a corajosa tentativa de dominar o "Demónio".
- Mas que grande maroto! - resmungou Catamount, calculando fàcilmente a sorte que o esperava se não reparasse naquele pormenor. Assim que procurasse apresilhar a
sela ao animal, este, exasperado com o prego que se lhe cravava na carne, encabritar-se-ia de maneira a tornar impossível qualquer espécie de tentativa.
Slim Melville, os convidados e o pessoal viam agora, imóveis e algo surpreendidos, o ranger voltar à divisória, que tão resolutamente atravessara minutos antes.
- Está aí alguma coisa partida? - perguntou Buffalo Bill, antes de qualquer outro.
- Um leve empecilho, sòmente, mas que poderia trazer sérias consequências.
Depois desta resposta calma, Catamount, carregado com o seu duplo peso, dirigiu-se ràpidamente para o ponto da paliçada onde o fazendeiro esperava, ao lado de Sandra,
e, ali, erguendo a sela, apontou para o prego e disse:
- Parabéns a quem espetou isto aqui, Gostava, porém, antes de iniciar o trabalho em que me empenhei, de lhe dizer duas palavrinhas...
Slim Melville fizera-se muito pálido e Cody, à sua esquerda, não conseguia dominar a profunda indignação que o tomava. Entre dentes, o batedor repetiu:
- Gostava deveras de infligir severo castigo ao miserável que me pregou esta partida de mau gosto...
Por ali de roda, ergueram-se sucessivos protestos e os cowpunchers saltaram dos seus poleiros para rodearem Catamount. Debruçavam-se, interessados, sobre a sela,
que Buffalo Bill não cessava de lhes apontar.
O ranchman protestou: - Pode crer que condeno, indignado, esse cobarde atentado. Espero que não vá imaginar...!
- Descanse - atalhou imediatamente o ranger - , tenho a plena certeza de que o senhor nada tem a ver com esta patifaria. Mesmo assim, custa-me a crer que exista
ente tão baixo e tão vil capaz de condenar deste modo um homem a uma morte certa!
Enquanto pronunciava estas palavras, Catamount passeava os olhos à sua roda, observando sucessivamente cada cowpuncher, mas via, no semblante de todos, uma expressão
de indignação sincera, prova de que o pessoal do rancho se encontrava tão surpreendido como ele.
Sandra, por sua vez, aproximou-se, colocou cautelosamente o dedo enluvado no bico do prego e, depois, comentou:
- Realmente, é preciso ser-se muito infame para provocar tão repugnante desastre. "Mesmo que fosse eu que aparelhasse, com uma sela assim, a minha "Volga", não faço
ideia do que me aconteceria...
Dominando todos os murmúrios e vozes, o fazendeiro bradou em tom imperativo:
- Quem esteve a tratar desta sela? A pergunta coroou-se de protestos indignados, pois os cavaleiros das "Acácias" repeliam, ofendidos, a ideia de que algum deles
fosse capaz de tal indignidade.
Um só homem manifestava cada vez maior atrapalhação. Era Seth Hartigan, pouco antes ainda a seguir com toda a atenção os movimentos do ranger a encaminhar-se para
o cavalo preto.
Slim Melville apontou-o: - Quem trouxe a sela foi Seth. "Anda cá, só tu nos conseguirás explicar. O aleijado pareceu, primeiro, hesitar, mas resolveu-se depois a
obedecer ao patrão, gaguejando, em voz rouca:
- Não sei nada... - Vamos - interrompeu-o Catamount - ; vale mais falar com franqueza! Foste tu! Escusas de negar. Leio-te nos olhos!
Durante breves instantes, por todo o recinto reinou profundo silêncio. Com todas as atenções concentradas nos dois homens, agora frente a frente, Seth Hartigan passeava,
à sua volta, um olhar de fera encurralada e uma expressão de maldade crispava-lhe os lábios amarelados pelo tabaco de mascar.
- Pois bem, fui eu! - declarou finalmente o capataz. - Já chega! Não se hão-de gabar de que me aleijei só para que outro...!
Não acabou a frase, pois, com desnorteadora rapidez, rapou do revólver- que guardava no coldre pendente da anca direita.
Ouviram-se gritos, pois tanto Slim Melville como os companheiros por instantes julgaram Catamount irremediàvelmente perdido. Antes de terem tempo de o impedir, Seth
Hartigan pela certa faria fogo.
Mas a reacção do ranger surgiu imediata. O aleijado nem teve tempo de abaixar a arma e de lha apontar ao peito: o homem dos olhos claros atirou-se a ele. O capataz
soltou uma praga ao sentir o punho preso como que num torno, sem conseguir libertar-se, por mais esforços que envidasse.
Implacável, Catamount apertou ainda mais, cravando as unhas nas carnes doridas do miserável.
Estalaram dois tiros, que arrancaram a Sandra um gritinho de susto, mas as balas perderam-se na erva abundante. O patife soltou um berro de dor, abriu os dedos crispados
e deixou cair a arma a seus pés. Preparava-se
para se inclinar, a fim de morder a mão que o forçava a render-se, quando o ranger esticou o braço esquerdo.
Com força irresistível, o punho fechado atingiu Seth Hartigan em cheio no queixo e o capataz, atordoado, vacilou antes de poder esboçar qualquer resposta. O adversário,
aproveitando-se da vantagem, atingiu-o em cheio na boca do estômago.
Desta vez, soou, definitiva e irresistível, a derrota. Incapaz de se aguentar, as feições contorcidas medonhamente pelo ódio e pelo sofrimento, o coxo caiu pesadamente
entre os assistentes, que logo alargaram o círculo à sua volta. Num derradeiro lampejo de lucidez, ouviu ainda, antes de perder de todo os sentidos, a voz bem timbrada
do seu vencedor gritar:
- Depressa! Vão à cavalariça buscar a minha sela, que deixei ao lado do "Mesquita"!
Quando Seth Hartigan voltou a si, levou primeiro a mão ao queixo dorido e molhado pelo fio de sangue que lhe escorria do canto da boca e se perdia na sua espessa
barba preta. Ainda bastante atordoado, procurou recordar-se das circunstâncias em que fora parar junto da paliçada, quando um coro de aplausos demorados o chamou
à realidade.
- É o outro... - gaguejou. - O "Demónio"... Esfregou, com a mão trémula, as pálpebras, de onde, para as faces queimadas, lhe escorriam as lágrimas. Um pouco mais
longe, uma arma luzia na erva: o seu colt!
Num ápice, o capataz recuperou a memória e lembrou-se do instante em que por pouco não abatera o homem dos olhos claros, que lhe descobrira o seu desleal procedimento.
Contudo, os vivas aproximavam-se e, como que num sonho, Seth Hartigan, erguendo-se um pouco, avistou, então, à entrada do recinto, um robusto mocetão, rodeado pelos
cowpunchers, que frenèticamente o aplaudiam.
- Hello! - praguejou o capataz. - Porventura o malandro levaria a sua avante...?
Aproveitando o ensejo de ninguém estar a olhar para ele, o aleijado agarrou-se à divisória e conseguiu, não sem custo, pôr-se em pé. Ficou por momentos apoiado,
segurando-se, com toda a força, àquele arrimo, Via agora figuras suas conhecidas: o patrão e os cowpunchers a berrarem e a agitarem delirantemente os chapéus, rodeando
o vencedor.
O capataz expeliu, a distância de poucos passos, um jacto de saliva avermelhada e avistou, enfim, o magnífico cavalo preto, que o ranger, agora liberto do aperto
dos admiradores, levava pela brida. Com a pelagem branca de espuma e todo ele a luzir de suor, "Demónio" caminhava, domesticado e cansado pelos esforços vitoriosos
do cavaleiro, que lhe impusera a sua vontade soberana.
Uma expressão de implacável rancor crispou o semblante contorcido de Seth Hartigan, que rugiu entre dentes:
- Hei-de vingar-me! Então, pouco desejoso de se encontrar com o patrão, disposto pela certa a despedi-lo, e com pouca vontade de aturar os motejos dos antigos colegas,
o miserável baixou-se, apanhou o seu colt, enfiou-o no coldre e afastou-se, cambaleando como um ébrio, enquanto continuavam a ouvir-se os brados a vitoriarem Catamount,
o valente vencedor do cavalo preto!
XV
OS RECEIOS DE Bollobudum
Bollobobum achava as horas intermináveis. Desde a partida de Buffalo Bill e de Catamount, o anão levava os dias a passear pelas ruas de Atlanta. Evitava reunir-se
aos colegas, pois a sua baixa estatura só servia para provocar troças e graçolas, mais ou menos de mau gosto. Os índios só se reuniam uns com os outros, o mesmo
faziam os árabes e, quanto aos russos, mereciam do homenzito invencível desconfiança. Neles tudo parecia estranho e motivo para temores.
Não obstante, Bollobobum conhecia a língua russa, pois estivera naquele país quase dois anos, com uma companhia de circo. Quantas vezes ouviu aplausos das crianças
de S. Petersburgo e de Moscovo, mas nem por isso se sentia menos adverso aos hábitos dessa gente e de tudo quanto era eslavo.
Reduzido, portanto, à solidão, o pobre diabo esforçava-se por entreter, o melhor que podia, os dois dias de feriado. Jardinando pelas ruas, de mãos nas algibeiras,
detinha-se ante as montras das lojas ou nas obras de numerosos prédios, em construção por toda a cidade.
Não tardou, porém, que um enxame de pretinhos, que o aplaudiram dias antes num espectáculo do Wild West, o avistassem extasiado diante de um bazar de novidades e
desatassem a gritar:
- Bollobobum! Bollobobum!
A partir daquele instante, nunca mais o deixaram em paz. De todos os cantos, surgiram rapazitos de cor, chamando-o constantemente e, se o anão tentava estugar o
passo para se afastar, aquele turbulento bando seguia-lhe imediatamente o exemplo e continuava a persegui-lo e a berrar, com grande gáudio dos transeuntes, que se
voltavam a rir.
Mesmo que pretendesse despistar aqueles exasperantes perseguidores, metendo por ruas transversais, nada ganhava com isso. Mais de trezentos negritos escoltavam-no
teimosamente, incitando a todo o momento outros rapazes a engrossar a chusma, divertidíssimos com aquela inesperada brincadeira.
Várias vezes o homenzito esperou que os polícias que encontrava pelo caminho interviessem para o libertar dos maçadores, mas também os agentes da autoridade desatavam
a rir a bandeiras despregadas!
Bollobobum não viu outro remédio senão regressar ao circo, onde só se sentiu em segurança quando se aproximou de Joe e de outros cowpunchers, acocorados à sombra,
entretidos a jogar às cartas e que, por sua vez, não o pouparam a chufas quando o viram chegar a toda a pressa e com a cara a luzir de suor. Desesperado, o anão
foi-se fechar no seu carro, onde se estendeu na cama, disposto a esperar resignadamente pelo regresso de Buffalo Bill, o único que o compreendia e que se esforçava
constantemente por o poupar a vexames.
Bollobobum esteve deitado até à hora do jantar, onde se juntou aos colegas e com os quais poucas ou nenhumas palavras trocou. Depois de comer, foi pensar o seu pónei,
para voltar novamente para a cama, quando reparou nuns vultos que furtivamente passavam ao longo da grande barraca do Wild West.
Primeiro, ainda supôs que se tratasse de quaisquer intrusos, que se esgueirassem para o interior das cordas, mesmo que se proibisse o acesso ao acampamento,
mas ouviu algumas palavras que imediatamente o elucidaram.
- São os russos... - comentou para consigo. Preparava-se para se afastar quando, de repente, estacou. Sacudiu-o um estremecimento ao ouvir um dos cossacos dizer
para um dos patrícios:
- Tem cuidado, Piotra... Esse homem é perigoso! Se ele conseguisse saber...
- Nunca o virá a saber! - respondeu outra voz grave. - Tenho sérios motivos para supor que nunca mais voltará lá do rancho. Ficou tudo combinado, antes de partir.
Imóvel no escuro, o anão escutava, com o coração a bater desordenado. As palavras que acabara de apanhar intrigavam-no e assustavam-no ao mesmo tempo. Lembrou-se
de Buffalo Bill. Lembrou-se também de Catamount. Um deles corria perigo!
Aliás, não levou muito tempo a adquirir a certeza. Os cossacos conversavam a menos de dez passos de distância, diante do carro em que se instalavam com Sandra. Anoitecera
quase por completo e, naquela escuridão quase absoluta, luziam aqui e além os cigarros que os russos fumavam, ao mesmo tempo que se espalhava, por ali de roda, o
cheiro a tabaco claro.
Os oito cossacos que ficaram em Atlanta continuaram com a conversa, embora em voz baixa, se bem que, de vez em quando, elevassem o tom. Bollobobum, ansioso por apanhar
mais coisas, venceu os receios e aventurou-se de rastos ao longo da lona, caminhando de gatas e evitando provocar o mais pequeno rumor que lhe delatasse a presença.
Os russos conversavam na sua língua e que na companhia era apenas compreendida pelo anão. Mesmo arriscando-se a que o apanhassem, o homúnculo adiantou-se mais ainda
e, logo que chegou junto do carro, estendeu-se ao comprido no chão, com a respiração suspensa. Deste modo, ouviu mais distintamente a conversa.
- O melhor que eles devem fazer é aproveitarem-se da ocasião que se lhes oferece.
- O que convém, dê por onde der, é livrarmo-nos desse espião, senão vai tudo por água abaixo!
- Sosseguem, que ele não volta a Atlanta! Já tem a sua conta.
Desta vez não restava qualquer espécie de dúvida a Bollobobum de que era a Catamount que os seus vizinhos desejavam a morte. Imóvel, comprimindo as pulsações, o
anão ficou ainda à espera de apanhar mais alguma coisa, mas mudaram de conversa. Um dos russos agarrou num acordeão e todos, acocorados em círculo, começaram a entoar
uma velha canção nacional, em, vozes claras e graves, que subiam no silêncio da noite.
O anão não se demorou por ali mais tempo. Já lhe chegara o que ouvira e, por isso, bateu prudentemente em retirada, diligenciando manter-se na zona favorecida pela
treva. Ao chegar junto do seu carro, deteve-se por momentos, sem saber o que fazer.
Primeiro, ainda se lembrou de avisar os cowpunchers, mas percebeu imediatamente que só lhes provocaria chufas e geral incredulidade. Aqueles labregos não perderiam
o ensejo de se divertirem mais uma vez à sua custa, sem que ao menos houvesse um que o tomasse a sério.
Bollobobum, todavia, sabia quanto era urgente prevenir o Coronel e o próprio Catamount, cuja vida parecia ameaçada. Impaciente, o anão dizia a si próprio que, enquanto
estava para ali com hesitações, as coisas no rancho das "Acácias" podiam precipitar-se. De um momento para o outro, o seu destemido amigo podia, sem a menor desconfiança,
ficar à mercê dos acólitos dos cossacos!
Não duvidava já de que ou Igor ou Wassili se encarregaria do caso. Bollobobum fàcilmente calculava que o colosso seria adversário tremendo e que, sem
escrúpulos, não hesitaria em atacar se a necessidade ou o temor pela sua segurança o exigissem.
