MENSAGEIRO DE MORTE
Catamount fez estacar Mesquita. Acabara de chegar a um pequeno planalto guarnecido de pinheiros e cedros novos.
Na sua frente estendia-se, muito azul, a cadeia das Montanhas Sacramento, cujos cimos, cobertos de neve, resplandeciam ao Sol.
- Vamos poder descansar um pouco, velho camarada!
Lestamente, o ranger pôs pé em terra; o suor tornava-lhe brilhante a máscara rude, e os seus chaps estavam cobertos de poeira. O alazão precisava de um bom trato desde que deixaram El Paso.
Um regato, ligeiro fio de água, corria entre rochas, e o homem dos olhos claros apressou-se a conduzir a montada até lá. Antes de pensar em si próprio, ele ocupava-se sempre do seu fiel companheiro- Enquanto o animal, devagar, matava a sede, Catamount passou-lhe uma das mãos, amigavelmente, pela garupa.
- Esta é a nossa última caminhada - murmurou.
- Chegaremos a Spine Hill antes da noite!
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Um grande pinheiro, ligeiramente inclinado, elevava-se perto, e, então, deixando Mesquita entretido com a pouca erva que nascera nos barrancos, Catamount foi-se recostar um pouco; depois, tirando a tabaqueira do bolso, começou a fazer um cigarro... Enquanto enrolava a mortalha entre os dedos tisnados, os seus olhos fixaram-se longamente nas altas montanhas cobertas de pinheiros e de lariços, que o cercavam agora de todos os lados.
- Como esta terra é selvagem! - praguejou ele, antes de humedecer o cigarro, que logo enrolou, após um pequeno toque da língua.
A região das Montanhas Sacramento, próxima da fronteira que divide o Estado de Texas do de Novo México, era muito pouco povoada, vivendo somente nas suas colinas, alguns pobres pastorels índios, conduzindo cabras famintas e carneiros... Os cattlemen evitavam cuidadosamente esta terra, que eles consideravam como um "sheep-country", ou seja, uma região onde só se pode fazer a criação de carneiros, e por isso haviam-se agrupado a umas cinquenta milhas dali, no Nord Est, no vale verdejante do Pecos, terreno ideal para a criação dos longhorns.
O ranger conhecia bem esta região, pois já ali tinha efectuado frequentes reconhecimentos. O terreno, aos altos e baixos, parecia, com efeito, favorável a emboscadas
e proporcionava aos bandidos um refúgio seguro, ao abrigo de ataques dos seus perseguidores.
Deitando, de quando em quando, uma baforada de fumo na direcção do céu azul, o homem dos olhos claros deixava agora vagabundear os seus pensamentos. Desta vez ele
não havia deixado o quartel-general dos Rangers para se entregar à caçada implacável aos desperadoes e aos rustlers. A missão de que fora encarregado pelo seu chefe,
o coronel Morley, era doutro género. Ele devia comunicar à família Mortimer a morte de um dos seus filhos, alistado há dois anos nos Rangers e que sucumbira pouco
tempo antes, durante um combate com os bandidos, nas imediações de Presídio, junto das margens do Rio Grande.
- Que maçada esta! -não pôde deixar de resmungar Catamount, parando de fumar por instantes.
O ranger evocava a imagem daquele cujo falecimento deveria anunciar; era bom, forte e intrépido aquele Art Mortimer, embora um pouco selvagem, sem dúvida, e nunca
conseguindo disfarçar esse defeito. Não fora sem razão, evidentemente, que lhe haviam chamado o Taciturno... No entanto, a par disso, era um atirador notável, rindo-se
sempre do perigo e dando provas de uma temeridade que havia sido afinal a causa principal da sua morte.
Várias vezes Catamount havia feito patrulhas com Art Mortimer. Este não era para ele o companheiro ideal, no género de Jaguar Bill ou mesmo de Dick lê Rat, os seus
mais fiéis acólitos; contudo, no decorrer dos últimos meses, o ranger tinha aprendido a estimar Art, e eis que o designavam para ir a Spine Hill, onde habitavam
os pais do defunto!
Era, na verdade, a primeira vez que o homem dos olhos claros se desempenhava de missão tão desagradável, e, falando francamente, ele antes quereria lançar-se cem
vezes, como de costume, na captura de um criminoso ou na peugada de um bando de outlaws.
- Estes Mortimer habitam numa região perdida! praguejou, prosseguindo o curso dos seus pensamentos -. Parece que recebem os correios a tiro! A carta que se lhes
enviou foi devolvida ao Coronel! No entanto, preciso de descobrir Spine Hill e de explicar de viva voz a essa pobre gente em que condições Art encontrou a morte-
Logo que acabou de fumar o cigarro, Catamount tirou a carteira da algibeira, e retirou dela alguns papéis, folhas sujas de marcas dos dedos, velhas, fotografias
amarelecidas, e um bloco-notas com os cantos roídos e contendo flores secas.
Tudo isto constituía as poucas relíquias que o morto tinha deixado, e que haviam sido recolhidas quando o seu corpo começara a ser devorado pelos buzzards.
O bando fora cercado, em parte dizimado e depois, capturado, mas era preciso tratar do funeral de Art Mortimer e, como ninguém respondera à carta do Coronel, o ranger
encarregara-se de anunciar pessoalmente a fúnebre nova...
Viam-se algumas cartas juntas com os papéis, e nas respectivas folhas lia-se qualquer coisa mal escrita e sempre com a mesma assinatura: Hal...
Nalgumas linhas, cheias de erros ortográficos, o autor dessas raras missivas dava notícias da família, de Mammy Kate, de Winston, e também do tio Teodoro.
Falava-se também muito de carneiros, em cada carta, o que provava que a família dos Mortimer se devia dedicar ao pastoreio.
Fazia-se igualmente alusão a certos Canovas, vizinhos sem dúvida, e a quem tratavam sempre com uma profunda animosidade...
- Bem! - resmungou Catamount - Precisei de conhecer Mammy, Hal, Winston e o tio Teodoro... Eles parecem-me pessoas destemidas, de carácter um tanto feroz e susceptível...
Pshaw! Não será a primeira vez que estarei na presença de ursos selvagens!
Continuando sempre a murmurar deste modo, o ranger pôs-se a remexer nos alforjes e sacou deles, um bolo de milho, que começou a trincar com uma fatia de pemmican...
A carne não era muita, mas Catamount estava habituado a contentar-se com pouco; próximo, Mesquita continuava também descansadamente a comer a pouca erva existente
no local.
Durou mais de meia hora este compasso de espera. O homem dos olhos claros estava desejoso de chegar a Spine Hill, mas, primeiro que tudo, precisava de cuidar do
seu cavalo, que havia feito um esforço considerável, além de que, calculando bem, restava-lhe tempo suficiente para chegar antes do cair da noite. Tinha ainda quinze
milhas a percorrer em terreno difícil, é certo,
mas o alazão já estava acostumado a caminhadas assim rápidas.
O ranger aspirou a plenos pulmões o ar perfumado. Durante um momento ainda, estendido sobre a erva, à sombra do grande pinheiro, as mãos atrás da nuca, demorou-se
a olhar o céu, onde o Sol já começava a declinar... Lá no alto, uma águia pairava, marcando no azul do céu um ponto negro...
Um relincho veio arrancar Catamount da sua contemplação; distendendo os músculos entorpecidos por uma imobilidade prolongada, o ranger endireitou-se e sacudiu as
agulhas de pinheiro que se lhe tinham pegado às calças e aos chaps...
- Hélio! -. murmurou ele -. Sentes-te na disposição de continuar o passeio, velho camarada?
O alazão aproximou-se do dono, fixando- nele o seu bom e inteligente olhar... Durante alguns instantes, as ventas húmidas do animal acariciaram a cara do ranger.
Depois, este levantou-se rapidamente, rebuscou nos alforjes, assegurando-se de que a sacola pertencente a Art Mortimer estava bem presa à sua montada, e dispôs-se
a retomar a cavalgada interrompida. com mão hábil, verificou se tudo estava em ordem, sela, rédeas, freio e barbelas; então, enfiando os pés nos estribos e picando
levemente o animal, gritou simplesmente:
- Go...
Mesquita sacudiu-se e, abandonando o ribeirito, enfiou pelo bosque de pinheiros que cobria as colinas, por vezes bastante escarpadas. E logo a cortina sombria das
árvores dissimulou ao cavaleiro os cumes das Montanhas Sacramento...
Durante meia-hora, Catamount aventurou-se, assim, sob aquela verde cobertura. Por vezes, Mesquita, esboçava um brusco desvio, amedrontado com a aparição de um esquilo
ou de uma serpente, mas o punho do dono tornava-o logo dócil- As suas patas nervosas fixavam-se
sobre o tapete movediço das agulhas de pinheiro que cobriam todo o solo...
No entanto, o ranger teve de parar várias vezes para se orientar, dada a posição do Sol, cada vez mais em declínio. Um grunhido de satisfação escapou-se-lhe dos
lábios; estava no bom caminho, mas o terreno acidentado obrigava-o a dar algumas voltas mais ou menos longas; o alazão estacava amiudadas vezes à beira de qualquer
fenda ou ravina que os pinheiros não tinham deixado aperceber de longe...
-. Meia-volta! declarou então, simplesmente o ranger.
Por fim, cavalo e cavaleiro saíram do bosque, e de novo o aspecto feroz da montanha lhes apareceu, incendiada pelos raios do Sol. Deslumbrado, Catamount fechou os
olhos durante alguns instantes, para logo os reabrir... Trazido por um vento morno, acabava de lhe chegar um odor característico...
- Sheep country! -murmurou simplesmente. O homem dos olhos claros não se enganara; o forte cheiro que lhe chegava, às baforadas, era o de carneiroE logo, depois
de ter passado uma espécie de crista, ele parou... À sua direita, um rebanho de uma centena de cabeças vagabundeava pelas vertentes áridas da montanha...
- Hélio! Creio que Spine Hill não está longe!
- disse Catamount, passando meigamente uma das mãos pelo pescoço de Mesquita, que as moscas já começavam a incomodar seriamente.
Depois, levando a mão à altura da testa, para se proteger dos raios solares, o cavaleiro ajuntou:
- Spine Hill é ali... Atrás daquela colina...
Os carneiros marcavam com manchas brancas os contrafortes escarpados.
- No entanto -continuou o ranger-, eu não creio que estes animais pertençam aos Mortimer!
Uma vereda serpenteava entre os rochedos, e o homem dos olhos claros meteu por aí deliberadamente o seu corcel.
Algumas vezes teve de abrandar a marcha para impedir que o animal se despenhasse pela rocha abrupta...
Várias pedras arrancadas rolavam de um lado e de outro do caminho, espantando o alazão.
Alguns lagartos que se aqueciam preguiçosamente ao Sol apressaram-se a fugir, espantados com a aparição do cavaleiro.
Finalmente, mas não sem dificuldade, Catamount saiu-se bem depois de ter feito Mesquita contornar uma pequena elevação. Um novo panorama se oferecia aos seus olhos,
o de colinas cobertas de uma erva rara, de salvas e de urzes. Era um terreno ideal para a criação de carneiros! E o cheiro acre intensificava-se à medida que ele
se aventurava; o vento levava-lhe sempre, ao mesmo tempo, o cheiro da lã e o cheiro da urze, ambos igualmente penetrantes...
Um ribeiro corria em cascatas. Uma vez mais o ranger parou o alazão para que o animal se saciasse um pouco. A alguns passos mais além, o carreiro parecia alargar-se
pouco a pouco e tornar-se mais praticável.
Uma estaca elevava-se perto. Devia ter suportado um letreiro, mas agora erigia-se sem ele. Um pouco adiante, o cavaleiro avistou uma tábua, cheia de poeira, que
jazia na erva seca...
- Eis a tabuleta!-disse Catamount...
O ranger saltou do cavalo e, inclinando-se, apanhou a tábua. Viu então que estava crivada de buracos como um passador...
Parecia que um atirador se havia entretido a disparar encarniçadamente contra aquele alvo... E, vagamente, algumas letras apareciam, ainda que difíceis de decifrar...
- Spine Bluff!-murmurou Catamount.
Via-se uma seta na parte de baixo, mas o canto- de cima da tabuleta faltava, arrancado pelas balas...
- Hum! - murmurou o ranger -, vai ser difícil decifrar a direcção indicada!
Depois, levantando lentamente os ombros: - Que importa?! Eu sei que Spine Bluff é à direita... , ;
Saltando de novo para a sela e soerguendo-se nos estribos, o homem dos olhos claros olhou ainda... Descobriu, então, que um penacho de fumo subia no céu" partindo
de um pequeno grupo de pinheiros. ;?
- É ali! murmurou ele... A habitação dos Mortimer deve ser rodeada de árvores...
Mesquita retomou o caminho- através da urze, cujo cheiro tenaz o envolvia agora todo, bem como- ao seu cavaleiro. Em vários sítios a colina era escorregadia; o alazão
viu-se obrigado a moderar o andar, embora sentisse sempre a mão firme do dono, que o retinha nos momentos perigosos, enquanto a sua voz familiar não cessava de lhe
repetir à menor hesitação:
-, Go! Coragem, velho camarada!
Transpuseram assim uma distância de mais de uma milha. À esquerda, o rebanho tinha já desaparecido da vista do ranger. Ele não via agora diante de si senão o declive,
que precisava de subir para alcançar o caminho que o conduziria à moradia dos Mortimer...
O cavaleiro fustigou sem cessar a montada. O suor corria-lhe pela cara. Aproximava-se agora de uma espécie de planalto arrimado aos contrafortes da montanha, quando,
de repente, estremeceu.
Bang!
Quebrando subitamente o silêncio que pesava em redor, uma detonação acabava de soar... Catamount ia-se a voltar para a direita, de onde parecia que o tiro devia
ter sido- disparado...
Bang! Bang!
Duas vezes ainda as detonações se ouviram; o caule de um arbusto que se encontrava a três passos do ranger tombou, cortado...
- By Jove,! É a mim que tomam por alvo! Instintivamente, Catamount deixou-se escorregar ao longo da montada e caiu deitado sobre as urzes... Felicitou-se imediatamente
por haver tomado tão rápida precaução, porque uma quarta detonação repercutiu entre as colinas, enquanto uma bala se ia perder não muito longe dele...
Agora, o ranger imobilizara-se, retendo a respiração e fazendo-se o mais pequeno possível para não ser abatido pelo misterioso atirador.
Assustado, Mesquita afastara-se alguns passos e esperava, de orelhas fitas, mas já o silêncio voltara de novo.
Catamount evitava mexer-se. Esta calma prolongada não lhe augurava nada de bom! Imaginava que o atirador devia estar emboscado na colina e de dedo no gatilho da
sua arma, pronto a recomeçar, se ele retomasse a cavalgada...
-. Deve ser o maldito que tomou a tabuleta por alvo, resmungou o ranger... Decididamente, eis uma terra onde gostam de fazer falar a pólvora!
O Sol continuava a descer no horizonte, incendiando as colinas com os seus raios de fogo... Abelhas zumbiam nas urzes... A mesma águia que o homem dos olhos claros
tinha visto há pouco, voltava a pairar majestosamente no céu...
Dez minutos decorreram assim, na maior expectativa Catamount começava já a impacientar-se singularmente.
- Trata-se, sem dúvida, de alguém de Spine Hill! Toma-me então por um ladrão?
O silêncio era absoluto. Então, o ranger, abandonando o sítio onde se escondera, começou a andar de rastos, a fim de alcançar o alazão.
Mesquita parecia estar calmo, entretido- a farejar nas urzes. Decidido a tudo arriscar para sair deste desgraçado beco sem saída, Catamount levantou-se e procurou
saltar de novo para a sela...
Logo que enfiou os pés nos estribos, o ranger empunhou o Colt, pronto a ripostar ao menor ataque, mas nenhuma detonação se ouviu mais; o enigmático atirador parecia
ter-se volatilizado, a menos que não tivesse abandonado a ideia de atacar ainda o recém-vindo...
- Tanto pior!-.disse o homem dos olhos claros- Vamos lá, de toda a maneira! Se eu pudesse, ao menos, vê-lo... Mas ele parou de disparar e esconde-se!
Mesquita retomou a subida e, durante um certo tempo, o ranger, sempre à espreita, não teve de registar novo ataque... Tão longe quanto os seus olhos podiam discernir,
não se apercebia vivalma...
- O maldito está cansado! - chasqueou ele -. Em todo o caso, creio que será prudente chegar quanto antes àquele pequeno bosque de pinheiros...
Catamount acabava de descobrir um ponto negro que sobressaía das colinas. Vendo que esse local seria um abrigo melhor, acelerou a marcha do alazão. Um suspiro de
satisfação escapou-se-lhe quando se encontraram, ele e o seu cavalo, no abrigo...
- Uff! Creio que neste sítio não teremos mais nada a recear! - opinou ele.
Contudo, Catamount exasperava-se de haver interrompido assim a sua caminhada. Precisaria de esperar pela noite para poder retomar o caminho para Spine Hill?
- De qualquer modo, é irritante! E disparam de casa dos Mortimer! Estas colinas devem pertencer-lhes! Tenho a impressão, com efeito, de que me aventurei nos seus
domínios desde que passei a tabuleta!
Alguns minutos decorreram ainda- Para iludir a sua
impaciência, o ranger tinha feito um novo cigarro, que acabava de fumar. Ia decidir-se a partir, custasse o que custasse, quando de repente estacou; parecera-lhe
surpreender à sua esquerda um roçar suspeito... O cavalo imobilizara-se também, arrebitando as orelhas...
Catamount esperava, mantendo a imobilidade de uma estátua... Estava agora convencido da presença muito próxima de alguém... Os seus ouvidos, exercitados em descortinar
os mais pequenos ruídos, discerniam, de novo, como que um leve estalar, como se alguém quisesse aproximar-se dele, rastejando, para o surpreender..
Mais alguns minutos se passaram, e o homem dos olhos claros comprimiu o seu próprio coração... A alguns passos dali, o alazão olhava sempre, com a mesma atitude
de desconfiança...
Agora, um novo ruído chegara aos ouvidos do ranger, mas parecia que fora produzido, desta vez, atrás dele, no -pequeno pinheiral que o dissimulava aos olhos do misterioso
atirador...
-.Ele aproxima-se! - pensou Catamount... Vem aí! - O ranger estava convencido de que ia rapidamente encontrar a chave do problema e conhecer os motivos por que o
atirador invisível o tomara assim por alvo...
Estendido a todo o comprimento, de Colt em punho, Catamount esperava.
De repente, o homem dos olhos claros teve a impressão de que uma sombra furtiva se dirigia para trás de um dos pinheiros mais próximos. Então, não hesitou mais e,
levantando-se, pronto para todas as eventualidades, gritou:
- Vamos! Saia daí! Basta! Um passo mais e atiro!
II
SYLVIA, A JOVEM SELVAGEM...
Primeiramente, ninguém respondeu à ameaçadora ordem; a forma confusa parecia agachar-se atrás do tronco de pinheiro e fazer-se o mais pequena possível-, Então, impaciente,
Catamount insistiu:
- Saia daí, senão... : O ranger não pôde acabar a frase. Estupefacto, soltou uma exclamação surda. A sombra confusa que ele visava aventurara-se, finalmente, a sair
do refúgio, e uma silhueta aparecia-lhe, iluminada pelos raios do sol poente...
- Uma mulher! - arriscou, assombrado. - Uma rapariga!
com efeito, era uma rapariga quem estava agora a menos de dez passos do homem dos olhos claros... Mas, feita a primeira rápida observação, o ranger pôde verificar
que se tratava de uma criatura diferente da que julgara. Ela estava vestida com roupas pobres, os pés descalços, os braços e as pernas feridos pelas silvas... Mas
o que retinha, sobretudo, a atenção nesta recém-vinda era a opulenta cabeleira, de um loiro doirado, enquadrando o seu rosto de traços puros e de um olhar azul vivíssimo.
Longas pestanas contornavam-lhe os olhos... A pele, de uma brancura leitosa, era maculada por duas rosetas... Catamount imobilizou-se, de boca aberta. Na realidade,
ele esperava tudo menos esta desconcertante aparição...
Julgou que ia ver o adversário desconhecido que várias vezes tentara alcançar. De forma que a chegada desta amável selvagem chegava para o deixar embasbacado...
- Que faz aqui?-interrogou ele, por fim, desviando a arma, que não tinha deixado de apontar contra esta personagem inopinada.
Durante alguns instantes, a desconhecida pareceu hesitar, os seus olhos azuis demoraram-se a medo sobre o ranger... Então, a voz deste último fez-se menos rude,
menos ameaçadora:
- Como se chama? Quem é?
Desta vez a resposta não se fez esperar e, com uma voz que tremia ainda um pouco, a recém-vinda declarou :
- Eu sou Sylvia!
- Sylvia? - replicou Catamount. - É um nome bonito, mas não me diz nada... Não tem um apelido de família?
E, como a desconhecida continuasse a hesitar, o ranger insistiu:
- É uma Mortimer, certamente...?
A jovem endireitou-se, como se tivesse sido sacudida por um choque eléctrico...
- Eu não sou dessa gente...-ripostou ela num tom fortemente agressivo...
Endireitou-se, cuspiu com desdém a seus pés e, como o -ranger se admirasse desse gesto, não procurando esconder o seu espanto, ela precisou:
- Eu sou Sylvia Canova!
- Canova? Não é desta terra, então...? Catamount apercebera-se por estas respostas de que
a sua interlocutora falava efectivamente com um leve sotaque estrangeiro, arrastando os rr... Mas ela depressa continuou, carregando o sobrolho:
- Os meus pais são naturais de Itália! Estão colocados em Cedar Green há muito tempo... Mas eu nasci aqui! Não tenho conhecido senão estas montanhas e estas colinas!
Depois, estendendo a mão para a esquerda:
- Era eu quem guardava os carneiros!
- Ah! fez o ranger - Os carneiros que vi espalhados por aí são seus?
-.São de meus pais!-rectificou a rapariga Eu estava sentada ali perto, quando chegou...
-. Você viu-me? - repetiu Catamount - Pois olhe que eu não me apercebi da sua presença...
Um clarão brilhou nos olhos claros de Sylvia, e um sorriso furtivo aflorou-lhe aos lábios:
- Sylvia é filha da montanha! -? exclamou ela. Sabe maravilhosamente dissimular-se... Não é sobre ela que poderão atirar os Mortimer! Já o têm tentado várias vezes,
mas nunca conseguiram alcançar-me! E, no entanto, são atiradores consagrados! Winston principalmente!
A jovem tomou calor ao falar. As faces afoguearam-se-lhe intensamente. Uma gota de suor perlou-lhe a têmpora direita... Enxugoua rapidamente com as costas da mão...
- Foi então um dos Mortimer quem atirou sobre mim agora mesmo? - decidiu-se o ranger a interrogar.
Sylvia abanou afirmativamente a cabeça:
- Foi certamente Winston! - assegurou - Esse mariola anda sempre a vagabundear aqui pelas colinas! Recebe qualquer estranho a tiros de carabina! Foi um milagre não
ter sido atingido, porque você avançava em campo descoberto... Eu seguia-o e temi que fosse atingido por aquele maldito animal! O correio já várias vezes tentou
chegar a Spine Hill, mas acolheram-no sempre a tiro... Por isso ele nunca mais lá foi.
- A Providência protegeu-me - disse simplesmente o ranger.
Depois, intrigado com o que a sua interlocutora acabava de lhe dizer, apressou-se a perguntar:
- Mas por que motivo os Mortimer atiram assim
sem saber...?
- Eles julgaram com certeza que você era um partidário dos Canova...
-Os Canova?! Seus pais?
- Exactamente- Se fosse destes sítios, saberia que,
desde sempre, uma implacável hostilidade opõe os
Canova aos Mortimer!
Sylvia exprimia-se numa voz que a emoção fazia, por vezes, tremer; os seus grandes olhos expressivos, o seu punho cerrado fizeram compreender a Catamount que a jovem
compartilhava o ódio de seus pais...
- Eles abateram Piombino, o primo. Pelo nosso lado, nós eliminámos o velho Mortimer!
E, estendendo o braço na direcção das colinas de Spine Hill, a rapariga dos pés descalços murmurou:
- Mas são muitos ainda. A velha Kate, o tio Teodoro, o maior pirata que eu conheço; Winston, o que acabou de atirar sobre você e que é uma verdadeira besta à face
da terra, e o piolhoso do Juan, que eles tratam como um escravo!
Sempre falando, a recém-vinda deixava perceber toda a sua irritação, e Catamount sentia-se profundamente impressionado. Há pouco, no decurso dos reconhecimentos
que haviam executado em conjunto, Art tinha-lhe feito alusão à pequena guerra que lavrava entre eles e certos criadores de carneiros. O infortunado havia mesmo precisado
que preferira alistar-se nos Texas Rangers a ficar assim numa região em perpétua discórdia. Mas tais situações eram frequentes. Quantas vezes o ranger havia já assistido
a guerras, quase sempre sangrentas, que se davam entre os criadores de gado e os criadores de carneiros!
Pastores e cawpunchers enfrentavam-se, muitas vezes, de Colt na mão... Mas agora parecia que o caso era especial... Tratava-se de uma vendetta!
Então, lembrando-se das cartas que trazia com tudo o que restava do seu camarada tombado no cumprimento do dever, o homem dos olhos claros arriscou:
- Parece-me que há também um certo" Hal entre os Mortimer...? Falaram-me muitas vezes dele. Era o seu irmão mais novo, o que ele mais estimava...
- Hal?
Sylvia pronunciava maquinalmente este nome. Seria ilusão sua? Catamount teve imediatamente a impressão de que a sua interlocutora não englobava Hal no mesmo ódio
que parecia dedicar a todos os outros Mortimer...
Um certo embaraço estampou-se nas faces crispadas da rapariga:
- Hal -? contentou-se ela em declarar - não é a mesma coisa! com ele podia-se entender!
E acrescentou com uma voz que mal se ouvia:
- Mas o pai não consentirá nunca!
Durante alguns instantes, o silêncio tornou-se pesado. O ranger tornou a meter o Colt no coldre. Quanto à jovem, já tranquila, arrancara uma ervita do chão e entretinha-se
agora a mordê-la e a enrolá-la em torno de um dos dedos. Esperava, agachada, à direita de Catamount...
Sylvia rompeu primeiro o silêncio, que ameaçava prolongar-se:
- Em suma - interrogou ela - que quer você dos Mortimer? Olhe que não são pessoas tratáveis...
- O que eu lhes quero? - replicou Catamount Anunciar-lhes simplesmente uma triste nova...
E, enquanto a sua companheira demorava sobre ele um olhar interrogador, o homem dos olhos claros precisou:
- Art, seu filho, meu camarada, tombou heroicamente no cumprimento do dever.
Um sorriso de satisfação aflorou aos lábios da jovem:
- Antes assim!
- Art Mortimer era um bravo! - cortou o ranger, cuja voz se tornou mais áspera, mais incisiva. - Conservo dele a lembrança de um rapaz direito e leal!
E, como Sylvia baixasse ligeiramente a cabeça, divertindo-se ainda com a pequena haste de erva, ajuntou:
- É costume inclinarmo-nos diante do corpo do inimigo tombado! Deve saber que se diz: ((Amai-vos uns aos outros..."
Apenas Catamount acabara de pronunciar estas palavras, logo a sua interlocutora se firmou no que dissera antecipadamente:
- Os Mortimer são uns verdadeiros brutos! Não se pode ter nenhuma pena!
- Não assegurou agora mesmo que, apesar disso, havia uma excepção na família? - replicou o ranger sem se conter.
Sylvia pareceu hesitante e molestada. Catamount arriscou ainda:
- Se abre uma excepção para Hal Mortimer, eu posso, por meu lado, abrir outra para Art!
A jovem fez beicinho; depois, piscando maliciosamente um dos olhos, pareceu libertar-se depressa da emoção fugidia que a havia tomado durante alguns instantes, e
assegurou:
- Em todo o caso, terá sorte, se conseguir chegar a Spine Hill! Será recebido com uma chuva de tiros de carabina, como há pouco. Já foi advertido...
O ranger compreendia agora o motivo por que os Mortimer não tinham sido avisados da morte de Art; todavia, não mostrava querer mudar de intenções:
- Recebi por missão alcançar Spine Hill e comunicar a triste nova aos Mortimer, e não abandonarei a região sem ter cumprido o meu dever!
- Nessas condições, terá um bom acolhimento em perspectiva! Winston é um atirador de primeira ordem!
- Permita-me que ponha isso em dúvida - contestou o homem dos olhos claros. - Ele, há bocado, podia ter-me atingido em cheio. Eu era um alvo fácil...
- Winston quis, sem dúvida, avisá-lo - rectificou Sylvia. - Mas experimente aproximar-se mais. O caso será mais sério, então! E não chegará lá!
- E se eu lhe assegurar que chegarei lá, custe o que custar?
Catamount surpreendera a expressão trocista da sua interlocutora e sentiu-se com isso. Mas a rapariga retomou a conversa, após ter hesitado um pouco:
- No final de contas, gostaria que chegasse, ileso, lá acima! Se fosse para lhes dar uma boa-nova, seria outra coisa... Mas eles vão ficar perturbados! E meu pai
e minha mãe ficarão contentes!
- E Hal ficará satisfeito também?
O ranger fitou demoradamente a sua companheira, e esta, embaraçada, não pôde deixar de virar a cara...
- Detesto o ódio! - murmurou o homem dos olhos claros. Já me tem acontecido, por vezes, ter de socorrer e consolar os meus mais encarniçados inimigos!
-. Se estivesse no nosso caso... -. objectou a rapariga -. Vê-se bem que nunca teve nada que o fizesse lamentar-se.
- Por favor, não insista! -cortou o homem dos olhos claros. - Conheci, muito antes de você nascer, uma pessoa que havia votado um ódio feroz à humanidade inteira...
Depois, logo que começou a compreender melhor, mudou de ideias...
Mas, passando bruscamente a outro assunto, Catamount inclinou-se para a sua interlocutora e, agarrando-lhe o pulso nervoso, murmurou-lhe quase em segredo:
- Oiça, você se quiser pode informar-me, permitir-me que...
- ... Que chegue até à casa dos Mortimer? - prosseguiu a jovem. -Está bem, seja! Talvez lhe possa ser útil!
A seguir, apontando a sombra da noite, que tombava ao mesmo tempo que o sol desaparecia atrás das Montanhas Sacramento, declarou:
- É conveniente esperar que seja noite fechada... Depois indicar-lhe-ei... Se Hal estiver lá em baixo...
- Hal?
Catamount não insistiu. Sylvia levara rapidamente um dedo aos lábios...
- Espere um momento! - declarou ela simplesmente.
Sylvia não consentiu que o ranger lhe dirigisse a menor objecção. Levantara-se de um pulo e, ligeira e flexível, pusera-se a correr ao longo do declive.
Depressa desapareceu da vista do seu companheiro, que parecia confundido com esta rápida decisão.
De novo Catamount se viu constrangido à expectativa. A noite caía rapidamente. Os cumes tingiam-se sucessivamente de púrpura e de malva, enquanto, no horizonte,
o Sol, ao despedir-se, se coloria de todos os tons do arco-íris. O calor abrasador que fizera durante a jornada começava a declinar. Uma brisa ligeira acariciava
agora a face rude do homem dos olhos claros.
Decorreu assim uma hora. O ranger começava a perguntar a si próprio se a sua companheira de acaso não estivera zombando- dele, quando, de repente, ouviu um breve
assobio... Intrigado, endireitou-se. Furtivamente, uma sombra apareceu-lhe, subindo com rapidez o longo declive, direita a ele.
Era Sylvia. O ranger reconheceu-a logo, quando ela veio juntar-se-lhe, ainda exausta pela caminhada que acabara de efectuar...
- Então? - interrogou ele-
A jovem demorou-se a dar-lhe explicações, mas depois ordenou em voz baixa:
- Siga-me!
- E o meu cavalo? - aventurou o ranger.
- Deixe-o lá, não corre nenhum perigo! Além disso, eu velarei por ele.
Catamount hesitava em se separar do seu fiel camarada; contudo, compreendera que precisava de ir só para não ser surpreendido pelo atirador emboscado nas colinas..
- Até já, Mesquita! - declarou suavemente passando a mão pela crina do alazão.
Mas Sylvia, que já se havia erguido e seguia na mesma direcção, insistiu:
- Venha!. Depressa!
Imediatamente Catamount seguiu as pisadas da sua companheira. Sylvia deslizava diante dele, ao abrigo da noite. Era, por vezes, tão rápida que ele tinha Dificuldade
em segui-la. Metia-se entre os arbustos, para em seguida escorregar pelos declives cobertos de urzes. O ranger certificou-se de que se atrasava, mas seguiu sempre
avante, contornando, o mais próximo possível, o pinheiral em que pouco antes havia procurado refugiar-se.
A Lua acabara de surgir e os dois noctívagos tinham de parar várias vezes para se ocultar na zona da sombra...
Catamount levantava frequentemente a cabeça para olhar na direcção de Spine Hill, mas não se descobria vivalma... No fim, quando acabou de escalar uma pequena crista,
apareceu-lhe uma luz.
- Spine Hill! Os Mortimer! -assoprou-lhe a sua companheira, que se voltara de repente.
O ranger esboçou ainda um gesto de hesitação, mas a rapariga recomendou-lhe:
-Siga sempre a direito, atrás de mim! E pare imediatamente logo que eu faça sinal!
A escalada recomeçou então. Sylvia tinha a agilidade de um esquilo. Metia-se por entre as urzes e contornava, sem qualquer hesitação, os rochedos, que lhe surgiam
aqui e além, nas colinas. Por fim, voltou-se e fez sinal ao companheiro para que esperasse...
Uma vez mais, Catamount teve de se resignar... Imobilizou-se nas trevas. Os seus dedos nervosos apertavam o Colt, pronto a atirar em qualquer eventualidade, mas
a quietude persistia em redor...
Sylvia havia partido. Não se ouvia agora mais do que o ruído das folhas dos arbustos, os quais o vento nocturno curvava por vezes.
Subitamente o ranger estremeceu. Não longe dali, só um pouco adiante, sobre as colinas, na direcção da luz que ele não deixara de fixar, ouviu-se um piar...
Por duas vezes ainda o apelo lúgubre da coruja se repetiu. Catamount compreendeu que se tratava de um sinal e sentiu-se ainda mais intrigado quando ouviu o mesmo
pio, repetido por três vezes, elevar-se um pouco mais, nas imediações da habitação dos Mortimer...
Decorreram alguns minutos. O ranger nem se movia, pensando que a ausência da companheira se prolongava de maneira verdadeiramente anormal...
Perguntava a si próprio se ela não tinha sido surpreendida, quando uma sombra se dirigiu sobre a sua direita, a dois passos, o máximo, dali...
- Você!?-exclamou ele, reconhecendo Sylvia. Mas a jovem tomou-o pelo braço e declarou-lhe, num cicio:
- Venha! Depressa! Catamount seguiu-a de novo, maquinalmente, tendo, contudo, o cuidado de não perder de vista a guia e companheira... Várias vezes se **25 Tfitm
aPi§l? escuro, chegando a cair desastradamlpS mas ÍJfilS
percebendo-o em dificuldade, apressava-se a ampará-lo e a puxá-lo para junto dela.
A subida tornava-se cada vez mais penosa. O ranger já se encolerizava, farto do prolongado circuito, que lhe parecia muito mais extenuante do que uma longa cavalgada,
quando apercebeu, ao luar, uma silhueta que surgira alguns passos mais adiante... Um homem estava ali, ele distinguia-lhe vagamente a cara, e esse homem tinha na
mão uma carabina...
Catamount parou, mas Sylvia, longe de parecer espantada com a aparição deste velador nocturno, prosseguiu deliberadamente na subida...
Do seu lugar, Catamount viu-a aproximar-se do desconhecido... Baixinho, trocaram algumas palavras; depois, a jovem deu meia-volta, com aquela agilidade que sempre
desconcertava o seu companheiro, e tornou a descer... Em breves instantes, pôde juntar-se ao ranger.
- Então? interrogou ele.
- Hal espera-o! - retorquiu simplesmente a interpelada.
- Hal?! - exclamou Catamount, profundamente intrigado- Você quer referir-se a Hal Mortimer?
Iludindo a resposta, Sylvia virou-se e, apontando para o velador nocturno, disse, com insistência:
- Vá! Depressa!
Sem esperar mais, sem mesmo brindar o ranger com um rápido adeus, ela pôs-se a correr ao longo da colina. Em alguns instantes, a sua silhueta furtiva desaparecia
nas trevas, que pesavam cada vez mais sobre a região... E Catamount encontrou-se de novo só, em face do homem que o aguardava silencioso...
III
A CASA DOS MORTIMER
Durante alguns momentos os dois homens permaneceram em silêncio, interrogando-se com o olhar- À claridade da Lua, os seus rostos apresentavam-se quase como em pleno
dia e, assim, Catamoont pôde verificar que Hal Mortimer era um robusto rapagão, de alta estatura. Uma barba de alguns dias dava à sua fisionomia um aspecto selvagem;
tinha os cabelos loiros e encrespados, e os olhos de um cinzento de aço, guarnecidos de espessas sobrancelhas. A fronte larga dava desde logo a impressão de força
e energia; contudo, a sua apresentação era miserável: pés nus, sem chapéu, com a camisa e as calças remendadas em vários sítios, entrevendo-se, pelo colarinho largamente
aberto e sujo, o peito bronzeado.
Foi o ranger quem primeiro rompeu o silêncio: -. Desejo falar com a sua mãe e com os seus irmãos, declarou.
- Eu sei - cortou bruscamente Hal -. Sylvia disse-me... Ignoro as razões, mas suponho que vem da parte de, Art...
- Isto é - precisou Catamount -de seu irmão... Mas o rapaz interrompeu-o em tom desagradável:
-? Siga-me e não se afaste! Sem mim não poderia entrar em casa, principalmente por causa de Wínston, que detesta estranhos!
- Seu irmão...
Mais uma vez Hal impediu Catamount de concluir a frase. Inclinando-se para ele, levou um dedo aos lábios e disse:
- Promete-me, sob palavra de honra, que não fará qualquer alusão a Sylvia enquanto estiver em nossa casa?
O ranger surpreendeu nesse momento uma expressão de ansiedade no olhar do seu singular interlocutor, e apressou-se a responder-lhe:
- Tem a minha palavra... Não falarei de Sylvia.
- Nessas condições estamos entendidos! Siga-me! Sem procurar outras explicações, o rapaz pôs-se a escalar o declive, imediatamente seguido do homem dos olhos claros,
que tinha alguma dificuldade em avançar naquele terreno escarpado. Algumas vezes Hal lhe estendeu a mão em auxílio, para que ele pudesse assim trepar as encostas
e escalar os rochedos.
Por fim, ao cabo de alguns minutos, atingiram uma espécie de plataforma orlada de pinheiros. Catamount avistou de novo uma luz que brilhava por entre as árvores...
Quando se deteve ouviu-se um furioso ladrido. Das trevas surgiram dois negros cães de guarda, de pêlo comprido, que se lançaram ao encontro dos recém-chegados, mostrando
os dentes...
- Cala-te, Nestor... Ceres, então?!
Como os animais insistissem, fazendo menção de se precipitar sobre o ranger, Hal mimoseou-os com alguns pontapés, que os obrigaram a recuar, ganindo...
- Silêncio! Doixm!
E o jovem levantou a mão ameaçadora, mas Nestor e Ceres, rosnando sempre, acabaram por se resignar. Então, Hal, voltando-se para Catamount, declarou-lhe:
- Chegámos! Encontra-se em Spine Hill! Esta é a casa dos Mortimer!
Agora que havia ultrapassado o pinhal, o ranger pôde avistar, à luz do luar, uma sólida cabana construída de grossos troncos. Perto havia um alpendre espaçoso, feito
de tábuas e de ramadas de árvores. Pelo forte cheiro a carneiros, que impregnava a atmosfera, o recém-chegado compreendeu que devia tratar-se do redil, mas a sua
atenção foi, de súbito, atraída por uma silhueta que apareceu no limiar da casa. Um homem de forte estatura saía, de carabina em punho, ao encontro do visitante.
De repente, uma voz rude quebrou o silêncio da noite:
- És tu, Hal?
- Sim, sou eu, respondeu imediatamente o companheiro de Catamount. Trago alguém comigo!
- Tu bem sabes que nós nunca recebemos ninguém
- ripostou o recém-vindo, em voz brusca. - Hoje atirei repetidas vezes sobre um vadio. Os Canova devem estar a preparar alguma partida.
- Nada há que temer, Winston - precisou, então, Hal. - O estranho vem de El Paso. Foi Art quem o enviou...
O homem dos olhos claros ficara parado enquanto os dois irmãos discutiam- Nestor e Ceres, à sua volta, farejavam, e rosnavam, mostrando assim a sua extrema inquietação.
Impassível, ele apreciava Winston. O filho mais velho dos Mortimer estava vestido tão miseravelmente como seu irmão: descalço, cabeça descoberta provida de farta
cabeleira ruça, o rosto emoldurado por uma barba hirsuta, parecia um orangotango e tinha um aspecto mais ameaçador e rude que o do seu irmão mais novo. Os olhos,
pequenos e penetrantes, movendo-se com extrema mobilidade, fixaram-se no visitante, cheios de desconfiança.
- Era você que rondava, há bocado, por aqui perto? - interrogou ele em voz forte.
- Era eu, sim - declarou Catamount com calma.
- Bastas vezes você me tomou por alvo, e errou por pouco...
- Se eu quisesse, tê-lo-ia abatido como a um simples coelho - escarneceu o colosso - Procurei unicamente assustá-lo!
Depois, parecendo um pouco intrigado, Winston Mortimer rematou:
- Para ter assim insistido, é porque a visita é de grande importância...
- Tem razão - concordou o ranger, no mesmo tom -. A minha visita reveste-se, na verdade, de grande importância... E daria tudo para não ter de vir a vossa casa!
- O que me admira principalmente - objectou Winston - é que o Art não tenha vindo consigo. Há já dois anos que não aparece aqui. Nunca mais voltou! Art é um tipo
esquisito, diferente dos mais! Não gostava de Spine Hill! Os carneiros não lhe interessavam, e censurava-nos sempre pela nossa questão com os Canova. Mas é um bom
rapaz, em todo o caso. Ele podia ter vindo também consigo... ou até em seu lugar!
Catamount hesitou durante uns momentos antes de responder; depois, decidiu-se e, olhando Winston bem de frente, ripostou:
- Art não pode voltar... Nem voltará mais!
Os dois irmãos não puderam evitar um estremecimento. Após terem trocado um olhar inquieto, dirigiram-se de novo ao visitante:
- Art?! - interrogou Hal.
- Art caiu heroicamente no cumprimento do seu dever - precisou o homem dos olhos claros. - Eu vim exactamente por isso. Para lhes comunicar a triste nova e para
lhes entregar os papéis e valores que eram dele. O meu chefe, o coronel Morley encarregou-me desta
missão. É, na verdade, um trabalho ingrato anunciar assim à família o desaparecimento dum bravo camaradaMas, até agora, o correio nunca conseguiu chegar até aqui...
Fez-se um breve silêncio. Winston e Hal esforçavam-se por conter a sua emoção. Catamount, que os observava atentamente, notou que a triste notícia os havia atingido
profundamente.