Assaltado por angustiosa incerteza, o anão recordava que não podia contar com qualquer ajuda da parte dos índios, sempre afastados dos demais e que receberiam com
a mesma dúvida, senão com troças, quaisquer declarações que se lembrasse de lhes fazer. E os árabes também não valia a pena pensar neles.
Bollobobum viu-se então reduzido aos seus próprios recursos. Tinha de prevenir de qualquer maneira o ranger! Mas como?... Indo buscar o pónei e abalando direito
às "Acácias"? Não seria perigosa de mais tal ideia?
De repente, o homenzito soltou uma exclamação abafada, ao mesmo tempo que um relâmpago se lhe acendia nas pupilas.
- "Grande Águia"! - murmurou. - Esquecia-me de "Grande Águia"!
Era aquele índio a quem Catamount salvara recentemente a vida quando da chegada à estação de Atlanta e que evidentemente seria precioso auxiliar naquela emergência.
Bollobobum não ignorava que o pele-vermelha jurara eterna gratidão ao ranger. Apesar de nunca terem falado, não consagraria maior atenção ao que lhe tencionava dizer?
Bollobobum resolveu entrar imediatamente em acção. Sabia que, por enquanto, "Grande Águia" não acampava com os demais índios, pois tinha ainda uns dias de enfermaria,
instalada num asseado carro todo pintado de branco e que avultava a pouca distância dali, banhado pelo luar. Não esperando por mais nada, o anão pôs ponto final
nas indecisões e, no bico dos pés, seguiu ao longo dos veículos.
Um cão do circo, a rondar por ali, soltou um rosnido surdo ao ver aquele vulto escuro avançando na treva, mas Bollobobum acalmou-o com um gesto:
- Caluda, "Turco", sou eu! Já não conheces o teu velho amigo?
O animal foi cheirar-lhe a mão e aquietou-se imediatamente. O anão acariciou-lhe o pêlo áspero e depois, com as mesmas cautelas, encaminhou-se deliberadamente para
a enfermaria, onde àquela hora "Grande Águia" devia estar sossegadamente a dormir.
O homenzito olhou várias vezes à sua roda, para se certificar de que ninguém o seguia ou espiava, e nada sentiu de anormal, a não ser os acordes nostálgicos do acordeão,
a acompanhar as vozes graves dos cossacos a distância. Os demais componentes do Wild West pareciam dormir a sono solto, embora alguns se encontrassem ainda a beber
ou a divertir-se em qualquer taberna da cidade.
Bollobobum chegou, sem qualquer dificuldade, à escadinha de madeira que dava acesso ao carro-enfermaria. Estendeu cautelosamente a mão, girou de vagar com a maçaneta
e experimentou ver se a porta cedia. Ouviu-se um ranger quase imperceptível e, logo de dentro, soou uma exclamação abafada.
- Oah! Pelo visto, "Grande Águia" tinha o sono leve e descansava já havia um bocado, mas no preciso instante em que o visitante procurava esgueirar-se para o interior,
pela pequena abertura da porta, o índio endireitou-se na cama com o corpo levemente inclinado para diante.
- Sou eu - gaguejou o visitante, mal se percebendo o que dizia. - Preciso de falar contigo. É urgente!
O índio reconheceu o anão, cujo vulto se desenhava no enquadramento da porta, mas mesmo assim respondeu-lhe de mau modo:
- "Grande Águia" não precisa de ti para nada; põe-te a andar!
- Deixa-me falar, ao menos! Depois verás. Procuro-te por causa do Homem dos Olhos Claros. Sabes quem é... Catamount.
Estas palavras pareceram abrandar um tanto a desconfiança do pele-vermelha e, por isso, o seu inesperado visitante pôde aproximar-se, um pouco mais afoito. Já junto
do leito onde o índio voltou a estender-se, perguntou-lhe:
- Queres prestar um favor a Catamount? - "Grande Águia" não se esquece de que deve a vida ao Homem dos Olhos Claros - respondeu o pele-vermelha. - Mas o Homem dos
Olhos Claros partiu com Pae-Has-Ka!
- O Homem dos Olhos Claros partiu - concordou Bollobobum - , mas isso não impede que o ameace um perigo terrível. Um inimigo implacável quer feri-lo pelas costas.
E ele nem suspeita sequer!
"Grande Águia" ficou imóvel durante instantes;. achava a informação do anão bastante disparatada, mas ao mesmo tempo notou-lhe na voz tal expressão de franqueza
que não pôde deixar de lhe dizer:
- Conta-me então o que se passa, Depois "Grande Águia" decidirá.
Bollobobum não se fez rogado para imediatamente descrever ao índio em que condições surpreendera a estranha conversa dos cossacos.
Quando terminou, o índio perguntou-lhe: - Tens bem a certeza de que querem atacar Catamount?
- Não me resta a menor dúvida! Para mais, desde que o ranger anda com o Wild West, não perco esses russos de vista. Mais de uma vez percebi que não podem com ele!
Pela certa, sabem alguma coisa a respeito da morte do Lartigo e receiam que o Homem dos Olhos Claros se torne para eles num adversário tremendamente inquietador.
O índio acenou lentamente com a cabeça e depois, apontando para o pé ainda ligado, disse:
- "Grande Águia" não pode caminhar. O doutor não deixa. Se "Grande Águia" caminhar, receia que surjam complicações e que a cura se atrase.
- Claro que sei muito bem que "Grande Águia" não pode caminhar, mas poderia montar a cavalo...
- Sim, "Grande Águia" poderia montar a cavalo. Para isso, precisaria ainda de que lhe chegassem a este carro o seu cayuse. E, mesmo assim...
Bollobobum não deixou o doente acabar, pois ocorrera-lhe subitamente uma maneira de prevenir Catamount.
- Escuta - disse-lhe - , eu mesmo te trarei aqui o cavalo. Mas não convinha que os outros soubessem...
Para dissipar as últimas hesitações do pele-vermelha, o homenzito acrescentou:
- Não me dirigi aos teus companheiros vermelhos, "Grande Águia", porque os teus irmãos não me compreenderiam. Mas tu, sim, tu sabes que tens uma dívida a pagar.
Também nunca mais me esqueci do dia em que o Homem dos Olhos Claros acudiu em minha defesa. Só a ele devo o não me prenderem depois da morte do Lartigo. Ora tudo
isto são coisas que nunca mais esquecem. Por isso me lembrei de ti. Disse para comigo que nós ambos alguma coisa conseguiríamos fazer para salvar a vida daquele
que tão corajosamente nos socorreu.
- Bem fizeste em acreditar na gratidão de "Grande Águia" - aprovou o índio. - "Grande Águia" está disposto a tudo para prestar serviço ao Homem dos Olhos Claros.
O anão respirou aliviado: ganhara a partida! Sòzinho, pouco poderia fazer; ajudado pelo índio, já procederia utilmente.
- Ouve - explicou - , abalamos o mais depressa possível para o rancho das "Acácias". Vou-te buscar o cavalo. Arranjarei as coisas de maneira a desatá-lo e a trazê-lo
até aqui sem que os outros reparem. Depois, ajudo-te a subir para a sela e, a seguir, levar-me-ás na garupa e seguiremos até ao rancho. Oxalá não cheguemos tarde
de mais!
- Mas não conheces esse rancho! - objectou "Grande Águia". - Nunca lá foste!...
- Não te importes, que arranjaremos maneira de dar com ele! Tratemos, antes de mais nada, de nos safar daqui.
- "Grande Águia" fica à espera - contentou-se o índio em responder.
O anão partiu imediatamente, com as mesmas cautelas com que para ali fora. Estavam quase todas as luzes apagadas e apenas, para os lados do carro dos russos, se
ouviam ainda as canções dos cossacos. Bollobobum ia longe bastante para temer que eles o vissem. Seguiu sempre pela zona sombria até chegar junto das barracas de
lona que formavam as cavalariças do Wild West.
O anão conhecia perfeitamente o local onde os índios guardavam os cavalos, mas temia que deixassem lá alguém de guarda. Respirou de alívio quando verificou que,
fora os cavalos, o único ente a rondar por ali era o "Turco". Quanto aos peles-vermelhas, já se encontravam a ressonar nos seus carros.
A passo de lobo, Bollobobum avançou mais uns metros e depois, estendendo a mão, ergueu a larga tira de tela que resguardava a entrada da improvisada cavalariça.
Cheirava ali fortemente a gado, a coiro e a detritos. De um lado e outro, os cavalos estavam presos às manjedouras. A pouca distância, ao clarão indeciso de um candeeiro
de suspensão, o visitante notou um vulto imóvel: era um dos palafreneiros do Wild West, a dormir a sono solto.
O anão, primeiro, apesar de descansado com a respiração regular do dorminhoco, tratou de se despachar o mais depressa possível; sabia que o cayuse de "Grande Águia"
era o sétimo animal da esquerda. Logo que se aproximou, reconheceu-o imediatamente. Depois, chegando-se mais, passou pela garupa da montada uma mão acariciadora.
O animal estremeceu, admirado da visita, e esboçou
um movimento para se afastar, mas Bollobobum conseguiu desatar a correia que o prendia à argola e, reparando depois na sela pendurada ao lado, procurou afivelar-lha.
Não era trabalho dos mais fáceis, pois o anão tinha pouco jeito por causa da sua escassa estatura e, mesmo erguendo-se no bico dos pés, só muito a custo chegava
à cabeça do cavalo, ainda um pouco relutante.
Convinha-lhe agora esgueirar-se da cavalariça sem despertar o palafreneiro. Para isso, . o anão envolveu, com trapos, os cascos do animal e depois, pegando-lhe na
rédea, conduziu-o cautelosamente para a saída.
O coração pulsava-lhe mais depressa quando voltou a passar junto do guarda adormecido e que ressonava, demonstrando encontrar-se mais do que nunca mergulhado no
reino dos sonhos.
A Providência favoreceu o anão. Dali a segundos, com um suspiro de alívio, viu-se cá fora, sem notar, por ali de roda, qualquer sombra suspeita.
"Grande Águia" esperava-o, estendido no leito, e, mal o viu chegar, perguntou-lhe imediatamente:
- Então? - Podes levantar-te, pois está tudo em termos. Encosta-te a mim e evita colocar o pé no chão.
O índio fez como ele lhe indicava e, saltando sobre o pé válido e encostando-se ao mesmo tempo ao anão, chegou, não sem alguma dificuldade, ao pé do cayuse. Depois
disso, saltar para a sela foi apenas obra de um momento e, logo que se sentiu deveras firme, o pele-vermelha estendeu a mão para ajudar Bollobobum a trepar para
trás dele, na garupa.
- Oah! - proferiu. - Agora, a caminho! Favorecidos pela noite, deixaram sem incidentes o acampamento do Wild West, atravessando as ruas de Atlanta, embora com algumas
precauções, visto não saberem bem o caminho. Depois, afastaram-se deliberadamente para nascente, direitos ao rancho das "Acácias", aonde esperavam chegar de madrugada.
XVI
Stone MOUNTAIN
- Com respeito a Seth Hartigan? Continua a não haver notícias dele?
A esta pergunta de Slim Melville, Buck Gibson, o novo capataz desde o incidente que provocara na véspera a partida do aleijado, abanou negativamente a cabeça, limitando-se
a informar:
- Veio buscar o seu cavalo e foi-se embora sem dizer água vai. De ontem para cá, ninguém lhe põe a vista em cima.
- Não fez senão bem se foi pregar para outra freguesia - comentou o rancheiro. - Evitou-me assim o trabalho de o põr no olho da rua.
Despediu, com um gesto, Gibson e voltou-se depois para Sandra e Cody, que o tinham acompanhado até ao pátio.
- Desde que o "Demónio" o aleijara, Seth já andava insuportável, mas a malandrice com que se quis desembaraçar do ranger tornou-o impossível de aguentar por mais
tempo, de modo que não o quero ver mais na minha frente.
- Deixemos esse Seth Hartigan, visto que tomou voluntàriamente a iniciativa de se ir embora das "Acácias" - comentou a jovem russa - e pensemos antes no passeio
que se combinou para esta manhã. Tanto mais que é o último día que passamos aqui todos.
- Com a breca! - protestou o fazendeiro. - Sempre estão deveras resolvidos a irem-se embora amanhã?
- Logo de madrugada! - confirmou Buffalo Bill. - Olha que já há quarenta e oito horas que abandonámos o Wíld West!
- Enfim... ao menos vens connosco daqui a bocado?...
Cody escusou-se, acrescentando: - Acompanhá-los-á o Catamount, pois tenho que me ocupar do "Demónio". Interessa-me muitíssimo mais do que a Stone Mountain! - Colocou
depois familiarmente a mão no ombro do amigo e exclamou:
"Aquele Catamount é um valentão de marca! Confesso-lhes que, apesar de o ver muito senhor de si, alimentava as minhas dúvidas de que conseguisse dominar o cavalo
preto!
- Pela parte que me toca - concordou o rancheiro - , estava muito convencido de que não levaria a sua avante e que só sairia daquilo com alguma perna ou braço partido,
tal como aconteceu ao Hartigan e a outros estouvados que se gabavam de que haviam de domesticar o bicho!
- Em vez disso, afinal, vimo-nos perante um dos mais desconcertantes domesticadores de cavalos que até hoje conheci! Catamount põe de parte toda a espécie de violência
para empregar somente a persuasão. Um sistema totalmente diferente do que os cowboys geralmente usam. Preferiu impor a sua vontade ao "Demónio", à custa de paciência
e de perseverança, sem castigar, com a espora, as ilhargas do animal e sem o submeter só à custa de sofrimentos. Bem o vimos trabalhar durante mais de uma hora!
Dez vezes por pouco o bicho não o esmagou contra a paliçada, e dez vezes o cavaleiro lhe logrou a tentativa, com perícia verdadeiramente extraordinária! Por muito
tempo que eu viva, nunca mais me esquecerei da sua fisionomia impassível, numa cara a luzir de
suor, permanecendo inabalável na sela por mais esforços que o "Demónio" fizesse para o sacudir.
- Mostrou-se realmente espantoso - reconheceu por sua vez Sandra. - Pena não o poder contratar para a companhia do Wíld West, pois, só ele, constituiria uma extraordinária
atracção!
- Já lhe toquei no assunto - confessou Buffalo Bill - , mas o diabo do rapaz gosta muito da profissão que leva. Para ele, nada se compara a ser ranger, punir criminosos,
organizar inquéritos, perseguir um facínora até ao fim, por muito complicada que seja a pista, As mais tentadoras propostas não conseguem desviá-lo do seu caminho.
- É pena! - lamentou Sandra. - Levou menos tempo a domar o "Demónio" do que está a levar para descobrir o autor do assassínio de Lartigo!
Cody não pôde conter uma breve tosse e aconselhou-a:
- Não se fie nisso! Catamount acertará no patife quando menos se esperar. Agora dá a impressão de não ligar nenhuma ao caso e parece ainda muito longe do seu desfecho,
o que não impede que continue à procura, pelo que aposto que não tardará muito que esta aventura chegue ao fim. Assim que o diabo do rapaz vir que tem os trunfos
todos na mão mostrará o seu jogo. Nessa altura, não quereria eu estar na pele do malandreco de que ele anda à caça...
Sandra calou-se, pois avistara, a pouca distância, a figura do ranger, que se aproximava do pequeno grupo. Buffalo Bill foi o primeiro a dirigir-se-lhe:
- Então... está muito cansado? - Bem... - concordou Catamount - , não vou ao ponto de me gabar de que seria capaz de tornar hoje a aturar o "Demónio", mas também
isso não impede que lhes faça companhia no passeiozinho até à Stone Mountain!
- Cody não vem com a gente! - lamentou Slim
Melville. - Desde que você lhe ofereceu o "Demónio", não há quem o arrede do pé do bicho!
O rancheiro ainda tornou a ver se convencia o amigo, mas, esbarrando com obstinada resistência, desistiu.
- Igor e Wassili vão connosco - acrescentou a russa.
- Fazem bem - aprovou o dono da casa. - Mas parece-me que já vão sendo horas de almoçarmos!
Com efeito, o chinês badalava com a sineta, atraindo para casa os cowpunchers dispersos por ali de roda. O Sol surgia para além das colinas.
O pessoal das "Acácias" engoliu, num instante, a refeição da manhã, em companhia dos hóspedes do patrão e, mal se levantaram todos da mesa, Melville mandou aparelhar
as montadas dos quatro homens e da rapariga, que iriam até à região da Stone Mountain.
As oito da manhã, o fazendeiro escarranchou-se no seu cavalo ao mesmo tempo que Sandra subia para a "Volga". Os dois cossacos encontravam-se já nas selas e Catamount
chegava da cavalariça, trazendo o seu fiel "Mesquita" pela brida.
Junto de Gibson e ambos à entrada do cercado, Buffalo Bill acenou com o chapéu a desejar boa viagem aos cinco cavaleiros e depois, de mãos nas algibeiras, estugou
o passo para o recinto onde "Demónio" ficara encerrado.
Estava um dia lindo. Dali a pouco, o grupo de Melville atravessou uma pequena ponte que transpunha um rio e, a seguir, deliberadamente, estugou o andamento das montadas,
direito à Stone Mountain, da qual, sobre o céu límpido, se desenhava, no horizonte, a massa imponente.
O rancheiro continuava sempre a galopar ao lado de Sandra, abrindo o cortejo, seguidos ambos, a pouca distância, pelos dois cossacos, mais calados e reservados do
que nunca. Catamount fechava o grupo.
Do seu lugar, verificava como Slim Melville continuava sempre fascinado pela rapariga, conversando constantemente e fazendo largos gestos, numa exuberância em absoluto
contraste com a calma e impassibilidade dos demais companheiros.
- Mas que magnífica propriedade a sua! - exclamou, a certa altura, a artista de circo, sempre com o mesmo sorriso enigmático, que tanto intrigava Catamount. - O
senhor é realmente o soberano de um autêntico reino!
- Só da menina depende vir "a ser também a soberana - declarou logo, galantemente, o velho amigo de Buffalo Bill.
Sandra não disse coisa alguma e o companheiro continuou:
- Sou muito amigo de Cody, mas realmente ainda não percebi que vantagem tem você em andar feita saltimbanca, lá com o Wild West! Não só se arrisca todos os dias
a um perigo mortal...
- Um perigo?... - atalhou a mulher, não sem estranheza. - Realmente, não vejo...!
- Não vê? Mas em cada espectáculo sujeita-se a ficar ferida por algum dos punhais que os seus camaradas lhe lançam!
- Descanse, que eles são muito hábeis! Ao ver que o velho se preparava para insistir, Sandra deteve-o com um gesto e acrescentou:
- Os meus camaradas são amigos de toda a confiança. Temos vivido unidos, tanto nas horas boas como nas más e, por isso, não conte que eu alguma vez os deixe. Para
mais, não sou mulher que se dedique a um homem. Por muito honrosa e grata que seja a sua proposta, não quero mantê-lo por mais tempo com ilusões. Há-de encontrar,
para companheira da sua existência, outra mulher mais competente do que eu. Por muito bonita que seja a sua propriedade, para mim não representaria outra coisa senão
uma gaiola de grades douradas.
Slim Melville ficou com uma cara muito triste, pois percebeu, pela maneira decisiva como a jovem lhe falou, que escusava de perder tempo com mais argumentos para
a convencer. Para mais, ela prosseguiu, numa inflexão bastante amarga:
- Pode ter a certeza, Sr. Melville, de que não sou daquelas que um dia possam esperar fixar-se num sítio e construir um lar. Veja antes em mim uma ave de arribação
apenas à espera de que baqueie o tirano que escraviza a minha pátria bem amada. Tanto eu como os meus camaradas não aspiramos a mais nada senão a essa liberdade,
por muito sedutoras que nos apareçam as miragens a tentarem que nos desviemos desse sagrado desejo.
Tais palavras deitaram imediatamente por terra o esplêndido optimismo e a risonha exuberância manifestados pelo rancheiro. Apesar de não ouvir a conversa, Catamount
não teve dificuldade em reparar que se produzira qualquer modificação nas relações do velho com a rapariga. Durante longo tempo seguiram calados, mas a cara pingona,
a testa franzida e o olhar triste de Slim Melville deram bem a compreender ao batedor que o lindo sonho do ranchman se desfizera como por encanto.
Entretanto o grupo aproximava-se da região selvática da Stone Mountain, cujo cenário bravio, que por momentos se lhes desenrolou à vista, marcava profundo contraste
com os risonhos vales e as verdejantes pradarias que se sucediam desde que saíram das "Acácias". Agora, somente uma massa enorme enchia o horizonte, como uma imensa
corcova de granito, de flancos lisos e abruptos. Tal era a Stone Mountain.
Os raios de sol iluminavam em cheio a serra e, no seu cume, divisavam-se formas humanas, figuras gigantescas que a pouco e pouco se evadiam da bruma matinal. O fazendeiro
sacudiu então o acabrunhamento em que seguia e estendeu a mão a apontar o grupo, que aparecia como num pano de fundo, e explicou:
- Estão a ver além o monumento aos Confederados, esculpido, a uns quatrocentos pés de altura, no próprio granito. Mostra os soldados sulistas, marchando a pé, atrás
de dois cavaleiros, os generais Lee e Sherman, que se distinguiram na defesa destas terras, durante a Guerra da Secessão.
Tanto a russa como os companheiros detiveram as montadas, impressionados pelo grandioso panorama que se lhes oferecia à vista. Ao mesmo tempo, o fazendeiro continuou,
esforçando-se por disfarçar ao máximo a decepção que sofrera:
- Stone Mountain deve ter sido o Monte Olaime dos índios Creeks, pois, como daqui a bocado verão, o planalto superior é cercado a toda a volta de uma muralha de
resguardo, com milhares de pés de circunferência. Pelas imediações, abundam as grutas, em que se encontraram ossadas, armas, jóias, corpos mumificados. Tudo nos
faz supor que existiu ali uma misteriosa civilização, da mais alta antiguidade.
Catamount ouvia, muito interessado, as explicações do rancheiro, até que de repente estremeceu: enquanto Sandra e os outros continuavam enlevados na contemplação
da enorme massa rochosa, o batedor, quando por acaso se voltou ao de leve para a direita, deu com os olhos num cavaleiro que surgira a curta distância e que, depois
de afrouxar o andamento da montada, parecia observar, com toda a atenção, o pequeno grupo.
Imediatamente lhe acudiu um nome aos lábios: Seth Hartigan! Apesar da distância ainda assim existente, como o ranger possuía boa vista e boa memória para reter feições,
reconheceu perfeitamente o capataz. Este é que não parecia muito interessado em que o vissem, pois imediatamente virou as rédeas ao cavalo e desapareceu atrás de
uns penhascos.
Como nem Slim Melville nem os três russos pareciam ter reparado na presença ali perto do ex-capataz, Catamount
preferiu não lhes falar no assunto, Para mais, logo a seguir o fazendeiro fez sinal para que continuassem a viagem.
O caminho passou a ser pior, pois tiveram de deixar a estrada que seguiam desde as "Acácias" e enfiar por um carreiro em ladeira, serpenteando por entre as rochas.
De minuto a minuto, apertava mais o calor e, como cada vez era mais íngreme a subida, precisaram de se apear para conduzirem os animais pela brida.
Slim Melville animou-os: - Coragem, já pouco falta para chegarmos às muralhas!
Os cascos dos cavalos escorregavam naquelas rochas lisas em demasia, de forma que, em várias ocasiões, os cavaleiros tiveram de se aguentar com toda a força para
que não caíssem e rebolassem pela encosta abaixo.
Finalmente chegaram a uma plataforma, bastante ampla. Aqui, Sandra voltou-se para os dois cossacos e dirigiu-lhes, em russo, quaisquer palavras; vendo que o fazendeiro
e Catamount a olhavam, um tanto admirados, esclareceu:
- Igor e Wassili ficam aqui de guarda aos cavalos. Deste modo, visitaremos melhor a Stone Mountain.
O gigantesco rochedo oferecia agora uma sombra acolhedora, junto da qual os dois russos prenderam os animais. Entretanto, Slim Melville, Sandra e Catamount enfiaram
deliberadamente pelo planalto, resguardado por muros misteriosos e fortes e formado de ciclópicos blocos.
Durante mais de uma hora, a jovem e os dois companheiros aventuraram-se por aquelas penedias caóticas, afastando-se da enorme massa com os soldados e cavaleiros
esculpidos
no granito e que luzia aos raios escaldantes do Sol. Não tardou que os exploradores começassem a notar fendas e orifícios abertos no próprio flanco do monte.
- Muito gostaria de visitar uma destas furnas! - confessou a jovem artista. - Devem ser curiosas!
- Não tem mais do que seguir-me - respondeu-lhe o velho guia - , mas toda a cautela é pouca, pois o terreno por aqui é perigosíssimo e do mais pequeno passo em falso
pode resultar a morte.
- Descanse, que terei cuidado! Mais uma vez, para treparem os penedos, tiveram de fazer autêntica ginástica, em que Slim Melville se mostrou à altura, apesar da
idade, seguindo sempre à frente, voltando-se para ajudar a rapariga a subir e demonstrando uma agilidade e resistência espantosas. Sandra denunciava muito mais o
esforço despendido, parando volta e meia para descansar e enxugar com a mão o suor que lhe luzia na testa.
Finalmente, os três chegaram ao interior de uma vasta gruta, onde reinava tão espessa escuridão que os dois homens precisaram de recorrer às lanternas de algibeira,
de que cada um ia munido. A rapariga, volta e meia soltava gritinhos de espanto ao ver fragmentos de armas e de ossadas dispersos nos numerosos recintos separados
por paredes de rocha.
De repente, o fazendeiro voltou-se para ela e para Catamount, e recomendou-lhes:
- Cuidado agora, porque vamos meter por um corredor que acaba num abismo sem fundo. Dizem que era onde os antepassados dos Creeks, que povoavam a serra, se dedicavam
a sacrifícios humanos, precipitando dali as vítimas.
Durante um quarto de hora, os três visitantes precisaram de caminhar de rastos, atrás uns dos outros, pois o corredor tornava-se por vezes muito apertado e baixo,
obrigando-os constantemente a encolherem a cabeça para não a partirem nalgumas das muitas arestas que o eriçavam.
A alturas tantas, o rancheiro observou: - Se acham o passeio fatigante de mais, podemos muito bem voltar para trás!
- Isso sim! - protestou imediatamente Sandra. - Ande para a frente! Irei até ao fim! Estou morta por chegar à beira desse famoso precipício!
Catamount caminhava atrás dos dois companheiros, com a lâmpada assestada na frente e, como deixava certo espaço entre ele e a rapariga, por vezes na penumbra mal
a descortinava. Além disso, precisava de ir atento às pedras, que a todo o momento se despregavam de cima e tombavam à sua roda.
De súbito, o ranger parou e deitou uma olhadela para trás de si. Seria ilusão? Tivera a impressão de sentir como que uma coisa estranha que se arrastava. Parou instintivamente,
encostou-se à parede de rocha e apurou o ouvido, com toda a atenção. Apenas percebeu o seu próprio coração a pulsar. Virou para a retaguarda o foco da lanterna e
não deu por nada de anormal nem pelo mais leve sinal suspeito.
- Então, você vem ou não vem? - gritou a voz grossa do rancheiro, já bastante distanciado com Sandra.
- Vou já - retorquiu-lhe Catamount. Continuou a arrastar-se e não tardou em ir desembocar numa espécie de plataforma. A escuridão persistia em envolvê-lo, impenetrável.
- Então? - berrou novamente Melville, com a voz repercutida pelas abóbadas, agora muito mais elevadas.
- Aí vou - respondeu-lhe o ranger. Precisou, contudo, de redobrar de cautela, pois a seu lado abria-se um largo precipício e, por mais que lhe procurasse o fundo
com a luz da lanterna, não conseguiu distingui-lo. Apenas à esquerda, para as bandas para onde Slim Melville e a companheira se afastavam, notou uma vaga claridade,
sem dúvida da tal perigosa passagem que tinha ali o seu termo.
Preparava-se o batedor para prosseguir para aquele lado, quando percebeu outra vez atrás de si o mesmo roçar esquisito, que momentos antes lhe chamara a
atenção. Ficou com a impressão de que alguém o seguia. Por isso, bradou:
- Quem vem aí? Não obteve resposta, mas, antes mesmo de ter tempo para se pôr na defensiva, imediatamente se ergueu uma sombra atrás dele e lhe ferrou violento empurrão.
Debalde o ranger procurou agarrar-se; escorregou pelo solo inclinado, desequilibrou-se e desapareceu no abismo, enquanto, ali mesmo ao pé, se ouvia uma gargalhada
sarcástica.
Tudo voltou ao mesmo tenebroso silêncio.
XVII
À PROCURA DO DESAPARECIDO
- Então, meu velho, não tarda que nos tornemos dois bons amigos!
Ao mesmo tempo, Buffalo Bill passava devagar a mão pela opulenta crina de "Demónio". Embora pouco antes o cavalo preto se mostrasse um tanto rebelde a festas, agora
consentia que o Coronel o afagasse. Cody comentou para Gibson, à sua espera, à esquerda:
- O ranger brindou-me com um presente verdadeiramente real! Não tarda que o "Demónio" se torne no orgulho do Wild West!
O Coronel preparava-se para elogiar as qualidades do magnífico corcel, quando de repente se virou para o novo capataz, que acabara de soltar uma exclamação de espanto,
acrescentando:
- Mas que par tão esquisito! Que pretenderão aqueles dois parceiros?
Buffalo Bill seguiu a direcção do dedo estendido do vizinho e avistou um cavalo, que acabara de entrar no pátio do rancho; montavam-no dois cavaleiros e, realmente,
eram para motivar espanto.
Um índio, de pé ligado, conduzia o animal e, na garupa, atrás de si, agarrado com unhas e dentes às suas costas, um homem minúsculo multiplicava-se em gestos e exclamações,
apontando com insistência para a cavalariça onde se encontravam o Coronel e Gibson.