Hal foi o primeiro a falar:
- Que dirá Mammy Kate? Art era o seu preferido... Winston fechou raivosamente os punhos e enxugou,
com a ponta do dedo sujo, uma lágrima que brilhava por entre as pálpebras.
- Deus não existe. Faltava mais isto aos Mortimer!
Depois, estendendo o punho, como que a ameaçar um adversário invisível, exclamou:
- Nunca cai uma desgraça assim sobre os Canova! Os vermes não tiveram, desta vez, necessidade de sair da sombra. Outros trabalharam por eles...
Engrossando, então, a voz e acariciando a carabina, o colosso continuou num tom odiento:
- A tratante vagueava pelas colinas dentro dos nossos limites... Avistei-a ainda esta manhã. Que tome cuidado! Para a próxima vez não hesitarei em abatê-la
: como a um malvado gato selvagem!
Hal ia protestar, mas conteve-se, sem dúvida para
não despertar suspeitas no seu irmão mais velho.
- Mas não vamos ficar aqui... - limitou-se a lembrar - Entremos!
Encontravam-se a uns vinte passos da residência e, sem dizer palavra, alcançaram o limiar. Enquanto Winston afastava a pontapés os dois cães, que queriam entrar
atrás dele, Hal introduziu o ranger.
Apenas Catamount se aventurara no interior, logo um acre e sufocante cheiro a fumo lhe tomou a garganta.
Dominando a sua repugnância foi parar diante de uma chaminé muito vasta, onde um lume de madeira verde ardia- As chamas vinham lamber os flancos de uma marmita,
donde subia uma nuvem de vapor. Um cheiro desagradável a batatas queimadas espalhava-se no ambiente...
- Que há?
Uma voz rouca arrancou o homem dos olhos claros aos seus pensamentos. Sentado à direita da lareira, Catamount viu então um velho, que ali se encontrava estendendo
os dois pés descalços e empoeirados para o calor do fogo. Duas muletas estavam apoiadas, uma de cada lado, à poltrona velha em que ele se recostava. A barba comprida
e branca que lhe emoldurava o rosto, de pele pergaminhada e sulcado de rugas, dava-lhe o aspecto dum patriarca. Sob as espessas sombrancelhas, dois olhos claros
fixavam-se com insistente desconfiança no visitante.
Catamount ia falar para se apresentar, mas Hal antecipou-se e, indicando-lhe o velho, apresentou:
- O tio Teodoro... É quem substitui o nosso pai...
- O nosso pai, cobardemente abatido pelos Canova!
- acrescentou Winston, com voz repassada de ódio. Mas a voz trémula do velho fez-se ouvir, por sua
vez, junto ao lume, que continuava a espalhar espessa fumarada:
- Se é amigo dos Canova - declarou ele endireitando-se, apoiado nos dois braços da poltrona, é melhor voltar para trás... Há já muito tempo que os Mortimer e os
Canova se entregam a uma luta de morte.
- Eu não conheço os Canova, assegurou o ranger.
- Vim directamente de El Paso!
- El Paso... - resmungou o velho Teodoro. Para onde partiu o meu sobrinho Art...
- Vem da parte de Art?
Fora uma voz emocionada que acabara de pronunciar
estas palavras. Essa voz era de uma mulher que surgira das trevas e que Catamount distinguia agora atrás da poltrona. A sua pequena estatura e a sua fragilidade
contrastavam com as maneiras dos seus filhos Winston e Hal. Dois bandós de cabelos brancos adornavam-lhe a fronte rugosa, tinha as maçãs do rosto ligeiramente salientes,
o nariz achatado, e estava tão pobremente vestida como os outros. Olhando-a, o homem dos olhos claros não pôde furtar-se a um sentimento de profunda comiseração.
Compreendia que se encontrava na presença de Kate Mortimer, a mãe do seu camarada desaparecido.
- Vem da parte de Art? - insistiu, então, a pobre mulher, a quem as desgraças e sofrimentos, haviam envelhecido prematuramente. - Fale depressa, peço-lhe! Que aconteceu
ao- meu filho? Por que não veio ele próprio? Há já tanto tempo que não sinto a alegria de o apertar nos meus braços!
Catamount mordeu os lábios; atrás dele, Winston e Hal aguardavam em consternado silêncio...
Então, olhando demoradamente a visita, Kate Mortimer compreendeu que havia um drama:
- Art! - murmurou arquejante. - Meu pobre Art! Morto?
O ranger limitou-se a aquiescer, e então a sua interlocutora aproximou-se dele, agarrou-se-lhe ao fato e sacudiu-o com vigor:
- Isso não é possível! Meu filho! Meu Art! Tão bom, tão amigo!
A voz trémula do tio Teodoro ecoou de novo:
- Como" sucedeu isso?
O homem dos olhos claros não hesitou então em contar as condições em que Art Mortimer havia encontrado a morte no cumprimento do seu dever.
- Era um valente - concluiu ele. - O meu chefe, o coronel Morley, decidiu enviar-me aqui para lhes
entregar o espólio e lhes apresentar as suas sentidas condolências. com o desaparecimento de Art, ele perde um dos seus melhores auxiliares!
Durante uns momentos nada mais se ouviu além dos soluços de Kate, amarfanhada sobre um banco junto da lareira, chorando perdidamente, o rosto escondido entre as
mãos descarnadas- O enfermo agarrou nervosamente numa das suas muletas traçando com ela ao acaso, no chão de terra batida, ora círculos ora quadrados.
- E há já muito tempo que isso aconteceu? - perguntou o tio Teodoro.
- Há precisamente, um mês - esclareceu o homem dos olhos claros.
- E esperaram todo este tempo para nos prevenir? Não teria havido ao menos a possibilidade de a minha cunhada assistir ao funeral de seu filho?
- Foram avisados por escrito - objectou Catamount -. mas a carta foi devolvida ao quartel dos Rangers, em El Paso, com a nota de "Aproximação impossível". -E o ranger
acrescentou:
- Fui informado depois de que costumam atirar sobre quem se aproxime de Spine Hill. E eu agora também já posso afirmar que é assim, por experiência própria!
- Cortámos todas as relações com o resto do mundo
- ripostou azedamente, o velho. - Temos apenas um sentimento no coração: o ódio que consagramos aos Canova! Não pedimos nada a ninguém e não permitimos que alguém
venha até aqui!
- Nessas condições, não se deve admirar de não ter sido avisado logo após o falecimento de seu sobrinho..
O "tio Teodoro mordiscava nervosamente os pêlos compridos do seu grande bigode. Entretanto, o ranger levara a mão à carteira, e tirou papéis, fotos amarelecidas
e as cartas que haviam pertencido ao ranger Art Mortimer:
- Aqui tem, Senhora Mortimer, parte do que o seu filho possuía - declarou o visitante, inclinando-se para
Kate.
A infeliz endireitou-se e, à luz fraca da lâmpada de petróleo que iluminava o refúgio, Catamount pôde observar o rosto brilhante de lágrimas da pobre mulher e a
expressão de aniquilamento dos seus olhos claros, que, a dor havia avermelhado...
com mão trémula, recebeu o pacotinho que o ranger lhe estendeu.
- Art! Meu filho!
- O coronel encarregou-me também de lhe entregar, em seu nome, a importância de duzentos dólares.
Ao pronunciar estas palavras, Catamount estendeu duas notas de cem dólares à sua interlocutora, que hesitou em aceitá-las. Mas o tio Teodoro apressou-se a resmungar :
- Aceita, Kate! Isso pertence-nos bem! Depois, franzindo os lábios, continuou num tom de amargura:
- Dão-nos duzentos dólares pela vida de um homem!
- Devo adverti-los, todavia-frisou então o homem dos olhos claros -de que se trata de uma dádiva particular do coronel...
Enquanto Kate se afastava, a soluçar, levando aos
lábios o embrulho entregue, por Catamount, o ancião
acrescentou com ironia:
- Art quis afastar-se de nós para evitar a rixa com
os Canova e, afinal, ficou bem servido! Ouso esperar
que Winston e Hal não se darão ao cuidado de lhe
seguir o exemplo!
Os dois irmãos apenas resmungaram com cólera.
- Trouxe também uma sacola com a bagagem de Art - disse o ranger - mas fui obrigado a deixar o cavalo no declive para o proteger das balas que me eram dirigidas!
Lamento não ter podido trazer Mesquita até Spine Hill.
- Eu sei onde ficou o seu cavalo- retorquiu, então, Winston - Visto que ele conduz a bagagem do nosso irmão, vou mandar o Juan buscá-lo. Conheço muito bem o sítio
onde ele se encontra...
- Juan! - chamou o tio Teodoro, batendo repetidas vezes com a muleta na borda da lareira.
O enfermo endireitou-se na poltrona, deitando à sua volta olhares furiosos:
- Juan... Onde estás tu metido, malandro dos diabos?!
- Deve estar no redil - retorquiu Hal.
- Que venha depressa, esse maldito preguiçoso!
- vou procurá-lo!
O mais novo dos Mortimer ausentou-se por uns momentos, deixando Catamount junto da lareira. O tio Teodoro, cujo tom de voz se havia agora tornado um pouco mais suave,
voltou-se para o visitante e, indicando-lhe um banco desconjuntado, que se encontrava perto, convidou-o:
- Sente-se. Deve estar cansado.
O ranger aceitou o convite de boa vontade e sentou-se. Sentia-se, de facto, um pouco extenuado em consequência da recente viagem.
- Peço-lhe que me fale dele!
Kate, arrancada à sua prostração, agarrava agora a mão do ranger, e os seus olhos, vermelhos de lágrimas, pousavam nele com uma (tocante expressão de súplica...
- Acredite que a lamento de todo o coração, senhora Mortimer - retorquiu Catamount -. Art e eu éramos bons amigos...
O homem dos olhos claros evocou, então, o camarada desaparecido, afirmando os sentimentos de profunda afeição que ele devotava a sua mãe.
Winston pendurara a carabina num cabide. com
maneiras desengonçadas, havia-se sentado e esperava,
}, apoiado a uma mesa que se encontrava perto dali.
Quanto ao tio Teodoro, continuava a bater com a
ponta da muleta na borda da lareira, murmurando
palavras que os circunstantes não podiam perceber,
mas em que aparecia frequentemente o nome do índio
Juan, que ele considerava mandrião e sem préstimo.
Catamount pormenorizava ainda as circunstâncias em que Art havia encontrado a morte, quando se abriu a porta bruscamente e Hal apareceu à entrada, empurrando, adiante
dele, um homenzito magro com os olhos pequeninos abertos em fenda.
- Até que enfim! - exclamou o tio Teodoro -. Ei-lo! Já não era sem tempo!
IV
UMA "VENDETTA" NO FARWEST
O Navajo aventurou-se até ao meio da casa. Parecia presa de um doido terror, pois a atitude ameaçadora do ancião não era de molde a tranquilizá-lo:
- Aproxima-te!
- Teodoro...-quis intervir Kate.
com um gesto, o enfermo repeliu-a; depois, lançando a muleta às pernas de Juan, fê-lo cair e, enquanto o infortunado se levantava agarrando-se à mesa, gargalhou
num riso feroz:
-.Ah! Ah! Isto te ensinará! Nunca estás quando te chamam, verme!
- Senor...
O Navajo ia protestar, mas um pontapé que Winston lhe atirou às canelas arrancou-lhe um grito de dor.
- Escuta-me bem -, disse então o filho mais velho dos Mortimer, agarrando o índio e sacudindo-o com força-, tu tens de ir a Squirrel Fork... Está lá um cavalo à
tua espera, mas voltas com ele imediatamente... Está compreendido?
Juan quis responder. Winston, todavia, não o deixou descansar sequer, e, durante alguns instantes ainda, uma saraivada de pontapés caiu sobre o infortunado, que
berrou de dor.
Catamount não pôde deixar de intervir:
- Por favor - indignou-se ele -, deixem esse infeliz! Ele não merece isso...
-É um malandrete sem vergonha! - interrompeu o tio Teodoro -. Os vermes da sua espécie só podem ser tratados assim, pela força.
Aproveitando a distracção provocada pela intervenção do ranger, o índio apressou-se a levantar-se e chegou à porta... Hal não deu um passo para se opor à sua saída,
e em breves instantes ele estava lá fora.
- Não te esqueças! O cavalo! A Squirrel Fork! -gritou-lhe ainda Winston.
Mas Kate dirigiu-se de novo à sua visita:
- Vai ficar esta noite na nossa casa - propôs-lhe ela.
O ranger hesitou durante alguns instantes antes de responder. Verdadeiramente, repugnava-lhe ficar naquele ambiente empestado de fumo, junto daqueles homens rudes
e selvagens que pareciam não se interessar senão pelo ódio! Preferia, sem dúvida, acampar nas colinas, ao ar livre, como fazia muitas vezes, mas a mãe de Art demorou
sobre ele um olhar tão suplicante que Catamount resignou-se:
- Está bem, seja!
- Vai comer agora alguma coisa...
Enquanto falava, Kate Mortimer dirigiu-se a um armário, na parede próxima, e retirou dele um queijo, um bocado de pão seco e algumas tortillas de milho, que ela
própria havia confeccionado; vendo perto uma bilha cheia de água fresca, colocou-a também sobre a mesa.
- Jante antes de se ir deitar! - insistiu ela.
Catamount instalou-se. A refeição era frugal, e, embora os alimentos parecessem também impregnados de fumo, o ranger dominou depressa a sua repugnância e começou
a comer o queijo.
Os dois irmãos estavam sentados junto da lareira; enquanto Hal atendia a visita, Winston ocupava-se a limpar a carabina e o tio Teodoro aquecia os pés ao lume.
- Temos também batatas - disse Kate Mortimer apontando a marmita, que espalhava um odor pouco convidativo.
Agora não se ouvia na casa senão o ligeiro ruído produzido pelo trapo com que o filho mais velho dos Mortimer limpava por dentro o cano da sua arma.
Várias vezes o levou à altura de um dos olhos olhando na direcção da lâmpada.
Uma risada sarcástica se ouviu finalmente. O tio Teodoro manifestava o seu despeito:
- Haverá festa em casa dos Canova, quando souberem da morte de Art!
- Certamente!-concordou, enraivecido, Winston.
- Sempre economizam uma bala...
- Se eu tivesse ao menos o Gregório ao alcance da minha carabina!-disse Winston-Mas o finório não se fia muito, tem todo o cuidado antes de se aventurar na nossa
vizinhança...
E o colosso ajuntou entre duas esfregadelas:
- Não é como a Sylvia! Essa não. se importa de avançar deliberadamente mesmo no meio do que é nosso... Ah! Mas eu não falharei da próxima vez que a tiver nas unhas!
Catamount, que estava de costas para Winston, pôde discernir naquele momento o ligeiro estremecimento que agitou a máscara rude de Hal. Surpreendeu igualmente a
olhadela furtiva que lhe dirigiu o rapaz; sem dúvida, ele queria desse modo recordar à visita a recomendação que lhe fizera há pouco, antes de a conduzir a Spine
Hill...
O ranger mostrava a mais completa impassibilidade; todavia, desejoso de mais informações acerca da situação,
virou-se pouco depois na direcção do tio Teodoro:
- Há muito tempo que estão assim zangados com os Canova? - interrogou ele.
- Desde sempre - retorquiu o enfermo, num tom rabujento -. Há dezanove anos que toda a família se instalou na nossa vizinhança, em Cedar Green. E, desde aí, tudo
tem ido de mal a pior! Meu irmão Marchie foi abatido durante uma desordem com aqueles vermes dos italianos, que nos contestavam a posse de um curso de água...
- Mas nós não ficámos a perder! - chacoteou, então, Winston, soprando através do cano para fazer sair o pó -. Nós apanhámos um dos Canova, Piombino, no próprio momento
em que ele se introduzia na nossa casa! O caso era flagrante: legítima defesa!-Por isso, Gus Topson, o sheriff, não chegou a incomodar-nos. Mas, depois, a vendetta
começou... Quem será agora?
Catamount voltou novamente a comer. Não era a primeira vez que se encontrava em face de uma situação deste género... Quantos interesses não tinham oposto os sheepmen e os cattlemen! Quantas rivalidades de rancho para rancho não havia ele conhecido já?
Mas a hostilidade existente entre os Canova e
os Mortimer dava a impressão de uma verdadeira vendetta... Ele não conhecia dos italianos senão a fugidia e misteriosa Sylvia; no entanto, imaginava que o encarniçamento
em Cedar Green devia ser tão grande como o de Spine Hill!
- Não acredita - aventurou por fim, dirigindo-se de novo ao tio Teodoro - que teriam todo o interesse em pôr fim a esse antagonismo que os mantém constantemente
em pé de guerra? Uma atmosfera assim não lhes parece irrespirável?
- By Jove! - protestou logo o enfermo, brandindo a muleta-. Tomar-nos-iam por cobardes!
E Winston reforçou num tom reprovador:
- Se nós parássemos, eles tomariam isso por uma desistência nossa... Não temos nada a perder com marotos dessa espécie!
- Que sabem vocês disso? - objectou tranquilamente o ranger -. Os Canova aprovariam, sem dúvida, o fim de uma guerrilha que se mostra tão prejudicial para eles como
para vocês todos!
- Tolice! - protestou Winston, alçando os ombros.
- Nós temos de vingar o pai cobardemente abatido...
- Tenho a impressão - ajuntou imediatamente o ranger - de que não estão a perder... Esse Piombino de que me falaram...
- Enquanto houver alguém dessa gentalha, nós não teremos nem paz nem tranquilidade! - insistiu Winston com arrogância -. Além disso, o caso só a nós diz respeito
e não recebemos lições de ninguém!
Ao pronunciar estas palavras, o colosso dirigiu ao ranger um olhar duro e agressivo, mas Catamount não se impressionou.
- É um conselho que lhes dou - frisou, para rectificar-, não se trata de uma lição!
- Os Mortimer, mesmo, - concluiu o tio Teodoro
- não recebem lições de ninguém! Estão em sua casa, em Spine Hill, e agem como melhor lhes parece!
Hal e a mãe não haviam arriscado uma única palavra no decurso desta discussão. Kate Mortimer, contudo, não podia dissimular uma expressão de profunda canseira-
Naquele momento, ela só pensava no filho desaparecido, e grossas lágrimas continuavam a correr-lhe ao longo das faces enrugadas.
O filho mais novo dos Mortimer mostrava não querer envenenar a situação e Catamount, olhando-o, lembrou-se
do incidente, ainda recente, do seu encontro com Sylvia. Era evidente que existia um acordo tácito entre os dois jovens, um acordo que acabaria com a hostilidade
encarniçada que os Mortimer mostravam a respeito dos Canova!
- Veja - retomou logo Winston com uma voz odienta e mostrando a carabina, que acabava de limpar cuidadosamente-, é para eles que eu a limpo! Aguardo com impaciência
a ocasião de as apanhar em falta. É por isso que eu estou alerta constantemente nas colinas... E tenho a certeza de que não faltará muito para que outro Canova pague
com a vida a sua imprudência! Que me importa a mim que se trate de um macho ou de uma fêmea maldita!
O ranger surpreendeu naquele instante a ligeira crispação que agitava as mãos de Hal, ao mesmo tempo que o colosso notava igualmente a careta feita por seu irmão
mais novo.
- Hélio, Hal! - aventurou ele -, parece na verdade que não aprovas!
- Não aprovo nem desaprovo! - objectou o rapaz, que se esforçava por dissimular o melhor possível a sua enorme tortura -. Mas acho que é ocupar-nos demasiado dos
Canova! Melhor seria pensar noutra coisa... Principalmente esta noite!
E Kate, saindo do seu silêncio, opinou imediatamente:
- Hal tem razão! O ódio é sempre mau conselheiro! Eu já o dizia, dantes, ao vosso pai! Se ele me tivesse escutado, nós não estaríamos aqui!
Nesta altura, o tio Teodoro não se conteve e agitou de novo freneticamente a muleta:
- God Almighty! É o cúmulo! - protestou ele, com raiva -. Por um pouco daria razão a esses cães malditos!
- E que mais seria preciso dizer para a dar?! concluiu Winston, mais ameaçador do que nunca.
Mas a viúva não pareceu atemorizada com a atitude feroz dos seus dois interlocutores:
- O ódio traz a infelicidade!-assegurou ela, numa voz um pouco trémula -. A infelicidade caiu sobre nós porque nós não sabemos amar.
- Amar os Canova! - chasqueou o colosso, que se levantara para repor a arma no cabide -. É a primeira vez que ouço pronunciar palavras tão insensatas na casa dos
Mortimer! Isso é insultar a memória do pai!
- Se o pai está lá em cima, como espero - ripostou Kate -.conhece a verdade eterna. Ele sabe que Deus é todo amor e bondade. Além disso, eu sei que ele me aprova.
O tio Teodoro, vermelho de cólera, ia descarregar sobre a cunhada severas censuras quando a porta se abriu lentamente.
-Juan!
O índio, que acabara de reaparecer, hesitava em entrar.
- Já trouxe o cavalo -declarou simplesmente.
- O.K. Já lá vou!
Catamount, que acabara de comer, sacudiu as migalhas que se haviam pegado aos seus chaps, esvaziou de um trago o copo que acabara de encher de água fresca e, depois,
encantado com aquela intervenção que acabava de pôr fim a uma discussão penosa, saiu atrás do Navajo.
Um silêncio pesado reinou na triste habitação; durante um momento, não se ouviu senão a caldeira a chiar sobre o lume. Hal, para sacudir o- marasmo em que se encontravam,
Lançou na chaminé um braçado de lenha, Winston acendeu o cachimbo e o tio Teodoro, esse, não sabia contra quem mais havia de dirigir o seu
mau-humor- Os Canova e Juan já o haviam indisposto tanto!
Finalmente, o ranger reapareceu. Fora tirar os arreios ao Mesquita, que se encontrava no estábulo, e trazia a sacola contendo o resto do espólio de Art Mortimer.
- Meu filho! Meu pobre filho!
Kate não pôde deixar de soluçar novamente quando recebeu, nas suas mãos nervosas, os objectos que lhe trazia o homem dos olhos claros. Os seus dois filhos, de semblante
feroz, inclinaram-se, apoiando-se à mesa. Winston, então, pegou avidamente num fuzil e numa bolsa de tabaco que sua mãe acabava de tirar do embrulho.
- Fi-la eu própria! - precisou ela, desdobrando uma camisa de flanela, com quadrados encarnados e brancos e já um pouco usada.
Depois, esboçando um gesto vago, que pontuou com outro soluço: - E agora!
- Agora, os Canova vão rir-se à farta!-chasqueou o enfermo, que se entretivera a desenhar no ar círculos e quadrados, com a ponta da muleta.
- Peço-lhe:
com o dedo, Catamount apontou a pobre mulher sucumbida pelo desgosto. Entre as suas mãos, que tremiam, ela acariciava agora uma fotografia de seu filho, fardado
de ranger, junto de Pony, o seu cavalo... Art estava ali: um ligeiro sorriso nos lábios, o olhar decidido, a cabeça erguida... Tinha os mesmíssimos olhos, o mesmo
sorriso que sua mãe!
- Olha, são para ti, Hal!
Winston apontou para as cartas que seu irmão mais novo havia escrito a Art para El Paso... Hal era O1 único que sabia ler e escrever na família, e, como o rapaz
hesitasse, o colosso insistiu:
- Toma, são tuas!
Hal agarrou rudemente no rolo e olhou para sua mãe, sem saber o que devia fazer das cartas.
- Dá-mas - exclamou surdamente a pobre Kate-, guardá-las-emos aqui...
E meteu numa gaveta o rolo das cartas com as flores secas, demorando-se a acariciar, com as pontas dos dedos, uma flor branca...
- Vai ver se Juan conduziu bem os carneiros ao estábulo - disse, então, Winston, dirigindo-se a seu irmão.
O rapaz ausentou-se durante alguns minutos. Quando voltou, para anunciar que o rebanho havia chegado completo e que o Navajo se deitara sobre a palha, como de costume,
Kate arrancou-se aos seus comovedores pensamentos.
- Deve ter uma grande necessidade de repousar,
- disse ela, dirigindo-se, a Catamount, que acabava de fumar um cigarro.
- Meu Deus! - exclamou o ranger - dormirei de boa vontade... Mas para isso não preciso de cama...
- Suba comigo. Era ali que ele se deitava dantes..
Kate Mortimer conduziu o visitante até uma escada situada ao fundo do compartimento- Catamount ainda nem tinha dado por ela.
- Boa noite! ??- disse simplesmente o tio Teodoro, Winston emitiu um grunhido. Só Hal avançou, de
mão francamente aberta:
- Espero que repouse!
- Farei o possível.
O homem dos olhos claros correspondeu de boa vontade ao gesto amigável do filho mais novo dos Mortimer. Durante alguns instantes, os seus olhares encontraram-se
e a mesma lembrança, a de Sylvia, a rapariga selvagem, lhes veio ao espírito.
Um clarão fez brilhar os olhos de Catamount, mas já Kate tinha acendido uma velha candeia de cobre, toda amolgada, e começava a subir. O ranger não se demorou então
mais tempo no compartimento, seguindo logo na sua companhia.
Pouco depois chegavam a uma espécie de mansarda. Viam-se no chão, estendidos, um enxergão e um cobertor.
- Era aqui que ele se deitava - murmurou tristemente a pobre viúva.
- Boa noite, sr.a Mortimer!
Kate levantou os olhos na direcção das grossas vigas do tecto, donde pendiam maçarocas de milho e pimentos.
- Como poderei dormir agora? - murmurou ela, suspirando profundamente. - Sempre julguei que ele vivia! Mas a morte implacável havia-o ceifado- Art, o melhor dos
meus filhos!
- Coragem, sr.a Mortimer! Resigne-se, tenha confiança em Deus!
A pobre mulher teve um novo soluço. Catamount não insistiu. Depressa compreendeu que não havia palavras capazes de dar à sua desolada interlocutora a consolação
necessária.
- Era um bom camarada! - aventurou ele simplesmente - Um bravo! Rezarei por ele!
- Que o Senhor o tenha na Sua santa misericórdia! Kate não se demorou mais. Estava com o coração
oprimido. Durante alguns instantes ainda o ranger ouviu o barulho dos passos furtivos da pobre mãe, que faziam estalar a madeira dos degraus. Depois, voltou, sozinho,
para o seu tugúrio.
À luz trémula da candeia, começou a despir-se e, depois, estendeu-se sobre aquela cama de acaso que acabava de ser posta à sua disposição.
Uma vez mais o homem dos olhos claros lamentou não ter podido deitar-se ao ar livre, junto do fiel Mesquita. As suas pernas, retesadas durante tanto tempo, na vigilância
que fora obrigado a fazer num terreno acidentado, incomodavam-no ainda, mas, apesar disso, Catamount estendeu-se e, depois de ter apagado a candeia, esforçou-se
por dormir.
No entanto, a despeito do seu acabrunhamento, Catamount esteve muito tempo sem conseguir adormecer. Um cheiro forte a carneiros, e a fumo enchia o quarto. Em baixo,
os Mortimer deviam estar deitados, e não se ouvia o mais pequeno ruído. Tudo parecia dormir em Spine Hill!
Várias vezes o ranger se virou e revirou sobre a cama um pouco dura, e a sua imaginação vagabundeava. Os Mortimer, os Canova, a vendetta que opunha as duas famílias,
tudo isso lhe vinha ao espírito, mas uma imagem se lhe apresentava insistentemente: a de Sylvia, a rapariga selvagem que lhe havia permitido encontrar a triste casa
dos Mortimer!
DOIS TIROS
Ao romper da manhã, o sonoro cantar de um galo despertou Catamount. O ranger levantou-se imediatamente da cama e depressa um persistente cheiro a fumo lhe lembrou
a sua visita a Spine Hill. Enquanto se ia vestindo, tarefa a que procedia com grande cuidado para não bater com a cabeça nas traves, que eram baixas, ouvia no pavimento
inferior o vaivém dos Mortimer, que estavam habituados a levantar-se muito cedo.
O homem dos olhos claros teve nesse dia de abreviar a sua toilette de forma singular. Os seus hospedeiros haviam-se esquecido de lhe pôr à disposição uma bacia de
água. Quando desceu já Kate estava atarefada a descascar batatas enquanto o tio Teodoro empurrava as achas na chaminé com a ponta da muleta. Sentado perto dele,
Hal, por sua vez, limpava uma carabina. Quanto a Winston, havia saído para cuidar da criação e para ajudar Juan a tratar dos carneiros. O enfermo foi o primeiro
a avistar o ranger, saudando-o com um simples resmungar, que nada tinha de encorajador, mas Kate interrompeu o seu trabalho logo
que ouviu Catamount, indicando-lhe a mesa onde lhe "havia colocado uma tigela:
- Eu já preparei o seu almoço. Dormiu bem? Os seus olhos ainda vermelhos e o ar acabrunhado
provavam que a pobre mulher não conseguira repousar durante a noite. A imagem do filho desaparecido apresentava-se-lhe constantemente ao espírito.
Hal acolheu o ranger com um rápido bom-dia continuando a esfregar e a polir a arma. Antes de se sentar à mesa, Catamount aproximou-se dele e, examinando a carabina
como entendido, disse:
- Hélio! Você possui uma bela Winchester!
- Foi um presente do Art - apressou-se a esclarecer o rapaz -. Trouxe:-ma da última vez que veio ver-nos, isto é, há perto de dois anos, por ocasião do aniversário
de Mammy!
Sensível ao cumprimento que lhe dirigiu Catamount, Hal estendeu-lhe a arma, e durante algum tempo o ranger voltou-a e tornou a voltá-la, examinando o seu funcionamento
e reparando bem no carregador. Descobriu então que alguns sinais haviam sido gravados na coronha.
- De cada vez que tenho a sorte de abater um gato bravo - explicou o rapaz - gravo-lhe uma marca.
- Há então assim cinco gatos bravos na lista observou o ranger.
- Imundos animais! - praguejou do seu lugar o tio Teodoro - Deviam ser todos exterminados. Causam tantos prejuízos nos nossos rebanhos!
- Espero-os muitas vezes de emboscada - prosseguiu Hal- mas esses diabos são desconfiados e é raro conseguir-se apanhá-los! Assim que me descobrem fogem como a peste!
- Exactamente como os Canova! - concluiu, praguejando, o enfermo -. É uma espécie que deveria também ser destruída!
Depois, dirigindo-se ao sobrinho, o ancião acrescentou com um sorriso mau:
- No dia em que abateres um Canova poderás gravar uma cruz ao lado dos outros sinais- Mas tu, quando os avistas, apressas-te a dar meia-volta. Dir-se-ia que tens
medo deles!
Hal mostrou-se picado com a observação que acabava de lhe dirigir seu tio:
- Perdão - objectou ele -, se os Canova viessem a nossa casa eu tinha o direito de os alvejar. Mas eles não passam dos seus limites, e nessas condições...
- Oh! A pequena não nos pede licença para vir vagabundear nas nossas terras! Tu não és cego, e com certeza tens dado por isso!
Catamount tinha-se sentado à mesa e Kate acabava de lhe encher a tigela de leite; contudo, pôde surpreender o ligeiro estremecimento que agitara o rosto do rapaz.
Enquanto o ranger começava a comer uma fatia de pão seco que a mãe de Art lhe cortara, ouviu o velho prosseguir, olhando o sobrinho de soslaio:
- Tu bem me entendes, Hal! Que eu nunca perceba que tu mostras os dentes a essa boneca, senão eu e Winston bem depressa faremos entrar tudo na ordem!
Hal absorveu-se mais do que nunca na limpeza da arma. Além disso, a porta abriu-se bruscamente, empurrada pelo irmão mais velho, que aparecia de carabina à bandoleira
e com um aspecto mais feroz do que nunca.
-, O imbecil do Juan deixou fugir uma ovelha! resmungou ele -.. Encontrámo-la perto de Cedar Green, para onde se tinha escapado. Também que grande sova ele apanhou!
- Esse índio tornou-se impossível! - concordou o tio Teodoro.
- É preciso condescender - objectou Kate Mortimer-. Não encontramos por aí mais ninguém...
Depois, aproximando-se de Winston, que pendurava no cabide a sua carabina:
- Escuta - arriscou a viúva Mortimer -, tu farias melhor se te mostrasses mais compreensivo para com o Navajo!
- Os tratantes desta espécie não conhecem senão a lei do mais forte! Se nós tivéssemos a imprudência de dar mostras de fraqueza...
- Mas não é conveniente exagerar... Catamount assistia, sem dizer palavra, a esta cena
de família. O carácter bondoso e compassivo de Kate contrastava com a brutalidade e rudeza dos seus dois interlocutores. Quanto a Hal, havia aproveitado a ocasião
para sair, pouco disposto a expor-se de novo a censuras a propósito de Sylvia Canova. Mas o enfermo, que havia compreendido esta precipitada ausência, voltou-se
então para Winston, que enchia agora o cachimbo voltado para o lume:
- De há um tempo para cá - observou ele - que Hal não parece o mesmo. Quando se fala dos Canova, observa um silêncio constrangido! Dir-se-ia que tem receio de dizer
mal daqueles canalhas!
- Isso é claro como a água - retorquiu o colosso, acendendo um tronquinho no lume -, a pequena interessa-lhe... À força de vir vagabundear aqui para os nossos lados,
acabou por enfeitiçá-lo com os seus olhos de bruxa!
E Winston acrescentou, depois de ter tirado algumas fumaças do cachimbo:
- Mas cautela! Eu tenho os olhos bem abertos! Na próxima vez que a surpreenda a introduzir-se na nossa propriedade, abato-a a tiro como a um cão danado!
- O. K-! - aprovou o ancião -. Enquanto os Canova permanecerem no seu covil, nós nada faremos, mas se vierem até aqui provocar-nos temos todo o direito de os tratar
como se fossem feras!
A conversa terminou aqui- E Catamount, que acabara de beber a sua tigela de leite levantou-se da mesa.
- Vai já partir? - interrogou Kate.
?- vou aparelhar o cavalo - respondeu o ranger-.
Tenho de voltar a El Paso, uma vez que a minha missão está cumprida.
E, como visse brilhar lágrimas nas pálpebras avermelhadas da pobre mulher, acrescentou, tomando-lhe a mão e apertando-a efusivamente:
- Tenha coragem, senhora Mortimer, não fica só, restam-lhe ainda dois filhos para olhar por si!
O tio Teodoro acolheu com uma gargalhada sarcástica as últimas palavras do ranger:
- São muito bonitas essas palavras! Mas não nos restituem o nosso pobre Art!
- Talvez - retorquiu por seu turno Winston -, mas quando Art se filiou no Texas Rangers era de crer que não ia para lá para cuidar de um pensionato de raparigas!
Foi com dificuldade que o enfermo apertou a mão que Catamount lhe estendia, e o colosso também o fez de má vontade.
Quando se dispunha a transpor a soleira da porta, Kate foi ao seu encontro e, tomando-lhe as mãos, estreitou-as muito, dizendo em voz sumida:
- O senhor era um dos seus amigos! Estimava-o... Agradeço-lhe a sua vinda até aqui, não recuando diante dos perigos!
- Meu Deus! Os perigos!
com gesto vago, o homem dos olhos claros deu a
entender à sua interlocutora que estava habituado a
afrontar perigos maiores. Depois, num passo resoluto,
voltou ao estábulo aonde Juan havia conduzido Mesquita.
O alazão esperava, junto das cinco vacas que constituíam toda a manada dos Mortimer. O inteligente ] animal relinchou de prazer ao reconhecer o dono, pois começava
já a achar o tempo longo de mais. - Vamos voltar, velho camarada!
Em menos de cinco minutos, o ranger selou o seu fiel cavalo. Em vão procurou com o olhar o Navajo. Juan tinha desaparecido. Vigiava sem dúvida o rebanho em qualquer
parte, nas encostas de Spine Hill.
Hal também se havia ausentado, preferindo não se demorar junto do irmão para não ter de sofrer novas censuras a respeito de Sylvia.
Catamount lastimou não ter podido dizer-lhe adeus! Só Kate se encontrava ali para o ver partir, e mais uma vez ela lhe tomou a mão dizendo num soluço:
- Que Deus o proteja!
Enquanto ele se afastava a passo, ao longo da encosta, a pobre mulher esperou um momento, muito direita, fixando o olhar nas silhuetas do cavalo e do cavaleiro,
não se atrevendo a voltar para a humilde habitação. Até que os viu desaparecer por detrás de um pinhal...
Catamount segurava o alazão com mão firme, aspirando, deliciado, o ar fresco da manhã, que estabelecia um vivo contraste com a atmosfera de fumo da casa onde tinha
permanecido durante algumas horas-
Enquanto cavalgava não podia furtar-se a uma profunda impressão de mal-estar. O ódio feroz que os Mortimer votavam aos seus vizinhos, a atmosfera de vendetta que
há anos existia nesta região perdida, as ameaçadoras palavras que o tio Teodoro e o cruel Winston acabavam de pronunciar, tudo isso o indispunha ao máximo.
Das encostas subia um véu de bruma, que logo se desfazia ao contacto dos primeiros raios solares, indício de grande calor no decorrer da viagem. Quando o cavaleiro
contornava o pequeno bosque, dois esquilos, que corriam atrás um do outro nos ramos mais baixos, assustaram Mesquita, que esboçou um brusco recuo.
Tudo parecia calmo e tranquilo. Os cantos das aves repercutiam-se dos dois lados do caminho e um regato
que descia ao longo do declive fazia ouvir um agradável murmúrio. Parando o cavalo, o ranger pôs rapidamente pé em terra; depois, ajoelhando-se perto da água límpida,
apressou-se a fazer uma sumária toilette, sentindo prazer em banhar o rosto, ainda enegrecido pelo fumo. Tinha pressa de se libertar do persistente e desagradável
odor que o tomara por inteiro.
Catamount arregaçou as mangas até aos cotovelos e mergulhou as mãos e os braços na água clara, mas de repente sobressaltou-se. No espelho límpido e tremeluzente
que sob os seus olhos se desdobrava nesse momento, acabava de distinguir uma silhueta que furtivamente aparecia atrás dele. Surpreendido, voltou-se, temendo ser
atacado pelas costas.
- Sou eu! -declarou então uma voz clara.
- Sylvia!
O ranger reconheceu logo a sua companheira do encontro da véspera, que esperava sorridente, com os cabelos loiros flutuando ao leve sopro da brisa matinal. Um sorriso
aflorou aos seus lábios, e adivinhava-se nele, simultaneamente, um pouco de malícia e uma profunda satisfação.
- By Jove! Que faz você aí? - não pôde deixar de perguntar Catamount.
A rapariga encolheu tranquilamente os ombros, acariciando com a mão um ramo de pinheiro que pendia de um tronco próximo.
-Passeio... como vê!-declarou ela em tom jovial.
- Passeia?! Isso pode estar muito certo - apressou-se a objectar o homem dos olhos claros - mas creio que estamos ainda em território dos Mortimer.
Esta observação, contudo, pareceu não assustar excessivamente Sylvia:
- Os Mortimer! Que podem eles fazer-me, os Mortimer? Você foi a casa deles e não o comeram, pois não?
- Sim - concordou Catamount -, mas eu fui lá numa missão... Aliás, não foi muito fácil estabelecer o contacto. Se você não interviesse...
- É a Hal que deve agradecer, não a mim.
Por alguns momentos conservaram-se em frente um do outro sem dizer nada. Sylvia continuava a dar provas de uma tranquila segurança, e Catamount deixou cair as mãos
a escorrerem água.
Por fim o ranger decidiu-se a recomeçar a conversa.
?- A propósito de Hal - aventurou ele -, creio que você deverá ser mais prudente...
- Mais prudente?! Que quer dizer?
A rapariga fixou os seus grandes olhos interrogadores no seu interlocutor, mas Catamount não era pessoa que se deixasse lograr, pois convenceu-se logo de que ela
o havia compreendido...
- Escute-me - insistiu ele -. Eu acabo de tomar conhecimento de certos propósitos que não me deixam qualquer dúvida acerca das disposições dos Mortimer tanto a seu
respeito como de sua família!
- Winston é um selvagem! - replicou Sylvia, sem parecer amedrontada -. Quanto ao velho Teodoro, com as suas muletas, não é perigoso... E no que diz respeito a Hal,
não há novidade, está tudo arranjado.
Sylvia esboçou um sorriso de entendimento, mas não devia ter convencido o seu interlocutor.
- Acredite-me! - acrescentou Catamount -. É muito sério! Um destes dias Winston estará à espreita e abatê-la-á como a um cão danado! Se o caso se passar adentro
dos limites de Spine Hill, ele terá todo o direito de o fazer, e você proporcionar-lhe-á, louca e imprudentemente, a oportunidade de se vingar!
Depois estendeu a mão e, apontando, a menos de meia milha para lá das encostas, o muro de pedras soltas que marcava os limites do domínio dos Mortimer, o homem dos
olhos claros insistiu:
- Volte para trás depressa! Estou certo de que pode vir a sofrer algum dissabor. Winston, emboscado, abatê-la-á sem pestanejar, se a surpreender a vaguear por estas
paragens!
A rapariga conservava o seu aspecto jovial:
- Talvez tenha razão! - reconheceu ela.
E, como Catamount tornasse a montar, ela saltou com ligeireza, atrás dele, para a garupa do alazão:
- Permite-me que o acompanhe num bocado do caminho? - perguntou.
- Pois não? com todo o prazer-
As mãos nervosas da sua companheira agarravam-se-lhe aos ombros. ele podia sentir no pescoço a tépida respiração de Sylvia.
Um odor a pinheiros e a urze parecia emanar de todo o corpo desta imprevista companhia.
- Go!-comandou ele simplesmente. Mesquita, que acabara de matar a sede no regato,
retomou a descida. Os declives eram por vezes escorregadios, mas, perfeito cavaleiro, Catamount soube triunfar : de todos os obstáculos. Em pouco tempo, atingiu
e ultrapassou o pequeno muro de pedras soltas, numa corrida vertiginosa que traçava por entre a urze e a erva uma pardacenta linha recta. - Pronto! Agora já está
tranquilo? - perguntou Sylvia. - Porquê?
-Já não me encontro em território inimigo! Os Mortimer já não têm o direito de me abater como a um vulgar coelho!
Catamount parou o cavalo alguns passos adiante. Ele via agora a estaca que notara na véspera, e um pouco adiante, caída por terra, a tabuleta, transformada num passador.
- Não sinto a menor vontade de gracejar - declarou ele -. Aquelas criaturas são perigosas. Você não
devia ter brincado com o fogo durante tanto tempo, porque; podia provocar uma desgraça!
- Oh! Eu não os temo!
Sylvia fez ouvir de novo uma sonora e alegre risadinha. Voltou o rosto na direcção de Spine Hill, e os seus olhos tiveram uma expressão de insolente desafio!
Sem esperar mais, a rapariga deixou-se escorregar pelo cavalo e, depois, estendendo o braço para uma colina perto, coberta de pinheiros e cedros, disse:
- Não quer acompanhar-me a Cedar Green? Os meus pais gostariam de o receber... E dir-lhe-iam também que não temem os Mortimer, e que a vendetta...
- Agradeço-lhe- interrompeu o ranger -. Teria muito prazer em conhecer todos os seus, mas preciso de voltar a El Paso.
- Não me quer fazer acreditar que está tão apressado como isso?
Sylvia ameaçava com o dedo o seu interlocutor enquanto lhe dirigia estas palavras, e um sorriso brincalhão provava-lhe que ela não se deixava enganar.