De repente, Cody reconheceu os dois inesperados visitantes:
- "Grande Águia"! Bollobobum!... Que quererá isto dizer?
Os dois companheiros mostravam ter efectuado uma viagem bastante penosa, pois o cayuse que os
transportava cobria-se de suor. O anão escorregou imediatamente para o solo, deixando o índio a cavalo, e deitou a correr a toda a pressa para Buffalo Bill, o qual,
passada a primeira surpresa, se encaminhava para ele.
- Ai, Coronel, Coronel!... Quando parou afogueado junto do patrão, Bollobobum parecia tão aflito que mal podia falar. Já "Grande Águia", impossibilitado de caminhar,
esperava na sela, tão impassível quanto o companheiro parecia agitado.
- Então, sossega!... - recomendou-lhe o empresário. - Explica-te!... Sucedeu algum desastre?
Por mais que o anão diligenciasse recompor-se, continuava a rebolar uns olhos muito espavoridos, enquanto enxugava, com as costas da mão, o suor que lhe escorria
pela cara.
Finalmente, lá conseguiu gaguejar: - Catamount!... Catamount!... - Referes-te ao ranger? - proferiu Cody. - Querem ver que descobriste quem matou Lartigo!...
Em vez de lhe responder, o pobre diabo insistiu com mais força:
- Catamount está cá? Preciso de falar-lhe sem a mais pequena demora!
- O ranger partiu ao amanhecer - respondeu-lhe o Coronel.
Bollobobum exclamou, desesperado: - Valha-me Deus! Chegámos tarde de mais! Passou então a contar, mas interrompendo-se com frequência, a razão por que em plena noite
saíra do Wild West, depois de pedir a coadjuvação de "Grande
Águia". Esperara chegar às "Acácias" antes do amanhecer, mas, para cúmulo do azar, enganaram-se no caminho e tiveram de voltar para trás, perdendo dessa maneira
umas boas três horas. Concluindo, comentou:
- Se Catamount foi com o Igor e o Wassili, está perdido!
Gibson esperava, sem perceber nada daquilo, olhando ora para o Coronel, ora para o desesperado anão. Contudo, pelo ar preocupado do próprio Buffalo Bill, percebeu
que se passava qualquer coisa de grave.
- Catamount foi para a Stone Mountain - explicou Cody. - Acompanhavam-no Slim Melville, Sandra e os dois cossacos.
- Depressa, Coronel! "Grande Águia" fica aqui, pois bem precisa de descansar. Depois, se quiser fazer o favor, abalamos ambos para a Stone Mountain, à procura de
Catamount.
Buffalo Bill tentou acalmar o seu contratado. - Não nos precipitemos. Não é preciso. Antes de mais nada, Catamount é um valentão muito capaz de se defender, se o
atacarem. Depois, mesmo que os três russos não sejam de fiar, está lá também o Slim!
- Garanto-lhe, Coronel - insistiu o anão, no auge do desespero - , que, se lhe não acudirmos imediatamente, sinto o pressentimento de que vai acontecer uma desgraça
ao ranger!
O empresário ainda hesitou um bocado, pouco convencido de que da parte dos russos houvesse a recear qualquer atentado contra Catamount, mas finalmente resolveu fazer
a vontade ao homenzito e disse:
- Bem, vou selar o "Charlie". Mas estou convencidíssimo de que te estás a afligir sem motivo nenhum.
- Oxalá tenha razão, Coronel! Oxalá! - replicou Bollobobum. - Infelizmente tenho a certeza de que não há tempo a perder. Vai ver que ainda acaba por me dar razão!
Dali a cinco minutos, já Buffalo Bill estava a cavalo, depois de dirigir algumas palavras a Gibson e
de o informar, sem entrar em minudências, que ia ter com Slim Melville e com os seus quatro companheiros. De seguida, içou o anão para a garupa e abalou a toda a
velocidade, direito à serra, metendo pelo mesmo caminho seguido um pouco antes pelo pequeno grupo.
Nos primeiros quilómetros, a cavalgada decorreu sem história e Cody aproximou-se ràpidamente da enorme massa de granito que avultava, impressionante, no horizonte.
Havia grande movimento nos dois sentidos, pois era a hora em que os trabalhadores negros iam pegar no serviço e muitos cowpunchers voltavam-se admirados ao ver
passar o Coronel com tão extravagante companheiro.
Fulgia o Sol no zénite quando Buffalo Bill alcançou os primeiros contrafortes da Stone Mountain. Saltaram ambos de "Charlie" e dispuseram-se a subir a pé o planalto.
Quando chegaram .à muralha de resguardo, avistaram uns vultos a movimentarem-se ao longe.
- Não há dúvida! - exclamou Cody, identificando-os imediatamente. - É a Sandra e o Melville!
Também este avistara Buffalo Bill e começou a esbracejar, acenando-lhe que acorresse o mais depressa possível.
- Eu não lhe dizia? - soluçou Bollobobum. - Já sucedeu alguma desgraça! Também avisto os russos, mas não vejo o ranger!
Realmente, não se via sombra de Catamount. Igor e Wassili discutiam animadamente com o rancheiro, e Sandra, a seu lado, parecia também agitadíssima, sacudindo a
chibata com as mãos nervosas e chicoteando constantemente com ela as botas encarnadas.
Slim Melville, logo que se viu a três passos de Buffalo Bill, gritou-lhe:
- Viste Catamount? - Era o que te vinha perguntar - respondeu-lhe Cody, cada vez mais inquieto.
- Então - comentou preocupadamente o rancheiro - , bem receio que fosse vítima de algum desastre.
- Um desastre? O fazendeiro referiu imediatamente ao amigo as condições em que os três visitaram as galerias próximas da muralha. Deixaram os cavalos à guarda dos
cossacos e aventuraram-se naquele autêntico labirinto, formado pelas velhas furnas. Ia ele à frente, seguido imediatamente de Sandra. O ranger ficara um pouco para
trás e, justamente quando ladeava o despenhadeiro dos precipícios, ouviram atrás o estrondo da queda de um corpo. Não tornaram a ver o companheiro nem a lanterna
com que até ali aquele assinalara a sua presença. Preocupados, voltaram imediatamente para trás.
- Chamámo-lo repetidas vezes - continuou o ranchman. - Nada de resposta. Ainda pensámos que se lembrasse de voltar para trás,
mas enganámo-nos.
- Depois, ajudados por Igor e Wassili - acrescentou a russa, que parecia muito impressionada - , tornámos a procurá-lo.
- Não tentaram descer até ao fundo do barranco, do sítio onde viram Catamount pela última vez? - perguntou Buffalo Bill.
- Fizemo-lo - afirmou Slim Melville. - Trazíamos dois laços e, com eles, descemos lá ao fundo
os cossacos. Apenas trouxeram isto.
Melville apontou para o chapéu de Catamount, que Wassili encontrara preso a uma saliência da rocha.
Cody fez uma careta e, ao mesmo tempo, compreendeu o olhar expressivo que o anão lhe deitava. Realmente, os acontecimentos justificavam as apreensões do bom do
homem.
- Contudo -- comentou o Coronel - , admira-me que não lhe encontrassem também o corpo! Mesmo admitindo que o ranger morresse com a queda, com certeza não se evaporou!
- A gente bem o procurou - afiançou Igor, em péssimo inglês. - O fundo do barranco está juncado de ossos. Mas o corpo do ranger é que não encontrámos.
- Depressa, vamos para a galeria de que me falaste! - decidiu Buffalo Bill.
Dali a pouco, Cody, com o anão agarrado aos calcanhares, enfiava pelo mesmo corredor estreito e seguia o mesmo caminho dos três visitantes da gruta. Slim. Melville
e os dois cossacos iam à frente a guiá-los. Sandra, extenuadíssima com as repetidas investigações em que já tomara parte, ficara desta vez de guarda aos cavalos,
no planalto.
Uma boa hora levaram as buscas e Buffalo Bill demorou-se largo tempo junto do local onde o ranger desaparecera.
- Não vejo aqui a menor coisa capaz de provocar uma queda - comentou o Coronel, sem cessar de passear o foco da lanterna pela estreita plataforma que acompanhava
o despenhadeiro a pique.
Como derradeiro recurso, Slim Melville voltou-se para o amigo e resolveu:
- Vou buscar às "Acácias" todo o pessoal, para ver se temos mais sorte nas buscas.
Buffalo Bill aprovou, acenando com a cabeça: - Boa ideia; entretanto, fico aqui com o meu companheiro.
Bollobobum agradeceu com os olhos ao patrão, tanto mais que estava morto por ficar a sós comele, para lhe transmitir o que pensava.
- E eu e o Igor? - perguntou Wassili. - Por agora, não precisamos de vocês. Cuidem de Sandra, que se mostra deveras cansada.
Esta resolução pareceu agradar aos cossacos e Cody chegou mesmo, ao òbservá-los atentamente, a desconfiar de que lhes percebera um sorriso. Wassili e Igor trataram
logo de sair da galeria, com Slim Melville atrás.
Buffalo Bill e Bollobobum ficaram sòzinhos na escuridão daquela impressionante caverna.
Quando as vozes dos russos e do rancheiro desapareceram de todo, o anão perguntou então ao director:
- Que diz a isto, Coronel? Tinha ou não razão para me preocupar?
- Realmente, o caso parece bastante esquisito - concordou Cody. - Este sumiço do ranger acerta perfeitamente com a conversa que apanhaste antes de saíres de Atlanta.
Resta saber em que condições atacaram Catamount.
- Não é muito difícil de calcular-se. No preciso instante em que se aventurou pela borda do precipício, atacaram-no pelas costas e atiraram-no mesmo para o sítio
onde os índios Creeks praticavam os sacrifícios humanos.
- Mas o que mais me admira é só aparecer o chapéu! Se levaram as buscas até ao fim, pela certa encontraram o corpo do ranger!
- Sabe-se lá! Wassili e Igor tinham decerto interesse em que não encontrassem o cadáver.
Enquanto conversavam, os dois homens, debruçados na beira do barranco, conseguiam, com os focos das lanternas, iluminar apenas uma zona bastante limitada, e os círculos
luminosos, projectados ao longo da parede, só a mostravam eriçada de asperezas e de arestas.
- De uma coisa estou certo - proferiu, a certa altura, Cody - : o homem que saltasse daqui chegaria lá abaixo sem conserto!
Pendia ainda ao longo da rocha uma das cordas de que os cossacos e o rancheiro se serviram. Por cima das cabeças, a abóbada desaparecia também na escuridão, onde
se divisavam as pontas de numerosas estalactites.
- Se fôssemos lá abaixo deitar uma vista de olhos? sugeriu Bollobobum.
Buffalo Bill concordou e ia a dizer qualquer coisa, mas o anão interrompeu-o :
- O Coronel fica aqui, enquanto diligencio escorregar até ao fundo. Talvez descubra algumas coisas que os cossacos, voluntàriamente ou não, não perceberam.
Cody aprovou a iniciativa do companheiro, pois Bollobobum, devido à sua pouca estatura, bem como à sua agilidade de acrobata que parecia de borracha, podia, muito
melhor do que o patrão, deslocar-se e manobrar o nó corrediço.
- Está bem-concordou o "Rei dos Escuteiros"-, esperarei na plataforma. Mas fica entendido que me chamarás assim que houver novidade!
- O. K., Coronel! O anão não se demorou muito cá em cima; com a ligeireza de um, esquilo, deixou-se escorregar pela corda abaixo, presa sòlidamente a uma aresta
pedregosa. Dentro de breves momentos, sumiu-se da vista do empresário.
Este viu-se condenado, durante um bom pedaço, à expectativa, imerso na tremenda desorientação que nele provocavam todas aquelas dramáticas peripécias. Realmente,
tanto a conversa comprometedora que o anão surpreendera como a desaparição de Catamount levavam a crer que Wassili, Igor e os outros patrícios tinham sérias razões
para se desembaraçarem do ranger. O Coronel perguntou para consigo:
(- Terão porventura alguma coisa que ver com a morte de Lartigo? )
Porque, por mais que Cody procurasse o motivo por que eles queriam mal ao batedor, não via mais nenhum senão o de este se ter reunido ao Wild West, justamente para
desmascarar e prender os autores da misteriosa morte de Lartigo e, por esta razão, lhes causar sérios temores.
Mas fosse por essa razão ou por outra qualquer, tivessem ou não eles a culpa, Buffalo Bill não duvidava
de que os factos se iam precipitar imediatamente. Talvez, antes de chegarem os reforços das "Acácias", surgisse alguma solução.
Entretanto, o mistério continuava. Cody, ansiosamente debruçado da borda da plataforma, procurava, sem resultado, penetrar nas trevas que lhe ocultavam o anão.
- Hello! - bradou dali a instantes. - Já encontraste alguma coisa?
- Mais um pouco de paciência, Coronel! - respondeu uma voz ao longe.
- Mais ainda? - Ainda não encontrei nada! Mesmo nada! - É incompreensível! Apurou o ouvido para captar o leve ruído que o anão provocava ao escorregar pela corda
e ao chocar com os penedos, enquanto não chegava ao fundo do despenhadeiro. Por fim, Buffalo Bill resignou-se a esperar.
Bollobobum continuava infatigável com a sua perigosa ginástica, tanto mais que chegara à extremidade da corda e ainda ficara a oscilar no vácuo. Lá para baixo, continuava
impenetrável escuridão, pois, para ficar com os movimentos mais livres, o anão prendera ao cinto a lanterna de algibeira e, por isso, sem se importar com a vertigem
ou com o perigo que o poderia ameaçar, olhava cuidadosamente à sua roda à procura de uma aresta ou saliência que lhe servisse de apoio.
Desde pequeno que o homenzito se habituara à perigosa vida dos acrobatas. Fizera de tudo: equitação, trapézio, saltos mortais; qualquer número de circo não tinha
para ele segredos. Sem se incomodar com as esfoladuras dos pés e dos joelhos quando descera pela corda, passou a baloiçar com o laço, à procura de uma base para
se apoiar.
Várias vezes ouviu Buffalo Bill, cada vez mais impaciente, chamá-lo lá de cima, mas respondia-lhe
por rápidos monossílabos e continuava a exploração. Não tardou em soltar uma abafada praga: reparou que a rocha se tornara lisa e sem qualquer ponto onde se apoiar.
Ficou por momentos hesitante, com as pernas pendentes no vácuo.
Sobre a sua cabeça, a escuridão impedia-o de distinguir fosse o que fosse, mas, num supremo esforço, tentou içar-se à força de pulso. Contudo, confiara de mais nas
próprias forças: começou lentamente a escorregar, a ponta da corda escapou-se-lhe das mãos e caiu.
Bollobobum teve a sensação de que a sua queda para o abismo demorava longos minutos. Desta vez, julgou-se irremediàvelmente perdido.
De súbito, produziu-se um violento choque e o artista de circo percebeu que caíra em cima de um monte de entulho, ou coisa semelhante, que se erguia do fundo do
barranco, numa ladeira suave.