- Trata-se de um pretexto! - insistiu ela - Vamos, aceite!
O sorriso encantador da rapariga e a sua atitude obsequiosa incitavam o cavaleiro a render-se, ao amável convite. Todavia, lembrando-se de que podia ir encontrar
o mesmo ambiente desagradável que conhecera em Spine Hill, protestou:
- Peço-lhe que não insista! Não posso aceitar!
- É pena! Você foi-me simpático! Gostaria de estar consigo mais tempo.
- É muito gentil, mas o dever está acima de tudo! Estou a demorar-me demasiado nesta região!
Sylvia estendeu a mão ao ranger, que lha apertou logo. Iam a separar-se, quando de repente estremeceram: dois tiros acabavam de soar ali perto, nas encostas de Cedar
Green...
VI
A "WINCHESTER"
Durante alguns instantes o ranger e a sua companheira ficaram imóveis, os olhares fitos no ponto de onde partiram os tiros. Mesquita escarvava impacientemente o
solo rochoso. Num gesto instintivo, Catamount levara a mão à coronha do seu Colt...
- Hélio! ?- resmungou por fim -. Os Mortimer terão recomeçado a dança dos tiros?
Sylvia sacudiu negativamente a cabeça:
- Agora não foram os Mortimer. Foi na minha casa que dispararam!
-Na sua casa?! Tem a certeza?
- Absoluta! Mas espere aí, que eu vou ver...
O ranger ia a responder que estava com pressa, e que, por conseguinte, não podia esperar, mas já a rapariga se afastava correndo... Então, Catamount reteve o alazão,
que queria abalar de novo, e não mais perdeu de vista Sylvia, cuja silhueta, ao afastar-se, se tornava cada vez mais pequena.
Por fim, o homem dos olhos claros viu a sua companheira desaparecer por entre as árvores. Durante uns momentos esperou, profundamente perturbado. Apesar do desejo
que tinha de chegar a El Paso, sentia-se tomado por um repentino mal-estar. Os dois tiros que acabavam de soar no território de Cedar Green intrigavam-no bastante.
Bruscamente, um apelo longínquo fez-se ouvir... Sylvia surgia no mesmo local do bosque de onde havia desaparecido e agitava a mão na direcção do cavaleiro, fazendo-lhe
sinal para que a seguisse o mais depressa possível.
- Vamos lá! -murmurou o ranger, mais intrigado do que nunca.
Catamount meteu-se deliberadamente pelo mesmo caminho que Sylvia havia percorrido minutos antes. A rapariga tinha desaparecido novamente, mas o ranger não esteve
para esperar no sítio donde ela lhe acenara; apeando-se do cavalo, Colt em punho, preparado para a mais pequena surpresa, fez sinal a Mesquita para que esperasse
e, depois, embrenhou-se, por seu turno, no bosque.
Primeiramente Catamount não viu senão os grandes troncos dos pinheiros, cujas ramadas se entrelaçavam por vezes tanto que ele, para poder avançar, tinha de as afastar,
à sua passagem, com a mão esquerda, agora a única livre. E assim foi seguindo a custo.
Caminhava ainda quando um novo apelo lhe chegou:
- Aqui! Venha! Em nome do Céu!
Era a voz de Sylvia, mas a rapariga não tinha já a mesma aparência. Havia nela um ricto de angústia.
- Pronto! - respondeu maquinalmente o ranger, E, contornando ainda outro- pinheiro, apercebeu
então dois vultos estendidos e imóveis sobre o espesso tapete de agulhas ruivas que cobria o solo. Sylvia estava ali ajoelhada junto de um corpo. Voltou-se bruscamente
logo que percebeu que Catamount abria passagem por entre as ramadas:
- Papá! - arquejou ela, desolada -. Pobre papá! E tombou, a soluçar, sobre o corpo do homem, que
permanecia inerte. Um chapéu preto de feltro, de abas rebaixadas, rolara para perto. E Catamount pôde descobrir
então o rosto do personagem junto de quem soluçava a rapariga.
- Eles mataram-no! -murmurou Sylvia, enquanto ele se aproximava e se inclinava também sobre o corpo do infeliz.
O rosto do homem estava lívido e contraído pelo sofrimento. Ao primeiro olhar, Catamount verificou que, embora bastantes fios prateados se lhe destacassem nas fontes,
não devia ter mais de cinquenta anos. Era moreno e tinha um bigode escuro, assaz espesso, que lhe sombreava a boca. Envergava uma camisa de flanela aos quadrados
pretos e verdes, e umas calças de veludo remendadas nos joelhos. Os pés, nus e cobertos de poeira, calçavam umas sandálias atadas com cordas.
À primeira vista, o ranger acreditou que o homem houvesse sucumbido, mas, pouco depois, surpreendendo-lhe um leve gemido, quase imperceptível, tratou de observá-lo
com cuidado. Os lábios do ferido, entretanto, entreabriram-se ligeiramente:
- Madonna! - murmurou ele, num sopro-Ainda está vivo!-exclamou então Sylvia.
E, apertando a mão crispada do moribundo entre os seus dedos nervosos, insistiu:
- Responde-me, papá! É Sylvia! A tua filha!
- Sylvia! Madonna! - foi tudo quanto o infortunado conseguiu articular -
Como a rapariga se curvasse, ofegante, sobre ele, Catamount disse-lhe:
- Desvie-se, peço-lhe! Quero ver se podemos tentar qualquer coisa...
Sylvia, constrangida, acedeu. Grossas lágrimas corriam-lhe ao longo das faces. E, enquanto o ranger examinava cuidadosamente o corpo, agora de novo inerte, ela arquejou:
- É o meu pai... Gregório Canova!
Depois, apontando a camisa de flanela, manchada nas costas, entre as espáduas, acrescentou:
- Veja! Eles atiraram-lhe quando ele estava de costas! Miseráveis cobardes!
Catamount sacudiu levemente a cabeça. Não tinha dúvida em assegurar agora que os ferimentos de Gregório Canova eram graves; as duas balas haviam-no atingido nas
costas no momento em que ele avançava ao longo da vereda, através do pinheiral.
- Ele vai morrer! - gemeu Sylvia - Santo Deus! Sem lhe dar resposta, o ranger agarrou no pequeno
bidão de whisky que trazia sempre consigo durante as suas aventuras e, soerguendo a cabeça do ferido, levou-lho aos lábios; mas os dentes encontravam-se já cerrados
e o líquido correu ao longo do queixo e infiltrou-se pelo pescoço.
- Não há nada a fazer! - rouquejou o ranger.
Voltando-se, porém, logo a seguir, para a sua companheira, que se imobilizara, ajoelhada e perplexa, intimou:
- Você vai ajudar-me! Levanta-lhe um pouco a cabeça e eu pego na minha faca e experimento fazê-lo beber.
Sylvia levantou-se logo. com precaução, passou ambas as mãos por baixo da nuca do pai. Este continuava de olhos fechados e, por baixo dele, no chão, uma poça de
sangue começava a alargar-se...
-. Cuidado! Não o estremeça muito e segure-o bem!
A rapariga ajeitou-se o melhor que pôde ao seu papel de. enfermeira improvisada; junto dela, Catamount esforçava-se por entreabrir um pouco a boca de Gregório Canova.
Embora com dificuldade, acabou por consegui-lo.
- Beba! - insistiu ele com vivacidade, enquanto o ferido apenas entreabria os olhos.
O ranger conseguiu desta forma que o homem bebesse
duas goladas. E a reacção foi, sem dúvida, eficaz porque as faces do desventurado coloriram-se e um clarão brilhou de novo nos seus olhos, que haviam
estado amortecidos até ali.
- Madonna! - arquejou outra vez - Os miseráveis...
- Quem lhe atirou?
Camount não hesitou em fazer a pergunta. Verificava, com efeito, que o ferido tinha sido tão perigosamente atingido que com dificuldade se poderia salvar. ; As duas
balas haviam-lhe atravessado os pulmões, provocando-lhe uma hemorragia que podia ser fatal, de um momento para o outro. Já uma espuma sanguinolenta aparecia na comissura
dos seus lábios.
- Papá! - insistiu Sylvia, agarrando com força a mão crispada de seu pai -. Responde! Quem te alvejou?
Gregório Canova concentrou-se durante alguns segundos. Parecia reunir as últimas forças para poder falar...
- Eu passava ali - murmurou ele quase imperceptivelmente-, sem desconfiar.
- Mas, quem atirou? - indagou Catamount -. Quem?
O moribundo teve uma expressão de cruciante desespero.
- Em nome do Céu, fale! - teimou o homem dos olhos claros.
- Mortimer... Os Mortimer...
Foram estas as últimas palavras que o ranger pôde
ouvir. Um ricto de sofrimento contraiu logo a máscara
pálida do agonizante, arrancando-lhe um queixume.
Grossas bagas de suor perlavam-lhe as têmporas e escorriam-lhe pelas faces crispadas.
- Foram os Mortimer? - perguntou de novo Catamoont -. Mas eles são vários... Qual deles foi?
E, como o moribundo o fitasse com os olhos já vítreos e desmesuradamente abertos, a denunciarem morte iminente, insistiu:
- Winston? Hal?
- Não... Hal, não! - protestou, junto dele, Sylvia.
Durante alguns momentos ainda, os dois continuaram debruçados, junto do infeliz, na esperança de que ele pudesse revelar-lhes a verdade toda, .acabando assim com
aquela angustiosa incerteza. Mas Gregório Canova esboçava já o sinal-da-cruz, que afinal nem pôde acabar... As únicas palavras que puderam ainda ouvir-lhe foram
estas: - Eu perdoo...
Depois, a cabeça do pobre homem tombou bruscamente para trás e um último espasmo agitou-o todo.
- .Misericórdia!-gemeu Sylvia, perdida - Ele morreu!
- De ora avante, tudo quanto podemos fazer por ele é pedir a Deus que lhe perdoe como ele já perdoou!
Lentamente, o ranger inclinou-se um pouco mais e fechou os olhos do morto. Junto dele, a rapariga soluçava perdidamente- Já nem parecia a selvagem insociável que
ele havia encontrado nas colinas e que manifestava profundo desprezo pelo perigo!
- Não foi ele!-arquejou, num novo soluço
Não pode ser Hal!
- Acalme-se, peço-lhe! Nós ainda não sabemos!
E, pondo a mão amigavelmente sobre a cabeça da jovem, o homem dos olhos claros ajuntou:
- Vamos! Agora é preciso ter coragem! Não se esqueça do que me disse agora mesmo...
Sylvia teve um gesto de desânimo.
- Agora mesmo... - repetiu ela, com o rosto dolorosamente crispado.
Parecia-lhe que um abismo separava agora a sua vida da de há pouco. Aqueles dois tiros haviam destruído a sua esperança, a sua razão de viver. Mas, em
face da presunção de que Hal pudesse ter abatido seu pai, revoltava-se:
- Já disse que não pode ser! Não pode ser ele!
- repetiu vivamente.
- Escute-me bem...
A rapariga encarou, então, com o seu companheiro, cujos olhos de aço a fixaram com tal agudeza que pareciam querer adivinhar os seus mais secretos pensamentos...
E a voz enérgica do homem dos olhos claros soou sob os grandes pinheiros, agitados por uma ligeira brisa:
- Há pouco tinha resolvido ir-me embora... mas agora fico.
Antes que a rapariga pudesse responder-lhe, Catamount continuou com a mesma energia: - Ficarei até que seja feita toda a luz sobre este caso!
Sylvia ficou profundamente impressionada com a atitude do ranger. Havia tão firme propósito, tão obstinada decisão naquelas palavras que ela compreendeu logo que
não se tratava de uma afirmação vã. - Não foi Hal! - protestou ela, mais uma vez, obbcecada pelas últimas revelações do moribundo. Ele nunca o mataria... por causa
de mim!
Catamount não respondeu. Imóvel, cabeça descoberta junto do cadáver, recordava tudo quanto ouvira de terrível antes da sua partida de Spine Hill. A vendetta que
há tanto tempo punha frente a frente os Mortimer e os Canova não podia acabar senão de maneira trágica. E, certamente, pensava que tinha sido Winston ou Hal quem
abatera o chefe da família Canova...
No entanto, um pormenor intrigava particularmente o ranger: os Mortimer não lhe haviam manifestado a intenção de abater os seus adversários -senão quando eles se
aventurassem nos seus domínios. Tratava-se,
pois, do mais odioso e do mais cobarde dos assassínios. A Justiça ia agir implacàvelmente!
- Por que pensa que Hal não está metido nisto?
- decidiu-se, por fim, a perguntar à rapariga.
- Tenho a certeza! Não lhe chega?-afirmou Sylvia, mais peremptória do que nunca.
- Mas, porquê? - insistiu o homem dos olhos claros -. Hal é um Mortimer como os outros e eu tenho excelentes razões para pensar que ele deve estar sempre pronto
para se servir da sua carabina...
A rapariga teve um gesto de desespero. Parecia que um terrível combate se desenrolava dentro dela e que sentia vergonha de revelar o seu segredo... Por fim, não
podendo guardá-lo por mais tempo, olhou Catamount bem de frente e assegurou:
- Hal não assassinou o meu pai... porque ele ama-me!
E, enquanto o ranger se calava, um tanto impressionado com esta revelação, embora ela já não constituísse para ele verdadeiramente uma surpresa, Sylvia repetiu com
vivacidade:
- Nós amamo-nos! Percebe, agora? Apesar de tudo, apesar da vendetta, nós jurámos que o nosso amor acabaria por triunfar do ódio!
A rapariga redobrara de beleza ao pronunciar estas palavras. Os seus olhos lançavam chispas... E Catamount descobriu nesse momento uma nova Sylvia, bem diferente
da selvagem e da infortunada de há pouco, vergada ao peso do desgosto...
- Tranquilize-se! - disse então o ranger. - Se Hal está inocente, nós não tardaremos a demonstrá-lo!
- Mas não diga nada aos outros! - implorou a jovem, com voz suplicante. Não convém, por enquanto, que eles saibam...
- Esteja descansada, eles nada saberão! Sou seu amigo e, por isso, guardarei o seu segredo. E prometo "
desde já que porei tudo em marcha para se descobrir a verdade e desmascarar o culpado.
- O senhor é muito bom! - murmurou a rapariga.
- E tão generoso!
- Eu sou apenas seu amigo! - limitou-se a repetir o ranger, com um sorriso -. Pode, de ora avante, contar comigo!
Catamount estava de pé, sacudindo as agulhas de pinheiro que se lhe haviam agarrado ao fato. E Sylvia, que não deixara de o fitar, perguntou-lhe então:
- Que vamos fazer agora?
- Ficarei aqui para me ocupar da investigação respondeu o ranger -. Você vai já para junto de seus irmãos... O sheriff precisa de ser avisado o mais depressa possível...
- Mas... o papá? - aventurou a rapariga, apontando para o cadáver do pai.
?- O corpo tem de ficar aqui, por causa das formalidades do processo. Veremos depois para onde o havemos de levar, quando terminarem essas diligências.
Sylvia teve um encolher de ombros, de aborrecimento. Repugnava-lhe ter de fazer o papel de mensageira da morte. Ela adivinhava já a reacção de sua mãe, bem como
a de seus irmãos, principalmente a de Rudi, o mais velho, que nutria pelos Mortimer uma aversão inextinguível. Mas dispôs-se a partir:
- Então, vou-me embora...-disse simplesmente.
- Tenha coragem! E, sobretudo, mantenha-se confiante!
Sem esperar mais, a jovem desapareceu rapidamente por entre as árvores. Catamount viu-se, então, só, junto do cadáver.
Primeiramente, passeou um longo olhar à sua volta. Procurava qualquer indício, qualquer sinal suspeito, sobre o chão. As duas feridas de Gregório Canova
asseguravam-lhe que o infeliz homem havia sido abatido quase à queima-roupa. O seu assassino devia tê-lo esperado, escondido atrás de um pinheiro, à espreita. Depois,
logo que Canova passou sem suspeitar da presença de um atirador emboscado, teria saído do seu esconderijo, para o alvejar...
O homem dos olhos claros aventurou-se a seguir por entre as árvores, de olhar perscrutador. Avançava com precaução, evitando de imprimir no tapete ruivo de agulhas
de pinheiro nova pista, que podia deitar a perder as buscas do sheriff e dos ajudantes quando eles, por sua vez, interviessem.
De repente, o ranger deixou escapar uma exclamação. Uma marca mais viva, que ele notou ao pé de uma árvore, sobre a direita, convenceu-o de que havia finalmente
descoberto a boa pista... Atento, inclinou-se. Um rápido exame permitiu-lhe assegurar-se de que alguém estivera ali pouco tempo antes...
- O assassino estava ali... - monologou o homem dos olhos claros.
No bosque silencioso, o ranger prosseguiu as suas investigações. Não lhe foi difícil assinalar o lugar de onde os dois tiros tinham sido disparados... Certas pegadas,
que o criminoso não pudera apagar na precipitação da fuga, demonstravam que ele fugira através do bosque, em direcção a Spine Hill...
Catamount tomou deliberadamente aquela direcção, mas, de súbito, estacou. A alguns passos adiante dele, um objecto jazia por terra, junto de um pinheiro...
- Uma carabina! - disse, ofegante.
A arma devia ter sido abandonada pouco antes. O ranger pegou-lhe:
- Faltam duas balas no carregador! - murmurou, depois de um rápido exame -. É, sem dúvida, a arma de que o assassino se serviu para abater a sua vítima...
Entretanto, virando e revirando o precioso achado, Catamount fez mais uma desconcertante descoberta: a arma era a mesma que ele havia examinado em Spine Hill, antes
da sua partida. As mesmas cinco marcas se destacavam na coronha.
- Não há dúvida - exclamou ele, espantado -, é a Winchester do Hal!
VII
VINGANÇA NÃO É JUSTIÇA
Catamount ficou durante algum tempo a observar a arma, com a maior atenção. Não estava enganado, reconheceria aquela Winchester entre mil!
- É impossível! - murmurou por fim, ao erguer-se. O ranger, durante a sua recente visita a Spine Hill
verificou facilmente o ódio feroz que os Mortimer votavam aos Canova.
No entanto, de toda a família, era Hal o que ele considerava menos perigoso. Além disso, a confissão que Sylvia acabava de lhe fazer e as relações existentes entre
os dois jovens demonstravam plenamente que o mais novo dos Mortimer não tinha interesse em irritar a questão, muito pelo contrário. Catamount sentia-se profundamente
perplexa. De facto, a última vez que vira a carabina fora, nessa mesma manhã, nas mãos de Hal, que não hesitou em lhe contar as condições em que Art lhe havia feito
presente dela.
- Aqui está uma prova temível quando for feito o inquérito- disse para consigo o homem dos olhos claros -. Hal Mortimer terá dificuldade em se justificar.
Por fim, saindo da imobilidade em que se encontrava, deu alguns passos, examinando cuidadosamente o chão em redor. Hábil descobridor de pistas, não possuía contudo
elementos suficientes para reconstituir o drama que se desenrolara naquele lugar. Gregório
Canova constituíra presa fácil para o atirador que o esperara, emboscado, por detrás de um pinheiro!
Prosseguindo nas suas investigações, contava descobrir um novo indício que o orientasse no caminho da verdade, quando um trote de cavalo cada vez mais próximo se
fez ouvir. Ergueu-se. Perto dali, no ponto por onde Sylvia se havia afastado pouco antes, surgia, de entre as árvores, um homem montado num cavalo, dirigindo constantemente
palavras de incitamento ao animal.
Logo pôde distinguir a figura do recém-vindo, e Catamount notou então que se tratava de um cavalo de aspecto bastante miserável: de pés descalços, metidos em cordas
que faziam de estribos, o homem montava uma verdadeira pileca de pêlo amarelado.
Apenas chegou perto de Catamount, desmontou agilmente. Era um rapagão de uns vinte anos, de tez bronzeada, cabelos encrespados e, admiravelmente negros; os seus
olhos sombrios exprimiam desconfiança.
Todavia, Catamount, que examinava com atenção o recém-chegado, ao notar nos seus traços uma certa semelhança com Sylvia, compreendeu logo que se tratava de um dos
irmãos, a quem ela teria prevenido em Cedar Green- O jovem pôs-se em guarda, empunhando um Colt; depois, pronunciou apenas um nome:
- Rudi!
- Você é Rudi Canova, o irmão de Sylvia?
O rapaz abanou afirmativamente a cabeça, mas o seu olhar, distraído agora do ranger, passeava em redor como se procurasse alguma coisa- De repente escapou-lhe uma
surda exclamação ao avistar o corpo inerte de Gregório Canova no mesmo sítio onde havia tombado.
-Pai! -murmurou ele com voz abafada.
Ajoelhou-se então, apertando sempre a arma na mão crispada, e a sua máscara enérgica contraiu-se numa feroz expressão de ódio,
- Os miseráveis!-disse, abafadamente.
- Nós havemos de vingá-lo!
Grossas lágrimas corriam pelas faces queimadas de Rudi. Inclinou-se, e os seus lábios afloraram ternamente a testa do morto. Catamount olhava sem nada dizer. Tinha
prendido à correia a Winchester que acabara de descobrir, e agora aguardava, abstendo-se de pôr o recém-vindo ao corrente da sua desconcertante descoberta.
O homem dos olhos claros actuava, de facto, com extrema prudência. Queria trabalhar de perfeito acordo com o sheriff que se encarregaria das investigações acerca
da morte de Gregório Canova. Apesar da esmagadora prova acusatória que a descoberta da Winchester representava para Hal Mortimer, Catamount abstinha-se naquele momento
de qualquer acção, embora se -sentisse mais decidido do que nunca a fazer luz sobre este caso.
Por fim, Rudi Canova levantou-se. Depois, voltando-se para Catamount, disse:
- A minha irmã contou-me que o senhor é ranger...
- Efectivamente vim a estas paragens desempenhar-me de uma missão especial - respondeu o homem dos olhos claros - e prometi a sua irmã que os ajudaria, o melhor
que pudesse, a desmascarar e a castigar o culpado.
- O culpado! - ripostou logo o jovem - Não é difícil encontrá-lo!
Erguendo-se a toda a altura, estendeu um braço ameaçador na direcção de Spine Hill.
- Foi ainda um golpe dos Mortimer! Começou a vendetta! Primeiro foi Piombino, ameaçaram depois meu pai! E não tardaram em agir!
- Perdão - interrompeu o ranger - nós ainda não começámos o inquérito... Nada podemos dizer de concreto, por enquanto...
- Madonna! A verdade salta à vista! - gritou Rudi
- É como o preto no branco! Não vale a pena procurar mais!
O rapaz continuava a agitar-se, brandindo o revólver e proferindo as piores ameaças na direcção da casa de Spine Hill. Catamount esforçava-se por acalmá-lo.
- Fique certo de que, se o criminoso se encontra entre os Mortimer, a Justiça descobri-los-á, custe o que custar! Mas é cedo de mais para se fazerem afirmações gratuitas...
- Gratuitas! - protestou Rudi - Vê-se bem que o senhor não é da região! Há muito tempo que os Mortimer rondam aquilo que é nosso! Mas, se cometemos a imprudência
de nos aproximar da casa deles, atiram sobre nós como se fôssemos coelhos! Quantas vezes me arrisquei eu já a ser abatido por esses malditos!
Depois, estendendo a mão e indicando o corpo do pai:
- Desta vez, foi mesmo em nossa casa que o crime se praticou! Ninguém poderá dizer que houve uma provocação da nossa parte! O assassínio foi premeditado! O miserável
emboscou-se e esperou que o meu pai passasse para lhe atirar pelas costas!
Rudi exprimia-se em voz enérgica, que a indignação fazia vibrar. Tudo, nas palavras como na atitude, mostrava o ódio que votava aos Mortimer-
A calma do ranger contrastava, de maneira singular, com a agitação do rapaz, que parecia exasperado com aqueles olhos claros, que o fixavam demoradamente numa expressão
indefinida...
- Aí estão os meus irmãos, minha mãe e Sylvia!
- declarou em voz abafada. Depois com um profundo suspiro:
- Que desgosto para a nossa mãe! Nós que tanto a amamos!
Não se mostrava afectado nestas palavras, que eram ditadas por uma profunda emoção, e o ranger, esforçando-se embora por continuar imperturbável, não pôde deixar
de aconselhar o seu interlocutor:
- Em nome do Céu, tenha calma! Nada há mais prejudicial do que um arrebatamento inútil! É perigoso fazer conjecturas.
- Mãe! -cortou Rudi, voltando-se de Catamount para uma mulher de uns quarenta anos, com ar compungido, que chegava amparada pelos seus dois outros filhos e precedida
de Sylvia.
Catamount afastou-se um pouco. Margarida Canova acabava de avistar o corpo de seu marido. Então, sem mais se importar com o que se passava em redor, sem prestar
sequer atenção ao -ranger, como se ele não existisse, precipitou-se para o cadáver, conservando-o estreitamente enlaçado nos seus braços. Por fim murmurou:
- Gregório! Meu Gregório.
Os dois irmãos de Rudi benziam-se, esperando a dois passos de Catamount, que os observava atentamente. Este verificou então que eles eram tão morenos e vigorosos
como o irmão mais velho. Luiggi, o mais novo, tinha mesmo a estatura de Rudi; e Pietro, que não contaria mais de quinze anos, parecia tão altivo como resoluto...
Enquanto a infortunada viúva continuava a soluçar junto do corpo do marido, traiçoeiramente morto, alguém, tocando no ombro do ranger, o fez estremecer. Catamount
voltou-se. Era Sylvia, que se havia aproximado sorrateiramente dele.
- Ainda não descobriu nada? - interrogou ela.
O homem dos olhos claros esboçou um gesto evasivo, pouco disposto a contar a descoberta que havia feito, mas a rapariga deixou escapar uma breve exclamação quando
os seus olhos pousaram na Winchester, que o ranger trazia agora à bandoleira...
-Meu Deus!-exclamou ela, num gemido
É a carabina de Hal!
- Psiu! - replicou imediatamente Catamount-. Nem uma palavra!
No significativo olhar que lhe dirigiu Catamount, Sylvia compreendeu que era conveniente ser discreta. Dominando o melhor que pôde a emoção sofrida, tornou para
junto de Rudi, que, voltava agora, de sobrancelhas franzidas e olhar feroz...
- A medida está cheia! - resmungou surdamente o jovem- É preciso fazer justiça a esses miseráveis,!
- O culpado será punido e desmascarado, dou-lhes a minha palavra de honra!
O Sangue-frio do ranger contrastava com a agitação de que dava provas o fogoso Rudi, mas logo Luiggi e Pietro se aproximaram, e, enquanto a mãe continuava a soluçar
perdidamente, junto do corpo do marido, o primeiro declarou:
- Rudi tem razão! É preciso agir depressa! Vendetta pede vendetta! Já que esses malditos vieram à nossa casa assassinar o nosso pai, nós iremos a casa deles ajustar
contas e castigá-los implacàvelmente!
- Eu irei também! - exclamou Pietro, com todo o ardor da sua juventude -. Eu quero matar um!
Sylvia estava calada, mas o seu rosto, dolorosamente crispado, exprimia, melhor do que o fariam as palavras, que estava longe de partilhar a opinião dos irmãos...
O seu olhar detinha-se na Winchester, cuja presença a inquietava e intrigava.
- Um homem tão bravo... tão bom... tão honesto! Margarida saía da sua prostração e voltava-se para o
pequeno grupo. A discussão parou logo. Catamount afastou-se por momentos dos três irmãos, e, auxiliado por Sylvia, ajudou a pobre mulher a erguer-se. Enquanto a
segurava, ouvia-a lamentar-se entre soluços:
- O melhor dos pais! O mais terno dos maridos! Então Deus abandonou-nos? É horrível!
- Não ignora, decerto, senhora Canova, que Deus experimenta muitas vezes aqueles a quem ama... - declarou Catamount.
- Por que permitiu, então, esta odiosa, esta abominável vendetta?
- Este sangue clama sangue, mãe! - disse Rudi em voz abafada. Esteja certa de que esta morte será vingada. Todos os Mortimer devem sucumbir!
Margarida abanou dolorosamente a cabeça:
- Ainda mais sangue?! Não tem corrido já bastante?
Depois, indicando o corpo de Gregório, num gesto de fadiga:
- O próprio pai aconselhava que se pusesse fim a esta luta absurda, lamentando esta atmosfera de guerra e desconfiança!
- Pobre pai! Veja a que o conduziu isso! Enquanto ele pregava a concórdia e o fim da vendetta, os Mortimer conspiravam para o assassinar!
- Vingança! - rematou vivamente Luiggi -. Vingança!
- Sim, vingança!-concordou Pietro, estendendo raivosamente o punho.
Durante um momento os três irmãos deram livre curso à sua cólera, mas o ranger olhava-os sem dizer nada. Ele bem sabia que, dado o carácter impetuoso dos jovens
italianos, não conseguiria naquele instante fazê-los chegar à razão. Quanto a Sylvia, esperava perto dele, muito pálida, amparando sua mãe soluçante.
Por fim Rudi ergueu-se- Depois, indicando o revólver que. conservava na mão nervosa, disse:
- Vamos imediatamente a Spine Hill! Faremos justiça a esses tratantes! O pai deve ser vingado!
Luiggi e Pietro aprovaram logo calorosamente, e os
três irmãos iam já a afastar-se quando Catamount os deteve com um gesto:
- Um momento! - objectou ele - Reflectiram bem nas consequências de uma tal decisão?
E, como os jovens o atendessem excitados, decididos a não fazer caso das suas palavras, ele prosseguiu em voz calma:
- Admitamos que vocês vão agora a Spine Hill. Supõem que os Mortimer os deixarão aproximar-se muito? Eles têm carabinas que atingem mais longe do que o simples Colt
de que vocês dispõem! Abatê-los-iam imediatamente, antes mesmo de haverem transposto o limiar. Além disso possuem dois cães que são bons guardas...
Os argumentos opostos pelo ranger conseguiram deter o entusiasmo dos três irmãos. Olharam-se, interditos, enquanto Rudi agitava raivosamente o revólver.
- Bem vêem... Que poderiam ganhar com isso? insistia o homem dos olhos claros -. Expor-se-ão apenas a ser exterminados, mais nada!
- No entanto, é preciso que se faça justiça! - protestou Pietro com veemência.
- Será feita justiça. Estejam certos de que, se os Mortimer são culpados, eles pagarão!
- Talvez não sejam culpados! - objectou então Sylvia.
- Per Bacco! Ainda intervéns em seu favor?! Rudi voltou-se, furioso, para a irmã.
- Mas, então-censurou ele-, que te fizeram esses malditos cães? Dir-se-ia, na verdade, que és conivente! Há um tempo que sentes prazer em rondar pelos seus limites...
Gostaria bem de saber o que te atrai assim!
Elevando- depois a voz e, ameaçando a rapariga com um dedo, Rudi insistiu:
- Toma cuidado! Se eu alguma vez percebo que lhes mostras os dentes, não hesitarei em te castigar como aos outros! Terás traído a vendetta e então renegar-te-emos
sem piedade!
- Rudi! - interveio Margarida, consternada -. Peço-te!
- Ainda mais uma vez - ajuntou Catamount -, a vingança não é justiça, não lhes pertence o direito de fazer respeitar a lei! Há alguém no distrito encarregado de
cumprir esse dever... É o sheriff! É preciso avisá-lo imediatamente.
O rapaz encolheu ironicamente os ombros e os três irmãos comentaram ao mesmo tempo em ar de troça:
- O sheriff! Acredita ainda que nós iríamos meter o sheriff nos nossos assuntos?!
- Todavia, é preciso, é indispensável! Catamount continuava a resistir aos três exaltados.
E verificou que a sua calma prevalecia sobre o arrebatamento dos seus interlocutores.
- Além disso - acentuou ele-, escutem-me bem! Eu estava com Sylvia junto do vosso pai quando ele sucumbiu! Procurei saber quem lhe havia atirado, mas ele apenas
pôde pronunciar duas palavras, que nós ouvimos perfeitamente...
- O papá disse: "Eu perdoo" - informou Sylvia.
- São as palavras de um verdadeiro cristão, aprohvou Margarida, em voz abafada... Não perdoou o próprio Cristo aos seus verdugos?
Uma expressão de profunda comiseração se estampou no rosto de Rudi:
- Vê-se bem que são duas fracas mulheres que se deixam facilmente impressionar. Além disso, admitindo mesmo que o pai tenha perdoado, nós não estamos dispostos a
abandonar a vendetta!
- Morte aos Mortimer! - gritou ferozmente Pietro, enquanto Luiggi fechava os punhos ameaçadoramente.
Por momentos, o homem dos olhos claros deixou ainda os -três irmãos darem livre curso ao seu ódio; depois, disse-lhes, acentuando bem cada uma das suas palavras:
- Ouçam-me bem! Se lhes interessa que o assassino seja rapidamente desmascarado e punido, devem prevenir as autoridades sem a menor perda de tempo! Vocês aqui pertencem
ao distrito de Mountain City?
Rudi sacudiu afirmativamente a cabeça.
- Está bem - disse então Catamount -, você vai montar imediatamente a cavalo e avisar o sheriff.
- E acredita que ele se incomodará? - objectou o jovem, com ironia - Se nós fôssemos barões de raça, catlemen, como os que se encontram nas margens do Pecos, do
outro lado das montanhas, ele apressar-se-ia a responder ao nosso apelo, mas a miseráveis montanheses e guardadores de carneiros, como nós, não liga importância...
- O sheriff virá! Além de que lhe entregará este recado da minha parte.
E o ranger tirou um bloco da algibeira e, agarrando em seguida num lápis, escreveu à pressa algumas linhas. Imóveis, os três rapazes e as duas mulheres esperavam
junto dele, olhando-o em silêncio.
Quando Catamount acabou, rasgou a folha que acabara de escrever e, estendendo-a a Rudi, disse:
- Vá! E depressa!
- No entanto - objectou Rudi, indicando o corpo do pai - não vai deixá-lo aí...?
- Não creio que seja absolutamente necessário,
- respondeu o ranger -. Procedi logo às indispensáveis pesquisas. Marcaremos o sítio exacto onde a vítima foi abatida!
Depois, como o rapaz parecia ainda hesitar, insistiu:
- Despache-se! Não há um minuto a perder, se querem que seja feita justiça rapidamente!
Desta vez Rudi não insistiu mais. Fixou os olhos de Margarida, que o fitavam numa expressão de dor, e anuiu.
- Está bem, seja, eu vou!
Um clarão se acendeu nas pupilas de Sylvia, que esperava junto de sua mãe, com o rosto crispado pela angústia.
- E que vamos nós fazer agora? - interveio Luiggi.
.- Vão ajudar-me a transportar o corpo para Cedar Green!
Logo que o mais velho desapareceu, a galope, por entre as árvores, o ranger aproximou-se do cadáver. Luiggi e Pietro seguraram-no logo pelas pernas e pelas axilas,
enquanto as duas mulheres seguiam atrás deles num passo vacilante.
- vou procurar o meu cavalo e já os apanho disse-lhes Catamount
O cortejo fúnebre acabava de desembocar do pinhal quando o ranger se lhes juntou, montado no alazão.
Um quarto de hora depois, o pequeno grupo atingia a habitação. Alguns cedros ladeavam o caminho. Catamount pôde verificar que se tratava de uma residência no género
daquela onde os Mortimer o haviam recebido, tendo, contudo, o aspecto de mais zelo e asseio. Um cão enorme que guardava um rebanho de carneiros num campo contíguo
ao pátio da casa, apressou-se a correr ao encontro dos recém-vindos e começou a ladrar furiosamente.
- Caluda, Caro! - gritou Sylvia, levantando o braço.
O cão parou de rosnar, mas aproximou-se de Catamount farejando desconfiado.
Quando o ranger transpôs a entrada da casa, depois de prender o Mesquita junto desta, estavam os dois irmãos a depor o corpo de Gregório Canova numa cama que se
encontrava a um canto da sala, perto da
chaminé. Ouvia-se um relógio no seu monótono tiquetaque.
Nas paredes, onde nem uma teia-de-aranha se via, achavam-se penduradas imagens de santos: uma Madonna, um Sagrado Coração, e outros.
Um odor a encáustica substituía o acre e desagradável cheiro a fumo que o homem dos olhos claros havia notado em casa dos Mortimer.
Catamount tirou o chapéu. Piedosamente, Margarida e seus filhos procediam à toilette fúnebre. De momento a momento, a -pobre mulher deixava escapar um soluço. Sylvia,
junto dela, mostrava-se atarefada segurando uma taça de água benta onde molhava um ramo. Por
seu turno, Luiggi e Pietro estendiam uma toalha diante
do único espelho que pendia da parede.
Caro também tinha entrado e farejava agora o leito
fúnebre, pondo-se a gemer lamentosamente.
- Pobre Caro, não tornarás a ver o teu dono!
Margarida acariciava o pêlo comprido do animal. Depois, reparando em Catamount, que esperava, imóvel, na sombra, pareceu despertar da sua dor e interrogou:
- Deve ter fome e sede...?
- Eu esperarei, senhora Canova - respondeu logo o ranger -. Creio que o sheriff não deve tardar.
- Então desembarace-se disso. Ponha-se à vontade! A pobre mulher referia-se ao pesado cinturão de
armas e à Winchester que o ranger conservava ainda consigo.
com um gesto, Catamount recusou; depois, sentando-se a um canto e acariciando Caro, dispôs-se a esperar..
VIII
O "SHERIFF" DE MOUNTAIN CITY
Gus Topson regava meticulosamente os seus tomateiros. Junto dele, com as mãos nas ancas, tendo ao lado o seu filho Jimmy e com o rosto marcado por duas rosetas,
a afável Mrs. Helena Topson olhava o marido com admiração.
- Os Higgins vão rebentar de inveja! -chasqueou ela - Somos nós quem possui o melhor jardim do distrito!
Um sorriso de satisfação abriu-se na cara cheia do sheriff. com as costas da mão, enxugou o suor que lhe escorria abundantemente pela cara e pela cabeça, onde os
cabelos começavam já a rarear.
- Os Higgins nunca terão tomateiros deste tamanho!
- assegurou ele com veemência. Além de que, com o sistema de irrigação que instalei, outros mais poderão aparecer.
Depois, apontando para o jardim que contornava a pequena vivenda do lado, pertencente ao droguista Berger, continuou:
- Vê lá se aquilo não mete dó! Os tomateiros parecem não sei o quê... Os alhos não existem! Quanto às saladas, creio que o vizinho faria com elas bom tabaco! E os
melões, então!
- E, no entanto, não é porque ele se prive de o regar! Ainda ontem ele o regou quarenta vezes!
opinou o jovem Jimmy, que parecia partilhar da orgulhosa altivez de seus pais.
- Regasse-o ele oitenta que obteria o mesmo lastimoso resultado! - assegurou Gus Topson, peremptoriamente.
- Num rápido olhar, o sheriff de Mountain City contemplou o terreno árido, e gretado pelo calor, do droguista. Depois, alongou a vista pelos carreiros de verdura
que se abriam em todo o solo, e, retomando a agulheta, começou a apontar o jacto de água, que caiu sobre os espinafres, já de aparência agradável.
- Nós seremos os primeiros a comer espinafres na região! - assegurou ele.
Sentindo os seus dedos em contacto com a água fresca que jorrava da agulheta, Gus Topson considerava-se feliz. Ele, certamente, interessava-se mais pelas cebolas,
pelas batatas e pelos tomateiros do que pela captura de bandidos...
Além disso, para a profunda satisfação do excelente sheriff concorria também o facto de o distrito de Mountain City ser um território bastante sossegado. Não se
encontravam ali, como acontecia do outro lado das Montanhas Sacramento, ao longo da ribeira Pecos, rustlers ou ladrões de cavalos... Os criadores de carneiros que
viviam no alto dos montes pareciam pessoas tranquilas. Evidentemente que havia de tempos em tempos algumas chicanas, mas estes bravos cidadãos acabavam sempre em
bem as suas disputas, e, por isso, nunca recorriam aos bons ofícios do representante da autoridade.
Alguns homens doutras regiões declaravam, por vezes, com inveja, que o território de Mountain City era uma terra de selvagens! De facto, numerosos guardadores de
carneiros viviam ali à parte dos outros homens e conviviam tão pouco quanto, se ocupavam dos seus negócios. Que importava, portanto, que alguns
tiros se trocassem, de tempos a tempos, entre esses camponeses? Assim, nada impedia que Gus Topson continuasse a interessar-se pelos seus legumes, pelos seus frutos
e pelas suas flores, e os auxiliares podiam igualmente dedicar-se a outras ocupações bem mais atraentes do que a caça ao homem.
Há mais de um mês que ninguém recorria ao sheriff; um caso de vadiagem sem importância que lhe tinha tomado apenas algumas horas, esse mesmo estava arrumado e ele
apressara-se a voltar ao jardim, como o Cândido de célebre memória...
Aquela terça-feira mostrava-se tão agradável como os outros dias, nada parecendo turvar o ciclo tranquilo daquelas semanas cheias de sol! Já Gus Topson elaborava
o seu horário... No dia seguinte, quarta-feira, ocupar-se-ia dos seus magníficos melões, tão bons como os da Califórnia! A seguir, trataria dos pimentos... E, depois,
não deixaria de cuidar das suas abelhas, cujas colmeias se alinhavam no fundo do jardim, diante dos maciços de lilases da Espanha.
Helena Topson retomara a sua tarefa, estendida à sombra. Entretinha-se a fazer tricot. Entretanto, Jimmy deliciava-se com uma história policial, em que se davam
tiros a torto e a direito! Isso, ao menos, era verdadeiro desporto. E Chicago parecia um campo de batalha muito mais interessante do que este Mountain City, embora
um Virgílio moderno o pudesse contar numas novas "Geórgicas"...
Fazia bastante calor, mas estava-se bem à sombra e o contacto da água que jorrava da agulheta era tão agradável que Gus Topson sentia-se no paraíso terrestre! Deus!
Quãoi imprudentes haviam sido Adão e Eva! Está-se bem num jardim, sobretudo quando se pode regar a nosso bel-prazer!
A água continuava a encher, uma a uma, as covas cuidadosamente abertas pelo experiente jardineiro em
volta de cada tomateiro e ao odor da terra molhada misturava-se o cheiro mais activo ainda, da própria planta. com um sorriso travesso nos lábios, o sheriff imaginava
ver os seus vizinhos chegarem pela tardinha e ficarem extasiados diante do verdejante oásis...
- Eles esbugalharão os olhos, e não digo mais nada!-exclamou, enquanto a sua companheira o apoiava com um sorriso zombeteiro.
Entretanto, entrara Jimmy num capítulo apaixonante, em que alguns gangsters se livravam de uma caçada em canoas-automóveis, no lago Michigan, quando, de repente,
levantou a cabeça... Ouvia-se um trote de cavalo cada vez mais perto.
A presença de um cavaleiro à hora mais quente da tarde parecia pelo menos anormal. Habitualmente, Main Street e as outras ruas estavam desertas. Mas o vulto do desconhecido
acabou por aparecer detrás da grande barreira arborizada das Montanhas Sacramento.
Intrigado, Jimmy levantou a cabeça, enquanto a mãe, por sua vez, interrompia o tricot. Só Gus Topson, impassível, continuava a regar a terra seca, que rapidamente
absorvia a água.