Sem conseguir agarrar-se a coisa alguma, o pobre do homem rebolou várias vezes sobre si mesmo, arrastando na queda pedras e fragmentos de rocha. Por fim, parou,
ao esbarrar, com toda a força, contra um penedo, e, meio atordoado, ficou, durante alguns segundos, sem se mexer. Com o trambolhão, a lanterna apagara-se. Preparava-se
para tomar qualquer decisão e erguer-se, quando do escuro saltou um claro estonteante.
O anão, encandeado com a luz, estacou, vendo apenas na sua frente o foco da lanterna eléctrica que repentinamente se acendera a poucos passos dele.
XVIII
ARDIL DE GUERRA
Quando Catamount foi traiçoeiramente empurrado pela retaguarda, desequilibrou-se e, desorientado pelo inesperado ataque, caiu de cabeça para baixo. Pela certa se
despedaçaria no fundo do barranco se, de repente, não ficasse preso à aresta dum rochedo.
Ainda completamente atordoado com a agressão, agarrou-se, com toda a força, àquele providencial sustentáculo, sem se preocupar com o chapéu que lhe tombara para
o fundo. Pendurado, a baloiçar-se em plena escuridão, procurou debalde perceber ao certo onde se encontrava e calcular a distância que o separava do fundo.
Pareceram-lhe intermináveis os segundos que se seguiram, tanto mais que tinha a certeza de que não resistiria por muito tempo, embora considerasse fatal o mais leve
desfalecimento. Para maior aflição, sentiu que a pedra a que se segurava começava a ceder com o seu peso.
Ouviu um leve estalo e outra vez Catamount se sentiu ir por ali abaixo. Capacitou-se de que desta vez era o fim, mas sentiu violento embate. Tombara sobre uma pirâmide
de entulho e, depois, com vertiginosa rapidez, rebolou sobre si mesmo, magoando-se e ferindo-se na aresta e nas pedras que arrastou na queda.
Finalmente, novo choque, que o deixou quase sem
dar acordo de si. Mal distinguia por cima umas vozes ecoando sob aquelas abóbadas: Eram Sandra e Melville a chamá-lo.
Primeiro, sentiu-se extenuado de mais para lhes responder e, depois, quando tacteou, com a mão dorida, o monte de pedras sobre que caíra, reparou que muitas delas
as arrastara consigo quando rebolou.
Outra vez ouviu no alto a voz aflita do ranchman: - Hello! Você está aí? Responda, pelo amor de Deus!
Catamount, já com mais forças, preparava-se para lhe gritar, por sua vez, quando se deteve. Lembrou-se de súbito da cobarde agressão perpetrada contra ele e ocorreu-lhe,
como mais aconselhável, conservar-se mudo, não dar sinais da sua presença, para, deste modo, mais fàcilmente surpreender o miserável que procurara liquidá-lo.
A escuridão que envolvia Catamount servia-o melhor do que nunca. Apenas lá em cima via os círculos luminosos das lanternas de Slim Melville e de Sandra, produzindo
caprichosas sombras a oscilarem volta e meia contra as rochas, mas sem alcançarem o ponto em baixo onde o ranger, cosido com a parede, se encostava, depois de, não
sem dificuldade, se pôr em pé.
Nessa posição, esperou longo tempo, imóvel e calado, depois de, numa rápida inspecção, se assegurar de que não partira, na queda, nenhum braço nem nenhuma perna.
Tinha os joelhos e as mãos cheios de arranhões, na testa uma nódoa, e o corpo moído como salada.
Passou a analisar, com redobrada atenção, o estranho problema que cada vez mais o absorvia. Agora, via o campo de pesquisas extraordinàriamente restringido. Pela
segunda vez, alguém procurara suprimi-lo. Ou, antes, pela terceira, pois, além do caso do escorpião, recordava o incidente da "Volga".
- Sandra... Melville... Igor... Wassili...
Catamount passou em revista estas quatro personagens. De momento, devia pôr fora de causa o fazendeiro e a russa, pois encontravam-se longe de mais na plataforma
para desempenharem qualquer papel na agressão que para ali o atirara. Mais indicado, sem dúvida, seria orientar as suspeitas para os dois cossacos.
O homem dos olhos claros achava bastante fácil que Igor e Wassili, que haviam deixado juntos no planalto, de guarda aos cavalos, se aproximassem, favorecidos pela
escuridão e, no instante em que ele chegava à plataforma que dava para o despenhadeiro dos sacrifícios... Teria sido uma brincadeira de crianças qualquer dos russos
levantar-se de repente e depois, com um irresistível empurrão, atirar com ele para o abismo.
A algumas centenas de pés por cima de Catamount, continuavam a chamar por ele, mas este, mais de que nunca resolvido a tirar partido da manha, permanecia teimosamente
calado. Calculava que, se voltasse a dar qualquer sinal de vida, voltaria tudo à mesma como antes. Esperava deveras, com o auxílio da lanterna, que nunca largara,
conseguir marinhar até à plataforma e sair pela galeria já sua conhecida. Depois, sempre oculto na escuridão, viu os dois cossacos deslizarem pelos laços e procederem
à febril busca, no monte de entulho. Ouviu-lhes o grito, quando deram com o chapéu do desaparecido caído a pouca distância, mas muito longe de imaginarem que o ranger
se encontrava de atalaia ali muito perto, cosido com a saliência de uma parede pedregosa.
Finalmente, completamente desanimados, Sandra, Melville e os dois cossacos, já outra vez lá em cima, suspenderam as pesquisas; os fugitivos clarões das lanternas
sumiram-se de todo e Catamount encontrou-se de novo sozinho, na mais completa treva.
Então, não perdeu mais tempo com demoras: puxou outra vez da lanterna de algibeira e carregou
no botão. Logo surgiu a luz e, sempre apoiado à parede, iniciou as investigações. Verificou então que fora parar mesmo à base da pirâmide de entulho, a qual lhe
amortecera de certo modo a queda. O fundo do barranco juncava-se de pedras de todos os tamanhos.
Mas outros objectos brancos lhe despertaram a atenção: dispersas ao acaso, viam-se por toda a parte ossadas e caveiras.
- Livra! - murmurou o homem dos olhos claros. - A paisagem não tem nada de alegre!...
Aqueles esqueletos deviam ser os restos das vítimas dos sacrifícios dos Creeks. Sem se importar mais com eles, o batedor continuou com as buscas, em toda a extensão
do precipício, a ver se dava com uma saída mais prática do que a superior.
Largo tempo levou sem obter qualquer resultado positivo. Além disso, de um e do outro lado, só via paredes fragosas e desprovidas de apoios que lhe facilitassem
a ascensão. Quanto mais verificava a inutilidade do exame, mais começava a arrepender-se de não ter respondido aos gritos do fazendeiro e dos que o acompanhavam.
Não concorrera, com o seu silêncio, para ficar para ali enterrado vivo?
Contudo, o ranger não era homem que desanimasse ante as dificuldades. Percorridos uns quinhentos metros talvez, atravessando por vezes por entre pilhas de ossos
e de crânios humanos, acabou por esbarrar com uma muralha a pique. Realmente, parecia deveras não existir ali qualquer saída. Estava com certeza preso no fundo do
barranco, onde outrora tantos desgraçados encontraram a morte.
Outras duas horas se passaram, durante as quais, a toda a sua volta, pesou um silêncio sepulcral, ainda mais confrangedor naquelas arrepiantes trevas. Sem saber
já que fazer, Catamount agachou-se sobre um penedo, apagou a lanterna, para poupar a pilha, e ficou à espera.
Não desanimava. Não tardaria que, de um instante para o outro, Slim Melville aparecesse com reforços, embora o batedor preferisse livrar-se daquilo de maneira mais
independente. Se os convencesse de que desaparecera e se mantivesse por momentos entre bastidores, talvez obtivesse resultados eficazes.
Procedeu a nova exploração, a qual só serviu para o capacitar de que de lado nenhum da furna existia qualquer passagem. Decidiu então tentar a difícil escalada da
parede, a pique. Ergueu a cabeça e assestou o foco da lanterna contra a penedia. Soltou uma exclamação satisfeita, pois, a uns cem pés mais acima e quase rasando
com a pirâmide de entulho, oscilava a corda, com os dois laços amarrados um ao outro, por meio da qual os cossacos haviam descido até ao fundo.
Imediatamente, o ranger verificou que qualquer ágil escalador, depois de trepar pela pirâmide de detritos, conseguiria içar-se até à ponta da corda. Feito isso,
disporia de todas as possibilidades de atingir a plataforma, quase no mesmo sítio onde assaltaram Catamount e o precipitaram no vácuo.
Preparava-se, pois, o homem dos olhos claros para iniciar a ascensão quando, de repente, estacou e se coseu com a parede, depois de apagar a lanterna. Tornou a ouvir
em cima vozes e apelos.
- Aí estão de volta outra vez! - murmurou Catamount.
Esforçou-se por não produzir qualquer rumor, chegou-se mais para a parede e olhou ansiosamente para o lado de onde ouvia falar. Apareceram uns clarões furtivos passeando
de um lado para o outro, nos penhascos. Ouviu depois falar, durante algum tempo. Sentiu novos apelos e seguidamente os rumores tornaram-se mais espaçados:
- Parece que se vão embora... - comentou para consigo, um tanto admirado, o batedor) .
Eram dois homens como que na disposição de
continuarem as buscas, suspensas por Melville mais o seu reduzido grupo. Catamount, algo preocupado, esperava com o ouvido à escuta. Tentava ver se identificava
pela
voz os recém-chegados até que murmurou, com um sorriso no semblante rude:
- Cody!... Bollobobum!... Realmente, Buffalo Bill e o anão andavam febrilmente a procurá-lo e, durante breves momentos, detiveram-se na plataforma, a olharem para
o fundo do despenhadeiro.
Catamount mantinha-se imóvel, a ver se conseguia apanhar a conversa dos seus dois amigos; depois, viu oscilar a corda, pendente sobre o entulho, e, a seguir, baloiçar
cada vez mais. O anão resolvera-se a descer.
Enquanto o Coronel esperava, debruçado lá de cima, tentando acompanhar com a vista o seu minúsculo artista, este continuava sem hesitação a executar a sua arriscada
ginástica. Várias vezes o ranger, sempre escondido na treva, o viu baloiçar por cima da sua cabeça, como se fosse uma bola de borracha. Bollobobum descia rápido,
ajudando-se com as asperezas das paredes e só parando para, de vez em quando, falar para Buffalo Bill.
Finalmente, atingiu o monte de pedras, mesmo no sítio onde Wassili e Igor viram o chapéu, mas, com o impulso, o pobre diabo rebolou sobre si mesmo, arrastando consigo
as pedras que se desprendiam e escorregavam ao longo da ladeira. Incapaz de se suster, foi cair apenas a poucos passos do ranger.
Catamount aproveitou-se então do passageiro desmaio do homenzito e resolveu entrar em acção; empunhou a lanterna e depois, chegando-se ao pé de Bollobobum, acendeu-a
e assestou o foco em cheio na cara do atordoado anão. .
Este ficou durante alguns instantes completamente cego e de mãos espetadas em frente do rosto, para defender os olhos daquela luz que o encandeava. Não fazia a menor
ideia de quem, desse modo, assinalava
a sua presença, quando ouviu uma voz conhecida a dizer:
- Viva, meu rapaz! Até aposto que andas à minha procura!
- Catamount! - gaguejou o homenzito, de olhos esgazeados.
Como o amigo, que tão inesperadamente lhe aparecia, não lhe respondeu, ajuntou em tom de censura:
- Não ouviu há bocado o Coronel a chamá-lo? Por que não respondeu?
- Porquê? - respondeu singelamente o batedor. - Porque cá tinha as minhas razões para não tugir nem mugir!
Por sua vez, ouviram a voz rude de Buffalo Bill a gritar lá do alto:
- Catamount? É você que aí está? - Sou, sim, Coronel - respondeu o interpelado. - Dê-me daí uma ajuda. Não tarda que lhe conte por miúdos tudo o que se passou.
Reunindo os esforços, o anão e o ranger escalaram a pirâmide de entulho. Depois, nos bicos dos pés, o segundo conseguiu apanhar a ponta da corda que baloiçava no
espaço e, virando-se para o anão, ordenou-lhe:
- Agarra-te a mim com quanta força tenhas! Bollobobum assim fez e achou mais seguro saltar para as costas do companheiro. Este respirou fundo e decidiu-se então
a iniciar a escalada.
Dali a cinco minutos, já Cody lhe podia estender a mão para o ajudar e, finalmente, Catamount voltou a pôr o pé na plataforma.
- Você sempre nos pregou um destes sustos! - foram as primeiras palavras do empresário. - Já o dávamos por morto! O bom do Melville ficará radiante quando o souber.
- Nem por sombras pense em contar-lho-atalhou imediatamente o batedor. - Até nova ordem, devo
estar morto para o ranchman e, com mais forte razão, para os outros três.
- Explique-se! - pediu Cody, verdadeiramente admirado com aquelas palavras.
- Se o Coronel não se importa, começarei por fumar um cigarrinho. Permitir-me-á ficar com as ideias mais claras.
Catamount escolheu, com evidente satisfação, um cigarro da cigarreira, após oferecer um a Buffalo Bill. Depois de os acenderem, o segundo não deixou de insistir:
- Não percebo patavina! Melville disse-me que o chamara umas poucas de vezes depois de você desaparecer. Por que não lhe respondeu?
- Porque tinha cá as minhas razões para me fazer passar por morto. Por isso é que repito que, até nova ordem, fiz-me em pedaços lá no fundo do barranco e vocês apenas
encontraram o meu cadáver.
Bollobobum, que se acocorava ao lado do Coronel, abria uns grandes olhos espavoridos, mostrando-se tão surpreendido como o patrão, mas Catamount prosseguiu, com
a sua habitual placidez:
- Há que acabar o mais depressa possível com as minhas investigações. Por alguns incidentes ocorridos desde que acompanho o Wild West, disponho de razões de peso
para me convencer de que não anda longe de nós aquele que procuro. Melhor ainda: o novo atentado de que fui vítima autoriza-me a pensar que o patife deve pertencer
ao pequeno grupo que veio às "Acácias".
Catamount ainda imaginou que a sua revelação produziria certa surpresa em Buffalo Bill, mas este retorquiu-lhe imediatamente:
- É exactamente essa a minha opinião, meu rapaz! Você está na boa pista. Aí o miúdo pode fornecer-lhe a esse respeito informações particularmente interessantes.
O "miúdo" era Bollobobum, para quem Buffalo
Bill risonhamente apontava. O interpelado não esperou por mais tempo para explicar o motivo que o levara a acorrer às "Acácias", não se esquecendo de citar a prestimosa
colaboração de "Grande Águia", mas insistindo particularmente na estranha conversa surpreendida aos cossacos, no seu carro.
- Aí está deveras a prova de que juraram a minha perda, antecipadamente - comentou Catamount. - Resta saber quem foi encarregado de a executar.
Relatou, a seguir, aos dois interlocutores, como enfiara pelo labirinto da Stone Mountain, seguindo de perto Slim Melville e Sandra.