- Um cavaleiro, Mammy! Dir-se-ia que vem para aqui!
- Para aqui?!-exclamou Mrs. Topson, com ar .de dúvida - Admira-me bastante!
: No entanto, as sobrancelhas da excelente mulher contraíram-se... Um cavaleiro acabava precisamente de parar junto da barreira onde terminava o jardim. Intrigados,
mãe e filho observaram o recém-chegado.
- Que maneiras!-opinou Jimmy-.Não tem nada de um cowpuncher!
- com os cabelos desgrenhados e os pés descalços, dir-se-ia um dos selvagens que descem por vezes da montanha e que vêm fazer as suas aquisições ao General Stare!
- Ele deve estar enganado, certamente!
A campainha retiniu, mas tão fracamente que o barulho da água saindo da agulheta a abafou, impedindo o sheriff de a ouvir... O rapaz abandonou, então, a leitura
e, deixando os gangsters no lago Michigan, foi, com passo arrastado, na direcção da grade.
Rudi Canova agitava de novo, e agora freneticamente, a campainha. Havia transposto numa única caminhada as doze milhas que separam Ceder Green de Mountain City,
e sentia-se impaciente por se desempenhar da missão que lhe havia confiado Catamount. Tinha a cara brilhante de suor, o fato rasgado e todo branco de poeira...
O recém-vindo começava a impacientar-se diante da grade, quando a silhueta delgada de Jimmy apareceu detrás da cortina de clematites que dissimulava em parte o jardim...
- Que deseja?-perguntou o filho do sheriff num tom arrogante-Sem dúvida está enganado... Não é aqui o General Store!
- Importa-me pouco o General Store! -arquejou Rudi Canova - Eu quero falar ao sheriff. É urgente!
- Tem a certeza de que é ao sheriff que deseja falar?
O rapaz teve um gesto de impaciência:
- Madonna! Já lhe disse que sim! É importante... É urgente! É preciso que ele venha já! Acabam de assassinar o meu pai!
Jimmy abriu uns grandes olhos espantados... Que se assassinasse no romance que ele lia, ainda vá, mas que se fizesse tal declaração em sítio tão idílico, atrás daquela
cortina de clematites e quando o Dad estava tão absorvido a regar os tomateiros, é que lhe parecia de mais!
De repente, a grossa voz de Gus Topson fez-se ouvir:
- Whas the matter?
O jardineiro-amador havia parado de regar, e os seus pés, enfiados em tamancos pontiagudos, estavam no meio de um charco... Em mangas de camisa, suando mais do que
nunca, franziu as grossas sobrancelhas, olhando com insistência na direcção da grade, onde Jimmy continuava a discutir com a importuna visita...
Por fim, o rapaz, embora sem abrir a cancela, decidiu-se a dar alguns passos.
- Atenção! - repreendeu o sheriff, agastado. Estás a pisar os meus espinafres!
Jimmy deteve-se muito encarnado e gritou:
- É por um crime! Parece que é urgente!- Um crime!?
Um raio caindo aos pés do sheriff tê-lo-ia surpreendido menos do que aquela notícia, e, como Rudi insistisse por entrar, contentou-se em dizer, enfadado com a intempestiva
visita:
- Entre!
O recém-chegado apressou-se a ir ter com Gus Topson. Sem dar atenção ao carreiro, abriu logo caminho através de um canteiro da horta.
- God Almighty! O carreiro! Siga pelo carreiro! Veja lá isso!
O recém-vindo não via nada. Desejava convencer depressa o representante da autoridade.
Então, depondo com mau modo a agulheta, o sheriff aventurou:
- Bem, acalme-se, my boy! Talvez não seja assim tão grave como pensa!
E, como o seu interlocutor esboçasse um gesto de impaciência, inquiriu:
- Primeiro, donde vem? De Cedar Green...
- De Cedar Green? Mas isso é bastante longe, nas montanhas, num canto perdido, onde se recebem os estranhos a tiro!
Interrompendo-se várias vezes, para retomar o fôlego, Rudi apressou-se a descrever as condições em que o seu pai, Gregório Canova, havia sido abatido com duas balas
nas costas.
- Veja lá, reflicta bem, my boy! - objectou o representante da autoridade, fazendo uma careta de constrangimento - Pode garantir que não se trata de um acidente?
Por exemplo, o seu pai, querendo manejar uma carabina...
- Eu estou certo do que afirmo! - assegurou o rapaz, que começava a exasperar-se com as observações do seu interlocutor.
Durante alguns instantes, o sheriff permaneceu sem dizer palavra, passeando um olhar triste pelos canteiros que ainda não tinham sido regados...
- No final de contas - exclamou - vocês estão habituados a tratar desses negócios por vossas próprias mãos! É o método mais simples e expedito. É a primeira vez
que vêm aqui solicitar os meus serviços..
.- Creia que, se se tratasse apenas de mim - caçoou Rudi, cada vez mais impaciente -, eu não teria vindo procurá-lo de tão longe! Ninguém nos serve melhor do que
nós próprios...
- Nessas condições - insistiu Gus Topson, cujas feições se aquietaram um pouco - não vejo...
Mas a visita tinha a mão na algibeira, e retirou de lá uma folha dobrada em quatro, que o ranger rasgara do seu bloco...
- É que - precisou ele - tenho qualquer coisa para si... Uma mensagem!
com um ar de aborrecimento, o sheriff desdobrou
entre os dedos sujos de terra o papel em que o homem dos olhos claros havia traçado algumas linhas a lápis.
- Decididamente, isto é mesmo a minha inclinação!- exclamou ele, consternado, depois de acabar de ler.
- Homem, fala! - interrogou Helena, que começava a sentir-se, seriamente intrigada.
- Eu esperava poder entender-me amigavelmente com este rapaz - explicou o sheriff -, mas um ranger de El Paso já está metido no caso...
- Ora! -objectou a excelente mulher -, se ele quer encarregar-se disso, tanto melhor!
- Pelo contrário! Ele insiste por que eu vá imediatamente a Cedar Green com os meus homens!
Depois, aproximando-se da esposa, de maneira a não ser ouvido por Rudi, que ficara no meio do canteiro dos tomateiros, explicou:
- Compreendes, sou forçado a ir lá! O ranger podia fazer um relatório desfavorável! E isso interferiria na minha situação...
E Gus Topson prosseguiu, enxugando a cabeça com um grande lenço de quadrados:
- Que azar!!! Os tomateiros estão tão viçosos!
- Eu rego-os com o Jimmy, deixa lá!-propôs Helena-
O sheriff fez uma careta. Sabia muito bem que para esse serviço não havia pessoa melhor do que ele próprio; por isso, preferia ver o trabalho feito por suas mãos...
- Tu toma-me cuidado com o rapaz, não vá ele pisar os canteiros! - disse ele -. Eu vou mudar de roupa. Entretanto, manda o Jimmy a avisar Hellison, Sunter, Bellworth
e Phillippini...
E logo praguejou:
metidos a esta Que maçada!
esta hora!
Esta.
- Deus sabe; onde eles estão metidos a esta hora! Que maçada, Goa Almighty! Que maçada! Estava-se agora tão bem aqui!
Gus alongou o olhar por sobre o seu pequeno oásis, mas, como Rudi começasse a mostrar impaciência, gritou-lhe:
- Eu vou-me preparar e. já volto...
Depois, dirigindo-se a Jimmy, que abria a cancela,
pronto a sair:
- Diz-lhes que os espero, dentro de meia hora, defronte do gradeamento, com os cavalos! Há muita
urgência!
O rapaz foi-se logo embora, correndo através do
arruamento.
Desde então a paciência de Rudi Canova encontrou-se submetida a dura prova. O rapaz ia e vinha ao longo da álea central, olhando demoradamente e sem cessar para
a habitação toda coberta de videira virgem onde Gus Topson estava a arranjar-se. Helena ofereceu-lhe qualquer coisa para ele se refrescar, mas o rapaz limitou-se
a agradecer, resmungando. Os minutos pareciam-lhe intermináveis, os seus pensamentos iam continuamente para os seus, em Cedar Green, e, então, praguejava contra
Catamount, cujas exigências tinham tão desastradamente complicado as coisas...
Se se tratasse só de si, o impaciente, Rudi já teria, decerto, despachado rapidamente o caso! Só Deus sabia onde iam conduzir todas essas complicações, tanto mais
que o infortunado não alimentava ilusões acerca do zelo que o sheriff poria na abertura do inquérito.
Finalmente, Gus Topson apareceu, passados uns bons vinte e cinco minutos. Conduzia pelas rédeas o seu cavalo, que tinha sido aparelhado no estábulo próximo. Jimmy
reapareceu, por seu turno, com os quatro homens. Todos pareciam seriamente intrigados. Hellison
e Bellworth estavam a beber no "saloon" perto do "Grizzly"; Phillippini dormia a sesta, e Sunter entretinha-se a jogar, no banco de carpinteiro da sua oficina...
Logo que o sheriff viu os quatro- auxiliares reunidos à sua volta, apontou para Rudi, que havia ido juntar-se ao seu cavalo:
- Acabam de assassinar o pai deste rapaz -anunciou. - É preciso partir imediatamente para Cedar Green... Já lá está um ranger!
A mímica suficientemente expressiva do representante da autoridade, fez compreender aos seus ajudantes que não podia agir doutra forma sem correr o risco de inevitáveis
complicações.
Os quatro homens fizeram uma careta. Sabiam bem a má fama que tinham os montanheses guardadores de carneiros! E a perspectiva de uma rude cavalgada ao sol e em terreno
difícil não os seduzia lá muito, tanto mais que se estava optimamente à sombra em Mountain City-
- Vamos! -ordenou Gus Topson.
De repente, o excelente homem levou uma das mãos ao peito e apalpou-o.; os seus acólitos ouviram-lhe uma surda exclamação...
- Que há sheriff? - interrogou Sunter. Saltando da sela e deixando os cinco companheiros
estupefactos, Gus Topson correu à cancela, abriu-a e precipitou-se de roldão em direcção à casa.
- Helena! - gritou ele - Esqueci-me da minha insígnia!
Na sua precipitação, Gus havia-se esquecido de pôr a estrela de prata, insígnia indispensável no exercício das suas funções. Durante alguns minutos ainda, remexeu
as gavetas. Começava já a desesperar, convencido de que não a encontraria, quando Jimmy acorreu, ofegante:
- Ei-la, Dad! - gritou, triunfante.
- Onde estava ela?
- Deixaste-a cair no telheiro...
Resmungando sempre, o sheriff prendeu a estrela de prata no casaco, abraçou Helena à pressa, premiou o seu descendente com uma palmada afectuosa e, a seguir, soprando
e suando cada vez mais, apressou-se a juntar-se ao grupo. Os outros, todavia, cansados de esperar à chapa do sol, já se tinham ido embora.
Enquanto metia os pés nos estribos, o sheriff olhou, mais uma vez, com ar irado, para o jardim, que se via forçado a abandonar para cumprir o seu dever. Adeus, horta!
Os melões, agora, tinham de esperar pelo seu regresso!
- Que pena! - gemeu ele, desolado. Mas era preciso ir ter com o grupo e tomar a sua dianteira. Praguejando ainda contra as exigências da sua profissão, Gus Topson
esporeou o cavalo e não tardou a juntar-se aos outros, que galopavam atrás de Rudi e atingiam já as proximidades de Main Street. Nos passeios, os curiosos agrupavam-se.
Alguns, mesmo, faziam perguntas, intrigados com aquela inopinada partida do representante da autoridade, mas Topson e os seus acólitos abstinham-se de responder.
Instigando as montadas, continuavam a galopar na direcção das montanhas, com destino a Cedar Green, onde seriam obrigados a iniciar um inquérito para descobrir e
prender o assassino de Gregório Canova...
IX
OS DOIS MÉTODOS
Quando Gus Topson chegou a Cedar Green com o seu pessoal, ia mal humorado. O calor estava sensivelmente atenuado, pois o sol descia já no horizonte, mas o sheriff
suava e soprava, praguejando contra a má sorte que o obrigara a cavalgar assim quando podia muito bem ter ficado à sombra do seu jardinzinho de Mountain City.
Enquanto os seus homens prendiam os cavalos perto de três cedros que sombreavam o pátio, Gus Topson limpou o rosto com o seu inseparável lenço de quadrados. Aproximava-se
da habitação, onde Rudi Canova entrara, quando Catamount apareceu no limiar. Avistando o representante da autoridade, o homem dos olhos claros dirigiu-se-lhe imediatamente:
- Esperava-o, sheriff - declarou simplesmente, estendendo a mão ao recém-chegado.
Gus Topson correspondeu apenas frouxamente a este gesto de boas-vindas:
- Esperava-me!? Esperava-me com este belo trabalho! - resmungou ele... Não pense que estes selvagens não se arranjariam sem a minha presença! Não seria a primeira
vez, e julgo que regulam as suas contas sem incomodar as autoridades.
E o sheriff prosseguiu esboçando largos gestos:
- Um trabalho, doido! Perda de tempo! Inteiramente absurdo!
Catamount não respondeu, observando com calma o seu interlocutor, a quem apreciou no seu devido valor.
- Há morte de homem - contentou-se em dizer -. Um infeliz foi abatido em condições que denotam da parte do assassino uma desconcertante cobardia! Eu próprio resolvi
ficar ainda aqui, e faço votos, por que o meu auxílio lhe possa ser útil.
- Não sou eu que o recuso, por minha fé! - limitou-se a responder Gus Topson, encantado, apesar de tudo, por não ser obrigado a suportar sozinho a responsabilidade
das investigações.
Os seus quatro auxiliares aproximaram-se, parecendo tão desolados como o chefe, pois vociferavam contra o calor e o entorpecimento que se apoderara dos seus membros
após a prolongada cavalgada.
Mas Catamount não lhes deu tempo para discussões e, indicando-lhes com o dedo a porta da habitação dos Canova, declarou-lhes somente:
- Passem à frente! Eu sigo-os!
O sheriff e os ajudantes obedeceram e, seguidamente, em fila, franquearam a entrada. A princípio, não viram grande coisa, ofuscados ainda pela luz do sol. A sala
estava muito escura; apenas a chama caprichosa de uma vela bruxuleava sobre a mesinha de cabeceira junto do leito onde jazia o morto.
Margarida Canova, Sylvia, Luiggi e Pietro esperavam sem dizer nada, observando com um olhar quase hostil esta invasão de estranhos. A viúva passava as contas do
rosário, sua filha esforçava-se por conter as lágrimas, e os três rapazes mostravam a mesma atitude feroz e rude, cerrando os punhos e observando disfarçadamente
os visitantes.
- Ele foi, então, abatido ali? - interrogou Gus Topson, voltando-se para Catamount, parado atrás dele.
- Não - respondeu imediatamente o ranger -, eu tomei a iniciativa de o fazer transportar para aqui, mas
soube rodear-me de todas as cautelas... Demais, irei conduzi-lo agora ao local do crime, pois já fiz algumas comprovações.
Enquanto o homem dos olhos claros assim falava, Sylvia não o deixava com o olhar; a sua atenção concentrava-se principalmente na Winchester que Catamount conservava
consigo.
A rapariga não podia esquecer o olhar de entendimento que o ranger lhe havia dirigido pouco antes, e congratulava-se pela prudente reserva que ele observara junto
de sua mãe e de seus irmãos quanto ao objecto da sua descoberta. Contudo, não pôde deixar de estremecer quando ouviu Catamount declarar tranquilamente:
- Descobri esta carabina a pouca distância do local onde tombou Gregório- Canova. Você próprio pode verificar, sheriff: faltam duas balas no carregador. E a vítima
foi abatida exactamente por duas balas que se lhe alojaram nas costas, e que eu tomei a precaução de extrair antes da sua chegada.
Ao pronunciar estas palavras, o ranger estendeu a Gus Topson dois bocados de chumbo, ligeiramente deformados e ainda vermelhos do sangue da vítima.
- Não é possível qualquer hesitação! Foram os cães de Spine Hill!
Rudi rompia bruscamente a reserva mantida desde que conduzira o sheriff a Cedar Green. O seu rosto contraía-se agora numa expressão de ódio. Junto dele, os seus
dois irmãos aprovavam com insistência.
- À morte os Mortimer!
- Foram eles, sem dúvida alguma!
- Os Mortimer? -. aventurou então o sheriff, voltando-se para Catamount -. Os vizinhos?
O interpelado disse que sim com a cabeça. Então Gus Topson encolheu os ombros, excitado:
- By Jove! É do conhecimento público! Estes
criadores de carneiros das Montanhas Sacramento são como os cães e os gatos! Fuzilam-se diariamente. Os costumes dos maquis estão aqui constantemente em vigor. Quantas
vezes os correios de U. S. Mail tiveram de arrepiar caminho e de deixar de entregar a rara correspondência destinada a estes brutos, que os recebiam a tiro!
Depois, inclinando-se para o ranger, murmurou-lhe ao ouvido, em voz bastante baixa, para que os outros
não o ouvissem:
- De resto, basta olhar para a tribo que nos rodeia... Se os seus olhos fossem balas, não daria nada
pela nossa pele!
Gus Topson agitava-se e deixava transbordar o seu mau-humor, lastimando mais do que nunca os seus melões e os seus tomateiros! A dois passos, os quatro auxiliares,
que esperavam à entrada, aprovaram as declarações do seu chefe, mais carrancudos do que nunca, pois não podiam compreender o motivo por que tinham sido arrastados
para semelhante maçada. De ordinário, quando havia tiroteio nas Montanhas Sacramento, eles abstinham-se de intervir, deixando aos próprios habitantes desta perdida
e selvática região o cuidado de
cumprir a lei!
Mas Catamount elevou a voz:
- Escute-me bem, sheriff: se nós não interviermos, se não pusermos o dedo na ferida, não há nenhuma razão para que isto acabe! O seu distrito continuará a ser o
mais selvagem, o menos civilizado do Texas. Como você até aqui tem fechado os olhos, é este o resultado... Se não procedermos imediatamente, nada impede que outros
infelizes sejam abatidos em
curto prazo!
Desta vez Gus Topson sentiu-se vivamente picado:
- Está a insinuar que eu não cumpro o meu dever?
- perguntou ele asperamente.
- Eu não insinuo absolutamente nada -respondeu Catamount -, faço apenas uma simples observação... Foi cometido um crime; temos o dever de descobrir e de prender
o assassino, seja ele quem for! Os habitantes desta região têm de compreender que existe uma única justiça, uma única lei igual para todos, e que devem respeitá-la!
Enquanto assim falava, numa voz compassada e calma, Catamount somente via à sua volta olhares hostis e reprovadores.
Os quatro auxiliares apoiavam o seu chefe calorosamente; quanto aos três irmãos Canova, pareciam mais do que nunca interessados de ver sair dali quanto antes aquelas
importunas visitas...
- Não há necessidade de se incomodarem - gritou então Rudi, brandindo a carabina que acabara de retirar de junto da chaminé.
- Nós três, meus irmãos e eu, chegamos para vingar o nosso pai e para livrar a região desses infames Mortimer!
Apenas as duas mulheres permaneceram reservadas: Margarida, ajoelhada à cabeceira do morto, continuava a rezar; e Sylvia esperava, encostada à parede, deixando,
nesse momento dramático, pairar o seu pensamento não longe dali, perto de Spine Hill... Ela pensava em Hal, o dono da Winchester, revoltando-se à ideia de ter sido
ele, quem cobardemente se emboscara para abater seu pai. Nesse momento Rudi esboçou um passo para a porta, e Luiggi e Pietro armaram-se também com as suas carabinas.
- Não precisamos de mais ninguém - afirmava o mais velho dos Canova -. Nós três nos encarregaremos de fazer a grande limpeza!
- Vendetta! Vendetta!-gritou logo o mais moço com abafada cólera.
Iam já a sair, quando o sheriff os deteve com um gesto:
- Nada de pressas! Se nós aqui viemos foi para fazer alguma coisa! O ranger tem razão. Esperamos unicamente que vocês nos esclareçam para que possamos descobrir
o culpado!
- Esclarecimentos!? - replicou Rudi em voz forte-.Tê-los-eis como desejais! Por minha parte, se não fui abatido das vinte vezes que Winston ou Hal atiraram sobre
mim, foi porque a medalha milagrosa de Nossa Senhora me protegeu!
- E o pai também - insistiu Luiggi - Quantas vezes o tomaram eles para alvo dos seus tiros!
- E Luiggi! E eu! - rematou Pietro - Tratam-nos como se fôssemos animais selvagens!
- Sylvia, que escutava, constrangida, em silêncio, decidiu-se por fim a falar:
- Devemos admitir, no entanto, que esses ataques se verificam apenas quando um de vocês tenta aventurar-se nas propriedades dos Mortimer!
- Madonna! - protestou imediatamente Rudi -. Tu tomas a defesa desses malditos?!
- Eu não tomo a sua defesa - esclareceu a rapariga - digo a verdade, mais nada! Os Mortimer velam pelos seus terrenos e, de cada vez que vêem qualquer de nós experimentar
franqueá-los, atiram como nunca atiraram a ninguém...
- Isso é porque eles são muito maus atiradores!
- troçou Luiggi.
- Ou então porque só procuram assustá-los - opinou Catamount.
Depois, olhando bem de frente os três irmãos, insistiu :
- Vejamos, sejam francos: vocês nunca dispararam contra os Mortimer?
Rudi hesitou antes de responder, Luiggi e Pietro pareciam embaraçados. Então, Catamount prosseguiu com veemência:
- Vocês também têm contribuído para conservar este contínuo estado de guerrilha...
- Contudo, eu bem os tenho avisado - interveio por seu turno Margarida - Sempre lhes disse que era perigoso fazer falar a pólvora! O ódio e a cólera só fazem cegos
e insensatos... Mas encolhiam sempre os ombros e repeliam-me asperamente quando eu lhes aconselhava prudência! Vê-se agora até onde pôde conduzir uma atitude tão
insensata!
A pobre mulher indicava o corpo inerte de seu marido ao pronunciar as últimas palavras; depois, dirigindo-se ao ranger e tomando-o por testemunha:
- Nós podíamos todos viver em paz... As nossas pastagens são suficientes para os carneiros. Mas eles não têm na boca outra palavra que não seja vendetta! Em nossa
casa, perdemos o primo- Piombino. Em casa dos Mortimer, foi Marchie, o pai! Agora é Gregório! E não se vê maneira de isto acabar!
- Descanse que acabará - assegurou Catamount, em voz forte - Este escândalo tem de acabar e acabará!
- Acabará! -repetiu o sheriff, que pareceu, todavia, mais reticente do que o homem dos olhos claros.
- Além disso - rematou Catamount, sem parecer importar-se com a presença do representante da autoridade - não se trata de vendetta, desta vez, mas sim de um crime!
Não se ficaram apenas nos limites. O assassino aventurou-se em pleno território de Cedar Green, emboscou-se e esperou a sua vítima, o que prova bem a premeditação.
Gregório Canova não levava qualquer arma consigo...
- Não hesitaram, no entanto, em abatê-lo pelas
costas - exclamou Rudi, cerrando o punho -. Veja bem, isto salta à vista!
Depois, apontando com o dedo as cinco marcas na carabina:
- O assassino assinou o seu crime - afirmou ele-, foi o dono desta arma quem atirou.
E, voltando-se para Catamount, acrescentou:
- É preciso fazer justiça imediatamente! Os meus irmãos e eu vamos acompanhá-los a Spine Hill!
- Tenho muita pena - respondeu logo o ranger -, mas vocês vão ficar aqui junto de vossa mãe, e de vossa irmã.
- Protesto! - vociferou com veemência o mais velho dos Canova, logo secundado por Luiggi e Pietro.
Gus Topson voltou-se, então, para Catamount e observou:
- Bem visto, eles poderiam muito bem acompanhar-nos! Por que se opõe?
A resposta, porém, não se fez esperar:
- Não - cortou o homem dos olhos claros - porque teremos, mesmo assim, bastante dificuldade em falar com os Mortimer! Se juntarmos a nós os irmãos Canova, os moradores
de Spine Hill não nos deixarão aproximar, e arriscamo-nos a graves complicações!
- O ranger tem razão, sheriff - aprovou Hellison
- Julgo que a presença dos Canova não facilitaria o nosso inquérito!
- Esperarão todos três junto do pai - aconselhou então Margarida-.Voltem a pendurar as carabinas!
Rudi, Luiggi e Pietro amuaram, pois tinham decidido prosseguir a vendetta.
- Então não percamos tempo, sheriff, vamos a Spine Hill! -disse Catamount voltando-se para Gus Topson e para o seu grupo. Os auxiliares, que tinham pressa de ver
acabado o serviço, aprovaram imediatamente.
- Voltaremos antes da noite, - afirmou O sheriff
- e traremos o culpado já devidamente algemado!
- Eu gostaria mais que o trouxessem já estendido ao comprido... - tropou Pietro em voz cruel.
Sylvia não disse mais nada. Contudo, sentia dificuldade em dissimular a atroz angústia que se apossara dela por completo. Esperava ser vivamente censurada por seus
irmãos, logo que Catamount e os seus companheiros se afastassem dali... Quantas vezes não a haviam já criticado por mostrar uma certa complacência para com os Mortimer
e por aprovar constantemente a atitude prudente de sua mãe!
Pouco depois, os seis homens abandonaram a sala. De pé, na soleira, os três irmãos viram-nos ir ao encontro dos cavalos, à sombra dos cedros. O ranger foi procurar
Mesquita, que havia ficado mais longe; depois, a uma breve ordem do sheriff, o grupo pôsse em marcha e, seguindo ao longo das encostas, desaparecem rapidamente por
trás do pequeno pinhal.
Então Rudi voltou-se para os irmãos gritando:
- Depressa! As carabinas!
E, enquanto Luiggi e Pietro procuravam alcançar as armas, o mais velho dos Canova declarou:
- Seguiremos por Coyote Cruk. Eles não conhecem a região tão bem como nós, por isso não teremos dificuldade em ultrapassá-los, ainda que sigam a cavalo. Vamos!
- Santo Deus! Onde vão vocês?
Inquieta pela atitude dos três rapazes, Margarida interrompeu de novo as orações, indo até à porta.
- Não te inquietes - respondeu Rudi, imediatamente, e em tom brusco -. Estes trabalhos não dizem respeito às mulheres!
- Mas vocês não vão lá! - interveio, por sua vez, Sylvia -. O ranger recomendou-lhes isso há pouco.
- O ranger que vá para o diabo! Ninguém lhe pediu que se metesse nos nossos negócios, não é verdade? Pela minha parte, julgo-o demasiado indulgente para com os Mortimer!
O nosso método é o melhor e permite-nos fazer justiça...
- Rudi! O rebanho!
- Caro guarda-o!
O mais velho dos Canova sentiu, então, que duas mãos o agarravam: de rosto crispado e cabelos caídos, Sylvia esforçava-se por convencê-lo a abandonar os seus- funestos
propósitos. Um sorriso mau atenuou o feroz aspecto do jovem:
-. Dir-se-ia que receias pelos Mortimer!
- Rudi! Meus filhos! Peço-lhes!
Em vão Margarida se esforçava por intervir; os três irmãos faziam ouvidos de mercador aos seus mais desesperados rogos.
Bruscamente, Rudi repeliu Sylvia, que se agarrara desesperadamente a ele:
- Para trás! Entretém-te a rezar pelo pai!
E, antes que sua mãe tivesse tempo de o reter, Rudi gritou-lhe em tom vibrante, enquanto os seus dois irmãos, munidos das carabinas, começavam a descer o declive,
a correr:
- Custe o que custar seremos fiéis à vendetta! Justiça e morte aos Mortimer!
As duas mulheres olharam-se aterradas, e grossas lágrimas começaram de novo a correr dos seus olhos avermelhados. Elas previam as complicações que a intervenção
de Rudi e de seus irmãos iria provocar...
- Vai ser uma desgraça! - gemeu Margarida, juntando as mãos -. Esses insensatos correm para uma morte certa!
A estas palavras, Sylvia endireitou-se e um súbito fulgor iluminou-lhe os olhos sombrios...
- Escuta, mamã! - gritou ela -. Eu vou já ao encontro
do ranger e aviso-o! Só ele poderá evitar a
catástrofe...
Margarida ainda hesitou antes de responder, mas,
depois, estendendo a mão na direcção do local por onde
eles haviam seguido, disse, num murmúrio:
-Vai! Nossa Senhora te proteja!
- Oxalá eu chegue a horas!
Então, sem perda de tempo, a rapariga deitou a
correr pela porta fora...
x
TUMULTO EM SPINE HILL
- Pouco interessante, essa gente! Verdadeiros selvagens!
Cavalgando devagar, ao lado de Catamount, Gus Topson mostrava-se pouco disposto a iniciar o inquérito. E o homem dos olhos claros respondeu-lhe simplesmente:
- São homens como quaisquer outros! Têm também direito à protecção da lei!
- De acordo... mas se eles a desprezam?
- É preciso obrigá-los a obedecer, a submeter-se à indispensável disciplina! Importa, custe o que custar, que acabe este escândalo da vendetta!
O sheriff encolheu significativamente os ombros:
- Decididamente você tem cada uma! - chaloteou ele -. Apenas dê meia-volta, eles recomeçarão logo...
- Não acontecerá assim, se nós suprimirmos as razões destas lutas criminosas. E é isso que faremos agora!
O tom decidido e seguro com que proferiu estas palavras pareceu não chegar para convencer o representante da autoridade. E, enquanto metiam pelo verdejante pinheiral,
o mesmo onde Gregório Canova fora abatido-, Gus Topson não pôde deixar de pensar no doce oásis de Mountain City! Que faria a sua mulher
no momento em que iniciava aquele inquérito em circunstâncias tão desagradáveis? E Jimmy não aproveitaria a ausência do pai para jogar aos polícias e ladrões, e
aos índios, com todos os patifes da vizinhança?
Só de pensar que os canteiros poderiam ser pisados e que a horta ficaria estragada, o sheriff sentia-se entre brasas! No entanto, aparentava a maior calma. Catamount
inclinou-se para ele e estendeu-lhe um maço de cigarros:
- Fuma, sheriff?
- De boa vontade-
Acenderam os cigarros e o odor do tabaco loiro misturou-se logo com o cheiro balsâmico dos pinheiros. Atrás, os quatro auxiliares avançavam em fila, recordando com
saudade a sombra fresca dos saloons e o bom perfume do álcool e da cerveja, que lhes era tão familiar...
- Fazemos votos por que tudo esteja acabado à noite! - opinou logo Gus Topson.
- Nada de pressas! - objectou Catamount. - É preciso contar sempre com as complicações...
- Complicações?!-admirou-se o representante da autoridade. - Não o compreendo, ranger! Poucos casos há que se apresentem assim tão claros como este... O assassino
é, indubitavelmente, o dono da carabina! Quando nós soubermos a sua identidade, só teremos de lhe pôr as algemas e de o recambiar para Mountain City...
O homem dos olhos claros mostrou mau humor. De facto, ele não pensava que as coisas corressem assim tão facilmente. Ele conhecia o dono da Winchester, e estava absolutamente
decidido a confiar esse pormenor a Topson, mas havia fortes dúvidas acerca da culpabilidade de Hal...
Dos Mortimer, era Hal, com efeito, quem lhe tinha deixado melhor impressão. Enquanto Winston e o tio Teodoro pareciam decididos a tudo para saciar o seu ódio, o
filho mais novo manifestava uma certa reserva, a que as suas relações secretas com Sylvia Canova não deviam ser estranhas... E Catamount duvidava de que Hal quisesse
complicar as coisas abatendo cobardemente, pelas costas, o pai de Sylvia.
Todavia, era evidente, fora a arma de Hal que o ranger descobrira nas proximidades do local do crime... E o abandono daquela arma, como se fosse de um interesse
primordial deixá-la ali, espantava-o tanto como o gesto criminoso ao filho mais novo dos Mortimer!
Porque, longe de partilhar a confiança do sheriff, Catamount pensava que o problema ia ser muito difícil de resolver e que não encontraria a solução desejada senão
depois de grandes e perigosos esforços.
Primeiramente era necessário reatar o contacto com os habitantes de Spine Hill, e os homens iam decerto ser bastante molestados por Nestor e Ceres. Dada a sua situação
dominante, os Mortimer podiam facilmente pôr em cheque os seis agentes da autoridade, recusando-se a fornecer-lhes os dados indispensáveis para o prosseguimento
do inquérito.
- Acredite, sheriff - aventurou ele, entre duas baforadas do seu cigarro -, é preciso conservar todo o sangue-frio... O caso não será tão fácil como supõe...
Os quatro auxiliares continuavam a seguir os dois cavaleiros, sem dizer palavra. Fizeram, contudo, uma careta significativa quando, chegados ao sítio onde o corpo
de Gregório Canova havia sido descoberto algumas horas antes, aqueles puseram pé em terra e lhes fizeram sinal para que seguissem o seu exemplo...
- Canova estava aqui - esclareceu o homem dos olhos claros, designando o lugar que ele próprio marcara antes de conduzir a Cedar Green o corpo da vítima.
- E onde encontrou a Winchester? - interrogou Gus Topson.
- Acolá! À direita!
Enquanto os seus quatro acólitos aguardavam em silêncio, não ousando avançar com receio de desfazerem algumas pegadas, os dois homens esboçaram alguns passos e o
ranger indicou a árvore onde o criminoso se emboscara...
- Os sinais dos seus joelhos subsistem ainda no musgo - declarou o sheriff -. A premeditação é flagrante!
- Uma vez disparados os tiros, o miserável apressou-se a fugir em correria... Há ali algumas marcas da sua passagem, mas, mais adiante, o terreno volta a ser pedregoso
e não se pode descortinar mais nada...
-. A descoberta da Winchester não deixa subsistir a menor dúvida - opinou Gus Topson -, o criminoso voltou para Spine Hill... E é lá que nós poderemos encontrar
a chave do enigma!
- É inútil, de facto, demorar-nos mais tempo aqui. Vamos para Spine Hill!
De novo os seis homens saltaram para as suas montadas, desfilando por entre as árvores. Atingiram pouco depois os limites do pinheiral.
- Eis Spine Hill! - declarou, então, Catamount apontando para os pinheiros que contornavam a habitação dos Mortimer e que ele apercebia já.
Depois, mostrando uma linha acinzentada, ajuntou: -Ali é o muro de pedras que delimita os domínios dos Mortimer!
A brisa tépida trazia um forte cheiro a carneiros. Olhando à esquerda, os seis cavaleiros notaram a presença de um rebanho, constituído- por uma centena de cabeças,
que pastava no meio das urzes e das salvas, sob a vigilância de um pastor,
- Juan, o Navajo! - esclareceu Catamount.
- Um dos acólitos dos Mortimer?-interrogou Gus Topson.
- Nem chega a ser tanto, coitado... É um pobre índio velhaco a quem o filho mais velho dos Mortimer faz a vida negra...
- Considera-o perigoso?
-. Se é perigoso, tem agora uma boa oportunidade de ajustar contas com Winston, que o trata sempre com revoltante brutalidade...
Os auxiliares continuavam a escutar, sem dizer palavra, e olhavam com insistência para o rebanho. Os animais pastavam a menos de uma milha dali num terreno cortado
de ravinas. Dois pontos negros moviam-se nos flancos do rebanho...
- Os dois cães! Nestor e Ceres! - murmurou Catamount - Arriscamo-nos a ser descobertos facilmente..
Depois, inclinando-se para o sheriff, aconselhou:
- Creio que seria melhor deixarmos aqui os cavalos. Correremos menos risco de ser surpreendidos...
- Como quiser - anuiu o representante da autoridade.-, é, na verdade, mais prudente...
Dirigindo-se em seguida a um dos seus ajudantes, ordenou:
- Você fica aqui para os guardar, Philipini! Se nós precisarmos de si, assobiarei. Conhece o sinal habitual?
- O. K.!
Hellison, Sunter e Bellworth saltaram logo em terra. Depois, durante um momento, o pequeno grupo discutiu o caminho que devia seguir.
- Acho que faríamos melhor se rodeássemos o muro de pedras - propôs Catamoont -. Uns atrás dos outros, poderemos chegar àquele pequeno bosque e,
ocultos por ele, conseguiremos progredir sem correr O risco de sermos atacados pelos dois cães...
- Não seria melhor irmos antes pela colina? - objectou Gus Topson.
- Livre-se disso! Se prefere ser atingido pelos Mortimer... - objectou o ranger - Eu já fiz a experiência e sei que eles vigiam terrivelmente tudo em redor... E
agora com mais forte razão, pois sentem o crime a pesar-lhes na consciência... Devem ter os olhos bem abertos, para evitar qualquer resposta da parte dos Canova...
Avançaram, por fim, em fila indiana- Catamount ia à frente de todos, imediatamente seguido por Gus Topson. Depois vinham Bellworth e Sunter. Hellison fechava o grupo.
Cada qual empunhava o seu Colt, pronto para qualquer eventualidade...
Atingiram assim o muro. Já não viam os cavalos guardados por Philipini. A sua atenção agora concentrava-se no rebanho.
Por três vezes os latidos dos cães os fizeram estremecer, mas depressa se aperceberam de que Nestor e Ceres ladravam apenas para encaminhar algumas ovelhas mais
recalcitrantes. Ouviram também a voz do índio, que encorajava os guardadores:
- Pronto, Nestor! Pronto, Ceres!
- Uma vez contornado o pequeno bosque- precisou Catamount -, chegaremos às proximidades de Spine Hill...
- Não deixaremos de ser notados, quando lá chegarmos.. - objectou o sheriff.
- Sem dúvida, mas estaremos mais à vontade para discutir. Os Mortimer não gostam de ver gente estranha, mas terão de se resignar quando nos reconhecerem e virem
a sua estrela...
- Fez bem em reter os três irmãos Canova - aprovou
o representante da autoridade -. Se esses rapazes nos tivessem acompanhado, estávamos metidos agora num grande sarilho!
- Evidentemente. Seria como se passássemos um pano encarnado pelos olhos de um toiro... - rematou o homem dos olhos claros.
Após esta ligeira pausa retomaram o caminho. O muro, em parte aluído, facilitava-lhes a marcha. Progrediam agora de rastros, atentos ao menor ruído. Mas não observaram
nada de anormal.
- Chegámos! - declarou Catamount.
com a mão, o ranger apontou para O pequeno bosque que eles continuavam a contornar- Não estavam a mais de trezentos passos das imediações da casa dos Mortimer quando,
de repente, três descargas brilharam diante deles, logo seguidas de muitas outras...
- De bruços!
Catamount e os companheiros deitaram-se logo por terra, não se mexendo sequer. Mas, apesar de imobilizados, puderam verificar que as balas não assobiavam em volta
deles. Um pouco adiante, a fuzilaria recomeçava com fúria, na direcção de Spine Hill...
- É curioso! - murmurou o ranger - Dir-se-ia que atacam a casa e que alguém se nos antecipou...
Durante momentos os cinco homens interrogaram-se ansiosamente com o olhar, estremecendo a cada novo tiro que **110 isálvava nas imediações.
Os pinheiros dissimulavam-lhes ainda os misteriosos atiradores, que se manifestavam de tão intempestiva maneira no momento preciso em que eles esperavam iniciar
o inquérito.
O pequeno grupo estava ainda entregue às suas conjecturas quando, bruscamente, acompanhando nova salva, uma voz rude gritou:
- Vendetta! Vendetta!
- Os irmãos Canova! - praguejou Gus Topson Os imprudentes!
Catamount e os companheiros compreenderam então o que sucedera: enquanto eles pensavam na resolução do caso, Rudi Canova e os seus dois irmãos, decididos a não fazer
caso das prudentes recomendações do ranger, haviam tomado por um atalho e, precedendo-os, iniciavam o combate... As detonações que lhes respondiam provavam que Spine
Hill estava agora em estado de sítio...
- Bela maneira de complicar as coisas! - resmungou Sunter.
O ranger não respondeu. Considerava a gravidade da situação. A luta, que ele tanto havia querido evitar, para não prejudicar o inquérito, desencadeava-se antes mesmo
de ter chegado à fala com os Mortimer!
- Precisamos de ir ver o que se passa -disse ele. Gus Topson fez uma careta:
- Se avançamos para além do bosque, ficaremos transformados em passadores...
O homem dos olhos claros sentiu quanto era fundada aquela observação. Agora que os Mortimer estavam alerta, entrincheirados talvez na própria casa, ou possivelmente
nas imediações, tomariam por alvo qualquer pessoa que se aproximasse, considerando as do grupo do sheriff como auxiliares dos Canova.
- Que fazer, então? - perguntou Bellworth.
- Voltar para trás! - retorquiu rapidamente Catamount.
- Se eu apanhasse esses Canovas, arrancava-lhes as orelhas!
- Por agora, convém retirar quanto antes! - insistiu o ranger - As contas ficam para ajustar depois...
Os cinco homens resignaram-se. Para lá do bosque, a fuzilaria parecia menos intensa, enquanto eles retrocediam. Tudo indicava que os assaltantes, acolhidos
com vigor, se tinham decidido a entrincheirar-se nas colinas...
- Esses imbecis meteram-nos numa camisa de onze varas! -rosnou Hellison, logo que o grupo alcançou a extremidade do muro de pedras.
- Que importa! Temos de sair daqui de qualquer maneira!-disse Catamount - Mas conservamos um trunfo neste joguinho: é que os Mortimer ignoram a nossa presença nestas
paragens...
- Vai ser precisa muita paciência! - resmungou o sheriff.
- Eu não lhe disse que é necessário contar sempre com o imprevisto?
Num momento se reagruparam, não ousando aventurar-se para além da frágil trincheira que os escondia dos ocupantes de Spine Hill.
Assim se passou um quarto de hora- A fuzilaria acabara por completo e o sol começava já a descer no horizonte, avermelhando as encostas.
- Acho que não deve voltar esta tarde para Mountain City, sheriff - aventurou Catamount.
Os três auxiliares mostraram má cara. Não lhes sorria terem de passar a noite na montanha, em semelhante ocorrência. Sentiam-se tão aborrecidos como o seu chefe.
- É preciso esperar! - insistiu o ranger - Quando a noite vier, poderemos retomar a nossa caminhada na sombra... Teremos assim mais oportunidade de atingir os arredores
de Spine Hill sem corrermos o risco de servir de alvo àqueles selvagens...
com vontade ou sem ela, os cinco homens tiveram de se resignar. Só o ranger parecia aceitar esta prova com serenidade, embora fosse muito mais impetuoso do que os
seus companheiros nestas caçadas perigosas.
- Pode fumar enquanto espera... - aconselhou Catamount.
A imperturbabilidade do homem dos olhos claros exasperava Gus Topson.
- Você diz bem - resmungou ele, tirando ao mesmo tempo outro cigarro do maço que lhe estendia Catamount -, mas nós temos que fazer em Mountain City. Não podemos
ficar aqui de braços cruzados!
- Mas terá de passar por ali... Não pensa com certeza em abandonar o inquérito, agora que mal o iniciámos... Quanto a correr irreflectidamente para Spine Hill, seria
expor-se a uma morte quase certa...
Não tiveram outro remédio senão esperar. Os tiros haviam cessado. No entanto, não conseguiam, mesmo levantando-se por detrás do muro, aperceber o mais pequeno vulto.
À sua esquerda, como que agarrado aos pequenos outeiros, o rebanho de carneiros continuava a pastar, guardado por Juan, o Navajo.
De repente, no momento preciso em que a escuridão se tornava maior, ouviram-se furiosos latidos, vindos dos bosques próximos...
- Hélio! Os dois cães de guarda!-praguejou Catamount.
E fixando o olhar na massa confusa do rebanho, que ainda avistava vagamente, o ranger acrescentou:
- Atenção! Parece que há sarilho acolá... Veja bem... Os animais abalam!
Um tiro quebrou o silêncio, dominando o ruído da correria dos carneiros, que fugiam cada vez mais. Várias vezes se ouviu a voz do índio tentando reunir as ovelhas
e os cordeiros, espantados por aquele rápido ataque.
Ferozes clamores soaram então, e o pequeno grupo depressa compreendeu o motivo por que o pânico se apoderara dos animais... Os três irmãos Canova, não podendo triunfar
dos Mortimer, que, solidamente entrincheirados, acabavam de repelir o seu ataque, tomavam
agora conta do rebanho, que não chegara a atingir Spine Hill.
- Insensatos! Doidos!-exclamou rancorosamente Catamount.
- Eu bem lhe disse que não devíamos meter-nos nas questões destes selvagens!-protestou o sheriff.
Mas O olhar de Catamount e dos seus companheiros fixava-se agora na massa movediça dos carneiros, que desciam de roldão ao longo da encosta.
- Olhe! -? arquejou Hellison - Os Canova procuram fazê-los cair na ravina!
O homem não se enganava. Rudi e os seus dois irmãos estavam postados nas colinas e, renunciando à luta com os Mortimer, atiravam-se aos seus carneiros, tentando
encaminhá-los na direcção do abismo próximo..
Nestor e Ceres ladravam furiosamente. Correndo como flechas nos flancos do rebanho, os dois cães esforçavam-se por evitar a catástrofe, mas novos tiros soaram na
noite que começava... Os berros perdidos do Navajo, que se ouviam com intermitências, não chegavam para fazer cessar o pânico... Empurradas pelos carneiros, as ovelhas
resvalavam, seguidas dos cordeiritos e, perdendo o equilíbrio, rolavam já sobre elas próprias, balindo com angustioso desespero...
Catamount e os seus companheiros tiveram de assistir, impotentes, ao rápido drama. Algumas detonações que partiram de Spine Hill ainda lhes asseguraram que os Mortimer
reagiam, mas sem saírem de sua casa. Uma vez que não podiam repelir por completo o ataque dos seus três adversários, tinham de resignar-se, deixando-lhes toda a
liberdade de manobra.
A coberto da noite, que se fazia agora sua cúmplice, os irmãos Canova prosseguiam na sua operação, beneficiando da surpresa.
Juan não se encontrava armado. Saltando de rocha em rocha e clamando em altos gritos, o pastor navajo esforçava-se por serenar o rebanho:
- Pronto, Nestor! Pronto, Ceres!
O infortunado esfalfava-se em vão. Como acontecia nos dias de tempestade, os animais disparavam loucamente na direcção da ravina escarpada. Os berros ferozes dos
Canova dominavam ainda o ribombar de trovão que os carneiros provocavam na sua retirada veloz, e a brisa nocturna levava agora o forte cheiro dos animais na direcção
do ranger e dos companheiros.
- Não há nada a fazer! - rugiu Catamount Veja bem!
O sheriff e os três acólitos mal divisavam a mancha confusa do rebanho. Bruscamente, uns após outros, inconscientes do perigo, os animais saltavam para a ravina,
esmagando-se e balindo ao longo do penhasco.
Novos tiros partiram de Spine Hill. Impotentes, os Mortimer não haviam conseguido impedir a catástrofe. Os cães ladravam e Juan lamentava-se. Num instante, não restava
do rebanho senão alguns poucos animais mais retardatários, que Nestor e Ceres conduziam agora devagar, extenuados pela correria doida e inútil que acabavam de fazer.
- As coisas estão difíceis! -vociferou o sheriffMas os tiros recomeçavam. Os Canova voltavam-se
para o Navajo, que estava parado à beira do penhasco por onde se precipitara o seu rebanho.
- Parem com isso! - berrou Catamount, dirigindo-se aos atiradores - Não disparem mais, senão...
Só um doloroso apelo lhe respondeu... Juan, atingido por uma das balas dos Canova, acabava de tombar. Durante algum tempo o ranger apercebeu ainda o seu vulto impreciso;
depois, viu-o desaparecer, rolando ao longo da colina. O Navajo caía também no
precipício, tentando inutilmente, na queda, agarrar-se aos arbustos e às asperezas do terreno.
Então, Catamount não pôde conter-se mais. Meteu decididamente pela encosta por onde o infeliz índio acabara de rolar.
- Atenção! - gritou o sheriff - Você vai...
Gus Topson não teve tempo de acabar a frase. Alheio ao perigo, o ranger lançou-se em terreno descoberto, correndo em socorro do índio...
XI
UM INQUÉRITO QUE COMEÇA MAL
- vou chegar muito tarde!. Muito tarde! Sylvia continuava desesperadamente a trepar. Agarrando-se aos arbustos que se estendiam ao longo da abrupta colina, esfolava
as mãos e os joelhos nas asperezas cortantes, mas, animada de uma energia feroz, não desistia de ir ter com os seus irmãos. Por fim, ao cabo de algum tempo, extenuada,
a despeito da sua extraordinária força de vontade, a jovem parou. O seu olhar sombreou-se quando ouviu os primeiros tiros trocados em Spine Hill.
- Demasiado tarde!
A infortunada rapariga teve um gesto de desespero. Para quê esforçar-se mais, se o combate já havia começado? Qualquer intervenção sua só serviria agora para agravar
mais as coisas.
Arquejante, Sylvia pôs-se a escutar atentamente. Um morro coberto de pinheiros impedia-a de ver o que se passava lá em baixo. Todavia, os tiros não deixavam de se
ouvir, com intervalos regulares, disparados de direcções diferentes.
A rapariga não podia agora alimentar qualquer esperança: os três irmãos lançavam-se resolutamente ao ataque de Spine Hill! Mas era uma leviandade, uma insensatez
tal iniciativa, porque os Mortimer, bem entrincheirados,
não teriam dificuldade em repelir os encarniçados ataques dos seus adversários.
E Hal? Que representaria ele em tudo isto? Sylvia quis ir ter com ele, também, para o prevenir do perigo que o rondava desde que Catamount descobrira a Winchester
perto do cadáver do Canova.
A despeito da reserva que o ranger mostrara até ali acerca do filho mais novo dos Mortimer, a rapariga pensava que Hal seria interrogado, por causa do inquérito.
A atitude do sheriff levava-a a crer que a captura do dono da carabina estava iminente.
Assim, na obscuridade que tombava rapidamente, Sylvia viveu angustiantes minutos. A fuzilaria havia afrouxado um pouco para as bandas de Spine Hill, mas ela bem
sabia que o perigo continuava... Uma interrogação se impunha ao seu espírito febril: - Que fora feito do ranger, do sheriff e do seu pessoal? Sem dúvida que não
tardariam em intervir, porque, se bem que os seus irmãos tivessem concedido uma curta trégua, o pequeno grupo devia ter atingido as imediações dos domínios dos Mortimer...
De coração acelerado, hesitante, Sylvia aventurou-se de novo pelos outeiros- Quando alcançou a crista de onde podia ver bem até lá longe, não descobriu nenhuma luz
na direcção de Spine Hill. Contudo, apesar das trevas, pôde precisar a posição do rebanho de carneiros à guarda do Navajo. O forte cheiro dos animais chegava-lhe
da esquerda, trazido pela brisa ligeira.
Depressa os acontecimentos se precipitaram e os latidos dos dois cães ecoaram furiosamente, logo acompanhados de tiros disparados pelos seus irmãos. Então lançou-se
em correria ao longo da colina:
- Rudi! Luiggi! Pietrô! -gritou a rapariga.
Os apelos de Sylvia perderam-se, porém, no meio do ruído provocado pela galopada dos carneiros, que
corriam desordenadamente direito à ravina. Ela ainda ouviu os gritos de Juan, e mais alguns tiros... Depois, um clamor desesperado sucedeu a nova detonação...
- Meu Deus!
com risco da própria vida, a rapariga saltou. Um brusco estremeção atirou com ela alguns metros mais para baixo. Sentiu na testa uma dor aguda, que a deixou por
alguns segundos inerte, Contudo, por felicidade, teve a necessária coragem para reagir.
O sangue corria-lhe da ferida, mas uma voz soara muito perto dali, uma voz que a rapariga reconhecera logo: a do ranger! Por isso, dominando o .seu sofrimento, procurou
avançar na mesma direcção...
Vindos de toda a parte, os carneiros acabavam de se precipitar no abismo, de corpos palpitantes e com a lã ensanguentada; alguns estavam ainda pendurados nos penhascos.
Entretanto, não longe dali, Sylvia apercebeu vagamente, ao luar, dois vultos imóveis. Catamount inclinava-se sobre o corpo de Juan, a quem, a despeito de todas as
dificuldades, acabava de alcançar. Indiferente às recomendações de Gus Topson, que ele abandonara bem como aos seus ajudantes, procurava socorrer o infeliz.
O pastor índio tinha vindo parar junto de um bloco de consideráveis dimensões, que o havia sustido na queda. Primeiramente, o ranger temeu que, quando chegasse ao
pé dele, apenas fosse encontrar um cadáver. Ao baixar-se ansiosamente, porém, surpreendeu um gemido.
- Dios mio! - articulou Juan.
- Onde é que te dói, amigo?
Durante momentos o desgraçado pareceu estupefacto por se ver interpelado por uma voz estranha. Esbugalhou os olhos- A cara rude do ranger surgiu-lhe, então.
E, como notasse a sua reserva, o seu espanto, o homem dos olhos claros tranquilizou-o:
- Sou teu amigo! Nada receies! Vim aqui para te proteger!
- Carmf...-arquejou o índio, num sopro-Por que disparaste sobre mim há pouco?
- Não disparei! Quando caíste, precipitei-me em teu socorro!
Depois, tornou a fazer-lhe a mesma pergunta:
- Onde te dói?
- No braço! No braço direito! - gemeu o rapaz, tentando em vão mover o membro ferido.
Uma rápida análise permitiu ao ranger verificar que o pobre homem tinha o braço fracturado.
- Tem paciência; vou tentar arranjar-te isso, pelo menos provisoriamente, para ver se consigo levar-te daqui para fora, sem mais dano...
Acautelando-se o mais possível, para não ser arrastado para o fundo da ravina, Catamount começava a preparar um tratamento sumário quando, de súbito, se voltou:
um vulto aproximava-se, arrastando-se ao longo do caminho.
Primeiro, o ranger levou instintivamente a mão ao Colt, convencido de que ia ser alvo de uma agressão, mas depressa se tranquilizou. Uma exclamação de alegria escapou-se-lhe
dos lábios quando reconheceu Sylvia, que, de cara ensanguentada, se esforçava por se aproximar do homem dos olhos claros.
- By Jove! Você! E ferida! -admirou-se ele. Catamount perguntava a si próprio como é que a
rapariga, que ficara em Cedar Green, havia podido encontrá-lo, assim, em plena contenda. Sylvia apressou-se a responder-lhe:
- Não é nada! Um simples arranhão! Mas, os outros? Rudi?
- Os seus irmãos têm feito um excelente trabalho!- retorquiu logo Catamount, com azedume Você deve felicitá-los! Graças a eles, estamos metidos num lindo sarilho!
Como iremos nós agora conduzir o inquérito?
Mas repetidos gritos fizeram logo o ranger voltar-se. Gus Topson e os seus três auxiliares começavam a inquietar-se seriamente com a ausência prolongada do companheiro.
- Hélio. Estou aqui, na borda da ravina! - apressou-se Catamount a comunicar-lhes.
Os quatro homens procuraram então juntar-se ao ranger, enquanto este se inclinava de novo sobre o índio:
- Bebe, amigo! - murmurou ele, pegando no cantil de whisky e levando-o aos lábios do ferido.
Sylvia esperava, imóvel e agachada, ainda sob o abalo que havia experimentado. Todavia, a despeito do seu esgotamento, esforçava-se por surpreender novos gritos
e novas detonações. Uma interrogação angustiante fixava-se sem cessar no seu espírito: - Que faziam os seus três irmãos e que papel representava Hal Mortimer no
meio de todas estas complicações; provocadas pelo ataque intempestivo dos Canova e pelo seu ardente desejo de vendetta?
Por fim, com enorme dificuldade, o sheriff e Sunter conseguiram chegar junto de Catamount, enquanto os outros dois adjuntos esperavam um pouco mais em cima.
- Que faz aí? - inquiriu Gus Topson, quando se aproximou do homem dos olhos claros.
- Ocupo-me do índio - respondeu simplesmente o interpelado - o atrevido escapou de boa! Pergunto a mim mesmo como ele não deu uma queda mais desastrosa!
Lamentosos balidos que subiam do fundo da ravina fizeram compreender ao representante da autoridade e aos seus companheiros que nem todos os carneiros
haviam sucumbido e que alguns, com feridas horríveis, aguardavam que os fossem buscar e socorrer.
- Que vamos fazer? - disse Sunter. Gus Topson teve um gesto largo:
- Àqueles imbecis não lhes faltou engenho para envenenar a situação! O caso, que parecia já complicado, corre o risco de se tornar inextricável!
- Vamos tentar pôr o índio lá em cima? - propôs Catamount - É uma testemunha cujas explicações não se devem desprezar...
- Mas... e a garota? Que faz ela aqui? - interrogou o sheriff, que se admirava de ver Sylvia junto de Catamount.
A rapariga apressou-se então a expor as razões que a tinham feito deixar Cedar Green: decidira avisar Catamount das temerárias intenções de seus irmãos, mas fora-lhe
impossível infelizmente sair-se bem, pois não conseguira passar-lhes à frente.
Um novo gemido de Juan interrompeu a conversa. O ferido sofria muito. Grossas gotas de suor perlavam-lhe as têmporas, o seu rosto acobreado contraía-se dolorosamente,
e os cabelos, de um negro de azeviche, colavam-se-lhe à testa.
- Espera, nós vamos levantar-te - murmurou Catamount -. Não procures resistir! Não fazias senão aumentar os teus sofrimentos...
Fazendo sinal a Sunter, Catamount soergueu o índio pelas axilas e, em seguida, com a ajuda do adjunto procurou pô-lo de pé. Não foi, contudo, coisa fácil. O terreno
acidentado não os ajudava, pois escorregavam amiúde. Tiveram de insistir várias vezes para conseguirem atingir o rebordo onde Bellworth e Hellison os esperavam,
de mãos estendidas, para ajudarem a içar o índio. Por fim, aniquilado pelos numerosos esticões que acabava de sofrer, o ferido foi estendido, e imobilizou-se, de
olhos cerrados.
- Fique aqui ao pé dele - disse o sheriff, dirigindo-se a Sunter. Nós, agora, vamos ver onde estão os outros...
Os outros eram os Canova! Assim que O rebanho se precipitou na ravina, espantado pelo tiroteio, as detonações acabaram mas Catamount e os seus companheiros estavam
convencidos de que Rudi, Luiggi e Pietro não deviam estar muito longe e que esperavam, entrincheirados nas colinas, a ocasião asada para recomeçar os ataques contra
os Mortimer.
Em Spine Hill estava tudo calmo e os cães tinham desaparecido.
- Agora toca a escrever! - praguejou Gus Topson
- Nunca comecei um inquérito em semelhantes condições!
O ranger, que avançava à direita do sheriff, teve de concordar que o caso se apresentava particularmente difícil. Era preciso interrogar os Mortimer acerca da carabina
que Topson agora levava e. que fora a arma do crime. Pensava e com razão que, depois do alarme, ao princípio da noite, os Mortimer, de ordinário tão desconfiados,
não deixariam ninguém aproximar-se. A tarefa dos inquiridores tornava-se, por isso, mais delicada.
Nunca, como naquele momento, Gus Topson recordou com tanta amargura o seu fresco jardim e a vida calma de Mountain City. Praguejou contra as circunstâncias que o
impediam de dormir tranquilamente na sua cama, obrigando-o a vaguear, sem resultado, através daquele terreno ingrato.
Se Catamount não se encontrasse ali, o sheriff decerto não se prenderia mais com o caso. Teria dado meia-volta, deixando os Mortimer e os Canova dirimirem a questão
entre si, mas, na presença do homem dos olhos claros, testemunha imparcial, o representante da autoridade não podia mostrar-se negligente.
- Se eu precisava deste ranger! resmungou para consigo.
Catamount, porém, não parecia decidido a desistir. O diabo do homem era infatigável! Precedia agora Gus Topson, preparado para qualquer surpresa... Mas era inútil
tentar perfurar as trevas àquela hora, porque não se vislumbrava vivalma nas proximidades.
De repente o ranger parou. Parecera-lhe surpreender uma forma indistinta, que se escondia atrás de uns arbustos...
- Hélio! - gritou ele - Saia daí e aproxime-se! Topson, Hellison e Bellworth, revólveres em punho, viraram-se na direcção do ponto visado por Catamount. Ninguém
respondeu à intimativa do ranger, mas Catamount, que estava uns passos mais adiante, continuava convencido de que alguém se havia emboscado muito perto dali. Um
Mortimer ou um Canova? Quem poderia sabê-lo?
- Já o mandei sair daí! - insistiu ele, alteando a voz - Se não obedece, disparamos!
- Vá para o diabo! - ripostou, então, uma voz, que o ranger reconheceu logo, pois era a de Rudi.
- By Jove, Canova! - retorquiu Catamount Não seja teimoso! Acaba precisamente de embrulhar tudo da maneira mais desastrosa! A razão estava do seu lado! Por que me
desobedeceu? Sabe, contudo...
- Shut up! - cortou bruscamente o filho mais velho dos Canova.
Abafadas exclamações, acolhendo a sua resposta, provaram ao ranger e aos companheiros que Rudi não estava só. Luiggi e Pietro encontravam-se, de facto, com ele nesse
momento...
- Não sejam burros! - insistiu Catamount, sem perder a calma -. Avancem!
Não estava afastado mais de três passos do sítio onde eles se haviam emboscado- Do seu lugar podia
ver os três irmãos acocorados e de carabinas na mão, prontos a fazer fogo, mas ele não parecia assustado com tão ameaçadora atitude.
- Bastante divertido isto, não acham?! - tornou ele -. Já perdemos tempo de mais! Aproximem-se e deitem fora as armas!
- Venha buscá-las!
Gus Topson e os dois auxiliares esperavam, hesitantes, prontos a bater em retirada, pois depressa se convenceram de que o ranger seria abatido por aqueles homens
terríveis.
- Cuidado! - gritou Bellworth - Eles vão atirar! Mas, em vez de seguir este prudente conselho, Catamount, de Colt em punho, penetrava resolutamente no pequeno esconderijo
onde se acoitava o grupo dos Canova. Já Rudi apontava ao imprudente, mas o ranger, agindo com desconcertante rapidez, antecipou-se e, antes mesmo que o Canova tivesse
tempo de premir o gatilho, partiu uma detonação. Um violento choque, como que uma chicotada, arrancou-lhe uma praga, ao mesmo tempo que se via obrigado a largar
a carabina,
- Per Bacco! - resmungou ele, enquanto um fio de sangue lhe corria pela mão ferida.
.- Mãos no ar! Os três! E depressa!
Luiggi e Pietro, impressionados pela rapidez da réplica, obedeceram imediatamente. Catamount, dirigindo-se a Topson e aos seus auxiliares, que pareciam ainda mal
refeitos da surpresa, gritou-lhes:
- Aproxime-se, sheriff, e trate de conseguir que estes desastrados não causem mais prejuízos!
Sem mais hesitações, os três homens apressaram-se a ir ter com o ranger. Os Canova esperavam, de rostos contraídos, muito pálidos, exasperados de se verem assim
postos em xeque.
- Depressa! Ponham-lhes as algemas! - insistiu Catamount.
- Cada um de nós traz um par - respondeu Topson.
- É o suficiente!
Depois, dirigindo-se, a Rudi, a Luiggi e a Pietro, que mostravam cara de lástima, disse:
- Agora já não têm pressa! Levantem-se e aproximem-se do sheriff!
Sem pronunciar uma única palavra, os três irmãos avançaram, cada um por sua vez. O sheriff e os auxiliares passaram-lhes rapidamente as algemas em volta dos pulsos.
Bellworth apressou-se a arrecadar as armas e as cartucheiras.
- Conduzam-nos lá mais para diante - aconselhou o homem dos olhos claros -; aqui, estamos ainda muito perto da habitação!
Mal acabara de pronunciar estas palavras ouviram-se várias detonações, que partiam de Spine Hill.
- Depressa! Deitem-se no chão!-ordenou o sheriff.
Rapidamente, os quatro homens e os seus prisioneiros estenderam-se ao comprido no solo- Do seu refúgio, os Mortimer haviam notado algumas sombras que se recortavam
ao luar.
- Fujamos daqui! Este sítio é perigoso! -. praguejou o sheriff.
Logo todos se afastaram ao mesmo tempo, rastejando através da zona de sombra- Foi-lhes preciso mais de um quarto de hora para chegarem ao sítio onde Juan se encontrava
com Sylvia e Sunter.
- Madonna! - exclamou a rapariga ao ver aparecer os irmãos algemados e de cabeça baixa.
- Velhaca! Que fazes tu aí com essa gente?
Rudi endireitou-se, furioso. Mantivera-se calado, mas, não pudera conter-se ao ver a sua irmã naquelas paragens, pois estava bem longe de suspeitar de que a encontraria
ali.
com um gesto, Catamount impôs silêncio aos cativos; depois, chamando de parte Gus Topson, disse-lhe:
- Hélio, sheriff! As coisas já estão encaminhadas, que vamos fazer agora?
O representante da autoridade não pôde conter uma careta de despeito, mas respondeu:
- O mais simples seria voltar às Montanhas Sacramento e procurar aí reforços!
O ranger, sem perder a calma, ripostou imediatamente :
- Para quê perder um tempo precioso? Chegamos bem para iniciar o inquérito.
XII
UMA CAPTURA MOVIMENTADA
Gus Topson não pôde então deixar de protestar:
- Você acha que nós chegamos?! Goa Almighíy! Não sei como!
- Não creio que tenhamos necessidade de um regimento para dominar os Mortimer - insistiu o homem dos olhos claros. Além disso, parece-me que seria desastrado da
nossa parte deixar esta gente respirar... Você não conhece aquele ditado que diz: "Devemos malhar no ferro enquanto ele está quente"?
- Então deixaremos aqui a pele! - gemeu o infeliz representante da autoridade.
O ranger parecia bastante divertido com a atitude aterrada do seu interlocutor. Protestou a sorrir:
- Ena! Como vai longe, sheriff! Creia que já me encontrei em piores situações, e consegui sempre safar-me delas...
- com você não é a mesma coisa... - resmungou Gus Topson -. Você é constantemente favorecido por uma sorte espantosa!
- Sendo assim, uma vez que nos encontramos juntos, você partilhará dessa mesma sorte... - respondeu Catamount, com ironia.
Bellworth e Hellison mostravam-se tão inquietos como o chefe. E o primeiro não pôde deixar de objectar:
- Para começar a investigação, agora, seria forçoso
entrar em casa dos Mortimer... E não é difícil imaginar o que se passa neste momento nos domínios desses tratantes.. Os patifes encontram-se solidamente entrincheirados,
prontos a atirar sobre qualquer sombra suspeita que apareça nas imediações do seu covil! Já tivemos disso a experiência, quando ainda há pouco nos tomaram como alvo!
- Evidentemente - reconheceu Catamount - que convém encontrar um meio de chegarmos à fala com os Mortimer...
- Possui você O "abre-te, Sésamo",? Era Gus Topson quem agora parecia querer zombar do embaraço de Catamount, mas endireitou-se de repente ao ouvir atrás de si uma
voz rouca dizer.
-Escutem, senores... Se quiserem, posso ajudá-los
a lá chegar...
Catamount e os seus interlocutores voltaram-se ao
"mesmo tempo e viram então Juan, que tentava erguer-se.
Depois de haverem prendido os Canova, o ranger e os seus companheiros não se incomodaram mais com o ferido, que parecia estar amodorrado. O homenzinho, porém, dava
agora, sinal de si e procurava levantar-se, pois o penso de emergência feito por Catamount melhorara-o, dando-lhe alguma coragem.
- Hélio, amigo! Julgas que podes...?
O ranger inclinou-se para o ferido, cujo rosto, contraído pelo sofrimento, ele pôde ver à luz do luar. O índio respondeu imediatamente:
- Juan está certo de poder! ...
Apontando, a seguir, para o cantil que Catamount trazia sempre dependurado da cintura, pediu:
- Dê-me de beber!
O homem dos olhos claros apressou-se a satisfazer o desejo do Navajo; junto dele, o sheriff e os ajudantes imobilizaram-se, visivelmente interessados.
Um pouco mais adiante, os irmãos Canova, que estavam sob a vigilância de Sunter e Sylvia, também se voltaram, interessados pela inesperada declaração do pastor.
- Bueno! Isto já está melhor!
Juan, depois de ter bebido três goladas de whisky, teve um suspiro de satisfação e, como Catamount continuasse inclinado para ele olhando-o interrogadoramente, aventurou:
- Juan pode fazer-te passar pela porta pequena!
- Pela porta pequena?
- Sim, sim! A que fica da parte de trás!
O seu interlocutor franziu as sobrancelhas e o índio apressou-se a acrescentar:
- Juan te conduzirá lá!
- Conduzir-me lá?! - objectou o ranger - Como? Esqueces-te tão depressa do teu estado?
- Se Juan não puder servir-se do seu braço, poderá pelo menos caminhar...
Endireitando-se imediatamente, o índio procurou dar uns passos, o que lhe provocou algum sofrimento.
- Como vês, amigo - confirmou ele - eu posso conduzir-te até lá!
- Cuidado! - interveio, então, Gus Topson -. Esse melro não me convence! Suspeito muito de que o queira atrair a uma cilada!
- Pela minha salvação! - protestou o Navajo com vivacidade -. O senor pode acreditar em Juan!
- Mas por que motivo queres tu ajudar-nos? - interrogou o sheriff, que continuava bastante desconfiado.
- Juan odeia os Mortimer! Tu próprio viste, quando lá estiveste em casa, como eles trataram vergonhosamente Juan!
O índio voltava-se agora para Catamount, que se mostrava bastante interessado por aquela inesperada declaração.
- Eu, no seu lugar... desconfiaria! - aconselhou o sheriff, mais carrancudo do que nunca.
- O índio oferece-me uma oportunidade que eu não quero perder - respondeu, então, o homem dos olhos claros -. Arrepender-nos-íamos de a ter desaproveitado!
- Os outros senores podem acompanhar-te - assegurou o ferido, indicando Topson, Hellison e Bellworth.
- Mas tu convences-te de que não existe perigo?
- insistiu Catamount - Poderão surpreender a nossa aproximação! Os dois cães...
- Os dois cães conhecem Juan, e não ladrarão porque eu estarei contigo!
O Navajo tornou-se febril, acenderam-se-lhe lampejos no olhar, parecendo até que aquela possibilidade de vingança lhe fazia nascer novas forças. Como os outros se
mostrassem, porém, ainda hesitantes, declarou terminantemente:
- Pronto! Muy pronto! Podem confiar em Juan!
- Eu, se estivesse no seu lugar, não acreditava... O patife é tão repugnante como os patrões!
Rudi rompera o silêncio para dirigir aos seus captores estas palavras, o que lhe valeu imediatamente uma réplica do ranger.
?- No ponto em que as coisas se encontram, após a lamentável intervenção de vocês, somos forçados a tentar tudo para restabelecer uma situação tão desastradamente
comprometida!
- Pronto, senor!-insistia de novo Juan, agarrando no braço do ranger com a mão válida e incitando-o a segui-lo.
- Acabou a hesitação. Vamos, sheriff! - disse, por fim, o homem dos olhos claros, virando-se para Gus Topson.
Este, dirigindo-se por sua vez ao ferido, declarou;
- Escuta-me bem, vais ficar-me debaixo de olho; se por maldade procuras armar-nos uma cilada...
O representante da autoridade não acabou a frase, mas o gesto que esboçou na direcção do seu Colt foi bastante significativo...
- Vigia bem esses três figurões! - recomendou o sheriff, voltando-se para o auxiliar que esperava, agachado, com a carabina entre os joelhos.
O interpelado procurou logo cumprir a ordem. Junto dele, Sylvia, que parecia dormitar, endireitou-se:
- Eu sigo-os - propôs ela.
- É inútil, não temos necessidade de ti...
A rapariga amuou. Aborrecida, viu os quatro homens caminharem atrás do índio, cuja marcha era agora mais segura. Depois, rapidamente, as cinco silhuetas esfumaram-se,
desaparecendo na noite.
Sylvia aguardou ainda alguns minutos.
Junto dela, Sunter acendeu um cigarro e pôs-se a fumar. Mantinha-se de sentinela, vigiando atentamente os três presos. A irmã deles pouco lhe interessava.
Em redor, o silêncio era pesado, total, absoluto!
Depois de verificar que o guarda lhe voltara as costas, a rapariga saiu da imobilidade em que estivera até à partida do pequeno grupo e afastou-se para trás de um
penhasco sem provocar o menor ruído.
O desaparecimento de Sylvia foi tão rápido que Sunter não deu por nada, o mesmo acontecendo aos três irmãos, que se haviam fechado num colérico mutismo. Quando,
pouco depois, o ajudante de Gus Topson se voltou, não pôde deixar de soltar uma exclamação de surpresa ao verificar a desaparição da rapariga.
Todavia, Sunter não pareceu muito ralado com isso. Sylvia pouco lhe importava, pois apenas estava encarregado de vigiar os três irmãos, e só isso o preocupava.
Retomou tranquilamente a vigilância sem procurar saber para onde teria ido a desaparecida.
Neste intervalo, Juan continuava a avançar, seguido de Catamount, do sheriff e dos auxiliares, que caminhavam em fila. Por várias vezes o índio se voltou para os
seus companheiros pedindo-lhes que parassem um pouco. As dores agudas que experimentava no braço ferido obrigavam-no a deter-se, mas logo retomava o caminho, à cabeça
do pequeno grupo e no meio da sombra que se estendia pelos contrafortes de Spine Hill.
Pouco depois, os cinco homens contornavam sem novidade a ligeira saliência em que se erguia a residência dos Mortimer. Distinguiam agora a habitação, que se recortava
no céu estrelado, mas não viam qualquer luz... O tio Teodoro e os sobrinhos deviam esperar escondidos na escuridão, prontos a atirar sobre qualquer vulto suspeito...
Não se ouvia o mais pequeno ruído. Juan e os companheiros continuaram a avançar pelo declive. O Navajo, agora, rastejava, fixando o olhar no covil...
Catamount, de Colt na mão crispada, conservava-se atento. Contudo, a sua calma mantinha-se. Não se encontravam a mais de dez passos do pátio quando Juan se voltou
para ele, segredando-lhe ao ouvido:
- Espera por mim, eu vou ver.
O ranger, Topson e os dois auxiliares imobilizaram-se, então, estendidos na urze. Os minutos que passavam pareciam-lhes agora intermináveis, mas os seus olhares
iluminaram-se ao verem reaparecer o vulto claudicante do índio, acompanhado dos dois cães.
- Então? - inquiriu Catamount.
- Sigam-me - respondeu o Navajo -. Nestor e Ceres reconheceram-me... por isso não ladram... De resto, podem verificar...
- E os Mortimer? - perguntou o ranger.
- O velho encontra-se do lado de lá, junto da janela, com o senor Winston... Quanto ao outro, está a dormitar a um canto... Podem surpreendê-los facilmente...
- E a senhora Mortimer? - perguntou ainda Catamount.
- Repousa no sótão:! Bem sabe! Onde dormiu!
O homem dos olhos claros não indagou mais e indicou aos três companheiros que o seguissem. Entretanto, voltando a rastejar atrás de Juan, aproximou-se ainda mais
da habitação...
Bem depressa o ranger notou a tal porta de que lhe havia falado o índio: abria sobre um alpendre situado atrás da casa e cujo telhado estava escondido pelas ramadas.
Chegado a alguns passos da entrada, Juan fez sinal ao pequeno grupo para que esperasse um pouco. Estavam todos de armas em punho. Catamount imobilizou-se, pronto
a penetrar no covil...
Juan reapareceu, finalmente, e, por um pequeno sinal, deu a entender aos quatro homens que podiam entrar.
Mal o ranger alcançou o limiar da porta, atrás do ferido, logo se sentiu de novo impregnado pelo forte odor dos carneiros e do fumo, que tornava pesado o ambiente.
Em fila, Topson, Bellworth e Hellison entraram por seu turno, evitando o menor ruído que pudesse alarmar os habitantes da casa. Juan atingia agora uma outra porta
que comunicava com o principal compartimento.
- Pronto! -disse ele novamente ao ranger.
Num momento, Catamount franqueou a porta entreaberta. Depressa avistou três sombras nos lugares que lhe havia indicado o Navajo. O tio Teodoro esperava, de carabina
na mão, junto da janela, tendo as duas
muletas encostadas à cadeira. A dois passos dele, Winston, imóvel, observava ansiosa e atentamente por trás das vidraças, onde vinha reflectir-se o luar...
Mas a atenção do ranger fixou-se principalmente em Hal, que, sentado a um canto e curvado, apoiava a cabeça entre as mãos. Parecia dormitar, enquanto os seus companheiros
estavam de atalaia... Numerosas cápsulas de cobre se espalhavam no chão de terra batida, provando que os Mortimer haviam disparado bastante para afugentar os seus
nocturnos assaltantes.
Gus Topson e os dois auxiliares aventuravam-se atrás de Catamount. Quanto a Juan, pouco tranquilo por se encontrar em plena contenda, havia desaparecido rapidamente
pela porta de trás, deixando que os adversários se entendessem uns com os outros...
- Ocupe-se do rapaz - segredou o ranger ao ouvido do sheríff, indicando Hal -. Eu conterei os outros dois em respeito!
Winston ia a voltar-se, intrigado por um insólito ruído que acabara de se produzir, quando Catamount bradou em voz clara!
- Mãos no ar! Todos!
Uma blasfémia abafada acolheu esta inesperada intimação.
O tio Teodoro e o mais velho dos Mortimer voltaram-se ao mesmo tempo, prontos a disparar contra o intruso, mas logo se contiveram em face dos dois Colts que o recém-chegado
lhes apontava. Novamente Catamount falou, e num tom que não admitia réplica:
- Mãos no ar, ou atiro!
A surpresa foi completa. Instintivamente, Winston endireitou-se, e o velho levantou as suas mãos descarnadas..
- Deitem fora as carabinas!
O tio Teodoro obedeceu, não sem praguejar.
Winston ainda hesitava, e Catamount ia repetir a ordem, quando muito perto estalou um alarido ensurdecedor. O sheriff e os dois ajudantes acabavam de se precipitar
sobre Hal; travava-se uma luta encarniçada ao fundo da sala.
Ameaçador, Catamount ia a aproximar-se do mais velho dos Mortimer quando lhe escapou uma abafada exclamação: o enfermo, com uma desconcertante rapidez, baixara-se,
atirando-lhe com uma das muletas às pernas. Surpreendido, o ranger quis esquivar-se ao imprevisto projéctil. Winston, então, aproveitou o ensejo para se escapar.
- Safa-te! - gritou Teodoro - Safa-te, Winston!
Um ruído de vidraças que se estilhaçam ecoou pela casa: Mortimer, pouco disposto a enfrentar o ranger, fugia pela janela, precipitadamente.
Catamount pulou até ao parapeito e, quando se dispunha a alvejar o fugitivo, sentiu-se brutalmente agarrado. O enfermo levantara-se da cadeira e, saltando sobre
o ranger, deixara cair sobre ele todo o peso do corpo esforçando-se por lhe impedir os movimentos.
Ouviram-se gritos agudos. Kate, acordada pelo barulho, apareceu na escada. De palmatória na mão, a infeliz procurava adivinhar o que se passava e reconhecer as sombras
que se confundiam num corpo-a-corpo furioso, acompanhado de pragas e do arfar dos peitos.
Menos feliz do que seu irmão, Hal debatia-se com desespero. O ataque do sheriff e dos dois auxiliares havia-o surpreendido, vendo-se por isso obrigado a abandonar
a arma, que Bellworth conseguiu afastar para longe. Mas a luta prosseguia e o jovem conseguiu desembaraçar-se de Hellison, atingindo-o com um pontapé no queixo.
O auxiliar tornou a levantar-se, gemendo e esfregando a parte dorida. Entretanto, Topson e Bellworth não largavam a presa, caindo com todo o peso dos seus corpos
sobre o antagonista.
- As algemas! Depressa! As algemas! - gritava o sheriff.
Mas Hellison, ao levantar-se, respondeu:
- Não temos mais nenhumas! Os irmãos Canova... - É verdade - resmungou Topson -, mas faz
umas depressa, senão ele foge-nos!
O guarda reparou então numa corda que pendia de um prego e apressou-se a agarrá-la. Unindo os seus esforços, os três homens conseguiram amarrar solidamente Hal,
que se debatia com fúria.
Compreendendo que não poderia por enquanto alcançar Winston, Catamount continha o tio Teodoro em respeito com o revólver. O ancião fazia os mais desesperados movimentos
para se levantar, não cessando de repetir raivosamente:
- Hei-de matar-te!
com um pontapé, o ranger atirou para longe a carabina tombada no chão, que o enfurecido velho procurava ainda recuperar.
Fazendo um sinal a Kate, que, espantada, o reconheceu, gritou-lhe:
- Aproxime-se, senhora Mortimer! Faça chegar à razão este velho fanático!
Levantando em seguida a voz, o ranger dirigiu-se aos dois prisioneiros:
- Fomos obrigados a recorrer à força! Não têm mais agora do que fornecer-nos os esclarecimentos que se tornem indispensáveis. Nada devem recear da parte dos Canova,
pois reduzimo-los à impotência!
Depois, indicando a Winchester que o sheriff lhe estendeu, Catamount voltou-se para o ancião e para Hal, que se torcia inutilmente nas cordas que o prendiam, e perguntou-lhes:
- Qual de vocês disparou sobre Gregório Canova e o abateu com esta carabina?
Gus Topson, com um olho inchado e o nariz a sangrar, e Bellworth e Hellison, também num estado lastimoso, aproximaram-se, de revólver em punho, desesperados por
terem sido tão mal tratados.
Mais calmo, Catamount fixava o olhar nos dois prisioneiros e insistia:
- Vamos, falem! Já é tempo de começarmos o nosso inquérito! Estamos aqui em nome da lei! Intimo-os a que digam a verdade!
XIII
O INTERROGATÓRIO
O tio Teodoro encolheu desdenhosamente os ombros, e Hal limitou-se a declarar, num tom arrogante:
- Não sei o que quer dizer!
Ao fundo da sala ouviu-se, então, um pungente gemido. Kate, presa de louco terror pela luta que se desenrolara ante os seus olhos, pôs-se a chorar desesperadamente.
À sua volta, o cenário era desolador, visto à ténue claridade do candeeiro de petróleo que Hellison se decidira a acender. A mesa e os bancos estavam caídos e voltados,
um cântaro quebrara-se e estilhaços de vidro juncavam o chão, vendo-se ainda diferentes utensílios espalhados por toda a parte.
Mas Catamount continuava a exibir a carabina aos dois silenciosos prisioneiros.
Dirigindo-se ao mais novo dos Mortimer, declarou:
- Se a memória me não falha, esta arma pertence-lhe... Não foi você mesmo quem me disse que ela lhe fora dada de presente pelo seu irmão Art?
- Se já sabe isso, para que mo pergunta? - respondeu Hal, com ironia. Bem se vê que gosta de perder tempo...
- Engana-se, Hal. Estamos mais apressados do que julga! Todavia, quando inicio um inquérito, tenho o hábito de proceder com método...
E, como o seu interlocutor abanasse a cabeça em ar de chacota, o ranger, fixando-o bem nos olhos, acrescentou:
- Atenção, Hal Mortimer! Você parece não suspeitar de que é a sua cabeça que está em jogo neste instante!
- A minha cabeça?!
- Exactamente! A Winchester que tem sob os seus olhos, neste momento, constitui uma prova mais contra si! Você será acusado de homicídio!
- De homicídio?!
Catamount surpreendeu o ligeiro estremecimento que, nesse momento, agitou o prisioneiro. E, vendo-lhe o assombro estampado no rosto, prosseguiu:
- Repito, você tem todo o interesse em dizer-nos a verdade. Gregório Canova foi encontrado morto no pinhal em território de Cedar Green...
- Dá-me uma boa notícia - ripostou o detido, com calma - É um canalha a menos! Quando os outros levarem o mesmo caminho, poderemos enfim respirar!
Hal sorria maliciosamente, o que lhe valeu esta pronta observação do ranger:
- Hélio, Hal Mortimer, tenho fortes razões para crer que você se faz pior do que na realidade é... Não acredito que deseje do fundo do coração o desaparecimento
de toda a família Canova...
O prisioneiro mostrou-se molestado com esta alusão indirecta às suas relações com Sylvia, mas a voz rude de tio Teodoro ouviu-se então:
Hal tem razão, e estou de acordo com ele. Há
muito que nós desejamos ver-nos livres dessa porca raça de italianos. Se o meu irmão encontrou a morte...
- Por favor, Teodoro Mortimer, essa história já é velha! Nós só temos hoje de falar de Gregório Canova cuja morte se deu em circunstâncias particularmente confusas...
Em seguida, silabando bem as palavras, o homem dos olhos claros esclareceu:
- Gregório Canova foi assassinado! Dispararam-lhe duas balas pelas costas... O homicida emboscou-se nas proximidades do atalho... Alvejou-o quase à queima-roupa
com esta mesma carabina que você reconhece ser sua, Hal Mortimer!
Enquanto o ranger iniciava deste modo o seu interrogatório, Gus Topson e os dois ajudantes aguardavam, calados.
O sheriff continuava a sangrar do nariz e limpava-se a cada passo, o melhor que podia, ao seu lenço de quadrados. Por seu lado, Hellison acabava de cuspir dois dentes,
quebrados durante a briga. Quanto a Bellworth, esfregava lentamente a espinha...
Entretanto, os três homens verificaram sem dificuldade que as últimas palavras de Catamount haviam produzido efeito.
Hal ergueu-se um pouco, decidindo-se por fim a declarar:
- Assim como me considero satisfeito por Gregório Canova ter passado desta para melhor, do mesmo modo posso afirmar que nada tenho a ver com esse assunto!
- Todavia - insistiu o ranger - esta é a sua Winchester! Foi descoberta a alguns passos de distância do corpo de Canova... Faltam duas balas no carregador, as mesmas
que eu próprio extraí do corpo do infeliz...
Ao dizer isto, o homem dos olhos claros tirou do pequeno bolso do colete os dois pedaços de chumbo ligeiramente deformados, mostrando-os a Hal.
O mais novo dos Mortimer permaneceu silencioso durante alguns momentos; depois, levantou os olhos para o seu interlocutor e afirmou:
- Estou comprometido, mas não disparei contra o Canova!
O tio Teodoro, que até aqui se havia conservado num mutismo agreste, interveio de novo:
- Além disso, se Hal tivesse encontrado o outro, o caso não se passaria assim... Teria desafiado cara a cara o adversário e nunca o abateria traiçoeiramente pelas
costas! Isso é um método que os Mortimer sempre condenaram!