- Estes dois devem ser postos fora de causa - esclareceu. - Só me resta saber quem foi que enfiou atrás de mim e me obrigou a dar um salto quase mortal... Podia
ser um dos três...
- Três? - estranhou Bollobobum. - Pela minha parte, só vejo dois: Igor e Wassili!
- É que não lhes contei que vi Seth Hartigan a rondar pelas imediações do planalto, pouco tempo antes de me aventurar pela galeria, com Melville e Sandra!
O anão desconhecia o episódio desenrolado nas "Acácias", justamente na altura em que Catamount se preparava para dominar o cavalo preto. Cody lembrava-se, tão bem
como o ranger, do ar ameaçador do ex-capataz de Slim Melville e das palavras de vingança que proferira. Havia realmente fortes motivos para imaginarem que o aleijado
se aproveitasse daquela ocasião para se desforrar.
-- Portanto, entre os três: Wassili, Igor ou Seth Hartigan, temos com certeza o culpado - concluiu Catamount.
- Mas que tem Hartigan a ver com a morte de Lartigo? ! -- exclamou o Coronel.
- Parece que nada, embora os acontecimentos se encadeassem de tal maneira que um e outro caso acabaram
por se relacionar entre si - replicou o homem dos olhos claros.
- O que não deixaremos é de exigir, logo que chegarmos ao rancho, que nos prestem as indispensáveis explicações! - protestou acaloradamente Buffalo Bill.
- Com licença, Coronel, com licença... - atalhou o ranger.- Não exijamos nada, não os provoquemos... E, se seguirem os meus conselhos, tanto um como outro, verão
que as próximas horas serão decisivas e dar-nos-ão a solução do enigma que tanto nos intrigou, e o castigo do culpado ou dos culpados!
- Acha que há mais do que um? - perguntou Cody.
- Não ouviu o que Bollobobum contou? Se um estava encarregado do ataque, os outros encorajaram-no e fizeram ardentes votos para que o parceiro se saísse bem da sua
criminosa tentativa.
- Mas, no fim de contas, por que é esta sede contra você?
- Já lhe disse, Coronel, que não falta muito para que o saibamos. Mas não se esqueçam de que estou morto... até nova ordem! Vão entrar nas "Acácias" com um cadáver.
Convém a todo o custo que os assassinos de Lartigo se convençam de que ficaram para sempre livres da minha presença. Se se capacitarem de tal, não tarda que desça
o pano no final do drama.
- Nesse caso, não há tempo a perder! - exclamou o anão. - Melville foi à procura de reforços. Pode, de um momento para o outro, recomeçar com as buscas.
- Poupemos a essa boa gente do rancho um trabalho escusado - disse Catamount. - Vocês não terão por aí uma lona ou uma manta?
- Trago uma enrolada no arção da sela - respondeu Cody. - Mas por que carga de água...?
Sem o deixar concluir, Catamount proferiu:
- Então, óptimo! Basta que façam o que lhes
vou dizer.
Ràpidamente, sem esquecer qualquer pormenor, o homem dos olhos claros expôs aos dois amigos o seu plano.
XIX
MORTE E RESSURREIÇÃO DE CATAMOUNT
- By Jove! Parece-me o Buffalo! Slim Melville, à frente do grupo de cowpunchers que seguia a toda a pressa, vindo das "Acácias", para retomar as pesquisas, estacou
o cavalo. A seu lado, Gibson travou também com violência a montada e ergueu-se nos estribos, olhando atentamente para o ponto que o patrão lhe indicava.
Aparecera realmente um homem, a descer a íngreme ladeira que levava ao atalho entre penedias; trazia o cavalo pela brida e era incontestàvelmente Cody, com "Charlie".
Um pouco atrás, caminhava apressadamente o anão, esforçando-se por não se distanciar do seu director.
- Tem graça! - exclamou o capataz. - Parece que trazem qualquer coisa em cima do cavalo!
Gibson reparara efectivamente que "Charlie", o cavalo de Buffalo Bill, vinha carregado com um fardo bastante volumoso, atravessado na sela.
Slim Melville soltou um grunhido abafado: - God Almight! Dir-se-ia o corpo de um homem, embrulhado num pano!
Durante alguns minutos, os cowpunchers, que também haviam parado, olhavam uns para os outros, a calcularem já que Buffalo Bill conseguira finalmente encontrar o
que procurava, mas apenas sob a forma de um cadáver!
Cody, contudo, avistara-os e estugara a montada, aumentando assim as dificuldades de Bollobobum para o acompanhar. Por seu lado, Melville e o pessoal retomaram a
marcha e desta maneira os dois grupos não tardaram a encontrar-se.
O ranchman foi o primeiro a saltar para o chão, perguntando imediatamente:
- Há alguma novidade? - Encontrámos o ranger - respondeu-lhe o Coronel, apontando para o macabro fardo, estendido em cima de "Charlie". - O pobre rapaz foi cair
numa cova onde, na queda, fracturou o crânio. Deve ter tido morte fulminante.
O fazendeiro abanou tristemente a cabeça e disse: - Ainda estou para saber como conseguiu ele escorregar! A plataforma era bastante larga e nós dois já passáramos
por ali, sem qualquer dificuldade! Talvez tropeçasse... Com certeza escorregou e não encontrou nada a que se agarrar. Nessa altura, encontrávamo-nos afastados de
mais para o segurar.
- Não ganhamos nada em ficar para aqui parados - atalhou logo Cody. - O melhor ainda é regressarmos ao rancho.
Os cavaleiros das "Acácias" deram meia-volta, Gibson içou o anão para a garupa da sua montada, enquanto Buffalo Bill saltava para a sua, segurando, na sua frente,
o corpo do batedor, envolto numa manta e atravessado contra o pescoço de "Charlie".
Durante o trajecto, nem o proprietário nem os companheiros trocaram palavras, pois a morte trágica do homem dos olhos claros deixara-os extremamente pesarosos. Ainda
subsistia bem presente, na memória de todos, a coragem com que Catamount conseguira domar o cavalo preto. Valentes como aquele eram cada vez mais raros!
Ao aproximarem-se das "Acácias", Cody avistou, antes de qualquer outra pessoa, a figura de Sandra, à espera à entrada do pátio e parecendo bastante preocupada
com o que acontecera ao ranger. Denunciou um trejeito no semblante ao avistar o Coronel cavalgando lado a lado com o seu malogrado pretendente.
- Então? - perguntou ela, correndo ao encontro dos recém-chegados.
Buffalo Bill, sem proferir palavra, limitou-se a apontar para o seu lúgubre fardo.
- Vamos transportar o corpo para um dos quartos - decidiu Slim Melville.
O dono da casa queria ajudar Cody a transportar o corpo do ranger, mas o Coronel já saltara para o chão, erguera o cadáver nos seus robustos braços e encaminhava-se
para a entrada da residência. Antes de atravessar a porta, viu, para os lados das cavalariças, Igor e Wassili olhando muito interessados para o grupo.
Tratou, contudo, de seguir imediatamente Melville e, sempre ajoujado com o batedor, começou a subir os degraus que conduziam ao primeiro andar. O ranchman abriu
uma das portas que davam para o corredor e apontou para uma cama logo à entrada.
- Deite-o aí - disse lacônicamente. - Vou pôr aqui de vela um dos meus cowpunchers.
O anão, porém, que subira velozmente a escada, interveio logo:
Quem fica aqui sou eu mais o "Grande Águia"! Dali a pouco estava armada a câmara ardente: fecharam as portas da janela e acenderam uma vela, colocada numa mesa próxima.
Apareceu o índio, ajudado por um vaqueiro, que o conduziu até uma cadeira colocada à cabeceira do morto, enquanto Cody e Bollobobum se preparavam para o vestir pela
última vez.
Catamount tinha a cabeça envolta em ligaduras, que lhe escondiam uma parte do rosto. Parecia dormir, mostrava uma expressão serena, e o Coronel chegou-lhe piedosamente
até ao queixo um lenço de imaculada alvura.
- Pobre Catamount!... Que desgraça!...
Sandra aproximara-se nos bicos dos pés e os seus olhares detiveram-se longamente na máscara marmórea do defunto. Preparava-se mesmo para o observar mais de perto,
mas Cody afastou-a e, ao mesmo tempo, puxou mais para cima o lençol, que cobriu completamente a cara do ranger,
- Eu fico - decidiu Sandra. - Não é preciso - objectou Buffalo Bill. - Está aí "Grande Águia".
O índio, com o pé ferido cuidadosamente ligado, mantinha uma impassibilidade de estátua. Dois passos mais atrás, Bollobobum virava e revirava nervosamente o chapéu
entre os dedos trémulos; parecia atrapalhadíssimo.
Sandra, em vista da objecção do director, não insistiu. Dirigiu-se para a porta que dava para o corredor, onde os cowpunchers se aglomeravam e que se afastaram para
a deixar passar.
De costas voltadas, Slim Melville dizia qualquer coisa a um dos seus homens. A russa aproveitou para atravessar ràpidamente o corredor, direita à saída.
Mal dera meia dúzia de passos no pátio, parou, como quem procura alguém. Luziu-lhe um clarão nas pupilas ao avistar Igor e Wassili, ainda imóveis no mesmo sítio,
sentados à sombra das cavalariças, que os vaqueiros tinham fechado depois de ali reconduzirem "Charlie", "Mesquita" e os demais cavalos. "Volga" também ali se encontrava,
com a cabeça espetada por cima da baia. Logo que avistou a dona, relinchou, satisfeita.
- "Volga", minha pombinha! - disse-lhe meigamente a jovem russa.
Deteve-se alguns instantes junto da égua e a não mais de dois passos de distância do ponto onde os dois compatriotas esperavam.
A rapariga começou por tirar da algibeira um bocado de açúcar que estendeu ao animal. Este tratou
imediatamente de trincar a guloseima, evidenciando a maior satisfação.
Igor e Wassili voltaram-se e ficaram de olhos cravados na patrícia e numa expressão de certa ansiedade interrogativa.
Por fim, os lábios da rapariga moveram-se quase imperceptivelmente para dizer:
- Morreu. Escusamos de nos ralar mais, de hoje para o futuro. Podem estar tranquilos.
Enquanto tal dizia, Sandra esboçou um rápido sinal da cruz, ao mesmo tempo que os dois acólitos, como por encanto, mostravam semblante mais alegre. Qualquer deles
parecia aliviado de tremenda preocupação.
Continuando a afectar absoluta indiferença, a mulher não deixou de afagar a égua branca durante mais uns minutos. A seguir, içou-se para a vedação do cerrado e,
enquanto mastigava entre os dentes, de deslumbrante alvura, um pedacinho de erva que apanhou, ficou a baloiçar levemente as pernas, sem tirar os olhos da habitação
e, principalmente, da janela fechada, detrás da qual o ranger dormia o último sono.
Os dois cossacos, porém, pareciam ainda um tanto desnorteados e, mais nervosos do que a colega, mostravam-se ansiosos por conhecer pormenores, Por isso, deixando
para trás a fleuma que sempre ostentavam, levantaram-se e cada um instalou-se a um lado da rapariga, ambos apoiados à divisória. Vendo-se apertada daquela maneira,
a russa sussurrou-lhes:
- Cuidado, podem desconfiar! Wassili deitou uma olhadela rápida pelas imediações e, como não avistou ninguém, mais tranquilo, voltou-se para Sandra, a perguntar:
- Agora... que vamos fazer? Obteve serena, rápida e imediata resposta da interpelada:
- É muito simples! Não temos outra coisa a fazer senão continuar!
- Voltamos para o Wild West? - inquiriu, por sua vez, Igor.
- Realmente, lá porque nos vimos livres de um maçador, não é por isso que o mundo pára! Podemos ficar descansados, pois toda a gente atribuirá o caso a desastre.
Ao ver que os companheiros ainda não pareciam convencidos de todo, a russa prosseguiu:
- Ninguém neste mundo pode agora afirmar que alguém empurrou Catamount para o fundo do abismo. Só eu sei que ambos seguiram sorrateiramente o ranger e que, como
se combinara, quando me encontrava bastante afastada com o Melville, conseguiram introduzir-se nas furnas e...
Os dois cossacos recordaram ràpidamente a cena que a companheira lhes descrevia. Realmente, haviam-se aproveitado do facto de os deixarem de guarda aos cavalos para
se aventurarem na peugada de Catamount. No instante preciso em que este lhes virava as costas, sem desconfiar de que alguém o ameaçava, Wassili adiantara-se, atirara-se
de repente e, num brutal empurrão, precipitara o homem dos olhos claros no despenhadeiro.
- Ora os mortos não falam! - concluiu Sandra. - De hoje para o futuro, poderemos continuar a viver como se nada se tivesse passado, livres do nervosismo que esse
homem constantemente nos provocava. Era uma existência impossível! Via a toda a hora, cravados em mim, aqueles seus olhos de um azul de aço. Parecia pretender adivinhar-me
os mais íntimos pensamentos. Se não nos aproveitássemos desta ocasião, não faltaria muito para que esse tal Catamount adivinhasse que quem matou o Lartigo foi...
- Cautela! - interrompeu-a de repente Wassili. - Vem aí alguém.
Simultâneamente, os três russos voltaram-se para
o lado direito e repararam então num cavaleiro, que acabara de entrar por uma portinha que dava ingresso ao cerrado. Ao vê-los, encaminhou-se para os dois homens
e para a rapariga. Esta exclamou:
- Tem graça! Parece-me que esta cara não me é estranha!
- Não admira - replicou-lhe Wassili. - É o anterior capataz de Melville.
Realmente, era Seth Hartigan, o aleijado, que se aproximava a todo o galope do seu cavalo, para dali a breves minutos chegar junto do terceto.
Saltou para o chão, esboçou o mais amável dos sorrisos e disse:
- Corre tudo às mil maravilhas! Precisava justamente de lhes falar!
Apontou para a residência e acrescentou: - Mas, como não gosto de que algumas orelhas indiscretas me oiçam nem sinto o menor empenho em me encontrar outra vez com
o meu antigo boss, desejava dizer-lhes umas palavrinhas em particular...
O dedo de Seth Hartigan apontava justamente para o lado oposto, indicando a extremidade do corral, onde, um pouco mais longe, se distinguia uma moita de acácias.
- Estaremos ali mais à vontade para cavaquear - acrescentou.-Prefiro que ninguém desconfie da minha presença. Tanto mais que, pela parte que lhes diz respeito, vocês
serão os primeiros empenhados em que ninguém do rancho adivinhe que vim aqui.
A rapariga franziu levemente a testa e, embora aquele preâmbulo em nada a esclarecesse, reparou que o aleijado piscara matreiramente o olho.
Sem mais hesitações, Seth Hartigan levou o cavalo pela brida e, a manquejar, dirigiu-se o mais depressa possível para o ponto que indicara aos três russos.
Wassili pareceu indeciso e Igor crispava nervosamente o punho. Sentia a irreprimível tentação de esmurrar o ex-capataz, que os tratara de forma quase
insolente, mas Sandra, incapaz de afectar as repentinas apreensões que a assaltaram, fez sinal aos compatriotas para que acompanhassem, com ela, o Hartigan.