Ao exprimir-se desta maneira o enfermo manifestava evidente indignação-
O sheriff, que conseguiu por fim deixar de sangrar, mas que se encontrava com o rosto todo salpicado de sangue e com o olho direito inchado, interveio por sua vez
dirigindo-se ao rapaz:
- Todavia, esta arma é a sua!
- Ainda que a Winchester seja minha, você também podia servir-se dela - respondeu Hal -. Por isso, se vieram aqui procurar o assassino, enganaram-se na pista...
Fariam melhor se o procurassem noutro lado!
- Perdão, Hal Mortimer - tornou de novo Catamount. - Apesar da sua negativa, continuo a crer que nos encontramos na boa pista... Admitindo que você não matasse,
o que falta ainda provar, é evidente que a arma não podia ser utilizada senão por um de vocês...
- Eu creio que não me servi dela - troçou o tio Teodoro - pois as minhas pobres pernas estão impossibilitadas de se alargar para além dos limites de Spine Hill...
- Estamos inteiramente de acordo - reconheceu o ranger - e julgo que não o atingi com a mais leve acusação... Isso, porém, não impede que as mais sérias suspeitas
recaiam sobre o seu sobrinho- E já que ele afirma que não é o responsável, que nos elucide então sobre quem poderia ter-se servido da Winchester.
- Eu deixei-a pendurada no cabide...
- Nesse caso, alguém a tirou de lá!
O prisioneiro concordou com um movimento de cabeça e Catamount rematou, sem o perder de vista:
- Você deve talvez calcular quem teria sido...
- Não... Não faço a mais pequena ideia!
- Seu irmão, talvez - insinuou Gus Topson, que seguia com a maior atenção toda a conversa...
Hal fez má cara:
- Meu irmão?!
- Evidentemente. Se afirma que deixou a carabina pendurada, então alguém a levou, embora me cause estranheza que você se tivesse separado da arma...
- Decididamente você é teimoso, sheriff - protestou o tio Teodoro -. Quer por força que um dos meus sobrinhos...
- Ponha-se um pouco no meu lugar - interrompeu-o Gus Topson, aproximando-se - É do conhecimento público que vocês se entregam há anos a uma guerra implacável com
os vossos vizinhos Canova! Não tiveram até o mínimo escrúpulo em nos declarar que lhes votavam um ódio mortal. Nessas condições, nós temos de partir do princípio
de que o crime deve ser atribuído, em primeiro lugar, àqueles a quem ele pudesse interessar... A notícia da morte de Gregório Canova foi aqui recebida com uma satisfação
que nem um nem outro procuraram sequer dissimular!
- Estamos perfeitamente de acordo, sheriff - concordou o enfermo -, mas deve conhecer tão bem como eu o ditado: "O corpo de um- inimigo morto cheira sempre bem..."
Afirmando-lhe que nos encontramos encantados com o desaparecimento desse velho crápula, não fazemos mais do que dizer toda a verdade! Se afirmássemos o contrário
mentiríamos vergonhosamente!
Catamount não parecia, porém, disposto a afastar-se do assunto que havia abordado e retomou a palavra, dirigindo-se a Hal.
- Que fez ontem, de manhã?
- Ontem, de manhã? - respondeu o prisioneiro, franzindo as sobrancelhas, como se procurasse recordar-se.
- Exactamente. Visto afirmar que nada sabe a respeito do desaparecimento da sua carabina, pode então invocar um álibi que nos permita fazer luz sobre o assunto,
pondo-o a si definitivamente fora de causa?
- Ontem fiz, como de costume... -decidiu-se Hal a responder, depois de uma ligeira hesitação.
- O quê?
- Dawn! Acabam por estafar o rapaz! - protestou o tio Teodoro, exaltado - Ele podia ir onde muito bem lhe parecesse!
- De acordo! Mas nós precisamos de saber...
- Está bem - tornou o prisioneiro -, de manhã fui até às imediações da propriedade, como costumo fazer todos os dias. Uma ovelha tinha-se afastado... e Juan avisou-me...
- É verdade, Juan? -e, não o vendo, gritou: Onde se meteu esse verme? Ele poderia confirmar isto.
Ao proferir estas palavras, o enfermo bateu raivosamente com o cabo da muleta.
- Interrogaremos Juan daqui a pouco - declarou Catamount -.. Não está certamente muito longe.
O homem dos olhos claros percebeu facilmente as razões que tinham levado o índio a uma fuga sorrateira. Não lhe convinha que os Mortimer suspeitassem de que fora
ele próprio quem introduzira o inimigo na praça... Por isso, havia-se esquivado prudentemente.
- E não levava a sua carabina? - perguntou o sheriff.
- Já lhe disse que a deixei pendurada - repetiu o detido, quase irritado-. Além disso, que necessidade tinha eu da Winchester para encontrar a ovelha?
Eu só a uso para atirar à bicharia que infesta as proximidades de Spine Hill...
- E aos Canova, também...-ironizou Gus Topson.
- Você próprio já afirmou que considerava os seus vizinhos como animais desprezíveis!
- Concordo que atirei algumas vezes sobre os Canova, quando eles se aproximavam um pouco mais daqui! E ainda há bocado a arma me fez uma falta enorme quando esses
canalhas nos atacaram...
E o jovem, exprimindo-se em voz tremente de indignação, continuou:
- Eu voltava para casa, e estava precisamente a alcançá-la quando surgiram atrás de mim vultos suspeitos... Atiraram-me repetidas vezes... Apenas tive tempo de me
deitar no chão de barriga para baixo para evitar as balas! Ouvi então a voz de Rudi! Reconhecê-la-ia entre mil...
- E que dizia ele?
- Gritava Vendetta! Vendetta... fazendo os irmãos coro com ele- Desta vez aproximaram-se da nossa casa com evidente propósito de nos atacar!
Catamount não quis interromper o seu interlocutor, cujas declarações coincidiam perfeitamente com os acontecimentos que acabavam de se desenrolar. E mais uma vez
reprovou a imprudente iniciativa tomada pelos três irmãos, apesar de ele os ter proibido e de lhes haver dado sensatos conselhos.
- Winston encontrava-se à entrada - tornou Hal
- e eu apressei-me a ir ao seu encontro, rastejando... Consciente do perigo, meu irmão disparava na direcção dos Canova, mas estava tão escuro que não sei se os
atingiu... Se não conseguiu atingi-los, eu, pela minha parte, alcancei com êxito o abrigo onde me refugiei. Depois ficámos defendidos... Até ao momento em que nos
vieram surpreender pelas costas...
- Gostaria de saber como puderam introduzir-se em nossa casa - disse, colérico, o tio Teodoro.
- Isso agora não interessa - atalhou Catamount. - Não se esqueça de que nos encontramos aqui em nome da lei!
Depois, dirigindo-se de novo a Hal, interrogou: - Pode dizer-me agora o que fez seu irmão, ontem, da parte da manhã?
- By Jove! - chasqueou o prisioneiro - julga-me então dotado do dom da ubiquidade? Winston fez aquilo que lhe apeteceu... Eu andava a procurar a ovelha... tinha
mais que fazer do que cuidar no que fazia o meu irmão!
- Você não nega que Winston Mortimer tenha nessa ocasião tirado a sua carabina?
-. Não nego, nem afirmo! Winston, de facto, pediu-ma algumas vezes emprestada, mas ele tinha a dele e não creio que precisasse de duas armas... De resto, prefere
sempre a que lhe pertence.
- Viu sair o seu sobrinho Winston? -. perguntou então o sheriff ao ancião.
- Winston entra e sai tantas vezes das oito ao meio-dia que eu nem presto atenção - respondeu o tio Teodoro.
- Mas não o viu levar a Winchester?
- Não reparei. Mas duvido de que a tivesse levado.
- E a senhora Mortimer?
Kate, que continuava a chorar silenciosamente, com a cabeça apoiada nas mãos, sobressaltou-se ao ser interpelada por Gus Topson.
- Eu não vi nada! ?- declarou ela, aflita. - Eu não vi nada!
- E o pastor?
O tio Teodoro não pôde deixar de dar uma gargalhada :
- Juan! Que poltrão! Tem medo de uma arma
como da peste! Receia que elas lhe estalem nas mãos! É um cobarde como não há outro. Quando muito, serve para guardar os carneiros, e mesmo assim é preciso que tenha
com ele os cães!
E o enfermo, percebendo que Nestor e Ceres se encontravam no pátio de entrada, acrescentou, resmungando:
- Não percebo por que é que os cães não deram sinal quando aqui chegaram! O costume...
- Ocupar-nos-emos disso mais tarde - interrompeu friamente Catamount -. Por agora, importa-nos, antes de mais, saber em que circunstâncias Gregório Canova foi abatido,
e quem o abateu!
- Eu não lhe atirei! -protestou Hal, energicamente.
- Resta saber se seu irmão dirá o mesmo...
- Não tem mais do que interrogá-lo... - respondeu o prisioneiro, com ironia.
- Julgo que, se nós tentássemos discutir com ele, apressar-se-ia a desaparecer! Agora mesmo...
- Evidentemente! - reconheceu o detido - Seria jogar às escondidas. E não teriam razão para censurar Winston... Conseguiram entrar aqui recorrendo à força, mas seria
mais difícil convencer o meu irmão a falar... Ele tem óptimas razões para desconfiar e para os receber a tiros de carabina...
O tio Teodoro opinou então:
.- Talvez tudo se pudesse arranjar... Restituam a liberdade a Hal, ele irá avisar Winston e conduzi-los-á...
Esta sugestão não pareceu agradar ao sheriff, que disse em ar de chacota:
- Ah! Eu faço uma ideia do que seria capaz este figurão se cometêssemos a imprudência de lhe restituir a liberdade! Apressar-se-ia também a dar às de vila-diogo!
- Se eu prometesse.
- Veremos mais tarde! Por enquanto persiste em negar?
- Persisto. Não fui eu quem matou Canova!
- Nem eu tão-pouco, infelizmente! - apoiou o tio Teodoro -. Se não fossem estas malditas pernas, e eu tivesse menos dez anos, as coisas talvez se tivessem dado de
outra maneira. Mas não passo de um pobre inválido...
- Escreva, Hellison!
Gus Topson voltou-se então para o seu auxiliar, que tinha já nas mãos um bloco imundo e rasgado, e começava a escrever com um lápis...
Catamount encostou-se à mesa que levantara do chão ajudado por Bellworth. Depois de afastar com a ponta do pé os bocados de vidro que juncavam o solo à sua volta,
o ranger inclinou-se e começou a emendar alguns termos que o sheriff empregava na redacção do relatório. O enfermo, que parecia ter-se acalmado extraordinariamente,
olhava com tranquilidade o pequeno grupo.
Hal nunca mais se mexeu. Em duas tentativas experimentou rebentar as cordas que o prendiam, mas os auxiliares, na falta das algemas, haviam amarrado cuidadosamente
o prisioneiro. O mais novo dos Mortimer não devia encontrar-se em condições de fugir.
O tio Teodoro olhou para o sobrinho, mas a distância que os separava era demasiada para que pudesse esboçar o menor gesto a seu favor; ainda que vissem distraídos
por momentos o ranger, o sheriff e os dois acólitos, estes depressa interviriam deitando por terra qualquer tentativa nesse sentido. O jovem esperava ao fundo da
casa, e sua mãe continuava a chorar. De repente sobressaltou-se: os cães tinham começado a ladrar lá fora...
Catamount e os companheiros ergueram-se, de sobrancelhas franzidas.
-Vem aí alguém...-murmurou o sheriff.
-Talvez Winston... - aventurou o ranger.
Imobilizaram-se todos ao mesmo tempo, apurando
o ouvido.
O tio Teodoro e o sobrinho pareciam igualmente
Intrigados.
- Esperem aí! Eu vou ver! - murmurou o homem dos olhos claros, ao verificar que o ladrar dos cães redobrava de intensidade.
- Cuidado! O atrevido é um temível atirador! objectou Gus Topson.
- Não tenha receio, serei prudente!
Fazendo sinal aos três homens para que vigiassem os detidos, o ranger enfiou na direcção da porta por onde pouco antes entrara na casa dos Mortimer.
De Colt na mão e dedo no gatilho, afastou sem ruído a pesada porta de carvalho.
A sombra da casa alongava-se oportunamente, e Catamount teve o cuidado de permanecer na zona obscura. Caminhando ao longo da fachada, procurou contornar a habitação.
O ladrar dos cães continuava. Nestor e Ceres pareciam inquietos...
- Não é com certeza Winston - disse para consigo o ranger, prosseguindo, lentamente a caminhada. - Eles conhecem-no e não lhe ladravam! Há pouco também não ladraram
quando o índio nos acompanhou, e foi isso que nos permitiu surpreender toda a família.
Parando depois por instantes, Catamount deitou um rápido olhar à sua volta.
Admirou-se de não avistar Juan, que devia também ter ouvido o ladrar dos dois cães.
O homem dos olhos claros voltou a caminhar e de repente os cães calaram-se.
- É curioso-murmurou o ranger-passa-se qualquer coisa, com certeza!
Ia aventurar-se a avançar pelo pátio quando um vulto furtivo apareceu, procurando esconder-se na mesma zona obscura que até aí o tinha protegido e tentando alcançar
a parte detrás da habitação...
Então, Catamount esperou, contendo a respiração... Não tinha mais que procurar: o vagabundo noctívago aproximava-se dele. Do seu lugar avistou a furtiva silhueta,
que caminhava nos bicos dos pés para não fazer o menor ruído...
De súbito, ouviu-se uma exclamação. O vulto acabava de chocar com o ranger, que se conservara imóvel, à espreita, nas trevas.
O desconhecido quis voltar para trás, mas não teve tempo. com desconcertante rapidez, Catamount estendeu o braço esquerdo e a sua mão de aço prendeu-lhe um pulso
com tal força que o noctívago não pôde conter um grito de dor:
- Madonna!
- Uma mulher! É uma mulher! - murmurou o homem dos olhos claros, surpreendido.
A recém-chegada debatia-se raivosamente, esforçando-se por se escapar. Arranhava, mordia, mas o ranger não largava a presa. Pouco depois, ao arrastá-la um pouco
para mais longe, Catamount viu-lhe então o rosto à fraca luz do luar:
- Sylvia! - exclamou ele, identificando finalmente a desconhecida.
XIV
A FUGA DE HAL
A rapariga reconheceu o ranger e deixou imediatamente de se debater...
- Você?! - murmurou ela - Você aqui?!
- Parece-me que lhe poderei fazer a mesma pergunta! Tínhamo-la deixado com Sunter com os seus irmãos! Por que não ficou tranquilamente junto deles? Todavia, eu recomendei-lhe...
- É verdade - concordou Sylvia - Mas eu tinha tanto desejo de saber o que se passava!
- Você vem com certeza por causa de Hal...? Catamount logo surpreendeu a perturbação que aquelas palavras causaram na sua interlocutora.
- Tranquilize-se! - apressou-se a acrescentar Aquele que lhe interessa encontra-se neste momento são e salvo!
Um ruído abafado fez estremecer a rapariga. Os dois cães, que a haviam descoberto, aproximavam-se mostrando os dentes.
- Para trás! - ordenou Catamount.
Mas a atitude dos dois vigilantes tornara-se cada vez mais ameaçadora, e o ranger, puxando Sylvia, fê-la entrar pela mesma porta por onde havia saído momentos antes:
?- Venha! - murmurou apenas.
Apesar do receio que lhe causavam Nestor e Ceres, a rapariga ainda hesitou.
- Eu? - balbuciou - Para casa dos Mortimer? Era, com certeza, a primeira vez que um membro
da família Canova se dispunha a transpor o limiar da sombria residência, mas Catamount insistiu com energia e Sylvia resignou-se. Dois minutos depois ela dava entrada
na sala onde o sheriff, os dois ajudantes e os prisioneiros esperavam, profundamente intrigados...
- God Almighiy! A pequena!-exclamou Gus Topson, ao reconhecer a rapariga.
Uma praga acompanhou as últimas palavras do representante da autoridade. O tio Teodoro erguia-se iradamente da sua cadeira:
- Uma Canova aqui?.. Para trás, velhaca maldita! Fora! Fora!
- Não... Ela entrará, Mortimer!-cortou Catamount em voz firme. - A sua presença não fará abater a casa!
A recém-vinda aproximou-se, mais hesitante do que nunca, e os seus olhos receosos pousaram em Hal, que ela via solidamente amarrado junto da mesa.
O prisioneiro não arriscou uma palavra, mas a expressão do seu rosto traía toda a emoção que lhe causava esta inesperada visita em sua própria casa.
Sylvia esforçava-se também por ocultar o melhor que podia a profunda perturbação que a dominava. Ao primeiro golpe de vista, verificou que uma luta tremenda se havia
desenrolado no interior da habitação. Os rostos inchados do sheriff e dos seus dois auxiliares demonstravam que a captura de Hal não se tinha efectuado sem a sua
desesperada resistência.
- Quando me lembro- de que ela ousou entrar aqui! - e o tio Teodoro martelava raivosamente no chão com a ponta da muleta. Sob as espessas sobrancelhas, os seus olhos
faiscavam. - Fora, maldita rapariga!
- Tio Teodoro...
Hal tentava, pela primeira vez, erguer-se, apesar das cordas que lhe embaraçavam os movimentos. Esforçou-se por apaziguar o seu irascível tio, mas este, ao ouvi-lo
falar, respondeu-lhe num sobressalto:
- Damn! Dir-se-ia que achas tudo isto muito natural!
O enfermo, evidentemente, de nada suspeitava!
Não sabia que, enquanto ele padecia, junto da janela ou diante da porta, amarrado à sua cadeira de inválido, Sylvia e Hal se haviam conhecido e amado, no seu vagabundear
pelos contrafortes das Montanhas Sacramento !
Como se dera o seu primeiro encontro? Ambos se recordavam disso com ternura e emoção. Fora bastante longe dali, perto dos Reservatórios de Red Bluff...
Ao querer apanhar um gato bravo que já vinha perseguindo há muito, Hal escorregou por um talude e precipitou-se num lago profundo.
Ainda que fosse um excelente nadador, a surpresa fê-lo estar a ponto de sucumbir. Os seus prolongados apelos ficavam sem resposta. Em redor tudo parecia deserto,
quando de repente alguém interveio... Era Sylvia, que, vagabundeando através da montanha como verdadeira selvagem, tinha avistado o infeliz que se debatia... Então,
corajosamente, mergulhou!
Cinco minutos depois, Hal encontrava-se são e salvo, em terra firme. Nesse dia, aquela que o havia socorrido com tanta coragem não quis que ele lhe agradecesse,
e, antes mesmo que ele tivesse tempo de se opor à sua partida, já ela havia fugido sorrateiramente, correndo à desfilada, com os cabelos a escorrer e as roupas coladas
ao corpo.
Hal não falou da sua aventura aos outros Mortimer, mas, desde então, o ódio que votava aos Canova foi diminuindo pouco a pouco, não podendo pensar na rapariga sem sentir o coração bater-lhe mais apressado do que de costume.
Depressa se apossou do seu pensamento uma ideia fixa: encontrá-la; tornar a vê-la, falar-lhe!
Ainda pouco antes o rapaz esperara poder alcançar a selvagem, que ele avistava por vezes a vadiar pelos campos, a fim de a tomar por alvo, pregando-lhe um susto
salutar! Odiava-a como todo o Mortimer odiava um Canova! Mas, depois daquele imprevisto salvamento, parecia vítima de um verdadeiro sortilégio... Trazia consigo
a imagem de Sylvia, que o dominava inteiramente.
Muitas vezes, o tio Teodoro e Winston repararam, quando se reuniam ao serão, na melancolia que se apoderava do seu companheiro e também Kate dera por isso, mas a
todas as perguntas que eles lhe dirigiam o jovem furtava-se sempre com habilidade.
com efeito, facilmente previa o acolhimento que os três lhe fariam e as censuras a que se expunha se lhes deixasse entrever a verdade.
Decorreram semanas, meses... Até que, uma tarde, tornaram a encontrar-se. O incidente dos Reservatórios da Red Bluff não havia deixado, por certo, recordação muito
desagradável no espírito da selvagem rapariga. Assim, esta não procurou escapar-se quando Hal lhe dirigiu a palavra. Daí por diante as entrevistas foram frequentes.
Ao ódio de outrora sucedera então um sentimento mais complexo...
Hal diligenciava inutilmente iludir-se, mas a situação apresentava-se com uma limpidez desconcertante!
Amava a filha de Canova e sentia-se, por sua vez, correspondido! No ambiente de desconfiança e ódio que os rodeava, tornaram-se émulos dos célebres amantes de Verona!
Desde que o corpo de seu pai fora descoberto e, mais ainda, depois de Catamount ter encontrado a Winchester próximo do cadáver, Sylvia receava o pior para aquele que amava! A despeito da atitude animadora do ranger, e embora estivesse firmemente convencida de
que Hal nada tinha a ver com o crime que enlutava a casa de Cedar Green, ela compreendia que uma terrível ameaça pesava sobre ele.
Que Winston ou o velho Teodoro tivessem procurado perfidamente abater Gregório, admitia-o, mas recusava-se a aceitar que Hal matasse tão cobardemente o pai daquela
que amava!
Compreende-se agora a razão por que Sylvia não descansava e em duas tentativas procurou intrometer-se na questão... Nessa noite, maldizendo a imprudência e brutalidade
dos seus três irmãos, tinha-se introduzido em Spine Hill... Porém os cães haviam-na descoberto dando o alarme a Catamount e aos ocupantes do refúgio...
A rapariga trocou um rápido olhar com o prisioneiro, mas a voz abafada do enfermo fê-la estremecer de novo.
- Se estes cavalheiros não estivessem aqui para me conter, com que prazer eu poria na rua esta imunda boneca!
com um gesto, Catamount impôs silêncio ao ancião. Depois, disse:
- Acredite que faria muito melhor se se calasse... Canova não tinha ainda expirado quando o encontrámos... Antes de morrer conseguiu falar...
E enquanto o tio Teodoro baixava iradamente a cabeça, o omem dos olhos claros acrescentou:
- Pronunciou o" nome de Mortimer... e depois murmurou a palavra "Perdão".
O enfermo cerrou o punho com raiva e então Catamount concluiu com energia:
- Ao sucumbir, Canova denunciou o seu assassino, mas pediu também que lhe perdoassem! Desde que entrei aqui, Mortimer, não tenho ouvido senão palavras de ódio! Fique sabendo que foi esse o supremo pensamento daquele que cobardemente abateram pelas costas! Ele já não
pensava em vendettas, mas sim na lei de Cristo, que só fala de amor e perdão!
- Nesse caso - objectou o velho - não compreendo a razão por que insistem em descobrir o assassino. Se Canova antecipadamente lhe perdoou...
- Se Canova perdoou - interveio então o sheriff
- não pode impedir, todavia, que a justiça dos homens proceda com todo o rigor! O criminoso matou e, por isso, deve expiar o seu crime. O ranger tem razão fazendo-lhes
ver o absurdo deste ódio que só pode trazer consigo o luto e a desgraça!
- É verdade! - concordou Kate. Se me tivessem escutado! A cólera e o ódio a nada conduzem! Se Deus não fosse -todo misericordioso, que poderíamos nós esperar dEle?
- Entretanto - atalhou Gus Topson - era bom que se acabasse depressa com este maldito inquérito!
- Antes de mais nada, é preciso encontrar Winston
- objectou Catamount - e penso que não se fará só isso!
- E Juan? - tornou o sheriff. - O seu testemunho torna-se imprescindível!
Dirigindo-se a seguir aos dois auxiliares, o representante da autoridade, declarou:
- Experimentem então trazer-me o índio! Não deve andar longe daqui!
Bellworth e Hellison aquiesceram, saindo em passo arrastado. Mostravam-se bastante aborrecidos por terem de continuar um trabalho que já lhes havia causado tantos
dissabores! Como invejavam agora o seu colega Philippini, de guarda aos cavalos, bem como Sunter, que ficara de vigilância aos três turbulentos Canova!
Logo que os dois auxiliares se afastaram, o tio Teodoro voltou-se para Catamount e Topson, que conversavam em voz baixa, e perguntou-lhes:
- Então, e nós? Suponho que nos deixarão descansar um pouco!
Hal não se mexia e continuava calado. De vez em quando o seu olhar pousava demoradamente em Sylvia, que esperava, imóvel, a um canto...
- É verdade!-concordou o ranger - Ainda não está tudo terminado... Mas esperemos...
O homem dos olhos claros olhou para a escada que há pouco havia subido, e que dava acesso ao sótão de Art, onde passara a noite anterior.
- Escute, sheriff, eu vou levar o prisioneiro lá para cima. Ficará ali à nossa ordem, até que tenhamos encontrado o irmão dele. Poderemos fazer depois uma acareação...
Gus Topson concordou. Começava a ter a cabeça pesada depois de tão prolongada vigília, e sentia absoluta necessidade de repousar e respirar um pouco.
- O. K.! - aprovou ele.-Você encarrega-se do rapaz?
- Imediatamente! Vigie por sua vez o velho!
Catamount aproximou-se do prisioneiro. Hal continuava impassível, parecendo resignar-se ao seu triste destino. Quanto a Sylvia, encontrava-se oculta na sombra, esforçando-se
por passar despercebida.
Kate Mortimer pegou numa vassoura, para juntar os destroços que juncavam o chão. Mas logo parou de varrer, quando viu o ranger inclinar-se para Hal e tomá-lo nos
seus braços robustos a fim de o levantar...
- Não se incomode -disse Catamount à anciã -. eu conheço bem o caminho!
Sem parecer embaraçado com o fardo, o homem dos olhos claros subiu os dezasseis degraus. Depois, com os ombros, empurrou a porta do acanhado refúgio e,
cautelosamente, depôs Hal sobre a cama onde pouco antes havia dormido.
- E agora, meu rapaz, só precisa de ter paciência! Estará aqui todo o tempo que for preciso. Mas nós havemos de descobrir a verdade e de desmascarar o culpado...
- Não sou eu! - protestou o prisioneiro.
- Assim o espero... por si e pela pequena!
Hal não pôde deixar de estremecer ao ouvir as últimas palavras do ranger, mas já este se afastava, fechando cuidadosamente a porta atrás de si.
O sheriff esperava ainda no mesmo sítio, e o tio Teodoro não havia falado mais.
Só agora o enfermo se aventurara a pedir, numa voz repassada de ironia:
- Se não vissem qualquer inconveniente, poderiam permitir que a minha cunhada me ajudasse a seguir para a cama, ali ao fundo! Não tenham receio! As minhas pobres
pernas não consentem que eu saia daqui e deite a correr como um coelho!
- Consinto nisso de boa vontade - concordou o sheriff, que sentia as pálpebras tornarem-se-lhe pesadas.
Sem dizer nada, Kate aproximou-se do cunhado, e, amparando-o, ajudou-o a seguir para a cama. Sempre a praguejar, desta vez contra o seu reumatismo, o tio Teodoro
despiu-se. Avistando a cama de Winston, que se encontrava desocupada, na outra extremidade da casa, Gus Topson voltou-se para Catamount e perguntou :
-. Hélio! Não lhe faz diferença que eu repouse um pouco? Até que Bellworth e Hellison voltem!
Enquanto falava, Topson acariciava com as pontas dos dedos o rosto dorido.
- Eles levam bastante tempo a encontrar o índio! Mas ele, com o braço ferido, não podia ter ido muito longe...
Todavia, o ranger pensou que, no seu terror de sofrer represálias por parte dos patrões, Juan se teria entrincheirado nalgum esconderijo só dele conhecido, a fim
de evitar aborrecidas complicações.
O sheriff dormitava quando os seus ajudantes voltaram...
- Então? - perguntou Catamount.
- Nada! - resmungou Bellworth - Absolutamente nada!
E Hellison rematou, mal disposto:
- O índio sumiu-se!
- Não poderemos fazer nada antes de amanhecer
- declarou Catamount. - Algumas horas de repouso são indispensáveis! Sunter terá de esperar!
- Sunter - resmungou Bellworth, passando a mão pelo queixo magoado - teve uma sorte! Gostaria bem de me encontrar no seu lugar!
Durante algum tempo, os três homens continuaram a conversar ao som dos roncos regulares do tio Teodoro, que tinha conseguido ser o primeiro a adormecer, apesar do
reumatismo. Entretidos, não viram uma sombra que furtivamente se introduzia na escada do sótão...
Sylvia, que permanecera pacientemente na sombra, aproveitou a distracção dos homens, que haviam esquecido a sua presença, para ir em socorro do prisioneiro. Num
gesto rápido, verificou que trazia à cintura a sua faca de cabo de chifre e, depois, nos bicos dos pés, atingiu os primeiros degraus.
A escada mantinha-se na penumbra. Por isso, a rapariga pôde rapidamente subi-la e alcançar a porta, da qual levantou o gancho. Sem ruído, empurrou-a. Quando Catamount
e os dois auxiliares se separaram para ir sentar-se a fim de descansarem o resto da noite, Sylvia havia desaparecido e Kate, que dormia ali ao pé, não dera também
pela sua passagem.
O ranger aconchegou-se no cadeirão ocupado pouco antes pelo enfermo, conservando o Colt ao alcance da mão e disposto a velar o resto da noite.
- Espera! - exclamou ele, de súbito, deitando em redor um rápido olhar. - A pequena safou-se!
Catamount pensou que Sylvia não quisera ficar, preferindo abandonar a habitação dos Mortimer, onde o ancião a acolhera tão rudemente. Não se preocupou, portanto,
mais com o caso, convencido de que às primeiras horas da manhã Winston e Juan seriam encontrados.
E as horas foram passando. Gus Topson não conseguia dormir, voltando-se e tornando a voltar-se na cama de Winston.
Ao raiar do dia, Catamount pôs-se a pé e, sem esperar mais, decidiu visitar o prisioneiro. Porém, logo que empurrou a porta, depois de ter subido a escada sem ruído,
deixou escapar uma exclamação. Sobre a cama encontrava-se uma forma imóvel, que ele identificou imediatamente:
- Você, Sylvia?!
Logo ao primeiro golpe de vista o ranger compreendeu o que se passara. O ar fresco da manhã penetrava através de uma fenda aberta no tecto, suficientemente larga
para deixar passar um homem. Junto do tosco leito onde se encontrava a rapariga, viam-se espalhados bocados de corda...
- Maldição! - praguejou Catamount. - Eu devia ter suspeitado!
O homem dos olhos claros censurava-se pela sua negligência a respeito da rapariga, mas agora já era demasiado tarde! Aproveitando a distracção dos ocupantes da casa,
Sylvia conseguira alcançar o refúgio onde Hal se encontrava e cortar as cordas que amarravam o prisioneiro...
O resto não foi mais do que uma simples brincadeira para o mais novo dos Mortimer: enfiou pelo buraco e, habilmente, deixou-se escorregar...
Catamount levantou por instantes o braço. A sua irritação era tal que sentiu vontade de bater na rapariga, infligindo-lhe o castigo que ela merecia.
Contudo, Sylvia continuava imóvel, parecendo desafiar o ranger com os seus grandes e belos olhos!
- Desgraçada, o que você fez! -censurou ele, furioso.
- Ele está inocente - respondeu tranquilamente a rapariga. - Eu sei que não foi ele quem matou o meu pai!
E, como Catamount continuasse a exprobrá-la, a jovem lançou-lhe em rosto:
- Que importa? Ele está livre! Agora pode fazer de mim o que entender!
XV
O ÍNDIO ACUSA
Sylvia ergueu-se, olhando fixamente o ranger. Estendeu-lhe os pulsos, como que a desafiá-lo a que lhe pusesse as algemas, mas Catamount limitou-se a encolher os
ombros:
- Você é uma criança! - disse simplesmente.
E, como ela se calasse, parecendo desconcertada, acrescentou:
- Favorecendo-lhe a evasão, você forneceu ao sheriff a clara prova da culpabilidade de Hal Mortimer!
- Hal está inocente! - protestou a jovem. Acredita que eu fosse capaz de proteger o assassino de meu pai?
- Tenho as melhores razões para pensar do mesmo modo - respondeu o homem dos olhos claros - mas, repito-lhe, você acaba de realizar uma falsa manobra, que, em vez
de conciliar as coisas, as complicará!
A voz grossa de Gus Topson veio interromper este diálogo começado no sótão.
- Hélio. Que se passa aí em cima?
- Siga-me! - limitou-se o ranger a dizer à rapariga.
- Vamos tentar resolver isto, mas não será fácil...
Dois minutos depois desceram à sala. O sheriff e os dois acólitos, ao verem aparecer a rapariga, não puderam conter uma exclamação de surpresa.
- E o filho de Mortimer? - perguntou Topson.
- Fugiu! Desapareceu! - informou, em resposta, Catamount - Esta peste aproveitou a nossa distracção para libertar Hal! Agora o figurão já deve estar longe!
Uma sonora praga acolheu esta declaração. Partia do tio Teodoro, que acabava de se levantar.
- By Jove - resmungou o enfermo - É inacreditável!
- É inacreditável, o quê ? - perguntou o sheriff, voltando-se.
- Que uma Canova tenha socorrido assim um Mortimer!
- Sinto dizê-lo - respondeu Gus Topson - mas, se o seu sobrinho foi de facto libertado pela filha de Canova, não é isso a mais evidente prova da sua culpabilidade?
Não se foge quando a consciência está tranquila...
- Acredita que eu tivesse procedido do mesmo modo se soubesse que me encontrava na presença do assassino de meu pai?
E, antes mesmo que o sheriff lhe pudesse responder, a rapariga continuou:
- Hal não é culpado, estou certa disso! Não foi ele quem disparou e estou pronto a jurá-lo sobre a cruz! Assim mo afirmou antes de partir...
A voz de Sylvia tremia, e os homens não puderam deixar de se sentir impressionados pelo tom de sinceridade com que ela se exprimia. Kate, que se aproximara, juntava
as mãos, não acreditando no que ouvia, enquanto o tio Teodoro proferia palavras sem nexo em que se misturavam o rancor e a estupefacção:
- Libertar Hal! Nas próprias barbas destes cavalheiros! A cadela!
A voz do sheriff veio interromper as vociferações do enfermo:
- Sylvia Canova, você vai ficar à disposição da Justiça. A sua atitude...
- Pouco me importa, se puder provar a inocência de Hal - atalhou a jovem -, e hei-de prová-la, tenho a certeza disso!
- Vão ver no pátio e no estábulo... talvez o encontrem...- disse Topson, dirigindo-se a Bellworth e a Hellison.
Os dois auxiliares saíram imediatamente. Todavia não levavam ilusões. Segundo tudo deixava prever, Hal, ao fugir, teria procurado principalmente pôr-se fora do alcance
de qualquer perseguição. A região era montanhosa e permitia-lhe encontrar numerosos esconderijos.
- vou preparar-lhes o almoço - ofereceu Kate -, não podem ficar assim sem tomar nada...
- Ora aí está uma coisa que não se recusa... -disse o sheriff.
Enquanto a senhora Mortimer, atarefada, partia os ovos numa saladeira para preparar uma omeleta com toucinho, Catamount e o sheriff conversavam em voz baixa.
Sylvia esperava, imóvel, a um canto, olhando frequentemente para a janela. O tio Teodoro continuava a resmungar e observava de soslaio a rapariga. Não parecia ainda
refeito da surpresa e dava voltas ao miolo para encontrar os motivos que a teriam levado a agir daquela maneira.
De repente um ruído de vozes fez estremecer os ocupantes da casa e, por momentos, o olhar da jovem tornou-se sombrio. Receava que Hal tivesse sido recapturado pelos
auxiliares, cujas vozes reconheceu. Sobressaltou-se quando a porta se abriu, empurrada por Bellworth. O adjunto entrou, seguido imediatamente de Hellison e arrastando
consigo um homem que se mostrava pouco apressado em segui-lo.
- Juan! O imundo! - resmungou o tio Teodoro, ao reconhecer o recém-chegado.
- Encontrámo-lo escondido na capoeira, onde se meteu ao anoitecer - explicou Bellworth.
O índio, que parecia pouco tranquilo, passeava a vista em torno dele, olhando desconfiado. Estava todo sujo e continuava de braço ao peito.
- Santa Virgem! Protege-me do velho!-gemeu ele. Desesperado, o Navajo indicava o enfermo, que o ameaçava com a muleta, mas Catamount apressou-se a intervir:
- Peço-lhe um pouco de calma! - ordenou-lhe. -
Este infeliz não lhe fez nenhum mal...
- É um mandrião! Um malandrete!
-Aproxima-te, amigo, e senta-te!
O ranger indicou-lhe um banco, e o índio obedeceu,
acabrunhado, olhando disfarçadamente para o velho,
que parecia inspirar-lhe um profundo terror.
- Primeiro quero ver o teu ferimento, depois conversaremos - disse o ranger. - Nós ainda não tivemos
tempo para tagarelar... Quando quisemos interrogar-te
desapareceste...
- Tive medo! - balbuciou o índio- Medo do velho... e dos outros!
- By Jove! É na verdade um coração de lebre o
que bate no teu peito! - não pôde deixar de observar
Catamount, a quem esta atitude do índio surpreendia.
Enquanto falava, o homem dos olhos claros ia tirando o penso, que ele próprio fizera após o acidente
de Juan. O sangue havia colado o pano e, então, voltando-se para Kate, pediu:
- Traga-me um pouco de água, se faz favor!
- Era bem melhor rebentar com essa imundície! Empesta! - praguejou o tio- Teodoro.
- Mais uma vez lhe recomendo, Mortimer, que se meta apenas no que lhe diz respeito!
Durante algum tempo Catamount entreteve-se a cuidar do seu protegido. Juan parecia agora mais
sossegado. Aceitou mesmo uma tortilla que lhe ofereceu Kate. Perto, Gus Topson e os dois ajudantes acenderam cada um o seu cigarro.
-Não encontrámos o outro-declarou Bellworth-, deve estar escondido na montanha.
- Receio que este assunto nos retenha aqui muito mais tempo do que supusemos - resmungou o sheriff.
Compungido, Gus Topson pensava no seu jardim abandonado, nos tomateiros, na vida tranquila que levava em Mountain City e intimamente praguejava contra o ranger,
cuja presença o obrigava a ficar, uma vez que de livre vontade lhe havia confiado tudo.
Juan acabou de comer o bolo de milho, e Catamount, a quem Kate entregara um bocado de pano, ligou solidamente o membro ferido do Navajo.
- E agora vais dizer-nos aquilo que sabes - declarou o ranger.
- Aquilo que eu sei? - repetiu o índio, abrindo os olhos de espanto.
- Vamos refrescar-te a memória... Escuta bem...
- e Catamount relembrou as condições em que havia descoberto o corpo de Gregório Canova e a carabina...
- Tu andavas pelas colinas com os carneiros... Viste, sem dúvida, qualquer coisa e poderás fornecer-nos informações que facilitem o nosso inquérito - concluiu o
homem dos olhos claros.
Juan, a princípio, pareceu hesitante. Então, o ranger inclinou-se para ele e, fixando-o bem nos olhos, disse:
- Graves suspeitas pesam sobre Hal Mortimer. Antes de mais nada, a carabina descoberta no pinhal de Cedar Green pertence-lhe...
Ao pronunciar estas palavras, Catamount exibiu a Winchester com as gravações na coronha, conforme lhe mostrara o mais novo dos Mortimer.
- Esta arma pertence com certeza a Hal? - interrogou ele.
-Sim, pertence a Hal - concordou o índio.
- Tu próprio podes verificar: faltam duas balas no carregador, que são as extraídas do cadáver de Gregório Canova!
O Navajo piscou o olho.
Damn! - vociferou então o tio Teodoro, que se sentia exasperado pela atenção que o ranger e os seus três companheiros prestavam nesse momento a Juan - Vão acreditar
no que lhes diz esse miserável?! Olhem que perdem o seu tempo!
- Caluda! - cortou o sheriff,
Mas Juan, que se recompusera em face da atitude dos quatro homens, endireitou-se e, após breves segungos de nova hesitação, afirmou:
- A carabina pertence de facto a Hal, mas não foi ele quem disparou...
Uma exclamação de júbilo acolheu esta declaração. Sylvia, que a princípio se deixara ficar a um canto, aproximava-se agora do grupo.
- Fala! - insistiu Catamount - Tu sabes quem atirou?
- Juan sabe... - afirmou o Navajo - Estava com o rebanho quando viu Winston sair de casa e descer rapidamente pela encosta. Winston levava uma carabina, mas, como
passou a alguns passos de Juan, ele pôde ver que era a Winchester do irmão...
- Isso é tudo mentira! - interveio o tio Teodoro, irritado. A carabina estava pendurada no cabide!
- Viu alguém levá-la? - interrogou bruscamente o ranger, voltando-se para o enfermo, que não podia dominar a sua agitação.
- Não prestei atenção a isso - concordou o velho -, já lhes disse...
- Hal declarou que havia deixado a Winchester pendurada - rematou Catamount -, e seu irmão pode muito bem tê-la levado, não acha?
E, como o tio Teodoro se mostrasse um pouco duvidoso, o homem dos olhos claros continuou:
- O seu sobrinho não chegou já a servir-se da arma do irmão?
O enfermo não respondeu, mas Kate, para quem o sheriff se havia voltado, informou:
- Levou-a algumas vezes...
- E ontem não viu ele levá-la?
- Não vi - afirmou a senhora Mortimer. - Nem eu! - corroborou o tio Teodoro.
- Em todo o caso, Juan viu bem, - repetiu o índio; que parecia ter agora reconquistado todo o seu sangue -frio.-Winston desceu com a carabina do irmão.Juan viu-o
atravessar os limites...
- Foi até aos domínios dos Canova? - quis saber Gus Topson.
O índio disse que sim com a cabeça, o que lhe valeu novas invectivas do enfermo:
-Ele mente! Toma cuidado, patife! Ajustaremos contas mais tarde!
- Basta de ameaças, Mortimer! - cortou o sheriff
- Deixe interrogar a testemunha!
- Linda testemunha! - troçou o tio Teodoro Uma língua viperina!
Mas Juan precisou:
- Eu vi Winston desaparecer no pinhal... parecia muito apressado!
- Isso não te causou admiração? - indagou Catamount.
- Muita! - concordou o Navajo - De ordinário, os meus patrões evitavam sempre aventurar-se para lá do muro de pedras. Não ignoravam que qualquer dos irmãos Canova,
ou mesmo o próprio pai, podiam esperá-los emboscados e abatê-los, declarando depois que o haviam feito em legítima defesa...
- Apesar disso, Winston entrou no bosque? - insistiu Gus Topson.
- Winston entrou no bosque, em passo resoluto e de carabina na mão... Juan viu-o desaparecer por entre as árvores... Um momento depois, Juan ouviu duas detonações.
- Tens bem a certeza?
- Juan ouviu dois tiros! - repetiu o Navajo, com energia. Intrigado, levantou-se... Foi então que Winston saiu do bosque, a correr.
- Winston saiu do bosque? - observou Hellison.
- Juan reparou então que ele já não trazia consigo a carabina. Durante uns instantes correu até ao muro, aonde chegou quase sem poder respirar. Depois de o ter escalado,
afastou-se precipitadamente, fazendo um longo desvio. Ele não passou junto de Juan, mas da mesma maneira Juan compreendeu tudo...
Durante momentos, as injúrias do tio Teodoro foram a única coisa que quebrou o silêncio. Catamount e os três companheiros olhavam-se... A importância das revelações
do índio parecia-lhes capital. Quanto a Sylvia, não podia deixar de sorrir:
- Como vêem Hal está inocente... Foi Winston quem atirou! - exclamou ela.
-. Não atirou mais Winston do que Hal - protestou o enfermo, que acompanhava as palavras com fortes pancadas da muleta no chão. Que atirassem daqui sobre os Canova
estava bem, mas eles bem sabiam ao que se expunham aventurando-se a entrar nos domínios desses bandidos!
- Hal não matou, tenho a certeza de que não matou!
Sylvia expandia desta forma a sua satisfação, enquanto Kate continuava imóvel e de feições contraídas. Fosse Hal ou Winston, era sempre um dos seus filhos quem estava
em causa...
- Eu não vi Winston levar a carabina de Hal!
limitou-se a afirmar mais uma vez.
- O importante agora é encontrar e prender Winston - declarou Catamount.
Gus Topson encolheu os ombros, excitado. Na verdade via-se bem que o ranger fazia tudo à sua vontade... Compreendia, no entanto, que não podia deixá-lo sozinho na
pista do assassino de Gregório Canova!
Mas o homem dos olhos claros prosseguiu, pondo termo ao interrogatório do Navajo, que lhe pareceu suficientemente convincente:
- Não temos um minuto a perder, sheriff, vamos partir os três à procura de Winston Mortimer! Deixaremos Bellworth de guarda aos moradores de Spine Hill!
Gus Topson protestou:
- Não pense nisso! Deixámos já Philipini com os cavalos, Sunter com os três irmãos Canova! Julga que nós, com Hellison...
- Não há necessidade de um regimento para se encontrar o rasto de Winston - respondeu Catamount Basta que vamos buscar os nossos cavalos, e depois veremos!
- São já dez horas! - praguejou o representante da autoridade, olhando o relógio - Nunca mais acabamos!
- Isto prolongar-se-á tanto mais quanto mais tempo perdermos em hesitações - respondeu tranquilamente o ranger - Temos toda a vantagem em precipitar os acontecimentos,
pois cada minuto perdido dá ao assassino maiores probabilidades de se nos escapar...
- Será preciso, então, que eu fique? - perguntou Bellworth.
O auxiliar parecia aborrecido com o papel que lhe destinavam. Era evidentemente pouco agradável ficar de guarda ao tio Teodoro, a Juan, a Kate e a Sylvia...
Para mais, o enfermo continuava irrequieto como um diabo.
- Mente! Esse cão mente vergonhosamente! - não cessava ele de repetir, dirigindo-se ao índio com gestos ameaçadores.
Bellworth não teve remédio senão resignar-se. Viu com tristeza o sheriff, o ranger e Helison ajustarem solidamente os seus cinturões de armas, certificarem-se do
bom funcionamento dos Colts, e deixarem, por fim, a habitação dos Mortimer...
- Paciência! - disse-lhe Topson, voltando-se ao sair da porta. - Havemos de fazer tudo o melhor que pudermos, e espero que não estejamos de volta muito tarde.
- vou servir-lhes o almoço - disse Kate, enquanto a porta se fechava pesadamente sobre os três - A omeleta já está pronta.
Um ladrar furioso acolheu a saída de Catamount e dos seus dois companheiros. Nestor e Ceres encontravam-se lá fora e farejavam os três homens com desconfiança.
- Para trás! - vociferou o sheriff, mimoseando Nestor com um pontapé.
Sem sequer pensar no almoço, desceram rapidamente ao longo da encosta. O sol já subia no céu, enchendo de luz os contrafortes da montanha. Em frente dos três homens
estendia-se agora o bárbaro panorama que servia de habitual campo de batalha aos Canova e aos Mortimer...
- Que pensa de tudo isto? - perguntou Topson, aproximando-se de Catamount.
- As declarações do índio parecem-me formais respondeu o ranger - mas enquanto não apanharmos Winston não podemos saber a verdade...
Em menos de dez minutos atingiram o caminho onde haviam deixado Sunter com os três irmãos Canova.
- Ninguém! Teriam eles também fugido?! exclamou o sheriff.
Todavia, pistas bastante nítidas deram-lhes a perceber que o ajudante do sheriff e os prisioneiros haviam provavelmente descido ao longo das montanhas.
- Sem dúvida que Sunter preferiu ir ao encontro de Philipini... -disse Hellison.
Continuaram a descer. Entretanto, um ruído de vozes chegou-lhes aos ouvidos... Então, intrigados, abalaram a correr.
XVI
WINSTON REAPARECE
À maneira que o tempo passava, Sunter cada vez se impacientava mais. Os três irmãos Canova não eram prisioneiros fáceis de vigiar. Não deixavam de praguejar, procurando
convencer o auxiliar da sua boa-fé e pedindo-lhe que lhes tirasse as algemas, mas Sunter conservou-se fiel às ordens recebidas.
- Quando voltará o sheriff? - não se cansava ele de repetir.
Mas a espera prolongava-se e não teve remédio senão partilhar com Rudi, Luiggi e Pietro as provisões que ainda restavam na sacola.
- Estendam-se e durmam! - aconselhou depois. Mas nenhum deles sentia o menor desejo de fechar
os olhos. Todos se encontravam ávidos de vingança, praguejando, contra o sheriff e contra Catamount, que lhes haviam apreendido as armas.
- Teria sido melhor deixarem-nos fazer justiça por nossas próprias mãos - dizia Rudi. - Vocês são todos estranhos à região e não podem, por isso, compreender..
Luiggi e Pietro faziam coro com o irmão, mas Sunter calou-se, pois tinha pressa de acabar com a conversa dos três recalcitrantes. Era certo que se encontrava armado,
mas seria difícil conservar-se constantemente alerta.
- Bem, vou ao encontro de Philipini - resmungou ele.
O auxiliar sabia que o seu camarada esperava a menos de uma milha, com os cavalos, e calculava que ele devia igualmente começar a impacientar-se.
- Vamos! Passem à frente!
Rudi e os irmãos levantaram-se a resmungar. Depois de sacudirem o entorpecimento, puseram-se em fila e começaram a descer a colina à frente de Sunter, que os continha
sob a ameaça do seu Colt.
Avançaram assim rapidamente, à claridade do luar. Os Canova nunca tentaram iludir o seu guarda. Então este, chegando a pouca distância do ponto onde Philipini se
encontrava, levou um dedo à boca e fez sibilar um rápido assobio. Respondeu-lhe sinal idêntico, seguido de um chamamento:
- Hélio! É o sheriff?
- Não! Sou o Sunter!
Philipini surgiu do denso bosque e num instante se juntou aos quatro.
-Que bela "caça))!-gracejou ele, indicando os Canova.
- Uns imprudentes! O chefe recomendou-me que os vigiasse, a fim de não entravarem a marcha do nosso inquérito - esclareceu o ajudante do sheriff.
- By Jove! Foram então estes que se embrulharam com os Mortimer?
- Foram.
- Começo a sentir comichão nos calcanhares! Então onde é essa rixa?
Sunter teve de lhe responder que não sabia absolutamente nada, que esperara, em vão, durante horas, o regresso do sheriff e dos companheiros e que, já aborrecido,
resolvera juntar-se ao colega.
- Os cavalos são sossegados como estátuas - disse
por sua vez Phílipini - Só o alazão do ranger mostra uma certa impaciência...
- Vamos até lá abaixo! Assim juntos não nos aborreceremos tanto.
Philipini voltou ao lugar onde estivera sozinho e que se encontrava juncado de pontas de cigarro. Aí, Sunter fez sentar os três prisioneiros junto de um pinheiro
e, depois, instalou-se também, soltando um suspiro de satisfação.
- Vai um cigarro? - ofereceu Philipini.
- Aceito da melhor vontade!
Dois minutos depois, os dois homens esqueciam os seus aborrecimentos a tagarelar, sem, todavia, descurarem a vigilância dos detidos. Rudi e os irmãos estenderam-se
sobre o musgo, tentando de vez em quando, desesperadamente, tirar as algemas.
- Isto é de exasperar! Os inocentes estão presos e os culpados é que andam à solta! - protestou por fim Rudi, interrompendo a conversa dos dois guardas.
- Se vocês tivessem ficado quietos em vez de procederem como doidos, estavam agora em Cedar Green junto da vossa mãe - respondeu Sunter.
-E enquanto vocês perdem o tempo nestas trapalhadas todas, os Mortimer podem correr a montanha!
- interveio logo Rudi.
- Não tenha receio... Se os Mortimer são culpados, pagarão caro o seu crime!
- Para a semana dos nove dias... - ironizou Pietro. Não tiveram outro remédio senão resignar-se e ter
paciência. De vez em quando erguiam-se e apuravam o ouvido na direcção de Spine Hill, procurando surpreender qualquer rumor, mas o silêncio prolongava-se, começando
a inquietá-los bastante. Sunter e Philipini, por seu turno, voltavam frequentes vezes a cabeça na direcção da residência dos Mortimer. A luz que se avistara ao anoitecer
havia-se extinguido.
- Que poderão eles estar lá a fazer? - resmungava Sunter - Nunca mais acabam!
Os motejos dos três Canova convenceram-nos de que eles se não decidiam a dormir. Por isso, viam-se obrigados a ficar alerta, no receio de uma fuga sempre possível.
Os três irmãos conheciam tão bem a região que podiam facilmente ludibriar os seus guardas, sempre embaraçados com os chaps e o equipamento, bastante incomodativo.
- Não pensem em fugir, nós temo-los debaixo de olho! - disse-lhes Philipini.
Os auxiliares estavam, assim, tão absorvidos com a vigilância dos Canova que não viram uma sombra que furtivamente passava perto dali. Enquanto esperavam, acocorados
debaixo dos ramos dos pinheiros, alguém se aproximara rastejando, detendo-se a menos de dez passos à esquerda, oculto pela espessa vegetação.
Era Winston Mortimer quem se encontrava ali.
Durante as horas que se seguiram à sua audaciosa fuga da habitação onde Catamount e o sheriff julgavam tê-lo às suas ordens, o fugitivo correra a bom correr. Os
vidros partidos haviam-lhe golpeado um braço, mas o receio de ser recapturado dera-lhe asas.
Evitando aproximar-se da habitação, que ele sabia ocupada pelo adversário, escapou-se até ao limite sul de Spine Hill.
Winston imobilizou-se observando com atenção o pequeno grupo, que à luz do luar lhe aparecia como em pleno dia. Philipini e Sunter encontravam-se de costas voltadas
para ele. Viu também os três prisioneiros e, ao notar-lhes as algemas em volta dos pulsos, um ligeiro sorriso lhe aflorou aos lábios grosseiros. Num rápido olhar,
o fugitivo estudou a situação. Algumas palavras que surpreendeu permitiram-lhe assegurar-se da posição dos Canova perante os auxiliares e, então, uma ideia lhe atravessou
o cérebro, como um relâmpago, ao descobrir,
a poucos passos dali, os cavalos, cujo cheiro ele já havia notado.
Desde logo Winston concebeu um audacioso plano: apoderar-se de um dos animais, pondo assim os cinco homens na impossibilidade de o alcançar. Contudo, um pormenor
o fez hesitar a princípio: para deixar Spine Hill estava desarmado! Custasse o que custasse, precisava de se decidir antes de tomar a ofensiva.
Caminhando apoiado- nas mãos e nos joelhos, aproximou-se um pouco mais dos dois guardas. Sunter era o que se encontrava mais próximo dele, na sombra. Winston descobriu
as coronhas dos dois Colts do auxiliar, que se viam a -sair dos coldres de coiro, castanho. Tentaria tudo para se apoderar dos revólveres sem despertar as suspeitas
do seu dono.
Rudi e os seus dois irmãos fecharam os olhos, afectando uma tranquilidade que estava longe de sossegar os seus guardas, e nem sequer suspeitavam da presença do seu
mortal inimigo ali tão perto.
Passaram-se alguns segundos. Winston calculou a distância que o separava ainda de Sunter; depois, tomando balanço, saltou; e, antes que o auxiliar e o colega tivessem
tempo de se voltar, apoderou-se dos dois Colts e, apontando-os na direcção dos cinco homens, ordenou:
- Todos de mãos no ar!
Abafadas exclamações se ouviram, mas o assaltante soube beneficiar da surpresa. Sem deixar de dirigir os revólveres contra o grupo, insistiu:
- Vamos, levantem-se!
A seguir, dirigindo-se aos Canova em ar de troça, saudou:
- Boa noite! Que belo conjunto, e como os meus dedos me pedem que envie estes bandidos para casa do diabo!
Rudi e os seus irmãos, naquele momento, nada responderam, pois bem sabiam que o irreconciliável adversário se mostraria impiedoso: leram-lhe nos olhos a sentença
de morte... Mas, por fim, o mais velho dos Canova ripostou-lhe com desprezo:
- Podes atirar, cobarde! Farias o mesmo que já fizeste ao nosso pai!
- Tome cuidado! Esquece-se de que ataca dois guardas no exercício das suas funções?! - Poderá custar-lhe caro e agravará bastante a sua posição neste caso
- interveio Sunter.
- Para isso era preciso que me deitassem a mão...
- motejou Winston - e não creio que seja hoje! A montanha é segura e amiga dos Mortimer... Saberá dar-me guarida por todo o tempo que for preciso...
Como Philipini e Sunter ficassem imóveis e silenciosos, ele acrescentou, em voz ainda mais ameaçadora:
- Desprendam os cinturões e deixem-nos cair aos pés!
Os auxiliares não tentaram sequer resistir, pois sabiam que se encontravam na presença de um adversário capaz de pôr em execução as suas ameaças e para quem a vida
de um homem pouco valia. Enquanto eles desafivelavam os cinturões, Winston ia-se aproximando, sem, no entanto, perder de vista os três Canova, embaraçados com as
algemas.
Três minutos depois, Winston apropriava-se daqueles objectos, agarrando-os com a mão esquerda, para, com a direita, não deixar de lhes apontar um dos Colts.
- E, agora, nem pio, hem! Olhem que eu sei atirar!
O seu audacioso plano dera resultado. Winston voltou-se, então, e foi até junto dos cavalos. Os seis animais não tinham sido amarrados. Avistando Mesquita, saltou-lhe
bruscamente para a sela, e, com voz estridente, espantou os restantes cavalos, que logo se afastaram
em correria. O alazão deu mostras de desagrado ao sentir o contacto do imprevisto cavaleiro, mas o fugitivo fustigou-o vigorosamente com os calcanhares nus.
- Maldição! - bradou Philipini - Ele escapa-se!
Livres agora da ameaça que o seu resoluto adversário fazia pesar sobre ambos, os dois guardas deitaram a correr. Winston, porém, havia já abalado num galope vertiginoso,
desaparecendo na noite prestes a findar, e lançando um feroz grito de guerra na direcção dos adversários vencidos.
- O maldito! Se eu pudesse adivinhar! - resmungou Sunter.
- Podem estar confiados que tudo corre pelo melhor! - troçou Rudi - Se não fossem estas malditas
"algemas, teríamos podido ajudá-los, e o bandido não se atreveria a tanto... E Luiggi rematou com aspereza: - Quando se apanha uma serpente esmaga-se-lhe a cabeça!
Estão a ver onde nos conduziram as vossas diligências?
E o mais velho dos Canova, exasperado, exclamou ainda:
- Espero que nos tirem agora estas cadeias!
- Quando o sheriff voltar; antes disso, não! Esperemos as suas ordens! - respondeu Sunter.
Despeitado pelo seu infortúnio, Sunter não acedeu aos desejos dos Canova.
- Ele levou o cavalo do ranger - interveio Philipini.
- Temos de procurar os outros - disse Sunter Espero que não tenham ido parar muito longe!
Philipini passou as primeiras horas da manhã em busca dos cavalos, que depois conduziu sozinho, cada um por sua vez, pois o seu colega não lhe pôde prestar o mínimo
auxílio, visto ser obrigado a guardar os prisioneiros,
que se mostravam cada vez mais recalcitrantes, ao vê-lo desarmado.
- É justo que deixemos por mais tempo a mãe sozinha a velar o corpo -do pai?! - protestou indignadamente Rudi.
- Se tivessem ficado tranquilamente em casa, era em Cedar Green que se encontrariam neste momento, mas agora terão de sofrer as consequências da vossa imprudência!
- respondeu o guarda.
Logo que Philipini acabou de reunir os cavalos, voltou-se para Sunter e observou-lhe:
- Não podemos esperar mais tempo. O sheriff tarda em voltar e nós temos de o avisar seja como for!
- Entretanto, Winston Mortimer tem tempo à vontade para se pôr definitivamente fora de alcance... troçou Rudi.
Depois, esforçando-se mais uma vez por convencer os dois guardas, acrescentou:
- Nós somos cinco, e há cinco cavalos. Deixem-nos montar convosco! Iremos imediatamente: à procura desse mariola! Per Bacco, o sol não se tornará a pôr sem que o tenhamos trazido, vivo ou morto!
Tal proposta não teve, porém, o condão de seduzir os dois auxiliares. Ambos, receavam assumir essa responsabilidade na ausência do chefe.
- Mais tarde, veremos - limitou-se a responder Sunter - Por agora, vamos a Spine Hill ter com o sheriff.
Os três Canova mostraram má cara.
- É impossível! Nós não entraremos em casa desses malvados com as algemas nos pulsos- protestou Rudi
- Ficariam bastante satisfeitos de nos ver assim humilhados...
Os dois guardas lastimaram bastante a ausência dos seus Colts, visto que, mesmo algemados, os três prisioneiros pareciam capazes de lhes opor tenaz resistência.
De repente tiveram um sobressalto. A pouca distância dali ouviram alguém chamar:
- Whoop!
Depressa se iluminaram os olhos de Sunter e Philipini.
- É o sheriff! - exclamou o primeiro.
Os dois homens sentiram-se aliviados de um grande peso. E a sua satisfação aumentou ao avistarem Gus Topson, Catamount e Hellison, que se aproximavam descendo rapidamente
a encosta.
Pelas caras mortificadas dos dois homens, e pela chacota que os três prisioneiros faziam, os recém-chegados compreenderam num relance que alguma coisa de
anormal se passara.
- Que aconteceu, afinal? - perguntou o sheriff.
- Madonna! Aconteceu simplesmente que deixaram aqui uns imbecis tão grandes como vocês... - respondeu em primeiro lugar Rudi. - Se tivéssemos os movimentos livres,
esse bandido do Mortimer não conseguiria...
- Como?! Vocês foram surpreendidos pelo Mortimer? - exclamou Gus Topson reparando na falta dos cinturões e dos Colts dos seus ajudantes.
- Como poderíamos supor que esse malvado vadiava por estas paragens? Pensávamos que o conservavam detido em Spine Hill - defendeu-se Philipini.
Sunter contou então como havia sido surpreendido por Winston, depois de se haver juntado ao seu colega. Gus Topson ficou aborrecido com este incidente e censurou
com aspereza:
- Se você estivesse só, Sunter, ainda vá, mas julgo que com Philipini...
- Em vez de perdermos tempo com discussões, parecia-me melhor que nos lançássemos já em perseguição do fugitivo - interveio Catamount.
Depois, reparando que Mesquita não se encontrava junto dos outros cavalos, mostrou-se admirado, mas Sunter apressou-se a esclarecê-lo em tom de lástima:
- Mortimer montou o seu cavalo e fugiu com ele! Levou também as nossas armas...
- Depressa! - incitou o homem dos olhos claros
- Empreste-me o cavalo de um dos seus guardas! Um deles que acompanhe os três Canova a Cedar Green. Os outros virão connosco. Depressa!
Sunter mostrou mau modo ao verificar que teria ainda de se ocupar dos prisioneiros, mas o rosto iluminou-se-lhe ao ouvir Gus Topson indicar o seu colega.
- Hellison, você irá lá abaixo! Catamount servir-se-á do cavalo de Bellworth até recuperar o alazão!
O guarda prontificou-se e, momentos depois, enquanto este empurrava adiante de si os três irmãos Canova, o ranger e os companheiros apressaram-se a montar.
- Ele meteu por ali! - disse Sunter, indicando o atalho que o fugitivo havia tomado na retirada.
- Preferiu, sem dúvida, ficar pelas encostas - afirmou então Catamount - O terreno elevado é impraticável para um cavalo lançado em corrida!
- Sendo assim, menos trabalho teremos em encontrá-lo -aventurou Gus Topson.
Sem mais palavras e esporeando os cavalos com força, lançaram-se em perseguição do fugitivo. Montado no cavalo baio de Bellworth, o ranger avançou a galope. Tinha
pressa de encontrar Mesquita e de alcançar o fugitivo, que havia já ganho um bom avanço sobre os seus perseguidores...
XVII
O ESCONDERIJO DE RED BLUFF
Ouviu-se um ruído insólito. Alarmado, Hal ergueu-se do chão de musgo seco onde repousava havia instantes. Ligeiramente inclinado para a frente, o rapaz apurava o
ouvido, retendo a respiração.
Mas o seu rosto desanuviou-se de repente ao ver surgir nos altos troncos de uma árvore uma pequena mancha ruiva.
- Um esquilo! - exclamou, subitamente aliviado de um grande peso.
Hal encontrava-se esgotado pela corrida que fizera durante a noite, desde a sua fuga de Spine Hill. Mas o abatimento não o podia fazer esquecer os dramáticos acontecimentos
passados naquelas últimas horas.
O jovem não estava ainda refeito da surpresa que lhe causara a entrada de Sylvia no sótão que lhe servia de prisão. Enquanto, fortemente amarrado, se encontrava
à completa mercê do ranger e do sheriff, a sua libertadora, aproveitando a distracção momentânea dos guardas, havia-se escapado sorrateiramente para junto dele.
A princípio julgou-se vítima de um sonho, mas a rapariga cortou com rapidez as cordas que lhe paralisavam os movimentos. Depois apressaram-se ambos a abrir no tecto
uma larga fenda por onde se pudesse passar. Um breve abraço, e o mais novo dos Mortimer desapareceu rapidamente.
Nestor e Ceres, que vagueavam no pátio, farejaram e, reconhecendo nele um dos donos, não deram sinal, dispondo-se mesmo a segui-lo; todavia, Hal repeliu-os.
Receava de facto que os animais lhe trouxessem desagradáveis complicações, além de que preferia conservar completa liberdade de movimentos.
Correndo a bom correr, sem procurar sequer reflectir, dominado apenas pelo instinto de conservação e de salvaguarda, Hal lançou-se pelas encostas, descendo-as até
ficar extenuado. Procurava, acima de tudo, pôr entre si e os adversários a maior distância possível, pois bem sabia que, apenas fosse dado o alarme, a caça ao homem
tornar-se-ia feroz e implacável.
O fugitivo percorreu assim mais de duas milhas durante a noite, correndo de árvore para árvore, de rocha para rocha, e estremecendo sempre ao menor ruído. Há muito
já que havia ultrapassado o muro de pedra solta que marcava o limite de Spine Hill quando parou, esgotado pelo incessante esforço que fora obrigado a fazer.
Se nesse momento os seus perseguidores aparecessem não teriam trabalho em capturar o infeliz. Hal sentia-se completamente exausto. Havia ido além do limite das forças
humanas, e grossas bagas de suor perlavam-lhe as fontes correndo ao longo do seu rosto cansado.
Por felicidade, o silêncio e a quietude rodeavam-no, e o fugitivo pôde então descansar uns momentos para se refazer. Quando se sentiu melhor, procurou orientar-se.
Estendia-se na sua frente, e a pouca distância, a mancha sombria dos cedros e pinheiros de Cedar Green. Já se vê que não podia procurar asilo em casa dos Canova!
Então, lançou um olhar ansioso em redor, e murmurou quase imperceptivelmente:
- O esconderijo de Red Bluff!
Sim, Red Bluff era efectivamente o sítio próprio para se refugiar; um canto perdido nas montanhas, a
menos de duas milhas dos Reservatórios e dos cumes das Montanhas Sacramento. Os Mortimer haviam aí organizado uma espécie de reduto, onde armazenavam alguns víveres
para quando se afastavam de Spine Hill.
Desejoso de se colocar o mais rapidamente possível fora do alcance, Hal, animado, por aquela prolongada tranquilidade, pôs-se de novo em marcha. Conhecia admiravelmente
toda a região. As árvores e as rochas espalhavam-se em grande número pelas encostas, e, assim, também num caso de alarme podia encontrar abrigo que lhe permitisse
subtrair-se aos olhos dos adversários.
Durante mais de duas horas o fugitivo errou pelos contrafortes da montanha. Parava de vez em quando para se certificar de que não era seguido, mas os únicos ruídos
que surpreendia, fazendo-o estremecer, eram apenas provocados pelos pássaros ou outros animais que habitavam o bosque.
Ainda não se distinguia a alvorada no horizonte quando Hal atingiu finalmente Red Bluff. Também ali tudo parecia calmo. Escondida entre as árvores, a cabana de troncos,
que havia sido edificada outrora pelo tio Teodoro, dissimulava-se tão bem que era preciso conhecer a sua existência para a encontrar.
Num último esforço, Hal atingiu o refúgio. com o ombro, deu um forte empurrão na pesada prancha de carvalho que servia de porta, deixando-se depois cair sobre a
cobertura que se estendia no chão de terra batida.
Por quanto tempo se conservou assim imóvel, vencido pela fadiga, o mais novo dos Mortimer? Não. podia fazer ideia, pois não tinha consigo o relógio, mas, quando
despertou, o sol subia já no horizonte.
Antes de mais nada, ergueu o tronco e ficou quieto à escuta. A calma que o rodeava depressa o tranquilizou.
O seu estômago, entretanto, reclamava alimento. Então, estendendo os braços cansados, diligenciou encontrar no buraco que servia de despensa quaisquer víveres que
lhe permitissem reconfortar-se e recobrar forças. Alguns biscoitos, "pemmican" e caixas de conservas acumulavam-se no fundo do esconderijo. O fugitivo escolheu dois
biscoitos e uma lata de sardinhas, que abriu com uma faca que se encontrava também ao seu alcance. Depois, sem esperar mais, pôs-se a comer. O azeite corria-lhe
pelo queixo, mas ele nem dava por isso. Tinha fome e durante algum tempo, no refúgio, apenas se ouviu O ruído dos seus maxilares, que mastigavam sem descanso.
Depois de reconfortado, parou, não sem resmungar.
Agora tinha sede, mas ali perto, por entre os pinheiros, corria um regato. Arrancando-se ao entorpecimento que o paralisava ainda, saiu da cabana e, caminhando num
passo pesado, atingiu o ténue fio de água, cujas margens se mostravam atapetadas de uma espessa e ruiva camada de agulhas de pinheiros.
Depois de se ter certificado, num rápido olhar, de que tudo continuava em sossego, ajoelhou-se e deixou correr para a mão em concha a água límpida, que bebeu sofregamente.
Depressa experimentou um profundo alívio. O fogo que lhe devorava a garganta abrandou de intensidade. Estendeu-se por fim sobre o musgo, soltando um suspiro de satisfação.
Depois cruzou as mãos sob a nuca e ficou a contemplar com prazer os raios solares que, ao passarem por entre as ramadas das árvores, desenhavam caprichosamente,
em seu redor, grandes círculos luminosos.
Foi precisamente nesse momento que o esquilo lhe causou uma singular emoção. Depressa despertou daquele doce alheamento. Os seus pensamentos tornaram-se mais coerentes
e pôde encarar a situação.
Uma coisa havia, porém, que era certa: ele não
havia assassinado Gregório Canova, estava inocente do crime de que o acusavam. Além disso, dados os sentimentos que nutria por Sylvia, poderia ele, com esse crime
tão inútil como odioso, transformar em abismo intransponível o fosso que separava já os Canova dos Mortimer? Não, Hal nada tinha de que se censurar e perguntava
a si próprio por que razão a Winchester que lhe dera seu irmão Art fora descoberta perto do corpo de Canova por Catamount...
Perseguido por tantas interrogações, o jovem não tardou em suspeitar de Winston. Não ignorava que o irmão mais velho se servia algumas vezes da sua carabina, por
ser mais cómoda e de modelo mais recente.
Os dois irmãos não se encontravam juntos no momento exacto em que se desenrolara a tragédia. Hal conhecia o ódio feroz que o colosso votava aos habitantes de Cedar
Green e algumas vezes ouviu Winston ameaçar de morte os Canova dizendo que essa vil geração devia ser riscada do número dos vivos.
O mais novo dos Mortimer lastimava deveras a situação, que ocasionara, antes de mais nada, a partida de Art. Este recusara-se a viver nesse ambiente de ódio e vendetta,
indo alistar-se no Texas Rangers, e a lembrança do seu triste fim mais fazia aumentar a amargura de Hal e a severa censura que intimamente dirigia ao irmão mais
velho e ao tio Teodoro. O ancião, ainda mais irredutível do que o sobrinho, se não estivesse impossibilitado de sair de Spine Hill, seria bem capaz de se emboscar
para abater o chefe da tribo adversa.
Um erro funesto e uma deplorável estupidez, esta guerra entre vizinhos! De coração oprimido, Hal entrevia agora as consequências que adviriam da captura de Winston.
Se o sheriff e principalmente o ranger pudessem provar a culpabilidade do mais velho dos Mortimer, isso bastaria para ter de -renunciar para sempre
a todas as esperanças que havia acariciado a respeito de Sylvia.
Sylvia! O fugitivo não podia deixar de pronunciar esse nome querido, e de evocar a imagem daquela que amava! Porque ele amava a rapariga selvagem desde que se encontraram
pela primeira vez. O sonho, que a princípio lhe parecera impossível, foi pouco a pouco tomando corpo no seu espírito febricitante. Por que não desposaria ele a rapariga?
Por que não havia o ódio de dar lugar ao amor? Por que não haviam ambos de se tornar responsáveis por um novo e tão desejado estado de coisas?
Hal evocava os frequentes encontros com Sylvia ao acaso pelos montes, nos limites dos dois domínios, evitando cuidadosamente despertar as suspeitas dos parentes.
Tanto os Canova como os Mortimer não deixariam de se agastar ao máximo se tivessem conhecimento dessa situação.
Parecia-lhe ouvir ainda a voz da rapariga lamentando, o ódio entre as duas famílias e mostrando desejos de paz e concórdia!
Ele próprio estava inteiramente de acordo com isso
- e então agora estaria tudo para sempre comprometido?
Tendo Winston abatido Gregório Canova, ficaria Sylvia perdida para si? Ou, então, se persistissem em realizar, apesar de tudo, o seu belo sonho, seriam forçados
a fugir do país que tanto amavam para irem viver como párias num país estranho?
Estas interrogações apresentavam-se constantemente ao espírito do fugitivo. Se devia a liberdade à corajosa intervenção daquela que amava, nem por isso a situação
se tornava mais clara. Ia ser perseguido como um bandido, agora que tinha plena consciência do crime de que o acusavam.
Hal não alimentava qualquer ilusão. Não ignorava que, se desfrutava nesse momento de uma fugaz segurança em Red Bluff, teria ainda de defrontar um adversário de
categoria! Pouco se incomodava com Gus Topson e os seus ajudantes; no entanto, apreciava no seu justo valor o homem dos olhos claros. Algumas palavras que haviam
trocado durante a breve passagem de Catamount por Spine Hill bastaram-lhe para perceber que não se tratava de um adversário vulgar. Se o ranger prometera descobrir
e prender o assassino de Gregório Canova, iria certamente até ao fim!
O fugitivo parecia ver já Winston preso e algemado. Julgou então preferível deixar pairar o equívoco que o fazia passar pelo culpado. Entretanto, seu irmão teria,
sem dúvida, oportunidade de se pôr a salvo, deixando a região. Era a solução que lhe parecia melhor em semelhante ocorrência.
O mais novo dos Mortimer deixava-se assim levar ao acaso da sua caprichosa imaginação, quando de repente se empertigou e, estendendo-se ao comprido, colou o ouvido
contra o solo.
Hal, como Winston, era um hábil descobridor de pistas, acostumado a todos os ardis do bosque, e da montanha. De repente ouviu um trote de cavalo que se aproximava
cada vez mais.
- Um cavaleiro! - balbuciou, erguendo-se, com o rosto crispado pela angústia.
Não duvidava de que seria o ranger ou um dos ajudantes do sheriff, vindos no seu encalço. Segundo tudo deixava prever, haviam dado pela sua fuga de Spine Hill, lançando-se
logo em sua perseguição.
O trote que se aproximava provava-lhe que o adversário encontrara a boa pista e que dentro de momentos estaria em Red Bluff... E então... Então! Hal mediu bem a
sua precária situação! O esconderijo continha víveres, peles de animais e mantas, mas, à parte as
facas e um machado, não existia ali escondida qualquer arma. O fugitivo na sua precipitada fuga não pensou sequer em procurar um Colt ou uma carabina. Para tanto
teria de se aventurar a entrar no compartimento principal da habitação, expondo-se a ser surpreendido e recapturado.
Passados momentos, o mais novo dos Mortimer pôsse de novo em pé, depois tornou a deitar-se para trás, recostando-se nas árvores que dissimulavam frondosamente o
refúgio.
Lançou um rápido olhar para o interior da cabana e, avistando uma faca de mato com cabo de chifre, agarrou-a com a mão crispada. Depois, escondeu-a atrás dos ramos
mais baixos de um pinheiro e esperou, preparado para qualquer eventualidade.
O cavaleiro aproximava-se agora e picava, sem hesitação alguma, na direcção de Red Bluff. Hal ergueu-se um pouco e, avistando um soberbo alazão, sentiu um súbito
estremecimento.
- O ranger! - murmurou num gemido, segurando ainda com mais força o cabo da sua arma.
Era, sem dúvida alguma, o cavalo do ranger, mas não viu Catamount, e Hal não pôde reprimir uma exclamação de surpresa ao reconhecer o homem que saltava da sela tão
pesadamente.
- Winston!
Não havia dúvida alguma! Era bem o mais velho dos Mortimer que chegava, depois de ter percorrido, de uma só caminhada, a distância que separava aquele esconderijo
de Spine Hill. Perseguido de perto pelos seus adversários, ele pensou, como o seu irmão mais novo, em esconder-se no refúgio.
Abandonando Mesquita a pouca distância, Winston saltou o regato e precipitou-se para a cabana.
Mas, apenas dera uns passos, esbarrou com Hal, que fora ao seu encontro.
- Tu?! - exclamou, esbaforido.
- Deus do Céu! Que se passa? Por que vieste? Hal enchia de perguntas o recém-vindo, mas Wins-
ton tinha dificuldade em retomar a respiração.
- O ranger... O sheriff.... - murmurou sem chegar a respirar.
- E então? - insistiu Hal, que apertava na mão nervosa o pulso do recém-chegado.
- Atrás de mim... Seguindo-me o rastro... Dentro de minutos estarão aqui!
O jovem depressa compreendeu toda a gravidade da situação; no seu desejo de escapar aos perseguidores, Winston havia-os conduzido atrás de si até Red Bluff! Na sua
precipitação, arrastara-os precisamente consigo para o esconderijo onde Hal julgou poder desfrutar de toda a tranquilidade.
Por momentos, os dois irmãos permaneceram em frente um do outro - de pés descalços, cabelos desgrenhados, roupas rasgadas e cobertas de poeira, Winston não conseguia
dominar o seu desassossego.
- Espera! Tens aqui um Colt! - disse ao irmão, entregando-lhe um dos revólveres que havia tirado aos guardas.
Hal agarrou apressadamente na arma, reparando no cinturão que Winston afivelara à cintura antes de montar Mesquita.
- Ficarão talvez com a nossa pele, mas hão-de pagá-la bem caro! - resmungou ele surdamente.
Fez-se a seguir um breve silêncio. Hal nada mais
ouvia além da respiração apressada do irmão, que se
havia recostado ao tronco de uma árvore, imóvel,
tendo no rosto crispado uma expressão de ódio feroz.
Então, o mais novo não pôde deixar conter por mais
tempo a pergunta que lhe queimava os lábios:
-Winston... Por que mataste Gregório Canova?
A resposta não se fez esperar, saiu prontamente:
- Eu não matei esse verme! Acredita-me! Se o tivesse feito, não sentiria qualquer remorso, mas tu devias conhecer-me bem para compreenderes que não tenho o hábito
de abater ninguém cobardemente pelas costas! Quando quero defrontar-me costumo partilhar os riscos! Ao mais forte e mais esperto é que pertence a vitória, e não-
ao mais cobarde!
E, como Hal se calasse, interdito, o fugitivo continuou:
- Não compreendo como tu pudeste supor-me assim... Cá por mim, sabia perfeitamente que não podias ser tu...
- Então- disse Hal num murmúrio - se não foste tu nem eu, quem teria sido?
- com certeza que não foi o tio Teodoro!- chacoteou o colosso - Ele não é capaz de ir por seu pé ao bosque de Cedar Green!
O rapaz preparava-se para continuar a interrogá-lo mais, tão profunda era a sua surpresa, quando Winston o deteve, com um gesto:
- Cala-te, maldito tagarela! - resmungou surdamente. - Não vês que já aí vêm?
com efeito, ouvia-se um cavalgar abafado e, cada vez mais próximo. Catamount, o- sheriff e os dois auxiliares haviam encontrado sem grande custo, a pista do fugitivo
e aproximavam-se a galope.
Os quatro cavaleiros faziam trotar as montadas sob um sol ardente, e Gus Topson protestava por vezes contra o andamento veloz com que o homem dos olhos claros conduzia
o cavalo.
- Mais devagar! - aventurava ele-Mais devagar! Mas Catamount continuava no mesmo trote, picando
a sua montada de empréstimo, sem se preocupar com o sheriff, atrasado alguns passos, nem com Sunter e Philipini, que nem sequer se viam.
Quando o ranger chegou à distância de uma centena de passos da cabana, cuja existência ignorava, surpreendeu um relincho.
- Mesquita! - exclamou, ao reconhecer o seu fiel companheiro.
O alazão, que Winston abandonara alguns minutos antes, aparecia por entre as árvores e aproximava-se do dono, que tão oportunamente encontrava.
Sem pensar sequer que nesse momento podia servir de alvo àquele que tão tenazmente perseguia, Catamount desmontou rapidamente e foi ao encontro de Mesquita. Mal
começara a acariciá-lo quando soou uma detonação. Atravessado de lado a lado por uma bala, o stetson do ranger rolou até à borda do regato.
- Deite-se!gritou-lhe o sheriff.
O ranger não havia esperado por esta advertência para se deitar por terra.
Por sua vez, Gus Topson, Sunter e Philipini abandonavam as suas montadas e tomavam a mesma precaução.
Houve um curto momento de silêncio, no decorrer do qual os cavalos se dispersaram enquanto os cavaleiros continuaram estendidos e de Colt na mão, prontos a atirar
ao primeiro vulto suspeito que avistassem.
Junto do esconderijo, Winston e Hal, bem emboscados, aguardavam. Foi o colosso quem decidiu disparar sobre o ranger, e agora esperava, ajoelhado por detrás do tronco
de um pinheiro, procurando em vão alvejar os seus quatro perseguidores. A três passos à esquerda, Hal ficara estendido, de Colt em punho. Por fim ouviu-se a voz
clara de Catamount:
- Hélio, Mortimer! - Acabemos com esta comédia! Renda-se! Bem sabe que, resistindo desta maneira, não faz mais do que agravar a sua situação! Seria melhor explicar-se
francamente!
Uma surda praga foi a única resposta que o ranger obteve, seguida logo de várias detonações.
Incapaz de dominar a sua impaciência, Winston disparava contra os seus adversários.
As balas passaram a pouca distância destes, sem lhes causar qualquer dano, e foram cravar-se nas árvores.
- O nosso homem enerva-se! - murmurou Catamount - É bom sinal!
Fez-se novo silêncio. Os adversários procuravam surpreender-se mutuamente, mas nada mais se ouvia além do ruído das mandíbulas dos cavalos mastigando a erva que
crescia à beira do regato, do tilintar dos freios, ou ainda do desagradável grito do galo, que, assustado com as detonações e a presença dos homens, saltava de ramo
em ramo.
Assim decorreram dez minutos. Catamount, saindo por fim da sua imobilidade, rastejou ao encontro de Gus Topson, que, estendido ao comprido no musgo, continuava à
escuta.
- Hélio, sheriff! - murmurou num sopro.
O interpelado voltou-se mostrando o rosto todo coberto de suor.
- Que quer? - perguntou ele em tom aborrecido. Usando de mil precauções, o homem dos olhos claros
conseguiu estender-se à direita do representante da autoridade.
- Se continuamos a esperar assim - segredou-lhe ao ouvido - esta situação eterniza-se. É preciso acabar com isto, custe o que custar!
- O rapaz é esperto - objectou Gus Topson, - e não sinto o menor desejo de lhe servir também de alvo!
com um dedo, o sheriff apontou para o chapéu de Catamount, mas o ranger insistiu:
- Precisamos de manobrar! com os seus ajudantes, o senhor vai diligenciar distrair a atenção desse
espertalhão... Entretanto, eu experimento surpreendê-lo pela retaguarda...
Gus Topson abanou a cabeça em ar de dúvida.
- Acredita que dê resultado?
- Estou certo disso! -afirmou Catamount com convicção.
XVIII
A MURRO
O ranger ainda trocou algumas palavras com o sheriff; depois, rastejando sempre, retrocedeu até ao regato e acocorou-se ao fundo da vala por onde corria o delgado
fio de água. Ali, estudou minuciosamente o local. O ribeiro, bastante profundo nalguns pontos, prolongava-se e contornava Red Bluff. Então, Catamount pensou que,
prosseguindo no caminho e passando habilmente por entre os acidentes do terreno, conseguiria atingir um ponto situado mesmo por trás do atirador.
Depois de ter feito um sinal ao sheriff e aos dois ajudantes, pôs-se a caminhar ao longo do pequeno regato que era ali ainda bastante largo para que ele pudesse
atravessá-lo.
Enquanto o homem dos olhos claros ia seguindo lentamente, mas com segurança, algumas detonações se ouviram com intermitências. Obedecendo ao plano do seu audacioso
companheiro, Topson, Sunter e Philipini atiravam na direcção do local onde lhes parecia estar emboscado Winston Mortimer. Diligenciavam reter assim a atenção do
perigoso atirador.
O colosso começava já a impacientar-se. Todavia, Hal mantinha-se junto dele em silêncio. Ainda que estivesse também armado, o rapaz não procurou servir-se do Colt.
os minutos iam-se passando assim enervantes, intermináveis.
- Malditos sejam esses diabos! - resmungou por fim Winston. - Desejava sair daqui, mas parece-me que eles querem ficar ali toda a vida à espera!
- Cautela! - objectou Hal - Se tu te internares para além do maciço de árvores que circunda Red Bluff, estás perdido! Eles não terão dificuldade em te abater!
- Damn! Vamos, então, ficar aqui até à noite!?
- Sim, à noite teremos mais probabilidades de nos escapar. Neste momento é impossível.
Novos tiros obrigaram os dois irmãos a esconder-se ainda mais. Winston, que carregara de novo o revólver, alvejou com fúria o ponto onde Topson e os ajudantes se
encontravam estendidos.
- Para que serve estragar assim cartuchos? - exclamou Hal.
- Irritam-me, que queres?! - praguejou o colosso, estendendo raivosamente um punho - Não costumo esperar! Além disso, não me conformo... Gostaria de ter abatido
esse maldito ranger. Devia ter apontado um pouco mais abaixo!