Dali a três minutos, alcançavam o coxo, o qual mascava calmamente o seu tabaco. Começou por olhar lentamente para cada um dos russos e, a seguir, expeliu contra
as ervas um jacto de saliva amarelada.
Só então entrou deliberadamente no assunto: - Desde que abandonei as "Acácias", nas condições que vocês conhecem, nunca mais arranjei trabalho.
Sandra esboçou um gesto evasivo e limitou-se a dizer:
- Sinto muito mas não vejo em que tal facto nos possa presentemente interessar.
- Com seiscentos diabos! - praguejou o antigo capataz. - Interessa muito mais do que vocês parecem imaginar!
Ao ver a surpresa dos três russos, olhando-o interrogativamente, Seth Hartigan continuou:
- Desta manhã para cá que nem um cent trago na algibeira. Ora vocês imaginam que possa viver do ar?
- Lamento -repetiu Sandra, que a custo se continha ante o tom irritante do brutamontes - mas não temos absolutamente nada que ver com o que lhe acontece.
- Mesmo nada - acrescentou Wassili. - Tanto mais...
O aleijado interrompeu-o em tom rude: - Preciso de mil dólares!
A rapariga esboçou um gesto de impaciência. Igor aproximou-se, dominando Hartigan com a sua elevada estatura e mais ameaçador do que nunca.
- Por São Nicéforo! -bradou num péssimo inglês e carregando muito nos rr. - Já lhe chegaram a roupa ao pêlo. Se continua a falar-nos dessa maneira, estou pronto
a pregar-lhe outra tareia.
Todavia, nem a atitude nem as ameaças do cossaco pareceram intimidar o estropiado, que replicou:
- Se me baterem... se se negarem a entregar-me os mil dólares que lhes peço, darei com a língua nos dentes.
- Com a língua nos dentes? - repetiu maquinalmente Sandra.
O rústico virou-se para ela, de sobrancelhas crispadas mas com um sorriso mordaz no semblante, e acentuou:
- Sim, com a língua nos dentes! Contarei a maneira como o ranger se foi espatifar lá em baixo, no despenhadeiro dos sacrifícios, quando caiu do alto da galeria,
lá para as bandas da Stone Mountain!
Igor levou instintivamente a mão ao cabo do punhal, que sempre trazia espetado no cinto, enquanto Wassili recuava como que para, de feições enfurecidas, se atirar
a Seth Hartigan. Este, porém, que parecia continuar muito senhor de si, ao notar que Sandra ficara como que estúpida, incapaz de explicar aquela repentina acusação,
prosseguiu:
- É que eu também andava lá por esses sítios! Havia um bocado que avistara o grupinho de visitantes, entre os quais se contava o ranger. Por isso, deixei o cavalo
a pouca distância dali e, cautelosamente, dirigi-me para o planalto, mesmo na altura em que esses cavalheiros se preparavam para enfiar pelas furnas, deixando-os
a vocês dois de guarda cá fora.
Seth Hartigan reparara que, à medida que falava, os seus auditores pareciam a pouco e pouco ficar menos agressivos. Igor e Wassili trocaram uma olhadela rápida enquanto
Sandra não tirava os olhos do coxo, o qual prosseguiu com a maior das calmas:
- Que querem? Sou muito curioso!... Fiquei um tanto admirado com a atitude aqui dos cavalheiros. Por isso, segui-os também, pois conheço aquele sítio como a palma
da mão e assim não me custou nada aproximar-me
de todos, sem que, mesmo ao de leve, desconfiassem da minha presença.
O que Seth não explicou foi que se dirigira para aquelas penedias igualmente animado de um propósito de vingança. Não se lhe varria da memória a magistral lição
que Catamount lhe dera e, quando viu o grupo aventurar-se pela serra, lembrou-se de que talvez se lhe oferecesse uma ocasião excelente para se vingar do ranger.
Pensou para consigo que, escondido na escuridão, podia esperar muito bem que o homem dos olhos claros se aproximasse e... Mas aguardou primeiro que os dois russos
enfiassem por sua vez pela galeria e, depois de eles passarem, entrara também no lúgubre recinto.
Seguira-os durante um bom bocado e chegara igualmente à entrada da plataforma quando viu Wassili adiantar-se de rastos atrás do ranger, atacá-lo pelas costas e fazê-lo
despedaçar-se lá em baixo no precipício.
A partir dessa altura, desinteressou-se por completo da vingança: outro se encarregara de a executar por ele. Não obstante, não quisera perder a oportunidade de
tirar proveito da situação, por meio de uma lucrativa chantagem sobre os dois cossacos. Mas já se convencera, pelo procedimento que notava agora em Sandra, de que
esta também tinha rasca na assadura.
Enquanto o terceto continuava espantado a ouvi-lo, rematou:
-- O negócio é claro como água! Se alguma vez apareço como testemunha, vocês serão imediatamente presos. Portanto, parece-me que mereço bem os mil dólares!
Durante alguns minutos, reinou absoluto silêncio. Tanto os dois cossacos como a companheira mostravam-se deveras atrapalhados. A intervenção daquele importuno parecia-lhes
prenúncio de sérias consequências. Seth Hartigan tinha-os- deveras nas mãos e, se se
recusassem a satisfazer-lhe a exigência, era muito capaz de passar das ameaças aos actos.
- Mil dólares! - exclamou Sandra. - Não lhos podemos dar pela simples razão de que não os temos!
- Não faz mal... Dão-me agora alguma coisa por conta. E o resto, depois de amanhã em Atlanta Como vêem, não lhes ponho a faca aos peitos. Dou-lhes assim um prazo.
Mas também preciso de comer. Senão, vou à Polícia e ponho tudo em pratos limpos! Ficarão então a saber a forma como o ranger morreu.
Sandra tirara uma carteira do bolso e contava algumas notas, enquanto Wassili e Igor se consultavam com o olhar.
- Vamos, despachem-se! - insistiu Seth Hartigan, que começava a impacientar-se. - Temos todos interesse em que ninguém me veja aqui pelas "Acácias". Se surge alguém,
que explicação lhe daremos por nos encontrar todos juntos? Por enquanto, não temos nada a temer, visto que estes arbustos nos escondem dos olhares indiscretos, mas
isso não impede que nos despachemos quanto mais depressa melhor. Que importância me podem entregar neste momento?
- Não tenho mais de quatrocentos dólares - murmurou surdamente a russa.
- Não faz mal! Vou a Atlanta receber o resto, antes de o Wild West ir pregar para outra freguesia. Sei muito bem onde os hei-de encontrar...
Sandra preparava-se para entregar as notas ao miserável quando, de repente, o aleijado soltou um grunhido surdo: Igor atirara-se a ele e, antes de o capataz o poder
evitar, o colosso apertou-lhe as goelas e, brandindo o punhal de lâmina aguçada, encostou a ponta à base do pescoço do facínora.
- Acabemos com isto! - resmungou ameaçadoramente o cossaco. - Esta comédia já durou de mais! Não vamos submeter-nos às exigências deste patife! Viu-nos? Que lhe
faça muito bom proveito! Vamos desembaraçar-nos dele, pois é a única maneira de nos
vermos para sempre libertos duma incómoda testemunha.
Apesar de Igor se exprimir em russo, Hartigan compreendeu perfeitamente quais as suas intenções, tanto mais que o punho de ferro do agressor quase o estrangulava.
A seu lado, viu Wassili pronto a acudir em socorro do acólito.
Somente Sandra parecia indecisa; voltara-se inquieta para os lados do rancho, como se temesse que alguém lá de baixo percebesse aquela discussão.
Igor virou-se para ela a consultá-la: - Então, sangro-o como se fosse um porco vulgar? O ex-capataz procurou debater-se desesperadamente, mas Wassili entrou por
sua vez em acção, agarrou-lhe nos pulsos e puxou-lhos ràpidamente para as costas. Assim, reduziu-o à mais completa impotência.
Com as feições congestionadas, o rosto contraído de raiva e desespero, Seth sentiu o bico do punhal cada vez a picar-lhe mais na garganta. O suor escorria-lhe da
testa. Viu-se perdido, sem apelo.
- Damn! - rugiu. - Ao menos, esperem! - Vamos, despachemo-nos! O colosso, depois de proferidas estas palavras, olhou atentamente à sua roda e preparava-se para cravar
o punhal na garganta da vítima quando de repente soou ali perto, por detrás do maciço de acácias, uma voz clara que proferiu:
- Um momento só... Desta vez, Sandra e os três homens julgaram sonhar. Reconheceram a quem pertencia aquele timbre de voz imperativo e, para mais, os ramos afastaram-se
para dar passagem a um homem. De pistola em punho, cabeça livre das ligaduras que ainda não havia muito tempo a envolviam., Catamount surgiu a três passos do grupo.
Um pouco atrás apareceu outro vulto, mas este mais pequeno, pois era o do anão Bollobobum.
- Catamount!-gaguejou Seth Hartigan, ao mesmo
tempo que sentia afrouxar-lhe na garganta o apertão do russo.
A mulher e os três homens não conseguiam explicar como fora que aquele que julgavam morto conseguira tão surpreendentemente ressuscitar, mas o recém-chegado não
lhes deu tempo para se recobrarem do espanto e ordenou:
- Vamos! Os quatro, de mãos no ar! Igor esboçou um gesto de revolta, mas o ranger bradou-lhes:
- Mãos no ar, senão disparo! Reconhecendo inútil qualquer espécie de resistência, todos obedeceram dòcilmente.
XX
SUPREMA EVASÃO
Durante breves instantes reinou absoluto silêncio, até que as gargalhadas esganiçadas de Bollobobum o interromperam. O anão, de mãos nas ilhargas, parecia radiante
com a imprevista cena que se desenrolava ante os seus olhos. Imóveis, de mãos espetadas para o ar, Seth Hartigan, Wassili e Igor esperavam, com os olhos cravados
no colt que Catamount lhes apontava. Sandra, um pouco afastada dos cúmplices, parecia hesitante, mas a voz do ranger soou outra vez e sempre imperiosa:
- A ordem é para você também! Não julgue que me seduz, pois já estou suficientemente edificado a seu respeito.
A mulher, pálida como a morte, apenas hesitou breves segundos até erguer devagar os braços, imitando os três homens.
Finalmente, ouviu-se rumor de passos apressados, que se aproximavam cada vez mais, e Slim Melville apareceu, seguido logo de Gibson.
Quando o rancheiro deu com o quadro que se desenrolava na extremidade do seu corral, ficou de boca aberta, petrificado, como se não acreditasse no que se lhe oferecia
à vista.
- Mas que brincadeira é esta? - exclamou, finalmente, voltando-se para Catamount.
- Esta brincadeira apenas significa que cheguei ao fim da pista - respondeu imperturbàvelmente o homem dos olhos claros. - Como vê, encontra-se precisamente, nesta
altura, na sua presença este simpático grupo, com certos pecadilhos a pesar-lhes na consciência, sobretudo a morte de Lartigo!
- Aldrabice! - protestou imediatamente Seth Hartigan. - Como diacho podia eu matar esse Lartigo, se nem sequer o conhecia?
- Admitamos que você não tenha nada a ver com esse crime - declarou o ranger - mas a verdade é que está de conivência com estes russos. Ainda há bem pouco tempo,
na Stone Mountain...
- Isso não é verdade! - atalhou impetuosamente o ex-capataz. - Quem ferrou com você pela ribanceira abaixo não fui eu. Pergunte-o antes aí a esse parceiro.
Ao proferir esta acusação, o aleijado apontava com o dedo para Wassili. Este, impassível, não pestanejou nem esboçou uma negativa. À sua direita, Igor conservava
igual postura.
Slim Melville e Gibson olharam, desorientados, um para o outro, ao mesmo tempo que chegava Buffalo Bill com alguns couTunchers, espantados ao máximo pelo aspecto
que os acontecimentos tomavam e em especial com a surpreendente ressurreição de Catamount, cujo "cadáver" tinham visto chegar havia pouco.
Seth Hartigan tratava de se desenvencilhar daquele sarilho com todos os recursos de que dispunha e preparava-se para continuar com a acusação e explicar a forma
como presenciara o empurrão que Wassili pregara no batedor, quando Sandra, num gesto, manifestou desejo de dizer qualquer coisa.
-É escusado estarmos para aqui a complicar mais as coisas - proferiu. - Fui eu que matei o Lartigo.
Antes de qualquer dos presentes proferir a menor palavra, a russa continuou numa inflexão resoluta:
- Matei Lartigo porque esse homem não passava de um cobarde e de um traidor, que se preparava para
me denunciar, assim como aos meus camaradas. Executei deliberadamente esse acto justiceiro. Portanto, sou a única responsável e os meus camaradas foram apenas instrumentos
dóceis às minhas ordens, mesmo que soubessem, tão bem como eu, que esse miserável podia entregar-nos, de um momento para o outro, nas mãos dos nossos implacáveis
inimigos.
O fazendeiro ainda esboçou o intuito de acudir em defesa da rapariga, mas, depois de ouvir aquela espontânea confissão, ficou sem saber para que lado se voltar,
Instantes antes, ainda considerava indigno e falso o imaginar Sandra capaz de matar fosse quem fosse, mas agora, que ela própria o afirmara, ficou estarrecido, com
semblante carrancudo, enquanto, a seu lado, Gibson e os cowpunchers procuravam descobrir uma explicação para aquele sucesso espectacular e desorientador. Quanto
a Buffalo Bill, um pouco afastado, esperava pacientemente o desenrolar dos acontecimentos. Quando regressou da Stone Mountain, já sabia qual o plano do ranger, que
lho confiara, assim como a Bollobobum, antes de regressarem às "Acácias". Agora, pensativo, observava com atenção a sua formosa contratada.
Apesar de, durante muitos dias e muitas noites, a seguir à misteriosa morte de Lartigo, Sandra conseguir manter o sangue-frio, agora, diante de Catamount, desistira
de qualquer reacção e convencia-se de que, apesar de todos os esforços empregados para afastar do seu caminho a intervenção da Justiça, perdera a partida.
Numa voz levemente trémula, insistiu outra vez: - Só a mim têm de pedir contas. Seguidamente, enquanto o pessoal da fazenda rodeava o reduzido grupo e os russos
Wassili e Igor continuavam mantidos em respeito sob a ameaça do colt de Catamount, que não faria cerimónia em disparar se notasse nos russos qualquer propósito de
agressão, a jovem russa resolveu confessar totalmente o que fizera.
Quando desembarcara nos Estados Unidos, acompanhavam-na os cossacos com quem trabalhava. Na Ucrânia, sofreram dura perseguição por parte da implacável Okrana, a
Polícia do Estado, que não poupava qualquer adversário do regime, mas conseguiram fugir, atravessar a fronteira e, ao cabo de atribulações e peripécias sem número,
chegaram a Nova Iorque.
Nesta cidade imensa, gigantesco cadinho onde se misturam e acotovelam perseguidos pertencentes a todas as raças, os fugitivos conseguiram arranjar um modo de vida,
ganhando o suficiente para esperarem pelo momento propício, e que imaginavam próximo, em que lograriam regressar à pátria, desde que tombasse o regime de tirania
que sem mercê os perseguia.