Hal não respondeu, mas congratulava-se com o malogro de que se lamentava seu irmão, porque mesmo que Winston estivesse inocente da morte de Gregório Canova a sua
situação tornar-se-ia então bastante grave se abatesse um ranger em exercício das suas funções. Além disso, e apesar das circunstâncias que os colocavam em campos
opostos, o jovem não podia deixar de sentir uma irresistível simpatia pelo homem dos olhos claros. Teve a impressão de haver encontrado nele um protector em vez
de um acusador, ao ser interrogado em Spine Hill. Se Gus Topson lhe parecia um fantoche, já não pensava o mesmo de Catamount, cuja audácia apreciava... Convencia-se
de que o ranger não se encontrava inactivo naquele momento... As tréguas de que desfrutava seriam de curta duração.
Apesar de tudo, Hal desejava sinceramente a rápida conclusão do tenebroso caso, que se rompesse enfim o véu de mistério que o envolvia, deixando brilhar a luz da
verdade.
- Já que estás inocente - aventurou ele por fim dirigindo-se ao irmão - parecia-me melhor que te rendesses !
- Render-me?! - protestou o colosso, admirado God Almighty! Perdeste a cabeça! Ou será água que corre nas tuas veias?
- Certamente que não, mas acho que se impõe uma explicação franca, e não é abalando assim que se consegue descobrir toda a verdade!
- És então pela capitulação? - objectou iradamente Winston.
- Eu não sou pela capitulação, sou pela justiça!
- A justiça!
O mais velho dos Mortimer não se conteve que não risse das palavras que lhe dirigia o irmão e que estavam em contradição absoluta com as suas opiniões e as do irredutível
tio Teodoro.
- Acredita-me - insistia Hal com veemência - se resistimos, não conseguiremos mais do que convencer os adversários da nossa culpabilidade! Nada será melhor que uma
franca e leal explicação!
- Uma explicação!? Tu bem sabes que eu não conheço senão a lei do mais forte!
- E é precisamente perante ela que tem agora de se curvar! - ordenou uma voz enérgica.
Os dois irmãos estremeceram e voltaram-se ao mesmo tempo.
Um homem acabava de surgir alguns passos atrás dlees. O ranger, tendo aproveitado o fato de a atenção do colosso se fixar apenas no sheriff e nos seus ajudantes,
conseguira concluir o seu plano com feliz resultado.
Agora, empunhando os dois Colts, ele aparecia, de cabeça descoberta, ameaçando os dois irmãos, a quem a sua inesperada presença havia petrificado.
Todavia, o mais velho quis resistir e ainda apontou um Colt ao recém-vindo, mas este declarou-lhe sem pestanejar:
- Nada de imprudências, Mortimer! Bem sabe que eu serei o primeiro! Então, para que há-de agravar a situação! Não acha que ela já é suficientemente delicada?
- Maldito seja!
Winston compreendeu que estava tudo perdido. com efeito, acabavam de intervir nesse momento Gus Topson, Sunter e Philipini, apontando os seus Colts aos dois irmãos
e prontos também a disparar ao menor gesto de resistência.
- Vamos! Ambos de mãos no ar! - ordenou Catamount - Deixem cair as armas aos pés!
Hal obedeceu sem protestar. Winston esperou ainda alguns instantes; depois, proferindo uma praga, abriu a mão. O Colt foi cair a dois passos, sobre o musgo.
- Desta vez apanhámos os dois figurões! Tinham-se escapado e conseguiram reunir-se! Prova flagrante de que são cúmplices! - chacoteou o sheriff.
Winston teve um mau sorriso e resmungou: - Hélio! Agora fala assim, sheriff, porque se encontra do lado seguro, mas há pouco não se atreveu a fazê-lo enquanto eu
tive as minhas armas! É o costume...
Depois, mostrando má cara a Sunter e a Philipini, que se aproximavam, encantados por poderem tirar a desforra, o colosso vociferou:
- Cobardes! São todos uns cobardes! Fechando os punhos raivosamente, continuou por
entre dentes:
- Não se fariam tão espertos se tivessem de defrontar-me
com armas iguais! Então nenhum se atreveria a agarrar Winston Mortimer!
- Engana-se redondamente! Já que falou assim, vou eu próprio provar-lhe que não hesitarei em defrontar-me com armas iguais.
Catamount, que avançara alguns passos, fitava agora Winston.
O colosso respondeu com ironia:
- Assim está bem! Mas será então a murro!
- A murro, se quiser...
Gus Topson não pôde deixar de intervir e, voltando-se para o homem dos olhos claros, observou-lhe:
- Vejamos, isso não é com certeza a sério! Esse miserável foi surpreendido em flagrante rebeldia contra os representantes da autoridade. Fez tudo para impedir o
inquérito, e contra ele e seu irmão há fortes suspeitas. Não vai agora prender-se com essas fanfarronadas...
O ranger não respondeu logo, mas surpreendeu o clarão de ironia que cintilava no olhar do colosso.
- Naturalmente, vão arranjar um subterfúgio! -? zombou ele.
- Engana-se, Mortimer, eu não sou dos que recuam. E, já que deseja bater-se a murro, iremos regular as nossas contas em campo livre! ;
- É uma loucura! - protestou de novo Gus Topson :.
- ele vai deitá-lo abaixo ao primeiro murro. Esse bruto ; é forte como um toiro! ;
Sunter e Philipini, por sua vez, procuraram também dissuadir o ranger, mas Catamount estava absolutamente decidido.
- Desafivele o cinto e tire a camisa.
Depois, como Winston deitasse um olhar de revés, o homem dos olhos claros precisou:
- Atenção! Eu aceito bater-me, mas exijo que o
combate seja leal. Fica, por isso, avisado de que, ao menor gesto simulado que você faça, o sheriff e os seus ajudantes encarregar-se-ão de o chamar à ordem!
- Abatê-lo-emos como a um animal feroz! - prometeu Philipini.
Hal nunca mais se mexeu. De mãos levantadas, sentia nas costas o cano do revólver de Sunter, e não pensava sequer em fugir. Dominando o melhor que podia a sua emoção,
viu seu irmão preparar-se para a luta, enquanto Catamount desafivelava o cinto e o passava ao sheriff. A seguir, o ranger tirou a camisa deixando aparecer um tronco
de uma brancura imaculada que contrastava com a cor tostada do rosto e do pescoço.
Mortimer, que também se havia despido, apresentava-se peludo como um urso, emanando de si um forte odor a coiro e a suor.
Parecia ter recuperado toda a sua afoiteza e confiança, depois que o seu adversário consentira em bater-se. Estava certo da sua vitória! Catamount podia ser um excelente
atirador, mas na luta corpo-a-corpo não levaria com certeza a melhor.
O ranger conservava-se impassível. Desembaraçava-se dos seus chaps, que podiam entravar-lhe os movimentos, e das botas munidas de esporas; encontrava-se agora descalço
como o seu antagonista.
Durante um momento nada mais se ouvia além dos gritos intermitentes do galo que se agitava nos ramos. Os olhares de Hal, de Topson e dos seus ajudantes nunca mais
se afastaram dos dois combatentes, que se preparavam para a luta.
À primeira vista, e apesar da estatura de Catamount, dava a impressão de que Winston subjugaria com facilidade o seu adversário. Fazendo sobressair os músculos enormes
e, franzindo as espessas sobrancelhas,
dirigiu disfarçadamente ao irmão um olhar cheio de confiança.
Mas o jovem nunca se manifestou durante os preparativos da inesperada competição. Apostava, no entanto, por Winston, e era preciso que o ranger fosse um insensato
para desejar tal desafio!
Winston herdara a força hercúlea do tio Teodoro, que fora outrora o mais forte dos Mortimer...
- GO!
O próprio Winston dava resolutamente o sinal de combate. Durante uns momentos curvou-se, pronto a saltar, depois endireitou-se e estendeu os punhos, simulando socos,
no intuito de intimidar o antagonista.
Catamount ficou impassível fixando o olhar claro nos olhos sombrios do bruto.
Imóveis, os quatro espectadores do combate que iria dentro em pouco desenrolar-se observavam atentamente os dois adversários. Sunter desviara de Hal o cano da sua
arma; contudo, o jovem não esboçara o mais pequeno movimento, esperando assistir ao rápido esmagamento do ranger, cuja audácia lastimava deveras.
Por fim, Winston soltou uma praga surda. Ainda que tivesse calculado bem o salto, caiu com todas as suas forças, num golpe a fundo, mas encontrou apenas o vácuo.
O homem dos olhos claros, dando provas de uma flexibilidade desconcertante, acabava de se esquivar do soco num salto rápido para o lado.
Os quatro espectadores acreditaram nesse momento que o ranger ia passar agora ao ataque. Ele, porém, desiludiu-os continuando a esperar frente ao adversário, tão
surpreendido com as suas repetidas fugas como com a sua atitude passiva.
Todavia, ao segundo assalto, Winston atingiu rudemente Catamount, Notavam-se-lhe as contusões no
torso branco sulcado de suor, mas o ranger aparava os
golpes valorosamente.
- By Jove! Ataque também! -; gritou Sunter, exasperado por ver o ranger empregar uma táctica tão diferente daquela que o colosso usava.
O homem dos olhos claros não respondeu. Observava o enervamento cada vez maior que se ia apoderando do antagonista; e, assim, recorria a um método já usado por ele
com êxito em várias ocasiões em que tivera de enfrentar adversários mais fortes. Procurava que o inimigo perdesse toda a calma porque, desse modo, não tardaria a
cometer algumas imprudências, de que ele se saberia aproveitar.
Passaram-se ainda três minutos. Catamount, atingido em pleno rosto pelo forte punho de Winston, cambaleou, mas depressa se refez, endireitando-se. O seu adversário,
porém, que mais parecia um leão picado por uma abelha, ia perdendo toda a calma e vociferava, irado:
- Patife! Maldito patife!
Mais uma vez o ranger se esquivou ao ataque; da comissura dos lábios corria-lhe já, todavia, um pequeno fio de sangue.
De repente e quando o sheriff e os demais espectadores da cena já começavam a desesperar, Catamount mudou então de táctica lançando-se decisivamente no contra-ataque.
Winston, que mais uma vez avançou, foi acolhido por um "directo" na boca do estômago.
Foi agora a vez de o colosso vacilar. Rogando pragas, quis refazer-se, dominar a fraqueza de que dera provas, mas os golpes caíam sobre ele como saraivada. De pálpebras
inchadas e meio cego, procurou retomar o ataque, mas encontrava-se tão fatigado pelos esforços prodigalizados em vão no começo da luta, que já pouco conseguia e
Catamount, agora, aproveitava-se da situação, assegurando-se da vitória.
- Damn! Eu mato-te! - dizia o colosso levantando o punho enorme, num esforço supremo, crendo ainda triunfar da resistência inesperada e enervante do seu adversário.
Este, porém, redobrando de energia, atingiu-o em pleno queixo antes mesmo de lhe dar tempo a nova arremetida. Mortimer teve um grito de dor, e um esguicho de sangue
espirrou-lhe da boca ferida, donde três dentes saltaram. Mesmo assim, mostrou vontade de voltar à ofensiva, mas foi sempre vencido em todas as tentativas. Catamount,
impiedosamente, socava-lhe o peito e o rosto.
Desconcertados pelo inesperado interesse do combate e ao mesmo tempo maravilhados com a ciência empregada pelo ranger, os assistentes depressa viram Winston endireitar-se,
de rosto ensanguentado, para depois tombar pesadamente para trás. Ali permaneceu, incapaz de se erguer, gemendo e arfando.
- É maravilhoso! É inacreditável!
Gus Topson, Sunter e Philipini não acreditavam no que viam. Quanto a Hal, fitava o vencedor, que ficara imóvel, limpando com a mão o fio de sangue que lhe corria
pelo queixo.
Os dois auxiliares foram então ajudar Winston a levantar-se -segurando-o pelas axilas.
- Batido! Fui batido!
O colosso nunca mais se refez! De rosto tumefacto e com a barba coberta de suor e de sangue, estava horroroso.
Quando se pôs de novo em pé, dirigiu ao ranger um olhar penoso e disse:
- Você ganhou! Agora faça o que entender!
- Winston Mortimer, você reconhece que a última palavra é da Justiça! Chegou, de facto, o momento de lhe prestar contas.
Catamount aproximou-se, muito calmo; depois olhando o adversário com insistência como se quisesse adivinhar-lhe os mais secretos pensamentos, perguntou:
- Agora confesse, Winston Mortimer! Foi você quem matou Gregório Canova?
A resposta veio pronta e feroz:
- Engana-se! Odeio os Canova, reconheço que desejei muitas vezes a morte dessa maldita peste, mas se alguém fez justiça não fui eu!
-. Veja bem - tornou o homem dos olhos claros -, não se serviu da Winchester que seu irmão deixou pendurada no cabide? Não desceu pela encosta e não atingiu o pequeno
bosque?
-. Eu não tinha necessidade da Winchester de Hal porque tenho a minha carabina. Além disso, ainda que me tivesse servido dela, admite que eu fosse tão imprudente
e louco que deixasse a arma abandonada a alguns passos da carcaça de Canova? Eu já não sou criança...
- Winston está inocente! - interveio Hal, que se encontrava a poucos passos de distância. - Se ele o afirma, diz a verdade!
- Então foi você! - disse Gus Topson, voltando-se para o rapaz.
- Juro sobre a cabeça da minha mãe que não matei Gregório Canova! - replicou Hal com voz firme.
- Então talvez fosse o tio Teodoro! - resmungou o sheriff, irritado - Pode ser que seja mais ágil do que se supõe...
Winston, apesar do estado miserável em que se encontrava, não pôde deixar de rir.
- O tio Teodoro!? É boa! Aqui há dez anos não diria que não, mas agora, com o reumatismo...
Mas a voz clara de Catamount interrompeu-os:
- Não percamos tempo - declarou - vamos voltar
a Spine Hill. É lá que se deve encontrar a chave do enigma.
- Tem alguma ideia? - interrogou Topson, voltando-se, intrigado.
Mas Catamount limitou-se a indicar o local onde os cavalos esperavam:
- Depressa! - ordenou - Sigamos para Spine Hill!
XIX
O CRIMINOSO
Bellworth começava a achar o tempo terrivelmente longo em Spine Hill. Sentado num banco junto da entrada, e com a carabina entre os joelhos, vigiava atentamente
os quatro detidos, deitando de vez em quando um olhar ao relógio.
À maneira que passavam as horas, o auxiliar começava a experimentar uma lassidão cada vez maior e, com melancolia, pensava em Mountain City e na agradável sombra
do saloon. Desde que fazia parte do grupo de auxiliares, era a primeira vez que se desempenhava de tal maçada!
De facto, o infeliz tinha de permanecer alerta, pois aqueles de cuja vigilância estava encarregado espiavam-no, na esperança de se aproveitarem da mais pequena
distracção que ele tivesse. Por várias vezes Sylvia tentou aproximar-se da porta, e Juan não se mantinha em sossego. Conservando o braço ao peito, guardava um silêncio
inquietante, deitando em redor olhares de animal cercado.
O tio Teodoro dava mostras dum enervamento que não procurava sequer dissimular; batia de vez em quando com a muleta no chão e proferia frases ameaçadoras, em que
o nome de Canova aparecia frequentes vezes. De sobrancelhas carregadas, apreciava a rapariga, irritado e não se conformando com a ideia de que uma Canova se tivesse
assim refugiado na casa dos Mortimer.
Apenas Kate havia readquirido toda a sua calma ocupando-se sossegadamente dos trabalhos caseiros. Preparava um almoço abundante, contando com a possível chegada
do sheriff e dos companheiros. Da parte de fora, viam-se os cães, que vagueavam, parecendo bastante surpreendidos por não verem sair os donos, como de costume. Sylvia
pensava em Hal. Como ela lastimava não ter podido acompanhar pela montanha aquele a quem amava! E a sua imaginação não deixava de pairar lá longe, perto de Red Bluff,
onde sabia que o fugitivo iria procurar abrigo. Toda ela estremecia quando pensava que o ranger se havia lançado em perseguição do rapaz. Hal não poderia defrontar
adversário mais temível e o resultado da luta não oferecia qualquer dúvida: tarde ou cedo ele seria obrigado a render-se.
E o tempo foi passando. Kate continuava atarefada junto do fogão e Bellworth iludia a sua impaciência fumando cigarros após cigarros. O auxiliar começava a sentir
os membros entorpecidos; de tempos a tempos, levantava-se e dava alguns passos, sem, contudo, deixar de vigiar os prisioneiros.
Por fim, os ocupantes da habitação sobressaltaram-se ao ouvir o furioso ladrar dos cães. Nestor e Ceres davam sinal. Bellworth e Sylvia aproximaram-se ao mesmo tempo
da janela, enquanto o tio Teodoro se endireitava o melhor que podia, apoiando-se às muletas. Quanto a Juan, encolhia-se cada vez mais no seu canto.
- Vêm aí! - exclamou a rapariga com o coração em sobressalto.
O martelar dos cascos dos cavalos dominava agora o ladrar dos cães. Um grupo de cavaleiros acabava de entrar no pátio e Sylvia logo à primeira vista reconheceu Catamount,
que caminhava à frente, montado no alazão. Atrás cavalgava Gus Topson, seguido de Winston e Hal, guardados pelos dois auxiliares.
O mais velho dos Mortimer vinha em estado lastimoso e o ranger trazia bem marcados na máscara enérgica os vestígios da luta terrível que acabara de travar. Quanto
ao sheriff, mais uma vez limpava ao seu inseparável lenço de quadrados o -suor que lhe corria pela testa.
Os recém-chegados saltaram agilmente para o chão; depois, em passo firme e arrastando consigo os prisioneiros, entraram na habitação.
Gus Topson foi o primeiro a franquear a porta, que Kate se apressara a abrir.
Seguiam-no os irmãos Mortimer e os auxiliares, e por fim Catamount, que fechava o grupo.
- Até que enfim! - exclamou Bellworth indo ao encontro do chefe - Já começava a fazer-me velho!
- Tudo se faz a tempo para quem sabe esperar. respondeu o homem dos olhos claros - Também a nós os minutos nos pareceram longos, mas não havíamos de voltar de mãos
a abanar e estou convencido de que não tardaremos a ver o fim deste doloroso- caso.
O tio Teodoro não deixava de olhar para Winston, que se apresentava miseravelmente, de rosto inchado e fato rasgado. Hal, mais calmo, não pôde deixar de sorrir ao
avistar Sylvia, que, imóvel, esperava junto da janela, não despregando dele os olhos.
- Já preparei o almoço... - aventurou Kate - Pensei que...
- Fez muito bem, senhora Mortimer, - aprovou o sheriff - mas é indispensável regular primeiro este assunto...
- Sim, é indispensável - aprovou Catamount. Sunter e Philipini colocaram-se à entrada da casa e
Bellworth pôde enfim descansar um pouco da tensão nervosa que o dominava.
- Quem te pôs nesse lindo estado, Winston? - interrogou o enfermo.
O colosso apenas deixou escapar um ronco abafado. Foi o ranger quem respondeu voltando-se para o ancião:
- O seu sobrinho contar-lhe-á tudo isso mais tarde, sr. Mortimer! Por agora convém tratar do que mais nos interessa.
Aproximando-se de Winston, Catamount declarou, então, olhando-o fixamente nos olhos:
- Winston Mortimer, você é acusado de ter assassinado cobardemente, pelas costas, Gregório Canova!
- Eu não assassinei Canova- respondeu imediatamente o mais velho dos Mortimer. Se o tivesse feito, gabar-me-ia disso! Há muito tempo que eu jurei dar cabo da pele
desse velho canalha!
- Todavia, - objectou o ranger - existe uma testemunha que o viu... Assegurou que você levava a Winchester de seu irmão...
- A minha carabina é muito boa... Não preciso da de Hal para nada... - respondeu o colosso com enfado
- Já lhe disse: o miserável que me acusou é um mentiroso !
Enquanto se entabulara este diálogo, Juan, sempre encolhido no seu canto, mostrava as feições contraídas por uma expressão de anseio. Em determinada altura, aproveitando
um momento em que os circunstantes lhe voltaram as costas, levantou-se sem fazer ruído e caminhou sorrateiramente para a porta. Aí, porém, esbarrou com Philipini,
que lhe gritou;
- Daqui ninguém sai!
Achando-se logrado, o índio voltou para trás;, mas nesse momento Catamount foi ao seu encontro.
- Aproxima-te, amigo! Pareces bastante apressado em nos deixares!
Juan não respondeu. Os seus olhinhos extremamente móveis olhavam em redor mostrando não haver compreendido,
mas depressa sentiu no ombro a pesada mão do ranger. Catamount, então, perguntou-lhe:
- Estás bem certo, amigo, de ter visto Winston Mortimer seguir pelo pequeno bosque com a carabina de seu irmão?
- Damnf Foi esse verme que me acusou?!
E Winston precipitou-se sobre o índio, mas foi impedido por Bellworth e Sunter, que o seguraram. O mais velho dos Mortimer debatia-se diabólicamente para se livrar
dos seus guardas. E vociferou:
- Vão acreditar nas palavras desse esterco? Catamount impôs silêncio ao colosso, e depois
comentou com firmeza:
- Não é com injúrias que se consegue descobrir a verdade...
E, apontando para o Navajo, acrescentou:
- Deixe-me interrogar este homem!
Fez-se por momentos um pesado silêncio na habitação, onde -só se ouvia agora o tiquetaque do relógio. Os olhos de todos convergiram, então, para o índio, que procurava
ainda escapar-se, mas Catamount segurou-o pelo braço válido e, fixando-o bem com os seus olhos claros, insistiu com energia:
- Estás bem certo de que foi Winston quem matou Gregório Canova?
Juan debatia-se e gemia desesperadamente.
- Sim, Winston matou! Winston é um cobarde e um assassino!
- Mentiroso!
Sunter e Bellworth viam-se em dificuldades para conter o colosso, que continuava na disposição de se precipitar sobre o índio.
A voz de Catamount dominou de novo as imprecações:
- Confessa, Juan! Foste tu que mataste Canova!
O Navajo tremia como varas verdes e grossas bagas de suor corriam-lhe pelo rosto acinzentado.
- Vamos, confessa! - repetiu o homem dos olhos claros - Tu não consegues enganar-nos, a trapaça é bem clara!
Gus Topson não pôde deixar de observar, inclinando-se para o ranger:
- Na verdade, não vejo qual seria o interesse desse miserável em abater Canova...
O ranger encolheu os ombros e respondeu:
- Em toda esta história, sheriff, não foi o interesse que entrou em jogo, foi o ódio, e tenho fortes razões para acreditar que Juan odeia tanto os Mortimer como
estes odeiam os Canova!
O representante da autoridade ia responder, mas Catamount impediu-o com um gesto, apressando-se a prosseguir:
- Aqui, é o ódio que impera como soberano absoluto. O ódio provocou a vendetta. Mas, enquanto o que existia entre os Canova e os Mortimer se ia prolongando indefinidamente,
um outro, mais perigoso e pérfido, se tramava na sombra...
Apontando para Juan, que continuava a tremer, disse:
- Foi Juan quem matou Gregório Canova!
- Não é verdade! - quis protestar o índio.
Mas todos compreenderam logo, pela sua atitude, que ele mentia. Catamount havia enfim conseguido rasgar o véu de mistério que envolvia o tenebroso caso, e a sua
voz implacável voltou a ouvir-se:
- Eu próprio verifiquei que Juan era aqui tratado com revoltante brutalidade. Winston espancava-o como a um miserável escravo, crivando-o de injúrias. Dessa maneira,
não nos surpreende que o infeliz procurasse vingar-se.
- Permita-me que... - interrompeu o tio Teodoro.
Teve, porém, de se calar por imposição do sheriff, e Catamount continuou:
- Juan, um fraco, um cobarde, um poltrão, incapaz de defrontar Winston, que Lhe inspirava um invencível terror, esperou a oportunidade de tirar a desforra do seu
algoz. Conhecia o estado de guerra que existia entre as duas famílias e decidiu, correndo o menor risco, tentar o grande golpe de abater um Canova pelas costas,
com a intenção bem nítida de fazer recair as suspeitas do assassínio sobre Winston.
O Navajo não tentou negar mais. Soluçava, amarfanhado junto da chaminé, e Catamount prosseguiu:
- Juan quis levar a carabina de Winston, mas este nunca se separava da arma. Assim, aborrecido e excitado pelas brutalidades do seu perseguidor, resolveu agir de
qualquer forma. Levou a Winchester de Hal, aproveitando a distracção da senhora Mortimer e do tio Teodoro. Uma vez de posse da arma, o índio esgueirou-se apressadamente
para as terras dos Canova, onde se emboscou à espera do primeiro que passasse. Quis a fatalidade que esse fosse Gregório Canova, que seguia descuidadamente pelo
atalho. Juan esperou então que ele o ultrapassasse para lhe disparar dois tiros pelas costas. O infeliz caiu sem mesmo ter suspeitado da presença do assassino.
- Cobarde! Miserável cobarde! - exclamou Sylvia, sem poder conter mais a sua indignação.
Juan continuava encolhido junto da chaminé, enquanto o ranger, implacável, prosseguia na sua acusação:
- Uma vez consumado o crime, era preciso fazer recair as suspeitas sobre os Mortimer, e Juan abandonou intencionalmente a Winchester, apressando-se em seguida a
juntar os carneiros, para aguardar os acontecimentos. Ele bem sabia quais seriam as consequências do seu cobarde crime...
- Abominável tratante! - rugiu, colérico, o tio Teodoro, ameaçando o índio com as muletas - E eu que nada percebi!
Mas Catamount prosseguiu ainda:
.- O resto é já conhecido de todos. Quis o acaso que eu me encontrasse no próprio local do crime e que assistisse ao último suspiro do infeliz homem.
Gregório Canova, numa derradeira manifestação de lucidez, pensou inevitavelmente que tombava vítima dos seus irreconciliáveis vizinhos. Pronunciou o nome de Mortimer,
afirmando logo a seguir que lhe perdoava.
Fez-se um breve silêncio. Gus Topson não podia esconder a admiração que lhe causava a argúcia do ranger. Quanto a Hal, sentia-se aliviado dum grande peso. Até aqui
as aparências haviam-no levado a acreditar na culpa de Winston, e o seu olhar cheio de esperança pousou então em Sylvia, que continuava imóvel e de olhos vermelhos
cheios de lágrimas.
Winston sentia-se profundamente desconcertado com a atitude do ranger, que, depois de haver sustentado contra ele uma luta tão encarniçada, o ilibava claramente
do crime de que era acusado.
Catamount, então, voltando-se para ele e para o tio Teodoro, que se mostrava também deveras embaraçado, disse:
- Acreditem que o ódio é mau conselheiro, e os acontecimentos acabam de o demonstrar claramente! Por toda a parte onde impera, arrasta consigo a inquietação, a desordem
e a mentira. Incita igualmente ao crime, e Juan não teria com certeza pensado nesta vingança se houvesse sido aqui tratado com a mais elementar caridade,
- Tem razão! - concordou Kate - Muitas vezes lhes disse que a vendetta só trazia a desgraça a toda a família! Mas nunca me deram ouvidos!
- Julgo que fariam bem em atender o desejo do morto - arrematou Catamount-Os seus agravos eram tão grandes como os vossos, mas, no limiar da eternidade, ele ouviu
a voz do perdão!
Gus Topson voltou-se para o índio, que escondia o rosto com o braço ligado, e disse-lhe:
- Todo o crime tem castigo, Juan! Prendo-te, em nome da lei!
O sheriff fez um sinal a Philipini, que se aproximou para prender o culpado. Este, porém, levantou-se bruscamente, e, antes que o pudessem deter, puxou por uma faca
que trazia escondida na ligadura e correu para Winston na intenção de o ferir.
Produziu-se então uma desordem súbita no meio de exclamações de surpresa. Winston saltara por sua vez para o lado e a lâmina do agressor não o atingira. Porém, Sylvia,
que, ao ver o gesto assassino do Navajo, correra para ele, tentando repeli-lo, foi apanhada pela arma, que a feriu. Sunter e Catamount apressaram-se a dominar o
energúmeno. Juan debatia-se com fúria, mas não tardou a ficar reduzido à impotência.
Hal, aflito, correu para a rapariga, exclamando:
- Meu Deus! Ele matou-te!
- Não foi nada! - respondeu logo Sylvia.
A lâmina atingiu o ombro direito da infeliz, que sangrava abundantemente, mas o ranger, num rápido exame, verificou que o ferimento não era grave, e sossegou o mais
novo dos Mortimer.
- A faca foi contra o osso. - assegurou o homem dos olhos claros - A ferida é superficial e, portanto, sem importância.
Enquanto os auxiliares conduziam Juan, fortemente escoltado, Hal e Winston aproximaram-se mais da rapariga.
O tio Teodoro parecia mergulhado em profundo
assombro. Kate, aterrorizada, aparecia com uma bacia cheia de água quente.
- Deixe-me tratar de tudo - interveio Catamount. Em pouco tempo, o ranger lavou cuidadosamente
a ferida. Sylvia parecia agora calma, e teve um sorriso furtivo.
- Dói-lhe muito? - perguntou-lhe o ranger.
- Nem por isso...
Estava pálida, mas a conclusão do drama fazia que ela esquecesse o sofrimento. Daí em diante, Hal não teria já de recear os rigores da lei, e a inocência dos Mortimer
no assassínio de Gregório Canova autorizava-o a encarar o futuro com confiança.
- vou transportá-la a Cedar Green - aventurou Catamount - Quer?
A rapariga aquiesceu com a cabeça, e então o homem dos olhos claros inclinou-se para ela e ergueu-a nos seus braços robustos, colocando-a pouco depois sobre Mesquita.
- Quando nos tornaremos a ver? - perguntou ansiosamente Hal, que havia acompanhado o homem dos olhos claros.
- Em breve, darei notícias!-respondeu Catamount. E, num rápido piscar de olhos, o ranger deu a
entender ao rapaz que eles não estariam muito tempo sem se ver.
Entretanto, Gus Topson e os adjuntos montavam também a cavalo, para conduzir o prisioneiro a Cedar Green, onde iriam prosseguir as investigações.
Hal imobilizou-se à porta da rua. Viu com emoção afastar-se o pequeno grupo. Quando ia a voltar-se, esbarrou com Winston, que se encontrava atrás dele. O colosso
já não mostrava o mesmo ar feroz e carrancudo, parecendo antes acordar de um sonho. Olhando para Hal, murmurou em voz repassada de emoção:
- Deus a salve!
XX
CATAMOUNT PACIFICADOR
Também Hellison esperava com impaciência o regresso do seu chefe a Cedar Green. Fiel à missão que lhe fora confiada, o auxiliar vigiava atentamente os três irmãos
Canova. Estes, porém, tendo voltado para junto de Margarida, pareciam calmos e sem outra preocupação que não fosse a de velar o corpo de seu pai.
Um impressionante silêncio pesava no ambiente, quando de súbito se ouviu um ruído de cavalos que se aproximavam, acompanhado de vozes. Hellison deu logo um salto
precipitando-se para a porta.
- Hélio, sheriff! - exclamou ele indo ao seu encontro.
O auxiliar acabava de reconhecer o chefe e os seus camaradas, mas ficou surpreendido ao avistar Juan, que, cabisbaixo e de braço ao peito, avançava escoltado por
Sunter e Philipini.
Catamount, um pouco afastado dos restantes, saltara do alazão, segurando nos seus braços Sylvia, que parecia agora melhor. Ela então pediu ao ranger que a deixasse
seguir pelo seu pé, e foi amparada a ele que apareceu no limiar da casa.
-Sylvia! Vens ferida?!
Rudi avistara a irmã e correra ao seu encontro.
- Foram ainda aqueles malditos! - praguejou ele.
A rapariga, porém, deteve-o logo com um gesto e, indicando o índio, declarou apenas:
- Aí tens o culpado!
- Vão saber tudo, dentro em pouco - rematou Catamount. - Por agora só lhes afirmo que os Mortimer nada têm a ver com a morte do vosso pai...
Três minutos mais tarde, Sylvia repousava junto de Margarida, no quartinho que ocupava em Cedar Green com sua mãe. Esta chorava, consternada.
- Isto não é nada! - assegurou Catamount - Dentro de poucos dias, a ferida estará cicatrizada, sossegue!
Gus Topson depois de se inclinar perante o corpo de Gregório Canova, apressou-se a pôr os três irmãos ao corrente dos acontecimentos desenrolados em Spine Hill e
em Red Bluff. Rudi, Luiggi e Pietro escutavam-no em silêncio. Este desfecho surpreendia-os tanto como surpreendera os Mortimer, e Rudi não pôde deixar de dizer:
- Se eu tivesse adivinhado!
- Evidentemente! - respondeu Catamount - Se tivesse adivinhado, não iria atacar os Mortimer, e o inquérito teria corrido de outra forma.
Agora, apertado pelo interrogatório do sheriff, Juan não hesitou em confessar. Catamount acertara. O índio agira apenas movido pelo ódio que votava aos Mortimer,
e principalmente a Winston. Abatera Canova na esperança de ver recair as suspeitas sobre aquele a quem odiava de todo o coração. Margarida e seus filhos escutavam,
aterrados, as revelações do Navajo.
- O que me admira é que Sylvia se tivesse exposto assim à morte para proteger esse bruto do Winston...
- exclamou finalmente Rudi.
- Não deve censurar sua irmã, que apenas quis evitar um novo crime! - replicou o ranger.
- Era, na verdade, uma grande perda!
E o jovem ia de novo lançar-se numa crítica acerba quando o seu interlocutor o deteve com um gesto:
- E então não acha que tem corrido já bastante sangue e que a vendetta provocou bastantes vítimas?
- O senhor tem razão - interveio Margarida que, silenciosa até aí, assistia à discussão - É tempo de acabar com este escândalo! Não pediu o próprio pai que se perdoasse?
No entanto, ele supôs...
- ..supôs que tombava vítima dos Mortimer concluiu Catamount - E, no momento de expirar, obedeceu à lei cristã da misericórdia e do perdão. Devem seguir-lhe o exemplo!
Sylvia conservava-se calada, repousando muito perto. Refeita das emoções provocadas pelo drama, a rapariga sentia renascer a esperança. Tinha a impressão de que
o abismo que até aí a separava daquele a quem amava estava prestes a desaparecer, e os seus olhos fixaram-se, cheios de gratidão, no ranger.
- A morte fere impiedosamente - prosseguiu o homem dos olhos claros - Eu vim a esta região para trazer aos Mortimer a triste notícia da morte de Art, o mais novo.
Do vosso lado houve a perda do chefe da família... A morte é implacável na sua ceifa. Lá, como aqui, há luto e dor, nada têm que se invejar!
Nenhum dos três irmãos se atreveu a protestar, pois compreenderam quanta razão havia nas palavras de Catamount. Os seus olhares pousaram na máscara rígida do defunto,
iluminada pela chama caprichosa de uma vela.
Então, Margarida levantou-se de repente, e, voltando-se para os três filhos, disse-lhes:
- Venham!
Eles obedeceram, seguindo-a num passo leve até à cabeceira do morto.
- Agora - declarou a mãe, cuja voz tremia de emoção - vão fazer-me o juramento solene de que, daqui em diante, viveremos em paz com os Mortimer!
Durante alguns momentos os rapazes hesitaram. Custava-lhes, apesar de tudo, despojarem-se do ódio que sempre haviam alimentado.
Estendendo a mão, Margarida apontou para a cruz e disse:
- Amai-vos uns aos outros! - e perguntou: Quem foi que proferiu estas palavras?
- Foi Cristo!-murmurou Luiggi, em voz abafada.
- Então não têm mais do que obedecer! Catamount, que assistia a esta cena, não muito
longe dali, sentia-se profundamente impressionado pela atitude da viúva de Canova. com os olhos avermelhados pelas lágrimas, não hesitou em substituir o seu infeliz
marido e em ditar a seus filhos a conduta que seria preciso manter de futuro:
- Jurem! - insistia ela, com energia.
Então, ao mesmo tempo, eles ergueram as mãos sobre o corpo do pai:
- Juramos! - declarou Rudi.
- Juramos! - repetiram Luiggi e Pietro.
- De aqui em diante acabou a vendetta, e viveremos em harmonia com os Mortimer!
Durante alguns momentos eles olharam-se em silêncio.
- É preciso também que os Mortimer façam jogo franco! - objectou Rudi.
- Eles hão-de jurar também - assegurou Catamount.
Gus Topson e os auxiliares ainda se conservaram em Cedar Green mais meia hora.
Margarida fê-los comer qualquer coisa e refrescar-se.
Catamount pouco comeu. De cada vez que se voltava, surpreendia o olhar de Sylvia, que o fixava com insistência. Compreendia muito bem as preocupações da rapariga,
que fora testemunha do juramento dos irmãos e pensava agora em Hal, que deixara em Spine Hill.
Fora além da sua missão: conduzira o inquérito a bom termo e conseguira que uma rixa implacável
acabasse. Podia já separar-se de Topson e dos auxiliares, e voltar a El Paso! Todavia, antes de partir, esperava obter a última vitória: assegurar a felicidade daquela
rapariga.
- Hélio, ranger! - Acompanha-nos a Mountain City - perguntou o sheriff. - Se quiser ir até lá, mostrar-lhe-ei os meus tomateiros. Estou certo de que não encontrará
iguais em El Paso!
- Lamento profundamente, sheriff, mas não poderei aceitar o seu convite. O coronel deve estar já a inquietar-se com a minha demora.
- Que pena!
Gus Topson, pensava no seu oásis, cuidadosamente tratado, e que tornaria a ver dentro de poucas horas. O pensamento de voltar em breve a sua casa fazia-o esquecer
as recentes desventuras.
- Espero, todavia, que nos tornaremos a encontrar em breve, mas em melhores circunstâncias...
Os dois homens trocaram um caloroso aperto de mão. Por sua vez, os ajudantes despediram-se também do corajoso companheiro, a quem auxiliaram de boa vontade e com
dedicação.
Quando eles partiram, levando consigo o prisioneiro, Catamount ficou só junto de Margarida. O homem dos olhos claros esperava apenas que o pequeno grupo desaparecesse
no atalho para saltar por sua vez para a sela.
O ranger seguiu para Spine Hill. Sem dizer nada do que tencionava fazer aos irmãos Canova, que ficaram a vê-lo partir, tomou o caminho da casa dos Mortimer.
Meia hora mais tarde, Nestor e Ceres receberam com os seus ladridos o destemido cavaleiro. Hal encontrava-se à entrada, sentado num banco, atarefado a limpar a famosa
carabina.
- Hélio! - exclamou, ao avistar Catamount.
Minutos depois, encontravam-se lado a lado, e o jovem estreitava com força a mão do ranger. Winston apareceu então no limiar da porta e, ao reconhecer o seu adversário
da véspera, parou, indeciso, não sabendo que atitude tomar.
- Pode aproximar-se! -declarou-lhe o homem dos olhos claros. - Depois, estendendo-lhe a mão, como fizera ao mais novo, observou-lhe: - Sem qualquer rancor, não é
verdade?
- Sem rancor! - respondeu imediatamente o colosso, que acrescentou a seguir:-Desculpe-me! Eu não podia saber...
- Acredite, Winston Mortimer, que existe outra lei, além da do mais forte...
- E pode orgulhar-se de ter feito triunfar uma e outra! - disse Winston, apontando para o seu rosto inchado e coberto ainda de adesivos.
Mas o homem dos olhos claros mudou de assunto:
- Vim procurar o seu irmão...
- Procurar meu irmão?
Winston pareceu profundamente surpreendido e, então, Catamount, estendendo a mão na direcção de Cedar Green, prosseguiu:
- Ele deve lá ir... e você também!
- Eu também? Para quê?
E no seu rosto deformado via-se estampada a hesitação.
- O ranger tem razão - interveio uma voz grossa
- não te esqueças de que deves a vida à filha de Canova! Se não fosse ela...
E o tio Teodoro, apoiado às suas muletas, aparecia por sua vez à porta da habitação, onde surpreendera a conversa trocada entre os dois homens. Atrás dele vinha
Kate, que amparava o cunhado.
- Está bem, seja! - consentiu por fim o colosso.
Os dois irmãos seguiram o ranger, que saltou para a sela imediatamente. Durante todo o percurso, conservaram-se calados, cada qual entregue aos seus próprios pensamentos:
Hal pensava em Sylvia, cuja imagem lhe era tão querida; Winston, na atitude que tomaria ao transpor pela primeira vez a porta dos seus irreconciliáveis inimigos.
O seu orgulho e ferocidade revoltavam-se contra aquilo que ele considerava uma humilhante capitulação.
Por fim, os três chegaram a Cedar Green. Quando o ranger introduziu os dois irmãos Mortimer, avistou os três Canova, imóveis e silenciosos, junto do corpo do pai.
Rudi voltou-se e teve um estremecimento ao reconhecer Winston e Hal. Os seus punhos crisparam-se, mas já Margarida ia ao encontro dos recém-chegados, acolhedora
e banhada em lágrimas.
- Sejam bem-vindos! - murmurou ela em obediência ao supremo desejo de seu infeliz marido.
Eles avançaram, de cabeça baixa, impressionados com a presença do cadáver, que jazia de mãos cruzadas e envolvidas por um rosário.
- Ele pediu que perdoassem...-insistiu a viúva indicando o corpo.
Hal a custo dominou a emoção. com a mão trémula, segurou o ramo de buxo, mergulhou-o na água benta e aspergiu o morto. Winston imitou-o a custo.
Catamount, que seguira sem fazer ruído os dois companheiros, pôde observar como os dois irmãos se encontravam emocionados.
Então, o ranger decidiu-se a romper o pesado silêncio:
- Vamos! A paz está feita, apertem as mãos! disse ele em voz calma.
Houve ainda da parte de todos uma breve hesitação, mas, logo a seguir, Hal estendeu a mão a Rudi.
O mais velho dos Canova não parecia, no entanto, muito resolvido a corresponder-lhe, quando surgiu de repente um vulto que, agarrando-lhe na mão, a colocou sobre
a que Hal lhe estendia.
Era Sylvia que intervinha. Angustiada, a rapariga, a princípio, chegou a acreditar que os dois grupos iam de novo afrontar-se. Mas a presença do ranger tranquilizou-a
e agora tinha o rosto iluminado pela alegria.
- Esqueçam o passado! - insistiu Catamount.
- Já que o pai pediu que perdoássemos, eu e meus irmãos perdoamos! - murmurou então Rudi, contendo mal a sua emoção.
- A paz seja com todos nós! -disse Winston por sua vez, não se reconhecendo nele, agora, o bruto que sovava tão barbaramente o índio. Esta dramática aventura parecia
ter feito dele outro homem.
- Teria sido melhor se sempre se tivessem amado, em vez de se detestarem! -aventurou Margarida, soluçante!
- A paz reinará, finalmente, em Cedar Green e em Spine Hill...
Reconhecida, Sylvia sorriu a Catamount, que acabara de pronunciar estas palavras.
E, quando o ranger partiu, ela apertou-lhe a mão com fervor, e um sincero e ardente "obrigada" veio-lhe espontaneamente aos lábios...
Graças ao homem dos olhos claros, o sonho que ela chegara a julgar impossível ia, enfim, realizar-se.
O Amor triunfara do Ódio!
Albert Bonneau
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