Os exilados, em que figuravam estudantes, oficiais, advogados, e outros intelectuais, organizaram, então, o grupo que o Coronel Cody contratou quando esteve em Nova
Iorque com o Wild West. Todos os russos eram consumados cavaleiros e assim Buffalo Bill percebeu imediatamente o esplêndido partido que tiraria de um sensacional
número de cossacos. Juntamente com os árabes e os cowboys, dispunha desde então dos melhores cavaleiros do mundo.
Desse modo, Sandra e os compatriotas estrearam-se sob a enorme tenda de lona. Wassili e três dos acólitos eram muito destros a lançar punhais e, por isso, organizaram
um número em que Sandra se oferecia como alvo, impressionando o público ao máximo, tanto pela pontaria de uns como pelo sangue-frio de todos.
Nas primeiras semanas em que giraram pelos Estados Unidos, no Wild West, os exilados nada tiveram que os preocupasse. Mas um dia apareceu Lartigo, cavaleiro hábil
mas de passado um tanto equívoco. Mais de uma vez achou esquisito o manejo dos russos, durante as viagens da companhia, reunindo-se a cochichar
entre si, e amiúde entrando e saindo, mas rodeando-se sempre de estranhas precauções.
Lartigo resolveu espiá-los, tanto mais que nalgumas cidades Sandra e os camaradas encontravam-se com compatriotas, como eles exilados e inimigos do regime que escravizava
a Rússia.
Mas no território americano não havia só desses russos. Viviam também ali outros, mais ou menos clandestinos, dispersos entre a população, e encarregados de vigiar
as manobras dos proscritos, para os denunciar e, por vezes, sempre que para tanto se lhes oferecia ensejo, para os fazer mesmo desaparecer, Já bastantes haviam caído
vítimas da sua justiça expedita. A Polícia bem lhes encontrara os cadáveres, mas sem conseguir
uma só vez apurar quem e porquê os mataram.
Certa noite, os russos do Wild West repararam em dois indivíduos suspeitos que visitavam, com frequência, Lartigo. Cada vez mais se capacitaram de que os espiavam,
Tornaram a ver os desconhecidos noutras ocasiões, até que um dia Lartigo, que apreciava bastante uísque, alargou-se de mais nos copos e proferiu certas palavras
imprudentes. Pretendia nada menos do que entregar aos misteriosos executantes da justiça sumária da Rússia um dos membros do pequeno grupo eslavo.
Logo que ouviram tais projectos, Sandra e os compatriotas reuniram-se e, de comum acordo, decidiram eliminar o perigo. Lartigo representava esse perigo. Condenaram-no,
por isso, à morte e Sandra declarou que seria ela própria a executá-lo.
Enquanto a rapariga descrevia estes factos, o grupo de pessoas que a escutava no rancho das "Acácias" ouvia-a em impressionante silêncio. Começava a rasgar-se o
véu que escondia o mistério e Buffalo Bill compreendia agora a razão por que até então as investigações nada tinham trazido de positivo.
Para executar o seu plano, Sandra aproveitou o
número da diligência de Overland. Os índios perseguiam-nos encarniçadamente e, a seguir, cercavam a mala-posta conduzida por Lartigo; então, Sandra, favorecida pelo
tumulto e pela fuzilaria que crepitava por todos os cantos da arena, ao mesmo tempo que desempenhava o seu papel de passageira aflita, puxou do revólver que escondera
na algibeira. Friamente, apesar de milhares de espectadores estarem a olhar para ela,. sem desconfiarem de que se ia ali representar um drama a valer, teve a habilidade
de, às ocultas, justamente na altura em que o boleeiro se preparava para se atirar do assento a fingir de morto, disparar mortalmente contra ele.
Tão hàbilmente procedeu que ninguém, nem no público, nem entre os colegas, desconfiou do que deveras se passara. Só os cossacos o sabiam, mas evidentemente tiveram
sempre o cuidado de não cometer o menor deslize, a mais pequena imprudência capaz de provocar suspeitas contra a sua dedicada patrícia.
Esta, quando se dirigiu para os bastidores, tratara de deixar cair a arma, junto do resguardo da pista e, como ia de luvas calçadas, não deixou naquela a mais leve
impressão digital.
Portanto, tudo parecia favorecer Sandra e, como durante os interrogatórios da Polícia se comportara com o maior sangue-frio, dando lugar à desorientação entre os
representantes da autoridade, que se viam completamente às escuras, animava-os deveras a esperança de que arquivassem o processo, deixando o pequeno grupo de russos
para sempre livre do espião que os ameaçava, pronto, de um momento para o outro, a atraiçoá-los e a entregá-los ao mais implacável dos adversários.
Aparecera, porém, Morley e encarregara Catamount de esclarecer o tenebroso mistério. De entrada, o homem dos olhos claros parecera tão atrapalhado como os outros,
que já haviam desistido de encontrar a solução do espinhoso problema. E ainda estava por
descobrir o menor vestígio da culpada quando ocorreu o primeiro incidente que lhe provocou desconfianças: mão misteriosa envenenara a aveia destinada a "Volga" e
a "Mesquita".
Desta vez, Sandra cometeu uma imprudência. Impressionada com a aparição de Catamount, mais assustada ainda ficava quando observava as maneiras tranquilas e frias
do ranger, juntamente com o fulgor dos seus olhos de aço, que a fixavam co~m insistência como se pretendesse adivinhar-lhe os mais íntimos segredos. Por isso, com
a cumplicidade de Igor, de Wassili e de outros patrícios, todos ao facto das suas intenções, procurara desembaraçar-se do investigador.
Fora Sandra quem procurava exasperar os dois cavalos, confiada em que Catamount ficaria pelo menos aleijado quando os tentasse separar, vendo-se, assim, forçado
a desistir das investigações.
Fora Sandra também que, disfarçadamente, avançara pelo corredor do comboio e introduzira o escorpião entre os lençóis da cama do ranger. Praticou, contudo, a imprudência
de entrar no compartimento, momentâneamente deixado deserto pelo seu ocupante, ao mesmo tempo que fumava um cigarro. Tão pouco se lembrou de que, por onde passava,
deixava um inconfundível perfume a cravo...
A partir dessa altura, Catamount, de pé atrás, várias vezes, durante a digressão artística, reparara que a cinza do cigarro que Sandra volta e meia sacudia distraidamente
com a unha era absolutamente idêntica à que ele encontrara junto da cama.
Cada vez a rapariga andava mais inquieta com a impassibilidade e calma do homem dos olhos claros. Dessa maneira, tratou de aproveitar o convite de Slim Melville
e a enorme impressão que ela provocara no velho rancheiro, dono das "Acácias", para, durante a visita, arranjar maneira de se ver para sempre livre do ranger. E,
no decurso da excursão à Stone Mountain, combinara com Igor e Wassili a maneira de estes
provocarem o desastre que os livraria para sempre de tão temível adversário.
A russa convenceu-se sinceramente de que desta vez não errara o alvo e de que Catamount desaparecera para sempre deste mundo. Deixara de continuar a rodear-se de
precauções e tratara imediatamente de ir trocar impressões com os cúmplices a respeito da suposta vitória, sem sonhar sequer que o falso morto, depois de se conservar
alguns minutos estendido no leito, velado por "Grande Águia", se escapulira ràpidamente mais o anão e, depois, dando a volta a todo o corral, se escondera -a escutar
a edificante conversa entre os três russos e o ex-capataz.
Desta vez, Slim Melville não pensou mais em arvorar-se em advogado da homicida nem em protestar contra as acusações do ranger. Ficou antes de olhos parados na rapariga
e de boca aberta, a perguntar para consigo se tudo aquilo não passaria de um pesadelo. Imaginara Catamount morto e ali o tinha ressuscitado! Considerara Sandra a
última
palavra da perfeição e acabara de a ouvir declarar-se autora de um assassínio! Realmente, tudo aquilo mais lhe parecia pertencer ao domínio da mais fantástica das
fantasmagorias do que às realidades deste mundo.
A voz bem timbrada do ranger arrancou-o brutalmente a esta meditação.
Catamount proferiu: - Tenho muita pena, Sandra, mas, apesar de todos os seus argumentos, vejo-me na obrigação de a prender mais os seus dois companheiros. Quanto
a Seth Hartigan, esse, pode ir morrer longe!
O aleijado não precisou de que ele lho dissesse duas vezes!
A jovem russa, sem disfarçar um calafrio, ainda passeou à sua roda uma olhadela de desespero, mas nenhum dos presentes se atreveu a abrir a boca para uma só palavra
a seu favor. Claro que ainda podiam passar sem a censurar por ter feito justiça contra Lartigo,
aventureiro de duvidoso passado, mas era-lhes impossível perdoarem-lhe as várias tentativas criminosas para se desembaraçar do homem dos olhos claros.
Este ordenou em tom glacial: - Vamos, estendam os pulsos! Sandra hesitou por instantes, mas, de repente, obedeceu. O ranger meteu a pistola no coldre e, puxando
pelas algemas, fechou-lhas nos pulsos com um estalido seco.
Voltou-se, depois, para Buffalo Bill, que nem uma só vez esboçara qualquer intuito de intervir, e afirmou-lhe:
- Confesso-lhe que muito me aborrece terminar desta maneira o seu passeio às "Acácias", Coronel, mas há-de concordar que não partiu de mim a ideia desta visita!
Virou-se a seguir para o proprietário da fazenda, este disfarçando dificilmente a má disposição que tudo aquilo lhe provocava, e declarou-lhe:
- Também lhe apresento mil desculpas, Sr. Melville...
"Agora, vejo-me forçado a deixá-los para me dirigir imediatamente a Atlanta.
- Mas, com seiscentos diabos! - praguejou o rancheiro. - Você tem coragem para ir meter no calabouço essa infeliz rapariga?
- Tenho de cumprir o meu dever - respondeu-lhe friamente o batedor. - Pouco me falta para dar por concluída a minha missão, não me restando mais depois senão ir
ter com o meu chefe a El Paso! Com certeza que outras tarefas lá terei à minha espera...
Catamount passou depois as algemas a Igor e a Wassili, os quais não esboçaram a mais leve resistência. Aliás, depois da confissão da colega, tornar-se-ia inútil
qualquer espécie de reacção da parte deles. Além disso, assim que voltassem a Atlanta, o xerife organizaria novo inquérito e, durante este, todos os cossacos seriam
obrigados a declarar até que ponto estavam envolvidos
no assassínio de Lartigo e nos atentados cometidos contra o ranger.
Dali a meia hora, Buffalo Bill e os companheiros partiam para Atlanta. Slim Melville despediu-se deles com uma cara muito triste, pois o bom do homem não se consolava
da figura de parvo que largamente fizera desde que conhecera a russa até que a soubera uma criminosa. Penalizado, Cody deu-lhe uma jovial palmada nas costas e animou-o:
- Não penses mais nisso, meu velho! Vais ver que, quando daqui a alguns meses passar com o Wild West por estas bandas, já nem te lembras da decepção que sofreste
agora!
- Mas não imagines que te vais embora de Atlanta sem que eu ainda lá apareça, para te entregar pessoalmente o "Demónio", que Catamount tão generosamente te ofereceu!
Sempre com um semblante muito melancólico, o rancheiro, tendo Gibson a seu lado, viu os cavaleiros afastarem-se a pouco e pouco, Buffalo Bill abria o cortejo, entre
Bollobobum e "Grande Águia". Seguiam-se os três russos: Sandra, muito pálida e montada na "Volga", ia com o olhar mergulhado na distância, seguindo Igor e Wassili
muito perto e Catamount na retaguarda.
O batedor ia encantado com o desfecho desta aventura, que lhe permitia voltar finalmente para o seu habitual campo de acção, e, enquanto trotava ao sabor da vontade
de "Mesquita", fumava serenamente um cigarro.
Já a algumas milhas de distância das "Acácias", de repente Wassili soltou uma surda exclamação: a seu lado, Sandra estremecera na sela.
A cavalgada estacou imediatamente e Buffalo Bill gritou:
- Cuidado, ela vai cair! Dali a instantes, a rapariga tombava nos braços de Cody :e do anão, que acudiram a tempo. Como o
Coronel fazia certo esforço para a aguentar, a russa abanou lentamente a cabeça e murmurou, envolvendo-o num sorriso indefinível:
- É escusado... Acabou-se tudo... Não deixou tempo a Catamount, já também ao pé dela, para dizer fosse o que fosse, pois antecipou-se-lhe, declarando:
,- Ganhou a partida, ranger... Não lhe quero mal por isso... O seu papel era esse e desempenhou-o corajosamente, mas não lhe será muito difícil compreender que não
fugi da Sibéria, nem das prisões, para me deixar aferrolhar aqui!
Já mostrando maior dificuldade em exprimir-se, a jovem moscovita, numa voz que mal se percebia, concluiu:
- Usei sempre no dedo um anel, munido de uma minúscula aresta. Bastava carregar ao de leve na luva, sob a qual se esconde esse anel, para que uma picada... me inoculasse
um veneno que não perdoa... E... está a ver... Ninguém pode impedir-me... de que me evada...
Tais foram as suas últimas palavras. Durante alguns instantes, ainda olhou para Catamount, com uma singular expressão nas pupilas. O ranger sentiu-se como que envolvido
por aquele perfume de cravo que tantas vezes lhe notara quando fizera efèmeramente parte do Wild West. Por fim, a cabeça da jovem russa caiu de repente para trás.
Escancarou muito os olhos, mas uma sombra empanou o seu habitual brilho. A morte concluíra a sua obra.
No dia seguinte, cumpridas as habituais formalidades com as autoridades de Atlanta, Catamount despediu-se de Buffalo Bill e dos demais artistas. Com a morte trágica
de Sandra e a prisão dos cossacos, a cidade sacudiu-se perante tão sensacional acontecimento e nessa noite milhares de espectadores se comprimiam a assistir ao espectáculo.
Apesar, porém, desse extraordinário
êxito de bilheteira, Cody separou-se do homem dos olhos claros com verdadeira saudade.
- Que pena mostrar tanto empenho em continuar no Texas! - lamentou o "Rei dos Escuteiros". - Você é que me forneceria um número, que substituiria vantajosamente
o de Sandra e os seus cossacos! Nada menos do que "Catamount, o Rei dos Rangers"!
Já de cima do "Mesquita", o homem dos olhos claros esboçou um gesto vago e, a seguir, antes de virar as rédeas para os lados de El Paso e depois de se despedir mais
uma vez de Bollobobum e de "Grande Águia", também a custo dissimulando a sua comoção, declarou, dirigindo-se a Buffalo Bill:
- Antes de partirem de Atlanta, Melville virá aqui trazer-lhe a recordação viva que lhes deixo da minha passagem pelo Wild West. Portanto, em matéria de número de
sensação, cá fica outro que também vale bastante, Descanse, Coronel, que, em lugar de Sandra com os cossacos, pode muito bem apresentar o "Demónio". Tenha a certeza
de que um dia, em que dispuser de um feriadito, cá me terá a aplaudir o seu cavalo preto!
De seguida, sem mais palavras, Catamount afastou-se em direcção a El Paso.
Albert Bonneau
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